Joao Do - Forgotten Books

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Transcript of Joao Do - Forgotten Books

OBRAS DO AUTO R

A s R e l i g i ões do R i o ,8 .

ªedi ção.

A lma E ncant ado ra das R uas , 3 .

ªedição rev ista.

O Momento l i terár i o .

C i nemat ºg rapho (chronicas cariocas) .

Fr i v o l a C i ty .

E ra uma (contos para creanças em col laboração

com Viri ato Correia).

Jornal de V erão (chronica de Petropol is) .

TRADUÇÓES

S alomé , poema dramatico de Oscar Wi lde .

O R e trato de D or i an G r ay , romance de Oscar Wi lde .

I ntenções , de Oscar Wi lde .

O L eque de L ady Wi ndermere de Oscar Wi lde .

O sca r Wi l de , por Harlgorough Sherard.

THEATRO

U l t i ma noi t e , epi sodio dramatico em 1 acto, representado

no Tneatro R ecreio Dramati co em a noi te de 8 de marçode 1 9 07 .

A apparecer

P or tug al d'

A g ora .

J o à o o o R I O

(DA ACAD EMI A B R A! I LE I R A)

—:º;

Dentro da N'

te

P reserva i — nos , S enhor ,

das coi sas ter rª/icons quea ndam á

R ei D AV I D .

H . GARNIER,LI VRE I RO — EDI TOR

1 09 , R UA D O ouvmoa ,1 09 6, R U E mas SAI N T S -PER E S , 6

R I O D E JAN E I R O PAR I S

A FE L I X PAC H E C O

Cordia lmente

JO AO DO R I O

DENTR O DA N O I TE

Então causou sensação ?Tanto mais quanto era inexplicavel . Tu

amavas a Clotilde , não ? Ella , coi t adi t a ! pareci a louca por t i , e os pães estavam radiantesde alegria . De repente

,subita transformação . Tu

desapareces , a familia fecha os sal ões como seestivesse de lucto pesado . Clotilde Evident ement e havi a um mi sterio , uma dessas coisascapazes de fazer os espíritos imaginosos archi t ectarem dramas horrendos . Por felicidade , 0 j uizogeral é contra o teu procedimento .

Contra mim ?Podia ser contra a pureza da Clotilde .

Graças aos deuses,porém , é contra ti . Eu mesmo

concordari a com o Prates que te chama velhaco,

se não viesse encontrar o nosso Rodolpho,agora

,

às onze da noite , por tamanha intemperie“metido

num trem de suburbio, com o ar

Eu tenho o ar desvairado ?Absolutamente desvai radoVê— se ?

2 DENTRO DA NOITE

'E' claro . Pobre amigo ! Então , sofreste

mui to ? Conta lá . Estás pal ido, suando apezar datemperatura fria, e com um olhar tão estranho

,

tão exquisito . Parece que bebeste e que choraste .

Conta lá . Nunca pensei encontrar o RodolphoQueiroz

,0 mais elegante artista desta terra

,nem

trem de surburbio,às onze de uma noite de

temporal . E ' curioso . Ocul tas os pezares nasmatas suburbanas Estás a fazer passeios dev ício perigoso ?O trem rasgara a treva num silvo al anhant e,

ede novo cav al av a sobre os trilhos . Um sino enormeia com elle badalando , e pelas portinholas do vegonviam— se

,a marginar a estrada, as luzes das casas

ainda abert as , os si lv edos empapados d ' agua ea chuva l ast imav el a tecer o seu infi ndav el veu delagrimas . Percebi então que o suj eito gordo da banqueta proxima o que falava mais dizia parao out ro

Mas como tremes , creatura de Deus ! Estásdoente ?O outro sorriu desanimado .

Não estou nervoso,estou com amal dita crise .

E como o gordo esperasseOh ! meu caro

,o Prates tem razão ! E teve

razão a fami lia de Clotilde e tens razão tu cujoolhar e de assustada piedade . Sou um mi serav el

desvairado , sou um infame desg raçado .

Mas que é isto,R odolpho ?

Que é isto E' o fim,meu bom amigo

,é o meu

fim . N ão ha quem não tenha o seu vicio, a sua

DENTRO DA NOITE 3

tara,a sua brecha . Eu tenho um vicio que é positi

vamente a loucura . Luto , resisto , grito , debato-me ,não quero

, não quero , mas o vicio vem vindo a rir ,toma—me a mão , faz—me inconsciente , apodera— sede mim . Estou com a crise . Lembras — te da JeanneD ambreui l quando se picava com morphi na

?

Lembras-te do j oão Guedes quando nos convidavapara as juman

'

as d'

opio? Sabiam ambos que acabav am a vi da e não podi am resistir . Eu quero resi st i r e não posso . Estás a conversar com um homemque se sente doido .

Tomas morphina ,agora? Foi o desgosto de

O rapaz que tinha o olhar desvairado perscrutouo v agon . Não havia ni nguem mais a não ser eu ,

e eu dormia Ell e então aproximouse do suj eito gordo

,numa ancia de expli cações .

Foi de repente,Justino . Nunca pensei Eu era

um homem regul ar,de bons inst inctos , com uma

famili a honesta . Ia casar com a Clotilde , ser debondade a que amava perdi damente . E umanoite estavamos no baile das Praxedes , quandoa Clotilde apareceu decotada , com os braçosnús . Que braços ! Eram del icadíssimos

,de uma

beleza ingenua e comovedora,meio infanti l ,

meio mulher a beleza dos braços das Oreadaspintadas por Bot icelli

, mi xto de castidade mi stica e de alegria pagã . Tive um estremecimento .

Ciumes ? N ão . Era um estado que nunca se apossara de mim a vontade de t êl — os só para os meusolhos , de bei jal -os, de acarici al — os, mas principal

4 DENTRO DA NOITE

ment e de fazêl — os sofrer . Fui ao encontro da pobrerapari ga

,fazendo um enorme esforço, porque o

meu desej o era agarrar— lhe os braços , sacudi l-os ,apert al

-os com toda a força , fazer-lhes manchasnegras

,bem negras

,feril Porque ? N ão sei

,nem

eu mesmo sei uma nevrose Essa noite passei-anuma agitação incrivel . Mas contive—me . Contiveme di as

,mezes

,um longo tempo , com pavor do que

poderia acontecer . O desejo , porém fi cou,cresceu

,

brotou,enrai gou

— se naminha pobre alma . No primeiro instante

, ami nha vontade era bater-lhe com

pezos, brutalmente . Agora a grande vontade erade espet al -os , de enterrar-lhes longos alfi netes , decozel -os devagarinho ,

a picadas . E j unto de Clotilde

,por mais cumpridas que trouxesse as mangas

,

eu v i a esses braços nús como na primeira noite , v i aa sua fôrma graci l e suave , sentia a fmura da pelee imaginava o subito est remeção quando podesseenterrar O primeiro alfinete , escolhia posições ,compunha o prazer deante d '

aquel le susto decarne que havia de sentir .

Que horrorAfi nal , uma outra vez , encontrei— a na sauteri e

da viscondessa de Lages,com um vestido em que

as mangas eram de gaze . Os seus braços oh quebraços

,Justino

,que braços estavam quasi nús .

Quando Clotilde erguia-os,parecia uma nimpha

que fosse se met amorphoseando em anj o . No cantoda varanda , entre as roseiras , ella di sse—me º

R o

dolpho, que Olhar o seu . E stá zangado ? N ão foi

possivel reter o desej o que me punha a tremer,

DENTRO DA NOITE 5

rangendo os dentes . Oh ! não fi z . Estou apenas com vontade de espetar este al finete no seubraço . Sabes como é pura a Clotilde . A pobresi t a

olhou-me assustada , pensou ,sorriu com tristeza :

Se não quer que eu mostre os braços porque nãome di sse hamai s tempo

,Rodolpho ? Diga, é isso que

0 faz zangado ? E,

,

º

ê isso Clotilde . E rindocomo esse riso devia parecer i diota continuei !

E ' preciso pagar ao meu ciume a sua di vida de sangue . Deixe espetar o al fi nete . Está louco

, R odol

pho ? Que tem ? Vae fazer—me doer .

Não doe . E o sangue ? - ! Beberei essa gotade sangue como a ambrosia do esquecimento . Edei por mim

,quasi de j oelhos

,implorando

,supli

cando , inventando frases , com um gosto de sanguena boca e as fontes a bater

,a Clotil de por

fim estava atordoada,vencida

, não comprehen

dendo bem se devia ou não resistir . Ah meu caro,

as mulheres ! Que estranho fundo de bondade , desubmissão

,de desej o

,de dedi cação inconsciente tem

uma pobre menina ! Ao cabo de um certo tempo ,ella curvou a cabeça , murmurou num suspiroBem , Rodolpho , mas de vagar

,Rodolpho

Ha de doer tanto ! E os seus dois braços tre

Tirei da botoeira da casaca um al fi nete , e nerv oso

, nervoso como se fosse amar pela primeiravez , escolhi O logar , passei a mão ,

senti a pelemacia e enterrei-o . Foi como se fi sgas se uma petalade camelia

,mas deu—me um gozo complexo de que

participavam todos os meus sentidos . Ella teve

6 DENTRO DA N O I T E

um ah ! de dôr, levou o lenço ao sitio picado , edisse, mag oadament e Mau

Ah ! Justino ,não dorm i . Deitado

,a delicia

d'

aquel la carne que sofrera por meu desej o , a sensação do aço afundando de vagar no braço daminha noiva, dava—me espasmos d'

horror ! Queprazer tremendo E apertando os varões da cama

,

mordendo a travesseira , eu tinha a certeza de quedentro de mim rebentara a molestia incurav el . Aomesmo tempo que forçava O pensamento a di zernunca mai s farei essa infamia ! todos os meus nervos latej avam voltas amanhã ; tens que gozar denovo o supremo prazer Era o delirio

,era a moles

t i a,era O meuHouve um silencio . O trem corria em plena

treva, acordando os campos com O desesperadobadalar da machina . O suj eito gordo tirou a carteirae acendeu uma ci g arret a .

Caso muito interessante , Rodolpho . N ão haduvida que é uma degeneração sexual

,mas 0 al

trui smo de S . Francisco d '

Assis tambem é deg eneração e o amor de Santa Thereza não foi outracoisa . Sabes que Rousseau tinha pouco mai s oumenos esse mal ? É

'

s mai s um tipo a enriquecer aserie enorme dos discipulos do marquez de Sade .

Um homem de espirito já defin iu o sadismo : adepravação intelectual do assassi nato . É s umJack hi per-ci v il i sado ,

contentas — te com enterrar alfi nites nos braços . Não te assustes .

O outro resfolegava,com a cabeça entre as mãos .

Não rias . Justino . Estás a tecer paradoxos

DENTRO DA NOITE 7

deante de uma creatura já do outro lado da vidanormal . E ' lugubre .

Então continuaste ?

Sim , continuei , voltei , imediatamente . N o

di a seguinte , anoitinha , estava em casa de Clotilde ,e com um desej o louco

,desvai rado . N ós conversa

vamos na sala de visitas . Os velhos fi cavam por

al i a montar guarda . Eu e a Clotilde iamos para ofundo

,para o sofá . Logo ao entrar tive o inst incto

de que podia praticar a minha infami a na penumbrada sal a, emquant o o pae conversasse . Estava t ãoagitado que O velho exclamou Parece

, R odol

pho , que vieste a correr para não perder a festa .

Eu estava louco , apenas . Não poderás nunca ima

ginar O caos da mi nha alma naquel les momentosem que estive a seu lado no sofá

,o maelstrom de

angustias,de esforços

,de desej os , a luta da razão e

do mal , o mal que eu senti saltar—me a garganta ,tomar—me a mao , rr agi r , i r Quando ao cabode al guns mi nutos acariciei-lhe na sombra o braço ,

por cima da manga,numa caricia lenta que subia

das mãos para os hombros , entre os dedos sentique já t inha o al fi nete , o al finete pavoroso . Entãofechei os Olhos

,encolhi —me , encolhi—me , e finquei .

Ella estremeceu,suspirou . Eu tive logo um rela

xamento de nervos , uma doce acalmia . Passara a

crise com a satisfação,mas sobre os meus olhos os

Olhos de Clotilde se fixaram enormes e eu v i queella comprehendi a vagamente tudo , que ella descobria o seu infortuni o e a minha infamia . Como era

8. D ENTRO DA NOITE

nobre,porém ! Não disse uma palavra . Era a des

graça . Que se havia deEntão depois

,Justino , sabes ? foi todo O di a .

N ão lhe v i a a carne mas sentia— a marcada, ferida .

Cosi— lhe os braços Por ul timo perguntava : Fezsangue

,hontem ? E ella palida e triste , num sus

piro de rôla : Pobre Clotilde A que pontoeu chegara

,na necessidade de saber se doera bem

,se

ferira bem,se estragara bem E no quarto,a noite ,

vinham-me grandes pavores sub i tos ao pensar nocasamento pOrque sabi a que se a tivesse toda haviade picar— lhe a carne virginal nos braços

,no dorso ,

nos Justino,que tristeza

De novo a voz calou— se . O trem continuava aossolavancos na tempestade , e pareceu—me ouvi r orapaz soluçar . O outro porém estava interessado

,e

indagouMas então como te saisteEm um mez ella emagreceu

,perdeu as côres .

Os seus dois Olhos negros ardiam augment ados

pelas olheiras roxas . J á não tinha risos . Quando euchegava , fechava-se no quarto , no desej o de espaçara hora do tormento . E ra a mãe que a i a buscar .

Minha fi l ha,o Rodolpho chegou . Avia— te . E ella

de dentro Já vou ,mãe Que dôr eu tinha quan

do a v i a aparecer sem uma palavra Sentava— se aj anela, concertava as fi ôres da j arra, hesitava , atéque sem forças vinha tombar a meu lado

, no sofá ,como esses pobres passaros que as serpentes fascinam . Aúnal , ha dois mezes , uma creada viu— lheos braços, deu o alarme . Clotilde foi interrogada,

l O DENTRO DA NOITE

De novo porém a envolveu um tremor assustado .

Quando te encontrei , Justino , vinha a ecompanhar uma rapariga magrinha . Estou com a crise ,

O teu pobre amigo está perdido , o teu pobreamigo vae ficarDe repente

,num entrechocar de todos os v agons ,

o comboio parou . Estavamos num a estação suj a,il umi nada vagamente . Dous ou tres empregadosapareceram com lanternas rubras e verdes . Apitost ri laram . Nesse momento , uma menina loira com

um guarda-chuva a pingar , apareceu , espiou o v ãgon

,caminhou para outro , entrou . O rapaz poz— se

de pé logo .

Adeus .

Saltas aquiSalto .

Mas que vaes fazer ?N ão posso , deixa-me Adeus

Sahin , hesitou um instante . De novo os apitost ri l aram . O trem teve um arranco . O rapaz apertou a cabeça com as duas mãos como se qui zessereter um irresistível impul so . Houve um silvo . Aenorme massa resfolegando rangeu por sobreos trilhos . O rapaz olhou para os lados

,con

sul ton a botoeira , correu para o v agon ondedesaparecera a menina loira . Logo O comboiopartiu . O homem gordo recolheu a sua curiosidade , mai s pali do , fazendo subir a vidraçada j anela . Depois estendeu— se na banqueta . Euestava incapaz de erguer—me

,imaginando ouvi r

a cada instante um grito doloroso no out ro_v agon,

DENTRO DA NOITE l i

no que estava a menina loira . Mas o comboiorasgara a treva com outro silvo , caval gando ostrilhos vertiginosamente . At rav éz das vidraçasmolhadas viam— se numa correria fantastica asluzes das casas

'

ai nda abertas , as sebes empapadasd 'agua sob a chuva torrencial . E a frente , no altoda locomotiva, como o rebate do desespero , o

enorme sino reboava,acordando a noite , enchendo

a treva de um clamor de desgraça e de delirio .

Emoç õE s

H ontem , ás ófhoras da tarde , fui buscar ao clubda rua do Passei o o velho barão Belfort

,que

me promettera mostrar, tres di as antes , a sua caracolecção de esmaltes arabes . O barão jogava e perdi a com um moço febril , que á lapela trazia umcrysanthemo amarelo

,da côr da sua tez . Ao ver-me

,

di sse amav elment e

Est amos a j ogar . O Oswal do ganha como uminglez e com a al ucinação de um brasileiro . Estouperdendo e apreciando este bom Oswal do , que aindatem emoções .

Os seus olhares seguiam,frios e argutos , o jogo

do bom Oswal do , e , a cada cartada, tamborilandoos dedos na mesa, Belfort sorria um sorriso mau

,

entre desconfiado e satisfeito . De repente , porém ,

as pupil as acenderam-se— Ihe . Poz as duas mãosnervosas na mesa, e perguntou , emquanto mai s

pal ido o moço estacavaE tu não jogas ?N ão .

Fazes bem . Um escriptor do tempo de Balzac

1 6 DENTRO DA NOITE

dizia que o j ogo era para a mocidade o veneno daperdi ção . O veneno ora vê tu,

o venenoSorriu com delicadeza .

O Oswal do permite ? Vou embora sem mai sum real . At é amanhã . E não deixe de tomar aguade fl ôr deLevantou-se , mirou as unhas bruni das , mi rou a

gravata, e sahiu, deixando o j oven só naquel le sal ãoque o pleno verão tornara deserto . Acompanhei—o

,

não sem olhar para traz . O moço pendi a a cabeçana sombra, e assim pel i do , com um pali do crysan

themo, os seus olhos tinham chispas de susto e deprazer .

Em baixo, no vestiario , o barão deixou que lhe

enfi as sem o pal etot , mandou chamar o cowpé, epartimos di scretamente , sob a tarde luminosa ecôr de perola . Belfort aconchegou— se a almofada deset im mal va, acendeu uma cigarrilha do Egyptocom o seu monograma em ouro , e , emquanto o

carro rodava,indagouQue t al achaste 0 Oswal do ? E ' o meu estudo

agora . Havia meia hora que me roubava escandaN ão lhe di sse nada . Ainda é possivel

salv al

Quer perdel — o? indaguei habituado ás excentri cidades desse algido ser.

Oh não, quero gosal — o . Tu sabes o homem é

um animal que gosta . O gosto é que vari a . Eu gostode ver as emoções al heias

, não chego a ser O b i sb ilhot ei ro das taras do proximo

,mas sou o gosador

das grandes emoções de em torno ..Ver sentir

,forçar

1 8 DENTRO DA NOITE

com uma interessante rapariga , a Cloti lde Cl ô

para os intimos . Conversou da Chi na , dos boxers ,confessou o contrabando e levou—me a vel-o . Quevida feliz a daquel le casalO Praxedes sahi a pela manhã , trabalhava,

voltava para o j antar , e não se largava mai s dej unto da Clô . Não tinha um vicio , nunca tiveraum vicio

,era um Chinez espantoso , sem dragões e

sem vi cios Estudei-o , anal isei — o . Nada . Legislat iv ament e moral .Uma noite em que o convidara para j antar

,

jogamos . Adi vinharia al guem que cratera esperavao momento de rebentar nessa alm a tranqui la? Asenhora, a Clotilde , cantava no meu piano , com

voz triste , a aria do sui cídio da det est av el G i oconda .

Eu estava receioso que depois surgissem variaçõessobre o bailado das Horas . Disse— lhe despreocupado Quer j ogar ? Não sei E

' sempreagradavel ensinar mesmo O vicio Então ensine Pegou das cartas ,

olhou-as indiferente , masas minhas palavras ouvia-as desv anecedorament e º

]og ámos a primeira partida . Os seus olhos come

ç aram a luzir . Jogamos outra . Mas isso assimsem dinheiro ? Ponhamos dois tostões Poissej a Perdi . ! Redobra— se a parada ?

tostões ? Sim Pois sej a A' meia noite

jog av amos a dez mil rei s , e Clotilde , muito cançada ,

já sem cantar , fazia inuteis esforços para o arrancara mesa .

Deitei-me sem conclusões,e só no di a seguinte ,

quando o chinez enl ei ado apareceu pedi ndo outra

DENTRO DA NOITE 1 9

partida, é que comprehendi o assombro . A paixãoestal ara, a paixão voraz

,que corróe ,

escorcha ,

Invej ei — o,e,como homem delicado

, jo

guei e perdi . No outro di a ,Praxedes voltou . Levei — o

ao club ,aroleta

,donde sahiu a ganhar pelamadru

gada.

Ah ! meu caro , que scena ! que fina emoção ! Oj ogo , quando empolga , domina e envolve o homem ,

é o mais bello vicio da vida,é O enlouquecedor

espectaculo de uma catastrophe sempre iminente,

de um abismo em vertigem . O Chinez era pathetico . Com os dedos t remulos

,assoando-se de vez em

quando , os olhos embaciados , quasi vítreos , 0 Praxedes rouquejava num estertor silvante que pareciaagarrar— se desesperadamente a bola : 27 ,

I 5 , 2ª du

zia ! 27 ,1 5 , 2 .

ª duzia ! E a bola corria,e a alma do

pobre esphacelav a— se na corrida , esforçando-se ,

puxando — a para o numero desej ado , num esforçoque o tornava roxo

]antei no club só para não perder al gumas horaso interesse desse espectacul o . Tambem durantetres di as e tres noites , Praxedes não deixou a roleta .

Estava pal i do, fraco . A gente do club , vendo -o

ganhar,ganhar mesmo uma fortuna

, já o tratavade dom Praxedes . AO cabo de uma semana, entretanto

, a chance desandou . Praxedes começou a

perder bruscamente com gestos de alucinado ,espal hando as fichas como quem arranca pedaçosda propria carne .

Calma, meu caro , di zia— lhe eu I mpos

sivcl imposs ivel ! murmurava elle .

20 DENTRO DA NOITE

Pediu—me dinheiro,dei -o, pediu a outros , deram

lh 'o . Pediu mais deixou de ser o dom Praxedes,

recebeu recusas brut aes . Acabou não voltandomais ao club . Eu

,porêm , sentia— o em outros antros

,

definitivamente preso a sua cruz de horror , a cruzque cada homem tem de carregar na vida .

Certa noite,mezes depois

,encontrei-o numa

batota da rua da Aj uda, com o fato enrugado e a

gravata de lado . Correu para mim , Foi Deus queo trouxe . Estou farto de perúar . Isto de mirone nãome serve . Empreste-me cincoenta mil réis paraarrumar tudo no 0 0 . Ah está dando hoj e escandalosament e . Faremos uma vacca? Vai dar pela certa .

Agarrou a nota como um desesperado, precipi

t ou-se na roda que cercava o tableau da direita :Tenho aqui cincoent ão ; esperem ! E cahiu porcima dos outros , com O braço esticado .

O duble-zero falhou . Elle voltou cynico E !

prec i so insistir ; deixe vêr mai s algum . Não dá ?Olhe

,escute aqui , hipotheco— lhe uma mobilia de

quarto,serve ?

Comprehendi então a descabida vertigem daquella queda .

_

Tive pena . Arrastei-O quasi a forçapara a rua, fil -o contar—me a vida . Estava dcsempregado

,abandonara o emprego

,vendera o mobi

l i ario ,as j oias da Clô , os vestidos , as roupas , mu

dara— se para uma casa menor e al ugara a sal a dafrente . A Cabul a ,

a má sorte , a gui gne persegui amno

,e,pendido ao meu braço o mi serav el soluçavaHavemos de melhorar , empreste —me algum .

Estou sem nickel

DENTRO DA NOITE 21

Deixei-o sem nickel,mas fui ao outro di a vêr a

Cloti lde , uma flôr de belleza, com Os olhos vermelhos de chorar e as roupas já estragadas . Ia sahi r ,arran j ar di nheiro . . E seu marido ? Meumarido está perdi do . Anda por ahi a jogar . Hadois di as não o vej o ;hoj e não Abandone-o ! Abandonal -o eu ? E a sociedade , eelle ? Que seria delle ? Ora

,elle ! Elle

ama-me,ama-me como d ' antes . Mas que quer ?

Vein— lhe a desgraça . A's vezes brigo,mas elle di z

me Ai ! Clô , que hei de fazer ? E' uma força

,uma

força que me puxa os musculos . Parece que desenrolaram uma b ola de aço dentro de m im

,tenho de

j ogar . E cai em prantos, por ahi , tão triste , t ão

triste que at é lhe v ou arranj ar di nheiro , que sério apedi r .

E' espantoso , pois não ? O homem tinha umabola de aço e a fidelidade da mul her Só esses seresespeci aes conseguem coisas tão difãcei sUm instante o barão cal ou— se . O coupé rolava

pela prai a, e a noite , cahi ndo,desdobrava por

sobre O mar a t al ag arça ful i g inosa das primeirassombras .

Respeitei a Clotilde , por systema j a assustadocom as proporções emocionaes do mari do . Ao outrodi a ,

porém , Praxedes , com sorri sinhos equívocos naface escav eirada Esteve com a Clô , ein? Con

serv ada apesar da desgraça, a minha mul herzinha,pois Recuei assombrado . Aquel le homembom , digno no fundo , aquelle homem que amavaa mulher , para arranj ar dinheiro com que sat i sfa

22 DENTRO DA NOITE

zer as cartas e a roleta , mercadejav a— a aberta ,cyni ca ,

despej adamente . Que queres t u? indaguei aspero

,tem vergonha, vai , some-te

Eu hypotheco uma mobilia . Só quinhentos,

só quinhentos !E ra a alucinação . Corrio — o

, e esperei ancioso ,como quem espera o final de uma tragedia, porquetinha a certeza do paroxismo daquelle vicio . Afi nalha de haver seis mezes , antes do meu encontro com0 Oswal do , l i , na cama, as 3 da manhã, este bilhetedesesperado Venha . Praxedes matou— se . Estousem ni nguem . Acuda—me . ClôAi menino , não sei O que senti . Aminha vontade

era ver,era saber

,era acabar logo . Precipitei-me .

Quando cheguei , às voltas com a poli cia que querialevar O corpo para o N ecrot erio

,Clotilde

,desg re

nhada, com os labios em sangue,caiu nos meus

braços . Então,como foi isso ? Sei lá como

foi Tinha que ser A desgraça Estava doido . H y

pothecou a mob ilia , os j uros eram semanaes . Nãoarranj ei dinheiro e o judeu lev ou-a . Dormi no chão .

Hontem não apareceu . Hoj e estava eu a dormirquando o senti que cami nhava . Risquei o phosphoro . Era elle , livido , embrul hando a casaca docasamento . N ão sei o que me deu . Onde vais ?

Vou v er si arranj o uns cobres , respondeu . Preciso jogar , sinto urna ancia , não posso mais .

Estas doido N ãoestou, Clô , não estou ,fez elle

arregal ando os olhos . Eu fui cruel : Olha que si vendes a casaca fi cas sem roupa para o enterro . E lleparou . Para o ent erro ? para o meu enterro ? E'

DENTRO DA NOITE 23

melhor mesmo,e melhor mesmo

,eu não posso

mais E,de repente

,desesperado

,começou a ba

ter com a cabeça pelas paredes . Praxedes Praxedes Não faças isso ! Praxedes ! Gritei , solucei .Qual ! Cada vez arrumava o craneo com maisforça de encontro às qui nas das portas . O som ,

ah ! esse som como me ensandece ! Ainda o ouçoE elle todo em sangue

,todo em Agar

rei-o . Arrastou—me até á j anella,voltou— se ,

deixou-se cahir em cheio com a nuca na sacada,esticou O pescoço desesperadamente e rodouOh ! o horror salve—me ! sal ve—me !Abri o grupo dos agentes

,fui vêr Praxedes .

Estava côr de cera , com a cabeça fendi da e os labioscoagul ados de sangue rôxo . E o olhar vitreo , amãorecurva , assim , sob a luz da madrugada

,pareciam

seguir ainda e acompanhar O mal a que o impeli raa sua bola de aço .

Esse record de emoção desesperada prostrou—me .

Nunca v i sentir tão vertiginosamente .

O carro parára . O barão saltou, subiu de vagaras escadas de marmore

, emquanto no interior depalacete retini am campainhas electricas .

Preciso sentir vendo os outros sentir,fez

mirando — se no alto espelho do vestiario . Só assimtenho emoções . Garanto — te que 0 Oswaldo acabacomo o Chi nez de Macau

,mas por outro meio

.com a morphina tal vez . Só os Chinezes morrem áscabeçadas por sentir de maisE fomos j antar tranquilamente na sua mesa

" íi Ori da de cravos e anemonas brancas .

H I STORI A D E G E NTE ALE G R E

O terraço era admi rav el . A casa toda parecia mesmo al i pouzada á beira dos hori sont es sem fim comopara admiral-os

,e a luz dos pavimentos t erreos, a

iluminação dos sal ões de cima contrastava v iolenta com O macio esmaecer da tarde . Estavamosno Smart— Club

,estavamos ambos no terraço do

Smart— Club,esse maravilhoso terraço de vill a do

Estoril,domi nando um lindo sitio da praia do

Russel as aveni dasilargas , o mar, a linha ar

dente do cães e o céu que tinha luminosidadespolidas de faiança persa . Eram sete horas . Como ardente verão ninguem tinha v ondade de j antar .

Tomava— se um aperitivo qual quer, embebendoos Olhos na beleza confusa das côt es do ocaso e nobanho viride de todo aquel le verde em de redor . Assalas l á em

j

cima estavam vazias ;a grande mesa debaccarat

,onde al gumas pequenas e al guns pequenos

derretiam notas do banco a descançar . O soalhoenv erni sado brilhava . Os divans modorravam emfi la encostados as paredes os divans que nessesclubs não têm mui to trabalho . Os creados , vi ndostodos de Buenos—Aires e de S . Paulo , creados

28 DENTRO DA NOITE

italianos,marca registrada como a melhor em Lon

dres,no Cairo , em New— ! ork , empertigavam— se .

E a Viração era tão macia , um cheiro de sal sugempolvilhava a atmosphera tão levemente , que a

vontade era de fi car ali muito tempo , sem fazernada .

Mas a noite j á estendi a o seu negro brocado picado de estrellas e noMei n-ai r do terraço começavam a chegar os smart-di eta s . Que curioso as

pecto ! Havia Franceses condecorados , de gestosvul gares , I ng lezes de smoking e parasita a lapela,Americanos de casaca e tambem de brim brancocom sapatos de jogar O foot-bal l e o lat im-tenni s

,os

elegantes cariocas com risos art i fi ci aes , risos posti

ços , gestos a contragosto do corpo , todos bonecosvíctimas da diversão chantecler, os noceurs habituaes e os mi che's ricos ou jogadores

,cuj a primeira

refei çao deve ser O j antar , e que apareciam d'

olhei

ras , a voz pastosa, pensando no bac chemz'

n de fer,no 9 de cara e nos pedi dos do ul timo béguin . O predi o

, mais uma villa da bacia do Medi terraneo,

ardi a na noite serena,parecia a miragem dos astros

do alto ; as toal has brancas , os chri st aes , O s baldesde christofle tinham reflexos . Por sobre as mezascorria como uma farandola fantasista de pequenasvelas com capuchons coloridos , e vinha de cima umavalsa l anguida ,uma dessas valsas de lento enebri ar,que adejam vôos de mariposas e têm fermatas queparecem spasmos . No meio d'

aquel la roda dehomens

,que se cumprimentavam rapidos

,di zendo

apenas as ultimas syllabas das pal avras B'

jour,

DENTRO DA NOITE 29

deus ! goo,i am chegando as cocottes, as mo

dernas Aspasi as da ínsígni frcanci a . Algumas vinham a arrastar vestidos de cinco mil francos ;outras tinham attitudes simplistas dos primitivosItal i anos . Havia na sombra do terraço , um desfil ar de fi guras que lembravam Rossetti e H ell eu

,

Mirande e Hermann-Paul, Capi elo e Sem ,

Jul ião etambem Abel Faivre

,porque havia cocottes gordas ,

mui to gordas e pintadas,aj aezadas de joias ,

suando e praguejando . Fal avam todas linguas est rang eiras o hespanhol , o frances , o ital i ano , atéo al lemão com o predomínio do pari got , do argot ,

da langue verte. Só se falava mesmo calão de boulev ard . FOra ,

a entrada,paravam as lanternas

carbuncul ant es dos autos , havia fonfons roucos ,arrancos bruscos de machinas H . P . 60 . Aquel le

ambiente de ínt ernacional i smo á parisiense cheiodo rumor de risos , de g lug lus de garrafas , de piadas ,era uma excitação para a gente chi c . O barão Andréde Belfort, elegantíssimo na sua casaca impecavelconvidara—me para

,

um j antar a dois em que seconversasse de arte antiga porque elle tinhaestudos pessoaes sobre a noção da linha na Greciade Pericles. Evidentemente

,antes de termi nar o

j antar teríamos a mesa guarnecida por al guma d 'a

quel l as figurinhas escapas de Tanagra ou qualquerdos gordos monstros circul antes .

De subito,porém na al eg ri a do terraço ouvi

por traz de mim uma v óz de mul her dizerPois então não sabes que a Elsa morreu hoj e

de madrugada?

30 DENTRO DA NO ITE

Não me voltei . A mulher conversava noutramesa . Mas senti um pasmo assustado . Elsa ! Seri aa Esla d'

Aragon ,uma carnação maravil hosa de de

soito anuos,lançada havi a apenas um mez por um

manager de musi c hal l , cuj a especialidade sexualera di v irg ínar meninas puberes? Seria ella com os

seus olhos verdes,a pelle v el ludosa de rosa— chá

e aquella eSplendi da cabeleira negra d'

azev i che?

E morrer em plena apoteose , cheia de j oias ede apaixonados Indaguei do meu conviva

Morreu a Elsa d'

Aragon ?

O barão Belfort encomendava . emfi m o cardapio . Acabou tranquilamente a grave operação

,

descançou o monocul o em cima da mesa .

Exactamente . Parece que a apreciavas ? Pobrerapariga ! Foi com efeito ella . Morreu esta madru

gada .

De repente ?Com certeza . Devia ter sido uma linda morte .

Beleza horrivel . N ão se fala noutra coisa hoj e naspensões d'

art íst as ,em todos os conv ent i lhos ele

gantes pat ronados pelas velhas cocottes ricas , nasrodas dos j ogadores . A Elsa era mui tonature, coma phobia do artifi cio

,mas soube morrer furiosa

mente .

Como foi ?Neste momento chegara a bisque e O balde

com a Mõet,brut imperi ale, que O velho dandy

bebe sempre desde o começo do j antar .

O barão atacou a bisque deu não sei queordem ao ma i tre-d

'

hôtel , e murmurou

DENTRO DA NOITE 3 1

E' uma historia interessante . Você de certoai nda não quiz fazer a psycholog ía damulher alegreatirando — se a todos os excessos por enervamento denão ter O que fazer? Quasi todas essas creaturas, altamente cotadas ou apenas da calçada, são , comodirei ? as excedidas das preocupações . Estão sempreenervadas

, paroxi smadas . O meio é atrozmente art i fici al , a gargal hada, o champagne , a pintura eneobrem uma lamentavel pobreza de sentimentos e desensações . Ao demais

,a vida tem um regulamento

geral de excessos,e ellas fatalmente pela lei , têm

que fazer pagar caro e arruinar os idiotas,têm de

amar um rapazola mi serav el que lhes coma achelpa e as bata, têm que embriagar — se e discutir oshomens , os negocios das outras , tudo mais ou menos exorbitando . Uma paixão de cocotte é semprecaricatural , é sempre para além do natural , do verdadeiro, e a sua pobre vida , tenha ella centenas decontos ou viva sem um real pelas bodegas reles , ésempre uma hypothese falsi fI cada de vida, uma especie de fj ord num copo d ' agua

,a luz electrica .

Todas amam de modo excepcional , jogam exces

siv ament e, embriagam-se em vez de beber , poem

dinheiro pel a j anella a fora em vez de gastar,quando choram

,não choram , ui vam , ganem , casca

t ei am lagrimas . Se têm fil hos,quando os vão ver

fazem taes excessos que deixam de ser mães,mesmo

porque não O são . Duas horas depois os pequenosestão esquecidos . Se amam ,

praticam taes loucurasque deixam de ser amantes

,mesmo porque não o

'

são . Ell as tem varias paixões na vida . Cinco anuos

32 DENTRO DA NOITE

de proãssão acabam com a alma das galantescreaturinhas . N ão ha mais nada de verdadeiro .

Uma interessante pequena pode se resumir : nomefal so , crispação de nervos igual a exploração dosgigolos e das propriet arí as, mais dinheiro apa

nhado e beij os dados . São fantoches da loucura movidos por quatro cordel ins da mi seria humana .

A Elsa, então ?A Elsa foi atirada subitamente numa pensão

do Cat tet e . Sabes O que é a vida em casas de t alespecie . Ellas acordam para O almoço

,em que apa

recem varios homens ricos . O almoço é muito emconta

,os vinhos são caríssimos . A obri gação é fazer

v ir vinhos . Desde manhã ellas bebem champagne elicores complicados . Nesses almoços discute-se agenerosidade , a tolice , ou a voracidade dos machos . A tarde é dada a um ou a dois . A s cincotoi lette e o passeio obrigatorio . A

' noite,o j antar em

que é preciso fazer muito barulho,dansar entre

cada serviço ou mesmo durante, di zer tolices .

Depois O passeio aos masi c-hal ls , com os quaestem contrato as prºpri et ari as ,

e a obrigação deir a um certo club aquecer o j ogo . Cada uma d 'ellastêm o seu cachet por esse serviço e são mul tadasquando v ão a outro que

,como é de prever

,paga

a mul ta . O resto é ainda o homem at é dormir . Nessefantochi smo lentej oul ado ha varios generos o

doidivana,o serio

,o reservado

,o nature, O romant i

co, e para encher o v asio,

os v ícios bizarros surgem .

Ellas ou tomam opio,ou cheiram ether

,ou se

picam com morphina ,e ainda assim

, nos paraísos

4 DENTRO DA NOITE

infame , eu vi a Elsa com um conhecido banqueiroe,mui to naturalmente , Eli sa ao lado . Era a

Safa !Meu caro

,nada de repugnanci as . Prove este

fai são . Está magni fi co . O ra, hontem , no Casino ,como a pobre Elsa estava totalmente fóra dosnervos e com um vestido verdadeiramente admiravel , tive prazer em ir apertar— lhe a mão . Então

,

como v ae com esta v ida ? Como vê,muito

bem . Mas esta nervosa . Ha de serde fal ta de habito. Acabo por acostumar .

Com um t ão bello N ão sej a mao,

deixe os cumprimentos . E de subito Digame , barão , não ha um meio da gente se ver livredisto ? N ão posso

,não tenho mais liberdade , já não

sou eu . Hoj e,por exemplo

,tinha uma imensa

vondade de chorar . Chore,é um a questão de

nervos . Ficará de certo aliviada . Mas nãoé isso , não é isso , homem Se a menina continua a gritar

,participo — lhe que vou embora .

N ão, meu amigo , perdôe . E' que eu estou tão ner

vosa ! tanto Queria que me dêsse umconselho . Para que ? Para ali viar-me .

E '

di ffi ci l . Você soffre de um mal commum , asurmenag em do arti ficio . Eu podia dizer— lhe re

colha— se a um convento . Mas pareceria brincadeirae tal vez viesse a morrer mi stica, a conversar com osanj os , como Swdenborg . Conheci al gumas que acabaram assim . Podia tambem ,

se fosse um idiota,aconselhar a vi da honesta . Mas isso seria impossível

DENTRO DA N OITE 35

porque o pezar de ter sahido desta em que o desperdicio é a norma, a saudade e as lembraças deixal — a

iam amargurada . Depois não tem recursos e teriasempre que pôr em circulação o seu lindo capital .

Barão, por quem é , fal e—me sinceramente .

Então , minha filha, aconselho uma pai xão ou umexcesso , um bello rapaz ou uma extravagancia .

Nesta roda não ha bellos rapazes . De accordo,

ha quando mui to velhos recemnascidos . Masrecorrer amul tidão , passar uma noite percorrendoos bairros pobres , experimentar . Ou então , minhacara

,um grande excesso champagne

,ether ou

Voltei—me para a sal a . Num camarotefronteiro a Elisa Olhava com os seusdois Olhos demorta . E se não a repugna muito uma grandemestra dos parai sos art i fi ci aes, a Elisa N ão

fale alto , que ella percebe . Então ja a sabialá? Corri— a hontem do meu quarto . E ' umdemonio . Mas você precisa de um demonio .

O que ella Já sei , toda a gente fal .

Mas naturalmente ella é excepcional . Barão ,vá embora . Adeus , mi nha querida . Quandodei a vol t axpara fal ar a Elisa, já esta deixara v asioO camarote .

E então,como morreu a linda creatura ?

Acceít ando O meu conselho . A sua morte pertence aomisterio do quarto , mas devia ser horrivel .Elsa partiu do musi c— hall directamente para casa,pretext ando ao banqueiro que lhe i a pôr um pe

queno pal acio,a forte dôr de cabeça a classica

Wgrame das cocottes enfaradas ou. excedi das E ap

36 DENTRO DA NOITE

pareceu na ceia da pensão como uma louca, amandar abrir champagne por conta propria . Quando por volta de uma hora appareceu a fi gura delarva da Elisa, deu um pul o da cadeira , agarrou— lheo pul so Vem ; tu hoj e és minha ! Houve umagrande gargalhada . Essas damas e mais esses cav alhei ros tinham uma grande complacencia com aElisa, e aquell a victoria excitava-os . Elisa molemente sentou— se ao " lado da Elsa

,que bebia mais

champagne,sent i a afrontações e torcia os dedos da

apaixonada por baixo da mesa . Era O desespero .

Mimi Gonzaga assegurou—me que ella receberauma carta da mãe logo pela manhã . N o fim

,

Elsa,palida e ardente

, di zia : Vi eri a, mort chéri , que

je te bai se e mordia rai vosamente o pescoço daElisa . Via— se a repugnancia

,a raiva com que ella

faz i a a scena de Lesbos pobre rapariga sem in

versões e esthet ismos á A ceia acabou emespectacul o

,e acabaria com todos os espectadores ,

se algumas mulheres com ciumes dos seus senhores-ah ! como ellas são idiotas ! — não os tivessem

levado . Elsa as duas e meia fez erguer-se a El isa ,

calada emi steriosamente fria . Vão tomar morphi

na interrogou um dos assistentes cuidado , ein ?Elsa deu de hombros

,sorriu

,sai u arrastando a

outra . E a desaparição foi theatral ainda . Os Olhosverdes da Elsa b ist rados, a sua cabel leira desnast ra ,

agarrando com um desespero de bacchante a pastosidade oleosa e aloi rada da míserav el que a queri a .

Que horror !A coitadinha aturdia— se . E ' o processo habi

DENTRO DA NOITE 7

tual . Para mostrar a sua livre vontade caia na

extravagancia,agarrava O tipo que a repugnava ,

para mergulhar inteiramente no horror . Estivequasi a acredi tar que tivesse recebido alguma lembrança dos parentes, e imag inei um instante ascena sinistramente atroz do quarto em que emfim .

como uma larva diabolica, O polvo loiro da rodairia arrancar um pouco de vida aquella linda crea ! !

tura ardente , ai nda com uns restos d 'alma deNunca porém pensei no fim subito .

Pelas cinco horas da manhã, a pensão acordavaa uns gemidos roucos, que vinham do quarto deElsa . Eram bem g ritos est ertorados de soccorro . Asmulheres desceram em fral da, os creados ergueramse com o sorri so cíni co habituado aquellas madru

gadas agitadas de ataques e de delirios hi st ericos.

A porta do quarto estava fechada . Bateram , bateram muito , emquanto l á dentro o som rouco rou !

quejav a . Foi preciso arrombar a porta . E a

scena fez recuar no primeiro momento a tropado al couce . Como luz havia apenas a lamparinanuma redoma rosa . O quarto , cheio de sombra . mostrava, em cima das poltronas, as sedas e os dessousde renda da

,

Elsa . Um frasco de ether aberto , em.

pestava o ambient e . A Elisa, o corpo da Elisa estava de j oelhos á beira da braços pendiam como dois tent aculos cortados . I nteiramentenua, o corpo divino livido , os cabellos negros amarrados ao alto como umc asco d

'

eb ano, Elsa d'

Ara

gon, as pernas em compasso, a face cont rahida ,

ainda sentada , agarrava com as duas mãos, numa3

3 8 DENTRO DA NOITE

crispação atroz , a cabeça da Elisa . EraElisa que rouquejav a . Elsa estava bem morta, O corpo já frio .

D ev ia ter havido luta, resistencia de El sa, t riumpho damul her loira e por fim sem fim at é a morte

,

emquanto a outra se estorcía , apertava— a,arran

cava— lhe os cabellos , machucava— lhe o rostoaquel le horror . Elsa entrara no nada debatendo-sevíctima de um suplício diabolico

,mas no ul timo

espasmo as suas mãos agarram a assassina . Quandoesta aânal satisfeita quiz erguer— se

, Sentiu— se presapelos cabellos , tentou lutar , v i u que a pobre eracadaver . E passou-se então para o monstro o

momento do indizível terror, o momento em quese vê para sempre o mundo perdido porque fi couimmov el rouquejando , de j oelhos , a cabeça no

regaço do cadaver,que mantinha nas mãos cerra

das a massa dos seus cabellos d 'oiro . Os dedosde resto pareciam d

'

aço . Uma das mulheres recorreu a tesoura para despegar a cabeça de Elisa dasmãos do cadaver . Quando o corpo tombou no leitocom o punhado da

"

cabelleira nas mãos, o bandoestremunhado v iu surgir a face de Elisa, tão decomposta

, t ão velha, que pareci a outra , como queaparvalhada .

H ouve um silencio . O creado serv i a fruct as geladas

, esplendidas peras de Hespanha e uvas dasregiões v inhat eiras da Burgonha, grandes uvasnegras . O barão trincou de uma pera .

Foi uma complicaçãopara afast ar a policia eimpedi r noticias nos jornaes que desmoralisaríam

a casa . Elisa seguiu horas depois para o hospício ,

DENTRO DA NOITE 39

babando e est ertorando . A Elsa devia ter sidoenterrada hoj e á tarde . Estive l á a ver o cadaver .

Tinha ainda nas mãos cerradas fi os de cabell osloiros , como se quizesse arrancar para o tumulo a

prova desesperada da sua morte horrivel .E mordeu com apetite a pera . NO salão de cima

uma val sa lenta, chorada pelos violinos , enl an

guecia o ar . Das mesas do terraço entre a ill umina

ção bizantina das velas de capuchons coloridossubia o zumbido al egre feito de risos e de gorg eiosde todas aquellas mulheres que o j antar alegrava .

O F IM D E ARS E N IO G ODARD

D O D IAR IO I NT IMO D E U M R EVO LTO SO

Estava tudo combinado . Era impossivel falhar .

Quando a lancha partiu , sem rumor , explorandoa treva do oceano encarpell ado,

fi cámos entretantonervosos . Seriam muitos ? Seri a um só ? Ah ! Se osbandi dos fossem apanhados Os nossos nervos ,excedidos j á por aquelles tres mezes de enj aul amento na bahia

,sob o canhoneio das fortal ezas

e as necessidades mais duras , começavam a dar aospequenos factos uma importancia capital , umaimportancia desprºporcional . Assim , ao recebermosa denuncia amiga de que um ou mai s homens conseguiam a nado levar instrucções aos legalistas , a

explosão da nossa colera foi tal que , vendo-a , nin

guem deixari a de julgar as inst rucções causa unicado nosso enervante estado .

Quasi todos nós , paisanos levados pelas circumstanci as e as perseguições t írannicas dos sequazesdo marechal aquella vida do vaso de guerra , esta

)vamos encostados á amurada com os oc íaes e o

44 DENTRO DA NOITE

commandante a ver se vi amos o trabalho da lancha no negror da noite .

Oh era de mai s Havia oito di as mast i g aramos

a meia ração de feij ão preto sem toucinho . 0 pa

t riot i smo, a indignação pelos descalabros do go

verno cabi am intimamente num relaxamentolamentavel . O desejo unico era deixar a bahi a, eraacabar com aqui l lo ,

era tirar dos hombros aquellamão de ferro das situações insoluv ei s em que secomplicavam as traições dos ing lezes, as intimativas americanas e a falencia das nossas Victorias .

E na treva da noite sem estrellas todas as colerasse fundiam no ser que os nossos i am apanhar

,

como se fosse elle a causa do ror de desastres havidos .

E' verdade,indagou um medico , em terra

o exemplo da bondade , que castigo havemos dedar ao canal ha ?

E'

boa , passamol — o pelas armasEra um exemplo

,mas seria pouco para o

infame . Só se O fizessemos mi ra de um tiro ao alvogeral . Todos nós atiraríamos .

elle só sentiria uma vez O ' commandante ,qual será o castigo do patife ?O cºm andant e era um cavalheiro elegante e

ti no . Voltou— se a sorrirConforme . N a carta que m '

o denunciou dizem-no estrangeiro . Que sej a . E ' Mpossiv el j usti !

çal-O . Se fôr brasileiro , porêm , passamol-o pelas ar

mas .

Ah iamos ter uma noite interessante e diverti da

DENTRO DA NOITE 45

afinal ! O mi serav el veria com quem se metera !

E no olhar de cada um de nós havia a expectativae no riso dos outros

,como talvez no nosso , um re

puxamento de labios queria sorrir e mostrava osdentes como um esg ar de féra .

Esperamos assim entretanto até de madrugada .

A fadiga prostrara al guns , sºprav a um vento dechuva , violento e humído ; o commandante recolhera a lancha não voltava . Já a inquietação succedi a a furia quando a amurada a lancha acostou .

Todos nós corremos numa ancia má , numa anciade vingança, avidos de ver em primeiro logar o

torpe,O infame

,que toda noite passava por nós

arriscando a vida para complicar e perder a nossavida . O commandante deixou a cabine apressadamente ; a oii i ci al idade vinha de todos os pontosdo vaso de guerra . E ,

naquel le surdo rumor decolera

,os companheiros de lancha içaram para O

tombadilho,amarrado , manietado ,

como que dobrado em dous , um corpo nú , membrudo e fort e .

Muitos ?

Um só,commandante . Ia com um sacco

cheio de cartas .

E —

o sacco ?Aqui está .

Desamarrem o homem .

Dous marinheiros curvaram-se; outro accendeuuma lanterna de furta-fogo e assim conseguimosv er a cara do typo , uma cara commun , de bigodecastanho e Olhos turvos . Logo que o soltaram , avoz um tanto inquieta

,mas clara, exclamou

46 DENTRO DA NO ITE

Mr . le commandant , j'

sui s françai sOs legali stas são brasileiros . Ninguem aqui

comprehende línguas estrangeiras .

Eu falo o portuguez . Sou francez , senhores ,peço explicar o facto .

Você ainda quer expli car, ein ? Que topet eMas é um direito .

Direitos para um suj eito pescado de madru

Eu exi j oVocê não exige nada ; nós é que fazemos de

você O que qui zermos . Levem esse homem para a

sala d'armes , a aguardar as minhas

O s marinheiros foram levando o homem aos

trancos . Nós fi cámos na expectativa . O comman

dante,entretanto

,fazia conduzir o sacco á sua

cabine .

Boa noite , meus senhores .

E o castigo , commandante ?Ah o j á pensei . Apenas só lh'

o direiamanhã . E ' preciso fazel-o passar a noite fazendopalpites. Vocês não imaginam como é interessantepassar a noite imaginando vari as desgraças irremedi av eis, que todas ellas são perfeitamentepossiveis e hão de se dar al gumas horas depoisAté logo mais, meus amigos .

Recolhemos . Que castigo imaginaria aquelle

homem refinado e di st incto? Como estaria o outro ,nú, na madrugada al gida, lá em cima? D ormiria?Pensaria? Pensaria na morte de certo , porque eraimpossível outro genero de

DENTRO DA NOITE à7

Como v ar o homem? indagámos,Parece dormir ; sim, senhor .

N ós é que não dormimos . Ficámos no beliche ,nervosos, á espera daquell a morte , daquell a scena

atroz , fatal dalli a momentos . Que se daria , ceosclementes ?N o di a seguinte

,as 8 da manhã , fomos convida

dos a i r a sal a d 'armes . O homem nú lá estava, carrancudo,

com o olhar turvo,mordendo o bigode .

E quando o commandante chegou,houve um ar

rapio geral , um arrepio de medo . O commandante ,porém, estava amav el e sentara— se .

Como se chama ?

Arseni o Godard .

Ah muito bem .

Eu desej avaOh ! inteiramente inutil . Venho dizer— lhe o

que resolvi a respeito . Sr . Arsenio Godard,o

senhor v ai viver comnosco at é 0 Em da nossaacção . Vê-se que O senhor é um homem , corajoso ,forte .

. Excellente companheiro ! Vou mandarlhe uma roupa . Terá um beliche seu . O navio éinteiramente seu . Apenas , como o senhor nadabem e pôde não gostar da nossa companhi a ,

seráacompanhado sempre . N ão desej amos que nos

abandone .

O francez olhava, tentando descobrir a insidi a,

procurando saber que casti go horrendo aquelle

vencedor archi tect av a entre phrases de mel .Mas , Sr . commandant e, devo

48 DENTRO DA NOITE

Eu é que devo di zer que j antará á nossamesa .

Ah ! nós não passamos a vela de libra, como ospatriotas da cidade . Mas , emfim , come— se . Vai —v êt

N ão imagina o prazer que nos dá a sua companhi a .

Está entendido então ? Bem . Até O almoço . Guar a

di ão,uma roupa ao Sr . Godard .

Era de t al modo grave a atitude do comman

dante que nenhum de nós se atreveu a inter-rogal-o .

Tambem a explicação veiu minutos depois , terminante e terrivel .O tenente João chamou-nos de parte e em voz

seca deu a ordem de cimaO Sr . commandante prohibe que se converse

ou se responda ao preso . O Sr . commandanteconsidera uma deslealdade a causa e á sua pessoadizer uma palavra ao Sr . Godard , at é segunda ordem .

Era O supplicio do silencio ! Era O cast igo ! Alguns acharam fraco eram os ingenuos .

Outros sorriram , imaginando as resultantesdaquel le sport , a perseguição do silencio ao pobresuj eito . Como tomaria elle a vingança ?A

' hora do almoço,Godard appareceu,

seguidode um marinheiro . Pedi u licença , sentou-se . N in

guem Olhava para elle . Ao primeiro prato atirou-secom uma fome indizível , verificando se lhe prestavamos atenção . Afinal , não se conteve

Sr . commandante , não sei como agradecerO commandante continuou a fal ar com O tenente

João . Godard quiz insistir, atrapalhou— se,voltou

para O visinho da di reita

50 DENTRO DA NO ITE

e Godard estava só deante do marinheiro mudoe sério .

N o dia seguinte , o nosso preso appareceu ao

almoço sombrio , cumprimentou sem ser corres

pondido,ab ancou noutro logar

,mastigou sem dizer

palavra,ergueu-se

,agradeceu , insistiu

Se o Sr . commandante me dêsse licença paraexpôr um plano de ataque

,conhecendo eu como

conheço as posições Perdão E'

trahi ção

Vejo que não sou Agradeço,entretanto .

Oh era evidente que Arsenio Godard , tipovoluntarioso , fazia um esforço sobrehumano paraconter a colera, para não desesperar deante daquella horrivel situação que o fazia viver no navio comose estivesse só ,

inteira e defi nitivamente só . Os olhosardiam de colet a , os beiços estavam brancos e asmãos tremiam

,tinham um tremor de furia . Talvez

ainda se jul gasse capaz de vencer o castigo , porque ,a noite

,bruscamente , foi ao commandant e e de

novo insistiu sobre os seus planos . Ao cabo dequatro di as

,entretanto

,durante o almoço

,Godard

ergueu— se .

Digam ? E' para sempre O silencio ? Ninguemme falla? Mas eu sou um idi ota , um animal , umleproso ? Que sou eu? Não respondem ? Matem-meE ' infame

,afinal . Os infames sors v ós. Retiro-me

N ão como mais . N ão fujo,é verdade mas

!

morro defome . Adeus, senhores .

Sahin a bater com os pés para a sua cabine . Nóscont inuamos a conversar das cousas que nos inte

DENTRO DA NO ITE 5 1

ressav am . Só º marinheiro acompanhou-º ,cºmº a

prºpria sºmbra muda.E fº i ent㺠a luta mais curiºsa e mais atrºz , º

sport mais dºlºrºsº e mai s Inquietante que j amaisvi ramºs , entre a palavra e º si lenciº . Cada um denós

,cºm º inst inctº animal de vencer

,n㺠res

pºndi a só para ºbedecer aº commandante nãºrespºndia pºrque respºnder seri a a victºri a dº

pºbre di abº . Cada fi gura de bºrdº era um componente daquell a machina de separaç㺠, daquel l amachina que º tenente Jºãº chamava º pneumaticoda vºntade , a rarefacção dº hºmem,

pºrque a

palavra é a vi da, e fal ar, trºcar palavras é sentir-seviver . Gºdard sent ia bem que nós º murav amºs

nº silenciº , que nós cada di a erguí amos mais altºaquel le murº de mudez que as suas palavras nãºpºdi am

,n㺠cºnsegui riam quebrar . Resistiu dous

dias,nº camarºte , á fºme . Depºis veiu a mesa

ferºz e sºmbriº cºmº um j aguar e nessa atitudeconservou — se dez di as , dizendº apenas ºbrigadºe bºm di a . Ficava á pºrta dº camarim

,bufando

e fumandº . Se alguem passava pº r acasº , erguia— setinha um rictus I rºmcº

Obrigadº !Aº catiº desse tempº v eiu— lhe º relaxamentº dºs

nervºs,º acicate da v ºndade mºrdeu— º mais fºrte .

Era precisº ºbter uma respºsta , sentir que nãºestava mºrtº ! Inventºu estratagemas . Acom

panhav a uma pessºa at é saber— lhe º nºme e derepente dizia-lhe nas cºstas , disfarçando a vºz

52 DENTRO DA NO ITE

ESperav a em logares solitarios alguem , pedia

phºsphºrºs, encartava nas palestras acaloradasuma phrase dessas que exigem réplica , di scuss㺠;espreitava º abandºnº dºs marinheirºs para ºbteruma palavra uma apenas . N ós estavamºs , pºrêm ,

numa situaçaº pºr demais irritante , cºm ºs tirot eios

, a fal ta de vi veres e a certeza de um fi m pro

ximo,para cºnsentir em perder . Aº demais , se elle

sºffresse resi gnadament e , tal vez algum sentimentalabaladº respºndesse . Mas Gºdard era um volant ariºsº

, a resignaç㺠n㺠a cºmprehendi a . Cadadi a passadº era para ºs seus nervºs mais um mot iv º de furia

,de raiva cºntida . De modº que nº

v asº de guerra em plena revºlta,havia apenas o

di abºli cº sport de um hºmem cºntra t resentºs ,

querendº fal ar, querendº viver , querendº rebentarº sudario de silenciº cºm que º enterravam mº ral

mente,sem º cºnseguir .

D osmeiºs subtis,Gºdard cahiu nºsmeios baixºs .

Ia aº commandanteA immºral idade dº seu navio é assombrosa .

Acautele — se cºntra º immediat o que º venderá naprimeira ºccasi㺠!

E inventava intrigas entre ºs pai zanºs e os offici aes , arrastava reticencias , esperavaNós nem sºrri amºs . Um silenciº absºlutº , um v er

dadeirº silenciº que i a até aos gestºs , cºmº sedeante delle est iv essemºs deante de um ºbject ºindifferente e inanimadº

,acolhia a infantilidade

desesperada .

D a intriga, Arseniº Godard cahiu na humilhaç㺠.

DENTRO DA NOITE 3

Para chegar a este excessº , era precisº soHrer

estrafeg adamente ,e Gºdard sºffri a . Tinha as pal

pebras arroxadas,º semblante l i v idº , º ºlhar

apuadº pela preºccupaç㺠cºnstante , º gestº vagº .

Uma nºite , de repente , depºis de uma bal a terrebentado nº cºnvés , lacerando as pernas de tresinferiºres e espadanandº sangue até na amurada ,

emquantº febrilmente tºdºs nós trat av amºs deremedi ar º mal , cahiu de jºelhºs aºs pés dº commandante .

Deixe —me prestar auxíliºs tambem ! Faleme ! Fal e-me ! Pela sua hºnra, pela sua farda !Diga sim ! diga n㺠Diga qual quer cºusaO cºm andante passou— lhe pºr cima . Arseniº

cºntinºu de rojo,pedindº , pedindº , sem ver a

quem,pedindº a quem passava, indi st ínct ament e .

Nenhum de nós,cheiºs de preºccupações , pensava

em ter pena . O bandidº era º inimi gº,e cada vez

que uma bala trazia º desastre, a colera augmen

tava cºntra a sua fi gura l ivi da de t rahídºr deses

,Pelº amºr de Deus ; uma palavra só , uma

palavrinha ! chºrava elle , cºm a face nº ch㺠, ridicul º e macabrº aº mesmº tempo .

A crise accentuºu-se . Arseniº resºlveu conquist ar os guardas cºm as lagrimas .

Cada marinheirº que lhe postavam comº sºmbratinha—º lºgº de jºelhºs , prºcurandº beij ar— lhe a

m㺠, a fazer prºmessas , a pedir , a chºrar . O cºm !

mandante repetiu as ºrdens severas . Arseni º fi cºusem respºsta, e da humi lhaç㺠passºu á cºlera .

54 DENTRO DA NOITE

N㺠querº este ! n㺠querº ! Já disse ! bradava quandomudavam ºs guardas .

S㺠uns indignºs uns cºvardes ! N㺠me satisfazem ? Que sºu eu? Eu n㺠estºu mºrtº , ºuviram ?fal º , falº , falº . Que impºrta que n㺠me respºn

dam? Falo , estºu falandº . Covardes !

Mas a cºlera , cºmº as lagrimas , batia de encont ro aº ilimi tadº e asphixi ante silenciº . N㺠º ou

v i amºs, n㺠º sentíamºs . Gºdard vºltºu á vidadº beliche

, a dizer ºbrigadº irºnicamente quandº

pºr acasº alguem passava pela pºrta . Já haviampassadº dºus mezes

,sessenta dias e sessenta nºites .

Tudº annunciava º fIm da nºssa aventura, e cadavez mais º nºssº ºdiº se accentuava contra aquel leºbj ectº sºltº a bºrdº ,

º mercenáriº,º t rah ídºr .

Os acºntecimentºs,ºs desastres desenrolaram— se

cºm º cºrtej º de mºrtes,de humilhações , e deante

de nós,cºm as ideas empaladas num silenciº deses

peradºr, º an imal soti ria a nºssa vingança pºr tºdºsa quem nºs era impºssível estraçalhar , matar ,vencer .

Uma tarde,º marinheirº que deixara a guarda

fºi dizer aº commandante que Arseniº Gºdard

pareci a febril e falava cºusas sem nexº nº beliche .

D eixal — º

E ' verdade,commandante , se

"

acab assemºs

cºm essa bºca a mais?

Oh é precisº que elle pague a dedicaç㺠aºs

ºutrºs . Se fºsse um resignado,ha muitº estaria

mºrtº , mas , pºr issº mesmº que enfurece , have

DENTRO DA NO ITE 55

mºs de º trancar cada vez mais nº castigº . Estádesesperadº .

Cºm eii ei t º, Gºdard desesperava . N º camarºte ,

deitadº de barriga para º ar,a barba crescida

cabellº pelas ºrelhas,fallava altº para se ensurde

cer, para enganar os ºuvidºs , para iludir aos pro

pri ºs sentidºs . Era tragicº,mudandº de v ºz ,

imitandº vºzes de mulheres,vºzes de bichºs .

Oh ! ºh ! Madame engana-se ! Qual , é impossível que º Sr . Arseniº aguentasse tamanhacrueldade . Setenta dias

,minha senhºra ! Eram

uns castradºs . Oh ! perd㺠! Um patife ! Ah ! ah !Cºcóricó ! Boum Vamºs cantar um duetto ? Val eu .

! ess Essa mi ss éOs marinheirºs incultos estavam receiosºs de

que a raz㺠de Gºdard tivesse afinal sidº estran

gul ada pelº circul º dº silenciº . Olhavam-n'

o receiosos . E Godard ent㺠pul ava da cama , em ceroulas ,

desguedelhadoN㺠me falam

,n㺠? Decididº Afinal eu ºs

desprezº,cobardes

,vencidºs . Mas tambem nãº

precisº . Estºu cºnversandº ,estºu ºuvindº ºutras

vºzes respºnderem ás mi nhas perguntas . Ah ! ah !O hºmem intelligente escapa aºs maiºres tormen

Ao cabº dº sexag esimº nºnº di a , pºrém , Gºdardfº i á mesa silenciºsº e seriº

,pedi u um cigarrº ,

passeou pelº tombadilho , dormiu direitº e lºgºpela manhã seguinte , deitadº , chamºu º guarda .

Dá-me um phºsphºrº ?O guarda apprºximºu

-se , estendendº a caixa.

56 DENTRO DA

'

NOITE

Ent㺠ah o presº,deu um saltº da cama, arran

cando"

aº marinheirº a arma num subito ataque ,bateu a pºrta rapidº e

,segurando— º pelº g asnet e

Vaes respºnder,agºra . Anda , depressa . Res

ponde Faze signal que sim ! Faze signal ºu morres !

Uma luct a travou-se . O marinheiro era um ea

b lºcº enºrme . Prendera a m㺠que apontara º rev ólv er e cºm a ºutra arrumara um socco á caradº presº . Mas Gºdard sentia decupli cadas as fºrças .

Cºm a m㺠livre atirou— se aº sabre dº marinheirº .

O ºutrº desviºu . Cahiram ambºs trºpeçandº numj arrº . Gºdard parecia um fi ºret e º marinheirº erauma tºrre . O fragor de luta chegºu até nós . Corremºs á cabine . A v ºz de Gºdard bradava

Fal a, respºnde , di ze qualquer cºusa . Ca

chorro ! Cachºrrº ! R esponde-me ! E mºveis ca

hi am ,ºs cºrpºs rºlavam .

E' º Gºdard Precisamºs abrir .

Está fechadºAbre-se a machadºEu abrº se me fal arem ,

berrava de dentrºGodard, eu abrº se me fal arem ! Digam Gºdardabre para mºstrar que eu n㺠estºu mºrtº , queeu vivº , que eu sºu Gºdard

Ah bandidº que pensava"

elle,º infame ? Os

machadºs cahi ram na pºrta viºlentamente , fazendºsal tar a fechadura

,e pºr deante de nós saltºu bran

dindo º sabre , nú , cºm a cara em sangue , ºs cabellºs empastados, Arseniº Gºdard .

58 DENTRO DA NOITE

cul º abertº pºr aquella inesperada sortida , bateuº em cheiº nº pescºç º .

Um j actº de sangue golpeou nº ar sºmbriº . Acabeça curvou d '

º lhºs arregalados . Tºda a guarniç㺠parºu . O cºrpº pendeu . Estava mºrtº . E

,nãº

sei pºr que , um ºdiº viºlentº,um 'odi o deSespe

radº fez-nos ainda segurar º cadaver a ver se vivia .

O tºrpe fugira á sentença , escapara das nºssasmãºs

,deixara-nos impºtentes para cºntinuar a

apert al— º infi nitamente naquel le sudaríº de silenciº

que fóra º nºssº mais ferºz , mais tremendº , maisdilacerante castigº .

DUAS C R EAT U RAS

DUAS C R EAT LI RAS

O grande hall dº hºtel estava repletº . Pelasj anellas semi-cerradas , na suave ºndul aç㺠dascºrtinas brancas , entrava um vago perfume deviºleta e de rosa . Lá fºra , entre ºs tufºs de verduradº j ardim e º ceo muitº azul, devia esplender apalida luz de um sº l de invernº . As mesas

,tºdas

ºccupadas e scínt i lantes de crystaes, prºlºng av am-se at é aº fundº n 'uma orchestraç㺠de tºnsbrancºs , que i am dº brancº de prata aº brancº

gri s nºs logares mais em sºmbra .

Os creados passavam apressadºs , erguendonuma azafama ºs pratºs de metal . Aº altº os

ventil adores faziam um rumºr de colmeI as .

Senhºras e caval heirºs, perfeitamente feli zes , assenhºras quasi tºdas cºm largºs bºas de plumasbrancas

, chal rav am e sºrriam . Estavamºs bemna bizarra sºciedade de entalhe que é º escól dºshºteis . Alta, lºnga , cºmprida, cºm uma cintura deesmal tes t ranslucidºs e º ar empoado de uma ínM a dº general Lafayette , a escriptºra americana,cuja admiraç㺠pºr Gºnçalves D ias chegara a

62 DENTRO D A NOITE

fazel-a estudar e prºpagar 0 Brazil , masti gavagravemente . Lºgº aº ladº , um grupº de eng enheiros

,tambem americanºs , bebia, cºm gargalha

das brut aes e de certº incºnvenientes , champagneMunn . Mai s adeante a encantadºra viuva dº mi llionario Guedes, cºm º seu perfil de Luigni , de quetantº mal se dizia, sºrria n

'um vagº sºnhº paraasenhºra Al da, a fºrmºsa divºrciada dº di a, AldaPaes ante-hontem, Alda Pereira hºj e , cºmº hacincº annºs, antes de De vez emquandº

parava á pºrta um nºvº hºspede,hesitava

,per

cºrri a cºm º ºlhar a extensa fi la de mesas ºnde ºdebi nage se acalorava . A um cantº

,Mlles . Péres ,

fi lhas de um ricº argentinº, yatok

-recorderman nashºras vagas e vendedºr de gadº nas ºutras , perlavam ri sadinhas de fl i rt para º sºlitariº e divinºAlbertº Guerra, segurº dºs seus bíceps, dºs seusbrilhantes e quiçá dºs seus versºs .

Bem aº centrº , º nºssº vastº mini strº em H ºn

duras desdobrava a sua sympathica adi pºsidadeª

n 'uma rºda de mocitos elegantes,ferºzes preten

dentes aº secretariado diplºmático,e,de vez em

quandº,cºrtandº º zumbidº elegante dº grande

hal l , retinia imperiosamente º sºm de uma cam

painha electrica .

Estavamºs a almºçar cincº ºu seis , cºnvidadºspelº bar㺠Belfºrt, esse velhº dandy sempre im

peccav el , que dizia as cºisas mais hºrrendas cºmuma perfeita di st incç㺠. E fôra de certº uma extravagancia aquelle demºradº almºçº , a fazer hºras

para ummatch de foot-ball , a que seria impºsivels

DENTRO DA NO ITE 63

deixar de assistir . O bar㺠, de vei a ,cºm a sua vºz

de navalha, recortava na pelle dºs presentes ascaricaturas perversas . Nós já tínhamºs ri dº muitºe entravamos cºm appeti te n 'um vulgaríssimosabni s de cºelhº

,quandº de repente um dºs nºssºs

cºmpanheirºs exclamºu

Olha, a Chilena aqui

A' pºrta surgiu uma triumphal fi gura de Ceres ,

cºm º cabellº côr de ºurº e º verde ºlhar coado pºrumas neg ras pestanas de azev iche . O seu lindº cºr

pº era cºmº que mºdeladº pelº vestidº de Irlandae rendas verdadeiras . Nºs dedºs afilados e tenuescºmº as petal as esguias dºs chrysanthemºs , tresºu quatrº perºlas rºsas ; nºs lºbulºs das ºrelhas ,duas negras perºlas e por sºbre a gºla leve de rendas brancas um virginal collar de perºlas . Acom

panhav am-n

'

a um cachºrrinhº brancº de neve , defºcinhº impertinente

,e um cavalheirº , baixº ,

gºrdº,cheiº de jºias

,enfi adº n 'uma rendíng º t e

A Chilena ! A Chilena aqui ! Mas que sociedade é esta ? bradºu º mais j ºven dºs convivas .

O bar㺠teve .um sºrrisº scept i'

cº .

Meucarº,º R i º tem

,cºmº Pari s ºu Lºndres

ºu mesmº Mºntevideu, a sua season. A season

cºmeça regularmente cºm a chegada dº primeirºmambembe estrangeiro

,mambernbe naturalmente

insupºrt av el , e fecha cºm ºs cal ºres da primavera ,na abertura dº sal㺠depintura . E'

a epºca dº luxº ,da exhibi ç㺠,

dº sacri fi ciº para aparecer, da tag a

64 DENTRO DA NOITE

t elice,em que tºda a gente falla mal dº proximo

e entende de arte, é a epºca escºlhida pelºs quepretendem tºmar lºg ar na sºciedade . Nós sºmosuma sºciedade em fºrmaç㺠a mais at trahente ,

a que mais tenta pºr cºnsequencia , n㺠só pelassuas taras

,que ha vinte anuos n㺠eram julgadas

mal , cºmº pelº nºssº fundº meiº ingenuo de aceit ar tudº º que brilha , sej a diamantino ºu sej a mºntana . Annualmente , de envºlta cºm os pºlíticº s

,

ºs fazendeirºs,ºs estrangeirºs explºradºres, apa

recem essas fi guras cºm um passadº estranhº , decididas a dºminar, a entrar nºs logares hºnestºs, aserem respeitadas .

S㺠fi guras de invernº . Querem dºmi nar . Eºlhe que aqui

,quasi tºdºs têm a sua hi stºria

as demai sel les Péres , talvez enteadas de um rei

mºrtº , º wil deanº cºnde R ºssi , lá lºnge , cºm º seuexcepciºnal secretariº cubanº Albertº Guerra

seductor irm㺠de D . Juan e tambem de Shylock,

pºrque vive de emprestar a jurºs ; a viscºndessaGuilhermina

,que chegºu de Vichy e só está aqui de

passagem ;a Alda, a baroneza .

Bar㺠, cale-se pºr favºr ! Cale-se Figurasde invernº , n㺠duv rdº . Mas a Chilena é menºs queissº .

O ra,a Chilena j a n㺠usa esse pseudºnymº

t㺠picante e aº mesmº tempº t㺠signi fi cativºpara ºs guerreirºs do R i º Grande . Tºdºs vºcês sabem a histºria de víciº d 'essas tres irmãs que cerca de dez annºs amaram e arruinaram varias creaturas . Mas tinham de ter um nºme hºnestº . As

66 DENTRO DA NOITE

anºrmal de luxuria, malbaratando dinheirº,

embriagando-se , tripudiando nº t ºrv el l inhº da

vida . Ora Azevedº apai xonou— se pela Mari a,ha

sete annºs , vendo-a guiar uma parelha de cav allºszebrados que fºram acabar nº Jardim ! oologicocºmº raridade . Maria atravessava uma das suascrises

,devendº a casa

,as mºbílias

,ºs cav all ºs, ºs

creados,e até mesmº º adºlescente rºbustº que

fazia de Ang i as nº fundº dº palacete e de Autºmedºnt e á tarde , nº passeiº . Azevedº fº i serin

guei rº ºu cºisa que º valha . Precisamente vºltaradº Amazºnas , esfomeado de mulher e cheiº dedinheirº . Teve º deslumbramentº deante da belleza que Mari a tºrnava prºvºcante . Tentºu ºa ssaltº , deixou-se prender, pôr º freiº , mºntar,esv asi ar. A ºpini㺠geral e ali ás alegre

,era que

Maria arruinaria º marchante selvagem . A sºrtepºrém de Azevedº era intensa . Quantº mais dava ,quantº mai s pagava

,mai s ganhava . Issº devia

ter cºncºrridº pºderºsamente para a pai x㺠dºanimal , fetiche cºmº tºdºs ºs simples , e irritarMaria, inimiga dºs pagadºres cºmº todas as bºhemias . Azevedº empolgou-a inteiramente . Ella, at éent㺠Venus vingadora

,que arruina

,arrasa, domi

na, de geniº voluntarioso , só encºntrava uma sati sfaç㺠eng anal

-º, trahíl -º ,

roubar-lhe º cºrpº paraº banquete dºs esfomeados . E ra uma perfºrmanceentre a paix㺠cega e a raiva de fugir dessa paix㺠.

Aº cabº de quatrº mezes,Maria prºhib iu-lhe a en

trada, despediu-º . Estava cºberta de j ºias , cºm ºcºfre çhei º e enfarada,

abºrreci da, excedida pela

DENTRO DA NOITE 67

cºnvivencia dº pºbre homem apai xºnadº e pagadºr .Met t eu-se na grande ºrgia

,para se cºnvencer de

que estava livre,livre pºr completº . Mas Azevedº ,

agui lhoado pºr aquella despedida,sentira de repente

que perdia a sua carne e a sua sº rte e recºrria a todos ºsmeios im ag inav eis para de nºvº apanhal-a ,

peitando cºnsci enci as , interessandº na sua desgraçaá custa de bilhetes de bancº as amigas da Maria,cºnvencendº ºs camaradas de que era precisº fazermudar de ºpini㺠Maria

,aquella louquinha inca

paz de pensar nº futurº . Lºgº a Chilena sentiu emtºrnº , cada vez mai s presente

,º fantasma dº Aze

vedo . Falavam nas pandegas as amigas , pºr acasºah ! se aqui estivesse º Azevedº ! Fal ava a cartomante que de ºitº em ºitº dias lhe deitava as cartas vej º aqui um hºmem seriº que muito a ama eagºra afastadº vºltará a fazel-a feli z Falavam ºscreadºs : Cºitadº dº patr㺠; passºu hºj e pºr aqui ,ºlhandº Falavam até ºs camaradas de camae mesa Afi nal º Azevedº eum bºm hºmem . EMa

ri a v iu que tendº despedidº º Azevedº agºra é queº tinha a tºdº º instante na lembrança , sem pºderfazer-lhe mal , sem pºder vingar-se , quas i a cºn

vencer-se de que º idiºta era bºm . Certa vez disseram lhe É º Azevedº parece resignado v ae mºntarcasa ,para a Benevente . María teve um grande ºdiºe nº ºutrº di a Azevedº estava de dentrº ºutravez

,lºucº de amºr e ainda mais perdulario .

Maria resignara— sePara a ºbra da vingança, tornando—º epica

mente ridiculº . N 㺠impºrtava a pessoa, a questãº

68 DENTRO DA NO ITE

era dº actº . Ah ! Eu imaginº sempre , quandº ºmeu egºísmº quer et erni sar º amºr, º desesperº deum pºbre ente sem pºder livrar-se de ºutrº que semºlda e curva e dá tudº , e epassivº e é humilde .

Ha tºrturas , imperceptíveis á mai ºria dºs mort aes , que s㺠dantescas . E nenhuma cºmº essa emque º ambiente , a fatalidade , º destinº fºrçam avictºria dº mais fracº dandº-lhe º que desej a

,

fazendo-º realisar º seu fim ,impondo-º a ºutrº

cºrpº , a g ºzal -º , a sentil-º , a pal pal -º . A grandedesgraça dº amºr, a maiºr desgraça e essa pºrquelaça aº mesmº hºrrºr duas almas . Maria devia tercrises de desesperº e de lagrimas , e quantº Azevedºdevia sºfi rer na sua muda humildade de c㺠sedento de caricias E quandº lev ºu— a para º Pará ,

a Chilena tinha a nevrose de eng anal-º . O ra ,

imaginem vºcês,em Belém , terra pequena , onde

Azevedº tinha uma pºsiç㺠evidente ! As denuncias anonymas choveram exigindº vergºnha

,

mais pudºr,mai s briº . O grºssº Azevedº l i a e ç a

lava,pºrque

,se revelasse uma pal avra das cartas

,

Maria fechava— lhe a pºrta semanas e semanas . Umav ez ,

entretantº,cºmº recebesse uma denuncia v i o

lenta,Azevedº teve t enções de ciumes e fºi encon

tral -a cºmº a princeza Fal coniere da D al i la,can

t andº n 'um barcº cºm certº tenºr de zarzuela . Nãºhavia duvida O cºnsul dº Haiti berrºu de colera

,

º tenºr deu ás gambias , a pºlicia appareceu . Oescandalº

,pºrém

, permi t t iu a Maria um d 'essescynisni ºs épicºs . Agarrou º Azevedº pelº casacº

,

met t eu-º dentrº do carrº sem dizer palavra,Offe

DENTRO DA NOITE 69

gante , e aº chegar á cas a mediu-º de altº a bai xºe teve esta phrase

,celebre ha cincº anuos º

senhºr é um indignº D escºnâa de mimE ' precisº pensar º alcance

, a extens㺠mºral deuma dessas phrases num cerebrº ,

ºbsedadº pel a idéa

de n㺠perder uma carne cada v ez mais desej ada .

María dissera pºr cynísmº prºfi ssiºnal . Elle sent iu— se cºmmºv idº a principiº . Afinal se enganava ,

prºcurava n㺠º aHrºnt ar. Já era uma considera

ç㺠. E depºis eng anal-º-i a ella? H a tantºs innº

cent es cºndemnadºs , mesmº cºm prºvas v i ziv ei s

cºmprºmetedºras ! E º tenºr , sem querer , fº i apedra angul ar dº cas amentº .

Oh !Quinze di as depºis da scena Azevedº sentiu

que nem de negºciº e de bºrracha pºderia entendermais . Maria, muda , grave , solemne , vivia cºm ºquartº fechadº sem respºnder primeirº aºs seusinsultºs , depºis ás suas ironias , depºis aºs desesperºs e j á agºra aºs rogos , pºrque Azevedº viviacºmº á espera da nºticia de ter um mal i rremedi á

v el , sem dºrmir,sem descançar, só pensandº que

de nºvº ell a º deixaria . E dessa v ez para sempre .

Ent㺠caiu de jºelhºs, suppl icºu,

pedindº perd㺠,

jurandº que n㺠vira nada, que j amai s acreditariana H a entre ºs sexos um ºdiº latente .

Quandº um se humilha a ºutrº , esse ºutrº tºmacrueldades de tyranno , refocila em perversidadese em excessºs . A Chilena percebeu a excellenci a dºmºmentº

,teve um assomo de di gnidade , borrifada

de lag rimas : Cale — se , Azevedº ! O senhºr é um

70 DENTRO DA NOITE

ing ratº Nunca mai s serei sua ! Desconfi ar demim . Só se me der uma grande prºva de cºn

fiança,º seu nºme , a sua

N a rºda cºrreu um desabaladº risº , que fez v ºlt ar-se º grupº aspirante aº secretariadº diplomat i cº . O bar㺠limpºu º seu mºnºcul º de crystal ecºntinuºu tranquillamenteElla n 'esse tempº era mais magra e tinha ºs

cabellos castanhºs , mas de um castanhº qua asvezes era quasi negrº e de ºutras vezes se tornavaquas i lºurº . Esse cabellº era a sua alma . Azev edº ,

cºitadº refl ectiu vinte dias torturou-se vinte di as .

E nesses vinte dias, a Marra lutºu ,

em arte e ma

nha, mais que um diplºmata,graduandº sabia

mente as cºncessões que dessem aº velhº apai xº

nadº uma vaga i déa dº que pºderia ser o lar cºmuma dºce creatura meiga

,bº a ,

Hel , sem azedumes ,sem neurasthenias . Os ami gºs , sabedºres dº desastre , reuniram— se para salvar Azevedº . Tºdºs ºsmeiºs fal havam ; ºu antes redundavam a favºr daMaria . Um rapaz

,Theºphanº de Abreu ,

se bem merecºrda

,lat ag㺠intelli gent e e bem cº llºcadº da

cºlºni a portugueza,cºm certº desej º na Maria,

prestou-se a um sacrifí ciº cºl lºssal fazer-lhe a

Côrte , cºnseguir pºssui l — a e v i r cºntar depºis paraº Azevedº O factº . A Maria n㺠resistiu , e Theephano , . apezar de ter gºstadº , sacri ficou-seAzevedº

, di sse em presença de varias t est emunhas ,

não pºdes casar cºm a Maria . Pºrque ?Pºrque te engana . N㺠admi t t º que insul

tem uma mulher que vi ve commi go . Mas fºi

DENTRO DA NOITE 7 1

commi go , venhº agºra de lá . Ella será incapaz denegar na minha cara . E se façº este actº indignº épara t e salvar de uma hºrrível e irremedi av el indi

gnidade . Azevedº fez-se pal lido , cºrreu casa, enº ºutrº di a n㺠cumprimentºu mais

“nenhum dºsseus amigºs . Era fatal . E afi nal , para de nºvº possuir Maria

,casºu

Fui encontral-os em Pariz,eleg antemente ín

st all adºs numa das avenidas da Etºile , um pal aciºdiscretº . Maria tinha carruagens , cºupé electrico ,arrastava á nºite pelºs pequenºs theat rºs maravilhºsas capas de pélles de muitºs bilhetes de mil , efrequentava variºs lugares maos pºrque vendo-aum di a a pé a rºdar um bistro , lembrei-me quebem pºdi a estar de pai x㺠pºr algum jovem apacheque ºs apaches s㺠ºs hºmens bellos de Pariz . Emesmº prºvavel que tivessem deixadº Pariz

,

quandº já Maria dava uns chás a alguns vagºs titulares internaciºnaes , pºr al gum chantage de escandalº ,

que º Azevedº teve de saber e pagar .

Mas Issº n㺠era nada . As exigencias e º descarode Maria cresceram na prºpºrç㺠dº embrutecimento dº maridº . Quandº vºltaram de Pariz

,ella.

exigiu nº seupalacete tºda a ala di reita mºbili adaá indiana, cºm authent icºs bambús de Calcutta ,

poti ches de cºbre de Benares , deuses brahmanicºs

de porcell ana e de metal . O seu quartº tinha guarni ções de seda verde pregadas a n pºs de cºralºs cort inados eram de gaze de Dekan , a mais levegaze dº mundº . Aºs pés da cama, um 'Vi chnoa de

72 DENTRO DA NOITE

quentave-os pºr essa ºccasi 㺠uma turba-multa dehºmens sem precºnceitºs e rapazes bem dispºstºs

,

que fºrneciam as traições aº Azevedº . Maria era

uma pilha de nervºs . N㺠se resignara aº pºbrecºnsul ; e a sua neurasthenia explodi a em desej ºsde humilhações e um desenfreadº appetite de seducç㺠. A

' mesa, fazia º cºnsul levantar-se , irbuscar º seu leque aº segundº andar

,para beij ar

O cºnviva,principalmente quando º j antar era

a tres . De ºutras vezes, marcava-lhe a hºra daentrada precisº estar só . Apareça depºis dameia nºite . E n 'esses dias sempre al guem cºnheciaa pelle de tigre real cºm fºrrº de brocado rubrº ,

que havia na terceira sal a da ala esquerda, ºndese amontoava a cºl lecç㺠de armas usadas pºrtºdºs ºs sºldadºs dºs raj ahs ímag inav eís .

Vºcês riem Eu aânal tenhº pena . Esse hºmemganhava riºs de dinheirº , g ºsav a de bºasJul guei-º um indi gnº . N㺠era . Era e é um ser queama . Qual de nós n㺠tem º seu segredº incºnfessavel e um desej º i rreprimi v el ? O amºr é º desej º ,mas º desejº da cºmpleta satisfaç㺠, d

'essa i l lusãºdºs senti dos . Quandº se quer assim , sºmºs arrast adºs cºmº pºr uma cºrrente . Ha casºs peores a

que apert amºs aMas, agºra, que fazem elles ?N㺠ºs vejº ha dºis annºs. Naturalmente

ella quer ser famíli a. E '

uma aspiraç㺠natural .Vi-a cºm elle

,na abertura da Camara, n

'

uma [Jose ,

de duqueza pintada pelº la Gandara . De certo j áse resi gnou aº Azevedº e est㺠ambºs aqui , a gºsar

CORAÇ Ã O

I rineu Marinhº .

CORAÇ Ã O

Quandº chegºu a casa para almºçar, JºãºDuarte sºube pela creada que a menina ardia emfebre . Nem descançºu º chapéu . Precipitou-se nºquartº ºnde a pequena Maria

,numa grande cama ,

estendia º seu cºrpinhº ardente .

Que tens,minha fi lha?

Maria n㺠respºndeu . Apenas agitou a cabeçacºmº se a encºmmºdasse qual quer cºisa nº pes

coço , e tinha a pél le de braza, a pelle que pareci afºgo .

Cºmº fº i ? Cºmº fº i ? perguntava º pae , curvado sºbre º leitº . Comeste de certº al guma cºisaque te fez mal . Uma fruct a de certº ? Cºm estecalºr, louqui nha , cºm este calºr Mas vamºs mandar a Jesuína aº medicº . Elle v em j á , dá-te umasdrºgas

,e fi cas ºutra vez bôa ,

pºis n㺠?Saiu para a sala de j antar , escreveu á pressa um

bilhete .

Leva j á issº aº doutºr Guimarães . Depressa .E º senhºr não almºça? Está palli do .

Nãº,perdi a fºme . Esta Maria De certº fez

78 DENTRO DA NOITE

alguma imprudencia . Anda , v ae . Dize-lhe quevenha immediatamente . Que te parece a dºençada Maria ?

Oh ! meu senhºr,uma das dºenças da me

nina . Oitº dias,e sara .

Jºãº Duart e fºrçºu um sºrrisº de esperança ede novº foi -se aº quart º . A pequena cºntinuavanuma ancia

, a mºver a cabeça , ºs ºlhos fi xºs , umavermelhid㺠na face

,ºs braçºs tambem vermelhºs .

Jºãº aconchegou-lhe as cºbertas,apalpou-a

,teve

vºntade de tirar º cºbertºr aº mesmº tempº quelembrava i r buscar mais ºutrº

,abriu as cºrtinas

das j anellas,ºlhºu fóra sem ver º mºviment º

da rua,tºrnºu a âl ha, beij ou-a , passeiºu nervºsº ,

sentou-se á beira da cama,ergueu-se

,apanhºu

uma cadeira, suspirºu ,quedou-se cºm uma dôr

indiz ível a ºlhar a pequena . Era sempre assim,era

sempre aquel le excessº . A sua fi lha, a sua queridafi lha Jºãº Duarte era um pºbre prºfessºr de mathemat icas cºm uma larga frºnte e um geniº arrebat adº . D i ziam-no de g rande talento ºs discipulºs

,pºstº que bastante ºriginal . Filhº de uma

familia rica e de rai zes nºbres , v iu— se aºs trezeanuos , aº cursar º primeirº annº da Escºla Central ,na miseria

,pºrque O páe mºrrera de cºngest㺠em

v espera de certa cºmbinaç㺠da Bºlsa e ºs sºciºs ,irmanadºs na infamia

,haviam absºrvidº cºm

descaro tºda a fºrtuna . Jºãº entregºu a parte quelhe cab i a dºs restºs da herança ás irmãs e cºn

tinnon só a estudar, ensinandº para viver . Osamigos acharam excessivº º g esto dº rapaz . Elle

DENTRO DA NOITE 79

nem sºrriu pºrque sentia na sua alma umdesejo infi nitº de amar e dedicar-se .

S㺠minhas irmãs dizia .

N aquel le tipº de mathemat icº ,havia um ser

xcepciºnal , º estofo de um santº ? Quem sabe ?

Elle resumia a vida nº amor que se entrega suavee sem mácul a

,e emquant º atravez dº seu cursº

brilhante,lentes e cºndi scípulºs vaticinavam-lhe

º mais brilhante futurº,pensava em crear uma

família,em ter um lar para ter alguem seu e int ei

rameute dedicar-se,velandº cuidandº , sendº a

causa dºs prazeres,º princrpiº das al egrias de

alguem . Casºu cºm uma pequena de família humilima antes de terminar º cursº . Era um collegio gratuito em que meia duzia de rapazes ensinavammeninas pºbres . Ella apparecera aºs treze anuospallida

,cºm as mãºs bem tratadas

,um sºrrisº de

resignação nos labiºs . Elle indagºu da familia,e

certa vez em aula

Menina,queres casar commi g º ?

Tºda a aula riu,achandº graça na pilheria dº

senhºr prºfessºr . A pequena fi cºu mais pal lida eduas grºssas lagrimas rolaram-lhe pelas faces brancas . Elle fº i d '

al i á casa da mãe , uma senhºra viuvade genio irascível

,que vivia cºm tres filhas hºnest as

a fºrnecer comida para fºra .

Mas , senhºr dºutºr , está lºucº Minha fi lhat em treze annºs apenas . E uma creança .

N㺠impºrta . Esperº até aºs quinze , mas

fi ca nºiva .

80 DENTRO DA NOITE

A mulher descºnfiºu a princípiº e negou-lheentrada . Elle cºmeçºu a presentear a creança , edar-lhe dinheirº entre as fºlhas dºs livrºs mandados á velha de quem sabia as necessidades

, a

enchel-a de cui dadºs,num exagerº que a assus

tava . Era um amºr mai s de pae que de nºivº , umamºr sem desej º de carne

,espiritual e enºrme .

Ella fº i a pºucº'

e pºucº acostumando-se,vendº

nelle o prºtectºr,menºs que º apaixºnadº . Certa

vez,aº entrar na aula

,recebeu a primei ra carta

d'

amºr. Venha j á . Mamãe cºm um ataque . Nóstres sós e afi i ict i ssimas . Partiu . A molestia davelha era grave e elle fi cºu para fazer-lhe fri cções,dar-lhe banhºs

,emquant º naturalmente as des

pezas da casa cºrriam pºr sua cºnta . Quantº eraprecisº trabal har ! Leccionava em tres cºl leg i ºs,

tinha aulas particulares,ensinava á nºite turmas

de calºiros . Morria de trabalhº e estava sat isfei

t issimº,sentia— se feliz quandº a Aurelia dizia

O pae quandº era vivº tambem fazia assimPara n㺠chºcar a susceptibili dade da velha ,

imaginºu tºmar pens㺠na sua casa , pagandº º

triplº dº que devia pagar,acabºu pedi ndo-lhe um

quartº , em cima,nº sºt㺠dº velhº predi º , º

quartº em que estavam ºs cacaréºs . Quantºssabiam dº factº cºmment av am-no cºm acrimoni a . Estava º Jºãº Duarte de dentrº , cºmtres vi rgens ! Que satyrº ! Sempre que a ºpini ãºda rua fi l trava atravéz das pºrtas , a velha emcólera, bramia, gesticul ava , bradava . E Jºãº ,

semfºrças , dizia suppl ice

82 DE NTRO DA NOITE

Se el las sºubessemEnt㺠, n㺠és feliz ?Eu feliz Ah ! que idea !

Um grande desej º de insul tar aquella creaturavulgar empurpureci a a face de Jºãº . Mas para que ?

A pºbre mulher n㺠º cºmprehendi a , elle é queescºlhera mal amando — a , amando-a cºm aquell e

estranhº amºr d '

al t rui smº e incapaz de viversen㺠para pºr ella sºffrer e a ella dar tºdº º produeto dº seu sangue,

dºs seus nervºs , da sua

intell ig enci a . De restº , Aurelia rebentava em chºrººu caia em prºfundºs si lenciºs agºnient ºs . Era preciso di v ert i l-a ,

dar-lhe mimºs, leval-a aº theat rº .

Ent㺠Jºãº mul tiplicava-se . Quandº n㺠haviacreada

,era elle de madrugada que i a accender º

lume,preparar º primeirº almºçº , leva!-º á cama .

Sabi a, cºrria as ºbrigações , cºm a redi ngote verdee ºs sapatºs em mau estadº , vºltava para º almºçºcarregadº de fructas, de gulºsinas de que ell adizia gºstar.Trouxe-te fi gºs e bºnbºns . Cºme .

N㺠querº,fazia ella inst inct iv amente cruel ,

empurrandº ºs embrulhºs .

Elle tinha um vincº de tristeza e de raiva lºgºsºpi t ada . Mas cºmia á pressa qualquer cºisa, i alºgº trabalhar . Aº j antar trazia-lhe sempre uma

recºrdaç㺠, ri a veri fi candº que j á n㺠existiamfruct as e bºnbºns , mandava-a vestir para ºtheat rº e ai nda dava explicações a uma turma ,entre º j antar e º theat rº . Ella saia sempre cºnt rari ada pºrque º maridº t inha prêssa e voltava em

DENTRO DA NO ITE 83

colera pºrque havia nº theatrº mul heres mais bempºstas ºu pºrque a peça n㺠lhe agradara . Jºãº ,humilde , preparava-lhe º chá , preparava-lhe ºleito , i a para a sala escrever e estudar at é de ma

drug ada , e muita vez Aurelia acºrdºu sobresal tada ,cºm elle aº ladº a º lhal-a enternecido .

-Ah que sustº at é pareces um lºb ishºmem

Mas , de subito , Aurelia aparecia mais alegre ,consentindo mesmº numa caricia . Era a rev irav º l

t a . Fizera as pazes cºm ºs parentes , ºu antes , semrecursºs

,a velha mãe e as irmãs sºlteiras tinham

vindº al egremente fazer-lhe uma vi sita . As fruct as ,

ºs bºmbºns i am embrulhadºs t al qual para a casad 'ellas

,ºs córt es de vestidº

,ºs frascos de perfumes

sumiam— se dº guarda vestidº .

Cºmº estºu abºrrecida ! Se me deixasses irver a mamã ?Ella afi nal é mãe . N ão ha duas mães

Jºãº sºrria .

Vae, fi lha . N㺠te prendº , mas vê se cºn

segues demºrar as pazes .

Se ellas brigaram fº i culpa tua . N㺠insultesminha familia . Minha mãe é minha mãe .

Bºm,bºm

,nada de zangas . Vae , anda

Pºr que tentar º impºssivel ? Ella n㺠º cºm

prehendei i a nunca . Era um espiritº de creança

numa alma de mulher sem amºr . Cºmº sentiraquella afeiç㺠t㺠fina

,t㺠superiºr em que a

hºnra, a dedi caç㺠, º sonhº de um hºmem cheiº

de cºraç㺠irradiavam ? Um rapazola qualquercºm tres sºcºs talvez abrisse na rocha a fºnte dºamºr . Um ti pº cheiº de dinheiro espalhandº nºtas

84 DENTRO DA NO ITE

dº bancº talvez a âzesse esquecer os seus deveresde espºsa . E Jºãº Duarte recal cava bem nºíntimº um vagº e atroz ciume dº que n㺠existia

,

culpava-se , culpava-se e vinha a amal -a mais , arºdeal -a de maiºres carinhºs para n㺠perdel -a ,

para n㺠se ver perdido , pºrque precisava amaral guem ,

dar a sua dedicaç㺠a al guem . Assimviveu dez annºs . Parecia ter vividº vinte . Estavamagrº

,abatidº . As rºupas de baixº tinha— as ras

gadas . Os fatºs duravam-lhe dºis anuos . Nãºbebia sen㺠agua cºmia sempre pensandº nºut racºisa

,e dºrmia pºucº , cada v ez menºs

,cºm º

cerebrº cheiº de preºcupações,as aulas

,as v ºnt a

tades de Aurelia a satisfazer , ºs negºciºs a liqui darcºm ºs prestamistas . Fº i pºr essa ºcasi㺠que a

mulher se fez mais creança ainda , começºu a tervomitos

, a sentir ºs pés inchadºs , a vociferar cºmciumes

,despedindº as creadas aºs gritºs . Jºão nãº

acreditava . Seria pºssível ? Mas º medicº n㺠lhedeixºu duvidas . Após dºis lustros d'

uni㺠,Au

relia estava gravida . Tºdº º desejº dº pºbre emfimreal isadº O seu amºr fº i t㺠grande

,º sentimento

da paterni dade fel-º t㺠lºucamente feliz,tãº

cheiº de carinhº para cºm a mul her,que ella

,uma

v ez na vida, cedeu , deixou— se embal ar . E erampasseiºs e eram cºnsul tas de medicº e eram beijºs .

Nºs ul timºs dias era elle quem a vestia .

Vamºs ter um fi l hº Um filhº Sºrri, tº l inha !

Sºrri ! Vae ser t㺠Se fôr mul her,havemºs

de chamal-a María, ein ? Querias que fºsse hºmem ?

Ah ! egºísta ! Os fil hºs gºstam sempre mais das

DENTRO DA NOITE 85

mães que dºs pães . Mas ha excepções . Tu pºrexemplº és mul her e gºstas muitº da tua mãe .

N 㺠fales N㺠fales !O partº fº i laborioso . Aurelia gritºu duas noites

,

jul gando-se desgraçada e intimamente cul pandºd

'

aquel le hºrrºr º maridº , que n㺠dºrmia , de umpara ºutrº ladº

, afi i ict º ,pallido . Quandº a pequena

nasceu,uma nºite de tempºral nº mez de junhº ,

Jo㺠aº t ºmal-a aº cólº sentiu uma tºntura d 'alegria . O mundº se transfi gurava . Os mºveis tºcavam-se de uma luz extranha . O tectº abri a umachuva de delicias . Afi nal º destinº reali sav a asua unica vºntade uma fi lha O seu sangue

,parte

dº seu ser, cºm alguma cºisa da sua alma , º desdº

bramentº bellº dº seu eu . A essa sim,elle pºdi a

amar tºtalmente , cºm º seu grande amºr semprecºntidº e represo

,a essa devia amar e sentia amar

,

a essa entregaria a sede de pureza e ideal dº seucoração dedicadº

,pºrque ella havia de cºm

prehendel-º

,havia de sentil-º , havia de saber que

a sua vi da inteira de esfºrçº , de cºragem e desoffrimento tinha pºr fim , pº r meta dº sºnhº ,

pºrultimº círculº dº paraizo ella .

Minha murmurºu num extase,mi nha

Mas de certº º Destinº dandº-lhe uma fi lha ,

queria simplesmente augment ar as angustias dessehumilde cºraç㺠sensivel , feitº de excessºs de ternura e de dedicaç㺠. Maria nascera dºente . Aurelia ,vendº que ºs carinhºs dº escravº dimi nuiam epºr uma feiç㺠dos seus nervºs em desequilibriº ,

86 DENT RO DA NO ITE

desinteressou— se dºs carinhºs maternºs aº mesmºtempº que sent i a um violentº ciume dº maridº

,

apontando-º cºmº º inimigº prºmptº a roubar-lheº amºr da âlha . E m O prºpriº egºismº , º ferºzegºismº das hist ericas . Jºãº entrava da rua ancioso .

E a pequena ?

N㺠sei , pergunta á ama . Pºis se n㺠a largasElle queri a sºrrir , hesitava , n㺠cºmprehendi a

bem aquel le azedume eternº e lá se l ã para º berçºa ºlhar , a ºlhar, muitº , Sem nunca teraprendidº

,viu — se á perfeiçãº

.

a enfai xar a pet i za ,

a emb al al -a , a cantar cantig as , cºm uma v º z

mui tº triste . Elle , que nunca na sua vi da cant ará

por n㺠ter tempº nem al egria,sentia naquell a

obrigaç㺠de carinho paternº que cantar era paraa sua almá cºmº desabafar sºluçºs guardados nºseu peitº d 'homem muitºs anuos antes , tºda asua vida .

Quandº se anunciºu a dentiçãº,Maria fº i presa

de uma febre viºlenta . Jºãº desvairado mandºuchamar um medi cº amigº

,seguia-lhe as prescri

pções á risca , cºm altas dóses de qui ni no , e a pequenita deu de peºrar. Era um errº de diagnºsticº

tratamentº cºntrariº , a mºrte . Em casa havia uma

balburdia . Aurelia , incapaz de resistir , dºrmia nascadeiras

'

As irmãs e a mãe , inteiramente inuteis ,julgavam a creança perdi da e apostavam º di a da

sua mºrte . Elle nem mais dºrmia , nem mais comia ,

aii i i ctº ,lºucº

,cºm a pequeni t a nºs braços , sem

cºnsentir que a tºcassem .

DENTRO DA NO ITE 87

Deixem ! Tenhº esperanças ! Uma g rande

E a velha muitº sinceraQual aqui só O milagre

Cºmeçaram as cºnferencias . O s remediºs enchiam os cºnsºlºs da sal a . Um di a,

fóra de si,elle

chamºu º medi cº .

Está perdi da ?

Meu pºbreEstá ?Infelizmente .

Pºis bem . Peço-lhe um grande obsequio decamarada . Venha apenas passar º atestadº . Nãºlhe demºs mais medicamentºs . Custa-lhe tantº !Ella faz uma cara t 㺠feínha . Eu fi cº a acalent al — a

até a mºrte . Talvez º meu amºrSim , talvez , fez º medicº a sºrrir cºm des

crença .

E elle âcºu,nº escandal º cºndemnadºr de tºda

a casa , a passear a fi l ha, a dar-lhe gºtas de leite ,a animal -a , a incutir-lhe cºm tºda a fºrça da sua

vºntade º desej º de vel-a vi ver, de v el-a renascida .

Assim passaram quarenta dias . Quandº aº cabºdesse seculº de dôr e de tens㺠nervºsa, v iu

a pequena sorrir— lhe sem febre , sã , de aparenciasã

, mi rºu-se num espelhº pºr acasº , aº passar , enºtºu ent㺠que tinha ainda envelhecidº . O medico chamadº cºnfirmºu

S im , cºm effei tº , a Mas cºmº soffreste , meu amigº ! Estás mai s brancº .

88 DENTRO DA NOITE

Que queres ? E ' a vi da , fez elle a rir para ºsºutrºs que sºrriam . E querer bem custa tantºA dºença da fi l ha viera desºrg ani sar-lhe a vida

dº lar,se é que tinha issº . Aurelia cada vez mais

nervºsa,de peor humºr estava realmente dºente

e n㺠se sent i a s en㺠irri tada cºntra a fi l ha . Jºãºn㺠pºdendº cºnceber esse cºraçãº

,dividia— se entre

as duas,atenuava , mas á prºpºrç㺠que º amºr da

fi lha mais se enrai g av a , a magua da espºsa augment av a . Maria a pet i za ,

tinha uma saude devidrº . O páe fazra-lhe uma atmºsphera de suav i

dades . Fº i elle quem lhe ensinºu ºs primeirºspassºs

,fº i elle quem a fez repetir as duas pri

meiras si l labas fºrmando sent idº e quem tºdanºite até Maria ter cincº anuos a adormecia numavasta cadeira de bal ançº a cantar baixinhº velhascanções de embalar creanças . Aurelia , indignada ,á hºra de ir aº theat rº , surg i a .

Mas é espantºsº ! Adºrmecer aº cólº umapequena de cincº annºs ! Bem di z a mamã que astuas maluquices estragam a menina Jºãº deitavaa filha recºmmendandº á creada mi l precauções .

Nº theat rº ºu ºnde estivesse a cºnduzir a espºsa ,

apanhava sempre alguns minutºs , tºmava um t i l

bury,i a at é a cas a ver se María dºrmia bem .

Esses cuidadºs,º amºr incºmparav el faziam a

pet iza grata , cºm a gratid㺠das creanças que éde t㺠grande egºismº . Cºmº a av ó levava a

fazer-lhe censuras cºm o pretextº de a educar assimcºmº as tias , Maria ºdiava ºs parentes . Cºmº a

mãe nºs seus accessºs neurasthenicºs dava razãº

90 DE NTRO DA NOITE

mºrou º exame num profundº silenciº,em que

Jºãº parecia de marmºre para n㺠deixar transparecer a sua angustia . Depºis

,pensou .

E' dífi cil um di agnºsticº . Pºr emquant º

v amºs dar-lhe um laxativo e um pºucº de quininopara combater a febre .

Quinino Ella tem hºrrºr aº quinino .

O ra , Jºãº , deixa de tolices . Cºmº queres tucºmbater a febre ? Ella tem trinta e nºve e ºitºdecimos .

Fº i -se a rece itar,e cºmº amig º da casa, ºrdenºu

a Jesuína levar a receita .

Vºltº á tarde . Até lºgº . N㺠te afl ij as ,hºmem .

Jºãº fi cºu nº quartº ,tal qual tinha entradº , cºm

O chapéu na cabeça , a sobrecasaca aberta . E ra cºmºse tivesse recebidº a nºticia de que º mundº i a a

desaparecer . Ent㺠a sua filha dºente ? E grave,

grave ! S im . Estava grave ! A pequena nº leitºcrescia da agitaçãº

,erguendº ºs braçºs

,sacudindo

a cabeça nas travesseiras . De repente , ergueu-seatirandº lºnge as cºbertas

,sentou-se .

Minha fi l ha,que é issº ?

Já é tarde , v ºu vestir-me .

N㺠pºdes ; estás dºente .

Ah ! quantº fogº ! E ' um fºgº de arti fí ciº .

Espera . Onde est㺠as botinas ?

Maria ! Mari a ! ºlha teu páe .

Ah ! as baratas , as aranhas . Que pºrç㺠debaratas ! Vam ºs matal-as , vamºs . AsE ra º delíriº . Sem fºrças para retel — a , temendº

DENTRO DA NO I TE 9 1

magnal-a , Jºãº acompanhou-a . A pequena cºrria

a casa , elle precipitava-se para fechar uma ºu

ºutra j anella , para amparar-lhe os passºs titubeant es . Era º delíriº . Era a mºrte . Oh ! sim

, era

a mºrte ! Maria entretantº n㺠caminhºu muit º .

Subito esmoreceram-lhe as pernas,e elle levou-a aº

cólº para º leitº ,aconchegou-a bem ,

ajoelhºu nabºrda da cama .

Maria , descança ; n㺠mº rras , minha fi lha ,

n㺠mºrras pºrque eu n㺠resistºE sentiu que chºrava , que pela primeira vez naVida chºrava na presci enci a da fatalidade inexºravel . Mas era precisº lutar , arrancar º seu entesinho aº i rremedi av el . Enxugou as lagrimas , as

ideas um tantº cºnfusas . Aquella calma de amorcºm que reagia sempre ºutrºra se transfºrmaranuma agitaç㺠febril em que a sua vºntade se perdi a . Quandº ºs medi camentºs chegaram ,

fº i ellemesmº a admini st ral -os . A febre cºntinuava .

Para º j antar Aurelia entrºu , e ainda tºda cui citada nº quartº

Então que e 1 5 50 ?

A Aurelia mal,desde que sai ste , parece .

N㺠ha de ser nada .

E '

grave . Já delirou ,está delirandº . Maria,

minhaSe mandássemos prevenir a mamã ?

Faze º que qui zeres , deixa-me , deixa—me !Aº escurecer

,º dºutºr Guimarães reapareceu .

A febre n㺠cedera,antes augment ara . O medicº

balançºu a cabeça . E ra impºssível fazer ainda um

92 DEN TRO DA NO ITE

di agnosti cº,mas º estadº da menina inspirava cui

dados . Se n㺠tinham cºnfi ança nelle , pºderiamchamar ºutrº

.

para uma cºnferencia , e mesmº n㺺 De restº a casa já tinha esse aspectºque precede as tragedias , cºmº se º inanimadº , ºs

mºveis , ºs murºs , º s quadrºs ºs ºbj ectºs sentissem antes dos hºmens

,º arripI º da mºrte , a pas

sag em da cei fadº ra . A familia de Aurelia apparecera . A velha dºgmática at rasav a Guimarães equeria ºutrº medicº . As irmãs j á asseguravam ºcasº perdidº

,cºmº de cºstume . A vºntade de Jºãº

sossobrava . Ell e queria estar apenas pertº de Maria ,n㺠se tirar d 'alli

,ser º unicº a cuidal -a . Ent㺠fº i

pela casa,dirigida pelas mulheres

,cºmº um ventº

de se ensandeciment º . A primeira cºnferenciarelegara Guimarães . Um ºutrº medi cº mºderno ecelebre apparecera ,

imaginandº banhºs quentes einj ecções hypodermicas de quinino , enchendº º s

aparadores de frascºs e de caixetas . Batiam á pºrtasinistramente ºs fºrnecedºres . Uma grande b anheira fº i ínst all ada nº quartº . Para enchel -a , cadaum trazia º seu j arrº d 'agua a ferver . J ºãº calafet av a as pºrtas despia cºm uma delicadeza in linita a pºbre Marra

,tomava-a aº cólº , depositava-a

na banheira cºm um arrípiº ,cºmº se estivesse a

matar a filha, emquant º º medicº cºntava ºs mi

untos . Tornava a pegar da creança , enxugava-a ,

env º lv i a-a nºs cºbertºres , quedava— se , cºm ºs ºlhºsmuitº abertºs

,um vincº d '

angust i a ent enebre

cendo-lhe a bºca . E º medicº tºmava da agul ha,enterrava-a nº ventre da fi lha, indiferente , conver

94 DENTRO ' DA NOITE

mai s uma semana e eu garantº a vida da pºbrecreança . Mas; se pºr acasº tivermºs uma bruscamudança meteorologica, uma tempestade , º abaixamento da temperatura é difli ci l dizer qualquercºisa .

Ent㺠, se º tempº conservar— seE se hºuver a -tempestade .

Certº Jºãº Duarte nunca na sua vida se sentirat㺠a braçºs cºm º destinº triste . Ouvira falar demolestias em que a variaç㺠atmºspherica infi ue

perni ci ºsament e ,sabia mesmº O nºme de algumas

,

mas a hi peresthesi a da sua angustia , a tens㺠neurica em que º mantinha a imminenci a dº desastre ,aquel le ror de nº i t es passadas em clarº ,

º esfºrçº

phi sicº de andar cºm a pet i za aº cólº já t 㺠creseida

,e esse martíriº de sºffrer n 'alma tºdºs ºs cru

ci ant es sºffriment ºs físicºs da fi lhinha faziam-no

perder a nºç㺠nítida das cºisas,esbatiam a vida

em tºrnº dº grande prºblema salvar Maria . Aidea da tempestade entrou-lhe nº cerebrº de mathematico

,d 'homem de sci enci a sem abusões, sem

crendices,cºmº º anunciº da catastrophe que era

preciso evitar a tºdº transe . Um tremºr cºnvulsivo tomou-º

,e a sua atenç㺠bipartiu-se entre º

céu e a fil ha cºm º pavor de um primitivº deantedºs elementos . Se chovesse , se nº céu lindº rolasseo fragor dº trºv㺠e nuvens negras toldassem º azuldº fi rmamentº

,tºda a raz㺠de ser da sua exi s

teueia naufragaria pºrque a fi lha n㺠pºderia esca

par. N㺠se tirºu mais dº quartº . Passava a velarMaria e a i r de vez em quandº levantar a cºrtina

DENTRO DA NOITE 95

para ºlhar º céu , cºm um medo supersticiºsº . Era

em nºvembrº , nº cºmeçº dº ver㺠, nessa épºcade bruscas tempestades em que amainavam º s

grandes calºres . A temperatura subia º sºl era umdi scº de fºgº nº azul de cºbaltº , dº céu sem nuvens ; e as nºites se diluiam num escandal ºso luarcôr d 'oiro e côr d 'opala . Estavam a findar ºs di asdº pleniluni o , iam entrar na minguante . Talvezmudasse o tempº . A febre n㺠cessara

,queimando

a fºgº lentº ºs membrºs emagrecidos de Mari a .

A nevrose da casa tivera um hi atº de cansaçº,á

espera do acºntecimentº . A famili a dºrmia pelassalas

,sem pºusº . Aurelia tivera dºis ataques cºm

gritºs despedaçadºres que faziam nº seu leitº adoentinha cºntrai r º semblante numa inédi ta an

gust i a de cadaver hºrrºrisadº subitamente v º l

tadº á agºnia . Elle quedava-se , ºuvindº º crepitarda lamparina e º t i c-tac dº relºgiº na sal a de j antar a cºser º tempº nº pesponto certº dºs segundos . Qualquer ºutrº rumºr , º arrastar de umacadeira na casa v i sinha , as vassouradas dºs varredºres pela madrugada , faziam— no pensar em trºvõesaº lºnge , em quedas d

'agua . Cºrria ent㺠á j anella ,levantava a cºrtina, perscrutava º céu calmº . Ahse n㺠chov esse ! Se º milagre se dêsse ! Se Deus

quizesse Até mesmº em Deus elle acreditava pºndo a reger aquel les phenºmenºs que a sua screnci aconhecia , um ser sºbrenatural e todopoderoso . Eassim os di as passaram . Um , dºis , tres , quatrºdi as que eram para elle a cºrrida dº seu cºração ,º galºpe dos sentidºs pºr um tunel de treva á pro

96 DENTRO DA NOITE

cura da luz anunciº da vida , di as de que cºntavaas

hºras e ºs minutºs e ºs segundºs cºmº se ºs

sorvesse sedent ament e num cºntadºr de fé! , diasque lhe chupavam das arterias ammos de existeueia .

Façam uma prºmessa , segredava ásmulheres ,vºcês que acredi tam . Façam uma grande prºmessa .

EuAs creaturas, incapazes de sentir assim,

estavamafinal tºcadas de r espeitº , lamentandº tantº acreança cºmº aquella energia humilde que a seuladº se fi nava por amal-a de mais . Os santºs surgiam . Havi a oratorios na sala de visitas

,nº quartº

d'

Aurel i a , cºm velas a crepitar . E a febre continuava a resecar a pélle branca de Maria, sempre ,sempre

,sem descontinuar . Nº quartº di a ,

era demadrugada a já Jºãº fºra varias vezes ºlhar º céu5 estava sentadº a ºlhar º somno tenebrºso dafi l ha

,quandº pelºs seus ºlhºs passºu um relam

pago . N㺠, era de certº allucinaç㺠da fraqueza .

Cºrreu á cºrtina e quedou-se cºm um arripi º dehºrrºr . Grºssas nuvens vinham vindº dº ºcidente .

A luz da lua era de uma intensidade cegadora ,envºlvendº de t al sºrte º casariº que parecia libral-º numa atrnºsphera de sól azul , coroando-ºde icebergs de frócºs . Na linha dº hºrizºnte , pºrémsuccedi am-se cl arões cºmº ºs que fazem ºs canhõesaº lºnge a detºnar . E ra mesmº um canhonei o decham as , de que ainda n㺠se ºuvia º barulhº mas

que barravam a barra dº céu de put refações luminºsas .

98 DENTRO DA NOITE

durar pºucº Mas a chuva caia , j ºrrava dº espaçºviºlenta e brutal , inundandº a rua .

Jo㺠ºlhºu ent㺠a fil ha . A pºbrinha mºstravaapenas a face de cera entre ºs caracóes dºs cabellºs . As ºlheiras eram rºxas e º nariz afilava nasºmbra dº para-luz . Pºbresi t a ! Estava a descançar. Elle ficaria al i , cºntra º elementº

,probi

bindo-º de entrar, impedindo-º de passar . As ideasfugiam dº seu pºbre cerebrº sempre resignado .

Abriu ºs braçºs , nºs portaes , fi cºu assim lºngºtempº , pensandº , pensandº na tempestade , nafil ha

,na tempestade que i a acabar , na fi lha que

n㺠pºdi a mºrrer . Quantº tempº levºu assim? Eraimpºssivel saber . Um zumbidº tomara-lhe ºs ouvidºs na recºrdaç㺠dºs trºvões

,as fºntes latej a

vam-lhe , e tinha as mãºs frias cºmº se as tivessepassadº em gelº . Só deu acºrdº quandº v iu uma

luz baça v i r surgindº nº espaçº e v iu que a chuvacºntinuava lentamente

,sem fim . Era das que nãº

acabam Deixºu cair a cortina , veiu na pºnta dºspés at é º leitº

,apalpou º cºrpº da fi lha . Estava

sem febre,sim sem febre al gum a . Dera-se º

'

pro

di g iº ? Seria pºssível ? Ent㺠a chuva, a tempesApal pou bem a test a , º peitº ,

ºs braçºs ,ºs pés . Os pés estavam até frios . Ora esta ! Umsºrrisº de satisfaç㺠abriu-lhe a bºca

,ºnde só a

dôr deixára vincºs . Fº i buscar um ºutrº cºbertºrpara ºs pés da queridi nha, envolveu-os bem , e denºvº apal pou as mãºs . Estavam tambem a esfriar . Hein ? Que era issº ?Talvez º corpº , desacºstumadº da temperatura Qual ! era

DENTRO DA NOITE 99

idiºta º que dizia ! Chamºu a fi lha,baixinhº

Maria,O Maria

,melhºrsinha ?

A pºbre n㺠respºndeu . Tambem t㺠fraca Nemde certº Chamºu mais altº

Maria, ent 㺠? queres deixar º pae dº seucºraç㺠sem uma respºsta ? N㺠vês ? Estºu só

,eu

só aqui,eu que soffro cºmt i g º . Maria

Estava atormentando-a cºm certeza . Ah ! quebrutº era

,que mau l As mãºs , pºrém ,

esfriavam .

Oh Uma nºva cºmplicaç㺠na nºite,mai s dôres

,

mais males,mais hºrrºres . Que seria ? Fºi até a

cºmmºda ,acendeu uma vela

,veiu ver de pertº a

sua adºraç㺠.

Maria tinha ºs ºlhºs abertºs,bem abertºs

,

grandes largºs,abertºs . Qualquer cºisa de vi drº

chri st al i sav a-lhe º brilhº . E ºs labiºs descerradosmostravam entre ºs dentes uns Dl ament ºs brancºs ,secºs

,uns filamentºs que nunca vira . A ! luz da vela

as palpebras n㺠bateram . Uma grºssa lagrimarolava-lhe pela face . Já se lhe n㺠sentia º respirar .

Jºãº Duarte deixºu a vela aº ladº , na cadeira ,

virou-se para um ladº,virou-se para ºutrº , passºu

as duas mãºs pela cara,esmagandº ºs dedºs de

encºntrº aº s ºlhºs , quiz falar , qui z chamar . Parºu ,

pºusºu de nºvº º ºlhar nº ºlhar que se embaciava ,

ºlhºu , ºlhºu a fi lha . Um tremºr t ºmºu-º,sacu

di u-º,abriu-lhe a bºca

,cºmº que lhe esgarçou ºs

muscul ºs . As mãºs crisparam-se-lhe . E, de chºfre ,

caiu para frente,sem apºiº

,nº chãº

,cºm a face de

encºntrº aº pé da cama, estalado de muitº amardesgraçadamente .

A N O I VA DO

Estavamºs na sala mal va , a sal a das recepçõesíntimas

,das cºnversas leves em tºrnº da mesa dº

chá . Mme de Sºuza,linda nº seu t eag ºwn côr

de peceg º , posava entre a t refeg a MmeWerneck ea sisuda viscºndessa de Santa Maria, e nós, eu eº bar㺠Belfºrt, já tinhamºs esgºtadº º ataque ámusica ital iana, quandº MmeWerneck deu cºntada sua ultima descºbertaO bar㺠está triste .

Pºis se venhº de acºmpanhar um enterrº .

Triste pºr issº ? O barãº,º hºmem sem emº

ções,triste porque acaba de fazer a cºusa mais

banal desta vi da, entre pessoas de sºciedade !N 㺠é prºpriamente pºr issº . Estºu triste

pºrque v i enterrar a ul tima mºcinha rºmanticadeste agudº cºmeçº de secul º . Se lhes cºntasse a

histºria da pºbre Carlºta Paes, fi cavam para ahi

todºs a chºrar, e antes de tudº , nesta hºra agradavel

,nunca me perdoariam ter env ermelhecidº ºs

lindºs ºlhºs de MmeWerneck.

Mas , pelº que vejº , alsua histºria tem a pro

1 04 DENTRO DA NOITE

pri edade dº di luv i º ! fez asperamente a v i scºn

dessa .

Cºnt e-nos issº , bar㺠, di sse Mme Werneck ;cºm a sua histºria cºntemp ºranea dº di luvio faremos decididamente cºl lecç㺠de antiguidades sisudas .

Hºuve um apprºximar de cadeiras . O barãºbebeu um gole de chá .

N㺠cºnheceram a Carlºta Paes ? Pºis a pobreCarlº t a Paes , cºitada j á cºm um cºmeçº de tisicae um perfi l rºmanticº , dava mesmº pena ,

á nºite ,nº parapeitº da j anella

,muit º branca

,cºmº des

mai ada . Ninguem lhe sabia da vida,e vendo-a

assim,á j anella daquell a velha casa , tºdºs a deplº

rav am . Quandº a Carlºta atravessava a brutalidade do bairrº pobre

,cºm a apagada dôr dºs

humildes aristºcratas , trazia nº rºstº um tal desgosto que era pºr quantºs a cºnheciam um só lastimar . Tambem sahia apenas para acºmpanhar a

mãe,uma senhºra escal av rada e rº i da cºmº um

vasº antigº,para acºmpanhar com o seu passº de

vis㺠a pºbre velha carregada de pesadas cºsturas .

Fôra assimdesde nascida ! Olhava ºs pºbres e ºs

parentes cºmº se guardasse n 'alma a recºrdaçãºde um mundº melhºr

,alhei av a— se delles

,e quandº

a viam recºlher aº sºbradº em ruína ,j á tºdos

tinham a certeza de vel-a aparecer á j anella,muitº lºira

,e muitº branca .

Que fazia ella,assim

,pºr lºngas hºras

,alheia á

rua , ºlhandº º céu ,comº um persºnagem de rº

mance ? Cºitada ! E ra º unicº meiº de esquecer a

1 06“

DENTRO DA NO ITE

de expressões subi t aneas e di versas , a expressãºpersistente

,torturante dº desejº que n㺠se ter

mi na e se preludi a , dº amºr cuj a v º lupI a j amaisal cança º paroxismo . Ella fi cºu presa

,estarrecida .

Quem seria? Nunca ºuvira aqui l lº ,nunca sentira

ºs nervºs tºcados daquell e bruscº quebranto , daquelle epidermico encantº dº sºm

,exprimindº º

inexprimível . Os sºns , cºmº caricias de rºsas , i ama pºucº e pºucº desflbrandº -a, envolvendo-lhe a

alma,machucando-a . Tºda ella pal pitava agºra

cºm uma tremura de fº lha aº ventº . Teria chegadºa felicidade , O impalpav el prazer até ent㺠vedadº ?

Aconchegou-se mais aº chal e,cºm um arrepiº de

goso que lhe subia pelºs braçºs e lentamente se irradiava pela nuca .

Dº ºutrº ladº a musica velada, num resumº demil emºções , esboçava pai sagens subt is e esfumadas

,desfiava risºs perladºs, cavava-se em soturnas

magnas,e cºmº se a vida extra-humana fºsse um

só gemidº d '

amor, tºda ella espi ral av a tormen

tosos queíxumes, endeixas dºlºrºsas , perdi dºs sºluçºs de pai x㺠. Para ºs grandes sensuaes só haum goso integral que exprima a ancia de acabare a fraqueza humana º sºm , a vibraç㺠de uma

cºrda na lamentavel evºcaç㺠de vidas que se nãºreal i sam .

Para que º sentir da pºbre creança fºsse maisintensº , nº espaçº , as estrell as pal pitavam e a luzdº luar lustrando as casas cºm º seu misericºrdiºsºbril hº

,entrava pela j anella num rect angulº de ºiro

que parecia milagre . Oh nunca a dºce Carlºta se

DENTRO DA NOITE 1 07

sentira t㺠emºciºnada, ella que sempre vivera naexpectati va dº bemEssa nºite passºu-a á j anella até muitº depºis

dº pianº calar , ouvindo-lhe º ultimº som perdidºna cinza avelhada dº luar, e desde ent㺠andavaº di a á escuta e tºda a nºite passava , em que ºoccul to pianista tºcava, presa aº parapeitº , entrea luz dºs astrºs e ºs sºns misteriºsºs . Nós j á ri amos da paix㺠.

Ent㺠a Carlºta ?Ai ! meu senhºr, cºntinua a viver dºs sºns ,

está de t ºdº virada !E quandº eu lhe levava alguma cºusaEnt㺠a Sra . D . Carlºta sempre cºm ºs sºns ?

Ell a pendi a na cadeira sussurrandºE '

tão bºm !Aquel les sºns , cºmº um rºsariº sem fim, que se

desfiasse , ini ciavam-na numa religi 㺠de amºrdesencarnadº , e quandº qual quer difi i culdade em

perrav a dº ºutrº ladº a m㺠dº tºcadºr,a Carlºta

sentia uma agºnia cºmº se hesitasse em com

prehender todº º alcance peccaminºsº'

da phrase.

Vinha-lhe ás vezes a curiºsidade de saber quemera esse t ºcadºr . Passava ºs di as a espreita ; a casaaº ladº , uni a pens㺠, n㺠lhe deixava adi vinharentre as mui tas pessºas que entravam o art istaestranhº da nºite . Perguntºu á mãe se a iní orma

vam e a velha senhºra respºndeu que n㺠sabia,que [n㺠era pº ssível saber .

Bruscamente, ent㺠, perdeu esse desej º . Couhebas

1 08 DENTRO DA NOITE

ta va a incºnsut i l pai xaº que a rºjav a a seus pésE perdi a tºtalmente as nºites , essas nºites deAgºstº

,t rahi dºramente frias , em que a luz brilha

mai s , hat

mai s perfume nº ar e as brumas , aº lºnge ,parecem sudarios consoladores . E ra um inebriamento at é aº rºmper d 'alva . Nº fim , quasi se arrastando

,i a para º peitoril , cºmº para uma tºrtura

e dº ºutrº ladº , a musica inquisidora amºrt a

lhav a-a desabri dament e nº delirante tropel dºamorAh ! º goso dº sºm ! Os seus nervºs sensiveis

chegavam aº prantº , aº sºluçº , aº sºrrisº , cºmºhipnºt i sadºs . Cada nºta já lhe exprimia um sent imentº ; ºs trechºs repetidºs pelº artista ella ºssegui a, adivinhando accordes , adv ínhandº sºns

,

cºmº se fizesse º exame da sua alma de amºrosa ,e de cada vez , mais maravilhada ficava, bebendºa plenº tragº º deli riº , a mºrte , º extase da musicaencantada . De certº , ninguem , ninguem nº mundºamava

,sentia— se ainda cºm esse sagradº e impal

pavel amºr . Encostava— se aº parapeitº , esperavae era sempre cºm um sustº que , de repente , ºuviaabrir-se uma escal a, cºmº acºrdandº o pianº , e asduas vibrações de bºrd㺠, dºus acºrdes de cºntrabai xº , pesadºs e sºnºrºs . Depºis , um sºm subia

,

ºutro respºndi a, º avi ari º se encadeava num trinadº . Muita v ez ,

º piani sta que fundi a a alma cºmas nºtas

,tºcava varias arias simples , cºm um ar

velhº,cºmº se ºs seculos t ºdºs chorassem a vida ;

d'outras,eram trechºs mºdernºs , trançando nº ar

uma flºra bizarra de nervosos acºrdes e era entãº

1 1 0 DENTRO DA NOITE

E' º senhºr º pianista ?

Sºu .

Ha aqui ao ladº uma criança que agonisa .

VinhaPara n㺠tºcar hºj e . Vá com Deus .

N 㺠. Venhº pedir que tºque . N㺠é pºssivelexplicações . Essa menina vive ha um mez deonvil-º . E stá mºrrendº . Pede-lhe que tºque .

O hºmem pas sºu a m㺠pelºs cabellos .

Escute , euma lºi ra , muitº lºira? Meu DeusPºbre pequenina ! Ent㺠ella me ºuvia? Vá

,eu

tºcº, v ºu tºcar , v áDepºis

,agarrou-me O braçº .

Mas escute , n㺠lhe diga cºmº eu sºu . Eusºu feiº

,perdia º encantº

Quandº ºutra vez entrei na sala , a Carlºtamºrria . Cºmº a querer beijal -a ,

º luar entravapelas j anell as

,num g ºlph㺠de ºurº , e ell a , cºm as

mãºs de magnolia cruzadas sºbre a peitº,tinha

na face a tºrtura da agºnia .

Mas,subitamente , teve um est remeç㺠. Aº lado

,

cºmº uma rºnda de astrºs que se despregassem dºinfi ni tº ,

º pianº explodia uma indi siv el revºlta .

Um tropel de sºns reboou ,entrechºcºu-se

, desli sou,

rasgandº º ar , da terra ás estrellas , com uma dôrinfinita . Depºis , pareceu parar , tremulou brevemente

,abrindo um parai sº , ºnde ºs archanjºs can

t assem e,emquant º Carlºta sºrria , ºs accordes

,

cºmº um cºro de rºsas , envolveram — n'

a ,bei j aram

n'

a . E ella mºrreu , dºcemente , sem uma contrae

ç㺠,ºuvindº a musica dº

DENTRO DA NOITE l l l

Hºuve um lºngº silenciº na sal a malva,onde ha

cºnversas t 㺠al egres , á hºra suave dº chá . O barãolimpºu º mºnºcul º

O ra ,aqui está pºrque eu estºu triste

Cºusas da sua fantas ia macabra , fez a severaviscºndessa de Santa Maria .

Para entristecer a gente , accrescentºuMme deSºuza , linda e sentimental .

E, de nºvº , emquant º Mme Werneck fazia umgrande esfºrçº para n㺠chºrar, tºdºs nós , cºm

aâncº e erudi ç㺠, at acámºs a musica italiana .

A S EN SAÇ Ã O DO PAS SADO

Estavamºs a cºnversar nº gabinete de JºrgePraxedes . E ra um fim de tarde prºlºngadº pºr umlindº e maravilhºsº ºcasº . Jºrge offereci a chá emchí caras de pºrcelana da Persia ; havia largºs divans sonhadores entre as mesas atulhadas de bugigangas de arte

,e naturalmente

,a atmºsphera ,

ºtabacº turcº

,º chá , tudº issº nºs dava a lombeira

das recºrdações e º desej º de fazer fras es . Já tinhamos fal ado dº amºr , da vertigem dº tempº , dºgal ºpe da existenci a e de ºutras cºisas nºvas .

E' curiºsº , disse um da rºda, nós ºs hºmensmºdernºs n㺠temºs a sensaç㺠dº passadº , dº nãºsentidº

,dº tºtal alhei ament º que º passadº devi a

dar. As dôres,as alegrias , asmºdas âcam na memo

ri a como êº isas presentes que se afas taram . Paraum hºmem que vive a vida intensa n㺠ha propriamente passado

,ha um acumuladºr que não dá

immess㺠especial dº antigº ,dº acabado , dº que

n㺠vºlta mai s e ha muitº tempº terminºu .

ParadºxoE' facto . Comº hºmem as minhas amantes

1 1 6 DENTRO DA NOITE

mesmº mºrtas vivem todas na minha memºriacºmº se estivessem alli

, por traz dº paraventocºmº artista nunca me fºi pºssível ter a impressãºdº ext ínct º deante de uma estatua grega, a ºuvirum trechº de musica classica , a ver uma linda telaantiga .

Hºuve um prudente silenciº,e tºdºs ºlhavam

prudentemente as j anellas,quandº º bar㺠Bel

fort,que tºcava um pºucº distante um vagº Schu

mann num pianº meio desafi nadº pºr falta d 'uso,

exclamouCºmº tem você raz㺠Os grandes sent imen

tos e as grandes emºções s㺠sempre os mesmºs .

Por issº , ºs hºmens guardam na histºria 0 mesmº

phenºmenº de memºria da sua vida interna lembram-se mais de factºs dº tempº de infancia dºque dº tempº de hºntem . Cºmº artistas , nestetorvel inho mºdernº em que a Belleza desappareceu , só º que é medíºcre

,muitº medíºcre

,dá a

sensaç㺠dº passadº,mesmº que sej a de hontem .

Deante da Victºria de Samothracia nº Lºuvre éimpºssivel deixar de ter º enebri amentº dº

triumpho deante d'

aquelle blºcº de pedra ardenteque parece arrastar as embaterias da cºnquista

,e

anima ºs nºssºs nervºs d '

hºje cºmº animaria ºs dºshelenos . A vi sta da delicadeza preang el i cal deuma cabeça de Murilº

,º nºssº amºr pela Belleza

vibra cºmº vibrava º dºs cºnt empºraneº s dºgrande artista . Que digº Deante dºs simples peda

çºs de pedra apanhadºs nas escavações dº Egiptºnós sentimºs a vida pºrque elles sabiam reprºduzir

1 1 8 DENTRO DA NO ITE

E at é j amai s esquecerei a sensaç㺠pºrque v i,ºlhei

,

encarei e soffri º miserável passadº cºm tºda a sua

immensa ínsi gni fi canci a .

Cºmº André de Belfºrt cºntava sempre cºisasinteressantes , ºs caval heirºs presentes aguçaram a

at t enção .

Nunca pensei , meus amigºs , que fºsse tãºsimples e t 㺠dºlºrºsº . Eu que sahia dos museusde endument ari a da idade media cºm ensinamento d ' arte e a alma renascida, eu que vibraradeante dºs frescºs de Bºt icel l i cºmº deante darevelaç㺠para º futurº

,fi quei aniquilado .

H a cerca de tres annºs , fui cºnvidadº para umbaile nas Laranj eiras . N㺠era um sat án super-elegante , absºlutamente Aquelles senhºresdançavam aº sºm de um pianº . Havia, entretantº ,casacas , algumas nºt abil idades literarias e scien

ti ticas arrumadas na saleta de fumar , um fartº serviçº de buffet , a eleganci a das mulheres , dasmºçasvestidas de tecidºs leves

, a adejar a gracilidadesuave dºs gestºs . O dºnº da casa recebeu-me cºm

as reverencias com que receberia um bonzo . Asmºças olharam-me curiºsamente , ºs valsistas er

gueram ºs ºlhºs , as matronas indagaram º meunºme e eu fui cºnduzidº aº fumoi r, ºnde murchav am cincº ºu seis glorias urbanas . Nesta sal a estavaº pianº

,º pianº torturadºr . Um mul atº de pas

tinhas,cºm ºs cºl l arinhºs al tíssimºs e º geitº per

nºst icº de levantar º dedº“

mínimº ºnde fus il av aum sºlitariº , di rigia a caravana das nºtas , radiantecºmº um deus e suadº comº uma caldeira. De vez

DENTRO DA NOITE 1 9

em quandº , cheg avam rapazes cºm vºzes sup

pl íces

Firminº , agºra , aquella tua pºlka .

Qual dellas ? interrogava o pianista cºm a

fronte de orango camarinhada de suºr .

Aquella muitº bºnita,aquella

E,alli mesmº , baixinhº ,

trauteavam cºmpassºs .

Tºcas ?Pºis n㺠.

Pºr esta apprehensi b i l idade demºtivºsmusicaes,percebi estar deante de um desses pianistas damºda

,peculiares á nºssa sºciedade

,hºmemzinhºs

que vivem de escrever,cºm al guns errºs e muitas

accl amações , polkas , valsas e outrºs sºns dan

çant es . Os jºrnaes annunci av am mensalmente,

havia dºis annºs , nºvas cºmpºsições suas , e ,cºmº um decretº , º seu nºme t riumphav a nºs

sal ões mºdestºs .

A vaidade enl ouquecera-º quasi . O Firminº tinhaa certeza de estar nº galarim e , tºcandº , acºmpanhava cºm os hombros e a cabeça º balançº lan

guºrºsº dºs cºmpassºs de ºlhº abertº ,beiçº revi

radº , t al qual um geni º inebriado cºm a prºpriarevelaç㺠.

Talvez O fºsse . H a genios para tudo .

Eu fi cára depositadº numa rocki ng , ouvindº º

Firminº e um velhº chimico,prºfessor de Facul

dade,º Dr . Hortencio Guedes . 0 Dr . H ortencio

fal ava mal dº prºximº , de mºdº que º Firmi non㺠me escapava , dada a minha natural reserva

1 20 DENTRO DA NOITE

de respºnder cºm mºnºsyll abºs quandº se atacaa vida al heia .

O pianista era, de restº ,curiosíssimo . A

' rºda dºpianº havia tres ºu quatrº indi viduºs hipnºt isadºspela sua virtuºsidade . De v ez em quandº , um ranchº de mºças , escoltadas por cavalheirºs , invadiaa saleta para lhe fazer º pedidº de uma composi ç㺠cºmºvente , e º Firminº lºgº esticava maisº s dedºs , erguia a cabeça aº tectº ,

fing indº— se em

plenº sºnhº , para ter“

um sobresalto , curvar— se ,dizer

Minhas senhºrasEnt㺠, tºdas falavam a um tempºFirminº , tºca a E strel la d

'

Alva .

N㺠! Antes aSilenciº ! Firminº

,mlle . Abigail desej a

aquella tua aquella mui tº dançant e Cºmº

se chama,mlle .

?

Lol i ta .

E' issº , a Lol i ta .

O pianista lambia ºs beiçosAh v . exa . gºsta da Lol i ta Um poucochinho

velha,tem seis mezes .

Mas é t㺠bºnita !Muitº ºbrigadº .

E, mais suadº ,cºm º lençº entre º pescºçº e º

cº l l arinhº a desabar,º pianista sacudia nº pianº

ºs saracº t eiºs da val sa . N㺠sei , meus senhºres ,qual a vºssa impress㺠ºuvindº esse generº musical . Eu , francamente , sentia-me mºçº ,

cºm v ºn

tade de dar á perna,tamborilando nºs braçºs da

1 22 DENTRO DA NO ITE

lieta t ºca? D . Julieta era t ímida e ai nda estavaestudandº . Ninguem tºcava , ninguem sabia º quefazer ? E tudo pºr causa desseUm dºs rapazes, que usava lunetas e parecia

muitº brincalhãº, propºz º suicídiº geral , um holo

caust º a Terpsychºre e , para dar º exemplº, at i

rºu-se á j anell a . Mas vºltºu de lá , em pºntas depé

,a face feliz , pedindº silenciºMeus senhºres , está tudº resºlvidº . Descºbri

um pianista ! Ag arrei'

º impºssivel !Tºdºs

,num ímpeto ,

indagaram onde º guardavaAlli , em baixº

,na rua

,vendº o baile . E' º

Prates . O Prates,ha vinte e cincº anuos

,era O Fir

minº de hºj e . Mºrreu-lhe a mulher , fº i para uma

fazenda,n㺠sei . O factº é que

,quandº vºltºu

,j á

ºutrºs lhe tinham tºmadº º lºgar . O Prates andapºr ahi furiºsº cºntra os ri v aes, e passa as nºitesassistindº aºs bailes cºmº cºnvidadº dº serenº .

N㺠perdeu º habitº,cºitadº ! Era a sua atmos

De manhã lê ºs cumprimentºs dºs jºrnaes e á nºite espia ºs saráus . Original . Lá estáell e . E '

aquelle gºrduchº ,de cavai gnac brancº , cºm

um ar de agente de pºlicia aposentadº .

Que rºmanticº fez º Dr . Hortencio,e tºdºs

nós fºmºs á j anella , subtilmente , espiar a ruanegra , ºnde , cºm um cavai gnac brancº estava ºcasº exquisito .

O mocinhº indagºu dº amphi tríãº

V . ex . permi t te que 0 Vá chamar?Sei lá si ºs senhºres quizerem !

DENTRO DA NOITE 3

E' velhº , clamºu alguem .

Que t em issº ? indagºu fecundamente ºDr . Hortencio . Ent㺠,

si al lí em baixº estivessemBeethºven , Schumann , Mºzart ºu ºutros luminaresda musica, nós n㺠ºs deixaríamos entrar !

Aquel le argumento pareceu deciz iv º , apezar

de estarmºs cºnvencidºs de que si Beethºven eºs outrºs luminares aparecessem

,teriam que

fi car na cal çada e sem abrigº .

O j ºven partira, entretantº , e minutºs depºisentrava na sala cºnduzindº um hºmem v ent rudº

que tinha um cavai gnac de bóde brancº e rºlava ºchapéu nas mãºs .

Meus senhºres , º pianista Prates , que teve abºndade de aceitar º nºssº cºnvi te .

Eu passava na ºccasi 㺠, murmurava ºhºmem

,achei linda a

Um bandº de dançarinºs j a º envºlvia,ºffere

cendº-lhe licores , tirando-lhe º chapéu ,sentando-º

aº pianº .

Vai tºcar alguma cºisa ?

Quem estava aqui ?

Nós tºdºs .

Pareceu-me ºuvir as cºmposições dº Sr . FirAbancºu,

cºrreu uma escala dº pianº .

Hein ? Que era aqui ll º? E ra uma ºutra escala ,

uma escala extranha .

Bem,vºu tocar uma valsa .

Bem mºderna,Sr . Prates ; uma valsa dan

Sim,

1 24 DENTRO DA NOITE

Os pares vºltaram tºdºs aº sal㺠. Prates pareceurecºrdar ; atacºu um accórde

,depºis ºutrº

,e ºs

primeiros cºmpassºs ecoaram . Um vagº mal estarpareceu , de repente , estreitar a sala . Que cºisascºm icas , que cºisas grºtescas , que cºisas estupidas ,essas nºtas de pianº sug g est iºnav am á genteA sensaç㺠dº passadº enraivece sempre . Os cºnv idadºs estavam irritados cºmº si fºssem recebendo uma lºnga humilhaç㺠. Eu tinha vºntadede rir e aº mesmº tempº de destruir , de quebrar ºpianº . N a sala , as meninas largaram ºs pares desan imadas ;mºças nervºsas sentavam — se aºs cantºse era uma crescente exclamaç㺠de desprazer .

Qual N㺠é pºssível Ninguem cºmprehende

issº ! Pára ! Afi nal , um , mais ºusadº , aproximouse dº pianº

O ' Prates,tºca qualquer cºisa de mais nºvº .

Uma vºz rºuca respºndeu

Hein ? n㺠est㺠gºstandº ?

Muitº,n㺠. Vê si nºs dá a Valse blen .

A B leu? Ah ! Essa n㺠cºnheçº . Parºu ,fi tou

um instante a parede frºnteira,cºrreu a m㺠pelº

tecladº

Vºu tºcar um dºs meus successºs .

Eu olhava-º cºmº se ºlha um mºnstrº,um

trambºlhº que é precisº destruir e elle estatelavanas sete ºitavas uma especie de belchior melodico ,

tendº tudº,desde º seu soldado não me prenda at é

ºs cºmpassºs dº tempº em que º Furtadº Cºelhºintitulava as val sas de hºmenagens e as meninas

1 26 DENTRO DA NO ITE

pensei vel-º cahi r cºm uma vertigem ; pegºu dºchapéu ,

apertºu º lençº na bocca barbuda,cºmº

afºgandº um sºluçº e sahi u vagarºsamente . Dentrºbatiam ºs cri st aes daFoi esta a unica v ez que eu tive a sensaç㺠dº

passadº .

AV E NTU RA D E H OTEL

1 30 DEN TRO D A N e I T E

Aº almºçº era curiºsº ver tºda aquella gente nasala de baixº , ºrnada de palmeiras e de ii ôres cºmmuns

,entre ºs met aes polidºs das guarnições das

mesas . A sala era baixa, cºm uma luz baça derecantº submarino . Parecia um aquarium . A mimpelº menºs . As actri zes tºmavam ares graves depeixes evºluindo cerimºniosament e nº fundºd 'agua para cumprimentar as damas sem pal cº ;ºs hºmens eram reserv adíssímºs . Tudº aqui ll º

mastigava cal adº ,cada um na sua mesa

,batendº

º talher . Só quandº havi a hºspede nºvº é que surgiam frases breves .

Quem é ?O deputadº Gomensoro .

Ah !Sempre grandes nºmes , gente impºrtante , um

cºmplexº armorial de celebridades funccíºnarías ede titulares empast i lhadºs . E á nºite

,nº saguãº

de entrada , sagu㺠de marmºre que º gerente fºrrara de velha tapeçaria e guarnecera de um indizivel mºb i li ari º hesitante entre º estilº ottomano , ºsbelchi ºrs e º cºnfºrtavel inglez , pºdi a-se v er ºs

representantes de tºdas as classes sºci aes desde a

diplºmacia até º trºlº ló .

Precisamente tinhamºs mai s dºus hºspedes , ºvelhº ministrº dº Supremº ,Melchiºr , e seu sºbrinhºRaul Pºntes , rapaz elegante , vivaz , espirituºsº ,cºm vinte anuos irresistíveis . Tºdºs nº hºt el respeitavam Melchiºr e gºstavam dº Raul

,e ainda

ninguem esquecera a sua verve quandº º deputadº Gomensoro

,depºis de apertar-lhe a m㺠, dera

DENTRO DA N OITE 1 3 1

pºr falta dº relºgiº . Onde se fôra º relºgiº ? Nºbºnd ? Rºubadº ? Sahira Gomensoro cºm elle ? ODr . Raul Pºntes ri a a bºm ri r . O relºgiº ev apº

rara— se de certº . Era º cal or . E fi cºu muitº bemaquella estouvamento , tantº mais quantº o velhºMelchiºr

,representante da justiça , mostrava-se in

comºdadº .

N º dia seguinte , ao vestir-me para º almºçº,

lembrei que na minha gravata creme fi cava bemum al finete de turmalina azul cºm brilhantes dºCabº

,linda j ºia e lindº presente . Abri a gaveta

onde º deixara á nºite . N 㺠estava l á . Abri ºutrasgavetas

,prºcurei , remexi mal as a bºlsas . O al fi

nete desapparecera . Quiz descer,prevenir º ge

rente . Mas contive-me . Pºdia tel-º atiradº paraqualquer cantº . Quandº se quer achar um ºbj ectº

,

a gente está vendo-º e é cºmº se n㺠º visse . Depºisuma queixa sem prºvas contra º criadº acirra amá vºntade . Menºs talvez que as queixas cºm prºvas

,mas sempre º bastante para sermºs mal ser

vidos . Eu sºu prudente . Tres ºu quatrº dias depºis,

nº saguãº,º senadºr Gomes

, que só tinha livrºs erºupas velhas nº seu apºsentº , perguntou-me derepente

Vºcê tem um alfi nete de turmal ina azul ,n㺠?

Além de prudente,sºu intelligente . Pºrque

diabº naquel le di st incto hºtel , º senadºr indagavade um al finete desaparecidº ? Tel-º-ia apanhadº

pºr farça? E ra pºuco prºpriº para º altº cargº

slat iv º ,mas para mim uma cºnfiança simpa

1 32 DENTRO DA NOITE

thi ca . Fez-me º effei tº de um piparote nº ventre .

Tenhº sim . Pºrque pergunta? Ainda hºj esahi cºmGºmes travara cºm a genial ! ulmira Simões ,oráculo theatral de aquem e de além mar

,uma

di scuss㺠superiºr sºbre Calderºn de la Barca , a

quem , al iás , ambºs imputavam varias peças deLºpe de Vega . Em t㺠elevada esphera da dramaturgia hespanhºla ,

Gºmes n㺠respºndeu á minhapergunta , e eu que nessa nºite n㺠sahi de casa , aºsubir antes dº chá , encºntrei nº cºrredºr apenasº velhº Melchi ºr meiº abatidº

,fechei a pºrta pºr

dentrº,dºrmi e nº dia seguinte dei pºr falta dº

meu porte-monnai e de prata . Cºusa estupida afi

nal !

O gatuno pºrque era º gatuno,n㺠havia

duvida , º gatuno ºu farcist a sem graça deixaraa minha carteira e deixara até ºs nickeís , certºpara mºstrar que aqui l lº era seu ,

que aqui ll º estavaalli pºrque elle vºltaria . Que fazer ? Prevenir º prº

pri et ari º ? Mas eu estava num hºtel t 㺠di st inctº

Era pºucº cºrrectº e estabeleceria º desequili briona cºnfi ança geral . N 㺠seria melhºr esperar .

Nº di a segui nte,comº vºltasse de ºuvir º

D . Cesar de Bazan cºm ! ulmira Simões e º brummel i anº de Sºusa

,emquant º de Sºusa subia á

frente , a actriz murmurºuAh ! meu amigº

,este hºtel tem casºs cu

Sabe que fui rºubada ?

Seriº ?

1 34 DENTRO DA NOITE

Mas n㺠ha prºvas esclamava Mme de Sant arém . N㺠encºntraram nada ! Era expertº . N o

di a em que desapareceu º meu face mai n, nãº

sahi dº quarto .

RoubosEstamºs nº dºmíni º dºs ladrões g eni aes .

Precisamºs de um grande agente deductivo pararesºlver ºE prender 0 Antºni º copeiro ? Ora para

ladrões desse generº basta a nºssa pºliciaAliás º t al Antºniº gatuno parecia mais um

dºente . O hºmem aânal n㺠tirara nunca di nheirº,

e as argollas de guardanapºs dº hºtel eram lastimav eis cºmº val ºres . Mas , fºsse gatuno genial ºudºente

,Antºni º partira e a cºnfiança renas cia .

Passamºs assim uma semana e , cºm grande pasmºnossº , Mme de Santarém e a actriz ! ulmira Simões ,nº mesmo di a, á mesma hºra , encontraram emcima dº lavatorio , uma º seu face à mai n,

ºutra ºseu berloque .

E' uma aventura ! E'

um casº de di abº l i smº !

sentenciava º negºciante tuberculoso .

O hºtel cºnvulsiºnav a-se . Só º senadºr Gºmesresmungou

Que besta !E aquella phrase dita tristemente preºccu

pou-me . N º fundº ,

pºrém,º sujº e illustre hºmem

tinha razão . O gatuno ,ºu O sportrnan da la

drºeira n㺠era Antºniº ,era ºutrº

,existia

, annun

ci av a a sua presença, estava al li , aº nºsso ladº .

Audacia ? Lºucura ? " Estupidez? Nº di a seguinte

DENTRO DA N oI TE“

1 35

deu-se pºr fal ta dº collar de ºurº cºm pedras finasda actriz Simões , ºs brincos da mulher dº tuberculºsº sumiram-se . Fº i º terrºr . Os hºspedes trancavam º quartº e sabi am E vandº º s valºres nºbºlsº , mesmº para almºçar . A limpeza era feitana presença dºs respectivºs locatarios . Já ninguemse fallava direitº , já ninguem cºnversava . Haviaentre nós um ladr㺠. Um ladr㺠O medº prendiaas senhºras aºs quartºs . Ninguem sahia sem necessidade urgente

,cºm receiº de ser apºntado pelº

menºs um segundº , cºmº º fôra 0 Antºniº . Era

mos ºs fºrçadºs daquel les crimes ; tínhamºs quechegar á tragedia . O gerente , li v i dº ,

armava umapºlícia interna ferocíssima ºs criadºs serviam

,coi

t adºs ! cºm uma humildade dºlºrºsa , temendº a

suspeita,º ex-vice-presidente da ex—missão dº

Mexicº teimava em escrever aº chefe de pºlícia ,em v arejar ºs quartºs .

Pelº amºr de Deus gemia º prºprietariº .

E' ºutra tºlice , accrescent av a Gºmes . Nóstemºs aqui gente respei t av el .

Pºis está clarº dizia lºgº Mme de Santarém ,

divºrciada pela quarta vez .

E apesar da vigilancia , cºntinuaram a desaparecer objectbs . N㺠era pºssível Ou sahir , ºu darqueixa á pºlicia .

Uma vez encºntrei na cidade Melchi ºr e Pºntes ,

acºmpanhandº Mme de Santarém a uma cºnfei

taria . Eram duas hºras da tarde . Vºltei á pens㺠.

Pºr uma coincidencia , mºrava nº mesmº cºrredºrque essas tres pessoas , mesmº pegadº aº senadºr

1 36 DENTRO DA NOITE

Gºmes . Estava a despir-me , quandº senti passºsabafados . Abri a pºrta de vagar . Era º alegre esempre espirituºsº Pºntes . Vinha para º seuquarto . Mas n㺠. Parºu nº quartº de Mme deSantarém , experimentºu uma chave tºrceu ,

entrou . Oh ! a immºral ídade dºs hºtei s hºnestºs !O felizardº i a gºzar as delíci as de um apres

rni di amºrºsº cºm a hºnest i ssima senhºra ! Pºucºdepºis

,pºrém

,ºuvi um leve rumºr

,espiei de

novº . Era Pºntes , .com º ar mais natural , quefechava º quartº e andava aligero . Quiz fazer-lheuma pilheria

,gritar ; ahi m aganão ºu ºutra par

voice qualquer pºrque eu sºu de natural pandego . Mas deixei para º j antar

,recolhi . E nº j an

tar , Mme de Santarém,que chegara mºmentºs

antes, appareceu transmudada tinham-lhe rºu

bado 0 brºche de rubis .

Estavamºs tºdos nº sal㺠e sustiveram-se tºdºsnum pasmº raivºsº

,quandº a gentil senhora bra

dºu

Acabam de rºubar º meu brºche de rubis !Mais umOs meus ºlhºs cravaram-se nº Dr . Pºntes .

Tinha º mesmº pasmº dºs outros,º mesmº ar, º

mesmº olhar .

Uma idea atravessou-me º espiritº . Era elle º

gatunº ! N 㺠havia duvida . Era agat ral-º alli ,Mas si fºsse apenas º amante ? Afi nal era

um hºmem que devia respeitar a familia e º t iºAs prºvas eram cºntra elle

,absºlutamente cºn

tra . Nº hºtel ninguem pºderia lembrar-se de sahir

1 38 DENTRO DA NO ITE

mºs, a descºnfi ança existe . O ra, eu já pensei mal

de meu t iº . Prºpºnhº , pºis , que aº sahir daqui,

façamos uma passei at a pelº hºtel , entrandº e varej ando tºdºs º s quartºs . Serve ?Eu tinha *acabado de sºrver º café e admirei

Pºntes ºu um gatuno esplendi dº ºu um innº

cente . Em cºmpensaç㺠, º senadºr Gºmes ºlhavaa pºrta absºlutamente pallido . Que se iria passar ?

Serve ? tºrnºu a dizer Pºntes .

Mas está clarº,fez º Gºmes . Partimºs tºdºs

para a passeiat a l á da entrada . E'

º meiº al egrede acabar cºm uma press㺠séria .

Apoiadº Este Pºntes sempre º mesmºMas Gºmes erguia-se nº rumºr das exclamações .

Ergui-me,alcancei-º nº cºrredºr . ESt avamºs sós .

Sussurrei-lheO gatuno é elle . Vi -º entrar nº quartº da

N㺠é .

Ent㺠quem é ?N㺠sei .E ' impºssivel negar mais tempo . Ou º

senhºr di z-me ºu eu explicº tudº em publicº . Sóº muitºGºmes teve um gestº al lucinadº , juntº á escada

que dava para ºs apºsentºs superiºres.

Nada de pal avras inuteis . Jura segredº ?E' um crime .

Jura ?Jurº .

Pºis salvemos uma pºbre mulher, salvemos

DE NTRO DA NO ITE 1 39

uma desvairada, meu amigº , salv emº l-a ! Nãº,

pergunte porque . Amo-a cºmº pae,cºmº amante

,

cºmº quizer .

E' ella que rºuba , é ella . N㺠hameiº de impedir .

Vºu mandal-a embºra e aº mesmº tempº tremode vel-a nº carcere . E ' lºuca . Neste mºmentºmesmº estamºs á mercê da sºrte e dº di sparatedº Pºntes , a quem eu devia ºdi ar . Mas vamºs salval— a . E ' precisº salv al — a . Tudº será restituídº . Játenhº feitº issº . Psiº Esconda-se

,esconda-se . Ahi

,

debaixº da escada . N㺠a vej a,n㺠a vej a

Al guem descia a escada subtilmente . Escºndi

me cºm º cºraç㺠batendº ,emquant º Gºmes am

parava-se aº cºrrim㺠. O silenciº parecia aug

mentar a vastid㺠da escada . A v ºz dº GºmesindagºuTudº ?

Sim,meu medrºsº , sim ,

eu tinha tudº juntº .

Tºma . E agºra , at é .

O vultº passºu para º sagu㺠de entrada . Dasal a de j antar vinham vindº ºs hºspedes , excitadºscºm aquell a investigaç㺠pºlicial aºs quartºs . Tremul o

,l iv i dº

,Gºmes metten —me na m㺠um em

brul hº ,emquant º empurrava nas vastas algi

beiras da sobrecasaca e da calça ºutrºs pequenosrºlºs

,a dizer

Amanhã,restituiremos pelº cºrreio

,amanhã

saem muitºs . Sê bºm , salva— a

Era atrºz , era tragicº , era ridi cul º ver aquel le

hºmem illustre e hºnestº a guardar º s rºubºs de

40 DENTRO DA NO ITE

uma klept ºmana satanica e era estupidº º que eufazia Mas irresistível .Fºsse quem fºsse essa gatuna intelligente

, era deuma ºusadia , de um planº , de uma afi t eza ,

de umegºismº di abºl i cament e esplendi dºs . Estiquei ºpescºçº na ancia da curiºsidade , a saber quemera , a ver quem pºdia ser nº hºtel t㺠cheiº dehºspedes

,aquella de que me fazia cumpl ice ,

aquella que myst eri ºsament e,impalpav elment e

,

durante um mez,trºuxera aº hºtel atmºsphera de

duvida,de crime , de infamia . E , cºntendº um gritº

de pasmº , v i Mme de Santarém entrar nº saguãºsºrridente e calma .

O MON ST R O

Ah ! Eu sºu um mºnstrº !Palavra?E um mºnstrº , meus amigºs , que pºde cºn

fessar ºs seus apeti tes sem cºrrer º riscº de pºdercºntemplar º mundº através das grades de umcarcere, Eu sºu um infame .

Ditas estas palavras , Lucianº de Barrºs estendeu-se , desalentado ,

no divan e soprºu para º ar

O fumº dº charutº . Era depºis de j antar e nós estavamºs em casa de Lauri ana de Arauj º , uma dasmais elegantes raparigas , de uma vaga semi — sociedade em fal ha, sustent ada por um velhº banqueirºde t av ºl ag ens e cºm grandes pret enções a mulherde espíritº e a literatura . Os j antares eram sempreexcellentes ;o maitre d

'

hôtel i rreprehensiv el , ºs

serviçºs lindºs,e bem se pºdia nºtar naquel le am

biente , onde º velhº banqueirº tinha º bºm gºstºde n㺠aparecer , que Lauri ana de Araujº sabiaescolher cºm arte uma rºda de hºmens ci t av el .

Havia nºmes da Academia, nºmes da alta ele

ganc1 a , º creme das duas casas dº Parlamentº , e

1 44 DENTRO DA NOITE

sempre as altas fi guras em transitº prºpagadºr .

N aquell a casa de j antar côr de mºrangº cºm fri zºs

de faiança representandº a glºria de Pomona játinham estadº um embaixadºr severº e um quasipresidente de grande republica europea . Aº acabarºs j antares , Lauri ana , sempre de rendas brancas ,cºmº envºlta em espumas , accendi a um cigarrº epal estrava . Os hºmens recostavam — se nºs di vans eposavam . De vez em quandº tocava-se pianº .

Quasi sempre,entretantº

,na varanda guarnecida

de j asmins, ouvia-se um septuor de instrumentºs decºrdas . Era perfeitamente agradavel . Ninguemignºrava que a amphi t riã amav el real isára já uma

g rande fºrtuna e que sabia , cºmº ninguem , liquidar em seu prºveitº º dinheirº al heiº sem est repi tºs

escandalºsºs . Só cºmº amante de um ministrº ,obtendº cºncessões entre beij ºs , nº espaçº de tresmezes arranjára quinhentºs cºntºs .

Farcist a ! Tu , infame ? Tu n㺠passas de umEra º cºnselheirº Andrade , cºnhecidº

pºr quarenta anuos de ceias cºnsecutivas , desde ºremºtº Rºcher de Cancele até ºs desvai ramentosdºs cercles actuaes .

Eu , ing enuº?

Pºis ent㺠? Um infame, nunca di z que º é .

Cºnfºrme .

Afinal , intervinha Lauríana ,º Lucianº

que era um monstrº quandº eu perguntava

46 DENTRO DA NOITE

pequena de sºciedade elevada , mais ºu menºsculta, sabendº que ha de casar cºm alguem da suarºda

,talvez n㺠ame nunca . Uma rapariga ati rada

desde cedº aº torvelinho dºs bailes , das festas edos Bi rts é uma lutadºra prestes a devºrar º seumaridº prºximº . E mesmº as mºças de fami liamºdesta

,desde cedº ºbrigadas a uma prºfi ss㺠e

aº exercíciº de encºntrar um espºsº , entregando-seaºs maiºres excessºs de permi ss㺠aºs namºradºs ,quasi sempre fat aes, não sentem º amºrO amºr mºrreu .

O amºr é eternº , mas nem tºdºs º pºdemver

,através da pervers㺠dº fli rt ºu das luxurias

perdi das . E a mi nha immensa monstruosidade estáexactamente em prºcurar º amºr

,gºzar esse per

fume e perdel -o . E '

, talvez , mui tº vagº o que ea di zer , mas é horrivel . Andº pºr tºdºs ee aborreço as mul heres que arr

cºntºs de réis ;percorro ºs bailes e ºs rahut s cºmmedº das fli rteuses frequentº as caixas de theatro e em cada mulher que se pende para mim

,sintº

a fal sifi caç㺠. Que fazer? Percºrrer ºs meiºs humildes

,e descºbrir, prºbresi t as e sem nada

,

crianças que ai nda n㺠amaram .

um hºmem cºm tºdºs ºs inst inctºda nºssa rºda cºmº facilmente pôde empºlgaralma ingenua, seduzida apenas pelº exteriºr .

Dizem que nas grandes cidades n㺠ha 0

ingenuo , a A innºcenci a é uma

pri edade ,uma qualidade que passa

,mas

tºda a parte . N as classes mais pºbres,

DENTRO DA NOITE 1 47

mais mi serav eís é que se encºntra mais a flºr dainnºcenci a , expºsta aº vendaval e guardandº ºperfume

, pºr um prºdígiº . Desfolhar essa fl ºr, v io

lentamente , comº um satyrº ,n㺠é crime e in

st inct º . Gºzal -a naturalmente sem a intenç㺠senãºde a gºzar é a natureza . Cercal-a , prendel

-a,ir

aºs pºucºs aspirando-a, desfolhando petala pºrpetala

,cºm reúnament º

, intenç㺠dupla, cºn

sciente e ferºzmente é que é mºnstruºsº . E vºcêsn㺠sabem ,

n㺠pºdem imaginar a furia de caçadºrque eu desenvºlvº para as encºnt rar , vºcês nãº

bem º gºzº meu aº prel íbar a v º lupi a de umde virgem , um beij º sugadº na bocca aindaeijv ºu , eu passº , eu cumprimentº . N º di a se

a passar . Tres dias depºis,mando-lhe

º . Tudº é t㺠simples cºm ºs pºbresa creaturinha sente-se envºlvida

numa atmºsphera de cuidadºs e de delicadezas . Aprincipiº é apenas a vaidade . Um hºmem t㺠bemv estidº

,t㺠di st inct º ,

tão finº,que pºdi a ser

amadº pºr lindas mulheres da sua ºrdem . Depºisº ºrgulhº

, a sensaç㺠de que é melhºr dº que asºutras pºr t er si dº a preferida, ºrgulhº que se

perfume de gratid㺠, uma vaga, muitº vaga sensibilidade . Em seguida, a alegria da intimidade deum ente que n㺠a ral ha , que lhe reflecte em admirações cºmº um espelhº sympathicº tºdas as pe

zas da sua bel leza . Mas , ai nda assim ,

é brincadeira,uma brincadeira agra

1 48 D ENTRO DA NOI T E

cºmo a pureza de uma agua pura para a falsi ficação de um vinhº mẠ. Eu persisto

,entãº

,cºn

t inuº , prolongo a grande scena . E de repente a

criança sente º ciume,um dºce e ingenuo ciume

que tem zelos até dº inanimadº, ancei a ,

treme,e

ri e chºra sem saber pºrque , tºda ella pºssuí da dºperpetuo mal da vi da . Ent㺠, eu sintº nº íntimºuma alegria infernal . E '

º meu spºrt,º meu exer

cicio,º meu prazer de hºmem da cidade . As regras

s㺠infal l iv ei s cºrnº para tºdºs ºs j ºgºs,e a v íc

toria sºrri -me . Tenhº satisfeitº º meu desejo ?

N 㺠! Aº cºntrariº . E' O grande mºmentº,º

mºmentº dº iniciadºr . As caricias nam㺠,puxandº

essa m㺠que resiste inst inct iv amente e treme,as

carícias nºs braçºs , os cºntactºs fugaces que indicam tudo

,um beij º nºs cabellos

,ºutrº lºngº

,

gul ºsº , mºrdidº , na Gº zar as gradaçõesdº recºnhecimentº dº gºzº ,

a face que enrubece,

º calºr da pelle , ºs ºlhºs que enl anguecem e derepente se dil atam cºmº aº refi exº de um clarãº

,

as phrases curtas de E ' a fascinaçãºinebriante . Tºda a minha t act íca, entretantº , sefaz em tºrnº dº que a ínnºcenci a mais custa a dara bocca . Eu tenhº a nevrose das boccas . Ha algumas muitº vermelhas . Ha ºutras de um rºseº

pallido . O mºvimentº da lingua passandº pelºslabiºs dá-me crises desesperadas , e certas creaturas quando riem sug g erem

-me auroras em queeu desej º estancar tºda a sede de uma nºite emclarº

,que é a mi nha vida . A 's vezes , º beij º rog

vem de subito . De ºutras , a

1 50 DENTRO DA NOITE

N㺠é muitº bºnitº , mas nada tem de offen

Achas?Ha quarenta anuos , sem psichº lºg i as mal

sãs,serias apenas um bandoleiro . Agºra , cºm essa

mania de analyse das prºprias sensações , é que tej ulgas um mºnstrº .

Lucianº de Barrºs deitºu fºra º charutº que selhe apag ára entre ºs dedºs .

Infelizmente,

'

nós sºmºs levianos,nós º s

hºmens,em tºrnº desse grave e dºlºrºsº senti

mento . Que sºu eu? Um hºmem que borboleteia asua pervers㺠pelºs bºtões entreabertos da vida .

Até é bºnitº ! E quem uma vez sentiu a deliciadeliciºsa de uma bocca virgem que se entrega pelaprimeira vez , deve ter de mim invej a . Mas , se eume sintº infame ? Ainda agºra venhº de um casoassim . Era uma pequena de quinze annºs , al egrecºmº um passarº . O seu risº lembrava um chilreioe a sua bocca cheirava a rºsa . Tres mezes depºis ,sincera

,nºbre

,pura , ella amava , amava sem inte

resse, apezar de pauperrima ,

sem nunca ter recebido uma dadi va que n㺠fºsse inteiramente inutil .Dera-lhe º meu nºme

,mas ignºrava º que eu era ,

ºnde mºrava,qual º meu mºdº de vida . Amava

cºmº se ama aºs qui nze anuos , cegamente , e eutinha essa sensaç㺠meiº triste

,meiº ridícula de

me saber amadº cºm um encantº de sºnhº . Queera ella ? Um persºnagem de cºntº . Que eraO A crise dº amºr na estufa preppºr m im fl oriu . Tal vez eu mesmº estivesse

DENTRO DA NOITE 1 5 1

apaixºnadº dº que parecia . Prºpuz-lhe a fuga

raptº . Resistiu cºm º seu fundº honestº,tantº

que lhe prºpuz casamentº . Ella sºrriu entre lagrimas , erguendº ºs dºus grandes ºlhºs negrºs .

N㺠sabes º que dizes ! Sºmºs de cºndi ções t ãºdifferentes ! Issº é impºssivel . Mas

,entãº

,

que queres ? Nada , n㺠querº nada , cºusanenhuma . Eu vºltei , cºntinuei a vel— a ,

mas insensiv elment e, a minha lamentavel alm a sentia a

necessidade dº afastamentº , querendº cºnserv al-a .

Ella cºntinuava tal qual , iluminando º semblantequandº me v i a . Certa vez disse-me A 's vezesquasi n㺠tenhº coragem de vºltar á casa

,cºm

medº de me matar . Vem commi go,ent㺠.

N 㺠. Já hºj e chºrei tantº . Eu g ºsav a aquellemartíriº pºr minha causa , aquell a innºcenci a perturbada pela mi nha H a quinze di as nãºa vi a j anell a . Passei nº ºutrº dia , e interroguei ávizinhança . Tinham-n ' a levadº ºs padrinhºs pºrcausa de umas crises de chºrº que a defi nhavam .

E eu estºu na agºnia , a pensar nessa creatura purae dºce .

D . Jºãº ,sºceg a ! Has de ver a pequena ca

sada , cºmº as ºutras .

Ou perdi da , sentenciºu , grave , Lauri ana .

Lucianº ergueu-se , concertando a gravatabranca .

Ou talvez mºrta,pºrque j a tem acºntecidº

Entãº,a linda Lauri ana sºrriu cºm infini ta tris

teza .

Mas n㺠te julgues , cºm esse exagerº de ana

1 52 DENT R O DA N OITE

lyse e de pretenç㺠, º uni cº mºnstrº , meu carºamigº . A cidade está cheia desses defi ºradºres dºamºr . A vida é uma luta de sexºs . Ha creaturinhasque mºrrem ceifadas em bºtãº

,depºis de levemente

aspiradas pelºs int el lectuaes gastºs cºmº tu . Haºutras

,pºrém

,que resistem e ficam cºmº eu .

Hºuve um prºlºngadº silenciº . Ninguem rira .

E,só

,Lucianº de Barrºs , muitº pallido , diante de

um grande espelhº , parecia pasmº da prºpria phisiºnºm i a . Fóra ,

º septuor tºcava uma val sa lenta,

entre ºs j asmins .

º BEBE D E TAR LATAN A ROSA

Oh uma histºria de mascaras quem n㺠a

tem na sua vi da ? O carnaval só é interessantepºrque nºs dá essa sensaçaº de angustioso impre

Francamente . Tºda a gente tem a sua historia de carnaval , deli ciºsa ºu macabra

, al g ída ºucheia de luxurias at rºzes . Um carnaval sem aventuras n㺠é carnaval . Eu mesmº este annº tive uma

aventura .

EHeitºr de Al encar esticava-se preguiçosamentenº divan

,gºzandº a nºssa curiºsidade .

Havia nº gabinet e º bar㺠Belfºrt , Anatolio deAzambuj a de que as mulheres tinham tanta impl icanci a ,

Maria de Flor, a extravagante bohemi a, etºdºs ardi am pºr saber a aventura de H ei t ºr Osilenciº tºmbºu expectante . Heitor , fumandº umgianaclis authent icº ,

parecia absºrtº .

E' uma aventura al egre ? indagºu Maria .

Cºnfºrme ºs temperamentºs .

Suj a ?Pavorosa ao menºs .

De di a?

1 56 DENTRO DA NOITE

N㺠. Pela madrugada .

Mas , hºmem de Deus , cºnta ! supplicavaAnatolio . Olha que está adoecendo a Maria .

Heitºr puxºu um largº tragº á ci g arret a .

N 㺠ha quem n㺠saia nº Carnaval dispºstºaº excessº , dispºstº aºs transpºrtes da carne eás maiºres extravagancias . O desej º , quasi dºentiºé cºmº incutido

,infiltradº pelº ambiente . Tudº

respira luxuria,tudº tem da ancia e dº espasmº , e

nesses quatrº dias paranoicos,de pulºs

,de guin

chos,de cºnfi anças i l l ími t adas , tudº é pºssivel .Nãº

ha quem se cºntente cºm

Nem cºm um,atalhou Anatolio .

Os sºrrisºs s㺠ºffert as ,ºs ºlhºs suppl icam ,

as gargal hadas passam cºmº arrepiºs de urtiga pelºar. E' pºssivel que muita gente cºnsiga ser indifferente . Eu sintº tudº issº . E sahindº , á nºite , paraa pºrnei a da cidade , sai º cºmº na Phenicia sabi amºs navegadºres para a prºciss㺠da Primavera, ºuºs alexandrinos para a nºite de Aphrºdi t a.

Muitº bºnitº cicíºu Maria de Flºr .

Está clarº que este annº ºrg ani sei uma partida cºm quatrº ºu cincº actrizes e quatrº ºu cincºcºmpanheirºs . N 㺠me sentia cºm cºragem deficar só cºmº um trapº nº vagalhão de v º lupi a ede prazer da cidade . O grupº era º meu salva— vidas .

N º primeirº dia, nº sabbadº , andámºs de autº

movel a percºrrer ºs bailes . Iamos indi st inct ament e

beber champagne aºs clubs de j ºgº que annunciavam bailes e aºs maxixes mais ordinarios . Era

div ert i di ssimº e aº quintº club estavamºs de tºdº

1 58 DENTRO DA NOITE

num susp irº ai que dóe Est㺠vºcês a ver queeu fiquei immedi atamente di spºstº a fugir dºgrupº . Mas commi go iam cincº ºu seis damas elegantes capazes de se debochar mas de n㺠perdºaros excessºs al heios , e era sem linha cºrrer assim

,

abandonando-as , atraz de uma frequentadºra dºsbailes dº Recreiº . Voltámos para ºs autºmºveis efºmºs cei ar nº club mai s chi c e mai s seccante dacidade .

E º bebé ?O bebé fI cºu . Mas nº dºmingº

,em plena

Avenida,indº eu aº ladº dº chaa í eur, nº borbo

rinhº cºlºssal , senti um beliscão na perna e uma

v ºz rºuca dizer para pagar º de hºnt emOlhei . E ra º bebé rºsa , sºrrindº ,

cºm º nariz post i çº , aquell e nariz t 㺠perfeitº . Ainda tive tempºde indagar ºnde vais hºj e ?A toda parte ! respºndeu , perdendo-se num

Estava persegui ndo-te cºmmentºuMaria de

Talvez fºsse um hºmem . sºprºu descºnfi adºº amav el Anatolio .

N 㺠interrompam º Heitºr ! fez º barãº,

estendendº a m㺠.

Heitºr accendeu ºutrº gianaclis , pºnta de ºurº ,sºrriu, cºntinuºu

N 㺠º vi mai s nessa nº i te , e segunda-feiran㺠º vi tambem . Na terça desliguei-me dº grupºe cahi nº mar al tº da depravação

, só ,cºm uma

rºupa leve pºr cima da!pell e e tºdºs Os maos ín

DENTRO DA NOITE 1 59

st inct ºs fustigados . De restº a ci dade inteira estavaassim . E'

o mºmentº em que pºr trás das mascarasas meninas cºnfessam paixões aºs rapazes

,é º

instante em que as ligações mais secretas t ransparecem , em que a virgindade é dubia e tºdºs nósa achamºs inutil , a hºnra uma caceteação ,

º bºm

sensº uma fadi ga . Nesse mºmentº tudº é pºssível,

ºs maiºres absurdºs , ºs maiºres crimes ;nesse momento ha um risº que galvani sa ºs sentidos e ºbeij º se desata naturalmente .

Eu estava trepidante , cºm uma ancia de acanalhar-me , quasi morbida . Nada de raparigas dºgal arim perfumadas e pºr demais cºnhecidas , nadadº cºntactº famili ar , mas º deboche anºnymº

debºche ritual de chegar , pegar, acabar , cºntinuar .

Era i gnºb i l . Felizmente muita gente soffre dºmesmº mal nº carnaval .

A 'quem º dize s suspirºu Maria de Flºr.

Mas eu estava sem sºrte,cºm a gui gne,

cºm º caipor i smo dºs defuntºs índiºs . Eraaproximar-me

,era ver fugir a presa prºj ectada .

Depºis de uma dessas caçadas pelas avenidas epelas praças

,embarafustei pelº S . Pedrº , meti-me

nas dansas:rºcei -me áquel l a gente em geral pºucºlimpa

,insisti aqui , alli . Nada

E quandº se fi ca mais nervosº

Exactamente . Fiquei nervºsº at é º fim dºaile

, v i sahir tºda a gente , e sahi mais desesperadº .

tres hºras da manhã . O mºvimentº dasºut rºs bail es j á tinham aca

1 60 DENTRO DA NOITE

bado . As praças , hºras antes incendi adas pelºsprºj ectºres electricºs e as cambiantes enfumadas

dºs fºgºs de bengala,cab iam em sºmbras som

bras cumpl ices da madrugada urbana . E só , indicandº a fºlia

, a excitaç㺠da cidade , um ºu ºutrºcarrº arriado levandº mascaras aºs beij ºs ºu

al guma fantasia tilintando gui zos pelas cal çadasfºfas de confetti Oh ! a Impress㺠enervantedessas fi guras i rreaes na semi-sombra das hºrasmºrtas , rºçandº as calçadas , tilintando aqui , all ium som perdidº de guizº Parece qualquer cºusade impal pav el , de vagº ,

de enºrme,emergindº da

treva aºs E ºs dºminós embuçadºs , as ,

dançarinas am arfanhadas, a cºllecç㺠indecisa dºs

mascaras de ul timº instante arrastando-se ext e

nuadºs ! Dei para andar pelº largº dº Rºciº e i acaminhandº para ºs ladºs da secretaria dº interior, quandº v i

,paradº

,º bebê de tarlatana

rºsa .E ra elle ! Senti palpitar-me º cºraç㺠. Parei .Os bºns amigºs sempre se encºntram disse .

O bebê sºrriu sem dizer palavra . Estás esperandºal guem ? Fez um gestº cºm a cabeça que n㺠. Enlacei-º . Vens commigo ? Onde ? indagºu a sua

v ºz aspera e rºuca . Onde quizeres ! Peguei— lhenas mãºs . Estavam humidas mas eram bem tra

tadas . Prºcurei dar-lhe um beijº . El la recuºu .

Os meus labiºs tºcaram apenas a pºnta fria dº seunariz . Fiquei lºucº .

PºrN㺠era precisº mai s nº Carnaval

,tantº mais

1 62 DENTRO DA NOITE

Ah ! sim ! E sem mais di zer puxou-me . Abracei — a .

Beijei-lhe ºs braçºs , beij ei-lhe º cºllº , beij ei-lhe º

pescºçº . Gul ºsament e a sua bocca se ºffereci a . Emtºrnº de nós º mundº era qualquer cºusa de ºpacºe de indecisº . Sorvi-lhe º lábiº .

Mas º meu nariz sentiu º cºntactº dº nariz post i çº della , um nariz cºm cheirº a resina, um narizque fazia mal . Tira º nariz Ella segredouN 㺠! n㺠! custa tantº a cº l lºcar ! Prºcurei nãºtºcar nº nariz t 㺠friº naquel la carne dechamma .

O pedaçº de papel㺠, pºrêm , avultava, pareciacrescer , e eu sent i a um mal estar curiºsº , um estadºde inhi b i ç㺠exquisito . Que diabº ! N㺠v ás

agºra para casa com issº Depºis n㺠te disfarçanada . Disfarça sim ! N 㺠! Procurei-lhe nºs

cabellos º cºrd㺠. N㺠tinha . Mas abraçando-me,

beij ando-me,º bebê de tarlatana rºsa pareci a uma

possessa tendº pressa . De nºvº ºs seus labiºsapprºximaram-se da mi nha bºcca . Entreguei-me .

O nariz roçava º meu , º nariz que n㺠era della,º nariz de fantasia . Ent㺠, sem pºder resistir, fuiaprºximandº a m㺠, aproximandº

,emquant º

cºm a esquerda a enlaçava mais, e de chofre agarreiº papelãº

,arranquei — º . Presa dºs meus labiºs , cºm

dºus olhºs que a cº lera e º pavºr pareciam fundir ,eu tinha uma cabeça estranha, uma cabeça semnariz

,cºm dºus buracºs sangrentºs atulhados de

al gºd㺠, uma cabeça que era al lucinadamentc

uma cav eira cºmDespeguei-a, recuei num immenso v ºmitº de

DENTRO DA NOITE 1 63

m im mesmº . Tºdº eu tremia de horrºr,de nºjº

.

O bebê de tarlatana rºsa emborcara nº ch㺠cºm a

caveira vºltada para mim , num chºro que lhe arre

g açav a º beiçº mºstrandº singularmente abaixº dºburacº dº nariz ºs dentes al vºs . Perdºa ! Perdoa l N 㺠me batas . A culpa n㺠é mi nha ! Só nºCarnaval é que eu pºssº gosar . Entãº

,aprºveitº

,

ºuviste? aprºveito . Fºste tu queSacudi-a cºm furia , pul-a de pé num safanão

que a devia ter desarticulado . Uma vºntade decuspir

,de lançar apertava-me a glotte

,e vinha-me

º imperiºsº desej º de esmurrar aquel le nariz , dequebrar aquelles dentes , de matar aquell e atrºzreversº da Mas um apitº t ri lºu . Oguarda estava na esquina e olhava-nos , reparandºnaquel l a scena da semi-t reva . Que fazer? Levara caveira aº pºstº pºlicial ? Dizer a tºdº º mundºque a beijara ? N 㺠resisti . Afastei-me , apressei ºpassº e aº chegar aº largº incºnscient emente deitei a cºrrer cºmº um lºucº para a casa, ºs queixosbatendº

,ardendº em febre .

Quandº parei á pºrta de casa para tirar a chave ,é que reparei que a minha m㺠direita apertavauma pasta ºleºsa e sangrenta . Era º nariz dº bebêde tarlatanaHeitºr de Alencar parou

,cºm º cigarrº entre ºs

dedºs,apagadº . Maria de Flºr mºstrava uma cºn

tracção de hºrrºr na face e º dºce Anatolio pareci amal . O prºpriº narradºr tinha a camarinhar-lhe afrºnte gºtas de suor . Hºuve um silenciº agºnient º .

Afinal º bar㺠Belfºrt ergueu— se , tºcou a campai

1 64 DENTRO DA NOITE

nha para que º criadº trºuxesse refrigerantes,e

resumiuUma aventura , meus amigºs , uma bella

aventura . Quem n㺠tem dº Carnaval a sua aventura ? Esta é pelº menºs empºlgante .

E fº i sentar-se aº pianº .

A PARADA DA I LLU SÃ O

Cºmº tinha sidº aqui ll º ! Deante dº espelhº , a

dar um laçº frºuxº nº lenço de seda,Geraldº sºrria

º sorrisº satisfeitº e vagamente mau que têm tºdºsO s hºmens quandº recºrdam uma aventura em quefºram ºs mais expertos . Cºmº tinha sidº Oacasº , apenas º acasº . Pºbre , sem pret enções, alugara pºr uma ni nharia aquel le casinhoto dº mºrrº ,bem na rua de Santa-Luz ia

,defronte dº mar . O

mar é um fºrnecedºr de energia . Cºntemplar asondas , aspirar º ar infi ltradº de salsug em fazia-lhebem . Depºis , accordava cedº , quasi de madrugada ,e comº a vizinhança era quasi tºda de pescadºres ,de banhistas

,de j ºvens dºs centrºs de regatas , i a

mesmº de cami sa de meia , cºm ºs pés nús met t idºs

nuns enºrmes tamancos , aº estabelecimentº balneari º . Quem º visse grºsso ,

fºrte,º bigºde espessº ,

negra cabelleira ondeante,º braçº cabelludo , nãº

e di ria j amai s um estudante de medi cina . Havianº seu ºlhar qual quer cºusa dºs barqueiros deNápºles

, dº languor das serenatas , e na alegria dºsemblante , na gesticul ação , º ar da raça, º ar que

1 68 DENTRO DA NOITE

n㺠fal ha . Basta ºlhar um hºmem para se sentirdºnde elle veiu . Geraldº cºmeçara humilde

,de ori

gem itali ana . De trabalhº em trabalhº fi zera— seafinal academicº , graças á pertinacia da sua intell i genci a . Mas pºr mais queridº que fºsse entre ºscº lleg as , era uma delicia para a sua alma ir arrastar as pernas pela madrugada nºs cºrredºres dacasa de banhºs , quasi nú, a cºnversar em napº

litano cºm ºs banhistas,ºs t radicionaes banhistas

ha vinte anuos ºs *

mesmºs .

E ra t㺠bom , t㺠bizarrº ! A princípiº , postava— se nº pateo , j untº da barraca dº gerente ,escura de roupas em trºuxas cºm um quadrº daschaves e º bicº de gaz accesº . Era a chegada dºsfrequentadºres . Havia mul heres pal l idas , mães defamilia

,acºmpanhadas de crianças e de criadas ,

verdadeirºs regimentºs de chlºrº t icºs havia suj eitos de passº t rºpeg º ,

rheumat i cºs, beriberi cºs ,

talvez tísicos ;havi a ºs habi tuaes, senhºres respeit av ei s , burguezes de ar solemne , que tºmavambanhº de mar desde crianças

,acºnselhandº para

tºdas as molestias um mergul hº nº salso elementº ;e suj eitºs que vinham especialmente para a pandega , as lições de natação , ºs namºrºs cºm apertões debaixº da agua

,as meni nas assanhadas , as

cocottes , as cocottes de uma pall idez mºrtal áquel l aE havia tambem muita mulher chic , muita

mulher de estal º , que ºs mirones da praia até º lhavam de b inocul º .

Mas Geral dº n㺠tinha pret enções a eºe aquelle espreguiçamento na casa de

1 70 DENTRO DA NOITE

Geraldº curvava-se,sem uma pal avra . A dama

lºira abriu a bºlsa de prata , t i rºu uma nºta .

Tºme . N 㺠quer receber? O ra esta ! Receba .

Para esquentar . Ande lá .

G razzie ,

Diga : ê itali anº ?I º sºnº venuto da Napºli fa tre anni .Ah ! bem . E quantºs tem de edade?

Vinte e due .

A dama lºura olhou-º prºfundamente , teve umleve suspirº

,e ai nda indagºu

Cºmº se chama?

Venha dar-me banhº .

Infinitamente alegre com a aventura , Geral dºsegui u para º ºceanº a dar banhº na dama lºura ,e quandº vºltºu estava a arrebentar de risº . N 㺠é

que a mul herzinha º tºmava mesmº pºr banhista?Entretantº , º imprevistº dº casº accendi a-lhe ºdesej º de cºntinuar . Sim ,

cºntinuari a . E fal ºu aº

dºnº da casa de banhºs . O hºmem ,um italiano

velhº , n㺠gºstava de patifarias nº estabelecimento . Mas

,cºmº era para elle

,Geral dº , cºnsen

t i a . Os ºutrºs riam a perder,um pºucº envaide

eidos pºrque,afi nal , um estudante era tal qual

elles . E Geral dº , que n㺠disseraa cºusa na escºlapºr um certº pudºr

,n㺠faltºu mai s . Lºgº cedº

l á estava nº estabelecimentº,de pés nús , calçãº

de meia,cami sa aberta . A dama lºura chegava

sempre ás seis e meia .

Ent㺠, Tul iº , º meu quartº ?

DENTRO DA NOITE 1 71

Prºmpt º , pat rôa, prºmpt inhº .

N o fim dº qui ntº di a , elle fazia t㺠bem º papelde banhista de ºpereta , que ella lhe di sse º nºme .

Era Alda Pereira , bras ileira , dº sul , tinha vinte esete annºs , e um prºtectºr sériº ,

º senadºr Eleuterio

,que a t ºmára depºis da separaç㺠dº maridº .

Dizia essas cºusas n aturalmente , aprendendº anadar .

Ai ! n㺠me afogues , rapaz . Mºrrer aºs vintee seteOu entãºPal avra de riº -

grandense e de Alda Pereiraque aprender a nadar custa !Elle sºrria, queria leval -a para lºnge .

Nãº,que º senadºr Eleuterio pôde saber ;

e eu,meu âlhº

,depºis que me separei dº meu

maridº,tenhº muitº medº dº ciume .

Uma suave intimidade brotava aºs pºucºs daquella hºra de banhº .

Elle prºcurava termºs vul gares,copiava º ri r dºs

ºutrºs,dizia cºusa grºssas cºm um ar ingenuo

seu t ºm de analphab et º ,e ella parecia ter cada di a

mai s cºnfi ança . Já se encostava aº seu hombro , j álhe agarrava º pul sº pºtente de certº mºdº . Uma

vez perguntou-lheVºcê

,um rapaz intelligente , pºrque n㺠muda

de vida ?

Para que,signorina ? Aqui vivº , aqui hei de

Criança ! E n㺠tem aspirações ?N㺠, si gnºrína !

1 72 DENTRO DA NOITE

Apºstº que nem sabe lêr ?

Elle parºu um instante attonito . Estaria ella abrincar

, já sabedºra de tudo ? Seria º casº de avan

çar e n㺠gosar mais O prazer de ser cºnquistadº .

Mas Alda tinha uma express㺠de t 㺠v el lut inea

piedade,que n㺠hesitºu na farça .

E' verdade . Nem sei lêr .

Meu Deus ! Um rapaz de v inte e dºis annºsque n㺠sabe lêr !

Os seus ºlhºs nesse di a tornaram— se mais humidos , e aº rebentar de uma ºnda na pºnte ella sedeixºu pºsitivamente cahir nº seu largº peitº . Nãºtinha duvida ! A mulher amava-º cºmº certasdamas amam ºs impetuosos adºlescentes dasclasses baixas ; a criatura era uma nev rºsada t o

mantica . Decididamente estava de sorte .

N º di a seguinte , á sahi da ,Al da Pereira indagºu

O ' Tuliº , quereria vºcê aprender a lêr?A signorina paga º prºfessºr ?Ensinº eu mesmº .

Ent㺠querº . Onde?Vá á minha casa . Lºgº , á nºite , às set e ; é a

melhºr hºra .

Elle arranj ara um dolman de brim,um capºte

cºmpridº cºmprára º lençº de seda e um chapeodesabado para aparecer cºm a côr lºcal . E fôra .

A dama lºura habitava,numa rua transversal á

Lapa , uma casa elegante e discreta , cºm duas criadas apenas . Fizeram-no entrar para uma sal eta deestilº mºdernº

,em que ºs mºveis eram incom

1 74 DENTRO DA NOITE

g ºsari a ! E ra—

uma aventura falha . Nunca ! Tivesseque estudar º alphabet º a vida inteira aquella

,

aº menºs,n㺠lhe escapari a . E, desde a madru_

gada,fº i esperal

— a na casa de banhºs , apai xºnadº .

Sim,de factº

,apaixºnadº . Elle n㺠estava simão

apaixºnadº . A paixão é quasi sempre º desej º deum triumpho

,que se imagina de um certº e deter

minado mºdº . Ha sempre um vencedºr na alma deum amante . Elle queria pregar uma peça . Quepeça? Emfim , queria cºnfundir a linda mulher deextranha vºntade . E Alda Pereira pareci a tambemamal-º ,

pº rque apareceu de ºlheiras , com um arfati gado .

Sabe que estudei ? fez elle , olhando-a fi xº .

Pal avra?Quer tºmar a li ç㺠hºj e ?Nãº

,

Elle se preparºu , e fº i . J á sabia º alphabet º . AldaPereira sºrria, enl evada .

Mas cºmº é intell ig ente ! Vamºs a sºletrar .

Olhe que vºcê pôde dar ºrgulhº a um prºfessºr .

A aula ia cºntinuar . Ella tinha a cabeça curvada,

mºstrandº a nuca núa . Elle estava encºstadº ámesa , cºm aquell e t ºm vul gar e pºtente , que º seu

phi sicº ajudava . A luz era tenue . Geraldº mºveuapenas a cabeça e roçou º bigºde nº pescºçº venustº . Ella estremeceu , extendeu as mãºs e sus

pirºu cºmº uma rºla .

AhElle fi rmºu ºs labiºs pº lpudºs e apertou-lhe as

mãºs . Ella se debateu, vºltou a cabeça e a sua

DENTRO DA NOITE 1 75

bocca purpurina, anciºsa e avi da, sugou º labio deGeraldo . Nem uma pal avra . Estavam num ºutrºmundº . Elle cahiu de joelhºs

,ella pendeu

,rºlaram

ºs dºis . E ra frenetica e deliciºsa . Deliciºsamentedeliciºsa . A prºpria paix㺠a vibrar . E Geraldºvºltºu aº casinhoto , ºutrº hºmem ,

aturdido,sem

comprehender º que v i a ,a lembrar-se dºs seus

abraçºs e das palavras suasTuliº ! Tul iº ! não di gas a ni nguem ! E'

a

minha vida ! Lembra-te dº que fi z pºr ti . Só o

amºr,muitº

A vida de delíriº cºmeçºu ent 㺠l Ella entregava— se e sentia-º cºmº um immenso accorde dºseu prºpriº ser . Cada beijº era uma revelaçãº

,cada

abraçº a dissºluç㺠de um mundº . E a necessidadede ºccul t ar de ºlhares prºfanºs aquel le sentimentºainda mais ºs incendiava . N º banhº , ella estudavaº mºmentº de apert al

-º, de mºrdel-º , esperava

cºm a pºrta dº quartº entreaberta para um beijº ;em casa

, as lições de leitura eram a leitura de Paul oe Francesca, nº versº de Dante . Jámai s , pºrém ,

ella mºstrava descºnfiar da sua verdadeira situa

ç㺠,e Geraldo

,sentindo-se indi gnº de si mesmº ,

cºntinuava a ser º banhi sta Tuliº , sem forças paradizer a verdade .

Aúnal , º senadºr Eleuteriº sºubera dº casº , e ,mais pae dº que amante , resºlvera mandar Aldaá Eurºpa, a ver si º escandal º terminava . Aldachorava, queria viver sem rºupas , em Santa Luzia,cºm º seu Tuli º , e fôra um verdadeirº trabalhº ºcºnv encel — a de uma breve separaç㺠.

1 76 DENTRO DA NOITE

Tu queres,Tuliº ?

E' para teu bem .

Queres mesmº ? E'

º nºssº amºr que matas .

Eleuteriº cºmprára as passagens , combinaratudº . Era nº dia seguinte que Alda partiria . Geraldº ,

preparando-se para a ul tima visita , relembrava aquel les dºis mezes lºucºs de rºmantismº .

Cºmº aqui l lº fôra ! Era l á pºssível prever ? Antes ,pºrém

,da partida era precisº dizer-lhe a verdade .

Elle i a para º ultimº actº .

Ent㺠penteou º cabellº cºmº ºs banhistas , cºmmuita brilhantina , poz º chapeo e º capºte , cºncert ºu ainda uma vez º lençº de seda, e partiu .

Alda estava na mesma sal a da primeira vez , muitºabatida . Extendeu-lhe as mãºs e a bºca .

Meu A ultima vez !E deixou-se cai r .

Alda,que é issº ?

Lembras — te ? Ha dºis mezes Quantºamºr ! Quando te vi

,desde que te vi

,meu amºr

,

amei— te . Que me impºrtava que tu fºsses banh ista ?

Si era a tua carne , º teu cºrpº , ºs teus ºlhºs queeu desej ava

,meu adiv inhadº Nunca

,

nunca mais sentirei º que senti pºr ti,nº mar,

quandº te tinha a meu ladº , fºrte , meu ,

Dize Nenhuma ºutra será cºmº eu . Pºis n㺠?

Mas ,A 'quella casa v 㺠tantas mul heres E tu tens

que servir a tºdas,tens que as segurar

,tens que

as

Geraldº , viu que era º mºmentº .

1 78 DENTRO DA NOITE

parada de goso superfmº em que ambºs nºs esfor

çassemºs pºr dar a cada um a i llus㺠. Nunca sedesengana uma mulher pºrque n㺠se mata a illusão . Eu amava um ser ideal izadº , que seria chº

cante si fºsse verdadeirº , um banhista imprevisto

,um selvagem ,

fi l hº dº mar e das canções,

em t i que º fingias bem . Tu mataste Tuliº . Queme impºrta a mim º estudante Geraldº ? Já nempartº . N 㺠é precisº . Adeus ! E nunca, ingenuorapaz

,queiras ser verdadeirº nas cºusas dº senti

mento que ama a i llus㺠.

Geral dº , nervºsº , sem saber º que fazer dº seuchapeo calabrez , sentia a l amentavel , uma curiºsae lamentavel sensaç㺠de que retomava º seu eu ;

um eu vul gar e cºmmum . Alda fez-lhe ai nda umvagº gestº . Na rua , ºutra vez , envergºnhadº ,

furiºsº,triste , º pºbre rapaz deitou quasi a cºrrer,

cºm º receiº de que º cºnhecessem ainda mal vindºda parada rºmantica . E só nº quartº humilde eque ponde chºrar , chºrar lºngamente n㺠tersabidº guardar integralmente O principiº da vidaa

LAURINDA BELFOR T

A Jº aquim Eul á l i º .

1 82 DENTRO DA N OITE

Ah Francamente j a enfarav a . Nº primeirº di a ,

na manhã em que cºrrera á primeira entrevista ,teria chicoteado º cºcheirº para andar de pressa

,

para vºar ; nesta mal dita quinta— feira vestirá-sede vagar

,conversara durante º almºçº cºm tºda

a sua vida fºra um resultadº de imi tações , fºra umacºmpanhamentº de fi gurinºs . Em creança ,

imi

tava os “gestºs pretenciosos d '

al tas linhagens dealgumas das cº l leg as

de Siºn em menina e mºçaa sua linha fºra sempre cºp i ada de al guns tipºsde rºmance

,e quandº a mamã lhe fez nºtar a

necessidade de casar para satisfazer tºdºs ºs apet i t es de luxº , immedi atamente casºu

,inaugu

rando aquella grande vi da arti ficial e custosa,cºm

as sal as cºmpºstas segundº desenhºs de decºri st asing lezes , ºs vestidºs vindºs de Paris e um ar debºneca sºcial , que para sempre lhe tirara a ideade amar al guem , al ém da sua presadissima pessºa .

A grande vida um tempº fel-a mesmº esquecerquasi º maridº

,pºrque era precisº passar º car

naval em Nice,estar nº ºutonº em Paris, pas

sear ºs hºteis depravados dº Cairº nº invernº , daropiniões sºbre artistas e pintºres

,falar de viagens

e manter º seu sal㺠nº R io ,º seu sal㺠invej adº ,

criticadº , incºmparável cºmº Edmºnd Rºstand ,

º campanillo de S . Marcºs,a erºsão ing leza dº spºrt

e a graça parisiense . Fora nessa ºccasiãº'

quetomara cºmº dama de companhi a uma velhaing leza esthet a , grande cºnhecedºra de arte , quesab i a v ersºs de Mºrris de côr e se apaixºnara pelosfadºs pºrtuguezes a pºntº de acabar a vida ca i s

DENTRO DA NOITE 1 83

s i cre de hºtel nº Estºril . Laurinda tomou-a comºquem cºnsul ta um pequenº Larºusse , e as suasextraºrdinárias toi ll et es ,

º s seus adereçºs,feitºs

nº Vev ert da rua da Paz , em que as pedras bras ileiras tinham rebril hºs inedi t ºs cravadas em brilhant es , eram desenhos da velha ing leza . Grandeepºca aquella ! Epºca de excessºs

,de cºnquista

,de

triumpho . O grave Belfºrt de vez emquant º pas

mava .

Pºis que Tu agºra fumas ?

Cºm effei t º , grelha uma ci g arret a .

Mas é grºsseirº .

E'

ul tra fashiºn . N㺠sabes nada d ISSO . E'

s

º ld style .

E mºntºu um sal 㺠de banhº , em que a agua dapiscina parecia descer de um enºrme vitral representandº aval anches de neve em mºntes tudºquantº ha de mais preraphael i t a . Tºdºs ºs ºbjec

tos e utensíliºs ºbedeciam aº mºtivº algas dº fundodº mar .

Mas em breve,a victºria mundana fatigou— a .

Era precisº mais al guma cºsia . Urna Alice Verride

,senhºra entendida em adulterios mas da me

lhor sociedade ,di sse-lhe um dia

Minha cara Laurinda, precisas de um hºmem .

E'-bôa . E meu maridºO maridº n㺠cºnt a nunca , principalmente

quandº nºs faz t ºdas as vºntades . Precisas de umhomem que te preocupe , cuj a pai x㺠“ sej a um

,foi rnent para a tua vida, um ser violentº . Nuncaamaste ?

1 84 DENTRO DA NOITE

Oh ! nãºPºis é chic

,menina . Admira até que tu

,tãº

cºnhecedora deNº dia seguinte , Laurinda accºrdºu cºnv enci

di ssíma de que precisava de um amante . Sim Ella,

uma parisiense,que tinha cºmº nenhuma ºutra a

arte subtil da maqui l lage, essa admirável esthesiaatheniense herdada pºr Paris , ella ainda n㺠tinhaum amante . Que atrazº , que femme vi eux jeu

Decididamente retardava, retardava uns trintaanuos pelº menºs . E, quandº apareceu aº almoçº ,

cºm ºs ºlhºs cerne's,º gestº lasso , º lábiº rubro ,

Laurinda ºlhºu º paciente Belfºrt cºm um vagºdesprezº , tal qual as damas dºs rºmances a queuma grande pai x㺠sacóde .

Ainda n㺠tinha nenhuma . Mas viria a ter . Seri a

a ultima etapa de mundanismo e de purº sangue da.

sua já glºriºsa carreira na al ta sºciedade , teriatambem º seu rºmance . E para real i sar esse rº

mance , entre muitºs adºradºres prºfi ssi ºnaes, º

que já insistia de ha mui tº era precisamenteGuilherme . Que fazer ? Torturada pela suplica deGuilherme º maridº

, ancíandº pelº factº que lhefºsse pret extº para n㺠ir pºrque Laurinda ,sem indagar de razões

,sentia-se presa a esse dever ,

aº dever dº amºr . Afi nal , sempre se decidi ra . Maisuma vez

, ,Deus dº ceo E l á ia sem comprehenderpºrque , para a cas a á beira mar ºuvir º marulhardº ºceanº e a vºz dº Guilherme !Pºbre Guilherme Estava de certº á espera, tor

turandº as pºntas farpadas dº bigºde,chegara t al

1 86 DENTRO DA NOITE

pescºçº declarações!

de amºr respeitºsº . Era asug gest 㺠, a tentaç㺠, a Ella ouvia— º

,

marcava-lhe º logar da sua frisa para que elle cºmprasse uma pºltrºna frºnteira , dizia-lhe cºm antecedenci a ºs bai les e ºs fi ve-o-clocks que teriama sua presença . Quandº Guilherme falºu dº

grande accorde,sentiu um desej º surdº de se

negar . Ent㺠era fatalmente precisº ? O desejº fºra ,

entretantº,muitº fºrte , entontecera-a . Ella

,que

tinha º nºme nºs jºrnaes mundanos , nº livrº dascºstureiras e nº lábiº de tºda a gente

,quiz onvil-o

prºnunciadº ternamente pºr um hºmem elegante .

A curiºsidade aguçou— se . Cºmº seria emºciºnantedesmai ar , tal qual º pintam nas gravuras e nº s

rºmances ! Seria antes de tudo hi gh-l ife .

'

Gui

lherme era chi c.

Gui lherme ! que nome hºrrivel ! Mas,cºitadº

,

amava-a ,estava sempre em tºda a parte

,tinha

uma pºrç㺠de rºupas , andava a ing leza ,trotando

,

cºm ºs braços meiº abertºs , rcpart i a º cabellº aº

meiº cºmº nºs fi gurinºs , e pºssui a um encantº inedito ; limava as unhas , dava-lhe um brilhº metal icº

,incrivel

,um lustrº

,que

,quandº mºvia ºs

dedºs,parecia ter nas pºntas pal hetas de nacar .

Ah as unhas desse Guilherme

Quandº º j ºven afºrtunadº lhe “ premi a a m㺠,

º contactº env erni sadº daquel l as unhas dava-lhenum arrepiº a delicia de mai s um offertorio á suabelleza t 㺠aguda , t㺠clara, t 㺠mºderna e tãºperturbadºra . Fºra tal vez essa a unica raz㺠pºr quese entrega m á sensualidade meiº snob, meiº

DENTRO DA NO ITE 1 87

cerebral , de se sentir despir pºr aquelles peda

çºs de um vermelhº especial e lustroso , º cºn

t act º daquell as unhas art i úci aes e extra-humanas .

E nºs passeiºs , nºs banquetes , as luminosas unhasde Guilherme preºccupav am-n 'a cºmº o ºlhar inv ej oso de uma amiga, º luxº de mais uma renda , a

v º lupi a de uma j ºia , que se n㺠pºde pº ssuir senãºá custa de um enºrmeFez cºncessões a principiº

,fºi só a trechºs pºucº

frequentados cºnversar apenas,discutir ºs tenores

da cºmpanhia lyri ca e as infamies da sua roda .

Mas ,cºmº de uma feita

,elle

,de mãºs postas e

j ºelhºs em terra,sem se in

_cºmmºdar cºm a calça,

rº g asse a sua i da aº ínfal l i v el ninhº d 'amo t,ella

cedeu afi nal , incapaz de resistir pºr mais tempºNesse di a fº i meia hºra antes , e agºra , all i nº

carrº , indº ºutra vez , ainda tinha na memºria a

exasperação sensual da tarde intensa . Guilherme ,ºutrº

,rºucº

,e aquellas unhas brilhantes , coral i

sadas,que env ermelheci am mai s , que se machu

cavam desfazendº tecidºs,que tºcavam frias á sua

epiderme,luziam nas batistes cºmº carapaças de

pequenºs mºnstrºs estranhºs , para acabar empell idecendº , fcnecendº de perpassar pela sua carnecºmº fi ca sem côr um — rosto sempre vºtadº á

N aquel le mºmentº , tºda a sua alma v i

brara de um prazer cºmº nunca tivera , º prazersubti l de gºzar e desfazer º artifi ciº maximº dººutrº . Mas , desde entãº. ,

fIcára de gelº ,esfri ára,

deante da pertinacia al var daquell a paixão .

Pobre hºmem ! não se cºnt ent ara ! Antes pelº

1 88 DENTRO DA NOITE

cºntrariº,parecia furiºsº depºis dº primeirº di a .

Pedi a-lhe entrevistas a tºdas as hºras , em t ºdºsos logares

,tinha sempre nºs ºlhºs uma queixa, e

ºbri g ará-a a di as certºs Ella , uma senhºra afinal ,

achava aqui l lº brut al , uma viºlencia de quem pagae que a reduzia, que a humilhava .

Não havia duvi da amava-a . Mas issº nãºera raz㺠e plausível para tamanhºs excessºs . Cert amente era g entil esperava-a sempre cºm ºquartº flºridº . Mas , ein a vendº ,

era sempre aquellebeijº , O beij º infall iv el e a phrase

Sempre vi este cºmº te amº, Laurinda , cºmº

eu te amo

U i ! que banalidade ! Era baboso , era de ent ºr

pecer . E , pºsitivamente , estragar um di a pº r

semana . roubar-se á admiraç㺠dº prºximº paraºuvi r aquel le senhºr sºluçar queixas de amºr , pareci a atê pºucº sériº . Depois , Guilherme nem sabia ,

nem tinha prestimo para vestir uma senhºra . O s

seus vestidºs,cºmplicadºs

,cºm ligaduras diffi ceís

e ousadias de côrte,eram amarfanhados pºr elle ,

rasgadºs , e mesmº ,num di a de friº ,

cahindº dºcéu a humidade

,diante dº espelhº , Laurinda suava

de impaciencia,tantº º idi ºta custava para lhe

at acar º collete já cºm as unhas quebradas , sembrilho de se roçarem e de a apertarem .

Antes de ir para essas sessões , Laurinda vestia-selentamente cºm a dºr de saber que se i a despir ,demºrava

,imaginava afazeres

,ºlhandº º relºgio .

De repente , pºrém ,quandº j á ºs pºnteirºs passa

v am da hºra, n㺠se continha . Mandava tºcar a

1 90 DENTRO DA NOITE

branca,e mai s lentamente ainda ergueu ºs ºlhºs

tristes .

A casa estava tºtalmente fechada .

Hein? Seria pºssível ? Elle , ent㺠e de subitoº desesperº suffºcºu-a n㺠a esperava mais ?Acabara a paix㺠? Entãº

,elle tambem estava

fartº,estava cançadº ? Oh ella já enjoava , já abor

recia áquel le cidad㺠que a perseguíra dºus anuosMas ent㺠essas cºusas acabavam assim cºm apºrta fechada , na cara , na sua face ! O grosseirãoinsultava— a a ella , a ella , Laurinda Belfºrt , espºsade Sºares BelfºrtAbriu a portinhola . Sal tºn . No seu cerebrº bara

lhav am as ideas cºmº se a affronta a ensandecesse .

Em de redºr, a rua deserta modorrava . N º céu

mui tº azul,de um azul muitº clarº

,º sºl vibrava ,

e dº mar,que abria pelº espaçº um ºutrº céu ,

vinha a hum ida aragem de um dia primaveri l . Deudºus ºu tres passºs

,certi fi cou-se rang endº ºs

dentes de desesperº .

Oh era ella para seu castigº,por ter queridº

ser bºa , pºr ter pena dº infeliz , era ella quem nãºse fazia receber ! Oh ! a vida ! Quantas

"

surpresasamargas !Meteu— se ºutra vez nº carrº

,bateu a portinhola .

Ah n㺠nunca mai s estava acabadº O Sr . Gui

lherme queria º insul so , º idi ºta ? Tant º melhºrSó assim n㺠perderia mais O tempº

,ell a que tinha

tantº que fazer, que ainda n㺠fºra aº cºstureirºe t inha theatrº á nºite , j ant ar , um li ve o clock

das Teixei ra impreterivelment e as quatro e mei a !

DENTRO DA NOITE 1 9 1

Que bºm E º cretinº a pensar que a humilhava,

que a incºmmºdav a A rua dº Ouvidºr devia estaresplendi da . Si ao menos ella , Laurinda Belfºrt , nãºestivesse muitº mal ! Sempre que vinha áquel lahºrrivel casa vinha t㺠sem gºsto . O seu vestidºera de rendas brancas , sºbre um fundº de libertyverde gaio . Abriu º estoj o dº cºupé tirou um espelhº , um pompon de pó de arrºz , Vi u-se

, achºu-sebella cºm º seu chapeo que era uma rºsa debruadade uma enºrme pluma verde palli do . E,

de frºntedº espelho

, a idea de fugir á humi lhaç㺠apuºu-lhede nºvº O cerebrº . N㺠havia duvi da . Nada descenas que demºnstrem amºr . Apenas , aº encontrar º mariola uma phrase tristeAh ! meu amigº ,

fº i -me impºssivel ir hºj e !Gº sar a cara delle , negar a sua i da lá, e mesmº

que elle dissesse n㺠ter i do tambem mºstrar umar Ah ! t ºrtural — º cºm uma indi fferença calma , ignºrante , cºm al guns bocej os , atétel-º uma ultima vez e deixal -º , abandºnal -º , nãoi r mais ella

,ell a

,ella a vencedºra ! desprezar

as suas unhas,º prazer morbido de t ºcal -as , as

ah ! canal ha !Ent 㺠,

sºb essa impress㺠, Laurinda Belfºrt incl inºu-se vivamente

Jºsé,para a cidade , depressa !

O carrº tºrnºu a rºdar , emquant º , reclinada naalmºfada de seda , Laurinda tºrcendº ºs dedºs

,

sentia,pºr mais que n㺠quizesse sentir , a fal ta

daquell a hºra infame , daquell as phrases tºlas , afalta daquel l as unhas que lhe davam a renovaçãº

1 92 DENTRO DA NOITE

de uma sensaç㺠tºda cerebral , para aº menºs quebral-as mais uma vez mºrdel -as , desprezal-as . Inst inct iv amente , na immensa cºnfus㺠dºs seus desejºs, ºlhava ºs transeuntes cºm ancia, a ver se ºv i a,a ver se º encºntrava, para parar º carrº , ºu

t ºcar a tºda, ºu cumpriment al-º ,ºu fi ngir que nãº

º v i a . Sabia lá ! Mas para vel-º um mºmentº aº

menos,º pºbre diabº

,cºm ºs seus bigºdes e aquel

las unhas da côr dº nacar E nºs seus ºlhºsbrotavam

,de desesperº e de desej º

,lagrimas a

fi º, pºr n㺠ter tidº , apenas naquell e di a , º brin

quedº de um pºbre ente para tºrturar e espesinhar ,

º brinquedº abºrrecidº uma hºra

A PESTE

E de subito , um indizível pavºr prega-me aº

bancº . E ' um di a brumºsament e invernal . O azuldº céu parece tecidº de fi l amentºs de brumas . Osól cºmº que desabrºcha dentre as brumas . O ar ,

um poucº hum i dº e um pºucº cºrtante,cºngela as

mãºs,toni fica a vegetaç㺠, e º mar , que se Vê a

distancia num recantº de lºdº , tem refl exºs espelhent ºs de grandes escaras de chagas , de ºleº escorridº de feridas á superfi cie quasi inmºv el . O cheirºde desinfecç㺠e acidº pheni cº , º mºvimentº sini st rº das carrºcinhas e dºs autºmºveis galopandoe cºrrendº pela rua de máu pi zº , aquella suj eirarequeimada e manchada das cal çadas , º ar sempinga de sangue ºu supremamente indiferente dºsempregadºs da hi giene , a sinistra gal eria de carasde chºrº que ºs meus ºlhºs v㺠vendº

,põe-me nº

peitº um apressadº bater de cºraç㺠e na gargant acomº um laçº de medº . A bexiga ! a bexiga ! E '

verdade que ha uma epidemia . E eu vºu para lá,

eu vou para O isºlamentº , eu !Um mez antes ri a dessa epidemia . Para que pen

1 96 DENTRO DA NOITE

sar em mal es cruéi s , nesses males que deformamº físicº

,rºem para tºdº sempre ºu afogam a vida

em sangue pºdre ? Para que pensar ? E Franciscº ,º meu queridº Franciscº a que eu amava cºmº amelhºr coisa do mundº

,pensava tºdº º di a,

l i a ºs

jºrnaes, tºmava infºrmações . A média de casºsfat aes é de trinta pºr di a . Ella vem ahi , a vermelha ,

di zia . E já ºrg ani sára um regimen,t ºmara qui

ninº,t inha º quartº cheiº de ant i sept icº s ,

ºs bºlsºscºm pedras das farmacias para afastar º virus .

Cºitadº ! Era impressiºnant e . Eu bem lhe di zia

Mas creatura,n㺠tenhas medº . Andamºs

tºdº o di a pelas ruas , vamºs aºs theat rºs . Qualvaríºla ! Vê cºmº tºda gente ri e gºza . Deixa depreº cupações .

De manhã , pºrem , nós l i amºs juntºs , aº almºçº ,

ºs jºrnaes . Para que mentir? Havia , havia sim !A sinistra rebentava em purulenci as tºda a cidade .

Um di a em que passava pºr uma igrej a , Franciscoºuviu ºs sinºs a badalar sinistramente . Teve acuriºsidade de saber pºr quem t 㺠tristes badal avam e perguntºu a um velhº .

E ' prºmessa , meu senhºr , é para que SantºAnt ºniº n㺠mate a tºdºs nós de bexiga .

Franciscº ficou cºmº desvai rado. Ao j antarencontrou-se commigo .

Ah ! fi l hº , falta-me º apetite . Estamos perdidos . E '

impºssível lutar . Ella está ahi .

Acabas dºidº .

Ant es fez nº ºrgulhº da sua belleza .

1 98 D EN TRO DA NOIT E

indica a mºrte,a angustia , º hºrrºr , al i é impºs

sivci , e eu sentia um friº , um friºEstamºs nº pºntº terminal ;naº salta ? di z-me

º conductor , virandº ºs bancºs . Façº um esfºrçº,

sal tº . E vºu . Vºu de vagar , vºu n㺠querendº ir .

A impress㺠de fim , de ext incç㺠vi ºlenta Aquell e

recantº,aquel l e hºspital cºm ar de cºttage inglez

avi ltado pºr usinas de pºrcelana,é bem º grande

fºrnº da pest e sang rent a . Cºmº deve mºrrer genteal i , cºmº devem estar mºrrendº naquelle instante .

Desço a rua atºrdºadº , cºm um zumbidº nºs ouvidos . O mar é um vastº cºal hº de put refações ,

delºdo que se bronzeia e se esv erdinha em gosmas

reluzentes na praia mºrta . O ch㺠está tºdº sujº,

e passam carrºças da Assistencia , carrºças que vêmde lá , que para lá v aº . Quasi n㺠ha rumºr . E

'

comº se ºs transeuntes t rºuxessern rama de algodão nºs pés . Só as carrºças fazem barulhº . Equando param — como ellas param é º pavºr dever descer um mºnstrº varioloso

,desfeitº em pus ,

seguindº para a Esperº que n㺠haj a nenhuma carrºça á pºrta , precipito-me pela al am edaque sóbe aº hºspital . Vºu quasi a cºrrer , parº ápºrta de uma sala que parece escriptºriº .

O directºr ?

E'

alguma coisa de urgente ? indaga umjºvem .

E'

. E' e não é .

Vºu prev eníl-º . Sente-se . O senhºr º está

pelido .

Cªiº numa cadeira . S intº as mãºs frias . As per

DEN TRO DA NO IT E

nas tremem . Eu tenhº medº , ºh ! muitº medºE aquell e trechº de secretaria n㺠é para acalmarº dest ramb al hamentº dº s meus nervºs . Tudº ébrancº , limpº , assei adº ,

cºm º ar indiferente nasparedes nºs mºveis sem uma pºeira . Os empregados pºrem movem-se cºm a precipitaç㺠triste a

que a mºrte ºbriga ºs que fi cam . R et int ins de telephºne repi cam seguidamente nºs quatrº cantos .

Os dial ºgºs cruzam-se,dialºgºs em que as vºzes

fal am para dôres inv i ziv eís .

Mai s um doente ?

Ah ! sim ,sciente .

Qual ? N㺠ha mais lºgar . O de nºme JºséBernardi nº ? Vºu ver .

E mais adi anteOlhe , 42 5 ? Mºrreu hontem á nº i t e . Se j á

seguiu ? Já .

q uanto essas nºticias s㺠dadas á boca dºsphºnes , ha mulheres p á li das e desgrenhadas queesperam nºvas dºs seus dºentes

,ha velhºs , ha

hºmens de face desfeita,uma serie de caras em

que o mi steriº da mºrte,l á fóra ,

entre as arvºres ,

incute um apavoradº respeitº e um a sinistra revolta . Quantas mães sem fi lhºs ! Quantºs páes a

espera da certeza da mºrte dºs fi lhºs ! Quantºsfil hºs al i , apenas para tratar dº enterrº dºs quelhe deram º ser . Ella n㺠respeita idade , passa a

fºice purul enta em tudº,está l á reinandº ,

fóra , nºj ardim , entre as arv ºres , .morrº acima . Os funci ºnari ºs t êm uma delicadeza fria .

Que desej a , minha senhºra?

200 DENTRO DA N O I T E

Saber do meu fi lho . E'

39 0 .

Ha quantos dias ?H a quatro . Ainda ellas não tinham sab ido .

Foi o medico que disse . Ai ! o meu pequenoEstá de certo no pavilhão de observação . Vou

mandar ver .

Meu senhor, a minha mulherinha , diga-me

por Deus,diga—me .

ESpere , homem . Nada de barul ho .

Os ret ínt ins t elephonicos continuam . Algumasfaces não dizem nada . Estão lá sentadas , esperando , esperando , esperando . E ha marcados , marcados do terrivel mal

, q ue v ão sahir , não morreram , estarão dentro em pouco na rua com a fi sionomia torcida

,roida

,desfeita para todo o sempre .

E elle ? E Francisco ? Ficará assim ? Assim , horri

v el , E ' preciso v êl-o ! E' preciso !O rapaz volta

, faz-me um gesto,sigo-o

,dou no

gabinete do di rector , muito loiro,com a sua face

intelligente Vincada de tristeza .

Então por cá ? não teve medo ? Está com a

mão fria . Ah ! meu amigo , a apostar que não acredi tava na devastação do mal ? Pois é horrivel , éinaudito . Tenho presentemente no hospital setcentos e Vinte doentes desde a v aríola hemorrag i ca ,

que mata em horas, at é a bexiga branca que nem

sempre mata . J á não ha logares . Nunca S . Sebast i ão esteve assim . Mandei construi r á pressa maisdois pavilhões . Estou arrazado de trabalho e desolado . Afi nal , por mai s que se estej a habituado ,

sempre se tem coração para sentir a doloros a

202 DENTRO DA NO ITE

pressão muito menos dolorosa do que

Na idade—medi a , não, doutor .

Mas um nó subitaneo estrangul a—me a frase . O

funcionario voltara , dava informações baixo aodirector . O medico poz-se de pé e deante de mim

Está cá . Entrou ante— hontem . Está vivo . O

medico da enfermaria diz que ha esperanças .

Quero vel— o , doutor .

Houve uma pausa grave .

E'

vacinado ?

Sou.

Já v iu um varioloso ?

N ão .

Gosta desse rapaz ?

E' meu amigo .

O director pensou . DepoisE' melhor não vel— o . Aceite o meu conselho .

A elle nada fal ta . O senhor parece tão comovido .

Tenha esperança, va descançar . As emoções fazemmal neste periodo .

Quero vel— o,doutor , quero . E' um grande

Obsequi o que lhe fico a dever .

O di rector ainda hesitou um instante , mas deanteda minha resolução que se fazia suplica , fez umgesto e eu acompanhei o funcionario

,passei a se

cretaria,entrei no j ardim ,

comecei a subir para omorro

,onde entre as arvores erguiam-se os grandes

pavi lhões,com as redes das j anellas pintadas de

vermelho . Era al i , naquelles enormes g alpões ,'

com

j anellas forradas de tela rubra que a varíol a punha

DENT RO DA N O I T E 203

put refações e gangrenas em corpos di as ant es bons .

0 homem ia depressa , e eu arquej ava “atrás , semforças , com as t emporas batendo . Meu Deus ! Queiria ver ? Que se daria ? De repente parou , subiuuma escada . Subi tambem . Abriu uma porta detela, entrou . Entrei com elle . Abriu outra , passou .

Passei com elle . Encaminhou-se para um compart imento . Segui — o . Onde estava eu ? Sei l á ! N ãosabia Não sab i a Vi-me deante de um leito , ondeum cobertor tapava

,por completo

,um pequeno

volume . Para deante havia outros leitos cobertosde vermelhos

,outros muitos

,cobrindo a negre

gada . Certo cavalheiro indagavaQuer ver então ?Sim , senhor .

N ão é grave . Esta escapa . Mas tenha coragem !Depois , com infinito cuidado , pegou das pontas

do cobertor e foi levantando aos poucos . Fecheios olhos , abri-os , tom ei a fechal -os .

Não ha engano ?

A papeleta não erra . E' elle mesmo .

Eu tinha deante de mim um monstro .

-As facesinchadas , vermelhas e em pus , os labios lívidos ,como para rebentar em sanie . Os olhos desapareciam meio afundados em lama amarella

, já sempestanas e com as sobrancelhas comidas , as orelhas enormes . Era como si aquella face fosse queimada por dentro e estal asse em empolas e em apos

a epiderme . Quiz recuar,qui z aproximar

consegui di zer para o horror

204 DENTRO DA NOITE

Francisco , Francisco , então como vaes ?

Os labios moveram-se , e uma v oz , outra voz ,

uma voz que era outra, passou vagarosa

Ah ! és tú ?

q uanto o corpo não fazia um gesto . Era elle,

elle,sim , porque sobre a travesseira, só uma cousa

não desaparecera delle e da podridão pareciatomar um redobro de brilho a sua enorme cabelleira negra , com refl exos d 'ouro azul t int a

Então vein—me um louco desej o de chorar , umdesej o desvai rado . Fiz um vago gesto . O funcio

nario abriu—me a porta e eu sahi tropeçando , descio morro a correr quasi , entre os empregados numv aiv em constante e as macas que subiam com as

podridões . Um del irio tomava-me . As plantas , asflôres dos canteiros , o barro da encosta, as gradesde ferro do portão

,os homens

,as roupas , a rua

suj a, o recanto do mar escamoso , as arvores , pareciam atacados daquel le horror de sangue maculado e de grangena . Parei . Encarei o sol , e o pro

prio sol , na apotheose de luz , pareceu—me gangrenado e putrido . Deus do céu Eu tinha febre . Corrimais , corri daquel la cas a, daquelle laboratorio dehorror em que o africano deus selvagem da Bexiga,O baluaié , escancarava a fauce deglutindo pus .

E ati rei—me ao bonde , tremendo , tremendo , tre

H a epidemia, oh sim, ha epidemia ! E eu tenhomedo , meu amigo

,um grande , um desastrado

ULT IMA N O I T E

21 0 DENTRO DA NOITE

Mesmo al i , entregou-lhe a nota do emprestimo ,piscou O olho para outro caixeiro

,um camaradão

esse,foi até á cigarrería receber fi ado um masso

dos de carteirinha e uma cai xa de phosphoros .

Acendeu um,vagou um pouco pela atmosphera

deleteria do botequim , repleto de cambistas , devendedores de senhas , de gente que não tinha oque fazer ao lado de uns tipos de torrinha , quetrabalhavam o dia para fazer da clac á noite

,

olhou-se um instante no espelho . Estava pal lido ,

com olheiras,a barba por fazer e o seu col l arinho,

emprestado,h avia oito dias que lhe apertava o

pescoço . Sentiu uma tonteira . Fome,de certo .

Não comera desde a v espera ,e o dia anterior pas

sara-o com uma media e meio pão com manteiga ,repartido affectuosament e com o Clodomiro . Iriacomer um beef no frege .

Sai u de vagar , desceu a rua do Senado , entrounuma casa de pasto da rua do Espirito Santo

,e foi

bem para o fundo,com medo dos camaradas neces

si t ados, que talvez qui zessem repartir . O caixeiro,

um gordo,com o ventre muito grande e o nariz

rub i cundo,assentou as duas mãos na toal ha suj a ,

e desflou deante d 'elle a lista cantada das iguarias .

Um beef e um caldo verde .

O beef depois ?

Está visto .

Salta um caldo verde ! ladrou para dentro ohomem .

Armando pediu tambem v inho . Logo que o

DENTRO DA NO I TE 21 1

caldo lhe caiu no estomago , um calorsinho agradavel percorreu-lhe o corpo , e o est omago pareceu— lhe que acordava o seu bom estomago , ami goás di reitas , sem exigencias

,sem queixnmes

, umestomago que perdera a noção do j antar e doalmoço e parecia dormir-lhe nas suas entranhas .

Devorou o caldo com grossos pedaços de pão ,

devorou o beef,sorveu a meia garrafa de vinho ,

mastigou duas bananas . Oh ! Tinha fome paramuito mais ! O prºpri et ario porém não fi ava e jáera mui to aquel le j antar . Apanhou os ni ckei s dotroco

,saiu

,com as mãos no bolso , e veri ficou no

meio da rua que não tinha nada a fazer . Era umhomem

,completara vinte annos , conservara rij os

os musculos e cheia de ambições a alma . Entretanto estava alli

,na cal çada, como um trapo

, ao

deus-dará da vaga humana , sem trabalho , semmorada . Para onde iria elle , coitado ? Era ondecalhasse que havia de dormi r . Tal vez cei asse . Etal vez no di a segui nte encontras se um emprego .

Oh ! o emprego ! Quantas desi ll usões e a quantacoisa descera para arranjal -o ! Lembrou-se de queuma grande influencia politica, um senador

,

"

olhandm muito intimamente,dissera-lhe

Veremos , ainda se pôdeAi nda se pôde ! Armando sorriu . Ora se ainda !Os seus orgulhos , e sua altivez , a noção de honra,de hombridade,

de vergonha tinham naquell es

quatro mezes de miseria se adelgaçado assaz . Tudoé tão relativo neste mundo Quando está a roupano fi o e o estomago vazio está ,

t ira-se parti do

21 2 DENTRO DA NOITE

mesmo do que nos repugna ao menos para j antar.E elle

,perdendo a côr da face , impondo ainda o

seu tipo sensual de adolescente , entrava em intimidades perigosas , arranj ava pequenas l adroeirasmais perigosas que grandes roubos , metia— se emhi storias inconfessav ei s , e lentamente , cada di a ,

descia mais .

Aqui llo acontecera a tantos Ell e vi era da terraremetido a um t io padre que vivia em mancebiacom uma cabrocha gorda para os lados da Penha .

Era forte, ai roso e com essa sensualidade á fl ôr da

pél le que só têm os homens de Portugal . Porcausa da cabrocha o tio despachara— o para uma

taberna na cidade . Elle ia indo bem e assim passoudois annos . Mas um di a uns camaradas lembraramir ao theat ro , a uma grande revista de certacompanhia portugueza . Foi , de terno novo ,

comum ramo de violetas á l apell a . Nunca vi ra umtheat ro . Apaixonou-se por todas as mulheres , começou logo a considerar os com icos grandeshomens . Nessa noite esperou a saida dos artistas .

No di a seguinte , apezar de tomar conta da taberna ,

às onze horas sai u pé ante pé para não acordar osoutros

,bateu a porta e voltou ao theat ro . Como

não tivessem percebido a sua fugida,todas as

noites deu para fazer o mesmo . Estava de dia acair de somno mas j á conhecia os coristas

,j á

dizia a sua p i ada ás coristas , j á o porteiro dacai xa lhe pedira dinheiro para O deixar passar ,e uma art ista , a Et elvina Soares , uma de pernasgrossas , já lhe passara duas cadeiras de benefício .

21 4 DENTRO DA N O I T E

cata de dinheiro,amoldando-se ainda mai s á

infami a , aos desej os misteriosos , ás pandegas dasnoites . Por ultimo era aqui l lo sujo ,

com fome ,sem ter onde dormir

,e entretanto jul gando — se

mais do que fora antes , jul gando — se mais , reagindocontra um a resolução que o fizesse mandar buscarpelos paes ou de novo O pozesse a trabal har . Quevida !Armando parou a porta de um botequim numa

roda de actores principiantes,de contra— regras ,

de fi gur antes . H a sujei t inhos lavados , bem comoos coristas , ha tipos em mangas de camisa , hatambem est omagos v as ios . São conhecimentos dasnoites passadas em claro nos cafés— bilhare s , nasbaiucas fet i das de j ogo . Armando olha um suj eitode grosso bengalão é o chefe da claque . Cumprimenta-o, fall a-lhe.

N ão tem disso,não Fomente— se

Mas é bom, dá-lhe uma senha . De posse da

entrada, o rapaz põe — se logo a andar,emb arafust a

pelo theat ro,atravessa o j ardi m sem ver ni nguem ,

entra na cai xa, sóbe uma estreita escada de quatroou cinco degráos , atravessa um monte de scenarios velhos , que de vez em quando saem dapoeira lethargica para um espectacul o de arromba .

Vira a esquerda,passa pelo panno do fundo

para a carreira de camarins das not abi l idades ,

sóbe outra escada, dá em meia duzia de bri coet es .

Armando abre um . E o do actor Espinola . Quemé o Espínola ?Ninguem sabe . O Espínola foi commerciante ,

DENT RO DA NOIT E 21 5

apai xonou-se pelo theatro, passou miserias at rozes ,e vive agora de fazer pontas com cento e cincoentamil réis por mez . E' tími do , é assustadiço , e tempiedade pelos outros .

Então que ha ?

Parece que a companhia di

ssolve .

E,

o di abo . Vamos para o interior ? Com quem ?

Um pequeno grupo .

Espínola pinta-se mal e dá informações . Com os

olhos queimados , a face oleosa pela falta de re

pouso , Armando ouve-o . Lá em bai xo tocam umgrande sino . Vai começar . Espinola sai . A rmandodiminue a luz do gaz

,tira o cas aco e deita-se na

mal a . Dormi r , não pensar , dormir Edorme

,dorme um somno mao , fatigante , inter

rompido pelas entradas do Espínola, cortado detoques de sino

,de ínferneíras de mul heres

,de

gritos , de musicas . Faz no camarim uma temperatura de caldeira . Afinal , a meia noite , E spínolaacorda— o . Terminou o espectaculo . Armando lavaa cara , pentei a o cabello ,

prepara— se, saem os dous

de vagar . Espínola não tem amantes , e por umaevidente infelicidade Armando não arranjounenhuma . Tomam cafe no largo do Rocio . O bomEspínola

,que habita um commodo com mais cmco

pessoas,despede— se . Armando , só , sem coragem

,

volta de novo ao botequi m onde ganhou dez tost ões . Ha como elle outros rapazas , ha coristas , hatipos reles . A 's vezes fazem — se pandegas . Masnaquel la noite i r amanhecer no Leme Ou no Mercado ? N ão, nãO

'

ê possível .

21 6 DEN TRO DA NOITE

Os botequins v ão fechando , rareia o transito .

Passa de vez em quando um bonde . Aparecem osvarredores da Limpeza Publ ica , numa nuvem suf

focante de poeira: Armando está ai nda a esqui na,

mastigando a ponta do cigarro . E vê então que haluar . A lua cheia, muito langui da e mui to pal l ida,estende pela cas ari a a poesi a misteriosa da sualuz . Oh ! a velha lua ! Como consola os tristes e osdesgraçados ! Armando v ai indo a pé, olhando oceo ,olhando a lua . Desce as ruelas escuras , dá

no gradil do campo de Sant'

Anna,rescendent e de

aromas si lvestres . Tudo é calmo , tudo é docemente qui eto . A brisa leve embal a os ramos dasarvores num suave perpassar ,. e do alto , amplo ,

como uma amphora de consolo e bemav enturança ,

O astro derrama a delicia tranqui lla do seu esplendor. N ão poder sal tar aquel le gradil , entender-sena relva, offert ar-se a lua numa longa hora dechoro e de D óe— lhe tanto o estomago !Vai até a Central , já com os fócos apagados . H a

uma negra vendendo mingao para uma roda denoct ambulos marinheiros e soldados ebrios , fuâasde g alhi nho de arruda e chinel las , suj eitos ambi

guos de cal ça bal ão . Pal avrões choviam . A negralavava a louça

,e ao seu lado um canzarrão cin

zento , com vestigios de lepra, roncava . Um mo

mento hesitou . Tomaria o ming áo?Mas a viagem ?

N ão ! Era melhor dormir , dormi r tranquill o . Eu

trou,cami nhou até ao saguão , foi até ao embar

cadouro . N o saguão havia o vig ia a dormir . Na

gare, um caval heiro passeava de vagar com uma

21 8 DENTRO DA NOITE

Tinha que ser . Tal vez al guns tivessem ainda apensão do j antar . Elle sim , elle é que longe dafamili a

,longe da sua terra , sem auxí l ios

,descia a

rampa da vida certo de encontrar o abismo, mas

incapaz de soltar um grito por falta de coragem,

por fal ta de energia, porque tinha de Um so

luço sacudiu— lhe o peito . Para occul t ar as lagrimas,

puxou as abas do chapeo , virou o rosto . O tremcontinuava a galopar , sacolejando os corpos . Oscampos inundados de luar passavam numa visãobranca . E,

de repente,Armando sentiu um bem

estar . Ia caminho da casa, tinha menos quatroannos . E ra tarde , o pai ral haria, mas a mãisinhalá estava á espera

,com o fogareiro de espírito

,para

aquentar o café .

Boa noite , mãi .Meu fi l ho , bai xo . Olha teu pai . Por que veiu

assim t ão tarde ? E suado , com este frio da noite ! Não v ás apanhar uma constipação .

Oh a sua mãisinha . Então sentava— se , contavalhe tudo

,o sonho que tivera, o seu abandono , as

dormidas ao relento , as ínfami as , os engates nojogo

,tudo por máMá cabeça tua, meu fi lho . Mas tu tens tua

mai . Vai dormir , anda, vai descansar . De scansaque eu te arranjo tudo . Não ha pedido de mãi queDeus não ouça.

Então elle sentia— se ainda mai s pequeno , cheiode vontades . Queria uma roupa nova, um par debotas , chocolate . Gostava tanto de chocolate Ellepedia, ella promet t i a chorando . E assim os dous,

DENTRO DA NO ITE 21 9

a velha é que o deitava, que o cobria com a colchaHmm.

Dorme,meu fi l ho , dorme .

E elle dormia,dormia t ão b em na sua cama, ao

lado de sua mãi , na sua casa dormia bem mesmo ,mui to

,sentindo o prazer indi zível de estar dor

mindo .

De repente , porêm, sentiu um estado no ouvido .

Acordou . O v agon estava cheio . E ra demadrugada .

O trem voltava cheio de operarios . Amanhã nascialavada e cor de perola . Os art ífi ces bulhentostinham resolvido acordal -o ,

e um da roda, todo agingar

,com ar de desafi o e de troça , batia— lhe

palmas junto ao ouvido .

Armando ergueu— se,encarou-o .

Estou incommodando,cidadão ? chal aceou o

outro .

O pobre rapaz recalcou a colera,sorriu .

Não , at é me fez Tirou-me um sonhoE foi para a plataforma do v agon olhar os

ultimos vestígios de uma das suas noites . Que haviade fazer agora? O mesmo que fi zera antes , a mesmami seria , amesma infamia, o mesmo horror . NossaSenhora ! Mas não haveria meio de ganhar a vida ,de comer

,de dormir

,de viver? Não haveria quem

tivesse piedade da sua atrozSentou-se na escadinha

,acabado . O trem con

t inuav a a galopar pelos campos dourados do solnascente . A natureza abri a em fl or

,ao beij o da

madrugada . Uma corrente pendi a entre o vagouem que estava e o outro v agon . Inconscientemente

220 DENTRO DA NOITE

est endeu a mão . Seria tão interessante peg al -a .

Mas custava . Tudo no mundo custa . Estendeumai s o corpo , quasi deitado , estendeu mais . Ocorpo fal seou , pendeu . Qui z salvar— se , numa subit ae desesperada angustia . Com os pés enl açados nagrade

,ainda conseguiu prender as mãos nos para

choques . Mas um solavanco desprendeu-o . O corpocaiu . As rodas do outro v agon esmigal haram qualquer cousa . O trem continuou na luminosidade damanhã . E ninguem do trem reparou naquel le fim devida tão desconsolada, sob o calor do sol que come

çav a o

UMA MULH E R EXC E PC l ONAL

Está a brincarSerio . E'

írrev og av el . Preciso um pouco d'ar ,um pouco de descanço

,de repouso

,de socego . A

Vida desta cidade ataca-me muito os

Era no sal ão de I rêne de Souza, o sal ão em quea esplendida actriz fundi ra o conforta inglez como luxo do antigo

,espalhando entre os di vans fartos

da casa Mapple , bergeres mai s ou menos authent i

cas do secul o XV III , contadores do tempo de Carlos V , e por cima das mesas ,

por cima dos moveis ,nos porta—bugigangas de luxo , marfi ns ori ent aes,esmaltes arabes

,estatuetas raras , photographi as

com dedi catorias not av ei s . Irene de pé, deante dasecretária

,sorria, estendendo-me as duas mãos

fi nas,nervosas ,

emquanto os seus dois grandesolhos ardiam mai s loucos e mai s passionaes.

Irene de Souza ! Que legenda e que belleza ! Osseus inimigos asseguravam—na apanhada comocreada de servir perto de um quartel para os ladosde S . Christovão outros diziam— na filha de uma

familia muito di st inct a do Sul . Ao certo porém nin

224 DENTRO DA NOITE

guem sabi a senão aquella aparição brusca no theatro

,bella como a Venus de Medi cis , a arrastar nos

decadentes tablados cariocas vestidos de muitosbilhetes de mil

,creados pelo Paqui n e pelo Ruff.

Não era uma pequena qual quer . Era a bella Irenede Souza que queria ser a boa, a humilde , a sim

pathi ca , a talentosa Irene . A crí t ica fôra j antar asua vi lla de Copacabana

,onde Irene

, ao nascerdo sól , num reg imem essencialmente sportivo

,fazia

duas horas de b ícyclet a e sessenta minutos de nata

ção . E a critica suportara O seu companheiro Agostinho Azambuj a, empreiteiro ,

rico,cas ado ; a crí

tica elogiara Irene,e de chofre todas as actrizes ,

todos os cabot inos sentiram-se dimi nuí dos lendono cartaz , em grossas letras

,o nome de I rêne en

vedette,de Irene repentinamente footlz

'

ght . Ella cont inuav a tão boa porém

,tão amiga

,t ão simples ,

t ão Tão séria ? Deram— lhe todos os amantesimagi nav eis em v ão

,e por vingança afi rmaram que

os seus dentes como os seus sapatos eram feitos emPariz , emprestaram-lhe ínst inctos perversos , e foicelebre a frase de um jornal ist ínha desprezadoDe pé é a Venus de Medicis

,deitada é a Venus

Androgina . Mas Irene mostrava o claro fio da dent adura com uma despreocupação t al , tratava t ãocamararíament e os homens que a calumnia tombou.

De resto Agostinho Azambuj a tinha uma confiança muito elegante . A lenda era que esse homemvulgar, possuido de uma pai xão devoradora, agarrauma pobre rapariga no mais réles al couce e fizera— a

226 DENTRO DA, NOITE

camarim,forrado de seda côr de rosa , faziam— se

comment arios .

Mas não ama o velho Agostinho ?Está claro que não o posso amar como ]u

lieta a Romeu . H a uma grande di ferença de idades .

Mas respeito-o e sou-lhe grata . E' quanto basta .

E i s a razão por que resisti a princípio e hoj e souinvulnerav el .

Francamente ?Deve comprehender que seria mui to parva

se fosse perturbar a mi nha Vida e a bell eza quevocês proclamam com uma paixão . Ora só a paixãopoderia influir . Essa não vem

,não vem , e não virá

nunca . Conheço os homens .

De facto , tinha razão . Como o seu sorriso tornava— se cortante , as narinas palpitavam e com o

seu ar de Diana à caça , el la permet i a— se abraços ebeij os com as companheiras , mais fal sas que a

onda,logo se formou irrevog av el a legenda .

I rene ? Amantes A I rene procuraalguem de quem o Azambuj a não tenha ciumes .

Lembrar— te da frase do Gomide ?"

?A legenda foi mesmo tão espal hada que sub i t asternuras apareceram , e al gun s camarotes eraminsistentemente ocupados pelas mesmas damas nasnoites das suas representações

,e varios convites

surgiram para tel— a na companhia de senhoras bemcotadas .

É'

s uma creatura imperfeita, di sse — lhe eu um

Por que?

DENTRO DA NOITE 227

Porque não amas o amor . Lembra— te dosversos do Poeta

Que os v ossos corações aprendam a v i v er,

Amando o amor,am ando a perfe i ção,

A perfe i ção da alma que nos t raz o prazer

Supremo e a suprema I l lusão

Ell a suspirou,tristemente .

Se é assim? Que hei de eu fazer ? Mas queromantico , Deus !E todos nós , j antando nas suas pratas , escre

vendo a respeito do seu tal ento , tínhamos aceitadoo caso como defi nitivo . Até Irene mesmo

,mos

t rando predi leções excessivas , parecia soceg ar coma exquisita calumnia e mostrava uma alegria

,uma

immensa satisfação na vida . De modo que aquellapartida brusca

,após o seu ul timo successo agra

davel numa comedi a ing leza,era de desnortear . Ao

saber a resolução pelo velho Azambuj a na rua , eutomara um tilbury

,interessado como deante da

sai da de um mini stro,e estava al i , interrogando-a,

no meio da desordem do sal ão , onde havia mal as ,chapéus

,plumas

,e um intenso cheiro de helio

tropo .

Mas por que partir Irene ?Porque é preciso .

Uma briga com o Azambuj a ? N ão ? Aquel leataque da Suzanna Serny ? Tambem não? Então ?

Querem ver que afi nal tem uma paixão ?

Irene sorriu,no seu kimono rosa, guarnecido de

uma leve renda antiga.

228 DENTRO DA NOITE

Paixão ? Sabe o que estava a fazer, quandoentrou ? Estava a limpar a secretária, a rasgardeclarações amorosas e a at i ral -as para este cesto .

Tudo quanto está vendo nesta secretária, tudoquanto vê neste cesto é paixãoRecuei assombrado . Nunca tinha visto tanta

paixão reunida e um sorriso tão destruidor noslabios de Irene .

Oh ! não se assuste ! Essa paixão eé uma dasfaces do meu amor aotheat ro . O Azambuj a sabee , ás vezes , lê as cartas commigo . Guardo os arti

gos de jornal num album e a chamma amorosa nasecretária . Algumas ainda não li , mas foi por faltade

Cruel !Oh ! E'

l á possível ler tudo quanto a tol icehumana escreve ? Recebo as cartas de bom humorporque é impossivel zangar

,e acabo conside

rando — as a homenagem anonima, uma especie depalmas num theat ro cheio . Quer lel— as ?Uma anciedade invadiu—me .

Irene , nunca amou? Francamente ? Posso lertodas , todas ?Todas , fez ella . Sem receio . Divirt a-se ! Eu

vou mandar fazer um pouco de chá , feito da flor,enviado di rectamente da China para um inglez ricoque me adorou em vão .

Ergueu— se . Houve um deslocamento de perfumes . A meus pés o cesto abria a fauce abarro

tada ; diante das mi nhas mãos a secretária escan

cat ava-se . Hesitei , olhei a— a, não resisti .

230 DENTRO DA NOITE

futura,pedidos de uma humildade de rafeiro , ag o

nias com erros de portuguez , maximas idiotas egenerosas A amizade da mul her tem um encantomais suave do que a do homem é activa, v ig ílante terna e duravel ! graças nev ral g i cas depal haço amoroso . Deus ! O amor , que dolorosa

eu não sei porque um nervosismo incomprehensi v el fazia—me trêmulos os dedos , eu procurava com ancia

,humilhado , espezinhado ,

comose fosse responsavel por todas as sandices do meu

fraco sexo .

A carta anonima é as vezes melhor que acarta de amor !

Sabe que teve um pensamento ?

Como os que acabou de ler?Não

,um pensamento diamantino .

Pois venha tomar chá .

A criada servia,com effei to ,

o chá num lindotête — à-tête de porcelana com guarnições en

vermei l le. A encantadora Irene parara ; os seusolhos pareciam levemente inquietos . Eu continuava a remexer a secretária . Uma das missivasera enorme . Abri-a . Peço a V . Ex . que me perdõea ousadia

,e, g enufi exo ,

reclamo o seu carinho paraos queíxumes de um coração soffredor. Não seifazer poesia

,sou immensamente avesso ás flores de

rethorica e supponho que não me igualarei ao gorgeio dos rouxínóes ou às azas das borboletas inquietas . .

Basta ! Bast a ! fez Irene , tapando os ouvidos .E

'

a paixão

DENTRO DA NOITE 23 1

Venha antes tomar chá . Olhe a frase deIbsen

,na Comedi a doAmor O amor é como o chá .

Beb amol -o !

Ah ! minha querida ! Como os homens são

diotas ! Essa mania de escrever cartas d '

amor é

bem o simptoma de inferioridade . Se elles soubessem o fim das suas letras e o pouco caso qued 'ellas fazem as mulheres . Ainda não tive amanteque com ella não rasgasse as cartas dos que metinham precedi do .

Era uma afirmação de que pelo menos nomomento não o enganavam .

Quem sabe ?Ella sorria com a chavena na mão . Era real

mente bella . Toda de rosa,naquel le kimono de

seda , lembrava uma flor maravilhosa, uma fl orde lenda

,ínaccessiv el aos mort aes . Eu comprehen

dia a futilidade , a tolice,a mi seri a lamentavel dos

homens , diante da seducção de Venus Vingadora ,daVenus que não se entregara nunca, e era honesta.sem amantes

,sem crimes , sem

Mas porque ía ella para a Europa ? Porque mehumilhav a com aquella intimidade de correspondeneia aberta? Por que? Os meus dedos encont raram uma gaveta . Abri — a . Nunca a linda I rênede Souza amára um homem ! Era honesta, era oPolo do desej o ! Ah ! varias cartas . Apanheuma ao acaso . Umsello itali ano . Tirei-a do inv olucro Cruel . H ei de matar-te se alguma vez teencontrar a geito . N ão me qui zeste e eu peno , penoha cinco anuos . Conto que ainda hei de ver o teu

32 DENTRO DA NOITE

sorriso indi Herent e ,6 8 ,

O 8 , oitavo do seculo , nomesmo lugar . PrecisoNão continuei .E olhe que tem tambem um doido .

Palavra?Um sujeito que está na Ital i a, ao que parece .

Fala do numero 8 ,chama-a cruel .

E eu que ainda não tinha lido Com eHeíto .

E' curioso . E assigna— se Cezar ! N ão faz collecção

de sellos ? A phil athel i a está em moda .

Como todas as parvoíces ínoffensív as . Aindal á não cheguei .Depois , parei . Ella estava preccupada, séria,

um tanto fria talvez . Decidi damente aborrecia a

bell a Irene de Souza . E era de comprehender . I rêne

preparava a sua partida, desej ava estar só . Cur

v ei —me .

Adeus , então . Sej a mai s humana l á fôra .

Eu? Com os espias e as agencias de informação pagas pelo Azambuj a? Da ul tima vez queestive em Paris

,Azambuj a mostrou-me um dos

si er tão c0 píozo que eu pensei no Affaíre D reyffus .

Qual , meu amigo , sou invulnerav el . E rindo ale

g remente já se vê que pourSahi varado

,porque afi nal não ha nada mai s

impertinente do que encontrar realmente honestauma mulher que não tem o direito de o ser, e indopela Avenida Beira Mar a matutar naquel l a creatura excepcional encontrei o velho ]

'ustino Pereira ,a passear tambem .

Poesia?

234 DENTRO DA NOITE

tivo d '

aquel la emoção , sem saber que como umimbecil eu tivera a carta na mãoEstás apaixonado ? Contrariei— te ? Todas as

mulheres são excepcionaes quando se lhes querprestar atenção . Mas no mundo não ha um a quenão tenha um segredo simples

,que lhe mostra

reverso inteiramente di verso daE desatou a rir emquanto eu esforçava—me por

fazer o mesmo .

A MA I S E STRANHA MOLE ST I A

A Afrani o Peixot o.

238 DENTRO DA NOITE

de _uma mul t ícôr galeria de mulheres , a theoriainfi nita do femi nino para todos os generos pequenas Operarias , cocottes not av ei s, senhoras de dist inção,

meninas casadei ras , simples apanhadorasd

'

amor. As sombras, a principio de um azul furfu

reaceo,depois de um cinza espesso

,í am pregui ço

sament e espalhando o velludo da noite na silhuetaem perspectiva das grandes fachadas . A

' beira dascal çadas , a pouco e p ouco os pingos de gaz doscombustores formavam uma tríplice candelaria depequenos focos

,longos rosarios de contas ardentes

,

e era aqui o estral ejamento surdo das lampadaselectricas de um estabelecimento mais adiante

,

o incendio das montras faiscantes , de espaço a

espaço as roset as como talhadas em vestes d'

Arle

quins dos cinematog raphos , brazonando de pedrarias irradi antes as fachadas . Ah ! os contos defadas que são as cidades ! O s meus olhos se fIxavam na confusão mi rionima das cores , Vendo em

cada roseta um kal ei doscopio, sentindo em cadat abolet a o sonho postiço de um thesouro de Golconda

, a escorrer para a semi-opacidade da noitecascatas de rubis

,lagrimas de esmeraldas

,re

fl exos cegadores de saphi ras, espelhamentos al des

de topazios, e eu recordava outras cidades , outrascasas

,o eterno boul evard , suprema orchest ração

do bom gosto urbano . Que fazer? Os meus olhosdescançaram na mul tidão.

Algum t eempo depois , reconheci , como tendoperdi do alguma coisa

,os olhos a procura , o nariz

ao v ento , o delicado Oscar Flores, um ente muito

DENTRO DA NOITE 239

fino,muito sensível , do qual diziam horrores e

que de resto parecia ter nalma um fatigante se

gredo . O s segredos fizeram— se para ser contados .

Tudo vae de occasião . Que estaria Oscar Flores,

com a sua palidez e as suas lindas mãos, a proeu

rar assim ? Esperei al guns minutos olhando a verse v i a a causa d '

aquel la afi i cção e por fim ,quando

o j ovem se resolv ia a continuar,chamei—o rui do

sament e . Ell e voltou— se,como se fosse apanhado

em fl agrante . Estava visivelmente contrariado .

Vem d 'ahi tomar um aperitivo .

N ão,obrigado . Tenho que fazer .

Pois se já perdeste a pessoa a quem acom

Viste ? fez ainda mais pali do .

V i , isto é soceg a Vi que procuravasalguem .

Elle teve um suspiro,deixou— se cair na cadeira

Já agora tomava um cock— tail . O seu caso porémera outro . E fechou-se num silencio nervoso

,cor

tado de sobresaltos, alhei ado demim o seu habi

tual silencio em todas as rodas , como semprea espera de um signal mi sterioso para partir e desaparecer . Olhei-o então com vagar . E ra encantado

li ndo com o seu ar de adolescente de Veroa pelle morena

,o negro cabello annel ado .

devia ser feliz assim rico e bello ,com a sua

o de turqueza , a gravata presa dea attitude inquieta de um prinradiante

,o Oscar Flores ! E fala

2ÍI O DENTR O DA NOITE

v am tanto mal d 'elle ! Disse — lhe , ínt imo e contidenci al

Então , Oscar , onde estás ? E' por isso que te

Ah ! tornou sorrindo,ainda falam de mim ?

Cada vez mais . É s o ! ei t-mati z) da falta deassumpto . De resto ha sempre na v óz do povo umpouco de razão . Estou a acreditar que realmentetens um segredo . Ora os segredos deixam— se paraas mul heres e para os homens sem interesse

,os

homens vul gares

Mas não tenho segredos,protestou cansado .

Tenho apenas a mais estranha molestia nervosaque ninguem sabe . Curioso , ein? Deante de mimtoda a gente sente a anormal idade

,outra esphera ,

outra vibração . Que será? Os mais espessos edessa espessura intelectual se faz a ºpinião damas sapensam logo nas degenerações normaes, no

centro das loucuras que é a cidade . E não é nadadisso

,é outra coisa é a minha molestia . A exi s

t enci a concentro — a nella, no desej o de domal -a ena irresistível vontade de sat isfazel — a . Tenho estudado

,tenho lido , tenho feito observações a ver se

encontro outro tipo igual . Absolutamente impos

Tomou um golo de cock-tai l com evidente prazer

,sorriu mai s acalmado .

Todos pensam que é um segredo porque ninguem imagina . E eu soffro desde creança . A princípio , na mai s tenra idade , apareceu como escan

242 DENTRO DA NOITE

Esse t eu desequilíbrio é de facto de uma psichologia muito subtil

,muito trabalhada .

Oscar teve um gesto de impacienci a .

Quando digo ! E' tão inverosímel que nin

guem acreditaria . Entretanto tens deante de ti Ohomem que anal ysa o seu tormento e não lheresiste . Sabes que é o senti do soberano ? O 0 1

phato, apenas o olphato . Sou como o escravo o

erg astul ado do chei ro . Tudo é cheiro . E ' o che1roque gui a ,

repele,attrae

,repugna

,o cheiro é o con

ducto; das almas . As nossas impressões são fi l hasdo cheiro que actua como a luz e muito maisporque ha cegos e não ha ser vivo que não respiree não sinta o chei ro . O cheiro plasma , porque estáno ambiente . Os caracteres dos homens são feitosde essencias

,as profi ssões dão aos entes certos e

determinados cheiros . Vive oito di as numa casa deperfumes ou no boudoi r de uma mul her galante , eas tuas ideas tomam o aspecto de ideas com pód

'

arroz,de ideas efeminadas

,made expressely para

uma certa roda pueril . Sente o cheiro dos marinheiros

,com o cheiro do mar e tres ou quatro esca

las de cheiros de oleos refrescados pela V iraçãolarga . Um homem sensivel não pôde viver muitotempo nesses logares porque o cheiro permanentedá — lhe como uma continui dade da visão oceani cae um estado trepidante que lembra a vagabunda

gem de grandes navi os por mares ignotos . A almados entes revela ! se pelo cheiro . A das coisas tambem

, só pelo cheiro . Conheço os interiores das casas ,o genero

,a cl asse das pessoas que as habitam pelo

DENTRO DA NOITE 243

cheiro , como de olhos fechados dir-te— ei casavazia apenas aspirando — a . Posso mesmo di zer— teque cada cidade tem um cheiro proprio , e que euos sinto ao aproximar-me , ao saltar no desembarcadouro,

cheiros que conseguem dar a impressãogeral dos habitantes , cheiros honestos, cheirosvoluptuosos, cheiros de

Mas , realmente , é delicioso .

E'

at róz .

A hi peracui dade de um senti do dirigi da comesthet ica . E

i

s o homem dos perfumes .

N ão me fales de perfumes , do perfume coma signi fi cação normal de extracto fabricado parao mercado . E ' outra coisa . Sou a víctima do cheiro .

Para mim não ha cheiro s repugnantes , ha cheirosdesagradav ei s . Tenho a sensualidade dos cheirosos mais di versos , do cheiro da terra, do cheiro daherva, do cheiro dos est abulos e do cheiro dasrosas . Como comecei a soffrer desse desenvolvimento parox ismado do sentido olfativo ? Seilá ! N ão foi o perfume , foi a extensão vastados cheiros que não são perfumes , Em creança,

ant es de levar qualquer gul odi ce a boca , inst inct iv ament e cheirava-a d

'

olhos cerrados, parasentir bem e prelibar deliciosamente o prazerde degust al

-a . Depois,quando me t omavam

ao cólo, ao bei j ar —me , achava sempre meio de

cheirar, de aspirar as pessoas agradaveis . Cada

p essoa tem um cheiro diverso . Na minha infanciaa perversão sel —o-á de facto? surgiu ensi

244 DENTR O DA NOITE

nando—me todo o pecado . Gostei da carne porquecada nuca é um pouco do olor da natureza

,e ha

bocas que são como orchest rações de odores . Ah !esse tempo ai nda ingenuo , esse tempo ínst inct ív o .

Eu me envolvia nas roupas brancas que as rapari g asjá t inham usado ,pendi a para ascabell eíras com

tal ancia aspiradora, tinha uns modos tão pouconormaes que a famí l i a se assustava e as raparigasachavam uma infini ta graça . Ah ! que pequenovicioso Ellas diziam convencidas de que eu gostava apenas do cheiro das suas roupas . Não era ,

porém . A mi nha nerv iose olfativa se accentuavacada vez mais

,cada di a mai s com caracter desa

bridament e sensual , e já rapazola, não distinguiao que me poderia conceder o prazer a hervamolhada

,o cheiro dos est abulos, um cheiro de

nuca,um cheiro de corpo , e já começava a sentir

as cruciantes necessidades de certos cheiros,que

eram tão violentas quanto a fome ou o amor . Entãoera preciso alhei ar—me , deixar a roda dos conhe

eidos,sair por ahi , a ver se descobria o cheiro que

eu precisava,o cheiro que não sabia qual era

,mas

devia t ranquili sar—me .

Tinhas a obcessão de um cheiro nuncasentido ?

Exactamente . Ai nda era romantico e até aosdezoito anuos tentei com -um pouco de literaturae alguns conhecimentos chimi cos, o prazer dos perfumes , dos cheiros art ífici aes . Arranjei catal ogos ,estudei longamente

,tive baterias de perfumes em

frascos de chri stal , fiz como todo suj eito lido em

246 DENTR O DA NO ITE

morno,com uma alma de serralho e de mel por

aspirar um frasco de essencia de rosas . Esses perfumes entravam—me no craneo como estofos bordados de pedraria, como broqueis encrust ados degemmas coruscant es . Deixavam—me sonambul ico,

com frases de antifonario e sonhos de rosas deChraz , de Kernar, de Kashmir . Vi então que. aminha doença não amava as concentrações maisou menos industri aes .

Príncipe Encantador, havia asSim , as flores , amei as flores , tateando na

sombra do mal . As flores são as caçoulas dos perfumes naturaes . A natureza condensa nellas o olordas suas paixões , a alma dos seus desej os , as recordações de tonturas , de frenes

'

i s ou de grandes repousos celestes . N ão sorrias . O que eu sinto não o

di zem palavras . E , preciso descobrir frases prismaticas como certos christ aes e vel-as a luz dosentimento , que percebe para além das coisas viziveis . Os deuses gostavam de perfumes ; o perfumeexhorta e exal ta . Porque l i song ear os deuses comperfumes , se não tivessemos a idea do sacrifi cio ,

do

grande pecado da natureza, que elle representa?H a flores cuj o perfume é cínico,

outras cuj o cheiroé banal , outras cuj o olor se celest isa,

outras ai ndaque nos dão desesperos de carne . E ' possivel tera lapel l a uma gardenia sem sentir cephal algiashoras depois ? E ' possivel cheirar certas rosas semodi al-as ?

Mas , meu querido,procuras apenas pret exto

para di zer coisas infantilmente interessantes. Olha.

DENTRO DA NOITE 247

que antes de t i outros esthet as Odi aras rosas

Sim ! odi al —

as . H a flores carnudas , as rosasrosas , as rubro negro como sangue coagulado , quea gente aspira , absorve o odor

,cheira

,cheira

,e

depois estraçal ha com odio porque prometemmais do que dão

,porque deixam em meio o gozo ,

não nos completam o prazer annunci adopelo cheiro .

Ah ! essa aíi i ção que dá aos sentidos o cheiro dealgumas fi ores

,as violetas

,cuj as emanações são

como sons de violino em noites de luar, as tuberosas

,crispantes de scio , as rosas chá que cheiram

como carnes morenas , o reseda, a fi ôr do resedaque o Fezensac cantou idiota mente num trocadilhoe que entretanto guardam um frio ea perant e

odor de germen fecundante , cheiro de marfim ras

E,para notares a correspondencia de cheiros

ident icos nas coisas mai s di versas , a íi ôr que cheiraa marfim

,é tambem , cheiro resumo do cheiro ini

cial da vida, irmão odor do odor da semente creadora

,estranhamente perd ido entre as

Oscar cahi ra num abatimento . Eu começava a

t emer o delirio .

Então, se não amas os perfumes que te fazemmal , se Odeias as flores que te exasperam, em que

consiste o desproporcional domínio do olfatosobre os teus sentidos ? E' de certo um estadod

'

anemi a , uma grande fraqueza que te adoece ete faz sensível aos odores . N ão amas os cheiros ,temes todos os cheiros desde que elles se especiali sam, se indi v iduali sam.

248 DEN TRO DA NOITE

Ao contrario , fez , de novo animado , ao cont rario . Tenho entre m im e a vida comum um comov eo de t al ag arça espessa . E tudo quanto na vidase faz

,eu sinto pelo cheiro

,pelos cheiros

,como um

seter humano,amarrado a corrente da conv e

níencía . E' a existencia de miragem olfativa,uma

existencia em que os cheiros visionam ambientes,

descrevem as almas dos tipos que me rodeiam ,

dão —me sensações de côr,porque ha odores de todas

as cores ; de sons , de musicas , porque cada cheiroé como um som diverso e o cheiro da baunilha ébem uma nota abemol ada di versa do cheiro docravo vermelho

,esse sustenido de clarim ; de

gosto,porque os cheiros têm gosto de excita

ção,porque todos os sentidos cal cados por tama

nha acuidade vibram a arcada furiosa de um desej oincomprehensiv el , ,

perpetuo , demoni aco , no meupobre corpo . Oh ! não estej as a olhar para mimassim ironico . Ha uma íntima correlação entre assensações do homem normal

,que o faz amar a

harmonia das coisas e o faz pensar na Bellezaesplendent e . Quando elle ama e sente assim , nafl oração da Arte , que é o arrimo da vi da , m inhandoo seu pensamento subtil e vaga essa myst eriosa afi i ni dade entrelaça os senti dos, para que ohomem sinta numa curva de anca a musica daslinhas

,na carne de uma espadua O perfume da

rosa, no entreabrir de um labio o sabor dos frue

tos,na creatura que se desnuda o bruto . Desejo

cego,caos das Quando é como

,

eu,

porém víctima de um só senti do , morbidamente

250 DENT RO DA NOITE

todos os perfumes dos campos . As creaturas são

as amphoras da harmoni a dos cheiros . Cada carnetem o seu corpo odi co que e o cheiro , cada serfaz-me sentir a alm a pela veste incorporea docheiro

,desse cheiro que cada um tem proprio e

j amai s igual ao do outro , do cheiro que se procurapara aquietar e

Realmente , com um pouco de toi lette cadaqual faz o seu cheiro .

N ão não é isso . Tal vez pela toi llete e a perfumaria sej am-me indi fferent es as formosas mulheres que deixam rast i l leos de perfumes industri aese parecem feitas para os retractos de Hell en ou doAmoedo . N ão as amo,

porque , maceradas de essencias , com os vestidos pul v eri sados de perfumes a

boca lavada por aguas e pós brilhantes , os labi oscarmi nados , a face empoada, são como os manequins da Moda . O cheiro é a alma dos seres . Ellasafogam a alma no arti fi cial para encantar os simples , os brut aes . Os meus inst inctos gelam— se , mor

rem em frente dessas bayadeiras mascaradas coma mascara transparente de outros cheiros . Houveum silencio pezado .

Ah ! disse eu vendo a. expirar a confi ssão , é

Oscar olhou para mim, candido como Adoni s ,e cançado como se sustentasse nos hombros O

Por isso , murmurou, procuro é horrivel !procuro as creaturas simples, as que não se

perfumam , as que ignoram O postiço ígnobil da

DEN TRO DA NOITE 25 1

civ i li sação ,e guardam o proprio cheiro as crean

ças , as adolescencias rust icas,as creaturas que

saem do banho brilhando mais e cheirando mais ,os que não sabem se cheiram bem porque pensam

que o cheiro é a falsifi cação dos perfumistas . Umlindo corpo

,um corpo branco , côr de leite , que tem

todos os suspiros campinos das boninas , dos malmequeres , das margaridas , o sonho casto das v io

letas brancas e O anceio tranquillo , o cheiro animal

de qual quer coisa que se não sabe ! Um corpomoreno

,feito de um rai o de 561 , guardando a car

nação das rosas e o cheiro da Beij arcorpos assim

,aspiral

— os,aspi ral E ' quando ha

a símpathi a do cheiro , que é o írmanamento das

almas . Tudo quanto toca a pessoa fica com o seucheiro

,o lenço esquecido

,um pedaço de movel .

Parta ella,desapareça

,cheira aquell e pedaço . O

poeta sensual já escreveu

E l l a andou por aqui , andou . Prime i ro

Porque ha v est i g i os das suas mãos ;seg undoPorque ning uem como e l l a t em no mundoE st e exquisi t o ,

est e suav e che i ro .

E é . De chofre , á calentura do cheiro d'ella

,uma

onda de gozo nos transmuda,faz-nos reviver deli

cias e nev roses da gama que se acordava com o t eudesej o . E' a musica mortal . Que digo eu ? A roupa ?

Os trastes ? Não Basta o labi o cançado de roçar ,basta o contacto das mãos pelo seu corpo . Nós nãoconhecemos a propria alma porque não sentimosO nosso cheiro

,enigmas para nós mesmos indeci

252 DENTRO DA NOITE

frav eís . O cheiro dos outros fi ca, impera . De voltade um cheiro amado , é cheirar as mãos e sentir oolor do amor como um velador nos proprios dedos . Ah ! não ! E dizer— te que eu uma vez , haquatro annos senti esse cheiro , o cheiro do meuamor

,numa creatura mi serav el , di zer que não me

lembro das suas feições pelo muito que me lembroda completa satisfação do meu desejo

,dizer que

nunca mais a v i , que a procuro , que a procuro ej amais a Como queres tu que eu ouçaas conversas idiotas , como queres tu que pensenoutra coisa ? Vou em busca do meu perfume

,do

perfume que amo , da urna desse sonho , do corpodessa alma . E degringolo a razão , a moral , o respeito da sociedade , rolo o abismo dos logares poucodi st inctos

,dou-me a relações pouco brilhantes

,as

piro todos os corpos a espera de um di a encontraro perfume incomparav el , a essencia doce d essacarne d 'oiro .

Curioso .

A mais rara molestia que ni nguem sabe .

De repente,porém

,os seus olhos chi sparam .

Ergueu-se . Sorriu .

Espera um instante .

Sumiu— se apressado . Eu tambem sorri então . N ão

voltaria . Alguem passara que se parecera com o

seu cheiro . Pobre rapaz ! Tal vez fosse na desv airada luxuria o grande sensual do ideal . E tal veznão

,tal vez fosse um louco . Somos todos loucos

mai s ou menos . Foi então que v i serem oito horas .

Como o personagem do poema,Oscar procurava

O CARRO DA S EMANA SANTA

E lis io de Carv alho .

258 DENTRO DA NOITE

gnant e de alcooes variados e tinhamos Vindo can

çados de dar encontrões na ultima igrej a . A quintafeira santa dissolvera na cidade a impal pav el essencia da luxuria e dos maus inst inctos . Quanta coisade profano

,de sacrilego ,

d'

horri v el haviamos vistono redemoinhar da turba pela nave dos templos ?Enfias dos bairros sordi dos esmolando com a opadas irmandades para o Senhor Morto

,bandos de

rapazes estabelecendo'

o arroxo junto do altar—mórpara beliscar as nadegas das raparigas

, adoles

centes do commercio com os olhos inj ectados ro

ç ando— se silenciosamente entre as mulheres

,e mu

lheres,muitas mulheres

,raparigas vestidas de

branco de azul,de cores vivas , matronas de luto

fechado, pretas quasi apagadas em pannos negros ,

mestiças cheirando a ether fl oral,com gargalha

dinhas agudas , o olhar ardente , todas como quepicadas pela tarantula do desej o . A dolorosa cerimonia tinha qualquer coisa da orgiaco

,como em

geral as cerimonias religiosas deste fim de raça,

em que os inst inctos inconfessav eis se escancaramao atrito dos corpos

,nos grandes agrupamentos .

N a Candelaria,junto a uma das columnas

,o rapaz

que lembrava Antimo tivera a lembrança de secolocar entre uma cabrocha e um alentado suj eitopara verificar o escandal o di zia elle . Em S . Francisco

,o cidadão Honorio batera no hombro de uma

hespanhola de mant i lha ,apontando-lhe a porta

,

para dizer-nos quando j á ella se sumia Umanev rosada gatuna de carteiras pela semanasanta . E nós estavamos afi nal , naquel le café do

DENTRO DA NOITE 9

Carceller,perto de duas igrej as a comment ar a

extravagancia sensual da multidão .

Fazer horrores junto ao corpo do SenhorMorto ! Mas deve ser uma delicia ! paradoxou o

j ovem ambíguo .

Pois está visto ! gaguejou um dos desconhe

cidos que pagara .

N ós sorriamos,fartos de igrej as e de sacrilegios ,

e iamos sair,quando o cidadão Honorio , que até

aquel le momento não fal ara, murmurouTudo na vida é luxuria . Sentir é gozar

,gozar

é sentir até ao espasmo . N ós todos vivemos naalucinação de gozar

,de fundi r desej os , na raiva

de possuir . E ' uma doença? Talvez . Mas etambemverdade . Basta que vej amos o povo para ver o

seio que ruge,um scio vago

,impalpav el , exaspe

rante . Um deus morto é a convulsão,é como um

signal de porne i a . As turbas estrebucham . Todasas v esani as anonimas , todas as hiperesthesi as

ignoradas,as obcessões ocultas , as degenerações

escondidas,as loucuras mascaradas ,

inversões ev ícios , taras e podridões desafivelam-se

,escanca

ram , rebolam ,sobem na maré desse oceano . H a

hist ericas batendo nos peitos ao lado de cam a

ções ardentes ao beliscão dos machos ; ha nevro

pathas místicas junto a invertidos em que os cirios ,os altares

,os pannos negros dos templos acendem

o brazeeiro,o incendio

,o vulcão das paixões per

versas . A semana santa Tenho medo desta quintafeira . Para quem conhece bem uma grande cidade ,esse di a especi al sem rumores

,sem campainhas , é

260 DENTRO DA NOITE

um tremendo di a em que os sucubos e os incubosvoltam a viver . Até as ruas cheias de sombra parecem incitar ao crime , até o ceo cheio de estrellas ede luar põe no corpo dos homens a ancia vaga esensual d um prazer que se espera .

A 's paravras do ci dadão Honorio fi zera-se emtorno um espect ant e silencio . O homem era pal ido ,

de uma palidez bi st rada . Estava vestido de pretoe a sua mão exangue tinha no dedo mínimo comoa quebral-o um negro morcego d '

aço prendendoentre as garras o turvo brilho de uma Opala . Sóentão reparamos .que não ri a e talvez assustassealmas menos º

cept i cas . Elle , de resto , após umapausa

,continuou sem“ que lh 'o pedissem .

Oh ! sim ! Tenho medo desta quinta-feiraporque vocês vêm o v ício aparente

,o v ício às

claras,o vício que os jornaes não noticiam apenas

em atenção ao arcebispado . Eu V i O v ício que senão v ê e dá o calefri o do supremo horror , o v íci o

mist erioso e devorador rodando em torno das igrej as . H a tres annos acompanho-o . Ainda agora

,ao

sairmos da Candelaria ,lá est ava elle na praça ,

fatal,defini tivo

,cruel

,

Aquella confi ssão era a de um doente . O pequenoAnt ino abriu a polpa carnuda do labio num sorrisode fl ôr que desabrocha

'Honorio,que v ício e esse ? Fale . Morremos

de curiosidade .

O v íci o que ninguem vê? Conta lá .

E' o carro da seman a santa .

262 DENTRO DA N OITE

dois olhos mai s acesos , faziam-me parar , retroceder

,pensar em frases , morder o bigode , andar

d e vagar em torno dos vendedores de doces e derefrescos

,excitado pela frescura das pêl les, pelos

trechos de carne ocultos,com as t emporas a suar

frio e um cal or nas faces , uma A vont ade do acanal hamento devorava—me, e eu ao

mesmo tempo que queria sat isfazel -a, queria ocult al -a .

Ninguem , todavia, dera ainda por aquella nev rose, quando senti perfeitamente dois olhos pregados nos meus movimentos . Onde esses dois olhos?Eu os sentia, eu os sentia bem . Onde ? Voltei-me ,observei

,desconfi ado . A turba rumorejava na semi

penumbra . Não havia al i cara que me olhasse . Só ,perto do chafariz , dando aquel le canto uma notaanormal

,uma velha berlinda com os stores arria

dos , parecia esperar al guem . Que berlinda, filhos !Lembrava um velho carro da Assistencia . E ra suj a,era grande , era vasta, quasi um leito . N a bolea o

cocheiro parecia de pedra e os stores de pannovermelho estavam immov ei s . Estaria vazia? Esper ava mesmo al guem ? D ei uma volta indagadoraem torno

,e tive

,oh ! sim ! tive a certeza de que

ali dentro havia uma creatura, que al i vibravaestranhamente al guem ,

porque assim como sentirao cal or

,o flui do ardente de dois olhos fixos sobre

mim , a descobrir—me a alma, sentia agora que aminha observação 'perturbava esses olhos . Quemestaria naquelle carro ? Quem ? Um homem ? Umamulher? Qui z falar ao cocheiro

,mas , de repente , a

DENTRO DA NOITE 63

berlinda poz— se em movimento , desaparecendo

pezadamente na rua do Uruguayana .

Fiquei um instante trepidante,nervoso . Mas é

um facto que quando as crises de pornei a da mult ídão agem sobre os nervos dos fracos , esses come

çam por desej ar seguir al guem , sej a quem fôr, como desej o fluctuante

,o seio indeciso e como que

tocado tambem de uma curiosidade mal sã pelovicio dos outros . O carro desaparecendo causou-me uma vaga tristeza . Como seria agradavelo que se fazia dentro , nas suas velhas almofadas !Larguei-me para a Candelaria, que me pareceu umtheat ro tanta era a gente e tanta a luz electrica, eestava lá roçando —me á turba, quando v i um conhe

cido . Sai então , á pressa, sem lhe dar tempo aoscumprimentos e ás fat aes perguntas sai , mergue

lheí de novo nas ruas mal i ll umi nadas , em que o

luar punha uma suave pul v eri saçãode sonho . Iriaa S . Bento

,que tem um morro

,arvores

,mai s som

bras , mais recantos sugestivos , o Arsenal pegadoe a vista do mar o pai de todos os grandesv ícios incomensurav ei s

Quandp,porêm ,

i a chegando ao Arsenal , l á deicom o carro outra vez , vasto como um quarto , como cocheiro impassível e os stores vermelhos . Asombra cobria a calçada ;no ceo andava a lua numestendal d 'oiro pall ido . Que exquisito peregrinar !que estranha peregrinação Abriguei —me no desv ãode uma porta . Passaram— se dez minutos assim

,e

era impossível apagar a anciedade dos meus nervospara descobrir o enigma . A berlinda parecia tre

264 !DENTRO DA NOITE

mer a capota empoeirada sob o sudario do luar .Depois, rodou de vagar, como se tivesse uma almae estivesse a disfarçar uma acção feia. Ao chegarao escuro beco de Bragança parou, a porti nholaabriu— se, uma sombra golphou, a então ahi a berlinda precipitou amarcha. D eus que seria aqui llo?Um crime? uma extravagancia? A passeiat a deal gum crente agonisando, que tivesse feito a promessa de arrastar a sua agoni a aos pés de todos oscorpos de Jesus expostos? Mas a sombra? Eu amo

o horror das coisas inacredi t av eís . Meti —me quasia correr pelo beco . N o meu cerebro havia um escachoar deN ão encontrei a sombra, o vul to que eu vira sair

do carro . E a procural — a, de rua em rua, com a

face a qU eímar, fui até a igrej a do R osario . Como?N ão sei . O sangue latej ava-me nas t emporas, umsuor v i scoso molhava—me a palma das mãos .

Quando dei por mim, tinha deante de mim a velhaigrej a, e ao canto esquerdo do templo , exactamenteigual , t al qual , a velha berlinda .

H a desses enc'

ônt ros de gente que nunca se falará,em reuniões dominadas pelo vicio . N ão phi losophei ,

porém . Fui ao cocheiro , querendo saber . O lá ,

camarada,desocupado ? N ão respondeu elle

seco . Pago bem . N ão posso , já di sse .

Tem al guem ahí então ? O cocheiro cuspiupara o lado . O ' seu

, v a se pondo fôra, se não

quer que lhe aconteça alguma . Fiquei sem pal avrae elle tocou .

Mas o desejo de conhecer a razão d'

aquel las para

266 DENTRO DA NOITE

gando-o . Fiquei estarrecido,com taes pal pitações

que sentia no pescoço a arteria bater . ]á a berlindadescia lentamente

,como quem dá uma volt a á

espera de freguez . Perto de mim,meia duzia de

cat raei ros olhavam com esse ar de mordente complacencia que a Canalha tem para receber as fra

quezas da gente da alta . Compuz a fi sionomia ,indaguei .E ' boa aquella docarro

,ein ?

E '

damnada respondeu um dos tiposO que admira e a resistencia d

'ella ! excl amou outro .

Como resistencia ?

Pois V . S . não sabe ? E '

a mul her do carro dasemana santa . Já está muito conhecida . Vemsempre naquel le carro e chama os que lhe agra

E vocês v ão ?

Rapaziada não ella paga bem .

E são muitos ?

Ella só aparece na semana santa . Mas é at épela manhãsínha .

Recuei . Al i,naquel le velho carro , rodando a

beira das igrej as,uma Gorgona de v ício abria a

fauce tragando as Hôres da ralé , gente que lheservia de pasto a troco de dinheiro naquel le carrosilencioso estorcía-se uma nevrose desesperada;naquel la berlinda , misteriosamente , a furia de umsucubo , a ancia de uma di abolica fundia nos braçosum bando d '

homens com O desespero sensual despedaçador ! Oh ! o v ício que se não vê ! Essa crea

DEN TRO DA NOIT E 67

tura,essa creatura ! E, ha tres anuos , todas as

quintas — feiras santas , acompanho a berlinda procurando v êl — a , procurando encarar o polvo de luxuri a

,que lá dentro distende os t ent acul os . Quem

será ? Uma senhora de sociedade ? U ma perdida ?

Sei lá ! Uma louca , uma desvairada , uma desgra

çada ,de que ni nguem sabe o nome

,de que nin

guem t al vez possa “reconhecer o semblante,na rua ,

quandoDelicioso caso fez o efebo literato erguendo

o corpo airoso ,que recordava os pag ens dos Valois .

Honorio poz-se de pé . Todos nós fizemos o

mesmo em silencio . A historia impressionara,e

principalmente a elle , ao Honorio , ao proprio n arrador . Talvez qui zesse ainda rever a berlinda . Ofacto é que chegou a porta , consultou o relogio

,e

i a despedir-se , quando de subito esticou a mãoexangue ,

onde a Opala lembrava O perturbado brilho de sua alma .

Olhem,lá está ella, l á esta . Era fatal . N in

guem sabe O que encerra . E '

o segredo das vietimas . Não . E ' o segredo d

'

ella Espera decerto al guem . Estão vendo ? N aquel le pedaço desombra

,j unto a Ao lado ha um beco . A

víctima sahira do Espantoso . J á ouvi dizerque é uma mul her com bexigas, outr

'ora bella . Umdos convidados conseguiu , di sse—me , ver-lhe a caraatravéz do veu . Conta que é queimada . Mas não .

Outros asseguram que tem pustul as . E '

a lenda,.

A Opinião geral é mesmo a de ser uma formosasenhora de alta posição . Não ,não é nada d isso .

268 DENTRO DA NO I TE

E' apenas o horrivel vício que se não vê,a luxuria

exasperada .

Nós olhav amos a sombra, nervosos , como aespera . Honorio falava intercort ado , estava quaside cêra,

e parou subitamente de falar . Uma camisabranca surgira a portinhola da berlinda

,parara .

Era um adolescente . Vimos um gesto de negativa,

vimos,

apezar do gesto , a portinhola abrir— se,

vimos o rapaz pôr o pé '

no estribo,ser como que

puxado,e logo o ruído seco da portinhola .

Mas é um crime gan iu um dos senhores quepagavam

!

as despezas .

Quem sabe ? fez frio O'

cidadão Honori o .

Nesse momento as luminarias da igrej a apagaram . Acabara a Visitação ao Senhor Morto . Haviaa confusão natural nos fi ns de taes solemnidadesgente apressada

,senhoras nervosas por apanhar

conduções,homens parados a ver se lhe agradavam

as mul heres , gritos mais fortes de vendedores ambul ant es ,

estalar de chicotes,carros

,chamados ,

pragas . E,como a rua t ivesse cab ido na som

bra, j á se sent i a o luar da noite esplendída i l lum inar os j ardi ns int erminos, lá , mais longe .

O cidadão Honorio despediu-se . O carro rodavade vagar no meio da turba compacta . E ra o mesmocarro de que ouvíramos a hi storia , velho , sujo ,

vasto , lembrando a Assistencia , o mesmo a levaro horror desesperado

, a furia da v olupi a voraz , opavoroso misterio do v ício

O B R AS ÉD O .AU T O R

As R e l i g iõe s no R i o , 8 .

ª edi ção .

Alm a E ncant a dora da s R ua s , 3 .

ª ed i ção rev is ta .

O Mom en t o l i te ra r i o .

C i nem a t og ra pho (chron icas cariocas ) .

Fr i v o l a C i ty .

E ra um a (contos para'

creanças em col laboraç ão com Vi riato Corre ia ).

O

Jorna l de V e rão (chronica de Petropo l i s ).

T RADucçõE s

S a l om é , poema dramat ico de O scarWi l de .

O R e t ra t o de D or i a n G ray , romance de O scarWi lde .

I n t ençõe s , de O scarWilde .

O Le que deLady Wi nde rm a re de O scarWi lde .

O s ca r Wi lde , por Harl g oroug h Sherard .

T HEAT R O

U l t im a no i t e , epi sodio drama t i co em 1 acto , rs.-presentadono Theatro R ecreio Drama t ic

i

o em a no i te8 de março de 1 90 7 .

PLEASE DO N O T REMOVE

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UN IVERS IT ! O F TORONTO LIBRAR !