Monografia - Situações do desejo: cinema performado, em Ressaca
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Graduação em Comunicação Social
Situações do desejo: cinema performado, em Ressaca
Allan Rafael Dias Marques
Belo Horizonte
2010
Allan Rafael Dias Marques
Situações do desejo: cinema performado, em Ressaca
Monografia apresentada ao Departamento de
Comunicação Social como requisito parcial de
obtenção do grau de bacharel em
Comunicação Social, pela Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal de Minas Gerais.
Orientador: Prof. Dr. André Guimarães Brasil
Belo Horizonte
2010
Allan Rafael Dias Marques
Situações do desejo: cinema performado, em Ressaca
Monografia apresentada ao Departamento de
Comunicação Social como requisito parcial de
obtenção do grau de bacharel em
Comunicação Social, pela Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal de Minas Gerais.
Prof. Dr. André Guimarães Brasil (Orientador) - UFMG
Prof. Dr. César Geraldo Guimarães - UFMG
Prof. Dr. Carlos Magno Camargos Mendonça - UFMG
Belo Horizonte, 29 de novembro de 2010.
AGRADECIMENTOS
A meu orientador, André Brasil, pela preciosa companhia ao longo desse percurso, apesar das
dificuldades e momentos de dúvida e também pela forma gentil com que acolheu minha
pesquisa.
A minha família, Carlos, Silvana, Thamy, Karla e Lucas, que me permitiram chegar até aqui e
me ensinaram a viver. A meus pais, especialmente, pelo amor, dedicação e paciência.
A todos professores do curso de Comunicação Social com quem tive o prazer de conviver ao
longo da graduação, especialmente aqueles que lecionavam com amor e contentamento. A
eles devo muito de minha formação e apego ao campo: Alexandre Milagres, André Brasil,
Bruno Martins, Bruno Leal, Carlos Magno, César Guimarães, Denise Figueiredo, Elton
Antunes, Fábio Martins, Laura Guimarães, Leonardo Pereira, Luciana Amormino, Mírian
Chrystus, Paulo B, Renné França, Vera França e muitos outros.
A Osger Machado e Adriana Lemos, pelas lições profissionais, amizade e confiança.
A Bruno Vianna, que ministrou a Oficina de Cinema ao Vivo durante o 41º Festival de
Inverno da UFMG e tornou possível muito deste trabalho.
A André Hallak, pela oportunidade de me apresentar como VJ, no encerramento do 41º
Festival de Inverno da UFMG.
Aos amigos do curso de Comunicação Social, por dividir as dificuldades e prazeres de uma
formação tão heterogênea e desafiadora, especialmente Adler de Castro, Décius Diniz, Elton
Lizardo, Felipe Ivanicska e Pabline Félix.
A Tatiana, por seu amor e companhia.
A toda minha família de amigos espalhados por aí: amigos que foram, amigos que são,
amigos que serão. A João Paulo, Mônica, Maura, Otávio, Widler, Cláudia, Bruma, Felipe,
Lívia, Gabriel, Luíza, Solange, José, Rafael, Luiz Henrique, Juliana, Nádia, João Eduardo,
Dalva, Leandro, Saulo, Eduardo, Tiago, Stéphano e Ana.
"Entre o sufixo designando uma ação em
curso, mas que jamais será dada por acabada, e
o prefixo globalizante, que remete a uma
totalidade inacessível, se não inexistente,
performance coloca a "forma", improvável.
Palavra admirável por sua riqueza e
implicação, porque ela refere menos a uma
completude do que a um desejo de realização."
Paul Zumthor
RESUMO
Por meio da análise do filme Ressaca, de Bruno Vianna, este trabalho examina como a
narrativa cinematográfica pode ser atualizada através da performance. Tal filme situa-se
dentro de práticas audiovisuais emergentes, que expandem o dispositivo cinematográfico.
Esta análise busca identificar como o cinema instituiu-se como uma forma hegemônica, como
essa forma foi expandida, historicamente, através de obras e práticas específicas, até culminar
em uma espécie de cinema performado. Também busca investigar o que há de performático
em Ressaca, compreender como a performance opera, nesse filme, de modo a fazer a
narrativa variar. Para esses propósitos, foram analisados os elementos formais e performáticos
do filme em duas apresentações específicas dessa obra.
Palavras-chave: Cinema. Vídeo. Performance. Cinema ao Vivo. VJing. Ressaca (filme).
ABSTRACT
Through the analysis of the movie Hangover, from Bruno Vianna, this work examines
how the film narrative can be renewed through the performance. This film is situated within
emerging audiovisual practices that expand the cinematographical device. This analysis seeks
to identify how the cinema has established itself as a hegemonic form, how this form has been
expanded, historically, through works and specific practices, culminating in a kind of film
performed. It also investigates what is performative in Hangover and tries to understand how
the performance acts, in this film, in a way to make the narrative vary. For these purposes,
were analyzed the formal and performative elements of the film in two specifics presentations
of that work.
Key-words: Cinema. Video. Performance. Live Cinema. VJing. Ressaca (movie).
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1................................................................................................................................ 16
Figura 2................................................................................................................................ 17
Figura 3................................................................................................................................ 19
Figura 4................................................................................................................................ 51
Figura 5................................................................................................................................ 52
Figura 6................................................................................................................................ 53
Figura 7................................................................................................................................ 54
Figura 8................................................................................................................................ 54
Figura 9................................................................................................................................ 56
Figura 10.............................................................................................................................. 56
Figura 11.............................................................................................................................. 57
Figura 12.............................................................................................................................. 58
Figura 13.............................................................................................................................. 60
Figura 14.............................................................................................................................. 61
Figura 15.............................................................................................................................. 61
Figura 16.............................................................................................................................. 63
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO........................................................................................................ 12
2 CINEMA E SEU TRANSBORDAMENTO............................................................ 15
2.1 O cinema antes do cinema................................................................................ 15
2.2 Em torno da expansão do cinema..................................................................... 19
2.3 Performances audiovisuais em tempo real........................................................ 28
3 PERFORMANCE..................................................................................................... 33
3.1 Um conceito fluido........................................................................................... 33
3.2 Performance como operador analítico.............................................................. 45
4 RESSACA................................................................................................................. 48
4.1 Variação e permanência em Ressaca................................................................ 67
5 CONCLUSÃO.......................................................................................................... 77
REFERÊNCIAS........................................................................................................ 79
ANEXOS.................................................................................................................. 83
ANEXO A - Lista de cenas do filme Ressaca, citadas ao longo desse trabalho...... 83
ANEXO B - Letra da canção Against All Odds, interpretada por Phil Collins........ 86
ANEXO C - Letra da canção Space Oddity, interpretada por David Bowie............ 87
ANEXO D - DVD com cenas do filme Ressaca, da interface de edição e algumas
trilhas sonoras...........................................................................................................
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12
1 INTRODUÇÃO
O cinema teria nascido em torno do maquinismo da câmera e do dispositivo de
projeção, e também a partir do trabalho e reflexão dos primeiros cineastas e teóricos.
Historicamente, o cinema sempre esteve atravessado por questões de ordem técnica e de
ordem estética, em processo de modulação sem-fim entre esses pólos, sem que um pudesse
sobrepor-se completamente ao outro.
De fato, o cinema caminha de mãos dadas com a técnica e a estética, cristalizado numa
forma específica, sob o termo do dispositivo cinematográfico. Ao longo de sua história, esse o
dispositivo foi trabalhado até adquirir contornos mais ou menos claros, isto é, sua forma
hegemônica, representada, por exemplo, pelo modelo hollywoodiano.
No entanto, haveria uma dinâmica entre técnica e estética, capaz de levar adiante a
reflexão e as formas através das quais o cinema se cria. Aliás, já nos primórdios do cinema, há
obras que modificam, redistribuem e retrabalham seu dispositivo, mas que se encontram como
que encobertas pela forma hegemônica do cinema.
Hoje em dia, contudo, parece surgir diversas práticas audiovisuais que atualizam o
dispositivo cinematográfico e muitas delas procuram até se definir em oposição ao cinema.
Pode-se identificar algumas dessas práticas, cujo desenvolvimento se faz há pelo menos vinte
anos, sob a forma de diversos termos: VJing, cinema ao vivo, live images.
É possível mapear, no Brasil, uma proliferação de festivais e mostras de cinema e
vídeo que têm promovido sessões de cinema ao vivo e dado visibilidade a artistas e obras que
localizam-se sob esse termo. No Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro houve a
mostra Live Cinema em 2007 e também em 2008. Ainda no Rio, ocorreu I Mostra Nacional
de Live Cinema, na Caixa Cultural, em 2008. Em julho de 2009, no Festival de Inverno da
UFMG, houve uma sessão de cinema ao vivo com a exibição do longa-metragem Ressaca.
Em São Paulo, em novembro do mesmo ano, ocorreu a II Mostra Nacional de Live Cinema.
Em 2010, haverá a III Mostra Live Cinema, entre os dias 1 a 5 de dezembro, no teatro Oi
Futuro de Ipanema, na cidade do Rio de Janeiro. A mostra é organizada por Luiz duVa e
apresentará 16 atrações nacionais e internacionais.
De pequenas mostras para festivais específicos, percebe-se que a prática do cinema ao
vivo vem obtendo visibilidade e destaque no cenário audiovisual nacional e internacional. O
13
cinema ao vivo, enquanto temática, aparece na imprensa (matéria exibida no RJTV1 [jornal
regional da Globo, exibido no estado do Rio de Janeiro]), sites específicos2
Além do âmbito institucional, de festivais e galerias de arte, não parece haver muitos
escritos sobre o cinema ao vivo ou trabalhos acadêmicos que dêem conta de suas operações e
modos de fazer, bem como de suas diversas manifestações. Sua especificidade, suas relações
com o campo do audiovisual e da performance, suas possibilidades poético-expressivas, de
linguagem e narrativas, se não recalcadas, ainda são pouco discutidas e exploradas. Por tais
motivos, propõe-se aproximar desse objeto, procurando aclarar e instigar a reflexão sobre essa
prática relativamente pouco conhecida e estudada.
, posts em diversos
portais e blogs. Apesar desses esforços, essa prática ainda parece ser desconhecida para boa
parte do público que costuma freqüentar espetáculos audiovisuais.
O intuito desta pesquisa é, então, abordar algumas manifestações, reunidas ora sob o
termo cinema ao vivo, ora sob o termo VJing. Prefere-se aqui outra denominação, mais
abrangente e capaz de abarcar essas práticas: performances audiovisuais em tempo real.
Todas elas são entendidas, de forma geral, como práticas de agenciamento de imagens e sons
ao vivo, por um artista, diante de uma audiência. Além disso, este termo refere-se,
especificamente, a composições audiovisuais, remixes de imagens em movimento ou filmes
recombináveis. Em cada sessão desses espetáculos audiovisuais, os artistas podem criar uma
obra diferente, com narrativas distintas e novas cenas, a partir da relação que vai estabelecer
com os espectadores. Além disso, não haveria uma obra acabada, mas apenas a atualização de
possíveis, através da articulação dos elementos fílmicos em combinações e re-combinações
que nunca se repetem sem se diferir.
Este trabalho procura identificar em que medida tais práticas expandem o dispositivo
cinematográfico e os aspectos fundamentais a partir dos quais essa expansão se realiza. O
intuito do trabalho não é negligenciar tais aspectos, mas, simplesmente sublinhar o caráter
presencial e a idéia de um discurso colocado em ato, por meio de uma presença
compartilhada, características que se articulam em torno da noção de performance.
Esta pesquisa pretende avaliar o que a dimensão performática pode trazer para o
discurso cinematográfico e, para tal, analisa o filme Ressaca, de Bruno Vianna. Embora
performado, trata-se de um filme narrativo, que segue um modelo relativamente clássico de
narrativa. O filme narra a vida de um rapaz carioca de classe média, que vive sua adolescência 1 MOSTRA LIVE CINEMA NO RJTV. <http://vimeo.com/6281825>. Acesso em: 16 out. 2010. 2 SKYNOISE. < http://www.skynoise.net/2010/02/10/reflections-on-live-cinema/>. Acesso em: 10 nov. 2010.
14
na década de 80, enquanto o Brasil também passava por uma adolescência política e
econômica. O protagonista experimenta as mudanças da adolescência, ao mesmo tempo em
que sua família lida com a instabilidade de planos econômicos, moedas e crises.
Ressaca é montado ao vivo, durante sua exibição, na sala de cinema. Sua narrativa
possui aproximadamente uma hora e meia de duração e é composta por cerca de 80 cenas
distintas, articuladas a partir das 129 cenas disponíveis no banco de dados do filme. O filme
apresenta-se entre a situação convencional da sala de cinema e o VJing: embora performado,
os espectadores continuam sentados diante de uma tela.
Neste trabalho, portanto, deseja-se compreender como a narrativa é atualizada na
performance desse filme, bem como o que haveria de performático em Ressaca.
15
2 CINEMA E SEU TRANSBORDAMENTO
Como criar uma imagem em movimento? Uma questão técnica reside no centro do
cinema. Como trabalhar com imagem e som? Como projetar? Pode-se afirmar que o cinema
se fez como um campo de pesquisa - no qual estavam implicadas questões formais e
tecnológicas - e, ao mesmo tempo, retomou e atualizou diversas questões da pintura,
fotografia e literatura "em montagens inauguradas pela linguagem cinematográfica"
(MACIEL, 2009, p. 13). Como em qualquer arte, não há preponderância entre um e outro:
técnica e estética imbricam-se. No caso do cinema, a questão do maquinismo (a câmera e o
dispositivo de projeção) se coloca inevitavelmente no centro da criação, sem contudo,
determiná-la.
O cinema ainda se realiza como experimento, como campo de pesquisa. Novas
técnicas trazem consigo formas específicas de criação de imagens. Inauguram-se
possibilidades à medida em que concepções de arte se modificam e tecnologias surgem. Em
síntese, essas mudanças fazem avançar a reflexão sobre o cinema, as formas e os dispositivos
através dos quais o cinema se cria.
O computador, por exemplo, engendrou, historicamente, formas culturais próprias.
Surgidas na década de 60 com os pioneiros da arte digital, a intensificação dessas formas
ocorreu na década de 90. Trata-se de páginas da web, CD-ROMs hipermidiáticos, jogos
virtuais, instalações interativas. Em outras palavras: novas mídias. O computador possibilita
mudanças na forma como as mídias (e os regimes de expressão) existentes se realizam, entre
elas o cinema.
Para os propósitos deste trabalho, é preciso pensar minimamente como o cinema se
instituiu historicamente como uma forma específica e hegemônica, para ainda investigar suas
transformações, que dão origem a práticas diversas.
2.1 O cinema antes do cinema
Em uma concepção alargada, como a que sugere Makela (2006, p. 9), o cinema teria
começado a partir da projeção. O sol foi o primeiro projetor, desenhando sombras no chão, a
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terra como superfície. Posteriormente, o fogo serviu como projetor. Há várias tradições de
projeção com fogo, como Wayang Kulit, o teatro das sombras indonésio, com figuras
humanas feitas de couro de búfalo, movimentadas por varetas, à luz de uma lamparina que
projeta as sombras das figuras em uma tela.
Figura 1: figura articulada do Wayang Kulit.3
A Europa conheceu o teatro das sombras entre os séculos 17 e 18, trazido da Ásia,
onde se originou. Estabeleceu-se na Europa somente a partir de meados do século 20, de
3 Fonte: <http://en.wikipedia.org/wiki/Wayang#History_of_Wayang_Kulit>.
17
acordo com Rainer Reusche4
Desde a Idade Média (ou até mais cedo), diferentes dispositivos de projeção eram
utilizados. Espelhos parabólicos com figuras pintadas em sua superfície, projetores com
lanternas e buracos e até bolas de cristal de projeção estão entre os experimentos mais
conhecidos dessa época. A lanterna mágica seria outro dispositivo que teria antecipado o
cinema, definido como um dos primeiros projetores de slide.
(citado por Makela), por diversas razões. Com poucas exceções,
o teatro das sombras não era considerado uma forma de arte.
Figura 2: lanterna mágica de 1890, operada por vela, Museu de Wymondham.5
A primeira imagem do dispositivo apareceu no fim do século 17, no estudo Ars Magna
Lucis et Umbrae, do jesuíta alemão Athanasius Kircher. Na lanterna mágica, imagens eram
pintadas em vidro e projetadas em paredes e tecidos pendurados. Modelos mais avançados
possuíam três lentes separadas e eram capazes de produzir efeitos ópticos como dissolves
(fades) e mixes. Ver as imagens aparecerem era algo mágico. 4 Diretor do UNIMA International Shadow Theatre Centre, na Alemanha. 5 Fonte: < http://en.wikipedia.org/wiki/Magic_lantern>.
18
Entre o fim do século 18 e início do 19, entertainers itinerantes faziam apresentações
com pequenas lanternas mágicas, de cidade em cidade. Os mágicos foram os primeiros a
encontrar uso para os dispositivos de projeção, ao utilizá-los para criar ilusões fantásticas em
suas performances.
Em 1798, o mágico belga Etienne-Gaspard Robert criou um complexo horror show
com lanternas mágicas, numa capela nos arredores de Paris, sob o nome de Phantasmagoria.
Robert fazia executar cenas que envolviam atores, projeção de fantasmas (projeções múltiplas
e projeção em fumaça), combinados a efeitos de ventriloquismo, criando uma performance
que freqüentemente fazia seus espectadores desmaiarem. Até o surgimento do cinema, de
meados ao fim de 1890, a lanterna mágica era o único dispositivo de projeção disponível,
segundo Makela (2006, p. 10).
Em 28 de dezembro de 1895 ocorreu a primeira exibição pública de imagens em
movimento, creditada a Auguste e Louis Lumière. O dispositivo dos irmãos Lumière, o
Cinematógrafo, exibiu dez filmes curtos, durante aproximadamente 20 minutos, no subsolo
do Grand Cafe, em Paris. O dispositivo inventado era uma câmera portátil, uma unidade
impressora e um projetor.
Contudo, os irmãos Lumière não foram os primeiros a projetar imagens em
movimento. Em 1891, Thomas Edison demonstrou o Kinetoscópio, dispositivo que permitia
ver imagens em movimento, uma pessoa por vez. Em 1896, Edison lançou o Vitascope, o
primeiro projetor de sucesso comercial nos Estados Unidos, posteriormente substituído pelo
Projetoscope (1896). Paralelamente, surgiam outros projetores como o Eidoscope (1895) e o
Phantoscope (1895).
19
Figura 3: pôster anunciando o Vitascope, 1896.6
2.2 Em torno da expansão do cinema
Hoje, ao se mencionar o cinema, é comum pensar em imagens em movimento,
articuladas em uma narrativa que conta uma história em cerca de duas horas de projeção,
numa sala escura. Cinema é, na realidade, um termo bastante amplo.
Primeiramente, é importante caracterizar a forma habitual do cinema e sua expansão
para além dessa forma, para depois abordar práticas limítrofes, como o cinema performado, e
suas especificidades.
O cinema faz convergir a arquitetura da sala (herdada do teatro italiano), a tecnologia
de captação/projeção (desenvolvida no fim do séc. XIX) e uma forma narrativa específica (o
discurso da transparência). Ao assumir que o cinema é isso, estritamente, corre-se o risco de
6 Fonte: < http://en.wikipedia.org/wiki/Vitascope>.
20
negligenciar o fato de que se trata, na realidade, de uma forma que se tornou hegemônica: um
modelo estético determinado histórica, econômica e socialmente.
Logo, o cinema convencional, chamado de forma cinema (PARENTE, 2009) ou
hábito cinema (MACIEL, 2008, p. 76), não nasce com a invenção do dispositivo
cinematográfico. A forma cinema nasce com a institucionalização de um modelo de
representação: "um espetáculo que gera no espectador a ilusão de que está diante dos próprios
fatos e de acontecimentos representados" (PARENTE, 2009, p. 24), e que leva cerca de uma
década para se estabelecer. Em outras palavras, as técnicas de reprodução do movimento
surgem em 1896 mas a forma cinema se institucionaliza aproximadamente em 1908.
Se concordamos com Parente (2009, p. 25), a forma cinema é uma idealização: nem
sempre o filme é projetado numa sala escura, ou conta uma história ou se faz como um
discurso transparente. O cinema sempre foi múltiplo mas sua multiplicidade se encontra como
que encoberta pelo modelo dominante do cinema. Parente sugere que este modelo se
cristalizou como um dispositivo específico, cujo efeito primordial consiste na produção de
impressão de realidade. Na verdade, o autor afirma que o dispositivo cinematográfico
apresenta, além de seus aspectos arquitetônicos e técnicos, uma dimensão discursiva ou
estética que se cristalizou num modelo de representação específico, cujas origens remontam
ao cinema clássico, especificamente, o hollywoodiano. Nesse sentido, "ao longo da história
oficial do cinema, houve à sua margem várias experiências de variação e desvio desse modelo
ilusionista e da estética da transparência, que existem como projeto ideológico e modelo
teórico." (PARENTE, 2009, p. 28).
De acordo com Jean-Louis Comolli (2008, p. 135), o dispositivo do cinema engendrou
um espectador particular, historicamente datado, que se constitui pelo dispositivo. Tal
espectador possui uma genealogia e, por isso, é diferente do espectador do teatro, da televisão,
das feiras de variedades, das salas de concerto, das telas de computador, dos desfiles militares
e etc. Todos esses lugares do espectador mobilizam um olhar mas se distinguem por um
sistema que impõe ao corpo-espectador manter-se em uma relação definida e singular com a
configuração espaço-temporal que tal relação coloca em jogo. De uma situação a outra, troca-
se de papel e mobilizam-se modos de funcionamento específicos: não se olha a tela de cinema
como quando se passeia pela galeria de arte. Pensar o lugar do espectador implica pensar a
natureza e a força de seu desejo de ver e a maneira como são mobilizadas pela obra.
21
Nos primórdios do cinema, o que há de desejo no olhar do espectador ainda não havia
sido plenamente mobilizado porque o cinema começa como espetáculo, em praças públicas e
feiras, para depois ser levado às salas comerciais pelos irmãos Lumière. De saída, o lugar do
espectador no cinema se define por duas limitações: a imobilidade do corpo e a limitação do
campo visual pelo enquadramento. O olhar no cinema distingue-se radicalmente, portanto, do
olhar da experiência visual não-cinematográfica e traz consigo uma conseqüência: a partir de
tais limitações, descobre-se que "ver passa por não ver tudo" (COMOLLI, 2008, p. 140). O
lugar do espectador de cinema mobiliza uma dimensão consciente a respeito do fato de ver,
além do próprio desejo de ver.
Igualmente, o lugar do espectador é aquele de um desejo utópico de estar na cena,
"corpo exposto aos olhares da tela." (COMOLLI, 2008, p. 142). Como é impossível o
encontro entre corpos e olhares figurados na tela e o corpo do espectador, tal espectador
somente pode imaginar, sonhar, enfim, "projetar meu corpo como objeto de olhar deles (do
desejo deles)." (COMOLLI, 2008, p. 142).
Tudo isso faz com que o lugar do espectador se modifique no decorrer da sessão,
oscile de um lugar de conforto a um lugar de perigo
que se faz simultaneamente pelos violentos jogos do fora-de-campo, pela recorrência, pela volta ao apagamento, por essa consciência flutuante de que o olhar investido no filme é inteiramente incompleto, impreenchível, cegado e cegante, e, enfim, pela superposição dos corpos expostos dos atores e corpo escondido do espectador. (COMOLLI, 2008, p. 142).
Embora nascido no âmbito do espetáculo, o cinema pode, por meio de sua escritura,
criar modos de ver e formas de engajamento que resistem ao espetáculo. Não se deve assim
encarar a forma cinema como dispositivo e modelo de representação meramente ilusionistas,
em seu caráter estritamente ideológico, a oferecer uma imagem em troca de um mundo,
porque apenas o cinema, parece-me, pode, ao mesmo tempo, tensionar e torcer o mecanismo do olhar, incitar o espectador à sua própria transformação crítica, fazer cintilar o invisível como a superfície mesma do visível. (COMOLLI, 2008, p. 142).
Dito isso, para além da defesa de Comolli em torno do dispositivo e da escritura
particulares do cinema, pode-se perguntar se há lugar para outras manifestações
cinematográficas (outras formas de exibição) e se estas reservariam alguma força estética e
22
crítica. Seriam estas formas capazes de propor modos de ver problemáticos, também nascidos
do espetáculo, mas produzindo algum deslocamento em relação a ele?
Historicamente, desde os primórdios, é possível observar diversas manifestações que
atualizam e expandem as fronteiras da forma cinema. O transbordamento do cinema traz
consigo uma pluralidade de práticas e manifestações, vindo acompanhado de definições e
nomenclaturas, variáveis ao sabor de abordagens artísticas e teóricas. Tal proliferação ainda
está por ser sistematizada e há dificuldades para pensar e estabelecer categorizações mais
estáveis e duradouras.
Bellour, por exemplo, utiliza o termo outro cinema (BELLOUR, 2009, p. 95) ao
descrever obras - principalmente aquelas de natureza instalativa - que rompem drasticamente
com a idéia habitual de cinema. Tais trabalhos imitam, transformam, redistribuem o cinema
cada qual à sua maneira e o mérito deles, segundo o autor, reside em apontar para uma outra
situação. Para ele, se ainda se trata de cinema, "estamos justamente em um outro cinema."
(BELLOUR, 2009, p. 97).
As instalações sobre as quais Bellour discorre herdam do cinema a vocação de contar
e documentar, mas retrabalham as formas de expressão dos filmes. Pelo gesto que duplica o
cinema e diferencia-se dele, essas instalações inserem o cinema numa história que o excede,
"de tal sorte que o cinema pode ser visto, retrospectivamente e, sem dúvida, como uma
instalação que teria sido bem sucedida" (BELLOUR, 2009, p. 95) até o surgimento da
televisão e de outras formas de imagem em movimento.
Dominique Païni, por sua vez, discorre sobre o cinema exposto, isto é, projeções de
trechos de obras cinematográficas em museus e galerias: "trata-se, antes de tudo, de um
despedaçamento dos filmes, de um trabalho de detalhamento [...]." (PAÏNI, 2008, p. 27). O
cinema exposto ofereceria condições para o surgimento de um novo espectador (ou retorno de
um espectador do cinema de feira), um espectador móvel, que busca a sensação contra o
sentido, aquilo que o cinema era em sua origem, antes de começar a contar histórias. O mérito
do cinema exposto é oferecer-se como outra maneira de lidar com as imagens em movimento,
liberada do confinamento da poltrona, do agrilhoamento de "um dispositivo teatral restritivo."
(PAÏNI, 2008, p. 30).
Philippe Dubois (2009) descreve a mesma idéia através do termo efeito cinema na arte
contemporânea. O efeito cinema na arte pode ser entendido através da exposição de obras, em
galerias e museus, que fazem referência a filmes de maneiras diversas e, no plano técnico e
23
teórico, trata-se de pensar esses trabalhos em correspondência com o dispositivo do cinema,
principalmente as instalações que privilegiam questões relacionadas à projeção e à imagem-
movimento. Esse esforço, segundo Dubois, não é novo, pois o cinema, desde suas origens,
sempre se associou às práticas de exposição, como feiras e exposições universais.
Já Kátia Maciel (2009) prefere o termo transcinemas para designar uma imagem que
engendra ou cria uma nova construção de espaço-tempo cinematográfico, na qual a presença
do participador ativa a trama desenvolvida. Transcinema é uma outra forma de pensar o
cinema, dessa vez como interface, como uma superfície em que se pode ir através (grifo do
autor): "o espectador experimenta sensorialmente as imagens espacializadas, de múltiplos
pontos de vista, bem como pode interromper, alterar e editar a narrativa em que se encontra
imerso." (MACIEL, 2009, p. 18). Na investigação a respeito das rupturas com o cinema
tradicional, Maciel (2009) atenta principalmente para o desenvolvimento de narrativas
múltiplas no interior de um cinema de matiz interativo.
A partir da perspectiva de uma expansão do cinema para além de sua forma habitual,
Parente (2009) classifica, também, cinco momentos, ao longo da história, nos quais a ruptura
com o cinema seria patente. A primeira categoria de obras, chamada de cinema do dispositivo,
caracterizou-se pela experimentação com o dispositivo do cinema. Logo após a invenção
técnica do cinema, não se sabia o que ele seria, "razão pela qual houve uma experimentação
febril relacionada a seu dispositivo." (PARENTE, 2009, p. 36). Mesmo antes da
institucionalização da forma cinema, há experimentação com dispositivos de imagem. Cita-se
o panorama, uma instalação constituída por uma pintura mural construída num espaço
circular, em torno de uma plataforma central, de forma a criar uma ilusão nos espectadores,
como se eles estivessem diante dos próprios acontecimentos vistos na pintura. A partir de
meados do século XIX, o panorama se realizou como um espetáculo imersivo, como um
dispositivo aperfeiçoado da estética da transparência, em oposição a uma estética da
opacidade, levada ao extremo pela pintura expressionista e pela pintura abstrata, que
denunciavam o caráter artificial da representação.
Nessa época, ainda, houve diversas experimentações com o dispositivo do cinema,
algumas com êxito comercial (até o surgimento do cinema de sala), por exemplo, o
Kinetoscópio (Thomas Edison, 1891), Cineorama (Raul Grimoin-Sanson, 1889) e Hale's Tour
(William Keefe, 1903). O período do cinema do dispositivo compreende a invenção da
técnica, em 1896, e a institucionalização da forma cinema, por volta de 1908.
24
A segunda categoria proposta é conhecida pela chave do cinema experimental. Se a
forma cinema privilegiaria a impressão de realidade, as diversas tendências do cinema
experimental se interessam pela intensidade e duração das imagens. O autor lembra duas
tendências do cinema experimental: aquela da imobilidade completa, por exemplo, "os filmes
de Andy Warhol e Michael Snow, com seus infindáveis planos-sequência." (PARENTE,
2009, p. 37); e aquela tendência que visa obter uma espécie de imagem gasosa em há
dificuldades para identificar o que se vê. Esses filmes não são feitos para exibição em sala de
cinema e passam a ser vistos, atualmente, em museus e galerias de arte (algo que nos remete
às perspectivas de Païni e Dubois).
A terceira categoria a partir da qual Parente pensa a transformação do cinema é
chamada de videoarte ou cinema eletrônico. Na década de 60, o vídeo intensifica o encontro
entre o cinema e os domínios da arte (processo iniciado pelo cinema experimental). Para
Makela (2006, p. 17), a experimentação no vídeo era vista como uma resposta à dominação
efetuada pela televisão e os efeitos de vídeo eram as ferramentas dos artistas.
Os dispositivos da videoarte introduzem e potencializam os fenômenos como a
multiplicação de telas, o circuito fechado (tempo real), a coexistência entre imagem e objeto,
as instalações e a interação com a imagem. Além disso, a questão do dispositivo é central na
videoarte porque nesse movimento a obra não se apresenta mais como um objeto autônomo que preexiste a relação com o sujeito que a experimenta. Tudo nos leva a crer, portanto, que o cinema sofre uma transformação radical em tais instalações de vídeo, haja vista que elas permitem ao artista espacializar os elementos constitutivos da obra. (PARENTE, 2009, p. 39)
A instalação, na videoarte, considera a relação entre todos os constituintes do trabalho
e, muitas vezes, o espectador é um de seus elementos fundamentais. Nesse sentido, o centro
da obra é o próprio espectador que a torna, concretamente, aberta e processual: "engajado
num dispositivo, imerso num ambiente, o espectador participa da mobilidade da obra."
(PARENTE, 2009, p. 40). Também, a videoarte retoma o conceito de obra (desenvolvido na
década de 50) como situação, ambiente, arquitetura ou dispositivo no qual a participação
física do espectador é um elemento, como foi dito, constituinte da obra.
O cinema expandido, quarta categoria apresentada pelo autor, caracteriza-se a partir de
duas vertentes: 1) instalações que reinventam a sala de cinema em outros espaços e, 2)
instalações que radicalizam processos de hibridização entre as mídias distintas (PARENTE,
2009, p. 41). A idéia de cinema expandido caracteriza uma corrente nascida na década de 60
25
com artistas como Sten van der Beek, que inventou os termos expanded cinema, movie
murals, fresque mouvante, actualités oniriques (PAÏNI, 2008, p. 30). A ampliação e
multiplicação do espaço da tela, para Païni, definem o cinema expandido, uma corrente que
permitiu o êxodo dos cinemas para os museus, progressivamente, até culminar naquilo que ele
denomina cinema exposto. O cinema que se realizou fora das tradicionais salas de cinema
possibilitou uma relação distraída com as imagens: eis um espectador móvel cuja visão varia
de acordo com o tamanho da tela e pode entrar na imagem, ampliar, ver o detalhe, acelerá-la,
desacelerá-la; ele não mais se encontra limitado à imobilidade da poltrona (PAÏNI, 2008, p.
31).
Se o cinema experimental se restringe a exercícios estéticos com o cinema e a
videoarte limita-se a obras apresentadas em seu dispositivo de exibição habitual, o cinema
expandido "é o cinema ampliado, o cinema ambiental, o cinema hibridizado" (PARENTE,
2009, p. 41), que traz consigo "a idéia de uma variabilidade sem fim dos modos de projeção,
difusão e recepção das imagens (BELLOUR, 2009, p. 107). À guisa de ilustração, Parente
lembra duas obras: Sensorama (1955), de Morton Heilig, e Moving Movie (1977), de Michael
Naimark.
A última categoria proposta por Parente é chamada de cinema interativo, intensamente
relacionado às tecnologias informáticas. Sua principal novidade reside na potencialidade da
tecnologia digital, na medida em que tal tecnologia se realiza menos como um objeto e mais
como um espaço a ser explorado e experimentado. Modifica-se a experiência dos
espectadores no encontro entre computador e cinema e também as lógicas a partir das quais o
cinema opera. A experiência dos espectadores - ou interatores - passa a depender de suas
ações, configura-se a partir da relação (a interatividade) entre usuário e a obra, cujo sentido
inexiste a priori e, muitas vezes, constitui-se partir dessa relação (PARENTE, 2009, p. 43).
O computador é usado como dispositivo de produção desde o início dos anos 60 e, na
década de 90, já havia sido reconhecido como uma máquina universal midiática: uma
ferramenta utilizada para produção, armazenamento e distribuição de textos, sons e imagens.
Na perspectiva de Lev Manovich, dizer que o computador se tornou uma máquina universal
midiática significa reconhecer a emergência de um novo meio (entendido como suporte
material à informação), o metameio (metamedium) do computador digital (MANOVICH,
2000, p. 6). Tal metameio engendra, histórica e continuamente, novas formas midiáticas:
26
páginas da web, CD-ROMs hipermidiáticos, jogos virtuais, instalações interativas, em suma,
novas mídias (new media).
As novas mídias representam a convergência de duas trajetórias históricas e distintas:
1) computação e 2) tecnologias midiáticas (formas materiais diversas que permitem
armazenar imagens, sons e textos). A síntese dessas duas trajetórias é a tradução (translation)
de todas mídias existentes em dados acessíveis e manipuláveis através do computador. Em
outras palavras, o computador realiza a codificação numérica das mídias tradicionais, as
transforma em dados de computador, programáveis e, assim, muda radicalmente sua natureza
(MANOVICH, 2000, p. 54), garantindo a elas uma maior plasticidade.
A maioria das novas mídias se estrutura a partir de duas formas: o banco de dados e o
espaço navegável 3-D interativo. O banco de dados é, por definição, uma coleção de dados
(sejam eles imagens, sons, textos, etc.) organizados para busca e recuperação por um
computador, uma simples lista de itens na qual o usuário pode realizar várias ações: buscar,
navegar, procurar. Uma página da web, por exemplo, é uma lista seqüencial de elementos
distintos: blocos de texto, imagens, clipes de vídeo e hiperlinks para outras páginas. Para
Manovich, o banco de dados como forma cultural "representa o mundo como uma lista de
itens e recusa-se ordenar essa lista." (MANOVICH, 2000, p. 225, tradução nossa)7
O espaço navegável em ambientes 3-D se define como uma forma de estruturação e
visualização de dados (sejam eles de quaisquer natureza) num espaço virtual. Pode apresentar-
se, por exemplo, como uma interface para um banco de dados, uma representação
tridimensional de itens distintos; mas, em essência, constitui-se como uma forma cultural
específica das novas mídias. Naturalmente, a organização do espaço e seu uso para
representar algo é parte da cultura humana, a partir de técnicas como arquitetura, diagramação
e geometria. Apesar disso, o espaço navegável 3-D é diferente em um aspecto crucial (e por
isso se constitui como uma forma cultural inédita): pela primeira vez, o espaço se torna um
tipo de mídia, manipulável e sujeito a todas operações possíveis com as mídias tradicionais,
como resultado da conversão dessas em dados computacionais. O espaço pode ser
instantaneamente transmitido, armazenado e recuperado; pode-se programá-lo e interagir com
ele (MANOVICH, 2000, p. 252).
.
A maneira como se lida com a representação e com as mídias é profundamente
alterada com a introdução das formas culturais engendradas pelo computador - o banco de
7 "As a cultural form, the database represents the world as a list of items, and it refuses to order this list."
27
dados e o espaço tridimensional navegável: tais formas trazem consigo um modo próprio de
organizar o mundo e o entendimento a respeito dele. Não sem o risco de excessiva
generalização e de certo determinismo tecnológico, pode-se dizer com Manovich que, se, na
época moderna, a novela e o cinema privilegiaram a narrativa como forma expressiva central,
muitos objetos das novas mídias não contam histórias. Ao contrário, são coleções de itens
individuais aos quais se recusa estabelecer uma ordem, uma seqüencia. Cabe ao usuário
construir essa ordem, essa trajetória e, possivelmente, criar a narrativa. Trata-se, assim, de um
modo de organizar o discurso, privilegiando-se o eixo do paradigma, em detrimento do eixo
do sintagma.
De acordo com Manovich (2000, p. 230), sintagma é uma combinação de signos em
uma seqüência e têm o espaço como suporte. A exemplo da linguagem, o falante produz uma
sentença pelo encadeamento de elementos, um após o outro, numa série linear. A dimensão
sintagmática é a dimensão de existência do signo.
O paradigma é composto por grupos de signos, organizados por similaridades, dentro
dos quais se identificam relações entre seus elementos. É o repositório do qual são extraídos
os elementos de uma sentença, no momento da fala. Só existentes na mente do falante, tais
elementos estariam agrupados como conjuntos: de pronomes, de sinônimos, etc. Logo, a
dimensão paradigmática é a dimensão de potência do signo8
Pode-se utilizar essa formulação para compreender os filmes: os planos e seqüências
específicos que formam uma narrativa possuem existência material (a dimensão
sintagmática), enquanto elementos do imaginário do autor ou de um estilo cinematográfico,
que poderiam ter aparecido na narrativa, existem somente virtualmente (a dimensão
paradigmática). As novas mídias, contudo, revertem essa relação: ao banco de dados é dada
existência material (o paradigma) enquanto a narrativa (o sintagma) é desmaterializada. No
âmbito do cinema interativo, os elementos que compõem o filme estão no banco de dados e a
narrativa seria apenas uma articulação possível desses elementos.
.
Em síntese, é preciso saber que no encontro entre cinema e computador está em jogo
também a lógica do computador, que traz consigo uma forma específica de compreender o
mundo e que impõe suas próprias "demandas" à pratica cinematográfica. Num banco de
dados, a experiência do usuário é bastante distinta de ler uma novela, assistir a um filme ou
navegar num espaço arquitetônico. Conseqüentemente, o cinema interativo
8 Estes conceitos têm sua origem na Lingüística e na Semiologia e aqui são retomados por Manovich.
28
experimenta o espaço fora da tela e os limites lineares da narrativa. Projetores se multiplicam e se movimentam, ao mesmo tempo que histórias se bifurcam, como estruturas abertas à participação do espectador, para o qual a projeção passa a funcionar como interface ativa. (MACIEL, 2009, p. 15).
Em suma, a divisão da história cinematográfica e suas classificações refletem as
escolhas e ênfases de cada autor. É possível compreender as categorias destes autores como
formas gerais de apreender a expansão do cinema e as idéias a respeito dessa prática,
principalmente no que se relaciona às formas de exibição.
Toda categorização é, no entanto, redutora em relação à pluralidade de práticas e
imbricações possíveis. A partir das categorias e para além delas, trata-se de compreender as
maneiras nas quais esta "expansão" do cinema se atualiza, em experiências particulares.
2.3 Performances audiovisuais em tempo real
Diante desse outro cinema e que participa de uma estética da confusão (BELLOUR,
2009, p. 95), novamente, proliferam-se diversos termos: Live cinema ou Cinema ao vivo,
CineVivo ou Cinema Vivo, Live images, VJing (lê-se vidjeín). Bastante próximos, todos esses
termos tentam dar conta de práticas em desenvolvimento e designam, de maneira sintética,
formas de agenciamento de imagens e sons, em tempo real e diante de uma audiência.
VJ é um termo que surge na década de 80 para designar apresentadores da MTV.
Gradativamente, seu uso extrapola esse sentido e, hoje em dia, é uma sigla para diversos
nomes: video jockey, visual-jockey ou video-jamm. Para Patrícia Moran (2009), Video Jockey
(ou apenas VJ) refere-se a uma cultura de manipulação de imagens ao vivo, acompanhadas ou
acompanhando sons e também refere-se a seu realizador. VJing seria, portanto, as atividades
realizadas pelo VJ, contudo, VJ tem sido utilizado com para designar ora o realizador, ora a
arte de VJing.
Com efeito, VJing é a prática de agenciar imagens em relação à música, em festas de
música eletrônica. Os VJs "tocam imagens para DJs, com DJs ou no contra-tempo de DJs"
(MORAN, 2009), ao vivo e de maneira improvisada, atrás de telas e de computadores. Se os
29
DJs tocam músicas a partir de discos e CDs, os VJs tocam imagens, previamente ordenadas
em seqüências no computador.
Ao mesmo tempo, o VJing remete a um suporte, o vídeo, de acordo com Moran
(2009). Na década de 90, VJs usavam na pista fitas gravadas em vídeo. Hoje, a saída pode vir
de computadores ou mesmo de DVDs, sendo que há hardwares específicos, como o DVD-J da
Pioneer, que possibilita a manipulação ao vivo de imagens em DVD, com distorções criadas
com scratches e acesso não-linear à imagem.
No Brasil, VJing surge no fim da década de 90, com realizadores de diversas áreas -
arquitetura, vídeo e computação - manipulando imagens em festas de música eletrônica,
especialmente em raves. As galerias de arte também acolheram os VJs, de maneira periférica
e, atualmente, apresentam-se de maneira mais regular em festivais de vídeo, eventos de arte e
tecnologia, shows de música e em grandes festivais de bebidas.
Nos espetáculos de VJing, o que está em jogo são imagens referenciadas e
repertoriadas na cultura contemporânea, trabalhadas em íntima relação com a música,
principalmente a partir dos parâmetros de ritmo. Realizam-se em ambientes festivos, nos
quais, "para garantir a qualidade da projeção o ambiente é escuro, não se vê a longas
distâncias. A música alta e as imagens piscando saturam os sentidos. O ambiente é também
dispersivo." (MORAN, 2005). Destarte, VJing é uma práticas imagética que suscita outras
formas de fruição, porque
o espectador é chamado a se deslocar, ele perde a atitude passiva de se manter em uma única posição no espaço físico para acompanhar o espetáculo multimídia. O palco italiano com sua quarta parede desaparece. Há um tipo de fruição que se procura expressar pela forma, pelo conteúdo e pela ocupação do espaço. (MORAN, 2005).
Surgido nos últimos anos, outro termo tem ganhado força e procurado abarcar o VJing
em sua definição: Cinema ao Vivo ou Live Cinema. Bastante amplo, designa composições
audiovisuais, remixes de filmes ou obras experimentais, com objetivo de proporcionar uma
vivência cinematográfica ampliada, segundo o site da III Mostra Nacional de Live Cinema9
O termo foi usado originalmente para designar sessões de cinema mudo, nas quais
havia execução de música ao vivo, para acompanhar as imagens, nos primórdios do cinema.
Atualmente, refere-se a performances audiovisuais em espaços diversos, nas quais artistas
.
9 III MOSTRA DE LIVE CINEMA. <http://livecinema.com.br/index.php>. Acesso em: 27 out. 2010.
30
executam simultaneamente sons e imagens, ao vivo e diante dos espectadores. Em cada
exibição, o realizador pode criar um filme diferente, com narrativas distintas e novas cenas, a
partir da relação que vai estabelecer com os espectadores. Além disso, não haveria uma obra
acabada, mas apenas a atualização de possíveis, através da articulação dos elementos fílmicos
em combinações e re-combinações que nunca se repetem sem se diferir, criando uma
experiência audiovisual singular.
De acordo com a artista e pesquisadora finlandesa Mia Makela (2006; 2008), cinema
ao vivo refere-se a formas múltiplas de criação de imagens em tempo real. Em sua tese,
Makela argumenta que a diferença entre o cinema ao vivo e o cinema tradicional reside no
contexto e objetivos caros a cada uma dessas práticas. No cinema tradicional (ao menos em
sua versão hegemônica), segundo a autora, planos em que nada está acontecendo (do ponto de
vista do desenvolvimento narrativo), mesmo que visualmente poderosos, tendem a ser usados
como transições. De maneira complementar, os planos que contêm ações e diálogo tendem a
ser os elementos mais importantes na estrutura tradicional desses filmes. No cinema ao vivo,
os planos visualmente poderosos, independente de uma função narrativa, forneceriam a base
do material a ser manipulado ao vivo (MAKELA, 2006, p. 22).
Como o leitor pode se perguntar, a diferenciação anterior não é suficiente. Makela
também se questiona a esse respeito e diz que a definição do cinema ao vivo baseada no
conteúdo da obra não poderia nos dizer de algo próprio do conceito, já que algumas obras
dessa prática podem ser lidas, em parte, de acordo com as teorizações sobre o cinema
tradicional. Segundo a autora,
é difícil definir cinema ao vivo porque há diversos estilos e conteúdos, mas além do conteúdo do material visual há certas questões ou elementos que parecem essenciais a todas as performances de cinema ao vivo (e também para o VJing). (MAKELA, 2006, p.23, tradução nossa)10
.
Então, a autora procurou definir o cinema ao vivo a partir de seus componentes, seus
elementos estruturais: 1) espaço; 2) tempo; 3) projeção; 4) performance; 5) público (ou
participação).
Em sua tese, Makela está interessada em mapear os elementos e características
essenciais do cinema ao vivo, "também conhecido como a prática de criação de performances
10 "It is difficult to define what live cinema is as there are so many different styles and contents, but apart from the actual content of the visual material there are certain issues or elements that seem essential for all live cinema performances (as well as for VJing)."
31
audiovisuais em tempo real." (MAKELA, 2006, p. 4, tradução nossa)11
Na linha desse trabalho, mas evitando reiterar totalmente a divisão de Makela, ao
encarar o cinema ao vivo e suas diversas práticas em relação à história do cinema, defende-se
aqui, o uso do termo performances audiovisuais em tempo real para designar todas as
manifestações que, embora distintas em seus objetivos e contextos, partilham de alguns
aspectos fundamentais.
. Arriscadamente, a
autora esforça-se por estabelecer uma gramática do cinema ao vivo (live cinema grammar),
descrever sua linguagem e definir o cinema ao vivo, extensivamente, como uma prática não-
narrativa, plástica, sensorial. Novamente, em suas definições, Makela procura opor o cinema
ao vivo ao cinema tradicional, ainda que de forma excessivamente dicotômica.
Primeiramente, a maior parte das performances audiovisuais se realiza, em atual
estado da arte, a partir do computador; são, portanto, práticas com as novas mídias. Cabe-lhes
assim a categoria de cinema interativo. Tal divisão é, contudo, insuficiente para dar conta
dessas manifestações porque nem sempre apresentam a interatividade como elemento
fundamental, sendo necessário encará-las também a partir de outros aspectos.
Também como no cinema expandido, a configuração espacial é importante para as
performances audiovisuais, e freqüentemente considerada o ponto de partida no planejamento
da performance. Para Makela,
O cinema permanece um meio dependente da tela plana, ao passo que o cinema ao vivo e os artistas de instalação estão explorando as possibilidades de expansão da tela e convertendo nossas experiências audiovisuais em experiências espaciais em ambientes audiovisuais. (MAKELA, 2006, p. 33.) (tradução nossa)12
.
O espaço físico coloca audiência e artista em interação e todos espaços do cinema ao
vivo aí residem (cf. Makela, 2006, p. 25).
A consideração sobre o tempo também é cara às performances audiovisuais, já que se
realizam ao vivo, diante de uma audiência. A expressão ao vivo indica que algo ocorre no
presente, está conectado à emergência de uma situação, enquanto ela se traduz em imagem.
"Algo acontece diante de nós, em tempo real." (MAKELA, 2006, p. 36, tradução nossa)13
11 "This thesis explores LIVE CINEMA, also known as the practice of creating audiovisual realtime performances."
.
12 "Cinema remains a flat-screen based medium, while live cinema and installation artists are exploring the possibilities of expanding the screen and changing our audiovisual experiences into spatial experiences in audiovisual environment." 13 "it is something happening in front of us in natural time."
32
No contexto da mídia, Daniel Palmer define a imagem em tempo real como "uma
imagem que é produzida e recebida simultaneamente." (PALMER apud MAKELA, 2006, p.
36, tradução nossa)14
A situação ao vivo suscita outra dimensão: aquela da improvisação. Músicos de jazz,
por exemplo, podem improvisar por horas, a partir de uma base, e tal também pode acontecer
entre artistas de cinema ao vivo e músicos, permitindo que a intuição e participação assumam
precedência sobre um plano prévio. Nesse caso, segundo Makela, a comunicação entre os
artistas se torna visível, explícita para o público. A comunicação entre público e artista, suas
ações, num contexto e duração específicos, cristalizam-se em torno da idéia de performance.
. No cinema ao vivo, entretanto, podemos dizer de diferentes
agenciamentos do tempo real. A mixagem dos clipes de vídeo pode acontecer em tempo real
enquanto o performer faz decisões simultâneas; a imagem pode ser gerada em tempo real
através da variação de algoritmos; a imagem pode ser criada por uma câmera ao vivo e
modificada através de efeitos de vídeo que funcionam em tempo real, dizendo de uma
produção e processamento simultâneos.
O aspecto que se deseja reforçar na discussão sobre as novas práticas do cinema
define-se aqui em torno desta noção de performance. Como se verá, a noção de performance
efetiva-se a partir da co-presença entre artista, imagens e público (corpos coexistindo no
espaço e na duração) e de ações ao vivo e em tempo real (transitórias e abertas ao acaso). A
performance se realiza com a presença do artista e seu corpo, diante de um público, durante a
apresentação de um trabalho e sua força “se afirma pela articulação da intensidade de um
acontecimento com o seu momento presente” (MACIEL, 2007, p. 1).
Na medida em que se aproxima do objeto desta pesquisa nota-se que ele adquire,
circunstancialmente e apesar de sua variabilidade, características de todas as categorias
definidas anteriormente. O intuito do trabalho não é desconsiderar estes vários aspectos da
expansão do cinema, mas, simplesmente sublinhar o caráter presencial e a idéia de um
discurso colocado em ato, por meio de uma presença compartilhada.
Não se trata, portanto, de desmerecer outras formas de manifestação cinematográficas,
operar polarizações e hierarquizações. Deseja-se simplesmente avaliar o que a dimensão
performática pode trazer para o discurso cinematográfico, em nosso caso, na obra Ressaca, de
Bruno Vianna. Para isso, nos esforçaremos para definir o que se entende aqui por
performance, tentando nos apropriar de elementos pertinentes à nossa discussão específica.
14 "a real time image is an image that is produced and received simultaneously"
33
3. PERFORMANCE
3.1 Um conceito fluido
Performance é um termo que se tornou muito popular nas últimas décadas, em
diversas atividades, na literatura, nas artes e nas ciências sociais. Várias disciplinas pensam a
performance e seu conceito apresenta-se essencialmente contestado. (CARLSON, 2010, p.
11). As manifestações da performance na prática e na teoria, atualmente, são tantas e tão
variadas que um mapeamento completo é quase impossível. O estudo de Carlson (2010)
oferece uma introdução à variedade de elaborações sobre o conceito a partir de uma síntese
histórica e pode oferecer apontamentos fundamentais a respeito da performance.
Tradicionalmente, o uso do termo performance está associado à designação de
diversas práticas - teatro, dança, eventos musicais; por vezes também chamados de artes
performáticas. As artes performáticas sugerem que é necessária a presença física de seres
humanos treinados ou especializados, aptos a demonstrar certa habilidade que seria a
performance. A idéia da exibição pública de habilidade técnica é um dos aspectos encontrados
no conceito tradicional de performance.
A performance, pode-se identificar, também possui uma qualidade não relacionada
com a exibição de habilidade: a distância entre o self e o comportamento, semelhante à
distância que existe entre um ator e o papel que encena no palco. No palco, o ator tem
consciência do papel que desempenha, bem como os sujeitos, no cotidiano, podem reconhecer
que suas vidas estão estruturadas de acordo com modos de comportamento repetidos e
socialmente regulados. Se os sujeitos assim o fazem, é possível considerar qualquer atividade
humana como performance, ou, pelo menos, aquelas atividades executadas com uma
consciência de si mesmas. Outro uso, também recorrente, relaciona performance com o
sucesso de alguma atividade, por exemplo, quando se fala sobre a performance sexual ou
sobre a performance lingüística de alguém; no caso, julgar a performance não é de
responsabilidade do performer e sim do observador.
O etnolinguista Richard Bauman citado por Carlson (2010) articula esses usos díspares
e afirma que toda performance envolve uma consciência de duplicidade, "por meio da qual a
34
execução real de um ato é colocada em comparação mental com um modelo - potencial, ideal
ou relembrado - dessa ação." (CARLSON, 2010, p. 16). A comparação é feita, normalmente,
por um observador da ação (o público do teatro, por exemplo) mas o que importa é a dupla
consciência e não o observador externo. Performance seria sempre performance para alguém,
uma ação executada para alguém, um público que a reconhece e valida como performance
mesmo quando a audiência é próprio self.
Muitas vezes associadas ao termo performance, as referências ao teatro e à idéia da
teatralidade extrapolaram o campo das artes em direção a quase todos aspectos das tentativas
modernas de compreender a condição humana e suas atividades, bem como em direção a
quase todos os ramos das ciências humanas: sociologia, antropologia, etnografia, psicologia,
lingüística. Na década de 50 surgiram estudos que relacionavam antropologia, sociologia e
teatro tradicional: George Gurvitch chamou atenção, em 1956, para os elementos teatrais ou
de performance em todas as cerimônias sociais, mesmo numa reunião de amigos. As
discussões sobre performance, caras às teorias antropológicas e sociológicas, são de suma
importância para se compreender o conceito em questão e suas variações.
Na antropologia, Dell Hymes procura diferenciar performance de comportamento e de
conduta; para ele, o comportamento se refere à "qualquer coisa", "tudo que acontece", ao
passo que a conduta se refere ao comportamento no que ele é relativo às normais sociais,
regras culturais e princípios compartilhados de interpretação. O comportamento engloba a
conduta que, por sua vez, englobaria a performance, entendida como uma conduta na qual
"uma ou mais pessoas assumem a responsabilidade ante uma audiência e ante a tradição como
elas a compreendem." (CARLSON, 2010, p. 24). Tal definição tanto levanta problemas
quanto os soluciona, particularmente no que se pode entender como "assumir
responsabilidade". A audiência tem um papel central na maioria das tentativas de definição da
performance, mas a maneira pela qual o performer é "responsável" por ela é objeto de muita
discussão.
Há um consenso entre os teóricos de performance de que toda performance é baseada
em um modelo, roteiro ou padrão de ação que a preexiste. Em relação a esses modelos já
estabelecidos, muito das análises antropológicas da performance enfatizam que ela pode atuar
no interior de uma sociedade para abalar os fundamentos da tradição e propiciar uma
oportunidade para a exploração de novas estruturas e modelos de comportamentos
alternativos. O papel e a relevância da performance no interior de uma cultura, para reforçar
35
as suposições dessa cultura ou para engendrar a diferença, é um debate em curso e só atesta a
qualidade contestada nas análises da performance.
Performance cultural é um termo amplamente encontrado nos escritos etnográficos e
antropológicos e foi criado por Milton Singer em 1959, para argumentar que os asiáticos do
sul e talvez
todos povos pensassem que sua cultura fosse encapsulada em eventos separados, em "performances culturais", que poderiam ser exibidas para eles próprios e para os outros e que forneceriam "as unidades mais concretamente observáveis da estrutura cultural". (CARLSON, 2010, p. 25).
Singer lista o teatro, danças tradicionais, concertos, saraus, festividades religiosas,
casamentos entre essas performances culturais, que partilhavam de certas características: uma
duração limitada, um princípio e um fim, um programa de atividades organizado, um conjunto
de performers, uma audiência, um lugar e uma ocasião de performance. A concepção de
Singer aproximou as teorias da antropologia e do teatro já que "se quiser substituir 'um
roteiro' pelo 'programa organizado de atividade' de Singer, então essas características
distintivas da performance cultural poderiam facilmente estar descrevendo o conceito
tradicional de teatro" de acordo com Carlson (2010, p. 26).
Richard M. Dorson observou entre as décadas de 60 e 70 o surgimento de uma nova
orientação nos estudos entre cultura e performance, nos estudos de folclore e na antropologia
em geral, que ele chamou de abordagem contextual da pesquisa folclórica. Na abordagem
contextual o foco muda do texto folclórico para a sua função como um ato performativo e
comunicativo numa situação cultural particular. A nova ênfase se interessava menos pela a
rede total de eventos comunicativos culturalmente definidos e mais sobre aquelas situações
nas quais a relação de performance existe entre falantes e ouvintes.
Em 1986, a propósito do estudo sobre a narrativa oral, Richard Bauman tentou definir
a "essência" da performance a partir das formulações de Dell Hymes, mas sob nova
orientação. Sua definição começa com a paráfrase de Hymes: "a admissão de
responsabilidade de uma audiência pela exibição de habilidade comunicativa mas [...]
"iluminando o modo no qual a comunicação acontece, acima e além de seu conteúdo
referencial" (grifo de BAUMAN apud CARLSON, 2010, p. 27). Para Bauman e Hymes, o
contexto, a situação de performance total é mais importante do que as atividades do
performer. Saber em que medida a performance em si resulta de algo que o performer faz e
36
em que medida resulta de um contexto particular no qual é feita é outro aspecto
essencialmente questionado nas tentativas de definição do conceito.
Bem assim, para Bauman, a performance é marcada para ser interpretada como
performance e é este "marcar" que permite a uma cultura experimentar performance como
performance. Por quais operações esse "marcar" se realiza? Essa é uma das questões de
Gregory Bateson em seu ensaio de 1954, A Theory of Play and Fantasy. Nesse ensaio, o autor
preocupa-se em como os organismos vivos distinguem "seriedade" de "brincadeira." A
resposta repousa na capacidade de metacomunicação, ou seja, para que a mensagem
comunicativa "isso é brincadeira" possa funcionar, alguma operação mental precisa dizer o
que está e o que não está incluído nesse "isso". Bateson conclui que "toda mensagem
metacomunicativa é ou define uma estrutura psicológica" (BATESON apud CARLSON,
2010, p. 28), no interior da qual o assunto total está contido. Baseado nessas preocupações, os
teóricos antropológicos e folcloristas, bem como os teóricos psicológicos e sociológicos
(principalmente Erving Goffman) desenvolveram uma visão de performance que deve mais ao
contexto e à dinâmica da recepção do que às atividades específicas do performer.
(CARLSON, 2010, p. 28).
Modernamente, ainda na antropologia, emerge um debate em torno da performance e
da alea, ou acaso, surgida a partir das experiências teatrais do Dadaísmo e do Surrealismo no
início do século, bem como dos happenings e teatro experimental dos anos 60 e em torno da
obra do músico John Cage. Os teóricos e práticos da performance consideram o improviso
como um meio de livrar-se das estruturas e expectativas, em geral, altamente codificadas, da
experiência teatral convencional.
Também, o conceito moderno de performance está atravessado por abordagens que
enfocam prioritariamente a performance como um fenômeno etnográfico ou antropológico, a
performance na cultura. Além delas, pode-se citar teorias sociológicas e psicológicas, cujo
interesse privilegia a performance na sociedade. Na década de 1940 e 1950, pesquisadores da
psicologia e da sociologia interessaram-se em aplicar o conceito teatral de role-playing
(assumir um papel, tradução nossa) em seus estudos. Desenvolveram estratégias e
vocabulários distintos, mas a teoria da performance foi mais influenciada pelo modelo
sociológico da obra de Erving Goffman.
Goffman também faz uso da metáfora da performance teatral para discutir a
importância das operações do role-playing nas situações sociais. Performance, para esse
37
autor, "é toda atividade de um indivíduo, que ocorre durante um período marcado por sua
presença contínua perante um conjunto particular de observadores, e que tem alguma
influência sobre esses observadores." (GOFFMAN apud CARLSON, 2010, p. 49). Tal
definição poderia servir para muitas das atividades artísticas que têm surgido recentemente
sob o título de performance, segundo Carlson.
A formulação de Goffman define a performance a partir do parece ser uma qualidade
essencial da mesma, que é estar baseada numa relação entre a audiência e o performer. Todos
os teóricos da performance reconhecem tal qualidade: os estudiosos da performance cultural
colocam a ênfase na audiência ou na comunidade na qual a performance ocorre, os
pesquisadores da performance social também caminham nessa direção, ao contrário dos
filósofos da ética e psicólogos, que tentam a valorizar as atividades e operações da
performance. A posição de Goffman está baseada firmemente nessas duas preocupações, mas
sua ênfase geral é em relação à audiência, em como a performance social é reconhecida pela
sociedade e como ela funciona no interior da mesma. No entanto, o autor não enfatiza a
produção consciente de um tipo de comportamento, algo esperado de uma teoria de
apresentação ou jogo de papéis dos atores.
De acordo com a formulação de Goffman, a performance também deve ser
reconhecida como tal. A performance seria um arranjo que coloca uma seqüência limitada de
atividades diante de pessoas no papel de audiência, "cujo dever é observar no todo as
atividades dos performers sem participar diretamente delas." (CARLSON, 2010, 50). Se a
audiência reconhece o papel do performer como um signo, é porque a estrutura conceitual foi
estabelecida, indicando que aquele material dentro da estrutura foi apresentado à observação e
interpretação.
Por outro lado, a análise da performance não pode reivindicar unicamente a ênfase na
recepção; é uma parte apenas de sua abordagem. Como os performers controlam bastante o
aparato de produção no qual sua estrutura emerge, deve-se considerar as contribuições
conscientes dos performadores para o processo de performance, tão importante como a função
da audiência.
A maioria das teorias de performance, de fato, considera essa dimensão necessária.
Goffman chama atenção para a atividade de fazer o papel social e os diversos meios com que
os membros da sociedade, com maior ou menor grau de consciência e com maior ou menor
grau de sucesso, esforçam-se para desempenhar um papel ou como eles perseguem "o
38
trabalho de colocar com êxito o personagem no palco." (GOFFMAN apud CARLSON, 2010,
p. 53). Os limites da interação que transformam as atividades em performances não são
restrições à audiência e sim, em essência, restrições ao papel do indivíduo. O indivíduo
precisa escolher um front (cenário, figurino, gestos, voz e aparência, por exemplo) e manter
um compromisso com a coerência e a organização seletiva do material apresentado para que
sua atividade se realize como uma atividade direcionada à comunicação. Dessa discussão
sobre atividades cuja comunicação é bem sucedida, Dell Hymes deriva sua teoria de
performance como "comportamento cultural no qual uma pessoa assume responsabilidade
para com uma audiência" (HYMES apud CARLSON, 2010, p. 53). Essa formulação recupera
o objetivo social da performance - para uma audiência - como Goffman enfatiza, mas introduz
novamente a responsabilidade da performance e de seu agenciamento, pelo performer.
Para Carlson (2010), "ter responsabilidade" enfatiza a seriedade e a relevância do
agenciamento do performer. Numa situação qualquer, o performer pode estar verdadeiramente
inconsciente quanto às implicações de sua exibição, daí que o agenciamento do aparato de
produção toma para si esse processo, isto é, a audiência reconhece a performance,
independente do performer. No teatro convencional, essa também é uma parte importante da
situação, embora o agenciamento esteja disseminado pela organização teatral e, portanto,
compartilhado, em parte, pelos performers individuais. Na atual arte da performance, o
agenciamento pessoal do performer é sempre de suma importância: o performer é trazido à
tona, ele emerge como um "resultado da própria decisão [...] de que a apresentação para uma
audiência aconteça." (CARLSON, 2010, p. 68).
A relação entre o eu do artista de performance e o eu que está sendo apresentado
suscita a discussão sobre a clivagem entre atividades do dia-a-dia, para as quais a
responsabilidade ética é necessária, e a performance num contexto "teatral", mais distante de
tais preocupações. As abordagens da performance social têm considerado tal relação
normalmente próxima - e têm sido criticadas por isso. As abordagens lingüísticas, por sua vez,
fornecem um dos mais claros exemplos das dificuldades de se estabelecer tal divisão.
Na teoria lingüística, a performance emerge no trabalho de Noam Chomsky. No livro
Aspects of Theory of Syntax (1965), esse autor distingue competência, o conhecimento ideal e
geral da linguagem que todo falante possui, e performance, aplicação específica de tal
conhecimento numa situação de fala. Essa distinção reproduz a divisão entre la langue,
princípios básicos de organização de uma língua, e la parole, atos de fala específicos, criada
39
no início do estudo moderno da lingüística por Ferdinand de Saussure. A formulação de
Chomsky destacava habilidade e ação mas ainda mantinha a ênfase dos lingüistas tradicionais
sobre la langue ou sobre a competência, definidas a partir do estudo estruturalista de
princípios abstratos e generalizados de uma língua, baseados em uma variedade de exemplos
individuais.
A consideração sobre a performance começa a mudar a partir da década de 60, com
diversos estudiosos da lingüística. A performance passou a ser considerada como uma
atividade positiva e autorizada por si mesma, não somente um derivativo de uma competência
restrita ou mesmo corrompida (la langue). Esses pesquisadores partiram da teoria lingüística
tradicional e também se inspiraram em textos das ciências humanas e sociais, por exemplo, os
escritos de Goffman. Surgiram termos cuja ênfase está na atitude interdisciplinar, por
exemplo, etnografia da comunicação ou sociolingüística.
Da sociolingüística cita-se Dell Hymes, que reivindica uma lingüística mais
"funcional" para suplementar a lingüística "estrutural" tradicional. A lingüística "funcional"
baseia-se na análise e nos métodos sociológicos e antropológicos para observar a performance
e a contextualização dos eventos de fala, ao contrário de privilegiar as regras gramaticais,
como ocorre na lingüística "estrutural". A comunidade e as situações de fala são consideradas
como "a matriz e o depositário de códigos e sentidos ao invés de uma comunidade geral e
culturalmente homogênea." (CARLSON, 2010, p. 70). Essa abordagem evidencia um
interesse histórico em associar o estudo da performance a questões sociais e antropológicas.
O trabalho do russo Mikhail Bakhtin sobre o carnaval localiza-se no contexto de uma
teoria da performance associada a preocupações da antropologia moderna. Seus escritos
contribuem de forma importante para a teoria lingüística da performance a partir de sua
orientação contextual para a elocução, conceito central em sua obra. Elocução é uma faixa de linguagem, isto é,"sempre de natureza individual e contextual", um "elo inseparável" numa cadeia de discurso em andamento, nunca reaparecendo precisamente no mesmo contexto, mesmo quando, como sempre ocorre, um modelo específico de palavra se repete. (CARLSON, 2010, p. 71).
A elocução asseguraria a transformação do sentido das palavras, variáveis de uma
situação para outra. Ademais, qualquer fala sempre está envolvida numa citação ou fala
anterior, assim como nenhuma citação é completamente fiel, já que o contexto se modifica e a
altera. Os sujeitos continuamente assimilam e retrabalham as palavras existentes, embora elas
carreguem consigo algo de sua "própria expressão". A fala teria uma dupla orientação: sempre
40
envolvida com a reprodução e com o fluxo. A idéia de uma tensão criativa entre inovação e
repetição está profundamente enraizada em visões modernas de performance, lingüísticas ou
não-lingüísticas.
Ainda na lingüística surge outra abordagem, desenvolvida por John Austin e John R.
Searle, que tem sido influente no pensamento moderno sobre a performance. Menos
relacionada com a contextualização social do ato de fala, esses teóricos ofereceram uma
metodologia para se considerar a linguagem como performance, como ato de fala, bem como
Milton Singer desenvolveu métodos para considerar a cultura como performance ou mesmo
Goffman, ao considerar o comportamento social como performance.
Na abordagem de Searle, o aspecto performático de qualquer linguagem era o que
importava:
a unidade da comunicação lingüística não é, como se supõe geralmente, o símbolo, a palavra ou a sentença, ou a mesmo a prova do símbolo, da palavra e da sentença, mas a produção ou emissão do símbolo palavra ou sentença na performance de um ato de fala. (SEARLE apud CARLSON, 2010, p. 74).
Tal qual encontrado na performance antropológica ou social, surge uma abordagem
performativa da linguagem, na qual importa o contexto particular de um ato, a
intencionalidade do produtor do ato e o efeito real ou presumido do ato sobre quem o
testemunha. Ademais, uma teoria de linguagem é, para Searle, parte de uma teoria da ação,
realizada como "forma de comportamento governado pela lei." (SEARLE apud CARLSON,
2010, p. 75).
O mérito dessa análise está em reconhecer a natureza performativa da linguagem em
geral. Igualmente, essa análise desloca o centro das preocupações lingüísticas tradicionais e os
elementos formais da linguagem e sua estrutura e se concentra na intenção do falante, seus
efeitos na audiência e na análise do contexto social específico onde cada fala se realiza.
Carlson (2010, p. 76) sugere que essa abordagem encontra dentro da linguagem uma
divisão que os pensadores da perfomance sempre procuraram estabelecer entre a linguagem e
ação física - ou em relação ao teatro e à performance:
De um lado, temos a semiótica, a lingüística e o simbólico, cujos elementos representam realidades ausentes e cuja utilização é governada por estruturas abstratas mais ou menos fixas. De outro, temos o cerne da presença física, cujos elementos oferecem uma realidade acessível que, entretanto, só pode ser compreendida dentro de um contexto específico, nunca precisamente repetido. (CARLSON, 2010, p. 76).
41
O filósofo suíço Paul Zumthor também se depara com tal clivagem e afirma que, da
performance à leitura, muda a estrutura do sentido. Para esse autor, a performance
não pode ser reduzida ao estatuto de objeto semiótico; sempre alguma coisa dela transborda, recusa-se a funcionar como signo... e todavia exige interpretação: elementos marginais, que se relacionam à linguagem e raramente codificados (o gesto, a entonação), ou situacionais, que se referem à enunciação (tempo, lugar, cenário). Salvo em caso de ritualização forte, nada disso pode ser considerado como signo propriamente dito - no entanto, tudo aí faz sentido. A análise da performance revelaria assim os graus de semanticidade; mas trata-se, antes, de um processo global de significação. (ZUMTHOR, 2007, p. 75).
Além disso, Carlson aponta estudos recentes e questões centrais na teoria da
performance atual, tal como encontrado no artigo Rethinking Ethnography: Towards a
Critical Cultural Politics, de Dwight Conquergood, publicado em 1991. Conquergood lista
quatro preocupações (para o campo da etnografia e para a performance): 1) uma consciência
da construtividade da atividade humana e de sua implicação na retórica e nas codificações
sociais e culturais; 2) um interesse particular no território liminar, nas fronteiras e limites; 3) o
"retorno do corpo"; e o 4) surgimento da performance e a mudança de se ver "o mundo como
texto" para se ver "o mundo como performance". Embora Carlson ressalte que o "retorno do
corpo" é uma questão central no pensamento moderno sobre a performance e que tem sido
"seriamente qualificada pela pós-moderna estética da ausência" (CARLSON, 2010, p. 223),
ele não explora o tema. A abordagem de Paul Zumthor, ao contrário, versa sobre implicações
e o papel do corpo na performance, especificamente seu papel na leitura e na percepção do
literário.
Para Zumthor, a leitura designa uma operação abstrata e que somente se realiza no
encontro com um indivíduo. Interessa, na abordagem do filósofo, o ponto de vista do leitor: "o
leitor lendo, operação da ação de ler." (ZUMTHOR, 2007, p. 24), através da qual um discurso
se torna uma realidade poética - na e pela leitura, no encontro com um indivíduo e seu corpo.
Esse autor pensa a performance em relação a diversas práticas, mas seu interesse está na
escrita - pelas operações da leitura - e nas transmissões orais da poesia, com o corpo como
mediador e centro da performance.
O corpo sobre o qual Zumthor fala é o conjunto de tecidos e de órgãos, contração e
descontração de músculos, percepções sensoriais de um corpo vivo, "é ele que sinto reagir, ao
contato saboroso dos textos que amo" (ZUMTHOR, 2007, p. 23). O corpo é a "materialização
42
daquilo que me é próprio, realidade vivida e que determina minha relação com o mundo."
(ZUMTHOR, 2007, p. 23).
É pelo corpo que o sentido do mundo é percebido. Primordialmente, o mundo é
sempre da ordem do sensível: do audível, do tangível, do visível. O corpo tem algo de
indomável, inapreensível, "uma zona de individuação propriamente impenetrável."
(ZUMTHOR, 2007, p. 80), onde reside o lado selvagem da leitura (e da performance), seu
sentido de descoberta, um "aspecto necessariamente inacabado, incompleto dessa leitura,
como de todo prazer." (ZUMTHOR, 2007, p. 80).
Para pensar a presença corporal do leitor, Zumthor deseja compreender o
funcionamento e o efeito das transmissões orais da poesia e a articulação entre performance,
texto e leitura. Sua hipótese assim se define: "o que na performance oral pura é realidade
experimentada, é, na leitura, da ordem do desejo." (ZUMTHOR, 2007, p. 35). Na oralidade, a
voz teria uma qualidade nela mesma e seria também a emanação do corpo e sua representação
plena, através do som. Na voz e através dela seriam revelados "um certo número de realidades
e de valores, [...] [que] aparecem identicamente envolvidos na prática da leitura literária. Daí
o lugar central que dou à idéia de performance." ZUMTHOR, 2007, p. 27).
Performance é uma palavra que vem do inglês, emprestada do vocabulário da
dramaturgia. Espalhou-se nos Estados Unidos na década de 30 e 40, na expressão de
etnólogos como Abrams, Ben Amos, Dundee, Lomax e outros, que estudavam manifestações
culturais lúdicas, como o conto, canção, rito e dança. A performance está fortemente marcada
por sua prática e, para tais pesquisadores, é sempre constitutiva de uma forma.
A forma é um dinamismo formalizado, uma forma-força, não é fixa nem estável. A
forma não é governada pela regra, ela é a regra, "uma regra a todo instante recriada, existindo
apenas na paixão do homem que, a todo instante, adere a ela, num encontro luminoso."
(ZUMTHOR, 2007, p. 29). A forma só existe na performance, num nível em que o discurso é
vivido.
As operações de análise e decomposição negam a existência da forma: "se um fato
observado em performance é, por motivos práticos, transmitido, como objeto científico, por
impressão ou conferência, então de maneira indireta e segunda, a forma se quebra."
(ZUMTHOR, 2007, p. 30). Para aqueles etnólogos do início do século, a performance ocupa a
centralidade no estudo da comunicação oral e suas regras importam para a comunicação tanto
ou ainda mais do que as regras textuais envolvidas numa obra escrita. Zumthor (2007, p. 30)
43
critica a extração do texto da forma global da obra performatizada, operação recorrente nos
estudos literários.
A performance sugere competência, uma espécie de savoir-faire, mas à qual Zumthor
prefere saber-ser. É um saber que "implica e comanda uma presença e uma conduta, [...] uma
ordem de valores encarnada num corpo vivo." (ZUMTHOR, 2007, p. 31). Tal consideração se
apóia numa definição de performance de Dell Hymes, surgida em 1973 sob o título de
Breakthrough into performance. Zumthor aponta quatro traços e toma tais características para
pensar os hábitos receptivos, ao contrário dos etnólogos, que referiam-se aos conteúdos ou
formas de transmissão desses.
Primeiro, a performance é reconhecimento; ela realiza, concretiza, "faz passar algo
que eu conheço, da virtualidade à atualidade." (ZUMTHOR, 2007, p. 31).
Segundo, a performance se situa num contexto cultural e situacional, no qual aparece
como uma "emergência", um fenômeno que sai desse contexto ao mesmo tempo em que nele
encontra lugar. Algo se criou, atingiu sua plenitude, logo, ultrapassou o curso comum dos
acontecimentos.
Terceiro, a performance é uma conduta na qual o sujeito assume aberta e
funcionalmente a responsabilidade. Esse comportamento possui uma qualidade adicional, sua
"reiterabilidade": são repetíveis indefinidamente, sem serem percebidos como redundantes,
porque se realizam em um aqui-e-agora jamais exatamente reproduzível.
Quarto, a natureza da performance afeta o que é conhecido; a performance, de
qualquer jeito, modifica o conhecimento. Ela não é tão-somente um meio de comunicação:
"comunicando, ela o marca." (ZUMTHOR, 2007, p. 32).
Entre o sufixo que designa uma ação em curso, que jamais será dada por acabada, e
um prefixo que remete a uma totalidade inacessível, "se não inexistente, performance coloca a
'forma', improvável." (ZUMTHOR, 2010, p.33). O termo refere-se menos a uma completude
do que a um desejo de realização: cada nova ocorrência atualiza, engendra uma regra, mas
que vai se alterar em sua próxima ocorrência.
Noutro lugar, o autor afirma que a performance é um termo antropológico, relativo às
condições de expressão e percepção, e designa um ato de comunicação como tal, num
momento tomado como presente. O ato de comunicar não se esgota ao passar uma
informação, é também uma tentativa de mudar aquele a quem se dirige; receber uma
comunicação é necessariamente sofrer uma transformação. "Falta ver a que nível corporal
44
intervém essas modificações e, sem dúvida, neste ponto não há resposta universal."
(ZUMTHOR, 2007, p. 52). A performance é um momento da recepção, privilegiado, em que
um enunciado é realmente recebido e "é então e tão-somente que o sujeito [...] encontra a
obra; e encontra de maneira indizivelmente pessoal." (ZUMTHOR, 2007, p. 52). A
particularidade desse encontro se deve a um elemento irredutível em qualquer noção de
performance: a idéia da presença de um corpo (ZUMTHOR, 2007, p.38).
Para os teóricos alemães da recepção, o texto poético seria como um tecido
atravessado de lacunas, exigindo a intervenção de uma vontade externa, de uma sensibilidade
particular, para provisoriamente fixar ou preencher tais lacunas. Na performance, na leitura,
"o texto vibra; o leitor o estabiliza, integrando-o àquilo que lhe é próprio. Então é ele que
vibra, de corpo e alma." (ZUMTHOR, 2007, p. 53). As lacunas que sempre existem em
qualquer linguagem ou sistema aparecem como espaço de liberdade: ilusória, porque
ocupadas por apenas um instante pelo leitor; "amanhã, retomando o mesmo texto, eu acharei
um outro." (ZUMTHOR, 2007, p. 54). A concretização de um texto estaria ligada aos efeitos
semânticos, mas também às transformações do leitor, "percebidas em geral como emoção
pura, mas que manifestam uma vibração fisiológica." (ZUMTHOR, 2007, 53).
Todo texto que vibra com o leitor e faz com que se surpreenda na ação das próprias
vísceras, dos ritmos sanguíneos, é performativo. Ouve-se o que o texto diz, e não de maneira
metafórica: percebemos a materialidade, o peso das palavras, sua estrutura acústica e as reações que elas provocam em nossos centros nervosos. Essa percepção, ela está lá. Não se acrescenta, ela está. É a partir daí, graças a ela que [...] aproprio-me dele [do texto], interpretando-o, a meu modo; é a partir dela que, este texto, eu o reconstruo, como o meu lugar de um dia. (ZUMTHOR, 2007, p. 54).
Em obras performáticas se produz, portanto, tantos encontros diferentes quanto
ouvintes e leitores, e também, em função do caráter provisório desses encontros.
A performance se liga ao corpo e, por ele, ao espaço, a partir da idéia de teatralidade.
A teatralidade está ligada à semiotização de um espaço, por parte do espectador. Não possui
manifestações físicas obrigatórias, nem é um dado empírico. A teatralidade é um
reconhecimento de um espaço como um espaço de ficção, "ela é uma colocação em cena do
sujeito, em relação ao mundo e a seu imaginário." (WINNICOTT apud ZUMTHOR, 2007, p.
42). Nesse sentido, a teatralidade está ao lado do performer e de sua intenção, cujo segredo o
espectador deve partilhar e que define o mecanismo da performance.
45
A performance operaria a partir da identificação, por parte do espectador, de uma de
uma alteridade marcando o espaço, e que implica alguma ruptura com o "real" ambiente,
"uma fissura pela qual, justamente, se introduz essa alteridade." (ZUMTHOR, 2007, p. 41).
Nesse caso, o espaço se torna, ao mesmo tempo, lugar cênico e manifestação de uma intenção
do autor. Portanto, a situação performancial aparece como uma operação cognitiva, "ela é um
ato performativo daquele que contempla e daquele que desempenha." (FÉRAL apud
ZUMTHOR, 2007, p. 41).
3.2 Performance como operador analítico
Foram esboçadas definições sobre o conceito de performance, mas é preciso ter em
mente que esse é um fenômeno heterogêneo, "do qual é impossível dar uma definição geral
simples. Aqui se está, repito, na ordem do particular." (ZUMTHOR, 2007, p. 34). Também,
para Carlson (2010, p. 213), a performance resiste a definições, fronteiras e limites que a
escrita acadêmica luta por estabelecer e aponta que essa configuração pode ser tomada “como
uma anticonclusão ao estudo dessa antidisciplina.” (CARLSON, 2010, p. 213).
Apesar disso, deve-se compreender a performance como uma práxis, contraditória,
fluida e móvel, que se desdobra em diversas atividades:
Campanhas políticas, eventos esportivos, apresentações públicas, bales à fantasia, ritos religiosos – são claramente performáticos e são larga e correntemente reconhecidos como tal. Muitas outras atividades, dentre elas a escrita, as interações sociais do dia a dia e, de fato, quase toda atividade cultural ou social, podem certamente ser consideradas performáticas, mesmo se elas não são normalmente consideradas como tal. (CARLSON, 2010, p. 223).
Se assim ocorre, é preciso escolher quais aspectos e descrições sobre a performance
podem contribuir para análise do cinema como performance e da narrativa em ato, objetivos
deste trabalho. De fato,
o conhecido é a performance estudada e descrita pela etnologia; falta ver o que, dessas descrições e estudos, pode ser re-empregado, sem prejudicar a coerência do sentido, na análise de outras formas de comunicação. (ZUMTHOR, 2007, p. 38).
46
Para os propósitos desta pesquisa, considera-se a performance um fenômeno que se
realiza exclusivamente na ação; qualquer atividade marcada por sua prática. A performance
concretiza algo conhecido, traz da virtualidade à atualidade; ela opera a partir de um desejo e
dá-se na experiência, através do corpo. A performance se define por um programa de
atividades organizado, com duração limitada, um princípio e fim, um conjunto de performers,
uma audiência, um lugar e situação de performance.
O performer está consciente de seus atos e intenções e também sabe que a ação que
realiza sempre é comparada a um modelo institucionalizado dessa ação, cujo agenciamento
concretiza tal modelo. Na performance, a conduta sempre se baseia num modelo existente em
um contexto cultural (a tradição), mas também pode dar origem a novos modelos ou roteiros
de ação. A responsabilidade diz dessa consciência, por parte do performer, em relação a suas
atividades e seus efeitos na audiência. A audiência, por sua vez, também está consciente de
suas ações, bem como das ações do performer.
A performance, então, é sempre uma relação entre audiência e performer, é um
momento privilegiado de comunicação, no qual os participantes encontram-se efetivamente,
num momento tomado como presente e numa ocasião particular. Ademais, os participantes
sempre devem reconhecer a situação de performance como tal.
A performance instaura uma forma, só existente na dimensão da experiência e recriada
a cada aparição. A concretização da forma realiza-se através da ação, cujo cerne é a presença
física.
O caráter inacabado da performance reside na particularidade da situação de recepção,
nas transformações operadas no corpo do espectador (e sua qualidade inapreensível), no
aspecto improvisado de qualquer ação e no lugar transitório que os espectadores ocupam.
Graças a essas características, a performance é reiterável e afeta sempre o que é conhecido.
A performance, contudo, não é uma soma de propriedades de que se poderia fazer
inventário e dar forma geral. Ela pode ser apreendida somente por intermédio de suas
manifestações específicas e as formulações sobre a performance serão retomadas
detalhadamente na análise de Ressaca, um filme performado.
Ainda, é importante ressaltar a mediação por meio da qual a performance acontece, no
nosso caso, por meio da qual o filme e sua escritura operam. Nos filmes-performances, o
cinema surge como esse mediador entre performer e espectadores e, para tal, o próprio cinema
deve ser performado, deve ser colocado em ato. Na ocasião de performance, o próprio
47
discurso emerge como um ato e isso marca a performance e o modo pelo qual o filme se
exibe: a performance é possibilitada pelo filme e o filme se altera com a performance. "Cada
performance nova coloca tudo em causa. A forma se percebe em performance, mas a cada
performance ela se transmuda." (ZUMTHOR, 2007, p. 33).
48
4 RESSACA
Para pensamos a respeito do cinema performado elegemos o filme Ressaca, de Bruno
Vianna. Poderíamos ter escolhido outro filme da mesma natureza ou alguma apresentação de
VJing, desde que a obra estivesse relacionada à pergunta de pesquisa e nos permitisse abordar
este processo de uma narrativa colocada em performance.
Embora performado, trata-se ainda de um filme narrativo, que segue um modelo
relativamente clássico de narrativa. Ressaca apresenta-se entre a situação convencional da
sala de cinema - a forma cinema - e o VJing. O filme é performado, mas os espectadores
continuam sentados diante de uma tela. Há, em Ressaca, cenas específicas, formas de
montagem agenciadas durante sua exibição, bem como recursos discursivos e tecnológicos,
que nos permitem investigar o que acontece quando a narrativa é performada, quando ela se
realiza na ação.
A performance do filme Ressaca foi vista duas vezes: em apresentação no Festival de
Inverno da UFMG, em Diamantina, no dia 24 de julho de 2009 e em sessão no auditório da
Escola de Belas Artes da UFMG, no dia 16 de junho de 2010. Além disso, todas cenas do
filme estão anexas e também disponíveis para visualização e download no site Internet
Archive15
Lançado em 2008, Ressaca é o primeiro longa-metragem interativo realizado no
Brasil, de acordo com o site da III Mostra de Live Cinema
. Apesar de não termos acesso a nenhuma performance documentada de Ressaca,
gostaríamos de descrevê-lo - em um processo de rememoração - para analisar trechos
específicos do filme e articulá-los com a experiência da performance.
16
. Dirigido por Bruno Vianna, o
filme narra a vida de um rapaz carioca de classe média e sua juventude na década de 80.
Interpretado por João Pedro Zappa, Tiago experimenta as mudanças da adolescência num
Brasil de transformações políticas e econômicas. Sua família sofre as conseqüências da
instabilidade de planos econômicos, moedas e crises, ao mesmo tempo em que ele lida com
inseguranças da idade e explora novos territórios: relacionamentos amorosos, amizade, drogas
e, sexualidade. De acordo o diretor,
15 Todas cenas do filme estão disponíveis para download em <http://www.archive.org/details/Ressaca>, sob licença Creative Commons Atribuição - Uso não-comercial - Compartilhamento pela mesma licença 2.5 Brasil. 16 III MOSTRA DE LIVE CINEMA. <http://livecinema.com.br/index.php>. Acesso em: 27 out. 2010.
49
queria falar sobre a confusão que foram os anos 80 do ponto de vista da classe média: militares nervosos, presidentes que morriam, mil moedas diferentes, planos econômicos que não davam certo, hiperinflação... para mim foi como a maturação do país, por isso escolhi um adolescente que passa também por um processo de amadurecimento para contar essa história..17
Ganhador de quatro prêmios no Festival de Cinema de Porto Alegre18
, Ressaca é
montado ao vivo durante sua exibição, na sala de cinema. Sua narrativa é articulada a partir de
cenas distintas, para formar um pequeno conjunto, com duração de uma hora e meia,
aproximadamente. A idéia para o filme teria surgido quando Bruno Vianna finalizava seu
primeiro longa-metragem, Cafuné, e escrevia o roteiro para um longa convencional, o
Ressaca:
já editando o Cafuné, eu me dei conta que o filme podia ter várias versões e todas eram válidas. O filme acabou sendo lançado em duas versões diferentes simultaneamente nos cinemas.19
O projeto para o Ressaca teria ganhado consistência depois do lançamento de Cafuné
no cinema e sua distribuição na internet, por copyleft20
. Segundo o diretor,
ao editar o filme eu percebi que não gostaria de amarrar a história e sim comunicar às pessoas que elas podiam interpretá-lo de diversas maneiras ou até levar isso ao pé da letra e reeditá-lo, fazendo sua própria versão. Depois disso me dei conta que o Ressaca faria muito mais sentido assim, com uma estrutura não-linear, onde coisa podiam (sic) acontecer duas vezes, não acontecer, ter outros desenlaces e etc.21
Durante o processo de roteirização de Ressaca, Bruno teria se dado conta de
incoerências, como um personagem que morria várias vezes ou uma cronologia que não
correspondia a fatos históricos. A partir dessas diversas cenas, contraditórias num roteiro
comum, e com a experiência de múltiplas versões de Cafuné, o diretor concluiu que "a
narrativa do Ressaca podia não ser fechada, e sim variar em cada sessão. Já havia tecnologia
suficiente para fazer essa remixagem em alta qualidade no próprio cinema. Então o projeto se
17 Depoimento do diretor no Release do filme. 18 Melhor longa-metragem e melhor ator (João Pedro Zappa) pelo Júri de Premiação. Prêmio da Nova Crítica (pelos participantes da Oficina de Crítica Cinematográfica) e Melhor Longa pelo voto popular, em 2009. Fonte: <http://g1.globo.com/Noticias/Cinema/0,,MUL1354133-7086,00.html>. Acesso 10 nov. 2010. 19 Entrevista com Bruno Vianna no Blog do Instituto Sérgio Motta. 20 Copyleft é uma forma de regulamentar a distribuição, difusão e modificação de uma obra autoral. Ao contrário do copyright, a regulamentação visa retirar as barreiras para utilização e um exemplo de licenciamento do tipo é o Creative Commons. 21 Depoimento do diretor no Release do filme.
50
tornou um filme ao vivo."22. A proposta de Ressaca é realizar-se "no limite entre o cinema e o
espetáculo ao vivo, partindo do ponto em que param os VJs que fazem performances ao som
de música eletrônica com vídeos pré-gravados."23
O intuito do filme é apresentar-se, a cada exibição, sob uma versão diferente e fazer
com que cada sessão seja um evento único. Segundo o diretor, a lógica do filme justifica-se
pois "minha memória desse tempo é não linear.”
. Igualmente, influenciado por obras
hipermidiáticas como Jogo de Amarelinha, de Julio Cortázar, Vianna desejava realizar um
filme recombinável, ainda segundo o release do filme.
24 e porque "esperamos que o esquema de
exibição proposto pelo filme espelhe o quebra cabeça social vivido naqueles tempos."25
Apesar da proposta de abertura já prevista no roteiro, Ressaca possui um enredo mais
ou menos estável. O filme apresenta o protagonista em alguma situação no início da
adolescência, no colégio, por exemplo. Revela-se seu círculo de colegas, seus amigos.
Mostra-se o transcorrer comum na sala de aula
.
26, o protagonista no recreio. Tiago comprando
balas, sem saber quanto pagar27
Vê-se também situações na casa e na família do protagonista: conversa entre irmãos,
despertar no domingo
(cruzado ou cruzeiro novo?).
28, devolução do troco do pão à mãe. Gradualmente surgem dificuldades
financeiras que impõem mudanças na vida da família. Também, mostram-se seqüências sobre
a situação econômica do Brasil, através de propagandas da época ou sob a forma de
depoimentos sobre as crises dos anos 8029
Depois, são exibidas cenas nas quais o protagonista freqüenta festas
. 30, fala sobre seus
discos favoritos31, namora32, passa o tempo com seus amigos33
22 Entrevista com Bruno Vianna no Blog do Instituto Sérgio Motta.
; enfim, Tiago é visto em um
momento mais avançado da adolescência. Vê-se também os esforços para superar as crises
econômicas do país: o pai , Júlio (interpretado por César Augusto) perde o emprego e passa a
23 RESSACA. Informação para imprensa. [2008?]. 24 Entrevista com Bruno Vianna no artigo "Corpo Presente", de Fernando Massini. 25 RESSACA. Informação para imprensa. [2008?]. 26 Cena 005_572.mp4. Todas cenas do filme, citadas neste trabalho, estão anexas. 27 Cena 001_004.mp4. 28 Cena 001_104.mp4. 29 Cena 004_122.mp4. 30 Cena 010_595.mp4. 31 Cena 010_113.mp4 32 Cena 006_073.mp4. 33 Cena 010_112.mp4.
51
efetuar serviços de transporte, numa van34, sua mãe, Irene (interpretada por Denise Milfont)
vende doces35 ou cachorro-quente36
O filme apresenta, através de muitos episódios, quatro momentos da vida do
protagonista: fim da infância e início da adolescência, adolescência, fim da adolescência e
vida adulta. A ênfase está na adolescência e não na vida adulta, que ocorre de maneira pontual
ao longo do filme. De forma geral, a obra retorna à alguma seqüência dúbia ou cena autônoma
em relação à narrativa, para, enfim, terminar.
, no centro do Rio de Janeiro.
Não se trata, portanto, de um filme cuja montagem é aleatória. Mesmo sob variações,
o enredo preserva-se relativamente o mesmo. O que realmente altera-se é a narrativa,
agenciada pelos atos da montagem do diretor e do músico, presentes, no momento em que o
filme é projetado.
Para ser performado, o filme é previamente preparado. Todas cenas do filme estão
agrupadas em núcleos temáticos, representados por pequenos círculos coloridos, como
células, na interface de edição.
Figura 4: Esquema de organização temática do filme em células, na interface de edição.37
34 Cena 012_036.mp4. 35 Cena 012_564.mp4 36 Cena 007_107.mp4. 37 Fonte: dados da pesquisa.
52
Figura 5: Bruno Vianna escolhe cenas em núcleo temático na Engrenagem, a interface de edição.38
Por exemplo, dentro de uma célula temática específica, como a morte de Júlio, o pai
do protagonista, há diversas cenas, entre elas a morte num acidente de carro39 e cenas de seu
velório. No interior dessa célula, no entanto, há duas cenas de velório, distintas: há o velório
com a família somente40 e há o velório com a família e a amante de Júlio presente41
, Daniela,
amiga de sua filha. Qual situação de velório será utilizada no filme depende das escolhas na
performance.
38 Fonte: <http://www.flickr.com/photos/randomico/3290612489/in/set-72157606608870838/>. Acesso em: 9 nov. 2010. Crédito: Maíra Sala 39 Cena 007_030.mp4. 40 Cena 007_047.mp4. 41 Cena 007_031.mp4.
53
Figura 6: Esquema de organização de cenas numa célula temática (exemplo da morte de Júlio, pai do
protagonista).42
Todo material submete-se à estrutura da interface de edição, definidora de uma
hierarquia: temas > cenas > seqüências > planos. Em outras palavras, as células temáticas
decompõem-se em células menores, as cenas, no interior das quais há seqüências e planos,
ligados entre si, expressando uma ordem no interior da cena. Uma vez solicitada, a cena é
projetada na tela do cinema enquanto se percorre o caminho de seqüências dentro da mesma
célula (no sentido horário) e, uma vez esgotada sua duração, há o corte e cena da próxima
célula da narrativa aparece.
42 Fonte: dados da pesquisa.
54
Figura 7: Esquema de organização de seqüências em cenas na interface Engrenagem .43
Figura 8: Esquema de organização de planos em seqüências na interface Engrenagem .44
43 Fonte: dados da pesquisa.
44 Fonte: dados da pesquisa.
55
Desta maneira, todo material que compõe o filme é organizado e facilmente acessível.
Atravessam-se temas, cenas, seqüências e planos rapidamente. É necessário, porém,
treinamento e ensaio para memorizar todas 129 seqüências disponíveis para a performance da
narrativa. A montagem do filme consiste, então, em traçar uma linha que relaciona algumas
células, a fim de criar uma narrativa.
Do mesmo modo, é preciso ressaltar que a montagem do filme solicita muitas cenas de
curta duração, que podem ser encaradas como episódios na vida do protagonista. Não há, em
Ressaca, grandes blocos narrativos, ao contrário, a narrativa é tecida a partir desses
acontecimentos, fato que justifica o agenciamento na performance e é uma característica
central para o entendimento do filme.
Em Ressaca, a trilha sonora também é um importante elemento narrativo. Composta
por Rodrigo Marçal e Lucas Marcier, a trilha é executada e manipulada ao vivo e seu papel é
orientar as sugestões deixadas ao espectador, para que ele lide com as lacunas da narrativa. A
trilha sonora apóia-se na abertura de sentido do filme e deve oferecer ao espectador meios
através dos quais ele dá conta desta narrativa aberta.
A performance do filme realiza-se quando os elementos narrativos são colocados em
ato, fazendo emergir uma narrativa específica. A situação do filme começa com quase todas
luzes apagadas e o diretor, Bruno Vianna, diante da audiência, explica como seu filme vai
operar. Vianna conta aos espectadores que eles verão um filme narrativo, montado durante a
exibição, com trilha sonora também executada ao vivo. O diretor esclarece também que a
montagem do filme é feita através de uma interface, na qual se estabelece uma ordem às cenas
do filme, acessadas num computador e projetadas na tela do cinema. Aos interessados, diz ele,
é possível acompanhar o processo de montagem através da interface Engrenagem,
desenvolvida exclusivamente para o filme. Pois bem, as luzes apagam-se e o diretor vai para
trás da interface, ela mesmo uma projeção. Vê-se uma ação do diretor nessa interface e os
créditos do filme começam.
56
Figura 9: Vista do diretor atrás da interface e a projeção do filme.45
Figura 10: Vista do diretor atrás da interface e a projeção do filme.46
45 Fonte: <http://www.flickr.com/photos/randomico/4298896232/in/set-72157606608870838/> . Acesso em: 9 nov. 2010. Crédito: PaulaLyn Carvalho
46 Fonte: <http://www.flickr.com/photos/randomico/4298157389/in/set-72157606608870838/ />. Acesso em: 9 nov. 2010. Crédito: PaulaLyn Carvalho
57
A configuração espacial da performance distribui os espectadores de forma
semelhante à disposição numa sala de cinema convencional. Diretor e interface localizam-se
ao lado da projeção do filme, à esquerda ou direita. O músico e seu notebook estão ao lado ou
atrás do diretor, próximos, enfim, de forma que eles possam se comunicar durante a
performance. Diante da interface está o aparato do banco de dados, composto por dois
notebooks, onde estão todas seqüências do filme, uma câmera com filtro infravermelho, que
registra a manipulação da interface e envia informações ao computador, e um projetor, que
oferece a imagem da interface sobre o anteparo circular.
Figura 11: Esquema de organização espacial da performance .47
47 Fonte: dados da pesquisa.
58
Durante a performance, as ações do diretor se resumem em escolher e ordenar planos,
seqüências e cenas, sob a forma de círculos, conduzindo-os sobre a interface multi-toque.
Com o movimento dos dedos, visível à audiência, o operador da interface pode arrastar,
selecionar, ligar ou romper as unidades narrativas do filme, sob a forma de células.
Figura 12: Manipulação de elementos na interface de edição.48
Bruno Vianna está sempre presente durante as sessões do filme. De acordo com ele,
Quando eu escrevi o projeto, pensei que se o filme fosse editado de dentro da cabine de projeção, ou atrás de um notebook, não haveria grande diferença em relação a uma sessão comum de cinema. Eu achava que o processo de edição tinha que ser
48 Fonte: <http://jeraman.wordpress.com/2009/11/04/engrenagem-e-a-multitoque-brasil/img_3012/>. Acesso em: 12 nov. 2010. Crédito: desconhecido.
59
transparente para o público e tinha que somar a experiência de se assistir a sessão. Portanto, a interface de edição tinha que ser visível durante a sessão.49
É possível, de fato, ver o trabalho de organização dos elementos no espaço da interface e os
processos de ruptura e acoplagem de uma célula à outra. Ao longo do filme, vê-se surgir uma
linha com células brancas, cujo percurso é a narrativa (conferir Figura 5). Vê-se também
quando o diretor repete planos, situação na qual a mesma célula é ativada repetidas vezes.
Ademais, na medida em que a cena transcorre, a duração da mesma é visível, exibida em
sentido horário, como o movimento do ponteiro de um relógio.
Atrás da interface e periodicamente, Bruno Vianna observa as reações dos
espectadores. Segundo ele, no filme ao vivo, "a reação do público influencia muito a edição
que está sendo feita naquele momento. Risos, frieza, sono, atenção… eu acompanho tudo de
detrás da tela. [...]. Fico bastante curioso para saber que filme as pessoas vão montar [...]."50.
Para o artista, está clara sua motivação: "vai ser como uma peça de teatro, ou uma
performance. É uma forma de envolver mais o diretor, o expondo."51
A idéia por trás da interface de edição é "expor ao público as engrenagens, os
mecanismos internos e ocultos do cinema."
.
52
Engrenagem dispõe todo material fílmico (já pré-editado) em seqüências e planos,
representados por círculos dentro de círculos. Essas seqüências e planos já devem estar
previamente organizadas, em temas, por exemplo. As seqüências funcionam como
recipientes, no interior das quais está representado quantos planos a compõem e que podem de
lá ser removidos. Cada cena, seqüência ou plano são representados por um fotograma, a partir
do qual são identificados.
, de forma a tornar visível a montagem dos
filmes. Engrenagem consiste num painel multi-toque, contíguo à tela principal da sala, sobre a
qual se visualiza todos clipes de vídeo disponíveis no banco de dados.
49 Entrevista com Bruno Vianna no Blog do Instituto Sérgio Motta. 50 Entrevista com Bruno Vianna no Blog do Instituto Sérgio Motta. 51 Entrevista com Bruno Vianna no artigo "Corpo Presente", de Fernando Massini. 52 Entrevista com Bruno Vianna no Blog do Instituto Sérgio Motta.
60
Figura 13: Representação de seqüências e cenas por fotogramas na Engrenagem.53
A edição é representada por ligações, através das quais o usuário conecta os cenas e
seqüências na ordem que desejar, em cadeia. A edição do filme realiza-se pela manipulação
dessas ligações entre uma célula e outra, que podem ser cortadas e criadas54
. Uma vez que o
botão de reprodução dessa cadeia seja ativado, a interface reproduz um elemento após o outro,
até que se esgotem os elementos em seqüência. Depois de definir alguma ordem ao material,
pode-se iniciar a projeção, enquanto se ordenam as próximas cenas.
53 Fonte: <http://www.geral.etc.br/engranaje/>. Acesso em: 12 nov. 2010. 54 É possível ver claramente como isso ocorre no vídeo "Engrenagem.mp4" (0:25 a 0:40), anexo.
61
Figura 14: Manipulação de ligações na montagem do filme, na Engrenagem.55
Em Ressaca, a narrativa surge e é visível na interface, como uma cadeia de células,
vinculadas por uma linha, com sua ordem de exibição também explícita.
Figura 15: Representação da narrativa como percurso, através das ligações entre células, na interface de edição.56
55 Fotograma do vídeo sobre a interface Engrenagem. Fonte: <http://www.geral.etc.br/engranaje/>. Acesso em: 12 nov. 2010.
56 Fotograma do vídeo sobre a interface Engrenagem. Fonte: <http://www.geral.etc.br/engranaje/>. Acesso em: 12 nov. 2010.
62
Dessa forma, a narrativa de Ressaca seria apenas uma trajetória particular através de
alguns elementos do banco de dados. Se sua narrativa é sempre variável é porque, segundo
Bruno Vianna, "apenas a engrenagem principal será imutável."57
Engrenagem, contudo, não se resume à interface tátil. É um complexo dispositivo,
responsável por acessar todo material em vídeo, no banco de dados, representá-lo gráfica e
hierarquicamente na interface, misto de projeção e tela multi-toque, e projetar os clipes de
vídeo na tela da sala de cinema.
.
A interface é apenas uma tela de acrílico com 32 leds infravermelhos iluminando seu
interior, bem como qualquer coisa que entre em contato com sua superfície. Uma câmera com
filtro infravermelho e o software Reactivision detectam quaisquer toques sobre a superfície.
Além disso, projeta-se uma imagem nesse anteparo de acrílico e, como resultado, tem-se uma
interface gráfica (as imagens das células) e uma interface virtual (o toque aciona comandos no
computador) na mesma superfície.
Processing é o software responsável por gerar a interface gráfica, interpretar as ações
na mesma e enviar comandos a outro programa, Pure Data, que, por sua vez, projetará os
vídeos na tela do cinema. O dispositivo de Engrenagem é representado no esquema abaixo:
57 Entrevista com Bruno Vianna no artigo "Corpo Presente", de Fernando Massini.
63
Figura 16: Esquema do dispositivo para exibição de Ressaca, chamado Engrenagem.58
58 Fonte: <http://www.geral.etc.br/engranaje/>. Acesso em: 12 nov. 2010.
64
Engrenagem foi desenvolvida por Maíra Sala, exclusivamente para o filme de Bruno
Vianna. É seu trabalho final de mestrado em Artes Digitais na Universidade Pompeu Fabra,
com apoio do Centro de Artes Hangar, ambos em Barcelona.
À montagem das cenas na interface adiciona-se uma performance musical eletrônica
ao vivo, que utiliza canções compostas para o filme e músicas diversas, como, por exemplo,
Against All Odds, de Phil Collins. Todavia, o uso e a execução de trilhas feitas
exclusivamente para o longa-metragem é mais freqüente.
Na situação de performance, o músico executa a trilha ao vivo, de forma improvisada.
De acordo com Rodrigo Marçal59, compositor da trilha de Ressaca, todas as músicas do filme
são compostas por samples e separados em canais de áudio. Samples são trechos sonoros de
pequena duração, gravados anteriormente e utilizados em loop. Por exemplo, um sample pode
ser uma melodia específica, tocada na guitarra. São muito utilizados ao vivo, na prática de
DJs, e é o equivalente ao loop de vídeo nos espetáculos dos VJs. Na performance de Ressaca,
a manipulação ao vivo lida com esses samples e sua reprodução em loop, através do programa
Ableton Live60
Tudo isso torna a performance de Ressaca uma espécie de maquinismo, de
dispositivo, que coloca a narrativa em ato e que envolve o espaço de projeção, as tecnologias
e interfaces implicadas, a co-presença do diretor, do músico e do público e a própria escritura
fílmica, constituída ela mesma neste maquinismo.
. Previamente ordenados sob a forma de uma música completa, esses samples
sofrem variações através do software, capaz de aplicar efeitos de áudio, mixar, e alterar os
loops, ao vivo, modificando a música na medida em que ela é executada. No filme há,
especialmente, cenas sobre as quais a improvisação da trilha sonora foi pensada e são
largamente utilizadas.
Através dessa performance maquínica (aqui o corpo e a narrativa não deixam de ser
fundamentais), o filme passa da virtualidade à concretude, quando seus elementos narrativos
são atualizados no momento efetivo da recepção. Em Ressaca, cenas, seqüências e planos
abandonam a dimensão paradigmática do banco de dados, para realizarem-se no plano
sintagmático da narrativa, na montagem efetuada através da Engrenagem. Em suma, Ressaca
59 Em comunicação pessoal na Oficina de Cinema ao Vivo, ministrada por Bruno Vianna, no 41 º Festival de Inverno da UFMG, em 2009. 60 Ableton Live é um software seqüenciador de áudio e uma digital audio workstation, para Windows e Mac OS. É utilizado como um instrumento para performances ao vivo, bem como ferramenta de composição, arranjo e mixagem. Fonte: <http://en.wikipedia.org/wiki/Ableton_Live>. Acesso em 12 nov. 2010.
65
adquire sua existência genuína no ato performativo da montagem e da experiência
cinematográfica.
Ressaca compreende os elementos do espaço (lugares, telas, corpos), os performers e
espectadores, os elementos fílmicos no banco de dados, uma duração limitada e sua situação
de performance. O que está em jogo na performance do filme é a relação entre todos estes
elementos, encarnada numa ação discursiva, em um momento de recepção cultural e
situacional.
Durante o filme, performer e audiência descobrem-se, num sentido literal: seus corpos
e ações os implicam num contexto particular. O contexto refere-se à situação específica na
qual os participantes da performance encontram-se para construir um filme, pela ação de
ordenar elementos narrativos, a montagem, da parte dos performers, e pelas operações
mentais realizadas pelos espectadores diante do filme, num momento e lugar compartilhados.
Discursivamente, Ressaca é aberto e bastante ambíguo. Além do agenciamento que
diretor e músico fazem, é preciso que o espectador opere maquinações (eis as ações da
audiência) para suprir as lacunas que a performance deixa na narrativa. Nesse trabalho, o
espectador integra o filme àquilo que crê ser-lhe próprio, sua narrativa específica, uma vez
que já está declarada a natureza narrativa do filme, antes mesmo de seu início, pelo diretor.
No encontro pessoal e efetivo com o filme, o espectador deixa transparecer suas
operações cognitivas e suas vibrações através de seu corpo e de suas reações. Quando o
diretor afirma observar risos, frieza, sono ou atenção, ele diz especificamente da comunicação
dessas reações no momento singular de ocorrência do filme. De forma análoga, o diretor
comunica-se com o espectador através de seu próprio corpo e das máquinas de exibição,
quando suas escolhas tornam-se visíveis na interface, seja pelo movimento de seus dedos, ao
arrastar, separar e ligar o material fílmico, quando conversa com o músico ou simplesmente
limita-se a olhar o filme projetado. Na realidade, durante do filme, a comunicação e a própria
performance são comedidas, discretas.
A performance do músico, entretanto, não é tão acessível à audiência, que se limita,
portanto, a entrever suas ações. Apesar disso, na medida em que o espectador participa de
mais de uma performance do filme, ele pode perceber a ação do músico quando uma cena
surge com trilha sonora distinta em relação às sessões já vistas ou quando ouve uma mesma
trilha sonora, sob pequenas diferenças.
66
Diante da configuração particular que a performance do filme suscita, seus
participantes são convocados a assumir uma responsabilidade, isto é, são chamados a produzir
uma narrativa e negociar seus sentidos. Se Ressaca assim mobiliza, é porque realizadores e
espectadores têm claros para si seu papel na performance e, eventualmente, os efeitos sobre a
narrativa fílmica. Isto já está dado porque, antes do filme começar, o diretor fala sobre sua
decisão e explica o mecanismo da performance, qual seja: a engrenagem que faz variar a
narrativa. Embora o diretor não utilize o termo performance em sua explicação, ainda sim fica
clara ao espectador a estrutura na qual a performance do filme vai operar, bem como, de
forma difusa, o papel da audiência nessa estrutura.
Com efeito, Ressaca adquire seus contornos à medida em que diretor e músico fazem
suas primeiras escolhas entre as possibilidades no banco de dados fílmico e essas,
progressivamente, vão se alterando na relação contínua entre ambos e o público. Conscientes
de seus atos e papéis, cada qual procura verificar a reação dos outros participantes, à medida
que o filme adquire uma realidade, uma "força-forma" particular.
Assim, a narrativa de Ressaca se define a partir do agenciamento dos elementos
fílmicos numa situação, e que, de fato, só surge na relação entre filme, diretor, músico e
espectadores, num aqui-e-agora jamais exatamente reproduzível. Por este motivo, a narrativa
não existe fora da performance ou, pelo menos, só existe potencialmente. É somente no
espetáculo da performance que Ressaca media a relação entre artistas e audiência, e nesse
jogo, ele mesmo é transfigurado.
Dependente da passagem ao ato, do agenciamento através do corpo, a performance do
filme atualiza a narrativa de Ressaca. A narrativa emerge de maneira singular, graças à
particularidade da situação de recepção, ao lugar provisório ocupado pelos participantes e pela
natureza improvisada das ações. Eis que em cada aparição, a narrativa não se esgota e sempre
transforma os elementos que lhe configuram. Se a performance faz variar a narrativa, esta não
se transfigura completamente. São pequenas variações que alteram a narrativa, o filme,
tornando-o outro, diferentemente de outras performances, VJing por exemplo, no qual a
aleatoriedade é maior.
67
4.1 Variação e permanência em Ressaca
O filme de Bruno Vianna realiza-se como performance e, nesse sentido, sua descrição
é insatisfatória naquilo que ele possui de irrecuperável. De forma alguma somos capazes de
esgotá-lo, de dar conta de sua "forma-força", só perceptível na dimensão da experiência do
filme. A despeito disso, vamos nos debruçar sobre algumas cenas e trechos do filme para
entender detalhadamente como ele varia, a fim de responder à pergunta de pesquisa: como a
narrativa é atualizada na performance do filme? O que, especificamente, há de performático
em Ressaca?
Por hipótese, cremos que há sempre uma intenção em manter uma narrativa em
Ressaca, diferentemente de outras propostas de performance audiovisual em tempo real.
Significa dizer que há, em qualquer exibição de Ressaca, uma linha geral que sai da infância
do protagonista, na década de 80, rumo à adolescência mais avançada, sob alguns elementos
de permanência e variação.
Não se trata de analisar a performance em si (a performance do diretor), mas de ver os
elementos do discurso (a narrativa) cinematográfico colocados em performance, na
apresentação do filme. Ver o que ali varia e o que se mantém. Identificaremos esses elementos
para pensar o que eles produzem e qual o papel efetivo do performático nesse filme, nessa
performance audiovisual em tempo real.
Identificamos quatro eixos que fazem Ressaca variar. O primeiro deles se define a
partir da existência de cenas distintas, com estatutos diversos, que conduzem o filme a
caminhos também diversos. O segundo eixo é constituído de um tipo específico de cena,
visualmente poderosa e que opera por sugestão, abrindo o filme e deixando ao espectador a
opção de pensar o sentido da narrativa. Profundamente relacionado a esse tipo de cena, o
terceiro eixo também atua por sugestão e compreende a trilha sonora e sua função no interior
de cada performance. Por último, a elipse como recurso de montagem compõe o quarto eixo a
partir do qual a narrativa altera-se.
Primeiro eixo de Variação
Em sua exibição na Escola de Belas Artes da UFMG, Ressaca começa com os créditos
do filme sob trilha sonora e, em seguida, vê-se a fachada da escola e o vendedor de balas
68
sentado em um caixote, até que a trilha desaparece. O protagonista surge para comprar balas,
de óculos, uniforme e mochila nas costas. Depois de negociar com o vendedor, Tiago pega
um pirulito e encaminha-se para dentro da escola61. Nessa cena, ele se encontra no fim da
infância, por sua estatura62, trajes e por estudar de manhã. Na próxima cena, é visto durante a
aula, ainda no fim da infância, porque seus caracteres se mantêm. Curioso pelo apelido da
colega da carteira traseira, ele se vira e pergunta o por quê de seu apelido63
Na exibição no Festival de Inverno da UFMG, em Diamantina, os créditos dão lugar à
outra cena, enquanto a trilha sonora permanece. Nota-se Tiago na escola, já dentro da sala de
aula, durante sua adolescência. Ele não usa mais óculos, possui um pouco de barba e seu
cabelo não está penteado da forma como era no fim da infância
. Embora ele erre o
nome da garota, essa o corrige de forma amigável, sorrindo.
64. A cena se estende (tem
quatro minutos) enquanto a trilha sonora se desenvolve. Posteriormente, a música desaparece
e surge outra seqüência, na qual se observa Tiago comprar jujuba65
Aqui, a variação é criada pelo agenciamento de cenas distintas no interior das
narrativas. Nas cenas acima, identifica-se a diferença, embora, no início do filme, elas
possuam apenas um propósito: apresentar o protagonista no colégio, no fim da infância.
. Sem saber ao certo
quanto pagar, em função de diferentes moedas em vigor no Brasil, ele negocia com o
vendedor, de forma tímida. Nessa seqüência, ao contrário da anterior, Tiago está no início da
adolescência, sem barba, de óculos e com cabelo bem penteado.
Dentre as diversas cenas de Ressaca, há aquelas que possuem um estatuto mais geral e
que tratam de avançar a narrativa (no sentido de uma progressão por situações, do fim da
infância ao fim da adolescência) ou contextualizar as demais cenas do filme. Mostram
situações da vida cotidiana do protagonista e sua família, e a conjuntura econômica do Brasil.
No agenciamento desse tipo de cena, as narrativas variam, porque se trata de cenas distintas,
mas também permanecem, pois representam as mesmas situações, com um mesmo intuito
contextualizador.
61 Cena 001_060.mp4. 62 Sugerida pela posição relativa do protagonista no interior do quadro. Ver Cena 001_060.mp4, Cena 005_027.mp4 e Cena 010_110.mp4 para uma comparação entre a distância do topo da cabeça de Tiago e a distância do teto do quadro, seu corpo, ambiente cênico e enquadramento, durante o fim da infância, adolescência e fim da adolescência, respectivamente. 63 Cena 005_572.mp4. 64 Cena 013_013.mp4. 65 Cena 001_004.mp4
69
Na sessão na Escola de Belas Artes, presencia-se o despertar da família no domingo, e
a situação na qual a mãe nega-se a dar o troco do pão à filha66, em função de dificuldades
financeiras. Analogamente, no Festival de Inverno, identificamos essas cenas na situação em
torno do baleiro, seja na cena da cobrança, pelo vendedor67 e ou na cena em que Tiago se
confunde com as moedas em vigor68
Também, dentre essas, viu-se, na sessão no Festival, os pais de Tiago diante da
televisão
.
69 e, depois, uma propaganda da época, seguida de depoimentos sobre a economia
brasileira na década de 8070. Além disso, houve em ambas sessões, a cena sobre a discussão
em torno dos discos de Tiago71
Por outro lado, há cenas cujo sentido é explícito e imprimem uma determinada
orientação à narrativa. Representam desenlaces distintos para os personagens, manifestos nas
cenas sobre sexualidade (do protagonista e de seu pai) e nas cenas em torno da morte de Júlio,
pai de Tiago. Diante delas, a narrativa varia porque assume um caráter estrito, excluindo
outras configurações e significados. Pode haver permanência, em alguma medida, já uma
situação pode repetir-se de uma narrativa a outra, a exemplo da morte de Júlio, presente nas
duas narrativas vistas. O roteiro do filme já previa essas cenas exclusivas e sua montagem as
coloca em jogo.
, já em sua adolescência.
Na exibição no Festival de Inverno, Júlio apresenta ao filho (ainda no fim da infância)
um filme pornográfico, e eis que a energia elétrica acaba. Numa cena extremamente ambígua,
vê-se o pai do protagonista morrer72. Na exibição na Escola de Belas Artes, vemos Júlio
doente numa cama de hospital, próximo à família. Depois surge um homem, que beija a boca
de Júlio73. Somente ficamos sabendo da morte por sua esposa, que a comunica ao guarda74
Numa situação, sabemos ou acreditamos que Júlio era heterossexual e morreu
repentinamente. Na outra sessão de Ressaca, descobrimos (tão-somente a partir dessa cena)
que ele possuía um relacionamento homossexual e que sua saúde estava se degradando, sem
,
após algumas cenas. Apesar do pai do protagonista morrer em ambas narrativas, essas cenas
possuem sentidos gerais bastante distintos.
66 Cena 001_104.mp4 67 Cena 001_087.mp4. 68 Cena 001_004.mp4. 69 Cena 011_035.mp4. 70 Cena 004_122.mp4. 71 Cena 010_113.mp4. 72 Cena 003_020.mp4. 73 Cena 000_061.mp4. 74 Cena 007_106.mp4.
70
vê-lo no entanto, morto (em alguma cena de falecimento ou velório, dentre aquelas existentes
no banco de dados, por exemplo).
Na performance, então, a montagem solicita cenas auto-excludentes, nas quais o
sentido ou a desfecho realiza-se através de um caminho narrativo específico. Na sessão do
Festival de Inverno, Tiago, já adolescente, dorme com sua amiga Maria Gabriela75, numa
cena em que ele parece estar bastante embaraçado. Nessa sessão, nos sentimos perturbados
com essa situação aparentemente normal, tão embaraçados quanto o protagonista. Isso
porque, numa cena anteriormente exibida, vimos Tiago excitar-se ao ver um homem correndo
na rua76
Na outra narrativa, exibida na Escola de Belas Artes, a cena com o sujeito correndo
não existe, de forma que tomamos a heterossexualidade como orientação do protagonista, a
partir de cenas outras cenas, nas quais Tiago está em relacionamentos heterossexuais. Se
Tiago está embaraçado no quarto, com Maria Gabriela, assumimos ser em função de sua
timidez e do fato de ainda ser virgem.
e, diante da garota, sabemos sobre sua orientação homossexual.
O significado pleno da situação entre Tiago e Maria Gabriela, como vimos, vai
depender dessas cenas unívocas, e seu agenciamento, durante a montagem. No momento da
projeção, a narrativa parece variar ao sabor de cenas já vistas, cujo sentido é bem definido.
Em Ressaca, também há cenas mais ou menos incertas, cujo estatuto é marcado
justamente por sua qualidade vaga e por sua subordinação a cenas unívocas, mais claras. Em
ambas sessões do filme, há uma cena na qual Tiago, sem jeito, pergunta à irmã se
"homossexualismo é hereditário"77
Outra cena dessa natureza surgiu na narrativa do Festival de Inverno: Tiago e seu
amigo Alex relaxam numa banheira. Vê-se Tiago no fim da infância, observando o amigo e o
corpo dele
. Quando essa situação surge, na sessão do Festival de
Inverno, críamos que Tiago referia-se a sua orientação sexual, ao passo que, na montagem na
Escola de Belas Artes, tínhamos certeza de que ele referia-se à escolha do pai.
78
75 Cena 005_037.mp4
. Sonolento, Alex parece não prestar muita atenção a isso, e eis que a porta do
banheiro se fecha, como se alguém estivesse ali vendo a forma pela qual o protagonista
encarou Alex. Conscientes da cena reveladora da homossexualidade do protagonista,
76 Cena 009_042.mp4. 77 Cena 009_052.mp4. 78 Cena 009_067.mp4.
71
agenciada naquela narrativa, interpretamos essa cena como reafirmadora daquela preferência,
embora ela seja bastante vaga.
Segundo Eixo de Variação
Além dessas, existem cenas centrais para a performance de Ressaca e que são
agrupadas aqui sob o segundo eixo de variação. São cenas e seqüências aparentemente
fechadas sobre si mesmo, visualmente poderosas, autônomas em relação à narrativa e sob as
quais o músico improvisa extensivamente (elas até ocupam um núcleo específico na
interface).
Essas cenas têm um estatuto sugestivo e, quando aparecem, sua função é abrir a
narrativa e realizar-se em sua intenção visual. Menos no sentido de dirigir, seu papel principal
é oferecer ao espectador a opção de pensar o sentido do filme, num ou noutro momento, no
interior da sessão.
No Festival de Inverno, um exemplo é a primeira cena do filme, no colégio79.
Detalhadamente, vemos o protagonista remover a pele de sua mão, com um alfinete, sob trilha
sonora suave80
Na narrativa da Escola de Belas Artes, uma dessas cenas ocorreu após o beijo de
Tiago e Maria Gabriela, no quarto do sítio da garota
(ela começou durante os créditos do filme) até se tornar bastante aflita, na
medida em que o personagem prossegue em sua atividade. Ao descobrir que não se trata
realmente de sua pele, trilha e espectadores tornam-se aliviados.
81. Maria Gabriela questiona se Tiago é
virgem, beijam-se e surge um plano-seqüência num enquadramento subjetivo, acompanhado
de trilha sonora, no qual o protagonista caminha e vê seus pés sobre a grama82
79 Cena 013_013.mp4.
, durante o
início de sua adolescência. Eis que sentimos o forte papel sugestivo desse tipo de cena:
naquela narrativa e, na situação com Maria Gabriela, Tiago mesmo tímido, vive uma situação
e experimenta uma sensação extraordinária, um sentido de descoberta, poderíamos dizer, tal
qual é possível ver e sentir no plano do caminhar.
80 Trilha_Sequencia_13.mp3, anexa. Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=ylgF0OqdPhQ>. Acesso em: 10 nov. 2010. É preciso dizer que indicamos a trilha a título de ilustração, conscientes de sua mutabilidade, na performance do filme. 81 Cena 005_037.mp4 82 Cena 013_515.mp4.
72
Quando aparecem, de acordo com sua posição da narrativa, essas poderosas
seqüências fazem variar o filme, porque articulam um caminho, sempre sugerido, ao sabor do
qual espectador e narrativa jogam.
Ainda, no Festival de Inverno, o pai de Tiago o ensina a lavar louças83, atividade que
o desagrada. Na montagem, Bruno Vianna faz questão de repetir algumas vezes o trecho em
que o pai diz ao filho: "a prática faz a perfeição" (2:01 a 2:07). A repetição parece tornar a
situação mais desagradável, crê o espectador. Em seguida, são agenciadas duas seqüências -
entendidas dentro desse segundo eixo - nas quais o protagonista lava louças84 e descasca
batatas85, num enquadramento aproximado, sob trilha sonora86
. Ambas são plasticamente
expressivas e seu agenciamento sugere que Tiago, embora não gostasse de lavar louças,
verifica enorme fascínio por essa atividade e por descascar batatas. Essas seqüências suscitam
a mesma sensação de descoberta.
Terceiro eixo de variação
A trilha sonora executada nas seqüências do caminhar (Escola de Belas Artes), lavar
louças e descascar batatas (Festival de Inverno) é a mesma87
Na exibição do Festival de Inverno, vimos o protagonista andar de ônibus e
experimentá-lo de maneira insólita
, somente sob variações do
improviso. De fato, a trilha sonora, em Ressaca, é também um dos elementos que atuam no
sentido de sugerir, nuançando o certo clima das cenas. O som trabalharia sobre os sentidos
mais ou menos estabelecidos pela montagem, bem como as cenas autônomas o fazem,
constituindo o terceiro núcleo que opera mudanças na narrativa.
88, sob a trilha Against All Odds, de Phil Collins89
83 Cena 007_018.mp4.
, próximo
ao fim da narrativa e logo após a cena das louças e das batatas. Naquela sessão, a trilha sonora
pareceu trabalhar sobre um sentido de fascínio, dessa vez associado às experiências
individuais do protagonista. Antes da cena no ônibus, revelou-se o amor de Tiago pela música
de Phil Collins e houve diversos episódios nos quais o protagonista fazia uso de álcool, como
que para enfrentar a situação da morte de seu pai. Na canção, Phil Collins fala sobre a perda
84 Cena 013_114.mp4. 85 Cena 013_028.mp4. 86 Nessa sessão e naquele momento, foi utilizada a "Trilha_Sequencia_28.mp3", anexa, sob variações. Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=kP4vmTYbZH0>. Acesso em: 10 nov. 2010. 87 Trilha_Sequencia_28.mp3 88 Cena 013_032.mp4 89 Essa canção e letra estão anexas.
73
de uma pessoa: "Como pude deixar você ir embora?/Deixei você sair sem deixar nenhuma
pista/Enquanto fiquei aqui respirando com você, oh/Você foi o(a) único(a) que realmente me
conheceu completamente/" (tradução nossa)90
Apesar desse lamento, a canção sugere alguma esperança, reforçada pela letra da
música e interpretação de Phil Collins: "Esperar por você é tudo que eu posso fazer/e é o que
preciso enfrentar/Olhe para mim agora porque eu ainda estarei aqui/E você voltar para mim é
contra quaisquer probabilidades/e é o que eu preciso encarar./ Olhe para mim agora/"
(tradução nossa)
.
91
Na sessão da Escola de Belas Artes, a cena da viagem no ônibus também surge
. No filme, somos levados a crer que a interpretação de Phil Collins e essa
parte letra da canção encontram correspondente no fascínio do protagonista (talvez sob efeito
de drogas), diante da experiência extraordinária no ônibus, apesar da morte de seu pai e de
outros acontecimentos problemáticos em sua vida, como assim pareceu ter sido a descoberta
da homossexualidade. 92, mas
sob som de Space Oddity, de David Bowie93. É preciso antes, esclarecer que essa cena possui
uma cena complementar, vista antes da cena da viagem, naquela exibição. Nessa cena, Tiago
conversa com sua namorada, Cláudia, ambos aparentemente sob efeito de drogas. Ele fala
sobre a semelhança entre realizar um vôo de gravidade zero e a experiência de andar de
ônibus no Aterro do Flamengo94
Pois bem, Space Oddity trata do lançamento de um foguete rumo ao espaço e nela,
David Bowie diz "Este é Major Tom para o controle do solo/Estou dando um passo pela
porta/E estou flutuando de uma maneira muito peculiar/E as estrelas parecem muito diferentes
hoje/" (tradução nossa)
, no Rio de Janeiro. A cena da viagem do ônibus mostra
justamente essa situação.
95
90 How can I just let you walk away?/Just let you leave without a trace/When I stand here taking every breath with you, oh/You're the only one who really knew me at all/
. Na narrativa, essa trilha nos leva a crer que o protagonista
experimenta um enorme sentimento de fascínio na experiência da viagem do ônibus, descrita
há pouco na cena anterior.
91 But to wait for you, is all I can do/and that's what I've gotta face/Take a good look at me now, 'cause I'll still be standing here/And you coming back to me is against all odds/and that's what I've got to face/Take a look at me now/ 92 Cena 013_032.mp4 93 Essa canção e letra também estão anexa. 94 Cena 013_029.mp4. 95 This is Major Tom to ground control/I'm stepping through the door/And I'm floating in the most peculiar way/And the stars look very different today/
74
Cremos que o fim daquela experiência é um pouco triste ao protagonista, pela
descrição que faz a Cláudia, mas também na medida em que a viagem prossegue - com o
ônibus em retorno à estação - e a trilha afirma "Ainda que eu tenha passado por mais de cem
mil milhas/Estou me sentindo muito sereno/E eu acho que minha nave espacial sabe qual
caminho tomar/Diga a minha mulher que eu a amo muito, ela sabe/Controle de solo para
Major Tom/Seus circuitos não funcionam, há algo errado/Você pode me ouvir, Major Tom?/"
(tradução nossa)96
É preciso notar que quando a cena do ônibus surge
. 97, já havíamos visto sua cena
complementar98
, sua descrição em ambas narrativas. No entanto, no primeiro caso, a trilha
sonora pareceu ocupar-se de cenas e sentidos estabelecidos ao longo da narrativa do Festival
de Inverno, ao passo que na outra narrativa, a trilha concentra-se sobre a viagem do ônibus de
uma forma extremamente significativa, solicitando a canção de Bowie, que versa justamente
sobre o lançamento de um foguete e o fascínio da viagem espacial. Não é à toa que, na sessão
da Escola de Belas Artes, essa foi a cena final de Ressaca.
Quarto eixo de variação
Igualmente, o quarto eixo de variação nas performances de Ressaca é a elipse. No
cinema, a elipse é um recurso amplamente utilizado e já incorporado à sua linguagem. Em
Ressaca, entretanto, a elipse ocorre de maneira extensiva e é extremamente recorrente, de tal
forma que, suas narrativas devem ser vistas, essencialmente, como uma série de episódios na
vida do protagonista, marcados pela descontinuidade, espacial e temporal.
Na primeiras seqüências da sessão no Festival de Inverno, de saída, há uma
descontinuidade: personagem na adolescência, com alfinete - personagem no início da
adolescência, comprando balas. Após essas cenas, vimos Tiago no intervalo de aula, sendo
paquerado por uma colega, mas já de volta à adolescência99. Ainda, naquela sessão, vimos
cenas nas quais um adulto procurava notas antigas em feiras da cidade100, falava sobre
personalidades da mídia101 e até gravava um filme sobre a década de 80102
96 Though I'm past 100,000 miles/I'm feeling very still/And I think my spaceship knows which way to go/Tell my wife I love her very much, she knows/Ground control to Major Tom,/Your circuit's dead, there's something wrong/Can you hear me Major Tom?
. Até a metade do
97 Cena 013_032.mp4 98 Cena 013_029.mp4. 99 Cena 006_014.mp4. 100 Cena 004_054.mp4. 101 Cena 004_050.mp4.
75
filme, embora esse adulto aparecesse periodicamente, não sabíamos de quem se tratava. Sua
identidade foi revelada somente num episódio específico, quando esse homem é chamado
pelo nome e descobrimos tratar-se do protagonista, em torno de seus 45 anos103
De fato, o espectador sente uma espécie de vertigem diante desse quebra-cabeça de
eventos, muitos deles incompreensíveis, porque descontextualizados. Na narrativa no Festival
de Inverno, há, na metade do filme, uma cena na qual a mãe do protagonista monta, sobre a
mesa, fotos do marido diante da televisão, com uma expressão de perplexidade em seu
rosto
.
104
Quando Irene, mãe do protagonista, volta a olhar as fotos naquela narrativa, percebe-
se um pesar em seu gesto e na reação de Tiago, ao vê-la
. O significado dessa cena, no entanto, só é retomado pouco antes e no fim daquela
narrativa.
105. Embora as fotos não ocupem
lugar de destaque no interior da cena, relacionamos essas e aquelas, montadas sobre a mesa,
na cena na metade do filme. Mesmo assim, o sentido desse encadeamento é incompleto e só
se realizou na última cena, na qual, Júlio, seu marido, morre, e na qual as fotos foram
tiradas106
O acúmulo de todos esses episódios não resolvidos causam um incômodo, até a
montagem suscitar uma cena correspondente ou dar pistas ao espectador. É possível
identificar, em ambas narrativas aqui analisadas, um movimento, de metade do filme em
diante, no sentido de cercar esses múltiplos eventos, aparentemente independentes entre si,
pelo agenciamento de cenas cujo significado é explícito, aquelas cenas unívocas.
, numa seqüência ambígua.
Não obstante tais cenas possam imprimir um norte à narrativa, a abertura do filme se
mantém, na medida em que são solicitadas aquelas cenas autônomas em relação à narrativa
(reunidas sob o segundo eixo de análise), com maior freqüência, sempre sob trilha sonora. Na
narrativa no Festival de Inverno, as seqüências da lavagem da louça e do descascar da batata
surgem entre a metade e o fim da narrativa, bem como a cena do ônibus, pouco antes do fim.
Da mesma forma, na Escola de Belas Artes, são utilizadas seqüências nas quais o protagonista
caminha e temos acesso a um enquadramento subjetivo desse caminhar, a seqüência com
alfinete e também a cena da viagem no ônibus, mais presentes da metade ao fim do filme. 102 Cena 004_522.mp4. Essas gravações constituem os depoimentos sobre a década de 80, vistos ao longo da narrativa no Festival de Inverno da UFMG. Foram gravados para os propósitos do filme de Tiago, já adulto, fato revelado somente no decorrer daquela narrativa. 103 Cena 004_550.mp4. 104 Cena 003_015.mp4. 105 Cena 003_062.mp4. 106 Cena 003_020.mp4.
76
Os finais das narrativas mantêm, particularmente, a abertura do filme, quer seja na
dúvida da morte, quer seja na experiência no ônibus. As cenas finais não necessariamente
resolvem, ao contrário, elas mantém as incertezas da narrativa ou chamam atenção para os
aspectos sensoriais de uma situação específica, vivida pelo protagonista.
Como vimos, Ressaca possui elementos discursivos e tecnológicos, sobre os quais sua
narrativa sofre pequenas variações. Sua atualização depende, portanto, da articulação, sob a
figura da elipse, entre suas diversas cenas, de estatutos distintos, e de sua trilha sonora, para
que a direção e o sentido do filme sejam produzidos. Ademais, no momento pleno da
existência do filme, isto é, em sua performance, o agenciamento dos performers, combinado
às características dessa performance, pode criar condições para que haja uma abertura, na qual
o espectador venha a se alojar, temporária e provisoriamente. Em torno desse agenciamento
atesta-se o papel do performático em Ressaca, na constituição mesma e provisória do filme.
77
5 CONCLUSÃO
Este trabalho procurou olhar para as performances audiovisuais em tempo real,
definidas em torno de práticas emergentes no cinema, que incorporam, em suas aparições, o
corpo e elementos situacionais. Nem sempre codificados, no entanto, estão profundamente
envolvidos no processo de constituição do sentido dessas obras, no momento efetivo no qual
sua recepção ocorre. Nosso intuito foi analisar o papel exercido pela performance naquelas
práticas, em geral pouco discutido e problematizado nos trabalhos acadêmicos sobre o cinema
ao vivo ou VJing.
Para esse fim, realizamos a decupagem do filme Ressaca, de Bruno Vianna, para
melhor perceber sua estrutura, em termos de arranjos discursivos e tecnológicos, e sua
preparação prévia para performance. Analisamos também como as narrativas propostas pela
performance dessa obra assumem uma forma e são atualizadas durante seu agenciamento,
através da comparação entre duas sessões do filme. É preciso enfatizar, no entanto, que
analisamos somente a performance que o diretor do filme fez. As cenas, disponíveis para
download, podem dar origem a novas configurações, sob a intenção e agenciamento de outros
artistas.
Além disso, foi importante pensar as performances audiovisuais em tempo real em
relação à história do cinema, à qual essas práticas ultrapassam mas também nela encontram
seu lugar. Nosso esforço foi investigar tais práticas naquilo que elas ampliam o cinema, em
relação a uma literatura e tradição de pensamento, com o cuidado de não nos perdermos em
polarizações excessivas.
Por outro lado, este trabalho poderia lançar luz sobre o próprio cinema, para alargar o
entendimento sobre sua forma habitual, ao tomarmos o cinema como uma performance.
Pensar o cinema como ato implica fazer justiça à existência concreta dos espectadores, suas
maquinações, seu lugar provisório e o contexto no qual a recepção ocorre, implicados em
qualquer encontro com os filmes, atualizados a cada projeção, mesmo que se trate do cinema
em sua forma habitual. O que nas performances audiovisuais em tempo real é realidade plena
e experimentada, no cinema tradicional, poderíamos argumentar, é da ordem do desejo.
Não é sem embargo que realizamos essa pesquisa. Verificamos, no processo,
dificuldades para nos apropriar do conceito de performance, em função de sua história e
78
formulação diversas, muitas delas conflituosas. Ainda, pode ser problemático lidar com uma
obra como Ressaca, cuja documentação não é disponível e sua memória pode ser incompleta.
Como balanço, essa pesquisa apresenta-se de forma muito positiva, porque fomos
motivados a desenvolver um olhar sobre práticas imagéticas emergentes, de forma a pensá-las
como desdobramentos possíveis e provocativos em relação ao dispositivo do cinema. Ao
mesmo tempo, pudemos fazê-lo interrogando um objeto fascinante, que nos marcou desde sua
primeira experiência, o filme Ressaca. Por tais motivos, essa pesquisa se configura como
objeto de conhecimento e de amor.
Ainda em seu propósito, essa monografia pode revelar-se útil a artistas e
pesquisadores interessados na performance do cinema como uma leitura possível, realizada
num encontro luminoso entre um filme recombinável, uma literatura e um sujeito específico,
seu corpo e sua condição de espectador e comunicólogo. Um filme que se distingue de
Ressaca e apresenta uma reconfiguração curiosa de elementos, dentro das práticas
audiovisuais performáticas, é a obra Filosofia de Butiquim, lançada em 2007, do coletivo
paulista, V-Doc. Em sua performance, esse filme realiza-se na fronteira entre documentário e
VJing.
Como conclusão, queremos deixar uma pergunta que emergiu durante este trabalho,
esta performance: afinal, em que medida a performance é central nessas recentes práticas
audiovisuais? Mais do que elemento acessório à escritura do filme, como a performance pode
vir, efetivamente, a constituí-la?
79
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83
ANEXOS
ANEXO A - DVD com cenas do filme Ressaca, da interface de edição e algumas trilhas
sonoras.
Arquivo Descrição
Trilha sonora
Ressaca_Sequencia_13.mp3
Ressaca_Sequencia_28.mp3
David Bowie - Space
Oddity.mp3
Phil Collins - Against All
Odds.mp3
Vídeo
Engrenagem.mp4 ou
Engrenagem.flv
Vídeo explicativo sobre a interface Engrenagem, em
espanhol com legendas em inglês.
000_061.mp4 Pai do protagonista hospitalizado, família presente,
recebe visita de amante homossexual. Adolescência.
001_004.mp4 No colégio, Tiago compra balas. Fim da infância.
001_060.mp4 Tiago compra um pirulito cujo preço havia duplicado.
Fim da infância.
001_087.mp4 Vendedor de balas cobra Tiago. Adolescência.
001_104.mp4 Amanhecer no domingo, conversa entre mãe e filhos na
cozinha, discussão sobre dinheiro. Adolescência.
003_015.mp4 A mãe do protagonista vê fotos reveladas e não entende
a ação em quatro delas.
003_020.mp4 Pai instala vídeo-cassete e assiste a vídeo pornográfico.
84
O protagonista parece constrangido. A energia acaba.
Morte de Júlio. Fim da infância.
003_062.mp4 Tiago entra na sala e vê sua mãe com o olhar distante e
fotos sobre a mesa. Adolescência.
004_050.mp4 Tiago fala sobre personalidades da mídia, da década de
80. Adulto.
004_054.mp4 Protagonista visita feira e procura notas antigas. Adulto.
004_122.mp4 Propaganda de eletrodomésticos e depoimentos sobre a
vida econômica da década de 80. Adulto.
004_522.mp4 Entrevista sobre a vida econômica da década de 80,
sendo o protagonista o entrevistador. Adulto.
004_550.mp4 Protagonista olhando cartões com ilustrações, é
chamado pelo nome. Adulto.
005_027.mp4 Protagonista conversa com possível namorada, Maria
Gabriela, na frente do colégio, sobre a dificuldade de se
fazer bola com Ploc verde. Plano em slow-motion, com
a garota tentando fazer bola com chiclete. Adolescência.
005_037.mp4 Protagonista tímido diante da namorada, Maria
Gabriela, no quarto do sítio. Beijam-se. Adolescência.
005_572.mp4 Protagonista conversa com Maria Gabriela, no colégio,
a respeito de seu apelido, "Maga", e ela responde,
amigável. Fim da infância.
006_014.mp4 Uma garota (Cláudia) paquera Tiago, no intervalo da
aula. Adolescência.
006_073.mp4 Tiago e namorada (Cláudia) conversando na cama.
Adolescência.
007_018.mp4 Pai do protagonista o ensina a lavar louças.
Adolescência.
007_030.mp4 Pai do protagonista dirige van e encontra Daniela,
amiga de sua filha. Cortes sugerem um interesse entre
85
ambos. O pai do protagonista morre num acidente.
Adolescência.
007_031.mp4 Velório do pai do protagonista, família presente e
também a amante de Júlio (Daniela, amiga de sua filha).
Caixão aberto. Adolescência.
007_047.mp4 Velório do pai do protagonista, somente família
presente. Caixão fechado. Adolescência.
007_106.mp4 Irene, mãe do protagonista, conta ao guarda sobre o
falecimento de seu marido.
007_107.mp4 Mãe do protagonista vende cachorro quente no centro
da cidade, na van.
009_042.mp4 Tiago vê revistas homossexuais na banca, vê passar
homem sem camisa e tem uma ereção. Fim da infância.
009_052.mp4 Tiago pergunta à irmã sobre seu curso, Psicologia, e
questiona a irmã se homossexualidade é genética.
Adolescência.
009_067.mp4 Tiago e seu amigo Alex na banheira. Fim da infância.
010_110.mp4 Tiago pede os documentos do carro ao pai, para ir ao
drive-in. Fim da adolescência.
010_112.mp4 Tiago e seus amigos assistem a filme no drive-in. Fim
da adolescência.
010_113.mp4 Maria Gabriela, Alex e Tiago no quarto falam sobre os
discos de Tiago. Quebram alguns e o protagonista se
opõe quando Alex vai quebrar o disco de Phil Collins.
Adolescência.
010_595.mp4 Festa no sítio da amiga e possível namorada de Tiago,
Maria Gabriela. Apenas dançam. Adolescência.
011_035.mp4 Pai e mãe do protagonista vêem TV e anúncio de novo
plano econômico.
012_036.mp4 Mãe do protagonista reúne crianças em frente ao
86
colégio e seu marido pega elas de van.
012_564.mp4 Mãe do protagonista, abatida, vende doces no centro da
cidade, na van, apenas um comprador aparece.
013_013.mp4 Detalhe da mão do protagonista e ato de perfurar a pele
com alfinete. Adolescência.
013_028.mp4 Detalhe do descascar das batatas. Adolescência.
013_029.mp4 Protagonista e namorada na cama, lendo revista sobre
astronomia. Adolescência.
013_032.mp4 Viagem no ônibus. Adolescência.
013_114.mp4 Detalhe da lavagem de louças. Adolescência.
013_515.mp4 Subjetiva do protagonista caminhando sobre grama.
Fim da infância.
ANEXO B - Letra da canção Against All Odds, interpretada por Phil Collins
Against All Odds (Take A Look At Me Now)
How can I just let you walk away?
just let you leave without a trace
When I stand here taking every breath with you, ooh
You're the only one who really knew me at all
How can you just walk away from me,
when all I can do is watch you leave
'Cause we've shared the laughter and the pain
and even shared the tears
You're the only one who really knew me at all
So take a look at me now, 'cause has just an empty space
And there's nothing left here to remind me,
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just the memory of your face
Just take a look at me now, who has just an empty space
And you coming back to me is against the odds
And that's why I've gotta take
I wish I could just make you turn around,
turn around to see me cry
There's so much I need to say to you,
so many reasons why
You're the only one who really knew me at all
So take a look at me now, 'cause has just an empty space
And there's nothing left here to remind me,
just the memory of your face
Just take a look at me now,
'cause there's just an empty space
But to wait for you, is all I can do
and that's what I've gotta face
Take a good look at me now, 'cause I'll still be standing here
And you coming back to me is against all odds
and that's what I've got to face
Take a look at me now
ANEXO C - Letra da canção Space Oddity, interpretada por David Bowie.
Space Oddity
Ground control to Major Tom
Ground control to Major Tom
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Take your protein pills and put your helmet on
Ground control to Major Tom
(10, 9, 8, 7)
Commencing countdown, engines on
(6, 5, 4, 3)
Check ignition, and may God's love be with you
(2, 1, liftoff)
This is ground control to Major Tom,
You've really made the grade
And the papers want to know whose shirts you wear
Now it's time to leave the capsule if you dare
This is Major Tom to ground control
I'm stepping through the door
And I'm floating in the most peculiar way
And the stars look very different today
For here am I sitting in a tin can
Far above the world
Planet Earth is blue, and there's nothing I can do
Though I'm past 100,000 miles
I'm feeling very still
And I think my spaceship knows which way to go
Tell my wife I love her very much, she knows
Ground control to Major Tom,
Your circuit's dead, there's something wrong
Can you hear me Major Tom?
Can you hear me Major Tom?
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Can you hear me Major Tom?
Can you...
Here am I floating round my tin can
Far above the moon
Planet Earth is blue, and there's nothing I can do....
ANEXO D - DVD com cenas do filme Ressaca, da interface de edição e algumas trilhas
sonoras.
Caso os arquivos de vídeo não sejam exibidos, tente instalar o programa K-
Lite_Codec_Pack_660_Full.exe para que eles sejam corretamente exibidos no sistema
operacional Windows.