A rapariga nova - VISIONVOX

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Transcript of A rapariga nova - VISIONVOX

Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 5628001 Madrid

A rapariga nova

Título original: The New Girl© 2019, Daniel Silva

© 2020, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.Publicado originalmente pela HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.

Tradutor: Filipa Velosa

Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.Esta edição foi publicada com a autorização da HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizadosficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações

são pura coincidência.Desenho da capa: Hazel Lam, HarperCollins Design Studio

Imagem da capa: Andy Freer / Getty Images1ª edição: Março 2020

ISBN: 978-84-9139-458-7

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

Sumário CréditosPREFÁCIOPRIMEIRA PARTE SEQUESTRO

1 GENEBRA2 NOVA IORQUE3 NOVA IORQUE4 NOVA IORQUE5 ASTARA, AZERBAIJÃO6 TELAVIVE7 TELAVIVE–NETANYA8 NETANYA9 NEJD, ARÁBIA SAUDITA10 NEJD, ARÁBIA SAUDITA11 NEJD, ARÁBIA SAUDITA12 JERUSALÉM1314 JERUSALÉM-PARIS15 PARIS16 PARIS17 PARIS-ANNECY18 GENEBRA19 GENEBRA

SEGUNDA PARTE RENÚNCIA20 GENEBRA-LYON2122 PARIS-LONDRES23 KENSINGTON, LONDRES24 MAYFAIR, LONDRES25 KENSINGTON, LONDRES26 ALTA SABOIA, FRANÇA27 ALTA SABOIA, FRANÇA28 AUVÉRNIA-RÓDANO-ALPES29 AREATZA, ESPANHA30 PARIS-JERUSALÉM31 TELAVIVE-PARIS32 PARIS33 MAZAMET, FRANÇA34 CARCASSONNE, FRANÇA

35 DÉPARTEMENT DU TARN, FRANÇATERCEIRA PARTE ABSOLVIÇÃO

36 SUDOESTE DE FRANÇA-JERUSALÉM37 TELAVIVE38 EILAT, ISRAEL39 JERUSALÉM40 JERUSALÉM41 NOVA IORQUE-BERLIM42 BERLIM43 BERLIM44 BERLIM45 BERLIM46 GOLFO DE AQABA47 GOLFO DE AQABA48 NOTTING HILL, LONDRES49 VAUXHALL CROSS, LONDRES50 HARROW, LONDRES51 EPPING FOREST, ESSEX52 MOSCOVO53 KREMLIN54 MOSCOVO-WASHINGTON-LONDRES

QUARTA PARTE ASSASSÍNIO55 FRINTON-ON-SEA, ESSEX56 NÚMERO 10 DE DOWNING STREET57 OUDDORP, PAÍSES BAIXOS58 AEROPORTO DE HEATHROW, LONDRES59 NÚMERO 10 DE DOWNING STREET60 WALTON-ON-THE-NAZE, ESSEX61 NOTTING HILL62 EATON SQUARE, BELGRAVIA63 EATON SQUARE, BELGRAVIA64 EATON SQUARE, BELGRAVIA65 EATON SQUARE, BELGRAVIA66 EATON SQUARE, BELGRAVIA67 NÚMERO 10 DE DOWNING STREET68 AEROPORTO CIDADE DE LONDRES69 FRINTON-ON-SEA, ESSEX70 FRINTON-ON-SEA, ESSEX71 ESSEX-AEROPORTO CIDADE DE LONDRES72 AEROPORTO CIDADE DE LONDRES73 MAR DO NORTE74 ROTERDÃO75 ROTERDÃO76 NÚMERO 10 DE DOWNING STREET77 OUDDORP, PAÍSES BAIXOS

78 OUDDORP, PAÍSES BAIXOS79 RENESSE, PAÍSES BAIXOS

QUINTA PARTE VINGANÇA80 LONDRES-JERUSALÉM81 LANGLEY-NOVA IORQUE82 TIBERÍADES

NOTA DO AUTORAGRADECIMENTOSSe gostou deste livro…

Para os cinquenta e quatro jornalistas assassinados em todo o mundo em 2018. E,como sempre, para a minha mulher, Jamie, e para os meus filhos, Nicholas e Lily.

O que está feito, não pode ser desfeito.Macbeth (1606), Ato V, Cena 1.

PREFÁCIO

Em agosto de 2018 comecei a trabalhar num romance sobre um jovem príncipe árabe queempreendia uma cruzada para modernizar o seu país, no qual imperava a intolerância religiosa, eassim favorecer alterações profundas no Médio Oriente e no mundo islâmico no seu conjunto.Porém, dois meses depois, pus de lado o manuscrito quando Mohammed bin Salman, o príncipeque servia de modelo à minha personagem, foi acusado de estar implicado no brutal homicídiode Jamal Khashoggi, dissidente saudita e colaborador do Washington Post. Certos elementos deA rapariga nova baseiam-se claramente em acontecimentos relacionados com a morte deKhashoggi. Tudo o mais acontece exclusivamente no mundo imaginário no qual habitam GabrielAllon e os seus aliados e inimigos.

PRIMEIRA PARTE

SEQUESTRO

1

GENEBRA

Foi Beatrice Kenton a primeira a pôr em causa a identidade da rapariga nova. E fê-lo na salade professores, às três e um quarto da tarde de uma sexta-feira do fim de novembro. Reinava umambiente festivo e ligeiramente irreverente, como quase sempre à sexta à tarde. É uma verdadede La Palice dizer que em nenhuma profissão se aguarda o fim da semana de trabalho com tantaexpectativa como entre os docentes, mesmo entre os docentes de estabelecimentos tão elitistascomo o Colégio Internacional de Genebra. Conversava-se animadamente sobre os programaspara o fim de semana. Beatrice permanecia calada porque não tinha nenhum e não lhe apeteciafalar disso com os seus colegas. Tinha cinquenta e dois anos, era solteira e a sua única famíliaresumia-se a uma tia velhota e rica que lhe concedia asilo no verão na sua propriedade deNorfolk. A sua rotina de fim de semana consistia numa visita ao Migros e num passeio pela beirado lago pelo bem da sua cintura, que, à semelhança do Universo, não parava de se expandir. Assegundas-feiras de manhã eram um oásis no meio de um deserto de solidão.

Fundado por um organismo de cooperação internacional extinto há muito tempo, o ColégioInternacional de Genebra prestava serviço aos filhos da comunidade diplomática da cidade. Aescola secundária, na qual Beatrice dava aulas de redação em língua inglesa, educava estudantesde mais de cem países diferentes. Entre os funcionários, a diversidade também imperava. O chefede pessoal fazia questão de promover a convivência entre os funcionários — cocktails informais,jantares nos quais cada participante levava um prato, idas ao campo —, mas, na sala deprofessores, o tribalismo corriqueiro tendia a impor-se. Os alemães juntavam-se com os alemães,os franceses com os franceses e os espanhóis com os espanhóis. Nessa sexta-feira à tarde, asenhora Kenton era a única súbdita britânica presente para além de Cecelia Halifax, dodepartamento de História. Cecelia tinha uma juba preta e selvagem e as opiniões políticas dapraxe, que fazia questão de explicar à senhora Kenton à primeira oportunidade. Aliás, tambémlhe contava pormenores da tórrida aventura que mantinha com Kurt Schröder, o génio daMatemática de Hamburgo que, calçado com as sempre eternas Birkenstock, tinha renunciado auma lucrativa carreira de engenheiro para ensinar crianças de onze anos a fazer contas demultiplicar e dividir.

A sala de professores situava-se no rés-do-chão do château do século XVIII que servia comosecretaria. As suas janelas com vitrais davam para o pátio da frente onde, naquele precisoinstante, os privilegiados alunos do Colégio Internacional de Genebra estavam a entrar para aparte de trás de carrões de luxo de fabrico alemão com matrícula diplomática. Cecelia Halifax,

tão loquaz como de costume, estava especada ao lado de Beatrice e palrava sobre um escândaloocorrido em Londres: algo relativo ao MI6 e a um espião russo. Beatrice mal a ouvia. Estava aobservar a rapariga nova.

Como todos os dias à hora da saída, a rapariga — de doze anos e já muito bela, quase etérea,com os seus expressivos olhos castanhos e cabelo asa de corvo —, era uma das últimas a sair.Para consternação de Beatrice, o colégio não impunha aos alunos o uso de farda, apenas umcódigo indumentário ao qual alguns dos discípulos mais contestatários desobedeciam sem sançãooficial alguma por parte da direção. A rapariga nova não. Ia tapada da cabeça aos pés comdispendiosos tecidos de lã e de xadrez como os que se viam na loja Burberry do Harrods. Traziauma pasta de pele em vez de uma mochila de nylon e sabrinas de verniz reluzentes. A rapariganova era muito educada e modesta. Mas não era só isso, pensava Beatrice. Parecia farinha deoutro saco. Era régia. Sim, era essa a palavra. Régia…

Tinha chegado duas semanas após o início do trimestre de outono. Não era o ideal, mastambém não era algo invulgar num estabelecimento como o Colégio Internacional de Genebra,onde os pais dos alunos iam e vinham como as águas do Ródano. David Millar, o diretor, tinha-aimpingido na terceira turma de Beatrice, na qual já havia dois alunos a mais. A cópia da ficha deinscrição que lhe deu era breve inclusive para os parâmetros do colégio. Afirmava que a novaaluna se chamava Jihan Tantawi, que era de nacionalidade egípcia e que o seu pai eraempresário, não diplomata. O seu percurso escolar era banal. Era considerada inteligente, mas demodo algum sobredotada. Um passarinho pronto para levantar voo, escreveu David numa notapejada de otimismo escrita na margem. Com efeito, o único aspeto do percurso digno de nota erao parágrafo dedicado às «necessidades especiais» da aluna. Pelos vistos, a privacidade era umapreocupação prioritária para a família Tantawi. A segurança, rascunhou David, era fulcral.

Daí que nessa tarde, e em todas as que se seguiram, o pátio contasse com a presença de LucienVillard, o eficaz chefe de segurança do colégio. Lucien, importado de França, era um veterano doService de la Protection, a unidade da polícia nacional encarregue da segurança dos dignatáriosestrangeiros e dos altos funcionários do governo francês. O seu anterior destino fora o Palácio doEliseu, onde tinha feito parte da escolta pessoal do presidente da república. David Millar servia-se do impressionante currículo de Lucien como garantia da importância que o colégio concedia àsegurança. Jihan Tantawi não era a única aluna com necessidades especiais nessa área.

Porém, ninguém chegava e saía do colégio como a rapariga nova. A limusina Mercedes pretaque a transportava era própria de um chefe de Estado ou de potentado. Beatrice não era nenhumaespecialista em automóveis, mas tinha a impressão de que aquele carro era blindado e tinhavidros à prova de bala. Atrás seguia um segundo veículo, um Range Rover ocupado por quatrobrutamontes carrancudos, de casacos escuros.

— Quem é que achas que é? — perguntou Beatrice enquanto via os dois veículos afastar-se.Cecelia Halifax pareceu desconcertada.— O espião russo?— A rapariga nova — respondeu Beatrice com impaciência, e acrescentou com um toque de

dúvida: — A Jihan.— Dizem que o pai dela é dono de meio Cairo.— Quem é que diz isso?— A Verónica.Verónica Álvarez era uma espanhola com pelo na venta pertencente ao departamento de Arte e

a fonte de coscuvilhices menos fiável da escola, só ficando atrás da própria Cecelia.

— Diz que a mãe é família do presidente egípcio. Sua sobrinha. Ou talvez seja prima…Beatrice viu que Lucien Villard atravessava o pátio.— Sabes o que é que eu acho?— O quê?— Que alguém está a mentir.

E foi assim que Beatrice Kenton, aguerrida veterana em várias escolas privadas britânicas demeia-tigela, razão pela qual se tinha mudado de armas e bagagens para Genebra à procura doamor e de aventura sem encontrar nenhuma das duas coisas, decidiu investigar por sua conta erisco a verdadeira identidade da rapariga nova. Começou por introduzir o nome JIHANTANTAWI no quadro branco do motor de pesquisa por defeito do seu navegador de Internet.Apareceram milhares de resultados no ecrã, mas nenhum deles correspondia à linda rapariguinhade doze anos que lhe entrava pela porta da sala de aula à terceira hora sem um único minuto deatraso.

A seguir, procurou em diversas redes sociais, mas também não encontrou rasto da aluna.Parecia ser a única rapariga da sua idade na face da Terra que não tinha uma vida paralela nociberespaço. Beatrice considerava-o louvável, pois sabia em primeira mão os estragos que a trocaincessante de mensagens instantâneas, tweets e fotografias causava no desenvolvimentoemocional dos jovens. Lamentavelmente, essa conduta não afetava só as crianças. CeceliaHalifax era incapaz de ir à casa de banho sem publicar uma fotografia sua retocada no Instagram.

O pai, um tal Adnan Tantawi, era tão desconhecido como a filha no reino cibernético. Beatriceencontrou algumas referências a várias empresas (Tantawi Construction, Tantawi Holdings eTantawi Development), mas nada sobre o homem em si. Na ficha de candidatura de Jihanconstava uma morada muito chique na Route de Lausanne. Beatrice deu uma volta por lá numsábado à tarde. A casa ficava umas portas abaixo do domicílio do famoso industrial suíço, MartinLandesmann. Como todas as propriedades desse lado do lago Léman, estava rodeada por murosaltos e vigiada por câmaras de segurança. Beatrice espreitou pelos barrotes da vedação econseguiu ver um relvado impecável que se espraiava até ao pórtico de uma magnífica villa deestilo italiano. De imediato, um homem dirigiu-se a ela pelo caminho de acesso: sem dúvida, umdos brutamontes do Range Rover. Não fez tenção de ocultar a arma que trazia debaixo do casaco.

— Propriété privée! — gritou num francês com acentuada pronúncia estrangeira.— Excusez-moi — murmurou Beatrice, e afastou-se à pressa.A fase seguinte da sua investigação começou na segunda-feira posterior logo de manhã,

quando se embrenhou numa observação atenta da aluna misteriosa que durou três dias. Reparouque Jihan, quando a docente a interpelava na aula, às vezes demorava a responder. Tambémconstatou que não tinha feito amigos desde a sua chegada ao colégio, nem sequer tinha tentado.Por outro lado, enquanto tecia elogios falsos a uma redação insignificante, averiguou que Jihanpossuía escassos conhecimentos sobre o Egito. Sabia que o Cairo era uma cidade grandeatravessada por um rio, e pouco mais. Dizia que o seu pai era muito rico. Construía torres dehabitação e arranha-céus. Mas, como era amigo do presidente egípcio, a Irmandade Muçulmanaembirrava com ele. Era por isso que viviam em Genebra.

— Acho muito lógico — disse Cecelia.— Parece é inventado — respondeu Beatrice. — Duvido que alguma vez tenha posto os pés

no Cairo. De facto, nem sequer tenho a certeza de que seja egípcia.

Depois, prestou atenção à mãe, a qual se entrevia através das janelas fumadas da limusina, ounas raras ocasiões em que se apeava do banco de trás do carro para receber Jihan no pátio. Tinhaa tez e o cabelo mais claros do que a filha e era atraente, na opinião de Beatrice, mas nem porsombras tão bela como Jihan. De facto, custava-lhe encontrar alguma parecença com a rapariga ehavia na sua relação uma notória frieza física. Nem uma só vez as tinha visto darem um beijo ouum abraço. Aliás, notava-se um claro desequilíbrio de poder entre elas. Era Jihan e não a mãeque dominava a cena.

Quando novembro deu lugar a dezembro e as férias de Natal se avizinhavam a passos largos,Beatrice arranjou maneira de marcar uma reunião com a hermética progenitora da sua alunamisteriosa, com o pretexto da nota de Jihan num exame de ortografia e vocabulário ingleses: aterceira mais baixa da turma, embora muito melhor do que a do jovem Callahan, o filho de umfuncionário do corpo diplomático dos Estados Unidos cuja língua materna era presumivelmenteo inglês. Redigiu um e-mail a marcar uma reunião com a senhora Tantawi quando lhe fosse maisconveniente e enviou-o para o endereço eletrónico que constava na ficha de inscrição. Passaramvários dias sem qualquer resposta, logo, voltou a enviá-lo. E então recebeu uma brandareprimenda de David Millar, o diretor. Parecia que a senhora Tantawi não desejava mantercontacto direto com os professores de Jihan. Beatrice devia encaminhar quaisquer preocupaçõesque albergasse a respeito da aluna para o diretor e David, por sua vez, fá-las-ia chegar à senhoraTantawi. Beatrice suspeitava que David estava a par da verdadeira identidade da rapariga, masintuía que não devia tocar no assunto, nem sequer por portas travessas. Era mais fácil tirar nabosda púcara a um banqueiro suíço do que ao discretíssimo diretor do Colégio Internacional deGenebra.

Restava apenas Lucien Villard, o chefe de segurança do colégio de origem francesa. Beatricefez-lhe uma visita numa sexta-feira à tarde, durante um furo. O gabinete de Villard ficava nacave do château, ao lado do que mais parecia uma arrecadação onde um russo manhoso e baixotefazia com que os computadores funcionassem. Lucien era magro mas robusto e tinha um aspetojuvenil apesar dos seus quarenta e oito anos. Metade das professoras estavam caidinhas por ele,incluída Cecelia Halifax, que tinha tentado em vão seduzi-lo antes de ter um caso com o seugénio matemático germânico amante de sandálias.

— Posso dar-lhe uma palavrinha acerca da rapariga nova? — perguntou Beatrice apoiando-secom uma indiferença fingida na ombreira da porta aberta do gabinete.

Lucien olhou-a friamente por cima da secretária.— Da Jihan? Porquê?— Porque estou preocupada com ela.Lucien pousou um molho de papéis sobre o telemóvel que descansava em cima do mata-

borrão. Beatrice não podia afirmá-lo com toda a certeza, mas pareceu-lhe que era um modelodiferente do que costumava usar.

— Eu é que tenho de me preocupar com a Jihan, professora Kenton, é o meu dever, não o seu.— Ela não se chama assim, pois não?— De onde é que tirou essa ideia?— Sou professora dela. Os professores veem coisas.— Talvez não tenha lido a chamada de atenção na ficha da Jihan relativa aos falatórios e

mexericos. Aconselho que siga essas instruções. De outro modo, ver-me-ei obrigado a tratar doassunto com o Monsieur Millar.

— Desculpe, não pretendia…

Lucien levantou uma mão.— Não se preocupe, senhora Kenton. Isto fica entre nous.Duas horas mais tarde, quando os filhotes da elite diplomática mundial atravessaram a

saracotear-se o pátio da frente do château, uma vigilante Beatrice espreitava pelos vitrais dajanela da sala de professores. Como de costume, Jihan foi das últimas a sair. Não, Jihan não,pensou. A rapariga nova… Atravessou o pátio de paralelepípedos com um passo ligeiro, abalouçar a pasta dos livros, alheia à presença de Lucien Villard ao seu lado. A mulher esperava-ajunto da porta aberta da limusina. A rapariga nova passou por ela sem sequer lhe dirigir o olhar eentrou para o banco de trás. Foi a última vez que Beatrice a viu.

2

NOVA IORQUE

Sarah Bancroft compreendeu que tinha cometido um erro fatal no instante em que BradyBoswell pediu outro martíni Belvedere. Estavam a jantar na Casa Lever, um exclusivorestaurante italiano na Park Avenue decorado com uma pequena parte da coleção de ilustraçõesde Warhol do seu proprietário. O restaurante fora escolhido por Brady Boswell, diretor de ummodesto mas reputado museu de St. Louis que vinha a Nova Iorque duas vezes por ano paraassistir aos leilões mais relevantes e degustar as delícias gastronómicas da cidade, normalmente àcusta de outros. Sarah era a vítima perfeita. Quarenta e três anos, loura, olhos azuis, inteligente esolteira. E, o mais importante, era do conhecimento geral no incestuoso mundo artístico de NovaIorque que tinha acesso a um poço sem fundo de dinheiro.

— De certeza que não queres outro? — Boswell levou o copo aos lábios húmidos.Tinha a palidez de um salmão grelhado mal passado e o cabelo grisalho meticulosamente

penteado. A gravata estava torta, como tortos estavam também os óculos de armação detartaruga, por trás dos quais pestanejavam uns olhos ávidos de expectativa.

— Odeio beber sozinho, a sério.— É uma da tarde.— Não bebes ao almoço?Já não, embora tivesse muita vontade de renunciar ao seu voto de abstinência matutina.— Vou a Londres — balbuciou Boswell.— Sim? Quando?— Amanhã à tarde.E já vais tarde, pensou Sarah.— Tu estudaste lá, não é verdade?— No Courtauld — respondeu ela na defensiva. Não lhe apetecia passar o almoço a recordar o

seu currículo, que, tal como as suas despesas, era sobejamente conhecido no mundo da arte nova-iorquina. Pelo menos, em parte.

Licenciada pela Faculdade de Dartmouth, Sarah Bancroft tinha estudado História da Arte nofamoso Instituto de Arte Courtauld de Londres e posteriormente tinha-se doutorado em Harvard.A educação, totalmente financiada pelo seu pai, banqueiro de investimentos no Citigroup, fezcom que conquistasse o lugar de comissária no The Phillips Collection de Washington, onde lhepagavam uma miséria. Deixou o museu em circunstâncias pouco claras e, como um Picassocomprado em leilão por um misterioso colecionista japonês, desapareceu de cena. Durante esse

período trabalhou para a CIA e participou em duas missões secretas de alto risco às ordens de umlendário agente israelita chamado Gabriel Allon. Agora trabalhava oficialmente no MoMA deNova Iorque, onde se encarregava de supervisionar a principal atração do museu: uma espantosacoleção de obras modernas e impressionistas avaliada em cinco mil milhões de dólares que tinhapertencido à falecida Nadia al-Bakari, filha do investidor saudita Zizi al-Bakari, um homemfabulosamente rico.

O que explicava em grande parte o motivo pelo qual estava a almoçar com um sujeito comoBrady Boswell. Há pouco, Sarah tinha acedido a emprestar várias obras de menor importância dacoleção ao Museu de Arte do Condado de Los Angeles e Brady Boswell queria ser o próximo dalista. Era pouco provável que assim fosse e ele sabia-o. O seu museu carecia da relevância e dopedigree necessários. Daí que, depois de pedir finalmente o almoço, Boswell estivesse a adiar arejeição inevitável ao falar de coisas sem importância. Para Sarah era um alívio. Não gostava deconflitos. Tivera conflitos que chegavam para uma vida inteira. Aliás, duas vidas.

— No outro dia ouvi uma cusquice sobre ti.— Só uma?Boswell sorriu.— E o que dizia essa cusquice?— Que tinhas dois empregos.Treinada na arte do engano, Sarah dissimulou sem esforço o seu mal-estar.— Ai sim? Em que sentido?Boswell inclinou-se para a frente e baixou a voz.— Dizem que és a assessora secreta do KBM para questões artísticas — disse num sussurro

cúmplice. KBM eram as iniciais, reconhecidas internacionalmente, do futuro rei da ArábiaSaudita. — E que foste tu que o deixaste gastar quinhentos milhões de dólares nesse Leonardo deautoria duvidosa.

— Não é um Leonardo de autoria duvidosa.— Então é verdade!— Não sejas ridículo, Brady.— Ou seja, nem negas nem confirmas — respondeu ele com receio.Sarah levantou a mão direita como se se dispusesse a fazer um juramento solene.— Não sou, nem nunca fui a assessora artística do Khalid bin Mohammed.Boswell não pareceu muito convencido. Enquanto comiam os antipasti, finalmente veio à tona

o assunto do empréstimo. Sarah adotou uma atitude imparcial antes de o informar que de formanenhuma emprestaria nem um só quadro da coleção Al-Bakari.

— Pode ser um Monet ou dois? Ou um do Cézanne?— Lamento, mas está fora de questão.— E um Rothko? Têm tantos que não lhe sentiriam a falta.— Brady, por favor.Acabaram de almoçar sem mais contratempos, e despediram-se no passeio de Park Avenue.

Sarah decidiu regressar a pé até ao museu. Por fim, tinha chegado o inverno a Manhattan depoisde um dos outonos mais quentes de que se lembrava. Só os céus sabiam o que o ano novo traria.O planeta parecia andar aos solavancos de um extremo ao outro. E ela também: infiltrada naguerra global contra o terror um dia, e no seguinte comissária de uma das melhores coleções dearte do mundo. Na sua vida não havia meio-termo.

Porém, ao chegar à East Fifty-Third Street, de repente apercebeu-se de que estava aborrecida

de morte. Era a inveja do mundo dos museus, verdade seja dita. Mas a coleção Nadia al-Bakari,apesar de todo o glamour e alvoroço que a sua inauguração tinha despertado inicialmente, malprecisava de cuidados. Sarah era pouco mais do que a sua atraente carta de apresentação. Eultimamente almoçava com demasiada frequência com tipos como Brady Boswell.

Enquanto isso, a sua vida privada definhava. Fosse qual fosse a razão, apesar da sua apertadaagenda de angariações de fundos e receções, não tinha conseguido conhecer um homem cujaidade e trajetória profissional lhe conviessem. Conhecia muitos de quarenta e poucos anos, sim,mas esses não tinham interesse nas relações a longo prazo — meu deus, como odiava aquelechavão — com uma mulher da mesma idade. Os homens de quarenta e poucos anos queriamuma ninfa núbil de vinte e três, uma daquelas criaturas lânguidas que desfilavam por Manhattanmunidas de leggings e tapetes de ioga. Sarah receava ser a segunda esposa. Em momentos menosbons, via-se de braço dado com um ricaço de sessenta e três anos que pintava o cabelo e levavaregularmente injeções de botox e testosterona. Os filhos do seu primeiro casamento considerá-la-iam uma intrusa e desprezá-la-iam. Depois de prolongados tratamentos de fertilidade, ela e ovelhote do marido conseguiriam ter um único rebento que Sarah criaria sozinha depois de o seumarido falecer tragicamente na sua quarta tentativa de escalar o Evereste.

O zunzum de pessoas no vestíbulo do MoMA animou-a. A coleção Nadia al-Bakari estava noprimeiro piso. O seu escritório, no terceiro. O registo telefónico mostrava doze chamadas nãoatendidas. O de sempre: pedidos de entrevistas, convites para cocktails e inaugurações degalerias, e um repórter de um tabloide à caça de mexericos.

O último telefonema era de um tal Alistair Macmillan. Pelos vistos, o senhor Macmillanqueria ver a coleção em privado após a hora de fecho do museu. Não tinha deixado informaçãode contacto. Mas pouco importava: Sarah era uma das poucas pessoas no mundo que tinham oseu número privado. Hesitou antes de ligar. Não tinham voltado a falar desde Istambul.

— Estava a ver que nunca mais retribuías o telefonema. — O sotaque era uma combinação deArábia e Oxford. O tom era calmo, com um laivo de cansaço.

— Estava a almoçar — respondeu Sarah sem se alterar.— Num restaurante italiano da Park Avenue com uma criatura de nome Brady Boswell.— Como é que sabes?— Dois dos meus homens estavam sentados numas mesas mais à frente.Sarah não reparara neles. Evidentemente, a sua habilidade para a contravigilância tinha-se

deteriorado nos últimos oito anos fora da CIA.— Arranjas-me isso? — perguntou Macmillan.— O quê?— A visita privada à coleção Al-Bakari, claro.— Não é boa ideia, Khalid.— O mesmo que me disse o meu pai quando lhe propus conceder às mulheres do meu país o

direito de conduzir.— O museu fecha às cinco e meia.— Nesse caso, espera por mim às seis.

3

NOVA IORQUE

O Tranquillity, que tinha fama de ser o segundo maior iate de recreio do mundo, dava quepensar inclusive aos seus mais acérrimos defensores no Ocidente. O futuro rei viu-o pelaprimeira vez, ou era o que se dizia, do terraço da casa de verão que o seu pai tinha em Maiorca.Cativado pela elegância das linhas do iate e pelas suas luzes de navegação características em azulnéon, despachou de imediato um emissário para perguntar se estava à venda. O proprietário, umoligarca russo chamado Konstantin Dragunov, soube ver a oportunidade que lhe surgia e pediuquinhentos milhões de euros pelo barco. O futuro rei aceitou na condição de que o russo e o seuextenso séquito abandonassem o iate de imediato. Assim o fizeram, servindo-se do helicópterode bordo, incluído também no preço da venda. O futuro rei que, a seu modo, era um implacávelhomem de negócios, passou uma fatura exorbitante ao russo pelo combustível.

Confiava, quiçá ingenuamente, que a compra do iate permanecesse em segredo até queencontrasse uma forma de explicá-la ao seu pai, mas, ainda mal tinham passado quarenta e oitohoras da venda da embarcação, e já um tabloide londrino publicava, com uma minúcia espantosa,a notícia da transação, provavelmente com a colaboração do próprio oligarca russo. A imprensaoficial do país do futuro rei — ou seja, a Arábia Saudita — fez vista grossa, mas as redes sociaise a blogosfera underground gritaram a notícia aos quatro ventos. Devido à descida do preço dopetróleo, o futuro rei tinha imposto medidas de austeridade rigorosas aos seus mimados súbditos,que tinham visto diminuir bruscamente o seu nível de vida, até aí tão confortável. Até na ArábiaSaudita, onde a ganância real era um traço permanente da vida política nacional, caiu mal essamostra de cobiça do príncipe herdeiro.

O seu nome completo era Khalid bin Mohammed bin Abdulaziz Al Saud. Fora criado numexuberante palácio do tamanho de um quarteirão e andara num colégio reservado aos membrosvarões da família real e a seguir em Oxford, onde estudou economia, andou atrás das mulheresocidentais e bebeu grandes quantidades de álcool, embora isso fosse proibido pela sua religião. Oseu desejo era ficar no Ocidente mas, quando o seu pai subiu ao trono, regressou à ArábiaSaudita para assumir o cargo de ministro da Defesa, uma conquista notável para um homem quejamais vestira uma farda militar, nem empunhara outra arma que não fosse um falcão.

O jovem príncipe lançou pouco depois uma guerra custosa e devastadora para atalhar ainfluência iraniana no vizinho Iémen e impôs um bloqueio sobre o novo-rico Qatar, mergulhandoassim a região do Golfo numa crise profunda. Mas, sobretudo, dedicou-se a conspirar e amaquinar dentro da corte real para prostrar os seus rivais, tudo com a bênção do seu pai, o rei.

Envelhecido e atacado pela diabetes, o monarca sabia que o seu reinado não duraria muito. NaCasa de Saud era costume que um irmão sucedesse a outro. O rei, no entanto, rompeu com atradição ao designar o seu filho príncipe herdeiro e sucessor ao trono. Aos trinta e três anos, opríncipe converteu-se em governante de facto da Arábia Saudita e chefe de uma família cujafortuna superava o trilião de dólares.

Não obstante, o futuro rei sabia que a riqueza do seu país era em grande parte uma miragem;que a sua família tinha esbanjado imenso dinheiro em palácios e quinquilharias; e que dali avinte anos, quando se completasse a transição dos combustíveis fósseis para as fontes renováveisde energia, o petróleo do subsolo da Arábia Saudita valeria tão pouco como a areia que o cobria.Deixado à sua sorte, o Reino voltaria a ser o que tinha sido antes: um deserto habitado pornómadas em guerra permanente.

Para evitar esse futuro calamitoso para o seu país, resolveu arrastá-lo do século VII para oséculo XXI. Com ajuda de uma consultora americana, congeminou um plano económico quedenominou em tom grandioso, O Caminho a Seguir. O plano idealizava uma economia modernaimpelida pela inovação, pelo investimento estrangeiro e pela iniciativa privada. Os seus cidadãosmimados já não poderiam contar com empregos na administração pública e benesses vitalícias.Teriam de trabalhar para ganhar a vida e estudar outras coisas para além do Corão.

O príncipe herdeiro tinha consciência de que a força de trabalho daquela nova Arábia Sauditanão podia ser composta unicamente por homens. As mulheres também seriam chamadas aparticipar, o que implicava que as amarras religiosas que as mantinham num estado praticamentede escravatura teriam de se afrouxar. Concedeu-lhes o direito de conduzir automóveis, há muitoproibido, e permitiu que assistissem a eventos desportivos, onde estivessem homens presentes.

Não se conformou, no entanto, com essas pequenas reformas. Queria reformar a própriareligião. Propôs fechar a conduta que enchia de dinheiro a expansão global do wahabismo, aversão puritana do Islão sunita imperante na Arábia Saudita, e dificultar o apoio privado dos seuscidadãos a grupos terroristas jihadistas como a Al-Qaeda e o ISIS. Quando um importantecolunista do New York Times descreveu o perfil do jovem príncipe e das suas aspirações, osulemás — o poder clerical saudita— fervilharam de raiva sagrada.

O príncipe herdeiro mandou prender uns quantos exaltados religiosos e, imprudentemente,também alguns moderados. Prendeu igualmente defensores da democracia e dos direitos dasmulheres e qualquer um que cometesse a insensatez de o criticar. Inclusive mandou deter mais deuma centena de membros da família real e da elite empresarial saudita e encerrar o Hotel Ritz-Carlton. Aí, em quartos sem porta, foram submetidos a brutais interrogatórios, às vezes às mãosdo próprio príncipe herdeiro. Todos foram libertados passado um tempo, mas só depois deentregarem ao todo mais de 100 000 milhões de dólares. O futuro rei alegou que esse dinheiroprocedia de chantagens e subornos, e deu por terminada aquela forma de fazer negócios noReino.

Exceto, claro está, no que respeitava ao futuro rei, que continuou a acumular riqueza a umavelocidade vertiginosa e a esbanjar rios de dinheiro. Comprava o que lhe apetecia ousimplesmente apropriava-se daquilo que não podia comprar. Quem se negava a ceder à suavontade recebia um envelope que continha uma única bala de calibre 45.

O que deu lugar a uma reconsideração geral da opinião que se tinha dele. Sobretudo, noOcidente. KBM era mesmo um reformista, perguntavam-se políticos e especialistas no MédioOriente. Ou era só mais um xeque do deserto, ávido de poder, que prendia os opositores e

enriquecia à custa do povo? Propunha-se mesmo modernizar a economia saudita? Retirar o apoioinstitucional da sua monarquia ao fanatismo e ao terrorismo islâmicos? Ou tentava apenasimpressionar os meninos finos de Georgetown e Aspen?

Por motivos que Sarah era incapaz de explicar aos seus amigos e colegas do mundo das artes,inicialmente ela incluía-se entre o grupo dos céticos. Daí que se tivesse mostrado reticentequando Khalid pediu para a ver durante uma das suas visitas a Nova Iorque. Acabou por aceitar,mas só depois de consultar a divisão de Segurança de Langley, que a vigiava de longe.

Reuniram-se numa suíte do Hotel Four Seasons, sem escoltas, nem assistentes. Sarah lera osinúmeros artigos elogiosos que o Times tinha publicado sobre KBM e tinha visto fotografias suasenvergando a túnica e o toucado tradicional dos sauditas. Todavia, de fato inglês feito à medida,apresentava um aspeto bem mais imponente: era eloquente, culto, sofisticado e transmitiasegurança em si próprio e poder. E dinheiro, claro. Uma quantidade de dinheiro inimaginável.Pensava investir uma pequena parte da sua fortuna — explicou a Sarah — em adquirir umacoleção de pintura de primeira classe. E queria que ela fosse sua assessora.

— O que é que pensa fazer com os quadros?— Pendurá-los num museu que vou construir em Riade. Será o Louvre do Médio Oriente —

respondeu ele pomposamente.— E quem visitará esse Louvre?— Os mesmos que visitam o Louvre de Paris.— Turistas?— Sim, pois claro.— Na Arábia Saudita?— Porque não?— Porque os únicos turistas que podem entrar no seu país são os peregrinos muçulmanos que

visitam Meca e Medina.— Por agora — respondeu ele com ênfase.— Porquê eu?— Não é a conservadora da coleção Nadia al-Bakari?— A Nadia era uma reformista.— Tal como eu.— Lamento — respondeu Sarah. — Não me interessa.Um homem como Khalid bin Mohammed não estava acostumado a que lhe dissessem que

não. Perseguiu Sarah implacavelmente: com telefonemas, flores e presentes esplêndidos que elanunca aceitava. Quando Sarah por fim deu o braço a torcer, fez questão de não receberremuneração pelo seu trabalho. Embora sentisse curiosidade pelo homem conhecido como KBM,o seu passado não lhe permitia aceitar nem um só real da Casa de Saud. Para além disso, pelo seubem e pelo do príncipe, a sua relação seria estritamente confidencial.

— Como devo chamá-lo? — perguntou ela.— Sua Alteza Real bastará.— Experimente outra vez.— Khalid está bem?— Muito melhor.Compraram expeditamente e sem restrições em leilões e vendas privadas: pintura do pós-

guerra, impressionistas, antigos mestres… Não negociavam mal. Sarah dizia um preço e um dosacólitos de Khalid tratava do pagamento e dos preparativos da transferência. Saciaram a sua

voracidade aquisitiva com a maior discrição possível e a cautela de dois espiões. Ainda assim, omundo da arte não demorou a perceber que havia um novo agente entre eles, sobretudo depois deKhalid desembolsar a gritante quantia de quinhentos milhões de dólares pelo Salvator Mundi deLeonardo. Sarah aconselhou-o a não o fazer. Nenhum quadro, argumentou, salvo quiçá a MonaLisa, valia tanto dinheiro.

Enquanto criava a coleção, passou muitas horas na companhia de Khalid, a sós. Ele falava-lhedos seus planos para a Arábia Saudita, utilizando-a às vezes como caixa de ressonância. Pouco apouco, o ceticismo de Sarah foi-se diluindo. Khalid, dizia-se, era um frasco imperfeito. Mas seera capaz de promover uma mudança autêntica e duradoura na Arábia Saudita, o Médio Oriente eo mundo islâmico em geral não voltariam a ser os mesmos.

Tudo isso mudou, no entanto, com Omar Nawwaf.Nawwaf era um destacado jornalista e dissidente saudita que tinha pedido asilo em Berlim.

Muito crítico com a Casa de Saud, sentia especial aversão a Khalid, que considerava umcharlatão que se dedicava a sussurrar palavras ocas ao ouvido dos ocidentais crédulos, enquantoenchia os bolsos e prendia os seus opositores. Há dois meses, Nawwaf tinha sido brutalmenteassassinado e esquartejado no consulado saudita em Istambul.

Enfurecida, Sarah Bancroft juntou-se a quem cortara relações com o promissor príncipesaudita que respondia às iniciais KBM.

— És como todos os outros — disse-lhe numa mensagem de voz. — E é verdade, Sua AltezaReal, espero que apodreças no inferno.

4

NOVA IORQUE

O primeiro anúncio ouviu-se poucos minutos depois das cinco da tarde. Num tom cortês,recordava aos visitantes que o museu fecharia em breve e convidava-os a dirigirem-se à saída. Às17h25, já todos tinham obedecido, exceto uma senhora com um aspeto algo distraído que não seconseguia afastar de A Noite Estrelada de Van Gogh. Os seguranças fizeram-na sairamavelmente para a rua nesse fim de tarde e a seguir percorreram o museu, sala por sala, para seassegurarem de que não ficava lá dentro nenhum espertinho disposto a roubar um quadro.

Às 17h45 indicaram que estava tudo em ordem. A essa hora, a maioria do pessoaladministrativo já tinha saído. Por conseguinte, ninguém presenciou a chegada à West Fifty-ThirdStreet de uma comitiva de três SUV pretos com matrícula diplomática. Khalid, de fato denegócios e sobretudo escuro, saiu do segundo e, atravessando rapidamente o passeio, aproximou-se da entrada. Sarah, depois de hesitar um momento, deixou-o passar. Entreolharam-se napenumbra do vestíbulo antes de Khalid lhe estender a mão. Ela não a aceitou.

— Surpreende-me que te tenham deixado entrar no país. A verdade é que não nos deveríamosver, Khalid.

Ele continuou com a mão estendida.— Eu não matei matar o Omar Nawwaf — disse com calma. — Tens de acreditar em mim.— Antes acreditava. Tal como muitas pessoas neste país. Gente importante. Gente inteligente.

Acreditávamos que eras diferente, que ias mudar o teu país e o Médio Oriente. E enganaste-nos atodos.

Khalid retirou a mão.— O que está feito, não pode ser desfeito, Sarah.— Nesse caso, o que é que estás aqui a fazer?— Julguei ter sido bem claro ao telefone.— E eu julguei ter sido bem clara quando pedi para não voltares a ligar.— Ah, sim, lembro-me disso. — Tirou o seu telemóvel do bolso do casaco e mostrou a última

mensagem de Sarah.E é verdade, Sua Alteza Real, espero que apodreças no inferno…— Aposto que não fui a única que te deixou uma mensagem parecida.Khalid voltou a guardar o telefone.— Não, mas a tua magoou-me mais.Aquilo espicaçou a curiosidade de Sarah.

— Porquê?— Porque confiava em ti. E porque pensava que entendias a dificuldade que ia ser mudar o

meu país sem o mergulhar no caos político e religioso.— Isso não te dá o direito de assassinar uma pessoa só porque te criticou.— Não é assim tão simples.— Ah, não?Ele não respondeu. Sarah percebeu que algo o apoquentava, algo mais do que a humilhação

que a sua queda em desgraça lhe teria feito sentir.— Posso vê-la?— A coleção? Vieste mesmo por causa disso?Khalid pareceu levemente ofendido.— Sim, claro.Sarah conduziu-o escadas acima até à ala Al-Bakari. O retrato de Nadia, pintado muito após a

sua morte no deserto Rub’ al-Khālī da Arábia Saudita, estava pendurado à entrada.— Ela é que era autêntica — afirmou Sarah. — Não uma farsante como tu.Khalid olhou-a com fúria antes de erguer o olhar para o retrato. Nadia estava sentada no canto

de um longo sofá, vestida de branco, com um colar de pérolas à volta do pescoço e os dedoscheios de ouro e diamantes. Por cima do seu ombro, a esfera de um relógio brilhava como a lua.Havia orquídeas junto dos seus pés descalços. O estilo era uma hábil mistura de pintura clássicae contemporânea. O desenho e a composição, impecáveis.

Khalid deu um passo para o retrato e observou o canto inferior direito da tela.— Não tem assinatura.— O artista nunca assina as suas obras.Ele apontou para a placa informativa colocada junto ao quadro.— Também aqui não aparece o nome.— Desejava permanecer no anonimato para não ofuscar a retratada.— É famoso?— Em certos círculos.— Conhece-lo?— Sim, claro.Khalid voltou a observar o quadro.— Posou para ele?— A verdade é que a pintou de memória.— Nem sequer usou uma fotografia?Sarah negou com a cabeça.— Extraordinário! Devia admirá-la muito para pintar algo tão bonito. Infelizmente, não tive o

prazer de a conhecer. Era muito famosa, em jovem.— Mudou muito após a morte do pai.— O Zizi al-Bakari não morreu. Foi assassinado a sangue frio no Porto Velho de Cannes por

um pistoleiro chamado Gabriel Allon. — Khalid olhou-a nos olhos um instante antes de entrar naprimeira das quatro salas dedicadas ao impressionismo. Aproximou-se de um Renoir econtemplou-o com inveja. — Estes quadros deveriam estar em Riade.

— A Nadia confiou-os de maneira permanente ao MoMA e nomeou-me a mim conservadorada coleção. Vão ficar onde estão.

— Talvez permitas que os compre.

— Não estão à venda.— Tudo está à venda, Sarah.Sorriu fugazmente. Sarah notou que lhe custava. Khalid parou à frente do quadro seguinte,

uma paisagem de Monet. Depois, passeou o olhar pela sala.— Nenhum Van Gogh?— Não.— Que estranho, não achas?— O quê?— Que uma coleção como esta tenha essa carência tão evidente.— É difícil conseguir um Van Gogh.— Não é isso que as minhas fontes me dizem. De facto, sei de fonte segura que o Zizi foi

proprietário durante um tempo de um Van Gogh pouco conhecido intitulado Marguerite Gachetno seu toucador. Comprou-o a uma galeria de Londres. — Observou Sarah atentamente. —Queres que continue?

Ela não disse nada.— A galeria é propriedade de um tal Julian Isherwood. No momento da venda trabalhava lá

uma americana. Ao que parece, o Zizi simpatizou com ela. Convidou-a para o acompanhar noseu cruzeiro anual de inverno pelas Caraíbas. O seu iate era bem mais pequeno do que o meu.Chamava-se…

— Alexandra — interrompeu-o Sarah, e, logo de seguida, perguntou: — Desde quando é quesabes disso?

— Que a minha assessora artística é uma agente da CIA?— Era. Já não trabalho para a Agência. Nem para ti.— E o que é que me dizes dos israelitas? — perguntou Khalid com um sorriso. — Achas

mesmo que teria permitido que te aproximasses de mim sem me informar primeiro sobre os teusantecedentes?

— E ainda assim fizeste questão de me perseguir.— Efetivamente, assim foi.— Porquê?— Porque sabia que um dia me poderias ajudar, e não só com a minha coleção de arte. —

Passou junto dela e parou à frente do retrato de Nadia. — Sabes como entrar em contacto comele?

— Com quem?— Com o homem que pintou este quadro sem que uma só fotografia guiasse a sua mão. —

Assinalou o canto inferior direito da tela. — E cujo nome deveria figurar aqui.— És o príncipe herdeiro da Arábia Saudita. Para que é que precisas de mim para entrares em

contacto com o chefe do serviço de espionagem israelita?— A minha filha — respondeu Khalid. — Alguém levou a minha filha.

5

ASTARA, AZERBAIJÃO

Sarah Bancroft ligou a Gabriel Allon naquela mesma tarde mas não obteve resposta, comocostumava ocorrer quando Gabriel estava imerso numa missão. Devido à natureza delicada damesma, só o primeiro-ministro e um punhado de colaboradores de confiança conheciam o seuparadeiro: uma villa de tamanho médio com muros ocres, à beira do mar Cáspio. Atrás da casa,campos de cultivo retangulares espraiavam-se pelas colinas da cordilheira do Cáucaso oriental.No alto de um dos cerros erguia-se uma pequena mesquita. Cinco vezes por dia, o crepitantealtifalante do minarete chamava os fiéis para a oração. Apesar da sua longa luta contra as forçasdo radicalismo islâmico, a voz do almuadem exercia sobre Gabriel um efeito reconfortante.Naquele momento da sua vida, não tinha amigos melhores do que os cidadãos muçulmanos doAzerbaijão.

Oficialmente, a villa era propriedade de uma empresa imobiliária com sede em Baku, porém, oseu verdadeiro dono era a divisão de Logística dos serviços secretos israelitas, encarregada deconseguir e administrar andares seguros para os seus agentes. A operação de compra tinha-seefetuado com a aquiescência do chefe do serviço de segurança azeri, com o qual Gabrielmantinha uma relação invulgarmente próxima. O Azerbaijão fazia fronteira a sul com aRepública Islâmica do Irão. De facto, a fronteira iraniana ficava apenas a cinco quilómetros dacasa, o que explicava por que razão Gabriel ainda não tinha posto um pé fora dos seus murosdesde que chegara. Se soubesse da sua presença ali, a Guarda Revolucionária iraniana semdúvida teria organizado uma tentativa de assassínio ou de sequestro. Gabriel não os culpava pelasua antipatia: afinal de contas eram as regras do jogo numa zona conturbada. Para além disso, seele tivesse oportunidade de abater o chefe da Guarda Revolucionária, apertaria alegremente ogatilho sem pensar duas vezes.

Aquela casa junto ao mar não era a única base logística com a qual Gabriel contava noAzerbaijão. O seu serviço — quem aí trabalhava referia-se-lhe apenas como «o Departamento»— dispunha também de uma pequena frota de barcos de pesca, navios de carga e lanchas rápidas,convenientemente registada no país. As embarcações viajavam com regularidade entre os portosazeris e a linha costeira iraniana, onde depositavam os agentes e as equipas operacionais doDepartamento e recolhiam valiosos colaboradores iranianos dispostos a cumprir ordens de Israel.

Há um ano, um desses colaboradores, um indivíduo que trabalhava nos meandros do programasecreto de armas nucleares iraniano, tinha chegado de barco à villa do Departamento em Astaraonde tinha comunicado a Gabriel da existência de um armazém situado num banal bairro

comercial de Teerão. O armazém albergava trinta e dois cofres de fabrico nacional. No seuinterior havia centenas de discos de computador e milhões de documentos impressos. Segundo afonte, aquele material demonstrava de maneira conclusiva o que o Irão negava há muito: quetrabalhava incansável e metodicamente na construção de uma bomba de implosão nuclear e nacriação de um sistema de lançamento capaz de atingir, no mínimo, o território israelita.

O Departamento estava a vigiar o armazém há quase um ano, servindo-se de artistas virtuososda espionagem e câmaras em miniatura. Tinham averiguado que os guardas do primeiro turnochegavam às sete da manhã e que, durante várias horas todas as noites, aproximadamente a partirdas dez, o armazém só estava protegido pelas fechaduras das portas e pela vedação perimetral.Gabriel e Yaakov Rossman, o chefe das Operações Especiais, tinham concordado que a equipapermaneceria lá dentro no máximo até às cinco da manhã. O informador tinha-lhes dito quais oscofres que deviam abrir e quais deviam ignorar. Devido ao método de entrada — tochas queatingiam uma temperatura de quase 2000º centígrados —, não havia forma de esconder aoperação. Portanto, Gabriel tinha mandado a equipa levar o material relevante, em vez de ocopiar. As cópias podiam desmentir-se com facilidade. Os originais eram mais difíceis deexplicar. Para além disso, a ousadia de saquear os arquivos do programa nuclear iraniano e tirá-los do país humilharia o regime aos olhos da sua inquieta cidadania. E Gabriel adoravaridicularizar os iranianos.

Contudo, furtar os documentos originais aumentava exponencialmente o risco da operação. Ascópias encriptadas podiam sair do país em duas memórias USB de alta capacidade. Mover eocultar os originais era bem mais complicado. Um colaborador iraniano do Departamento tinhacomprado um camião Volvo. Se os guardas do armazém se ativessem ao seu horário habitual, aequipa disporia de uma vantagem de duas horas. O itinerário levá-los-ia da periferia de Teerão,atravessando a cordilheira Alborz até à costa do mar Cáspio. O ponto de retirada era uma praiapróxima à localidade de Babolsar. A equipa de apoio estava uns quilómetros a leste, em KhazarAbad. Estava previsto que os dezasseis membros da equipa escapassem juntos. Eram na suamaioria judeus iranianos que falavam persa e que podiam passar facilmente como tal. Noentanto, o seu chefe era Mikhail Abramov, um agente nascido em Moscovo que tinha levado acabo numerosas missões de alto risco para o Departamento, inclusive o assassinato seletivo deum destacado cientista nuclear iraniano no centro de Teerão. Mikhail era o chamariz daoperação. Gabriel sabia por experiência própria que qualquer operação requeria pelo menos um.

Indubitavelmente, em tempos idos Gabriel Allon teria feito parte da equipa. Nascido no Valede Jezreel, a faixa de terra fértil da qual eram oriundos muitos dos melhores espiões ecombatentes de Israel, Gabriel estudava pintura na Academia de Arte e Desenho de Bezalelquando, em setembro de 1972, um tal Ari Shamron lhe fez uma visita. Uns dias antes, um grupoterrorista denominado Setembro Negro, vinculado à Organização para a Libertação da Palestina,tinha assassinado onze desportistas e treinadores israelitas nos Jogos Olímpicos de Munique. Aprimeira-ministra Golda Meir ordenou a Shamron e ao Departamento que «mandassem osrapazes» caçar e eliminar os responsáveis pelo atentado. Shamron queria que Gabriel, que falavaperfeitamente alemão com pronúncia de Berlim e podia passar por pintor, se tornasse noinstrumento da vingança israelita. Gabriel, com a irreverência da juventude, dissera a Shamronpara procurar outra pessoa. E Shamron, não pela última vez, tinha-o vergado à sua vontade.

A operação recebera o nome de código de Ira de Deus. Durante três anos, Gabriel e umapequena equipa de agentes perseguiram as suas presas ao longo da Europa e do Médio Oriente.Matavam de noite e em plena luz do dia e viviam com um medo constante de que as autoridades

locais os detivessem a qualquer momento e os acusassem de assassínio. Ao todo, mataram dozemembros do Setembro Negro. Gabriel eliminou pessoalmente seis deles com uma Beretta, decalibre 22. Sempre que possível, alvejava as vítimas onze vezes: uma bala por cada judeu mortono atentado de Munique. Quando, finalmente, regressara a Israel, as suas têmporas estavamgrisalhas do stresse e da exaustão. Shamron chamava-lhes manchas de cinza no príncipe de fogo.

Gabriel tencionara retomar a sua carreira como artista mas, sempre que se encontrava diantede um quadro, via apenas os rostos dos homens que matara. E assim, com a bênção de Shamron,viajou para Veneza como um expatriado italiano chamado Mario Delvecchio para estudarrestauro. Quando completou a sua formação, regressou ao Departamento e aos braçosexpectantes de Ari Shamron. Fazendo-se passar por um dotado, embora taciturno, restaurador dearte europeia, eliminou alguns dos mais perigosos inimigos de Israel e levou a cabo várias dasoperações mais célebres da história do Departamento. A dessa noite estaria entre as suas maioresfaçanhas. Mas só se fosse bem-sucedida. E se fracassasse? Dezasseis agentes altamentequalificados do Departamento seriam presos, torturados e com toda a probabilidade executadospublicamente, e ele não teria outro remédio a não ser demitir-se, um fim indigno para umacarreira que servia de medida a qualquer outra. Havia até a possibilidade de arrastar o primeiro-ministro na sua queda.

Mas, por enquanto, nada podia fazer exceto esperar e morrer de preocupação. A equipa tinhaentrado na República Islâmica na noite anterior e tinha-se encaminhado para uma rede deandares seguros em Teerão. Às 22h15, hora local, Gabriel recebeu uma mensagem da divisão deOperações da Avenida Rei Saul através de uma ligação segura informando-o de que os guardasdo último turno tinham saído do armazém. Mandou então entrar a equipa, e às 22h31 já estavamtodos lá dentro. Tinham, portanto, seis horas e vinte e nove minutos para abrir, com ummaçarico, os cofres assinalados e apoderar-se dos documentos. Um minuto menos do queGabriel esperava, o que supunha um pequeno revés. Sabia por experiência própria que cadasegundo contava.

Gabriel era um homem paciente por natureza, um traço que lhe tinha sido muito útil comorestaurador de arte e como agente secreto. No entanto, naquela noite, à beira do mar Cáspio,perdeu o domínio de si próprio. Deambulava sem descanso pelas salas meio mobiladas da villa,murmurava baixinho e vociferava exaltações às suas sofridas escoltas. Pensava, sobretudo, nosmotivos pelos quais dezasseis dos seus melhores agentes podiam não sair com vida do Irão. Sótinha a certeza de uma coisa: de que, se tivesse de enfrentar as forças iranianas, a equipa não serenderia sem lutar. Gabriel tinha dado permissão a Mikhail, ex-membro da Sayeret Matkal, paraque saísse do país se houvesse tiros, se fosse necessário. Se os iranianos interviessem, muitosacabariam mortos.

Por fim, às 4h45 da madrugada, hora de Teerão, chegou uma mensagem através de umaligação segura. A equipa tinha saído do armazém com os arquivos e os discos informáticos ecomeçado a fuga. A mensagem seguinte chegou às 5h39, quando a equipa se dirigia à cordilheiraAlborz. Informava de que um segurança tinha chegado antes da sua hora ao armazém. Meia horadepois, Gabriel soube que a NAJA, a polícia nacional iraniana, tinha dado o alerta e estava acortar estradas em todo o país.

Gabriel saiu da villa e, à meia-luz do amanhecer, desceu a pé até à beira do lago. Nas encostasque se levantavam atrás de si, o almuadem chamava os fiéis para a oração. Orar é melhor do quedormir… E, nesse instante, Gabriel não podia estar mais de acordo.

6

TELAVIVE

Ao não receber resposta ao seu telefonema, nem às suas mensagens posteriores, SarahBancroft concluiu que não lhe restava outro remédio senão apanhar um avião de Nova Iorquepara Israel. Khalid tratou dos preparativos da viagem, daí que Sarah viajasse num luxuoso aviãoprivado, com o único inconveniente de ter de fazer uma breve escala na Irlanda para abastecer.Como era proibido recorrer às identidades falsas que usava na CIA, passou pelo controlo depassaportes do Aeroporto Ben Gurion usando o seu nome verdadeiro — muito conhecido para osserviços secretos do Estado de Israel — e, logo de seguida, um carro com condutor levou-a atéao Hotel Hilton de Telavive. Khalid tinha-lhe reservado a melhor suíte do hotel.

Ao chegar ao quarto enviou outra mensagem para o telemóvel privado de Gabriel informando-o de que tinha ido a Telavive por iniciativa própria para lhe falar de um assunto que se revestiade uma certa urgência. A mensagem, como as anteriores, não obteve resposta. Era impróprio deGabriel ignorá-la desse modo. Era possível que tivesse mudado de número ou que se tivessevisto obrigado a renunciar ao seu telemóvel privado. Claro que também era possível queestivesse demasiado ocupado para atender. Afinal de contas, era o diretor-geral dos serviçossecretos de Israel, o que o tornava numa das figuras mais poderosas e influentes do país.

Porém, vê-lo-ia sempre como o indivíduo frio e inacessível que vira pela primeira vez numaelegante casa de tijolo vermelho na N Street de Georgetown. Gabriel tinha espiolhado cadacâmara selada do seu passado antes de lhe perguntar se estaria disposta a trabalhar para a JihadSA, que era como se referia a Zizi al-Bakari, o financeiro e facilitador do terrorismo islamista.Sarah teve a sorte de sobreviver à operação subsequente e passou vários meses a recuperar numandar seguro da CIA, num condado a norte da Virgínia famoso pelos seus cavalos. Mas, quandoGabriel precisou de uma última peça para uma operação contra um oligarca russo chamado IvanKharkov, aproveitou a oportunidade para voltar a trabalhar com ele.

Algures pelo caminho também se apaixonou por ele e, ao descobrir que era inalcançável,embrenhou-se numa aventura infeliz com um agente do Departamento chamado MikhailAbramov. A relação estava condenada ao fracasso desde o princípio, pois sobre ambos recaía aproibição de se envolverem com agentes de outros serviços secretos. Até a própria Sarah, quandoanalisava a situação com franqueza, reconhecia que aquele affair amoroso não passara de umatentativa de castigar Gabriel por tê-la rejeitado. Como era de esperar, a coisa acabou mal. Sarahsó tinha visto Mikhail uma vez desde então, numa festa para celebrar a nomeação de Gabrielcomo diretor-geral. Ele ia de braço dado com uma médica judia de origem francesa, muito

atraente. Com frieza, Sarah tinha-lhe oferecido a mão em vez da cara.Ao passar outra hora sem notícias de Gabriel, foi dar um passeio pelo Promenade. Estava um

tempo suave e morno, e algumas nuvens brancas e gordas como dirigíveis sulcavam o céu azuldo Levante. Dirigiu-se para norte, passando ao largo dos cafés da moda da marginal, entre gentebronzeada e enfiada em licra. Com o seu cabelo louro e feições anglo-saxónicas, parecialigeiramente deslocada. O ambiente era profano, ao estilo da Califórnia: uma Santa Mónica nasmargens do Mediterrâneo. Custava imaginar que, para lá da fronteira com a Síria, a poucadistância dali, reinava o caos e a guerra civil. Ou que a uns quinze quilómetros para leste, sobreuma cumeada ossuda de colinas, estavam algumas das povoações palestinianas mais insubmissasda Cisjordânia. Ou que a Faixa de Gaza, aquele reduto de miséria e ressentimento, ficava amenos de uma hora de carro para sul. Na Telavive moderna, pensou Sarah, conseguia perdoar osisraelitas por acharem que o sonho do Sionismo se tinha conseguido sem qualquer custo.

Dirigiu-se para o interior e deambulou sem rumo ou objetivo aparentes. Na verdade, estava apôr em prática um exercício de deteção de vigilância, usando técnicas aprendidas tanto na CIAcomo no Departamento. Na Dizengoff Street, ao sair de uma farmácia com um frasco de champôde que não precisava, chegou à conclusão de que estava a ser seguida. Não viu nada em concreto,mas tinha a sensação persistente de que alguém a observava.

Continuou a andar à sombra fresca das amargoseiras. Os passeios estavam cheios decompradores matinais. Dizengoff Street… O nome era-lhe familiar. Algo horrível tinhaacontecido aí, tinha a certeza. E então lembrou-se. Na Dizengoff Street, em outubro de 1994,tinham morrido vinte e duas pessoas num atentado suicida do Hamas.

Conhecia uma das pessoas feridas: uma analista do Departamento, Dina Sarid. Uma vez, Dinadescrevera-lhe o atentado. A bomba continha mais de vinte quilos de TNT de uso militar eparafusos e pregos embebidos em veneno de rato. Estoirou às nove da manhã, a bordo de umautocarro da linha cinco. A força da explosão atirou membros humanos para o interior dos cafésmais próximos. Durante muito tempo, após o atentado, pingavam gotas de sangue das folhas dasamargoseiras.

Choveu sangue naquela manhã na Dizengoff Street, Sarah…Mas onde tinha sido exatamente o atentado? O autocarro acabava de recolher vários

passageiros na Dizengoff e dirigia-se para norte. Sarah viu no iPhone em que ponto da rua seencontrava. Depois atravessou para o outro passeio e seguiu para sul, até chegar a um pequenomemorial cinzento a lembrar o atentado, na base de uma amargoseira. A árvore era bem maisbaixa e jovem do que as outras.

Aproximou-se do monumento e leu os nomes das vítimas. Estavam escritos em hebreu.— Consegues lê-lo?Sobressaltada, Sarah virou-se e viu-o de pé no passeio, no meio de um charco de luz

sarapintada. Era alto e desajeitado, de cabelo louro e tez clara, quase exangue. Uns óculosescuros escondiam os seus olhos.

— Não — respondeu por fim. — Não consigo.— Não falas hebreu? — perguntou ele num inglês com um inconfundível sotaque russo.— Estudei uma temporada, mas parei.— Porquê?— É uma longa história.O homem agachou-se diante do memorial.— Aqui estão os nomes de que andas à procura. Sarid, Sarid, Sarid. — Olhou para Sarah. —

A mãe e duas das irmãs da Dina.Endireitou-se e tirou os óculos de sol, deixando ver os seus olhos. Eram translúcidos, de um

cinzento-azulado. Como gelo glacial, pensou Sarah. Sempre tinha adorado os olhos de Mikhail.— Há quanto tempo é que me andas a seguir?— Desde que saíste do hotel.— Porquê?— Para ver se mais alguém te seguia.— Contravigilância.— Nós chamamos isso de outro modo.— Sim, eu lembro-me — respondeu Sarah.Nesse instante, um jipe preto parou junto do passeio. Um jovem com colete caqui saiu do

lugar do passageiro e abriu a porta traseira.— Entra — ordenou Mikhail.— Onde é que vamos?Ele não respondeu. Sarah entrou para a parte de trás do carro e, através dos vidros fumados,

viu passar um autocarro número 5. Era indiferente para onde fossem, pensou. Ia ser um trajetomuito longo.

7

TELAVIVE–NETANYA

— O Gabriel não conseguiu mandar outra pessoa para me vir buscar?— Ofereci-me como voluntário.— Porquê?— Queria evitar outra cena incómoda.Sarah olhou pela janela. Estavam a atravessar o centro do Silicon Valley israelita. Flamejantes

edifícios de apartamentos rodeavam ambos os lados da estrada impecável. No prazo de poucosanos, Israel tinha trocado o seu passado socialista por uma economia dinâmica impulsionada pelosetor tecnológico. Grande parte dessa inovação redundava diretamente em benefício do exércitoe dos serviços de segurança, o que proporcionava a Israel uma vantagem claríssima sobre os seusadversários no Médio Oriente. Até os ex-colegas de Sarah do Centro Nacional de Antiterrorismoda CIA ficavam encantados com as façanhas tecnológicas do Departamento e da Unidade 8200,o serviço ultrassecreto de espionagem eletrónica e cibernética de Israel.

— Com que então o rumor desagradável era verdade…— Qual rumor desagradável?— O de tu e essa francesa tão bonita terem casado. Desculpa, mas esqueço-me sempre do

nome dela.— Natalie.— Muito bonito — afirmou Sarah.— Como ela.— Continua a dedicar-se à medicina?— Não propriamente.— E o que é que faz agora?Com o seu silêncio, Mikhail confirmou o que Sarah já suspeitava: que a linda médica francesa

trabalhava agora para o Departamento. A lembrança que guardava de Natalie, emboraensombrada pelos ciúmes, era a de uma mulher morena de aspeto exótico que podia muito bempassar por árabe.

— Calculo que assim haja menos complicações. É bem mais fácil quando marido e mulhertrabalham para o mesmo serviço.

— Não é o único motivo pelo qual nós…— Esquece lá isso, Mikhail. Há muito tempo que não penso nesse assunto.— Quanto?

— Pelo menos uma semana.Passaram debaixo da autoestrada 5 que ligava a Planície Costeira a Ariel, o assentamento

judeu no interior da Cisjordânia. O nó de estradas recebia o nome de Glilot Interchange. Paraalém disso, havia um centro comercial com várias salas de cinemas e um complexo deescritórios, parcialmente oculto por árvores frondosas. Sarah supôs que seria a sede de mais umgigante tecnológico israelita.

Olhou para a mão esquerda de Mikhail.— Já a perdeste?— O quê?— A tua aliança.Mikhail pareceu surpreendido ao sentir a sua falta.— Tirei-a antes de ir para a missão. Voltámos ontem à noite já tarde.— Onde é que estiveste?Ele olhou-a inexpressivamente.— Vá lá, meu querido. Eu e tu temos um passado.— O passado é o passado, Sarah. Agora és uma estranha. Aliás, em breve vais ficar a saber.— Diz-me pelo menos onde foi.— Não ias acreditar.— Seja onde for, deve ter sido horrível. Estás com má cara.— O final foi um pouco pesado.— Algum ferido?— Só dos maus.— Quantos?— Muitos.— Mas a operação foi um sucesso?— Um sucesso histórico — respondeu Mikhail.Os edifícios de escritórios tinham dado lugar ao abastado bairro residencial de Herzliya.

Mikhail olhava para o telemóvel. Parecia aborrecido: era a sua expressão por defeito.— Dá-lhe cumprimentos da minha parte — disse Sarah altivamente.Mikhail guardou o telemóvel no bolso do casaco.— Diz-me a verdade, Mikhail. Porque é que te ofereceste para vires buscar-me?— Queria falar contigo em privado.— Porquê?— Para te pedir desculpa pela forma como acabámos.— Como acabámos?— Pela forma como te tratei no fim. Portei-me muito mal. Se fizesses o favor de…— Foi o Gabriel quem te disse para me deixares?Ele pareceu sinceramente surpreso.— De onde é que tiraste essa ideia?— Sempre me perguntei isso…— O Gabriel disse-me para ir para os Estados Unidos e passar o resto da minha vida contigo.— Porque é que não seguiste o conselho dele?— Porque este é o meu lar. — Mikhail olhou para as terras de cultivo que se estendiam para lá

da janela como uma colcha de retalhos. — Israel e o Departamento. Não conseguia viver nosEstados Unidos, mesmo que tu lá estivesses.

— Podia ter-me mudado para cá.— Esta vida não é simples.— É melhor do que a alternativa — replicou ela, e nesse preciso instante arrependeu-se das

suas palavras. — Mas o passado é o passado. Não foi o que disseste?Ele assentiu lentamente.— Alguma vez te arrependeste da decisão?— De te deixar?— Sim, idiota.— Claro que sim.— E agora és feliz?— Muito.Ficou surpreendida ao ver como a sua resposta a magoava.— Se calhar devíamos mudar de assunto — sugeriu Mikhail.— Sim, é melhor. De que é que queres falar?— Do motivo pelo qual vieste.— Desculpa, mas disso só posso falar com o Gabriel. Aliás — acrescentou em tom de

brincadeira —, tenho a sensação de que em breve vais ficar a saber.Tinham chegado ao lado sul de Netanya. As torres brancas de apartamentos que ficavam perto

da praia recordaram-lhe Cannes. Mikhail trocou umas palavras em hebreu com o condutor. Logoa seguir, pararam junto a um largo terreno.

Mikhail apontou para um hotel em ruínas.— Foi ali que teve lugar o massacre da Páscoa de 2002. Trinta mortos, cento e quarenta

feridos.— Há algum lugar neste país onde não tenha havido um atentado?— Como te dizia, a vida aqui não é fácil. — Mikhail apontou para o passeio marítimo com a

cabeça. — Dá um passeio. Nós tratamos do resto.Sarah saiu do carro e começou a atravessar o terreno. O passado é o passado… Por um

instante, quase acreditou que fosse verdade.

8

NETANYA

No centro do terreno havia um lago de águas azuis à volta do qual um grupo barulhento decrianças ortodoxas brincava à apanhada com os payots ao vento. Não falavam hebreu, masfrancês, tal como as suas mães, que cobriam a cabeça com perucas, e os dois hipsters decamisola preta que observavam Sarah com evidente aprovação de uma mesa da brasserie ChezClaude. De facto, se não fossem os corroídos edifícios ocres e o sol ofuscante do Médio Oriente,Sarah poderia ter pensado que estava a atravessar uma praça do vigésimo arrondissement deParis.

De repente ouviu alguém que chamava pelo seu nome, acentuando a segunda sílaba em vez daprimeira. Ao virar-se, viu uma mulher baixa de cabelo escuro que a cumprimentava do outrolado da praça. Aproximava-se dela a coxear ligeiramente.

Sarid, Sarid, Sarid…Dina beijou-a nas duas faces.— Bem-vinda à Riviera israelita.— Aqui são todos franceses?— Nem todos, mas cada dia vêm mais. — Dina assinalou um extremo da praça. — Há ali um

sítio simpático que se chama La Brioche; recomendo-te os pains au chocolat. São os melhores deIsrael. Pede o suficiente para dois.

Sarah encaminhou-se para o café. Falou num francês fluente com a mulher que atendia aobalcão e a seguir pediu um surtido de doces e dois cafés: um café crème e um espresso.

— Sente-se onde quiser. Já lhe levamos o pedido.Sarah saiu. Havia várias mesas à beira da praça. Mikhail estava sentado numa delas. Olhou

para Sarah e indicou-lhe com a cabeça um homem de idade madura sentado sozinho numa mesa.Vestia um casaco cinzento escuro e uma camisa branca. Tinha a cara longa e um queixo estreito,as maçãs do rosto largas e um nariz fino que parecia talhado em madeira. O seu cabelo escuro,muito curto, tinha fios grisalhos nas fontes. Os seus olhos eram de um estranho tom de verde.

Levantou-se e estendeu-lhe cerimoniosamente a mão, como se a visse pela primeira vez. Sarahreteve-a um instante mais do que o necessário.

— Surpreende-me ver-te num lugar como este.— Saio continuamente à rua. Para além disso — acrescentou Gabriel olhando para Mikhail —,

tenho-o a ele.— O homem que me partiu o coração. — Sarah sentou-se. — É o único?

Gabriel negou com a cabeça.— Quantos mais há?Os seus olhos verdes percorreram a praça.— Oito, acho.— Um pequeno batalhão. Quem é que ofendeste desta vez?— Imagino que os iranianos devam estar um bocado chateados comigo. Tal como o meu velho

amigo do Kremlin.— Li qualquer coisa nos jornais sobre ti e os russos há cerca de dois meses.— Sim?— O teu nome veio à baila quando rebentou aquele escândalo de espionagem em Washington.

Diziam que ias a bordo do avião privado que trasladou a Rebecca Manning do Aeroporto deDulles para Londres.

Rebecca Manning era a ex-chefe da delegação do MI6 em Washington. Agora ia trabalhartodas as manhãs em Moscovo Centro, a sede do SVR, os Serviços Secretos Externos russos.

— Também se deu a entender que foste tu que tinhas matado aqueles três agentes russos queencontraram no canal de Chesapeake, em Maryland — acrescentou Sarah.

Um empregado levou-lhes os cafés. Deixou o espresso à frente de Gabriel com extremocuidado.

— Como é ser o homem mais famoso de Israel? — perguntou Sarah.— Tem os seus inconvenientes.— De certeza que não é tudo mau. Quem sabe? Se jogares bem as tuas cartas, pode ser que um

dia chegues a primeiro-ministro. — Ela puxou ligeiramente a manga do blazer dele. — Averdade é que tens perfil para isso. Mas acho que gostava mais do Gabriel Allon de antes.

— Qual?— O que usava calças de ganga e blusão de cabedal.— Todos têm de mudar.— Eu sei, mas às vezes desejava poder recuar no tempo.— Para onde é que irias?Ela pensou um momento.— Ia para a noite em que jantámos juntos naquele lugar em Copenhaga. Sentámo-nos lá fora,

mesmo estando um frio horrível. E contei-te um segredo muito íntimo que devia ter guardadopara mim.

— Não me lembro.Sarah escolheu um pain au chocolat do cesto.— Não vais comer um?Gabriel levantou a mão.— Afinal de contas, talvez não tenhas mudado tanto assim. Nestes anos todos, acho que nunca

te vi levar nada à boca de dia.— Como quando o sol se põe.— Não engordaste nem um quilo desde a última vez que te vi. Oxalá pudesse dizer o mesmo

de mim.— Estás ótima, Sarah.— Para quem tem quarenta e três anos? — Deitou um pacote de adoçante no café. —

Começava a pensar que tinhas mudado de número.— Estava fora quando ligaste.

— Liguei várias vezes. E também te deixei uma dúzia de mensagens de texto.— Tinha de tomar certas precauções antes de responder.— Comigo? Porquê?Gabriel dedicou-lhe um sorriso cauteloso.— Por causa da tua relação com um certo membro destacado da família real saudita.— O Khalid?— Não sabia que se tratavam pelo nome.— Eu fiz questão disso.Gabriel ficou calado.— É óbvio que achas mal.— Só por causa de algumas das tuas aquisições recentes. Uma em particular.— O Leonardo?— Se tu o dizes…— Duvidas da sua autoria?— Eu podia ter pintado um Leonardo melhor do que esse. — Gabriel olhou-a com seriedade.

— Devias ter-me procurado quando te pediu para trabalhares para ele.— E o que é que me terias dito?— Que o interesse dele em ti não é um mero acaso; que ele sabe dos teus vínculos com a CIA.

— Fez uma pausa. — E comigo.— Terias acertado em cheio.— Como de costume.Sarah deu uma dentada no bolo.— O que é que opinas dele?— Como podes imaginar, o príncipe herdeiro Khalid bin Mohammed é de especial interesse

para o Departamento.— Não estou a pedir a opinião do Departamento, mas sim a tua.— A CIA e o Departamento ficaram muito menos impressionados com o Khalid do que a

Casa Branca e o meu primeiro-ministro. A morte do Omar Nawwaf confirmou os nossostemores.

— O Khalid encomendou o assassinato?— Os homens na posição do Khalid não precisam de dar uma ordem direta.— Não haverá ninguém capaz de me livrar deste padre turbulento?Gabriel assentiu pensativamente.— Um exemplo perfeito da forma como um tirano expressa os seus desejos. O Enrique II

falou e duas semanas depois o arcebispo Becket estava morto.— Deviam afastar o Khalid da linha sucessória?— Se o fizerem, é provável que outro pior ocupe o lugar vago. Alguém que desfaça as

modestas reformas religiosas e sociais que ele fez.— E se soubesses que o Khalid corre perigo, o que é que fazias?— Ouvimos coisas constantemente. Quase todas da boca do próprio príncipe herdeiro.— O que é que queres dizer com isso?— Quero dizer que o Departamento e a Unidade 8200 vigiam o teu cliente muito de perto. Há

pouco, conseguimos hackear o telefone supostamente seguro que usava. Desde então, ouvimosos seus telefonemas e lemos as suas mensagens de texto e os seus e-mails. A Unidade conseguiuativar a câmara e o microfone do telemóvel, de modo que ouvimos também muitas das suas

videochamadas. — Gabriel sorriu. — Não ponhas essa cara de surpresa, Sarah. Como ex-agenteda CIA, devias saber que, ao aceitares trabalhar para um homem como o Khalid bin Mohammed,estavas a renunciar à tua intimidade.

— O que é que sabes ao certo?— Sabemos que, há seis dias, o príncipe herdeiro fez uma série de telefonemas urgentes para a

Polícia Nacional Francesa relativas a um incidente que teve lugar na Alta Saboia, não muitolonge da fronteira suíça. Sabemos que nessa mesma noite o príncipe herdeiro chegou a Parisescoltado pela polícia e que se reuniu aí com vários membros do governo francês, incluindo oministro do Interior e o presidente. Ficou em Paris setenta e duas horas e depois viajou paraNova Iorque, onde se reuniu com uma só pessoa.

Gabriel tirou um BlackBerry do bolso do casaco e tocou duas vezes no ecrã. Uns segundosdepois, Sarah ouviu as vozes de duas pessoas que mantinham uma conversa. Uma delas era ofuturo rei da Arábia Saudita. A outra era a diretora da coleção Nadia al-Bakari do Museu de ArteModerna de Nova Iorque.

Sabes como entrar em contacto com ele?Com quem?Com o homem que pintou este quadro sem que uma só fotografia guiasse a sua mão. E cujo

nome deveria figurar aqui.Gabriel carregou na PAUSA.— Esta manhã tomei o pequeno-almoço com o primeiro-ministro e disse-lhe taxativamente

que não quero ter nada a ver com isto.— E o que é que o primeiro-ministro disse?— Pediu-me para reconsiderar. — Gabriel guardou o BlackBerry no bolso. — Manda uma

mensagem ao teu amigo, Sarah. Escolhe com cuidado as palavras que usas para não revelares aminha identidade.

Ela tirou o iPhone da mala e escreveu a mensagem. Pouco depois, o telemóvel emitiu umtoque suave.

— E então?— O Khalid quer ver-nos esta noite.— Onde?Sarah fez a pergunta. Quando chegou a resposta, passou o telefone a Gabriel.Ele olhou para o ecrã com o rosto sombrio.— Receava que dissesse isso.

9

NEJD, ARÁBIA SAUDITA

O avião que levou Sarah Bancroft a Israel era um Gulfstream G550, um aparelho de trintametros de comprimento com uma velocidade de cruzeiro de 902 quilómetros por hora. Gabrielsubstituiu a tripulação de voo por dois ex-pilotos de combate da Força Aérea israelita e a decabine por quatro guarda-costas da sua escolta oficial. Saíram do Aeroporto Ben Gurion depoisdas sete da tarde e atravessaram o Golfo de Aqaba com o transmissor desligado. À direita,brilhando à luz alaranjada do sol do horizonte, estendia-se a Península do Sinai, refúgio virtualde várias milícias islâmicas, entre elas um ramo do ISIS. À esquerda ficava a Arábia Saudita.

Atravessaram o litoral saudita à altura de Sharma e dirigiram-se para leste, sobrevoando osMontes Hejaz até ao Nejd. Foi aí, no princípio do século XVIII, que um obscuro predicador dodeserto chamado Muhammad Abdul Wahhab chegou à conclusão de que o Islamismo se tinhaafastado perigosamente do caminho marcado pelo Profeta e pelos al salaf al salih, a primeirageração de muçulmanos. Durante as suas viagens pela Arábia, ficou horrorizado ao vermuçulmanos que fumavam, bebiam vinho e dançavam ao som de música trajados com roupasopulentas. Mas o pior não era isso, mas venerarem as árvores, as rochas ou as grutas ligadas ahomens santos, uma prática que Wahhab condenava por a considerar politeísta ou shirk.

Decidido a devolver o Islão às suas raízes, Wahhab e o seu grupo de fervorosos seguidores, osmujahidin, lançaram uma campanha violenta para limpar o Nejd de tudo aquilo que não fossesancionado pelo Corão. Wahhab encontrou um aliado importante na tribo nedji dos Al Saud, coma qual, em 1744, fez um pacto que assentou os alicerces do moderno Estado saudita. Os Al Saudostentavam o poder secular e deixavam as questões religiosas nas mãos dos descendentesdoutrinais de Muhammad Abdul Wahhab, homens que desprezavam o mundo ocidental, acristandade, os judeus e os muçulmanos xiitas, os quais consideravam apóstatas e heréticos.Osama bin Laden e a Al-Qaeda partilhavam o seu ponto de vista, tal como os talibãs, oscombatentes sagrados do ISIS e o resto dos grupos jihadistas sunitas. Os arranha-céus derrubadosem Manhattan, as bombas em estações de comboio da Europa ocidental, as decapitações e osmercados arrasados em Bagdade… Tudo isso tinha a sua origem nessa aliança forjada há mais dedois séculos e meio no Nejd.

A capital da região era a cidade de Ha’il, que tinha vários palácios, um museu, centroscomerciais, parques públicos e uma base da Força Aérea saudita, onde o Gulfstream aterrouquando já passava das oito. O piloto aproximou o avião de quatro Range Rover pretos queaguardavam na pista. Guardas fardados, armados com metralhadoras, circundavam os veículos.

— Afinal talvez isto não tenha sido boa ideia… — murmurou Gabriel.— O Khalid assegurou-me de que estarias a salvo — respondeu Sarah.— Sim? E o que acontece se um desses simpáticos seguranças for leal a outra parte da família

real? Ou, pior ainda, se for membro da Al-Qaeda?O telefone de Sarah emitiu um som suave ao receber uma mensagem.— De quem é?— De quem é que achas?— Está num desses carros?— Não.— Então quem são eles?— Pelos vistos é a nossa escolta. O Khalid diz que um deles é um velho amigo teu.— Eu não tenho nenhum amigo saudita — replicou Gabriel. — Já não.— Talvez deva ir eu primeiro.— Uma loura norte-americana e sem véu? Podia dar lugar a mal-entendidos.A porta da frente da cabine do Gulfstream estava equipada com uma escada desdobrável.

Gabriel acionou-a e, seguido pelos seus quatro guarda-costas, desceu até à pista. Uns segundosdepois abriu-se a porta de um dos Range Rover e apareceu um homem vestido com um simplesuniforme caqui. Alto e anguloso, tinha os olhos escuros e um nariz magro que se assemelhava aum ave de rapina. Gabriel reconheceu-o naquele instante. Pertencia à Mabahith, a polícia secretado Ministério do Interior saudita. Há algum tempo, Gabriel tinha passado um mês retido na sededa Mabahith, em Riade, dedicada ao interrogatório de suspeitos. Aquele homem com cara de avede rapina era o responsável pelo interrogatório. Não era um amigo, mas também não era ocontrário.

— Bem-vindo à Arábia Saudita, senhor diretor Allon. Ou deveria dizer bem-vindo de novo?Tem muito melhor aspeto do que da última vez que o vi pessoalmente. — Apertou com força amão de Gabriel. — Espero que a sua ferida tenha sarado bem.

— Só me dói quando me rio.— Vejo que não perdeu o seu sentido de humor.— Na minha posição, é imprescindível.— Na minha também. Estamos muito atarefados, como deve imaginar. — O saudita deu uma

olhadela aos guarda-costas israelitas. — Estão armados?— Muito, sim.— Por favor, peça-lhes que voltem para o avião. Não se preocupe, senhor diretor. Os meus

homens cuidarão muito bem de si.— Isso é o que temo.Contrariados, os guarda-costas cumpriram a ordem de Gabriel. Um momento depois, Sarah

apareceu à porta da cabine. O vento do deserto agitou o seu cabelo louro.O saudita franziu a testa.— Imagino que não tem véu.— Deixei-o em Nova Iorque.— Não faz mal. Trouxemos um, para o caso de ser preciso.

A estrada era lisa como um espelho e tão negra como um velho disco de vinil. Gabriel só tinha

uma ligeira ideia da direção que seguiam: o telefone de pré-pagamento que guardara no bolsoantes de sair de Telavive não tinha rede. Depois de abandonar a base aérea, tinham atravessadoquilómetros e quilómetros de campos de trigo: Ha’il era o celeiro da Arábia Saudita. Agora, oterreno era áspero e implacável, como o ramo do Islão que Wahhab e os seus seguidoresfanáticos praticavam. Sem dúvida não era uma coincidência, disse Gabriel a si próprio. Acrueldade do deserto tinha deixado a sua marca na fé.

Do seu ponto de observação no banco de trás direito do Range Rover, conseguia ver oindicador de velocidade. Iam a mais de cento e sessenta quilómetros por hora. O condutorpertencia à Mabahith, tal como o homem sentado ao seu lado. À frente ia um Range Rover; osoutros dois iam atrás. Há muito que Gabriel não via outro carro ou um camião. Calculou quetivessem fechado a estrada.

— Não consigo respirar. Acho que vou desmaiar.Gabriel olhou para o outro extremo do banco, onde Sarah Bancroft era apenas um vulto negro.

Estava tapada pela grossa abaya preta que o comando da Mabahith lhe tinha dado segundosdepois de porem o pé em solo saudita.

— A última vez que pus uma coisa desta foi na noite daquela desastrosa operação contra oZizi. Lembras-te, Gabriel?

— Como se fosse ontem.Sarah começou a abanar-se.— Não sei como é que as sauditas conseguem usar estas coisas com cinquenta graus à sombra.

O Khalid mostrou-me uma vez uma fotografia dos anos sessenta na qual se via as mulheressauditas a passearem por Riade com saia e sem véu.

— Era assim em todo o mundo árabe. Tudo mudou após 1979.— É precisamente o que diz o Khalid.— Ah, sim?— Os soviéticos invadiram o Afeganistão e o Khomeini apropriou-se do poder no Irão. E

depois houve Meca. Um grupo de militantes sauditas irrompeu na Grande Mesquita e exigiu queos Al Saud renunciassem ao poder. Foi preciso trazer uma equipa de comandos franceses parapôr fim ao assédio.

— Sim, eu lembro-me.— Os Al Saud sentiram-se ameaçados — prosseguiu Sarah — e decidiram tomar a ofensiva.

Promoveram a expansão do wahabismo para combater a influência do xiismo iraniano epermitiram aos partidários da linha mais dura do Islão que aplicassem rigorosamente os editosreligiosos dentro do país.

— É uma maneira de ver bastante tendenciosa, não te parece?— O Khalid é o primeiro a reconhecer que se cometeram erros.— Que magnânimo da parte dele…Os Range Rover seguiram por um caminho sem asfaltar e entraram no deserto. Passado um

momento chegaram a um posto de controlo pelo qual passaram sem parar. O acampamentoapareceu pouco depois: várias tendas de grande tamanho levantadas ao pé de uma imponenteformação rochosa.

Sarah endireitou automaticamente a abaya quando o carro parou.— Como é que estou?— Do melhor.— Tenta controlar esse teu sarcasmo tão israelita. O Khalid não gosta de ironia.

— Como a maioria dos sauditas.— E, faças o que fizeres, não discutas com ele. Também não gosta de ser contrariado.— Estás a esquecer-te de uma coisa, Sarah.— De quê?— Ele é que precisa da minha ajuda, não o contrário.Ela suspirou.— Talvez tenhas razão. Afinal talvez isto não tenha sido boa ideia…

10

NEJD, ARÁBIA SAUDITA

Nas entrevistas que concedia aos meios ocidentais, o príncipe Khalid bin Mohammedcostumava falar da sua veneração pelo deserto. O que mais gostava — assegurava — era sair doseu palácio de Riade, incógnito, e aventurar-se sozinho na natureza. Montava um rudimentaracampamento no deserto e durante vários dias dedicava-se à falcoaria, a rezar e a fazer jejum. E arefletir sobre o futuro do reino que tinha o nome da sua dinastia. Foi durante uma dessas estadiasnos Montes Sarawat que concebeu O Caminho a Seguir, o seu ambicioso plano de reformaseconómicas para a era pós-petróleo. Assegurava ter dado com a ideia de conceder às mulheres odireito de conduzir enquanto estava acampado em pleno deserto. Ao ver-se sozinho entre asdunas sempre mutantes do deserto, lembrou-se de que nada é permanente e de que inclusive numpaís como a Arábia Saudita é inevitável a mudança.

A verdade a respeito das aventuras de KBM no deserto era muito diferente. O pavilhão noqual Gabriel e Sarah entraram parecia-se muito pouco com as tendas de pelo de camelo nas quaismoravam os seus antepassados beduínos. Era mais um palacete desmontável. Belas tapeçariascobriam o chão e candeeiros de cristal brilhavam à altura do teto. Vários televisores de grandetamanho emitiam as notícias do dia: a CNN Internacional, a BBC, a CNBC e, como não, a AlJazeera, a cadeia com sede no Qatar que Khalid se esforçava por destruir.

Gabriel esperava uma entrevista privada com Sua Alteza Real, mas a tenda estava ocupadapela corte itinerante de KBM: um séquito de funcionários, servidores pau para toda a obra,aduladores e parasitas em geral que acompanhavam o futuro rei. Luziam todos a mesma roupa:thobe branca e ghutra aos quadrados vermelhos apertado com um agal preto. Havia tambémvários militares fardados, um lembrete de que o jovem e inexperiente príncipe estava a travaruma guerra no Iémen, do outro lado dos Montes Sarawat.

Do príncipe herdeiro, pelo contrário, não havia qualquer sinal. Um servidor pau para toda aobra conduziu Gabriel e Sarah a uma sala de espera mobilada com sofás e cadeirões macios,como o vestíbulo de um hotel de luxo. Gabriel declinou a oferta de chá e doces. Sarah, por suavez, experimentou um doce árabe empapado em mel sem tirar a abaya.

— Como é que elas fazem?— Não fazem. Comem com as mulheres.— Sou a única, já reparaste? Não há mais nenhuma mulher nesta tenda.— Estou demasiado distraído a tentar descobrir qual destes tipos planeia matar-me. — Gabriel

olhou para o relógio. — Onde raios é que ele se meteu?

— Bem-vindo à diferença horária KBM, uma hora e vinte minutos de atraso em relação aoresto do mundo.

— Não gosto que me façam esperar.— Está a pôr-te a prova.— Pois não devia.— E o que é que vais fazer? Ir-te embora?Gabriel passou a mão pelo estofo sedoso do sofá.— O acampamento não é rudimentar, pois não?— Achavas mesmo que fosse?— Claro que não. Mas pergunto-me porque é que se incomoda em difundir essa ideia.— E isso importa?— Sim, porque as pessoas que dizem uma mentira normalmente dizem outras.Formou-se um súbito rebuliço entre os cortesãos vestidos de branco quando o príncipe

herdeiro Khalid bin Mohammed entrou na tenda. Vestia-se de maneira tradicional, com thobe eghutra, mas ao contrário dos outros usava também um bisht, um manto cerimonial castanho comribetes dourados que mantinha fechado com a mão esquerda. Com a direita segurava umtelemóvel, colado ao ouvido. O telefone vigiado pela Unidade 8200, pensou Gabriel, eperguntou-se quem mais estaria à escuta: os americanos e os seus aliados dos Cinco Olhos? Ouporventura até os russos ou os iranianos?

Khalid finalizou o telefonema e olhou para Gabriel como se o surpreendesse ver o anjovingador de Israel na terra do Profeta. Passado um momento, atravessou com ar cauteloso oopulento tapete que cobria o chão da tenda. Mesmo estando rodeado pelos seus colaboradoresmais próximos temia pela vida, pensou Gabriel.

— Senhor diretor Allon. — O saudita não lhe estendeu a mão, na qual ainda segurava otelefone. — É muito amável da sua parte ter vindo com tanta celeridade.

Gabriel assentiu com a cabeça mas não disse nada.Khalid olhou para Sarah.— Está algures aí debaixo, menina Bancroft?O montículo preto fez um gesto afirmativo.— Por favor, tire a abaya.Sarah tirou o véu da cara e colocou-o para trás como um lenço, deixando à vista parte do

cabelo.— Muito melhor.Os guarda-costas de Khalid, evidentemente, não estavam de acordo. Apressaram-se a desviar

o olhar e a fixá-lo em Gabriel.— Deve perdoar as minhas escoltas, senhor diretor. Não estão acostumadas a ver israelitas em

território saudita, e muito menos um com a sua reputação.— A que reputação se refere?Khalid esboçou um sorriso falso.— Espero que o voo tenha sido agradável.— Bastante, sim.— E a viagem de carro não foi muito cansativa?— Longe disso.— Apetece-lhe alguma coisa para comer ou beber? Deve estar faminto.— A verdade é que preferia…

— Eu também, senhor diretor, mas a tradição do deserto obriga-me a ser hospitaleiro comquem visita o meu acampamento, mesmo se o visitante foi outrora um inimigo.

— Às vezes, só nos podemos fiar dos inimigos — afirmou Gabriel.— Posso confiar em si?— Não sei se lhe resta outro remédio. — Gabriel deu uma olhadela aos guarda-costas. —

Diga-lhes para irem dar uma volta. Estão a pôr-me nervoso. E dê-lhes esse telefone que tem namão. Nunca se sabe quem é que pode estar à escuta.

— Segundo os meus especialistas, é completamente seguro.— Faça-me esse favor, Khalid.O príncipe herdeiro entregou o telefone a uma das escoltas e as quatro retiraram-se.— Suponho que a Sarah lhe disse porque o queria ver.— Não foi necessário.— Já sabia?Gabriel assentiu com um gesto.— Tem tido notícias dos sequestradores?— Receio bem que sim.— Quanto é que pedem?— Oxalá fosse assim tão simples. A Casa de Saud tem uma fortuna de perto de um bilião e

meio de dólares. Mas não é uma questão de dinheiro.— Se não querem dinheiro, então o que é que querem?— Algo que não lhes posso dar de modo nenhum. Por isso é que preciso que a encontre.

11

NEJD, ARÁBIA SAUDITA

A mensagem dos sequestradores tinha sete linhas e estava escrita em inglês, com a pontuaçãoe a ortografia corretas e sem palavreado esquisito próprio dos tradutores automáticos. Informavaque Sua Alteza Real, o príncipe Khalid bin Mohammed, tinha dez dias para abdicar e renunciarao seu direito ao trono da Arábia Saudita. Caso contrário, a sua filha, a princesa Reema, seriaexecutada. A mensagem não especificava o método de execução nem se seguiria os preceitos dalei islâmica. De facto, não continha qualquer referência religiosa, nem qualquer uma dasreferências retóricas típicas das mensagens terroristas. No seu conjunto, pensou Gabriel, tinhaum tom bastante profissional.

— Quando é que a recebeu?— Três dias depois de levarem a Reema. Tempo de sobra para que o mal já esteja feito. Ao

contrário do meu pai e dos seus irmãos, eu só tenho uma esposa. Lamentavelmente, ela não podeter mais filhos. A Reema é tudo para nós.

— Mostrou isto aos franceses?— Não. Só lhe liguei a si.Tinham saído do acampamento e caminhavam pelo leito seco de um riacho. Sarah estava entre

eles e os guarda-costas atrás. As estrelas cintilavam incandescentes e a lua brilhava como umatocha. Khalid manuseava o seu bisht, um costume saudita. Vestido assim, parecia estar em casana imensidão do deserto. Gabriel, pelo contrário, com o seu fato ocidental e os seus sapatos comatacadores, parecia um intruso.

— Como é que a mensagem chegou?— Por mensageiro.— Onde?Khalid hesitou.— Ao nosso consulado em Istambul.Gabriel tinha o olhar fixo no chão de pedra. Levantou-o bruscamente.— A Istambul?Khalid assentiu com a cabeça.— Nesse caso parece-me que os sequestradores queriam dar a entender mais alguma coisa.— O quê?— É possível que estejam a tentar castigá-lo pela morte e esquartejamento de Omar Nawwaf

de forma a que o seu cadáver coubesse dentro de uma mala de mão.

— Parece irónico, não lhe parece? O grande Gabriel Allon a dar-me lições de moral por causade um trabalhinho sujo.

— Nós levamos a cabo assassinatos seletivos de terroristas e outros sujeitos que são umaameaça para a nossa segurança nacional, muitos deles financiados e apoiados por elementos doseu país. Não matamos ninguém por criticar o nosso primeiro-ministro no jornal. Se não, nãofaríamos outra coisa.

— O Omar Nawwaf não é da sua incumbência.— A sua filha também não é, mas pediu-me para a encontrar e preciso de saber se pode haver

um vínculo entre o desaparecimento dela e o assassinato do Nawwaf.Khalid pareceu pensar na questão com todo o cuidado.— Duvido. Os dissidentes sauditas não têm capacidade logística para levar a cabo algo assim.— Os seus serviços secretos devem ter algum suspeito.— Os iranianos ocupam o primeiro lugar da lista.O raciocínio saudita habitual, disse Gabriel a si próprio: culpar de tudo os hereges xiitas do

Irão. Ainda assim, não descartava essa possibilidade. Os iranianos consideravam Khalid umaameaça de primeiro grau para as suas ambições na região, à altura do próprio Allon.

— Quem mais? — perguntou.— Os catarianos. Detestam-me.— Com razão.— E os jihadistas — acrescentou Khalid. — O setor mais duro do clero saudita está furioso

comigo pelas coisas que tenho dito sobre o Islão radical e a Irmandade Muçulmana. Também nãolhes agrada que tenha permitido às mulheres conduzir e assistir a eventos desportivos. Há muitahostilidade contra mim dentro do reino.

— Duvido que essa mensagem tenha sido escrito por um jihadista.— Por enquanto, estes são os nossos suspeitos.— Os iranianos, os catarianos e os ulemás? Vá lá, Khalid. Aposto que não. O que é que me diz

de todos esses parentes aos quais relegou para se converter no príncipe herdeiro? Ou da centenade personagens destacadas e membros da família real que fechou no Ritz-Carlton? Por favor,recorde-me quanto dinheiro conseguiu extorquir-lhes antes de os deixar ir. Não me consigolembrar do valor exato.

— Cem mil milhões de dólares.— E quanto desse dinheiro foi parar ao seu bolso?— O dinheiro foi parar à administração pública.— Ou seja, ao seu bolso.— L’état, cést moi — disse Khalid. O Estado sou eu.— Algumas das personagens que enganou continuam a ser muito ricas. Suficientemente ricas

para contratarem uma equipa de profissionais para sequestrar a sua filha. A si não o podiamsequestrar, está rodeado dia e noite por um exército de guarda-costas. Mas a Reema… A Reemaé outra questão. — Ao ver que o saudita ficava em silêncio, acrescentou: — Ficou alguém defora?

— A segunda esposa do meu pai. Opôs-se a que mudasse a linha sucessória e pu-la sob prisãodomiciliária.

— O sonho de qualquer menino judeu. — O ar arrefeceu inesperadamente e Gabriel tirou unsenvelopes do casaco. — Porque é que mandou a Reema estudar na Suíça? Porque é que não foipara Inglaterra, onde o Khalid estudou?

— Devo reconhecer que primeiro pensei mandá-la para o Reino Unido, mas o diretor-geral doMI5 não podia garantir a sua segurança. Os suíços mostraram-se bem mais complacentes nesseaspeto. O diretor da escola comprometeu-se a manter em segredo a sua identidade, e o serviço desegurança suíço vigiava-a de longe.

— Muito generoso da parte deles.— A generosidade não tem nada a ver com isto. Paguei muito dinheiro ao governo para que

cobrisse os custos do dispositivo de segurança. Os suíços são hospitaleiros e muito discretos. Éalgo natural neles, pelo que sei.

— E os franceses? Sabiam que a Reema passava os fins de semana nesse absurdo château daAlta Saboia? — Gabriel olhou um momento para as estrelas. — Não me lembro de quantogastou nessa casa. Quase tanto como no Leonardo.

Khalid ignorou o comentário.— Pode ser que o tenha mencionado de passagem ao presidente, mas não pedi oficialmente ao

governo francês que tomasse medidas de segurança. Embora a comitiva da Reema atravessasse afronteira, só os meus guarda-costas se encarregavam de a proteger.

— Um erro seu.— Visto em retrospetiva, é — conveio Khalid. — Os que sequestraram a minha filha eram

profissionais. A questão é para quem trabalham.— Conseguiu fazer muitos inimigos em muito pouco tempo.— Isso é algo que eu e o Gabriel temos em comum.— Os meus inimigos estão em Moscovo e no Teerão. Os seus estão mais perto. Por isso não

quero imiscuir-me nisto. Mostre a nota de resgate aos franceses, conte-lhes tudo o que sabe. Sãobons — disse Gabriel. — Eu sei. Graças à ideologia e ao dinheiro dos sauditas, vi-me obrigado acolaborar estreitamente com eles numas quantas operações antiterroristas.

Khalid sorriu.— Já desabafou?— Quase, quase.— Não posso mudar o passado, só o futuro. Podemos fazê-lo juntos, nós os dois. Podemos

fazer história. Mas só se encontrar a minha filha.Gabriel parou e contemplou a alta figura de túnica que se erguia diante dele à luz das estrelas.— Quem é você, Khalid? É mesmo um reformista ou o Omar Nawwaf tinha razão e não passa

de mais outro xeque sedento de poder mas com bom olho para as relações públicas?— Sou o reformista que se pode ser na Arábia Saudita neste momento. E se for obrigado a

renunciar ao meu direito ao trono, Israel e o Ocidente sofrerão as consequências.— Disso não tenho dúvidas. Quanto ao resto… — Gabriel calou-se. — Não dirá a ninguém

que intervim neste assunto. Nem sequer aos americanos.A expressão que o saudita adotou deixava claro que não aceitava de bom agrado que um

plebeu lhe desse ordens. Exalou um profundo suspiro e fez uma mudança subtil na colocação dasua ghutra.

— Surpreende-me.— E porquê?— Já aceitou ajudar-me. E ainda não pediu nada em troca.— Algum dia peço — vaticinou Gabriel. — E dar-me-á o que lhe pedir.— Parece muito seguro de si próprio.— Porque estou.

12

JERUSALÉM

A sua comitiva oficial esperava-o na pista do Aeroporto Ben Gurion quando o Gulfstreamaterrou, passavam uns minutos da meia-noite. Sarah acompanhou-o a Jerusalém. Gabriel deixou-a à entrada do Hotel King David.

— O quarto é dos nossos — explicou. — Não te preocupes, desligámos as câmaras e osmicrofones.

— Não sei porquê, mas duvido — respondeu ela com um sorriso. — Que planos tens?— Contra todos os prognósticos, vou tentar localizar a filha de Sua Alteza Real, o príncipe

Khalid bin Mohammed.— Por onde é que pensas começar?— Dado que a raptaram em França, acho que era boa ideia começar por lá.Sarah franziu a testa.— Desculpa, foi um dia muito longo.— Falo muito bem francês, sabias?— Também eu.— E andei no Colégio Internacional de Genebra quando o meu pai trabalhava na Suíça.— Eu sei, Sarah. Mas vais para casa, para Nova Iorque.— Preferia ir a França contigo.— Não pode ser.— Porque não?— Porque trocaste o mundo dos espiões pelo mundo normal há muito tempo.— Mas o mundo dos espiões é bem mais interessante. — Sarah olhou para as horas. — Meu

Deus, é tarde. Quando é que partes para Paris?— Às dez, no voo da El Al para o Charles de Gaulle. Ultimamente, parece que tenho lugar

cativo nesse voo. Vou buscar-te às oito para te levar ao aeroporto.— A verdade é que acho que vou cá ficar mais um ou dois dias e dar uma volta por Jerusalém.— Não estás a pensar em fazer nenhuma parvoíce, pois não?— Como por exemplo?— Como ligar ao Mikhail.— Nem me ocorreria semelhante coisa. Aliás, o Mikhail deixou bem claro que é muito feliz

com a… como quer que se chame…— Natalie.

— Ah, sim, esqueço-me sempre. — Beijou Gabriel na cara. — Lamento ter-te metido em tudoisto. Não hesites em ligar se puder fazer mais alguma coisa.

Saiu a grande velocidade sem acrescentar mais nada e atravessou a entrada do hotel. Gabrielligou para a divisão de Operações da Avenida Rei Saul para informar o agente de guarda da suaintenção de viajar para Paris nessa mesma manhã.

— Mais alguma coisa, chefe?— Ativem o quarto 435 do King David. Só áudio.Desligou e apoiou a cabeça na janela num gesto cansado. Sarah tinha razão numa coisa,

pensou. O mundo dos espiões era bem mais interessante.

Havia cinco minutos de trajeto de carro entre o Hotel King David e a Narkiss Street, a ruafrondosa e tranquila do bairro histórico de Nachlaot onde Gabriel Allon continuava a viverapesar das objeções da divisão de Segurança do Departamento e dos seus muitos vizinhos. Haviapostos de controlo em ambos os extremos da rua e um guarda vigiava a porta com o número 16,um velho edifício de calcário. Gabriel saiu do jipe, o ar cheirava a eucalipto e a tabaco turco. Aorigem daquele aroma era desprovida de mistério. A nova limusina blindada de Ari Shamronestava estacionada junto do passeio, no lugar reservado à escolta de segurança de Gabriel.

— Chegou perto da meia-noite — explicou o guarda. — Disse que estava à espera dele.— E acreditou?— O que é que ia fazer? É o memuneh.Gabriel abanou a cabeça lentamente. Há dois anos que era diretor-geral e até as suas escoltas

continuavam a referir-se a Shamron como «aquele que manda».Seguiu pelo caminho do jardim, entrou pela porta e subiu as escadas bem iluminadas até ao

segundo andar. Chiara estava à sua espera na porta aberta do apartamento, vestida com umascalças pretas e camisola a condizer. Olhou com frieza para o marido um instante e depois, porfim, lançou-se ao pescoço dele.

— Devia ir à Arábia Saudita com mais frequência.— Quando é que pensavas dizer-mo?— Neste preciso momento.Seguiu-a para dentro. Espalhados sobre a mesa baixa da sala de estar havia copos e chávenas e

vários pratos de comida ainda meio cheios: provas de uma tensa noite de vigília. A televisão,sintonizada na CNN Internacional, funcionava em silêncio.

— Apareci nas notícias?Chiara olhou-o zangada mas não disse nada.— Como é que soubeste?— O que é que achas? — Ela lançou um olhar ao terraço, onde sem dúvida Shamron ouvia

cada palavra que diziam. — Estava até mais preocupado do que eu.— Deveras? Custa-me acreditar nisso.— Pediu ao Comando da Defesa Aérea para rastrear o teu avião. A torre do Ben Gurion

avisou-nos quando aterraste. Esperávamos-te antes, mas pelos vistos desviaste-te um pouco antesde voltares para casa. — Chiara levantou os pratos da mesa. Começava sempre a limpar quandoestava aborrecida. — De certeza que deves ter gostado de rever a Sarah. Sempre gostou de ti.

— Isso foi há muito tempo.— Não tanto.

— Sabes que nunca me atraiu.— Pois o contrário teria sido mais lógico. É muito bonita.— Não tanto como tu, Chiara. Nem de longe.Era verdade. Chiara tinha uma beleza intemporal. O rosto de Chiara era de uma beleza

intemporal. Nele, Gabriel via vestígios da Arábia, Norte de África e Espanha e de todos os outroslugares por onde os seus antepassados tinham vagueado antes de darem por si no antigo guetojudeu de Veneza.. O seu cabelo, preto e ondulado, tinha reflexos de mogno e castanho. Os seusolhos eram grandes, castanhos e com pintas douradas. Não, pensou Gabriel, nenhuma mulherjamais se interporia entre eles. Só temia que algum dia Chiara se desse conta de que erademasiado jovem e bela para ser casada com um velho como ele.

Saiu para o terraço. Havia duas cadeiras e uma mesinha de ferro forjado sobre a qualdescansava o pratinho de que Shamron se tinha apropriado como cinzeiro. Nele havia seis beatascolocadas em fila como cartuchos gastos. Shamron estava a acender o sétimo cigarro com o seuvelho isqueiro quando Gabriel lho arrancou dos lábios.

Shamron fez má cara.— Mais um não me vai matar.— Pode ser que sim.— Sabes quantos fumei na minha vida?— Tantos como as estrelas que há no céu e grãos de areia na praia.— Não devias citar o Génesis para falar do vício de fumar. Traz mau karma.— Os judeus não acreditam no karma.— De onde é que tiraste essa ideia?Com a mão trémula e salpicada de manchas hepáticas, Shamron tirou outro cigarro do maço.

Como era habitual, envergava umas calças de caqui bem passadas, uma camisa Oxford branca eum blusão de pele com um rasgão por coser no ombro esquerdo. Tinha-se rasgado na noite emque um terrorista palestiniano chamado Tariq al-Hourani pôs uma bomba debaixo do carro deGabriel em Viena. Daniel, o filho de Gabriel, morreu na explosão. Leah, a sua primeira esposa,sofreu queimaduras catastróficas. Residia agora num hospital psiquiátrico do outro lado do cumede Ma’ale Hahamisha, encurralada numa prisão da memória e num corpo devastado pelo fogo. EGabriel vivia ali, na Narkiss Street, com a sua bela esposa italiana e dois filhos de tenra idade. Aeles, ocultava-lhes a sua pena infinita. A Shamron, não. A morte tinha-os unido ao princípio. Econtinuava a ser o alicerce da sua relação.

Gabriel sentou-se.— Quem é que te avisou?— Da tua visita relâmpago à Arábia Saudita? — Shamron esboçou um sorriso matreiro. —

Acho que foi o Uzi.Uzi Navot era o anterior diretor-geral e, tal como Gabriel, um dos acólitos de Shamron.

Quebrando com a tradição do Departamento, tinha decidido ficar na Avenida Rei Saul, o quepermitia a Gabriel continuar a comandar certas operações no terreno.

— Tiveste de o abanar muito para saberes disso?— Não foi necessária a coação. O Uzi estava muito preocupado que tivesses decidido

regressar ao país onde passaste quase um mês preso. Quero dizer — acrescentou Shamron —, eupartilhava da sua opinião.

— Tu viajavas em segredo para países árabes quando eras o chefe.— Para a Jordânia, sim. Para Marrocos, claro. Inclusive fui ao Egito depois de o Sadat visitar

Jerusalém. Mas nunca fui à Arábia Saudita.— Não corria perigo.— Com o devido respeito, Gabriel, duvido muito. Deverias ter mantido essa reunião em

terreno neutro e num meio controlado pelo Departamento. O príncipe herdeiro tem muito maufeitio. Tens sorte de não teres acabado como aquele jornalista que matou em Istambul.

— Sempre pensei que os jornalistas são bem mais úteis vivos do que mortos.Shamron sorriu.— Leste o artigo que o New York Times publicou sobre o Khalid? Diziam que a Primavera

Árabe tinha chegado por fim à Arábia Saudita. Que esse jovem imberbe ia transformar um paísfundado sobre um casamento de penalti entre o wahabismo e uma tribo do deserto do Nejd. —Abanou a cabeça. — Não acreditei nessa história então nem acredito agora. O Khalid binMohammed só se interessa por duas coisas. A primeira é o poder. A segunda, o dinheiro. Para osAl Saud, ambas as coisas são a mesma. Sem poder, não há dinheiro. E sem dinheiro, não hápoder.

— Mas teme os iranianos tanto como nós. Nem que seja só por isso, podia ser bastante útil.— Ou seja, aceitaste procurar a filha dele. — Shamron lançou-lhe um olhar de soslaio. — Era

por isso que te queria ver, não era?Gabriel passou-lhe a mensagem de resgate, que o idoso leu à luz intermitente do isqueiro.— Parece que te meteste no meio de uma vingança dinástica.— Parece que sim.— Não isenta de riscos.— Nada que valha a pena está isento de riscos.— Nisso estou de acordo. — Shamron fechou o isqueiro com um movimento do pulso grosso.

— Mesmo que não a consigas encontrar, os teus esforços renderão dividendos interessantes nacorte de Riade. E se conseguires… — Encolheu os ombros. — O príncipe herdeiro vai ficar parasempre em dívida contigo. Será, para todos os efeitos, um ativo do Departamento.

— Então, conto com a tua aprovação?— Eu teria feito exatamente o mesmo. — Shamron devolveu-lhe a mensagem. — Mas porque

é que o Khalid te ofereceu esta oportunidade de o comprometeres? Porquê recorrer aoDepartamento? Porque é que não pediu ajuda ao seu bom amigo da Casa Branca?

— Pode ser que me considere mais eficaz.— Ou mais impiedoso.— Isso também.— Devias considerar uma alternativa — acrescentou Shamron passado um bocado.— Qual?— Que o Khalid saiba perfeitamente quem sequestrou a filha e que te esteja a usar para fazeres

o trabalho sujo.— Já demonstrou que é muito capaz de fazer isso por si próprio.— Razão pela qual não devias voltar a viajar para a Arábia Saudita. — Olhou para Gabriel

muito sério. — Eu estava em Langley naquela noite, lembras-te? Vi tudo através da câmara dessedrone Predator. Vi como te levavam a ti e à Nadia para o deserto para vos executarem. Supliqueiaos americanos para lançarem um míssil Hellfire para evitar a dor de morrer à faca. Passei muitasnoites terríveis na minha vida, mas essa talvez tenha sido a pior. Se ela não se tivesse interpostoentre ti e aquela bala… — Shamron olhou para o seu grande relógio de aço. — Devias dormirum pouco.

— Já é muito tarde — disse Gabriel. — Fica comigo, abba. Durmo no avião para Paris.— Achava que não conseguias dormir nos aviões.— E não consigo.Shamron contemplou o vaivém do vento nos eucaliptos.— Eu também não conseguia.

13

A princesa Reema bint Khalid Abdulaziz Al Saud suportava as muitas humilhações do seucativeiro com o máximo de elegância possível, mas o balde era o cúmulo.

De plástico azul-claro, era um desses objetos que jamais passavam pelas mãos de um Al Saud.Colocaram-no na sua cela depois de se portar mal durante uma ida à casa de banho. Segundodizia a mensagem pespegada ao balde, teria de usá-lo até nova ordem. Só quando voltasse aportar-se com normalidade recuperaria a mordomia de usar a casa de banho. Reema recusavaaliviar-se de modo tão vergonhoso e fê-lo no chão da cela. A seguir, de novo por escrito, os seussequestradores ameaçaram privá-la também de comida e água.

— Ótimo! — gritou Reema à figura mascarada que lhe entregou a mensagem.Preferia morrer à fome a voltar a comer outra refeição deplorável que mais parecia ter sido

cozinhada na própria lata. Aquela comida não era boa nem para os porcos, quanto mais para afilha do futuro rei da Arábia Saudita.

A cela era pequena. Decerto mais pequena do que qualquer divisão que Reema vira em toda asua vida. O catre ocupava-a quase na totalidade. As paredes eram brancas, lisas e frias, e no tetobrilhava uma luz permanentemente acesa. Reema tinha perdido a noção do tempo, não sabia seera de dia ou de noite. Dormia quando tinha sono, que era quase sempre, e sonhava com a suaantiga vida. Tinha dado como garantidos aquele luxo e aquela riqueza inimagináveis, e tinhaperdido tudo de uma só penada.

Não a tinham prendido ao chão como faziam nos filmes americanos que o seu pai a deixavaver. Também não a tinham amordaçado, nem tinham atado os pés e as mãos, nem lhe tinhamcolocado um capuz (só umas horas, durante a longa viagem de carro depois de a levarem). Assimque se encontrou a salvo na cela, foram eles que começaram a tapar a cara. Eram quatro ao todo.Reema distinguia-os pela estatura, pelas formas e pela cor dos olhos. Havia três homens e umamulher. Nenhum deles era árabe.

Fazia o possível para ocultar o seu temor, mas não se esforçava minimamente em dissimularque morria de aborrecimento. Pediu uma televisão para ver os seus programas favoritos. Os seusraptores negaram-lho por escrito. Pediu um computador para jogar videojogos, ou um iPod eauscultadores para ouvir música, mas recusaram de novo. Por fim, pediu uma caneta e umcaderno para aí converter as suas vivências numa história, algo que pudesse mostrar a MissKenton quando fosse posta em liberdade. A mulher pareceu analisar cuidadosamente o seupedido, mas, quando lhe levaram a refeição seguinte, a mesma incluía uma resposta negativa.Ainda assim, Reema comeu aquela comida asquerosa: estava demasiado faminta para continuar asua greve de fome. Depois, permitiram que ela usasse a casa de banho e, quando voltou à cela, obalde tinha desaparecido. Tudo parecia ter voltado à normalidade no seu pequeno mundo.

Pensava com frequência em Miss Kenton. Reema tinha-os enganado a todos — Miss Halifax,Herr Schröder e a espanhola maluca que tentava ensiná-la a pintar como Picasso —, mas MissKenton não. Estava à janela da sala de professores na tarde em que ela saiu do colégio pelaúltima vez. O ataque teve lugar em França, na estrada entre Annecy e o château do seu pai.Reema lembrava-se de uma furgoneta estacionada na berma, de um homem a mudar um pneu.Um carro bateu contra o seu, uma explosão abriu as portas. Salma, a escolta que se fazia passarpor sua mãe, morreu baleada, tal como o condutor e os restantes guarda-costas do Range Rover.A ela obrigaram-na a subir para a parte de trás da furgoneta. Puseram-lhe um capuz e deram-lheuma injeção para fazê-la dormir. Quando acordou, estava num quartinho branco. O quarto maispequeno que jamais vira na sua vida.

Mas por que motivo a tinham sequestrado? Nos filmes, os sequestradores queriam sempredinheiro. O seu pai tinha todo o dinheiro do mundo. Não significava nada para ele. Pagaria aossequestradores o que quisessem e ela seria libertada. E depois o seu pai mandaria os seus homensà procura dos sequestradores e matá-los-ia a todos. Ou quiçá matasse um ou dois com as suaspróprias mãos. Com ela era muito bom, mas Reema tinha ouvido contar as coisas que fazia aosseus opositores. Não teria piedade com quem tinha sequestrado a sua única filha.

Por isso, a princesa Reema bint Khalid Abdulaziz Al Saud suportava as muitas humilhaçõesdo seu cativeiro com o máximo de elegância possível, convencida de que em breve a libertariam.Comia aquela comida nojenta sem reclamar e portava-se bem quando a levavam pelo escurocorredor até à casa de banho. Após uma daquelas visitas, ao regressar à cela encontrou umacaneta e um caderno ao pé do colchão. Estão mortos, escreveu na primeira página. Mortos,mortos, mortos…

14

JERUSALÉM-PARIS

Embora a princesa Reema não soubesse, o seu pai já tinha contratado os serviços de umhomem perigoso e violento para a encontrar. Gabriel passou o resto daquela noite na companhiade um velho amigo para o qual dormir era uma tarefa impossível e, ao amanhecer, depois de darum beijo à esposa e aos filhos, que ainda dormiam, foi de carro até ao Aeroporto Ben Gurion,onde outro voo o aguardava. O seu nome não constava da lista de passageiros. Como decostume, foi o último a embarcar. Tinha um lugar reservado em classe executiva. Como sempre,o lugar ao seu lado estava vazio.

Uma hospedeira de bordo ofereceu-lhe uma bebida antes da descolagem. Gabriel pediu umchá. Depois pediu-lhe que convidasse a passageira do 22B a ocupar o lugar contíguo ao seu. Emcircunstâncias normais, a hospedeira ter-lhe-ia explicado que não era permitido aos passageirosda classe económica entrarem na cabine da frente do avião, mas dessa vez não colocou objeções.Sabia quem Gabriel era. Em Israel toda a gente sabia.

Dirigiu-se ao sítio e regressou acompanhada por uma mulher de quarenta e três anos, cabelolouro e olhos azuis. Ouviram-se murmúrios na cabine da primeira classe quando ocupou o lugarcontíguo ao do homem que subira a bordo em último lugar.

— Achavas mesmo que minha equipa de segurança ia deixar-me entrar num avião sem verprimeiro a lista de passageiros?

— Não — respondeu Sarah Bancroft. — Mas valia a pena tentar.— Enganaste-me. Perguntaste-me pelos meus planos de viagem e fui tão tolo que te disse a

verdade.— Tive os melhores mestres.— Lembras-te de muitas coisas?— De tudo.Gabriel sorriu com tristeza.— Receava que dissesses isso.

Passavam poucos minutos das quatro quando o avião chegou a Paris. Gabriel e Sarahpassaram pelo controlo de passaportes, cada um por seu lado — Gabriel com uma identidadefalsa; ela com o seu nome verdadeiro —, e voltaram a juntar-se no agitado vestíbulo daschegadas do Terminal 2A. Aí foram recebidos por um enviado da delegação de Paris que

entregou a Gabriel as chaves de um carro estacionado no segundo piso do parque deestacionamento.

— Um Passat? — comentou Sarah ao deixar-se cair no lugar do passageiro. — Não podiamter-nos dado uma coisinha mais emocionante?

— Nada de emoções. Quero confiabilidade e anonimato. Para além disso, é bastante rápido.— Quando é que foi a última vez que conduziste?— No princípio do ano, quando estive em Washington a trabalhar no caso da Rebecca

Manning.— Mataste alguém?— Com o carro, não. — Abriu o porta-luvas. Lá dentro havia uma Beretta de 9 mm com

punho de nogueira.— A tua favorita — disse Sarah.— A divisão de Transporte pensa em tudo.— E os teus guarda-costas?— São um estorvo.— Não corres perigo em Paris sem escolta?— Para isso é que tenho a Beretta.Gabriel fez marcha-atrás e seguiu pela rampa para o piso inferior. Pagou ao funcionário em

numerário e tentou esconder a sua cara da câmara de segurança.— Não enganas ninguém. Aposto que os franceses vão descobrir que estás aqui.— Não são os franceses que me preocupam…Ao lusco-fusco, seguiu pela A1 até aos subúrbios do norte de Paris. Quando chegaram era

noite cerrada. Atravessaram a cidade em direção a oeste seguindo pela Rue La Fayette eatravessaram o Sena pela Pont de Bir-Hakeim, até ao distrito quinze. Gabriel seguiu pela RueNélaton e parou o carro diante de uma imponente porta de segurança vigiada por agentesarmados da Polícia Nacional. Atrás da grade erguia-se um moderno bloco de escritóriosdesprovido de encanto. Um pequeno sinal indicava que o edifício pertencia ao Ministério doInterior e tinha videovigilância constante.

— Recorda-me a Zona Verde de Bagdade.— Ultimamente, a Zona Verde é mais segura do que Paris — afirmou Gabriel.— Onde é que estamos?— Na sede do Grupo Alpha, a unidade especial antiterrorista da DGSI.A Direction Générale de la Sécurité Intérieure, ou DGSI, era o serviço de segurança nacional

do Estado francês.— Os franceses criaram o Grupo Alpha pouco depois de deixares a Agência. Antes estava

camuflado num bonito edifício da Rue de Grenelle.— Aquele que foi destruído pelo carro bomba do ISIS?— Foi uma furgoneta bomba. E eu estava dentro do edifício quando explodiu.— Óbvio.— Também lá estava o Paul Rousseau, o chefe do Grupo Alpha. Apresentei-to na minha festa

de nomeação.— Tinha mais pinta de catedrático do que de espião francês.— De facto, foi catedrático. É um dos maiores especialistas em Proust do país.— Que função é que o Grupo Alpha desempenha?— Infiltração humana em redes jihadistas. Mas o Rousseau tem acesso a tudo.

Um agente fardado aproximou-se do carro. Gabriel deu-lhe dois nomes, um de homem e outrode mulher, ambos franceses e inspirados nas novelas de Dumas: um toque muito rousseauniano.O francês esperava-os no último andar da sua nova guarida. Ao contrário dos restantes gabinetesdo edifício, o de Rousseau era sombrio, tinha um friso de madeira e estava a transbordar delivros e processos. Tal como Gabriel, ainda preferia os documentos impressos aos digitais. Vestiaum casaco de tweed enrugado e umas calças de fazenda cinzentas. O seu terno cachimbo expeliuuma baforada de fumo quando Gabriel lhe apertou a mão.

— Bem-vindos à nossa nova Bastilha. — Rousseau estendeu a mão a Sarah. — Muito prazerem voltar a vê-la, Madame Bancroft. Quando nos conhecemos em Israel, disse-me que eraconservadora de um museu de Nova Iorque. Então não acreditei e agora também não, claro.

— Mas é verdade.— Mas evidentemente há uma história bem mais longa por trás. Costuma haver quando o

Monsieur Allon está envolvido. — Rousseau soltou a mão de Sarah e contemplou Gabriel porcima dos seus óculos de ler. — Esta manhã, quando falámos ao telefone, foste muito vago.Imagino que não se trata de uma visita de cortesia.

— Ouvi dizer que há pouco tempo houve uma situação desagradável na Alta Saboia. —Gabriel fez uma pausa e depois acrescentou: — A poucos quilómetros de Annecy.

Rousseau levantou uma sobrancelha.— O que mais é que ouviste?— Que o teu governo decidiu encobrir o assunto a pedido do pai da vítima, que por acaso é o

dono de um dos maiores châteaux da região. Para além do…— …futuro rei da Arábia Saudita. — Rousseau baixou a voz. — Por favor, diz-me que não

tiveste nada a ver com…— Não sejas ridículo, Paul.O francês mordiscou pensativamente a extremidade do seu cachimbo.— A situação desagradável, como lhe chamas, foi referenciada de imediato como um crime,

não como um atentado terrorista. Portanto, ficava fora das incumbências do Grupo Alpha. Não éassunto nosso.

— Mas sem dúvida estiveste a par de tudo durante as primeiras horas da crise.— Naturalmente.— E tens acesso a toda a informação obtida pela Polícia Nacional e pela DGSI.Rousseau dirigiu um olhar prolongado a Gabriel.— Porque é que o Estado de Israel está interessado no sequestro da filha do príncipe herdeiro?— Trata-se de um interesse puramente humanitário.— Isso seria uma novidade. E quem é que representas?— O futuro rei da Arábia Saudita.— Meu Deus! — exclamou Rousseau. — O mundo está sempre a mudar!

15

PARIS

Rapidamente, ficou claro que Paul Rousseau desaprovava a decisão do seu governo de manterem segredo o sequestro da princesa Reema. O isolamento do lugar — no cruzamento de duasestradas rurais, a D14 e a D38, a oeste de Annecy — tinha facilitado o seu esconderijo. Aprimeira pessoa a chegar ao lugar dos factos foi um polícia reformado que vivia numa terriolados arredores. A seguir, chegaram o próprio príncipe herdeiro e a sua escolta habitual, que seapressaram a rodear os dois veículos formados pela comitiva da princesa e um terceiroabandonado pelos sequestradores, de tal forma que os transeuntes que por ali passaram depoisdeduziram que se tratava de um acidente de trânsito grave no qual se tinha visto implicado algumricalhaço do Médio Oriente.

— Coisa do mais comum em França — referiu Rousseau.O polícia reformado jurou não dizer nada, tal como os agentes que tinham participado na

procura imediata da princesa por todo o país. Rousseau ofereceu a colaboração do Grupo Alpha,mas o seu superior e o ministro informaram-no de que os seus serviços não eram necessários.

— Porque não?— Porque Sua Alteza Real disse ao ministro que o sequestro da filha não era obra de

terroristas.— Como é que soube disso tão rapidamente?— Terias de lho perguntar a ele, mas a explicação lógica é…— Que já sabia quem estava por trás da coisa.Estavam sentados à volta de uma pilha de dossiês amontoados em cima da mesa de reuniões

do francês. Rousseau abriu um e tirou uma fotografia que pôs diante de Gabriel e Sarah. UmRange Rover cravejado de buracos de balas, um Mercedes Maybach destruído e uma carrinhaCitröen amolgada. Tinham retirado os corpos dos guarda-costas sauditas falecidos no ataque.Porém, o seu sangue cobria o interior do Range Rover e do Maybach. Havia muito, pensouGabriel. Sobretudo, no banco de trás da limusina. Perguntou-se se parte dele não pertenceria àprincesa.

— Houve pelo menos outro veículo implicado no ataque, uma carrinha Ford Transit. —Rousseau indicou a berma da D14 coberta de erva. — Estava estacionada aqui. Pode ser que ocondutor fingisse olhar para baixo do capô ou mudar um pneu quando a comitiva da princesa seaproximou. Ou pode ser que nem sequer se tivesse dado a esse trabalho.

— Como é que sabem que era uma Ford Transit?

— Já lá vamos. — Rousseau apontou para a parte da frente amolgada da Citröen. — Nãohouve testemunhas presenciais, mas as marcas dos pneus e as amolgadelas da carroçariadesenham um quadro muito claro do que aconteceu. A comitiva da princesa circulava em direçãoa oeste pela D14, a caminho do château. A carrinha Citröen circulava para norte pela D38.Evidentemente, não parou no cruzamento. Pelas marcas dos pneus sabemos que o condutor doMaybach deu uma guinada para evitar o choque. Ainda assim, a Citröen bateu no lado direito dalimusina com força suficiente para danificar a carroçaria blindada e mandá-la para fora daestrada. O condutor do Range Rover travou e parou atrás do Maybach. Muito possivelmente, osquatros guarda-costas foram assassinados de imediato. As provas balísticas e a análise forenseindicam que os disparos se efetuaram do lugar ocupado pela Citröen e pela Ford Transit.

— Como é que tiraram a menina de um carro blindado com janelas à prova de bala?Rousseau tirou outra fotografia do dossiê. Mostrava o lado direito do Maybach. As portas

blindadas da limusina tinham sido abertas com explosivos. Com notável destreza, pensouGabriel. O Departamento não teria feito melhor.

— Assumo que os vossos especialistas terão analisado o sangue no interior do Maybach.— Pertencia a duas pessoas: o condutor e a guarda-costas. Os projéteis que acabaram com as

suas vidas tinham um calibre de nove milímetros, tal como no caso das quatro escoltas do RangeRover. As marcas encontradas nos cartuchos indicam que usaram uma HK MP5 ou alguma dassuas variantes.

Rousseau mostrou-lhes outra fotografia. Uma Ford Transit cinzenta. A fotografia fora tiradade noite. O flash da máquina tinha iluminado também um pedaço de terra seca e com rochas.Aquele não era, pensou Gabriel para com os seus botões, o chão do norte de França.

— Onde é que a encontraram?— Numa estrada deserta nos arredores da localidade de Vielle-Aure, nos…— Nos Pirenéus, a poucos quilómetros da fronteira com a Espanha.— Às vezes, esqueço-me de que conheces lindamente o meu país. — O francês assinalou um

dos pneus da furgoneta. — Coincide a cem por cento com as marcas encontradas no lugar dosequestro.

Gabriel observou atentamente a fotografia.— Calculo que seja roubada.— Claro. Tal como a Citröen.— Havia sangue atrás?Rousseau negou com a cabeça.— E restos de ADN?— Muitos, sim.— Algum pertencente à princesa Reema?— Pedimos uma amostra e responderam cortantemente que não.— O Khalid?Rousseau negou de novo.— Não voltámos a ter contacto direto com o príncipe desde que saiu de França. Agora todas as

comunicações se efetuam através de um certo Monsieur Al-Madani, da embaixada saudita emParis.

Sarah levantou o olhar bruscamente.— O Rafiq al-Madani?— Conhece-lo?

Ela não respondeu.— Entendo, Miss Bancroft, que foi ou ainda é uma agente ativa da CIA. Não preciso de dizer

que os seus segredos estão a salvo dentro destas paredes.— O Rafiq al-Madani esteve vários anos na embaixada saudita em Washington como

representante do Ministério dos Assuntos Islâmicos. É um dos transmissores oficiais dowahabismo por todo o mundo ao serviço da Casa de Saud.

Rousseau sorriu caridosamente.— Sim, eu sei.— O FBI não lhe tinha muita simpatia — acrescentou Sarah. — Nem o Centro de Luta

Antiterrorista de Langley. Não gostávamos das companhias com que se relacionava antes de irpara Washington. E o FBI também não gostava de alguns dos projetos que financiava nosEstados Unidos. O Departamento de Estado pediu discretamente a Riade para lhe procurartrabalho noutro lado. E, para nossa surpresa, os sauditas aceitaram.

— Infelizmente — respondeu Rousseau —, mudaram-no para Paris. Desde a sua chegada,dedicou-se a alimentar algumas das mesquitas mais radicais em França com dinheiro e apoiosauditas. Na nossa opinião, o Rafiq al-Madani é um fanático religioso, um partidário da linhamais dura do Islão. Para além de ter uma relação muito estreita com Sua Alteza Real. Visitaassiduamente o château do príncipe, e este verão passou vários dias a bordo do seu iate novo.

— Imagino que Al-Madani seja alvo de vigilância por parte da DGSI — disse Gabriel.— Intermitentemente.— Achas que sabia que a filha do Khalid andava num colégio do outro lado da fronteira, em

Genebra?Rousseau encolheu os ombros.— Quem sabe. O príncipe não disse a quase ninguém, e o colégio tem medidas de segurança

muito apertadas. O chefe de segurança é um tal Lucien Villard. Francês, não suíço. Antestrabalhava no Service de la Protection.

— O que faz um veterano de uma unidade de elite como o SDLP responsável pela segurançade um colégio particular em Genebra?

— O Villard não abandonou o serviço em circunstâncias muito favoráveis, digamos. Corria orumor de que mantinha uma relação extramatrimonial com a esposa do presidente. Quando opresidente soube, fez com que fosse despedido. Ao que parece, o sequestro da rapariga foi umduro golpe para ele. Renunciou ao seu lugar dois dias depois.

— Onde é que está agora?— Continua em Genebra, suponho. Posso conseguir a sua morada se…— Não te incomodes.Gabriel observou as três fotografias postas em cima da mesa.— Em que é que estás a pensar? — perguntou Rousseau.— Tentava calcular quantos agentes foram necessários para levar a cabo um golpe assim.— E?— Entre oito e dez para o sequestro propriamente dito. Já para não falar dos agentes de apoio.

E ainda assim, a DGSI, que tem de fazer frente à pior ameaça terrorista de todo o mundoocidental, deixou que todos escapassem.

Rousseau tirou uma quarta fotografia do dossiê.— Não, meu amigo. Nem todos.

16

PARIS

A brasserie Saint-Maurice ficava situada no coração da Annecy medieval, no rés-do-chão deum edifício antigo e cambaleante que era uma confusão de janelas, postigos e corrimãosdesemparelhados. No passeio, à sombra de três modernos toldos desdobráveis, havia váriasmesas quadradas. Sentado numa delas, um homem tomava café com o olhar fixo num telemóvel.O seu cabelo era louro, liso e limpo. Tal como a sua cara. Envergava um casaco de lã, um lençode seda atado com elegância e óculos de sol envolventes. No canto inferior direito da fotografiahavia uma hora impressa: 16h07m46s. E uma data: 13 de dezembro, o dia do sequestro daprincesa Reema.

— Como se pode observar pela resolução — disse Rousseau —, é uma imagem ampliada.Aqui está o original.

Deslizou outra fotografia sobre a mesa de reuniões. O enquadramento permitia ver parte darua. Havia vários carros estacionados junto ao lancil do passeio. Gabriel reparou de imediatonuma carrinha Citröen.

— O nosso sistema nacional de vigilância de trânsito não é tão orwelliano como o vosso ou obritânico, mas a ameaça do terrorismo empurrou-nos a melhorar substancialmente os nossosrecursos nesse aspeto. Não demorámos muito a localizar o carro. E o homem que o conduzia.

— O que é que sabem sobre ele?— Alugou uma casa de verão nos arredores de Annecy duas semanas antes do sequestro.

Pagou um mês de aluguer em dinheiro, e a agência imobiliária e o dono da casa aceitaram o seudinheiro encantados.

— Imagino que não tinha passaporte.— Tinha, pois, britânico. O agente da imobiliária tirou uma fotocópia.Rousseau pôs uma folha de papel sobre a mesa. Era a fotocópia de uma fotocópia, mas a

imagem era nítida. O passaporte estava em nome de Ronald Burke, nascido em Manchester em1969. O homem que aparecia na fotografia tinha muitas parecenças com o que se tinha sentadona esplanada da brasserie Saint-Maurice poucas horas antes do sequestro da princesa Reema.

— Perguntaste aos britânicos se é autêntico?— E o que diríamos? Que é suspeito de um sequestro inexistente?Gabriel observou a cara do homem. Tinha a pele suave e esticada e a estranha forma dos seus

olhos sugeria que tinha passado recentemente pela sala de operações. As suas pupilas olhavaminexpressivamente para a câmara. Os seus lábios não sorriam.

— Que pronúncia tinha?— Segundo o empregado da imobiliária, falava francês com pronúncia britânica.— Têm conhecimento da sua chegada a França?— Não.— Viram-no depois do sequestro?Rousseau fez um gesto negativo.— Parece ter-se esfumado. Tal como a princesa Reema.Gabriel apontou para a fotografia ampliada do homem sentado na esplanada da brasserie

Saint-Maurice.— Suponho que isto é uma imagem congelada de uma gravação de vídeo.Rousseau abriu um computador portátil e tocou numas quantas teclas com ar de quem ainda

não se sente muito à vontade com os progressos da tecnologia moderna. Deu a volta aocomputador para que Gabriel e Sarah vissem o ecrã e carregou no botão do play. O homemolhava para algo no seu telemóvel. Tal como a mulher que bebia vinho na mesa contígua. Umamulher de fato, com o cabelo escuro e um rosto atraente. Também ela usava óculos de sol, apesarde a esplanada estar à sombra. As lentes eram grandes e retangulares. O tipo de óculos de sol queas atrizes famosas usavam para evitar que as reconhecessem, pensou Gabriel.

Às 16h09m22s, a mulher metia o telefone na orelha. Gabriel não conseguiu distinguir se eraela quem ligava ou se atendia uma chamada, mas, uns segundos depois, às 16:09:48, o homemtambém se punha a falar ao telefone.

Gabriel pôs em pausa a gravação.— Que coincidência, não é?— Continua a ver.Gabriel carregou de novo no play e viu que as duas pessoas sentadas na brasserie Saint-

Maurice terminavam os seus telefonemas: a mulher primeiro; o homem, vinte e sete segundosdepois, às 16h11m34s. Ele saiu da esplanada às 16h13m22s e entrou na carrinha Citröen. Amulher partiu três minutos depois, a pé.

— Já podes parar.Gabriel obedeceu.— Não conseguimos comprovar que os dois indivíduos da brasserie Saint-Maurice

mantiveram uma conversa por telefone ou através da Internet às quatro e onze minutos da tardedeste dia. Se tivesse de aventurar uma conjetura…

— Os telefones eram um chamariz. Estavam a falar diretamente entre si na esplanada do café.— Simples, mas eficaz.— Onde é que ela foi depois?Rousseau mostrou-lhes outra fotografia: uma mulher de fato a entrar no lugar do copiloto de

uma Ford Transit cinzento-clara, com a mão enluvada apoiada no puxador da porta.— Onde é que esta foto foi tirada?— Na Avenue de Cran. Atravessa um bairro operário nos arredores da cidade, pelo lado oeste.— Conseguiste ver o condutor?Outra fotografia deslizou sobre a mesa de reuniões. Mostrava um homem de aspeto tosco que

usava um gorro de lã e, claro, uns óculos de sol. Gabriel deduziu que havia outros agentes naparte de trás da furgoneta, todos eles armados com metralhadoras HK MP5. Devolveu afotografia a Rousseau, que estava absorto na preparação ritual do seu cachimbo.

— Talvez seja um bom momento para me explicares o que é que achas sobre este assunto.— Sua Alteza Real solicitou a minha ajuda.— O Estado francês tem meios suficientes para resgatar a princesa Reema sem necessidade de

que os serviços secretos israelitas intervenham.— Sua Alteza Real não está de acordo.— Ah, não? — Rousseau acendeu um isqueiro e aproximou-o do cachimbo. — Recebeu

alguma mensagem dos sequestradores?Gabriel passou-lhe a mensagem de resgate. Rousseau leu-a entre a neblina do fumo.— É curioso que o Khalid não nos tenha notificado. Parece-me que não quer que metamos o

nariz nas lutas internas pelo controlo da Casa de Saud. Mas por que diabos recorreu a ti?— Isso pergunto eu.— E se não a encontrares antes de acabar o prazo?— Sua Alteza Real terá de tomar uma decisão difícil.Rousseau franziu a testa.— Surpreende-me que um homem como tu se ponha ao serviço de um homem como ele.— O príncipe herdeiro não é do teu agrado?— Acho que posso afirmar sem receio de me enganar que passa mais tempo no meu país do

que no teu. Como comando da DGSI, tive ocasião de o observar de perto. Nunca acrediteinaquele conto de fadas sobre reformar a Arábia Saudita e o Médio Oriente. E também não mesurpreendeu que mandasse matar um jornalista por se atrever a criticá-lo.

— Se a França está tão indignada com o assassinato do Omar Nawwaf, porque é quepermitiam que o Khalid entrasse no país todos os fins de semana para ver a sua filha?

— Porque Sua Alteza Real é um incentivo económico. E porque, quer gostemos quer não, vaiser o governante da Arábia Saudita durante muito, muito tempo. Se é que consegues encontrar asua filha — acrescentou Rousseau com calma.

Gabriel não respondeu.A sala encheu-se de fumo, enquanto Rousseau analisava as suas alternativas.— Para que conste — disse por fim —, o governo francês não tolerará que te intrometas na

procura da filha do príncipe Khalid. Dito isto, a tua participação poderia ser útil ao Grupo Alpha.Desde que recordemos certas normas básicas, naturalmente.

— Quais, por exemplo?— Dar-me-ás informação, como eu tenho feito contigo.— De acordo.— Não porás os telefones sob escuta, nem chantagearás nem submeterás a coação nenhum

cidadão francês.— A não ser que mereça.— E não farás qualquer tentativa de resgatar a princesa Reema em solo francês. Se descobrires

o seu paradeiro, dizes-me e a nossa polícia tática encarregar-se-á de libertá-la.— Inshallah — murmurou Gabriel.— Então, estamos de acordo?— É o que parece. Eu encontrarei a princesa Reema e tu ficas com os louros.Rousseau sorriu.— Segundo os meus cálculos, dispões de cinco dias antes de o prazo expirar. Como é que

pensas agir?Gabriel apontou para a fotografia do homem sentado na brasserie Saint-Maurice.

— Vou encontrá-lo e perguntar-lhe onde é que escondeu a princesa.— Dado que sou o teu parceiro na sombra, quero dar-te um conselho. — Rousseau apontou

para a fotografia da mulher que entrava na furgoneta. — Pergunta-lhe antes a ela.

17

PARIS-ANNECY

A embaixada israelita ficava localizada na margem oposta do Sena, na Rue Rabelais. Gabriel eSarah estiveram lá perto de uma hora: Gabriel, na câmara de comunicações da delegação doDepartamento e Sarah na antessala do embaixador. Ao saírem, compraram café e umas sandesnuma banca de comida para levar que havia à volta do largo e a seguir atravessaram os distritosmeridionais de Paris até à A6, a Autoroute du Soleil. A hora de ponta da tarde tinha passado hámuito e a estrada estendia-se diante de Gabriel quase vazia de trânsito. Pisou a fundo oacelerador do Passat e sentiu um leve formigueiro de rebeldia ao ouvir rugir o motor.

— Já demonstraste que tinhas razão sobre o carro. Agora, por favor, anda devagar. — Sarahabriu uma sandes e pôs-se a comer com voracidade. — Porque será que em França tudo sabemelhor?

— Na realidade, isso não é verdade. Essa sandes saberá exatamente igual quando cruzarmos afronteira suíça.

— É para lá que vamos?— Em última instância, sim.— Qual vai ser a nossa primeira paragem?— Pensei que devíamos dar uma vista de olhos à cena do crime.Sarah deu outra dentada à sandes.— De certeza que não queres uma?— Depois, talvez.— O sol já se pôs, Gabriel. Já podes comer.Ligou a luz de leitura do seu lado do carro e abriu o dossiê que Paul Rousseau tinha deslizado

para a pasta de Gabriel quando saíram da sede do Grupo Alpha. Continha uma fotografia deKhalid e de Rafiq al-Madani a bordo do Tranquillity tirada com uma teleobjetiva. Gabriel olhou-a de soslaio e voltou a fixar o olhar na estrada.

— De quando é?Sarah deu a volta à fotografia e leu o carimbo da DGSI inscrito na parte de trás.— De vinte e dois de agosto, na baía de Cannes. — Observou atentamente a imagem. —

Conheço esta expressão. É a cara que o Khalid faz quando alguém lhe diz alguma coisa que nãoquer ouvir. A primeira vez que a vi foi quando lhe disse que não queria ser sua assessora emquestões artísticas.

— E a segunda?

— Quando lhe disse que cometia uma estupidez se gastasse quinhentos milhões de dólaresnum suposto Leonardo.

— Alguma vez estiveste no iate?Ela negou com a cabeça.— Demasiadas más lembranças. Cada vez que o Khalid me convidava, inventava uma

desculpa para não ir. — Voltou a olhar para a fotografia. — De que é que achas que estavam afalar?

— Talvez da melhor forma de se livrarem de um jornalista intrometido chamado OmarNawwaf.

Sarah guardou a fotografia na pasta.— Achava que o Khalid ia cortar o pio aos radicais — comentou.— Eu também.— Então, porque é que se incomoda com um wahabita fanático como o Al-Madani?— Boa pergunta.— Se eu fosse a ti punha-o sob vigilância.— O que é que achas que estive a fazer lá em baixo, na embaixada?— Não sei, não me convidaste. — Sarah tirou outra fotografia do dossiê de Rousseau. Um

homem e uma mulher sentados numas mesas da brasserie Saint-Maurice de Annecy, cada umcom um telemóvel na mão. — E de que é que achas que estes estavam a falar?

— De nada bom.— Evidentemente, não são sauditas.— Evidentemente.Sarah observou a fotografia do passaporte.— Na minha opinião ele não tem ar de britânico.— E que ar têm os britânicos?Sarah deu outra dentada.— Come alguma coisa. Ficarás com melhor humor.Gabriel deu uma dentada na sandes.— Então?— Talvez seja a melhor sandes que provei.— Eu disse-te — disse Sarah. — Em França sabe tudo melhor.

Passava pouco da meia-noite quando chegaram a Annecy. Deixaram o Passat em frente àbrasserie Saint-Maurice e registaram-se num hotelzinho próximo da catedral. Passadas as quatroda manhã, Gabriel acordou com uma discussão na rua, mesmo debaixo da sua janela. Incapaz devoltar a dormir, desceu até ao restaurante e leu a imprensa de Paris e Genebra enquanto tomavavários cafés. A última inconveniência de Washington ocupava as manchetes. Pelo contrário, nãotinha nenhuma menção à princesa saudita desaparecida.

Sarah desceu às nove e poucos minutos. Deram um passeio de uma hora pelos canaisesverdeados de musgo do centro histórico para averiguar se alguém os seguia. Ao atravessar aPont des Amours, concluíram que não.

Regressaram ao hotel mesmo a tempo de recolher a bagagem e depois encaminharam-se para abrasserie Saint-Maurice. Sarah pediu um café crème enquanto Gabriel, fingindo ter o carroavariado, revistava o Passat à procura de explosivos ou de dispositivos de rastreamento. Ao não

encontrar indícios de que o carro tivesse sido manipulado, meteu as malas no banco de trás echamou Sarah com uma inclinação de cabeça. Saíram de Annecy pela Avenue de Cran, passandojunto ao lugar onde a mulher tinha entrado na carrinha Transit, e puseram-se rumo à D14.

A estrada secundária conduziu-os para oeste através de uma fileira de aldeias alpinas querodeavam a ribeira do rio Fier. Mais além do casario de La Croix, subia bruscamente e, depois deatravessar um arvoredo, saía de novo para uma paisagem de campos de cultivo que pareciampintados pelo próprio Van Gogh. Ao chegarem à intersecção com a D38, Gabriel parou o carrona valeta de erva e desligou o motor. O silêncio era absoluto. A um quilómetro de distância, umaaldeia erguia-se no alto de uma colina. Para além da mesma, não havia à vista nem um sóedifício, nem uma só casa.

Gabriel abriu a porta do carro e pôs o pé no chão. Naquele instante notou que calcava vidrospartidos. Estavam por todo o lado, nos quatro cantos do cruzamento imperfeito. A políciafrancesa, precipitadamente, não tinha limpado como é devido o local dos acontecimentos.Inclusive havia ainda um rasto de sangue no asfalto, semelhante a uma mancha de azeite, e alonga marca de uma travagem. Gabriel deduziu que era do Range Rover. Via-o claramente: ochoque, os disparos, a explosão controlada, uma menina arrancada do banco de trás de um carrode luxo. Foi contando os segundos com a mão direita. Vinte e cinco, trinta, no máximo.

Entrou no carro juntamente com Sarah, mas deixou o dedo suspenso sobre o botão dearranque.

— Em que é que estás a pensar?— Eu também acho que o Ronald Burke não tem ar de inglês. — Gabriel pôs o motor em

funcionamento. — Alguma vez estiveste no château do Khalid?— Só uma.— Lembras-te de como se vai para lá?Sarah apontou para oeste.

O castelo fez sentir a sua presença antes de chegarem à entrada principal. De repente, apareciao muro. Tinha muitos quilómetros de comprimento, era de pedra da região e coroado por váriasfilas de arame farpado inclinadas para fora. Recordou a Gabriel a cerca que percorria GrosvenorPlace, em Londres, e separava os terrenos do Palácio de Buckingham do bairro vizinho deBelgravia. A grade era uma monstruosidade de barrotes de ferro e postes dourados, por trás daqual uma impecável avenida de gravilha dava para um sumptuoso Versalhes privado.

Gabriel observou-o em silêncio.— Porque é que estou a tentar ajudar um homem capaz de gastar quatrocentos milhões de

euros numa casa assim? — perguntou por fim.— Não sei, porquê?Antes de ele poder responder, o seu BlackBerry tremeu. Gabriel olhou para o ecrã com a testa

franzida.— O que é que se passa? — perguntou Sarah.— O Rafiq al-Madani acaba de entrar no Ministério do Interior, em Paris.

18

GENEBRA

Durante a sua breve estadia na delegação do Departamento em Paris, Gabriel não só tinhaposto Rafiq al-Madani sob vigilância. Também tinha mandado a Unidade 8200 procurar amorada de Lucien Villard, o ex-chefe de segurança do Colégio Internacional de Genebra. Osciberladrões da Unidade conseguiram-no numa questão de minutos introduzindo-se na secção depessoal da rede informática do colégio como se passassem por uma porta aberta de par em par.Villard vivia num bairro muito movimentado, num bloco de apartamentos de estilo parisiense. Asua rua, repleta de lojas e cafés, era um paraíso para um espião. Havia até um hotel modesto, aoqual Gabriel e Sarah chegaram ao meio-dia. Gabriel pediu para ver um hóspede chamado Langee indicaram-lhe um quarto no segundo andar. Ao chegar, encontraram um cartaz de NÃOINCOMODAR pendurado na maçaneta da porta e Mikhail Abramov esperava por ele do outrolado da porta entreaberta.

Olhou para Sarah e sorriu.— Passa-se alguma coisa?— Não, só que…— Achavas que ia ser outro?— Tinha essa esperança, na realidade. — Sarah olhou para Gabriel. — Podias ter-me dito que

ele ia estar aqui.— O Mikhail é um profissional e tu também. Tenho a certeza de que podem deixar de lado as

vossas diferenças e conviver sem problemas.— Como Israel e os palestinianos?— Tudo é possível.Gabriel passou por eles e entrou no quarto. As luzes estavam apagadas; as persianas fechadas.

As únicas fontes de luz eram o BlackBerry de Mikhail e o computador portátil aberto sobre amesa de escritório.

Mikhail tirou uma pasta fina do bolso exterior da sua mala de viagem.— Ontem à noite passámos as fotografias do homem e da mulher de Annecy à nossa base de

dados.— E?— Nada. O mesmo com o passaporte.Gabriel aproximou-se da janela e olhou pela frincha da persiana.— Qual é o quarto do Villard?

— O número vinte e um. — Mikhail passou-lhe uns binóculos Zeiss. — Segundo andar, ladodireito do edifício.

Gabriel observou as duas janelas do apartamento de Lucien Villard que davam para a rua. Viuuma sala de estar pouco mobilada, mas nem sinal do próprio Villard.

— Tens a certeza de que está lá?Mikhail subiu o volume do portátil. Uns segundos depois, Gabriel ouviu os primeiros

compassos do I Want to Talk About You de Coltrane.— De onde é que vem esse som?— Do seu telemóvel. A Unidade tirou o seu número do diretório do colégio. Esta manhã,

quando cheguei, já tinham o telefone sob escuta e tínhamos acesso ao seu e-mail e às suasmensagens de texto.

— Algo interessante?— Amanhã à tarde vai para Marraquexe.Gabriel apontou os binóculos.— Não me digas.— Reservou um voo da Lufthansa com uma breve escala em Munique. Em primeira classe

todo o caminho.Gabriel baixou os binóculos.— Quando é que volta?— O bilhete não tem data de volta. Ainda não reservou o voo de regresso.— Suponho que, agora que não trabalha, tem tempo de sobra.— E Marrocos é uma delícia nesta época do ano.— Sim, eu lembro-me — disse Gabriel com um ar sonhador. — A Unidade conseguiu ver o

seu processo?— Conseguiram uma cópia.— E diz alguma coisa sobre o facto de o terem despedido do SDLP por se envolver com a

esposa do presidente francês?— Pelos vistos esqueceu-se de mencionar isso quando lhe fizeram a entrevista de trabalho.— Algum outro dado interessante?Mikhail abanou a cabeça.— Quanto é que lhe pagavam?— O suficiente para alugar um apartamento num bairro chique de Genebra, mas não para se

permitir outros luxos.— Como uma longa viagem a Marrocos?— Em primeira classe, não te esqueças.— Não me esqueci. — A música de Lucien Villard encheu o silêncio. — O que se sabe da sua

vida privada?— Foi casado uma vez, há mil anos.— Filhos?— Uma filha. Trocam um e-mail de vez em quando.— Que bonito.— Eu reservava a minha opinião até ter lido os e-mails.Gabriel levou de novo os binóculos aos olhos e dirigiu-os para o apartamento de Villard.— Há uma mulher?— Se há, ainda não acordou. Mas às cinco vai beber um copo com uma tal Isabelle Jeanneret.

— Quem é?— Por enquanto, é só um endereço de e-mail. A Unidade está a tratar disso.— Onde é o encontro?— No Café Remor, Place du Cirque.— Quem é que escolheu o lugar?— Ela. — Fez-se silêncio. Depois Mikhail perguntou: — Achas que sabe alguma coisa?— Não estaríamos aqui, se não soubesse.— Como é que queres fazer?— Gostava de falar com ele em privado.— Uma conversa amigável?— Isso depende totalmente dele.— Quando é que avançamos?— Quando acabar de beber esse copo com Madame Jeanneret no Café Remor. Tu e a Sarah

vão-se sentar na mesa ao lado. — Gabriel sorriu. — Como nos velhos tempos.O tema de Coltrane acabou e começou o seguinte.— Como é que se chama este? — perguntou Sarah.— You Say You Care.Sarah abanou a cabeça lentamente.— Não podias ter arranjado outro para mandar a Genebra?— Ofereceu-se como voluntário.

Viram Villard pela primeira vez à uma e meia, de pé na janela da sua sala de estar, com o peitonu e o telemóvel colado à orelha. Falava em francês com uma mulher que o dispositivoidentificava unicamente como Monique. Era óbvio que se conheciam bem. De facto, ela passoudez minutos a explicar-lhe detalhadamente o que lhe faria se Villard aceitasse vê-la nessa noite.Ele declinou a oferta alegando que tinha outro compromisso. Não se incomodou a esconder quetinha combinado às cinco com uma tal Isabelle Jeanneret para beber um copo, nem mencionou asua iminente viagem a Marraquexe. Para Gabriel, a sua atuação pareceu-lhe notável e deduziuque Lucien Villard era um homem que mentia com frequência e bem.

Monique pôs fim ao telefonema intempestivamente e Villard desapareceu da vista. Voltaram avê-lo uma outra vez quando passava à frente da câmara do telemóvel, mas sobretudo ouviram-noabrir e fechar gavetas, um som que Gabriel, veterano em incalculáveis operações de vigilância,associava com o ato de fazer a mala. Eram duas na realidade: uma mala de desporto e uma malaretangular com rodas, do tamanho de um baú. Villard deixou-as na entrada antes de descer.

Voltaram a vê-lo quando saiu para a transitada rua vestido com um casaco de pele, calçasescuras e umas botas de camurça com cordões. Parou um momento no passeio e olhou para adireita e para a esquerda. Por costume, talvez, pensou Gabriel, ou talvez porque temesse que oestivessem a vigiar. Levou um cigarro aos lábios, acendeu o isqueiro e a fria brisa invernal levouo sopro de fumo. Depois meteu as mãos nos bolsos e começou a andar para o centro de Genebra.

Gabriel ficou no hotel enquanto Mikhail e Sarah seguiam Villard a pé. A Unidade 8200 podiaseguir cada um dos seus movimentos graças ao telefone. Mikhail e Sarah serviam meramentecomo observadores. Mantiveram-se a uma distância prudencial, fingindo às vezes ser um casal eoutras indo cada um para o seu lado, daí que só Sarah o visse entrar no escritório de um pequenobanco privado, ao lado da Rue du Rhône. Através do telefone, Gabriel foi testemunha da

transação que Villard levou a cabo dentro do banco: a transferência de uma soma importante dedinheiro para um banco de Marraquexe. A seguir, Villard pediu para entrar no seu cofre. Comonesse momento tinha o telefone no bolso, a câmara não registou qualquer imagem, mas asequência de sons — o barulho de uma dobradiça, um sussurro de papéis, o barulho do fecho deum casaco de couro — fizeram Gabriel pensar que tinha tirado algo da caixa, em vez de pôr.

Mikhail estava a tomar café no Starbucks que havia do outro lado da rua quando Villard saiupor fim do banco. O francês olhou para o seu relógio de pulso — eram quatro e meia em ponto— e seguiu a bom passo pela Rue du Rhône. Continuou pela avenida até ao rio e a seguir foipelas estreitas e tranquilas ruelas do centro histórico, até chegar à Place de la Synagogue, ondeGabriel estava à espera sentado ao volante do Passat.

O Café Remor ficava a cem metros dali, no Boulevard Georges-Favon. Havia várias mesaslivres na Place du Cirque e várias debaixo do toldo. Villard sentou-se fora, na praça. Mikhailjuntou-se a Sarah debaixo do toldo. A chama de um aquecedor a gás dissipava o frio da tarde.

Sarah levou um copo de vinho tinto aos lábios.— Fiz tudo bem?— Não estiveste mal — respondeu Mikhail. — Nada mal.

Passaram dez minutos sem que aparecesse ninguém. Villard fumou dois cigarros acendendo osegundo com o primeiro e olhou duas vezes para o telemóvel, que tinha deixado sobre a mesa.Por fim, às cinco e um quarto, fez um sinal ao empregado e pediu. Um momento depois,levaram-lhe uma garrafa de Kronenburg.

— Parece que lhe deu uma tampa — comentou Mikhail. — Eu, no lugar dele, ligava àMonique antes que seja demasiado tarde.

No entanto, Sarah não o ouvia. Estava a observar um homem que vinha pela avenida. Dava aimpressão de ser, pela forma como agia e pela aparência, um banqueiro ou um empresário suíçode cerca de cinquenta anos que voltava a casa depois de um próspero dia no escritório. Trazia umluxuoso casaco castanho e, na mão esquerda, uma mala de pele cor de vinho que pousou no chão,junto a Lucien Villard, antes de se sentar na mesa contígua.

— Achas que é uma coincidência que se tenha sentado ao lado do nosso amigo havendo tantasmesas livres? — perguntou Mikhail baixinho.

— Não — respondeu Sarah. — Em absoluto.— A sua cara não me é estranha.— É normal.— Onde é que o vi antes?— Na brasserie Saint-Maurice de Annecy.Ele olhou-a perplexo.— É a cara que passaste pela base de dados da Avenida Rei Saul ontem à noite.Mikhail tirou o seu BlackBerry e marcou.— Não sabes quem é que acaba de chegar ao Café Remor.— Sim, sei — respondeu Gabriel. — Estou mesmo aqui à frente.

19

GENEBRA

Gabriel estava a cometer uma ilegalidade ao estacionar num passeio da Place du Cirque, e aolevar uma Beretta de 9 mm com o punho de nogueira no lugar do copiloto, debaixo do jornal LeTemps daquela mesma manhã. Tinha posto ali a pistola ao ver o homem de casaco castanhoaproximar-se pela avenida. Vestia-se mais formalmente, ia penteado de outra maneira e traziaóculos de hastes pretas, mas, não tinha dúvidas, era ele. Gabriel, que tinha passado a vida arestaurar telas de Grandes Mestres, tinha desenvolvido uma habilidade quase perfeita paradistinguir caras conhecidas debaixo de qualquer disfarce. O homem que acabava de se sentarjunto de Lucien Villard tinha estado na brasserie Saint-Maurice de Annecy no dia do sequestroda princesa Reema.

Gabriel pensou em tentar detê-lo, mas descartou-o de imediato. Aquele indivíduo era umprofissional e, sem dúvida, ia armado até aos dentes. Não se renderia facilmente e quase comtoda a segurança choveriam balas numa movimentada praça do centro de Genebra.

Não estava disposto a correr esse risco. O código do Departamento proibia o uso de armas defogo em meios urbanos muito povoados, a não ser que o agente em questão corresse perigo deperder a vida ou de cair nas mãos de uma potência inimiga. Não era o caso. Gabriel e Mikhailpodiam segui-lo quando saísse do Café Remor e abordá-lo no momento e no lugar que lhesconviesse. Depois, instá-lo-iam a revelar-lhes o paradeiro da princesa Reema mediante persuasãoou pela força. Ou, talvez, se a sorte estivesse do lado deles, Villard conduzi-los-ia diretamente àprincesa. Era melhor esperar, concluiu Gabriel, do que agir com precipitação e arriscar-se aperder a oportunidade de salvar a vida da menina.

Do seu ponto de observação conseguia ver que o homem do casaco castanho ainda não tinhapedido. A sua postura era idêntica à que tinha adotado na brasserie Saint-Maurice: as pernascruzadas com um ar relaxado, o cotovelo direito sobre a mesa, a mão esquerda apoiada na coxa,de onde conseguia chegar facilmente à sua pistola. A mala que tinha levado para o cafédescansava sobre o passeio, entre a sua mesa e a de Villard. Era um lugar estranho para deixá-la.A menos, claro, que não tivesse intenção de levá-la quando se fosse embora.

Mas, o que é que o homem do casaco castanho estava a fazer sentado na esplanada de um caféjunto ao ex-chefe de segurança do Colégio Internacional de Genebra? Villard tinha o seu telefonesobre a mesa, à frente dele. A Unidade 8200 tinha-o ligado ao BlackBerry de Gabriel. O som eracristalino — Gabriel conseguia ouvir o barulho dos talheres e das chávenas do café e a conversados transeuntes que passavam pelo passeio —, mas havia uma demora de uns segundos na

transmissão. Era como ver um filme antigo, com o som e a imagem dessincronizados. Os doisprotagonistas do filme ainda não tinham falado. Era possível, disse Gabriel a si próprio, que nãochegassem a fazê-lo.

Nesse momento, ouviu dois golpes na janela: um polícia tocou com os nós dos dedos e, comum breve gesto da mão com uma luva, indicou-lhe que se pusesse em marcha. Gabriel fez umgesto de desculpa e, afastando-se, meteu-se rapidamente no trânsito da tarde. Mudou de direçãovárias vezes em rápida sucessão — à direita na Avenue du Mail, à esquerda na Rue Harry-Marce outra vez à esquerda no Boulevard Georges-Favon — e regressou à Place du Cirque.

Aproveitou que o semáforo estava vermelho para demorar um pouco. Vários peõesatravessaram a passadeira bem à frente dele. Um deles era um homem com um ar rico de casacocastanho. Atrás dele, a escassos passos de distância, estava Mikhail Abramov. Sarah continuavano Café Remor, com o olhar fixo em Lucien Villard, que naquele instante deitava a mão à maladeixada no passeio.

Tinha reparado pela primeira vez naquele tipo magricela, pálido e de olhos sem cor, quandoestava sentado no Café Remor junto daquela loura tão atraente. E agora ei-lo outra vez, o mesmoindivíduo, a segui-lo pela Rue de la Corraterie no meio da escuridão. Também o seguia um carro:o mesmo que estava estacionado indevidamente num passeio da Place du Cirque. Do condutor sóconseguira ver uma madeixa de cabelos brancos na testa.

Mas como é que o tinham encontrado? Tinha a certeza de que ninguém o tinha seguido até aoCafé Remor. A explicação lógica era, portanto, que estavam a vigiar o Villard e não a ele. Emtodo o caso, pouco importava: Villard não sabia quase nada. E, dentro de uns minutos, já nãosuporia qualquer perigo.

Tirou o telemóvel do bolso do casaco e marcou um número gravado. A conversa,criptografada, foi muito breve. Quando terminou, desligou e parou diante de uma montra. Aoolhar de soslaio para a esquerda, viu o homem pálido e, mais além, rua abaixo, o carro.

Esperou que passasse um elétrico, atravessou a rua e entrou num pequeno cinema. O filmeacabava de começar. Comprou um bilhete e entrou na sala às escuras, meio vazia. A saída deemergência ficava à esquerda do ecrã. O alarme apitou com estrépito quando se apoiou naalavanca de emergência e saiu de novo para a rua às escuras.

Chegou a um pátio rodeado por um muro alto. Escalou-o sem esforço, saltou para uma ruaempedrada e, atravessando um passadiço, penetrou no centro histórico. Em frente de uma livrariaestava estacionada uma mota Piaggio. No selim sentava-se uma figura vestida de couro ecapacete. Ele subiu para trás e enlaçou os braços numa cintura estreita.

Ainda soava o alarme quando Mikhail entrou no cinema. Não se incomodou a comprar obilhete e teve de fazer duas tentativas para escalar o muro do pátio de trás antes de conseguiratravessá-lo. A rua onde foi parar estava deserta de carros e peões. Ao levantar-se, correuatropeladamente pela calçada até chegar a uma linda praça no centro da zona histórica. Aí, viu ohomem do casaco castanho sentar-se na parte de trás de uma mota. Mikhail pensou um instanteem tirar arma e arriscar-se a disparar, mas finalmente regressou a correr à Rue de la Corraterie,onde Gabriel o esperava.

— Onde é que está?

Mikhail explicou-lhe sobre a mota.— Viste quem é que a conduzia?— Tinha capacete, mas era uma mulher.— Uma mulher? Tens a certeza?Mikhail assentiu.— E o Villard?— Acaba de sair do Café Remor.— Seguido por uma conservadora de museu desarmada e com pouca experiência prática em

técnicas de vigilância de rua.Gabriel pisou a fundo o acelerador e deu meia-volta à frente de um elétrico que se aproximava.— Vais em sentido contrário.— Se não for em sentido contrário, demoraremos dez minutos a voltar à Place du Cirque.Mikhail pôs-se a tamborilar com nervosismo sobre o tabliê central do carro.— O que é que achas que está dentro da mala?— Espero que seja dinheiro.— Eu também.

O primeiro erro de Sarah foi não pagar antes a conta, um pecado capital em trabalho devigilância. Quando, por fim, conseguiu chamar a atenção do distraído empregado, Lucien Villardjá tinha saído da Place du Cirque e tinha percorrido um bom troço do Boulevard Georges-Favon.Temendo perdê-lo entre as pessoas que enchiam as ruas àquela hora da tarde, apressoudemasiado o passo e esse foi o seu segundo erro.

Aconteceu no cruzamento da Rue du Stand. Villard estava prestes a atravessar mas, como osemáforo ficou vermelho, parou bruscamente e tirou um maço de tabaco. A brisa soprava doRódano, que ficava mesmo à frente dele. Ao virar-se, viu Sarah a olhar a montra de uma loja devinhos, a trinta metros de distância. Olhou-a sem disfarçar durante uns segundos, com o cigarroentre os lábios, o isqueiro na mão direita e a mala na esquerda. A mala que o homem do casacocastanho lhe tinha dado.

De repente, atirou o cigarro para o chão e deu dois passos bruscos para Sarah. Ela viu entãoum clarão de luz branca e sentiu que uma rajada de vento tempestuoso e abrasador a atravessava.Levantou-a do chão e atirou-a para o passeio. Ficou muito quieta, incapaz de se mexer ou derespirar, perguntando-se se estava viva ou se já tinha morrido. Sabia que tinha à sua volta vidrospartidos, vísceras e membros humanos. E sangue. Sangue por todo o lado. Era, em parte, seu,temeu. E, em parte, jorrava sobre ela dos ramos nus da árvore debaixo da qual jazia.

Por fim, ouviu que alguém a chamava pelo seu nome acentuando a segunda sílaba, em vez daprimeira. Viu uma mulher que atravessava a coxear uma esplanada banhada pelo sol, junto aomar, com a cara envolvida num véu preto. Depois a mulher desapareceu e um homem ocupou oseu lugar. Tinha os olhos de um cinzento-azulado, como gelo glacial, e gritava.

— Sarah! Sarah! Estás a ouvir, Sarah?

SEGUNDA PARTE

RENÚNCIA

20

GENEBRA-LYON

A bomba não era grande — apenas cinco quilos de alto explosivo de uso militar —, mas tinhasido fabricada por um especialista. Não estava num carro ou num camião, mas numa mala.Quando explodiu, o homem que a segurava ficou reduzido a um mostruário de órgãos eextremidades, entre elas uma mão que foi parar ao para-brisas de um carro que circulava peloBoulevard Georges-Favon. Dentro dos restos de um casaco de couro que envolvia o que restavade um tronco humano, foi encontrada uma carteira, tudo isso pertencente a um tal Lucien Villard,veterano do Service de la Protection francês, que até há pouco tempo tinha trabalhado comochefe de segurança do Colégio Internacional de Genebra. Na explosão morreram mais duaspessoas: um homem de vinte e oito anos e uma mulher de trinta e três. Ambos estavam ao ladode Villard enquanto este esperava para atravessar a Rue du Stand e eram cidadãos suíçosresidentes no cantão de Genebra.

Custou mais identificar a mala, já que não restava praticamente nada dela. A Polícia Federalsuíça obteve imagens de câmaras de segurança nas quais aparecia Lucien Villard a pegar na malano Café Remor. Tinha sido aí deixada por um homem de óculos e casaco castanho o qual,quando saiu a pé da esplanada do café, foi seguido por dois indivíduos: um alto, de pele e cabeloclaros, e outro que conduzia um Passat. O homem do casaco castanho manteve uma breveconversa telefónica antes de entrar — e voltar a sair de imediato — de um cinema na Rue de laCorraterie. Onyx, o eficaz sistema de espionagem de telecomunicações do Estado suíço,conseguiu, passado um tempo, intercetar o telefonema. A destinatária era uma mulher, e tinhamfalado sucintamente em francês, um idioma que, segundo concluíram os linguistas forenses, nãoera a língua materna de nenhum dos dois.

Quanto a Lucien Villard, saiu do Café Remor com a mala às 5h17 da tarde, seguido por umamulher que estava no café na companhia do homem alto. A mulher estava no BoulevardGeorges-Favon, perto de Villard, quando a bomba explodiu. Jazeu vários minutos no passeio,sem se mexer, como se se contasse entre os mortos. Depois apareceu o homem alto e meteu-a àpressa no banco de trás do Passat.

O carro tinha matrícula francesa e regressou a França a poucos minutos de abandonar o localda explosão. Pouco antes das nove da noite entrou num parque de estacionamento no centro deLyon com a matrícula quase totalmente coberta de lama. Gabriel escondeu a chave ao lado dopneu de trás esquerdo, na cavidade da carroçaria, enquanto Mikhail ajudava Sarah a sair. Elacambaleava, quando atravessaram a rua até à Gare de la Part Dieu.

O último comboio para Paris estava prestes a partir. Mikhail comprou rapidamente trêsbilhetes e, juntos, dirigiram-se à plataforma. O vagão no qual entraram estava quase vazio.Mikhail sentou-se sozinho na parte da frente, num assento que olhava para o lado contrário.Gabriel e Sarah sentaram-se à direita. Ela tinha a cara cinzenta e o cabelo húmido. Mikhail tinha-lhe limpado o sangue com dois litros de água mineral e a seguir tinha-lhe vestido roupa limpa.Por sorte, o sangue não era dela. Era de Lucien Villard.

Sarah examinou o seu reflexo na janela.— Nem um só arranhão. Como é que explicas isso?— A bomba estava concebida para limitar o número de vítimas colaterais.— Viste a explosão?Gabriel negou com a cabeça.— Só a ouvimos.— Eu vi. Pelo menos acho que sim. A única coisa de que me lembro é da cara do Lucien

Villard quando foi despedaçado. Parecia…— Um terrorista suicida?Sarah assentiu lentamente.— Alguma vez viste um?— Um terrorista suicida? Perdi a conta.Sarah fez de repente uma careta de dor.— Sinto-me como se um camião me tivesse passado por cima. Talvez tenha algumas costelas

partidas.— Vamos levar-te a um médico antes de entrares no avião.— Qual avião?— O que te vai levar de Paris a Nova Iorque.— Não vou a lado nenhum.Gabriel não se incomodou a responder. A cara refletida no vidro estava contraída de dor.— A tarde não correu como estava previsto, digamos — comentou Sarah. — O Lucien Villard

voou em pedaços e um dos sequestradores da Reema fugiu por um fio.— Receio bem que seja um bom resumo da situação.— Esteve na nossa mão e deixámo-lo fugir.— Eu e o Mikhail, não tu.— Talvez devêssemos tê-lo abordado no café.— Ou talvez devêssemos ter-lhe dado um tiro quando estava a andar naquela rua tão tranquila,

perto do cinema. Um balázio costuma soltar a língua até do mais durão.— Sim, disso também me lembro. — Sarah contemplou pela janela o feio banlieue que o

comboio atravessava. — Suponho que já saibamos como é que os sequestradores descobriramque a filha do Khalid andava naquele colégio.

— Duvido que precisassem do Villard para isso.— Então, que serviço é que lhes prestou?— Explicar isso requereria uma certa dose de especulação da minha parte — afirmou Gabriel.— O caminho até Paris é longo. Podes especular à vontade.— Vigilância pormenorizada do objetivo — disse ele passado um momento.— Continua.— Não podiam tratar eles próprios, porque sabiam que os serviços de segurança suíços

estavam a vigiá-la. Por isso, pagaram a alguém. A alguém que supostamente tinha de velar pela

sua segurança.— O Villard sabia para quem trabalhava?— Duvido.— Então, porquê matá-lo?— Imagino que queriam eliminar qualquer um que os pudesse implicar. Embora também seja

possível que o Villard tenha feito alguma tolice.— Como por exemplo?— Pode ser que os ameaçasse. Ou que pedisse mais dinheiro.— Devia pensar que a mala continha dinheiro. Porque é que havia de pegar nela? — Sarah

olhou para Mikhail, que os observava do outro lado do vagão. — Devias ter visto a cara delequando pensou que eu estava morta.

— Eu vi.— Sei que está apaixonado pela não sei quantas, mas ainda se preocupa comigo. — Apoiou a

cabeça no ombro de Gabriel. — O que é que vamos fazer agora?— Tu vais para casa, Sarah.— Já estou em casa — respondeu, e fechou os olhos.

21

Mais tarde, naquela mesma noite, enquanto o comboio no qual viajava o chefe do serviço deespionagem israelita se aproximava da Gare de Lyon de Paris, três encapuçados acordaram aprincesa Reema bint Khalid Abdulaziz Al Saud de um sono atormentado. Estavam claramentenervosos, o que surpreendeu Reema. Desde o incidente do caderno, a relação com os seussequestradores era formal e silenciosa, mas desprovida de rancor. Os três encapuçados eramhomens. De facto, há algum tempo que Reema não via a mulher. Não sabia quanto exatamente.Media o passar das horas e dos dias não com um relógio ou um calendário, mas pelo ritmo dacomida e das suas visitas vigiadas à casa de banho.

Um dos homens levava um pente de cabelo e um pequeno espelho de mão em forma deraqueta. Também levava uma nota. Queria que Reema se arranjasse. Porquê, não dizia. Ao ver-seao espelho, Reema ficou petrificada. A custo, reconheceu aquela cara pálida e abatida. O seucabelo preto era um emaranhado sujo e repulsivo.

O homem retirou-se enquanto ela, com o espelho à frente, tentava desembaraçar aquelematagal. Voltou um momento depois com um jornal londrino e uma máquina fotográficainstantânea vermelha. Parecia um brinquedo, não algo próprio de um criminoso implacável. Deu-lhe o jornal — a edição matinal do Telegraph— e indicou-lhe com gestos menos hábeis que osegurasse debaixo do queixo. Para tirar a foto, Reema adotou o juhaymin, a tradicional cara deenfado dos beduínos árabes. No entanto, com o olhar suplicou ao seu pai que pusesse fim ao seucalvário.

Ligou-se o flash e uns segundos depois a câmara expeliu a fotografia. Depois, o homem tirououtra fotografia, que preferiu à primeira. Guardou ambas e os outros dois homens prepararam-separa se irem embora.

— Posso ficar com uma?O homem interrogou-a com o olhar por trás do capuz.— A que não vão mandar para o meu pai para mostrar que estou viva.Aqueles olhos pareceram suspeitar cuidadosamente do seu pedido. Depois, a foto descartada

voou pelo ar e descreveu uma onda suave antes de pousar no catre, junto de Reema. Fechou-se aporta, chiaram as fechaduras. A luz do teto ligou-se.

Reema pegou na fotografia. Estava bastante bem. Parecia mais velha e um pouco bêbada oudrogada, e ligeiramente sexy, como as modelos da Vogue ou da Glamour. Porém, duvidava deque o seu pai opinasse o mesmo.

Deitou-se no catre de barriga para cima e observou os olhos da menina da fotografia.— Estão mortos — murmurou. — Mortos, mortos, mortos.

22

PARIS-LONDRES

O andar seguro ficava situado num pequeno edifício de apartamentos junto ao Bois deBoulogne. Mikhail e Sarah ocuparam cada um o seu quarto e deixaram o sofá-cama da sala deestar — ou o «leito de pregos», como diziam no Departamento — para Gabriel. Daí que, talcomo a princesa Reema, não dormisse bem naquela noite.

Levantou-se cedo, vestiu-se e saiu para a luz fria e prateada da manhã. Duas escoltas daembaixada esperavam num Renault com matrícula diplomática estacionado junto do passeio.Levaram-no por ruas tranquilas até à Gare du Nord, onde entrou no Eurostar das oito e um quartocom destino a Londres. O seu lugar era em primeira classe. Rodeado por financeiros ecomerciantes, leu os jornais da manhã. Estavam cheios de relatos imprecisos do misteriosoatentado de Genebra no qual se tinha visto implicado o ex-chefe de segurança de um colégioprivado de elite para filhos de diplomatas.

Quando o comboio se aproximou do túnel do Canal, Gabriel enviou uma mensagem de textocriptografada informando o destinatário da sua chegada iminente à capital britânica. A respostademorou a chegar e foi pouco hospitaleira. Não incluía cumprimentos, nem preâmbulo algum, sóuma morada. Gabriel deduziu que era a de um andar seguro. Ou talvez não. Os britânicos nãotinham andares seguros, pensou. Pelo menos, nenhum desconhecido para Moscovo Centro.

Eram nove e meia quando o comboio entrou na estação internacional de St. Pancras, emLondres. Gabriel supunha que haveria alguém à sua espera, mas, ao atravessar o reluzentevestíbulo, não viu nenhum comité de boas-vindas britânico. Deveria ter ligado de imediato para adelegação do Departamento em Londres para pedir um carro com escolta, mas preferiu passar asduas horas seguintes a deambular pelas ruas do West End a fim de se assegurar de que ninguémo seguia. Isso constituía uma violação flagrante do protocolo do Departamento, não semprecedentes no seu caso. A última vez que se tinha aventurado a sair sozinho, dera de caras comRebecca Manning — a traidora que dirigia a delegação do MI6 em Washington —,acompanhada por uma equipa de agentes russos fortemente armados. Os russos não tinhamsobrevivido. Rebecca Manning, para o bem ou para o mal, sim.

A embaixada russa em Londres, com a sua bem nutrida rezidentura do SVR, ocupava umvalioso lote de terreno perto de Kensington Palace. Gabriel passou ao longe seguindo pelaBayswater Road e chegou a Notting Hill. A rua de St. Luke’s Mews ficava na margem norte daelegante comunidade, perto de Westway. O número sete, como as restantes moradias da rua, erauma garagem reconvertida. Na fachada, uma escala de cinzentos: obra de alvenaria cinzento-

clara e porta e molduras cinzento-escuras. O puxador era um grande anel cor de prata. Gabrielbateu duas vezes e, ao não obter resposta, voltou a bater.

Por fim, abriram a porta e Nigel Whitcombe deixou-o passar. Whitcombe acabava de fazerquarenta anos, mas continuava a parecer um adolescente ao qual tinham esticado e moldado paralhe dar a aparência de um homem adulto. Gabriel conhecia-o desde que trabalhara como aprendizno MI5. Agora era o ajudante pessoal e principal moço de recados para assuntos oficiosos dodiretor-geral dos Serviços Secretos de Sua Majestade ou MI6.

— Estou bem — disse Gabriel intencionalmente depois de Whitcombe fechar a porta. — Estátudo bem, Nigel?

— Davies — respondeu o inglês. — Nas casas seguras só usamos nomes em código.— E quem é que me calha hoje?— Mudd — respondeu Whitcombe.— Que chamativo.— Se lhe dissesse o que recusámos…— Consigo imaginar. — Gabriel passeou o olhar pelo interior da pequena casa. Estava recém-

restaurada e ainda cheirava a tinta, mas mal tinha móveis.— Tomámos posse da casa na semana passada — explicou Whitcombe. — É o primeiro

convidado.— Sinto-me honrado.— Não era essa a nossa intenção, posso garantir. Estamos a liquidar todo o nosso inventário de

casas seguras. E não só em Londres. Em todo o mundo.— Mas não fui eu quem deu com a língua nos dentes aos russos. Foi a Rebecca Manning.Fez-se um breve silêncio. Depois Whitcombe acrescentou:— Há muito tempo que nos conhecemos, senhor Mudd.— Se voltas a chamar-me assim…— Desde a operação contra o Kharkov. E sabe que lhe tenho o maior dos respeitos…— Mas?— Teria sido preferível que a deixasse desertar.— Isso não teria mudado nada, Nigel. Ainda assim, teria havido um escândalo e vocês teriam

sido obrigados a prescindir de todos os vossos andares e casas seguros.— Não são só as casas seguras. É tudo. As nossas redes, os nossos chefes de delegação, os

nossos códigos e chaves… Para todos os efeitos, ficámos fora do mundo da espionagem.— É o que se passa quando os russos conseguem introduzir um infiltrado no nível mais alto de

um serviço secreto. Mas, pelo menos, vão ter casas seguras novas — disse Gabriel. — Esta émuito melhor do que aquela espelunca de Stockwell.

— Disso também tivemos de prescindir. Estamos a vender e a comprar propriedades tãorapidamente que desestabilizámos o mercado imobiliário de Londres.

— Eu tenho um bonito apartamento em Bayswater do qual me quero desfazer.— Aquele com vista para o parque? Toda a gente neste negócio sabe que é um andar seguro

do Departamento. — Whitcombe sorriu pela primeira vez. — Desculpe. Estes últimos meses têmsido um pesadelo. A Rebecca deve estar a desfrutar do espetáculo do seu novo escritório emMoscovo Centro.

— Está tudo bem com o C?— Deixarei que ele próprio lho diga.Através da janela da frente da casa, Gabriel viu Graham Seymour sair do banco de trás de um

Jaguar enorme. Parecia deslocado entre as casinhas coloridas, como um velho ricaço que foravisitar a sua jovem amante boémia. Com as suas feições fotogénicas e a sua juba de cabelo dacor do estanho, assemelhava-se a um desses modelos que apareciam nos anúncios de bugigangasde luxo como canetas ou relógios suíços. Ao entrar na casinha, inspecionou a sala de estar comose tentasse esconder o seu entusiasmo dos olhos de um agente imobiliário.

— Quanto é que pagámos por este lugar? — perguntou a Whitcombe.— Quase dois milhões, chefe.— Lembro-me dos tempos em que bastava um quartinho alugado em Chiswick. Os da

Logística encheram a despensa?— Receio que não.— Há um supermercado ao virar da esquina. Chá, leite e uma caixa de bolachas. E não tenhas

pressa, Nigel.A porta abriu-se e fechou-se. Seymour tirou o casaco Crombie e deixou-o de forma

descuidada sobre as costas de uma cadeira que parecia comprada no Ikea.— Suponho que não sobrou grande verba para a decoração depois de pagar dois milhões de

libras.— Os espaços são muito pequenos, é melhor não os encher de móveis.— Sei lá eu.Seymour vivia numa moradia georgiana em Eaton Square com a sua esposa, Helen, que

cozinhava com entusiasmo mas com pouco acerto. O dinheiro procedia da família dela. O pai deSeymour fora um agente lendário do MI6 que trabalhava sobretudo no Médio Oriente.

— Disseram-me que tens andado muito atarefado ultimamente.— Ah, sim?Seymour sorriu sem separar os lábios.— O GCHQ detetou um aumento repentino do tráfego de rádio e telefonia em Teerão há duas

noites. — O Quartel-General das Comunicações do Governo era o serviço britânico deespionagem de comunicações. — Francamente, aquilo estava a arder.

— E a que é que se devia?— Alguém entrou num armazém e levou duas toneladas de pastas e discos duros. O arquivo

completo do programa de armas nucleares do Irão, pelos vistos.— Imagina…Outro sorriso, mais longo desta vez.— Como teus parceiros em numerosas operações contra o programa nuclear iraniano,

incluindo uma com o nome de código Obra-prima, gostaríamos de ver esses documentos.— Tenho a certeza de que sim.— Antes de os mostrares aos americanos.— Como é que sabes que ainda não os deram ao Langley?— Porque não tiveram tempo para analisar um tesouro desse calibre. E, se tivessem dado

algum material aos americanos, eles ter-mo-iam passado a mim.— Eu não estaria assim tão certo disso. Os americanos estão tão preocupados com o vosso

serviço como nós. E com razão. Afinal de contas, a Rebecca passou os seus últimos meses noMI6 a roubar todos os segredos americanos que podia.

A expressão de Seymour ficou carregada, como se uma sombra caísse sobre a sua cara.— A Rebecca passou à história.— Não, não passou, Graham. Agora trabalha no Departamento do Reino Unido em Moscovo

Centro. E tu estás com a corda ao pescoço porque não sabes se há outro agente dentro do MI6.— É precisamente por isso que preciso de um segredo substancial que demonstre que continuo

agarrado ao batente.— Então talvez devessem sair para roubar um.— Estamos demasiado ocupados a dar cabo uns dos outros para cometer um ato de

espionagem como deve ser. Estamos completamente paralisados.— Tal como depois de…— Sim — interrompeu-o Seymour. — As parecenças entre aquela época e esta são espantosas.

Demorámos anos a voltar a pôr-nos de pé depois de o Philby nos deitar abaixo. Não estoudisposto a permitir que isso volte a acontecer.

— E queres que eu te ajude.Seymour não disse nada.— Como posso ter a certeza de que os documentos iranianos não acabarão no escritório da

Rebecca em Moscovo Centro? — perguntou Gabriel.— Não acabarão lá — respondeu Seymour solenemente.— E, se tos der, o que é que eu obtenho em troca?— Uma trégua no nosso conflito interno e um regresso paulatino à normalidade.— Pode ser algo mais tangível?— Está bem — disse Seymour. — Se me deres esses documentos, ajudar-te-ei a encontrar a

filha do KBM antes de se ver forçado a abdicar.— Como é que soubeste disso?O inglês encolheu os ombros.— Fontes e métodos.— Os americanos também sabem?— Falei ontem à noite com o Morris Payne sobre outro assunto. — Payne era o diretor da

CIA. — Sabe que sequestraram a filha do Khalid, mas parece ignorar que estás metido nesteassunto. Está aqui, sabias? — acrescentou de repente.

— O Morris?— O Khalid. Chegou a Londres ontem à tarde. — Seymour observou-o com atenção. —

Surpreende-me que, sendo agora unha e carne, não te tenha dito que vinha.— Não mo mencionou, não.— E não localizaste o seu telemóvel?— Deixou de funcionar. Supomos que tem um novo.— Tal como o GCHQ.— O que o trouxe à cidade?— Ontem à noite jantou com o seu querido tio Abdullah. O irmão mais novo do atual rei.— Meio-irmão — afirmou Gabriel. — Há uma grande diferença.— Razão pela qual passa grande parte do seu tempo aqui, em Londres. De facto, somos

praticamente vizinhos. No início, o Abdullah opôs-se à ascensão do Khalid, mas pensou duasvezes depois de o Khalid ameaçar levá-lo à bancarrota e pô-lo sob prisão domiciliária. Agora éum dos seus conselheiros íntimos. — Seymour franziu a testa. — Vá-se lá saber de que é quefalarão. Apesar de viver num bairro elegante de Londres, o Abdullah não tem muita simpatiapelo Ocidente.

— Nem por Israel — acrescentou Gabriel.— Efetivamente. Mas é uma figura influente dentro da Casa de Saud, e o Khalid precisa do

seu apoio.— Colabora com o MI6?— O Abdullah? De onde é que tiraste essa ideia? — Seymour sentou-se. — Receio que te

tenhas imiscuído num verdadeiro jogo de tronos. Se tivesses um pouco de senso comum, afastar-te-ias e deixarias que os Al Saud resolvessem este assunto por sua conta.

— O Médio Oriente é um lugar demasiado perigoso. Não podemos permitir que a ArábiaSaudita se desestabilize.

— Tens toda a razão. Por isso estamos dispostos a ignorar os defeitos evidentes do KBM,incluindo o assassinato do Omar Nawwaf.

— Porque é que o fez?— Correm rumores — respondeu Seymour vagamente.— Que tipo de rumores?— Rumores de que o Nawwaf sabia algo que não devia saber.— O quê?— Porque é que não perguntas isso ao teu amigo? Está alojado no Dorchester com um nome

falso. — O inglês abanou a cabeça com um ar de reprovação. — A verdade é que, se tivessemsequestrado a minha filha, eu não estaria numa suíte de luxo no Hotel Dorchester. Estaria àprocura dos sequestradores.

— Foi por isso que veio ter comigo. — Gabriel tirou uma fotografia da sua mala. Mostravaum homem sentado na esplanada de um café francês.

— Quem é?— Esperava que tu mo dissesses. — Entregou-lhe a fotocópia do passaporte. — É bastante

bom. Ontem à noite, em Genebra, despistou o Mikhail em cinco segundos.Seymour levantou o olhar.— Em Genebra?— Será que pode ser um dos teus, Graham? Um ex-agente do MI6 que agora vende os seus

serviços ao melhor comprador?— Vou comprovar, mas duvido. De facto, não me parece britânico. — Seymour olhou com

atenção para a fotografia. — Achas que é um profissional?— Não tenho qualquer dúvida.Seymour devolveu-lhe a fotografia e a cópia do passaporte.— Talvez devesses mostrar isto a alguém que esteja familiarizado com o lado escuro do

ofício.— Conheces alguém assim?— Talvez.— Importas-te que lhe faça uma visita?— Porque não? Agora tem tempo de sobra. — Seymour contemplou o quarto semivazio. —

Como todos.

23

KENSINGTON, LONDRES

Há homens que seguem o caminho a direito para a redenção e outros, como ChristopherKeller, que dão uma volta longa. Keller vivia num duplex de luxo em Queen’s Gate Terrace, emKensington, cujas divisões quase não tinham móveis e decoração, o que evidenciava que a suarelação amorosa com Olivia Watson, uma ex-modelo dona de uma galeria de arte moderna desucesso em St. James, tinha acabado. Olivia tinha um passado quase tão complicado como o deKeller. O único denominador comum entre eles era Gabriel.

— Suponho que não farias nenhuma tolice, pois não?— Vejamos, deixa-me contá-las…Keller sorriu a custo. Tinha os olhos azul-claros, o cabelo tingido pelo sol e o queixo grosso,

com uma incisão no centro. A sua boca parecia esboçar permanentemente um sorriso irónico.— O que é que aconteceu?— A Olivia. Foi isso que aconteceu.— O que é que queres dizer com isso?— Caso não tenhas reparado, tornou-se na estrela do mundo da arte londrina. Muitas fotos

glamorosas na imprensa, muita especulação sobre a sua misteriosa vida sentimental. Chegou aum ponto em que já não conseguia sair à rua com ela.

— O que, logicamente, causou tensões na vossa relação.— Digamos que a Olivia não é uma pessoa caseira.— Nem tu, Christopher.Veterano do Serviço Aéreo Especial britânico, Keller tinha servido como infiltrado na Irlanda

do Norte, tinha lutado na primeira Guerra do Golfo e tinha trabalhado às ordens de verdadeirochefe da máfia corsa fazendo trabalhos que podiam ser descritos como os de um assassino asoldo. Mas eram águas passadas. Graças a Gabriel, Christopher Keller era agora um agenterespeitável dos Serviços Secretos de Sua Majestade. Tinha sido restaurado.

Encheu a chaleira elétrica com água mineral e carregou no botão de ignição. A cozinha,situada no rés-do-chão da casa de estilo georgiano, parecia tirada de uma revista de decoração.As bancadas de granito eram grandes e estavam iluminadas com bom gosto; o fogão era daVulcano; o frigorífico, um Subzero de aço inoxidável; e a ilha junto à qual se sentava Gabrielnum banco alto tinha a bancada e um frigorífico para vinhos. Através das janelas conseguia veras pernas dos transeuntes que passavam à pressa pelo passeio, entre a chuva. Eram só três e meiada tarde, mas já quase tinha anoitecido. Gabriel tinha suportado numerosos invernos ingleses —

em tempos, tinha vivido numa casinha junto ao mar, nos confins ocidentais da Cornualha —,mas as tardes chuvosas de dezembro em Londres deprimiam-no sempre.

Keller abriu um armário e tirou um caixa de Twining. Com o braço esquerdo, advertiu Gabriel,não com o direito.

— Está tudo bem?Keller levou a mão à clavícula direita.— Aquela bala fez mais mal do que pensava. Está a demorar muito a sarar.— É o que acontece quando se vai para velho…— Falas por experiência própria, obviamente. A verdade é que tenho um pouco de vergonha.

Pelos vistos, sou o único agente na história do MI6 que levou um tiro de um dos nossos.— A Rebecca não era uma dos vossos, era coronel do SVR. Disse-me que nunca se tinha

considerado agente do MI6. Era claramente uma agente infiltrada.— Tal como o pai dela. — Keller tirou a caixa de chá e fechou o armário sem fazer barulho.

— Começava a pensar que não voltaria a ver-te, depois da forma como as coisas acabaram emWashington. Nem é preciso dizer que foi uma muito agradável surpresa quando o Graham meautorizou a retomar a nossa amizade.

— O que é que te contou?— Só que te tornaste amiguinho do Príncipe Chop-Chop.— É um ativo muito valioso numa região conflituosa.— Falas como um autêntico burocrata da espionagem. Antigamente não terias sujado as mãos

com alguém como ele.— O Graham disse-te que há uma criança pelo meio?Keller assentiu com um gesto.— Disse-me que havia uma fotografia que me querias mostrar.Gabriel pô-la sobre a mesa. Um homem sentado num café e uma mulher na mesa ao lado.— Onde é que foi tirada?Gabriel respondeu.— Em Annecy? Traz-me boas lembranças.— Reconhece-lo?— Parece-me que não.— E este?Gabriel passou-lhe a fotografia do passaporte.— Há ingleses de todas as formas e tamanhos mas duvido que este seja um dos nossos.Nesse instante, o BlackBerry de Gabriel vibrou anunciando a chegada de uma mensagem.— Pela cara que fizeste, são más notícias — comentou Keller.— Os sequestradores acabam de dar ao Khalid até amanhã à meia-noite para abdicar.O BlackBerry voltou a vibrar: outra mensagem. Desta vez, Gabriel sorriu.— O que é que se passa?— Há uma saída.— O que é que queres dizer?— Explico-te pelo caminho.— Onde é que vamos?Gabriel levantou-se bruscamente.— Para o Hotel Dorchester.

24

MAYFAIR, LONDRES

Gabriel agarrou-se instintivamente ao apoio de braço de couro do chamativo BentleyContinental de Keller quando passaram a grande velocidade em frente do Harrods. Meteram-seno parque subterrâneo de Hyde Park Corner e saíram um momento depois em Piccadilly. Kellercirculou pelo labirinto de ruas de Mayfair com a destreza de um taxista e parou o carro com umatravagem em frente à entrada do Dorchester, iluminada como uma árvore de Natal.

— Espera aqui — disse.— E onde é que havia de ir?— Vais armado?— Só com o meu rápido talento e encanto aos pontapés.Keller tirou uma velha Walther PPK do bolso do casaco e deu-lha.— Obrigada, senhor Bond.— É fácil de esconder e contundente.— Como lançar um tijolo contra o vidro de uma janela. — Gabriel guardou a pistola no cinto

das calças, nas costas. — Está registada no nome de Al-Jubeir.— E quem é que sou?— O senhor Allenby.— Como a ponte?— Sim, Christopher, como a ponte.— E se se negar vir sem escolta?— Diz-lhe que é o único modo de recuperar a sua filha. Isso há de chamar a sua atenção.Keller entrou no hotel. Um par de gorilas sauditas bem alimentados comia pistachos no hall.

Não havia, pelo contrário, nenhum repórter à vista. Ao que parece, a imprensa britânica ignoravaainda que o homem mais vilipendiado do mundo estava alojado no hotel mais luxuoso deLondres.

Os dois sauditas olharam para Keller com receio quando se aproximou da receção. A mulheratraente que atendia ao balcão ficou automaticamente com a cara iluminada, como um cadeeiroligado por um sensor de movimento.

— Venho ver o senhor Al-Jubeir. Está à minha espera.— O seu nome, por favor?Keller disse-lho.A rececionista levou o telefone à orelha e emitiu um agradável murmúrio. Depois desligou e

apontou para os elevadores.— Um dos assistentes do senhor Al-Jubeir acompanhá-lo-á à suíte.Keller aproximou-se dos elevadores sob o olhar atento dos dois gorilas sauditas. Passaram

cinco minutos até que apareceu por fim o assistente, um homem de olhos sonolentosimpecavelmente vestido de fato e gravata.

— Esperava o Allon.— E eu o príncipe herdeiro.— Sua Alteza Real não reúne com subalternos.— É melhor levares-me lá acima, habibi. Se não, vou-me embora e vais ter de explicar ao

Príncipe Motosserra que me deixaste ir embora.O saudita deixou que passassem uns segundos antes de carregar no botão do elevador. Khalid

estava alojado na suíte das águas-furtadas. Quando Keller e o pequeno acólito saudita entraramno quarto, ele estava a passear diante das janelas altas que davam para o Hyde Park. Uma dasescoltas mandou Keller levantar os braços para revistá-lo e ele respondeu expeditamente emárabe que fosse fazer um certo ato sexual inefável com um camelo.

Khalid parou e baixou o telefone.— Quem é este homem?O homem explicou-lho o melhor que conseguiu.— Onde é que está o Allon?Desta vez foi Keller quem respondeu. O chefe dos serviços secretos israelitas, disse, estava à

espera lá em baixo, num carro. Da pistola Walther não disse nada.— É urgente que fale com ele — disse Khalid. — Por favor, diga-lhe que suba.— Receio que isso não seja possível.— Porquê?— Porque possivelmente este seja o quarto menos seguro de Londres.Khalid trocou umas palavras em árabe com o seu ajudante.— Não — disse Keller na mesma língua. — Nem limusina, nem guarda-costas. Vem comigo,

sozinho.— Não posso ir sem escolta.— Não precisa dela. Pegue no seu casaco, Khalid. Não temos a noite toda.— Sua Alteza Real — disse o príncipe num tom imperioso.— Um título um pouco complexo, não acha? — Keller sorriu. — O que é que lhe parece se

em vez disso me chamar apenas Ned?

Khalid nunca viajava para o Ocidente sem um chapéu de feltro e uns óculos de hastes pretassem graduação. Aquele disfarce grosseiro tornava-o quase irreconhecível. De facto, os doisgorilas do vestíbulo mal levantaram o olhar dos seus pistachos quando o futuro rei atravessou oreluzente chão de mármore acompanhado por Keller. Gabriel tinha-se mudado para o banco detrás do Bentley. Keller sentou-se ao volante e Khalid ao seu lado. Um momento depoisatravessaram Park Lane a toda a velocidade, evitando o trânsito da hora de ponta.

Khalid olhou para Gabriel por cima do ombro.— Conduz sempre assim?— Só quando há uma vida em jogo.— Para onde é que me leva?

— Para o último lugar do mundo onde deveria estar.Khalid olhou com agrado para o interior do Bentley.— Pelo menos alugou um carro decente para o trajeto.— Gosta?— Sim, muito.— Muito bem — respondeu Gabriel. — Não sabe como fico contente com isso.

Durante a meia hora seguinte, Keller andou às voltas pelo West End londrino — porKnightsbride, Belgravia, Chelsea e Earl’s Court —, até que Gabriel se certificou de que ninguémos seguia. Só então mandou Keller dirigir-se a Kensington Palace Gardens. A rua, um enclavediplomático, estava cortada ao trânsito normal. O Bentley de Keller passou pelo controlo quasesem parar e entrou no pátio da frente de um edifício vitoriano de tijolo vermelho sobre o qualondeava a bandeira branca e azul do Estado de Israel.

Khalid olhou pela janela com incredulidade.— Isto não pode ser verdade.O silêncio de Gabriel deixou claro que, efetivamente, era a sério.— Sabe o que acontecerá se eu colocar um pé ali dentro?— Uma equipa de quinze assassinos matá-lo-á e fá-lo-á em pedacinhos.O saudita olhou-o alarmado.— Era só uma piada, Khalid. Agora saia do carro.

25

KENSINGTON, LONDRES

O disfarce simples de Khalid não enganou o pessoal de segurança da embaixada, nem oembaixador, que ia a uma receção diplomática quando o lendário chefe da espionagem israelitairrompeu na chancelaria acompanhado pelo governante na prática da Arábia Saudita.

— Depois explico-lhe — disse-lhe Gabriel baixinho em hebreu, e ouviu-se o embaixadormurmurar:

— Acho que me vai explicar isso já.Lá em baixo, Gabriel meteu o telemóvel novo de Khalid num saco Faraday que bloqueava a

emissão ou receção de sinais, conhecido como «colmeia» e, logo de seguida, abriu a porta dadelegação do Departamento, semelhante à de um cofre blindado de um banco. Moshe Cohen, ochefe novo, esperava do outro lado. Olhou primeiro para o diretor-geral e depois, com assombro,para o príncipe herdeiro da Arábia Saudita.

— Em nome de Deus, o que…?— O telefone dele está na colmeia — disse Gabriel em hebreu.Cohen não precisou de mais instruções.— Quanto tempo nos pode dar?— Cinco minutos.— Preferia que fossem dez.Khalid não entendeu a conversa, mas o seu tom impressionou-o visivelmente. Seguiu Gabriel

pelo corredor central, até à outra porta blindada. A sala que havia lá atrás era pequena, de unsdois metros e meio por três. Tinha dois telefones, um computador e um ecrã de televisão preso àparede. A temperatura era vários graus mais baixa do que a do resto da delegação. Khalid deixouo casaco vestido.

— Uma sala de comunicações seguras?— Nós damos-lhe outro nome.— Qual?Gabriel titubeou.— O Santo dos Santos.Embora Khalid tivesse estudado em Oxford, não pareceu entender a referência.— O Santo dos Santos era o santuário interior do Templo de Jerusalém. Um cubo perfeito:

vinte metros cúbicos. Albergava a Arca da Aliança, dentro da qual se conservavam os DezMandamentos originais que Deus entregou a Moisés no Sinai.

— Em tábuas de pedra? — perguntou Khalid com incredulidade.— Deus não lhes deu uma HP Laserjet.— E acredita nessas tolices?— Estou disposto a debater quanto à autenticidade das tábuas — respondeu Gabriel —, mas

não quanto ao resto.— O suposto Templo de Salomão nunca existiu. É uma falácia da qual os sionistas se servem

para justificar a conquista judia da Palestina árabe.— O templo descreveu-se detalhadamente na Torá muito antes do aparecimento do sionismo.— Isso não significa que existisse. — Era evidente que Khalid estava a desfrutar do debate. —

Lembro-me de quando há uns anos o seu governo disse ter encontrado os pilares do famosotemplo.

— Eu também me lembro.— Levaram-nos para o Museu de Israel, não foi? — O saudita abanou a cabeça com desdém.

— Essa exposição não passa de propaganda pura e dura criada para justificar a sua presença emterritório muçulmano.

— Foi a minha mulher que concebeu a exposição.— Ah, sim?— E fui eu que descobri os pilares.Desta vez, Khalid não replicou.— O Waqf tinha-os escondidos numa câmara a cinquenta e quatro metros de profundidade,

debaixo do Monte do Templo.O Waqf era autoridade religiosa islâmica que administrava o Domo da Rocha e a Mesquita de

Al-Aqsa.— Pensavam que ninguém os encontraria. Mas enganaram-se.— Outra falácia — respondeu Khalid.— Venha a Israel — propôs Gabriel. — Levá-lo-ei à câmara.— Visitar Israel?— Porque não?— Já imaginou a reação?— Sim, já imaginei.— Devo reconhecer que seria uma grande honra rezar no Nobre Santuário.O Nobre Santuário era como era conhecido pelos muçulmanos o Monte do Templo.— Também podíamos fazer isso.Khalid sentou-se de um lado da pequena mesa de reuniões e passeou o olhar pela sala.— Que sorte estarmos os dois em Londres ao mesmo tempo.— Sim — concordou Gabriel. — Eu faço tudo para encontrar a sua filha e você janta com o

tio Abdullah e fica na suíte mais cara do Dorchester.— Como sabe que vi o meu tio?Gabriel não ligou e, estendendo a mão, pediu para ver a mensagem dos sequestradores. Khalid

pôs a nota sobre a mesa. Era uma fotocópia. O original, disse, tinha chegado à embaixada sauditaem Paris. O tipo de letra e as margens eram idênticas aos da primeira carta, tal como o estilo,prosaico e direto. Khalid tinha até à meia-noite do dia seguinte para abdicar. Caso se negasse,não voltaria a ver a sua filha.

— Mandaram alguma prova de vida?Khalid entregou-lhe uma cópia da fotografia. A menina segurava a edição da véspera do

Telegraph e olhava fixamente para a câmara. Tinha os olhos do seu pai. Parecia esgotada efragilizada, mas nada assustada.

Gabriel devolveu-lhe a fotografia.— Nenhum pai devia ver uma fotografia desse tipo.— Talvez eu mereça.— Talvez. — Gabriel pôs, por sua vez, uma fotografia em cima da mesa. Um homem sentado

num café de Annecy. — Reconhece-o?— Não.— E este indivíduo?Gabriel pôs outra fotografia sobre a mesa. Era a imagem de Rafiq al-Madani sentado junto de

Khalid a bordo do Tranquillity tirada pela equipa de vigilância da DGSI.— Onde é que a tirou?— De uma revista cor-de-rosa. — Gabriel retirou a foto da mesa. — É seu amigo?— Eu não tenho amigos. Tenho súbditos, convidados e família.— A qual dessas categorias pertence Al-Madani?— É um aliado temporário.— Pensava que ia fechar a torneira aos jihadistas e aos salafistas.Khalid fez um sorriso condescendente.— Não sabe muito sobre os árabes, pois não? — Passou o polegar pelas pontas dos dedos. —

Shwaya, shwaya. Devagar, devagar. Pouco a pouco.— Ou seja, continua a financiar os extremistas com a ajuda do seu amigo Rafiq al-Madani.— Ou seja, devo agir com pezinhos de lã e com o apoio de alguém como o Rafiq. Alguém que

conte com a confiança de clérigos importantes. Alguém que me proporcione a proteçãonecessária. Caso contrário, a Casa de Saud afundar-se-á e a Arábia será governada por ramos daAl-Qaeda e do ISIS. É isso que quer?

— É o mesmo jogo duplo de sempre.— Estou metido num vespeiro. E, se me descuido, devora-me.— Já o devorou. — Gabriel abriu uma mensagem no seu BlackBerry. Era a que tinha recebido

enquanto estava sentado na cozinha de Christopher Keller. — Foi Al-Madani quem informou deque tinha chegado outra mensagem dos sequestradores. Às três e doze da tarde, hora de Londres.

— Vejo que tem o meu telefone sob escuta.— O seu não, o do Al-Madani. E, cinco minutos depois de lhe ligarem, mandou uma

mensagem criptografada para outra pessoa. Como podíamos ver o que digitava, lemos semproblema.

— O que é que dizia?— O suficiente para deixar claro que sabe onde é que está a sua filha.— Posso vê-la?Gabriel passou-lhe o seu telefone.O saudita murmurou uma maldição em árabe.— Vou matá-lo.— Talvez primeiro convenha averiguar onde é que está a sua filha.— Esse é o seu trabalho.— O meu papel neste assunto terminou oficialmente. Não me vou meter no meio de uma

discussão familiar.— Sabe o que é que dizem sobre a família, não sabe?

— O quê?— Que é uma palavra que começa por F.Gabriel sorriu a custo. Khalid devolveu-lhe o BlackBerry.— Talvez possamos chegar a um acordo económico.— Poupe o dinheiro, Khalid.— Pelo menos, vai ajudar-me?— Quer que eu interrogue um servidor público do seu governo?— Claro que não. Interrogá-lo-ei eu próprio. Não levarei muito tempo. — Khalid baixou a

voz. — Afinal de contas, tenho fama.— Acredito.— Onde é que devemos interrogá-lo? — perguntou Khalid.— Tem de ser num lugar isolado. Onde a polícia não nos encontre. — Gabriel fez uma pausa.

— E onde não haja vizinhos que ouçam o verdadeiro alvoroço.— Conheço o lugar ideal.— Pode fazer com que vá sem que suspeite de nada?Khalid sorriu.— Só preciso do meu telefone.

26

ALTA SABOIA, FRANÇA

Khalid tinha um Gulfstream à sua espera no Aeroporto da Cidade de Londres. Fizeram umabreve escala em Paris-Le Bourget para ir buscar Mikhail e Sarah e voaram de imediato paraAnnecy. Aí, na pista de asfalto, uma fila de Range Rover pretos aguardava-os. Demoraram vinteminutos a chegar ao Versailles privado de Khalid. O pessoal de serviço, mistura de franceses esauditas, aguardava alinhado como um coro no imponente vestíbulo. Khalid dedicou-lhes umcumprimento breve antes de acompanhar Gabriel e os restantes à sala principal do château. Ogrande salão, como ele lhe chamava, era longo e retangular como uma basílica e estava decoradocom parte da coleção de pinturas de Khalid, entre elas o Salvator Mundi, o seu Leonardoduvidoso. Gabriel estudou o quadro minuciosamente, com uma mão no queixo e a cabeça umpouco inclinada. Depois baixou-se e observou as pinceladas com uma luz lateral.

— Então? — perguntou Sarah.— Como é que o deixaste comprar isto?— É um Leonardo?— Talvez uma pequena parte o fosse, há muito tempo. Mas já não.Khalid juntou-se a eles.— Magnífico, não é?— Não sei o que é que foi mais absurdo — respondeu Gabriel —, se matar o Omar Nawwaf

ou gastar quinhentos milhões de dólares num quadro religioso amador ultrarrestaurado.— Amador? A Miss Bancroft garantiu-me que era um Leonardo autêntico.— A Miss Bancroft estudou História da Arte no Courtauld e em Harvard. Tenho a certeza de

que não fez tal coisa. — Gabriel fez um gesto de contrariedade ao ver que um empregado entravano salão com uma bandeja de bebidas. — Isto não é uma festa, Khalid.

— O facto de não ser não impede que nos refresquemos depois da viagem.— Quantos empregados tem?— Vinte e dois, creio.— E como é que se arranja?A ironia não pareceu incomodar Khalid.— O pessoal principal é saudita — explicou —, mas a maioria dos meus empregados é

francesa.— A maioria?— Os jardineiros são marroquinos e da África ocidental — afirmou num tom depreciativo. —

Os sauditas vivem numa casa à parte, no extremo norte da propriedade. Os outros vivem emAnnecy ou nas aldeias nos arredores.

— Dê a noite de folga a todos. Também aos condutores.— Mas…— E desligue as câmaras de segurança — interrompeu-o Gabriel. — Como fez em Istambul.— Não sei se saberei.— Carregue no interruptor de on para off. Isso será suficiente.

Khalid tinha pedido a Rafiq al-Madani que fosse sozinho ao château. Al-Madani, no entanto,desobedeceu ao seu futuro rei ao pedir um carro com motorista ao parque automobilístico daembaixada. Saíram do oitavo arrondissement de Paris às seis da tarde seguidos por uma equipade agentes do Departamento e dirigiram-se à A6. Pela sua conversa, que Gabriel e Khalidseguiam através do telefone sob escuta, era evidente que Al-Madani e o seu motorista seconheciam bem. E que estavam armados.

Quando chegaram à comuna de Mâcon, Gabriel pegou num dos Range Rover de Khalid e,acompanhado por Sarah, dirigiu-se para o campo. Estava uma noite fria e limpa. Parou numouteiro de onde se via o cruzamento da D14 e da D38, desligou os faróis e o motor.

— O que é que fazemos se a polícia aparecer?— Segundo o protocolo do Departamento, fingimos ser amantes.Ela sorriu.— O meu sonho mais louco tornado realidade.O BlackBerry de Gabriel, colocado em silêncio, entre os dois, emitia o som do telefone de Al-

Madani, que naquele momento se limitava ao zumbido de um motor de fábrica alemã e a umbatimento rítmico, parecido ao movimentar de peças de xadrez.

— O que é isso?— As contas de um rosário.— Ele parece estar preocupado.— Não estarias se o Khalid te ligasse em plena noite?— Fazia-o constantemente.— E nunca suspeitaste de que não era o grande reformista que fingia ser?— O Khalid que eu conhecia não teria permitido o assassinato do Omar Nawwaf. Suponho

que ter tanto poder o mudou. Chegou inesperadamente, demasiado rápido, e fez aparecer ahamartia do seu carácter. O defeito fatal — acrescentou Sarah.

— Sei o que significa hamartia, doutora Bancroft. Graças ao Departamento, não terminei osmeus estudos, mas não sou um idiota.

— És a pessoa mais inteligente que conheço.— Se sou tão inteligente, o que é que estou a fazer sentado à beira de uma estrada francesa a

meio da noite?— Tentas impedir que o herói desta tragédia se autodestrua.— Talvez devesse deixar que isso acontecesse.— Tu és restaurador, Gabriel. Arranjas coisas. — Através do BlackBerry continuava a ouvir-

se o barulho das contas do rosário. — O Khalid sempre me disse que um dia aconteceria algoassim. Sabia que tentariam destruí-lo. E dizia que seria alguém do seu meio. Da família.

— Não é uma família, é um negócio. E aquele que leva a pilhagem é quem detém o poder.

— Trata-se disso? De dinheiro?— Em breve saberemos.O telefone de Al-Madani emitiu o som que anunciava a receção de uma mensagem. O barulho

do rosário parou.— De quem é que achas que será?Um momento depois, o telefone de Gabriel vibrou. Era uma mensagem do departamento de

Operações da Unidade 8200.— Era do Khalid, a perguntar a que horas é que o Rafiq chegava.Ouviram Al-Madani digitar a resposta e enviá-la. Depois, escreveu e mandou outra

mensagem. A transcrição chegou segundos depois ao telemóvel de Gabriel, juntamente com onúmero para o qual tinha enviado a mensagem.

— Acaba de avisar os sequestradores de que vai ter com o Khalid. Diz que dá novidades assimque acabar a reunião.

— Aí está ele.Sarah apontou para um carro, um Mercedes Classe S, que avançava pela paisagem. Passou

pelo cruzamento onde tinham sequestrado a filha de Khalid — clique, clique, clique, clique,clique, clique — e perdeu-se de vista. Gabriel deixou passar trinta segundos. Depois, ligou omotor do Range Rover.

* * *

O barulho das contas do rosário tornou-se mais insistente à medida que o Mercedes seaproximava do château. Rafiq al-Madani murmurou algo em árabe, surpreendido por a grade deferro dourada estar aberta. Também o surpreendeu encontrar Khalid pessoalmente à sua esperano alpendre apesar do frio que fazia.

Ouviu-se a seguir a porta de um carro de luxo a abrir-se e a fechar-se, e o tradicionalcumprimento islâmico desejando paz. Depois ouviram-se passos, primeiro sobre a gravilha;depois, sobre o mármore. Al-Madani comentou que havia pouca luz na entrada. Khalid explicou-lhe com cordialidade que a instalação elétrica do seu palácio de quatrocentos milhões de eurosdeixava muito a desejar.

O comentário fez com que Al-Madani desse um riso seco. Seria o último. Houve uma breveluta, seguida pelo ruído de vários socos dirigidos à cara e ao maxilar. Mais tarde, Gabrielrepreenderia Keller e Mikhail por empregarem uma violência excessiva para reduzir Al-Madani.Ambos protestaram: fora Khalid quem lhe dera a brutal sova, não eles.

Quando Gabriel entrou no estacionamento, o telefone sob escuta já estava desligado e nãoemitia qualquer sinal. Mikhail estava a infligir uma dor permanente ao braço direito do condutor,que tinha cometido o erro de se negar a entregar a arma apesar de o israelita lho ter pedidoamavelmente. No grande salão do château, Keller estava a atar a uma cadeira Rafiq al-Madani,que estava semi-inconsciente, enquanto Sua Alteza Real, o príncipe Khalid bin MohammedAbdulaziz Al Saud, passava as contas de um rosário com os dois primeiros dedos da mãoesquerda. Na direita segurava uma pistola.

27

ALTA SABOIA, FRANÇA

Rafiq al-Madani demorou uns instantes a ter plena consciência da gravidade da sua situação.Pouco a pouco levantou o queixo do peito e percorreu a enorme sala com o olhar confuso.Pousou primeiro os olhos no futuro rei, que continuava a brincar com as contas do rosário, e logode seguida em Gabriel. Os olhos de Al-Madani tinham uma suave cor castanha, como os de umveado. Com a sua cara comprida e o seu cabelo crespo e escuro, infelizmente era parecido comOsama bin Laden.

Ainda demorou um instante a reconhecer a cara do chefe da espionagem israelita. Então, aspupilas dos seus olhos castanhos dilataram-se, e Gabriel teve a impressão de que estavaassustado, mas não surpreendido.

Al-Madani olhou com desprezo para Khalid e dirigiu-se a ele em árabe saudita.— Vejo que recrutaste os serviços do teu amigo judeu para fazer o trabalho sujo. E ainda

estranhas teres tantos inimigos em casa.Khalid bateu-lhe com a culatra da pistola. Al-Madani olhou com fúria para Sarah, enquanto o

sangue brotava da ferida da sua sobrancelha esquerda.— Tapa a cara na minha presença, puta americana!Khalid voltou a levantar a arma, cheio de cólera.— Não! — gritou Sarah. — Outra vez não.Ao ver que Khalid baixava a pistola, Al-Madani conseguiu esboçar um sorriso dolorido.— Agora aceitas ordens de uma mulher? Daqui a nada ainda acabas vestido como uma

delas…Khalid bateu-lhe de novo. Sarah fez uma careta de horror ao ouvir o estalar de um osso.— Onde é que está? — perguntou Khalid.— Quem? — afirmou Al-Madani com a boca cheia de sangue.— A minha filha.— Como é que queres que eu saiba?— Estás em contacto com os sequestradores. — Khalid agarrou no telefone de Al-Madani que

Keller tinha na mão. — Queres que te mostre as mensagens?Al-Madani não disse nada. Khalid aproveitou o seu desconcerto para o pressionar.— Porque é que fazem mal à minha filha, Rafiq? Porque é que não me mataste a mim?— Bem tentei, mas foi impossível. Estavas muito bem protegido.Aquela confissão repentina surpreendeu inclusive Khalid.

— Não te tratei bem?— Tratavas-me como um servente. Usavas-me para manter em ordem os ulemás enquanto

concedias às mulheres o direito de conduzir e confraternizavas com os judeus e com osamericanos.

— Temos de mudar, Rafiq.— O Islão é a resposta!— O Islão é o problema, habibi.— És um apóstata — replicou Al-Madani, raivoso.Não havia maior insulto para um muçulmano. Khalid encaixou o golpe com admirável sangue-

frio.— Quem é que te meteu nisto, Rafiq?— Agi sozinho.— Não és suficientemente inteligente para planear algo assim.Al-Madani conseguiu esboçar um sorriso desdenhoso.— Talvez a Reema não esteja de acordo.Khalid deu-lhe um golpe repentino e feroz.— É a princesa Reema — disse com o rosto desfigurado pela ira. — E tu, Rafiq, não és digno

nem de beijar o chão que ela pisa.— É a filha de um apóstata. E se amanhã, à meia-noite, não tiveres abdicado, morrerá.Khalid pôs-lhe a pistola em frente dos olhos.— O que é que vais fazer? Matar-me?— Sim.— E se eu to disser? Então, o que é que fazes? — Al-Madani respondeu à sua própria

pergunta. — Já estou morto.Khalid apoiou a boca do cano no centro da sua testa.— Mate-me, Sua Alteza Real. É a única coisa que sabe fazer.O príncipe apoiou o dedo no gatilho.— Não o faça — disse Gabriel com calma.Khalid olhou para trás e viu que Gabriel estava a olhar para o ecrã do seu BlackBerry.— Localizámos o telefone para o qual mandou aquelas mensagens de texto.— Onde é que está?— Numa casa no País Basco espanhol.Rafiq al-Madani lançou-lhe uma cuspidela de sangue e catarro.— Judeu!Gabriel guardou o BlackBerry no bolso.— Pensando melhor — disse —, vá, mate-o.

Depois de partir o braço ao motorista e de lhe deslocar o ombro, Mikhail tinha-o metido àforça no porta-bagagens do Mercedes Classe S. Com a ajuda de Keller, meteu aí também Rafiqal-Madani. Khalid observava a cena comprazido, com a pistola na mão.

— O que é que fazemos com eles? — perguntou virando-se para Gabriel.— Suponho que podíamos levá-los para Espanha.— É um caminho muito longo para fazer no porta-bagagens de um carro. Talvez devêssemos

deixá-los nalguma floresta afastada, aqui, na Alta Saboia.

— A noite vai ser longa e fria.— Quanto mais fria, melhor. — Khalid aproximou-se da parte de trás do carro e olhou para os

dois homens metidos no reduzido espaço do porta-bagagens. — Talvez possamos fazer algo paraque estejam mais cómodos.

— Como por exemplo?Khalid levantou a arma e esvaziou o carregador sobre os seus dois súbditos. Depois olhou para

Gabriel por cima do ombro e sorriu sem perceber que tinha a cara salpicada de sangue.— Não estava a pensar matá-los na casa, pois não? Custou-me uma fortuna.Gabriel contemplou os dois corpos crivados de balas.— O que é que fazemos com eles agora?Khalid baixou a tampa da mala.— Não se preocupe, eu trato disto.

28

AUVÉRNIA-RÓDANO-ALPES

— Fique a saber que estava a brincar quando disse para o matar.— Sim? Às vezes, é difícil saber.O chefe dos serviços secretos de Israel e o futuro rei da Arábia Saudita circulavam a grande

velocidade em direção a oeste pela A89. Gabriel ia ao volante. Khalid, com um ar cansado,tinha-se recostado no banco do copiloto. O iPhone de Rafiq al-Madani estava entre os dois,ligado ao carregador. Uns minutos antes, Khalid tinha enviado notícias aos sequestradoresimitando o estilo críptico de Al-Madani. A mensagem afirmava que Sua Alteza Real o príncipese dispunha a abdicar, ansioso para assegurar a libertação da sua filha. Ainda não tinhamrecebido resposta.

Khalid voltou a olhar para o telefone e atirou-o contra o tabliê.— Cuidado, Príncipe Cabeça-Quente. Os telefones partem-se.— O que é que acha que este silêncio significa?— Significa que provavelmente não deveria ter matado o Rafiq antes de nos garantir que a sua

filha está mesmo naquela morada em Espanha.— O Gabriel disse que estava lá.— Disse que tínhamos localizado o telefone. Teria preferido comprová-lo perguntando a uma

testemunha que estivesse viva e a respirar.— Ele praticamente confirmou.— Naquele momento tinha uma pistola apontada à cabeça.— Eu acho que nos disse a verdade sobre o esconderijo. Mas o resto era mentira.— Acha que a sequestrou sozinho?— O Al-Madani não passa de um capacho. Há outras pessoas implicadas neste complô contra

mim.— Talvez devêssemos voltar a interrogá-lo para saber quem são. — Gabriel olhou pelo

retrovisor. Mikhail, Keller e Sarah iam atrás deles, a umas centenas de metros de distância. — Oque é que vai fazer com os cadáveres?

— Não se preocupe, vão desaparecer.— De passagem, faça desaparecer também a sua pistola.— Não era minha, era do Rafiq.— Mas tem as suas impressões digitais por todo o lado. — Uns segundos depois, Gabriel

acrescentou: — Não os devia ter matado, Khalid. Agora estou implicado na morte deles. E a

Sarah também.— Ninguém vai ficar a saber.— Mas o Khalid sabe. E pode usar isso contra mim quando lhe convier.— Não era minha intenção comprometê-lo.— Tendo em conta o seu historial de imprudências temerárias, inclino-me a acreditar.Khalid deu mais uma vista de olhos ao telefone.— É imaginação minha ou o Rafiq não ficou surpreendido por vê-lo em minha casa?— Também reparou nisso?— Evidentemente, alguém lhe disse que o Gabriel andava à procura da Reema.— Cerca de duzentos membros da sua corte real viram-me na Arábia Saudita na outra noite.— Infelizmente, nunca vou sozinho a lado nenhum.— Agora está sozinho, Khalid.— Consigo. — Sorriu um instante. — Devo dizer que a minha assessora artística não pareceu

muito impressionada por ver um pouco de sangue.— Não se assusta facilmente depois do que o Zizi al-Bakari lhe fez.— O que é que aconteceu exatamente?Gabriel pensou que não havia qualquer risco de lhe contar. Tinha sido há muito tempo.— Quando o Zizi descobriu que a Sarah era agente da CIA e que estava a colaborar com o

Departamento, entregou-a a uma célula do Al-Qaeda para que a interrogassem e a executassem.— Mas o Gabriel conseguiu salvá-la.— E, de passagem, desmantelei uma conspiração para assassinar o Papa financiada com

dinheiro saudita.— Mas que vida a sua…— E, afinal de contas, de que é que me serviu? Não tenho um palácio na Alta Saboia.— Nem o segundo iate maior do mundo — assinalou Khalid.— Nem um Leonardo.— Segundo parece, eu também não tenho um Leonardo.— E para que é que precisa disso? — perguntou Gabriel.— Faz-me feliz.— A sério?— Nem todos temos a sua sorte. O Gabriel é um homem de dons extraordinários. Não precisa

de brinquedos para ser feliz.— Um ou dois não seria mau.— O que é que quer? Dar-lhe-ei seja o que for.— Quero ver se volta a abraçar a sua filha.— Não pode ir mais depressa?— Não, não posso.— Então deixe que eu conduzo.— Sem rodinhas não.Khalid olhou para o campo imerso na escuridão.— Acha que está lá?— Sim — respondeu Gabriel com mais redundância do que pretendia.— E se não estiver?Gabriel ficou em silêncio.— Sabe o que é que me disse o meu tio Abdullah? Disse-me que uma filha pode ser

substituída, mas um rei não.O zumbido do motor encheu o silêncio. Passado um momento, Gabriel reparou que Khalid

estava a passar as contas de um rosário com a mão esquerda.— É o do Al-Madani?— Deixei o meu no Dorchester.— Aposto que há alguma lei islâmica que proíbe usar o rosário de um homem que se acaba de

matar.— Que eu saiba, não.

O mensageiro estava à espera à beira de um campo banhado pela lua, na comuna de Saint-Sulpice. A mala de desporto de nylon que entregou a Gabriel tinha duas metralhadorascompactas Uzi Pro, duas pistolas Jericho de calibre 45 e uma Beretta de 9 mm. Gabriel deu asmetralhadoras e as pistolas a Mikhail e a Keller e ficou com a Beretta.

— Não há nada para mim? — perguntou Khalid quando voltaram a andar.Quando chegaram a Bordéus, Gabriel viu um sol ardente elevar-se pelo espelho retrovisor.

Seguiram pela baía de Biscaia para o sul e atravessaram a fronteira sem que ninguém verificasseos seus passaportes. Estava um tempo caprichoso: tão depressa o sol brilhava como o céuenegrecia e chovia a potes.

— Conhece bem Espanha? — perguntou Khalid.— Tive oportunidade de visitar Sevilha há pouco tempo.— Antigamente era uma cidade muçulmana.— Da maneira como as coisas estão, voltará a ser.— Também havia judeus em Sevilha.— E todos sabemos o que é que aconteceu.— Uma das maiores injustiças da História — comentou Khalid. — E cinco séculos depois,

vocês fizeram o mesmo aos palestinianos.— Quer que falemos de quantas pessoas os Al Saud mataram e deslocaram ao estabelecer o

seu domínio sobre a península da Arábia?— Nós não éramos colonizadores.— Nós também não.Estavam a aproximar-se de San Sebastián, a localidade costeira que os bascos chamavam

Donostia. Seguiram para Bilbau, a cidade grande mais próxima, mas, antes de chegar, Gabrielvirou para sul, para o interior do País Basco. Numa localidade chamada Olarra, parou na berma otempo necessário para que Sarah trocasse de carro. Acomodou-se no banco de trás, com o cabelodespenteado e os olhos carregados de cansaço. Mikhail e Keller seguiram por uma estradasecundária e perderam-se de vista.

— Eu devia ir com os seus homens — disse Khalid.— Não faria mais do que estorvar. — Gabriel olhou para Sarah um instante. — Continuas a

pensar que o mundo dos espiões é mais interessante?— Há café no mundo dos espiões?A povoação de Villaro — ou Areatza, em basco — ficava a escassos quilómetros, a sul. Não

era um destino turístico muito frequentado, mas havia vários hotéis no centro da terra e um caféna praça. Gabriel pediu num espanhol decente.

— Há algum idioma que não fale? — perguntou Khalid quando a empregada saiu.

— Sim, russo.Através da janela do café, Khalid contemplou a luz da praça e os pequenos redemoinhos de

vento que arrastavam folhas de jornal pelas arcadas.— Nunca tinha vivido um dia assim. Tão belo e tão horrendo ao mesmo tempo.Gabriel e Sarah trocaram um olhar quando três raparigas entraram no café com o cabelo

despenteado pelo vento frio que soprava lá fora. Vestiam leggings rasgadas e usavam piercingsno nariz, tatuagens nas mãos e numerosas pulseiras e braceletes que fizeram barulho quando sedeixaram cair nas cadeiras, numa mesa próxima do balcão. A empregada, que as conhecia, fezum comentário sobre a sua falta de sobriedade. Para elas, o dia estava a acabar em vez decomeçar, pensou Gabriel.

— Olhe para elas — disse Khalid num tom desdenhoso. — Parecem bruxas. Suponho que éisto que devemos esperar com entusiasmo na Arábia Saudita.

— Oxalá.O iPhone de Al-Madani, sem volume, descansava no centro da mesa, junto do BlackBerry de

Gabriel. Khalid estava a passar as contas do rosário.— Talvez devesse guardar isso — disse Gabriel.— Reconforta-me.— Faz com que pareça um príncipe saudita que se pergunta se voltará a ver a sua filha.Khalid guardou o rosário no bolso quando lhes levaram o pequeno-almoço.— Aquelas raparigas estão a olhar para mim.— Provavelmente, porque o acham atraente.— Sabem quem sou?— Não, impossível.Khalid pegou no iPhone de Al-Madani.— Não entendo porque é que não responderam.Naquele preciso momento iluminou-se o ecrã do BlackBerry de Gabriel: tinha recebido uma

mensagem.— O que é que diz?— Localizaram a casa.— Quando é que vão entrar?Gabriel voltou a deixar o telefone em cima da mesa enquanto um aguaceiro repentino açoitava

as pedras da calçada da praça.— Agora.

29

AREATZA, ESPANHA

Nessa noite, durante a interminável viagem de carro, Mikhail estudou uma imagem da casatirada por um satélite comercial. Vista de cima, era um quadrado perfeito, com um telhadovermelho, no meio de uma clareira à qual se chegava seguindo um longo caminho privado. Nafotografia não se via se tinha um andar ou dois. Vista através da lente do telescópio monocular,da floresta, era uma moradia modesta mas bem conservada, com janelas pintadas de azul, todaselas fechadas hermeticamente. Não havia nenhum veículo à porta e o ar diáfano da manhã nãolevava cheiro a café, nem a comida. Um grande pastor belga — uma raça com muito mau feitio— puxava a sua longa trela como um peixe puxa a linha de pesca. Ladrava desconsoladamente:um ladrar rouco e sonoro que parecia fazer tremer as árvores.

— Imaginas-te a viver na casa ao lado? — perguntou Keller.— Há gente muito mal-educada.— Porque é que achas que está tão aborrecido?— Talvez um passarinho lhe tenha dito que o Gabriel anda por aqui. Já sabes o que é que os

cães acham dele.— Não são bons amigos?Mikhail negou com a cabeça, muito sério.— Como um fósforo e uma lata de gasolina. — O cão continuava a ladrar sem cessar. —

Porque é que não sai ninguém da casa para ver qual o motivo de tanto alvoroço?— Pode ser que o maldito cão ladre o tempo todo.— Ou pode ser que esta não seja a casa.— Já vamos ver.Keller empunhou a Uzi Pro e saiu sem fazer barulho. Mikhail seguiu-o, uns passos mais atrás.

O cão, ao aperceber-se da sua presença, ficou tão furioso que Keller temeu que partisse a trelaem duas.

A trela tinha cerca de dez metros de comprimento, o que permitia ao cão dominar a entrada dafrente da casa. Keller dirigiu-se à parte de trás. Também aí as janelas estavam fechadas, e umapersiana tapava o vidro da porta de trás.

Keller empurrou a maçaneta da porta. A porta estava fechada. Gabriel poderia tê-la aberto emdez segundos, mas nem Keller nem Mikhail possuíam a sua destreza a manejar uma gazua. Paraalém disso, partir o vidro com uma cotovelada era bem mais rápido.

Fez menos barulho do que Keller temia: o barulho inicial do vidro, seguido pelo barulho dos

estilhaços a caírem ao chão. Introduziu o braço no buraco, girou a maçaneta da porta e, seguidopor Mikhail, penetrou na casa.

A mensagem chegou ao BlackBerry de Gabriel dois minutos depois. Gabriel pôs duas notas namão da empregada e saiu à pressa para a praça com Sarah e Khalid. O Range Rover estava naesquina. Khalid manteve a compostura até estarem lá dentro e fecharem as portas. Gabriel tentouconvencê-lo a não irem à casa, mas não serviu de nada. Empenhou-se em ir ver o lugar ondetinham mantido a sua filha prisioneira. Gabriel não conseguia censurá-lo. No seu lugar, eletambém ia querer ver.

Ouviram os latidos furiosos do cão ao aproximarem-se da clareira. Keller estava no caminhoda entrada. Conduziu-os à porta de trás, passaram por cima dos vidros partidos e desceram olanço de escadas que levava à cave. No chão, em frente de uma porta metálica, havia um cadeadoindustrial e, ao seu lado, uma caixa de plástico azul-clara. O cheiro fez com que Khalid sentisseuma náusea quando entrou ali.

Era um quarto de paredes brancas nuas, mal cabia o catre. Em cima das almofadas sujas estavauma fotografia instantânea e um caderno. A fotografia era muito parecida à que ossequestradores tinham feito chegar à embaixada saudita em Paris. O caderno estava coberto pelaletra enrevesada e curva de uma menina de doze anos. Dizia o mesmo página atrás de página.

Estão mortos… Mortos, mortos, mortos…

30

PARIS-JERUSALÉM

Os assistentes e os guarda-costas que Khalid tinha deixado no Dorchester estavam à espera nasala VIP de Paris-Le Bourget. Recuperaram o seu príncipe herdeiro como se recebessemmercadoria de contrabando e levaram-no sem perder um instante a bordo do avião privado. Umcarro da embaixada israelita levou Gabriel e os restantes para o próximo Aeroporto Charles deGaulle. Separaram-se no terminal. Keller regressou a Londres; Sarah, a Nova Iorque. Gabriel eMikhail tiveram de esperar duas horas para apanhar o voo da El Al para Telavive. Como nãohavia nada melhor para fazer, Gabriel informou o diretor da CIA, Morris Payne, de que o líderdo mundo árabe favorito do seu presidente se dispunha a abdicar para salvar a vida da sua filha.Payne fez questão de saber de onde é que procedia a informação. Gabriel, como de costume, fez-se rogado.

A tarde já ia a meio quando Mikhail e ele chegaram ao Aeroporto Ben Gurion. Foramdiretamente para a Avenida Rei Saul, onde Gabriel passou uma hora no escritório de Uzi Navot alimpar os escombros operativos e burocráticos que se tinham acumulado durante a sua ausência.Com a sua elegante camisa às riscas e os seus óculos modernos sem aros, Navot parecia acabadode sair da direção de uma empresa da lista Fortune 500. A pedido de Gabriel, tinha recusado umtrabalho muito lucrativo numa empresa de segurança californiana e tinha ficado noDepartamento na qualidade de subdiretor. A sua exigente esposa, Bella, nunca perdoara Gabriel.Nem o seu marido.

— Os analistas estão a avançar depressa com os documentos de Teerão — comentou Navot.— Não há provas de que o programa esteja ativo, mas temos acesso a todo o trabalho anterior,tanto em relação a mísseis como a sistemas de lançamento.

— Quando é que podemos tornar isso público?— Qual é a pressa?— Dentro de umas horas, os mullahs vão estar a celebrar a queda do Khalid. Vai calhar bem

uma mudança de assunto na região.— Isso não muda o facto de o teu amigo se ter ido abaixo.— Nunca foi meu amigo, Uzi. Do primeiro-ministro, sim.— É verdade, ele quer ver-te.— Agora não posso tratar disso. Ligo-lhe do carro.Gabriel fez o telefonema, enquanto a sua comitiva subia pelo Bab al-Wad a caminho das

Montanhas da Judeia. O primeiro-ministro recebeu a notícia tão bem como Morris Payne. Khalid

era o eixo de uma estratégia regional para isolar o Irão, normalizar as relações com os regimessunitas árabes e atingir um acordo de paz com os palestinianos em termos favoráveis para Israel.Gabriel apoiava os objetivos gerais dessa estratégia, mas tinha advertido repetidamente oprimeiro-ministro de que o príncipe herdeiro era um elemento instável e volátil que podia acabarpor ser o seu pior inimigo.

— Pelos vistos cumpriram-se os seus desejos — disse o primeiro-ministro com a sua voz debarítono.

— Com o devido respeito, isso é distorcer a minha postura sobre este assunto.— Podemos intervir?— Tentei, asseguro-lho.— Quando será?— Antes da meia-noite, hora de Riade.— Irá até ao fim?— Depois do que vi hoje, aposto que sim.Passavam poucos minutos das nove quando a comitiva de Gabriel entrou na Narkiss Street.

Normalmente a essa hora, as crianças já estavam a dormir, mas, para surpresa de Gabriel,atiraram-se para os seus braços quando atravessou a porta. Raphael, futuro pintor, mostrou-lhe asua última obra. Irene leu-lhe um conto que tinha redigido com a ajuda da mãe. O caderno noqual estava escrito era idêntico ao que tinham encontrado na triste cela da princesa Reema noPaís Basco espanhol.

Estão mortos… Mortos, mortos, mortos…Gabriel ofereceu-se para ir deitar as crianças, operação na qual teve mais sucesso do que nas

suas tentativas de encontrar a filha de Khalid. Quando saiu do quarto, encontrou Chiara a tiraruma caçarola cor de laranja do forno. Reconheceu o cheiro. Era ossobuco, um dos seus pratospreferidos. Comeram na pequena mesa da cozinha, com uma garrafa de shiraz da Galileia e oBlackBerry de Gabriel no meio da mesa. A televisão do balcão estava ligada sem volume. Chiaraachou estranho o canal que o seu marido escolheu.

— Desde quando é que vês a Al Jazeera?— Têm ótimas fontes na Arábia Saudita.— Vai acontecer alguma coisa?— Um terramoto.Para além de duas mensagens de texto escritas em termos muito vagos, Gabriel não tinha

falado com Chiara desde a manhã em que saiu de Paris. Agora contou-lhe tudo o que acontecera,em italiano, a língua do seu casamento. Ela ouviu atentamente. Nada lhe agradava mais do queouvir as façanhas de Gabriel. Os seus relatos eram para ela um fio que, ainda que ténue, amantinha unida à vida à qual tinha renunciado para ser mãe.

— Deve ter sido uma surpresa.— O quê?— Encontrar a Sarah no voo para Paris. — Chiara deu uma vista de olhos à televisão. Estavam

a emitir imagens da última crise de violência na fronteira da Faixa de Gaza. Ao que parece, aculpa era inteiramente de Israel. — Não parecem saber que esteja a acontecer algo de estranho.

— Em breve, vão saber.— Como, exatamente?— O príncipe dirá ao seu pai, o rei, que não tem outro remédio senão abdicar. E o seu pai, que

tem outros vinte e oito filhos varões das suas quatro esposas, sem dúvida vai discordar da

decisão do filho.— Quem é que vai suceder agora ao rei Mohammed?— Isso depende de quem estiver por trás do complô para destituir o Khalid. — Gabriel olhou

para as horas. Eram 21h42 em Jerusalém; 22h42 em Riade. — As horas estão a passar.— Talvez esteja a pensar.— Assim que renunciar, perderá tudo. Provavelmente, não poderá ficar na Arábia Saudita.

Será mais um príncipe no exílio.— Gostava de ser uma mosca na corte real.— A sério?Gabriel pegou no seu BlackBerry e ligou para a divisão de Operações da Avenina Rei Saul.

Uns minutos depois, o BlackBerry começou a emitir a voz de um idoso que gritava em árabe.— O que é que está a dizer?— Que uma filha pode ser substituída, mas um rei não.

Eram onze e meia em Riade quando a Al Arabiya, a cadeia de notícias estatal saudita,interrompeu a sua emissão habitual para dar lugar a um comunicado urgente do palácio. Oapresentador fez uma cara de estupefação ao lê-lo. Sua Alteza Real, o príncipe Khalid binMohammed Abdulaziz Al Saud, tinha abdicado, renunciando assim ao seu direito ao trono. OConselho de Lealdade, o grupo de príncipes que decide quem entre eles vai governar, tinhaprevisto reunir de imediato para nomear um substituto. Por enquanto, porém, o monarca absolutoda Arábia Saudita, incapacitado mentalmente e com uma doença terminal, não tinha escolhidoum sucessor.

A Al Jazeera, que deu a notícia ao resto do mundo, só conseguiu conter a sua alegria a muitocusto. O mesmo aconteceu com os iranianos, a Irmandade Muçulmana, os palestinianos, oHezbollah, o ISIS e a viúva de Omar Nawwaf. A Casa Branca emitiu naquele instante umcomunicado a declarar a sua vontade de colaborar estreitamente com o sucessor de Khalid.Downing Street disse algo parecido uns minutos depois, tal como o Palácio do Eliseu. O governode Israel, por sua vez, não fez comentários.

Mas porque é que Khalid tinha renunciado ao trono pelo qual tão implacavelmente tinhalutado? Os meios de comunicação só podiam lançar especulações. Os especialistas do MédioOriente mostraram-se unânimes: Khalid não tinha abdicado por vontade própria. A questão erase as pressões que o tinham obrigado a isso procediam de dentro ou de fora da Casa de Saud.Poucos jornalistas e comentadores tentaram esconder a alegria que tiveram com a sua queda, emenos ainda quem ao princípio tinha celebrado a sua ascensão ao poder. Já vai tarde, declarou adestacada colunista do The New York Times que tinha proclamado prematuramente Khalid comoo salvador do mundo árabe.

Entre os muitos mistérios dessa noite estava o paradeiro exato de Khalid. Se alguém se tivesseincomodado a perguntar ao chefe dos serviços secretos israelitas, poderia ter dito sem margempara dúvidas que Khalid voou para Paris imediatamente após a sua tempestuosa conversa com orei e que, incógnito e sem a sua escolta habitual, chegou ao Hotel de Crillon. No dia seguinte, àscinco da tarde, recebeu um telefonema. A voz digitalizada do outro lado da linha deu-lhe umasérie de instruções num tom retorcidamente afável. Depois, a ligação caiu. Frenético, Khalidligou a Sarah Bancroft para Nova Iorque e ela, a pedido de Khalid, ligou a Gabriel para aAvenida Rei Saul. Não teria sido preciso, na verdade, já que Gabriel estava a vigiar de perto os

acontecimentos a partir do Centro de Operações e ouvira tudo. Os sequestradores não só queriamque Khalid renunciasse ao trono. Também o queriam a ele.

31

TELAVIVE-PARIS

Na realidade, era um pouco mais complicado. O que os sequestradores queriam era queGabriel tratasse das últimas negociações e de organizar a libertação da princesa Reema.Apresentaram as suas exigências não como uma ameaça, mas como um gesto humanitário quegarantiria a devolução da refém — o elemento mais perigoso de um sequestro — sã e salva.Preferiam lidar com um profissional, disseram, em vez de com um pai desesperado eimprevisível em certas ocasiões. Gabriel, no entanto, não se deixou enganar: sabia porque é queos sequestradores queriam que ele fosse o interlocutor. Os homens que estavam por trás docomplô, fossem quem fossem e à margem dos seus motivos, pensavam matá-lo à primeiraoportunidade. E a Khalid também.

Como era de esperar, as exigências dos sequestradores não foram bem acolhidas na AvenidaRei Saul. Uzi Navot disse que nem pensar nisso, bem como todos os colaboradores de Gabriel,incluindo Yaakov Rossman, que ameaçou algemá-lo à mesa de trabalho. Até Eli Lavon, chefedas sentinelas e amigo íntimo de Gabriel, pensava que era um disparate. Para além disso,acrescentou, agora que tinha abdicado, Khalid já não lhes servia para quase nada, e,evidentemente, não valia a pena correr esse risco por ele.

Gabriel não se incomodou a consultar o primeiro-ministro. Pelo contrário, ligou para a suamulher. A conversa foi breve, dois ou três minutos, no máximo. Depois, ele e Mikhail saíramdiscretamente da Avenida Rei Saul e dirigiram-se ao aeroporto. Não havia mais voos para Parisnaquela noite, mas não se importou: Khalid tinha enviado um avião para ir buscá-los.

Passava pouco da uma da manhã quando chegaram ao Crillon. Christopher Keller estava nobar do hall de entrada, a flirtar com a bonita empregada num francês com pronúncia corsa.

— Já estiveste lá em cima? — perguntou Gabriel.— Porque é que achas que estou aqui? Estava a dar comigo em louco.— Como é que está?— A trepar pelas paredes.Khalid ocupava um magnífico apartamento no terceiro andar do hotel. Era chocante vê-lo

executar uma tarefa tão prosaica como abrir a porta. Voltou a fechá-la rapidamente e trancou-acom a chave. A mesinha da sala de estar estava coberta de latas e embalagens de snacks do seubar privado. Em algum lugar, o seu telefone emitia um incómodo barulho eletrónico.

— Esse barulho não para — disse, e assinalou a enorme televisão com um gesto indignado. —Estão a rir-se de mim! Dizem que me vi obrigado a abdicar por causa do Omar Nawwaf.

— Mais para a frente vai ter ocasião de esclarecer tudo — afirmou Gabriel.— E de que é que vais servir? — O telefone voltava a tocar. Khalid deixou passar para o

atendedor de chamadas. — Outro suposto amigo.— Quem era?— O presidente do Brasil. E antes ligou o chefe de uma agência de atores de Hollywood para

perguntar se eu ainda pensava investir na sua empresa. — Fez uma pausa. — Liga toda a gente,menos os que levaram a minha filha.

— Aposto que vai ter notícias dela a qualquer momento.— Como é que sabe?— Porque, sem dúvida, já sabem que cheguei.— Estão a vigiar o hotel?Gabriel assentiu em silêncio.— Quando ligarem, vou oferecer cem milhões de dólares. Isso devia bastar para os convencer

a cumprirem o que combinamos ao princípio.Gabriel sorriu fugazmente.— Oxalá fosse assim tão simples.— Imagino que não tem a menor vontade de morrer por um homem como eu — disse Khalid

ao fim de um momento.— Não. Estou aqui por causa da sua filha.— Pode trazer-ma de volta?— Farei o que conseguir.— Entendo — respondeu o saudita. — É o diretor dos serviços secretos de Israel. E eu acabo

de renunciar ao trono, de maneira que já não lhe sou de nenhuma utilidade.— Tenho dois filhos pequenos.— É um felizardo. Eu só tenho uma.Um silêncio pesado caiu sobre o quarto. Um momento depois, foi quebrado pela melodia

insistente do telefone de Khalid, que agarrou bruscamente no aparelho e depois recusou achamada.

— Quem era? — perguntou Gabriel.O saudita fez um ar de incómodo.— A Casa Branca. Outra vez.— Não acha que deveria atender esse telefonema?Khalid fez um gesto desdenhoso e fixou o olhar na televisão. KBM a reunir com o primeiro-

ministro britânico em Downing Street. Antes da queda.— Não deveria ter ligado a… — disse sem se dirigir a ninguém em particular.— A quem? — perguntou Gabriel, mas ele não respondeu. O telefone voltou a tocar. — Quem

é agora?— Se lhe dissesse, não acreditava.Gabriel pegou no telefone que lhe estendia e viu o nome do presidente russo.— Atenda o Gabriel — disse Khalid. — Aposto que vai gostar de ouvir a sua voz.Gabriel deixou que o telefone continuasse a tocar uns segundos. Depois, com uma profunda

satisfação, carregou em RECUSAR.

Durante o resto daquela longa noite, o relógio avançou com a lentidão das placas tectónicas. Oestado de espírito de Khalid, pelo contrário, oscilava bruscamente entre a ira contra quem o tinhatraído e a angústia pelo destino da sua filha. Sempre que o seu telemóvel tocava, agarrava-ocomo se fosse uma granada explosiva, olhava para o ecrã ansiosamente e, ao ver que era outroex-amigo ou sócio que ligava para se rir da sua desgraça, atirava-o de qualquer forma para cimada mesa.

— Eu sei, eu sei — dizia a Gabriel. — Os telefones partem-se, Príncipe Cabeça-Quente.Mikhail e Keller conseguiram dormir umas horas, mas Gabriel ficou junto de Khalid. Nunca

tinha engolido a história de que KBM fosse o grande reformista do mundo árabe e, no entanto,ao ser confrontado com o dilema terrível de perder o trono ou a sua filha, Khalid tinha agidocomo um ser humano e não como um tirano malcriado e dono de riquezas inimagináveis cujasânsias de poder e posses materiais não tinham limite. Quer soubesse quer não, pensava Gabriel,ainda havia esperança para Khalid.

Por fim, uma aurora suja e cinzenta insinuou-se na esplêndida sala de estar. Mais ou menos,uma hora depois, enquanto estava de pé junto de uma das janelas que davam para a Place de laConcorde, Gabriel presenciou um espetáculo notável. Do Museu do Louvre até ao Arco doTriunfo, a polícia corria atrás de milhares de manifestantes vestidos com o colete amarelo dosvarredores. Em pouco tempo, todo o primeiro arrondissement estava coberto por uma densanuvem de gás lacrimogéneo. Gabriel pôs a France 2 na televisão e soube que os ColetesAmarelos estavam furiosos com o presidente francês pelo recente aumento do preço docombustível.

— Isto é a democracia — brincou Khalid. — Os bárbaros estão mesmo à nossa porta.Talvez estivesse enganado, pensou Gabriel. Talvez Khalid fosse um caso perdido, apesar de

tudo.E ali ficaram, o espião e o monarca caído, a contemplar como essa grande espécie conhecida

como civilização ocidental se desmoronava debaixo dos seus pés. Khalid estava tão fascinadoque, por uma vez, não ouviu o telefone tocar. Gabriel aproximou-se da mesa e viu que o aparelhovibrava entre os detritos da longa noite de espera. Olhou para o ecrã. Não tinha número, nemnome de contacto.

Carregou em ATENDER e levou o telemóvel ao ouvido.— Já não era sem tempo — disse em inglês sem se esforçar por dissimular a sua pronúncia

israelita. — Agora, ouçam com atenção.

32

PARIS

Quando se lida com sequestradores, sejam delinquentes comuns ou terroristas, é costume queo negociador ouça os seus pedidos. Mas isso pressupõe que o negociador tem algo para oferecerem troca da libertação do refém: dinheiro, por exemplo, ou um colega de armas preso. Gabriel,no entanto, não tinha nada de valor que servisse como moeda de troca, de maneira que não teveoutro remédio senão passar de imediato à ofensiva. Informou os sequestradores de que teriam delibertar a princesa Reema antes de acabar o dia. Se a menina sofresse algum mal — ou seatentassem contra a vida de Gabriel ou do ex-príncipe herdeiro saudita —, os serviços secretosisraelitas perseguiriam implacavelmente todos aqueles que tivessem feito parte da conspiração ematá-los-iam. O melhor que podiam fazer, concluiu, era pôr fim àquilo quanto antes, semmelodramas nem problemas de última hora. Depois desligou e passou o telefone a Khalid.

— Está louco?— Se não estivesse, não estaria aqui.— Dá-se conta do que acaba de fazer?— Tentar que tenhamos uma ligeiríssima oportunidade de recuperar a sua filha sem que nos

matem aos dois pelo caminho.— Deram-lhe instruções?— Não lhes dei oportunidade.— Porquê?— Pensava que os árabes eram bons negociadores.As pupilas de Khalid dilataram-se, com os olhos cheios de raiva.— Agora não voltam a ligar!— Claro que sim.— Como é que pode ter tanta certeza disso?Gabriel aproximou-se com calma da janela e observou o tumulto da rua.— Porque eu não estava a fazer bluff e eles sabem disso.

Felizmente, só teve de suportar uma espera de vinte minutos antes de os sequestradores lhedarem, em parte, a razão. As instruções chegaram através de uma mensagem de voz gravada. Avoz era de mulher, alegre e vagamente erótica. Dizia que Gabriel e o ex-príncipe herdeiro deviamapanhar o TGV que partia ao meio-dia de Paris com destino a Marselha. Durante o trajeto

receberiam novas instruções. Não deviam alertar a polícia francesa, nem viajar com escolta desegurança. Qualquer mudança de planos teria como resultado a morte da pequena.

— Estamos a vigiá-los — advertiu a voz antes de terminar a chamada.As condições não eram muito equitativas, mas Gabriel não podia aspirar a mais, dadas as

circunstâncias. Para além disso, não tinha intenção de cumprir, como também não as cumpririamos sequestradores.

Khalid pediu uma limusina do hotel. Enquanto atravessavam Paris a passo de tartaruga emdireção a leste, os manifestantes dos coletes amarelos intercetaram-nos entre vaias e cuspidelas.O gás lacrimogéneo irritou-lhes os olhos quando atravessaram rapidamente a entrada da Gare deLyon. Mikhail e Keller esperavam debaixo do painel luminoso das partidas, cada um a olharnuma direção como dois desconhecidos.

Khalid levantou o olhar para o telhado de vidro, maravilhado.— Não houve um atentado terrorista nesta estação há uns anos?— Continue a andar ou vamos perder o comboio — replicou Gabriel.— Ali está a placa — disse Khalid de repente a apontar para uma lápide de granito preto

polido.O painel de partidas fez barulho ao atualizar os dados. O comboio com destino a Marselha

estava prestes a partir. Gabriel levou Khalid a uma máquina de venda de bilhetes e indicou-lheque comprasse dois bilhetes de primeira classe. Khalid olhou para a máquina desconcertado.

— Não sei se saberei…— Tanto faz. — Gabriel passou um cartão de crédito pelo leitor. Os seus dedos moveram-se

habilmente pelo ecrã táctil e a máquina expeliu dois bilhetes e um recibo.— E agora? — perguntou Khalid.— Entramos para o comboio.Levou Khalid para a plataforma indicada e subiram para o vagão de primeira classe. Mikhail

estava sentado num extremo. Keller, no outro. Os dois olhavam para o centro, e Gabrielconduziu Khalid até lá. Só um terço do vagão estava ocupado e os restantes passageiros nãopareceram dar-se conta de que o homem que acabava de renunciar ao trono da Arábia Sauditaestava entre eles.

— Sabe uma coisa? — disse baixinho a Gabriel — Nem me lembro da última vez que fiz umaviagem de comboio. O Gabriel viaja com frequência de comboio?

— Não — respondeu Gabriel, enquanto o TGV começava a andar com um solavanco. —Nunca.

Durante as três primeiras horas, enquanto viajavam rumo a sul, o telefone silenciado de Khalidvibrou quase sem cessar, mas os sequestradores esperaram que o comboio chegasse a Avignonpara lhes fazer chegar as últimas instruções. De novo, não tinha nome nem número, só aquelavoz de mulher autómata a ordenar que Gabriel alugasse um carro na Gare de Marseille Saint-Charles e se dirigisse à cidade de Carcassonne, uma antiga cidadela medieval. Ali, na Avenue duGénéral Leclerc, havia uma pizaria, a Plein Sud. Deixariam a rapariga nos arredores.

— E não tragam os dois guarda-costas — advertiu a voz num tom chique. — Caso contrário,matamos a rapariga.

Gabriel ligou para a Avenida Rei Saul e pediu dois carros alugados, um para Mikhail e Kellere outro para Khalid e para ele. Eram dois Renault monovolumes. Mikhail e Keller saíram

primeiro e encaminharam-se para norte, para Aix-en-Provence. Gabriel dirigiu-se a oesteseguindo a costa, com o sol da tarde que cegava de frente.

Khalid passou um dedo pelo tabliê coberto de pó.— Pelo menos podiam ter-nos dado um carro limpo.— Devia ter-lhes dito que era para si. Tenho a certeza de que teriam procurado um mais

adequado.— Porque é que mandou os seus homens a Aix-en-Provence?— Para ver se os sequestradores comentem a estupidez de segui-los.— E se assim for?— Provavelmente, vão ter uma surpresa desagradável. E as nossas possibilidades de sair disto

sãos e salvos aumentam consideravelmente.Khalid estava a admirar o mar.— Lindo, não acha?— Aposto que é mais bonito do convés do maior iate do mundo.— O segundo maior — disse Khalid.— Todos temos de apertar o cinto.— Suponho que agora vá passar muito tempo nele. Em Riade já não estou seguro. E quando o

meu pai morrer…— O novo herdeiro tratá-lo-á como tratou o seu predecessor e toda a gente que supusesse uma

ameaça.— É assim que as coisas são na minha família. Damos ao termo disfunção um novo

significado. — Khalid sorriu com relutância. — Penso dedicar o resto da minha vida à Reema.Ela adora o Tranquillity. Talvez façamos uma viagem à volta do mundo.

— Vai precisar muito de apoio médico e psicológico para recuperar disto.— Fala como se soubesse por experiência própria.— Leia o meu processo.— Li. Mencionava algo que ocorreu em Viena. Um atentado. Dizem…— Pode ser que o surpreenda, mas não me apetece falar disso.— Então, é verdade? Mataram a sua mulher e o seu filho à sua frente?— Não. A minha mulher sobreviveu.O sol punha-se no horizonte. Como um carro a arder numa rua tranquila de Viena, pensou

Gabriel.— Nunca estive em Carcassonne.— Foi uma fortaleza cátara na Idade Média.— Cátara?— Os cátaros acreditavam, entre outras coisas, que havia dois deuses: o Deus do Evangelho e

o Deus do Antigo Testamento. Um era bom. O outro, mau.— Qual era qual?— O que é que acha?— O deus dos judeus era o mau.— Sim.— O que é que se passou com eles? — perguntou Khalid.— Apesar de terem tudo contra, fundaram um Estado moderno na sua pátria ancestral.— Referia-me aos cátaros.— Varreram-nos do mapa na cruzada albigense. O massacre mais célebre teve lugar na aldeia

de Montségur. Duzentos perfeitos cátaros deitados para uma enorme fogueira. O lugar ondeaconteceu é conhecido como o Campo dos Queimados.

— Pelos vistos, os cristãos também podem ser violentos.— Foi no século XIII, Khalid.O seu BlackBerry vibrou. Era um telefonema de Mikhail para lhe dar notícias. Gabriel ouviu e

mandou que se dirigissem a Carcassonne.— Seguiram-nos? — perguntou Khalid.— Não. Não tivemos essa sorte.O sol estava a pôr-se. Em breve, perder-se-ia de vista. Isso, pelo menos, seria um alívio.

33

MAZAMET, FRANÇA

Nas quarenta e oito horas decorridas desde a evacuação precipitada da casa segura do PaísBasco espanhol, a princesa Reema tinha estado quase em contínuo movimento. As suaslembranças da jornada eram fragmentárias, embaciadas por injeções periódicas de calmantes.Lembrava-se de um armazém repleto de caixotes de madeira, uma barraca suja que cheirava acabra e uma kitchenette na qual tinha ouvido discutir dois dos seus captores no quarto contíguo.Era a primeira vez que os ouvia falar. A língua na qual falavam deixou-a atónita.

Pouco depois de resolverem a disputa, deram-lhe outra injeção. Acordou, como de costume,com uma forte dor de cabeça e a boca tão seca como o deserto da Arábia. Tinham-lhe tirado ostrapos com os quais tinha andado naquelas duas últimas semanas e tinham voltado a vestir-lhe aroupa que usava na tarde do seu sequestro, inclusive o seu casaco Burberry favorito. Tinha asensação de que o casaco pesava mais do que o normal, embora não tivesse a certeza. Estavaenfraquecida pela imobilidade e tinham-lhe dado tantos fármacos que sentia os membros rígidoscomo se fossem de ferro.

A última injeção continha uma dose menor de sedativo. Reema parecia estar sonolenta, prestesa voltar a si. Estava segura de que ia no porta-bagagens de um carro em movimento, porqueouvia o zumbido dos pneus debaixo de si. Também ouvia duas vozes procedentes do habitáculode passageiros. Falavam a mesma língua, aquela língua que tanto a tinha surpreendido. Sóreconheceu duas palavras.

Gabriel Allon.O solavanco do carro e o asfixiante cheiro a sujo do porta-bagagens estavam a dar-lhe a volta

ao estômago. Parecia custar-lhe respirar. Talvez fosse por causa das drogas que lhe tinham dado.Não, pensou, era por causa do casaco. Estava a esmagá-la.

Não tinha as mãos atadas. Desapertou os botões e puxou, mas não serviu de nada, o casaconão se abria. Fechou os olhos e, pela primeira vez em muitos dias, chorou.

Tinham-lhe cosido o casaco.

A Avenue du Général Leclerc ficava situada para lá da dupla muralha da antiga cidadela deCarcassonne e não possuía nem um pouco da beleza e do encanto da zona histórica da cidade. Apizaria Plein Sud ocupava um edifício em forma circular no lado sul da rua, o último de umacurta série de lojas e negócios que davam trabalho aos moradores daquele bairro de classe

operária. O interior, impecavelmente limpo, estava bem iluminado. Um homem de feiçõesmeridionais tratava dos fornos e uma mulher com um aspeto triste do fogão. No apertado espaçoreservado para comer havia quatro mesas. As paredes estavam enfeitadas com espadas de arteafricana e uma grande porta deslizante de vidro dava para a rua. Era como um campo de tiro paraum franco-atirador, pensou Gabriel.

Khalid e ele sentaram-se na única mesa disponível. Os ocupantes das outras três eramparecidos com os manifestantes que tinham visto nas ruas de Paris naquela manhã. Eramcidadãos de outra França, aquela França da qual não se falava nos guias de viagens: osexplorados, os vagabundos, os que não tinham fulgurantes títulos académicos outorgados porcentros de ensino de elite. A globalização e a automatização tinham diminuído o seu valor comoforça de trabalho. A sua única alternativa era o setor dos serviços. Os seus homólogos da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos já tinham falado nas urnas. Em breve, seria a vez da França,calculou Gabriel.

Recebeu uma mensagem no BlackBerry. Leu-a e voltou a guardar o dispositivo no bolso. Otelefone de Khalid estava sobre a mesa, às escuras e em silêncio.

— E então? — perguntou o saudita.— Eram os meus homens.— Onde é que estão?Com um movimento dos olhos, Gabriel indicou que estavam estacionados perto dali.— E os sequestradores?— Não estão aqui.— Sabem que chegámos?— Claro.— Como é que sabe?— Olhe para o seu telefone.Khalid baixou o olhar. Tinha uma chamada. Sem nome, nem número.Gabriel carregou em ATENDER e colocou o telefone ao ouvido. Ouviu uma voz de mulher,

vagamente erótica. Não era, no entanto, uma gravação.Era a voz de uma pessoa.

34

CARCASSONNE, FRANÇA

— Não conseguiste resistir, eh?— Suponho que não. Afinal de contas, quantas oportunidades tem uma pessoa de falar com

um homem como tu?— E que tipo de homem é esse?— Um criminoso de guerra. Um assassino que luta pela dignidade e pela autodeterminação.O seu inglês era impecável. A sua pronúncia era alemã, mas havia também algo mais, uma

entoação diferente. Mais para Leste, pensou Gabriel.— Tu lutas pela liberdade? — perguntou.— Eu sou uma profissional, Allon. Tal como tu.— Ai, sim? E em que é que trabalhas quando não estás a sequestrar e a torturar meninas?— A menina foi bem tratada — replicou ela.— Vi o buraco onde a tinham em Areatza. Não era digno nem de um cão, e muito menos de

uma menina de doze anos.— Uma menina que passou a sua vida rodeada de luxos inimagináveis. Pelo menos agora tem

uma certa ideia de como vive a imensa maioria das pessoas.— Onde é que está?— Perto.— Então deixem-na em frente do restaurante. Não vos vou tentar seguir.Ela soltou um riso rouco. Gabriel subiu ao máximo o volume do telefone e apertou-o contra a

orelha. A mulher estava num carro em andamento, tinha a certeza.— Pronto para receber instruções? — perguntou.— Mais vale que sejam as últimas.— A norte de Carcassonne há uma terra chamada Saissac. Sigam pela D629 até ao limite do

seguinte département. Passado um quilómetro vão ver uma abertura na cerca à direita da estrada.Sigam o caminho de terra exatamente cem metros e desliguem os faróis. Se se desviaremminimamente do plano — acrescentou a mulher —, matamos a menina.

— Se lhe tocarem num só cabelo, meto-te um balázio na cabeça.— Como este?Naquele instante, a porta de vidro de correr do local fez-se em fanicos e uma bala

sobreaquecida atravessou o ar entre Gabriel e Khalid e foi meter-se na parede.— Têm meia hora — disse a mulher tranquilamente. — Caso contrário, a seguinte é para ela.

Gabriel e Khalid saíram para a avenida movimentada seguindo o resto dos aterrorizadosclientes da pizaria Plein Sud. O Renault estava estacionado em frente da loja do lado. Gabrielsentou-se ao volante, ligou o motor e seguiu a toda a velocidade para a muralha da antigacidadela. Khalid dava-lhe indicações guiando-o pelo telemóvel. Na realidade, Gabriel nãoprecisava da sua ajuda — o caminho para Saissac estava claramente indicado —, mas assimKhalid tinha algo para fazer, para além de lhe gritar que andasse mais depressa.

Tinham pela frente quase quarenta quilómetros até Saissac. Gabriel demorou cerca de vinteminutos a fazer o trajeto. Atravessaram à pressa a zona antiga da aldeia. Pelo canto do olho,conseguiu distinguir uma muralha que dominava uma planície, uma torre em ruínas e um só café.A zona nova da povoação ficava a noroeste. Havia uma esquadra da gendarmerie e uma rotundaonde Gabriel temeu por um momento que o Renault virasse.

Ao fundo, a povoação desaparecia. Num espaço de uns dois quilómetros havia campos delavoura; depois, paulatinamente, os cultivos davam lugar ao monte. A estrada estreitava-se,atravessava o caudal de um rio por uma ponte de pedra e voltava a estreitar-se. Gabriel olhoupara o relógio do tabliê. Segundo os seus cálculos, chegavam já três ou quatro minutos atrasados.Olhou depois pelo retrovisor e viu a luz de uns faróis a aproximarem-se. Procurou o seuBlackBerry e marcou.

Foi Keller que atendeu.— Afastem-se — ordenou Gabriel.— Nem pensar.— Diz ao Mikhail que pare agora mesmo.Gabriel ouviu que transmitia de má vontade a sua ordem e uns segundos depois o carro

afastou-se para a berma. Depois, desligou e guardou o telefone no bolso. O de Khalid iluminou-se de repente. Sem nome, nem número.

— Ponha no altifalante.Khalid tocou no ecrã.— Estás atrasado — disse a mulher.— Acho que estamos mesmo a chegar.— Sim. E os teus homens também.— Disse-lhes para pararem. Não se aproximam mais.— Mais vale que não.Apareceu um sinal: DÉPARTEMENT DU TARN.— Estou a atravessar a fronteira — disse Gabriel.— Continua.Estavam num túnel de árvores. Quando saíram, Gabriel viu uma vedação frágil que rodeava o

lado direito da estrada. Para além dela, o campo estava às escuras. As densas nuvens tinhamdeixado a noite sem luar.

— Anda mais devagar — ordenou a mulher. — O espaço na cerca fica um pouco mais àfrente.

Gabriel levantou o pé do acelerador e meteu o carro pela abertura da cerca. O caminho de terrabatida estava cheio de buracos e estava húmido por causa das chuvas recentes. Gabriel avançou oque lhe pareceram cem metros e depois abrandou.

— Continua — disse a mulher.Avançou muito devagar, enquanto o carro abanava como um barco sacudido pelas ondas.— Aí está bem.Gabriel parou o carro.— Desliga o motor e as luzes.Ele hesitou.— Agora mesmo — acrescentou a mulher —, ou a próxima bala entrará pelo para-brisas.Gabriel desligou o motor e as luzes. A escuridão era completa, tal como o silêncio do outro

lado do telefone. A mulher tinha silenciado o seu telemóvel, pensou.— Quanto tempo é que acha que nos vai fazer esperar? — perguntou Khalid.— Ela está a ouvir — disse a mulher.— E eu a ti — replicou ele com frieza.— Isso foi uma ameaça?Antes de Khalid poder responder, a luz traseira do Renault rebentou em pedaços. Gabriel tirou

a Beretta que levava à cintura, nas costas, e montou a arma.— Sei que gostas de armas, Allon, mas no teu lugar não tentava nada. Até porque isto está

mesmo a acabar.— Onde é que está a menina?— Liga os faróis — ordenou a mulher, e a comunicação foi cortada.

35

DÉPARTEMENT DU TARN, FRANÇA

Estava de pé no caminho, a cerca de cinquenta metros à frente do carro, sobre uma ligeiraelevação do terreno. Tinham-lhe tapado a boca e atado as mãos com uma fita adesiva cinzenta.Vestia uma saia escocesa, umas meias escuras e uma gabardina de colegial. Pareciam ter-lheapertado mal o casaco, mas, na realidade, não se tratava disso. Não o tinham abotoado.

De imediato, Khalid abriu a porta e, a gritar o nome de Reema, tinha começado a correr pelocaminho enlameado. Gabriel seguiu-o, mantendo-se uns passos atrás, um pouco dobrado pelacintura, com os braços estendidos e a Beretta nas mãos. Virava-se para a direita e para a esquerdaprocurando não sabia o quê. Reema e o terreno que se estendia atrás dela estavam banhados deluz, mas de resto a escuridão era completa. Gabriel só via um pai que corria para a sua filha,cujos olhos estavam cheios de terror.

Algo se passava. Porque é que não ficava aliviada por ouvir a voz do seu pai? E onde é queestava o próximo disparo, o balázio que lhe tinham prometido meter na cabeça? Compreendeuentão porque é que Reema tinha a gabardina torcida. Já não havia um atirador. A menina era aarma.

— Não se aproxime dela! — gritou, mas Khalid continuou a correr pelo caminhoescorregadio.

Gabriel viu então um clarão de luz entre as árvores que rodeavam o campo.Um telemóvel.Estava bem longe, a cem metros, no mínimo. Apontou com a Beretta para a luz e apertou o

gatilho até esvaziar o carregador. Depois atirou a arma e lançou-se para Khalid.O saudita era bem mais jovem, mas não era nenhum atleta e Gabriel contava com a vantagem

de estar possuído por uma espécie de loucura. Com duas passadas, recuperou o espaço que osseparava e puxou Khalid para a terra molhada no instante em que a bomba que Reema levavadebaixo do casaco explodia.

Um clarão de luz abrasadora iluminou o campo em todas as direções ao mesmo tempo que osestilhaços passavam a assobiar sobre a cabeça de Gabriel como uma descarga de artilharia.Quando levantou o olhar, Reema já não estava. O que restava dela estava espalhado por ambosos lados do caminho.

Gabriel segurou Khalid contra o chão, mas o saudita desafiou-o com força e pôs-se de pé acambalear. Estava coberto do sangue de Reema. Estavam os dois. Gabriel virou a cara e tapou osouvidos quando o primeiro grito de dor brotou dos pulmões do saudita.

Um carro subia a toda a velocidade pelo caminho. Gabriel tirou a Beretta, extraiu o carregadorgasto e colocou um novo. Depois virou-se lentamente e viu Khalid, que recolhia, frenético, osmembros da sua filha.

— Chame uma ambulância — dizia. — Por favor, temos de a levar ao hospital.Gabriel caiu de joelhos e vomitou violentamente. Depois levantou a cara para o céu sem lua e

rezou para que um súbito aguaceiro lavasse o sangue da menina da sua cara.— Estão mortos! — gritou com todas as suas forças. — Mortos, mortos, mortos!

TERCEIRA PARTE

ABSOLVIÇÃO

36

SUDOESTE DE FRANÇA-JERUSALÉM

Mikhail Abramov e Christopher Keller tinham ouvido o estrépito dos disparos — dez tiros,todos efetuados pela mesma arma —, seguido segundos depois por uma explosão. A bomba erarelativamente pequena, a julgar pelo estrondo, mas o clarão da detonação foi suficiente parailuminar o céu naquele remoto recanto do Département du Tarn. A cena que encontraram quandochegaram parecia retirada do Inferno de Dante. Ambos os homens eram veteranos de guerra quetinham levado a cabo numerosas execuções extrajudiciais e, no entanto, o que viram revolveu-lhes as tripas. De joelhos na lama, empapado de sangue, Gabriel clamava ao céu. Khalidabraçava algo que parecia um bracinho e pedia aos gritos uma ambulância. Mikhail e Kellernunca falaram disso depois, nem entre si e, muito menos, com os franceses.

Quando conseguiu recuperar um pouco a compostura, Gabriel telefonou a Paul Rousseau paraParis e Rousseau ligou ao seu chefe que, por sua vez, avisou o ministro, que ligou para o palácio.Em poucos minutos, as primeiras unidades da gendarmerie apareceram pela D629 e o campointeiro ficou iluminado pelos focos da polícia. Seguindo ordens diretas do presidente francês, nãose tentou interrogar o pai da vítima, destroçado de dor, nem o desolado chefe dos serviçossecretos israelitas.

As equipas da polícia científica recolheram meticulosamente os restos da vítima; osespecialistas em explosivos, os fragmentos da bomba que acabou com a sua vida. As provaschegaram a Paris naquela mesma noite num helicóptero da polícia. Gabriel, Khalid, Mikhail eKeller, também. Ao amanhecer, Khalid e os restos mortais da sua filha embarcaram noutro avião,desta vez com destino à Arábia Saudita. Para Gabriel e os seus colegas, pelo contrário, osfranceses tinham outros planos.

Gabriel era um aliado — de facto, tinha desmantelado praticamente sozinho a rede terroristado ISIS em território francês — e trataram-no como tal. O interrogatório — pois foi disso mesmoque se tratou — teve lugar nesse mesmo dia, numa sala decorada com candelabros e talhadourada do Ministério do Interior. Estiveram presentes o próprio ministro, os chefes dosdiferentes serviços de polícia e espionagem e diversos taquígrafos, assistentes e servidorespúblicos. Mikhail e Keller não foram interrogados, e os franceses asseguraram que ointerrogatório não estava a ser gravado por meios eletrónicos. Gabriel assumiu que mentiam.

O ministro começou o procedimento exigindo saber como é que o diretor dos serviços secretosisraelitas se tinha envolvido na busca da princesa. Gabriel respondeu sinceramente que aceitara ocargo a pedido do pai da menina.

— Mas a Arábia Saudita é sua adversária, não é verdade?— Confiava que isso pudesse mudar.— Recebeu ajuda de alguma pessoa pertencente aos serviços de segurança ou secretos

franceses?— Não.Sem dizer nada, o ministro pôs-lhe à frente uma fotografia. Um Passat Berlina a entrar na

sede do Grupo Alpha na Rue Nélaton. Tinha sido só uma visita de cortesia, alegou Gabriel.— E a mulher que ia consigo no carro? — perguntou o ministro.— É uma colega.— Segundo a Polícia Federal suíça, esse mesmo carro esteve em Genebra na noite seguinte,

quando o Lucien Villard morreu assassinado por uma bomba oculta numa mala. Deduzo quetambém estava lá.

— Efetivamente.— Os serviços secretos israelitas mataram o Lucien Villard?— Não seja absurdo.O ministro pôs-lhe outra fotografia à frente do nariz. Um homem sentado num café de

Annecy.— Matou-o?Gabriel assentiu com um gesto.— Consegue identificá-lo?— Não.Outra fotografia.— E a ela?— Acho que falei com ela ontem à noite.— Ocupou-se da negociação?— Não houve negociação.— Também não houve troca de dinheiro?— Exigiram a abdicação.— E os dez disparos que efetuou?— Vi a luz de um telemóvel. Deduzi que aquele tipo estava a usá-lo para detonar a bomba.— Aquele tipo?Gabriel inclinou a cabeça para o homem da fotografia.— Se tivesse acertado…— Podia ter salvado a menina.Gabriel não disse nada.— Foi um erro não nos informar. Podíamos tê-la resgatado.— Disseram que a iam matar.— Sim — afirmou o ministro. — E agora está morta.E assim prosseguiram até ao fim da tarde, até que as luzes de Paris brilharam para além das

janelas do ministério. Era um contrassenso e ambas as partes sabiam disso. Os franceses tinhama firme intenção de enterrar aquele complicado episódio. Quando por fim as perguntas acabarame os taquígrafos deixaram de tomar notas, entraram os apertos de mãos. Da modalidade maissolene: breves e reconfortantes. Um carro do ministério levou Gabriel, Mikhail e Keller aoAeroporto Charles de Gaulle. Keller entrou num avião rumo a Londres; Gabriel e Mikhailvoaram para Telavive. Durante o voo de quatro horas, não falaram do que tinha acontecido

naquele campo do Département du Tarn. Nem depois.

No dia seguinte, apareceu uma notícia num jornal francês do meio-dia. Informava doaparecimento de uns restos humanos — pertencentes quase com toda a segurança a umaadolescente — numa remota zona rural. A notícia chegou ao Le Figaro e um telejornal fez ecodela, mas o trabalho dos franceses para a encobrir foi tão exaustivo — e a imprensa nacionalestava tão distraída com os Coletes Amarelos — que o assunto caiu de imediato noesquecimento. Às vezes, até Gabriel se perguntava se não teria sonhado. No entanto, bastava-lheouvir a gravação das suas conversas com aquela mulher para se lembrar de que uma meninatinha explodido em pedaços mesmo à frente dos seus olhos.

Se sofria com isso, não o demonstrava, pelo menos entre os muros da Avenida Rei Saul. Arenúncia de Khalid tinha mergulhado a Arábia Saudita — e, portanto, a região inteira — numtumulto político. Como se isso não bastasse, o presidente dos Estados Unidos anunciou a suaintenção de retirar todas as tropas americanas da Síria, o que equivalia a ceder o controlo do paísaos iranianos e ao seu aliado, a Rússia. A poucas horas de tornar isso público através do Twitter,um míssil do Hezbollah disparado de solo sírio penetrou no espaço aéreo israelita e foiintercetado sobre Hadera. Gabriel proporcionou ao primeiro-ministro a localização do bunkersecreto de um posto de comando iraniano a sul de Damasco. Vários oficiais da GuardaRevolucionária iraniana morreram na represália, o que colocou de novo Israel e a RepúblicaIslâmica à beira da guerra.

Foi, no entanto, a situação na Arábia Saudita que chamou a atenção de Gabriel durante aquelesdias intermináveis depois do seu regresso de França. A sua pontaria ao augurar que Khalid sepreparava para renunciar ao trono converteu-o durante uns dias no homem da moda em Langley,que tentava descobrir por todos os meios o que aconteceria dentro da corte real do seu principalaliado no mundo árabe. Khalid estava em Riade? Estava vivo? Gabriel conseguiu dar muitopouca informação de utilidade aos americanos, pois as suas tentativas de encontrar Khalid foraminúteis e o telefone do saudita já não emitia sinal. Também não conseguiu dar — nem aosamericanos, nem ao primeiro-ministro israelita — informação fidedigna quanto a quem seria osucessor mais provável de Khalid. Daí que, quando o acordaram às três da manhã com a notíciade que o eleito era o príncipe Abdullah, o meio-irmão do rei estabelecido em Londres, ficassemuito surpreendido.

O Departamento conhecia só por alto a trajetória pouco distinta de Abdullah, e durante os diasseguintes à sua nomeação a divisão de Investigação e Compilação de Dados logo preencheu asmuitas lacunas do processo. Abdullah era inimigo declarado de Israel e do Ocidente e alimentavaum ressentimento teimoso contra os Estados Unidos, a quem culpava da violência e do caospolítico do Médio Oriente. Tinha duas esposas em Riade às quais raramente via e um harémcompleto de prostitutas e prostitutos que, a preço de ouro, atendiam as suas necessidades sexuaisna sua mansão de Belgravia. Devoto do wahabismo, era um alcoólico empedernido que tinhafeito tratamento três vezes numa prestigiada clínica nos arredores de Zurique. Nos negócios eraagressivo, mas imprudente e, apesar do generoso salário mensal que recebia, tinha constantesproblemas de dinheiro.

A imprensa especulou que Abdullah era, na realidade, um suplente que ocuparia o lugar atéque se pudesse escolher um candidato mais adequado entre os príncipes da geração seguinte. Ele,no entanto, consolidou rapidamente a sua posição ao purgar a corte real e os serviços de

segurança sauditas de qualquer vestígio de influência do seu sobrinho. Apagou do mapa oambicioso plano de Khalid para transformar a economia saudita, e deixou claro que não voltariaa falar de reforma religiosa. Proclamou que o wahabismo era a religião oficial do reino e queseria praticada na sua forma mais pura e restrita. Despojou-se sumariamente as mulheres dodireito de conduzir e de assistirem a eventos desportivos, e mandou-se de novo a Mutawa, atemida polícia religiosa saudita, impor o cumprimento da lei islâmica recorrendo às detenções e àviolência, se fosse necessário. Quem protestou foi preso ou açoitado publicamente. A efémeraPrimavera de Riade tinha terminado.

Tudo isso suscitou outra grande reavaliação da situação internacional, sobretudo no Ocidente.Será que os americanos e os seus aliados europeus tinham sido demasiado duros com KBM porcausa dos seus excessos? Tinham encurralado tolamente a Casa de Saud, sem deixar outraalternativa a não ser voltar ao seu método tradicional de sobrevivência? Tinham deixado escaparuma oportunidade de ouro de mudar drasticamente a situação no Médio Oriente? Nas salas e nossalões blindados de Washington e de Londres ouviam-se reprovações de uns e de outros porterem perdido a Arábia Saudita. Em Telavive, no entanto, Gabriel abordava a questão de maneiracompletamente diferente. Tinha chegado à conclusão de que eles não tinham perdido a ArábiaSaudita: alguém a tinha arrebatado. Mas quem?

Embora Gabriel conseguisse dissimular perante as suas tropas, para Chiara a sua aflição eratão transparente como se fosse de vidro. Em todo o caso, não era difícil de ver: todas as noites,no tumulto, empapado em suor, que eram os seus sonhos, o seu marido revivia o ocorrido. Osseus gritos acordaram-na várias vezes. Dizia sempre o mesmo.

— Estão mortos! — gritava. — Mortos, mortos, mortos!Gabriel tinha-lhe contado uma versão muito abreviada da história quando regressou de França.

Os sequestradores tinham-no conduzido a ele e a Khalid a uma zona rural afastada e a meninatinha morrido. Chiara resistira à tentação de o pressionar para que lhe desse mais detalhes. Sabiaque, a seu devido tempo, lhe contaria tudo.

Aquilo atormentava-o. O que precisava, disse Chiara a si própria, era de um quadro, unsquantos metros quadrados de tela danificada que o ajudassem a restabelecer-se. Mas o seumarido não tinha um quadro, só um país para proteger, e a possibilidade de que se declarasseuma guerra no norte perturbava-o. O Hezbollah e os iranianos tinham acumulado mais decinquenta mil mísseis e projéteis na Síria e no Líbano. Os maiores podiam chegar a Telavive emais além. Em caso de conflito armado, toda a Galileia e grande parte da Planície Costeiraestariam ao seu alcance. Podiam morrer milhares de pessoas.

— Por isso é que é tão importante a presença americana na Síria. É como uma barreira decontenção. Assim que se forem embora, só haverá um obstáculo que impeça uma agressão doHezbollah e dos iranianos.

— Os russos — disse Chiara.Passava da meia-noite. Gabriel estava sentado na cama com uma pilha de dossiês do

Departamento sobre o colo e um candeeiro de leitura ligado sobre o seu ombro. Tinham tirado ovolume da televisão para não acordar os meninos. Naquela tarde, o Hezbollah tinha lançadoquatro foguetes contra o território israelita. Três tinham sido destruídos pelo sistema de defesaantiaérea Cúpula de Ferro, mas um tinha caído nas redondezas de Ramat David, a localidade doVale de Jezreel onde Gabriel tinha vivido em criança. A Força Aérea israelita estava a preparar

um ataque em massa em represália pela agressão, apoiada na informação proporcionada peloDepartamento.

— Um avanço daquilo que nos espera — comentou Gabriel baixinho.— Como é que vamos parar isto?— Sem declarar a guerra, queres dizer? — Ele fechou o dossiê que estava a ler. — Com uma

estratégia para tirar os russos, os iranianos e o Hezbollah da Síria.— E como é que isso se faz?— Criando um governo central como deve ser em Damasco, encabeçado pela maioria sunita,

que substitua o brutal regime ditatorial dirigido pela exígua minoria alauita que há agora.— E eu que achava que ia ser difícil. — Chiara meteu-se na cama, ao seu lado. — Os árabes

demonstraram, sem margem para dúvidas, que não estão prontos para governar.— Não estou a falar de uma democracia de perfil jeffersoniano, mas de um déspota ilustrado.— Como o Khalid? — perguntou Chiara num tom cético.— Depende de que Khalid estejamos a falar.— Quantos há?— Dois. Ao primeiro foi entregue o poder absoluto sem que estivesse pronto para o assumir.— E o segundo?— O segundo viu morrer a sua filha de um modo atroz.Fez-se silêncio. Depois Chiara perguntou:— O que aconteceu naquele campo em França?— Salvei a vida ao Khalid — respondeu Gabriel. — E não tenho a certeza se me vai perdoar.Chiara olhou para a televisão. O novo governante da Arábia Saudita reunira-se com vários

membros da hierarquia religiosa, entre eles um imã que, de vez em quando, declarava que osjudeus descendiam dos macacos e dos porcos.

— O que é que vais fazer? — perguntou.— Vou averiguar quem nos roubou a Arábia Saudita.— E depois?Gabriel apagou a luz.— Vou recuperá-la.

37

TELAVIVE

No final de fevereiro, enquanto uma série de tempestades invernais açoitava Israel, começouuma grande busca que posteriormente seria conhecida no Departamento como «Onde raios está oKhalid?». Que ainda estivesse sequer entre os vivos foi motivo de considerável controvérsiainterna. Eli Lavon estava convencido de que o saudita estava enterrado debaixo das areias doNejd, provavelmente em vários troços. Para apoiar a sua hipótese, alegou que o seu telemóveltinha deixado de funcionar. Ainda mais alarmante era um relatório, nunca corroborado, de queKhalid tinha sido detido pouco depois de o Conselho de Lealdade nomear Abdullah comopríncipe herdeiro. Khalid, supunha Lavon, não deveria ter saído de França com vida. E, aoregressar à Arábia Saudita com os restos mortais da sua filha, tinha dado aos conspiradores aoportunidade perfeita para se assegurarem de que não voltava a representar um perigo para eles.

Gabriel não descartou de imediato a teoria de Lavon, pois nas horas posteriores ao assassinatode Reema tinha advertido Khalid de que era uma loucura regressar a Riade. Tentou contactardiscretamente o seu antigo inimigo da polícia secreta saudita para ver se tinha notícias doparadeiro de Khalid, mas não obteve resposta. Seguramente, caíra na purga posterior à abdicaçãode Khalid e tinha sido desterrado, afirmou Eli Lavon. Ou talvez, acrescentou num tom sombrio,fora ele quem espetara o punhal nas costas de Khalid.

Gabriel e o Departamento não eram os únicos que andavam à procura de Khalid. Também osamericanos e grande parte da imprensa mundial tentava dar com o seu paradeiro. O ex-príncipeherdeiro foi visto na costa mexicana do Pacífico, na encantadora ilha caribenha de SaintBarthélemy e numa aldeia do Dubai, na margem do Golfo. Nenhuma dessas notícias demonstrouser verdadeira, nem sequer de longe. E o mesmo se podia dizer da informação publicada pelo LeMonde segundo a qual Khalid vivia um exílio dourado no seu luxuoso château na Alta Saboia.Paul Rousseau confirmou que os franceses também não tinham conseguido dar com ele.

— Gostávamos de fazer umas perguntas sobre o Rafiq al-Madani. Ele também desapareceu.— Seguramente, terá voltado para Riade.— Se voltou, não carimbou o passaporte ao sair de França. Tu não o terás visto, pois não?Gabriel respondeu, sem mentir totalmente, que desconhecia o paradeiro exato de Al-Madani.

O de Khalid também era um mistério. E, quando passou outra semana sem que tivesse notíciassuas, começou a temer o pior. Por fim, foi Sarah Bancroft quem o encontrou. Ou, melhor dito,foi Khalid quem a procurou. Estava vivo, efetivamente, e escondido a bordo do Tranquillity, comuma tripulação reduzida ao mínimo e duas escoltas de confiança. Queria saber se Gabriel lhe

podia dedicar uns minutos.— Está ancorado no mar Vermelho, em frente de Sharm el-Sheikh — disse Sarah. — Vai

mandar o helicóptero buscar-te.— É muito generoso da parte dele, mas tenho uma ideia melhor.— Qual?Gabriel explicou-lhe.— Não estás a falar a sério.— Prometeu dar-me tudo o que quisesse. E é isso que quero.

38

EILAT, ISRAEL

Como diretor-geral do Departamento, Gabriel tinha a capacidade de empreender operações denatureza sensível sem autorização prévia do primeiro-ministro. Carecia, pelo contrário, dapotestade de convidar o ex-dirigente de um país árabe hostil a visitar o Estado de Israel, nemsequer extraoficialmente. Uma coisa era introduzi-lo às escondidas na embaixada de Londres nocalor da situação e outra muito diferente era dar-lhe acesso à faixa de território mais disputada domundo. O primeiro-ministro, depois de uma hora de tenso debate, aprovou a visita na condiçãode que se mantivesse em segredo. Gabriel, que praticamente tinha dado por morto o príncipesaudita, aceitou sem hesitar. A última coisa que os devia preocupar, disse, era que aparecesseuma selfie nas redes sociais. As contas de Khalid no Twitter e no Instagram estavam inativas e aCasa de Saud tinha apagado da lembrança a existência do seu antigo herdeiro. Khalid tinhadeixado de existir.

O seu helicóptero Airbus H175 VIP aterrou entre uma grande nuvem de pó nas margens doGolfo de Aqaba, às oito em ponto da manhã do dia seguinte. Um tripulante abriu a porta dacabine e Khalid, vestido com umas calças caqui e blazer italiano, pisou hesitante chão israelitapela primeira vez. Só Gabriel e a sua pequena escolta estavam ali para presenciar o momento. Asorrir, Gabriel estendeu-lhe a mão, mas Khalid deu-lhe um forte abraço. Para bem ou para mal, eembora fosse por um motivo horrível, agora eram unha e carne.

Khalid contemplou a áspera paisagem de cor pardacenta.— Acreditava que viria algum dia noutras circunstâncias.— Talvez isso também se consiga arranjar — afirmou Gabriel.Dirigiram-se para o norte no jipe blindado de Gabriel, entrando no deserto do Neguev. Khalid

pareceu surpreendido ao ver que a estrada não estava cortada ao trânsito.— É melhor esconder-se à luz do dia — explicou Gabriel.— E se alguém me reconhecer?— Israel é o último lugar do mundo onde alguém esperaria vê-lo.— Porque é o último lugar do mundo onde devia estar. Claro que não tenho outro lugar para

onde ir, suponho.Saltava à vista que o saudita não encarava com resignação o seu novo estatuto e o

agravamento do seu nível de vida. Enquanto andavam pelo deserto debaixo de um céu aberto,falou a Gabriel do que tinha acontecido no seu regresso à Arábia Saudita depois da morte deReema. Tinha enterrado a sua filha conforme à tradição wahabi, num caixão sem assinalar no

deserto. Logo de seguida, tentou recuperar o seu lugar na linha sucessória. Como se temia, foiimpossível. O Conselho de Lealdade já se tinha decidido por Abdullah, o seu mentor e confessor,como herdeiro da coroa. Khalid prestou juramento de lealdade ao seu tio, como era de rigor, masAbdullah, temeroso da sua influência, despojou-o de todos os seus cargos. Ao protestar, foidetido e conduzido a um quarto do Hotel Ritz-Carlton, onde se viu obrigado a renunciar a quasetoda a sua fortuna pessoal. Temendo pela sua vida, reuniu o capital líquido que lhe restava erefugiou-se a bordo do Tranquillity. Asma, a sua esposa, tinha-se negado a acompanhá-lo noexílio.

— Culpa-o da morte da Reema?Khalid assentiu lentamente.— Que paradoxo, não é? Defendi os direitos das mulheres no meu país e, como pagamento, a

minha esposa repudia-me.— E o seu tio também.— Tem graça o facto de me aconselhar a não abdicar — afirmou Khalid. — Pelos vistos, o

Abdullah estava a conspirar contra mim desde o princípio. O Conselho de Lealdade nãoconsiderou mais candidatos, pelo menos seriamente. Já tinham o bolo no forno, como se costumadizer. Assim que saí do meio, o trono foi para o Abdullah. Nem sequer o meu pai pôde impedi-lo.

— Como é que ele está?— O meu pai? Tem momentos de lucidez, mas passa a maior parte do tempo mergulhado no

nevoeiro da demência. O Abdullah tem o controlo absoluto da maquinaria do reino, e já vimos osresultados. Pode ter a certeza de que não acabou ainda. Os senadores e os congressistas deWashington que pediam a minha cabeça lamentarão o dia que me criticaram.

Eram quase dez horas quando a superfície cor de mercúrio do mar Morto apareceu nohorizonte. Ao chegar a Ein Gedi, Gabriel perguntou-lhe se queria tomar um banho, mas Khaliddeclinou a oferta com um gesto. Tinha-se banhado uma vez na ribeira jordana do mar Morto enão tinha gostado da experiência.

Atravessaram um controlo de segurança sem parar e entraram na Cisjordânia. O desvio paraJerusalém ficava em Jericó, mas seguiram para norte. O semblante de Khalid ficou mais sombrioquando atravessaram uma série de acampamentos israelitas situados nas margens do rio Jordão.

— Como é que esperam que construam um Estado se ficaram com todas as terras?— Não ficámos com todas — respondeu Gabriel. — Mas posso assegurar-lhe que jamais

sairemos do Vale do Jordão.— Não pode haver dois Estados se há judeus de ambos os lados da fronteira.— Temo que esse comboio já tenha passado.— Que comboio?— O da solução dos dois Estados. Está morto e enterrado. Temos de ser mais criativos.— Que alternativa há?— A primeira é que haja paz. Depois, tudo é possível — afirmou Gabriel.Atravessaram outro posto de controlo ao entrar em território propriamente israelita e

avançaram a grande velocidade pela fértil planície do extremo sul do mar da Galileia. Viraramdepois para leste e subiram pelos Montes Golã. Na localidade drusa de Majdal Shams, a olharpor entre uma rede de arame farpado, viram o sul da Síria. O exército sírio e os seus aliadosrussos e iranianos tinham varrido as últimas tropas rebeldes. O regime de Damasco controlavaoutra vez o território limítrofe com Israel.

Pararam para comer em Rosh Pina, um dos acampamentos sionistas mais antigos de Israel, eseguiram depois pela Galileia Superior. Gabriel foi assinalando os vestígios de povos árabesabandonados. Inclusive passeou com Khalid entre as ruínas de Al-Sumayriyya, uma aldeia árabeda Galileia Ocidental cujos habitantes fugiram para o Líbano em 1948. Viram o flamejante perfilda nova Telavive da autoestrada 6 e aproximaram-se de Jerusalém — a fraturada cidade de Deuserguida sobre uma colina — por oeste. Depois de atravessarem a fronteira invisível de JerusalémEste, seguiram as muralhas otomanas da Cidade Velha até à Porta do Leão. A essa hora, a praçado outro lado estava deserta de transeuntes. Só se viam agentes da polícia e soldados israelitas.

— Onde é que estamos? — perguntou Khalid num tom crispado.Gabriel abriu a porta e saiu.— Venha comigo — disse. — Vou mostrar-lhe.

* * *

A pequena praça a que dava acesso à Porta do Leão não era o único setor do BairroMuçulmano onde Gabriel tinha mandado cortar o trânsito naquela tarde. Também estava cortadoo largo pátio sagrado situado mais a sul ao qual os hebreus chamavam Monte do Templo e osmuçulmanos Haram al-Sharif ou Nobre Santuário. Gabriel e Khalid entraram no recinto pela Babal-Huttah, a Porta da Absolvição. A dourada Cúpula ou Domo da Rocha cintilava suavemente àluz fria da primeira hora da tarde. A Mesquita de al-Aqsa recortava-se, poderosa, contra o céu.

— Fez isto por mim?Gabriel assentiu com um gesto.— Como?— Tenho uma certa influência — afirmou Gabriel.Vários representantes do Waqf tinham-se congregado no lado este do pátio.— Quem é que acham que sou? — perguntou Khalid.— Uma personagem importante de um dos emirados.— Não do Qatar, espero.Entraram na Cúpula da Rocha e contemplaram solenemente a Pedra da Fundação, o cume do

Monte Moriá, o lugar de onde Maomé ascendeu aos céus segundo a tradição muçulmana e onde,segundo os judeus, Abraão teria sacrificado o seu filho ao não ter intervindo a tempo um arcanjochamado Gabriel. Depois, Khalid rezou na Mesquita de al-Aqsa enquanto o homónimo doarcanjo, sozinho no pátio, via a lua erguer-se sobre o Monte das Oliveiras.

Tinha anoitecido quando Khalid saiu da mesquita.— Onde é que está a câmara onde encontrou os pilares do suposto Templo de Salomão?Gabriel apontou para baixo, para as profundezas da esplanada.— E o Muro das Lamentações?Gabriel inclinou a cabeça para oeste.— Pode levar-me à câmara? — perguntou Khalid.— Talvez noutra altura.— E ao muro?Estavam a escassos metros da parte alta do Muro Oeste, mas fizeram o trajeto no jipe de

Gabriel. Os gigantescos pilares herodianos resplandeciam à luz da tarde, tal como a larga praçaque se estendia ao pé do muro. Gabriel não tinha feito qualquer tentativa de a fechar para a visitade Khalid e o recinto estava atestado de fiéis e turistas.

— Os homens e as mulheres rezam em separado — comentou o saudita com ironia.

— Para consternação dos judeus mais liberais.— Talvez nós possamos mudar isso.— Shwaya, shwaya — disse Gabriel.Khalid tirou uma folha de papel que levava no bolso da frente do seu casaco.— É uma oração para a Reema. Gostava de deixá-la no muro.Gabriel pôs-lhe um kippah sobre o cabelo moreno e viu-o aproximar-se do muro. Khalid

meteu a mensagem entre dois blocos e inclinou a cabeça para rezar em silêncio. Quandoregressou, tinha os olhos humedecidos pelas lágrimas. O jipe de Gabriel estava estacionado juntoà Dung Gate. Atravessaram para o lado oeste da cidade e chegaram ao bairro velho conhecidocomo Nachlaot. No desvio de Narkiss Street havia um controlo de segurança. Atravessaram-nosem parar e estacionaram em frente do número 16, um edifício de apartamentos com fachada decalcário.

— Onde é que estamos? — perguntou Khalid.— Em casa.

39

JERUSALÉM

Chiara tinha aberto uma garrafa de Domaine du Castel, um vinho de estilo bordéus dasMontanhas da Judeia. Khalid aceitou um copo de boa vontade. Agora que tinha sido deposto,disse, já não tinha motivos para fingir que respeitava à letra os preceitos wahabistas. Pareceusurpreendê-lo que um homem tão poderoso como Gabriel Allon vivesse numa casa tão modesta.Claro que quase qualquer casa teria parecido modesta a um príncipe que tinha sido criado numpalácio do tamanho de um quarteirão inteiro de edifícios.

Observou com interesse os quadros pendurados na sala de estar.— São seus?— Alguns — respondeu Gabriel.— E os restantes?— Da minha mãe e do meu avô. E um ou dois da minha primeira esposa.Chiara tinha preparado comida suficiente para alimentar Khalid e a comitiva que costumava

acompanhá-lo para onde quer que fosse. Estava colocada no aparador da sala. Khalid sentou-se àcabeceira da mesa, com Gabriel e Chiara de um lado e Raphael e Irene do outro. Gabrielapresentou-o às crianças como o «senhor Abdulaziz», mas ele fez questão de que o tratassempelo seu nome próprio. Saltava à vista que as crianças estavam intrigadas com a sua presença emcasa. Gabriel quase nunca recebia estranhos em Narkiss Street, e os seus filhos, apesar deviverem bem perto de Jerusalém Este, poucas vezes viam árabes, e muito menos comiam comeles.

Ainda assim, demoraram só uns minutos a cair sob o feitiço de Khalid. Com o seu cabelopreto, as suas feições marcadas e os seus afáveis olhos castanhos, parecia um príncipe árabe aoestilo de Hollywood. Era fácil imaginá-lo vestido com a túnica e o turbante dos beduínos, a irpara a batalha junto a T. E. Lawrence. Inclusive sem a riqueza e os caríssimos acessórios quecostumava ter, possuía um encanto e um carisma irresistíveis.

Evitaram os assuntos problemáticos e falaram só de quadros, de livros, da viagem de Khalidpor parte de Israel e da Cisjordânia, de qualquer coisa menos da morte de Reema e da queda emdesgraça do seu pai. Khalid estava a contar às crianças histórias de falcoaria quando começarama soar sirenes em Nachlaot. Gabriel ligou para a Avenida Rei Saul e soube que estava a caminhooutro míssil procedente da Síria, desta vez rumo a Jerusalém.

— E se cair no Haram al-Sharif? — perguntou Khalid.— A sua viagem a Israel será bem mais interessante.

Durante uns minutos aguardaram em silêncio à espera de ouvirem o golpe surdo do impacto,até que as sirenes, finalmente, emudeceram. Gabriel ligou outra vez para a Avenida Rei Saul esoube que o míssil tinha sido intercetado. Os seus restos tinham caído num campo nasredondezas do assentamento de Ofra, na Cisjordânia, sem causar danos.

Às nove, as crianças começaram a retorcer-se de sono, esgotadas. Chiara levou-as para a camaenquanto Gabriel e Khalid acabavam de beber o vinho no terraço. O saudita ocupou a cadeira naqual se costumava sentar Shamron. O cheiro dos eucaliptos era embriagante.

— Isto também é esconder-me à luz do dia?— Receio que a minha morada seja o segredo mais mal guardado de Israel.— E a sua primeira esposa? Onde é que está?Gabriel olhou para oeste. O hospital, explicou, ficava na antiga aldeia árabe de Deir Yassin,

onde milicianos judeus dos grupos paramilitares Irgun e Lehi mataram mais de uma centena depalestinianos na noite de 9 de abril de 1948.

— É surpreendente que tenha de viver num lugar assim.— Assim é a vida na terra duas vezes prometida — afirmou Gabriel.Khalid sorriu com tristeza.— Viu como aconteceu?— O quê?— A bomba que matou o seu filho e feriu a sua mulher.Gabriel assentiu devagar com a cabeça.— O Gabriel poupou-me essa lembrança. Suponho que devia estar grato. — Khalid bebeu um

gole de vinho. — Lembra-se do que disse aos sequestradores quando estava em negociação paraa libertação da Reema?

— Tenho as gravações.— E do que gritava depois de a bomba rebentar?Gabriel não disse nada.— Tenho de reconhecer — acrescentou Khalid— que não penso noutra coisa desde essa noite.— Sabe o que dizem da vingança?— O quê?— Que se vivemos para a procurar, estamos a cavar uma cova para dois.— É um ditado árabe muito antigo.— É judeu, na realidade.— Não diga disparates — replicou Khalid com um vislumbre da sua antiga arrogância. — Fez

alguma tentativa para encontrá-los?— Temos feito averiguações — respondeu Gabriel vagamente.— Alguma deu algum fruto?Gabriel negou com a cabeça.— Nem as minhas.— Talvez devêssemos unir forças.— Estou de acordo — respondeu Khalid. — Por onde é que devemos começar?— Pelo Omar Nawwaf.— O que é que se passa com ele?— Porque é que mandou matá-lo?Khalid hesitou. Depois disse:— Aconselharam-me a fazê-lo.

— Quem?— O meu querido tio Abdullah. O futuro rei da Arábia Saudita.

40

JERUSALÉM

— Embora, para dizer a verdade — disse Khalid a brincar, mas só um pouco —, em últimainstância a culpa tenha sido dos americanos. Depois dos atentados de 11 de Setembro, exigiram àfamília real que desmantelasse a Al-Qaeda e cortasse o fluxo de dinheiro e ideologia wahabi quetinha propiciado o seu aparecimento. Os vínculos do reino com os piores atentados sofridos emterritório americano eram inegáveis. Quinze dos dezanove sequestradores eram cidadãossauditas, e o Osama bin Laden, o fundador e ideólogo da Al-Qaeda, pertencia a uma destacadafamília saudita que se tinha tornado fabulosamente rica graças aos seus estreitos laços financeiroscom a Casa de Saud. Há muitas razões que explicam o 11 de Setembro — prosseguiu Khalid —,mas os sauditas devem aceitar a nossa responsabilidade no sucedido. Os atentados deixaram umamancha indelével no meu país e na minha família. Algo assim não deve voltar a ocorrer.

Para combater de maneira eficaz a Al-Qaeda, o reino precisava urgentemente de tecnologia decibervigilância. Tinham de vigiar as comunicações através da Internet de supostos terroristas edos seus seguidores, sobretudo depois de o movimento jihadista global se transformar, graças aoauge das redes sociais. Com esse fim, o Estado saudita fundou um organismo ao qual deu oambíguo nome de Real Centro de Dados e que encheu com sofisticadas ciberferramentascompradas aos emirados — bem mais avançados em questões tecnológicas — e a uma empresaprivada italiana. Até comprou software de vigilância telefónica a uma empresa israelita chamadaONS Systems. Gabriel estava a par da transação. Opusera-se a ela terminantemente, tal como ochefe da Unidade 8200, mas o primeiro-ministro acabou por impor o seu critério.

O Real Centro de Dados permitiu ao regime vigiar não só possíveis terroristas, mas também osseus opositores políticos. Daí que Khalid se tivesse apressado a tomar o controlo sobre ele aotornar-se no príncipe herdeiro. Utilizou-o para vigiar os telemóveis dos seus inimigos e seguir orasto da sua atividade no ciberespaço. O centro permitiu-lhe, para além disso, supervisionar emanipular as redes sociais. Não o envergonhava reconhecer que, tal como o presidente dosEstados Unidos, estava obcecado com o seu prestígio no universo paralelo do Twitter e doFacebook. E por uma simples questão de vaidade. Temia ser destituído por um levantamentoinspirado num hashtag da Internet como o que tinha acabado com o governo de Mubarak noEgito. O Qatar, o seu rival ancestral no Golfo, conspirava contra ele na rede. E o mesmo podiadizer-se de um certo número de comentaristas e jornalistas que contavam com grande número deciberseguidores entre a juventude árabe inquieta que ansiava uma mudança política. Um dessescomentaristas era um saudita chamado Omar Nawwaf.

Nawwaf era editor chefe do Arab News, o principal jornal saudita em língua inglesa.Correspondente veterano no Médio Oriente, tinha conseguido manter boas relações tanto com aCasa de Saud, à qual devia a sua sobrevivência como jornalista, como com a Al-Qaeda e aIrmandade Muçulmana. Como resultado disso, a corte real servia-se dele com frequência comoemissário para lidar com outras forças políticas do Islão. De tendências seculares, Nawwafdefendia há muito tempo que reduzissem as restrições de cunho wahabi que sofriam as mulheresna sociedade saudita, e, inicialmente, acolheu com entusiasmo a ascensão ao poder de um jovemcomo KBM, partidário do reformismo. O seu apoio, no entanto, dissolveu-se quando Khalidcomeçou a reprimir, sem hesitar, a oposição política e a enriquecer a custo dos cofres do Estado.

O príncipe e os seus cortesãos não demoraram a dar-se conta de que «Omar Nawwaf era umproblema». No início tentavam acalmar as coisas servindo-se do encanto e da persuasão. Mas,quando as críticas de Nawwaf se acentuaram, foi advertido de que abandonasse a sua atitude ousofreria as consequências. Perante a necessidade de ter de escolher entre o silêncio ou o exílio,escolheu o exílio. Refugiou-se em Berlim e encontrou trabalho na Der Spiegel, a revista deatualidade informativa mais importante da Alemanha. Livre por fim da maquinaria de repressãosaudita, deu rédea solta a uma enxurrada de comentários mordazes dirigidos contra o príncipeherdeiro, a quem descrevia como um vigarista e um farsante que não tinha intenção alguma delevar a cabo verdadeiras reformas políticas no estagnado reino saudita. Khalid declarou-lheguerra a partir do Real Centro de Dados, mas não serviu de nada. Só no Twitter, Nawwaf tinhadez milhões de seguidores, muitos mais do que o próprio Khalid. Aquele jornalista intrometidoestava a ganhar a batalha ideológica nas redes sociais do exílio.

— E então — disse Khalid —, aconteceu algo muito estranho. O Omar Nawwaf, o meu maioropositor, pediu-me uma entrevista.

— E negou-se a conceder-lha?— Nem sequer levei isso em consideração.— O que é que aconteceu então?Nawwaf tentou-o uma segunda vez. E uma terceira. E, ao não obter resposta, serviu-se dos

seus contactos dentro da Casa de Saud para fazer chegar uma mensagem a Khalid.— Pelos vistos, o facto de me pedir uma entrevista foi um estratagema desde o princípio. O

Omar afirmava que tinha descoberto informação relativa a um complô contra mim. Fazia questãode me falar disso. Evidentemente, tendo em conta tudo o que tinha escrito e dito sobre mim, euvi-o com ceticismo. Tal como a minha equipa de segurança, que estava convencida de que oNawwaf só me queria matar.

— Com o quê? Com uma caneta e um caderno?— Quando o Bin Laden matou o Ahmad Shah Massoud, da Aliança do Norte, dois dias antes

do 11 de Setembro, os assassinos fizeram-se passar por jornalistas de televisão.— Continue — disse Gabriel.— Sei que me considera impulsivo e imprudente, mas pensei muito no assunto. Por fim, optei

por receber o Nawwaf. Enviei-lhe uma mensagem através da embaixada saudita em Berlimconvidando-o a regressar ao reino, mas negou-se. Disse que a entrevista devia ter lugar emterritório neutro, em algum lugar onde se sentisse a salvo. Os meus homens estavam maisconvencidos do que nunca de que tinha intenção de me matar.

— E o Khalid?— Eu não estava assim tão certo. Francamente, se estivesse no seu lugar, eu também não teria

voltado ao meu país.

— Mas queria ouvir o que tinha a dizer?— As suas fontes eram impecáveis — respondeu Khalid. — O Omar tinha contactos em toda

a região.— Então, o que é que fez?— Pedi conselhos a alguém em quem achava que podia confiar.— O seu tio Abdullah?Khalid assentiu.— O futuro rei da Arábia Saudita.

Abdullah bin Abdulaziz Al Saud não fazia parte dos Sete Sudairi, a estirpe real de filhos doFundador da dinastia que tinha dado três monarcas sauditas, entre eles o pai de Khalid. Tinhaassumido, portanto, que nunca chegaria a rei. Tinha vivido comodamente a cavalo entre a ArábiaSaudita e o Ocidente mas, apesar disso, continuava a ser uma figura relevante dentro da Casa deSaud, um homem respeitado pelo seu intelecto e pela sua perspicácia política. Khalid tinhaencontrado nele um sábio conselheiro, precisamente porque se opunha a muitos dos seus projetosreformistas, inclusive os relacionados com as mulheres, as quais, segundo Abdullah, só serviampara uma coisa.

— Como é que o seu tio reagiu quando lhe falou do Omar Nawwaf?— Ficou alarmado.— O que é que lhe sugeriu?Khalid passou um dedo pela garganta.— Um pouco drástico, não lhe parece?— Não para os nossos parâmetros.— Mas supunha-se que o Khalid era diferente. Supunha-se que ia mudar o Médio Oriente e o

mundo islâmico.— Não posso mudar o mundo se me matarem, pois não?— Mas e as repercussões que teria a sua morte?— O Abdullah assegurou-me que não teria nenhuma.— Muito sábio da sua parte — respondeu Gabriel com ironia. — Mas porque é que disse tal

coisa?— Porque eu teria as mãos limpas.— Disse que ele trataria de tudo?O saudita assentiu em silêncio.— Como é que conseguiu que o Nawwaf aparecesse no consulado de Istambul?— O que acha?— Disseram-lhe que estaria lá.— Muito bem.— E a idiotice que disse após a sua morte? Essa estupidez de uma operação de intercâmbio

que correu mal?— O Omar Nawwaf não devia sair vivo do consulado, essa era a ideia desde o princípio —

afirmou Khalid com gravidade.— Tudo bastante desleixado, não lhe parece?— O Abdullah queria que se soubesse que o Omar tinha recebido uma lição, para dissuadir

outros possíveis assassinos.

— Toda a gente soube, disso não há dúvida. E agora o seu tio é o herdeiro ao trono.— E eu estou aqui sentado, consigo, na Al-Quds. — Khalid prestou atenção ao barulho da

antiquíssima cidade. — Parece que Abdullah me enganou para que cometesse essa imprudênciacom a finalidade de danificar o meu prestígio internacional e debilitar a minha posição dentro doreino.

— Sim, é o que parece.— Mas e se estivéssemos a adotar uma perspetiva errada?— Qual seria a correta?— E se o Omar Nawwaf queria mesmo avisar-me de um perigo grave? — Khalid deu uma

vista de olhos ao seu relógio de pulso. — Meu Deus, olhe que horas são.— Cedo, para os nossos parâmetros.Khalid pôs-lhe uma mão no ombro.— Não sabe o quanto lhe agradeço por me ter convidado para vir aqui.— Será o nosso pequeno segredo.O saudita sorriu.— Pensei em trazer-lhe um presente, mas sabia que não o aceitaria, de modo que receio que

terá de se contentar com isto. — Tirou um lápis de cor. — É bonito, não é?— O que é que contém?— Parte da informação financeira que consegui durante aquele assunto no Ritz-Carlton. O

meu tio Abdullah tinha muito pouca visão para os negócios, mas há dois anos tornou-seriquíssimo do dia para a noite. — Pôs-lhe o lápis de cor na mão. — Talvez possa descobrir comoo fez exatamente.

41

NOVA IORQUE-BERLIM

Na noite da inusitada visita de Khalid a Jerusalém, Sarah Bancroft saiu com o homem dos seuspesadelos. Chamava-se David Price e fora apresentado por um amigo comum num leilão daChristie’s. David tinha cinquenta e sete anos e dedicava-se a algo relacionado com o dinheiro.Era um homem de aspeto viril, cabelo liso e preto, dentes de um branco reluzente e um profundobronzeado adquirido nas suas recentes férias nas Caraíbas com a sua ex-mulher e os seus doisfilhos universitários. Levou-a a ver uma peça de teatro acabada de estrear da qual o Times diziamaravilhas e depois ao Joe Allen, onde os empregados pareciam conhecê-lo bem. Mais tarde, àporta do seu prédio na East Sixty-Seventh Street, Sarah evitou a sua boca como se evitasse umapoça. Ao chegar lá a cima, ligou à sua mãe, coisa que raramente fazia, para se lamentar da suavida amorosa. A sua mãe, que sabia muito pouco sobre o passado secreto de Sarah, sugeriu quese inscrevesse no ioga, o que no seu caso, segundo dizia, tinha feito maravilhas.

Para dizer a verdade, a culpa de que o encontro fosse uma deceção não foi completamente deDavid Price. Sarah estava muito preocupada desde que Khalid lhe tinha pedido, repentinamente,que voltasse a entrar em contacto com Gabriel. Tinha sido a primeira vez que comunicava comambos desde o seu regresso a Nova Iorque. Soubera da abdicação de Khalid pela CNN e dera porcerto que Reema tinha voltado a casa sã e salva. Gabriel, no entanto, tinha-lhe dito a verdade.Sarah tinha consciência de que um ato semelhante não ficaria impune. Andariam atrás dosresponsáveis e haveria uma operação de vingança. Portanto, tinha motivos suficientes para estardistraída durante a peça — mal recordava uma só frase dita pelos atores — e o posterior jantar noJoe Allen. O que lhe apetecia era voltar à ação com Gabriel e Mikhail e aquele inglês misteriosochamado Christopher Keller, e não falar de parvoíces com um banqueiro de Connecticutdivorciado, enquanto comia fígado com cebola.

Por conseguinte, não lhe desagradou em absoluto acordar três dias depois e encontrar no seu e-mail um bilhete para o voo da Lufthansa que partia naquela noite com destino a Berlim.Informou o seu pessoal — com uma certa imprecisão — dos seus planos de viagem e seguiu parao Aeroporto de Newark. Ao que parece, o passageiro ao seu lado, um banqueiro de investimentosda Morgan Stanley, tinha-se proposto beber tudo o que havia no avião. Sarah petiscou o jantar edepois dormiu até que os campos nevados da Alemanha apareceram por baixo da sua janela. Omensageiro da delegação do Departamento em Berlim que a esperava no vestíbulo de chegadasconduziu-a a um BMW Berlina. Mikhail estava sentado ao volante.

— Pelo menos não é outro Passat — comentou ela ao sentar-se ao seu lado.

Mikhail seguiu pela rampa de saída do aeroporto, virou pela Autobahn e foi pelaCharlottenburg. Sarah conhecia bem o bairro. Quando ainda estava na CIA, tinha passado seismeses em Berlim a trabalhar com a BfV alemã no desmantelamento de uma célula da Al-Qaedaque preparava outro 11 de Setembro a partir de um apartamento da Kantstrasse. Mikhail tinhaido vê-la várias vezes em segredo durante esse tempo.

— Fico feliz de estar de volta — disse Sarah num tom provocante. — Sempre gostei deBerlim.

— Sobretudo no final do inverno.As barreiras estavam salpicadas de neve suja e às oito e meia da manhã continuava a ser de

noite.— Imagino que devíamos dar graças aos céus por não vivermos em Oslo.— Quem?Mikhail não respondeu.— Estavas lá quando mataram a Reema?— Bem perto — respondeu ele. — E o Keller também.— Está em Berlim?— O Keller? — Mikhail olhou-a de soslaio. — Porque é que perguntas isso?— Por curiosidade, mais nada.— O Christopher está ocupado com outro assunto neste momento. Voltamos a estar os três

sozinhos.— E o Gabriel? Onde é que está?— No andar seguro.Mikhail foi pela Bundestrasse e seguiu até ao Tiergarten. Havia uma manifestação na Porta de

Brandenburgo, duas centenas de pessoas, na sua maioria na casa dos vinte anos, vestidas comcalças de ganga e camisolas de lã de estilo escandinavo. Pareciam militantes pacifistas ouecologistas. Os seus cânticos, no entanto, denunciavam as suas verdadeiras convicções políticas.

— São de um grupo chamado Identidade Geracional — explicou Mikhail. — Pareceminofensivos, mas partilham a ideologia dos skinheads e do resto dos neonazis.

Virou à direita na Ebertstrasse e ficou em silêncio quando passaram perante o sóbriomonumento ao Holocausto, com os seus dois mil e setecentos blocos de betão cinzentosalinhados num terreno do tamanho de um quarteirão. Sarah tinha-o levado a ver o monumentodurante uma das suas visitas secretas a Berlim. Aquilo arruinara-lhes o fim de semana.

Em Potsdamer Platz, o antigo páramo da Guerra Fria convertido agora num monumento deaço e vidro ao poder económico da Alemanha, Mikhail virou para leste para o distrito de Mitte.Virou várias vezes seguidas à direita — uma típica manobra de contravigilância — e, naKronenstrasse, parou de repente junto ao passeio e desligou o motor.

— O que é que sabes da família do Gabriel? — perguntou.— O básico, imagino.— O nosso Gabriel é judeu e alemão. Embora tenha nascido em Israel, aprendeu a falar

alemão antes de hebreu. Por isso tem tanta pronúncia de Berlim. Herança da sua mãe. — Mikhailapontou para um moderno edifício de apartamentos cujas janelas brilhavam como ónix polido.— Em criança, a sua mãe viveu num prédio que ficava mesmo ali. No outono de 1942mandaram-na para Auschwitz num vagão de gado juntamente com o resto da sua família. Foi aúnica que sobreviveu.

Uma lágrima rolou pela face de Sarah.

— Querias mostrar-me isto por alguma razão?— Porque o andar seguro fica ali. — Mikhail apontou para o edifício em frente. — O Gabriel

alugou-o para muito tempo quando o nomearam diretor.— Vem com frequência?— A Berlim? — Ele negou com a cabeça. — Odeia este lugar.— Então, porque é que estamos aqui?— Pela Hanifa — respondeu Mikhail ao abrir a porta do carro. — Estamos aqui por causa da

Hanifa.

42

BERLIM

Eram oito e um quarto da noite quando Hanifa Khoury, veterana produtora da cadeia detelevisão alemã ZDF, saiu para os passeios húmidos da Unter deen Linden. Um vento friosoprava entre as árvores sem folhas que davam nome à célebre avenida. Tiritando, Hanifaapertou ao pescoço o seu keffiyeh de xadrez. Ao contrário de muitos alemães, não trazia a peçapor uma questão de moda, nem para demonstrar a sua oposição a Israel: Hanifa era de origempalestiniana. Examinou a rua em ambas as direções. Tinha trabalhado como jornalista em todo oMédio Oriente e era especialista em descobrir se alguém a vigiava. Sobretudo, se se tratasse deárabes. Não viu nada de suspeito. De facto, há várias semanas que não via ninguém a vigiá-la.Talvez, por fim, tivessem decidido deixá-la em paz, disse a si própria.

Seguiu pela Unter deen Linden até à Friedrichstrasse e virou à esquerda. O café onde secostumava encontrar com Omar após o trabalho ficava perto do antigo Checkpoint Charlie. Umamulher atraente, loura, de cerca de quarenta anos, estava sentada na sua mesa de sempre, a docanto do fundo de onde se via claramente a porta. Lia um livro de poesia de Mahmud Darwish, opoeta do movimento nacionalista palestiniano. Quando Hanifa se aproximou, ela descolou osolhos da página, sorriu e voltou a baixar o olhar.

Hanifa parou de repente.— Está a gostar?A mulher demorou a responder.— Lamento — disse em inglês. — Não falo alemão.Tinha uma pronúncia inconfundivelmente americana. Hanifa pensou fingir que não a entendia

e procurar uma mesa o mais longe possível daquela loura tão atraente, ou inclusive talvez ir aoutro café. Desprezava os americanos quase tanto como os israelitas, embora, às vezes,dependendo das veleidades da política americana no Médio Oriente, estivessem quase a par.

— O livro — disse em inglês. — Perguntei-lhe se está a gostar.— Acha mesmo que se pode gostar de uns versos tão dolorosos?O seu comentário surpreendeu gratamente Hanifa.— Eu conheci-o pouco antes de morrer.— Ao Darwish? A sério?— Fiz-lhe uma das últimas entrevistas que deu.— É jornalista?Hanifa assentiu.

— Da ZDF. E a senhora?— Neste momento, estou de férias indefinidas.— Que sorte a sua.— Não me parece…— É americana?— Sim. — A mulher contemplou o keffiyeh de xadrez de Hanifa. — Espero que não se

importe.— Porque é que haveria de me importar?— Neste momento, não temos muito boa fama. — A mulher pousou o livro sobre a mesa para

que Hanifa visse a página na qual estava aberto. — Conhece este?— Claro. É muito famoso. — Hanifa recitou de cor os primeiros versos do poema. — «Aqui,

no sopé das colinas, perante o crepúsculo e as garras do tempo…» — Sorriu. — Soa muitomelhor em árabe.

— É palestiniana?— Os meus pais eram da Galileia Superior. Foram expulsos da Síria em 1948 e por fim

ancoraram aqui. — Baixou a voz e perguntou num tom altivo: — Espero que não seja umproblema.

A desconhecida sorriu.Hanifa olhou para a cadeira vazia.— Está à espera de alguém?— Em termos gerais, sim. Mas não neste momento.— Permite-me acompanhá-la?— Por favor.Hanifa sentou-se e apresentou-se.— Que nome tão bonito — disse a mulher. Depois estendeu-lhe a mão. — Eu sou a Sarah

Bancroft.

Durante a hora e meia seguinte, sozinho no andar seguro da Kronenstrasse, Gabriel aguentoucom resignação o discurso sobre Israel e os judeus que Hanifa Khoury, jornalista exilada e viúvado mártir Omar Nawwaf, lançou. Não deixou nenhuma ferida por abrir: o Holocausto, a fuga e aexpulsão do povo palestiniano, o horror de Sabra e Chatila e os acordos de paz de Oslo, queapelidava de disparate perigoso. Nisso, pelo menos, ela e Gabriel estavam completamente deacordo.

O som procedia do telefone que Sarah tinha deixado sobre a mesa ao sentar-se no café. Acâmara apontava para o teto. De vez em quando, Gabriel via as mãos de Hanifa, que continuavaa falar do seu plano para levar a paz à Palestina. Afirmou que o projeto de criar dois Estados, umárabe e outro judeu, não era nada. A única solução justa, na sua opinião, era um Estadobinacional que reconhecesse de maneira credível e irrevogável o «direito de voltar» dos cincomilhões de refugiados palestinianos oficialmente registados.

— Mas isso não equivaleria a acabar com o Estado judeu? — perguntou Sarah.— Sim, claro. Precisamente.Hanifa deleitou a seguir Gabriel com uma leitura da poesia de Mahmud Darwish, a voz do

sofrimento palestiniano e da opressão israelita, e por fim perguntou à sua nova amiga americanaporque é que tinha escolhido Berlim para passar umas longas férias. Sarah recitou ponto por

ponto a história que Gabriel tinha inventado naquela tarde. Era sobre a dissolução desastrosa deum casamento sem filhos. Humilhada e triste, Sarah tinha decidido passar uns meses numacidade onde ninguém a conhecesse, e um amigo tinha-lhe oferecido o seu apartamento emBerlim. Ficava bem perto do café, explicou, na esquina, na Kronenstrasse.

— E a Hanifa? — perguntou Sarah. — É casada?— Só com o meu trabalho.— O seu nome soa-me familiar.— É bastante comum, na realidade.— A sua cara também me é familiar. Tenho a sensação de tê-la visto antes.— Acontece-me com frequência.Já passava das nove e meia. Hanifa declarou estar a morrer de fome. Propôs que pedissem

alguma coisa para comer, mas Sarah fez questão de que jantassem no seu apartamento. Tinha adespensa vazia, mas podiam comprar duas garrafas no Planet Wein e uns makis de gambas noSapa Sushi.

— Prefiro o Izumi — disse Hanifa.— No Izumi, então.Sarah pagou as duas garrafas de Grüner Veltliner austríaco bem frio e Hanifa o sushi. Uns

minutos depois, Gabriel viu-as passar pela Kronenstrasse. Fechou o seu portátil, apagou as luzese sentou-se no sofá.

— Não grites — disse baixinho. — Peço-te por favor, Hanifa, não grites.

43

BERLIM

Hanifa Khoury não gritou, mas largou o saco de sushi e deixou escapar um gemido desurpresa que poderia ter-se ouvido nos apartamentos do lado se Mikhail não tivesse fechado deimediato a porta. Sobressaltada com o ruído, olhou para Mikhail um momento com fúria e depoiscravou de novo os olhos em Gabriel. Uma panóplia de emoções passou pela sua cara como asombra de uma nuvem. A última foi uma expressão inconfundível: tinha-o reconhecido.

— Meu Deus, é…— Sim — interrompeu-a Gabriel. — O próprio.Ela fez uma tentativa de chegar à porta, mas Mikhail estava apoiado contra ela como se

estivesse à espera do autocarro. Então tirou um telemóvel da mala e tentou marcar.— Se eu fosse a si não me incomodaria — disse Gabriel. — Neste edifício a rede é muito má.— Ou estão a bloqueá-la para que não possa pedir ajuda.— Não corre nenhum perigo, Hanifa. De facto, há muito tempo que não estava tão a salvo.Gabriel olhou para Mikhail, que tirou o telefone da mão de Hanifa. Depois tirou-lhe a mala e

revistou-a.— O que é que procura?— Um colete-bomba suicida, uma AK-47… — Gabriel encolheu os ombros. — O normal.Mikhail ficou com o telefone mas devolveu-lhe a mala. Hanifa olhou para Sarah.— Ela também é israelita?— O que é que havia de ser?— Fala inglês americano.— A diáspora tem muitas vantagens quando se trata de recrutar agentes.— Os judeus não são o único povo que teve de se dispersar pelos quatro cantos do mundo.— Não — conveio Gabriel. — Os palestinianos também sofreram. Mas não tiveram o objetivo

de uma campanha de extermínio sistémico como a Shoah. Por isso devemos ter um Estadopróprio. Não podemos contar que os alemães, os polacos, os húngaros ou os letões nosdefendam. Foi o que a História nos ensinou.

Gabriel pronunciou estas palavras não em inglês, mas em alemão. Hanifa respondeu na mesmalíngua.

— Por isso é que me sequestraram? Para me esfregarem outra vez o Holocausto na cara parajustificar o facto de me ter convertido numa exilada?

— Não a sequestrámos.

— Pode ser que a Bundespolizei não esteja de acordo.— Pode. Mas tenho muito boa relação com o chefe da BfV, sobretudo porque lhe proporciono

uma grande quantidade de informação sobre possíveis ameaças terroristas. Suponho que poderiacausar-me certos inconvenientes, mas, ao fazer isso, estaria a perder uma oportunidade de ouro.

— Que oportunidade?— A de mudar o curso dos acontecimentos no Médio Oriente.Ela lançou-lhe um olhar inquisitivo. Tinha uns olhos quase negros e de pálpebras prominentes.

Era quase como se sentisse observado pela Adele Bloch-Bauer I de Klimt.— Como? — perguntou por fim.— Contando-me em que é que o Omar estava a trabalhar quando o assassinaram. — Ao não

obter resposta, Gabriel acrescentou: — O seu marido não foi assassinado nesse consulado pelascoisas que escrevia nas redes sociais. Mataram-no porque tentou avisar o Khalid de que havia umcomplô contra ele.

— Quem é que lhe disse isso?— O Khalid.Hanifa semicerrou os olhos.— Como de costume, o Khalid está enganado — disse num tom amargo.— Porquê?— Não foi o Omar quem o tentou avisar sobre o complô.— Quem foi, então?Hanifa hesitou. Depois disse:— Fui eu.

44

BERLIM

Como o sushi caíra no chão da entrada, Mikhail desceu até ao restaurante persa do bairro ecomprou várias doses de carne grelhada com arroz. Comeram na mesinha retangular doapartamento, encostada a uma janela que dava para a Kronenstrasse. Gabriel sentou-se de costaspara a rua, com Hanifa Khoury, a sua nova recruta, à esquerda. Durante o jantar, Hanifa malolhou para Sarah. Evidentemente, não lhe tinha perdoado que usasse um livro de MahmudDarwish, o tesouro literário da Palestina, como isco para a atrair. E, para além disso, era evidenteque não achava que fosse cidadã do Estado ao qual desejava mergulhar debaixo de uma maré depalestinianos que regressavam do exílio.

A única coisa que tinha de fazer para demonstrar que tinha razão era pedir a Sarah quedissesse umas palavras em hebraico, mas, em vez de fazer isso, preferiu aproveitar a ocasião paracensurar o lendário chefe da espionagem israelita dos crimes que ele e o seu povo tinhamcometido contra os palestinianos. Gabriel aguentou o discurso quase em silêncio. Há muitotempo que tinha aprendido que os debates sobre o conflito árabe-israelita eram, na sua maioria,como uma pescadinha de rabo na boca. Para além disso, não queria perder Hanifa como aliadatemporária. Os judeus tinham-se imposto na luta pela Palestina, os árabes tinham perdido,avantajados em astúcia e armamento a cada passo. Os seus líderes tinham-lhes feito um mauserviço. Hanifa tinha todo o direito de estar magoada e indignada, mas o seu discurso teria sidomais suportável se não o tivesse pronunciado em alemão na cidade onde Hitler e os nazis tinhamconcebido e posto em marcha o seu plano para livrar a Europa dos judeus. Quanto ao palco, nãohavia nada a fazer: a grande roleta russa da fortuna tinha situado Gabriel Allon e Hanifa Khoury,ambos filhos da Palestina, em Berlim, naquela noite.

Enquanto tomavam café e baklava, Hanifa tentou sacar a Gabriel informações a respeito dealgumas das suas façanhas. E, ao ver que ele fugia amavelmente às suas perguntas, desbobinouuma enxurrada verbal contra os americanos e a sua desastrosa intervenção no Iraque. Tinhaentrado em Bagdade seguindo o avanço das forças da Coligação e narrado nas suas crónicas abrusca queda do Iraque na insurgência e na guerra civil sectária. No outono de 2003, durante asangrenta Ofensiva do Ramadão, conheceu um jornalista saudita alto e bonito no bar do HotelPalestine, onde vivia. O saudita, embora pouco conhecido entre a imprensa ocidental, era um dosjornalistas mais influentes e mais bem informados do mundo árabe.

— Chamava-se Omar Nawwaf — disse.Eram ambos solteiros e, para dizer verdade, estavam um pouco assustados. O Hotel Palestine

ficava situado fora da Zona Verde americana e era objeto frequente da insurgência. De facto,naquela mesma noite foi atacado com morteiros. Hanifa refugiou-se no quarto de Omar.Regressou na noite seguinte, que foi tranquila, e também na outra. Em pouco tempo, estavamloucamente apaixonados, embora discutissem com frequência sobre a presença americana noIraque.

— O Omar achava que o Saddam era um perigo e um monstro, e que tinha de ser derrotadomesmo que fossem as tropas americanas a fazer isso. Achava, para além do mais, que oestabelecimento de uma democracia no coração do mundo árabe faria com que a liberdade seestendesse inevitavelmente ao resto da região. Eu estava convencida de que a aventura iraquianaacabaria mal. E tinha razão, claro. — Sorriu melancolicamente. — O Omar não gostou disso. Eraum saudita laico e ocidentalizado, de certa forma, mas continuava a ser saudita, se é que meentendem.

— Não gostava que uma mulher tivesse razão e ele estivesse enganado?— E que essa mulher fosse palestiniana, para cúmulo.Durante uma breve temporada, no entanto, pareceu que o Omar estava certo, apesar de tudo.

No início de 2011, o levantamento popular conhecido como Primavera Árabe espalhou-se pelaregião derrubando os regimes opressores da Tunísia, do Egipto, do Iémen e da Líbia, enquantona Síria rebentava uma guerra civil total. As monarquias ancestrais até se safaram, mas na ArábiaSaudita houve choques violentos. Dezenas de manifestantes ficaram feridos ou foram executadose centenas acabaram na prisão, inclusive muitas mulheres.

— Durante a Primavera Árabe — explicou Hanifa —, o Omar já não era um simplescorrespondente. Era o editor chefe do Arab News. Internamente, desejava que Sua Majestadetivesse a mesma sorte do que o Mubarak ou inclusive do que Kadhafi. Mas sabia que, sepressionasse muito, os Al Saud fechariam o jornal e mandá-lo-iam para a prisão. Não lhe restavaoutra alternativa senão apoiar o regime nos seus editoriais. Até assinou uma coluna chamandovândalos aos manifestantes que se deixavam influenciar por estrangeiros. Após aquilo, caiunuma depressão profunda. Nunca se perdoou por não ter apoiado a Primavera Árabe.

Ela tentou convencê-lo a abandonar a Arábia Saudita e a ir com ela para a Alemanha, ondepoderia escrever o que quisesse sem medo de acabar na prisão. No início de 2016, enquanto aeconomia saudita estancava devido à descida dos preços do petróleo, Omar, finalmente, aceitou.Poucas semanas depois, no entanto, mudou de ideias depois de se reunir com um jovem príncipesaudita chamado Khalid bin Mohammed.

— Foi pouco depois de o pai do Khalid subir ao trono. O Khalid era já ministro da defesa,vice-primeiro ministro e presidente do conselho de planeamento económico, mas ainda não tinhasido nomeado príncipe herdeiro. Convidou o Omar para ir ao seu palácio uma tarde para umaentrevista oficiosa. O Omar chegou às quatro da tarde, como lhe tinham indicado. Já passavabastante da meia-noite quando saiu.

Não havia gravações da conversa — Khalid não o permitiu — nem notas tiradas durante aentrevista, só um resumo que Omar redigiu apressadamente ao regressar ao seu escritório e queenviou a Hanifa por e-mail como medida de precaução. Ela ficou atónita ao ler. Segundo asprevisões de Khalid, em vinte anos o preço do crude seria igual a zero. Se a Arábia Sauditaqueria ter algum futuro, devia mudar, e rapidamente. Ele queria modernizar e diversificar aeconomia. Queria abrandar as correntes que os wahabistas impunham às mulheres e inseri-las nomercado de trabalho. Queria romper a aliança entre os Al Saud e os Ikhwan do Nejd e que aArábia Saudita fosse um país normal, com cinemas, música, discotecas e cafés onde pessoas de

ambos os sexos se pudessem relacionar sem medo da polícia religiosa.— Inclusive falou de permitir que os hotéis e os restaurantes servissem álcool para que os

sauditas não tivessem de ir ao Bahrein cada vez que quisessem beber um copo. Era tudo muitoradical.

— O Omar parecia impressionado?— Não — respondeu Hanifa. — Impressionado, não. Apaixonado.Em breve, apareceram nas páginas do Arab News numerosos artigos elogiosos dedicados ao

jovem e dinâmico filho do monarca saudita que respondia às iniciais KBM. No entanto, Omarvirou as costas a Khalid pouco depois de se tornar no herdeiro oficial do trono, quando mandoudeter dezenas de dissidentes e ativistas partidários da democracia, entre eles vários amigosíntimos do jornalista. O Arab News ficou em silêncio sobre as detenções, mas Omar desabafoulançando uma descarga de críticas contra o KBM nas redes sociais, incluindo um tweetincendiário no qual o comparava ao presidente russo. O chefe da corte do príncipe enviou-lheuma mensagem mandando-o abster-se de qualquer novo ataque contra Sua Alteza Real. Omarrespondeu ridicularizando KBM por ter gastado mais de um bilião de dólares em casas, iates equadros, enquanto os sauditas sofriam as consequências da sua política de austeridadeeconómica.

— Após aquilo — afirmou Hanifa —, foi uma guerra sem tréguas.Mas, num país como a Arábia Saudita, o confronto entre a família real e um jornalista

dissidente só podia acabar de uma maneira. O Real Centro de Dados tinha rastreado os telefonesde Omar e intercetava os seus e-mails e as suas mensagens de texto. Inclusive, tentou desativaras suas contas nas redes sociais. Ao não o conseguir, assediaram-no com milhares de mensagensfalsas de robôs e trolls. A gota que transbordou o copo foi, contudo, a bala de calibre 45 enviadapara o escritório de Omar no Arab News. Omar abandonou a Arábia Saudita naquela mesmanoite para não mais voltar.

Instalou-se no apartamento de Hanifa, casou com ela numa cerimónia discreta e encontroutrabalho na Der Spiegel. O seu número de seguidores aumentou drasticamente quando os seusataques contra KBM nas redes sociais se agravaram. Os agentes sauditas seguiam-no pelas ruasde Berlim sem se incomodarem a disfarçar a sua presença. Recebia continuamente e-mails emensagens ameaçadoras.

— Era óbvio o que pretendiam. Era indiferente que o Omar se tivesse exilado: ainda assim,podiam acabar com ele. Estava convencido de que o iam sequestrar ou assassinar.

Apesar de tudo, decidiu arriscar e ir ao Cairo para escrever uma reportagem sobre a vida noEgito com o governo do novo faraó, que Omar desprezava quase tanto como a Khalid. E, no halldo Hotel Sofitel, encontrou-se por acaso com um príncipe saudita de terceira categoria ao qualKhalid tinha depenado no Ritz-Carlton. Aquele príncipe, como o próprio Omar, vivia agora noexílio. Lembraram-se de jantar naquela noite num restaurante de Zamalek, um bairro abastado doCairo situado na ilha de Gezira. Era final do verão, agosto, e estava um calor sufocante. Aindaassim, o príncipe empenhou-se em jantar no terraço. Quando estavam sentados, pediu a Omarque desligasse o seu telemóvel e lhe tirasse o cartão SIM. Depois, falou-lhe de um rumor quetinha ouvido relativo a um complô para varrer Khalid da linha sucessória.

— O Omar mostrou-se cético: não achava que o complô tivesse muitas possibilidades de serbem-sucedido. O KBM tinha sido objeto de numerosas tentativas de assassinato e intençõesgolpistas, e todas tinham fracassado porque ele controlava os serviços de segurança e o RealCentro de Dados. Mas aquele príncipe fez questão de que aquele complô fosse diferente.

— Porquê?— Porque tinha pelo meio uma potência estrangeira.— Qual?— O príncipe não sabia, mas disse a Omar que o plano implicava a filha do Khalid. Os

conspiradores tinham intenção de sequestrá-la para obrigar o Khalid a abdicar.— Tens a certeza de que isso foi em agosto?— Posso mostrar as mensagens de texto que o Omar me mandou do Cairo.— Incluíam alguma referência ao complô contra o Khalid?— Claro que não. O Omar sabia que o Real Centro de Dados vigiava as suas comunicações.

Esperou até voltar para Berlim para me contar. Falámos no Tiergarten, não por telefone. Receioque o Omar não tenha gostado muito da minha reação.

— Queria que ele contasse ao Khalid sobre o complô.— Disse-lhe que tinha a obrigação de fazer isso.— Porque podia estar em jogo a vida da filha do Khalid?Ela assentiu.— E porque, apesar de todos os seus defeitos, o Khalid era o mal menor.— Imagino que o Omar não estivesse de acordo.— Disse que seria muito pouco ético da sua parte, como jornalista, contar ao Khalid o que

tinha descoberto.— Então, o que fez?— Regressou ao Médio Oriente para tentar converter aquele rumor numa notícia como deve

ser.— E a Hanifa?— Eu fiz-me passar por ele.— Como?Criou uma conta de Yahoo com um e-mail com o nome de Omar: [email protected]. A

seguir, mandou uma série de e-mails ao Ministério de Imprensa saudita a solicitar uma entrevistacom Sua Alteza Real o príncipe Khalid bin Mohammed. Como não obteve resposta — o que nãoera nada estranho tratando-se dos sauditas —, mandou uma advertência para uma morada queencontrou entre os contactos de Omar. Tratava-se de alguém próximo de KBM, uma personagemproeminente da sua corte.

— Falou-lhe do complô?— Em detalhe, não.— Mencionou a Reema?— Não.Passados uns dias, Hanifa recebeu um e-mail da embaixada saudita em Berlim. Khalid queria

que Omar regressasse a Riade para que pudessem fazer a entrevista. A resposta de Hanifadeixava claro que Omar não voltaria a pôr os pés no reino. Passou uma semana. Depois, recebeuum último e-mail enviado por aquele manda-chuva da corte de Khalid. Pedia que Omar fosse aoconsulado de Istambul na terça-feira seguinte, à uma e um quarto da tarde. Khalid estaria àespera dele.

45

BERLIM

Quando Omar regressou a Berlim, Hanifa contou-lhe o que tinha feito em seu nome. Falaramde novo no Tiergarten, sem telefones. Desta vez, no entanto, era evidente que os estavam aseguir. Omar ficou furioso com ela, mas escondeu a sua cólera aos olhos dos agentes sauditasque os vigiavam. A sua viagem para o Médio Oriente tinha dado frutos. Tinha corroborado tudoo que a sua fonte no Cairo disse, incluindo o envolvimento de uma potência estrangeira nocomplô contra Khalid. Agora enfrentava uma decisão difícil. Se publicasse o que sabia naspáginas da Der Spiegel, Khalid servir-se-ia da informação para esmagar a tentativa de golpe deEstado e consolidar o seu poder. Mas, se permitisse que a conspiração seguisse em frente, talcomo estava previsto, uma menina inocente podia ser ferida ou até morrer.

— E o convite para Istambul? — perguntou Gabriel.— O Omar pensava que era uma armadilha.— Então, porque é que aceitou ir?— Porque eu o convenci. — Hanifa ficou em silêncio um momento. — Sou a responsável pela

sua morte. Se não fosse eu, jamais teria entrado naquele consulado.— Como é que conseguiu que mudasse de ideias?— Dizendo-lhe que ia ser pai.— Está grávida?— Estava. Já não.A sua conversa no Tiergarten teve lugar uma sexta-feira. Hanifa mandou um e-mail à direção

do conselheiro de Khalid informando-o de que Omar chegaria ao consulado na terça-feiraseguinte à uma e um quarto, como lhe tinham indicado. Passou o sábado e o domingo atransformar as suas notas e gravações num artigo para a Der Spiegel, e, na segunda-feira, ele eHanifa voaram para Istambul e ficaram alojados no hotel Intercontinental. Naquela noite,enquanto passeavam pelo Bósforo, foram seguidos por equipas de vigilância sauditas e turcas.

— Na terça-feira de manhã, o Omar estava tão nervoso que temi que lhe desse um enfarte.Consegui acalmá-lo. «Se te quisessem matar», disse-lhe, «o último lugar onde se lembrariam defazer isso seria dentro de um dos seus consulados». Saímos do hotel ao meio-dia e meia. Haviatanto trânsito que estivemos prestes a chegar atrasados. O Omar entregou o seu telemóvel nocontrolo de segurança do consulado. Depois deu-me um beijo e entrou.

Era uma hora e catorze minutos. Pouco depois das três, ela ligou para o número principal doconsulado e perguntou se Omar continuava lá. O homem que a atendeu disse que Omar não tinha

ido à reunião. E, quando Hanifa voltou a ligar uma hora depois, outro homem disse que o seumarido já tinha saído. Às quatro e um quarto, viu uns homens a saírem do edifício carregadoscom várias malas grandes. Sua Alteza Real, o príncipe Khalid bin Mohammed, não estava entreeles.

Quando Hanifa regressou por fim ao Intercontinental, alguém tinha posto o quarto deles depernas para o ar e o portátil de Omar tinha desaparecido. Ligou para a sede da ZDF e informouque um jornalista da Der Spiegel tinha desaparecido depois de entrar no consulado saudita emIstambul. Quarenta e oito horas depois, o mundo inteiro fazia a mesma pergunta: onde estavaOmar Nawwaf?

Dez dias mais tarde, quando por fim teve acesso ao consulado, a polícia turca opinou queOmar tinha sido assassinado, enquanto estava no edifício. Depois, os seus assassinos tinhamesquartejado o seu cadáver e tinham-se desfeito dele. Quase do dia para a noite, KBM, o grandereformista árabe, o menino mimado das elites financeiras e intelectuais do Ocidente, converteu-se num ostracizado.

Hanifa ficou em Istambul até final de outubro para seguir de perto a investigação turca.Quando por fim regressou a Berlim, descobriu que o seu apartamento, tal como o seu quarto noIntercontinental, tinha sido saqueado. Faltavam todos os documentos de Omar, inclusive as notasque tinha tirado durante a sua última viagem de investigação ao Médio Oriente. Desfeita com ador, Hanifa tentou consolar-se pensando que tinha um filho de Omar. Mas no princípio denovembro sofreu um aborto espontâneo.

A sua primeira tarefa depois de regressar ao trabalho levou-a nada mais nada menos do que aGenebra. Fazendo-se passar pela esposa de um diplomata jordano obcecado com a segurança,visitou o Colégio Internacional, onde pôde observar o êxodo vespertino dos alunos. Uma dasestudantes, uma rapariga de doze anos, saiu do colégio numa limusina Mercedes blindada. Odiretor deu a entender a Hanifa que a menina era filha de um potente egípcio do setor daconstrução. Ela, no entanto, sabia a verdade. Era Reema bint Khalid Abdulaziz Al Saud, a filhado diabo.

— E não tentou avisar o diabo de que a filha dele corria perigo?— Depois do que fez ao Omar? — Ela negou com um gesto. — Para além disso, pensei que

não era necessário.— Porquê?— O Khalid tinha o computador do Omar e as suas notas.A não ser, pensou Gabriel, que não fossem os sauditas a levarem tudo isso.— E quando é que soube que o Khalid tinha abdicado?Chorou de alegria e publicou uma mensagem provocadora na sua conta do Twitter. Uns dias

mais tarde, regressou a Genebra para ver de novo os alunos do Colégio Internacional a saírem.Não viu a filha do diabo em lado nenhum.

— E, ainda assim, ficou em silêncio.Os seus olhos escuros iluminaram-se.— Se o Khalid tivesse matado o seu…— Já teria morrido. — Depois de um silêncio, Gabriel acrescentou: — Mas o Khalid não é o

único responsável pela morte do Omar.— Não se atreva a tentar desculpá-lo.— É verdade que autorizou o seu assassinato, mas não foi ideia dele. De facto, queria reunir-

se com o Omar para ouvir o que tinha a dizer.

— E porque é que não o fez?— Porque lhe disseram que o Omar tinha intenção de o matar.Hanifa parecia incrédula.— O Omar nunca fez mal a ninguém em toda a sua vida. Quem lhe disse isso?— O Abdullah — respondeu Gabriel. — O próximo rei da Arábia Saudita.Os olhos de Hanifa ficaram esbugalhados.— O Abdullah orquestrou o assassinato do Omar para que o Khalid não descobrisse que havia

um complô contra ele? É isso o que está a dizer?— Sim.— Encaixa tudo demasiado bem, não lhe parece?— A sua versão da história coincide totalmente com a do Khalid. Há uma parte, no entanto,

que não faz sentido.— Qual?— É impossível que dois jornalistas experientes como vocês não fizessem uma cópia do

artigo.— Eu não disse que não tínhamos feito, senhor Allon.

* * *

Na verdade, tinham feito várias. Hanifa mandou cópias criptografadas do artigo para a moradade correio da ZDF e para um e-mail privado do Gmail. Para além disso, gravou o arquivo em trêspens com medo dos hackers do Real Centro de Dados. Uma estava cuidadosamente escondida noseu apartamento e outra fechada à chave na sua mesa da redação da ZDF em Berlim, onde haviaguardas de segurança vinte e quatro horas por dia.

— E a terceira? — perguntou Gabriel.Hanifa tirou a pen de um bolso com fecho da sua mala e pô-la sobre a mesa. Gabriel abriu o

seu portátil e ligou o dispositivo a uma das portas USB. Apareceu uma pasta sem título no ecrã.Quando a abriu, uma caixa pediu o seu nome de utilizador.

— Yarmouk — disse Hanifa. — É o campo de refugiados…— Eu sei o que é.Gabriel introduziu os sete caracteres e apareceu um ícone.— Omar — disse Hanifa com a face banhada em lágrimas. — A password é Omar.

46

GOLFO DE AQABA

Passavam escassos minutos das quatro da tarde quando o voo 2372 da El Al procedente deBerlim aterrou no Aeroporto Ben Gurion. Gabriel, Mikhail e Sarah entraram para a parte de trásde um jipe do Departamento que esperava por eles na pista. Yossi Gavish, o erudito chefe dadivisão de Investigação, ocupava o lugar do copiloto. Quando o carro começou a andar com umsolavanco, Gavish entregou uma pasta a Gabriel. Era uma análise forense da acidentada trajetóriafinanceira do príncipe Abdullah, baseada em parte no material que Khalid lhes tinhaproporcionado durante a sua breve estadia na casa de Gabriel.

— Claro como água, chefe. Todo o dinheiro procedia de já sabes quem.O jipe parou junto de um helicóptero privado Airbus HI175 VIP que aguardava, com o rotor

parado, no extremo norte do aeroporto. O piloto de Khalid estava sentado aos comandos. Yossientregou uma pistola Jericho de calibre 45 a Mikhail e uma Beretta de 9 milímetros a Gabriel.

— A Força Aérea seguir-vos-á à distância. Mas, assim que entrarem no espaço aéreo egípcio,estarão sozinhos.

Gabriel deixou o seu BlackBerry e o seu portátil no jipe e seguiu Mikhail e Sarah para aluxuosa cabine do Airbus. Dirigiram-se para sul seguindo a costa, sobrevoaram as cidades deAsdode e Ascalão e viraram depois para o interior para evitar o espaço aéreo da Faixa de Gaza.Do lado israelita da linha do cessar-fogo, havia campos de cultivo em chamas.

— O Hamas pega fogo com papagaios de papel e balões incendiários — explicou Mikhail aSarah.

— A vida aqui não é fácil.Ele apontou para o caótico horizonte da cidade de Gaza.— Mas é melhor do que a deles.Gabriel leu duas vezes o dossiê que Yossi lhe tinha dado, enquanto sobrevoavam o deserto de

Neguev. O céu foi escurecendo aos poucos para lá da sua janela e, quando chegaram ao extremomeridional do Golfo de Aqaba, o mar era já negro. O Tranquillity estava ancorado em frente dailha de Tiran, com as suas características luzes de néon azul ligadas. Uma lancha custodiava oenorme iate pelo lado de bombordo e outra por estibordo.

O Airbus pousou no heliporto da proa — havia dois — e o piloto desligou o motor. Ao sair dacabine, Mikhail deparou-se com dois guardas de segurança sauditas cujos casacos de nylontinham o emblema do Tranquillity. Um deles esticou o braço com a palma para cima.

— Tenho uma ideia melhor — disse Mikhail. — Porque é que não metes…?

— Está tudo bem — gritou Khalid de algum lugar no alto do barco. — Que subam emseguida.

Gabriel e Sarah reuniram-se com Mikhail no convés. Os dois guardas olharam-nos de alto abaixo — particularmente para ela —, mas não se ofereceram para os acompanhar aos aposentosde Khalid. Percorreram o iate à vontade, sem escolta: atravessaram o salão de música e adiscoteca, a sala de reuniões e o cinema, o bilhar, a sauna, a sala de neve, o salão de dança, oginásio, a galeria de tiro ao arco, o rocódromo, a sala de jogos infantis e o centro de observaçãosubmarina onde, do outro lado, havia um vidro grosso onde se via saltarem numerosas espéciesde peixes do Mar Vermelho.

Encontraram Khalid no convés 4, no terraço da sua suíte privada. Vestia um blusão da TheNorth Face com o fecho apertado, umas calças de ganga desbotadas e uns elegantes mocassinsitalianos. O vento encrespava a superfície da pequena piscina e avivava as chamas do lume quecuspia e crepitava na lareira ao ar livre. Era a última remessa de lenha que restava, explicou. Deresto, estava bem fornecido de comida, combustível e água potável.

— Posso ficar no mar um ano ou mais se for necessário. — Esfregou as mãos vigorosamente.— Está frio esta noite. Talvez devêssemos entrar.

Conduziu-os à sua suíte. Era maior do que o apartamento de Gabriel em Jerusalém.— Deve ser agradável — comentou Gabriel, enquanto observava o quarto opulento. — Não

sei como é que consigo viver sem uma discoteca privada ou uma sala de neve.— Para mim não significam nada.— Isso é porque é filho de um rei. — Gabriel mostrou-lhe o dossiê que Yossi lhe tinha dado

no aeroporto. — Talvez pensasse de outra maneira se fosse apenas o meio-irmão do rei.— Suponho que viu os documentos que lhe dei em Jerusalém.— Usámo-los apenas como ponto de partida.— E para onde é que vos levaram?— Para aqui — disse Gabriel. — Para o Tranquillity.

O principal sistema pelo qual o reino da Arábia Saudita escoa a imensa riqueza procedente dopetróleo entre os membros da família real é o salário mensal oficial. No entanto, nem todos osmembros da família real são iguais. Um de quarta geração pode receber uma renda em dinheirode poucos milhares de dólares. Os que têm laços de sangue diretos com Ibn Saud recebem bemmais. Um neto do Fundador da dinastia recebe normalmente cerca de 27 000 dólares mensais;um bisneto, à volta dos 8000. Podem atribuir-se, para além disso, bonificações adicionais para aconstrução de um palácio, por exemplo, ou por causa de um casamento ou de um nascimento. NaArábia Saudita incentiva-se economicamente a natalidade, pelo menos para os membros dafamília real.

As remunerações mais altas estão reservadas aos poucos privilegiados que ocupam o topo dahierarquia: os filhos do Fundador. Teve quarenta e cinco ao todo, entre eles Abdullah binAbdulaziz. Antes da sua designação como príncipe herdeiro, recebia uma renda mensal de 250000 dólares, ou seja, três milhões por ano. Dinheiro mais do que suficiente para viver comcomodidade, mas não com luxos excessivos. Sobretudo, no recreio dos Al Saud em Londres e naCôte d’Azur. Para complementar os seus rendimentos, Abdullah desviava dinheiro diretamentedo orçamento do Estado ou recebia subornos e comissões de empresas ocidentais desejosas defazer negócios no reino. Uma empresa aeroespacial britânica tinha-lhe pagado vinte milhões de

dólares por «trabalhos de assessoria». Abdullah utilizou parte desse dinheiro — explicou Gabriel— para comprar uma casa esplêndida no número 71 de Eaton Square, em Belgravia.

— Pelo que sei, jantou lá há pouco tempo, não foi?Ao não receber resposta, Gabriel prosseguiu com o seu relatório. Abdullah — disse — tinha

boa mão para os outros negócios da família, ou seja, para as fraudes e os pequenos furtos, mas,em 2016, passou por graves dificuldades económicas devido a uma série de investimentos poucofelizes e de despesas questionáveis. Suplicou a Sua Majestade, o rei Mohammed, que lhe dessemais uns quantos riyals para fazer frente ao seu nível de vida. E, quando Sua Majestade serecusou, pediu um empréstimo ao seu vizinho do lado, o proprietário do número 70 de EatonSquare, um indivíduo chamado Konstantin Dragunov, Konnie Drag para os amigos.

— Lembra-se do Konstantin, não é verdade, Khalid? É o milionário russo que lhe vendeu estachalupa. Recorde-me quanto é que lhe pagou por ela — disse Gabriel fingindo-se pensativo.

— Quinhentos milhões de euros.— Em dinheiro, não foi? O Konstantin fez questão de que o dinheiro fosse transferido para as

suas contas do Gazprombank, em Moscovo, antes de abandonar o barco. Uns dias depois,emprestou ao seu tio cem milhões de libras. — Fez uma pausa. — Suponho que é isso quesignifica «reciclar» petrodólares.

Khalid ficou calado.— O tal Konstantin é um tipo interessante. Um oligarca de segunda geração, não um dos

barões que distribuíram a pilhagem da antiga União Soviética depois da queda do regime. Aocontrário de muitos oligarcas, o Konstantin tem diversificado os seus ativos. Mantém estreitasrelações com o Kremlin e nos círculos empresariais russos dá-se por certo que grande parte doseu dinheiro é, na realidade, do Czar.

— É assim que funcionam as pessoas como nós.— As pessoas como nós?— Como o Czar e eu. Funcionamos através de testas de ferro e homens de palha. Eu não sou o

proprietário nominal desta chalupa, como o Gabriel lhe chama, nem do château francês. —Olhou para Sarah. — Nem do Leonardo.

— E o que acontece quando as pessoas como o Khalid já não estão no poder?— O dinheiro e os brinquedos tendem a desaparecer. O Abdullah já me tirou vários milhares

de milhões. E o Leonardo — acrescentou.— Aposto que sobrevive. — Gabriel contemplou o panorama da costa egípcia. — Mas,

voltando ao seu tio, escusado será dizer que nunca devolveu os cem milhões de libras aoKonstantin Dragunov. Porque não se tratava de um empréstimo. E isso é só o princípio.Enquanto o Khalid se envolvia em intrigas palacianas em Riade, o Abdullah fazia negóciosmuito lucrativos em Moscovo. Nos últimos dois anos, ganhou mais de três biliões de dólaresgraças à sua colaboração com o Konstantin Dragunov, ou seja, com o presidente da Rússia.

— Porque lhe interessava tanto o Abdullah?— Suponho que queria ter um aliado dentro da Casa de Saud. Alguém que respeitasse pela sua

perspicácia política. Alguém que odiasse os americanos tanto como ele e que pudesse fazer deconselheiro de confiança de um futuro rei jovem e inexperiente. Em suma, alguém que pudesseconvencer o herdeiro da coroa a favorecer Moscovo e a contribuir, portanto, para estender ainfluência do Kremlin na região. — Gabriel virou-se e olhou para Khalid. — Alguém capaz de seoferecer voluntariamente para livrar o futuro rei de um clérigo intrometido ou de um jornalistacontestatário que tentava avisá-lo de que se estava a preparar um complô para o obrigar a

abdicar.— Está a querer dizer que o Abdullah conspirou com os russos para se apoderar do trono da

Arábia Saudita?— Não sou eu que digo, é o Omar Nawwaf. — Gabriel tirou do bolso a pen de Hanifa Khoury.

— Imagino que não haverá um computador neste barquinho, pois não?— Iate — disse Khalid. — Venha comigo.

Havia um iMac no escritório privado da suíte, mas Khalid teve a precaução de não deixar queo chefe do Departamento inserisse nele uma pen drive. Levou Gabriel para o centro de negócios,parecido com o do hotel, que ficava na parte de baixo do Tranquillity. Continha meia dúzia depostos de trabalho com computadores ligados à Internet, impressoras e telefones com váriaslinhas com acesso ao sistema de comunicação por satélite do barco.

Khalid sentou-se perante um dos terminais e inseriu a pen. Uma caixa pediu-lhe o nome deutilizador.

— Yarmouk — disse Gabriel.— Como o campo?— Os pais da Hanifa acabaram lá em 1948.— Sim, eu sei. Nós também temos um dossiê sobre ela. — O saudita introduziu o nome do

campo de refugiados e apareceu um ícone.— Omar — acrescentou Gabriel. — A password é Omar.

47

GOLFO DE AQABA

A reportagem tinha doze mil palavras e estava escrita num estilo fluido e expedito de umjornalista independente. A primeira cena descrevia um encontro fortuito com um príncipe sauditaexilado, no hall de um hotel do Cairo. Naquela noite, durante o jantar, o príncipe contou aorepórter uma história curiosa a respeito de um complô contra o futuro rei do seu país, quedescrevia num tom pouco lisonjeiro como «o homem mais interessante do mundo», emreferência à personagem de um anúncio de uma cerveja mexicana.

Seguia-se a crónica das averiguações que o jornalista fez para corroborar o que lhe tinhamcontado. Viajou de um lado para o outro para entrevistar diversas fontes da região, o que o levouinclusive ao Dubai, onde passou quarenta e oito horas angustiantes ao alcance dos serviçossecretos de Riade. Foi aí, numa suíte do Burj Al Arab, que uma fonte de confiança ligou aspontas soltas que Nawwaf tinha conseguido reunir e as transformou num relato coerente. KBM,afirmou a sua fonte, já não era bem recebido na corte saudita. A Casa Branca e os israelitasidolatravam-no, mas Khalid tinha prescindido da tradição dinástica de governar por consenso edesprezado a sua família. Era inevitável que houvesse um golpe de Estado palaciano ou algoparecido. O Conselho de Lealdade apoiava Abdullah, principalmente porque este pressionavasem cessar para ficar com o lugar.

E, ah, é verdade, dizia o informador de Nawwaf na reportagem, já te disse que é MoscovoCentro quem mexe os cordelinhos? O Czar tem o Abdullah na mão. Se conseguir ficar com otrono, inclinar-se-á tanto para o Kremlin que é provável que caia de bruços.

Do Dubai, o repórter voltou para Berlim, onde descobriu que a sua esposa, também jornalista,tinha comunicado em segredo com um membro da corte do príncipe herdeiro. Depois de muitasreflexões, descritas no documento final do artigo, Nawwaf tinha decidido viajar para a Turquiapara entrevistar o homem que o tinha empurrado para o exílio. O encontro devia ser celebrado noconsulado saudita em Istambul, à uma e um quarto da tarde.

— Então, era a Hanifa, não o Omar, que tentava entrar em contacto comigo?— Sim — respondeu Gabriel. — E foi ela quem convenceu o Omar a ir ao consulado. Culpa-

se pela sua morte. Quase tanto como o culpa a si.— Dançou sobre o meu túmulo quando abdiquei.— Estava no seu direito.— Deveria ter-me dito que a Reema corria perigo.— Tentou.

Khalid estava cansado de ler o longo artigo num ecrã de computador e tinha-se sentado à mesada sala de reuniões contígua com uma cópia impressa. Havia várias folhas no chão, aos seus pés,para onde as tinha atirado enfurecido.

— Se me odeia tanto, porque é que aceitou dar-lhe a obra-prima do Omar? — Recolheu umadas folhas e, franzindo a testa, releu-a. — Não acredito que se atreveu a escrever estas coisassobre mim. Chamava-me «menino mimado».

— O Khalid é um menino mimado. Mas o que é que me diz do resto?— Refere-se ao facto de o Czar estar por trás do complô para me destituir?— Sim, a isso.Khalid apanhou outra folha do chão.— Segundo as fontes do Omar, tudo começou depois da minha última visita a Washington,

quando aceitei investir cem biliões de dólares em armamento americano, em vez de comprar asarmas à Rússia.

— Parece possível.— Parece, sim, mas não é exato. — Fez-se um silêncio. Depois Khalid acrescentou com

calma: — De facto, se tivesse de avançar uma hipótese, diria que o Czar provavelmente decidiulivrar-se de mim muito antes.

— Porquê?— Porque tinha um plano para o Médio Oriente — respondeu o saudita. — Um plano do qual

eu não quis fazer parte.

Regressaram à sua suíte privada. No exterior, no terraço açoitado pelo vento, Khalid deitou areportagem de Omar Nawwaf pelos ares folha por folha. Quando por fim falou, foi sobreMoscovo. Viajou para lá pela primeira vez um ano antes de o nomearem príncipe herdeiro,recordou a Gabriel desnecessariamente. Acabava de tornar público o seu plano económico e aimprensa ocidental estava atenta a cada uma das suas palavras. Podia falar com o conselheirodelegado de qualquer empresa do mundo numa questão de minutos. Hollywood adorava-o. ESilicon Valley também.

— Foram dias maravilhosos. Dias de glória. Era o homem mais interessante do mundo —acrescentou em tom de gozo.

A agenda da sua visita a Moscovo, explicou, era puramente económica. Fazia parte dos seusesforços para conseguir a tecnologia e os investimentos de que precisava para que a economiasaudita deixasse de ser unicamente a grande gasolineira do mundo. Estava previsto, para alémdisso, que debatesse com os seus anfitriões russos a forma de elevar o preço do crude, que amuito custo se mantinha nos quarenta e cinco dólares por barril, um nível insustentável para aseconomias de ambos os países. No primeiro dia, reuniu-se com banqueiros russos e no segundocom os CEO de várias companhias tecnológicas russas que não o impressionaram favoravelmente.A sua entrevista com o Czar estava prevista para as dez da manhã do terceiro dia, uma sexta-feira, mas só começou à uma da tarde.

— Até eu pareço pontual comparado com ele.— Como é que correu a reunião?— Foi horrível. Escarrapachou-se no cadeirão de perna aberta. Os seus assistentes

interrompiam-nos continuamente e ele desculpou-se três vezes para atender telefonemas. Era um

jogo de poder, claro. Uma artimanha para me pôr no lugar. Eu era o filho de um rei árabe. Umzé-ninguém para o Czar.

De maneira que ficou surpreendido quando, ao acabar a gélida reunião, o Czar o convidoupara passar o fim de semana no seu palácio do Mar Negro, onde entre muitas comodidades haviauma piscina coberta banhada a ouro. Destinaram a Khalid uma ala completa do palácio, mas oseu séquito teve de se distribuir entre diversas casas de hóspedes. Da esposa e dos filhos do Czarnão havia nem sinal. Só estavam eles os dois.

— Tenho de reconhecer — disse Khalid — que não me sentia totalmente seguro estandosozinho com ele.

Passaram o sábado de manhã a relaxar junto da piscina — foi no verão de 2016 — e à tardesaíram para navegar. Naquela noite jantaram num salão imenso decorado em tons de marfim eouro. Depois, deram um passeio até uma pequena casa de campo situada sobre uma falésia comvista para o mar.

— Foi então que me falou disso.— De quê?— Do grande plano. Do seu projeto.— Para quê?Khalid pensou um momento.— Para o futuro.— E em que é que consistia esse futuro?— Por onde é que quer que comece?— Já que foi no verão de 2016 — respondeu Gabriel —, acha que pode começar pelos Estados

Unidos?O Czar, contou Khalid, tinha grandes esperanças nas eleições presidenciais americanas desse

outono. Para além disso, confiava que os tempos da hegemonia americana no Médio Orienteestivessem a acabar. Os americanos tinham metido a pata na poça no Iraque e tinham pagado umpreço alto, tanto em vidas humanas como em recursos. Estavam ansiosos por deixar para trástoda aquela região, com os seus problemas inextrincáveis. O Czar, pelo contrário, metera-se nabatalha pela Síria. Fora em auxílio de um velho amigo e, de passagem, informara implicitamenteo resto da região de que era Moscovo, e não Washington, a quem se podia recorrer no caso de severem em apuros.

— Queria que se distanciasse dos americanos e se aproximasses de Moscovo?— Não, isso não é nada — respondeu Khalid. — O que o Czar pretendia era formar uma

aliança. Disse que o Ocidente estava a dar as últimas, em parte porque ele fazia tudo o que estavaao seu alcance para semear a divisão social e o caos político onde podia. Disse que o futuro era aEurásia, com as suas imensas reservas de energia, água e população. Rússia, China, Índia,Turquia, Irão…

— E a Arábia Saudita?Khalid assentiu.— Juntos, íamos dominar o mundo. E o melhor de tudo era que jamais me daria um sermão

sobre democracia e direitos humanos.— Como é que conseguiu recusar essa oferta?— Foi muito fácil. Queria tecnologia e assessoria americanas para impulsionar a minha

economia, não russas. — Animou-se de repente, como o KBM de antigamente. — Diga-me umacoisa, qual foi o último produto russo que comprou? O que é que exportam, para além de vodka,

petróleo e gás?— Madeira.— A sério? Talvez devêssemos começar a exportar areia. Assim resolver-se-iam todos os

nossos problemas.— Deu a sua opinião ao Czar?— Sim, claro.— Como é que ele reagiu?— Olhou-me com aqueles olhos apagados e disse-me que tinha cometido um erro.— Uns meses depois voltou a Moscovo com o seu pai e anunciou um pacto para subir o preço

do petróleo. Para além de comprar um sistema de defesa aérea russo.— Pretendíamos cobrir as nossas costas, mais nada.— E então há aquele ridículo aperto de mãos que o Khalid e o Czar deram em Buenos Aires…

Parecia que tinham marcado o golo da vitória no Mundial.— Sabe o que é que me sussurrou ao ouvido quando nos sentámos? Perguntou-me se tinha

tido ocasião de reconsiderar a sua oferta.— O que é que lhe respondeu?— Para dizer a verdade, não me lembro. Mas, evidentemente, não foi a resposta correta. Duas

semanas depois, sequestraram a Reema. — Khalid passeou o olhar por aquele gigantesco navioque, na verdade, não era seu. Voltou a esfregar as mãos como se tentasse tirar uma mancha. —Suponho que isto significa que nunca poderei vingar a sua morte.

— Porque é que diz isso?— O Czar é o homem mais poderoso do mundo, não o esqueçamos. E quase com toda a

segurança a mulher que nos conduziu àquele campo em França era uma agente russa.— O homem que detonou a bomba também o era. Mas o que é que quer dizer exatamente?— Que voltaram para Moscovo. Nunca os vai encontrar.— Pode ser que se surpreenda. E, para além disso, a vingança pode adotar múltiplas formas —

concluiu Gabriel.— Outro provérbio judeu?Gabriel sorriu.— Quase.

48

NOTTING HILL, LONDRES

Às cinco e meia de uma tarde chuvosa em Londres, Gabriel Allon, diretor-geral dos serviçossecretos israelitas, fez soar o pesado puxador do andar seguro de St. Luke’s Mews, no bairro deNotting Hill. Abriu-lhe a porta um homem de quarenta anos e com um ar juvenil que fez questãode o chamar de «Mister Mudd». Encontrou Graham Seymour na sala de estar estreita, a olharpara a televisão com uma expressão de desalento. O plano do primeiro-ministro, JonathanLancaster, para tirar o Reino Unido da União Europeia conforme a vontade do eleitoradobritânico acabava de sofrer uma humilhante derrota na Câmara dos Comuns.

— É a pior sova que um governante britânico recebeu nas últimas décadas — começouSeymour a dizer sem afastar os olhos do ecrã. — Não há dúvida de que o Jonathan terá deenfrentar uma moção de censura.

— Vai sobreviver?— Provavelmente. Embora depois disto não haja garantias. Se este governo cair, é provável

que a vitória nas próximas eleições seja para os trabalhistas. O que significa que terás de lidarcom o primeiro-ministro mais anti-israelita da história da Grã-Bretanha.

Seymour aproximou-se do carrinho das bebidas — um novo aditamento do andar seguro — edeitou um punhado de gelo num copo de vidro lavrado. Mostrou uma garrafa de Beefeater aGabriel, que declinou com um gesto.

— O Nigel tem uma garrafa de Sancerre no frigorífico.— É um pouco cedo para mim, Graham.Seymour olhou para o seu relógio com a testa franzida.— Pelo amor de Deus, mas já passa das cinco. — Serviu-se de uma boa quantidade de gin e

acrescentou um pouco de água tónica e uma rodela de limão. — Tchim-Tchim.— Brindamos a quê?— À morte de uma nação que no passado foi grande. E ao fim da civilização ocidental tal

como a conhecemos. — O inglês deu uma vista de olhos à televisão e abanou a cabeçalentamente. — Os malfadados russos devem estar a adorar…

— Tal como a Rebecca.Seymour assentiu devagar.— Essa mulher aparece-me em sonhos. Que Deus me perdoe o que vou dizer, mas às vezes

desejaria que tivesses deixado que ela se afogasse naquela manhã no Potomac.— Que tivesse deixado que se afogasse? Era eu quem lhe segurava a cabeça debaixo de água,

lembras-te?— Deve ser horrível. — Seymour observou-o atentamente um pouco. — Quase tão horrível

como o que aconteceu em França. Até o Christopher parecia assustado quando voltou. Tens sortepor estares vivo, suponho.

— Tal como o Khalid.— Não temos notícias dele desde que abdicou.— Está a bordo do seu iate, em frente de Sharm el-Sheikh.— Coitadinho. — Na Câmara dos Comuns, Jonathan Lancaster tinha-se posto de pé para

reconhecer a magnitude da derrota que acabava de sofrer e as bancadas da oposição tinhamcomeçado a apupá-lo sem piedade. Seymour apontou com o comando para o ecrã e desligou ovolume. — Oxalá fosse assim tão fácil. — Com o copo na mão, voltou a ocupar o seu assento.— Mas nem tudo corre assim tão mal. Graças a ti, esta manhã tive uma reunião muito agradávelcom o meu ministro.

— A sério?— Mostrei-lhe esses documentos sobre o programa nuclear iraniano que me deste. E ele

fechou a pasta quase sem olhar para ela e mudou de assunto. Queria falar do Abdullah.— O que é que queria saber sobre ele?— Até onde pensa chegar para acalmar os fanáticos religiosos? Vai voltar a jogar o jogo duplo

de antes em relação aos jihadistas e ao terrorismo islâmico? Vai ser um pilar da estabilidade naregião ou propõe-se semear o caos? Embora, sobretudo, o ministro queira saber se, dados os seusestreitos laços com Londres, o Abdullah nos preferirá a nós, em vez dos americanos.

— Ou seja, queres vender ao Abdullah tantos aviões de combate quantos estivera disposto acomprar, à margem do que isso implique para a segurança do meu país.

— Mais ou menos. Estamos a pensar em adiantar-nos aos americanos e convidá-lo para vir aLondres numa visita oficial.

— Parece-me uma ideia maravilhosa que visite Londres. Mas temo que perderam aoportunidade de conquistar o Abdullah.

— Porquê?— Porque já está comprometido.— A porra dos americanos — murmurou Seymour.— Oxalá fossem eles.— De que estás a falar?Gabriel pegou no comando e subiu o volume do televisor ao máximo.

Envolvido pela tagarelice da democracia parlamentar britânica, Gabriel contou a GrahamSeymour tudo o que tinha acontecido desde a noite do assassinato de Reema em França. Khalid,disse-lhe, tinha posto à sua disposição documentos relativos ao súbito enriquecimento do seu tioAbdullah. Usando esses documentos, os analistas do Departamento tinham descoberto asligações financeiras que uniam Abdullah e um tal Konstantin Dragunov, um oligarca russoamigo do Czar. Para além disso, Gabriel tinha conseguido uma reportagem inédita de OmarNawwaf na qual o jornalista saudita afirmava que os serviços secretos russos estavam implicadosnum complô para destituir Khalid e colocar Abdullah no seu lugar. Fora este quem tinhaaconselhado Khalid a matar Nawwaf e quem se tinha ocupado dos detalhes mais sórdidos doassassinato na sua mansão de Belgravia. Através de um intermediário, tinha atraído Nawwaf ao

consulado saudita em Istambul com a promessa de que Khalid estaria à sua espera lá dentro.Naquela noite, enquanto os assassinos de Nawwaf se desfaziam do seu cadáver esquartejado, osagentes russos entraram no quarto do jornalista no Hotel Intercontinental e no seu apartamentoem Berlim e levaram os seus computadores, os seus dispositivos de armazenamento portáteis eos seus apontamentos.

— Quem é que te disse isso?— A Hanifa Khoury.— A mulher do Nawwaf?— A sua viúva — disse Gabriel.— Como é que sabe que eram agentes russos?— Não sabe. De facto, dá por certo que eram sauditas.— E porque é que não haveriam de ser sauditas?— Porque, se os que saquearam o quarto do hotel e o apartamento de Nawwaf fossem agentes

sauditas, o artigo do Omar teria acabado nas mãos do Khalid. E ele desconhecia-o até eu lhomostrar.

Seymour regressou para junto do carrinho e serviu-se de outro copo.— Então, estás a dizer-me que a desculpa do KBM é que o tio Abdullah o levou a matar o

Omar Nawwaf?Gabriel ignorou o sarcasmo do britânico.— Sabes o que é que aconteceria no Médio Oriente se a Rússia, o Irão e os chineses

afastassem os Estados Unidos no Golfo Pérsico?— Seria catastrófico. Por isso nenhum governante saudita no seu perfeito juízo se atreveria a

quebrar a ligação entre Riade e Washington.— A não ser que esse governante estivesse em dívida para com o Kremlin. — Gabriel

aproximou-se da porta de vidro que dava para o jardinzinho da casa. — Alguma vez teapercebeste de que o Abdullah convivia com um amigo íntimo do Czar?

— Sim, tínhamos reparado nisso, mas, na verdade, não lhe demos muita importância. OAbdullah é um zé-ninguém.

— Mas já não é, Graham. É o herdeiro ao trono.— Sim. E quando Sua Majestade morrer, o que provavelmente acontecerá dentro de pouco

tempo, será rei.Gabriel virou-se para ele.— Não, se conseguir fazer alguma coisa para o impedir.Seymour lançou-lhe um meio sorriso.— Achas mesmo que podes escolher o próximo rei da Arábia Saudita?— Não necessariamente. Mas não penso permitir que um ventrículo dos russos suba ao trono.— E como te propões impedi-lo?— Suponho que poderia simplesmente matá-lo.— Não podes matar o futuro rei da Arábia Saudita.— Por que não?— Porque seria imoral e porque estarias a infringir o direito internacional.— Nesse caso — disse Gabriel —, suponho que teremos de encontrar alguém que o mate por

nós.

49

VAUXHALL CROSS, LONDRES

Uma semana depois, enquanto em Westminster se celebrava um amargo debate a respeito damelhor maneira de cometer um suicídio nacional, o governo britânico conseguiu convidar SuaAlteza Real o príncipe Abdullah a viajar para Londres em visita oficial. Passaram cinco dias semque tivesse resposta, tempo suficiente para que o gélido vento da dúvida percorresse oscorredores dos Negócios Estrangeiros e as salas secretas de Vauxhall Cross e da Avenida ReiSaul. Quando, por fim, chegou a resposta dos sauditas — entregue por um mensageiro da cortena embaixada britânica em Riade —, o governo londrino respirou aliviado. Marcou-se a data davisita para início de abril. A BAE Systems e o resto dos fornecedores do Ministério da Defesabritânico estavam encantados. Os seus homólogos americanos, nem tanto. Os comentadorestelevisivos interpretaram a cimeira anglo-saudita como um gesto de rejeição à política daadministração americana no Médio Oriente. Washington tinha apostado decididamente por umpríncipe jovem e inexperiente, impulsivo e cobiçado. Agora, o jovem príncipe tinha desaparecidodo mapa e a Grã-Bretanha, apesar de estar dividida e murcha, tinha tomado a iniciativa revelandoalgum brilhantismo diplomático. Nem tudo está perdido, declarou o The Independent. Talvezainda tenhamos salvação.

No entanto, Charles Bennett não partilhava do entusiasmo da imprensa pela visita iminente deAbdullah, sobretudo porque ninguém o tinha avisado de que se estava a preparar uma cimeira ouque Downing Street e o Foreign Office tivessem essa intenção. Aquilo violava o protocolo. Sealguém nos círculos ministeriais de Londres precisava de saber antecipadamente que sepreparava uma visita do rei, era precisamente o supervisor para o Médio Oriente do MI6. O seutrabalho consistia em proporcionar ao primeiro-ministro grande parte da informação privilegiadaque veria antes de reunir com Abdullah. Que tipo de homem era? Quais eram as suas convicçõesmais profundas? Ia ser um parceiro de confiança na luta contra o terrorismo? Quais eram as suasintenções em relação ao Iémen e aos catarianos? Podiam confiar nele? Podiam manipulá-lo?

Agora, Bennett teria de preparar depressa e a correr as apreciações e os relatórios necessários.A seu ver, era demasiado cedo para convidar Abdullah para Downing Street. Ainda não setinham acalmado as águas depois da turbulenta abdicação de Khalid e Abdullah já estava a aboliras suas reformas. Era preferível esperar até que a situação estabilizasse. Esse teria sido o seuconselho. Sabia, contudo, porque é que Jonathan Lancaster tinha tanta pressa para reunir comAbdullah. O primeiro-ministro precisava de entrar um pouco na política exterior. E claro, tinhade pensar também nas relações comerciais. A BAE Systems e companhia queriam falar com

Abdullah antes de os americanos lhe deitarem a mão.Bennett afastou o olhar do seu iPhone pessoal quando o comboio das 7h12 procedente de

Stoke Newington entrou na estação de Liverpool Street. Como de costume, saiu do vagão emúltimo lugar e deu um longo passeio antes de sair para a rua. Lá fora, em Bishopsgate, ainda nãoera completamente de dia. Caminhou até ao rio e chegou a Southwark atravessando a Ponte deLondres.

De Borough Market, demorava vinte minutos a chegar ao escritório caminhando a bom passo.Gostava de variar de rota. Nesse dia foi por St. George’s Circus e Albert Embankment. Bennetttinha cinquenta e dois anos, media cerca de um metro e oitenta e era magro como um corredor demaratona, de cabelo ralo, faces magras e olhos fundos. O seu fato e o seu casaco não erampropriamente da Savile Row, mas devido à sua magreza assentavam-lhe como uma luva. Tinha onó da gravata feito com esmero e os seus sapatos de atacadores reluziam como se acabasse de osengraxar. Talvez um espectador avisado tivesse advertido uma certa desconfiança vigilante noseu olhar, mas, tirando isso, nada na sua roupa ou na sua aparência física permitia supor que sedirigia à horrenda cidadela da espionagem que se erguia junto a Vauxhall Bridge.

Nunca tinha gostado do edifício. Preferia a antiga e sombria Century House, a anódina torre deescritórios de vinte andares à qual tinha chegado, sendo ainda um novato, nos derradeiros dias daGuerra Fria. Como todos os aprendizes da sua altura, ele não pediu para trabalhar para osserviços secretos. Uma pessoa não solicitava participar no clube mais exclusivo da Grã-Bretanha:convidavam-no a juntar-se a ele, e só se viesse de uma família bem posicionada, se tivesse certoscontactos e um título universitário decente tirado em Oxford ou Cambridge. No seu caso, emCambridge, onde tinha estudado história e línguas do Médio Oriente. Ao chegar ao MI6, falavaárabe e persa com fluência e, depois de completar o IONEC — o rigoroso curso de treino dadono Forte Monckton, a escola do MI6 para aspirantes a espiões —, foi destinado ao Cairo com amissão de recrutar agentes e ser responsável pela sua supervisão.

Atracou mais tarde em Amã, Damasco e Beirute, e posteriormente foi nomeado chefe dadelegação em Bagdade. Relatórios incorretos ou enganosos procedentes de vários dos seuscolaboradores iraquianos fizeram parte do célebre Dossiê de Setembro que o governo de Blairusou para justificar a sua participação na guerra promovida pelos Estados Unidos para derrubarSaddam Hussein. Isto, no entanto, não interrompeu a carreira de Bennett, que foi destinado aRiade, novamente como chefe de delegação, e em 2012 foi promovido a supervisor para o MédioOriente, um dos lugares mais importantes do serviço.

Bennett entrou abertamente em Vauxhall Cross desde Albert Enbankment e teve de seidentificar e suportar um registo minucioso para que permitissem que passasse do hall deentrada, como ditavam as novas medidas de segurança. Desde a deserção de Rebecca Manning, asuspeita espalhava-se como a peste sobre o edifício. Os agentes mal falavam entre si ouapertavam a mão com medo de contraírem a temida doença. Não entrava nem saía dali nenhumainformação importante que os seus clientes do outro lado do rio não pudessem encontrar aolerem as páginas do The Economist. Apesar de, durante a sua carreira, só se ter cruzadofugazmente com Rebecca, Bennett, como todos os seus colegas, teve de comparecer perante acomissão de investigação, que, depois de o submeter durante horas a um interrogatórioexaustivo, lhe deu a sua aprovação. Ou pelo menos foi isso que lhe disseram, porque Bennett jánão confiava em ninguém no MI6, e muito menos nos cães de guarda da comissão.

Quando conseguiu deixar para trás o hall de entrada, e depois de usar o cartão deidentificação, o teclado numérico e passar pelo scanner de retina, chegou finalmente ao seu

escritório. Ao entrar, fechou a porta, ligou o candeeiro da mesa e pendurou o casaco no cabide. Odisco duro do seu computador estava fechado à chave no cofre do escritório, conforme oregulamento. Inseriu-o no computador e estava a dar uma vista de olhos às comunicações dessanoite quando o telefone interno tocou. O pequeno ecrã informou-o de que quem ligava era NigelWhitcombe, o comissário e braço direito do chefe. Whitcombe tinha chegado a Vauxhall Crossprocedente do MI5. Só por esse motivo, Bennett detestava-o.

Colocou o telefone ao ouvido.— Sim?— O C quer falar contigo.— Quando?O telefonema terminou. Bennett levantou-se, endireitou o casaco e passou a mão pelo cabelo

com nervosismo. Meu Deus, não tens um encontro amoroso com ele! Dirigiu-se aos elevadores eentrou no primeiro que subia. Whitcombe estava à espera dele quando as portas se abriram.

— Bom dia, Bennett — disse com um sorriso de circunstância.— Nigel.Entraram juntos no escritório de Graham Seymour, com a sua escrivaninha de mogno — que

todos os seus predecessores tinham usado —, as suas altíssimas janelas com vistas para o Tamisae o seu imponente relógio de pêndulo, construído nada mais nada menos do que por SirMansfield Smith-Cumming, o primeiro chefe dos serviços secretos britânicos. Seymour estava aanotar algo na margem de um documento com uma caneta Parker. A tinta era verde, a correservada para o chefe.

Bennett ouviu um barulho e, ao virar-se, viu que Whitcombe saía discretamente da sala.Seymour levantou o olhar como se o surpreendesse encontrar ali Bennett e deixou a caneta sobrea mesa. Levantou-se revelando toda a sua estatura, saiu de trás da mesa de escritório com a mãoestendida para ele como uma baioneta.

— Olá, Charles. Fico feliz por teres vindo. Acho que chegou o momento de te informar deuma operação especial que está em andamento há algum tempo. Lamento não te ter contado atéagora, mas as coisas são mesmo assim.

Naquela noite, Bennett bebeu um whisky puro no salão privado do MI6 e saiu de VauxhallCross a tempo de apanhar o comboio que partia às 19h30 da estação de Liverpool Street. Ovagão no qual entrou estava cheio. De facto, só havia um lugar livre, ao lado de um homem comparka e boina preta que parecia a prestes a tirar um exemplar de O Capital da sua mala de courogasto. Bennett nunca o tinha visto no comboio das 19h30, que apanhava com frequência.

Fizeram o trajeto de treze minutos até Stoke Newington em silêncio. Bennett saiu primeiro dovagão e subiu as escadas da plataforma até à caixa de vidro que fazia de bilheteira da estação.Esta estava situada numa pracinha triangular de Stamford Hill, junto a um estabelecimentobancário que atendia essencialmente a comunidade de imigrantes do bairro e a uma cafeteriachamada Kookies. Um homem e uma mulher de pouco mais de quarenta anos, ambos louros,bebiam batidos sentados a uma mesa cor de vinho.

O homem da boina saiu da estação segundos depois de Bennett e foi direito ao Salão do Reinode Willow Cottages. Bennett, por sua vez, seguiu pelo passeio de Stamford Hill, ladeado porestabelecimentos comerciais: o Princess Curtains, o Bedding Palace, o Perfect Shirt, o StokeyKaraoke e o New Chinese House, que tinha substituído o antigo restaurante chinês, o King’s

Chicken, pelo qual Bennett nutria uma certa afeição. Ao contrário de muitos dos seus colegas,Bennett não vinha de uma família abastada. Os bairros elegantes como Notting Hill e Hampsteaderam demasiado caros para um homem que vivia apenas do seu salário. Gostava, para alémdisso, de que Stoke Newington conservasse ainda aquele ambiente de aldeia. Às vezes, até a elelhe custava acreditar que a agitação de Charing Cross ficava apenas a oito quilómetros dali emdireção a sul.

As lojas e os restaurantes de Church Street eram de melhor categoria. Bennett, aparentementelevado por um impulso, entrou na florista e comprou um ramo de jacintos para a sua esposa,Hester. Levou as flores na mão direita enquanto caminhava pelo lado sul da rua até à esquina deAlbion Road. Uma luz quente saía das janelas do Rose & Crown, iluminando dois viciados emnicotina que estavam sentados na única mesa que havia no passeio. Bennett reconheceu umdeles.

Virou para Albion Road e seguiu a rua até aos apartamentos de habitação social de HawksleyCourt, com as suas fachadas de tijolo vermelho. Uma mulher vinha em sentido contrárioempurrando um carrinho de bebé. Fora isso, o passeio estava deserto. Bennett ouvia o eco dosseus próprios passos. O intenso cheiro dos jacintos estava a irritar o seu conduto nasal. Porque éque tinham de ser jacintos? Porque não prímulas ou tulipas?

Pensou na sua reunião daquela manhã no andar de cima de Vauxhall Cross e na operação daqual o chefe tinha decidido, finalmente, informá-lo. Ao saber que o príncipe Abdullah, o futurorei da Arábia Saudita, colaborava há muito tempo com o MI6, Bennett fingira-se ofendido eindignado. Graham, como é que me escondeste tanto tempo uma operação tão importante? Éinadmissível. Ainda assim, a sua audácia tinha-lhe parecido admirável. Afinal de contas, talvez ovetusto serviço de espionagem não estivesse de todo moribundo.

Mais para lá de Hawksley Court, Albion Road tornava-se de repente próspera. Bennett vivianuma bonita casa de três andares com um jardim rodeado por um muro na parte da frente.Pendurou o casaco no pequeno hall e entrou na sala de estar. Hester estava deitada no sofá, nacompanhia do novo livro do inspetor Rebus e de um copo grande de vinho branco. O rádio Boseemitia uma música entediante. Fazendo uma careta, Bennett desligou-o.

— Estava a ouvir. — Hester levantou o olhar do livro e franziu a testa. — Flores de novo? É aterceira vez este mês.

— Não sabia que andavas a contar.— O que é que fiz para que me tragas flores?— Não te posso dar flores sem qualquer motivo, querida?— Desde que não andes a fazer nenhuma tolice…Hester voltou a fixar os olhos na página. Bennett deixou as flores na mesinha e entrou na

cozinha para ver se havia alguma coisa para jantar.

50

HARROW, LONDRES

Não era verdade que Charles Bennett nunca tivesse apanhado o mesmo comboio vespertinopara Stoke Newington do que o homem da boina. De facto, tinham partilhado o vagão nocomboio das 19h30 outras duas vezes anteriormente. E várias outras vezes no sentido contrário;naquela mesma manhã, sem ir mais longe, embora, nessa altura, o homem vestisse um fato pretocom colarinho, típico dos padres católicos. Em Bishopsgate, um mendigo tinha-lhe pedido abênção e ele dera-lha com dois gestos despachados com a mão direita; o primeiro na vertical e osegundo na horizontal.

Charles Bennett não tinha culpa de não ter reparado nele. Aquele homem era Eli Lavon, oartista de vigilância de rua mais excelso do Departamento, um predador nato capaz de seguir umagente secreto altamente qualificado ou um terrorista veterano por qualquer rua do mundo semninguém reparar nele. Ari Shamron tinha dito uma vez que Lavon podia desaparecer enquanto teaperta a mão. Era um exagero, mas só ligeiramente.

Apesar de ser o chefe de divisão, Lavon preferia conduzir pessoalmente as suas tropas nocampo de batalha, tal como o seu diretor-geral. Para além disso, Charles Bennett era um casoespecial. Era agente de um serviço secreto que às vezes se contava entre os aliados de Israel e noqual a espionagem russa tinha conseguido introduzir um infiltrado ao mais alto nível. Bennetttinha sobrevivido ao interrogatório da comissão de investigação, mas uma sombra de suspeitapairava sobre ele, principalmente porque os serviços secretos britânicos tinham perdido dois dosseus mais importantes colaboradores na Síria nos últimos tempos. Quase todos os membros dacomissão achavam que a culpa era de Rebecca Manning, mas continuava a ser um verdadeiromistério, no qual se incluía o próprio C, que ainda suspeitava de Bennett. De facto, inclusivehavia alguns que defendiam que fosse pendurado de cabeça para baixo na Torre até queconfessasse que era um vil espião russo. Queriam, no mínimo, que fosse retirado do cargo eenviado para algum canto, onde não pudesse fazer mal a ninguém. O chefe, no entanto, impôs oseu critério ao declarar que Bennett continuaria no seu lugar até que a situação fosseinsustentável. Ou, melhor, até que ele tivesse a oportunidade de desfazer parte do dano que fizeraao seu serviço de espionagem. Um velho amigo tinha-lhe dado aquela oportunidade num andarseguro de Notting Hill. Daí que naquela manhã, Seymour se tivesse reunido com Bennett para oinformar do papel que desempenhava certo membro da corte saudita que estava a ponto deascender ao trono. Bennett era agora o único depositário de um segredo de vital importância,embora falso.

Mas também conhecia as táticas e acaso inclusive as identidades dos peritos em vigilância doseu serviço. Por isso, Seymour tinha confiado a sua vigilância física ao Departamento. Naquelanoite, seguiam-lhe a pista doze agentes israelitas, inclusive Eli Lavon que, depois do seu brevepasseio pelo Salão do Reino, onde o tinham recebido de braços abertos, o seguira por StanfordHill até Church Street. Aí vira-o comprar um ramo de jacintos na florista Evergreen &Outrageous. Tomou nota de que, ao sair da loja, Bennett mudou as flores da mão esquerda para adireita de maneira que, ao contornar a esquina de Albion Road, o ramo fosse claramente visívelpara qualquer pessoa que estivesse à porta do Rose & Crown. Os dois homens sentados à frentedo pub naquela noite não prestaram atenção a Lavon, mas um deles pareceu olhar fixamente paraBennett quando passou. Lavon, sussurrando ao minúsculo microfone que trazia no pulso,mandou seis membros da sua equipa seguirem-no quando saísse do pub.

Ele continuara a andar em linha reta pela Church Street até à antiga câmara e depois tinhadado meia-volta e tinha regressado a Stamford Hill. Mikhail e Sarah Bancroft tinham saído docafé Kookies e esperavam por ele num Ford Fiesta, no parque de estacionamento dosupermercado Morrisons. Lavon deixou-se cair no banco de trás e fechou a porta sem fazerbarulho.

— E então? — perguntou Mikhail.Lavon não respondeu. Estava a ouvir a conversa da sua equipa pelo auscultador. Iam pelo bom

caminho, disse a si próprio. Não tinha dúvida, iam pelo bom caminho.

A casa tinha vista para o Clube de Golfe de Grims Dyke, em Harrow. Era uma mansão deestilo Tudor com numerosas alas e torres, rodeada de árvores frondosas, e chegava-se a elaseguindo uma longa avenida privada. Com uma só mensagem de texto para Khalid, Gabrieltinha-a apresentado aos serviços secretos britânicos, que andava muito necessitado de andares ecasas seguros. Tinha oito quartos e um imenso salão que servia de centro de operações. Agentesisraelitas e britânicos trabalhavam lado a lado em duas longas mesas de cavalete. Váriastelevisões de ecrã plano mostravam imagens de câmaras de segurança de rua. Os rádioscrepitavam continuamente, dando parte do avanço da operação em inglês com pronúnciahebraica e britânica.

Por insistência de Gabriel, não se podia fumar no centro de operações, nem em nenhuma outradivisão da casa; só no jardim. Também não se podia pedir comida a domicílio. Compravam naloja Tesco que havia mais abaixo na mesma rua, em Pinner Green, e comiam juntos sempre queera possível. Graças a isso chegaram a conhecer-se bastante bem. Era esse o perigo de qualqueroperação conjunta: a exposição de pessoal e táticas perante um serviço estrangeiro. Gabriel, emespecial, pagou um preço alto relativamente a sentinelas e a outros agentes de campo, a maioriados quais não poderia voltar a trabalhar na Grã-Bretanha, pelo menos numa missão secreta.

Os britânicos, contudo, conheciam já parte dos seus colaboradores — entre eles, Sarah,Mikhail e Eli Lavon —, de outras operações similares. Eram oito e meia quando regressaram aHatch End. Ao entrar, reuniram-se com Gabriel, Graham Seymour e Christopher Keller à frentede um ecrã que emitia as imagens de uma câmara de segurança situada em frente à entrada daestação de metro de Arsenal em Gillespie Road. O homem do Rose & Crown estava parado juntodo quiosque, ao lado da entrada da estação. Se tivesse ido diretamente para ali a seguir ao pub,teria demorado quinze minutos no máximo. Mas, em vez disso, tinha optado por uma rotatortuosa, cheia de desvios absurdos e ziguezagues, que tinha obrigado cinco das sentinelas mais

experientes de Eli Lavon a abandonar a perseguição.Um agente, no entanto, conseguiu seguir o homem até ao interior da estação e apanhar o

mesmo comboio da linha de Piccadilly até Hyde Park Corner. Ao sair do metro, o desconhecidofoi por Mayfair e pôs de novo em prática uma série de manobras de contravigilância quefinalmente obrigaram o último agente de Lavon a desistir. De qualquer forma era indiferente: ascâmaras do orwelliano sistema de segurança de Londres nunca pestanejavam.

Seguiram o homem pelas ruas de Mayfair até Marble Arch e depois para oeste por BayswaterRoad, onde passou debaixo das janelas às escuras do andar seguro do Departamento conhecidocarinhosamente como o pied-à-terre de Gabriel. Momentos depois atravessou a rua por onde nãodevia, meteu-se em Hyde Park e desapareceu. Graham Seymour mandou os técnicos ligar ascâmaras de Kensington Palace Gardens e às 21h18m43s viram o homem a entrar na embaixadarussa. Os técnicos compararam a sua fotografia com a base de dados. O programa dereconhecimento facial identificou-o como Dmitri Mentov.

— Um zé-ninguém da secção consular — disse Graham Seymour.— Não há zé-ninguéns na embaixada russa — replicou Gabriel. — É um agente encoberto do

SVR. E acaba de entrar em contacto com o teu supervisor para o Médio Oriente.Nas duas longas mesas de cavalete, a notícia de que outro cargo do MI6 podia estar a trabalhar

para os russos não produziu reação alguma, para além do barulho dos teclados e o crepitarelétrico das rádios de segurança. Estavam no bom caminho, sim. Estavam no bom caminho.

51

EPPING FOREST, ESSEX

Quando Charles Bennett saiu de sua casa em Albion Road às nove e meia no sábado demanhã, vestia um impermeável azul-escuro e umas calças de secagem rápida. Trazia penduradaao ombro uma mochila de nylon e na mão direita uma bengala preta. Apaixonado porcaminhadas, Bennett tinha percorrido a pé grande parte das Ilhas Britânicas. Aos fins de semananormalmente tinha de se conformar em fazer algum dos muitos caminhos que havia à volta dossubúrbios de Londres. Hester, para quem a jardinagem era um tipo de desporto, nunca oacompanhava. Ele não se importava: preferia ir sozinho. Nesse aspeto, pelo menos, ele e Hestereram perfeitamente compatíveis.

Naquela manhã, Bennett tinha como destino o trilho dos carvalhos de Epping Forest, aantiquíssima mata que se estendia de Wanstead, no leste de Londres, até Essex a norte. Ocaminho ziguezagueava através de dez quilómetros e meio pelos confins setentrionais da floresta,perto do município de Theydon Bois. Bennett foi até lá no carro de fabrico sueco da sua esposa.Estacionou na estação de metro e, contrariando as ordens, deixou o BlackBerry do MI6 no porta-luvas. Depois, com a bengala na mão e a mochila às costas, começou a andar por Coppice Row.

Passou à frente de duas lojas e restaurantes e deixou para trás a câmara municipal e a igrejaparoquial. Uma fina capa de nevoeiro pendia sobre Theydon Plain como o fumo de uma batalhalongínqua. Depois, Bennett entrou na mata. O caminho era largo e a direito e estava coberto defolhagem. À frente dele, uma mulher de uns quarenta anos saiu de entre as sombras e, sorrindo,deu-lhe os bons dias. Recordou-lhe a Magda.

Magda…Tinha-a conhecido no Rose & Crown uma noite que entrou para beber uma cerveja, em vez de

voltar logo para casa, para os braços gélidos de Hester. Acabava de emigrar da Polónia, ou pelomenos foi o que disse. Era uma mulher bonita, divorciada há pouco tempo, de pele branca eluminosa, boca grande e sorriso fácil. Disse que estava à espera de alguém — «de uma amiga,não de um homem»— e que a sua amiga estava atrasada. Bennett suspeitou logo. Ainda assim,bebeu um segundo copo com ela. E quando a «amiga» mandou uma mensagem a dizer que tinhade cancelar o encontro, ele aceitou acompanhá-la a casa. Magda levou-o a Clissold Park eempurrou-o contra uma árvore, perto da igreja velha. Antes que Bennett se desse conta do queacontecia, descera-lhe o fecho e estava a fazer-lhe uma mamada.

Bennett sabia o que aconteceria a seguir. Aliás, soubera-o assim que pôs os olhos nela.Aconteceu uma semana depois. Um carro parou ao seu lado em Stamford Hill e uma mão fez-lhe

sinal para que se aproximasse da janela de trás. Era a mão de Yevgeny. Segurava uma fotografia.«Posso dar-te uma boleia? Não está noite para andar na rua», disse.

Bennett chegou a um caixote do lixo. A marca de giz da base via-se claramente. Abandonou otrilho e avançou com cuidado por entre a vegetação espessa. Yevgeny estava apoiado no troncode uma árvore, com um cigarro por acender pendurado nos lábios. Pareceu ficar sinceramentecontente por ver Bennett. Era um cabrão sem escrúpulos, como a maioria dos agentes do SVR,mas conseguia ser muito simpático quando lhe convinha. Nisso, ele e Bennett eram parecidos.Eram duas faces da mesma moeda. Bennett, num momento de fraqueza, tinha permitido queYevgeny tomasse as rédeas. Mas talvez algum dia fosse Yevgeny a ver-se obrigado a revelar ossegredos do seu país por culpa de um deslize. Aquele jogo era assim. Só fazia falta tropeçar.

— Tens tido cuidado? — perguntou o russo.Bennett assentiu.— E tu?— Os idiotas do A4 tentaram seguir-me, mas despistei-os em Highgate.O A4 era o serviço de vigilância física do MI5, o serviço de segurança e contraespionagem

britânico.— Sabias, Charles? Têm de elevar a fasquia, a sério. Chegámos a um ponto em que já nem

sequer é divertido.— Têm mais agentes em Londres agora do que em pleno auge da Guerra Fria. O A4 está

saturado.— Quantos mais, melhor. — Yevgeny acendeu o cigarro. — Por sinal, não nos devemos

demorar. O que é que tens?— Uma operação que talvez seja de interesse para os teus superiores de Moscovo Centro.— De que tipo?— O recrutamento a longo-prazo de um agente muito bem situado.— Russo?— Casa de Saud — respondeu Bennett. — Há vários anos que trabalha para nós. Informa-nos

com regularidade sobre os assuntos internos da corte e das mudanças políticas dentro do reino.— És o supervisor para o Médio Oriente, Charles. Porque é que só estou a saber disto agora?— Foi a delegação de Londres que recrutou esse colaborador e que trata com ele. Eu só soube

esta semana.— Quem to disse?— O chefe em pessoa.— E porque é que o Graham decidiu pôr-te a par da coisa?— Porque esse agente tão bem situado vem a Londres dentro de duas semanas em visita

oficial.— De quem é que estás a falar?— O príncipe Abdullah, o futuro rei da Arábia Saudita, é um agente do MI6. É nosso,

Yevgeny. Nosso.

52

MOSCOVO

Rebecca voltou a ter aquele sonho, como acontecia sempre, nas horas anteriores ao nascer dosol. Estava submersa em água pouco profunda, perto da margem de um rio americanoemoldurado por árvores. Uma cara inclinava-se sobre ela, desfocada, indistinta, contraída pelafúria. Pouco a pouco, à medida que começava a perder a consciência, a cara ia-se desvanecendona escuridão e aparecia o seu pai. Chamava-a da porta da sua dacha. Rebecca, minha q-q-querida, há um assunto de que temos de falar…

Levantou-se da cama, sobressaltada, e respirou fundo. Através da janela sem cortinas doquarto conseguia ver uma estrela vermelha sobre o Kremlin. Ainda agora, nove meses depois dasua chegada a Moscovo, aquela vista continuava a surpreendê-la. Uma parte do seu ser esperavaainda acordar cada manhã na casinha de Warren Street, no noroeste de Washington, na qual tinhavivido durante os seus últimos anos no MI6. Se não fosse o homem do seu sonho — o homemque tinha estado a ponto de a afogar no rio Potomac —, ainda lá estaria. Talvez até fosse adiretora do MI6.

O céu sobre o Kremlin continuava preto, mas, quando viu as horas no telefone que o SVR lhetinha proporcionado, viu que eram quase sete da manhã. O prognóstico do tempo em Moscovoaugurava um nevão leve e temperaturas suaves de doze graus abaixo de zero: uma vaga de bomtempo. Destapou-se e, a tiritar, vestiu o roupão e entrou na cozinha.

Era uma cozinha luminosa e moderna, cheia de eletrodomésticos novos de origem alemã. OSVR tinha-se portado muito bem com ela: um apartamento espaçoso perto das muralhas doKremlin, uma dacha no campo e um carro com motorista. Até lhe tinham atribuído uma escoltade segurança. Rebecca não se enganava, no entanto: sabia por que lhe tinham concedido umamordomia reservada normalmente aos altos cargos dos serviços secretos russos. Tinha nascido efora criada para ser uma espiã da pátria mãe e tinha trabalhado para a Rússia enquantodesenvolvia uma longa e frutífera carreira no MI6 e, ainda assim, não confiavam completamentenela. Em Moscovo Centro, onde ia trabalhar diariamente, chamavam-na em tom de brincadeiranovaya devushka, «a rapariga nova».

Carregou no botão para ligar a cafeteira automática e, quando tossiu estrondosamente e acaboude cuspir as últimas gotas de café no recipiente, bebeu uma chávena de leite quente e comespuma, como fazia quando era criança, em Paris. Então chamava-se Bettencourt: RebeccaBettencourt, filha ilegítima de Charlotte Bettencourt, uma jornalista francesa e militantecomunista que no início dos anos sessenta tinha vivido em Beirute, onde manteve um breve idílio

com um homem casado, um correspondente independente que trabalhava para o Observer e oEconomist. Manning era o apelido que tinha adotado quando a sua mãe, seguindo ordens doKGB, se casou com um homossexual inglês de classe alta para que ela obtivesse a nacionalidadebritânica e fosse admitida em Oxford ou, melhor ainda, em Cambridge. Publicamente, ainda eraconhecida como Rebecca Manning. Em Moscovo Centro, pelo contrário, chamavam-na peloapelido do seu pai: Philby.

Apontou com o comando para a televisão e uns segundos depois a BBC apareceu no ecrã. Pormotivos profissionais, os seus hábitos televisivos continuavam a ser estritamente britânicos.Trabalhava no Departamento para o Reino Unido do Diretório de Relações Internacionais. Eraessencial que se mantivesse a par do que acontecia em Londres. Ultimamente, eram só másnotícias. O Brexit — apoiado sub-repticiamente pelo Kremlin — era uma catástrofe nacional. AGrã-Bretanha seria, em breve, uma sombra de si própria, incapaz de opor a menor resistência àcrescente influência e ao poder militar de Moscovo. Rebecca tinha infligido um dano enorme aoReino Unido a partir do interior dos serviços secretos britânicos. Agora trabalhava para desferirum golpe de graça ao seu antigo país a partir de um escritório de Moscovo Centro.

Enquanto dava uma vista de olhos às manchetes da imprensa britânica no seu telefone, fumouo primeiro L&B do dia. Fumava bem mais desde que vivia na Rússia. A rezidentura de Londrescomprava-lhe os cigarros em caixas numa tabacaria de Bayswater e mandava-os numa mala paraMoscovo Centro. Também tinha aumentado significativamente o seu consumo de JohnnieWalker Black Label, que comprava a bom preço no economato do SVR. A culpa era do inverno,dizia a si própria. Assim que chegasse o verão, as saudades passar-lhe-iam.

Tirou um fato escuro de calças e casaco e uma blusa branca do armário do seu quarto eestendeu-os sobre a cama desfeita. Tal como os cigarros, a roupa vinha de Londres. Sem se darconta, tinha caído nos velhos costumes do seu pai, que nunca se acostumou a viver em Moscovo:ouvia as notícias de casa na BBC World Service, seguia religiosamente os resultados do críqueteno Times, comia as torradas com compota inglesa e as salsichas com molho inglês, e bebiaJohnnie Walker Red Label, quase sempre até ficar inconsciente. Em criança, Rebecca tinhapresenciado as titânicas borracheiras do seu pai durante as suas visitas clandestinas à Rússia.Amava-o, ainda assim, e continuava a amá-lo. Foi a sua cara que viu ao olhar para o espelho dacasa de banho. A cara de um traidor. O rosto de um espião.

Já vestida, pôs um casaco e um cachecol de lã e apanhou o elevador para descer até à entrada.O seu Mercedes esperava-a na rua Sadovnicheskaya. Surpreendeu-a encontrar Leonid Ryzhkov,o seu superior imediato em Moscovo Centro, no banco de trás.

Entrou e fechou a porta.— Há algum problema?— Depende.O motorista mudou de sentido bruscamente e acelerou. Moscovo Centro ficava na outra

direção.— Para onde vamos? — perguntou Rebecca.— O chefe quer falar contigo.— O diretor?— Não — respondeu Ryzhkov. — O chefe.

53

KREMLIN

A estrela vermelha do topo da torre Borovitskaya, a entrada principal do Kremlin, mal seconseguia ver com o nevão. O condutor estacionou num pátio à frente do Grande PalácioPresidencial e Rebecca e Leonid Ryzhkov entraram sem perder um instante. O presidente estavaà espera deles atrás das portas douradas do seu escritório colorido. Levantou-se e saiu de trás dasecretária com o seu andar característico, o braço direito teso ao lado; o esquerdo, a oscilarmecanicamente. O fato azul ficava-lhe lindamente e algumas madeixas do cabelo louro grisalho,penteadas com esmero, aderiam-se à sua cabeça quase calva. A cara, inchada, limpa e bronzeadapor causa da sua viagem anual à estação de esqui de Courchevel, mal parecia humana. Os olhos,esticados ao máximo, davam-lhe uma aparência vagamente centro-asiática.

Rebecca esperava umas boas-vindas calorosas: não via o presidente desde a conferência deimprensa na qual o Kremlin tinha anunciado a sua chegada a Moscovo. No entanto, ele apertou-lhe a mão friamente e, com um gesto de indiferença, indicou-lhe que passassem à zona decadeirões. Entraram vários empregados e serviram-lhes o chá. Depois, sem preâmbulos, opresidente entregou-lhe uma cópia de um telegrama do SVR. Yevgeny Teplov tinha-o enviadopara Moscovo Centro da rezidentura de Londres. Era sobre uma reunião clandestina que Teplovtinha mantido com um agente cujo nome de código era Chamberlain. Na realidade, chamava-seCharles Bennett. Quando ainda trabalhava no MI6, Rebecca tinha apontado Bennett como umobjetivo idóneo para o recrutamento através de um isco sexual.

O seu jeito para o russo tinha melhorado notavelmente desde que vivia em Moscovo. Aindaassim, demorou a ler o telegrama. Quando levantou o olhar, o presidente estava a observá-lainexpressivamente. Era como sentir-se observada por um cadáver.

— Quando pensava dizer-me? — perguntou por fim.— Dizer-lhe o quê?— Que o príncipe Abdullah é há um tempo um agente da espionagem britânica.A prática de toda uma vida a desenvolver a arte da mentira e do engano permitiu a Rebecca

esconder o seu desassossego ao ser interrogada pelo homem mais poderoso do mundo.— Desconhecia que existia uma relação entre Vauxhall Cross e o príncipe Abdullah —

afirmou cortantemente.— Esteve a um passo de tornar-se diretora-geral do MI6. Como é possível que não soubesse

disso?— Não é uma casualidade que sejam serviços secretos: eu não tinha por que saber disso. —

Rebecca devolveu-lhe o telegrama. — Além disso, não devíamos ficar surpreendidos que o MI6tenha vínculos a um príncipe saudita que passou quase toda a sua vida em Londres.

— A não ser que esse príncipe saudita supostamente trabalhe para mim.— O Abdullah? — perguntou Rebecca, incrédula.O seu âmbito de trabalho circunscrevia-se ao Reino Unido. Mas, ainda assim, tinha seguido

com sumo interesse a espetacular queda em desgraça de Khalid, sem suspeitar sequer queMoscovo Centro, ou o presidente, tivessem tido algo que ver com isso.

O presidente, como era seu costume, sentara-se no cadeirão com a cabeça ligeiramenteagachada e olhava para ela de baixo, com uma expressão entre o aborrecimento e a ameaça.Rebecca supôs que ensaiava aquela cara ao espelho.

— Deduzo — disse passado um instante — que a abdicação do Khalid não foi voluntária.— Não — respondeu o presidente com um sorriso de esguelha. Depois, as suas feições

voltaram a perder qualquer vestígio de vida. — Incentivámo-lo a renunciar ao seu direito aotrono.

— Como?O presidente lançou um olhar a Ryzhkov, que informou Rebecca da operação que tinha

empurrado Khalid a apresentar a sua renúncia ao trono. Era monstruoso, não havia outra formade descrever aquilo. Mas ela sempre soubera que os russos não se regiam pelas mesmas normasdo que o MI6.

— Tivemos muito trabalho para conseguir que o Abdullah seja o próximo rei da ArábiaSaudita — acrescentou Ryzhkov. — E agora parece que nos enganaram. — Agitoudramaticamente outro telegrama de Londres, como um advogado na sala de um tribunal. — Oupode ser que o engano seja este. Pode ser que o MI6 tenha retomado as suas táticas deantigamente. Talvez só nos queiram fazer acreditar que o Abdullah trabalha para eles.

— Com que fim?Foi o presidente que respondeu:— Para desacreditá-lo, claro. Para que desconfiemos dele.— O Graham é só um polícia com pretensões de grandeza. Não tem tanto talento.— Apanhou-a, não apanhou?— Foi o Allon que me descobriu, não o Graham.— Ah, sim. — Uma faísca de ira atravessou o rosto do presidente. — Receio que ele também

esteja metido nisto.— O Allon?O presidente assentiu.— Quando sequestrámos a menina, o Abdullah disse que o seu sobrinho tinha pedido ajuda ao

Allon.— Teria sido preferível que o tivessem matado a ele, em vez da filha do Khalid.— Tentámos. Mas, infelizmente, as coisas não correram como previsto.Rebecca pegou no telegrama de Ryzhkov e voltou a lê-lo.— Dá-me a impressão de que o Abdullah tem andado a brincar com os dois lados. Aceitou o

nosso dinheiro e o nosso apoio quando precisou. E agora que tem as chaves do reino à mão desemear…

— Decidiu fazer as coisas sozinho?— Ou dançar ao compasso de Londres — concluiu Rebecca.— E se for mesmo um agente britânico? O que é que faço, então? Deixo que me roube

impunemente vários milhares de milhões de dólares? Permito que os britânicos, e de passagem oAllon, se riam de mim nas minhas costas?

— Claro que não.Ele levantou a mão.— Então?— Não há outro remédio a não ser afastar o Abdullah da linha sucessória.— Como?— De um modo que danifique o mais possível a credibilidade e o prestígio dos britânicos.O sorriso do presidente pareceu quase sincero.— Fico feliz por ouvi-la dizer isso.— Porquê?— Porque, se tivesse sugerido que deixássemos o Abdullah no seu lugar, teria duvidado da sua

lealdade à pátria. Parabéns, Rebecca — acrescentou sem parar de sorrir. — O trabalho é seu.— Que trabalho?— Desfazer-se do Abdullah, claro.— Eu?— Quem melhor do que a Rebecca para levar a cabo uma operação importante em Londres?— Não costumo tratar desse tipo de missões.— Não é a diretora do Departamento do SVR para o Reino Unido?— Subdiretora.— Sim, pois claro. — O presidente olhou para Leonid Ryzhkov. — Erro meu.

54

MOSCOVO-WASHINGTON-LONDRES

O Diretório de Contraespionagem do SVR deduzia que o MI6 desconhecia a morada da agenteRebecca Philby em Moscovo. Porém, não era assim. Os serviços secretos britânicos descobrirampor acaso onde era o seu apartamento quando um dos seus agentes em Moscovo a viu a passearpor Arbat acompanhada por dois guarda-costas e uma idosa de aspeto imponente. O agentebritânico seguiu-os até ao cemitério de Kuntsevo, onde deixaram umas flores na sepultura domaior traidor da história, e a seguir até à entrada de um elegante bloco de apartamentos deconstrução nova, na rua Sadovnicheskaya.

Perante a insistência de Vauxhall Cross, a delegação de Moscovo lidou com sumo cuidadocom semelhante descoberta. Não fez tentativa alguma de pôr Rebecca sob vigilância constante— o que de qualquer modo era impossível numa cidade como Moscovo, onde o pessoal do MI6estava quase continuamente vigiado — e descartou quase de imediato um desacertado plano paracomprar um apartamento no mesmo prédio. Vigiavam-na só de quando em quando e de longe.Descobriram que vivia no oitavo andar do edifício e que todas as manhãs ia trabalhar para a sededo SVR em Yasenevo. Nunca a viram sair para nada pessoal, para jantar num restaurante ou verum espetáculo no Bolshoi. Não havia indícios de que houvesse um homem (ou uma mulher) nasua vida. Em geral, parecia bastante infeliz, o que os satisfazia imensamente.

Contudo, no início de março, por motivos que a delegação de Moscovo não conseguiudilucidar, Rebecca desapareceu. Decorridos cinco dias sem ser vista, o chefe da delegaçãoalertou Vauxhall Cross que, por sua vez, mandou um aviso para a enorme mansão de estiloTudor de Hatch End, em Harrow, com as suas muitas alas e torres. Os seus ocupantesinterpretaram o súbito desaparecimento de Rebecca como uma prova de que Moscovo Centrotinha mordido o isco.

Havia também outros indícios: um aumento alarmante das comunicações criptografadasemitidas do último piso da embaixada russa em Kensington Palace Gardens; um novo encontrode Charles Bennett e Yevgeny Teplov, o seu supervisor do SVR, em Epping Forest; e a chegadaa Londres, em meados de março, de um tal Konstantin Dragunov, empresário e amigo pessoaltanto do presidente russo como do futuro rei da Arábia Saudita. Por separado, estesacontecimentos não demonstravam nada, mas, vistos através do prisma da equipa anglo-israelitade Hatch End, pareciam ser os primeiros passos de uma operação russa de grande alcance.

Gabriel, apesar de se ter encarregado de provocar de novo a besta, decidiu aguardar a respostados russos não em Hatch End, mas no seu escritório da Avenida Rei Saul, firmemente

convencido de que a sua presença em solo britânico não aceleraria as coisas. No final de marçofez outra visita clandestina ao iate de Khalid no golfo de Aqaba, embora só para saber dosúltimos mexericos de Riade. O estado do pai de Khalid tinha piorado, embora no mundo exteriorninguém soubesse disso: tinha sofrido outro acidente vascular cerebral, ou talvez um ataquecardíaco, e estava ligado a várias máquinas no Hospital da Guarda Nacional Saudita. Os abutresjá tinham começado a juntar-se à sua volta para partilhar o dinheiro e lutar pelos despojos.Khalid tinha solicitado permissão para voltar a Riade e estar junto do seu pai. Abdullah tinha-lhorecusado.

— Se tens alguma na manga — disse —, sugiro-te que uses isso agora. Se não, daqui a poucoa Arábia Saudita estará controlada pelo camarada Abdullah e pelo mestre de marionetas doKremlin.

Uma tempestade repentina impediu o helicóptero de descolar e obrigou Gabriel a passaraquela noite a bordo, numa das luxuosas suítes para os hóspedes. Quando na manhã seguinteregressou à Avenida Rei Saul, encontrou um relatório em cima da mesa. Era a análise dosarquivos iranianos roubados. Os documentos demonstravam de maneira conclusiva que, apesarde declarar o contrário perante a comunidade internacional, o Irão tinha estado a trabalhar nodesenvolvimento de uma arma nuclear. Não tinha, no entanto, provas firmes de que estivesse aviolar o acordo nuclear que tinha negociado com o anterior governo americano.

Gabriel informou o primeiro-ministro naquela mesma tarde, no seu escritório em Jerusalém, euma semana depois voou para Washington para pôr os americanos ao corrente. Surpreendeu-oque a reunião tivesse lugar na Sala de Crise da Casa Branca, na presença do presidente. Este, quenão escondia a sua intenção de retirar os Estados Unidos do pacto nuclear com o Irão, teve umadeceção ao comprovar que Gabriel não lhe tinha levado provas incontestáveis — «um mullahfumegante» — de que os iranianos estavam a construir uma bomba em segredo.

Nesse mesmo dia, Gabriel mudou-se para Langley, onde informou com mais detalhe osoficiais da Casa Pérsia, a unidade operativa da CIA para o Irão. Depois jantou sozinho comMorris Payne numa sala forrada a madeira no sexto andar. A primavera tinha chegado por fim aonorte da Virgínia depois de um verão inóspito e as árvores das margens do Potomac exibiamnovas folhas. Enquanto comiam hortaliças murchas e vitela com nervos, trocaram segredos erumores escandalosos, alguns deles relativos aos seus superiores. Como muitos dos seuspredecessores na Agência, Payne carecia de experiência anterior no mundo da espionagem.Antes de chegar a Langley tinha sido militar, empresário e congressista — profundamenteconservador — por uma das Dakotas. Era um homem corpulento, caloroso e franco, com umacara semelhante a uma estátua da ilha de Páscoa. Gabriel preferia-o ao anterior diretor da CIA,que tinha o costume de se referir a Jerusalém como Al-Quds.

— O que achas do Abdullah? — perguntou Payne de repente enquanto tomavam café.— Pouca coisa.— Os cabrões dos britânicos…— O que é que fizeram agora?— Convidaram-no para ir a Londres, antes de termos tempo de trazê-lo a Washington.Gabriel encolheu os ombros com indiferença.— A Casa de Saud não consegue sobreviver sem vocês. O Abdullah prometerá comprar uns

quantos brinquedos britânicos e voltará a correr para os vossos braços.— Nós não estamos assim tão certos disso.— E porquê?

— Ouvimos dizer que talvez o MI6 o tenha nas suas redes.— O Abdullah, um agente britânico? Ora, Morris…Payne assentiu, muito sério.— Perguntávamo-nos se não estariam interessados em propiciar uma mudança na linha

sucessória dos sauditas.— Uma mudança? De que tipo?— Inclinada para sentar de novo o KBM no trono.— O Khalid é água passada.— O Khalid é o que mais convém e sabes disso. Adora-nos e, por alguma razão desconhecida,

também não vos odeia completamente.— E o que fazemos com o Abdullah?— Teria de ser afastado.— Afastado?Payne olhou-o inexpressivamente.— Morris, não estás a falar a sério…Depois do jantar, uma comitiva da CIA levou Gabriel para o Hotel Madison, no centro de

Washington. Exausto, caiu num sono profundo, mas às 3h19 da madrugada acordou com umamensagem urgente enviada para o seu BlackBerry. Ao amanhecer foi à embaixada israelita epermaneceu lá até ao início da tarde, quando se dirigiu para o Aeroporto de Dulles. Tinhainformado as autoridades americanas de que pensava regressar a Telavive, mas às cinco e meiada tarde apanhou um voo da British Airways com destino a Londres.

O Brexit tivera pelo menos uma consequência positiva sobre a economia britânica: devido auma queda de dois algarismos no valor da libra, mais de dez milhões de turistas estrangeirosvisitavam o Reino Unido todos os meses. O MI5 examinava de maneira rotineira as listas depassageiros à procura de elementos indesejáveis como terroristas, delinquentes e notórios espiõesrussos. Por sugestão de Gabriel, a equipa anglo-israelita de Hatch End também as examinavacom a mesma minuciosidade do que o MI5. Como resultado disso, souberam que o voo 216 daBritish Airways procedente de Dallas aterrou em Heathrow às 6h29 da manhã seguinte e queGabriel passou pelo controlo de passaportes às 7h12. Inclusive encontraram vários minutos degravação da sua passagem pela interminável fila do controlo de passageiros não-comunitários.Quando entrou no centro de operações, um dos grandes monitores estava a emitir o vídeo emrepetição.

Sarah Bancroft, de calças de ganga e camisola polar, tinha o olhar fixo no ecrã do lado, quemostrava uma imagem congelada de um homem magro e atlético, vestido com uma gabardina,que atravessava um parque de estacionamento à noite. Trazia um saco pendurado no ombrodireito e um gorro de basebol de estilo americano cobria-lhe quase toda a cara.

— Reconhece-lo? — perguntou Sarah.— Não.Mikhail Abramov dirigiu o comando para o ecrã e carregou no PLAY.— E agora?O homem aproximava-se de um Toyota, lançava o saco para o banco de trás e sentava-se ao

volante. Ao ligar o motor, as luzes acendiam automaticamente: um pequeno erro naquele ofício.

O homem desligou-as rapidamente e arrancou de marcha-atrás. Uns segundos depois, o carrodesaparecia do enquadramento da câmara.

Mikhail carregou no PAUSE.— Nada?Gabriel negou com a cabeça.— Volta a vê-lo. Mas agora repara bem no seu andar. Não é a primeira vez que o vês.Mikhail pôs de novo o vídeo. Gabriel reparou unicamente no passo atlético do desconhecido.

Mikhail tinha razão: já o tinha visto antes. Era o homem que tinha passado à frente do seu carroem Genebra minutos depois de deixar uma mala no Café Remor. Mikhail tinha-o seguido deperto naquela altura.

— Oxalá pudesse tê-lo descoberto — disse —, mas foi a Sarah.— Onde gravou o vídeo?— No parque de estacionamento do terminal de barcos de Holyhead.— Quando?— Há duas noites.Gabriel franziu a testa.— Duas noites?— Fizemos o que pudemos, chefe.— Como chegou a Dublin?— Num voo procedente de Budapeste.— Sabemos como chegou lá o carro?— Dmitri Mentov.— O zé-ninguém da secção consular da embaixada russa?— Posso mostrar-te o vídeo se quiseres.— Não é preciso, eu imagino. Onde está agora o nosso amigo?Mikhail tocou no comando e no ecrã apareceu outra gravação. Um homem a sair de um

Toyota à frente de um hotel costeiro.— Onde está o Graham?— Em Vauxhall Cross.— E o que está lá a fazer?— Está à tua espera.

QUARTA PARTE

ASSASSÍNIO

55

FRINTON-ON-SEA, ESSEX

No final do século XIX, só havia uma igreja, algumas quintas e um grupo de chalés. Depois,um tal Richard Powell Cooper fez um campo de golfe junto ao mar e surgiu uma localidadeturística com casas senhoriais, avenidas largas e vários hotéis de luxo ao longo da marginal.Connaught Avenue, a rua principal da aldeia, converteu-se na Bond Street de East Anglia. Opríncipe de Gales visitava com frequência a localidade e, num ano, Winston Churchill alugouuma casa para passar o verão. Em 1944, os alemães escolheram Frinton-on-Sea para lançar aúltima bomba sobre Inglaterra.

Embora já não fosse um destino turístico de renome, os seus habitantes continuavamagarrados, com um sucesso ímpar, aos costumes de antigamente. Mais velhos e ricos do queantes, e igualmente conservadores, não simpatizavam com os imigrantes, nem com a UniãoEuropeia, nem com as políticas do Partido Trabalhista. Para seu escândalo, o primeiro pub deFrinton, o Lock & Barrel, tinha aberto as suas portas recentemente na Connaught Avenue.Continuava a ser proibido, pelo contrário, vender gelados na praia ou fazer um piquenique noscampos de Greensward, sobre as rochas. Se alguém queria estender uma manta e comer ao arlivre, podia ir de carro até à localidade vizinha de Clacton, onde poucos frintonians tinham postoum pé.

Entre Greensward e o mar havia um passeio pejado de barracas de praia de cores pastel. Comoera princípios de abril e a tarde estava fria e ventosa, Nikolai Azarov tinha o passeio só para ele.Levava uma mochila às costas e uns binóculos Zeiss pendurados ao pescoço. Se algumtranseunte lhe tivesse dito boa tarde ou lhe tivesse pedido indicações, teria suposto que Nikolaiera mesmo o que parecia: um inglês de classe média, culto e educado, decerto de Londres ou dosarredores e licenciado em Oxford, em Cambridge ou nalguma outra universidade de negócios.Um observador mais atento teria notado um certo toque eslavo nos seus traços. Ninguém, noentanto, teria adivinhado que era russo nem que era um sicário e um agente especial ao serviçode Moscovo Centro.

Não era essa a carreira que Nikolai teria escolhido. Durante a sua juventude na Moscovo pós-soviética, tinha sonhado em ser ator, preferivelmente no Ocidente. Infelizmente, a prestigiosaescola onde aprendeu a falar o seu inglês impecável com pronúncia britânica era o Instituto deLínguas Estrangeiras de Moscovo, uns dos locais de caça prediletos do SVR. Ao acabar osestudos, entrou na academia do SVR, cujos instrutores decidiram que tinha um talento naturalpara os aspetos mais obscuros do ofício, incluindo o fabrico de artefactos explosivos. Ao

concluir a sua formação, ficou destinado ao diretório do SVR responsável pelas «medidasativas». Estas incluíam o assassinato seletivo de cidadãos russos que ousavam opor-se aoKremlin, ou de agentes secretos que espiavam para os inimigos da Rússia. Nikolai tinha matadopessoalmente mais de uma dúzia de compatriotas que viviam no Ocidente — usando para issoveneno, armas químicas ou radiológicas, uma pistola ou uma bomba —, sempre por ordem diretado presidente russo.

A seguinte localidade depois de Frinton, a norte, era Walton-on-the-Naze. Nikolai parou parabeber um café no porto antes de se dirigir às turfeiras do parque natural de Hamford Water. Aochegar à ponta do cabo, parou um momento e, aproximando os binóculos dos olhos, contemplouo Mar do Norte em direção aos Países Baixos. Logo de seguida, encaminhou-se para o sulseguindo o Canal de Walton. Ao chegar ao rio Twizzle, viu um porto desportivo cheio develeiros e iates a motor. Pensava abandonar Inglaterra tal e qual como tinha entrado, de ferry,mas sabia por experiência própria que convinha ter sempre uma carta na manga. As operaçõesnem sempre corriam conforme estava previsto. Como tinha acontecido em Genebra, pensou derepente. Ou em França.

Estão mortos! Mortos, mortos, mortos…Duas mulheres, duas reformadas de férias, vinham pelo caminho seguidas por um cocker

acastanhado. Nikolai disse-lhes boa tarde e elas gorjearam saudações e seguiram rumo a norte,para o cabo. Apesar da sua idade, Nikolai observou-as atentamente enquanto se afastavam. E porum instante pensou inclusive qual seria a melhor forma de as matar. Tinham-no treinado para darpor certo que cada encontro — sobretudo se fosse num lugar remoto, como um pântano emEssex — era potencialmente perigoso. Ao contrário dos agentes normais do SVR, ele tinhaautoridade para matar primeiro e preocupar-se com as consequências depois. Tal como Anna.

Olhou para as horas. Eram quase duas. Atravessou o cabo até Naze Tower e depois voltoupara trás seguindo o litoral até Frinton. O sol tinha aberto por fim um buraco entre as nuvensquando chegou a Bedford House. O hotel, um dos poucos da época dourada da localidade queainda sobreviviam, erguia-se no extremo sul da marginal: um mausóleo vitoriano com torresrematadas por bandeirolas. Tinha-o escolhido a mulher, a senhora que no Ocidente era chamadade Rebecca Manning e, em Moscovo Centro, Rebecca Philby. A direção do hotel acreditavaerroneamente que Nikolai era Philip Lane, um escritor de séries de televisão policiais que tinhaido a Essex à procura de inspiração.

Ao entrar no hotel, dirigiu-se ao terraço do café para beber um chá. Phoebe, a empregada,vestida com uma saia travada, conduziu-o a uma mesa com vista para a marginal. Nikolai, no seupapel de Philip Lane, pegou num caderno Moleskine. Depois, com um ar distraído, tirou o seutelemóvel do SVR.

Oculto dentro das suas aplicações havia um protocolo que lhe permitia comunicar de formasegura com Moscovo Centro. Ainda assim, a mensagem que enviou era redigida em termossuficientemente vagos para ser incompreensível para qualquer serviço de telecomunicaçõesinimigo, como o GCHQ britânico. Informava de que acabava de completar uma ronda de deteçãode vigilância sem ver indícios de que o estivessem a seguir. Na sua opinião, podia proceder-secom garantia à inserção do próximo membro da equipa. Ao chegar, ela devia dirigir-se a Frintonpara recolher a arma homicida, que Nikolai tinha introduzido ilegalmente no país. E, quandoconcluísse a sua missão, ele encarregar-se-ia de tirá-la de Inglaterra sã e salva. Nesta operação,pelo menos, o seu papel limitava-se ao de mensageiro e condutor, pouco mais. Ainda assim,queria voltar a vê-la. Ela portava-se sempre melhor quando estavam em ação.

Phoebe deixou um bule de Earl Grey sobre a mesa, e um prato de sandes extraordinárias.— Está a trabalhar?— Estou sempre a trabalhar — respondeu Nikolai com desdém.— Que tipo de história é?— Ainda não decidi.— Morre alguém?— Várias pessoas, na realidade.Nesse momento, um Jaguar F-Type descapotável, vermelho vivo, parou à entrada do hotel. O

condutor era um tipo bonito de uns cinquenta anos, louro e muito bronzeado. A sua passageira,uma mulher de cabelo preto, estava a gravar a chegada com um smartphone, com o braçoestendido. Pareciam ir vestidos para uma ocasião especial.

— Os Edgerton — explicou Phoebe.— Como diz?— Tom e Mary Edgerton. São recém-casados. Pelos vistos, foi um casamento relâmpago. —

Um empregado tirou duas malas da bagageira do carro e carregou-as, enquanto a mulherfotografava o mar. — É bonita, não é?

— Sim, bastante — conveio Nikolai.— Acho que é americana.— Não teremos isso em conta.Nikolai viu o casal entrar no vestíbulo, onde o gerente os obsequiou com um copo de

champanhe. Enquanto a mulher observava o sóbrio e elegante interior do hotel, o seu olharcruzou-se com o de Nikolai e sorriu. O homem agarrou-a pelo braço com gesto possessivo econduziu-a ao elevador.

— É americana, é óbvio — comentou Phoebe.— Efetivamente — conveio ele. — E o marido é muito ciumento.

A suíte nupcial ficava no segundo andar. Keller passou o cartão chave, empurrou a porta eafastou-se para que Sarah entrasse. As suas malas estavam colocadas nos respetivos bancos aospés da cama. Keller pendurou o letreiro de NÃO INCOMODAR na maçaneta da porta, fechou a portae ajustou a barra de segurança.

— É o homem que viste no Café Remor em Genebra?Sarah assentiu uma só vez com a cabeça.Keller mandou uma mensagem breve com o seu BlackBerry à equipa de Hatch End. Depois

enfiou a mão debaixo do casaco e tirou a Walther PPK que levava no coldre ao ombro.— Alguma vez usaste uma destas?— Uma Walther não — respondeu Sarah.— Disparaste contra alguém?— Um russo, por acaso.— Que sorte a tua. Onde?— Na anca e no ombro.— Queria dizer…— Foi num banco em Zurique.Keller acionou a Walther para colocar a primeira bala. Depois pôs a patilha de segurança e

deu-lhe a pistola.— O carregador está cheio. Só tem sete balas. Para disparar, só é preciso apontar e apertar o

gatilho.— E tu?— Cá me arranjo.Sarah experimentou tirar a patilha de segurança e voltar a pô-la.— O presente de casamento perfeito para uma mulher que tem tudo.Keller levantou o seu copo de champanhe.— É o teu primeiro casamento, não é?— Receio que sim.— Também o meu. — Aproximou-se da janela e olhou para o mar cor de granito. —

Esperemos que não se cumpram os prognósticos.— Sim — respondeu ela enquanto guardava a Walther na mala. — Oxalá.

56

NÚMERO 10 DE DOWNING STREET

Nessa noite, às oito e um quarto, enquanto Keller e Sarah jantavam faustosamente norestaurante do Bedford, a menos de seis metros da sua presa, a limusina Jaguar na qual viajavamGabriel Allon e Graham Seymour atravessou a barreira de segurança de Horse Guard Road eparou à frente do número 12 de Downing Street, uma casa de cinco pisos com uma fachada emtijolo vermelho que antigamente tinha sido residência oficial do secretário do Tesouro e quealbergava agora o gabinete de imprensa e de comunicação do primeiro-ministro. O secretário doTesouro residia no número 11, e o primeiro-ministro, claro está, no 10. A célebre porta pretaabriu-se automaticamente ao aproximar-se Gabriel e Seymour. Entraram de imediato, observadospor um gato branco e castanho de aspeto feroz.

Geoffrey Sloane, o chefe de gabinete e o servidor público não eleito mais poderoso do ReinoUnido, esperava por eles no vestíbulo. Estendeu a mão a Gabriel.

— Estava aqui na manhã que matou aquele terrorista do ISIS na grade. De facto, ouvi osdisparos do meu escritório. — Sloane largou-lhe a mão e olhou para Seymour. — Temo que oprimeiro-ministro não disponha de muito tempo.

— Não demoramos muito.— Gostava de assistir à reunião.— Lamento, Geoffrey, mas não é possível.Jonathan Lancaster estava à espera lá em cima, na Sala Terracota. Nessa tarde tinha superado

por um fio uma moção de censura na Câmara dos Comuns. Ainda assim, a imprensa deWestminster escrevia naquele instante o seu obituário político. Graças ao disparate do Brexit, aoqual Lancaster se tinha oposto, a sua carreira tinha chegado praticamente ao fim. Se não fossemGabriel e Graham Seymour, que cumprimentou com afeto, poderia ter acabado muito antes.

O primeiro-ministro consultou o relógio.— Tenho convidados para jantar.— Lamento — disse Seymour —, mas lamentavelmente temos um problema grave com os

russos.— Outra vez não.Seymour assentiu solenemente.— Do que se trata desta vez?— Um conhecido assassino do SVR entrou no país.— Onde está?

— Num hotelzinho de Essex. O Bedford House.— Lembro-me dele com carinho de quando era criança — comentou Lancaster. — Imagino

que está a ser vigiado.— Totalmente — respondeu Seymour. — Quatro agentes do MI6 estão alojados no hotel do

lado, o East Anglia Inn, juntamente com dois operativos israelitas com muita experiência. Osnossos técnicos instalaram transmissores no quarto do russo, tanto de áudio como de vídeo.Também a rede interna de câmaras de segurança do hotel interveio. Vigiamos cada um dos seusmovimentos.

— Temos alguém dentro do Bedford?— O Christopher Keller. É o que…— Sei quem é — interrompeu Lancaster, e perguntou: — Sabe-se qual é o objetivo dos

russos?— Não temos a certeza, senhor primeiro-ministro, mas achamos que planeiam assassinar o

príncipe herdeiro Abdullah durante a sua visita a Londres.Lancaster absorveu a notícia com uma calma admirável.— E porque é que os russos querem matar o futuro rei da Arábia Saudita?— Porque é um agente russo. E se chegar ao trono, a Arábia Saudita favorecerá o Kremlin e

isso causará um dano irreparável aos interesses britânicos e americanos na região do Golfo.Lancaster olhou-o com estupefação.— Então, por que raios querem eliminá-lo?— Seguramente porque suspeitam que o Abdullah trabalha para nós.— Para nós?— Para os Serviços Secretos de Sua Majestade.— E pode-se saber como chegaram a essa conclusão?— Fomos nós que lho dissemos.— Como?Seymour sorriu com frieza.— Rebecca Manning.Lancaster deitou a mão ao telefone.— Parece-me que isto vai demorar, Geoffrey. Por favor, transmite as minhas desculpas aos

nossos convidados. — Desligou e olhou para Seymour. — Sou todo ouvidos. Continua.

Foi Gabriel, no entanto, e não o diretor-geral dos serviços secretos, que explicou ao primeiro-ministro por que motivo os russos se propunham, ao que parece, assassinar o futuro rei da ArábiaSaudita em território britânico. O seu relato pouco diferiu do que fez perante Graham Seymourno andar seguro de St. Luke’s Mews duas semanas antes, conquanto desta vez incluía detalhes arespeito da operação criada para enganar Rebecca Manning, a ex-oficial do MI6 e filha de KimPhilby. Lancaster ouviu em silêncio, com os dentes cerrados. Antes de intervir na políticaamericana, os russos tinham-se misturado na britânica e Lancaster tinha sido a sua vítima. Havia,além disso, numerosos indícios que apontavam que o Kremlin tinha apoiado o Brexit, que tinhasumido o Reino Unido no marasmo político e arruinado a sua carreira. Se havia alguém que tinhatanta vontade como Gabriel de castigar os russos era o primeiro-ministro Jonathan Lancaster.

— E temos a certeza de que esse tal Bennett trabalha para os russos?Gabriel cedeu a palavra a Seymour, que explicou que tinham conhecimento de que Bennett se

reunira duas vezes com o seu contacto do SVR, Yevgeny Teplov, em Epping Forest.— Outro escândalo de espionagem — comentou Lancaster. — Era o que nos faltava…— Sabíamos desde o princípio que não seria o último, primeiro-ministro. A Rebecca estava

perfeitamente situada para identificar os agentes potencialmente vulneráveis a uma aproximaçãodos russos.

— Como é que o Bennett passou desapercebido até agora?— Depois da captura da Rebecca manteve-se inativo. Investigámo-lo exaustivamente, mas…— Não viste que tinhas outro espião russo mesmo à frente do nariz.— Não, senhor primeiro-ministro. Deixei que um possível espião russo continuasse a ocupar o

seu lugar para poder servir-me dele mais à frente, a fim de destruir a mulher que pôs em causa omeu serviço.

— Rebecca Manning.Seymour assentiu.— Explica-te.— Se detemos os membros de uma equipa de assassinos do SVR em vésperas da visita de

Abdullah, os russos sofrerão um tremendo golpe internacional e suspeitarão da Rebecca comoresponsável pela filtragem.

— Pensarão que é uma agente tripla? É isso que estás a sugerir?— Efetivamente.O primeiro-ministro ficou pensativo.— Se detivermos a equipa de assassinos russos, dizes. Que alternativa temos?— Podemos deixar que o complô siga o seu curso.— Se fizermos isso, os russos…— Matarão o seu próprio agente, o príncipe Abdullah, futuro rei da Arábia Saudita. E com um

pouco de sorte — acrescentou Seymour —, talvez matem de passagem a Rebecca.Lancaster olhou para Gabriel.— Isto tem de ser ideia sua.— Que resposta prefere que lhe dê?Lancaster enrugou a testa.— O que acontecerá se o Abdullah…?— Desaparecer da linha sucessória?— Sim.— Provavelmente, o pai do Khalid assegurar-se-á de que o seu filho seja nomeado como o

novo príncipe herdeiro. Sobretudo, quando souber que o Abdullah conspirou com os russos parasequestrar e assassinar a sua neta.

— É isso que queremos? Que um jovem com problemas para controlar os seus impulsosgoverne a Arábia Saudita?

— Desta vez, será diferente. Será o KBM que todos esperávamos que fosse.Lancaster esboçou um sorriso condescendente.— Não sabia que era tão ingénuo — disse, e olhou para Seymour. — Imagino que não falaste

com a Amanda.Amanda Wallace era a diretora-geral do MI5. Seymour indicou com um gesto que,

efetivamente, não sabia nada daquele assunto.— É impossível que aceda a isto — afirmou Lancaster.— Mais uma razão para que não saiba.

— Quem mais está ao corrente?— Um grupo reduzido de agentes israelitas e do MI6 que trabalham num andar seguro, em

Harrow.— Algum deles é um espião russo? — Lancaster virou-se para Gabriel. — Sabe o que

acontecerá se um chefe de Estado for assassinado em solo britânico? A nossa reputação ficaráarruinada para sempre.

— Não, se conseguirmos culpar os russos.— Os russos — replicou Lancaster cortantemente — negarão ou responsabilizar-nos-ão a nós.— Não o poderão fazer.Lancaster olhou para ele com ceticismo.— Como planeiam matá-lo?— Não sabemos.— Onde será o atentado?— Não…— Não fazem ideia — concluiu o primeiro-ministro.Gabriel esperou que a tensão se dissipasse.— Temos um dos agentes russos sob vigilância. Assim que contactar com outro membro da

equipa…— E se não contactar?Gabriel deixou passar um segundo.— Hoje é terça-feira.— Não preciso que um espião me diga que dia é. Para isso tenho o Geoffrey.— A sua reunião com o Abdullah é na quinta-feira. Temos trinta e seis horas para observar e

escutar.— Trinta e seis horas, nem sonhes. — Lancaster olhou de novo para o seu relógio. — Mas

posso dar-lhes vinte e quatro. Amanhã à noite voltamos a reunir-nos. — Levantou-sebruscamente. — Agora, se me dão licença, cavalheiros, gostava de acabar de jantar.

57

OUDDORP, PAÍSES BAIXOS

O bungalow ficava num lugar entre dunas, nas redondezas da povoação de Ouddorp. Erabranco como um bolo de casamento, com telhas vermelhas. Painéis de acrílico protegiam oterraço do vento que soprava impiedoso do Mar do Norte. Sem aquecimento e com umisolamento escasso, a casa era praticamente inabitável no inverno. De vez em quando, algumcorajoso à procura de solidão alugava-a em maio, mas em geral permanecia desocupada até aomês de junho.

Daí que Isabel Hartman, a empregada da agência imobiliária, ficasse surpreendida ao receber,em meados de março, um e-mail no qual se expressava interesse pela casa. Ao que parece, umatal Madame Bonnard, de Aix-en-Provence, desejava alugá-la por um período de duas semanas,desde princípios de abril. Pagou a fiança por transferência e num e-mail posterior disse nãoprecisar que alguém lhe mostrasse a casa à chegada: bastaria um folheto. Isabel deixou-o sobre obalcão da cozinha e escondeu a chave debaixo de um vaso no terraço. Não era sua práticahabitual, mas também não via que houvesse mal algum nisso. O bungalow não continha nada devalor, a não ser a televisão. Isabel instalara há pouco a ligação à Internet a fim de atrair turistasestrangeiros como Madame Valerie Bonnard, de Aix-en-Provence. Estranhava, no entanto, queaquela senhora quisesse visitar Ouddorp, uma terra tão cinzenta e deprimente. Até o seu nomesoava a algo que tivesse de ser extirpado num sala de operações. Se ela tivesse a sorte de viverem Aix, não sairia nunca de lá.

Como o bungalow ficava muito afastado, Isabel não soube exatamente quando chegou afrancesa. Deduziu que tinha chegado um dia após o previsto porque foi então que viu o seu carro,um Volvo escuro e com matrícula holandesa, estacionado no caminho sem asfalto. Voltou a ver ocarro nessa mesma tarde, na povoação. E também a sua dona, a sair do supermercado Jumbocom dois sacos. Isabel pensou em apresentar-se, mas decidiu não o fazer. Havia algo no porte eno olhar desconfiado dos seus olhos estranhamente azuis que a tornava inacessível.

Tinha, além disso, um ar de insuportável tristeza. Isabel chegou à conclusão de que tinhasofrido um golpe terrível há pouco tempo. Talvez lhe tivesse morrido um filho, ou o seucasamento tivesse acabado, ou tivesse sido alvo de uma traição. Que estava angustiada era óbvio,embora Isabel não soubesse dizer se estava de luto ou se tramava uma vingança.

Viu-a de novo no dia seguinte na povoação, quando bebeu um café no Hotel New Harvest Inn,e no seguinte, quando almoçou sozinha no Akershoek. Passaram dois dias antes de a voltar a ver,de novo no supermercado. Desta vez levava o carrinho cheio quase até acima e Isabel deduziu

que esperava visitas. Os seus convidados chegaram na manhã seguinte noutro carro, umMercedes Classe E. Isabel ficou surpreendida por serem três homens.

Viu a Madame Bonnard só mais uma vez, às duas da tarde do dia seguinte, junto ao velhofarol. Calçava umas botas de água e vestia um impermeável verde escuro e contemplava o Mardo Norte em direção a Inglaterra. Isabel pensou que nunca tinha visto uma mulher tão triste, nemtão decidida. Estava a tramar um ato de vingança. Disso, Isabel Hartman tinha a certeza.

* * *

A mulher parada à sombra do farol notou que alguém a observava, mas não se alarmou. Eraapenas a bisbilhoteira da agente imobiliária. Esperou que a holandesa se fosse embora e depoiscomeçou a andar para o bungalow. Era um passeio de dez minutos pela praia. Uma das suasescoltas estava no terraço. A outra estava no interior, juntamente com o oficial de comunicações.Sobre a mesa da cozinha havia um computador portátil aberto. A mulher comprovou a situaçãodo voo 579 da British Airways que tinha saído de Veneza com destino a Heathrow. Depoisacendeu um cigarro L&B com um velho isqueiro de prata e serviu-se de três dedos de whiskyescocês. Era o tempo, disse a si própria. Assim que chegasse o verão, as saudades passar-lhe-iam.

58

AEROPORTO DE HEATHROW, LONDRES

Os passageiros do voo procedente de Veneza demoraram a sair do avião. Daí que Anna tivessede passar mais de cinco minutos do que o previsto colada à janela da fila vinte e dois da classeeconómica, para evitar tocar no braço húmido e carnoso de Henry, o seu invasivo parceiro delugar. Tinha guardado a sua bagagem de mão no compartimento de cima e a mala debaixo dolugar da frente. Lá dentro levava um passaporte alemão no qual figurava como nascida emBerlim. Isso, pelo menos, era verdade.

Tinha nascido no lado leste da cidade em 1983, fruto imprevisto de uma relação clandestinaentre dois agentes secretos. A sua mãe, Johanna Hoffmann, trabalhava para a divisão da Stasique dava apoio logístico a grupos terroristas palestinianos e da Europa de Leste. O seu pai,Vadim Yurasov, era coronel do KGB e estava colocado na tranquila Dresden. Fugiram daAlemanha Oriental poucos dias depois da queda do Muro de Berlim e instalaram-se emMoscovo. Após o casamento, aprovado pelo KGB, Anna adotou o apelido do seu pai, Yurasova.Foi para uma escola especial reservada a filhos de oficiais do KGB e, depois de se licenciar naprestigiosa Universidade Estatal de Moscovo, entrou na academia do SVR. Um dos seus colegasera um aspirante a ator, alto e bonito, chamado Nikolai Azarov. Tinham trabalhado juntos emnumerosas operações e eram amantes clandestinos, como os pais de Anna.

Dentro do terminal, Anna seguiu o cortejo de passageiros até ao controlo de passaportes ejuntou-se à fila de cidadãos comunitários. O servidor público uniformizado da cabine mal olhoupara o seu passaporte.

— Propósito da sua visita?— Turismo — respondeu com a pronúncia alemã da sua mãe.— Algum plano em concreto?— Ir sempre que puder ao teatro.Devolveram-lhe o passaporte. Anna dirigiu-se ao vestíbulo de chegadas e depois à plataforma

do Heathrow Express. Ao chegar a Paddington, seguiu pela Warwick Avenue em direção a norte,até Formosa Street, e virou à esquerda. Ninguém a seguia.

Virou de novo à esquerda ao chegar a Bristol Gardens. Havia um Renault Clio azul metalizadoestacionado em frente de um ginásio. As portas não estavam fechadas à chave. Meteu a mala naparte de trás e sentou-se ao volante. As chaves estavam no painel central. Ligou o motor earrancou.

Tinha estudado a rota com especial cuidado para não ter de pôr o navegador: não queria que a

distraísse. Dirigiu-se para norte por Finchley Road, seguiu pela A1 e depois virou para leste naM25, até chegar à A12. Observava de vez em quando a estrada, sistematicamente, para verificarque ninguém a seguia, mas quando se fez de noite começou a distrair-se.

Pensava na noite em que fugiu com os seus pais de Berlim Leste. Fizeram a viagem a bordo deum avião de transporte soviético malcheiroso. Entre os passageiros havia um homenzinho derosto chupado e olheiras profundas que trabalhava com o pai de Anna no escritório do KGB emDresden. Era um pobre diabo que passava a vida a fazer trabalho de tradutor e a recortar artigosde jornais alemães.

Sem saber como, desde então aquele homenzinho insignificante tornara-se no homem maispoderoso do mundo. No prazo de poucos anos, tinha semeado o caos na economia e na ordempolítica mundial do pós-guerra. A União Europeia ia por água abaixo, a NATO estava por umfio. Depois de se imiscuir na política da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, tinha-se intrometidotambém na da Arábia Saudita. Anna e Nikolai tinham-no ajudado a alterar a linha sucessória dadinastia saudita. Agora, por motivos que lhes escapavam, estavam a ponto de voltar a alterá-la.

Anna nunca questionava as ordens de Moscovo Centro — e menos ainda em relação a«medidas ativas» que interessassem especialmente ao presidente —, mas aquela missãopreocupava-a. Não gostava de receber ordens de uma pessoa como Rebecca Philby, um ex-altocargo do MI6 que a muito custo falava russo. Inquietava-a, além disso, ter deixado uma pontasolta na sua última missão.

Gabriel Allon…Deveria ter matado o israelita no restaurante de Carcassonne quando tivera oportunidade, mas

as ordens de Moscovo Centro eram muito concretas. Queriam que Allon morresse junto com opríncipe saudita e a menina. Anna não tinha vergonha de admitir que temia a vingança de Allon.O israelita não era dos que ameaçavam em vão.

Estão mortos! Mortos, mortos, mortos…Deixou de pensar em Allon ao aproximar-se da localidade de Colchester. O único caminho

para entrar em Frinton-on-Sea era a passagem a nível de Connaught Avenue. Nikolai estavaalojado num hotel da marginal. Anna deixou o Renault nas mãos do arrumador de carros, mas elaprópria levou a mala para o vestíbulo.

Um casal bebia uma garrafa de Dom Perignon no bar do hotel: um homem bonito de unscinquenta anos, louro e bronzeado, e uma mulher de cabelo preto. Não pareceram reparar nelaquando se aproximou da receção para ir buscar a chave do quarto reservado em seu nome. Aporta que abria ficava no terceiro andar, e o quarto no qual entrou sem bater estava às escuras.Tirou a roupa e, vigiada pelas câmaras do MI6, aproximou-se sem pressa da cama.

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NÚMERO 10 DE DOWNING STREET

Pela segunda noite consecutiva, uma limusina Jaguar atravessou a barreira de segurança deHorse Guards Road às oito e um quarto. O gato acastanhado e branco retirou-se apressadamentequando Gabriel e Graham Seymour atravessaram a bom passo Downing Street debaixo de umforte temporal. Sem dizer uma palavra, Geoffrey Sloane deixou-os passar para a Sala doGabinete, onde o primeiro-ministro ocupava a sua cadeira de sempre, no centro da longa mesa. Àfrente dele havia uma cópia da agenda oficial do príncipe Abdullah durante a sua visita aLondres.

Depois de Sloane sair, já à porta fechada, Graham Seymour pô-lo a par das novidades.Naquela mesma tarde, um segundo agente russo, uma mulher, tinha chegado de carro ao HotelBedford House de Frinton-on-Sea. Depois de manter relações sexuais com o seu colega, tinhaapanhado uma pistola Stechkin de 9 mm, dois carregadores, um silenciador e um pequeno objetoque os técnicos ainda estavam a tentar identificar.

— Alguma ideia do que pode ser? — perguntou Lancaster.— Prefiro não especular.— Onde está neste momento?— Continua no quarto.— Sabemos como entrou no país?— Ainda estamos a investigar.— Há mais agentes?— Há coisas que não sabemos que não sabemos, senhor primeiro-ministro.— Poupa-me a parvoíces, Graham. Limita-te a dizer-me o que vão fazer agora.— Não posso, senhor primeiro-ministro. Ainda não.Lancaster praguejou baixinho.— E se o carro dessa mulher esconde uma bomba como a que estoirou em Brompton Road há

dois anos? — Olhou para Gabriel. — Lembra-se disso, não é verdade, senhor Allon?— Já inspecionámos o seu carro. E também o do seu amigo. Estão limpos. Além disso —

acrescentou Gabriel —, é impossível que amanhã consigam aproximar-se do Abdullah com umabomba. Londres estará hermeticamente fechada.

— E o que me diz da comitiva saudita?— Assassinar um chefe de Estado num carro em andamento é quase impossível.— Digam isso ao arquiduque Fernando. Ou ao presidente Kennedy.

— O Abdullah não irá num carro descoberto, e as ruas estarão cortadas ao trânsito edesocupadas de carros.

— Onde tentarão atacar, então?Gabriel olhou para a agenda.— Posso?Lancaster empurrou o documento para ele sobre a mesa. Era um esquema de uma só página.

Chegava a Heathrow às nove. Reunião entre as delegações britânica e saudita em Downing Streetentre as dez e meia e a uma, seguida de um almoço de trabalho. O príncipe devia sair do número10 às três e meia e ir de carro até à sua residência privada em Belgravia, onde passaria váriashoras a descansar. Às oito, voltaria para Downing Street para jantar. Partiria para Heathrow porvolta das dez da noite.

— Segundo os meus cálculos — disse Gabriel apontando para um dos pontos do esquema —,será aqui.

O primeiro-ministro assinalou outro ponto.— E se for aqui? Ou aqui? — perguntou deslizando o dedo pela página. — Ou aqui? — Fez-

se silêncio. Depois Lancaster acrescentou: — Como compreende, preferia não me contar entre asvítimas colaterais.

— Sim, eu sei — respondeu Gabriel.— Talvez devêssemos aumentar a segurança em Downing Street, até mais do que estava

previsto.— Talvez sim.— Imagino que não está disponível.— Seria uma honra, senhor primeiro-ministro, mas temo que a delegação saudita ficasse

chocada, no mínimo, por me encontrar aqui.— E o Keller?— Isso é muito melhor.Lancaster passeou lentamente o olhar pela sala.— Entre estas quatro paredes tomaram-se muitas decisões transcendentais, mas esta… —

Olhou para Graham Seymour. — Reservo-me o direito de mandar deter esses dois russosamanhã, a qualquer momento.

— Claro, senhor primeiro-ministro.— Se algo correr mal, a culpa será tua, não minha. Eu não mandei, permiti ou fiz parte de

modo algum neste assunto. Está claro?Seymour assentiu uma só vez com a cabeça.— Muito bem. — Lancaster fechou os olhos. — E que Deus se apiade de todos nós.

60

WALTON-ON-THE-NAZE, ESSEX

Christopher Keller permaneceu no Hotel Bedford House até às três da manhã. A essa hora,esgueirou-se pela porta traseira de serviço e começou a andar pela marginal em direção norte, atéque chegou a Walton-on-the-Naze. O carro estava à sua espera em frente de uma loja deantiguidades e velharias na Station Street. Keller passou à frente dele duas vezes antes de sesentar no lugar do passageiro. O condutor era um agente de apoio que se chamava Tony. Quandoarrancou, Keller reclinou o assento e fechou os olhos. Passara duas noites num quarto de hotelcom uma bela americana à qual se afeiçoara bastante. Precisava de duas horas de sono.

Ao acordar, viu vários homens com turbante a caminhar por uma rua na penumbra. Estavamem Edgware Road. Tony seguiu a estrada até Marble Arch. Atravessou o parque por WestCarriage Drive e ziguezagueou a seguir pelas ruelas de Kensington, sonolentas ainda, até àluxuosa casa de Keller em Queen’s Gate Terrace.

— Muito bonita — comentou Tony com inveja.— Às nove está bem?— Preferia às oito e meia. O trânsito vai estar impossível.Keller saiu do carro, atravessou a rua e desceu os degraus da entrada inferior do duplex. Lá

dentro, carregou a cafeteira com água mineral Volvic e café Carte Noire e pôs-se a ver osPequenos-almoços da BBC enquanto o café se fazia. A visita oficial do príncipe Abdullah tinhaconseguido suplantar o Brexit nas manchetes. Os comentadores confiavam que a cimeira sedesenvolvesse num clima de cordialidade e que o saudita prometesse comprar muitas armas. APolícia Metropolitana, pelo contrário, preparava-se para enfrentar um dia complicado, poisesperava-se que milhares de manifestantes se juntassem em Trafalgar Square em protesto peloassassinato do jornalista dissidente Omar Nawwaf e contra o encarceramento de ativistasdemocratas na Arábia Saudita. Um comando policial aconselhou que se evitasse circular pelocentro de Londres na medida do possível.

— Nem sonhes — murmurou Keller.Bebeu a primeira chávena de café enquanto via as notícias e uma segunda enquanto fazia a

barba. No duche deu por si a sonhar acordado com a bela americana que tinha deixado num hotelde Frinton. Pôs especial esmero em arranjar-se e escolheu um discreto fato cinzento escuro comum bom tecido, uma camisa branca e uma gravata lisa azul marinha. Ao olhar para o espelho,concluiu que tinha conseguido o efeito desejado. Parecia um agente especial do RaSP, o ServiçoEspecial de Escoltas da Casa Real, um ramo da Comandância de Segurança da Polícia

Metropolitana responsável pela proteção da família real, do primeiro-ministro e dos mandatáriosestrangeiros que visitavam o país. Keller e o resto do RaSP tinham um longo dia pela frente.

Desceu à cozinha e continuou a ver os Pequenos-almoços da BBC até que acabou o programa,às oito e meia. Pôs então um sóbrio casaco mackintosh e subiu a rua, onde Tony o esperavasentado ao volante de um carro do MI6. Enquanto atravessavam Londres em direção a leste,Keller voltou a pensar na bela americana. Desta vez, tirou o seu BlackBerry e marcou.

— Onde estás? — perguntou.— A sair do restaurante.— Alguém interessante ao pequeno-almoço?— Um par de entusiastas da ornitologia e um agente russo.— Só um?— A amiga saiu há uns minutos.— O Gabriel e o Graham sabem?— O que é que achas?— Para onde é que ela foi?— Para aí.— Quem é que a segue?— O Mikhail e o Eli.Keller ouviu o barulho do elevador do Bedford e o barulho das portas.— Para onde vais?— Pensava deitar-me na cama com um livro e uma pistola e esperar que o meu marido volte.— Lembras-te de como a usar?— Tirar a patilha de segurança e apertar o gatilho.Keller desligou e olhou indiferente pela janela. Tony tinha razão: o trânsito estava impossível.

Os manifestantes já tinham ocupado Trafalgar Square. Uma grande multidão estendia-se desdea escadaria da National Gallery até à Coluna de Nelson, empunhando cartazes e entoando lemas.Vestidos uns com turbante e véu e outros com camisolas polares e camisas de flanela, todos elesmostravam a sua indignação por o chefe do governo britânico se dispor a homenagear o monarcaem funções na Arábia Saudita.

Whitehall estava fechado ao trânsito. Keller saiu do carro e, depois de mostrar a suaidentificação do MI6 a um agente de polícia munido de uma prancheta, pôde seguir a pé. Porfim, esqueceu-se de Sarah Bancroft e no seu lugar lembrou-se da manhã em que ele e Gabrielimpediram que o ISIS fizesse estoirar uma bomba suja no centro de Londres. Foi Gabriel quematou o terrorista com vários disparos na cabeça, mas foi ele, Keller, que tinha impedido que odetonador do artefacto explosivo acionasse automaticamente espalhando uma nuvem letal decloreto de césio sobre a sede do governo britânico. Durante três horas, enquanto a equipa deminas e armadilhas se esforçava freneticamente por desativar a bomba, tivera de segurar opolegar sem vida do terrorista colado ao gatilho. Tinham sido, sem dúvida alguma, as três horasmais longas da sua vida.

Evitou o lugar no qual tinha jazido junto ao terrorista morto e apresentou-se na grade desegurança de Downing Street. Depois de mostrar de novo a sua identificação, deixaram-nopassar. Ken Ramsey, o chefe de operações de Downing Street, esperava-o no vestíbulo donúmero 10.

Ramsey entregou-lhe um radiotransmissor e uma Glock 17.— O seu chefe está lá em cima, na Sala Branca. Quer falar consigo.Keller subiu a toda a pressa pela escadaria ladeada por retratos de primeiros-ministros.

Geoffrey Sloane estava à espera dele no corredor, junto à Sala Branca. Abriu a porta e indicou-lhe com um gesto que entrasse. Graham Seymour estava sentado numa das cadeiras. A outraestava ocupada pelo primeiro-ministro, Jonathan Lancaster, com o semblante crispado pelatensão.

— Keller — disse distraidamente.— Senhor. — Keller olhou para Seymour. — Onde está a rapariga?— Na A12, a vir para Londres.— E o Abdullah?— Diz-me tu.Keller pôs o auscultador e escutou a conversa fiada da frequência de rádio do RaSP.— Chega a horas, às dez e um quarto.— Então talvez devesse estar lá em baixo, com os seus colegas — disse Lancaster.— Isso significa…?— Que a cimeira vai decorrer tal e qual estava prevista? — Lancaster levantou-se e apertou o

casaco do fato. — Claro que sim, pelo amor de Deus, porque é que não havia de decorrer?

61

NOTTING HILL

Às dez e treze minutos da manhã, enquanto uma comitiva de enormes Mercedes atravessava abarreira de Downing Street, um carro, um discreto utilitário Opel, parou em frente do número 7de St. Luke’s Mews, em Notting Hill. O ocupante do banco de trás, o príncipe Khalid binMohammed Abdulaziz Al Saud, estava com um humor de cão. Tal como o seu tio, tinha chegadonaquela mesma manhã ao Aeroporto de Heathrow, não num jato privado, como costumava, masnum voo comercial procedente do Cairo, uma experiência que demoraria a esquecer. O carro foia gota que fez o copo transbordar.

O seu olhar cruzou-se com o do condutor no espelho retrovisor.— Não me vai abrir a porta?— É só abrir com o puxador, homem. Funciona sempre.Khalid saiu para a rua molhada. A porta do número 7 permaneceu firmemente fechada quando

se aproximou dela. Olhou para trás. O condutor indicou-lhe com um gesto que anunciasse a suachegada batendo à porta. Outra ofensa calculada, disse a si próprio. Nunca na sua vida batera auma porta.

Um homem de aspeto juvenil e semblante benévolo convidou-o a entrar. A casa era muitopequena e mal tinha móveis. A sala de estar continha um par de cadeiras baratas e um televisorsintonizado na BBC. Gabriel Allon estava de pé à frente da televisão, com uma mão no queixo ea cabeça um pouco de lado.

Khalid aproximou-se e viu o seu tio, vestido com o fato tradicional saudita, a sair de umalimusina entre o brilho das câmaras. O primeiro-ministro Jonathan Lancaster aguardava junto àporta do número 10, com o rosto paralisado num sorriso.

— Devia ser eu a chegar a Downing Street — comentou Khalid —, não ele.— Devia estar contente por não estar lá.Khalid observou o quarto, contrariado.— Suponho que não há qualquer bebida.Gabriel assinalou uma porta.— Sirva-se.Khalid entrou na cozinha: outra novidade para ele.— Como funciona a chaleira? — gritou, desconcertado.— É só pôr água e carregar no botão de ignição. Isso deve bastar.

O príncipe Abdullah, tal como o seu tempestuoso sobrinho, também não ficou impressionado

com a casa na qual entrou nessa manhã. Embora tivesse vivido muitos anos em Londres, semprenos círculos da alta sociedade, aquela era a sua primeira visita a Downing Street. Tinham-lheassegurado que para além do austero vestíbulo havia uma casa de extraordinária elegância eamplitude surpreendente. À primeira vista, no entanto, custava acreditar nisso. Abdullah preferiao seu novo palácio em Riade, que tinha custado milhares de milhões, ou o Grande PalácioPresidencial do Kremlin, onde se reunira em segredo várias vezes com o homem com o qualtinha contraído uma dívida descomunal. Uma dívida da qual hoje faria o primeiro pagamento.

O primeiro-ministro fez questão de mostrar-lhe um cadeirão de pele arranhado que tinha sidoo preferido de Winston Churchill. Abdullah manifestou admiração com um murmúrio impreciso.Para si, no entanto, pensou que o cadeirão, tal como Jonathan Lancaster, estava nas últimas.

Por fim, Abdullah e os seus ajudantes foram conduzidos à Sala do Gabinete. Um nome muitoapropriado, a julgar pelo seu tamanho. O príncipe ocupou o lugar que lhe tinham indicado eLancaster sentou-se em frente. Ambos tinham à frente a agenda para a primeira sessão dacimeira. Lancaster, contudo, depois de muito pigarrear e revolver papéis, propôs que antes demais nada tratassem de certos «assuntos difíceis».

— Difíceis?— Soubemos que uma dúzia ou mais de mulheres ativistas estão retidas sem acusação numa

prisão saudita e estão a ser submetidas a diversas torturas, entre elas o eletrochoque e oafogamento simulado, além de sofrerem ameaças de violação. É essencial que essas mulheressejam postas em liberdade de imediato. Caso contrário, a normalidade das nossas relaçõesdiplomáticas ver-se-á afetada.

Abdullah conseguiu dissimular a sua perplexidade. O seu ministro do Exterior e o seuembaixador em Londres tinham-lhe assegurado que a reunião seria amistosa.

— Foi o meu sobrinho que mandou prender essas mulheres — respondeu com calma.— Embora assim seja — replicou Lancaster —, o atual responsável pela sua prisão é o senhor.

Deve libertá-las de imediato.Abdullah olhou-o com frieza, sem vacilar.— O reino da Arábia Saudita não se imiscuiu nos assuntos internos da Grã-Bretanha.

Esperamos em troca a mesma cortesia.— O reino da Arábia Saudita tem contribuído direta e indiretamente para que este país se

converta no principal centro de ideologia jihadista e salafista do mundo. Isso também tem deacabar.

Abdullah titubeou um momento.— Talvez devêssemos passar ao próximo ponto na ordem do dia.— Acabamos de fazê-lo.

Para além do distrito ministerial de Whitehall e Westminster, o trânsito de Londres era tãocaótico como costumava ser a meio do dia. De facto, Anna Yurasova demorou quase duas horasa ir de Tower Hamlets à garagem Q-Park de Kinnerton Street, em Belgravia. Bem mais tempo doque esperava.

A rezidentura de Londres tinha-lhe reservado em segredo um lugar na garagem. Annaescondeu a Stechkin de 9 mm debaixo do lugar do copiloto do Renault antes de deixar o carro

nas mãos do empregado. Depois subiu a pé pela rampa com a mala pendurada ao ombro e saiupara Motcomb Street, uma ruela pedonal ladeada por algumas das lojas e restaurantes maisexclusivos de Londres. Com a sua saia e as suas meias escuras, o seu casaco curto de pele e osseus saltos, que batiam ruidosamente nas pedras da rua, atraía numerosos olhares de inveja eadmiração. Estava certa, no entanto, de que ninguém a seguia.

Ao chegar a Lowndes Street virou à esquerda e encaminhou-se para Eaton Square. A partenoroeste da rua estava cortada ao trânsito, tanto de veículos como de peões. Anna aproximou-sedo agente da Polícia Metropolitana e explicou-lhe que trabalhava numa das casas da praça.

— Em qual, por favor?— No número setenta.— Tem de me mostrar a sua mala.Anna tirou a mala do ombro e abriu-a. O agente examinou-a atentamente antes de deixá-la

passar. As casas geminadas do lado esquerdo da praça contavam-se entre as mais esplêndidas deLondres: três janelas grandes, cinco andares, sótão e um pórtico bonito apoiado em duas colunas,cada uma com o número da casa. Anna subiu os quatro degraus do número 70 e carregou nacampainha com o dedo indicador. A porta abriu-se e ela entrou.

Sem que Anna Yurasova soubesse, a equipa de Hatch End vigiava cada um dos seusmovimentos com a ajuda das câmaras de segurança. Eli Lavon, que a seguia a pé, só agia comoreforço caso algo corresse mal. Depois de vê-la entrar no número 70 de Eaton Square, continuoua andar até Cadogan Place e entrou num Ford Fiesta. Mikhail Abramov estava sentado aovolante.

— Parece que o Gabriel tinha razão quanto ao lugar onde pensam fazer aquilo.— Pareces surpreendido — respondeu Lavon.— Em absoluto. A questão é, como vão chegar até ele?Mikhail, nervoso, pôs-se a bater com os dedos sobre o painel central. Um costume muito

pouco apropriado para um espião, disse Lavon a si próprio.— Poderias parar de fazer isso, por favor?— O quê?Lavon exalou devagar e ligou o rádio do carro. Era meio-dia. Em Downing Street, informou o

locutor da Rádio 4, o primeiro-ministro e o príncipe saudita acabavam de se sentar para almoçar.

62

EATON SQUARE, BELGRAVIA

Foi Konstantin Dragunov, amigo e sócio do presidente russo, que abriu a porta da mansão deEaton Square a Anna Yurasova. Vestia o fato escuro próprio dos oligarcas e uma camisa brancadesapertada até ao esterno. Tinha o cabelo e a barba grisalhos e ralos, aparados uniformemente, eo seu grosso lábio inferior reluzia como a pele de uma maçã brilhante. Anna ficou horrorizada aopensar no tradicional beijo de cumprimento russo e, pondo-se à defesa, estendeu-lhe a mão.

— Senhor Dragunov — disse em inglês.— Chame-me Konstantin, por favor — respondeu ele no mesmo idioma. Depois acrescentou

em russo: — Tranquila, ontem à noite uma equipa da rezidentura revistou a casa de alto a baixo.Está limpa.

Ajudou Anna a tirar o casaco. A sua forma de olhá-la deixava claro que, por ele, tê-la-iaajudado a tirar também o vestido e a roupa interior. Konstantin Dragunov tinha fama de ser umdos piores devassos da Rússia, um feito notável tendo em conta o nível dos seus competidores.

Anna percorreu com o olhar o elegante vestíbulo. Antes de sair de Moscovo tinha-sefamiliarizado com o interior da casa estudando fotografias e plantas. Não lhe faziam justiça. Erauma casa muito bonita.

Voltou a pegar no seu casaco.— Conviria que me mostrasse isto.— Será um prazer.Dragunov conduziu-a por um corredor, até uma entrada com duas portas, cada uma com uma

janela redonda, como olhos de boi de um barco. Mais além, havia uma cozinha profissional bemmaior do que o apartamento de Anna em Moscovo. Saltava à vista pela atitude indiferente deDragunov que raramente entrava naquela divisão da sua mansão de Belgravia.

— Dei o dia livre ao resto do pessoal, como me indicou a inglesa. Duvido que o Abdullahqueira comer alguma coisa, mas antes que a polícia isolasse a zona mandei trazer um par debandejas de acepipes do seu restaurante favorito. Estão no frigorífico.

Havia dois frigoríficos, na realidade, um ao lado do outro. Os dois da marca Sub-Zero.— O que costuma beber?— Isso depende do seu humor. Champanhe, vinho branco, ou um whisky se tiver um mau dia.

Os vinhos estão no refrigerador debaixo do balcão. Os licores estão no bar. — Dragunovempurrou a porta com a displicência de um chefe de empregados com muita pressa. O bar estavanuma entrada da parede, à direita. — Abdullah prefere Johnnie Walker Black Label. Guardo uma

garrafa especialmente para ele.— Como o bebe?— Com muito gelo. Há uma caixa de gelo automática debaixo do lava-loiças.— A que horas chega?— Entre as quatro e meia e as cinco. Por razões óbvias, não pode ficar muito tempo.— Onde o vai receber?— No salão.O salão ficava em cima, no primeiro andar da mansão. Como o resto da casa, não havia nada

de russo. Anna imaginou a cena que teria lugar ali umas horas depois.— É importantíssimo que se comporte com naturalidade — disse a Dragunov. — Pergunte-lhe

o que quer beber e eu trato do resto. Consegue fazê-lo, Konstantin?— Acho que sim. — Dragunov agarrou-a pelo braço. — Quero mostrar-lhe outra coisa.— O quê?— Uma surpresa.Conduziu-a até um pequeno elevador forrado com painéis de madeira e carregou no botão do

último andar. O seu gigantesco quarto — a câmara dos horrores — dava para Eaton Square.— Não se preocupe, trouxe-a aqui só por causa da vista.— Que vista?Ele levou-a até uma das três grandes janelas e apontou para o lado sul da praça.— Sabe quem vive mesmo ali, no número cinquenta e seis?— O Mick Jagger?— O chefe dos serviços secretos. E vai matar um dos seus colaboradores mais importantes

bem debaixo do nariz dele.— Isso é estupendo, Konstantin. Mas, se não me deixar em paz, mato-o a si também.

O tema a tratar no almoço de trabalho em Downing Street era a guerra que a Arábia Sauditatinha empreendido contra os insurgentes Houthi do Iémen apoiados pelo Irão. JonathanLancaster exigiu a Abdullah que pusesse fim aos ataques aéreos indiscriminados sobre apopulação civil, especialmente se fossem levados a cabo com aviões de combate de fabricobritânico. Abdullah respondeu que a guerra fora iniciada pelo seu sobrinho, não por ele, emboratenha deixado claro que, tal como KBM, opinava que não podia permitir aos iranianos estender asua influência maligna por todo o Médio Oriente.

— Também nos preocupa a influência crescente da Rússia na região — acrescentou Lancaster.— A influência de Moscovo vai aumentando, porque o presidente russo não permitiu que o

seu aliado sírio fosse varrido do mapa por causa dessa loucura da Primavera Árabe. O resto domundo árabe, incluindo a Arábia Saudita, percebeu isso inevitavelmente.

— Permite-me dar-lhe um conselho, príncipe Abdullah? Não se deixe manipular pelaspromessas dos russos. Isso não vai acabar bem.

Eram três e um quarto quando os dois mandatários saíram pela porta do número 10. O acordocomercial que o primeiro-ministro esboçou perante a imprensa era considerável, mas nãocumpria as expectativas prévias à cimeira por um par de milhares de milhões de libras. O mesmopodia dizer do compromisso de Abdullah de comprar armamento britânico no futuro. Sim,assegurou Lancaster, tinham debatido questões importantes relativas aos direitos humanos. Enão, não estava satisfeito com todas as respostas do príncipe. Entre elas, as respeitantes ao brutal

assassínio do jornalista dissidente saudita Omar Nawwaf.— Foi — concluiu Lancaster — uma conversa sincera e frutífera entre dois bons amigos.Dito isto, apertou a mão a Abdullah e indicou-lhe o Mercedes que o aguardava. Quando a

comitiva abandonou Downing Street, Christopher Keller entrou para a parte de trás de um furgãopreto do Comando de Segurança. Em circunstâncias normais, o trajeto até à residência privada deAbdullah no número 71 de Eaton Square teria durado vinte minutos ou mais. Mas, com as ruasvazias e acompanhados por uma escolta da Polícia Metropolitana, demoraram menos de cinco.

As câmaras de segurança da praça gravaram a entrada do príncipe Abdullah em sua casa às15h42, acompanhado por uma dúzia de assistentes vestidos com longas túnicas e vários guarda-costas de fato escuro. Seis agentes do RaSP pespegaram-se de imediato em frente da casa, aolongo do passeio. Um membro do dispositivo de segurança, no entanto, permaneceu na parte detrás do furgão do Comando de Segurança, escondido da vista da mulher que estava à janela doterceiro piso da casa do lado.

O primeiro-ministro Jonathan Lancaster demorou também cinco minutos a despedir-se dosseus assistentes e subir para a Sala Branca. Ao entrar, tirou do bolso uma folha de papel com ocabeçalho do número 10. O caderno do qual tinha sido arrancada descansava sobre a mesa baixa,à frente de Graham Seymour, debaixo da caneta Parker do chefe do MI6.

— Suspeito que sou o primeiro mandatário da história deste país ao qual entregam umamensagem como esta a meio de uma visita de Estado. — Lancaster pousou a folha sobre a mesa.— Disse a Abdullah que dizia respeito ao Brexit. Não tenho a certeza se acreditou em mim.

— Pensei que devias saber onde está a rapariga.Jonathan Lancaster olhou para a mensagem.— Faz-me um favor, Graham. Queima essa coisa. E o resto do caderno também.— Como?— Deixaste a marca do que escreveste no caderno. — Lancaster mexeu a cabeça,

incomodado. — Não vos ensinam nada na escola de espiões?

63

EATON SQUARE, BELGRAVIA

As críticas começaram mal a porta se fechou. A reunião em Downing Street fora um desastresem paliativos. Não o conseguia descrever de outro modo. Um desastre! Como era possível quenão soubessem que Lancaster se propunha lançar uma emboscada a Sua Alteza Real a respeitodo assunto dos direitos humanos e das mulheres presas? Porque se tinham deixado enganar?Obaid, o ministro dos Negócios Estrangeiros, culpou Qahtani de tudo, o embaixador emLondres, que via conspirações por toda a parte. Al-Omari, o chefe da corte real, estava tãofurioso que propôs cancelar o jantar e regressar a Riade de imediato. Mas Abdullah, assumindode repente o seu papel de homem de Estado, impôs o seu critério. Ao cancelar o jantar, afirmou,só conseguiriam ofender os britânicos e debilitar a sua própria posição na Arábia Saudita. Erapreferível pôr boa cara e acabar a visita como estava previsto.

Enquanto isso, convinha dar uma resposta mediática contundente. Obaid correu para falar coma BBC e Qahtani com a CNN. No meio do súbito silêncio que se fez na sala, Abdullah deixou-secair no seu cadeirão, fechou os olhos e levou a mão à testa. O destinatário daquela atuação teatralera Al-Omari, o chefe da corte real. Para Al-Omari, nenhuma tarefa era demasiado insignificanteou humilhante. Pululava à volta de Abdullah de noite e de dia. Por conseguinte, teria de lidarcom ele com especial cuidado.

— Sua Alteza Real está bem?— Só um pouco cansado, mais nada.— Talvez devesse subir para descansar.— Acho que primeiro vou tomar um banho.— Quer que ligue a sauna?— Ainda há coisas que consigo fazer sozinho. — Abdullah levantou-se lentamente. — A não

ser que haja um golpe de Estado ou que o Irão ataque a Arábia Saudita, não desejo que ninguémme incomode até às sete e meia. Consegues isso, Ahmed?

Abdullah desceu até à piscina. Uma luz azul e aquosa bailava no teto abobadado, pintado comcorpos nus ao estilo de Rubens ou Miguel Ângelo. A cara de horror que poriam os ulemás se opudessem ver naquele instante, pensou. Tinha renovado a tradicional aliança entre os wahabistase a Casa de Saud para conquistar o apoio do clero no seu golpe contra Khalid. Mas, no fundo,detestava os barbudos tanto como os reformistas. Apesar dos obstáculos inesperados que tinhaencontrado em Downing Street, tinha desfrutado daquele breve interlúdio longe do asfixianteambiente religioso de Riade. Tinha consciência das saudades que tinha de ver carne feminina,

mesmo que fosse só uma barriga da perna nua e pálida no inverno, vista através do vidro fumadode uma limusina em andamento.

Entrou no vestiário, ligou a sauna e despojou-se do seu vestuário. Já despido, contemplou oseu reflexo no espelho de corpo inteiro. O panorama deprimiu-o. A pouca musculatura que tinhadesenvolvido após a puberdade tinha-se dissolvido há um tempo tornando-se em gordura. Ospeitorais pareciam pendurados como os seios de uma velha sobre a colossal barriga. As pernas,peladas e esguias, pareciam a ponto de ceder debaixo daquele ónus. A única coisa que o salvavada fealdade absoluta era o cabelo. Era abundante, lustroso e só ligeiramente grisalho.

Meteu-se na piscina e nadou vários metros qual morsa. Depois, de novo perante o espelho,pareceu-lhe perceber uma certa melhoria no seu tom muscular. No vestiário havia uma muda deroupa completa: calças de fazenda, casaco, camisa às riscas, roupa interior, sapatos deatacadores, cinto. Depois de colocar desodorizante e pentear-se, vestiu-se.

A porta de vidro grossa da sauna estava coberta de vapor. Ninguém, nem sequer o enjoativoAl-Omari, se atreveria a olhar para dentro. Abdullah colocou o trinco da porta exterior dovestiário e a seguir abriu outra porta para lá da qual houvera antigamente um quartinho paraguardar roupões de banho e toalhas. Agora era uma espécie de vestíbulo. Lá dentro havia outraporta e, na parede, um painel numérico. Abdullah marcou o código de quatro algarismos. A portaabriu-se com um estalido surdo.

64

EATON SQUARE, BELGRAVIA

A porta de acesso que havia do outro lado da parede já estava aberta. Konstantin Dragunovesperava no corredor iluminado a meia-luz. Dirigiu a Abdullah um olhar longo e direto,desprovido por completo de adulação. Abdullah supôs que o russo tinha direito a semelhanterasgo de insolência. Se não fosse por causa de Dragunov e do seu amigo do Kremlin, Khalidcontinuaria a ser o herdeiro do trono e ele, Abdullah, não seria mais do que outro príncipe árabejá com alguma idade e meio arruinado, pertencente à parte pobre da família real.

Por fim, Dragunov inclinou ligeiramente a cabeça. Não havia no seu gesto nem um ápice desinceridade, no entanto.

— Alteza.— Konstantin, fico contente por te ver.Abdullah aceitou a mão que o russo lhe estendeu. Há vários meses que não se viam. A última

vez, tinha informado o russo de que o seu sobrinho Khalid tinha pedido ajuda a um tal GabrielAllon, o chefe dos serviços secretos israelitas, para encontrar a sua filha.

O russo largou-lhe a mão.— Vi uma conferência de imprensa conjunta com Lancaster. A verdade é que parecia bastante

tensa.— Foi. Tal como a reunião prévia.— Que estranho. — Dragunov deu uma vista de olhos ao seu grosso relógio de ouro. —

Quanto tempo podes ficar?— Meia hora. Nem mais um minuto.— Subimos?— E se houver jornalistas e fotógrafos na praça?— As persianas e as cortinas estão fechadas.— E o serviço?— Só há uma rapariga. — Dragunov esboçou um sorriso lascivo. — Espera até vê-la.Subiram dois trechos de escadas, até ao espaçoso salão mobilado como um clube de

cavalheiros de Pall Mall e decorado com quadros de cavalos, cães e homens de perucas brancas.Uma servente com um vestido preto muito curto estava a colocar bandejas de aperitivos numamesa baixa. Tinha uns trinta e cinco anos e era bastante bonita. Abdullah perguntou-se ondeDragunov as arranjava.

— Queres beber alguma coisa? — perguntou o russo. — Sumo? Água mineral? Chá?

— Sumo.— De quê?— Desse de uvas francesas e com gás que servem num copo de cristal muito fino.— Acho que tenho uma garrafa de Louis Roederer Cristal no frio.Abdullah sorriu.— Vais ter de te conformares com isso, suponho.A mulher assentiu em silêncio e retirou-se.Abdullah sentou-se e declinou com um gesto quando Dragunov lhe ofereceu algo para comer.— Em Downing Street têm-me engordado como um ganso. E às oito começa o segundo

assalto.— Pode ser que resulte melhor do que o primeiro.— Duvido.— Esperavas umas boas-vindas mais calorosas?— Disseram-me que podia esperar.— Quem te disse isso?Abdullah sentiu-se interrogado.— A informação chegou-me pelos canais habituais, Konstantin. O que é que isso importa?Passaram uns segundos. Depois Dragunov disse com calma:— Se tivesses ido a Moscovo em vez de ires a Londres, ninguém te teria repreendido.— Se a minha primeira viagem de Estado como príncipe herdeiro tivesse sido a Moscovo, os

americanos e os meus rivais dentro da Casa de Saud tê-lo-iam interpretado como um desafio eisso teria sido perigoso. É melhor esperar até ser rei. Dessa forma, ninguém se atreverá aquestionar-me.

— Seja como for, o nosso amigo comum do Kremlin gostaria de ver algum sinal que esclareçaquais são as tuas intenções.

«Já começa», pensou Abdullah. A pressão para que cumprisse a sua parte do acordo.— Um sinal? De que tipo?— Um que deixe claro que não pensas ir-te embora e te convertas no líder de uma família cuja

fortuna se estima em mais de um bilião de dólares. — Dragunov esboçou um sorriso forçado. —Com semelhante riqueza, talvez te esqueças de quem te ajudou quando ninguém mais te apoiava.Lembra-te, Abdullah, que o presidente investiu muito em ti. E espera que correspondas como elemerece.

— E fá-lo-ei — afirmou Abdullah. — Quando for rei.— Enquanto isso, gostava de ver algum gesto de boa vontade.— Algum em concreto?— Um acordo para investir cem biliões de dólares do tesouro da Arábia Saudita em vários

projetos russos que são de vital importância para o Kremlin.— E para ti também, imagino. — Ao não receber resposta, acrescentou: — Isto soa-me a

chantagem.— Sim?Abdullah fingiu refletir.— Diz ao teu presidente que enviarei uma delegação a Moscovo na semana que vem.Dragunov juntou as mãos num gesto conciliador.— Uma notícia excelente.Abdullah sentiu de repente o desejo de beber álcool. Olhou para trás. Onde raios se tinha

metido a rapariga? Quando se virou, Dragunov estava a engolir um acepipe de caviar. Um ovopreto ficara colado ao seu lábio inferior como um carrapato.

Abdullah desviou o olhar e mudou bruscamente de assunto.— Porque não me disseste que iam tentar matá-lo?— A quem?— Ao Allon.O russo passou as costas da mão pela boca, desalojando o bocadinho de caviar.— A decisão foi tomada pelo Kremlin e pelo SVR. Eu não tive nada a ver com isso.— Deviam ter matado o Khalid e a rapariga como pensámos e ter deixado o Allon à margem

disto.— Tinha de tratar dele.— Mas não trataram dele, Konstantin. O Allon sobreviveu nessa noite.Dragunov fez um gesto desdenhoso.— De que tens tanto medo?— Do Gabriel Allon.— Com isso não tens de te preocupar.— Ah, não?— Fomos nós que tentamos matá-lo, não tu.— Duvido que ele faça essa distinção.— És o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Abdullah. Em breve, serás rei. Já ninguém te

pode tocar, nem sequer o Gabriel Allon.O saudita olhou para trás. Onde diabos estava a rapariga?

* * *

O SVR tinha treinado Anna Yurasova para manobrar todo o tipo de armas: armas de fogo,armas brancas e explosivos. Ninguém, pelo contrário, lhe ensinara a abrir uma garrafa dechampanhe Louis Roederer em condições de stresse operativo.

Quando a rolha saiu por fim disparada da garrafa com força, vários mililitros do caríssimoespumante ficaram derramados sobre o balcão. Sem prestar atenção à confusão, Anna meteu amão ao bolso do avental e tirou uma pipeta Pasteur e um tubinho de vidro. O líquido transparenteque continha era uma das substâncias mais perigosas do mundo. Moscovo Centro tinha-lheassegurado que era inofensivo desde que se mantivesse dentro do seu recipiente. Assim quetirasse a tampa, no entanto, o líquido emitiria um chorro invisível e mortífero de radiação alfa.Teria de proceder depressa, mas com extremo cuidado. Não podia ingerir a substância nem inalaros seus eflúvios, nem tocá-la.

Na bancada havia uma bandeja com dois copos de champanhe. Tremeram-lhe as mãos quandodesenroscou a tampa metálica do frasco de vidro. Com a pipeta, extraiu uns mililitros de líquidoe transferiu-os para um dos copos. O líquido não desprendia qualquer cheiro. Moscovo Centrotinha-lhe assegurado que também não tinha sabor.

Anna pôs outra vez a tampa no frasco e guardou-o no bolso do avental, junto com a pipeta.Depois encheu os dois copos com champanhe e levantou a bandeja com a mão esquerda. O copocontaminado estava à direita. Quase conseguia sentir a radiação que as suas borbulhas emitiam.

Empurrou uma das parte da porta e pegou nalguns guardanapos de cocktail do bar. Aoaproximar-se do salão, ouviu o saudita pronunciar um nome que fez com que o seu coração desseum salto. Colocou um guardanapo à frente do príncipe e em cima dele pôs o copo contaminado.

A Dragunov entregou-lhe diretamente o copo com a mão direita.O oligarca levantou o copo num brinde.— Ao futuro — disse, e bebeu.O saudita hesitou.— Sabias? — disse ao fim de um momento —, não provei nem uma gota de álcool desde a

noite que voltei à Arábia Saudita para me tornar no príncipe herdeiro.— Pode trazer-te outra coisa se quiseres.— Estás louco? — O saudita esvaziou o copo de champanhe de um só gole. — Há mais? Se

não, acho que não consigo suportar o jantar em Downing Street.Anna pegou no copo contaminado e regressou à cozinha. O saudita acabava de ingerir toxina

radioativa suficiente para matar toda a população de Londres e arredores. Não havia fármaco,nem tratamento de emergência que pudesse impedir a deterioração irreversível das suas células eórgãos. Já estava a morrer.

Ainda assim, Anna decidiu dar-lhe outra dose.Desta vez, não se incomodou a usar a pipeta. Deitou o resto do veneno diretamente no copo e

acrescentou o champanhe. As borbulhas espumaram por cima da borda. Anna imaginou umVesúvio radioativo.

No salão, serviu o champanhe ao saudita e saiu rapidamente, com um sorriso. Ao voltar para acozinha, tirou o avental e meteu-o no caixote de lixo junto com o frasco vazio e a pipeta. Ainglesa tinha-a mandado não deixar qualquer objeto contaminado na casa quando se fosseembora. Era uma ordem que não tinha intenção de cumprir.

Envolvida numa nuvem invisível de radiação, viu as horas no telefone. Eram 16h42. Lá emcima, no salão, Sua Alteza Real o príncipe Abdullah bin Abdulaziz Al Saud começava a morrer.Anna acendeu um cigarro com a mão trémula e esperou que ele se fosse embora.

65

EATON SQUARE, BELGRAVIA

Konstantin Dragunov saiu de sua casa às cinco e vinte e dois minutos da tarde. Como aesquina noroeste da praça estava cortada, teve de percorrer a pé a curta distância que o separavade Cliveden Place, onde o esperava o seu Mercedes Maybach. Com uma mala na mão e umcasaco pendurado pelo braço, entrou na parte de trás. O carro dirigiu-se para leste a grandevelocidade, seguido por um agente do Departamento montado numa motocicleta BMW.

A mulher saiu sete minutos depois. Ao descer os degraus, contornou à esquerda e passou àfrente da casa onde supostamente Sua Alteza Real o príncipe Abdullah bin Abdulaziz Al Sauddescansava antes do seu jantar em Downing Street, previsto para as oito da tarde. Os seis agentesdo Comando de Segurança plantados em frente à residência observaram-na atentamente quandopassou à frente deles. E Christopher Keller fez a mesma coisa, escondido ainda na parte de trásdo furgão, conquanto o seu interesse por ela era de índole muito diferente.

A mulher atravessou o cordão policial e, seguida por Eli Lavon, entrou diretamente nagaragem Q-Park de Kinnerton Street. Lá esperou quase dez minutos para que lhe levassem oRenault Clio. Quando por fim teve o carro, dirigiu-se para norte em plena hora de ponta. Às seise pouco, passou à frente da entrada do metro de Swiss Cottage em Finchley Road. Lavon eMikhail Abramov seguiram-na no Ford Fiesta. Em Hatch End, a equipa anglo-israelita seguia oseu itinerário através das câmaras de segurança da rua.

Os dois chefes da equipa permaneceram nas localizações separadas. Graham Seymour, emDowning Street; Gabriel, no andar seguro de Notting Hill. Uma linha telefónica seguramantinha-os ligados. Gabriel tinha iniciado a comunicação às 15h42, no instante em que opríncipe Abdullah chegava à sua casa de Eaton Square. Não o tinham visto desde então. Tambémnão tinham visto qualquer indício de que Konstantin Dragunov ou a agente do SVR se tivessemaproximado de Abdullah.

— Então, porque é que fogem agora? — perguntou Gabriel.— Pelos vistos decidiram abortar a operação.— E porquê?— Talvez se tenham dado conta de que o estamos a vigiar — sugeriu Seymour. — Ou pode

ser que o Abdullah os tenha apanhado em flagrante.— Ou talvez o Abdullah já esteja morto — afirmou Gabriel — e os dois indivíduos que o

assassinaram tenham posto tudo em polvorosa.Fez-se um silêncio na linha telefónica. Por fim, Seymour disse:

— Se o Abdullah não sair por aquela porta às sete e quarenta e cinco como está previsto, ligo àcomissária chefe da Polícia Metropolitana para que mande deter o Dragunov e a mulher.

— Às sete e quarenta e cinco é demasiado tarde. Temos de saber já se o Abdullah continuavivo.

— Não posso pedir ao primeiro-ministro para lhe ligar. Já o envolvi bastante nisto.— Então suponho que temos de mandar alguém ir à casa para que verifique.— Quem?Gabriel desligou o telefone.

66

EATON SQUARE, BELGRAVIA

Nigel Whitcombe não demorou nem oito minutos a ir de carro de Notting Hill a Belgravia. Elee Gabriel ficaram no carro enquanto Khalid se aproximava do cordão de segurança de EatonSquare. Foi Christopher Keller que o acompanhou até à porta do número 71.

Marwan al-Omari, o chefe da corte real, veio abrir a porta. Vestia o fato tradicional saudita.Deitou a Khalid um olhar fulminante.

— O que é que estás a fazer aqui?— Vim ver o meu tio.— O teu tio não te quer ver, garanto-te.Al-Omari tentou fechar a porta, mas Khalid impediu-o.— Ouve bem, Marwan. Sou um Al Saud e tu não passas de um mordomo com pretensões.

Leva-me à presença do meu tio ou…— Ou o quê? — Al-Omari conseguiu esboçar um sorriso. — Continuas a fazer ameaças,

Khalid? Eu achava que por esta altura já terias aprendido.— Continuo a ser o filho do rei. E tu, Marwan, és estrume de camelo. Agora afasta-te do meu

caminho.O sorriso de Al-Omari apagou-se.— O teu tio deixou ordens rígidas para não ser incomodado até às sete e meia.— Não teria vindo se não fosse uma emergência.Al-Omari manteve-se no seu caminho mais um pouco. Depois, por fim, afastou-se. Khalid

entrou precipitadamente no vestíbulo, mas o cortesão agarrou Keller pelo braço quando este otentou seguir.

— Você não.O inglês saiu para a praça sem dizer uma palavra, enquanto Khalid, seguido por Al-Omari,

corria escadas acima, para a suíte de Abdullah. A porta exterior estava fechada à chave. Al-Omari chamou timidamente.

— Alteza?Ao ver que ninguém respondia, Khalid afastou Al-Omari com um empurrão e bateu à porta

com a palma da mão.— Abdullah? Abdullah? Estás aí?Não obteve resposta. Khalid agarrou na maçaneta da porta e sacudiu-a. A porta grossa era tão

firme como as partes de um barco.

Olhou para Al-Omari.— Afasta-te.— O que é que vais fazer?Khalid levantou a perna e deu um pontapé. Ouviu-se um barulho, mas a porta aguentou. O

segundo embate fez voar a fechadura e o terceiro partiu a maçaneta, além de vários ossos do péde Khalid, pelo menos foi o que lhe pareceu.

A coxear, dorido, entrou na esplêndida suíte. A sala de estar estava deserta, tal como a cama.Khalid chamou pelo seu tio aos gritos, mas não obteve resposta.

— Deve estar na casa de banho — disse Al-Omari, agoniado. — Não o podemos incomodar.Havia uma última porta. A da casa de banho. Khalid não se deu ao incómodo de bater.— Santo Deus! — murmurou Al-Omari.

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NÚMERO 10 DE DOWNING STREET

Graham Seymour ligou a Stella McEwan, comissária chefe da Polícia Metropolitana, às seis evinte e quatro da tarde. Mais adiante, durante a investigação que seguiria inevitavelmente, abrevidade do telefonema, que só durou cinco minutos, seria objeto de numerosos comentários.Seymour não mencionou em qualquer momento da conversa que estivesse na Sala Branca donúmero 10 de Downing Street, nem que o primeiro-ministro estava sentado ao seu lado, cheio denervosismo.

— Uma equipa de assassinos do SVR? — perguntou McEwan.— Mais outra — lamentou Seymour.— Quem é o objetivo?— Não sabemos com segurança. Damos por certo que se trata de algum opositor ao governo

do Kremlin, ou talvez um ex-espião russo que vive aqui, em Inglaterra, sob uma identidade falsa.Receio que não te consiga dar mais detalhes.

— E quanto à equipa de assassinos?— Identificámos três suspeitos. Um deles é uma mulher de uns trinta e cinco anos. Neste

momento, circula pela M24 num Renault Clio, em direção a leste. — Seymour disse a matrículado carro. — Por sinal, está armada e é extremamente perigosa. Assegure-se de que os seusagentes estão armados.

— E o outro?— Está à espera da mulher no Hotel Bedford House de Frinton. Calculamos que planeiam

abandonar a Inglaterra esta noite.— Harwich fica bem perto.— E o último ferry parte às onze — acrescentou Seymour.— Frinton fica em Essex, o que significa que a polícia de Essex é responsável.— É um assunto de segurança nacional, Stella. Impõe a tua autoridade. E tenham muito

cuidado com esse indivíduo. Achamos que é inclusive mais perigoso do que a mulher.— Demoramos um bocado a convocar os nossos efetivos. Se estão a vigiá-lo…— Estamos sim.Stella McEwan perguntou pelo terceiro suspeito.— Está a ponto de entrar num avião privado no Aeroporto Cidade de Londres — respondeu

Seymour.— Com destino a Moscovo?

— Achamos que sim.— Sabemos o seu nome?Seymour disse-o.— O oligarca?— O Konstantin Dragunov não é um oligarca qualquer, se é que isso existe.— Não posso prender um amigo pessoal do presidente russo sem uma ordem judicial.— Passa-o pelo detetor de radiação e agentes químicos, Stella. Estou seguro de que obterás

provas mais do que suficientes para o prender. Mas despacha-te. O Konstantin Dragunov nãodeve entrar a bordo do avião.

— Tenho a sensação de que me estás a esconder alguma coisa, Graham.— Sou o diretor-geral dos serviços secretos. Como podes pensar o contrário? — Seymour

desligou e olhou para Jonathan Lancaster. — Acho que as coisas estão prestes a ficar ainda maisinteressantes.

— Mais ainda? — Bateram à porta. Era Geoffrey Sloane. Parecia mais abatido do que ocostume. — Passa-se alguma coisa, Geoffrey?

— Ao que parece, o príncipe Abdullah ficou doente.— Tem de ir ao hospital?— Sua Alteza Real deseja regressar a Riade de imediato. A delegação saudita está a sair de

Eaton Place neste momento.Lancaster levou a mão ao queixo, pensativo.— Avisa o Gabinete de Imprensa para que prepare um comunicado. E assegura-te de que o

tom é cordial. Desejamos-lhe uma rápida recuperação, esperamos vê-lo no próximo G20… Essetipo de coisas.

— De acordo, primeiro-ministro.Sloane saiu. Lancaster olhou para Seymour.— É uma sorte ele ter decidido ir-se embora imediatamente.— A sorte não teve nada a ver com isto.— Como conseguiste?— O Khalid aconselhou-o a voltar para casa para receber o tratamento. Pensa acompanhá-lo.— Muito bem — comentou Lancaster.O BlackBerry de Seymour emitiu um barulho.— O que é que se passa agora?Seymour mostrou-lhe o ecrã. Quem ligava era Amanda Wallace, a diretora-geral do MI5.— Força! — disse Jonathan Lancaster antes de sair discretamente da sala.

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AEROPORTO CIDADE DE LONDRES

Konstantin Dragunov ouviu as primeiras sirenes, enquanto ainda estava no trânsito que àquelahora se formava na East India Dock Road. Pediu a Vadim, o seu motorista, que ligasse o rádio. Olocutor da Rádio 4 parecia aborrecido.

O príncipe Abdullah da Arábia Saudita sofreu uma indisposição repentina e não assistirá aojantar de Estado que estava previsto para esta noite em Downing Street. O primeiro-ministroJonathan Lancaster desejou-lhe uma rápida recuperação…

— Já chega, Vadim.O condutor desligou o rádio e virou à direita para Lower Lea Crossing. Deixaram para trás

East India Dock Basin e as novíssimas torres de escritórios de Leamouth Peninsula. O AeroportoCidade de Londres ficava a cinco quilómetros dali por North Woolrich Road. Para entrar norecinto, tinha de passar por duas rotundas. Na primeira, o tráfico discorria com normalidade, masa segunda estava cortada pela polícia.

Um agente vestido com um casaco verde lima aproximou-se do Maybach — com uma certaprecaução, pareceu a Dragunov — e tocou na janela do condutor. Vadim abriu-a.

— Desculpem o incómodo — disse o polícia —, mas há um problema de segurança.— Um problema? De que tipo? — perguntou Dragunov atrás.— Uma ameaça de bomba. Seguramente será falsa, mas não estamos a deixar entrar ninguém

no terminal por agora. Só podem entrar as pessoas que viajem de avião privado.— Parece-lhe que tenho aspeto de viajar em avião comercial?— Nome, por favor?— Dragunov. Konstantin Dragunov.O agente indicou a Vadim que passasse. O condutor virou imediatamente à esquerda e entrou

no parque de estacionamento do terminal executivo do aeroporto.Dragunov murmurou um disparate.O parque de estacionamento estava cheio de veículos e pessoal da Polícia Metropolitana,

incluindo efetivos do SCO19, a unidade tática de atiradores da Polícia Metropolitana de Londres.Quatro agentes rodearam o Maybach com as armas ao alto. Outro bateu com o punho na janelade Dragunov e mandou-o sair.

— O que significa isto? — perguntou o russo.O agente do SCO19 apontou-lhe diretamente à cabeça a sua Heckler & Koch G36.— Saia imediatamente!Dragunov acionou o puxador da porta. O agente abriu-a com um puxão e tirou à força o russo

do banco de trás.— Sou cidadão da Federação Russa e amigo pessoal do presidente!— Lamento muito.— Não têm o direito de me deter.— Eu não.Uma tenda com um aspeto estranho levantava-se em frente do terminal. O agente do SCO19

tirou o telemóvel a Dragunov e fê-lo entrar com um empurrão. Lá dentro havia quatro técnicosvestidos com fatos volumosos de proteção. Um deles inspecionou Dragunov com um pequenoscanner que lhe passou pelo tronco e pelas extremidades. Ao passar o aparelho pela sua mãodireita, deu um passo atrás, alarmado.

— O que se passa? — perguntou o agente do SCO19.— Desvio máximo.— O que significa isso?— Significa que está até acima de radiação. — O técnico passou o scanner pelo agente. — E

tu também.

Naquele momento, Anna Yurasova já começava a sentir os efeitos da imensa quantidade deradiação à qual tinha estado exposta em casa de Konstantin Dragunov, em Belgravia. Doía-lhe acabeça, tremia e estava muito maldisposta. Tinha estado a ponto de parar duas vezes na berma daM25 para vomitar, mas a necessidade imperiosa de esvaziar o estômago tinha remetido no últimomomento. Agora, enquanto se aproximava do desvio para uma localidade chamada Potters Bar,voltava a sentir a mesma coisa. Embora fosse só isso, ficou contente ao ver que um pouco mais àfrente parecia haver um acidente de trânsito.

As três faixas da direita estavam cortadas e um polícia com um sinal luminoso desviava otrânsito para a faixa da esquerda. Quando Anna passou ao seu lado, os seus olhos cruzaram-se naescuridão.

O trânsito parou. Anna sentiu outra onda de náuseas. Tocou na testa. Estava a suar em bica.As náuseas voltaram a remeter. De repente sentia-se gelada. Ligou o ar condicionado e

procurou na sua mala, que tinha deixado no lugar ao lado. Demorou um momento a encontrar otelemóvel e outro a marcar o número de Nikolai.

Ele atendeu em seguida.— Onde estás?Anna disse-lhe.— Ouviste as notícias?Não tinha ouvido. Tinha estado demasiado concentrada a não adoecer.— O Abdullah cancelou o jantar. Pelos vistos, não está bem.— Eu também não.— O que é que queres dizer?— Devo ter ficado contaminada.— Bebeste veneno?

— Não digas tolices.— Então vai passar — disse Nikolai. — Como a gripe.Anna sentiu outra onda de náuseas. Desta vez, abriu a porta e vomitou inesperadamente, com

uma convulsão tão violenta que ficou com o olhar turvo. Quando por fim conseguiu ver comclareza, vários agentes vestidos com um uniforme tático rodeavam o carro, prontos para disparar.

Anna apoiou o telemóvel na coxa e pôs as mãos livres.— Nikolai?— Não me chames assim.— Já não importa, Nikolai.Meteu a mão debaixo do assento do copiloto e agarrou na pistola Stechkin. Conseguiu apertar

o gatilho uma só vez antes que as janelas do carro estoirassem num furacão de disparos.Estão mortos, pensou. Mortos, mortos, mortos…

O tiroteio durou dois ou três segundos, no máximo. Quando acabou, Mikhail Abramov abriu aporta do Ford Fiesta e correu pela berma para o Renault cravejado de balas. A mulher estavapendurada na porta aberta do condutor, ainda presa pelo cinto de segurança, com uma pistola namão. Os rádios da polícia faziam barulho e os ocupantes dos carros à volta gritavamaterrorizados. E nalgum lugar, pensou Mikhail, um homem gritava em russo.

Anna, estás aí? O que é que se passa? Estás a ouvir, Anna?De repente, dois agentes do SCO19 viraram-se e apontaram-lhe com os seus rifles de assalto

HK G36. Mikhail levantou as mãos e retrocedeu devagar até ao Ford.— Está morta? — perguntou Eli Lavon.— Completamente. E o seu amigo do hotel de Frinton sabe isso.— Como?— Estava a falar ao telefone com ele quando aconteceu.Lavon enviou uma mensagem a Gabriel. A resposta foi instantânea.— O que é que diz? — perguntou Mikhail.— Mandou a Sarah abandonar o hotel imediatamente. E quer que estejamos em Essex quanto

antes.— Não me digas. — Atrás deles, na escuridão, ouvia-se um clamor de buzinas. O trânsito

estava parado. — Avisa-o de que vamos demorar um bocado.

69

FRINTON-ON-SEA, ESSEX

Nikolai Azarov tinha demorado a desligar mais tempo do que era necessário: o telefonematinha durado cinco minutos e doze segundos, segundo o relógio do seu telemóvel. Tinha ouvidoo estrondo dos disparos automáticos, o ruído dos vidros a partirem-se, os gritos de agonia deAnna. O que ouviu a seguir foram os primeiros momentos do caos de uma investigação forensesumamente estranha. Declarou-se a vítima morta e segundos depois alguém alertou aos gritosque havia um «desvio máximo», um termo com o qual Nikolai não estava familiarizado. Amesma voz mandou os agentes da polícia afastarem-se do veículo até que o pudessem isolar.Um, no entanto, ficou suficientemente perto para ver o telefone de Anna atirado no chão docarro. Notou também que estava ligado. Pediu permissão ao seu superior para apanhá-lo, masfoi-lhe negado.

— Se ela tocou no telefone — gritou alguém —, aquela porcaria está cheia de radiação.Nesse instante, quando Anna já estava há cinco minutos morta, Nikolai pôs fim ao telefonema.

Não, morta, não, assassinada, pensou enfurecido. Conhecia bem as táticas e os regulamentos daPolícia Metropolitana e dos diversos corpos de segurança condais e regionais. Os políciasnormais não usavam armas de fogo. Só os AFO — os agentes autorizados — e os SFO — osespecialistas do SCO19 — as podiam usar. Os AFO não costumavam usar armas de assaltoautomáticas como as que Nikolai tinha ouvido através do telefone. Só os agentes especiais doSCO19 usavam esse armamento. O facto de estarem na M25, acompanhados por uma equipa deproteção munida de um detetor de radiação deixava claro que estavam à espera de Anna. Mascomo sabia a Polícia Metropolitana que Anna estaria contaminada? Evidentemente, deduziuNikolai, os britânicos tinham andado a vigiá-la.

Mas, nesse caso, porque não tinham tentado detê-lo a ele? Nesse momento, estava a beber umchá na mesa que costumava ocupar no bar do hotel. Tinha deixado o quarto um momento antes eo seu carro estava à sua espera na marginal, estacionado junto à berma. O porteiro do hotelestava a guardar a pequena mala de viagem que, de qualquer modo, não continha nada deimportante para a operação. Levava a sua Makarov de 9 mm na cintura das calças, às costas e, nobolso direito da frente, o frasco de toxina radioativa que Moscovo Centro tinha feito questão deque levasse para Inglaterra, sobresselente. Tinham-lhe assegurado que a radiação não conseguiapassar o recipiente. Mas após ouvir os gritos do técnico, já não tinha tanta certeza.

Desvio máximo…Olhou para o televisor que estava por cima do balcão. Estava sintonizado no Sky News. Pelos

vistos, Khalid bin Mohammed tinha visitado a casa do seu tio em Eaton Square pouco antes deDowning Street anunciar o cancelamento do jantar oficial. A visita de Khalid tinha interesse poroutro motivo, além do mais: era a primeira vez que era visto em público desde que abdicara. OSky News tinha conseguido imagens da sua chegada a casa. Vestido num estilo ocidental e coma cabeça descoberta, mal se reconhecia. Nikolai reparou, pelo contrário, no agente de segurançabritânico que caminhava ao seu lado. Estava seguro de tê-lo visto em algum lado.

Pegou no seu telefone. A cadeia de televisão tinha publicado a notícia no seu site, junto com ovídeo. Nikolai viu-o três vezes. Não, não se enganara.

São recém-casados. Pelos vistos, foi um casamento relâmpago…Desligou o seu telefone e extraiu o cartão SIM. Depois saiu para o terraço com vista para a

marginal. Tinha escurecido e já não soprava o vento. Não viu indícios de que o estivessem avigiar, mas sabia que estavam ali, a observá-lo. A ele, e ao seu carro, estacionado em frente daentrada do hotel. De repente, outro carro parou atrás. Um Jaguar F-Type descapotável, vermelhovivo.

Nikolai sorriu.

Lá em cima, Sarah meteu a Walther PPK na sua mala e saiu para o corredor. O telefone delatocou, enquanto esperava pelo elevador.

— Onde estás? — perguntou Keller com nervosismo.Ela explicou-lhe.— Quanto tempo demora sair de um hotel?— Estou a tentar.— Pois despacha-te, Sarah. Depressa.Chegou o elevador. Ela entrou com a sua mala.— Continuas aí? — perguntou.— Continuo aqui.— Algum plano para esta noite?— Apetece-me jantar, embora seja muito tarde.— Em algum lugar mais especificamente?— Em minha casa.— Apetece-te ter companhia?— Adorava.O elevador parou suavemente e as portas abriram-se com um sussurro. Ao passar à frente da

receção, Sarah despediu-se efusivamente de Margaret, a chefe de atendimento ao cliente, e deEvans, o porteiro. No bar do hotel, vislumbrou Keller no ecrã da televisão, a caminhar junto deKhalid. E, pondo-se de pé como se tivesse muita pressa para se ir embora, viu o assassino russo.

Pensou em dar meia-volta e voltar para o elevador. Em vez de fazer isso, estugou o passo.Eram escassos metros até à entrada, mas o russo atingiu-a sem esforço e apertou-lhe algo durocontra a coluna vertebral. Era uma pistola, não tinha qualquer dúvida.

Agarrou Sarah pelo braço com a mão esquerda e sorriu.— A não ser que queiras passar o resto da tua vida numa cadeira de rodas — disse baixinho

—, sugiro que continues a andar.Ela apertou com força o telefone.— Continuas aí?

— Tranquila — disse Keller —, estou aqui.

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FRINTON-ON-SEA, ESSEX

Lá fora, o russo tirou-lhe o telefone da mão e desligou. Os dois veículos esperavam na rua,vigiados pelo porteiro do hotel, que observava com perplexidade a cena que tinha perante os seusolhos. Quarenta e oito horas antes, Sarah tinha chegado ao hotel recém-casada. E agora saía dalide repente com outro homem.

O porteiro pegou na sua mala.— Em que carro? — perguntou.— No da senhora Edgerton — respondeu o russo com marcada pronúncia britânica.Ela conseguiu dissimular o seu assombro. Evidentemente, o russo sabia há algum tempo que

estava alojada no hotel. Pegou nas chaves que o porteiro lhe deu e indicou-lhe que pusesse abagagem da «senhora Edgerton» no porta-bagagens do Jaguar. Sarah tentou ficar com a mala,mas o russo arrancou-lha do ombro e atirou-a também para o porta-bagagens. Fez mais ruído doque o normal ao cair, como se contivesse algo pesado.

O russo levava o casaco pendurado no braço direito. Com a mão esquerda fechou o porta-bagagens e abriu a porta do copiloto. Sarah percorreu o passeio marítimo com o olhar ao entrarno carro. Em algum lugar das imediações do hotel havia quatro vigilantes do MI6, todos elesdesarmados. Era essencial que não a perdessem de vista.

O russo fechou a porta e contornou o carro até à porta do condutor, onde o porteiro esperava asua gorjeta. Deu-lhe uma nota de dez libras, sentou-se ao volante e ligou o motor. Segurava apistola com a mão esquerda, apontando-a à anca direita de Sarah. Enquanto arrancavam, elaolhou para trás e viu que o porteiro corria atrás deles.

O russo tinha-se esquecido da sua mala.

Seguiu pela Connaught Avenue e pisou a fundo o acelerador. Sarah viu pela janela,vertiginosamente, uma fileira de lojas e estabelecimentos comerciais: um café, uma loja deutensílios de cozinha, uma livraria… O russo continuava a pressionar-lhe a coronha da pistola naanca. Com a mão direita agarrava no volante. Tinha os olhos fixos no retrovisor.

— Conviria que olhasse para onde vai — disse Sarah.— Quem são?— Inocentes súbditos britânicos que tentam desfrutar de uma noite de folga na praia.O russo afundou-lhe a pistola na anca.

— Os dois que estão na furgoneta, atrás de nós. — A sua pronúncia britânica tinha-seesfumado. — Polícia de Essex? MI5? MI6?

— Não sei do que fala.Ele apontou-lhe à cabeça.— Estou a dizer-lhe que não sei quem são.— E o teu marido?— Trabalha na City.— Onde está?— No hotel, a perguntar-se onde me meti.— Vi-o na TV há uns minutos.— Isso não é possível.— Acompanhou o Khalid à casa do tio em Eaton Square.— Quem é o Khalid?O golpe da arma, uns centímetros acima da orelha direita, apanhou-a desprevenida. A dor

deixou-a chocada.— Acabas de cometer o segundo pior erro da tua vida — disse.— Qual foi o primeiro?— Atar uma bomba ao corpo da filha do Khalid.— Fico contente por termos esclarecido esse ponto. — O russo deu uma volta para evitar um

peão que estava a atravessar a rua. — Para quem trabalha o teu marido?— Para o MI6.— E tu?— Para a CIA.Era mentira, mas só em parte. E assim o russo pensaria duas vezes antes de a matar.— E aqueles dois que nos seguem? — perguntou.— SCO19.— Está a mentir, senhora Edgerton.— Se você o diz.— Se fossem do SCO19, ter-me-iam matado no hotel.Deixou Connaught Avenue e atravessou a grande velocidade um bairro residencial. Um

momento depois, voltou a olhar pelo retrovisor.— Que pena.— Despistou-os?Ele sorriu com frieza.— Não.

Percorreu a Upper Fourth Avenue sem abrandar, até ao parque de estacionamento da estaçãode comboio de Frinton, um velho edifício de tijolo vermelho com um pórtico branco sobre aentrada. Sarah sempre recordaria as flores, os dois vasos de gerânios vermelhos e brancosdependurados de uns ganchos na fachada.

Devia ter chegado um comboio há poucos segundos, pois uns quantos passageiros estavam asair para a rua no meio da noite morna. Um ou dois olharam para o homem alto que saiu de umchamativo Jaguar F-Type, mas a maioria não lhe prestou atenção.

Ele aproximou-se rapidamente da furgoneta Ford branca que tinha entrado a seguir o Jaguar

no pequeno parque de estacionamento. Sarah gritou, mas não serviu de nada. O russo disparouquatro vezes apontando para a janela do condutor e outras três apontando para o para-brisas.

— Caso tenhas algumas dúvida — disse ao voltar a sentar-se ao volante —, guardei uma balapara ti.

Da estação de comboio, dirigiu-se para norte pela Elm Tree Avenue, a toda a velocidade.Sarah teve a impressão de que sabia perfeitamente para onde ia. Virou à direita em Walton Roade outra vez em Coles Lane. Seguindo uma pista de terra demarcada de sebes entraram numpântano. O primeiro indício de presença humana foi uma cabine azul de segurança, à entrada deum porto desportivo. Lá dentro havia só um guarda. Apesar das súplicas de Sarah, o russo usou aúltima bala da arma para matá-lo. Depois pôs outro carregador e disparou mais três vezes.

Regressou tranquilamente ao Jaguar e meteu-se pela estrada de acesso ao porto. Sarah sentiualívio em parte ao ver que as ruas estavam desertas. O russo tinha matado três pessoas em menosde cinco minutos. Uma vez em alto mar, só faltaria matá-la a ela.

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ESSEX-AEROPORTO CIDADE DE LONDRES

Várias unidades da polícia de Essex foram à estação de Frinton-on-Sea, devido a um tiroteioàs sete e vinte e seis da tarde. Aí descobriram dois cadáveres. Um tinha recebido quatro disparos;o outro, três. Dois cidadãos agoniados tentavam reanimar as vítimas, freneticamente. Astestemunhas do tiroteio descreviam horrorizadas o atirador como um homem alto e bem vestidoque conduzia um Jaguar desportivo vermelho e brilhante. Uma mulher ia sentada no lugar docopiloto. Não tinha parado de gritar durante o acontecimento.

Nos Estados Unidos, onde abundam as armas de fogo e os tiroteios são uma epidemia, apolícia poderia ter atribuído aquelas mortes a uma discussão de trânsito. As autoridades deEssex, pelo contrário, chegaram de imediato a outra conclusão. Com a ajuda da PolíciaMetropolitana — e das duas testemunhas que tinham tentado reanimar as vítimas —,determinaram que o atirador era um agente secreto russo. A mulher não era sua cúmplice, massua refém. Não se informou a polícia de Essex de que ela também tinha relação com os serviçosde espionagem; só disseram que era de nacionalidade americana.

Apesar das tentativas desesperadas para localizar o russo e a refém, tinha passado mais de horae meia quando por fim dois agentes da polícia passaram pelo porto desportivo situado no fim deColes Lane. O guarda da porta estava morto — com quatro disparos à queima-roupa — e oJaguar vermelho estava estacionado de qualquer maneira à frente do escritório do porto, quealguém tinha forçado e vasculhado. Graças ao sistema de vídeo do porto, a polícia descobriu queo russo tinha roubado um barco modelo Bavaria 27 Sport, propriedade de um empresário local.O barco estava munido com dois motores Volvo-Penta e um depósito de combustível de 550litros que o russo tinha enchido antes de sair do porto. Com nove metros de comprimento, oBavaria fora desenhado para a navegação e transporte marítimo de curta distância, conduzidopor um piloto experiente. Podia chegar perfeitamente à costa europeia em questão de horas.

Embora os dois agentes de polícia não o soubessem, o guarda morto e o barco desaparecidoeram só uma pequena parte de uma crise diplomática e de segurança nacional que evoluía a todaa velocidade. Os elementos da referida crise incluíam uma agente russa morta na M25 e a umoligarca russo que permanecia retido num posto de controlo no Aeroporto Cidade de Londres porestar demasiado contaminado de radiação para que se procedesse à sua transladação.

Às oito da tarde, o primeiro-ministro Lancaster pediu a intervenção do COBRA, o conselho degestão de crise do governo britânico. Reuniram-se, como de costume, na sala da sede do governoque dava nome ao grupo[1]. Foi uma reunião turbulenta desde o princípio. Amanda Wallace, a

diretora-geral do MI5, estava indignada porque não a terem informado da presença de umaequipa de assassinos russos em território britânico. Graham Seymour, que acabava de perder doisagentes, não estava com disposição para disputas. O MI6 tinha descoberto a presença dos doisagentes russos — afirmou — durante uma operação de contraespionagem dirigida contra o SVR,e ele tinha informado o primeiro-ministro e a Polícia Metropolitana depois de confirmar que,efetivamente, tinham chegado ao Reino Unido. Ou seja, que tinha respeitado o protocolo.

Curiosamente, a transcrição oficial do encontro não continha nem uma só menção ao príncipeAbdullah nem à possibilidade de que houvesse alguma relação entre a sua doença repentina e apresença em Inglaterra de uma equipa de assassinos russos. Graham Seymour preferiu não tocarnesse tema. E o primeiro-ministro também.

Às nove em ponto, no entanto, Lancaster voltou a comparecer perante as câmaras à porta dasua residência oficial para informar a opinião pública britânica dos extraordináriosacontecimentos que estavam a ter lugar nos arredores de Londres e na cidade costeira de Frinton-on-Sea, em Essex. Embora pouco do que disse fosse verdade, conseguiu não incorrer emfalsidades manifestas. Mentiu por omissão, isso sim. Não fez menção, por exemplo, ao guarda desegurança assassinado num porto do rio Twizzle nem do barco roubado, nem da refém americanaque no passado tinha trabalhado para a CIA.

Também não lhe pareceu oportuno assinalar que tinha dado margem a Gabriel Allon, o chefedo serviços secretos israelitas, para que procurasse a mulher desaparecida. Às nove e um quarto,Allon chegou ao Aeroporto Cidade de Londres acompanhado por dois dos seus colaboradoreshabituais e por um agente do MI6 chamado Christopher Keller. Um Gulfstream G550 esperavana pista, pronto para descolar. Todavia, desconhecia-se o seu destino.

[1] COBRA: Cabinet Office Briefing Room A.

72

AEROPORTO CIDADE DE LONDRES

Um agente da Polícia Metropolitana montava guarda à entrada do terminal executivo doaeroporto. Apontou para a manga do aparatoso fato de segurança ao aproximar-se de Gabriel.

— De certeza que não quer um destes? — perguntou através da máscara protetora.Gabriel negou com a cabeça.— Podia estragar a minha imagem.— Isso não é o mais grave.— É para tanto?— Um pouco menos do que Hiroshima, mas não muito.— Quanto tempo se pode estar na sua presença sem que seja perigoso?— Dez minutos não o matam, mas vinte podem matar.Gabriel entrou. Tinham evacuado todo o pessoal. Na sala de partidas havia um homem de fato

e de cabelo grisalho, sentado numa das pontas de uma mesa retangular. Teria parecido o típicoutente de um avião privado se não fosse estar rodeado de quatro agentes armados do SCO19enfiados em vestimentas especiais. Gabriel sentou-se na outra ponta da mesa, o mais longepossível dele, e reparou na hora que marcava o seu relógio. Nove e vinte e dois minutos da noite.

Dez minutos não o matam, mas vinte podem matar…O homem olhava para as suas mãos, que estavam cruzadas sobre a mesa, à sua frente, por fim

levantou os olhos. Por um instante, pareceu alegrar-se de que alguém se tivesse atrevido aaproximar-se dele vestido com roupa normal. Depois, de repente, a sua cara mudou. Era amesma expressão que Gabriel tinha visto na cara de Hanifa Khoury no andar seguro de Berlim.

— Olá, Konstantin. Não leves a mal, mas estás com mau aspeto.Gabriel olhou para os agentes do SCO19 e, com um movimento dos olhos, indicou-lhes que

abandonassem a sala. Passou um momento. Depois, saíram os quatro em fila.Konstantin Dragunov observou aquela postura de autoridade com evidente temor.— Suponho que é você o motivo de estar aqui.— Está aqui porque é um foco andante de radiação. — Gabriel fez uma pausa e acrescentou:

— Tal como a mulher.— Onde está?— Numa situação parecida à sua. Ainda que você tenha problemas bem mais sérios.— Eu não fiz nada.— Então, porque está cheio de radiação? E porque é que a sua bonita casa em Belgravia se

tornou numa zona catastrófica? As equipas de proteção estão a fazer turnos de quinze minutospara evitar um excesso de exposição. A coisa está tão mal que um técnico se negou a entrar. Asua sala é um inferno, mas ainda pior é a cozinha. A bancada onde a rapariga verteu ochampanhe é como Fukushima, e o caixote de lixo para o qual atirou o tubo e a pipeta quase fezestoirar os detetores. E o mesmo se pode dizer do copo de champanhe do Abdullah, embora oseu também não fosse pera doce, Konstantin. Coisa que dá que pensar — acrescentou num tomconfidencial.

— A que se refere?— A se o seu bom amigo o Czar não terá tentado matá-lo também a si.— Porque havia de fazer isso?— Porque lhe confiou vários milhares de milhões de dólares para que convertesse o Abdullah

num fantoche do Kremlin. E a única coisa que conseguiu foi um agente do MI6. — Gabrielsorriu. — Ou era o que ele pensava.

— Não é um agente britânico?— O Abdullah? — Gabriel abanou a cabeça. — Não seja tolo.Dragunov ficou vermelho de raiva.— Cabrão.— A elogiar-me não vai conseguir nada, Konnie.— O que é que eu lhe fiz?— Disse ao Czar que o Khalid me tinha pedido para encontrar a sua filha e o Czar aproveitou

a ocasião para tentar matar-me. Se não me tivesse dado conta de que a Reema tinha uma bombadebaixo do casaco naquela noite, estaria morto.

— Quiçá devesse ter tentado salvá-la. Teria a consciência mais limpa.Gabriel levantou-se lentamente, aproximou-se do outro lado da mesa e deu-lhe um murro na

cara com todas as suas forças. O russo caiu de lado ao chão. A Gabriel surpreendeu-o quecontinuasse com a cabeça colada ao corpo.

— Quem planeou isto, Konstantin?Dragunov demorou um momento a recuperar a fala. Por fim disse:— Planear o quê?— O assassínio do Abdullah.O russo não respondeu.— Devo lembrar-lhe de qual é a sua situação, Konstantin? Vai passar o resto da sua vida numa

prisão britânica. E suspeito que lhe parecerá muito menos luxuosa do que Eaton Square.— O presidente não vai permitir isso.— Não vai estar em situação de o ajudar. De facto, eu diria que o governo britânico está a

ponto de emitir uma ordem de detenção contra ele.— E se lhe der o nome do agente do SVR que dirigiu a operação? Muda alguma coisa?— Temos em conta que cooperou.— Desde quando fala em nome do governo britânico?— Falo em nome da Reema. E, se não me diz o que quero saber, vou voltar a bater-lhe.Gabriel olhou de novo para o seu relógio. Nove e vinte e seis. Segundo a polícia de Essex,

Sarah e o assassino russo tinham saído do porto situado a norte de Frinton às 19:49. Estariam já avárias milhas da costa. A Guarda Costeira de Sua Majestade procurava a embarcação, mas aindanão a tinha encontrado.

— O que dizia, Konnie?

Dragunov continuava estendido no chão.— Foi a inglesa.— A Rebecca Manning?— Agora usa o apelido do seu pai.— Viu-a?— Reuni-me um par de vezes com ela.— Onde?— Numa dacha de Yasenevo. A casa tinha um cartaz cá fora. Não me lembro o que dizia.— Comité Interbáltico de Investigação?— Sim, era isso. Como é que sabe?Gabriel não respondeu.— Em circunstâncias normais, ajudá-lo-ia a levantar-se. Mas compreenderá que não o faça.O russo sentou-se a custo na cadeira. Tinha já muito inchado o lado esquerdo da cara e o olho

meio fechado. Era uma ligeira melhoria, disse a si próprio Gabriel.— Continua a falar, Konnie.— Não era uma operação complicada, na realidade. Só tínhamos de pedir ao Abdullah que nos

reservasse uns minutos durante a sua visita a Londres.— Esse era o seu alvo?Dragunov assentiu.— É assim que funcionam estas coisas. É sempre um amigo.— Entrou pelo corredor para o sótão?— Pela porta principal não entrou, pois não?— O que lhe deram, além de um copo de Louis Roederer?— Bebeu dois copos, na realidade.— Estavam os dois contaminados?Dragunov assentiu.— Que substância era?— Não me disseram.— Talvez devesse tê-lo perguntado.O russo não disse nada.— Porque não acompanhou a mulher ao aeroporto?— Porque não lhe pergunta isso a ela?— Porque a matei, Konstantin. E também te vou matar a ti se não continuares a falar.— Tretas!Gabriel tocou no seu BlackBerry e pô-lo sobre a mesa, à frente de Dragunov. No ecrã havia

uma fotografia de uma mulher coberta de sangue, pendurada na porta aberta de um Renault Clio.— Meu Deus!Gabriel guardou o telefone no bolso do casaco.— Continua, Konnie.— A inglesa queria que saíssemos separadamente de Inglaterra. A Anna tinha de sair esta

noite no ferry holandês de Harwich para Hoek. Às onze.— A Anna?— Yurasova. O presidente conhece-a desde que era menina.— O outro agente, o do hotel, tinha de ir com ela?Dragunov fez um gesto afirmativo.

— Chama-se Nikolai.— Onde pensavam ir quando chegassem à Holanda?— Se não houvesse perigo, estava previsto que fossem diretamente para Schiphol para

apanhar o avião.— E se houvesse?— Há um andar seguro.— Onde?— Não sei. — Ao ver que Gabriel se levantava violentamente, Dragunov cobriu a cara com as

mãos. — Por favor, Allon, não me bata mais. Estou a dizer-lhe a verdade. O andar seguro fica nosul da Holanda, perto da costa. Mas não sei mais nada.

— Há alguém lá agora?— Um par de gorilas e uma pessoa que trata das comunicações com Yasenevo.— Para que precisam de uma ligação segura com Moscovo Centro?— Não é um simples esconderijo, Allon. É um posto de comando avançado.— Quem mais está lá, Konstantin?O russo hesitou.— A inglesa — disse por fim.— A Rebecca Manning?— Philby. Agora usa o apelido do seu pai.

73

MAR DO NORTE

Nikolai Azarov não era um marinheiro experiente, nem pouco mais ou menos, mas o seu paifora um alto comando da antiga Armada soviética e sabia um pouco sobre barcos. Ao sair doporto, tinha pilotado o Bavaria 27 pelas águas pouco profundas do Canal de Walton até sair paramar alto. Ao deixar para trás o cabo, tinha virado para leste e acelerado até atingir os vinte ecinco nós, uma velocidade de cruzeiro algo inferior à máxima que podia atingir o barco. Aindaassim, o sistema de navegação Garmin a bordo previa a hora de chegada para a uma e um quartoda madrugada.

Avançavam em linha reta para o seu destino. Depois de marcar o rumo, Nikolai desligou oGarmin para que os britânicos não o conseguissem utilizar para localizar a sua posição. O seutelemóvel — o telefone para o qual Anna lhe ligara momentos antes de a matarem — estava nofundo do Canal de Walton, tal como o telefone que ele tinha tirado à americana ao sair do hotel.Não estava incomunicável, no entanto. O Bavaria dispunha de um telefone Inmarsat e de redewifi. Nikolai tinha desligado o router ao sair do porto, mas levava o telefone no bolso, fora doalcance da americana.

Embora a sua mala continuasse no porta-bagagens do Jaguar, Nikolai tinha levado consigo amala da mulher. Continha uns quantos cosméticos, um frasco de antidepressivos, seiscentaslibras em moedas e uma Walther PPK, uma arma curiosa. Não tinha passaporte, nem carta decondução, nem cartões bancários ou de crédito.

À frente do Bavaria, o mar estava deserto. Nikolai tirou o carregador da Walther e extraiu abala alojada no carregador. Depois ligou o piloto automático e desceu até aos camarotes levandoa pistola e o frasco de antidepressivos. Ao entrar na sala, viu que a mulher olhava furiosa para eleda mesa. Tinha a bochecha marcada a vermelho, fruto do golpe que lhe tinha dado quando senegou a entrar no barco.

O rádio estava ligado, sintonizado na BBC. O sinal era fraco, ia e vinha. O primeiro-ministroacabava de dar uma conferência de imprensa à frente do número 10. O cadáver radioativo deuma agente russa mantinha cortado a M25. Também o Aeroporto Cidade de Londres estavafechado, devido à presença de um oligarca russo contaminado com radioatividade. Outro russotinha matado duas pessoas na estação de comboio de Frinton-on-Sea. Ao que parece, a políciaprocurava-o com afinco.

Nikolai desligou o rádio.— Não mencionaram o guarda do porto.

— Seguramente, não o encontraram ainda.— Duvido.Sentou-se à frente dela. Apesar do vermelho da bochecha, era bastante atraente. A peruca preta

não a favorecia, mas era muito bonita sem ela.Nikolai pôs-lhe à frente o frasco de pastilhas.— Porque é que estás deprimida?— Porque passei muito tempo com gente como tu.Ele olhou para o frasco.— Talvez devesses tomar um. Sentir-te-ás melhor.Ela olhou-o inexpressivamente.— Apetece-te mais isto? — Nikolai pôs o frasco de líquido transparente sobre a mesa.— O que é?— O mesmo elemento radioativo que a Anna deu a Abdullah quando visitou a mansão do

Konstantin Dragunov em Belgravia. Coisa que, curiosamente, tu e os teus amigos permitiram.Ela olhou para o frasco.— Conviria que te livrasses disso.— Como? Queres que o despeje no mar? — Fingiu uma careta de repulsa. — Pensa nos danos

para o ambiente.— E o mal que nos está a fazer neste momento?— Não há qualquer perigo desde que não se ingira.— Foi o que disse Moscovo Centro?Nikolai voltou a guardar o frasquinho no bolso das calças.— O lugar perfeito para guardá-lo — comentou ela.Ele sorriu a custo. Aquela mulher tinha tomates, isso tinha de reconhecer.— Há quanto tempo o trazes? — perguntou.— Há uma semana.— Isso explica esse resplendor esverdeado que emites. Seguramente estás mais contaminado

do que Chernobyl.— Tal como tu agora. — Nikolai examinou a marca da sua bochecha. — Dói-te?— Não tanto como a ferida da cabeça.— Tira a peruca. Posso dar uma vista de olhos.— Obrigada, mas já fizeste o suficiente.— Acho que não me ouviste bem. — Baixou a voz. — Disse para a tirares.Ao ver que ela hesitava, esticou o braço e arrancou-lhe a peruca. Tinha o cabelo louro

despenteado e húmido pelo sangue seco do corte acima da orelha. Ainda assim, Nikolai deu-seconta que a tinha visto antes, na tarde que entregou a mala bomba àquele tolo do chefe desegurança do Colégio Internacional de Genebra. Estava sentada numa mesa debaixo do toldo, aolado daquele tipo alto com pinta de russo que o tinha seguido quando saiu do café. Também otinha seguido um carro. Ele não tinha reconhecido o homem que o conduzia, o das têmporasgrisalhas, mas, no dia seguinte, Moscovo Centro conseguiu identificá-lo.

Gabriel Allon…Nikolai atirou a peruca para o chão. Sem ela, a mulher era ainda mais bonita. Conseguia

imaginar o tipo de trabalhos que tinha feito para eles. Os israelitas usavam «armadilhas de mel»quase tanto como o SVR.

— Achava que tinhas dito que eras americana.

— Sou.—Judia?— Episcopaliana, na realidade.— Emigraste?— Para a Inglaterra?Nikolai bateu-lhe pela terceira vez, suficientemente forte para a fazer sangrar pelo nariz e

fechar a boca.— Chamo-me Nikolai — disse ao fim de um momento. — E tu?Ela hesitou. Depois disse:— Allison.— Allison que mais?— Douglas.— Anda lá, Allison, aposto que consegues fazer melhor.Já não parecia tão corajosa.— O que é que vais fazer comigo? — perguntou.— Pensava matar-te e atirar-te ao mar. — Nikolai acariciou-lhe a bochecha inchada. —

Infelizmente para ti, mudei de ideias.

74

ROTERDÃO

Naquela noite, o primeiro-ministro Jonathan Lancaster só concedeu permissão a um avião paradescolar do Aeroporto Cidade de Londres. O Gulfstream G550 aterrou em Roterdão às 12h25.Dois Audi enviados pela Avenida Rei Saul esperavam à frente do terminal. Keller e Mikhailpartiram de imediato para a localidade de Hellevoetsluis, um dos maiores portos desportivos dosul da Holanda. Gabriel pediu a Eli Lavon — que evitava o mais possível entrar num barco —que escolhesse outro destino.

— Sabes o comprimento da costa holandesa?— Quatrocentos e quarenta e um quilómetros, exatamente.Lavon levantou o olhar do telefone.— Como é possível que saibas isso?— Vi no avião.Lavon baixou o olhar e contemplou o mapa.— Se eu estivesse no leme…— Sim, Eli?— Não tentava entrar num porto às escuras.— O que fazias, então?— Encalhava nalguma praia próxima.— Onde?Lavon estudou o telefone como se fosse a Torá.— Onde, Eli? — insistiu Gabriel exasperado.— Aqui. — Lavon assinalou o ecrã. — Em Renesse.

Depois de fazer um breve telefonema com o telefone Inmarsat, Nikolai aumentou a velocidadepara trinta nós. Como resultado disso, chegou à costa holandesa quinze minutos antes da horaprevista pelo navegador. Tinha os faróis desligados. Voltou a ligá-los e, naquele instante, viu oreflexo de uma lanterna na costa.

Desligou de novo as luzes do barco, aumentou a velocidade para o máximo e esperou atésentir o choque com o fundo arenoso. Quando por fim se deu, o barco parou com uma violentasacudidela e parou bruscamente a estibordo. Desligou o motor e seguiu para o camarote. Amulher lutava para se manter de pé no chão inclinado da cozinha.

— Podias ter-me avisado — disse.— Vamos.Ela subiu a custo pela escada. Nikolai puxou-a e empurrou-a para a popa.— Salta.— Sabes que a água está fria?Ele apontou-lhe a Makarov à cabeça.— Disse para saltares.Ela tirou os sapatos e, ao deslizar do degrau, descobriu que tinha pé. A água chegava-lhe aos

seios.— Caminha — mandou Nikolai.— Para onde?Ele apontou para os dois homens que esperavam na praia.— Tranquila, com aqueles não tens de te preocupar.A tiritar, ela começou a andar para a margem. Nikolai meteu-se na água sem fazer barulho e,

segurando no ar a Makarov, seguiu-a. O carro de fabrico sueco com matrícula holandesaesperava no parque de estacionamento público atrás das dunas. Nikolai sentou-se com ela nobanco de trás, com a pistola colada às suas costas. Ao atravessar a terriola adormecida, cruzaram-se com um só carro que passou por eles a grande velocidade.

As gaivotas tinham-se apropriado do parque de estacionamento deserto. Gabriel subiu a toda apressa pelo caminho que levava à praia e viu o barco a uns trinta metros da praia. Correu até àmargem e iluminou com o telemóvel a areia dura e lisa. Havia pegadas por toda a parte. Trêshomens com sapatos de rua, uma mulher descalça. As pegadas eram recentes. Não tinhamchegado a tempo por um fio.

Voltou a correr para o parque de estacionamento e entrou no Audi.— O que é que se passa? — perguntou Lavon.Gabriel disse-lhe.— Devem ter chegado há uns minutos, quando muito.— Sim.— Não achas que estava naquele carro, pois não?— Sim — respondeu Gabriel ao mesmo tempo que fazia marcha-atrás. — Acho que sim.

Atravessaram uma estreita língua de terra, com uma grande planície à direita e o mar àesquerda. Sarah deduziu que se dirigiam para norte. Passado um momento, apareceu umindicador na escuridão. O nome da localidade, Ouddorp, não lhe dizia nada.

Passaram uma rotunda e aceleraram ao atravessar uma extensão de campos de cultivo planacomo uma mesa. O estreito caminho pelo qual se desviaram não tinha qualquer indicação.Conduzia a um grupo de bungalows de madeira ocultos entre dunas cobertas de erva. Um delesestava rodeado por altas sebes e tinha uma garagem separada, com uma porta antiquada de duasfolhas. Nikolai guardou o Volvo na garagem e conduziu Sarah ao bungalow.

Era branco como um bolo de casamento, com o telhado vermelho. Painéis de acrílicoprotegiam o terraço do vento. Uma mulher aguardava ali, sozinha, como uma espécie rara numpote de vidro. Vestia um casaco impermeável e calças justas. Tinha uns olhos singularmente

azuis, e fatigados, pensou Sarah. A longa noite tinha feito estragos na sua aparência.Uma madeixa solta caía-lhe sobre os olhos. A mulher afastou-a e observou Sarah atentamente.

Sarah teve a sensação de ter visto já aquele gesto. A sua cara também não lhe era estranha. Derepente, deu-se conta de onde a tinha visto anteriormente.

Numa conferência de imprensa no Grande Palácio Presidencial de Moscovo…A mulher do terraço era Rebecca Manning.

75

ROTERDÃO

O carro era um Volvo último modelo de uma cor escura. Nisso, Gabriel e Eli Lavon estavamcompletamente de acordo. Os dois tinham visto a grade da frente do carro e tinham reparado nosímbolo circular da marca e na linha que atravessava a grade na diagonal, da esquerda para adireita. Gabriel tinha a certeza de que era um sedan. Lavon, pelo contrário, estava convencido deque era um modelo familiar.

Do que não tinha dúvida era da direção que tinha seguido: para norte. Gabriel e Lavondirigiram-se às aldeias da costa enquanto Mikhail e Keller tratavam das localidades maiores dointerior. Entre todos viram cento e doze Volvos. Sara não estava em nenhum.

Era, certamente, uma tarefa impossível — «uma agulha num palheiro holandês», como disseLavon —, mas ainda assim continuaram a tentar até às sete e meia, quando se reuniram os quatronum café de uma zona industrial do sul de Roterdão. Eram os primeiros clientes da manhã. Juntoao café, havia uma bomba de gasolina e do outro lado da rua dois concessionários automóveis.Um deles vendia Volvos, era óbvio.

Um carro-patrulha da polícia holandesa, respeitador do ambiente, passou devagar pela rua.— O que é que se passa? — perguntou Mikhail.— Pode ser que esteja à procura de quatro idiotas que passaram a noite a cambalear pelo

campo — respondeu Lavon. — Ou do génio que encalhou um Bavaria 27 perto de Renesse.— Achas que o encontraram?— O barco? — Lavon assentiu com um gesto. — É difícil não o ver, sobretudo agora que

amanheceu.— O que é que vai acontecer agora?— A polícia holandesa vai descobrir de quem é o barco e de onde procede. E daqui a pouco

todos os polícias da Holanda vão andar à procura de um sicário russo e de uma americana muitobonita chamada Sarah Bancroft.

— Pode ser que isso seja bom — comentou Mikhail.— A não ser que a Rebecca e o seu amigo Nikolai decidam cortar o mal pela raiz e matá-la.— Pode ser que já o tenham feito. — Mikhail olhou para Gabriel. — Tens a certeza de que

eram pegadas de mulher?— Sim, tenho a certeza, Mikhail.— Porque se incomodaram a trazê-la para terra? Porque não aliviar a carga e fugir para

Moscovo?

— Imagino que lhe queiram fazer umas perguntas primeiro. Não ias querê-lo se estivesses nolugar deles?

— Achas que vão ser duros com ela?— Isso depende.— De quê?— De quem fizer as perguntas. — Gabriel notou que Keller se tinha posto a digitar de repente

no seu BlackBerry. — O que se passa?— Pelos vistos, o Konstantin Dragunov não está bem.— Que surpresa.— Acaba de admitir perante a Polícia Metropolitana que ontem à noite ele e a mulher

envenenaram o príncipe. O Lancaster vai tornar isso público às dez.— Faz-me um favor, Christopher.— Qual?— Diz ao Graham e ao Lancaster que anunciem isso já.

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NÚMERO 10 DE DOWNING STREET

Graham Seymour estava à espera no vestíbulo do número 10 quando Jonathan Lancasterdesceu a Grande Escadaria acompanhado por Geoffrey Sloane, que ajeitava a gravata comnervosismo, como se fosse ele quem estava prestes a enfrentar o batalhão de fotógrafos e decâmaras que estavam em Downing Street. Lancaster levava na mão uns quantos cartões azuis.Conduziu Seymour à Sala do Gabinete e fechou a porta com um gesto solene.

— Correu na perfeição. Como tu e o Gabriel disseram que ia correr.— Com uma exceção, senhor primeiro-ministro.— Já se sabe que o homem propõe e… — Lancaster levantou os cartões. — Acha que com

isto bastará para impedir que os russos a matem?— O Gabriel parece achar que sim.— Deu mesmo um murro ao Konstantin Dragunov?— Receio bem que sim.— Um bom murro? — perguntou Lancaster num tom malicioso.— Bastante bom, sim.— Confio que o Konstantin não sofra nenhuma ferida grave.— Duvido que, tal como estão as coisas, se lembre sequer.— Está doente, não é?— Quanto mais depressa entrarmos num avião, melhor.Lancaster olhou para o primeiro cartão e, mexendo os lábios, ensaiou a primeira frase do seu

discurso. Tinha razão, disse Seymour a si próprio: correra na perfeição. Ele e Gabriel tinhamganhado a partida aos russos. O Czar já se tinha servido outras vezes de armas de destruição emmassa para matar, temerariamente. Desta vez, no entanto, tinham-no apanhado em flagrante. Asconsequências seriam graves — sanções internacionais, expulsões, talvez inclusive a ex-comunhão do Grupo dos Oito — e era provável que o dano fosse irreparável.

— Aquela mulher tem garra, é óbvio — comentou Lancaster de repente.— A Sarah Bancroft?— A Rebecca Manning. — O primeiro-ministro continuava a olhar para as notas do discurso.

— O lógico seria pensar que ficaria a salvo em Moscovo. Como fez o seu pai — acrescentoubaixando a voz.

— Deixámos bem claro que não queremos saber nada dela. Portanto, pode sair da Rússia semmedo de correr qualquer perigo.

— Talvez devêssemos rever a nossa postura em relação à menina Philby. Depois disto, mereceque a tragamos para Inglaterra algemada. — De facto — acrescentou Lancaster pegando nas suasnotas —, estou a pensar em introduzir uma pequena nuance no meu discurso.

— Não aconselho.Abriu-se a porta e Geoffrey Sloane espreitou.— Está na hora, senhor primeiro-ministro.Lancaster, um consumado ator político, endireitou os ombros antes de sair pela porta mais

famosa do mundo no meio do resplendor dos focos. Seymour seguiu Sloane até ao seu escritóriopara ver a comparência na televisão. O primeiro-ministro parecia achar-se sozinho no mundo. Asua voz soou clara, mas afiada pela ira.

O ato monstruoso e depravado que os serviços secretos da Federação Russa levaram a cabo porordem direta do seu presidente não ficará impune…

Tinha corrido na perfeição, pensou Seymour. Com uma única exceção.

77

OUDDORP, PAÍSES BAIXOS

A poucos minutos de Sarah chegar ao andar seguro tornou-se evidente que não estavampreparados para acolher um refém. Nikolai cortou às tiras um lençol, atou-lhe as mãos e os pés epôs-lhe uma mordaça bem apertada. O sótão do bungalow era um quartinho com paredes depedra. Sarah estava sentada com as costas apoiadas na parede húmida e o queixo apoiado nosjoelhos. Encharcada até aos ossos por causa do seu passeio até à margem, rapidamente começoua tremer de modo descontrolado. Pensou em Reema e nas muitas noites que a rapariga tinhapassado fechada num sítio horrível antes do seu brutal assassínio. Se uma criança de doze anospodia suportar tal pressão, ela também podia.

Havia uma porta ao cimo dos degraus de pedra. Através dela, Sarah ouvia duas vozes aconversarem em russo. Uma era a de Nikolai; a outra, a de Rebecca Manning. A julgar pelo tom,estavam a tentar deduzir o encadeamento de acontecimentos que tinha levado à detenção doamigo íntimo do presidente russo e à morte da outra agente do SVR. Por aquela altura, semdúvida, já tinham concluído que a operação estava comprometida desde o princípio e que GabrielAllon, o homem que tinha desmascarado Rebecca Manning como agente russa, estava envolvidode algum modo. Rebecca lutava agora para salvar a sua carreira. Talvez até a sua vida. E, emalgum momento, viria atrás de Sarah.

Esforçou-se para dormir, embora fosse só para parar os tremores que sacudiam o seu corpo.Sonhou que estava deitada numa praia nas Caraíbas com Nadia al-Bakari, mas ao acordarencontrou Nikolai e dois capangas a olharem fixamente para ela. Levantaram-na do chão húmidoe frio como se fosse feita de papel e levaram-na ao colo pelas escadas acima. Uma mesa demadeira clara, sem desbastar, ocupava o centro da sala de estar. Obrigaram-na a sentar-se numacadeira e tiraram-lhe só a mordaça, deixando-lhe as mãos e os pés atados. Nikolai tapou-lhe aboca com a mão e advertiu-a que a mataria se gritasse ou tentasse pedir socorro. Nada na suaatitude permitia supor que era uma falsa ameaça.

Rebecca Manning parecia não ter reparado na presença de Sarah. Com os braços cruzados,olhava fixamente para a televisão, sintonizada na BBC. O primeiro-ministro, Jonathan Lancaster,acabava de acusar a Rússia de tentar assassinar o príncipe herdeiro da Arábia Saudita durante asua visita de Estado ao Reino Unido.

O ato monstruoso e depravado…Rebecca ouviu mais um pouco as declarações de Lancaster e depois apontou com o comando

para o ecrã e tirou o som. A seguir, virou-se e olhou para Sarah.

— Quem és? — perguntou por fim.— Allison Douglas.— Para quem trabalhas?— Para a CIA.Rebecca olhou para Nikolai e ele deu a Sarah uma bofetada feroz. Sarah, recordando a

advertência do russo, abafou um grito.Rebecca Manning deu um passo para ela e pôs o frasquinho de líquido transparente sobre a

mesa.— Uma gota — disse — e nem sequer o teu amigo arcanjo poderá salvar-te.Sarah olhou em silêncio.— Pareceu-me que isto te refrescaria a memória. Agora diz o teu nome.Sarah só respondeu ao ver que Nikolai se dispunha a bater-lhe de novo.— É um nome profissional? — perguntou Rebecca.— Não, é o meu nome verdadeiro.— Sarah é nome judeu.— Rebecca também.— Para quem trabalhas, Sarah Bancroft?— Para o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque.— É uma piada?— Não.— E antes disso?— Para a CIA.— Que relação tens com o Gabriel Allon?— Trabalhei com ele há um tempo num par de operações.— Diz-me uma.— Ivan Kharkov.— O Allon sabia do complô para matar o Abdullah?— Claro que sabia.— Como?— Foi ideia dele.Rebecca encaixou a notícia como um pontapé no estômago. Ficou calada durante um

momento. Depois perguntou:— O Abdullah alguma vez foi um agente do MI6?— Não. Era um agente russo. E tu, Rebecca Manning, acabas de matá-lo.

Eram oito e meia quando o BlackBerry de Gabriel vibrou anunciando que tinha uma chamada.Não reconheceu o número. Normalmente rejeitava tais chamadas sem pensar duas vezes. Noentanto, não rejeitou a chamada que recebeu às oito e meia da manhã em Roterdão.

Carregou no botão para atender, levou o telefone ao ouvido e murmurou saudações.— Temia que não atendesses.— Quem fala?— Não reconheces a minha voz?Era uma voz de mulher, um pouco rouca pelo cansaço e pelo fumo. Tinha pronúncia britânica,

com um leve sotaque francês. Sim, Gabriel reconheceu-a logo.

Era a voz de Rebecca Manning.

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OUDDORP, PAÍSES BAIXOS

O bar-restaurante da praia chamava-se Natural High. No verão, era um dos lugares maisfrequentados da costa neerlandesa, mas às dez e meia da manhã de um dia de abril assemelhava-se a um lugar colonial abandonado. Estava um tempo instável: tão rápido brilhava o sol comocaía um aguaceiro. Cabisbaixo no café, Gabriel observava o céu. Nunca tinha vivido um dia tãobelo e tão horrendo ao mesmo tempo… De repente, lembrou-se de um café no cimo da falésia deLizard Point, no oeste da Cornualha. Costumava ir a pé até lá pelo caminho da costa, pedia umchá e um scone com creme de leite espesso e depois voltava para a sua casinha de GunwalloeCove. Parecia ter passado uma eternidade. Talvez algum dia, quando deixasse o seu cargo,voltasse lá. Ou talvez fosse com os meninos e Chiara a Veneza. Viveriam num apartamentogrande em Cannaregio e ele restauraria quadros de Francesco Tiepolo. Os problemas do mundomal o afetariam. Passaria as noites com a sua família e os dias com os seus velhos amigosBellini, Ticiano, Tintoretto e Veronese. Voltaria a ser anónimo, um homem com um pincel e umapaleta em cima de um cavalete, escondido atrás de uma lona.

Contudo, por enquanto estava à vista, sentado, sozinho, a uma mesa colada à janela. Tinha oBlackBerry à frente dele, sobre a mesa. Estivera a ponto de ficar sem bateria, enquanto negociavaos termos do encontro. Rebecca tinha discutido um par de detalhes relativos às horas, depois deum último telefonema para Londres tinham chegado a um acordo. Ao que parece, DowningStreet tinha tanto interesse como ele em que o intercâmbio se desse com sucesso.

O ecrã do BlackBerry iluminou-se. Era Eli Lavon. Estava lá fora, no parque deestacionamento.

— Acaba de chegar.— Sozinha?— É o que parece.— O que queres dizer?— Quero dizer que não se vê ninguém dentro do carro — respondeu Lavon.— Que carro é?— Um Volvo.— Sedan ou familiar?Lavon desligou. Era um sedan, pensou Gabriel.Olhou para trás, para Mikhail e Keller. Estavam sentados a uma mesa, ao fundo do local.

Noutra havia dois agentes do SVR de blusões de cabedal. Os russos observaram atentamente

Rebecca Manning quando entrou no café e se sentou à frente de Gabriel. Tinha um aspeto muitobritânico com o seu casaco Barbour verde-escuro. Deixou o telemóvel sobre a mesa junto domaço de L&B e um velho isqueiro de prata.

— Posso? — perguntou Gabriel.Rebecca assentiu.Ele pegou no isqueiro. A inscrição via-se mal. Por toda uma vida de serviço à pátria.— Não podiam ter comprado um novo?— Pertenceu ao meu pai.Gabriel olhou para o relógio de Rebecca.— E isso?— Estava no museu privado do SVR, cheio de pó. Levei-o a um joalheiro e mudei-lhe a

maquinaria. Funciona bastante bem, na verdade.— Então, porque é que chegas dez minutos atrasada? — Gabriel pousou o isqueiro em cima

do maço de cigarros. — Devias guardar isto.— Até num bar de praia? — Ela guardou o tabaco e o isqueiro na sua mala. — Na Rússia, as

coisas são um pouco mais relaxadas.— O que se reflete na esperança de vida da população.— Acho que na última listagem estávamos abaixo da Coreia do Norte. — O seu sorriso era

sincero. Inclusive cordial, não como no último encontro, que fora num centro de detençãosecreto do MI6 no norte da Escócia. — A minha mãe perguntou-me por ti no outro dia — dissede repente.

— Continua em Espanha?Rebecca assentiu com um gesto.— Esperava que ficasse comigo em Moscovo.— E?— Não gostou muito quando me foi visitar.— Custa a acostumar-se. — A empregada ia e vinha à sua volta. — Devias pedir alguma coisa

— sugeriu Gabriel.— Não pensava ficar muito tempo.— Tens pressa?Pediu um koffie verkeerd. Depois, quando a empregada saiu, desbloqueou o telemóvel e

empurrou-o para Gabriel. No ecrã havia uma imagem nítida de Sarah Bancroft. Tinha um lado dacara inchado e corado.

— Quem lhe fez isso?Rebecca ignorou a pergunta.— Põe.Gabriel tocou no ícone de PLAY e escutou o tempo que conseguiu suportar aquilo. Depois

carregou na PAUSE e olhou para Rebecca com fúria por cima da mesa.— Aconselho-te a não divulgares essa gravação.— Teríamos justificação para fazê-lo.— Seria um erro muito grave.— Sim?— A Sarah é americana, não israelita. A CIA retaliará se souber que a maltrataste assim.— Trabalhava para ti quando nos fizeste acreditar que o Abdullah era um agente do MI6. —

Rebecca voltou a pegar no telefone. — Mas, esquece, a gravação é só para uso pessoal.— Achas que será suficiente?— Para quê?— Para salvar a tua carreira no SVR.Rebecca ficou calada enquanto a empregada lhe punha à frente um café com leite em copo.— Tratava-se disso? De destruir-me?— Não. De destruí-lo a ele.— Ao nosso presidente? Isso é lutar contra moinhos, Dom Quixote.— Espera umas horas, até que a notícia de que o Kremlin mandou assassinar o futuro rei da

Arábia Saudita seja esquecida. A Rússia converter-se-á numa excluída entre os excluídos.— Esse assassinato é coisa vossa, não nossa.— Nem tu acreditas nisso.— Quando os trolls da Agência de Investigação da Internet acabarem o seu trabalho, ninguém

no mundo achará que tivemos alguma coisa a ver com isto. — Rebecca pôs açúcar no café eremexeu-o, pensativa. — E quem nos vai votar ao ostracismo, segundo tu? Vocês? A Grã-Bretanha? Os Estados Unidos? — Abanou a cabeça lentamente. — Pode ser que não tenhasnotado, mas as instituições do teu amado Ocidente estão em ruínas. Quem pegou o touro peloscornos fomos nós. A Rússia, a China, os iranianos…

— Deixaste de fora a Arábia Saudita.— Assim que os americanos acabarem de se retirar do Médio Oriente, os sauditas dar-se-ão

conta de que só podem recorrer a nós para se defender, com ou sem o Abdullah no trono.— Não, se o Khalid reinar.Ela levantou uma sobrancelha.— O teu plano é esse?— O próximo rei será escolhido pelo Conselho de Lealdade, não pelo Estado de Israel, mas

apostaria que será o homem que permaneceu junto do seu queridíssimo tio enquanto sofria osterríveis efeitos do veneno radioativo russo.

— Referes-te a isto? — Rebecca pôs um tubinho de vidro sobre a mesa.Gabriel afastou-se.— O que é?— Ainda não tem nome, mas tenho a certeza de que a Agência de Investigação da Internet se

vai lembrar de um nome chamativo — respondeu ela com um sorriso. — Um que soe muitoisraelita.

— O Abdullah tem alguma possibilidade de sobreviver?— Absolutamente nenhuma.— E o que me dizes de ti, Rebecca?Ela voltou a guardar o frasco na mala.— Depois disto não voltarão a confiar em ti — acrescentou Gabriel. — Quem sabe? Pode ser

que inclusive achem que tens andado a trabalhar para o MI6 desde o momento que pisasteMoscovo Centro. Em todo o caso, serias tola se voltasses. O máximo que podes esperar é que teprendam nalguma aldeia isolada, um desses lugares que em vez de nome tem um número.Acabarás como o teu pai, convertida numa velha bêbada e deprimida, sozinha no mundo.

— Não te permito que fales assim do meu pai.Gabriel encaixou a reprimenda em silêncio.— E o que pretendes que faça? Que volte para Inglaterra? — perguntou ela franzindo a testa.

— Agradeço-te a tua preocupação, mas acho que prefiro arriscar a voltar para Rússia. — Deitoua mão ao telefone. — Limpamos este assunto?

Gabriel pegou no seu telemóvel, escreveu uma breve mensagem e carregou em ENVIAR. Aresposta chegou dez segundos depois.

— Acaba de ser autorizada a descolagem do avião do Dragunov. Dentro de uns quarenta ecinco minutos abandonará o espaço aéreo britânico.

Rebecca marcou um número. Disse umas palavras em russo e desligou.— No centro de Renesse há uma praça grande, com uma igreja no meio. Muito movimentada,

cheia de gente. Deixá-la-emos em frente da pizaria dentro de uma hora exatamente. — Consultouo relógio do seu pai como se quisesse gravar a hora na memória. Depois guardou o telefone namala e lançou um olhar à mesa na qual Mikhail e Keller estavam sentados. — Aquele tão pálidonão me é estranho. Estava no Starbucks de Washington quando me montaram a armadilha paraque me denunciasse?

Gabriel vacilou. Depois assentiu com um gesto.— E o outro?— É o que atingiste com um tiro naquela viela de Georgetown.— Que pena. Tinha a certeza de que o tinha matado. — Rebecca Manning levantou-se

bruscamente. — Continua — disse, e saiu.

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RENESSE, PAÍSES BAIXOS

A austera igreja de tijolo estava rodeada por uma praceta empedrada. Gabriel e Eli Lavontinham estacionado em frente de um hotelzinho. Mikhail e Keller tinham encontrado lugar emfrente de uma marisqueira chamada Vischmarkt Renesse. Atrás deles ficava a pizaria, ondeRebecca Manning tinha prometido deixar Sarah precisamente às 11h43.

Eram 11h39. Mikhail vigiava a pizaria pelo retrovisor interior. Keller, pelo lateral enquantofumava um Marlboro atrás de outro. Mikhail abriu um pouco a janela e examinou a praça.

— Dás-te conta de que aqui somos um alvo perfeito — disse, e depois de fazer uma pausaacrescentou: — Tal como o meu chefe.

— Fizemos um acordo.— Também o Khalid fez.Mikhail viu como Keller apagava um cigarro e acendia outro imediatamente.— A sério, devias deixar de fumar, sabias?— Porquê?— Porque a Sarah odeia.Keller continuou a fumar em silêncio, sem tirar os olhos do espelho.— Não achas que devíamos falar disso?— De quê?— Do que evidentemente sentes pela Sarah.Keller olhou-o de soslaio.— Pode-se saber o que se passa?— Com quem?— Contigo e com o Gabriel. Não têm nada melhor para fazer do que se meterem na vida dos

outros?— Gostes ou não, agora és um dos nossos, Christopher. E isso significa que nos reservamos o

direito de meter o nariz na tua vida amorosa quando nos apetecer. — Depois de um brevesilêncio, acrescentou baixinho: — Sobretudo, se a minha ex-namorada está no meio.

— No hotel não se passou nada, se é isso que estás a dar a entender.— Não estou.— E não estou apaixonado por ela.— Se tu o dizes. — Mikhail olhou para as horas. Eram 11h41. — É que não quero que haja

mal-entendidos.

— Mal-entendidos?— Na nossa relação.— Não sabia que tínhamos uma relação.Mikhail sorriu a custo.— Fizemos um bom trabalho juntos, eu e tu. E suspeito que vamos continuar a colaborar. Não

quero que isto com a Sarah complique as coisas.— Porque é que havia de complicar?— Faz-me um favor, Christopher. Trata-a melhor do que eu a tratei. Ela merece. — Mikhail

afastou os olhos do espelho. — Sobretudo agora.Passou um minuto. Depois outro. O relógio do tabliê marcava as 11h44. Tal como o telemóvel

de Keller, que murmurou uma maldição enquanto apagava o cigarro.— Não achavas mesmo que a Rebecca ia ser pontual, pois não? Graças ao Gabriel, não sabe o

que a espera quando voltar para a Rússia.Keller esfregou distraidamente a clavícula.— Não sabes quanto lamento isso.— Olha — disse Mikhail de repente —, aí está o carro.Tinha parado à frente da pizaria: um Volvo modelo sedan, de cor escura, com dois homens à

frente e duas mulheres atrás. Uma delas era a filha de Kim Philby. A outra era Sarah Bancroft.Num último ato de rebeldia, deixou a porta aberta ao sair. Rebecca teve de se inclinar para afechar. Depois, o carro arrancou a toda a velocidade, passando a escassos centímetros da janelade Mikhail.

Sarah ficou um momento parada ao sol, aturdida, mas ao ver que Keller corria para ela, o seurosto abriu-se num largo sorriso.

— Desculpa não ter aparecido ontem à noite para jantar, mas foi impossível.Keller tocou-lhe na face magoada.— Foi o nosso amigo do hotel. Chama-se Nikolai, é verdade. Talvez algum dia possas

retribuir-lhe o favor.Keller ajudou-a a sentar-se no banco de trás do carro. Sarah viu passar uma fileira de lindas

casinhas pela janela quando Mikhail saiu da cidade seguindo Gabriel e Eli Lavon.— Antes gostava da Holanda. Agora não vejo a hora de me ir embora.— Há um avião à nossa espera em Roterdão.— Para onde vamos?— Para casa — disse Keller.Sarah apoiou a cabeça no seu ombro e fechou os olhos.— Já estou em casa

QUINTA PARTE

VINGANÇA

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LONDRES-JERUSALÉM

Começou num quarto do Hotel Intercontinental de Budapeste. Dali, passou à parte de trás deum táxi, ao lugar 14A de um Boeing 737 da Ryanair, ao convés de um ferry irlandês chamadoUlysses, a um Toyota Corolla e ao Hotel Bedford House na povoação costeira de Frinton-on-Sea,em Essex. Elevados níveis de radiação foram igualmente encontrados no escritório saqueado deuma marina no rio Twizzle, num Jaguar F-Type abandonado e no camarote de um barco modeloBavaria 27 Sport encalhado em frente da localidade costeira de Renesse, na Holanda. Mais tarde,as autoridades holandesas encontrariam também altos níveis de contaminação num bungalowsituado nas dunas nos arredores de Ouddorp.

O foco principal estava, no entanto, num par de casas contíguas em Eaton Square. Aí, o relatodo ocorrido tinha ficado indelevelmente escrito num rasto de radiação que se estendia de umacasa de banho no piso superior do número 71 até à sala e à cozinha do número 70. No caixote dolixo, a Polícia Metropolitana encontrou as armas do crime: um frasco de vidro vazio, uma pipetaPasteur, um copo de champanhe e um avental. Os medidores de radiação registavam níveis detrinta mil contas por segundo. Demasiado perigosos para guardar nas instalações da polícia, osobjetos foram enviados para o laboratório de Aldermaston, o centro de investigação nuclear dogoverno britânico.

A mulher que tinha empunhado as armas do crime tinha sido a primeira a morrer. O seucadáver estava tão contaminado que teve de ser enterrado num sarcófago de betão, e o lugar doseu carro, um Renault Clio, estava tão saturado de radiação que acabou também emAldermaston, tal como uma cadeira da sala de espera do terminal executivo do Aeroporto deLondres. O foco de contaminação da cadeira, um tal Konstantin Dragunov, tinha abandonado aInglaterra a bordo do seu jato privado depois de apresentar sintomas agudos de doençaprovocados pela radiação. O governo russo, na sua primeira declaração oficial, atribuiu aindisposição de Dragunov na noite do incidente a uma simples intoxicação alimentar. Quanto àcontaminação que a sua casa em Londres apresentava, o Kremlin assegurou que se tratava de umestratagema dos serviços secretos britânicos para desacreditar a Rússia e danificar as suasrelações com o mundo árabe.

A argumentação russa veio-se abaixo no dia seguinte, quando a comissária chefe StellaMcEwan, da Polícia Metropolitana, deu o passo inaudito de tornar pública uma parte dadeclaração gravada que Dragunov fizera antes de embarcar no seu avião. O Kremlin qualificou agravação de fraude, tal como o próprio Dragunov, do qual se dizia que estava a recuperar na sua

mansão do distrito moscovita de Rublyovka. Na realidade, estava internado no Hospital ClínicoCentral de Kuntsevo, o centro médico reservado aos altos cargos públicos do governo e à eliteempresarial russa. Os médicos que lutavam para lhe salvar a vida esforçavam-se em vão. Nãohavia medicação, nem tratamento de urgência que pudesse deter a deterioração das células e dosórgãos de Dragunov. Para todos os efeitos, já estava morto.

Sofreu, no entanto, três semanas de agonia, enquanto a credibilidade de Moscovo se afundavaaté níveis nunca vistos desde a catástrofe do voo 007 da Korea Air Lines em 1983. No mundoárabe e muçulmano multiplicaram-se as manifestações de protesto contra o governo russo. Umabomba explodiu em frente da embaixada russa no Cairo, e no Paquistão os manifestantesassaltaram a embaixada.

A reação de Ocidente foi pacífica, mas devastadora para os interesses diplomáticos eeconómicos russos. Foram canceladas reuniões, congeladas contas bancárias, destituíram-seembaixadores e conhecidos agentes do SVR tiveram de fazer as malas e voltar para o seu país.Londres foi muito seletivo quanto às expulsões, pois desejava enviar uma mensagem clara. SóDmitri Mentov e Yevgeny Teplov, dois agentes do SVR que operavam com coberturadiplomática, foram declarados personae non grata e expulsos do país. Nessa mesma noite,Charles Bennett, um cargo importante do MI6, foi detido quando se dispunha a apanhar oEurostar com destino a Paris na estação de St. Pancras. A sua detenção não foi tornada pública.

Ocultaram-se muitas outras coisas à opinião pública, sempre em nome da segurança nacional.Não se disse, por exemplo, como ou quando tinham sabido os serviços secretos que havia umaequipa de assassinos russos em território britânico, nem se explicou satisfatoriamente por quemotivo Konstantin Dragunov tinha sido autorizado a abandonar o país depois de confessar quetinha feito parte da operação.

Sob o olhar implacável dos meios de comunicação, rapidamente apareceram falhas na versãooficial dos factos. Por fim, Downing Street reconheceu que a ordem fora dada pelo primeiro-ministro pessoalmente, embora não se soubesse os motivos. Uma respeitada jornalista doGuardian sugeriu que Dragunov tinha sido libertado em troca de uma refém depois de sersubmetido a um brutal interrogatório. Stella McEwan declarou com cautela que nenhum agenteda Polícia Metropolitana tinha maltratado o oligarca russo, o que deixava aberta a possibilidadede terem sido outros.

No meio deste turbilhão mediático, o príncipe Abdullah bin Abdulaziz Al Saud ficou quaseesquecido. Segundo a Al Arabiya, a televisão estatal saudita, morreu nove dias depois deregressar de Londres, às 4h37 da manhã. Entre as pessoas que estavam junto do seu leito demorte estava o seu querido sobrinho, o príncipe Khalid bin Mohammed.

Mas porque é que os russos tinham envenenado o herdeiro da Arábia Saudita? Será que oKremlin não queria fazer novas amizades no mundo árabe? Não tentava substituir os EstadosUnidos como principal potência da região? De Riade, apenas silêncio. Moscovo negava tudo etentava fugir à questão. Os especialistas televisivos especulavam. Os jornalistas de investigaçãovasculhavam e investigavam. Mas nenhum se aproximava nem remotamente da verdade.

Porém, havia pistas por todo o lado: num consulado em Istambul, num colégio privado deGenebra e num campo do sudoeste em França. Mas, tal como o rasto de radiação, as provas eraminvisíveis a olho nu. Uma jornalista sabia bem mais do que a maioria, mas por razões das quaisnão quis informar os seus colegas de profissão, preferiu ficar em silêncio.

Na noite em que o Kremlin anunciou, tardiamente, a morte de Konstantin Dragunov, essajornalista saiu do seu escritório em Berlim e, como tinha por costume, olhou para um lado e para

o outro da rua antes de caminhar até um café da Friedrichstrasse, perto do antigo CheckpointCharlie. Estavam a segui-la, tinha a certeza. Algum dia viriam buscá-la. E quando esse diachegasse, estaria preparada.

Havia um último rasto de radiação cuja existência nunca chegou a ser revelada. Estendia-se doAeroporto Cidade de Londres até ao último andar de um anódino bloco de escritórios deTelavive, passando por um restaurante de praia nos Países Baixos e um apartamento emJerusalém. Era, segundo declarou Uzi Navot, outra meta na já reconhecida carreira de Gabrielcomo diretor-geral do Departamento. O único diretor-geral que tinha matado em serviço e oúnico que tinha ficado ferido num atentado terrorista. Agora ganhara também a duvidosa honrade ser o primeiro contaminado por radiação, russa ou de qualquer outra espécie. Navot lamentavaa brincadeira da boa estrela do seu rival.

— Quem sabe devias deixar isto, agora que tens a sorte do teu lado — disse a Gabriel quandoregressou à Avenida Rei Saul.

— Tentei. Várias vezes, de facto.Alguém colou um sinal amarelo na porta do seu escritório onde se lia PERIGO DE RADIAÇÃO e,

na primeira reunião com os seus colaboradores mais próximos, Yossi Gavish entregou-lheformalmente um medidor Geiger e um fato de proteção com o seu nome bordado. Até aíchegaram as celebrações. A operação tinha sido, objetivamente, um sucesso. Gabriel tinhaenganado brilhantemente o seu oponente, levando-o a cometer um erro colossal. Ao fazê-lo,tinha conseguido atalhar a crescente influência da Rússia no Médio Oriente e, ao mesmo tempo,eliminar o fantoche que o Kremlin tinha colocado em Riade. O trono saudita estava outra vez aoalcance de Khalid. A única coisa que tinha de fazer era convencer o seu pai e o Conselho deLealdade de que lhe dessem outra oportunidade. Se conseguisse isso, a sua dívida para comGabriel seria imensa. Juntos conseguiriam mudar o Médio Oriente. As possibilidades que issotrazia para Israel — e para Gabriel e para o Departamento — eram inesgotáveis.

Mas para Gabriel, em primeiro lugar estava o Irão. Nessa noite, passou várias horas na KaplanStreet a informar o primeiro-ministro do conteúdo dos arquivos nucleares iranianos. E na noiteseguinte estava bem perto, fora da câmara, quando o primeiro-ministro tornou públicos essesachados numa conferência de imprensa que foi emitida em direto na televisão e deu a volta aomundo. Três dias depois, pediu a Uzi Navot que entregasse um relatório expurgado sobre aoperação iraniana aos jornalistas de Haaretz e ao New York Times. A mensagem em ambos oscasos era inconfundível: Gabriel tinha conseguido chegar ao coração de Teerão e tinha roubadoos segredos mais preciosos do regime. E se os iranianos ousassem alguma vez retomar o seuprograma de armas nucleares, voltaria a fazê-lo.

E, no entanto, pese a todos os seus sucessos, raramente se esquecia de Reema. No calor daoperação contra os russos tinha desfrutado de um breve momento, mas agora que tinha voltado àAvenida Rei Saul a sua lembrança atormentava-o. Aparecia-lhe em sonhos com a gabardinatorcida e os seus sapatos de pele. Às vezes, parecia-se estranhamente com Nadia al-Bakari, enoutro pesadelo assumiu a aparência de Daniel, o primeiro filho de Gabriel. O palco não era umcampo remoto em França, mas uma praça com neve em Viena. A menina com a gabardinatorcida e os sapatos de pele, a jovenzinha com cara de menino, tentava arrancar o motor de umMercedes. «É linda, não é?», dizia quando explodia a bomba. E depois, enquanto a consumiam

as chamas, olhava para Gabriel e dizia: «Um último beijo…».Na noite seguinte, enquanto jantavam tranquilamente fettuccine com cogumelos na mesa da

cozinha, contou a Chiara o ocorrido naquele campo do sudoeste de França. A voz da russa aotelefone, o disparo que partiu o farolim de trás do carro, Khalid a apanhar os membros de Reemaà luz inclemente dos faróis. O objetivo da bomba era ele, afirmou. Tinha castigado osresponsáveis, tinha-os enganado através de uma hábil artimanha que mudaria o curso da históriano Médio Oriente. Mas Reema não voltaria. O seu sequestro e o seu brutal assassínio nem sequerse tinham tornado públicos ainda. Era quase como se nunca tivesse existido.

— Então devias fazer alguma coisa a esse respeito — disse Chiara.— Como?Ela pôs uma mão sobre a sua.— Não tenho tempo — protestou Gabriel.— Eu vi como trabalhas rápido quando te dispões a isso.Gabriel analisou a ideia.— Suponho que podia pedir a Ephraim que me deixe usar o laboratório de restauro do museu.— Não — disse Chiara. — Fá-lo aqui, em casa.— Com as crianças?— Claro — respondeu ela com um sorriso. — Já vai sendo hora de que vejam o verdadeiro

Gabriel Allon.

Como sempre, preparou ele mesmo a tela: de 180 por 120, com estrutura de carvalho e tecidoitaliano. Para fazer a base, usou a fórmula que tinha aprendido em Veneza com o seu mestre derestauro, Umberto Conti. A paleta de cores que escolheu era a de Veronese com um toque deTiciano.

Só tinha visto Reema uma vez e numas circunstâncias que, por mais que tentasse, nãoconseguia esquecer. Tinha visto também a fotografia que os russos lhe tiraram enquanto a tinhamretida no País Basco espanhol. Ficara-lhe gravada na memória. Nela, via-se a menina cansada emagra, com o cabelo despenteado. Mas a fotografia mostrava a sua estrutura óssea e, o que eramais importante, o seu carácter. Para bem ou para mal, Reema bint Khalid era a digna filha doseu pai.

Montou o seu estúdio improvisado na sala de estar, perto do terraço. Como tinha por costume,mostrou-se muito cioso do seu trabalho. As crianças receberam ordens estritas para não tocaremnos seus materiais de trabalho. Como medida de precaução, no entanto, deixava sempre um dosseus pincéis Winsor & Newton Série 7 numa determinada posição sobre o carrinho para notar sealguém tinha tocado nas suas coisas, o que acontecia invariavelmente. Não teve grandespercalços, no entanto, uma vez, ao voltar de Avenida Rei Saul, encontrou várias impressões dededos no canto inferior esquerdo da tela. A análise forense determinou que eram de Irene.

Trabalhava quando podia, uma hora de manhã e uns minutos à noite, depois do jantar. Ascrianças raramente saíam do seu lado. Não fez esquemas preliminares nem desenhou sobre a tela.Ainda assim, o traço era impecável. Pintou Reema na mesma pose em que tinha pintado Nadia,num sofá branco sobre um fundo preto inspirado em Caravaggio. O seu gesto era infantil, masfê-la parecer um pouco mais velha — dezasseis ou dezassete anos em vez de doze — para queKhalid pudesse desfrutar dela um pouco mais.

Pouco a pouco, à medida que ganhava vida na tela, foi abandonando os sonhos de Gabriel. No

seu último aparecimento, entregou uma carta para o seu pai. Gabriel acrescentou-a ao quadro.Depois, passou um longo momento à frente da tela com a mão direita no queixo, a esquerdadebaixo do cotovelo direito e a cabeça um pouco inclinada, tão absorto nos seus pensamentosque não percebeu que Chiara estava ao seu lado.

— Acabaste, Signor Delvecchio?— Não — respondeu, enquanto limpava o pincel. — Ainda não.

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LANGLEY-NOVA IORQUE

Naquela tarde Morris Payne, o diretor da CIA, ligou a Gabriel e pediu-lhe que fosse aWashington. Não era uma ordem, mas também não era um convite. Depois de fingir queconsultava a sua agenda, Gabriel respondeu que iria na terça-feira seguinte, muito cedo.

— Tenho uma ideia melhor. Podes vir amanhã?Na realidade, Gabriel queria ir a Washington. Devia a Payne um relato completo da operação

para expulsar Abdullah da linha sucessória e precisava, para além disso, que Payne e o seu chefeda Casa Branca autorizassem a ascensão de Khalid ao trono. O Conselho de Lealdade ainda nãotinha nomeado o novo príncipe herdeiro e a Arábia Saudita voltava a ser governada por umoctogenário doente que não tinha designado sucessor.

Apanhou um voo noturno para Washington e reuniu-se com Payne no dia seguinte no seuescritório no sétimo piso em Langley. Mas, no fim, não foi preciso que Gabriel lhe contasse opapel que tinha desempenhado no desaparecimento de Abdullah. O americano sabia tudo.

— Como é que sabes isso?— Por uma fonte que temos no SVR. Pelos vistos, colocaste aquilo de pernas para o ar.— Sabe-se alguma coisa da Rebecca Manning?— Philby, queres dizer? — Payne abanou a cabeça com amargura. — Quando pensavas dizer-

me isso?— Não me competia a mim, Morris.— Pelos vistos, está por um fio.— Disse-lhe para não voltar.— Viste-a?— No Holanda — respondeu Gabriel. — Tivemos de negociar uma troca de prisioneiros.— O Dragunov em troca da miúda? — Payne coçou pensativamente o queixo pontiagudo. —

Lembras-te da última vez que jantámos juntos?— Com muito carinho.— Quando te sugeri que talvez conviesse afastar o Abdullah pelo bem da região, olhaste para

mim como se acabasse de dizer para liquidares a Madre Teresa.Gabriel não disse nada.— Porque não nos incluíste na operação?— Já éramos demasiados.— A Arábia Saudita é nossa aliada.

— E graças a mim continua a ser. Agora a única coisa que têm de fazer é dar a entender aRiade que Washington veria com bons olhos que o Khalid voltasse a ser nomeado sucessor.

— Pelo que ouvimos, vão demorar a voltar a designá-lo.— Seguramente que não.— Porquê? Já está pronto?— Mudou, Morris.Payne não parecia tão seguro. Mudou de assunto bruscamente, como era seu hábito.— Entendi que os russos deram um bom corretivo à rapariga.— À Sarah?Payne assentiu.— Dadas as circunstâncias, podia ter sido pior — afirmou Gabriel.— Aguentou bem a pressão?— Tem estofo para isto, Morris.— Então, porque é que trabalha num museu de Nova Iorque?— Lê o seu processo.— Acabo de lê-lo. — Tinha uma cópia sobre a mesa. — Achas que conseguias convencê-la a

voltar para a Agência?— Duvido.— Porquê?— Pode ser que me engane, mas acho que já está comprometida.

Gabriel saiu de Langley a tempo de apanhar o comboio das três para Nova Iorque. Um carrodo consulado israelita foi buscá-lo a Penn Station e, nessa tarde quente de primavera, levou-o atéà esquina da Second Avenue com a East Sixty-Fourth Street. O restaurante no qual entrou eraitaliano, antiquado e muito ruidoso. Abriu caminho entre as pessoas que estavam ao balcão echegou até à mesa onde Sarah, de fato escuro, tomava tranquilamente um martíni com trêsazeitonas. Ao ver Gabriel, sorriu e levantou a cara para lhe dar um beijo. Não restava nelavestígio algum da sua travessia noturna pelo Mar do Norte com um assassino russo chamadoNikolai. De facto, pensou Gabriel ao sentar-se, estava mais bonita do que nunca.

— Toma um destes — sugeriu ela tocando com a unha pintada na beira do copo. — Apostoque te tira a dor de costas.

Gabriel pediu um sauvignon blanc italiano e, no mesmo instante, tinha à sua frente o maiorcopo de vinho que alguma vez vira.

Sarah levantou ligeiramente o seu martíni.— Ao mundo secreto. — Percorreu com o olhar o local atestado de gente. — Não há por aqui

nenhum amiguinho teu?— Não consegui reserva para eles.— Isso quer dizer que te tenho só para mim? Pois então façamos algo terrivelmente

escandaloso. — Sorriu com malícia e bebeu um gole de martíni. Tinha uma voz e umas maneirasde outra época. Como lhe acontecia sempre com ela, Gabriel teve a sensação de estar a conversarcom uma personagem de um romance de Fitzgerald. — E Langley?

— O Morris não parou de falar de ti.— Tem saudades minhas?Ele sorriu.

— A cidade inteira está desolada. O Morris faria qualquer coisa para te ter de volta.— O que está feito, não pode ser desfeito. Exceto em relação ao Khalid — acrescentou ela

baixando a voz. — Tu impediste que o nosso herói trágico se destruísse a si próprio. — Sorriu.— Restauraste-o.

— Literalmente — concordou Gabriel.— O Morris deu luz verde ao Khalid?Ele fez um gesto afirmativo.— E a Casa Branca também. Agora toca a começar a produzir a segunda temporada da série

do Khalid.— Esperemos que seja menos mexida do que a primeira.Um empregado aproximou-se e Sarah pediu insalata caprese e vitela salteada. Gabriel pediu o

mesmo.— Como tem corrido o trabalho?— Parece que a Coleção Nadia al-Bakari não caiu das paredes do Museu de Arte Moderna na

minha ausência. De facto, a minha equipa quase nem notou que eu não estava.— Que planos tens?— Uma mudança de ares, acho eu.Agora foi Gabriel quem contemplou o local.— Isto é muito agradável, Sarah.— O Upper East Side? Tem o seu encanto, mas eu sempre preferi Londres. Kensington, em

particular.— Sarah…— Eu sei, eu sei.— Foste a Londres vê-lo?— No fim de semana passado. Foi quase tão delicioso como este martíni. E tem um duplex

divino, mesmo sem móveis.— Disse-te de onde tirou o dinheiro para o comprar?— Mencionou alguma coisa a respeito de um tal Don Orsati da Córsega. Também tem uma

casa lá, sabias?— E um Monet. — Gabriel olhou-a com reprovação. — É demasiado velho para ti.— É o homem mais jovem com o qual tenho saído nos últimos tempos. Além disso, alguma

vez o viste nu?— E tu?Sarah desviou o olhar.— Posso fazer algo para te dissuadir?— Para quê fazê-lo?— Porque certamente é uma insensatez que te juntes a um homem que ganhava a vida a matar

pessoas.— Se tu fazes vista grossa ao passado do Christopher, porque é que eu não posso fazer o

mesmo?— Porque a mim nunca me passou pela cabeça ir para Londres viver com ele. — Gabriel

exalou um suspiro lentamente. — Em que é que pensas trabalhar?— Talvez te surpreenda, querido, mas não tenho propriamente problemas de dinheiro. O meu

pai deixou-me muito bem na vida. Ainda assim, gostava de fazer qualquer coisa.— Em que é que estás a pensar?

— Numa galeria, talvez.Gabriel sorriu.— Conheço uma muito boa em Mason’s Yard, em St. James. Especializada em Grandes

Mestres italianos. O dono anda há vários anos a falar na reforma e procura alguém a quem passaro negócio.

— Está em boa situação económica? — perguntou Sarah com interesse.— Bastante boa, sim, graças à sua colaboração com um certo empresário russo.— O Christopher contou-me dessa operação.— Ah, sim? — disse Gabriel incomodado. — E também te contou sobre a Olivia Watson?Ela assentiu.— E sobre Marrocos. Oxalá me tivessem convidado.— A Olivia tem uma galeria em Bury Street — advertiu-a Gabriel. — É muito possível que te

tropeces com ela.— E o Christopher tropeçará com o Mikhail da próxima vez que nós… — Sarah deixou a

frase a meio.— A coisa pode ficar um bocadinho incestuosa.— Sim, mas havemos de nos arranjar. — Ela sorriu com repentina tristeza. — É o que

fazemos sempre, não é, Gabriel?Nesse instante o BlackBerry de Gabriel vibrou. O tom característico deixava claro que se

tratava de uma mensagem urgente da Avenida Rei Saul.— Algo importante? — perguntou Sarah.— O Conselho de Lealdade acaba de nomear o Khalid como príncipe herdeiro.— Que rápido. — De repente, o iPhone de Sarah também vibrou. Ela sorriu ao ler a

mensagem.— Se for o Keller, diz-lhe que quero falar com ele.— Não é o Keller, é o Khalid.— O que é que quer?Sarah passou-lhe o telefone.— Falar contigo.

82

TIBERÍADES

No seu primeiro ato oficial depois de ser designado príncipe herdeiro, Khalid bin Mohammedcortou os laços com a Federação Russa e expulsou todos os cidadãos russos do reino da ArábiaSaudita. Os analistas políticos aplaudiram a medida. O Khalid de antes, disseram, teria agidocom menos prudência. O novo, pelo contrário, tinha demonstrado a perspicácia e a moderação deum estadista veterano. Era óbvio que uma voz mais sábia lhe sussurrava ao ouvido.

No interior do reino, apressou-se a desfazer o mal que o breve governo do seu tio tinha feito, etambém parte do que ele próprio tinha causado. Libertou as ativistas presas e os partidários dasreformas democráticas, e inclusive pôs em liberdade um conhecido blogueiro que, tal comoOmar Nawwaf, tinha lançado críticas contra ele. A vida retornou às ruas de Riade ao retirar-se atemida Mutawa. Um novo cinema foi inaugurado e os cafés encheram-se de jovens sauditas atéaltas horas da madrugada.

A política de Khalid, no entanto, caracterizou-se pela sua inusitada cautela. A corte real,embora cheia de lealistas dispostos a obedecer-lhe, incluía também vários tradicionalistas davelha guarda, pelo que os analistas do Médio Oriente deduziram que pensava retomar a antigaprática dos Al Saud de governar por consenso. Enquanto o antigo Khalid tinha muita pressa, onovo parecia preferir levar as coisas com calma. Shwaya, shwaya converteu-se no seu mantraoficial. Ainda assim, não era um governante com o qual conviesse estar enfrentado, comodescobriu um destacado reformista depois de desafiar Khalid durante um evento público. Asentença de um ano de prisão deixou claro que a tolerância de KBM para com a discórdia tinhacertos limites. Era um déspota ilustrado, diziam os observadores, mas um déspota afinal decontas.

A sua conduta pessoal também mudou. Vendeu o seu iate e o seu palácio francês e devolveuvários milhares de milhões de dólares aos homens aos quais tinha prendido no Hotel Ritz-Carlton. Desprendeu-se de parte da sua coleção de arte. Confiou a venda do Salvator Mundi àgaleria Isherwood de Mason’s Yard, em Londres. A marchante Sarah Bancroft, ex-conservadorado Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, encarregou-se das negociações.

A esposa de Khalid, Asma, começou a aparecer em público ao seu lado. Da princesa Reema,pelo contrário, não se sabia nada. Circulava o rumor de que vivia na Suíça, onde frequentava umexclusivo colégio privado, mas a publicação de uma espetacular reportagem na revista alemã DerSpiegel calou de uma vez todas as especulações. A reportagem, baseada em parte nas notas deOmar Nawwaf, detalhava a série de acontecimentos que tinha conduzido à abdicação repentina

de KBM e à sua posterior restauração. Depois de vários dias de silêncio, Khalid proporcionouuma confirmação chorosa da veracidade da reportagem.

O que, por sua vez, propiciou outra mudança de perspetiva, sobretudo no Ocidente. Talvez osrussos, apesar da sua temeridade, lhes tivessem feito um favor. Talvez estivesse na hora deperdoar o jovem príncipe e dar-lhe de novo as boas-vindas. De Washington a Wall Street, deHollywood a Silicon Valley, elevou-se um grande clamor pedindo o seu regresso, especialmenteentre os que o tinham insultado.

Havia um homem, no entanto, que sempre se tinha mantido ao seu lado, inclusive quandotodos os outros lhe viraram as costas. Um homem cujo convite Khalid aceitou numa calorosatarde do mês de junho.

O novo KBM era tão impontual como o anterior. Gabriel esperava-o às cinco, mas eram quaseseis e meia quando o Gulfstream aterrou por fim na base aérea de Ramat David. O príncipe saiuda cabine sozinho, com um casaco justo e uns elegantes óculos de aviador que cintilavam ao solda tarde. Gabriel estendeu-lhe a mão, mas voltou a receber um abraço caloroso.

Abandonaram a base e atravessaram a terra natal de Gabriel. Os seus pais, explicou a Khalid,eram judeus alemães sobreviventes do Holocausto. Como todos os habitantes de Ramat David, afamília Allon vivia numa casinha prefabricada. A sua estava cheia de fotografias de familiares eparentes mortos entre as chamas da Shoah. Para fugir à atmosfera de tristeza do seu lar familiar,Gabriel costumava passear pelo Vale de Jezreel, as terras que Josué deu à tribo de Zebulom, umadas doze tribos de Israel antigo. Tinha passado grande parte da sua vida adulta a viver noestrangeiro ou em Jerusalém, mas aquele vale, disse a Khalid, seria sempre o seu lar.

Enquanto se dirigia para leste pela autoestrada 77, o telefone de Khalid tocava e vibrava semparar. As mensagens eram da Casa Branca. Khalid explicou que o presidente e ele tinhamcombinado encontrar-se em Nova Iorque durante a reunião anual da assembleia geral das NaçõesUnidas, em setembro. Se tudo corresse bem, voltaria aos Estados Unidos no outono para umacimeira oficial em Washington.

— Parece que está tudo perdoado — disse, e olhou para Gabriel. — Imagino que não tevenada a ver com isto.

— Os americanos não precisaram de qualquer incentivo da minha parte. Estão ansiosos pornormalizar as relações.

— Mas foi o Gabriel que me tornou de novo numa personagem respeitável. — Khalid fez umapausa. — O Gabriel e o Omar Nawwaf. O artigo da Der Spiegel dissipou de uma vez por todas anuvem de suspeita que pesava sobre mim.

Khalid desligou por fim o telefone. Durante os trinta minutos seguintes, enquantoatravessavam a Galileia Superior, obsequiou Gabriel com um relato notável: um tour secretopelo Médio Oriente guiado pelo futuro rei da Arábia Saudita. A GID, a Direção-Geral daInteligência saudita, tivera notícia de certos excessos cometidos pelo chefe da GuardaRevolucionária iraniana: um desfalque, ao que parece. A Avenida Rei Saul receberia em breve ainformação em bruto. Khalid e a GID estavam ansiosos por representar algum papel na Síriaagora que os americanos tinham decidido retirar-se de cena. Talvez a GID e o Departamentopudessem empreender uma operação encoberta para tornar a vida um pouco mais incómoda aosiranianos e aos seus aliados do Hezbollah na Síria. Gabriel pediu-lhe que intercedesse perante oHamas para pôr fim aos ataques com mísseis e projéteis de Gaza. Khalid prometeu fazer o que

estivesse ao seu alcance.— Mas não espere grande coisa. Os malucos do Hamas odeiam-me quase tanto como a si.— O que é que sabe do plano de paz para o Médio Oriente dos americanos?— Não muito.— Talvez nós os dois devêssemos criar o nosso próprio plano de paz.— Shwaya, shwaya, meu amigo.Pouco depois, chegaram à planície seca na qual, numa abrasadora tarde de julho de 1187,

Saladino derrotou os sedentos exércitos cruzados numa batalha emblemática que pôs de novoJerusalém nas mãos dos muçulmanos. Um momento depois avistaram o Mar da Galileia.Dirigiram-se para norte pela costa até chegarem a uma povoação semelhante a uma fortaleza, noalto de um promontório rochoso. Havia vários carros e jipes estacionados em fila na estradaempinada.

— Onde estamos? — perguntou Khalid.Gabriel abriu a porta do carro e saiu.— Venha comigo — disse. — Já vai ver.

Ari Shamron esperava no vestíbulo. Lançou a Khalid um olhar desconfiado e por fimestendeu-lhe a mão cheia de manchas hepáticas.

— Nunca pensei que este dia chegaria.— Não chegou. Oficialmente, pelo menos — afirmou o saudita num tom cúmplice.Shamron conduziu-os à sala de estar, onde estava reunida quase toda a elite do Departamento:

Eli Lavon, Yaakov Rossman, Dina Sarid, Rimona Stern, Mikhail Abramov e Natalie Mizrahi,Uzi e Bella Navot. Chiara e as crianças estavam de pé ao lado de um cavalete de madeira quealbergava um quadro coberto com um pano preto.

Khalid olhou para Gabriel, perplexo.— O que é?— Algo para substituir o seu Leonardo.Gabriel fez um sinal a Raphael e a Irene. Com ajuda de Chiara, tiraram o pano preto. Khalid

cambaleou ligeiramente e levou uma mão ao coração.— Meu Deus! — murmurou.— Perdoe, devia ter avisado.— Parece… — A voz falhou. Esticou a mão para a cara de Reema e depois apontou para a

carta. — O que é?— Uma mensagem para o pai.— O que diz?— Isso fica entre vocês.Khalid olhou para o canto inferior direito da tela.— Não há assinatura.— O pintor desejava permanecer no anonimato para não eclipsar o seu modelo.Khalid levantou o olhar.— O pintor é famoso?Gabriel sorriu melancolicamente.— Em certos círculos.

Comeram lá fora, no terraço, vigiados pelo retrato de Reema. Foi um banquete sumptuoso de

pratos árabes e israelitas, incluindo o famoso frango com especiarias marroquinas de GilahShamron, que segundo proclamou Khalid era o melhor que tinha provado. O príncipe declinoudiscretamente o vinho que Gabriel lhe ofereceu. Em breve seria o guardião das duas mesquitassagradas de Meca e Medina, explicou. Os seus dias de consumo de álcool, embora fossemoderadamente, tinham acabado.

Rodeado por Gabriel e pelos seus chefes de divisão, Khalid não falou do passado, mas dofuturo. O caminho que tinha pela frente, disse, seria difícil. Apesar de todas as suas riquezas, oseu era um país tradicional, atrasado, bárbaro em muitos sentidos. E, além disso, começava asurgir outra Primavera Árabe. Deixou claro que não toleraria uma rebelião aberta contra o seugoverno. Pediu-lhes que tivessem paciência, que fossem realistas quanto às suas expectativas eque fizessem a vida suportável aos palestinianos. Algum dia, de alguma maneira, a ocupação deterritórios árabes tinha de acabar.

Pouco antes das onze ouviram-se sirenes na beira do lago. Um momento depois, um foguetedo Hezbollah sobrevoou os Montes Golã e um míssil disparado pelo sistema de defesa antiaéreaDomo de Ferro foi ao seu encontro. Depois, Gabriel e Khalid contemplaram sozinhos, dabalaustrada do terraço, um barco que navegava pelo lago com a popa iluminada por uma luzverde.

— É bastante pequeno — disse Khalid.— O lago?— Não, o barco.— E decerto não tem discoteca.— Nem sala de neve.Gabriel riu-se baixinho.— Tem saudades?Khalid abanou a cabeça.— Só tenho saudades da minha filha.— Espero que o retrato sirva para alguma coisa.— É o quadro mais bonito que alguma vez vi. Mas tem de deixar que lho pague.Gabriel recusou com um gesto.— Então permita-me que lhe dê isto. — Khalid mostrou-lhe uma pen.— O que é?— Uma conta bancária na Suíça com cem milhões de dólares.— Tenho uma ideia melhor. Utilize esse dinheiro para fundar a Escola de Jornalismo Omar

Nawwaf em Riade para que a próxima geração de jornalistas, editores e fotógrafos árabes seforme. E depois dê-lhes a liberdade de escrever e publicar o que quiserem, à margem de que firaos seus sentimentos.

— De certeza que é a única coisa que quer?— Não — respondeu Gabriel. — Mas é um bom começo.— A verdade é que eu pensava começar por outra coisa. — Khalid voltou a guardar a pen no

bolso do casaco. — Há uma coisa que devo fazer antes de subir ao trono. E confiava queestivesse disposto a fazer de intermediário.

— De que se trata?Khalid explicou-lho.

— Não é muito difícil encontrá-la — disse Gabriel. — Só tem de lhe mandar um e-mail.— Já o fiz. Vários, na realidade. Mas não responde. Também não atende os meus telefonemas.— Não entendo porquê.— Talvez possa interceder por mim.— Porquê eu?— Parece entender-se bem com ela.— Eu não diria tanto.— Consegue arranjar?— Um encontro? — Gabriel negou com a cabeça. — É má ideia, Khalid.— Essa é a minha especialidade.— Está demasiado zangada. Deixe passar um tempo. Ou, melhor, deixe que eu trato disso.— Não conhece muito bem os árabes, pois não?— Aprendo mais a cada dia.— É uma parte essencial da nossa cultura — explicou Khalid. — Devo oferecer-lhe uma

compensação pessoalmente.— Quer dizer dinheiro manchado de sangue?— Não é uma forma muito subtil de expressá-lo, mas sim, dinheiro manchado de sangue.— O que tem de fazer é assumir a plena responsabilidade do que sucedeu em Istambul e tentar

que não volte a acontecer.— Não voltará a acontecer.— Isso diga-lho a ela, não a mim.— Penso fazê-lo.— Nesse caso — disse Gabriel —, farei o que me pede. Mas, se algo correr mal, pesará sobre

a sua consciência.— É um provérbio judeu? — Khalid olhou para o relógio. — É tarde, meu amigo. Acho que

está na hora de me ir embora.

NOTA DO AUTOR

A rapariga nova é uma obra de ficção e deve ser lida apenas como tal. Os nomes,personagens, lugares e factos descritos nesta história são produto da imaginação do autor ouforam ficcionados.

O Colégio Internacional de Genebra não existe e não deve confundir-se de modo algum com aÉcole Internationale Genève, a instituição fundada em 1924 com o apoio da Sociedade dasNações. Quem visitar o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque poderá apreciar inúmeras obrasde arte de um extraordinário valor, incluída a Noite estrelada de Van Gogh, mas não encontraránas suas salas a coleção Nadia al-Bakari. A história de Zizi e Nadia al-Bakari conta-se no meuprimeiro romance, A Mensageira, publicado em 2006, e na sua sequela de 2011, Retrato de umaEspia. Sarah Bancroft aparece em ambos, bem como em O Criado Secreto, As Regras deMoscovo e O Desertor. Apreciei o seu regresso ao mundo da espionagem tanto como ela.

Manipulei os horários de aviões e comboios conforme as necessidades do meu relato, bemcomo a data de certos factos reais. A descrição que faço do espantoso roubo dos arquivosnucleares iranianos por parte do Mossad é inteiramente fictícia e não se baseia em informaçãoalguma que eu tenha recebido de fontes israelitas ou americanas. Estou convencido de que oMossad não planeou nem supervisionou a operação real a partir do anódino edifício da AvenidaRei Saul, em Telavive, sede do meu Departamento imaginário. No capítulo sete do livro há umareferência não totalmente velada à verdadeira localização da sede do Mossad que, tal como amorada de Gabriel Allon na Narkiss Street, é um dos segredos menos bem guardados de Israel.

Não há nenhuma unidade antiterrorista francesa chamada Grupo Alpha, pelo menos tantoquanto sei. Um estabelecimento chamado Brasserie Saint-Maurice ocupa, efetivamente, o pisotérreo de um velho edifício do centro medieval de Annecy, e o popular Café Remor dá,efetivamente, para a Place du Cirque de Genebra. Ambos os lugares costumam estar desprovidosde agentes secretos e assassinos, tal como a encantadora pizaria Plein Sud, na Avenue duGénéral Leclerc de Carcassonne. Natural High é o nome de um complexo de lazer situado nabela localidade costeira holandesa de Renesse. Tanto quanto sei, Gabriel Allon e Rebecca Philbyjamais puseram lá os pés.

Não convém tentar reservar quartos no Hotel Bedford House nem no East Anglia Inn deFrinton-on-Sea porque não existem. Há, de facto, uma marina no rio Twizzle, em Essex, mas, seNikolai Azarov tivesse assassinado o segurança, os clientes do restaurante Harbour Lights teriam

sido testemunhas do assassínio. Pouco antes de entrar no Hotel Dorchester de Londres,Christopher Keller pediu emprestada uma citação da versão cinematográfica de 007 AgenteSecreto para descrever o poder de uma pistola Walther PPK. Os admiradores de F. ScottFitzgerald sem dúvida terão notado que Gabriel e Sarah Bancroft trocam duas frases tiradas de OGrande Gatsby enquanto jantam num italiano perto da esquina da Second Avenue com a EastSixty-Fourth Street, em Manhattan. Corre o boato de que o restaurante é o Primola, o meufavorito no Upper East Side.

É verdade que os visitantes do número 10 de Downing Street veem com frequência um gatocastanho e branco nas imediações da famosa porta preta. Chama-se Larry e foi-lhe concedido otítulo de caçador de ratos-mor do Gabinete. As minhas desculpas ao proprietário do número 7 deSt. Luke’s Mews, em Notting Hill, por converter o seu lar num andar seguro do MI6, e aosocupantes dos números 70 e 71 de Eaton Square por me servir desses magníficos imóveis comopalco para um assassínio russo. Estou convencido de que nenhum primeiro-ministro britânico ouchefe do MI6, se tivesse estado a par do complô, teria permitido que prosseguisse mesmo tendocomo resultado um desastre estratégico e diplomático para o presidente russo e respetivosserviços de espionagem.

Preferi não identificar o veneno radioativo empregue pelos meus assassinos russos fictícios.Contudo, as suas propriedades letais são muito parecidas às do polónio 210, o agente químicoradioativo usado em novembro de 2006 para matar Alexander Litvinenko, um ex-agente secretoe dissidente russo estabelecido em Londres. A pusilânime resposta da Grã-Bretanha ao uso deuma arma de destruição maciça no seu território nacional sem dúvida encorajou o Kremlin aservir-se de novo dos mesmos métodos para matar outro russo estabelecido no Reino Unido,Sergei Skripal, em março de 2018. Skripal, ex-oficial do GRU e agente duplo, sobreviveu depoisde ter sido exposto ao Novichok, um gás nervoso da era soviética. Já Dawn Sturgess, umamulher de quarenta e quatro anos e mãe de três filhos que vivia perto de Skripal, na localidade deSalisbury, morreu quatro meses após o ataque: outra vítima colateral da guerra contra adissidência empreendida pelo presidente russo Vladimir Putin. Como seria de esperar, Putinignorou o pedido de um dos filhos da falecida para que permitisse às autoridades britânicasinterrogar os dois suspeitos russos do assassínio.

O Real Centro de Dados de Riade não existe, mas sim algo muito parecido, e de nomeridículo: o Centro de Estudos e Assuntos da Informação da Corte Real. Dirigido por Saud al-Qahtani, cortesão e estreito colaborador do príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, o referidoorganismo comprou a sua primeira remessa de ciberarmamento a uma empresa italiana chamadaHacking Team. Posteriormente, contratou software e assessoria técnica à empresa DarkMatter,localizada nos Emirados, bem como à NSO Group, uma empresa israelita que, pelos vistos,emprega veteranos da Unidade 8200, o serviço de sinais e códigos dos serviços secretosisraelitas. Segundo o New York Times, a DarkMatter também contratou ex-membros da Unidade8200 e vários americanos que anteriormente tinham prestado serviços na CIA e na NSA. Defacto, um dos diretores da DarkMatter supostamente participou nalgumas das operações deciberespionagem mais destacadas da NSA.

Saud al-Qahtani não se encarregava apenas de supervisionar o Centro de Estudos e Assuntosda Informação. Também dirigia o Grupo de Intervenção Rápida saudita, o comando clandestinoresponsável pelo brutal assassínio e esquartejamento de Jamal Khashoggi, jornalista dissidentesaudita e colunista do Washington Post. Onze sauditas foram constituídos arguidos peloassassínio perpetrado no consulado saudita de Istambul em outubro de 2018. As autoridades

sauditas alegaram, entre outras coisas, que os assassinos agiram por conta própria. Porém, a CIAconcluiu que o assassínio se levou a cabo por ordem direta do príncipe herdeiro Mohammed binSalman.

Mais uma vez, o presidente Trump discordou das descobertas dos seus serviços secretos. Numcomunicado escrito, repetiu o que os sauditas tinham alegado: que Khashoggi era um «inimigodo Estado» e que fazia parte da Irmandade Muçulmana, parecendo absolver MBS de qualquerhipotética cumplicidade no assassínio do jornalista. «Há a possibilidade de que o príncipeherdeiro tivesse conhecimento deste trágico acontecimento: talvez sim e talvez não.» Opresidente acrescentou: «Em todo o caso, com quem nós temos relação é com o Reino da ArábiaSaudita».

Mas a Arábia Saudita não é uma democracia com instituições bem arraigadas. É uma dasúltimas monarquias absolutistas que há no mundo. E a não ser que haja outra mudança na linhasucessória, dentro de pouco será governada, talvez durante décadas, por Mohammed bin Salman,cuja imprudência já ficou demonstrada. O meu príncipe saudita imaginário, esse KBM educadono Ocidente e falante de inglês, em última análise era passível de redenção. Mas receio bem queMohammed bin Salman já não tenha remédio. Sendo certo que efetuou algumas reformastímidas, como conceder às mulheres o direito de conduzir, coisa há muito proibida no retrógradoreino saudita. Mas também reprimiu a dissidência com uma severidade ímpar na história recentedo país. MBS prometeu mudanças e só trouxe instabilidade à região e repressão dentro de portas.

Por enquanto, as relações entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita parecem congeladas, eMBS percorre o mundo à procura de amigos. O presidente chinês Xi Jinping recebeu-o emPequim no princípio de 2019. E numa cimeira do G20 que teve lugar em Buenos Aires, MBS eVladimir Putin cumprimentaram-se muito efusivamente. Uma fonte próxima do príncipeherdeiro contou-me que aquele cumprimento entusiasta era uma mensagem dirigida àqueles quecriticavam MBS dentro do Congresso dos Estados Unidos. Pretendia transmitir que a ArábiaSaudita já não dependia só dos americanos para se defender. A Rússia de Putin esperava nosbastidores sem fazer perguntas.

Há uma década, essa advertência implícita teria carecido de fundamento. Mas agora não. Aintervenção de Putin na Síria converteu de novo a Rússia numa potência a ter conta no MédioOriente, e os aliados tradicionais dos Estados Unidos tomaram nota. O pai de MBS, o reiSalman, fez uma única viagem ao estrangeiro. A Moscovo. O emir do Qatar humilhou o governode Trump ao fazer escala em Moscovo em vésperas da sua visita a Washington. O presidenteegípcio al-Sisi visitou Moscovo quatro vezes. As mesmas que Benjamin Netanyahu. InclusiveIsrael, o principal aliado dos Estados Unidos no Médio Oriente, está a diversificar as suasapostas na região. A Rússia de Putin é demasiado poderosa para que não se lhe preste atenção.

Mas poderia um monarca saudita quebrar o vínculo histórico que une o seu país com osEstados Unidos para optar pela Rússia? De certo modo, esse processo já começou: Mohammedbin Salman está inclinado a seguir o caminho de Moscovo. A relação dos Estados Unidos com aArábia Saudita nunca se baseou em valores comuns. O seu único fundamento é o petróleo. MBSsabe perfeitamente que os Estados Unidos, atualmente um grande produtor de energia, já nãoprecisa do petróleo saudita na mesma medida do que antes. A Rússia de Putin, em troca,encontrou um aliado disposto a ajudá-la a controlar o fornecimento global de petróleo e seuspreços, uma questão de fulcral importância. Também encontrou, caso seja necessário, umfornecedor de armamento e um valioso mediador para tratar com os xiitas iranianos. E, acaso omais importante, MBS pode estar certo de que o seu novo amigo nunca o criticará por matar um

jornalista intrometido. Afinal de contas, os russos são ótimos nisso.

AGRADECIMENTOS

Estou eternamente grato à minha esposa, Jamie Gangel, por me ouvir com paciência enquantotrabalhava no enredo e nos principais temas de A rapariga nova, e por corrigir depois o meuprimeiro rascunho, tudo isso enquanto cobria os acontecimentos extraordinários de Washingtoncomo enviada especial da CNN. Não teria podido finalizar o manuscrito na data prevista se nãofosse pelo seu apoio e minúcia. A minha dívida para com ela é imensa, tal como o meu amor.

Falei com vários agentes secretos israelitas e americanos, bem como com diversos políticos, arespeito da situação que se vive atualmente na Arábia Saudita. Também recebi uma valiosaassessoria de fontes próximas do príncipe herdeiro Mohammed bin Salman. Agradeço-lhesanonimamente, como é seu desejo.

Estou imensamente grato a David Bull por me assessorar em questões de pintura e restauro.Bob Woodward ajudou-me a entender as emaranhadas relações da Casa Branca de Trump com ocaprichoso príncipe herdeiro saudita. Andrew Neil foi uma fonte indispensável de informaçõessobre a tumultuosa política britânica e as tendências emergentes no Médio Oriente, e Tim Collinsexplicou-me os desafios económicos aos quais se enfrenta a Arábia Saudita numa linguagem queeu pudesse entender.

Consultei centenas de artigos de jornais e revistas enquanto escrevia A rapariga nova,demasiados para serem aqui mencionados. Estou especialmente em dívida para com os corajososjornalistas e editores do Washington Post que assumiram a nada invejável tarefa de cobrir oassassínio de um colega muito querido. Fizeram-no com um extraordinário sentido profissional,demonstrando de novo por que motivo um jornalismo de qualidade é essencial para o bomfuncionamento da democracia.

Louis Toscano, meu grande amigo e editor de longa data, introduziu inúmeras melhorias nesteromance. Kathy Crosby, a minha revisora pessoal com olhar de lince, garantiu que o textoestivesse isento de erros tipográficos e gramaticais. Quaisquer erros que tenham escapado àagudeza formidável de ambos são da minha exclusiva responsabilidade.

Somos abençoados com familiares e amigos que preenchem as nossas vidas com amor e risoem momentos críticos do ano literário, especialmente Jeff Zucker, Phil Griffin, Andrew Lack,Elsa Walsh, Michael Gendler, Ron Meyer, Jane e Burt Bacharach, Stacey e Henry Winkler,Maurice Tempelsman e Kitty Pilgrim, Nancy Dubuc e Michael Kizilbash, Susanna Aaron e GaryGinsburg e Cindi e Mitchell Berger. Os meus filhos, Lily e Nicholas, têm sido uma fonte

constante de apoio e inspiração. Para entender melhor o que implica conviver com um escritorstressado com um prazo de entrega, recomendo ver a cena do pequeno-almoço do filme LinhaFantasma.

Finalmente, obrigado de todo o coração à fabulosa equipa da HarperCollins, em especial aBrian Murray, Jonathan Burnham, Jennifer Barth, Doug Jones, Leah Wasielewski, MarkFerguson, Leslie Cohen, Robin Bilardello, Milan Bozic, David Koral, Leah Carlson-Stanisic,William Ruoto, Carolyn Robson, Chantal Restivo-Alessi, Frank Albanese, Josh Marwell, SarahRied e Amy Baker.

Se gostou deste livro, também gostará desta apaixonante história que cativa desde a

primeira até à última página.

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