[BRASILEIRA - Coleção Digital de Jornais e Revistas da ...

278
N O Dezembro de 1941 N . 3 ^ / ü ^ REVISTA [BRASILEIRA (PUBLICADA PELA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS) ¦:à ¦ ¦. .íjx M "Esta a glória que fica, eleva, honra e consola" (Machado de Assis) '"aa i . 1 11/ ^MMOR-S» «SfTALnÃJM 2UTEMJ^ , "3 ) Ki /D ) ^ ' ;.7'7í8 ' •' 77 m BIO DE JANEIRO ,[:y.0Í^Êm

Transcript of [BRASILEIRA - Coleção Digital de Jornais e Revistas da ...

N O Dezembro de 1941 N . 3

^/ ü ^

REVISTA

[BRASILEIRA(PUBLICADA PELA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS)

¦:à

¦ ¦. .íjxM

"Esta a glória que fica, eleva, honra e consola"

(Machado de Assis)

'"aa

i . 1

11/

^MMOR-S»«SfTALnÃJM2UTEMJ^

, "3

) Ki/D ) ^' ;.7'7í8'

•' 77 m

BIO DE JANEIRO

,[:y.0Í^Êm

-^:;v'i-v'«,.-¦:;¦¦,,¦,¦.¦ íí .;¦

?:.-

REVISTA BRASILEIRAPublicada pela Academia Brasüeira de Letras

Sede — AVENffiA PRESIDENTE WILSON n.0 203,

Rio de Janeiro ,

Aparece em Março, Junho, Setembro e Dezembro

Diretor responsável — LEVf CARNEIRO, Presidente da Academia.

Comissão Diretora: RODRIGO OCTAVIO, ALOYSIO DE CASTRO,GUSTAVO BARROSO, ALCEU AMOROSO LIMA, JOÃONEVES — membros efetivos da Academia.

A Academia e os Diretores da Revista não se responsabi-lizam pelos conceitos emitidos nos artigos publicados.

A Revista publica somente trabalhos inéditos de escritoresbrasileiros.

A Revista é impressa na ortografia adotada pela Academia,com a devida vênia dos autores de artigos, que pessoalmente anão observam.

Será publicado na Revista, mediante a remuneração estl-pulada, desde que aprovado pela Comissão Diretora, qualquer tra-balho literário, remetido ao Diretor responsável, com a prova deidentidade do autor.

Preço de venda avulsa:No Rio — 5$000Nos Estados — 6$00O

Vendem-se na Academia exemplares avulsos do 2° número, a

INDIFERENÇAMaria Eugênia Celso.

Os homens com crueldadeMe têm causado aflição,Alguns», por muita amizade,Outros, por muita aversão.

Mas esta cuja saudadeMe tortura o coração,Nunca me teve amizade,Nunca me teve aversão!"

(Heine, tradução de Ro-drigo Octavio).

Ainda há muita gente para o dr. Romeiro Sá? — in-dagou ela do recebedor de bilhetes, parando no topo da escadade um dos consultórios médicos de mais nomeada, num so-hrado da Rua da Assembléia.

O homem espíeguiçou-se a meio no tamborete onde se«ntorpecia e, lançando um olhar de esguelha à interlocütora,respondeu num muxoxo displicente:

"Toda aquela... — designando com um meneio decabeça os cinco a seis clientes que aborrecidamente se entreo-lhavam na saleta de espera. A senhora teve um suspiro deimpaciência. O olhar dos grandes olhos pretos fixou-se uminstante na porta fechada do consultório como se lhe quisesseforçar os batentes hermèticamente cerrados, volvendo em se-guida, pesado de desânimo, ao empregado que se emperti-gava cada vez mais na importância do seu cargo.

"Não há meio de falar já ao Doutor?Não traz cartão?... Pelo número pode-se calcular a

hora...Não... não trouxe, — confessou roçando os olhos pe-

REVISTA BRASILEIRA

los cartões de ingresso que o servente ostensivamente bara-lhava — julguei já estarem terminadas as consultas.

— Oh! as consultas não acabam tão cedo, — atalhou ohomenzinho com a desdenhosa condescendência do subalter-no, enxergando nesta insistência a gana da doente pobre dis-

posta a abusar da generosidade do patrão. — Vamos às vezesaté onze horas da noite... O Doutor não tem mãos a me-dir.

A desconhecida abafou novo suspiro, consultando numbrusco gesto de contrariedade o relógio de metal barato queum couro gasto lhe prendia ao pulso. Eram seis e meia. Dasaleta, que um globo fosco de eletricidade iluminava, os clien-tes distraídos pela aparição dessa nova companheira de es-pera, olhavam-na com curiosidade. Munidos com antecedên-cia do cartão que lhes assegurava, segundo a ordem do nu-mero tomado, o ingresso junto a sumidade médica que vi-nham consultar: o Doutor Romeiro Sá, lente da Faculdade,membro influente da Academia de Medicina, um dos profes-sores de mais nomeada e de mais clínica do Rio de Janeiro,— aguardavam sem enfado o momento da entrada. Nemde leve lhes passava pela mente a idéia de ter preferência estaretardatária, tão modesta no surrado de um vestido de lã es-cura, sem luvas, a fita do feltro esgarçada pelo uso.

Havia uma velha acompanhando uma meninola preten-.ciosa, dois senhores de idade indeterminada, um rapaz ma-gríssimo com uns fundos olhos esgrouviados numa face de-cera, folheando desinteressadamente velhos números de re-.vista esquecidos siôbre a mesa do centro. As consultas iam*até às onze horas... Três horas de espera talvez e, após toda.essa gente lhe tomar a dianteira, a incerteza de ser recebi-,da... Uma expressão de fadiga lhe contraiu fugidiamente osrosto sem pintura. Deu a esmo dois ou três passos pela sa--leta. Da rua, em baixo, numa vaga ressonância, subiam osmil ruídos da cidade: entrechocar solavancado de bondes, re-tinir de campainhas, fonfonar de automóveis, surdo abalo decaminhões, pregões de jornaleiros.... Já se haviam ilumi-nado lá fora as ruas, na sombra apressada do crepúsculo dejulho. Na saleta silenciosa o rapaz continuava o lento folheio,

INDIFERENÇA 5

da revista, enquanto a senhora idosa bocejava. Leve odor demedicamentos, pois o consultório era sobrado de uma far-macia, enchia o ar morno. A tristeza da hora opressora-mente em tudo se insinuava.

"Preciso tanto, tanto falar-lhe! — insistiu ela maispara si do que para o rebarbativo bilheteiro, o olhar escuroteimosamente agarrado à porta fechada.

"Tem um lápis? — indagou, depois de meio segundode reflexão, num repente de iniciativa que obrigou o homemdominado a lhe estender incontinenti o objeto requerido. Rà-pidamente, com uma viveza de movimentos que lhe denun-ciava a impulsividade da natureza, rasgou a ponta em brancode um jornal largado numa cadeira e, firmando no joelho apasta de couro que sobraçava, dela se serviu como apoio paratraçar no papel uma curta linha. Mal entregara porém ao re-cebedor a estranha mensagem, abriu-se de súbito a porta dogabinete de consultas. Elegante mulher, quasi equívoca àforça de preparo, saiu a sorrir, espargindo em torno uma ondasutil de perfume.

A desconhecida recuou de instinto, apertando com forçao braço do servente:

"Vá!... pelo amor de Deus, vá! — ciciou-lhe entreuma ordem e uma súplica, impelindo-o para a porta entrea-berta, antes qúe pudesse fazer siquer menção de articular oprimeiro algarismo do número a chamar. E tanto impériohavia, tanta impetuosa energia na angústia que secretamen-te a alanceava que o homem subjugado obedeceu. Um pres-sentimento, no entanto, a intuição talvez de que, se hesitasse,perderia a ocasião de ser recebida, arrastou-a a segui-lo.

Num impulso mais forte que todas as barreiras da educa-ção e da cerimônia, antes que ninguém se pudesse opor, pe-netrou afoitamente no gabinete.

"Sou eu, Candinho, — declarou alteando o bustonuma inconciente bravata, — não me dá licença de entrar?..."

A interrogação soou, vibrante como um desafio, no quietoaposento onde o clarão das lâmpadas de fora, coando-se pe-los entremeios das cortinas, marquetavam de longas estriasde luz o assoalho envernizado.

REVISTA BRASILEIRA

O retalho de jornal a tremular-lhe na ponta dos dedos, omédico erguera-se de um salto quasi, na intensidade da sur-

preza que lhe causava a aparição.O espaço de um segundo permaneceram face a face, como

a se medirem.O clínico todavia, foi o primeiro a recobrar o habitual

domínio sobre si-mesmo. Com um gesto impaciente despe-diu o empregado, atônito ainda ante o imprevisto da cena,e a porta fechou-se sobre os dois.

"Não me reconhece por certo, a não ser talvez pelaviolência do processo de admissão? — tornou a moça, adian-tando-se um pouco, sem entretanto lhe estender a mão nogesto natural do cumprimento.

Reconheço-a, Regina, — replicou êle acentuando onome para mostrar quão nitidamente recordava e na voz pou-sada, de um timbre tão docemente grave, já nada restava dacomoção fulminante de momentos atrás. Ligeira hesitaçãotalvez e, na fronte sulcada de rugas precoces, desusada pá-lidez.

"Surpreendeu-me à primeira vista vê-la aqui... Com-preende, há tanto tempo! Reconhecí-a, no entanto, perfeita-mente. Não está tão mudada assim.

Não estou mudada?... — zombou ela numa crispa-ção amargurada do sorriso — Você é que não está mudado,pelo que ouço, da sua antiga mania de consolar a humanidadesofredora! Estou irreconhecível... irreconhecível, pelo me-nos quando me possa recordar o que fui, — prosseguiu sur-damente num repentino elance de emoção, — é o lusco-fuscoque o ilude, acenda a luz e verá! Sou uma pobre anciã, —terminou num desesperado esforço para se tornar galhofeira.

E, maquinalmente, Romeiro Sá obedeceu. Da poltronaonde se parecia ter refugiado, comutou a eletricidade. A luzbranca e implacável, inundou o pequeno escritório, todo gar-rido na sobriedade da sua clara decoração.

"Há de permitir que me sente, — continuou ela, dei-xando-se cair na cadeira fronteira à secretária e sobreesta atirando quasi a velha pasta que se diria fazer-lhe partedo vestuário, — faço tanto exercício que chego a me fatigar.

.

81

INDIFERENÇA 7

Você, a infatigável de outrora... — murmurou o clí-nico sem querer, os olhos fitos nas pequenas mãos magras emaltratadas que ela cruzara deliberadamente sobre a pasta,como para conter a onda de emoção que mau grado seu lhefremia na voz, no olhar, na postiça afoiteza do sorriso, noinexprimível constrangimento da atitude.

"Outrora... — repetiu num éco triste, abrindo in-concientemente os dedos como se deles houvesse deixado es-capar toda a alegria desse outrora que se evocava agora en-tre eles num bruxoleio de saudade, — há tanta cousa que fuioutrora... tanta... e que nunca mais hei de ser!... Ficatão longe esse outrora!... E, no entanto, é êle, só êle, que mefez vir hoje procurá-lo. E' preciso que recorde, que revivaconsigo o tempo em que ambos o vivemos para que eupossa... para que me anime... — a voz morreu de novonuma reticência agoniada e os cílios frisados velaram um se-gundo a lassidão dos olhos graves.

Havia, entretanto, nos modos dessa mulher como na li-nha ainda esbelta de seu corpo qualquer cousa de indizivel-mente sobranceiro.

Devia ter sido de uma rara e perfeita formosura. Sob ausura dos anos, o estigma da miséria que lhe endurecera ostraços, crestando-lhe o viço da primeira estação, dolorosamen-te se acentuava. Um vinco mau sulcava-lhe a testa entre otraço fino dos supercílios. A boca, admirável de forma ainda,se distendia numa contração de vontade hostil. Uma som-bra roxa cercava-lhe os olhos, soberbos sempre, mas onde oantigo brilho se diluía num negror opaco, um negror de abis-mo. O feltro muito enterrado não lhe deixava ver os cabelos,duas méchas grisalhas lhe alvejavam, porém, dos dois ladosdo rosto emagrecido a que se colava, máscara reveladora, opalor doentio dos estenuados do trabalho. Não seria muitovelha, trinta e oito, quarenta anos, no máximo, mas a aspe-reza de uma existência que se adivinhava atribulada, inexo-ravelmente a alquebrara.

Emanava dela, todavia, da decisão de suas maneiras,da magoada profundeza do seu olhar como do vivido cepti-

REVISTA BRASILEIRA

cismo do seu sorriso intraduzível sedução. A pobreza não aconseguira vulgarizar. Interessava.

Sob a transparência dos óculos, Romeiro Sá observava-acom apaixonada curiosidade.

Debaixo das pálpebras papudas, seus pequeninos olhosamarelados, afeitos às dissecações analíticas de laboratório,seguiam-lhe um a um na móvel fisionomia o destruidor tra-balho dos anos.

Já não era a mesma, não. Aquela brancura de decadên-cia no negror desses cabelos que, em tempos idos, tão romã-nescamente sonhara desnastrar, tornava-a diferente, de umadúbia diversidade constrangedora. Apartavam-na definitiva-mente do que dela lhe retraçava a memória. Alargava entreeles, o vazio impreenchivel daqueles obscuros vinte anos deafastamento e de separação. Mudara em tudo, até na voz cujometal sonoro como se rachara a um embate demasiado forte,elevando-se por vezes agora em estridências de falsete. Aque-les cabelos grisalhos, aquele derreamento do corpo descui-dado de si e, sobretudo, a amargura daquela boca, onde o sor-riso fora um clarão de facho triunfal, inexoravelmente a afun-davam no passado, dela fazendo, na realidade, uma estran-geira, a cliente desconhecida que ao consultório o acaso lhemandava.

E, à medida que falava, a emoção que a exaltara ia arre-fecendo, acalmando-se, diluindo-se, disseminada no fluxo depalavras que lhe saía dos lábios numa excitação proposital,como se esperasse, assim, de arranco, poder dizer o motivo doque ali a trazia.

— "Não é para mim que venho, — explicava, os olhosbaixos, toda a face contraída de teimosia contra ela mesma —lembra-se como era sadia?... Não deixei de o ser. De todas ascousas que a vida me tirou foi talvez esta a única pouco maisou menos respeitada. Não é portanto para mim que o vimconsultar, embora de um mestre do seu porte um conselhonunca se desdenhe. Não o espanta que eu já admita a possi-bilidade de ouvir conselhos?... Outro ponto em que mudei.Só o som da palavra me arripiava antigamente de indignação,recorda-se?..."

INDIFERENÇA 9

Ah! se recordava... Recordava tanto e tão bem que,arrastado por êsíe propósito envolvente de o remergulhar nopassado, o clínico murmurou num lento aceno de reminis-cência:

"Seu pai chamava-lhe até, brincando, Dona Belona...Dona Belona, é verdade!... Tinha-me esquecido...

Pobre D. Belona, se êle soubesse como seria, depressa ven-cida nas suas pretensões à revolta!... Para que ter sido tãocombativa?... D. Belona perdeu a batalha... perdeu todasas batalhas... — repetiu sonhadoramente — foi bom vocêter relembrado este apelido, remoça-me. Parece-me que vol-vemos ao tempo da Praia Santa Luzia, ao tempo em queéramos tão camaradas, ao bom tempo em que eu era bonitae você me fazia todas as vontades, Candinho...

Parecia-lhe a êle também.Os olhos fitos não nela, mas na sombra do que ela fora

e que a magia da presença próxima perturbadoramente res-suscitava, Romeiro Sá revivia, em retrospectivo alvoroço, osepisódios mais palpitantes de sua mocidade: a vinda da pro-víncia, filho de viúva pobre e modesta, para a casa do tio, oDr. Régis Campeio, lente da Escola de Medicina, para aquelacasa da Praia Santa Luzia, desaparecida agora, que havia sidodurante seis anos o seu atribulado paraizo. Fora ali que en-contrara Regina. Dos quatro filhos do tio, dois rapazes dosquais logo se fizera irmão e das primas, Alba e Regina, sóesta verdadeiramente contava para êle. Regina... Como lheassentava o nome ao viço régio da adolescência!... Regina...rainha... E rainha imediatamente se tornara do acanhado es-tudante que começara a ser, sob o patrocínio zeloso do tio.Rainha que êle adorava em silêncio, numa arroubada prós-ternação, tanto na doçura de suas raras meiguices como nodespotismo de seus caprichos desconcertantes. Deslumbradopelo garbo soberano daquela fronte de arcanjo, só êle no en-tanto adivinhara, sob as excentricidades da menina perdidade mimos, o arrebatamento dessa natureza de paixão e de fan-tasia. Regina Fora por ela que estudara, por ela que seaplicara em cultivar-se, por ela que se formara, e, pelo bri-lhantismo de um curso todo feito de distinções, dentre os ou-

10 REVISTA BRASILEIRA

tros sempre vitoriosamente se salientara. Sabendo-se feio,sem graça exterior, entanguido de timidez, decidira pelo es-forço do trabalho estudioso conquistar a aureola de stuperio-ridade intelectual que talvez o aproximasse do seu formosoídolo indiferente. Animando-lhe o arrojo da pretensão, queêle no íntimo classificava de loucura, sentia a tácita aprova-

ção do tio.Observando no sobrinho as qualidades de ponderação,

perseverança, amor ao estudo, atividade, que o haviam feito oprofessor em evidência de hoje em dia, era natural que RégisCampeio, o tivesse desejado para marido da sua pequena Be-lona, tão perigosamente obstinada e romântica. Sem aludi-rem nunca a isto, adivinhava que todos em casa o incitavam adeclarar-se. Só Regina permanecia distante, brincalhona,alheia a tudo, com o enigma dos olhos de chama escura e atentação do lindo sorriso indecifrável. E, atormentado dedúvidas, farpeado de apreensões, cheio do seu sonho há tantorecalcado, quando se resolvera a falar-lhe, foi que se dera acatástrofe.

Esta catástrofe, não a recordava ela ali, evocando pela suapresença o nome do homem que para sempre os havia sepa-rado ?...

O nome odiado, amaldiçoado, banido, invejado ah! so-bretudo invejado, daquele pelo qual ela desprezara e esque-cera os pais, a fortuna, a religião, a posição social, no desva-rio sem peias de um amor que a tudo destruidoramente arra-zara, para fazer da rainha de antanho aquele pobre sêr enver-gonhado, combalido, desclassificado, a quem a família e a so-ciedade não haviam perdoado ter assumido a responsabili-dade de uma paixão que só se pudera contentar à margem daigreja e da lei.

— "E' uma vontade destas que eu quisera que Você hojeme fizesse, — continuava ela, sempre de pálpebras baixadas,tentando conservar a animação no tom de camaradagem quedevia facilitar a confidencia uma vontade de vinte anosatrás.

E como o professor se mantivesse calado, num impulsode resolução muito dela, acrescentou, aprumando instintiva-

INDIFERENÇA 11

mente a cabeça e plantando-lhe em cheio nos olhos o olharbruscamente incendido:

"Bruno Valdez esteve ontem aqui, não é verdade?"Diante do retraimento do clínico, uns laivos de rubor lhe

passaram furtivamente pelas faces e apertando com força asmãos sempre juntas sobre a pasta, como se rogasse mas tam-bém como se ordenasse, prosseguiu:

"Pode invocar o segredo profissional para não me res-ponder, Candinho, mas é preciso que me responda! Sim, épreciso. Não veja, por favor, nas minhas palavras uma sim-pies bisbilhotice de mulher exclusivista e ciumenta. Veja oque elas são realmente. A sinceridade, a importância do quesignificam. Eu preciso saber o estado de Bruno Valdez, pre-ciso, compreende? E' uma questão de vida para mim e talvezpara êle, quem sabe?... Só Você me pode dizer a verdade,só de Você me pode vir o esclarecimento que decidirá da mi-nha orientação neste momento. Não, não diga que não!...— suplicou num ofêgo, juntando com mais força as mãoscomo se, num resto de orgulho, quisesse impedi-las de se le-vantarem no gesto instintivo de todas as preces — deixe-mecontar-lhe primeiro... explicar... convencê-lo... Deve ima-ginar que se me decidi a vir até aqui, se tive a coragem de pro-curá-lo, depois de tantos anos de rompimento com tudo quefoi o meu passado, não o fiz senão movida por um motivograve e imperioso, uma razão vital. Candinho, Candinho,você não poderá nunca avaliar o que foi para uma mulhercomo eu tomar esta resolução, o que está sendo agora,aqui, pedir-lhe que me ouça... que me excuse... que meatenda...."

Parou um segundo como se lhe faltasse o ar ou nãoachasse termos para a tristeza do que tinha a dizer.

"Quem me contou ter Bruno consultado a Você foium amigo dele e seu, o Tancredo Serra, lembra-se, não é?Costumo encontrá-lo nas idas e vindas do meu trabalho e,por uma fraqueza que não consegui nunca dominar, pedia-lhe sempre notícias de Bruno. Era mesmo, ultimamente, oúnico ponto de contacto que ao Bruno ainda me ligava...porque... porque... — repetiu numa reticência de intradu-

' '¦.'¦ ' -oo-

12 REVISTA BRASILEIRA

zivel constrangimento, desviando o rosto do olhar agudo domédico, — Você talvez não saiba, mas mas já faz tempoque Bruno Valdez, me deixou..."

Não, Romeiro Sá não sabia.Suspeitava-o talvez desde que não ouvira mais referên-

cias às recepções em casa do escritor. Umas reuniões muitofaladas nas rodas boêmias do Rio, nas quais a beleza e a ele-gância da companheira eram entusiàsticamente citadas e quehaviam sido, durante anos, o prato predileto da maledicên-cia da cidade. Mas de ouvi-lo confessar assim por ela comessa voz de humilhação e a expressão torturada deste sem-blante, confrangia-o até o âmago.

— "Vocês todos é que afinal tinham razão quando meprediziam que êle um dia se fartaria de minha pessoa e merejeitaria de sua existência como a tantas outras rejeitara, —continuava ela o olhar fixo duramente no vácuo. Voltou pri-meiro à mulher legítima. Uma reconciliação apara tosa e tea-trai que ainda mais me afundou no horror do meu abandonoe do meu sofrimento. Pensei sucumbir ao desespero da de-cepção. Pensei em matar-me. Tinha um filho nesta ocasião,um filho dele. O garotinho precisava de mim, vivi. Quemnão viveu, porém, foi êle, pobrezinho Foi-se embora tãodepressa que, no meu desatino, mal tive conciência de o tertido e de o perder. Passei assim algum tempo, sozinha e de-sesperada. Um belo dia, Bruno apareceu. Recolhera a he-rança da mulher, falecida pouco depois da reconciliação, vi-nha propôr-me reatar as nossas relações, retomarmos a vidaem comum. Quis resistir, recusar, romper... Mas êle me ga-rantia não poder passar sem mim!... Acabei acreditando, cedi.Disseram-me depois que eu não devia ter cedido, devia terimposto o casamento. Êle estava viúvo. Teria sido natural,direito, e tudo teria entrado nos eixos. Mas eu não ousei...não soube... tive medo de afugentá-lo para sempre com estaexigência, queria que a proposta partisse dele... sei lá?! Averdade é que eu é quem não podia passar sem êle! Fomosviver juntos'. Não foi mais o êxtase da primeira vez, noentanto. Foi uma felicidade machucada tolhida, apreensiva.Mas ainda assim felicidade, desde que o tinha a meu lado.

INDIFERENÇA 13

Felicidade que não durou, aliás. Uma mulher passou eBruno largou-me outra vez. Meses mais tarde, mandava-mechamar, dizendo-se doente. Eu,'na minha cegueira e no meususto, acorri logo, perdoando tudo. Era um truque. Estavasozinho, aborrecia-se, precisava de companhia e distração.Aceitei o embuste. Aceitei a zombaria da explicação em queme dizia preferir-me a todas, afinal de contas, justamentepela minha admirável falta de preconceitos. Aceitaria tudo,recalcando a indignação e a vergonha, na alegria de revê-lovivo e são, na doidice de esperar reconquistá-lo. Bruno Vai-dez, porém, servia-se de mim como de um joguete para ex-periências de psicologia sentimental. Escrevia um romance.Necessitava de uma cobaia. Pouco tempo depois, foi aafronta suprema. Surpreendi-o em casa, dentro da nossacasa, atracado à cozinheira, uma preta com quem vivia hameses, ao mesmo tempo que comigo. Foi tão atroz o ul-traje e tão profunda a humilhação que, dessa vez, fugi deso-rientada. Fugi para nunca mais voltar. Salvou-me da lou-cura a necessidade de ganhar a vida. Arranjaram-me um lu-gar de agente de seguros. Atordoei-me com o trabalho. Tra-balho ingrato e extenuante. Só êle, no entanto, tem conse-guido dar-me a ilusão do esquecimento, — rematou numsuspiro de indizivel cansaço, — e, calcule Você o que me fezsofrer este homem, Candinho, o que matou em mim de dig-nidade e de confiança, para que, recebendo há dias um bi-lhete onde me pede perdão de tudo o que por êle padeci e,declarando-se vítima de moléstia incurável, condenado a mor-rer breve, me suplica que o vá acompanhar nesses últimosdias de vida, eu tenha duvidado. Duvidado dele, o meu orá-culo até então indiscutido e que, para saber se não me estámentindo mais uma vez, eu venha procurar Você... e lhepeça, lhe peça..."

A voz, sossobrou num soluço abafado entre as mãos trê-mulas, onde escondeu subitamente o rosto sem côr, como sea miséria de tudo que acabava de narrar lhe fosse fisicamenteintolerável.

— "Minha pobre Regina!... — murmurou por fim omédico, após o longo silêncio que a emoção da confidencia

14 REVISTA BRASILEIRA

entre ambos fizera cair. Imensa piedade o sublevava. Nãosabia, porém, com que expressões confortar o amargor da-quela mágoa. Dizer-lhe a verdade, sim, toda a cruel ver-dade, mas dizer-lhe também... dizer-lhe... Dos eflúvios depaixão desordenada e violenta que da voz, dos gestos, da ati-tude dessa mulher humilhada, sacrificada, vencida, mas a des-peito de tudo, amante e ébria ainda do seu amor, irresistível-mente se desprendiam, uma onda turva e quente o envolvia.Não era mais a creatura mal vestida, acabada e miserável,prostrada numa súplica anhelante que ali estava. Era a ou-tra. A Regina de antanho. A Regina do sorriso de luz. A Re-gina que nunca fora dele e de quem só neste instante aquila-tava a falta insubstituível que lhe fizera, a Regina que êle po-dia com uma simples palavra separar para sempre do homemexecrado que lh'a tomara.

Um segundo, a tentação de enganá-la sobre o estado deBruno Valdez lhe roçou pela mente enfebrecida. Sentia-a tãoferida de descrença e de desilusão que, bem sabia, terem aspalavras que pronunciasse o cunho de uma sentença inape-lável.

Ah! garantir-lhe que o amante nada tinha e apenas maisuma vez tentara explorar-lhe a ternura sem defesa e, por umaburla iníqua, atraí-la e espezinhá-la... Arrancá-la para sem-pre dos braços de Bruno Valdez. Sentia que ela lhe daria cré-dito absoluto. Teve um ápice de hesitação, mas a sua con-ciência profissional reagiu num assomo. Regina descobrirao rosto, cravando no primo, ansiosamente, os olhos sem lá-grimas.

— "Minha pobre Regina! — repetiu êle com aquela vozmansa e penetrante, uma voz de autoridade e de unção, umdos grandes factores do seu ascendente sobre os doentes, —eu não deveria atender ao seu pedido tão contrário é êleà ética de minha profissão. Não me compete tão pouco jul-gar o sentimento que a lançou no calvário de que acaba deme revelar as cruciantes etapas e, hoje, ao meu consultóriotão angustiosamente a conduziu. Creia que a lamento de todaminh'alma e compreendo, e respeito o seu gesto. Se o que lhe

INDIFERENÇA 15

vou dizer ainda mais a magoar, perdoe-me, lembrando quesó consenti em falar à in junção de um passado que para nósambos é sagrado. Foi Você a primeira a invocar o tempo emque lhe fazia todas as vontades... Não poderia, portanto, ne-gar-me a um pedido seu. Bruno Valdez esteve com efeito aqui.Veio, a instância do colega meu que o assiste, consultar-me arespeito da operação que todos lhe aconselham. Bruno Vai-dez parece estar com um câncer. Se não se operar já, na mi-nha opinião, terá poucos meses de duração." Um gemidosurdo escapou-se dos lábios contraídos de Regina.

Não se aflija desta maneira, — acudiu Romeiro Sá,quasi assustado ante a súbita alteração das feições que paraêle aflitamente se voltavam, — mercê de Deus, todos os diag-nósticos são faliveis, os meus como os dos outros. Se fôr ope-rado sem perda de tempo, entretanto, tenho visto casos emque, com muitos cuidados e um tratamento rigoroso, se temobtido um a dois anos talvez...

"Um ano!... — arquejou Regina as mãos juntas eo pranto, liberto por fim, correndo-lhe a fio pelas faces —oh! meu Deus, meu Deus, era então verdade e eu hesitando...hesitando... Candinho, — murmurou afinal enxugando ner-vosamente as lágrimas e pondo-se bruscamente de pé, — eunão sei como agradecer o que Você acaba de fazer por mim!Não me julgue mal, porém, e, quando esquecer a série de ver-gonhas e de misérias que tive de contar-lhe, para que talvezme possa absolver, lembre-se que eu só gostei de um homemno mundo. Tudo sacrifiquei sem remorso e sem pejo poresse amor. Você com certeza pensa que me vou de novo sa-crificar. Não! Vou simplesmente pagar a Bruno Valdez ashoras de ventura sem par e de deslumbramento que deu à mi-nha mocidade. Vou para o meu destino que é amá-lo e ser-vi-lo até o fim. Se depender de meus cuidados prolongar-lhea existência, asseguro-lhe que viverá. Não me lamente, Can-dinho. Se eu tivesse de escolher, escolheria ainda uma vez ocaminho que a êle me levou." Um minuto, no pálido rostotransfigurado, o sorriso de antigamente, o divino sorriso res-plandeceu. Com infinita emoção Romeiro Sá reconheceu-lheo furtivo encantamento. Erguera-se também.

§fjp('swpfç;s<5*íi!;

16 REVISTA BRASILEIRA

"Não me agradeça, Regina, será o melhor meio deagradecer-me, — replicou, dominando a ponta dolorida quese lhe fisgara no peito e, estreitando nas dele as mãos geladasque ela, num ímpeto, lhe estendera — Vá em paz. Eu nuncaa julgarei.

Obedeço-lhe, sr. professor, — tornou ela, retomando

por um supremo esforço de vontade o tom galhofeiro do co-mêç0 — já é muito tarde e eu estou monopolizando a horados seus clientes. Devem estar danados comigo, coitados!Mas... como tem tudo bonito aqui! — ajuntou relanceandoa vista em derredor como si, somente naquele momento, ti-vesse conciência do que a cercava, — isto devem ser artes dasenhora sua mulher. Porque suponho que Você se casou, Can-dinho? Tinha tanto jeito para pai de família! Como se cha-ma ela?

Ritinha.Ah! é esta? — prosseguiu tocando de leve na fotogra-

fia enquadrada em prata que ornava a secretária — bonitinha,sabe. E os garotos?... Uns amores, realmente uns amores.A gente, afinal, não governa a sua sorte. A sorte é que nosgoverna. Você, em verdade, só podia ser feliz com uma Ri-tinha, não acha? — acrescentou pensativamente num extra-nho meio sorriso.

Haviam chegado à porta do corredor."E... e Você vai daqui para a casa dele? — pergun-

tou Romeiro Sá, arrastado mau grado seu por uma turva,irresistível curiosidade que lhe atirou todo o sangue ao rosto.Regina se fez séria. As largas pupilas tomaram aquela expres-são de insondável desprendimento que de tão opaco negror,inexplicavelmente, de quando em vez as embaciava.

"Daqui não, — respondeu com uma sombra de aca-nhamento — estou muito feia e mal arranjada. Vou dar umpulo ao meu quarto, preparar-me um pouco, buscar o que émeu. Uma enfermeira deve, antes de tudo, impressionar bemao seu doente, pois não?... E você disse que com muitos cui-dados... Mas um câncer, Candinho, será possível?!... —implorou num espasmo involuntário da contida agonia.

INDIFERENÇA yi

Tudo é possível, Regina, não desespere.Oh! não, não quero desesperar, — retorquiu apru-mando a cabeça no movimento resoluto que lhe era costu-meiro - Você me deu forças para lutar, lutarei. E agoraadeus, Candinho, adeus e... muito obrigada!A mão que apertava a dele escapoliu-lhe e a voz morreuno corredor até onde a acompanhara. A porta cerrou-se sô-bre ela. Romeiro Sá voltou vagarosamente ao escritório Ti-rara mconcientemente os óculos que se pôs a limpar com olenço, o olhar vago e o espírito perdido na evocação interior

que, intoleràvelmente, o amargava. Tudo lhe doía nesse mo-mento. Ah! porque não tinha sido êle a suscitar aquele in-cendio de paixão que nem o abandono, a traição, os maus tra-tos, a possibilidade de contágio da terrível moléstia, haviamconseguido extinguir? Só aquela mulher contara verdadeira-mente para êle na vida. Só aquela. Tudo que fizera no intuitode impressioná-la, deter-lhe um instante a atenção dos gran-des olhos distraídos, toda a história dos seus estudos, da suacarreira, dos seus sucessos clínicos, do casamento com essaRitinha em quem ela tão displicentemente tocara, a conquistada nomeada, da independência, da posição de agora, tudo queela, Regina, secretamente motivara, tudo fora inútil. Elatudo ignorara. Nunca dera fé da existência dele. Se o pro-curara hoje, ali, não fora em função da sua confiança no mé-dico ilustre e por efeito do seu prestígio de mestre consagrado.Fora simplesmente porque o "outro" o consultara. Foraainda por causa de Bruno Valdez, o único homem que amara,ela mesma o dissera e para o qual, não obstante todos os suplí-cios que lhe infligira, correra logo, esquecida de tudo, na ân-sia de o confortar e o servir. Imensa amargura o afogava.Para que tanta luta?... Apesar de tudo que o seu esforço lheobtivera: família, fortuna, fama, sentia-se pobre e despojadocomo no tempo de estudante, irremediavelmente frustrado doúnico bem pela posse do qual teria valido a pena viver.

Jamais existira para Regina.Nem a cena de hoje, bem o sentia, nem aqueles frementes

instantes de aproximação e de confidencia, inesquecíveis d'oraavante para êle, lhe haviam conseguido vencer a indiferença.

18 REVISTA BRASILEIRA

Já os devia a estas horas ter olvidado. Regina nunca delefizera caso. Nunca. A dolorosa acuidade de seus pensamentoslevara-o sem sentir até o balcão da sacada de onde, levantandoa meio a renda do "store", se pôs insensivelmente a procurarna rua a silhueta daquela que partira. Mau grado a disitân-cia, distinguiu-a logo por entre o vai-vem dos transeuntes.Tê-la-ia distinguido entre mil. Assim, de longe, a esbeltez in-tacta do seu vulto conservava-lhe singular mocidade de as-

pecto. Caminhava rapidamente, sobraçando a pasta de traba-lho, com uma ligeireza de passo e uma concentração de ati-tude onde claramente se adivinhava o anseio de chegar.

A idade e as tributações não lhe haviam tirado aquelalinda elasticidade do andar que êle, em moço, tão enlevada-mente admirava. E, indo-se às pressas para o homem que adesgraçara, parecia ainda a Regina de outrora. Acom-panhou-a longamente, sentidamente com o olhar e, ao vê-la su-mir-se no extremo da esquina, insopitável aperto de coraçãolhe encheu os olhos d'água... Mas para que chorar, gritar,revoltar-se, ter saudades, sofrer?... Nunca fora, nunca serianada para Regina.

"Sr. Doutor, — advertiu a voz do servente, anun-ciando a sua entrada com um discreto batido na porta — onúmero 4 está reclamando e a Dona Ritinha telefonou agori-nha mesmo, dizendo para o Doutor não esquecer o banquetehoje no Itamaratí.

Ah! é verdade, não me lembrava, — suspirou o pro-fessor, passando vivamente o lenço nos olhos.

E, recolocando cuidadosamente os óculos, abancou denovo à escrevaninha, dizendo com o tom de voz profissional:

"Sim, o banquete da Delegação Uruguaia, então sóposso receber o número 4. Você faça entrar e despeça os ou-tros, explicando que tive um chamado urgente. Telefone de-pois a Dona Ritinha avisando que prepare a casaca. Não possofaltar a este banquete."

FOI COMO A TERRAAna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça.

Esta mulher foi como a terra,Serena e boa, fecunda e forte.

Criou dez filhos,Plantou cem árvores,Sonhou mil sonhos

E agora, plácida e tranqüila,Ela pensa na morte.

A noite vai cair sobre a terra que dorme.A morte vai baixar sobre a mulher que sonha.

Os filhos, ela os deu à terra.São corpos para a luta.São braços para a enxada.Criarão outros filhos,Plantarão outras árvores,Sonharão outros sonhos,E volverão à terraPara dormir com ela.

As plantas, ela as deu à terra.Hão de erguer-se em frondes,Hão de ornar-se em flore3,Hão de abrir-se em frutos.

Ficarão na terra.Cairão por terra.Dormirão com ela.

Mas os pobres sonhos da mulher tranqüila,Morrerão com ela?

Ou serão nos astros sementeira de ouroSobre o pó da terra?

ROMANCE DA SOLTEIRA

(Continuação)

José Vieira.

Resumo dos números anteriores: — Solteira sem noivo, a her-deira de Sítio ainda mais descrê de casar, depois da vinda aaengenho de um fazendeiro do sertão com o filho homem já de. moçapedida. Nesse estado de decepção, a família vai passar na ei-dade os dias da festa dos padroeiros. Eles têm casa no largo,da Matriz. À tardinha, com os notáveis mais velhos, vem visi-tar o vigário o novo médico da cidade. Sinhá o vê e revê, es*tando à janela com a mãe. Os dois encontram-se nas novenas,,olham um para o outro, durante o culto. Sinhá reanima-se. Mas,antes das festas findarem, o moço cessa de olhá-la. Na noite, deSão João, áo acender da fogueira, ela faz, com uma moça dacidade, a adivinhação dos nomes. Sai-lhe Elias. Que ela conheça,Elias, em toda a redondeza, só há um escravo da casa... Voltapara Sítio tristonha com o duplo sentimento da nova decepção eda humilhante sorte. Chegada ao engenho e tendei de descer dosilhão, é logo Elias quem vem com o tamborete píara ela pôr oapés. Sinhá repele-o com ira e, não podendo suportar-lhe mais apresença, acaba mandando-o pôr no tronco.

XI

Dias antes de principiarem as novenas de SanfAna, umdepois do meio-dia, Sinhá colheu na banca do oratório achave da capela e foi, com a mucama, varrer e arejá-la. Ven-do-as descer os degraus do copiar, d. Ana, um minuto, nãocompreendeu. Mas, atenta cá de cima, dali a bocado, viu Ritavir de trás com uma vassoura de relógio e, pouco depois, Si-nhá segui-la com um molho de rosas. "Varrer e enfeitar acapela, agora? Que veneta lhe terá dado?" Saiu também, nãodescendo a escadinha, pois se ia da casa-grande à capela dei-xando o copiar para entrar na porta única do pequeno templo

ROMANCE DA SOLTEIRA 21

pela mesma calçada longa e alta. Sinhá subira do terreiro pelaescada de tijolo da capela; e a mãe éncontrou-as: a escravaagachada, varrendo do altar para a porta; a senhora-moca,descansadas as flores na mesinha das galhetas, pondo com és-tas os castiçais, para retirar a toalha de labirinto. D. Ana ajoe-Jhou junto à ábside funerária aberta na parede, onde jaziam osmortos da família. Ajoelha, reza. Reerguida, fez a Rita breve,baixa mas dura recomendação. Alteando a voz, disse para afilha, que sacudia a toalha, entretida com as ondas brancasdo pano:

Não sei como entra pó aqui, estando tudo fechado.Entra pela sineira.Só sendo.

Fechando a boca, d. Ana marchou para a calçada emsombra e entrou na casa-grande, já, pensando nas escravas.Ainda vendo a mãe, Sinhã manda Rita buscar água. Prontaa. tarefa, trouxe o resto das rosas para o cemitèriozinho in-terno e dividiu-o pelos jarros de louça do ladrilho, ao pé dasquatro catacumbas, duas sobre duas, no fundo escuro da áb-side. Os quatro túmulos eram dos pais de André do Rego ede dois tios, que ela não conhecera. Histórias a respeito deles,ouvidas, em menina, como contos, familiarizaram-na comesses mortos bem seus. De tanto ouvir-lhes os nomes, tinha-ospor antepassados que, somente, dormissem, nos jazigos da ca-pela, sono sem fim. E orar por eles era-lhe quasi rezar a ou-tros santos, pois se cria protegida pelos quatro parentes, maispróximos de Deus que os vivos. Sentia-se à vontade pedindopor eles em vez de rogar como fazia à Senhora das Mercês— a padroeira de Sítio —, hirta e brilhante, com o seu res-plendor de ouro, no nicho do altar. Ajoelhada sob o arco vo-tivo, tal qual o pai e a mãe, Sinhá persignava-se com o maisdoce culto, porém, ao contrário deles, logo soltava o pensa-mento pelos montes e vales da lembrança e do sonho. Nossuaves minutos da oração, o pensamento voava-lhe, às vezes,tão longe, que ela se esquecia de si como esquecia os finados.A reza dessa tarde conduziu-a à cidade. Novenas, missa can-tada, procissão, Te Deum, ficou tudo mais solene, mais bo-nito, na evocação desenhada sobre a fúria da volta contra o

-. w

«C; rr.„. ,.;:.;,.,,:¦.,»",- ,'...,,;. ¦..,¦• ..¦¦,¦.... e .¦.,.'. ' .. va~,e- -, . ,.,

22 REVISTA BRASILEIRA

escravo. Mas, recordando-o, Sinhá abateu-se, e acabou entris-tecida. Triste, não por o moço recuar dos olhares da Matriz;triste, sem saber porque. Deixou, entanto, a ábside com Eliasna memória, verificando que o botara no tronco por nada.Na noite do cruel castigo, como no ímpeto da chegada, ela sejustificava com o nome do escravo. A neta dos Rego, a filhade d. Ana, dizia a si, no seu quarto sem luz: "Se não queriagrito, se não queria tronco, tivesse outro nome." Mais leve deconciência depois de ajoelhar, ela não se arrependeu da injus-tiça, porém reconhecia haver posto no tronco o irmão de leitepor nada. A vassoura de arbustos chegava à porta da capelacom o ruído de uma brisa soprando pelo tijolo. Sinhá põe osolhos em Rita. A mucama varria curvando-se para o chão,no movimento ritmado dos seus braços roliços. Era uma ne-gra nova, bem feita de corpo, mais alta do que baixa, entregorda e magra, olhos e dentes muito alvos. Sinhá envaide-cia-se dela. Tirando o pai e a mãe, com mais ninguém falavatanto, na casa-grande; e a escrava adorava a senhora. Sen-tindo-a levantar-se, volveu para ela os olhos de oferenda, queacendia, sempre, ao vê-la. A dona dispensou-a, no silênciodos lábios, de outra coisa que não fosse varrer acocorada coma vassourinha de relógio, e, tendo-a feitorizado um instante,de novo se encaminhou para o altar, contente da sua arte dearranjar e florir. Pareceu-lhe que a Senhora das Mercês ti-nha nela os olhos. Apanhado aquilo no ar, não encarou asanta, baixou os seus. Mas tentou-a a necessidade de certeza:parou, consultou o nicho. Entronizada lá em cima, a santaolhava mesmo para cá. Olhar vivo e estante da primeira vi-sada. Insistido, impunha-se, penetrava na alma, detinha. Si-nhá teve medo, mas reprovou-se: não se tem medo dos san-tos, e a Senhora das Mercês era a protetora do engenho; es-forçou-se para não temer; ergueu a vista até ela. Os olhos dasanta cada vez mais a fitavam. Bondade divina, foi o quepassou a ver no reflexo da tarde imprimindo vida à imagem.Que a padroeira olhava por

"bondade, — a ela, que se batizaraali dentro; que crescera vindo vê-la como naquela tarde; quelhe era como filha. E recebeu por bênção o olhar seco e agudo,que não vacilava. Chegou-se, então, para o altar e fez se-

ROMANCE DA SOLTEIRA 23

gunda prece, crente e humilde como uma freira, — o mesmoque se os olhares da santa a houvessem ungido freira.

* *

No terço da noite, ajoelhando na fofa esteira de periperí,que acomodava os joelhos, o que primeiro Sinhá viu foramos olhos da Senhora da Conceição pequenina e tosca trazidade Pinharas pela mãe, ladeando o crucifixo com uma ricaSanfAna mandada trocar no Recife. Contrastando com os dacapela, os olhos bentos do oratório não olhavam, aceitavam,submissos, o olhar da moça. Sinhá revoca os que lá ficaramsem mais companhia que as quatro catacumbas da ábside. Detarde, eles fitavam; à noite, falavam. Lembrados diante daimagenzinha tosca, os da Senhora das Mercês iluminavam aalma da Sinhá daqueles dias, desmandada e opressora. Ajoe-Ihada com os pais na esteira fofa, ela interpreta que a imagemmostrava conhecer-lhe a inquietude. E como que a santa di-zia: "Filha, pecaste. Pondo no tronco o escravo que não fezmal a ti nem a outrem, pecaste. Pecaste contra o Senhor, queensina perdoar os que erram e não castigar os sem culpa. Pe-caste contra teu Deus, que manda vos ameis uns aos outroscomo a vós mesmos". A casa-grande de Sítio era casa dosbrancos e casa dos negros. Casa de luxo e gozo, mas casa deração e penar. Da sala de jantar para fora, André do Regocalculava, planejava, de par com imaginações de ócio, na redede varandas do copiar. Durante a sesta do pai, Sinhá ia e vi-nha pelo casarão de corredores nus, de grandes retratos nasala de visitas sobranceando severos móveis pretos, de escra-vas silenciosas cumprindo ordens gritadas. Ela girava emcasa como ave estranha num viveiro, para findar na rede doquarto, revivendo impressões, de que saía fatigada como sefizesse contas de cabeça. Da sala de jantar para trás, a mãeatenazava as negras. Chave compridona pendurada no cós,de vez em quando piparoteava com ela uma carapinha. A cas-ligada punha as mãos na ferida, entre lágrimas e ais. E o seusofrimento não coibia a mão fácil em bater e ferir. As ne-

¦',,-.,...,..,....,;,.,.,.:.., ,,¦¦'.., .,.":c;,,:.c..,;p>ri|..'í',.

24 REVISTA BRASILEIRA

gras: esta cosia, aquela fiava; uma engomava, outra varria.Tantos eram os serviços quantas as escravas prendidas neles.A quadra da cozinha fumaçava, quente qual tenda de ferreiro.Entre o fogão, os pilões, os alguidares e as panelas de barro,o laboro, começado de manhã, só findava à hora do terço.Mas, da sala da frente até cá, mandando ou fazendo, todos pe-cavam. Pecava a senhora de engenho, nunca satisfeita; pe-cavam as escravas, jamais conformadas. Casa de labor e reza,casa de pecado — Sítio. Ela Sinhá capacitou-se de, quantoa mãe e quanto as negras, ser outra pecadora. Pecava com assuas raivas e iras; e, naqueles dias, castigando o escravo semculpa, pecara mais do que todos. Sinhá rezou o terço com amente pesando-lhe da censura subentendida no olhar secoda imagem, e levantou-se da esteira dos brancos com a almaendolorida — uma como dor na carne, que a fazia gemerdentro de si.

XII

A conciência do pecado, não suscitando compensar o es-cravo com regalias, vexou Sinhá pelo anseio de absolver-se; ea neta dos senhores que derramavam salmoura nas costas la-nhadas dos negros não pediu perdão a Elias, pediu-o a Deus.Dando, porém, com o escravo na casa-grande, vendo-o vir damata, sentia-se a ponto de se conter para, ao menos, não lheordenar isto ou aquilo mostrando bondade. Elias é que atra-vessava a depressão da senhora sem dela dar conta. Ao revésdo que, tendo-se por culpada, Sinhá esperaria, êle, se ousavaolhá-la, fazia-o com gratidão. Atribuindo a sua dona o nãoter passado no tronco, além da noite, o dia, era-lhe grato pelasorte de viver perto dela, mesmo sujeito a seus caprichos.

Elias gozava calado o previlégio de ter sido o irmão deleite de Sinhá, que os negros invejavam irrogando-lhe pre-sunção. Quando foi posto no tronco, regozijaram-se; saído,juravam que se livrara pela mão da senhora. Na manhã se-guinte à crua prova, chegada à turma do eito a notícia dasaída, foi logo o que se disse; e o irmão de leite de Sinhá, dis-posto a crer, se nada falou, convenceu-se como eles. Voltando

ROMANCE DA SOLTEIRA 25

da mata detardezinha, ao descobrir Sinhá, levantou a mãopara a janela de modo que só faltava confessar ter cortado ofeixe de lenha daquele dia com ela no coração.

Elias trabalhava, de comum, com a lembrança a ruminarcenas de coito; súbito, pensava na senhora-moça: era comouma claridade do Céu no seu porco mundo de bicho. Catota,Narciza, as outras, algumas, já, com filho dele, recuavam,desfazendo-se com os quadros noturnos de mato onde as pos-suía, e, no espaço agora vazio, uma imagem se elevava, bela,divina, como os anjos da capela. Essa imagem era Sinhá, defeições idealizadas, que êle nem se atrevia a contemplar. De-pois da terrível noite, adorava ainda mais a senhora-moça.No momento em que, tendo-a diante de si, pôde pôr a vistano seu rosto formoso, não sentia o feixe de lenha premer-lhea cabeça, e os olhos se lhe encheram de lágrimas.

Mãe-Chica cessara de vir trazer a Sinhá novidades e pro-messas. A última vez que lhe falara, estando ela ao peitoril,foi no regresso dos sertanejos. Corrida pela "neta" (abobada,por mimo, assim lhe chamava), nunca mais a procurou, nema moça quis saber dela. Arguta para quanto sucedia na casa,a negra velha acabou compreendendo que a passagem dosdois homens mudara muito Sinhá: que tal vinda lhe trouxeraa primeira grande decepção de mulher feita, alterando-a so-bremodo. "Porque os contos mentiram, santo Deus? Não sa-beria o princês de cavalo rudado o caminho de Sítio? Não sa-beria onde morava a que nasceu para êle?" Em sua creduli-dade, a filha de negros da Costa criada no sertão cavara, semdar fé, a cacimba de transtornos, na qual a senhora, confiante,caiu. Enganara Sinhá, ela própria se enganando! Mãe-Chicatemia que jamais viesse marido para a senhora-moça, postoachasse isso difícil. Sinhá sofrerá. Mas o maior mal recaiuno resto humano cativo repelido por ela. Aguardentada deabusões, Mãe-Chica fazia ao desconhecido perguntas de ca-duca. Por que terras galoparia o princês de cavalo rudado?A certas horas, beirava a verdade inteira, deduzindo que aida antecipada de Sinhá a Mamanguape proviera da sua máfortuna com os sertanejos. Deduzia, mais, que de novo infor-túnio saíra o repente da chegada. O nenhum êxito da moça

26 REVISTA BRASILEIRA

desencadeara tempestade sobre tempestade: em cima dela pri-meiro, em cima do bisneto depois. Desgraçada sorte, a- de am-bos pagando sem falta pelas queixas dos outros! Mãe-Chicatemia por Elias e por si, temendo, mesmo, por Sinhá, emsuas vontades, livre como o vento. Imaginando castigo dasenhora-moça ao bisneto, a negra velha rezava à tôa, noscantos da cozinha, no terreiro do oitão, pedindo por êle. Mãe-Chica implorava por Elias a todos os santos juntos, — Elias,a seu ver, em risco e indefeso. Seu miserando fim de vidaestava sendo um acabar entre sustos e tremores, e ela poucodormia.

Insofrida após sua volta ao engenho, faltava a Sinhá des-canso para ocupar-se de Mãe-Chica. Pudesse ler-lhe nos olhoscomo lia nos fatos, ela o perceberia. Sinhá resvelava dos im-petos da senhora-moça filha única na comiseração de umadevota pelas misérias dos negros. Somente, não pensava emrecomeçar as secas da noitinha. Quem ela esperava no fimdos dias vazios era Elias. Penitenciando-se, consumindo-se,era a Elias que esperava, ao luzir das primeiras estrelas.Quando, na banda do rio, principiava a subir a névoa densado anoitecer e os pássaros, aos pares, voavam contra a mata,ela se punha a espiar para o caminho onde só poderia mesmover, de humano, o escravo lenhador. O vulto de Elias apon-tava marchando com o meio trote do carrego trazido de longe— um fantasma no crepúsculo. A estranheza da figura, a-pe-sar-de aguardada, surpreendia à inquieta. Porém Sinhá logoa ela se afeiçoava. Aproximando-se da janela, em que enxer-gava um nicho, o escravo reduzia o passo, e era humilde e va-garoso que retirava do feixe de lenha a mão fatigada, parapedir a bênção. Do lado de dentro, Sinhá estremecia de re-morso e piedade, admirando o que, humilhado, servia semrancor. Sumido Elias na esquina do casarão, ela considerava:não devia deixar-se ver tanto pela vítima do seu impulso, dasua malvadeza. Contudo, na outra tarde, não tendo o que fa-zer de si, ia para a janela da casa-grande, e, na ocasião de oescravo vir chegando com o feixe de lenha, lá continuava.Sem mais Mãe-Chica, sem as histórias da velha escrava, boasde ouvir, esperava por Elias. Penitenciando-se, consumindo-se

; *...-,..,- -a*...,.,:

ROMANCE DA SOLTEIRA 27

esperava por êle. Sinhá chegava a ter pena da sua solidãocomo tinha pena do escravo.

XIII

Reparadeira, bisbilhoteira, enredadeira, a-pesar-de moci-nha, qual Mãe-Chica, conquanto sem as reservas da negra ve-lha, Rita era, agora, a gazeta de Sinhá. Indo a meúde a seuquarto, acompanhando-a fora de casa, a mucama entrava dacozinha, do terreiro, do rio, com uma história. E a isoladaque já não demorava os olhos nas coisas presentes recebia asnovidades do engenho como pão do espírito, só aos sábados— o dia de feira na cidade — vindo de outra parte.

As escravas do serviço doméstico sabiam que o que fa-ziam, o que diziam, o que pensavam, chegava a Sinhá, em-bora também soubessem que, se mais não sofriam, deviam-noa ela, complacente quando não achava nos atos ou palavrasfalta grave. Rita girava do quarto de Sinhá à cozinha comoum foguete, a boca trancada, mas os olhos feitos duas brasas.A sua presença esfriava as conversas, impedia os gestos, ame-drontava; e o retraimento das outras não era motivo para asenhora-moça deixar de saber tudo quanto faziam. Porque amucama apanhava, na chegada, o que se dizia, como, porpouco que ouvisse, pegava no ar o que ocultavam. As negraschamavam-lhe "urubu de Pedro". Rita podia levar a Sinháo acontecido da cozinha, não só por escutar e depreender: saídode onde não se esperava, jamais faltou uma língua mexerica,um "bucho furado", como se dizia, para ajudar a enreda-deira. Depois que Mãe-Chica perdeu as graças da senhora-moça, Rita instituiu-se o correio que d. Ana tinha em contae a própria Mãe-Chica, céptica e maldizente, em sua decrepi-tude, respeitava.

Sinhá acolhia os enredos da mucama, interessada qual sedeles carecesse. Alguma coisa do que ouvia contava à mãe.Às vezes, não contava logo e ficava com aquilo na cabeça, ma-tando o tempo a julgar drama e personagens. Se o caso erados que irritam, não ia a d. Ana, agindo por si, assumindo opapel da senhora, com a ciência do a que assistia.

"'J. • ¦ .

'

28 REVISTA BRASILEIRA

Se siá d. Ana não põe cobro nessas negras que dor-mem fora, Sinházinha...

Desciam do curral — Rita atrás, com o copo grosso emque a Sinhá tomava leite.

E' Narciza?Ela mais Catota e as outras.

0 "urubu de Pedro" desembuchou sem rogo nem ordem,como costumava. Catota, pejada de Elias, queixava-se de Nar-ciza, mas queixava-se mais dele que da rival. De Elias: quedissera a Narciza gostar Catota de o morder quando os doisse ajuntavam. De Catota: por espalhar tal coisa, mentira ouverdade. Surdira isso na cozinha em seguida à noite do tron-co, não se atinava como; e fora um falatório, uma zoada,p'ra se ter medo do feitor, se chegasse até êle.

Sinhá deu razão à escrava grávida.E' o que o povo diz, Sinházinha: que Catota tem ra-

zão, — que, mesmo sendo certo, não era p'r'êle espalhar.E êle espalhou?De contar a um e a outro, não; mas todo mundo sabe.

Sinhá não incitou mais o pruído de falar, que a mu-cama traía na cara incendida, e subiu de cabeça baixa a es-cada do copiar. Entrada, Rita ganhou o corredor, deman-dando a cozinha.

Despejando no alguidar vidrado em que lavava o copo dasenhora água de um pote sò destinado às louças dela, Ritaalarmou-se com o que contara. Alarmava-se, não só por ha-ver contado, mas por ser o que era. Temia levasse Sinhá ocaso a d. Ana e que d. Ana, enfuriada, chamasse as outras,para botar tudo em pratos limpos. Os dedos, ainda finos, es-fregando o copo, Rita previa que, apanhasse quem apanhasse,o ódio das negras recairia nela — a leva-e-traz da casa-grande,por todas mal vista. Pegou-se com os santos, rezou. Feitodu esperado o mal, os pretos entregavam-se, como os bran-cos, a preces e súplicas à corte do Céu. Dir-se-ia que uns eoutros não cuidavam quanto deviam de se conduzir melhor,por confiança na proteção e no perdão divinos. Mesmo nacozinha, Rita rezava depois dos mexericos que ameaçavamzangar d. Ana. Dessa vez, quem se chegasse para ela, vê-la-ia

ROMANCE DA SOLTEIRA 29

mexer com os beiços, mostrando a ponta dos dentes lindoscomo pérolas.

— Estás pensando na morte da bezerra? — sacudiu Mãe-Chica do pilão onde, sentada, balançava-os ombros.

Rita revirava, no alguidar meio d'água, o copo da se-nhora, rezando uma avemaria.

*

Sinhá entrou no quarto, antes de vir tomar café, indig-nada com o que ouvira da mucama. Para ela, as duas sujei-tas de Elias não passavam de duas porcas. Porco maior, po-rém, era o que se afocinhava no cabeção de uma ou da outra,sem respeito aos senhores. O pai tinha razão: Elias, se so-frera inocente, pagava pelo que viria a fazer, como fez. Eela a ter pena, a achar-se em pecado, por semelhante traste!Sinhá assentou que tamanha vergonha precisava ter fim.Perorava mentalmente arranjando os cabelos, como Rita re-zava lavando-lhe o copo. O proceder do escravo ofendia aDeus e à casa. De que valia ajoelharem-se, benzerem-se, diri-girem-se aos santos, se, saídos da capela, corriam para o vício,para o pecado? Devotos diante da Senhora das Mercês, nasenzala e no campo, voltavam a ser o que eram: bicho bruto.Sinhá chegou a lembrar-se de, novamente, pôr Elias no tron-co. Mas, hoje, raciocinava, julgava, em vez de se dar a umímpeto irrefletida, como fizera.

Haviam começado as novenas de SanfAna. À noite,findo o culto, à vista dos escravos, que não se retiravam semque os senhores saíssem, Sinhá apagou, com Rita, as velas doaltar. Fechada a capela, assistiu observando descerem os ne-gros, o declive do páteo que guiava à senzala. Era um magotede silhuetas pretas, nas roupas de algodãozinho crú, afastan-do-se, espalhando-se, dentro da noite. Descido o declive, divi-diram-se para a dormida comum ou para os ranchos. Sinhávira, na capela, entre os mais, Catota e Narciza — esta laza-rina, a outra de barriga estufada; quis vê-las na dispersão do

•¦< ,

30 REVISTA BRASILEIRA

recolher. Talvez já saíssem da igreja de olho no sem-vergo-nha que as enganava, uma com a outra. Talvez caminhassem,à cata dele, curtindo o ciúme e o despeito, como podia serque o escravo se valesse da noite para fugir de ambas, co-cando terceira. Sinhá recolheu-se nada tendo tirado a limpo.Na cama, apagado candieirozinho do quarto, entrou a pensarnos amores dos escravos. Pelas duas gazetas da casa-grande,ela conhecia o drama, ou comédia, de cada negro e de cadanegra. Pedia por este, castigava aquele, mudada a sorte demuitos, podendo falar sobre todos. O caso de Elias comCatota e Narciza era, em Sítio severo, escândalo sem pare-lha. Elias abusava do bom trato que tinha. Bem dizia d.Ana: negro, dava-se o pé, queriam a mão. Como de outrasvezes, Sinhá propôs-se salvar a decência da casa. E que haviade inventar! No quarto sem luz, ouvindo os grilos, concebeucasar Elias, — casá-lo com Rita. Preso o pai de chiqueiro, asenzala aquietar-se-ia, não se perdendo a negrinha como tan-tas dos outros serviços. Sinhá enxergou no casamento dopagem com a mucama a volta do engenho à rotina das noites:á casa-grande em sossego e, lá fora, os casais dormindo na leido Senhor.

XIV

Crendo corrigir Elias casando-o com Rita, Sinhá houvede considerar neste absurdo: a escrava ia ter marido, ela não.Rita, que nada possuía e nada era, casava^e; a senhora, quelhe dava companheiro, nem sequer esperava um.

Quando, demanhãzinha, a mucama, com o copo na mão,veio buscá-la à porta do quarto, Sinhá olhou para ela ínve-jando-a, e, subindo, descendo, a ladeira do curral, notavam,como mais crescida, com certo donaire, — uma Rita gente,não descoberta d'antes. À vez de a escrava enfiar pelo corre-dor, o copo ainda branco do leite, à procura d'água, a se-nhora-moça sentiu-se tão só, que quasi a chama para pertode si. Naquele minuto, necessitava de companhia, de convi-vencia, de apoio, de Nana: para expor, para explicar: porquea solução vinda naturalmente, depois de encontrada, impli-

ROMANCE DA SOLTEIRA 31

cava-a como um erro. Seria por não estar acertando que sesentia tão mal?No fim do almoço, rezado o bendito, por impulso em

que se desobrigava, Sinhá deu ciência ao pai e à mãe do quearquitetara no silêncio da noite.Que idéia é uma? — exclamou d. Ana.De certo, minha filha — ajuntou o pai —, que lem-

branca!Ela:

Tem-se de casá-la, casa-se de uma vez.Mas, logo esses dois vadios, minha filha? — fez An-

dré do Rego de dentro da ordem do engenho, pois coincidiaandarem combinando sobre os casamentos a serem consen-tidos para a missa de SanfAna. — Logo Rita com Elias?!Com quem haveria de ser, papai?

O pai:Se, separados, eles fazem o que fazem, que dirá jun-

tos!Juntos endireitam no que têm de endireitar.Juntos endireitam... — repetiu, descrente, d. Ana

— Rita e Elias endireitarem... Casam: d'aí a pouco, ela dáp'ra ter filhos, e você mesma é que vai sofrer, minha filha.

Sofrer, o que, mamãe?*— De não ter quem lhe faça as cousas a tempo e a hora.

Ah, mamãe, por isso, não: que, marido e mulher,eles só podem ser acabada a obrigação.

A experiência da senhora de engenho redarguiu, comba-tiva:

E, quando Rita estiver de barriga?Dá-se um jeito.Que jeito, minha filha?Ora, mamãe! com tanta negra moça em casa!

André do Rego escutava como pai e como chefe. Com-preendido que a filha se obstinava, venceu as objeções dedono de Elias:

Você querendo, minha filha, faz-se; mas esse mole-que anda de merecer bacalhau dia e noite. Quem está de fora

32 REVISTA BRASILEIRA

não avalia o que esse biltre faz desde que se vê longe de suamãe e de mim.

Sinhá ouvia meio espantada do modo por que defenderao casamento. Pôs o pai à vontade:

Se papai nao leva a bem, eu, nem falo mais nisso.Não é levar a bem nem levar a mal, minha filha; é

que, casando, ou êle entra no regime, como os outros, oucaro lhe custará. Mas, casar deve ser prêmio, que nós só te-mos dado aos bem comportados, — a um Simão, a um Braz,a um Luiz Cocho; e Elias, você é que não sabe, jamais fezjús a prêmio. Suporta-se por prestar serviços, que os presta.

Isto é — testemunha a filha.Tirando d'aí, é o descaramento em pessoa.

D. Ana vira-se para Sinhá:Você tem visto queda entre eles?Ver, não tenho visto, mamãe. Eu é que achava bom,

p'ra acabar com essas traquinagens de Elias.Traquinagens?! — admirou-se o pai. — Pode-se cha-

mar traquinagens ao que êle faz?! Você é que não sabe, mi-nha filha, e não saiba.

Sinhá corava defronte de d. Ana com os olhos na toalha.O pai fita-a no rosto, e, julgando-a contrariada:

Se você quer de verdade, minha filha, arranja-se essepar de botas; a época de se casarem está na porta: faz-se.

Não dando desgosto ao senhor, papai, eu queria —insistiu ela, mas, aí, sem vontade real.

Pois a missa de SanfAna ai vem. Há dois marcados:serão três.

** *

Enquanto Sinhá subia com Rita a ladeira do curral e d.Ana, esquecida do Oficio de Nossa Senhora, que acabara detirar, dava as primeiras ordens na cozinha apenas com umanegra, de abano na mão, ajudando as achas, André do Regoassistia à ida dos escravos para o eito. Derreado na cadeirabaixa de assento de couro, o ar intratável, presenciava suce-

ROMANCE DA SOLTEIRA 33

derem-se na passagem, erguendo a mão direita e proferindo,voz sumida, o "bença" da regra. Dita a palavra, o senhor, des-cerrando os lábios no maranho da barba a D. Pedro semtrato diário, abençoava com um som gutural de pesadelo."Bença" — pedia o escravo; "Deus" — respondia o senhor,condensando nesta única voz o "bênção de Deus", de que sóse ouvia mesmo o que era divino. Se o negro devia ficar,para um mandado, uma indagação, um lembrete, o senhornão abençoava. O detido encostava-se ao paredão até que oúltimo da marcha desaparecesse na casa de purgar; então,tendo-se por chamado, vinha colocar-se visível. Elias espe-rou com o pensamento nos cavalos que deveria levar ao rio,deixando, adiante, os companheiros, não houvesse ficado.

Tu casas com Rita no dia de SanfAna.Depois, levantando-se:

Trata bem a negrinha, que é mucama da tua senhora,a quem deves agradecer. — E, sem interrupção — Vai paraonde ias.

Derreando a cabeça, Elias caminhou trôpego para a es-tribaria.

XV

Sinhá escolheu modo de anunciar a Rita o casamentoque a mucama nunca imaginara. Hesitava por embaraçada.Fazia-se, entanto, preciso falar, e falou. Rita arrumava oquarto, distraída com as flores da coberta vermelha, debruadade branco com o madapolão do forro.

Rita!Estou aqui, Sinhàzinha.Rita, eu me lembrei de te casar.Eu, Sinhàzinha?!Tu mesma.Casar, com quem, Sinhàzinha?Com Elias.Com Elias, Sinhàzinha?Com êle, sim.

34 REVISTA BRASILEIRA

Rita, que se atiraria na lagoa da várzea, no rio cheio,

para agradar à senhora, ousou contrariar:Ah, Sinházinha, eu queria me casar, mas, com Elias,

não.—- Não queres, porque?

Porque não gosto dele, Sinházinha.Não gostas!Não, Sinházinha; p'ra viver junto, não.

-— Um negro tão bem criado!Bem criado, Elias, Sinházinha?

Sinhá perguntou: qual era, em Sítio, o escravo acostu-mado como êle a viver perto dos senhores?

Mais do que Elias, nenhum, Sinházinha; mas, mes-mo assim, eu não queria êle p'ra marido.

Sinhá surpresa:Estou te admirando...

Rita afincada:Eu não contei a Sinházinha o jeito de que êle anda

com as negras, de noite?Sinhá quasi defende o escravo. Elias fizera o que fizera

com Narciza por ser Narciza; com ela Rita, não, não fazia.Com ela, seria outro Elias. Com ela, haveria de viver vigiado;e viveriam em paz, viveriam; bem.

Casar com uma como tu — aditou —, para um Elias,vale por achar uma panela de ouro. Vás ver como êle pula,de contente, quando souber.

Como Rita continuasse a resistir. Sinhá confessou quese lembrara de casar os dois para endireitar Elias, antes queo pai, aborrecido, o vendesse. Que Elias tinha sido o seu ir-mão de leite, e, vendido, ela teria pena. Negro comprado, an-tes de se acostumar, sofria de mais. Ir sofrer, não se adivi-nhava onde, por causa de tais bichas!

Rita, que ouvia de cabeça caída, olhou para a senhora.Por causa delas — reafirmou Sinhá —, pois são elas

que se oferecem, que inventam chamego.Que só depois de deixado fora de noite nasceram histó-

rias contra o escravo. Até aí, Elias fora um negro ordeiro,trabalhador, falando pouco. De manhã, lavava os cavalos; no

ROMANCE DA SOLTEIRA 35

correr do dia, fazendo o que se mandava; à tarde, ia buscarlenha; e nada de mau se dizia dele.

Rita não se convence e replica, como presa de horror:Eu estou vendo tudo quanto Sinhàzinha diz; mas, por

mim, por vontade minha, não me casava com êle.Sinhá sempre surpresa:

Chego a não te entender:Rita abrindo-se:

Sinhàzinha quer que eu lhe diga? Por mim, enquantoSinhàzinha estivesse solteira, eu não me casava: nem comElias nem com outro.

E, se eu nunca me casar?Ora, Sinhàzinha! Sinhàzinha está aqui, está no pé do

padre.No pé do padre, com quem?São tantos, Sinhàzinha!...Tantos, onde?Por todo canto, que moço rico não falta.Eu não vejo.Pois, não foi p'ra casar com Sinhàzinha que veio

aqui, "estrodia", aquele do sertão?Quem te disse isso, bestalhona!Eu maginei, Sinhàzinha.Sai d'aí!

Sinhá retorna a seu projeto, mentindo. Disse nada terfalado aos pais, para, primeiro, falar com ela, que era quemia casar. Como se contasse a vontade da escrava, num tempoem que ainda pais podiam dar filhas em casamento, à ma-neira antiga, tratando sem as ouvir. Seria uma união acer-tada. Casado Elias, a senzala se aquietaria, a mucama ga-nhando um marido.

Vencida, por não adiantar opor-se mais, Rita entregou-se:Sinhàzinha diz que é pVas negras endireitarem, eu

quero. Sinhàzinha manda, eu me caso.E' para o bem de um e do outro. Sabes lá o que é uma

negra moça que não se casa? Não vês Narciza? Não vês Ca-tota? Não vês as outras?

Pois é, Sinhàzinha.

36 REVISTA BRASILEIRA

Rita acabava a arrumação do quarto. Sinhá saiu, pa-rando no toucador da cômoda grande, onde d. Ana guardavacertas chaves. Tirou a do depósito das fazendas e chamou aescrava costureira. Escolheu com ela uma peça de chita,cassa e algodãozinho de roupas de baixo. Aberta a sala decostura, Rita trouxe o vestido de ajudar nos dias de hós-pede. Depois do almoço, ouvida d. Ana, principiou-se a .cor-tar: saia, casaco, camisa, como Sinhá mandava, meio esque-cida de Rita. E, a tarde inteira, a senhora-moça não se sol-lou de Veneranda. Fez a negra coser com luz, não tendo idopara a janela ao cair da noite, meio esquecida, também, deElias.

D. Ana, que, uma semana antes, cortara, com Veneran-da, para os outros casórios, deixando a cozinha só, vinha cá"meter o bico", como de outrem diria. Fazia perguntas, opi-nava, saindo mais lenta do que viera, a dizer consigo: "Pa-rece quando era menina, que me pedia retalhos de cambraiap'ra saio tes de bruxa". Porém Sinhà fazia aquilo por fazer.No fim da novena foi que recobrou lucidez, reparando queRita se virava, a furto, para o corpo da capela. Procuraria onoivo entre os outros escravos — supôs; e não errava. Ritaaceitava, pois, passadas poucas horas, o a quem tanto re-jeitara! Nem ela, então, desdenhava o porco-sujo! Sonsa! -i—exclamava em si, apagando as velas do altar. Sonsa! Sinhádesconfiou que, ao.envês do que mostrara, Rita ambicionavaElias. Secretamente, mau grado viverem como gato e ca-chorro. Talvez que, até, o enredo sobre o outro com Catotae Narciza não fosse senão ciúme. Querendo-o como elas, oumais, intrigava. Com aquela cara de penitente, fingida quan-to todas! Deu vontade a Sinhá de, ali mesmo, na frente das.imagens, na sombra dos pais, dar-lhe uma tapa.

Entretanto, ai de Rita — joguete no torvo episódio. Es-tando Elias na capela, buscara descobri-lo realmente, mas-como a um objeto de que não gostamos e nos deram sem pe-dirmos, e olhamos por nos pertencer. Observasse-a a senhora,,vê-la-ía segurar os castiçais atarantada, soprar a chama dasvelas, quasi, sem alma. Triste dela.

ROMANCE DA SOLTEIRA 37

XVI

Os escravos disperáavam-se no páteo, depois da novena,diante de uma lua fininha descendo, lá longe, por sobre osmontes e matos. Tal se irrompida do oitão da capela, ondeninguém, à noite, ia, Mãe-Chica tocaiava o bisneto. Encon-trar-se com êle à distância dos outros nunca foi caso de sus-peita; nem falar Elias à bisavó, ouvi-la de passagem, jamaisadmirou. "Bença, Mãe-Chica." "Benção de Deus. Quem soistu?" Um apelido cantava no escuro, e a voz da bruxa do en-genho seguia-o, no cheiro da terra ainda morna.

Bença, dindinha.Pára aí!

Elias deteve-se. Um ao lado do outro, esperaram que oresto dos negros desaparecesse. Na casa-grande, trancava-sea. porta que abria para o copiar e por onde os senhores entra-ram. Nem luz na sala se via mais. Sem a menor palavra,Mãe-Chica puxou o bisneto pela manga da camisa e, à so-cranca, levou-o para o canto do oitão formado pela saliênciada ábside. Ainda espantado com a ordem de casamento rece-bida de manhã, Elias deixou-se levar, como obedecera es-tacando.

Que é que tu tens?Eu? Nada.E como é que nem te benzeste, na igreja?Eu não me benzi, não?

Mãe-Chica afastou-se para o olhar de face, qual se o pu-desse ver, e repetiu:

Que é que tu tens?Eu estava vendo como este mundo é.Que mundo, moleque?Dindinha não sabe?Sabe, o quê?Que Sinhô me mandou casar com Rita?Isso é invenção tua.Invenção, o quê, dindinha! Sinhô deu ordem, hoje de-

manhã, na bença.

38 REVISTA BRASILEIRA

A bizavó renitente:E quem meteu isso na cabeça de sinhô?

Elias cuida fosse idéia de d. Ana.Que siá d. Ana, que nada!E de quem terá sido?E' de ser história dessa cabrocha. Vive aí de venta

acesa, farejando negro. Com a mestra que tem...Elias contou do desadoro em que estava, desde manhã.

Preferia ser preso a casar com a mucama, — com "aquelaluxenta". Casar mesmo, nem com ela nem com nenhuma,pois tinha o serviço da senhora-moça. E uma ordem assim,sem se esperar! Apertando a japecanga como quem seapoiasse, Mãe-Chica inquire:

Não é mesmo do teu gosto casar com essa enxerida,não, moleque?

Elias respondeu:De qüe serve não ser de gosto, dindinha, se sinhô

ordenou?A negra velha pôs-se a gingar, apoiada à japecanga.

Quando falou, vinha como de longe:Tua mãe morreu moça. Teu pai foi vendido.

Habituado às saídas da bisavó, sempre brusca, Elias in-lerpretou que ela insinuava um ato qualquer, como se o fimde seus pais houvesse sido escolha e não acaso. Que deviafazer em tão duro passo? A bisavó atendeu por nova incon-gruência:

Tu te criaste aqui dentro.Êle:

Porque me criei na casa-grande, eu é que é de casarcom Rita?

Tens que obedecer.Que era conformar-se — aconselhou a bisavó. Se era

conformar-se, conformando-se estava Elias.Se estás te conformando, casa.Pois eu caso.Casa e vive direito com ela.

Elias sublinha:Direito com ela...

ROMANCE DA SOLTEIRA 39

E porque não? Porque não és de viver direito comela, se te casas?

Direito com essa enredadeira, dindinha?!A bisavó concentrou-se. Depois:

Língua a guariba tem.E nós, vivendo como vivemos, sem jeito de se com-

binar um com o outro, era p'ra se casar?Teu senhor mandou: ou casas ou te mandam daqui

p'ra fora, como fizeram com teu pai.Elias não compreendeu como poderia sair de Sítio, sendo

negro do engenho.Vendido. ^y

Vendido, não. TEntão, casa.

Elias reflete, reflete. Rendendo-se:Eu caso.

Assentada a obediência, o escravo revoltou-se:Mas, dindinha, eu não acho modo de viver junto com

Rita.Não disseste que casas?Eu só sei falar com ela de cara amarrada, e ela só

fala comigo por cima do ombro.A bisavó empinou para êle o queixo pontudo:

Com cara feia ou com cara bonita, tens de casar.Casa, e não fica aí dando com a língua nos dentes, que negro,quando se queixa, é p'ra desgraça sua.

. Elias ouve derreado sob o invencível da sorte, que viachegar para si.

E' p'ra desgraça sua, — repete a bisavó. E negro doteu sangue não faz por onde. Teu pai nunca apanhou, nun-ca esteve no carro, nunca andou em tronco. Vendido foi, maspor briga com os outros. Trabalhava no alambique, e, quandosaía cá fora, ninguém podia com êle. Sinhô pegou a se abor-recer e findou vendendo-o. Mas, tu, tens feito por onde.

Por onde, onde, dindinha?—- Na tua sujeira com as negras.

E sou eu só? Não é p'ra ter mais negro no engenhoque Sinhô solta a gente de noite?

40 REVISTA BRASILEIRA

Que é, é, mas tu não tens tenência: tu vadeias comonegro forro; e teu senhor vê; todo mundo está vendo. Tu,que és negro da casa, sendo irmão de leite da tua senhora,quem trata do seu cavalo, quem faz os seus mandados.

À medida que a bisavó falava, a lembrança de Sinhá es-plendia na condição do escravo como uma estrela na noite.Que teria dito ela, ao saber de tal casamento?

E, se eu pedisse a Sinhàzinha, dindinha?Pedir, o quê, negro besta?Que ela não me deixasse casar?Ela botava logo nos ouvidos da mãe, e o Sol não se

jmnha sem çomeres "bacalhau".Mas, se eu pedisse a ela p'ra, também, não ser casti-

gado?Mãe-Chica remexeu-se com a japecanga fincada no chão,

arremedando:"Pedisse a ela"... "pedisse a ela"... Sai daqui com

o teu "pedisse a ela"! Negro bobo! Branco só se alembra denegro p'r'os servirem. Não pede nada! Pena p'r'o teu cantosozinho. Agüenta a canga e não urra. No dia em que fala-res, hás de ver peia no lombo; e, se não te aquietares, te man-dam p'ra longe, te vendem. Já te esqueceste que foi ela quemte pôs no carro?!

O bisneto protesta:Dindinha acreditará nisso?

A negra velha bramiu:— Cousa ruim! A avó de tua pai mente?

Elias redargue que ela estava de má vontade; que, de-pois da vinda dos sertanejos...

Quem te disse isso?!Vê-se, dindinha. Quem não vê que dindinha não vai

mais falar com Sinhàzinha, de tarde, quando eu volto damata? Há quem não veja?

Tremendo de ira, Mãe-Chica regougou:Com raiva fiquei, com raiva ainda estou. Mas foi

ela: foi a tua Sinhàzinha quem te mandou p'ra o tronco.Porque dindinha diz isso?Porque sei.

ROMANCE DA SOLTEIRA 41

Sabe, como? Dindinha jura?A bisavó levantou para o céu o olhar enevoado:

Pela luz que me alumia.E cruzou os indicadores na boca bamba, jurando.Opresso o coração qual se sobre êle tivesse uma mesa de

carro, Elias exigiu mais:A quem foi que Sinhàzinha disse, dindinha?Dizer, não disse a ninguém, ouviu-se.E quem ouviu?Veneranda.Veneranda?!Estava cosendo, ouviu quando ela saiu pelo corredor:"Mamãe, mande botar esse negro no tronco; mande, ma-

mãe!"Foi Veneranda que disse a dindinha?Ela mesma.

Elias não pôde falar. A carne morria-lhe sob a pele, es-friando até aos ossos. Pretendesse dar um passo, não conse-guiria. Na mente só lhe restava, e com calor de fogo, o terpassado a noite no tronco por mando da senhora a quemadorava. Branco não queria mesmo negro senão para serservido. Para branco, negro e bicho era igual. O pai vendidopor brigar, êle no tronco por nada. E Sinhàzinha, de seu,abençoando-o, como se não fosse ela. Branco, branco! A bi-savó tinha razão. Percebendo que o bisneto sofria, Mãe-Chicadisse, no seu tom imperativo, mais comoção que império:

Vai dormir.Mas, solta a língua fácil em chocalhar, não parou logo:

Dorme, que eles são assim mesmo. Quando se abor-recém, quem estiver na frente que arrede. Eu trabalho p'r'aoutra desde mocinha. Criei-a nos meus braços como tua mãecriou essa no peito. Vida só tive p'ra ela. Lucrei quê, nãopresto mais, vai pYum canto, molambo velho, apodrece ai.A filha, sem quê. nem p'ra quê, enxota-me, a modo que sefosse uma porca. Eu, que mimava as vontades dela, como amimei pirrititinha! P'ra tua mãe te dar de mamar, eu tinhaque ficar fazendo gatimanhas p'r'os olhos dela. O pago foiberro p'ra mim, tronco p'ra ti. E é-se de agüentar calado.

42 REVISTA BRASILEIRA

Elias escutava qual se fora uma história de outro tempo.Porém o fato que o feria de perto magoava-o muito. Si-nhàzinha o pôr no tronco, só, por querer... Que havia feitoêle, a não ser se chegar com o tamborete, como era costume?Se vinha do passeio zangada, que culpa tinha êle? Recordouas horas de dor, no tronco humilhante, e ainda se espantava,não compreendendo. Do que a bisavó afirmara, só definiamesmo o fato em si e a injustiça nele contida. Sinházinha opôr no tronco, — a sua Sinházinha! A bisavó dizia certo:branco era aquilo.

Mãe-Chica não parava; grunhia os conceitos de ruína hu-mana exaltada, que o bisneto, em seu espanto, já não ouvianem procurava ouvir. Um minuto assim estiveram: a bi-savó maldizendo e êle, cabisbaixo, olhos abertos e nada vendo,como nada escutava. De repente, porém, abre a boca, para,atinado, dizer:

Bença, dindinha?P'ra onde é que tu vás?

Movendo-se para os lados do engenho, Elias sai sem res-ponder. A bisavó não insiste, que os seus assim se despediam.Vendo-o ir-se, acompanhou-o um momento, pelo muito quesentia, mais com o espírito do que com a vista, e, erguendo amão magra e tremida, traçou uma cruz de bênção no ne-grume da noite.

XVII

0 banho que Sinhá dava no papagaio durou pouco, essamanhã. Ao entrarem da novena, André do Rego perguntarase ela tinha visto, quando os negros desajoelharam, os olhosde Elias para Rita. O pai falava sorrindo. Exigente, brabo nomandar, em família, êle não desperdiçava o cômico de muitascenas dos escravos, e o casamento de contrários que a casaia fazer, aborrido em princípio, acabou divertindo, pois, comodisse Elias, era mesmo uma união de gato com cachorro. Si-nhá retribuíra bom-humor com bóm-humor, a-pesar-de sor-rir e não sorrir, contando da ansiedade da mucama, ao apa-gar as luzes, furtando a vista das velas para olhar para trás.

ROMANCE DA SOLTEIRA 43

Sobre essa merenda de anedota caseira, pai, mãe, filha, agasa-lharam-se, bem com a vida como vinham bem com os santos,embora Sinhá fosse gastar, na cama, horas arquitetando aexistência do futuro casal. A dormida deles seria no quarti-nho de arreios dos viajantes. (Quando tivessem hóspedes, oque era raro, guardavam-se as malas, selas e freios no soca-vão do lado, até melhor depósito.) Faria Rita arrumar, cá emcima, tudo, antes do terço, para se recolher mais cedo. Divi-diria os encargos pelos dois, lembrando-se de que eram ma-rido e mulher, embora cativos. Tiraria Elias da lenha. Paranão ficar sem serviço depois do jantar, mandá-lo-ia' rachartoros, dos que vinham no carro, como êle já fazia nas tardesde chuva. Assim, não saía o escravo para longe da compa-nheira ao voltarem do eito os mais. Outra cousa: havia depôr cobro no assanhamento das negras de coito (Rita tinharazão) — nelas e nos mexericos da cozinha, que valiamquasi o mesmo. A noite de julho alongava-se, na arquiteta-ção do futuro, com o friozinho que faz encolher as pernas epuxar as cobertas para o peito. Plano bom, fácil, se ela podiao que queria, julgava Sinhá descansando na janela a coitéd'água do banho do louro, após rever as gaiolas dos pássaros,no alpendre do poente, tão mansos, alguns deles tão seus, queinterrompiam o canto ao vê-la chegar. Ela soprava no papa-gaio bochecho que rompia os gorgeios com o zoeiro de ummijão. Zurzido mas gostando da espadana bulhenta e fresca,louro abria as asas verdes desoprimindo-se, sacudia-se, tam-bém, com estrépito: sacudia-se tal se, como a sua dona, so-prasse forte, para abater-se com encolhimento que pareciafrio. Sinhá não lhe dava grande pausa. Ainda bem êle nãose acomodava no poleiro, atirava-lhe novo chicote d'água —sopro que, no momento, espantava os canários. Dessa fornia,esvaziava a coité que Rita trazia sem a senhora pedir, quandopára no páteo um cavaleiro. Sinhá volta-se. Era o pai. An-dré do Rego desmontou devagar, subiu devagar a escada docopiar e interrompeu com estas palavras:

— Está em que deu o tal casamento, minha filha.Como não somente Rita e Elias casavam no domingo de

Sant'Ana, Sinhá perguntou:

44 REVISTA BRASILEIRA

Que casamento, papai?Êle, mais próximo:

Ainda não souberam, cá em cima, que Elias desapa-receu?

Elias, papai?!André do Rego redarguiria a outrem, mesmo a d. Ana,

pelo menos, com enfado; mas a filha fundia-lhe na atencio-sidade de grão-senhor maiores enjôos e raivas. Morden-do-se por dentro, respondeu como para a consolar, atendendoa o que o escravo lhe era:

Está-se procurando. Já mandei gente por aí. Ondeestá sua mãe?

Diz isso e entra. Sem o menor fito, Sinhá abandona tudoe dirige-se para a cozinha. Aos primeiros passos, lembrou-sede Rita. A mucama já vinha procurá-la, com a notícia sabida àbeira do fogão, onde o fato agitava as negras.

Sinhàzinha...A senhora busca acalmá-la:

Papai mandou gente atrás.Rita descria:

Sabendo que apanha, êle lá volta, Sinhàzinha?!Sinhá interroga, no vago, entidade que não havia. Por-

que teria Elias fugido? Surdos à zoada dos pássaros, que can-tavam sempre diante do louro molhado, Sinhá olhava paraRita, Rita para ela, e nenhuma achava palavra.

D. Ana penetra no alpendre. As duas continuavam mu-das, olhos no papagaio, que sacudira a água das asas e, comtremor ligeiro, que se comunicava a Rita, esperava levasse-oela para o sol, como fazia sempre.

Viu, minha filha, em que dèu você querer fazer denegro gente!

O que eu fiz foi para bem, mamãe.E5 o que eu estou dizendo. Mas aquele negro preci-sava era de peia, não de estado, como ia ter.

Rita recuava, de costas, contra a segunda porta, que fe-chava de uma salinha passagem dando para o corredor.Tendo, contida, falado com a filha, d. Ana explodiu ao versaindo a escrava:

ROMANCE DA SOLTEIRA 45

Vás te escafedendo, sonsa. A culpada és tu.Eu, siá d. Ana?! — disse Rita, mais trêmula que o

louro e em termos de chorar.Tu mesma, que outra não se engraçava de uma peste

como Elias.Como tanta negra apus dele, siá d. Ana?Mas nenhuma pensou em casar.

Rita abaixou a cabeça abatidamente:Ah, siá d. Ana, pobre de mim...

D. Ana ia replicar com cólera, porém Sinhá antecipou-sedefendendo a escrava:

E\ mamãe. Quem culpa tem, se culpa há, sou eu.A mãe abrandou aparentemente:

Defende, defende, casa de misericórdia, que o pagoterás. 4i

E, mais dura, fita na filha:Quem é que ia casar?

Sinhá abrigou com os olhos a escrava, mas, dessa vez,faltou-lhe resposta. Na cena parada, d. Ana voltou-se de novopara Rita e ordenou:

Vai-te ocupar.Rita retirou-se, capionga, e já entrou na sala de jantar

chorando e não sabendo aonde ir senão ao quarto da senhora-moça. Sinhá encontrou-a refazendo a arrumação de maiscedo, os olhos vermelhos e as mãos bambas como se estives-sem dormentes.

Papai mandou procurar, e êle tem de ser achado. Ficadescansada.

Rita pôs-se a chorar, mais do que chorou, sozinha, pelocorredor, — como se arrumasse diante de outra escrava, nãodiante da senhora. Vendo-a assim, Sinhá postou-se resoluta,na frente dela:

Tu tinhas mesmo amor a Elias, Rita?Amor, amor — amor de querer bem, não, Sinhàzi-

nha. Mas, êle fugindo, como fugiu, quem é, nesse mundo, quenão tem pena?

Pena, de que?

46 REVISTA BRASILEIRA

Pois, nós não ia se casar, Sinhàzinha? A gente tempena.

E chorava. Sinhá entrou a também ter pena de Eliasfugir.

Êle será achado, mulher. Tem calma.Disse isso sem fé, porque negro fugido amedrontava-se,

pelos castigos certos, e acabava fugindo da fuga, não já do en-genho. No entanto, André do Rego confiava numa polícia dasdistâncias, do mato fechado, que, se levava a alguma parte,levava a outro engenho e à mesma escravidão. Ouvido, de-pois, o pai, que, meses antes, preara um fujão a poucas lé-guas das suas terras, as canelas e os braços feridos, faminto,quasi louco, Sinhá temperou-se do otimismo dele. Destemodo, puderam, os senhores de Sítio, transpor o restondasnovenas sem fechar de todo a alma. Rita é que, mesmo nacapela, D. Ana ali, não conseguia conter as lágrimas. Davana negrinha uma dôr de coração, e chorava, chorava, de, aca-bada a reza, ficar com vergonha e com medo.

(Continua).

VOLTAIRE E A INGLATERRA

Plínio Barreto.

Certa noite, em fins de dezembro de 1725 ou princípiosde janeiro de 1726, jantavam em casa do duque de Sully, àrua Santo Antônio, esquina da Praça dos Vosges, em Paris,várias pessoas das relações íntimas daquele descendente dogrande ministro de Henrique IV, quando um lacaio se apro-xima e, dirigindo-se a um dos convivas diz-lhe estas palavras:Sr. Voltaire: aí fora está uma pessoa que deseja fa-lar-lhe urgentemente.

O conviva, rapaz de cerca de 32 anos, alto, magro, levan-ta-se e dirige-se, rapidamente, para o exterior do edifício.Momentos depois regressa com a roupa estraçalhada, o rostoem fogo e brada, furioso, para os que, sentados à mesa, ocontemplam espantados:

Acabo de ser brutalmente agredido por vis capangasdo Cavalheiro de Rohan. Espero que os meus amigos, princi-palmente o duque de Sully, me ajudarão a tirar a vingançaque esse ato infame está exigindo.

Silêncio glacial acolhe essas palavras. Espumando decólera, Voltaire abandona o salão. Soube-se, mais tarde, comtodos os pormenores, que, dias antes, no camarim de Adrien-ne Lecouvreur, o Cavalheiro de Rohan tentara meter a ridi-culo o nome do poeta e que este, desabusado e atrevido, lhedisse cousas tais que o cavalheiro levantou a bengala paracastigá-lo e só não lhe partiu a cabeça porque, no mesmo ins-tante, Adrienne Lecouvreur, com a presença de espírito de

¦¦ '

¦ -yy;c

«¦* ' ¦ ;

-s

48 REVISTA BRASILEIRA

uma grande artista do palco, teve a boa inspiração de esten-der-se no solo, com um desmaio... Falhando-lhe, depois, acoragem para um desfôrço pessoal, o Cavalheiro de Rohan,alguns dias passados, fez chegar à casa do poeta um falsoconvite do duque de Sully, de quem era familiar, para um jan-tar em determinada noite. No correr do jantar, Voltaire, cha-mado à rua, foi assaltado por seis criados do Cavalheiro, osquais o sovaram rijamente. Enquanto Voltaire berrava comoum doido o duque, postado à distância, dizia aos lacaios:

Sovem-no bem, mas não lhe batam na cabeça. E' pro-vável que ainda saiam dela cousas boas.

O poviléu, em torno, enlevado, sublinhou essas palavrascom esta exclamação:

Oh! como é generoso este senhor!Dias depois, Voltaire denunciava a agressão nestes ter-

mos ao ministro do departamento de Paris: "Muito humilde-mente comunico-lhe que fui assassinado pelo bravo cavalheirode Rohan, ajudado de seis celerados, atrás dos quais êle, in-trèpidamente, se postou. Desde então, procurei, por todos osmodos, reparar, não a minha honra, mas a dele, o que éassaz difícil".

Voltaire vivia, então, à procura do Cavalheiro afim de in-sultá-lo e obrigá-lo a um duelo e como, na primeira oportu-nidade, executaria sem dúvida esse desejo, o cardeal de Ro-han, receoso do embate, pois conhecia melhor do que nin-guém a coragem do parente, pediu e obteve do rei que me-tesse Voltaire na Bastilha. Anos antes, em 1717, na Regênciado duque de Orléans, já merecera idêntica distinção, por ha-ver, em versos insolentes, dito coisas terríveis do Regente ede sua filha a duquesa de Berry... Na noite de 17 para 18 deabril de 1726, foi o poeta recolhido ao famoso presídio ondepermaneceu até o dia 2 de maio data em que, por ordem dorei, foi exilado para a Inglaterra. Há quem afirme que a idapara a Inglaterra foi determinada por um pedido do próprioprisioneiro. Parece-me, entretanto, que, conquanto de hámuito desejasse êle conhecer a Inglaterra, a viagem lhe foiimposta: teve o caráter de exílio. E\ pelo menos, o que mesenti autorizado a afirmar depois que li os termos da ordem

-' ~" < i - WB

VOLTAIRE E A INGLATERRA 49

pela qual o ministro da Justiça ordenou ao governador daBastilha, o sr. de Launey, que despachasse Voltaire para aInglaterra: "Acabo de encarregar o sr. Conde (o carcereiroda Bastilha) de uma ordem do rei para fazer sair da Bastilhao sr. Voltaire. O sr. conde de Maurepas comunica-me, aomesmo tempo, por carta de 29 do mês passado, que a inten-ção do Rei e de Sua Alteza o sr. Duque é que êle seja condu-zido para a Inglaterra. Assim o sr. Conde o acompanharáaté Calais e vê-lo-á embarcar e partir deste porto. Peço-vosque obtenhais do sr. Voltaire uma declaração, por escrito, deque se conforma com estas ordens".

Da Inglaterra, tão grande era nele o apetite de vingança,que Voltaire veio, certa vez, furtivamente, até às proximida-des de Paris para agredir o Cavalheiro de Rohan. Em cartaao seu amigo Thieriot assim o confessa: "Não procurava se-não um homem, cujo instinto de poltroneria o ocultou demim como se houvesse adivinhado que eu estava no seu en-calço".

Só dois anos depois, teve o poeta autorização para regres-sar da Inglaterra. A sua permanência nas Ilhas Britânicasdevêmo-la, portanto, à covardia e petulância de um grão se-nhor sem nobreza e ao despotismo de um governo para oqual a honra dos que não eram fidalgos nada valia. Em umabriga de camarim teve origem pois um acontecimento que,segundo a expressão de um crítico inglês, marcou uma mu-dança de rumo na história da civilização, porque foi o pri-meiro episódio de um longo processo de ação mútua entreas culturas francesa e inglesa. Alguma cousa boa traz, sem-pre, a desgraça. Sovas há que bem podem ser havidas comosalutares.

II

0 conflito entre o Cavalheiro de Rohan e Voltaire pro-duziu perdas e lucros. Perda para o Cavalheiro, que nele dei-xou a vergonha e a reputação; perda para Voltaire, que neleviu sacrificada a liberdade e a dignidade, e perda, finalmente,para o dono do palácio onde Voltaire jantava, o duque dè

:" "7-?í

50 REVISTA BRASILEIRA

Sully, o qual, devido à pusilanimidade que revelou, pusilani-midade ou indiferença, abandonando o comensal e amigo emtranse tão aflitivo, viu eliminado pelo poeta o nome do seuantepassado, o duque de Sully, do poema Henriade, em quecelebrou a glória de Henrique IV. Para que se avalie do quefoi a omissão do nome do duque de Sully no poema dedi-cado aos feitos de Henrique IV, suponha-se um poema es-crito no Brasil, em honra de Pedro I, no qual não se fizesse amínima referência a José Bonifácio...

Os lucros alcançou-os a humanidade. Vantagens do maisalto preço, como veremos logo mais, tirou ela, com efeito, docontacto intimo entre as duas culturas, a francesa e a brita-nica, que o exílio de Voltaire provocou.

III

Quando chegou à Inglaterra, Voltaire não era um desço-nhecido entre os homens de espírito. Chesterfield já o tinharevelado a esses homens. Voltaire e Montesquieu devem aesse Ia Rochefoucauld da Inglaterra, como lhe chamou Sainte-Beuve, o serviço de serem apresentados à inteligência inglesa.Mas Voltaire não tinha da Inglaterra senão a idéia de umpaís em que as artes eram honradas e recompensadas e emque a diferença de condições não implicava, entre os homens,outra diferença senão a do merecimento. Em carta a Thieriot,escrita antes de chegar a Londres, dizia êle, falando da In-glaterra: "E' um país onde se pensa livre e nobremente, semse ser contido por qualquer temor servil. Se pudesse seguira minha inclinação, seria ali que me fixaria com o propósitosomente de aprender a pensar".

Em Londres, para onde acabou transferindo-se definiu-vãmente, e graças à amizade e proteção de Bolingbroke, en-trou em relações com as grandes personagens da politica eda literatura. Pope e Swift tornaram-se, para logo, seus ami-gos. Swift ficou literalmente enfeitiçado por êle. "E' o maiorrapaz que ainda conheci", dizia êle. Por seu turno, Voltaire,apresentando Swift a amigos de França, escrevia, entusias-mado: "Eu sei que a sua reputação já chegou até vós e que

¦ 'yi;,y .:' '¦-<"."'¦'.

VOLTAIRE E A INGLATERRA 51

tendes o desejo de o conhecer; êle honra uma nação que vósrespeitais... Acho que considerareis prova de meu sincerodevotamento à vossa pessoa, a liberdade, que tomo, de vosapresentar um dos homens mais extraordinários que a Ingla-terra produziu". Dirigindo-se ao próprio Swift, a quem en-viava um dos seus trabalhos, assim se manifestava: "Sede in-dulgente para um dos vossos admiradores, que deve aos vos-sos escritos o apaixonar-se pela vossa língua ao ponto de pra-ticar a temeridade de escrever em inglês... Permiti que eugoze da satisfação de falar de vós da mesma maneira por queo fará a posteridade".

Mas o demônio do mexerico não deixava Voltaire. Foidurante a vida, o seu companheiro inseparável. Entre os seusamigos ingleses, figurava Walpole, que era adversário da rodade Bolmgbroke. Não tardou que corresse voz de que Voltaireera um espião de Walpole junto àquela roda. Um crítico in-glês, o sr. Lytton Strachey, observa, porém, que se assimfosse, Bolingbroke e Swift não teriam concorrido para avenda da Henriade, como concorreram. Bolingbroke só parasi, comprou vinte exemplares do livro e Swift não só arran-jou, na Irlanda, grande número de subscritores para o poemacomo traçou um prefácio para a edição de alguns livros deVoltaire que se fez em Dublin. Nem Bolingbroke se mostra-ria de tamanha liberalidade com um homem que o houvesseatraiçoado, nem Swift, naquele instante no cume da fama(durante a permanência de Voltaire na Inglaterra foi que se«ditaram as Viagens de Gulliver) desperdiçaria tantas aten-

ções com um malandro que soubesse envolvido no mais mi-serável dos tráficos à custa dele e de seus amigos.

Não foi só de espionagem que acusaram Voltaire. Acusa-ram-no, também, de traficâncias equívocas. Esta última acusa-•çao teria mais visos de probabilidade. Os escrúpulos nuncaforam o forte de Voltaire. Mais tarde, durante a sua perma-Jiencia na corte de Frederico o Grande, vê-lo-emos apanhadopor assim dizer, em flagrante delito de falsificação de do-cumentos com um judeu, que não se sabe se o embrulhou ouse foi embrulhado por êle. Nos últimos anos de vida, aindatara coisas que autorizam a duvidar da sua probidade Tais

;.-.;¦ y.yy-y;;; -yy y y: ¦¦¦¦

52 REVISTA BRASILEIRA

as que fez com o presidente des Brosses a propósito do arren-damento da terra de Tournay e da compra de lenha que, porintermédio do presidente, convencionou com um negociantedo lugar. A má fé com que, então, procurou interpretar ocontrato e fugir à obrigação de pagar a lenha deixou memó-ria indelével. O presidente, qúe sabia também dizer as cou-sas e era uma língua tão afiada como a de seu adversário,,acabou levando a melhor, o que lhe grangeou uma inimizadeterrível, inimizade que lhe fechou a porta da Academia Fran-cesa. Não houve calúnia, efetivamente, de que Voltaire seesquecesse para afastar da Academia o temerário presidente.Este, observa Sainte-Beuve, ao fim da narração desse curiosoacontecimento, este, o presidente de Brosses, por não ter que-rido presentear Voltaire com a madeira entregue por CharlotBaudy, não pôde jamais pertencer à Academia Francesa; e

(o que é mais grave) sua memória até este momento perma-neceria maculada com as imputações odiosas de dolo, comtanta impudência insinuadas por Voltaire, se a correspondên-cia entre os dois, ora publicada, não demonstrasse, positiva-mente, qual dentre eles era o homem honrado e qual o caiu-niador e mentiroso. Observe-se, de passagem, que essas caiu-nias secretas e murmuradas ao ouvido de tantas pessoas, nãoimpediram que, cinco anos depois, Voltaire, reatando as re-lações com o presidente, elevado então ao cargo de primeiropresidente do parlamento de Bourgogne, lhe escrevesse, a pro-pósito de um negócio, para o qual pedia sua proteção, estaslinhas: "Por mim, na idade em que estou, outro interesse nãotenho senão o de morrer nas suas boas graças"."O caos de idéias claras", como lhe chamou Faguet, era,também, um caos de sentimentos encontrados, ou, se prefe-rem, de patifarias nítidas. Mas a inteligência era nele tão pro-digiosa que toda a gente acaba sorrindo dessas misérias dohomem. Com tudo isso, e apesar de tudo isso o homem erafascinador. Frederico o Grande deu-nos a melhor prova deque assim era. A despeito de todas as queixas que teve deVoltaire, sem embargo de todas as partidas maliciosas queVoltaire lhe pregou e a que êle respondeu regiamente, não obs-tante os golpes na vaidade que Voltaire lhe vibrou, desço-

VOLTAIRE E A INGLATERRA 53

brindo mais ritmo na marcha dos seus regimentos do que nasestrofes de seus poemas, o rei da Prússia não resistiu ao de-sejo de, após a ruptura escandalosa que culminou com a pri-são de Voltaire em Francfort, reatar a correspondência comêle: "Bem sei, escrevia-lhe o soberano, que vos idolatrei en-quanto não vos supus intrigante e mau. Mas me pregastespartidas de tantas espécies... Não falemos mais nisso. Per-doei-vos tudo com um sentimento cristão. A despeito de tudo,destes-me mais prazer do que me fizestes mal. Em favor dovosso belo gênio, perdôo-vos todos os aborrecimentos que medestes em Berlim... todas as cousas que dissestes ou fizestesimprimir contra mim, fortes, duras, e em grande número...Sois a criatura mais sedutora que conheço, capaz de vos fa-zer amar de toda a gente quando o quereis. Tendes tanta graçano espírito que podeis ofender e, ao mesmo tempo, merecera indulgência daqueles que vos conhecem. Enfim serieis per-feito se não fósseis homem".

Dois anos após a morte de Voltaire, dizia Frederico ad*Alembert: "Todas as manhãs rezo por êle e digo-lhe: Di-vino Voltaire, ora pro nobis".

Era natural que, com esse poder de sedução, conquistasse,na Inglaterra, grandes amizades. Esse poder exercia-se atésobre as multidões. Conta-se, não sei se com fundamento,ou não, que, certa vez, em uma rua de Londres, o povo en-trou a persegui-lo aos gritos de "cão de francês", quandoêle, voltando-se para a massa fez os insultos transmuda-rem-se em aplausos só com estas palavras: "Bravos ingleses,já não sou suficientemente infeliz por não ter nascido en-tre vós?"

IVi

Para um homem, expulso da França só porque teve a ve-leidade de desafrontar a honra mal ferida por um fidalgosem nobreza, o que mais devia impressionar, na Inglaterra,era a maneira como os humildes viviam com os grandes.Passados estavam os tempos em que os barões, os bispos tra-tavam o povo como animais inferiores. A força desses "pe-

54 REVISTA BRASILEIRA

quenos salteadores", como dizia Voltaire, fora extinta pelopoder legítimo do rei e do povo. Porque era nobre ou por-que era sacerdote não estava o indivíduo, ali, isento de pagarcertas taxas. O camponês não mais trazia os pés machuca-dos pelos tamancos, comia pão branco, vestia-se bem e não searreceava de aumentar o número de seus animais nem de co-brir de telhas o tecto de sua casa, com temor da alta de im-postos no ano seguinte. A Inglaterra era um país onde nãose ouvia falar de alta, média e baixa justiça, nem do direitode caçar nas terras de um cidadão, a quem se negava a liber-dade de desfechar um tiro no seu próprio campo. Profundahavia de ser a impressão que causaria uma nobreza tão sub-missa ao rei e às leis em um homem que vinha de um paísonde, sem escândalo, uma senhora da mais alta fidalguia, ob-servava, com a maior tranqüilidade, sem a mínima intençãojocosa, aos que, à mesa de seu palácio, discutiam a danaçãoeterna:

— Senhores, tenho certeza de que Deus pensará duas vezesantes de condenar às penas eternas uma pessoa da minha qua-lidade.

Outra impressão profunda que devia causar em um ho-mem que ia de uma nação onde não se achavam ainda amor-tecidas as lutas religiosas provocadas pelo jansenismo e peloquietismo, e onde a autoridade dos teólogos da Sorbonne pe-sava como uma chapa de chumbo sobre os espíritos recalci-trantes, era a liberdade de crenças. Voltaire apressou-se emassinalar o fato desta maneira faceta: "O inglês, como ho-mem livre, vai ao céu pelo caminho que lhe apraz". A mui ti-plicidade das seitas pareceu-lhe uma cousa abençoada: "Senão houvesse, na Inglaterra, senão uma religião seria de te-mer-se o despotismo; se houvesse duas, elas se cortariam opescoço mutuamente. Mais há trinta, e todas vivem em paz,felizes". Naturalmente mete à bulha alguns costumes do cleroe não se priva do prazer de uma pequenina discussão teológicacom um sacerdote, a propósito do batismo. Como o sacer-dote afirmasse que o batismo pela água foi abolido por Cristoo qual, segundo a palavra de João Batista, só batizaria com ofogo e o Espírito-Santo, tanto assim que Paulo escreveu

VOLTAIRE E A INGLATERRA 55

numa das suas Epístolas, que Cristo não foi enviado para ba-tizar mas para pregar o Evangelho, Voltaire contestou quese encontrassem essas linhas em qualquer das Epístolas de S.Paulo. Houve, provavelmente, acrescentou êle, uma falsa lei-fura da Epístola ou uma falsa tradução, tudo obra de heréti-cos. O sacerdote pegou então da Bíblia escrita em grego emostrou a Voltaire a passagem controvertida. Dias depois,em discussão com Pope e outros sobre o assunto,Voltaire sus-tentou a tese do sacerdote. A discussão terminou com umaaposta de quinhentas libras e Voltaire, montando a cavalo,partiu em busca do sacerdote para lhe fornecer o texto exato.Obtido este, voltou a galope para o lugar onde havia deixadoos companheiros e, naturalmente, embolsou as quinhentas li-bras da aposta. Não é invenção nacional, como se vê, aquilode resolver, nas antigas câmaras municipais do interior, me-diante apostas, as discussões que se armavam.

Na opinião de Voltaire o que contribuiu muito para tor-nar livres os ingleses foi o comércio. A liberdade, por seuturno, fez com que o comércio se ampliasse. Na França, ocomerciante era desprezado pelo fidalgo, enquanto que na In-glaterra ousava comparar-se, e não sem razão, a um cidadãoromano. O filho mais novo de um par do reino não se jul-gava diminuído por se meter em mercancias. Não sei qualé mais útil ao Estado, concluía Voltaire, ou o senhor bem em-poado que sabe precisamente a que horas o rei se levanta, aque horas se deita, e que toma ares de grandeza enquantodesempenha o papel de escravo na ante-câmara de um minis-tro, ou o negociante que enriquece o seu país, expede ordensde seu gabinete para Surata e para o Cairo e contribue paraa felicidade do mundo.

Dos hábitos ingleses o que mais feriu a atenção de Vol-taire foi a vacina contra a varíola. Conta, a esse propósito,que a vacina foi inventada pelos árabes e adotada, desde tem-pos imemoriais, pelas mulheres circassianas. A indústriadessas mulheres era preparar meninas bonitas para os serra-

fc

56 REVISTA BRASILEIRA

lhos dos sultões. Os circassianos são miseráveis e as suas fi-

lhas são belas, escreveu Voltaire. Aprimoram as meninas,"en tout bien et en toute honneur", na arte de acariciar oshomens. Aquelas criaturas repetem, todos os dias, a lição de

galanteria com a mãe, como as nossas meninotas repetem ocatecismo sem nada compreender. Acontecia que, muitas ve-zes, depois dos maiores trabalhos para dar uma boa educa-

ção às filhas, viam-se os pais frustrados nas suas esperanças

porque as meninas eram atacadas de v£$jila- De observaçãoem observação vieram a verificar que tjj|> poderia ser pre-venido se se inoculasse a varíola, desde logo, nas crianças, in-serindo-se-lhes no corpo um bocado da moléstia, tirado de ou-tra pessoa. Essa descoberta foi levada a Londres pela mu-lher de um embaixador inglês. Feitas algumas experiênciasem criminosos, a própria rainha mandou inocular os filhos.Daí se alastrou rapidamente o hábito salutar, não obstante aoposição de alguns sacerdotes que consideravam a vacinaobra do diabo. Peço licença para assinalar, de passagem, queum dos primeiros lugares onde se fizeram experiências coma vacina foi o Brasil. Em 1730 e poucos, um missionário car-melita, tendo noticia da vacina, experimentou-a em índios dascercanias do Pará que eram dizimados, freqüentemente, pelavaríola. Foi esse padre a primeira pessoa, na América, queteve a idéia e a coragem de se utilizar da vacina. Mais tarde,outro missionário do Rio Negro seguiu-lhe o exemplo.Deu-se isto cerca de seis anos antes do aparecimento dasCartas Filosóficas de Voltaire.

VI

Aí estão três grandes benefícios para a civilização quetrouxe o exílio de Voltaire na Inglaterra: a revelação da li-herdade religiosa, da excelência social e política do comércioe da vacina contra a varíola. Maiores, talvez, foram, porém,os benefícios que essa viagem proporcionou à cultura espiri-tual da humanidade. Duas imensidades no domínio do espí-rito pôs Voltaire diante dos olhos da Europa: Newton e Sha-kespeare. Não se pode dizer que fossem ambos desconheci-

VOLTAIRE E A INGLATERRA 57

dos inteiramente fora da Inglaterra. Pode-se, porém, afirmarque só com a publicação das Cartas Filosóficas é que se espa-lhou pela Europa a fama daqueles dois gênios e das suas obrase foi despertada, em todos os homens cultos, a vontade de osconhecer a fundo. Bacon e Locke ficaram, também, devendoa Voltaire o serviço de uma publicidade preciosa. A culturainglesa, no que possuía de mais elevado e de mais universal,entrou, desde então, graças a êle, a fecundar o espírito euro-peu. Newton, após a publicação das Cartas Filosóficas, ficouliteralmente na moda. Shakspeare já não encontrou a mesmafacilidade. O próprio Voltaire, conquanto lhe proclamasse asuperioridade do gênio — um gênio cheio de força e de fe-cundidade, de natural e de sublime — apressou-se em assi-nalar que lhe faltava a mínima centelha de bom gosto e o mi-nimo conhecimento das regras do teatro. O mérito desse au-tor, acrescentou êle, num desses desmaios de argúcia tão fre-

quentes nos maiores críticos, o mérito desse autor deitou a

perder o teatro inglês. Há, disse êle, belas cenas, trechos

grandes e terríveis, espalhados nas suas farças monstruosas,que se chamam tragédias, mas não compreendeu bem o gêniodo assombroso psicólogo o qual foi para êle, principalmente,como escreveria mais tarde, um jogral bêbado. Não lhe es-capou o célebre cochilo de Shakspeare, no "Otelo", fazendoDesdêmona pronunciar algumas palavras depois de haversido estrangulada pelo marido. Escapou-lhe, entretanto, nesselance, o que é de admirar em comentador tão malicioso, a ob-servação que esse episódio, provocou a um crítico inglês:"Aprendemos, aqui, que a mulher, nem mesmo depois de es-Irangulada, perde a fala"...

VII

De Shakspeare pode-se dizer que êle teve a sensação do

gênio artístico mas não teve a percepção da profundidadepsicológica. Deu-se com êle, em relação a Shakspeare, o mes-mo que, em relação a êle, aconteceria, mais tarde, com Car-lyle. Garlyle não encontrou um só grande pensamento emtoda a obra de Voltaire, o que é uma revelação de incrível

.. .:-.\. ..-.. ..¦!"-¦. ,a wjroWTOÍiW -¦-,-¦

58 REVISTA BRASILEIRA

miopia intelectual. O soberbo ensaísta, com o espírito eno-voado pela metafísica alemã, de que se embebeu até à em-briaguez, não se deu bem com a claridade transparente, coma luminosidade faiscante da obra de Voltaire. Passou pelo ar-tista da frase e pelo semeador de idéias sem atentar que um eoutro eram espantosos. Entretanto, um alemão, Frederico oGrande, como vimos, soube descobrir em Voltaire o que nelehavia de excepcional, senão mesmo de prodigioso. A críticade Carlyle trai, ao par de uma estreiteza de visão, o velho eirredutível desprezo de um espírito enamorado de sistemaspelos espíritos cujo único sistema é não ter sistema algum.Carlyle não podia admirar um homem para o qual o espíritosistemático só servia de cegar as maiores individualidades eque tratava todas as cousas sérias, a começar pela religião ea acabar nas doutrinas filosóficas, com ar brincalhão e zom-beteiro. Voltaire tinha que ser para êle o tipo da criatura hu-mana que não é capaz de veneração e que, por isso, "fosse

presidente de cem sociedades reais, trouxesse na cabeça todaa mecânica celeste e toda a filosofia de Hegel, e mais o resumode todos os laboratórios e de todos os observatórios, não pas-saria de um par de óculos atrás do qual não houvesse olhos".A um espírito atormentado com o problema dos destinos hu-manos e que não perdoava aos que, tranqüilamente, desviavamos olhos da substância eterna das cousas, devia parecer infe-rior e desprovido de asas um filósofo que, escrevendo a umamigo sobre a doutrina de. Locke, lançou, rapidamente, nopapel estas linhas horrendas: "A única matéria filosófica deque trato ali é essa pequenina frioleira da imaterialidade daalma. Foi preciso dar-lhe um tom alegre para não ferir defrente* os senhores teólogos, indivíduos que vêem tão clara-mente a espiritualidade da alma que fariam queimar, se pu-dessem, os corpos daqueles que duvidam dela".

A justiça que Carlyle negou ao escritor, nunca lha recusa-ram os mais célebres espíritos ingleses, quer da época em queVoltaire viveu, quer das eras ulteriores. Ainda há pouco, esseartista magnífico que é Somerset Mogham proclamava, ras-gadamente, que Voltaire é o melhor prosador que o mundomoderno viu, acrescentando textualmente: "Se puderdes es-

'"•«**,

VOLTAIRE E A INGLATERRA 59

crever com lucidez, simplicidade, eufonia e, também, com vi-vacidade, sereis capaz de escrever com perfeição: escrevereiscomo Voltaire".

VIII

A Inglaterra, sob os diferentes aspectos da sua vida, prin-cipalmente da sua vida intelectual, vista pelos olhos de Vol-taire, devia parecer, naturalmente, ao resto da Europa, umpaís encantador. Mas com Voltaire todas as cautelas são pou-cas. Sob a flor de um elogio, encontra-se, constantemente, oespinho de um motejo, quando não de uma perversidade.Dele pode-se afirmar tudo, e o contrário. Inimigo acérrimoda religião, não houve, em certos momentos, defensor maiseloqüente da necessidade da religião. Ateu incorrigível, sus-tentava que se Deus não existisse seria preciso inventá-lo.Nada tão expressivo da sua atitude em face da religião comoo episódio narrado por Mallet du Pan. Conversavam, umanoite, à mesa de Voltaire, d'Alembert e Condorcet sobre a exis-tência de Deus, negando-a de maneira peremptória. Vendo orumo que a conversação tomava, Voltaire mandou que se re-tirassem os criados e, depois que eles saíram, voltou-se paraos amigos: "Agora, meus senhores, continuai os vossos ata-quês contra Deus; como não desejo ser estrangulado e rou-bado esta noite pelos meus criados, achei bom que eles nãovos ouvissem".

Deus, como notou Faguet, era, para êle, uma espécie dechefe superior da polícia, um guarda da ordem, um protetorda propriedade. Voltaire apresentava-se como deísta, masconfessava que nada exprimia tão bem a sua opinião sobre osEvangelhos como esta frase de uma senhora da alta aristo-cracia francesa: "A enorme distância em que vivo de Deus nãome permite que o ame sobre todas as cousas assim como aestreita vizinhança em que me acho do meu próximo não meconsente que o ame como a mim mesma".

Vêmo-lo, por exemplo, a exaltar a maneira como os in-gleses tratam seus homens de valor, cercando-os de considera-

60 REVISTA BRASILEIRA

ção e dando-lhes empregos rendosos. "Tal é o respeito deste

povo pelos talentos que um homem de merecimento, sem-

pre, progride ali". E cita vários homens de valor, que ha-viam obtido colocações esplêndidas ou fartas recompensas pe-cuniárias. Entre eles, coloca Newton, a quem foi dado o cargode intendente das moedas do reino. Em outro lance, porém,insinua, francamente, que o emprego não o obteve Newton

pelo esplendor do seu talento mas, simplesmente, por ser o tiode uma deliciosa rapariga, que caiu nas graças do chefe datesouraria, Halifax. "O cálculo infinitesimal e a gravitação,concluiu, não lhe teriam servido de cousa alguma se nãofosse a beleza da sobrinha". Uma carihha sedutora, na fres-cura dos seus 16 anos, pesou mais na balança de seus mereci-mentos que toda a sua imensa bagagem científica.

IX

Louvar sem motejar não é do f ei tio de Voltaire. Os ridí-culos só lhe escapavam quando eram os próprios. Os dosoutros, fossem de seus amigos mais íntimos, não os deixavasem uma flechada de ironia. A admiração aos ingleses, pormais viva que fosse, e foi bem viva, não lhe estacou a veiasatírica. Página deliciosa deixou-nos êle sobre os efeitos dovento d'Este no humor dos ingleses. A essas páginas pertenceo episódio que vou evocar. Passara Voltaire um dia encanta-dor na companhia de cavalheiros e senhoras ingleses. No diaseguinte, escreveu êle, encontrei, em um café sujo, mal mobi-lado, mal servido e mal iluminado, a maior parte daquelessenhores que, na véspera, se mostraram tão afáveis e de umhumor tão amável. Nenhum deles me reconheceu. Atrevi-mea provocar conversação com alguns. Não obtive resposta.Quando muito, um "sim" ou um "não". Pensei que, natural-mente, eu os havia ofendido gravemente, na véspera, sem darpor isso. Fiz um exame de conciência, procurei lembrar-mese, acaso, não haveria manifestado preferência pelos tecidosde Lyon contra os deles, ou se não havia dito que os cozinhei-ros franceses eram melhores que os ingleses, que Paris erauma cidade mais agradável que Londres, ou que se passava

VOLTAIRE E A INGLATERRA 61

o tempo mais divertidamente em Versailles do que em S.James, ou qualquer outra estupidez análoga. Como não mesentisse culpado de cousa alguma, tomei a liberdade de per-guntar a um deles, com uma vivacidade, que lhes pareceumuito estranha, por que todos eles se achavam tão tristes.Respondeu-me êle, agastado, que estava soprando o ventod'Este. No mesmo instante, chegou da rua um de seus ami-gos, o qual lhe disse, com ar indiferente: — Molly cortou opescoço esta manhã. Seu noivo encontrou-a morta no quar-to, com uma navalha ensopada de sangue, ao lado dela.Molly era uma rapariga bela e muito rica. Todos aqueles se-nhores eram amigos dela e receberam a notícia sem pestane-jar. Somente um deles perguntou o que era feito do noivo.Alguém respondeu, friamente: — Comprou a navalha. Pormim, horrorizado com morte tão estranha e com a indife-rença daqueles senhores, não me pude ter que não indagasseda razão pela qual uma donzela, aparentemente tão feliz,viesse a despojar-se da vida tão cruelmente. Responderam-meunicamente que aquilo era por causa do vento d'Este".

X

Esta narração faz parte de um projeto de cartas sobre osingleses que ficou em esboço. As grandes impressões da In-glaterra, as que desencadearam na Europa, sobretudo naFrança, quando conhecidas, um entusiasmo delirante pelosingleses e levaram muita gente a aprender o inglês, a ler osescritores britânicos e a proclamar a superioridade de New-ton e de outros espíritos ingleses, constam das Cartas Filosó-

ficas. A publicação dessas cartas provocou, na França, umareação violenta por parte da autoridade púbüca. A edição foiapreendida, o livro foi proibido e os exemplares apanhadosforam queimados. Não aconteceu isso, porém, tanto pelascousas que Voltaire contava da Inglaterra nem dos contras-tes entre a vida inglesa e francesa que, em detrimento desta,éle pôs em relevo, mas, principalmente pela idéia, que acudiua Voltaire, de adicionar àquelas cartas uma sobre os pensa-mentos de Pascal. Essas reflexões trouxeram a campo os ini-

f.>.-;*?.*;"¦;- "7-7!?'¦' ¦

62 REVISTA BRASILEIRA

migos do herege e o Parlamento, atordoado pela gritaria quelevantaram, caiu sobre o livro, com estrépito e vigor, ybl-taire, para não ser preso teve de fugir. Só parou no ducadode Lorena, onde caiu nos braços da marquesa de Châtelet, emcuja companhia viveu desde então até à morte dessa damaque Frederico o Grande cordialmente detestada e cuja mortelhe foi anunciada pelo próprio Voltaire, muitos anos depois,nestes termos: "Perdi um amigo de vinte e cinco anos, umgrande homem que não tinha outro defeito senão o de sermulher".

XI

Voltaire, notou Remy de Gourmont, foi o primeiro artí-fice autêntico da influência inglesa na França. Antes deleessa influência só se manifestara em algumas ocasiões. Apartir dele, tornou-se constante. Exerceu-se, regularmente, efez-se sentir tanto na filosofia como na literatura, quer na po-lítica, quer na ciência. Foi Voltaire, por exemplo, que des-tronou definitivamente Descartes e o substituiu por Locke epor Newton. Procurou êle criar uma França sob o modeloda Inglaterra de 1730. Conseguiu-o, em parte, pois qUe a In-glaterra, ao menos no que toca às idéias religiosas, caminhavaem sentido diferente.

Escrevendo das Cartas Filosóficas o crítico inglês Stra-chey observa que com uma extraordinária amplitude de com-preensão, uma plasticidade assombrosa de inteligência, Vol-taire tocou em cem assuntos do mais vário interesse e im-portância — desde a teoria da gravitação até às sátiras delorde Rochester, desde os efeitos da vacina até à imortalidadeda alma e sempre o fez com o espirito do humanismo levadoao ponto mais requintado. As matérias tratadas são tão múl-tiplas e tão vastas, foram dispostas e expostas com tanta agi-lidade, com tanto desempeno, com tanta simplicidade, que agente chega a admirar-se, no final das contas, de que tudoquanto é de significação real pudesse ter sido explicado. Mas,na realidade, o que, naquelas reduzidas páginas, foi traduzidoé simplesmente a filosofia total de Voltaire. Apresenta-nos êleum delicioso prato de creme batido. Sorve-se aquela guio-

VOLTAIRE E A INGLATERRA 63

seima leve e pergunta-se, impacientemente, se é tudo. No fi-nal das contas, é o bastante. Àquele doce espumante a suamão subtil adicionou uma gota de algum estranho licor —veneno ou elixir de vida? — cuja penetrante influência se es-palha até as mais remotas fibras do espírito. Os leitores fran-ceses da época, quando fecharam o livro, sentiram que se lhesdesvendava um mundo novo: um processo de desintegraçãocomeçou a operar-se no mais íntimo das suas crenças e sen-timentos; a rija estrutura da sociedade — da própria vida —a dura, escura, estreita, antiquada estrutura da sua existência,se lhes desenhou, repentinamente, num piscar d'olhos, comouma cousa sombria e desbotada.

XII

Esse livro marca uma data na história do pensamentofrancês. Não exagerará muito quem disser que a anglomaniafrancesa no século XVIII tem nele as suas raízes. Escreveu osr. Bellesort, do mesmo passo que assinalava a brevidade dassuas páginas e a aparente superficialidade das suas observa-ções: "Mas esse livro tinha um propósito e esse propósito foialcançado. Com êle quis Voltaire, menos descrever a civiliza-ção inglesa, do que mostrar a superioridade dela sobre a fran-cesa e ferir, através do governo representativo da Inglaterra,a nossa monarquia absoluta; através do seu alto comércio anossa nobreza; através dos seus filósofos e nossa filosofia eatravés da sua religião a nossa religião". Apesar das suas ine-xatidões, dos seus erros, das suas omissões, dos seus precon-ceitos e da sua documentação, algo apressada, as Cartas Fi'losóficas, conclue o crítico eminente, são o torpedo mais bemaparelhado e, a um tempo, o mais leve e o mais destruidorque u mpanfletário jamais lançou contra os couraçados deuma velha civilização",

XIII

Da Inglaterra trouxe Voltaire idéias e dinheiro. Mas nãose sabe que tenha trazido aquilo que um francês nunca deixa

64 REVISTA BRASILEIRA

de trazer: a recordação de amores. Não há notícia nem de

um "flirt" em que tivesse caído. Que diferença entre êle e

Chateaubriand. Outros foram, para este, do lado do coração,os resultados da viagem. Também o coração de Chateaubriandera uma pira inextinguível a derramar chamas que levavamo incêndio para todas as bandas. Chateaubriand, na Ingla-terra, abrasado de amor, quasi se prende nas correntes da bi-

gamia! Voltaire regressa de lá sem a mínima vibração senti-mental. Não nos espantemos. 0 coração de Voltaire pareciauma câmara escura e fria onde só, de longe em longe, en-trava, rápido e fugaz, o raio de uma afeição. Nunca lhe foidado mergulhar de corpo inteiro nas delícias de um amor

profundo. Nem uma grande paixão lhe iluminou a existênciae lhe deu a sensação de que este mundo se liga, por uma ponteinvisível, a um outro mundo onde tudo é suave e risonho.Raros nomes de mulher lhe estrelam, e isso mesmo por uminstante e com uma luz pálida e mortiça, o céu da existência:Duas ou três aventuras da mocidade, breve convivência comAdrienne Lecouvreur e a extensa ligação com a marquesa deChâtelet — e ai está a sua vida inteira de amor. De amor nãodigo bem, pois que amor não se encontrará nessas ligações.Nem a divina Emilie, como chamava à marquesa de Châtelet,despertou nele amor verdadeiro. Por essa transfiguração doindivíduo, cortada de tormentos e doçuras, de tempestades ebonanças, nunca passou êle. A marquesa mais o prendeu peloegoísmo do que pela afeição. Tornou-lhe fácil a existência e,inteligente e operosa, temperamento de homem num corpode mulher desprovido das graças do sexo, constituiu-se elauma colaboradora inestimável para os seus trabalhos intelec-tuais. A vida entre ambos foi mais de experiências científicasdo que de experiências sentimentais. Amor não podia inspi-rar, máxime a um homem com os dotes de analista frio quepossuía Voltaire, uma dama que, a dar-se crédito a uma dassuas primas, a marquesa de Créquy, era um verdadeiro co-losso, uma maravilha de força e um prodígio de "gaucherie",

senhora de pés terríveis e de mãos formidáveis, a pele lisacomo um ralo... "Enfim, dizia a marquesa de Créquy, com aindulgência de uma parenta próxima que só tem motivos para

VOLTAIRE E A INGLATERRA 65

detestar a parenta, enfim a bela Emília não passava de umgranadeiro vulgar. Para permitir que Voltaire ousasse falarde sua beleza, foi necessário, naturalmente, que a álgebra e ageometria a tivessem endoidecido... Foi sempre insuportá-vel com o seu pedantismo e com a sua preocupação de trans-cendência em assuntos de compreensão, quando, na verdade,confundia tudo que lhe metiam na cabeça, transformando aciência num guisado indigesto".

A filosofia com que Voltaire permaneceu ao lado da com-panheira depois que a surpreendeu em colóquio assaz íntimocom Saint-Lambert, mostra, com efeito, qué nunca sentiu porela amor algum. Se algum sentiu foi exclusivamente cere-bral. Não direi platônico porque êle não era homem para sen-timentos dessa natureza. O que parece é que Voltaire nasceusem o dom de amar. Faltou-lhe, sempre, a capacidade de com-preender e fruir essa cousa divina que é um coração de mu-lher. Delas só queria pequeninos serviços e elogios a fartar.Algumas, de exquisita sensibilidade, lhe passaram pela vidasem que êle avaliasse bem o tesouro moral de que eram por-tadoras. Uma delas foi a pequenina e deliciosa duquesa deChoiseul, um mimo de graça e ternura que, após longos anosde estreita amizade epistolar com Voltaire, o qual lhe prodi-galizoju as suas adulações mais adocicadas, se viu obrigada,pelo procedimento singular que êle teve num momento dolo-roso de sua vida, a dar o nome dele a um catavento que insta-lou no seu castelo de Chanteloup... Dominado pela avarezae pela vaidade, não houve lugar, no coração de Voltaire, parauma só mulher. Foi esse o seu mal. Faltou-lhe por isso àvida o perfume e a frescura que a presença da mulher que seama costuma comunicar. A flor de ternura que enfeita e em-balsamá as vidas mais duras, nunca abriu, no seu coração, ge-lado e seco, o encanto do seu sorriso. Os veiosí de sensibili-dade, que se surpreendem na sua prodigiosa correspondênciae nos seus panfletos acidulados, não partem do coração; des-cem da cabeça. São artifícios do seu espírito engenhoso paraacariciar a sensibilidade alheia. Voltaire atravessou a vida arepresentar. Foi o maior ator que ainda existiu. Mas não insis-tamos. Como também foi um dos mais perfeitos escritores

66 REVISTA BRASILEIRA

que ainda se viram, uma das mais vivas inteligências que aindadeslumbraram o mundo — não lhe recusemos, porque foiegoísta e seco, o preito de uma admiração imensa. Culpa nãoteve êle de não possuir, como Chateaubriand, o dom singularde fazer brotar amores em torno de si e de saber cultivá-los.Acredito bem que se a natureza o tivesse feito de outra ma-neira, êle gostaria de viver e morrer, como Chateaubriandviveu e morreu, num círculo amável de mulheres bonitas e,no entardecer da existência, se apressaria em recolher todosos amores que, ao longo da marcha, dispersou aqui e acolápara fazer deles um formoso ramalhete e depô-lo no seio cá-lido, e algo misterioso, de uma bela e carinhosa Mme. Ré-camier...

Os seus amores foram de outra natureza. Foram de na-tureza grosseira, mas de extraordinária virulência. Os seusamores foram, em primeiro lugar, por si mesmo e, em se-gundo, pelo dinheiro.

Poucos poetas, na verdade, e creio que ainda menos fih>sofos, amaram o dinheiro como Voltaire o amou. A sua cor-respondência está cheia de cartas sobre negócios, de instru-ções para colocação de dinheiro e de lamentações sobre pre-juízos pecuniários. Não estou longe de pensar que tais fo-ram os deslizes em que, por causa do dinheiro, caiu êle que, sevivesse em nossos dias e no Brasil, acabaria respondendo aprocesso, no Tribunal de Segurança Nacional, por crime deusura. E podem-se apresentar, na sua vida, para que até aios contrastes de que se tece o seu espírito não faltem, casosde generosidade e de filantropia realmente admiráveis...Compreende-se, no final das contas, que Frederico o Grandenunca pudesse saber bem o que êle era: se um demônio, ouse um anjo, ou se um macaco...

XIV

Mas, seja como fôr, pense-se do homem o que se pensar,deve-lhe a humanidade um serviço de alto preço. Da sua via-gem à Inglaterra veio-lhe ao mundo a revelação de um paísem que a liberdade de pensamento era uma realidade, em

VOLTAIRE E A INGLATERRA 67

que o povo deixava de ser um rebanho que os poderosos tan-giam à vontade e exploravam sem piedade e em que a digni-dade do indivíduo não era aniquilada por um despotismosem inteligência. A Inglaterra, após largos e cruciantes pe-ríodos de lutas entre os reis e os senhores e dos mais cruéisembates de caráter religioso, já caminhava, então, na estradada tolerância e da Liberdade, de que nunca mais se afastou,preparando-se para vir a ser o que, no presente é, o maisforte e o mais soberbo abrigo desses valores morais que, ele-vando e dignificando a criatura humana, fazem do homem umvencedor de animalidade congênita e lhe comunicam à vidauma nobre e severa expressão de beleza e majestade. A Ingla-terra já era, então, o que ainda hoje é — a esperança e o con-solo de todas as conciências oprimidas, o porto de salvamentode todos quantos, açoitados, aqui e ali, na superfície do pia-neta, pelos furacões da tirania, vagam sobre as ondas, agar-rados a esses tesouros mais preciosos que o de todas as mi-nas da terra — o direito de pensar livremente e o direito deviver na plenitude da sua personalidade humana, sem bai-xeza, sem abdicações vexatórias, sem o sacrifício de qualquerdessas riquezas morais que dão relevo ao indivíduo, goer-guendo-o na planície da criação, e lhe envolvem a vida, trans-figurando-a e diafanizando-a na serena doçura de um azulsem desmaios.

Da Inglaterra trouxe êle a semente das grandes idéiasfilantrópicas que, mais tarde, veio a pregar, das grandes cam-panhas de justiça que, do meio para o fim da existência, sus-tenta galhardamente, redimindo os pecados da juventude efazendo perdoar a longa série de bajulações aos poderososque lhe macularam o caráter. Da Inglaterra trouxe, numapalavra, uma noção mais elevada da personalidade humana edas liberdades públicas. Se o puritanismo inglês não o curouda maldade nativa, nem lhe aumentou o decoro, o contactocom a vida inglesa preparou-o, entretanto, para ser, no seupaís e no resto da Europa, que vivia de olhos postos nele, odoutrinador de uma vida coletiva sem exageros de intolerân-cia e sem demasias de injustiça. Se o menino que, aos 13 anos,despertou o interesse de uma mulher como Ninon de Lanclos,

68 REVISTA BRASILEIRA

a ponto desta lhe deixar em testamento pequenino legado, nãotivesse, quando rapaz, vivido alguns anos na Inglaterra, é bempossível que não se transmudaria no velho patriarca de Ferneyque, apesar de todas as suas ridicularias, de todos os seus de-feitos, de todos os seus vícios, grangeou, pelo esplendor dasua inteligência e pela amplitude dos seus trabalhos, uma ma-jestade tamanha que, diante dela, o velho Franklin, deslum-brado, pediu para o neto, que levava consigo, a bênção dopoeta e do filósofo.

HUMORISTAS NO PARLAMENTO DO IMPÉRIO

(Notas esparsas)"Wanderley

Pinho.

São os anais parlamentares — tão desdenhados e desprezadostaçao ao encarar muitos, senão todos os problemas naeionais cartade guia e inspiração governamenta). A mais rápida dJgSo ™por eles façamos nos convencerá também de não lhes filiarem Zliosas paginas de literatura.

Nenhunm instituição tem sido tão malsinada e tão veemente-mente apontada àa condenações da opinião como o parlamento.üm todos os países e em todas as épocas.Nos últimos tempos as campanhas e as pequeninas insistênciasda_ imprensa criavam entre nós, no espírito público, uma prevençãoamqmladora contra as câmaras. P^vençao<wíL fí

E "kutí5dade P°lítica", os gastos com "subsídios", aparlapatice inócua", a suspeita de "deshonestidade", de "adVo-

cacia administrativa", o escândalo de "cenas violentas" eram arti-gos de permanente acusação, também no mundo literário muito seduvidava da inteligência e da cultura no ambiente legislativoüi caso de lembrar a surpresa encantada de Humberto decampos quando, depois de, pela imprensa, haver naturalmente zur-zido deputados e senadores, foi representar o Maranhão na Câ-mara. Ele dizia jamais ter adivinhado a atmosfera de elevação men-tal e de erudição que, mais que nas discussões, nas palestras aliencontrara e respirava eom deleite.

Não se trata agora de defender o parlamento de tão feias im-putaçoes, tantas vezes veiculadas por muitos que estavam doidinhospor ter entrada naqueles recintos e se assentarem naquelas cadeirasO seu maior baluarte está no fato de, quantas vezes no curso'da historia o teem dissolvido por inútil ou maléfico, tantas lhe teemdado sucedâneo, ou apenas dividido em frações — pequenos con

70 REVISTA BRASILEIRA

selhos em que vigem os mesmos defeitos antigos, perdidas, entre-tanto, muitas das suas virtudes e vantagens, tais como o livre de-bate, a crítica aberta, a sensibilidade aos acontecimentos nacionais,a formação de correntes acerca dos problemas atuais e dos rumosfuturos convinháveis à nação, a revelação de aptidões políticas eadministrativas, o lavor literário das orações, o cultivo da arte daeloqüência, o apurar refinado do humour.

** *

Folheemos uns dois ou três tomos dos anais à busca de algu-mas cintilações de espírito.

A tendência dos debates é a paixão e esta leva à violência. Oorador parlamentar há de dizer o que tem a comunicar, há de des-truir os argumentos do adversário, e coibir-se para não deixar car-rear-se dos ímpetos que continuamente o estão solicitando paraagressões e asperezas.

Ironia, sátira, graça jucunda, chasco, sarcasmo, são diversórioàs ganas brutais do instinto oratório.

O riso pelo riso, a alegria intelectual, não como instrumento,mas como fim, como objetivo mesmo do discurso, ou melhor de par-tes do discurso, é hábito ou qualidade de saxões.

A oratória inglesa, e sobretudo a americana, exige o dito deespírito è não tolera qualquer arenga senão entremeada de anedo-tas e bons-mots. ,Nós outros somos carraneudos e solenes, e parece, quando su-bimos à tribuna ou falamos alto a um grupo que nos escuta, dever-mos cerrar o sobrecenho, ganhar distâncias e alturas e declamarcomo um decurião a seus censurados. Joaquim Nabuco, ao remetera certo amigo uma conferência feita nos Estados-Unidos, pedindo-lhe que a revisse e, se achasse demasiadas as graças de que a tinha

polyilhado, ao sabor norte-americano, delas expurgasse o discurso,sabia não serem do gosto brasileiro essas licenças de orador meioyankee.

Todavia houve sempre entre nós oradores que usaram do risocomo expansão da própria jovialidade, ou como amenizador de de-bates, e ainda como arma de defesa e de agressão; ou mesmo ex-pressão de cultura e maneira literária.

E é especialmente, ou quasi exclusivamente, no parlamentoque os encontramos.

Nem sempre, é verdade, souberam eles apreender em sua justamedida o sense of humour; abusando do chiste, alguns correram pe-

HÜM0RISM0 NO PARLAMENTO DO IMPÉRIO 71

rigo de se desprestigiar com o vício da chalaça; de outro lado o hu-monsmo era incompreendido e irritava a muitos, que o revidavamcom aspereza.Um dia Cotegipe teve no senado, de refutar um reparo vee-mente de seu colega Franco de Sá com esta explicação faceta: —

Poderei usar de alguma ironia, poderei empregar uma ou outraexpressão mais ou menos epigramática — mas em todos os parla-mentos acontece o mesmo. Assim como há os tenebrosos que vêmtudo em cores negras, há também outros que são mais alegres. Istode discussões no parlamento é como o vinho nos banquetes: a unstorna o vinho tristes, a outros joviais. Eu gosto de discutir commais alguma alegria; não vejo proveito em tornar tétricas estasdiscussões".Inhaúma, ao ouvir de um deputado que no Maranhão a espa-da estava acabando com a liberdade da imprensa, acudiu "Oh!...

isso é lúgubre!" — quasi debicando de uma alegação trágica. Za-canas então estranhou solene: — "lúgubre; é assim que se res-pondeV." E logo Inhaúma: — "Bidendum ãicere verum, quid ve-tatf W melhor cortar com três ou quatro palavras uma discussãoque se pode tornar desagradável do que dar-lhe alimento".

Podemos distinguir duas espécies de humoristas parlamenta-res: — o nato, espontâneo, que se desaltera em apartes picantes eintervenções hilariantes; em argúcias, motejos e trocadilhos; prontona réplica e ferino no remoque, amante da anedota, das sortidas doimprevisto galhofeiro, — e o humorista estudado, preparado, lite-rário, que acera farpas e envenena flechas, que afia gumes e vaipara as assembléias com um cheio carcaz oculto, trazido das leitu-ras e do silêncio dos gabinetes de estudo à espera do momento e daoportunidade e da vítima, para fazer zunir essas armas.

No parlamento do segundo reinado alvitramos os dois pólosdesse humorismo: — de um lado Cotegipe, do outro Lafayette.Junto ao primeiro arrolaríamos Martinho Campos, Seara, Paula

Cândido.Ao lado de Lafayette: Patroni, São Lourenço, Ferreira Viana.

Grandes inteligências do parlamento do império mostraram-sedesornadas daquele enfeite e galantaria: — Rio-Branco, TavaresBastos, Itaboraí, Ferraz, Fernandes da Cunha, João Alfredo, Cru-zeiro, Junqueira, Sinimbú, Dantas, os Ottoni...

Outras foram' ciosas desse dom, como Paulino, a quem basta-ria, para ser consagrado como homem de espírito, aquela sua frase,quando a 13 de maio de 1888, declarava ser breve em seu discurso

72 REVISTA BRASILEIRA

"para não fazer esperar dama cie tão alta jerarquia", a PrincesaIsabel, que descera de Petrópolis e aguardava no Paço, com penade ouro para sancioná-la, uma lei que ainda se discutia no senadoe a que Paulino corajosamente se opunha.

Saraiva é um daqueles que vemos passar entre as bancadas,pelos recintos e tribunas, sério e grave. Mal um dia fez sorrir acâmara aludindo à côr dos próprios olhos, quando dialogava comAndrade Figueira — "a diferença entre nós é que o nobre depu-tado vê tudo com cores negras, e os meus olhos são mais azues".

Seria a sortida mais ousada do seu humorismo.Mas não o julguemos incapaz de chegar ao polo oposto da vio-

lência.O plácido e álgido censor não era isento de paixão e deixava-se,

algumas vezes — digamos, com mais verdade, pouquíssimas vezeslevar de ímpetos. Metade da sua moderação era disciplina, eraorgulho que se continha para não se arriscar; mas lá um dia essesfreios se partiam...

Assim como havia calmos por auto-contensão, havia tambémviolentos por estudo e hábito, especialistas da oratória truculenta,mestres de incidentes, que usavam a eloqüência atemorizante comoum processo buscado, tanto que sabiam dominar-se quando eramister.

Silveira Martins não estaria longe disto, ainda que as suas ra-jadas fossem assopradas de sua própria espontaneidade e corres-pondessem àquela instintiva disposição de espírito que os homensdos pampas traziam de seus pagos: — a de levar de vencida opo-sições e contestações pela aspereza das palavras duras.

Ninguém passou além do tribuno gaúcho nesse jeito de dizerdesafogo com arte igual à veemência porque nele havia, o que eraexcepcional nos especialistas da violência, cultura e estilo.Seu tacape podia ter sido cinzelado por Benvenuto Cellini.Rachava o crâneo do inimigo com gestos de civilizado.Poderíamos extrair de seus discursos os melhores modelos doinsulto erudito.Lembremos este com que desancou um deputado: "o reverendoatiron-s.e a mim que sou de carne e osso, supondo que sou de feno.Hei de andar sempre às voltas com certos animais, porque souvitima de meu nome. Diz Noel: "Gaspar — chasseur d'âne sau-vage". iE quando recorria aos desenfados de seu humour — que bemo tinha — a facécia vinha sempre de braço dado com desmedidasforças de expressões: — "os ministros preferiram tragar esta hu-

HUMORISMO NO PARLAMENTO DO IMPÉRIO 73

milhação para conservarem por mais alguns dias as pastas e mante-rem as aparências de um poder que não possuem, porque nadamais redíeulo do que ministros que não passam de instrumentos!'/'•y. Inventou-se, sr. Presidente, creio que para V. Ex.(Paulmo) o nome de homem-idéia; para o sr. Barão de Cotegipeo nome de homem-gabinete; para alguém (o Imperador) o nome dehomem-viagem; o nobre ministro de estrangeiros (Diogo Velho, quepassara da pasta da justiça para a ãe estrangeiros) será daqui emdiante o homem-pasta"; — "parecer cujas razões atacam todos oscompromissos do governo e a palavra do Imperador; é verdade quepalavra de imperador não é palavra de rei que não volta atrás".Tão forte e belicoso como capaz de esquecimento e rico de ge-nerosidade, Silveira Martins, aniquilando um contendor ou am-

parando justiceiro um adversário, semelhava sempre uma bombaexplosiva, — mais orgulhosa do penacho d'água ou da nuvem ne-gra de fumo que levantava, do que dos reais efeitos que produzia.

Paraná, incapaz da injúria, era também rude e duro, e sabiaempregar violência como processo político.Consegue, por exemplo, a votação da lei dos círculos em 1856,numa câmara que em sua maioria seria prejudicada por essa re-forma, só pela segurança fria com que a arrosta, e pela firmeza

jupiteriana com que se impõe, ameaçando. Não convenceu. Inti-midou e venceu.Mas se não agride, adota na defensiva pessoal as mesmas ar-mas dos que o acometem. São célebres os seus encontros com D.Manuel de Assis Mascarenhas, lutas de gigantes da má criação, em

que o grande estadista não deixou sem réplica, artigo por artigo,todo o libelo de seu agressor, chegou a expor as contas meúdas desua fortuna, mas não conseguiu que D. Manuel aceitasse um de-safio para liquidar pelas armas a contenda.

D. Manuel só teria rival na grosseria pessoal em SilveiraLobo.Percebe-se nos anais como, por fim, havia em torno deles dois

um como círculo de indiferença a seus irritantes ataques, gélidoescudo com que se cobriam os que não apreciavam descomporem-seem bate-barbas quotidianos.

José Mariano não chegava a poder imitar Silveira Martins.Não que lhe faltasse inteligência, mas cultura igual. Tinha, porém,como o riograndense, a mesma capacidade explosiva que deflagravanos vários e muitos incidentes de sua curta e agitada vida parla-mentar.

74 REVISTA BRASILEIRA

Falta de bom gosto seria desfiar um rosário de diálogos arre-batados e de cenas de fúria, de que estão pontilhadas as páginasda história parlamentar brasileira — ou sejam os que, imprudên-cias de debater, infelicidades ou indocilidades de expressão, exces-sos de melindres, exageros de amor-próprio, tantas vezes perturbamas discussões, e nos' quais o vocabulário parece estandartizado —falsidade, calunia, caluniador, não temo, é V. Ex., insulto, enxova-lho, a injúria que fica no tapete, a ofensa que se mede pela peque-nez do agressor, e lá uma ou outra vez, não dirá isso fora do re-cinto, venha repetir cá fora; — ou sejam os grandes e graves in-cidentes pela magnitude dos assuntos que os originam, pela altitudedos protagonistas da pequena tragédia.

E' muito citado o episódio de Rio-Branco quando declarou, re-pelindo uma ofensa: — "o ilustre deputado não está em estado dedeliberar". Pareceu e ainda parece a muitos que aquele cavalheirogentil como uma dama se desmandara então numa afronta exces-siva. Mas o grande Paranhos apenas usara de uma frase regimental,a que o presidente, em casos extremos podia recorrer para chamarà ordem um deputado insubmisso. Foi solene e não passou alémde fórmulas previstas o grande estadista baiano, modelo de boasmaneiras e o homem que melhor disciplinou e conteve em regras deuma extrema civilidade os impulsos inevitáveis no convívio parla-mentar.

Vale recordar, pela exquisitice, como uma cena única na crô-nica do parlamento brasileiro, o incidente Paraná-Justiniano Joséda Rocha.

Isso foi em 1855, quando Honório Hermeto Carneiro Leão pre-sidia o ministério da conciliação.

Justiniano José da Rocha apoiava o gabinete na câmara, e odefendia na imprensa com a lucidez de pena que o destaca entre\osmaiores jornalistas nacionais, e aquele estilo simples e largo, queainda é um regalo para quem rebusca nos jornais de seu tempo.

Mas um dia contrariou a Paraná com um discurso em que ata-cava o ministério.

O chefe do gabinete da conciliação não era homem ide ter pie-dade com o amigo que assim o supreendia. Desferiu nm golpe dearrazar sobre o novo adversário: —¦ "ê tão flagrante a contradi-ção em que o sr. deputado se acha consigo mesmo, que longe deter en de justificar o governo perante o sr. deputado, é êle qne setem de justificar, da fase tão extraordinária, tão inexplicável queapresenta. Eu, portanto, dispenso-me de mais longa resposta".'

Justiniano lavra então a página mais original e uma das maiscomoventes dos anais parlamentares. Os taquígrafos, entremeando

HUM0RISM0 NO PARLAMENTO DO IMPÉRIO 75

as palavras que apanhavam com as notas do que se passava como orador, compunham, sem o saber, uma pequenina fita cinemato-gráfica, a que ainda hoje assistimos com emoção.

Nunca um homem veio, como êle, despir-se assim moralmentediante de uma assembléia. Expôs-se, por assim dizer, nú, com umafranqueza que seria ingênua se não partisse de quem possuía tantotalento, sem qualquer manto de reserva e conveniência, historiandoa própria vida nas suas mais íntimas minúcias.

A câmara pendia-lhe dos lábios, enquanto narrava seus come-ços, os jornais em que escrevera, o reconhecimento e~os favores dosgovernos a que defendera: "às vezes, senhores, eu que tenho famí-lia e família numerosa (o orador começa soluçando), pois além deter Deus abençoado o meu consórcio com numerosa prole, tambéma desgraça veio pairar sobre a minha família, levando-me meupai... (a voz do orador fica suspensa pela comoção e vários senho-res deputados lhe dirigem palavras consoladoras). Então o sr. Pau-lino em remuneração do trabalho insano da sustentação de um pe-riódico, dava-me, de vez em quando, um papel dobrado e nele algu-mas notas de 200$000 (o orador continua em prantos). E, senho-res (com força), eu vivia com família numerosíssima e digo estaverdade que não me pode ficar mal".

Justificava a remuneração de seus serviços de imprensa, noque não havia desar seu; e se o existisse não escapariam os minis-tros à pecha de dissipadores de dinheiros públicos, para corrupçãode escritores.

Paraná sob a impressão daquela cena inédita, epilogou-a nobre-mente ¦ levantou o debate, e, defendendo-se, tirou às expressões an-teriores toda significação pessoal, renegando-lhes qualquer propó-sito aviltante ao caráter de seu ex-amigo.

De entre os da classe dos estudados, preparados, literários, des-taca-se acima de todos os daquela época Lafayette. Se adotarmosUma expressão da moda, podemos qualificá-lo de humorista total,no sentido de ser a mesma a inspiração de epigramas e sarcasmos ea da ação política.

Há nele uma perfeita harmonia de forma e essência, de elo-quêrieia e de atitude.

E a fortuna lhe premiava por igual, no parlamento ou no des-tino, o cepticismo com que a desprezava.

Antes de mais nada, literato e artista, não lhe encontramos si-nais senão da serena calma do modelador que somente corre os re-posteiros do atelier quando pode mostrar a estátua esmerada e aca-

76 REVISTA BRASILEIRA

bada, na qual, todavia se percebe o labor minudente e torturado dequem buscara a perfeição. Debalde procuraríamos dele, nos anais,respostas prontas, apartes, intervenções instantâneas, choques sú-bitos de discussões. Há em cada episódio de sua vida parlamentaruma obra prima, taminada por medidas auridas das letras clássicase vestidas de uma harmonia de estilo que fazem honra às letrascontemporâneas.

Afonso Celso Júnior, que o ouviu na câmara, recorda-lhe comentusiasmo os pequenos discursos, de não mais de um quarto de hora,que abriam "imperecíveis sulcos na inteligência do auditório".

Num ambiente de derramados prolixos, não dava golpes emvão; só dizia o que bastava, não desperdiçava uma sílaba, não dis-sipava uma vírgula. Pode \ser assim conciso quem possue uma ri-gorosa tabela de valores e acumulara cultura, não na dispersão con-fusa dá curiosidade intelectual, mas na arquitetura de uma excep-cionál estrutura mental e literária.

Sempre na ofensiva, quer atacasse quer se defendesse, nuncase irritava na tribuna. Usando de uma técnica totalmente diversada de todos os seus colegas de senado e câmara, seu humorismo secomprazia de malignidade, de uma desearidade que diríamos selva-gem, se esse qualificativo não fosse incompatível com os requintesultra cultos de seu espírito venenoso.

Chiava o motejo, como um estilete candente, nas carnes dosque lhe eram vítimas, fazendo penetrar essas verrumas em brasacom tais meneios, que é lícito adivinhar a volúpia que encontravaao exparzir o vitríolo de seus sarcasmos.

Não se preocupava em ficar bem no debate em si; o que que-ria era ver o adversário trucidado. Desprezaria trechos inteirosde uma acusação, para não deixar de agarrar-se a um pequenonada que escapara a seu eontendor, e por onde iria torcê-lo, lu-xando-lhe as articulações, e fraturando-lhe os ossos.

Cândido Mendes havia feito um longo discurso de oposição aque Lafayette sucintamente respondia, mas aproveitava de um leveincidente, que a outro passaria despercebido, para d'aí aurir recur-sos ridicularizantes.

Leiamos este trecho que é saboroso: "começou o honrado se-nador seu exórdio, dizendo que entrava no debate aterrorizado.Esta frase não,foi senão um daqueles artifícios de retórica de queS. Ex. sabe servir-se com tanta habilidade. Não tinha razão parase aterrorizar. A mim é que S. Ex. causou uma espécie de ter-ror sagrado. O tom de brandura que deu ao seu exórdio, o perfumede santidade que ressaltava de suas palavras, e certas reminiscên-cias históricas que esse tom de brandura e esse perfume de santi-

HUM0RISMO NO PARLAMENTO DO IMPÉRIO 77

dade despertaram em mim, me puseram em estado de verdadeirainquietação. (E' preciso lembrar que Cândido Mendes de Almeidaera um ultramontano). Eu li nas histórias do século XVI que ha-via uma seita de homens que falavam uma linguagem tão branda etao perfumada de santidade, como a do nobre senador, mas queentretanto torturavam e cremavam os homens em nome de suassantas doutrinas! Ouvindo o honrado senador falar uma linguagemsemelhante, preparei-me para o sacrifício, mas bem depressa o meuterror desapareceu. O honrado senador prosseguindo no seu dis-curso, praticou a virtude da tortura, mas não torturou o ministroda justiça, torturou a lógica".

Brincava com a religiosidade, a carolice de Cândido Mendescom uma suprema graça, e ia buscar as obras do homem de letrase do jurista para seus sarcasmos.Tendo Cândido Mendes ao discursar pedido que lhe mandassemo relatório da justiça na parte que se referia à reorganização damagistratura, que discutia, ao receber o volume havia exclamado:"Que calhamaço volumoso, é um canhão Krupp". Lafayette nãodesdenhou essa insignificância para dela extrair farpas que veioenterrar sorridente no toutiço de seu antagonista: "Senhores, cau-

sou-me admiração a surpresa do honrado senador. Pois*que! Nãoé S. Ex. o inventor e o introdutor do calhamaço na literaturapátria?" E passou a contar o número de páginas do "Direito Ecle-siástico'?, cujo primeiro tomo não reunia menos de 1.60O. "Esselivro produziu uma revolução na arte de encadernar; tiveram os en-cadernadores de dividi-lo em três volumes: o 1.°

"da página 1 a

500, o 2.° da página 500 a 1.000, e o terceiro da página 1.000 a1.600". O senado ria a bom rir. E Lafayette passou a fazer igualanálise do "Auxiliar Jurídico", dizendo que nele Cândido Mendesincluíra com absoluta inutilidade, as epígrafes e as teses de anti-gos praxistas, somente "por amor ao calhamaço". E prosseguiu,sempre entre risadas, em crítica similhante, ao "Código Filipinó".

Diogo Velho, futuro Visconde de Cavalcanti, não tivera meias,medidas em seus ataques a Lafayette, exigindo explicações e satis-facões do republicano que se fizera ministro de Sua Majestade.Devia vir dizer e francamente se já era monarquista, ou então, nocaso de manter reservas, faltava à lealdade que devia ao monarca,em cujo contacto vivia. E censurava as maneiras parlamentares doministro da justiça — "Andou catando pelas enciclopédias e dicio-nários trechos de efeito para aplicar de uma maneira imprópria dequalquer membro do parlamento, quanto mais de um ministro dacoroa que tem deveres de moderação e gravidade"; é declarava im-perioso: — "Estamos no nosso direito de legítima repulsa, obri-

ii^iWl|_tiitiii.iyi>[i|aaa>aitii^íriiiriii^1- ¦,«_nfT|iai,ffi^ \>\9»www. ¦ " ,.¦ T"".,,..', ^'^M,¦L:T:|¦¦T¦¦V>'-^:¦lÍTf^.^^•T^-V•^•¦|^:¦'^^ ¦¦VC~~.*Z

78 REVISTA BRASILEIRA

gando o nobre ministro da justiça a guardar moderação quando sereferir a homens dignos de todo o respeito e que representam asidéias de um grande partido", cujos princípios, tais como os do li-beral, não tinha competência para aquilatar, "enquanto não decla-rasse claramente qual era o seu".

Lafayette ouviu calado aquelas interpelações violentas, e, dousdias depois, respondendo-as, disse que Diogo Velho lhe causaradolorosa impressão, por faltar à urbanidade, que os demais orado-res haviam usado para com êle, como era de esperar. "Os talentossuperiores, disse Lafayette, vivem, da vida das idéias, elevam os,assuntos de qne se ocupam, encarando as questões pelo seu ladogrande e nunca enxergam o pequeno, que, de ordinário constitue oentretenimento dos espíritos curtos e apoucados". Diogo Velho an-dará formulando hipóteses de dignidade e indignidade, e lhe fise-ra acusações pessoais que poderia revidar; limitar-se-ia, porém, a"repetir ao nobre senador o hemistíquio do poeta: Pueri, sacer estlocus, extra..." e passou a responder aos argumentos de ordem ad-ministrativa e política dó discurso do senador pelo Rio Grande doNorte.

Dava Lafayette um tom faceto e humorístico ao supremo des-prezo com que se descartava da discussão pessoal. Pueri, sacer estlocus, — Meninos este lugar é sagrado. Extra — ide la forafazer o que os meninos fazem nas fraldas.

Diogo Velho depois, em veemente discurso pela ordem e emapartes, protestou contra a citação "imunda", "indigna do sena-do, e fustigou o ministro da justiça de "funâmbulo político54', que"trancava e falseava os pensamentos conforme lhe convinha", e an-dava de "barrete frígio na algibeira da casaca de ministro".

E, afinal, achou ocasião de revidar em discurso a tirada humo-rística de que fora vítima.

Veio, irritado e ferino, numa alusão ao estrabismo de Lafayet-te, censurando-o por falar em "frases ambíguas no estilo própriode quem vê tudo obliquamente". A energia da frase estava à ai-tura do desacato, mas não se lhe nivelava certamente na forma li-terária: "a palha que rola no chão não ofende o pé que a calca.Dos conceitos do sr. Lafayette eu faço o mesmo caso".

Mas no ponto justo em que devia responder com as mesmasarmas, Diogo Velho não se portou mal: "procurando atrair-me oridículo, esse ministro ao concluir o exórdio do mesmo discurso,disse que não lhe sendo lícito acompanhar a discussão no terrenoem que eu a estabelecera, porque não podia discutir com franquezae liberdade, limitava-se a aplicar-me este hemistíquio de Pérsio:"Pueri, sacer est locus, extra... (o sr. taquígrafo fará o favor dedeixar o espaço em branco, porque hei de pôr na boca do honradoministro a imnndície que êle enguliu)". E, na publicação de seu

.¦¦ - 1 '..'.'.. 1 .... „¦¦ ¦,-.,',-,..,.¦.,,!

HUM0RISM0 NO PARLAMENTO DO IMPÉRIO 79

discurso, fez acrescentar a palavra — mijitc — que ambos não qui-seram pronunciar no senado.Tinha originalidade essa represália de espírito.

Cultivado e propositadamente lapidado o humour de Lafayette,como o seu cepticisnío, era desfarce e máscara de uma fria malig-nidade, qual a gente vislumbra e imagina, avaliando os excessos deque seria capaz.

Quando êle pesava, palavra por palavra, as expressões deuma carta, que faria ler na câmara, para despachar do gabineteque presidia um colega de governo, dava uma vestidura clássica aum canibalismo primitivo. Era caso novo e singular e era umlance de fereza capaz de deixar estendido como um morto — na suafama, na sua respeitabilidade, na sua carreira, no seu futuro —um companheiro de ministério com quem convivera até à véspera:"Peço licença a V. Ex. para dizer-lhe com franqueza, mas respei-tosamente, que seria um ato acertado a sua retirada do ministério.Coube a V. Ex. uma pasta alheia a seus estudos e hábitos; d'aíforça é confessar, tem resultado notável tibieza e a falta de conve-niente direção dos negócios da guerra. Peço-lhe mil desculpas poresta declaração que para mim é tanto mais dolorosa quanto é ele-vada e sincera a estima que voto à pessoa de V. Ex., em quem folgode reconhecer um cidadão distinto e correligionário digno de todaconsideração".

Mas ainda assim não era integralmente Lafayette. Contamque muito tempo depois, a alguém que com ele comentava o episó-dio, lamentou que o tacape não tivesse atingido a todos os minis-tros: "eu só me arrependo é de não ter feito uma circular".

** *

Ferreira Viana afinava as vozes de sua expressão oratória notom de quem soturnamente adverte para que se entre-ouvisse azombaria a sorrir, dentro da aparente profundeza da expressão.

Sua fisionomia é menos diabólica que a de Lafayette ou sequisermos dizer as cousas com mais clareza, enquanto há nele umdemônio embuçado num ermitão, aos recintos comparece Lafayetteescandalosamente vestido de Mefistófeles. Mas um Mefisto semgargalhadas.

Usa Ferreira Viana o estilo profético: — "na Bíblia os filhossofrem por causa dos pais, mas na política do Brasil os pais sofrempor causa dos filhos"; abusa da lamentação, e de uma tristeza amodo de inocente de que sabe tirar contrastes hilariantes. Ainda

80 REVISTA BRASILEIRA

quando exalam de seu discurso gazes mortíferos não perde o gestode frade, tão de seu gosto, e parece cobrir-se, ainda na tribuna, doburel de terceiro tão de seu uso.

Finge humildade ao provocar o riso à custa de si mesmo: naoveio motivo para o nobre deputado faltar comigo à complacência quetantas razões tenho para merecer dos outros homens, porque se-nhores, sou órfão de pai e mãe, sou viúvo, tenho enfim as duas tns-tezas de que se queixava o sábio Séneca, e que êle considerava as maisamargas desta vida"; "o pobrezinho de Assis, como lhe chamavaGregório IX, jejuava dias e dias, êle sabia porque — jejuar pre-cisava eu, e o não faço, falta-me coragem".

Os que os ouviram, os que hoje os lêem, admiram o lavor d'artedas composições humorísticas de ambos, tão diferentes no estilo, —

umas mais humanas, outras totalmente infernais — quanto iguaisno quilate intelectual. f

Existia neles uma certa similitude de estímulos e licenças.Lafayette, exibindo a sua incoerência de ministro-republicano,

e havendo sondado as friezas ou malícias sentimentais de Pedro II,até o ponto de perceber que podia contar com a escolha senatorialque o libertaria de toda dependência, não temia maltratar colegasministros, e despedi-los; mal responder interpelações parlamenta-res; brincar com as conveniências políticas e partidárias.'Ferreira

Viana, tendo-se na conta de impossível para o go-vêrno, sabendo-se marcado pela prevenção imperial que lhe bar-rava as ambições (que, se proporcionais a seus talentos e mentos,seriam altas e grandes) despeiava o pensamento de todos os hames.

As suas investidas contra o imperador, por exemplo, teem asgalas do que há de melhor na oratória nacional. Irradiam todas asforças, calores, impulsos e chispas do despeito, da justa reaçãode quem se sabia com talento, prestígio, o apoio de um partido, ser-viços, aptidões, e se sentia vetado pelo "lápis fatídico" do impe-rante. Disse-o numa frase de dupla aplicação, mas suficientementeclara para quem conhece os antecedentes: — "Reputo-me conde-nado";

Já que tudo estava perdido, restava-lhe a liberdade de tudodizer sem temor, causticando as "usurpações", como quem queria"seguir e perseguir o usurpador", increpando "ausência de gemonaquele que deveria tomar tamanha responsabilidade", qual a deum governo singular, de um só homem.

Atirando a seta diretamente ao alvo, retesava o arco a todaforça e elegância de sadios músculos: "si há alguém que se supo-nha com o gênio, eu lhe perdoaria a ambição; mas se só^ tein a am-bicão e lhe falta o gênio, parece-me uma pretensão ridícula".

HÜM0RISM0 NO PARLAMENTO DO IMPÉRIO 81

Assim castigava o "poder pessoal"; mas as preferências, fra-quezas ou qualidades de Pedro II não lhe escapavam tão pouco àsarremetidas. A propósito da convocação de um congresso pedagó-gico atirava dardos às veleidades literárias do imperador: "Senho-res, o amor das letras, das artes, das ciências, da astronomia nãoé incompatível com a própria tirania, quanto mais com os governostemperados". Contando como Ptolomeu II tivera a vaidade de que-rer ornar o seu palácio com uma biblioteca, dizia — "Reunir-se-á ocongresso, é provável que falem muitos, mas o resultado sensívelserá um livro para a biblioteca do rei Ptolomeu II".

Se o imperador se interessara pelas observações da passagemdo planeta Venus pelo disco solar, colabora na campanha que noparlamento, na imprensa, nas revistas caricatas andou ridiculari-sando essa iniciativa do imperante: "procurei no relatório do ex-ministro do império noticia que satisfizesse a minha avidez sobreo grande fenômeno, os resultados obtidos pela observação nacional,e finalmente a justificação do emprego do dinheiro; mas Venus porpúdica envolveu-se em véus, e não quis que os brasileiros observas-sem o seu contacto com o sol, e se alguma cousa dele se sentiu fo-ram as suas lágrimas pelo muito que sofreu".

A jocosidade picante se expandia assim de envolta com o sar-casmo às preocupações astronômicas do Imperador; a bonomia, po-rém, logo se contraía para que bradassem as objurgatórias: —"Tudo se tem abatido, é o produto da obra paciente e terrível deum passado de quarenta anos de usurpação, de mentiras e de per-fídias"...... "Varões ilustres, que serviram à causa pública, nasúltimas horas de sua vida recolheram-se tristes é queixosos""A nação não pode depender de um homem. Esta política é orien-tal e bizantina, atrasada, faz mal a quem exerce o poder e aindamais ao país"... "Quero que me governem pela lei e não me façamvítima dos caprichos de ninguém não podemos ser cúmplicesde uma política de ilegalidade do poder: cada um fique na sua com-petência".

Ao terminar em junho de 1887 o seu discurso sobre a licençapara o imperador, gravemente doente, sobre cujo estado mentalmurmuravam boatos, ausentar-se do país, parecia mais Lafayetteque Ferreira Viana, exclamando: — "Aquele que ainda ontem erasenhor do Império, hoje não é nem senhor de si! Grande lição!"

Esta frase que alcança os mais altos graus da atrocidade tri-bunícia, devia estar-lhe martelando os ouvidos, de envolta com asadivinhadas censuras que o cercavam, quando um dia se encon-trou ministro de Pedro II. Dignamente aceitara uma pasta aotempo da regência de Isabel; mas para desmoralizar com uma gar-galhada da câmara, em prévia e risonha defesa, capaz de liquidarzombando a acusação injuriosa; dizendo antes que lhe dissessem

82 REVISTA BRASILEIRA

— sublinhou, ao descrever uma prisão: — "em poucos momentospenetrávamos em um recinto baixo, para onde não se podia entrarsem se curvar a cabeça, como se entra no poder, diziam os antigos".

Como em todo humorista, muitas vezes a comicidade de Fer-reira Viana estava no modo, na forma de narrar, comentar, descre-ver: "Sou sinceramente conservador, sou... E quem conhece mi-nha vida particular sabe se o sou praticamente. Sou muito adversoa novidades, tanto que na minha casa não se muda o lugar do pote,porque quero saber onde êle está .para ir a qualquer hora da noitebeber água".

Depois da queda do gabinete Sinimbú, os ministérios liberaisse sucederam numerosos, freqüentes, efêmeros. De 28 de março de1880 (gabinete Saraiva) a 20 de agosto de 1885 (gabinete Cote-gipe) nada menos de cinco organizações: o primeiro gabinete Sa-raiva que durou dois anos menos dois meses; o gabinete Martinhode Campos seis meses e pouco; o gabinete Paranaguá menos de dezmeses; o gabinete Lafayette pouco menos de um ano; o gabineteDantas onze meses; o segundo gabinete Saraiva três meses e qua-torze dias.

Os liberais se cindiam, formavam-se as dissidências que hosti-lizavam seus correligionários ministros, levantando questões deconfiança, para cuja votação contavam com a minoria conservadora.E os ministérios iam caindo uns após outros.

"A maioria tem querido por vezes justificar-se conosco de seuspróprios atos, — dizia Ferreira Viana na câmara. Senhores, emboa fé poder-se-ia dizer que nós os conservadores fomos causa daderrota e morte dos dous ministérios antecedentes? (Zama —Causa eficiente, não; causa coadjuvante). Estávamos aqui todosreunidos: lá vinha sorrateiramente do campo contrário alguém quetomava a sua espingardinha, colocava-se na trincheira, escolhia po-sição, fazia pontaria, ajustava a arma de modo que a alça não fal-tasse ao alvo. O nosso campo estava aberto, entrava quem queria.Vinha um outro, tirava debaixo das abas de seu capote uma garra-cha boca de sino, com tiro e carga de comprometer até os compa-nheiros, disparava no momento dado contra o governo; fazia-se fu-maça; o vento levava-a, e quando nós dávamos acordo, estavam navanguarda aqueles que tinham dado os tiros e bem enfileirados comos outros; alguns até no comando, perfeitamente unidos com asforças batidas por eles próprios. Nós não podemos ser responsabi-lizados por essas evoluções".

Outro exemplo ainda do humour descritivo de Ferreira Viana.Estava quasi a cair o ministério Rio-Branco; falava-se em dissen-ções entre ministros, compostas por uma conciliação. Ferreira

'„.*¦¦ÍI

HUM0RISM0 NO PARLAMENTO DO IMPÉRIO 83

Viana dissidente, comentava, ironizando: "Não creio, sr. presidemte, nesta paz, porque ela foi feita a troco e a sacrifício não de idéias,o^ que é muito, mas até de certos princípios de amor próprio que di-ficilmente cedem. Não creio nesta paz; e a este respeito, quero sô-bre ela fazer uma imagem, recordando a V. Ex. um fato que acon-teceu comigo nas nossas vizinhanças..."Passeava eu uma tarde para dar um pouco de força ao meu játão cansado corpo... passeava eu uma tarde, quasi aó anoitecer. Ena rua do Catete, junto à secretaria dos negócios estrangeiros

(designo os lugares porque são muito conhecidos do nobre presi-dente) há uma casa que os portugueses chamam de pasto; ouvidentro um grande alarido, barulho, cabeças quebradas, gritos depedido de socorro, e me aproximei com toda à rapidez para ver oque era, tanto mais que já começava a tocar o apito, já a algunscorria o sangue pelo rosto abaixo, outros estavam estendidos nochão, outros espumavam, os porretes trabalhavam; era um ala-rido em todos os pontos; saí e olhei para o letreiro, um lampeãoespécie de farol que esta casa tem, e o dístico era — Paz entreamigos".

Os taquígrafos anotaram: — "Hilaridade geral e prolon-gada no salão e nas galerias".

** *

Se Lafayette era, como Ferreira Viana, céptico e calmo, am-bos refratários à irritação, diverso nos aparece Martinho Campos,tão desrespeitoso e cruel quanto suscetível e assanhadiço.O humorismo de Martinho Campos era todo instintivo. Nadade adquirido.Mal e apenas o pôde sofrear nos primeiros tempos de sua en-trada para o parlamento. Ganhando depois intimidades com ascâmaras — e o seu modelo político-parlamentar, discursivo e hu-morístico, necessitava dessa intimidade — não abriu mão das mais

pitorescas expansões. E atravessou toda a sua carreira sem des-pojar-se, na forma e nas idéias e atitudes, das exquisitices do "PaiMartinho", como êle próprio se crismara.

Se tinha, às vezes, uma sortida amena, chamando a GasparSilveira Martins, enquanto o grande gaúcho era ministro, de Gas-par de Sua Majestade, não lhe faltava amargôr, como quando aoterminar o mesmo Silveira Martins um discurso declarando fazerum sacrifício e esperar que o presidente do conselho lhe descul-passe o divergir do governo, sobreveio com desdém: — "Não há oque' desculpar mas somente agradecer".

^¦¦¦"<b'--.'::;,'V,/

84 REVISTA BRASILEIRA

O seu humour era polêmico. Provocava os incidentes porqueos estimava como uma espécie de sport. - "Estas tempestadesparlamentares e suas contrariedades, não sei porque, nao me in-comodam, e até parece que me alegram e me animam e desper-tam" E' no curso de uma delas, pela natureza dos contendores_ o

'presidente do conselho Martinho Campos e o presidente do

senado Barão de Cotegipe — um dos mais graves episódios danossa história parlamentar — que alega estas escusas: arrastamen-tos ou alterações de parlamento é cousa que jamais prejudicou a re-putacão de quem quer que seja em país nenhum do mundo; saocousas inevitáveis em assembléias os homens debaterem questõesface a face; uma palavra escapada provoca outra; e estes excessossó espantam a uma certa classe que não tem prática do parla-mento". Os membros do parlamento que tinham estado envolvidosem tais conflitos não perdiam o gozo das atenções que lhes eramdevidas. "No parlamento do Brasil, — dizia êle, —- nunca houveas cenas que freqüentemente se dão nos parlamentos inglês, fran-cês e americano. Isto não tem prejudicado em cousa alguma orespeito e as atribuições desses parlamentos, e muito menos os ere-ditos desses países, a sua prosperidade e o seu engrandecimento^.

Mas a verdade é que tais incidentes sempre chocaram a opiniãopública, e aquelas declarações de Martinho nada mais eram que umreconhecimento disso.

Efetivamente nos recintos de câmara e senado brasileirosnunca fora assistido um match de box, como aquele que descreveAusten Chamberlain no seu livro de memórias.

O estadista inglês tinha levado aos Comuns um amigo poli-tico de um dos condados, que visitava Londres e quis assistir auma sessão daquela câmara. Um debate quente acabou com doisdeputados aos tapas no recinto, ouvindo-se em meio da confusãouns assobios partidos das galerias. Chamberlain vexado, dava de-pois uma espécie de satisfação ao visitante; triste com a cenalamentável, e escandalizado pelos assobios; pois era a primeira vez.que se via a câmara vaiada, e eom razão. A isso o amigo de Cham-berlain explicou: "Fui eu que assobiei, não ao decoro da câmara,,ou sensível ao escândalo da cena, mas aos dois homens que briga-ram, pois nunca vi jogar-se tão mal o soco".

As intervenções e manifestações hilariantes^ de Martinho da-riam para uma pequenina antologia, um florilégio cômico.

Lembremos uma. Certo conveneionalismo de modéstia e inam-bicão como que obrigava o parlamentar e o político a dizer quenão desejavam as posições ou faziam sacrifício em ocupá-las, an-siosos por abandoná-las. Martinho Campos sacudia com um pi-parote a poeira desses fingimentos. O caso é que, falando Cote-

HUMORISMO NO PARLAMENTO DO IMPÉRIO 85

gipe, dizia que Dantas ainda havia de ser ministro, posto decla-rasse que não queria. Dantas aparteou confirmando — "E nãoquero, é exato". Ao que o orador, voltando-se para Martinho, co-mentou: — "Neste ponto mais franco é o nobre deputado por Mi-nas que diz aceitar". E Martinho, sem tir-te nem guar-te, maisque desembaraçado: "Desejo". Aquela franqueza desconcertava,e Dantas julgou dever ratificar a sua declaração de desinteresse,intervindo: — "Pois eu não desejo".

Parece que estamos a ver o piscar de olhos do mineiro-flumi-nense, e a sua fisionomia banhada num relâmpago de sarcasmo:— "Tomara eu que ninguém o quisera ser".

Tal recurso de jogar com a própria pessoa para os efeitos deseu humorismo não o usava apenas para esse sublinhar crítico dealheias insinceridades, mesmo de correligionários. Era-lhe tam-bém maneira de enfraquecer adversários: "Também não me arre-ceio de atirar agora sobre este tapete grandes absurdos, porquedepois que apareceu aqui esse projeto do governo, de que o nobreministro da guerra faz parte, suponho que estou igualmente nodireito de trazer para a discussão os maiores absurdos. Peço aonobre ministro da guerra sua atenção para o meu plano de orga-nização do exército".

Não se esquivava outrossim da inverossimilhança, desde queela tivesse efeitos hilariantes. Assim acusava, certa vez, aos apar-tistas perturbadores que chegavam ao ponto de apartear antes dese discursar: "Este fato já se deu uma vez nesta casa, disse Mar-tinho^e não sei mesmo como o taquígrafo pôde apanhar... Naprimeira sessão depois da composição do gabinete, se bem me re-•cordo, devendo falar um ministro, não sei sobre que assunto, umdeputado da antiga maioria, habituado a dar apoiados, antes queo ministro tivesse proferido uma só palavra, antes mesmo que ti-vesse dito — sr. presidente — esse ministerial deu-lhe um tãoestrondoso apoiado que perturbou o ministro".

Noutra ocasião dizia: "O sr. conselheiro Manuel FranciscoCorreia é um homem muito bom, mesmo muito bom, tão bom quejá está no senado sem eleitores, nem província que o elegessem..."

Raro não era, com a ehulice de expressão e o jeito amatutadode falar, surpreender o parlamento, provocando o riso: "Acrediteque se nesta casa toca a alguém o direito de censura é àqueles quenão acompanham o governo, e não àqueles que estão montados nogoverno".

Nem lhe faltava graça para o trocadilho: "Um país em queo rei já se não diz — Nosso Senhor — embora continue de fatoa sê-lo..."

86 REVISTA BRASILEIRA

Agora uma amostra de imprevisto. Falava êle sobre impôs-tos novos na Paraíba, e chegou a vez de referir-se a: — "sessenta

réis por quilo de sabão", exclamando, então: "Não querem que Iase lave roupa". Aparteou Florêncio de Abreu: "esse é o preço doobjeto", para ser logo prosaicamente corrigido por Martinho: "Eu

creio que compro aqui para meus escravos a 120 ou 140 réis oupouco mais o quilo; não vamos exagerar". E como Gusmão Lobointendesse — "Então é muito barato aqui o sabão" — surge Mar-tinho com este inesperado oferecimento: "Se V. Ex. quer, tal-vez em porção maior se obtenha por menor preço, e fico muitoagradecido; o meu fornecedor talvez faça alguma diferença".^ #

Entre as gargalhadas da câmara Gusmão Lobo teve o espíritode aceitar a proposta — "E' favor pessoal" — prolongando a hi-laridade.

Da bonomia e ao mesmo tempo espontaneidade de réplica deMartinho tem-se boa idéia ao recordar este diálogo: — "Ali (SãoJosé do Córrego d'Anta), estando-se a fazer o alistamento, umamultidão precipitou-se sobre a mesa, rasgou livros e papéis, fi-cando o juiz de paz intimado para não mais se dizer tal. De sorteque, sr. presidente, nessa paróquia até hoje não vai um oficial,de justiça intimar jurados, e nem a algum mau devedor; não háconciliação, nem se faz um auto de corpo de delito; é um lugarinteiramente sem autoridade (Ratisbona — "E acrescente que nãose dão crimes). E é certo que vão por lá vivendo bem.

Zama — Talvez eu me mude para lá.Martinho — Tomando em consideração o aparte do nobre

deputado pela Baía, devo avisar de que esse bom viver que lá setem nasce de um certo respeito mútuo, porque quando alguémaparece a perturbar a ordem os outros caem-lhe de pau em cima...

Zama — Então tem-me na conta de perturbador?Martinho — ... de modo que aconselho ao meu nobre amigo

que, principalmente depois que se declarou tão abolicionista, nãová a esse lugar.

Zama — Ora aí está porque já ouvi dizer que o abolicionistaque passar de serra acima está condenado à morte. Mas fique sa-bendo o nobre deputado que, por esse lado, não tenho medo dosvalentões de sua província, nem de qualquer outra parte.

Martinho — Ora, sr. presidente, acabo de dizer que sou deuma província cujos filhos não são guerreiros, são pacatos e me-drosos...

Zama — Tanto que metem o pau no sub-delegado e botam-nofora.

HUM0RISM0 NO PARLAMENTO DO IMPÉRIO 87

Martinho — Não foi preciso isso, porque o sub-delegado fu-giu antes".

A mesma censura de, em ocasião soleníssima, usarem de gra-cejos, poderia ser feita a Cotegipe em 1885 e a Martinho Campos

em 1882, ao apresentarem-se à câmara com os ministérios que ha-viam acabado de organizar. Martinho teve nessa ocasião surpreen-dentes ousadias, sem temer que a jogralidade lhe tirasse o respeito.Brincava com a nova e alta situação a que remontara: "Mais acos-tumado a embaraçar os governos do que a pensar em ser governo,tendo passado a minha vida inteira na oposição, devo declarar,apezar da justiça que me faça a mim mesmo, que deste ofício deoposicionista já eu sabia um pouco, mas quanto ao do governo ne-nhuma experiência e prática tinha".

** *

O humour de Osório não era intencional. A graça vinha da fran-queza inocente, rude e livre do soldado.

Algumas vezes bastava falar com a gíria dos quartéis para fa-zer rir seus colegas de senado.

Manifestando-se sobre certa providência legislativa concernen-te a um corpo de cavalaria, dizia que, se o senado o não atendesse,deixaria as cousas como estavam e ficaria "a cavalaria remando".

Em uma alusão às más finanças e à necessidade de economias,acrescentava que no ministério Sinimbú os ministros seus compa-nheiros não "bateram moeda senão de papel".

Lá um dia, ao referir-se Osório a arreios que não serviam paraos nossos muares ("prestariam lá para os cavalos de Frederico oGrande") informou ao senado que mandara fazer novos, e ajuntouesta pilhéria que, se tem sal grosso, o tem bastante: "os outros fi-earão guardados para a comissão de melhoramentos, quando algumoutro ministro a restabelecer".

E na tribuna,, alegre como num bivaque em fim de tarde achupar o chimarrão, chamava ao barão de Laguna "meu ilustre co-lega e serra fila", e ao senador Correia "o nobre senador de Guará-puava".

Mas a essa jovialidade juntava Osório uma susceptibilidadeque se expressava em termos de grande desabrimento. Assim é quenotando-se no senado que, ao retirar-se Silveira Martins do minis-

88 REVISTA BRASILEIRA

tério Sinimbú só o acompanhasse Vila-Bela, Silveira Lobo aparteoudizendo que se esperava que o ministro da guerra que era o Mar-quês de Herval também se demitisse. Osório, isso ouvindo, replica:

" O Marquês de Herval há de retirar-se quando quiser e não andade rastos diante de ninguém, nem mesmo de V. Ex."

Lembremos agora aqui outro humorista pouco citado — Pa-troni.

Há certas situações cômicas cujo burlesco mana do imprevistoem contraste com o provável, o lógico, o natural.

Disso abusava Patroni, em cujo espírito, aliás, lutavam umaponta de gênio com uma meia loucura, que, afinal, acabou por lheobumbrar totalmente a inteligência.

São adoidadas as suas zombarias: " Senhores, começava êle umdiscurso, se eu falar muito façam o favor de me dizer que me ponhano justo meio, e se eu falar pouco, aqueles senhores'que quiseremque fale mais digam-mo".

Filipe Alberto Patroni Martins Maciel Parente, deputado quefoi do Pará às cortes de Lisboa, e na legislatura de 1842, autor deuma saborosa "Viagem" por terra do Marâ%ão ao Rio de Janeiro,e de tantos trabalhos que demandam uma crwica que leve em contao transtorno que o excessivo estudo, talvez, levou a seu grande ta-lento, passou rapidamente pela câmara ainda a constituir-se, na-quele ano trágico de 42, mas deixou um vivo traço de facácia.

Citando a frase evangélica — "Nolite juãicare, u.t non judi-cemini" — não queirais julgar para não serdes julgado — chegavaa esta conclusão: — "um juiz de direito é sempre anti-cristão", ed'aí dar igual qualificativo à legislação: "No nosso código criminalexclamava êle — diz-se que furto é tirar a cousa alheia contraa vontade de seu dono: não é assim que diz o código ? _E, perguntoeu, quem paga tributos dá o dinheiro por sua vontade?" O magis-trado brandindo a espada do príncipe para cobrar o tributo fur-tava, e o que era ainda pior, furtava para os outros.

Patroni já então tinha a cabeça a ferver. Os próprios taquí-grafos registravam só poderem apanhar trechos de seus discursos,tal a rapidez com que falava, e asseguravam mesmo: "não é possi-vel que taquígrafo algum,, por mais hábil que seja, o acompanhe".

Perpassa nas suas palavras um tufão de insânia que leva, en-tretanto, em seus vórtices, ironia e graça.'Se o deputado Sousa Martins impugna um parecer sobre elei-ções porque não vira as atas, eis o que lhe opõe: "Se fosse possívelestabelecer-se o precedente do sr. deputado, que não quer acreditarna verdade do parecer da comissão sem ver as atas, aonde iria istoparar?... Eu entrava aqui e perguntava: — Quem é aquele sr.deputado? Respondiam-me: E' o sr. F. de tal — é, por exemplo,

HUM0RISM0 NO PARLAMENTO DO IMPÉRIO 89

o sr. Sousa Martins, e é homem de bem, muito honrado e virtuoso.Mas en que me levava pelos princípios do sr. deputado, dizia: Nãoacredito sem ver".

Dizendo-se disposto a chamar todos os brasileiros à concórdiae à união em torno de Pedro II, para que todos fossem felizes, acres-centava numa minúcia que lhe parecia convincente "Pelo que toca

ao mamaverunt totum toucinum tenho bastante pano para mangase lá está o meu projeto da divisão do Brasil em 52 províncias e een-soratos e dioceses que, de um jacto, acomoda e arranja bastantegente".

Havia, senão juízo, juízos naquela loucura.

* * '

Fortes ou alegres, brutais ou graciosos, os homens são moteja-dos on castigados pelo destino. Sobre eles exercem direitos tirâni-cos a violência e o humour do tempo.

Sobretudo o humour.Nesta distância, abrangendo o conjunto daquelas discussões e

debates, como se igualam os homens nas suas promessas sinceras enas suas retratações inevitáveis; nas recriminações semelhantes, nasacusações acerbas que o amanhã transformará em defesas; nos ata-quês de hoje ao que no futuro os próprios censores invocarão, quandolhes chegar a vez, como precedentes?!

Zacarias impugnava um dia a legalidade das aposentadoriasforçadas de magistrados, e aceitava em outro o poder para executaresses decretos inconstitucionais; Leitão da Cunha declara no se-nado que nunca seria ministro — e não tardaria em o ser; Cotegipepromete não aceitar uma pasta senão para realizar a eleição di-reta, e assume o poder com Caxias sem esse objetivo imediato; Sa-raiva ataca até com a ofensa pessoal a Cotegipe por causa daeleição direta, e quando este o ajuda a fazer passar a lei que lhedaria glória, desdiz-se e nega que tivesse agredido a sen patrício;o poder pessoal do imperador é tantas vezes condenado pelos poli-ticos na oposição quantas defendido ou negado por eles mesmosquando ministros de Sua Majestade.

De parciais se chamam um ao outro Dantas e Junqueira, numatroca de apartes que Silveira da Mota encerra, dizendo "A ver-dade é que ambos o são".

Ridicularizam os luzias aos saquaremas, quando o imperador,aceitando a demissão de Caxias em fins de 1877, despede o "restodo ministério"; dois anos depois chega a vez de Pedro II interrom-per uma conferência ministerial, conferenciar separadamente com.

90 REVISTA BRASILEIRA

Sinimbú, deixando boquiaberto, a esperar, amargando indignação,o "resto do ministério".

Se hoje é alimento à intriga política e ao picante dos discursosde oposicionistas a demissão, contra sua vontade, de José Bento,futuro visconde de Bom-Conselho, de ministro do gabinete Caxias,amanhã é Lafayette que despacha um companheiro de gabinete mi-nisterial, com uma carta que o coloca mal perante o apreço na-cional.

Protestam os liberais contra o golpe de estado que, em 1868,os abate do poder, tendo o ministério que governava maioria nascâmaras, e protestam os conservadores, em 1878, com os mesmosfundamentos; em 1885 reiteram os liberais suas objurgatórias àcoroa; e não tardariam os conservadores em 1889 repetir o ritor-nelo do "golpe de estado", que ainda seria cantado se a repúblicanão interrompesse essa éternelle chanson.

* *

"O passado é ainda a melhor parte do presente" — escreveunosso Machado de Assis.

Oh! se melhor, e quanto, que este presente a que, ainda quandonão o queiramos, havemos de assistir e viver com pessimismo.Acabamos de nos debruçar sobre outras épocas, ouvimos umpouco outros homens, buscando um recanto alegre no panorama dotempo, de onde emanasse algum desfarce a nossa melancolia, algu-ma embriaguez de espírito para esquecer, uns modelos de ceptieismopara nos narcotizarmos, evitando os aniquilamentos sombrios ou otresvairo das rebeldias impotentes.

A SOCIOLOGIA POSITIVA DE AUGUSTOCOMTE a)

(Ensaio de uma aproximação de A. Comteaté os nossos dias)

Herbert Parentes Fortes.

LEI DOS TRÊS ESTADOS

Tanto a espécie humana como o indivíduo, começa avida cognoscente por um "estado teológico, no qual os fe-nomenos são dados como produzidos por agentes sobrena-rurais mais ou menos numerosos: são "intervenções" inten-cionais, diretas, contínuas, sem elo entre si; a este estadosucede o estado metafísico, no qual perdura a idéia de cau-salidade e as causas são entidades abstratas, propriedadesinverificáveis; a esta fase se segue o estado positivo, no qualo espírito renuncia a conhecer a natureza intima das cou-sas, suas causas primeiras e finais, seus processos recônditos,para não considerar sinão as leis efetivas das relações dosfenômenos entre si, — relações invariáveis de sucessão esimilitude.

Mas é de toda monta observar-se que essa sucessão defases é concebida orgânicamente. "O elemento específico dahumanidade se encontra na progressão espontânea do seufuturo. A substituição de um estado por outro se processapacificamente, inocentemente, por um simples efeito de ca-ducidade (désuétude)". (L. Brunschvicg, Ob. cíí.í, 200).

(1) Veja-se o n. 2, p. 107, desta Bevista.

¦ r . ','. ¦ •;,":

92 REVISTA BRASILEIRA

— Quem demonstrou a inexistência de Apoio? — indagaComte. Todavia, ninguém agora crê nisto, — o espírito hu-mano o abandonou "irrevogàvelmente". (Discours sur Ves-prit positif). E si nenhuma fase do conhecimento podia serdiversa do que foi, é improcedente toda condenação diri-gida contra elas. Foram. Tinham que ser. O que veiu de-pois só se tornou possível pela realização do que o precedeu.A Igreja Católica fez o século XII, — época admirável deordem e unidade. E fase necessária, imprescindível para oprogresso humano. O espírito humano marcha do estado teo-lógico para o estado positivo, que renuncia a todo conheci-mento absoluto e dá de face com o "real". Esse encontro éo termo da marcha. Sem este, êle não se faria. Comte de-clara que em nossos dias, "tudo é relativo, e só isto é abso-luto." Mas não admite que se faça disto argumento contrao passado absolutista que o gerou.

A lei dos três estados é organicística no sentido de queé uma lei de crescimento e cada. fase é aí necessária e irre-vogável. Nenhuma pode retroagir. Por mais irregular queseja a sua maturação, a fase positiva tem de ser, necessária-mente, involuntariamente, não por esforço de certos indi-vi duos, mas por crescimento, inelutável da espécie. A evo-lução do saber é parte da evolução coletiva è não acidentenem efeito singular de tal ou tal indivíduo. O que querdizer que "les faits proprement humains sont essentielle-ment sociaux. L'homme, comme individu, n'est qu'une ab-straction; 1'humanité, comme être social, est Ia réalitévraie." (Victor Delbos, Ob. cit., 354). E' a encampação doaforisma de Pascal pela sociologia. Pascal dissera antes deComte, que o cita e louva: "Par une prérogative particuliè-re, non seulement chacun des hommes s'avance de jour enjour dans les sciences, mais tous les hommes ensemble yfont un continuei progrès à mesure que 1'univers vieillit,parce que Ia même chose arrive dans Ia succession des hom-mes que dans les ages différents d'un particulier. De sorteque toute Ia suite des hommes, pendant le cours des siècles,doit être considerée comme un même homme qui subsistetoujours et qui apprend continuellement: d'ou Von voit avec

A SOCIOLOGIA POSITIVA DE AUGUSTO COMTE 93

combien d'injustice nous respectons Vantiquité dans ses phi-losophes." (CEuvres, t. II, 139).

Essa negação do "indivíduo" como tal no seu insula-mento líbero-democrático à Rousseau visava antitetizar asituação política reinante na França. (Saint-Simon, mestrede Comte, negava-a também, mas em benefício de um PoderEspiritual, — um novo cristianismo, — e um Governo deindustriais. Comte se aparta do mestre por não poder acei-tar nem uma nem outra hipótese. O governo das nações —afirmava, inicialmente, Comte depois de Platão, — devecaber aos sábios). Dando à ciência um primado social efe-tivo, Comte imaginara, de começo, extinguir a própria liber-dade de opinião. A opinião, — já os gregos o sabiam e o ex-perimentaram dolorosamente, — não é sempre a verdadenecessária. Via de regra, é filha do egoísmo, produto de in-terêsses particulares, vício da inteligência, puro sentimen-talismo ou instinto. Si, então, o que vale é a verdade quedura e a todos e continuamente assegura a ordem e sobreesta o progresso, não deve haver liberdade de opinião, mas"pareceres" de sábios, não deve haver política a-priori, masexecução de leis científicas rigorosa e sistematicamente es-tudadas.

— Quem duvidava da invariabilidade das leis físicas?— perguntaria Comte. Então, descobertas pelos sociólogosas leis invariáveis da sociabilidade, não se poderá mais ad-mitir liberdade de opinião a tal respeito.

Comte é determinista. Considera as leis naturais comoinexoráveis. A lei da gravitação universal era para êle o"exemplo" das outras. Fazia disso um dos seus princípiosfundamentais. Via os fenômenos naturais numa rede decorrelações inelutàvelmente imbricadas. Impossível ven-cê-las. 0 milagre era uma ilusão do passado. Tivera o seutempo.

Diante disto, a primeira pergunta que nos ocorre é esta:si tudo é assim determinado, — para que uma direção cien-

e.,,S,.0

94 REVISTA BRASILEIRA

tífica? As leis se bastam em si mesmas. O indivíduo Comtenão poderá ser portador de uma "incomparável missão", àguisa de Sócrates. Depois, si tudo que sucede tem uma ex-plicação científica, porque tanta oposição à Revolução Fran-cesa? Ela foi. Tinha que ser. E a sociologia não poderiaservir para a criação de uma "casta" dirigente. Nem ha-veria lugar para "planos" de organização científica. Docosmos ou da sociedade humana.

Felizmente para este ponto do pensamento comtista, odeterminismo deixou de ser um princípio fundamental emciências exatas. Contam-se nos dedos da mão os sábios queainda o sustentam. 0 determinismo da natureza é agorauma simples "aproximação", uma visão grosso-modo douniverso, que marcha, mudando, para um termo. Os maiseminentes físicos, astrônomos e matemáticos vivos negamsumariamente que o mundo caiba com a sua "história" den-tro da inexorabilidade de um determinismo, que, a ser ver-dadeiro, não admitiria transformações surpreendentes nemmesmo evolução através das épocas. Tudo que foi, tinha queser agora e sempre. 0 universo seria "repetição" e não "evo-lução". Algo, pois, há de haver que o determinismo emitiue atualmente estudam, afanosamente, sábios como Edding-ton, Heisenberg, De Broglie, J. Jeans, Sullivan, etc, etc.

Um número respeitável de pensadores modernos se voltaagora para as conseqüências invencíveis dò pan-matema-tismo do século XIX, que procede da física de Descartes.

0 mundo ainda não se apercebeu de toda a reserva deliberdade e alegria que a crise matematista lhe oferece.Mas há de vê-la e abraçá-la sôfregamente. Bergson, que ti-nha olhos para vê-la e inteligência para assimilá-la, valeu-se dela e deu-lhe uma forma e uma beleza a que muitos es-píritos não resistiram. E o melhor é que as mais diversascorrentes do pensamento estão se valendo dos despojos domatematismo. Um mundo de "qualidades" prestidigitadasem quantidades ou sacrificadas à quantificação universal,encontra agora uma multidão de almas sedentas de espiri-tualidade para cuidar delas com sincero entusiasmo.

A SOCIOLOGIA POSITIVA DE AUGUSTO COMTfc 95

Quando lemos hoje um De Broglie, um Eddington, umJames Jeans, um Meyerson, muitos dos Bergsonistas, até ai-guns dos neo-tomistas que se interessaram na salvação dosdados imediatos da conciência, finalmente, os fenômenolo-gistas, — pois não — compreendemos que em menos de vinteanos, talvez, o primado do matematismo, — o despotismogeométrico, segundo a expressão de Pascal, — terá deixadoo seu posto de distribuidor de "passes" para o reino do saberhumano. O matematismo e o seu companheiro, sua sombrade todas as suas conquistas, — o mecanicismo, — perderamjá todo direito à chefia do conhecimento. Acusa-se hoje afísica superior de estar no mesmo plano da lógica formal,— vazia de realidade. (Cf. E. Meyerson, La Deduction re-lativiste, passim). Tudo porque se tornou insustentável den-tro mesmo da física o determinismo absoluto que materna-tismo e mecanicismo, ao mesmo tempo, subentendem neces-sàriamente, sempre que sejam dados como expressão últimae consumada da verdade científica.

Vem a talho aqui uma página de Maritain, que prefe-rimos a outra qualquer de qualquer outro filósofo contem-poraneo, pois Maritain é um dos maiores neo-tomistas co-nhecidos: Diz êle:

"Ce monde est un monde de contingence, de risque,d'aventure, d'irréversibilité, il a une histoire, et un sens dansle temps; les étoiles géantes diminuent, s'épuisent, s'exté-nuent peu à peu; depuis des milliards d'années un formida-ble capital originei d'ordre dynamique et d'énergie tendvers 1'équilibre, il s'use, il se prodigue, il produit des mer--veilles en allant vers Ia mort; les philosophes ont beaucoupabuse du príncipe de Fentropie, on a malgré tout le droit derelever cette signification profonde, qui s'accorde si bienavec Ia notion non pas astronomique mais philosophiquequ'Aristote nous a livre du temps — quia tempus per se ma-gis est causa corruptionis quam generationis..." "La con-ception du monde-machine et de Ia matière identifiée a Fé-tendue géométrique, Ia conception newtonienne d'un éter-nel cadre d'espace et de temps indépendant du monde, Fin-finité du monde, le déterminisme pseudo-philosophique des

" '7

96 REVISTA BRASILEIRA

physiciens "du temps de Ia reine Victoire", tous ces dogmesont vécu." (Maritain, La Philosophie de Ia Nature, 143-5).

E' a mesma tese de Broglie (La Physique nouvelle et les

quanta), de Lorde Kelvin (H. Poincaré, La Phys. Mod.),de A. Boutaric (Les Conceptions actuelles de Ia Physique),de J. Chevalier e A. Forest (Ou chercher le réel), deE. Meyerson (Ob. cit.) e dos autores ingleses já citadosaqui.

Seguindo caminhos diferentes, partem todos do mesmotema: a debandada do determinismo matematista e meca-nicista do século XIX.

Então, a sociologia segundo Comte está salva por esselado: o mundo comporta uma "liberdade" de ação e a ciên-cia pode dar fundamentos a "planos" plausíveis de provi-são, economia, ordem.

Saint-Simon, que não tinha a largueza de vistas nem acultura de Comte, entendia que a sociedade devia de ser en-tregue ao governo dos industriais. Lastimava que o grandeDe Bonald não tivesse podido incluir esse fator resultantedo progresso social em suas análises geniais. Comte, aoinvés, propugnava por um governo de sábios. Sobre seremos conhecedores das leis sociais, só eles possuem, — diria êleem discussão com o mestre, — só eles teem o "espírito'* po-sitivo, o tino indispensável, a serenidade capaz de uma di-reção.

Mas o próprio Comte desenganou-se deste recurso con-tra as competições dos industriais. Rompeu com o Conselhoda Escola Politécnica e com a Academia das Ciências. Eescrevendo a J. Stuart Mill, confessa: "J'ai appris à mespropres dépens, que les savants seraient tout aussi vindi-catifs et oppressifs que les prêtres et les métaphysiques,s'ils pouvaient en avoir jamais les mêmes moyens." (Cf.L. Brunchvicg, Ob. cit., 204).

E Comte perfaz o seu retorno ao plano de um poderespiritual religioso. E' preciso que o coração ordene a in-

A SOCIOLOGIA POSITIVA DE AUGUSTO COMTE 97

teligência. O sentimento fez tudo na História. A místicatem a particularidade de ser aglutinante e geral. A essaépoca, já Comte havia experimentado a paixão por Clotildede Vaux, a quem se revela infinitamente grato pelo mundoque lhe revelou. Deve ao estudo o seu Curso de filosofiapositiva (1830-1842). A ela deve o seu Sistema de políticapositiva (1851-1854).

Alguns autores o dão nesta última fase por tresloucado.Não assim os mais eminentes de seus críticos, tais comoE. Boutroux, F. Brunetière, Victor Delbos, etc. O últimodos autores citados escreve, magistralmente:

"Dans le Cours Ia méthode part du monde pour s'éle-ver jusqu'à Fhomme; dans le Système elle part de 1'hommepour redescendre à Ia nature. Là, elle est objective, ici, elleest subjective. Mais Ia notion d'humanité permet de passerde 1'une à 1'autre. Cette notion fournit le moyen de systé-matiser tous les faits sociaux, y compris les sciences propre-ment dites qui doivent être rangées au nombre des faits so-ciaux. En vertu de sa méthode subjective, après avoir es-sayé d'éclairer le cceur par 1'esprit, Comte s'apliquera dé-sormais à éclairer 1'esprit par le coeur. De même, aprèsavoir elimine Ia doctrine des causes finales, il réintroduit àprésent Ia finalité dans sa philosophie. Mais cette finalitéaffecte un caractère três spécial. Sans doute, elle est sub-jective comme Ia méthode elle-même. Comte ayant excluIa notion d'univers pour ne retenir que celle de monde nepeut pas restaurer une finalité franchement objective. EtIa finalité qu'il fait intervenir est bien subjective en effeten ce qu'elle rapporte tout à l'humanité, sans rapporterd'ailleurs 1'humanité à Punivers ni à rien d'autre en deshorsou au-delà d'elle même. Mais elle n'est nullement subje-ctive au sens individualiste de ce mot. Si 1'Humanité con-sidéré comme Grand Être peut apparaitre comme une sortede Sujet, elle est par ailleurs un Objet et même 1'Objet su-preme et unique pour les individus qui composent Ia colle-ctivité sociale. Cest donc |Sams rapporít a I^individü queComte rétablit d'un point de vue moral l'antropomorphisme

98 REVISTA BRASILEIRA

qu'il avait elimine du point de vue scientifique." (V. Del-bos, Ob. cit., 358).

Arrastado por decepções e pela evolução mesma de suasidéias, seus planos, sua missão, A. Comte chega àquilo a queDelbos chama de "catholicisme sécularisé et inverti." (359).

Digamos, então: o positivismo sociológico representa,inicialmente, um grande esforço para libertar os estudossociais de toda ingerência do antropomorfismo, de todametafísica, de todo misticismo, evitando, porém, o aspectonegativo deste aspecto, — os detratores do passado, os ad-versários dos fatos consumados, os "literatos" da filosofiajurídico-política.

Mas não pôde subsistir com esta isenção. Tinha quedecidir-se por um ou por outro lado em luta. 0 resultadofoi uma imitação frustra do catolicismo, que Comte tantoadmirava e por espírito de fidelidade aos fatos ensaiou sub-stituir imitando! Mas aqui também é verdade que só há sal-vação dentro da Igreja. Negá-la admirando-a é uma posiçãopraticamente insustentável. O que dura e há de durar nofuturo é negá-la odiandp-a. "Écraser Vinfame!" — disseraVoltaire. E nisto permaneceu. Condorcet também quis, àmaneira de Comte, laicizar as relíquias do Cristianismo.Cedo passou-se para o lado do ódio. E deu a Igreja comoadversária do gênero humano...

Comte não era capaz dessa confraternização com a Re-volução. E quase se fez cristão "leigo".

*

Há em A. Comte alguma cousa de muito grave que o im-pediu de evolver para o espiritualismo transcendente: o seusincero e pacífico

NATURALISMO

Contrário a isto quando condenava, lücidamente, o ho-mogenismo monístico, advertindo os homens de saber con-

fW * 1 f tf l( ^ *t ,fV !> v >,

A SOCIOLOGIA POSITIVA DE AUGUSTO COMTE 99

tra as ilusões daquela descoberta científica segundo a qual"il était possible de traduire des différences qualitatives pardes différences quantitatiues", segue as pegadas de Pascalcontra o despotismo geométrico de Descartes. Condena aconfusão de "traduzir" com "reduzir". A realidade não sedeixa eliminar. E a ciência se funda no respeito dela. Destasorte guarde cada ciência a especificidade do seu objetopróprio. Desfavorável neste ponto essencial da metafísicamaterialista a tantos dos seus conterrâneos, Comte propu-nha que se evitassem discussões em torno deste ponto comoextrapolantes dos limites do "positivo". Era isso uma bre-cha enorme por onde o positivismo sociológico resvalariapara o espiritualismo, ou este infiltraria aquele contra todaconvenção de limite do pensamento. Comte estacou nabrecha. Muitos dos seus discípulos, como Littré, Brunetière,etc, passaram completamente para o catolicismo.

Não há convenção teórica tão forte, que resista ao im-pulso da lógica viva.

Estava, porém, a vida dos homens numa situação tal,que não era possível vencer o campo aberto às expansõesdoutrinárias do naturalismo. O evohicionismo tomava for-ma nitidamente científica. Carlos Darwin ia aparecer emcena e deslumbrar um século. Armou a sua tenda à portado gênero humano. Em breve, êle mesmo e muitíssimos ou-tros, em onda, rasgariam o véu de separação entre o hu-mano e o zoológico. Era a biologia, na qual depusera Com-te todas as esperanças de vencer e eliminar a psicologia edispensar a introspecção, era ela que vinha dar a sua con-tnbuição positiva para as grandes questões filosóficas exa-cerbadas pelo, espírito reformista e revolucionário. Os au-tores, salvo Haeckel, Büchner, e outros de menor vulto, nãofariam muita insistência nos conflitos religiosos. Há mesmoum silêncio respeitoso desse aspecto. A Inglaterra e a Ale-manha não davam muitas ensànchas aos ataques contra areligião.

Mas os sábios espiritualistas não se fizeram esperarmuito, desde Wallace, Weismann e outros. E o conflito sur-

100 REVISTA BRASILEIRA

giu, finalmente, com uma grandeza que ainda hoje nos es-panta. Todos queriam fazer ciência, fundar-se em fatos»vencer lealmente a questão. A excepção Haeckel resultouem prejuízo dele apenas. Falsificou documentos. Teve deconfessá-lo. Os cientistas alemães o fulminaram com um,anátema coletivo violento, sem consideração ao muito quefizera de bôa-fé em benefício das ciências naturais. A cousaera muito séria para comportar falsidades e improbidadecientífica. E' interessante notar-se que o debate se fez, quaseao mesmo tempo, contra o democratismo revolucionário, oliberalismo, o igualitarismo, de uma parte, e o espiritualis-mo cristão de outra parte. No primeiro arranco, até Marx e

, Engels se fizeram, evolucionistas, na ingênua convicção deque o macaco, tão conceituado entre sábios, lhes serviria deporta falsa, para chegarem até as alcovas da burguezia.Aliás, a generalidade dos socialistas, vendo no evolucionis-mo um adversário seguríssimo contra a tradição bíblica,abraçaram-no sôfregamente. Cabe a Spencer advertir a umdeles que a teoria evolucionista era oposta, face à face, atoda fantasia igualitarista. Darwin faz da luta pela vida eda seleção natural os dois pilares do edifício em construção*— a biologia geral, inclusive do homem.

Vai arrebentar estrondosamente o conflito entre o "na-tural" do naturalismo e o "moral" do senso comum, cernede todo o espírito religioso e jurídico do passado conhecido.,

O evolucionismo é uma doutrina por excelência "aris-tocrática", — declara sem refolhos Huxley. O homem dofuturo não será o "cidadão" de Rousseau, mas o Super-Homem de Nietzsche. Haeckel, Galton e outros nomes emvoga confirmam a Huxley. A razão está com o liberalismodesvencilhado de toda fraternidade e igualdade. De Bo-nald, o agudíssimo precursor de Comte, previra o impasseque só então se revelava em toda a sua brutalidade: ouevolucionismo ou cristianismo. Ou totalitarismo naturalís-tico (com racismo, eugenia à Galton, liberalismo sem peias)ou dualismo com duas explicações incomensuráveis — a dacorpo e a da alma.

A SOCIOLOGIA POSITIVA DE AUGUSTO COMTE 101

O sociólogo russo Novicow dá uma longa série de sá-bios favoráveis à idéia de que a luta era a origem mais pro-funda de todo progresso humano. Desapareceu o interessepela "ordem" e o altruísmo do comtismo. Spencer, Ward,Molinari, Haeckel, Lichtenberg, Blutschli, Ratzenhofer, etc.,'são evolucionistas lógicos: do micróbio ao homem. — Esta-mos, por fim, libertos da teologia! — clamavam os mais en-tusiastas. O liberalismo econômico iria confirmar tudo isto.

Mas a Humanidade nunca mais teve paz.O espiritualismo ia renascer da tragédia humana.

Impossível um sentido "trágico" da vida humana, si lhenao contrapomos um sentido de paz humana. Comte, quevivia a tragédia da França, não podia desfitar os olhos deuma paz com ordem e progresso tão diversa do mais quesábio da natureza pela ciência, que até o fim de sua vidanao pôde se deixar levar pela lógica do seu naturalismoateu.i

A "guerra" não é somente destruição: no íntimo que-rem os homens que ela seja um meio de defender a paz hu-mana, — a natureza a serviço do ideal. E o "trabalho" nãoé somente luta pela conservação, mas um "valor", uma dig-nidade, um meio de alcançarmos a paz pelo esforço orde-nado e progressivo. Tudo em função do "humano"°e o hu-mano em função de uma tábua de valores ideais. CarlosMarx se faz evolucionista contra a tradição religiosa e no in-terêsse de lastrear a sua doutrina com a biologia. Mas teveque lutar em defesa do trabalho, pela dignidade de quemtrabalha e contra a iniqüidade de quem explora o esforçohumano, cria as desigualdades, faz a guerra. Nisto não sevaleu êle do evolucionismo, mas do sentimento de Justiçaideal acendido nos corações pelo Cristianismo, que é umareligião profundamente mística. Porque as leis biológicasabraçadas para fundamento dialético do seu sistema, não sãòmarxistas". Si elas admitem, por um lado, a colaboração

102 REVISTA BRASILEIRA

favorecem, de outro lado, ao mesmo tempo e no mesmo pia-no, o triunfo brutal dos mais fortes sobre os mais fracos.Darwin e seus discípulos afirmam que a biologia, — a tal dasesperanças de Comte, — assenta em dois fundamentos, — aluta e a seleção. Partindo daí é que já se condenou a cari-dade, a proteção aos desvalidos, a medicina preventiva, o am-paro à velhice. Contrapôr-se o altruísmo ao egoísmo, comofez Comte, não é uma inferência lógica estrita dos fatos bio-lógicos, mas uma escolha entre estes daqueles que conveema um caráter humano das lutas humanas. A conservação bio-lógica é uma conservação a todo custo, mas a conservaçãohumana deve ou quer ser uma conservação a certo preço. Ater que assentar apenas na biologia, a sociologia não poderájamais "justificar" essas restrições contra as "explicações"biológicas, -sem sobrepor à nivelação naturalística uma dife-rença "qualitativa" entre o natural e o humano. Sem istonunca chegará a estabelecer um paralelo entre a fábula dolobo e o cordeiro e a parábola evangélica da samaritana. Oque a moral sobrepõe, a biologia apenas alterna.

Kant disse: "A moralidade cristã tem como caracterís-tica particular a representação do bem moral como distintodo mal moral, não no sentido em que o céu é distinto daterra, mas no sentido em que o céu é distinto do inferno."O mal moral não é diferente do bem moral, mas negaçãodeste. Si, porém, estabelecemos uma base comum para o beme o mal no "natural", à maneira de Comte, jamais poderemoscontrapor o bem ao mal, aprovar o primeiro e condenar osegundo. Si ambos são fatos ou possíveis dentro das leis na-turais, — como poderemos desdobrar a "explicação" naturalcomum a ambos em dois extremos opostos? Em fim de con-tas: colaboração e luta se alternam nos fatos. Então, a lógicanaturalística deve concluir pela alternativa e ainda confir-mar o primado da luta sobre a colaboração. Sem a intro-missão de um terceiro termo, não poderá modificar as suasconclusões. Aristóteles via na escravidão do homem pelo ho-mem um fato constante. Um grande número de sociólogos mo-dernos, como Spencer, Ward, Gumplovicz, Huxley, Darwin,

A SOCIOLOGIA POSITIVA DE AUGUSTO COMTE 103

etc, acreditam ter dado a isto um caráter científico. E ain-da houve quem considerasse o evolucionismo como liberta-dor. Substituiu a teologia. E o ideal democrático também.E mais todo devaneio socialístico.

Somente o problema não ficou resolvido por essa coe-rência teórica dos doutrinários do naturalismo. A lei socialassimilada à lei natural, cujo tipo é a lei física, há de "ema-nar" da natureza do homem. — Porque, os conflitos indivi-duais e sociais da vida moral? Montesquieu salva-se da difi-culdade a modo de Platão: imaginava a lei moral especí-fica do "espírito", fora do plano natural. Fazia dualismoessencial entre a vida do espírito e a vida do corpo. Donde, porém, essas "leis-idéias" do espírito tão diversasdas leis da vida em geral?

A lei moral assim concebida poderá servir de prova da"existência" autônoma da alma.Realmente: si a lei emana da natureza mesma (essên-:cia) das cousas, e si as leis do espírito não são as leis do

corpo, — antes este corpo é um obstáculo às manifestaçõesdo espírito, cujas leis se tornam por isto "ideais" para se-rem atingidos, — então ou as leis do espírito são arquétiposplatônicos (autônomas), como afirma Lasbax (La Cite hu-maine, t. I, 184), ou participam de uma essência espiritualautônoma. O mesmo corpo que "mette en nous 1'oubli",consoante a expressão de Ravaisson referendada por Berg-son (Matière et Mémoire, 195), é também a causa das nossasimperfeições morais relativamente às leis próprias do espí-rito, segundo UEsprit des Lois. Em resumo: si as leis mo-rais (como as leis lógicas) não se cumprem à risca, sendo ine-rentes, ou imanentes, ou emanantes do espírito como tal, —e cada um sabe intimamente que assim é, realmente, — istoé porque as leis do corpo não são as leis do espírito, a saber,a essência da materialidade corporal não é a mesma que aessência da espiritualidade da alma.

Somente neste sentido de lei é que se podem assentar"planos" de reforma social, como os de A. Comte. E si êlepretende que cabe a Montesquieu haver dado uma definição

104 REVISTA BBASILEIRA

certa da "lei", Comte só é coerente consigo mesmo, quandoabandona o propósito de subordinar o homem ao Cosmos etodas as leis particulares a uma lei única de tipo físico e de-terminístico.

Por isto é que Brunetière, Boutroux, Delbos defendem acoerência íntima da obra de Comte. Toda a sua atividadecientífica, apesar de seus protestos de "positividade" mate-rialística, está, explícita ou implicitamente, sujeita ao seu sen-timento humano de "tragédia", — lado a lado com o seu opti-mismo "positivístico", — ao seu empenho de salvar a huma-nidade, — a sua "incomparável missão", — ao seu dualismoinconciente, face à face cóm a sua profissão de ateísmo. Ti-nha razão Delbos: "Jamais peut-être philosophe n'a à moinsvu ce qu'il mettait de lui-même dans sa philosophie. Nonpoint par méconnaissance de son role; certes non! Toute savie, Auguste Comte a parle de son "incomparable mission"en des termes qui excluaient toute Ia modestie, Ia fausse aus-si bien que Ia vraie." (Ob. cit., 336).

Comte ocupa na marcna do pensamento moderno o pontode recontro da reação com a revolução que vinha do Renas-cimento e fez a Reforma e a Revolução francesa. E' êle ogume da antítese do século XIX contra o século XVIII. Re-sultariam disto o princípio de uma corrente nova de espiri-tualismo intelectual e o início do brutal conflito entre a morale a sociologia positiva feita reduto supremo do materialismono campo das discussões sociais.

Baía. —• 1941.

A CONFISSÃO

(Conto)

Alfredo de Assis.

João Felício estugava o passo ao cardão vigoroso, já co-berto de suor àquela hora próxima do meio-dia. Com o ca-lor intenso, a luz deslumbrava tremeluzindo no taboleiro,como que reproduzida em lâminas sutilíssimas de um metalimpalpável.

Goleava o caminho através do escasso arvoredo, que seampliava em todas as direções, e João Felício, insofrido e fa-tigado, ansiava pela frescura de uma sombra e por uns golesde água que lhe aplacassem a sede trazida de longe, e tornadamais exigente à lembrança do ribeirão do Lageado, em cujamargem deveria almoçar e repousar uns momentos, depoisde um banho nas águas frias e claras, tão claras, que a areia,no leito, mesmo onde a profundidade ia além de dois metros,'alvejava como se estivesse a dois palmos da serena superfí-cie. Assim lhe fosse possível, e tempo mais longo permane-ceria sob o amparo das grandes árvores erguidas à beira da-quele formoso riacho, afamado nos sertões pelo encanto noverão e pelo temor que infundia durante a quadra invernosa,em que se armava em guerra contra os que necessitavam delhe transpor a correnteza, então desmedidamente volumosa etumultuaria. Mas era força que se apressasse, que reduzissea demora, para que não o alcançasse a noite antes de chegarà fazenda em que dormiria, e de que ainda o separavam nadamenos de quatro léguas, daquelas a que o homem dos sertõesdo Norte costuma chamar "das boas". Viagens a cavalo, sò-

106 REVISTA BRASILEIRA

mente com a luz do dia, sobretudo em paragens como a emque se encontrava, diminutamente povoada, e onde não eraimpossível de repente aparecesse um ou mais bandoleiros re-petindo a velha intimativa da entrega do dinheiro mediantea exibição do punhal erguido ou do bacamarte aperrado.

Essa hipótese não era inadmissível depois que deram desuceder-se, cortando o sul do Estado em vários pontos, as le-vas de aventureiros vindos de Estados mais ou menos próxi-mos e de passagem para o Araguaia, região a que os atraía nãosó a exploração do cáucho, mas também, sorrindo a númerovultoso, as condições de uma vida à solta, favorável a extre-mos desvios de conduta, sem exclusão do latrocínio e do assas-sínio. O novo Eldorado estava a constituir-se viveiro e valha-couto de indivíduos perigosos, ou lá mesmo nados e criados,ou esquivos à justiça de outras terras em razão da esperançade completa impunidade, combinada em muitos com a de fá-cil enriquecimento.

Fulgurava o sol no zénite quando o viajante, à descida deum tombador, avistou perto o brejo do Lageado, opulento everde-escuro, estendendo-se para diante em curva muito aber-ta. Caso lhe houvesse aparecido a desdobrar-se em sentidooposto, bem poderia ter-lhe trazido ao espírito à alegre ima-gem de grande abraço convidativo; mas nem porisso haveriasidq maior o contentamento com que o descortinou perden-do-se na distância, indefinidamente. Alcançou-o, vencidos ai-guns minutos, e atravessou-o mesmo sem desmontar, com aspernas levantadas e as gualdrapas da sela quasi roçando acorrente; feito o quê, dirigiu-se para a esquerda, por entre obasto arvoredo marginal, até chegar a um claro escondido porêle das vistas de quem fosse passando pela estrada. Aí desmon-tou, desarreou o cavalo e prendeu-o pelo cabresto a um troncode ingarana.

— Espera um momento, Pisa-Firme, disse então, falandoao animal, como se este lhe entendesse as palavras, e corren-do-lhe com a dextra o longo do pescoço. — Que tirada detempo, hein, meu velho? Quasi sete horas de marcha batida!Não me enganou quem te vendeu, nem eu me enganei quando

A CONFISSÃO 107

mudei o teu nome. Quasi sete horas! Isto não se faz, masera preciso, cardãozinho de fama!

Acocorou-se em seguida à beira do riacho e bebeu farta-mente por meio de larga folha de taioba. Livre da sede, apres-tou-se para "cair na água", refrigerar o corpo cansado e au-mentar porventura o apetite para o almoço que o esperavanos alforges, onde vinham as provisões da jornada: o fritode galinha, o café, a rapadura e uma botija de aguardente,destinada a prevenir e combater resfriados. Estava João Fe-lício entre os que atribuíam à "cotréa", à "gerebita", essa pre-ciosa função na vida dos homens, e não foi sem primeiro en-tornar um "gole valente" que se deu ao prazer dos apetecidosmergulhos.

Tomado o banho, lavado e peado o cavalo, vestiu-se JoãoFelício e cuidou de matar a fome. A rapadura, com que ter-minou a refeição, deu-a quasi toda ao Pisa-Firme, já habi-tuado ao sabor do substancioso alimento. Consultou a seguiro relógio e verificou passar alguns minutos de uma da tarde.

— Bem, refletiu. Chegarei o mais tardar às seis horas,ou pouco depois. A caminhada é rija, mas o Pisa-Firme aindaé mais.

Acendeu o cigarro, abriu a carona com o forro para bai-xo, e nela se deitou fazendo da sela travesseiro e pensando nosvinte e três contos de réis que iam ali consigo, e que estavama causar-lhe tal ou qual preocupação. Estranhou, não duvi-dando de que fosse pressentimento. Já tivera um outro, deque não gostava de se lembrar. Mas não haveria sido levian-dade, ou pelo menos exagero de confiança em si mesmo, nasenergias da mocidade, e também na sorte, viajando assim de-sacompanhado, aventurar-se a conduzir tão grande soma?Não teria sido mais prudente houvesse aproveitado o ofere-cimento de um pagem que lhe fizera na vila o hospitaleiromajor Quintiliano? Começava a parecer-lhe que sim. Pro-curando, porém, subtrair-se ao inoportuno cuidado, recor-dou que já vencera de outra feita as dezessete léguas daquelajornada igualmente sozinho e fiado apenas, "abaixo de Deus",no ânimo com que êle o dotara e no seu Smith & Wesson,

108 REVISTA BRASILEIRA

em cujo manejo era amestrado, e de que não se desapartavaem determinadas ocasiões.

Aquele revólver tornara-se um dos seus afetos desde quelhe prestara, alguns meses depois de comprado, um dessesserviços que o beneficiado não pode normalmente esquecer.Foi o caso que voltava certa noite de um baile entre as duase as três da madrugada, quando notou a presença de um in-divíduo em mangas de camisa, trigueiro e corpulento, na es-quina fronteira àquela de que se aproximava e onde, dobrandoà direita, entraria na rua em que morava. Dados alguns pas-sos depois de avistá-lo, observou que o homem se movimen-tava na mesma direção, de sorte que os dois, atenta a posi-ção em que estavam, necessariamente se encontrariam. A quepensamento naquele instante obedeceria o tal sujeito? Seriapor acaso ao de agredi-lo para roubar?

Pelo sim, pelo não, considerou que não havia inconve-niente em mostrar-lhe o revólver, fazendo-o brilhar, comopor descuido, à luz do lampião, mercê do niquelamento bemconservado. Tirou-o da algibeira e pôs em prática o expedien-te, não porque se arreceasse de um perigo em última análiseduvidoso, mas porque era sempre sensato evitar sem desdouroum certo ou possível conflito. Andara bem inspirado, por-que o homem, atingido o meio da rua, sobresteve indeciso,adiantou-se ainda alguns passos, tornou a vacilar, e acabouvolvendo ao ponto de partida. Quanto a êle João Felício, nãose lhe alterara o compasso da marcha, sendo também verdadeque se voltara apenas uma vez para ver se o sujeito ainda es-tava no mesmo lugar. Verificara que sim; aí se conservava,não lhe havendo mais interessado a travessia tentada minutosantes. Prestimoso, inestimável amigo, aquele Smith & Wes-son! Recordando agora o silente episódio noturno, atribuía-lhe de novo o remate feliz a que o mesmo havia chegado.

Vieram-lhe outras lembranças, e estas muito mais apra-zíveis: as da casa do major Quintiliano, que o hospedara ecumulara de atenções durante os dias em que êle, João Felí-cio, permanecera na vila. Excelente pessoa, nobre figura, ovelho e ponderado sertanejo. E também a esposa, a dona Eu-lália, um exemplo de simpleza e bondade. E também a Luizi-

A CONFISSÃO 109

nha, filha do casal, bonita morena de grandes olhos inocen-tes, e dona de algumas fazendas de gado. Um bom partido,sem dúvida. Sorriu à idéia de vir a ser o genro do major.Porque não seria? Tinha esperança, ou quasi certeza. Contavanão haveria de perder-se o namoro que deixara bem come-çado. Encantadora, a Luizinha. Que lindos olhos!

Pesavam-lhe as pálpebras, as idéias enevoavam-se-lhe,imprecisas e vagas. Entrava em modorra, em agradável meio-sono, ao que era propício o remanso da hora, o sussurro dabrisa, o murmúrio das águas deslizando, o cheiro agreste queincensava a solidão. O animal, peado das mãos, ainda relu-zente do banho, pascia perto a erva nova da beira do riacho.

Senão quando, um tropel, um rude tropel de cavalos emdisparada. João Felício, improvisamente desperto, ergueu-se.Três homens acabavam de aparecer no princípio da pequenaclareira, e foi isso quasi o mesmo que chegarem onde êle es-tava.

Boa tarde! disseram, defrontando-o, ao mesmo tempoque se apeavam com o desembaraço e presteza de consuma-dos cavaleiros.

Boa tarde, senhores.Os modos e a catadura dos recém-chegados levaram-no

à convicção de que eram malfeitores. Certamente ladrões,pensou entre si. Talvez mesmo assassinos.

Um deles, franzino brancarana de estatura excedente danormal, a cabeça e a barba grisalhas, tudo indicava que erao principal do grupo. Inteiramente "encoirado", vestia me-lhor que os companheiros, dois cabras novos, de calças de ris-cado e gibão que o uso enegrecera. Traziam chapéu decoiro e barbicacho. Conduzia cada qual o rifle à bandoleira,e na cintura o punhal preso à cartucheira repleta.

Falou-lhe sem rodeios o brancarana:Aqui estamos por motivo do dinheiro que vem carre-

gando. Cuidou que embromava saindo de madrugaclinha,mas eu não nasci para ser embromado. Quero todo, e semdemora, que tenho pressa. Já estou farto de esperar. Olheque faz uma semana que está metido no cerco!

110 REVISTA BRASILEIRA

João Felício, calmo por natureza, podia contar-se entreos que sabem raciocinar no meio da tormenta. Que fazer?Compreendendo que não lhe era possível, sem extremo pe-rigo, entrar em luta com os três salteadores, resolveu transi-gir com as circunstâncias.

Bem, não me oponho, respondeu. Ordena quem pode.E, abrindo a carteira: Aqui tem. Quasi trezentos mil réis. Du-zentos e noventa. E' pouco? Seria muito maior a quantia, seo patrão não tivesse mandado entregar o mais ao major Quin-tiliano, por causa da compra de uma boiada.

Viu então que se agravara a expressão de maldade nosemblante do interlocutor, que lhe disse, pondo as palavrasde acordo com o duro olhar:

Mau, mau! Temos senvergonhice! Mas vossê é porquenão me conhece. Ainda não ouviu falar no Antônio Sussua-rana? Eu não sou homem que se meta no bisaco.

Ia falando, e exaltando-se:Vamos, depressa, o cobre! Senão... Primeiro vem o

manguá, e depois a ponta do ferro. Não se mexe?Silabou soturno a pergunta, chegado que fora a grande

irritação diante da tranqüilidade, que lhe parecia descaso, mos-trada por João Felício desde o primeiro momento.

Está exigindo um milagre. Não posso dar o que nãotenho.

A resposta exasperou-o ainda mais:Ah! E' assim?Pois com certeza. Como não havia de ser? Ainda hoje

de manhã matei na estrada uma cascavel que andou perto demorder o meu cavalo. Se eu fizesse milagres, não haveria ser-pentes no mundo.

Estou entendendo, murmurou o cangaceiro. E, altean-do a voz: — Eu também gosto de matar cobra.

Fez um sinal, e lançaram-se contra o moço os dois cabras,manifestamente já preparados para o lance. Com os braços deimproviso violentamente presos, êle não pôde oferecer-lhes re-sistência. Também é certo que não procurou fazê-lo. Disseapenas, como se não lhe restasse nenhuma dúvida sobre o des-fecho do drama:

A CONFISSÃO 111

O que não quero é morrer sem confissão. Não peçooutra coisa.

Levantou-se nesse momento um rumor para os lados daestrada. Os olhares dos quatro voltaram-se vigilantes pro-curando-lhe a direção e o significado. Porém o rumor pron-tamente diminuiu e desapareceu, porque proviera da passa-gem de alguns viajantes que afrontavam apressados a rudezada hora canicular.

Tornou, pasmado, o chefe da malta:—Vossê disse que deseja confessar-se? Que diabo de his-

tória é essa?Desejo confessar-me, sim-senhor. Estranha, porque

não vê padre. Mas não é preciso. Em caso de morte, a con-fissão é igual ao batismo, que todo o cristão pode ministrar.

0 cangaceiro considerou-o por um momento, e em segui-da, com um riso que lhe pôs à mostra os dentes irregulares:

Seja feita a sua vontade. Escolha o confessor, que sópode ser um de nós três, e vá contando os pecados. Estouapreciando a patacoada!

Houve no íntimo de João Felício um certo prazer e des-vanecimento. A final de contas, era êle, era a sua vontade,quem ia regulando o desenvolvimento e sucessão dos fatos.Voltando-se para um dos que o seguravam, e dando-o comoo confessor preferido, lembròu-lhe que deviam afastar-se umtanto, porque bem sabiam todos "que somente o confessor éque pode ouvir a confissão".

Ali, por exemplo, acrescentou, designando a sombrade uma árvore, a alguns metros do lugar onde estavam.

Assentiu o maioral com um movimento de cabeça; e co-mentou, escarninho:

Com quem se meteu! Logo com o Vesgo! Havia dearrepender-se da escolha, se já não conhecesse a penitência.

Chegado João Felício ao ponto indicado, ajoelhou-se efez o sinal da cruz. O cabra, a quem ia confessar-se, e que atéesse momento se conservara silencioso, não se conteve, olhandoo confitente, que não desse uma gargalhada. Os outros mal-feitores riram também, contemplando a cena.

112 REVISTA BRASILEIRA

João Felício falou então muito baixo, sem levantar osolhos:

Presta atenção. Teu patrão me mataria, quer eu en-tregasse, quer não entregasse o dinheiro, e eu não quero mor-rer. Tu vais salvar-me, e eu vou enriquecer-te.

Que está dizendo?Que vais enriquecer d'aquí a minutos. Ouve bem.

Trago ali no enchimento da sela trinta contos de réis, que se-rão teus, se me salvares a vida, como espero.

Trinta contos? perguntou, pasmado, o bandoleiro.E João Felício:

Isso! E' o que está escondido no enchimento.Tanto dinheiro? Trinta contos? Um mundo de cédulas

ergueu-áe, desdobrou-se estonteadoramente diante dos olhosdo bandoleiro, que não podia compreender viesse a pertencer-lhe semelhante enormidade. Era lá possível?

Quedou, num atordoamento. Entretanto, urgia delibe-rasse.

E então? sussurrou João Felício.Mas como há de ser?Muito fácil. Tu dizes daqui a teus companheiros, fin-

gindo interromper a confissão, que estás desconfiado de queocultei o dinheiro na sela, porque te roguei, por alma de tuamãe, que fizesses chegar os arreios ao poder do major Quinti-liano. Entendeste?

Entendi. E depois?Tu vais ver. Assim que fizeres como te digo, cairão

os dois sobre a sela ficando de costas para nós, porque elaestá atrás deles. E nesse momento... — não é bom o teurifle? — tu defenderás o que te pertence, os teus trinta con-tos de réis. Enfim, daí virá para nós dois a felicidade: paramim, com a minha vida; para ti, com o teu dinheiro.

O cabra ergueu a cabeça.E' assim mesmo, tem razão, murmurou. A coisa dá

certo. E, dirigindo-se aos parceiros, a voz meio trêmula:Desconfio de que a bolada está no enchimento da sela.

0 sujeito me pediu, até por alma de minha mãe, que mandasse

A CONFISSÃO 113

os arreios ao velho Quintiliano! Pediu agora mesmo! Esse pautem formiga!Aconteceu o que previra João Felício. Correram os dois

salteadores para o "serigote", e começaram a abrir-lhe oforro a golpes de faca. Foi quando o comparsa, experimen-tado atirador, fulminou um e outro com duas balas das maiscerteiras de que já se utilizara em dias de sua vida. Adian-tou-se então para o tesouro, no anseio de completar a con-quista com o ato da posse. Não o conseguiu, entretanto, por-que rolou, por seu turno, em convulsões, a um terceiro re-tumbo, este menos prolongado que os primeiros.Apressou-se João Felício em despear o Pisa-Firme, se-lou-o, montou de um salto, e, olhando de relance a pavorosacongérie, deixou, em fuga vertiginosa, as lindas águas sere-nas do ribeirão do Lageado...

A PREPOTÊNCIA DE FANFARRÃO MINÉZIO

Sud Mennucci.

Num dos meus primeiros artigos sobre as "Cartas Chi-lenas", afirmei que a Inconfidência Mineira nunca forapor nós entendida em toda a sua plenitude porque o Brasilnão lera a famosa sátira. Só ela poderia haver revelado aprofundidade e o alcance da rebelião gorada, pois só ela con-tava, de forma insuspeita, e sem nenhuma premeditação, oque é que a grande Capitania das Minas havia sofrido.

Nem todos concordaram com a afirmativa; mesmo emminha roda mais íntima, pareceu enfática e exagerada, ten-dente a transformar um livro, até pouco, quasi inestudado,num grande documento nacional.

Quero hoje justificar e fundamentar minha afirmativae sotopor as "Cartas Chilenas" ao processo de que ressaltea importância que realmente possuem para nossa históriapolítica e social.

** *

A história da colônia, durante os dois primeiros séculos,não fora vivida realmente no Estado de Minas. Andava fora,na Baía, em Pernambuco e em São Paulo, pois não havia sur-gido ainda a era da mineração. Quando, ao alvorecer do sé-culo III, o ouro e, depois, o diamante, estabeleceram seu quar-rtel-general na zona do Tejuco, elevando a Capitania das Mi-nas a coração do Império Colonial, chegou-lhe o turno dosgrandes sofrimentos. A opulência extrativa dava garras cúpi-

A PREPOTÊNCIA DE FANFARRÃO MINÉZIO 115

das à Metrópole, que encontrava aqui o meio de pagar as ini-ciativas e empreendimentos de seus Ministros. E o sistema dearrocho fiscal foi sendo introduzido no centro do país de ma-neira como nunca o havia este realmente experimentado.

Os representantes da Coroa aumentavam a aflição. Maisrealistas que o próprio Rei, defendiam os direitos lusos comobons procuradores. E nem sempre procuraram exclusiva-mente para o Trono. Procuravam também para si mesmos.

Como se portava essa gente, se o disséssemos, hoje, nósbrasileiros, acusar-nos-iam de parcialidade e de paixão, porquelevaríamos para o exame do problema nossos pontos de vistaatuais, de nativos rebelados anacrônicamente contra um poderque nada mais fizera do que repetir as praxes consuetudiná-rias de toda obra colonizadora, no mundo inteiro.

Felizmente, não somos nós, de hoje, que podemos rela-tar o que realizaram os fideicomissários reais.

Há livros insuspeitos que fazem, por nós, esse trabalho se-reno de contar a verdade. Um, que é da lavra de um portu-guês, é a tão citada "Instrução

para o Governo da Ca-pitania das Minas-Gerais", escrito em 1780, pelo desem-bargador da Relação do Porto, o dr. José João Teixeira Coe-lho, livro que ninguém sabe por que o Brasil não o reimpri-me, tirando-o do frasco de álcool em que se encontra, nas pá-ginas do volume XV da "Revista do Instituto Histórico Bra-.sileiro".

Esse livro, se mais amplamente divulgado, e sendo como«é, da autoria de um alto magistrado lusitano, mostraria comose comportavam em nossa terra todos quantos vinham exer-

'Cer uma parcela de autoridade. Minas, a parte mais rica doBrasil, no tempo, tinha sido atacada por uma voracíssima "co-lônia de parasitas", intenta a devorar-lhe o patrimônio desço-T)erto, sem medir conseqüências na satisfação de seus apeti-tes e desejos.

E' que, de acordo com as famosas Ordenações, as leis e odireito entendiam-se válidos e respeitáveis do Equador parao Norte. Do Equador para o Sul, o sistema era outro, muitomais cômodo: imperava o livre-arbítrio governamental e, lò-gicamente, a discrição dos funcionários. 0 critério e a von-

116 REVISTA BRASILEIRA

tade destes é que traçavam as normas de agir. E não há queespantar no sistema: regra geral, para cá vinham os fidalgo-tes sem morgadio, isto é, gente que descendia da mais ilustrelinhagem do Reino, mas que não seria contemplada no espó-lio das sucessões. Com tanto sangue azul nas veias, tinhamas arcas vazias, e a herança de bens avultados só podia ser,para eles, um caso de loteria: ou a morte de um parente, semdescendentes, legando-lhes o título e a casa, ou o casamentocom uma herdeira rica. Sortes grandes, ambas, difíceis e es-porádicas, com que nem todos podiam contar. Restava-lhes,o terceiro meio: o Trono, empenhado em manter o prestígio,do sangue aristocrático, abria-lhes as portas da administra-ção afim de que, no exercício dos melhores cargos, pudessemeles adquirir novos brasões pela maneira mais simples: enri-quecendo.

E as colônias pagavam esse luxo reinol de manter umaclasse inteira de fidalgos puro sangue, de apuradíssimo pe-digree, praticamente desocupados e que viviam à procurade uma solução econômica para a própria existência.

Se nós nos déssemos ao trabalho de uma ampla vistoriaàs árvores genealógicas dos homens que nos mandaram paracá, verificaríamos a assombrosa porcentagem dos que vierambuscar, no Brasil, os escudos de suas casas e os títulos comque se honraram. Nem o Conde de Bodadela escapou.

E* fácil de calcular, assim, com que estado de espíritoarribavam às nossas plagas, depois das viagens duras e difí-ceis daqueles tempos, os homens de governo, expedidos de-Portugal.

Nenhum, porém, tão acabado como expressão de mando-nismo e de cupidez, que se compare a Luiz da Cunha Menezes.A capitania das Minas, que sobre todos os desastres, arcavacom o regime draconiano do Distrito Diamantino e que, por-isso mesmo, sofrerá, mais que qualquer outra região do Bra-sil, o peso das sanções administrativas, acirrava a ganânciados chefes. Embora já houvesse passado, no último quarteldo século XVIII, a opulencia da produção aurifera e diaman-tina, o que ainda existia em exploração, excitava a gula das,autoridades.

A PREPOTÊNCIA DE FANFARRÃO MINÉZIO 117

Luiz da Cunha Menezes foi, nessa matéria, a quintessên-cia. Nele se requintaram todos, os defeitos, todos os vícios deseus antecessores. Escolhido a dedo, mediante exame de se-leção entre candidatos, talvez a Metrópole não tivesse acer-tado tanto, como o fez, quando nô-lo despachou para tipo-pa-drão do mau capitão-general. Êle era verdadeiramente per-feito e completo. Não lhe faltava o mínimo requisito.

E podemos verificá-lo, fazendo um repasse através daspróprias "Cartas Chilenas", livro em que a co-autoriade outro português, Tomaz Antônio Gonzaga, não pode maisser negada.

** *

Apresentêmo-lo, antes de mais nada, fisicamente. Aquiestá, como o pintou Critilo:

"Tem pesado semblante, a côr é baça,O corpo de estatura um tanto esbelta,Feições compridas e olhadura feia,Tem grossas sobrancelhas, testa curta,Nariz direito e grande, fala poucoEm rouco, baixo som de mau falsete.Sem ser velho, já tem cabelo ruçoE cobre este defeito e fria calvaÀ força de polvilho, que lhe deita".

Por cima de tudo, casquilho, excedendo-se na preocupa-ção ridícula da indumentária e da elegância.

Do ponto de vista intelectual, não fugia à regra dos man-does analfabetos com que Portugal nos mimoseava, invarià-velmente. As alusões das "Cartas" são categóricas e valea pena recordá-las. Critilo, em certo ponto, pergunta, refe-rindo-se a Fanfarrão:

"E pode ser o Chefe onipotenteQuem não sabe escrever uma só regra,Onde ao menos se encontre um nome certo!"

118 REVISTA BRASILEIRA

E na Carta Sétima, referindo-se diretamente ao Chefe:

"Ah! se ele, doce amigo, assim discorre,Sabenão apenas ler reãonãa letra,Que abismo não seria se soubesseVerter o Breviario em tosca prosa".

E na Carta Segunda:

"Então o grande Chefe, sem demora,Decide os casos todos, que lhe ocorrem,Ou sejam de moral, ou de direito,Ou pertençam também à medicina,Sem botar (que ainda é mais) um livro abaixoDa sua sempre virgem livraria."

Como todo indivíduo inculto, a quem se entregou cargoacima de suas possibilidades mentais, tem êle um excessivociúme de suas prerrogativas e trata a todos os demais homenscomo entes infinitamente abaixo na esicala social. Não sesente obrigado a retribuir cortesias porque acha que estas lhessão naturalmente devidas, e as manifestações de acatamentode seus subordinados não encontram nele senão uma superiore desdenhosa acolhida, de quem sabe que o respeito é deverobrigatório do povo pelos seus maiorais. Êle, como a maisalta autoridade da capitania, é único. Nem mesmo a praxetradicional de dar aos Bispos o lugar de preeminência nas ce-rimônias e atos públicos, tão rigorosamente seguida em Por-tugal, êle manteve. Durante o "reinado" de Cunha Menezes,o Bispo de Vila-Rica teve sempre de ocupar o segundo lugar.Fanfarrão não se esquecia nunca, em hipótese alguma, de queêle era o governador das Minas. Levava seu orgulho a talponto que, ao fazer uma visita, a uma família fidalga, não seassentava, obrigando todos os circunstantes a permanecer depé, sem excluir a dona da casa que recebia a incômoda dis-tinção daquela estranha hospedagem. Era um perfeito la-brego, fardado de capitão-general e dominado pela hipertro-fia de sua própria importância.

Examinado do ponto de vista moral, então, esse homem

A PREPOTÊNCIA DE FANFARRÃO MINÉZIO 119

surge-nos como um inacreditável caso teratológico. A cupi-dez tinha ali feito ponto final.

Certo, Fanfarrão não viera a nossa terra para tomar aresou para criar um nome famoso em virtude das obras notáveisque fizesse. Seu ideal era muito mais modesto: queria apenasengrossar o seu magro pé de meia.

Descobriu um excelente meio de realizar uma parte doque almejava, inventando a mais volumosa "guarda nacional"de que houve notícias nos tempos coloniais. Naquela quadrachamavam-se comandantes de terço os oficiais honoráriosde tropa que não era paga pelos cofres da fazenda pública.Mas as patentes pagavam-se e constituíam um luxo para quemdesejava possuí-las. Quem eram? De ordinário, os negociantes,mercadores e artesãos que haviam prosperado e que não po-dendo aspirar a títulos nobiliárquicos e mesmo a honrariasespeciais, como o hábito de Aviz, porque não poderiam pro-var que não tinham a mancha de mecânico, agarravam-sea essa espécie de brasão popular para vaidade da família. Vai-dade que custava dinheiro e que Fanfarrão explorava. ACarta Sexta conta que esses homens, nas festas, rodeavam ocapitão-general:

"Com êle só se assenta a sua eôrte,Que toda se compõe de novos Martes.Aqui alguns conheço, que inda vivemDe darem o sustento, o quarto, a roupa,E capim para a besta a quem viaja.Conheço finalmente a outros muitos,Que foram almocreves e tendeiros,Que foram alfaiates, e fizeram,Puxando a dente o couro, bem sapatos.Agora, doce amigo, não te rias,De vêres que estes são aqueles grandes,Que em presença do Chefe encostar podemOs queixos nos bastões das finas canas.Os postos, Doroteu, aqui se vendem,E como as outras drogas que se compram,Devem daqueles ser que mais os pagam."

Fanfarrão encontrou outra larga fonte de proventos naspromoções militares. Promovia aqueles que "largavam",

pa-

• -v

120 REVISTA BRASILEIRA

gando as patentes, ou aqueles que depois se prestavam a de-sempenhar servicinhos especiais de que saía dinheiro. Estaparte nós a veremos logo adiante.

As promoções são alvo de longas tiradas, nas "CartasChilenas". Esta é da nona:

"Morreu um Capitão, e subiu logoAo posto devoluto um bom tenente.Porque foi, Doroteu? Seria acasoPor ser tenente antigo? Ou porque tinhaCom honra militado? Não, amigo,Foi só porque largou três mil cruzados!Ah! não mudes a côr de teu semblante,Prudente Maximino! Não, não mudes.Que importa que comprasses a patente,Se tu a merecias? A vilezaDa compra não te infama; sim, ao Chefe,Que nunca faz justiça sem que a venda." .

E depois desses versos, vêm os que contam as promoçõesde Tomazine (Tomaz Joaquim), Lobésio (José de SousaLobo e Melo), os dois Padelas (que eram José e Fernan-do Vasconcelos Parada e Sousa) e mais Cata-Preta e Ca-panema...

E as "Cartas", nesses passos, apenas confirmam oque declarara Tiradentes, no seu depoimento da Devassa daInconfidência: "que êle confessa ter sido quem ideou tudo,sem que nenhuma pessoa a movesse, nem lhe inspirasse cousaalguma; que tendo projetado dito levante, o fizera desesperado,por ter sido preterido quatro vezes, parecendo a êle respon-dente que tinha sido muito mais exato no serviço; que, achan-do-o para diligências mais arriscadas, para as promoções eaumentos achavam a outros, que só podiam campar por maisbonitos, ou por terem comadres que servissem de empenhos;porque seu furriel está feito tenente; Valeriano Manso, quefoi soldado da companhia dele respondente perto de seis anos,está feito tenente da mesma companhia; Fernando Vasconce-los, que foi cadete seis anos, já sendo êle respondente já alfe-res, está feito tenente; Antônio José de Araújo, que era fur-riel, sendo êle alferes, está feito capitão, e Tomaz Joaquim,

A PREPOTÊNCIA DE FANFARRÃO MINÉZIO 121

que foi alfères do mesmo tempo que êle respondente, estáfeito capitão da mesma companhia."

Fernando Vasconcelos é o mais moço dos Padelas, das"Cartas Chilenas", e que se notabilizara por injuriar os mi-nistros da magistratura da capitania. E Antônio José deAraújo, que passara por cima dos méritos de Tiradentes, é ocomandante português da força que se bateu, em 1781, noCampo-Belo e foi ali inglória e vergonhosamente batido pelosgarimpeiros, em número inferior. Talvez porisso mesmo me-recesse os galões que se negaram ao proto-mártir.

Não pararam aí as obras pias de Cunha Menezes.Entrou pelas arrematações dos contratos reais e fê-los distri-buir aos seus afilhados e protegidos. Marquésio (o capi-tão José Pereira Marques) pegou um, dos gordos. E as"Cartas Chilenas" comentam:

"As línguas depravadas espalharamQue para o tal Marquésio entrar de posse,Largara ao grande Chefe, só de luvas,Uns trinta mil cruzados; bagatela!"

E deu outro a Silverino (o coronel Joaquim Silve-rio dos Reis, de negregada memória na Inconfidência) e pelasmesmas razões, como o diz expressamente a mesma carta:

"Por isso nos confessas que tu ganhasA graça deste Chefe, por que enviasPela mão de Matúsio, seu agente,Em todos os trimestres as mesadas."

Mas não foram só os contratos, as promoções e as paten-tes que deram ao felicíssimo governador os meios de atulharas próprias arcas. Êle lançou mão de outros recursos interes-santes. Um vem relatado na Carta Duodécima e não lembra-ria a ninguém, principalmente naqueles tempos de tanta de-voção. Os devotos de uma Imagem de Nosso Senhor, havendopromovido uma festa em seu louvor, escolheram Fanfarrãopara patrono e protetor dos festejos. Este aceitou e, de fato,promoveu grandes comemorações, entre os quais uma tou-

( ^ &, ' "-.''-¦'.''.¦ . ; ¦ : ,7 "i ¦¦ ¦ ¦"-;:,"¦-;¦'

122 REVISTA BRASILEIRA1

rada. Mandou vender os palanques do circo a quatro oitavasde ouro cada um, afim de se criar um patrimônio para oSanto. Não ficou lugar vazio... mas Nosso Senhor não en-trou na posse do dinheiro. Como? Assim glosa o fato a Cartacitada:

"Não penses, Doroteu, que o nosso ChefeComeu este dinheiro. Longe, longeDe nós este tão baixo pensamento.Indo já no caminho o seu MatúsioPassou sobre Marquésio certa letra,Para que se pagasse ao Santo Cristo.Agora considera se este fatoNão mostra que êle zela a conciência.Agora inquirirás se o tal MarquésioPôs na sacada letra o seu "aceito"?Não pôs, não pôs, amigo, porque disseQue deste passador não tinha efeitos;Porém o bom Matúsio, mais seu amo,Levam as conciências descansadas,Pois não devem supor, pelo costume,Que a letra não pagasse o mau rendeiro.'?

A lista das descobertas e dos achados de Cunha Menezes,no afã de obter dinheiro, iria longe, se quiséssemos arrolartodos os desconcertos que fez, no seu governo. Mas não sepode omitir o que praticou no Distrito Diamantino.

Na chamada Demarcação Diamantina, que, embora fi-gurasse oficialmente como parte integrante da Capitania dasMinas-Gerais, era regida por uma lei especial, o capitão-gene-ral não tinha alçada. Quem mandava lá era o Intendente dosDiamantes, ou, nos seus impedimentos, o Fiscal dos Diaman-tes, nomeados diretamente pelo Rei de Portugal. Estes ho-mens não deviam obediência ao governador de Vila-Rica epossuíam uma soma de poder, dentro de seu território, emmuitos casos superior à do próprio capitão-general. E' fácilcalcular que Fanfarrão Minézio, com a inextinguível sede deouro de que se achava empolgado, não se conformaria com essasituação de inferioridade e faria o diabo para intrometer-sena administração do Tejuco, onde o contrabando era fonte delargos e escusos benefícios.

A PREPOTÊNCIA DE FANFARRÃO MINÉZIO 123

Para isso, subornou os comandantes dos destacamentosdo Distrito, que eram de sua nomeação, e aos quais estavaafeto o cumprimento das ordens do Intendente no que tangiacom o policiamento de repressão ao contrabando. Eram doisesses comandantes: Lobésio e Padela, isto é, José deSousa Lobo e Melo e José Vasconcelos Parada e Sousa, quejá vimos, lá atrás, como promovidos sem o necessário mere-cimento. Promovidos porque? As "Cartas Chilenas" põemo caso em pratos limpos:

"Aqui tens teu lugar, meu bom Lobésio;Tu foste a Capitão, e tu passasteAo posto ãe Major em breves meses.Quais são os teus serviços? Quais? Responde.Mas não, não me respondas; eu conheçoQue és tolo, que és bregeiro, e mais que manãasAs redradas peãrinhas. Estes dotesTe fazem no conceito do teu ChefeUm digno Pai da Pátria, Herói do Reino".Também tu, ó Padela, te distinguesNa corja dos marotos. Tu conservasO sôlão ãe Major, e mais as honras.Que foi que te fez digno de subiresA privança do Chefe? Ah! sim, eu vejoO teu merecimento! É cousa grande,Ultrajas os ministros e protegesA todos os tratantes, que exercitamO furto e o contrabando

Tu reportesOs lusentes seixinhos com teu chefe;E bem que o seu Matúsio, em nome dele,Os ache miudinhos, sempre servem."

Como conseguia Fanfarrão realizar essa manobra, dianteda legislação draconiana que dava tamanha força ao Intendente?De maneira fácil. Diz Joaquim Felício dos Santos, nas suas"Memórias do Distrito Diamantino", que Cunha Menezes"concedia portarias aos contrabandistas afim de que não pu-dessem ser presos em parte alguma, pois que eles estavam en-carregados pelo governador das Minas de certas diligênciassecretas, a bem da ordem pública". Quando o Intendente des-

124 REVISTA BRASILEIRA

pejava do Distrito alguns desses contrabandistas, Cunha Me-nezes revogava o ato, embora não o pudesse fazer, legalmente.Mas, para isso contava com os soldados e com os comandan-tes dos destacamentos. Estes obedeciam ao Capitão-generale não aos Intendentes. E chegavam a prender os oficiais dejustiça da administração diamantina, quando, em cumpri-mento das ordens do Intendente, se metiam a querer efetuarprisões dos protegidos do governador de Vila-Rica. E comonão bastasse, Padela concedia, por seu turno, licenças acomboieiros e mascates para entrarem e traficarem na De-marcação, escorado na outra prática de Cunha Menezes quenão permitia, em hipótese alguma, se processasse ou se levan-tasse pleito contra os militares, no seu governo. Era a impu-nidade completa, tanto quando eles agiam como mandatáriosdo chefe, ou quando agiam por conta própria. O leitor cal-cularâ, daí, o que seria a desordem, os abusos, as injustiças notempo de Fanfarrão.

Aliás, é nesse capítulo das injustiças que nosso homemmarcou o seu governo com um selo que o levou à posteridadee à fama. Enquanto houver Brasil e enquanto houver línguaportuguesa, Cunha Menezes ficará em nossa história como omais truculento e o mais brutal dos administradores coloniais.

Não é fácil nem cômodo o arrolamento de seus desman-dos. Mesmo limitando-nos à esfera daqueles que se possamconsiderar mais sensacionais, torna-se fastidioso estender orol de suas decisões no mister de distribuir justiça, mister queem sendo a mais sagrada e a mais elevada atividade de umChefe, foi por êle transformado em instrumento de violência,de opressão e de rapinagem.

Uma das grandes iniciativas em que se meteu, foi a cons-trução da Xadeia, cujo projeto êle mesmo riscou. Era umacousa fora de proporção com a decadência da terra. E tão emdesharmonia com a vila que Critilo, nas "Cartas Chilenas"indaga:

"Verás &e pede máquina tamanhaHumilde povoado, aonde os grandesMoram em casa de madeira a pique."

A PREPOTÊNCIA DE FANFARRÃO MINÉZIO 125

Decidido a construir o edifício, mas sem vontade e semmeios de gastar dinheiro, ocorre-lhe uma idéia diabólica: le-vantá-la com o trabalho dos presos. Como os existentes nãobastam, manda que a polícia lhe traga quantos quilombolasconsiga apanhar pela Capitania. E começam, então, de apa-recer os desgraçados párias que devem construir o famosoprédio. Junto com os quilombolas, são remetidos negros semculpa alguma, negros libertos, mulatos e até brancos, classi-ficados na rubrica de vadios e de perturbadores do sossegopúblico. Para efetuar uma limpeza completa nas vilas e po-voados da Capitania e conseguir pessoal para as obras, Fan-farrão dá aos comandantes dos terços — isto é, aos seus ofi-ciais da guarda-nacional do tempo — ordem para efetuaremas prisões. E estes valendo-se das autorizações, aproveitam-nas para tirar vinganças pessoais de desafetos.

Em chegando a Vila-Rica, a primeira providência que setomava, era flagelar esses coitados com uma surra de cemaçoites em cada desgraçado e depois enviá-los às obras, ondetrabalhavam acorrentados e sob a guarda de esbirros, cujafunção principal era não deixar que os párias fraquejassem,incitando-os por intermédio de novas relhadas. Chegou aamontoar mais de quinhentos, desses infelizes, que viviam, empromiscuidade, nas próprias dependências da cadeia velha eonde muitos morriam por falta de alimentação conveniente,por falta de higiene e por falta de resistência física e por ex-cesso de trabalho e de sevícias.

O caso indignou de tal maneira Critilo que este não hesitaem dedicar-lhe nada menos de três comovidas Cartas, a Se-gunda, a Terceira e a Quarta, relatando os sucessos, as injusti-ças e os maus tratos que se infligiram a uma desventurada po- „pulação de mineiros que não tinha quem a defendesse da fero-cidade de um governador sem entranhas.

As obras da cadeia nova foram uma obsessão de CunhaMenezes. Enquanto seus apaniguados iam torturando impla-càvelmente os presos, êle tomava novas disposições que abre-viassem o término do trabalho. Mandou que os fazendeiros eroceiros lhe trouxessem os carros que possuíssem, com seusbois e empregados, para transporte das pedras. Trabalha-

, »' '

126 REVISTA BRASILEIRA

riam de graça, durante uma semana e, para que nada pesassesobre a fazenda pública e ficasse tudo a cargo dos contribuin-tes, os proprietários deviam também trazer o milho para ali-mentar os bois.

Fanfarrão não perdoa ninguém nesse capítulo, nem mesmoa Ermida do Senhor de Matosinhos, templo este que possuíaum carro e que recebeu a ordem de fazer o mesmo queos fazendeiros e roceiros. A irmandade que dirigia o Templofez uma petição, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, ale-gando que o carro, obtido por meio de esmolas, destinava-sea trabalhar para a construção do próprio edifício religioso eque como o Templo não tinha renda, devia ser isentada dacontribuição. Fanfarrão foi inflexível: lançou como despa-cho a palavra "Escusado" e obrigou o Templo a en-viar o veículo.

Nem as tropas que traziam mantimentos à cidade escapa-ram do imposto: também se viam obrigadas a ir buscar pedraqueimada na Caieira próxima, com o que se afugentaram osfornecedores de artigos alimentícios e se determinou umaverdadeira carestia de gêneros de primeira necessidade.

Outra teima de Cunha Menezes: os festejos excepcionaisque se promoveram em Vila-Rica por ocasião do casamentode D. João VI com dona Carlota Joaquina. Embora não hou-vesse dinheiro e embora as leis do Reino apenas exigissem,como manifestações da alegria dos subditos, um Te-Deum,Cunha Menezes obrigou o Senado da Câmara a promover ascomemorações, gastando um dinheiro que não havia.

Critilo comenta: ¦«"Ah! meu bom Doroteu, que feliz foraEsta vasta! Conquista, se os seus ChefesCom as leis dos Monarcas se ajustassem!Mas alguns não presumem ser vassalos;Só julgam que os decretos dos AugustosTêm força de decretos, quando ligamOs braços dos mais homens, que eles mandam;Mas nunca quando ligam os seus braços."

Cunha Menezes era desses Chefes: saltava por cima detudo, até mesmo por cima do Rei. O Rei estava longe e não

A PREPOTÊNCIA DE FANFARRÃO MINÉRIO 127

tinha tempo para tomar conhecimento do que faziam seus pre-postos nas longínquas terras em que andavam, num tempoem que era dificílimo viajar: Modificava sentenças, soltavapresos, réus de crimes graves, e não trepidava mesmo em in-dultar penas de morte, contra todas as disposições legais doReino.

Em compensação oprimia o povo, nas cobranças das dí-vidas em atraso, perdoando os ricos, que faziam acordos econchavos com os seus representantes. Exigia o pagamentode dívidas extintas, encarcerava os fiadores dos presumíveisdevedores, quando estes recalcitravam em saldar compromis-sos, sem uma prestação de contas em regra.

O seu despotismo não tinha freio. O caso seguinte é umaprova típica. Conta a Carta Décima:

"A Junta, Doroteu, a quem pertenceEvitar contrabandos, prende, enviaà sabia Kelação do ContinenteA trinta delinqüentes, para seremCastigados conforme seus delitos."

A Junta a que se alude é a do Distrito Diamantino, sobre oqual Fanfarrão não tinha alçada. Mas este entende que aJunta não pode fazer a remessa sem sua autoridade. E comonão podia vingar-se dos magistrados que haviam autorizadoa medida, dentro do que estatuía o Regimento Diamantino, océlebre "Livro da Capa Verde", toma a seguinte medida:manda embargar os presos na cadeia de Vila-Rica e obriga odesgraçado meirinho, que os conduz, a alimentá-los e assis-tí-los mesmo nas enfermidades. Acabando-se o dinheiro quelhe haviam dado para a condução, o infeliz meirinho vai aFanfarrão e lhe expõe a sua estranha situação, pedindo-lhe li-cença para voltar à sua terra, às suas ocupações habituais.Responde o terror dos povos mineiros que não. Deve o mei-rinho assistir, como dantes, os presos, e se faltar dinheiro queo peça ou que o furte.

Certo magistrado, de comarca distante, exigira dos sol-dados de Cunha Menezes a exibição das ordens que possuíampara efetuarem prisões na comarca. Fanfarrão se exaspera e,

'"»• s.'"'•»:-"

128 REVISTA BRASILEIRA

para vingar-se, envia um corpo inteiro de militares, levando acarta com a autorização pedida, e mandando ao mesmo tempoque essa tropa se hospede na cidade à custa do povo. E nãoadmite que os soldados sejam acantonados nas casas das fa-mílias. Cada um terá que entregar diariamente meia oitavade ouro para o sustento da militança.

Não é inutilmente que Critilo exclama a certa altura: Esta história

Pode servir de fábula que mostreQue muitos homens, mais que as feras brutas,Na verdade conseguem grandes honras".

Realmente, o governo da mais rica Capitania do Brasilhavia sido entregue a um verdadeiro birbante. Para chegar atal ponto, lançou mão de sua arma: manter a tropa de seulado, impedindo que se tomasse qualquer providência de cará-ter jurídico contra ela. Mesmo nos crimes comuns, era impôs-sível processar um militar de Cunha Menezes. Critilo ver-bera:

"Não há distúrbio nesta terraDe que mão militar não seja autora."

Mas reclamar como? Apelar para quem?"Sem licença do Chefe, não se citamOs negros, os creoulos, e os mulatosMal vestem a fardinha, e muito menosMal cingem na cintura honrosa banda.Se alguém requer ao Chefe que permitaPara isso faculdade, põe-lhe em cimaDe humilde petição, que o suplicadoComponha ao suplicante o que lhe deve.Se diz o suplicado ao suplicanteQue não lhe deve nada, foi-se emboraO sólido direito; que a políciaDo Chefe não consente que se ponhaAos seus oficiais, inda que sejamVelhacos e ladrões, no foro, um pleito."

Os militares, com essa regalia, mandavam riscar os no-mes de seus colegas dos róis dos culpados e chegavam a ir à

A PREPOTÊNCIA DE FANFARRÃO MINÉZIO 129

casa do escrivão arrancar os autos das gavetas, resistindo eameaçando aos magistrados. A anarquia completa.

Isso durou quasi cinco anos, isto é, de 10 de outubro de1783 a 11 de julho de 1788. E aqui não se fez o estendal dasimoralidades de Fanfarrão, que, no capítulo da decência, nãofez melhor governo. Transformou o Palácio em lupanar,onde à noite se realizavam cenas de bordéis. Permitiu servissea Casa de onde se dirigia a Capitania, de couto para furtos deescravas, realizados em proveito de seus servos. E para co-.roar a sua obra, pouco antes de partir, promoveu um cabo aalferes, o famigerado Jelônio das Cartas Chilenas, afimde que este se dispusesse a casar com a mulher que lhe ser-vira, a êle Fanfarrão, de amásia, no seu exílio em Minas.

Se o leitor acompanhou, com paciência e boa vontade, esterol de roupa muito suja, deve ter percebido que as "CartasChilenas" são um livro imprescindível para compreen-der o movimento mineiro de 1789. São os sofrimentos de umpovo inteiro, entregue à selvageria de um prepotente, que alise contam:

Um louco ChefeO poder exereita do Monarca,E os subditos não devem nem fugir-lhe,Nem tirar-lhe da mão a injusta espada".

Fanfarrão, com sua estreiteza cerebral, com sua hipertro-fia da vaidade e da importância, foi quem mais abalou a con-fiança dos brasileiros na justiça da Coroa Portuguesa. Foiêle que minou o sentimento de lealdade nativa para com a Me-trópole. Depois de quasi três séculos de dominação absoluta,essa confiança começara, por certo, a minguar e não erampoucos os espíritos que sentiam o excessivo peso do guantereinol sobre as atividades nacionais. As loucuras megaloma-níacas de D. José e, depois, a incompreensão dos sucessoresde Pombal, apesar dos bons sentimentos de dona Maria, já vi-nham abrindo um sulco de afastamento entre os portuguesese os brasileiros. Mas era fenômeno em início, que levaria lus-tros, quiçá séculos, para transformar-se em vala e depois emprecipício.

130 REVISTA BRASILEIRA

Fanfarrão, com seus desmandos, com sua brutal prepo-tência, tratando a colônia como terra conquistada a inimigos,e os nativos como "inúteis bichinhos", como escravos e pá-rias, sem o menor respeito aos seus mais rudimentares direi-tos, foi o que mais concorreu para alargar o sulco e para irpondo no coração brasileiro o desejo incontido de devolverao país de origem esses dominadores mui pouco inteligentes.Êle foi um fermento para a levedação dos espíritos. Ninguémcomo Cunha Menezes para nos ajudar a formar opinião públicanacional. Tanto mal nos fez que acabou nosso aliado. Portu-gal, que longamente o sustentou aqui, contra a vontade dacolônia, não chegou a desconfiar de que esse homem era uminimigo do Trono e qüe, em roubando a gente daquele tempo,estava, na realidade, a roubar a Coroa. Delegado do Rei, nadamais fez do que desacreditar a obra colonizadora da Metrô-pole. Depois de sua passagem, ninguém mais acreditará emPortugal em nossa terra. Fanfarrão tinha-se incumbido denos arrancar espiritualmente da comunhão lusitana. Esgo-tara nossa paciência e nossa confiança nos homens de além-mar. E pode ser considerado como o primeiro elemento efi-ciente da desintegração brasileira.

E são justamente as "Cartas Chilenas" que nô-lo re-velam nesse papel bifronte de, como preposto da Coroa, pro-vocar os primeiros sintomas de desintegração do Império.

MODIFICAÇÕES DA FORMA LITERÁRIA

Sousa da Silveira.

Um estudo de grande proveito a quem se interessa peloestilo literário, é o que consiste no exame analítico dasalterações feitas numa redação primitiva.

Em regra geral, o autor melhora o texto anterior.E' mesmo com esse fim que êle o modifica. Às vezes, po-rém, não realiza o seu intento: passada a inspiração, pa-rece que êle não consegue, a frio, manter-se à altura dela.

Como exemplo, cito um caso de João de Deus. NasFolhas Soltas, p. 150 da edição de 1876, do Porto, a poesiaSaudade começa com estes versos:

"Tu és o câlis;Eu, o orvalho!Se me não vales,

• Eu o que valho?"

Na edição de Lisboa, 1896, do Campo de.Flores, aquelesversos estão na p. 38, mas assim redigidos:

"Tu és o cális,E eu o orvalho:Se me não vales,Eu nada valho!"

Acho a última redação bem inferior à primeira. A lin-guagem é, sim, intelectual, raciocinada, lógica, mas por issomesmo um tanto sem vida. O poeta diz friamente que a

132 REVISTA BRASILEIRA

mulher inspiradora é o cális e êle (notem a conjunção e li-gando gramaticalmente, com toda a regularidade, as ora-ções) e êle o orvalho: se ela não lhe valer, tira êle, semnenhuma emoção, a conclusão de que êle nada valerá.

Vejamos agora como se houve o poeta na redação ante-rior. A linguagem é sentimental. A falta de nexo grama-tical (assíndeton) entre as duas orações que iniciam o pe-ríodo dá mais energia à expressão, tornando mais forte aoposição entre o "tu" da primeira e o "eu", que a vírgulaque lhe vem depois faz pronunciar-se com ênfase, dasegunda:

Tu és o cális (pausa);Eu (ênfase e pausa), o orvalho.

E a conclusão final, em vez de ser apresentada comfrieza, enunciativamente, é feita sob a forma de uma inter-rogação angustiosa, na qual a antecipação do sujeito doverbo "valho" põe ainda mais força de sentimento do quese encontraria na construção, sintàticamente mais regular*"o que valho eu?":

Se me vão vales,Bu (pausa, com angústia) o que valho?

,

No célebre cantar à maneira de solau, da Menina;e moça, fala a ama, que está cuidando de uma criança.

Esta criança — uma menina — nascera entre desven-turas. A mãe morrera do parto. No afã de cuidarem damãe, haviam deixado de lado a criança, que não teriavingado se a ama não a tivera socorrido. Na cantiga, aama recorda as desgraças passadas, e procura consolar-sedas suas apreensões do futuro notando que tão linda cria-tura, como era a menina, não poderia vir a ser infeliz.

Mas estes lampejos optimistas da ama não duram muito ílogo os abafa a nuvem negra dos maus pressentimentos.Está a ama num desses instantes de dúvida quando diz àcriança:

MODIFICAÇÕES DA FORMA LITERÁRIA 133

"Eu vos ouvi a vós sóprimeiro que outrem ninguém;

não fôreis vós se eu não fora,não sei se fiz mal, se bem."

E logo, num impulso vivo, como para afastar de si adúvida cruel "não sei se fiz mal, se bem", que lhe assalta opensamento:

"Mas não pode ser, senhora,para mal nenhum nascerdes,com este riso graciosoque tendes sobr'olhos verdes."

O pronome "este", da l.a pessoa, em vez de "esse", fazque vejamos a ama, num acesso de ternura, aproximar desi a criança, que tem reclinada no regaço: aproximá-lade tal modo e manifestar por ela tal interesse, que pode usaraquela forma do demonstrativp, para dizer mais ou menosIsto: este riso gracioso, que tenho tão perto de mim, qtieacho tão bonito, que sobressai tanto sobre olhos verdes.

O riso, irradiando pelo semblante, forma uma expressãode fisionomia que parece pairar sobre o rosto e, portanto,$ôbre os olhos: o verde dos olhos constitue o fundo sobreo qual o riso voa e sobressai.

Vê-se a força expressiva do pronome "este" e da pre-posição "sobre", que aparecem no texto da edição de Fer-rara (1554), acima transcrito, apenas com diferenças deortografia e pontuação.

Edições posteriores trazem, porém, o texto deste modo:"Mas não pode ser, senhora,pera mal nenhum nascerdes,com esse riso graciosoque tendes sob olhos verdes."

A idéia de que o demonstrativo "esse" é o que, gra-maticalmente, convém à pessoa com quem se fala, provocoua substituição de "este" por "esse": e com semelhante alte-ração o estilo ficou prejudicado, a expressão perdeu o seu

„ [ >

134 REVISTA BRASILEIRA

vigor sugestivo, pois deixou de notar o interesse da amapela criança, o seu gesto carinhoso de envolvê-la nos bra-ços e aconchegá-la a si, e distanciou uma da outra aquelasduas criaturas que a redação da edição de Ferrara apresen-tava tão unidas, física e moralmente.

A troca da preposição "sobre" por "sob" mostra quehouve uma preocupação de rigor geométrico: colocaram acriança em posição vertical e observaram que o riso estavanos lábios e, portanto, ficava situado sob os olhos, isto é,abaixo deles. Não conceberam aquilo que muito mais tardeLima Barreto havia de expressar nestas palavras (Tristefim de Policarpo Quaresma, 1915, p. 105):

"... quando acabou de ler o bilhete, um sorriso brincava portoda ela (fisionomia), descia e subia, ia de uma face a outra.'7

Resultado: na edição de Ferrara — vida, beleza esti-lística; nas outras — rigor gramatical e geométrico, masfrieza.

*

Os casos em que as emendas pioram a redação primi-tiva são raros; mais comumente melhoram-na.

E deste caso de bom êxito das emendas depara-nos lindoexemplo o soneto "Banzo" de Raimundo Correia.

Ei-lo na primeira e na terceira redação que teve.Transcrevo uma e outra da Antologia dos Poetas Brasilei-ros da Fase Parnasiana de Manuel Bandeira (p. 277 e157-158 da 2.a edição):

l.a redação:

"Eis tudo que o africano céu incuba:A canícula o azul avermelhando,E, como um basilisco de ouro, ondeando,O Senegal, e o leão de ruiva juba...

MODIFICAÇÕES DA FORMA LITERÁRIA 135

E a jibóia e o chacal... e a fera tubaDos cafres pelas grotas reboando,E as corpulentas ávores, que um bandoSelvagem de hipopótamos derruba...

Como o guaraz nas rubras penas dorme-Dorme em nimbos de sangue o sol oculto...O saibro inflama a Núbia incandescente...

Dos monólitos cresce a sombra informe...Tal em minh'alma vai crescendo o vultoDesta tristeza aos poucos, lentamente."

3.a redação:"Visões que n'alma o céu do exílio incuba,Mortais visões! Fuzila o azul infando...Coleia, basilisco de ouro, ondeandoO Niger... Bramem leões de fulva juba...

Uivam chacais... Bessoa a fera tubaDos cafres, pelas grotas retumbando,E a estralada das árvores, que um bandoDe paquidermes colossais derruba...

Como o guaraz nas rubras penas dorme,Dorme em nimbos de sangue o sol oculto...Fuma o saibro africano incandescente...

Vai co'a sombra crescendo o vulto enormeDo baobá... E cresce n'alma o vultoDe uma tristeza, imensa, imensamente..."

Comparemos, uma com a outra, as duas redações.Considerando em primeiro lugar a versificação, nota-

remos que os versos bons:"E as corpulentas árvores, que um bandoSelvagem de hipopótamos derruba"

foram substituídos por outros melhores: onomatopaicos,fluentes e enérgicos, graças em parte ao ritmo vivo do úl-timo, e à abundância, em ambos, de vogais de timbres cia-ros, fortemente acentuadas:

136 REVISTA BRASILEIRA

«Ba estralada das árvores, que um bandoDe paquidermes colossais derruba..."

Passando ao modo de apresentação da matéria poética:Na redação primitiva, uma lista, um rol, forçosamente

incompleto e em contradição com a promessa de totalidadeque o primeiro verso contém ("Eis tudo que o africano céuincuba"), pois esse "tudo" reduz-se, como não podia deixarde ser, a um exíguo número de coisas mencionadas:

a canícula,o Senegal,o leão de ruiva juba,a jibóia,o chacal,a fera tuba dos cafres,as corpulentas árvores.

Uma simples enumeração. E quando a alguns dessessubstantivos se atfibue uma ação, é pelo meio vago dogerúndio:,

avermelhando,ondeando,reboando.

Nos dois últimos tercetos, sim, há evocação. Mas se essaevocação deu mais força *à expressão poética, j como estaficou prejudicada com a tautologia, que não tem nenhumarazão estilística de ser, do último verso:

"Tal em minh'alma vai crescendo o vultoDesta tristeza' aos poucos, lentamente."

Que diferença de tudo isto vamos verificar na últimaversão do soneto!

"Visões que n'alma o céu do exílio incuba,Mortais visões!"

MODIFICAÇÕES DA FORMA LITERÁRIA 137

O npeta nos transporta imediatamente ao conhecimentodo que se passa no cérebro do africano exilado. O africanotem visões, e visões mortais, da pátria distante. E desta veznão se enumeram simples substantivos, a alguns dos quaisse atribuem ações por meio de gerúndios, mas apresenta-se,forte de realidade, graças ao emprego de verbos no pre-sente do indicativo, o quadro que, em visão, o infeliz temdiante dos olhos:

Fusila o azul,coleia o Niger (e aqui substituiu-se ao Senegal outro rio de curso

muito mais extenso, e abandonou-se a comparaçãofeita pela conjunção — "e, como um basilisco deouro" — pela que se obtém com o aposto, maisenérgica e mais concisa: "Coleia, basilisco ãe ouro,ondeando o Niger...)

bramem leões,mvam chacais,ressoa a fera tuba dos cafres e a estralada das árvores,dorme o sol,fuma o saibro africano,vai crescendo o vulto enorme do baobâ...

Vai crescendo com a sombra, vai crescendo, crescendo,e, paralelamente, cresce na alma o vulto de uma tristeza,imensa, imensamente...

Áquí, sim, tem cabimento a repetição: insistindo naidéia, pinta-nos bem a sombra moral, a tristeza, crescendoimensamente à proporção que, com a sombra física, vaicrescendo, desmesuradamente, o vulto enorme do baobá...de tal maneira que uma coisa se funde com a outra e comoque fica por fim, ocupando a alma do exilado, só a tris-teza, aquela tristeza que o vai matar.

O estudo comparativo das duas versões do soneto deRaimundo Correia mostra como uma composição literáriade valor medíocre pode passar à categoria de obra-primamediante retoques estilísticos inteligentes e oportunos.

138 REVISTA BRASILEIRA

Creio que, falando de modo muito geral, se pode dizerque na poesia sentimental, como a de João de Deus e a deBernardim Ribeiro atrás examinadas, a redação primitivacostuma ser a melhor; na poesia intelectual, parnasiana,como o soneto de Raimundo Correia, a redaçãp ganha fre-quentemente com um trabalho estilístico raciocinado e in-tencional.

JACQUES MARITAIN E A ESTRUTURADA CIVILIZAÇÃO

Afrânio Coutinho.

I — TOTALITARISMO E CRISTIANISMO

A propósito do lançamento de Jacques Maritain em por-tuguês, através da excelente tradução pelo sr. Tristão deAtaide do À travers le desastre (Noite de Agonia em França,José Olímpio Editora), e da tentativa pelo autor destas li-nhas de referência ao Humanismo Integral (Companhia Edi-tora Nacional), procurarei coordenar algumas observaçõesnão somente sobre a posição filosófica do grande mestre deMeudon, mas também de todo o pensamento católico de van-guarda, em face à reorganização do mundo, à criação deuma nova civilização, a cuja dolorosa e sangrenta gestaçãoestamos presentemente assistindo. Não quero referir-meaqui às suas teses estritamente metafísicas, sobre as quaisnão pode restar dúvida, pois se trata de uma atualizaçãodo tomismo e de uma adaptação e crítica dos problemas edas correntes filosóficas contemporâneas à luz da doutrinado Doutor Angélico; o meu objetivo é fazer ressaltar o sen-tido das suas idéias no campo da filosofia prática, da filo-sofia da história, da cultura e da política. E' a sua doutrinaem face aos problemas agudos da civilização e da culturade nossos dias que tem dado lugar às mais agudas polêmi-cas, mesmo no seio dos seus irmãos de fé, e talvez perantenenhuma outra corrente de pensamento contemporâneo setem demonstrado mais dilacerantemente a liberdade de pen-sâmento e de atitude dos católicos na cidade.

140 REVISTA BRASILEIRA

Uma primeira ressalva desejo fique de logo esclarecida.E' quanto à legitimidade do pensamento maritaineano nesseterreno prático, em relação ao bloco doutrinário tomista deque a sua obra é a maior síntese em nossa época. As suasteses em filosofia prática teem dado lugar a uma das maisgeneralizadas críticas à sua atitude e ao seu sistema: é ade que êle é indiscutível no plano filosófico e teológico edeixa de o ser no terreno político e social, insinuando-seque melhor faria se se mantivesse como filósofo puro, comometafísico, sem se imiscuir nos agudos debates do tempo,da história, da política e sem avançar doutrinação política.Já um escritor francês, Maurice de Gandillac defendeu certavez o filósofo desta acusação, mostrando como ela é umclaro sofisma astucioso que leva a elogiar a obra puramentemetafísica para mais à vontade repelir a posição social-temporal. E acrescenta êle: esta última não resulta de opi-niões contingentes, sem relação direta com o desenvolvi-mento interno do pensamento teórico; ela é antes um pre-cioso aprofundamento, no terreno temporal, da verdade to-mista. E' mister compreender que a posição de Maritainnão está presa, e portanto diminuída, a pontos de vista einteresses contingentes e que ela é a mesma em metafísicae em filosofia política. O seu tomismo é um bloco, o seuhumanismo vem da metafísica à política e ao terreno so-ciai* e a sua metafísica tem de se traduzir, em filosofiaprática, pela forma que o faz. A unidade da sua obra e dasua posição poÜe ser perfeitamente verificada, por quem aconhece profundamente e por quem esteja informado comsegurança*

Em face à presente época de liquidações históricas, aatitude e a obra de Maritain é simbólica do que deve sera verdadeira posição cristã, Tendo partido da metafísica,após um trabalho dê restauração da ordem metafísica, ten-do atingido aos píncaros da sabedoria, êle desceu às ruasda civilização e à realidade trágica do mundo. Armado deum instrumental vigoroso — os princípios da tradição cristãcodificados na síntese tomista — vem passando em revista,com olhar penetrante e largamente humano, a toda a arma-

JACQUES MARITAIN E A ESTRUTURA DA CIVILIZAÇÃO 141

dura social, econômica e artística de nossos atormentadostempos, reconsiderando-os à luz daqueles princípios, e seentregando a um trabalho heróico de reconstrução doutri-nária, tendo em mira estabelecer os fundamentos de umapossível futura cristandade.

Contra o divórcio cartesiano entre a inteligência e a-**,ação, Maritain procura refazer a ligação que deve necessà-riamente existir entre ambas, afim de que o objeto voltea ser iluminado pela luz do intelecto, e a inteligência retomeo sentido que lhe deu certa vez Arnaud Dandieu — o deuma espada.

0 apostolado que Maritain empreende em favor da in-teligência tem um significado muito importante nesta horaem que se procura emprestar maior valor ao prático, aotécnico, à organização, em detrimento do intelectual e espi-ritual. Exalta-se a existência contra o conhecimento, subor-dina-se o conhecer ao viver, opõe-se o princípio do existirao do saber.

Essa tendência de desprezo da inteligência, muito co-mum entre os mitos atuais fascistas, a qual Huizinga designacomo "tendência anti-noética", isto é, oposição ao princípiodo conhecimento, é um dos sintomas da profunda crise dostempos modernos e revela, segundo aquele agudo analistado nosso ambiente espiritual, um desamor da verdade, umaindiferença crítica, uma obnubilação da capacidade crítica,uma corrupção da função científica, em favor do infra-racional, dos apetites e dos instintos, e conduz à barbaria.

Contra essa tendência é que se batem os que prezam oespírito e professam a sua supremacia. Maritain dedica-seatualmente, com todo o ardor, a reconstruir a civilizaçãohumana, em sua estrutura econômica e social, mas depoisprecisamente de ter repassado os seus fundamentos espiri-tuais e de ter apontado os métodos para a restauração daordem na inteligência. E não é só: indicando que aquelaordem será apenas obtida pela informação de princípiosmetafísicos, portanto fazendo com que a inteligência pene-tre na massa social-temporal, iluminando-a por uma dou-trina sólida e coerente. Contra uma metafísica tal como a

142 REVISTA BRASILEIRA

que propõem os misticismos totalitários (Weltanschaung),que testemunham, portanto, embora inconfessadamente, oprimado da metafísica, devem os seus adversários oporoutra metafísica baseada em princípios condizentes com anatureza humana e seus valores essenciais, a liberdade ea fraternidade.

Se o mal do mundo é um mal da inteligência, tendo-seiniciado pela inteligência, e comprometido as suas própriasraízes; se foi quebrada a ordem entre a inteligência e seuobjeto, é o próprio Maritain quem o ensina, nenhum tra-balho deve preceder nem suplantar o de repor a ordem nainteligência, refazendo-se as correntes normais que a ligamà vida. Primeiramente o espiritual, em seguida o econômicoe o político, e não o inverso como proclamam os naturalis-mos políticos. Se a filosofia política é um saber orientadopara a ação, para a prática, no entanto, como toda a filo-sofia prática, ou filosofia do agir humano, não deve serreduzida a um saber exclusivamente dedicado à transfor-mação do mundo. Ela é um saber também especulativo, eo "praticamente prático" deve ser justamente informado porêle, isto é, o espírito deve ser inserido no temporal.

Há quem sustente contudo, e precisamente contra Mari-tain, que ao filósofo não compete descer à realidade da vidatemporal e política. E' a tese dos direitistas, procurando fa-zer confusão entre uma conciente atitude filosófica apolíticae uma atitude política partidária apaixonada, visando des-moralizar a figura do filósofo.

Pois foi justamente a posição de Maritain que desalo-jou o preconceito do famoso dilema direita-esquerda, sobre-tudo entre os cristãos, aos quais se fazia mister chamar aatenção para o perigo das místicas do racismo e da estato-latria, talvez para eles mais graves, pois eram erros quemais os seduziam e os ameçavam de dentro da própriaautenticidade doutrinária.

E* verdade que nem todos estão aptos a compreender asua posição e a sua atitude radicalmente renovadora, unspela cegueira do espírito partidário, muitos outros por cer-tos resistentes e estreitos preconceitos burgueses de luta anti-

JACQUES MARITAIN E A ESTRUTURA DA CIVILIZAÇÃO 143

comunista ou anti-liberal, por estarem ainda presos pelasraízes e pela falta de visão das necessidades e da marchada história ao velho mundo capitalista.

Que outra oportunidade mais legítima para o filósofoapontar o caminho que julgava ser o de todos os que repe-liam a simplista classificação a esquerda ou a direita, senãoesta em que se tornou agudo o conflito? E' possível, razoa-vel e legítima a aspiração de grande corrente por uma "ter-ceira posição" que coubesse todos os que se opunham aomundo reacionário e os que desejavam uma nova ordempara a civilização, fora dos quadros fascistas ou comunistas,e dentro da renovação da democracia.

A crítica resulta da mentalidade muito burguesa deconsiderar o filósofo um ser imerso em um mundo irreal,separado da vida, sibarita e abstrato, em suas torres de mar-fim, e ela resulta em recusar-lhe o direito de iluminar osproblemas da civilização, reservando para eles soluções deignorância e de empirismo. Foi em que não se conformouMaritain, indo ao encontro dos desejos de Leão XIII de "fa-zer o tomismo descer à rua, com o escândalo das1 pessoasrazoáveis que pensavam tê-lo bem classificado nos seus ar-quivos, obrigá-lo a trabalhar filosòficamente no profano epassear através do mundo sua juventude renovada, suacuriosidade, sua audácia, sua liberdade, e reunir assim aherança dispersa da sabedoria."

A sua atitude não encerra nenhum erro, nem o da opor-tunidade, nem o da legitimidade. Quanto a esta última, semnenhuma dúvida não lhe podem fazer restrições todos osque compreendem que ao cristão compete muito mais pro-curar ser fiel às linhas doutrinárias tradicionais do cristia-nismo do que pedir empréstimo às concepções heterodoxasou estranhas. Seria abdicar inteiramente da pureza e auto-nomia filosófica do cristianismo procurar apelar para teo-rias em absoluto contrárias ao seu espírito, tais como as tãoem voga do doutrinador político florentino Maquiavel, ogrande heresiarca dos tempos modernos. Os que possuemconciência da posição cristã não irão pedir ensinamentosestranhos com que solucionar a crise.

144 REVISTA BRASILEIRA

Em face a Maquiavel, por exemplo, o inspirador detoda a política naturalista dos fascismos, não pode ser denenhum modo justa a tese direitista (que apaixona muitoscatólicos), segundo a qual o realismo maquiavélico possuemuito maior capacidade de vida do que a doutrina do Dou-tor Angélico. Relegar o tomismo para o terreno exclusiva-mente metafísico, no entanto, significa descer da força derealização do pensamento cristão, — há lugar dentro dopróprio cristianismo para certo agnosticismo —, e dar tes-temunho de um total desconhecimento das exigências decoerência, harmonia e-integridade do mesmo pensamento.Adotar uma filosofia cristã em matéria metafísica, sem to-davia acómpanhá-la em todas as suas conseqüências, pe-dindo a um pensamento herético ou acrístão, tal como omaquiavelismo, a regulação da vida social, é cair no fa-moso separatismo entre o pensamento e a ação ou a vida,entre humanismo e cristianismo, entre vida íntima e vidapública, que tantos malefícios causou à conciência moderna.Ou o tomismo tem capacidade para viver na ação total, me-tafísica, política e social, ou então é uma fórmula mortafilosòficamente. Esta é a lição dos modernos tomistas —que não somente ampliam os princípios tradicionais no ter-reno filosófico puro, porém procuram desenvolver todasas suas virtualidades, apontando a sua capacidade de ação,num sistema vivo e fecundo de total organização da cidadee da civilização. A ampliação daqueles princípios e a suaaplicação ao terreno prático é o que constitue o humanismosocial, político e econômico, sobre o qual insistem os gran-des neotomistas contemporâneos. Entre êle, doutrina inspi-rada nos sãos e puros princípios do tomismo, e o realismomaquiavélico dos fascismos, creio que não deveria ser pos-sível a indecisão, e muito menos a preferência pelo último.Contra esta atitude de isolamento do pensamento cristãofora das realidades da vida temporal é que combate o filo-sofo de Religion et Culture, o qual ainda há pouco em umprefácio para a edição inglesa de Primauté du Spirituel (eminglês, com o título de The Things that are not Caesafs),aponta qual a posição que julga convir ao momento: " • • •

JACQUES MARITAIN E A ESTRUTURA DA CIVILIZAÇÃO 145

affected with an incurable myopia which I will not callhistorical (...), but which may be called historicist, suchcourageous Fachtheologie, I very well realise, considers thatthe church has now no other right than simply to stationherself in sacristies, and deems it unseemly that recourseshould be had to theological wisdom to enlighten us poorChristian laity, busy with the affairs of the world, on pro-blems of culture and civilisation. This is precisely what thewriter's fieling for intellectual hierarchies compels him, asa philosopher, to do."

** *

Portanto, a lição que se depreende da posição de Mari-tain é de que, para o cristão, não pode haver dúvida entreseguir um pensamento puro e integralmente cristão em to-das as suas conseqüências e aplicações, dentro da lógicaevolutiva do cristianismo, como é o caso do neo-tomismo, euma fórmula empírica, vazia de conteúdo metafísico e sen-tido cristão, como a dos fascismos originários de Maquiavel.

Tenho em alto apreço a figura intelectual de Tristão deAtaíde, mestre de minha geração e grande amigo. Mas, poristo mesmo que reconheço a sua influência imensa e a im-portância de sua palavra, é que desejaria fazer algumasrestrições a certas opiniões suas a respeito da posição deMaritain em face às democracias e aos totalitarismos. Cri-tico altamente compreensivo e penetrante, de umà visão uni-versai, o seu prestígio intelectual é tal como jamais houveno Brasil. As suas opiniões são sempre pesadas e repesa-das em todo o país. E' enorme, por exemplo, o mal queestão fazendo à situação de Maritain entre nós as teses ex-pendidas na Introdução de Noite de Agonia em França,malévola e surrateiramente exploradas pela propagandadireitista e fascistizante entre nós, afim de desmoralizar edesacreditar a figura de Maritain. Bem se vê que somentepode surtir efeito entre os espíritos bem-pensantes ou de-formados pela ideologia direitista ou os reacionários, que

10

146 REVISTA BRASILEIRA

não estão aptos a compreender a atitude avançada de Ma-ritain, cuja doutrina tende a informar o pensamento gera-dor da civilização futura.

Certos preconceitos de formação anti-democrática eanti-liberal, religiosa e mesmo de classe, bem como a fide-lidade a certos mitos de mocidade, levam o grande críticoa uma complacência com as direitas, à qual muito se deveresponsabilizar a difusão das doutrinas e do movimentodireitista entre nós. E' verdade que mais tarde êle se desin-compatibilizou inteiramente na ação, embora no pensamentoainda tenham permanecido muitos resíduos, que, sem dú-vida devem estar entranhadamente ligados à própria estru-tura do temperamento e da mente.

Aí está por certo a explicação da simpatia que pro-clama por alguns dos regimes de meio-fascismo, como asditaduras de Salazar e de Franco.

Não pode haver diferença, do ponto de vista da filo-sofia política tomista, entre os vários regimes de extremadireita, todos eles, mais ou menos, fundados nos mesmosprincípios de hipertrofia da autoridade em detrimento daliberdade e em certas idolatrias pagas. As aparências quese notam são apenas resultantes de diversidade das condi-ções históricas em que se realizam.

A identificação entre os regimes de direita é ideológicae emocional, de interesses e de psicologia. Pode-se perfei-tamente falar hoje numa internacional fascista ou Fascin-tern constituída de todos os núcleos reacionários do mundo,as classes possuidoras, burguesas e capitalistas, os aristocra-tas e feudais saudosistas do Antigo Regime, o financismo in-ternacional, aos quais se juntaram forças religiosas desarra-zoadamente comprometidas com o espírito de conservação ereação, sem o necessário senso de distinção. Desde a guerrada Espanha que se evidenciou, — e a atual guerra veio con-firmá-lo ruidosamente, — ser ela o maior fator de decisão ede influência na política mundial. Foi ela que proporcionouo totalidade das vitórias nazistas e fascistas. Foi ela que ge-rou por toda a parte o ambiente favorável para a eclosão e

JACQUES MARITAIN E A ESTRUTURA DA CIVILIZAÇÃO 147

a propagação dos núcleos de simpatia emocional, psicológicae intelectual, os centros de irradiação e de luta, para os fas-cismos totalitários, a comunidade de interesses políticos. Nãoé este o lugar para explanar o assunto.

O espírito totalitário é incompatível com o cristianismo,pois o seu princípio magno é o da unificação de poderes, comabsorção da pessoa humana, monismo político a que o cris-tianismo opôs justamente o princípio do pluralismo e da di-visão e distribuição de poderes, com respeito do homem.O totalitarismo, segundo os seus melhores analistas, algunsdos quais cristãos, é um conceito fundamentalmente anti-cristão e não se pode fazer distinção nenhuma entre as suasvárias formas.

Do mesmo modo que a democracia, o totalitarismo éum conceito geral da civilização, e não apenas um simplesregime político. Mas a democracia é um conceito neutro eque como tal pode ser renovado à luz dos princípios evan-gélicos, pode ser cristianizada. Naturalmente, com a dita-dura acontece o mesmo, mas a ditadura não é um regimede civilização, porém um mero recurso transitório de go-vêrno, não implicando a adoção de nenhum conceito geralda vida, total e unitário. Já não se dá a mesma coisa com

-o totalitarismo, conceito geral, jamais neutro, porém tipi-camente anti-cristão.

A distinção a ser feita não é pois entre diversos totalita-rismos, todos eles decorrentes do mesmo espírito máquiavé-lico, empirista e naturalista, apenas diferenciados por quês*tao de grau e posição histórica. Deve-se distinguir, isto sim,totalitarismos e ditadura. Os primeiros encerram uma con-cepção da vida, total, uniforme, de fundo metafísico e reli--gioso, uma Weltanschaung, enquanto a segunda não passade um recurso técnico de governo, transitório e compatívelaté com a democracia. 0 perigo dos regimes totalitários estáprecisamente no fato de que a sua concepção da vida é in--compatível com a que constitue o espírito da civilização oci-dental, isto é, a concepção cristã da vida, incompatibilidadeexpressa pelo desprezo e pela hostilidade que vota ao cris-tianismo, ou pela deturpação da sua verdadeira posição na

148 REVISTA BRASILEIRA

cidade, pela má compreensão e má aplicação que fazem delana vida política e social.

Os regimes totalitários jamais serão cristãos, ao passoque os regimes cristãos serão sempre uma democracia.O cristianismo, sendo em si mesmo a mais nobre das de-mocracias, está muito mais próximo destas, mesmo erradas,do que do melhor totalitarismo. As democracias existentes,impregnadas do rousseauísmo, poderão ser transformadaspara melhor se as penetrarmos do espírito cristão, ao envêsde fugirmos delas, condenando-as sistematicamente e umbloco, como se acostumaram a fazer os arautos das direitas.

Daí a distinção justíssima entre "democracia cristã" e"democracia manque", para a qual vem há vários anos cha-mando a atenção Jacques Maritain: a primeira é aquela quese pode criar inspirada na filosofia do cristianismo; a ou-tra é a que deriva de Rousseau e sua filosofia política.E quem já fez tão severas críticas a Rousseau não pode deboa fé ser suspeitado de demasiado complacente nem decomprometido com as atuais democracias, como já o temsido entre nós por parte de elementos da direita. O pensa-mento exato de Maritain, e é este o pensamento certo, nãoé que as democracias existentes sejam puras, mas quesomente dentro delas, mesmo erradas, haverá ambiente deliberdade e tolerância para se trabalhar pela melhoria domundo e da própria democracia segundo normas novas ejustas.

Aquela distinção, ao contrário, não me parece possívelentre os diversos tipos de totalitarismos. Nem mesmo entreditaduras.

Não é suficiente para um regime ser cristão que hajacerto modus uivendi de tolerância entre o Estado e a Igreja»que haja boa paz entre os chefes, liberdade de culto e exer-cício religioso, como é mais ou menos o caso da Itália, daEspanha e sobretudo de Portugal, este último ainda maisparticularmente em virtude das relações cordiais entre ochefe da Igreja e o Ministro Salazar, profundamente cato-lico. Todas estas condições já são alguma coisa, porém amínimo exigível para um regime cristão.

JACQUES MARITAIN E A ESTRUTURA DA CIVILIZAÇÃO 149

E' que, ao lado daquela distinção entre as duas formasde democracia, na compreensão destes problemas da atua-lidade, é mister não esquecer aqueloutra, sobre a qual in-siste Maritain, entre regime orgânico de civilização cristã eregime virtual ou decorativo. Um regime não é cristão sópelo fato de dar liberdade e reconhecer oficialmente aIgreja, honrando-se publicamente a religião. De outro lado,não está mais em acordo com a mentalidade e as tendên-cias da filosofia política cristã contemporânea o estilo uni-tário da Idade-Média e do Antigo Regime que fazia a Igrejae o Estado integrados no mesmo destino (vd. crítica emHumanismo Integral, passim), pondo o aparelho temporala serviço de fins espirituais.

Um regime cristão é aquele que o é na sua estruturaintima, na sua fibratura e tecidos, na sua vida e organiza-ção geral, "vivificando e animando internamente, germi-nando formas orgânicas pela influência cristã sobre asrealidades políticas", sobre toda a vida social. Só destamaneira é que existirá verdadeiramente regime cristão oucristandade efetiva moderna.

Não pode ser considerado cristão o regime que tem porlema a anulação da liberdade, o aniquilamento da pessoahumana, a coletivização, e que dá lugar à criação de casospatológicos monstruosos como o dos refugiados e exilados,verdadeiros réprobos sociais; regime sem caridade e semlivre assentimento, impostos pelo terrorismo e métodos dedelação e suborno, regime de acentuado divórcio entre mo-ral e política.

Ao envés, na democracia estão em germe ou mesmoexistem como princípios vitais, alguns dos postulados detodo regime cristão. Uma filosofia política democrática,afirma Maritain, reconhece os direitos inalienáveis da pes-soa humana e vê nos detentores da autoridade os vigáriosda multidão, como os chamava Santo Tomaz; respeita a dig-nidade da pessoa humana e sua liberdade, os direitos dafamília e do bem comum político e seus princípios vitais,são a justiça e o amor.

150 REVISTA BRASILEIRA

Os fascismos não são menos intrinsecamente perversosdo que o comunismo, em sua potencialidade destruidora, e,com o seu niilismo essencial, ameaçam conduzir para o caosa civilização do ocidente.

Em face aos seus fantasmas apocalípticos, é que hojeos espíritos de vanguarda já sentem a necessidade de reagircontra tudo o que eles representam, opondo aos nacionalis-mos estanques e autárquicos, a integração no espírito doocidente revitalizado, aos direitos locais os direitos huma-nos, às hipertrofias da autoridade a defesa da liberdade, aototalitarismo o humanismo.

Maritain, no momento, representa a tradicional posiçãoe o autêntico pensamento do cristianismo, que está semprena linha mais avançada da marcha histórica, captando osverdadeiros anseios humanos.

** *

A maior tragédia da filosofia política do cristianismoé sem dúvida ter sido ela parasitada pela Direita. A Char-les Maurras e aos seus discípulos da Action Française, e maisa todos os núcleos espalhados pelo ocidente de propagandadoutrinária direitista, se deve o fato de que hoje o fascismoitaliano, o nazismo alemão e os para-fascismos menores te-nham-se apropriado de inúmeras teses do pensamento so-ciai do cristianismo e as tenham desmoralizado aos olhosdos homens de espírito livre. A "nova ordem" de Hitlerdesacreditou tudo o que ela significava, inclusive algumasdas idéias mais caras da nossa filosofia política, cuja reha-bilitação vai custar muito caro e cuja realização vai demo-rar sobremodo. Não podiam os fascismos causar maiorprejuízo ao cristianismo do que este de deturpar o sentidode muitos grandes princípios, ao incorporá-los à sua Welt-anschaung. Dentro do monismo estatal e do materialismodo sangue ou da raça eles perderam o seu conteúdo cristão.

Ninguém pode referir-se a eles sem que venham à mente

JACQUES MARITAIN E A ESTRUTURA DA CIVILIZAÇÃO 151

as suas deformações. E' o caso da corporação, que é muitodiversa no cristianismo e dentro do unitarismo fascista.

Resta, porém, uma esperança. E' que, como se tem querehabilitar outras grandes idéias como a de democracia,por exemplo, e aos cristãos caberá uma grande parte nestetrabalho, se souberem apreender o espírito do tempo, é deesperar também que a mesma boa vontade seja expressapara com aquilo que desejamos oferecer de nossa partepara a construção do mundo futuro.

í

(Continua)

SONETOSJosé Oitictca.

A OFERTA

Dou-te meu coração irreverente,Meus penachos de Cid, o Campeador,Meus magnéticos fluidos de serpenteE minha excelsitude de criador!

Sentirás, nesta oferta surpreendente,Que há nela muito mais que o meu amor!Há um descortino de clarividenfe,Meu mundo emocional de precursor.

Toma, com tuas mãos de anjo magoado, ¦Meu gênio, meus sentidos, meus tendões,Minha arte e meus brazões de revoltado.

- E verás arder tudo em convulsões,Rodeando em chamas o teu corpo amado,Numa dansa votiva de clarões.

II

O MAIOR INSTANTE •-IA voz disse baixinho ao meu ouvido:"Recorda-te de mim!" e eu vi, sem ver, : ! ;"*• -.Naquele meio-escuro, indefinido, :<sO vulto da que foi todo o meu ser. \

SONETOS 153

O mar uivava longe o seu gemidoE estava muito longe a Cabra a arder! —"O' tu que amei tão da alma, ente querido,Fala-me assim, ajuda-me a viver"!

E a que se foi, num segredar de amante,Eepetiu-me as palavras memoriaisE encheu-me de sua aura olente e iriante.

Ecoaram ecos de perdidos ais...Houve um tremor na sombra e, nesse instante,As nossas almas se adoraram mais.

III

A BÊNÇÃO

A praia era uma lira; o mar ressoava nela...Copacabana, acesa, era um bazar pagão!Vinham, da Ilha Easa, olãsl de sentinelaE o Pão de Açúcar estranhava a Imensidão!

Cada luz de lampeão tinha ares de donzelaA rir, a rir, na noite apaixonada. Em vão,Cantava a luz no tear da espuma tagarela...O forte, espião do sul, espiava a Escuridão I

Nós dois, par amoroso, ante o mar sonolento,Cheios da festa nova, iluminada em tudo,Entrevimos um mais que viria depois...

Fechando os olhos, concentrando o pensamento,Apertamos as mãos num juramento mudo...E um deus qualquer abriu as mãos sobre nós doisl

y¦ y i-¦ ¦¦--..::-i

-.-; ,,-

- ¦';

154 REVISTA BRASILEIRA

IV

A CORAGEM

Não tremasI Fita os monstros face a face.Olha os perigos sérios com desdém.Vive, tu; morre, tu... seja o trespasseHosanas e euges em Jerusalém.

Inda que um, papa, um rei, um deus te ameace,Não recues — arrostar é sempre um beml —Prefere, ao sal da terra, um desenlaceEm que as bocas do céu digam: ameml

Se quiserem deter-te, anda. ProtestaSe quiserem calar-te. Não te assusteVeneno, espada,'cárcere ou canhão.

Mantém tua alma simples sempre honestaE caminha, através do ódio e do embuste,Salvando os homens em teu coração.

A ROCHA

Rocha da maior Vida, hei de galgar-te...Hei de encontrar Brunhilde envolta em flamaslTenho a espada que rompe hastes e tramas,E um filtro de conquista na minha Arte.

Para Siegfried, não há porta ou baluarte IEle achou sua Dama entre outras damas;E ouvindo, Esposa lúcida, que o chamas,Procura-te, pois te ama, em toda a parte.

Dormes no viso e eu vou ladeira acima,O' Perfeita, ó Senhora prisioneiraIJá meu sopro amoroso te reanima.

Corro, caio, persisto, escalo, alcanço!Purifico meu Sonho na fogueiraE abro os teus olhos bons para o Descanso.

SONETOS 155

VI

O TRANSUBSTANCIADOR

"Tudo é digno de mim. Eu sou tudo o que ascendeUm Titan na Escalada, um herói na barbacã...Nos luzeiros do céu, a Lux-Mundi — Eu! — esplendeE esplende nos bolões de lama, nossa irmã.

Não queiras entender! Ninguém, nem eu, me entende.Eu sou o Entendimento, a Noite sem manhã.Em mim, nada ultrapassa; em mim, tudo transcende.Sou núcleo de infusório e a luz de Aldebarã!

No eterno frenesi dos átomos sem rumo,Sou, regulando o impulso, o oculto oscilador.Sou a análise vária e o único resumo.

Tudo é o meu Ser num ser, a Sombra anciã na côr,Um mínimo num mais, um ínfimo num Sumo,Um que sem volição num transubstanciador!"

VII

O TALISMÃ

Minha verdade é mais que meu destino.Ê projetor, aclara terras e águas...Em minha noite, ao luar das minhas mágoas,Canta sem dó, meu galo matutino!

Ela, a verdade, a minha, acende fráguas,Arma coretos, orna o meu Casino,Abre, em meu charco, um lotus predivino,Dá-me a chave de Saaras e Aconcáguas.

Fujo nela se Herodes me persegue;Ela engana Holofernes e trucidaTodos os guardas a que inda anda entregue.

Com ela abalo a natureza e inventoNovos processos paira erguer a VidaE deshumanizar meu pensamento.

TAVARES BASTOS ATRAVÉS DE UM ARQUIVOPARTICULAR

Rodrigo Octavio (Filho)

O AMIGO DE MEU AVÔ

A intimidade de meu espírito com a vida e com a obrade Aureliano Cândido Tavares Bastos, tem uma explicação.Quando comecei a trocar, com meu Pai, idéias sobre o pas-sado de nossa terra e de nossa gente, por vezes surgia na

% conversa a figura invulgar de Tavares Bastos, a respeito daqual ouvia eu, além de referências entusiásticas, a lamen-tação de que a indiferença e a fraca memória dos homens,deixassem perdidas, no tempo e no espaço, uma vida e umaobra exemplificadoras de um raro e surpreendente amorpelo Brasil.

Entusiasmo e devoção por Tavares Bastos, meu Paiherdara de meu avô, o dr. Rodrigo Octavio de Oliveira Me-nezes, (que a morte levou aos quarenta e dois anos) e quefora o mais íntimo amigo do Solitário da Ti jaca.

Ambos, advogados, militavam na política do partidoliberal. Tinham as mesmas idéias e os mesmos ideais. Con-temporâneos da Academia, foi, por certo, sob as arcadastradicionais, quando cursaram as aulas do velho conventode São Francisco, que nasceu a amizade, cujos reflexosainda vamos encontrar, ao remexer velhas cartas e papéisamarelecidos pelo tempo.

TAVARES BASTOS ATRAVÉS DE UM ARQUIVO PARTICULAR 157

Pela correspondência entre eles trocada, vê-se bem, nãosó o grau de estima que os ligava, mas, principalmente, aintima solidariedade política que a ambos dominava.

E essa intimidade, deu origem ao fato de possuirmosuma série de documentos referentes a Tavares Bastos, ba-seados nos quais se esteiam os pontos principais deste rá-pido estudo.

Em seu — Coração Aberto — livro de memórias ínti-mas, focalizando as primeiras impressões de sua infância,lembra meu pai os passeios que fazia com meu avô, todasas manhãs, e cujo término era sempre a casa em que mo-rava o jovem pensador brasileiro, na íngreme subida deSanta Teresa, a velha rua Dona Luíza.

Enquanto os dois amigos, na varanda, palestravam sobrequestões de interesse nacional e de política, êle e a filha deTavares Bastos (1) brincavam no pequeno jardim que ro-deava a residência.

Nas páginas daquele livro, vamos encontrar um evo-cador, rápido e vivo retrato de Tavares Bastos, imagem queficara na retina de uma criança, que a revelou aos outros,tantos e tantos anos mais tarde: "Figura plácida, rosto pá-lido, circundado de umas barbas pretas, ralas e curtas, olhosbrilhando através dos vidros de um pince-nez de ouro, ves-tido de brim, como tudo vejo ainda! Aureliano era de pe-quena estatura e, junto de meu pai, que era bastante alto,parecia ainda menor. Eu subia as escadas para o cumpri-mentar e recebia nas faces rosadas uma carícia. Hoje, co-nheço o valor dessa mão que me acariciava."

Demonstra ainda a estima pessoal, a solidariedade poli-tica que ligava os dois amigos, a correspondência trocadaentre ambos. Um exemplo está nesta carta de Tavares Bas-tos, em resposta a meu avô e datada, no Rio de Janeiro,em 23 de junho de 1867: "Mil vezes agradecido pelos cum-primentos. Si nós, os doidos do liberalismo, tivéssemos,sempre, em cada canto do país, almas que nos compreen-dessem e aplaudissem, o Brasil não seria hoje a Babel poli-

(1) D. Elisa Tavares Bastos.

158 REVISTA BRASILEIRA

tica, que todos lamentam. Mas é sorte. 0 recurso é cada

qual cumprir o seu dever. Adeus. Saudades do TavaresBastos."

Foi também ao que sempre se mostrara tão íntimoamigo de seu marido, que sua viuva, zelosa, escreveu, deParis, em 20 de agosto de 1879, pedindo que se encarre-gasse "de procurar saber quais os contratos feitos por meufalecido marido, e seu amigo, com os livreiros que têm pu-blicado as suas obras até esta data, porque vejo que se têmvendido constantemente essas obras, e é impossível que asedições não estejam esgotadas, visto haver breve quatro anosque meu marido faleceu e isso não pode continuar sem queme dêm o nome de indiferente, o que seria grande in-justiça."

Meu avô prontamente atendeu ao pedido de D. MariaTavares Bastos, tanto assim que em carta datada de Paris,em 22 de fevereiro de 1880, escreve ela: "Agradeço-lhe ex-tremamente a bondade que teve e a diligência que empre-gou para responder-me tão prontamente, sob um negócioque não deixava de preocupar-me. Visto a sua bondade,venho ainda incomodá-lo, pedindo que me informe, poucomais ou menos, a despesa que poderia fazer aí, para a novapublicação dessas mesmas obras, afim de saber e compararqual seria mais em conta."

Falam claro estas velhas cartas. Traduzem, na sim-plicidade de seu estilo, o respeito pela obra de um mortoquerido, e mostram que por vezes há, entre os homens,amigos que honram a memória daqueles que primeiro fa-zem a eterna viagem...

** *

Tavares Bastos, cujo espírito não deixou um momentode meditar, desnorteia quem procura interpretá-lo e loca-lizá-lo no cenário político do 2.° Reinado.

Sua obra — tão grande para tão curta vida — atordoarealmente quem dela se aproxima, principalmente, se nos

TAVARES BASTOS ATRAVÉS DE UM ARQUIVO PARTICULAR 159

compenetrarmos do que nela existe de intensidade, de pen-samento, de desejo de realização, de nobre patriotismo, dejustificada ambição política, de sabedoria jurídica, de pre-visão social, de visão econômica, de política internacional,e, principalmente, "aquela angústia que aflora de toda suaexistência", segundo observou Odilo Costa Filho.

Para este jovem escritor, que tão bem o interpretou, aformação de Tavares Bastos não é dessas em que os fatospolíticos determinam o rumo das idéias. "Era do espeta-culo que êle tivera diante dos olhos e do coração que nasciasua vocação genial: pedia o que era necessário, porque seacumulavam nele todos os gritos ativos da alma brasileira".E, como êle, também quero continuar a amar em TavaresBastos, o brasileiro comovido e comovedor que viu os pro-blemas de seu país se acumularem sob o desinteresse doEstado; esse advogado de idéias no meio dos solicitadoresde cargos; o bacharel deslumbrado que viu o trabalho di-vorciado da higiene, os escravos sofredores, a máquina eos novos pensamentos desconhecidos para os homens do in-terior; que se ajoelhou diante do vale do Amazonas; quepensava na humanidade e na civilização antes de pensarna pátria ou na província; e que morre ainda febril de suaardente adolescência (2).

Apesar de sua pouca idade, era, no entanto, tão grandesua notoriedade, que tinha o nome seguidamente indicadopara Ministro de Estado, apenas surgia no horizonte a nu-vem de uma crise política. Por mais de uma vez foi noti-ciada sua nomeação para o ministério. Esse* fato justificater Agassis, que o conhecia bem, seu companheiro de via-gem ao norte, em uma carta que se acha em nosso arquivo,assim se dirigido a Tavares Bastos: A Son Excellence Mr.Tavares Bastos, Ministre des Travaux Publiques...

E' a pequena vida desse grande homem, cuja obra éum soluço de emoção diante da realidade brasileira, quevamos examinar, em largos traços, baseados no muito quesobre êle já se tem escrito e em alguns documentos, que si

(2) Odilo Costa Pilho. V. Jornal do Comércio, de 29/4/1939.

160 REVISTA BRASILEIRA

não trazem novidade a acrescentar à sua biografia, têm ocunho comovido da afetividade, por terem sido guardadoscomo páginas de uma inesquecível amizade.

*.:* *

D. Teonila Tavares Bastos deixou, no arquivo que es-tamos manuseando, uma série de esclarecedores apontamen-tos biográficos sobre o irmão, os quais, anotados pela letramiúda de seu pai, Conselheiro José Tavares Bastos, contêminformações de muita utilidade para completar o estudo davida e da obra do grande pensador. Estes apontamentosforam redigidos a pedido de meu pai, que alimentara sem-pre a intenção de escrever um livro sobre o patrono de suacadeira na Academia, o que não lhe permitiu a vida agitadae cheia de trabalho que sempre viveu.

Dos irmãos de Tavares Bastos, foi, sem dúvida, D. Teo-nila quem maior intimidade teve em casa de meus ante-passados. Nascida em 1843, faleceu em avançada idade,cousa aliás característica da família Tavares Bastos, onde alongevidade foi apenas desmentida por Aureliano, mortoaos 36 anos. Edméa e Maria, suas irmãs, com mais de 90anos viviam no seu centenário. E puderam assistir à con-sagração nacional à memória do irmão ilustre.

** *

Aureliano Cândido Tavares Bastos nasceu no dia 20 deabril de 1839, na antiga capital das Alagoas, em momentoincerto e trágico para o destino político do Brasil, quandoa Regência, em pleno alvorecer da alma nacional, estavapreocupada com motins de toda a natureza e perplexadiante da firmeza e violência com que no extremo sul, sedesenrolava a campanha farroupilha. Foi, por certo, doambiente em que nasceu e em que formou o seu agudo espí-rito de observador, que lhe veio o conjunto de qualidades

TAVARES BASTOS ATRAVÉS DE UM ARQUIVO PARTICULAR 161

que caracterizaram a personalidade e o tornaram o maisobjetivo e o mais realista dos doutrinadores políticos do 2.°Reinado.

Em toda a sua obra não se aponta um rasgo de retóricainútil. Foi um homem que não soube perder tempo. To-dos os seus escritos e estudos têm alvo certo. Meditava,expunha e indicava a solução prática para os problemas na-cionais, fossem eles políticos, econômicos ou sociais. Peloestudo metódico e oportuno, conseguiu penetrar nos maiscomplexos setores do pensamento humano, alimentando oseu espírito moço com uma dose de conhecimentos, que égraça que só na idade madura aos cérebros claros e persis-tentes se concede. E ao lado da energia com que defendiaidéias ou combatia opositores, fazia transluzir uma doceternura por todas as coisas brasileiras.

II

O PAI E O FILHO

Singular figura que merece ser lembrada, é a do Con-selheiro José Tavares Bastos, um dos dezeseis filhos do mi-liciano português Joaquim Tavares Bastos e de D. AnaFelícia de Jesus Morais. Nascido na comarca das Alagoas,em 1813, veio a falecer já na República, em 1893, como Mi-nistro aposentado do Supremo Tribunal de Justiça, depoisde ter vivido uma agitada vida política, que veio encontrartranqüilidade, tão somente, na prática serena da magis-fratura.

Em 19 de agosto de 1893, por ocasião do falecimentodo velho magistrado, publicou Rodrigo Octavio na "A Se-mana" de Valentim Magalhães, um artigo em que a saudadee o respeito lembram a figura de quem viveu longos anosde trabalhosa vida, no contínuo labor de aplicar a lei, dedistribuir justiça, de declarar o direito e que, depois demorto, "inteiriçado no ataúde, ao reflexo da luz crepitante

li

162 REVISTA BRASILEIRA

dos tocheiros, repousava nas largas dobras assetinadas datoga impoluta."

E nesse artigo pode ler-se ainda o seguinte:"Continuava a nobilitar o nome, que deveria passar à

História, quando alguém, um filho, apareceu a concorrercom êle para a obra fecunda dessa nobilitação."

"O pai trazia o labor quotidiano da tranqüila faina defazer justiça, de apurar a jurisprudência pela integridadeda interpretação do direito. O filho trazia o contingente dotalento e da ação do estadista, atacando as mais gravesquestões sociais, debatendo-se pelos mais palpitantes proble-mas da civilização."

"Há pouco menos de meio século, emi pleno vigor dasreformas conservadoras que inutilizaram os frutos da revo-lução de 31, o filho, que outro não era senão AurelianoCândido Tavares Bastos, entrevia a necessidade da fe-deração e, primeiro nesta terra, estudava as linhas do sis-tema norte-americano, tentando a sua adaptação a nossasinstituições constitucionais, há pouco menos de meio século.Quando uma política egoísta isolava o império na Américalatina, o moço desvendava o futuro do vale do Amazonas,denunciando o arbítrio da clausura daquele oceano que te-mos encravado em nosso território e arrancava a promul-gação do Decreto de 7 de Dezembro de 1866, que abriu ànavegação estrangeira os nossos grandes rios do norte."

O velho pai de Aureliano Cândido Tavares Bastos mor-reu mais de tristeza do que de velhice. A lei imperial, queaposentava compulsòriamente os magistratados aos 75 anosde idade, lhe foi aplicada no ano de 1889, justamente quan-do, ainda fundamente ferido pela morte do filho, sofria aperda da companheira de 50 anos de vida conjugai, felize tranqüila.

O golpe da aposentadoria forçada foi a sentença demorte do velho juiz."Antes que soubesse do golpe que lhe era desfe-chado, ainda não bem desperto do atordoamento que oprimeiro lhe produzira ("caiu-me a casa em cima" — dis-

TAVARES BASTOS ATRAVÉS DE UM ARQUIVO PARTICULAR 163

*se-me êle por essa ocasião, levando as mãos ambas à cabeçaencanecida) antes que da privação do ofício soubesse, umafilha ilustre, digna portadora do nome, que de muito a His-tória já havia recolhido em suas páginas imarcessíveis, tevea energia cívica bastante para verberar, pela imprensa, oato impensado que vinha clamorosamente aumentar a afli-ção a um aflito digno de maiores considerações."

E manifestando publicamente a revolta de seu es-pírito lúcido, renovou e reafirmou os protestos da filha,manifestando-se contra a aplicação de uma lei inconstitu-cional "que só achava razão de ser na fraqueza do governo,<pie, não tendo a coragem precisa para afastar, oportuna-mente, do templo da justiça, os velhos sacerdotes cuja ra-zão por ventura se eclipsasse nas sombras da velhice, fui-minava de incapacidade todos os ministros pela atingênciade uma certa idade, ferindo a vitaliciedade garantida nacarta fundamental do império, pesar do protesto vivo que,pode-se dizer, se multiplicava pelo número de juizes, queiam chegando ao ano fatídico" (3).

A dor que lhe causara a morte do filho foi amparadapela admiração que nutria pelo seu espírito, pela sua inte-ligência e pelos estudos e trabalhos que deixou como pro-duto de sua meditação sobre o destino do Brasil. Conso-lava-o, também, o crescente respeito que aureolava o nomede quem tão cedo deixara de viver, mas cujas idéias pre-ocupavam a alma brasileira.

O Conselheiro José Tavares Bastos foi um homem quepor mais de uma vez confessou a sua felicidade. As lutasç as tristezas da vida não lhe tiraram a glória de ser o paide Aureliano Cândido Tavares Bastos. A dor de ter per-dido um filho era compensada pela alegria de sabê-logrande. Esse antagonismo de sentimentos, existe comu-mente e reflete, apenas, um dos mistérios do coraçãohumano.

(3) A Semana, de 19/8/1893.

164 REVISTA BRASILEIRA

III

INICIO DE VIDA ATIVA

Depois de completar os estudos secundários, formou-se.

Aureliano Cândido Tavares Bastos em ciências jurídicas e

sociais na Faculdade de São Paulo, em dezembro de 1856,requerendo, imediatamente, fosse admitido a defender tese

para a obtenção do grau de Doutor em Direito, o que con-seguiu nos princípios do ano seguinte.

Em 1859, foi nomeado pelo Governo Imperial 1.° Ofi-ciai da Secretaria de Marinha, tornando-se inexcedível comafuncionário.

Herdando as qualidades combativas do pai, embre-nhou-se, como excelente lutador, nas pugnas políticas desua província natal, sendo eleito deputado geral em 1860 ereeleito na legislatura seguinte.

Foi Cansanção de Sinimbú quem, agindo com rara ele-vação moral, amparou decisivamente os nobres anseios do

jovem alagoano, "vendo no filho do velho antagonista, amais radiosa promessa do gênio de sua terra. Tavares Bas-tos teve para conduzi-lo na iniciação, a sabedoria prática,de Saraiva, que não só predispôs em seu favor as simpatias,do presidente da província, como lhe indicou os caminhosmais hábeis para o êxito da campanha" (4).

Da tribuna da Câmara, no desempenho honesto do man-dato, sendo o mais moço dos parlamentares, pois contavaapenas 22 anos, começou a trabalhar com sinceridade erompeu em fundamentada oposição ao ministério, discutindo»assuntos atinentes à pasta da Marinha, de que era titular*o Conselheiro Joaquim José Inácio, futuro Visconde deInhaúma.

Esta atitude de desassombrada independência, depois-dos aplausos que obtivera na defesa de tese na Faculdadede São Paulo, foi o passo inicial de sua carreira pública»

(4) Carlos Pontes. Tavares Bastos, p. 5.

TAVARES BASTOS ATRAVÉS DE UM ARQUIVO PARTICULAR 165

tornando desde logo popular e admirado o seu nome.E grande foi o espanto geral, vendo-se surgir na arena, umacriatura de tão pouca idade, dona de um espírito que maisparecia o de um velho estudioso dos assuntos políticos eadministrativos e cuja coragem parecia a de um batalha-<lor encanecido na aspereza das lutas partidárias.

A atitude do jovem deputado, reveladora de cultura in-vulgar, não podia deixar de causar surpresa.

Na sessão de 18 de julho, ao iniciar-se a discussão doProjeto de Fixação da Força Naval, pronunciou um dis-curso sensacional, que foi ouvido com atenção e espanto.

Carlos Pontes, referindo-se a este aspecto da vida deseu biografado, diz: "Tavares Bastos fala com abundância.Era como um rio a correr impetuoso, disse ao ouvi-lo o ro-mancista Joaquim Manuel de Macedo, depois seu colega deCâmara. A palavra refletia-lhe bem a saúde da inteligên-cia. 0 período saía-lhe límpido, a frase precisa, sem exces-sos verbais que prejudicam quasi sempre o alcance dasidéias."

Na crítica enérgica que fazia aos negócios da Secretariada Marinha, não havia vislumbre de malquerença contra otitular da pasta. Ao orador só interessava o bem público,pois para êle, "a marinha, no estado em que se encon-trava, era, apenas, nominal."

Bem se pode imaginar, como deveria ser amarguradoo silêncio com que Joaquim José Inácio ouviu o discursoatrevido mas justo, daquele jovem deputado e funcionárioda Secretaria que dirigia, êle, que no dizer de Carlos Pon-tes, era verboso e amava a tribuna, acudindo sempre compresteza às críticas que se faziam ao seu Ministério.

No entanto, o Ministro que mantivera polêmicas comPais Barreto, Zacarias, Saldanha Marinho e Amaro da Sil--veira, não deu a Tavares Bastos a confiança e a honra deuma resposta... "Via no representante alagoano, apenas, ofuncionário, a quem as garantias do mandato permitiamumas tantas impertinências!..." (5).

(5) Carlos Pontes. Oo. cit., ps. 119, 120, 125.

166 REVISTA BRASILEIRA

A conseqüência deste e de outros discursos de TavaresBastos, entre os quais os de 17 de agosto, em que examinoue criticou o orçamento da Marinha, foi estabelecer-se en-tre o jovem deputado e o irritado Ministro, uma integralincompatibilidade.

Não foi, apenas, o citado Ministro da Marinha, a quemTavares Bastos no ardor de sua mocidade enfrentou. Aodiscutir-se o orçamento da Guerra, em 24 de agosto, pro-nunciou outro discurso notável, no qual teve que fazer cri-ticas a outro militar, "esse mais polido", o próprio pre-sidente do Conselho, que outro não era senão o futuro egrande Duque de Caxias.

Mas Caxias não manteve a mesma atitude do seu co-lega da pasta da Marinha. À agudeza de seu espírito, nãopassou despercebida a inteligência, a cultura e as boas in-tenções do jovem Tavares Bastos. Deu-lhe resposta, "di-

zendo mesmo que em geral lhe pareciam boas as idéias,,embora discordasse de algumas" (6).

E qual o resultado dessa atitude desassombrada? Findaa sessão legislativa, o governo, sem quaisquer explicações,demitiu o Deputado Tavares Bastos do cargo de funciona-rio da Secretaria da Marinha!

IV

A VINGANÇA DO SOLITÁRIO

Uma das notas escritas pela irmã e comentadas pelo»pai de Tavares Bastos, depois de referir que, quando depu-tado, logo na primeira sessão das Câmaras rompeu em opo-sição ao ministério, criticando a administração da pasta daMarinha, afirma que a sua acintosa demissão engrandeceuinda mais o seu nome já popular, respeitado e admirado.

Realmente, o ato do Governo precisava de uma expli-cação. A demissão assumira caráter de escândalo e de in-

(6) Anais da Câmara dos Deputados (Citações de C. Pontes). 27/8/1861..

TAVARES BASTOS ATRAVÉS DE UM ARQUIVO PARTICULAR 167

justiça. E quem veio salvar a dignidade do Governo, foiParanhos, o futuro Visconde do Rio Branco, quando tem-pos depois, respondendo na Câmara a uma alusão de Ta-vares Bastos à sua demissão, pronunciou palavras que nãodeixaram mal, nem o Governo nem o funcionário demitido.

O deputado alagoano, discursando, disse ironicamenteo seguinte: "O ex-Ministro da Marinha deixou de ter as-sento nos Conselhos da Coroa; estou por ventura por essefato obrigado a pronunciar o parce sepultis sobre a sepul-tura do Ministro? Se o ex-Ministro tivesse a honra de ocuparainda um assento nas cadeiras do Governo, a minha pala-vra seria mais enérgica e a minha oposição mais formal.Ausente, eu saberei respeitar as conveniências; mas estefato não pode impôr-me um silêncio, não pode desviar-medo cumprimento de um dever. Demais têm assento nestacasa, membros do Ministério a que S. Exa. pertenceu, eprincipalmente o nobre ex-Ministro da Fazenda, muito habi-litado nos negócios navais. Assim será fácil a S. Exa. ob-ter uma defesa cabal."

Paranhos, presente, bem entendendo a alusão, aceitouo desafio. E retrucando, entre outras palavras serenas, disse:"Falou-nos o nobre deputado, por fim, da exoneração quelhe foi dada do cargo de 1.° Oficial da Secretaria de Estadodos Negócios da Marinha. Sinto repugnância ao entrar nesta

questão; mas não posso deixar de opor algumas conside-rações à censura do nobre deputado. Ninguém aprecia maisdo que eu o nobre deputado. Sei mesmo que serviu naquelarepartição com muito zelo e dedicação, e não preciso afir-má-lo, porque os talentos do jovem deputado são conheci-dos (apoiados), os seus estudos estão patentes (apoiados),e êle tem dado dos seus méritos os melhores documentos

(apoiados).""Sigo também o princípio de que o funcionário público

não é escravo do Governo, que pode pensar e votar emdesacordo com o Governo; mas tenho também como prin-cípio incontestável, que entre os direitos do cidadão e osdeveres do funcionário, há certos limites que não podem ser

168 REVISTA BRASILEIRA

transpostos sem quebra da disciplina social e em prejuízodo serviço público."Sinto muito que o nosso dever nos impusesse o ato deexoneração do nobre deputado; julgamos, porém, que asconveniências do serviço e a dignidade do Governo exigiamesse ato. Se fomos injustos, não o fomos por espírito de vin-

gança nem de qualquer outro sentimento menos justificável;com esse ato, creia o nobre deputado, não quisemos desai-rá-lo, nem pôr em dúvida o seu merecimento e caráter(muito bem)" (7).

Se vaidoso fosse, o deputado alagoano podia julgar-sebem pago com as palavras do grande Paranhos, primeirafigura do Ministério e, por certo, das maiores do país.

Mas a vingança de Tavares Bastos não está, apenas, emter provocado a seu respeito e a propósito do ato que o de-mitira, as significativas e consagradoras palavras de Para-nhos. Está em que pôde, com superioridade, serenidade ecultura, transmitir ao Brasil, ainda incerto de seus desti-nos, muito da sua inata experiência política, criticando comenergia e acerto, os erros dos homens de governo e indi-cando os bons caminhos a seguir. E como se vingou Tava-res Bastos?

Uma semana após ser demitido, começaram a aparecerno Correio Mercantil, jornal de propriedade de FranciscoOctaviano e Muniz Barreto, as célebres Cartas, datadas da Ti-jucá e assinadas pelo Solitário. Encobria-se atrás de umpseudônimo, porque um nome moço podia tirar autoridadeaos conceitos que pretendia expender, os quais, graves eausteros, deveriam passar como sendo da autoria de alguémque tivesse tido uma longa vida de meditação sobre o des-tino e o futuro do Brasil.

Tais Cartas, tratando com audácia, entusiasmo, cultura,idealismo e espírito prático de problemas básicos da época,eram o início da obra de um pensador apenas saído da ado-lescência, para galgar tão rapidamente a fama que logo oaureolou.

(7) Citações de C. Pontes.

¦...¦:-'

TAVARES BASTOS ATRAVÉS DE UM ARQUIVO PARTICULAR 169

Costa Rego, ao recordar que êle viveu os poucos anosde sua vida, na época em que no Brasil atuavam personali-dades como as de Sinimbú, Zacarias, Saraiva, Lafayette eoutros que engrandeceram o 2.° Reinado, põe em relevo que"nunca nenhum desses nomes se alçou ao nível do triunfo,sem que tivesse de dividir com o jovem parlamentar e pu-blicista as glórias do que fizeram. Um estudo sobre Sinimbú,sobre Zacarias, como até sobre os últimos varões da Mo-narquia, os Viscondes de Rio-Branco e Ouro-Preto, seránecessariamente um estudo sobre Tavares Bastos, que espa-nejou com a luz de sua vida os cantos mais remotos davida do Brasil" (8).

A verdade é que depois do aparecimento da primeiraCarta, começou o Solitário a ser discutido. Discutido e pro-curado, uma vez que por detrás de tal pseudônimo, só po-dia estar escondido um "homem amadurecido no convívioda coisa pública e nas práticas do Governo, dada a serie-dade e altura das questões levantadas; mas o tom ousadodo estilo, desorientava as melhores conjecturas."

Entre outros, o mais apontado, como sendo o Solitárioda Tijuca, era o Visconde de Jequetinhonha, Francisco GêAcaiaba de Montezuma, antigo constituinte, Ministro daRegência e senador pela Baía.

Este inteligente mestiço baiano, diz Carlos Pontes, ti-nha o dom sutil da renovação e daí as suspeitas de que fosseêle o autor das Cartas do Solitário.

"Caráter de admirável elasticidade, a que uma ponti-nha de cinismo proporcionava fáceis adaptações, Monte-zuma, apesar daquelas infidelidades de que falou com tantadiscrição Machado de Assis — na crônica do Velho Senado— não deixou de ser nunca uma das vozes mais vibrantesdo seu tempo" (9).

Não é aqui o lugar nem o momento de examinarmoso espírito e o conteúdo das Cartas do Solitário, o que, comsabedoria, já foi feito por outros.

(8) Costa Eêgo. Jornal ão Comércio, de 14/5/1939.(9) Carlos Pontes. Ob. cit, p. 132.

-,, -

170 REVISTA BRASILEIRA

A verdade é que tratam elas dos mais palpitantes pro-blemas brasileiros: organização administrativa, ensino reli-gioso, africanos livres e tráfico de negros, leis de navegação,comércio costeiro e cabotagem, navegação dos grandes rios,a questão do Amazonas, comunicações diretas entre as duasAméricas, tarifas protetoras e tantos outros.

O que, porém, nos importa no momento, é conhecer —a respeito das Cartas do Solitário — uma referência aindainédita e muito valiosa.

Encontro-a em um dos documentos por várias vezesreferidos. E' a opinião do próprio pai de Tavares Bastos.Decifremos o que, através de sua letra miúda e firme, escre-veu sobre a obra do filho: "À medida que a imprensa fazialer cada uma das Cartas do Solitário, ansiava o público porsaber quem era o suposto ancião, autor de tão corretos elouvados escritos: a variedade dos assuntos, a profundezados estudos, a transcendência das questões sociais, econô-micas e políticas discutidas e a solução apontada sempreem relação às cousas e circunstâncias do país, tudo concor-ria para o descomunal movimento de curiosidade pública,que vacilava ante o anonimato, advindo à imaginação detodos o nome respeitável, ora deste ora daquele dos nossosmais provectos concidadãos.

"Com quatro linhas lançadas no Correio Mercantil daCorte, de um valor como era tudo o que saía da pena deFrancisco Octaviano, rompeu o saudoso escritor o silêncioe satisfez a curiosidade pública, declarando o nome do jo-vem autor das Cartas do Solitário."

V

"VOU ESTUDAR COMO MENINO DE COLÉGIO"

Não imitou Tavares Bastos a generalidade dos políticos,cuja atividade só se desenvolve na aproximação das pugnaseleitorais.

TAVARES BASTOS ATRAVÉS DE UM ARQUIVO PARTICULAR 171

Dá a impressão de ter, em plena adolescência, traçadoum plano de estudo e de ação. E' isso o que espanta em suapersonalidade, cuja precocidade, como observador, comen-tador e orientador de questões de ordem social e política,poucas vezes poderá encontrar parelha na história do BrasiL

Teonila, sua irmã, anota que o seu primeiro trabalho,começado em janeiro de 1858, sob o título — Curso de Lite-ratura — tendo êle, apenas, dezoito anos e meio, fora in-terrompido, por se ter deixado absorver pelas questões po-líticas do país. E em entrelinha, corroborando nos conceitosda filha, escreve o Conselheiro que tal trabalho, inacabadoe inédito, merece menção, pela admirável perfeição de mé-todo, estilo e abundância de estudos.

Referindo-se à obra publicada de Tavares Bastos, Osmales do presente e esperanças do futuro (1861), Cartas doSolitário (1862), O Vale do Amazonas (18(36), A Província,A Situação e o Partido Liberal (carta ao Conselheiro Sa-raiva, 1872), orgulhoso, feliz e atento a tudo o que do filhose dissesse, manifesta-se o pai por esta forma: "as publica-ções políticas aludidas, tiveram fervorosa aceitação: a ele-

gância do estilo, o alevantado assunto e a franca enuncia-

ção do estado político e exigências da atualidade, justifica-ram o nímio acolhimento."

E' curioso observar, que Tavares Bastos, ainda outra

vez escondeu a autoria de seus trabalhos, receioso de quesua pouca idade lhes tirasse a necessária autoridade. As-

sim é que os — Males do Presente e Esperanças do Futuro— apareceram sob a autoria de - Um Excêntrico - como

as Cartas foram assinadas pelo — Solitário.Para Carlos Pontes, os dois termos revelam um estado

d'alma, e êle próprio como se sente num meio, se não hos-

tií pelo menos estranho. E acrescenta: se ao homem fal-

tava a autoridade dos anos e o peso das posições, as idéias

que abrissem por si mesmas o caminho para melhor glóriado seu animador!

A vida de Tavares Bastos, foi uma vida de intenso es-

tudo. Não foi em vão que escreveu em carta de 14 de setem-

172 REVISTA BRASILEIRA

bro de 1861 ao Conselheiro Saraiva: "vou estudar comomenino de colégio..."

Sua ambição era desvendar o futuro, construir para ofuturo.

No prefácio das Cartas do Solitário, ao reuni-las emlivro, traça a diretiva de seus estudos, a orientação de seupensamento: "Este volume é um esboço, escreve êle. Com-preende estudos ligeiros de várias questões do momento.Não aspira à dignidade de livro, mas sustenta-o uma idéiageral, eixo que o atravessa, seu ponto de apoio: a liberdadedo trabalho, isto é, a simplicidade, a comodidade, a inde-pendência, a abastança individual, a fortuna pública, a ver-dadeira grandeza. Discutir essa idéia generosa por qual-quer de suas faces, estender aos olhos do país uma siquerdas figuras do problema social, é tanto mais útil quantomenos abundam entre nós trabalhos desse gênero.""E há, com efeito, para os povos que começam, paraos habitantes dos novos continentes, uma grande escola queerigir, um apocalipse que anunciar, uma revolução que em-preender: a repulsa dos prejuízos hereditários.

M— Cortar a tradição? aniquilar a história? subtrair aofuturo os seus antepassados, o presente e o pretérito?"— Não. Mas, desarraigar a rotina, parasita do movi-mento; substituir à imobilidade o prejuízo de raça, o inci-tamento humano do progresso indefinido; apagar o fogoartificial dos ódios de classe e dos ódios de povos e levan-tar, do meio das nações, o luzeiro esplêndido dos princípiosfecundos."

E foi estudando como um menino de colégio, que pôderealizar, nos pouquíssimos anos de uma vida faiscante,uma obra de pensamento e erudição, digna de alguém que,orientado por privilegiada inteligência, tivesse levado aconstruí-la, longos anos de estudos e meditação!

Assim é que ainda pôde escrever 0 Vale do Amazonase A Província.

Aos esforços e à campanha em que se empenhou, deve-seo ato de inegualável sabedoria política, que abriu aos na-vios mercantes de todas as nações a navegação do rio Ama-

TAVARES BASTOS ATRAVÉS DE UM ARQUIVO PARTICULAR 173

zonas até a fronteira do Brasil, do rio Tocantins até Cametá»do Tapajoz até Santarém, do Madeira até Borba e do rioNegro até Manáos.

Pelo mesmo ato foi também aberta a navegação do rioSão Francisco até a cidade de Penedo.

O Decreto de 7 de dezembro de 1866, com a rubrica deS. M. o Imperador e assinado pelo Conselheiro AntônioCoelho de Sá e Albuquerque, Secretário de Estado dos Ne-gócios Estrangeiros, é a conseqüência de outra campanhaaltamente patriótica de Tavares Bastos, que, não restrin-gindo os seus desejos e locubrações teóricas, foi ao Amazo-nas estudar, in loco e com minúcia, as condições econômi-cas e sociais da região, para poder, concientemente, comba-ter pela livre navegação do Amazonas e seus afluentes.

O jovem pensador via na navegação livre do Amazonasa mais premente e a mais útil das necessidades, conjugando»neste ponto, suas idéias com os do Visconde de Mauá.

Deixemos, porém, de lado o que de todos é conhecidoe sabido e voltemos ao inédito, trazendo pela primeira veza público, o pensamento do pai de Tavares Bastos sobreO Vale do Amazonas: "O título — Vale do Amazonas —enfrenta um livro volumoso, recomendável sob muitos as-pectos e rico de informações e dados estatísticos, que ooperoso autor recoligiu e ampliou, indo pessoalmente àquelevasto mar brasileiro e visitando as duas províncias ribei-rinhas. Tão importante trabalho tem orientado, por vezes»as discussões de nossas Câmaras legislativas, declarando ounão os oradores, onde auriram as boas noções e informa-ções exibidas."

Quanto a A Província, estudo sobre a descentralizaçãono Brasil, onde temas políticos os mais palpitantes, como— o governo nos estados modernos, a federação nos Esta-dos-Unidos, a autonomia das colônias inglesas, e, princi-palmente, a organização das províncias —, mereceram oestudo profundo de Tavares Bastos, deixemos de lado comos acertados comentários dos doutos, para ouvirmos aindauma vez a voz paterna, encantada com a obra do filho:"'A Província — é um tema monumental. Se já não esti-

174 REVISTA BRASILEIRA

vesse tão vantajosamente feito o nome do escritor, só porsi esse admirável produto de tão infatigável inteligênciae das impulsões de um coração soberanamente patriótico,faria a mais fulgente glória de Tavares Bastos.

"Fazendo aprofundado estudo de nossas instituições emconfronto com as formas democrático-representativas deoutros países, traçou Tavares Bastos, nesse livro, os deliena-mentos das reformas indispensáveis para o engrandecimentoda nação brasileira, pelo engrandecimento e autonomia desuas províncias, primando o patriótico e previdente escri-tor, pelas idéias adiantadas e descentralizadoras que agorapreocupam a conciência nacional.

"E', pois, um livro feito para o gabinete dos nossos maisabalizados estadistas e ao qual não se dedignou de referir-se,mostrando-o em mão, no Senado, o eminente estadista Vis-conde do Rio-Branco."

VI

"A SITUAÇÃO E 0 PARTIDO LIBERAL"

Por volta de 1871, a política brasileira se caracterizavapelo desentendimento reinante tanto no campo dos conser-vadores, como no setor dos liberais. E entre ambos, apro-veitando-se da incompreensão existente, os republicanospropagavam suas idéias e cresciam em número. Como se lêem Carlos Pontes, o Clube da Reforma e o Centro Liberal*'deveriam ser núcleos ativos de irradiação de idéias ca-pazes de renovarem a sensibilidade do país, predispondo-oa largas transformações políticas".

Divergindo abertamente da orientação de alguns cor-religionários, escreve Tavares Bastos a célebre Carta ao Con-selheiro Saraiva, escrita em 23 de dezembro de Í87Í, publi-cada em março do ano seguinte e que se tornou conhecidasob o título de —- A Situação e o Partido Liberal.

Esta carta, diz Carlos Pontes, é resposta a uma de Sa-raiva, "que não se encontra infelizmente no arquivo dopublicista".

TAVARES BASTOS ATRAVÉS DE UM ARQUIVO PARTICULAR 175

Teremos agora a oportunidade de tornar conhecida acitada carta do Conselheiro Saraiva a Tavares Bastos, queencontrámos no arquivo de Rodrigo Octavio, entre velhospapéis de família.

Tem ela a data de 22 de Outubro. E' um documentopolítico de inegualável valor histórico e bem demonstra oconceito em que o discutido Conselheiro tinha o jovem eerudito correligionário.

Eis a carta:"Sr. Bastos. — Soube com prazer que começava a pas-

sar bem, e desejo que sua senhora e menina vão sem no-vidade.

"Quer minha opinião acerca do que se passou no Clubeda Reforma?

"Dá-la-ei com franqueza.'*— E' conveniente reorganizar o Centro Liberal?"Não dou a menor importância ao aumento dos mem-

bros do Centro, se esse aumento não tiver por fim introdu-zir sangue novo no corpo velho, ou antes, rever o programa."Toda a questão, porém, prende-se ao segundo e se-guinte quesito."— E' conveniente retocar o programa?"Já em 1868, dizia a Nabuco que nosso programa deviaser limitado e o reduzi aos dois pontos: — Trabalho livree voto livre.

"Penso ainda da mesma forma."Não se faz programa para uma geração, mas para

um período mais ou menos breve, e quanto à reforma quese quer fazer, está em termos de passar para a ordemdos fatos.

"S. M. fez a reforma do elemento servil, porque quisglória para si e porque ela não ofende em cousa alguma oseu poder e a sua prerrogativa."Naturalmente não terá o mesmo interesse na passagemda lei eleitoral, e sem eleição livre os partidos não se po-dem nem regularizar e nem dizer bem o que querem.

"Eu, pois, aconselharia aos amigos que tratassem aindade executar o programa feito, e de abrirem com força e com

176 REVISTA BRASILEIRA

certa ostentação mesmo, o combate para a Reforma eleito-ral direta e censitária, porque o voto universal não esten-dido até os que não sabem ler, ou não tem uma casa emque morar, me parece o melhor presente a favor do abso-lutismo.

"Não receie da propaganda da República."Prouvera a Deus que pudéssemos ter medo disso. En-

tão o País interessar-se-ia mais pelos seus destinos. Amigo,etc. — (a) J. A. Saraiva."

A estas expressivas linhas de Saraiva, respondeu Tava-res Bastos com sua magistral monografia — A Situação eo Partido Liberal — e com uma outra carta datada de 30de dezembro de 1871, na qual comunicava a remessa daprimeira. Não possue o arquivo que examinámos o origi-nal desta última carta. Nele se encontra, porém, a íntegrada minuta da mesma, emendada, riscada e assinada pelopróprio Tavares Bastos, e que é do teor seguinte:"Sr. Saraiva. — Muito boas festas lhe desejamos e àSenhora D. Francisca. Minha mulher e eu desejamos queo ano novo lhes chegue cheio de alegrias e de esperanças.

"Para nós, em Santa-Teresa, onde agora habitamos, nãocorre mal a estação, conquanto faça excessivo calor.

"Estou em dívida de resposta à carta de 22 de outubro,com que o Sr. honrou-me.

"Não podia fazê-lo em uma breve carta; e, como ho-menagem devida, entendi fatigá-lo com uma longa epístola,que nesta ocasião lhe envio registrada. Estou certo de quea sua amizade dar-lhe-á paciência para ler tudo até o fim,como lhe rogo.

"E' o códicilo do meu testamento político, A Província,que em 1870 publiquei; testamento de um suicida, cousasempre triste, mas nem sempre repugnante.

"A esta conclusão cheguei: no ponto em que estamos,nada tenho a fazer; e si não posso ajudar os outros, nemdevo embaraçá-los, cumpre-me ao menos explicar-me. Ten-tei fazê-lo com a maior moderação de frase e guardandotodas as conveniências.

TAVARES BASTOS ATRAVÉS DE UM ARQUIVO PARTICULAR 177"Peço sua autorização para dar publicidade a essa epís-

tola. Caso não lhe agrade divulgar o nome da pessoa a quema carta é dirigida, não o farei."Si quiser comunicá-la a alguns dos nossos amigos daBaía, muita honra me fará com isto; estimaria que nãofosse aí publicada, porque já comprometi-me sobre a im-pressão aqui. Sempre seu amigo obrigado e criado, —Tavares Bastos."

Eis aí a origem, o ponto de partida, de — A Situaçãoe o Partido Liberal — documento político dos de maiorsensação publicado durante o 2.° Reinado, e pelo seu autorconsiderado como o codicilo do testamento político de umsuicida, convencido de que a exposição clara e sincera desuas idéias e de seu pensamento, eqüivaleria ao seu suicídiopolítico.

A discussão entre Saraiva e Tavares Bastos, porém, teveseguimento, muito interessante, e creio que até agora des-conhecido.

De posse da carta e da monografia, Saraiva escreveuda Baía, novamente, a Tavares Bastos uma carta de quatropáginas de papel almaço, datada de janeiro de 1872, naqual, reconhecendo o interesse que sempre lhe inspiraramos escritos do jovem correligionário, faz longos e minuciososcomentários sobre as alterações do programa do partidoliberal e dá ao amigo uma prova de acatamento, escre-vendo esta frase: "Lendo-a, com o interesse que sempreme inspiram seus escritos, reconheci a necessidade de ex-plicar-me" (*).

VIL

"ÚLTIMOS TEMPOS"

Aureliano Cândido Tavares Bastos, faleceu em Nice, nodia 3 de dezembro de 1875.

(*) Esta carta será incluída no livro que o autor deste estudo tem noprelo: Três Figuras do Império: 0 Marquês de Barbacena, o Visconde deMauá e Tavares Bastos.

12

178 REVISTA BRASILEIRA

Revia o seu primeiro trabalho — Curso de Literatura— quando a morte veio.

"Interrompido tão importante trabalho — escreve opai, sempre tão interessado pelos estudos do filho — porter se absorvido o jovem autor nas questões políticas dopaís, tencionava êle terminar a obra e bem assim ocupar-seda reorganização do ensino público, quando..."

Não teve coragem para continuar os comentários. Te-ria que referir-se à morte do filho. Faltou-lhe forças paratanto!

Mas pôde ainda escrever: "Cousa notável! Aquela tãofecunda inteligência, parece que nasceu e brotou já lúcidae opulentando-se de dia para dia."

Para a Europa partira Aureliano à procura de melho-ras para o mal que lentamente lhe minava o frágil e pe-queno organismo. E a meu avô escrevia de Si. Gervais-les-Bains (Saboia), em 18 de junho de 1874, uma carta emque transparece um aspecto inédito de seu espírito sisudo:

"Meu caro Rodrigo: Quando esta receberes, já não esta-remos neste degredo para onde nos atiraram os pedantesde Paris.

"São águas maravilhosas, disseram, e ponham-se a ca-minho. Cá chegando, desarranjou-se o tempo, e imagina oque é neve em começo de verão. Neve! pois, estamos adous passos do Monte Branco (o tal), belíssimo! Mas valeriaa pena atravessar o Oceano?

"Que saudades do Brasil, dos velhos, da casinha deSanta-Teresa, de Vocês todos! A saudade é um desmancha-prazeres, falando em prosa."Os meus doentes (Mariquinhas e Jacinto) esperam,pelo que se lhes diz, grande proveito destas águas.

"Eu, acabada a sua estação, devo partir para Carlsbad,visitando a Suíça, de passagem. Ali ficarei todo o mês deagosto. Em setembro ou outubro visitarei o Reno e a SuíçaAlemã, e talvez passe o inverno em Genebra e seus arredo-res, ou no sul da França.

"Podes, entretanto, escrever-me sempre com este en-

TAVARES BASTOS ATRAVÉS DE UM ARQUIVO PARTICULAR 179

derêço: Paris — 50, jR. de Paradis Poissonière. E' a casade um amigo que me transmite a correspondência."Falemos do ego."Os doutores de Londres mandaram-me (literalmente)passear: "passeie pela Suíça, pela Escócia, pelo Egito: é oseu remédio. Coma bem e do melhor e cerveja inglesa"."Os de Paris, ora para Vichy, ora para Carlsbad. O pioré que me acharam fígado e baço mui engorgitados, e meprognosticaram (Dr. Sée) uma hidropsia...

"Não sei se foi isto, porque não entendi bem o quedisse o Dr. Assegurou-me, porém, que Carlsbad muito meaproveitará, e que em seis meses estarei pronto, devendo,porém, evitar os países quentes e húmidos, scilicet, o Brasil."Pois não! Logo que me sinta robusto, aí me terão.Creio que já encontrarei o Nabuco felicitando a terra deSanta-Cruz. Pelas notícias do último paquete vejo que,apesar da tenacidade do nosso Bragança, o Paranhos nãotem maioria nas Câmaras. Que tal é êle e os seus ministri-nhos, que até os abandonam as vis criaturas que despacha-ram deputados e senadores!

"Para nós, os descontentes, a melhor solução seria adissolução da Câmara pelo próprio Paranhos! Mas o ado-rado é velhaco e o há-de despedir."Trata de tua eleição; procura o Saraiva. E' um dosúltimos homens sérios que tem o Brasil, Vi-o na Baía, ecada vez o amo mais.

"Quando escrever-lhe, falar-lhe-ei novamente em ti, apropósito das eleições que presumo, se farão brevemente."Dou-te uma agradável notícia, que há pouco ressooupor nossas montanhas. A Assembléia Nacional proclamará•a República: os monarquistas estão em minoria de 100 vo-tos. O atual ministério (que muito se parece com o do nossoadorado) vai pelos ares, como merece. Dize aos imperia-listas daí que podem vender os seus foguetes."Estou de muito bom humor: acabo de beber, quenti-nho, uma boa tijela de leite de cabra. Cabra dos Alpes,preta, viva, e que leite gostoso!

180 REVISTA BRASILEIRA

"Proíbem-me o escrever. Desculpa-me com os amigos.Muitos cumprimentos meus e de Mariquinhas à tua Senhorae ao Dr. Langgaard.

"Muitos beijos ao Didi e à Hermantina. Elisa lhes en-via um abraço. — Teu amigo. — Tavares Bastos."

Pensamos não ser desinteressante a divulgação destalonga carta, cheia de bom humor, onde um grande espírito,sempre preocupado com altos estudos e questões superio-res de política, abre o coração afetuoso a um amigo certo.

Mas esta não foi a última carta. Encontramos outradatada de Paris, em 21 de abril de 1875, sete meses antesde seu falecimento. E' do mesmo teor, mas trata mais fun-damente, na parte final, de assuntos do partido liberal.

Começa assim: "Encheu-me da maior satisfação tuacarta de 12 de março. Parabéns pelo novo filhinho e aceitecom D. Luizinha as nossas felicitações. Não é que ficamoscom água na boca por casa do doce, posto que ainda tenha-mos goiabada do nosso Belarmino?..."

Mais adiante diz: "Tua carta, minuciosa, deixa-me per-ceber a extensão da nossa miséria. Conheces perfeitamentemeu juízo sobre a ausência de plano político, de que sem-pre ressentiu-se a Reforma, e o emprego da chocarrice porsistema... Mas quando ela enfia direito a questão e temliberdade de escrever, presta e já prestou valiosos serviços.Que há de ela fazer em relação aos Mauás e Penedos? Lou-vá-los? Calar-se? Perder a oportunidade que nenhum ho-mem político despreza, de prejudicar o governo na pessoade seus clientes?

"Duvido muito que Sinimbú (que nos deve merecera maior consideração pelo que foi, pelo que é, e pelo quevirá a ser), duvido que Sinimbú espose como sua a causado Penedo. Si afasta-se da Reforma, é que tem outros mo-tivos; talvez justamente os que me impediam de compartira tarefa da redação. Não outros. Abram-se com êle, comSaraiva, com Martinho. Não há no Brasil caracteres maisleais, mais dignos, mais altivos; não há no partido liberalquem os possa dispensar, e não se deve perder toda a espe-rança enquanto eles viverem. Haja uma tormenta; são os

TAVARES RAST0S ATRAVÉS DE UM ARQUIVO PARTICULAR 181

homens de confiança a que o país se pode entregar, e emroda dos quais se agruparão todos os sujeitos de préstimos,gastos ou não.

"Ora, as circunstâncias me parecem cada vez mais gra-ves, e tens razão em tentar uma união das paróquias libe-raís, independente do finado Centro. A propósito, aqui repe-tirei o que agora mesmo acabo de escrever a meu pai."E a carta segue, longa, cheia de interesse histórico, deconselhos aos correligionários, afirmando a certa altura que"do imperador não há absolutamente nada que esperar, si-não a sua abdicação, — aliás conseqüência natural da pre-sença de uma maioria parlamentar (liberal-dissidente) naCâmara dos Deputados. A abdicação me parece indecliná-vel, e nessas condições (como resultado do voto nacional),fará época em nossa história. O imperador podia e deviatê-lo evitado; mas não soube haver-se: a tarefa de rei cons-titucional não é para a sua inteligência política, nem estána índole do seu caráter. Entretanto, melhor fora conser-vá-lo, do que experimentar o Príncipe, ou correr os azaresda República: mas — impossível."

Seu amor à liberdade e à democracia, lembrou Wan-derley Pinho, levou-o a encarar o poder pessoal de Pedro IIcomo uma tirania.

Para êle a monarquia simbolizava a opressão e a cen-tralização e por isso queria "reduzir o poder ao seu legítimopapel, emancipar a nação da tutela do governo" por con-siderar "um absurdo esperar a liberdade e a prosperidadede um regime que o sufocava".

Do imperador dizia: "não há dúvida que é um homemmui inferior à importância do cargo e à missão civilizadorado Governo no Brasil"; e atenuava: "piores do que êle sãoos estadistas de ambos os partidos que o tornaram tão ruimdesde criança. Mas como êle é príncipe, nós os democratas,temos prazer em fazê-lo bode espiatório" (10).

A verdade é que o destino político do Brasil era a pre-ocupação máxima de seu espírito, que lutava para chegar

(10) Wanderley Pinho. Jornal do Comércio, de 23/4/1939,

182 REVISTA BRASILEIRA

a uma conclusão. Que queria Tavares Bastos? A repúblicaou a monarquia? Como resposta e para gáudio do leitor,vamos transcrever parte de um documento do punho deTavares Bastos, e que demonstra bem a dúvida em quevivia.

São, evidentemente, apontamentos, para estudo de maiorfôlego:

"República ou Monarquia? Um governo pessoal ilus-trado e firme, desde a independência, inclinado para certospontos capitais (instrução, emancipação e emigração), teriatransformado o Brasil. Produziria por outra parte, as con-seqüências deletérias de todos os governos pessoais: masestas não seriam nem maiores, nem talvez iguais, aos dopseudo sistema representativo que estamos tendo.

"No ponto a que chegamos, o que pedir? Monarquiademocrática ou república?

"A república é a paixão do século, é a bela tradição domundo. Atenas, Roma, 89, os Estados-Unidos, o que houvejamais de mais belo, de mais grandioso? Nesse painel, osmais belos nomes que as artes e as letras perpetuaram:Arístides, Péricles, Demóstenes, Cícero e os romanos darepública. Mirabeau e Vergniaud, Washington e Lafayette.Bem; mas a base da república é a virtude esclarecida.

"Somos um povo virtuoso, somos uma democracia es-clarecida? Nós somos um moço avelhantado, uma naçãohíbrida e baixa. Não poderemos ser uma república."

E no documento, que é longo, continua fazendo a cri-tica do governo pessoal, para terminar afirmando: "NoBrasil, Pedro I e seu filho exerceram o governo pessoal,por esse modo vulgar, que incorre em nossa censura."

VIII

TAVARES BASTOS, PATRONO DE UMA CADEIRANA ACADEMIA

Quando Joaquim Nabuco, interessado em fazer da Aca-demia Brasileira o centro que melhor refletisse o esplendor

TAVARES BASTOS ATRAVÉS DE UM ARQUIVO PARTICULAR 183

da cultura nacional, propôs que os membros fundadoresescolhessem um patrono para as suas cadeiras, lembrou-seRodrigo Octavio de dois nomes imortais para aureolar asua: Raul Pompéia ou Tavares Bastos.

Raul Pompéia fora o seu amigo mais íntimo. Bem deperto conhecera a grandeza de sua alma sofredora e agi-tada, e sentira o bater daquele coração inquieto. Admira-ra-lhe, sem restrições, a inteligência sem par. O optimismode um não se chocava com o pessimismo do outro. Artis-tas e patriotas, Rodrigo Octavio e Raul Pompéia, sonhavamcom um Brasil culto, forte e liberal. E na varanda de umadas velhas casas da rua de São Clemente, onde eram vizi-nhos, as conversas entre os dois amigos se prolongavampelas noites quentes de nossa terra...

Na época em que a República dava os primeiros passos,reformando e virando pelo avesso as normas políticas im-plantadas durante tantos anos por uma monarquia mornae sisuda, ambos comungavam nos mesmos princípios deum nacionalismo extremado.

E aí estão, para demonstrar o entusiasmo dos dois jo-vens republicanos, as páginas com que Raul Pompéia lheprefaciou a primeira edição das Festas Nacionais.

Mas, por outro lado, não queria o acadêmico fundador,que Tavares Bastos deixasse de ser também patrono de umacadeira da nova agremiação. E o assunto se resolveu sa-tisfatòriamente, quando Domício da Gama, ciente de queêle escolhera Raul Pompéia para seu patrono, lhe escreveude Paris, em 6 de agosto de 1897, uma carta onde se lê:"Você é que me enche de inveja por ter escolhido o Pom-péia, sobre o qual tanto gostaria de escrever..."

Este desejo de Domício da Gama resolveu o caso, comose vê de uma nota escrita na própria carta que recebera:"Cedi ao Domício o Pompéia e tomei Tavares Bastos. Euqueria para o Raul a honra de ser patrono. Asseguradocom a escolha de Domício, pude dar a honra a outro grandenome que ficara esquecido, o melhor amigo de meu Pai."

Fundada, como fora, a Academia Brasileira, pelo quede mais representativo existia na cultura e nas letras na-

184 REVISTA BRASILEIRA

cionais, teria sido lamentável se, entre as quarenta cadei-ras, uma não houvesse, destinada a perpetuar o nome deAureliano Cândido Tavares Bastos — o patrono da cadeiran. 37, por escolha de Rodrigo Octavio.

IX

CONSAGRAÇÃO

No Jornal do Comércio de 30 de abril de 1870, Ferreirade Menezes, em comovido artigo, escreve esta frase: "aí estáa chegar o cadáver de Tavares Bastos, o porta-estandartedas idéias democráticas do seu tempo."

Chegava à pátria o corpo morto de quem vivera com opensamento nela, e que, vivo, no dizer de Levi Carneiro,acertava ao prever que escrevia para as gerações vindou-ras: "estas hão de voltar a lê-lo, maxime sempre que asalternativas da nossa evolução política e econômica derem,de novo, atualidade a muitas de suas páginas. E hão deencontrar aí, o mesmo alto ensinamento, que se resume naspalavras de Haroldo Laski: somente o respeito da liberdadepode dar beleza à vida do homem" (11).

Realmente, o que fora projetado na A Província, con-sistiria, por si só, caso executado, bronze histórico para omelhor padrão de glória. Esta afirmativa, do inesquecívelVicente Licínio Cardoso, ressurge hoje, na evocação donome de Tavares Bastos, em todos os recantos da terra bra-sileira, cem anos depois de seu nascimento e sessenta equatro de sua morte.

E' nosso dever reverenciar a memória e meditar sobrea obra de um brasileiro, cuja vida bem se enquadra nesteconceito de Humberto de Campos: preferiu afrontar omundo servindo à sua conciência, a afrontar a sua conciên-cia para ser agradável ao mundo.

Rio de Janeiro, Junho de 1939.

(11) Levi Carneiro. Jornal ão Comércio, de 21/4/1939.

DIOGO ÁLVARES CARAMURÚ E OS FRANCESESEXISTÊNCIA DO PAU-BRASIL NA CAPITANIA DE

FRANCISCO PEREIRA COUTINHO

(De um livro em preparação)

Artur Neiva.

Com razão Almeida Prado, nos Primeiros Povoadores do Bra-sil, afirma que as navegações empreendidas por Portugal tinham,em geral, o que é bem compreensível, caráter comercial. A própriaexpedição de Cabral possuía, entre as treze unidades que a forma-vam, duas pertencentes a particulares, uma de propriedade de umtio de D. Manuel, associado aos comerciantes italianos Marchione,Morelli e Sernige, e outra do Conde de Porto-Alegre, sócio de vá-rios mercadores.

Desde muito cedo o Brasil atraiu a atenção dos interessados.Em 1501, toda a armada comandada por João da Nova era de par-ticulares e uma das naus pertencia também a Bartolomeu Mar-chione. Ignora-se quanto tempo permaneceu no Brasil, antes derumar para o oriente.

Registrou-se, neste mesmo ano, uma terceira expedição consti-tuída por uma frota pertencente a Fernão de Loronha, que secaracterizava principalmente pelo fato de destinar-se só ao Brasil.Pilotava-a Américo Vespúcio e um dos sócios da expedição era aindaMarchione. A primeira frota partiu de Lisboa em março e a últimaem maio.

Em data não precisa, talvez em 1502, parece que Estevão daGama tocou no Brasil. Em 1503, Américo Vespúcio visitava pelasegunda vez o país, participando da armada de seis embarcaçõescomandada por Gonçalo Coelho que saiu de Lisboa em junho de1503, com rumo a Malaca. Em costas brasileiras dispersou-se aarmada; a embarcação em que se encontrava Vespúcio, demorou-secerca de cinco meses, pensa Almeida Prado. Em Cabo-Frio Ves-púcio deixou 24 homens em uma feitoria, regressando a Europa.

186 REVISTA BRASILEIRA

Um francês, Binot Paulmier de Gonneville, também movido

pelo espírito comercial, depondo perante o almirantado da Nor-mandia declarou que estivera em 1503 em uma país, que já foravisitado por embarcações de Dieppe e S. Malô; a região foi identi-ficada como sendo o Brasil. Tal depoimento mostra que os Fran-ceses, atraídos pela exploração do pau-brasil, desde muito cedo de-ram maior atenção ao país que os Portugueses.

Âssíduamente freqüentavam a nova terra, estabelecendo co-municações com os indígenas em bases inteiramente diferentes dasempregadas pelos lusos; comerciavam com os aborígenes como fre-gueses e não os escravizavam, captando desse modo maior con-fiança dos índios e, nesse particular, a princípio, levando vantagemaos Portugueses.

Entre 1504-1505 existe a notícia da presença de Portuguesese Franceses na Baía, segundo uma Anua, de Anchieta, asserção re-petida.por outro jesuíta, Francisco Soares, no excelente trabalhoDe algumas cousas mais notáveis do Brasil, que se supõe ter sidoescrito em 1581, sendo pela primeira vez publicado em 1904. noArquivo Bibliográfico da Biblioteca da Universidade de Coimbra.Logo às primeiras linhas declara o padre: "Na era de 1504 vierãofrancezes a Baya e pemãobuco logo os portugueses lhe derão guerra-e os botarão ãa terra e lhe tomarão três nãos na Bahya". De modoinseguro existe a suposição de que Gonçalo Coelho tenha voltadoao Brasil, a serviço de Fernão de Noronha, maior número de vezesdo que se encontra assinalado, adianta Almeida Prado.

Erudito autor francês, Armando D'Avezac, publicou impor-tante obra sobre a viagem de Gonneville, remontando-a a 24 de ju-nho de 1503 e fazendo ressaltar, no entanto, que o navegador de-clara ter sido procedido "aux Indes d'Occiãent, despuis aneunesannées en ça, par oVautres voyages de Dieppois, de Malouins, etã'autres Normanãs et Bretons". Tal afirmação, para D'Avezac,significa que navios franceses buscavam o Brasil, à procura do pamde tinta, "ãès Ia première moitié de 1500". O trabalho do histo-riador francês é muito interessante e contém uma parte romântica,pois Gonneville trouxera um índio de nome Essomeric, que reco-lhera em 1504; dele se tornara padrinho, e perfilhando-o, maistarde, fê-lo seu herdeiro. O índio nunca mais regressou, morreuem França, aos 96 anos de idade, deixando grande descendência.

Suscitou-se, mais de um século depois da morte de Gonneville,séria questão sobre a herança deixada pelo navegador francês e osdescendentes do índio tiveram de se valer da cópia autenticada dedeclaração feita em 1505 pelo capitão Gonneville. Não se sabia bempor onde tinha navegado Palmier de Gonneville; supuseram, aprincípio, que tivesse sido pela Nova-Holanda ou por Madagascar.Um dia, Varnhágen teve conhecimento de que Pierre Margry, quetrabalhava nos arquivos do ministério da marinha em França, en-

DIOGO ALVARES CARAMURÚ E OS FRANCESES 187

contrara, em 1847, o ãossier do barão de Gonneville, que lutavacom dificuldades financeiras, oferecendo cópia do documento per-tencente ao seu antepassado, na esperança de assim alcançar qual-quer pensão. As considerações de Margry foram lidas a 1.° demaio de 1857 na Sociedade de Geografia de Paris, a propósito dorelatório sobre a História geral do Brasil de Varnhagen, ficandoressalvada a prioridade que, sobre o assunto, tem Margry.

A nau Espoir, em que viajou Gonneville, tinha 120 toneladasde arqueação e dela, como tripulantes, fariam parte dois portu-gueses: Bastiam Moura e Diogo Cohinto (sic). A embarcação con-dúzia 60 tripulantes e transportou mais dois: os índios Namoa eEssomeric, este de 15 anos, tendo embarcado ambos em 3 de julhode 1504; Namoa morreu de febre em 12 de setembro. O documentofrancês é muito mais interessante do que o conhecido regimentoque descreve a viagem da nau Bretoa em 1511.

A declaração feita por Gonneville e seus companheiros consti-tuem, no dizer de D'Avezac, a principal parte do manuscrito;ocupa-se do armamento do navio, da viagem e da permanência en-tre ps índios, verificando-se que todos os documentos possuíam asfórmulas sacramentais de uma expedição pelo almirantado deRuão.

As informações francesas são muito mais minudentes e meto-dicas do que as da nau portuguesa. Encontram-se o registro dosmortos a bordo e das doenças que isso ocasionaram; os nomes dostripulantes a indicação da pátria de origem e a data em que ocor-rem os óbitos verificando-se, então, que três foram mortos por ca-nibais em 10 de outubro de 1504, outros pereceram afogados ouforam mortalmente feridos no ataque que a nau sofreu dos pira-tas ingleses e franceses chefiados por Blunt e Fortin, em 7 de maiode 1505, nas proximidades das ilhas Jersey e Guernesey.

Os nomes dos dois indígenas não têm aspecto de patroními-cos tupis; parecem indicar antes que pertencem a tríbus muito aosul do Brasil. D'Avezae pensa que a 5 de janeiro de 1504 um na-vegador normando estivesse entre os carijós. Este é um ponto ainvestigar; os nomes dos indígenas não dão esta impressão. Evi-dentemente, Gonneville ancorou no Brasil, numa latitude médiade 26°10' sul; e, até onde chegou, assinada a presença de muitospapagaios. Esteve nas proximidades da foz do antigamente deno-minado rio S. Francisco do Sul, pensa D'Avezac. A descrição quefaz das cabanas dos indígenas mostra que esses eram diferentesdos tupinambás dá costa, porque dormiam no chão, sobre folhasou peles e o uso destas pelos carijós foi registrado, também, porGabriel Soares.

Gonneville descreve um local onde os indígenas não eram pa-cíficos, viviam inteiramente nus, tatuados, com um botoque entreos lábios, dormindo em redes e eram antropófagos, como verifi-

< _ ' <•",.

188 REVISTA BRASILEIRA

caram quando perderam três homens que foram à procura deágua. DAvezac, estudando as considerações de Gonneville, mos-tra que o navegador francês esteve na baía de Todos os Santos, nailha de Fernando Noronha e em Pôrto-Seguro.

A "Relation authentique. Les gens tenants Vadmtrauté deFrance au siège general de Ia table de Marbrc du Palais à Rouen",ocupa 23 páginas, constituindo a parte mais importante de contri-buição tão valiosa. O documento estuda a origem e o fim da em-presa, o armamento do navio, quais foram seus armadores, as ar-mas é munições de guerra que conduzia, o material sobressalentepara reparos da nau, a descrição dos víveres. Sabemos, assim, quea embarcação conduzia munição de boca para dois anos, água paraano e meio; que os víveres, além da farinha e bolacha, se compu-nham também de ervilhas, favas, toucinho, peixe salgado, cidra eoutras bebidas.

Da sua tripulação fazia parte um cirurgião portador de medi-camentos e utensílios da profissão. O documento traz uma listade todo o material que servia para troca com os indígenas, figu-rando em maior quantidade missangas, havendo também 50 dúziasde pequenos espelhos, quatro milheiros de machados, foices, facas,facões, etc. Tal lista é muito interessante, porque existe na Decla-ração o registro de que fora organizada à imitação do que faziamos Portugueses.

A Declaração estuda as peripécias da viagem e finalmente oponto que nos interessa: a descrição que fazem dos índios que ha-bitavam o norte da costa do Brasil, que viviam nús como tinhamvindo do ventre materno. Homens e mulheres pintavam o corpo,principalmente de negro, traziam os lábios furados e estes guarne-cidos de pedras verdes; eram portadores de incisões em muitos lu-gares da pele; depilavam-se, dormiam em redes e eram cruéis an-tropófagos.

Tratava-se de uma terra fértil em frutos, aves e animais, pos-suindo peixes diferentes dos conhecidos na Europa; os gentios pre-paravam pão e bebida utilizando-se de certas raízes.

Os Franceses verificaram que os habitantes da região tinhamvisto outros cristãos e de nenhum modo se surpreenderam com apresença do navio. "Et pour tant surtout craingnoient-ils Vartille-rie et harquebuses". Os dois portugueses voltaram com Gonne-ville e estavam entre os 28 homens que escaparam. Dois terçosda tripulação inicial desapareceram por várias eausas. O interes-sante é que o navegador francês, ao registrar os nomes dos tri-pulantes, assinala alguns voluntários, que embarcavam por meroespírito de curiosidade e aventura. A nau francesa esteve na Baíaem fins de 1504.

Ora, os Portugueses navegavam com freqüência também emnavios de outras nacionalidades, e isto desde o começo; até os eo-

DIOGO ALVARES CARAMURÚ E OS FRANCESES 189

mandantes de armada assim faziam, como, por exemplo, Fernãode Magalhães e Solís. Pode-se, portanto, imaginar quão numerososseriam os marinheiros portugueses engajados em naus espanholase francesas; a tal ponto este fenômeno se acentuou que houve ne-cessidade de um dispositivo legal para reprimi-lo, como aparecenas Ordenações Manuelinas, livro V, tít. 98, § 2.° — (cf. Hist.Cot. Port. Brás. III, p. 62, nota 17), o que se manteve, posterior-mente, no Código Filipino, liv. V, tít. XCVIII, (C. Mendes deAlmeida, vol. I, p. 1243, ed. de 1870).

Viajando deste modo, poderia ter chegado Diogo Alvares aoBrasil ainda moço, como atesta Nobrega, e daí aquele apelido defrancês, a que alude Serafim Leite; isto, porém, é uma hipótese.Mas o que é um fato é que Franceses freqüentavam a Baía e co-merciavam com os índios; daí a existência dos topônimos: Ilha dosFranceses nas proximidades da foz do Paraguaçú, e Aldeia dosFranceses nas cercanias de Itapoã, como consta de uma sesmariapassada por Tome de Sousa em 21 de maio de 1552. Tal povoaçãofica entre o atual rio Vermelho e o rio de Joane, em cujas proxi-midades se encontrava um dos raros ancoradouros, então existen-tes entre Tinharé e Tatuapara, atual Praia do Forte.

Teodoro Sampaio registrou na 3.a edição do O tupi na Geogra-fia Nacional o topônimo Marapé, como originado do mairapê e sig-nifieando caminho dos franceses.

Ò provecto baiano também queria ver na denominação Mari-quita, bairro junto à barra do rio Vermelho na Baía, nova inter-corrência do vocábulo Mair francês. No entanto, para o Vocabulá-rio na Língua Brasílica a palavra que designa o francês é Ajuru-juba, dando a impressão que o termo Mair, com tal sentido, viesseposteriormente embora seja muito antigo.

Batista Caetano é de opinião que o vocábulo Mair designa oestrangeiro. O curioso é que os Franceses, como Abbeville e Ivesd'Evreux, nunca o empregam, utilizando-se do termo Caraíba paradesignar o europeu, fato que mais tarde Marcgrav confirmou.Lery, no entanto, faz uso do termo maira como sinônimo de fran-cês ou estrangeiro.

O Dicionário Português-Brasüeiro de Frei Onofre, mais co-nhecido como de Frei Veloso, traduz Mairy como cidade e francês;como Tapuytinga. Ajuru juba, designando francês, também ocorreem Marcgrav, em 1648, à p. 268, da Hist. Berum Natur. Brás.quando escreve: Lusitani hic plurimi habitant uti & Belgas, Ger-mamis, iisque permixti Germani, Galli, Angli; & Brasüiami vocantBelgas, Germanos, Gallos, Anglos ajuru-juba, ideo, quia plerumqueruffas seu flavas habent barbas & capillos. In genere mtem vo-cant omnes Europaeos & advenas Coraiba, itemque Pero".

Sabe-se que Anchieta considerava maira como uma entidadecontrária e prejudicial aos índios. Isso aparece na Anua de 1584,

, -.',.»• ,

190 REVISTA BRASILEIRA

que lhe é atribuída e publicada pela primeira vez no tomo 6, se-gunda edição, p. 441, da Revista do Instituto Histórico. A. Al-cântara Machado reproduz o trabalho nas Cartas de Anchiela, equando trata do assunto em nota 455, diz: "sobre a significaçãodo vocábulo Mair, que Anchieta explica erroneamente", mandaconsultar Mendes de Almeida.

No entanto, Anchieta na sua Informação do Brasil, no capítuloDos costumes dos Brasis é categórico ao afirmar: "O outro homemchamavam Maira, que dizem que lhes fazia mal e era contrário deCume; e por esta causa os que estão de guerra com os Portugue-ses, lhes chamam Maira". Tal opinião, em que pese a Mendes deAlmeida, não é para

'desprezar.

O termo Mairy aparece também no Amazonas, onde nuncachegaram os Franceses. Belém, localidade que podiam ter atin-gido, era chamada de Mairy, cidade. Enfim, é assunto para serretomado, embora Mendes de Almeida tenha contribuído com bri-lhante e erudito trabalho. Admitindo, pois, que Mairy significassecidade, como todos concordam, o vocábulo Mairagiquiig que deuorigem ao topônimo baiano Mariquita seria cidade dos bugios, ecomo os símios referidos são os bugios arruivados e barbados dogênero Alouatta, então me aproximaria do ponto de vista que Teo-doro Sampaio pessoalmente me referiu em 1931, na Baía, quandome transmitiu a impressão de que o vocábulo Mariquita seria cor-ruptela da referida expressão indígena, e se relacionaria com apresença de Franceses, circunstância a que aludi às pp. 303-304dos meus Estudos da Língua Nacional em 1940.

Neste caso o vocábulo em questão para o índio designaria bu-giós franceses ou cidade ou povoação dos macacos franceses, deno-minação aplicada ao local que os Portugueses mais tarde denomi-naram de Aldeia dos Franceses e que aparece na sesmaria de 1552,assinalando um topônimo nas proximidades de Itapoã, não muidistante da atual Mariquita, isto porque se mair significa francês,aquiquig quer dizer, seguramente, bugio.

Acho, porém, falsa e inteiramente forçada tal etimologia, em-bora me tenha espontaneamente ocorrido, e a crítica que faço tal-vez evite a outrem cometer tal engano.

O Vocabulário Na Língua Brasílica, quando se refere aos bu-gios, cuja denominação indígena emprega, assim os define: "os debarba assi os ruivos como os pretos. Aquigqui, Çaguaçu". — Oprimeiro destes vocábulos quando precedido do dissilabo mair temcriado uma série de obstáculos para sua tradução. A não ser quese use do expediente de que o Padre Galanti íançou mão quando,encontrando o topônimo Mairagiquig, onde se dizia ter naufragadoCaramurú, transportou tudo para o fundo do Recôncavo, dizendoque a ocorrência se passara em Maragogipe.

DIOGO ALVARES CARAMURÚ E OS FRANCESES 191

i«7«A VaÍÍ°Sa-

,eoníribuifiSo de Me«des de Almeida publicada em1878, na Revista do Instituto Histórico, tomo 41, não resolve oassunto, ao procurar a razão pela qual os índios chamavam osfranceses de maw e aos portugueses de peró. A parte referente aesta ultima designação é muito mais convincente; a outra não tanto.Jíoi bimao de Vasconcelos quem localizou em Mairagiquiig, osbaixios onde Diogo Alvares naufragou. Mendes de Almenda assi-naia que bimao de Vasconcelos escrevera sua crônica na Europa emlorma que a denominação indígena, segundo Vasconcelos, se ori-ginava do genüo que vivia na zona, dizendo então o senador mara-nnense: O que palpàvelmente demonstra sua ignorância da Mn-guamâxgena, e que escrevia em vista de documentos, ou de infor-magoes de oitiva, sem exatidão, vivendo o cronista, como já nota-mos, fora do pais". Acrescentando então que Simão de Vasconce-los foi explorado em sua boa fé e credulidade de escritor por baia-nos que se achavam em Lisboa e que eram interessados em presti-giar a "lenda absurda do Caramurú".Lembra, porém, que Simão de Vasconcelos estivera tambémna Baia em 1616, onde professou, e também lá estava no ano delbo9, pois a 1.° de janeiro fez um sermão ali. O ilustre historia-dor maranhense, no entanto, embora censure Jaboatão e Acioli quesem maiores exames aceitaram as conclusões de Simão de Vascon-celos sobre o nome dos baixios denominados de Mairagiquiig. dáerrônea tradução do vocábulo que batizava tais parcéis, dizendoter encontrado o verdadeiro sentido onde devia ter naufragadoalguma embarcação francesa, principalmente, sem haver necessi-dade de "criar-se, tão perto da Baia, uma tribu especial diferentedos tupinambás", alusão a Acioli.Mendes de Almeida estuda o vocábulo de uma maneira estra-nha, dizendo que "Maira" designa o branco ou francês, giqui outensílio de vime de forma afunilada para apanhar peixes e ig,água . Assim;, para o ilustre maranhense o vocábulo em quistãosignificaria nada mais, nada menos do que "o covo ou caneiro oucantçada", ou melhor, a esparrela onde caiu o europeu ou o náu-frago como um peixe, quando penetra no giquí".Vimos que os autores do Vovabulário Da Língua Brasílica, tãobem estudado por Plínio Airosa, e que eram os melhores conhecedo-res do assunto, pois foram contemporâneos dos primeiros dias daBaía, registram os primitivos nomes das localidades e ilhas quelogo alcançaram nomes lusitanos, como Ilha dos Frades já assim de-nominada em 1551 e que alguns dos colaboradores do referido vo-cabulário ainda alcançaram com seu nome indígena de Guenun.O termo aquigquig corresponde, para os autores do dicionário, aosatuais bugios ou guaribas, símios colocados no gênero Alouatta.Mendes de Almeida também se deixou arrastar pela imagina-

çao e pelo menos neste ponto mostrou que podia também imitar

192 REVISTA BRASILEIRA

Simão de Vasconcelos. O que o indígena queria significar com oreferido vocábulo exatamente não sei, Maíra, evidentemente, tam-bém designava povoação, cidade; as explicações até hoje dadas arespeito não me satisfazem, tratando-se de um assunto que precisaser revisto com maior rigor.

O historiador maranhense, afim de justificar a etimologia queencontrou para o vocábulo que se transformou em Mariquita, ar-gumenta até com.o almirante Mouchez, quando este afirma a exis-tência de um recife obstruindo um dos pontos nas proximidadesdo rio Vermelho, com intuito de justificar a extranha etimologiaque propõe.

Simão de Vasconcelos às pp. 77-78 da sua Crônica, edição deFernandes Pinheiro, relata que a duas léguas da cidade da Pa-raíba, além das pegadas de S. Tome, encontrou letras nas pedrasque, felizmente, não pôde traduzir. Pouco antes o historiador tra-dúzia o topônimo Mairapé, na Baía, hoje transformado em Marapécomo caminho do homem branco. Mair, para o cronista da com-panhia, passou a significar homem branco, afirmando que era umareferência a S. Tome, mas que também poderia ser traduzido porCaminho dos Franceses, que sem dúvida freqüentavam a Baía.Eis, assim, mais um topônimo baiano ligado à presença daqueleseuropeus na terra em que morava Caramurú, sendo este o quinto,os quatro outros são: Ilha dos Franceses, Aldeia dos Franceses,Porto dos Franceses e Mariquita, corruptela de um vocábulo indí-gena cujo significado se relacionava com a presença de Franceses,na opinião de Teodoro Sampaio.

Para mim Caramurú estava a serviço dos Franceses. Dissoestou convencido; posso laborar em erro, mas o fato é que os Por-tugueses, em 1531, se surpreenderam com a descoberta de um seucompatriota, havia tanto tempo na Baía, o qual, no entanto, já en-contrara oportunidade de voltar à pátria com os seus e que mesmoo poderia ter feito anteriormente, com os Espanhóis, que o acha-ram em 1526.

Francisco Vicente Viana, em 1890, elaborou um trabalho quesomente foi publicado 21 anos depois. O ilustre autor, no capi-tulo I, da A Baía Colonial é a primeira pessoa a suspeitar que Ca-ramurú estivesse em contacto com os Franceses, chegando a adian-tar que os acontecimentos ocorridos com o primeiro donatário te-nham tido sua origem em conseqüência dessas relações.

Folgo em registrar tal fato, porque o autor citado era investi-gador seguro e um estudioso de valor. Médico, educado e formadona Alemanha, onde passou 16 anos, regressou ao seu Estado na-tal, onde realizou notável trabalho em prol do nosso patrimôniohistórico. Pôde salvar muitos documentos e procurou dar-lhesabrigo no Arquivo Público da Baía, de que foi o primeiro diretor.

O náufrago, como dizem os historiadores e o próprio Cara-

DI0G0 ALVARES CARAMURÚ E OS FRANCESES 193

declaron ao XelnÓem lil-^ '• «"í " •"«*. «»»

«n o«2U6«a costa v soZ JJrnJi ° ° entender Q** residianos U por St pJ^-fZ SSS,»

"""«¦ < *• **>»*-

Era,?!8 '^Ja?; t&Sffe ""T^ *» °

mações relativas às viagens dos Franceif Lp V^*0 * inf°r-

SerTrTmô a^Tem ^Á '"» 1525' ^"'p^veram no ffio fbta«C em 1527^1^ V> Normandos esti-mãoS dos Praneeees âX'de eS L**^

° fa'°de cair em

SS-fS^T. m='Í??f .WT55SS £

cente em lbzv e Simao de Vasconcelos Pm ififiQ „* -A X;.

pm iflfí9 «„„ frança, e o ultimo, que escreveu seu livro

«o-es toeeT ™ *"**

aC°B * maÍOr •»*»«•*, dSTSw

+i™« ^"iraoi.escreveu o poema Caramurú, vasado no mak íntimo entendimento entre o noso herói e os Franceses \?TJ£~

fa Siri» ™°" * ^^ P°éfea> »»«""« quanStez historia, como em outro capítulo mostraremos. q

InsUtJlsttlt CMeta' a?are.eid° no volume 6 da ***** do

nT^ieTdTZ^vSe^^ "° * Ms« ^Diz o documento anchietano intitulado Enformação do Rra.ilede suas Captamos: "Da primeira entrada dos fZcesesnoZstl. ~ Na era dei 1504 vierão os francem nn RnJn ¦ •

ao nnrtn rin rtna.n „ „ 4 ~ franceses no Brazil a primetra vez

frm« **, vimm despoü ti z: 1:2:2 z b:::z°z:r13

194 REVISTA BRASILEIRA

em resgate entrarão quatro nãos da armada de portugal e quei-maram lhe duas nãos e outra lhe tomarão cõ matar muita gentealgua da qual todavia escapou em hua lancha e achou na pontada Itapuama 4 legoas da Baya hua nao dos seus que se tornou p.a frança, e nuqua mais tornarão a Baya até agora porque semprefoi crescendo cõ o muito trato dos acuquares que vem ãe portugal".

Narra ainda o jesuíta que os Franceses não faziam nenhumagravo aos índios, a quem forneciam roupa e toda espécie de ar-mas, dizendo que deixavam moços na terra para que aprendessema língua dos indígenas e homens que aprontassem as mercadoriaspara quando viessem as naus. Justamente nas cercanias de Itapuãficava a localidade mais tarde conhecida pelos Portugueses porAldeia dos Franceses, segundo documento de 1552.

Pela declaração de Binot de Gonneville vê-se que fora prece-dido por compatriotas seus; a afirmação de Anchieta de que"nunca mais tornaram a Baía", não tem fundamento; só após avinda de Tome de Sousa isto ocorreu. Em 1546 levaram "artelha-ria e fazenda" da Povoação do Pereira e em 1561 o padre Rui Pe-reira encontrou várias naus dos Francos ancoradas em local pró-ximo da residência do Caramurú, denominada Porto dos Fran-ceses.

Almeida Prado acredita que em 1505, em conseqüência de alte-rações aparecidas no mapa de Canério, algum navegador portu-guês tivesse chegado até nós. Mas não foi em companhia desse na-vegante luso que aqui chegou Caramurú, que aportou à Baía ai-guns anos depois. Não exista qualquer registro de que entre 1505-1510, navegantes portugueses ou franceses tivessem tocado no Bra-sil. Em 1511, porém, a nau Bretoa chegou ao Brasil, onde se de-morou.

Compreende-se que a documentação sobre a navegação sejadeficiente; sobretudo a referente aos Franceses, cujos arquivos,onde certamente se encontraria farta documentação, inclusive car-tas de corso, foram devorados por incêndios, sendo também fácilde imaginar-se que os contrabandistas portugueses, tentando expio-rar o pau brasil, não procurassem divulgar seus feitos, embora osregistrassem para prestar conta aos armadores seus patrões, queprovavelmente os destruiriam.

Em primeiro de julho de 1526 entra na Baía de Todos os San-tos uma das naus que pertenciam à armada de Garcia Jofre deLoaysa que, em julho do ano anterior, saíra de Corunha com des-tino ao Oriente; a expedição fora destroçada na altura do estreitode Magalhães. A nau em questão, de nome S. Gabriel, era <(ãelMando De Don Rodrigo ãe Acuna: seu comandante aproveitou aembarcação ter ali arribado para fazer brasil. Não se deteve aoentrar; rumou com segurança para o fundo do Recôncavo, come-çou a trabalhar, quando os índios assaltaram os espanhóis.

DI0G0 ALVARES CARAMURÚ E OS FRANCESES 195

¦que4iavarcomD°^dÍO/eÍ? Pei° pil0t0 Pran<*is<!° d'AviIa,TáoZihrTv g° í JAeuna' Vem de^nstrar a existên-rPrLZ dTvP^lPr°TldadeS da Baía' ° «Ue é contestado,-a. presença do vegetal explica a razão dos Franceses a nmnn™t?nW ' Chegarem em demanda d0 Eecôner» as embarcStinham forçosamente de entrar pela Barra, em cujas Proximidadeszt: zz srssf:*—* *- *-er™t„carjando brasü, dei que tenia abordo cuatro batelada, los índiosmataron en Uerra siete hombres de los que estabal cortando deese paio: ei capitan envio ai maestro y ádos arumelsáZer aimm noticia de ellos; pero saltando L gZZ7en tlratatlien los mataron. Salió luego Ia nao de Ia baha- hallóásu boca

lad^baânTlf enC°ntra: Domin9° í-° de Júlio entro enIa dicha bahia Ia dicha nao, y estando cargando de Brasil u tomadas cuatro bateladas dei, los indios mataran siete homlre.VdTlos

t Janl™ l mUr,alW™ ™eva delhs, y con ei dos grume-

nao ínT\ n ?TÍÍM ? *%erra matar™l°s: salió-se luego Ianao de aüu hallo a Ia boca de Ia batia un cristiano que decia aue•Aefta nao farta (sic) 22 dias de Agosto con tiempos contrários".Rnía°^

esPa^hóis es*avam com segurança informados do local naBaia de Todos os Santos onde se poderia encontrar a preciosaST?;;J°ram

6D? bUSCa daS mataS d0 Para^açú onde, só muitomais tarde, os portugueses acabaram descobrindo, ali, o ibiravi-tanga dos caboclos, e tão ambicionado dos europeus.De há muito que é opinião corrente entre abalisados historiadores nao existir pau brasil na capitania de Pere ra CouSoAinda recentemente, em valiosa e erudita contribuição, meu emi'-

O pLeRprefad° £mi^ Bernardino José de Sousa, no trabaZdistrito da Baia; na baía de Todos os Santos quasi não carrega3r^aV;°8/az?PretSa madeira' ° utilíssimo U™ *» *á iSSodo Estado doBrastl assinala: "No distrito desta Capitania (Baía)se nao tem achado pau-brasil de nenhuma sorte, mas tem tão boasmadeiras e de tantas sortes, e em tanta quantidade, que é grandepreço que todos os anos se tirão delas." (Acioli, Memórias Eistó-ricas e Polacas da Província da Baía - Ed. Braz do Amaral,Jnf'2' P f> } V* ,

CaPlstrano de Abreu à p. 61 dos seus Capítu-los de Historia Colomal escreve: "Faltava pau-brasil na vizinhan-<ça da Capitania de Francisco Pereira Coutinho". Este ponto no:rem, precisa ser discutido, dada a importância que lhe reconheço

196 REVISTA BRASILEIRA

quanto à permanência de Caramurú nas plagas baianas, e, com sdevida vênia, vou tentar.

O Livro que dá Razão do Estado do Brasil foi escrito em 1612,quando, de fato, já deveria escassear a preciosa essência na região-aludida; o depoimento de Acioli é do princípio do século XIX, eo que diz o preclaro Capistrano de Abreu, segundo afirmaçãoacima transcrita, fica destruído pelo achado, no Recôncavo baiano,e no sertão de Tatuapara, do pau vermelho ainda em pleno sé-culo XVI.

Tatuapara antigamente, e mais corretamente Tatuapara, sig-nifica o tatu que se encurva, o atual tatu bola, Tolypeutes tri-cinctus. Esta é a tradução do nome da localidade baiana, célebre-na história brasileira por ali ter morado Garcia de Ávila ,o fun-dador da casa da Torre, cujos descendentes entroncavam-se com agente procedente de Caramurú e Paraguaçú.

Gabriel Soares ocupa-se da localidade nos cap. XXV-XXVIIao descrever o porto: "Tatuapara é uma enseada, onde se mete umriacho deste nome, em o qual entram caravelões da costa compreamar: nesta enseada têm navios muito boa abrigada e surgi-douro, de que se aproveitam os que andam pela costa". Conta que-ao longo da costa do rio Real até Tatuapara está cheia de recifesde pedra e assim deste ponto ao rio Jacuípe, único lugar onde po-dia entrar um barco. A costa continua com o mesmo aspecto semabrigo e cheia de arrecifes até o rio de Joane. Daí a duas légua»havia um porto denominado no tempo de Gabriel Soares de Aram-bepe e hoje de Arembepe, e que constituía seguro abrigo. A costa:,aberta continua até a Ponta do Padrão à entrada da baía de Todosos Santos. De Tatuapara à moradia de Caramurú, margeando acosta, que é o caminho mais longo, a distância é de cerca de 70'quilômetros. O fundo do Recôncavo fica a uma distância apenas.um pouco menor. O ponto de residência de Caramurú ficava quasia meio caminho entre Tatuapara e o fundo do Recôncavo.

Para o Regimento de Tome de Souza a Vila do Pereira ficava-quasi equidistante de Tatuapara e Paraguaçú. Quando se ocupados índios informa que existiam 5 a 6 mil guerreiros ao longo d*costa, para a parte do norte até Totuapara que são seis léguas &pelo sertão atee entrada do Paraçuu que serão cinquo léguas".

A freqüência de navios franceses nas imediações do Para-guaçu, a tradição que se prende à história de Caramurú e Cata-rma que regressaram da suposta viagem a França, justamente-para carregar brasil nas proximidades da foz do célebre rio, a dis-tnbmçao da espécie que vem do Rio Grande do Norte ao Rio deJaneiro, e que nao se interromperia na capitania da Baía, onde se-encontram terrenos apresentando todas as condições para que aCesalpima echmata lá se desenvolvesse, vêm explicar as incursões

'.*¦¦-. r ..,.;

DIOGO ALVARES CARAMURÚ E OS FRANCESES 197

tTs: sssrbaíano a pomo de iá dei— -se encontrava pau brasil Z iw? V ^^P"-1-^ sabiam onde

.^JcSÍ d° Para^ua?u é 3™ está situada a Ilha dos

fosse escasseando, ainda lá ? JS ? a essêneia' eniboraFraneiseo Soares diz a referindo !°T • **? P°rque ° Padresü inda que longe''

re±enndo-se a »P-*ania da Baía.- "J7á Bra-

^:rL^í%^'e^0tT^Baía em,1569 -acredita, ainda ponde iwnlW ! ? T l-I' eomo £eralmente seo seguinte a «££

"^P ^a^^X^ XXVI

™ÍT*

JK LaTatuap^a e "> ^-ttra ríaPr;s

paao aos índios, tendo ainda podido salvar quatro.O próprio Caramurú confessou a Juan de Mori ter estado Pmcontacto

com os Franceses: -•„ fc ,we Jff S/^TIrã Tat,r„Tr° QeSde ° temp° d0 Primei™ áonatórioTraX'-mara Tatuapara em centro produtor de farinha «orai e « «IdeSS!„Xlm;-P0UC° 7'?

dC ™ an<> deP°is d" eheS de Tome1 1 ST £ T ?°der]a C°mprar em Tatuapara, em 21 de mZde 1550 24 alqueires de farinha sem que houvesse ali nlantacãode mandioca e o necessário aparelhamento para sua fabricação Noano seguinte, em 30 de abril de 1552 a ffaleo?a "4n %T >'»-adou-rh* em Tatuapara não s6 farinha; e^Tambe^po^oT *

..¦e-

198 REVISTA BRASILEIRA

A farinha era de três qualidades: "uma feita entre brancos"",.,vendida por Caramurú, como consta de um recibo a 19 de julhode 1553; outra, quando estava mal preparada, era denominada de"danada ou podre"; a terceira possuía denominação comum dostipos existentes: "farinha da terra", mais tarde também chamadade farinha de pau, denominação que de tal forma se vulgarizouem Portugal e outros países europeus que, até hoje, os alemães cha-mam a farinha de mandioca de Holsmehl.

Se havia uma farinha da terra preparada por brancos a outra,era forçosamente fabricada pelos índios; o entendimento com estes,só poderia ser feito por Caramurú e seu grupo, que estava em con-tacto com os índios de Tatuapara, pois é sabido que os brancosinclusive Caramurú, moravam na Vila do Pereira. 'Pela carta que a 20 de maio de 1555 D. Duarte da Costa en-viou ao rei, verifica-se que os índios de Tatuapara não estavamdominados, tanto que um infeliz português que, para escapar à

perseguição do bispo Sardinha, pelo fato de fumar, se refugiou emTatuapara, onde foi morto pelos índios, dizendo o Governador- "eo bispo foi causa desta morte, da guerra que pode suceder, dotroco que hei de tomar como tiver tempo e certa informação da;maneira de sua morte", deixando transparecer que suspeitava tersido devorado, prática que energicamente combatia.

A denominação Ilha dos Franceses vinha de longe; GabrielSoares, quando chegou já a encontrou até oficializada, pois existeum documento datado de 20 de fevereiro de 1563, no qual o reiD. Sebastião concede a Egas Muniz Barreto uma légua de terrano Paraguaçu, onde o nome de Ilha dos Franceses aparece várias,vezes A sesmaria começava no porto de Magiba, defrpnte da refe-rida ilha, ficando a concessão "da landa de Jaguaribe", onde mais.tarde Diogo Botelho descobriu matas de pau-brasil, o que explicamuito bem o nome da ilha e a razão pela qual os Franceses iamali ter. Para ali chegarem, tinham que entrar pela barra, em cujaboca vivia Caramurú para servi-los, pelo menos como intérprete ros Franceses ali fariam brasil auxiliado pelos indígenas, como tamlbem em Tatuapara, em cujo sertão só muito mais tarde os portu-gueses descobriram matas da preciosa essência.A referida localidade era habitada por índios infensos aos lu-sos como se ve pela carta de D. Duarte da Costa, mas que se en-

Siam^Perfe!tame?te COm Caramurú> Pois este, com facilidade,,ainda pode salvar das suas mãos quatro espanhóis que ainda en-controu vivos. A mdiada era tão numerosa que Caramurú, com?a pequena tripulação da chalupa em que embarcou por ordem deJuan de Mon, não poderia enfrentá-los, materialmente, pois des-bara aram grande número de espanhóis, tendo os tripulantes dachalupa contado 90 cadáveres. Tal superioridade numérica, no,

DIOGO ALVARES CARAMURÚ E OS FRANCESES 199

Inconí™li ™?ed'U CaramUrÚ de trazer °s ^P^óis que ainda

notáveTÍa^JTV- ^Ínente aUt°r De algumas cousas ™*notáveis do Brasil, cotejando a capitania da Baía com a de Per-nambuco, apenas reconhece que esta é mais rica da preciosa essen-eia: tem o mesmo que na Baía mas tem muito pau de Brasil" ez^rr*rvn,tn> locai-: "F.oi a **• ***** *°* *¦«<*«¦*£* Zirtvrmm prâspem ãand° muu° «*"«'. **rjPm.ilíTTi

*% ?mZfmVl ecMmt« na Baía, confirmada porÍK f ™

l6' f01 reafirmada> em 22 de abril de 1609 por DDiogo de Menezes, que a tal propósito escreveu longamente ael-Rei'informando, entre outras coisas, da mata de pau-brasü que o Governador Diogo Botelho encontrara na Baía, dizendo 7" a mata hemm grande e será de grande utilidade perà a fazenda de V Ma-gestademandalU, cortar porour. como í nej CapUaZde f«V. Mag. e senhor", acrescentando adiante: "tem mais que cortan-dosse agora por aqui podesse sob estar com o de Pernambuco",daS

° ,? ?

™nt*Ze™ a de » encontrar perto do portoda Baia permitindo "mrsse carregar a este porto do qual não senao poderá furtar nem derrotar". ^

de i?nsg° BOte?° S0lem°U de 1 de abril de 1602 a 7 de Janeirode 1608 segundo a Correspondência. Esteve, primeiramente emPernambuco chegando à Baía em fins de 1603, ao que parece diz

±ms de 1605 ou em princípios de 1606 descobriu "nesta Capitaniade queV. Mag. he senhor" isto é, a Baía, que, depois da morte deCoutmho passou a pertencer à coroa, uma floresta de pau brasiltao próxima do porto da cidade do Salvador que tal fato era assi-naiaao como vantajoso".Em 1910 a Rev. do Inst. Histórico publicou a Correspondên-cm de Diogo Botelho, nela se encontra uma carta do rei, em que serefere a epístola que Diogo Botelho lhe escreveu a 25 de fevereiro-^-anunciando que "nesta capitania, em algumas partes, hápau do Brasil muito bom e assim nas capitanias de Ilhéus e Porto-beguro, em que se descobriram grandes matas dele, mui fino deque me enviastes a amostra".O rei era Filipe III de Espanha e II de Portugal. A missivareal continha recomendações sobre o contrato e sobre a proteçãodas matas descobertas, ordenando o rei: "Vos encomendo muito

que o dito pau se guarde e conserve nas ditas matas, se não danifi-que nem corte, sob as penas que vos parecer".

> No auto de petição de Diogo Botelho, dirigida ao rei no qualregistra os serviços prestados como Governador, encontram-se assi-nalados os locais onde foram descobertas matas de pau brasil na ca-pitama da Baía. Como os índios dominavam grande parte da capi-

• - \ tj ¦¦ y ¦<',' ¦¦

200 REVISTA BRASILEIRA

tania, os portugueses não tinham conhecimento de tais matas des-cobertas depois que puderam entrar pelo sertão; diz Diogo Botelho;"Sete em como em razão das ditas pazes e se poder vadear o sertãodas ditas capitanias, se descobriram nelas novas matas de muitoe finíssimo pau Brasil, como foi nesta capitania, em Peroassú, Ja-guaribe, Cachoeira, no sertão de Tatuapara, e nas capitanias deIlhéus, Porto-Seguro, Espirito-Santo e Camamú que Sua Majes-tade pôde contratar por outro tanto e mais do que tem contratadoo pau de Pernambuco, Parahyba e Rio de Janeiro".

Em 9 de fevereiro do mesmo ano de 1606 encontra-se o depoi-mento de Baltasar d'Aragão, tomado nas suas "pousadas" pelo ta-behao Francisco d'01iveira e no qual o morador que era senhorde engenho e possuía vários em Paraguaçú, narra que em con-seqüência das pazes com os índios, "descobriu na sua fazenda dePeroaçu uma mata de pau Brasil", confirmando ainda o encontrode outras nas localidades acima referidas. Tal descoberta foi con-firmada por Jorge de Magalhães, fidalgo e juiz da capitania da Baíao Desembargador Francisco Sotil de Siqueira, Diogo Beracho éPero Dias Sanches, que já exercera o cargo de "contratador dasrendas de Sua Majestade", os quais se referem como um dos ser-viços prestados por Diogo Botelho a descoberta de matas de pauBrasd na Capitania da Baía depois que o gentio foi dominado.,w . -a novembro de 1557 foi passado na Cidade do Salva-dor assinado pelo tabelião Luiz da Costa, o instrumento de possem^ZrT^Á

CT Cenír° fÍCaVa em Itapoã e 1™ fôra conce-SS 5°rrTT dC S°USa' 5 anos antes> ao Sena<*o da Câmara daÍT^tft

a° P0V° nec.essitad0 de t^renos baldios que servis-sem de pastos para suas criações.A. J? ?™ ^ impoftante exist« no valioso documento é o registrode um topônimo que vem lançar luz sobre as atividades de Caramurú,ja que provamos a existência do pau brasil no Recôncavo baianoZ*PZ ™tdra da 'a°dos fmwem< M»° *»*toZ zztoriZJ?? vamaS sf,achava a ***** dos Franceses. Esselocal ficava duas léguas além do Rio Vermelho «e antes do rioiT» TinT ?

COlK' C°m° Se lê no ferido d^ento-1pp. y e 10 dos An. Arch. Público da Baía, Ah. VII Vol XInal iq«U,L° publlca.com° Se fôra nma descoberta, quando o origi^M copLdo

arqUIV° m0SteÍr° de S' Bent0' na Baía> de «"•*

Tomél^Tninae50, qUe aparece d0is anos depois da legada devZt í !7a' /emon8tra existêneia anterior, pois, com a segu-17 o; %Z

af™r qUe n° tempo d0 P™ir° Governador Ge-IvôiàL 1 T* T aQ, atreveriam constituir um agrupamentofoZu 1 tãte í

SíVad°r' C°m° é ™™*>^ qne se trans-íormou em centro de abastecimento da cidade, como provam osnumerosos recibos de compras de círios de farinha e carne de PLo!

DIOGO ALVARES CARAMURÚ E OS FRANCESES 201

site! Íam bUSCar aS c»ba"^ «aídas da baía de Todos os

emp^df nfBatfémT4°2Cr° "*"*? para feri^ ^ era

rações muito restrito ,P Tí ? g i COm um eamP° de °Pe-pitenia. '

V1U f°rSad0 a a^ndonar a própria Ca-

S™^râTLP„? na° í01*CrÍada n° teraP° de Tomé ^ Sousatuanara o „! ?

g f-

C°mem° entre a cidade do Salvador e Ta-tuapara o que impediria a presença dos Franceses.reira SI !3rmente

a Pôrto-Seguro buscar Francisco Pe-T^tlT ' í?0 ° acompanhou, porém, na sua fuga, voltando

ro: em ^ifíSi!' ^ Vie"a? encontrá-10 com seus companhei-mostn?J* er Sw iim

°S mdl0S da r8gÍã°- Tal ^cunstância«StJ^ í g, AÍVareS Partlcipado do levante contra o dona-tano, porem haver ficado, em companhia de outros portugueses dasua roda, refutado em local amigo, que não pode sloufr senãoas proximidades da Aldeia dos Franceses. Esses europeus deviTmcontinuar freqüentando a Baía, no tempo do v^^âonlt&Zziz: àoprs-ri]'pamiiiado por óa"<c™»f- tpo°rpordatgaprsrutindhoPere,ra oom ° conhecimMt°d» «^^

202 REVISTA RBASILEIRA

Foi Caramurú com os seus que resgateou os despojos deixadospelo primeiro donatário. Quando achou oportuno Caramurú nave-gou tranqüilamente para Pôrto-Seguro, afim de avisar a Pero doCampo e com ar inocente denunciar a presença dos Franceses naBaía. Ora, os Portugueses não ignoravam que os Franceses fre-quentavam os arredores da Baía, como prova a denominação daAldeia naquele ponto da costa.

Se a denominação se manteve a ponto de Tome de Sousa, aopassar um documento, referir-se ao topônimo, é claro então que oprimeiro governador geral deveria relacionar o nome da localidadeeom a presença de Caramurú e os seus, inclusive a notícia levada aPortugal da presença ali dos Franceses, denunciada pelo mesmodepois de terem retirado o que bem quiseram da fortaleza aban-donada.

Como Luiz Dias, fidalgo chegado com Tome de Sousa, contaem carta que os portugueses que encontrou na Baía e o ajudaramna construção da cidade, não eram amantes da verdade, tendo atéassinalado a circunstância de não terem apreciado a vinda do Go-vernador Geral e sua gente, então se compreende a pouca von-tade deste em querer atender aos apelos reiterados dos Jesuítas fa-voreeendo Caramurú com insignificante ordenado, deixando a im-pressão de que o achava suspeito ou de contacto com os Francesesou quiçá até desconfiasse de algo a respeito do quanto ocorreracom o primeiro donatário.

Em 1826 o Visconde de Cairú, ao tratar de Diogo Alvares noseu compêndio de História do Brasil, embora conte o episódio deCaramurú da maneira vulgarizada, faz no entanto uma ressalvaao declarar: "A história deste naufragante ê escrita em ar mara-vühoso". Cairú foi o primeiro historiador que se inclinou a acre-ditar que Caramurú "fosse um náufrago de algum navio que con-trabandeava pau-brasil". Tal suposição, no entanto, não tomouvulto, porque não se acreditava na existência do pau-brasil na ca-pitama de Francisco Pereira Coutinho, como de fato ocorria e iulgoter demonstrado.

A espécie vegetal foi extinta devido à exploração rápida quedela se fez. As matas foram rapidamente devastadas até que porfim desapareceram do próprio Recôncavo. A essência era fácil-mente reconhecível, não só pelas folhas pinadas e folíolos chanfra-dos no ápice, como pela presença de galhos revestidos de acúleos,caracteres que logo fazem reconhecer a Cesalpinia echinata, que seestendia, certamente, do Rio Grande do Norte ao Rio de Janeiro,nao se encontrando explicação biológica para o hiato que diziamhaver em relação à capitania da Baía.Ainda em março de 1941, o botânico Geraldo Kuhlmann foiencontrar nas matas do morro da Saudade, à margem da Lagoa-rcoclngo de Freitas, em ponto de difícil acesso, não muito longe de

-'íí1

DIOGO ALVARES CARAMURÚ E OS FRANCESES 203

^^lf™^> fgUnS exemPlare* ** P»n-brasil, um dossrf&s*: sósias*-poupados por - <-

^ ^ S a

t' r lad° das cercanias ™te Diogo Alvares mo

2 neto 3!T ^ m.oder?am^ correspondem à™ atoívetsadapelo rio Paraguaçu, até as que cobriam, outrora a re-iãoLatual município de Santo-Amaro, o pau brasil Sia e ránida

SsTaT^i' ' a Chegada d° Primeir0 donatário, porque osíndios iam busca-lo para resgate, a consideráveis distâncias.+0™

babe-se'.com segurança, que a nau Bretoa carregou em poucotempo relativamente, de 12 de junho a 24 de julho cêrea de 150toneladas de toros de pau-brasil, em Cabo-Frio, h££ onde o ve^tal abundava Hoje só raramente é encontrado na região A Òesalpima echinata é de crescimento muito lento e não é vegetal socitvel; isto é, desenvolve-se disseminadamente no seio da matas semformar massiços. E' planta um tanto litorânea, que desZ^eZ7 %la°?T

" t0rna ^Mamente compacta" oi, demSoeit;nuV^e^*™™** " ^ da ^ é' ass™' ft"

VovJÍTp ^^aSfo, ainda, da sua existência, na capitania dePereira Coutmho pode ler-se em Gabriel Soares, no cap. XXVIquando estuda "A grandeza do rio Paraguaçu" o registro de umcurso dágua que indica a presença, em suas margeado Pau-brT-silao referir-se o cronista ao engenho de Antônio Lopes de ülhoa.-Este engenho moi com grande aferida, e está mui ornado com edi-7,1 »5 a e*Ca1' 9 a ribeira com ^ mói ™ ^ama Ubirapi-tanga . Era assim, exatamente, que o índio denominava o pau-brasil; com esse nome batizou um ribeiro poucas léguas adiante deIguape no atual município de Cachoeira, no fundo do RecôncavoBaiano, nas proximidades da atual cidade Cachoeira, à margemdo Faraguaçu, em cuja foz, um pouco adiante, está a Ilha dos Fran-ceses.

Hoje onomedo no em questão, informou-me o eminente Pro-tessor Piraja da Silva, e simplesmente Pitanga. A Cesalpinia echi-nata nao e encontrada no local, mas o nome pelo qual o índio achamava, embora alterado, ficou como um atestado de que lá me-drava o ambicionado vegetal.

204 REVISTA RBASILEIRA

"Em Cachoeira" informa em carta de 20 julho áe 1941 a D.Clemente, que por solicitação minha escrevera para a Baía, o pro-prietário da Usina Vitória do Paraguaçú, Francisco Moniz de Ara-gão Júnior o seguinte, relativo à denominação TJbirapitanga: "12ou 15 quilômetros à montante da Ilha dos Franceses há um riachocom o nome Pitanga e com êle movia em 1G60 o engenho da Ca-choeira, o proprietário Adorno. A cidade da Cachoeira está si-tuada onde era esse engenho".

Ainda hoje, se algum botânico procurar o pau vermelho nasmatas das proximidades do Pirajá, ou melhor, na grande florestaque ainda se encontra nas cercanias de Pojuca, talvez se surpreendacom um achado idêntico ao realizado pelo botânico Kuhlmann comoacima referi.

D. Rodrigo de Acuíía, quando entrou na baía de Todos osSantos, estava informado da existência do pau-brasil ali, tanto queloi diretamente ao local, onde deveria encontrá-lo e chegou a metera bordo 4 bateladas de toros; os índios porém mataram-lhe 9 ho-mens. Comprovaram que não eram Franceses, por isso os ata-•caram.

^ Os Franceses eram sabedores da existência do pau-brasil naBaia e por isso a freqüentavam desde cedo; lá deixaram aqueladescendência clara, pormenorizadamente descrita por Gabriel Soa-res em 1587, e que tanto surpreendeu os Portugueses de MartimAtonso, quando ali aportaram em 1531.Essa é a explicação para o fato registrado por Pero Lopes- "a

gente desta terra é toda alva". 'Acha que as mulheres são belas e que nada ficam a dever àsde Lisboa. Quando se nota que os jesuítas portugueses, nos pri-meiros tempos, so chamavam de negras as mulheres índias, comose pode comprovar com as cartas de Nóbrega, sente-se que a fusãodos europeus -com a gente da terra, além, de se fazer já de hámuito tempo, era efetuada por muitos, pois a alvura dos habitan-tes que chamou a atenção de Pero Lopes tem explicação no fato dafusão dos indígenas ter se realizado com os Franceses, como des-

li, "-TO' W eapítu,° CLXXTO: "Ainda

que pareçaZretJZT

° qUt Se C°ntem mste caVitul0> ^receu decenteiZZ W^JS™ neU se contém, para se melhor entender a na-tureza e condição dos Tupmambás, com os quais os Franceses, ai-r,l v qU6 Se P°VOasse a Baía> tinha™ comércio; e quando7%ll7a2 Çü C°m Sms naus carr^adas de pau-tinta, algodãoe pimenta deixavam entre os gentios alguns mmcebos para apren-derem a língua e poderem servir na terra, quando tornassem deti™ ' Sflf0 S faZ6r Seus res9ates; os quais se amancebaram naZlnL morre™™ sem se quererem tornar para a França, e vi-7hnTZm0 gmim?°™ muitas ^Vieres, dos quais, e dos que vi-<nham todos os anos a Baía e ao rio de Seregipe em naus de França,

DIOGO ALVARES CARAMURÚ E OS FRANCESES 205

ZÍ7°U V™™! de mameluco*> Que nasceram, viveram e morreramcomo genhos; dos quais há hoje muitos seus descendenteTaZTn

Siwl,! in° 6 de.es^mtar sere™ «<« descendentesaos franceses alvos e loiros, pois que saem a seus avós"

Ma» ti, °S QUm ?rmceses ^uns anos antes que se povoasse a

ÍZ* ?m °S tupinambás comé™°> assinala Gabriel Soares ouetambém informa que se fundiam inteiramente com a população in

yomo, desde 1526, foi verificado de há muito lá viver P*™muru como chefe daquela gente, já que apenas chi Tos aoóTPero Lopes registra o papel conspícuo que desempenha D?oS

£? aw! ' q-Uand° pela última vez est^e na Baía Mar-tim Afonso, apenas existiam três homens brancos dos anais dokdeixados no ano anterior por Martim Afon,so, enSo mo^Z^Zv.v.a ahado aoa Franeeses que freqüentavam a Bala até *a

chegadado primeiro donatário em fins de 1535 ^

17 auandodÍeÇm1dfie97taF ^r ^manteve até P™ípios do século1/ quando, em 1627, Frei Vicente assinalou, pela primeira vez asexcelentes relações de Caramurú com os Franceses a M ponto deiZzzvjmdia ríerida a Pranía- a aicmha *> /™L?queiíil i fncont^ou certa vez> dado a Caramurú, deve pren-tinham *** QUe FranCeS6S e DÍOg0 ^lvares ^an"

^°^?malUC0S "Zw7Sj ***» e sm^s e havid0 Por índios tu-Wnambf a que se refere Gabriel Soares, são documentos vivosda assiduidade com que os Franceses freqüentaram, nos primeirostempos a Baia, em dias em que só um homem branco lá vivia per-manentemente: Diogo Alvares Caramurú. Outros, no entanto, nãomuito longe da residência deste, se acumulavam, embora transito-riamente nos arredores de Itapoã, em um ponto que ficou conhe-cido como Aldeia dos Franceses, como se comprova com um do-cumento datado de 1552. Os moradores de tal povoado explicamtudo quanto disse Gabriel Soares e a surpresa de Pero Lopes aoregistrar a presença de gente alva entre os indígenas.

m Também, mais _ adiante, nas proximidades de Tatuapara emcujo sertão, como ja vimos, havia, pau-brasil, existia o Porto dosFranceses, como se comprova pela carta que o padre Rui Pereiraescreveu de Pernambuco a 6 de abril 1561 aos padres e irmãos daCompanhia em Portugal, na qual narra as peripécias da viagemdesde que partiu da Baia. Tendo encontrado ventos contrários e cie-pois de muito bordejarem, a embarcação foi parar nas costas deiatuapara, perto da Baia para d'aí se tornarem por terra os ouequisessem''. "Indo na volta da terra, quis Nosso Senhor dar-nosuma bomscada de Sul, com a qual pondo a proa ao caminho fomos

206 REVISTA RBASILEIRA

ancorar no Porto de Franceses, aonde estavam duas naus à nossavista alguma légua ou légua e meia de nós, e outra mais dentro, se-gundo os índios que vieram a bordo nos disseram". Um poucoadiante escreve: "Em começando de ir para o mar vem uma velaque vinha ao longo da costa para onde nós quiséramos surgir e vindose chegando a nós, soubemos que era uma nau francesa, e vendo osnossos que ora arribava, ora metia de ló, parecendo-lhes que sequeria vir a nós, se fizeram na volta do mar e largaram a velagrande e traquete da gávea, porque isto era na enseada ão portodos Franceses, aonde afora esta que vinha estavam as duas quedisse".

Narrando então que a nau francesa passou e "foi-se ao longoda costa e foi se meter no porto à nossa vista" e que se porventuraa embarcação em que viajava o padre Rui Pereira estivesse anco-Tada, a nau francesa atacá-la-ia, e se fosse vitoriosa haveriam denos "matar ou dar os Negros em resgate ão Brasil".

Eis assim novo depoimento demonstrativo das atividades fran-¦cesas em Tatuapara, em cujas proximidades outro topônimo alu-sivo à presença daqueles europeus ali, em época tão adiantada, empleno domínio de Men de Sá.

Se impunemente, num só dia de 1561 podem ser encontradasno Porto dos Franceses em Tatuapara, três naus francesas, pode-seimaginar o que deveria ocorrer no tempo de Coutinho. O padreRui Pereira ainda assinala o que vinham ali fazer quando na longae importante epístola se refere ao "resgate do brasil".

O padre Antônio Blasques, em carta da Baía de 23 de setem-bro de 1561, refere-se a uma nau francesa que ali esteve e demo-rou, parece; porque assim se encontra redigido o tópico: "não re-Jatarei sinão o que sucedeu depois da partida da nau francesa,aonde copiosamente se escreveu tudo o que havia sucedido".

No ano seguinte, em 26 de julho de 1562, o padre Leonardoinforma em carta da Baía que: "As novas gerais a toda a terraé ser mui cursada de Frenceses, e tanto que mui poucas léguasdesta cidade tomaram uma nau que vinha ão Porto".

Frei Vicente e Simão de Vasconcelos admitem que Caramurúaceitasse a incumbência de carregar navios com pau-brasil, mos-trando assim que tal comércio era do conhecimento geral e a tra-dição guardava a notícia de tais atividades, entre as quais a deCaramurú estar sempre em contacto com Franceses, viajar emsua companhia para a França e voltar dali para carregar pau-bra-sil. Pelo documento, somente agora aproveitado, sabe-se que o pau-brasil era encontrado no Recôncavo da Baía e no sertão de Tatua-para. Perto deste local existiu a Aldeia dos Franceses e também oPorto dos Franceses e, no fundo do Recôncavo, até hoje se encon-tra a Ilha dos Franceses. Agora vamos assinalar ainda mais umaafinidade entre os francos e Caramurú.

DIOGO ALVARES CARAMURÚ E OS FRANCESES 207

Nos Documentos Históricos, publicação da Biblioteca Nacional,existe o de numero 402, datado de 18 de janeiro de 1550, que serefere ao pagamento a um pagem da caravela "Leoa", que figurano mesmo como "Bicarte, francês".Em 5 de julho de 1552 reaparece esse personagem, como se lêno documento 1.063, que figura à p. 24 do vol. 38 da publicação

S2S P qU^ -G flCa Sabendo que ° citado tripulante recebeu5W0 em mercadoria, pagos a "Bicarte, pagem da caravela Leoa",mostrando assim que se trata do mesmo indivíduo, que aparece doisanos antes do documento já aludido, encontrado, à p. 146 do

ZraZlZ. 4Uand° " refere 3 "BkaHe frm°ê°> ™™ *No doe. n.° 1.076, datado de julho de 1*552, encontra-se recibode pagamento a "Pedro Bicarte dito Caramurú" e que era um gru-mete Portanto, em 1552, existiam na Baía dois indivíduos cogno-minados Caramurú; um deles, Diogo Álvares então já velho e o ou-tro um grumete moço também assim apelidado, talvez por apresen-tar qualquer semelhança com o primeiro, e não deixa de ser curioso

que o novo Caramurú, para o qual se chama a atenção pela pri-meira vez, também fosse conhecido como francês.Naturalmente, que esse achado, se por um lado simplifica amatéria, por outro a complica. Parece que Pedro Ricarte erafrancês de nascimento ou de origem, mas então já vinha como gru-mete, isto é, a bordo do navio português, mais uma vez mostrandoque as naus permitiam entre seus tripulantes marinheiros de ou-trás nacionalidades. Assim, o que ocorreu com esse Pedro Ricarte,também apelidado Caramurú, poderia perfeitamente ter sucedidocom Diogo Álvares, português, porquanto não há dúvida sobre suanacionalidade. Pode-se admitir a hipótese de ter chegado à Baía,como grumete, fazendo parte da tripulação de navio francês, sendodepois deixado entre os índios, pois esse era o costume dos navega-dores franceses, para que assim pudesse aprender a língua e apres-tar o material para os futuros carregamentos.

Contudo, nada existe que documente tal suspeita, embora se-melhante suposição explicasse o fato de Caramurú ter chegado moçoe, aqui se criando, como confessa Nóbrega, ter sido poupado pelosíndios e, aos poucos, se transformado em chefe dos mesmos.

Se isto ocorreu, compreende-se então que o moço, que deve teraportado à Baía entre 1509-1511, não aparecesse aos tripulantesda náu Bretoa, quando esta lá esteve neste último ano. Diogo Ál-vares, que devia estar satisfeito, porque nunca mais tratou de vol-tar, apesar das oportunidade que surgiram em 1526, 1531, 1532 e1535, ocultou-se dos seus compatriotas, ou os índios o fizeram, comoocorreu com três dos tripulantes de Martim Afonso em 1532. Anão ser que tenha vindo na própria nau Bretoa, da qual desertasseou fosse abandonado, o que não parece impossível, pois a primeira

208 REVISTA RBASILEIRA

vez que se referiu à data do seu naufrágio o acontecimento coincidecom o do ano da chegada da referida nau à Baía, onde permane-ceu 26 dias. Tal ocorrência, porém, é extremamente improvável,porque não figura o nome de Diogo Álvares na lista dos tripulan-tes. Mesmo na hipótese de ter sido abandonado em terra, o apelidoem questão continuaria presente na lista da equipagem, porque foiisto o que aconteceu com o tripulante João Lopes de Carvalho, cujonome continuou figurando na lista dos tripulantes da nau Breioa,apesar de ter sido abandonado em Cabo-Frio.

Ressalta das informações dos navegantes que entraram em con-taeto com Diogo Álvares, portugueses ou espanhóis, uma impres-são uniforme sobre o que Caramurú contava. Dizia-se português eos depoimentos são também quasi concordes quanto ao número deanos que informava encontrar-se na Baía; por duas vezes Caramu-rú se refere ao seu naufrágio, não aduzindo, porém, qualquer por-menor a respeito. Dadas as condições de sua existência ali, não se-ria possível manter em ordem, eom pequenas oscilações pratica-mente exatas, as informações relativas ao tempo de sua permanên-cia na Baía sem que a sua memória fosse renovada pelo contacto,mais ou menos freqüente, eom europeus que lhe dariam elementospara ficar em dia com o calendário. Como tais informantes não fo-ram os portugueses ou espanhóis, que são os que registram as noti-cias ouvidas quatro vezes de Diogo Álvares, separadas por váriosanos 1526, 1531, 1532, 1535, então Caramurú acompanhava o ea-lendário através dos dados fornecidos pelos Franceses que frequen-tavam a costa brasileira e que o punham ao corrente dos aconteei-mentos, inclusive da intenção dos Portugueses pretenderem vir po-voar a Baía, como notificou aos Espanhóis em 1535 e como ocorreueom a vinda de Pereira Coutinho.

Se Caramurú a uns e a outros mostrou ser chefe, possuindo jáfamília constituída eom mulher, filhos, genros e mantendo sua fécatólica "é hablôsele en algunas cosas de Ia fêe, y a lo que mostroestala bien en ella", conforme depoimento de Oviedo y Valdés; se,eom segurança, informava sobre o modo de viver dos índios, daslutas que travavam, da distância que mediava entre Pernambucoe Baía, quantos europeus viviam ali, assinalando ainda não existi-rem metais na terra; sé demonstrou criar animais domésticos eu-ropeus, como galinhas, coelhos e porcos, quando apenas recebeu,dos Portugueses, sementes, e dos espanhóis duas pipas de vinho euma chalupa, se pôde salvar os castelhanos, entendendo-se com osíndios, tendo para isso viajado até Tinharé, enviado por Juan deMori, exercendo assim função diplomática, mostrando seu prestígiosobre os indígenas em tão larga zona, é porque para certas ativi-dades tinha auxílio extranho, recebendo informações do que se pas-sava fora^da região em que vivia, de pessoas que lhes transmitiame foram esses informantes que também lhe forneceram os animais

DIOGO ALVARES CARAMURÚ E OS FRANCESES 209

panhóis!08 eUr°Pem qUe CrÍím' fat° qUe tant0 surpreendeu os Es-

M *w °S únicos/ur°Pe^ que freqüentavam então a Baía eramos Franceses que tantos vestígios deixaram de sua presença al?

cecícrV81?»,^ e^ de-Pf" hTÜ' de Cuja ^i^êneiaPeram JonScedoies; tal eeeerçao e integralmente confirmada pelo próprio Ca-ramuru que, sobre o assunto, conversou com os FranceZ comoconsta da carta de Pedro ão Campo Tourinho ao rei D tão níem 28 de julho ãe 1546, narrando o sucedido com Pereira Coutlnho e transmitindo ao soberano as informações que ouvira de Ca-ramuru; "e ora sou informado por hum Diogo Alvarez o galegohngoa que Ia era morador que ãaquy foy em hum caravellão á ditaBaia que se fora ãahy Mia nao ãe França averia dous ou três ãiasos quaes fizeram amizade com os brasys e levou toãa a artelhariae fazenda que ahy fiquou e concertaram com hos brasis ãe tornardaliy a quatro meses com quatro ou cinquo nãos armadas e muitagente epouoar aterra por causa ão brasill e algoãões que nela hae redtficarem as fazenãas e engenhos que eram feitos". Ap Histüa Colonização Portuguesa no Brasil, vol. 3, pp. 266-267Pela segunda vez Caramurú se refere à presença de" France-ses na Baia a primeira em 1535 quando, segundo Oviedo, falandoaos espanhóis, ãixo que avia salvaão franceses", e em 1546 dandoos motivos

^que os levaram a freqüentar a Capitania de PereiraLoutinho: por causa ão brasil e algoãão que nela há" Tal die-poimento, pela sua procedência, dispensa qualquer comentário.Pelo exposto, chegam-se às seguintes conclusões:I) Havia pau-brasil na capitania de Francisco Pereira Cou-tmho.

II) Este fato era conhecido dos franceses, que mantinham coma região relações comerciais intensas, especialmente no pe-nodo que precedeu à instituição do governo geral, mas quese prolongaram pelo menos até o governo de Men. de Sá.III) Corrobora esta conclusão a existência de cinco topônimos,coevos de Caramurú, alusivo à presença dos Franceses queali deixaram numerosa descendência.IV) Caramurú chegou à Baía entre 1509 e 1511, talvez comonáufrago, mas possivelmente como tripulante de nau fran.cesa.

V) Esta última hipótese justifica-se -a) por ser praxe dos Fran-ceses deixarem na terra jovens que servissem de interme-diários nas futuras relações mercantis com os indígenas;b) pelo modo com que estes o tratavam e pelo ascendenteque sobre eles tomou, o que seria fácil nas condições suge-ridas, por fazer parte da política francesa em relação aosíncolas, cujas boas graças procuravam captar; c) pela re-

14

210 REVISTA RBASILEIRA

ticência de Diogo Álvares relativamente ao navio em queveio, e a cujo respeito jamais precisou coisa alguma, nemo nome da nau ou do seu comandante, nem a nacionalidadeda embarcação, nem siquer as circunstâncias do naufrágio.

VI) Mesmo, porém, que não fosse embarcadiço de nau francesa,o que seria comum, pois as tripulações dos navios, mesmode guerra, na época, eram das mais variadas nacionalida-des, manteve com os Franceses, certamente, relações co-merciais, que provavelmente seriam bem mais íntimas do

que até hoje se supôs, e que se prolongaram até a chegadade Tome de Sousa.

VII) Prova-se esta assertiva, diretamente: a) Pelo contacto quemantinha eom o mundo civilizado, demonstrando estar aocorrente da cronologia, conhecendo vagamente a situaçãopolítica e criando animais europeus, que não lhe foram da-dos por Espanhóis ou Portugueses; b) pela atitude estra-nha em relação aos Portugueses, quanto ao pau-brasil, cujaexistência e localização conhecia e que lhes ocultou, só acomunicando levado pelas circunstâncias e muito tardia-mente; e indiretamente, c) pela recusa de Tome de Sousaem atender aos reiterados pedidos dos jesuítas em favore-cer Caramurú eom um insignificante ordenado; d) peladeclaração de Luiz Dias, construtor da cidade do Salvador,de que Caramurú nã.o dizia a verdade e não estimara avinda do 1.° governador geral; e) por ter sido, certa vez,denominado de francês e considerado como tal pelo padreAntônio Gomes, (c/. Serafim Leite, Hist. Comp. 3es. noBras., vol. II, p. 312, nota 2); /) existir, ainda em vidade Diogo Álvares, um grumete de nacionalidade francesa,apelidado também de Caramurú, e finalmente g) manter-setenazmente, nos historiadores e cronistas, a tradição de umasuposta viagem a França, quando na realidade desprezoua oportunidade de regressar a Europa por quatro vezes,em 1526, 1531, 1532 e 1535.

LETRAS DE 1941

Rosário Fusco.

A diferença inicial entre a crítica de um livro e a críticade vários livros, ou de todo um momento literário, não é,com toda certeza, uma simples relação estatística. No pri-meiro caso, o que se dá é a extração, pura e única, de umfeiho pessoal se recontando, ao passo que, no segundo, é opróprio espírito de um meio que se manifesta, pelas ten-dências que acentua ou pelo caráter que revela. Por isso,a crítica de uma obra, encarada em si mesma, deveria ser,'tanto quanto possível, a análise de uma natureza, assimcomo a história de uma literatura deveria ser, necessária-mente, a psicologia de uma humanidade. Há sempre umponto em que fato estético e fato social se confundem. Hen-nequin, tomando Victor Hugo para exemplo de seu primeiroensaio de crítica científica (a preciosa "estopsicologia",eontrapondo-se à crítica literária propriamente dita), ouTaine explicando as reações da alma inglesa através dosescritores dessa língua.

Poderão objetar, agora, que a tese, nos termos em queestá sendo proposta, oferece uma grande comodidade aoinventariante das letras, que, desse modo, se exime, antesde mais nada, da obrigação de um recenseamento geral dasatividades do ano literário. Mas, essa impressão, vamosreconhecer, é mero jogo da aparência. O grande caso é quetal comodidade é ostensivamente enganosa e só serve, deresto, para nos conduzir a roteiros imprevistos da florestaestética, onde a bússola das teorias jamais influirá. Nin-guém ignora que o essencial de uma teoria é a sua resis-

212 REVISTA RBASILEIRA

tência às aplicações práticas, uma vez que venha servida

de mediana clareza (a ponto de ser compreendida por to-

dos) e de razoável dose de bom senso (a ponto de fazer-se

aceitar por qualquer inteligência). Mas, como falar de nor-

mas, de regras fixas, de "aplicações práticas", a propósitode estética?

Ora, todos nós percebemos que a literatura começa, pre-cisamente, do não literário, por isso que seu conceito é quasiuma exclusão. Na realidade, nâo há nas letras, considera-das como manifestação de arte, um conteúdo ponderável,pelo qual possamos distinguir o que é literatura do que nãoé. Sem embargo, qualquer pessoa será capaz de separarum relatório de uma peça artística, um arrazoado jurídico(mesmo firmado por um Rui Barbosa) de uma página lite-rária (mesmo não assinada por um Machado de Assis).Prolongando o raciocínio, ou seguindo a linha de fatos queêle sugere, pelo menos uma conclusão se impõe logo: o quedistingue a literatura da não literatura (como o verso da

prosa para monsieur Jourdain) é o consumo que se façade um relatório ou de uma novela. Por isso, a carta de Pero

Vaz de Caminha poderá ser considerada o nosso primeiro6T documento literário. E o romance A Carne, de Júlio Ribeiro*

para repetir uma feliz observação do sr. Álvaro Lins (pa-rodiando Anatole France, a propósito de George Ohnet)não deverá ser lido como um trabalho de literatura. Essa

primeira conclusão, ausente por si mesma de qualquer me-ridiano metafísico, por sua vez poderá, imediatamente, serendossada, completada e documentada por um Valery porexemplo, quando afirma, com a responsabilidade de seunome, que a obra de arte existe em ato, para o criador, e»em uso, para o contemplador.

Acontece, porém, que, para falar com toda franqueza,até mesmo nessa ordem de idéias eu gostaria de ir maislonge, porque estou seriamente desconfiado de que as obrasde arte (e, entre estas, a da arte literária, particularmente,de vez que é a única que se apoia em sinais — a imagem, ametáfora, o conceito, o ritmo, o número — permitindo asmais diversas "traduções") só existem, realmente, na con-

LETRAS DE 1941 213«ciência do contemplados ou do consumidor literário, paracontinuar empregando uma expressão mais adequada aonosso assunto. Por isso, todo escritor, sendo o primeiro cri-tico de sua própria criação, é sempre um mau crítico. Paraêle, a realização de sua sensibilidade é completa, total, ab-soluta, acabada. Todos somos criadores de obras primas.Vamos ler, por exemplo, um soneto de Bilac, na traduçãorespectiva, a uma assembléia de bororós ou parintintins.Diante de sua indiferença de gelo ou de seu descaso impôs-sível, alguém poderá justificar que "pertencem a uma raçadiferente". E eu me dirigiria a esse alguém, citando Hen-nequin: não há uma literatura de raça, mas uma literaturade idioma. Poderiam replicar, então, que "são de outromeio e de outra civilização", esquecendo-se, sem dúvida, deque também sendo de outro meio, outro tempo, outra raçae outra civilização, contudo somos capazes de ler e amarum soneto de Petrarca ou um diálogo de Shakespêare.Tanto é exato e verdadeiro que o tempo, o meio, a raça,não bastam para se responsabilizarem, sozinhos, pela pro-dução de uma obra de arte. Isto porque toda contemplaçãoé crítica e, pois, julgamento. Pressupõe-se, sempre, porparte do julgador, um conhecimento anterior servindo comopadrão de confronto. Por isso, poderemos penetrar, nograu de cultura que atingimos, a arte dos mapuches, diga-mos, mas um mapuche, em compensação, para aceitar asnossas obras, terá que subir até ao estágio desse apuro cri-tico de que dispomos, inconcientemente, como uma herançade séculos e séculos de contemplação. Pois a verdade é que,no fundo, criação e contemplação (a "produção" e o "con-sumo" da literatura) não passam de fases de um fenômenocomum.

Nessa altura, porém, a pergunta, que se ensaiava desdeo começo, propõe-se, finalmente: mas, em resumo, que éliteratura? Há variadas teorias e variados métodos, metafísi-

* cos ou pretensamente científicos, que se comprometeram,em vão, a aclarar o problema do aparecimento desse "vício"do homem ocidental. Porém, o nosso embaraço para res-pondê-la, apesar das indicações rapidamente insinuadas, é

214 REVISTA RBASILEIRA

evidente e indisfarçável. Primeiro (vem a lógica e diz) porque uma simples pergunta, qualquer pergunta, implica fa-talmente, uma noção anterior de algo relativo ao "pergun-

tado". Segundo (vem a experiência e aconselha) porque,na verdade, independentemente de quantos ofícios haja,

pretendendo explicar o fenômeno, a resposta de todo mun-do, que é resposta do bom senso, ainda é a verdadeira e ajusta, a exata e a certa. E, por conseguinte, a mais humildepossível: literatura é o que todos acham que seja literatura.Um fato do testemunho, portanto.

Desse conceito simplista, mas cheio de sabedoria, nascea dedução geral, universal, inequívoca, axiomática: litera-tura é arte. Primeiro, porque nem todos a praticam. Se-gundo, porque há, nela, uma parte que se ensina. Porém,ainda assim, como nem toda arte é literatura, encontramos,de novo, a necessidade de conceituar a arte, particulari-zando, se possível, a arte literária. E é, precisamente, nessaencruzilhada de considerações que as teorias aparecm, sem-pre como verdades provisórias, justificadoras da nossa fra-gilidade diante do mistério permanente, ao qual se ligam avida e a morte, o amor e o ódio, a fé e o desespero de todosos criadores e contempladores de tantos monumentos debeleza, imperecivel e inútil.

E eis o que extraímos da arte, como características apa-rentes, externas, de sua presença entre os homens: a imor-falidade e a inutilidade. Sendo que o demoníaco é a suaprópria essência e a renovação, no tempo, o seu própriodrama. "Todo demoníaco —- disse Platão — é aquilo quese extende entre o divino e o mortal." E, em conseqüência,assim como o "filósofo é uma maneira de ser intermedia-ria, que vai do sábio ao ignorante", o artista, a nosso ver,é o sêr que oscila entre Deus e o Diabo. A duração o colocacomo um rival de Deus, na escala dos seres, e a beleza queêle aspira não é aquele Bem e aquele Justo teológicos, masa beleza sem adjetivos, beleza que venha do céu ou do in-ferno, como pretendia Baudelaire, na sua invocação patéticaao inatingível.

LETRAS DE 1941 215

Podemos, entretanto, mudando de linguagem, repassartodas as teorias estéticas (oh! a sedução das teorias!) maiscorrentes, através das perguntas que elas inspiram. E reco-meçaremos, para não acabar jamais, as arguições, mil euma vez enunciadas, a si mesmos, pelos filósofos e pelosartistas de todos os tempos, todas as épocas, todas as ra-ças, todas as latitudes: que papel tem a arte, fora de simesma, se a sua "função" é de mero veículo (de uma idéiaou de um sentimento), que poderá ou não "produzir-se"no interior de cada um? Que espécie de prazer poderá co-municar-nos um poema ou um romance, a presença de umquadro ou a audição de uma melodia, se não atentarmos,conciente e voluntariamente, para qualquer dessas obras,ou se não dispuserem, em dado momento, da força sufi-ciente para nos arrastar até elas? Na última hipótese, emque região do nosso espírito dormirá essa força, se todaespécie de prazer é sempre interessado, ao contrário doque pretendia Aristóteles, e depende menos de nós do quede uma coincidência entre o nosso eu e os apelos que nosvêm de fora, em determinada circunstância? Que poder tema arte ou que querer tem o artista, se o livro lido, hoje, comdeslumbramento, amanhã poderá parecer detestável, ou sea lauda de papel em branco poderá permanecer assim du-rante um século, diante de meus olhos e independente deminha vontade? Que poder tem a arte ou que querer temo artista, se não posso compor uma Quinta Sinfonia, "quan-do eu quiser", ou se a ária que tocam, no piano do meuvizinho, e que ouço agora com tamanha satisfação, poderáser odiosa aos meus ouvidos, logo mais, desde que um acon-tecimento menos caro ao meu interesse se interponha entremim e sua lembrança? Que capacidade, qualquer capaci-dade, possue essa parte que se exerce recriando a vida enão a torna pior, mais bela ou menos feia? De que prestígioefêmero dispõe essa arte, que comove, mas não convence,ou só convence enquanto dura o efeito de seu sortilégio?

E eis que, percorrendo, rapidamente embora, essa es-trada, já caminhamos através dos sistemas que colocam aarte entre os fenômenos físicos ou morais, sensuais ou in-

216 REVISTA RBASILEIRA

telectuais... E, em verdade, a arte não é nada disso, po-dendo ser tudo isso, dependendo, é claro, do ponto de vistaem que se colocar o observador. Todavia, se me fosse pos-sível, na discussão de assunto tão sutil e tão alto, externaruma opinião, o meu ponto de vista, eu diria que a questãonão importa se o que nos dirigem são outros "mitos" e nãosó o mito da arte, se vivemos de pão e não de beleza, e quechego, mesmo, a desconfiar se será normal uma criaturase dedicar às manifestações estéticas durante uma vida in-teira, se é justo um homem passar a sua existência se sacri-ficando por um sentimento que se faz idéia ou por umaidéia que se faz a razão mesma de todos os seus atos- E, namaioria das vezes em que me ponho a pensar sobre taiscoisas, voto sempre pela negativa. Donde deduzo quecriadores e contempladores devem pertencer a uma mesmafamília de diferençados, de tipos especiais, de portadores —em atividade, no primeiro, e em potencial, no segundo —do mesmo veneno implacável, a cujo vício nos rendemoscomo a uma fatalidade por assim dizer mais fisiológica doque psíquica, a ponto de quasi podermos afirmar: "a arteé uma nevrose realizada".

Advirto, porém, que ainda aqui não se trata de umaconclusão (ninguém "conclue", em estética), porém, de umponto de vista, que aplicado às letras, como eu as com-preendo, corresponde mais às minhas convicções e melhorexplica não só as minhas experiências pessoais, sobre oassunto, como me fornece uma apreciável média das expe-riências alheias que recolho assinalando a imagem de umpoema ou a situação de um romance. Eis porque não possoaceitar nenhuma teoria estética e não sei, irremediável-mente (e já, agora, em pleno campo das divagações quecomeçam este artigo) senão considerar a literatura como aconfissão de um estado de espírito à procura de um estadode espírito semelhante, ao qual se agregam resíduos de umpassado imemorial é as reações de um presente imperceptí-vel. E esse modo de ver, como se nota, não tem nada demitológico e é tão claro e tão vulgar como qualquer lugarcomum. E é bem possível que todos cheguem a êle, par-

LETRAS DE 1941 217

tindo de caminhos diferentes. De minha parte, vou até aí,precisamente, por intermédio de uma convicção que dia adia mais se fortalece em meu espírito, como seja: o homemnão "vive" de pão, mas de imagens. Um poeta vê o mundose decompondo em símbolos; um pintor recebe o universo seconformando às cores com que trabalha; um místico sur-preende Deus na brisa que sacode a cortina da janela; umcomerciante só pode sentir a existência como uma troca per-manente de utilidades gerando saldos, e assim por diante.Imagens comuns, alimentam vidas semelhantes, favorecemencontros, sustentam afinidades. Estas, são as imagens he-reditárias. As atuais, são aquelas que fomentam a própriaconvivência humana e levam às adaptações dolorosas queconstituem a tragédia de cada um. Aí, entram outras fôr-ças e a vida começa o seu império despótico.

Saindo dela, entretanto, só há dois mundos para refú-gio dos homens: o do sensível (estético) ou o do invisível(religioso). Tudo, aliás, os aproxima, de vez que nunca sa-bemos por que cremos ou por que gostamos. As experiên-cias de ambas — arte e religião — se reduzem, afinal decontas, ao amor, e não é por motivo diverso, suponho, queas duas salvam e as duas condenam. E tanto uma comooutra, em síntese, não pretendem outra coisa senão a dura-ção eterna. Tanto é exato que, pela perseguição de seusfins, o artista e o religioso se identificam, posto que traba-lhem meios diferentes para atingi-los.

No estado a que chegou o mundo, todos estamos con-vencidos de termos criado uma linha moral inédita, umapolítica, uma ciência, um direito, um progresso, uma civi-lização, um estilo de vida, uma arte. Quero crer, entre-tanto, que ninguém que pense com a própria cabeça e ob-serve com os próprios olhos, tenha dúvidas quanto à extra-vagância de uma religião sem Deus ou ao absurdo de umaarte sem beleza. Por mais fortes e poderosos que sejamos,não nos é dado, como seres de duração certa, deslocar osfundamentos, a natureza das coisas. Mas, é justamente con-tra essas duas realidades que o chamado "nosso tempo"vem se opondo, na ilusória pretensão de romper essas

. •'

218 REVISTA RBASILEIRA

"resistências", das quais, afinal de contas, toda a civilizaçãoocidental se acha guarnecida: o belo e o eterno. E tantouma se penetra de outra, completando-se (Platão achava

que a eternidade é um atributo necessário da beleza), queas suas "atitudes", reveladas em momentos culminantes dahistória, têm sido equivalentes (os lírios medram melhor àsombra e as orações sobem melhor aos céus pelo silêncio),quando a escala dos valores se inverte, o espírito conhececrises espectaculares e o homem se esforça por sobrepor-seàs tempestades que semeou com as próprias mãos, trocandoo "amanhã" pelo "ontem", a precariedade do futuro incertopela estabilidade do passado conhecido, erigindo o "mo-

derno" em divindade e o "de acordo com a moda" em...eternidade.

Bem sei que as abstrações levam sempre ao hermético.Ao hermético e ao infinito. Mas, como usar outro vocabu-lário quando queremos falar da literatura como um estadode espírito universal e dos livros, particularmente, comosintomas nacionais do reflexo da comoção do mundo inci-dindo sobre a nossa sensibilidade, a nossa inteligência, anossa própria vida? E é claro que, usando-o, sempre corre-mos o risco de escrever de mais ou de menos. Tanto é fácilmeditar à beira do abismo, como diria Amiel. Ou tantoé difícil ser fácil, como dizia o nosso João do Rio.

De fato, diante do ano literário que se finda, tão escassode obras e tão profuso de indicações, só haveria, realmente,dois critérios a escolher. Ou falar dos livros cujo êxitotransbordou de 1940 (Um homem dentro do mundo, do sr.Osvaldo Alves, ou O mundo que o português criou, dosr. Gilberto Freire; Noções de história das literaturas,do sr. Manuel Bandeira, ou Sentimento do Mundo, do sr.Carlos Drumond de Andrade; Riacho Doce, do sr. José Linsdo Rego, ou Descartes, do sr. Ivan Lins...), para prolon-gar-se até aqui (como fazia Araripe Junior), ou promoverum repertório rápido dos livros aparecidos somente nesteano, e seriá-los, segundo a ordem de importância (à ma-neira de José Veríssimo).

Preferimos, todavia, um terceiro caminho. Pois se há

a .

LETRAS DE 1941 219

livros de que todos falam, há livros de que poucos falame livros dos quais ninguém tem notícia. Assim como háiniciativas, à margem das letras, que valem mais, como ín-dice de um tempo literário, do que toda a produção de umano de literatura. E há, sempre, finalmente, bons escritoresde livros sem sorte e maus livros de escritores afortunados.E é preciso distingui-los.

Para começar pelo romance, por exemplo, que continuasendo o gênero de maior prestígio e de maior fascinação,entre nós, não há como deixar de citar os nomes dos srs.Gilberto Amado^ e Tasso da Silveira, ambos já "consagra-dos", como se diz, amboTpoetas e ensaístas e ambos estrean-tes deste ano, o primeiro como um livro de que todos fala-ram (Inocentes e Culpados, José Olímpio, 1941) e outro comuma novela (Só tu voltaste?, Liv. do Globo, 1941) de queraros se aperceberam. Entretanto, a verdade é que nem ovolume do sr. Gilberto Amado merece o furor publicitárioque o cercou, nem a obra do sr. Tasso da Silveira o indi-ferentismo com que foi recebida. Entretanto, são duas "ex-

periências" que se defrontam, partindo de homens da mesmageração espiritual, de homens portadores, pela sua idade epela sua posição nas nossas letras, de uma prática de cul-tura equivalente e de um tirocínio da vida que se asseme-lha. Na França, os dois publicariam livros de... memórias,mas, aqui, entre nós, nenhum dos dois podendo resistir àtentação do meio, aderiram ao romance para se confessar,cada qual a seu modo. Daí o interesse psicológico desseslivros e o nenhum interesse literário dessas estréias. Daí onão ter, nenhum dos dois, nada acrescentando à sua obracom esses volumes, onde há, de certo modo, uma linha co-mum os aproximando, pelo reconhecimento que os dois auto-res nos trazem, cada um à sua maneira, da inutilidade davida sem um "alvo" subjetivo, como as "conclusões" me-lancólicas de seus personagens principais. Romances a seujeito documentários, com pretensões a concluir alguma coisa,não passam de excelentes veículos de superação para seusautores. Para o leitor, dois romances a mais. Para os auto-res, certamente, duas "purgações" a menos, dessas quantas

' *m*»**"m -fHf "fn

220 REVISTA RBASILEIRA

que, através dos gestos ou das palavras (escritas ou faladas)somos obrigados a realizar, sem sentir, nessa "sublimação"

constante de que é feita a nossa vida de cada dia.Poucos se referiram ao Fazenda (Guaíra, 1941), do sr.

Luiz Martins, onde uma tese nada desprezível se estraga eo próprio autor dá a entender que o trabalho não está muitobom ("êle necessitaria de uma revisão geral na forma, aindaressentida de excessiva fascinação pelo pitoresco") confes-sando, logo depois, mais explicitamente, que "não hesita (o)em publicar seu (meu) livro, ao menos como alicerce parao grande romance futuro do café". Se lermos o trabalhoaté o fim, porém, verificaremos não se tratar de um alicerce,mas, tão só, de uma pedra no meio do caminho do sr. Máriode Andrade (escreve o sr. Luiz Martins no seu penetranteprefácio: "acho também que a um paulista caberia legiti-mamente a tarefa de escrever o drama da decadênciado café") que anuncia um romance, "Café", há mais dedez anos.

Uma das coisas mais impressionantes nas letras brasi-leiras é essa franqueza (ou sem cerimônia?) com que osescritores se dão ao leitor, antes de qualquer preparaçãoou qualquer amadurecimento, essa vontade de mostrar pro-gresso através de cada livro que publicam, sem nenhumintervalo, numa prova pública de perseverança pouco lison-jeira. Não quero propor uma indireta ao sr. Nélio Reis(O rio corre para o mar, "A Noite", ed. 1941) mas é a pro-pósito dele que me ocorreu o reparo. Também o sr. LúcioCardoso, por exemplo, um dos nossos mais fortes roman-cistas de hoje, começou assim com o seu Maleita e foi evo-luindo, a descoberto, até esse O desconhecido do ano pas-sado, tão distante do livro de estréia, como forma e comotema. Acontece que o sr. Nélio Reis, com esse romancede agora, se se afasta do Subúrbio, como forma, é paradele se aproximar ainda, como tema. Não é, certamente, acôr local que prejudica essas páginas: é a sua pressa emaparecer. De côr local está cheio o romance do sr. JosuéMontelo (Janelas fechadas, Pongetti, 1941), sem que isso oprejudique. Exceto alguns tics de originalidade do autor

LETRAS DE 1941 221

que acabará, também, se prosseguir assim, por fechar as por-tas das letras à sua próxima passagem pela literatura, comodiria um amador de trocadilhos inefáveis, como o sr. SadiGaribaldi.

O Sr. Clovis Ramalhete, que é um dos nossos especia-listas em Eça de Queiroz (ou um dos "donos do assunto",como escreveu o sr. Peregrino Júnior, certa vez, num artigoa propósito, sendo êle mesmo, por sinal, especialista na"timidez" de Machado de Assis) detém um segundo prêmiode romance, Vecchi-D. Casmurro, e se estréia na ficção comCiranda (Vecchi, editor, 1941). Um bom livro para se lernos princípios do modernismo, quando Antônio de Alcân-tara Machado publicava Braz, Bexiga e Barra-Funda, crônicados bairros proletários de S. Paulo, assim como este é umacrônica, deliciosa, sim, mas literàriamente irrealizada, do,vamos dizer, ex-acadêmico bairro do Catete, do Rio. Hoje,eu não teria coragem de reler o autor de Pathé Baby, nome,aliás, de citação histórica imprescindível, a não ser paralhe estudar a linguagem saborosa e precursora (agora, deresto, diluída em tantos estilos por aí: um pouco em Mar-quês Rebelo, um pouco em Teimo Vergara, um pouco emtanta gente importante ou sem importância) e foi, mais oumenos, o que me sucedeu percorrendo esse volume de sub-títulos tão bonitos e tão poéticos ("a mão de uma criançapousa de leve", "um homem espiona o infinito"), mas, que,infelizmente, ficando nesse bonito da forma e nesse poéticodo fundo, em obediência à moda que o autor, tão jovem,não supõe prolongar, passou de tempo e ninguém tolera.E' claro que verifico isso com pesar, porque sei que o sr.Clovis Ramalhete possue qualidades para ir mais longe doque a um segundo lugar, num concurso ou na admiraçãodos leitores. Seu livro tem todas as virtudes e todos os de-feitos do que chamo "segunda fase modernista", que, comoa primeira, ainda não visa a obtenção de consumidores,mas, tão só, a "entrada" dos novos, chamando a atençãopara os seus produtos. Por isso, Ciranda não poderá maisimpressionar (aliás, o livro vem datado de 37), muito em-bora possa divertir. Mas, se o jogo fosse arte, tudo o que

222 REVISTA RBASILEIRA

distraísse seria artístico, inclusive uma questão de palavrascruzadas. Ou o problema (no caso semelhante, posto quenoutro plano) do "porque" esse Bati à porta da vida, dasra. Tetra de Teffé, consegue chegar a uma quarta ediçãoem 1941. Porém, um livro a gente lê por necessidade emo-tiva. E, ou êle tem capacidade para satisfazer essa neces-sidade, ou não é nada. Como esse Mormaço (Pongetti,1941), da sra. Jenny Pimentel de Borba, que, pelo visto,quer se especializar, entre nós, nesse gênero de novelas, po-nhamos "térmicas" (ano passado, a mesma autora estam-pava um Quarenta graus à sombra), que fez a glória e afortuna de um Jerome K. Jerome, na Europa.

Outro romance premiado em concurso é o Chove noscampos de cachoeira (Vecchi, 1941), do sr. Dalcídio Juran-dir. Se bem que um pouco largado, seu estilo é parado-xalmente mais denso do que elástico: porém, de qualquermodo, legível. Há um romancista em potência, debaixodessas páginas, como há um cronista em ato nos dez capí-tulos de Ciranda, do sr. Clovis Ramalhete, aliás, um bomensaísta. E a verdade é que a crônica, como gênero, estámais próxima do ensaio do que o romance.

Sempre tive as minhas dúvidas quanto à eficiência dosconcursos literários, como estes que agora estão grassandono nosso meio. Antes de mais nada, porque traduzem anecessidade de um estímulo, e só se estimula o que não estáfornecendo o rendimento desejado. Pelo menos, em litera-tura. Dirão que na França, por exemplo, os concursos sãopermanentes. Mas, não é por outro motivo que são perma-nentes. Uma literatura que possua as tradições da francesa"tem" de se renovar ou perecer. Por isso mesmo as "esco-las" vêm de lá ou de lá se irradiam. Um concurso é sem-pre uma encomenda, um convite à aventura. Sua intençãonão é recolher trabalhos antigos, por acaso escondidos, masforçar o aparecimento de coisa nova. Tudo isso, como sin-toma, não passa de uma denúncia de que a veia do romã-nesco, entre nós, está prestes a secar. Ou secando.

Estes dois últimos livros a que me referi são o resul-tado dessa má política de inflação literária. Perigosa e

.V:.:

LETRAS DE 1941 223

errada porque o romance, como o gênero mais completo emais perfeito, não pode admitir afoitamento. Victor Hugo,com treze anos e em treze dias, mais ou menos (ao quedizem), compôs o Bug-Jargal, para levantar um prêmio.Dostoievski, em menos de duas semanas (ao que informam)ditou O jogador, para levantar uma dívida. Resta saber,no nosso caso, se os Victor Hugo podem ser encontrados,à tarde, à porta das livrarias da rua do Ouvidor, ou se osDostoievski continuam à beira das mesas de qualquer caféamarelinho da Cinelândia. Enquanto isso, as reedições doslivros brasileiros de ontem se sucedem (Aluizio de Azevedo,Manuel Antônio de Almeida...) e as traduções dos roman-ces estrangeiros de ante-ontem (as Brõnte, Jane Austen...)continuam encontrando o maior e o mais lisonjeiro con-sumo, pela falta de curiosidade do "atual" de que dispomos.

No que se refere ao romance, há uma inequívoca crisedo "novo", como maneira de ser apresentado, e um osten-sivo cansaço do gênero, como "proposição", pura e simples,de temas. Não posso imaginar, por isso, o que será do JoãoTernura, do sr. Aníbal Machado, quando aparecer, ou doMarco Zero, do sr. Osvaldo de Andrade, quando surgir.O mesmo leitor que, ontem, exigia rapidez nas situações,pressa na narrativa, síntese nos conceitos, está solicitando,hoje, justamente o contrário. Traduz-se o Contraponto, deHuxley, e o Jean Cristophe, de Romain Rolland. Fala-se naversão integral da obra de Proust. O sr. Octavio de Fariaimagina uma tragédia burguesa em quinze tomos e os trêsprimeiros publicados encontraram leitores que aguardam osrestantes com o mesmo fervor das primeiras leituras. Ondea velocidade, a carência de uma estética especial, exigindo acolaboração do leitor, de que falávamos tanto há um quartode século? A questão do interesse não está na dimensão dorelato, nem na qualidade da narrativa: todos sabem que oproblema é outro. Nessa mesma orientação, Proust, quesempre foi combatido pela sua prolixidade, gabava-se dejamais ter feito um seu personagem fechar uma porta.E Flaubert garantia que Madame Bovary sempre existiu.E' por isso que a originalidade modernista, procurada, já

224 REVISTA RBASILEIRA

é um anacronismo. Na realidade, só é verdadeiramente

moderno o que pode ser de todos os tempos. Gioto é tao«novo" quanto Portinari. E Manzoni é "contemporâneo"

de Lawrence, assim como Aristófanes o é de Georg Kaiser.

Eis um tema a ser meditado, diante da indigência do ro-

mance brasileiro em 41. E mesmo se quisermos atribuir o

fenômeno aos efeitos psicológicos da guerra, como expli-

car a sua não influência sobre a massa dos leitores? Leon

Daudet conta que, em 14, refugiava-se em Virgílio, ao envezde recorrer a Claudel, que tanto amava, e que, aparen-temente, era de seu tempo, daquele tempo. Não é anedota:é uma parábola.

Ninguém ouvio falar do sr. Prado Ribeiro (Memóriasde Benedito Perdigão, Pongetti, 1941), nem do sr. ManuelJúlio de Oliveira (No arrebol da hipocrisia, Emiel, 1941),

prefaciado pelo sr. Clovis Beviláqua, nem, com toda eer-teza, do sr. Álvarus de Oliveira (Romance que a própriavida escreveu, Companhia Brasil, 1941). Pois é do rol dês-tes, e da centena de outros fiecionistas anônimos, que háde emergir, um dia, se Deus quiser, o futuro romancista doBrasil. Até lá, vamos dizer que o sr. Erico Veríssimo é oescritor mais "afortunado" do país, ò sr. José Lins do Regoo mais lido, o sr. Osvaldo Alves o de maiores possibilida-des e o sr. Afonso Schimidt (A Marcha, romance da aboli-ção, Ed. Anchieta, Ltda., 1941), o autor mais "sem sorte"da literatura nacional. Não é ironia: é uma conclusão.

Em geral, os contistas ignoram a "diferença" existenteentre um conto e uma novela, uma novela e um romance:e assim é melhor. Contudo, todos sabem que as operaçõesplásticas que transformam um romance num conto ou umconto num romance, são precedidas, respectivamente, dossinais de subtração e de multiplicação. E isso já é um con-solo. Um incidente pode constituir um conto, pois um contoé sempre um romance que se interrompe, mas uma únicasituação também pode constituir um romance, desde que ofator tempo não lhe seja indiferente. A relação é sutil, masé edificante e eu gostaria que os contistas pensassem nelaum pouco. Principalmente os dois mais expressivos estre-

i , v ,.»:¦«

LETRAS DE 1941 225

antes deste ano: a sra. Diná Silveira de Queiroz (A sereiaverde, José Olímpio, 1941) e o sr. Umberto Peregrino(Desencontros, José Olímpio, 1941). Dois autênticos roman-cistas perdidos nas águas de Maupassant ou de Lawrence.E é pena que a primeira escreva tão bem e o segundo es-creva tão mal. Porque o que escreve mal é que possue, jus-tamente, o melhor estofo criador, obumbrado por um inde-ciso espírito literário. E além da sra. Cací Cordovil (Rondade fogo, José Olímpio, 1941), que, realmente, escreve comopoucos, não tenho notícia de nenhum outro contista novoque mereça ao menos uma citação neste 1941. Com a forçado sr. Luiz Jardim, por exemplo, ou com a segurança dosr. Rodrigo Melo Franco de Andrade. Com a graça do sr.Marques Rebelo ou com a leveza da sra. Maria EugêniaCelso (Diário de Ana Lúcia, José Olímpio, 1941 — na ver-dade mais conto do que romance).

O sr. Osório Borba está produzindo cada vez melhor(A Comédia Literária, Alba, 1941) e fez muito bem emreunir em livro os seus melhores artigos, publicados em jor-nal. Peço licença para chamar a atenção dos leitores paraas crônicas que êle vem estampando no "Diário de Notí-cias". Só lamento que esse escritor às vezes tão amargoapenas possa compreender ou saiba admirar os seus docesconfrades nascidos nos engenhos de açúcar.

Outros bons autores que aproveitaram trabalhos anti-gos arrancando-os do anonimato das gavetas, ou do olvidocfos jornais, para as páginas do livro, foram os senhoresGilberto Freire (Região e Tradição, José Olímpio, 1941),Euríalo Canabrava (Seis temas do espírito moderno, Sep.1941), Antônio de Queiroz Filho (Caminhos humanos, Sèp.1941), Oscar Mendes (Papini, Pírandelo e outros, Liv. ed.Paulo Bluhm, 1941), Eduardo Frieiro (Os livros nossos ami-gos, Liv. ed. Paulo Bluhm, 1941), Mário Casassanta (Notasde Raul Soares à gramática de João Ribeiro, Liv. ed. PauloBluhm, 1941), Padre Leonel Franca (A crise do mundo mo-demo, José Olímpio, 1941), para só citar os que contam.Qualquer desses volumes pode ser lido com proveito eagrado. Dois deles, entretanto, nos convidam a pensar.

15

226 REVISTA RBASILEIRA

Quero me referir aos Seis temas do espirito moderno do

lCanabrava, e à A crise do mundo moderno, Ao Pe. Leo-

„el Franca. Ainda devem ser incluídos na Usa os srs.

Itaiir de Andrade (Formação da sociologia brasileira I vo-

fum José Olímpio. 1941, mais repertório, ou an ologia do

iTúvro de interpretação, e, por isso mesmo indispensável.

S por diante)! e Silvio Rabelo (Farto Brito, José Olim-

nio 1941, mais interpretação do que comentário, mais po-

SSo-dô^ue «revisão» da obra do autor da Base física

do espírito). , _ AE à margem desses volumes originais, as traduções de

um Henry Thomas e de um Robert Graves, de um Paul

Richard ou de um Karl Adam, ingleses ou americanos, fran-

ceses ou alemães, entulhando as estantes e satisfazendo a

curiosidade ilimitada do leitor brasileiro médio de hoje.

Consumidor em eterna espectativa dos grandes romances,

das enormes biografias ou dos agudos ensaios que ainda

não tivemos "tempo" de escrever, como me disse outro dia

um importante escritor patrício, autor de vários títulos de

livros, e cujo prestígio vem daí, como daí procede, ao quedizem, o renome do sr. Américo Facó, por exemplo. Nao

é perfídia: é uma cena da "comédia literária".No teatro, dois extremos que se tocam, como todos os

extremos: de um lado, o sr. Ernani Fornari (Sinhá moçachorou, Liv. Martins, 1941), e, de outro, o sr. Cristóvãode Camargo (O príncipe galante, "A Noite", ed. 1941).

Nas pesquisas desinteressadas, convém não esquecer oslivros dos senhores Djacir de Menezes (O ouro e a novaconcepção da moeda, Alba, 1941), Severino Sombra (As duaslinhas de nossa evolução política, Zélio Valverde, 1941),Mário de Andrade (Música do Brasil, Guaíra, 1941), Gondimda Fonseca (Biografia do jornalismo carioca, Quaresma,ed., 1941) e Teófilo üe Andrade (0 rio Paraná no roteiroda marcha para o Oeste, Pongetti, 1941).

Entre os "diversos" do ano, o A. B. C. de Castro Alves

(Liv. Martins, ed. 1941), do sr. Jorge Amado, o único dosromancistas conhecidos a publicar em 41, fugindo do ro-mance para a biografia. Todos sabem que quem diz bio-

LETRAS DE 1941 227

grafia diz, justamente, transição entre a história e a mentira.E, de fato, há muita mentira aqui, mascarada daquele jeitopoético que é, sem dúvida, uma das armas mais poderosasdo autor de Mar morto.

A poesia foi muito homenageada, durante o ano, embanquetes, discursos e leituras íntimas só para os amigos,conforme se vê nos jornais. Nem um grande livro. A revista*"Euclides", que o sr. Simões dos Reis mantém com um es-forço comovedor, só comparável ao que o sr. Murilo Mi-randa dispende para fazer face às despesas da sua resistente"Revista Acadêmica", promoveu um número muito justo aAlfonsus de Guimarães. E se a anunciada "Província", dosr. Gilberto Freire, ainda não conseguiu sair do projeto,S. Paulo nos mandou, em compensação, duas excelentespublicações, como "Planalto", do sr. Orígenes Lessa, e"Clima", do sr. Lourival Gomes Machado. Nesta última,convém assinalar o artigo do sr. Mário de Andrade, apa-recido no primeiro número e intitulado "Elegia de Abril".Uma página magistral, onde as idéias do mais "conciente"de nossos autores e o mais seguro construtor de sua obra, dequantos escrevem no Brasil, de momento a momento nosobrigam a pensar. E na verdade, vale a pena aceitar o con-vite quando êle parte de uma inteligência como a do sr.Mário de AmJcade, Um dos raros com autoridade paraescrever assim, a propósito desse detestável segundo moder-nismo, que os arrivistas literários de todas as latitudes estãopromovendo, à custa de uma cooperativa pró-posteridaderealmente invencível, emoliente e avassaladora: "se con-templarmos a paisagem artística, o que salta, abundante-mente, aos olhos, é a imperfeição do preparo técnico.O experimentalismo dos modernistas de minha geração jápor vária parte se confundia com a ignorância e foi defesade muitos. Mas ainda a maioria dos meus contemporâneosvinha de costumes mais enérgicos em que não se passavapor decreto. E todos os que resistiram ou parecem resistirá filtragem dos anos, foram técnicos honestos de suas.artes."

Tomo a liberdade de solicitar a sua atenção mais cari-

22g REVISTA RBASILEIRA

nhosa para esse trecho. Não é um desafio à sua intehgência -

é um apêao à sanceridade do seu testemunho"

preciso registrar ao meuos o aparecimento de aa-

mns noetas que, do romance, com que se firmaram, yoitam

Crev stmente\ poesia, como a um refugio consoiador.

Zero aaar dos srs. Lúcio Cardoso (Poesias, José Ohmpio,

mi) e Oaiveira Ribeiro Neto (Canções das sete cores José

ÍhLdío 1941). Nenhum dos dois é indiferente. Porem o

magoai é o ÚHimo. E o » impessoai é um terceiro:

„T Oldegar Vieira (Folhas de chá. Sep. 1941) Apesar de

Ua a sua cuitura de... hai-kais. reveaada no bem infor-

mado prefácio com que nos oferece a sua infusão suspeita

de folhas de cacau baiano temperada com açúcar do Japão.

A literatura infantil não saiu de Monteiro Lobato, das

reedições dos livros de Monteiro Lobato. Apesar das tenta-

tivas da sra. Nina Saava ou da duPaa Oféba e Narbaa Fontes,

do sr. Marques Rebelo ou do sr. Frankhn Sales.Merece uma notícia especial o bi-centenário da Brasi-

liana, da Companhia Editora Nacional, de S. Paulo, quecomeçando com o sr. Batista Pereira (Figuras do Império

e outros ensaios) ninguém poderia supor que chegasse a.

Charles Frederik Hartt (Geologia e geografia física do Bra-sil), aliás, òtimamente traduzido pelos srs. Edgard Susse-

kind de Mendonça e Elias Dolianiti. Isso não impede queo melhor da coleção esteja no meio, conforme a anedota.E, como, na hipótese, o melhor é sempre o mais velho —

Saint-Hilaire ou Gandavo, Richard F. Burton ou Cardim— a paradoxal conclusão a tirar-se é que o novo, para o

gosto dos exigentes, é o mesmo o velho para os não expen-mentados. Como os vinhos de Málaga: comentaria o sr.Agripino Grieco.

A orientação que o sr. Múcio Leão vem imprimindo aosuplemento literário "Autores e Livros" é a melhor possí-vel. Neste ano, tão cheio de datas lisonjeiras à história donosso pensamento e à história da nossa literatura, o traba-lho de "Autores e livros" me parece utilíssimo. Pois a me-lhor maneira de se homenagear um santo ou um artista édivulgar-lhes as obras, através dos tempos. Por isso, a anto-

LETRAS DE 1941 229

logia vale mais do que a poliantéia. E o flos-sanctorummuito mais do que um sermão.

Já a este ponto, ressalvando-se as omissões involuntá-rias, mas fatais, de livros e autores, num modesto panoramacomo este, ao qual estão escapando os volumes que saemdos prelos com o ano que sai das folhinhas, seria o caso dese falar das letras acadêmicas, ausentes do balanço. Tenhopara mim, entretanto, que tal providência poderia ser con-siderada suspeita, levando-se em conta que esta revista per-tence à linha editorial da própria Academia. Assim, intencio-nalmente, deixo a um acadêmico a tarefa de tratar dos srs.Viriato Correia (Baú velho e Histórias da nossa História),Osvaldo Orico (À sombra dos Jerônimos e Joana, a louca,por sinal editados em Lisboa), Gustavo Barroso (Liceu doCeará e Consulado da China), Afrânio Peixoto (Bugrinha),Ribeiro Couto (Largo da matriz e outras histórias), MúcioLeão (Países inexistentes), Filinto de Almeida (Dona Jú-lia, poesia, fora do comércio), Clementino Fraga (Oração àmocidade e Ciência e arte em medicina), Tristão de Ataíde(Três ensaios sobre Machado de Assis ou a tradução deMaritain, Noite de agonia em França, sendo que o prefácio,do escritor brasileiro, é muito melhor do que o livro), Gui-lherme de Almeida (O sonho de Marina, com que, parece,o poeta de Raça se estréia nas letras infantis), Pedro Cal-mon (História social do Brasil, III), Alcântara Machado(Alocuções acadêmicas), o oitavo volume da A Nova Poli-tica do Brasil, do sr. Getúlio Vargas, que ocupará a cadeiravaga com a morte do historiador paulista, as impressões deviagens do sr. Cláudio de Sousa... todos estes nomes auto-res de livros originais, reedições ou traduções aparecidosem 1941.

Agora, sinto que é preciso terminar e sinto que nãoposso "concluir". Pelo menos, concluir como desejaria, ex-plicando melhor o que prevejo como indício de anti-modernonas letras, considerando, de perto, este ano literário tão ne-buloso. Pode ser cedo para profecias e o mundo de hojepode repudiar as "entonações" proféticas. Mas, acredito queos homens ainda venham, apesar de tudo, a restabelecer os

230 REVISTA BRASILEIRA

fnnú ja tprra Também imagino não ser

I^Tac^^

^pretensiosa, de que nos intoxicamos sem o perceber. Entre

outros aeho que o livro de Tilmann Pesch (Kant et Ia science

mo7ene, trad. fr. de M. Lequien) propõe o problema

ZttTUm. A verdade é que os giganteseos monumento*

tóricos da inteligêneia não resistem ao menor sopro do

sentimento, que é a úniea realidade humana eapas de

Tdâr eom a nossa sombra e easar melhor eom os nos-

sos atos. Penso, poi*, que voltaremos a tentar um ajuste

do pensamento eom a vida, valendo-uos das dolorosas h-

ções que estamos reeebendo. Delas partiremos para um

renascimento existencialista mais largo e mais humilde.

Por isso, imagino uma arte futura menos serviçal e menos

utilitária, quero dizer, menos política. E, portanto, muito

mais romântica, no sentido mais primário da expressão.

Não sei se estou sendo claro, mas, o que quero dizer e o

seguinte: não há vantagens imagináveis ou imaginárias nos-

domínios das artes. O mundo chegou, pela crendice nas

fórmulas, pela redução de tudo a fórmulas, a um ponto de

saturação do vago. A palavra não é mais instrumento de

comunicação entre as gentes. Compete aos homens que pen-sam e que têm a faculdade de transmitir o seu pensamentoe o seu sentimento, suprir aquele vago de eternidade e de

beleza. Vale dizer: dessa noção subjetiva da existência,

que é a única coisa capaz de justificar e dignificar a vida,

uma vida. E se me permitem falar nesse tom algumas pala-vras mais, quero aproveitá-las para terminar dizendo quemeu desejo é que a literatura de amanhã, passada a tempes-tade, possa ser simbolizada pelo arco-iris bíblico — "sinal

do concerto entre o céu e a terra" — após o dilúvio. E queaquele freude, a alegria da canção de Beethoven, seja o"aleluia" de um tempo novo na boca dos homens de todasas partes e dos artistas de todas as artes, num mundode paz.

11 — XI — 941.

DOIS LIVROS SOBRE FARIAS BRITO

Hermes Lima.

Dois livros sobre Farias Brito acabam de ser publica-dos, um de autoria do sr. Jônatas Serrano, outro de autoriado sr. Sílvio Rabelo.

O primeiro, de natureza biográfica, está escrito com asegurança que o autor costuma imprimir às suas produções.Mas, pouco ou nada tem de crítico. Aí encontramos antesexaltação do homem, do pensador, do que estudo de suasidéias. Vê-se que é livro feito com amor, o que não tenhopor defeito senão por qualidade, mas a que falta espíritode exame e interpretação. Não direi que o sr. Jônatas Ser-rano se deslumbre diante da personalidade de Farias Britoa ponto de perder o sentido das proporções. Porém, seulivro reveste-se de intuito de reparação que lhe imprimemais caráter de biografia escrita por um admirador, pre-ocupado em destacar a personalidade de Farias Brito e ovalor de sua contribuição intelectual, do que o de debateacerca dessa personalidade e dessa contribuição.

Esse debate, porém, vamos encontrá-lo no volume dosr. Sílvio Rabelo — Farias Brito ou uma aventura do es-

pírito, de modo que, surgindo contemporâneamente os doislivros, oferecem não só ângulos diferentes de apreciação,senão até versões opostas sobre a obra e sobre or própriapessoa do filósofo brasileiro.

São livros escritos num espírito absolutamente diferente.No do sr. Sílvio Rabelo, o espírito é de crítica severa, direimesmo impiedosa. No do sr. Jônatas Serrano, o espírito

232 REVISTA BRASILEIRA

é de uma simpatia, que, a cada passo, está embelezando a

obra e o homem.*

* *

O sr Sílvio Rabelo manteve em face de Farias Brito

, He sua obra uma independência crítica freqüentemente

Lressva ParU não raro, achar-se possuído da sensação

df aue Java demolindo um ídolo, desmanchando nm

mito de m modo que a leitura do seu livro é de natureza

rptvocar reação llenta de critérios tidos e havidos como

certos mas que, muito provavelmente, a maioria dos ho-

meTsde letral e'pensamento não se terâ dado ,ama«, o^a-

balho de examinar por conta própria. Dessa atitude de

ferocidade crítica resultam as qualidades e os defeitos do

livro do sr. Sílvio Rabelo.O livro ressente-se de um tom polemico, que coloca

o autor na posição de quem está a discutir com Farias Brito

posição que me parece diferente daquela que seria apenas

a de um crítico. Esse tom polêmico prejudica, nao raro, a

clareza da exposição do autor, pois acontece, às vezes, nao

sabermos se é êle ou Farias quem está falando.Além disso, é manifesta a antipatia pessoal que Silvio

Rabelo alimenta em relação a Farias Brito. Ao auto-retrato

de Farias no famoso Panfleto - "contradição viva da reali-

dade" - segundo Sílvio, opõe o "verdadeiro retrato de Fa-

rias em que "os bigodes dão uma nota triste". Em vez da

mistura de D. Quixote e Sancho Pança, de Fausto e Mefis-

tófeles e até de São Gabriel com que Farias se pintou no

Panfleto, Sílvio nele apenas enxerga um "pacato cidadão

que viveu de ilusões, sendo possível, comenta, que "as maio-

res fossem as ilusões de si mesmo: certa vez disse a um

impertinente que estranhara a sua figura de perereca, quea sua estatura se media da cabeça para cima".

Certos reparos acentuam essa antipatia. Assim, ao

acusar Farias de aproveitar-se de pensamentos alheios, en-

cobrindo a fonte onde os deparou, como no caso do con-

DOIS LIVROS SOBRE FARIAS BRITO 233

ceito de Ardigó sobre filosofia e ciência: "Farias Brito nãofaz senão aproveitá-la encobrindo a fonte onde a encontroucom clareza e não em estado latente como afirma", pg. 43;ao acusá-lo de ocultar a fonte spinozeana do seu pensa-mento. Diz Sílvio: "Entre 1895, data da publicação deA filosofia como atividade permanente do espírito humano,e 1899, que foi o ano em que apareceu a Filosofia moderna,ambos subordinados ao título geral Finalidade do Mundo,guardou Farias Brito o segredo de sua filiação. Neste últimolivro é que afinal dedica a Spinoza um capítulo — o pontoculminante da filosofia dogmática — no qual faz sentir todoo entusiasmo pelo sistema do filósofo de Amsterdam: "foi

em Spinoza que encontrei mais sólido apoio, e si há algumafilosofia a que meu pensamento se prenda, é exatamentea de Spinoza", pg. 95. O comentário que logo a seguir lançaSílvio Rabelo a propósito dessa confissão, parece-me típicoda antipatia que vota a Farias: "A sua confissão é, entre-tanto, tardia e vem sob a forma condicional. Farias Rritonão está certo de que haja uma filosofia a que se filie seupensamento. Dado que haja, é a de Spinoza que consideraentre as muitas outras". Aqui, a argumentação do críticoé mesmo forçada. Não só a oportunidade da declaração deFarias não é seródia, como o tom de sua frase — "e si háalguma filosofia a que meu pensamento se prenda é exa-tamente a de Spinoza" — não autoriza a suposição do co-mentário de Sílvio — "Farias Brito não está certo de quehaja uma filosofia a que se filie seu pensamento". Trata-sede um modo de dizer literário de que Farias se utilizou paraexprimir, aliás, uma verdade que foi o primeiro a decla-rar, sem rebuços e no início do período, nos claros termosseguintes: "foi em Spinoza que encontrei mais sólido apoio".Suponho que Sílvio é injusto para com Farias ao escrever:"E' na verdade estranho que Farias Brito tenha ocultadoa fonte do seu pensamento, sobretudo na parte do livro em

que expõe a concepção naturalista na metafísica e na teo-logia" (pg. 95). Sílvio para frisar quanto Farias ocultoua fonte spinoziana do seu pensamento chega a aumentarcom uma hipótese absurda, pois contraria ao que realmente

REVISTA BRASILEIRA

^.n^iSri racmna.ista, nao teriaquentemente - o.est™° desvendado o seu segredo"ainda em Fiíoío/w Mod«™a ia

da leitura dos dois(pg. 99) - En.retan.0 ta

^ do Mundo", qne Sãoprimeiros livros da serie r" .

espirito humanoA filosofia como atividade r>T™£

%£{ acusaçSo de

-•j:c*a.*i=rf^r,*rr.=r.filosófica no "—^J^^SX

F---" edêSSae

^E lan/o «s n" dessa faculdade, fê-lo segundo"ecoVt;

IZ com «uma admiração Iransbor ante nao

só pelas idéias como pela vida » de Spmc^^ ^

!vJn mie só na Filosofia Moderna dedica Farias um capi

rabino- na FilLofia como atividade permanenteidoeZrilo humano, Spinoza não só está presente, como ,a e

'"tais duvidas quanto à honestidade ***££&£

rias Brito atravessam, aliás, todo o livro de Silvio Rabelo

A pg 6i o antor sngere qne terá sido W*?1?^

boa fé» que Farias, apesar de condenar a filosofia de Kant,

aproveita a «concepção de uma psicologia que dana sota-

ção aos problemas da filosofia primeira ^ «. ¦*£

Ldo aristotélico da expressão». X pg. 164 ^«°

Farias aproveitou-se «silenciosamente» de umautade

Bergson - o dinamismo da vida da conciencia Em suma,

7Tz* escreve: «o trabalho intelectual de Fanas Brito

não poderá ser elassificado como «de absoluta honesfidade .

Entretanto, à pg. 26 reconhece a Farias «certa pureza de

espírito", que possuiu "sem intermitência .

** *

¦*TT-%*\-'?$'iK -y--•.¦:•-¦;,?¦¦- ¦¦—¦¦?.-r:r"r •-*•¦:- \-

DOIS LIVROS SOBRE FARIAS BRITO 235-

Apesar dos excessos de antipatia que a personalidadede Farias Brito inspira a Sílvio Rabelo, este destacou delacertos traços que os "britistas" ou escondem, ou desconhe-cem ou poetizam. E' o caso do livro de Jônatas Serrano,para quem Farias é um ser envolto numa dessas auréolasde bondade, de compreensão, de alegria no sacrifício queconsagra os Santos. Ora, as disposições gerais do tempera-mento fizeram de Farias um solitário e um misantropo, dizbem Sílvio Rabelo. Farias herdara "um mau quinhão danatureza", declara ainda. Embora tal expressão seja dema-siado vaga, ela denuncia que Sílvio não se deixou levar pelosentimentalismo no estudo das condições pessoais do filo-sofo. Sentimentalismo que decorre de uma falsa drama-tização da existência de Farias. "Si por um lado, escreveSílvio, algumas vezes a solidão o acabrunhava, por outrolado não procurou libertar-se dela, penetrando desembara-çadamente no campo em que os homens lutam e vivem.As suas investidas nesse campo aberto produziram semprena" sua sensibilidade, feridas que ficaram sangrando comose fossem feitas no próprio corpo. Por isso evitava o con-tacto humano numa defesa de quem se poupa ao sofri-mento". Esta observação constitue uma das chaves para oestudo e interpretação de Farias Brito — do homem e tam-bém da obra. Quem o responsável pela sua visão pessimistada existência, senão o seu temperamento? Esse tempera-mento levou-o invariavelmente a interpretar episódios acimado que eles valiam ou significavam. Todas as crises davida de Farias — e pela palavra crise quero significar asdificuldades principais, com maior ou menor gravidade, écerto, mas correntias na vida dos homens — deram ensejode sua parte a exagerações assim dos fatos como do sen-tido que encerravam. Há sempre desproporção notável en-tre a realidade e as avaliações de Farias — e, o que é im-

portante, isso repercute na sua filosofia e nela deixa mar-cas significativas.

Logo depois da República, Farias atravessou o que êledenominou uma "crise desesperada e cruel". Ouçâmo-lo:"Diversas circunstâncias já de caráter político, já de cará-

236 REVISTA BRASILEIRA

ter privado, torturavam-me a vida. Todas as minhas espe-

iLas haviam caído; todas as minhas ilusões sido desfei-

ías E eu percebendo quanto é dura a fatalidade, que pesa

multas ve/es sobre os destinos humanos, cheguei a desejar™e

mo a morte, senündo que meu coração se desfazia em

pedaços". Neste momento, algo nele reage. «Era num dos

dias mais agitados da pátria. Eu estava só. Se considerava

o futuro, via tudo profundamente sombrio; e se voltava-me

para o passado, era procurando algum crime que houvesse

cometido e em cuja expiação houvesse sido condenado ao

isoTamento..Saí de noite. 0 céu cheio de estrelas. Senti-me

repentinamente dominado pela idéia de que uma grande

verdade enche o mundo". E andando, começa sob o ceu

estrelado, a examinar proposições de Schopenhauer, tais

eomo -"o mundo é um produto do cérebro". Mas, como

pode ser isto? indaga. Estas reflexões e preocupaçõesacumulam-se na sua cabeça. Eis o resultado: «Em ligação

ao pensamento de que por esta ocasião me senti dominado

tive algum tempo depois um sonho que peço permissão

para narrar aqui." Farias sonhou que discutia com alguém,

que não distingüia, pois o local era escuro, sobre a existen-

cia de Deus. Seu contender era formidável. Ao concluir

que todo esforço para provar a existência de Deus era vao,

a voz retorquiu-lhe: "Enganai-vos: Deus existe e pode ser

conhecido. Há na natureza mesma alguma coisa que o tra-

duz e revela. Observai e vereis." Calada a voz, pareceu a

Farias que uma estranha música enchia o espaço, até avo-

lumar-se numa grande orquestração, mas de sons desafi-nados e confusos. E Deus não se poderia revelar atravésdaquela desordem musical. "Mas exatamente neste mo-mento, diz o filósofo, brilhou uma luz como se caísse doalto. Não era luz sobrenatural, mas luz física, como se umraio do sol ou do luar passasse através de uma vidraça.Não obstante foi como si um raio de luz estelar despren-dendo-se do vácuo terminasse por iluminá-lo e enchê-lo; e

«u, sentindo renascer o mundo diante daquela luz que ras-

gava a noite universal, experimentei o mesmo efeito queporventura experimentaria si o universo fosse criado de

;rç;;e ¦;> ¦¦;¦>

DOIS LIVROS SOBRE FARIAS BRITO 237

novo. E a voz que partia das trevas repercutiu no fundode minha conciência: Deus é a luz". *

No ano seguinte ao do sonho, há um eclipse do sol noCeará. Farias mune-se de lentes esfumadas, observa o fenô-meno e conclue que, depois do eclipse, a luz que tornou aenvolver o mundo foi exatamente a luz que vira sonhando:"Aquela luz que partia das trevas e esta que desce dos es-paços celestes são uma só e mesma cousa. Como é que umsonho reflete tão fielmente a realidade"?

Todo esse episódio é muito significativo. Há nele tra-ços do pessimista e do misantropo, de orgulho e de inge-nuidade, de desconfiança de si mesmo e de confiança ab-surda nos poderes da própria intuição — ora uma ausênciacompleta de auto-crítica, ora umas repentinas explosões deorgulho, de desejo de vencer e dominar, que depois maisse acentuariam no Panfleto e na Carta a Jackson de Figuei-redo. Evidentemente, Sílvio está com a razão ao escrever:"O orgulhoso que sobreestimou as suas próprias qualidadesaté o exagero, o ultra-sensível que se subtraiu ao mais leveatrito com o mundo, teria de ser com certeza um homemdesigual, vibrando intensamente aos golpes sofridos e aossucessos conquistados. E como aqueles foram mais fre-quentes e mais demorados, enroscava-se Farias Brito em simesmo, como o incompreendido que atribue aos males davida a responsabilidade dos seus próprios males". Apenas,convém não exagerar na vida de Farias a importância dês-ses golpes sofridos. Êle enfrentou início difícil e lutou muitopara estudar e se fazer, tendo sido com a família, por oca-sião da seca de 1878, compelido a emigrar para Fortaleza.Todavia, não se poderia jamais dizer de Farias que foi uminfeliz, perseguido da sorte, um homem que, ao drama dainteligência, tivesse juntado o drama do viver quotidiano.Muito do sofrimento de Farias veiu de sua imaginação, doseu temperamento. "Faltou-lhe sempre a espontaneidadede quem ocupa por direito incontestável o seu lugar ao sol",assinala lücidamente Sílvio Rabelo. Essa falta de esponta-neidade é grande responsável pelo sentimento de tortura ede injustiça que as queixas de Farias nos comunicam.

233 REVISTA BRASILEIRA

Conforme há pouco assinalei, o Panfleto e a Carta a

Jackson documentam nitidamente a complexa personalidadede Farias Brito, que Sílvio Rabelo foi, a meu conhecer, o

primeiro a estudar com objetividade. No Panfleto encontra-

mos Farias mais uma vez exagerando a significação e o

alcance de um episódio, exagero que, como de costume, vai

refletir-se no juízo que de si mesmo formula esse orgulhoso

sem espontaneidade: "Restringindo o campo de minhas ob-

servações e por conseguinte todo o centro de minha capaci-

dade de julgar ao quadro estreito e limitadíssimo de minha

própria vida, não podia deixar de enfastiar-me. E por fim

convenci-me que trabalhava num deserto, pois minha vida

fez-se realmente um deserto, tendo sido, por completo, var-

ridas do meu coração toda a fé no trabalho e toda a con-fiança nos homens. E' quasi um deserto de morte e deses-

pero ...Entretanto, do episódio da Academia só êle, Farias

Brito, poderia tirar motivos de contentamento. Outros ti-veram a iniciativa de sua candidatura. A própria carta com

que se candidatou, outrem a escreveu. A derrota, que so-freu, é uma das clássicas injustiças históricas da Academia.Sua posição no episódio foi perfeita como discrição e no-breza de atitude. Aliás, é uma constante de sua vida a no-breza de atitudes e sentimentos. Exagera, lamenta, queixa-se,ameaça, considera-se merecedor de uma vitória que os con-temporâneos, todavia, não lhe querem reconhecer — masnunca é indigno nos atos. Pelo contrário, conserva umaaltivez de conduta que, não sendo agressiva, assinala bemas firmes diretrizes morais em que se inspira. O Panfletoleva pseudônimo, é exato. Porém, sua autoria logo se des-cobre, o interesse que desperta está em saber-se que é deFarias Brito. Aí terá sido violento, talvez injusto. Mas, estaé outra história.

A Carta a Jackson de Figueiredo representa no con-junto dos documentos, que permitem a reconstituição da

personalidade de Farias Brito, provavelmente o mais in-teressante. Aí examina a sua obra e até a sua vida — e

pela primeira vez dele se apossa uma sensação de triunfo

W»-»** igwr«g wj t-j-ffr:*^' -**¦-* ¦^.•..-.---r--'-.¦-." ¦- ¦ - ¦— ~- >¦; - ¦ :-.;" íW^^?1i';'o,^'**!'T!

DOIS LIVROS SOBRE FARIAS BRITO 239

exterior, que quasi chega a embriagá-lo. Possivelmente eraa audácia, o dogmatismo agressivo de Jackson que estavamajudando Farias a vencer a crosta de timidez e pessimismo,para que o recalcado orgulho do filósofo explodisse.

Realmente, a Carta contém explosões líricas de con-fiança. Congratula-se com o amigo e parente: "E' por istoque já não me resta nenhuma dúvida. Estou agora conven-cido: havemos de vencer".

Farias escreve a Jackson restabelecido de recente, graveenfermidade, durante a qual "experimentara até, debaixode certo ponto de vista, profunda e incomparável alegria,como o navegador que antevê a descoberta de novos conti-nentes". Porém, levantara-se seguro de que não morreriajá, "como si ainda não estivesse terminado o que me forareservado fazer". (Messianismo).

No passado, entretanto, nada conseguira. Não fizera"um só discípulo". Recebera louvores, é exato, mas atri-bue-os à generosidade; queriam dar-lhe um lugar no "ban-

quete dos que vencem" porque o viam "isolado e triste".Ao seu encontro vieram "como quem se propõe a socorrerum náufrago que se afunda". (Pessimismo quanto às pró-prias qualidades).

Mas, para que isto? "Para levantar-me do abatimentoem que me achava?... Ora, abatidos hão de ser todos"...(Orgulho). O que reclamava era solidariedade na luta pelajustiça, pela verdade, pelo aperfeiçoamento moral. Toda-via, ninguém veio ao seu encontro. Então, compreendeuque se iludia quanto à "significação" e "valor" de suasidéias. t

Dirigiu-sé à "multidão anônima, em particular aos quesofrem". Não o perceberam, nem ouviram. "Perdi-me noseu seio, confundi-me com ela; mas sem me destacar emcoisa alguma e sob qualquer pretesto, da massa comum.Ou antes, atravessei a multidão: mas apenas como uma som-bra, que ninguém percebe; estive com ela em contacto, mascomo um estrangeiro que nada consegue transmitir do quesente e deseja, por falar em uma língua que ninguém co-nhece, e que apenas se expõe ao ridículo, ou ao desprezo,"

pppipfSnüT»,.^.^»;- _ , -. i»»h»t r.«« ». --» r-

24Q REVISTA BRASILEIRA

Mas, pergunta (dando, afinal, a resposta adequada ao fato

que comenta) como influir na multidão si se sentia iso-

lado no meio dela, solitário que fui no pensamento e na

vida"? l4.j-Acerca do contacto de Farias com a multidão parece

que ele exagera. Professor, advogado, filósofo, toda sua J

atividade decorreu dentro de gabinetes de estudos, de sala

de aulas, no exame de autos e em debates forenses. Assim,

ao escrever Farias, "atravesei a multidão", "perdi-me no

seu seio", "estive com ela em contacto", há mais força de

expressão em tais modos de dizer do que realidade do acon-

tecido.Depois do fracasso no contacto com a multidão, o fra-

casso no contacto com a mocidade: "Tive, desde muito

cedo, o aspecto e as maneiras de um velho: sou, talvez poristo, antipático aos moços."

Daí, a conclusão melancólica: "O insucesso do meu pen-samento foi, portanto, completo, absoluto, integral". Isto

perante os homens de cultura, a multidão e a mocidade.Acaba identificando seu insucesso pessoal com o insucessodas "questões de que se tem ocupado".

Julgou-se um "pobre Quasímodo espiritual, estropeadoe ridículo". (Exageração). Tomara a resolução de nãoescrever. Era tuberculoso. E de estatura abaixo da me-diana. Que corrente de sentimentos subterrâneos terá feito

pingar de sua pena essa palavra — Quasímodo?Eis senão quando, o encontro com Jackson. Para Fa-

rias foi uma aleluia: "Compreendi então que me tinha en-

ganado, quando se me afigurou que havia assistido à mortedo meu pensamento. Não: o meu pensamento não estámorto. E estou, pelo contrário convencido agora de que nãosomente está vivo, como além disto se destina à vitória"...Já não alimentava dúvidas: "E assim que ninguém duvide.Quasímodo reage eficazmente contra o mal. D. Quixotevencerá, com os que hão de fazer a renovação espiritual domundo". Assume tom profético e vingador, rematando: "E

que a multidão estremeça: por que terá fatalmente de sersubjugada, orientada em suas representações obscuras e in-

I..

DOIS LIVROS SOBRE FARIAS BRITO 241

certas, esclarecida em sua cegueira, vencida em seus instin-tos selvagens".Em tudo isso, em todos esses passos não há realmentedesproporção entre as palavras e a realidade, entre o sub-

jetivo e o objetivo?

** *

A razão está igualmente com Sílvio Rabelo ao dizer queFarias Brito não foi filósofo, mas historiador da filosofiaA densidade filosófica do seu pensamento é realmente es-cassa. "Historiador da filosofia, crítico das religiões são ostítulos que melhor lhe conveem", afirma o crítico pernambu-cano. Como expositor de sistemas filosóficos não tem se-guramente rival em nossa literatura. No sentir de Sílvio naFilosofia Moderna Farias "dá uma sistematizacão apreciávelda filosofia entre Bacon e Spencer. 0 dogmatismo e o asso-ciacionismo são nele estudados com uma clareza de quemna verdade sentiu as questões". Reputa o estudo sobre Spi-noza "síntese bem ordenada de sua filosofia". Páginas mo-delares de exposição de doutrinas encontram-se igualmentequer em A base física do espírito, quer no O Mundo Me-rior, aqui destacando-se as consagradas a Bergson. Entre-tanto, de Farias escritor diz Sílvio: "é sempre monótono ecansativo. De uma prolixidade e de uma escorrência queprejudicam a força do pensamento". Queria o crítico sereferir à exposição do pensamento peculiar do filósofo, oua censura cabe a Farias seja quando expõe o pensamentopróprio, seja quando expõe o alheio? Há, talvez, algo dedeclamatório em Farias Brito quando desenvolve suas con-tribuições pessoais às idéias filosóficas, sobretudo quandolança sínteses ou conceitos próprios. À esta luz são típicasas considerações que traçou sobre a "cousa em si". Há pro-nunciado tom sentimental e retórico nas suas objurgatóriascontra o materialismo, parecendo mesmo que, ao falar domaterialismo, o faz menos como filósofo do que como pes-simista acerca dos usos e costumes do tempo. Decorre daí

16

7:' ¦ t -5 yc.-i,::.- ¦¦¦¦;;. :. <: ¦ , 7

242 REVISTA BRASILEIRA

provavelmente a contradição que Sílvio nota no espiritua-lismo de Farias — "espiritualismo piegas e inconseqüente",afirma — pois enquanto Farias "assinala o vazio que omaterialismo deixa no espírito dos homens pelas negações

que encerra, permanece, porém, dentro dele elaborando so-luções cujos fundamentos assentam em princípios naturais— exatamente o traço mais característico do materialismomoderno".

Sílvio classifica de naturalista a concepção do universode Farias, mas sentiu que esta classificação não traduziaexatamente a posição filosófica dele, pois adverte que A basefísica do espírito e O Mundo Interior "são desdobramentosdo seu naturalismo, um como vício do seu pensamento".Talvez fosse mais exato dizer que os dois livros citados do-cumentam a marcha do espírito de Farias Brito do natura-lismo para o panteísmo. Estou inclinado a pensar que Sílvionão atentou devidamente na importância de 0 Mundo In-terior na evolução do pensamento do filósofo.

Escreveu Farias nesse livro, concluindo sua pesquisa da"cousa em si": "0 cosmos, portanto, com todos os seusmundos e com todos os seus movimentos, o espaço e suasconstelações, tudo isto é Deus pensando. Deus pensa e asubstância cósmica, em todas as suas modalidades, só poração do pensamento divino logo se desenrola no espaço.As forças naturais são então os processos mesmos de quese serve para pensar, as categorias do Supremo Intelecto.E eu digo, em conclusão, e nisto consiste a minha concepçãofundamental: o mundo é uma atividade intelectual, pois éDeus pensando, e nós, homens, como elementos que somosdo mecanismo do mundo, fazemos também parte do pensa-mento de Deus, e somos, por conseguinte, no mais rigorososentido da palavra, idéias divinas".

Na classificação filosófica dos espíritos, não cabe cer-tamente a Farias a de idealista. Todavia, pela fama que oenvolve nos círculos em que floresce o britismo, seríamoslevados a considerá-lo um filósofo idealista. Tal equívocoorigina-se provavelmente da atitude sentimental de Fariasem face do que se lhe antolhava como a avassaladora ma-

DOIS LIVROS SOBRE FARIAS BRITO 243

terialidade, a dominante grosseria dos tempos modernos, afalta de idealismo da vida contemporânea, o sentido me-canicista ou determinista das explicações científicas. Êle foicontra o materialismo não porque fosse idealista, na acep-çao filosófica do termo, senão porque o materialismo, a seuparecer, trazia aquelas conseqüências.

Farias Brito pressentiu a importância da questão social,da reforma social no mundo moderno, como o testemunhaA Filosofia Moderna, publicada em 1899. A revolução mun-dial tinha-a por "necessária e inevitável". Embora doloroso,o "parto da sociedade nova" não deveria atemorizar. Porém,nem na doutrina de Comte, nem na de Spencer, nem na deMarx encontrava a solução a seu juízo adequada. Ao sócia-lismo científico, cuja crítica à organização social parecetê-lo impressionado, faltava, por exemplo, ideal. Ora, "aquestão social deve ser resolvida religiosamente em nome deum ideal. Uma grande idéia, um grande princípio moral— eis, pois, qual deve ser o ponto de partida para a reformadas sociedades, reforma sobretudo nos caracteres, reformasobretudo moral. Onde é, porém, que deve ser procuradoesse princípio? A resposta só pode ser esta: na filosofia".Pois "a filosofia é o princípio gerador da moral". SílvioRabelo mostra decisivamente a fraqueza desse raciocínio:"0 erro principal de Farias Brito, que aliás reproduz umerro de muita gente — é considerar os filósofos e suas idéiascomo diretamente responsáveis pela construção e sentido deuma época — a sua civilização e o seu espírito próprios. Ouantes, que tudo o que representa a civilização de um povoem seu conteúdo e em sua direção é um efeito necessárioda ação teórica dos filósofos. E' uma concepção inteiramenteartificial."

Farias propugnava pela reforma do homem por inter-médio da filosofia, como si a reforma social decorresse deuma crítica filosófica dos homens e da existência e não fun-damentalmente de uma mudança das condições materiaisem que os homens vivem. "Desfeitas as crenças populares,escreveu Farias, entregue o povo sem ideal e sem fé, exclu-sivamente ao império das paixões desordenadas, quem será

244 REVISTA BRASILEIRA

capaz de prever o que daí poderá vir de loucura e de ex-cessos? Toda a extravagância é imaginável, toda a cruel-dade é possível, porque sem o governo moral o homem é omais perigoso dos animais. O anarquismo, por exemplo*esta monstruosidade que é o ponto escuro da civilizaçãocontemporânea, não tem outra explicação. E' a repercussãomoral e social da confusão que se faz nos espíritos superio-res; são os paradoxos e extravagâncias do pensamento mo-derno fazendo invasão na conciência das multidões; é olivre pensamento, em seus excessos de preocupação revolu-cionária, subvertendo as camadas inferiores da sociedade".Sabe que a ciência tem operado maravilhas. Porém, seu en-tusiasmo gela-se ao veriíicar que "o número dos que sofremaumenta, em vez de diminuir, e que por toda a parte apa-recém leprosos, aleijados, mendigos e sobretudo loucos, tor-nando-se cada vez mais apavorante a estatística do crime".Quem senão a filosofia gerando a lei moral, e uma novareligião, já que as tradicionais se esgotaram, poderia intro-duzir luz e disciplina nesse caos?

Sem dúvida, a noção da importância social da filosofia— "a filosofia é mais do que conhecimento abstrato, é forçasocial, força viva" — existe na obra de Farias Brito, porém*ao expor e caracterizar essa importância, êle pensou maiscomo moralista e, pelo tom de suas imprecações, não raro*moralista provinciano, do que como filósofo. Sua atividadede filósofo coincidiu, por assim dizer, com a abertura dacrise social contemporânea. Então a filosofia, unindo o pas-sado ao presente, podia certamente ser portadora de pro-testos e de reivindicações, podia revelar sentidos e caminhose abrir perspectivas, pois isto está no seu papel. Entretanto*Farias não a elevou a essas altura. Êle amou a filosofia*viveu para ela* a ela dedicou toda uma nobre vida e, con-tudo, é bem pobre de densidade e significação sua mensa-gem filosófica.

Ouviu certa vez o rumor da revolução no mundo mo-derno e julgou-a "necessária e inevitável". Mas, desde queveste a clâmide do filósofo, parece esquecer-se da inevita-bilidade da transformação que pressentiu e, através da

DOIS LIVROS SOBRE FARIAS BRITO 245

anarquia contemporânea, não se sente capaz de pensar onovo; ei-lo, então, a refugiar-se na concepção de uma or-dem criada de si mesma pela filosofia. O drama da des-ordem sobrepuja, no seu espírito e na sua visão filosófica,o drama da transformação. Eis porque, a meu sentir, cor-rentes políticas reacionárias dele se apossaram, apresen-tando-o como o grande precursor, entre nós, da luta doespiritualismo contra o materialismo. Espiritualismo, pala-vra bonita; materialismo, palavra feia. Uma das vantagensdemagógicas do espiritualismo sobre o materialismo é queaquele nunca comporta as interpretações de que esta inter-pretação de Farias Brito pode servir de modelo: "Eis por-que de doutrina regeneradora que devia ser, logo se trans-forma o socialismo (refere-se ao socialismo marxista) emsistema de luta pela comida. Ora, luta pela comida é lutade animais. Homens só lutam, ou pelos menos só devemlutar, por ideais".

A respeito da transformação do homem pela filosofia,o pensamento de Farias não vai além de generalidadesutópicas, de votos em que a sua ingenuidade, diz Sílvio Ra-belo, "atinge um limite de saturação imprevisível", como aoaconselhar, "é preciso que se explique aos ricos que aquelesque possuem muito, devem condoer-se da miséria dos quenão possuem nada; que os que possuem demais, devem di-vidir com os pobres o excesso de sua fortuna,^ que final-mente ninguém deve nem tem o direito de acumular maisque o necessário para a satisfação de suas necessidades".

Em Farias Brito há, porém, uma fidelidade admirávelà vocação filosófica, ao debate das idéias, ao estudo dascorrentes do pensamento. Não será este certamente o me-nor dos seus méritos. Pelo contrário. Num meio de insig-nificante repercussão a tais preocupações e estudos, tendovivido a maior parte da existência na província, êle culti-vou a filosofia na solidão. Pode ter se originado daí muitoda tristeza que o invadiu de se achar nem compreendidonem correspondido nos seus trabalhos intelectuais, e o tomingênuo de apostolado que, nas horas de esperança, quisimprimir ao seu esforço.

246 REVISTA BRASILEIRA

Há defeitos na obra de Farias Brito que têm profun-das raízes provincianas. Si êle houvesse vivido desde moçono Rio de Janeiro é muito provável que tais defeitos nãoexistissem.

Não terá sido Farias Brito maior do que nô-lo revelao livro de Sílvio Rabelo?

DOIS FRAGMENTOS

San. Tiago Dantas.

Nesta grande casa de aposentos claros, onde vim mergulhar parasempre^ em mim mesmo, pergunto que nova existência me vai trazera solidão. Não sei se continuarei a querer os meus amigos, sei quehoje os seus rostos me repugnam como faces de testemunhas. Nãosei se aquelas pessoas a quem o amor ainda me liga, não estarãocaminhando imperceptivelmente para o esquecimento. Sei que vim,porque queria viver, porque estava compenetrado da incorruptibili-dade da vida e julgava que os caminhos são infinitos, e pensava quenada os pode fechar simultaneamente.

Se procurei esta grande e velha casa, foi porque há anos a adi-vinhava, no meio dos meus tormentos. Muitas vezes, nas horas pio-res, fechei os olhos e me transportei para ela, e procurei na sereni-dade das suas salas claras, o apaziguamento de que precisava.Quando afinal a solidão me foi dada, não como uma conquista, e simcomo uma fuga, procurei e encontrei aquilo que imaginava.

Nela estou há tão poucos anos, e entretanto, às vezes, cuido quenasci no quarto onde hoje durmo. A voz dos caseiros não me des-perta do grande ensimesmamento em que vivo; como as vozes dostranseuntes que cruzamos nas ruas, as deles correm por um planoestranho, sem interferir na minha existência. E nenhum deles pres-sente o meu inaceessível isolamento. As ocupações que os trazem amim, distanciam-me deles, nossas conversas só se fazem através dosobjetos que tratamos. Sinto-me bem? sinto-me mal? — Sinto-meforte.

Inútil pensar que vim para esta casa em busca do esquecimento.Nem vim esquecer os dias mais próximos, nem vim avivar as recor-dações mais distantes. E' certo que o passado foi uma graça a quedevo talvez a preservação dos meus dias, naquela hora ainda pró-sima e formidável, que não Ouso recordar. Admito que escolhi a

248 REVISTA BRASILEIRA

casa num sentimento de volta, num decidido retomo às fontes quealimentaram o meu desejo de viver.

Até onde escrevo, sobe o perfume indefinível de um quintal deoutrora. As salas guarnecidas de poucos móveis escuros e simples,fazem pensar talvez na sala de jantar da casa em que passei o tempomais incompreensível da meninice. Um pequeno muro de tijolos sempintura, com uma porta de madeira tosca, fecha bruscamente o quin-tal, e daqui, da janela, vejo as copas das árvores escuras que atrásdesse muro ensombream um pequeno pomar. Faz parte da casa, essepomar, e é nele que, às veezs, me isolo, ressentindo o arrepio dascrianças que se escondem e sabem que estão sós. Entrando no po-mar, fechando atrás de mim a porta, é como se uma inviolável mu-ralha me furtasse às vozes, aos olhares, à presença do mundo. Sin-to-me oculto (e por isso me esforço por não ser pressentido). O murode tijolos fecha dois lados do pomar; os outros dois são altas pare-des de casas vizinhas, com os beirais cortados, e as faces cobertas poruma hera espessa que lhes tira mesmo a aparência de construções.As árvores são poucas, mas velhas e frondosas; o terreiro varrido,de chão escuro e húmido, não tem grama nem folhagens; ao cantofica uma cisterna de pedra, que já não se utiliza, com a sua cobertae a sua roldana enferrujada. Junto ao poço, cujos largos bordosservem de prateleira a latas de flores, foi colocado um banco de pe-dra com um só lugar, que o serviço de muitos anos poliu e amol-gou. E' nele que me sento horas e horas, na quietude dessas árvoresque o bulício das flores e a revoada de um pássaro, não chegam aperturbar. Meu pensamento vai, num incessante e tranqüilo labor,ora mergulhando na substância dos meus dias passados, ora esclare-cendo idéias e cousas que a lida apressada com os homens não medeixara meditar.

Só as noites, outrora radiantes e cheias de vida, são hoje infe-cundas. Com o apagar dos últimos rumores, sobe em mim o senti-mento da precariedade de tudo, e um medo difuso, incerto, um pa-vor que me apresenta de relance as desgraças possíveis, deixa-me in-teiriçado, entre as paredes que me olham. Sair à varanda, contem-plar a noite, não ouso. Lembro-me incessantemente do General, eaquela atmosfera de fatalidade, que dele irradiava sobre todos os dasua casa, de novo me envolve e faz temer. Pouco a pouco a solidãoda casa se alarga, e se confunde, no meu espírito, com a solidão davelha fazenda — o Trapiche — em que duas léguas à volta não ha-via moradores. O pomar murado se transforma numa inaccessivel pa-ragem, onde nem mentalmente ouso penetrar. O sono, porém, tudoesbate. De manhã, o sol entrando pela janela, voltada para o nas-eente, enche o quarto de uma alegria palpável que me envolve, edesde cedo ponho-me a caminhar.

DOIS FRAGMENTOS 249

XXIII

Ao amanhecer, abriu os olhos brilhantes de febre, e começou ase agitar cansadamente, sob o assalto das lembranças que lhe vinhamem borbotões. Nenhuma era uma recordação quieta, que o apazi-guasse. As horas felizes, parecia-lhe que as tinha deixado fugir sempenetrar o seu último reduto de prazer, que talvez as eternizasse.As horas ingênuas pareciam-lhe furtadas a uma vida que não era asua, onde imensos refletores tudo clareavam e corrompiam. As horascriminosas oprimiam em ondas redobradas o seu coração, que esta-lava. Vinham confrangendo o seu peito, tirando-lhe o ar. Com osdedos ansiosos apalpava o corpo, e certamente o sentia miserável,inútil, pois tinha a terrível sensação de que o seu corpo jamais foraatingido pelo gozo que lhe buscara, e que era preciso aprofundarmais e mais. As idéias vinham como vaga que enchesse, refervendo.O seu espírito bruxoleante se arripiava no horror de se ver submersonaquelas águas que troavam, e quando, coberto de suor, parecia-lheque o perigo se afastara, as mesmas lembranças cresciam de novo,vindas de um fundo de sombra, e sobre êle referviam. Sua cabeça— em que já se adivinhava sob as carnes esquálidas, o pobre crâ-neo sem fisionomia em que êle se mudaria dentro em pouco — suaamargurada cabeça pendia, rolava sobre os lençóis húmidos, até queas idéias, em tumulto, de novo a invadissem, para mantê-la em ere-ção desesperada como se as veias túrgidas quisessem estalar.

Agora, seus olhos brincaram um momento como se lhe acendes-sem as pupilas as cores de uma pequena cena infantil. Logo depoisse esgazearam de novo no espetáculo da culpa, e sua chama lambeuas pessoas em torno como se buscasse uma alma que lhe desse a saídade que precisava. Houve, a seguir, um momento em que seu rosto sefechou numa contração tão amarga, sua boca se carregou de uma tãoincontida queixa, que todos nos curvamos para êle certos de que iafalar. Mas as sobrancelhas franzidas se adelgaçaram num descair deimensa tristeza, e a máscara do pranto, da angústia, do remorso, de-senhou-se no seu rosto ligada a um tão lancinante carinho, que ummesmo pensamento atravessou o espírito dos que assistiam: lembra-mo-nos da cena que êle nos contara certa tarde, na estrada dos ce-dros, à porta da casa de Alvarado, e de que êle falara, então —tal era o seu costume — sem emoção na voz, como se apenas quisesseanotar e compreender. Fora na noite do seu grande desastre; àsonze horas, êle saíra de casa, onde a solidão recém-chegada o horro-rizava, e quisera descer a pé até o "brejo", passando pela casa dosseus pais. Estariam eles dormindo àquela hora, ou talvez, insonesnos seus leitos, pensavam na desgraça daquele filho amado, dispu-tado à morte toda a infância, fulminado, de súbito, pelo raio que sô-

250 REVISTA BRASILEIRA

bre êle tombava e o decompunha. Seguira pela rua, junto aos por-toes silenciosos, abafando o ressoar dos seus próprios passos, e vira,de repente, na janela aberta, com as luzes apagadas, os dois velhosparados, mudos, de olhos fitos nas calçadas desertas, sem pressen-tirem, sequer, o infortunado que chegava. Contou-nos que se deirouficar'ali até as primeiras horas do dia, oculto por um desvão deporta, sem poder retirar os olhos das duas figuras imóveis. A ma-drugada clareava quando êle viu a mãe se afastar da janela semuma palavra e o pai, a seguir, fechou as venezianas lentamente. Ou-viu correr o pesado trinco, cujo ruído conhecia.

Embora essa história nos tivesse sido contada com frieza, am-bos pensamos nela quando a face do General se desfez naquela inac-cessível expressão de horror e de carinho, com a qual cerrou os olhos,e rolou morto nos travesseiros.

Todos os que o visitavam, e que lhe descobriam o rosto, recua-vam como se o vissem descomposto. Mas algo chamava, naquela faceque magnetizara tanto as criaturas, e não era agora o fascínio insi-dioso de outrora, era uma ternura a que a dor se sobrepunha, e queirradiava sobre todos uma aura de bondade, em meio às contraçõesdo desespero, ligando, na face do morto, a sua vida visível aos seussegredos. Mariana foi a primeira que dele se aproximou.

O ÍNDIO NA CARTA DE CAMINHA

Angyone Costa.

A não ser a referência sobre a eôr da pele, geralmente aco-breada, daqueles índios que viviam na costa, na região do Kio, Baíae Pernambuco, e na direção de São Vicente, referência acompa-nhada de uma alusão aos cabelos lisos e ao corpo bem conformado,pouco nos deixaram os padres da catequese em condições de per-mitir reconstituirmos o verdadeiro retrato físico das tribus tupis-guaranis do litoral do Brasil.

Na primeira e mais completa descrição que nos ficou, descri-ção inserta nessa página de enamorado da terra que é a Carta dePero Vaz Caminha a El-Bei Dom Manuel de Portugal, encontrámoso homem, vêmo-lo na singeleza de sua vida rude, que tanto sedu-ziria, mais tarde, o espírito de Montesquieu, mas nela não é possí-vel encontrar suficientes detalhes para uma perfeita reconstitui-ção do tipo à luz da etnologia.

A carta famosa é poema e fonte de história, inspiração de puraveia lírica servida por inteligência de ouro que para tudo se abriae se voltava, criação de um espírito compreensivo, tanto quanto pos-sível erudito, profundamente humano. Mas vivia no albor do sé-culo XVI e só podia servir-se dos conhecimentos escassos que o sé-culo XVI lhe oferecia. Daí o muito que nos ensinou, mas a parteainda maior daquilo que não pôde ensinar, não por culpa sua, maspelas próprias condições em que se incorporavam os conhecimen-tos do tempo.

A Carta de Pero Vaz Caminha é a primeira lição de geogra-fia e a crônica mais antiga da nossa terra:"E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, atéque terça-feira das Oitavas da Páscoa, que foram 21 dias de abril,topámos alguns sinais de terra... "E quarta-feira seguinte, pelamanhã, topámos aves a que chamam furabuchos... "Neste mesmodia à hora de véspera, houvemos vista de terra!... "E quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos em direitura à terra,indo os navios pequenos adiante — por dezassete, dezasseis, quinze,

252 REVISTA BRASILEIRA

quatorze, doze, nove braças — até meia légua da terra, onde todoslançámos âncora em frente da boca de um rio. E chegaríamos aesta ancoragem às dez horas, pouco mais ou menos..." E dali avis-támos homens que andavam pela praia, uns sete ou oito, segundodisseram os navios pequenos que chegaram primeiro".

São estes sete ou oito homens, os primeiros filhos da terra deVera-Cruz que os portugueses avistam. "Então, prossegue Cami-nha, lançámos fora os batéis e esquifes. E logo vieram todos osCapitães das naus a esta nau do Capitão-Mor. E ali falaram, e oCapitão mandou em terra a Nicolau Coelho para ver aquele rio.E tanto êle começou a ir-se para lá, acudiram pela praia homens,aos dois e aos três, de maneira que, quando o batei chegou à bocado rio, já lá estavam dezoito ou vinte".

"Pardos, nus, sem cousa alguma que lhes cobrisse suas vergo-nhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rija-mente em direção ao batei. E Nicolau Coelho lhes fez sinal quepousassem os arcos. E eles os depuseram. Mas não pôde deles haverfala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar nacosta..." A noite seguinte ventou tanto sueste com chuvaceirosque fez caçar as naus... "E sexta-feira pela manhã, às oito horas,pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o Capitãolevantar âncoras e fazer velas... "E quando fizemos vela, esta-riam já na praia assentados, perto do rio obra de sessenta ou se-tenta homens que se haviam juntado ali aos poucos"...

No segundo dia de posse da terra, sexta-feira, os homens jásão sessenta ou setenta, que se mostram à tripulação de Cabrale a que se refere Caminha. Mas Caminha continua deslumbradopor todas as cousas novas que seus olhos vêem pela primeira vez.E, mareando, aproximadamente, o número de homens da terra des-coberta, o escrivão enfeitiçado com o que vê, prossegue na narra-ção: "A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, debons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus sem coberturaalguma. Nem fazem mais caso de cobrir ou deixar de encobrirsuas-vergonhas do que de mostrar a cara. A cêrea disso são degrande inocência. Ambos traziam o beiço de baixo furado, e me-tido nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão tra-vessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta comoum furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parteque lhes fica entre o beiço e os dentes é feita a modo de roque-de-xadrez. E trazem-no ali encaixado de sorte que não os magoa, nemlhes põe estorvo no falar, nem no comer e beber".Vaz Caminha reflete e cisma sobre a eôr do índio, para depoisdescreve-la. E dirá, sob a impressão profunda que se apodera dohomem branco, diante da côr do homem de outra raça, que "a fèi-çao deles é serem pardos, um tanto avermelhados". Este averme-

1

0 ÍNDIO NA CARTA DE CAMINHA 253

lhado, posto aí, ainda é poesia e ternura do cronista, querendo es-tabelecer um plano de aproximação entre as duas raças que seavistam pela primeira vez. Resulta do preconceito que levará daípor diante o homem branco a chamar sempre de vermelho o homemamericano. Aquele vermelho que Caminha divisa na pele aco-breada do índio será o mesmo vermelho que outros descobridores,cronistas e escritores, portugueses e espanhóis, irão revelar aomundo, dando um detalhe falso sobre o matiz bronzeado do índio.O europeu jamais compreendeu ou quis compreender a côr do ho-mem americano. Atribuiu-lhe, no primeiro encontro, um vermelhoque só a cruza do homem branco deita sobre a epiderme. Depoisde Caminha, milhares de outros homens descreveram o tipo ameri-cano, mas todos, em geral, continuaram a vê-lo vermelho, o quehoje sabemos não ser verdade.

"Os cabelos deles são corredios. E usam tosquiados, de tosquiaalta, antes do que sôbre-pente, de boa grandeza, rapados todaviapor cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da covinha, defonte a fonte, na parte detrás, uma espécie de cabeleira de pena deave amarela, que seria do comprimento de um coto, mui basta emui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas, e andava pe-gado aos cabelos, pena por pena, com uma confeição branda comocera, de maneira tal que a cabeleira era mui redonda e mui basta,e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar".

E' o detalhe do cabelo e do penteado, que impressionaria tan-tos outros navegadores, mais tarde, pela exquisitice do corte e pelasua qualidade a abundância. O cabelo realmente era liso e corre-dio, mas de grande diâmetro em corte transverso, que é uma ca-racterística dos lissótricos americanos e de seus avós mongólicos.O penteado seria aquele mesmo, "tosquiado, de tosquia alta", "ra-pados todavia por cima das orelhas", tal qual velhas gravuras re-produziram, em modelos que parecem ter sido adotados, moderna-mente, por certas raças que se dizem supercivilizadas e dominado-ras... Parece que o índio tinha a preocupação de defender o pavi-lhão auditivo, seu melhor instrumento de percepção dotado de acui-dade tão sensível que registrava os sons a grandes distâncias atra-vés da mata.

Caminha prossegue a exposição para nos informar que o nú-mero de índios vistos naqueles dias aumentou. Estaremos na pre-senea de maior número, logo adiante: "Sábado pela manhã man-dou o Capitão fazer vela... "Fomos assim de frecha direitos àpraia. Ali acudiram logo perto de duzentos homens todos nus, comarcos e setas nas mãos... "E passaram um rio que por ali corre, deágua doce, de muita água que lhes dava pelas brilhas. E muitosoutros com eles... "E então se começaram de chegar muitos..."E andava, lá outros, quartejados de cores, a saber metade deles

254 REVISTA BRASILEIRA

da sna própria côr e metade de pintura preta, um tanto azulada;e ainda outros quartejados d'escaques... "Ali andavam entre elestrês ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muitopretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas tara. altas e tam.cerradinhas e tam limpas das cabeleiras que, de as nós muito bemolharmos não se envergonhavam... "E umas daquelas moças eratoda tingida, de baixo acima, daquela tintura, e certo era tambem feita, e tam redonda a sua vergonha (que ela não tinha) tamgraciosa, que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais fei-ções, envergonhara, por não terem as suas como ela. Nenhum delesera fanado, mas todos assim como nós.

E com isto nos tornámos, e eles foram-se".Neste episódio ressalta a afirmação de que as moças que Ca-

minha encontra, pela primeira vez em nossa terra, das quais ofe-rece retrato tão apaixonado, não acusavam pejo de serem vistasnuas. O que coloca naquela alma tanto espanto, será depois verifi-cado e virá a constituir uma tese, que é a sustentação de que oíndio não tem o pudor do corpo, por isso que este sentimento éproduto de educação, não se origina de uma lei natural. Não ti-nham as índias de que se vexarem por que Caminha as olhava,muito embora' este devesse olhá-las com olhos que verrumavam,porque viam e guardavam tudo, e tão úteis viriam a ser para aposteridade.

Vem depois o episódio da missa, no domingo da Pascoela, ondenovos índios se apresentam aos olhos da tripulação deslumbrada:"Enquanto assistíamos à missa e ao sermão, estaria na praia outratanta gente, pouco mais ou menos como a de ontem com seus arcose setas, e andava folgando... "Anda lá um que falava muito aosoutros, que se afastassem... "Estava tinto de tintura vermelhapelos peitos e costas e pelos quadris, coxas e pernas até baixo, masos vazios com a barriga e estômago eram de sua própria côr. E atintura era tam vermelha que a água lha não comia nem desfazia.Antes quando saía da água era mais vermelha".

Neste e no episódio seguinte, expressa o cronista a sua admi-ração pela pintura de que homens e mulheres faziam garbo, quepara êle devia apenas constituir elemento de faceirice, mas que aetnologia ensinou depois ser uso comum entre tribus da América,com significado vário, pelo menos de três origens: faceirice, defesahigiênica e totemismo. Insiste também no detalhe das "suas ver-gonhas tam nuas, e com tanta inocência descobertas", prova de quea libido naquela alma cristã era um tormento acicateante da carne.As viagens eram tão longas, as mulheres ficavam tão distantes, queà vista das primeiras, Caminha não titubeará em julgá-las maisbonitas que as de Lisboa. Para esses homens encurralados no des-conforto das naus, vencendo tantos perigos, aquelas índias apare-

0 ÍNDIO NA CARTA DE CAMINHA 255

cendo na praia seriam Venus surgindo das vagas. O cenário dá-lheao pensamento a força poética do verso camoneano:"Nuas por entre o mato, aos olhos dandoO que às mãos cobiçosas vão negando".

E adianta: "E então tornou-se o capitão para aquém do rio.E logo acudiram muitos à beira dele..."Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, e quarte-jados, assim pelos corpos como pelas pernas, que certo, assim pa-reciam bem. Também andavam entre eles quatro ou cinco mulhe-res novas, que assim nuas não pareciam mal. Entre elas andavauma com uma coxa, do joelho até o quadril e a nádega, toda tingidadaquela tintura preta; e todo o resto da sua côr natural. Outratrazia ambos os joelhos com as curvas assim tintas; e também oscolos dos pés; e suas vergonhas tam nuas, e com tanta inocênciadescobertas, que não havia nisso desvergonha alguma"."Também andava lá outra mulher, nova, com um menino ouuma menina, atada com um pano (não sei de que) aos peitos, demodo que não se lhe viam senão as perninhas. Mas nas pernas damãe, e no resto não havia pano algum".

E' costume ainda hoje em uso entre a maioria das índias ame-ricanas, conduzirem o filho atado às costas ou à esguelha, com êlese locomovendo para todos os lados, na posse de uma absoluta li-herdade de movimentos. Há pouco tempo presenceámos, na Bolí-via e no Peru, várias serranas, cem por cento sangue índio, a rea-lizarem os mais rápidos e difíceis exercícios naquela postura, agindocom absoluta agilidade de movimentos. E' a este uso que Vaz Ca-minha faz referência na descrição do seu poema sobre as terrasdo Brasil.

A seguir, retorna a carta: "E além do rio andavam muitosdeles, dansando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarempelas mãos. E faziam-no bem..." Detalhe que nos diz como essastribus brasileiras eram felizes e enchiam o seu tempo com alegria."Segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a to-mar água. Ali vieram então muitos; mas não tantos como as ou-trás vezes. E traziam já muitos poucos arcos. E estiveram umpouco afastado de nós; mas depois pouco a pouco misturaram-seconosco; e abraçavam-nos e folgavam; mas alguns deles se esqui-vavam logo... "Neste dia os vimos mais de perto e mais à nossavontade, por andarmos quasi todos misturados, uns andavam quar-tejados daquelas tinturas, outros de metades, outros de tanta fei-ção como em pano de Rás, e todos com os beiços furados, muitoscom os ossos neles, e bastantes sem ossos. Alguns traziam uns ou-riços verdes, d'árvores que na côr queriam parecer de castanhei-

256 REVISTA BRASILEIRA

ros, embora fossem muito mais pequenos. E estavam cheios deuns grãos vermelhos, pequeninos que, esmagando-os entre os dedos,se desfaziam na tinta muito vermelha de que andavam tingidos..."Todos andavam rapados até por cima das orelhas; assim mesmode sobrancelhas e pestanas... "Trazem todos as testas, de fonte afonte, tintas de tintura preta, que parece uma fita preta de largurade dous dedos".

E ainda novos detalhes, que dão idéia da quantidade de ín-dios avistada pela naus: "Terça-feira, depois de comer, fomos emterra, fazer lenha e para lavar roupa. Estavam na praia, quandochegámos, uns sessenta ou setenta, sem arcos e sem nada... "E de-pois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos..."Quarta-feira não fomos em terra, porque o Capitão andou todoo dia no navio dos mantimentos a despejá-lo e fazer levar às nausisso que cada um podia levar. Eles acudiram à praia; muitos, se-gundo das naus vimos. Seriam perto de trezentos, segundo disseSancho de Toar que para lá foi... "Andariam na praia, quandosaímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir mais.E parece-me que viriam este dia à praia quatrocentos ou quatrocen-tos e cincoenta. Alguns deles traziam arcos e setas; e deram tudoem troca de carapuças e por qualquer cousa que lhes davam".

"E hoje que é sexta-feira primeiro dia de maio, pela manhã,saímos em terra com nossa bandeira;... "Eram já aí quantidadedeles, uns setenta ou oitenta... "Passamos o rio, ao longo dapraia;... "Andando-se ali nisto viriam bem cento e cincoenta, oumais... "Ali disse missa o padre Frei Henrique, a qual foi can-tada e oficiada... "Ali estiveram conosco, assistindo a ela, pertode cincoenta ou sessenta deles, assentados todos de joelhos, assimcomo nós... "E quando levantaram a Deus, que nos pusemos dejoelhos eles se puseram todos assim como nós estávamos com asmãos levantadas, em tal maneira sossegados, que certifico a VossaAlteza que nos fez muita devoção".

O detalhe na observação de Caminha é esgotante, como capa-cidade de ver e transmitir, mas não poderá ir além dos limites cria-dos pela circunstância do encontro. Os padres evitavam, tantoquanto possível, conviver na intimidade do índio. Davam-lhe pro-teção e agasalho. Catequizavam-no para a doutrina e a sociedade,atraindo-o e fazendo-o assimilar os benefícios da vida cristã.Agiam, porém, sob formas rígidas, que impunham a disciplina enão puderam, por isso mesmo, nem saberiam, talvez, fixar do pontode vista morfológico, os caracteres do povo que o destino lhes pu-será no caminho. Pela descrição do cronista não poderemos conhe-cer as medidas do tronco, dos braços, das pernas, a conformação dacabeça, as linhas faciais, a disposição dos olhos, do nariz, das ore-lhas, etc, mas o detalhe da devoção; que o branco presume desço-

T"^*7*-

0 ÍNDIO NA CARTA DE CAMINHA 257

lue rV^VÍCará eSb°Çad0 e Se estenderá Pelos amPlos «Perfodosque a Carta insere a seguir, até que, plenamente convencido dedesce as realidades da natureza, que seus olhos não cessam de admi-rar^e deixa-nos o pequeno primor de descrição, retrato da terra do

t™ n"SíVemi' f^0^ Parece"me W ^ P°nta que mais con-n/« af£ -TV e a °Utra P°nta que contra ° Norte vem, de quevinte on^.^T

™^ *"* tamanha <*ue haTCri ^ •>«*vinte ou vinte e cinco léguas de costa. Traz ao longo do mar emalgumas partes grandes barreiras, umas vermelhas, e outras braTcas; e a terra de cima toda chã e muito cheia de grandes arvore-dos. De ponta a ponta é toda praia muito chã e muito formosa.Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande; porque a es-tender olhos não podíamos ver senão terra e arvoredos, terra quenos parecia muito extensa". 4Logo depois, Caminha não esquecerá de falar na grande pre-ocupação que ma, do século seguinte por diante, alucinar a ima-gmaçao de portugueses e espanhóis, o ouro, a prata, ou outracousa de metal ou ferro, que confessa, não lhe vimos. Mas paraque esta decepção não mareie o brilho da narrativa e entristeça aalegria do achado, deixa cair da pena a frase famosa e comovedora:"Contudo a terra em si é de muitos bons ares, frescos e tem-perados como os de Entre-Douro e Minho, porque neste tempo deagora assim os achávamos como os de lá. As águas são muitas, in-imitas .

E o remate, em água-forte: "Em tal maneira é graciosa quequerendo-a aproveitar, dar-se-á nela, tudo; por causa das águasque tem".

Termina aqui a descrição, propriamente, da Carta, no que serefere ao homem é à terra. A quantidade de homens vista serácalculada, somada, e saberemos que muita gente devia viver na-quele paraíso para que, em tão pequena nesga de litoral, pudessemser avistados tantos índios. De mil quatrocentos e vinte três a milquinhentos e dezoito será o número de índios que Caminha real-mente viu, ou pensa ter visto, pelo cálculo numérico feito sobre osnativos que iam aparecendo pela praia, cada dia, e que êle ia pro-curando, tanto quanto possível, calcular certo, contar e reter dememória, para narrar a El-Rei. De que moravam pouco para den-tro da praia, não haverá mais dúvida, conforme logo verificaram osdois degredados, mandados dormir na maloca, pelo Capitão dasnaus.

Mas a Carta que pinta quadros da terra, transmite detalhesdo índio, da índia, da vida em comum, dos hábitos e costumes, daindumentária e da casa, não poderia fechar sem uma nova refe-17

258 REVISTA BRASILEIRA

rência ao plano espiritual. E assim o entendendo, embora não pos-samos aprofundar até onde chegaria, naquele pagão enamorado danatureza, o sentimento da fé religiosa, lá volta êle, untuoso e mis-tico: "Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-meque será salvar esta gente. E esta deve ser a principal sementeque Vossa Alteza em ela deve lançar. E que não houvesse maisdo que ter Vossa Alteza aqui esta pousada para essa navegação deCalecut, bastava. Quanto mais, disposição para se nela cumprir efazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento danossa santa fé".

E a seguir, Vaz Caminha se desculpa, perante o Rei da Cartaser grande, justificando-a daquele tamanho, pelo desejo que tinhade tudo dizer, concluindo com a mercê solicitada para o genroJorge de Osório ser removido da ilha de São Tome, súplica final,que não tira da nossa primeira e vigorosa página literária, a in-tenção de ato de recomendar, obter melhoria de emprego, o que po-dera levar, mais tarde, os espíritos maliciosos a dizerem, sem desres-peito pelo admirável narrador, nosso primeiro homem de letras,que, com esse documento, se iniciou, no Brasil, o regime do afilha-dismo nas posições oficiais.

A Carta, sendo um poema, é a primeira página de letras doBrasil. E tanta observação traz em seu bojo, que é notícia geográ-fica eopiosa e relato exaustivo sobre o homem. E também descri-ção detalhada e paisagística de matas e praias que à vista das nausaparecem. Tudo está observado e descrito. Não há segredos paraaquela inteligência luminosa, nem há mimicias a que sua pena nãose atenha. Sendo tudo isto, ainda a Carta de Pero Vaz Caminhaé a primeira tentativa de eenso feita no jovem Brasil.

BIBLIOGRAFIA

CAMINHA (Pero Vaz de) — Versão em linguagem atual, com anotações daDoutora D. Carolina Michaêlis de Vasconcelos, professora de Filologiana Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra — História da Co-lonização Portuguesa, 2.° volume — Edição monumental comemorativa doprimeiro centenário da independência do Brasil — Direção e coordenaçãoliterária de Carlos Malheiro Dias — Litografia Nacional — Porto,MCMXXIII.

NOTÍCIAS

INFORMAÇÕES LITERÁRIAS

perseverança nesse método. Acredit d esto n T' "* ^^ peIa-a. «m, idílica, p»rtr Lfrirr^r ?ico* poder"i,,,

anatomista das ldeias, que se compraz no ofício de dissecar.. Desmontandoos livros, os críticos mostram como eles são por dentro... o matéria! daue

2 wlT 0Sh6rS"08'rSta " tM'to «- « •***>*- - « *atSdemais profunda e obscura. Contudo, ao lado da crítica, no plano da cultura há

tZ2 n ; '

rlganza«ã0 literária> « ° registro dos fenômenos culturais.Enquanto os críticos fazem a análise, o noticiarista e o vulgarizador fazem síntese

S L Tt%agütÍnam ° ^^ ^ aqUdGS dÍSS0dam' sele--m e cllhoT2Jr 1

CaS0, ^ ^^ informa^° Geraria, quando realizada comhonesüdade e discernimento, há um sentido crítico. A simples escolha das obrase dos autores a citar constitue uma atitude crítica do espírito. Nem seria pos-informa ÍT^ ^ ^^ ** "^ ^^ ^ t0™* P0s^o Autformaçao literária nao é, não pode ser um simples catálogo de livros ou uminero inventario de autores. A informação literária, em uma revista de cultura,tem sem dúvida uma alta importância, porque tem um sentido de orientação eesclarecimento. Poderíamos dizer, para utilizar uma linguagem cara à atualidadepolítica do mundo, que aquilo que se deve fazer hoje nesse terreno é uma "infor-maçao dirigida». Quer dizer: uma informação crítica, uma informaçãoesclarecedora e orientadora. Nem cremos que tenha sido outra a intenção dailustre direção da Revista Brasileira, incumbindo-nos de fazer esta página deinformação literária.

- Um acontecimento particularmente significativo para a cultura brasi-feira : a "Brasiliana», publicando a Geologia e geografia física do Brasil, deCharles Frederick Hart, atingiu o seu 200.» volume. E para celebrar tal fato

260 REVISTA BRASILEIRA

a coleção se enriqueceu este ano de alguns livros que merecem atenção: Pequenahistória das artes plásticas, de Carlos Rubens; O Brasil na lenda e na carto-

grafia antiga, de Gustavo Barroso; Ensaios ãe geografia lingüística, de Eugêniode Castro; Órganisação política e administrativa ão Brasil, de A. Tavares deLira; Do rancho ao palácio, de Otoniel Mota; O Brasil e os Brasileiros, deO. P. Kidder e J. C. Fleton; e A raça da Lagoa Santa, de Aníbal Matos.

De Minas nos veio este ano uma coleção de livros de fisionomia gráficae literária muito amável: Os livros nossos amigos, O mameluco Boaventura eA ilusão literária (reedição), de Eduardo Frieiro; e Papini, Piranâello e outros,de Oscar Mendes.

Festejando o jubileu literário de Cláudio de Souza, que tão simpática,repercussão teve na Academia e no Pen Club, o sr. Homem de Barro publicouum curioso ensaio sobre o autor de Flores da sombra.

A Associação dos Artistas Brasileiros assinalou suas atividades cultu-rais deste ano com uma iniciativa do mais palpitante interesse: substituiu as-conferências por debates públicos em torno de determinados temas. Foi assimque se realizaram, sob a sua prestigiosa orientação, "entretiens" sobre Bonal«ide Carvalho, a pintura moderna, á arquitetura e o desenho infantil. Tomaram,parte nesses debates, tão vivos e tão interessantes, os srs. Renato Almeida,.Ribeiro Couto, Odilo Costa Filho, Teixeira Soares, Austregésilo de Ataíde,,Lourenço Pilho, Celso Kelly, José Teódulo, Paulo Camargo, Georgina Albu-querque, Amadeu Amaral Júnior e M. Pimentel Brandão.

Também por iniciativa da Associação dos Artistas Brasileiros realizou--se este ano uma exposição de quadros de João Ribeiro. Pouca gente sabia,entre nós, que o ilustre polígrafo havia sido pintor, e a exposição de seusquadros — doze ao todo — veio revelar mais um aspecto interessante docomplexo espírito, tão numeroso e tão surpreendente, do autor do Faborãão.O sr. Múcio Leão, da Academia de Letras, fez, durante essa exposição, umaadmirável conferência — muito rica de documento e informação — sobre "A

pintura de João Ribeiro".

Anuncia-se de Reeife a próxima ou recente publicação de alguns livros,da sua gente mais nova: Ensaios ãe crítica ãe poesia, do sr. Octavio de FreitasJúnior; Um filósofo reacionário, do sr. Newton Sucupira; Um homem pulandono escuro, do sr. João Cabral de Melo; Poemas, de Cláudio Tuiutí TavaresjNa rua ãos la/mpeões apagaãos, de Breno Acioli.

O sr. Luiz Novelli Júnior — médico cujas atividades literárias eramaté aqui completamente silenciosas e ignoradas — vai dar-nos por estes diasa surpresa de um romance de costumes — Santa Clara (Edição de "A Noite").

Outro médico cujas inclinações literárias pouca gente conhecia noBrasil, o dr. Nobre de Melo, entregou à Livraria José Olímpio Editora osoriginais de um ensaio sobre Augusto ãos Anjos.

NOTÍCIAS 261

üffi~nEpre aS. estréias literárias deste ano merece destaque especial a do sr

(Edtçao Jose Ohmpio). Oficial do Exército, o sr. ümberto Peregrino fazia acrítica hterána da revista "A Defesa Nacional" , fizera o elogio dEuZL%££££*?ie Bw8rafia e HUt6ria MUiter- «*«CbriC te f

° e CnSaíSta ^ 8Ua ClaSSe- Mas a sua estréia -» ^ão -

itfarte ^t^^T1 ^ QU6Ír0Z' alêm da 2-* edÍÇã° d0 roman<" * Wík<ww, vai dar-nos proximamente um livro de contos.

livT,TlEStá anUn,CÍad° ° aParedment0 (Edição José Olímpio) de um novoimo de poemas do sr. Augusto Frederico Schmidt: Mar DescolkZdo

+aíln7 D° Sr' N?°a Werneck Sodré ~ ° <*"*° literário do "Correio Paulis-tano e o ensaísta do Panorama do Secundo Império - vamos ter aTda*ZZS*ZÍTa -*~de ^ °~ ^

* PuwJr^fU Uma mTtka alegIÍa eSpÍrÍtUal Para ° leitor brasileiro

! 1 T Uma S6gUnda edÍÇã° revista e> Portajlto> e^o^^a dos erros« falhas da primeira, do romance Angústia do sr. Graciliano Ramos.

livro^ntrf6/0 m;^°^0ãerno é ° títul° ^ tfttf palpitante atualidade, dolivro do Padre Leonel da Franca, cuja 2.» edição foi posta à venda.

Da sra. Rosalina Coelho Lisboa, cujo silêncio literário foi tão prolon-Sado, anuncia-se para o próximo ano um romance: Esta nossa gente do Brasü.A Livraria José Olímpio acaba de publicar a 1.» série do Jornal ãe Crítica¦ao sr. Álvaro Lins.O lôãó âas ruas é o nome do romance, em 2 volumes, que o sr. Octávioda Faria vai publicar no começo do ano próximo.Acaba de aparecer - Edição José Olímpio - um novo romance do sr.José Lms do Rego: Água mãe.Da sua atividade diária de imprensa, tão viva e tão interessante, oprofessor Maurício de Medeiros recolheu um curioso volume de reflexões e«omentários da maior atualidade: Folhas secas.

Do st. Osvaldo Orico, da Academia Brasileira, que publicou recentementeuma reedição portuguesa de seus contos sob o título de Joana Maluca e um belovolume de estudos luso-brasileiros intitulado: Ã sombra dos Jerônimos,vamos ter agora uma série de discursos acadêmicos: Orações na Acrópole.Dois fatos extremamente significativos devem ser assinalados: a

permanência entre nós de alguns notáveis professores de Cambridge e Oxford

262 REVISTA BRASILEIRA

realizando Cursos na Sociedade de Cultura Inglesa e a visita de inúmerosescritores e pesquisadores norte-americanos, que vieram estudar nossa vida,nossos costumes e nossa literatura. Alguns desses estudiosos estrangeirosobtiveram autorização para traduzir várias obras (brasileiras, sendo quemuitos deles vão lançar nos EstadosVCnidos antologias para adultos e paracrianças dos autores mais típicos do Brasil.

O sr. Almir de Andrade iniciou a publicação de uma obra considerável

pela extensão e pelo sentido: Formação ãa Sociologia Brasileira. Já apareceuo 1.° volume — Os primeiros estuãos sociais no Brasil e está anunciado o2.° — Os últimos estuãos sociais no Brasil.

Livros do sr. Gilberto Freire anunciados para breve: Casa Grande eSenzala (edição definitiva); Ordem e progresso; Perfil ãe Eucliães da Cunhae outros perfis; Pessoas, coisas e animais; e Guias práticos históricos e senti-mentais das cidades de Eecife e Olinda (ilustração de Luiz Jardim).

A sra. Maria Eugênia Celso deu-nos este ano um delicioso livro — ODiário de Ana Lúcia.

O Desconhecido é o nome da novela que o sr. Lúcio Cardoso publicoueste ano.

Coligidas, copiadas e anotadas pelo sr. Augusto de Lima Júnior, forampublicadas este ano as Cartas ãe D. Pedro 1 a D. João VI relativas à Inde-pendência do Brasil.

Um poeta da Venezuela, o sr. José Miguel Ferrer, publicou, no Eio,um bonito livro de poesia: La Bella dei Brasil y otros poemas.

Não se pode deixar de situar entre os livros mais importantes quesurgiram entre nós ultimamente o do sr. Sílvio Eabêlo sobre Farias Brito ouuma aventura ão espírito. Fazendo uma severa revisão da atitude da inteli-gência brasileira em, face de Farias Brito, cuja posição de pensador procuradefinir e limitar, o livro do sr. Sílvio Eabelo tem desencadeado vivos debatese amplas controvérsias. Em todo caso, mesmo sem concordar com as suasconclusões, não se pode contestar que se trata de livro sério e oportuno.

A Livraria José Olímpio Editora vai publicar, na "Coleção DocumentosBrasileiros", um livro do maior interesse histórico para o Brasil: Memóriaspolíticas (O Ministério da Abolição e o Epílogo do Império), do ConselheiroJoão Alfredo, texto organizado e comentado pelo sr. Pedro Moniz de Aragão.

O sr. Luiz Martins deu-nos este ano dois livros significativos: umromance — Fasenda, e um ensaio sobre — Almeida Júnior.

A coméãia literária é o título do livro em que o sr. Osório Borba, como seu vivo espírito de demolição e de luta, reuniu os artigos de crítica e depolêmica publicados na imprensa do Eio.

notícias 263

Negrinho ão Pastoreio é o novo livro de estampas para crianças qneo desenhista Paulo Werneck acaba de publicar. * Q

com^t ^VrarÍapJ<JSé °IímPio m*°™ vai publicar em nm volume as Poesiascompletas do sr. Carlos Drummond de Andrade.

Chega-nos do Pará, coroado com o Prêmio Literário do «Dom Casmurro»Jurando0

""""^ regÍ01iah ^ ^ eOmp0a ãe CaMa> do sr* Dalcídio

RflmTi, Iambtv C°ntemplad0 coni êsse m<*™ Prêmio Literário, o sr. ClovisRamalhete publicou um romance: Ciranda.

**>- r*ü\ inlciativa d0 sr* Luiz <*<* Câmara Cascudo foi fundada em Natalum Sociedade Brasileira de Folclore.

Em tradução inglesa, deve aparecer brevemente nos Estados-Unidos umhvro brasileiro para crianças: O tatu e o macaco, do sr. Luiz Jardim.Tivemos este ano uma 3.» edição do romance da sra. Carolina Nabuco-A sucessora.

-Canções ãcs sete cores é o nome do livro de poesias que o sr. OliveiraRibeiro Neto acaba de publicar.O sr. Erieo Veríssimo trouxe dos Estados-Unidos um novo romance: Umgato preto sobre a neve.De Porto-Alegre mandou-nos o sr. De Sousa Júnior, este ano, mais umromance: Um clarão rasgou o céu.O professor Aloysio de Castro, da Academia Brasileira, reuniu este anoem um belo volume os seus admiráveis Discursos Médicos, que são tambémorações acadêmicas do melhor quilate.De volta de sua viagem a Portugal e colônias o sr. Arnon de Melo pu-blicou um livro de impressões do mais vivo interesse: África.A Livraria José Olímpio Editora publicou este ano um livro de JoãoLuso: Orações e palestras.Os discursos admiráveis de Alcântara Machado, formando um sólido ebelo volume, foram publicados este ano sob o título de Alocuções acaãêmicas.O romancista Lúcio Cardoso publicou este ano um livro de poemas:Poesias.

Do sr. José Jobim tivemos um livro muito útil e curioso: História dasindústrias no Brasil.

No terreno da ficção o grande acontecimento do ano foi o romance dosr. Gilberto Amado — Inocentes e culpados, cuja publicação constituiu ao

264 REVISTA BRASILEIRA

mesmo tempo um sucesso de crítica e um sucesso de livraria. Esgotaram^ duas

edições sucessivas do livro e a crítica o debateu com muito interesse e vivacidade.

Poucos livros no Brasil feráo alcançado o êxito excepcional de Idade,

sexo e tempo, do sr. Tristão de Ataíde, cuja 4.» edição acaba de ser posta à

venda.

Do sr. Eloi Pontes teremos breve mais uma biografia: A vida exuberantede Olavo Bilac.

O dr. Ulisses Paranhos, de S. Paulo, publicou um curioso ensaio sobre:Os desequilibrados na obra de Machado de Assis.

O espírito militar na questão acreana é o título do ensaio histórico

publicado pelo sr. Castilhos Goycochêa.

Merece referência especial um fenômeno muito expressivo que se temobservado ultimamente nas atividades das grandes casas editoras do Brasil:a rehabilitação da tradução. As nossas editoras mais importantes, e particu-larmente a Livraria José Olímpio, têm entregue a tradução dos livros estran-geiros que publica a escritores da mais alta categoria literária. Issocoincide de resto com uma seleção mais severa dos próprios livros e autoresa traduzir. Daí vermos anunciados livros de Tolstoi, Dostoiewski, Proust,Anatole France, Thomaz Mann, Ludwig, Bemarque, «Tules Bomain, MaraSon,Upton Sinclair, Wells, Chesterton, Shaw, Kipling, Conrad, traduzidos porTristão de Ataíde, Genolino Amado, Lúcio Cardoso, Baimundo MagalhãesJúnior, Ana Mauríeio de Medeiros, Tasso da Silveira, Almir de Andrade,Brito Broca, Baquel de Queiroz, Gastão Cruls, Amando Fontes, Oscar Mendes,Adalgisa Nery, Osório Borba, J. de Melo e Sousa, etc.

No silêncio e na modéstia da sua província, o sr. Martins Napoleãoestá realizando uma obra considerável de poeta e prosador. Além dos seuaensaios sobre Étimos incertos da língua portuguesa, O sentimento brasileirona poesia de Bilac, Do latim castrense ao romance, O Nordeste e as grandesãitretrizes da educação popular, Influência ãantesca na obra ãe Camõe\s, o.escritor piauiense publicara nos últimos anos três livros de poemas: Copaãe Êbano, Poemas ocultos e Poemas da terra selvagem. É ainda desse beloe ilustre poeta que nos chega neste momento mais um livro de poesias: Cami-nhos da Vida e da Morte (Piauí — 1941).

O sr. Josué Montelo, que nos deu este ano um interessante romanceda vida de Província — Janelas Fechadas — promete-nos agora um estudobio-bibliográfico sobre "Aluizio Azevedo".

Bonda ãe fogo é o nome do livro de contos de Cací CordoVal quéacaba de aparecer em edição da Livraria José Olímpio.

Depois de nos ter >. dado alguns livros de literatura regional do mais

NOTICIAS 265

vivo colorido - Tigipió, Garimpos, A Mãe d'Água - o sr. Herman Limadeu-nos este ano um de impressões de viagem: Na ilha de John Buli.O sr. J. Paulo de Medeiros, que tem feito ultimamente algumastraduções de livros argentinos, publicou há pouco uma tese histórica sobreA Missão ão General Mitre no Brasil.Vários livros de poesias nos têm chegado nos últimos tempos dosEstados: Prisioneira da noite da sra. Henriqueta Lisboa; Lume ãe estrelas, doar. Alfonsus Guimarães Pilho (Minas); A sombra ão mundo do sr. OdoricoTavares (Pernambuco); Presença do sr. Carlos Eduardo (Baía); Integraçãodo sr. Eduardo Maírtins (Paraíba); Canto ão canavial, do sr. Benilde Dantas

(Rio G. do Norte); Poemas ãe bolso do sr. Vicente do Rego Monteiro (Pernam-buco); Trágico amanhecer do sr. Aloísio Medeiros (Ceará); Mar e outrospoemas do sr. Hélio Simões (Baía).

O saudoso escritor Raimundo Lopes, do Museu Nacional, deixoupronto para o prelo um livro da maior importância: Geografia Humana ãaAmérica.

A romaneista Diná Silveira de Queiroz, ao lado de mais uma ediçãodo livro Floraãas na Serra, publicou este ano um volume de contos: A sereiaverde.

Inspirado na hitória da Inconfidência Mineira, o sr. RaimundoMagalhães Júnior trabalha neste momento numa peça histórica: Emerendana,evocando a figura de uma irmã de Marília.

O sr. Tasso da Silveira fez este ano a sua estréia na ficção publi-cando um romance.

Esgotada em pouco mais de um ano & 1.» edição do seu livro Noçõesãe História ãas Literaturas, o sr. Manuel Bandeira, da Academia Brasileira,acaba de entregar à Editora Nacional os originais da 2.* edição.

Poema ãe Marília e Dirceu é o título que o sr. Afonso Arinos de MeloFranco deu ao seu próximo livro de poesias.

Fixando algumas figuras marcantes da nossa atualidade literária(Augusto Frederico Schmidt, Carlos Drummond de Andrade, Ribeiro Couto,Jorge de Lima, etc), o sr. Odilo Costa Filho tem pronto para o prelo umcurioso livro — Cinco Ensaios, que se singulariza por uma grande riquezade documentação crítica, biográfica e iconográfica.

Anuncia-se, do sr. Gilberto Freire, uma obra de grandes proporções:Sociologia.

O professor Angione Costa promete-nos para o próximo ano um novolivro: Ensaios ãe etnografia brasileira.

266 REVISTA BRASILEIRA

Na "Coleção Documentos BrasileiTOs", da Livraria! José Olímpio

Editora, está anunciado um livro destinado a despertar a mais intensa curió-

sidade intelectual no país: Beminiscências ão Barão ão Bio-Brmco, do sr.

Eaul do Eio-Branco.

_ O sr. Luiz da Câmara Cascudo, o infatigável investigador e comen-

tador norte-riograndense do nosso folclore, promete-nos para o próximo ano

mais um livro: Geografia dos mitos brasileiros.

Sobre "A Bevolução Liberal ãe 1842", cujo centenário será celebrado

no próximo ano, o sr. Aloísio de Almeida entregou à Livraria José Olímpio

os originais de um livro.

O sr. Octavio Tarquínio de Souza tem quasi pronto para o prelo o

seu estudo sobre Diogo Antônio Feijó.

Um jurista da província, o desembargador Miguel Seabra Fagundes,do Tribunal de Apelação do Eio Cr. do Norte, publicou há pouco um sólidovolume sobre O controle ãos atos administrativos pelo Poãer Juãiciário, quesistematizando os princípios que regem o assunto entre nós, se singulariza

pela clareza e elegância da linguagem, o que lhe empresta significação lite-rária incontestável.

O Coronel Mário Travassos tem um importante livro anunciado na"Coleção Documentos Brasileiros": Introãução ã Geografia ãas ComunicaçõesBrasileiras, que aparecerá com prefácio do sr. Gilberto Freire.

Vamos ter no ano próximo uma biografia de Gonçalves Dias, da sra.Lúcia Miguel Pereira.

O tenente Umberto Peregrino vai publicar na Biblioteca Militar umlivro da mais palpitante atualidade: Imagens ão Tocantins e ão Amazonas.

Incumbidos pelo prefeito da capital paraense, os srs. Océlio de Medeirose Josué Montelo acabam de escrever um livro intitulado Imagem ãe Belém.

O sr. Aurélio Buarque de Holanda vai reunir em volume os contosque tem publicado na imprensa literária do país.

"O rio que perdeu o seu ãestino" é o título do romance que o sr.Océlio de Medeiros está escrevendo neste momento.

O segundo livro de contos do sr. Osvaldo Orico terá o título Casaãas Anãorinhas e reúne quatorze produções inéditas.

Em Buenos-Aires acaba de aparecer uma antologia espanholai de Con-tos Brasileiros.

NOTICIAS 267

O SALÃO NACIONAL

Mais um salão nacional de belas artes. A iniciativa vean de longe. O primeiroteve lugar em 1829. Foi seu inspirador Debret, da Missão Lebreton. Autorizou-oJosé Cemente Pereira, ministro do Império. De então até os nossos dias sefoi realizando com relativa regularidade. Motivos imperiosos o impediram emalguns anos, mas, em regra, é um acontecimento com que se pode contarNa origem, destinava-se apenas a trabalhos de mestres e alunos da Aca-demia, então recém-fundada. Depois, passou a chamar-se de "exposição geral»franqueada a artistas de toda a procedência, e assim se mantém hoje, sobo nome de Salão, por simpatia inequívoca, ao "Salon", seu inspirador, de ParisMuito ligado à Academia, posteriormente à Escola Nacional de Belas Artessó se emancipou da tutela didática, nestes últimos anos. Está agora depen-dente do Museu. Em toda essa existência, o núcleo fundamental foi sempre odos professores, alunos e ex-alunos da Escola, sendo em muito menor proporçãoos que vem de fora, com procedência geográfica, ou didática, diversa. Foi, pormuito tempo, um salão essencialmente conservador, ou menos do que isso, escolarno seu espírito e na sua participação. Ultimamente tem evoluído para um sentidomais largo e liberal, atraindo artistas que a êle nunca concorreram e atingindo,dessa forma, à sua função precípua, que é a de coordenar, reunir e estimulartodas as vocações artísticas do país. Quem primeiro se manifestou sobre anecessidade do Salão alargar o seu âmbito de influência e atração foi aAssociação dos Artistas Brasileiros, aconselhando que os júris fugissem aos cri-térios pessoais e as preferências sectárias para ganhar um plano mais alto. Quemrevolucionou, de um golpe, o Salão, nele instalando, soberbamente, os modernos,sem considerar, uo mesmo pé de igualdade, as demais manifestações artísticas,foi, no ano de 1931, (e apenas neste ano), o sr. Lúcio Costa, quando passoupela direção da Escola. O fato é que, reposto no seu papel de, reunir todas astendências, o Salão prosseguiu, daquela data até hoje, congregando os velhosmestres e os artistas novos, agora num moãus vivenãi cordeal, como a afirmarque, no Salão, há lugar para todos...

Como existem júris, o lugar não é, em verdade, para todos. Há alguns quesão excluídos, enquanto a tolerância dá ingresso a certos principiantes, que nemjustificam esperanças, e a vários batalhadores, já de todo perdidos, sem nenhumêxito, que nos leve a estimar suas obras.

De dois anos para cá, afim de vencer dificuldades e preconceitos, conven-cionou-se constituir o Salão de dois departamentos, com autonomia: a divisãogeral e a divisão moderna. Convenhamos que não é fácil compreender essa cias-sificação. Se a expressão "arte moderna" ainda não tem, em torno de si, umacordo, quanto ao seu significado, cremos não ter qualquer sentido a expressão"divisão geral": ao mesmo tempo que é de tudo — "geral" —, é confessada-mente uma parte — "divisão". Visitando o Salão, começa-se a ter, entretanto,uma idéia das razões que levaram a comissão organizadora a instituir os doisdepartamentos. No de arte moderna, estão os artistas que se empenham no mo-

268 REVISTA BRASILEIRA

vimento renovador, procurando novas soluções plásticas, dentro de um espíritoexigente, ansiosos de dar forma aos seus legítimos desejos criadores. Elesmarcam, no cenário artístico do Eio e de S. Paulo, uma corrente que, se não temos mesmos processos de trabalho (e esses processos, dentre eles, variam muitís-

simo), têm, pelo menos, um mesmo objetivo: pesquisar e criar, ou, por outras

palavras, enriquecer a técnica pictórica e escultural. Eles não continuam apenas,eles procuram.

Na divisão de arte geral, está a velha guarda, habituada ao Salão no gostoantigo, e também estão ali os seus inúmeros adeptos. Na velha guarda, há algunsmodernos brilhantes, mas que se fizeram naquele ambiente e não rompem comêle. Basta citar que se encontra nessa divisão uma das figuras marcantes domovimento renovador da pintura no Brasil, êrse seguro Henrique Cavaleiro, quetem lugar definido na evolução de nossas artes. Lá também estão aqueles quenão têm intenções modernas nem antigas, nunca meditaram no problema filosó-fico ou teórico das artes, e pintam como vêem, num transbordamento de sinceri-dade, que distancia a sua arte dos modelos convencionais e a torna pessoal e,muitas vezes, originalíssima. Dentre esses, basta citar o sr. Paulo Gagarin, comtrês paisagens largas e fortes, denotando uma esplêndida visão da nossa natureza.Lá estão, enfim, artistas de mérito como a sra. Georgina de Albuquerque, o sr.Alfredo Galvão, o sr. Carlos Osvaldo, o sr. Edgar Parreiras, o prof. E. Visconti,o sr. Joaquim Bocha Ferreira, o sr. Osvaldo Teixeira, o sr. Presciliano Silva,o sr. Manuel Santiago e tantos outros, que constituiriam longa enumeração.Cada qual no seu gênero, no seu feitio próprio.

Na divisão de arte moderna formaram os que mantêm uma atitude de pro-cura diante da arte. Muitos trabalhos não chegam a ser obra plástica ou estética,mas representam atitudes que merecem respeito e traduzem fases de um processointerminável de procuras. Alguns chegam a causar entusiasmo. Uma academiatem cânones e o seu adepto apenas tem que obedecê-los. Uma tela moderna éuma tentativa, uma experiência, que é ou pode vir a ser alguma coisa. Empresamuito mais difícil e perigosa, mais vale pelos processos do que pelas conclusões.Essa inquietação, tão humana, tão contemporânea, é que dá à divisão de artemoderna do Salão, não uma côr comum, mas aspectos de variedade, de dúvida,e "intimismo", de ânsia e tortura, de alegria e violência, de serenidade e pene-tração. Por isso que essas telas são discutidas. Afirmações e negações categó-ricas, de parte a parte. E, na nossa impressão, fica o nome dos autores, algunsjá conhecidos, outros mais jovens, os srs. Guignard, Aldary Toledo, AluizioBegis Bitencourt, Borsoi, Camporiorito, Dacosta, D. Imailovitch, Gilberto,Margarida, Olga Mary, Burle Max e Santa Bosa. Aqui também, uns mais reno-vadores, outros menos, uns de rebeldia ilimitada, outros mais contidos nas suasexperiências, mas todos pretendendo reafirmar, de público, que uma arte novaexiste e floresce no ambiente consagrador dos salões. — C. K.

NOTÍCIAS 269

DESENHOS INFANTÍS

Partindo do ponto de vista de que, pelas artes;, a criança não só se revelacomo traduz pensamentos e emoções, deve-se atribuir ao desenho infantil a, mesma importância que se consagra ao problema da linguagem e da literaturadedicada às crianças. Nesses três setores, três objetivos ocorrem simultânea-mente: o de aumentar os meios de expressão do homem, o de imprimir umsentimento geral de beleza às suas palavras e aos seus gestos e o de observaro seu desenvolvimento, nas primeiras fases da existência, através dos recursos

que a psicologia nos oferece. Em verdade, a linguagem infantil, pela palavra,ou pelo traço, ou pelo colorido, dá oportunidade aos analistas de conhecer inú-meras e preciosas facetas do temperamento humano. Sabido que, na infância,já está traçada a personalidade do homem, a revelação das condições psíquicasdessa fase é de transcendente relevância. Aquilo que o psicólogo vai descobrirno exame dos exercícios de linguagem e dos exercícios gráficos das criançasvem constituir o material indispensável à construção das linhas gerais daliteratura infantil (compreendida como tal a que os adultos escrevem paracriança, num propósito real de identidade com o seu meio), e da orientaçãoque se deve imprimir ao ensino das artes nas escolas primária e secundária.

Da necessidade de dotar o homem de maior capacidade de expressão,não é preciso falar, pois dia a dia nos convencemos dessa verdade: os homensainda não se entendem tão bem quanto deveriam. Inúmeros desajustamentosem grupos,, e, mesmo, entre nações talvez decorram das deficiências reveladasna maneira de traduzir e de compreender pensamentos e propósitos. Essa éa técnica mais penosa que o homem tem tentado construir desde o começo desua existência: a técnica da comunicação de si mesmo, da comunicação dosoutros, da comunicação de uma idéia ou de um sentimento coletivo. Bastaráa palavra? Adiantará alguma coisa o desenho? Pela música andaremos maisdepressa? Não será o cinema a linguagem mais fácil e expressiva? Algum dia,perderá a palavra a sua força estável e permanente? Fato é que o enriquecimentodos meios de expressão deve ser um dos grandes objetivos da educação naatualidade.

Essas considerações vêm a propósito de uma curiosa exposição de desenhosinfantis britânicos, que esteve aberta ao público no Museu Nacional deBelas Artes, sob os auspícios do Ministérip da Educação e com o patrocíniodaquele Museu, do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, da AssociaçãoBrasileira de Educação, da Associação dos Artistas Brasileiros e da SociedadeBrasileira de Cultura Inglesa. Pela primeira vez, uma exposição de trabalhosde crianças congrega tantas instituições em torno de si, numa demonstraçãode interesse e de curiosidade pela atividade infantil. Ê um índice marcantede quanto a criança vem conquistando a atenção do mundo.

Expondo trabalhos de crianças de 3 anos a adolescentes de 17 anos,colocados todos segundo as idades, como que a convidar os visitantes a fazer

270 REVISTA BRASILEIRA

considerações a respeito das relações que existem entre o desenvolvimentohumano e as representações gráficas — que nos revelou de interessante essa

curiosa exposição pedagógico-artística? Em primeiro lugar, consideremos o

motivo. O motivo que atrai as crianças é universalmente o mesmo. Salvo uma

cena regional, tudo mais são os quadros caseiros, os ambientes escolares, asedução das ruas, a amplidão das paisagens e quasi sempre a casa e a figura.Só com os primeiros anos da adolescência é que o homem se vai apossando,com mais penetração, do mundo que o cerca, dentro de um sentido realista.É aí que os acontecimentos do país começam a preocupá-lo. As cenas de guerraaparecem em trabalhos correspondentes a esse período. E, assim, mesmo, sãoraras na Exposição, apesar da época que a Inglaterra atravessa. Em segundolugar, a técnica. Que prefere a criança: o traço ou a massa colorida, o lápisou a tinta? As crianças de lá, a se julgar pela exposição, preferem a tintae a côr. Isso ocorre, em regra, com as crianças dè todo o mundo. O contorno

que o lápis dá é uma criação artificial. Os objetos vêm à retina e à memóriadas crianças em bloco, como volumes. Essa,s massas coloridas estão mais pertoda realidade. Os trabalhos expostos revelam isso, e isso é, em verdade, um

progresso em matéria de educação artística. Em terceiro lugar, a orientação.As pinturas nos revelam grande liberdade por parte dos seus pequenos autores:corresponde ao ponto de vista de que o desenho deve ser espontâneo. Esse

ponto de vista leva a criança a estimular-se e a tornar-se responsável de seutrabalho. Aí, talvez, uma das causas do progresso dos quadros expostos.

A exposição deu margem a um largo debate em torno do desenho infantil.A Associação dos Artistas Brasileiros promoveu, em seu recinto, um "entretien",chamando a dele participar os srs. Lourenço Filho, como psicólogo; Georginade Albuquerque, como professora de arte, e eomo artista; e Celso Kelly,como educador, todos sob a coordenação do sr. Peregrino Júnior. Ao penúltimodeste, e a sra. Heloísa Marinho, professora de psicologia do Instituto de Edu-cação, coube realizarem conferências às quintas-feiras. A imprensa consagrougrande número de artigos sobre o asunto, a Associação Brasileira de Educaçãodedicou-lhe uma sessão especial, e o público compareceu ao recinto, demonstrandoo interesse despertado. Professores, artistas e pais — todos compreenderamque há muito que ver e aprender em exposições dessa natureza. E as criançasse sentiram ali felizes e contentes, porque estavam num meio que lhes ofereciaa linguagem das suas idades. — C. K.

REVISTA BRASILEIRA

Acerca do aparecimento do segundo número desta Bevista, continua a im-prensa, assim da Capital como dos Estados, a acolher benèvolamente essa ini-ciativa da Academia Brasileira de Letras.

Na impossibilidade de transcrever todas as notícias que vieram ao nossoconhecimento, limitamo-nos a transcrever, com agradecimentos, certos trechosde algumas delas:

NOTICIAS 271

"O segundo número de Bevista Brasileira manteve o sucesso cultural do daapresentação e, assim, a Academia Brasileira de Letras, à qual se deve a publi-cação do novo periódico, pode ufanar-se da sua iniciativa.O 2.» número ora surgido traz abundante matéria, Bem escolhida, variadaagradável, pois a seriedade e importância dos trabalhos na maioria estudos de'critica literária, uns, de sociologia, outros, não imprimiu à revista feição pas-sada, desse tipo que nos faz cerrar o sobrecenho e iniciar a leitura com espíritoresignado.

Esta firmado portanto, o prestígio de Bevista Brasileira e encontram-sebem alto conservadas as tradições gloriosas do velho mensário de José Verís-Mino. a semente magnífica que fez surgir a Casa de Machado de Assis.»Correio âa Manhã, 23-10-941.

"Bevista Brasileira - O n. 2 desta publicação da-Academia Brasileirade Letras está, como o anterior, excelente, encerrando nas suas 230 páginasfarta e escolhida colaboração.

Jornal ão Comércio, 24-10-941

"Bevista Brasileira — Essa publicação que a Academia Brasileira de Le-trás lançou em nova fase, com o objetivo de divulgar trabalEòs de escritorespatrícios não pertencentes ao s<k quadro, acaba de aparecer no seu segundonúmero. A repercussão que teve nos círculos literários do Brasil é confirmada,agora, pela escolha da colaboração firmada por nomes de destaque na atualgeração.

Folha ãa Manhã (S. Paulo), 24-10-941.

"Conquistou o maior êxito de publicidade o aparecimento da Bevista Bra-süeira, notável publicação com que a Academia Brasileira de Letras inau-gura a nova fase de divulgação de trabalhos de intelectuais patrícios que nãopertencem ao seu quadro de "imortais". Com esse objetivo, não podiam sernegados ao silogeu os aplausos do público que viu, desse modo, o grande ser-viço prestado às letras nacionais. Realmente, a literatura brasileira precisavacontar nm órgão dessa categoria e com tão esplêndida finalidade. O primeironúmero, que circulou há três meses, esgotou-se logo nos primeiros dias, o quedemonstrou o valor da colaboração contida naquele fascículo.

Agora acaba de ser lançado o segundo, cujos trabalhos mantêm o mesmobrilho do anterior.

,, ,. 1',. » .

272 REVISTA BRASILEIRA

Está, portanto, vitoriosa em toda a linha, a esplêndida iniciativa do sr.Leví Carneiro, presidente da Academia Brasileira, que promoveu e realizou omeio de dar expansão às produções de muitos valores na moderna literaturado Brasil."

O Estado ãe S. Paulo, 24-10-941.

"Acha-se já nas livrarias, desde há dias, o segundo número da BevistaBrasileira, excelente publicação trimestral editada pela Academia Brasileirade Letras.

Fundada com programa de divulgar páginas dos melhores escritoresbrasileiros, pertençam ou não à Academia, o volume em apreço confirma esseobjetivo, estampando em suas duzentas páginas, de boa feitura gráfica, esco-lhida colaboração onde aparecem todas as correntes literárias da atualidadeem páginas firmadas por nomes de expressão.

A matéria que é variada, inclue contos, ensaios, poesias, pesquisas e estu-dos vários, além de noticiário sobre letras e artes.

Publicação excelente,a todos os títulos, a Bevista Brasileira inclue-se en-tre as melhores do país, e sua leitura deverá tornar-se um hábito de quantosse interessam pelas cousas literárias".

Folha ãe Minas, 24-10-941.

"Com a mesma repercussão do lançamento do seu primeiro, acaba de serposto em circulação o segundo fascículo da Bevista Brasileira, editada pelaAcademia Brasileira de Letras. Como é sabida^ a Casa Machado de Assis visa,com essa publicação, acolher e divulgar trabalhos de nomes que, embora nãopertencentes ao seu quadro de "imortais", contam justa fama na literaturanacional. Teve a primazia dessa idéia, digna de encômios em todos os senti-dos, o dr. Leví Carneiro, atual presidente da Academia. Os louvores que fes-tej aram o aparecimento, em nova fase, da Bevista Brasileira, comprovam o in-terêsse com que o público a recebeu.

Demonstra, dessarte, a Academia, que a sua finalidade é cumprida, agora,sob uma orientação digna de encarecimento, porque não se circunscreve à gló-ria dos seus membros, porém se alarga no incentivo da cultura literária mesanoentre os que não sonham figurar no elenco da "imortalidade"....... "

A Gazeta (S. Paulo), 24-10-941.

"Constituiu verdadeiro sucesso nos círculos intelectuais do país, o reapa-recimento da grande Bevista Brasileira, agora orientada em nova fase, pelaAcademia Brasileira de Letras. O seu programa é, na atualidade, servir de meiodivulgador de trabalhos assinados por nomes em evidência na literatura na-cional e que não figuram na "imortalidade" do silogeu. Vê-se, portanto, que,sob a administração do seu eminente atual presidente dr. Leví Carneiro, estáassumindo a casa de Machado de Assis a função que sempre lhe coube, isto é, a

NOTÍCIAS 273

de contribuir, sobretudo, à propaganda dos valores que, fora do seu quadrohonram e engrandecem as letras pátrias. '

hrnaAnArdemÍa-nã° P°dÍa fÍCar' meSm°' adstrita às ses8Õ<* «ios seus mem-oTa fa TWT

C ^ rCSerVada também' aS°ra ««"» com a publica-çao da Revtsta Brasileira, o órgão que, noutros tempos, teve à sua frente asmdmduahdades de José Veríssimo, Cândido Batista de Oliveira, Batista Pedaüva6

MCTeCe PambenS P°rtant° ° SÍ1°geU' V°r essa ^P^dida ini-

«,i«°i.!rir*dr0 DÚmer° ^ BCVÍSta Brasileira> h°J« inteiramente esgotado, cir-

tZÍ lmT ACaba ^ 8CT P0St° à V6nda «*»* o se^° fiu-íealo,também repleto de magnífica colaboração, de escritores já consagrados.

'•••"•¦• » •,«••, r>

Correio Paulistano, 25-10-941.

"Recebemos, por intermédio do prof. Mário Casassaata, reitor da Uni-verdade de Minas Gerais, o n. 2 da Revista Brasileira, notável publicaçãoeom que a Academia Brasileira de Letras está enriquecendo a cultura nacionalAo assumir a presidência da Academia, colocou-a o sr. Leví Carneiro en-tre os artigos de seu programa, e, homem tanto de fazer quanto de dizer,dentro em pouco publicava o primeiro número já de todo esgotado.

O seu objetivo é o de proporcionar aos escritores - não acadêmicos -um excelente instrumento de divulgação, promovendo e estimulando a produ-çao intelectual em todo o país.O primeiro número foi uma copiosa antologia, em que'a crítica, a ficção,a poesia compareceram, através dos mais autorizados nomes. Não lhe ficaatrás o segundo número, em que escrevem prosadores e poetas da envergadurade Macedo Soares, Tasso Fragoso, Abgar Renault, Afonso Pena Júnior, Tris-tao da Cunha e Sérgio Milliet."

O Estaão ãe Minas, 24-10-941.

"Os amantes das boas letras já puderam deleitar o espírito com a leiturado numero da Revista Brasüeira correspondente ao mês de setembro findo Êo segundo volume este, depois da iniciativa que Leví Carneiro tomou de fazercircular, com orientação nova e mais liberal, a prestigiosa revista da Acade-mia Brasileira. Ao aparecer o número de agosto dissemos, nesta mesma coluna,da, excelente impressão que o mesmo nos causara, melhor, da impressão mag-nífica que nos proporcionara o programa traçado. Realmente, o simples fatode "imortais" permitirem que pobres "mortais" pudessem escrever numa re-vista prestigiosa, órgão do pequeno "Trianon", estava a merecer os maiorese os melhores elogios. Permitir-se, numa terra como a nossa, em que as igre-jinhas imperam, a manifestação de gente a elas estranhas era um grandearrojo. Tiveram-no Leví Carneiro e seus companheiros. E a cousa foi tãocompleta que no referido volume de agosto nenhum imortal colaborou. Noque acabamos de receber, apenas um acadêmico, o sr. José Carlos Macedo

18

274 REVISTA BRASILEIRA

Soares, ocupou uma dúzia de páginas. As outras duzentas o foram por escri-tores e poetas estranhos à Academia, mas nomes que não ficariam mal no seumeio. A revista, pois, possue o dom de tornar mais conhecidos dos nossos aca-«dêmicos, valores reais que amanhã poderão bater à porta do augusto areópago.Sim, porque mesmo os que vivem a malsinar a Academia no íntimo desejariamimenso vestir a fardeta verde. O número da revista agora aparecido parece bem-mais interessante que o primeiro, isto é, a colaboração foi melhor selecionada-de maneira a proporcionar leitura bem mais variada e, consequentemente, me-nos monótona. Encontram-se, assim, contos, estudos, ensaios e versos real-mente bons. Não se deve destacar: bastará dizer que o volume honra a presti-giosa entidade que a vem publicando, bem como revela o carinho de seus ilus-tres dirigentes. — G."

Diário ãe S. Paulo, 25-10-941.

"Está em seu número dois a Revista Brasileira, publicada pela Academiade Letras. Não é o que se poderia imaginar pelo título e pela origem. Nãoé uma revista de acadêmicos. É uma revista literária para os escritores bra-fuleiros. A iniciativa do sr. Leví Carneiro, atual presidente do nosso cena-culo, é das melhores que se tiveram no Brasil, em matéria de divulgação cul-tural. Eepresenta um propósito de contacto entre a Academia e as letras. Jáagora, mais que simples intenção: realidade viva. Seus colaboradores não se-ião necessariamente "imortais". Pelo contrário: serão de preferência escrito-res de fora do "Petit Trianon".

33 de ver o sumário deste número. Boas penas e temas sugestivos.

O Diário (B. Horizonte), 26-10-941.

I"Merece registro especial nesta coluna o aparecimento da Revista Brasi-leira, cujos dois primeiros números temos sobre a mesa. Lançada pela Aca-demia Brasileira de Letras, a nova publicação não quer ser apenas uma re-vista a mais nos meios literários do Brasil, mas almeja reatar uma tradiçãoque vem do século passado e precisava prosseguir no nosso: a tradição da Re-vista Brasileira, que viveu várias fases e teve a sua época mais significativaquando a dirigiu José Veríssimo.

Tendo na direção o presidente da Academia Brasileira, sr. Leví Carneiro,a quem se deve a iniciativa da criação da atual "Bevista", apresenta-se estacom o propósito de animar as letras, recolhendo em suas páginas a calaboração,decorosamente remunerada, de escritores que não pertençam ao nosso princi-pai sodalício literário. O programa é, pois, dos mais simpáticos e interessantes.

Vasada nos moldes clássicos das grandes revistas francesas, como "LaBevue des Deux Mondes" ou "La Eevue de Paris", o mesmo molde adotadopela de José Veríssimo, a Revista Brasileira apresenta-se também nesta fase

NOTÍCIAS 275

com a feição material que melhor convém a publicações de sua índole. E apa-recerá trimesfralmp-nt-e l

Pela simples leitura desses nomes verifica-se que a direção da BevistaBrasileira procede na escolha ou aceitação de seus colaboradores com o espí-rito maus largo, sem preferência cenaculista - acadêmicas ou o que sejam -guiando-se por um único denominador comum: o do merecimento. Sua divisainscrita na portada, é a de todos os que têm a religião das letras: "Esta aglória que fica, eleva, honra e consola». A divisa, é de Machado de Assis, ar-quetipo, no Brasil, do puro homem de letras."Minas Gerais, 26-10-941.

"O segundo número da Bevista Brasileira, publicada pela Academia Bra-süeira de Letras, só veio confirmar a impressão magnífica que aquela revistaproduzira no espírito público. Destinada a acolher em suas páginas a colabo-ração dos que tenham alguma coisa a dizer ao pensamento e à cultura do paísmas que ainda não hajam transposto os humbrais da Casa de Machado deAssis, aquela publicação representa um incentivo magnífico ao pensamentobrasileiro. Por isso o apreço com que foi recebida e agora o prazer do re-gisto do seu segundo número, que vem amplo de matéria interessante, assi-nada por nomes conhecidos das nossas letras.

Está de parabéns a Casa de Machado de Assis com a brilhante vitória dainiciativa de seu atual presidente, sr. Leví Carneiro, a quem se deve o bomêxito dessa idéia feliz e oportuna."

O Globo, 29-XI-941.

"Uma notável realização, em questão de revista, está sendo levada aefeito com bom êxito, no Eio, por Leví Carneiro e um grupo de outros acadê-micos. A "Bevista Brasileira", que já tem em circulação o seu segundo nú-'mero, representa não só uma ousada iniciativa em prol das letras nacionais,mas, sobretudo, uma forte e necessária reação contra esse gênero de revistastão em moda atualmente e que visa apenas explorar a curiosidade dos leito-res que se preocupam com certos assuntos de interesse quasi sempre muitoefêmero: rádio, cinema, etc.

O atual presidente da Academia Brasileira de Letras fez reviver o nomeda revista que, sob a direção de José Veríssimo, fez época no ambiente acadê-mico e que ainda hoje constitue uma fonte preciosa de estudos sobre as figu-ras de maior projeção das letras brasileiras, no último quartel do século XIXe primeiros anos do século XX.

No 2.° número de "Bevista Brasileira" aparecem trabalhos, em prosa everso.

Unitário (Fortaleza), 29-11-841.

276 REVISTA BRASILEIRA

ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS

Na sessão de 9 de outubro comemorou a Academia o 50.° aniversário domalogrado escritor Jackson de Figueiredo, falecido aos 37 anos, a 4 de novem-bro de 1928, nesta cidade. Falaram os srs. Alceu Amoroso Lima e Pereira daSilva.

Aos 13 de outubro realizou a Academia sessão pública em homenagemao dr. Luiz López de Mesa, Ministro dais Relações Exteriores da Colômbia, quefoi saudado pelos srs. Leví Carneiro, presidente, e Afrânio Peixoto.

O Centenário de Fagundes Varela foi comemorado pela Academia emsessão pública aos 16 de outubro. Falaralm os srs. Leví Carneiro e AdelmarTavares, ocupante da cadeira n.° 11, da qual é patrono o grande poeta.

A 19 de outubro, faleceu em Lisboa o sócio correspondente Carlos Ma-lheiro Dias, que fora eleito em 30 de maio de 1907. Em sessão de 23 dessemês falaram da personalidade e da obra do ilustre escritor os srs. AfrânioPeixoto, João Luso, Olegário Mariano, Serafim Leite, Pedro Calmon, GustavoBarroso e Filinto de Almeida.

A Associação Cultural Argentino-Brasileira Júlia Lopes de Almeida, deBuenos-Aires, enviou à Academia,, por intermédio da senhora Adalzira Bitten*court, uma placa de bronze, para ser colocada na herma daquela escritora bra-sileira, no Passeio Público, desta cidade. Essa; cerimônia realizou-se no dia 26de novembro. Falaram os srs. Leví Carneiro e Cláudio de Sousa. O sr. Fi-linto de Almeida agradeceu a homenagem prestada; à memória de sua esposa.

Por proposta do sr. Cláudio de Sousa, vai a Academia publicar umaedição brasileira da "Antologia de Prosadores Brasileiros", já editada em fran-cês, italiano e japonês.

A sessão de 6 de novembro compareceu o sr. Alberto da' Veiga Simões,distinto escritor e antigo ministro plenipotenciário da República Portuguesa,que foi saudado pelo sr. Afrânio Peixoto.

Nessa mesma sessão foi comemorado o 92.° aniversário de Bui Barbosa.Falaram os srs. Leví Carneiro, Afrânio Peixoto, Osvaldo Orico, Aloysio deCastro, João Nevesi e João Luso.

Editada pela Academia acaba de aparecer a 2." edição, atualizada, das"Efemérides ãa Academia Brasileira ãe Letras", organizadas pelo ex-diretorde sua secretária, o falecido escritor paulista José Vicente de Azevedo So-brinho.

—- Continuando a série de conferências "Panorama da literatura estran-geira contemporânea (1914-18 a 1941)", realizaram-se no salão da Academia,

NOTICIAS 277

Zanl* T °UT b:°' " SegUÍnteS conferê^«= ^a 7, "A literatura da

frZTa»' ^ ° "â

í MarÍa ^ *** dia "' "fratura belga de língua

ÍToZ\Vf° PadrIPÍerre Charles' di* «, "Literatura hispanZ-americal"

pelo sr. Rodriguez Fabregat. No mês de dezembro realizaram-se, ainda asbuco dia 9 "L«wm *, j^,,, pelo gr Conde Emanuel fi16, Z^míwra & Canadá", pelo Ministro plenipotenciário, sr. Jean Désv en-cerrando-se m. a série destas conferências, que foram em número de dezessete.

- O sr. Getúlio Vargas compareceu à sessão de 9 de outubro afim de•£<£> a „ eleito para a eadeira a, 37, vaga po, mor,e de AwTJaMaichado.

h™ ^P°r PrOP°!ta,d0 Sr- Eibeiro Couto> sovada em sessão de 2 de outu-»

iooS-^Sf190*8 a Academia oito prêmios- 8end° - *»10.000ÍOOO e sete de 4:000$000. O prêmio de 10:000$000, denominado Prê-mu> Machado de Assi* ãa Academia Brasileira, será concedido a autor brasi-yleiro pelo conjunto de sua obra literária, devendo êle ter publicado pelo menosum hvro. altamente recomendável" nos últimos três anos imediatamente an-tenores.Os prêmios de 4:000$000 serão os seguintes: 1 _ "Prêmio Olavo Bilac"

(Poesia); 2 - "Prêmio Raul Pompéia" (romance); 3 - "Prêmio AfonsoArmes» (contos e novelas); 4 - "Prêmio João Eibeiro" (crítica, história lite-rana, filologia e etnografia); 5 - "Prêmio Joaquim Nabuco" história socialou política, e memórias); 6 — "Prêmio Coelho Neto" (teatro); 7 — "PrêmioPaulo Barreto" (crônicas, viagens e qualquer outro gênero que não se enqua-dre nos números anteriores).

Estes prêmios serão concedidos a livros inéditos ou publicados no ano an-terior, em língua portuguesa, de autores brasileiros.— Em sessão de 13 de novembro, por proposta do sr. Gustavo Barroso,

aprovou a Academia a criação das "Palmas Acadêmicas".A insígnia dessas "Palmas" constará do símbolo da Academia em esmalte

verde com forro dourado e a legenda — AD IMMORTALITATEM — em ouro,ou de forro prateado com a mesma legenda em prata. Será usada ao pescoço,'pendente de fita verde com bordos brancos — cores da Academia.

Não haverá mais de vinte "Palmas" de ouro e vinte de prata. Completadoesse número, somente por morte de algum dos agraciados se abrirá vaga paranova concessão.

Só poderão ser concedidas a Chefes de Estado, Embaixadores, Ministros,Presidentes de altas associações culturais, por serviços prestados às letras, ciên-cias, artes ou aproximação cultural dos povos, e a grandes escritores.

— No dia 27 de novembro comemorou a Academia em sessão pública oacordo cultural luso-brasileiro, que acaba de ser assinado pelos governos dePortugal e do Brasil. Falaram os srs. Leví Carneiro, presidente, Olegário Ma-riano e o escritor português sr. Antônio Ferro, signatário do mesmo acordo.

TJjnmín!

278 REVISTA BRASILEIRA

A Academia comemorou o 80.° aniversário do sr. Xavier Marques, rea-lizando no dia 4 de dezembro uma sessão pública, na qual falaram o presidentesr. Leví Carneiro, e o sr. Clementino Fraga que pronunciou uma conferência—- A vocação ãe Xavier Marques.

Nessa mesma sessão foram inaugurados os retratos dos srs. Eodrigo Octá-vio e Filinto de Almeida, sócios fundadores da Academia, os quais foram sau-dados pelo sr. Pedro Calmon.

Comemorou também a Academia, em sessão pública de 11 de dezembro,o segundo centenário do nascimento de José Basílio da Gama, alutor do poema"Uruguai" (ou Uraguai, como escreveu o poeta). Falaram os srs. Leví Car-neiro, padre Serafim Leite e Pedro Calmon.

Nesse mesmo dia foi distribuída a edição fac-similar do poema, comemo-rativa dessa efeméride, publicação da Academia.

No dia 13 de dezembro inaugurou-se, no cemitério de S. João Batista,o mausoléu de Alberto de Oliveira, que por iniciativa da Academia, o governode Estado do Bio de Janeiro mandou erigir. Em nome da Academia, falou osr. Aloysio de Castro.

Em sessão de 18 de dezembro realizou-se a eleição da nova Diretoria daAcademia para o exercício de 1942, a qual ficou assim constituída: Presidente— José Carlos de Macedo Soares; Secretário Geral — Múcio Leão; 1.° Secre-târio — Pedro Calmon; 2.» Secretário — Manuel Bandeira; Tesoureiro —E. Boquette-Pinto.

Para diretor dos Anais foi reeleito o sr. Afonso de E. Taunay. Para Bi-bliotecário foi eleito o sr. Clementino Fraga.