Saco de Ossos - VISIONVOX

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Transcript of Saco de Ossos - VISIONVOX

CréditosCopyright © Stephen King, 1998Publicado mediante acordo com o autor atravésde Ralph M. Vicinanza, Ltd.

Todos os direitos desta edição reservados àEDITORA OBJETIVA LTDA.Rua Cosme Velho, 103Rio de Janeiro – RJ – Cep: 22241-090Tel.: (21) 2199-7824 – Fax: (21) 2199-7825www.objetiva.com.br

Título originalBag of Bones

CapaDesign original de capa © 2012 A&E TelevisionNetworks, LLC.Todos os direitos reservados.Adaptação de Rodrigo Rodrigues a partir dopôster original da minissérie Saco de ossos,cedido pela A&E Television Networks, LLC.

Revisão

Umberto Figueiredo PintoIzabel Cristina AleixoSandra PássaroFatima Fadel

Coordenador de e-bookMarcelo Xavier

Conversão para e-bookAbreu’s System Ltda.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DELIVROS, RJK64sKing, StephenSaco de ossos [recurso eletrônico] / StephenKing ; tradução Myriam Campello. - Rio deJaneiro : Objetiva, 2012.recurso digitalTradução de: Bag of bones

Formato: ePubRequisitos do sistema: Adobe Digital EditionsModo de acesso: World Wide Web531p. ISBN 978-85-8105-109-3 (recursoeletrônico)1. Ficção americana. 2. Livros eletrônicos. I.Campello, Myriam. II. Título.12-5165 CDD: 813CDU: 821.111(73)-3

Dedicatória

Para Naomi.Ainda.

EpígrafeSim, Bartleby, continue aí atrás deseu biombo, pensei; não operseguirei mais; você é inofensivoe silencioso como uma dessascadeiras velhas; em suma, nuncame sinto tão solitário como quandosei que está aqui.

Na noite passada sonhei que fui aManderley de novo... Enquantopermaneci ali, silenciosa e imóvel,podia jurar que a casa não era umaconcha vazia, mas vivia e respiravacomo antes.

Marte é o céu.RAY BRADBURY

Nota do Autor

Até certo ponto, este romance lidacom os aspectos legais da custódiainfantil no Estado do Maine. Paracompreender esse assunto, pediajuda a meu amigo Warren Silver,um ótimo advogado. Warren meguiou cuidadosamente e, ao longodo caminho, também me contousobre um velho e singulardispositivo chamado Stenomask,1do qual me apropriei

imediatamente para meus objetivosferozes. Cometi erros processuaisna história que se segue, culpaminha, não de minhas fontes legais.Warren também me perguntou —queixosamente — se eu nãopoderia talvez colocar um advogado“bom” no meu livro. Posso dizerapenas que fiz o melhor possívelquanto a isso.

Agradeço a meu filho Owen porseu apoio técnico em Woodstock,Nova York, e a meu amigo (ecompanheiro na banda Rock BottomRemainder) Ridley Pearson, peloapoio técnico em Ketchum, Idaho.Agradeço a Pam Dorman por sua

leitura solidária e perceptiva doprimeiro rascunho. Agradeço aChuck Verrill por um monumentaltrabalho de edição — o melhor quejá fez, Chuck. Obrigado a SusanMoldow, Nan Graham, JackRomanos e Carolyn Reidy, daScribner, pelo carinho e peloscuidados. E agradeço a Tabby, queestava comigo mais uma vezquando as coisas ficaram difíceis.Eu te amo, meu bem.

S. K.

1 A Stenomask é uma máscara de boca commicrofone embutido. Sua finalidade é permitir quese fale sem ser ouvido por outras pessoas e, aomesmo tempo, que o barulho do ambiente nãoseja captado pelo microfone.

Capítulo Um

Num dia muito quente de agosto de1994, minha esposa disse que ia àfarmácia Rite Aid, de Derry, paracomprar o refil do remédioreceitado para sua sinusite — éuma coisa que se pode comprar nobalcão atualmente, penso eu. Comojá tinha parado de escrever naqueledia, eu me ofereci para buscar oremédio. Ela agradeceu, mas, comotambém queria comprar peixe no

supermercado ao lado, seriam doiscoelhos com uma cajadada só.Soprou-me um beijo que haviadepositado na palma da mão esaiu. Quando a vi novamente foi naTV. É assim que identificamos osmortos aqui em Derry — nada decaminhar por um corredorsubterrâneo com azulejos verdesnas paredes e compridas lâmpadasfluorescentes lá em cima, nada deum corpo nu deslizando sobrerolamentos para fora de umagaveta fria; simplesmente se entranuma sala com a placa PRIVATIVO,olha-se numa tela de TV e se dizsim ou não.

A Rite Aid e o Shopwell ficam amenos de 1,5 quilômetro da nossacasa, num pequeno centrocomercial onde há também umalocadora, um sebo chamado SpreadIt Around (eles negociamrapidamente velhas edições embrochura dos meus livros), umaRadio Shack e uma Fast Foto. Ficana Up-Mile Hill, no cruzamento daWitcham com a Jackson.

Ela estacionou em frente àBlockbuster, entrou na farmácia efoi atendida por Joe Wyzer, ofarmacêutico naquela época; desdeentão ele se mudou para a Rite Aidde Bangor. No caixa, ela pegou um

daqueles pequenos chocolatesrecheados de marshmallow, com oformato de um ratinho. Encontrei-odepois em sua bolsa. Eu mesmo odesembrulhei e o comi, sentado àmesa da cozinha, com o conteúdode sua bolsa vermelha espalhadona minha frente. Foi como recebera comunhão. Quando a sensaçãodesapareceu, exceto pelo gosto dochocolate na minha língua e naminha garganta, irrompi emlágrimas. Fiquei ali ante a confusãode Kleenex, maquiagem, chaves euma embalagem meio vazia deCerts, e chorei com as mãos sobreos olhos, como uma criança.

O inalador para sinusite estavana sacola da Rite Aid. Tinhacustado 12,18 dólares. Havia algomais na sacola — um item quecustou 22,50 dólares. Eu o olhei pormuito tempo, vendo-o mas sementendê-lo. Fiquei surpreso e talvezaté atordoado, mas a ideia de queJohanna Arlen Noonan pudesseestar levando outra vida, uma daqual eu não tinha qualquerconhecimento, jamais me ocorreu.Não naquela época.

Jo passou pelo caixa e saiunovamente para o sol radiante e

escaldante, trocando os óculos poroutros, de sol mas também degrau. Exatamente quando deixava aproteção da pequena marquise dafarmácia (acho que aqui estouimaginando, invadindo um pouco ocampo do romancista, mas nãomuito; apenas alguns centímetros,pode acreditar nisso), houve aqueledetestável ruído de carro cantandopneu, significando que aconteceriaum acidente ou algo muito próximodisso.

Dessa vez aconteceu — o tipo deacidente que parecia ocorrernaquele estúpido cruzamento emforma de X pelo menos uma vez por

semana. Um Toyota 1989 deixava oestacionamento do shopping evirava à esquerda para a ruaJackson. Ao volante estava a sra.Esther Easterling, de Barrett’sOrchards, acompanhada por suaamiga, a sra. Irene Deorsey,também de Barrett’s Orchards, quetinha passado pela videolocadorasem encontrar nada que quisessealugar. Violência demais, disseIrene. Ambas eram viúvas defumantes.

Dificilmente Esther não teriavisto o caminhão basculante deobras públicas cor de laranjadescendo a ladeira; embora o

negasse à polícia, ao jornal e amim; quando conversamos, unsdois meses depois, achei maisprovável que tenha apenasesquecido de olhar. Como minhaprópria mãe (outra viúva defumante) costumava dizer: “As duasdoenças mais comuns nos idosossão artrite e esquecimento. E elesnão podem ser responsabilizadosnem por uma nem por outra.”

Dirigindo o caminhão de obraspúblicas estava William Fraker, deOld Cape. O sr. Fraker tinha 38anos no dia da morte de minhaesposa, dirigia sem camisa epensava no quanto precisava de

uma chuveirada fria e de umacerveja gelada, nãonecessariamente nessa ordem. Elee outros três homens passaram oitohoras despejando asfalto paraemendar a extensão da avenidaHarris, perto do aeroporto. Umtrabalho quente num dia quente, eBill Fraker disse que sim, podiaestar indo um pouco rápido demais— talvez a 60 quilômetros por horanuma zona de 50. Ansiava porchegar à garagem, entregar ocaminhão e voltar ao volante desua própria F-150 com ar-condicionado. Além disso, os freiosdo caminhão, apesar de bons o

bastante para passar pela inspeção,estavam longe de sua melhorforma. Fraker pisou neles assim queviu o Toyota atravessar à sua frente(apertou a buzina também), mas foitarde demais. Ouviu os pneusguincharem — os seus e os deEsther, enquanto ela percebiatardiamente o perigo — e viu orosto dela por apenas um instante.

— De certo modo aquilo foi opior — disse-me ele quandoestávamos sentados em suavaranda, tomando cerveja. Eraoutubro então, e embora o solquente se derramasse em nossosrostos, usávamos suéteres. — O

senhor sabe a que altura a gentefica nesses caminhões basculantes?

Assenti com a cabeça.— Bom, ela estava olhando para

cima para me ver — esticando opescoço, como se pode dizer — e osol batia em cheio em seu rosto.Notei como era velha. Lembro-mede pensar: “Puta que pariu, ela vaise quebrar como vidro se eu nãoconseguir parar.” Mas os velhosgeralmente são duros, na maioriados casos. Podem nos surpreender.Quer dizer, olhe só o resultado, asduas velhotas ainda estão vivas, esua esposa...

Então parou de falar, o rosto

invadido por um vermelho vivo queo fazia parecer um garoto de quemas garotas tivessem rido no pátiodo colégio por notarem que suabraguilha estava aberta. Eracômico, mas, se eu sorrisse, apenaso deixaria confuso.

— Sr. Noonan, desculpe. Minhalíngua foi mais rápida do que eu.

— Tudo bem — respondi. — Opior já passou, de qualquer modo.— Era uma mentira, mas noscolocou nos trilhos novamente.

— Seja como for — disse ele —,batemos. Houve um barulho alto eum som de alguma coisa sendotriturada quando a lateral do carro,

do lado do motorista, afundou. E devidro quebrado também. Fui jogadocontra o volante com tanta forçaque não consegui respirar sem dorpor uma semana ou mais, e fiqueicom um grande hematoma bemaqui. — Ele desenhou um arco nopeito logo abaixo das clavículas. —Bati a cabeça no para-brisa comforça suficiente para quebrar ovidro, mas só arranjei um pequenocalombo roxo... nenhumsangramento nem dor de cabeça.Minha esposa diz que tenho umacabeça dura de verdade. Vi quandoa mulher dirigindo o Toyota, sra.Easterling, foi atirada por sobre o

console entre os bancos da frente.Então, finalmente, paramos,emaranhados no meio da rua, e saípara ver o quanto tinham semachucado. Vou te dizer, achei queia encontrá-las mortas.

Nenhuma das duas estavamorta, nenhuma das duas estavasequer inconsciente, embora a sra.Easterling tivesse quebrado trêscostelas e deslocado o quadril. Asra. Deorsey, que estava a umbanco de distância do impacto,sofreu uma concussão ao bater acabeça na janela. Isso foi tudo; elafoi “atendida no Home Hospital eliberada logo em seguida”, como o

Derry News sempre dizia nessescasos.

Minha esposa, quando solteiraJohanna Arlen de Malden, deMassachusetts, viu tudo aquilo deonde estava, do lado de fora dafarmácia, com a bolsa penduradano ombro e a sacola com o remédionuma das mãos. Como Bill Fraker,deve ter pensado que as ocupantesdo Toyota estavam mortas ouseriamente feridas. O som dacolisão, um estrondo oco ecategórico, rolou pelo ar quente datarde como uma bola de bolichepela raia. O ruído de vidroquebrando o acompanhou como se

fossem gumes irregulares sechocando. Os dois veículos ficaramviolentamente entrelaçados nomeio da rua Jackson, o caminhãocor de laranja, sujo, pairava sobre ocarro importado azul-claro como umpai intimidador sobre uma criançaencolhida.

Johanna disparou peloestacionamento em direção à rua. Àsua volta, outros faziam o mesmo.Uma delas, a srta. Jill Dunbarry,olhava a vitrine na Radio Shackquando o acidente ocorreu. Disseque acreditava lembrar-se depassar correndo por Johanna —pelo menos estava bastante segura

de se lembrar de alguém comcalças largas amarelas —, mas nãopodia ter certeza. Naquelemomento, a sra. Easterling gritavaque estava ferida, as duas estavamferidas, ninguém a ajudaria e a suaamiga Irene?

A meio caminho doestacionamento, perto do pequenoquiosque de jornais, minha mulhercaiu. A bolsa permanecia em seuombro, mas a sacola de remédiotinha escorregado de sua mão e oinalador ficou um pouco para fora.O outro artigo ficou no lugar.

Ninguém a notou deitada ali,junto ao quiosque de jornais; todos

focalizavam os veículosemaranhados, as mulheresgritando, a poça de água eanticongelante do radiadorquebrado do caminhão de obraspúblicas que se espalhava. (“Égasolina!”, gritou o balconista daFast Foto para quem quisesse ouvir.“É gasolina, cuidado para ela nãoexplodir, pessoal!”) Imagino queum ou dois dos supostos salvadorespossam ter pulado por cima dela,talvez achando que tivessedesmaiado. Tal raciocínio num diaem que a temperatura chegava a35 graus não seria de espantar.

Mais ou menos duas dúzias de

pessoas do shopping seaglomeraram em torno do acidente;outras cinquenta ou mais saíramcorrendo do Strawford Park, ondeacontecia um jogo de beisebol.Imagino que muitas coisas que seespera ouvir em tais situaçõesforam ditas, algumas mais de umavez. Numa confusão. Alguémestendendo a mão pelo buracodisforme que tinha sido a janela dolado do motorista para dar umtapinha tranquilizador na velha mãotrêmula de Esther. Pessoasimediatamente abrindo caminhopara Joe Wyzer; em tais momentos,qualquer um que use um jaleco

branco automaticamente se torna abela do baile. A distância, o som deuma sirene de ambulânciaerguendo-se como ar rarefeitosobre um incinerador.

Durante todo esse tempo, minhamulher estava no estacionamento,caída e despercebida, com a bolsaainda pendurada no ombro (dentrodela, ainda embrulhado no papellaminado, o ratinho de chocolaterecheado com marshmallow quenão foi comido) e a sacola brancade remédio perto da mãoestendida. Foi Joe Wyzer, ao voltarcorrendo à farmácia a fim de pegaruma compressa para a cabeça de

Irene Deorsey, que a enxergou.Reconheceu-a, embora elaestivesse com o rosto para baixo.Reconheceu-a pelo cabelo ruivo, ablusa branca e a calça largaamarela. Reconheceu-a porque aatendera havia menos de 15minutos.

— Sra. Noonan? — disse ele,esquecendo-se completamente dacompressa para a desnorteada,mas aparentemente não muitomachucada, Irene Deorsey. — Sra.Noonan, a senhora está bem? — Jásabendo que não estava (ou assimsuspeito; talvez eu esteja errado).

Então ele a virou. Teve que usar

as duas mãos para fazê-lo, emesmo assim foi obrigado a seesforçar, ajoelhando-se,empurrando-a e erguendo-a ali noestacionamento, com o calorimpiedoso vindo de cima eemanando também do asfalto. Osmortos engordam, me parece;tanto na carne quanto na mente,ficam mais pesados.

Havia marcas vermelhas no rostode Jo. Quando a identifiquei, pudevê-las nitidamente mesmo nomonitor do vídeo. Comecei aperguntar ao médico-legistaassistente o que eram, mas soubelogo. Final de julho, chão quente —

elementar, meu caro Watson.Minha mulher morreu pegando umbronzeado.

Wyzer se levantou, viu que aambulância tinha chegado e correuem sua direção. Abriu caminho pelamultidão e agarrou um dosatendentes quando este deixou ovolante.

— Tem uma mulher ali — disseWyzer, apontando para oestacionamento.

— Cara, temos duas mulheres láe um homem também — disse oatendente. Ele tentou se soltar e irembora, mas Wyzer insistiu.

— Eles não importam agora —

disse. — De modo geral estão bem.Aquela mulher ali não está.

A mulher ali estava morta, etenho quase certeza de que JoeWyzer sabia disso... mas tinha queobedecer às suas prioridades.Vamos lhe conceder o mérito. E foiconvincente o bastante para quedois paramédicos se afastassem daconfusão do caminhão com oToyota, apesar dos gritos de dor deEsther Easterling e do coro derumores de protesto.

Quando chegou até minhaesposa, um dos paramédicosconfirmou rapidamente o que JoeWyzer já suspeitava.

— Puta que pariu — disse ooutro. — O que aconteceu com ela?

— Provavelmente coração —disse o primeiro. — Ficou agitada eele simplesmente explodiu.

Mas não foi o coração. Aautópsia revelou um aneurismacerebral com o qual poderia estarvivendo sem saber havia cincoanos. Quando disparou peloestacionamento em direção aoacidente, aquele vaso frágil em seucórtex cerebral estourou como umpneu, afogando de sangue seuscentros de controle e matando-a. Amorte provavelmente não foiinstantânea, disse-me o legista

assistente, mas mesmo assimocorreu de forma bastante rápida...e ela não teria sofrido. Apenas umanévoa grande e negra, e todasensação e todo pensamentodesapareceram antes de ela atingiro chão.

— Posso ajudá-lo de algumaforma, sr. Noonan? — perguntou olegista assistente, afastando-mesuavemente do rosto imóvel e dosolhos fechados no monitor de vídeo.

— O senhor quer fazerperguntas? Eu responderei sepuder.

— Só uma — disse. E lhe contei oque ela tinha comprado na farmácia

pouco antes de morrer. Então fizminha pergunta.

Os dias que levaram ao funeral e opróprio funeral são como um sonhoem minha memória — a lembrançamais clara que tenho é de comer oratinho de chocolate de Jo echorar... chorar principalmente, euacho, porque sabia que o sabordele logo desapareceria. Tive outracrise de choro alguns dias depoisque a enterramos, e vou falarresumidamente sobre isso.

Eu estava contente com achegada da família de Jo,

especialmente com a de seu irmãomais velho, Frank. Foi Frank Arlen— de 50 anos, bochechasvermelhas, corpulento e com umviçoso cabelo escuro — quemtomou as providências... quem, narealidade, acabou pechinchandocom o agente funerário.

— Não posso acreditar que tenhafeito isso — eu disse depois,enquanto sentávamos numreservado do Jack’s Pub, tomandocerveja.

— Ele estava tentando tirarvantagem de você, Mikey — disseele. — Detesto sujeitos assim. —Colocou a mão no bolso de trás,

puxou um lenço e, distraído,enxugou o rosto. Ele nãodesmoronou — nenhum dos Arlendesmoronou, pelo menos nãoquando eu estava com eles —, maschorou o dia inteiro; parecia alguémcom uma forte conjuntivite.

No total eram seis irmãos Arlen;Jo era a mais nova e a únicamulher, a queridinha dos irmãosmais velhos. Suspeito que se eutivesse tido algo a ver com a mortedela os cinco teriam me dilaceradocom as próprias mãos. Naquelasituação, em vez disso, formaramum escudo protetor à minha volta,e foi bom. Acho que eu poderia ter

me virado com tudo aquilo semeles, mas não sei como. Eu tinha 36anos, lembre-se. Não se espera terque enterrar a esposa quando setem 36 anos e ela é apenas doisanos mais nova. Morte é a últimacoisa que passa pela nossa cabeça.

— Se um cara é flagrado tirandoo rádio do seu carro, chamam issode roubo e o põem na cadeia —disse Frank. Os Arlen tinham vindode Massachusetts, e eu ainda podiaouvir o sotaque de Malden na vozde Frank: carro era caárr, chamamera chaáma. — Se o mesmo caraestá tentando vender um caixão de3 mil dólares por 4.500 para um

marido sofrendo, chamam isso denegócio e pedem ao cara para falarno almoço do Rotary Club. Babacaganancioso, dei a ele o quemerecia, não é?

— É. Deu, sim.— Você está bem, Mikey?— Estou.— Bem mesmo?— Que merda, como é que vou

saber? — eu disse, num tom alto osuficiente para que algumascabeças do reservado ao lado sevirassem para nós. — Ela estavagrávida.

Seu rosto ficou imóvel.— O quê?

Lutei para manter minha vozbaixa.

— Grávida. Seis ou setesemanas, segundo o... você sabe, aautópsia. Você sabia? Ela tecontou?

— Não! Deus do céu, não! — Mashavia uma expressão engraçada emseu rosto, como se Jo lhe tivessecontado algo. — Sabia que estavamtentando, claro... ela me disse quesua contagem de espermatozoideera baixa e que poderia levar algumtempo, mas o médico achava quevocês provavelmente... mais cedoou mais tarde provavelmente... —Diminuiu de intensidade, olhando

para as mãos. — Eles podem saberisso, hein? Checam isso?

— Podem saber. Quanto achecar, não sei se fazem issoautomaticamente. Eu pedi.

— Por quê?— Ela não comprou apenas

remédio de nariz antes de morrer.Comprou também um daqueles kitspara teste de gravidez em casa.

— Você não tinha nenhumaideia? Nenhuma pista?

Balancei a cabeça.Ele estendeu a mão por cima da

mesa e apertou meu ombro.— Ela queria ter certeza, só isso.

Você sabe, não é?

Comprar o refil do remédio parasinusite e peixe, disse ela. Com aaparência de sempre. Uma mulherque sai para fazer duas coisas.Tentávamos ter um filho havia oitoanos, mas ela estava com aaparência de sempre.

— Claro — disse, dando umtapinha na mão de Frank. — Claro,rapaz. Eu sei.

Foram os Arlen — liderados porFrank — que organizaram o velóriode Johanna. Como escritor dafamília, eu estava encarregado doobituário. Meu irmão veio da

Virgínia com minha mãe e minhatia, e permitiram que tomasseconta do livro de convidados novelório. Quase completamente gagáaos 66 anos, embora os médicos serecusassem a admitir que elaestava com Alzheimer, minha mãemorava em Memphis com a irmãdois anos mais jovem que ela eapenas ligeiramente menosvacilante. Foram encarregadas decortar o bolo e as tortas narecepção do funeral.

Todo o resto foi organizado pelosArlen, das horas de velório aoscomponentes da cerimônia dofuneral. Frank e Victor, o segundo

irmão mais novo, fizeram umabreve homenagem. O pai de Joofereceu uma prece pela alma dafilha. E, no final, Pete Breedlove, ogaroto que cortava nossa grama noverão e varria o pátio no outono,levou todos às lágrimas cantando“Blessed Assurance”, que Frankdisse ter sido o hino favorito de Joquando menina. Como Frankencontrou Pete e o persuadiu acantar no funeral é algo que jamaisdescobri.

Atravessamos aquilo tudo — ovelório da tarde e da noite de terça,o funeral da manhã de quarta,depois a oração no cemitério de

Fairlawn. Lembro-me de pensar,sobretudo, em como estava quente,como me sentia perdido sem ter Jopara conversar, e em como gostariade ter comprado um novo par desapatos. Se estivesse ali, Jo teriame atormentado mortalmentesobre os que eu estava usando.

Mais tarde, conversei com meuirmão Sid e lhe disse que tínhamosque fazer algo a respeito de mamãee de tia Francine antes que as duasdesaparecessem completamente nazona do crepúsculo. Eram jovensdemais para uma casa de repouso.O que é que Sid aconselhava?

Sid recomendou algo, mas não

faço ideia do que foi. Lembro queconcordei, mas não sei com o quê.Mais tarde naquele dia, Siddy,minha mãe e tia Francine entraramnovamente no banco de trás docarro que meu irmão alugou para aviagem até Boston, onde passariama noite e então pegariam o trem daSouthern Crescent no dia seguinte.Meu irmão fica bastante feliz deacompanhar as velhinhas, mas nãoanda de avião, mesmo que eupague as passagens. Alega que, seo motor quebrar, não háacostamentos no céu.

A maioria dos Arlen partiu no diaseguinte. Mais uma vez estava um

calor infernal, o sol ofuscante vindode um céu branco e opacoacachapava tudo como bronzederretido. Ficaram de pé em frenteà nossa casa — que se tornaraapenas minha então —, com trêstáxis alinhados junto ao meio-fiopor trás deles, grandes edesajeitados, abraçando-se entre siem meio à confusão de sacolas edespedindo-se naquele nebulososotaque de Massachusetts.

Frank ficou mais um dia.Colhemos um grande ramo deflores atrás da casa — não aquelascoisas de estufa de cheiro medonhocujo perfume sempre associo à

morte e música de órgão, e simflores verdadeiras, do tipo que Jomais gostava — e as colocamos emduas latas vazias de café queencontrei na despensa dos fundos.Fomos para Fairlawn e ascolocamos no túmulo novo. Depoissimplesmente ficamos ali por umtempo, sob o sol escaldante.

— Jo sempre foi a coisa maisdoce da minha vida — disse Frankfinalmente, numa estranha vozabafada. — Nós tomávamos contadela quando éramos garotos. Nós,rapazes. Ninguém se metia comela, posso te dizer. Qualquer umque tentasse tinha o que merecia.

— Ela me contou várias histórias.— Boas?— É, boas mesmo.— Vou sentir demais a falta dela.— Eu também — falei. — Frank...

escute... sei que você era seu irmãofavorito. Ela nunca ligou para você,talvez para dizer que não ficoumenstruada naquele mês, ou quese sentia enjoada pela manhã?Pode dizer. Não vou ficar chateado.

— Mas ela não ligou. Palavra dehonra. Ela estava enjoada demanhã?

— Não que eu tivesse notado. —E era isso mesmo. Eu não noteinada. Claro que eu estava

escrevendo, e quando escrevopraticamente entro em transe. Masela sabia quando eu estava numdesses transes. Poderia ter ido aomeu encontro e me sacudido até euacordar. Por que não o fez? Por queesconderia a boa notícia? Nãoquerer me contar até ter certezaera plausível... mas, de certo modo,não parecia com Jo.

— Era menino ou menina? —perguntou ele.

— Menina.Havíamos escolhido os nomes e

esperado durante a maior parte denosso casamento. Um menino seriaAndrew. Nossa filha seria Kia. Kia

Jane Noonan.

Frank, divorciado havia seis anos esozinho, ficou comigo. Ao voltarmospara casa, ele disse:

— Eu me preocupo com você,Mikey. Você não tem uma famíliaem que se apoiar numa horadessas, e a que tem está distante.

— Vou ficar bem.Ele concordou com a cabeça.— É isso que nós dizemos, de

qualquer modo, não é?— Nós?— Homens. “Vou ficar bem.” E

quando não ficamos, tentamos

fazer com que ninguém saiba. —Ele olhou para mim, os olhos aindamarejados, o lenço na mão grandee bronzeada. — Se você não ficarbem, Mikey, e não quiser chamarseu irmão, vi a maneira como vocêolhou para ele, me deixe ser seuirmão. Se não por sua causa, pelomenos por Jo.

— Tudo bem — eu disse,respeitando o oferecimento e gratopor ele, sabendo também que nãofaria tal coisa. Não peço ajuda àspessoas. Não é pelo modo como fuicriado, pelo menos acho que não; épelo modo como fui feito. Johannadisse certa vez que se eu estivesse

me afogando em Dark Score Lake,onde temos uma casa de veraneio,eu ia preferir morrersilenciosamente a 15 metros dapraia pública do que gritar porsocorro. Não é uma questão deamor ou afeição. Consigo dar osdois e também recebê-los. Sintodor, como qualquer outra pessoa.Preciso tocar e ser tocado. Mas, sealguém me pergunta “Você estábem?”, não consigo dizer não. Nãoconsigo dizer “ajude-me”.

Umas duas horas depois Frankpartiu para o extremo sul doestado. Quando abriu a porta docarro, fiquei comovido de ver que a

gravação que ouvia era de um dosmeus livros. Ele me abraçou, depoisme surpreendeu com um beijo naboca, um duro beijo estalado.

— Se precisar conversar, ligue —disse ele. — E se precisar estar comalguém, simplesmente venha.

Concordei com a cabeça.— E tenha cuidado.Aquilo me espantou. A

combinação de calor e dor tinha mefeito sentir como se estivessevivendo num sonho nos últimosdias, mas aquilo conseguiupenetrar.

— Cuidado com quê?— Não sei — disse ele. — Não

sei, Mikey. — Então entrou nocarro, ele era tão grande e o carrotão pequeno que parecia vesti-lo, efoi embora. O sol estava se pondo.Sabe quando o sol fica no final deum dia quente de agosto, todolaranja e de algum modo achatado,como se uma mão invisível oapertasse de cima para baixo e aqualquer momento ele pudesseestourar como um mosquitosuperalimentado e se espalhar portodo o horizonte? Estava assim. Noleste, já escuro, trovõesribombavam. Mas não houve chuvanaquela noite, apenas umaescuridão que desceu tão espessa e

sufocante como um cobertor.Mesmo assim, me instalei em frenteao processador de texto e escrevipor mais ou menos uma hora.Estava tudo muito bem, eu melembro. E mesmo quando não estábem, você sabe, ajuda a passar otempo.

Minha segunda crise de chorosurgiu três ou quatro dias depois dofuneral. Aquela sensação de estarnum sonho continuava — euandava, falava, atendia ao telefone,trabalhava em meu livro, queestava cerca de oitenta por cento

concluído quando Jo morreu —, masdurante todo o tempo tinha a clarasensação de desconexão, umasensação de que tudo estavaocorrendo a uma distância do meuverdadeiro eu, que eu estava maisou menos me comunicando com elepor telefone.

Denise Breedlove, mãe de Peter,ligou e perguntou se eu nãogostaria que ela trouxesse duasamigas num dia da semanaseguinte e que fizesse com elasuma boa faxina na grande e velhaconstrução eduardiana, onde agoraeu morava sozinho — rolando nelacomo a última ervilha numa lata

gigante. Elas o fariam até por cemdólares divididos entre as três,disse, e principalmente porque nãoera bom para mim ficar sem afaxina. Depois de uma morte temque haver uma limpeza, disse,mesmo que a morte não tenhaacontecido na casa.

Respondi que era uma ótimaideia, mas que pagaria cem dólarespara cada uma por seis horas detrabalho. No final de seis horas,queria o trabalho feito. E se nãoestivesse, eu disse, de qualquermaneira estaria feito.

— Sr. Noonan, é dinheiro demais— disse ela.

— Talvez sim, talvez não, mas éo que estou pagando. A senhora fazo trabalho?

Ela disse que sim, é claro quefaria.

Talvez previsivelmente, eu me vipercorrendo a casa na noite antesde elas chegarem, fazendo umainspeção pré-faxina. Acho que nãoqueria as mulheres (duas das quaistotalmente desconhecidas paramim) encontrando algo que medeixasse constrangido, ou a elas:talvez calcinhas de seda deJohanna atrás das almofadas dosofá (“Nós geralmente acabamosno sofá, Michael”, disse ela uma

vez, “já reparou?”.), ou latas decerveja sob a poltrona para duaspessoas no solário, talvez até umvaso sanitário sem a descargaapertada. Na verdade, não possolhe dizer exatamente o que estavaprocurando; a sensação defuncionar num sonho aindamantinha um firme controle deminha mente. Os pensamentosmais claros que tive naqueles diaseram sobre o final do romance queestava escrevendo (o assassinopsicótico tinha atraído a heroínapara um edifício alto e pretendiaempurrá-la do telhado) ou sobre oteste de gravidez que Jo tinha

comprado no dia em que morreu.Receita para remédio de nariz,disse ela. Peixe para o jantar. Eseus olhos não haviam mostradonenhuma outra coisa que euprecisasse olhar duas vezes.

Perto do fim de minha “pré-faxina”,olhei debaixo de nossa cama e vium livro aberto no lado de Jo. Nãofazia muito tempo que ela tinhamorrido, mas poucos territóriosdomésticos são tão empoeiradosquanto o Reino Debaixo da Cama, ea leve cobertura cinzenta que vi nolivro quando o puxei me fez pensar

no rosto e nas mãos de Johanna nocaixão — Jo no Reino Subterrâneo.Ela foi parar dentro de um caixãoempoeirado? Certamente não,mas...

Expulsei o pensamento. Elefingiu sumir, mas durante o diainteiro continuou rastejando devolta, como o urso branco deTolstoi.

Johanna e eu nos especializamosem inglês na Universidade do Mainee, como muitos outros, suponho,nos apaixonamos ao som deShakespeare e do cinismo deTilbury Town, de Edwin ArlingtonRobinson. Entretanto, o escritor que

mais nos uniu não foi um poeta ouensaísta benquisto pelasfaculdades, e sim W. SomersetMaugham, o idoso romancista-dramaturgo-viajante com rosto deréptil (aparentemente sempreobscurecido pela fumaça do cigarronas fotos) e coração de romântico.Portanto, não me surpreendeumuito descobrir que o livro sob acama fosse Um gosto e seisvinténs. Eu o li duas vezes no finalda adolescência, identificando-meapaixonadamente com opersonagem Charles Strickland. (Oque eu queria fazer nos Mares doSul era escrever, claro, não pintar.)

Jo vinha utilizando uma carta dealgum baralho fora de uso comomarcador e, ao abrir o livro, penseiem algo que ela disse quando aindanos conhecíamos pouco. Foi emLiteratura Britânica do século XX,provavelmente em 1980. JohannaArlen, uma impetuosa estudante deseguno ano, e eu, um veterano nauniversidade, escolhendo osbritânicos do século XXsimplesmente porque tínhamostempo sobrando naquele semestre.“Daqui a cem anos”, disse ela, “avergonha dos críticos literários demeados do século XX será a deterem abraçado Lawrence e

ignorado Maugham”. Isso foisaudado com risosdesdenhosamente joviais (todossabiam que Mulheres apaixonadas,droga, tinha sido um dos maioreslivros já escritos), mas eu não ri. Eume apaixonei.

A carta do baralho marcava aspáginas 102 e 103 — Dirk Stroevetinha acabado de descobrir que aesposa o abandonou por Strickland,a versão de Maugham para PaulGauguin. O narrador tentaencorajar Stroeve. Meu caro rapaz,não fique infeliz. Ela vai voltar...

— Para você, é fácil dizer isso —murmurei para o quarto que agora

só pertencia a mim.Virei a página e li: A calma

injuriosa de Strickland despojouStroeve de seu autocontrole. Umafúria cega o dominou e, sem sabero que fazia, atirou-se sobreStrickland. Tomado de surpresa,Strickland cambaleou, mas eramuito forte, mesmo depois de suadoença, e num instante, sem saberexatamente como, Stroeve se viuno chão.

— Homenzinho engraçado —disse Strickland.

Ocorreu-me que Jo nunca virariaa página e ouviria Stricklandchamar o patético Stroeve de

homenzinho engraçado. Nummomento de brilhante epifania quejamais esqueci — como poderia?,foi um dos piores momentos deminha vida —, compreendi queaquilo não era um equívoco a sercorrigido, ou um sonho do qual euacordaria. Johanna tinha morrido.

Minha força foi engolida pela dor.Se a cama não estivesse ali, euteria caído no chão. Choramospelos olhos, é tudo que podemosfazer, mas naquela noite senticomo se cada poro de meu corpoestivesse chorando, cada fresta ecada fenda. Fiquei ali no lado delada cama, com seu empoeirado Um

gosto e seis vinténs na mão, egritei de dor. Acho que era tanto dedor quanto de surpresa; apesar docadáver que vi e identifiquei nummonitor de vídeo de alta resolução,apesar do velório e de PeteBreedlove cantando “BlessedAssurance” com a voz aguda e docede tenor, apesar do funeral comcinzas às cinzas e pó ao pó, eu narealidade não tinha acreditadonaquilo. O livro de bolso da Penguinfez por mim o que o grande caixãocinza não tinha feito: insistiu queela estava morta.

— Homenzinho engraçado —disse Strickland.

Deitado de costas em nossacama, cruzei os braços sobre orosto e chorei até dormir, do jeitoque as crianças fazem quandoestão infelizes. Tive um sonhohorrível. Nele eu acordava, via olivro ainda sobre a colcha e decidiacolocá-lo de volta debaixo da cama,onde o encontrei. Sabemos comosonhos são confusos — lógicoscomo os relógios de Dalí, tãomacios que se estendem sobre osramos de árvores como pequenostapetes.

Eu colocava a carta de baralhonovamente entre as páginas 102 e103 — a um movimento do dedo

indicador de Homenzinhoengraçado, disse Strickland agora esempre — e rolava para o meulado, inclinando a cabeça sobre abeira da cama, pretendendo colocaro livro exatamente onde o tinhaencontrado.

Jo estava deitada lá entre asbolinhas de poeira. Um fiapo deteia de aranha pendia do fundo doestrado de mola e acariciava seurosto como uma pluma. Seu cabelovermelho parecia opaco, mas seusolhos estavam escuros, alertas esinistros no rosto branco. E quandoela falou, vi que a morte a tinhaenlouquecido.

— Me dá isso — chiou. — É omeu pega-poeira. — Ela o arrancoude minha mão antes que eupudesse entregá-lo. Por ummomento nossos dedos se tocaram,os dela tão gelados quantogravetos depois de uma geada. Elaabriu o livro no lugar que haviamarcado, a carta sendo expelidapara fora, e colocou SomersetMaugham sobre o rosto — umamortalha de palavras. Enquantocruzava as mãos no peito e ficavaimóvel, percebi que usava o vestidoazul com que a enterrei. Saiu dotúmulo para se esconder debaixode nossa cama.

Acordei com um grito abafado eum sobressalto doloroso que quaseme fez cair da cama. Não tinhadormido por muito tempo — aslágrimas ainda estavam úmidas emmeu rosto, e sentia nas pálpebrasaquela estranha sensação dedistensão, que ocorre depois de umacesso de choro. O sonho foi tãovívido que tive que rolar para omeu lado, abaixar a cabeça e espiardebaixo da cama, certo de que Joestaria ali com o livro sobre o rosto,e que estenderia os dedos geladospara me tocar.

Não havia nada lá, é claro —sonhos são apenas sonhos. Mesmo

assim, passei o resto da noite nosofá do escritório. Acho que foi aescolha certa, porque não sonheimais naquela noite. Houve apenaso nada de uma boa noite de sono.

Capítulo Dois

Nunca sofri de bloqueio de escritordurante os dez anos do meucasamento, e não o experimenteiimediatamente após a morte deJohanna. Na verdade era tão poucofamiliarizado com essa situação queela se instalou muito antes de eusaber que algo fora do comumestava acontecendo. Acho que foiporque, no fundo do coração, euacreditava que tais condições

afetassem apenas tipos “literários”da classe que era discutida,desconstruída e, às vezes,descartada no New York Review ofBooks.

Minha carreira de escritor e meucasamento cobriam quaseexatamente o mesmo período detempo. Terminei o primeirorascunho do meu primeiro romance,Sendo dois, não muito depois de Joe eu ficarmos oficialmente noivos(coloquei um anel de opala noterceiro dedo de sua mão esquerda,110 pratas no Day’s Jewellers, e umpouco mais do que eu podia pagarnaquela época... mas Johanna

pareceu totalmente comovida comele), e terminei meu últimoromance, De cima a baixo, cerca deum mês depois que ela foideclarada morta. Este último,publicado no outono de 1995, erasobre um assassino psicótico quegostava de lugares altos. Publiqueioutros romances desde então — umparadoxo que posso explicar, masnão acho que haverá um romancede Michael Noonan em qualquerlista num futuro previsível. Agorasei muito bem o que é um bloqueiode escritor. Sei mais sobre isso doque quis saber algum dia.

Quando de forma hesitante mostreia Jo o primeiro rascunho de Sendodois, ela o leu numa noite,enroscada em sua poltrona favorita,usando apenas calcinha, umacamiseta estampada com o urso-negro do Maine, e tomando umcopo atrás do outro de chá gelado.Fui para a garagem (estávamosalugando uma casa em Bangor comoutro casal numa situaçãofinanceira tão instável quanto anossa... e, não, Jo e eu nãoestávamos totalmente casadosainda, embora, pelo que sei, aqueleanel de opala jamais deixou seudedo) e trabalhei indolentemente,

sem objetivo, me sentindo comoum sujeito num cartum da NewYorker — um daqueles sobre carasengraçados na sala de espera deum parto. Segundo me lembro,estraguei um kit de casa depassarinho tão-simples-que-uma-criança-pode-fazer e quase cortei oindicador da mão esquerda. A cadavinte minutos mais ou menos euentrava novamente e espiava Jo.Se ela notava, não deu nenhumsinal. Considerei aquilo auspicioso.

Estava sentado na varanda detrás, fitando as estrelas e fumando,quando Jo saiu, sentou-se a meulado e pôs a mão na minha nuca.

— E aí? — perguntei.— É bom — disse ela. — Agora,

por que você não entra e transacomigo? — E antes que eu pudesseresponder, a calcinha que ela usavacaiu no meu colo num pequenofarfalhar de náilon.

Mais tarde, deitado na cama ecomendo laranjas (um vício queabandonamos depois), eu lheperguntei:

— É bom o bastante para serpublicado?

— Bem — disse ela —, nãoconheço nada do glamouroso

mundo das editoras, mas tenho lidopor prazer a minha vida inteira.George, o Curioso foi o meuprimeiro amor, se você quersaber...

— Não quero, não.Ela se inclinou e enfiou um

caroço de laranja na minha boca, oseio quente e provocante no meubraço.

— ... e li isso com grande prazer.Minha previsão é que sua carreirade repórter para o Derry Newsjamais sobreviverá ao estágio defoca. Acho que vou ser mulher deromancista.

Suas palavras me eletrizaram —

na verdade, deixaram meus braçosarrepiados. Não, Jo não conhecianada do glamouroso mundo daseditoras, mas, se ela acreditava, euacreditava... e a crença revelou-seo caminho certo. Consegui umagente por intermédio do meuvelho professor de criação literária(que leu meu romance e desgraçou-o com um fraco elogio, vendo suasqualidades comerciais como umaespécie de heresia, eu acho), e oagente vendeu Sendo dois para aRandom House, a primeira editoraa vê-lo.

Jo estava certa também sobreminha carreira como repórter.

Passei quatro meses cobrindoexposições de flores e corridas deautomóvel por cerca de cemdólares por semana antes que meuprimeiro cheque da Random Housechegasse — 27 mil dólares, depoisde deduzida a comissão do agente.Eu não tinha ficado na redaçãotempo suficiente nem para chegar aconseguir o primeiro aumento desalário, mas mesmo assim mederam uma festa de despedida. Foino Jack’s Pub, lembro agora. Haviauma bandeira pendurada sobre asmesas na sala de trás com ainscrição BOA SORTE, MIKE — CONTINUE

ESCREVENDO! Mais tarde, quando

chegamos em casa, Johanna disseque, se inveja fosse ácido, não teriasobrado nada de mim, a não ser afivela do meu cinto e três dentes.

Depois, na cama e com as luzesapagadas — a última laranjacomida e o último cigarro dividido—, eu disse:

— Ninguém vai confundi-lo comLook Homeward, Angel, vai? Querodizer, meu livro. — Ela sabia disso,do mesmo modo que sabia que eutinha ficado bastante deprimidocom a reação a Sendo dois de meuvelho professor de criação literária.

— Você não vai vir agora comessa besteira de artista frustrado,

vai? — perguntou, erguendo-senum dos cotovelos. — Porque, sevai, gostaria que me dissesse logo,para que eu pegue um daqueleskits de divórcio faça-você-mesmoamanhã bem cedo.

Achei divertido, mas fiqueitambém um pouco magoado.

— Você viu aquele primeiromaterial de divulgação da RandomHouse? — Eu sabia que ela tinhavisto. — Estão prestes a me chamarde V. C. Andrews com pau, peloamor de Deus.

— Bem — disse ela, agarrandolevemente o objeto em questão. —Você tem um pau. Quanto ao que

estão chamando você... Mike,quando eu estava na terceira série,Patty Banning costumava mechamar de tiradora de meleca. E eunão era.

— A percepção é tudo.— Besteira. — Ela ainda

segurava meu pau, e então lhe deuum tremendo apertão que doeu umpouco e ao mesmo tempo foiabsolutamente maravilhoso. Aquelevelho pinto doido nunca tinha medodo que recebia naqueles dias,contanto que fosse muito. —Felicidade é tudo. Você fica felizquando escreve, Mike?

— Claro. — Era o que ela sabia,

de qualquer modo.— E quando você escreve sua

consciência te perturba?— Quando escrevo, não há nada

que eu prefira fazer, a não ser isso— disse, rolando para cima dela.

— Minha nossa — falou, naquelavozinha afetada que sempre medeixava maluco. — Há um pênisentre nós.

E enquanto fazíamos amor,percebi uma ou duas coisasmaravilhosas: que Jo tinha sidosincera ao dizer que realmentegostou do meu livro (que droga,percebi que gostou simplesmentepelo modo como se sentou na

poltrona lendo-o, com uma mechade cabelo caindo na testa e aspernas nuas encaixadas sob ocorpo) e que eu não precisava meenvergonhar por tê-lo escrito... nãoa seus olhos, pelo menos. E outracoisa maravilhosa: sua percepção,unida à minha para transformar avisão binocular em coisa alguma, anão ser no que é permitido pelocasamento, era a única percepçãoque importava.

Graças a Deus ela era fã deMaugham.

Fui V. C. Andrews com pau por dez

anos, 14 se você acrescentar osanos pós-Johanna. Os primeiroscinco foram com a Random, depoismeu agente conseguiu uma enormeoferta da Putnam e troquei deeditora.

Você já viu meu nome nummonte de listas de best-sellers...isto é, se seu jornal de domingotraz uma lista que vai até o 15ºlugar, em vez de apenas os dezmais vendidos. Nunca fui umClancy, um Ludlum ou um Grisham,mas movimentei um bom númerode capas duras (V. C. Andrewsnunca o fez, me contou certa vezmeu agente, Harold Oblowski; a

sra. Andrews era muito mais umfenômeno das edições populares) ecerta vez cheguei ao número cincona lista do Times. Foi com meusegundo livro, O homem da camisavermelha. Ironicamente, um doslivros que me impediu de ir maisalto foi Máquina de aço, de ThadBeaumont (escrevendo comoGeorge Stark). Os Beaumonttinham uma casa de verão emCastle Rock naqueles dias, a menosde 80 quilômetros ao sul de nossacasa em Dark Score Lake. Thad jámorreu. Suicídio. Não sei se tevealgo a ver com bloqueio de escritor.

Fiquei um pouco de fora do

círculo mágico dos megabest-sellers, mas nunca me importei comisso. Tínhamos duas casas quandocheguei aos 31 anos: a adorável evelha residência eduardiana emDerry e, à beira do lago, no Maineocidental, uma casa feita de troncose quase grande o suficiente paraser considerada uma casa decampo, a Sara Laughs, assimchamada pelos habitantes locaispor quase um século. E os doislugares estavam inteiramentepagos e desimpedidos, numa épocada vida em que muitos casais seconsideram com sorte apenas porterem conseguido a aprovação de

uma hipoteca para a compra daprimeira casa. Éramos saudáveis,fiéis e com nossa capacidade dediversão ainda funcionandoperfeitamente. Eu não era ThomasWolfe (nem mesmo Tom Wolfe ouTobias Wolff), mas estava sendopago para fazer o que gostava, enão há na Terra melhor trabalho doque esse; é como ter uma licençapara roubar.

Eu era o que o meio da listacostumava ser nos anos 1940:ignorado pelos críticos, gênero-orientado (em meu caso era aAdorável Moça Sozinha queConhece Estranho Fascinante), mas

bem equilibrado e com o tipo deaceitação mesquinha concedida aputeiros sancionados pelo Estadoem Nevada, a impressão parecendoser de que os instintos mais baixosnecessitavam de alguma vazão eque alguém tinha que fazer AqueleTipo de Coisa. Eu fazia Aquele Tipode Coisa de maneira entusiasmada(e às vezes com a conivênciaentusiasmada de Jo se euesbarrasse numa encruzilhada datrama especialmenteproblemática), e em algummomento durante a época daeleição de George Bush nossocontador nos disse que estávamos

milionários.Não éramos ricos o bastante

para ter um jato (Grisham) ou umtime de futebol profissional(Clancy), mas pelos padrões deDerry, no Maine, rolávamos emmuita grana. Fizemos amormilhares de vezes, vimos milharesde filmes, lemos milhares de livros(Jo estocando frequentemente osdela debaixo de seu lado da camano final do dia). E talvez a maiorbênção tenha sido nunca termossabido como o tempo era curto.

Mais de uma vez me perguntei se

quebrar o ritual é o que levaria oescritor ao bloqueio. Durante o dia,podia descartar aquilo como umdisparate sobrenatural, mas à noitetal coisa era mais difícil. À noitenossos pensamentos têm um mododesagradável de escapar dascoleiras e correr livres. E se vocêtem passado a maior parte da vidaadulta tecendo ficções, estou certode que tais coleiras são maisfrouxas ainda, e os cães, menosansiosos para usá-las. Foi Shaw ouOscar Wilde quem disse que oescritor é um homem que ensinousua mente a se comportar mal?

É realmente tão artificial pensar

que quebrar o ritual pudesse terdesempenhado um papel em meusilêncio súbito e inesperado(inesperado para mim, pelomenos)? Quando se ganha o pão decada dia na terra do faz de conta, alinha entre o que é e o que pareceé muito mais tênue. Pintores àsvezes se recusam a pintar sem usardeterminado chapéu, e osjogadores de beisebol que estãojogando bem não trocam de meias.

O ritual começou com o segundolivro, o único com o qual fiqueinervoso, segundo me lembro —suponho que tivesse absorvido umaboa dose daquela história da

segunda vez: a ideia de que umsucesso pudesse ser apenas umacasualidade. Lembro-me de umpalestrante sobre LiteraturaAmericana certa vez dizer que, dosescritores americanos modernos, sóHarper Lee encontrou um modoinfalível de evitar a depressão dosegundo livro.

Quando cheguei ao fim de Ohomem da camisa vermelha, pareipouco antes de terminá-lo. Naépoca, a casa eduardiana da ruaBenton, em Derry, ainda estava adois anos no futuro, mas havíamoscomprado Sara Laughs, a casa emDark Score Lake (nem perto de

estar mobiliada como ficou depois,e o estúdio de Jo também aindanão tinha sido construído, mas erasimpática), e lá estávamos nós.

Afastei-me da máquina deescrever — ainda estava preso àvelha Selectric da IBM — e entreina cozinha. Meados de setembro, amaior parte do pessoal do verão játinha partido, e os gritos dosmergulhões-do-norte no lagopareciam inexprimivelmenteencantadores. O sol estava sepondo e o próprio lago tinha setornado uma placa de fogo imóvel esem calor. Esta é uma daslembranças mais vivas que tenho,

tão clara que às vezes sinto quepoderia penetrar nela e revivê-lapor completo. O que é que eu fariade modo diferente, se é que fariaalgo diferente? Às vezes pensonisso.

No início daquela noite, coloqueiuma garrafa de Taittinger e duastaças na geladeira. Então as tirei,as coloquei numa bandeja deestanho geralmente usada paratransportar jarros de chá gelado ourefresco Kool-Aid da cozinha até odeck e as levei comigo para a salade estar.

Johanna estava mergulhada emsua espreguiçadeira surrada lendo

um livro (não era Maughamnaquela noite, e sim WilliamDenbrough, um de seuscontemporâneos favoritos).

— Uau — disse ela, erguendo osolhos e marcando a página do livro.— Champanhe... qual é acomemoração? — Como se... comose ela não soubesse.

— Acabei — eu disse. — Monlivre est tout fini.

— Bom — disse ela sorrindo epegando uma das taças enquantoeu me inclinava em sua direçãocom a bandeja —, então isso estábem, não é?

Percebo agora que a essência do

ritual — sua parte viva e poderosa,como a verdadeira e única palavramágica num monte de verborragia— era aquela frase. Quase sempretomávamos champanhe, e elaquase sempre entrava no escritóriocomigo depois para a outra coisa,mas nem sempre.

Uma vez, uns cinco anos antesde sua morte, Jo estava na Irlanda,passando férias com uma amiga,quando terminei um livro. Tomei ochampanhe sozinho daquela vez, eescrevi a última linha eu mesmotambém (já usava então umMacintosh que fazia um bilhão decoisas diferentes, mas que eu só

utilizava para uma), e não perdi umminuto sequer de sono a respeitodo assunto. Mas liguei para Jo nohotel onde ela e a amiga Brynestavam hospedadas; contei-lheque havia terminado o romance e aouvi pronunciar as palavras que euesperava — palavras queescorregaram pela linha telefônicairlandesa, viajaram para umtransmissor de ondas curtas,ergueram-se como uma prece atéalgum satélite e então desceram aomeu ouvido: Bom, então isso estábem, não é?

Como eu disse, o hábitocomeçou depois do segundo livro.

Quando já tínhamos tomado cadaqual uma taça de champanhe emais outra, levei-a até o escritório,onde uma única folha de papelespetava-se para fora de minhaSelectric verde-floresta. No lago,um último mergulhão-do-nortegritou sombrio, um grito quesempre me soa como algoenferrujado virando-se lentamenteno vento.

— Pensei que tivesse dito quetinha acabado — disse ela.

— Tudo a não ser a última linha.O livro é dedicado a você, e queroque escreva o último pedaço.

Ela não riu, protestou ou se

tornou efusiva, simplesmente meolhou para ver se eu pretendiaaquilo mesmo. Assenti com acabeça, e ela se sentou em minhacadeira. Tinha nadado antes, e seucabelo puxado para trásziguezagueava por uma coisaelástica branca. Estava molhado, ede um vermelho dois tons maisescuro que o habitual. Toquei nele.Era como tocar em seda úmida.

— Parágrafo? — perguntou, tãoséria quanto uma estenógrafa aotomar o ditado do chefão.

— Não — falei —, continua namesma linha. — E então pronuncieia frase que vinha guardando na

cabeça desde que levantei paraservir o champanhe. — “Ele fez acorrente deslizar por cima dacabeça dela e então os doisdesceram os degraus para onde ocarro estava estacionado.”

Ela a datilografou, depois olhoupara mim na expectativa.

— É isso — eu disse. — Acho quepode escrever Fim.

Jo apertou o botão RETORNO duasvezes, centrou o carro edatilografou Fim sob a última linhado texto, o cilindro de tipos Courierda IBM (meu favorito) despejandoas letras em sua dança obediente.

— Que corrente é essa que ele

faz deslizar por cima da cabeçadela? — perguntou.

— Vai ter que ler o livro paradescobrir.

Sentada na cadeira da minhamesa e comigo em pé a seu lado,Jo estava numa posição perfeitapara colocar o rosto onde colocou.Quando falou, seus lábiosmoveram-se contra minha partemais sensível. Havia um short dealgodão entre nós, e era tudo.

— Eu terr meios de fazerrsenhorr falarr — disse ela.

— Aposto que sim — eu disse.

Pelo menos fiz uma tentativa deritual no dia em que terminei Decima a baixo. Pareceu vazio, comose a fórmula da poção mágicativesse sido perdida, mas eu jáesperava. Não o fiz por superstição,e sim por respeito e amor. Um tipode memorial, se você quiser. Ou, sepreferir, a verdadeira cerimônia dofuneral de Johanna, realizando-sefinalmente um mês depois de elaestar debaixo da terra.

Foi na segunda quinzena desetembro e ainda estava quente —o final de verão mais quente de queme lembro. Durante todo o tempodaquele triste empurrão final no

livro, continuava pensando emcomo sentia falta dela... mas issonunca diminuiu meu ritmo. E outracoisa: apesar de estar quente emDerry, tão quente que euhabitualmente trabalhava só decueca samba-canção, nunca pensei,nem uma vez sequer, em ir para anossa casa no lago. Era como seSara Laughs tivesse sidointeiramente varrida da minhamente. Talvez porque, na época emque terminei De cima a baixo, euestivesse finalmente assimilandoaquela verdade. Dessa vez, Jo nãoestava apenas na Irlanda.

Meu escritório junto ao lago é

minúsculo, mas tem vista. Oescritório em Derry é comprido,forrado de livros e sem janelas.Nesta noite em particular, osventiladores de teto — há trêsdeles — estavam ligados emovimentavam o ar espesso comoa uma sopa. Entrei vestido de short,camiseta e sandálias de dedo,carregando uma bandeja da Coca-Cola com a garrafa de champanhe eas duas taças geladas. Na outraextremidade daquela sala de vagãoferroviário, sob um beiral tãoinclinado que eu tinha quase queme agachar para não bater com acabeça quando levantava (durante

anos também tive que aguentar osprotestos de Jo por ter escolhidocertamente o pior lugar da salacomo local de trabalho), a tela demeu Macintosh brilhava compalavras.

Pensei que provavelmenteestava convidando outratempestade de dor — talvez a piorde todas —, mas, seja como for, fuiem frente — e nossa mente semprenos causa surpresa, não é? Nãohouve nenhum choro nem grito dedor naquela noite; acho que tudoisso estava fora de meu sistema.No lugar, havia um profundo emiserável senso de perda — a

poltrona vazia onde Jo costumavasentar para ler, a mesa vazia ondesempre deixava o copo pertodemais da borda.

Servi uma taça de champanhe,deixei a espuma assentar e então aergui.

— Acabei, Jo — eu disse,enquanto sentava sob as pásgiratórias dos ventiladores. — Bom,então isso está bem, não é?

Não houve resposta. À luz detudo que ocorreu depois, acho quevale a pena repetir — não houvenenhuma resposta. Não senti —como vim a sentir mais tarde — quenão estava sozinho numa sala que

parecia vazia.Tomei o champanhe, coloquei a

taça novamente na bandeja daCoca-Cola, depois enchi a outra.Levei-a até o Mac e me sentei ondeJohanna teria se sentado, se nãofosse pelo amoroso Deus favoritode todos. Nenhum choro ou gemidodesta vez, mas meus olhosformigavam de lágrimas. Aspalavras na tela eram estas:

hoje não foi tão ruim, pensou ela.

Atravessou o gramado até seu carro e

riu quando viu o quadrado de papel

branco sob o limpador de para-brisa.

Cam Delancey, que se recusava a ser

desencorajado ou a aceitar não como

resposta, a convidava para outra de

suas festas de degustação de vinho de

quinta-feira à noite. Ela pegou o

papel e começou a rasgá-lo; então

mudou de ideia e em vez disso enfiou-

o no bolso do jeans.

— Sem parágrafo — eu disse —,continua na mesma linha. — Entãodigitei a frase que vinha guardandona cabeça desde que me levanteipara pegar o champanhe.

Havia um mundo inteiro lá fora; a

degustação de vinho de Cam Delancey

era um lugar tão bom para começar

quanto qualquer outro.

Parei, olhando para o pequenocursor brilhante. As lágrimas aindaformigavam nos cantos de meus

olhos, mas repito que não sentianenhuma corrente de ar frio nostornozelos nem dedos espectrais nanuca. Apertei RETORNO duas vezes.Cliquei CENTRO. Digitei Fim abaixo daúltima linha do texto e então fiz umbrinde para a tela com o quedeveria ter sido a taça dechampanhe de Jo.

— Isso é para você, meu bem —eu disse. — Gostaria que estivesseaqui. Sinto uma falta descomunalde você. — Minha voz oscilou umpouco com aquela última palavra,mas não se interrompeu. Tomei aTaittinger, salvei minha linha finaldo texto, depois copiei todo o

trabalho em disquetes. E a não serpor bilhetes, listas de compras demercado e cheques, aquele foi oúltimo texto que escrevi por quatroanos.

Capítulo Três

Meu editor não sabia, DebraWeinstock, minha editora de texto,não sabia, Harold Oblowski, meuagente, não sabia. Frank Arlentambém não sabia, embora emmais de uma ocasião eu tivesseficado tentado a lhe contar. Medeixe ser seu irmão. Se não por suacausa, pelo menos por Jo, disse eleno dia em que voltou a seu negóciode impressão e a uma vida quase

sempre solitária na cidade deSanford, no sul do Maine. Jamaisesperei fazê-lo provar o que dizia, enão o fiz — não da maneiraelementar de grito-por-socorro queele poderia estar pensando —, masligava para ele mais ou menos deduas em duas semanas. Conversade homem, sabe como é — Comovão as coisas, Mais ou menos, umfrio de rachar, É, aqui também, Seeu conseguir as entradas paraBruins, Quer vir até Boston, Talvezno ano que vem, no momentoestou atolado de trabalho, É, eu seicomo é isso, Até logo, Mikey, Tá,Frank, ande pela sombra. Conversa

de homem.Tenho certeza de que uma ou

duas vezes ele me perguntou se euestava trabalhando num novo livro,e acho que eu disse...

Ah, foda-se — é uma mentira,sim, tudo bem? Fiquei tãoembebido disso que agora estoumentindo até para mim mesmo.Frank perguntava, claro, e eusempre respondia que sim,trabalhava num novo livro, e queele estava ficando bom, bommesmo. Por mais de uma vez fiqueitentado a lhe dizer Não consigoescrever dois parágrafos sem entrarnuma crise física e mental completa

— meu coração bate duas vezesmais forte, depois três vezes, ficosem ar e então começo a ofegar,tenho a sensação de que meusolhos vão pular da cabeça e ficarpendurados do rosto. Estou comoum claustrofóbico num submarinoafundando. É assim que as coisasvão, obrigado por perguntar, masnunca fiz isso. Não peço ajuda. Nãoconsigo pedir ajuda. Acho que jádisse isso.

Do meu ponto de vistareconhecidamente preconceituoso,os romancistas de sucesso — até

mesmo os romancistas de sucessomodesto — receberam a melhorporção das artes criativas. Éverdade que as pessoas comprammais CDs do que livros, vão mais aocinema e assistem muito mais à TV.Mas o arco de produtividade dosromancistas é mais longo, talvezporque os leitores sejam um poucomais inteligentes do que os fãs dasartes não escritas, e assim têmlembranças mais duradouras. DavidSoul, de Starsky and Hutch, estásabe Deus onde, o mesmoacontecendo com aquele peculiarrapper branco, Vanilla Ice, mas em1994 Herman Wouk, James

Michener e Norman Mailer aindaestavam todos por aí; e por falarem quando os dinossaurosandavam pela Terra...

Arthur Hailey estava escrevendoum novo livro (seja como for, oboato era esse, e se revelouverdadeiro), Thomas Harris podialevar sete anos entre seus livros eainda produzir best-sellers e,apesar de não se saber dele porquase quarenta anos, J. D. Salingerainda era um assunto quente nasaulas de inglês e grupos literáriosinformais de cafés. Os leitores têmuma lealdade sem paralelo emqualquer outra arte criativa, o que

explica por que tantos escritoresque ficaram sem gasolina aindacontinuem a rodar de qualquermaneira, impelidos para as listas debest-sellers pelas palavras mágicasAUTOR DE nas capas de seus livros.

O que o editor quer em retorno,especialmente de um autor comque se pode contar para a venda deuns 500 mil exemplares de cadaromance em capa dura e mais ummilhão em edições populares, éperfeitamente simples: um livro porano. Isso, determinaram os sujeitosem Nova York, é o ótimo. Trezentase oitenta páginas encadernadascom cordão e cola a cada 12

meses, com começo, meio e fim;um personagem principal contínuo,como Kinsey Millhone ou KayScarpetta, é opcional, maspreferível. Os leitores adoram essespersonagens; é como voltar àfamília.

Menos de um livro por ano e oautor está estragando oinvestimento de seu editor,dificultando a capacidade de seuadministrador de negócios decontinuar a fazer flutuar todos osseus cartões de crédito e pondo emrisco a capacidade de seu agentede pagar o analista delepontualmente. Além disso, há

sempre um pouco de atrito com osfãs se você leva tempo demais. Nãopode ser evitado. Da mesma formaque, se você publica demais, háleitores que vão dizer: “Ah, não, játive uma dose suficiente desse carapor algum tempo, está tudocomeçando a ter gosto de feijão.”

Digo isso para que você entendacomo pude passar quatro anosusando meu computador como omais caro tabuleiro de Scrabble domundo e ninguém jamais suspeitou.Bloqueio de escritor? Que bloqueiode escritor? Não tive porcaria debloqueio de escritor nenhum. Comopoderiam pensar tal coisa quando

havia um novo romance desuspense de Michael Noonanaparecendo a cada outono, pontualcomo um relógio, perfeito para sualeitura de final de verão, pessoal...e, por falar nisso, não esqueçamque os feriados estão chegando eque todos os seus parentesprovavelmente também gostariamdo novo Noonan, que pode sercomprado no Borders com umdesconto de trinta por cento, uau!,um negócio da China.

O segredo é simples, e não sou oúnico romancista popular dosEstados Unidos que sabe disso — seo boato é correto, Danielle Steel

(para mencionar apenas um) vemusando a Fórmula Noonan pordécadas. Você vê, embora eu tenhapublicado um livro por ano,começando com Sendo dois em1984, escrevi dois livros por ano emquatro daqueles dez anos,publicando um e guardando o outrona toca.

Não me lembro de jamais terconversado sobre isso com Jo, e, jáque ela nunca perguntou, sempreimaginei que entendia o que euestava fazendo: guardando asnozes. Mas eu não pensava embloqueio de escritor. Porra, euestava apenas me divertindo.

Em fevereiro de 1995, depois dequebrar a cabeça com pelo menosduas boas ideias (aquela funçãoparticular — a tal de Eureka! —jamais para, o que cria sua própriaversão especial do inferno), nãopude mais negar o óbvio: eu estavacom o pior problema que umescritor pode ter, sem contar o malde Alzheimer ou um derramecataclísmico. Mesmo assim, tinhaquatro caixas de papelão commanuscritos no grande cofre quemantinha no Fidelity Union, com aspalavras Promessa, Ameaça, Darcye Alto inscritas nelas. Por volta doDia dos Namorados, meu agente

ligou, moderadamente nervoso —eu geralmente lhe entregava minhaúltima obra-prima em janeiro, e jáestávamos com metade defevereiro terminada. Teriam quepôr a produção a todo vapor a fimde que o Mike Noon daquele anosaísse a tempo para a anual orgiade compras de Natal. Estava tudobem?

Aquela foi a minha primeirachance de dizer que tudo estava aléguas de ir bem, mas o sr. HaroldOblowski de Park Avenue, 225 nãoera o tipo de homem para quem sedissessem tais coisas. Era um bomagente, tanto estimado quanto

odiado em círculos editoriais (àsvezes pelas mesmas pessoas, aomesmo tempo), mas não seadaptava bem a notícias ruins dosníveis escuros e sujos de óleo ondeas mercadorias eram na verdadeproduzidas. Teria endoidado eentrado no próximo avião paraDerry, pronto para me fazer umarespiração boca a boca criativa,inflexível em sua resolução de nãopartir até ter me arrancado deminha fuga. Não, eu gostava deHarold bem ali onde ele estava, no38º andar de seu escritório comaquela vista do East Side de tirar ofôlego.

Então eu disse, que coincidência,Harold, você ligar no mesmo dia emque terminei o novo livro, puxavida, que tal isso, vou mandá-lopelo FedEx, chegará amanhã.Harold assegurou-me solenementede que não havia coincidêncianenhuma nisso, que era telepáticono que dizia respeito a seusescritores. Então me parabenizou edesligou. Duas horas depois recebiseu buquê de flores — tãoexagerado e brilhoso quanto suasgravatas-plastrão JimmyHollywood.

Após colocar as flores na sala dejantar, onde raramente ia desde

que Jo tinha morrido, fui ao FidelityUnion. Usei minha chave, o gerentedo banco a dele, e logo eu estava acaminho do FedEx com omanuscrito de De cima a baixo.Peguei o livro mais recente porqueera o mais perto da frente do cofre,só isso. Foi publicado emnovembro, exatamente a tempo dacorrida de Natal. Dediquei-o àmemória de minha falecida eamada esposa Johanna. Cheguei ao11º lugar na lista dos best-sellersdo Times e todos foram para casafelizes. Até eu. Porque as coisasiam melhorar, não iam? Ninguémtinha bloqueio de escritor terminal,

tinha (bem, com a possível exceçãode Harper Lee)? Tudo que euprecisava fazer era relaxar, como amoça do coral dizia ao arcebispo. Egraças a Deus fui um bom esquilo epoupei minhas nozes.

Ainda estava otimista no anoseguinte ao ir até a agência doFedEx com Comportamentoameaçador, escrito no outono de1991 e um dos favoritos de Jo. Ootimismo diminuiu um pouquinhopor volta de março de 1997,quando dirigi por uma tempestadede neve com O admirador de Darcy,mas quando as pessoas meperguntavam como iam as coisas

(“Escrevendo algum bom livroultimamente?” é o modo existencialcomo a maioria parece expressar aquestão), eu ainda respondia tudoótimo, maravilhoso, pois é,escrevendo um monte de bonslivros ultimamente, estão jorrandode mim como merda do rabo deuma vaca.

Depois que Harold leu Darcy e odeclarou como meu melhor livro,um best-seller que era tambémsério, de modo hesitante falei sobrea ideia de tirar um ano de férias.Ele respondeu imediatamente coma pergunta que mais detesto: vocêestá bem? Claro, respondi, ótimo,

só pensando em relaxar um pouco.Seguiu-se então um daqueles

silêncios patenteados por HaroldOblowski, cujo significado eratransmitir que você estava sendoum tremendo idiota, mas comoHarold gosta muito de você,tentava pensar no jeito mais gentilde lhe dizer isso. É um truquemaravilhoso, mas que eu percebiseis anos atrás. Na verdade, foi Joquem o percebeu.

— Ele só está fingindocompaixão — disse ela. — Naverdade ele é como um tiradaqueles velhos filmes noir, ficandoem silêncio para que você se

esborrache mais adiante e acabeconfessando tudo.

Desta vez conservei minha bocafechada — apenas passei o telefoneda orelha direita para a esquerda eme balancei um pouco para a frentena cadeira do escritório. Quando ofiz, minha visão caiu sobre a fotoemoldurada em cima docomputador — Sarah Laughs, nossacasa em Dark Score Lake. Haviaséculos que eu não ia lá, e por ummomento cogitei conscientementepor que seria.

Então a voz de Harold —cautelosa, reconfortante, a voz deum homem sensato tentando tirar

um lunático do que ele espera serapenas um delírio passageiro —estava de volta ao meu ouvido.

— Pode não ser uma boa ideia,Mike... não nesse estágio de suacarreira.

— Não é um estágio — eu disse.— Cheguei ao cume em 1991 e,desde então, minhas vendas naverdade não subiram nemdesceram. É um platô, Harold.

— É — disse ele —, e osescritores que chegam a esseestado realmente só têm duasescolhas em termos de vendas:podem continuar como estão oupodem descer.

Então eu desço, pensei emdizer... mas não o fiz. Não queriaque Harold soubesse a queprofundidade aquilo chegava, oucomo o solo sob meus pés estavaabalado. Não queria que soubessede minhas atuais palpitaçõescardíacas — sim, quero dizerliteralmente — quase toda vez emque abria o Word no meucomputador e olhava a tela brancae o cursor que pulsava.

— É — eu disse. — Tudo bem.Mensagem recebida.

— Tem certeza que está bem?— Quem lê o livro acha que

estou mal, Harold?

— Droga, não, é uma tremendahistória. A melhor que já fez, eu tedisse. Uma leitura ótima, mastambém é séria pra cacete. Se SaulBellow escrevesse ficção românticade suspense, é isso que escreveria.Mas... você não está tendo nenhumproblema com o próximo livro,está? Eu sei que ainda sente faltade Jo, que droga, todos nóssentimos...

— Não — eu disse. — Problemanenhum.

Seguiu-se outro daqueles longossilêncios. Eu o suportei. Por fim eledisse:

— Grisham podia arcar com a

parada de um ano. Clancy também.Com Thomas Harris, os longossilêncios são parte de sua mística.Mas onde você está a vida é aindamais dura do que no próprio topo,Mike. Há cinco escritores para cadaum dos lugares lista abaixo, e vocêsabe quem são. Que droga, sãoseus vizinhos três meses por ano.Alguns estão subindo, como PatriciaCornwell com seus últimos doislivros, alguns estão descendo, ealguns continuam firmes, comovocê. Se Tom Clancy partisse paraum hiato de cinco anos e entãotrouxesse Jack Ryan de volta,voltaria forte, nem se discute. Se

você partisse para um hiato decinco anos, talvez nem chegasse avoltar. Meu conselho é...

— Faça feno enquanto o solbrilha.

— Tirou as palavras da minhaboca.

Conversamos um pouco mais,então nos despedimos. Eu meinclinei mais para trás na minhacadeira — não completamente, masperto disso — e olhei a foto denosso refúgio no Maine ocidental.Sara Laughs, como o título daquelavenerável balada de Hall e Oates.Jo gostava mais dela, é verdade,mas só um pouquinho; então, por

que eu me mantive tão longe dacasa? Bill Dean, o caseiro, retiravaas persianas de tempestade a cadaprimavera e as colocava novamentea cada outono, drenava o bueiro nooutono e certificava-se de que abomba estava funcionando naprimavera, checava o gerador ecuidava para que todas as etiquetasde manutenção estivessematualizadas, e ancorava nossaplataforma flutuante a uns 50metros de distância de nossa línguade praia depois de cada MemorialDay.

Bill limpou a chaminé no início doverão de 1996, embora não tivesse

havido fogo na lareira por dois anosou mais. Eu o pagavatrimestralmente, como era costumecom os caseiros naquela parte domundo; Bill Dean, um velho ianquede uma longa linhagem deles,descontava meus cheques e nãoperguntava por que eu nunca maisusei o lugar. Estive lá apenas umasduas ou três vezes desde que Jomorreu, e não passei nem umanoite. Era bom que Bill nãoperguntasse, porque não sei queresposta teria lhe dado. Narealidade, nem sequer tinhapensado em Sara Laughs até minhaconversa com Harold.

Pensando em Harold, desviei oolhar da foto e o voltei para otelefone. Imaginei-me dizendo ae l e : Então eu desço, e daí? Omundo vai acabar? Por favor. Não écomo se eu tivesse uma esposa euma família para sustentar — amulher morreu no estacionamentode uma farmácia, faça-me o favor(ou mesmo sem favor), e a criançaque tanto queríamos e tentamospor tanto tempo foi-se com ela.Também não sou sedento de fama— se é que os escritores quepreenchem os lugares mais baixosna lista de best-sellers do Timespodem ser chamados de famosos —

e não adormeço sonhando com asvendas do clube do livro. Então porquê? Por que isso ainda meincomoda?

Mas essa última eu podiaresponder. Porque sentia como seestivesse desistindo. Porque semminha mulher e meu trabalho, euera um homem supérfluo morandosozinho numa grande casatotalmente paga, não fazendo nadaa não ser as palavras cruzadas dosjornais durante o almoço.

Eu tocava adiante o queaparentemente era minha vida.

Esqueci Sara Laughs (ou a parte demim que não queria ir lá enterrou aideia) e passei outro verãomiserável e de calor sufocante emDerry. Coloquei um programa paracriação de palavras cruzadas nomeu PowerBook e comecei a fazê-las. Aceitei uma indicaçãoprovisória para o conselho dediretores da Associação Cristã deMoços local e julguei o Concurso deArtes de Verão em Waterville. Fizuma série de anúncios de TV para oabrigo local dos sem-teto, queseguia rumo à falência, depois servinaquele conselho por algum tempo.(Numa reunião pública desse último

conselho, uma mulher me chamoude amigo dos degenerados, ao queeu repliquei: “Obrigado! Eu estavaprecisando disso.” O que provocouuma grande salva de palmas queainda não entendo.) Tentei terapiaindividual, mas desisti depois decinco consultas, chegando àconclusão de que os problemas doterapeuta eram muito piores do queos meus. Patrocinei uma criançaasiática e joguei em times deboliche.

Às vezes tentava escrever, e acada vez que o fazia, eu metrancava. Certa vez, quando tenteiforçar uma frase ou duas (qualquer

uma ou duas frases, do tamanhoque saíssem, ainda frescas daminha cabeça), tive que agarrar acesta de papel e vomitar nela.Vomitei até achar que ia morrerdaquilo... e tive literalmente queme arrastar para longe da mesa edo computador, impelindo-me pelotapete macio com as mãos e comos joelhos. Quando cheguei aooutro lado da sala, estava melhor.Podia até olhar para trás, por cimado ombro, a tela do computador.Simplesmente não podia meaproximar. Mais tarde naquelemesmo dia, eu me aproximei delecom os olhos fechados e o

desliguei.Cada vez com mais frequência

naqueles dias de final de verão, eupensava em Dennison Carville, oprofessor de criação literária queme ajudou a me conectar comHarold e que amaldiçoou Sendodois com um elogio tão fraco. Certavez, Carville disse algo que eujamais esqueci, atribuindo-o aThomas Hardy, o romancista epoeta vitoriano. Talvez Hardytivesse dito aquilo, mas nunca o virepetido, nem em Bartlett’s nem nabiografia de Hardy que li entre aspublicações de De cima a baixo eComportamento ameaçador. Acho

que o próprio Carville pode terinventado aquilo, posteriormenteatribuindo-o a Hardy a fim de lhedar maior peso. É um truque que eumesmo venho usando de vez emquando — me envergonho emdizer.

De qualquer modo, pensava cadavez mais sobre essa citaçãoenquanto lutava com o pânico nocorpo e com a sensação gélida nacabeça, aquela medonha sensaçãode algo trancado. Parecia resumirmeu desespero e minha certezacrescente de que jamais seria capazde escrever de novo (que tragédia,V. C. Andrews com um pau

derrubado por bloqueio de escritor).A citação sugeria que qualqueresforço que eu fizesse paramelhorar minha situação poderiaser sem sentido, mesmo queobtivesse êxito.

Segundo o velho sombrioDennison Carville, o romancistaaspirante devia entender desde oinício que os objetivos da ficçãoestão sempre além de seu alcance,que o trabalho é um exercício defutilidade. “Comparado ao maismonótono ser humano andandopela face da Terra e deitando nelasua sombra”, teria supostamentedito Hardy, “o personagem mais

brilhantemente desenhado numromance é apenas um saco deossos”. Eu entendi, porque eraassim que me sentia naqueles diasdissimulados e intermináveis: umsaco de ossos.

Last night I dreamt I went toManderley again.2

Se existe uma primeira frasemais bonita e fascinante na ficçãode língua inglesa, jamais a li. E erauma frase na qual tive motivos parapensar muito durante o outono de1997 e o inverno de 1998. Eu nãosonhava com Manderley, claro, e

sim com Sara Laughs, que Jo àsvezes chamava “o esconderijo”.Uma descrição bastante justa,acho, para um lugar tão enfurnadonos bosques do Maine ocidentalque, na realidade, não é nemmesmo uma cidade, mas uma áreanão incorporada denominada TR-90nos mapas do estado.

O último desses sonhos foi umpesadelo, mas, até este último,todos tinham uma espécie desimplicidade surrealista. Euacordava querendo ligar a luz doquarto para poder reconfirmar meulugar na realidade antes de voltarao sono. Sabe como o ar fica antes

de uma tempestade, como tudopermanece parado e as cores dão aimpressão de se destacar com obrilho que se vê durante a febrealta? Meus sonhos de inverno comSara Laughs eram assim, cada qualme deixando uma sensação quenão era bem doença. Sonhei denovo com Manderley, eu pensavaocasionalmente, às vezes deitadona cama com a luz acesa,escutando o vento do lado de fora,observando os cantos do quartomergulhados na sombra e achandoque Rebecca de Winter não haviase afogado numa baía e sim nolago Dark Score. Que ela afundara,

gorgolejando e bracejando, osestranhos olhos negros cheios deágua, enquanto os mergulhões-do-norte gritavam indiferentes nocrepúsculo. Às vezes eu levantava ebebia um copo d’água. Às vezesapenas apagava a luz depois de terme certificado mais uma vez deonde estava, rolava para o meulado novamente e voltava a dormir.

Durante o dia, raramentechegava a pensar em Sara Laughs,e só bem depois percebi que algoestá muito fora dos eixos quandoexiste tal dicotomia entre a vida dapessoa acordada e dormindo.

Acho que foi o telefonema de

Harold Oblowski em outubro de1997 que desencadeou os sonhos.O motivo aparente do telefonemade Harold foi me dar os parabénspelo lançamento iminente de Oadmirador de Darcy, que era muitoenvolvente e que também faziapensar pra cacete. Suspeitei de quehavia pelo menos outro item emsua agenda — ele geralmente tem—, e eu estava certo. Ele tinhaalmoçado com Debra Weinstock,minha editora, no dia anterior, econversaram sobre o outono de1998.

— Parece lotada — disse ele,referindo-se às listas de outono e

especificamente à metade ficçãodas listas. — E há umas adições-surpresa. Dean Koontz...

— Pensei que ele publicassenormalmente em janeiro — disse.

— Publica, mas Debra soube queo de janeiro pode ser adiado. Elequer acrescentar uma parte oucoisa semelhante. Além disso háum Harold Robbins, Ospredadores...

— Impressionante.— Robbins ainda tem seus fãs,

Mike, ainda tem seus fãs. Comovocê enfatizou mais de uma vez,escritores de ficção têm umaatividade de longo espectro.

— Ahn, ahn. — Passei o receptorpara a outra orelha e me encosteina cadeira. Vislumbrei de relance afoto emoldurada de Sara Laughsem minha mesa quando o fiz. Eu avisitaria em meus sonhos por maistempo e proximidade naquelanoite, embora ainda não soubesse;só sabia então que o que desejavamais do que tudo era que HaroldOblowski se apressasse e fossedireto ao ponto.

— Sinto impaciência em você,meu caro Michael — disse Harold.— Interrompi você? Estáescrevendo?

— Já acabei por hoje — disse. —

Mas estou pensando em almoçar.— Vou ser rápido — prometeu

ele —, preste atenção, isso éimportante. Pode haver até cincooutros escritores que nãoesperávamos que publicassem nopróximo outono: Ken Follett...acredita-se que talvez este seja seumelhor livro desde O buraco daagulha... Belva Plain... John Jakes...

— Nenhum desses caras jogatênis na minha quadra — disse,embora soubesse que isso não eraexatamente a questão de Harold.Sua questão é que havia apenas 15lugares na lista do Times.

— E que tal Jean Auel,

finalmente publicando seu próximoépico de sexo-entre-os-homens-das-cavernas?

Estiquei-me na cadeira.— Jean Auel? Mesmo?— Bem... não cem por cento,

mas parece certo. E por último, masnão menos importante, está o novoMary Higgins Clark. Sei em quequadra de tênis ela joga, e vocêtambém.

Se eu tivesse recebido aquelasnotícias há seis ou sete anos,quando sentia que tinha muito maisa proteger, teria espumado; MaryHiggins Clark jogava na mesmaquadra que eu, partilhava

exatamente o mesmo público e atéentão nossas épocas de publicaçãotinham sido organizadas para nosdeixar fora do caminho um dooutro... o que era mais para meubenefício do que para o dela, épreciso que se diga. Taco a taco,ela me ganharia. Como o falecidoJim Croce observava muitosabiamente, não se puxa a capa doSuper-homem, não se cospe novento, não se arranca a máscara doZorro e não se brinca com MaryHiggins Clark. De qualquer modo,não se você for Michael Noonan.

— Como é que isso aconteceu?— perguntei.

Não acho que meu tom fosseespecialmente agourento, masHarold respondeu ao modotropeçando-nas-próprias-palavrasde um homem que suspeita poderser despedido ou mesmodecapitado por trazer notícias ruins.

— Não sei. Ela simplesmenteteve uma ideia extra este ano,acho. Me disseram que issoacontece.

Como um sujeito que tinharecebido sua parte de inspiraçãodupla, eu sabia que acontecia;portanto simplesmente perguntei aHarold o que queria, já que esteparecia o modo mais rápido e fácil

para fazê-lo largar o telefone. Aresposta não foi nenhuma surpresa;o que tanto ele quanto Debraqueriam — sem mencionar todo oresto dos meus companheiros daPutnam — era um livro quepudessem publicar no final do verãode 1998, chegando assim na frentedo da srta. Clark e do resto dacompetição uns dois meses. Então,em novembro, os representantes devendas da Putnam dariam aoromance um saudável segundoempurrão, tendo em vista o Natal.

— Dizem que sim — repliquei.Como a maioria dos romancistas (ea esse respeito os bem-sucedidos

não são diferentes dos que não sesaíram bem, indicando que podehaver algum mérito na ideia assimcomo a habitual paranoia comendosolta), nunca confiei em promessasde editores.

— Acho que pode acreditar nelesquanto a isso, Mike. O admirador deDarcy foi o último livro de seucontrato, lembre-se. — Haroldparecia quase jovial ante opensamento das próximasnegociações contratuais com DebraWeinstock e Phyllis Grann naPutnam. — O importante é que elesainda gostam de você. Gostariammais ainda, acho eu, se vissem

páginas com o seu nome antes doDia de Ação de Graças.

— Eles querem que eu entregueo próximo livro em novembro? Nom ê s que vem? — Introduzi emminha frase o que eu pensava ser anota certa de incredulidade na voz,exatamente como se eu não tivesseA promessa de Helen num cofre-forte por quase 11 anos. Fora aprimeira noz que eu guardara;agora era a única que me sobrava.

— Não, não, você ainda tem até15 de janeiro, pelo menos — disseele, tentando parecer magnânimo.Descobri-me cogitando onde ele eDebra teriam almoçado. Algum

lugar aceitável, eu apostaria minhavida. Talvez o Four Seasons.Johanna costumava chamar aquelelugar de Frankie Valli e as FourSeasons.

— O que significa que terão quepôr a produção a todo vapor, a todovapor mesmo, mas farão isso debom grado. A verdadeira questão és e você pode ou não pôr aprodução a todo vapor.

— Acho que posso, mas vaicustar alguma coisa a eles — disse.— Diga para pensarem nisso comoum serviço de lavagem a seco parao mesmo dia.

— Ah, que vergonha para eles!

— Harold dava a impressão detalvez estar se masturbando e terchegado ao ponto em que o velhogêiser explode e todos disparamsuas máquinas fotográficas.

— Quanto você acha...— Uma taxa adicional sobre o

adiantamento provavelmente é oque se pode fazer — disse. — Elesvão ficar mal-humorados, claro, vãoafirmar que a coisa é do seuinteresse também, Mike.Primordialmente até do seuinteresse. Mas baseado noargumento do trabalho extra... oóleo noturno que você vai ter quequeimar...

— A agonia mental da criação...a dor aguda do nascimentoprematuro...

— Certo... certo... Acho que umataxa adicional de dez por centoparece o certo. — Ele falavajudiciosamente, como um homemtentando ser simplesmente tãojusto quanto possível. Eu próprioestava cogitando quantas mulheresinduziriam o parto um mês ou maisse lhes pagassem dois ou três mildólares para isso. Provavelmente émelhor não se fazer tais perguntas.

E no meu caso, que diferençafazia? A maldita coisa estavaescrita, não estava?

— Bem, veja se você pode fazero negócio — disse.

— Sim, mas não acho quequeremos falar apenas de um únicolivro aqui, não é? Acho...

— Harold, o que eu quero nestemomento é almoçar.

— Você parece um pouco tenso,Michael. Está tudo...

— Está tudo ótimo. Fale com elesapenas sobre um livro, com umadoçante para que eu apresse aprodução pelo meu lado. Ok?

— Tudo bem — disse ele depoisde uma de suas significativaspausas. — Mas espero que isso nãosignifique que você não vá

alimentar um contrato de três ouquatro livros mais tarde. Faça fenoenquanto o sol brilha, lembre-se. Éo lema dos campeões.

— O lema dos campeões é“Atravesse cada ponte quandochegar a ela” — disse, e naquelanoite sonhei que ia a Sara Laughsde novo.

Naquele sonho — em todos ossonhos que tive naquele outono einverno — estou subindo a pequenaestrada para a casa de campo. Aestrada é uma curva de 3quilômetros pelos bosques com

entradas para a rota 68. Há umnúmero em cada extremidade(estrada 42, se isso interessa) parao caso de se chamar os bombeiros,mas nenhum nome. Nem Johannanem eu lhe demos um, nem mesmosó para ser usado entre nós. Éestreita, realmente apenas umavala dupla com capim-rabo-de-gatoe grama silvestre crescendo no alto.Quando você dirige por ali, escuta arelva sussurrando como vozesbaixas contra o chassi de seu carroou caminhão.

Mas eu não dirijo no sonho.Nunca dirigi. Nesses sonhos euando.

As árvores se amontoampróximas dos dois lados da pista. Océu escurecendo por cima é poucomais que uma fenda. Logo eupoderia ver as primeiras estrelasespreitando. O pôr do sol já passou.Grilos cricrilam. Mergulhões-do-norte gritam no lago. Pequenosanimais — tâmias, provavelmente,ou um esquilo ocasional — fazem obosque farfalhar.

Agora chego a uma entrada decarros de terra que se inclina colinaabaixo à minha direita. É a nossa,identificada por uma pequenatabuleta de madeira que diz SARA

LAUGHS. Permaneço no alto dela, mas

não desço. Abaixo está a casa decampo. É toda de toras e alasacrescentadas, com um deckdestacando-se atrás. No todo, 14aposentos, um número ridículo dequartos. Deveria ter uma aparênciafeia e desajeitada, mas de algummodo não tem. Há uma qualidadede viúva corajosa em Sara, aaparência de uma senhoravencendo resolutamente seucentésimo ano, ainda dando longaspassadas apesar de seus quadrisartríticos e dos vigorosos joelhosvelhos.

A parte central é a mais velha,datando de 1900 ou coisa assim.

Outras porções foramacrescentadas nos anos 1930, 1940e 1960. Em certa época foi umpavilhão de caça; por um breveperíodo no início dos anos 1970, foio lar de uma pequena comunidadede hippies transcendentais. Taisocupações eram decorrentes dearrendamentos ou aluguéis; osproprietários do final dos anos 1940até 1984, foram os Hingerman,Darren e Marie... depois Mariesozinha, quando Darren morreu, em1971. A única adição visível denosso período de propriedade é aminúscula antena parabólicamontada no alto do telhado central.

Foi ideia de Johanna, que naverdade nunca teve a chance deusufruí-la.

Além da casa, o lago cintila noesplendor após o pôr do sol. Vejoque a entrada de carros estáatapetada de agulhas marrons depinheiro e uma confusão de ramoscaídos. Os arbustos que crescem deseus dois lados perderam ocontrole, estendendo-se uns paraos outros como amantes pelaestreita brecha que os separa. Sevocê entrasse ali com um carro, osgalhos arranhariam e guinchariamdesagradavelmente nas laterais doveículo. Abaixo, vejo que há musgo

crescendo nas toras da casaprincipal, e três grandes girassóiscom faces como faróis cresceramatravés das tábuas do pequenoalpendre ao lado da entrada decarros. A sensação geral não éexatamente de negligência, mas deesquecimento.

Há um sopro de brisa, e suafrieza em minha pele me fazperceber que estou transpirando.Posso sentir o cheiro de pinheiros —um cheiro que é ao mesmo tempoamargo e limpo — e o débil mas decerto modo terrível cheiro do lago.O Dark Score é um dos mais limpose profundos lagos do Maine. Era

maior até o final dos anos 1930,contou-nos Marie Hingerman; foinessa época que a Western MaineElectric, trabalhando de mãosdadas com as fábricas e negóciosde papel em torno de Rumford,obteve a aprovação do estado pararepresar o rio Gessa. Marie tambémnos mostrou umas fotosencantadoras de senhoras comvestidos brancos e cavalheirosparamentados em canoas — taisinstantâneos eram da época daPrimeira Guerra Mundial, disse, eapontou uma das moças,imobilizada para sempre à beira daEra do Jazz com um remo soerguido

e pingando. “É minha mãe”, disse,“e o homem que ela estáameaçando com o remo é meupai”.

Mergulhões-do-norte gritavamcomo se anunciassem privação.Agora posso enxergar Vênus no céuque escurece. Estrelinha, estrelinha,eu queria... nesses sonhos semprepeço por Johanna.

Com meu desejo anunciado,tento descer a entrada de carros.Claro que o faço. É minha casa, nãoé? Para onde mais iria senão paraminha casa, agora que está ficandoescuro e agora que o furtivofarfalhar nos bosques parece tanto

mais próximo quanto maisdeliberado? Para que outro lugarposso ir? Está anoitecendo, e ficaráassustador entrar naquele localescuro sozinho (suponhamos queSara se ressinta por ter sidodeixada sozinha por tanto tempo,suponhamos que esteja com raiva),mas tenho que fazê-lo. Se aeletricidade está desligada,acenderei uma das lâmpadas defuracão que guardamos numarmário da cozinha.

Só que não consigo descer.Minhas pernas não se movem. Écomo se meu corpo soubesse algoda casa que meu cérebro

desconhece. A brisa se levanta denovo, me arrepiando de frio, ecogito sobre o que andei fazendopara ficar todo suado assim. Tereicorrido? E, nesse caso, corrido paraonde? Ou de onde?

Meu cabelo também está úmidode suor, caído na testa numa massadesagradavelmente pesada.Levanto a mão para empurrá-lo evejo que há um corte raso,bastante recente, percorrendo ascostas da mão pouco além dos nós.Às vezes esse corte está na mãodireita, às vezes na esquerda.Penso: Se isso é um sonho, osdetalhes são bons. Sempre aquele

mesmo pensamento: Se isso é umsonho, os detalhes são bons. É aabsoluta verdade. São detalhes deum romancista... mas, nos sonhos,talvez todos sejam romancistas.Como se vai saber?

Agora Sara Laughs é apenas umvolume escuro lá embaixo, epercebo que de qualquer forma nãoquero ir até lá. Sou um homem coma mente treinada para se comportarmal, e posso imaginar coisasdemais esperando por mim do ladode dentro. Um guaxinim raivosoagachado num canto da cozinha.Morcegos no banheiro — seperturbados, encherão o ar em

volta de meu rosto contraído,guinchando e estapeando minhasbochechas com suas asasempoeiradas. Até mesmo uma dasfamosas Criaturas de Além doUniverso de William Denbrough,agora escondida sob o alpendre eobservando minha aproximaçãocom os olhos cintilantes ladeadosde pus.

“Bem, não posso ficar aqui emcima”, digo, mas minhas pernasnão se movem, e parece que ficareiaqui em cima, onde a entrada decarros se encontra com a estrada;ficarei aqui, goste ou não.

Agora o farfalhar nos bosques

atrás de mim já não soa mais comopequenos animais (a maioria delesjá estaria aninhada ou na toca paraa noite, de qualquer modo) e simcomo passos que se aproximam.Tento me virar para olhar, mas nãoconsigo sequer fazer isso...

... e é então que eu geralmenteacordava. A primeira coisa quesempre fazia era me virar,estabelecendo a volta à realidadeao demonstrar a mim mesmo quemeu corpo mais uma vez obedeciaà minha mente. Às vezes — namaioria das vezes, na verdade —eu me descobria pensando:Manderley, sonhei novamente com

Manderley. Havia algo sinistro nisso(há algo sinistro em qualquer sonhoque se repete, acho, em saber queo subconsciente está cavandoobsessivamente algum objeto quenão será desalojado), mas euestaria mentindo se nãoacrescentasse que uma parte demim usufruía a calma arquejante doverão na qual o sonho sempre meenvolvia, e tal parte usufruíatambém a tristeza e o presságioque eu sentia ao acordar. Haviauma estranheza exótica no sonhoque faltava à minha vida desperta,agora que a estrada conduzindo àminha imaginação estava tão

eficazmente bloqueada.A única vez que me lembro de

ficar realmente assustado (epreciso dizer que não confiototalmente em nenhuma dessaslembranças, já que por tanto tempoelas pareciam não existir) foiquando despertei uma noite falandoclaramente na escuridão do meuquarto: “Algo está atrás de mim,não deixe que ele me pegue, algonos bosques, por favor, não deixeque ele me pegue.” O que meassustou não foram tanto aspalavras em si, mas o tom em queforam pronunciadas. Era a voz deum homem à beira do pânico, e

quase não parecia minha própriavoz.

Dois dias antes do Natal de 1997,mais uma vez fui de carro até oFidelity Union, onde mais uma vez ogerente me escoltou até meu cofrenas catacumbas sob as luzesfluorescentes. Enquanto descíamosa escada, ele me assegurou (peladécima vez, pelo menos) que suamulher era uma grande fã de meutrabalho, que leu todos os meuslivros, que nunca eram demais paraela. Pela décima vez (pelo menos)respondi que agora eu precisava

fisgá-lo. Ele reagiu com suarisadinha habitual. Eu pensavanessa troca frequentementerepetida como a Comunhão doBancário.

O sr. Quinlan introduziu suachave na Fenda A e virou-a. Depois,tão discretamente como um cafetãoque levou um cliente a umprostíbulo, foi embora. Inseri minhaprópria chave na Fenda B, virei-a eabri a gaveta. Ela parecia muitoampla agora. A única caixa demanuscrito remanescente pareciaquase acovardada no canto oposto,como um filhote abandonado quede algum modo sabe que seus

irmãos foram retirados para acâmara de gás. Promessa, estavarabiscado no alto em grossas letraspretas. Mal podia lembrar como eraa maldita história.

Arrebatei o viajante do tempodos anos 1980 e bati a porta docofre, fechando-o. Nada foradeixado ali agora a não ser poeira.Me dá isso, Jo silvou no meu sonho— era a primeira vez que eupensava naquilo em anos. Me dáisso, é o meu pega-poeira.

— Sr. Quinlan, já acabei —chamei. Minha voz soou áspera epouco firme aos meus própriosouvidos, mas Quinlan não pareceu

notar nada de errado... ou talvezestivesse sendo discreto. Afinal,não posso ter sido o único cliente aachar emocionalmente aflitivas asvisitas a essa versão financeira decemitério.

— Eu de fato vou ler um de seuslivros — disse ele, dando umaolhada involuntária para a caixaque eu segurava (acho que poderiater trazido uma pasta para guardá-la, mas eu jamais o fazia naquelasexpedições). — Na verdade, achoque vou colocar isso na minha listade resoluções do ano-novo.

— Faça isso — disse. — Façaisso, sr. Quinlan.

— Mark — ele disse. — Por favor.— Ele já disse isso antes, também.

Eu escrevi duas cartas, que enfieidentro da caixa do manuscritoantes de sair para o FedEx. Ambashaviam sido escritas no meucomputador, que meu corpopermitia que eu usasse se euescolhesse a função Bloco de Notas.Era apenas abrindo o Word queiniciava as tempestades. Nuncatentei escrever um romance usandoa função Bloco de Notas,compreendendo que, se o fizesse,provavelmente perderia essa opçãotambém... sem mencionar minhacapacidade de jogar e fazer

palavras cruzadas na máquina.Havia tentado escrever à mão umasduas vezes, com uma falta desucesso espetacular. O problemanão era o que tinha ouvido certavez ser descrito como “timidez datela”; eu provei isso a mim mesmo.

Um dos bilhetes era para Harold,outro para Debra Weinstock, eambos diziam praticamente amesma coisa: aqui está o novolivro, A promessa de Helen, esperoque gostem dele tanto quanto eu;se ele parece um tanto irregular éporque tive que trabalhar muitashoras extras para terminá-lo tãorápido, Feliz Natal, Feliz Hanukkah,

Viva a Irlanda, doce ou travessura,espero que alguém lhe dê ummaldito pônei.

Fiquei quase uma hora numa filade remetentes atrasados, deolhares amargos e andar vagaroso(o Natal é uma época tãodespreocupada e sem pressões —isso é uma das coisas que adoronele), com A promessa de Helensob o braço esquerdo e uma ediçãopopular de A escola de charme, deNelson DeMille, na mão direita. Liquase cinquenta páginas antes deconfiar meu recente romanceinédito à atendente de arestressado. Quando lhe desejei

Feliz Natal, ela estremeceu e nãodisse nada.

2 Em português, “na noite passada sonhei quefui a Manderley de novo”. (N. da T.)

Capítulo Quatro

O telefone estava tocando quandoentrei pela porta da frente de casa.Era Frank Arlen perguntando se eugostaria de passar o Natal com ele.Com eles, na realidade; todos osirmãos e as respectivas famíliasestariam lá.

Abri a boca para dizer não — aúltima coisa que eu desejava nomundo era um louco Natal irlandêscom todos bebendo uísque e se

tornando cada vez maissentimentais em relação a Jo,enquanto umas duas dúzias defedelhos de nariz escorrendo searrastavam pelo chão — e meescutei dizendo que iria sim.

Frank pareceu tão surpresoquanto eu, mas sinceramenteencantado.

— Fantástico! — exclamou. —Quando é que pode vir?

Eu estava no vestíbulo, minhasgalochas pingando no ladrilho, e deonde estava podia olhar pelo arcoda porta para dentro da sala deestar. Não havia árvore de Natal;eu não me dei a esse trabalho

desde que Jo morreu. A salaparecia ao mesmo tempo medonhae grande demais para mim... umrinque de patinação mobiliado emestilo colonial americano.

— Eu estava fora fazendoalgumas coisas — falei. — Que taleu jogar umas roupas de baixo navalise, voltar para o carro e rumarpara o sul enquanto o aquecedor dear ainda está soprando ar quente?

— Maravilhoso — disse Franksem um momento de hesitação. —Podemos nos conceder umasaudável noite de solteiros antesque os Filhos e Filhas da Malden doleste comecem a chegar. Vou te

servir um drinque assim que largaro telefone.

— Então acho que é melhor eume mandar — respondi.

Aquele foi, de longe, o melhorferiado desde que Johanna morreu.O único feriado bom, acho eu. Porquatro dias fui um Arlen honorário.Bebi demais, brindei demais àmemória de Johanna... e sabia, dealgum modo, que ela estariacontente de saber que eu o fazia.Dois bebês cuspiram em mim, umcachorro entrou na cama comigo nomeio da noite e a cunhada de Nicky

Arlen me deu uma cantada umtanto indiscreta na noite depois doNatal, quando me pegou sozinho nacozinha fazendo um sanduíche deperu. Eu a beijei porque elanitidamente queria ser beijada, euma mão aventureira (ou talvez“maliciosa” fosse a palavra certa)agarrou-me por um momento numlugar onde só minha própria mãoesteve em quase três anos e meio.Foi um choque, mas não um choqueinteiramente desagradável.

A coisa não foi além — numacasa cheia de Arlen e com SusyDonahue ainda não divorciada demodo oficial, dificilmente poderia

ter ido —, mas decidi que era horade partir... isto é, a não ser que euquisesse dirigir em alta velocidadenuma rua estreita que muitoprovavelmente terminava nummuro de tijolos. Fui embora no dia27, muito contente por ter ido lá, edei a Frank um abraço feroz quandonos despedimos diante de meucarro. Por quatro dias, não penseinenhuma vez no fato de agora sóhaver poeira no meu cofre noFidelity Union, e por quatro noitesdormi direto até às oito da manhã,às vezes acordando com oestômago azedo e uma dor decabeça de ressaca, mas nunca, nem

uma vez, no meio da noite comManderley, sonhei novamente comManderley passando pela cabeça.Voltei a Derry sentindo-merefrescado e renovado.

O primeiro dia de 1998 nasceuclaro, frio, imóvel e belo. Levantei,tomei uma chuveirada e entãocheguei à janela do quarto bebendocafé. Ocorreu-me subitamente —com toda a simples e poderosarealidade das ideias que nospercorrem da cabeça aos pés —que eu já poderia escrever. Era umnovo ano, algo tinha mudado e eupoderia escrever agora, sequisesse. A rocha tinha rolado para

longe.Entrei no escritório, sentei-me ao

computador e liguei-o. Meu coraçãobatia normalmente, nem a testanem a nuca transpiravam, e minhasmãos estavam quentes. Chamei omenu principal, aquele que seobtém ao se clicar a maçã, e láestava o meu velho camaradaWord. Cliquei. O logotipo pena-e-pergaminho apareceu logo e,quando isso ocorreu, subitamentenão consegui mais respirar. Eracomo se uma fita de ferroenvolvesse meu peito.

Eu me afastei da mesa,nauseado e agarrando o colarinho

redondo da malha de algodão queusava. As rodas de minha cadeirade escritório se prenderam numpequeno tapete — uma dasdescobertas de Jo no último ano desua vida —, e caí direto para trás.Minha cabeça bateu no chão e vium chuveiro de fagulhas brilhantespercorrerem meu campo de visão.Penso que tive sorte de nãodesmaiar, mas acho que minhaverdadeira sorte na manhã do ano-novo de 1998 foi ter caído do jeitoque caí. Se eu não tivesseempurrado a cadeira para longe damesa e ainda estivesse fitando ologotipo — e a medonha tela vazia

que o seguiu —, acho que poderiater sufocado até a morte.

Quando me levanteicambaleando, pelo menosconseguia respirar. Minha gargantaparecia estreita como um canudo, ecada inspiração emitia um estranhosom de grito, mas eu estavarespirando. Entrei repentinamenteno banheiro e vomitei na pia comtanta força que o vômito borrifou oespelho. Fiquei pálido e meusjoelhos dobraram. Dessa vez baticom a testa, fazendo-a chocar-secom a beira da pia e, emboraminha nuca não tenha sangrado(apesar de ao meio-dia ter

aparecido ali um respeitávelcaroço), minha testa sangrou umpouco. Essa última batida deixouuma marca roxa sobre a qual eumenti, naturalmente, dizendo àspessoas que me perguntaram quebati com a testa na porta dobanheiro no meio da noite, idiotaque sou; isso ensina o sujeito a nãolevantar às duas da manhã semacender a luz.

Quando recobrei a completaconsciência (se é que existe talestado), estava enroscado no chão.Levantei, desinfetei o corte da testae sentei na beira da banheira com acabeça abaixada até os joelhos,

reunindo confiança suficiente parame erguer. Fiquei ali por 15minutos, acho, e naquele espaço detempo decidi que, a não ser queacontecesse um milagre, minhacarreira tinha terminado. Haroldgritaria de dor e Debra gemeriadescrente, mas o que poderiamfazer? Enviar-me para a Polícia dePublicações? Ameaçar-me com aGestapo do Clube do Livro do Mês?Mesmo que pudessem, quediferença faria? Não se conseguetirar seiva de um tijolo ou sanguede uma pedra. A não ser queocorresse uma recuperaçãomilagrosa, minha vida como escritor

tinha acabado.E se tiver acabado?, eu me

perguntei. E nos próximos quarentaanos, Mike? Vai poder jogar muitoScrabble em quarenta anos, fazermuitas palavras cruzadas, tomarmuito uísque. Mas isso é obastante? O que mais você vai fazernos próximos quarenta anos?

Eu não queria pensar naquilo,não naquele momento. Os próximosquarenta anos que cuidassem de simesmos; eu ficaria feliz apenas deatravessar o Dia de Ano-novo de1998.

Quando senti que estava sobcontrole, voltei a meu escritório,

andei vagarosamente para ocomputador com os olhosresolutamente abaixados, tateei embusca do botão certo e desliguei amáquina. Pode-se danificar oprograma desligando-o assim semfechá-lo antes, mas naquelascircunstâncias dificilmente penseique tivesse importância.

Naquela noite sonhei mais umavez que estava caminhando aocrepúsculo na estrada 42, quelevava a Sara Laughs; mais umavez transmiti um desejo à estrelada noite enquanto os mergulhões-do-norte gritavam no lago, e maisuma vez senti algo nos bosques

atrás de mim, aproximando-se cadavez mais. Parecia que meu feriadode Natal havia terminado.

Foi um inverno áspero e frio, commontanhas de neve e umaepidemia de gripe em fevereiro queliquidou uma terrível quantidade develhos em Derry. Pegou-os domodo duro com que um ventoatinge velhas árvores depois deuma tempestade de gelo. Nemchegou a me tocar. Não tive nemum resfriado naquele inverno.

Em março, parti de avião paraProvidence e participei do Desafio

de Palavras Cruzadas da NovaInglaterra, de Will Weng. Tirei oquarto lugar e ganhei cinquentapratas. Emoldurei o cheque nãodescontado e pendurei-o na sala.No passado, a maioria dos meusCertificados de Triunfo (frase de Jo;todas as boas frases pareciam serfrases de Jo) ia para as paredes domeu escritório, mas por volta demarço de 1998 eu não estava indomuito lá. Quando queria jogarScrabble contra o computador, oufazer palavras cruzadas em nível detorneio, usava o PowerBook esentava à mesa da cozinha.

Lembro-me de sentar lá um dia,

abrir o menu principal doPowerBook, descer às palavrascruzadas... depois fazer o cursordescer dois ou três itens adianteaté iluminar meu velho amigoWord.

O que me devastou não foifrustração ou fúria impotente eempacada (senti muito as duasdesde que tinha terminado De cimaa baixo), e sim tristeza e simplesanseio. Olhar para o Word foisubitamente como olhar as fotos deJo que eu conservava na carteira.Estudando-as, pensava às vezesque venderia minha alma imortal afim de tê-la de volta... e naquele

dia de março achei que venderiaminha alma para poder escreveruma história de novo.

Vá em frente e tente, então,sussurrou uma voz. Talvez as coisastenham mudado.

Só que as coisas não tinhammudado, e eu sabia disso. Assim,em vez de abrir o Word, movi oícone para a lixeira no canto direitoinferior e deixei-o cair ali. Adeus,velho.

Debra Weinstock telefonou muitonaquele inverno, na maior partedas vezes com boas notícias. Noinício de março, relatou que Apromessa de Helen foi escolhido

para a seleção principal do LiteraryGuild para agosto, junto com umromance de suspense de SteveMartini sobre tribunais (Martini eraoutro veterano do segmento oito-a-quinze da lista de best-sellers doTimes). E meu editor britânico,disse Debra, adorou Helen, e tinhacerteza de que seria meu livro de“estouro”. (Minhas vendasbritânicas sempre andavamdevagar.)

— A Promessa é um tipo de novadireção para você — disse ela. —Não acha?

— Eu meio que pensei isso —confessei, cogitando como Debbie

reagiria se eu lhe contasse que olivro que era uma nova direção paramim tinha sido escrito havia quase12 anos.

— Ele tem... não sei... um tipode maturidade.

— Obrigado.— Mike? Acho que a ligação está

caindo. Sua voz parece abafada.Claro que parecia. Eu estava

mordendo a parte lateral de minhamão para me impedir de uivar derir. Então, cautelosamente, tirei amão da boca e examinei as marcasda mordida.

— Está melhor?— Muito melhor. Então, o livro

novo é sobre o quê? Me dá umapista.

— Você conhece a resposta paraisso, garota.

Debra riu.— “Você vai ter que ler o livro

para descobrir, Josephine” — disse.— É isso?

— É, sim senhora.— Bem, continue escrevendo.

Seus camaradas na Putnam estãomalucos com o modo como vocêestá passando para um nívelsuperior.

Eu me despedi, desliguei otelefone e então ri loucamente poruns dez minutos. Ri até chorar. Era

bem parecido comigo, porém.Sempre passar para um nívelsuperior.

Durante esse período, tambémconcordei em dar uma entrevistapor telefone a um jornalista daNewsweek para um artigo sobre ONovo Gótico Americano (o que querque isso fosse além de uma frasepara vender algumas revistas) eoutra para a Publishers Weekly, queapareceria exatamente antes dapublicação de A promessa deHelen. Concordei porque as duaspareciam suaves, o tipo de

entrevista que você dá ao telefoneenquanto lê a correspondência. EDebra estava encantada, poisnormalmente digo não a todapublicidade. Detesto essa parte dotrabalho e sempre detestei,principalmente o inferno dosprogramas de bate-papo na TV, aovivo, onde ninguém jamais leu adroga do seu livro e a primeirapergunta sempre é: “Onde é quevocê arranja essas ideias incríveis?”O processo de publicidade é como ira um sushi bar onde você é o sushi,e era maravilhoso passar por issodessa vez com a sensação de queeu consegui dar a Debra uma boa

notícia que ela pudesse levar aoschefes. “Sim”, diria ela, “ele ainda éum problema com a publicidade,mas consegui que fizesse umasduas coisas.”

Durante tudo isso meus sonhoscom Sara Laughs continuavam —não todas as noites, mas a cadaduas ou três noites, sem que eujamais pensasse neles durante odia. Fazia minhas palavrascruzadas, comprei um violãoacústico e comecei a aprender atocá-lo (contudo jamais seriaconvidado para fazer uma turnêcom Patty Loveless ou AlanJackson), esquadrinhava a cada dia

os inchados obituários no DerryNews à procura de nomes queconhecia. Em outras palavras, euestava praticamente à toa.

O que fez tudo isso terminar foium telefonema de Harold Oblowskiapenas três dias depois da ligaçãosobre o clube do livro de Debra. Atempestade se propagava lá fora —um episódio de neve-ruim-mudando-para-granizo que serevelou a última e a maior explosãodo inverno. Durante o anoitecer aenergia estaria cortada por todaDerry, mas quando Harold ligou, àscinco da tarde, as coisascomeçavam a piorar.

— Acabo de ter uma conversamuito boa com sua editora — disseHarold. — Uma conversa muitoesclarecedora, muito energizante.Na verdade, acabei de sair dotelefone.

— É?— É sim. Há uma sensação na

Putnam, Michael, que seu últimolivro pode ter um efeito positivo emsua posição de vendas no mercado.É muito forte.

— É — eu disse. — Eu o estoulevando para o próximo nível.

— Ahn?— É só tagarelice de minha

parte, Harold. Continue.

— Bem... Helen Nearing é umagrande protagonista e Skate é oseu melhor vilão até hoje.

Eu não disse nada.— Debra levantou a possibilidade

de transformar A promessa deHelen no primeiro passo para umcontrato de três livros. Um contratode três livros muito lucrativo. Tudosem nenhuma sugestão da minhaparte. Nenhuma editora quis secomprometer com mais de dois atéagora. Mencionei nove milhões dedólares, três milhões por livro,enfim, esperando que ela risse...mas um agente tem que começard e algum ponto, e eu sempre

escolho o ponto mais alto queconsigo encontrar. Acho que devoter oficiais romanos em algumponto de minha árvore genealógica.

É mais provável que sejammercadores de tapetes etíopes,pensei, mas sem dizê-lo. Eu mesenti como quando o dentista pegaum pouco pesado na Novocaína einunda os lábios e a língua dagente, assim como o dente queestá ruim e a parte da gengiva queo rodeia. Se eu tentasse falar,provavelmente só agitaria a bocade modo incoerente e cuspiriasaliva. Harold estava quaseronronando. Um contrato de três

livros para o novo e maduro MichaelNoonan. Altas jogadas, baby.

Desta vez não tive vontade derir. Desta vez senti vontade degritar. Harold continuava, feliz edesatento. Harold não sabia que aárvore que dava livros tinhamorrido. Harold não sabia que onovo Mike Noonan tinha uma faltade ar cataclísmica e acesso devômito tipo jato a cada vez quetentava escrever.

— Você quer saber como elarespondeu, Michael?

— Manda brasa.— Ela disse: “Bem, nove é

obviamente alto, mas é um lugar

tão bom para se começar comoqualquer outro. Sentimos que essenovo livro é um grande passo àfrente para ele.” Isso ée x t r a o r d i n á r i o . Extraordinário.Veja, eu não disse nem sim nemnão, queria falar com você primeiro,claro, mas acho que estamosolhando para sete-ponto-cinco, nomínimo. Na verdade...

— Não.Ele fez uma pausa. Longa o

bastante para eu perceber que euapertava tanto o telefone quemachuquei a mão. Tive que fazerum esforço consciente para relaxara mão.

— Mike, se você pelo menos meouvir...

— Não preciso ouvir você. Nãoquero falar sobre um novo contrato.

— Desculpe discordar, masjamais haverá época melhor. Pensenisso, pelo amor de Deus. Estamosfalando aqui de uma quantia alta.Se você esperar até depois que Apromessa de Helen seja publicada,não posso garantir que a mesmaoferta...

— Sei que não pode — eu disse.— Não quero garantias, não queroo fe r t a s , não quero falar emcontratos.

— Não precisa gritar, Mike, posso

ouvi-lo...Eu estava gritando? Sim, acho

que estava.— Você está insatisfeito com a

Putnam? Acho que Debra ficariamuito aflita de saber disso. Achotambém que Phyllis Grann fariapraticamente qualquer coisa pararesolver qualquer preocupação quevocê possa ter.

Está dormindo com Debra,Harold?, pensei, e imediatamenteisso pareceu a ideia mais lógica domundo — que aquele pequenoHarold Oblowski, cinquentão,atarracado e começando a ficarcalvo, estivesse fazendo isso com

minha loura e aristocrática editoraeducada na Smith. Você estádormindo com ela, conversa sobre omeu futuro enquanto estão nacama num quarto do Plaza? Estãotentando descobrir quantos ovos deouro podem tirar dessa velhagalinha antes de finalmentetorcerem seu pescoço e transformá-la em canja? É disso que estãoatrás?

— Harold, não posso falar sobreisso agora e não vou falar sobreisso agora.

— O que há de errado? Por queestá tão perturbado? Achei queficaria contente. Que droga, pensei

que ia se sentir nas alturas, porra!— Não há nada errado. É apenas

um momento ruim para mim, paraconversar sobre um contrato delongo prazo. Você vai ter que meperdoar, Harold. Tenho que tiraruma coisa do forno.

— Podemos pelo menos discutiresse próximo...

— Não — eu disse, e desliguei.Penso ter sido a primeira vez emminha vida adulta que desliguei otelefone na cara de alguém que nãofosse um vendedor.

Eu não tinha que tirar nada doforno, é claro, e estava perturbadodemais até para pensar em pôr

algo lá. Em vez disso, entrei nasala, servi-me de uma pequenadose de uísque e me sentei emfrente à TV. Fiquei ali sentado porquase quatro horas, olhando tudosem ver nada. Do lado de fora, atempestade continuava a desabar.Amanhã haveria árvores derrubadaspor toda Derry e o mundo pareceriauma escultura de gelo.

Às 9h15, a energia foi cortada,voltou por cerca de trinta segundos,depois sumiu de novo epermaneceu assim. Recebi issocomo uma sugestão para parar depensar no inútil contrato de Harolde em como Jo teria dado uma

risadinha de contentamento ante aideia de nove milhões de dólares.Levantei, puxei da parede a tomadada TV apagada para que ela nãovoltasse aos berros às duas damanhã (não precisaria ter mepreocupado com isso; Derry ficousem energia por quase dois dias) esubi. Deixei cair minhas roupasjunto da cama, arrastei-me para elasem nem mesmo me preocupar emescovar os dentes e adormeci emmenos de cinco minutos. Não seiquanto tempo depois disso foi queo pesadelo surgiu.

Foi o último sonho que tive no queagora penso como minha “sérieManderley”, o sonho culminante.Tornou-se ainda pior, suponho, pelaescuridão inquietante na qualdespertei.

Ele começou como os outros.Estou caminhando pela estrada,ouvindo os grilos e os mergulhões-do-norte, olhando principalmentepara a fenda do céu escurecendo láem cima. Chego à entrada decarros e ali alguma coisa mudou;alguém colocou um pequenoadesivo na tabuleta de SARA LAUGHS.Eu me aproximo e vejo que é umadesivo de uma estação de rádio. O

adesivo diz WBLM. 102.9, DIRIGÍVEL DE ROCK

AND ROLL DE PORTLAND.Do adesivo, volto a olhar para o

céu, e lá está Vênus. Penso numdesejo como sempre faço e peçoJohanna, com o cheiro úmido evagamente formidável do lago nonariz.

Algo se move pesadamente nobosque, fazendo estalar as folhassecas e quebrando um ramo.Parece grande.

É melhor descer até lá, diz umavoz na minha cabeça. Alguma coisafez um contrato por você, Michael.Um contrato de três livros, e esse éo pior tipo.

Não posso me mover, nuncamais vou conseguir, só posso ficaraqui. Estou com bloqueio paracaminhar.

Mas é só conversa. Eu possoandar. Desta vez eu posso andar.Estou encantado. Dei umimportante passo adiante. Nosonho, eu penso: Isso muda tudo!Isso muda tudo!

Desço andando pela entrada decarros, penetrando cada vez maisprofundamente no cheiro limpo masardido de pinheiro, pisando emalguns galhos caídos, chutandooutros para fora do caminho. Ergo amão para tirar o cabelo úmido da

testa e vejo o pequeno arranhãoque a percorre. Paro a fim de olharpara ele, curioso.

Não há tempo para isso, diz avoz-sonho. Vá até lá. Você tem umlivro para escrever.

Não consigo escrever, respondo.Essa parte está terminada.

Não, diz a voz. Há algoperturbador naquilo, que meassusta. Você teve o caminho deescritor e não o bloqueio de escritore, como pode ver, ele sumiu. Agorase apresse e desça lá.

Estou com medo, digo à voz.Medo de quê?Bem... e se a sra. Danvers

estiver lá?A voz não responde. Sabe que

não estou com medo da governantade Rebecca de Winter, ela é apenasum personagem num velho livro,nada senão um saco de ossos.Portanto, recomeço o caminho. Nãotenho escolha, parece, mas a cadapasso meu terror aumenta, equando estou a meio caminho damassa espalhada e sombria da casade troncos, o medo já penetrou emmeus ossos como febre. Algo estáerrado aqui, algo estácompletamente incorreto.

Vou fugir, penso. Vou correr devolta pelo caminho por onde vim,

vou fugir como um Homem-Biscoito, vou correr por todo ocaminho até Derry, se for preciso, ejamais voltarei aqui.

O problema é que posso ouviralgo ofegante e salivando e passosabafados atrás de mim nacrescente escuridão. A coisa nobosque agora está na entrada decarros. Bem atrás de mim. Se euvislumbrar sua figura, isso vai tirara sanidade da minha cabeça numúnico golpe. Algo de olhosvermelhos, algo curvado e faminto.

A casa é minha única esperançade segurança.

Continuo andando. Os arbustos

se amontoavam entrelaçados comomãos. À luz da lua crescente (a luanunca tinha surgido nesse sonho,mas nunca permaneci tanto temponele anteriormente), as folhasruidosas parecem rostos irônicos.Vejo olhos piscando e bocassorrindo. Abaixo de mim estão asjanelas negras da casa e sei quenão haverá luz quando eu entrar, atempestade cortou a energia, voumover o interruptor para cima epara baixo, para cima e para baixo,até que algo me alcance, peguemeu pulso e me puxe cada vezmais para dentro da escuridão.

Agora percorri três quartos da

entrada de carros. Posso ver osdegraus da conexão com a estradadescendo ao lago, e também aplataforma flutuante lá na água, umquadrado preto num rastro de luar.Bill Dean a pusera ali. Posso vertambém algo comprido no lugaronde a entrada de carros termina,junto ao alpendre. Nunca houve talobjeto ali antes. O que pode ser?

Outros dois ou três degraus e jásei. É um caixão, aquele pelo qualFrank Arlen barganhou... porque,disse ele, o agente funerário estavatentando me passar a perna. É ocaixão de Jo, e está ali de lado,com a parte de cima parcialmente

aberta, mas o suficiente para queeu veja que está vazio.

Acho que quero gritar, acho quepretendo dar meia-volta e correrpela entrada de carros — vouarriscar, com essa coisa atrás demim. Mas antes que eu possa fazê-lo, a porta de trás de Sara Laughsse abre e uma figura terrível saicorrendo para a escuridãocrescente. A figura é humana e aomesmo tempo não é. É uma coisabranca enrugada, com braçosflácidos erguidos. Não há rostoonde deveria haver, e mesmo assimestá guinchando numa voznasalada parecida com a dos

mergulhões-do-norte. Entãopercebo que é Johanna. Elaconseguiu escapar do caixão, masnão de sua mortalha desenrolada.Está toda emaranhada nela.

Que velocidade medonha tem acriatura! Não desliza como seimagina que os fantasmas façam,m a s dispara pelo alpendre nadireção da entrada de carros.Esteve esperando ali durante osonho todo enquanto eu estavaimobilizado, e agora que finalmentepude caminhar, pretende me pegar.Eu gritarei quando a coisa meenvolver com seus braços de seda,claro, gritarei quando sentir o

cheiro da carne apodrecendo,apinhada de vermes, e ver seusolhos escuros me encarandoatravés do tecido fino. Gritarei atéque a sanidade abandone minhamente para sempre. Gritarei... masnão há ninguém ali que possa meouvir. Só os mergulhões-do-norteme ouvirão. Voltei novamente aManderley, e dessa vez não saireinunca mais.

A estridente coisa branca estendeuos braços para me pegar e acordeino chão do quarto, gritando numavoz aguda e horrorizada, e batendo

a cabeça repetidamente em algumacoisa. Quanto tempo se passou atéeu finalmente perceber que nãoestava dormindo, que não estavaem Sara Laughs? Quanto tempo sepassou antes de eu perceber quetinha caído da cama em algummomento e tinha me arrastado peloquarto durante o sono, que euestava de quatro num canto,batendo a cabeça na junção dasparedes, repetindo o gesto comoum lunático num hospício?

Não sabia, não poderia saber,sem luz e com o relógio decabeceira apagado. Sei que noinício não conseguia sair do canto

porque me sentia mais seguro alido que na sala mais ampla, e seique por um longo tempo a força dosonho me dominou, até mesmodepois que acordei (sobretudo,imagino, porque não podia acendera luz e dissipar seu poder). Tinhamedo de que, se me arrastassepara fora de meu canto, a coisabranca irrompesse do banheiro,dando seu grito mortal, ansiosapara terminar o que haviacomeçado. Sei que meu corpointeiro tremia, e que estava geladoe molhado da cintura para baixoporque minha bexiga tinha sedescontrolado.

Fiquei ali no canto, ofegante emolhado, encarando a escuridão,me perguntando se poderia haverum pesadelo poderoso o bastantepara enlouquecer alguém. Acheientão (e acho agora) que quasedescobri isso naquela noite demarço.

Finalmente me senti capaz dedeixar o canto. Na metade dotrajeto, tirei a calça molhada dopijama e, quando o fiz, fiqueidesorientado. O que se seguiuforam miseráveis e surreais cincominutos (ou talvez fossem apenasdois) nos quais me arrastei para afrente e para trás em meu quarto,

batendo nas coisas e gemendocada vez que atingia algo com amão cega e tateante. Tudo que eutocava inicialmente parecia comaquela horrível coisa branca. Nadaque eu tocava parecia com coisaalguma que eu conhecia. Com osreconfortantes números verdes dorelógio de cabeceira tendodesaparecido e com meu sentido dedireção temporariamente perdido,eu poderia estar me arrastando emtorno de uma mesquita em AdisAbeba.

Por fim, caí de ombro sobre acama. Levantei, puxei a fronha dotravesseiro extra e enxuguei com

ela a virilha e a parte de cima daspernas. Depois me arrastei de voltapara a cama, me cobri com oscobertores e fiquei ali, tremendo,escutando o ruído contínuo dogranizo nas janelas.

Não consegui dormir pelo restoda noite, e o sonho não se apagoucomo os sonhos geralmente fazemquando despertamos. Fiquei ali,deitado de lado, a tremedeiralentamente diminuindo, pensandono caixão dela na entrada decarros, pensando que aquilo faziauma espécie de louco sentido — Jotinha adorado Sara, e se fosseassombrar algum lugar, seria lá

mesmo. Mas por que iria querer meferir? Por que minha Jo iria quererme ferir? Não conseguia pensar emnenhum motivo.

De algum modo, o tempopassou, e chegou um momento emque percebi que o ar tinha setornado de um tom cinza-escuro; asformas da mobília pairavam nelecomo sentinelas no nevoeiro. Aquiloera um pouco melhor. Um poucomais satisfatório. Eu ia acender ofogão à lenha da cozinha, decidi, efazer um café forte. Começar otrabalho de deixar essa coisa paratrás.

Joguei as pernas para fora da

cama e levantei a mão para tirar ocabelo úmido da testa. Fiqueiimobilizado com a mão na frentedos olhos. Devo tê-la arranhadoenquanto me arrastava no escuro,desorientado, tentando achar ocaminho para a cama. Havia umcorte raso e coagulado no dorso deminha mão, logo abaixo dos nósdos dedos.

Capítulo Cinco

Certa vez, quando eu tinha 16 anos,um avião rompeu a barreira do sombem acima da minha cabeça. Euestava caminhando pelo bosquequando aconteceu aquilo, pensandoem alguma história que ia escrever,talvez, ou como seria fantástico seDoreen Fournier fraquejassealguma sexta-feira à noite e medeixasse tirar suas calcinhasquando estivéssemos estacionados

no final da estrada Cushman.De qualquer modo, eu estava

viajando por estradas maisdistantes em minha mente e,quando o estrondo ocorreu, fuipego totalmente de surpresa. Caíno chão frondoso com as mãossobre a cabeça e o coração batendoloucamente, certo de que chegaraao fim de minha vida (e enquantoainda era virgem). Em meus 40anos, aquela fora a única coisa quese igualava ao sonho final da “sérieManderley” em terror absoluto.

Fiquei no chão, esperando o céucair sobre minha cabeça, e quandotrinta segundos ou mais se

passaram e ele não caiu, comecei aperceber que tinha sido apenas umpiloto de caça da base de aviaçãonaval de Brunswick ansioso demaispara ter de esperar até sobrevoar oAtlântico para ultrapassar avelocidade do som. Mas, putamerda, quem poderia ter imaginadoque seria tão alto?

Levantei-me lentamente e,enquanto estava ali com as batidasde meu coração finalmentediminuindo de intensidade, percebique não tinha sido o único a ficarapavorado pelo súbito estrondo nocéu claro. Pela primeira vez naminha lembrança, o pequeno

bosque atrás de nossa casa emProut’s Neck estava completamentesilencioso. Fiquei ali sob uma faixaempoeirada de sol, folhas caídassalpicando minha camiseta e meusjeans, prendendo a respiração,escutando. Jamais percebi umsilêncio como aquele. Mesmo numdia gelado de janeiro, o bosqueestaria cheio de conversa.

Enfim, um pintassilgo cantou.Houve dois ou três segundos desilêncio, e em seguida um gaiorespondeu. Outros dois ou trêssegundos se passaram, e então umcorvo acrescentou seu dedo deprosa. Um pica-pau começou a

martelar em busca de larvas deinseto. Um esquilo zumbiu pelavegetação rasteira à minhaesquerda. Um minuto depois de euter levantado, o bosque estavacompletamente vivo de pequenosruídos novamente; voltara a seusnegócios, como habitualmente, eeu continuei com os meus. Noentanto, jamais esqueci aqueleestrondo inesperado, ou o silênciomortal que se seguiu.

Pensei muitas vezes naquele diade junho ao despertar do pesadelo,e não havia nada de extraordinárionisso. De certo modo, as coisastinham mudado, ou poderiam

mudar... mas primeiro vem osilêncio, enquanto nos asseguramosde que não estamos feridos e que operigo — se havia perigo —desapareceu.

Derry esteve fechada pela maiorparte da semana seguinte, dequalquer forma. Gelo e ventosfortes causaram uma grandequantidade de danos durante atempestade, e uma repentinaqueda de 7 graus na temperaturaposteriormente tornou o ato decavar difícil e a limpeza lenta.Acrescente-se a isso o fato de que aatmosfera depois de umatempestade de março é sempre

melancólica e pessimista; somosatingidos por tempestades assimtodos os anos (e em boa parte, porduas ou três em abril, se nãotivermos sorte), mas nuncaparecemos esperá-las. Cada vezque levamos essa pancada, nós aencaramos como uma ofensapessoal.

Certo dia, perto do fim dasemana, o tempo afinal começou amelhorar. Aproveitei a chance,saindo para tomar uma xícara decafé e comer um doce, no meio damanhã, num pequeno restaurantetrês portas depois do Rite Aid, ondeJohanna tinha feito sua última

compra. Estava bebendo,mastigando e fazendo as palavrascruzadas do jornal quando alguémperguntou: “Posso sentar na suamesa, sr. Noonan? Isso aqui estámuito cheio hoje.”

Ergui os olhos e vi um velho queeu conhecia, mas que nãoconseguia identificar.

— Ralph Roberts — disse ele. —Sou voluntário na Cruz Vermelha.Eu e minha esposa, Lois.

— Ah, claro, é isso — eu disse.Doo sangue para a Cruz Vermelha acada seis semanas, mais ou menos.Ralph Roberts era um dos velhoscamaradas que passavam o suco e

os biscoitos depois, dizendo-lhepara não levantar ou fazer qualquermovimento súbito se você sesentisse tonto.

— Sente-se, por favor.Olhou para o meu jornal,

dobrado no lugar das palavrascruzadas e estendido numa faixa desol, enquanto deslizava para amesa.

— Não acha que fazer palavrascruzadas no Derry News é comocancelar o lançador num jogo debeisebol? — perguntou ele.

Eu ri e concordei com a cabeça.— Faço isso pela mesma razão

que as pessoas escalam o Everest,

sr. Roberts... porque está lá. Só quecom as palavras cruzadas do News,ninguém cai.

— Pode me chamar de Ralph. Porfavor.

— Ok. E eu sou Mike.— Ótimo. — Ele riu, revelando

dentes que eram tortos e um poucoamarelados, mas todos seus. —Gosto de passar aos prenomes. Écomo poder tirar a gravata.Tivemos uma ventaniazinha etanto, hein?

— É — eu disse —, mas estáesquentando de modo bemagradável agora. — O termômetrohavia dado um de seus ágeis saltos

de março, subindo dos 4 grausnegativos da noite anterior para 10graus naquela manhã. Melhor doque a subida da temperatura era osol banhando novamente nossosrostos. Foi aquele calor que meimpeliu para fora de casa.

— A primavera vai chegar aqui,acho. Em alguns anos ela se perdeum pouco, mas sempre pareceachar o caminho de volta para casa.— Ele bebeu seu café, depoiscolocou a xícara na mesa. — Nãotenho visto você ultimamente naCruz Vermelha.

— Estou reciclando — eu disse,mas era mentira; eu me tornei

qualificado para doar mais meiolitro duas semanas antes. O cartãode lembrete estava em cima dageladeira. Simplesmente tinhaesquecido. — Na semana que vem,com certeza.

— Só estou dizendo isso porquesei que você é um A, e semprepodemos usá-lo.

— Reserve uma cadeira paramim.

— Pode contar com isso. Estátudo bem? Estou perguntandoporque você parece cansado. Se éinsônia, tem a minha solidariedade,acredite.

Acho que ele tinha de fato o

olhar do insone — olhosesbugalhados, de certo modo. Masera também um homem de seus 70e tantos anos, e não acho quealguém chegue a essa idade sem ossinais dela. Fique um pouco por aí,e a vida talvez bata em suas maçãsdo rosto e olhos. Fique muito tempoe acabará se parecendo com oboxeador Jake La Motta depois de15 rounds difíceis.

Abri a boca para dizer o quesempre digo quando alguém mepergunta se estou bem, depoispensei por que teria sempre quedesfiar aquela cansativa merda decaubói, afinal de contas a quem eu

estava tentando enganar? O queaconteceria se eu contasse ao caraque me dava cookies com pingos dechocolate na Cruz Vermelha, depoisde a enfermeira retirar a agulha demeu braço, que não estava mesentindo cem por cento?Terremotos? Incêndios eenchentes? Merda.

— Não — eu disse. — Narealidade, não tenho me sentidotão bem, Ralph.

— Resfriado? Tem andado por aí.— Não. O resfriado me pulou

desta vez. E tenho dormido bem. —O que era verdade, não tinhahavido nenhuma recorrência dos

sonhos de Sara Laughs em suaversão normal ou de altaoctanagem. — Acho que estoumelancólico.

— Bem, você devia tirar umasférias — disse ele, depois bebeu ocafé. Quando olhou novamentepara mim, franziu as sobrancelhas eabaixou a xícara. — O que é? Algoestá errado?

Não, pensei em dizer. Você foiapenas o primeiro pássaro a cantardentro do silêncio, Ralph, isso étudo.

— Não, nada errado — eu disse,e então, porque quis ver o saborque teriam as palavras saindo de

minha própria boca, eu as repeti. —Umas férias.

— É — disse ele, rindo. — Aspessoas fazem isso o tempo todo.

As pessoas fazem isso o tempotodo. Ele tinha razão; até genteque, a rigor, não podia arcar comumas férias. Quando ficavamcansados. Quando ficavamembaralhados em sua própriamerda. Quando o mundo erademais para eles, ganhando egastando.

Eu certamente podia arcar comumas férias, e certamente podia

tirar tempo de trabalho — quetrabalho, ha-ha? — e precisei que ohomem-biscoito da Cruz Vermelhaapontasse o que deveria ter sidoevidente a um cara formado numafaculdade como eu: que não tiravaumas férias verdadeiras desde queJo e eu tínhamos ido às Bermudas,no inverno antes de ela morrer.Meu moinho particular não moíamais, mas ainda assim mantive onariz virado para ele. Foi somentenaquele verão, quando li o obituáriode Ralph Roberts no News (ele foiatropelado por um carro), quepercebi totalmente o quanto lhedevia. Posso dizer que seu conselho

foi melhor do que qualquer copo desuco de laranja que já tomei apósdoar sangue.

Quando deixei o restaurante não fuipara casa, mas perambulei pormetade da maldita cidade, a partedo jornal com as palavras cruzadasparcialmente feitas debaixo dobraço. Andei até ficar gelado,apesar da temperatura que subia.Não pensava em nada, e mesmoassim pensava em tudo. Era umtipo especial de pensamento, o tipoque sempre me ocorria quandochegava perto de começar um livro

e, embora não pensasse assimhavia anos, entrei nele de modofácil e natural, como se jamaistivesse havido distância entre nós.

É como se uns sujeitos numgrande caminhão tivessem paradoem sua entrada de carros ecarregassem coisas para o seuporão. Não consigo explicar melhora situação. Não se pode ver o quesão essas coisas porque estãotodas embrulhadas em mantasacolchoadas, mas não é necessáriovê-las. É mobília, tudo que vocêprecisa para transformar sua casanum lar, arrumá-la direito,exatamente do modo como queria.

Depois que os camaradas entramde novo no caminhão e se afastam,você desce ao porão e anda por ali(como andei por Derry no finaldaquela manhã, subindo a colina edescendo o vale com minhas velhasgalochas), tocando uma curvaacolchoada aqui, um ânguloacolchoado ali. Isto é um sofá? Istoé uma cômoda? Não importa. Estátudo aqui, os homens da mudançanão esqueceram nada, e apesar devocê mesmo ter que levar tudopara o andar de cima (forçandofrequentemente sua velha colunano processo), está tudo bem. Oimportante é que a entrega foi

totalmente feita.Dessa vez pensei — esperei —

que o caminhão tivesse trazido ascoisas de que eu precisava para osquarenta anos restantes; os anosque eu poderia ter de passar naZona sem Escrever. Vieram à portado porão, bateram educadamentee, não sendo atendidos depois devários meses, finalmente pegaramum aríete. EI, COMPANHEIRO, ESPERO QUE OBARULHO NÃO O ASSUSTE DEMAIS, DESCULPE PELAPORTA!

Não me importava com a porta;importava-me com a mobília.Algum pedaço quebrado oufaltando? Acho que não. Achei quesó tinha que levá-la para cima, tirar

os acolchoados e colocá-la no lugar.Na minha volta para casa, passei

por The Shade, o encantadorcineminha de Derry que passafilmes antigos e que prosperouapesar (ou talvez por causa) darevolução do vídeo. Naquele mês,exibia clássicos de ficção científicados anos 1950, mas abril eradedicado a Humphrey Bogart, oeterno favorito de Jo. Fiquei sob amarquise do cinema por algumtempo, examinando um doscartazes dos próximos filmes. Entãofui para casa, escolhi um agente deviagens ao acaso na lista telefônicae disse ao cara que queria ir para

Key Largo. O senhor quer dizer KeyWest, disse ele. Não, repeti, querodizer Key Largo, exatamente comono filme de Bogie e Bacall. Trêssemanas. Então pensei melhor. Euera rico, estava sozinho eaposentado. Que merda era aquelade “três semanas”? São seissemanas, eu disse. Encontre umchalé ou coisa parecida para mim.Vai ser caro, disse ele. Respondique não tinha importância. Quandoeu voltasse a Derry, seriaprimavera.

Enquanto isso, tinha mobília paradesembrulhar.

Fiquei encantado com Key Largodurante o primeiro mês, ecompletamente entediado nas duasúltimas semanas. No entanto,continuei lá porque o tédio é bom.As pessoas com alta tolerância aotédio podem fazer um monte decoisas. Comi um bilhão decamarões, bebi cerca de milmargaritas e li 23 romances deJohn D. MacDonald, contando um aum. Eu me queimei, descasquei efinalmente me bronzeei. Compreium boné de aba longa comPARROTHEAD bordado nele com umalinha verde brilhante. Andei pelamesma faixa de praia até conhecer

todos pelo primeiro nome. Edesembrulhei a mobília. Nãogostava de boa parte dela, mas nãohavia dúvida de que combinavacom a casa.

Pensei em Jo e em nossa vidajuntos. Eu me lembrei de quandodisse a ela que ninguém jamaisconfundiria Sendo dois com Lookhomeward, angel.3 “Você não vaivir agora com essa besteira deartista frustrado, vai, Noonan?”,respondeu ela... e durante o meutempo em Key Largo tais palavrascontinuaram voltando, sempre navoz de Jo: besteira, besteira deartista frustrado, toda a porra dessa

besteira de estudante de artistafrustrado.

Pensei em Jo em seu longoavental, vindo em minha direçãocom um chapéu cheio de cogumelostrombeta negra, rindo e triunfante.“Ninguém na TR come melhor dosque os Noonan esta noite!”, gritou.Pensei nela pintando as unhas dospés, curvada entre as própriascoxas do modo que só as mulheresexecutando esse tipo de coisaconseguem fazer. Pensei nela mejogando um livro porque eu ri deseu novo corte de cabelo. Penseinela tentando aprender a tocar umbreakdown em seu banjo e em sua

aparência sem sutiã num suéterfino. Pensei nela chorando, rindo ezangada. Pensei nela me dizendoque aquilo era besteira, tudobesteira de artista frustrado.

E pensei nos sonhos,especialmente no sonhoculminante. Poderia fazer aquilofacilmente, pois ele jamais sedissipava como os sonhos comuns.O sonho final de Sara Laughs eminha primeira polução noturna(por causa de uma moça deitadanuma rede e comendo umaameixa) são os únicos quecontinuam perfeitamente clarospara mim, ano após ano; o resto

são fragmentos enevoados oucompletamente esquecidos.

Havia muitos detalhes nítidosnos sonhos de Sara — osmergulhões-do-norte, os grilos, aestrela da noite e meu pedido aela, para citar só alguns —, mas euachava que a maioria dessas coisaseram verossímeis. O cenário, sedesejar. Como tal, podiam serdescartados de minhasconsiderações. Sobravam então trêselementos importantes, trêsgrandes peças de mobília a seremdesembrulhadas.

Enquanto eu estava na praiaobservando o sol se pôr entre meus

dedos dos pés sujos de areia, nãoachei que era preciso ser analistapara ver como essas coisas secombinavam.

Nos sonhos de Sara, oselementos importantes eram obosque atrás de mim, a casa abaixode mim e o próprio Michael Noonan,imobilizado no meio. Está ficandoescuro e há perigo no bosque. Seráassustador ir para a casa láembaixo, talvez porque tenhaficado vazia por tanto tempo, masjamais duvidei de que preciso ir atélá; amedrontador ou não, é o únicoabrigo que tenho. Só que não possofazê-lo. Não consigo me mexer.

Estou no caminho do escritor.No pesadelo, finalmente sou

capaz de ir em direção ao abrigo,só que este se revela falso. Revela-se mais perigoso do que eu espereialgum dia em meu... bem, sim, emmeus sonhos mais alucinados.Minha mulher morta corre parafora, gritando e ainda emaranhadaem sua mortalha, para me atacar.Mesmo cinco semanas depois e aquase cinco mil quilômetros deDerry, lembrar daquela veloz coisabranca com seus braços flácidos mefazia tremer e olhar para trás porcima de meu ombro.

Mas era Johanna? Eu realmente

não sabia, sabia? A coisa estavatoda embrulhada. O caixão pareciacom aquele em que tinha sidoenterrada, mas podia ser apenasuma pista falsa.

Caminho do escritor, bloqueio deescritor.

Não consigo escrever, dissera àvoz no sonho. A voz diz queconsigo. Diz que o bloqueio deescritor sumiu, e acredito nelaporque o caminho do escritorsumiu; eu finalmente me dirigi paraa entrada de carros, para o abrigo.Mas tenho medo. Mesmo antes quea coisa branca e sem formaaparecesse, estava aterrorizado.

Digo que tenho medo da sra.Danvers, mas isso é apenas minhamente no sonho misturando SaraLaughs com Manderley. Tenhomedo de...

— Tenho medo de escrever —ouvi-me dizendo alto. — Tenhomedo até de tentar.

Foi na noite antes de voar devolta para o Maine, e eu não estavamuito sóbrio, e continuava a beber.No final de minhas férias, eu bebiamuito de noite.

— Não é o bloqueio que meassusta, é desfazer o bloqueio.Estou realmente fodido, pessoal.Fodido em grande estilo.

Fodido ou não, pensei quefinalmente chegaria ao centro daquestão. Tinha medo de desfazer obloqueio, medo talvez de pegar aspontas soltas de minha vida eprosseguir sem Jo. Contudo umaparte profunda da minha menteacreditava que eu precisava fazerisso; os ruídos ameaçadores atrásde mim no bosque se referiam aisso. E a crença explica muito.Demais talvez, especialmente sevocê é imaginativo. Quando umapessoa imaginativa entra emdificuldades mentais, a linha entreser e parecer dá um jeito de sumir.

Coisas no bosque, sim, senhor.

Eu tinha uma delas bem aqui namão, enquanto pensava isso. Erguiminha bebida, segurando o copocontra o céu do oeste para que osol do poente parecesse queimar ovidro. Estava bebendo muito, etalvez aquilo fosse tranquilo em KeyLargo — que droga, espera-se queas pessoas bebam muito nas férias,é quase lei —, mas eu andavabebendo demais, mesmo antes deir para lá. Uma quantidade quepoderia sair do controle de repente.Uma quantidade que podia causarproblemas para a pessoa.

Coisas no bosque, e no lugarpotencialmente seguro guardado

por um bicho-papão que não eraminha mulher, mas talvez alembrança da minha mulher. Faziasentido, porque Sara Laughssempre fora o local preferido de Jono planeta Terra. Esse pensamentolevou a outro, a um que me fezmover as pernas para as laterais daespreguiçadeira na qual estavareclinado e me sentar comagitação. Sara Laughs foi também olugar onde o ritual começou...champanhe, última linha e abênção totalmente importante:Bom, então isso está bem, não é?

Eu queria que as coisas ficassembem de novo? Queria mesmo? Há

um mês ou um ano atrás eupoderia não ter certeza, mas agoratinha. A resposta era sim. Queriaprosseguir — soltar-me de minhamulher morta, reabilitar meucoração, andar para a frente. Mas,para fazer isso, eu teria que voltar.

Voltar à casa de troncos. Voltar aSara Laughs.

— É — eu disse, e minha pele searrepiou. — É, é isso.

Então, por que não?A pergunta me fez sentir tão

estúpido quanto a observação deRalph Roberts de que eu precisavade umas férias. Se eu precisavavoltar a Sara Laughs agora que as

férias terminaram, na verdade porque não? A primeira e a segundanoite poderiam ser um poucoassustadoras, uma ressaca de meusonho final, mas só o fato de estarlá poderia dissolver o sonho maisrapidamente.

E (só permiti que esse últimopensamento entrasse num cantohumilde de minha menteconsciente) algo podia acontecercom minha escrita. Não eraprovável... mas também não eraimpossível. A não ser por ummilagre, não fora meu pensamentono Dia do Ano-novo enquanto mesentava na beira da banheira,

segurando um chumaço úmidocontra o corte na testa? Sim. A nãoser por um milagre. Às vezes cegoscaem, batem com a cabeça erecuperam a visão. Às vezes atédeficientes físicos conseguem jogarfora as muletas quando chegam aoalto dos degraus da igreja.

Eu tinha oito ou nove mesesantes que Harold e Debracomeçassem realmente a meamolar sobre o romance seguinte.Resolvi passar aquele tempo emSara Laughs. Precisaria de certoprazo para amarrar as coisas emDerry, e certo prazo para que BillDean aprontasse a casa no lago

para uma permanência de um ano,mas eu poderia estar lá no 4 deJulho, facilmente. Decidi que erauma boa data para ir, não sóporque era aniversário dos EstadosUnidos como também porque era ofim da estação de insetos no oestedo Maine.

No dia em que arrumei minhabagagem de férias (deixei asedições populares de John D.MacDonald para o próximohabitante da cabana), raspei abarba de uma semana de um rostotão bronzeado que não pareciamais o meu e voei de volta para oMaine, eu estava decidido: voltaria

para o lugar que meu subconscienteidentificou como abrigo contra aescuridão que aumentava; voltariaainda que minha mente tivessetambém sugerido que fazer aquiloteria seus riscos. Eu não voltariaesperando que Sara fosseLourdes... mas me permitiria teresperanças e, quando visse aestrela vespertina espreitandosobre o lago pela primeira vez, eume permitiria desejar isso.

Só uma coisa não se ajustava emminha desconstrução dos sonhos deSara e, como não consegui explicá-

la, tentei ignorá-la. Entretanto, nãotive muita sorte; eu ainda eraparcialmente um escritor, acho, eum escritor é um homem queensinou a mente a se comportarmal.

Era o corte no dorso da minhamão. Esse corte tinha estado emtodos os meus sonhos, eu juraria...e então ele realmente apareceu.Você não descobre esse tipo demerda nas obras do dr. Freud; umacoisa assim era só para a linha deemergência dos AmigosParanormais.

Era uma coincidência, apenasisso, pensei enquanto meu avião

começou a descer. Eu estava napoltrona A-2 (o simpático em viajarde avião na frente é que, se elecair, você é o primeiro a chegar aolugar do acidente) e olhando paraas florestas de pinheiros enquantoplanávamos em direção aoAeroporto Internacional de Bangor.A neve tinha desaparecido por maisum ano; eu tirei férias até matá-la.Só coincidência. Quantas vezesvocê cortou as mãos na sua vida?Quero dizer, elas estão sempre nafrente, não é? Gesticulando por aí.Praticamente implorando por umcorte.

Tudo aquilo devia parecer

verdade, e mesmo assim nãoparecia muito. Devia mas... bem...

Eram os garotos no porão. Erameles que não engoliam aquilo. Osgarotos no porão não engoliamaquilo de modo nenhum.

Naquele momento houve umbaque quando o 737 aterrissou, eeu empurrei toda aquela linha depensamento para fora da cabeça.

Uma tarde, pouco depois de tervoltado para casa, remexi nosarmários até descobrir as caixas desapato contendo antigas fotos deJo. Peguei-as e depois examinei as

de Dark Score Lake. Havia umnúmero surpreendente delas, mascomo Johanna era aficionada porfotografia, não havia muitas comela. Encontrei uma, no entanto, queme lembrei de ter tirado em 1990ou 1991.

Às vezes, até um fotógrafo semtalento pode tirar uma boa foto —se setecentos macacos passaremsetecentos anos batucando emsetecentas máquinas de escrever etudo o mais —, e isso era bom.Nela, Jo estava em pé naplataforma flutuante, tendo por tráso sol vermelho-dourado. Tinhaacabado de sair da água, ainda

pingando, e usava um traje debanho de duas peças cinza comdebrum vermelho. Eu a surpreendirindo e afastando o cabeloensopado da testa e das têmporas.Seus mamilos estavam salientes.Ela parecia uma atriz num cartaz decinema de um daqueles filmes B deprazer proibido sobre monstros emParty Beach, ou de um serial killerespreitando o campus.

Fui atingido violentamente porum súbito e poderoso acesso delascívia por ela. Eu a queria noandar de cima exatamente como nafotografia, com mechas do cabelogrudadas no rosto e naquele traje

de banho bem justo. Queria sugarseus seios pela parte de cima daroupa de banho, provar o gosto dotecido e sentir a dureza deles.Queria sugar a água do algodãocomo leite, depois arrancar a partede baixo da roupa de banho e fodê-la até explodirmos.

Com as mãos um poucotrêmulas, deixei a foto de lado,juntamente com algumas outras deque eu gostava (embora nãogostasse de nenhuma do mesmomodo). Tive uma enorme ereção,daquelas que parecem pedrarecoberta de pele. Tenha umadessas e você não serve para nada

até que ela vá embora.O modo mais rápido de resolver

um problema desses quando não hámulher por perto querendo ajudar ése masturbar; naquela época,porém, a ideia jamais passou pelaminha cabeça. Em vez disso,caminhei inquieto pelos cômodosdo andar de cima da casa, abrindoe fechando os punhos e com o queparecia um enfeite encapuzadoenchendo a frente do jeans.

A raiva pode ser um estágionormal do processo de sofrimento— eu li que é —, mas nunca fiqueicom raiva de Johanna depois desua morte até o dia em que

encontrei aquele retrato. Então,minha nossa, lá estava eu, com umtesão que simplesmente nãopassava, furioso com ela. Aquelavaca idiota, por que saiu correndonum dos dias mais quentes do ano?Vaca idiota e sem consideração, medeixar sozinho assim, sem podernem sequer trabalhar.

Sentei na escada e pensei noque deveria fazer. O que deveriafazer era um drinque, resolvi, edepois talvez outro drinque, parafazer descer o primeiro. Naverdade, levantei dali antes dedecidir que não era uma ideia muitoboa, afinal de contas.

Em vez disso fui ao escritório,liguei o computador e fiz um jogode palavras cruzadas. Naquelanoite, quando fui para a cama,pensei em olhar a foto de Jo deroupa de banho novamente.Cheguei à conclusão que era umaideia quase tão ruim quanto tomaralguns drinques quando eu estavame sentindo com raiva e deprimido.Mas vou ter o sonho esta noite,pensei ao apagar a luz. É claro quevou ter aquele sonho.

Mas não tive. Meus sonhos deSara Laughs pareciam terminados.

Depois de uma semana, a ideia depelo menos passar o verão no lagotornou-se melhor do que nunca.Assim, numa tarde de sábado noinício de maio, quando calculei quequalquer caseiro de respeito doMaine estaria em casa assistindo aum jogo de beisebol do Red Sox,liguei para Bill Dean e lhe disse queestaria em minha casa do lago apartir de 4 de Julho mais oumenos... e se as coisas corressemcomo eu esperava, passaria ooutono e o inverno lá também.

— Bem, é ótimo — disse ele. — Érealmente uma boa notícia. Ummonte de gente por aqui sentiu

falta de você, Mike. Muitos queremlhe dar os pêsames por sua esposa,sabe?

Havia um levíssimo toque decensura em sua voz ou era apenasminha imaginação? Certamente Joe eu tínhamos existido para aregião; havíamos dadocontribuições significativas para apequena biblioteca que servia aárea de Motton-Kashwakamak-Castle View, e Jo dirigiu a bem-sucedida campanha de fundos paraconseguir um veículo dotado deuma biblioteca móvel para alocalidade. Além disso, ela haviasido membro de um círculo de

costura de senhoras (mantas detricô eram sua especialidade) emembro de boa reputação daCooperativa de Artesanato doCondado de Castle. Visitas adoentes... ajudando com acampanha anual de doação desangue do corpo de bombeiros...recepcionando em um quiosquedurante a Summerfest em CastleRock... e coisas assim eram apenasum começo para ela. Jo tambémnão o fazia com qualquerostentação, mas de modo discretoe humilde, com a cabeça baixa(frequentemente para esconder umsorriso irônico, devo acrescentar —

minha Jo tinha um senso de humortipo Ambrose Bierce). Jesus, pensei,talvez o velho Bill tenha direito demostrar censura.

— As pessoas sentem falta dela— eu disse.

— É, sentem sim.— Eu ainda sinto muito a falta

dela. Acho que é por isso que tenhoficado longe do lago. Passamosmuitas épocas boas aí.

— Acho que sim. Mas seria ótimover você por aqui de novo. Vou termuito o que fazer. O lugar estábem, você poderia se mudar estatarde, se quisesse, mas quandouma casa permanece vazia o tempo

que Sara está, fica mofada.— Eu sei.— Vou chamar Brenda Meserve

para limpar todo aquele negócio dealto a baixo. A mesma moça desempre, você sabe.

— Brenda é um pouco velha parauma grande limpeza de primavera,não é? — A senhora em questãotinha cerca de 65 anos, era robustae alegremente grosseira. Gostavaespecialmente de piadas sobre ocaixeiro-viajante que passava anoite como um coelho, pulando deburaco em buraco. Nada de sra.Danvers com ela.

— Senhoras como Brenda

Meserve nunca ficam velhas demaispara supervisionar as festividades— disse Bill. — Ela leva duas outrês moças para o aspirador e paralevantar as coisas pesadas. Vão tecustar talvez trezentos dólares. Oque acha?

— Uma pechincha.— O poço precisa ser testado, e

o gerador também, mesmo que eutenha a certeza que estejam ok. Vium ninho de vespas junto ao velhoestúdio de Jo que quero fumigarantes que as madeiras sequem. Ah,e o telhado da casa velha... vocêsabe, a peça do meio... precisa serrefeito. Eu devia ter te falado sobre

ele no ano passado, mas sem vocêusar a casa, deixei de lado. Issotambém pode ser feito?

— Pode, até 10 mil. Se passardisso, ligue para mim.

— Quero ser mico de circo se vaipassar disso.

— Procure aprontar tudo antesque eu chegue, tudo bem?

— Tá, claro. Você vai querer suaprivacidade, eu sei... mas é bomque saiba que não vai ter isso logo,logo. Ficamos chocados quando elase foi tão jovem; todos nós aqui.Chocados e tristes. Ela era querida.

— Obrigado, Bill. — Sentilágrimas ardendo nos olhos. A dor é

como um hóspede bêbado, semprevoltando para mais um abraço dedespedida. — Obrigado por suaspalavras.

— Você vai ter sua porção debolos de cenoura, companheiro. —Ele riu, mas um pouco em dúvida,temendo estar cometendo umaimpropriedade.

— Consigo comer um monte debolo de cenoura — eu disse —, e seo pessoal exagerar, bem, KennyAuster ainda tem aquele grandegalgo irlandês?

— Tem, aquela coisa comeriabolo até explodir! — exclamou Billmuito bem-humorado. Riu até

tossir. Esperei, sorrindo um poucopara mim mesmo. — Kenny chamao cachorro de Mirtilo, sabe-se lá porquê. Ele não é a coisa maisdestrambelhada?! — Imaginei queestivesse se referindo ao cachorro enão a seu dono. Com não muitomais do que um metro e meio dealtura e todo arrumadinho, KennyAuster era o oposto dodestrambelhado, este peculiaradjetivo do Maine que significadesajeitado, estabanado epropenso a levar tombos.

De repente percebi que sentiafalta daquela gente — Bill, Brenda,Buddy Jellison, Kenny Auster e

todos os outros que moravam o anotodo junto ao lago. Sentia falta atémesmo de Mirtilo, o galgo quetrotava por toda parte com acabeça erguida como se tivessemeio cérebro nela e longos fios desaliva pendendo das mandíbulas.

— Também tenho que descer láe limpar as árvores caídas nanevasca — disse Bill. Pareciaconstrangido. — Até que não foi tãoruim esse ano, aquela últimagrande tempestade deixou neve portoda parte, graças a Deus, mas háuma boa quantidade de lixo queainda tenho que tirar. Não voudemorar a fazer isso, agora. O fato

de você não usar a casa não é umadesculpa. Venho descontando seuscheques. — Havia algo divertido emouvir o velho babaca grisalhofazendo mea-culpa; Jo teria batidocom os pés no chão e rido, tenhocerteza.

— Se tudo estiver direito efuncionando no 4 de Julho, Bill, eufico satisfeito.

— Então vai ficar satisfeito comoum porco na lama. Isso é umapromessa. — O próprio Bill pareciasatisfeito como um porco na lama,e fiquei contente. — Vai vir para cáe escrever um livro à beira d’água?Como nos velhos tempos? Não que

os dois últimos livros não sejamótimos, minha mulher nãoconseguiu largar aquele último porum segundo, mas...

— Não sei — eu disse, o que eraverdade. E então a ideia meocorreu. — Bill, pode me fazer umfavor antes de limpar a entrada decarros e acionar Brenda Meserve?

— Se eu puder, com o maiorprazer — respondeu. Então eu lhedisse o que queria.

Quatro dias depois, recebi umpequeno pacote com seu lacônicoendereço para resposta: DEAN/ENT

GERAL/TR-90 (DARK SCORE). Eu o abri epuxei vinte fotos tiradas com umadaquelas pequenas câmeras quesão usadas uma vez e depoisjogadas fora.

Bill encheu o filme com fotos devários ângulos da casa, a maioriatransmitindo aquele ar sutil denegligência de quando um lugarnão é suficientemente utilizado...até mesmo um que é acaseirado(para usar as palavras de Bill) dáaquela impressão depois de algumtempo.

Mal olhei para as fotos. Asprimeiras quatro eram as que euqueria; enfileirei-as na mesa da

cozinha, onde a forte luz do solincidia diretamente sobre elas. Billas tirara do alto da entrada decarros, apontando a câmeradescartável para baixo, onde seesparramava Sara Laughs. Podiaver o musgo que tinha crescido nãoapenas nos troncos da casaprincipal, mas também nos das alasnorte e sul. Podia ver a confusão deramos caídos e os destroços dasagulhas de pinheiro a esmo naentrada de carros. Bill deve terficado tentado a limpar tudo aquiloantes de tirar os instantâneos, masnão o fizera. Eu lhe tinha ditoexatamente o que queria —

“verrugas e tudo” foi a frase queusei —, e Bill me deu o que pedi.

Os arbustos dos dois lados daentrada de carros tinham crescidobastante desde que Jo e euhavíamos passado uma temporadasignificativa no lago; não estavamexatamente selvagens, mas algunsdos ramos mais compridospareciam se estender avidamenteuns para os outros através doasfalto, como amantes separados.

Contudo, meus olhos voltavamrepetidamente para o alpendre aolado da entrada de carros. Asoutras semelhanças entre as fotos emeus sonhos de Sara Laughs

podiam ser apenas umacoincidência (ou a imaginaçãogeralmente surpreendentementeprática do escritor em ação), maseu conseguia explicar os girassóiscrescendo através das tábuas doalpendre tanto quanto conseguiaexplicar o corte no dorso da minhamão.

Virei uma das fotos. Na parte detrás, num garrancho, Bill tinhaescri to: Esses camaradas estãobastante adiantados... e invadindo!

Desvirei o retrato. Três girassóis,crescendo através das tábuas doalpendre. Não dois, nem quatro,mas três grandes girassóis com

rostos como lanternas.Exatamente como os do meu

sonho.

3 Primeiro romance do escritor americanoThomas Wolfe, de 1929. (N. do E.)

Capítulo Seis

No dia 3 de julho de 1998, jogueiduas maletas e meu PowerBook noporta-malas de meu Chevrolet detamanho médio, comecei a darmarcha a ré pela entrada de carros,então parei e entrei novamente nacasa. Eu a senti vazia e de certomodo abandonada, como umamante fiel que foi deixado e nãoentende por quê. A mobília não foracoberta, e a energia ainda estava

ligada (eu sabia que A GrandeExperiência do Lago podia serevelar um rápido e completofracasso), mas o número 14 da ruaBenton parecia esquecido mesmoassim. Ambientes muito cheios demobília para produzirem eco aindao faziam quando andei por eles, eem toda parte parecia haver luzempoeirada demais.

Em meu escritório, contra apoeira, o computador estavaencapuzado como um executor.Ajoelhei-me diante dele e abri umadas gavetas da mesa. Dentro delahavia quatro resmas de papel.Peguei uma, comecei a andar com

ela debaixo do braço; então penseimelhor e voltei. Eu tinha colocadoaquela provocante foto de Jo emtraje de banho na gaveta larga domeio. Então a retirei, rasguei oinvólucro de papel na parte de trásda resma e coloquei a foto no meiodela, como um marcador de livro.S e por acaso eu começasse aescrever de novo, e se o texto fosseadiante, encontraria Johanna porvolta da página 250.

Deixei a casa, tranquei a portados fundos, entrei no carro e meafastei. E nunca mais voltei.

Senti-me tentado a descer até olago e examinar o trabalho — quese revelou mais extenso do que BillDean originalmente tinha esperado— em várias ocasiões. O que memanteve distante foi uma sensação,nunca muito articulada por minhamente consciente mas aindabastante poderosa, de que eu nãodevia fazer a coisa daquele modo;de que, na próxima vez que viessea Sara, devia ser para desfazer amala e ficar.

Bill contratou Kenny Auster paraconsertar o telhado, e conseguiu oprimo de Kenny, Timmy Larribee,para “raspar a garotona de alto a

baixo”, um processo de limpezaparecido como arear panelas que éempregado às vezes em casas detroncos. Bill fez também com queum bombeiro examinasse os canos,e recebeu a minha permissão parasubstituir alguns dos velhosencanamentos e a bomba do poço.

Ele se queixou de todas essasdespesas pelo telefone; deixei queo fizesse. Quando se trata deianques da quinta ou sexta geraçãoe gasto de dinheiro, pode-se muitobem sentar e deixar quedesabafem. De algum modo, puxaruma verdinha simplesmente parecetão errado a um ianque, como

bolinar em público. Quanto a mimmesmo, não me importava degastar um pouco. Vivo frugalmentea maior parte do tempo, não porqualquer código moral e sim porqueminha imaginação, muito viva emoutros aspectos, não funciona muitobem no assunto dinheiro. Minhaideia de farra são três dias emBoston, um jogo de beisebol dosRed Sox, uma ida à Tower Records& Video e uma visita à livrariaWordsworth, em Cambridge. Viverassim não faz diferença no lucro,muito menos no montanteprincipal; eu tinha um bomadministrador de investimentos em

Waterville, e no dia em quetranquei a porta da casa de Derry erumei na direção oeste para a TR-90 eu valia ligeiramente mais quecinco milhões de dólares. Nãomuito, comparado a Bill Gates, masum grande número para aquelaárea, e podia arcar animadamentecom o alto custo dos consertos dacasa.

Foi uma estranha primaveratardia e um verão precoce paramim. O que fiz, sobretudo, foiesperar, encerrar meus negócios nacidade, falar com Bill Dean quandoeste ligou com a última rodada deproblemas e tentar não pensar. Fiz

a entrevista para a PublishersWeekly, e quando o entrevistadorperguntou se tive qualquerproblema voltando a trabalhar “nodespertar do meu luto”, eu dissenão com uma cara absolutamentelimpa. Por que não? Era verdade.Meus problemas só haviamcomeçado quando terminei De cimaa baixo; até então, eu haviacontinuado a todo vapor.

Em meados de junho, encontrei-me com Frank Arlen para almoçarno Starlite Cafe. O Starlite fica emLewiston, geograficamente a meiocaminho entre a cidade dele e aminha. À sobremesa (a famosa

tortinha de morango do Starlite),Frank perguntou se eu estavasaindo com alguém. Olhei-osurpreso.

— Por que ficou tão espantado?— perguntou ele, o rostoregistrando uma das novecentasemoções sem nome, esta em algumlugar entre a diversão e a irritação.— É claro que eu não pensaria queestá sendo infiel a Jo. Em agostovai fazer quatro anos que elamorreu.

— Não — eu disse. — Não estousaindo com ninguém.

Ele me encarou silenciosamente.Olhei de volta por alguns segundos,

depois comecei a mexer com acolher o chantili no alto da minhatortinha. Os biscoitos aindaestavam quentes do forno, e ochantili derretia. Isso me fez pensarnaquela velha canção tola falandode alguém que deixou o bolo nachuva.

— Você tem saído com alguém,Mike?

— Tenho certeza de que não éda sua conta.

— Ah, pelo amor de Deus. Nassuas férias? Você...

Eu me obriguei a erguer os olhosdo chantili que derretia.

— Não — eu disse. — Não.

Ficou em silêncio por mais ummomento ou dois. Achei que eleestava pronto para mudar deassunto, o que seria ótimo paramim. Em vez disso, ele meperguntou diretamente se eu tinhadormido com alguém desde queJohanna morreu. Teria aceito umamentira sobre aquele assuntomesmo se não acreditasseinteiramente nela — os homensmentem sobre sexo o tempo todo.Mas eu disse a verdade... e com umcerto prazer perverso.

— Não.— Nem uma única vez?— Nem uma única vez.

— Uma massagista? Sabe, pelomenos para...

— Não.Ele ficou ali sentado, batendo

com a colher na borda da tigelacom a sobremesa. Não tinhacomido um único pedaço. Olhavapara mim como se eu fosse umaespécie nova e nojenta de inseto.Não gostei muito daquilo, mas achoque entendi.

Cheguei perto do que nessesdias se chama de “uma relação” emduas ocasiões, nenhuma delas emKey Largo, onde eu observaravagamente duas mil mulheresbonitas andando, vestidas apenas

de um ponto e uma promessa.Tinha havido uma garçonete decabelos vermelhos, Kelli, numrestaurante, onde eu almoçava comfrequência. Depois de algumtempo, passamos a conversar,brincando, e então começou ahaver certo contato visual, vocêsabe do que estou falando, olharesque simplesmente demoravam umpouco demais. Comecei a repararnas pernas dela e no modo como ouniforme se retesava nos quadrisquando se virava, e ela notou queeu reparava.

E houve uma mulher em Nu You,o lugar onde eu costumava malhar.

Uma mulher alta que gostava debustiê de jogging cor-de-rosa eshort preto de ciclismo. Muitoapetitosa. Além disso, eu gostavadas coisas que ela levava para lerenquanto pedalava a bicicletaergométrica numa daquelasintermináveis viagens aeróbicaspara lugar nenhum — nãoMademoiselle ou Cosmo, masromances de pessoas como JohnIrving e Ellen Gilchrist. Gosto degente que lê livros de verdade, enão apenas porque eu mesmo osescrevia no passado. Leitores delivros têm a mesma propensão quequalquer um a falar sobre o tempo,

mas geralmente podem continuardali.

O nome da loura com o bustiêrosa e short preto era Adria Bundy.Começamos a conversar sobrelivros enquanto pedalávamos lado alado, entrando cada vez maisprofundamente em lugar nenhum, echegou ao ponto em que eu aestava ajudando uma ou duasmanhãs por semana na sala depeso. Há algo estranhamenteíntimo em ajudar outra pessoa naginástica. A posição de bruços dequem ergue o peso é parte dela,suponho (especialmente quandoquem ergue o peso é uma mulher),

mas não é tudo, e nem mesmo amaior parte da coisa. Éprincipalmente o fator dependência.Embora raramente chegue a esseponto, aquele que ergue o pesoestá confiando a vida a quem oajuda. E em algum ponto noinverno de 1996, aqueles olharescomeçaram enquanto ela sedeitava no banco e eu ficava em pésobre ela, olhando para seu rostode cabeça para baixo. Olhares quese demoram um pouco demais.

Kelli tinha uns 30 anos, Adriatalvez fosse um pouco mais nova.Kelli era divorciada, Adria nunca secasou. Em nenhum dos dois casos

eu teria assaltado um berçário, eacho que ambas ficariam contentesde ir para a cama comigo mesmosem ser nada definitivo. Umaespécie de teste de química.Mesmo assim o que eu fiz no casode Kelli foi achar um restaurantediferente para almoçar e, quando aAssociação Cristã de Moços memandou uma oferta de exercíciosgrátis como experiência, aceitei ejamais voltei a Nu You. Lembro-mede ter passado por Adria Bundycerto dia na rua seis meses ou maisdepois da mudança, e embora eu acumprimentasse, fiz questão de nãover seu olhar intrigado e levemente

magoado.De um modo puramente físico,

eu queria ambas (na verdade,lembro de um sonho no qual eutinha as duas, na mesma cama e aomesmo tempo), e ainda assim nãoqueria nenhuma das duas. Em parteera minha incapacidade de escrever— minha vida já estragada osuficiente, obrigado, sem que euacrescentasse complicaçõesadicionais. E em parte era otrabalho para a verificação de que amulher retribuindo seus olharesestá interessada em você e não emsua conta bancária mais paraextravagante.

A maior parte, creio eu, era queainda havia muito de Jo na minhacabeça e no meu coração. Nãohavia espaço para ninguém mais,mesmo depois de quatro anos.Aquela dor era como colesterol, ese você acha isso engraçado ouesquisito, seja grato.

— E amigos? — perguntou Frank,finalmente começando a comer suatortinha de morango. — Você temamigos com quem sai, não tem?

— Tenho — eu disse. — Montesde amigos. — O que era umamentira, mas eu tinha um monte depalavras cruzadas para fazer, ummonte de livros para ler e um

monte de filmes para assistir nomeu vídeo à noite; praticamentepodia recitar de cor a advertênciado FBI sobre cópias ilegais. Quandose tratava de gente da vida real, asúnicas pessoas para as quais euliguei quando estava pronto paradeixar Derry foram meu médico emeu dentista, e a maior parte dacorrespondência que mandeinaquele junho consistia em cartõesde mudança de endereço pararevistas como Harper’s e NationalGeographic.

— Frank — eu disse —, vocêparece uma mãe judia.

— Às vezes, quando estou com

você, eu me sinto como uma mãejudia — respondeu. — Daquelasque acreditam nos poderescurativos de batatas cozidas em vezde pão ázimo. Há muito tempo quevocê não está com uma aparênciatão boa, finalmente engordou umpouco, acho eu...

— Demais.— Besteira, você parecia um

faquir quando veio no Natal. Alémdisso, pegou um pouco de sol norosto e nos braços.

— Tenho andado à beça.— Portanto está com melhor

aparência... a não ser pelos olhos.Às vezes você fica com essa

expressão, e cada vez que eu avejo, me preocupo. Acho que Joficaria contente que alguém estejase preocupando.

— Que expressão?— Seu olhar de mil metros de

distância. Quer saber a verdade?Você parece alguém que foicapturado e não consegue se soltar.

Fui embora de Derry às três e meia,parei em Rumford para jantar edepois dirigi lentamente pelascolinas ascendentes do oeste doMaine enquanto o sol se punha. Eutinha planejado cuidadosamente

minha hora de partida e chegada,mesmo que inconscientemente, eenquanto passava por Morton eentrava no distrito não incorporadoda TR-90, tornei-me consciente dasbatidas aceleradas de meu coração.Eu transpirava no rosto e nosbraços, apesar do ar-condicionadodo carro. Nada no rádio pareciabom, todas as músicas soavamcomo gritos. Assim, desliguei-o.

Eu me sentia amedrontado, ecom um bom motivo para estarassim. Mesmo pondo de lado apeculiar polinização cruzada entreos sonhos e as coisas no mundoreal (como pude fazer facilmente,

descartando o corte em minha mãoe os girassóis crescendo atravésdas tábuas do alpendre dos fundoscomo coincidências ou felpaspsíquicas), eu tinha motivo paraestar com medo. Porque aquelessonhos não haviam sido comuns, eminha decisão de voltar ao lagodepois de todo esse tempo não forauma decisão comum. Eu não mesentia como o homem moderno defin-de-millénaire, numa buscaespiritual para confrontar seusmedos (eu estou bem, você estábem, vamos todos fazer umamasturbação mútua enquantoWilliam Ackerman toca suavemente

ao fundo); sinto-me mais comoalgum louco profeta do VelhoTestamento indo ao deserto paraviver de gafanhotos e água alcalinaporque Deus o convocou numsonho.

Eu estava com problemas, minhavida continuava razoavelmenteuma-tremenda-bagunça, e nãoconseguir escrever era só partedaquilo. Não estuprava crianças oupercorria o Times Square pregandoteorias de conspiração por ummegafone, mas mesmo assimestava com problemas. Haviaperdido meu lugar na ordem dascoisas e não conseguia encontrá-lo

de novo. Nenhuma surpresa nisso;afinal de contas a vida não é umlivro. Naquela noite quente dejulho, eu estava engajado era numaautoinduzida terapia de choque, edeem-me pelo menos esse crédito— eu sabia disso.

Chega-se a Dark Score assim: I-95 de Derry a Newport; rota 2 deNewport a Bethel (com uma paradaem Rumford, que costumava federcomo a varanda da frente doinferno até que a economia voltadapara o papel praticamente parassedurante a segunda administraçãoReagan). Depois toma-se a rota 68,a velha estrada do condado,

através de Castle View, Motton(onde o centro consiste em umceleiro convertido que vendevídeos, cerveja e rifles de segundamão) e em seguida passa-se pelatabuleta que indica TR-90 e a quediz O GUARDA-FLORESTAL É A MELHOR ASSISTÊNCIANUMA EMERGÊNCIA, DISQUE 1-800-555-GUARDA OU

*72 NO TELEFONE CELULAR. Ao que alguémacrescentara com um spray, FODAM-SE

AS ÁGUIAS.Oito quilômetros depois desse

sinal, entra-se por uma estradaestreita à direita, sinalizada apenaspor um quadrado de lata com odesbotado número 42. Acima dela,como tremas, estão dois buracos debala calibre .22.

Entrei nessa estrada mais oumenos quando esperava — eram7h16 da noite, horário de verão daCosta Leste pelo relógio do paineldo Chevrolet.

E a emoção estava chegando emcasa.

Percorri uns 300 metros segundo ohodômetro, ouvindo a relvacrescida da pista chicotear o chassido carro, escutando um ramo devez em quando arranhar o teto ouse chocar contra o lado dopassageiro como um soco.

Finalmente estacionei e desliguei

o motor. Saí, andei até a traseirado carro, deitei de bruços e comeceia puxar o capim que tocava oquente sistema exaustor do Chevy.Tinha sido um verão seco, e eramelhor tomar precauções. Eucheguei exatamente nessa horapara replicar meus sonhos,esperando por algum insight maisprofundo que me revelasse algomais sobre eles ou que me desseuma ideia do que fazer a seguir. Oque não queria provocar era umincêndio na floresta.

Executada a tarefa, levantei eolhei ao redor. Os grilos cantavam,como haviam feito em meus

sonhos, e as árvores amontoavam-se próximas dos dois lados daestrada, como também semprefaziam nos sonhos. Acima de minhacabeça, o céu era uma faixa de azuldesbotado.

Comecei a andar, subindo pelosulco feito pela roda direita nocaminho. Jo e eu tivemos umvizinho naquele final da estrada, ovelho Lars Washburn, mas agora aentrada de carros de Larsmostrava-se invadida por arbustosde zimbro e bloqueada por umpedaço de corrente enferrujada.Pregado a uma árvore à esquerdada corrente havia um aviso de NÃO

ULTRAPASSAR. Numa árvore da direita,uma tabuleta anunciava CORRETORA

IMOBILIÁRIA PRÓXIMO SÉCULO, e um telefonelocal. Era difícil ler as palavrasdesbotadas na escuridão crescente.

Continuei andando, mais umavez consciente das batidas fortes domeu coração e de como osmosquitos zumbiam em torno demeu rosto e meus braços. O augeda estação deles já tinha passado,mas eu estava transpirando muito,e esse é um cheiro de que gostam.Deve lembrá-los de sangue.

Até que ponto sentia medo aome aproximar de Sara Laughs? Nãome lembro. Suspeito que o medo,

como a dor, é uma dessas coisasque escapolem da mente depoisque passam. O que eu me lembro éde uma sensação que havia tidoantes quando estava aqui,especialmente quando caminhavapor essa estrada sozinho. Asensação de que a realidade erafrágil. Acho que é frágil, fina comogelo do lago depois de um degelo,e preenchemos nossa vida combarulho, luz e movimento paraesconder tal fragilidade de nósmesmos. Mas em lugares como aestrada 42, você descobre que todaaquela fumaça e todos aquelesespelhos foram removidos. O que

sobra é o som de grilos e a visão defolhas verdes escurecendo até onegro; galhos que têm formas derostos; o som de seu coração nopeito, o pulsar do sangue contra aparte de trás dos olhos e aaparência do céu quando o sangueazul do dia some da superfícieceleste.

O que chega quando a luz do diavai embora é uma espécie decerteza: que abaixo da pele há umsegredo, algum mistério tão negroquanto luminoso. Sente-se essemistério em cada respiração, emcada sombra, espera-se mergulharnele a cada passo. Ele está aqui:

desliza-se nele numa espécie decurva sem fôlego, como um skatistavirando para casa.

Parei por um momento a cercade 800 metros ao sul de onde tinhadeixado o carro, e ainda a 800metros ao norte da entrada decarros. Ali a estrada se dobrabruscamente, e à direita um campoaberto com inclinações abruptasdesce em direção ao lago. PradoTidwell é como os moradores locaiso chamam, ou às vezes de VelhoCampo. Foi aqui que Sara Tidwell esua curiosa tribo construíram suascabanas, pelo menos segundoMarie Hingerman (e certa vez,

quando perguntei a Bill Dean, eleconcordou que o local era este...embora não parecesse interessadoem continuar a conversa, o que nomomento me pareceu um poucoestranho).

Fiquei ali por um instante,olhando a extremidade norte doDark Score lá embaixo. A águamostrava-se vítrea e calma, aindacor de açúcar cristalizado no fulgordo pôr do sol, sem uma ondulaçãoou pequena embarcação à vista. Opessoal dos barcos estaria namarina ou no Sunset Bar deWarrington agora, imaginei,comendo rolinhos de lagosta e

tomando grandes coquetéismisturados. Mais tarde, algunsdeles, excitados com estimulantes emartínis, ficariam para cima e parabaixo no lago ao luar. Imaginei seestaria por perto para escutá-los.Pensei haver uma boa chance deque então eu estivesse voltandopara Derry, aterrorizado com o quetinha descoberto ou desiludido pornão ter encontrado absolutamentenada.

— Homenzinho engraçado —disse Strickland.

Eu não sabia que ia falar até queas palavras tivessem saído deminha boca, e por que tais palavras

especialmente, eu não tinha ideia.Lembrei-me do sonho sobre Jodebaixo da cama e estremeci. Ummosquito zumbiu em meu ouvido.Dei um tapa nele e continueiandando.

No final, a chegada ao começoda entrada de carros foi quaseperfeitamente calculada, asensação de ter voltado a entrarem meu sonho quase completa.Mesmo os balões de gás amarradosà tabuleta SARA LAUGHS (um branco eum azul, ambos com um BEM-VINDO DE

VOLTA, MIKE!) e flutuando contra ofundo de árvores cada vez maisescuras pareciam intensificar o

déjà-vu que havia induzidodeliberadamente, pois nenhumsonho é exatamente igual ao outro,é? As coisas concebidas pelasmentes e feitas pelas mãos nuncapodem ser as mesmas, mesmoquando se esforçam ao máximopara serem idênticas, porquejamais somos os mesmos de um diapara o outro, ou mesmo de ummomento para o outro.

Andei até a tabuleta, conscientedo mistério do lugar ao crepúsculo.Apertei a tábua, sentindo pelo tatosua áspera realidade, e passei aspontas dos dedos pelas letras,confrontando as lascas e lendo com

minha pele como um cego lendoem braile: S e A e R e A; L e A e Ue G e H e S.

A entrada de carros havia sidolimpa de agulhas de pinheiro caídase galhos soprados pelo vento, masDark Score bruxuleava num rosadesbotado exatamente como nosmeus sonhos, e o volumeespalhado da casa era o mesmo.Atenciosamente, Bill havia deixadoacesa a lâmpada do alpendre dosfundos, e os girassóis que cresciamatravés das tábuas havia muitotinham sido cortados, mas todo oresto era o mesmo.

Olhei para cima, para a fenda do

céu sobre a estrada. Nada...esperei... e nada... continueiesperando... e então lá estava ela,bem no centro do local para ondemeu olhar se dirigira. Nummomento havia apenas o céu quese desvanecia (com azul-índigoapenas começando a se erguer dasbeiras, como uma infusão de tinta),e no seguinte Vênus fulgurava ali,brilhante e firme. As pessoas falamde observar as estrelas surgirem, eacho que algumas o fazem, maspenso que foi a única vez na vidaem que realmente vi uma estrelaaparecer. Fiz meu pedido para elatambém, mas desta vez era no

tempo real, e não pedi Jo.— Me ajuda — disse, olhando a

estrela. Teria dito mais, sesoubesse o que dizer. Não sabia deque tipo de ajuda precisava.

Chega, disse uma voz em minhamente de maneira desconfortável.Agora chega. Volte e entre nocarro.

Só que não era esse o plano. Oplano era descer a entrada decarros, exatamente como tinhafeito no sonho final, o pesadelo. Oplano era provar a mim mesmo quenão havia nenhum monstro

embrulhado numa mortalha,espreitando nas sombras da grandecasa de troncos lá embaixo. Oplano baseava-se muito naquelepedacinho de sabedoria da NovaEra, que afirma que a palavra“temor” significa “Tempo deEnfrentar Ma les, Obstáculos e seRecuperar”. Mas enquanto euestava ali, vendo lá embaixo acentelha de luz do alpendre(parecia muito pequena naescuridão crescente), me ocorreuque havia outro pedacinho desabedoria, não tão otimista,sugerindo que “temor” é naverdade um acrônimo para “Tempo

d e Estragar o Mundo, Olhar e se‘Retirar’”. Ali sozinho no bosqueenquanto a luz deixava o céu, aúltima interpretação parecia ser amais inteligente, não havia dúvida.

Olhei para baixo e fiquei umtanto surpreso de ver que tinhatirado um dos balões — tinha-odesamarrado sem mesmo notarenquanto elaborava as coisas. Eleflutuava serenamente por minhamão acima no final do cordão, aspalavras nele impressas agoraimpossíveis de serem lidas naescuridão que aumentava.

Talvez seja tudo discutível, afinalde contas; talvez eu não possa me

mover. Talvez aquele velhodemônio, o caminho do escritor,tenha me pego de novo, e eusimplesmente vou ficar aqui comouma estátua até que alguémapareça e me arraste para longe.

Mas era o tempo real no mundoreal, e no mundo real não haviaalgo como o caminho do escritor.Abri a mão. Enquanto o cordão queeu vinha segurando flutuavalivremente, caminhei sob o balãoque subia e comecei a descer aentrada de carros. Pé ante pé,como desde que tinha aprendidoesse truque pela primeira vez em1959. Penetrei cada vez mais

profundamente no cheiro limpo masacre de pinheiros, e uma vez mepeguei dando um passoextragrande, evitando um galhocaído que havia estado no sonho,mas não estava aqui na realidade.

Meu coração ainda batia comforça e o suor ainda fluía de meucorpo, tornando a pele oleosa eatraindo mosquitos. Ergui a mãopara tirar o cabelo da testa e entãoparei, mantendo-a com os dedosabertos na frente dos olhos.Coloquei a outra mão junto daprimeira. Nenhuma das duas estavacom qualquer marca; não haviasequer a sombra de uma cicatriz do

corte que eu tinha feito em mimmesmo ao me arrastar pelo quartodurante a tempestade de gelo.

— Estou bem — disse. — Estoubem.

Homenzinho engraçado, disseStrickland, respondeu uma voz. Nãoera a minha, nem de Jo; era a vozde OVNI que tinha narrado meupesadelo, que me empurrara para afrente mesmo quando eu queriaparar. A voz de um estranho.

Comecei a andar de novo. Eutinha passado do meio da entradade carros agora. Alcançara o pontoem que, no sonho, eu dizia à vozque estava com medo da sra.

Danvers.— Tenho medo da sra. D. —

disse, experimentando as palavrasem voz alta na escuridão crescente.— E se a velha governanta máestiver lá?

Um mergulhão-do-norte gritouno lago, mas a voz não respondeu.Suponho que não tinha que fazê-lo.Não havia nenhuma sra. Danvers,ela era apenas um saco de ossosnum velho livro, e a voz sabia disso.

Comecei a andar de novo, passeipelo grande pinheiro onde Jo bateucom nosso jipe certa vez, tentandosubir de ré a entrada de carros.Como ela tinha xingado! Como um

marinheiro! Eu consegui manter aexpressão séria até ela chegar ao“Foda-se tudo”; nesse ponto perdi ocontrole e ri, apoiando-me nalateral do jipe com as palmasapertadas contra as têmporas,uivando até que as lágrimasrolassem por meu rosto, com Jodisparando faíscas azuis de fogocontra mim o tempo inteiro.

Eu podia ver a marca à altura dequase um metro no tronco daárvore, o branco parecendo flutuaracima da casca escura napenumbra. Era exatamente aquique o desconforto que permeava osoutros sonhos transformava-se em

algo muito pior. Mesmo antes de acoisa amortalhada irromper casaafora, eu tinha sentido que algoestava completamente errado, tudotorto; senti que de algum modo aprópria casa havia enlouquecido.Era naquele ponto, passando ovelho pinheiro com a cicatriz, queeu tinha querido correr comohomem-biscoito.

Agora, eu não sentia aquilo.Tinha medo, sim, mas não terror. Acomeçar pelo fato de que não havianada atrás de mim, nenhum som derespiração. A pior coisa com que umhomem provavelmente podiaesbarrar nesses bosques era um

alce americano irritado. Ou, pensoeu, se realmente não estivesse comsorte, um urso zangado.

No sonho havia uma lua quasecheia, mas não existia nenhuma luano céu acima de mim naquelanoite. Nem haveria: dando umaolhada na seção de previsão dotempo do Derry News daquelamanhã, eu tinha notado queestávamos na lua nova.

Mesmo o mais poderoso déjà-vué frágil, e à ideia daquele céu semlua, o meu se rompeu. A sensaçãode me soltar de meu pesadelo foiembora tão abruptamente quecheguei mesmo a me perguntar por

que fizera aquilo, o que esperaraprovar ou realizar. Agora teria quevoltar todo o caminho até a estradaescura para recuperar o carro.

Muito bem, faria isso com umalanterna da casa. Uma delascertamente ainda estaria dentrodo...

Uma série de explosõespercorreu a margem distante dolago, a última alta o bastante paraecoar nas colinas. Parei, respirandorapidamente. Momentos antes,esses estouros inesperadosprovavelmente teriam me posto acorrer de volta pela entrada decarros em pânico, mas agora eu

tive apenas aquele rápido instantede sobressalto. Eram fogos deartifício, claro, o último — o maisruidoso — talvez um M-80. Amanhãseria 4 de Julho, e por todo o lagoas crianças estavam celebrandoantecipadamente, como têm ohábito de fazer.

Continuei andando. Os arbustosainda se estendiam como mãos,mas haviam sido aparados e seualcance não era muito ameaçador.Contudo, não tinha que mepreocupar de não haver energia;estava bastante perto do alpendredos fundos para ver mariposasadejando em torno da lâmpada que

Bill Dean deixara acesa para mim.Ainda que não houvesse energia(na parte oeste do estado, diversaslinhas ainda correm suspensas dochão, e a energia é interrompidamuitas vezes), o gerador teriadisparado imediatamente.

Apesar disso, estava assombradopor tanto do meu sonho estarrealmente ali, mesmo com apoderosa sensação de repetição —d e reviver — tendo desaparecido.As jardineiras de Jo estavam ondesempre haviam estado,flanqueando o caminho que leva àpequena faixa de terra de Sara;suponho que Brenda Meserve as

tenha encontrado empilhadas noporão e tenha mandado que umade suas ajudantes as pusesse parafora de novo. Nada crescia nelasainda, mas eu suspeitava que logocresceria. E mesmo sem a lua demeus sonhos, podia ver o quadradonegro na água a uns 50 metros damargem. A plataforma flutuante.

Nenhuma forma oblonga jazia nafrente do alpendre, porém; nenhumcaixão. Mesmo assim, meu coraçãobatia com força novamente, e achoque se mais fogos de artifíciotivessem sido disparados do ladoKashwakamak do lago, eu poderiater gritado.

Homenzinho engraçado, disseStrickland.

Me dá isso, é o meu pega-poeira.E se a morte nos enlouquece? E

se sobrevivemos, mas tendo elanos deixado loucos? O queacontece?

Eu cheguei ao ponto em que, nomeu pesadelo, a porta seescancarava e aquela forma brancairrompia para fora com os braçoserguidos envolvidos na mortalha.Dei mais um passo e parei, ouvindoo som áspero de minha respiraçãoenquanto empurrava cada sopro dear garganta abaixo e depois oempurrava de volta sobre a

superfície seca da minha língua.Não havia nenhuma sensação dedéjà-vu, mas por um momentoachei que a forma apareceriamesmo assim — aqui no mundoreal, no tempo real. Fiquei aliesperando por ela com as mãossuadas cerradas. Aspirei o arnovamente e dessa vez o retive.

O suave rolar da água namargem.

Uma brisa tocando meu rosto esacudindo os arbustos.

Um mergulhão-do-norte gritandono lago; mariposas investindocontra a luz do alpendre.

Nenhum monstro envolto em

mortalha se atirou porta afora e,através das grandes janelas àesquerda e à direita da porta, eunão via nada se movendo, brancoou de qualquer outra cor. Havia umbilhete sobre a maçaneta,provavelmente de Bill, e era tudo.Soltei a respiração num jato e descio resto do caminho da entrada decarros para Sara Laughs.

O bilhete era mesmo de Bill Dean.Dizia que Brenda tinha feitoalgumas compras para mim; a notado supermercado estava na mesada cozinha, e eu encontraria a

despensa bem estocada comenlatados. Ela tinha consumidomoderadamente os alimentosperecíveis, mas havia leite,manteiga, pão e hambúrguer, essabase da cozinha do cara solteiro.

Vejo você na próxima segunda,escreveu Bill. Por minha vontade,eu estaria aí para lhe dar um alôpessoalmente, mas a patroa dizque é a nossa vez de dar a fugidado feriado e assim estamos indopara a Virgínia (quente!!) parapassar o dia 4 com a irmã dela. Seprecisar de qualquer coisa ou tiverproblemas...

Havia rabiscado o número do

telefone da cunhada na Virgínia,assim como o número de ButchWiggins na cidade, que os locaischamam de “a TR”, como em “Eu emamãe ficamos cansados de Bethele movemos nosso trailer para aTR”. Havia também outros números— o bombeiro, o eletricista, BrendaMeserve e até mesmo o cara da TVem Harrison, que reposicionara aparabólica para o máximo derecepção. Bill não queria correrriscos. Virei o bilhete, imaginandoum P.S. final: Digamos, Mike, se aguerra nuclear estourar antes queeu e Yvette voltemos da Virgínia...

Algo se moveu atrás de mim.

Girei, o bilhete caiu de minhamão. Ele deslizou para as tábuas doalpendre dos fundos como umaversão maior e mais branca dasmariposas atirando-se contra obulbo da lâmpada lá em cima.Naquele instante, tive certeza deque seria a coisa amortalhada, umespectro louco no corpo emdecomposição de minha esposa. Medá meu pega-poeira, me dá, comoousa vir para cá e perturbar meudescanso, como ousa vir aManderley de novo, e agora queestá aqui, como poderá ir embora?Para dentro do mistério com você,homenzinho tolo. Para dentro do

mistério com você.Não havia nada lá. Tinha sido só

a brisa movendo um pouco osarbustos... só que eu não sentibrisa alguma contra minha pelesuada, não daquela vez.

— Bem, deve ter sido a brisa,não há nada ali — disse.

O som de nossa própria vozquando se está só pode serassustador ou tranquilizador.Naquela vez tranquilizou-me.Curvei-me, peguei o bilhete de Bille enfiei-o no bolso de trás. Entãovasculhei à procura do molho dechaves, sob a lâmpada do alpendree as grandes sombras que se

precipitavam das mariposasatingidas pela luz, percorrendo aschaves até encontrar a que euqueria. Ela mostrava um aspectoengraçado de falta de uso, eenquanto eu passava o polegar porsua borda serrilhada, me pergunteinovamente por que não viera paracá — exceto por umas duas viagensrápidas e à luz do dia — por todosaqueles meses e anos desde que Jomorrera. Se ela estivesse viva,certamente teria insistido...

Mas então uma percepçãopeculiar ocorreu-me: não eraapenas uma questão de desde queJo morrera. Seria fácil pensar

naquilo desse modo — nunca, nemuma só vez durante minhas seissemanas em Key Largo, eu tinhapensado nisso de qualquer outromodo —, mas, agora, em pé sob assombras das mariposas dançantes(era como ficar sob algumaesquisita bola de espelhosorgânica) e escutando osmergulhões-do-norte no lago,lembrei que embora Johannativesse morrido em agosto de 1994,morrera em Derry. Fazia um calorterrível na cidade... então por queestávamos lá? Por que nãoinstalados em nosso sombreadodeck no lado da casa dando para o

lago, tomando chá gelado emnossas roupas de banho, vendo osbarcos indo e voltando ecomentando sobre a forma dosvários esquiadores aquáticos? Parainício de conversa, o que estava elafazendo naquele desgraçadodaquele estacionamento do RiteAid, quando em qualquer outroagosto teríamos estado aquilômetros dali?

E isso não era tudo. Geralmenteficávamos em Sara até o final desetembro — era uma épocatranquila, bonita, tão quentequanto o verão. Mas em 1993havíamos partido depois de

passarmos ali apenas uma semanade agosto. Eu sabia, porquelembrava de Johanna indo a NovaYork comigo depois naquele mesmomês, algum negócio editorial e ahabitual e concomitante besteira depublicidade. Em Manhattan estavaum calor sufocante, os hidrantesjorrando no East Village e as ruasda parte alta da cidade crepitandode tão quentes. Numa noitedaquela viagem víramos OFantasma da Ópera. Perto do final,Jo inclinara-se para mim esussurrara: “Que merda, oFantasma está choramingando denovo!” Eu passara o resto do

espetáculo tentando me impedir deter um acesso louco de riso. Jopodia ser má dessa maneira.

Por que teria vindo comigonaquele agosto? Ela não gostava deNova York mesmo em abril ououtubro, quando a cidade ficabastante bonita. Eu não sabia. Nãoconseguia lembrar. Só tinha certezade que ela jamais voltara a SaraLaughs depois do início de agostode 1993... e antes de muito tempoeu não estava certo nem daquilo.

Fiz a chave deslizar na fechadura egirei-a. Eu entraria, passaria a mão

rapidamente nas prateleirassuperiores da cozinha, pegaria umalanterna e voltaria ao carro. Se nãoo fizesse, algum bêbado com umchalé na extremidade sul daestrada chegaria rápido demais,bateria na traseira de meu Chevy eme processaria por um bilhão dedólares.

A casa tinha sido arejada e nãocheirava nem um pouco a mofo; emvez de um ar parado e bolorento,havia um tênue e agradável aromade pinho. Estiquei a mão para a luzdo lado de dentro e então, emalgum ponto na escuridão da casa,uma criança começou a chorar.

Minha mão imobilizou-se ondeestava e minha carne gelou. Nãoentrei exatamente em pânico, mastodo pensamento racionalabandonou minha mente. Era umchoro, um choro de criança, mas eunão tinha uma pista sequer de ondeestaria vindo.

Então o choro começou adesaparecer. Não a ficar mais fracoe sim a desaparecer gradualmente,como se alguém tivesse pegado acriança e a fosse carregando paralonge, por um comprido corredor...não que um corredor semelhanteexistisse em Sara Laughs. Mesmo oque percorria o meio da casa,

ligando a seção central às duasalas, não é realmente longo.

Desaparecendo...desaparecendo... quase sumindo.

Permaneci ali no escuro comminha pele fria arrepiada e minhamão no interruptor de luz. Parte demim queria se mandar,simplesmente voar para fora tãodepressa quanto minhas pequenaspernas pudessem me carregar,correndo como o homem-biscoito.Outra parte, porém — a parteracional —, já estava serecuperando.

Acionei o interruptor, a parte quequeria fugir dizendo que eu podia

esquecer, não ia funcionar, é osonho, idiota, é seu sonhotornando-se realidade. Masfuncionou. A luz do saguão chegounum clarão, dissipando as sombras,revelando a pequena e encaroçadacoleção de cerâmica de Jo àesquerda e a estante à direita,coisas que eu não olhava haviaquatro anos ou mais, porém, aindaali, e as mesmas. Em umaprateleira no meio da estante vi ostrês primeiros romances de ElmoreLeonard — Swag, Desafiando oassassino e O golpe —, que eutinha guardado para umatemporada chuvosa; você tem que

estar preparado para a chuvaquando está no campo. Sem umbom livro, mesmo dois dias dechuva nos bosques podem sersuficientes para deixá-lo pirado.

Houve um murmúrio final dechoro e depois o silêncio. Nele, eupodia ouvir o tique-taque dacozinha. O relógio sobre o fogão,um dos raros lapsos de mau gostode Jo, é o Gato Félix com grandesolhos que se movem de um ladopara outro enquanto a cauda-pêndulo balança para a frente epara trás. Acho que está presenteem todos os filmes de horrorbaratos já feitos algum dia.

— Quem está aí? — gritei. Deium passo para a cozinha, apenasum espaço obscuro flutuando alémdo saguão, e então parei. Naescuridão, a casa era uma caverna.O som do choro poderia ter vindode qualquer lugar. Inclusive deminha própria imaginação. — Temalguém aí?

Nenhuma resposta... mas eu nãoachava que o som ocorrera naminha cabeça. Se tivesse ocorrido,o bloqueio de escritor seria o menordos meus problemas.

Na estante à esquerda dosElmore Leonard, estava umalanterna de cabo longo, o tipo que

tem oito pilhas grandes e que ocegará temporariamente se alguémapontá-la diretamente para seusolhos. Peguei-a, e até que tivessequase escorregado da minha mãoeu não havia percebido o quantoestava transpirando, ou o quantoestava assustado. Balancei-a, como coração batendo forte, meioesperando que aquele sinistrosoluçar começasse de novo, ou quea coisa amortalhada viesseflutuando da sala de estar escuracom seus braços sem formaerguidos; algum velho políticopicareta de volta do túmulo epronto para fazer outra tentativa.

Votem na chapa Ressurreiçãodireta, irmãos, e serão salvos.

Controlei a luz e liguei-a. Ela seprojetou num facho reto e brilhantena sala, acertando a cabeça do alceamericano sobre a pedra da lareira;ela brilhou nos olhos de vidro dacabeça como duas luzes ardendosob a água. Vi as velhas cadeirasde bambu; o velho sofá; aescoriada mesa da sala de jantarque era preciso equilibrar calçandouma das pernas com uma carta dejogar dobrada ou um par dedescansos de copo; não vi fantasmanenhum; cheguei à conclusão deque era um carnaval totalmente

estragado mesmo assim. Naspalavras do imortal Cole Porter,Let’s call the whole thing off [vamoscancelar a coisa toda]. Se eurumasse para leste assim quevoltasse ao carro, poderia estar emDerry por volta da meia-noite.Dormindo na minha própria cama.

Desliguei a luz do saguão epermaneci com a lanternadesenhando seu contorno naescuridão. Escutei o tique-taquedaquele estúpido relógio-gato, queBill devia ter posto para funcionar,e o ciclo de som abrupto do motorda geladeira. Enquanto os ouvia,percebia que jamais tinha esperado

ouvir os dois sons de novo. Quantoao choro...

Houve um choro? Houve mesmo?Sim. Choro ou alguma coisa.

Exatamente o que agora pareciadiscutível. O que parecia nítido eraque vir para cá tinha sido uma ideiaperigosa e uma atitude idiota paraum homem que ensinara sua mentea se comportar mal. Enquanto euficava no saguão sem luz nenhumaa não ser a lanterna e o fulgorentrando pelas janelas e vindo dalâmpada do alpendre de trás,percebi que a linha entre o que eusabia que era real e o que eu sabiaque era apenas minha imaginação

havia desaparecido.Deixei a casa, examinei a porta

para certificar-me de que estavatrancada e caminhei de volta pelaentrada de carros, balançando ofacho da lanterna de um lado paraoutro como um pêndulo — como acauda do velho Félix, o Gato Malucona cozinha. Enquanto rumava nadireção norte ao longo da estrada,ocorreu-me que teria de inventaralguma história para Bill Dean. Nãoadiantaria dizer: “Bem, Bill, desci láe ouvi uma criança berrando emminha casa trancada, e isso meassustou tanto que me transformeino homem-biscoito e voltei

correndo para Derry. Vou lhemandar a lanterna que peguei;coloque-a de volta na prateleirajunto aos livros, está bem?” Issonão adiantava nada porque ahistória se espalharia e as pessoasdiriam: “Não é surpresa.Provavelmente escreveu livrosdemais. Um trabalho assim tem queamolecer a cabeça de um homem.Agora está com medo da própriasombra. Risco ocupacional.”

Mesmo que eu jamais viessepara cá novamente, não queriadeixar as pessoas na TR comaquela opinião a meu respeito,aquela atitude de certo desprezo de

está-vendo-o-que-se-ganha-por-pensar-demais. É uma postura quemuita gente tem a respeito dequem vive da imaginação.

Vou dizer a Bill que fiqueidoente. De certo modo eraverdade. Ou não... melhor dizer aele que outra pessoa ficou doente...um amigo... alguém em Derry comquem eu estava saindo... umaamiga, talvez. “Bill, essa minhaamiga, essa senhora minha amigaficou doente, sabe, então...”

Parei subitamente, a luzbrilhando na frente do carro. Eutinha andado um quilômetro e meiona escuridão sem notar muitos sons

no bosque, e descartando até omaior deles, como um alceinstalando-se para passar a noite.Não tinha me virado para ver se acoisa amortalhada (ou talvezalguma espectral criança chorando)estava me seguindo. Havia ficadoenvolvido na invenção de umahistória e depois em embelezá-la,fazendo-o na minha cabeça em vezde fazê-lo no papel desta vez, masdescendo os mesmos caminhosbem conhecidos. Tão envolvido quenegligenciara sentir medo. Asbatidas do coração haviam voltadoao normal, o suor secava na pele eos mosquitos haviam parado de

zumbir em meu ouvido. E enquantoeu estava ali, ocorreu-me umpensamento. Era como se minhamente tivesse esperadopacientemente que eu meacalmasse o bastante para quepudesse me lembrar de algum fatoessencial.

Os canos. Bill obtivera meu sinalverde para substituir a maioria dosvelhos canos, e o bombeiro o fizera.Ele o fizera muito recentemente.

— Ar nos canos — disse,passando o facho da lanterna deoito pilhas sobre a grade de meuChevrolet. — Foi isso que eu ouvi.

Esperei para ver se a parte mais

profunda de minha mente chamariaisso de uma mentira idiota eracionalizante. Não chamou... achoque foi porque percebi que podiaser verdade. Canos com ar podemparecer gente falando, cachorroslatindo ou crianças chorando.Talvez o bombeiro tenha juntado oscanos e o som fosse algodiferente... mas talvez não tenha. Aquestão era se eu ia ou não entrarno carro, recuar 300 metros até àrodovia e depois voltar a Derry,tudo baseado num som que ouvipor dez segundos (talvez apenascinco), e num estado de espíritoexcitado e estressado.

Decidi que a resposta era não.Poderia ser necessário apenas algomais peculiar para me fazer darmeia-volta — provavelmente umaalgaravia, como a de umpersonagem de Contos da cripta —,mas o som que tinha ouvido nosaguão não era suficiente. Nãoquando a ida para Sara Laughspoderia significar tanto.

Escuto vozes na cabeça e asvenho escutando desde que meentendo por gente. Não sei se éparte do equipamento necessáriodo escritor ou não; nunca pergunteia outra pessoa. Nunca senti anecessidade de fazê-lo, porque sei

que todas as vozes que ouço sãoversões de mim mesmo. Aindaassim, elas frequentemente mepareciam como versões muito reaisde outras pessoas, e nenhuma émais real para mim — ou maisfamiliar — do que a voz de Jo.Agora aquela voz apareceu,parecendo interessada, divertida deum modo irônico, mas gentil... eaprovadora.

Vai lutar, Mike?— É — eu disse, em pé na

escuridão e captando vislumbres decromo com minha lanterna. — Achoque sim, querida.

Bom, então isso está bem, não

é?Sim. Estava. Entrei no carro,

liguei-o e desci lentamente aestrada. E quando cheguei àentrada de carros, enveredei porela.

Não houve nenhum choramingo nasegunda vez em que entrei na casa.Andei lentamente pelo andar debaixo, mantendo a lanterna na mãoaté acender todas as lâmpadas quepude encontrar; se ainda houvessepessoas passeando de barco naextremidade norte do lago, a velhaSara provavelmente daria a

impressão de um esquisito discovoador spielbergiano pairandosobre elas.

Acho que as casas vivem suaspróprias vidas ao longo de um fluxode tempo diferente daqueles emque flutuam seus proprietários, umfluxo mais lento. Numa casa,especialmente uma casa antiga, opassado está mais perto. Na minhavida, Johanna estava morta haviaquase quatro anos, mas para SaraLaughs ela estava muito maispróxima que isso. Só quando estavarealmente no interior da casa, comtodas as luzes acesas e a lanternatendo voltado a seu lugar na

estante, percebi o quanto tinha sidoapavorante a minha chegada. Porter minha grande dor reavivadadevido a sinais da vida interrompidade Johanna. Um livro com umaborda dobrada na mesa junto a umdos cantos do sofá, onde Jo gostavade se reclinar de camisola, lendo ecomendo ameixas; a caixa depapelão de Aveia Quaker, que erasó o que ela sempre queria de caféda manhã, numa prateleira dadespensa; seu velho robe verdependurado na parte de trás daporta do banheiro na ala sul, queBill Dean ainda chamava de “alanova”, embora tivesse sido

construída antes que chegássemosa ver Sara Laughs.

Brenda Meserve tinha feito umbom trabalho — um trabalhohumano — ao remover tais sinais,mas não pôde remover todos eles.A coleção em capa dura dosromances de Peter Wimsey, deSayers, ainda mantinha o lugar dehonra no centro da estante da salade estar. Jo sempre chamou deBunter a cabeça de alce americanosobre a lareira, lembrando domordomo criado por DorothySayers. Um dia, sem nenhumarazão que eu pudesse lembrar(certamente parecia um acessório

muito pouco Bunter), pendurou umsino em torno de seu pescoçopeludo. Ainda está lá, numa fita develudo vermelho. A sra. Meservepode ter ficado intrigada com osino, se perguntando se deviadeixá-lo ou retirá-lo, sem saber queJo e eu fazíamos amor no sofá dasala (e, sim, com muita frequênciaa gente quase explodia ali) e nosreferíamos ao ato como “tocar osino de Bunter”. Brenda Meservetinha feito o máximo que pôde, masqualquer bom casamento é umterritório secreto, um necessárioespaço em branco no mapa dasociedade. O que os outros não

sabem sobre ele é o que o faz seu.Andei por ali, tocando as coisas,

olhando-as, vendo-as como novas.Jo parecia estar em toda parte paramim; depois de algum tempo medeixei cair numa das velhascadeiras de bambu em frente à TV.A almofada chiou debaixo de mim,e pude ouvir Jo dizendo: “Trate dese desculpar, Michael!”

Pus o rosto entre as mãos echorei. Acho que o último choro demeu luto, mas isso não o tornoumais fácil de suportar. Chorei atépensar que algo dentro de mim seromperia se eu não parasse.Quando o choro finalmente me

soltou, meu rosto estava ensopado,eu estava com soluços e achei quejamais tinha me sentido tãocansado na vida. Sentia todo o meucorpo torcido — parcialmente pelacaminhada que tinha feito, acho,mas principalmente pela tensão dechegar ali... e decidir ficar. Lutar.Aquele esquisito fantasma chorandoque eu tinha ouvido assim queentrei no lugar, embora parecessemuito distante agora, não haviaajudado.

Lavei o rosto na pia da cozinha,retirando as lágrimas com aspalmas das mãos e limpando onariz entupido. Então levei minhas

valises para o quarto de hóspedesna ala norte. Não tinha intenção dedormir na ala sul, no quartoprincipal; a última vez em que tinhadormido ali foi com Jo.

Era uma escolha que BrendaMeserve tinha previsto. Havia umbuquê de flores frescas naescrivaninha, e um cartão: BEM-VINDO,

SR. NOONAN. Se eu não estivesseemocionalmente exausto, acho queolhar para aquela mensagem, nacaligrafia pontiaguda e elegante dasra. Meserve, teria provocado outroacesso de choro. Pus meu rostojunto às flores e respirei fundo.Cheiravam bem, como a luz do sol.

Então tirei as roupas, deixando-asonde caíram, e puxei a colcha dacama. Lençóis limpos, fronhaslimpas; o mesmo velho Noonandeslizando por entre aqueles edeixando a cabeça cair nestas.

Fiquei ali deitado com a lâmpadado criado-mudo acesa, olhandopara as sombras no teto, quaseincapaz de acreditar que estavanaquele lugar e naquela cama. Nãotinha havido nenhuma coisaamortalhada para me saudar, éclaro... mas eu cogitava que elapodia muito bem me descobrir emmeus sonhos.

Às vezes — pelo menos para

mim — há um choque de transiçãoentre acordar e dormir. Nãonaquela noite. Perdi a consciênciasem saber que o fazia, e acordei namanhã seguinte com a luz do solbrilhando através da janela e oabajur da cabeceira ainda aceso.Não tinha havido sonho nenhum deque me lembrasse, só uma vagasensação de que havia despertadobrevemente durante a noite eouvido um sino tocando, muitodébil e a distância.

Capítulo Sete

A garotinha — na realidade não eramuito mais do que um bebê —vinha andando pelo meio da rota68, numa roupa de banhovermelha, sandália de dedo deplástico amarelo e um boné debeisebol dos Red Sox de Bostonvirado para trás. Eu tinha acabadode passar pelo Armazém Lakeviewe a Oficina Dickie Brooks, e o limitede velocidade ali cai de 90 para 60

quilômetros. Graças a Deus, euobedecia ao limite naquele dia,caso contrário poderia ter matado agarota.

Era o meu primeiro dia depois davolta. Havia acordado tarde e tinhapassado a maior parte da manhã nobosque ao longo da praia do lago,vendo o que permanecia igual e oque tinha mudado. A água pareciaum pouco mais baixa e haviamenos barcos do que eu esperava,especialmente no maior feriado doverão, mas fora isso tudo estava damesma forma de antes. Eu pareciaaté dar tapas nos mesmos insetos.

Por volta das 11, meu estômago

me alertou para o fato de que eutinha pulado o café da manhã.Decidi que seria uma boa ideia iraté o Village Café. Sem a menordúvida, o restaurante emWarrington era mais badalado, maslá eu seria observado pelaspessoas. O Village Café era melhor— se é que ainda funcionava.Buddy Jellison era um sujeito mal-humorado, mas sempre fora omelhor cozinheiro de frituras dooeste do Maine, e o que meuestômago queria era um grande egorduroso Villagebúrguer.

Então entra a garotinha,caminhando reto na linha branca e

parecendo uma baliza à frente dabanda conduzinho uma paradainvisível.

Rodando a cerca de 60quilômetros, tive tempo de sobrapara vê-la, mas aquela estrada eraagitada no verão, e poucas pessoasse preocupavam em reduzir avelocidade na área. Havia apenasuma dúzia de radiopatrulhas nocondado de Castle, afinal de contas,e não muitas se importavam com aTR, a não ser que fossemespecificamente chamadas.

Parei no acostamento, liguei opisca-alerta e saí antes que apoeira começasse a baixar. Era um

dia de mormaço, fechado eestagnado, e mesmo assim asnuvens pareciam baixas o suficientepara serem tocadas. A criança —uma lourinha com nariz arrebitadoe joelhos esfolados — continuavana linha branca como numa cordabamba e observou minhaaproximação tão destemidamentecomo uma corça.

— Oi — disse ela. — Vou prapraia. Mamãe não quer me levar eeu tô chateada. — Bateu o pé paramostrar que sabia tão bem quantoqualquer pessoa o que era ficarchateada. Três ou 4 anos, era omeu palpite. Bem falante à sua

maneira e muito bonitinha, mascom não mais de 3 ou 4 anos.

— Bom, a praia é um bom lugarpara se ir no 4 de Julho, não hádúvida — disse —, mas...

— Quatro de Julho e os fogostambém — concordou ela, fazendoo “também” soar exótico e doce,como uma palavra em vietnamita.

— ... mas se você andar até lápela estrada, é mais provável queacabe no Hospital de Castle Rock.

Decidi que não ficaria ali batendopapo com ela no meio da rota 68,não com uma curva a apenas 50metros ao sul e um carro podendodobrar a quase 100 por hora a

qualquer momento. Na realidade,eu escutava um motor, e estavagirando rápido.

Peguei a criança e a carregueiaté onde tinha deixado o carro.Apesar de ela estar perfeitamentesatisfeita de ser carregada e sem omínimo medo, eu me senti comoum molestador no segundo em queseu bumbum se apoiou em meubraço. Tinha plena consciência deque qualquer um que estivesse nacombinação de escritório e sala deespera da oficina de Brooks poderiaolhar para fora e me ver. Esta éuma das estranhas realidades dameia-idade de minha geração: não

podemos tocar uma criança quenão seja nossa sem temer que osoutros vejam nisso algo lascivo...ou sem pensar, bem no fundo denossa psique, que provavelmentehá algo lascivo nisso. Mas tirei-a daestrada. Cheguei a esse ponto.Deixem que as Mães em Marcha doOeste do Maine corram atrás demim e façam o pior.

— Me leva pra praia? — pediu agarotinha. Tinha olhos brilhantes eera sorridente. Imaginei queprovavelmente estaria grávida porvolta dos 12 anos, especialmentedado o modo bacana como usavaseu boné de beisebol. — Tá de

calção?— Acho que deixei meu calção

em casa. Não é horrível? Onde estásua mãe, garotinha?

Como se respondessediretamente à minha pergunta, ocarro que eu tinha ouvido veiovoando de uma estrada no ladopróximo da curva. Era um JeepScout com lama borrifada até o altonas duas laterais. O motorrosnando como algo no alto de umaárvore e furioso com isso. Umacabeça de mulher espetava-se parafora da janela lateral. A mamãe dagracinha deve ter ficado com medodemais para se sentar; ela dirigia

num agachamento maluco, e se ocarro tivesse virado naquela curvaespecífica na rota 68, quando fosselançada para fora, minha amiga demaiô vermelho provavelmenteficaria órfã no ato.

O Scout deu uma guinadabrusca, a cabeça enfiou-senovamente para dentro do carro eouviu-se um rangido quando amotorista fez a mudança paraaumentar a marcha, tentandocolocar sua lata velha de zero a 100km/h em talvez nove segundos. Seo terror puro pudesse ter feito otrabalho, tenho certeza de que elateria sido bem-sucedida.

— É Mattie — disse a menina deroupa de banho. — Tô zangada comela. Tô fugindo para passar o 4 deJulho na praia. Se ela tá zangada,eu vou até minha vó branca.

Eu não tinha ideia do que elaestava falando, mas me passoupela cabeça que Miss Bosox 1998poderia ter seu 4 de Julho na praia;eu aceitaria uma certa porção dequalquer alimento saudável emcasa. Enquanto isso, com o braçoque não estava sob o traseiro dacriança, eu acenava para a frente epor cima da cabeça, e com forçasuficiente para fazer levantar asmechas do bonito cabelo louro da

garota.— Ei! — gritei. — Ei, senhora!

Estou com ela!O Scout passou voando, ainda

acelerando e ainda parecendofurioso com isso. O cano dedescarga soprava nuvens defumaça azul. Houve um rangidoainda mais medonho na velhamarcha do Scout. Era como algumaversão maluca de Vamos fazer umtrato: “Mattie, você conseguiupassar a segunda — gostaria desair e assumir a máquina de lavarroupa ou vai tentar a terceira?”

Fiz a única coisa em que pudepensar: fui para o meio da estrada,

me virei em direção ao jipe, queagora se distanciava de mim (ocheiro do óleo era forte e acre) elevantei a criança acima de minhacabeça, esperando que Mattie nosvisse pelo retrovisor. Não me sentiamais um molestador; sentia-meagora o cruel leiloeiro de umdesenho da Disney, oferecendo oleitãozinho mais bonitinho daninhada ao lance mais alto. Masfuncionou. As lanternas traseirascobertas de lama do Scout seacenderam e ouviu-se um uivodemoníaco quando os freios mal-usados se trancaram. Foi bem nafrente da oficina. Se houvesse uns

velhos clientes por ali para uma boafofoca de 4 de Julho, teriam muitopara fofocar. Achei que gostariamespecialmente da parte em quemamãe grita para que eu larguesua filha. Quando você volta parasua casa de veraneio após umalonga ausência, é sempre bomcomeçar com o pé direito.

As luzes traseiras reluziam e ojipe começou a vir de marcha a répela estrada a mais de 30quilômetros por hora. Agora atransmissão soava não furiosa, masem pânico — por favor, dizia ela,por favor, pare, você está mematando. A traseira do Scout

oscilava de um lado para outrocomo a cauda de um cão feliz.Observei-o vir na minha direção,hipnotizado — agora na pista parao norte, depois através da linhabranca e na pista para o sul, entãocorrigindo-se para que os pneus dolado esquerdo tirassem poeira dabeira da estrada.

— Mattie vem depressa — disseminha nova amiguinha num tom deconversa, de não-é-interessante?Tinha um braço em torno do meupescoço; por Deus, agora éramoscamaradas.

Entretanto, o que a criança disseme acordou. Mattie vem depressa,

não há dúvida, depressa demais.Era bem provável que Mattieamassasse a traseira do meuChevrolet. E se eu ficassesimplesmente ali, eu e Baby Snookspodíamos terminar como pasta dedente entre os dois veículos.

Recuei para a lateral do meucarro, mantendo os olhos fixos nojipe, e gritei:

— Devagar, Mattie! Devagar!O docinho gostou.— Devagaaar... — berrou ela,

começando a rir. — Devagaaar... ôMattie, devagaaar!

Os freios guincharam numa novaagonia. O jipe levou a última surra,

deu um pulo infeliz para trásenquanto Mattie parava sem obenefício da embreagem. Aquelainvestida final levou o para-choquetraseiro do Scout para tão perto dopara-choque traseiro de meu Chevyque a brecha poderia ser fechadacom um cigarro. Um tremendo earrepiante odor de óleo pairava noar. A criança sacudiu a mão nafrente do rosto, tossindoteatralmente.

A porta do motorista se abriu eMattie Devore saiu voando comoum acrobata de circo disparado deum canhão, se você pode imaginarum acrobata de circo vestido com

um velho short de lã estampado euma bata de algodão. Minhaprimeira ideia foi de que a irmãmais velha da garotinha estavaexercendo a função de sua baby-sitter, e que Mattie e mamãe eramduas pessoas diferentes. Sabia queas garotinhas passam comfrequência um período de seudesenvolvimento chamando os paispelo primeiro nome, mas essa moçaloura e pálida parecia ter 12, 14anos, à primeira vista. Cheguei àconclusão de que sua loucamanipulação do Scout não foraterror pela criança (ou não apenasterror) e sim uma total

inexperiência com automóveis.Havia algo mais também, certo?

Outra suposição que eu fiz. Oenlameado tração-nas-quatro-rodas, o short largo de lã, a bataque só faltava gritar Kmart, ocabelo louro comprido preso atráscom um daqueles pequenoselásticos vermelhos e, sobretudo, adesatenção que permite que umacriança de 3 anos a seus cuidadosperambule por aí, em primeirolugar... todas essas coisascheiravam a “lixo-de-trailer”. Sei aimpressão que tais palavras dão,mas eu me baseava em algumacoisa. Além disso, sou irlandês,

droga. Meus ancestrais eram lixo-de-trailer quando os trailers aindaeram carroções puxados porcavalos.

— Fedorento! — disse agarotinha, ainda sacudindo umarechonchuda mão no ar à frente dorosto. — Carro fedorento!

Onde está a roupa de banho doScout?, pensei, e então minha novaamiguinha foi-me arrebatada dosbraços. Agora que Mattie estavamais próxima, minha ideia de queera irmã da belezinha de maiôlevou um golpe. É verdade queMattie só entraria na meia-idadecom o século XXI já bem adiantado,

mas também não tinha 12 ou 14anos. Meu palpite agora era de 20anos, talvez um ano menos.Quando me arrebatou a garota, vi aaliança em sua mão esquerda. Vitambém os círculos escuros emvolta dos olhos, uma pele cinzentapassando a roxa. Ela era jovem,mas pensei que aquilo fosse terrorde mãe e exaustão.

Esperei que batesse na pirralha,porque é assim que mães lixo-de-trailer reagem ao cansaço e aomedo. Quando ela o fizesse, eu adeteria, de um modo ou de outro —a distrairia para que voltasse suaraiva contra mim, se fosse preciso.

Não havia nada muito nobre nisso,devo acrescentar, o que eu queriarealmente era adiar os tapas, ossacolejões no ombro e a gritaria norosto para um tempo e lugar ondeeu não tivesse que presenciá-los.Era o primeiro dia de minha voltaao local; não queria passarnenhuma parte dele vendo umaputa desatenta maltratar a filha.

Em vez de sacudir a menina ougritar “Onde que achava que estavaindo, sua desgraçada?”, Mattieprimeiro a abraçou (a meninarespondendo entusiasticamente aoabraço e não mostrandoabsolutamente nenhum sinal de

medo) e depois cobriu o rosto delade beijos.

— Por que fez isso? — exclamou.— O que é que te deu na cabeça?Quando vi que não conseguiaencontrar você, me deu vontade demorrer.

Mattie irrompeu em lágrimas. Acriança na roupa de banho olhavapara ela com uma expressão desurpresa tão grande e tão completaque teria sido cômica em outrascircunstâncias. Então seu própriorosto se enrugou. Fiquei um poucoatrás, vendo-as chorar e se abraçar,e me sentindo envergonhado deminhas ideias preconcebidas.

Um carro passou por nós ediminuiu a marcha. Um casal idoso— Ma e Pa Kettle a caminho doarmazém para comprar a caixa decereal do feriado — olhouembasbacado. Aceneiimpacientemente com as mãos,como se dissesse: o que é queestão olhando?, vão embora, vãover se estou na esquina. Elesretomaram a velocidade, mas nãovi nenhuma placa de fora doestado, como tinha esperado.Aquela versão de Ma e Pa era dehabitantes locais, e a história logoestaria circulando pelasredondezas; Mattie, a noiva

adolescente, e a alegria de sua vida(a dita alegria tendo sidoindubitavelmente concebida nobanco de trás de um carro ou nacama de um caminhão algunsmeses antes da cerimônialegitimadora), derretendo-se emlágrimas no acostamento daestrada. Com um estranho. Não,não exatamente um estranho. MikeNoonan, o cara escritor do norte doestado.

— Eu queria ir pra praia e naa-d-aar! — chorava a garotinha, eagora era “nadar” que soavaexótico. Talvez fosse a palavra emvietnamita para “êxtase”.

— Eu disse que ia levar você detarde. — Mattie ainda fungava, mascomeçando a se controlar. — Nãofaça isso de novo, garota, por favor,nunca mais faça isso, mamãe ficoutão assustada.

— Não vou fazer — disse acriança. — Não vou fazer mesmo. —Ainda chorando, ela abraçou amoça bem apertado, pondo acabeça num dos lados do pescoçode Mattie. Seu boné de beisebolcaíra. Peguei-o, começando a mesentir um estranho ali. Enfiei o bonéazul e vermelho na mão de Mattieaté que seus dedos se fecharamsobre ele.

Cheguei à conclusão de que mesentia bastante bem quanto aomodo como as coisas haviam seresolvido, e talvez tivesse direito afazê-lo. Apresentei o incidentecomo se fosse divertido, e o era,mas tratava-se de um tipo dediversão que só se percebe depois.Enquanto acontecera, foraaterrorizante. E se um caminhãotivesse vindo da outra direção?Dobrando a curva e chegandorápido demais?

Um veículo de fato estava vindo,uma picape do tipo que os turistasnunca dirigem. Dois outroshabitantes locais passaram por ali e

se embasbacaram.— Moça? — disse. — Mattie?

Acho que é melhor eu ir andando.Que bom que sua garotinha estábem. — Um segundo depois quefalei, tive uma vontade quaseirresistível de rir. Eu podia mevisualizar fazendo esse discursocom um sotaque arrastado paraMattie (um nome que tinha a vercom filmes como Os imperdoáveisou Bravura indômita, se é quealgum nome teria), com ospolegares enfiados no cinto deminhas perneiras de couro e oStetson empurrado para trás,revelando minha testa nobre. Senti

um louco impulso de acrescentar:“A senhora é bonita pra burro,dona, não é a nova professora daescola?”

Ela se virou para mim e vi queera bonita pra burro. Mesmo comolheiras e porções de seu cabelolouro espetando-se dos dois ladosda cabeça. E achei que ela estavaindo bem para uma moçaprovavelmente ainda não velha obastante para tomar um drinquenum bar. Pelo menos não tinhabatido na criança com o cinto.

— Muito obrigada — disse amoça. — Ela estava na estrada? —Diga que não, imploravam seus

olhos. Diga pelo menos que elaestava andando peloacostamento...

— Bom...— Eu tava andando pela linha —

disse a garota, apontando. Sua vozassumiu um tênue tom cheio derazões. — É seguro.

O rosto já branco de Mattie ficouainda mais branco. Não gostei devê-la assim, e não gostei deimaginá-la dirigindo para casadaquela maneira, especialmentecom uma criança.

— Onde é que mora, senhora...— Devore — disse ela. — Sou

Mattie Devore. — Ajeitou a criança

e estendeu a mão. Eu a apertei. Amanhã estava tépida, e ia serquente por volta do meio-dia, umtempo para praia, sem dúvida, masos dedos que toquei estavamgelados.

— Moramos logo ali.Ela apontou para o cruzamento

do qual tinha surgido o Scout, epude ver — surpresa, surpresa —um trailer duas vezes o tamanhocomum estacionado num bosque depinheiros a uns 60 metros acima naestradinha vicinal. Estrada WaspHill, lembrei. Percorria cerca de uns800 metros da rota 68 até a água— que era conhecido como Middle

Bay. Ah, sim, doutor, está tudo mevoltando agora. Estou mais umavez percorrendo a extensão de DarkScore. Salvar criancinhas é minhaespecialidade.

Mesmo assim, eu estava aliviadode saber que ela morava perto —menos de um quilômetro do lugaronde nossos respectivos veículosestavam parados com suastraseiras quase se tocando —, equando pensei a respeito, faziasentido. Uma criança tão jovemcomo a belezinha de roupa debanho não poderia ter andadomuito longe... embora aquela ali jádemonstrasse um bom grau de

determinação. Pensei que aaparência desfigurada de mamãeera ainda mais sugestiva dadeterminação da filha. Fiqueicontente por ser velho demais paraser um de seus futuros namorados;ela os faria saltar através de umaargola no colégio e na faculdade.Uma argola de fogo,provavelmente.

Bom, pelo menos na parte docolégio. Moças do lado trailer duploda cidade geralmente nãocursavam faculdade, a não ser quehouvesse uma escola vocacionalpor perto. E ela os faria saltar atéque o rapaz certo (ou mais

provavelmente o errado) dobrasseimpetuosamente a Grande Curva daVida e a atropelasse na rodovia, elacompletamente inconsciente de quea linha branca e segurança eramduas coisas diferentes. Então o ciclointeiro se repetiria.

Meu Deus do céu, Noonan, deixedisso, falei comigo mesmo. Ela temsó 3 anos e você já lhe arranjoutrês filhos, dois com micose e umretardado.

— Muito, muito obrigada —repetiu Mattie.

— Tudo bem — disse, e puxei onariz da garotinha. Embora aindacom o rosto molhado de lágrimas,

ela sorria ensolaradamente paramim como resposta. — É umagarotinha muito falante.

— Muito falante e muito cheia devontades. — Agora Mattie deu àfilha um pequeno sacolejão, mas agarota não mostrou nenhum medo,nenhum sinal de que sacolejar oubater estivesse na ordem damaioria dos dias. Pelo contrário,seu sorriso se alargou. A mãesorriu. E sim, uma vez passada aaparência desconjuntada, ela eraextraordinariamente bonita.Vestindo uma roupa de tênis e noCastle Rock Country Club (ondeprovavelmente jamais entraria em

sua vida, a não ser como criada ougarçonete), ela ficariaprovavelmente mais do que bonita.Uma jovem Grace Kelly, talvez.

Então ela me olhou novamente,os olhos muito abertos e graves.

— Sr. Noonan, não sou uma mãedesatenta — disse ela.

Senti um sobressalto ao ouvirmeu nome saindo de sua boca, masapenas momentaneamente. Elaestava com a idade certa, afinal decontas, e meus livros eramprovavelmente melhores para elado que se passasse as tardes emfrente a General Hospital e One lifeto live. Um pouco, pelo menos.

— Tivemos uma discussão sobrequando iríamos à praia. Eu queriapendurar as roupas, almoçar e iresta tarde. Kyra queria... — ela seinterrompeu. — O quê? O que foique eu disse?

— O nome dela é Kia? Eu... —Antes que eu pudesse dizerqualquer outra coisa, aconteceualgo extraordinário: minha boca seencheu de água. A tal ponto quesenti um momento de pânico, comoalguém que está nadando no mar eé embrulhado. Só que aquilo nãotinha gosto de sal; era frio e fresco,com um tênue travo de metal,como sangue.

Virei a cabeça para o lado ecuspi. Esperei que uma golfada desangue jorrasse da boca — o tipode golfada que se recebegeralmente ao se começar a fazerrespiração artificial numa vítima dequase afogamento. Em vez disso, oque saiu foi o que geralmente saiquando se cospe num dia quente:uma bolinha branca. E aquelasensação desapareceu antesmesmo que a bolinha brancaatingisse a sujeira do acostamento.Num instante, como se jamaistivesse estado ali.

— O homem cuspiu — disse amenina prosaicamente.

— Desculpe — eu disse. Tambémestava perturbado. Pelo amor deDeus, o que fora aquilo? — Achoque tive uma pequena reaçãoretardada.

Mattie pareceu preocupada,como se eu tivesse 80 anos em vezde 40. Pensei que talvez, para umamoça da idade dela, 40 seja 80.

— Quer vir até minha casa? Eu tedou um copo d’água.

— Não, já estou bem.— Muito bem. Sr. Noonan... só

quero dizer que isso nunca meaconteceu antes. Eu estavapendurando lençóis... e ela dentrode casa vendo um desenho do

Mighty Mouse no vídeo... então,quando entrei para pegar maispregadores... — Olhou para agarota, que não sorria mais. A coisaagora começava a chegar até ela.Seus olhos estavam bem abertos, eprestes a se encherem de lágrimas.— Ela tinha sumido. Por um minuto,achei que eu ia morrer de medo.

Agora a boca da criançacomeçara a tremer, e as lágrimasencheram seus olhos exatamenteno momento esperado. Elacomeçou a chorar. Mattie acariciou-lhe os cabelos, consolando apequena cabeça até que esta sedeitou contra a bata de algodão da

Kmart.— Tudo bem, Ki — disse Mattie.

— Desta vez saiu tudo bem, masvocê não pode ir até a estrada. Éperigoso. Coisas pequenas sãoatropeladas na estrada, e você éuma coisa pequena. A coisinha maispreciosa do mundo.

Kyra chorou mais forte. Era osom exausto de uma criança queprecisava de uma soneca antes dequalquer outra aventura, na praiaou em qualquer outro lugar.

— Kia má, Kia má — soluçou elano pescoço da mãe.

— Não, meu bem, só umamenininha de 3 anos — disse

Mattie, e se eu tivesse abrigadoqualquer outro pensamento de suaincompetência como mãe, ele sedissolveu completamente. Ou talvezjá o tivesse feito, afinal de contas acriança era rechonchuda, graciosa,bem-cuidada e não sofrera danonenhum.

Em determinado nível, tais coisaseram registradas. Em outro, eutentava lidar com a coisa estranhaque tinha acabado de acontecer, ecom a coisa igualmente estranhaque pensei estar ouvindo — que agarotinha que eu retirei da linhabranca tinha o nome queplanejáramos dar a nossa filha, se

nossa filha tivesse sido umamenina.

— Kia — eu disse. Realmentemaravilhado. Como se meu toquepudesse quebrá-la, acaricieihesitantemente a parte de trás desua cabeça. Seu cabelo estavaaquecido pelo sol e bonito.

— Não — disse Mattie. — Kia é omáximo que ela conseguepronunciar do próprio nome porenquanto. Mas é Kyra, não Kia.Vem do grego. Significa “elegante,distinta”. — Mexeu-se, um poucoautoconsciente. — Eu tirei de umlivro de nomes de bebê. Enquantoestava grávida, entrei no estilo

Oprah. Melhor que entrar emparafuso.

— É um nome adorável — eudisse. — E não acho que você nãoseja uma boa mãe.

O que passou por minha cabeçaimediatamente foi uma históriacontada por Frank Arlen duranteuma refeição de Natal, a respeitode Petie, o irmão mais novo. Franktinha feito com que a mesa inteirarisse sem parar. Mesmo Petie, queafirmava não se lembrar nem umpouco do incidente, havia rido atéas lágrimas escorrerem por seurosto.

Certa Páscoa, disse Frank,

quando Petie tinha uns 5 anos deidade, seu pessoal os reunira parauma caça aos ovos de Páscoa. Ospais haviam escondido mais de cemovos cozidos coloridos pela casa nanoite anterior, depois de entregaras crianças aos avós. Todospassaram uma antiga e animadamanhã de Páscoa, pelo menos atéque Johanna, no pátio contando suaporção dos despojos, olhasse paracima e desse um uivo. Lá estavaPetie, arrastando-se alegrementepela aba do telhado do segundoandar na parte de trás da casa, auns 2 metros de altura até o pátiode concreto.

O sr. Arlen resgatara Petieenquanto o resto da famíliapermanecia embaixo, dando-se asmãos, gelados de horror e fascínio.A sra. Arlen repetia a ave-mariavezes sem conta (“Tão rápido queparecia uma algaravia maluca”,dissera Frank, rindo ainda mais),até que o marido desaparecessenovamente pela janela do quartocom Petie nos braços. Então eladesmaiou no chão, quebrando onariz. Quando lhe pediram umaexplicação, Petie disse que queriaprocurar ovos na calha do telhado.

Penso que todas as famílias têmpelo menos uma história assim; a

sobrevivência dos Peties e Kyras domundo é um argumentoconvincente — pelo menos namente dos pais — da existência deDeus.

— Fiquei tão assustada — disseMattie, agora parecendonovamente ter 14 anos. Quinze nomáximo.

— Mas já passou — eu disse. —E Kyra não vai mais andar pelaestrada, vai, Kyra?

Ela balançou a cabeça no ombroda mãe, sem levantá-la. Tive aimpressão de que provavelmenteestaria dormindo antes de Mattievoltar ao velho e bom trailer duplo.

— O senhor não sabe como issoé esquisito para mim — disseMattie. — Um de meus escritoresfavoritos aparece do nada e salvaminha filha. Eu sabia que o senhortinha uma casa na TR, aquela casagrande e velha de troncos quetodos chamam de Sara Laughs, maso pessoal diz que o senhor não vemmais desde que sua mulher morreu.

— Por muito tempo não vim —disse. — Se Sara fosse umcasamento em vez de uma casa,poderíamos chamar isso de umareconciliação experimental.

Ela sorriu brevemente, mas aseguir sua expressão tornou-se

grave de novo.— Quero te pedir uma coisa. Um

favor.— Peça.— Não fale sobre isso. Não é um

bom período para Ki e para mim.— Por que não?Ela mordeu o lábio e pareceu

ponderar se respondia à pergunta— pergunta esta que eu poderianão ter feito, se tivesse tido ummomento a mais para pensar —, eentão balançou a cabeça.

— Porque não. E eu ficaria gratase o senhor não falasse sobre o queaconteceu na cidade. Mais grata doque pode imaginar.

— Sem problemas.— Tem certeza?— Claro. Sou basicamente um

veranista que não tem estado poraqui há algum tempo... O quesignifica que eu não tenho muitagente com quem falar, de qualquermodo. — Havia Bill Dean, claro,mas eu podia permanecer emsilêncio perto dele. Não que ele nãosoubesse. Se essa moça achavaque o pessoal da terra não iadescobrir sobre a tentativa da filhadela de chegar à praia pelaspróprias pernas, estava enganandoa si própria. — Mas acho que jáfomos notados. Dê uma espiada na

Oficina de Brooks. Dê uma espiada,não olhe fixamente.

Ela o fez, e suspirou. Dois velhosestavam em pé na pista asfaltadaonde antes havia bombas degasolina. Um era provavelmente opróprio Brooks; achei que podia vervestígios do cabelo vermelhoondulante, o que sempre o tinhafeito parecer uma versão NovaInglaterra do palhaço Bozo. Ooutro, velho o bastante para fazerBrooks parecer um garotão aindanos cueiros, apoiava-se numabengala de castão de ouro de ummodo estranhamente ardiloso.

— Não posso fazer nada quanto

a eles — disse ela, parecendodeprimida. — Ninguém pode fazernada quanto a eles. Acho que deviame considerar sortuda porque é umferiado e só há dois ali.

— Além disso — acrescentei —,eles provavelmente não virammuito. — O que ignorava duascoisas: primeiro, que meia dúzia decarros e picapes haviam passadoenquanto estávamos ali e segundo,fosse lá o que Brooks e seu amigoidoso não tivessem visto, elesficariam mais do que felizes deinventar.

No ombro de Mattie, Kyra roncoucomo uma dama. Mattie olhou para

ela e sorriu, cheia dearrependimento e amor.

— Lamento termos nosencontrado em circunstâncias queme fazem parecer uma tola, porquesou realmente uma grande fã sua.Na livraria de Castle Rock dizemque o senhor tem um novo romancesaindo nesse verão.

Concordei com a cabeça.— Chama-se A promessa de

Helen.Ela sorriu.— Bom título.— Obrigado. É melhor você levar

sua companheirinha para casaantes que ela quebre o seu braço.

— É.Há gente neste mundo que tem

uma propensão a fazer perguntasconstrangedoras e embaraçosassem querer — é como o talentopara entrar pelas portas adentro.Sou dessa tribo, e enquanto andavacom ela até o lado do passageirono Scout, achei uma boa pergunta.E mesmo assim era difícil mecensurar de modo muitoentusiástico. Afinal de contas, vi aaliança de casamento em sua mão.

— Vai contar a seu marido?Seu sorriso continuou, mas de

certo modo empalideceu. E ficoutenso. Se fosse possível apagar

uma pergunta falada como se podeapagar uma linha digitada quandose escreve, eu teria feito isso.

— Ele morreu em agostopassado.

— Mattie, desculpe. Vivometendo os pés pelas mãos.

— Você não podia saber. Não sepensa que uma moça da minhaidade é casada, não é? E se é, omarido supostamente está noExército ou qualquer coisa assim.

Havia um assento para bebê cor-de-rosa — também da Kmart,segundo o meu palpite — do ladodo passageiro do Scout. Mattietentou suspender Kyra até ele, mas

vi que lutava para fazê-lo. Dei umpasso à frente para ajudá-la e, porum momento, enquanto eu passavapor ela para agarrar uma pernagorducha, o dorso de minha mãoroçou em seu seio. Ela não pôderecuar, a não ser que quisessecorrer o risco de Kyra deslizar parafora do assento e cair no chão, maseu podia sentir que ela tinharegistrado o toque. Meu maridoestá morto, não é uma ameaça,portanto o escritor importante achaque tudo bem arriscar uma mãoboba numa manhã quente deverão. E o que posso dizer? OEscritor Importante apareceu e

tirou minha filha da estrada, talveztenha salvado sua vida.

Não, Mattie, eu posso ter 40 acaminho dos 100, mas não estavaarriscando uma mão boba. Só queeu não podia dizer isso; apenaspioraria as coisas. Senti meu rostoenrubescer um pouco.

— Que idade você tem? —perguntei, depois de ajustarmos obebê na posição e nos colocarmos auma distância segura.

Ela me encarou. Cansada ou não,já se controlara.

— Velha o bastante para saberem que situação estou. — Estendeua mão. — Mais uma vez, obrigada,

sr. Noonan. Deus o mandou para cáno momento certo.

— Não, Deus só me disse que euprecisava de um hambúrguer noVillage Café — eu disse. — Outalvez fosse seu oposto, o diabo.Por favor, diga que Buddy aindacontinua com o mesmo velhoquiosque.

Ela sorriu. Seu rosto se aqueceude novo, e fiquei feliz de vê-lo.

— Ele ainda vai estar lá quandoos filhos de Kyra estiverem velhos obastante para tentar comprarcerveja usando carteiras deidentidade falsas. A não ser quealguém enverede estrada adentro e

peça algo como camarão tetrazzini.Se isso acontecesse, eleprovavelmente cairia duro com umataque do coração.

— É. Bem, quando eu tiveralguns exemplares do novo livro, eute mando um.

O sorriso continuava lá, masagora sombreado de cautela.

— Não precisa fazer isso, sr.Noonan.

— Não, mas vou fazer. Meuagente me manda cinquentaexemplares grátis. Descobri quequanto mais velho fico, mais elesaumentam.

Talvez ela ouvisse em minha voz

mais do que eu pretendera colocarlá — as pessoas às vezes o fazem,acho eu.

— Muito bem. Vou esperar comansiedade.

Dei uma olhada na criança,dormindo naquele modoestranhamente casual que elas têm— a cabeça inclinada sobre oombro, os lábios adoráveisapertados e soprando uma bolha. Apele delas é que me espanta — tãofina e perfeita que não parececonter poro nenhum. Seu bonéestava torto. Mattie me observoupegá-lo e rearrumá-lo para que asombra do visor abrigasse os olhos

fechados da menina.— Kyra — eu disse.Mattie assentiu com a cabeça.— Como uma dama.— Kia é um nome africano — eu

disse. — Significa “o começo daestação”. — Então fui embora,fazendo-lhe um pequeno acenoenquanto voltava para o lado domotorista do Chevy. Sentia seusolhos curiosos sobre mim, e tive asensação muito estranha de que euia chorar.

A sensação permaneceu comigomuito tempo depois de as duasterem desaparecido de minhavisão; ainda continuava comigo

quando cheguei ao Village Café.Entrei no estacionamento sujo àesquerda das bombas de gasolinade marca barata e me sentei ali poralgum tempo, pensando em Jo enum kit para teste doméstico degravidez que custara 22,50 dólares.Um pequeno segredo que ela quismanter até estar absolutamentecerta. Devia ser isso; o que maispoderia ter sido?

— Kia — eu disse. — O começoda estação. — Mas isso me fez tervontade de chorar de novo, entãosaí do carro e bati a porta comforça atrás de mim, como se dessemodo pudesse conservar a tristeza

lá dentro.

Capítulo Oito

Buddy Jellison era o mesmo, semdúvida — o mesmo traje branco decozinheiro e avental brancoenodoado, o mesmo cabelo pretosob o chapéu manchado de sanguebovino ou sujo de morango.Aparentemente, até as mesmasmigalhas de biscoitos de aveiaprendiam-se em seu bigodedesigual. Tinha talvez 55 anos,talvez 70, o que em alguns homens

geneticamente beneficiados pareceestar ainda nas fronteiras maisdistantes da meia-idade. Ele eraenorme e desajeitado —provavelmente mais de um metro enoventa e mais de 130 quilos —, etão cheio de graça, espirituosidadee joie de vivre como há quatroanos.

— Quer um cardápio ou ainda selembra? — grunhiu ele, como se eutivesse estado lá pela última vez nodia anterior.

— Ainda faz o VillagebúrguerDeluxe?

— Um corvo ainda caga no topodos pinheiros? — Olhos pálidos me

encarando. Nada de pêsames, oque para mim estava bem.

— Provavelmente. Quero umcom tudo, um Villagebúrguer, nãoum corvo, e um frappé dechocolate. Bom ver você de novo.

Estiquei a mão. Ele pareceusurpreso, mas tocou-a com aprópria mão. Contrariamente àscoisas brancas que usava, o aventale o chapéu, a mão estava limpa.Até as unhas estavam limpas.

— É — disse ele, e então virou-se para a mulher amarelada quecortava cebolas ao lado da grelha.— Villagebúrguer, Audrey — disse.— Traga para o jardim.

Normalmente sou o tipo de cara-que-senta-ao-balcão. Naquele dia,porém, instalei-me numa mesaperto do contêiner de refrigeraçãodas bebidas e esperei o berro deBuddy dizendo que estava pronto —Audrey fornece as minutas, masnão funciona como garçonete. Euqueria pensar, e o Buddy’s é umbom lugar para se fazer isso. Haviadois moradores locais comendosanduíches e tomando refrigerantesdireto da lata, mas era tudo;pessoas com chalés de veraneiotinham que estar morrendo de fomepara comer no Village Café, emesmo assim seria preciso arrastá-

las, chutando e gritando, portaadentro. O chão de linóleo verdedesbotado mostrava uma ondulantetopografia de colinas e vales. Comoo uniforme de Buddy, não era muitolimpo (o pessoal de verão queentrava provavelmente nãoreparava nas mãos dele). Asparedes forradas de madeira eramengorduradas e escuras. Acima,onde o reboco começava, haviacerta quantidade de adesivos depara-choque — a noção dedecoração para Buddy.

BUZINA QUEBRADA — AGUARDE PELO DEDO.ESPOSA E CACHORRO DESAPARECIDOS.

RECOMPENSA PELO CACHORRO.NÃO HÁ NENHUM BÊBADO DA CIDADE AQUI. TODOS

NÓS NOS REVEZAMOS.

O humor é sempre raivamaquiada, penso, mas nascidadezinhas pequenas amaquiagem tende a ser tênue. Trêsventiladores de teto moviamapaticamente o ar quente, e àesquerda do contêiner para gelarrefrigerantes havia duas fitaspendentes de papel pega-moscas,as duas generosamente apinhadasde vida selvagem, algumas aindalutando debilmente. Se você podiaolhar aquilo e ainda comer,provavelmente sua digestãofuncionava muito bem.

Pensei na semelhança de nomes.Era certamente, tinha que ser, uma

coincidência. Pensei numa moçabem jovem e bonita que se tornaramãe aos 16 ou 17 anos, e viúva aos19 ou 20. Pensei no toqueinadvertido em seu seio, e como omundo julgava homens de 40 quedescobriam subitamente ofascinante mundo das moças e seusacessórios. Pensei sobretudo nacoisa esquisita que aconteceracomigo quando Mattie me dissera onome da criança — a sensação deque minha boca e gargantaestavam subitamente cheias deágua fria, com um travo mineral.Aquela golfada.

Quando o meu hambúrguer ficou

pronto, Buddy teve que chamarduas vezes. Quando fui até o balcãopara pegá-lo, ele perguntou:

— Voltou para ficar ou paraesvaziar a casa?

— Por quê? — perguntei. —Sentiu falta de mim, Buddy?

— Não — disse ele —, mas pelomenos você é do estado. Sabia que“Massachusetts” significa “idiota” nalinguagem indígena local?

— Você continua engraçadocomo sempre.

— É. Vou no porra do Letterman.Para explicar a ele por que Deuspôs asas nas gaivotas.

— Por que, Buddy?

— Para que elas pudessemganhar desses franceses de merdana sujeira.

Peguei um jornal do suporte eum canudo para o meu frapée.Então fiz um desvio até o telefonepago e, metendo o jornal debaixodo braço, abri a lista telefônica. Sea gente quisesse, podia andar porali com ela; não estava presa aotelefone. Afinal de contas, quem iaquerer roubar uma lista telefônicado condado de Castle?

Havia mais de vinte Devore, oque não me surpreendeu muito — éum desses nomes, como Pelkey,Bowie ou Toothaker, em que se

vive esbarrando caso se more poraqui. Imagino que seja o mesmoem toda parte — algumas famíliasgeram mais e viajam menos, sóisso.

Havia um Devore alistado em“RD Est Wsp Hll”, mas não eraMattie, Mathilda, Martha ou M. EraLance. Olhei a capa da lista e vi queera de 1997, impressa e enviadaquando o marido de Mattie ainda seencontrava na terra dos vivos.Certo... havia algo mais naquelenome. Devore, Devore, agoravamos elogiar os famosos Devore;onde estais vós, Devore? Mas nãoapareceu, fosse o que fosse.

Comi meu hambúrguer, bebi meusorvete liquefeito e tentei não olharpara o que fora capturado no papelpega-mosca.

Enquanto esperava que a amarela esilenciosa Audrey me desse o troco(ainda se podia comer a semanainteira no Village Café porcinquenta dólares... isto é, senossas veias aguentassem), li oadesivo grudado na caixaregistradora. Era outro especial deBuddy Jellison: O CIBERESPAÇO ME ASSUSTOU

TANTO QUE FIZ DOWNLOAD NAS CALÇAS. O quenão me fez ter exatamente

convulsões de alegria, masforneceu a chave para resolver umdos mistérios do dia: por que onome Devore parecera não apenasfamiliar, mas evocativo.

Eu era abastado, ou rico, para opadrão de muitos. No entanto,havia uma pessoa com laços com aTR que era rica pelo padrão detodos, e podre de rica pelo padrãoda maioria dos residentes do anointeiro na região dos lagos. Se éque ele ainda comia, respirava ecaminhava por ali.

— Audrey, Max Devore aindaestá vivo?

Ela deu um pequeno sorriso.

— Ah, tá sim. Mas não se vêmuito ele por aqui.

Aquilo me arrancou o riso quetodos os adesivos “engraçados” deBuddy não tinham conseguidoprovocar. Audrey, que sempre foraamarelada e que parecia agorauma candidata a um transplante defígado, também deu um risinhoabafado. Buddy nos lançou umsevero e feroz olhar de bibliotecáriada outra extremidade do balcão,onde lia um folheto sobre a corridade Stock Car no feriado, em OxfordPlains.

Voltei de carro pelo mesmocaminho que tinha ido. Um grande

hambúrguer é uma refeição ruimpara se comer no meio de um diaquente; ela nos deixa com sono ecom raciocínio lento. Tudo que euqueria era ir para casa (estaria láem menos de 24 horas e jápensava na casa como um lar), mejogar na cama do quarto norte sobo ventilador de teto e dormir porduas horas.

Quando passei pela estradaWasp Hill, diminuí a marcha. Asroupas pendiam indiferentes dascordas e havia brinquedosespalhados no pátio da frente, maso Scout desaparecera. Mattie e Kyratinham posto suas roupas de

banho, imaginei, e rumado para aprainha pública. Eu gostara umbocado delas. O casamento de vidacurta de Mattie provavelmente avinculara de algum modo a MaxDevore... mas olhando para oenferrujado trailer duplo com suaentrada de carro suja e o pátio dafrente meio careca, lembrando oshort largo e a bata de algodãoKmart de Mattie, eu duvidava que ovínculo fosse forte.

Antes de se retirar para PalmSprings no final da década de 1980,Maxwell William Devore tinha sidouma força propulsora na revoluçãodos computadores. Esta é uma

revolução primordialmente dejovens, mas Devore se saiu bempara um veterano dos anosdourados — conhecia o campo dojogo e entendia as regras. Começouquando a memória era estocadanuma fita magnética em vez de emchips, e um computador chamadoUnivac, do tamanho de umarmazém, era a última palavra noramo. Era fluente em Cobol e falavaFortran como um nativo. Quando omercado se ampliou além de suacapacidade de alcançá-lo,expandindo-se a ponto de definir omundo, ele comprou o talento deque precisava para continuar

crescendo.Sua companhia, Visions, tinha

criado programas de transferênciade dados que podiam transferirmaterial do disco rígido para osdisquetes quase instantaneamente,programas gráficos que se tornaramo padrão na indústria, o Pixel Easel,que permitia que usuários delaptops pintassem com o mouse...na realidade, pintassem com odedo, se o equipamento delesviesse com o dispositivo que Jochamava de “cursor clitorial”.Devore não tinha inventado nadadesse último, mas entendeu quepodia ser inventado e contratou

gente para fazê-lo. Era proprietáriode dúzias de patentes ecoproprietário de centenas deoutras. Especulava-se que suafortuna era algo como 600 milhõesde dólares, dependendo de quantovaliam as ações da tecnologia emdeterminado dia.

Na TR, sua fama era de irritantee desagradável. Nenhuma surpresanisso; santo de casa não fazmilagre. E as pessoas diziam queele era excêntrico, claro. Ouça opessoal da velha-guarda se lembrardos ricos e bem-sucedidos de suajuventude (e todos os da velha-guarda dizem que se lembram) e

você vai escutar que eles comiam opapel de parede, fodiam o cachorroe apareciam nos jantares da igrejausando apenas as cuecasmanchadas de mijo. Mesmo sendotudo verdade no caso de Devore, eainda que ele fosse o Tio Patinhas,eu duvidava que permitisse queduas parentas próximas morassemnum trailer tamanho duplo.

Subi a pista acima do lago eparei à cabeceira da minha entradade carros, olhando a tabuleta: aspalavras SARA LAUGHS queimadas numpedaço de madeira envernizadapregada a uma árvore. É o modocomo fazem as coisas por aqui.

Olhar para ela me trouxe de volta oúltimo sonho da série Manderley.Naquele sonho, alguém colava umadesivo de estação de rádio natabuleta, do modo como sempre seveem adesivos colados nas cestasde recolhimento do pedágio naspistas de quantia exata.

Saí do carro, fui até a tabuleta eexaminei-a. Nenhum adesivo. Osgirassóis haviam brotado ali,crescendo para fora do alpendre —havia uma foto em minha valisepara prová-lo —, mas não havianenhum adesivo de estação derádio na tabuleta da casa. Provandoexatamente o quê? Ora, Noonan,

tem paciência.Comecei a voltar para o carro —

pela porta aberta, os Beach Boysdespejavam-se dos alto-falantes —e então mudei de ideia e fui até atabuleta de novo. No sonho, oadesivo fora colocado pouco acimad o RA de SARA e do LAU de LAUGHS.Toquei com os dedos o lugar eachei que meus dedos tinhamficado ligeiramente grudentos.Claro que poderia ter sido o verniznum dia quente. Ou a minhaimaginação.

Dirigi até a casa, estacionei,puxei o freio de mão (nos declives àvolta do Dark Score e na dúzia de

outros lagos na parte oeste doMaine, sempre se puxa o freio demão) e escutei o resto de “Don’tWorry, Baby”, que sempreconsiderei a melhor canção dosBeach Boys, ótima não a despeitoda letra boba, mas por causa dela.Se você soubesse quanto te amo,baby, canta Brian Wilson, nadapoderia dar errado com você. Puxa,pessoal, não seria fantástico?

Fiquei onde estava, escutando, eolhei para o armário no lado direitodo alpendre. Guardávamos o lixo alipara protegê-lo dos guaxinins dasredondezas. Nem sempre as latascom as tampas empurradas para

dentro adiantam; se os bichosestão com bastante fome, dão umjeito de manejar as tampas comsuas mãozinhas ágeis.

Você não vai fazer o que estápensando, disse a mim mesmo...Vai?

Parece que eu ia — ou pelomenos faria uma tentativa. Quandoos Beach Boys cederam lugar aRare Earth, saí do carro, abri oarmário de guardar lixo e puxeipara fora duas latas de lixo deplástico. Um sujeito chamado StanProulx vinha pegar o lixo duasvezes por semana (ou pelo menospegava, há quatro anos, lembrei a

mim mesmo); ele pertencia à vastarede de contatos de Bill quetrabalhava em meio expedientepara descolar um dinheiro por fora,mas eu não achava que Stan viriarecolher o atual acúmulo de sujeirapor causa do feriado, e eu estavacerto. Havia dois sacos plásticos delixo em cada lata. Puxei-os parafora (chamando-me de idiotamesmo enquanto o fazia) e desateios cordões amarelos.

Na verdade, não acho queestivesse tão obcecado a ponto dedespejar um monte de lixo úmidono meu alpendre, se a coisa tivessechegado a esse ponto (claro que

nunca saberei ao certo e talvez sejamelhor assim), mas não chegou.Ninguém morava na casa haviaquatro anos, lembre-se, e é aocupação que produz lixo — tudo,de pó de café a absorventesíntimos. O material naqueles sacosera lixo seco varrido e reunido comum carrinho de mão pela equipe delimpeza de Brenda Meserve.

Havia nove sacos de lixo deaspirador de pó contendo 48 mesesde poeira, sujeira e moscas mortas.Havia chumaços de toalhas depapel, alguns cheirando aoaromático óleo de mobília, outroscom o penetrante e ainda mais

agradável aroma de Windex. Haviauma almofada de colchão mofada eum paletó de seda com ainequívoca aparência de ter sidojantado-pelas-traças. Pelo paletó eucertamente não lamentei; equívocode meu período de jovem macho,ele parecia algo da era “I Am theWalrus”, dos Beatles. Du-bi-du-bi-du, baby.

Havia uma caixa cheia de vidroquebrado... outra cheia deirreconhecíveis (e presumivelmenteultrapassados) artefatos deencanamento... um pedaço decarpete rasgado e sujo... panos deprato nas últimas, desbotados e

rasgados... as velhas luvas paraforno que eu usava quando faziahambúrgueres e galinha nachurrasqueira...

O adesivo estava numa dobra dosegundo saco. Eu sabia que iriaencontrá-lo — e o sabia desde omomento em que havia tocado comos dedos a tênue mancha pegajosana tabuleta —, mas precisei vê-lopor mim mesmo. Do mesmo modoque São Tomé, suponho.

Pus o adesivo numa tábua doalpendre aquecido pelo sol e oalisei com a mão. Estavaesfarrapado nas pontas. Meupalpite era que Bill provavelmente

tinha usado uma espátula pararaspá-lo. Não devia querer que o sr.Noonan voltasse para o lago depoisde quatro anos e descobrisse quealgum garoto cheio de cerveja tinhacolado um adesivo de estação derádio na tabuleta de sua entrada decarros. Nãhn seria apropriadoh,orah. Portanto, retirara-o,colocando-o no lixo, e ali estava elede novo, mais um pedaço de meupesadelo desenterrado e não muitodanificado. Passei o dedo nele. WBLM,

102.9, DIRIGÍVEL DE ROCK AND ROLL DE PORTLAND.Disse a mim mesmo que não

precisava ter medo. Aquilo nãosignificava nada, assim como todo o

resto da coisa também nãosignificava nada. Então peguei avassoura no armário e varri e reunitodo o lixo, despejando-onovamente nos sacos plásticos. Oadesivo foi com o resto.

Entrei na casa querendo tomar umbanho de chuveiro para tirar apoeira e a sujeira. Em vez disso,porém, olhando meu calção debanho ainda numa das valisesabertas, resolvi nadar. O calção queeu havia comprado em Key Largoera engraçado, coberto de baleiasjorrando. Achei que minha

camaradinha com o boné do Bosoxteria aprovado. Olhei o relógio e vique terminara meu Villagebúrguerhavia 45 minutos. Era hora de mededicar a um trabalho importante,cara pálida, especialmente depoisde me envolver num enérgico jogode Caça ao Tesouro no Saco deLixo.

Vesti o calção e desci osdegraus, feitos de dormentes deestrada de ferro, que levavam deSara até a água. Minha sandália dededo estalava no chão. Uns poucosmosquitos retardatários zumbiam.O lago cintilava à minha frente,parado e convidativo sob o céu

úmido e baixo. Percorrendo norte esul ao longo de suas bordas,contornando todo o lado leste dolago, havia uma trilha direito depassagem (é chamada “servidão”nas escrituras) que o pessoal da TRchama simplesmente de A Rua.Caso se dobrasse à esquerda paraA Rua no início dos meus degraus,podia-se andar todo o caminho atéa marina de Dark Score, passando-se pelo Warrington’s e pelo sórdidorestaurantezinho de BuddyJellison... sem mencionar quatrodúzias de chalés de verão,discretamente metidos eminclinados bosques de abetos e

pinheiros. Virando à direita, pode-se ir a pé para Halo Bay, embora seleve um dia para fazê-lo com A Ruacoberta de folhagem como estáagora.

Fiquei por um momento noatalho e então corri para a frente epulei dentro d’água. Ainda quandovoava pelo ar com a maiorfacilidade, ocorreu-me que a últimavez que eu havia pulado assim foisegurando a mão de minha mulher.

Aterrissar foi quase umacatástrofe. A água estava fria osuficiente para me lembrar que eutinha 40 anos, não 14, e por ummomento meu coração parou

completamente de bater. Enquantoo lago Dark Score fechava-se sobremim, tive certeza de que não iasubir vivo. Seria encontrado àderiva, o rosto para baixo, entre aplataforma flutuante e minhapequena extensão da Rua, vítimada água fria e de um gordurentoVillagebúrguer. Esculpiriam “SuaMãe Sempre Disse para Esperarpelo Menos uma Hora” na lápide.

Então meus pés aterrissaram naspedras e em escorregadias ervasaquáticas que cresciam no fundo dolago, meu coração pegou com umtranco e disparei para cima comoum sujeito planejando converter a

última jogada debaixo da cesta nofinal de um jogo de basquete.Voltei ao ar arquejando. A águaentrou na minha boca e tossi-a parafora, batendo no peito com umadas mãos para encorajar o coração— vamos, meu bem, continue, vocêpode fazer isso.

Na descida, fiquei em pé até acintura no lago e com a boca cheiadaquele gosto frio — água do lagocom um travo mineral, do tipo quese teria que corrigir ao lavar asroupas. Era o mesmo gosto que eusentira quando em pé noacostamento da rota 68. Era omesmo gosto do momento em que

Mattie Devore me disse o nome dafilha.

Fiz uma conexão psicológica, sóisso. Entre a semelhança dosnomes com minha esposa falecida,e dela com este lago. Gosto que...

— Gosto que já senti uma ouduas vezes antes — disse alto.Como para sublinhar o fato, com aconcha da mão peguei um pouco deágua, uma das mais limpas e clarasdo estado, segundo os relatórios deanálise que eu e todos os outrosmembros da chamada Associaçãodos Lagos do Oeste recebemos acada ano, e bebi. Não houvenenhuma revelação, nada de

flashes repentinos e esquisitos emminha mente. Era só o Dark Score,primeiro em minha boca e depoisno estômago.

Nadei até a plataforma, subi ostrês degraus da escada de mão aolado e com um baque atingi astábuas quentes, subitamente muitosatisfeito por ter chegado. Apesarde tudo. Amanhã começaria aorganizar algum tipo de vida ali...pelo menos tentaria. Por hora erasuficiente estar deitado com acabeça na curva do braço, à beirade uma soneca, confiante de que asaventuras do dia haviam terminado.

Pelo que aconteceu, não era bem

verdade.

Durante nosso primeiro verão naTR, Jo e eu descobrimos que sepodia ver o espetáculo de fogos deCastle Rock do deck do lago. Eu melembrei disso exatamente quandocomeçava a escurecer, e pensei quenaquele ano passaria a data nasala, vendo um filme no aparelhode vídeo. Reviver todos oscrepúsculos de 4 de Julho quehavíamos passado lá, tomandocerveja e rindo enquanto osgrandes foguetes eram disparadosseria uma má ideia. Eu já estava

suficientemente solitário semaquilo, solitário de um modo quenão tivera consciência em Derry.Então cogitei por que teria voltadosenão para finalmente enfrentar alembrança de Johanna — toda alembrança — e fazê-la descansar.Certamente a possibilidade deescrever de novo jamais pareceratão distante quanto naquela noite.

Não havia cerveja — eu tambémtinha esquecido de comprar umpacote de seis no armazém ou noVillage Café —, mas haviarefrigerante, cortesia de BrendaMeserve. Peguei uma lata de Pepsie me instalei para assistir ao show

de luzes, esperando não memachucar demais. Esperando, achoeu, não chorar. Não que estivesseme enganando; houve maislágrimas ali, claro. Eu simplesmenteteria que passar por elas.

A primeira explosão da noitehavia acabado de se dissipar —uma explosão de lantejoulas azuiscom o estouro viajandoimediatamente depois —, quando otelefone tocou. Aquilo me fez dar opulo que a tênue explosão deCastle Rock não tinha conseguido.Provavelmente seria Bill Dean,pensei, fazendo uma chamada delonga distância para ver se tudo

estava certo.No verão antes de Jo morrer,

tínhamos comprado um telefonesem fio para podermos percorrer oandar de baixo enquantofalávamos, coisa que nós doisgostávamos de fazer. Passei pelaporta de correr, de vidro, entrei nasala, apertei o botão de resposta edisse:

— Alô, é Mike — enquantovoltava à minha cadeira do deck eme sentava. A distância, do outrolado do lago, explodindo abaixo dasnuvens baixas pendendo sobreCastle View, havia irrupções deestrelas verdes e amarelas,

seguidas por flashes cujo somposteriormente me alcançaria.

Por um momento não saiu nadado telefone. Então uma ríspida vozde homem — voz de homem idoso,mas não a de Bill Dean — falou:

— Noonan? Sr. Noonan?— Sim. — Uma enorme

lantejoula de ouro iluminou o oeste,fazendo tremular as nuvens baixascom uma breve filigrana. Fez-mepensar naqueles shows de prêmiosque se veem na televisão, todasaquelas belas mulheres em vestidosbrilhantes.

— Devore.— Sim? — disse,

cautelosamente.— Max Devore.Não o vemos muito por aqui,

tinha dito Audrey. Eu tomara aquilocomo espirituosidade ianque, masaparentemente ela havia falado asério. O espanto nunca termina.

Tudo bem, e daí? Eu me sentiatotalmente perdido em dar o passoinicial numa conversa. Pensei emlhe perguntar como conseguiu meunúmero, que não estava na lista,mas de que adiantaria? Quando sevale meio bilhão de dólares — seaquele era realmente o Max Devorede que eu falava —, pode-seconseguir qualquer velho número

fora da lista que se quiser.Resolvi dizer sim de novo, desta

vez sem o pequeno tom dediscussão no final.

Seguiu-se outro silêncio. Quandoeu o rompesse e começasse a fazerperguntas, ele se encarregaria daconversa... se é que se podia dizerque estávamos conversandonaquele ponto. Uma boa jogadainicial, mas eu tinha a vantagem deminha longa associação com HaroldOblowski na qual me apoiar —Harold, mestre da pausa fértil.Senti-me tenso, apertando opequeno telefone sem fio contra aorelha, e observei o espetáculo no

oeste. Vermelho estourando emazul, verde e ouro; mulheresinvisíveis caminhavam pelas nuvensem fulgurantes vestidos de noiteem shows de prêmios.

— Soube que o senhor conheceuminha nora hoje — disse elefinalmente. Parecia aborrecido.

— É possível — eu disse,tentando não parecer surpreso. —Posso te perguntar por que está meligando, sr. Devore?

— Soube que houve umincidente.

Luzes brancas dançavam no céu— podiam ter sido uma espaçonaveexplodindo. Depois, trilhando atrás

delas, as explosões. Descobri osegredo da viagem no tempo,pensei. É um fenômeno auditivo.

Minha mão apertavaexcessivamente o telefone, eobriguei-me a relaxá-la. MaxwellDevore. Meio bilhão de dólares.Não em Palm Spring, como euimaginara, mas perto — bem aquina TR, se se podia confiar nozumbido característico na linha.

— Estou preocupado com minhaneta. — Sua voz soava maisirritante do que nunca. Estavazangado e demonstrava isso,aquele homem não precisavaesconder as emoções havia um

monte de anos. — Soube que aatenção de minha nora desgarrou-se de novo. Desgarra-se comfrequência.

Agora meia dúzia de explosõesde estrelas coloridas iluminaram anoite, desabrochando como floresnum velho filme de Disney sobre anatureza. Podia imaginar amultidão reunida em Castle Viewsentada de pernas cruzadas emseus cobertores, tomando sorvetese bebendo cerveja, e todos dizendoOooooh ao mesmo tempo. É issoque provoca qualquer obra de artebem-sucedida, acho eu — todo omundo diz Oooooh ao mesmo

tempo.Você está com medo desse cara,

não está?, perguntou Jo. Ok, talveztenha razão. Um homem que achaque pode ficar zangado todas asvezes que quiser e com quemquiser... pode ser perigoso.

Então a voz de Mattie surgiu: Sr.Noonan, eu não sou uma mãedesatenta. Isso nunca meaconteceu antes.

Claro que é isso que a maioriadas mães relapsas dizem em taiscircunstâncias, imaginava eu... maseu havia acreditado nela.

Além disso, que droga, meunúmero não estava na lista

telefônica. Eu me sentara alitomando um refrigerante, vendo osfogos de artifício, sem aborrecerninguém, e esse camarada...

— Sr. Devore, eu não tenhoqualquer ideia do que...

— Não me venha com essa, comtodo o devido respeito, não mevenha com essa, sr. Noonan, osenhor foi visto falando com elas. —Ele soava como Joe McCarthy,imagino, aos pobres idiotas queterminavam sendo tachados decomunistas sujos quandocompareciam perante o comitêdele.

Tenha cuidado, Mike , disse Jo.

Atenção ao machado de prata deMaxwell.

— De fato vi e falei com umamulher e uma meninazinha estamanhã — eu disse. — Acho que édelas que está falando.

— Não, o senhor viupraticamente um bebê andandopela estrada sozinho — disse ele. —E depois viu uma mulher correndoatrás dele. Minha nora, naquelacoisa velha que ela dirige. A criançapoderia ter sido atropelada. Por queestá protegendo essa moça, sr.Noonan? Ela te prometeu algumacoisa? O senhor não estácertamente fazendo nenhum favor

à criança, isso eu posso te dizer.Ela prometeu me levar ao trailer

e depois me carregar numa voltapelo mundo, pensei em dizer.Prometeu manter a boca fechada otempo todo se eu conservasse aminha fechada também — é issoque quer ouvir?

Sim, disse Jo. Muitoprovavelmente é isso que ele querouvir. Muito provavelmente é nissoque quer acreditar. Não deixe queele provoque uma de suasexplosões de sarcasmo de aluno defaculdade, Mike — você pode searrepender.

Por que eu estava me dando ao

trabalho de proteger Mattie Devore,afinal de contas? Não sabia. Nãotinha a mínima ideia de onde podiaestar me metendo ali, por falarnisso. Só sabia que ela pareceracansada, e a criança não foramachucada, não estava assustadaou taciturna.

— Havia um carro. Um velhojipe.

— Assim está melhor. —Satisfação. E um agudo interesse.Cobiça, quase. — O que...

— Creio que achei que tivessemvindo no carro juntas — eu disse.Havia certo prazer frívolo emdescobrir que minha capacidade de

invenção não me abandonara.Senti-me como um lançador quenão pode mais jogar na frente damultidão, mas que ainda faz umaboa jogada no velho pátio de trás.— A meninazinha tinha colhidoalgumas margaridas. — Todas ascuidadosas qualificações, como seeu estivesse depondo num tribunalem vez de sentado no meu deck.Harold teria ficado orgulhoso. Bem,não, Harold teria ficado horrorizadopor eu simplesmente estar tendotal conversa.

— Acho que pensei que estavacolhendo flores silvestres. Minhalembrança do incidente não é muito

clara, infelizmente. Sou escritor, sr.Devore, e quando estou dirigindogeralmente derivo para os meuspróprios...

— O senhor está mentindo. — Araiva está em aberto agora,brilhante e pulsando como umafervura. Como eu havia suspeitado,não foi preciso muito esforço paraescoltar aquele camarada paraalém das delicadezas sociais.

— Sr. Devore. Dos computadoresDevore, imagino.

— Imagina corretamente.Jo sempre ficava mais fria no

tom e na expressão à medida queseu temperamento nada

insignificante ficava mais alterado.Agora eu me escutava emulá-la deum modo que era francamentesinistro.

— Sr. Devore, não estouacostumado a receber ligações ànoite de homens que não conheço,nem pretendo prolongar a conversaquando sou chamado de mentiroso.Boa noite, senhor.

— Se tudo estava bem, por que osenhor parou?

— Tenho estado longe da TR háalgum tempo, e queria saber se oVillage Café ainda estava aberto.Ah, por falar nisso, não sei onde osenhor conseguiu meu telefone,

mas sei onde pode enfiá-lo. Boanoite.

Interrompi a ligação com opolegar e então olhei para otelefone como se jamais tivessevisto tal dispositivo em minha vida.A mão segurando o telefone tremia.Meu coração batia com força; podiasenti-lo no pescoço e nos pulsos,assim como no peito. Cogitei seteria podido dizer a Devore paraenfiar meu número de telefone norabo se eu mesmo não tivessealguns milhões chacoalhando nobanco.

A Batalha dos Titãs, querido,disse Jo com sua voz fria. E tudo

por causa de uma adolescente numtrailer. Ela não tem nem seios deque se possa falar.

Ri alto. Guerra dos Titãs?Dificilmente. Um velho barão ladrãoda virada do século dissera: “Nosdias que correm, um homem comum milhão de dólares pensa que érico.” Devore provavelmente teria amesma opinião a meu respeito e,no esquema mais amplo das coisas,estaria certo.

Agora o céu do oeste estavaaceso com uma cor não natural epulsante. Era o final.

— De que trata tudo isso? —perguntei.

Nenhuma resposta, só ummergulhão-do-norte gritando nolago. Provavelmente protestandopor todo o estranho barulho no céu.

Levantei, entrei e coloquei otelefone de novo no suporte,percebendo enquanto o fazia queesperava que tocasse novamente,esperava que Devore começasse acuspir clichês de cinema: Se ficar nomeu caminho, eu... e Estou lheavisando, amigo, para não... e Voulhe dar um bom conselho antes quevocê...

O telefone não tocou. Derramei oresto do refrigerante goela abaixo,compreensivelmente seco, e resolvi

ir para a cama. Pelo menos nãotinha havido nenhum choro ouchoramingo no deck; Devore metirara de mim mesmo. De um modoesquisito, estava grato a ele.

Entrei no quarto norte, despi-mee deitei. Pensei sobre a garotinha,Kyra, e a mãe que poderia ter sidosua irmã mais velha. Devore estavairritado com Mattie, isso era claro, ese eu era uma não entidadefinanceira para o sujeito, o queentão ela seria para ele? E que tipode recursos teria Mattie se eletivesse se colocado contra ela? Talpensamento era bastantedesagradável, na verdade, e foi

com ele que adormeci.Levantei três horas depois para

eliminar a lata de refrigerante quepouco sabiamente tomara antes dedeitar e, enquanto estava diante dovaso, mijando com um dos olhosabertos, ouvi os soluços de novo.Em algum lugar do escuro, umacriança perdida e assustada... outalvez só fingindo estar perdida eassustada.

— Não — eu disse. Estava empé, nu, diante do vaso sanitário,com a pele toda arrepiada. — Porfavor, não comece de novo comessa bosta, é assustador.

O choro foi minguando como

antes, parecendo diminuir comoalgo carregado por um túnelabaixo. Voltei para a cama, vireipara o meu lado e fechei os olhos.

— Foi um sonho — disse. — Sóoutro sonho de Manderley.

Eu sabia que não era isso, massabia também que voltaria adormir, e naquele momento issoparecia o mais importante.Enquanto adormecia, pensei comuma voz que era puramente minha:Ela está viva. Sara está viva.

E compreendi algo também: elame pertencia. Eu a reivindicara.Para o bem ou para o mal, euvoltara para casa.

Capítulo Nove

Às nove horas da manhã seguinte,enchi um squeeze com suco detoranja e saí para um bom e longopasseio na direção sul ao longo daRua. O dia estava claro e já quente.E também silencioso — o tipo desilêncio que só se tem depois deum feriado de sábado, composto departes iguais de sacralidade eressaca. Notei dois ou trêspescadores estacionados bem longe

no lago, mas nem um único barco amotor zumbia por ali, nem um sóruidoso bando de crianças gritava eespadanava água. Passei por meiadúzia de chalés no declive acima demim e, embora todos estivessemhabitados nessa época do ano, osúnicos sinais de vida que vi eramroupas de banho penduradas nocorrimão do deck dos Passendale eum cavalo-marinho verdefluorescente meio vazio num tocode uma doca dos Batchelder.

Mas o pequeno chalé cinzentodos Passendale ainda era deles? Odivertido e circular acampamentode verão dos Batchelder, com sua

janela de filme em Cineramaapontando para o lago e asmontanhas além, ainda pertenciaaos Batchelder? Não havia modo desaber, claro. Quatro anos podemtrazer um bocado de mudanças.

Eu caminhava e não fazianenhum esforço para pensar — umvelho truque dos dias de escritor.Trabalhe o corpo, descanse amente, deixe os rapazes do porãofazerem seu trabalho. Fui andandoe passei pelos campos onde Jo e euhavíamos comido churrasco,tomado drinques e participado deuma ocasional reunião para jogarcartas; eu me embebia do silêncio

como uma esponja, bebia meusuco, limpava o suor da testa com obraço e esperava para ver quepensamentos surgiriam.

O primeiro foi uma percepçãoesquisita: que o choro do bebê nanoite parecia de certo modo maisreal do que o telefonema de MaxDevore. Eu tinha recebido mesmouma ligação de um rico magnata datecnologia obviamente de mauhumor na minha primeira noiteinteira de volta à TR? Teriarealmente o dito magnata mechamado de mentiroso emdeterminado momento? (Eu o era,considerando-se a história que

contara, mas essa não era aquestão.) Sabia que aquiloacontecera, mas na verdade eramais fácil acreditar no Fantasma deDark Score, conhecido em torno dealgumas fogueiras como AMisteriosa Criança que Chora.

Meu pensamento seguinte —imediatamente antes de terminarmeu suco — foi que eu devia ligarpara Mattie Devore e lhe contar oque acontecera. Cheguei àconclusão de que era um impulsonatural, mas provavelmente máideia. Eu estava velho demais paraacreditar em tais simplicidadescomo A Donzela em Apuros versus

O Padrasto Malvado... ou, nessecaso, o Sogro. Tinha meus própriosproblemas para resolver nesteverão, e não queria complicar meutrabalho entrando numa disputapotencialmente feia entre sr.Computador e srta. Trailer Duplo.Devore havia alisado meu pelo damaneira errada — e vigorosamente—, mas isso provavelmente nãofora pessoal, só algo que ele feznaturalmente. Ora, alguns sujeitospuxam e soltam bruscamente asalças dos sutiãs. Eu desejavaenfrentá-lo nisso? Não. Nãodesejava. Eu salvara a PequenaSenhorita Red Sox, havia tido uma

inadvertida amostra do pequenomas agradavelmente firme peito demamãe, aprendido que Kyra era apalavra grega para “como umadama”. Mais do que isso seria gula,por Deus.

Naquele ponto, tanto meucérebro quanto meus pés pararam,percebendo que eu tinhacaminhado até o Warrington’s, umavasta estrutura de galpão demadeira que os habitantes daquichamam às vezes de country club. Eera uma espécie disso — tinha umcampo de golfe de seis buracos, umestábulo e trilhas para cavalgar, umrestaurante, um bar e alojamento

para talvez umas três dúzias depessoas na construção principal enas oito ou nove cabanas satélites.Havia até um local para jogo deboliche com duas pistas, emboravocê e seus competidores tivessemque se alternar para pôr os pinosem pé. O Warrington’s tinha sidoconstruído no início da PrimeiraGuerra Mundial. Isso o tornava maisjovem que Sara Laughs, mas nãomuito.

Um embarcadouro compridolevava a uma construção menorchamada Sunset Bar. Era ali que oshóspedes de verão do Warrington’sse reuniam para tomar drinques no

final do dia (e alguns para bloodymarys no início dele). Então,quando dei uma olhada naqueladireção, percebi que não estavamais sozinho. Uma mulher em péna varanda à esquerda da porta dobar flutuante me observava.

Tive um sobressalto. Nomomento, meus nervos nãoestavam em sua melhor forma, eaquilo provavelmente tinha algo aver com isso... mas acho que elame faria ter um sobressalto dequalquer modo. Em parte por suaimobilidade. Em parte por suaextraordinária magreza. Masprincipalmente pelo rosto dela.

Você já viu aquele desenho doEdvard Munch, O Grito? Bem, seimaginar aquele rosto em repouso,a boca fechada e os olhosvigilantes, teria uma imagembastante boa da mulher em pé nofinal do embarcadouro, com umamão de dedos compridosdescansando no corrimão. Emboraeu possa lhe dizer que meuprimeiro pensamento não foiEdvard Munch e sim sra. Danvers.

Ela parecia ter uns 70 anos eestava usando short preto sobre ummaiô da mesma cor. A combinaçãoparecia estranhamente formal, umavariação do sempre popular

vestidinho preto de coquetel. Suapele era de um branco cremoso, anão ser acima dos peitos quaseretos e ao longo dos ombrosossudos. Lá, grandes manchasmarrons de idade nadavam em suapele. O rosto era um objeto emforma de cunha, mostrando osossos dos molares como os de umacaveira, e uma linha desigual desobrancelhas. Abaixo dessasaliência, seus olhos se perdiam emórbitas de sombra. Cabelos brancospendiam escassos e lisos à voltadas orelhas, caindo até aproeminente prateleira do maxilar.

Deus, como é magra, pensei. Ela

é apenas um saco de...Diante daquilo, um

estremecimento passou por meucorpo. Foi algo forte, como sealguém tivesse girado um fioelétrico em minha carne. Nãoqueria que ela tivesse notadoaquilo — que modo de começar umdia de verão, abalando tanto umcara que ele ficava ali tremendo efazendo caretas na sua frente —,portanto, ergui minha mão eacenei. Tentei sorrir também. Olá,senhora em pé junto ao barflutuante. Olá, seu velho saco deossos, você me assustou pracaramba, mas não é preciso muito

nesses dias para fazê-lo, e eu aperdoo. Porra, como vai indo? Eume perguntei se meu sorrisoparecia para ela a mesma caretaque parecia para mim.

Ela não acenou de volta.Sentindo-me um tanto tolo — AQUI

NÃO HÁ NENHUM IDIOTA DO VILAREJO, NÓS TODOS

NOS REVEZAMOS —, concluí meu acenonuma saudação meio estúpida evoltei pelo caminho por onde tinhavindo. Cinco passos depois, tive queolhar por cima do ombro; asensação de que ela me observavaera tão forte que eu sentia como seuma mão me apertasse entre asomoplatas.

O embarcadouro onde a mulher

havia estado mostrava-secompletamente deserto. Apertei osolhos, no início com a certeza deque ela apenas se retirara maispara dentro da sombra causadapela pequena “casa da birita”, masela desaparecera. Como se elaprópria fosse um fantasma.

Ela entrou no bar, meu bem ,disse Jo. Você sabe disso, nãosabe? Quero dizer... você sabemesmo, certo?

— Certo, certo — murmurei,tomando o caminho norte pela Ruaem direção à minha casa. — Claroque sei. Para onde mais? — Só quenão me pareceu que tivesse havido

tempo; não me pareceu quepudesse ter entrado, mesmodescalça, sem que eu a ouvisse.Não numa manhã tão quieta.

Jo de novo:Talvez ela tenha entrado

furtivamente.— É — murmurei. Eu falei um

bocado de vezes alto antes de overão terminar. — É, talvez tenha.Talvez ela seja furtiva. — Claro.Como a sra. Danvers.

Parei de novo e olhei para trás,mas o caminho direito de passagemacompanhava o lago numapequena curva, e eu não podiamais ver o Warrington’s ou o Sunset

Bar. E realmente, pensei, para mimestava tudo bem.

No caminho de volta, tentei fazeruma lista das estranhezas quehaviam precedido e depoisenvolvido meu retorno a SaraLaughs: os sonhos repetidos; osgirassóis; o adesivo da estação derádio; o choro na noite. Cogitei quemeu encontro com Mattie e Kyra,além do consequente telefonemado sr. Pixel Easel também sequalificava como provisoriamenteestranho... mas não do mesmomodo que uma criança que você

ouve soluçar na noite.E o fato de que estávamos em

Derry em vez de em Dark Scorequando Johanna morrera? Aquilopodia entrar na lista? Não sabia.Não conseguia nem lembrar porque fora assim. No outono e noinverno de 1993, havia estadoescrevendo contos e trabalhandonum roteiro para O homem dacamisa vermelha. Em fevereiro de1994, prosseguia com De cima abaixo, e aquilo absorvia a maiorparte da minha atenção. Alémdisso, decidi rumar a oeste para aTR, oeste para Sara...

— Era tarefa de Jo — disse para

o dia, e assim que ouvi as palavrascompreendi como eramverdadeiras. Ambos adorávamos avelha garota, mas dizer “Ei,irlandês, vamos levantar nossosrabos daqui e passar alguns dias naTR” tinha sido tarefa de Jo. Elapodia dizê-lo a qualquermomento... só que no ano antes desua morte não o dissera nem umavez. E eu jamais pensara em dizê-lono lugar dela. De algum modo, euesquecera tudo sobre Sara Laughs,parece, mesmo quando o verãochegou. Era possível estar tãoabsorvido num texto? Não pareciaprovável... mas que outra

explicação havia?Algo estava muito errado com

esse quadro, mas eu não sabia oquê. Não sabia nada de nada.

Aquilo me lembrou Sara Tidwelle as letras de uma de suas canções.Sara nunca fora gravada, mas eudevia ao cego Lemon Jefferson aversão dessa música em especial.Um verso dizia:

É só um baile no celeiro, benzinho,É só rodar e rodar.

Deixe-me beijar seus lábios doces,benzinho,

Tão bom te encontrar.

Eu adorava aquela canção, esempre imaginei como seria saindo

da boca de uma mulher em vez deemitida pela voz cheia de uísque dove lho trovador. Na voz de SaraTidwell. Aposto que ela cantavadocemente. E, rapaz, aposto quesabia cantar a canção.

Eu tinha voltado novamente paraminha casa. Olhei em torno, não vininguém nas vizinhanças imediatas(embora pudesse ouvir agora oprimeiro barco de esqui aquático dodia zumbindo ao longe na água),despi-me até ficar de cuecas enadei para a plataforma flutuante.Não subi, fiquei apenas deitado aolado dela, segurando a escada comuma das mãos e preguiçosamente

batendo com os pés. Era bastanteagradável, mas o que faria com oresto do dia?

Decidi passá-lo limpando minhaárea de trabalho no segundo andar.Quando tivesse terminado, talvezsaísse e desse uma olhada noestúdio de Jo. Quer dizer, se nãoperdesse a coragem.

Nadei de volta, batendofacilmente as pernas, erguendo acabeça dentro e fora da água, quefluía ao longo do meu corpo comoseda fria. Sentia-me uma lontra. Játinha nadado a maior parte docaminho em direção à praia quandoergui meu rosto pingando e vi uma

mulher em pé na Rua, observando-me. Era tão magra quanto a que eutinha visto perto do Warrington’s...mas esta era verde. Verde eapontando o norte ao longo docaminho como uma dríade numavelha lenda.

Arquejei, engoli água, tossi-apara fora. Fiquei em pé com a águapelo peito e esfreguei meus olhosque escorriam. Então ri (emboracom um pouco de dúvida). A mulherera verde porque se tratava de umabétula crescendo um pouco aonorte onde minha escada dedormentes terminava na rua. Emesmo com meus olhos limpos de

água, havia algo arrepiante nomodo como as folhas em torno dotronco marfim-rajado-de-pretoquase formavam um rosto queespiava. O ar estava totalmenteparado e assim o rosto estavatotalmente parado (como o rostoda mulher de short preto e maiô),mas num dia de brisa ele pareceriasorrir ou franzir o cenho... ou talvezrir. Atrás dela crescia um pinheirodoentio. Um galho desfolhadoesticava-se para o norte. Fora issoque eu havia tomado por um braçomagro e uma ossuda mãoapontando.

Não era a primeira vez que eu

me assombrava assim. Vejo coisas,só isso. Escreva histórias e cadasombra no chão parece umapegada, cada linha na sujeira umamensagem secreta. O que nãofacilita, é claro, a tarefa de decidir oque era realmente peculiar em SaraLaughs e o que era peculiar apenasporque minha mente era peculiar.

Dei uma olhada ao redor, vi queainda tinha aquela parte do lagopara mim (embora não por muitotempo mais; ao zumbido de abelhado primeiro barco a motor iriam seseguir o segundo e o terceiro) edespi minha cueca encharcada. Eua torci, a coloquei em cima do short

e da camiseta, e andei pelosdegraus de dormentes com minhasroupas contra o peito. Fingia queera Bunter, levando o desjejum e ojornal da manhã para lorde PeterWimsey. Quando entrei em casa,estava sorrindo como um bobo.

O segundo andar estava abafado,apesar das janelas abertas, e vi porquê, assim que cheguei ao alto daescada. Jo e eu havíamoscompartilhado o espaço ali, ela naesquerda (apenas uma pequenasala, realmente só uma toca, queera tudo de que necessitava com o

estúdio norte da casa) e eu àdireita. Na extremidade final docorredor, ficava o focinho gradeadoda unidade monstro de ar-condicionado, que havíamoscomprado um ano depois decomprarmos a casa de campo.Olhando para ele, percebi quesentira falta de seu zumbidocaracterístico sem ter consciênciadisso. Colado nele, havia um avisoque dizia: Sr. Noonan: quebrado.Sopra ar quente quando você o liga& faz barulho de vidro quebrado.Dean diz que a peça necessáriaestá prometida pela Western Autoem Castle Rock. Vou acreditar nisso

quando vir. B. Meserve.Eu sorri depois de ler a última

frase — era a sra. Meserve cuspida— e então experimentei ointerruptor. O maquinário de modogeral reage favoravelmente quandosente que há um ser humanodotado de pênis nas proximidades,Jo costumava dizer, mas não dessavez. Ouvi o rangido do ar-condicionado por cinco segundos oucoisa assim, depois o desliguei. “Odiabo da coisa tá cagada”, como opessoal da TR gosta de dizer. E atéque fosse consertado, eu não fariaali nem palavras cruzadas.

Olhei meu escritório mesmo

assim, tão curioso do que eupoderia sentir quanto do quepoderia descobrir. A resposta foiquase nada. Havia a mesa onde euterminara O homem da camisavermelha, provando assim a mimmesmo que a primeira vez não foraum acaso feliz; havia uma foto deRichard Nixon, os braços erguidos,fazendo um duplo V da vitória, coma legenda VOCÊ COMPRARIA UM CARRO USADO

DESTE HOMEM? abaixo da foto; havia opequeno tapete que Jo fizera paramim um ou dois invernos antes deela ter descoberto o maravilhosomundo das mantas de tricô e terdesistido de fazer tapetes.

Não era bem o escritório de umestranho, mas cada objeto(principalmente a superfícieesquisitamente vazia da mesa)dizia que era o espaço de trabalhode um Mike Noonan de umageração anterior. A vida doshomens, eu lera certa vez, égeralmente definida por duas forçasprimordiais: trabalho e casamento.Em minha vida, o casamento estavaterminado, e a carreira num hiatoque parecia permanente. Dado isso,não me parecia estranho que oespaço onde eu passara tantosdias, geralmente num estado deverdadeira felicidade enquanto

inventava diversas vidasimaginárias, agora parecesse nãosignificar nada. Era como olhar paraa sala de um funcionário que foradespedido... ou que morrerasubitamente.

Comecei a sair dali, depois tiveuma ideia. O arquivo no cantoestava entupido de papéis —declarações de bancos (na maioriade oito ou dez anos atrás),correspondência (a maioria nuncarespondida), alguns fragmentos dehistória —, mas não encontrei o queprocurava. Fui até o closet, onde atemperatura devia estar pelomenos a 40 graus e onde havia

uma caixa de papelão na qual asra. M. escrevera APARELHOS; entãoretirei-o — um Memo-Scriber daSanyo que Debra Weinstock tinhame dado na conclusão de nossotrabalho no primeiro dos livros naPutnam. O gravador podia serprogramado para ligar sozinhoquando se começava a falar; caíapara o modo de PAUSA quando separava para pensar.

Nunca perguntei a Debra se elasimplesmente se deparara com acoisa e pensara “Ora, aposto quequalquer romancista popular que serespeite gostaria de possuir umadessas maquininhas”, ou se fora

algo um pouquinho maisespecífico... uma espécie desugestão, talvez? Verbalize essespequenos fax de seu inconscienteenquanto ainda estão frescos,Noonan. Na época, eu não sabia, eainda não sei agora. Mas lá estavaela, uma genuína máquina de ditarde qualidade profissional, e haviapelo menos 12 cassetes em meucarro, gravações domésticas que eufizera para ouvir enquanto dirigia.Inseriria uma no Memo-Scriber estanoite, poria o controle de volumetão alto quanto possível e colocariaa máquina em DITADO. Então, se oruído que ouvi pelo menos duas

vezes se repetisse, seria gravado.Eu podia tocá-lo para Bill Dean eperguntar o que é que ele achavadaquilo.

E se eu escutar a criançasoluçando esta noite e a máquinanão ligar sozinha?

— Bem, então vou saber deoutra coisa — disse para oescritório vazio e iluminado pelosol. Eu estava em pé ali na entrada,com o Memo-Scriber sob o braço,olhando a mesa vazia e suandocomo um porco. — Ou pelo menossuspeitar.

O recanto de Jo do outro lado docorredor fazia meu escritório

parecer apinhado e confortável emcomparação. Nunca cheio demais,agora não era nada senão umespaço de formato quadrado. Otapete se fora, suas fotos tinhamdesaparecido, até mesmo a mesasumira. Aquilo parecia um projetofaça-você-mesmo que foraabandonado depois de noventa porcento do trabalho feito. Jo tinhasido esfregada dali para fora —raspada dali —, e senti ummomento de raiva irracional deBrenda Meserve. Pensei no queminha mãe geralmente diziaquando eu fazia algo por minhaprópria iniciativa que ela

desaprovava: “Você assume muitomais do que pode, não é?” Era oque eu sentia sobre o pequenopedaço de escritório de Jo: que aoesvaziá-lo até as paredes daquelejeito Brenda Meserve tinhaassumido muito mais do que podia.

Talvez não tenha sido a sra. M.quem limpou tudo, disse a vozOVNI. Talvez tenha sido a própriaJo a fazê-lo. Já pensou nisso,camarada?

— Isso é uma idiotice — eudisse. — Por que o faria?Dificilmente eu poderia pensar queela tivesse tido uma premonição daprópria morte. Considerando-se que

acabara de comprar...Mas eu não queria dizer aquilo.

Não alto. De algum modo, pareciamá ideia.

Virei-me para sair da sala e umasúbita rajada de ar frio,surpreendente naquele calor,passou por meu rosto. Não por meucorpo, só por meu rosto. Foi asensação mais extraordinária, comomãos dando tapinhas de modorápido mas gentilmente em minhasbochechas e na testa. Ao mesmotempo senti um suspiro no ouvido...só que não era bem isso. Era umsussurro que passou por meuouvido, como uma mensagem

murmurada depressa.Eu me virei, esperando ver as

cortinas da janela da sala semovimentarem... mas estavamperfeitamente imóveis.

— Jo? — disse, e ouvir seu nomeme fez tremer tão violentamenteque quase deixei cair o Memo-Scriber. — Jo, é você?

Nada. Nenhuma mão defantasma dando tapinhas na minhapele, nenhum movimento nacortina... o que certamente teriaocorrido se tivesse havido de fatouma correnteza. Tudo estavaquieto. Havia apenas um homemalto com um rosto suado e um

gravador debaixo do braço em pé àporta de uma sala vazia... mas foiaí que comecei a acreditarrealmente que não estava sozinhoem Sara Laughs.

E daí?, perguntei a mim mesmo.Mesmo que fosse verdade, e daí?Fantasmas não podem fazer mal aninguém.

Era o que eu pensava então.

Quando visitei o estúdio de Jo (comar-condicionado) depois do almoço,sentia-me muito melhor a respeitode Brenda Meserve — não assumirademais para si mesma, afinal de

contas. Os poucos objetos de queme lembrava especialmente nopequeno escritório de Jo — oquadrado emoldurado de suaprimeira manta de tricô, o pequenotapete verde, o pôster emolduradorepresentando as flores silvestresdo Maine — haviam sido colocadosali, junto com quase tudo de que eulembrava. Era como se a sra. M.tivesse enviado uma mensagem:Não posso diminuir sua dor ouabreviar sua tristeza, assim comonão posso impedir os ferimentosque sua volta para cá podemreabrir, mas posso colocar todas ascoisas que o machucam num só

lugar para que o senhor não fiquetropeçando nelas de repente ousem estar preparado. Até aí possoir.

O estúdio não tinha paredesvazias; as paredes acotovelam-secom o espírito e a criatividade deminha mulher. Havia coisastricotadas (algumas sérias, muitascaprichosas), quadrados de batique,bonecas de trapos pulando parafora do que ela chamava de minhas“colagens de bebê”, uma pinturaabstrata de deserto feita de tiras deseda amarela, preta e laranja, suasfotos de flores e até algo, no altoda estante, que parecia uma

construção-em-progresso, umacabeça da própria Sara Laughs. Erafeita de palitos e varetas depirulitos.

Num dos cantos ficava seupequeno tear e um armário demadeira com um aviso que diziaMATERIAL DE TRICOTAR DE JO! NÃO ULTRAPASSE!

pendurado no puxador. Em outro sevia um banjo que ela havia tentadoaprender a tocar e depois desistido,dizendo que machucava muito osdedos. Num terceiro havia um remode caiaque e um par de patins comarranhões na altura de ondeficariam os dedos e pequenospompons roxos nas pontas doscadarços.

O que atraiu e capturou meusolhos estava na velha escrivaninhacom tampa de rolar no centro dasala. Durante os muitos e bons finsde semana de verão, outono einverno que havíamos passado lá, amesa ficava cheia de carretéis delinha, meadas de fios, almofadaspara alfinetes, esboços, talvez umlivro sobre a guerra civil espanholaou famosos cães americanos.Johanna podia ser exasperante,pelo menos para mim, porque nãoimpunha nenhum sistema ou ordemreal no que fazia. Também podiaser intimidante e até mesmoesmagadora, às vezes. Era uma

brilhante cabeça de vento, e suaescrivaninha sempre refletia isso.

Mas não agora. Talvez a sra. M.tivesse retirado os objetosespalhados pela mesa e enfiado porali o que estava lá agora, mas eraimpossível de acreditar. Por que ofaria? Não fazia sentido.

O objeto estava coberto comuma capa de plástico cinza. Estendia mão para tocá-lo. Minha mão sedeteve a 3 ou 4 centímetros delequando a lembrança de um velhosonho

(Me dá isso, é o meu pega-poeira)

deslizou por minha mente da

mesma forma que a corrente de artinha passado por meu rosto. Entãodesapareceu, e eu puxei a capa deplástico. Debaixo dela estava minhavelha Selectric IBM verde, que eunão via e na qual não pensavahavia anos. Inclinei-me mais paraperto, sabendo que a bola de tiposda máquina seria o Courier —minha velha preferida — mesmoantes de vê-la.

Pelo amor de Deus, o que estariaminha velha máquina de escreverfazendo ali?

Johanna pintava (embora nãomuito bem), tirava fotos (muitoboas realmente) e às vezes as

vendia, tricotava, fazia crochê, teciae tingia panos, e podia tocar oito oudez acordes no violão. Podiaescrever, é claro; a maioria dosestudantes que fazemespecialização em inglês conseguefazê-lo, razão pela qual seespecializam em inglês.Demonstrara qualquer graufulgurante de criatividade literária?Não. Após algumas experiênciascom poesia, quando aluna, antes decolar grau, desistiu daquele ramoespecífico das artes como umtrabalho ruim. Você escreve por nósdois, Mike, disse ela certa vez. Étudo seu; eu simplesmente vou dar

uma experimentada em todo oresto. Ante a qualidade de seuspoemas em comparação àqualidade de suas sedas, fotos earte tricotada, achei queprovavelmente Jo tinha sido sábia.

Mas ali estava minha velha IBM.Por quê?

— Cartas — eu disse. — Ela aencontrou no porão ou coisa assime resgatou-a para escrever cartas.

Só que não tinha sido Jo. Ela memostrava a maioria das cartas,geralmente insistindo para que euescrevesse pequenos pós-escritos,deixando-me culpado ao proferiraquele velho ditado, casa de

ferreiro, espeto de pau (“e osamigos do escritor nunca teriamnotícias dele se não fosse porAlexander Graham Bell”,acrescentava prontamente). Jamaistinha visto uma carta pessoal deminha mulher batida à máquinadurante todo o tempo em quefomos casados — se não por outromotivo, simplesmente porque ela oteria considerado uma porcaria emtermos de etiqueta. Podiadatilografar, produzindo cartas denegócios sem erros lenta emetodicamente, mas sempre usavao computador de mesa ou seupróprio PowerBook para tais

tarefas.— O que está planejando, meu

bem? — perguntei, e então comeceia investigar as gavetas de suaescrivaninha.

Brenda Meserve havia seesforçado com elas, mas a naturezafundamental de Jo a tinhaderrotado. A ordem da superfície(carretéis de linha segregados porcor, por exemplo) rapidamentecedeu à velha e querida bagunça deJo. Encontrei o suficiente dela nasgavetas para machucar meucoração com cem lembrançasinesperadas, mas não acheinenhum papel que tivesse sido

datilografado com minha velha IBM,com ou sem a bola Courier. Nemuma só página.

Quando terminei a caçada,encostei-me no espaldar da cadeira(a cadeira dela) e olhei a pequenafoto emoldurada sobre aescrivaninha, que não me lembravade ter visto antes. Provavelmente aprópria Jo a imprimiu (o originalpoderia ter saído de algum sótãolocal) e depois pintara à mão oresultado. O produto final pareciaum cartaz de procura-se coloridopor Ted Turner.

Peguei-a e passei a ponta dopolegar sobre o vidro, aturdido.

Sara Tidwell, a cantora de blues davirada do século cujo último portode passagem conhecido tinha sidoaqui, na própria TR. Quando ela eseu pessoal — alguns deles amigos,a maioria parentes — haviamdeixado a TR, tinham prosseguidopara Castle Rock por algumtempo... depois simplesmentedesapareceram, como uma nuvemno horizonte ou como nevoeironuma manhã de verão.

Ela sorria um pouco na foto, umsorriso difícil de ler, os olhos meiofechados. O cordão de seu violão —não uma correia, mas um cordão —era visível por cima de um dos

ombros. Ao fundo, eu podia ver umhomem negro usando um chapéu-coco num ângulo arrebatador (umaobservação sobre os músicos: elesrealmente sabem usar chapéus) eem pé ao lado do que parecia serum baixo acústico.

Jo havia tingido a pele de Sarade café-au-lait, talvez baseada emoutros retratos que viu (há algunspor aí, a maioria mostrando Saracom a cabeça jogada para trás e ocabelo caindo quase até a cinturaenquanto ela dispara seu famoso,despreocupado e estrondoso riso),embora nenhuma fosse colorida.Não na virada do século. Sara

Tidwell não havia deixado suamarca apenas nas fotos. Lembreique Dickie Brooks, proprietário daoficina, tinha me contado certa vezque o pai afirmava ter ganhado umurso de pelúcia no tiro ao alvo daFeira do Condado de Castle, e queo tinha dado a Sara Tidwell.Segundo Dickie, ela recompensaraseu pai com um beijo. De acordocom ele, o velho jamais esqueceraaquilo, dizendo que fora o melhorbeijo de sua vida... embora euduvide que tivesse dito isso pertode sua esposa.

Naquela foto, Sara Tidwell,conhecida como Sara Laughs,

apenas sorria. Jamais fora gravada,mas suas canções haviamsobrevivido mesmo assim. Umadelas, “Walk me Baby”, tem umanotável semelhança com “Walk ThisWay”, do Aerosmith. Hoje, Saraseria conhecida como uma afro-americana. Em 1984, quandoJohanna e eu compramos a casa econsequentemente ficamosinteressados nela, teria sidochamada de negra. Em sua própriaépoca, teria sido chamada de pretaou escurinha, ou possivelmentemulata. E crioula, é claro. Deviahaver muita gente usando esteúltimo termo à vontade. E eu podia

acreditar que ela tinha beijado opai de Dickie Brooks — um homembranco — na frente de metade docondado de Castle? Não, não podia.Mesmo assim, quem poderia dizer?Ninguém. Por isso o passado erafascinante.

— É só um baile no celeiro,benzinho — cantei, tornando acolocar o retrato na escrivaninha. —É só rodar e rodar.

Peguei a capa da máquina deescrever e então resolvi deixá-ladescoberta. Enquanto levantava,meus olhos voltaram a Sara, ali empé com seus olhos fechados e ocordão que lhe servia como correia

de violão visível sobre um ombro.Algo em seu rosto e sorriso sempreme haviam parecido familiares, esubitamente a coisa se revelou. Elase assemelhava estranhamente aRobert Johnson, cujos improvisosprimitivos se escondiam por trásdos acordes de quase todas ascanções do Led Zeppelin eYardbirds já gravadas. Segundo alenda, Johnson tinha descido àsencruzilhadas e vendido a alma aSatã por sete anos de vida rápida,bebida de alto teor e mulheres davida. E por uma marca deimortalidade nas vitrolasautomáticas dos bares, é claro. O

que conseguiu. Robert Johnson,supostamente teria envenenadouma mulher.

No final da tarde, desci até oarmazém e vi um bonito pedaço delinguado na geladeira. Para mimtinha aparência de jantar. Compreiuma garrafa de vinho branco paracombinar com ele e, enquantoesperava minha vez na caixaregistradora, uma voz trêmula soouatrás de mim.

— Vi que o senhor fez umaamiga ontem. — O sotaque ianqueera tão forte que parecia quase

uma piada... exceto que o acentoem si foi só parte da coisa; amaioria, percebi, tem aquele somcantado, os verdadeiros naturais doMaine falam todos como leiloeiros.

Virei-me e vi o velhote queestivera parado na pista da oficinano dia anterior com Dickie Brooks,observando-me conhecer Kyra,Mattie e Scoutie. Ainda levava abengala com castão de ouro, eagora eu a reconhecia. Em algummomento da década de 1950, oBoston Post tinha doado essasbengalas a cada condado nosestados da Nova Inglaterra. Eramdadas aos residentes mais velhos, e

passadas adiante de velhote paravelhote. E o engraçado era que oPost tinha esticado as canelas anosatrás.

— Na verdade, duas novasamigas — respondi, tentandodesenterrar seu nome da memória.Não consegui, mas lembrava-medele de quando Jo estava viva; elecom a mão numa dassuperestofadas cadeiras na sala deespera de Dickie, discutindo otempo e a política, a política e otempo, enquanto os pistõesgolpeavam e os compressores de ardescarregavam. Um clientehabitual. E se algo acontecia na

rodovia 68, ele, como o olho-de-Deus, estava lá para ver.

— Ouvi dizer que Mattie Devorepode ser uma graça de pessoa —disse ele, graçah, Devoreh,pessoah, e uma de suas crostosaspálpebras caiu. Já vi um bomnúmero de piscadelas sacanas navida, mas nenhuma que fosse páreopara a que o velho com a bengalade castão de ouro me dirigiu. Sentium forte impulso de arrancaraquele nariz brilhoso com um soco.O som dele separando-se do rostoseria como o estalar de um galhomorto quebrando-se contra umjoelho dobrado.

— Você ouve muita coisa,veterano? — perguntei.

— Ah, sim! — disse. Seus lábios,escuros como tiras de fígado,abriram-se num sorriso. Suasgengivas mostravam muitasmanchas brancas. Tinha um par dedentes amarelos ainda plantadosnas gengivas de cima, e mais unsdois na de baixo. — E ela temaquela garotinha... esperta que só!É sim!

— Esperta como azougue —concordei.

Ele pestanejou, um poucosurpreso ao ouvir uma expressãotão antiga da minha boca de presas

novas, e então o repreensívelsorriso se alargou.

— Mas ela não se importa com amenina — disse. — A criança fugiude casa, sabe?

Tive consciência — antes tardedo que nunca — de que meia dúziade pessoas estavam nosobservando e escutando.

— Não foi minha impressão —falei, levantando um pouco a voz.— Não, essa não foi minhaimpressão mesmo.

Ele apenas sorriu... aquelesorriso de velho que diz Ah, tá, meucaro; conheço uma que vale porduas dela.

Fui embora do armazém mesentindo preocupado com MattieDevore. Tinha a impressão de quegente demais estava se metendona sua vida.

Ao chegar em casa, levei agarrafa de vinho para a cozinha —ela podia gelar enquanto eu faziafuncionar a churrasqueira no deck.Estendi a mão para a geladeira eentão parei. Talvez umas quatrodúzias de pequenos ímãs seespalhavam ao acaso pela porta —legumes, frutas, letras e númerosde plástico, até mesmo uma boaseleção das passas da Califórnia —,só que não estavam mais ao acaso.

Agora formavam um círculo naporta da geladeira. Alguém estiveraali. Alguém tinha entrado e...

Rearrumado os ímãs nageladeira? Se era isso, o invasorprecisava submeter-se a um intensotrabalho terapêutico. Toquei numdeles — cautelosamente, só com aponta do dedo. Então, subitamenteenraivecido comigo mesmo,estiquei a mão e espalhei-os denovo, fazendo-o com forçasuficiente para derrubar uns dois.Não os recolhi do chão.

Naquela noite, antes de ir para acama, coloquei o Memo-Scriber namesa debaixo de Bunter, o Grande

Alce Americano Empalhado,ligando-o em DITADO. Então inserinele um de meus velhos cassetesgravados em casa, zerei omostrador e fui para a cama, ondedormi sem sonhos ou qualqueroutra interrupção por oito horas.

A manhã seguinte, segunda-feira,era o tipo do dia pelo qual osturistas vêm ao Maine — um ar tãolímpido e ensolarado que as colinasdo outro lado do lago pareciamestar sob uma sutil ampliação. Omonte Washington, o mais alto daNova Inglaterra, flutuava na

distância longínqua.Servi café e então entrei na sala,

assobiando. Tudo que eu imaginaranaqueles últimos dias parecia toloesta manhã. Então o assobio parou.O mostrador do Memo-Scriber,colocado em 000 quando eu forapara cama, estava agora em 012.

Rebobinei-o, hesitei com o dedono botão PLAY, disse a mim mesmo(na voz de Jo) para deixar de sertolo e apertei-o.

— Ah, Mike — sussurrou, quasechorou, uma voz na fita, e mepeguei tendo que apertar a bocacom a mão para sufocar um grito.Era o que eu tinha ouvido na sala

de Jo quando a correnteza passoupor meu rosto... só que agora aspalavras estavam lentas osuficiente para que eu ascompreendesse. — Ah, Mike —disse ela de novo. Houve um tênueclique. A máquina tinha sedesligado por certo período detempo. E então, mais uma vez,pronunciado na sala enquanto eudormia na ala norte: — Ah, Mike.

Então desapareceu.

Capítulo Dez

Por volta das nove horas, umapicape veio pela entrada de carrose estacionou atrás do meuChevrolet. A picape era nova — umDodge Ram tão limpo e com oscromados tão brilhantes como se asplacas provisórias tivessem sidocolocadas naquela manhã —, masdo mesmo quase branco da última,e o aviso na porta do motorista eraigual ao que eu me lembrava:

WILLIAM “BILL” DEAN — CASEIRO — CARPINTARIA

LEVE, além de seu número detelefone. Fui para o alpendre detrás para me encontrar com ele, axícara de café na mão.

— Mike! — exclamou Bill,deixando o volante. Homensianques não se abraçam, é umaobviedade que se pode colocar aolado de “caras durões não dançam”e “homens de verdade não comemquiche”, mas Bill sacudiu minhamão com força suficiente para fazerespirrar o café da xícara quasevazia, e me deu uma vigorosapalmada nas costas. Seu sorrisorevelou uma dentadura falsaesplendidamente espalhafatosa, do

tipo que costumava ser chamada deRoebuckers porque eramcompradas pelo catálogo. Ocorreu-me de passagem que meu velhointerlocutor do Armazém Lakeviewpoderia usar uma igual. Certamenteteria melhorado a hora dasrefeições para o velho intrometido.— Mike, você é um colírio para osolhos!

— Também acho bom te ver —eu disse, sorrindo. Não era um falsosorriso; sentia realmente aquilo. Ascoisas que podem apavorarcompletamente a pessoa numameia-noite de relâmpagos namaioria dos casos parecem apenas

interessantes à luz brilhante deuma manhã de verão. — Você estácom uma boa aparência, meuamigo.

Era verdade. Embora quatro anosmais velho e um pouco maisgrisalho nas beiras, Bill era omesmo. Sessenta e cinco? Setenta?Não tinha importância. Não havianele nenhuma aparência de ceraque denotasse má saúde, enenhum definhamento no rosto,sobretudo em torno dos olhos e nasmaçãs do rosto, que eu associavacom debilidade invasora.

— Você também — disse ele,soltando minha mão. — Todos

sentimos muito por Jo, Mike. Opessoal na cidade adorava ela. Foium choque, sendo ela tão jovem.Minha esposa me pediu para te darespecialmente seus pêsames. Jo fezpara ela uma manta no ano em queela teve pneumonia, e Yvette nuncase esqueceu disso.

— Obrigado — eu disse, e minhavoz não soou como a minha por umou dois segundos. A impressão éque na TR minha mulherpraticamente não havia morrido. —E agradeça a Yvette também.

— Certo. Está tudo bem com acasa? Quero dizer, com exceção doar-condicionado. É uma coisa de

doido! Na Western Auto meprometeram aquela peça nasemana passada, e agora estãodizendo que talvez não a consigamantes de 1º de agosto.

— Tudo bem. Trouxe o meuPowerBook. Se eu quiser usá-lo, amesa da cozinha vai servir. — E euia querer usá-lo... tantas palavrascruzadas, tão pouco tempo.

— Encontrou tudo certo com suaágua quente?

— Está tudo bem, mas há umproblema.

Parei. Como é que se diz aocaseiro que se acha que sua casaestá assombrada? Provavelmente

não há nenhum modo bom;provavelmente o melhor a fazer erair em frente. Eu tinha coisas aperguntar, mas não queria apenasficar rodeando o assunto e sertímido. Para começo de conversa,Bill perceberia. Ele podia tercomprado a dentadura de umcatálogo, mas não era burro.

— O que está na sua cabeça,Mike? Diga.

— Não sei como você vai receberisso, mas...

Ele sorriu à maneira de umhomem que subitamente entende elevantou a mão.

— Acho que já sei.

— Sabe? — Senti uma tremendasensação de alívio e mal pudeesperar para descobrir qual seria aexperiência dele com Sara, talvezenquanto estivesse checando aslâmpadas para saber se estavamqueimadas, ou enquanto foracertificar-se de que o telhadoaguentava bem a neve. — O que éque você soube?

— Principalmente o que RoyceMerrill e Dickie Brooks têm contado— disse ele. — Fora isso, não seimuito mais. Eu e mamãeestávamos na Virgínia, lembre-se.Só voltamos na noite passada, porvolta das oito da noite. Mesmo

assim, é o grande assunto lá daloja.

Por um momento continuei tãofixado em Sara Laughs que não tiveideia do que ele estava falando. Sópodia pensar que o pessoalestivesse fofocando sobre osbarulhos estranhos na minha casa.Então o nome de Royce Merrill deuum estalo e tudo o mais foi para olugar junto com ele. Merrill era osujeito idoso com a bengala decastão de ouro e a piscadelasacana. O velho Quatro Dentes.Meu caseiro não estava falando deruídos fantasmagóricos; falavasobre Mattie Devore.

— Vou te fazer uma xícara decafé — eu disse. — Preciso quevocê me diga onde é que estoupisando aqui.

Quando estávamos sentados nodeck, eu com café fresco e Bill comuma xícara de chá (“O café mequeima nas duas pontas hoje emdia”, disse ele), pedi primeiro queme contasse a versão Royce Merrill-Dickie Brooks de meu encontro comMattie e Kyra.

Revelou-se melhor do que euesperava. Os dois velhos tinham mevisto em pé ao lado da estrada com

a meninazinha nos braços, ehaviam observado meu Chevyestacionado com a porta domotorista aberta, masaparentemente nenhum deles tinhavisto Kyra usando a linha branca darota 68 como uma corda bambapara caminhar. Como paracompensar isso, porém, Royceafirmou que Mattie me dera umgrande abraço de meu herói, e umbeijo na boca.

— Ele chegou à parte em que eua agarrei pela bunda e enfiei alíngua em sua boca?

Bill deu um sorriso.— A imaginação de Royce não

vai a tanto desde que ele fez 50anos ou coisa assim, e isso foi háquarenta anos ou mais.

— Nunca toquei nela. — Bem...tinha havido aquele momento emque o dorso da minha mãodeslizara pela curva de seu seio,mas fora sem querer, fosse lá o quea própria moça pudesse terpensado.

— Pombas, não precisa me dizerisso — falou —, mas...

Disse aquele mas da mesmamaneira que minha mãe, deixando-o se estender como a cauda deuma pipa agourenta.

— Mas o quê?

— Seria bom você ficar distantedela — disse. — É muito simpática,quase uma moça daqui, sabe, masé um problema. — Fez uma pausa.— Não, isso não é muito justo comela. Ela está com problemas.

— O velho quer a custódia dacriança, não é?

Bill pousou a xícara no parapeitodo deck e me olhou com assobrancelhas levantadas. Reflexosdo lago subiam por seu rosto empequenas ondas, dando-lhe umaaparência exótica.

— Como é que você sabe?— Um palpite, mas da espécie

informada. O sogro dela me ligou

no sábado à noite durante os fogos.E apesar de ele não ter tocado naquestão nem declarado seuobjetivo, duvido que Max Devoretenha voltado todo esse caminhoaté a TR-90 no Maine ocidentalpara um acordo de recompra dojipe e do trailer de sua nora. Então,qual é o caso, Bill?

Por algum tempo, ele apenas meolhou. Era quase o olhar de umhomem que sabe que você contraiuuma doença séria, mas não temcerteza de quanto deve lhe contar.Ser olhado daquela maneira medeixou profundamentedesconfortável. Também me fez

sentir que eu podia estar colocandoBill Dean em xeque. Devore tinharaízes ali, afinal de contas. E pormais que Bill gostasse de mim, eunão tinha essas raízes. Jo e euéramos de longe. Poderia ser pior— poderia ter sido Massachusettsou Nova York —, mas Derry,embora no Maine, ainda eradistante.

— Bill? Alguma instrução denavegação seria útil para mim sevocê...

— Você vai preferir ficar fora docaminho dele — disse. Seu sorrisofácil desaparecera. — O homemestá louco.

Por um momento pensei que Billsó queria dizer que Devore estavairritado comigo, mas a seguir deioutra olhada no rosto dele. Chegueià conclusão de que não era issoque Bill dissera, ele usara a palavra“louco” no sentido mais literal.

— Louco como? — perguntei. —Louco como Charles Manson? ComoHannibal Lecter? Como?

— Digamos como HowardHugues — disse ele. — Alguma vezjá leu as histórias sobre ele? Atéque ponto ele ia para conseguir ascoisas que queria? Pouco importavase era um tipo especial decachorro-quente só vendido em Los

Angeles ou um projetista de aviãoque queria roubar da Lockheed ouda McDonnell-Douglas, ele tinhaque conseguir o que desejava e nãodescansava enquanto essa coisanão estivesse nas suas mãos.Devore é assim também. Semprefoi, mesmo quando garoto eravoluntarioso, segundo as históriasque se ouvem na cidade.

“Meu próprio pai tinha uma quecostumava contar — ele continuou.— Dizia que, num inverno, opequeno Max Devore arrombou ogalpão de arreios de Scant Larribeeporque queria o Flexible Flyer queScant tinha dado ao filho Scooter de

Natal. Isso deve ter sido por voltade 1923. Devore cortou as duasmãos no vidro quebrado, dissepapai, mas conseguiu o trenó. Eleso encontraram perto da meia-noitedeslizando pela Sugar Maple Hillabaixo, levantando as mãos juntoao peito enquanto descia. Estavacom as luvas e a roupa para neveensanguentadas. Você ouviráoutras histórias sobre Max Devorequando criança; se perguntar, vaiouvir cinquenta histórias diferentes,e algumas podem ser verdadeiras.Mas essa sobre o trenó éverdadeira. Aposto a fazenda nela.Porque meu pai não mentia. Era

contra sua religião.”— Batista?— Não, senhor, ianque.— Mas 1923 foi há séculos, Bill.

Às vezes as pessoas mudam.— É, mas a maioria não. Não

vejo Devore desde que ele voltou ese mudou para o Warrington’s,portanto, não posso dizer comcerteza, mas soube de coisas queme fazem pensar que, se elemudou, foi para pior. Nãoatravessou o país porque queriaumas férias. Ele quer a criança.Para ele, ela é apenas outra versãodo trenó de Scooter Larribee. E meuconselho de amigo para você é: não

queira ser o vidro da janela entreele e ela.

Beberiquei meu café e olhei parao lago. Bill me deu tempo parapensar, esfregando com a sola deuma de suas botas de trabalho umcocô de passarinho nas tábuasenquanto eu pensava. Titica decorvo, penso eu; só corvos defecamem borrifos tão compridos eexuberantes.

Uma coisa pareciaabsolutamente certa: Mattie Devoreestava a uns 15 quilômetros Rio daMerda adentro e sem nenhumremo. Não sou o cínico que fui aos20 anos — alguém é? —, mas

também não era suficientementeingênuo ou idealista para acreditarque a lei protegeria a srta. TrailerDuplo contra o sr. Computador...Não se o sr. Computador resolvessejogar sujo. Quando garoto, elepegara o trenó que queria e saírapara deslizar de trenó à meia-noite,sem dar a mínima para as mãosque sangravam. E quando adulto?Um velho que vinha pegando cadatrenó que queria pelos últimosquarenta anos mais ou menos?

— Bill, qual é o caso com Mattie?Conte-me.

Ele não levou muito tempo. Ashistórias do campo são, em geral,histórias simples. O que não querdizer que não sejamfrequentemente interessantes.

Mattie Devore começara a vidacomo Mattie Stanchfield, nãoexatamente na TR, mas logo depoisda linha em Motton. Seu pai foralenhador; a mãe, esteticista queatendia em casa (o que tornava ocasamento deles, de um mododesagradável, o perfeito casamentodo campo). Tinham três filhos.Quando Dave Stanchfield perdeu ocontrole numa curva em Lovell eentrou com um caminhão cheio de

toras de madeira no lago Kewadin,sua viúva “ficou de coraçãopartido”, como se diz. E morreulogo depois. Não havia qualquerseguro além do que Stanchfieldtinha sido obrigado a fazer de seucaminhão e seu trator para içartroncos.

Por falar dos Irmãos Grimm,hein? Tire os brinquedos da Fisher-Price detrás da casa, os doissecadores de cabelo de pé no salãode beleza do porão, o velho Toyotacomido de ferrugem na entrada decarros e você terá chegado lá: Erauma vez uma pobre viúva e seustrês filhos.

Mattie é a princesa da história —pobre, mas bonita (que era bonitaeu podia testemunharpessoalmente). Agora entra opríncipe. Nesse caso, ele é umruivo, desajeitado e gago chamadoLance Devore. O filho dos anos doocaso de Max Devore. QuandoLance encontrou Mattie, tinha 21anos. Ela, acabado de fazer 17. Oencontro aconteceu noWarrington’s, onde Mattieconseguiu um emprego de verãocomo garçonete.

Lance Devore instalara-se nooutro lado do lago, na Upper Bay,mas nas noites de terça-feira havia

jogos de softbol no Warrington’s, opessoal da cidade contra o pessoalde verão, e ele geralmente vinhade canoa para jogar. O softbol éuma grande coisa para os LancesDevore do mundo; quando vocêestá em pé no quadrilátero com umbastão na mão, não temimportância se é desengonçado edesajeitado. E claro que não temimportância se você é gago.

— Ele confundia bastante opessoal lá no Warrington’s — disseBill. — Não sabiam a que timepertencia, se ao dos Locais ou aosDe Fora. Lance não se importava;qualquer lado estava bom para ele.

Algumas semanas jogava por um,outras semanas por outro. Qualquerum dos dois também ficava muitocontente de tê-lo, já que ele batiabem à beça e trabalhava o campoque era uma beleza. Ele eracolocado muito na primeira baseporque era alto, mas lá ele era umdesperdício. Na segunda... minhanossa! Pulava e girava como aquelecara, Noriega.

— Você quer dizer Nureyev — eudisse.

Bill deu de ombros.— A questão é que Lance era

uma coisa. E todo o pessoalgostava dele. Ele se ajustava.

Quem joga é principalmente opessoal jovem, você sabe, e paraeles o que importa é como você faz,não quem você é. Além disso, ummonte deles não sabe a diferençaentre Max Devore e um buraco nochão.

— A não ser que leiam o WallStreet Journal e as revistas decomputadores — eu disse. — Neles,você depara tanto com o nomeDevore como com o nome de Deusna Bíblia.

— Está brincando?— Bem, acho que, nas revistas

de computadores, Deus geralmenteé mais chamado de Gates, mas

você entende o que eu quero dizer.— É. Mesmo assim, há 65 anos

Max Devore não passa umatemporada verdadeira na TR. Sabeo que aconteceu quando ele foiembora, não sabe?

— Não, por que saberia?Olhou-me surpreso. Então uma

espécie de véu caiu sobre seusolhos. Ele pestanejou e o véu sedissipou.

— Eu te conto outra hora, não ésegredo nenhum, mas preciso estarnos Harriman por volta das 11 parachecar a bomba do poço coletor.Não quero me desviar da coisa. Oque eu queria dizer era o seguinte:

Lance Devore era aceito como umrapaz simpático que podia lançar abola de softbol 100 metros adentro,se a pegasse de jeito. Não havianinguém velho o suficiente parausar o pai de Lance contra ele, nãoem Warrington’s nas noites desábado, e ninguém também jogavana cara dele que sua família tinhagrana. Que droga, tem um montede gente rica aqui no verão. Vocêsabe disso. Nenhuma tão ricaquanto Max Devore, mas ser rico ésó uma questão de grau.

Isso não era verdade, e eu tinhadinheiro suficiente para saber disso.A riqueza é como a escala Richter

— quando se passa além de certoponto, os saltos de um nível para opróximo não são duplos ou triplos,mas múltiplos, tão surpreendentese desastrosos que não se quer nempensar a respeito. Fitzgeraldpercebeu-o bem, embora eu acheque não acreditava no próprioinsight: os muito ricos sãodiferentes de você e de mim.Pensei em dizer isso a Bill e decidimanter minha boca fechada. Eletinha uma bomba para consertar.

Os pais de Kyra se conheceramdiante de um barrilete de cerveja

enfiado numa poça de lama. Mattiepassava o habitual barrilete pelocampo de softbol da construçãoprincipal num carrinho de mão. Elao conduziu sem problemas pelamaior parte do caminho, vindo daala do restaurante, mas como tinhachovido forte naquela semana, ocarro finalmente atolou num lugarmole. O time de Lance atacava, eele estava sentado no final dobanco, esperando sua vez parabater. Então viu a garota de shortbranco e camisa polo azul doWarrington’s lutando com o carrinhode mão atolado e se levantou paraajudá-la. Três semanas depois

estavam inseparáveis, e Mattiegrávida; dez semanas depoisestavam casados. Trinta e setemeses depois, Lance Devore foicolocado num caixão, morto para osoftbol e para a cerveja geladanuma noite de verão, morto para apaternidade, morto para o amor dabela princesa. Simplesmente outrofinal prematuro suspendendo ofelizes-para-sempre.

Bill Dean não me descreveu oencontro deles em detalhes.Apenas dissera: “Eles seencontraram no campo de jogo —ela estava passando a cerveja e elea ajudou a desatolar o carrinho que

levava.”Mattie nunca falou muito sobre

essa parte, portanto, não sei muito.Só que eu sei... e embora algunsdetalhes possam estar errados,aposto um dólar contra cem que amaior parte deles está certa.Aquele era o meu verão de sabercoisas que não eram da minhaconta.

Para começar, está quente — overão de 1994 é o mais quente dadécada, e julho é o mês maisquente do verão. O presidenteClinton está tendo a cena roubadapelo congressista Newt e pelosrepublicanos. O pessoal anda

dizendo que o velho Slick Williepode não concorrer a um segundomandato. Considera-se que BorisYeltsin está morrendo de problemascardíacos ou numa clínica dedesintoxicação. O time dos Red Soxanda parecendo melhor do que têmqualquer direito de parecer. EmDerry, Johanna Arlen Noonan talvezesteja começando a se sentir umpouco enjoada pela manhã. Se issoestá ocorrendo, ela não conta parao marido.

Vejo Mattie com a camisa poloazul com seu nome costurado embranco acima do seio. O shortbranco faz um agradável contraste

com suas pernas bronzeadas.Também a vejo usando um bonéazul que lhe fora dado, com o Wvermelho do Warrington’s acima dapala longa do boné. Seu bonitocabelo louro-escuro passa atravésdo furo na parte detrás do boné ecai até o colarinho da camisa. Vejoque ela tenta puxar o carrinho dalama sem derrubar o barrilete decerveja. Sua cabeça está abaixada;a sombra lançada pela pala doboné obscurece-lhe todo o rosto,exceto a boca e o pequeno queixo.

— De-de-dei-xa eu-a-a-ajudar —diz Lance, e ela ergue os olhos. Asombra lançada pela pala do boné

desaparece, ele vê seus grandesolhos azuis, os que ela vai passarpara a filha deles. Um vislumbredaqueles olhos e a batalha estáganha sem um único tiro disparado;ele pertence a ela tão seguramentequanto qualquer rapaz já pertenceua qualquer moça.

O resto, como dizem por aqui, foisó cortejar.

O velho tinha três filhos, masLance era o único com quem eleparecia se importar. (“A filha écompletamente pirada...”, disse Billsem rodeios. “Em alguma ridículaacademia na Califórnia. Ouvi dizertambém que teve câncer.”) O fato

de Lance não mostrar nenhuminteresse por computadores esoftwares na realidade pareciaagradar ao pai. Ele tinha outro filhocapaz de tocar o negócio. Fora isso,porém, o meio-irmão mais velho deLance Devore era totalmenteincapaz: por parte dele não haverianeto nenhum.

— Veado — disse Bill. — Pareceque tem um monte desses lá naCalifórnia.

Havia também uma boaquantidade ali mesmo na TR, euimaginava, mas achei que nãocabia a mim oferecer instruçãosexual a meu caseiro.

Lance Devore tinha frequentadoa Reed College, no Oregon,formando-se em Reflorestamento —o tipo do sujeito que se apaixonapor calças de flanela verde,suspensórios vermelhos e a visãode condores ao alvorecer. Umlenhador dos Irmãos Grimm,descontando-se o jargãoacadêmico. No verão entre seupenúltimo e o último ano defaculdade, o pai o tinha convocadoao complexo residencial da famíliaem Palm Springs e o presenteadocom uma valise de advogadoquadrada apinhada de mapas, fotosaéreas e documentos legais.

Estavam fora de ordem, pelo queLance podia ver, mas duvido que seimportasse com isso. Imagine umcolecionador de histórias emquadrinhos que ganhe um caixotecom exemplares antigos e raros doPato Donald. Imagine umcolecionador de filmes recebendo ocopião nunca distribuído de umestrelado por Humphrey Bogart eMarilyn Monroe. Agora imagine onosso jovem amante de florestaspercebendo que o pai possui nãoapenas hectares ou quilômetrosquadrados nas vastas florestas nãofomentadas do Maine ocidental,mas regiões inteiras.

Embora Max Devore tivessepartido da TR em 1933, haviaconservado um vivo interesse pelaárea onde crescera, mantendoassinaturas de jornais da região ecomprando revistas como DownEast e o Maine Times. No início dosanos 1980, começara a comprarlongas faixas de terra bem a lesteda fronteira Maine-New Hampshire.Deus sabe que havia muitas àvenda; as companhias de papel quepossuíam a maior parte delashaviam caído num poço derecessão, e muitas se haviamconvencido de que o melhor lugarpara começar a cortar despesas

seria em suas holdings e operaçõesda Nova Inglaterra. Assim, essaterra, roubada dos índios eretalhada impiedosamente nosanos 1920 e 1950, havia passadoàs mãos de Max Devore. Ele podetê-la comprado porquesimplesmente estava lá, um bomnegócio com que podia arcar e doqual poderia tirar vantagem. Podetê-la comprado como modo dedemonstrar a si mesmo querealmente sobrevivera à suainfância; que tinha, na verdade,triunfado sobre ela.

Ou pode tê-la comprado comoum brinquedo para o amado filho

mais novo. Nos anos em queDevore efetuava suas maiorescompras no Maine ocidental, Lanceera apenas uma criança... mas comidade suficiente para que um paiperceptivo visse para onde seinclinavam seus interesses.

Devore pediu a Lance quepassasse o verão de 1994supervisionando compras que, namaior parte, já tinham dez anos.Queria que o rapaz colocasse apapelada em ordem, e mais, queriaque Lance extraísse um sentidodaquilo. Não estava atrás de umarecomendação sobre o uso da terra,exatamente, embora eu ache que

teria escutado se Lance quisesselhe dar uma; desejavasimplesmente ter uma noção doque tinha comprado. Lanceaceitaria passar um verão no Maineocidental tentando descobrir suaimpressão das terras compradas?Por um salário de dois ou três mildólares por mês?

Imagino que a resposta de Lancetenha sido uma versão maiseducada de “Um corvo ainda cagano topo dos pinheiros?”.

O garoto tinha chegado emjunho de 1994 e se instalado numatenda na outra extremidade do lagoDark Score. Devia estar de volta a

Reed no final de agosto. Em vezdisso, porém, decidiu tirar um anode licença. O pai não ficoucontente. Sentiu o cheiro do quechamava de “problema comgarotas”.

— É, mas a distância daCalifórnia ao Maine é um estirãodanado para se sentir qualquercheiro — disse Bill Dean, apoiando-se na porta do motorista da picapecom os bronzeados braçoscruzados. — Ele tinha alguém muitomais perto do que Palm Springspara farejar por ele.

— De que está falando?— De falação. Gente faz isso de

graça, e a maioria faz isso até commaior boa vontade se for paga.

— Gente como Royce Merrill?— Royce pode ser um deles —

concordou ele —, mas não seria oúnico. Os tempos aqui não sedividem entre maus e bons; e sevocê é um habitante local, eles sedividem principalmente entre mau epior. Portanto, quando um sujeitocomo Max Devore envia umcamarada com um suprimento denotas de cinquenta e cem dólares...

— Quem é esse habitante local?Um advogado?

— Não um advogado, umcorretor imobiliário chamado

Richard Osgood (“um tipo meioescorregadio” foi o julgamento deBill Dean sobre o homem), que seentocava e fazia negócios emMotton. Posteriormente Osgoodcontratara um advogado de CastleRock. A tarefa inicial do sujeitoescorregadio, quando o verão de1994 terminou e Lance Devorepermaneceu na TR, foi descobrirque droga estava acontecendo epôr um fim à coisa.

— E depois? — perguntei.Bill deu uma olhada no relógio,

outra no céu e então centralizou oolhar em mim. Sacudiu os ombrosde modo engraçado, como se

dissesse: “Nós dois somos homensdo mundo, de uma maneira calma eestabelecida — não precisa mefazer uma pergunta boba dessas.”

— Então Lance Devore e MattieStanchfield se casaram na igrejabatista da Graça, bem na rota 68.Correram histórias sobre o queOsgood pode ter feito para impediro casamento... soube que chegouaté a tentar subornar o reverendoGooch para que ele se recusasse a“amarrá-los”, mas acho que isso foiidiota, eles simplesmente iriam aoutro lugar. Além disso, não vejomuito sentido em repetir o que nãosei com certeza.

Bill descruzou os braços ecomeçou a contar com os dedosnodosos de sua mão direita.

— Eles se casaram em meadosde setembro, 1994, eu sei disso. —Então esticou o polegar. — Opessoal olhava em torno com certacuriosidade para ver se o pai donoivo ia aparecer, mas ele nãoapareceu. — Esticou o indicador.Junto com o polegar, formavamuma pistola. — Mattie teve umbebê em abril de 1995, o que tornao bebê um pouco prematuro... masnão o suficiente para isso terimportância. Eu o vi no armazémcom meus próprios olhos quando

ele não tinha nem uma semana, eera do tamanho certo. — Esticou odedo do meio. — Não sei se o paide Lance Devore se recusavatotalmente a ajudá-losfinanceiramente, mas sei queestavam morando naquele trailerdepois da oficina do Dickie, e issome faz pensar que estavampassando um período difícil.

— Devore fez o torniquete — eudisse. — É o que faria um caraacostumado a conseguir tudo doseu modo... mas se ele gostava dorapaz como você pensa, ele podeter mudado de ideia.

— Talvez sim, talvez não. — Deu

uma olhada de novo no relógio. —Vou terminar isso rápido e te deixarem paz... mas você precisa escutarmais uma historinha porque elamostra de fato como a terrafunciona.

— Em julho do ano passado,menos de um mês antes de elemorrer, Lance Devore aparece nobalcão dos correios no ArmazémLakeview. Traz um envelope pardoque quer enviar, mas primeiro quermostrar a Carla DeCinces o queestá ali dentro. Ela contou que eleestava todo inchado de vaidade,como os pais ficam às vezesquando os filhos são pequenos.

Concordei com a cabeça,entretido com a ideia do magricelae gago Lance Devore todo inchado.Mas pude ver com a minhaimaginação, e a imagem tambémera terna.

— Era uma foto de estúdio tiradaem Rock. Mostrava a garota... qualé o nome dela? Kayla?

— Kyra.— É, botam qualquer nome nas

crianças hoje em dia, não é?Mostrava Kyra sentada numagrande cadeira de couro, com unsóculos de brinquedo no narizinho,olhando para uma daquelas fotosaéreas dos bosques do outro lado

do lago na TR-100 ou na TR-110,parte do que o velho tinhacomprado, de qualquer modo. Carladisse que o bebê tinha um ar desurpresa, como se não imaginasseque houvesse tanto bosque nomundo inteiro. Disse que ela eraterrível de esperta, era mesmo.

— Esperta como um azougue —murmurei.

— E o envelope, registrado,Correio Expresso, era endereçado aMaxwell Devore em Palm Springs,Califórnia.

— Levando você a deduzir que ovelho derreteu-se o suficiente parapedir um retrato da única neta, ou

que Lance Devore achou que umretrato podia derretê-lo.

Bill assentiu com a cabeça,parecendo tão contente quanto umpai cujo filho tivesse concluído umasoma difícil.

— Não sei se conseguiu — disseele. — Não houve tempo suficientepara dizer se foi de um modo ou deoutro. Lance tinha comprado umadessas pequenas antenasparabólicas como a que você temaqui. No dia em que ele a colocou,caiu uma tempestade violenta...granizo, vento forte, árvoresderrubadas à beira do lago, ummonte de raios. Ela continuou até

de noite. Lance tinha colocado aantena à tarde, tudo terminado eseguro; entretanto, na hora em quea tempestade começou, ele selembrou de ter deixado a chaveinglesa no telhado do trailer. Subiuaté lá para pegar a ferramenta,caso contrário ela ia se molhar eenferrujar...

— Ele foi atingido por um raio?Meu Deus do céu, Bill!

— Atingido, sim, senhor, mas oraio atingiu também o caminho. Sevocê passar pelo lugar onde aestrada Wasp Hill se liga à 68, vaiver o toco da árvore que o raioderrubou. Lance descia a escada

com a chave inglesa quando o raiocaiu. Se você nunca viu um raioestourar bem acima de sua cabeça,não sabe como é apavorante, écomo um rio bêbado se despejandona pista, bem na na sua direção, eaí dá uma guinada para o rumodele no último minuto. Um raiopróximo faz o seu cabelo ficar empé, faz até a droga do seu paulevantar. Pode fazer o rádio de suasentranhas de aço tocar, os ouvidoszumbirem e o ar ficar com cheiro dequeimado. Lance caiu da escada.Se teve tempo de pensar em algoantes de bater no chão, aposto quepe n s o u fui eletrocutado. Pobre

rapaz. Adorava a TR, mas não tevesorte com ela.

— Quebrou o pescoço?— É. Com todos aqueles trovões,

Mattie não ouviu a queda dele ougrito ou coisa alguma. Ela espioupara fora um ou dois minutosdepois, quando o granizo começoue Lance ainda não tinha voltado. Elá estava ele, deitado no chão,fixando o granizo gelado de olhosabertos.

Bill olhou o relógio pela últimavez e escancarou a porta do carro.

— O velho não tinha vindo para ocasamento deles, mas veio para ofuneral do filho. E ficou aqui desde

então. Não queria coisa algumacom a moça...

— Mas quer a criança — eudisse. Já sabia daquilo, mas mesmoassim senti um buraco na boca doestômago. Não fale sobre isso, mepedira Mattie na manhã do dia 4.Não é um bom período para Ki epara mim. — Até onde ele foi noprocesso?

— No terceiro turno e rumandopara o final, eu diria. Vai haver umaaudiência na Corte Superior docondado de Castle talvez no finaldesse mês, ou no próximo. O juizpode ordenar a entrega da meninaou pôr o caso de lado até o outono.

Isso na verdade pouco importa,porque a única coisa que nuncaacontecerá na verde terra de Deusé uma decisão a favor da mãe. Deum modo ou de outro, a garotinhavai crescer na Califórnia.

Colocada daquela forma, a coisame deu um calafriozinho muitodesagradável.

Bill deslizou para o banco atrásdo volante da picape.

— Fique fora disso, Mike. Fiquelonge de Mattie Devore e da filha. Ese for chamado ao tribunal por terencontrado as duas no sábado,sorria muito e fale tão poucoquanto puder.

— Max Devore a acusa de nãoser apta para criar a menina.

— É.— Bill, eu vi a criança, e ela está

ótima.Ele sorriu de novo, mas desta

vez não havia nada divertido emseu sorriso.

— Imagino. Mas a questão não éessa. Fique longe desse negóciodeles, meu velho. É minha funçãote dizer isso; como Jo não estáaqui, acho que agora sou o único atomar conta de você. — Bateu aporta do Ram, ligou o motor,estendeu a mão para a mudança eentão deixou a mão pender, como

se lhe ocorresse outra coisa. — Sepuder, você devia procurar ascorujas.

— Que corujas?— Tem um par de corujas de

plástico por aí em algum lugar.Podem estar no porão ou noestúdio de Jo. Chegaram porencomenda via correio no outonoantes de ela ter falecido.

— O outono de 1993?— É.— Não é possível. — Não

tínhamos usado Sara no outono de1993.

— Mas é. Eu estava aquicolocando as portas de tempestade

quando Jo apareceu. Batíamospapo quando chegou um caminhãodo serviço de entregas. Levei acaixa para a entrada e tomamosum café. Eu ainda o tomava quandoJo tirou as corujas da caixa depapelão e mostrou para mim. Puxa,como pareciam verdadeiras! Ela foiembora menos de dez minutosdepois. Como se tivesse vindo paracá apenas para aquilo, apesar deque não sei por que alguém iadirigir todo o estirão de Derry atéaqui só para receber duas corujasde plástico.

— Isso foi quando no outono,Bill? Você se lembra?

— Na segunda semana denovembro — disse eleprontamente. — Eu e minha esposafomos até Lewinston depoisnaquela mesma tarde, até a irmãde ’Vette. Era aniversário dela. Navolta paramos no Castle RockAgway para ’Vette comprar o perudo Dia de Ação de Graças. — Eleme olhava curiosamente. — Vocênão sabia mesmo das corujas?

— Não.— Isso é um pouco esquisito,

não é?— Talvez Jo tenha me dito e eu

esqueci — falei. — Acho que nãotem muita importância agora, de

qualquer modo. — Mesmo assimparecia ter. Era uma coisa pequena,mas parecia ter importância. — Porfalar nisso, para que Jo ia quererduas corujas de plástico?

— Para impedir os corvos decagar nos madeirames, como estãofazendo em seu deck. Os corvosveem aquelas corujas de plástico ese mandam.

Estourei de rir apesar de estarintrigado... ou talvez por causadisso.

— É? Funciona mesmo?— Funciona, desde que a gente

mude elas de lugar de vez emquando, para os corvos não

desconfiarem. Corvos são ospássaros mais inteligentes queexistem por aí, você sabe. Procureessas corujas que você vai se livrarde muita sujeira.

— Vou procurar — eu disse.Corujas de plástico para afastar oscorvos. Era exatamente o tipo deconhecimento com que Joesbarraria (ela própria era como umcorvo nesse sentido, recolhendopedaços cintilantes de informaçãoque prendiam seu interesse),pondo-o em ação sem se preocuparem me contar. De repente estavame sentindo solitário sem ela denovo, sentindo terrivelmente sua

falta.— Ótimo. Algum dia, quando eu

tiver mais tempo, vamos dar umavolta pelo lugar todo. Bosquetambém, se você quiser. Acho queficará satisfeito.

— Tenho certeza que sim. Ondeé que Devore está hospedado?

As peludas sobrancelhas seergueram.

— No Warrington’s. Ele e vocêsão praticamente vizinhos. Acheique precisava saber.

Lembrei-me da mulher que eutinha visto — parte de cima demaiô preto e short combinando dealgum modo para lhe dar uma

exótica aparência de coquetel — econcordei com a cabeça.

— Conheci a mulher dele.Bill riu tão vigorosamente que

precisou do lenço. Pescou-o dopainel do carro (algo em lãescocesa de um azul vivo dotamanho de uma bandeirola defutebol) e enxugou os olhos.

— O que é que é tão engraçado?— A mulher magricela? Cabelo

branco? Cara de máscara de criançado Dia das Bruxas?

Foi minha vez de rir.— Essa.— Não é a mulher dele, é o,

como-é-que-se-diz, assistente

pessoal. Rogette Whitmore é onome dela. — Pronunciou-o Ro-GET, com um G duro. — Todas asesposas de Devore morreram. Aúltima, há vinte anos.

— Que tipo de nome é esse,Rogette? Francês?

— Califórnia — disse ele, esacudiu os ombros como se aquelapalavra explicasse tudo. — Temgente na cidade que tem medodela.

— É mesmo?— É. — Bill hesitou, depois

acrescentou com um daquelessorrisos que exibimos quandoqueremos que os outros saibam

que nós sabemos que vamos dizeralgo tolo. — Brenda Meserve dizque ela é bruxa.

— E os dois estão noWarrington’s por quase um ano?

— É. Essa Whitmore vai e vem,mas na maior parte do tempo ficaaqui. O pessoal da cidade acha queficarão até que o caso da custódiatermine, depois voltarão todos paraa Califórnia no jato particular deDevore. Ele vai deixar Osgood paravender o Warrington’s e...

— Vender o Warrington’s? O queestá dizendo?

— Achei que precisava saber —disse Bill, colocando a mudança em

primeira. — Quando o velho HughEmerson disse a Devore quefechava o lugar depois do Dia deAção de Graças, Devore disse quenão tinha nenhuma intenção de semudar. Disse que se sentia bemconfortável ali mesmo onde estava,e não pretendia se mover.

— Ele comprou o lugar. — Euficara sucessivamente surpreso,divertido e enraivecido nos últimosvinte minutos, mas nuncaexatamente estarrecido. Agora eraassim que me sentia. — Elecomprou o Warrington’s Lodge paraque não tivesse que se mudar parao Lookout Rock Hotel em Castle

View ou alugar uma casa.— É, fez isso sim. Nove

construções, inclusive o chaléprincipal e o Sunset Bar; 5 hectaresde bosques, um campo de golfe deseis buracos e 152 metros de praiaao longo da Rua. Mais um espaçode boliche com duas pistas e umcampo de softbol. Quatro milhões eduzentos e cinquenta mil. Seuamigo Osgood fez o negócio eDevore pagou com um chequepessoal. Eu me pergunto como éque terá achado lugar para todosaqueles zeros. Até logo, Mike.

Com isso, recuou pela entrada decarros e me deixou no alpendre

olhando-o de boca aberta.

Corujas de plástico.Bill tinha me contado cerca de

duas dúzias de coisas interessantesentre espiadas no relógio, mas aque estava no alto da pilha era ofato (e aceitei-o como um fato; elefora afirmativo demais para quenão o aceitasse) de que Jo desceraaté aqui para receber duas malditascorujas de plástico.

Teria ela me contado?Pode tê-lo feito. Eu não

lembrava, e me parecia que euteria lembrado, mas Jo costumava

dizer que quando eu entrava nazona de escrever não adiantava mecontar nada; a coisa entrava porum ouvido e saía pelo outro. Àsvezes ela espetava pequenosbilhetes — coisas a fazer,telefonemas a dar — na minhacamisa, como se eu fosse ummenino do curso primário. Mas nãome lembrava de ela ter dito: “Vouaté Sara, meu bem, porque oserviço de entregas vai levar algoque quero receber pessoalmente,está interessado em fazercompanhia a uma moça?” Quedroga, eu não teria ido? Eu sempreapreciava um pretexto para ir para

a TR. A não ser que eu estivessetrabalhando naquele roteiro etalvez fazendo-o avançar umpouco... bilhetes espetados namanga da minha camisa... Se vocêsair quando terminar, precisamosde leite e suco de laranja...

Inspecionei o pouco que sobrarada horta de Jo com o sol de julhoespancando meu pescoço e penseisobre corujas, as malditas corujasde plástico. Suponhamos que Jotivesse me contado que estava indoa Sara Laughs. E se eu tivesserecusado o oferecimento quase semouvir porque me encontrava nazona de escrever? Mesmo se essas

coisas fossem inquestionáveis,havia outra questão: por que Jotinha sentido necessidade de viraqui pessoalmente quando poderiasimplesmente ter ligado paraalguém na TR e pedido parareceber a entrega? Kenny Austerteria ficado feliz em fazê-lo, sra.Meserve também. E Bill Dean, ocaseiro, tinha de fato estado aqui.Isso levava a outras perguntas —uma era por que ela não tinhamandado que o serviço de entregalevasse as malditas coisas paraDerry — e finalmente decidi quenão poderia viver sem realmentever uma genuína coruja de plástico

por mim mesmo. Talvez, pensei,voltando a casa, eu colocasse umano teto do meu Chevy quandoestacionasse na entrada de carros.Para prevenir futuros bombardeios.

Dei uma parada na entrada,atingido por uma súbita ideia, eliguei para Ward Hankins, o sujeitode Waterville que lida com meusimpostos e os negócios nãorelacionados à minha carreira deescritor.

— Mike — disse eleanimadamente. — Como anda olago?

— O lago está frio e o tempoquente, exatamente como

gostamos — eu disse. — Ward,você guarda todos os registros quemandamos para você por cincoanos, não guarda? Para o caso de aReceita Federal nos criar algumproblema?

— Cinco anos é a prática aceita— disse ele —, mas eu guardo osseus registros por sete. Aos olhosdo pessoal do imposto, você podeser um pombo gordo.

Melhor um pombo gordo do queuma coruja de plástico, pensei, masnão disse. O que disse foi:

— Isso inclui as agendas demesa, não é? A minha e de Jo, atéa morte dela?

— Sem dúvida. Já que nem vocênem ela mantinham diários, era omelhor modo de fazer umcruzamento dos recibos e dasdespesas alegadas com...

— Será que podia encontrar aagenda de Jo de 1993 e ver o queela anotou na segunda semana denovembro?

— Com prazer. O que é que vocêestá procurando especificamente?

Por um momento me vi sentadoà mesa da cozinha em Derry emminha primeira noite de viúvo,segurando uma caixa com aspalavras Teste Doméstico deGravidez na lateral. O que

exatamente eu procurava naquelaaltura dos acontecimentos?Considerando-se que eu amara amoça e ela já estava em seutúmulo havia quatro anos, o que éque eu estava procurando? Além deproblemas, o que seria?

— Estou procurando duas corujasde plástico — disse. Wardprovavelmente achou que euestava falando com ele, mas nãotenho certeza de que eu o fazia. —Sei que parece esquisito, mas é oque estou procurando. Você podeme ligar de volta?

— Dentro de uma hora.— Bom sujeito — eu disse, e

desliguei.Agora, quanto às próprias

corujas. Onde seria o local maisprovável para guardar doisartefatos tão interessantes?

Meus olhos se voltaram para aporta do porão. Elementar, meucaro Watson.

A escada do porão era escura elevemente úmida. Enquanto euestava em pé no patamar tateandoem busca do interruptor de luz, aporta bateu com tanta força atrásde mim que dei um grito desurpresa. Não havia brisa, nenhuma

correnteza, o dia estava totalmenteparado, mas mesmo assim a portatinha batido com força. Ou tinhasido sugada.

Fiquei no alto da escada noescuro, tateando à procura dointerruptor, sentindo aquele cheirolodoso que até mesmo boasfundações de concreto expelemdepois de algum tempo se não háum arejamento apropriado. Faziafrio, muito mais frio do que no outrolado da porta. Eu não estava só, esabia disso. Estava com medo, seriauma mentira dizer que não... mastambém fascinado. Alguma coisaestava comigo. Alguma coisa

estava comigo.Afastei a mão da parede do

interruptor e fiquei imóvel, osbraços caídos ao lado do corpo.Algum tempo se passou. Não seiquanto. Meu coração batiafuriosamente no peito; podia senti-lo nas têmporas. Estava gelado.

— Oi? — eu disse.Nada em resposta. Ouvi os

pingos irregulares e tênues de águacondensada caindo de um doscanos lá embaixo, ouvi minhaprópria respiração e, debilmente —distante, em outro mundo onde osol brilhava —, ouvi o crocitar deum corvo. Talvez ele tivesse

soltado um bólido no capô do meucarro. Eu realmente preciso de umacoruja, pensei. Na verdade, não seicomo algum dia pude viver semuma.

— Oi? — falei de novo. — Vocêpode falar?

Nada.Umedeci os lábios. Talvez eu

devesse me achar tolo, ali em péno escuro e chamando porfantasmas. Mas não achava. Nemum pouco. A umidade forasubstituída por um gelo que eupodia sentir, e eu tinha companhia,ah, sem dúvida nenhuma.

— Pode dar uma batida, então?

Se você pode fechar a porta, devepoder bater.

Fiquei ali e escutei os pingossuaves e isolados dos canos. Nadamais. Estava esticando a mão parao interruptor novamente quandohouve uma pancada suave nãomuito abaixo de mim. O porão deSara Laughs é alto, e os 90centímetros superiores de concreto— a parte que fica contra o cinturãode gelo do chão — foram isoladoscom grandes painéis de alumínio. Osom que ouvi era, tenho certeza, ode um punho batendo num dessespainéis.

Apenas um punho batendo num

quadrado de material isolante, mascada tripa e músculo de meu corpopareceram se desenrolar. Meuscabelos ficaram em pé. Minhasórbitas pareceram se expandir e osglobos oculares se contraíram,como se minha cabeça estivessetentando se transformar numacaveira. Cada centímetro de minhapele ficou arrepiado. Algo estava alicomigo. Muito provavelmente algomorto. Eu não podia mais ligar a luzse quisesse fazê-lo. Não tinha maisforça para levantar o braço.

Tentei falar e, finalmente, numsussurro rouco que mal reconheci,perguntei:

— Você está aí?Tum.— Quem é você? — Eu ainda não

conseguia emitir nada melhor queum sussurro rouco, a voz de umhomem dando as últimas instruçõespara a família enquanto jaz no leitode morte. Desta vez não veio nadade baixo.

Tentei pensar, e o que chegoucom esforço à minha mente foiTonny Curtis como Harry Houdiniem algum filme antigo. No filme,Houdini tinha sido o Diógenes docircuito do tabuleiro Ouija, umsujeito que passava seu tempo livreprocurando um médium honesto.

Ele tinha assistido a uma sessãoonde os mortos se comunicavampor...

— Bata uma vez se for sim, duasse for não — eu disse. — Pode fazerisso?

Tum.Era mais abaixo na escada onde

eu estava... mas não abaixodemais. Cinco, seis, sete degrausno máximo. Não o suficiente paratocá-lo se eu estendesse a mão noar negro do porão... algo que eupodia imaginar, mas não imaginarfazer de fato.

— Você é... — Minha voz seextinguiu. Simplesmente não havia

força no diafragma. Ar gelado emmeu peito como um ferro deengomar. Reuni toda a vontade etentei de novo. — Você é Jo?

Tum. Aquele punho suave nomaterial de isolamento. Umapausa, e depois: Tum-tum.

Sim e não.Então, sem qualquer noção do

motivo de fazer tal pergunta:— As corujas estão aqui

embaixo?Tum-tum.— Sabe onde elas estão?Tum.— Devo procurá-las?Tum! Bem forte.

Por que é que ela as quer? Eupodia perguntar, mas a coisa nosdegraus não tinha meios de res...

Dedos quentes tocaram meusolhos e quase gritei antes deperceber que era suor. Levantei asmãos no escuro e limpei a testaperto do cabelo com as palmas.Deslizaram como se fosse em óleo.Frio ou não, eu estavacompletamente banhado em meupróprio suor.

— Você é Lance Devore?Tum-tum, imediatamente.— Ficar em Sara é seguro para

mim? Estou em segurança?Tum. Uma pausa. E eu sabia que

era uma pausa, que a coisa nosdegraus não terminara. Então:Tum-tum. Sim, eu estava emsegurança. Não, não estava.

Reconquistara um controleperiférico do braço. Estendi-o,apalpei a parede e finalmenteencontrei o interruptor. Descanseios dedos nele. Agora o suor de meurosto parecia estar virando gelo.

— Você é a pessoa que chora ànoite? — perguntei.

Tum-tum veio dos degrausabaixo, e entre as duas pancadasacionei o interruptor. Os globos deluz do porão se acenderam. Damesma forma que uma brilhante

lâmpada pendente — pelo menos125 watts — sobre o patamar. Nãotinha havido tempo para alguém seesconder, sem falar em ir embora,e também não havia ninguém lápara tentar fazê-lo. Além disso, asra. Meserve — admirável emtantos aspectos — negligenciara aescada do porão e não a varrera.Quando desci até o lugar de ondeimaginava terem vindo aspancadas, deixei pegadas na levepoeira. Mas as minhas eram asúnicas.

Quando soltei a respiração, pudever à minha frente que o ar tinhaestado frio, ainda estava frio... mas

aquecia-se rapidamente. Exaleioutra vez e pude ver apenas umvestígio de nevoeiro. Uma terceiraexalação não mostrou nada.

Corri a mão por um dosquadrados isolados. Macio.Empurrei-o com um dedo e, mesmonão o fazendo com força, meu dedodeixou uma marca na superfícieprateada. Elementar. Se alguémtivesse batido com o punho ali, omaterial mostraria uma depressão,a superfície fina talvez até estivesserachada, revelando o recheio rosasob ela. Mas todos os quadradosestavam uniformes.

— Você ainda está aí? —

perguntei.Nenhuma resposta, e mesmo

assim eu tive a sensação de quemeu visitante ainda estava lá. Emalgum lugar.

— Espero não tê-lo ofendidoacendendo a luz — eu disse, eentão me senti ligeiramenteesquisito, em pé na escada do meuporão, falando em voz alta, numsermão para as aranhas. — Queriaver você, se eu pudesse. — Nãotinha ideia se aquilo era verdade ounão.

Subitamente — tão subitamenteque quase perdi o equilíbrio etropecei escada abaixo — eu me

virei, convencido de que a criaturacoberta com a mortalha estavaatrás de mim, que fora ela quemdera as batidas, ela, nenhumeducado fantasma de M. R. James esim um horror dos confins douniverso.

Não havia nada.Virei de novo, respirei profunda e

firmemente duas ou três vezes eentão desci o restante dos degrausdo porão. Logo abaixo deles, via-seuma canoa em perfeitas condiçõese um remo. No canto havia o fogãoa gás que substituíramos depois decomprar a casa; e também abanheira com pés de garra que Jo

quisera (com a minha objeção)transformar num recipiente paraplantas. Achei um baú cheio deroupas de mesa vagamentelembradas, uma caixa de fitascassetes mofadas (grupos como osDelfonics, Funkadelic e o .38Special), várias caixas de papelãocom velhos pratos. Havia uma vidalá embaixo, mas não muitointeressante afinal de contas. Aocontrário da vida que senti noestúdio de Jo, esta de cá não tinhasido cortada bruscamente, masapagada de modo lento,abandonada como uma pele antiga,e isso estava certo. Era, de fato, a

ordem natural das coisas.Havia um álbum de fotografias

numa prateleira com quinquilhariase peguei-o, curioso e cauteloso aomesmo tempo. Nenhuma bombadesta vez, porém; quase todos osfilmes eram instantâneos depaisagens de Sara Laughs do modocomo era quando nós acompramos. Achei uma foto de Jocom calças boca de sino (cabelopartido ao meio e batom branco naboca) e uma de Michael Noonanusando uma camisa florida egrandes costeletas que me fizeramestremecer (o Mike solteirão nafoto era um sujeito tipo Barry White

que eu não queria reconhecer ereconhecia ao mesmo tempo).

Achei uma velha esteiramecânica de Jo, quebrada, umancinho que eu ia querer se aindaestivesse por aqui quando o outonochegasse, uma máquina pararemover neve que eu ia querermais ainda se estivesse por aquiquando o inverno chegasse, evárias latas de tinta. Mas nãoencontrei nenhuma coruja deplástico. Meu amigo batedor-no-isolamento estava certo.

No andar de cima, o telefonecomeçou a tocar.

Apressei-me para atendê-lo,

passando pela porta do porão eentão esticando a mão para trás afim de desligar a luz. Isso medivertiu e ao mesmo tempo pareciacomportamento perfeitamentenormal... exatamente como meparecera perfeitamente normal tercuidado para não pisar nas fendasda calçada quando eu era garoto. Eainda que não fosse normal, queimportância tinha? Eu só estava devolta a Sara havia três dias, mas jápostulava a Primeira Lei deExcentricidade de Noonan: quandose está sozinho, comportamentoestranho não parece nem um poucoestranho.

Agarrei o telefone sem fio.— Alô?— Oi, Mike. É Ward.— Foi rápido.— A sala de arquivo fica apenas

a uma curta distância no corredor— disse ele. — Fácil como beberágua. Há apenas uma coisa naagenda de Jo para a segundasemana de novembro de 1993. Diz,S-do Maine, Freep, 11 horas damanhã. Isso na terça, dia 16.Ajuda?

— Sim — eu disse. — Obrigado,Ward. Ajuda muito.

Cortei a ligação e coloquei otelefone de volta no suporte. Tinha

ajudado muito. S-do Maine era oSopão Solidário do Maine. Jopertencera ao conselho de diretoresde 1992 até sua morte. Freep eraFreeport. Deve ter sido umareunião do conselho.Provavelmente tinham discutidoplanos para alimentar os sem-tetono Dia de Ação de Graças... edepois Jo tinha dirigido mais oumenos 40 quilômetros até a TRpara receber duas corujas deplástico. Não respondia a todas asperguntas, mas não restam sempreperguntas na esteira da morte deum ente querido? E nenhumestatuto de limites quando elas

surgem.A voz de OVNI então falou.

Enquanto você está bem aí junto dotelefone, disse, por que não ligapara Bonnie Amudson? Diga olá,veja como Bonnie vai indo.

Jo pertencera a quatro conselhosdiferentes durante os anos 1990,todos fazendo trabalho de caridade.Sua amiga Bonnie a persuadiu aentrar para o Conselho do Sopãoquando um lugar vagou. Haviamparticipado de um monte dereuniões juntas. Não a denovembro de 1993,presumivelmente, e era difícilpensar que Bonnie pudesse se

lembrar especificamente daquelareunião quase cinco anos depois...mas se ela guardasse suas velhasatas das reuniões...

Mas que droga eu estavapensando exatamente? Ligar paraBonnie, ser simpático, depois pedir-lhe para checar as atas dedezembro de 1993? Eu lheperguntaria se o relatório depresença mostrava a ausência deminha mulher na reunião denovembro? Perguntaria se Joparecia diferente no último ano desua vida? E quando Bonnie meperguntasse para que eu queriasaber daquilo, o que é que eu

responderia?Me dá isso, Jo rosnara no meu

sonho. No sonho, ela não se pareciade modo nenhum com Jo, e simcom qualquer outra mulher, talvezcom aquela do Livro dos Provérbios,a estranha mulher que tinha lábiosde mel, mas cujo coração estavacheio de bile e absinto. Uma mulherestranha com dedos tão friosquanto gravetos depois de umageada. Me dá isso, é o meu pega-poeira.

Fui até a porta do porão e toqueina maçaneta. Girei-a... depoissoltei-a. Não queria olhar lá parabaixo no escuro, não queria arriscar

a chance de que algo pudessecomeçar a dar pancadas de novo.Era melhor deixar a porta fechada.O que eu queria era beber algogelado. Entrei na cozinha, estendi amão para a porta da geladeira eentão parei. Os ímãs tinhamvoltado a se arrumar num círculo,mas desta vez duas letrasalinhavam-se no centro. Estavamorganizadas numa única palavra emcaixa baixa:

oiHavia algo ali. Mesmo em plena

luz do dia eu não duvidava disso.Eu havia perguntado se era seguro

para mim ficar ali e recebi umrecado duplo... mas isso não tinhaimportância. Se eu fosse embora deSara agora, não haveria nenhumlugar para ir. Tinha uma chave dacasa de Derry, mas as questõestinham que ser resolvidas aqui. Eusabia disso.

— Oi — eu disse, e abri ageladeira para pegar umrefrigerante. — Seja lá quem ou oque você for, oi.

Capítulo Onze

Acordei nas primeiras horas damanhã seguinte convencido de quehavia alguém no quarto nortecomigo. Sentei apoiando-me nostravesseiros, esfreguei os olhos e viuma forma escura e de ombroslargos em pé entre a janela e eu.

— Quem é você? — perguntei,pensando que ela não responderiaem palavras; bateria na parede. Umpara sim, dois para não... o que é

que está na sua cabeça, Houdini?Mas a figura em pé junto à janelanão respondeu de maneira alguma.Tateei, encontrei o cordãopendente da luz sobre a cama epuxei-o. Minha boca torcia-se numacareta, e meu torso estava tãotenso que dava a impressão debalas terem quicado ali.

— Ah, merda — eu disse. — Putaque pariu.

Pendendo de um cabide que eutinha enganchado no travessão dacortina estava minha velha jaquetade camurça. Eu a coloquei láenquanto desfazia as malas,esquecendo depois de guardá-la no

closet. Tentei rir e não consegui. Àstrês da manhã, aquilosimplesmente não pareciaengraçado.

Desliguei a luz e deiteinovamente com os olhos abertos,esperando que o sino de Buntercomeçasse a tocar ou a criançacomeçasse a chorar. Ainda estava àescuta quando adormeci.

Umas sete horas depois, aprontava-me para ir ao estúdio de Jo e ver seas corujas de plástico estavam naárea do depósito, onde eu nãotinha checado no dia anterior,

quando um Ford de último tipodesceu por minha entrada de carrose parou, frente a frente com meuChevy. Eu tinha andado o curtocaminho entre a casa e o estúdio,mas então voltei. O dia estavaquente e sufocante, e eu só usavaum jeans cortado e uma sandáliade dedo de plástico.

Jo sempre afirmara que o estiloCleveland de se vestir dividia-senaturalmente em dois subgêneros:Cleveland Completo e ClevelandCasual. Meu visitante daquela terçade manhã usava o ClevelandCasual — camisa havaiana comabacaxis e macacos, calças largas

bege da Banana Republic,mocassins brancos. As meias sãoopcionais, mas sapatos brancos sãoparte necessária da aparênciaCleveland, como o é também umavistosa joia de ouro. O cara seenquadrava totalmente no últimoitem: exibia um Rolex no pulso euma corrente de ouro no pescoço. Acamisa estava para fora, e haviaum volume suspeito na parte detrás. Uma arma ou um bip, eparecia grande demais para ser umbip. Dei uma olhada para o carro denovo. Pneus de faixa preta. E nopainel, ah, olhe só para isso, láestava a luz da sirene coberta.

Melhor me arrastar até você semser visto, vovó.

— Michael Noonan? — Ele erabonito de um modo que podia seratraente para certas mulheres, asdo tipo que se encolhem quandoalguém ao lado levanta a voz, as dotipo que raramente chamam apolícia quando as coisas dão erradoporque, em algum nível miserável esecreto, acreditam que merecemque as coisas deem errado emcasa. Coisas erradas que resultamem olhos roxos, cotovelosdeslocados, a ocasional queimadurade cigarro no peito. Mulheres quefrequentemente chamam os

maridos ou amantes de papai:“Posso lhe trazer uma cerveja,papai?” ou “Teve um dia duro,papai?”.

— Sim, eu sou Michael Noonan.O que deseja?

Aquela versão de papai se virou,curvou-se e pegou algo da confusãode papéis no banco de passageiro.Sob o painel, um rádio bidirecionalchiou uma vez, rapidamente, esilenciou. O homem se virou paramim segurando uma pastacomprida amarelo-clara e estendeu-a:

— Isso é seu.Quando não a peguei, ele deu

um passo à frente e tentou enfiá-lanuma de minhas mãos, o quesupostamente me faria fechar osdedos numa espécie de reflexo. Emvez disso, ergui as mãos à alturados ombros.

Ele me olhou pacientemente, orosto tão irlandês como o dosirmãos Arlen, mas sem a expressãoArlen de bondade, franqueza ecuriosidade. No lugar dessas coisas,havia uma espécie de divertimentoamargo, como se tivesse visto tudodo comportamento mais irritante domundo, na maioria duas vezes.Uma de suas sobrancelhas foradividida por um corte muito tempo

atrás, e seu rosto tinha aquelavermelhidão queimada pelo ventoindicadora de boa saúde ou de umprofundo interesse em produtos deálcool de cereal. Ele dava aimpressão de poder derrubar apessoa na sarjeta e depois sentar-se em cima para mantê-la ali.“Tenho sido bonzinho, papai, melarga, não seja mau.”

— Não complique as coisas. Osenhor vai precisar disso, e nóssabemos, portanto não compliqueas coisas.

— Primeiro me mostre suaidentificação.

Ele suspirou, rolou os olhos para

o céu, depois remexeu num dosbolsos da camisa. Tirou de lá umacarteira de couro e abriu-a. Nelahavia uma insígnia e uma foto deidentificação. Meu novo amigo eraGeorge Footman, xerife-adjunto,condado de Castle. A foto erachapada, sem sombras, como a queuma vítima de assalto veria numlivro com retratos de criminosos.

— Ok? — perguntou.Peguei o documento quando ele

o estendeu novamente. Ficou empé ali, irradiando aquela sensaçãode divertimento congelanteenquanto eu esquadrinhava opapel. Eu tinha sido intimado a

aparecer no escritório de ElmerDurgin, advogado, em Castle Rock,às dez horas da manhã de 10 dejulho de 1998 — sexta-feira, emoutras palavras. O dito ElmerDurgin fora indicado guardião adlitem de Kyra Elizabeth Devore,menor de idade. Ele receberia meudepoimento a respeito de qualquerconhecimento que eu pudesse tersobre Kyra Elizabeth Devore comrelação a seu bem-estar. Taldepoimento seria feito no interesseda Corte Superior do condado deCastle e do juiz Noble Rancourt. Umestenógrafo estaria presente.Asseguravam-me que o depoimento

era para a Corte, nada tendo a vercom o reclamante ou o réu.

Footman falou:— É minha função lembrá-lo das

penalidades caso o senhor não...— Obrigado, mas vamos

considerar que o senhor já me falousobre tudo isso, ok? Estarei lá. —Fiz gestos para seu carro como se oenxotasse. Sentia-meprofundamente indignado... einvadido. Nunca fora intimadoantes, e não fazia questão de sê-lo.

Ele voltou ao carro, começou aentrar nele depois parou, com umdos braços peludos apoiado no altoda porta aberta. Seu Rolex cintilou

ante a enevoada luz do sol.— Deixe eu te dar um conselho

— disse ele, e isso foi o suficientepara eu saber tudo o que precisavasobre o sujeito. — Não se metacom o sr. Devore.

— Ou ele me esmaga como a uminseto — eu disse.

— Hã?— Sua fala na realidade é “Deixe

eu te dar um conselho: não se metacom o sr. Devore ou ele o esmagacomo a um inseto”.

Eu via por sua expressão — umpouco além de perplexa, tornando-se zangada — que ele deve terquerido dizer algo muito parecido.

Obviamente havíamos visto osmesmos filmes, inclusive todosaqueles em que Robert de Nirodesempenha papéis de psicóticos.Então seu rosto descontraiu.

— Ah, claro, o senhor é o escritor— disse.

— É o que me dizem.— Pode dizer coisas assim

porque é escritor.— Bem, estamos num país livre,

não é?— Olha só como ele é esperto!— Há quanto tempo está

trabalhando para Max Devore,adjunto? E o xerife do condadosabe que o senhor está fazendo

bicos?— Eles sabem. Não há nenhum

problema. Você é que pode terproblemas, sr. Escritor Esperto.

Cheguei à conclusão de que jáera tempo de acabar com aquiloantes de chegarmos ao aborrecidoestágio de nomes ofensivos.

— Saia de minha entrada decarros, por favor, adjunto.

Ele me olhou por um momentomais, obviamente procurando aperfeita fala final sem encontrá-la.Precisava do sr. Escritor Espertopara ajudá-lo, só isso.

— Estarei observando o senhorna sexta-feira — disse.

— Isso significa que vai mepagar o almoço? Não se preocupe,sou um convidado bastante barato.

Suas bochechas avermelhadasescureceram um pouco mais, epude ver que aparência teriamquando ele tivesse 60 anos, se nãoabandonasse o álcool naquelemeio-tempo. Ele voltou ao Ford esubiu por minha entrada de carrostão bruscamente que os pneusguincharam. Fiquei onde estava,observando-o se afastar. Depoisque rumou de volta à estrada 42para a rodovia, entrei em casa.Ocorreu-me que o empregoextracurricular do adjunto Footman

devia pagar bem, já que ele podiaarcar com um Rolex. Por outro lado,talvez fosse uma imitação.

Sossegue, Mike, aconselhou avoz de Jo. A bandeira vermelha jáfoi embora, ninguém estásacudindo nada à sua frente,portanto sossegue...

Calei a voz dela. Eu não queriasossegar; queria desassossegar. Eutinha sido invadido.

Fui até a mesa do saguão ondeJo e eu sempre colocávamos nossospapéis pendentes (e nossasagendas, pensando nisso) e prendia intimação no quadro decomunicados por um canto de sua

capa amarelo-clara com umatachinha. Então levantei a mão atéos olhos, contemplei a aliança decasamento no dedo e depois dei umsoco na parede acima da estante.Soquei com força suficiente paraque uma fila inteira de livrospulasse. Pensei nas calças largas ena bata da Kmart de Mattie Devore,depois no sogro dela pagando 4milhões e 250 mil dólares peloWarrington’s, assinando um malditocheque pessoal. Pensei em BillDean dizendo que, de um modo oude outro, a garotinha cresceria naCalifórnia.

Andei para a frente e para trás

pela casa, ainda fumegando, efinalmente terminei na frente dageladeira. O círculo de ímãs era omesmo, mas as letras de dentrotinham mudado. Em vez de

oi

agora eram

ajud el— Ajude? — eu disse, e assim

que ouvi a palavra em voz alta,compreendi. As letras na geladeiraconsistiam em um só alfabeto (não,

nem isso; o g e o h tinham sidoperdidos em algum lugar) e eu teriaque conseguir outros. Se a frenteda minha geladeira ia se tornar umtabuleiro Ouija, eu precisava de umbom suprimento de letras.Sobretudo vogais. Enquanto isso,movi a letra a colocando-a depoisdo l e então li:

jud elaEmbaralhei o círculo de ímãs de

frutas e legumes com a palma damão, espalhei as letras e continueia andar. Eu tinha tomado a decisãode não me meter entre Devore e anora, mas havia acabado entreeles, de qualquer maneira. Um

adjunto com roupas de Clevelandapareceu na minha casa,complicando uma vida que já tinhaseus problemas... e me assustandoum pouco, ainda por cima. Mas pelomenos era medo de algo que eupodia ver e entender. De repentecheguei à conclusão de quedesejava passar o verão fazendocoisa melhor do que me preocuparcom fantasmas, crianças quechoravam e o que minha mulherhavia feito quatro ou cinco anosatrás... se é que havia feito mesmoalguma coisa. Eu não conseguiaescrever livros, mas isso não queriadizer que tinha que ficar me

ocupando de coisas absolutamentehorrorosas.

Ajude ela.Resolvi pelo menos tentar.

— Agência Literária HaroldOblowski.

— Venha para Belize comigo,Nola — eu disse. — Preciso de você.Vamos fazer amor lindamente àmeia-noite, quando a lua cheiadeixa a praia clara como ummarfim.

— Olá, sr. Noonan — disse ela.Nola não tinha nenhum senso dehumor. Também não tinha nenhum

senso de romance. De certo modo,isso a tornava perfeita para aagência Oblowski. — Gostaria defalar com Harold?

— Se ele estiver.— Está sim. Um momento, por

favor.O bom de ser um autor de best-

sellers — mesmo um cujos livros sóaparecem, em geral, entre os 15mais vendidos — é que seu agentesempre está. Outra coisa boa éque, se ele está passando as fériasem Nantucket, também estará aotelefone lá. Uma terceira coisa éque o tempo que se passaesperando ao telefone é

geralmente muito curto.— Mike! — exclamou ele. —

Como vai o lago? Pensei em você ofim de semana inteiro!

É, pensei eu, e as vacas tambémvoam.

— As coisas estão bem em gerale desagradáveis nos detalhes,Harold. Preciso falar com umadvogado. Pensei primeiro emchamar Ward Hankins para umarecomendação, mas cheguei àconclusão de que queria alguém umpouco mais dinâmico do que Wardprovavelmente conheceria. Alguémcom dentes afiados e um apetitepor carne humana seria ótimo.

Desta vez Harold não sepreocupou com a longa pausa derotina.

— O que é que há, Mike? Estácom problemas?

Bata uma vez para sim, duaspara não, pensei, e por ummomento alucinado imagineirealmente fazer só isso. Lembroque quando terminei a biografia deChristy Brown, Down all the days,cogitei como seria escrever um livrointeiro com a caneta presa entre osdedos do pé esquerdo. Agoraimaginava como seria passar aeternidade sem nenhum modo decomunicação a não ser bater na

parede do porão. E mesmo assimsó algumas pessoas poderiam ouvire entender você... e mesmo essaspessoas apenas em determinadosmomentos.

Jo, era você? E se era, por queme respondeu das duas maneiras?

— Mike? Você está aí?— Estou. O problema realmente

não é meu, portanto sossega ofacho. Mas estou de fato com umproblema. Seu homem principal éGoldacre, não é?

— É. Vou chamá-lo ime...— Mas ele lida principalmente

com leis contratuais. — Eu pensavaalto agora, e quando fiz uma pausa

Harold não a preencheu. Às vezesele é um sujeito legal. Na maioriadas vezes, aliás. — Ligue para ele,de qualquer modo, está bem? Digaque preciso falar com um advogadocom um bom conhecimento práticolegal sobre custódia infantil. Diga aele para me pôr em contato com omelhor que estiver livre paraassumir um caso imediatamente.Um que possa estar no tribunalcomigo na sexta-feira, se fornecessário.

— É paternidade? — perguntou,parecendo ao mesmo temporespeitoso e assustado.

— Não, custódia. — Pensei em te

dizer que perguntasse toda ahistória ao Advogado a SerNomeado Mais Tarde, mas Haroldmerecia coisa melhor... e pediriapara saber minha versão mais cedoou mais tarde de qualquer modo,pouco importando o que oadvogado lhe dissesse. Fiz-lhe umrelato da minha manhã de 4 deJulho e suas consequências. Limitei-me aos Devore, sem mencionarnada sobre vozes, crianças quechoravam ou batidas no escuro.Harold só interrompeu uma vez, eapenas quando percebeu quem erao vilão da história.

— Você está cavando problemas

— disse ele. — Sabe disso, não é?— Estou preparado para certa

quantidade deles, de qualquermodo. Cheguei à conclusão de quequero ministrar algum castigotambém, só isso.

— Você não vai ter a paz e aquietude que um escritor precisapara fazer seu melhor trabalho —disse Harold numa vozengraçadamente cerimoniosa.Imaginei qual seria sua reação seeu dissesse, “tudo bem, nãoescrevo nada mais fascinante doque uma lista de compras desdeque Jo morreu, talvez isso mesacuda um pouco”. Mas não disse.

Nunca os deixe ver o seu suor, erao lema do clã Noonan. Alguémdeveria esculpir na porta da criptada família, NÃO SE PREOCUPE, EU ESTOU BEM.

Então pensei: ajud el.— Aquela moça precisa de um

amigo — eu disse —, e Jo teriaquerido que eu fosse amigo dela. Jonão gostava quando o pessoalpequeno era pisoteado.

— Você acha?— É.— Ok, vou ver o que posso

descobrir. E Mike... quer que euapareça para esse depoimento nasexta?

— Não. — A palavra saiu

desnecessariamente abrupta e foiseguida por um silêncio que nãoparecia calculado e sim magoado.— Olhe, Harold, meu caseiro disseque a audiência de custódia serámarcada logo. Se ocorrer e vocêainda quiser vir, eu te ligo. Seuapoio moral sempre me será útil,você sabe.

— No meu caso é apoio imoral —replicou, mas pareceu animado denovo.

Nós nos despedimos. Fui até ageladeira de novo e olhei os ímãs.Ainda estavam espalhados, e issofoi uma espécie de alívio. Até osespíritos precisam descansar às

vezes.Peguei o telefone sem fio, saí

para o deck e afundei na cadeiraonde tinha estado na noite do 4 deJulho, quando Devore ligara.Mesmo depois da visita que eutinha recebido de “papai”,dificilmente podia acreditar naquelaconversa. Devore tinha mechamado de mentiroso; eu lhe dissepara enfiar meu número de telefoneno rabo. Havíamos tido um grandecomeço como vizinhos.

Empurrei a cadeira um poucomais para perto da borda do deck,que descia vertiginosamente uns 12metros entre a parte detrás de Sara

e o lago. Procurei a mulher verdeque eu tinha visto enquantonadava, dizendo a mim mesmo quenão fosse idiota — coisas assimpodem-se ver apenas de umângulo, fique 3 metros para umlado ou para o outro e já não hánada para ver. Mas issoaparentemente era um caso daexceção provando a regra. Euestava ao mesmo tempo satisfeitoe um pouco desconfortável aoperceber que a bétula lá embaixojunto à rua também parecia umamulher vista do lado da terra, assimcomo vista do lago. Em partedevido ao pinheiro logo atrás dela

— aquele galho sem folhasprojetando-se para o norte comoum ossudo braço que aponta —,mas não só isso. Daqui detrás, osramos brancos e as folhas estreitasainda formavam uma mulher, equando o vento sacudia as partesinferiores da árvore, o verde e oprateado giravam como saiaslongas.

Eu respondera não ao bem-intencionado oferecimento deHarold antes que fosseinteiramente articulado, e enquantoolhava a mulher-árvore,fantasmagórica por si só, soube porquê: Harold era espalhafatoso,

insensível a nuanças, e poderiaespantar de susto o que quer queestivesse ali. Eu não queria isso.Estava assustado, sem dúvida —em pé naqueles degraus escuros eescutando as pancadas poucoabaixo de mim, eu fiqueitremendamente aterrorizado —,mas também me senticompletamente vivo pela primeiravez em anos. Estava tocando algoem Sara que era inteiramente alémda minha experiência, e isso mefascinava.

O telefone sem fio tocou no meucolo, fazendo-me dar um pulo.Agarrei-o, esperando Max Devore

ou talvez Footman, seu lacaiocoberto de ouro. Mas era umadvogado chamado John Storrow,que parecia ter se formadobastante recentemente na Escolade Direito — tipo semana passada.Mesmo assim, ele trabalhava para afirma de Avery, McLain e Bernstein,na Park Avenue, e Park Avenue éum endereço bastante bom paraum advogado, mesmo um queainda tenha alguns dentes de leite.Se Henry Goldacre tinha dito queStorrow era bom, provavelmenteera. E sua especialidade era lei decustódia.

— Agora me diga o que está

acontecendo aí — disse ele quandoas apresentações terminaram e opano de fundo tinha que seresboçado.

Fiz o melhor que pude, sentindomeu ânimo se erguer enquanto ahistória era desfiada. Há algoestranhamente confortador emconversar com um sujeito da leiquando o relógio das horascobráveis começou a correr; você jáultrapassou o ponto mágico em queum advogado se torna o seuadvogado. Seu advogado écaloroso, solidário, faz anotaçõesnum bloco amarelo e concorda coma cabeça em todos os momentos

certos. A maioria das perguntas queseu advogado faz são perguntas aque você pode responder. E se vocênão puder, por Deus, seu advogadoo ajudará a encontrar um modo defazê-lo. Ele está sempre do seulado. Seus inimigos são os inimigosdele. Para ele, você nunca é merda,sempre tem importância.

Quando terminei, John Storrowdisse:

— Puxa. Estou surpreso de aimprensa não ter pulado em cimadisso.

— Nunca me ocorreu — falei.Mas entendi o que ele queria dizer.A saga da família Devore não era

para o New York Times ou para oBoston Globe, provavelmente nemmesmo para o Derry News, mas emtabloides semanais desupermercado, como o NationalEnquirer ou o Inside View, cairiacomo uma luva: em vez da moça,King Kong resolve arrebatar ainocente filha da moça e levá-lacom ele para o alto do Empire StateBuilding. Argh, entregue essacriança, seu bruto. Não era materialde primeira página nem fotografiascom sangue ou de celebridades nonecrotério, mas como um chamarizna página nove funcionaria muitobem. Compus mentalmente uma

manchete trombeteando sobre asfotos do Warrington’s Lodge e oenferrujado trailer duplo de Mattielado a lado: REI DOS COMPUTADORES VIVE NOLUXO ENQUANTO TENTA TIRAR A FILHA ÚNICA DE

JOVEM BONITA. Provavelmente compridodemais, decidi. Não estava maisescrevendo e ainda precisava deum editor de texto. Isso era muitotriste, quando se pensava arespeito.

— Talvez em algum momentovejamos isso acontecer — disseStorrow num tom divertido. Percebique poderia vir a me afeiçoaràquele sujeito, pelo menos em meupresente estado de espírito raivoso.Ele mostrou-se mais enérgico.

— A quem estou representandoaqui, sr. Noonan? O senhor ou amoça? Aposto que é a moça.

— A moça nem sabe que eu ochamei. Ela pode achar que meintrometi um pouquinho demais. Elapode até me censurar.

— Por que faria isso?— Porque é uma ianque, uma

ianque do Maine, a pior espécie.Num determinado dia, podem fazeros irlandeses parecerem lógicos.

— Talvez, mas é ela que estácom o alvo pendurado na blusa.Sugiro que ligue para ela e lheconte.

Prometi que o faria. Também

não era uma promessa difícil decumprir. Sabia que teria que entrarem contato com Mattie desde quetinha aceitado a intimação doadjunto Footman.

— E quem vai assistir MichaelNoonan na sexta de manhã?

Storrow riu secamente.— Vou encontrar alguém daí

para fazer isso. Ele vai até oescritório de Durgin com o senhor,se sentará quietinho com a pastano colo e vai escutar. Nessemomento, é possível que eu jáesteja na cidade, não vou saber atéfalar com o sr. Devore, mas nãovou ao escritório de Durgin. Quando

a audiência de custódia ocorrer,porém, o senhor verá meu rosto lá.

— Muito bem, ótimo. Liguequando tiver o nome do novoadvogado. Meu outro novoadvogado.

— Certo. Enquanto isso, fale coma moça. Me arranje um trabalho.

— Vou tentar.— Tente também manter-se

visível se estiver com ela — disseele. — Se dermos aos maus sujeitosespaço para se mostraremmaldosos, vão fazer isso. Não hánada assim entre vocês, há? Nadamaldoso? Desculpe ter queperguntar, mas tenho que fazê-lo.

— Não — eu disse. — Há muitotempo não estou metido em nadamaldoso com alguém.

— Fico tentado a lamentar, sr.Noonan, mas nas circunstâncias...

— Mike. Me chame de Mike.— Ótimo. Assim é melhor. Eu sou

John. As pessoas vão falar sobre oenvolvimento de vocês, de qualquermodo. Sabe disso, não é?

— Claro. As pessoas sabem queposso arcar com você. Vãoespecular como é que ela podearcar comigo. Viúva bonita, viúvode meia-idade. Sexo pareceria acoisa mais provável.

— Você é realista.

— Na verdade, não acho quesou, mas sei a diferença entre umfalcão e um serrote.

— Espero que sim, pois a viagempode se tornar dura. Vamos noscolocar contra um sujeitoextremamente rico. — Mesmoassim ele não pareciaamedrontado. Parecia quase...voraz. Como parte de mim se sentiuquando vi que os ímãs na geladeiraestavam novamente num círculo.

— Sei disso.— Na Corte, isso não vai

importar muito, porque há certaquantidade de dinheiro do outrolado. Além disso, o juiz vai estar

bem consciente de que isso é umbarril de pólvora. O que pode serútil.

— Qual é a melhor coisa a nossofavor? — perguntei, ainda pensandono rosto rosado e sem marcas deKyra e sua total falta de medo empresença da mãe. Fiz a perguntapensando que John responderia queas acusações eram nitidamenteinfundadas. Pensei errado.

— A melhor coisa? A idade deDevore. Ele deve ser mais velhoque Deus.

— Baseado no que ouvi no fimde semana, acho que ele deve ter85 anos. Isso mostra que Deus é

mais velho.— É, mas como um pai em

potencial ele faz Tony Randallparecer um adolescente — disseJohn, e agora ele soavapositivamente maldoso. — Pensenisso, Michael: a criança se formano ensino médio no ano em quevovô ultrapassa os 100 anos. Alémdisso, há uma chance de que ovelho tenha errado por quererabarcar o mundo com as pernas.Sabe o que significa guardião adlitem?

— Não.— Basicamente, é um advogado

que a Corte indica para proteger os

interesses da criança. Umaremuneração pelo serviço sai doscustos da Corte, mas é umaninharia. A maioria das pessoas queconcordam em servir comoguardiães ad litem tem motivosestritamente altruísticos... mas nãotodos. De qualquer modo, o adlitem mete sua própria colher nocaso. Juízes não precisam acatar oconselho do sujeito, mas quasesempre o fazem. O juiz ia dar umaimpressão de idiota se rejeitasse oconselho de seu próprio indicado, ea coisa que um juiz mais odeia navida é parecer idiota.

— Devore vai ter seu próprio

advogado?John riu.— Que tal meia dúzia na

presente audiência de custódia?— Está falando sério?— O cara tem 85 anos. É velho

demais para Ferraris, saltos radicaisno Tibete e putas, a não ser queseja um homem poderoso. Ele vaigastar dinheiro em quê?

— Advogados — digo eu,sombrio.

— É.— E Mattie Devore? O que é que

ela tem?— Graças a você, ela tem a mim

— disse John Storrow. — É como

um romance de John Grisham, nãoé? Ouro puro. Enquanto isso, estouinteressado em Durgin, o ad litem.Se Devore não anda esperandoproblemas de verdade, pode tersido pouco esperto o suficiente parapôr a tentação no caminho deDurgin. E Durgin pode ter sidosuficientemente burro para tersucumbido. Ora, quem sabe o quepodemos encontrar?

Mas eu estava uma volta atrás.— Ela tem você. Graças a mim. E

se eu não estivesse aqui parameter minha colher? O que teria elaentão?

— Bubkes. É iídiche. Significa...

— Eu sei o que significa, “nada”— eu disse. — É inacreditável.

— Não, apenas justiçaamericana. Você conhece a senhoracom a balança? A que fica do ladode fora dos tribunais na maioria dascidades?

— Conheço.— Jogue umas algemas naqueles

pulsos largos e fita adesiva em suaboca para combinar com a vendanos olhos, viole-a e arraste-a pelalama. Gosta da imagem? Eu não,mas é uma representação justa decomo a lei funciona nos casos decustódia em que o reclamante érico e o réu, pobre. E a igualdade

sexual, na verdade, a tem deixadomuito pior, pois embora as mãesainda tendam a ser pobres, não sãomais encaradas como a escolhaautomática para a custódia.

— Mattie Devore tem que tervocê, não é?

— É — disse John simplesmente.— Ligue para mim amanhã e digaque ela concordou.

— Espero poder fazê-lo.— Eu também. E ouça, há mais

uma coisa.— O quê?— Você mentiu para Devore ao

telefone.— Besteira!

— Não, não, detesto contradizero autor preferido de minha irmã,mas você mentiu e sabe disso. Vocêdisse a Devore que mãe e filhatinham saído juntas, que a garotaestava colhendo flores e tudoestava bem. Você colocou tudo lá, anão ser Bambi e Tambor.

Eu estava sentado reto emminha cadeira do deck agora.Sentia-me como se tivesse levadouma violenta pancada numaemboscada. Senti também queminha própria esperteza havia sidosobrepujada.

— O que é isso, não, pensemelhor. Eu nunca disse coisa

alguma. Disse a ele que achava.Usei a palavra mais de uma vez.Lembro nitidamente disso.

— Bem, se ele estava gravandoa conversa, você vai teroportunidade de contar quantasvezes a usou.

No início, não respondi. Estavarememorando a conversa que tivecom Devore, recordando o zumbidona linha telefônica, o zumbidocaracterístico de que me lembravaem todos os meus verõesanteriores em Sara Laughs. Aquelebaixo e contínuo mmmmmm tinhasido mais perceptível na noite desábado?

— Acho que talvez pudesse estarsendo gravado — eu disse comrelutância.

— É. E se o advogado de Devorelevar a gravação para o ad litem, oque acha que vai parecer?

— Cauteloso — eu disse. —Talvez como um homem com algo aesconder.

— Ou um homem desfiandolorotas. E você é bom nisso, não é?Afinal de contas, é o que faz paraganhar a vida. Na audiência decustódia, o advogado de Devoreestará apto a mencionar isso. Seele apresentar então uma daspessoas que passaram por vocês

logo depois da chegada de Mattie àcena... uma pessoa testemunhandoque a moça parecia aborrecida eagitada... o que acha que você vaiparecer?

— Um mentiroso — eu disse. —Ah, porra.

— Não tenha medo, Mike.Anime-se.

— O que devo fazer?— Inutilize as armas deles antes

que possam atirar. Conte a Durginexatamente o que aconteceu. Façaconstar do depoimento. Sublinhe ofato de que a meninazinha achavaque estava andando comsegurança. Certifique-se de

mencionar o andar pela linha.Adoro isso.

— Aí, se tiverem uma gravação,vão tocá-la e eu vou parecer umidiota que cada hora conta umahistória diferente.

— Acho que não. Você não erauma testemunha sob juramentoquando falou com Devore, era?Você estava sentado no seu deck ecuidando de suas coisas, assistindoà exibição de fogos de artifício. Derepente, sem quê nem por quê,esse velho estúpido e ranzinza ligapara você. Começa com opalavrório. Você nunca deu seunúmero de telefone a ele, deu?

— Não.— Seu número que não está na

lista.— Não.— E por mais que tenha dito que

era Maxwell Devore, poderia serqualquer um, não é?

— É.— Até o xá do Irã.— Não, o xá do Irã já morreu.— Bem, então o xá do Irã está

fora. Mas poderia ser um vizinhointrometido... ou um brincalhão.

— É.— E você disse o que disse com

todas essas possibilidades emmente. Mas agora que você é parte

de um procedimento oficial daCorte, está dizendo toda a verdadee nada mais que a verdade.

— Pode apostar. — Aquela ótimasensação de meu-advogado tinhame abandonado por um momento,mas voltava agora com força total.

— Não se pode fazer melhor doque dizer a verdade, Mike — dissesolenemente. — Exceto em algunspoucos casos, e este não é umdeles. Estamos entendidos nisso?

— Sim.— Muito bem, terminamos.

Quero ter notícias de você ou deMattie Devore por volta das 11amanhã. Seria melhor que fosse

ela.— Vou tentar.— Se ela recusar, você sabe o

que fazer, não sabe?— Acho que sim. Obrigado, John.— De um modo ou de outro,

vamos nos falar muito em breve —disse ele, e desligou.

Fiquei ali sentado por algumtempo. Empurrei uma vez o botãoque abria a linha do telefone semfio, depois apertei-o de novo parafechá-lo. Eu tinha que falar comMattie, mas não estavasuficientemente pronto ainda. Emvez disso, resolvi dar uma volta.

Se ela recusar, você sabe o que

fazer, não sabe?Claro. Lembrá-la de que não

pode se dar ao luxo de serorgulhosa. Que não pode se dar aoluxo de bancar a ianque completa,recusando a caridade de MichaelNoonan, autor de Sendo dois, Ohomem da camisa vermelha e olivro que logo seria publicado, Apromessa de Helen. Lembrá-la deque poderia ficar com o orgulho oucom a filha, mas provavelmentenão com os dois.

Ei, Mattie escolha uma.

Caminhei quase até o final da

estrada, parando no prado deTidwell com sua bonita vistadescendo até a parte do lago emformato de taça, e além dele até asWhite Mountains. A água sonhavasob um céu enevoado, parecendocinzento quando você inclinava acabeça para um lado, e azul, se ainclinava para o outro. Aquelasensação de mistério estava muitocomigo. A sensação de Manderley.

Mais de quarenta negros haviamse estabelecido aqui na virada doséculo — pousado aqui por umtempo, de qualquer modo —,segundo Marie Hingerman (tambémsegundo Uma história do condado

de Castle e Castle Rock, um tomopesado publicado em 1977, o anodo bicentenário do condado).Negros bastante especiais; amaioria deles bem relacionados; amaioria, talentosos; a maioriaformando um grupo musicalinicialmente chamado The Red-TopBoys, depois Sara Tidwell e depoisapenas Red-Top Boys. Haviamcomprado o prado e uma terra debom tamanho perto do lago de umhomem chamado Douglas Day. Odinheiro fora poupado por mais dedez anos, segundo Sonny Tidwell,que foi quem conseguiu a barganha(como um Red-Top, Son Tidwell

tocara o que ficou conhecido como“guitarra arranhada”).

Tinha havido um tremendoalvoroço na cidade, e até umareunião para protestar pelo“advento desses escurinhos, quechegam numa horda”. As coisastinham se aquietado e tudo ficoubem, como frequentementecostuma ficar. Nunca houve acidade de palhoças que a maioriados habitantes locais tinhaesperado que surgisse na colina deDay (como o prado de Tidwell erachamado em 1900, quando SonTidwell comprou a terra embenefício de seu extenso clã). Em

vez disso, um número dearrumadas cabanas brancasespalhou-se, rodeando umaconstrução mais ampla que poderiater sido feita como um local parareunião de grupo, uma área deensaio ou talvez, em algummomento, uma sala para atuações.

Sara e os Red-Top Boys (àsvezes havia uma Red-Top Girl látambém; a participação na bandaera fluida, mudando com cadaatuação) tocaram por todo o Maineocidental por mais de um ano,talvez quase dois anos. Para cima epara baixo em cidades da linhaocidental — Farmington,

Skowhegan, Bridgton, Gates Falls,Castle Rock, Motton, Fryeburg —ainda se pode encontrar seusvelhos pôsteres de show embazares, celeiros e outros buracos.Sara e os Red-Top Boys eramgrandes favoritos do circuito, e sederam muito bem na TR também, oque nunca me surpreendeu. No finaldas contas, Robert Frost — essepoeta utilitarista e frequentementedesagradável — estava certo: noNordeste dos EUA realmenteacreditamos que boas cercas fazembons vizinhos. Nós grasnamos edepois mantemos uma pazmesquinha, do tipo olhar agudo e

penetrante e boca repuxada parabaixo. “Eles pagam suas contas”,dizemos. “Nunca tive que atirarnum de seus cachorros”, dizemos.“Eles ficam quietos no seu canto”,dizemos, como se isolamento fosseuma virtude. E, claro, a virtudedefinidora: “Eles não aceitamcaridade.”

E, em algum momento, SaraTidwell tornou-se Sara Laughs.

Finalmente, porém, a TR-90 nãodeve ter sido o que desejavam,porque depois de tocar uma ouduas vezes numa feira do condadono final do verão de 1901, o clã semudou. Suas pequenas e

arrumadas cabanas forneceramrenda por meio de aluguéis deverão para a família Day até 1933,quando se queimaram nosincêndios de verão que devastaramos lados leste e norte do lago. Fimda história.

Exceto pela música de Sara, éclaro. Sua música continuara viva.

Levantei da rocha onde estavasentado, estiquei os braços e ascostas e caminhei de volta pelapista, cantando uma de suascanções enquanto andava.

Capítulo Doze

Durante minha caminhada de voltapara a casa, tentei não pensar emabsolutamente nada. Meu primeiroeditor costumava dizer que 85 porcento do que acontece na cabeçade um romancista não é da contadele, uma sensação que nuncaacreditei que estivesse restritasomente a escritores. O supostopensamento mais elevado é, de ummodo geral, altamente

superestimado. Quando o problemaaparece e passos têm que serdados, descubro que geralmente émelhor apenas ficar de lado edeixar os rapazes no porão fazeremseu trabalho. O trabalho realizadoali embaixo é operário, caras nãosindicalizados com muitos músculose tatuagens. O instinto é suaespecialidade, e só transmitemproblemas para o andar de cimapara real ponderação como últimorecurso.

Quando tentei ligar para MattieDevore, aconteceu uma coisa

extremamente peculiar — uma quenão tinha nada a ver comfantasmas, tanto quanto eu podiaperceber. Em vez do ruído de darlinha, quando apertei o botão paraligar o telefone sem fio, obtivesilêncio. Então, exatamente quandopensava que devia ter deixado otelefone no quarto norte fora dogancho, percebi que não era umsilêncio total. Distante como umatransmissão de rádio do espaçosideral, vivo e grasnando como umpato animado, um sujeito com umaboa dose de Brooklyn na vozcantava: “He followed her to schoolone day, school one day, school one

day. Followed her to school oneday, which was again the rule…”

Abri a boca para perguntar quemera, mas, antes que pudesse fazê-lo, uma voz de mulher disse:

— Alô? — Parecia perplexa edesconfiada.

— Mattie? — Em minha confusão,jamais me ocorreu chamá-la dealgo mais formal, como srta. ou sra.Devore. Nem parecia estranho queeu soubesse ser ela baseado numaúnica palavra, ainda que nossaúnica conversa anterior tivesse sidorelativamente breve. Talvez osrapazes do porão reconhecessem amúsica de fundo e fizessem a

conexão com Kyra.— Sr. Noonan? — Ela parecia

mais perturbada que nunca. — Otelefone nem chegou a tocar!

— Devo ter levantado o meuexatamente quando sua chamadafoi feita — falei. — Isso acontece detempos em tempos. — Mas eu meperguntei quantas vezes aconteciaquando a pessoa ligando para vocêera aquela para a qual você mesmoestava planejando ligar? Talvezmuito frequentemente, na verdade.Telepatia ou coincidência? Dequalquer modo, parecia quasemágico. Através da longa sala deestar, olhei nos olhos vidrados de

Bunter, o alce americano, e pensei:Sim, mas talvez este lugar sejamágico agora.

— Talvez — disse ela em dúvida.— Em primeiro lugar, peçodesculpas por ligar, é umapresunção. Seu número não está nalista, eu sei.

Ah, não se preocupe com isso,pensei. Todo mundo tem esse velhonúmero agora. Na verdade, estouaté pensando em colocá-lo nasPáginas Amarelas.

— Eu o tirei de seu arquivo nabiblioteca — continuou, parecendoconstrangida. — É onde trabalho. —Ao fundo, “Mary Had a Little Lamb”

tinha dado lugar a “The Farmer inthe Dell”.

— Tudo bem — eu disse. —Sobretudo porque eu estavatelefonando para você.

— Para mim? Por quê?— Primeiro as damas.Ela deu uma risada breve e

nervosa.— Queria convidá-lo para jantar.

Quer dizer, Ki e eu queremosconvidá-lo para jantar. Eu devia terte convidado antes. O senhor foitremendamente bom conosco nooutro dia. Pode vir?

— Sim — eu disse sem a mínimahesitação. — E te agradeço. Temos

algumas coisas para conversar, dequalquer modo.

Houve uma pausa.— Mattie? Ainda está aí?— Ele o arrastou para isso, não

é? Aquele velho horrível. — Agora avoz dela não soava nervosa, masum tanto desfalecida.

— Bem, sim e não. Você podeargumentar que o destino mearrastou, ou uma coincidência, ouDeus. Eu não estava lá naquelamanhã por causa de Max Devore;estava atrás do indefinívelVillagebúrguer.

Ela não riu, mas sua voz seanimou um pouco, e fiquei

contente. As pessoas que falamdaquele modo morto, sem emoção,são geralmente pessoasassustadas. Que às vezes têm sidocompletamente aterrorizadas.

— Ainda lamento ter te arrastadopara o meu problema. — Achei queela podia começar a se perguntarquem estaria arrastando quemdepois que eu lhe passasseinformações sobre John Storrow, efiquei contente por não ter que teraquela conversa ao telefone.

— De qualquer modo, adoraria irjantar. Quando?

— Essa noite seria muito emcima da hora?

— De modo nenhum.— Maravilha. Mas temos que

comer cedo, para a pequerruchanão dormir em cima da sobremesa.Está bom às seis?

— Está.— Ki vai ficar agitada. Não temos

muita companhia.— Ela não anda perambulando

de novo, anda?Achei que poderia ficar ofendida.

Mas desta vez ela riu.— Minha nossa, não. Toda

aquela confusão no sábado aassustou. Agora ela entra para medizer que está indo do balanço nopátio ao lado para a caixa de areia

nos fundos. Mas tem falado umbocado no senhor. Ela o chama de“aquele homem alto que mecarregô”. Acho que se preocupoucom o fato de o senhor ter ficadozangado com ela.

— Diga a ela que não fiquei —falei. — Não, não. Eu mesmo digo aela. Posso levar alguma coisa?

— Uma garrafa de vinho? —perguntou, um pouco em dúvida. —Ou talvez isso seja muito pomposo,eu ia só fazer hambúrgueres nagrelha e salada de batata.

— Levo uma garrafa de vinhonão pomposa.

— Obrigada — disse ela. — É

uma festa. Nunca temoscompanhia.

Fiquei horrorizado ao descobrirque eu também estava prestes adizer que achava uma festa, meuprimeiro encontro em quatro anos etal.

— Muito obrigado pela gentileza.Ao desligar lembrei-me de John

Storrow aconselhando-me a tentarficar visível quando estivesse comela e a não fornecer material extrapara a fofoca da cidade. Se Mattieia fazer hambúrgueres na grelha,provavelmente estaríamos do ladode fora, onde as pessoas podiamver que estávamos vestidos... pelo

menos na maior parte da noite.Contudo, em algum momento elateria a delicadeza de me convidarpara entrar. Eu então teria adelicadeza de entrar. Admiraria seuquadro de Elvis de veludo naparede, ou suas placascomemorativas de Franklin Mint, oufosse lá o que tivesse comodecoração do trailer; eu deixariaKyra me mostrar seu quarto eexclamaria, admirado, diante desua extraordinária coleção debichinhos de pelúcia e de suaboneca favorita, se fosse preciso.Há todo tipo de prioridades na vida.Algumas seu advogado pode

entender, mas suspeito que outrasele não pode.

— Estou lidando com isso direito,Bunter? — perguntei ao alceempalhado. — Um urro para sim,dois para não.

Estava na metade do caminho docorredor levando à ala norte,pensando apenas numa chuveiradafria quando, atrás de mim, muitosuavemente, ouvi um breve toquedo sino pendurado no pescoço deBunter. Parei com a cabeça de lado,a camisa numa das mãos,esperando que o sino tocasse denovo. Não tocou. Depois de umminuto, desci o resto do corredor

até o banheiro e deslizei para ochuveiro.

O Armazém Lakeview tem umaseleção muito boa de vinhosenfiada num canto — talvez porquenão haja muita demanda local poreles, mas os turistas provavelmentecompram uma boa quantidade — eescolhi uma garrafa de Mondavitinto. Era provavelmente um poucomais cara do que Mattie tinha emmente, mas eu podia arrancar aetiqueta de preço e ela não veria adiferença. Havia uma fila no caixa,sobretudo pessoas com camisetas

úmidas sobre roupas de banho eareia da praia pública grudada naspernas. Enquanto esperava minhavez, meu olho esbarrou nos itens decompra que ficam estocados nocaixa, à espera de um consumidorimpulsivo. Entre eles havia váriasbolsas de plástico com a etiquetaÍMÃS, cada bolsa mostrando odesenho de uma geladeira com asletras magnéticas formando aspalavras VOLTA JÁ. Segundo ainformação dos pacotes, havia doisjogos de consoantes em cada bolsa,

MAIS VOGAIS EXTRAS. Peguei doisconjuntos... e acrescentei umterceiro, achando que a filha de

Mattie Devore provavelmente tinhaa idade certa para o artigo.

Kyra me viu parando na grama emfrente ao pátio da entrada, puloudo deteriorado balancinho ao ladodo trailer, disparou para perto damãe e se escondeu atrás dela.Quando me aproximei dachurrasqueira portátil armada aolado dos degraus da frente deblocos de concreto, a criança quetinha falado comigo tãodestemidamente no sábado eraapenas um olho azul que espiava euma mão rechonchuda agarrando

uma dobra abaixo do quadril dovestido de verão da mãe.

Duas horas, porém, provocarammudanças consideráveis. Enquantoo crepúsculo se aprofundava, Kyrasentou no meu colo na sala dotrailer, escutando cuidadosamente— embora com aturdimentocrescente — eu ler para ela aeternamente fascinante história deCinderela. O sofá onde sentávamostinha um tom de marrom que porlei só pode ser vendido em lojascom descontos, sendo, além disso,extremamente encalombado;mesmo assim me sentienvergonhado por imaginar o que

encontraria no trailer. Na paredeacima e atrás de nós havia umagravura de Edward Hopper —aquela de um solitário balcão dealmoço tarde da noite — e do outrolado da sala, na pequena mesa comtampo de fórmica no canto dacozinha, estava outra da sérieGirassóis de Vincent van Gogh. Maisainda que Hopper, ele parecia emcasa no trailer tamanho duplo deMattie Devore. Eu não sabia porquê, mas era um fato.

— O sapatinho de vidro vai cortaro pezinho dela — disse Ki de ummodo estudado, ponderado.

— De modo nenhum — eu disse.

— O vidro para os sapatinhos eraespecialmente feito no Reino deGrimório. Macio e inquebrável,desde que a gente não dê umagudo enquanto usá-los.

— Eu posso ter um par?— Lamento, Ki — eu disse —,

ninguém mais sabe fazer umsapatinho de vidro. É uma arteperdida, como o aço de Toledo. —Fazia calor no trailer e ela estavaquente contra minha camisa, ondese instalou a parte superior de seucorpo, mas eu não a removeria. Teruma criança em meu colo erafantástico. Do lado de fora, suamãe estava cantando e recolhendo

os pratos da mesa de jogo quetínhamos usado para nossopiquenique. Ouvi-la cantar erafantástico também.

— Continua, continua — disseKyra, apontando para o retrato deCinderela no chão. A garotinhaespiando nervosamente ao lado daperna da mãe tinha desaparecido: azangada menina de vou-pra-praiada manhã de sábado também;havia ali apenas uma sonolentacriança bonita, inteligente econfiante. — Antes que eu nãopossa segurar mais.

— Quer fazer xixi?— Não — respondeu ela,

olhando-me com algum desdém. —Além do mais se diz u-ri-nar. Xixinão é palavra nenhuma, é o queMattie diz. E eu já fui. Mas se vocênão contar rápido essa história, voucair no sono.

— Não se pode apressar históriasmágicas, Ki.

— Vai mais depressa que puder.— Tá. — Virei a página. Lá

estava Cinderela tentando terespírito esportivo, dando adeuspara as irmãs nojentas indo aobaile vestidas como estrelinhasnuma discoteca. — Assim queCinderela se despediu de TammyFaye e Vanna...

— Eram os nomes das irmãs?— Os que eu inventei para elas,

sim. Está bem?— Claro. — Ajeitou-se mais

confortavelmente no meu colo epousou a cabeça no meu peito denovo.

— Assim que Cinderela tinha sedespedido de Tammy Faye eVanna, uma luz brilhante apareceude repente no canto da cozinha.Dela saiu uma linda senhora numvestido prateado. As joias em seucabelo reluziam como estrelas.

— A fada madrinha — disse Kyrataxativamente.

— É.

Mattie entrou levando a meiagarrafa remanescente de Mondavi eos instrumentos escurecidos dochurrasco. Seu vestido de verão erade um vermelho vivo. Usava nospés tênis de cano curto tão brancosque pareciam brilhar na penumbra.Seus cabelos estavam amarradospara trás e embora não fosse adeslumbrante garota country-clubque eu tinha previsto brevemente,era muito bonita. Então ela olhoupara Kyra e para mim, ergueu assobrancelhas e fez um gesto com osbraços. Balancei a cabeça,informando que nenhum de nósdois estava pronto ainda.

Continuei a ler enquanto Mattieia lavar seus poucos utensílios decozinha, ainda cantarolando. Nomomento em que terminou com aespátula, o corpo de Ki assumiraum relaxamento adicional quereconheci logo — ela tinhacapotado. Fechei o Pequenotesouro dos contos de fadas e ocoloquei ao lado de dois livros namesinha de centro — fosse lá o queMattie lia no momento, pensei.Ergui os olhos e a vi olhando paramim da cozinha, e fiz-lhe o sinal deV de vitória.

— Noonan, o vencedor pornocaute técnico no oitavo round —

eu disse.Mattie enxugou as mãos numa

toalha de pratos e se aproximou.— Me dá ela aqui.Em vez disso, levantei-me.— Eu a levo. Para onde?Apontou.— À esquerda.Levei a criança pelo corredor

bastante estreito, obrigando-me ater cuidado para não bater comseus pés num lado e a cabeça nooutro. Ao final do corredor havia umbanheiro, imaculadamente limpo. Àdireita, uma porta fechada queimaginei dar para o quarto queMattie um dia partilhou com Lance

Devore e onde agora dormiasozinha. Se havia um namoradoque passava a noite mesmo de vezem quando, Mattie teve êxito emapagar sua presença do trailer.

Eu me esgueirei cuidadosamentepela porta à esquerda e olhei paraa pequena cama com a colcha rosa,a mesa com a casa de boneca, oretrato da Cidade das Esmeraldasem uma parede, uma placa (feitaem letras adesivas brilhantes) emoutra que dizia CASA KYRA. Devorequeria tirá-la dali, um lugar ondenada estava errado — onde, aocontrário, tudo estavaperfeitamente certo. Casa Kyra era

o quarto de uma garotinha queestava crescendo em harmonia.

— Coloque-a na cama e depoisse sirva de outro copo de vinho —disse Mattie. — Vou pôr o pijamanela e venho conversar com você.Sei que tem coisas para falarcomigo.

— Certo. — Pus Kyra na cama edepois me curvei um pouco mais,querendo dar-lhe um beijo no nariz.Quase desisti, mas, depois,pensando melhor, o fiz mesmoassim. Quando saí do quarto, Mattiesorria, portanto, acho que estavatudo bem.

Eu me servi de um pouco mais devinho, voltei à pequena sala deestar com ele e olhei os dois livrosao lado da coleção de contos defadas de Ki. Sempre tenhocuriosidade de saber o que aspessoas estão lendo; o único insightmelhor sobre elas está no conteúdodos armários dos banheiros, eremexer nos remédios e panaceiasdo anfitrião é malvisto pelaspessoas de bem.

Os livros eram suficientementediferentes para serem qualificadosde esquizoides. Um deles, com ummarcador de carta de baralhoassinalando que três quartos

haviam sido lidos, era a ediçãopopular de Testemunha silenciosa ,de Richard North Patterson. Aplaudiseu bom gosto; Paterson e DeMillesão provavelmente os melhoresromancistas populares atuais. Ooutro, um volume de capa dura dealgum peso, era Contos reunidos deHerman Melville. Tão longe deRichard North Patterson quantopossível. Segundo a tinta roxa edesbotada estampada na espessuradas páginas, aquele livro pertenciaà Biblioteca Comunitária de FourLakes. Era uma pequena e adorávelconstrução de pedra a uns 8quilômetros ao sul de Dark Score

Lake, onde a rota 68 sai da TR eentra em Motton. Onde Mattietrabalhava, imagino. Abri o livro namarcação, outra carta de baralho, evi que ela estava lendo “Bartleby”.

— Não entendo isso — disse elaatrás de mim, assustando-me tantoque quase larguei o livro. — Eugosto dele, é uma história bastanteboa, mas não tenho a mínima ideiado que significa. Mas na outra,agora, já até imaginei quem fez acoisa.

— É um par estranho para serlido paralelamente — falei,colocando-os de volta no lugar.

— O Patterson estou lendo por

prazer — disse Mattie. Entrou nacozinha, olhou rapidamente (e comalgum anseio, pensei) para agarrafa de vinho, então abriu ageladeira e pegou uma jarra derefresco. Na porta da geladeiraestavam as palavras que a filha játinha reunido da bolsa de ímãs: KI eMATTIE e HOHO (Papai Noel, imaginei).— Bem, estou lendo os dois porprazer, eu acho, mas vamos discutir“Bartleby” num pequeno grupo aoqual pertenço. Nós nosencontramos às quintas à noite nabiblioteca. Ainda tenho que ler dezpáginas.

— Um círculo de leitores.

— Ahã. Conduzido pela sra.Briggs. Ela o formou muito antes deeu nascer. É a bibliotecária-chefede Four Lakes, você sabe.

— Sei. Lindy Briggs é cunhada demeu caseiro.

Mattie sorriu.— Mundo pequeno, não é?— Não, o mundo é grande, mas

a cidade é pequena.Ela começou a se apoiar no

balcão com o copo de refresco, masteve outra ideia.

— Por que não sentamos lá fora?Desse modo qualquer um quepassar vai ver que ainda estamosvestidos e que nada está

acontecendo aqui dentro.Olhei para ela, espantado. Ela

me encarou com uma espécie debom humor cínico. Não era umaexpressão que parecia se encaixarmuito em seu rosto.

— Posso ter apenas 21 anos,mas não sou burra — disse. — Eleestá me observando. Sei disso, evocê também, provavelmente. Emoutra noite, poderia ficar tentada adizer foda-se se ele não aguentasseuma piada, mas está mais fresco láfora e a fumaça da churrasqueiravai manter a maior parte dosinsetos longe. Eu o choquei? Sechoquei, desculpe.

— Não, não. — Ela me chocara,um pouco. — Não precisa sedesculpar.

Levamos nossas bebidas para osdegraus não-muito-firmes do blocode concreto de cinzas e sentamoslado a lado em duasespreguiçadeiras. À nossaesquerda, os carvões dachurrasqueira fulguravam num rosasuave na escuridão crescente.Mattie se recostou, colocou a curvagelada do copo brevemente natesta, depois bebeu a maior partedo que tinha sobrado, os cubos degelo batendo contra os dentes comum clique e um chacoalhar. Os

grilos cantavam nos bosques atrásdo trailer e do outro lado daestrada. Mais distante, na rodovia68, eu podia ver as brilhantes luzesfluorescentes brancas por cima dailha de combustível do ArmazémLakeview. O assento de minhacadeira estava um pouco folgado,as tiras trançadas um poucoesfarrapadas, e a velha cadeira seinclinava fortemente para aesquerda, mas não havia nenhumoutro lugar em que eu preferisseestar no momento. A noite serevelou um pequeno e calmomilagre... pelo menos até agora.Ainda tínhamos que falar de John

Storrow.— Fiquei contente que tenha

vindo na terça — disse ela. — Asnoites de terça são difíceis paramim. Estou sempre pensando nojogo de bola lá no Warrington’s. Aessa altura os rapazes estãoescolhendo o equipamento... osbastões, as bases e as máscaras deapanhador, e colocando de volta noarmário do estoque atrás da basedo batedor. Tomando suas últimascervejas e fumando os últimoscigarros. Foi lá que conheci meumarido, você sabe. Tenho certezade que já lhe contaram tudo.

Não conseguia ver nitidamente

seu rosto, mas podia ouvir o tênuetoque de amargura que seintroduziu em sua voz, e imagineique ainda exibia a expressão cínica.Esta era velha demais para Mattie,mas concluí que a garota tinhachegado a ela de modo bastantehonesto. Contudo, se não tivessecuidado, aquilo podia se enraizar ecrescer.

— Ouvi uma versão de Bill, sim,o cunhado de Lindy.

— Nossa história é distribuída avarejo. Pode-se consegui-la noarmazém, ou no Village Café, ou naoficina daquele velho falastrão...que meu sogro resgatou do

Western Savings, por falar nisso.Ele interferiu pouco antes que obanco pudesse executar a dívida.Agora, Dickie Brooks e seuscamaradas acham que Max Devoreé Jesus em carne e osso. Esperoque você tenha tido uma versãomais justa do sr. Dean do que tevena oficina. Deve ter tido, ou nãoteria se arriscado a comerhambúrgueres com Jezebel.

Queria me afastar daquilo, sepudesse — sua raiva eracompreensiva, mas inútil. Claro quepara mim era mais fácil ver isso;não era minha filha que tinha sidotransformada no lenço amarrado no

centro da corda de um cabo deguerra.

— Ainda jogam softbol noWarrington’s? Apesar de Devore tercomprado o lugar?

— Jogam, sim. Ele vai ao campoem sua cadeira de rodasmotorizada toda terça à noite eassiste ao jogo. Há outras coisasque tem feito desde que voltoupara cá que são apenas umatentativa de comprar a boa opiniãoda cidade, mas acho que gostagenuinamente dos jogos de softbol.A tal mulher, Whitmore, tambémvai. Leva um tanque de oxigênioextra num pequeno carrinho de

mão vermelho com um pneu delateral branca na frente. Guardatambém uma luva de interceptadorali, caso algum arremesso de faltapasse por cima da barreira echegue até onde ele fica. Ele pegouum quase no começo da estação,eu soube, e recebeu uma ovação depé dos jogadores e do pessoal quetinha vindo assistir.

— Ir aos jogos o põe em contatocom o filho, não é?

Mattie sorriu com desânimo.— Não acho que Lance chegue a

passar pela cabeça dele, nãoquando está no campo. Eles jogamduramente em Warrington,

deslizam para a base com os péslevantados, pulam em cima dearbustos espinhosos para apanharbolas altas, xingam um ao outroquando fazem algo errado, e édisso que o velho Max Devoregosta, é por isso que nunca perdeum jogo de terça à noite. Gosta devê-los deslizar e levantarsangrando.

— É como Lance jogava?Ela pensou cuidadosamente a

respeito.— Ele jogava duro, mas não era

doido. Estava lá apenas para sedivertir. Todos nós estávamos. Nós,mulheres... merda, nós, garotas, a

mulher de Barney Therriault, Cindy,tinha apenas 16 anos... ficávamosatrás da barreira do lado daprimeira base, fumando cigarros ousacudindo pompons para manter osinsetos longe, animando nossosrapazes quando faziam algo bom,rindo quando faziam algo idiota.Dividíamos refrigerantes ou umalata de cerveja. Eu adorava osgêmeos de Helen Geary e elabeijava Ki debaixo do queixo atéque ela risse. Às vezes descíamosaté o Village Café depois, Buddyfazia pizzas e os perdedorespagavam. Todos amigos de novo,você sabe, depois do jogo.

Ficávamos sentados lá, rindo,berrando e soprando os invólucrosdos canudos em torno, alguns dosrapazes meio de pileque, masninguém mau. Naquela época elesdeixavam toda a maldade nocampo de jogo. E sabe de umacoisa? Nenhum deles veio mevisitar. Nem Helen Geary, que eraminha melhor amiga. Nem RichieLattimore, que era o melhor amigode Lance; os dois conversavamsobre rochas, pássaros e os tipos deárvores que havia do outro lado dolago por horas a fio. Eles vieram aofuneral e por algum tempo depois,e então... sabe como foi? Quando

eu era garota, nosso poço secou.Por algum tempo, a genteconseguia um fio d’água quandoabria a torneira, mas depois haviasó ar. Só ar. — O cinismo tinhasumido e havia apenas mágoa emsua voz. — Vi Helen no Natal, eprometemos nos reunir para oaniversário dos gêmeos, mas nuncafizemos isso. Acho que ela está commedo de se aproximar de mim.

— Por causa do velho?— Quem mais? Mas, tudo bem, a

vida continua. — Ela se endireitou,bebeu o resto do refresco e pôs ocopo de lado. — E você, Mike?Voltou para escrever um livro? A TR

vai ser conhecida através de você?— Aquele era o bon mot local queeu lembrava com uma quasedolorosa ferroada de nostalgia.Dizia-se que os habitantes locaiscom grandes planos batizariam aTR com seu nome.

— Não — eu disse, e então fiqueiperplexo ao dizer: — Não faço maisisso.

Acho que esperava que ela desseum pulo, derrubando a cadeira eemitindo um grito curto de negaçãohorrorizada. Tudo isso diz bastantea meu respeito, suponho, e coisasnada lisonjeiras.

— Você se aposentou? —

perguntou ela, parecendo calma enotavelmente pouco horrorizada. —Ou é um bloqueio de escritor?

— Bem, certamente não é umaaposentadoria escolhida. — Percebique a conversa tinha tomado umrumo divertido. Eu tinha ido antesde tudo para lhe vender a ideia deJohn Storrow, enfiar John Storrowpor sua garganta abaixo, se fossepreciso, e em vez disso estava, pelaprimeira vez, discutindo minhaincapacidade de trabalhar. Pelaprimeira vez com alguém.

— Então é um bloqueio.— Eu costumava pensar isso,

mas agora não tenho certeza. Acho

que os romancistas vêm equipadoscom certo número de histórias paracontar... São construídas dentro dosoftware. E quando elasdesaparecem, desaparecem.

— Duvido — disse Mattie. —Talvez você escreva, agora queestá aqui. Talvez você tenhavoltado em parte por isso.

— Talvez tenha razão.— Está com medo?— Às vezes. Sobretudo a respeito

do que farei no resto da minhavida. Não sei fazer barcos dentro degarrafas e era minha mulher quemtinha jeito com as plantas.

— Também tenho medo — disse

ela. — Um medo danado. O tempointeiro agora, parece.

— De que ele ganhe a custódia?Mattie, é isso que eu...

— O caso da custódia é só umaparte — falou. — Tenho medo só deficar aqui, na TR. Começou bemcedo neste verão, muito depois deeu saber que Devore pretendialevar Ki para longe de mim, sepudesse. E está ficando pior. Decerto modo, é como observarnuvens carregadas de chuva seamontoando sobre New Hampshiree então se empilharem acima dolago. Não posso colocar a coisa demodo melhor, a não ser... — Ela se

moveu, cruzando as pernas e entãose curvando para a frente parapuxar a saia para a canela, como seestivesse com frio. — A não ser queacordei várias vezes ultimamentecom a certeza de que não estavasozinha no quarto. Uma vez, tive acerteza de que não estava sozinhana cama. Às vezes é só umasensação, como uma dor decabeça, só que nos nervos, e àsvezes acho que ouço um sussurroou um choro. Uma noite fiz umbolo, cerca de duas semanas atrás,e me esqueci de guardar a farinha.No dia seguinte o barrilzinho estavavirado e a farinha estava espalhada

pela bancada da cozinha. Alguémtinha escrito “olá” nela. No iníciopensei que fosse Ki, mas ela disseque não. Além disso, não era aletra dela, a dela é maisdesordenada. Não sei nem se Kyrapoderia escrever olá. Oi, talvez,mas... Mike, você acha que elepoderia mandar alguém para tentarme assustar, acha? Quer dizer, issoé só bobagem, não é?

— Não sei — respondi. Penseiem algo dando pancadas nomaterial isolante na escuridãoenquanto estava em pé na escada.Pensei no OI formado com ímãs naporta de minha geladeira e numa

criança soluçando no escuro. Sentiminha pele mais fria; dava aimpressão de estar entorpecida.Uma dor de cabeça nos nervos,aquilo era bom, era exatamentecomo a gente se sentia quandoalgo esticava a mão além domundo real e tocava a gente nanuca.

— Talvez sejam fantasmas —disse ela, e sorriu de um modoincerto, mais assustado quedivertido.

Abri a boca para lhe contar o quevinha acontecendo comigo em SaraLaughs e fechei-a novamente.Havia uma nítida escolha a ser feita

ali: podíamos derivar para umadiscussão sobre a paranormalidadeou podíamos voltar ao mundovisível. Aquele em que Max Devoretentava roubar uma criança.

— É — eu disse. — Os espíritosestão prestes a falar.

— Gostaria de poder ver seurosto melhor. Tinha alguma coisanele agora. O que era?

— Não sei — respondi. — Masneste exato momento acho que émelhor falarmos de Kyra. Certo?

— Tudo bem. — No tênue fulgorda churrasqueira, eu podia vê-laacomodando-se na cadeira, comose para receber um golpe.

— Fui intimado a dar umdepoimento em Castle Rock nasexta-feira. Diante de Elmer Durgin,que é o guardião ad litem de Kyra...

— Aquele sapo pomposo não énada de Kyra! — explodiu ela. —Está no bolso de meu sogro,exatamente como Dickie Osgood, ocorretor imobiliário favorito dovelho Max! Dickie e Elmer Durginbebem juntos no Mellow Tiger, oupelo menos faziam isso até queesse negócio começou. Entãoalguém provavelmente disse a elesque aquilo não ficava bem e elespararam.

— Os papéis foram entregues por

um adjunto chamado GeorgeFootman.

— Apenas mais um dos suspeitoshabituais — disse Mattie numa vozfraca. — Dickie Osgood é umaserpente, mas George Footman éum cão que toma conta do lixo. Elefoi suspenso de seu trabalho de tirapor duas vezes. Mais uma vez e vaipoder trabalhar para Max Devoreem tempo integral.

— Bem, ele me assustou. Tenteinão mostrar isso, mas ele meassustou. E as pessoas que meassustam me deixam zangado.Liguei para meu agente em NovaYork e contratei um advogado. Um

especializado em custódia infantil.Tentei ver como ela estava

recebendo aquilo e não consegui,embora estivéssemos sentadosbastante próximos. Mas ela aindamostrava aquele olhar fixo, comouma mulher que espera receberalguns golpes duros. Ou talvez paraMattie os golpes já tinhamcomeçado a ser desfechados.

Lentamente, não me permitindocorrer, contei minha conversa comJohn Storrow. Enfatizei o queStorrow tinha dito sobre igualdadesexual — que provavelmente seriauma força negativa em seu caso,tornando mais fácil para o juiz

Rancourt levar Kyra embora.Também sublinhei fortemente queDevore poderia ter todos osadvogados que quisesse — semmencionar testemunhas solidárias,com Richard Osgood correndo pelaTR e espalhando a grana de Devore—, mas que o tribunal não eraobrigado a tratá-la como umacasquinha de sorvete. Termineidizendo-lhe que John queria falarcom um de nós no dia seguinte às11, e que deveria ser ela. Entãoesperei. O silêncio caiu, quebradoapenas por grilos e pelo tênuemovimento de algum ruidosocaminhão de criança. Na rota 68, as

lâmpadas fluorescentes brancasapagaram-se quando o mercado deLakeview fechava outro dia decomércio de verão. Eu não gostavada quietude de Mattie; parecia oprelúdio de uma explosão. Umaexplosão ianque. Tentei ficar calmoe esperei que me perguntasse oque é que me dava o direito de seintrometer em seus assuntos.

Quando finalmente falou, sua vozera baixa e derrotada. Magoavaouvi-la falar daquele modo, mas, damesma forma que a expressãocínica no rosto anteriormente, nãoera de surpreender. E endureci-mecontra ela o melhor que pude. Ei,

Mattie, o mundo é duro. Faça suaescolha.

— Por que é que você faria isso?— perguntou ela. — Por quecontrataria um advogado caro deNova York para assumir o meucaso? É isso que está oferecendo,não é? Tem que ser, porque eucertamente não posso contratá-lo.Recebi 30 mil dólares do seguroquando Lance morreu, e tive sortepor isso. Foi uma apólice que eletinha comprado de um dos amigosde Warrington, quase como umabrincadeira, mas sem ela eu teriaperdido o trailer no invernopassado. Eles podem adorar Dickie

Brooks no Western Savings, masnão dão nada por Mattie StanchfieldDevore. Depois dos impostos,ganho cerca de cem dólares porsemana na biblioteca. Portanto,você está se oferecendo parapagar. Certo?

— Certo.— Por quê? Você nem nos

conhece.— Porque... — Calei-me.

Lembrei-me de querer que Jointerferisse naquele momento,pedindo à minha mente quefornecesse a voz dela para que eupudesse passá-la à Mattie atravésda minha. Mas Jo não apareceu. Eu

estava num voo solo.— Porque agora eu não realizo

nada que faça diferença — eu dissefinalmente, e mais uma vez aspalavras me deixaram atônito. — Ee u conheço você. Já comi suacomida, li uma história para Ki e eladormiu no meu colo... e talvez eutenha salvo a vida dela no outro diaquando a tirei da estrada. Nuncavamos saber ao certo, mas talvezeu a tenha salvo. Você sabe o queos chineses dizem a respeito disso?

Eu não esperava uma resposta, apergunta era mais retórica do quereal, mas ela me surpreendeu. Enão pela última vez.

— Se você salva a vida dealguém, é responsável por ela.

— É. É também sobre o que éjusto e o que é certo, mas pensoque é principalmente sobre quererparticipar de algo onde faço adiferença. Olho para trás, paraesses quatro anos desde que minhamulher morreu, e não vejo nadaneles. Nem mesmo um livro ondeMarjorie, a tímida datilógrafa,conhece o belo estranho.

Ela ficou ali pensando,observando um caminhãocarregado de polpa de madeirapassar na rodovia, com os faróisofuscantes e sua carga de toras

oscilando de um lado para o outrocomo os quadris de uma mulheracima do peso.

— Não se prenda a nós — disseela. — Não nos apoie como eleapoia seu time-da-semana nocampo de softbol. Sei que precisode ajuda, mas não vou permitirisso. Não vou aguentar isso. Nãosomos um jogo, Ki e eu. Estáentendendo?

— Perfeitamente.— Sabe o que as pessoas na

cidade vão dizer, não é?— Sei.— Sou uma moça de sorte, não

sou? Primeiro me caso com o filho

de um homem extremamente rico,e depois que ele morre, caio sob aasa protetora de outro cara rico. Aseguir provavelmente vou morarcom Donald Trump.

— Corta essa.— Provavelmente eu mesma

acreditaria nisso, se estivesse dooutro lado. Mas fico pensando sealguém nota que a sortuda Mattieainda está morando num trailervelho e não pode arcar com umplano de saúde. Ou que sua filharecebeu a maioria das vacinas deum posto de saúde do condado.Meus pais morreram quando eutinha 15 anos. Tenho um irmão e

uma irmã, mas os dois são muitomais velhos e moram em outroestado. Meus pais eram bêbados,não nos maltratavam fisicamente,mas de diversos outros modos. Eracomo crescer num... motel debaratas. Meu pai era lenhador,minha mãe uma esteticista douísque cuja única ambição era terum Cadillac cor-de-rosa. Ele seafogou no lago Kewadin. Ela seafogou no próprio vômito cerca deseis meses depois. Gostou, atéagora?

— Não muito. Desculpe.— Depois do funeral de mamãe,

meu irmão Hugh se ofereceu para

me levar de volta para RhodeIsland, mas percebi que sua mulhernão estava exatamente encantadade ter uma garota de 15 anos nafamília, e não a censuro por isso.Além disso, eu tinha acabado deentrar para a turma de animadorasde torcida do colégio. Isso pareceuma besteira total agora, masnaquele momento era algo muitoimportante.

Claro que tinha sido um negóciomuito importante, especialmentepara a filha de alcoólatras. A únicaque ainda morava em casa. Seresse último filho, assistindo àdoença enfiar as garras nos pais,

pode ser uma das situações maissolitárias no mundo. O último a sairdo maldito bar, por favor, apague aluz.

— Acabei indo morar com minhatia Florence, a apenas 3quilômetros de distância naestrada. Levamos umas trêssemanas para descobrir que nãogostávamos muito uma da outra,mas fizemos a coisa funcionar pordois anos. Então, entre o primeiro eo último ano do ensino médio,consegui um emprego de verão noWarrington’s e conheci Lance.Quando ele me pediu emcasamento, tia Flo recusou-se a dar

permissão. Quando eu disse a elaque estava grávida, ela meemancipou, portanto, não preciseida permissão.

— Você abandonou o colégio?Ela fez uma careta e concordou

com a cabeça.— Eu não queria passar seis

meses com as pessoas meassistindo inchar como um balão.Lance me apoiou. Disse que eupoderia fazer a prova deequivalência. Eu fiz isso no anopassado. Foi fácil. E agora Ki e euestamos sozinhas. Mesmo queminha tia concordasse em meajudar, o que poderia fazer? Ela

trabalha na fábrica Gore-Tex, deCastle Rock, e ganha uns 16 mildólares por ano.

Concordei com a cabeçanovamente, pensando que meuúltimo cheque de direitos autoraisfranceses fora aquela quantia. Meuúltimo cheque trimestral. Então melembrei de algo que Ki tinha mecontado no dia em que eu aconheci.

— Quando eu estava carregandoKyra para fora da estrada, ela disseque se você estivesse zangada, elaia para sua vó branca. Se o seupessoal morreu, a quem ela... — Sóque eu não precisava perguntar, na

verdade, precisava apenas fazeruma ou duas conexões. — RogetteWhitmore é a vó branca? Aassistente de Devore? Mas issosignifica...

— Que Ki tem estado com eles. Éverdade. Até o final do mêspassado, eu permitia que elavisitasse o avô... e Rogette porassociação, é claro, com muitafrequência. Uma ou duas vezes porsemana, e às vezes para passar ànoite. Ela gosta de seu “papaibranco”, pelo menos gostava noinício, e ela simplesmente adoraaquela mulher sinistra. — Acho queMattie estremeceu na penumbra,

embora a noite ainda estivessemuito tépida.

— Devore ligou para dizer queestava vindo ao leste para o funeralde Lance e perguntar se podia ver aneta enquanto estivesse aqui.Simpático como uma ovelhinha,exatamente como se jamais tivessetentado me comprar para que eulargasse Lance quando este lhecontou que íamos nos casar.

— Ele tentou?— É. A primeira oferta foi de 100

mil dólares. Isso foi em agosto de1994, depois que Lance ligou paraele para dizer que íamos casar emmeados de setembro. Eu não

comentei a coisa. Uma semanadepois, a oferta subiu para 200 mil.

— Em troca de que, exatamente?— De recolher minhas garras de

puta e me mudar para um endereçodesconhecido. Desta vez eu conteia Lance, e ele se enfureceu. Ligoupara o velho e disse que íamoscasar, querendo ele ou não. E dissea Devore que se quisesse ver aneta algum dia teria que parar comaquela besteira e se comportar.

Com outro pai, pensei,provavelmente seria a respostamais razoável que Lance poderiater dado. Eu o respeitava por isso.O único problema era que ele não

estava lidando com um homemrazoável, estava lidando com osujeito que, quando criança,roubara o trenó novo de ScooterLarribee.

— Essas ofertas foram feitas pelopróprio Devore, ao telefone. Asduas quando Lance não estava porperto. Então, uns dez dias antes docasamento, recebi a visita de DickieOsgood. Eu devia ligar para umnúmero em Delaware, e quando ofiz... — Mattie balançou a cabeça.— Você não vai acreditar. Pareceque saiu de um de seus livros.

— Posso dar um palpite?— Se quiser.

— Ele tentou comprar a criança.Tentou comprar Kyra.

Seus olhos se arregalaram. Umalua magra havia surgido e pude vermuito bem sua expressão desurpresa.

— Quanto? — perguntei. — Estoucurioso. Quanto para você dar à luz,deixar a neta de Devore com Lancee então sumir?

— Dois milhões de dólares —murmurou ela. — Depositados nobanco de minha escolha, contantoque fosse a oeste do Mississipi eque eu assinasse um acordo parame manter longe de Kyra, e deLance, até pelo menos 20 de abril

de 2016.— O ano em que Ki faz 21 anos.— É.— E Osgood não conhece

nenhum dos detalhes, portanto asmãos de Devore continuam limpasaqui na cidade.

— Sim. E os dois milhões foramapenas o começo. Haveria ummilhão adicional no quinto, nodécimo, no décimo quinto e novigésimo aniversário de Ki. — Elabalançou a cabeça como se nãoacreditasse. — O linóleo continuafazendo bolhas na cozinha, o bocaldo chuveiro continua caindo nabanheira e atualmente todo o

maldito trailer tomba para o lado,mas eu poderia ter sido a mulherde 6 milhões de dólares.

Chegou a pensar em aceitar aoferta, Mattie?, eu me perguntei...Mas era uma pergunta que eujamais faria, um sinal decuriosidade tão pouco convenienteque não merecia nenhumasatisfação.

— Você contou a Lance?— Tentei não contar. Ele estava

sempre furioso com o pai, e eu nãoqueria tornar as coisas piores. Eunão queria tanto ódio no começo donosso casamento, por mais quehouvesse boas razões para isso... e

não queria que Lance... depoiscomigo, você sabe... — Ela levantouas mãos, depois as deixou cair atéas coxas. O gesto foi ao mesmotempo desanimado eestranhamente cativante.

— Você não queria Lance virandopara você dez anos depois edizendo “Você interferiu entre meupai e eu, sua vaca.”

— Alguma coisa assim. Mas nofinal não pude guardar aquilocomigo. Eu era apenas uma meninado interior, só tive uma meia-calçaaos 11 anos, usava o meu cabelocom tranças ou um rabo de cavaloaté os 13, pensava que todo o

estado de Nova York era a cidadede Nova York... e esse cara... essepai fantasma... tinha me oferecido6 milhões de dólares. Aquilo meaterrorizou. Eu sonhava com eleentrando durante a noite como umtroll e roubando meu bebê doberço. Ele viria ziguezagueandopela janela como uma cobra...

— Arrastando seu tanque deoxigênio com ele, sem dúvida.

Ela sorriu.— Na época, eu não sabia do

oxigênio. Ou de Rogette Whitmore.Só estou tentando dizer que eutinha só 17 anos e não era nadaboa em guardar segredos. — Tive

que refrear meu próprio sorriso pelomodo como ela disse aquilo, comose décadas de experiência seestendessem agora entre aquelacriança ingênua e assustada e estamulher madura com seu diplomapor correspondência.

— Lance ficou zangado.— Tão zangado que respondeu

ao pai por e-mail em vez de ligar.Ele gaguejava, sabe, e quanto maisaborrecido ficava, pior ficava agagueira. Uma conversa ao telefoneteria sido impossível.

Agora, finalmente, eu achavaque tinha um quadro claro. LanceDevore tinha escrito ao pai uma

carta impensável — quer dizer,impensável se você fosse MaxDevore. A carta dizia que Lance nãoqueria nunca mais saber do pai, eMattie também não. Ele não seriamais bem-vindo na casa deles (ovelho trailer não era bem o humildechalé de lenhador da história dosIrmãos Grimm, mas estava bempróximo). Ele também não seriabem-vindo para visitá-los depois donascimento do bebê, e se tivesse aaudácia de mandar um presentepara a criança, cedo ou tarde, talpresente seria devolvido. Fiquelonge da minha família, papai.Dessa vez você foi longe demais

para ser perdoado.Sem dúvida nenhuma há modos

diplomáticos de se lidar com umfilho ofendido, alguns sábios ealguns astuciosos... mas faça a simesmo a seguinte pergunta: parainício de conversa, um paidiplomático teria se metido numasituação dessas? Um homem comum mínimo insight da naturezahumana teria oferecido à noiva dofilho uma recompensa (tãogigantesca que provavelmente tevepouco sentido ou significadoconcreto para ela) a fim de quedesistisse de seu primogênito? Eletinha oferecido essa barganha do

diabo a uma menina-mulher de 17anos, uma idade em que a visãoromântica da vida estáabsolutamente em maré alta. Senão fosse por outra coisa, Devoredeveria ter esperado antes de fazersua oferta final. Pode-seargumentar que ele não sabia sepodia esperar, mas isso não seriaum argumento convincente. Acheique Mattie tinha razão — bem nofundo daquela velha e enrugadaameixa seca que lhe servia decoração, Max Devore achava que iaviver para sempre.

No final, ele não conseguira serefrear. Houve o trenó que desejou,

o trenó que simplesmente teve queobter, do outro lado da janela.Tudo o que teve que fazer foiquebrar o vidro e pegá-lo. Vinhafazendo isso toda a sua vida, eassim não reagiu astuciosamenteao e-mail do filho, como um homemcom sua idade e capacidadedeveria ter feito, mas furiosamente,como a criança teria feito se o vidrona janela do galpão tivesse semostrado imune a seus punhos demartelo. Lance não queria que semetesse? Ótimo! Pois podia vivercom sua Daisy Duke numa tenda,trailer ou na porcaria de umestábulo. Podia desistir também do

confortável trabalho de supervisor eencontrar um emprego verdadeiro.Ver como o outro lado vivia!

Em outras palavras, você nãopode me largar, filho. Você estádespedido.

— Não caímos nos braços um dooutro no funeral — disse Mattie —,não pense uma coisa dessas. Masele foi decente comigo, o que eunão esperava, e tentei ser decentecom ele. Ofereceu uma mesada,que recusei. Tive medo de quepudesse haver ramificações legais.

— Duvido, mas gosto de suacautela. O que aconteceu quandoele viu Kyra pela primeira vez,

Mattie? Você lembra?— Jamais esquecerei daquilo. —

Ela enfiou a mão no bolso dovestido, encontrou um maço decigarros amarrotado e sacudiu umdeles para fora. Olhou-o com umamistura de cobiça e desgosto. —Larguei o cigarro porque Lancedisse que não podíamos realmentenos dar a esse luxo, e eu sabia quetinha razão. Mas o hábito continuavoltando. Só fumo um maço porsemana, e sei muito bem quemesmo assim é muito, mas àsvezes preciso de consolo. Quer um?

Balancei a cabeçanegativamente. Ela acendeu o

cigarro e, à chama momentânea dofósforo, seu rosto não estava maisbonito. O que teria o velho feito aela?, pensei.

— Ele viu a neta pela primeiravez ao lado de um carro fúnebre —disse Mattie. — Estávamos na casafunerária de Dakin, em Motton. Erao velório. Sabe o que é isso?

— Ah, sim — eu disse, pensandoem Johanna.

— O caixão estava fechado, masmesmo assim ainda chamam issode velar. Esquisito. Saí para fumarum cigarro. Disse a Ki que sentassena escada do salão da casafunerária para que não respirasse a

fumaça e me afastei um pouco nocaminho. Então uma grandelimusine parou. Nunca tinha vistonada parecido antes, a não ser naTV. Soube imediatamente quemera. Coloquei os cigarrosnovamente na bolsa e chamei Kipara perto de mim. Ela veioandando pelo caminho naquelahesitação de criança e pegou minhamão. A porta da limusine se abriu eRogette Whitmore saiu dela. Tinhauma máscara de oxigênio na mão,mas ele não precisou dela, pelomenos naquele momento. Devoresaiu a seguir. Um homem alto, nãotão alto quanto você, Mike, mas

alto, de terno cinza e sapatospretos brilhantes como espelhos.

Ela fez uma pausa, pensando. Ocigarro ergueu-se brevemente atésua boca e depois abaixou-se até obraço de sua cadeira, um vaga-lume vermelho no débil luar.

— Primeiro ele não disse nada. Amulher tentou pegar seu braço eajudá-lo a subir os três ou quatrodegraus da estrada até o caminho,mas ele se desvencilhou dela. Veiosozinho até onde estávamos,embora eu pudesse ouvir seu peitochiando. Era o som de umamáquina precisando de óleo. Nãosei quanto ele pode caminhar

agora, mas provavelmente não émuito. Aqueles poucos degrausacabaram com ele, e isso foi háquase um ano. Ele me olhou por umou dois segundos e depois securvou para a frente com as mãosgrandes, velhas e ossudas nosjoelhos. Olhou para Kyra e ela oolhou.

Sim. Eu podia ver a coisa... não acores, não como a imagem de umafoto. Eu a vi como uma xilogravura,apenas mais uma sombriailustração dos Contos de fadas deGrimm. A garotinha levanta osolhos arregalados para o velho rico— um dia o garoto que tinha

deslizado triunfantemente numtrenó roubado, agora, no outroextremo da vida, e apenas mais umsaco de ossos. Em minhaimaginação, Ki usava uma jaquetacom capuz e a máscara de vovôDevore estava ligeiramente delado, permitindo-me ver os tufos dopelo de lobo por baixo dela. Queolhos grandes o senhor tem, vovô,que nariz grande o senhor tem,vovô, e que grandes dentestambém.

— Ele a levantou. Não sei quantoprecisou se esforçar para isso, masele o fez. E, o que foi maisestranho, Ki deixou que ele a

levantasse. Era um completoestranho para ela, e os velhossempre parecem assustar criançaspequenas, mas ela deixou que alevantasse. “Sabe quem sou eu?”,perguntou ele. Ela balançou acabeça, mas pelo modo como oolhava... era quase como sesoubesse. Você acha isso possível?

— Acho.— Ele disse: “Sou o seu vovô.” E

eu quase a puxei para mim, Mike,porque tive uma impressãomaluca... não sei...

— De que ele ia comê-la?O cigarro parou na frente de sua

boca. Seus olhos estavam muito

abertos.— Como é que sabe? Como pode

saber disso?— Porque na minha imaginação

isso parece um conto de fadas.Chapeuzinho Vermelho e o VelhoLobo Cinzento. O que é que ele fezentão?

— Ele a comeu com os olhos.Desde então a ensinou a jogardamas e outros jogos. Ela temapenas 3 anos, mas ele a ensinou asomar e a diminuir. Ela tem seupróprio quarto no Warrington’s eseu próprio computadorzinho lá, eDeus sabe o que ele a temensinado a fazer com aquilo... mas

naquela primeira vez ele apenas aolhou. Foi o olhar mais faminto quejá vi na minha vida.

“E ela devolveu o olhar. Nãopode ter sido mais de dez ou vintesegundos, mas pareceu durar parasempre. Então ele tentou entregá-la novamente a mim. Mas tinhausado toda a sua força, e se eu nãoestivesse ali para pegá-la, acho queele a teria deixado cair no caminhode cimento. Ele cambaleou umpouco, e Rogette Whitmore passouum braço à sua volta. Então Devorepegou a máscara de oxigênio, tinhauma pequena garrafa de ar ligada aela num elástico, e a colocou sobre

a boca e o nariz. Umas duasrespiradas e ele pareceu mais oumenos bem de novo. Ele a devolveua Rogette e realmente pareceu mever pela primeira vez. E disse:‘Tenho sido um idiota, não é?’Respondi: ‘Tem, sim, senhor.’Lançou-me um olhar muito sombrioquando eu disse isso. Acho que sefosse cinco anos mais novo, teriame batido por causa daquilo.”

— Mas não era, e não bateu.— Não. Disse: “Quero entrar.

Você me ajuda a fazer isso?”Respondi que ajudava. Subimos aescada da casa funerária comRogette de um lado dele, eu do

outro e Kyra andando atrás. Senti-me como uma moça de harém. Nãoera uma sensação muito agradável.Quando entramos no vestíbulo, elesentou para recobrar a respiração etomar um pouco mais de oxigênio.Rogette virou-se para Kyra. Achoque aquela mulher tem uma caraassustadora, lembra uma pintura...

— O grito? Aquela de Munch?— Tenho quase certeza de que é

essa. — Ela deixou cair o cigarro,fumado quase até o filtro, e pisounele, esmagando-o no chãopontilhado de pedras com seu tênisbranco. — Mas Ki não teve nem umpouco de medo dela. Nem naquela

hora nem depois. Ela se curvoupara Kyra e disse: “O que é querima com gato?” E Kyra respondeu:“Pato!”, imediatamente. Mesmo aos2 anos ela adorava rimas. Rogettepegou um chocolate dentro dabolsa e puxou-o para fora. Ki meolhou para ver se podia pegá-lo eeu disse: “Está bem, mas só um, enão quero ver nenhum pingo delena sua roupa.” Ki colocou ochocolate na boca e sorriu paraRogette, como se tivessem sidosempre amigas. Nessa alturaDevore tinha recuperado o fôlego,mas parecia cansado, o homemmais cansado que já vi na vida. Ele

me lembrou de algo na Bíblia, decomo nos dias de nossa velhicedizemos que não temos nenhumprazer na vida. Meu coraçãoamoleceu por ele. Talvez Devoretenha notado isso, pois estendeu amão e pegou a minha. Disse: “Nãofeche sua porta para mim.” Enaquele momento pude ver Lanceno rosto dele. Comecei a chorar.“Não vou fazer isso, a não ser que osenhor me obrigue.”

Eu os vi ali no saguão da casafunerária; ele, sentado; ela, de pé;a menina olhando numaperplexidade de olhos abertosenquanto sugava o chocolate.

Música de órgão enlatada ao fundo.O pobre velho Max Devore tinhasido bastante astucioso no dia dovelório de seu filho, pensei. Nãofeche sua porta para mim, essa éboa.

Tentei comprar você e como issonão funcionou aumentei o lance etentei comprar a criança. Quandoisso também falhou, disse ao meufilho que ele, você e minha netapodiam se afogar na sujeira de suaspróprias decisões. De certo modo,eu sou o motivo de ele estar ondeestava quando caiu e quebrou opescoço, mas não feche sua portapara mim, Mattie, sou apenas um

pobre velhote, portanto, não fechesua porta para mim.

— Fui burra, não fui?— Você esperava que ele fosse

melhor do que era. Se isso é serburra, Mattie, o mundo podia serum pouco mais burro.

— Eu tinha minhas dúvidas —disse ela. — Por isso não aceitava oseu dinheiro, e no final de outubroele parou de pedir. Mas eu odeixava vê-la, acho que, em parte,pela ideia de que pudesse haveralgum benefício para Ki mais tarde;mas, honestamente, eu nãopensava muito sobre isso. Eraprincipalmente por ele ser o único

vínculo sanguíneo de Kyra com opai. Eu queria que ela usufruísseaquilo como qualquer criançausufrui ter um avô. Não queria éque ela ficasse infectada por todoaquele lixo que tinha havido antesde Lance morrer.

“No início deu a impressão defuncionar. Então, pouco a pouco, ascoisas mudaram. Por um lado,percebi que Ki não gostava tanto deseu ‘papai branco’. Os sentimentosdela sobre Rogette continuam osmesmos, mas Max Devore começoua deixá-la nervosa de algum modoque não compreendo e que ela nãopode explicar. Perguntei a ela uma

vez se ele a tocou em algum lugarque a tivesse feito se sentiresquisita. Mostrei-lhe os lugares deque estava falando, mas ela disseque não. Acredito nela, mas... eledisse algo ou fez algo. Tenho quasecerteza disso.”

— Pode ter sido apenas o som desua respiração piorando — falei. —Só isso poderia assustar umacriança. Ou talvez ele lançassealgum tipo de encantamentoenquanto ela estava lá. E com você,Mattie?

— Bem... certo dia de fevereiro,Lindy Briggs me disse que GeorgeFootman tinha estado lá para

checar os extintores de incêndio eos detectores de fumaça nabiblioteca. Ele também perguntouse Lindy tinha encontrado algumalata de cerveja ou garrafa debebida no lixo ultimamente. Oupontas de cigarro que fossemobviamente feitos em casa.

— Em outras palavras, guimbasde maconha.

— É. E eu soube que DickieOsgood tem visitado meus velhosamigos. Conversando. Procurandoouro. Desenterrando a sujeira.

— Há alguma para desenterrar?— Não muita, graças a Deus.Eu esperava que estivesse certa,

e também que, se havia coisas queela não tinha me contado, JohnStorrow as tirasse dela.

— Mas, com tudo isso, vocêdeixou Kyra continuar a visitá-lo.

— Qual seria o resultado depuxar a tomada das visitas? Acheique permitindo que continuassempelo menos o impediria de apressarqualquer plano que pudesse ter.

Isso, eu pensei, tinha umaespécie de solitário sentido.

— Então, na primavera, comeceia ter algumas sensaçõesextremamente sinistras,assustadoras.

— Sinistras como? Assustadoras

como?— Não sei. — Puxou o maço de

cigarros, olhou-o e tornou a enfiá-lono bolso. — Não era só o fato deque meu sogro estivesseprocurando roupa suja nos meusarmários. Era Ki. Comecei a mepreocupar com Ki todo o tempo queela estava com ele... com eles.Rogette vinha no BMW que tinhamcomprado ou alugado, e Ki ficavanos degraus esperando por ela.Com sua bolsa de brinquedos sefosse só uma visita de dia, com apequena maleta rosa da Minnie sefosse para passar a noite. E semprevoltava com algo a mais do que

levava. Meu sogro acredita muitoem presentes. Antes de colocá-lano carro, Rogette me dava seusorriso frio e dizia “Então setehoras, ela jantará conosco”, ou“Então oito horas, e um bomdesjejum antes de ela ir embora”.Eu dizia tudo bem, e aí Rogettepegava a bolsa, puxava um Kiss daHershey’s e dava a Ki exatamentecomo se dá um biscoito a umcachorro pra fazê-lo estender apata. Dizia uma palavra e Kyrafazia uma rima. Rogette entãoatirava a guloseima para ela, uf-uf,bom cachorro, eu costumavapensar, e iam embora. Ao bater

sete da noite ou oito da manhã, oBMW parava bem ali onde seu carroestá estacionado agora. A gentepodia acertar o relógio pela mulher.Mas fiquei preocupada.

— De que pudessem ficarcansados do processo legal esimplesmente a roubassem? — Issome parecia uma preocupaçãoracional, tão racional que eu quasenão podia acreditar que Mattietivesse deixado a menina visitar ovelho, para começo de conversa.Nos casos de custódia, como noresto da vida, a posse tende a sernove décimos da lei, e se Mattieestava contando a verdade sobre

seu passado e seu presente, umaaudiência de custódiaprovavelmente se transformarianuma produção cansativa mesmopara o rico Devore. Roubar, no fimdas contas, poderia parecer umasolução mais eficiente.

— Não exatamente — disse ela.— Acho que é a coisa lógica, masnão era bem isso. Apenas fiqueicom medo. Não havia nada que eupudesse precisar. Quando chegavaas 6h15 da noite, eu pensava:“Desta vez aquela vaca de cabelosbrancos não vai trazer Kyra devolta. Desta vez ela vai...”

Esperei. Quando não falou nada,

perguntei:— Vai o quê?— Já lhe disse, não sei — falou.

— Mas fiquei com medo por Kyradesde a primavera. Quando junhochegou, não pude mais aguentar, ebotei um ponto final nas visitas.Kyra tem estado intermitentementezangada comigo desde então.Tenho certeza de que aquela fugado 4 de Julho teve a ver com isso.Ela não fala muito sobre o avô, massempre vem com “O que você achaque a vó branca está fazendoagora, Mattie?” ou “Você acha quea vó branca ia gostar do meuvestido novo?”. Ou ela corre até

mim e diz “Gato, pato, mato, naco”,e pede um doce.

— Qual foi a reação de Devore?— Uma fúria total. Ligou

inúmeras vezes, primeiroperguntando o que estava errado,depois fazendo ameaças.

— Ameaças físicas?— Ameaças quanto à custódia.

Que ia levá-la embora de qualquermodo, que quando acabassecomigo eu ia ficar perante o mundocomo uma mãe inadequada, que eunão tinha nenhuma chance, minhaúnica esperança seria ceder e medeixar ver minha neta, desgraçada.

Assenti com a cabeça.

— “Por favor, não feche suaporta para mim” não parece osujeito que me ligou enquanto euestava assistindo aos fogos, masessa última frase parece.

— Também recebi telefonemasde Dickie Osgood e de diversosoutros habitantes daqui — disseela. — Inclusive do velho amigo deLance, Richie Lattimore. Richiedisse que eu não estava sendo fielà memória de Lance.

— E George Footman?— Ele faz a ronda por aqui de

vez em quando. Me faz saber queestá vigiando. Não entra ou para.Você perguntou sobre ameaças

físicas, só de ver a radiopatrulha deFootman na minha entrada meparece uma ameaça. Ele meassusta. Mas nesses dias acho quetudo me assusta.

— Mesmo que as visitas de Kyratenham parado.

— Mesmo assim. Parece...trovoada. Como se algo fosseacontecer. E a cada dia essasensação fica mais forte.

— O número de John Storrow —eu disse. — Você quer?

Ela ficou quieta, olhando para ocolo. Então ergueu a cabeça econcordou.

— Pode me dar. E obrigada. Do

fundo do meu coração.Eu tinha o número numa folhinha

pequena de bloco rosa no meubolso da frente. Ela o agarrou, masnão o puxou imediatamente.Nossos dedos se tocavam e elaolhava para mim com uma firmezadesconcertante. Era como se elaconhecesse mais os meus motivosdo que eu mesmo.

— Como posso lhe retribuir? —perguntou, então era isso.

— Conte a Storrow tudo o queme contou. — Soltei a folhinha depapel e levantei. — Isso já chega. Eagora tenho que ir. Você me liga ediz como foi com ele?

— Claro.Andamos até o meu carro. Virei-

me para ela quando chegamos lá.Por um momento, pensei que ia pôros braços em torno de mim e meabraçar, um gesto deagradecimento que poderia levar aqualquer lugar em nosso atualestado de ânimo — tão aguçadoque era quase melodramático. Masa situação era melodramática, umconto de fadas onde havia bom eruim e um monte de sexo reprimidocorrendo por baixo de tudo.

Então surgiram faróis por sobre ocume da colina onde ficava omercado e eles varreram a oficina.

Moveram-se em direção a nós, maisbrilhantes. Mattie recuou e chegouaté a colocar as mãos atrás docorpo, como uma criança quetivesse sido censurada. O carropassou, deixando-nos no escuronovamente... mas o momento sefoi. Se é que tinha havido ummomento.

— Obrigado pelo jantar — eudisse. — Foi maravilhoso.

— Obrigada pelo advogado,tenho certeza de que ele serámaravilhoso também — elarespondeu, e nós dois rimos. Aeletricidade saiu do ar. — Ele faloude você uma vez, sabe. Devore.

Olhei para ela surpreso.— Estou espantado que ele

chegue mesmo a saber quem eusou. Antes disso, quero dizer.

— Ele sabe, não há dúvida. Faloude você com o que me pareceuuma afeição genuína.

— Você está brincando. Tem queestar.

— Não estou. Ele disse que seubisavô e o bisavô dele trabalharamnos mesmos campos e eramvizinhos quando não estavam nosbosques. Acho que disse que nãoera longe de onde fica agora aMarina de Boyd. “Cagaram nomesmo fosso”, foi como ele colocou

a coisa. Encantador, não é? Disseque, se dois lenhadores da TRpodiam produzir milionários, osistema estava funcionando comodevia. “Mesmo que tenha levadotrês gerações para isso”, disse ele.Naquela época, encarei aquilo comouma crítica velada a Lance.

— É ridículo, por mais queestivesse sendo sincero — falei. —Minha família é da costa. Prout’sNeck. Do outro lado do estado. Meupai era um pescador, assim comoseu pai antes dele. Meu bisavôtambém. Pescavam lagostas elançavam redes, não cortavamárvores. — Tudo isso era verdade, e

mesmo assim minha mente tentavafixar-se em algo. Alguma lembrançavinculada ao que Mattie estavadizendo. Se eu dormisse, talvez acoisa viesse à superfície.

— Ele poderia estar falando dealguém na família de sua mulher?

— Não. Há Arlens no Maine, sãouma grande família, mas a maioriaainda está em Massachusetts.Fazem coisas de todo tipo agora,mas se voltarmos a 1880, a maioriaestaria trabalhando em pedreirasou em obras de cantaria na áreaMalden-Lynn. Devore estavapregando uma peça em você,Mattie. — Mas mesmo assim eu

sabia que ele não estava. Ele podiater lembrado errado de parte dahistória, até os caras maisaguçados começam a perder o fiodas lembranças quando dobram os85 anos, mas Max Devore não eramuito de pregar peças. Tive umaimagem de cabos invisíveis,estendendo-se por baixo dasuperfície aqui na TR, estendendo-se em todas as direções, invisíveis,mas poderosos.

Minha mão descansava no altoda porta de meu carro e entãoMattie a tocou rapidamente.

— Posso lhe fazer outra perguntaantes de você ir embora? É boba,

estou avisando.— Vá em frente. Perguntas

bobas são uma especialidademinha.

— Você tem alguma ideia arespeito do que é a história deBartleby?

Tive vontade de rir, mas havialuar suficiente para que eu visseque ela falava a sério, e que amagoaria se risse. Ela era membrodo círculo de leitores de LindyBriggs (onde eu fizera certa vezuma palestra no final dos anos1980), provavelmente a maisjovem, pelo menos uns 20 anos, etinha medo de parecer burra.

— Tenho que ser a primeira afalar na próxima vez — disse ela —e gostaria de fazer mais do que sóum sumário da história para quesaibam que a li. Tenho pensadonela até ficar com dor de cabeça,mas não consigo entendê-la.Duvido que seja uma dessashistórias onde tudo ficamagicamente claro nas últimaspáginas. E sinto que deveriaentender... que está bem ali naminha frente.

Isso me fez pensar nos cabosnovamente — cabos correndo emtodas as direções, uma rede detrabalho subcutânea conectando

pessoas e lugares. Não se podia vê-los, mas se podia senti-los.Sobretudo se a gente tentasse seafastar. Enquanto isso, Mattieesperava, olhando-me comesperança e ansiedade.

— Certo, ouça, começou a aula— eu disse.

— Estou ouvindo. Pode acreditar.— A maioria dos críticos acha

que Huckleberry Finn é o primeiroromance americano moderno, o queé bastante justo, mas se Bartlebytivesse cem páginas a mais, achoque apostaria meu dinheiro nele.Sabe o que é um escrivão?

— Um secretário?

— Isso é importante demais. Umcopista. Uma espécie de BobCratchit de Um conto de Natal. Sóque Dickens dá a Bob um passado euma vida de família. Melville não dáa Bartleby nem uma coisa nemoutra. Ele é o primeiro personagemexistencial da ficção americana, umsujeito sem laço... nenhum laço,sabe...

Dois lenhadores que podiamproduzir milionários. Cagaram nomesmo fosso.

— Mike?— O quê?— Você está bem?— Claro. — Foquei minha mente

o máximo que pude. — Bartleby sóestá ligado à vida pelo trabalho.Nesse sentido, é um típicoamericano do século XX, não muitodiferente de Sloan Wilson em Ohomem do terno cinzento ou, naversão sombria, Michael Corleonee m O poderoso chefão. Mas entãoBartleby começa a questionar atémesmo o trabalho, o deus dosmachos americanos da classemédia.

Ela agora parecia animada, eachei que era uma pena que tivesseperdido seu último ano do ensinomédio. Para ela e também paraseus professores.

— É por isso que ele começadizendo “Acho melhor não...”?

— É. Pense em Bartleby comoum... balão de ar quente. Só umacorda ainda o prende à Terra, eessa corda é o trabalho de escrivão.Podemos medir a podridão nessaúltima corda pelo contínuo ecrescente número de coisas queBartleby acha melhor não fazer.Finalmente, a corda se rompe eBartleby flutua para longe. É umahistória perturbadora à beça, nãoé?

— Uma noite sonhei com ele —disse ela. — Abri a porta do trailer elá estava ele, sentado nos degraus

em seu velho terno preto. Magro.Com pouco cabelo. Eu disse: “Podese afastar, por favor? Tenho quesair e pendurar as roupas agora.”Ele disse: “Acho melhor não.” É,acho que se pode chamá-la deperturbadora.

— Então ainda funciona — eudisse, e entrei no carro. — Liguepara mim. Me diga como foi comJohn Storrow.

— Vou ligar. E qualquer coisaque eu possa fazer em retribuição,é só pedir.

É só pedir. Até que ponto épreciso ser jovem e graciosamenteignorante para emitir um cheque

em branco desses?Minha janela estava aberta.

Estendi a mão e apertei a dela.Mattie devolveu o aperto e comforça.

— Você sente muita falta de suamulher, não é? — disse ela.

— Dá para notar?— Às vezes. — Ela não estava

mais apertando minha mão, masainda a segurava. — Quando vocêestava lendo para Ki, parecia feliz etriste ao mesmo tempo. Eu só a viuma vez, sua mulher, mas a acheimuito bonita.

Eu pensava no contato de nossasmãos, concentrando-me nisso. De

repente o esqueci totalmente.— Quando é que a viu? Onde?

Você lembra?Ela sorriu como se fossem

perguntas tolas.— Lembro. Foi lá no campo de

jogo, na noite em que conheci meumarido.

Muito lentamente retirei a mãoda dela. Tanto quanto eu sabia,nem eu nem Jo tínhamos nosaproximado da TR-90 durante todoo verão de 1994... masaparentemente o que eu sabiaestava errado. Jo esteve lá numaterça no início de julho. Tinha atéido ao jogo de softbol.

— Tem certeza de que era Jo? —perguntei.

Mattie olhava para a estrada.Não estava pensando em minhamulher; apostaria a casa e oterreno nisso — ou casa ou terreno.Estava pensando em Lance. Talvezisso fosse bom. Se estava pensandonele provavelmente não olhavacom muita atenção para mim, e eunão achava que tinha muitocontrole de minha expressãonaquele momento. Ela poderia tervisto no meu rosto mais do que euqueria mostrar.

— Sim — disse ela. — Eu estavalá em pé com Jenna McCoy e Helen

Geary... foi depois de Lance ter meajudado com um barrilzinho decerveja que tinha atolado na lama eperguntar se eu ia sair com elespa ra uma pizza depois do jogo.Jenna disse: “Olhe, aquela é a sra.Noonan”, e Helen disse: “Ela é amulher do escritor, Mattie, a blusadela não é bacana?” A blusa eratoda coberta de rosas azuis.

Eu lembrava muito bem dablusa. Jo gostava dela porque erauma brincadeira — não há rosasazuis, não na natureza e nãocultivadas. Certa vez, quando aestava usando, ela me abraçouextravagantemente pelo pescoço,

impulsionou os quadris contra osmeus e gritou que era minha rosaazul, e eu precisava acariciá-la atéela ficar cor-de-rosa. Lembraraquilo doeu e muito.

— Ela estava no lado da terceirabase, atrás da tela de arame —disse Mattie —, com um homemcom um velho blazer marrom eremendos nos cotovelos. Riamjuntos de alguma coisa. Depois elavirou um pouco a cabeça e olhoudireto para mim. Ficou quieta porum momento, em pé ao lado docarro, com seu vestido vermelho.Levantou o cabelo da nuca,segurou-o e deixou-o cair de novo.

Direto para mim. Realmente mevendo. E tinha uma expressão... elatinha estado rindo, mas seu olharde certo modo era triste. Era comose me conhecesse. Então o homempôs o braço em sua cintura e elesse afastaram.

Silêncio, a não ser por grilos e oronco longínquo de um caminhão.Mattie permaneceu parada por ummomento, como se sonhasse deolhos abertos, e então sentiu algo eolhou de novo para mim.

— Alguma coisa errada?— Não. A não ser quem era esse

camarada com o braço em torno deminha mulher.

Ela riu um pouco incerta.— Bom, duvido que fosse

namorado dela. Era bem maisvelho. Cinquenta, pelo menos. — Edaí?, pensei. Eu mesmo tinha 40anos, mas isso não significava quenão percebesse o modo comoMattie se movia dentro do vestidoou erguia o cabelo da nuca. — Querdizer... você está brincando, nãoestá?

— Realmente não sei. Há ummonte de coisas que não sei nessesdias, parece. Mas a moça jámorreu, de qualquer modo,portanto, qual a importância disso?

Mattie pareceu deprimida.

— Se cometi alguma gafe, Mike,desculpe.

— Quem era o homem? Vocêsabe?

Ela balançou a cabeça.— Achei que era um turista de

verão... ele dava essa impressão,talvez porque estivesse usando umblazer numa noite quente de verão,mas, se era, não estava hospedadono Warrington’s. Eu conhecia amaioria deles.

— E foram embora juntos, a pé?— É. — Ela pareceu relutante.— Na direção do

estacionamento?— É. — Mais relutante ainda. E

desta vez estava mentindo. Eusoube disso com uma esquisitacerteza que ia além da intuição; eraquase como ler sua mente.

Estendi a mão através da janelae peguei sua mão de novo.

— Você disse que se eu pensasseem algo que você pudesse fazercomo retribuição, era só pedir.Estou pedindo. Diga a verdade,Mattie.

Ela mordeu o lábio, olhando parabaixo onde minha mão pousavasobre a dela. Então me encarou.

— Era um cara corpulento. Ovelho blazer lhe dava um pouco aaparência de um professor de

universidade, mas, tanto quantosei, podia ter sido um carpinteiro.Tinha cabelos pretos. Bronzeado.Riram bastante juntos, e então elaolhou para mim e o riso abandonouseu rosto. Depois disso ele passouum braço à volta dela e eles seafastaram caminhando. — Ela fezuma pausa. — Mas não em direçãoao estacionamento. Em direção àRua.

A Rua. Dali podiam ter andadopara o norte e ao longo da beira dolago até chegarem a Sara Laughs. Eentão? Quem sabe?

— Ela nunca me disse que tinhavindo até aqui naquele verão —

falei.Mattie pareceu procurar diversas

respostas e não encontrar nenhumade que gostasse. Devolvi sua mão.Estava na hora de eu ir embora. Naverdade, eu começava a desejar tê-lo feito cinco minutos atrás.

— Mike, tenho certeza...— Não — eu disse. — Não tem

não. Nem eu. Mas eu a amei muitoe vou tentar deixar isso de lado.Provavelmente não significa nada.E, além disso, o que é que eu possofazer? Obrigado pelo jantar.

— De nada. — Mattie pareciacom tanta vontade de chorar quepeguei a mão dela de novo e beijei

seu dorso. — Eu me sinto umaidiota.

— Você não é idiota — eu disse.Dei-lhe outro beijo na mão e

então liguei o carro e me afastei. Eaquele foi o meu encontroromântico, o primeiro em quatroanos.

Dirigindo para casa, pensei numvelho ditado que diz que nunca sepode conhecer verdadeiramenteoutra pessoa. É fácil dar a essaideia uma expressão retórica, masé um golpe — tão horrível einesperado quanto uma grave

turbulência num voo anteriormentecalmo — descobrir que é um fatoliteral em sua própria vida.Continuava me lembrando de nossavisita a um especialista emfertilidade depois de estarmostentando ter um bebê por quasedois anos sem sucesso. O médicotinha dito que eu tinha uma baixacontagem de espermatozoides —não desastrosamente baixa, masbaixa o suficiente para explicar ofracasso de Jo em conceber.

— Se quiserem um filho,provavelmente vão ter um semqualquer ajuda especial — disse omédico. — Tanto as circunstâncias

quanto o tempo estão a favor devocês. Poderia acontecer amanhãou daqui a quatro anos. Algum diavão encher a casa de bebês?Provavelmente não. Mas podem terdois, e quase certamente terão umse continuarem fazendo a coisa queos fabrica. — Jo tinha sorrido. —Lembrem-se, o prazer está najornada.

Tinha havido muito prazer, semdúvida, o sino de Bunter haviatocado muitas vezes, mas nãohouve bebê nenhum. EntãoJohanna morreu ao atravessarcorrendo o estacionamento de umshopping center num dia quente, e

um dos objetos em sua bolsa eraum teste de gravidez domésticoque ela não me contou que queriacomprar. Assim como também nãome disse que havia comprado duascorujas de plástico para evitar queos corvos fizessem cocô no deck dolago.

Que outras coisas ela não tinhame contado?

— Pare — murmurei. — Peloamor de Deus, pare de pensarnisso.

Mas eu não conseguia.

Quando voltei a Sara, os ímãs de

frutas e legumes na geladeiraestavam de novo num círculo. Trêsletras haviam sido reunidas nomeio:

b mo

Movi o o para o lugar que euachava que era o dele, formando apalavra “bom”. Será que essa é aordem das letras? O que significavaaquilo exatamente?

— Eu podia especular, masprefiro não fazer nada disso — faleipara a casa vazia.

Olhei para Bunter, o alce,

desejando que o sino em seupescoço comido de traça tocasse.Quando não tocou, abri meus doisnovos pacotes de ímãs e prendi asletras magnéticas na porta dageladeira, espalhando-as. Entãodesci para a ala norte, nu, e escoveios dentes.

Enquanto arreganhava minhaspresas para o espelho numaespumosa careta de desenhoanimado, pensei em chamar WardHankins novamente no dia seguintede manhã. Podia lhe dizer queminha busca das esquivas corujasde plástico tinha progredido denovembro de 1993 para julho de

1994. Que encontros Jo tinhaanotado na agenda para aquelemês? Que desculpas para sair deDerry? E quando eu tivesseterminado com Ward, podia atacarBonnie Amudson, a amiga de Jo, eperguntar-lhe se algo vinhaacontecendo com Jo no últimoverão de sua vida.

Deixe-a descansar em paz, estábem? Era a voz de OVNI. Que bemque lhe trará remexer nisso? Penseque ela deu um pulo na TR depoisde uma de suas reuniões doconselho, talvez só num impulso,encontrou um velho amigo, levou-opara casa para jantar. Só jantar.

E nunca me contou?, perguntei àvoz de OVNI, cuspindo um bocadode pasta de dente e depoisenxaguando a boca. Nunca disseuma única palavra?

Como é que sabe que ela nuncadisse?, devolveu a voz, e isso mecongelou no ato de colocar minhaescova de dentes de novo noarmário do banheiro. A voz de OVNItinha marcado um ponto. Eu estiveprofundamente mergulhado em Decima para baixo em julho de 1994.Jo podia ter entrado e me contadoque tinha visto Lon Chaney Jr.dançando com a rainha, fazendo osLobisomens de Londres e eu

provavelmente teria dito “Tudobem, meu amor, que ótimo”,enquanto fazia a revisão do texto.

— Besteira — disse para o meureflexo. — Isso é só besteira.

Mas não era. Quando eu estavarealmente mergulhado num livro,saía mais ou menos do mundo; forauma rápida espiada nas páginas deesporte, eu não lia sequer o jornal.Portanto, sim, era possível que Jotivesse me dito que passaria na TRdepois de uma reunião do conselhoem Lewiston ou Freeport, erapossível que tivesse me dito quetinha encontrado um velho amigo,talvez outro aluno do seminário de

fotografia que ela haviafrequentado em Bates em 1991 — eera possível que tivesse me ditoque tinham jantado juntos emnosso deck, comendo cogumelostrombeta-negra colhidos por elaenquanto o sol se punha. Erapossível que tivesse me dito essascoisas e eu não tivesse registradouma palavra do que disse.

E eu realmente achava queconseguiria algo em que pudesseconfiar de Bonnie Amudson? Ela foiamiga de Jo, não minha, e Bonniepodia sentir que o estatuto delimitações sobre quaisquersegredos que minha mulher tivesse

contado a ela não tinha cessado.O pano de fundo era tão simples

quanto brutal: Jo tinha morridohavia quatro anos. Melhor amá-la edeixar todas as perguntasperturbadoras de lado. Tomei umaúltima golada de água diretamenteda torneira, bochechei e a cuspi.

Quando voltei à cozinha paraacertar a cafeteira elétrica para assete horas, vi uma nova mensagemnum novo círculo de ímãs. Dizia

rosa azul mentiroso ha haOlhei aquilo por um ou dois

segundos, imaginando o que tinhacolocado as palavras ali e por quê.

Perguntando-me se era verdade.Estendi a mão e espalhei bem

todas as letras. Então fui para acama.

Capítulo Treze

Peguei sarampo quando tinha 8anos e fiquei muito doente. “Acheique você ia morrer”, contou meupai certa vez, e não era um homemdado a exageros. Disse que ele eminha mãe me enfiaram numabanheira de água gelada certanoite, os dois no mínimo meioconvencidos de que o choque com ofrio pararia meu coração; mas,como se estivessem

completamente convencidos de queeu arderia diante deles se nãofizessem algo, tinham resolvidotentar. Eu tinha começado a falarnuma voz alta e monotonamentediscursiva sobre as figurasbrilhantes que via na sala — anjosque vinham me levar embora,pensou minha aterrorizada mãe —,e a última vez que meu pai haviatirado minha temperatura, antes domergulho gelado, o mercúrio novelho termômetro retal Johnson &Johnson marcou 41 graus. Depoisdisso, contou ele, não ousou maisverificar a temperatura.

Não me lembro de nenhuma

figura brilhante, mas de umestranho período em que eu pareciaestar no corredor de uma sala deparque de diversões onde váriosfilmes diferentes eram exibidos aomesmo tempo. O mundo ficouelástico, inchando em lugares ondenunca tinha inchado antes,ondulando em lugares que sempretinham sido sólidos. Pessoas — namaioria parecendo incrivelmentealtas — entravam e saíamrapidamente de meu quarto compernas que davam a impressão detesouras de desenho animado. Aspalavras saíam de suas bocasestrondeando, como ecos

instantâneos. Alguém sacudiusapatinhos de bebê diante de meurosto. Lembro-me de meu irmãoSiddy enfiando a mão dentro dacamisa e fazendo repetidos ruídosde peido com o braço. Acontinuidade havia se rompido.Tudo vinha em segmentos,estranhas salsichas de Viena numcordão de veneno.

Entre aquela época e o verão emque voltei a Sara Laughs, tive asdoenças habituais, infecções elesões, mas nunca nada como ointerlúdio febril dos meus 8 anos.Nunca esperei ter nada semelhante— acreditando, acho eu, que tais

experiências ocorrem unicamentecom crianças, gente com malária outalvez àqueles que sofrem decolapsos mentais catastróficos.Mas, na noite de 7 de julho e namanhã de 8 de julho, passei por umperíodo extraordinariamenteparecido ao delírio da minhainfância. Sonhar, acordar, memover — tudo era uma coisa só.Vou contar o melhor que puder,mas nada do que eu possa dizerconseguirá transmitir a estranhezadaquela experiência. Era como seeu tivesse encontrado umapassagem secreta escondida logoalém da parede do mundo e tivesse

me arrastado por ela.

Primeiro foi a música. NãoDixieland, porque não haviatrombones, mas como Dixieland.Uma espécie primitiva e vertiginosad e bebop. Três ou quatro violõesacústicos, uma gaita de boca, umbaixo (ou talvez dois). Por trás detudo isso havia uma dura e felizbatida que não parecia soar comose saísse de uma bateriaverdadeira: soava como se alguémcom muito talento para a percussãobatesse num monte de caixas.Então uma voz de mulher se juntou

ao resto — uma aguda voz detenor, não muito masculina,tornando-se áspera nas notas altas.Era risonha, urgente e sinistra aomesmo tempo, e eu soubeimediatamente que ouvia SaraTidwell, que jamais tinha gravadoum disco em sua vida. Eu ouviaSara Laughs, e, cara, ela estavaexcepcional.You know we’re going back to MANderley,

We’re gonna dance on the SANderley,I’m gonna sing with the BANderley,We gonna ball all we CANderley —

Ball me, baby, yeah!4

Os baixos — sim, eram dois —irromperam num ritmo de dança de

celeiro com o ritmo na versão deElvis de “Baby Let’s Play House”, eentão um solo de violão: SonTidwell tocando aquela coisaarranhada.

As luzes cintilaram no escuro eentão pensei em um som dos anos1950, Claudine Clark cantando“Party Lights”. E ali estavam elas,lanternas japonesas pendendo dasárvores no caminho dos degraus dedormente levando da casa para aágua. Luzes de festa lançandocírculos místicos de esplendor noescuro: vermelhas azuis e verdes.

Atrás de mim, Sara cantava apassagem para sua canção de

Manderley — mamãe gosta delemaldoso, mamãe gosta dele forte,mamãe gosta de festejar a noiteinteira —, mas estava sumindo.Sara e os Red-Top Boys tinhamerguido o coreto da banda naentrada de carros por causa dosom, mais ou menos onde GeorgeFootman tinha estacionado quandoveio me entregar a intimação deMax Devore. Eu estava descendopara o lago através de círculos deesplendor, passando pelas luzes dafesta rodeadas por mariposas deasas macias. Uma delas tinhaconseguido entrar numa lâmpada elançava uma sombra monstruosa,

como um morcego, contra asnervuras do papel. As caixas deflores que Jo tinha colocado ao ladodos degraus estavam cheias derosas que se abriam de noite. À luzdas lanternas japonesas, pareciamazuis.

Agora a banda era apenas umtênue murmúrio; eu podia ouvirSara cantando, rindo o tempointeiro como se a letra da cançãofosse a coisa mais engraçada quetinha ouvido, aquele negócio deManderley-sanderley-canderley,mas eu não podia perceber mais aspalavras isoladamente. Muito maisnítido estava o ondular do lago

contras as rochas junto aosdegraus, a batida oca dos barris soba plataforma flutuante e o grito deum mergulhão-do-norte emergindoda escuridão. Alguém estava em péna Rua à minha direita, à beira dolago. Não conseguia ver seu rosto,mas podia ver o blazer marrom e acamiseta que usava por baixo. Aslapelas cortavam algumas letras damensagem, portanto, via-se:

ONTORMA

ER

De qualquer modo, eu sabia oque queriam dizer — em sonhosquase sempre se sabe, não é?

CONTAGEM NORMAL DE ESPERMATOZOIDES, oespecial mais nojento do VillageCafé que já tinha havido.

No quarto norte, eu sonhavatudo isso, e então acordo osuficiente para saber que estavasonhando... só que foi comoacordar dentro de outro sonho,porque o sino de Bunter tocavaloucamente e havia alguém em péno corredor. Sr. Contagem Normalde Espermatozoides? Não, ele não.A forma-sombra caindo sobre aporta não era bem humana. Eraafundada, os braços indistintos.Sentei com o prateado tremor dosino, agarrando um punhado de

lençol solto contra minha cinturanua, certo de que era a coisaamortalhada que estava ali — aque saíra do túmulo para me pegar.

— Por favor, não — eu dissenuma voz seca e trêmula. — Porfavor, não, por favor.

A sombra na porta ergueu osbraços. É só um baile no celeiro,benzinho!, cantou a voz alegre etempestuosa de Sara Tidwell. É sórodar e rodar!

Deitei de costas e puxei o lençolpor cima do rosto num ato infantilde negação... e lá estava eu emnossa pequena língua de praia,apenas de cueca. Meus pés

mergulhavam na água até otornozelo. Estava quente comocostuma ficar em pleno verão.Minha sombra difusa lançava-se dedois modos: numa direção, pelapequena lua que cavalgava nãomuito longe acima da água; e naoutra, pela lanterna japonesa coma mariposa presa dentro dela. Ohomem em pé no caminho se fora,mas deixara uma coruja de plásticopara marcar seu lugar. Ela meolhou com olhos gelados, deolheiras douradas.

— Ei, irlandês!Olhei para a plataforma

flutuante. Jo estava ali em pé.

Devia ter acabado de sair da água,pois ainda estava pingando e ocabelo grudava-se no rosto. Usavao biquíni da foto que eu tinhaencontrado, cinza com debrumvermelho.

— Há quanto tempo, irlandês, oque é que você acha?

— De quê? — respondi, emborasoubesse.

— Disso! — Ela pôs as mãos nosseios e espremeu. A água escorreuentre seus dedos e pelos nós dasmãos.

— Vamos, irlandês — disse elaao meu lado e acima de mim.Vamos, seu patife, solte. — Eu a

senti abaixar o lençol, puxando-ofacilmente dos meus dedosentorpecidos pelo sono. Fechei osolhos, mas ela pegou minha mão ea colocou entre as suas pernas.Quando encontrei aquela fendaaveludada e comecei a acariciá-la,ela começou a esfregar minha nucacom os dedos.

— Você não é Jo — eu disse. —Quem é você?

Mas não havia ninguém ali pararesponder. Eu estava no bosque.Estava escuro e os mergulhões-do-norte gritavam no lago. Eu andavapelo caminho que levava ao estúdiode Jo. Não era um sonho; eu podia

sentir o ar frio contra minha pele ea mordida ocasional de uma pedrana sola ou no calcanhar de meuspés nus. Um mosquito zumbiu juntoà minha orelha, e o espantei. Euestava usando uma cueca Jockey ea cada passo uma enorme elatejante ereção a esticava.

— Que droga é essa? —perguntei, à medida que o pequenoestúdio de madeira rústica de Joassomava na escuridão. Olhei atrásde mim e vi Sara em sua colina,não a mulher, mas a casa, umacomprida casa de campoprojetando-se para o lagodelimitado pela noite. — O que é

que está me acontecendo?— Tudo bem, Mike — disse Jo.

Estava em pé na plataforma,vendo-me nadar até ela. Pôs a mãoatrás da nuca como uma modelo decalendário, erguendo mais os seiosna frente única úmida. Como nafotografia, eu podia perceber seusmamilos salientes na roupa. Euestava nadando de cuecas, e com amesma ereção intensa.

— Tudo bem, Mike — disseMattie no quarto norte, e abri osolhos.

Ela estava sentada ao meu ladona cama, calma e nua no fracofulgor da luz que ficava acesa de

noite. Seu cabelo estava solto nosombros. Seus seios eramminúsculos, do tamanho de xícarasde chá, mas mostravam bicoslargos e distendidos. Entre suaspernas, onde minha mão aindapousava, havia um pompom decabelo louro, macio como penugem.Seu corpo estava envolvido emsombras como asas de mariposas,como pétalas de rosas. Havia algodesesperadamente atraente nela alisentada — era como o prêmio quevocê sabe que jamais ganhará naardilosa galeria de tiro ou no jogode argolas na feira do condado.Aquele que guardam na prateleira

de cima. Ela estendeu a mão pordebaixo do lençol e dobrou osdedos sobre o material esticado deminha cueca.

Está tudo bem, é só rodar erodar, disse a voz de OVNIenquanto eu subia a escada para oestúdio de minha mulher. Curvei-me, procurei a chave debaixo docapacho e a peguei.

Subi a escada até a plataformaflutuante, molhado e pingando,precedido por meu sexo aumentado— será que existe algo tãoinvoluntariamente cômico quantoum homem sexualmente excitado?Jo parou no assoalho com seu maiô

molhado. Puxei Mattie para a camacomigo. Abri a porta do estúdio deJo. Todas essas coisas aconteceramao mesmo tempo, entretecendo-sedentro e fora umas das outras comofios de alguma corda ou cintoexótico. A coisa com Jo pareciamais um sonho, a coisa no estúdio,eu atravessando o chão e olhandopara minha velha IBM verde, pelomenos. Mattie no quarto norte eraalgo entre sonho e realidade.

Na plataforma flutuante, Jodisse: “Faça o que quiser.” Noquarto norte Mattie disse: “Faça oque quiser.” No estúdio, ninguémteve que me dizer nada. Lá eu

sabia exatamente o que queria.Na plataforma, curvei a cabeça,

pus a boca num dos seios de Jo esuguei o peito coberto de tecidocom minha boca. O gosto era detecido úmido e lago molhado. Elaestendeu a mão para o local ondeeu me projetava para fora e dei umtapa afastando-lhe a mão. Se elame tocasse, eu gozariaimediatamente. Suguei, bebendo acorrente de água de algodão,tateando com minhas mãos,primeiro acariciando seu traseiro edepois puxando a parte de baixo deseu biquíni. Eu o tirei e ela caiu dejoelhos. Consegui também

finalmente me livrar de minhacueca molhada e grudenta e joguei-a sobre a parte do biquíni retirado.Então nos encaramos: eu, nu; ela,quase.

— Quem era o cara no jogo? —ofeguei. — Quem era, Jo?

— Ninguém em especial,irlandês. Só outro saco de ossos.

Riu, depois se apoiou nos quadrise me olhou fixamente. Seu umbigoera uma minúscula taça negra.Havia algo de cobra, esquisito eatrativo, em sua postura.

— Tudo ali embaixo é morte —disse ela, e apertou meu rosto comas palmas frias e os dedos brancos

e ressequidos. Virou minha cabeçae então a inclinou para que euolhasse dentro do lago. Sob a águavi os corpos em decomposiçãodeslizando, empurrados por algumacorrente profunda. Os olhosmolhados deles olhavam fixamente.Seus narizes mordiscados pelospeixes mostravam brechas. Suaslínguas pendiam entre lábiosbrancos como gavinhas de ervasaquáticas. Alguns mortosarrastavam pálidos balões deentranhas de águas-vivas; outroseram pouco mais que ossos. Masnem mesmo a visão dessa flutanteparada carnal conseguiu me desviar

do que eu queria. Livrei minhacabeça das mãos de Jo, empurrei-apara o chão e finalmente acalmei oque estava tão duro e belicoso,afundando-o profundamente. Seusolhos prateados de luar seergueram para mim, através demim, e vi que uma pupila era maiordo que a outra. Que foi como seusolhos haviam se mostrado nomonitor de TV quando eu aidentifiquei no necrotério docondado de Derry. Ela estavamorta. Minha mulher estava mortae eu fodia seu cadáver. Nemmesmo essa percepção me deteve.

— Quem era ele? — gritei para

ela, cobrindo sua carne geladaestendida nas tábuas molhadas. —Quem era ele, Jo, pelo amor deDeus, diga, quem era ele?

No quarto norte, puxei Mattiepara cima de mim, saboreando asensação daqueles seios pequenoscontra meu peito e a extensão desuas pernas entrelaçadas. Então arolei para a outra extremidade dacama. Senti sua mão se estenderpara mim e a afastei com um tapa— se ela me tocasse ondepretendia, eu gozaria num instante.

— Abra as pernas, depressa —eu disse, e ela obedeceu. Fechei osolhos, cortando qualquer outra

sensação em favor da que eusentia. Investi, depois parei. Fiz umpequeno ajuste, puxando meupênis inchado com o lado da mão,depois pressionei os quadris edeslizei para dentro dela como umdedo numa luva forrada de seda.Ela me olhou com os olhos bemabertos, então pôs a mão no meurosto e virou minha cabeça.

— Tudo aí fora é morte — disseela, como se apenas explicasse oóbvio. Pela janela eu via a QuintaAvenida entre as ruas 50 e 60,todas aquelas lojas chiques: Bijan eBally, Tiffany, Bergdorf’s e SteubenGlass. Então chegou Harold

Oblowski, caminhando na direçãonorte e balançando sua pasta decouro de porco (a que Jo e eu lhedemos de Natal no ano anterior àmorte dela). Além dele, levandouma bolsa da Barnes and Noblepelas alças, estava a farta e belaNola, sua secretária. Só que suacarne se fora. Era apenas umsorridente esqueleto de cobra,vestindo um terno Donna Karan eescarpim de crocodilo; ossosesqueléticos e cheios de anéisagarravam as alças da bolsa, emvez de dedos. Os dentes de Haroldprojetavam-se no seu habitualsorriso de agente, agora tão

estendidos que eram quaseobscenos. Seu terno preferido, umjaquetão cinza-carvão de PaulStuart, adejava nele como uma velaà brisa fresca. À volta deles, dosdois lados da rua, caminhavam osmortos-vivos — mamães-múmiaslevando cadáveres de criancinhaspelas mãos ou empurrando-os emcaros carrinhos de bebês, porteiroszumbis, skatistas reanimados. Umnegro alto com as últimas tiras decarne pendendo de seu rosto comocouro de cervo curado passeavacom seu esquelético alsaciano. Osmotoristas de táxi apodreciamouvindo música hindu. Os rostos

olhando dos ônibus que passavameram caveiras, cada qual usandosua própria versão do sorriso deHarold — Oi, como vai, como está amulher, os filhos, escrevendo algumbom livro ultimamente? Osvendedores de amendoimambulantes se putrefaziam.Entretanto, nada disso podia mereprimir. Eu estava pegando fogo.Escorreguei as mãos para baixo desuas nádegas, erguendo-a,mordendo o lençol (notei semqualquer surpresa que apadronagem era de rosas azuis) atésoltá-lo do colchão para me impedirde mordê-la no pescoço, no ombro,

nos seios, em qualquer lugar quemeus dentes pudessem alcançar.

— Diga quem era ele! — griteipara ela. — Você sabe, sei que vocêsabe! — Minha voz estava tãoabafada pela roupa de cama queenchia minha boca que duvidei deque alguém pudesse ter meentendido. — Me diz a verdade, suavaca!

No caminho entre o estúdio de Joe a casa, eu estava em pé noescuro, com a máquina de escrevernos braços e aquela ereção dealcance onírico pulsando abaixo deseu volume de metal — tudo aquilopronto e nada voluntário. A não ser

pela brisa noturna. Então tiveconsciência de que não estava maissozinho. A coisa amortalhadaestava atrás de mim, atraída comoas mariposas pelas luzes da festa.Ela riu — um riso descarado, roucode fumo, que só poderia pertencera uma única mulher. Não vi a mãoque se estendeu em torno de meuquadril para me agarrar — amáquina de escrever estava nocaminho —, mas não precisava vê-la para saber que era marrom. Amão espremeu, apertandolentamente, os dedos contorcendo-se.

— O que quer saber, benzinho?

— perguntou ela atrás de mim.Ainda rindo. Ainda provocando. —Quer mesmo saber? Quer saber ouquer sentir?

— Ah, você está me matando! —exclamei. A máquina de escrever,uns 13 quilos mais ou menos deIBM Selectric, tremia para a frentee para trás nos meus braços. Eupodia sentir meus músculos tensoscomo cordas de violão.

— Quer saber quem ele era,benzinho? O homem ruim?

— Me faz gozar, sua vadia! —gritei. Ela riu de novo, aquele risoáspero que era quase como umatosse, e me apertou onde o aperto

era melhor.— Agora fique parado — disse

ela. — Fique parado, meninobonito, a não ser que queira que eume assuste e arranque essa suacoisa pelo... — Perdi o apoioenquanto o mundo inteiro explodianum orgasmo tão profundo e forteque achei que me racharia ao meio.Deixei minha cabeça cair para tráscomo um homem sendo enforcadoe ejaculei olhando para as estrelas.Gritei, tive que fazê-lo, e no lagodois mergulhões-do-norte gritaramtambém.

Ao mesmo tempo, eu estava naplataforma flutuante. Jo se fora, eu

conseguia ouvir ligeiramente o somda banda — Sara e Sonny e os Red-Top Boys atacando o “BlackMountain Rag”. Sentei, aturdido eesgotado, completamente oco. Nãoconseguia ver o atalho que levava acasa, mas discernia seu curso emzigue-zague pelas lanternasjaponesas. Minha cueca estava aolado num pequeno monte molhado.Peguei-a e comecei a vesti-la,somente porque não queria nadarpara a praia com aquilo na mão.Parei com ela esticada entre osjoelhos, olhando para meus dedos.Estavam pegajosos de carne podre.Projetando-se por baixo de várias

unhas, viam-se bolos de cabelosarrancados. Cabelos de cadáver.

— Ah, meu Deus — gemi. — Asforças me abandonaram. Euchapinhava em algo molhado noquarto da ala norte. Aquilo em queme apoiava era quente, e no iníciopensei que fosse gozo. Mas a débilluminosidade do abajur decabeceira mostrou algo maisescuro. Mattie tinha desaparecido ea cama estava cheia de sangue.Jazendo no meio daquela piscina,enxerguei algo que à primeira vistapensei ser um naco de carne ou umpedaço de órgão. Olhei maisatentamente e vi que era um bicho

de pelúcia, um objeto de pelo negromanchado de sangue. Deitei delado, encarando-o, querendo pularda cama e fugir do quarto, masincapaz de fazê-lo. Meus músculostinham sofrido uma síncope. Comquem estive mesmo fazendo sexonaquela cama? E o que fiz a ela? Oquê, pelo amor de Deus?

— Não acredito nessas mentiras— escutei minha própria vozdizendo, e como se fosse umencanto, voltei com um tapa àminha unidade. Não foi exatamenteo que aconteceu, mas é a únicamaneira de expressar o que maisou menos se aproxima do que

ocorreu, seja lá o que for. Eu estavadividido em três eus — um naplataforma flutuante, um no quartonorte, um no caminho —, e cadaum deles sentiu aquele duro tapa,como se o vento tivesse setransformado em mão. Depois aescuridão se precipitou e nela obadalar contínuo e sonoro do sinode Bunter. Então o somdesapareceu, e eu com ele.Durante um pequeno período, nãoestive em lugar algum.

Voltei ao displicente gorjeio depássaros das férias de verão e à

peculiar escuridão vermelharevelando que o sol brilhavaatravés de minhas pálpebrasfechadas. Meu pescoço estava duro,a cabeça inclinada num ânguloesquisito, as pernas dobradasdesajeitadamente debaixo de mim,e eu sentia calor.

Levantei a cabeça com umestremecimento, sabendo mesmoenquanto abria os olhos que nãoestava mais na cama, nem naplataforma flutuante, nem nocaminho entre a casa e o estúdio.Debaixo de mim, viam-se as tábuasdo assoalho, duras e inflexíveis.

A luz era ofuscante. Fechei

novamente os olhos, bemapertados, e gemi como um homemcom ressaca. Eu os abri, protegidospor minhas mãos em concha, dei-lhes tempo para se adaptarem, eentão, cautelosamente, retirei asmãos, sentei-me e olhei à volta. Eume encontrava no corredor doandar de cima, deitado sob o ar-condicionado quebrado. O bilheteda sra. Meserve pendurado neleainda era visível. Pousada do ladode fora da porta de meu escritórioestava a IBM verde, com umpedaço de papel enfiado nela. Olheipara meus pés e vi que estavamsujos. Agulhas de pinheiros

grudavam-se em suas solas, e umdos dedos estava arranhado.Levantei, cambaleei um pouco(minha perna direita tinha ficadodormente), apoiei uma das mãosna parede e me firmei. Examinei aparte de baixo do corpo. Eu usava asunga com a qual tinha ido para acama, e não parecia ter havido umacidente dentro dela. Puxei o cós edei uma espiada para dentro. Meupau tinha a aparência de sempre:pequeno, macio, enrodilhado eadormecido em seu ninho de pelos.Se a Loucura de Noonan tinha sidose aventurar pela noite, não havianenhum sinal disso agora.

— Parecia mesmo uma aventura— resmunguei. Limpei o suor datesta com o braço. Estavasufocante. — Mas não do tipo sobrea qual já li em Os Hardy Boys.

Então me lembrei do lençolensopado de sangue no quartonorte, e do bicho de pelúcia deitadode lado no meio dele. Não houvenenhuma sensação de alívio ligadaà lembrança, aquela sensação degraças-a-Deus-foi-apenas-um-sonhoque se tem depois de um pesadeloespecialmente mau. Parecia tãoverdadeiro como qualquer coisa queeu tinha sentido em meu delírio defebre de sarampo... e todas aquelas

coisas tinham sido reais, apenasdistorcidas por meu cérebrosuperaquecido.

Cambaleei para a escada e descimancando, agarrando-me bem aocorrimão para o caso de minhaperna dormente ceder. No andar debaixo, olhei atônito pela sala comose a visse pela primeira vez, eentão manquei pelo corredor da alanorte.

A porta do quarto estavaentreaberta, e por um momentonão consegui me obrigar aempurrá-la totalmente e entrar.Sentia um medo tremendo, com amente tentando repassar um velho

episódio de Alfred HitchcockApresenta em que o homemestrangula a mulher durante umaausência alcoólica. Ele passa umaboa meia hora procurando por ela efinalmente a encontra na copa,inchada, de olhos abertos. KyraDevore era a única criança comidade para ter um bicho de pelúciacom quem estive recentemente,mas dormia tranquilamente sob acoberta de babado rosa quandodeixei sua mãe e voltei para casa.Era idiota achar que eu tinhadirigido todo o caminho de volta àestrada Wasp Hill, provavelmentesem usar nada a não ser minha

cueca, que tinha...O quê? Violado a mulher?

Trazido a criança para cá? Enquantoeu dormia?

Peguei a máquina de escreverdurante o sono, não peguei? Estábem ali na droga do corredor.

Grande diferença entre percorreruns 30 metros pelo bosque e 8quilômetros pela estrada para...

Eu não ia ficar ali ouvindoaquelas vozes se engalfinhando emminha cabeça. Se não fosse maluco— e achava que não era —, escutaras idiotas brigonas provavelmenteme deixariam doido, e bemrapidinho. Estendi a mão e

empurrei a porta do quarto,abrindo-a totalmente.

Por um momento, vi de fato umamancha de sangue tipo polvoespalhando-se pelo lençol, tãoverdadeiro e centrado naquiloestava o meu terror. Então fecheios olhos bem apertados, depois osabri e olhei novamente. Os lençóisestavam amarfanhados, o de baixoquase totalmente solto. Eu via orevestimento de cetim acolchoadodo colchão. Na beira da outraextremidade da cama havia umtravesseiro. O outro jaziaamarfanhado ao pé dela. O tapetepequeno — uma peça feita por Jo

— estava torto, e meu copo d’águavirado na mesinha de cabeceira. Oquarto dava a impressão de ter sidopalco de uma briga turbulenta oude uma orgia, mas não de umassassinato. Não havia nenhumsangue nem qualquer animalzinhode pelúcia de pelo preto.

Ajoelhei-me e espiei debaixo dacama. Nada ali — nem mesmo osbolos de poeira, graças a BrendaMeserve. Examinei o lençol debaixo novamente, primeiropassando a mão em sua topografiaamarrotada, depois o alisando etornando a prendê-lo por seuscantos elásticos. Grande invenção,

esses lençóis; se fossem asmulheres a distribuírem a Medalhada Liberdade, em vez de um bandode políticos brancos que jamaishaviam feito uma cama ou lavadouma trouxa de roupa na vida, nessaaltura dos acontecimentos os carasque tinham bolado os lençóisajustáveis já teriam uma medalha,não havia dúvida. Numa cerimôniano Jardim das Rosas.

Com o lençol esticado, olhei denovo. Nenhum sangue, nem uma sógota. Também não havia nenhumamancha endurecida de sêmen. Osangue de fato eu não esperava(pelo menos dizia isso a mim

mesmo), mas o segundo? Nomínimo eu tive a polução noturnamais criativa do mundo — umtríptico em que tinha fodido duasmulheres e sido agraciado com umapunheta pela terceira, tudo aomesmo tempo. Pensava tertambém aquela sensação demanhã-do-dia-seguinte, a que agente tem quando o sexo da noiteanterior foi de arrasar. Mas se tinhahavido fogos de artifício, ondeestava a pólvora queimada?

— No estúdio de Jo,provavelmente — falei para oquarto vazio e ensolarado. — Ou nocaminho entre lá e cá. Contente por

você não tê-la deixado na casa deMattie Devore, meu chapa. Vocênão precisa ter um caso com umaviúva quase adolescente.

Uma parte de mim discordou;uma parte de mim pensava queMattie Devore era exatamenteaquilo de que eu precisava. Mas eunão tinha feito sexo com ela nanoite passada, assim como nãotinha feito sexo com minha mulhermorta na plataforma flutuante ourecebido uma punheta de SaraTidwell. Agora que verificava nãoter matado uma criancinhasimpática também, meuspensamentos voltaram à máquina

de escrever. Por que eu a peguei?Por que me dar a esse trabalho?

Ô, cara. Que pergunta boba.Minha mulher pode ter guardadosegredos de mim, talvez até tidoum caso; pode haver fantasmas nacasa; pode existir um velho rico a800 metros ao sul querendo meenfiar um espeto afiado e depoisquebrá-lo; pode haver algunsbrinquedos em meu humilde sótão,por falar nisso. Mas enquanto euestava ali em pé num brilhante raiode sol, olhando minha sombra naparede distante, só uma ideiaparecia ter importância: eu tinhaido até o estúdio de Jo e pegado

minha velha máquina de escrever,e só havia um motivo para fazeralgo semelhante.

Entrei no banheiro, querendo melivrar do suor do corpo e da sujeirados pés antes de qualquer outracoisa. Estendi a mão para a torneirado chuveiro e parei. A banheiraestava cheia de água. Ou eu aenchi por alguma razão durantemeu sonambulismo... ou algumacoisa o fez. Estendi a mão para otampão da banheira e então pareinovamente, me lembrando doinstante no acostamento da rota68, quando minha boca se encheudo sabor de água fria. Percebi que

estava esperando que aquiloocorresse de novo. Quando nãoocorreu, abri o tampão da banheirapara deixar a água sair e liguei ochuveiro.

Eu poderia ter levado a Selectricpara o andar de baixo, talvez até aarrastado para o deck onde haviauma leve brisa subindo dasuperfície do lago, mas não o fiz. Eua trouxe por todo o caminho até aporta do escritório, e meu escritórioera onde trabalharia... se pudessetrabalhar. Trabalharia lá mesmoque a temperatura sob o telhado

chegasse a 48 graus... o que, porvolta das três da tarde, poderiaocorrer.

O papel dentro da máquina eraum velho recibo de papel-carbonorosa da Click!, a loja de artigosfotográficos de Castle Rock onde Jocomprava seu material quandoíamos lá. Eu o coloquei na máquinade modo que o lado vazio sedefrontasse com a bola de tipoCourier. Eu tinha datilografado neleos nomes de meu pequeno harém,como se tivesse tentado ou meesforçado de algum modo pararelatar o sonho trifacetado mesmoenquanto ocorria:

Jo Sara Mattie Jo Sara Mattie Mattie

Mattie Sara Sara

Jo Johanna Sara Jo MattieSaraJo

Sob isso, em caixa-baixa:

contagem normal de espermatozoides

contagem normal tudo está cor-de-rosa

Abri a porta do escritório, entreicarregando a máquina de escrevere coloquei-a em seu antigo lugar,abaixo do pôster de Richard Nixon.Puxei o papelzinho rosa do rolo, fizuma bola com ele e o joguei nacesta de papel. Então peguei oplugue da Selectric e o enfiei na

tomada do rodapé do assoalho.Meu coração batia dura erapidamente, como quando eutinha 13 anos e subia a escada parao alto trampolim da piscina daAssociação Cristã de Moços. Subiaquela escada três vezes aos 12anos e depois recuei furtivamente;quando fiz 13 anos, já não podiaser covarde — tinha que pular deverdade.

Pensei ter visto um ventiladorescondido no canto do fundo docloset, na caixa que tinha ainscrição APARELHOS. Comecei a andarnaquela direção, depois me virei denovo com um risinho áspero. Eu já

tive um momento de autoconfiançaantes, não é? Sim. E depois as fitasde ferro apertaram meu peito comforça. Seria estúpido puxar oventilador para fora e descobrirque, no final das contas, eu nãotinha nada a fazer naquela sala.

— Calma — falei —, vá comcalma. — Mas eu não podia, assimcomo o menino de peito estreitocom aquele ridículo calção roxotambém não pôde quando andouaté o final do trampolim, a piscinatão verde lá embaixo, os rostoserguidos dos garotos e garotas tãopequenos, tão pequenos.

Curvei-me para uma das gavetas

do lado direito da mesa e a puxeicom tanta força que ela saiuinteiramente do encaixe. Tirei o pénu de sua zona de aterrissagem noúltimo momento e emiti um jorrode riso alto e sem humor. Haviameia resma de papel na gaveta.Suas bordas mostravam aquelaaparência ligeiramente quebradiçados papéis guardados por muitotempo. Só a vi tempo suficientepara lembrar que havia trazido meupróprio suprimento — materialmuito mais novo que aquele. Deixeio papel onde estava e coloquei agaveta novamente em seu encaixe.Precisei de várias tentativas para

enfiá-la nos trilhos; minhas mãostremiam.

Finalmente sentei na cadeira deminha mesa, ouvindo os mesmosvelhos estalos de quando elarecebia meu peso e o mesmo somsurdo dos rolimãs enquanto a rodeipara a frente, ajustando as pernasno lugar sob a mesa. Então encareio teclado, transpirandoabundantemente e ainda melembrando da piscina da ACM e dotrampolim, como era flexível sobmeus pés enquanto caminhava porele, me lembrando do cheiro decloro e do pulsar contínuo dosexaustores de ar: fuung-fuung-

fuung-fuung, como se a águativesse sua própria pulsaçãosecreta. Eu tinha ficado parado nofinal do trampolim imaginando (enão pela primeira vez!) se o fato dea gente se chocar com a água damaneira errada poderia causar umaparalisia. Provavelmente não, masse poderia morrer de medo. Haviacasos documentados assim noAcredite se Quiser, de Ripley, queme serviam de ciência entre asidades de 8 e 14 anos.

Vá em frente!, gritou a voz de Jo.Minha versão da voz dela erageralmente calma e controlada;desta vez era estridente. Pare de

tremer e vá em frente!Estendi a mão para o botão de

ligar da IBM, lembrando agora dodia em que joguei o Word 6.0 nalixeira do meu PowerBook. Adeus,companheiro, tinha pensado.

— Tomara que funcione — eudisse. — Por favor.

Abaixei a mão e apertei o botão.A máquina foi ligada. A bola Courierdeu um giro preliminar, como umadançarina de balé em pé nosbastidores, esperando paracontinuar. Peguei um pedaço depapel, vi meus dedos suadosdeixando marcas neles e não meincomodei. Coloquei-o na máquina,

centralizei-o, e escrevi

Capítulo Um

e esperei a tempestade desabar.

4 Você sabe que estamos voltando aMANderley,Vamos dançar no SANderley,Vou cantar com a BANderley,Vamos girar na CANderley —Dance comigo, meu bem, ié!

Capítulo Quatorze

A campainha do telefone — ou maisprecisamente o modo como recebia campainha do telefone — foi tãofamiliar quanto os estalos dacadeira ou o zumbido de minhavelha Selectric da IBM. Parecia virde bem longe no início, e depoisaproximar-se como um tremapitando ao atravessar umcruzamento.

Não havia nenhuma extensão no

meu escritório nem no de Jo; otelefone do andar de cima, umvelho modelo de discagem rotativa,ficava na mesa no corredor entreeles — que Jo costumava chamarde “terra-de-ninguém”. Atemperatura ali devia ser de pelomenos 32 graus, mas o ar pareciafresco em minha pele depois doescritório. Eu estava tão oleoso desuor que parecia uma versãoligeiramente barriguda dos rapazesmusculosos que via às vezesquando malhava.

— Alô.— Mike? Acordei você? Estava

dormindo? — Era Mattie, mas

diferente da Mattie da noitepassada. Esta não se mostrava commedo nem hesitava; parecia tãofeliz que quase borbulhava. Eraquase certamente a Mattie queatraíra Lance Devore.

— Dormindo, não — eu disse. —Escrevendo um pouco.

— Sem essa! Pensei que tivessese aposentado.

— Também pensei — falei —,mas talvez eu tenha sido um poucoprecipitado. O que é que há? Vocêparece nas nuvens.

— Acabo de falar ao telefonecom John Storrow...

É mesmo? Afinal de contas,

quanto tempo eu estive no segundoandar? Olhei para o pulso e viapenas um círculo pálido. Eramquinze para as sardas e duas pelese meia, como costumávamos dizerquando éramos garotos; meurelógio estava no andar de baixo noquarto norte, provavelmentedeitado na poça d’água do meucopo noturno derrubado.

— ... sua idade, e que ele podeintimar o outro filho!

— Ôô — falei. — Eu me perdi.Volte e explique mais devagar.

Ela o fez. Contar as durasnotícias não tomou muito tempo(raramente toma): Storrow ia

aparecer no dia seguinte.Aterrissaria no aeroporto docondado e se hospedaria noLookout Rock Hotel, em CastleView. Os dois passariam a maiorparte da sexta-feira discutindo ocaso.

— Ah, ele encontrou umadvogado para você — disse ela. —Para ir a seu depoimento. Acho queé de Lewiston.

Tudo dava a impressão de estarbem, porém, bem mais importanteque os fatos em si era Mattie terrecuperado a vontade de lutar. Atéaquela manhã (se ainda eramanhã; a luz entrando pela janela

acima do ar-condicionado quebradosugeria que, se o fosse, não durariamuito) eu não tinha percebido aque ponto a moça de vestidovermelho de verão e asseados tênisbrancos estava sombria. Até queponto estava profundamentemergulhada na crença de queperderia a filha.

— Isso é ótimo. Estou tãocontente, Mattie.

— E foi você quem fez isso. Seestivesse aqui, eu lhe daria o maiorbeijo que já recebeu na vida.

— Ele disse que você podeganhar, não é?

— Disse.

— E você acreditou nele.— Acreditei! — Então sua voz

perdeu um pouco o ânimo. — Masele não ficou exatamenteencantado quando lhe contei quevocê veio jantar na noite passada.

— Não. Acho que não deve terficado.

— Eu disse a ele que comemosno pátio e ele disse que sóprecisávamos ficar dentro de casasessenta segundos para que afofoca começasse.

— Eu diria que ele tem umaopinião insultantemente baixa dosamorosos ianques — eu disse —,mas, é claro, ele é de Nova York.

Ela riu mais do que minhapequena brincadeira justificava,pensei. Por um semi-histérico alíviopor agora ter uma dupla deprotetores? Porque o assuntointeiro de sexo era agora algodelicado para ela no momento?Melhor não especular.

— Ele não me atormentoudemais com o assunto, mas deixouclaro que faria isso se repetíssemosa coisa. Mas, quando isso tudoterminar, vou convidar você parauma verdadeira refeição. Você vaiter tudo que gostar, exatamente domodo que gostar.

Tudo que gostar, exatamente do

modo que gostar. E ponho a minhamão no fogo, ela estava totalmenteinconsciente de que o que diziapoderia ter outro sentido. Fechei osolhos por um momento, sorrindo.Por que não sorrir? Tudo que elaestava dizendo parecia fantástico,especialmente depois que vocêdesanuviava os confins da mentesuja de Michael Noonan. Dava aimpressão de que poderíamos ter oesperado final de conto de fadas, semantivéssemos nossa coragem enosso rumo. E se eu pudesse meimpedir de dar uma cantada numagarota jovem o suficiente para serminha filha... quero dizer, fora de

meus sonhos. Se não pudesse, euprovavelmente mereceria o querecebesse. Mas Kyra não. Ela eraum enfeite de capô em tudo aquilo,condenada a ir aonde o carro alevasse. Se me ocorressem asideias erradas, eu teria que melembrar disso.

— Se o juiz mandar Devore paracasa de mãos vazias, levo você aoRenoir Nights em Portland e aconvido para provar um rangofrancês de nove pratos — eu disse.— Convido Storrow também. Bancoaté esse espião legal que vouencontrar na sexta-feira. Portanto,quem é melhor do que eu, hein?

— Ninguém que eu conheça —disse ela, com ar misterioso. — Voureembolsá-lo, Mike. Estou por baixoagora, mas não ficarei assim parasempre. Mesmo que leve o resto deminha vida, vou reembolsá-lo.

— Mattie, você não precisa...— Preciso — disse ela com uma

tranquila veemência. — Preciso. Ehoje tenho que fazer outra coisatambém.

— O quê? — Eu adorava o modocomo Mattie falava naquela manhã,tão feliz e livre, como umaprisioneira que tinha acabado deser perdoada e então libertada dacadeia, mas já estava olhando

ansioso para a porta do escritório.Não poderia fazer muito mais hoje,acabaria assado como uma maçã,mas queria pelo menos mais umapágina ou duas. Faça o que quiser,as duas mulheres tinham dito nomeu sonho. Faça o que quiser.

— Tenho que comprar o grandeurso de brinquedo para Kyra queeles têm no Wal-Mart de CastleRock — disse ela. — Vou dizer a elaque é por ser uma boa menina, jáque não posso dizer que é por elaandar no meio da estrada quandovocê estava vindo do outro lado.

— Mas não um preto — eu disse.As palavras saíram de minha boca

antes de eu saber sequer queestavam em minha cabeça.

— Ahn? — Ela pareceu surpresae incerta.

— Eu disse para me trazer um —falei, mais uma vez as palavrassaindo e descendo pelo fio antesmesmo que eu soubesse estaremlá.

— Talvez traga — disse ela,parecendo divertida. Então seu tomficou sério novamente. — E se eudisse alguma coisa na noitepassada que deixou você infeliz,mesmo por um minuto, desculpe.Eu jamais...

— Não se preocupe. Não estou

infeliz. Um pouco confuso, só isso.Na verdade, já tinha esquecidosobre o encontro misterioso de Jo.— Uma mentira, mas que mepareceu em boa causa.

— Provavelmente é o melhor.Não vou atrapalhar você. Volte aotrabalho. É o que quer fazer, não é?

Fiquei espantado.— Por que está dizendo isso?— Não sei, eu só... — Ela parou.

E de repente eu soube de duascoisas: o que ela esteve prestes adizer e o que não diria. Sonhei comvocê na noite passada. Sonheiconosco juntos. Íamos fazer amor eum de nós disse “Faça o que

quiser”. Ou talvez, não sei, talveznós dois tenhamos dito isso.

Talvez, às vezes, os fantasmasestejam vivos — mentes e desejosdivorciados de seus corpos,impulsos destrancados flutuandoinvisíveis. Fantasmas do id,espectros de lugares maisprofundos.

— Mattie? Ainda está aí?— Claro, pode apostar. Quer que

eu mantenha contato? Ou você vaisaber de tudo que precisa de JohnStorrow?

— Se não mantiver contato, vouficar aborrecido com você. Muito.

Ela riu.

— Então vou fazer isso. Mas nãoquando você estiver trabalhando.Até logo, Mike. E mais uma vez,obrigada. Mesmo.

Eu disse até logo e fiquei por ummomento contemplando o receptordo antigo telefone de baquelitadepois de ela desligar. Ela meligaria e me manteria a par dascoisas, mas não quando euestivesse trabalhando. Como é queia saber do momento?Simplesmente saberia. Como eusoube na noite passada que elaestava mentindo quando disse queJo e o homem com os remendosnos cotovelos do blazer haviam

andado em direção aoestacionamento. Mattie estavausando short branco e uma frenteúnica quando me ligou, hoje nãoera exigido vestido ou saia porqueera quarta-feira e a bibliotecafechava na quarta.

Você não sabe nada disso. Sóestá inventando.

Mas não estava. Se eu estivesseinventando, provavelmente a teriavestido com algo um pouco maissugestivo — um espartilho comcinta-liga da Victoria’s Secret,talvez.

Esse pensamento puxou outro.Faça o que quiser, tinham dito elas.

Ambas. Faça o que quiser. E aquelafrase eu conhecia. Enquanto estavaem Key Largo, tinha lido um ensaiosobre pornografia na AtlanticMonthly escrito por uma feminista.Não tinha certeza de quem, apenasque não havia sido Naomi Wolf nemCamille Paglia. A mulher era do tipoconservador, e usou aquela frase.Sally Tisdale, talvez? Ousimplesmente minha cabeça captoudistorções de eco de Sara Tidwell?Fosse quem fosse, ela afirmava que“faça o que eu quero” era a baseerótica que atraía as mulheres e“faça o que você quiser” era a baseda pornografia que atraía os

homens. As mulheres fantasiamdizer a primeira frase em situaçõessexuais; os homens fantasiam ter aúltima frase dita para eles. A autoracontinuava: quando o sexo na vidareal dá errado — às vezestornando-se violento, ouvergonhoso, ou às vezes apenasmalsucedido do ponto de vista daparceira feminina —, a pornografiaé frequentemente a cúmplice nãoindiciada na conspiração. O homemmostra-se propenso a virarraivosamente para a mulher egritar: “Você queria que eu fizesseisso! Pare de mentir e admita! Vocêqueria que eu fizesse isso!”

A autora afirmava que era issoque os homem esperavam ouvir noquarto: faça o que quiser. Morda-me, sodomize-me, lamba entremeus dedos dos pés, beba vinho nomeu umbigo, passe-me uma escovade cabelo e levante o rabo para queeu lhe dê uma surra, não importa.Faça o que quiser. A porta estáfechada e nós estamos aqui, masna verdade só você está aqui. Eunão tenho nenhuma carência,nenhuma necessidade, nenhumtabu. Faça o que quiser nessasombra, nessa fantasia, nessefantasma.

Achei uma merda pelo menos

cinquenta por cento do que aensaísta dizia; a pressuposição deque um homem só pode terverdadeiro prazer sexualtransformando a mulher numaespécie de acessório demasturbação diz mais sobre aobservadora do que sobre osparticipantes. A mulher exibia ummonte de jargões e uma boaquantidade de espírito, mas porbaixo disso estava apenasrepetindo o que SomersetMaugham, o velho favorito de Jo,fez Sadie Thompson dizer emChuva, uma história escrita oitentaanos antes: todos os homens são

porcos, porcos sujos e imundos.Mas em regra geral não somosporcos, nem animais, ou pelomenos não até que sejamosempurrados à extremidade final. Ese somos empurrados até ela,raramente a questão é sexo;geralmente é território. Já escuteifeministas argumentarem que paraos homens sexo e território sãointercambiáveis, e isso está muitolonge da verdade.

Voltei sem ruído ao escritório,abri a porta e atrás de mim otelefone tocou de novo. E ali estavaoutra sensação familiar voltandopara mais uma visita depois de

quatro anos: aquela raiva dotelefone, o impulso desimplesmente arrancá-lo da paredee atirá-lo pelo aposento. Por que omundo inteiro tinha que ligarquando eu estava escrevendo? Porque não podiam... bem... me deixarfazer o que eu queria?

Dei um sorriso desconfiado evoltei ao telefone, vendo nele aimpressão molhada de minha mãode quando o atendi pela última vez.

— Alô.— Eu disse para ficar visível

enquanto estivesse com ela.— Bom dia para você também,

advogado Storrow.

— Você deve estar em outro fusohorário aí, companheiro. Aqui emNova York é uma e quinze.

— Jantei com ela — falei. — Dolado de fora. É verdade que li umahistória para a garotinha e ajudei-aa ir para cama, mas...

— Imagino que a essa horametade da cidade pensa que vocêsdois estão trepando sem parar, e aoutra metade vai pensar isso se eutiver que representá-la na cortesuperior. — Mas ele não pareciazangado de fato; achei que dava aimpressão de estar tendo um diafeliz.

— Eles obrigam você a dizer

quem está pagando por seusserviços? — perguntei. — Querodizer, na audiência da custódia?

— Não.— No meu depoimento de sexta-

feira?— Minha nossa, não. Durgin

perderia toda a credibilidade comoguardião ad litem se enveredassepor essa direção. Além disso, elestêm motivos para ficar longe doângulo sexual. Estão centrados emMattie como negligente e talvezcorrupta. Provar que mamãe não éuma freira deixou de funcionar porvolta da época em que Kramerversus Kramer chegou aos cinemas.

E esse não é o único problema queeles têm com o assunto. — Agoraparecia positivamente alegre.

— Conte.— Max Devore tem 85 anos e é

divorciado. Divorciado duas vezes.Antes de conceder a custódia a umhomem solteiro com a idade dele,uma custódia secundária tem queser levada em consideração. Naverdade, é a questão isolada maisimportante, além das alegações demaus-tratos e negligênciaapontadas contra a mãe.

— Que alegações são essas?Você sabe?

— Não. Mattie também não,

porque são invenções. Ela é umamor, por falar nisso...

— É, sim.— ... e acho que vai dar uma

ótima testemunha. Mal possoesperar para conhecê-lapessoalmente. Enquanto isso, nãome desvie do caminho. Estávamosfalando sobre custódia secundária,não é?

— É.— Devore tem uma filha que foi

declarada mentalmenteincompetente em algum lugar daCalifórnia. Em Modesto, acho. Não éuma boa aposta para custódia.

— Não parece mesmo.

— O filho Roger tem... — Ouvi otênue virar de páginas de umcaderno de anotações. — 54 anos.Portanto, também não éexatamente um broto. Mesmoassim, um monte de sujeitos setornou pai nessa idade hoje em dia;é um admirável mundo novo. MasRoger é homossexual.

Pensei em Bill Dean dizendo:gosta de rabo. Soube que há ummonte disso lá na Califórnia.

— Pensei que tivesse dito quesexo não tinha importância.

— Talvez devesse ter dito quesexo hetero não tem importância.Em certos estados, e a Califórnia é

um deles, sexo homo também nãotem importância... ou não muita.Mas esse caso não vai ser julgadona Califórnia, e sim no Maine, ondeo pessoal é menos esclarecidosobre até que ponto dois homenscasados, quer dizer, casados umcom o outro, podem criar bem umagarotinha.

— Roger Devore é casado? —Certo. Confesso. Agora eu mesmosentia um horrorizadocontentamento. Envergonhava-medele. Roger Devore era apenas umsujeito vivendo sua vida, e poderianão ter tido muito ou nada a vercom o atual empreendimento de

seu idoso pai, mas mesmo assimme senti contente.

— Ele e um designer de softwarechamado Morris Ridding seamarraram em 1996 — disse John.— Encontrei a história na primeiravarrida de computador. E se o casoacabar na Corte, pretendo tirardisso o máximo que puder. Não seiquando será, neste ponto éimpossível prever, mas se eu tiveruma chance de pintar um quadrodaquela alegre garotinha de olhosbrilhantes crescendo com dois gaysidosos que provavelmente passama maior parte de suas vidas nassalas de bate-papo de computador

especulando o que o capitão Kirk esr. Spock podem ter feito depoisque as luzes se apagaram na áreados oficiais... bem, se eu tiver essachance, vou pegá-la.

— Parece um pouco mesquinho— eu disse. Ouvi-me falando notom de um homem que quer serdissuadido ou talvez até que riamdele, mas isso não aconteceu.

— Claro que é mesquinho. Écomo dar uma guinada para acalçada e derrubar dois inocentesespectadores. Roger Devore eMorris Ridding não lidam comdrogas, não traficam menininhos,nem roubam velhas. Mas isso é um

caso de custódia, e custódia é aindamais eficiente em transformar sereshumanos em insetos do quedivórcio. Este caso não é tão ruimquanto poderia ser, mas é ruim obastante porque é tão evidente.Max Devore apareceu em sua velhacidade natal por uma única eexclusiva razão: comprar umacriança. Isso me deixa louco.

Sorri, imaginando um advogadoque parecia o Hortelino Troca-letras, em pé do lado de fora deuma toca de coelho com o nomeDEVORE, segurando uma espingarda.

— Meu recado para Devore vaiser muito simples: o preço da

criança simplesmente aumentou.Provavelmente para uma ciframaior do que ele pode pagar.

— Se isso for à Corte... Você jádisse isso duas vezes. Acha que háuma chance de Devoresimplesmente desistir do caso e irembora?

— Uma bastante boa, sim. Eudiria uma excelente se ele nãofosse velho e acostumado a ter ascoisas a seu modo. Há também aquestão de até que ponto ele aindaestá suficientemente astuto parasaber o que é melhor para simesmo. Vou tentar me encontrarcom ele e seu advogado enquanto

estiver lá, mas até agora não tenhoconseguido passar além dasecretária.

— Rogette Whitmore?— Não, acho que ela está um

degrau acima na escada. Ainda nãofalei com ela. Mas vou falar.

— Tente Richard Osgood ouGeorge Footman — eu disse. — Umdeles pode colocá-lo em contatocom Devore ou com o advogado-chefe de Devore.

— De qualquer modo, vou quererfalar com essa Whitmore. Homenscomo Devore tendem a ficar cadavez mais dependentes de seusconselheiros próximos quando ficam

mais velhos, e ela pode ser umachave para fazer com que eledesista da coisa. Pode também seruma dor de cabeça para nós,incentivá-lo a lutar; provavelmenteporque ache mesmo que ele possavencer e porque quer ver as penasvoarem. Além disso, pode se casarcom ele.

— Casar com ele?— Por que não? Ele pode tê-la

feito assinar um acordo pré-nupciale isso fortaleceria as chances dele.Eu não posso apresentar isso nacorte, da mesma forma que osadvogados de Devore não podemtentar descobrir quem contratou o

advogado de Mattie.— John, eu vi a mulher. Ela deve

ter uns 70 anos.— Mas é uma potencial jogadora

mulher num caso de custódiaenvolvendo uma garotinha, e é umacamada entre o velho Devore e ocasal gay. Temos que ter isso emmente.

— Tudo bem. — Olheinovamente para a porta doescritório, mas não com tantoanseio. Chega um ponto em quevocê acabou por aquele dia, querqueira quer não, e achei que tinhachegado a esse ponto. Talvez ànoite...

— O advogado que arranjei paravocê atende pelo nome de RomeoBissonette. — Fez uma pausa. —Isso lá pode ser um nomeverdadeiro?

— Ele é de Lewiston?— É, como é que você sabe?— Porque no Maine,

especialmente para as bandas deLewiston, esse nome pode serverdadeiro. Devo ir falar com ele?— Eu não queria ir a Lewiston. Atélá eram 80 quilômetros porestradas de duas pistas queestariam agora apinhadas decampistas e trailers. Eu queria eranadar e depois tirar uma longa

soneca. Uma longa soneca semsonhos.

— Não é necessário. Ligue econverse um pouco com ele. Naverdade, ele é apenas uma rede desegurança. Fará objeções se oquestionamento se desviar doincidente da manhã de 4 de Julho.Sobre aquele incidente conte averdade, toda a verdade e nadamais que a verdade. Entendeu?

— Sim.— Converse com ele antes,

depois o encontre na sexta na...espere... está bem aqui... — Aspáginas do caderno de notas foramviradas novamente. — Encontre

com ele no Diner da rota 120 às9h15. Café. Fale um pouco, travemconhecimento, briguem para pagara conta, talvez. Eu vou estar comMattie, obtendo o máximo deinformações que puder. Podemosquerer contratar um detetiveparticular. Vou providenciar paraque as contas sejam remetidas aseu homem, Goldacre. Ele vaimandá-las para seu agente, e oagente pode...

— Não — eu disse. — MandeGoldacre remetê-las diretamentepara cá. Harold é uma mãe judia.Quanto é que isso vai me custar?

— Setenta e cinco mil dólares, no

mínimo — disse ele, sem nenhumahesitação. E também sem qualquerdesculpa na voz.

— Não diga isso a Mattie.— Tudo bem. Você já está se

divertindo um pouco com isso,Mike?

— Sabe, acho que estou — eudisse pensativamente.

— Por 75 mil, deveria. — Nós nosdespedimos e John desligou.

Enquanto recolocava o telefoneno gancho, ocorreu-me que eutinha vivido mais nos últimos cincodias do que nos últimos quatroanos.

Dessa vez o telefone não tocou epercorri o caminho de volta aoescritório, mas sabendo que estavadefinitivamente liquidado poraquele dia. Sentei ante a IBM,apertei duas vezes a tecla quemudava de linha e estavacomeçando a escrever umaanotação para mim mesmo sobre opasso seguinte no final da páginaem que trabalhava quando otelefone me interrompeu. Quecoisinha azeda é o telefone, e comorecebemos dele poucasnoticiazinhas boas! Mas aquele diafoi uma exceção, e achei que podiaterminar o dia com um sorriso. Eu

estava trabalhando, afinal decontas — trabalhando. Parte demim ainda se maravilhava de poderestar sentado ali, respirando comfacilidade, coração batendocontinuamente no peito, e sem nemo vislumbre de um ataque deansiedade no meu horizonte deeventos pessoais. Escrevi:

[A SEGUIR: Drake para Raiford. Para

no caminho da barraca de verduras

para falar com o cara que toma conta

dela, origem antiga, precisa de um

nome bom e colorido. Chapéu de palha.

Camiseta da DisneyWorld. Falam sobre

Shackleford.]

Virei o rolo até que a IBM

cuspisse a página, coloquei-a noalto do manuscrito e rabisquei umanota final para mim mesmo: “Ligarpara Ted Rosencrief sobre Raiford.”Rosencrief era um marinheiroaposentado que morava em Derry.Eu o empreguei como assistente depesquisa para diversos livros,usando-o, num projeto, paradescobrir como o papel era feito;em outro, para saber quais eram oshábitos migratórios de certospássaros comuns; e num terceiro,para levantar um pouquinho deinformações sobre a arquitetura dassalas fúnebres das pirâmides. Equero sempre “um pouquinho”,

nunca “a porcaria da coisa toda”.Como escritor, minha divisa semprefoi não me deixe confuso com osfatos. O tipo de ficção Arthur Haileyestá fora de meu alcance — e senão consigo lê-la, que dirá escrevê-la. Só quero saber o suficiente paramentir com certo colorido. Rosiesabia disso, e sempre havíamostrabalhado bem juntos.

Desta vez, eu precisava de umpouquinho sobre a Prisão Raiford,da Flórida, e qual era a aparênciada casa da morte lá. Tambémprecisava de um pouquinho sobre apsicologia dos serial killers. Acheique Rosie provavelmente ficaria

contente de ter notícias minhas...quase tão contente quanto eu definalmente ter um motivo para ligarpara ele.

Peguei as oito páginas emespaço duplo que havia escrito efolheei-as, ainda surpreso com suaexistência. O segredo teria sido otempo todo uma velha máquina deescrever IBM e uma bola de tipoCourier? Sem dúvida era o queparecia.

O que saíra também erasurpreendente. Haviam me ocorridoideias durante minhas fériassabáticas de quatro anos; quanto aisso, nenhum bloqueio de escritor.

Uma delas fora realmentefantástica, o tipo da coisa quecertamente teria se tornado umromance se eu ainda fosse capaz deescrever romances. De meia dúziaa uma dúzia eram do tipo que euclassificaria de “bastante boas”,significando que poderiam servirquando necessário... ou secrescessem misteriosamente do diapara a noite, como o pé de feijãode João. Às vezes isso acontececom as ideias. Na maior parte eramvislumbres, pequenos “e se” quesurgiam e sumiam como estrelascadentes enquanto eu estavadirigindo, caminhando ou

simplesmente deitado na cama ànoite, à espera do sono.

O homem da camisa vermelhatinha sido um “e se”. Certo dia vium homem com uma vistosacamisa vermelha lavando a vitrineda loja JCPenney em Derry — nãomuito tempo antes de Penneymudar-se para o shopping. Umrapaz e uma moça passaram sob aescada dele... o que dava muita másorte, segundo a velha superstição.Mas aqueles dois não tinham noçãode onde estavam andando —estavam de mãos dadas, bebendonos olhos um do outro, tãocompletamente apaixonados como

quaisquer dois jovens na história domundo. O rapaz era alto e,enquanto eu observava, o topo desua cabeça por um triz nãoesbarrou nos pés do lavador davitrine. Se isso tivesse acontecido,todo o trabalho teria que serrefeito.

O incidente transformou-se emhistória em cinco segundos.Escrever O homem da camisavermelha levou cinco meses. Sóque, na verdade, todo o livro foifeito num segundo “e se”. Imagineiuma colisão em vez de uma quase-colisão. Tudo o mais se seguiu dali.O ato de escrever foi tarefa de

secretário.A ideia em que eu trabalhava no

momento não era uma das IdeiasRealmente Ótimas de Mike (a vozde Jo escreveu cuidadosamente asletras maiúsculas), mas tambémnão era uma “e se”. Assim comotambém não se parecia muito comminhas velhas e compridas históriasgóticas de suspense; V. C. Andrewscom um pau não estava visível emparte alguma dessa vez. Mas acoisa parecia sólida, verdadeira, enaquela manhã saíra tãonaturalmente como a respiração.

Andy Drake, investigadorparticular em Key Largo, tinha 40

anos, era divorciado e pai de umagarota de 3 anos. No início dahistória, ele se encontrava na casade Key West de uma mulherchamada Regina Whiting. A sra.Whiting também tinha uma filhinha,com 5 anos. Era casada com umconstrutor extremamente rico quedesconhecia o que Andy Drakesabia: que até 1992 Regina TaylorWhiting tinha sido Tiffany Taylor,uma call-girl de luxo em Miami.

Eu escrevi até aí antes de otelefone começar a tocar. O que eusabia além desse ponto, o trabalhode secretário que faria nas váriassemanas vindouras (presumindo-se

que minha recuperada capacidadede trabalhar se mantivesse), era oseguinte:

Certo dia, quando Karen Whitingtinha 3 anos, o telefone tocouenquanto ela e a mãe estavamsentadas na pequena piscinaaquecida do pátio. Regina pensouem pedir ao jardineiro para atendê-lo, mas depois decidiu fazê-lo elamesma — seu empregado habitual,resfriado, não estava, e ela não sesentiu à vontade de pedir um favora um estranho. Advertindo à filhaque ficasse sentadinha imóvel,Regina pulou da piscina paraatender ao telefone. Quando Karen

levantou a mão para se abrigar dosborrifos provocados pela saída damãe, deixou cair a boneca na qualvinha dando banho. Ao se curvarpara pegá-la, seu cabelo ficou presonum dos poderosos orifícios desucção da piscina. (Ler sobre umacidente fatal como esse foi o queoriginalmente desencadeou ahistória em minha cabeça dois outrês anos antes.)

O jardineiro, alguma nãoentidade de camisa cáqui enviadopor uma empresa de diaristas, viu oque estava acontecendo. Disparoupelo gramado, mergulhou decabeça na piscininha e arrancou a

criança do fundo, deixando cabelo eum bom naco de couro cabeludotapando o jato ao fazê-lo. Entãoaplicou respiração artificial namenina até que esta começasse arespirar de novo. (Isso seria umacena maravilhosa, cheia desuspense, e eu mal podia esperarpara escrevê-la.) Ele recusariatodos os oferecimentos derecompensa por parte da mãehistérica e aliviada, emboraacabasse por lhe dar um endereçopara que o marido dela pudesseentrar em contato com ele.Contudo, tanto o endereço quantoseu nome, John Sanborn, se

revelariam falsos.Dois anos depois a ex-prostituta

com a respeitável segunda vida vêo homem que salvou sua filha naprimeira página de um jornal deMiami. Identificado como JohnShackleford, ele tinha sido presopelo assassinato-estupro de umamenina de 9 anos. A reportagemacrescenta que ele é suspeito demais de quarenta assassinatos,sendo que muitas das vítimas eramcrianças. “Vocês pegaram o Bonéde Beisebol?”, gritaria um dosrepórteres numa entrevistacoletiva. “John Shackleford é Bonéde Beisebol?”

— Bom — eu disse, descendo aescada —, eles sem dúvida pensamque é.

Estava ouvindo barcos demais nolago naquela tarde para pensar napossibilidade de um banho nu.Botei o calção, pendurei uma toalhanos ombros e comecei a descer ocaminho — margeado defulgurantes lanternas de papel emmeu sonho — para eliminar o suordos pesadelos e de meu inesperadotrabalho da manhã.

Há 23 degraus feitos comdormentes entre Sara e o lago. Eutinha descido apenas quatro oucinco antes da enormidade do que

acabara de acontecer me atingisse.Minha boca começou a tremer. Ascores das árvores e do céumisturaram-se ante meus olhosmarejados. De dentro de mimcomeçou a sair uma espécie degemido abafado. A força abandonouminhas pernas e sentei numdormente com um baque. Por ummomento, achei que a coisa tivessepassado, provavelmente um alarmefalso; então comecei a chorar.Enfiei uma ponta da toalha na bocadurante o pior da crise, com medode que o pessoal dos barcos nolago ouvissem os sons saindo demim, iam pensar que alguém

estava sendo assassinado ali.Chorei de dor pelos anos vazios

que tinha passado sem Jo, semamigos e sem meu trabalho. Choreide gratidão porque aqueles anossem trabalho pareciam terminados.Claro que ainda era muito cedopara dizer — uma andorinha nãofaz verão e oito páginas de textoem estado bruto não ressuscitamuma carreira —, mas pensei quebem poderiam fazê-lo. E chorei demedo também, como fazemosquando uma péssima experiênciafinalmente acaba ou quandoescapamos por pouco de umterrível acidente. Chorei porque

percebi de repente que vinhacaminhando por uma linha brancadesde que Jo tinha morrido,caminhando direto pelo meio daestrada. Por algum milagre, eu fuiarrastado para fora do perigo. Nãotinha ideia de quem tinha feitoaquilo, mas, tudo bem, era umapergunta que podia esperar poroutro dia.

Expulsei tudo aquilo de mimatravés do choro. Então desci até olago e investi contra ele comenergia. A água fria no meu corposuperaquecido foi mais do que boa:parecia uma ressurreição.

Capítulo Quinze

— Declare seu nome para o registro.— Michael Noonan.— Endereço?— Derry é o meu endereço

permanente, rua Benton, 14, mastambém tenho uma casa na TR-90,em Dark Score Lake. O endereçopara correspondência é caixa postal832. A casa é na estrada 42, forada rota 68.

Elmer Durgin, o guardião ad

litem de Kyra Devore, abanou umarechonchuda mão na frente dorosto para espantar algum insetoincômodo ou para me dizer que jáchegava. Concordei. Sentia-meligeiramente como a garotinha dape ça Nossa cidade, de ThorntonWilder, que dá seu endereço comoGrover’s Corner, New Hampshire,América, Hemisfério Norte, Mundo,Sistema Solar, Via Láctea, a Mentede Deus. Estava sobretudo nervoso.Havia chegado aos 40 anos aindavirgem na área dos procedimentoslegais e, embora estivéssemos nasala de conferência de Durgin,Peters e Jarrette, na rua Bridge em

Castle Rock, ainda assim aquilo eraum procedimento legal.

Havia um detalhe estranho dignode nota naquelas festividades. Oestenógrafo não usava um daquelesteclados que parecem máquinas desomar e sim uma Stenomask, umdispositivo que se ajustava àmetade inferior de seu rosto. Eu jáos vi antes, mas só em velhosfilmes policiais preto e branco,aqueles em que Dan Duryea ouJohn Payne está sempre rodandonum Buick com portinholas naslaterais, parecendo sombrio efumando um Camel. Olhar para ocanto e ver um sujeito que parecia

o mais velho piloto de combate domundo já era esquisito, mas ouvirtudo que você dizia imediatamenterepetido num tom abafado emonótono era mais esquisito ainda.

— Obrigado, sr. Noonan. Minhamulher lê todos os seus livros e dizque o senhor é o seu escritorpreferido. Eu só queria registraraquilo. — Durgin riu pesadamente.Por que não? Era um cara gordo.Gosto da maioria dos gordos, sãonaturezas expansivas paracombinar com suas cinturasexpansivas. Mas há um subgrupoque eu costumo chamarmentalmente de o Pessoalzinho

Gordo Malvado. Nem pense em semeter com o PGM, se puder evitar;eles queimarão a sua casa eestuprarão seu cachorro, se vocêlhes der a metade de um pretexto eum quarto de oportunidade. Poucosdeles medem além de 1,58 metro(a altura de Durgin, segundo euavaliava), e muitos têm menos de1,52 metro. Sorriem muito, masseus olhos não. O PessoalzinhoGordo Malvado odeia todo mundo.Odeia principalmente o pessoal quepode olhar para baixo por toda aextensão do próprio corpo e aindaver os pés. Isso me incluía, emborapor pouco.

— Por favor, agradeça à suamulher por mim, sr. Durgin. Tenhocerteza de que ela poderiarecomendar um para o senhortambém.

Durgin deu uma risadinha. Porconta dele, a assistente de Durgin— uma bonita moça que parecia tersaído da escola de direito há uns 17minutos — deu uma risadinhatambém. À minha esquerda, RomeoBissonette também riu. No canto, opiloto de F-111 mais velho domundo continuava murmurando emsua Stenomask.

— Vou esperar pela versão paraa tela grande — disse ele. Seus

olhos emitiram um brilho cruel,como se ele soubesse que jamaistinha sido feito um longa-metragemcom um de meus livros, apenas umfilme-para-TV de Sendo dois, quese classificou mais ou menos damesma forma que os CampeonatosNacionais de Forração de Sofá. Euesperava que já tivéssemospercorrido toda a gama debrincadeiras daquele idiotagorducho.

— Sou o guardião ad litem deKyra Devore — disse ele. — Sabe oque isso significa, sr. Noonan?

— Acho que sim.— Significa — continuou Durgin

— que fui indicado pelo juizRancourt para decidir, se eu puder,o que é melhor para Kyra Devore,caso um julgamento sobre acustódia se tornar necessário. Seisso acontecer, o juiz Rancourt nãoseria solicitado a basear suadecisão em minhas conclusões, masem muitos casos é isso queacontece.

Olhou para mim com as mãosdobradas sobre um bloco de notasem branco. A bonita assistente, poroutro lado, rabiscava loucamente.Talvez não confiasse no piloto decombate. Durgin parecia esperaruma rodada de aplausos.

— Isso foi uma pergunta, sr.Durgin? — falei, e RomeoBissonette despachou um leve eexperiente chute no meu tornozelo.Não precisei encará-lo para saberque o chute não tinha sidoacidental.

Durgin franziu os lábios, queficaram tão lisos e úmidos quedavam a impressão de estaremcom gloss. Em sua cabeça lustrosa,duas dúzias de fios de cabeloestavam penteados em arcospequenos e delicados. Lançou-meum olhar paciente e avaliador, maspor trás dele havia toda a feiuraintransigente de um membro do

Pessoalzinho Gordo Malvado. Asbrincadeiras tinham terminado, semdúvida.

— Não, sr. Noonan, não foi umapergunta. Simplesmente achei queo senhor gostaria de saber por quelhe tínhamos pedido para deixarseu adorável lago numa manhã tãoaprazível. Talvez eu estivesseenganado. Agora, se...

Ouviu-se uma peremptóriabatida na porta, seguida pelapresença de nosso amigo GeorgeFootman. Hoje, o Cleveland Casualfoi substituído por um uniformecáqui de xerife-adjunto, juntamentecom o cinto Sam Browne e a arma

na cintura. Ele se gratificou comuma boa olhada no busto daassistente, exibido numa blusa deseda azul; depois entregou a elauma pasta de papéis e um gravadorde fita cassete, lançando-me umrápido olhar antes de ir embora. Eume lembro de você, camarada,dizia o olhar. O escritor metido abesta.

Romeo Bissonette inclinou acabeça em minha direção, usando alateral da mão para preencher abrecha entre sua boca e minhaorelha.

— A fita de Devore — disse ele.Assenti com a cabeça para

mostrar que tinha entendido,depois me virei de novo paraDurgin.

— Sr. Noonan... o senhor estevecom Kyra Devore e sua mãe, MaryDevore, não é?

Eu me perguntei como teria eletransformado Mattie em Mary... eentão soube, da mesma forma quetinha ficado sabendo sobre o shorte a frente única brancos. Mattie eracomo Ki inicialmente tentoupronunciar Mary.

— Sr. Noonan, estamosmantendo sua atenção?

— Não é necessário sersarcástico, é? — disse Bissonette.

Seu tom era suave, mas ElmerDurgin lançou-lhe um olharsugerindo que se o PGM alcançasseo objetivo de dominar o mundo,Bissonette estaria a bordo doprimeiro vagão de carga partindopara o gulag.

— Desculpe — falei antes queDurgin pudesse responder. — Eume distraí por um ou doissegundos.

— Ideia para uma nova história?— perguntou Durgin, desfechandoseu sorriso reluzente. Parecia umsapo do pântano com blazer. Virou-se para o velho piloto, disse-lhefinalmente para atacar e depois

repetiu a pergunta sobre Kyra eMattie.

Sim, respondi, eu estive comelas.

— Uma vez só ou mais de uma?— Mais de uma.— Quantas vezes o senhor

esteve com elas?— Duas vezes.— Também falou com Mary

Devore por telefone?As perguntas moviam-se numa

direção que me deixavam pouco àvontade.

— Sim.— Quantas vezes?— Três vezes. — A terceira tinha

sido no dia anterior, quando Mattieme perguntou se eu queria fazerum piquenique no parque da cidadecom ela e John Storrow depois demeu depoimento. Almoço bem nomeio da cidade, diante de Deus etodo mundo... mas com o advogadode Nova York bancando a dama decompanhia, que mal podia haver?

— O senhor falou com KyraDevore ao telefone?

Que pergunta esquisita! Ninguémtinha me preparado para aquilo.Imaginei que, pelo menos emparte, foi por isso que ele me fez apergunta.

— Sr. Noonan?

— Sim, falei com ela uma vez.— Pode nos contar a natureza da

conversa?— Bom... — Em dúvida, olhei

para Bissonette, mas não veionenhuma ajuda de lá. Obviamenteele também não sabia. — Mattie...

— Perdão? — Durgin inclinou-separa a frente o máximo que podia.Seus olhos mostraram-se atentosnas bolsas de carne cor-de-rosa. —Mattie?

— Mattie Devore. Mary Devore.— O senhor a chama de Mattie?— Sim — respondi, sentindo um

impulso alucinado de acrescentar:Na cama! Eu a chamo assim na

cama! “Ah, Mattie, não pare, nãopare”, grito! — Foi o nome que elame deu quando nos conhecemos.Eu a conheci...

— Podemos chegar até lá, masneste momento estou interessadoem sua conversa por telefone comKyra Devore. Quando foi isso?

— Ontem.— 9 de julho de 1998.— É.— Quem deu o telefonema?— Ma... Mary Devore. — Agora

vai perguntar por que ela ligou,pensei, e eu vou dizer que elaqueria ter mais uma maratona desexo, tendo como preliminares

darmos um ao outro morangosmergulhados em chocolateenquanto olhávamos retratos deanões deformados e nus.

— Como é que Kyra Devorechegou a falar com o senhor?

— Ela perguntou se podia falar.Eu a ouvi dizendo à mãe que tinhaque me contar uma coisa.

— O que é que ela queria contar?— Que tomou seu primeiro

banho de espuma.— Ela também contou que havia

tossido?Fiquei quieto, encarando-o.

Naquele instante, entendi por queas pessoas odeiam advogados,

sobretudo quando foramatropelados por um que faz bem oseu trabalho.

— Sr. Noonan, gostaria que eurepetisse a pergunta?

— Não — respondi, imaginandoonde ele obteve aquela informação.Teriam esses patifes grampeado otelefone de Mattie? O meu? Osdois? Talvez eu tenhacompreendido pela primeira veznum nível visceral o que significapossuir meio bilhão de dólares.Com tanta grana, pode-segrampear um monte de telefones.

— Ela disse que a mãe jogouespuma no rosto dela e ela tossiu.

Mas estava...— Obrigado, sr. Noonan, agora

vamos passar a...— Deixe-o acabar — disse

Bissonette. Achei que ele jáparticipara mais dos procedimentosdo que tinha esperado, mas ele nãoparecia se importar. Era um homemde aparência sonolenta, com orosto melancólico e confiável de umcão de caça.

— O senhor não o estáinterrogando num tribunal —Bissonette continuou.

— Tenho que pensar no bem-estar da menina — disse Durgin,dando uma impressão ao mesmo

tempo pomposa e humilde, umamistura que combinava tantoquanto calda de chocolate commilho cozido. — É umaresponsabilidade que assumo muitoseriamente. Se dei a impressão deestar aborrecendo o senhor, peçodesculpas, sr. Noonan.

Não me dei ao trabalho deaceitar suas desculpas — isso teriatransformado nós dois emimpostores.

— Eu só ia dizer que Ki estavarindo quando falou aquilo. Ela disseque ela e a mãe tinham tido umabriga de espuma. Quando a mãedela voltou ao telefone, também

estava rindo.Durgin abriu a pasta de papéis

que Footman tinha lhe trazido e afolheava rapidamente ao falar,como se não estivesse ouvindo umapalavra sequer.

— A mãe... Mattie, como osenhor a chama.

— É. Mattie é como eu a chamo.Em primeiro lugar, como é que osenhor sabe sobre nossa conversaparticular ao telefone?

— Não é da sua conta, sr.Noonan. — Escolheu uma únicafolha de papel e então fechou apasta. Segurou brevemente a folhade papel, como um médico

examinando um raio X, e pude verque estava coberta de letrasdatilografadas em espaço um. —Vamos voltar ao seu encontro inicialcom Mary e Kyra Devore. Foi no 4de Julho, não foi?

— Foi.Durgin balançou a cabeça

positivamente.— Na manhã do 4 de Julho. E o

senhor encontrou Kyra Devoreprimeiro.

— Sim.— O senhor a encontrou primeiro

porque a mãe não estava com elanaquele momento, não é?

— A pergunta está malfeita, sr.

Durgin, mas acho que a resposta ésim.

— Fico lisonjeado em ter minhagramática corrigida por um homemque faz parte da lista dos best-sellers — disse Durgin sorrindo. Osorriso sugeria que ele gostaria deme ver sentado ao lado de RomeoBissonette naquele primeiro vagãode carga partindo para o gulag.

— Conte-me seu encontro,primeiro com Kyra Devore e depoiscom Mary Devore. Ou Mattie, sepreferir.

Contei a história. Quandoterminei, Durgin centrou o gravadorà sua frente. Tinha as unhas dos

dedos tão lustrosas quanto oslábios.

— Sr. Noonan, o senhor poderiater atropelado Kyra Devore, nãopodia?

— De modo nenhum. Eu estava a60 quilômetros por hora, é o limitede velocidade perto do armazém.Eu a vi com tempo mais quesuficiente para parar.

— Mas suponhamos que o senhortivesse vindo do outro lado, indopara o norte em vez de para o sul.Mesmo assim o senhor a teria vistocom tempo mais do que suficiente?

Na verdade, a pergunta era maisjusta do que algumas das outras.

Alguém vindo pelo outro lado teriatido menos tempo para reagir.Mesmo assim...

— Teria — eu disse.Durgin levantou as sobrancelhas.— Tem certeza?— Sim, sr. Durgin. Eu poderia ter

que apertar o freio um pouco maisbruscamente, mas...

— A 60 por hora.— É, a 60 por hora. Já lhe disse,

é o limite de velocidade...— ... naquele trecho específico

da rota 68. É, o senhor já me disse.Sua experiência lhe diz que amaioria das pessoas obedece aolimite de velocidade naquela parte

da estrada?— Não tenho passado muito

tempo na TR desde 1993, portantonão posso...

— Ora, sr. Noonan, isso não éuma cena de um de seus livros.Apenas responda às minhasperguntas ou ficaremos aqui amanhã inteira.

— Estou fazendo o melhor queposso, sr. Durgin.

Ele suspirou, num fingimento.— O senhor tem a sua casa em

Dark Score Lake desde os anos1980, não é? E o limite develocidade em torno do ArmazémLakeview e da Oficina de Dick

Brooks, a chamada Aldeia Norte,não mudou desde então, não é?

— É — admiti.— Voltando à minha pergunta

original, portanto: em suaobservação, a maioria das pessoasnaquele trecho de estrada obedeceao limite de 60 quilômetros porhora?

— Não posso falar da maioriaporque nunca fiz uma pesquisasobre o tráfego, mas acho quemuitos não obedecem.

— Gostaria de ouvir Footman, oxerife-adjunto do condado deCastle, declarar qual é o lugar ondehá mais multas por excesso de

velocidade na TR, sr. Noonan?— Não — eu disse

honestamente.— Outros veículos passaram

enquanto o senhor falava primeirocom Kyra Devore e depois comMary Devore?

— Sim.— Quantos?— Não sei exatamente. Uns dois.— Poderiam ter sido três?— Acho que sim.— Cinco?— Não, provavelmente não

tantos.— Mas o senhor não sabe

exatamente, sabe?

— Não.— Porque Kyra Devore estava

perturbada.— Na verdade, ela passou por

aquilo muito bem para uma...— Ela chorou na sua presença?— Bem... chorou.— A mãe a fez chorar?— Isso é injusto.— Na sua opinião tão injusto

quanto permitir que uma menina de3 anos passeie pelo meio de umarodovia agitada numa manhã deferiado, ou talvez não tão injusto?

— Minha nossa, sessão suspensa— disse suavemente Bissonette.Seu rosto mostrava apreensão.

— Retiro a pergunta — disseDurgin.

— Qual delas? — perguntei.Ele me olhou com cansaço, como

se dissesse que tinha que aguentarimbecis como eu o tempo todo eque já estava acostumado aocomportamento deles.

— Quantos carros passaram domomento em que o senhor botou acriança em segurança até omomento em que o senhor e asDevore se separaram?

Detestei aquele “botou a criançaem segurança”, mas mesmoenquanto eu formulava minharesposta o sujeito velho murmurava

a pergunta em sua Stenomask. E naverdade era o que eu havia feito.Impossível escapar daquilo.

— Já lhe disse, não sei comcerteza.

— Bom, dê um palpite-estimativa.

— Podem ter sido três.— Inclusive a própria Mary

Devore? Dirigindo um... —consultou a papel que tirou dapasta — um Jeep Scout 1982?

Pensei em Ki dizendo Mattie vemdepressa e entendi aonde é queDurgin queria chegar agora. E nãohavia nada que eu pudesse fazer arespeito.

— Sim, era ela e era um Scout.Não sei de que ano.

— Ela estava dirigindo abaixo dolimite de velocidade, dentro dolimite ou acima do limite quandopassou pelo lugar onde o senhorestava com Kyra no colo?

Ela estava a pelo menos 80quilômetros, mas eu disse a Durginque não podia saber com certeza.Ele insistiu para que eu tentasse —Sei que o senhor não temfamiliaridade com o nó do carrasco,sr. Noonan, mas tenho certeza deque pode fazer um, se tentar comafinco —, e recusei tãoeducadamente quanto pude.

Ele pegou o papel de novo.— Sr. Noonan, ficaria surpreso de

saber que duas testemunhas,Richard Brooks Jr., o proprietário daoficina, e Royce Merrill, umcarpinteiro aposentado, afirmamque a sra. Devore estava indo abem mais de 60 quilômetros porhora quando passou pelo lugaronde o senhor estava?

— Não sei. Eu estava preocupadocom a menina.

— Ficaria surpreso de saber queRoyce Merrill avaliou a velocidadedela em quase 100 quilômetros porhora?

— Isso é ridículo. Quando ela

pisasse no freio, teria derrapadolateralmente e aterrissado decabeça para baixo na vala.

— As marcas de derrapagemmedidas pelo adjunto Footmanindicam uma velocidade de pelomenos 80 quilômetros por hora —disse Durgin. Não era umapergunta, mas ele me olhava quasede modo vil, como se meconvidasse a lutar um pouco mais eafundar ainda mais em seu poçonojento. Eu não disse nada. Durginentrelaçou as mãozinhas gorduchase se debruçou por cima delas emminha direção. O olhar vil tinhadesaparecido.

— Sr. Noonan, se o senhor nãotivesse carregado Kyra Devore parao acostamento, se não a tivesseresgatado, a própria mãe dela nãopoderia tê-la atropelado?

Ali estava a pergunta realmentepesada. Como é que eu poderiaresponder-lhe? Bissonettecertamente não estava emitindonenhum sinal fulgurante de ajuda;parecia estar tentando fazer umcontato visual significativo com abonita assistente. Pensei no livroque Mattie vinha lendo juntamentec o m Bartleby — Testemunhasilenciosa, de Richard NorthPatterson. Ao contrário do pessoal

de Grisham, os advogados dePatterson pareciam sempre saber oque estavam fazendo. Objeção,meritíssimo, isso é induzir atestemunha a uma especulação.

Dei de ombros.— Desculpe, advogado, não

posso dizer, deixei minha bola decristal em casa.

Novamente vi o brilho cruel nosolhos de Durgin.

— Sr. Noonan, posso lheassegurar que se não responder aessa pergunta o senhor pode serconvocado, de Malibu ou Fire Islandou de qualquer lugar em queestiver escrevendo sua próxima

obra, para responder mais tarde.Dei de ombros.— Já lhe disse que estava

preocupado com a criança. Nãoposso lhe dizer com que rapidez amãe estava indo, ou até que pontoé boa a visão de Royce Merrill, ouse o adjunto Footman chegou amedir a marca certa dederrapagem. Suponhamos que elaestivesse indo a 80. Ou, digamos,mesmo a 90. Ela tem 21 anos,Durgin. Com 21 anos de idade, acapacidade de a pessoa dirigir estáno auge. Ela provavelmente teria sedesviado da criança, e facilmente.

— Acho que já é suficiente.

— Por quê? Porque não estáconseguindo o que queria? — Osapato de Bissonette golpeou meutornozelo de novo, mas ignorei-o.— Se o senhor está do lado deKyra, por que parece que está dolado do avô dela?

Um sorrizinho perverso moveu oslábios de Durgin. O tipo que dizCerto, seu espertinho, você querjogar? Puxou o gravador um poucomais para perto de si.

— Já que o senhor mencionou oavô de Kyra, sr. Maxwell Devore, dePalm Springs, vamos falar umpouco sobre ele, está bem?

— A bola é sua.

— O senhor falou algum dia comMaxwell Devore?

— Sim.— Em pessoa ou por telefone?— Por telefone. — Pensei em

acrescentar que ele, de algummodo, tinha se apossado de meunúmero de telefone, depois lembreique Mattie também o fez e resolvifechar a boca quanto ao assunto.

— Quando foi isso?— Na noite do sábado passado.

A noite do 4 de Julho. Ele ligouenquanto eu assistia aos fogos.

— E o assunto da conversa foi apequena aventura daquela manhã?— Enquanto perguntava, Durgin

enfiou a mão no bolso e retirou delá uma fita cassete. Havia um traçode ostentação em seu gesto;naquele momento ele parecia ummágico de sala de visita mostrandoos dois lados de um lenço de seda.E ele estava blefando. Eu não podiater certeza disso... mas tinha.Devore tinha gravado nossaconversa, tudo bem, aquelezumbido realmente tinha sido altodemais, e em algum nível eu estavaconsciente do fato mesmoenquanto falava com ele, e penseique realmente a conversa estivesseno cassete que Durgin introduziaagora no gravador... mas era um

blefe.— Não me lembro — eu disse.A mão de Durgin imobilizou-se

no ato de concluir o encaixe docassete no painel transparente dogravador. Olhou-me francamenteincrédulo... e algo mais. Achei queo algo mais era raiva envolta emsurpresa.

— Não se lembra? Ora, sr.Noonan. Certamente os escritoresse treinam para lembrar conversas,e essa de que estou falandoocorreu apenas uma semana atrás.Conte o que conversaram.

— Realmente não consigo dizer— falei, numa voz impassível e

átona.Por um momento, Durgin

pareceu quase em pânico. Entãoseus traços se suavizaram. Umdedo de unha lustrosa deslizavapara a frente e para trás nas teclasmarcadas REW, FF, PLAY e REC.

— Como sr. Devore começou aconversa? — perguntou.

— Ele disse alô — faleisuavemente, e houve um curto somabafado por trás da Stenomask.Poderia ter sido o velho limpando agarganta ou um riso reprimido.

Manchas de cor brotaram norosto de Durgin.

— E depois do alô? O que mais?

— Não me lembro.— Ele lhe perguntou sobre

aquela manhã?— Não me lembro.— O senhor não contou a ele que

Mary Devore e sua filha estavamjuntas, sr. Noonan? Que estavamjuntas colhendo flores? Não foi issoque o senhor disse àquele avôpreocupado quando ele perguntousobre o incidente que o distritointeiro comentava naquele 4 deJulho?

— Ah, meu Deus — disseBissonette. Ergueu uma das mãossobre a mesa e tocou a palma comos dedos da outra, fazendo um T.

— Intervalo.Durgin olhou para ele. Seu rubor

estava mais pronunciado agora; oslábios dele foram puxados para tráso suficiente para mostrar a pontade pequenos dentescuidadosamente encapados.

— O que é que o senhor quer? —ele quase rosnou, como seBissonette tivesse simplesmenteacabado de passar por ali para lhecontar sobre o estilo de vidamórmon ou talvez rosa-cruz.

— Quero que pare de dirigir estehomem, e que toda essa coisasobre colher flores seja cortada doregistro — disse Bissonette.

— Por quê? — retrucou Durgin.— Porque o senhor está tentando

registrar um material que suatestemunha não vai confirmar. Sequiser interromper por algumtempo para que possamos fazeruma reunião por telefone com o juizRancourt, ouvir sua opinião...

— Retiro a pergunta — disseDurgin. Ele me olhou com umaespécie de fúria impotente e mal-humorada.

— Sr. Noonan, quer me ajudar afazer o meu trabalho?

— Quero ajudar Kyra Devore, sepuder — eu disse.

— Muito bem. — Ele assentiu

com a cabeça como se nenhumadistinção tivesse sido feita. —Então, por favor, me diga o que osenhor e Max Devore conversaram.

— Não consigo lembrar. — Olhei-o diretamente nos olhos. — Talvezo senhor possa refrescar minhalembrança.

Houve um momento de silêncio,como o que às vezes atinge umjogo de pôquer de altas paradasexatamente depois de a últimaaposta ter sido feita e exatamenteantes de os jogadores mostrarem oque têm nas mãos. Mesmo o velhopiloto de combate estava quieto, osolhos sem piscar por trás da

máscara. Então Durgin empurrou ogravador para o lado com a parteinferior da palma da mão (a posturade sua boca dizia que se sentia arespeito do gravador como eufrequentemente me sentia comrelação ao telefone) e voltou para amanhã de 4 de Julho. Nãoperguntou sobre meu jantar comMattie e Ki na noite de terça-feira,e não voltou mais à conversatelefônica com Devore — quandoeu tinha dito todas aquelas coisasinconvenientes e facilmenterefutáveis.

Continuei respondendo aperguntas até as 11h30, mas a

entrevista havia terminadorealmente quando Durgin empurrouo gravador com a parte inferior dapalma da mão. Eu sabia disso, etenho certeza de que ele também.

— Mike! Mike, aqui!Mattie estava acenando de uma

das mesas na área de piqueniqueatrás do coreto do parque dacidade. Parecia vibrante e feliz.Acenei em resposta e abri caminhonaquela direção, avançando porentre criancinhas brincando depegar, contornando um casal deadolescentes se beijando na grama

e me esquivando de um Frisbeepego por um saltitante pastor-alemão com esperteza.

Com ela estava um ruivo alto emagro, mas quase não tive achance de notá-lo. Mattie foi a meuencontro enquanto eu ainda estavano caminho de cascalho, pôs osbraços em torno de mim, meabraçou — e não foi nenhum abraçopudico de bundinha espetada parafora — e então me beijou na bocacom força bastante para empurrarmeus lábios contra meus dentes.Houve um vigoroso estalo quandoela se desvencilhou, afastando-se eme olhando com indisfarçável

encantamento.— Foi o maior beijo que você já

recebeu?— O maior pelo menos em

quatro anos — eu disse. — Estábem assim? — E se ela não desseum passo atrás nos próximossegundos, ia ter uma prova física doquanto eu tinha apreciado o beijo.

— É, acho que está. — Virou-separa o sujeito ruivo com umaespécie de desafio engraçado. —Tudo bem?

— Provavelmente não — disseele —, mas pelo menospresentemente vocês não estão sobas vistas dos velhinhos da oficina.

Mike, sou John Storrow. Prazer emconhecê-lo pessoalmente.

Gostei dele imediatamente,talvez porque me deparasse comele em seu terno de três peças deNova York e meticulosamentepondo pratos de papel numa mesade piquenique, o cabelo vermelho ecrespo voando em torno de suacabeça como algas. Sua pele eraclara e sardenta, do tipo que jamaisse bronzearia, apenas queima edespela em grandes manchas tipoeczema. Quando apertamos asmãos, a sua parecia ser formadaapenas de nós de dedos. Ele tinhapelo menos 30 anos, mas parecia

da idade de Mattie, e meu palpiteera que se passariam outros cincoanos antes que pudesse conseguiruma bebida sem mostrar aidentidade.

— Sente-se — disse ele. —Temos um almoço de cinco pratos,cortesia de Castle Rock Variedades:sanduíches italianos... palitinhos demuçarela... batatinha de alho...Twinkies.

— São só quatro pratos — eudisse.

— Esqueci o prato dorefrigerante — disse ele, e puxoutrês long-necks de cerveja de umsaco de papel pardo. — Vamos

comer. Mattie toma conta dabiblioteca de duas às oito nassextas e sábados, e seria ummomento ruim para ela faltar aotrabalho.

— Como foi o círculo de leitoresna noite passada? — perguntei. —Estou vendo que Lindy Briggs nãocomeu você viva.

Ela riu, entrelaçou as mãos e assacudiu sobre a cabeça.

— Fui um sucesso!Absolutamente fantástica! Nãoousei dizer a eles que tirei todos osmeus melhores insights de você...

— Graças a Deus por pequenosfavores — disse Storrow. Ele livrava

o próprio sanduíche do barbante edo invólucro de papel impermeável,fazendo-o cuidadosamente e comum pouco de dúvida, usandoapenas a ponta dos dedos.

— ... então eu disse que tinhaolhado em uns dois livros eencontrado algumas indicaçõesneles. Foi maravilhoso. Eu me senticomo uma garota de faculdade.

— Ótimo.— E Bissonette? Onde está ele?

— perguntou John Storrow. —Nunca conheci um sujeito chamadoRomeo.

— Ele disse que tinha que voltardireto para Lewiston. Lamento.

— Na realidade é melhor quesejamos um grupo pequeno, pelomenos para começar. — Mordeu osanduíche. Eles vêm enfiados emlongas baguetes, e me olhousurpreso. — Não é nada mau.

— Coma mais de três e você estáfisgado pelo resto da vida — disseMattie, e deu uma vigorosa dentadano seu.

— Conte sobre o depoimento —disse John, e enquanto elescomiam, eu falava. Quandoterminei, peguei meu sanduíche ecoloquei um pouco de ketchup nele.Havia esquecido como umsanduíche italiano podia ser bom:

doce, azedo e oleoso ao mesmotempo. Claro que nada tãosaboroso pode ser saudável; isso éum dado. Suponho que se poderiaformular um postulado semelhantesobre abraços de corpo inteiro demoças com problemas legais.

— Muito interessante — disseJohn. — Muito interessante mesmo.— Pegou um palitinho de muçarelade seu pacote manchado degordura, quebrou-a e olhou comfascinado horror para a matériabranca coagulada em seu interior.— As pessoas aqui comem isso? —perguntou.

— As pessoas em Nova York

comem bexiga de peixe — eu disse.— Crua.

— Touché. — Ele mergulhou umpedaço no recipiente de plástico demolho de espaguete (nestecontexto, ele é chamado de“mergulho de queijo” no Maineocidental), depois comeu.

— E então? — perguntei.— Não é ruim. Mas deviam estar

muito mais quentes.Tinha razão. Comer palitinhos de

muçarela frios é um pouco comocomer catarro frio, uma observaçãoque achei que guardaria para mimnaquela bela sexta-feira em plenoverão.

— Se Durgin tinha a fita, por quenão a pôs para tocar? — perguntouMattie. — Não entendo.

John esticou os braços para fora,estalou os nós dos dedos e olhoupara ela com benignidade.

— Provavelmente nuncasaberemos ao certo — disse ele.

Ele achava que Devore ia desistirdo caso — isso estava expresso emcada linha de sua linguagemcorporal e cada inflexão de sua voz.Era esperançoso, mas seria bomque Mattie não se permitisse ficarcom esperança demais. JohnStorrow não era tão jovem quantoparecia, e provavelmente não tão

ingênuo também (eu esperavaardentemente isso), mas erajovem. E nem ele nem Mattieconheciam a história do trenó deScooter Larribee. Ou tinham visto orosto de Bill Dean ao contá-la.

— Quer ouvir algumaspossibilidades?

— Claro — eu disse.John abaixou o sanduíche,

limpou os dedos e começou adestacar os pontos.

— Primeiro, ele deu otelefonema. Conversas gravadastêm um valor altamente dúbionessas circunstâncias. Segundo, elenão parecia exatamente um santo,

não é?— Não.— Terceiro, suas mentiras

refutam você, Mike, mas narealidade não muito, e não refutamMattie de todo. E por falar nisso,essa coisa de Mattie jogandoespuma no rosto de Kyra, adoreiisso. Se é o melhor que eles podemfazer, é bom desistiremimediatamente. Por último, e éonde provavelmente está averdade, acho que Devore pegou aDoença de Nixon.

— Doença de Nixon? —perguntou Mattie.

— A fita que Durgin tinha não é a

única. Não pode ser. E seu sogroestá com medo de que, seapresentar uma fita feita por seja láque sistema que ele conseguiu noWarrington’s, nós podemos intimara apresentação de todas elas. E aide quem achar que não vou tentarfazer isso.

Mattie pareceu perturbada.— O que poderia estar nelas? E

se é ruim, por que não destruí-las?— Talvez ele não possa — eu

disse. — Talvez precise delas poroutras razões.

— Isso na verdade não temimportância — disse John. — Durginestava blefando, e é isso que

importa. — Bateu com a parteinferior da palma da mãolevemente na mesa de piquenique.— Acho que ele vai abandonar ocaso. Acho mesmo.

— É muito cedo para começar apensar assim — eu disseimediatamente, mas vi no rosto deMattie, mais iluminado que nunca,que o dano já tinha sido feito.

— Conte a ele o que mais andoufazendo — disse Mattie a John. —Depois vou ter que ir para abiblioteca.

— Onde você deixa Kyraenquanto trabalha? — perguntei.

— Com a sra. Cullum. Ela mora a

3 quilômetros de distância naestrada Wasp Hill. Em julhotambém tem E.B.F. de dez às três.É a Escola Bíblica de Férias. Kiadora, especialmente os cantos eas histórias feitas com a ajuda dasletras do alfabeto sobre Noé eMoisés. O ônibus a deixa na Arlene,e eu a pego às 8h45. — Sorriu umpouco tristemente. — Entãogeralmente ela já está dormindo nosofá.

John discursou pelos dez minutosseguintes mais ou menos. Ele nãotinha entrado no caso há muitotempo, mas já tinha colocado ummonte de coisas em movimento.

Um sujeito na Califórnia estavareunindo fatos sobre Roger Devoree Morris Ridding (“reunindo fatos”soava muito melhor do que“espionando”). John interessava-seespecialmente em saber daqualidade das relações entre RogerDevore e o pai, e se Roger estavano registro concernente à suapequena sobrinha do Maine. Johnmapeara também uma campanhapara saber o máximo possível dosmovimentos e atividades de MaxDevore desde que tinha voltadopara a TR-90. Para isso, tinha onome de um investigador particularrecomendando por Romeo

Bissonette, meu advogado-de-aluguel.

Enquanto ele falava, folheandorapidamente um pequeno cadernode notas que havia tirado do bolsointerno do paletó, me lembrei doque ele disse sobre dona Justiça emnossa conversa ao telefone: Jogueumas algemas naqueles pulsoslargos e fita adesiva em sua bocapara combinar com a venda nosolhos, viole-a e arraste-a pela lama.Talvez isso fosse um pouco fortedemais para o que estávamosfazendo, mas achei que pelo menosa empurrávamos um pouco. Tiveque continuar lembrando a mim

mesmo que o pai de Roger o meteunaquela situação, e não Mattie, euou John Storrow.

— Teve algum progresso emconseguir uma reunião com Devoree seu principal conselheiro legal? —perguntei.

— Não sei bem. A linha está naágua, a oferta na mesa, a bola nocampo, escolham sua metáforapreferida, podem misturá-las ecombiná-las se quiserem.

— Os ferros estão no fogo —disse Mattie.

— As pedras no tabuleiro —acrescentei.

Nós nos entreolhamos e rimos.

John nos encarou, desapontado,depois suspirou, pegou o sanduíchee começou a comer de novo.

— Você tem mesmo queencontrar com Devore na presençado advogado dele? — perguntei.

— Gostaria de ganhar a causa edepois descobrir que Devore podefazer tudo de novo baseado emcomportamento não ético por partedo conselheiro legal de MaryDevore? — retrucou John.

— Nem brinque com isso! —exclamou Mattie.

— Eu não estava brincando —disse John. — Tem que ser com seuadvogado, sim. Não acho que isso

vai acontecer, não nesta viagem.Nem cheguei a dar uma espiada novelho filho da mãe, e devoconfessar que estou morrendo decuriosidade.

— Se basta isso para você ficarmais feliz, apareça atrás da barreirano campo de softbol na próximaterça à noite — disse Mattie. — Elevai estar naquela fantástica cadeirade rodas, rindo, aplaudindo esugando o maldito daquele velhooxigênio a cada 15 minutos mais oumenos.

— Não é má ideia — disse John.— Tenho que voltar para Nova Yorkpara o fim de semana, vou embora

après Osgood, mas talvez apareçana terça. Posso até trazer minhaluva. — Ele começou a limpar nossolixo, e mais uma vez achei que eleparecia afetado e cativante aomesmo tempo, como Stan Laurelusando um avental. Mattie o liberoudaquilo e assumiu a tarefa.

— Ninguém comeu os Twinkies— disse ela, um pouco triste.

— Leve para sua filha — disseJohn.

— De modo nenhum. Eu nãodeixo que ela coma coisas assim.Que espécie de mãe você acha queeu sou?

Mattie viu nossas expressões,

reparou o que tinha acabado dedizer e deu uma risada. Nóstambém.

O velho Scout de Mattie estavaestacionado num dos espaços emdeclive por trás do memorial deguerra, que em Castle Rock é umsoldado da Primeira Guerra Mundialcom uma generosa porção de cocôde passarinho no capacete emforma de prato de torta. Um Taurusnovo em folha com um decalque daHertz acima do adesivo de inspeçãoestava parado perto dele. Johnatirou sua pasta —

tranquilizadoramente magra e nãomuito ostentosa — no banco detrás.

— Se eu puder voltar na terça,ligo para você — disse ele paraMattie. — Se conseguir um encontrocom seu sogro através desseOsgood, eu também ligo.

— Eu compro os sanduíchesitalianos — disse Mattie.

Ele sorriu, depois agarrou obraço dela com uma das mãos e omeu com a outra. Parecia umministro recém-ordenadopreparando-se para fazer ocasamento de seu primeiro casal.

— Vocês dois falem ao telefone

se precisarem — disse ele —,lembrando sempre que um ou osdois telefones podem estargrampeados. Encontrem-se nomercado se quiserem. Mike, vocêpode precisar dar um pulo nabiblioteca local e consultar um livro.

— Mas não até que renove seucartão da biblioteca — disse Mattie,lançando-me um olhar sério.

— Mas nada mais de visitas aotrailer de Mattie. Está entendido?

Eu disse que sim; ela também.John Storrow, porém, não pareceuconvencido. Isso me fez pensar seele estava vendo algo em nossosrostos ou corpos que não devia

estar lá.— Eles estão comprometidos

com uma linha de ataque queprovavelmente não vai funcionar —falou. — Não podemos nos arriscara lhes dar a chance de mudar derumo. Isso significa insinuaçõessobre vocês dois; e tambéminsinuações sobre Mike e Kyra.

A expressão chocada de Mattie afez parecer ter 12 anos de idadenovamente.

— Mike e Kyra! O que estádizendo?

— Alegações de molestaçãoinfantil por gente tão desesperadaque vai tentar qualquer coisa.

— Isso é ridículo — disse ela. —E se meu sogro quiser atirar essetipo de lama...

John assentiu com a cabeça.— É, seremos obrigados a dar o

troco. Haverá cobertura de jornaisde costa a costa, talvez até a TVTribunal, Deus nos abençoe e nossalve. Não queremos nada disso sepudermos evitá-lo. Não é bom paraos adultos e não é bom para acriança. Agora ou depois.

Ele se curvou e beijou o rosto deMattie.

— Lamento por tudo isso — disseele, e parecia lamentargenuinamente. — Custódia é assim

mesmo.— Acho que você me avisou.

Mas... a ideia de que alguém possafazer uma coisa dessas só porquenão há outro jeito de ganhar...

— Deixe eu avisá-la de novo —disse ele. Seu rosto mostrou-se tãosoturno quanto seus traços jovens ede boa índole permitiam,provavelmente. — O que temos éum homem muito rico com um casomuito incerto. A combinação podeser como trabalhar com dinamitevelha.

Virei-me para Mattie.— Ainda está preocupada com

Ki? Ainda sente que ela está em

perigo?Vi que pensou em filtrar a

resposta — pela simples e velhareserva ianque, provavelmente — edepois decidiu não fazê-lo. Talvezchegando à conclusão de quedisfarçar era um luxo com que nãopoderia arcar.

— Sim. Mas é só uma sensação.John franziu a testa. Suponho

que a ideia de Devore poderrecorrer a meios extralegais paraobter o que queria tinha ocorrido aele também.

— Fique de olho nela o máximoque puder — disse. — Respeito aintuição. A sua se baseia em algo

concreto?— Não — respondeu Mattie, e

seu rápido olhar na minha direçãome pedia para ficar de bocafechada. — Na verdade, não. —Abriu a porta do Scout e jogou osaquinho de papel pardo com osTwinkies lá dentro. Tinha resolvidoficar com eles, afinal de contas.Então se virou para John e paramim com uma expressão próximada raiva. — De qualquer modo, nãotenho certeza de poder seguir esseconselho. Trabalho cinco dias porsemana, e, em agosto, quandofazemos a atualização dasmicrofichas, serão seis dias. No

momento, Ki almoça na EscolaBíblica de Férias e janta com ArleneCullum. Eu a vejo pela manhã. Oresto do tempo... — Eu sabia o queia dizer antes que o fizesse; jáconhecia sua expressão. — ... elaestá na TR.

— Posso ajudá-la a encontraruma moça que a auxiliasse emtroca de casa e comida — eu disse,pensando que isso seriainfinitamente mais barato do queJohn Storrow.

— Não — disseram os dois numuníssono tão perfeito que seentreolharam e riram. Mas mesmoenquanto estava rindo, Mattie

parecia tensa e infeliz.— Não vamos deixar uma trilha

de papel para Durgin ou o time dacustódia de Devore explorarem —disse John. — Quem me paga éuma coisa. Quem paga uma babápara Mattie é outra.

— Além disso, já recebi osuficiente de você — disse Mattie.— Mais do que me deixa dormirtranquila à noite. Não vou entrarmais nisso só porque venho tendodepressões. — Entrou no Scout efechou a porta.

Apoiei as mãos na janela abertado carro. Agora estávamos nomesmo nível, e o contato visual

mostrou-se tão forte que foidesconcertante.

— Mattie, eu não tenho maisnada em que gastar. Mesmo.

— Quando se trata doshonorários de John, eu aceito.Porque tem a ver com Ki. — Elacolocou a mão sobre a minha eapertou brevemente. — Mas o outroassunto diz respeito a mim. Estábem?

— Está. Mas precisa dizer à suababy-sitter e às pessoas quetomam conta dessa coisa de Bíbliaque você está envolvida num casode custódia, um casopotencialmente amargo, e que Kyra

não deve ir a parte alguma comninguém, mesmo alguém que elasconheçam, sem que você concorde.

Ela sorriu.— Isso já foi feito. Por conselho

de John. Fique em contato, Mike. —Levantou minha mão, deu nela umestalado beijo e se afastou nocarro.

— O que acha? — perguntei aJohn enquanto observávamos oScout soprar óleo a caminho danova ponte Prouty, que atravessa arua do Canal e derrama tráfego narodovia 68.

— Acho fantástico que ela tenhaum benfeitor bem calçado e um

advogado esperto — disse John.Fez uma pausa e acrescentou: —Mas vou lhe dizer uma coisa, paramim, ela de alguma forma nãoparece ter sorte. É uma sensaçãoque eu tenho... não sei...

— De que há uma nuvem emvolta dela que você não pode vermuito bem.

— Talvez. Talvez seja isso. —Enfiou as mãos através da inquietamassa de cabelo vermelho. — Sósei que é uma coisa triste.

Eu sabia exatamente o que elequeria dizer... só que para mimhavia mais. Eu queria ir para acama com ela, triste ou não, certo

ou não. Queria sentir suas mãos emmim, puxando e pressionando,alisando e afagando. Queria podercheirar sua pele e provar seucabelo. Queria ter seus lábios emminha orelha, sua respiraçãoarrepiando os cabelinhos finosdentro de seu pavilhão enquantoela me dizia que eu fizesse o quequisesse, fosse o que fosse.

Voltei a Sara Laughs pouco antesdas duas horas e relaxei, pensandoapenas no meu escritório e na IBMcom a bola Courier. Eu estavaescrevendo de novo... escrevendo.

Mal podia acreditar ainda.Trabalharia (não que isso parecessemuito trabalho depois de quatroanos de inatividade) provavelmenteaté as seis horas, depois iria até oVillage Café para uma dasespecialidades de Buddy ricas emcolesterol.

No momento em que atravesseia soleira da porta, o sino de Buntercomeçou a tocar com estridência.Parei no saguão, a mão congeladana maçaneta. A casa estava quentee iluminada, nem uma sombra emlugar nenhum, mas os cabelos searrepiando em meus braços davamuma sensação de meia-noite.

— Quem está aí? — gritei.O sino parou de tocar. Houve um

momento de silêncio e então umamulher deu um grito estridente.Vinha de toda parte, jorrando do arensolarado e carregado de poeiracomo suor de uma pele quente. Eraum grito de ultraje, raiva, dor...mas sobretudo de horror, achei eu.E gritei por minha vez. Nãoconsegui evitá-lo. Tinha ficadoassustado no poço escuro daescada, escutando as invisíveisbatidas de punho no materialisolante, mas aquilo de agora erabem pior.

O grito não parou. Foi-se

apagando, como os soluços dacriança haviam se apagado; comose a pessoa que gritava estivessesendo rapidamente carregada porum longo corredor para longe demim.

Finalmente desapareceu.Eu me apoiei na estante, a

palma da mão pressionando acamiseta, o coração galopando.Arquejava para respirar, e meusmúsculos tinham aquela esquisitasensação de estiramento com queficam depois de um grande susto.

Um minuto se passou. As batidasdo coração diminuíramgradualmente, e minha respiração

com elas. Eu me endireitei, dei umpasso cambaleante e, quandominhas pernas me sustentaram, deimais dois. Fiquei de pé à porta dacozinha, olhando para a sala deestar. Acima da lareira, Bunter, oalce, olhou-me vidrado emresposta. O sino continuavapendurado em seu pescoço e sembadalar. Um quente raio de solfulgurava a seu lado. O único somque havia era do estúpido relógiodo Gato Félix na cozinha.

O pensamento que meatormentava, mesmo assim, eraque a mulher que tinha gritado eraJo, que Sara Laughs estava sendo

assombrada por minha mulher esentia dor. Morta ou não, sentiador.

— Jo? — perguntei calmamente.— Jo, você está...

Os soluços começaram de novo— o som de uma criançaaterrorizada. No mesmo momentominha boca e meu nariz mais umavez se encheram com o gosto deferro do lago. Pus a mão nagarganta, engasgada e assustada,depois me debrucei sobre a pia ecuspi. E como já tinha acontecidoantes — em vez de cuspir umagolfada de água, só saiu um poucode cuspe. A sensação de saturação

da água tinha desaparecido comose nunca tivesse ocorrido.

Fiquei onde estava, agarrando apia e debruçado sobre ela,provavelmente parecendo umbêbado que terminou a festadespejando a animaçãoengarrafada da maior parte danoite. Eu me sentia assim também— atordoado e turvo, muitosobrecarregado para realmenteentender o que estavaacontecendo.

Finalmente me estiqueinovamente, peguei a toalhadobrada sobre a alça da máquinade lavar pratos e limpei o rosto com

ela. Havia chá na geladeira, e euqueria um grande copo de chácheio de gelo, na pior dashipóteses. Estendi a mão para aporta da geladeira e me imobilizei.Os ímãs de frutas e legumesestavam dispostos num círculonovamente. No centro dele, lia-se oseguinte:

socorro estou afogandoChega, pensei. Vou dar o fora

daqui. Imediatamente. Hoje.Contudo, uma hora depois eu

estava em meu sufocante escritóriocom um copo de chá na mesa aomeu lado (os cubos há muito

haviam derretido), vestido apenasde calção de banho e perdido nomundo que estava inventando —aquele em que um detetiveparticular chamado Andy Draketentava provar que JohnShackleford não era o assassino emsérie apelidado de Boné deBeisebol.

É assim que prosseguimos: umdia de cada vez, uma refeição decada vez, uma dor de cada vez,uma respiração de cada vez.Dentistas tratam de um canal decada vez; construtores de barcofazem uma quilha de cada vez. Sevocê escreve livros, completa uma

página a cada vez. Nós nosafastamos de tudo que conhecemose tememos. Estudamos catálogos,assistimos aos jogos de futebol,escolhemos Sprint em vez de AT&T.Contamos os pássaros no céu e nãonos viramos da janela quandoouvimos passos atrás de nósenquanto algo sobe do saguão; nósdizemos: sim, concordo que nuvensgeralmente pareçam outras coisas— peixes, unicórnios e homens acavalo —, mas são apenas nuvens.Mesmo quando os relâmpagosestouram dentro delas, dizemosque são apenas nuvens e voltamosnossa atenção para a próxima

refeição, a próxima dor, a próximarespiração, a próxima página. Éassim que prosseguimos.

Capítulo Dezesseis

O livro era grande, está bem? Olivro era importante.

Se eu tinha medo de mudar desala, o que dizer de guardar amáquina de escrever e meudelgado manuscrito recém-começado e levá-lo de volta aDerry. Isso seria tão perigosoquanto levar uma criança pequenapara o meio de uma tempestade.Portanto, fiquei, sempre me

reservando o direito de sair de lá seas coisas ficassem esquisitasdemais (do modo como osfumantes se reservam o direito deparar se a tosse piorar muito), euma semana se passou. Coisasaconteceram naquela semana, mas,até que eu encontrasse Max Devorena Rua na sexta-feira seguinte —devia ser 17 de julho —, a coisamais importante era que eucontinuava a trabalhar numromance que, se terminado, sechamaria Meu amigo de infância.Talvez a gente sempre pense que oque foi perdido era melhor... outeria sido melhor. Não sei ao certo.

Só sei que minha vida real naquelasemana teve principalmente a vercom Andy Drake, John Shackleforde uma figura sombria em pé nopano de fundo. Raymond Garraty,amigo de infância de JohnShackleford. Um homem que àsvezes usava um boné de beisebol.

Durante aquela semana, asmanifestações na casacontinuaram, mas numaintensidade menor — não houvenada como o grito de gelar osangue. Às vezes o sino de Buntertocava e às vezes os ímãs de frutase legumes se rearrumavamsozinhos num círculo... mas nunca

com palavras no meio; não naquelasemana. Certa manhã, quandolevantei, o pote de açúcar estavaderrubado, fazendo-me pensar nahistória de Mattie sobre a farinha.Nada estava escrito no açúcarespalhado, mas havia um rabiscoondulado —

— como se alguma coisa tivessetentado escrever e falhasse. Se ocaso era esse, tinha a minhasolidariedade. Eu sabia o que eraaquilo.

Meu depoimento ante o temívelElmer Durgin tinha sido no dia 10,sexta-feira. Na terça seguinte, descia Rua para o campo de softbol doWarrington’s para dar minha própriaespiada em Max Devore. Eramquase seis horas quando cheguei aoalcance auditivo dos gritos,aplausos e do ruído dos bastões nabola. Um caminho marcado comsinais rústicos (floreados Wsqueimados em flechas de carvalho)levavam a uma casa de barcoabandonada, uns dois galpões e ummirante meio enterrado emtrepadeiras de amora-preta. Depoischeguei ao centro do campo. O lixo

composto de sacos de batata frita,invólucros de guloseimas e latas decerveja sugeria que às vezes outrosassistiam aos jogos desse pontoprivilegiado. Não pude deixar depensar em Jo e seu amigomisterioso, o sujeito com o velhoblazer marrom, o cara corpulentoque tinha escorregado um braço emtorno da cintura dela e a levado dojogo, rindo, de volta à Rua. Porduas vezes, durante o fim desemana, estive perto de ligar paraBonnie Amudson, vendo se talvezeu pudesse descobrir quem eraaquele camarada, dar um nome aele; e nas duas vezes havia

recuado. Não ponha a mão emvespeiro, disse a mim mesmo acada vez. Não ponha a mão emvespeiro, Michael.

Tive a área além do centro paramim naquela noite, e parecia adistância certa da base do batedor,considerando-se que o homem quegeralmente estacionava a cadeirade rodas de Devore atrás dabarreira tinha me chamado dementiroso e eu o convidei paraguardar meu número de telefoneonde a luz do sol fica obscura.

Não precisava ter mepreocupado, de qualquer modo.Devore não tinha vindo, nem a

adorável Rogette.Divisei Mattie por trás da

barreira negligentemente erguidana linha da primeira base. JohnStorrow estava a seu lado, de jeanse camisa polo, com a maior partedo cabelo vermelho preso dentro deum boné do Mets. Assistiram aojogo e conversaram como velhosamigos por dois innings antes deme verem — tempo mais do quesuficiente para que eu tivesseinveja do lugar de John, e umpouco de ciúme também.

Finalmente alguém fez um lancelongo para o centro, onde amargem do bosque servia como

único alambrado. O jogador voltou,mas a bola ia passar muito porcima de sua cabeça. Foiarremessada bem dentro do meualcance, à minha direita. Movi-menaquela direção sem pensar,enfiando-me pelas moitas queformavam uma zona entre o campoe as árvores, esperando não estarcorrendo por hera venenosa. Pegueia bola com a mão esquerdaesticada e ri quando alguns dosespectadores aplaudiram. Ojogador do centro do campo meaplaudiu batendo com a mão direitana mão enluvada. Enquanto isso obatedor circulava as bases

serenamente, sabendo que tinhaconseguido um ponto.

Atirei a bola para um dosjogadores, e quando voltei a minhaposição original, entre asembalagens de guloseimas e latasde cerveja, olhei para trás e viMattie e John me olhando.

Se algo confirma a ideia de quesomos apenas outra espécie deanimal, um com o cérebroligeiramente maior e uma ideiamuito maior de nossa própriaimportância no esquema das coisas,é o fato de quanto podemostransmitir através de gestos quandotemos absolutamente que fazê-lo.

Mattie entrelaçou as mãos no peito,inclinou a cabeça para a esquerda eergueu as sobrancelhas — Meuherói. Eu levei as mãos à altura dosombros e virei as palmas para o céu— Ora, dona, não foi nada. Johnabaixou a cabeça e pôs os dedos natesta, como se algo estivessedoendo ali — Seu filho da putasortudo.

Com tais comentários fora docaminho, apontei para a barreira eergui os ombros numa pergunta.Mattie e John deram de ombros emresposta. Um inning depois, umgarotinho que parecia umaexplosiva sarda gigante correu até

onde eu estava, sua camisetaMichael Jordan batendo nas canelascomo uma saia.

— Aquele cara ali me deucinquenta centavos para dizer quevocê deve ligar mais tarde para eleno hotel dele em Rock — disse,apontando para John. — Ele dissepara você me dar mais cinquentacentavos se tiver resposta.

— Diga a ele que vou ligar porvolta de 9h30 — falei. — Mas nãotenho trocado. Você aceita umdólar?

— Puxa, aceito sim, brigado. —Pegou o dinheiro, virou-se, depoisvoltou. Sorriu, revelando uma fileira

de dentes capturada entre o Ato I eo Ato II. Com os jogadores desoftbol ao fundo, ele parecia umarquétipo de Norman Rockwell. — Ocara também falou para eu dizerque sua jogada foi uma besteira.

— Diga a ele que as pessoasdiziam isso de Willie Mays o tempotodo.

— Willie quem?Ah, juventude. Ah, costumes.— Apenas diga a ele, garoto. Ele

irá saber.Fiquei por outro inning, mas a

essa altura o jogo estava ficandosem graça. Devore ainda não tinhaaparecido, e voltei para casa pelo

caminho por onde viera. Encontreium pescador em pé numa pedra edois jovens caminhando pela Ruaem direção ao Warrington’s, demãos dadas. Eles disseram oi, eudisse oi também. Sentia-mesolitário e contente ao mesmotempo. Acredito ser essa umaespécie rara de felicidade.

Alguns checam suas secretáriaseletrônicas quando chegam emcasa; naquele verão, eu sempreexaminava a frente da geladeira.Como Alceu, de Alceu e Dentinho,costumava dizer, os espíritos estãoprestes a falar. Naquela noite elesnão o fizeram, embora os ímãs em

forma de frutas e legumes tivessemformado uma linha sinuosa comouma serpente ou talvez a letra Stirando uma soneca:

Um pouco mais tarde, liguei paraJohn e lhe perguntei onde Devoretinha estado. Ele repetiu empalavras o que já havia me ditomuito mais economicamente porgestos.

— É o primeiro jogo a que elenão vem desde que voltou — disse.— Mattie tentou perguntar aalgumas pessoas se ele estavabem, e o consenso parece ser deque estava... pelo menos tanto

quanto alguém sabia.— O que significa ela tentou

perguntar?— Várias pessoas nem mesmo

falaram com ela. “Dê um gelonela”, dizia a geração de meus pais.— Cuidado, companheiro, penseimas não disse, isso está apenas ameio passo de distância da minhageração. — Uma de suas velhasamigas falou com ela finalmente,mas há uma atitude generalizadaem relação a Mattie Devore. AqueleOsgood pode ser um vendedorpavoroso, mas como o SenhorDinheiro de Max Devore estáfazendo um trabalho fantástico para

separar Mattie dos outroshabitantes da cidadezinha. É umacidadezinha, Mike? Eu não pegobem essa parte.

— É só a TR — eu dissedistraidamente. — Não há nenhummodo verdadeiro de explicar acoisa. Você acredita mesmo queDevore está subornando todomundo? Isso não diz nada muitobom sobre a velha ideia deWordsworth a respeito da bondadee inocência pastorais, não é?

— Ele está distribuindo dinheiroe usando Osgood. Talvez Footmantambém, para espalhar histórias. Eo pessoal por aqui parece pelo

menos tão honesto quanto políticoshonestos.

— Aqueles que permanecemcomprados?

— É. Ah, eu vi uma dastestemunhas potenciais de Devoreno Caso da Criança Fugida. RoyceMerrill. Ele estava perto do galpãode equipamentos com alguns deseus camaradas. Por acaso reparounele?

Eu disse que não.— O cara deve ter uns 130 anos

— continuou John. — Tem umabengala com castão de ouro dotamanho do cu de um elefante.

— É a bengala do Boston Post. A

pessoa mais velha da área fica comela.

— E não tenho a menor dúvidade que ele a ganhou honestamente.Se os advogados de Devore opuserem no banco dastestemunhas, vou depená-lo. — Aalegre autoconfiança de John tinhaalgo que dava calafrios.

— Claro — eu disse. — Como éque Mattie está recebendo oafastamento dos velhos amigos? —Eu me lembrei dela dizendo quedetestava as noites de terça,detestava pensar em jogos desoftbol que continuavam comosempre no campo onde havia

conhecido o falecido marido.— Bem — disse John. — De

qualquer modo, acho que deu amaior parte deles como causaperdida. — Eu tinha minhas dúvidassobre aquilo. Pelo que me lembro,aos 21 anos as causas perdidas sãoum tipo de especialidade. Mas nãodisse nada. — Ela está aguentando.Anda solitária e assustada, e achoque mentalmente podia tercomeçado o processo de desistir deKyra, mas agora sua autoconfiançavoltou. Principalmente graças avocê. É um caso fantástico demudança brusca de sorte.

Bom, talvez. Num relâmpago me

lembrei de Frank, o irmão de Jo,dizendo que achava não existir essacoisa de sorte, e sim destino eescolhas inspiradas. E então melembrei da imagem da TRentrecruzada de cabos invisíveis,conexões que não se viam, masque eram fortes como aço.

— John, esqueci de fazer apergunta mais importante dessesdias todos, depois que fiz meudepoimento. Esse caso de custódiacom que todos nos preocupamos...já foi marcado?

— Boa pergunta. Já chequei trêsvezes até domingo, e Bissonettetambém. A menos que Devore e

seu pessoal tenham montado algorealmente escorregadio, como darentrada no caso em outra jurisdiçãodistrital, acho que não foi.

— Eles poderiam fazer isso? Darentrada em outra jurisdição?

— Talvez. Mas provavelmentenão sem que descobríssemos.

— Então isso significa o quê?— Que Devore está à beira de

desistir do caso — disse Johnprontamente. — Por enquanto nãovejo outra maneira de explicar acoisa. Estou voltando para NovaYork amanhã cedo, mas ficarei emcontato. Se acontecer algumanovidade, faça o mesmo.

Eu disse que o faria e fui paracama. Nenhuma visitante femininaapareceu para partilhar meussonhos. E isso foi um tipo de alívio.

Quando desci ao andar de baixopara encher novamente meu copode chá gelado na manhã de quarta,Brenda Meserve havia montado ovaral giratório no alpendre dosfundos e estava pendurando minhasroupas. Fazia isso sem dúvida comoa mãe lhe ensinara, com calças ecamisas para o lado de fora eroupas de baixo para o lado dedentro, para que qualquer passante

xereta não pudesse ver o que vocêusava mais perto da pele.

— O senhor pode levar essasroupas para dentro lá pelas quatrohoras — disse a sra. M. quando sepreparava para ir embora. Olhou-me com a brilhante e cínicaexpressão de uma mulher quevinha “sendo diarista” para homensabastados a vida inteira. — Não vaiesquecer e deixar as roupas do ladode fora a noite toda. Roupas queficam no sereno nunca parecemlimpas até serem lavadas de novo.

Afirmei-lhe humildemente queme lembraria de levar as roupaspara dentro. Então perguntei —

sentindo-me um espião à procurade informação numa festa deembaixada — se ela achava que iatudo bem com a casa.

— Tudo bem como? —perguntou, erguendo para mim umasobrancelha turbulenta.

— Bem, ouvi uns barulhosesquisitos umas duas vezes. Ànoite.

Ela torceu o nariz.— É uma casa de troncos, não é?

Construída por etapas, digamosassim. Uma ala se assenta naoutra. Provavelmente é isso que osenhor escuta.

— Nenhum fantasma, hein? — eu

disse, como se estivessedesapontado.

— Não que eu já tenha visto —disse ela, prática como um contador—, mas minha mãe dizia que haviamuitos aqui. Dizia que todo esselago é assombrado. Pelos Micmacsque viveram aqui até seremexpulsos pelo general Wing, e portodos os homens que foram para aGuerra Civil e morreram lá, mais deseiscentos foram para lá destaparte do mundo, sr. Noonan, emenos de 150 voltaram... pelomenos em seus corpos. Mamãedizia que este lado do Dark Scoretambém é assombrado pelo

fantasma daquele menino negroque morreu nessas bandas, pobredo guri. Ele era de um dos Red-Tops, o senhor sabe.

— Não. Sei sobre Sara e os Red-Tops, mas isso não. — Fiz umapausa: — Ele se afogou?

— Não, ficou preso numaarmadilha de pegar animal. Lutou amaior parte do dia, gritando porsocorro. Finalmente o encontraram.Salvaram o pé dele, mas nãodeviam ter feito isso. O garoto tevetoxemia e morreu. Foi no verão de1901. É por isso que foram embora,acho eu, era triste demais ficar.Mas mamãe costumava dizer que o

garoto tinha ficado. Costumavadizer que ele ainda está na TR.

Fiquei pensando no que diria asra. M. se eu lhe contasse que orapazinho provavelmente haviaestado aqui para me saudar quandocheguei de Derry, e desde entãohavia voltado em várias ocasiões.

— E também teve o pai de KennyAuster, Normal — disse ela. — Osenhor conhece essa história, nãoé? Ah, é uma história terrível.

Ela parecia contente — ou deconhecer uma história tão terrívelou de ter a chance de contá-la.

— Não — eu disse. — Masconheço Kenny. É aquele que tem o

galgo. Mirtilo.— É. Ele faz um pouco de serviço

de carpinteiro e um pouco decaseiro, como o pai fazia. Foicaseiro de muitos lugares aqui, e,pouco depois da Segunda GuerraMundial terminar, Normal Austerafogou o irmãozinho de Kenny noquintal dos fundos. Foi quandomoravam em Wasp Hill, bem ondea estrada se bifurca, um lado indopara o velho cais de desembarque eo outro para a marina. Mas ele nãoafogou o guri no lago. Botou ele noterreno debaixo da bomba e odeixou ali até que o bebê seenchesse de água e morresse.

Fiquei ali encarando-a enquantoas roupas atrás de nós balançavamno varal. Pensei em minha boca,nariz e garganta cheios daquele friosabor mineral que bem podia tersido água de poço, assim comoágua do lago; ali, a água toda vinhado mesmo aquífero. Eu me lembreida mensagem na geladeira: socorroestou afogando.

— Ele deixou o garotinho bemdebaixo da bomba. Tinha umChevrolet novo e o dirigiu até aestrada 42. Levou a espingarda,também.

— Não vai me dizer que o pai deKenny Auster cometeu suicídio em

minha casa, vai, sra. Meserve?Ela balançou a cabeça.— Não. Ele fez isso no deck dos

Brickers que dava para o lago.Sentou na varanda deles e estourousua desgraçada cabeça assassinade bebês.

— Os Brickers? Eu não...— Nem poderia. Não tem havido

nenhum Brickers no lago desde osanos 1960. Vinham de Delaware.Gente de qualidade. Eram tipo osWashburn, acho eu, se bem queesses agora também já se foram. Olugar está vazio. De vez emquando, aquele bobo nato doOsgood leva alguém até lá e

mostra o lugar, mas jamais vaivendê-lo com o preço que estápedindo. Escreva o que estoudizendo.

Eu havia conhecido os Washburn— joguei bridge com eles uma ouduas vezes. Gente bastantesimpática, embora provavelmentenão o que a sra. M., com seuesquisito esnobismo de uma regiãorural remota, teria chamado “dequalidade”. A casa deles ficavatalvez a uns 200 metros ao norte daminha ao longo da Rua. Alémdaquele ponto não há muito mais— a descida para o lago ficaíngreme e os bosques são

emaranhados maciços devegetação nascida depois dadestruição do bosque inicial emoitas de amora-preta. A Ruaprossegue até a ponta de Halo Bayno extremo norte de Dark Score,mas quando a estrada 42 curva-sede volta para a rodovia, o caminhoé usado principalmente emexpedições para a colheita defrutinhas vermelhas no verão e porcaçadores no outono.

Pensei em Normal. Que raio denome para um sujeito que haviaafogado o filho pequeno debaixo deuma bomba no quintal.

— Ele deixou um bilhete? Alguma

explicação?— Não. Mas a gente ouve o

pessoal dizer que ele assombra olago também. Cidadezinhaspequenas são muitas vezes cheiasde assombrações, mas não possodizer que sim ou que não, ou talvezseja eu mesma; não sou do tiposensitivo. Tudo que sei sobre a suacasa, sr. Noonan, é que cheira aumidade por mais que eu tentearejá-la. Acho que são os troncos.Construção de tronco não combinacom lagos. A umidade entra namadeira.

Ela tinha colocado a bolsa entreos Reeboks; então se curvou e a

pegou. Era uma bolsa de mulher docampo, preta, sem estilo (a não serpelas presilhas douradas segurandoas alças) e utilitária. Ela poderia terlevado uma boa quantidade deutensílios de cozinha na bolsa, sequisesse.

— Não posso ficar aqui de papo odia todo, por mais que eu queira.Tenho que ir a mais um lugar antesde acabar por hoje. O verão étempo de colheita nesta parte domundo, como o senhor sabe. Nãovai se esquecer de levar essasroupas para dentro antes deescurecer, sr. Noonan. Não deixeelas apanharem sereno.

— Não vou não. — E não deixei.Mas quando saí para levá-las paradentro, no meu calção de banho ecoberto do suor do forno ondeestive trabalhando (tinha quemandar consertar o ar-condicionado; tinha que fazer issode qualquer maneira), vi que algotinha alterou as arrumações da sra.M. Os jeans e as camisas estavampendurados agora em torno domastro. As roupas de baixo emeias, decorosamente escondidasquando a sra. M. saíra pelo caminhode carros em seu velho Ford,estavam agora do lado de fora. Eracomo se meu hóspede invisível, um

de meus hóspedes invisíveis,estivesse dizendo ha ha ha.

Fui à biblioteca no dia seguinte, e aprimeira coisa que fiz foi renovarmeu cartão. A própria Lindy Briggsrecebeu minhas quatro pratas e meregistrou no computador, dizendoprimeiro o quanto lamentou tersabido da morte de Jo. Da mesmaforma que em Bill, senti certacensura em seu tom, como se eufosse o culpado daquelascondolências tão impropriamenteatrasadas. Acho que eu era.

— Lindy, você tem uma história

da cidade? — perguntei quandoterminamos as fórmulasapropriadas com relação à minhamulher.

— Temos duas — disse ela.Depois se inclinou para mim porsobre a mesa. Era uma mulherpequena num vestido sem mangase violentamente estampado, ocabelo grisalho numa bola fofa emtorno da cabeça, os olhos brilhantesnadando por trás das lentesbifocais. Numa voz confidencial, elaacrescentou: — Nenhuma das duasé muito boa.

— Qual é melhor? — perguntei,no mesmo tom dela.

— Provavelmente a de EdwardOsteen. Era um residente de verãoaté meados dos anos 1950 e morouaqui direto depois de se aposentar.Escreveu Dark Score Days em 1965ou 1966. Publicou-o por sua própriaconta porque não conseguiu acharuma editora comercial que oaceitasse. Nem os editores daregião o quiseram. — Ela suspirou.— O pessoal do lugar comprou olivro, mas isso não significa muitosexemplares, não é?

— Não, acho que não — eudisse.

— Ele não era muito bomescritor. Também não era um

fotógrafo muito bom, aquelas fotosinstantâneas em preto e brancofazem meus olhos doerem. Mesmoassim, conta algumas históriasboas. A estrada dos Micmacs, ocavalo amestrado do general Wing,o furacão na década de 1880, osincêndios dos anos 1930...

— Algo sobre Sara e os Red-Tops?

Ela assentiu com a cabeça,sorrindo.

— Finalmente veio dar umaespiada na história de sua própriacasa, não é? Fico contente emsaber disso. Ele encontrou umavelha foto deles, e está lá. Ele

achava que tinha sido tirada naFeira de Fryeburg em 1900. Edcostumava dizer que daria muitopara ouvir um disco feito por aquelegrupo.

— Eu também, mas nenhum foifeito. — Subitamente ocorreu-meum haicai do poeta grego GeorgeSeferis: “São as vozes de nossosa m i g o s mortos/ ou apenas ogramofone?” — O que aconteceucom o sr. Osteen? Não me lembrodo nome.

— Morreu em menos de um anoou dois depois que você e Jocompraram a casa no lago —acrescentou ela. — Câncer.

— Você disse que havia duashistórias?

— A outra você provavelmenteconhece: Uma história do condadode Castle e de Castle Rock. Feitapara o centenário do condado, eseca como poeira. O livro de EddieOsteen não é muito bem escrito,mas não é seco. A gente tem quelhe conceder isso. Você deveencontrar os dois por ali. —Apontou para a prateleira com umatabuleta por cima que dizia DE

INTERESSE DO MAINE. — Eles nãocirculam. — Então se animou: —Embora aceitemos alegrementequalquer níquel que você seja a

compelido a colocar em nossamáquina de fotocópia.

Mattie estava sentada no cantoextremo junto a um garoto de bonéde beisebol virado para trás,mostrando-lhe como usar o leitorde microfilme. Ergueu os olhos paramim, sorriu e mexeu os lábiosdizendo Boa pegada. Referindo-se àminha jogada de sorte noWarrington’s, provavelmente. Deide ombros com modéstia antes devoltar às prateleiras DE INTERESSE DO

MAINE. Mas ela estava certa — comsorte ou não, tinha sido uma belapegada.

— O que é que está procurando?Eu havia mergulhado tanto nas

duas histórias que encontrei que avoz de Mattie me fez dar um pulo.Virei-me e sorri, primeiro conscientede que ela usava um perfume levee agradável, e segundo que LindyBriggs nos observava da mesaprincipal, sem o sorriso de boas-vindas.

— Pano de fundo da área ondemoro — falei. — Histórias antigas.Minha diarista me deixouinteressado. — Então, numa vozmais baixa: — A professora estáobservando. Não olhe.

Mattie pareceu espantada e, na

minha opinião, um poucopreocupada. Depois soube quetinha razão de estar assim. Numavoz baixa, mas mesmo assimemitida para ir até a mesa, elaperguntou se podia recolocar umdos livros na estante para mim.Entreguei-lhe os dois. Enquanto ospegava, ela disse quase numsussurro de conspiradora:

— Aquele advogado querepresentou você na sexta-feirapassada conseguiu um detetiveparticular para John. Ele disse quepodem ter descoberto uma coisainteressante sobre o guardião adlitem.

Andei até as prateleiras DE

INTERESSE DO MAINE com ela, esperandocom isso não lhe arranjarproblemas, e perguntei se sabia oque esse algo interessante podiaser. Mattie balançou a cabeça, deu-me um sorriso de bibliotecariazinhaprofissional e se afastou.

Na viagem de volta para casa,tentei pensar sobre o que havialido, mas não havia muito. Osteenera um escritor ruim que tiravafotos ruins, e ainda que suashistórias fossem coloridas, tambémeram muito inconsistentes na base.Sem dúvida mencionava Sara e osRed-Tops, mas referia-se a eles

como um “octeto Dixie-Land”; atéeu sabia que isso não estava certo.Os Red-Tops podem ter tocadoalgum Dixieland, mas haviam sidobasicamente um grupo de blues(noites de sextas e sábados) e umg r u p o gospel (manhãs dedomingo). O resumo de duaspáginas de Osteen sobre a estadados Red-Tops na TR deixava claroque ele não havia escutado maisninguém fazendo covers dasmúsicas de Sara.

Ele confirmava que uma criançahavia morrido de toxemia causadapor um ferimento de armadilha,história que parecia a de Brenda

Meserve... mas por que nãopareceria? Osteen provavelmente aouviu do pai ou do avô da sra. M.Dizia também que o garoto era ofilho único de Son Tidwell, e que overdadeiro nome do guitarrista eraReginald. Os Tidwell haviamprovavelmente se deslocado para onorte vindos da zona deprostituição de Nova Orleans — asfamosas ruas de clubes eespeluncas cheias de ladrõesconhecidas na virada do séculocomo Storyville.

Não havia menção de Sara e dosRed-Tops na história mais formal docondado de Castle, e nenhuma

menção ao irmãozinho afogado deKenny Auster nos dois livros. Poucoantes de Mattie chegar para falarcomigo, tive uma ideia maluca: ade que Son Tidwell e Sara Tidwelleram casados, e que o garotinho(cujo nome Osteen nãomencionava) era filho deles. Acheio retrato de que Lindy tinha faladoe examinei-o atentamente.Mostrava pelo menos uma dúzia denegros em pé num grupo austerona frente do que parecia umaexposição de gado. Havia umantiquado carro ao fundo. Poderiabem ter sido tirada na Feira deFryeburg e, apesar de velha e

desbotada, tinha um poder simplese elemental que todas as fotos deOsteen colocadas juntas nãopoderiam alcançar. A gente vê fotosdos bandidos do Oeste e da épocada Depressão com aquele mesmoolhar de verdade sinistra — rostosseveros acima de gravatas ecolarinhos apertados, olhos nãomuito perdidos nas sombras deantigos chapéus desabados.

Na frente e no centro da foto,Sara, com seu violão, usava umvestido preto. Não estavaexatamente sorrindo na fotografia,mas parecia haver um sorriso emseus olhos, e achei que eram como

os olhos de algumas telas, os queparecem nos seguir quando nosmovemos pela sala. Examinei a fotoe pensei em sua voz quaserancorosa no meu sonho: O quequer saber, benzinho? Acho que euqueria saber sobre ela e os outros— quem haviam sido, o que eramuns para os outros quando nãoestavam cantando e tocando, porque haviam partido, para ondetinham ido.

As mãos dela eram claramentevisíveis, uma sobre as cordas doviolão, a outra nos trastos doinstrumento, onde ela estevetirando um acorde de sol num dia

de feira em outubro do ano de1900. Seus dedos eram compridos,artísticos, despidos de anéis. Issonão significava necessariamenteque ela e Son Tidwell não fossemcasados, claro, e mesmo quetivessem sido, o garotinhocapturado na armadilha poderia serfilho de outro. Só que a mesmasombra de sorriso pairava nos olhosde Son Tidwell. A semelhança eraextraordinária. Ocorreu-me que osdois tivessem sido irmão e irmã,não marido e mulher.

Pensei nessas coisas a caminhode casa, assim como em conexõesque eram mais sentidas do que

vistas... mas me descobri pensandoprincipalmente sobre Lindy Briggs— o modo como sorrira para mim e,um pouco mais tarde, o modo comonão sorrira para sua alegre e jovembibliotecária com diploma do ensinomédio. Aquilo tinha me preocupado.

Então voltei para casa e depoissó me preocupei com minha históriae as pessoas contidas nela — sacosde ossos que ganhavam carnediariamente.

Michael Noonan, Max Devore eRogette Whitmore representaramsua horrível ceninha de comédia na

noite de sexta-feira. Duas outrascoisas que merecem ser contadasaconteceram antes daquilo.

A primeira foi um telefonema deJohn Storrow na quinta à noite. Euestava sentado em frente à TV comum jogo de beisebol desenrolando-se sem som à minha frente (obotão MUTE com que a maioria doscontroles remotos vêm equipadospode ser a melhor invenção doséculo XX). Pensava em SaraTidwell e Son Tidwell e em SonTidwell e seu filho. Pensava emStoryville, um nome que qualquerescritor simplesmente tinha queadorar. E no fundo de minha mente

pensava em minha mulher, quehavia morrido grávida.

— Alô? — eu disse.— Mike, tenho notícias

maravilhosas — falou John. Pareciaprestes a estourar. — RomeoBissonette pode ter um nomeesquisito, mas não há nadaesquisito no detetive que eleencontrou para mim. Seu nome éGeorge Kennedy, como o ator. Ele ébom, e é rápido. Esse cara podiatrabalhar em Nova York.

— Se esse é o melhor elogio emque consegue pensar, precisa sairmais da cidade.

Ele prosseguiu como se não

tivesse ouvido.— O verdadeiro trabalho de

Kennedy é numa firma desegurança, o outro negócio éestritamente um bico. O que é umagrande perda, acredite. Eleconseguiu a maior parte da coisapor telefone. Não consigo acreditar.

— Você não consegue acreditarem que, exatamente?

— Na sorte grande, baby. — Maisuma vez falou naquele tom deávida satisfação que eu achavaperturbador e tranquilizador aomesmo tempo. — Elmer Durgin fezas seguintes coisas desde o final demaio: acabou de pagar seu carro;

acabou de pagar seu terreno emRangely Lakes; conseguiu saldarcerca de noventa anos de pensãopara os filhos...

— Ninguém paga pensão defilhos por noventa anos — eu disse,mas falei apenas por falar... paraextravasar um pouco de minhaprópria excitação, na verdade. —Isso é impossível, cara.

— É possível se você tem setefilhos — disse John, e rolou de rir.

Pensei naquele rostorechonchudo cheio deautossatisfação, a boca de arco decupido, as unhas que pareciamlustrosas e afeminadas.

— Ele não tem sete filhos.— Tem sim — disse John, ainda

rindo. Parecia um lunáticocompleto, maníaco, mas nãodepressivo. — Tem mesmo! E quevão de qu-quatorze a tr-três anos!Que pauzinho p-p-potente eocupado ele deve ter! — Maisgargalhadas. Então comecei a rirjunto com ele. Aquilo pegava comocachumba. — Kennedy vai memandar por f-f-fax r-retratos detoda a... fam... família! — Nósgargalhávamos agora, rindo juntospelo interurbano. Eu podia imaginarJohn Storrow sentado sozinho emseu escritório da Park Avenue,

urrando como um lunático eassustando as faxineiras.

— Mas isso não importa — disseele quando pôde falarcoerentemente de novo. — Vocêestá vendo o que importa, não é?

— Estou. Como é que ele pôdeser tão burro? — falei, referindo-mea Durgin, mas também a Devore.Acho que John entendeu queestávamos falando dos dois aomesmo tempo.

— Elmer Durgin é umadvogadozinho de uma pequenacomunidade nos grandes e remotosbosques do Maine ocidental, sóisso. Como é que podia saber que

chegaria um anjo guardião comrecursos para desmascará-lo? Porfalar nisso, ele também comprouum barco. Há duas semanas. É demotor gêmeo. Grande. Acabou,Mike. O time de casa marca novepontos no final do jogo.

— Se você está dizendo. — Masminha mão se moveu por vontadeprópria, fechou-se num punhofrouxo e bateu na boa e sólidamadeira da mesinha.

— E sabe do que mais? O jogode softbol não foi uma perda total.— John ainda falava e ria empequenos acessos como balões dehélio.

— O quê?— Fiquei encantado com ela.— Ela?— Mattie — disse ele

pacientemente. — Mattie Devore.— Fez uma pausa. — Mike? Estáouvindo?

— Estou. O telefone escorregou.Desculpe. — O telefone não tinhaescorregado nem um centímetro,mas a explicação se mostroubastante natural, achei eu. Se nãose mostrasse, e daí? No que tangiaa Mattie, eu seria, pelo menos nacabeça de John, acima de qualquersuspeita. Como a equipe deempregados da casa de campo num

livro de Agatha Christie. Ele tinha28 anos, talvez 30. A ideia de queum homem 12 anos mais velhopudesse sentir-se sexualmenteatraído por Mattie provavelmentejamais lhe passou pela cabeça... outalvez por um ou dois segundos noparque, antes que ele a descartassecomo ridícula. Da mesma maneiracomo a própria Mattie tinhadescartado a ideia de Jo e ohomem de blazer marrom.

— Não posso fazer minha dançada conquista enquanto a estiverrepresentando — disse ele —, nãoseria ético. Também não seriaseguro. Mas depois... nunca se

sabe.— Não — eu disse, escutando

minha voz como a gente ouvealgumas vezes a própria voz emmomentos em que se ésurpreendido completamente semação, como se a voz tivesse saídode outra pessoa. Alguém no rádioou no toca-discos, talvez. São asvozes de nossos amigos mortos ouapenas o gramofone? Pensei nasmãos dele, os dedos compridos eesbeltos, sem um anel. Como asmãos de Sara naquela velha foto.— Não, nunca se sabe.

Nós nos despedimos e continueiassistindo ao jogo de beisebol

mudo. Pensei em subir para pegaruma cerveja, mas o caminho até ageladeira parecia muito distante —um safári, na realidade. O que eusentia era uma espécie de mágoasurda, seguida por uma emoçãomelhor: um alívio triste, como achoque se pode chamar. Ele era velhodemais para Mattie? Não, acho quenão. Era da idade certa. O PríncipeEncantado Número Dois, dessa vezde terno, calças e colete. A sorte deMattie com homens podiafinalmente estar mudando e, sefosse isso, eu deveria ficarcontente. Eu ficaria contente. Ealiviado. Porque tinha um livro a

escrever, pouco importando aaparência de uns tênis brancosiluminando-se sob um vestidovermelho de verão no crepúsculocrescente, ou a brasa do cigarrodela dançando no escuro.

Ainda assim, senti-me realmentesolitário pela primeira vez desdeque tinha visto Kyra andando pelalinha branca da rota 68 de maiô esandálias de dedo.

— Homenzinho engraçado, disseStrickland — falei para a sala vazia.Saiu antes de eu saber que ia dizeralgo e, quando o fiz, o canal de TVmudou. Foi do beisebol para umareprise de Tudo em família e depois

p a r a Ren & Stimpy. Dei umaespiada no controle remoto. Aindaestava na mesinha de centro ondeeu o deixara. O canal de TV mudoude novo, e então passei a verHumphrey Bogart e IngridBergman. Havia um avião ao fundo,e eu não precisava pegar o controleremoto e ligar o som para saberque Humphrey dizia a Ingrid paraela entrar no avião. O filmepreferido de minha mulher entretodos que haviam sido feitos. Nofinal, ela desabava no choro,infalivelmente.

— Jo? — perguntei. — Você estáaí?

O sino de Bunter tocou uma vez.Muito debilmente. Havia váriaspresenças na casa, eu tinhacerteza... mas naquela noite, pelaprimeira vez, senti absolutamenteque quem estava comigo era Jo.

— Quem era ele, meu bem? —perguntei. — Quem era o cara nocampo de softbol?

O sino de Bunter permaneceuimóvel e quieto. Mas ela estava nasala. Eu a sentia, algo como umarespiração suspensa.

Lembrei-me da mensagenzinhafeia e de escárnio na geladeiradepois de meu jantar com Mattie eKi: rosa azul mentiroso ha ha.

— Quem era ele? — Minha vozsaiu pouco firme, parecendo à beiradas lágrimas. — O que é que vocêestava fazendo aqui com um cara?Você estava... — Mas não conseguiperguntar se tinha mentido paramim, me enganado. Não conseguifazê-lo mesmo que a presença queeu sentia pudesse estar, vamosencarar o fato, apenas na minhacabeça.

A TV saiu de Casablanca e láestava o advogado preferido detodo mundo, Perry Mason, noNick@tNite. A nêmesis de Perry,Hamilton Burger, interrogava umamulher de aparência atormentada,

e repentinamente o somestrondeou novamente, fazendo-medar um pulo.

— Não sou mentirosa! — gritouuma antiga atriz de TV. Por ummomento ela olhou direto paramim; fiquei atônito e semrespiração ao ver os olhos de Jonaquele rosto em branco e pretodos anos 1950. — Nunca menti, sr.Burger, nunca!

— Eu alego que mentiu! —respondeu Burger. Moveu-se paraperto dela, pairando ali como umvampiro. — Eu alego que você...

A TV foi desligada subitamente.O sino de Bunter deu uma rápida e

única sacudidela e depois fosse lá oque tivesse estado ali foi embora.Mas eu me sentia melhor. Não soumentirosa... Nunca menti, nunca.

Eu podia acreditar naquilo, sequisesse.

Se quisesse.Fui para cama e não houve

sonhos.

Passei a trabalhar bem cedo, antesque o calor assolasse realmente oescritório. Bebia um pouco de suco,mastigava uma torrada e depois mesentava à IBM até quase meio-dia,observando a bola Courier dançar e

girar enquanto as páginasflutuavam através da máquina esaíam escritas. A velha mágica, tãoestranha e maravilhosa. Aquilonunca tinha parecido trabalho paramim, embora eu o chamasse disso;parecia, isto sim, um tipo esquisitode trampolim mental do qual eusaltava para a frente. Molas queretiravam todo o peso do mundodurante um tempo.

Ao meio-dia, eu fazia uma pausa,dirigia até o “gordurorium” deBuddy Jellison para comer algo bempesado, voltava para casa etrabalhava por mais uma hora maisou menos. Depois disso, nadava e

tirava uma longa soneca semsonhos no quarto norte. Raramentepousava a cabeça no quartoprincipal na extremidade sul dacasa, e se a sra. M. achava issoesquisito, guardava a opinião parasi mesma.

Na sexta-feira dia 17, ao voltarpara casa, parei no ArmazémLakeview para pôr gasolina noChevrolet. Havia bombas na oficina,sendo que a bomba manipuladapelo cliente era um ou doiscentavos mais barata; contudo, eunão gostava das vibrações. Hoje,enquanto estava na frente doarmazém com a bomba de gasolina

automática e olhando na direçãodas montanhas, o Dodge Ram deBill Dean parou do outro lado dailha de combustível. Ele desceu esorriu:

— Como vai, Mike?— Muito bem.— Brenda disse que você está

escrevendo a todo vapor.— Estou — respondi, e o pedido

para uma revisão do ar-condicionado quebrado do segundoandar esteve na ponta da minhalíngua, mas ficou ali. Ainda mesentia nervoso demais sobre minhacapacidade redescoberta paraquerer mudar qualquer coisa no

meio ambiente em que aquilotranscorria. Talvez fosse estúpido,mas às vezes as coisas funcionamsó porque você acha quefuncionam. É uma definição de fétão boa quanto qualquer outra.

— Bem, estou contente de saberdisso. Muito contente. — Achei queera sincero, mas de alguma formanão soava como Bill. Não aqueleque havia me cumprimentadoquando cheguei, de qualquer modo.

— Tenho dado uma espiada nummaterial antigo sobre o meu ladodo lago — falei.

— Sara e os Red-Tops? Vocêsempre teve certo interesse neles,

eu me lembro.— Neles sim, mas não só neles.

Montes de histórias. Eu estavaconversando com a sra. M., e elame contou do Normal Auster, o paide Kenny.

O sorriso de Bill ficou paralisado.Ele só fez uma rápida pausa no atode destampar o tanque de gasolinade seu carro, mas mesmo assimtive a sensação muito clara de quehavia congelado por dentro.

— Você não ia escrever sobreuma coisa daquelas, não é, Mike?Porque há um monte de gente poraqui que acharia isso ruim e levariaa mal. Eu disse a mesma coisa a Jo.

— Jo? — Senti um impulso deandar entre as duas bombas e pisarna ilha para agarrá-lo pelo braço. —O que é que Jo tem a ver com isso?

Ele me olhou cautelosamente epor muito tempo.

— Ela não lhe contou?— Do que está falando?— Ela pensou que pudesse

escrever algo sobre Sara e os Red-Tops para um dos jornais locais. —Bill escolhia as palavras muitolentamente. Tenho uma nítidalembrança disso, e de como o solestava quente, espancando meupescoço, e como nossas sombraseram pronunciadas no asfalto. Ele

começou a bombear a gasolina, e osom do motor da bomba eratambém muito alto. — Acho que elachegou até a mencionar a revistaYankee. Posso estar enganadosobre isso, mas acho que nãoestou.

Fiquei sem fala. Por que ela nãoteria me contado sobre a ideia deescrever a respeito de umapequena história local? Teriapensado que estava seintrometendo em meu território?Isso era ridículo. Ela me conheciabem demais para aquilo... nãoconhecia?

— Quando é que vocês tiveram

essa conversa, Bill? Você selembra?

— Claro que sim. No mesmo diaem que ela apareceu para receberaquelas corujas de plástico. Mas eué que toquei no assunto, porque opessoal me disse que ela estavafazendo perguntas.

— Xeretando?— Não disse isso — falou

rigidamente. — Você é que estádizendo.

Era verdade, mas achei que elequeria dizer isso mesmo.

— Continue.— Não tem continuação

nenhuma. Eu disse a ela que alguns

calos doíam aqui e acolá na TR, omesmo que acontece em todaparte, e pedi-lhe que não pisasseem nenhum calo se pudesse evitar.Ela disse que compreendia. Talvezcompreendesse, talvez não. Só seique continuou a fazer perguntas.Escutando histórias de velhos toloscom mais tempo do que juízo.

— Quando foi isso?— Outono de 1993, inverno e

primavera de 1994. Ela percorreutoda a cidade, foi até Motton eHarlow, com seu caderno de notase gravadorzinho. De qualquermaneira, só sei isso.

Percebi uma coisa atordoante:

Bill estava mentindo. Se meperguntassem antes daquele dia,eu teria rido e dito que Bill Deannão tinha uma mentira sequerdentro da cabeça. E não devia termuitas, pois mentia muito mal.

Pensei em lhe chamar a atençãopara aquilo, mas com quefinalidade? Eu precisava pensar, enão poderia fazê-lo ali — minhamente rugia. Com o tempo, orugido poderia diminuir e eu veriaque na verdade não era nada, nadade importante, mas precisava detempo. Quando você começa adescobrir coisas inesperadas sobreum ente amado que morreu há

algum tempo, isso o abala. Abalamesmo, pode acreditar.

Os olhos de Bill tinham seafastado dos meus, mas voltaram ame fitar. Ele parecia ao mesmotempo sincero e — eu poderia jurar— um pouco assustado.

— Ela perguntou sobre opequeno Kerry Auster, e isso é umbom exemplo do que quero dizerquando falo em pisar em calos. Issonão é assunto para umareportagem de jornal ou um artigode revista. Normal simplesmentedetonou. Ninguém sabe por quê.Foi uma tragédia terrível, semsentido, e ainda há pessoas que

poderiam ficar magoadas com oassunto. Em cidadezinhaspequenas, as coisas estão ligadaspor debaixo da superfície...

É, como cabos que não se podemver.

— ... e o passado morre commais lentidão. Sara e aquelesoutros é uma questão diferente.Eles eram... só andarilhos... delonge. Jo poderia ter se limitado aesse pessoal e ficaria tudo bem. E,tanto quanto sei, ela fez isso.Porque nunca vi uma única palavraque tenha escrito. Se é queescreveu.

A respeito daquilo, senti que ele

estava dizendo a verdade. Mas eusabia algo mais, e com tantacerteza como quando soube queMattie estava usando short brancoao me ligar em seu dia de folga.Sara e aqueles outros eram sóandarilhos de longe. Bill havia ditoaquilo, mas hesitou no meio dopensamento, substituindo porandarilhos a palavra que lhe vieranaturalmente à mente. Crioulos eraa palavra que não haviapronunciado. Sara e os outros eramsó crioulos de longe.

Imediatamente me vi pensandonuma velha história de RayBradbury: Marte É o Céu. Os

primeiros viajantes espaciais paraMarte descobrem que ele é GreenTown, Illinois, e que todos os seusparentes e amigos bem-amadosestão lá. Só que os amigos eparentes são na verdade monstrosalienígenas e, durante à noite,enquanto os viajantes pensam queeles estão dormindo nas camas dosfamiliares mortos há muito temponum lugar que devia ser o céu, sãoassassinados até o último homem.

— Bill, tem certeza de que elaapareceu por aqui algumas vezesfora da estação?

— Tenho. E também não foramsó algumas vezes. Deve ter sido

uma dúzia de vezes ou mais.Viagens de um dia, sabe.

— Você viu alguma vez umsujeito com ela? Um caracorpulento, de cabelo preto?

Ele pensou a respeito. Tenteinão parar de respirar. Finalmentebalançou a cabeça.

— Nas poucas vezes em que a vi,ela estava sozinha. Mas não a viatoda vez que ela aparecia. Às vezessó sabia que Jo tinha estado na TRdepois que já havia ido embora denovo. Eu a vi em junho de 1994,indo na direção de Halo Baynaquele carrinho dela. Ela acenou,eu respondi. Fui até sua casa mais

tarde naquela noite para ver seprecisava de alguma coisa, mas elajá tinha ido embora. Não a vi denovo. Quando ela morreu, naquelemesmo verão, eu e ‘Vette ficamosmuito chocados.

Fosse o que fosse que estivesseprocurando, ela não deve terchegado a registrá-lo no papel. Euteria encontrado o manuscrito.

Mas aquilo seria verdade? Elatinha feito muitas viagens até aquisem nenhuma tentativa aparentede escondê-las, uma delas atéacompanhada por umdesconhecido, e eu só descobriraessas visitas acidentalmente?

— É difícil falar sobre isso —disse Bill —, mas já quecomeçamos, podemos ir até o fim.Morar na TR é como quandocostumávamos dormir quatro ouaté cinco numa cama em janeiro efazia um frio danado. Se todomundo se mantiver tranquilo, ficatudo bem. Mas se uma pessoa ficainquieta, se mexe e se vira,ninguém pode dormir. Nessemomento, você é a pessoainquieta. É assim que o pessoal vêa coisa.

Bill esperou para ver o que eudiria. Quando se passaram quasevinte segundos sem que eu desse

uma palavra (Harold Oblowski teriaficado orgulhoso), ele mexeu os pése continuou.

— Há gente nessa cidade sesentindo desconfortável com o seuinteresse por Mattie Devore, porexemplo. Não que eu estejadizendo que haja alguma coisaentre vocês dois, embora tenhagente que diga isso, mas se querficar na TR, está tornando a coisadifícil para você.

— Por quê?— Voltando ao que eu disse uma

semana atrás: Mattie significaproblemas.

— Segundo me lembro, Bill, você

disse que ela estava comproblemas. E está. Estou tentandoajudá-la a se livrar deles. Não hánada entre nós, a não ser isso.

— Eu me lembro de ter lhe ditoque Max Devore é maluco — falou.— Se deixar ele com raiva, nóstodos vamos pagar. — A bombadesligou e ele a colocou de volta nosuporte. Então suspirou, levantouas mãos e as deixou cair. — Vocêacha que é fácil para mim dizerisso?

— Você acha que é fácil paramim escutar isso?

— Está bem, sim, estamos nomesmo barco. Mas Mattie Devore

não é a única pessoa na TR vivendoapertado, sabe. Há outros com assuas próprias desgraças. Entende?

Talvez ele visse que eu entendiabem demais, pois seus ombroscaíram.

— Se está me pedindo para ficarde lado e deixar Devore levar afilha de Mattie sem nenhuma luta,pode esquecer — falei. — E esperoque não seja isso. Porque eu achoque teria que me afastar de umhomem que pede a outro para fazeruma coisa desse tipo.

— Eu não pediria isso agora demodo nenhum — disse ele, com osotaque mostrando-se forte quase

ao ponto de desprezo. — Seriatarde demais, não é? — E então,inesperadamente, amoleceu. —Que droga, homem, estoupreocupado com você. Mande oresto às favas, tá certo?Solenemente. — Ele estavamentindo de novo, mas desta veznão me importei muito porqueachei que estava mentindo para simesmo. — Mas você tem que tercuidado. Quando eu disse queDevore é maluco, não era umamaneira de falar. Acha que ele vaise preocupar com a corte superiorse a corte não lhe der o que elequer? Pessoas morreram naqueles

incêndios de 1933. Gente boa. Umaté aparentado comigo. Queimarammais da metade do malditocondado e Max Devore ateou ofogo. Foi seu presente de despedidapara a TR. Nunca pôde ser provado,mas foi ele quem fez aquilo.Naquela época, ele era jovem esem dinheiro, tinha menos de 20anos e a lei não estava no seubolso. O que acha que ele fariaagora?

Esquadrinhou-me com os olhos.Eu não disse nada.

Bill assentiu com a cabeça comose eu tivesse falado.

— Pense nisso. E lembre-se de

uma coisa, Mike: se eu não meimportasse com você, jamais falariatão direto como estou falando.

— Direto até que ponto, Bill? —Eu estava tenuemente conscientede um turista saindo de seu Volvo,caminhando até o armazém e nosolhando curiosamente; quandorepassei a cena na cabeça maistarde, percebi que devíamos terparecido dois caras à beira de umabriga de socos. Lembro que sentivontade de chorar de tristeza, deperturbação e de uma sensaçãoindefinida de traição, mas melembro também de estar furiosocom aquele velho curvado — com

sua camiseta de algodão brilhandode limpa e sua boca cheia dedentes falsos. Portanto, talveztivéssemos estado perto de brigar eeu apenas não tive consciênciadisso naquele momento.

— Tão direto quanto posso —disse ele, e se afastou para entrar epagar sua gasolina.

— Minha casa é assombrada —eu disse.

Ele parou de costas para mim, osombros curvados como se paraabsorver um golpe. Então virou-selentamente.

— Sara Laughs sempre foiassombrada, Mike. Você os agitou.

Talvez você devesse voltar paraDerry e deixá-los se aquietarem.Pode ser a melhor coisa a fazer. —Fez uma pausa como se repassandoo que havia dito para ver seconcordava, depois assentiu com acabeça. Assentiu tão lentamentecomo se virou. — É, isso podia ser amelhor coisa por aqui.

Quando voltei a Sara, telefonei paraWard Hankins. Depois finalmenteliguei para Bonnie Amudson. Partede mim torcia para que ela nãoestivesse na agência de viagens emAugusta da qual era sócia, mas

estava. No meio de minha conversacom Bonnie, o fax começou aimprimir páginas xerocadas dasagendas de compromissos de Jo.Na primeira, Ward rabiscara:“Espero que isso ajude.”

Eu não havia ensaiado o quedizer para Bonnie: senti que fazerisso seria uma receita para odesastre. Contei a ela que Jo vinhaescrevendo uma coisa — talvez umartigo, ou uma série deles — sobreo distrito onde se localizava nossacasa de verão, e que algunshabitantes aparentemente haviamficado profundamentedesagradados com a curiosidade

dela. Alguns ainda permaneciamassim. Ela tinha conversado comBonnie? Talvez tivesse lhemostrado um primeiro rascunho?

— Não, ahn-ahn. — Bonnieparecia honestamente surpresa. —Ela costumava me mostrar suasfotos e mais amostras de ervas doque eu sinceramente tinhainteresse em ver, mas nunca memostrou nada do que estavaescrevendo. Na verdade, lembro-me de ela dizer certa vez que tinharesolvido deixar a escrita para vocêe experimentaria um pouco...

— ... de todo o resto, não é?— É.

Achei que aquele era um bommomento para terminar a conversa,mas os rapazes do sótão pareciamter outras ideias.

— Ela estava saindo comalguém, Bonnie?

Silêncio do outro lado do fio.Com uma mão que parecia estarpelo menos a 6 quilômetros dedistância do braço, recolhi as folhasde fax da cesta. Dez delas —novembro de 1993 a agosto de1994. Rabiscos por toda parte coma caligrafia cuidada de Jo. Nóstínhamos um fax antes de elamorrer? Não conseguia me lembrar.Não havia muitas porcarias de que

eu conseguisse lembrar.— Bonnie? Se você sabe de algo,

por favor, me conte. Jo morreu,mas eu estou vivo. Posso perdoá-lase tiver que fazer isso, mas nãoposso perdoar o que nãocompreen...

— Desculpe — disse ela, e riunervosamente. — É quesimplesmente não entendi aprincípio. “Saindo com alguém” é...tão estranho com relação a Jo... àJo que eu conheci... que nãoconsegui entender o que vocêestava falando. Achei que estivessefalando de uma visita a umanalista, mas não estava não,

estava? Você queria dizer saindocom um homem. Um namorado.

— É o que eu queria dizer. —Folheando as páginas em xerox daagenda, minha mão não tinhavoltado à distância apropriada demeus olhos, mas estava chegandolá, chegando lá. Senti alívio ante aperturbação honesta na voz deBonnie, mas não tanto quantoesperei. Porque eu sabia. Nemchegou a precisar que a mulher novelho episódio de Perry Masonapresentasse seus dois centavos,não precisou mesmo. Era de Jo queestávamos falando afinal. Jo.

— Mike — Bonnie disse aquilo

muito suavemente, como se eupudesse estar louco —, ela amavavocê. Ela amava você.

— É. Acho que amava. — Aspáginas da agenda mostravamcomo minha mulher tinha sidoocupada. E o quanto era produtiva.O Sopão Solidário do Maine... assopas de caridade. WomShel, arede de abrigos para mulheresagredidas abrangendo várioscondados. TeenShel. Amigos dasBibliotecas do Maine. Esteve emduas ou três reuniões por mês,duas ou três por semana emalgumas épocas, e eu quase nãohavia notado. Estive muito ocupado

com minhas mulheres em perigo. —Eu também a amava, Bonnie, masela estava envolvida com algumacoisa nos últimos dez meses de suavida. Ela não deu nenhuma pista doque poderia ser quando vocês iamde carro às reuniões do Conselhodo Sopão ou dos Amigos dasBibliotecas do Maine?

Silêncio do outro lado do fio.— Bonnie?Afastei o telefone da orelha para

ver se a luz vermelha de BATERIA FRACA

estava acesa, e ele gritou alto omeu nome. Coloquei-o no lugar.

— Bonnie, o que é?— Não houve longas viagens de

carro naqueles últimos nove ou dezmeses. Conversávamos ao telefonee lembro que uma vez almoçamosem Waterville, mas não houvelongas viagens de carro. Ela haviasaído.

Folheei novamente as folhas defax. Reuniões anotadas por todaparte na caligrafia firme de Jo.Sopão Solidário do Maine entreelas.

— Não compreendo. Ela saiu doConselho do Sopão?

Outro momento de silêncio.Então, falando cuidadosamente:

— Não, Mike. Ela deixou todoseles. Deixou os abrigos para

mulheres e os abrigos paraadolescentes no final de 1993, seuperíodo terminara. Dos outros dois,Sopão e Amigos das Bibliotecas doMaine, ela pediu demissão emoutubro ou novembro de 1993.

Reuniões anotadas por todas asfolhas que Ward tinha me enviado.Dúzias delas. Reuniões em 1993,1994. Reuniões de conselhos aosquais ela não mais pertencia. Elaesteve aqui. Em todos aqueles diasem que supostamente participavade reuniões, Jo tinha estado aquina TR. Eu apostaria minha vidanisso.

Mas por quê?

Capítulo Dezessete

Está bem, Devore era maluco,maluco como um chapeleiro, e nãopodia ter me pegado num momentopior, mais fraco e maisaterrorizante. E acho que tudo,daquela hora em diante, foi quasepreordenado. Dali à terríveltempestade da qual ainda falamnesta parte do mundo, tudo veioabaixo como um deslizamento derochas.

Eu me senti bem por todo o restoda tarde de sexta-feira — minhaconversa com Bonnie tinha deixadoum monte de perguntas nãorespondidas, mas mesmo assimtinha sido tonificante. Prepareirapidamente uns legumes ao estilochinês (em reparação ao meuúltimo mergulho no aparelho defrituras do Village Café) e comi-oenquanto assistia ao noticiário doprincípio da noite. No outro lado dolago, o sol mergulhava nasmontanhas e inundava de ouro asala de estar. Quando o noticiárioterminou, resolvi dar um passeio nadireção norte ao longo da Rua —

iria tão longe quanto pudesse emesmo assim me certificaria devoltar para casa quandoescurecesse; enquanto caminhassepensaria nas coisas que Bill Dean eBonnie Amudson tinham mecontado... Pensaria nelas pelocaminho em que às vezes andava enos fios de trama em que vinhatrabalhando.

Desci os degraus de dormentesainda me sentindo perfeitamentebem (confuso, mas bem), saí para aRua e fiz uma pausa para olhar aSenhora Verde. Mesmo com o soldo entardecer ainda brilhando emcheio sobre ela, era difícil tomá-la

pelo que era realmente — apenasuma bétula com um pinheiro meiomorto por trás, com um galho queparecia um braço apontando. Eracomo se a Senhora Verde estivessedizendo, vá para o norte, rapaz, vápara o norte. Bem, eu não eraexatamente um rapaz, mas podia irpara o norte, sem dúvida. Porenquanto, pelo menos.

Apesar disso fiquei ali mais ummomento, estudandodesconfortavelmente o rosto que eupodia ver nas moitas, não gostandodo modo como o leve sacudir dabrisa parecia produzir quase umaboca rindo sarcasticamente. Acho

que talvez tivesse começado a mesentir um pouco mal então, masestava preocupado demais paranotá-lo. Andei na direção norte,imaginando o que exatamente Jopodia ter escrito... pois já então eucomeçava a acreditar que elapudesse ter escrito algo, afinal decontas. Por que outra razão eu teriaencontrado minha velha máquinade escrever no estúdio dela? Euvasculharia a casa, decidi. Eu avasculharia cuidadosamente e...

socorro estou afogandoA voz vinha do bosque, da água,

de mim mesmo. Uma onda detontura passou por meus

pensamentos, levantando-os eespalhando-se como folhas numabrisa. Parei. De repente, nunca mesenti tão mal, tão azarado na vida.Meu peito estava apertado. Oestômago dobrava-se para dentrocomo uma flor gelada. Os olhosenchiam-se de uma água fria quenão tinha qualquer semelhança comlágrimas, e eu sabia o que estavachegando. Não, tentei dizer, mas apalavra não saiu.

Em vez disso, minha boca seencheu com o gosto gelado da águado lago, todos aqueles mineraisescuros, e subitamente as árvoresestavam tremeluzindo diante dos

meus olhos como se eu as olhasseatravés de um líquido claro, e apressão em meu peito tinha setornado horrivelmente localizada,tomando a forma de mãos. Elas mepuxavam para baixo.

— Não vai parar de fazer isso? —alguém perguntou, quase gritou.Não havia ninguém na Rua a nãoser eu, mas ouvi a voz claramente.— Nunca vai parar de fazer isso?

O que veio a seguir não foi umavoz exterior, mas pensamentosestranhos em minha cabeça. Elesse debatiam contra as paredes demeu crânio como mariposas dentrode uma luminária... ou dentro de

uma lanterna japonesa.

socorro estou afogandosocorro estou afogando

o homem do boné azul diz queme pegou

o homem do boné azul diz quenão vai me deixar passear

socorro estou afogandoperdi minhas frutinhas no

atalhoele tá me segurando

o rosto dele tremula eparece mau

me solta me solta Ah meubom Jesus me solta

deixa eu sair, o jogo acabouPOR FAVOR

DEIXA EU SAIR você continua e paraagora

ela grita meu nomeela o grita tão ALTO

Curvei-me para a frente numpânico total, abri a boca e da bocaaberta e retorcida saiu um frio jorrode...

Absolutamente nada.O horror daquilo passou e ao

mesmo tempo não passou. Aindame sentia tremendamente enjoado,como se tivesse comido algo quehavia ofendido violentamente meucorpo, uma espécie de formicida outalvez um cogumelo fatal, do tipo

que os guias de cogumelos de Jomostravam em destaque rodeadospor um traço vermelho. Cambaleeipara a frente uma meia dúzia depassos, tendo engulhos secosvindos de uma garganta que aindase achava molhada. Havia outrabétula onde a margem caía paradentro do lago, arqueandograciosamente o ventre brancosobre a água como se para ver seureflexo à luz lisonjeira doentardecer. Agarrei-a como umbêbado agarra um poste.

A pressão em meu peitocomeçou a diminuir, mas deixouuma dor tão real quanto a chuva.

Agarrei-me à árvore, o coraçãobatendo com força, e subitamentetive consciência de que algo fedia— um cheiro pior e mais poluído doque o de um tanque sépticoentupido que tivesse fervilhado portodo o verão sob o solincandescente. Com ele havia asensação de uma presençamedonha emitindo aquele odor,algo que devia estar morto e nãoestava.

Ah, para, deixa eu sair, o jogoacabou, eu faço qualquer coisa praparar, tentei dizer, e mesmo assimnada apareceu. Então sumiu. Nãosenti aquele cheiro, só o do lago e

do bosque... mas pude ver umacoisa: um garoto no lago, umgarotinho escuro e afogado deitadode costas. Suas maçãs do rostoestavam intumescidas. A bocapendia frouxamente aberta. Osolhos se mostravam brancos comoos olhos de uma estátua.

Minha boca se encheunovamente com o impiedoso gostode ferro do lago. Me ajuda, mesolta, socorro estou afogando. Eume inclinei, gritando mentalmente,gritando para o rosto morto, epercebi que olhava para mimmesmo, através da água rosada etrêmula do pôr do sol eu olhava

para um homem branco de calçajeans e camisa polo amarelaagarrado a uma bétula oscilante etentando gritar, seu rosto líquidoem movimento, os olhosmomentaneamente tapados pelapassagem de uma pequena percaperseguindo um saboroso bichinho,eu era ao mesmo tempo o garotoescuro e o homem branco, afogadona água e afogando no ar, é isso?,é isso que está acontecendo, bataum para sim e dois para não.

Minha ânsia de vômito produziuapenas um único fio de saliva e,inacreditavelmente, um peixe puloupara ela. Eles arremeteriam contra

qualquer coisa ao crepúsculo; algona luz que morria devia deixá-losloucos. O peixe bateu na águanovamente a uns 2 metros damargem, espadanando numaondinha circular, e desapareceu —assim como o gosto em minhaboca, o cheiro horrível, o rostotremeluzente e afogado da criançapreta — um preto, era como eleteria pensado de si mesmo — cujonome quase certamente tinha sidoTidwell.

Olhei para a direita e vi a partedianteira de uma rocha destacando-se da cobertura em torno dela. Ali,bem ali, pensei, e como se para

confirmar isso, o horrível cheiroputrefato chegou a mim num sopronovamente, aparentemente vindodo solo.

Fechei os olhos, ainda agarradona bétula em desespero, sentindo-me fraco, enjoado e doente, e foientão que Max Devore, aquelelouco, falou atrás de mim. “Diga aí,seu devasso, onde está a puta?”

Virei-me e lá estava ele, comRogette Whitmore a seu lado. Foi aúnica vez que o encontrei, mas foisuficiente. Acredite, uma vez foimais do que suficiente.

Sua cadeira de rodas mal pareciauma cadeira de rodas mesmo.Assemelhava-se mais a uma mesclade motocicleta com assento do ladoe um dispositivo para aterrissar nalua. Meia dúzia de rodas cromadaspercorriam seus dois lados. Asrodas maiores — quatro delas, achoeu — corriam numa fileira pelaparte de trás. Nenhuma pareciaexatamente no mesmo nível, epercebi que cada uma ligava-se aseu próprio mecanismo desuspensão. Devore teria umdeslizar suave num terreno bemmais áspero que a Rua. Acima dasrodas traseiras havia um

compartimento para o motorembutido. Uma nacele de fibra devidro preta com pequenas listrasvermelhas que não teriam ficadodeslocadas num carro de corridaescondia as pernas de Devore.Implantado no centro dela via-seum dispositivo que parecia comminha antena parabólica... umaespécie de sistemacomputadorizado para evitarobstáculos, acho eu. Talvez até umpiloto automático. Os braços dacadeira eram largos e cobertos decontroles. Embutido no ladoesquerdo da máquina estava umtanque verde de oxigênio de pouco

mais de um metro de comprimento.Uma mangueira o ligava a um tubode plástico claro e sanfonado; otubo ligava-se a uma máscara quedescansava no colo de Devore.Aquilo me fez pensar no velho coma Stenomask. Vindo depois do quetinha acabado de acontecer, eupodia considerar esse veículo aoestilo de Tom Clancy umaalucinação, a não ser pelo adesivode para-choque na nacele, abaixoda antena.

Neste entardecer, a mulher queeu tinha visto do lado de fora doSunset Bar no Warrington’s estavausando uma blusa branca de

mangas compridas e calças pretastão afuniladas que faziam suaspernas parecerem espadasembainhadas. Seu rosto estreito eas faces encovadas aassemelhavam mais do que nuncacom a figura gritando de EdvardMunch. Seu cabelo branco pendiaem torno do rosto como um capuzescorrido. Os lábios estavampintados com um batom vermelhotão vivo que a boca pareciasangrar.

Ela era velha e feia, mas umprêmio se comparada ao sogro deMattie. Esquelético, com os lábiosazuis, a pele em torno dos olhos e

dos cantos da boca de um roxo-escuro, ele parecia algo que umarqueólogo tivesse descoberto nasala fúnebre de uma pirâmide,rodeado pelas esposas e animais deestimação empalhados, cobertocom suas joias favoritas. Alguns fiosde cabelos brancos ainda seprendiam ao crânio escamoso; maistufos projetavam-se de orelhasenormes que pareciam ter derretidocomo esculturas deixadas ao sol.Ele usava calças de algodão brancoe uma camisa azul cheia de ondasencapeladas. Acrescente-se a issouma pequena boina preta e eleteria parecido um artista francês do

século XIX no final de uma vidamuito longa.

Atravessada em seu colo estavauma bengala de madeira preta.Aconchegado na extremidade se viaum guidom de bicicleta vermelhovivo. Os dedos que o agarravampareciam poderosos, mas estavamficando tão pretos quanto a própriabengala. Sua circulação ia falhando,e eu não podia imaginar qual seriaa aparência de seus pés e pernas.

— A puta fugiu e abandonouvocê, é?

Tentei dizer algo. De minha bocasaiu um grasnido, nada mais. Aindame agarrava à bétula. Soltei-a e

tentei me endireitar, mas minhaspernas ainda estavam fracas e tiveque agarrar a árvore novamente.

Ele acionou uma alavanca deprata e a cadeira deslizou uns 3metros mais para perto de mim,encurtando pela metade a distânciaentre nós. O som que fazia era deum sedoso sussurro; observá-la eracomo ver um tapete mágico do mal.Suas muitas rodas erguiam-se edesciam independentes umas dasoutras e lampejavam ante o soldeclinante, que tinha começado aassumir um brilho avermelhado. Equando ele se aproximou, senti aimpressão causada pelo homem.

Seu corpo apodrecia debaixo dele,mas a força que emanava erainegável e intimidadora, como umatempestade elétrica. A mulher deuuns passos a seu lado, olhando-menuma diversão silenciosa. Seusolhos eram rosados. Imaginei quefossem cinzentos e que o solpoente estava refletido neles, masacho agora que ela era uma albina.

— Sempre gostei de uma puta —disse ele. Arrancou a palavra de si,fazendo o uuuuu soar com força. —Não é, Rogette?

— É, sim — disse ela. — No lugardelas.

— Às vezes, o lugar delas era em

cima da minha cara! — exclamouele com uma espécie deatrevimento insano, como se ela oestivesse contradizendo. — Ondeestá ela, rapaz? Em que cara elaestá sentando agora? Ficoimaginando qual. Naqueleadvogado esperto que vocêdescobriu? Ah, sei tudo sobre ele, apartir da Conduta Insatisfatória queele teve na terceira série. Meunegócio é saber de coisas. É osegredo do meu sucesso.

Com um esforço enorme, eu meendireitei.

— O que está fazendo aqui?— Uma caminhada terapêutica,

como você. Não há nenhuma leicontra isso, há? A Rua pertence aqualquer um que quiser usá-la.Você não está por aqui há muitotempo, jovem devasso, mascertamente está há temposuficiente para saber disso. É anossa versão do parque da cidade,onde bons cachorrinhos e cãesmaus podem andar lado a lado.

Mais uma vez usando a mão quenão agarrava o guidom de bicicletavermelho, pegou a máscara deoxigênio, sugou profundamente e adeixou cair no colo. Sorriu — umsorriso inominável de cumplicidadeque revelou gengivas cor de iodo.

— Ela é boa? Aquela sua puuuta?Ela deve ser boa para ter mantidomeu filho prisioneiro naqueletrailerzinho nojento onde ela mora.E então vem você mesmo antes deos vermes terem acabado de comeros olhos de meu filho. A bocetadela suga?

— Cale a boca.Rogette Whitmore jogou a

cabeça para trás e riu. O som eracomo o grito de um coelho presonas garras de uma coruja, e sentium calafrio. Tive uma ideia decomo a mulher era louca. Graças aDeus, eles eram velhos.

— Você acertou num nervo, Max

— disse ela.— O que é que você quer? —

Respirei com mais força... e sentinovamente a putrefação. Tive umaânsia de vômito. Não queria, masnão consegui evitá-lo.

Devore endireitou-se na cadeirae respirou profundamente, como sedebochasse de mim. Naquelemomento, ele parecia Robert Duvallem Apocalypse Now, andando apassos largos pela praia e dizendoao mundo como adorava o cheirode napalm pela manhã. O sorrisode Devore se ampliou.

— Lugar adorável, não é? Umponto confortável para se parar e

pensar, você não acha? — Ele olhouem volta. — Foi aqui queaconteceu, mesmo. Sim.

— Onde o garoto se afogou.Diante daquilo, achei que o

sorriso de Whitmore tivesse ficadomomentaneamente pouco àvontade. O de Devore não. Eleagarrou sua translúcida máscara deoxigênio com um movimentoexcessivamente amplo de velho,dedos que mais tateavam quepegavam. Pude ver pequenasbolhas de muco presas no lado dedentro dela. Ele sugouprofundamente de novo, e colocoua máscara de lado mais uma vez.

— Uns trinta sujeitos ou mais seafogaram neste lago, é só o queeles sabem — disse. — O que é umgaroto, mais ou menos?

— Não entendi. Foram doisgarotos Tidwell que morreram aqui?O que morreu de toxemia e um...

— O senhor se importa com suaalma, sr. Noonan? Sua almaimortal? A borboleta de Deus presanum casulo de carne que logo iráfeder como a minha?

Eu não disse nada. A estranhezado que havia acontecido antes deele ter chegado estava passando. Oque a substituía era seu incrívelmagnetismo pessoal. Nunca em

minha vida eu senti tanta forçacrua. Também não havia nadasobrenatural nela, e crua éexatamente a palavra certa. Eupoderia ter corrido. Em outrascircunstâncias, tenho certeza deque o teria feito. Certamente nãofoi a coragem que me manteveonde eu estava; minhas pernasainda pareciam de borracha, e tivemedo de cair.

— Vou lhe dar uma chance desalvar sua alma — disse Devore.Ergueu um dedo para ilustrar aideia de uma. — Vá embora, meubom devasso. Agora mesmo, comas roupas do corpo. Não se

preocupe em fazer a mala, nãopare nem mesmo para ter certezade que o fogão está apagado. Vá.Deixe a puta e a putinha.

— Deixá-las para você.— É, para mim. Eu farei as coisas

que precisam ser feitas. Almas sãopara estudantes de artes liberais,Noonan. Eu era engenheiro.

— Vá se foder.Rogette Whitmore deu

novamente o grito de coelho.O velho ficou ali na cadeira, de

cabeça baixa, rindo lividamente eparecendo alguém saído dentre osmortos.

— Tem certeza que quer ser o

cara, Noonan? Para ela poucoimporta, você sabe, tanto faz vocêou eu, é tudo o mesmo para ela.

— Não sei do que está falando.— Respirei profundamente de novoe desta ver o ar pareceu normal.Afastei-me um passo da bétula, eminhas pernas também estavambem. — E pouco me importa. Vocênunca vai ficar com Kyra. Nunca, noque sobra de sua vida sórdida. Eujamais verei isso acontecer.

— Amigo, você vai ver umbocado de coisas — disse Devore,mostrando os dentes num sorriso,assim como as gengivas cor deiodo. — Antes de julho terminar,

você provavelmente terá visto tantoque vai querer ter arrancado osolhos das órbitas em junho.

— Vou para casa. Deixe-mepassar.

— Pois então vá, como é que eupoderia impedir? — perguntou. — ARua pertence a todos. — Içou amáscara de oxigênio do colo denovo e tomou outra saudávelinalação. Deixou-a cair no colo einstalou a mão esquerda no braçode sua cadeira de rodas BuckRogers.

Dei um passo na direção dele,mas quase antes que eu soubesse oque estava acontecendo, ele

investiu com a cadeira de rodascontra mim. Poderia ter me atingidoe machucado bastante — quebradouma das minhas pernas ou as duas,não duvido —, mas parou poucoantes disso. Dei um pulo para trás,mas só porque ele deixou. Noteique Whitmore estava rindonovamente.

— O que foi, Noonan?— Saia do meu caminho. Estou

avisando.— A puta deixou você nervoso,

é?Comecei a me mover para a

esquerda, querendo passar por eledaquele lado, mas, numa fração de

segundo, ele virou a cadeira,deslizou para a frente e cortou meucaminho.

— Saia da TR, Noonan, estou lhedando um bom av...

Virei para a direita, desta vezpara o lado do lago, e teria meesgueirado por ele com facilidadese não fosse o punho, muitopequeno e duro, que se abateusobre o lado esquerdo de meurosto. A vaca de cabelos brancosestava usando um anel e a pedratinha me cortado atrás da orelha.Senti o ardor e o jorro quente desangue. Girei, estiquei as duasmãos e a empurrei. Ela caiu no

atalho atapetado de agulhas depinheiro com um guincho de ultrajesurpreso. No momento seguinte,algo me atingiu a nuca. Ummomentâneo fulgor laranjailuminou minha visão. Cambaleeipara trás no que me pareceu ummovimento em câmara lenta,bracejando, e Devore entrounovamente no meu ângulo devisão. Ele havia se torcido nacadeira de roda, a cabeçaescamosa projetada para a frente,a bengala com que me atingiraainda levantada. Se fosse dez anosmais moço, acredito que teriafraturado meu crânio em vez de

apenas produzir a momentânea luzcor de laranja.

Corri para minha velha amiga, abétula. Levei a mão à orelha e olheiincrédulo o sangue na ponta dosmeus dedos. A cabeça doía dogolpe que Devore tinha medesferido.

Whitmore estava lutando para selevantar, sacudindo as agulhas depinheiro de sua calça comprida eme olhando com um sorriso furioso.Suas maçãs do rosto tinham sidotomadas por um tênueenrubescimento cor-de-rosa. Oslábios vermelhos demais searreganhavam mostrando dentes

pequenos. À luz do sol que sepunha, seus olhos pareciamincandescentes.

— Saia do meu caminho — eudisse, mas minha voz soou pequenae fraca.

— Não — disse Devore, edepositou o cano preto da bengalana nacele curvando-se por cima dafrente da cadeira de rodas. Entãopude ver o garotinho que tinha sedecidido a ter o trenó por mais quecortasse as mãos ao fazê-lo. Podiavê-lo nitidamente. — Não, seuviadinho comedor de puta. Nãosaio.

Acionou a alavanca de prata de

novo e a cadeira de rodas disparousilenciosamente na minha direção.Se eu tivesse ficado onde estava,ele teria me atravessado com abengala tão certamente comoqualquer duque mau numa históriade Alexandre Dumas.Provavelmente teria esmagado osossos frágeis de sua mão direita earrancado o braço direito de suaarticulação no choque, mas aquelehomem jamais havia se preocupadocom essas coisas; deixava acontagem dos prejuízos para agentinha. Se eu tivesse hesitadopor choque ou incredulidade, eleteria me matado, tenho certeza. Em

vez disso, rolei para a esquerda.Meus tênis deslizaram na margemde escorregadias agulhas depinheiro por um momento. Entãoperdi contato com o solo e estavacaindo.

Bati na água desajeitadamente emuito próximo da margem. Meu péesquerdo agarrou numa raizsubmersa, torcendo-se. A dor foienorme, algo que pareceu o som deum trovão. Abri a boca para gritar ea água do lago entrou nela —aquele sabor escuro, gelado emetálico, dessa vez de verdade. Eu

a tossi para fora, espirrando-atambém pelo nariz, e chapinheipara longe de onde tinha caído,pensando O garoto, o garoto mortoestá aqui embaixo, e se eleestender a mão e me agarrar?

Virei de costas, ainda medebatendo e tossindo, bemconsciente de que o jeans grudava-se pegajosamente às pernas e aogancho, pensando absurdamenteem minha carteira — eu não meimportava com os cartões decrédito ou a carteira de motorista,mas tinha dois bons instantâneosde Jo nela que se estragariam.

Vi que Devore quase havia se

atirado margem abaixo, e por ummomento achei que ele ainda podiacair. A frente de sua cadeiraprojetava-se por cima do lugar deonde caí (eu via as curtas marcasde meus tênis exatamente àesquerda das raízes parcialmenteexpostas da bétula), e apesar de asrodas da frente ainda estarem nosolo, a terra esfarelada se esvaíasob elas em pequenas avalanchessecas que rolavam pelo declive ebatiam rapidamente dentro d’água,criando um padrão de pequenasondas entrecruzadas. Whitmoreestava agarrada às costas dacadeira, puxando-a para trás, mas o

peso era excessivo para ela; seDevore ia ser salvo, ele próprioteria que fazê-lo. Em pé emergulhado no lago até a cintura,torci para que caísse.

A garra arroxeada de sua mãoesquerda tinha recapturado aalavanca de prata depois de váriastentativas. Um dedo a puxou paratrás, e a cadeira deu marcha a réda margem com um chuveiro finalde pedras e poeira. Whitmore puloude modo travesso para um ladopara impedir que a cadeirapassasse por cima de seus pés.

Devore manipulou os controles,virou a cadeira para se voltar para

onde eu estava na água, a poucomais de 2 metros de distância dabétula pendente, e então cutucou acadeira para a frente até queficasse à beira da Rua, mas numponto seguro de onde não caísse.Whitmore tinha se afastado de nósinteiramente; estava abaixada, como traseiro apontando na minhadireção. Se eu chegasse a pensarnela, e não consigo me lembrar detê-lo feito, suponho que aimaginaria tentando recuperar arespiração.

De nós três, Devore era o queparecia estar em melhor forma,sem nem mesmo precisar de uma

dose da máscara de oxigênio emseu colo. A luz do entardecerrefletia-se em cheio em seu rosto,fazendo-o parecer com umaabóbora de Halloween meio podree sorridente a que tivessemensopado de gasolina e depoisincendiado.

— Gostando do seu banho? —perguntou, e riu.

Olhei em volta, esperando verum casal caminhando ou talvez umpescador procurando um lugar ondepudesse jogar sua linha mais umavez antes de escurecer... e aomesmo tempo tinha esperanças denão ver ninguém. Estava zangado,

machucado e assustado. Sentia-me,sobretudo, constrangido. Fui atiradono lago por um homem de 85anos... um homem que mostravatodos os sinais de ficar por ali e mefazer um objeto de escárnio.

Comecei a caminhar na águapara a direita — ao sul, de volta àminha casa. A água estava naminha cintura, fria e quaserefrescante agora que havia meacostumado com ela. Meus tênispisavam em rochas e galhos deárvores submersos. O tornozelo quetorci ainda doía, mas estava meaguentando. Se continuaria assimquando eu saísse do lago era outra

questão.Devore dedilhou seus controles

mais uma vez. A cadeira girou eveio deslizando lentamente aolongo da Rua, mantendo facilmenteo mesmo ritmo que eu.

— Não apresentei você a Rogetteadequadamente, apresentei? —disse ele. — Ela foi uma atleta etanto na faculdade, sabe? Softbol ehóquei eram as suasespecialidades, e ela manteve pelomenos algumas das habilidades.Rogette, demonstre suashabilidades para este rapaz.

Whitmore passou pela cadeira derodas movendo-se lentamente à

esquerda. Por um momento foiencoberta por ela. Quando pude vê-la novamente, vi também o queestava segurando. Ela não tinha securvado para respirar.

Sorrindo, caminhou a passoslargos pela margem com o braçoesquerdo dobrado contra odiafragma, aninhando as pedrasque pegou da beira do atalho.Escolheu um pedregulho mais oumenos do tamanho de uma bola degolfe, recuou a mão para trás daorelha e o atirou. Duro. Eleassobiou perto de minha têmporaesquerda e mergulhou dentro daágua atrás de mim.

— Ei! — gritei, mais surpreso doque com medo. Mesmo depois detudo que aconteceu antes, eu nãoconseguia acreditar no que estavaacontecendo.

— O que há de errado com você,Rogette? — perguntou Devorecomo uma criança. — Você nãocostumava nunca lançar como umagarota. Acerte nele!

A segunda pedra passou a 5centímetros da minha cabeça. Aterceira foi um quebrador de dentesem potencial. Eu a desviei com amão e com um grito raivoso eatemorizado, só mais tarde notandoque a pedra tinha machucado

minha mão. No momento, eu sótinha consciência do rosto odioso esorridente dela — o rosto de umamulher que pagou dois dólaresnuma ardilosa barraquinha de tiroao alvo e pretendia ganhar ogrande ursinho de pelúcia mesmoque tivesse que ficar atirando anoite inteira.

E ela atirava rápido. As pedraschoviam em torno de mim, algumaslançando borrifos de águaavermelhada à minha esquerda edireita, criando pequenos gêiseres.Comecei a recuar. Com medo deme virar e nadar para longe, commedo de que ela atirasse uma

pedra realmente grande no minutoque eu o fizesse. Mesmo assim,tinha que sair do seu alcance.Enquanto isso, Devore estavadando um riso chiado de velho, seurosto miserável encolhido em simesmo como o rosto de umaboneca malvada.

Uma das pedras me atingiu comforça, batendo dolorosamente naclavícula e quicando alto para o ar.Eu gritei e Whitmore também:“Hai”, como um lutador de caratêque desfechou um bom chute.

Paciência para a retirada comordem. Virei-me, nadei em direçãoà água profunda e a vaca me

arrebentou os meus miolos. Asprimeiras duas pedras que jogoudepois que comecei a nadarpareciam ter sido lançadas parasondar a distância. Houve umapausa quando tive tempo de pensarEstou conseguindo, estou saindo desua área de... e então algo atingiua parte de trás de minha cabeça. Euo senti e ouvi ao mesmo tempo —foi como o CLONK!, como algo que selê numa história em quadrinhos deBatman.

A superfície do lago ia do laranjabrilhante ao vermelho brilhante edele ao escarlate-escuro. Eu podiaouvir ligeiramente Devore gritando

de aprovação e Whitmore deixandoescapar seu estranho grito agudo.Tomei outro bocado de água comgosto de ferro e fiquei tão tontoque tive que lembrar a mim mesmode cuspi-la, não engoli-la. Sentiaagora meus pés pesados demaispara nadarem e a droga dos tênispesavam uma tonelada. Abaixei-ospara ficar em pé, mas não conseguiencontrar o fundo — tinha medeslocado para onde não dava pé.Olhei em direção à praia. Estavaespetacular, fulgurando ao pôr dosol como um cenário de teatroiluminado com gelatina brilhantevermelha e laranja. Eu estava

provavelmente a uns 6 metros dapraia agora. Devore e Whitmorepermaneciam à beira da Rua,observando. Pareciam Mamãe ePapai numa pintura de Grant Wood.Devore estava usando a máscaranovamente, mas eu podia ver quesorria dentro dela. Whitmoretambém sorria.

Entrou mais água em minhaboca. Cuspi a maior parte dela, masuma porção desceu, fazendo-metossir e ter certa ânsia de vômito.Comecei a afundar abaixo dasuperfície e lutei para voltar à tona,não nadando, mas simplesmenteespadanando alucinadamente,

gastando nove vezes mais energiado que precisava para permanecerflutuando. O pânico fez sua primeiraaparição, mordiscando através deminha perturbação entontecida comagudos dentinhos de rato. Percebique podia ouvir um zumbido alto edoce. Quantos golpes minha pobrecabeça recebera? Um do punho deWhitmore... um da bengala deDevore... uma pedra... ou tinhamsido duas? Jesus, não conseguia melembrar.

Controle-se, pelo amor de Deus— você não vai deixar que ele oderrote assim, vai? Afogá-lo como ogarotinho foi afogado?

Não, não se eu pudesse evitá-lo.Movimentei as pernas na água e

passei a mão esquerda na parte detrás da cabeça. Não muito acima danuca encontrei um galo que aindaestava crescendo. Quando oapertei, a dor me deu vontade devomitar e desmaiar ao mesmotempo. Lágrimas subiram aos meusolhos e rolaram pelo rosto abaixo.Havia apenas traços de sangue naspontas de meus dedos quando olheipara eles, mas é difícil avaliarcortes quando se está na água.

— Você parece uma marmotapresa na chuva, Noonan! — Agora avoz dele parecia rolar até onde eu

estava, como se cruzasse umagrande distância.

— Foda-se! — gritei. — Vou vervocê na cadeia por isso!

Ele olhou para Whitmore. Ela oolhou com uma expressão idênticae ambos riram. Se alguém tivessecolocado uma Uzi em minhas mãosnaquele momento, eu teria matadoos dois sem qualquer hesitação edepois pedido um segundo pentede balas para poder metralhar oscorpos.

Sem qualquer arma nas mãos,comecei a nadar tipo cachorrinhoem direção ao sul, à minha casa.Eles se deslocaram ao longo da Rua

comigo, ele deslizando na cadeirade rodas quieta como um sussurroe ela andando ao lado dele, tãosolene como uma freira, fazendouma pausa de vez em quando parapegar o que parecia ser uma pedra.

Eu não havia nadado o suficientepara estar cansado, mas estava.Era principalmente o choque, achoeu. Finalmente tentei respirar nomomento errado, engoli mais águae entrei totalmente em pânico.Comecei a nadar em direção àpraia, querendo chegar ondepudesse dar pé. Rogette Whitmorecomeçou a atirar pedras em mimimediatamente, primeiro usando as

que mantinha entre o braçoesquerdo e o diafragma, depois asque empilhou no colo de Devore.Ela estava aquecida, não lançavamais como uma garota, e suapontaria era mortal. As pedraslevantavam a água em torno demim. Desviei de outra — umagrande que provavelmente teriaaberto a minha testa se tivesse meacertado —, mas a que veio aseguir atingiu meu bíceps e fez neleum grande arranhão. Era suficiente.Rolei e nadei para trás, para alémde seu alcance, ofegando pararespirar, tentando manter a cabeçapara cima apesar da dor crescente

na nuca.Quando estava longe, mexi as

pernas e olhei para eles. Whitmoretinha andado todo o caminho até aborda da margem, querendo reduzircada metro de distância que podia.Droga, cada centímetro. Devoreestacionou atrás dela na cadeira derodas. Ambos estavam aindasorrindo, e agora seus rostos semostravam tão vermelhos quanto odo diabo no inferno. Céu vermelhonoturno, alegria de marujo. Outrosvinte minutos e ficaria escuro.Poderia eu manter a cabeça acimad’água por mais vinte minutos?Achava que sim, se não entrasse

em pânico de novo, mas não pormuito mais tempo. Pensei em meafogar no escuro, olhando paracima e vendo Vênus pouco antes deafundar pela última vez, e o pânicome cortou novamente com seusdentes. O pânico era pior do queRogette e suas pedras, muito pior.

Talvez não pior do que Devore.Olhei para os dois lados da parte

costeira do lago, checando a Ruasempre que ela se livrava dasárvores por quatro ou dez metros.Não me importava mais de ficarconstrangido, mas não vi ninguém.Santo Deus, onde está todomundo? Foram para Mountain View

em Fryeburg para uma pizza ou atéo Village Café para milk-shakes?

— O que é que você quer? —gritei para Devore. — Quer que eudiga a você que dou o fora de seunegócio? Certo, eu dou!

Ele riu.Bem, eu não esperei que

funcionasse. Mesmo que tivessesido sincero, ele não teriaacreditado em mim.

— Só queremos ver quantotempo você consegue nadar —disse Whitmore, e jogou outrapedra, um lançamento comprido epreguiçoso que caiu a um metro emeio de mim.

Eles pretendem me matar,pensei. Pretendem mesmo.

Sim. E, o que era pior, podiamlevar a cabo a intenção. Uma ideiamaluca, ao mesmo tempo plausívele implausível, surgiu em minhamente. Eu podia ver RogetteWhitmore pregando com tachinhasum anúncio no QUADRO DOS EVENTOS

COMUNITÁRIOS do lado de fora doArmazém Lakeview:

AOS MARCIANOS DA TR-90, SAUDAÇÕES!O sr. MAXWELL DEVORE, o marcianofavorito de todos, dará a cada residenteda TR CEM DÓLARES se ninguém usar aRua no ENTARDECER DE SEXTA-FEIRA, 17DE JULHO, entre 19 e 21 HORAS.Mantenham também nossos “AMIGOS DE

VERÃO” longe! E lembrem-se: BONSMARCIANOS são como BONS MACACOS:não VEEM nada de mal, não OUVEMnada de mal e não FALAM nada de mal!

Eu não podia realmente acreditarnaquilo, nem mesmo em minhasituação presente... mas mesmoassim quase acreditei. No mínimotinha que creditar a ele uma sortedemoníaca.

Cansado. Meus tênis maispesados do que nunca. Tentei tirarum deles e só consegui beber outraporção da água do lago. Elescontinuavam me observando,Devore pegando ocasionalmente amáscara do colo e tomando umadose revitalizante.

Eu não podia esperar até oescurecer. O sol desaparecerapidamente aqui no Maineocidental — da mesma forma queacontece, penso eu, em toda regiãomontanhosa por toda parte —, maso crepúsculo é longo e se esvailentamente. Quando ficassesuficientemente escuro para que eupudesse me mover sem ser visto, alua já teria surgido no leste.

Peguei-me imaginando meuobituário no New York Times, ocabeçalho com a frase POPULAR

ROMANCISTA DE SUSPENSE SE AFOGA NO MAINE.Debra Weinstock forneceria a eles afoto do autor de A Promessa de

Helen prestes a sair. HaroldOblowski diria todas as coisascertas e também se lembraria decolocar um modesto (mas nãominúsculo) aviso de falecimento naPublishers Weekly. Ele dividiriameio a meio com a Putnam, e...

Afundei, engoli mais água e acuspi. Comecei a bater na águacom o punho fechado e me forcei aparar. Da praia, eu podia ouvir oriso tilintante de Rogette Whitmore.Sua vaca, pensei. Sua vaca esque...

Mike, disse Jo.Sua voz estava na minha cabeça,

mas não era a que eu faço quandoimagino suas respostas a um

diálogo mental ou quandosimplesmente tenho saudade dela epreciso assobiar para chamá-la poralgum tempo. Como se parasublinhar isso, algo levantou a águaà minha direita, levantou com força.Quando olhei naquela direção, nãovi nenhum peixe, nem mesmo umapequena onda. O que vi em vezdisso foi nossa plataforma deflutuação ancorada a uns 90 metrosna água colorida pelo pôr do sol.

— Não consigo nadar até tãolonge, meu bem — falei com vozgutural.

— Disse alguma coisa, Noonan?— gritou Devore da praia. Uma

debochada mão em conchaenvolveu uma de suas enormesorelhas cheias de cera. — Nãoconsegui entender! Você parecesem fôlego! — Mais risadastilintantes de Whitmore. Ele eraJohnny Carson; ela, Ed McMahon,seu ajudante.

Você vai conseguir. Eu vouajudá-lo.

Percebi que a plataforma podiaser minha única chance — nãohavia outra deste lado da praia, eficava a pelo menos 10 metros amais do alcance das pedras deWhitmore. Cada vez que eu sentiaminha cabeça prestes a submergir,

fazia uma pausa, mexia as pernas,dizia a mim mesmo para ir comcalma e que eu estava em muitoboa forma e me saindo bem, e quese não entrasse em pânico tudoacabaria da melhor forma. A vacavelha e o nojento ainda mais velhocontinuaram a me acompanhar,mas viram para onde eu me dirigiae o riso parou. Os debochestambém.

Por muito tempo, a tábua deflutuação não parecia se aproximarum milímetro. Disse a mim mesmoque era só porque a luz estavaesmaecendo, a cor da água indo devermelho ao roxo e deste ao quase

negro, a cor das gengivas deDevore, mas minha convicção arespeito disso era cada vez menor àmedida que a respiração encurtavae meus braços ficavam maispesados.

Quando eu me encontrava aindaa uns 30 metros de distância, tivecãibra na perna esquerda. Rolei delado como um barco à velaafundando, tentando alcançar omúsculo que tinha dado um nó.Mais água entrou por minha bocaadentro. Tentei tossi-la para fora,mas tive uma ânsia de vômito esubmergi com o estômago aindatentando funcionar e meus dedos

ainda procurando o lugar do nóacima do joelho.

Estou mesmo me afogando,pensei, estranhamente calmo agoraque estava acontecendo. É assimque acontece, é isso aí.

Então senti uma mão me pegarpela nuca. A dor de ter o cabelopuxado me trouxe à realidade numclarão — foi melhor do que umainjeção de adrenalina. Senti outramão fechar-se à volta de minhaperna esquerda; ouve uma rápidamas fantástica sensação de calor. Acãibra desfez-se e eu irrompi nasuperfície nadando — nadandorealmente desta vez, não apenas

cachorrinho, e no que pareceusegundos eu estava me agarrandoà escada na lateral da plataforma,respirando em grandes arquejosvivificantes, esperando para ver seeu ficaria bem ou se o coração iadetonar no peito como umagranada de mão. Finalmente meupulmão começou a superar o débitode oxigênio e tudo começou a seacalmar. Dei a ele outro minuto,depois saí da água e entrei no queeram agora as cinzas do crepúsculo.Fiquei ali voltado para oeste por umtempo, curvado, as mãos nosjoelhos, pingando água nas tábuas.Depois me virei, pretendendo dar o

dedo a eles. Não havia ninguém aquem eu pudesse dar o dedo. A Ruaestava vazia. Devore e RogetteWhitmore tinham sumido.

Talvez tivessem sumido. Era bomque eu me lembrasse de que a Ruaera enorme. Eu poderia não vê-los.

Sentei-me de pernas cruzadas naplataforma de flutuação até que alua surgisse, esperando eobservando qualquer movimento.Meia hora, acho. Talvez 45 minutos.Consultei o relógio, mas não tivesua ajuda; tinha entrado água e eleparou às 19h30. Agora eu podia

juntar também às outrassatisfações que Devore me devia opreço de um Timex Indiglo — são29,95 dólares, idiota, cospe odinheiro.

Finalmente desci novamente aescada, deslizei para dentro d’águae nadei para a praia tãosilenciosamente quanto pude.Estava descansado, minha cabeçatinha parado de doer (embora ogalo pouco acima da nuca aindalatejasse sem parar), e não mesentia mais sem equilíbrio eperplexo. De certa maneira, aquilotinha sido o pior de tudo — tentarlidar não apenas com a aparição do

menino afogado, as pedras quevoavam e o lago, mas com asensação difusa de que nadadaquilo podia estar acontecendo,que velhos e ricos magnatas desoftware não tentavam afogarromancistas que entravam noângulo de visão deles.

No entanto, a aventura daquelanoite tinha sido apenas um simplescaso de penetrar no ângulo devisão de Devore? A coincidência deum encontro, não mais que isso?Não era provável que ele estivesseme observando desde o 4 deJulho... talvez do outro lado dolago, por intermédio de gente com

equipamentos ópticos altamentepoderosos? Besteira paranoica, euteria dito... pelo menos teria ditoisso antes de os dois terem quaseme afogado no lago Dark Score,como um barquinho de papel decriança numa poça de lama.

Resolvi não me importar quepudessem estar me observando dooutro lado do lago. Também nãome importava se os dois aindaestivessem espreitando numa daspartes da Rua escondida pelasárvores. Nadei até sentir fiapos deervas aquáticas fazendo cócegasem meus tornozelos e ver aenseada de minha praia. Então me

ergui, tremendo ante o ar, agorafrio contra minha pele. Manqueipara a praia com uma das mãoslevantadas para desviar uma pedra,mas não veio nenhuma. Fiquei porum momento na Rua, o jeans e acamisa polo pingando, olhandoprimeiro numa direção, depois naoutra. Eu parecia ter aquela partedo mundo só para mim. Por último,olhei novamente a água, onde oluar fraco traçava uma trilha dacurva da praia até a plataforma deflutuação.

— Obrigado, Jo — eu disse, ecomecei a subir os degraus para acasa. Cheguei até a metade deles e

tive que parar e sentar. Nunca tinhame sentido tão exausto em toda aminha vida.

Capítulo Dezoito

Subi as escadas para o deck em vezde contornar a casa e ir até a portada frente, ainda me movendo comlentidão e espantado diante do fatode minhas pernas darem aimpressão de ter o dobro do pesonormal. Quando entrei na sala deestar, olhei em volta com os olhosarregalados de alguém que estevefora por uma década e volta paraencontrar tudo exatamente como

deixou — Bunter, o alce, na parede,o Boston Globe no sofá, umacompilação da revista de palavrascruzadas Nível difícil na mesinha, oprato no balcão com os restos deminha comida chinesa ainda ali.Olhar para aquelas coisas trouxe apercepção do lar com força total —eu tinha saído para dar um passeio,deixando toda aquela leve e normaldesordem atrás de mim, e quasemorri. Quase fui assassinado.

Comecei a tremer. Fui aobanheiro da ala norte, tirei asroupas molhadas e as joguei nabanheira — splat. Então, aindatremendo, virei-me e olhei

fixamente para mim mesmo noespelho sobre a pia. Eu pareciaalguém que tivesse estado no ladoperdedor de uma briga de bar. Umdos bíceps mostrava um cortecomprido e coagulado. Umaequimose negro-púrpura estavasurgindo no que pareciam asassombreadas da minha clavículaesquerda. Havia um sulcosangrento no pescoço e atrás daorelha, onde a adorável Rogette meatingiu com a pedra de seu anel.

Peguei o espelho de barbear eusei-o para examinar a parte detrás da cabeça. “Não pode meterisso em sua cabeça dura?”, minha

mãe costumava gritar para Sid epara mim quando éramos garotos,e agora eu agradecia a Deus quemamãe aparentemente tivesserazão quanto à dureza das cabeças,pelo menos no meu caso. O lugarem que Devore me atingiu com abengala parecia o cone de umvulcão recentemente extinto. O tirocerteiro de Whitmore deixou umferimento vermelho que precisariade pontos se eu quisesse evitaruma cicatriz. Sangue, seco e ralo,manchava minha nuca por toda alinha do cabelo. Só Deus sabiaquanto dele havia escorridodaquela abertura vermelha de

aspecto desagradável e sido lavadopelo lago.

Derramei água oxigenada namão em concha, reuni as forças ecoloquei-a diretamente no corte detrás como se fosse uma loção apósa barba. A ardência foi monstruosa,e tive que apertar os lábios paranão gritar. Quando a dor começou adiminuir um pouco, molhei bolas dealgodão com mais água oxigenadae limpei os outros ferimentos.

Tomei um banho de chuveiro,vesti uma camiseta e um jeans, eentão fui até o corredor ligar para oxerife do condado. A ajuda da listatelefônica não era necessária; os

números do DP de Castle Rock e doxerife estavam no cartão EM CASO DE

EMERGÊNCIA pregado com tachinhas noquadro, juntamente com o númerodos bombeiros, o serviço deambulância e o número 900, ondese podiam obter três respostas paraas palavras cruzadas do Times dodia por US$ 1,50.

Liguei os primeiros três númerosrapidamente, depois fui metornando mais lento. Cheguei até955-960 antes de pararcompletamente. Permaneci nocorredor com o telefone apertado àorelha, visualizando outramanchete, esta não no decoroso

Times e sim no arruaceiro New YorkPost: ROMANCISTA PARA O IDOSO REI DOS

COMPUTADORES: “SEU VALENTÃO!”Juntamente com retratos, lado alado, meu, parecendo ter mais oumenos a minha idade, e de MaxDevore, parecendo ter mais oumenos 100 anos. O Post sedivertiria muito contando aosleitores como Devore (juntamentecom sua acompanhante, uma idosasenhora que poderia pesar 40quilos quando encharcada)derrubara um romancista com ametade de sua idade — umcamarada que parecia, ao menospela foto, razoavelmente em forma.

Com seu cérebro rudimentar, otelefone cansou-se de ter apenasseis números discados dos seteexigidos, deu dois cliques e desfeza ligação. Afastei o receptor daorelha, olhei-o fixamente por ummomento e a seguir o coloqueisuavemente no gancho.

Não sou fresco quanto àsatenções às vezes fantasiosas e àsvezes odiosas da imprensa, massou cauteloso, como também oseria ao me aproximar de ummamífero peludo e mal-humorado.A América transformou as pessoaspúblicas em esquisitas putas de altaclasse, e a mídia zomba de

qualquer “celebridade” que ousa sequeixar sobre o tratamentorecebido. “Para de reclamar!”,gritam os jornais e os programas defofocas da TV (o tom é uma misturade triunfo e indignação). “Vocêacha mesmo que nós lhe pagamosuma grana preta só para cantaruma canção ou rebater com umtaco de beisebol? Errado, seuidiota! Pagamos para ficarmossurpresos quando você se sai bem— seja lá o que façaespecificamente — e tambémporque é gratificante vê-lo meter ospés pelas mãos. A verdade é quevocê é um suprimento. Se deixar de

ser divertido, sempre poderemosmatá-lo e comê-lo.”

Eles não podemverdadeiramente comê-lo, claro.Mas podem imprimir fotos suas semcamisa e dizer que você estáengordando, podem falar de quantovocê bebe ou quantas pílulas toma,ou fofocar sobre a noite em quevocê puxou uma aspirante acelebridade para o seu colo noSpago e tentou enfiar a língua naorelha dela, mas não podemrealmente comê-lo. Assim, não foi opensamento sobre o Post mechamando de bebê chorão, ousobre fazer parte do monólogo de

abertura de um programa deentrevistas que me fez pôr otelefone no gancho — foi perceberque eu não tinha nenhuma prova.Ninguém nos vira. E percebitambém que achar um álibi para simesmo e sua assistente pessoalseria a coisa mais fácil do mundopara Max Devore.

Havia também outra coisa, quecoroava tudo: imaginar que o xerifedo condado mandasse GeorgeFootman, também conhecido comomachão, receber minha declaraçãode como o homem mau tinhaempurrado o pequeno Mikey paradentro do lago. Como os três ririam

com aquilo depois!Em vez disso, liguei para John

Storrow, querendo que me dissesseque eu estava fazendo a coisacerta, a única que tinha sentido.Querendo que ele me lembrasse deque só homens desesperadoschegam a fazer coisas tãodesesperadas (eu ignoraria, pelomenos por enquanto, como aquelesdois tinham rido, como se nuncativessem se divertido tanto), e quenada havia mudado com relação aKi Devore — o caso da custódia deseu avô ainda estava empacado.

Fui recebido pela secretáriaeletrônica de John em casa e deixei

um recado — ligar para MikeNoonan, nenhuma emergência, masfique à vontade para ligar tarde.Depois tentei seu escritório,guiando-me pelo evangelhosegundo John Grisham: jovensadvogados trabalham até cair. Ouvia mensagem da secretáriaeletrônica da firma, depois seguiinstruções e apertei STO no paineldo meu telefone, as primeiras trêsletras do último nome de John.

Houve um clique e ele veio àlinha — outra versão gravada,infelizmente. “Oi, aqui é JohnStorrow. Fui à Filadélfia pelo fim desemana para ver minha mãe e meu

pai. Estarei no escritório nasegunda; pelo resto da semana nãoirei ao escritório. De terça a sexta,você terá mais probabilidade de meencontrar em...”

O número que dava começavacom 207-955, o que queria dizerCastle Rock. Imaginei que fosse ohotel em que ele tinha ficado antes,o simpático bem ali na View. “MikeNoonan”, eu disse. “Ligue quandopuder. Deixei também um recadona secretária de seu apartamento.”

Fui à cozinha pegar uma cervejae então parei à frente da geladeira,brincando com os ímãs. Ele tinhame chamado de devasso. Diga

aqui, devasso, onde está sua puta?No minuto seguinte, se ofereceupara salvar minha alma. Bemengraçado, de fato. Como umalcoólatra oferecendo-se paratomar conta de seu armário debebidas. Ele falou de você com oque me pareceu uma afeiçãoverdadeira, disse Mattie. Seu bisavôe o dele cagaram no mesmo fosso.

Deixei a geladeira com a cervejaainda em segurança lá dentro,voltei ao telefone e liguei paraMattie.

— Oi — disse outra vozobviamente gravada. Eu estavanum círculo vicioso. — Sou eu, mas

ou saí ou não posso atender nesseexato minuto. Deixe um recado,tudo bem? — Uma pausa, umraspar do microfone, um sussurrodistante e então Kyra, tão alto quequase estourou o meu tímpano: —Deixe um recado FELIZ! — O riso dasduas acompanhou a frase, cortadapelo bipe.

— Oi, Mattie, é Mike Noonan —disse. — Eu só queria...

Não sei como terminaria a frase,mas não tive que terminá-la. Ouvium clique e a própria Mattie disse:“Alô, Mike.” Havia tal diferençaentre essa voz deprimida eaparentemente derrotada e a voz

animada na gravação que por ummomento fiquei em silêncio. Entãoperguntei o que estava havendo.

— Nada — disse ela, e entãocomeçou a chorar. — Tudo. Perdimeu emprego. Lindy me despediu.

Lindy não tinha chamado o ato dedemissão, claro. Ela o chamou de“apertar o cinto”, mas erademissão, sem dúvida nenhuma, eeu sabia que se examinasse aproveniência dos fundos daBiblioteca Four Lakes Consolidateddescobriria que um dos principaispatrocinadores dela pelos anos

afora tinha sido Max Devore. Econtinuaria a sê-lo... isto é, se LindyBriggs fizesse o jogo que ele queria.

— Não deveríamos terconversado onde ela pudesse nosver — falei, sabendo que eu poderiater ficado totalmente distante dabiblioteca e mesmo assim Mattieseria despedida. — Eprovavelmente devíamos terprevisto isso.

— John Storrow previu. — Elaainda chorava, mas fazia força parase controlar. — Ele disse que MaxDevore provavelmente ia fazer tudopara que eu ficasse tão encurraladaquanto possível quando chegasse a

audiência da custódia. Ele disse queDevore queria ter certeza de que euia responder “Estou desempregada,meritíssimo” quando o juizperguntasse onde eu trabalhava. Eudisse a John que a sra. Briggsjamais faria algo tão baixo,especialmente com uma garota quefez uma palestra tão brilhantesobre o “Bartleby”, de Melville.Sabe o que ele disse?

— Não.— “Você é muito jovem.” Achei

isso uma coisa muito paternalista,mas ele tinha razão, não é?

— Mattie...— O que vou fazer, Mike? O que

vou fazer? — O pânico parecia terdescido a estrada Wasp Hill.

Pensei friamente: Por que não setornar minha amante? Seu títuloseria “assistente de pesquisa”, umaocupação perfeitamente satisfatóriano que diz respeito à ReceitaFederal. Eu lhe dou roupas, uns doiscartões de crédito, uma casa —diga adeus ao grande trailerenferrujado na estrada Wasp Hill —e umas férias de duas semanas:que tal fevereiro em Mauí? Mais aeducação de Ki, é claro, e umpolpudo bônus em dinheiro no finaldo ano. Serei atencioso também.Atencioso e discreto. Uma ou duas

vezes por semana e nunca até quesua garotinha esteja dormindoprofundamente. Tudo o que tem afazer é dizer sim e me dar umachave. Tudo que tem a fazer édeslizar para perto quando eudeslizar para dentro. Tudo o quetem a fazer é me deixar fazer o queeu quiser — durante toda a noite,durante a escuridão, deixe-me tocaronde quero, deixe-me fazer o quequero, nunca diga não, nunca digapare.

Fechei os olhos.— Mike? Você está aí?— Claro — respondi. Toquei o

corte que latejava na cabeça e

estremeci. — Você vai se sair bem,Mattie. Você...

— O trailer nem está pago! —Ela quase gemeu. — Tenho duascontas de telefone já vencidas eestão ameaçando cortar o serviço!A transmissão do jipe está comalguma coisa errada e o eixotraseiro também! Posso pagar aúltima semana de Ki na EscolaBíblica de Férias, acho, a sra. Briggsme deu um pagamento de trêssemanas de aviso prévio, mas comovou comprar sapatos para Ki? Tudofica pequeno nela tão depressa...todos os shorts dela estão comburacos e a maior parte da porcaria

da sua roupa de baixo...Começou a chorar de novo.— Vou tomar conta de você até

se recuperar — eu disse.— Não, não posso deixar...— Pode, sim. Pode, sim, por

causa de Kyra. Mais tarde, se vocêainda quiser, pode me pagar o quedeve. Vamos anotar cada dólar ecentavo, se quiser. Mas vou tomarconta de você. — E nunca tirará asroupas quando eu estiver com você.É uma promessa, e vou cumpri-la.

— Mike, você não tem que fazerisso.

— Talvez sim, talvez não. Masvou fazer. Tente me impedir. — Eu

liguei pretendendo contar a ela oque havia acontecido comigo,dando-lhe a versão humorística,mas agora isso parecia a pior ideiado mundo. — Essa história decustódia vai terminar antes de vocêse dar conta, e se não encontrarninguém corajoso o bastante paralhe dar trabalho aqui quando tudoterminar, vou arranjar alguém emDerry que fará isso. Além do mais,diga a verdade, não estácomeçando a sentir que já é horade uma mudança de cenário?

Ela conseguiu dar um risoespremido.

— Acho que sim.

— Falou com John hoje?— Falei sim. Está visitando os

pais na Filadélfia, mas me deu onúmero de lá. Eu liguei para ele.

Ele disse que estava encantadocom ela. Talvez ela sentisse amesma coisa. Disse a mim mesmoque a pequena ferroada que sentiante aquela ideia era apenasimaginação minha. Seja como for,tentei me convencer daquilo.

— O que é que ele disse de vocêperder o emprego assim?

— As mesmas coisas que você.Mas ele não me fez sentir segura.Você, sim. Não sei por quê. — Eusabia. Eu era um homem mais

velho, e essa era nossa principalatração para as mulheres jovens:nós as fazemos se sentiremseguras.

— Ele vai aparecer de novo naterça de manhã. Eu disse quealmoçava com ele — elaacrescentou.

Suavemente, sem um tremor navoz, falei:

— Talvez eu possa ir também.A voz de Mattie mostrou-se

calorosa ante a sugestão; suapronta aceitação me fez sentirparadoxalmente culpado.

— Seria ótimo! Por que não ligopara ele e sugiro que vocês dois

venham para cá? Eu podia fazer umchurrasco de novo. Talvez Ki possafaltar à aula da Escola Bíblica deFérias e seremos quatro no almoço.Ela está esperando que você leiaoutra história para ela. Gostoumuito daquela.

— A ideia é ótima — eu dissesinceramente. Acrescentando-se ofato de que Kyra fazia tudo parecermais natural, menos uma intrusãode minha parte. E também menosum encontro de namorados daparte deles. John não podia seracusado de ter um interesse poucoético por sua cliente. No final, eleprovavelmente me agradeceria. —

Acho que Ki já está pronta paraenfrentar “João e Maria”. E você,Mattie? Está bem?

— Muito melhor do que antes devocê ligar.

— Ótimo. As coisas vão seacertar.

— Prometa.— Acho que acabei de fazer isso.Houve uma leve pausa.— E você, Mike? Parece um

pouco... não sei... um poucoestranho.

— Estou bem — eu disse, eestava, para alguém que há menosde uma hora achava que ia seafogar. — Posso lhe fazer uma

pergunta antes de ir embora?Porque isso está me deixandomaluco.

— Claro.— Na noite em que jantamos,

você me contou que Devore tinhadito que o bisavô dele e o meu seconheciam. Muito bem, segundoele.

— Ele disse que os dois tinhamcagado no mesmo fosso. Achei issomuito elegante.

— Ele disse mais alguma coisa?Pense bem.

Ela pensou, mas sem resultado.Pedi que me ligasse se lheocorresse algo a respeito daquela

conversa, se se sentisse solitária oucom medo, ou se começasse a ficarpreocupada com alguma coisa. Eunão gostava de dizer coisas demais,mas já havia decidido que teriauma conversa franca com Johnsobre minha última aventura.Talvez pudesse ser bom que odetetive particular de Lewiston —George Kennedy, como o ator —pusesse um ou dois homens na TRpara ficar de olho em Mattie e Kyra.Max Devore era louco, exatamentecomo disse meu caseiro. Naquelemomento, eu não tinha entendido,mas agora sim. A qualquermomento, que eu começasse a

duvidar do fato, só precisava tocara parte de trás da cabeça.

Voltei à geladeira e outra vez meesqueci de abri-la. Em vez disso,minhas mãos foram para os ímãs emais uma vez começaram a movê-los, observando as palavrasformadas, desfazendo-as,mudando-as. Era uma espéciepeculiar de escrita... mas eraescrita. Por falar nisso, notei queestava começando a entrar emtranse.

Cultiva-se esse estado semi-hipnótico enquanto se pode ligá-loe desligá-lo à vontade... pelomenos pode-se fazê-lo quando as

coisas estão indo bem. A parteintuitiva da mente se destrancaquando se começa a trabalhar, eascende a uma altura de 1,80metro mais ou menos (talvez 3metros nos bons dias). Uma vez lá,ela simplesmente paira, enviandomensagens de magia negra eimagens brilhantes. Para oequilíbrio do dia, essa parte étrancada separadamente do restoda maquinaria, permanecendobastante esquecida... a não ser emcertas ocasiões, quando se soltasozinha fazendo-o entrar em transeinesperadamente, com a mentefazendo associações que nada têm

a ver com o pensamento racional, efulgurando de imagens inesperadas.De certo modo, essa é a parte maisestranha do processo criativo. Asmusas são fantasmas, e às vezeschegam sem terem sidoconvidadas.

Minha casa é assombrada.Sara Laughs sempre foi

assombrada... você os agitou.Agitou, escrevi na geladeira. Mas

não parecia certo, portanto, fiz umcírculo de ímãs de frutas e legumesem torno das palavras. Ficou muitomelhor. Permaneci assim por ummomento, as mãos cruzadas sobreo peito da mesma maneira que as

cruzava em minha cadeira quandoempacava com uma palavra oufrase. Então retirei o agitou ecoloquei assombrou.

— É assombrado no círculo — eudisse, e ouvi ao longe o tênuetilintar do sino de Bunter, como seconcordasse.

Retirei as letras, e enquanto ofazia me vi pensando em como eraestranho ter um advogado chamadoRomeo —

(romeo entrou no círculo)— e um detetive chamado

George Kennedy.(george subiu na geladeira)Imaginei se Kennedy podia me

ajudar com Andy Drake —(drake na geladeira)— talvez me dar alguns insights.

Eu nunca escrevi sobre um detetiveparticular antes e são as pequenascoisas —

( t i r a r rake, deixar o d,acrescentar etalhes)

— que fazem a diferença. Deiteium 3 e coloquei um I por baixodele, transformando-o num forcado.A droga está nos detalhes.

Dali eu fui para outro lugar. Nãosei exatamente para onde, porqueestava em transe, aquela parteintuitiva de minha mente numponto tão alto que um grupo de

busca não poderia tê-la encontrado.Fiquei em frente à geladeira ebrinquei com as letras, soletrandopedacinhos de pensamento semsequer pensar neles. Você pode nãoacreditar que isso seja possível,mas todo escritor sabe que é.

O que me trouxe de volta foi aluz entrando pelas janelas dovestíbulo. Olhei para cima e vi aforma de um carro parando atrás demeu Chevrolet. Uma cãibra deterror me apertou a barriga.Naquele momento, eu teria dadotudo que possuía por uma armacarregada. Porque era Footman.Tinha que ser. Devore tinha ligado

para ele quando voltou comWhitmore ao Warrington’s, lhecontado que Noonan tinha serecusado a ser um bom marciano,portanto vá lá e dê um jeito nele.

Quando a porta do motorista seabriu e a luz do teto do carro foiacesa, dei um condicional suspirode alívio. Eu não sabia quem era,mas tinha certeza de que não era o“machão”. O sujeito ali não dava aimpressão de poder dar um jeitonuma mosca doméstica com umjornal enrolado... embora hajamuita gente que cometeu o mesmoerro com Jeffrey Dahmer.

Em cima da geladeira havia um

monte de latas de aerossol, todasvelhas e provavelmente nadaamigas da camada de ozônio. Eunão sabia como a sra. M. as deixaraescapar, mas fiquei contente comisso. Peguei a primeira em quetoquei — tarja preta, excelenteescolha —, tirei a tampa e enfiei alata no bolso esquerdo da frente dojeans. Então me virei para asgavetas à direita da pia. A de cimacontinha os talheres. A segundaguardava o que Jo chamava de“merdinhas da cozinha” — tudo, determômetros para assar aves aosgarfinhos que se enfiam nasespigas de milho para que não

queimem nossos dedos. A terceiraguardava uma generosa seleção defacas de carne descombinadas.Peguei uma, coloquei-a no bolsodireito do jeans e fui até a porta.

O homem na varanda deu um puloquando liguei a luz do lado de fora,depois pestanejou através da portacomo um coelho míope. Tinhapouco mais de 1,60 metro dealtura, magro, pálido. Seu cabeloera cortado no estilo conhecidocomo escovinha nos meus dias degaroto, e seus olhos eramcastanhos. Protegendo-os viam-se

uns óculos de aro de tartaruga comlentes de aparência engordurada.Suas mãozinhas pendiam naslaterais do corpo. Uma delassegurava a alça de uma maleta decouro achatada, a outra umpequeno cartão branco. Não acheique fosse meu destino ser mortopor um homem com um cartão devisita em uma das mãos, portantoabri a porta.

O sujeito sorriu, o sorriso do tipoansioso que as pessoas parecememitir nos filmes de Woody Allen.Ele usava um traje tipo WoodyAllen também — uma camisaxadrez desbotada um pouco curta

demais nos punhos, calças cáquium tanto largas no gancho. Alguémdeve ter lhe falado da semelhança,pensei. Tem que ser isso.

— Sr. Noonan?— Sim?Ele me entregou o cartão.

IMOBILIÁRIA PRÓXIMO SÉCULO, diziam asletras douradas em relevo. Abaixodelas, num preto mais modesto,estava o nome de meu visitante.

— Sou Richard Osgood — disse,como se eu não soubesse ler, eestendeu a mão. A necessidade dohomem americano de responderamavelmente àquele gesto estáprofundamente enraizada, mas

naquela noite resisti a ele. Ohomem manteve sua pequena patacor-de-rosa esticada por mais ummomento, depois a abaixou eenxugou nervosamente a palma damão na calça. — Tenho um recadopara o senhor. Do sr. Devore.

Esperei.— Posso entrar?— Não.Ele deu um passo para trás,

limpou novamente a mão na calçae pareceu reunir as forças.

— Não vejo nenhumanecessidade de ser rude, sr.Noonan.

Eu não estava sendo rude. Se

quisesse sê-lo, teria despachadouma dose de repelente de baratana cara dele.

— Max Devore e suaacompanhante tentaram me afogarno lago esta tarde. Se minhasmaneiras parecem um pouco friaspara você, provavelmente é porisso.

A expressão de choque deOsgood foi real, acho eu.

— O senhor deve estartrabalhando demais em seuprojeto, sr. Noonan. Max Devore vaifazer 86 anos no próximoaniversário... se chegar lá, o queagora parece um pouco incerto. O

pobre velho mal consegue andar desua cadeira para a cama, nomomento. Quanto a Rogette...

— Sei aonde quer chegar — eudisse. — Na verdade, já sei disso hávinte minutos, sem qualquer ajudado senhor. Eu mesmo quase nemacredito, e olhe que eu estava lá.Pode me dar seja lá o que for quequer me dar.

— Ótimo — disse ele, numa vozafetadamente correta que queriadizer: “Muito bem, que seja dessemodo.” Abriu o zíper de umcompartimento de sua pasta decouro e retirou um envelope brancotamanho oficial, fechado. Eu o

peguei, esperando que Osgood nãopudesse sentir como meu coraçãobatia. Devore movia-se bastanterápido para um homem que viajavacom um tanque de oxigênio. Aquestão era: que espécie demovimento era aquele?

— Obrigado — eu disse,começando a fechar a porta. — Eulhe daria uma cerveja, mas deixeiminha carteira na cômoda.

— Espere! O senhor deve ler acarta e me dar uma resposta.

Levantei as sobrancelhas.— Não sei de onde Devore tirou

a ideia de que pode me dar ordens,mas não tenho a menor intenção de

permitir que ele influencie meucomportamento. Cai fora.

Seus lábios viraram para baixo,criando profundas covinhas noscantos da boca, e de repente elenão parecia mais Woody Allen detodo. Parecia um corretor deimóveis de 50 anos que tinhavendido a alma ao diabo e agoranão suportava ver ninguémpuxando a cauda bifurcada dopatrão.

— Um aviso de amigo, sr.Noonan, o senhor vai querer segui-lo. Max Devore não é um homemcom quem se brinque.

— Sorte a minha, porque eu não

estou brincando.Fechei a porta e permaneci no

vestíbulo, segurando o envelope eobservando o sr. ImobiliáriaPróximo Século. Ele parecia irritadoe confuso — ninguém o tinhacolocado para fora ultimamente,imaginei. Talvez isso lhe fizessebem. Emprestasse um pouco deperspectiva à sua vida. Lembrassea ele que, com Max Devore ou não,ainda assim Richie Osgoodcontinuaria tendo só pouco mais de1,60 metro de altura. Mesmo combotas de caubói.

— Sr. Devore quer uma resposta!— gritou ele através da porta

fechada.— Eu telefono — gritei em

resposta, então lentamente dei odedo, como tinha esperado dar aMax e Rogette. Fiquei olhando atéque ele voltasse à estrada e eutivesse a certeza de que se fora.Então entrei na sala e abri oenvelope. Dentro dele havia umaúnica folha de papel, tenuementecheirosa com o perfume que minhamãe usava quando eu era garoto.White Shoulders, acho que sechamava. No alto — em letrasimpressas em relevo, nítidas,elegantes — lia-se:

ROGETTE D. WHITMOREAbaixo disso estava o seguinte

recado, escrito numa caligrafiafeminina ligeiramente trêmula:

20h30

Caro sr. Noonan,

Max quer que eu lhetransmita como ficou contentepor encontrá-lo! Faço eco aseus sentimentos. O senhor éum homem muito divertido eengraçado! Apreciamos muitosuas travessuras.

Agora, aos negócios. M. lhe

oferece uma proposta muitosimples: se o senhor prometerdeixar de fazer perguntassobre ele, e se prometer parartodas as manobras legais —se o senhor prometer deixá-lodescansar em paz, digamos—, então o sr. Devorepromete cessar todos osesforços para ganhar acustódia de sua neta. Se osenhor concordar com isso, sóprecisa dizer ao sr. Osgood“Eu concordo”. Ele levará orecado! Max espera voltar àCalifórnia de avião particularmuito em breve — ele tem

negócios que não podem maisser adiados, embora tenhaapreciado sua temporada aquie achado o senhorespecialmente interessante.Quer também que eu lhelembre de que a custódia temsuas responsabilidades einsiste para que o senhor nãoesqueça que ele lhe disse isso.

Rogette

P.S. Ele lembra que o senhornão respondeu à perguntadele — a boceta dela suga?Max está muito curioso sobre

este ponto.

R.

Li o bilhete uma segunda vez,depois uma terceira. Coloquei-osobre a mesa e o li pela quarta vez.Era como se eu não conseguisseapreender seu sentido. Tive quereprimir um ímpeto de voar para otelefone e ligar para Mattieimediatamente. Terminou, Mattie,eu diria. Tomar seu emprego e meempurrar no lago foram os últimostiros da guerra. Ele está desistindo.

Não. Não até que eu tivessecerteza absoluta.

Em vez disso liguei para oWarrington’s, onde recebi minhaquarta mensagem gravada danoite. Devore e Whitmore tambémnão tinham se dado ao trabalho dedeixar nela nada caloroso ou vago;uma voz tão gelada como amáquina de fazer gelo de um motelapenas me disse para deixar orecado depois do bipe.

— É Noonan — eu disse. Antesque pudesse prosseguir, ouvi umclique e alguém pegou o telefone.

— Gostou de nadar? —perguntou Rogette Whitmore numavoz rouca e zombeteira. Se eu nãoa tivesse visto em carne e osso,

poderia ter imaginado alguém tipoBarbara Stanwyck em seu aspectomais friamente atraente, vestindouma camisola de seda cor depêssego e enrolada sobre um sofáde veludo vermelho, o telefonenuma das mãos e a piteira demarfim na outra.

— Se eu tivesse alcançado asenhora, srta. Whitmore, teria feitocom que entendesse perfeitamenteo que sinto.

— Oooh — disse ela. — Minhascoxas estão comichando.

— Por favor, poupe-me aimagem de suas coxas.

— Pode me jogar pedras, sr.

Noonan, eu aguento a pancada —disse. — A que devemos o prazerde seu telefonema?

— Mandei Osgood embora semresposta.

— Max achou que o senhor fariaisso. Ele disse: “Nosso jovemdevasso acredita no valor daresposta pessoal. Pode-se dizer issosó de olhar para ele.”

— Ele fica de mau humor quandoperde, não é?

— Sr. Devore não perde. — A vozdela caiu pelo menos vinte graus etodo o falso bom humor desceupelo ralo da pia. — Ele pode mudarseus objetivos, mas não perde. O

senhor é que parecia um perdedoresta noite, sr. Noonan, chapinhandoe berrando no lago. Ficouassustado, não ficou?

— Fiquei. Bastante.— E tinha motivos. Será que

sabe a sorte que teve?— Posso lhe dizer uma coisa?— Claro, Mike, posso chamá-lo

de Mike?— Por que não se atém apenas a

sr. Noonan? Agora, está ouvindo?— Com a respiração suspensa.— Seu patrão é velho, maluco e

acho que ele já passou do ponto depoder lidar eficazmente com umaação de custódia. Ele foi derrotado

uma semana atrás.— O senhor conseguiu uma

vantagem?— Consegui, sim, portanto

entenda bem: se um de vocêstentar de novo, ainda queremotamente, algo parecido com oque fizeram, vou atrás desse velhofilho da puta e enfio a máscara deoxigênio suja de catarro pelo rabodele de um modo que ele vai poderarejar os pulmões pelo rabo. E seeu a encontrar na Rua, srta.Whitmore, a usarei para fazerarremesso de peso. Estáentendendo?

Parei, respirei fundo, surpreso e

também chateado comigo mesmo.Se alguém tivesse me dito que eupronunciaria tais palavras, eu teriadebochado da afirmação.

Depois de um longo silêncio,perguntei:

— Srta. Whitmore? Ainda está aí?— Estou — disse ela. Queria que

ficasse furiosa, mas ela narealidade pareceu se divertir. —Quem está de mau humor agora,sr. Noonan?

— Eu — falei —, e não seesqueça disso, sua vaca atiradorade pedras.

— Qual é sua resposta para o sr.Devore?

— Temos um trato. Eu fecho aboca, os advogados fecham a boca,ele sai da vida de Mattie e Kyra. Poroutro lado, se ele continuar a...

— Já sei, já sei, o senhor pegaele e bate nele. Estou meperguntando como se sentirá sobreisso daqui a uma semana, suacriatura arrogante e estúpida!

Antes que eu pudesse responder— esteve na ponta da minha línguadizer a ela que, mesmo nosmelhores arremessos, ela aindalançava como uma garota —,Rogette desligou.

Permaneci ali com o telefone namão por alguns segundos e então o

coloquei no gancho. Aquilo seria umtruque? Parecia um truque, mas aomesmo tempo não parecia. Johnprecisava saber disso. Ele não haviadeixado o número de telefone dospais na secretária eletrônica, masMattie tinha o número. Contudo, seeu ligasse para ela de novo, eu mesentiria obrigado a lhe contar o quetinha acabado de acontecer. Podiaser uma boa ideia deixar de ladoqualquer telefonema até o diaseguinte, com uma noite de sonono meio.

Enfiei a mão no bolso e quase aempalei na faca de carne escondidaali. Eu a esqueci completamente.

Puxei-a para fora, levei-anovamente para a cozinha e acoloquei de novo na gaveta. Aseguir, pesquei a lata de aerossol,virei-me para colocá-la de novo emcima de geladeira com suas irmãsmais velhas e então parei. Dentrodo círculo de frutas e legumes dosímãs estava isso:

va

a19

Eu mesmo teria feito aquilo?

Teria estado tão mergulhado nazona de abstração, tão em transeque fiz uma minipalavra cruzada nageladeira sem lembrar? E se tinhasido isso, o que significava?

Talvez outro tenha posto isso ,pense i . Um de meus invisíveiscompanheiros de casa.

— Vá a 19 — eu disse, esticandoa mão e tocando as letras. Umadiretriz de bússola? A ordem dasletras sugere uma leitura vertical,talvez da dica 19 de uma palavracruzada. Às vezes, num problemade palavras cruzadas, tem-se umapista que diz simplesmente Ver 19Horizontais ou Ver 19 Verticais. Se

havia um significado naquilo, quepalavras cruzadas eu deviaconsultar?

— Bem que eu podia ter umaajudinha nisso — falei, mas nãohouve resposta, não do planoastral, não de dentro de minhamente. Finalmente peguei uma latade cerveja prometendo a mimmesmo levá-la até o sofá. Pegueimeu livro de palavras cruzadasNível difícil e procurei aquela emque estava trabalhando nomomento. Chamava-se “Bebida ÉMais Rápido”, e era cheia daquelesjogos de palavras estúpidos que sóos viciados em palavras cruzadas

acham divertido. Ator embriagado?Marlon Brandy. Romance do sulembriagado? Tequila Mockingbird.5

E a definição de 19 verticais erababá oriental, que todos oscruciverbalistas do universo sabemque é amah. Nada em “Bebida ÉMais Rápido” tinha conexão com oque estava ocorrendo em minhavida, pelo menos que eu pudessever.

Passei por alguns dos outrosproblemas do livro, olhando o 19Verticais. Ferramenta domarmoreiro (cinzel). Etanol e éterdimetil, e.g. (isômeros). Joguei olivro para o lado com aversão. De

qualquer modo, quem disse quetinha que ser especificamente essacoletânea de palavras cruzadas?Havia provavelmente cinquentaoutras na casa, quatro ou cinco nagaveta da própria mesinha em queestava agora minha lata de cerveja.Inclinei-me para trás no sofá efechei os olhos.

Sempre gostei de uma puta... àsvezes o lugar delas era em cima daminha cara.

É ali que bons cachorrinhos ecães maus podem andar lado alado.

Não há nenhum bêbado dacidade aqui, todos nós fazemos

turnos.Foi aqui que aconteceu. É.Adormeci e acordei três horas

mais tarde com o pescoço duro e aparte de trás da cabeça latejandotremendamente. Trovões rolavamsurdos ao longe nas WhiteMountains, e a casa estava muitoquente. Quando levantei do sofá,minhas coxas praticamente sedescolaram do tecido, de tãogrudadas. Arrastei-me para a alanorte como um homem muitovelho, olhei para minhas roupasmolhadas, pensei em levá-las paraa sala de lavandaria e cheguei àconclusão de que se eu me

curvasse tanto, a cabeça poderiaexplodir.

— Vocês, fantasmas, cuidemdisso — murmurei. — Se podemmudar de lugar as calças e asroupas de baixo no secador, podempôr minhas roupas na cesta.

Peguei três comprimidos deTylenol e fui para a cama. Emdeterminado momento, acordeiuma segunda vez e ouvi a criançafantasma soluçando.

— Pare — falei para ela. — Parecom isso, Ki, ninguém vai levarvocê a lugar nenhum. Você estásegura. — Depois voltei a dormir denovo.

5 Trocadilho com o título do livro To Kill aMockingbird (O sol é para todos), de Harper Lee.

Capítulo Dezenove

O telefone estava tocando. Ergui-me na direção dele, saindo de umsonho de afogamento em que nãoconseguia recobrar a respiração, efui recebido pelos primeiros raios desol do dia, encolhendo-me ante ador na parte de trás da cabeça.Deixei cair os pés para fora dacama. O telefone parou de tocarantes que eu o pegasse, quasesempre fazem isso em tais

situações, então me deitei de novoe passei dez infrutíferos minutosimaginando quem teria sido antesde levantar de vez.

Ringgg... ringgg... ringgg...Foram dez? Doze? Perdi a conta.

Alguém era realmente dedicado. Euesperava que não fossemproblemas, mas em minhaexperiência as pessoas não tentamtanto quando a notícia é boa.Toquei cautelosamente a parte detrás da cabeça. Doeu bastante, masaquela dor profunda e enjoativaparecia ter desaparecido. E nãohavia sangue em meus dedos.

Tateei pelo corredor e atendi o

telefone.— Alô?— Bem, pelo menos você não

tem que se preocupar mais emtestemunhar na audiência sobre acustódia da criança.

— Bill?— É.— Como é que você soube... —

Eu me encostei no canto e dei umaespiada no irritante relógio-gatoque oscilava. Vinte minutos depoisdas sete e já sufocante. Maisquente que um sodomita, comonós, marcianos da TR, gostamos dedizer. — Como é que você sabe queele resolveu...

— Não sei nada sobre osnegócios dele, de um modo ou deoutro. — Bill parecia suscetível. —Ele nunca me ligou para pedirconselho, e eu nunca liguei para lhedar um.

— O que aconteceu? O que estáacontecendo?

— Ainda não ligou a televisão?— Ainda nem tomei café.Nenhuma desculpa por parte de

Bill; era um sujeito que acreditavaque gente que acordava depois deseis da manhã merecia o querecebia. Mas agora eu estavaacordado. E tive uma boa ideia doque estava para vir.

— Devore se matou na noitepassada, Mike. Entrou numabanheira de água morna e enfiouum saco plástico na cabeça. Nãodeve ter levado muito tempo, comos pulmões dele.

Não, pensei, provavelmente nãomuito. Apesar do úmido calor deverão que já permeava a casa,estremeci.

— Quem o encontrou? A mulher?— É, claro.— A que horas?— Pouco antes da meia-noite —

disseram no noticiário do Canal 6.Mais ou menos na hora em que

eu acordei no sofá e fui rigidamente

para a cama, em outras palavras.— Ela está implicada?— Você quer dizer se ela bancou

o dr. Kevorkian? O noticiário que euvi não falava nada sobre isso. Omoinho de fofocas lá no ArmazémLakeview logo vai estar a plenovapor, mas ainda não fui até lápara a minha porção de grão. Seela o ajudou, não acho que vai terqualquer problema por isso, vocêacha? Ele tinha 85 anos e nãoestava bem.

— Sabe se ele vai ser enterradona TR?

— Califórnia. Ela disse quehaverá funeral em Palm Springs na

terça-feira.Uma sensação de tremenda

estranheza me varreu quandopercebi que a fonte dos problemasde Mattie podia estar jazendo numacapela cheia de flores ao mesmotempo em que Os Amigos de KyraDevore estavam digerindo seusalmoços e aprontando-se paracomeçar a atirar o Frisbee de umlado para o outro. Vai ser umacelebração, pensei abismado. Nãosei como vão lidar com isso naCapelinha dos Microchips em PalmSprings, mas na estrada Wasp Hilleles estarão dançando, esticandoos braços para o céu e gritando,

sim, Senhor.Jamais fiquei contente ao saber

da morte de alguém em toda aminha vida, mas senti-me contentecom a morte de Devore. Lamentavame sentir assim, mas era verdade.O velho canalha tinha me atiradono lago... mas antes que a noiteterminasse, era ele quem tinha seafogado. Afogado dentro de umsaco plástico, sentado numabanheira de água morna.

— Você tem ideia de como oscaras da TV conseguiram a notíciatão rápido? — Não era super-rápido, com sete horas entre adescoberta do corpo e o noticiário

das sete, mas os jornalistas da TVtendem a ser preguiçosos.

— Whitmore ligou para eles. Deuuma entrevista coletiva bem ali nasala do Warrington’s às duas damanhã. Recebeu as perguntasnaquele grande sofá de pelúciamarrom-avermelhado, aquele queJo sempre costumava dizer quedevia estar no quadro a óleo de umsaloon, com uma mulher nuadeitada nele. Lembra?

— Sim.— Vi uns dois adjuntos do

condado caminhando por lá, e maisum sujeito que reconheci da CasaFunerária Jaquard’s, em Motton.

— É esquisito — eu disse.— É, o corpo provavelmente

ainda estava no andar de cima,enquanto Whitmore dava com alíngua nos dentes... Mas ela afirmouque seguia ordens do patrão. Disseque ele deixou uma fita dizendoque se mataria na sexta à noitepara não afetar o preço das açõesda companhia, e queria queRogette ligasse logo para aimprensa e assegurasse ao pessoalque a companhia estava sólida, queentre o filho dele e o Conselho deDiretores tudo ia ficar nos eixos.Então ela contou sobre o funeralem Palm Springs.

— Ele comete suicídio e depoisdá uma entrevista coletiva às duasda manhã via representante paraacalmar os acionistas.

— É. Isso é a cara dele.Houve um silêncio na linha.

Tentei pensar e não consegui. Aúnica coisa que sabia era quedesejava ir para o andar de cima etrabalhar, com a cabeça doendo ounão. Queria voltar a encontrar AndyDrake, John Shackleford e o amigode infância de Shackleford, ohorrível Ray Garraty. Havia loucurana minha história, mas era umaloucura que eu entendia.

— Bill — eu disse finalmente —,

ainda somos amigos?— Jesus, claro — disse ele

prontamente. — Mas se há gentepor aqui parecendo um pouco friacom você, você vai saber por que,não é?

Claro que sim. Muitos meculpariam pela morte do velho. Erauma coisa maluca, dadas ascondições físicas dele, e não seriade modo nenhum a opinião damaioria, mas a ideia ganharia certocrédito, pelo menos a curto prazo —eu sabia disso tão bem quantosabia a verdade sobre o amigo deinfância de John Shackleford.

Crianças, era uma vez uma

galinha que voou de volta para seupequeno distrito bem simples ondetinha vivido como um pintinho. Elacomeçou a pôr adoráveis ovos deouro, e todo o pessoal dacidadezinha se reuniu para semaravilhar e receber sua parte.Agora, contudo, aquela galinha foicozida e alguém tinha que levar aculpa. Eu ficaria com alguma, masMattie receberia a pior parte; elahavia tido a ousadia de lutar porsua filha em vez de entregar Kisilenciosamente.

— Fique encolhido nas próximassemanas — disse Bill. — É a minhaopinião. Na verdade, se tivesse

algum negócio que tirasse vocêlogo da TR até que tudo se acalme,seria bem melhor.

— Agradeço a sensatez do queestá dizendo, mas não posso. Estouescrevendo um livro. Se eu levantaracampamento e me mudar, ahistória vai morrer dentro de mim.Já aconteceu antes e não quero queaconteça dessa vez.

— Uma boa invencionice, hein?— Nada mal, mas isso não é o

importante. É... bem, digamos queessa história é importante paramim por outras razões.

— Você não iria nem até Derry?— Está querendo se livrar de

mim, William?— Estou tentando me manter à

tona, só isso. Meu trabalho é decaseiro, você sabe. E não diga quenão foi avisado: a colmeia vaizumbir. Há duas histórias correndopor aí sobre você, Mike. Uma é quevocê está dormindo com MattieDevore. A outra é que voltou paraescrever uma crítica destrutivasobre a TR. Puxar para fora todosos esqueletos que encontrar.

— Em outras palavras, terminaro que Jo começou. Quem estáespalhando essa história, Bill?

Silêncio da parte de Bill.Estávamos novamente de volta a

terreno minado, e desta vez o soloparecia mais perigoso do quenunca.

— O livro em que estoutrabalhando é um romance — eudisse. — Passado na Flórida.

— Ah, é? — Nunca se poderiaimaginar que houvesse tanto alívioem duas pequenas sílabas.

— Acha que poderia espalharisso?

— Acho que sim — disse ele. —Se você contar isso a BrendaMeserve, vai se espalhar maisrápido e mais longe.

— Tudo bem, vou contar. Quantoa Mattie...

— Mike, você não tem que...— Não estou dormindo com ela.

O trato nunca foi esse. O trato foitipo andar pela rua, virar umaesquina e ver um sujeito grandebatendo num sujeito pequeno. —Fiz uma pausa. — Ela e seuadvogado estão planejando fazerum churrasco na casa dela na terçaao meio-dia. Eu estou pretendendoir também. As pessoas da cidadevão pensar que estamos dançandosobre o túmulo de Devore?

— Algumas vão. Royce Merrillvai. Dickie Brooks também.Velhotas de calças, como Yvette oschama.

— Bem, que se fodam — falei. —Até o último.

— Compreendo como se sente,mas diga a ela para não jogar issona cara do pessoal — ele quaseimplorou. — Faça pelo menos isso,Mike. Ela não vai morrer se arrastara churrasqueira para a parte de trásdo trailer, vai? Pelo menos assim aspessoas olhando do armazém ou daoficina não vão ver nada, só afumaça.

— Vou passar o recado adiante.E se eu participar da reunião, eumesmo coloco a churrasqueira naparte de trás.

— Seria bom que você ficasse

longe daquela moça e da criança —disse Bill. — Pode dizer que não éda minha conta, mas estou falandocom você como um tio severo,dizendo isso para o seu própriobem.

Então tive uma visão rápida demeu sonho. A sensação deestreiteza macia e delicada quandodeslizei para dentro dela. Ospequenos seios com seus mamilosduros. Sua voz na escuridão, medizendo para fazer o que eu queria.Meu corpo respondeu quaseinstantaneamente.

— Eu sei que está.— Muito bem. — Ele pareceu

aliviado que eu não o censurasse,lhe passasse um sermão, comoteria dito. — Vou deixar você tomarseu café.

— Eu lhe agradeço por ter ligado.— Eu quase não liguei. Foi

Yvette que me convenceu. Eladisse: “Você sempre gostou mais deMike e Jo do que dos outros paraquem trabalhou. Não fique mal comele agora que voltou para casa.”

— Diga a ela que eu agradeço —falei.

Coloquei o telefone no gancho eolhei pensativamente o aparelho.Bill e eu parecíamos estar em bonstermos de novo... mas não achava

que éramos amigos, exatamente.Certamente não do modo como jáhavíamos sido. Isso tinha mudadoquando percebi que Bill estavamentindo para mim sobre algumascoisas e omitindo outras; tinhamudado também quando percebi doque ele quase chamou Sara e osRed-Tops.

Você não pode condenar umhomem pelo que pode ser apenasum produto de sua própriaimaginação.

Sem dúvida, e eu tentaria nãofazer isso... mas bem sabia qual eraa verdade.

Entrei na sala, liguei a TV e a

seguir a desliguei. Minha antenapegava cinquenta ou sessentacanais diferentes, e nem um deleslocal. Mas havia uma TV portátil nacozinha, e se eu inclinasse a antenana direção do lago poderia pegar aWMTW, associada da ABC no Maineocidental.

Peguei o bilhete de Rogette,entrei na cozinha e liguei apequena Sony enfiada nos armáriosde baixo com a cafeteira elétrica.Bom dia, América estava no ar, masentrariam nas notícias locais embreve. Enquanto isso, esquadrinheio bilhete, dessa vez meconcentrando mais no modo de

expressão do que na mensagem,que tinha merecido toda a minhaatenção na noite anterior.

Espera voltar para a Califórnia deavião particular muito em breve.

Tem negócios que não podemmais ser adiados, ela escreveu.

Se você prometer deixá-lodescansar em paz.

Era a droga de um bilhete desuicida.

— Você sabia — eu disse,esfregando o polegar nas letras emrelevo do nome dela. — Você sabiaquando escreveu isso, eprovavelmente quando estavaatirando pedras em mim. Mas por

quê?A custódia tem suas

responsabilidades, ela escreveu.Não esqueça que ele lhe disse isso.

Mas o caso de custódia estavaterminado, certo? Nem mesmo umjuiz que fosse comprado e pagopoderia conceder a custódia a ummorto.

O BDA finalmente passou àsnotícias locais, em que o suicídio deMax era a mais importante. Aimagem da TV era cheia dechuviscos, mas podia ver o sofámarrom-avermelhado mencionadopor Bill, e Rogette Whitmoresentada nele com as mãos

educadamente cruzadas no colo.Achei que um dos adjuntos aofundo era George Footman, emborao chuvisco fosse forte demais paraque eu tivesse total certeza.

Devore tinha faladofrequentemente nos últimos oitomeses em acabar com sua vida,disse Whitmore. Vinha passandomal. Pediu a ela para sair com elena noite anterior, e ela percebiaagora que ele desejava assistir aum último pôr do sol. E tinha sidoglorioso, por sinal, acrescentou ela.Eu poderia ter concordado comaquilo; lembrava muito bem do pôrdo sol, tendo quase me afogado

sob sua luz.Rogette estava lendo uma

declaração de Devore quando otelefone tocou de novo. Era Mattie,e ela estava chorando em acessosfortes.

— A notícia — disse ela —, Mike,você viu... você sabe...

No início, só conseguiu dizeraquilo de coerente. Respondi que jásabia, Bill Dean havia me ligado eentão peguei outras informaçõesnas notícias locais. Ela tentouresponder, mas não conseguiufalar. Culpa, alívio, horror, atéalegria — eu ouvia todas essascoisas em seu choro. Perguntei

onde estava Ki. Eu podia mesolidarizar com as emoções deMattie — até ligar a TV naquelamanhã ela acreditava que o velhoMax era o seu pior inimigo —, masnão gostava da ideia de uma garotade 3 anos ver a mãe desmoronar.

— Está lá fora, nos fundos —conseguiu dizer. — Já tomou café eagora está fazendo um p-p-piquenique de bo-bone...

— Piquenique de boneca. Sim.Ótimo. Solte tudo, então. Tudo.Deixe sair.

Ela chorou por dois minutos pelomenos, talvez mais tempo.Continuei com o telefone apertado

contra a orelha, suando ao calor dejulho, tentando ser paciente.

Vou lhe dar uma chance desalvar sua alma, Devore tinha medito, mas naquela manhã eleestava morto e sua alma seencontrava onde quer que fosse.Ele morreu, Mattie estava livre e euescrevendo. A vida deveria estarsendo maravilhosa, mas não era.

Finalmente ela começou arecuperar o controle.

— Desculpe. Eu não tenhochorado assim, chorado mesmo,desde que Lance morreu.

— É compreensível, trate dechorar.

— Venha almoçar — disse ela. —Venha almoçar aqui, por favor,Mike. Ki vai passar a tarde comuma amiga que ela conheceu naEscola Bíblica de Férias, e vamospoder conversar. Preciso conversarcom alguém... Meu Deus, estoucom a cabeça rodando. Por favor,diga que vem.

— Eu adoraria, mas não é umaboa ideia. Especialmente se Ki nãoestiver aí.

Contei-lhe uma versão editadade minha conversa com Bill Dean.Ela ouviu atentamente. Achei quepoderia ver uma explosão zangadaquando eu terminasse, mas esqueci

de um fato muito simples: MattieStanchfield Devore tinha moradopor ali toda a sua vida. Ela sabiacomo as coisas funcionavam.

— Pelo que entendi, as coisasvão cicatrizar muito mais rápido seeu ficar de olhos baixos, bocacalada e joelhos fechados — disseela —, e vou fazer o máximo paraque tudo saia bem, mas adiplomacia vai até certo ponto.Aquele velho estava tentando tirarminha filha, eles não entendem issonaquele maldito armazém?

— Eu entendo.— Eu sei. É por isso que eu

queria conversar com você.

— E se jantarmos cedo noparque de Castle Rock? No mesmolugar de sexta-feira? Digamos lápelas cinco?

— Eu teria que levar Ki...— Ótimo — falei. — Leve-a. Diga

a ela que eu sei “João e Maria” decor e quero que ela saiba também.Você vai ligar para John naFiladélfia? Vai dar os detalhes aele?

— Vou. Mas vou esperar maisuma hora ou coisa assim. Nossa,estou tão feliz. Sei que é errado,mas estou tão feliz que posso atéestourar!

— Somos dois. — Houve uma

pausa do outro lado. Ouvi umaspirar longo e aquoso. — Mattie?Tudo bem?

— Sim, mas como é que se contaa uma criança de 3 anos que o avômorreu?

Diga a ela que o velho nojentoescorregou e caiu de cabeça dentrode um saco plástico, pensei,apertando a seguir a boca com amão para sufocar um acesso de risomaluco.

— Não sei, mas você vai ter quefazer isso logo que ela entrar.

— Vou? Por quê?— Porque ela vai ver você. Vai

ver o seu rosto.

Fiquei exatamente duas horas noescritório do andar de cima, e entãoo calor me expulsou de lá — otermômetro no alpendre marcava35 graus às dez horas. Achei que nosegundo andar podia estar doisgraus mais quente.

Esperando não estar cometendoum engano, tirei a tomada da IBM elevei a máquina para o andar debaixo. Estava trabalhando semcamisa, e quando atravessei a sala,a parte de trás da máquina deescrever escorregou no meu peitocoberto de suor e quase deixei caira filha da puta fora de moda nosdedos dos pés. Isso me fez pensar

no tornozelo, o que eu machuqueiquando caí no lago, e coloquei amáquina de lado para dar umaespiada nele. Estava colorido,negro, roxo e avermelhado nasbordas, mas não tremendamenteinchado. Acho que minha imersãona água fria tinha ajudado adiminuir o inchaço.

Coloquei a máquina na mesa dodeck, consegui encontrar umaextensão, liguei a tomada sob oolho vigilante de Bunter e sentei defrente para a enevoada superfícieazul-cinzenta do lago. Esperei queum de meus velhos acessos deansiedade baixasse — o estômago

apertado, os olhos latejando e, piordo que tudo, aquela sensação defitas invisíveis de aço apertando-meo peito, tornando a respiraçãoimpossível. Nada semelhanteaconteceu. As palavras fluíram tãofacilmente ali embaixo comohaviam fluído no andar de cima, e aparte superior do meu corpo,despida, estava adorando apequena brisa que soprava vinda dolago de vez em quando. EsqueciMax Devore, Mattie Devore, KyraDevore. Esqueci Jo Noonan e SaraTidwell. Esqueci de mim mesmo.Por duas horas voltei à Flórida. Aexecução de John Shackleford se

aproximava. Andy Drake corriacontra o relógio.

Foi o telefone que me trouxe devolta, e pela primeira vez eu nãome ressenti da interrupção. Se nãotivesse sido perturbado, poderia tercontinuado a escrever atésimplesmente derreter numa poçapegajosa no deck.

Era meu irmão. Conversamossobre mamãe — na opinião deSiddy, em vez de estar sem algunsparafusos, ela se mostrava agorainteiramente desaparafusada — esua irmã Francine, que tinhaquebrado a bacia em junho. Sidqueria saber como eu estava indo,

e lhe disse que estava tudo bem,que tive alguns problemas parainiciar um novo livro, mas agoratudo parecia nos eixos (em minhafamília, o único momentopermissível de discutir um problemaé quando este já terminou). E comoia o grande Sid? Detonando, disseele, o que imaginei que significassemuito bem — Siddy tem um filho de12 anos, e consequentemente suasgírias são sempre da última moda.O novo negócio de contabilidadeestava começando a decolar,embora tivesse ficado assustadopor um tempo (era a primeira vezque eu ouvia isso, claro). Ele jamais

poderia me agradecer o suficientepelo empréstimo-ponte que eutinha lhe dado em novembropassado. Respondi que era omínimo que eu podia fazer, o queera verdade absoluta,especialmente quando consideravaquanto tempo mais —pessoalmente ou por telefone — elepassava com nossa mãe.

— Bem, vou te deixar ir — disseSiddy depois de mais algumasbrincadeiras. Ele nunca diz tchau,ou até logo, é sempre Bem, vou tedeixar ir, como se estivessemantendo um refém. — Você deveestar querendo um refresco por aí,

Mike, a TV disse que a NovaInglaterra vai ser mais quente queo inferno pelo fim de semanainteiro.

— Sempre há o lago, se as coisasficarem realmente pretas. Escute,Sid...

— Escute o quê? — Da mesmaforma que Bem, vou te deixar ir,Escute o quê remetia à nossainfância. Era reconfortante; etambém um pouco fantasmagórico.

— Nosso pessoal veio todo deProut’s Neck, não é? Quero dizer, dolado de papai. — Mamãe vinhatotalmente de outro mundo, ummundo em que os homens usavam

camisas polo Lacoste, as mulheressempre usavam combinaçõesinteiras sob os vestidos e todosconheciam o segundo verso de“Dixie” de cor. Ela conheceu papaiem Portland, quando competia numevento de líderes de torcida dafaculdade. A mãe de família vinhade gente de qualidade de Memphis,meu caro, e não deixavam vocêesquecer isso.

— Acho que sim — disse ele. —É. Mas não fique aí me perguntandotanto sobre a árvore genealógica dafamília, Mike, ainda não tenhocerteza de qual é a diferença entreum sobrinho e um primo, e disse a

Jo a mesma coisa.— Disse? — Tudo dentro de mim

se imobilizara completamente...mas não posso dizer que fiqueisurpreso. Não naquele momento.

— Ahn, ahn, pode apostar.— O que é que ela queria saber?— Tudo que eu sabia. O que não

é muito. Eu podia ter lhe contadotudo sobre o trisavô de mamãe,aquele que foi morto pelos índios,mas Jo não se interessava pelopessoal de mamãe.

— Quando é que foi isso?— Tem importância?— Pode ter.— Tudo bem, vamos ver. Acho

que foi mais ou menos na época emque Patrick fez a operação deapêndice. É, tenho certeza.Fevereiro de 1994. Pode ter sidomarço, mas tenho quase certeza deque foi em fevereiro.

Seis meses antes doestacionamento no Rite Aid. Jomovendo-se para as sombras desua própria morte como umamulher entrando sob as sombras deum toldo. Mas não grávida, nãoainda. Jo fazendo viagens diárias àTR, fazendo perguntas, algumas dotipo que fazia o pessoal se sentirmal, segundo Bill Dean... masmesmo assim ela continuou

perguntando. É. Porque uma vezque ela se envolvesse com algo,era como um terrier com um trapoentre as mandíbulas. Teria feitoperguntas ao homem de blazermarrom? Quem era o homem deblazer marrom?

— Pat estava no hospital, certo.O dr. Alpert disse que ele estava sesaindo muito bem, mas quando otelefone tocou eu dei um pulo nadireção dele. Estava meio queesperando que fosse Alpert dizendoque Pat tinha tido uma recaída oucoisa assim.

— Pelo amor de Deus, onde éque você arranjou essa sensação de

desgraça iminente, Sid?— Não sei, companheiro, mas

está aí. Seja como for, não eraAlpert e sim Johanna. Ela queriasaber se eu tinha algum ancestral,três, talvez quatro gerações atrás,que tivesse morado lá onde vocêmora, ou numa das cidadezinhasem torno. Eu disse a ela que nãosabia, mas que você poderia.Saber, quero dizer. Ela disse quenão queria perguntar a você porqueera uma surpresa. Foi umasurpresa?

— E grande — eu disse. — Papaiera um lagosteiro...

— Morda a língua, ele era um

artista, um “primitivo do litoral”.Mamãe ainda o chama assim. —Siddy não estava exatamente rindo.

— Droga, ele vendia panelaspara cozinhar lagostas, mesinhasde centro e estatuetas de aves aosturistas quando ficava reumáticodemais para ir à baía levantararmadilhas.

— Eu sei disso, mas mamãeeditou o casamento dela como umfilme para a televisão.

Como era verdade. Nossa própriaversão de Blanche Du Bois.

— Papai era lagosteiro emProut’s Neck. Ele...

Siddy interrompeu, cantando o

primeiro verso de “Papa Was aRollin’ Stone” numa horrível voz detenor fora do tom.

— Vamos, isso é sério. Eleganhou o primeiro barco do pai,certo?

— Essa é a história — concordouSid. — O Lazy Betty de JackNoonan, proprietário original PaulNoonan. Também de Prout’s. Obarco tomou uma verdadeira sovado furacão Donna, em 1960. Achoque era Donna.

Dois anos depois que eu nasci.— E papai o pôs à venda em

1963.— É. Não sei o que aconteceu

com ele, mas foi vovô Paul quecomeçou com tudo, não há dúvida.Lembra de todo o guisado delagosta que comemos quandocriança, Mikey?

— Bolo de carne do litoral —falei, quase sem pensar. Como amaioria das crianças criadas nacosta do Maine, não posso imaginarpedir lagosta num restaurante, issoé para gente da planície. Estavapensando em vovô Paul, quenasceu na década de 1890. PaulNoonan gerou Jack Noonan, JackNoonan gerou Mike e Sid Noonan, eaquilo era realmente tudo que eusabia, a não ser que os Noonan

tinham todos crescido muito longede onde eu agora estava mederretendo em suor.

Eles cagaram no mesmo fosso.Devore tinha cometido um

equívoco, era tudo — quando nós,os Noonan, não estávamos usandocamisas polo e sendo gente dequalidade de Memphis, éramosgente de Prout’s Neck. Eraimprovável que o bisavô de Devoree o meu tivessem tido algo a verum com o outro de qualquer modo;o velho patife tinha tido o dobro daminha idade, e aquilo significavaque as gerações não combinavam.

Mas se ele estivesse totalmente

errado, em que é que Jo estevemetida?

— Mike? — perguntou Sid. —Você está aí?

— Estou.— Tudo bem? Você não parece

muito bem, tenho que dizer.— É o calor. Sem mencionar sua

sensação de desgraça iminente.Obrigado por ligar, Siddy.

— Obrigado por estar aí, irmão.— Valeu — eu disse.

Entrei na cozinha para pegar umcopo de água gelada. Enquanto oenchia, ouvi os ímãs na geladeira

começarem a deslizar. Rodopiei,fazendo espirrar um pouco de águaem meus pés descalços e quasesem notar. Eu estava excitadocomo uma criança que acha quepode ter um vislumbre de PapaiNoel antes que ele desapareçachaminé acima.

Olhei exatamente a tempo dever nove letras de plástico entraremno círculo vindas de todos os lados.CARLADEAN, soletraram... mas somentepor um segundo. Uma presençatremenda mas invisível passouvelozmente por mim. Nem um sócabelo de minha cabeça se mexeu,mas senti um forte golpe de ar,

como quando somos esbofeteadospelo ar de um trem expresso, seestamos junto à linha amarela daplataforma quando o trem passarapidamente pela estação. Gritei desurpresa e depositei com força ocopo d’água no balcão, fazendo-olançar borrifos. Eu não sentia maisnecessidade de água fria, pois atemperatura da cozinha de SaraLaughs caíra vertiginosamente.

Minha respiração deixou umanuvem de vapor no ar, comoacontece num dia gelado dejaneiro. Uma baforada, talvez duas,e depois desapareceu — mas haviaestado lá, sem dúvida, e por talvez

cinco segundos a camada fina desuor em meu corpo tornou-se o queparecia um limo de gelo.

CARLADEAN explodiu para fora emtodas as direções — era comoobservar um átomo sendoamassado num desenho animado.Os ímãs de letras, frutas e legumesvoaram da geladeira e seespalharam pela cozinha. Por ummomento, a fúria que aquelamovimentação causou era algo cujogosto eu quase podia sentir, comopólvora.

E algo cedeu ante ela, com umsuspiro, um sussurro triste que eujá ouvira antes: “Ah, Mike. Ah,

Mike.” Era a voz que capturei na fitado gravador, e embora no passadoeu não tivesse tido certeza, agoratinha — era a voz de Jo.

Mas quem era o outro? Por queespalhou as letras?

Carla Dean. Não a mulher de Bill;aquela era Yvette. A mãe dele? Aavó?

Andei lentamente pela cozinha,recolhendo os ímãs como secumprisse as tarefas de umagincana e colocando-os novamentena geladeira aos punhados. Nadapulou de minhas mãos; nadacongelou o suor em minha nuca; osino de Bunter não tocou. Mesmo

assim eu não estava sozinho, esabia disso.

CARLADEAN: Jo queria que eusoubesse.

Mas algo não queria. Algo quepassou por mim como uma bala decanhão tentando espalhar as letrasantes que eu pudesse lê-las.

Jo estava ali; um garoto quechorava à noite também.

E o que mais?O que mais estava dividindo a

casa comigo?

Capítulo Vinte

Inicialmente não os vi, o que nãoera de surpreender; parecia quemetade de Castle Rock haviacomparecido ao parque da cidadenaquela sufocante tarde de sábadocaminhando para o crepúsculo. O arbrilhava com a enevoada luz domeio do verão, e através dela ascrianças enxameavam pelosequipamentos do playground,enquanto certo número de velhos

de coletes vermelhos — umaespécie de clube, imaginei —jogava xadrez, e um grupo dejovens se estendia pela gramaescutando um adolescente de faixana cabeça tocando violão ecantando algo de que eu melembrava de um velho disco de Iane Sylvia, uma animada canção quedizia:

“Quando Ella Speed se divertia nos braçosde um,

John Martin atirou nela com um Colt 41...”

Eu não vi ninguém correndo, enenhum cachorro perseguindoFrisbees. Estava simplesmente

quente demais.Eu me virei para olhar o coreto,

onde uma banda com oito membroschamada The Castle Rockers estavase instalando (eu imaginava que “Inthe Mood” era o mais próximo quepodiam chegar do rock and roll),quando uma pessoa pequena meatingiu por trás, agarrando-mepouco acima dos joelhos e quaseme atirando na grama.

— Peguei! — gritou a pequenaalegremente.

— Kyra Devore! — gritou Mattie,parecendo ao mesmo tempo alegree irritada. — Você vai derrubá-lo!

Eu me virei, deixei cair o saco

manchado de gordura doMcDonald’s que carregava elevantei a criança. O gesto foinatural, e a sensação maravilhosa.Não se percebe o peso de umacriança saudável até que se segurauma, nem se compreendetotalmente a vida que passa porelas como um fio brilhante. Nãofiquei emudecido (“Não banque osentimentaloide comigo, Mike”,Siddy às vezes sussurrava para mimquando éramos garotos e, duranteum filme, eu ficava com os olhosmarejados num momento triste),mas pensei em Jo, sim. E a criançaque ela carregava quando caiu

naquele estúpido estacionamento,sim, pensei naquilo também.

Ki estava gritando e rindo, osbraços esticados e o cabelopendendo em duas madeixasrealçadas por pregadores commotivos infantis.

— Não derrube seu próprioquarterback — berrei, sorrindo, epara meu encanto ela gritou emresposta: “Não deúbe seu pópioquateback! Não deúbe seu pópioquateback!”

Eu a coloquei novamente nochão, rindo com ela. Ki deu umpasso para trás, tropeçou e sentou-se na grama, rindo mais do que

nunca. Tive um pensamentomesquinho, então, rápido mas, ah,tão claro: se o velho lagartopudesse ver como sentiam a faltadele. Como estávamos tristes como seu falecimento.

Mattie andou até nós, e naquelatarde ela se mostrava como eu atinha imaginado na primeira vez emque a vi — como uma daquelasadoráveis filhas do privilégio que seveem no country club, tagarelandocom as amigas ou sentadaseriamente para jantar com os pais.Usava um vestido branco semmangas e saltos baixos, o cabelosolto sobre os ombros, um toque de

batom. Seus olhos tinham um brilhoque não haviam mostrado antes.Quando me abraçou, pude sentirseu perfume e a pressão de seuspequenos seios firmes.

Beijei-lhe o rosto; ela me beijouno alto do maxilar, dando um estalono meu ouvido que senti percorrertoda a minha espinha abaixo.

— Diga que as coisas vão ficarmelhores agora — murmurou ela,ainda me segurando.

— Muito melhores — eu disse, eela me abraçou de novo, apertado.Então recuou.

— Acho bom que você tenhatrazido um monte de comida,

garotão, porque somos mulheresfamintas. Certo, Kyra?

— Deúbei meu própio zaqueiro— disse Ki, depois se apoiou noscotovelos, dando uma risadinhadeliciosa sob o brilhante céuenevoado.

— Vamos — eu disse, e a agarreipela cintura. Carreguei-a assim atéuma mesa de piquenique próxima,Ki agitando as pernas e os braços erindo. Coloquei-a no banco; elaescorregou para fora, para baixo damesa, desossada como umaenguia, e ainda rindo.

— Muito bem, Kyra Elizabeth —disse Mattie. — Sente-se e mostre o

outro lado.— Boa menina, boa menina —

disse ela, escalando o lugar a meulado. — É o meu outro lado, Mike.

— Tenho certeza — falei. Dentrodo saco havia Big Macs e batatasfritas para Mattie e para mim. ParaKi havia uma caixa colorida sobre aqual saltavam Ronald McDonald eseus cúmplices.

— Mattie, ganhei um McLancheFeliz! Mike me deu um McLancheFeliz! Eles têm brinquedos!

— Vamos ver qual é o seu.Kyra abriu a caixa, esquadrinhou-

a e então sorriu. O sorriso iluminoutodo o seu rosto. Ela retirou da

caixa algo que achei a princípio queera uma grande bola de poeira. Porum terrível segundo voltei ao meusonho, aquele de Jo debaixo dacama com o livro sobre o rosto. Medá isso, ela tinha rosnado. É o meupega-poeira. E algo mais também— outra associação, talvez dealgum outro sonho. Não conseguiperceber qual era.

— Mike? — perguntou Mattie.Havia curiosidade na voz dela, etalvez também preocupação.

— É um cachorrinho! — disse Ki.— Ganhei um cachorrinho no meuMcLanche Feliz.

Sim, claro. Um cachorro. Um

cachorrinho de pelúcia. E eracinzento, não preto... embora eutambém não soubesse por que suacor teria importância para mim.

— É um prêmio muito bom — eudisse, pegando-o. Macio, o que erabom, e cinzento, o que era melhor.Ser cinzento o tornava bom, dealgum modo. Maluco, masverdadeiro. Entreguei-o novamentea Kyra e sorri.

— Qual é o nome dele? — elaperguntou, fazendo o cachorrinhosaltar para a frente e para trássobre a caixa do McLanche Feliz. —Qual é o nome do cachorrinho,Mike?

Então, sem pensar, eu disse:— Strickland.Achei que ficaria espantada, mas

não ficou. Pareceu encantada.— Stricken! — disse ela, fazendo

o cachorro pular para a frente epara trás em saltos cada vez maisaltos sobre a caixa. — Stricken!Stricken! Meu cachorro Stricken!

— Quem é esse Strickland? —perguntou Mattie, sorrindo. Elatinha começado a desembrulhar seuhambúrguer.

— Um personagem num livro queli — falei, observando Ki brincarcom o cachorrinho de pelúcia. —Ninguém da vida real.

— Vovô morreu — disse ela cincominutos depois.

Estávamos ainda na mesa depiquenique, mas a maior parte dacomida havia desaparecido.Strickland, a bola de pelúcia, tinhasido posto de guarda junto àsbatatas fritas remanescentes. Euvinha observando o fluxo depessoas, imaginando quem da TRestaria ali observando nossareunião e ardendo para levar asnotícias para casa. Não vi ninguémque eu conhecesse, mas isso nãosignificava grande coisa,considerando-se quanto tempo euhavia estado longe dessa parte do

mundo.Mattie abaixou o hambúrguer e

olhou para Ki com certa ansiedade,mas achei que a criança estavabem — apenas comunicava umfato, sem expressar dor.

— Eu sei — respondi.— Vovô era velho demais. — Ki

pinçou duas batatas fritas com osdedos gordinhos, as levou à boca egulp, elas sumiram. — Ele está como Senhor Jesus agora. A genteestuda tudo sobre o Senhor Jesusna EBF.

É, Ki, pensei, agora mesmo vovôprovavelmente está ensinando PixelEasel ao Senhor Jesus e

perguntando se há alguma putadisponível ali.

— O Senhor Jesus andava naágua e transformava vinho emmacarrão.

— É, mais ou menos isso — eudisse. — É triste quando as pessoasmorrem, não é?

— Ia ser triste se Mattiemorresse, e se você morresse, masvovô era velho. — Disse isso comose não tivesse entendido bem oconceito da primeira vez. — No céu,ele dá um jeito nisso.

— É uma boa maneira de encarara coisa, meu bem — falei.

Mattie ocupou-se em endireitar

os pregadores de Ki que caíam,trabalhando cuidadosamente e comuma espécie de amor ausente.Achei que fulgurava à luz do verão,sua pele num contraste bronzeadoe macio com o vestido branco queprovavelmente comprou numa daslojas populares, e compreendi quea amava. Talvez aquilo fosse certo.

— Mas sinto falta da vó branca —disse Ki, e desta vez pareceu triste.Pegou o cachorro de pelúcia, tentoualimentá-lo com uma batata frita eentão o depositou na mesanovamente. Seu rosto pequeno ebonitinho tinha uma expressãopensativa agora, e pude ver nela

um vestígio do avô. Era muitodistante, mas estava lá,perceptível, outro fantasma. —Mamãe disse que a vó brancavoltou pra Califórnia com os restosmatais do vovô.

— Restos mortais, Kizinha —disse Mattie. — Quer dizer, seucorpo.

— A vó branca vai voltar para mever, Mike?

— Não sei.— A gente tinha um jogo. Era

todo com rimas. — Parecia maispensativa do que nunca.

— Sua mãe me contou sobre ojogo — falei.

— Ela não vai voltar — disse Ki,respondendo à própria pergunta.Uma grande lágrima rolou por seurosto abaixo. Ela pegou Stricken,colocou-o sobre as pernas traseirasdurante um segundo, depois o pôsde volta como sentinela. Mattiepassou um braço em torno dela,mas Ki não pareceu notar. — A vóbranca não gostava mesmo demim. Só fingia que gostava. Era otrabalho dela.

Mattie e eu nos entreolhamos.— Por que está dizendo isso? —

perguntei.— Não sei — disse Ki. Próximo

ao lugar onde o garoto tocava

violão, um malabarista com o rostopintado de branco tinha começadoa atuar, trabalhando com meiadúzia de bolas coloridas. Kyra ficouum pouco mais animada. —Mamãezinha, posso ir lá ver aquelehomem engraçado?

— Já acabou de comer?— Já.— Agradeça ao Mike.— Não deúbe seu própio

zaqueiro — disse ela, depois riuamavelmente para me mostrar quesó estava brincando. — Obrigada,Mike.

— Tudo bem — respondi. Então,porque aquilo soava um pouco

antiquado, eu disse: — Valeu.— Você pode ir só até aquela

árvore, está bem? — disse Mattie.— E sabe por quê.

— Para você poder me ver. Tábem.

Agarrou Strickland e começou acorrer para o local, e então olhoupara mim por cima do ombro.

— Acho que foi o pessoal dageleira — disse ela, depois secorrigiu, séria e cuidadosamente: —Pessoal da ge-la-deira.

Meu coração deu um pulo nopeito.

— O que é que o pessoal dageladeira fez, Ki? — perguntei.

— Disse que a vó branca nãogostava mesmo de mim. — A seguircorreu para o malabarista, sem seimportar com o calor.

Mattie a observou se afastar eentão se virou para mim.

— Não falei com ninguém sobreo pessoal da geleira de Ki. Elatambém não, até agora. Não quesejam reais, mas as letras parecemse mexer sozinhas. É como umtabuleiro para receber mensagensdo além.

— Elas formam palavras?Ela não disse nada por muito

tempo. Então concordou com acabeça.

— Nem sempre, mas às vezes. —Outra pausa. — Na realidade, namaioria das vezes. Ki chama isso decarta do pessoal da geladeira. —Sorriu, mas seus olhos estavam umpouco assustados. — São letrasmagnéticas especiais, você acha?Ou temos um poltergeisttrabalhando às margens do lago?

— Não sei. Lamento ter levadoas letras, se viraram um problema.

— Não seja bobo. Você deu asletras a ela, e você é um negóciomuito importante para Ki agora. Elafala de você o tempo todo. Estavamuito mais interessada em escolheruma roupa bonita para usar esta

noite do que na morte do avô.Queria que eu usasse uma roupabonita também, e insistiu nisso.Geralmente não reage assim comas pessoas. Ela as aceita quandovêm e as deixa para lá quando vãoembora. Não é um modo tão ruimde uma criança crescer, acho eu àsvezes.

— Vocês duas estão com roupasmuito bonitas — falei. — Dissotenho certeza.

— Obrigada. — Olhouamorosamente para Ki, quecontinuava perto da árvoreassistindo ao malabarista. Eledeixara as bolas de lado e utilizava

agora machadinhas. Então Mattieme olhou novamente: — Já acaboude comer?

Assenti com a cabeça, e elacomeçou a recolher o lixo e a enfiá-lo no saco em que eu trouxe acomida. Ajudei-a, e quando nossosdedos se tocaram, ela pegou minhamão e a apertou.

— Obrigada. Por tudo que temfeito. Sou muito grata a você.

Apertei sua mão também esoltei-a.

— Sabe de uma coisa, já passoupor minha cabeça que Kyra estejamovendo as letras sozinha.Mentalmente — disse ela.

— Telecinesia?— Acho que o termo técnico é

esse. Só que Ki não pode escrevermuitas palavras além de “cão” e“gato”.

— O que é que aparece nageladeira?

— Na maioria nomes. Uma vezapareceu o seu. Outra, o de suamulher.

— Jo?— O nome inteiro — JOHANNA. E

NANA. Rogette, acho eu. JARED apareceàs vezes, e BRIDGET. Uma vez surgiuum KITO. — Ela o soletrou.

— Kito — eu disse, pensando:Kyra, kia, Kito. O que é isso? — É o

nome de um garoto?— Sei que é. É suaíli, e quer

dizer criança preciosa. Fui procurarno meu livro de nomes de bebês. —Deu uma espiada em sua própriacriança preciosa enquantocaminhávamos pelo gramado até alata de lixo mais próximo.

— Algum outro que consigalembrar?

Ela pensou.— REG apareceu umas duas

vezes. E outra vez CARLA. De ummodo geral, Ki nem consegue leresses nomes, entende? Ela tem queme perguntar o que está escrito.

— Já lhe ocorreu que Kyra possa

estar copiando os nomes de umlivro ou revista? Que possa estaraprendendo a escrever usando asletras da geladeira em vez de papele lápis?

— Acho que é possível... — Masnão dava a impressão de acreditarnaquilo. Não era de surpreender. Eumesmo não acreditava.

— Você nunca viu as letras semexendo sozinhas na frente dageladeira, viu? — Eu esperavamostrar despreocupação aoperguntar aquilo.

Ela riu um tanto nervosamente.— Minha nossa, não!— Algo mais?

— Às vezes o pessoal da geleiradeixa recados como OI, TCHAU e BOA

GAROTA. Tinha um ontem que anoteipara mostrar a você. Kyra me pediuque fizesse isso. É esquisitomesmo.

— O que é?— Vou lhe mostrar, mas está no

porta-luvas do carro. Você melembra quando formos embora?

Sim. Eu lembraria.— Parece coisa de fantasma,

sim, senhor. Como aquela escritana farinha — disse ela.

Pensei em lhe contar que eutambém tinha o meu própriopessoal da geleira, mas não o fiz.

Mattie já tinha o suficiente com quese preocupar sem que... ou pelomenos eu disse isso a mim mesmo.

Ficamos lado a lado na grama,observando Ki assistir aomalabarista.

— Ligou para John? — perguntei.— Liguei.— Qual foi a reação dele?Ela voltou-se para mim, rindo

com os olhos.— Cantou um verso de “Ding,

Dong, o Bruxo Morreu”.— Sexo errado, sentimento

certo.Ela concordou com a cabeça,

seus olhos voltando a Kyra. Pensei

novamente como era bonita, ocorpo esbelto no vestido branco, ostraços puros perfeitamentedesenhados.

— Ele ficou irritado por eumesmo ter me convidado para oalmoço?

— Não, adorou a ideia defazermos uma reunião.

Uma reunião. Ele adorou a ideia.Comecei a me sentir pequenininho.

— Ele até sugeriu queconvidássemos seu advogado dasexta-feira passada. Bissonette?Além do detetive particular queJohn contratou por recomendaçãode Bissonette. Está bem para você?

— Ótimo. E você, Mattie? Tudobem?

— Tudo bem — concordou ela,virando-se para mim. — Recebimais ligações hoje do que costumoreceber. De repente fiquei muitopopular.

— É?— A maioria desligou na minha

cara, mas um cavalheiro se deu aotrabalho de me chamar de cadela, euma mulher com um sotaqueianque muito forte disse: “Pronto,sua vaca, você matou ele. Tásatisfeita?” Ela desligou antes queeu pudesse responder, sim, muitosatisfeita, obrigada. — Mas Mattie

não parecia satisfeita e sim infeliz eculpada, como se tivesseliteralmente desejado a morte dele.

— Lamento.— Tudo bem. Mesmo. Kyra e eu

temos estado sozinhas por muitotempo, e fiquei assustada na maiorparte dele. Agora fiz dois amigos.Se alguns telefonemas anônimossão o preço que tenho que pagar,eu pago.

Estava muito próxima, erguendoos olhos para mim, e não conseguime controlar. Pus a culpa no verão,no perfume dela e em quatro anossem mulher. Nessa ordem. Deslizeios braços em volta de sua cintura e

lembro perfeitamente da textura dovestido sob minhas mãos; a leveprega atrás onde o zíper seescondia. Então a beijei, muitosuave e extensamente — qualquercoisa que vale a pena fazer, vale apena ser feito direito —, e elarespondeu ao meu beijoexatamente no mesmo espírito, aboca curiosa, mas não com medo.Seus lábios eram mornos e maciose tinham um tênue sabor doce.Pêssegos, acho eu.

Paramos ao mesmo tempo e nosafastamos um pouco um do outro.As mãos dela ainda em meusombros. As minhas em sua cintura,

pouco acima dos quadris. Seu rostoestava suficientemente composto,seus olhos se mostravam maisbrilhantes do que nunca, e haviatraços de cor em suas bochechas,subindo ao longo da face.

— Puxa — disse ela. — Como euqueria isso. Desde que Ki quase oderrubou e você a levantou, euestava querendo isso.

— John não ia gostar que agente se beijasse em público — eudisse. Minha voz não parecia muitofirme e o coração batia forte. Setesegundos, um beijo e cada sistemade meu corpo estava em velocidademáxima. — Na verdade, John não ia

gostar que a gente se beijasse. Eletem uma queda por você, sabe?

— Eu sei, mas eu tenho umaqueda por você.

Virou-se para localizar Ki, queainda estava obedientemente empé junto à árvore, assistindo aomalabarista. Quem poderia estarnos observando? Alguém que tinhavindo da TR numa quente tarde deverão para tomar sorvete no Frank’sTas-T-Freeze e apreciar um poucode música e socialização noparque? Alguém em busca delegumes e fofocas frescas noArmazém Lakeview? Um cliente daoficina? Aquilo era loucura, e

continuaria loucura não importacomo fosse encarado. Tirei as mãosda cintura dela.

— Mattie, eles poderiam pôrnosso retrato junto à palavra“imprudente” no dicionário.

Ela tirou as mãos de meu ombroe deu um passo para trás, mas seusolhos brilhantes não se afastaramdos meus.

— Eu sei disso. Sou jovem, masnão sou inteiramente burra.

— Eu não quis dizer...Ela ergueu uma das mãos para

me deter.— Ki vai para a cama por volta

das nove. Parece que não consegue

dormir até que escureça. Eu ficoacordada até mais tarde. Venha mevisitar, se quiser. Pode estacionar ocarro nos fundos. — Sorriu umpouco, docemente. O sorriso eratambém tremendamente sexy. —Quando a lua some, aquela área émuito discreta.

— Mattie, você é jovem obastante para ser minha filha.

— Talvez, mas não sou. E àsvezes as pessoas podem serexcessivamente discretas para seupróprio bem.

Meu corpo sabia enfaticamente oque desejava. Se estivéssemos notrailer naquele momento, não

haveria nenhuma contestação. Dequalquer modo, já não havia quasenenhuma contestação. Então algome ocorreu, algo que pensei sobreos ancestrais de Devore e os meus:as gerações não combinavam. Coma minha e a de Mattie não era omesmo? Não acredito que aspessoas tenham automaticamentedireito ao que querem, não importacom que força queiram. Nem todaânsia tem que ser saciada. Algumascoisas simplesmente são erradas —acho que é isso que estou tentandodizer. Mas não tinha certeza de queaquela era uma delas, e que eu aqueria não havia a menor dúvida.

Muito. Continuava me lembrandode como seu vestido deslizouquando eu passei os braços emvolta de sua cintura, sua pelequente logo abaixo do tecido. Alémdisso, Mattie não era minha filha.

— Você já agradeceu — eu dissenuma voz seca. — E é suficiente.Mesmo.

— Acha que isso é gratidão? —Emitiu um riso baixo, tenso. — Vocêtem 40 anos, Mike, não 80. Não éHarrison Ford, mas é um homembonito. E também talentoso einteressante. E eu gosto de você àbeça. Quero que fique comigo. Querque eu peça por favor? Está bem.

Por favor, fique comigo.Sim, era mais do que gratidão —

acho que eu sabia disso mesmoenquanto estava pronunciando apalavra. Eu tinha adivinhado queela estava usando short branco euma frente única quando ligou nodia em que voltei a trabalhar. Teriaela adivinhado o que eu estavavestindo? Teria sonhado que estavana cama comigo, fodendo atémorrer enquanto as luzes da festabrilhavam e Sara Tidwellapresentava sua versão de jogo derimas da vó branca, todo aquelenegócio maluco de Manderley-sanderley-canderley? Teria Mattie

sonhado em me dizer para fazertudo que eu quisesse?

E havia o pessoal da geleira, queera um compartilhar de outro tipo,e de uma espécie muito maisfantasmagórica. Ainda não tinhatido coragem suficiente para contara Mattie sobre o meu própriopessoal, mas de qualquer modo elapoderia saber. Bem lá no fundo damente. Bem no fundo, onde osrapazes operários se moviam nazona. Seus rapazes e os meus,todos parte do mesmo estranhosindicato. E talvez não fosse umaquestão de moralidade em si. Algoa respeito daquilo — a respeito de

nós — dava uma sensação deperigo.

E, ah, tão atraente.— Preciso de tempo para pensar

— falei.— Não há muito o que pensar

sobre isso. O que é que você sentepor mim?

— Sinto tanto que até meassusta.

Antes que eu pudesse dizer algomais, meus ouvidos apreenderamuma série familiar de mudanças deacorde. Virei para o garoto doviolão. Ele vinha tocando umrepertório das primeiras canções deDylan, mas agora tinha passado a

algo explosivo, algo que fazia vocêsorrir mostrando os dentes emarcar o ritmo com as mãos.

“Do you want to go fishin here in my fishin hole?Said do you want to fish some,honey, here in my fishin hole?You want to fish in my pond,baby, you better have a big longpole.”6

“Fishin blues.” Escrito por SaraTidwell, executado originalmentepor Sara e pelos Red-Top Boys, comcover de todo mundo, desde Ma

Rainey a Lovin’ Spoonful. Ascanções cruas eram a especialidadedela, com um duplo sentido tãotransparente que se podia ler umjornal através dele... embora lernão fosse o interesse principal deSara, a se julgar por suas letras.

Antes que o garoto pudessepassar ao próximo verso, algo sobrecomo você tem que se sacudirquando meneia e põe a varagrande bem lá no fundo, The CastleRockers emitiram um floreio com oviolão que dizia: “Cale a boca, todoo mundo, vamos na sua direção.” Ogaroto parou de tocar; omalabarista começou a pegar as

machadinhas para enfileirá-lasrapidamente na grama. Os Rockersse lançaram numa marcha muitoruim, música ao som da qual sepodiam cometer assassinatos emsérie, e Kyra veio correndo até nós.

— O mabarista acabou. Você vaime contar a história, Mike? Janjão eMaria?

— É João e Maria — eu disse. —Vou contar com muito prazer. Masvamos para um lugar mais quieto,está bem? A banda está me dandodor de cabeça.

— A música machucou suacabecinha?

— Um pouquinho.

— Então vamos para perto docarro da Mattie.

— Boa ideia.Kyra correu na frente para pegar

um banco na orla do parque. Mattielançou um olhar longo e caloroso,depois estendeu a mão. Eu apeguei. Nossos dedos seentrelaçaram como se viessemfazendo isso há anos. Pensei: Eugostaria que fosse lento, nós doisquase sem nos movermos. Noinício, pelo menos. E eu levariaminha melhor vara e a mais longa?Acho que se podia contar com isso.E então, depois, nósconversaríamos. Talvez até

pudéssemos ver a mobília àprimeira luz da manhã. Quando seestá na cama com alguém que agente ama, especialmente daprimeira vez, as cinco horas damanhã parecem quase sagradas.

— Você precisa de umas fériasde seus pensamentos — disseMattie. — Aposto que a maioria dosescritores precisa, de tempos emtempos.

— Provavelmente é verdade.— Gostaria que estivéssemos em

casa — disse ela, e não posso dizerse sua ferocidade era verdadeira oufingida. — Eu o beijaria até quetoda essa conversa se tornasse

irrelevante. E se você hesitasse,pelo menos seria na minha cama.

Virei o rosto para a luz vermelhado sol poente.

— Aqui ou lá, a essa hora Kiainda estaria de pé.

— É verdade — disse ela,parecendo inusitadamente mal-humorada.

— É verdade.Kyra alcançou um banco perto da

placa em que se lia ESTACIONAMENTO DO

PARQUE DA CIDADE e o escalou,segurando o pequeno cachorro depelúcia numa das mãos. Tenteisoltar minha mão quando nosaproximávamos dela, mas Mattie a

segurou com firmeza.— Tudo bem, Mike. Na EBF, eles

ficam de mãos dadas uns com osoutros onde quer que vão. São osadultos que transformam isso emalgo importante.

Ela parou, encarando-me.— Quero que saiba de uma

coisa. Talvez não tenha importânciapara você, mas para mim tem. Nãohouve ninguém antes de Lance eninguém depois dele. Se você vierse encontrar comigo, vai ser o meusegundo homem. Não vou falar comvocê sobre isso de novo também.Pedir por favor não temimportância, mas não vou implorar.

— Eu não...— Há um vaso com um pé de

tomate junto aos degraus do trailer.Vou deixar a chave embaixo dele.Não pense. Venha.

— Esta noite não, Mattie. Nãoposso.

— Pode sim — replicou ela.— Depressa, seus molezas! —

gritou Kyra, saltando no banco.— Ele é que é moleza! — gritou

Mattie de volta, e cutucou-me nascostelas. Então, com uma voz muitomais baixa: — Você é mesmo. —Desvencilhou a mão da minha ecorreu para a filha, as pernasbronzeadas movendo-se sob a

bainha do vestido branco.

Em minha versão de “João e Maria”,a feiticeira se chamava Depravia.Kyra me olhou fixamente com seusolhos imensos quando cheguei àparte em que Depravia pede a Joãopara mostrar o dedo para que elapossa ver o quanto ele já engordou.

— Dá muito medo? — perguntei.Ki balançou a cabeça

enfaticamente. Olhei para Mattie,para ter certeza. Ela assentiu com acabeça, fazendo um gesto para queeu continuasse; então, continuei.Depravia entrava no forno e Maria

encontrava sua pilha secreta debilhetes premiados da loteria. Ascrianças compravam um jet ski eviviam felizes para sempre no ladooriental do lago Dark Score.Naquele momento, The CastleRockers assassinavam Gershwin e osol estava perto de desaparecer.Levei Kyra para o Scout e afivelei-ano assento. Lembrei-me daprimeira vez em que ajudei acolocá-la naquele assento, e apressão involuntária dos seios deMattie.

— Espero que a história não válhe dar um sonho ruim — eu disse.Até ouvir isso saindo de minha

boca, eu não havia percebido comoa história era fundamentalmentemedonha.

— Não vou ter sonhos ruins —disse Kyra prosaicamente. — Opessoal da geleira vai fazer elesficarem longe. — Então,cuidadosamente, lembrando-se: —Ge-la-dei-ra. — Virou-se paraMattie: — Mostre a ele as palavrascrazadas, mamãezinha.

— Palavras cruzadas. Obrigada,eu não vou esquecer. — Mattieabriu o porta-luvas e tirou dali umafolha de papel dobrada. — Estavana geladeira esta manhã. Copiei oque estava escrito porque Ki queria

que você soubesse o quesignificavam. Ela disse que você fazpalavras cruzadas. Bem, dissepalavras crazadas, mas eu entendio que era.

Eu disse a Kyra que faziapalavras cruzadas? Tinha quasecerteza de que não. Que elasoubesse me surpreendia? Nem umpouco. Peguei a folha de papel,desdobrei-a e olhei para o queestava escrito:

v

a

a

noventa2

— É palavras crazadas, Mike? —perguntou Kyra.

— Acho que sim. Mas se querdizer alguma coisa, não sei o que é.Posso ficar com isso?

— Pode — disse Mattie.Fui com ela até o lado do

motorista do Scout, pegando suamão enquanto andávamos.

— Só me dê um pouco de tempo.Sei que quem costuma dizer isso éa mulher, mas...

— Leve o tempo que quiser —disse ela. — Mas não demais.

Eu não queria levar nenhum, oproblema era esse. O sexo seria

maravilhoso, eu sabia disso. Mas edepois?

Poderia haver um depois. Eusabia disso e ela também. ComMattie, o “depois” era umapossibilidade real. A ideia era umpouco assustadora, um poucomaravilhosa.

Beijei o canto de sua boca. Elariu e me agarrou pela ponta daorelha.

— Você pode fazer melhor doque isso — disse, e depois olhoupara Kyra, que nos olhava cominteresse em seu banquinho. — Masdesta vez deixo você escapar.

— Beijo em Ki! — Kyra gritou,

esticando os braços, portanto dei avolta e beijei Ki. Dirigindo paracasa, de óculos escuros para meproteger dos raios ofuscantes do solpoente, ocorreu-me que talvez eupudesse ser pai de Kyra Devore.Isso parecia quase tão atraentepara mim quanto ir para a camacom a mãe dela, o que dava amedida de quanto eu tinha meenvolvido com a relação. E talvezfosse me envolver cada vez mais.

Cada vez mais.

Sara Laughs parecia muito vaziadepois de eu ter tido Mattie em

meus braços — uma cabeçadormindo sem sonhos. Examinei asletras na geladeira, mas vi queestavam espalhadas normalmente,e peguei uma cerveja. Fui para odeck bebê-la enquanto assistia aosol se pondo. Tentei pensar nopessoal da geladeira e nas palavrascruzadas surgidas nas duasgeladeiras: “vá a dezenove” naestrada 42 e “vá a noventa e dois”na estrada Wasp Hill. Vetoresdiferentes da terra para o lago?Diferentes locais da Rua? Quemerda, como é que eu ia saber?

Tentei pensar em John Storrow eem como ele ficaria infeliz ao

descobrir — para citar Sara Laughs,que tinha alcançado a linha muitoantes de John Mellencamp — outramula chutando a baia de MattieDevore. Mas pensei principalmentena primeira vez em que a abracei, aprimeira vez em que a beijei.Nenhum instinto humano é maispoderoso que o impulso sexualquando está completamentedesperto, e suas imagens aoacordarem são tatuagensemocionais que nunca nosabandonam. Para mim, foi asensação da pele nua e macia dacintura dela logo abaixo do vestido.O toque escorregadio do tecido...

Virei-me abruptamente e andeidepressa pela casa em direção àala norte, quase correndo e tirandoas roupas enquanto o fazia. Liguei ochuveiro e coloquei em frio total efiquei sob ele por cinco minutos,tremendo. Quando saí senti-me umpouco mais como um ser humanoreal e um pouco menos como umfeixe espasmódico de terminaçõesnervosas. E, enquanto me secavacom a toalha, eu me lembrei deoutra coisa. Em algum momento,pensei em Frank, irmão de Jo;pensei que se alguém além de mimpudesse sentir a presença de Jo emSara Laughs, seria ele. Ainda não

cheguei a convidá-lo para vir atéali, e agora não tinha certeza deque desejava fazê-lo. Haviapassado a me sentir estranhamentepossessivo, quase ciumento, do queacontecia ali. E mesmo assim, se Jotivesse escrito alguma coisasecretamente, Frank poderia saber.Claro que ela não lhe fezconfidências sobre a gravidez,mas...

Olhei meu relógio. Nove e quinzeda noite. No trailer, na bifurcaçãoda estrada de Wasp Hill com a rota68, Kyra provavelmenteadormecera... e sua mãe já poderiater colocado a chave extra sob o

vaso perto dos degraus. Pensei nelacom seu vestido branco, a curvados quadris pouco abaixo dasminhas mãos e o cheiro de seuperfume. Então empurrei asimagens para longe. Não podiapassar a noite inteira tomandobanhos frios de chuveiro. Nove equinze ainda era cedo o suficientepara eu ligar para Frank Arlen.

Ele atendeu o telefone quando acampainha tocou pela segunda vez,parecendo tão feliz em me ouvircomo se já tivesse tomado três ouquatro latas a mais do pacote deseis cervejas do que eu até então.Passamos pelas brincadeiras

habituais — a maioria das minhasquase totalmente ficcionais,descobri consternado — e Frankmencionou que um famoso vizinhomeu tinha passado dessa paramelhor, segundo os noticiários. Eu oconheci? Sim, respondi, lembrandocomo Max Devore impeliu a cadeirade rodas contra mim. Sim, eu oconheci. Frank quis saber como eraele. Difícil dizer, respondi. O pobrevelho estava preso à cadeira derodas e sofria de enfisema.

— Muito frágil, hein? —perguntou Frank solidariamente.

— É — eu disse. — Escute, Frank,liguei para falar sobre Jo. Estava

dando uma espiada no estúdio delae encontrei minha máquina deescrever. Desde então achei queela vinha escrevendo alguma coisa.Ela pode ter começado um artigosobre nossa casa, e depois oaumentou. O lugar tem o nome deSara Laughs por causa de SaraTidwell, você sabe. A cantora deblues.

Uma longa pausa. Então Frankdisse:

— Eu sei. — Sua voz pareciapesada, grave.

— O que mais você sabe, Frank?— Que ela estava com medo.

Acho que descobriu algo que a

assustou. Acho que eraprincipalmente porque...

Foi então que a luz finalmente sefez. Eu provavelmente devia tersabido pela descrição de Mattie, eteria sabido disso se não tivesseestado tão perturbado.

— Você esteve aqui com ela, nãoé? Em julho de 1994. Vocês foramao jogo de softbol, depois voltarampara a casa pela Rua.

— Como sabe disso? — Ele quasegritou.

— Alguém viu vocês. Um amigomeu. — Eu procurava não parecerzangado, mas sem êxito. Eu estavazangado, mas era uma raiva

aliviada, o tipo que se sentequando seu filho chega em casa searrastando com um risoenvergonhado exatamente quandovocê está se preparando parachamar a polícia.

— Eu quase lhe contei um oudois dias antes do enterro dela.Estávamos naquele pub, lembra?

Jack’s Pub, logo depois de Frankter negociado com o agentefunerário a respeito do preço docaixão de Jo. Claro que eulembrava. Lembrava até daexpressão de seus olhos quando lhecontei que Jo estava grávidaquando morreu.

Ele deve ter sentido o silêncio sedesdobrando, pois pareceu ansioso.

— Mike, espero que você nãotenha tido...

— O quê? Ideias erradas? Penseique talvez ela estivesse tendo umcaso, que tal essa ideia? Podechamar isso de desprezível sequiser, mas eu tinha minhas razões.Ela não estava me contando ummonte de coisas. O que é que elacontou a você?

— Quase nada.— Você sabia que ela saiu de

todos os conselhos e comitês? Saiue nunca me disse uma palavra?

— Não. — Acho que ele não

estava mentindo. Por que estaria,nessa altura do campeonato? —Jesus, Mike, se eu soubesse disso...

— O que aconteceu no dia emque vocês vieram aqui? Conte.

— Eu estava na loja de gravurasem Sanford. Jo me ligou de... nãome lembro, acho que de um toaleteno pedágio.

— Entre Derry e a TR?— É. Ela estava indo para Sara

Laughs e queria se encontrarcomigo lá. Disse para eu estacionarna entrada de carros se chegasse láprimeiro, e não entrar na casa... oque eu poderia ter feito; sei ondevocês guardam a chave extra.

Claro que sabia, numa lata depastilhas Sucrets debaixo do deck.Eu mesmo a tinha mostrado a ele.

— Ela disse por que não queriaque você entrasse?

— Vai parecer uma doideira.— Não vai não. Pode acreditar.— Ela disse que a casa era

perigosa.Por um momento, as palavras

ficaram pairando ali. Entãoperguntei:

— Você chegou aqui primeiro?— Cheguei.— E esperou do lado de fora?— Sim.— Você viu ou sentiu algo

perigoso?Houve uma longa pausa.

Finalmente ele disse:— Havia um monte de gente no

lago, lanchas, esquiadores, sabecomo é, mas todo aquele barulhode motor e o riso pareciam... parartotalmente perto da casa. Você jánotou que ela parece quieta mesmoquando não está?

Claro que eu havia notado; Saraparecia existir em sua própria zonade silêncio.

— Mas você teve algumasensação de perigo nela?

— Não — disse ele quase comrelutância. — Pelo menos eu não

tive. Mas ela também não pareciatotalmente vazia. E me sentia...porra, eu me sentia vigiado. Senteinum daqueles degraus dedormentes e esperei Jo. Finalmenteela chegou. Estacionou atrás demeu carro e me abraçou... masnunca tirou os olhos da casa. Eu lheperguntei o que estava havendo,mas ela respondeu que não podiame contar, e que eu não pod iacontar a você que nós tínhamosestado lá. Ela disse algo como “Seele descobrir sozinho, é porque temque ser. De qualquer modo, vou terque contar a ele mais cedo ou maistarde. Mas agora não posso, porque

preciso da atenção completa dele, enão vou conseguir isso enquantoestiver trabalhando”.

Senti o rubor escalar minha pele.— Ela disse isso, é?— É. E depois falou que tinha

que ir até a casa para fazer umacoisa. Queria que eu esperasse dolado de fora. Disse que se elachamasse, eu devia entrarcorrendo. Caso contrário, eupoderia continuar onde estava.

— Ela queria alguém para o casode ter problemas.

— É, mas tinha que ser alguémque não fizesse um monte deperguntas que ela não queria

responder. Isto é, eu. Acho quesempre fui eu.

— E então?— Ela entrou. Sentei no capô do

carro, fumando. Naquela época euainda fumava. E, sabe, comecei asentir que algo não estava certo.Como se pudesse haver alguém nacasa esperando por ela, alguémque não gostava dela. Talvezquerendo feri-la. Provavelmentepeguei aquilo de Jo... do modocomo os nervos dela pareciamtensos, como continuava olhandopara a casa por cima de meu ombromesmo enquanto me abraçava,mas parecia uma outra coisa. Como

uma... não sei...— Uma vibração.— É! — ele quase gritou. — Uma

vibração. Mas não uma vibraçãoboa, como na música dos BeachBoys. Uma vibração má.

— O que aconteceu?— Sentei e esperei. Só fumei

dois cigarros, portanto acho quenão posso ter ficado lá mais do quevinte minutos ou meia hora, maspareceu mais tempo. Continueinotando como os sons do lagosubiam a colina e entãosimplesmente... paravam. E comonão parecia haver pássaro nenhum,a não ser bem distantes.

“Ela saiu uma vez — elecontinuou. — Ouvi a porta do deckbater, e então seus passos naescada daquele lado. Chamei porela, perguntei se estava tudo bem,e Jo respondeu que sim. Disse paraeu continuar onde estava. Pareciaum pouco sem fôlego, como seestivesse carregando alguma coisaou realizando uma tarefa.”

— Ela foi ao estúdio dela ou atéo lago?

— Não sei. Desapareceu poroutros 15 minutos ou coisa assim,tempo suficiente para que eufumasse outro cigarro, e então saiupela porta da frente. Verificou se

estava trancada, e depois veio atémim. Parecia muito melhor.Aliviada. Como as pessoas ficamdepois de fazer algum trabalhodesagradável que vinham adiando.Sugeriu que andássemos pelocaminho que ela chamava de Ruaaté o lugar lá embaixo...

— O Warrington’s.— Exatamente. Disse que me

convidava para uma cerveja e umsanduíche. E fez isso, lá na pontadaquele longo cais flutuante.

O Sunset Bar, onde tinhavislumbrado Rogette pela primeiravez.

— Então vocês foram dar uma

espiada no jogo de softbol.— Foi ideia de Jo. Ela havia

tomado três cervejas e eu uma, eela insistiu. Afirmou que alguém iafazer um lançamento lá nasárvores.

Agora eu tinha um quadro claroda parte que Mattie tinha visto eme contado. Fosse lá o que Jotivesse feito, aquilo a deixou quasetonta de alívio. Por um lado, ela searriscou a entrar na casa. Haviadesafiado os espíritos a fim de fazero que tinha que fazer e sobreviveu.Então ela tomou três cervejas paracelebrar e sua discriçãoescorregou... não que tivesse se

comportado muito secretamenteem suas viagens anteriores à TR.Frank lembrava de ela dizer que seeu descobrisse sozinho, então eraporque tinha que ser — o que seráserá. Não era a atitude de alguémescondendo um caso, e eu percebiaagora que todo o comportamentodela sugeria um segredo de curtoprazo. Ela teria me contado depoisque eu terminasse meu livro idiota,se tivesse vivido. Se.

— Vocês assistiram ao jogo porum tempo, depois voltaram para acasa pela Rua.

— É.— Um de vocês entrou?

— Não. Quando chegamos lá, aanimação de Jo tinha se esgotado econfiei nela para dirigir. Ela riaquando estávamos no jogo desoftbol, mas não estava rindoquando voltamos para a casa.Olhou para Sara Laughs e disse:“Terminei com ela. Nunca maispassarei por aquela porta de novo,Frank.”

Minha pele foi percorrida por umcalafrio, arrepiando-se.

— Perguntei qual era oproblema, o que é que tinhadescoberto. Sabia que estavaescrevendo alguma coisa, até esseponto ela havia me contado...

— Ela contou a todo mundo,menos a mim — falei... mas semmuita amargura. Eu sabia quemtinha sido o homem de blazermarrom, e qualquer amargura ouraiva, raiva de Jo, raiva de mimmesmo, empalidecia ante o alívioque aquilo significava. Eu não tinhapercebido até então a que pontoaquele sujeito ocupou a minhamente.

— Jo deve ter tido as razões dela— disse Frank. — Você sabe disso,não é?

— Mas ela não contou a vocêque razões eram essas.

— Só sei que começou, fosse lá o

que fosse, com a pesquisa delapara um artigo. Era hilário, Jobancando a Nancy Drew. Tenhocerteza de que, no início, nãocontou a você para fazer surpresa.Ela lia livros, mas sobretudoconversava com pessoas, ouviaaquelas histórias dos velhos tempose estimulava-os a procuraremvelhas cartas... diários... era boanessa parte, acho. Boa à beça.Você não sabia nada disso?

— Não — eu disse pesadamente.Jo não vinha tendo um caso, maspoderia ter tido se quisesse.Poderia ter tido um caso com TomSelleck e aparecido em Inside View

que eu teria continuado a batucarnas teclas do meu PowerBook,abençoadamente inconsciente.

— Seja lá o que ela descobriu —disse Frank —, acho que tropeçouna coisa por acaso.

— E você nunca me contou.Quatro anos e você nunca mecontou uma palavra disso.

— Foi da última vez que estivecom ela — disse Frank, e agora nãosoava absolutamente constrangidoou como se pedisse desculpas. — Ea última coisa que ela me pediu foique não dissesse a você quetínhamos estado no lago. Disse quelhe contaria tudo quando estivesse

pronta, mas aí ela morreu. Depoisdisso, achei que a coisa não tinhaimportância. Mike, ela era minhairmã. Ela era minha irmã, e euprometi.

— Tudo bem. Eu entendo. — Eentendia, mas não o suficiente. Oque Jo teria descoberto? QueNormal Auster tinha afogado o filhosob a bomba manual? Que por voltada virada do século uma armadilhafoi deixada no lugar em que umgaroto negro poderia pisar nela?Que outro garoto, talvez filhoincestuoso de Son e Sara Tidwell,foi afogado pela mãe no lago,talvez com ela dando aquele riso

lunático e rouco de fumo enquantoo segurava debaixo d’água? Vocêtem que se sacudir quando balança,benzinho, e segurar aquele garotolá no fundo.

— Se quer que eu peçadesculpas, Mike, considere issofeito.

— Não quero. Frank, você selembra de qualquer outra coisa queela possa ter dito naquela noite?Qualquer coisa mesmo?

— Ela disse que sabia como vocêdescobriu a casa.

— Ela disse o quê?— Disse que, quando a casa

queria você, ela o chamava.

No início, não conseguiresponder, pois Frank Arlen tinhademolido completamente uma dassuposições de minha vida decasado — uma das grandes, umadas que parecem tão básicas quevocê nem pensa a respeito paraquestioná-las. A gravidade omantém para baixo. A luz lhepermite ver. A agulha da bússolaaponta para o norte. Coisas assim.

Essa suposição era que Jo tinhacomprado Sara Laughs quandovimos o primeiro dinheiro real deminha carreira de escritor, porqueJo era a “pessoa ligada a casas” emnosso casamento, exatamente

como eu era a “pessoa ligada acarros”. Foi Jo quem escolheunossos apartamentos, quando eleseram tudo com que podíamos arcar.Ela pendurava um quadro ali e mepedia para colocar uma prateleiraacolá. Foi Jo quem se apaixonoupela casa de Derry e finalmentevenceu minha resistência ante aideia de que era grande demais,ocupada demais e quebrada demaispara ser comprada. Jo foi aconstrutora de ninhos.

Ela disse que, quando a casaqueria você, ela o chamava.

E provavelmente era verdade.Não, eu podia ir além disso, se

estava querendo pôr de lado opensamento preguiçoso e alembrança seletiva. Certamente eraverdade. Eu fui o primeiro aexprimir a ideia de uma casa noMaine ocidental. Tinha sido euquem colecionara pilhas de folhetossobre propriedades e as levara paracasa. Eu comecei a comprarrevistas regionais como Down Easte sempre iniciava a leitura de tráspara a frente (na parte de trásficavam os anúncios imobiliários).Eu fui o primeiro a ver o retrato deSara Laughs num anúncio brilhantechamado Refúgios do Maine, e eutelefonei primeiro para o corretor

de imóveis do anúncio, e depoispara Marie Hingerman, apósarrancar do corretor o nome deMarie.

Johanna também ficouencantada com Sara Laughs — achoque qualquer um ficaria, vendo-apela primeira vez ao sol de outono,com as ruas flamejando à sua voltae rajadas de folhas coloridassopradas pela Rua, mas fui euquem procurei ativamente o lugar.

Só que aquilo era maispensamento preguiçoso elembrança seletiva. Não era? FoiSara quem tinha me encontrado.

Como é que eu poderia ter

ignorado isso até agora? E, emprimeiro lugar, como é que pude tersido conduzido até ali, cheio deignorância desavisada e feliz?

A resposta às duas perguntas eraa mesma. Era também a resposta àpergunta de como Jo podia terdescoberto algo aflitivo sobre acasa, o lago e talvez toda a TR, edepois ter partido sem me contar.Eu estava desaparecido, só isso.Tinha estado na zona, em transe,escrevendo um de meus livrosidiotas. Estive hipnotizado pelasfantasias em minha mente, e é fácilconduzir um homem hipnotizado.

— Mike? Ainda está aí?

— Estou aqui, Frank. Mas sóDeus sabe o que pode tê-laassustado tanto.

— Lembro que ela mencionououtro nome: Royce Merrill. Disseque era um dos que mais coisasrecordava, por ser tão velho. Eacrescentou: “Não quero que Mikefale com ele. Tenho medo de queaquele velho possa deixar o gatoescapar do saco e lhe conte maisdo que ele deve saber.” Algumaideia do que queria dizer?

— Bem... dizem que um ramo davelha árvore familiar acabou aqui,mas o pessoal de minha mãe é deMemphis. Os Noonan são do Maine,

mas não desta parte. — Mas eu jánão acreditava inteiramente nisso.

— Mike, você parece doente.— Estou bem. Melhor do que

estava, na realidade.— E entende por que não lhe

contei nada disso até agora? Querodizer, se eu soubesse que ideiasvocê andava tendo... se eu tivessequalquer pista...

— Acho que entendo. Paracomeço de conversa, as ideias nãofaziam parte da minha cabeça, masuma vez que essa merda começa apenetrar...

— Quando voltei a Sanfordnaquela noite e tudo tinha

terminado, acho que pensei naquilocomo mais uma das coisas de Jotipo “Porra, há uma sombra na lua,ninguém sai até amanhã”. Elasempre foi a supersticiosa, vocêsabe; batendo na madeira, jogandouma pitada de sal por cima doombro, se deixava cair algum, osbrincos de trevo de quatro folhasque usava...

— Ou como não usava umpulôver se o tivesse vestido aocontrário por engano. Afirmava quefazer isso transtornava todo o seudia.

— E não transtorna? — Frankperguntou, e pude ouvir um

pequeno sorriso em sua voz.De repente me lembrei

completamente de Jo, desde obrilho especial do seu olhoesquerdo, e não quis mais ninguém.Ninguém ia adiantar.

— Ela achava que havia algo deruim na casa — disse Frank. — Atéaí eu sei.

Peguei um pedaço de papel erabisquei Kia.

— É. E então pode ter suspeitadode que estava grávida. Pode terficado com medo de... influências.— Havia influências ali, semnenhuma dúvida. — Você acha queela soube da maior parte disso por

Royce Merrill?— Não, esse foi apenas um nome

que ela mencionou. Elaprovavelmente conversou comdúzias de pessoas. Conhece umsujeito chamado Kloster? Gloster?Alguma coisa assim?

— Auster — eu disse. Abaixo deKia, meu lápis desenhavacompridos laços que podiam ser aletra l cursiva ou fitas de cabelo. —Kenny Auster. Era isso?

— Parece. De qualquer modo,sabe como era Jo quando entravarealmente numa coisa.

Sim. Como um terrier atrás deratos.

— Mike? Devo aparecer aí?Não. Agora eu tinha certeza.

Nem Harold Oblowski nem Frank.Havia em Sara um processo emandamento, algo tão delicado eorgânico quanto fazer o pão crescernuma sala tépida. Frank poderiainterromper o processo... ou serferido por ele.

— Não, eu só queria esclarecer aquestão. Além disso, estouescrevendo. É difícil para mim tergente em volta quando estouescrevendo.

— Você liga, se eu puder ajudar?— Claro que sim.Desliguei o telefone, folheei a

lista telefônica e encontrei um R.

MERRILL na estrada Deep Bay. Ligueipara o número, ouvi o telefonechamar uma dúzia de vezes e entãodesliguei. Nada de secretáriaseletrônicas modernosas para Royce.Eu me perguntei vagarosamenteonde ele estaria. Noventa e cincoparecia idade demais para se irdançar no Country Barn emHarrison, especialmente num finalde noite como aquele.

Olhei o papel onde estava escritoKia. Abaixo das formas gordas emforma de l, eu escrevi Kyra, elembrei que, na primeira vez emque tinha ouvido Ki dizer seu nome,

eu entendi “Kia”. Abaixo de Kyraescrevi Kito, hesitei e depois escreviCarla. Cerquei esses nomes com umquadrado. Ao lado deles rabisqueiJohanna, Bridget e Jared. O pessoalda geleira. O pessoal que queriaque eu fosse ao 19 e ao 92.

— Acredite, Moisés, você estárumando para a Terra Prometida —falei para a casa vazia. Olhei emvolta. Só eu, Bunter e o relógiooscilante... mas isso não eraverdade.

Quando ela o queria, chamavavocê.

Levantei para pegar outracerveja. As frutas e os legumes

estavam num círculo novamente.No meio, as letras haviam escrito:

naohNaoh? Olhei para aquelas letras

por muito tempo. Então lembreique a IBM ainda estava no deck.Trouxe-a para dentro, depositei-ana mesa da sala de jantar ecomecei a trabalhar no meu atuallivrinho estúpido. Quinze minutos eeu estava perdido, apenasligeiramente consciente do trovãoem algum lugar sobre o lago,ligeiramente consciente do sino deBunter estremecendo de vez emquando. Quando voltei à geladeira

cerca de uma hora depois paraoutra cerveja e vi que as palavrasno círculo diziam agora

na oheu quase não notei. Naquelemomento, pouco me importava oque aquilo queria dizer. JohnShackleford tinha começado alembrar de seu passado e dacriança cujo único amigo havia sidoele. O pequeno e negligenciado RayGarraty.

Escrevi até meia-noite. Já entãoos trovões haviam desaparecido,mas o calor continuava, tãoopressivo quanto um cobertor.

Desliguei a IBM e fui para cama...pensando, tanto quanto me lembro,em coisa nenhuma — nem mesmoem Mattie, deitada na própria camaa alguns quilômetros de distância. Aescrita havia consumido todos ospensamentos do mundo real, pelomenos temporariamente. Afinal decontas, acho que é para isso queexiste. Boa ou má, faz passar otempo.

6 Você quer vir pescar aqui no meu laguinho?Disse que quer pescar, benzinho, aqui no meu laguinho?Se no meu lago quer pescar, uma vara comprida tem que mostrar.

Capítulo Vinte e Um

Eu caminhava na direção norte aolongo da Rua. Lanternas japonesasa margeavam, mas estavam todasapagadas porque era plena luz dodia — uma luz brilhante. Aaparência abafada e densa demeados de julho tinhadesaparecido; o céu exibia um tomescuro de safira que é propriedadeúnica de outubro. Sob ele, o lago semostrava do mais escuro índigo,

cintilando com pontos de sol. Asárvores tinham acabado deultrapassar o auge de suas cores deoutono, ardendo como tochas. Umvento vindo do sul soprava asfolhas caídas que passavam porentre as minhas pernas em rajadasaromáticas e ruidosas. As lanternasjaponesas balançavam-se como seaprovassem a estação. Adiante euouvia ligeiramente uma música.Sara e os Red-Tops. Sara estavacantando alto, rindo ao longo detoda a letra da música comosempre fazia... no entanto, como éque o riso podia parecer umrosnado?

— Garoto branco, eu jamaismataria um filho meu. Como é quepôde sequer pensar nisso!

Rodopiei, esperando vê-la bematrás de mim, mas não havianinguém ali. Bem...

A Senhora Verde estava lá, sóque havia mudado seu vestido defolhas para o outono e se tornara aSenhora Amarela. O ramodesfolhado de pinheiro atrás delaapontava o caminho: vá para onorte, rapaz, vá para o norte. Nãomuito adiante havia outra bétula,aquela em que eu tinha mesegurado quando a terrívelsensação de afogamento me

dominou de novo.Esperei que ocorresse

novamente — minha boca e minhagarganta foram tomadas pelo gostode ferro do lago —, mas nãoaconteceu. Tornei a olhar para aSenhora Amarela e depois, alémdela, para Sara Laughs. A casaestava lá, porém muito reduzida:sem ala norte, ala sul ou segundoandar. Nenhum sinal também doestúdio de Jo, ao lado. Nenhumadessas coisas havia sido construídaainda. A senhora bétula tinhaviajado comigo, vinda de 1998;assim como a que pendia sobre olago. De outro modo...

— Onde estou? — perguntei àSenhora Amarela e às lanternasjaponesas que balançavam. Entãouma pergunta melhor me ocorreu.— Em que época estou? —Nenhuma resposta. — É um sonho,não é? Estou na cama e sonhando.

Em algum ponto da superfíciebrilhante e com cintilaçõesdouradas do lago, um mergulhão-do-norte gritou. Duas vezes.Assovie uma vez para sim, duaspara não, pensei. Não é um sonho,Michael. Não sei exatamente o queé — uma viagem espiritual notempo, talvez —, mas não é umsonho.

— Será que isso estáacontecendo mesmo? — pergunteiao dia, e de algum ponto atrás nasárvores, onde uma trilhaposteriormente conhecida comoestrada 42 corria em direção a umaestrada suja mais tarde conhecidacomo rota 68, um corvo grasnou. Sóuma vez.

Fui até a bétula pendendo sobreo lago, passei um braço em voltadela (fazê-lo acendeu um traço dalembrança de quando eu abracei acintura de Mattie, sentindo ovestido deslizar em sua pele) eespiei para a água, dividido entre avontade de ver o garoto afogado e

o medo de vê-lo. Não havianenhum garoto lá, mas entre asrochas, raízes e plantas aquáticasonde ele havia estado, algo jazia nofundo. Apertei os olhos, e nessemomento o vento amainou umpouco, aquietando as cintilações daágua. Então vi uma bengala comcastão de ouro. Uma bengalaBoston Post. Embrulhada nela comouma espiral ascendente, as pontasoscilando preguiçosamente, via oque pareciam duas fitas brancascom bordas de um vermelho vivo.Ver a bengala de Royce Merrillembrulhada daquele jeito me fezpensar nas formaturas do ensino

médio, e como o bastão do mestrede cerimônias da turma oscilaquando ele conduz os formandos debeca a seus lugares. Agora euentendia por que o caco velho nãotinha atendido o telefone. Os diasde atender telefone de Roycehaviam terminado. Eu sabia disso;também sabia que viera para umaépoca antes de Royce sequer ternascido. Sara Tidwell estava ali,podia ouvi-la cantando, e quandoRoyce nasceu, em 1903, Sara játinha ido havia dois anos, ela etoda a sua família Red-Top.

— Acredite, Moisés — eu dissepara a bengala dentro d’água. —

Você está rumando para a TerraPrometida.

Caminhei em direção ao som damúsica, revigorado pelo ar frio epelo vento que soprava. Agoraouvia vozes também, muitas,falando, gritando e rindo. Erguendo-se acima delas e bombeando comoum pistão ouvia-se o rouco grito deum apresentador de feira: “Entre,pessoa l , depre-essa, depre-essa,depre-essa! Está tudo do lado dedentro, mas vocês têm que seapres-sar, o próximo show começaem dez minutos! Vejam Angelina, aMulher-Serpente, ela vibra, elasacode, ela vai enfeitiçar seus olhos

e roubar seu coração, mas nãocheguem muito perto dela pois suamordida é vene-no! Vejam Hando,o Garoto com Cara de Cachorro,terror dos Mares do Sul! Vejam oEsqueleto Humano! Vejam oMonstro-de-gila Humano, relíquiade uma época esquecida por Deus!Vejam a Mulher Barbada e todos osMatadores Marcianos! Estão ládentro, sim, senhor, portantodepre-essa, depre-essa, depre-essa!”

Eu podia ouvir o órgão a vaporde um carrossel e o bater de umsino no alto do poste, quandoalgum lenhador ganhava um

brinquedo de pelúcia para anamorada. Podia-se dizer, pelosalegres gritos femininos, que eletinha golpeado com tanta força quequase arrancou o sino do poste.Ouvia-se o estalo de armas calibre.22 das barracas de tiro, o muressonante da vaca premiada dealguém... e então comecei a sentiros aromas que eu associava a feirasdo condado desde garoto: massadoce frita, cebolas e pimentõesgrelhados, algodão-doce, esterco,feno. Comecei a andar mais rápidoenquanto o dedilhar de violões e obaque surdo de baixos duplosaumentavam. Meu coração pulou

para uma marcha mais veloz. Eu iavê-los atuar, realmente ia ver SaraLaughs e os Red-Tops ao vivo e nopalco. Aquilo também não eranenhum delírio de febre em trêspartes. Aquilo estava acontecendoagora mesmo, portanto depre-essa,depre-essa, depre-essa!

A casa dos Washburn (a quesempre seria a casa dos Brickerpara a sra. M.) desaparecera. Alémde onde ela se situariaposteriormente, escalando oíngreme aclive do lado leste daRua, via-se um lance de largosdegraus de madeira. Eles melembraram os que conduziam do

parque de diversões à praia novelho pomar. Aqui as lanternasjaponesas estavam acesas apesarda claridade do dia, e a música eramais alta do que nunca. Saracantava “Jimmy Crack Corn”.

Subi as escadas em direção aoriso e aos gritos, ao som dos Red-Tops e do órgão a vapor, doscheiros de comida frita e animais defazenda. Acima do patamar daescada, havia um arco de madeiracom a mensagem

BEM-VINDOS À FEIRA DE FRYEBURGBEM-VINDOS AO SÉCULO XX

Enquanto eu observava, um

garotinho de calças curtas e umamulher com a camisa para dentrode uma saia de linho até otornozelo passaram por baixo doarco e vieram na minha direção.Eles tremeluziram, tornando-sediáfanos. Por um momento, pudever seus esqueletos e os risosexibindo os ossos pairando por trásdos rostos risonhos. No momentoseguinte, haviam desaparecido.

Dois fazendeiros — um delescom chapéu de palha e o outrogesticulando expansivamente comum cachimbo de espiga de milho —apareceram no arco do lado daFeira exatamente da mesma

maneira. Assim, entendi que haviauma barreira entre a Rua e a Feira.Mesmo assim não achei que fosseuma barreira que me afetasse. Euera uma exceção.

— Está certo? — perguntei. —Posso entrar?

O sino no alto do poste de Testesua Força bateu alto e claro. Umbongue para sim, dois bonguespara não. Continuei a subir aescada.

Agora eu podia ver a roda-gigante girando contra o céubrilhante, a roda-gigante que eu viao fundo na foto da banda no DarkScore Days, de Osteen. Sua

estrutura era de metal, mas asgôndolas vivamente pintadas eramde madeira. Conduzindo a ela comoa nave central de uma igreja a umaltar, via-se uma ampla ruaprincipal de feira coberta deserragem. A serragem estava lácom um objetivo: quase todos oshomens que vi mascavam fumo.

Fiz uma pausa por algunssegundos no alto da escada, aindano lado do arco dando para o lago.Tinha medo do que pudesse meacontecer se passasse sob ele.Medo de morrer ou desaparecer,sim, mas principalmente de jamaispoder voltar pelo caminho por que

viera, de ser condenado a passar aeternidade como um visitante àFeira de Fryeburg na virada doséculo. Era também como umahistória de Ray Bradbury, pensandobem.

No final, o que me atraiu paraaquele outro mundo foi SaraTidwell. Eu tinha que vê-la commeus próprios olhos. Tinha queassistir a ela cantando. Não podiadeixar de fazê-lo.

Senti um formigamento aopassar por baixo do arco, e ouvi umsuspiro como o de um milhão devozes muito distantes. Suspiro dealívio? Desalento? Não sabia. Só

tinha certeza de que estar no outrolado era diferente — a diferençaentre olhar para uma coisa atravésda janela e realmente estar lá; adiferença entre observar eparticipar.

As cores pularam para fora comoagressores numa emboscada. Oscheiros que haviam sido doces,evocativos e nostálgicos no lado doarco dando para o lago eram agorapungentes e sexys, prosa em vezde poesia. Conseguia sentir o cheirode densas salsichas e bife fritando,e o vasto e vago aroma dechocolate fervendo. Dois garotospassaram por mim dividindo um

cone de papel com algodão-doce.Os dois seguravam lenços em queestavam amarradas suas poucasmoedas.

— Ei, garotos! — gritou para elesum apresentador de camisa azul-marinho. Usava ligas nos braços eseu sorriso revelava um esplêndidodente de ouro. — Derrubem asgarrafas de leite e ganhem umprêmio! Ainda não tive um perdedoro dia inteiro!

Lá na frente, os Red-Topsmergulharam no “Fishin Blues”. Eutinha achado que o garoto noparque de Castle Rock era bastantebom, mas a presente versão fazia o

garoto parecer velho, lento e semrumo. Não era bonitinho, como umantigo retrato de senhoras com assaias suspensas até os joelhos,dançando uma decorosa versão doblack bottom, com a beira dascalcinhas aparecendo. Não era algoque Alan Lomax tivesse colecionadocom suas outras músicas folkapenas mais uma empoeiradaborboleta americana num estojo devidro cheio delas; aquilo ali estavapolido o suficiente apenas paramanter o altivo bando fora dacadeia. Sara Tidwell cantava edançava de forma sensual, e euimaginava que cada camponês

mascando fumo de macacão,chapéu de palha, mãos calosas epesadas botinas ali em frente aopalco estava sonhando em ir para acama com ela, chegar bem ali ondeo suor se forma na dobra, o calorfica mais quente e o rosa évislumbrado.

Comecei a andar naqueladireção, consciente de vacasmugindo e ovelhas balindo nosestábulos da exposição — a versãoda Feira da fábrica de laticínios daminha infância. Passei pela barracade tiro ao alvo, pelo jogo de argolase pelo jogo de lançar de moedas;passei por um palco onde as criadas

de Angelina faziam uma dançalenta e sinuosa com as mãosentrelaçadas, enquanto um sujeitode turbante e graxa de sapato norosto tocava flauta. O quadropintado na lona esticada sugeriaque Angelina — que se pode ver dolado de dentro por apenas umdécimo de dólar, vizinho — fariaaquelas duas parecerem cafépequeno. Passei pela entrada doBeco das Aberrações, pela barracado milho assado, pela CasaFantasma, onde mais lonasesticadas representavam fantasmassaindo de janelas quebradas echaminés desmoronando. Tudo ali é

morte, pensei... mas de dentro eupodia ouvir crianças muito vivasrindo e dando gritos agudosenquanto tropeçavam em coisas noescuro. A mais velha dentre elasprovavelmente estava roubandobeijos. Passei pelo poste de Testesua Força, onde as gradaçõeslevando ao sino de bronze no topodiziam BEBÊ PRECISA DA MAMADEIRA, VIADINHO,

TENTE DE NOVO, GAROTÃO, MACHÃO e, poucoabaixo do próprio sino, emvermelho: HÉRCULES! Em pé no centrode um pequeno grupo, um rapaz decabelos vermelhos tirava a camisa,revelando um torso muitomusculoso. Um funcionário da Feira,

fumando charuto, entregou-lhe umamarreta. Passei pela tendaacolchoada, uma tenda ondepessoas se sentavam em bancos ejogavam bingo, pelo local delançamento de bolas de beisebol.Passei por todos eles e quase nãoos notei. Eu estava na zona, emtranse. “Você vai ter que chamá-lode volta”, Jo dizia a Harold àsvezes, quando ele telefonava. “Nomomento Michael está na Terra doGrande Faz de Conta.” Só queagora nada parecia faz de conta e aúnica coisa que me interessava erao palco na base da roda-gigante.Nele havia oito negros, talvez dez.

Em pé à frente, com um violão, eaçoitando-o, enquanto cantava, viSara Tidwell. Estava viva e noauge. Jogou a cabeça para trás eriu para o céu de outubro.

O que me tirou daquelaembriaguez foi um grito atrás demim:

— Espera, Mike! Mike! Espera aí!Eu me virei e vi Kyra correndo na

minha direção, contornando ospassantes, jogadores e idiotas darua principal, com seus joelhosgorduchos em movimento. Usavaum pequeno vestido branco demarinheiro com bainha vermelha eum chapéu de palha com uma fita

azul-marinho. Numa das mãosagarrava Strickland e, ao chegarperto de mim, atirou-seconfiantemente para a frente,sabendo que eu a pegaria elevantaria. Fiz isso, e quando seuchapéu começou a cair, eu opeguei, enfiando-o novamente emsua cabeça.

— Deúbei meu própioquarterback — disse ela, e riu. —De novo.

— Isso mesmo — eu disse. —Você é um jogador do mal. — Euestava usando macacão (via aponta de uma bandana de um azuldesbotado saindo do bolso do

peito) e botinas de trabalhadorsujas de estrume. Olhei para asmeias soquetes brancas de Kyra evi que tinham sido feitas em casa.Também não encontraria nenhumaetiqueta discreta dizendo Made inMexico ou Made in China, se tirasseseu chapéu e olhasse dentro dele.Aquele chapéu provavelmente tinhasido feito em Motton, por umamulher de fazendeiro de mãosvermelhas e juntas doloridas.

— Ki, onde está Mattie?— Em casa, acho. Ela não pôde

vir.— Como é que você chegou

aqui?

— Pela escada. Era um monte dedegraus. Você devia ter esperadopor mim. Podia ter me carregado,como antes. Quero escutar amúsica.

— Eu também. Sabe quem éaquela, Kyra?

— Sei — disse ela. — A mãe deKito. Depressa, moleza!

Caminhei na direção do palco,pensando que teríamos quepermanecer na parte de trás damultidão, mas as pessoas seafastaram enquanto avançávamos,eu carregando Kyra nos braços —aquele adorável peso, o ideal dabeleza vestida de marinheiro e

chapéu de palha enfeitado com fita.Seu braço rodeava meu pescoço e amultidão se abria diante de nóscomo o mar Vermelho para Moisés.

Também não se viraram paranos olhar. Estavam batendo asmãos e os pés e berrando juntocom a música, totalmenteenvolvidos. Afastaram-seinconscientemente, como se algumtipo de magnetismo funcionasse ali— o nosso, positivo; o deles,negativo. As poucas mulheres namultidão estavam ruborizadas masnitidamente se divertindo, umadelas rindo tanto que as lágrimasescorriam por seu rosto. Não

parecia ter mais que 22 ou 23 anos.Kyra apontou para ela e disse semrodeios:

— Conhece a chefe de Mattie nabioteca? Aquela ali é a vó dela.

A avó de Lindy Briggs, e viçosacomo uma margarida, pensei.Minha nossa.

Sob festões de tecido vermelho,branco e azul como uma banda derock viajante do tempo, os Red-Tops tinham se espalhado pelopalco. Reconheci todos eles doretrato no livro de Edward Osteen.Os homens de camisa branca,braçadeiras, calças e coletesescuros. Na outra extremidade do

palco, Son Tidwell usava o chapéu-coco da foto. Mas Sara...

— Por que a moça está com ovestido de Mattie? — perguntouKyra, e começou a tremer.

— Não sei, meu bem. Não seimesmo. — Também não podiaargumentar: era o vestido brancosem mangas que Mattie usou noparque, sem dúvida.

No palco, a banda fumavadurante uma pausa da música.Reginald “Son” Tidwell caminhouaté Sara, os pés num passoritmado, as mãos uma manchamarrom pousadas nas cordas etrastos do violão, e ela virou o rosto

para ele. Uniram as testas, elarindo e ele solene; olhando-semutuamente nos olhos, tentaramsuperar um ao outro, a multidãosaudando e aplaudindo, o resto dosRed-Tops rindo enquanto os doistocavam. Vendo-os juntos assim,percebi que eu estava certo: eramirmão e irmã. A semelhança eraforte demais para não se percebê-la, ou para haver um equívoco. Maseu olhava principalmente o modocomo os quadris e o traseiro delabamboleavam no vestido branco.Kyra e eu podíamos estar vestidoscom roupas do campo da virada doséculo, mas Sara mostrava-se

totalmente moderna. Nada decalçolas até o joelho para ela, nadade anáguas ou meias de algodão.Ninguém parecia notar que elausava um vestido cuja saia ia poucoacima dos joelhos — portantoquase nua para os padrões daquelaépoca. E sob o vestido de Mattie,usava peças que aquelas pessoasjamais tinham visto: um sutiã delaicra e calcinhas de náilon justas.Se eu pusesse as mãos em suacintura, o vestido não escorregariacontra um desagradável espartilho,e sim contra a macia pele nua. Peleescura, e não branca. O que é quevocê quer, benzinho?

Sara se afastou de Son,sacudindo o traseiro sem cinta esem enchimentos, rindo. Elecaminhou de volta a seu lugar e elase virou para a multidão quando abanda retomava a música. Elacantou o verso seguinte olhandodiretamente para mim.

“Before you start in fishinyou better check your line

Said before you start in fishin, honey,you better check on your line.

I’ll pull on yours, darlin,and you best tug on mine.”7

A multidão rugia, feliz. Nos meusbraços, Kyra tremia mais do que

nunca.— Estou com medo, Mike —

disse ela. — Não gosto dessa moça.Ela me assusta. Ela roubou ovestido de Mattie. Quero ir pracasa.

Foi como se Sara a ouvisse,mesmo com o estrondear damúsica. Inclinou a cabeça para trás,os lábios se abriram e ela riu para océu. Seus dentes eram grandes eamarelos. Pareciam os dentes deum animal faminto, e cheguei àconclusão de que concordava comKyra: ela era assustadora.

— Certo, meu bem — murmureino ouvido de Ki. — Vamos sair

daqui.Mas antes de conseguir me

mover, os sentidos da mulher —não sei mais como explicar aquilo— caíram sobre mim e meseguraram. Então entendi o quetinha passado velozmente por mimna cozinha para derrubar as letrasque tinham escrito CARLADEAR; o frioera o mesmo. Era quase comoidentificar uma pessoa pelo som deseus passos.

Ela conduziu a banda mais umavez à retomada da música, depoismergulhou em outro verso. Masnenhum que fosse encontrado emqualquer versão escrita da canção:

“I ain’t gonna hurt her, honey,not for all the treasure in the worl’

Said I wouldn’t hurt you baby,not for diamonds or for pearls.Only one black-hearted bastarddare to touch that little girl.”8

A multidão rugia como se tivesseouvido a coisa mais engraçada domundo, mas Kyra começou achorar. Sara viu isso e empinou opeito — peitos muito maiores doque os de Mattie —, e sacudiu-ospara ela, soltando sua gargalhadade marca registrada ao fazê-lo.Havia uma paródia de frieza nogesto... e um vazio também. Uma

tristeza. Mesmo assim não conseguisentir nenhuma compaixão por ela.Era como se seu coração tivessesido carbonizado e a tristeza quetinha restado era apenas outrofantasma, a lembrança de amorassombrando os ossos do ódio.

E como seus dentes risonhoseram lascivos.

Sara ergueu os braços acima dacabeça e dessa vez balançou-a,abaixando-a bem, como se lessemeus pensamentos e zombassedeles. Exatamente como a gelatinanum prato, segundo dizia outravelha canção da época. A sombradela oscilou sobre o fundo de lona,

uma pintura de Fryeburg, eenquanto a olhava percebi quetinha descoberto a Forma de meussonhos de Manderley. Era Sara. Elaera e sempre tinha sido a Forma.

Não, Mike. Está perto, mas nãoestá certo.

Certo ou errado, era o bastante.Virei-me, pondo a mão na cabeçade Ki e fazendo-a abaixar-se contrameu peito. Seus dois braços agoraenlaçavam meu pescoço, agarradosno aperto do pânico.

Achei que teria que abrircaminho com esforço através damultidão — que me deixou entrarde modo bastante fácil, mas que

podia ser bem menos maleávelpara me deixar sair. Não se metamcomigo, rapazes, pensei. Não vãoquerer fazer isso.

E não quiseram. No palco, SonTidwell tinha levado a banda de láa sol, alguém começou a tocar umpandeiro e Sara emendou de “FishinBlues” para “Dog My Cats” semuma única pausa. Aqui fora, emfrente ao palco e abaixo dele, amultidão mais uma vez se abriudiante de mim e de minhagarotinha sem sequer nos olhar ouperder o ritmo, enquanto marcavamo compasso com as mãos inchadasde trabalho. Um rapaz com uma

mancha de vinho do Porto no rostoabriu a boca — aos 20 anos já tinhaperdido metade dos dentes — egritou “Iu-HUU!” em meio a umnaco de tabaco. Era Buddy Jellisondo Village Café, percebi... BuddyJellison tendo magicamenterecuado de 68 anos para 20. Entãopercebi que seu cabelo era de outrotom — castanho-claro em vez depreto (embora estivesse entrandonos 70 e parecendo mostrar a idadeem todos os outros aspectos, Budnão tinha um único fio de cabelobranco). Aquele era o avô deBuddy, talvez até seu bisavô. Deum modo ou de outro, eu não dava

a mínima. Só queria sair dali.— Desculpe — eu disse,

esbarrando nele.— Não há nenhum bêbado da

cidade aqui, seu filho da putaintrometido — disse ele, sem olharpara mim e não perdendo um sócompasso ao marcar o ritmo com asmãos. — Nós todos fazemos rodízio.

É um sonho, afinal de contas,pensei. É um sonho, e isso o prova.

Mas o cheiro de tabaco no hálitodele não era um sonho, o cheiro damultidão não era um sonho, e opeso da criança assustada em meusbraços também não era um sonho.Minha camisa estava quente e

molhada sob seu rosto. Ela chorava.— Ei, irlandês! — gritou Sara do

palco, e sua voz era tão parecidacom a de Jo que quase gritei. Elaqueria que eu me virasse. Podiasentir sua vontade trabalhando noslados de meu rosto como dedos,mas eu não ia fazer isso.

Eu me desviei de trêscamponeses que passavam umagarrafa de cerâmica de mão emmão e então me vi livre doagrupamento. A rua principal seestendia em frente, larga como aQuinta Avenida, e ao final delaestava o arco, a escada, a Rua, olago. A casa. Se eu pudesse chegar

à Rua, estaríamos salvos. Tinhacerteza disso.

— Quase terminado, irlandês! —Sara gritou por trás de mim. Pareciazangada, mas não zangada demaisque não pudesse rir. — Você vai tero que quer, benzinho, todo oconforto de que precisa, mas querme deixar terminar meu negócio?Está ouvindo, rapaz? Trata de ficarlonge! Presta atenção ao que euestou dizendo!

Comecei a andar mais depressapelo caminho por onde viera,acariciando a cabeça de Ki, aindasegurando seu rosto contra minhacamisa. Seu chapéu de palha caiu,

mas quando estendi a mão parapegá-lo só consegui agarrar a fita,que se soltou livremente da aba.Não tinha importância.Precisávamos sair dali.

À nossa esquerda, ficava o localpara o lançamento das bolas debeisebol, e alguns garotinhosgritaram “Willy atirou por cima dacerca, Ma! Willy atirou por cima dacerca!”, com uma regularidademonótona de aturdir o cérebro.Passamos pelo bingo, onde umamulher uivou que tinha ganhado operu, por Deus, todos os númerosestavam cobertos com um botão eela tinha ganhado o peru. Acima

das cabeças, o sol mergulhou atrásde uma nuvem e o dia ficou opaco.Nossas sombras desapareceram. Oarco no fim da rua principal seaproximava com enlouquecedoralentidão.

— Já estamos em casa? — Kiquase gemeu. — Quero ir pra casa,Mike, por favor, me leva pra casa,pra mamãe.

— Vou levar — eu disse. — Tudovai ficar bem.

Passamos pelo poste de Testesua Força, onde o rapaz de cabelosvermelhos vestia novamente acamisa. Ele me olhou comimpassível aversão — talvez a

desconfiança instintiva de umnativo por um intruso — e percebique também o conhecia. Ele teriaum neto chamado Dickie que, nofinal do século ao qual essa feiratinha sido dedicada, seriaproprietário da oficina na rota 68.

Saindo da tenda acolchoada,uma mulher parou e apontou paramim. Ao mesmo tempo, seu lábiosuperior ondulou num rosnado decachorro. Eu conhecia aquele rostotambém. De onde? De algum lugarna cidade. Não tinha importância, enão queria saber mesmo quetivesse.

— A gente não devia ter vindo

aqui — gemeu Ki.— Sei como se sente — eu disse.

— Mas acho que não tivemosescolha, meu bem. Nós...

Eles saíram do Beco dasAberrações, talvez uns 20 metrosadiante. Eu os vi e parei. Eram seteao todo, homens de passos largoscom roupas de lenhador, masquatro não tinham importância —aqueles quatro pareciamdesbotados, brancos efantasmagóricos. Eram sujeitosdoentes, talvez mortos, e não maisperigosos que daguerreótipos. Osoutros três, porém, eram reais. Tãoreais quanto o resto do lugar, de

qualquer modo. O líder era umvelho usando um desbotado quepedo Exército da União. Ele me olhoucom olhos que eu conhecia. Olhosque eu já tinha visto me avaliandopor cima de uma máscara deoxigênio.

— Mike? Por que a gente táparando?

— Está tudo bem, Ki. Mantenha acabeça baixa. Isso tudo é umsonho. Você vai acordar amanhã demanhã na sua própria cama.

— Tá.Os homens se espalharam pelo

meio da rua principal de mãosdadas e bota com bota, bloqueando

nosso caminho de volta ao arco e àRua. O velho Quepe Azul estava nomeio. Os que o ladeavam erammuito mais jovens, alguns tantoquanto meio século. Dois dospálidos, os quase-inexistentes,estavam lado a lado à direita dovelho, e me perguntei se podiaromper a fileira deles naquelaparte. Pensei que não eram mais decarne e osso do que a coisa quetinha batido no isolamento daparede do porão... mas e se euestivesse errado?

— Entregue-a, filho — disse ovelho. Sua voz era esganiçada eimplacável. Ele estendeu as mãos.

Era Max Devore que tinha voltado,mesmo na morte ainda buscava acustódia. Ao mesmo tempo, não eraele. Eu sabia que não era. Asuperfície do rosto daquele homemera sutilmente diferente, as maçãsdo rosto eram mais ressequidas, osolhos de um azul mais brilhante.

— Onde é que estou? — griteipara ele, acentuando fortemente aúltima palavra, e na frente da tendade Angelina, o homem de turbante(um hindu que talvez viesse deSandusky, Ohio) abaixou a flauta esimplesmente ficou observando. Asmulheres-serpente pararam dedançar e passaram a assistir à cena

também, com os braços umas emtorno das outras e juntando-se parase confortarem. — Onde estou,Devore? Se nossos bisavós cagaramno mesmo fosso, então, onde é queeu estou?

— Não tô aqui para responder àssuas perguntas. Entregue-a.

— Deixe que eu pego, Jared —disse um dos homens mais jovens,um dos que realmente estavam lá.Olhou para Devore com umaespécie de ânsia bajuladora quequase me enjoou, principalmenteporque eu sabia que era o pai deBill Dean. Um homem que cresceupara se tornar um dos velhos mais

respeitados do condado de Castlesó faltava lamber as botas deDevore.

Não pense muito mal dele,sussurrou Jo. Não pense muito malde nenhum deles. Eram muitojovens.

— Você não precisa fazer coisaalguma — disse Devore. Sua vozesganiçada estava irritada; FredDean ficou desconcertado. — Elevai entregá-la de livre e espontâneavontade. E se não fizer isso, nós apegamos juntos.

Olhei para o homem na extremaesquerda, o terceiro dos quepareciam totalmente reais,

totalmente ali. Era eu? Não separecia comigo. Havia algo em seurosto aparentemente familiar,mas...

— Entregue-a, irlandês — disseDevore. — Última chance.

— Não.Devore assentiu com a cabeça,

como se isso fosse exatamente oque esperara.

— Então nós vamos pegá-la. Issotem que terminar. Vamos, rapazes.

Começaram a andar na minhadireção e, enquanto o faziam,percebi quem era aquele naextremidade — o de botas comchapinhas de ferro e calças de

lenhador de flanela — melembrava: Kenny Auster, cujo galgocomeria bolo até estourar. KennyAuster, que teve o irmão, aindabebê, afogado debaixo da bombapelo pai de Kenny.

Olhei para trás. Os Red-Topsainda tocavam, Sara ainda ria,sacudindo os quadris com as mãospara o céu, e a multidão aindaabarrotava a extremidade leste darua principal da feira. Aquele ladonão era bom, de qualquer modo. Seeu fosse por aquele lado, acabariacriando uma garotinha nosprimeiros anos do século XX,tentando ganhar a vida escrevendo

romances medonhos e baratos.Poderia não ser tão ruim... mashavia uma moça solitária aquilômetros e anos daqui quesentiria falta da garota. Quepoderia até sentir falta de nós dois.

Eu me virei e vi os rapazes quaseem cima de mim. Alguns deles maispresentes e vitais do que outros,mas todos mortos. Todos elescondenados. Olhei para o lourocujos descendentes incluiriamKenny Auster e perguntei:

— O que é que você fez? O queé, em nome de Cristo, que vocêsfizeram?

Ele esticou as mãos.

— Entregue-a, irlandês. É tudoque tem que fazer. Você e a mulherpodem ter mais. Quantos quiserem.Ela é jovem, vai fazê-los pipocaremcomo sementes de melancia.

Eu estava hipnotizado, e eles nosteriam pegado se não fosse Kyra.

— O que que tá acontecendo? —gritou ela contra minha camisa. —Tô sentindo o cheiro de algumacoisa! Um cheiro tão ruim! Ah,Mike, faz isso parar!

E percebi que podia sentir ocheiro também. Carne estragada egás dos pântanos. Tecidoqueimando e vísceras fervilhantes.Devore era o mais vivo de todos,

gerando o mesmo magnetismo cru,mas poderoso, que senti perto deseu bisneto, mas ele estava tãomorto quanto os outros; quando seaproximou, pude ver os minúsculosinsetos que se alimentavam emsuas narinas e nos cantos cor-de-rosa de seus olhos. Tudo aqui émorte, pensei. Minha própriamulher não me disse isso?

Eles estenderam as mãostenebrosas para tocar Ki e depoislevá-la. Recuei um passo, olhei paraa direita e vi mais fantasmas —alguns saindo de janelasquebradas, outros escorregando porchaminés de tijolos vermelhos.

Segurando Kyra nos braços, corripara a Casa Fantasma.

— Peguem! — berrou JaredDevore, surpreso. — Peguem-no,rapazes. Peguem aquele ladrão!Maldição!

Disparei para a escada demadeira, vagamente consciente dealgo macio roçando em meu rosto— o pequeno cachorro de pelúciade Ki, ainda agarrado numa de suasmãos. Eu quis olhar para trás, e vero quão perto estavam, mas nãoousei. Se eu tropeçasse...

— Ei! — exclamou a mulher dacabine das entradas. Tinha nuvensde cabelo ruivo, maquiagem que

parecia ter sido aplicada com umacolher de jardineiro e, graças aDeus, não parecia com ninguémque eu conhecesse. Era apenasuma funcionária contratada pelafeira, só de passagem por aquelelugar tomado pelas trevas. Sortedela. — Ei, cavalheiro, o senhor temque comprar uma entrada!

Não há tempo, moça, não hátempo.

— Detenham-no! — Devoreberrou. — Ele é a porcaria de umladrão desgraçado! Aquela ali não éfilha dele! Detenham-no! — Masninguém o fez, e corri velozmentepara dentro da escuridão da Casa

Fantasma com Ki nos braços.

Além da entrada, havia umapassagem tão estreita que tive queme virar de lado para passar porela. Olhos fosforescentesfulguraram em nossa direção naescuridão. Bem em frente havia umrumor surdo e crescente demadeira, um som frouxo com oestrépito de correntes por trás. Denossas costas vinha o baquedesajeitado de botas comchapinhas de ferro correndo pelaescada do lado de fora. Afuncionária de cabelos vermelhos

berrava com eles agora, dizendoque se quebrassem alguma coisa ládentro teriam que pagar.

— Prestem atenção ao que estoudizendo, seus caipiras danados! —gritou ela. — O lugar é paracrianças, não para gente comovocês!

O rumor surdo estavadiretamente à nossa frente. Algoestava rodando. No início, não pudeperceber o que era.

— Me põe no chão, Mike! — Kyraparecia excitada. — Quero ir com asminhas pernas!

Coloquei-a no chão e olheinervosamente por cima de meuombro. A luz brilhante vindo daentrada estava bloqueada pelatentativa de passarem por ali.

— Seus asnos! — berrou Devore.— Não todos ao mesmo tempo!Meu Jesus do céu! — Houve umsom de estalo e alguém gritou.Virei para a frente exatamente atempo de ver Kyra disparar pelobarril rolante, estendendo as mãospara se equilibrar.Inacreditavelmente, ela estavarindo.

Fui atrás dela, cheguei até ametade do caminho e então caí

com um baque surdo.— Opa! — exclamou Kyra do

outro extremo, e riu quando eutentei levantar, caí de novo e fuiderrubado por todo o caminho. Abandana caiu do bolso em meupeito. Um saco de balas demarroio-branco caiu do outro bolso.Tentei olhar para trás para ver setinham conseguido se livrar eestavam vindo. Quando o fiz, obarril me desfechou outroinesperado sobressalto. Agora eusabia como as roupas se sentiamnuma máquina de secar.

Eu me arrastei para o fim dobarril rolante, levantei, peguei a

mão de Ki e deixei-a nos conduzircada vez mais para o fundo da CasaFantasma. Chegamos a dar talvezdez passos quando uma luz brancafloresceu em torno dela como umlírio e ela gritou. Algum animal —algo que soava como um gatoenorme — silvou pesadamente. Aadrenalina inundou minha correntesanguínea e estive prestes a puxá-la para trás, de novo para os meusbraços, quando o silvo surgiu maisuma vez. Senti ar quente nostornozelos e o vestido de Kienfunou-se em forma de sino emtorno de suas pernas de novo.Dessa vez ela riu em vez de gritar.

— Vá, Ki! — sussurrei. — Rápido.Continuamos para a frente,

deixando o vapor para trás. Haviaum corredor espelhado onde nosrefletimos primeiro como anõesagachados e depois comoectomorfos esquálidos com traçosmarcantes de vampiro. Tive queimpulsionar Kyra para a frente denovo: ela queria fazer caretas parasi mesma. Atrás de nós, ouvilenhadores praguejando, tentandolidar com o barril. Pude ouvirDevore xingando também, mas jánão parecia tão... bem, tãoeminente.

Havia um poste que nos fez

aterrissar numa grande almofadade lona. Esta emitiu um barulhoalto de peido quando a atingimos, eKi riu até que doces lágrimas sederramassem por seu rosto. Então,rolou pela almofada, agitando ospés de animação. Pus as mãos sobseus braços e levantei-a.

— Não deúbe seu própriozaqueiro — disse ela, e riunovamente. Seu medo parecia tersumido inteiramente.

Descemos outro corredor estreitoque cheirava ao pinheiro aromáticocom o qual foi construído. Atrás deuma dessas paredes, dois“fantasmas” arrastavam correntes

tão mecanicamente como homenstrabalhando na linha de montagemde uma fábrica de sapatos,conversando sobre onde levariamas namoradas de noite e quemlevaria o “motor dos olhosvermelhos”, fosse lá o que issofosse. Eu não ouvia mais ninguématrás de nós. Kyra liderava ocaminho com confiança, uma dasmãozinhas segurando uma deminhas grandes mãos, me puxando.Ao chegarmos a uma porta pintadacom chamas fulgurantes queapresentava as palavras CAMINHO PARA

HADES, ela a empurrou sem nenhumahesitação. Ali, a mica vermelha

encimava a passagem como umaclaraboia pintada, distribuindo umfulgor rosado que achei agradáveldemais para Hades.

Prosseguimos pelo que mepareceu muito tempo, e percebique não ouvia mais o órgão avapor, o vigoroso bongue! do sinodo Teste sua Força, ou Sara e osRed-Tops. Não que fosseexatamente uma surpresa.Devíamos ter andado uns 400metros. Como é que a CasaFantasma de uma feira de condadopodia ser tão grande?

Então chegamos a três portas,uma à esquerda, uma à direita e

uma no final do corredor. Numadelas estava pintado um pequenovelocípede vermelho. Na porta emfrente a ela estava minha máquinade escrever IBM verde. A imagemna porta no final parecia maisantiga, de algum modo —desbotada e desmazelada.Mostrava um trenó infantil. É doScooter Larribee, pensei. É o queDevore roubou. Um arrepiopercorreu meus braços e costas.

— Bem — disse Kyrabrilhantemente —, aqui estão osnossos brinquedos. — LevantouStrickland, provavelmente para queele pudesse ver o velocípede

vermelho.— É — eu disse. — Acho que sim.— Obrigada por me levar embora

— disse ela. — Aqueles homensdavam medo, mas a CasaFantasma foi engraçada. Boa-noite.Stricken também diz boa-noite. —Ainda dessa vez o som pareceuexó t i co , tiu, como a palavravietnamita para felicidade sublime.

Antes que eu pudesse dizer outrapalavra, ela empurrou a porta como velocípede e passou por ela. Aporta se fechou com uma batidaseca por trás dela, e enquanto ofazia vi a fita do chapéu de Ki.Estava pendurada do bolso do peito

do macacão que eu usava. Olhei-apor um momento, depoisexperimentei a maçaneta da portapela qual Ki tinha acabado depassar. Ela não girou, e quando batia mão espalmada na madeira, foicomo se eu golpeasse um metalduro e fabulosamente denso. Deium passo para trás e inclinei acabeça na direção de ondetínhamos vindo. Não se ouvia nada.Total silêncio.

Isso é entretempos, pensei.Quando as pessoas falam de“escorregar entre as fendas”, édisso realmente que estão falando.É para este lugar que vão, de fato.

É melhor que você mesmocontinue em frente, disse Jo. Senão quiser ficar encurralado aqui,talvez para sempre, é melhorprosseguir.

Tentei a maçaneta da porta coma máquina de escrever pintada nasuperfície. A maçaneta giroufacilmente. Atrás da porta haviaoutro corredor estreito — maisparedes de madeira e o doce cheirode pinheiro. Eu não queria entrar lá,algo ali me fazia pensar numcomprido caixão, mas não haviamais nada a fazer, nenhum outrolugar para ir. Entrei, e a porta sefechou com força atrás de mim.

Cristo, pensei. Estou no escuro,num lugar todo fechado... está nahora de um dos ataques de pânicomundialmente famosos de MichaelNoonan.

Mas nenhuma fita de aço apertoumeu peito, e embora minhafrequência cardíaca estivesseacelerada e os músculos aindanadassem em adrenalina, eu estavasob controle. Além disso, percebique não estava inteiramenteescuro. Eu podia ver só um pouco,mas o suficiente para discernir asparedes e o chão de tábuas. Enroleia fita azul-marinho do chapéu de Kiem torno do pulso, enfiando uma

das pontas por baixo para que nãose soltasse. Então comecei aavançar.

Prossegui por um longo tempo, ocorredor virando nessa ou naqueladireção, aparentemente ao acaso.Senti-me como um micróbiodeslizando num intestino.Finalmente deparei com um par deportais de madeira arqueados.Parei diante deles, me perguntandoqual seria a escolha correta, epercebi que podia ouvirligeiramente o sino de Bunteratravés do portal à esquerda. Fuipor aquele caminho, e enquantoandava, o sino ficava cada vez mais

alto. Em algum ponto, ao som dosino juntou-se um leve ruído detrovão. O frio de outono tinhaabandonado o ar e estava quentede novo — sufocante. Olhei parabaixo e vi que o macacão e ossapatos rústicos tinham sumido. Euestava usando roupas de baixotérmicas e meias que coçavam.

Mais duas vezes deparei comescolhas, e a cada vez eu escolhia aabertura por onde ouvia o sino deBunter. Quando parei diante dosegundo par de entradas, ouvi umavoz em algum lugar da escuridãodizer bem claramente: “Não, amulher do presidente não foi

atingida. Isso em suas meias é osangue dele.”

Andei para a frente, então pareiquando percebi que meus pés etornozelos já não coçavam, queminhas coxas não estavam maistranspirando nas ceroulas. Eu usavaa sunga com que dormiahabitualmente. Olhei para cima e vique estava em minha própria salade estar, tateando meu caminhocuidadosamente em torno damobília como fazemos no escuro,tentando com todas as forças nãomachucar o estúpido dedo do pé.Conseguia ver um pouco melhor;uma tênue luz leitosa entrava pela

janela. Cheguei ao balcão quesepara a sala da cozinha e olhei porsobre ele para o relógio do gatooscilante. Eram 5h05.

Fui até a pia e abri a torneira.Quando estiquei a mão para pegarum copo, vi que ainda estava com afita do chapéu de Ki no pulso.Desenrolei-a e coloquei-a no balcãoentre a cafeteira elétrica e a TV dacozinha. Então peguei um pouco deágua gelada e a bebi, em seguidafui andando cautelosamente aolongo do corredor da ala norte como pálido fulgor amarelo da lâmpadado banheiro. Fiz xixi (uu-rinou, eupodia ouvir Ki dizendo), depois

entrei no quarto. Os lençóisestavam amassados, mas a camanão tinha aquela aparênciaorgiástica da manhã seguinte aomeu sonho com Sara, Mattie e Jo.Por que teria? Eu saí dele e tiveminha pequena crise desonambulismo. Um sonhoextraordinariamente vívido da Feirade Fryeburg.

Só que aquilo era besteira, e nãoapenas porque eu trazia comigo afita azul do chapéu de Ki. Nada alitinha a forma de um sonho aodespertar, onde o que pareciaplausível imediatamente se tornaridículo e todas as cores — tanto as

brilhantes quanto as sombrias —desaparecem de vez. Levei as mãosao rosto, fiz uma concha diante donariz e aspirei profundamente.Pinheiro. Quando olhei, cheguei atéa ver uma pequena mancha deseiva num dedo rosado.

Sentei na cama pensando emditar o que tinha vivido para ogravador, mas em vez disso medeixei cair no travesseiro. Estavamuito cansado. Um trovãoretumbou. Fechei os olhos,começando a cochilar, e então umgrito rasgou a casa. Era tão agudoquanto o gargalo de uma garrafaquebrada. Sentei-me com um berro,

agarrando o peito.Era Jo. Eu jamais a ouvi gritar

assim em nossa vida juntos, masmesmo assim sabia quem era.

— Pare de machucá-la! — griteina escuridão. — Seja lá quem vocêfor, pare de machucá-la!

Ela gritou de novo, como se algocom uma faca, um torniquete ouum atiçador de lareira tivesse umprazer malévolo em medesobedecer. O segundo gritopareceu vir de alguma distânciadesta vez, e o terceiro, embora tãoagonizante quanto os doisprimeiros, foi ainda mais distante.Estavam diminuindo como os

soluços do garotinho.Um quarto grito flutuou pela

escuridão, e então Sara silenciou.Sem fôlego, a casa respirava àminha volta. Viva no calor,consciente ao tênue som do trovãodo alvorecer.

7 Antes de começar a pescar /é melhor sua linhachecar. / Eu disse que antes de você pescar,benzinho, / é melhor sua linha checar. / Vou darum puxão na sua, benzinho,/ a minha trate depuxar.8 Não vou machucar a guria, benzinho,/ portodo o tesouro do mundo:/ Disse que nãomachuco a guria,/ por diamantes ou pérolas empilha./ Só um canalha de coração imundo /ousatocar na garotinha.

Capítulo Vinte eDois

Finalmente consegui entrar nazona, mas nada pude fazer quandocheguei lá. Mantive perto um blocode anotações — listas depersonagens, referências depáginas, cronologias — e rabisqueium pouco nele, mas a folha depapel na IBM continuava embranco. Não havia batimentos

cardíacos estrondeando, olhoslatejando ou dificuldade de respirar— em outras palavras, nenhumacesso de pânico —, mas tambémnão havia nenhuma história. AndyDrake, John Shackleford, RayGarraty, a bela Regina Whiting...permaneciam de costas, recusando-se a falar ou a se mover. Omanuscrito estava no lugar desempre, à esquerda da máquina, aspáginas presas por um bonitopedaço de quartzo que eu tinhaencontrado na estrada, mas nadaestava acontecendo. Nada.

Reconheci ali uma ironia, talvezaté uma moral. Durante anos, fugi

dos problemas do mundo real,escapando para diversas Nárnias daminha imaginação. Agora o mundoreal estava cheio de bosquesdensos e assombrosos, havia coisascom dentes em alguns deles, e oguarda-roupa estava trancado paramim.

Kyra, eu havia escrito, colocandoseu nome dentro de um formatofestonado que supostamente seriauma rosa-de-cem-folhas. Abaixodele eu tinha desenhado umpedaço de pão com uma boinainclinada de qualquer maneira noalto da crosta. A concepção deNoonan de uma rabanada. As letras

L. B. rodeadas de arabescos. Umacamisa com a imagem rudimentarde um pato. Ao lado dela, escreviQUACK QUACK. Abaixo do QUACK QUACK,acrescentei Devia fugir para longe,“Bon Voyage”.

Em outro lugar da folha, escreviDean, Auster e Devore. Eram osque mais pareciam estar lá, os maisperigosos. Porque tinhamdescendentes? Mas certamentetodos os sete deviam tê-los, não é?Naquela época, a maioria dasfamílias era enorme. E onde é queeu tinha estado? Eu perguntei, masDevore não quis dizer.

Aquilo não parecia mais um

sonho às 9h30 de uma manhã dedomingo melancolicamente quente.Restava o que, exatamente?Visões? Viagem no tempo? E setinha um objetivo para tal viagem,qual seria ele? Qual seria amensagem, e quem estavatentando enviá-la? Eu me lembreiclaramente do que eu disse poucoantes de sair do sonho no qualcaminhei dormindo para o estúdiode Jo e trouxe de lá minha máquinade escrever: Não acredito nessasmentiras. Nem acreditava agora.Até que eu pudesse ver pelo menosparte da verdade, poderia ser maisseguro não acreditar absolutamente

em nada.No alto da folha em que estava

rabiscando, em letras com traçosfortes, escrevi a palavra PERIGO!,depois fiz um círculo em torno dela.Do círculo tracei uma flecha até onome de Kyra. De seu nome puxeioutra flecha para Devia fugir paralonge, “Bon Voyage” e acrescenteiMATTIE.

Abaixo do pão de boina desenheium pequeno telefone. Acima delecoloquei um balão de história emquadrinho com a palavra R-R-RING! Aoterminar de fazê-lo, o telefone semfio tocou. Estava na balaustrada dodeck. Fiz um círculo em torno de

MATTIE e atendi.— Mike? — Ela parecia animada.

Feliz. Aliviada.— É. Como vai?— Ótima! — disse ela, e eu fiz

um círculo em torno de L. B. nomeu bloco.

— Lindy Briggs ligou dez minutosatrás. Acabei de falar com ela.Mike, ela me devolveu o emprego!Não é maravilhoso?

Claro. E maravilhoso como isso amanteria na cidade. Fiz um xis emcima de Devia fugir para longe,“Bon Voyage”, sabendo que Mattienão iria. Não agora. E como é queeu podia lhe pedir que o fizesse?

Pensei de novo Se pelo menos eusoubesse um pouco mais...

— Mike? Você está...— É maravilhoso mesmo — eu

disse. Mentalmente eu podia vê-laem pé na cozinha, enrolando o fioencaracolado do telefone em voltado dedo, as pernas longas e ariscasabaixo do short de brim. Eu podiaver a blusa que usava, umacamiseta branca com um patoamarelo nadando na parte dafrente. — Espero que Lindy tenhatido a dignidade de parecerenvergonhada do que fez. — Traceium círculo em torno da camisetaque desenhara.

— Teve. E foi sincera o suficientepara... bem, me desarmar. Disseque a tal Whitmore falou com elano início da semana passada. Foimuito franca e objetiva, Lindy disse.Eu devia ser mandada emboraimediatamente. Se issoacontecesse, o dinheiro, osequipamentos de computador esoftware que Devore canalizavapara a biblioteca continuariamchegando. Caso contrário, o fluxode artigos e dinheiro parariaimediatamente. Ela disse que tinhaque equilibrar o bem dacomunidade com o que sabia queera errado... disse que aquela era

uma das decisões mais duras que játinha tomado...

— Sei. — No bloco, minha mãotinha se movido sozinha como umcopo entre letras numa sessãomediúnica, escrevendo as palavrasPOR FAVOR POSSO POR FAVOR? —Provavelmente há alguma verdadenisso, mas, Mattie... quanto é quevocê acha que Lindy ganha?

— Não sei.— Aposto que é mais do que três

bibliotecárias de cidade pequena,em todo o estado do Maine, juntas.

Ao fundo, escutei Ki: “Possofalar, Mattie? Posso falar com Mike?Por favor, posso, por favor?”

— Um minuto, meu amor. — Econtinuou para mim: — Talvez. Sósei é que estou com meu empregonovamente, o resto são águaspassadas.

Na página, desenhei um livro.Depois, uma série de círculosentrelaçados entre ele e a camisetade pato.

— Ki quer falar com você — disseMattie, rindo. — Ela diz que vocêsdois foram à Feira de Fryeburg nanoite passada.

— Opa, quer dizer que eu tiveum encontro com uma garotabonita e dormi o tempo todo?

— Parece. Está preparado para

ela?— Estou.— Tudo bem, aí vai a tagarela.Houve um roçar quando o

telefone mudou de mãos, depois Kifalou:

— Deúbei você na Feira, Mike!Deubei meu própio zaqueiro!

— Derrubou? Foi um sonho etanto, não foi, Ki?

Houve um longo silêncio do outrolado. Eu podia imaginar Mattie seperguntando o que tinha acontecidocom a tagarela. Finalmente Ki dissenuma voz hesitante:

— Você também estava lá... —Tiu. — A gente viu as moças que

dançavam como serpente... o postecom o sino... entramos na CasaFantasma... você caiu no barril! Nãofoi um sonho... foi?

Eu poderia tê-la convencido deque tinha sido um sonho, mas derepente aquilo pareceu má ideia,perigosa de certo modo.

— Você estava com um bonitovestido e chapéu — falei.

— É! — Ela soou tremendamentealiviada. — E você tinha...

— Kyra, pare. Ouça aqui.Ela parou de repente.— É melhor não falar muito

sobre esse sonho com ninguém, euacho. Nem para sua mãe, nem para

ninguém. Só para mim.— Só pra você.— É. E a mesma coisa sobre o

pessoal da geladeira. Tá?— Tá. Mike, tinha uma moça com

as roupas de Mattie.— Eu sei. — Era bom que ela

falasse, tinha certeza disso, mas dequalquer forma perguntei: — Ondeé que Mattie está agora?

— Regando as flores. Temos ummonte de flores, um bilhão pelomenos. Tenho que tirar a mesa. Éuma tarefa. Mas eu não meimporto. Gosto de tarefas.Comemos rabanadas. Semprecomemos nos domingos. É gostoso,

principalmente com xarope demorango.

— Eu sei — falei, desenhandouma flecha para o pedaço de pãode boina. — Rabanada é ótimo. Ki,você contou para sua mãe sobre amoça com o vestido dela?

— Não. Achei que ela podia ficarcom medo. — Sua voz abaixou: —Lá vem ela!

— Tudo bem... mas temos umsegredo, não é?

— É.— Posso falar com Mattie de

novo?— Pode. — Sua voz se afastou

um pouco. — Mamãezinha, Mike

quer falar com você. — Depois elavoltou: — Tá ocupado hoje? Agente podia fazer outro piquenique.

— Hoje não posso, Ki. Tenho quetrabalhar.

— Mattie nunca trabalha aosdomingos.

— Bem, quando estouescrevendo um livro, trabalho todosos dias. Tenho que trabalhar, senãoesqueço a história. Mas talvez agente faça um piquenique na terça.Um churrasco na sua casa.

— Falta muito para terça?— Não muito. É depois de

amanhã.— Demora muito para escrever

um livro?— Mais ou menos.Ouvi Mattie dizendo a Ki para lhe

dar o telefone.— Vou dar, só mais um segundo.

Mike?— Fala.— Eu amo você.Eu estava ao mesmo tempo

comovido e aterrorizado. Por ummomento tive certeza de que minhagarganta ia se trancar do mesmomodo que meu peito fazia quandoeu tentava escrever. Então ela sesoltou e eu disse:

— Eu também amo você, Ki.— Mattie vai falar.

Mais uma vez ouvi o barulho dotelefone mudando de mãos e Mattiedisse:

— Isso refrescou sua lembrançado encontro com minha filha,cavalheiro?

— Bom, certamente refrescou adela. — Havia um vínculo entreMattie e eu, mas não se estendia aisso, eu tinha certeza.

Ela riu. Eu adorava o modo comoela parecia estar naquela manhã, enão queria pô-la para baixo... mastambém não queria que elaconfundisse a linha branca no meioda estrada com o acostamento.

— Mattie, você ainda precisa ter

cuidado, sabe? Só porque LindyBriggs lhe devolveu o emprego nãoquer dizer que todos na cidadeficaram de repente seus amigos.

— Sei disso — disse ela. Tivevontade de lhe perguntar de novose ela consideraria a ideia de levarKi para Derry por um tempo. Elaspodiam morar na minha casa, ficarenquanto durasse o verão, seaquilo fosse necessário para que ascoisas voltassem ao normal por ali.Mas ela não o faria. Quando setratou de aceitar minha oferta deum caro e talentoso advogado deNova York, ela não teve escolha.Mas no presente caso, tinha. Ou

achava que tinha, e como eupoderia fazê-la mudar de ideia? Nãopossuía fatos lógicos e conectadosa apresentar; apenas uma vagaforma escura, como algo jazendosob 20 centímetros de gelo capazde cegar.

— Quero que tenha cuidadosobretudo com dois homens — eudisse. — Um deles é Bill Dean. Ooutro é Kenny Auster. Ele é aqueledo...

— ... cachorro grande que usa olenço. Ele...

— Esse é o Mitilo! — gritou Ki àmédia distância. — Mitilo lambeu omeu rosto!

— Vá lá para fora brincar, meuamor.

— Estou tirando a mesa.— Você pode acabar depois. Vá

brincar lá fora. — Houve uma pausaenquanto ela observava Ki passarpela porta levando Stricklandconsigo. Embora a criança tivessesaído do trailer, Mattie aindamanteve o tom baixo de alguémque não quer ser escutada poracaso: — Você está querendo meassustar?

— Não — eu disse, desenhandorepetidos círculos em torno dapalavra PERIGO. — Mas quero quetenha cuidado. Bill e Kenny podem

ter estado no time de Devore, comoFootman e Osgood. Não mepergunte por que acho isso, poisnão tenho nenhuma respostasatisfatória. É só uma sensação,mas desde que voltei à TR minhassensações estão diferentes.

— Explique melhor.— Você está usando uma

camiseta com um pato?— Como é que sabe? Ki lhe

disse?— Ela levou o cachorrinho de

pelúcia do McLanche Feliz para foracom ela?

Uma longa pausa. FinalmenteMattie falou:

— Meu Deus — numa voz tãobaixa que quase não consegui ouvi-la. Então de novo: — Como...

— Não sei como. Também nãosei se você ainda está numa...situação má, ou por que, mas sintoque está. Que vocês duas estão. —Eu podia ter dito mais, porém tivemedo de Mattie achar que eu tinhasaído completamente dos trilhos.

— Ele morreu! — explodiu. —Aquele velho morreu! Por que elenão pode nos deixar em paz?

— Talvez tenha deixado. Talvezeu esteja errado sobre tudo isso.Mas ter cuidado não faz mal, faz?

— Não — disse ela. — Isso

geralmente é verdade.— Geralmente?— Por que não vem me ver,

Mike? Talvez nós possamos ir àFeira juntos.

— Talvez nesse outono a gentepossa ir. Os três.

— Eu gostaria.— Enquanto isso, estou

pensando sobre a chave.— Pensar é metade de seu

problema, Mike — disse ela, e riude novo. Tristemente, pensei. E vi oque queria dizer. O que ela nãoentendia era que sentimento era aoutra metade de meu problema. Éum estilingue, e no final acho que

mata com pedradas a maioria denós.

Trabalhei por um tempo e entãolevei a IBM de novo para casa,deixando o manuscrito em cimadela. Tinha terminado com aquilo,pelo menos por enquanto. Não maisprocurar o caminho de volta atravésdo guarda-roupa; não mais AndyDrake e John Shackleford até quetudo aquilo tivesse terminado. E,enquanto eu vestia calçascompridas e uma camisa combotões pela primeira vez no queparecia se estender por semanas,

ocorreu-me que talvez algo —alguma força — vinha tentando mesedar com a história que eu estavaescrevendo. Com a capacidade detrabalhar de novo. Fazia sentido; otrabalho sempre foi minha droga,melhor até do que birita ou ocalmante que ainda guardo noarmário de remédios do banheiro.Ou talvez o trabalho fosse apenas osistema de entrega, a seringa comtodos os sonhos dentro dela. Talveza verdadeira droga fosse a zona.Estar na zona. Senti-la, como àsvezes dizem os jogadores debasquete. Eu estava na zona, erealmente a sentia.

Peguei as chaves do Chevroletno balcão e olhei para a geladeiraenquanto o fazia. Os ímãs estavamnum círculo de novo. No meio haviaum recado que eu tinha visto antese que era agora instantaneamentecompreensível, graças às letrasextras:

ajude ela— Estou fazendo o máximo que

posso — eu disse, e saí.

A uns 5 quilômetros ao norte narota 68 — então já na parte dela

conhecida como estrada CastleRock — há uma estufa com umaloja na frente. Chama-se Slips’nGreens, e Jo costumava passar umbom tempo por lá, comprandosuprimentos de jardinagem ouapenas batendo papo com as duasmulheres que dirigiam o lugar. Umadelas era Helen Auster, a mulher deKenny.

Cheguei lá por volta das deznaquela manhã de domingo (estavaaberta, claro: na temporadaturística quase todos os lojistas deMaine viram pagãos) e estacioneiperto de um carrão com placas deNova York. Fiz uma pausa

suficientemente longa para ouvir aprevisão do tempo — umidade ecalor contínuos por outras 48 horaspelo menos — e então saí. Umamulher em trajes de banho e comum gigantesco chapéu amarelo deverão emergiu da loja com um sacode musgo de turfa aninhado nosbraços. Ela me deu um pequenosorriso. Devolvi-o com oitenta porcento de juros. Ela era de NovaYork, o que significava que não erauma marciana.

A loja estava até mais quente eúmida do que a branca manhã dolado de fora. Lila Proulx, uma dassócias, estava ao telefone. Havia

um pequeno ventilador ao lado dacaixa registradora, e ela estava empé diretamente na frente dele,sacudindo a frente da blusa semmangas. Ela me viu e acenou.Acenei também, sentindo-me comooutra pessoa. Trabalho ou não, euainda estava na zona. Ainda asentia.

Caminhei pela loja, pegandoalgumas coisas quase ao acaso,observando Lila com rabo de olho eesperando que largasse o telefonepara que eu pudesse falar comela... e durante todo o tempo meupróprio estado fora do arcontinuava normalmente.

Finalmente ela desligou e meaproximei do balcão.

— Michael Noonan, que colíriopara os olhos! — disse ela, ecomeçou a registrar minhascompras. — Lamenteiprofundamente quando soube deJohanna. Quero dizer isso de umavez. Jo era uma pessoa muitoquerida.

— Obrigado, Lila.— De nada. Não é preciso dizer

mais nada sobre isso, mas comuma coisa dessas é melhor falar deuma vez. Vai fazer um pouco dejardinagem, vai?

— Vaah fazeeh um pouco de

jardinagem, vaah?, disse com seuforte sotaque.

— Se esfriar um pouco.— É! Não está difícil? — Sacudiu

novamente a parte de cima dablusa e me mostrou como estavadifícil, depois apontou uma deminhas compras. — Quer isso numabolsa especial? Sempre seguro,nunca em apuros, é o meu ditado.

Concordei com a cabeça, depoisolhei para o pequeno quadro-negroinclinado contra o balcão. MIRTILOS

FRESCOS, dizia o aviso a giz. SAIU A

SAFRA!— Quero também um quartilho

de mirtilo — pedi. — Se não forem

da Friday’s. Posso fazer melhor doque a Friday’s.

Ela concordou vigorosamentecom a cabeça, como para dizer quesabia, sem sombra de dúvida, queeu poderia.

— Esses aqui estavam no pé atéontem. Estão suficientementefrescos pra você?

— Maravilha — respondi. —Mirtilo é o nome do cachorro doKenny, não é?

— Ele não é engraçado? Nossa,adoro um cachorro grande, se forbem-comportado. — Virou-se,pegou um quartilho de mirtilos desua pequena geladeira e colocou-os

em outra sacola para mim.— Onde está Helen? —

perguntei. — É seu dia de folga?— Que nada — disse Lila. — Se

fica na cidade, não se pode tirá-ladaqui a não ser que você bata nelacom uma bengala. Ela, Kenny e ascrianças foram para Taxachusetts.Eles e a família do irmão se juntame alugam um chalé à beira-mar porduas semanas todos os verões. Elestodos foram. O velho Mirtilo vaiperseguir as gaivotas até cair. —Soltou um riso alto e vigoroso. Fez-me pensar em Sara Tidwell. Outalvez fosse o modo como Lila meolhou ao fazê-lo. Não havia nenhum

riso em seus olhos pequenos ereflexivos, friamente curiosos.

Pelo amor de Deus, quer pararcom isso?, eu disse a mim mesmo.Eles não podem estar todos juntosnisso, Mike!

Será que não? Existe uma coisacomo consciência de cidade —qualquer um que duvidar dissojamais esteve numa reunião decidade pequena da Nova Inglaterra.Onde há uma consciência não éprovável que haja umasubconsciência? E se Kyra e euestávamos fazendo a velha misturade mentes, outras pessoas da TR-90 não poderiam também fazê-lo,

talvez mesmo sem saber? Todospartilhávamos o mesmo ar e amesma terra: partilhávamos o lagoe o aquífero que jaz abaixo de tudo,água enterrada com sabor derochas e minerais. Partilhávamos aRua também, aquele lugar ondebons cachorrinhos e cães mauspodiam andar lado a lado.

Quando comecei a me moverpara a saída com as compras numasacola de pano com alça, Lila disse:

— Que vergonha essa história deRoyce Merrill. Você soube?

— Não.— Caiu da escada de seu porão

ontem à noite. Não consigo atinar o

que um homem da idade deleestava fazendo numa escada tãoíngreme, mas acho que, quando sechega à idade dele, a gente tem aspróprias razões para fazer ascoisas.

Ele morreu?, ia começar aperguntar, depois mudei a frase.Não era aquele o modo de seperguntar isso na TR.

— Ele passou dessa para melhor?— Ainda não. O Resgate de

Motton levou-o para o HospitalGeral do condado de Castle. Eleestá em coma. Comba — foi o quedisse —, eles acham que ele nãovai acordar, pobre sujeito. Um

pedaço da história vai morrer comele.

— Acho que é verdade. — Bonsventos o levem, pensei. — Ele temfilhos?

— Não. A família Merrill existe naTR há duzentos anos; um Merrillmorreu no Cemitério Ridge. Mastodas as famílias antigas estãodesaparecendo agora. Um bom diapara você, Mike. — Ela sorriu. Seusolhos continuaram vazios eponderadores.

Entrei no Chevy, coloquei a bolsacom as compras no banco dopassageiro e fiquei ali sentado,deixando o ar-condicionado jogar ar

frio no meu rosto e pescoço. KennyAuster estava em Taxachusetts.Aquilo era bom. Um passo nadireção certa.

Mas ainda havia o meu caseiro.

— Bill não está — disse Yvette. Elaficou à porta, bloqueando-a tãobem como podia (pouco se podefazer nesse sentido quando semede 1,60 metro e se pesa mais oumenos 45 quilos), me estudandocom o olhar penetrante de um leãode chácara de boate negandoretorno ao bêbado que já foi jogadopara fora pela orelha uma vez.

Eu estava no alpendre do chaléestilo Cape Cod mais arrumado quejá se viu, que fica no alto daPeabody Hill e tem vista para NewHampshire e para o quintal deVermont. Os galpões deequipamento de Bill estavamalinhados à esquerda da casa,todos eles pintados do mesmo tomde cinza, cada um deles com umaplaca: DEAN CASEIRO, nº 1, nº 2 e nº 3.Estacionado na frente do nº 2estava o Dodge Ram de Bill. Olheipara ele, depois novamente paraYvette. Seus lábios se apertarammais um pouco. Se o fizessemainda mais, imaginei que teriam

desaparecido totalmente.— Ele foi para North Conway com

Butch Wiggins — disse ela. —Foram no caminhão de Butch.Para...

— Não é preciso mentir paramim, querida — disse Bill por trásdela.

Faltava ainda uma hora para omeio-dia, com muito Dia do Senhorpela frente, mas eu jamais tinhavisto um homem parecer tãocansado. Andou pesadamente pelovestíbulo e, quando saiu dassombras e chegou à claridade — osol estava finalmente ardendoatravés da obscuridade —, vi que

Bill agora parecia ter a idade quetinha. Cada ano dela, e talvez dez amais. Usava suas habituais camisae calça cáqui — Bill Dean seria umhomem adepto das camisas decolarinho até o dia de sua morte —,mas seus ombros pareciam caídos,quase torcidos, como se tivessepassado uma semana carregandobaldes pesados demais para ele. Odespencar de seu rosto finalmentecomeçara, algo indefinível que fazos olhos parecerem grandesdemais, o maxilar proeminentedemais, a boca um pouco frouxa.Ele parecia velho. Também nãotinha filhos que continuassem a

linha de trabalho da família; todasas antigas famílias estavamdesaparecendo, disse Lila Proulx. Etalvez isso fosse bom.

— Bill — começou ela, mas eleergueu uma das suas grandes mãospara detê-la. Os dedos calosostremeram um pouco.

— Vá para a cozinha um instante— disse a ela. — Preciso falar comm e u compadre aqui. Não vaidemorar.

Yvette olhou para ele, e quandovoltou a me fitar seus lábios tinhamse reduzido a zero. Havia apenasuma linha preta no lugar deles,como uma marca riscada a lápis. Vi,

com lamentável claridade, que elame odiava.

— Não o canse — disse paramim. — Ele não tem dormido. É ocalor. — Ela entrou novamente novestíbulo, as costas rígidas e osombros duros desaparecendo nassombras provavelmente frescas.Engraçado, sempre parece estarfresco nas casas das pessoasidosas.

Bill saiu para o alpendre e enfiouas grandes mãos nos bolsos dascalças sem me estender uma delas.

— Não tenho nada a lhe dizer.Você e eu estamos rompidos.

— Por quê, Bill? Por que estamos

rompidos?Ele olhou o poente onde as

colinas mergulhavam na névoaardente de verão, desaparecendoantes de poderem se tornarmontanhas, e não disse nada.

— Estou tentando ajudar aquelamoça — falei.

Ele me lançou um olhar desoslaio que pude lersuficientemente bem.

— Sei. Ajudando é a entrar nascalças dela. Vejo homens queaparecem de Nova York e NovaJersey com garotas. Fins de semanade verão, fins de semana de esqui,não importa. Homens que andam

com moças daquela idade sempreparecem iguais, têm as línguaspenduradas para fora mesmoquando estão de boca fechada.Agora você também está com essaaparência.

Fiquei zangado e constrangido aomesmo tempo, mas resisti aoimpulso de acompanhá-lo naqueladireção. Era o que ele queria.

— O que aconteceu aqui? —perguntei. — O que é que seuspais, avós e bisavós fizeram a SaraTidwell e à família dela? Eles osobrigaram a se mudar?

— Não foi preciso — disse Bill,olhando por cima de mim para as

colinas. Seus olhos estavam quasetão úmidos como se estivessemmarejados, mas o maxilar estavacontraído e duro. — Eles semudaram por conta própria. Nuncahouve um crioulo que não tivessecoceira nos pés, meu pai costumavadizer.

— Quem pôs a armadilha quematou o filho de Son Tidwell? Foiseu pai, Bill? Foi Fred?

Seus olhos se moveram; mas omaxilar não.

— Não sei do que está falando.— Eu o ouço chorando em minha

casa. Sabe o que é ouvir umacriança morta chorando em sua

casa? Um canalha o prendeu numaarmadilha como se ele fosse umadoninha e eu o ouço chorando naminha casa, porra!

— Vai precisar de outro caseiro— disse Bill. — Não posso maistrabalhar para você. Não quero.Quero é que saia da minhavaranda.

— O que está acontecendo? Meajude, pelo amor de Deus.

— Vou lhe ajudar com o bico dosapato se você não sair daquiagora.

Olhei-o por mais um momento,abarcando os olhos úmidos e omaxilar trancado, sua natureza

dividida inscrita em seu rosto.— Perdi minha mulher, seu

canalha. Uma mulher de quem vocêdizia gostar.

Então o maxilar dele finalmentese moveu. Bill me olhou comsurpresa e ofensa.

— Isso não aconteceu aqui —disse ele. — Não teve nada a vercom este lugar. Ela podia estar forada TR porque... bem, podia ter asrazões dela para estar fora da TR...mas ela simplesmente teve umataque. Teria acontecido emqualquer lugar. Qualquer um.

— Não acredito nisso. Acho quevocê também não. Algo a seguiu

até Derry, talvez porque elaestivesse grávida...

Os olhos de Bill se arregalaram.Dei-lhe a chance de dizer algumacoisa, mas ele não a pegou.

— ... ou talvez porque elasoubesse demais.

— Ela teve um ataque. — A vozde Bill não estava muito firme. —Eu mesmo li no obituário. Teve aporcaria de um ataque.

— O que é que ela descobriu?Diga, Bill, por favor.

Houve uma longa pausa. Até queesta terminasse, me dei ao luxo deachar que de fato eu o podia estarconvencendo.

— Só tenho mais uma coisa a lhedizer, Mike: fique longe. Pelasalvação de sua alma imortal, fiquelonge e deixe as coisas seguiremseu curso. Elas vão seguir, se vocêficar longe ou não. O rio quasechegou ao mar; não vai serarruinado por gente como você.Fique longe. Pelo amor de Deus.

O senhor se importa com suaalma, sr. Noonan? A borboleta deDeus presa num casulo de carneque em breve vai feder como aminha?

Bill se virou e caminhou para aporta, os saltos das botas detrabalhador ressoando nas tábuas

pintadas.— Fique longe de Mattie e de Ki

— falei. — Se você se aproximardaquele trailer...

Ele se virou, o sol enevoadocintilando nos sulcos abaixo de seusolhos. Pegou uma bandana do bolsode trás e enxugou o rosto.

— Não vou me mover dessacasa. Para início de conversa, eugostaria de jamais ter voltado dasminhas férias! Mas voltei,principalmente por sua causa, Mike.Aquelas duas lá da Wasp Hill nãotêm que temer nada de mim. Demim, não.

Entrou e fechou a porta.

Continuei ali, fitando, sentindo airrealidade daquilo — certamenteeu não podia ter tido uma conversatão mortal com Bill Dean, podia?Bill, que me censurou por nãodeixar o pessoal daqui partilhar, etalvez suavizar, minha dor por Jo,Bill que me desejou as boas-vindastão calorosamente?

Então ouvi um som de clique. Elepodia não ter trancado a portaenquanto estava em casa em todaa sua vida, mas a trancara agora. Oclique foi muito nítido noirrespirável ar de julho. E me dissetudo que eu tinha que saber sobreminha longa amizade com Bill

Dean. Virei-me e voltei ao carro, decabeça baixa. Nem me virei quandoouvi uma janela ser levantada atrásde mim.

— Nunca mais volte aqui, seupatife da cidade! — gritou YvetteDean através do calor sufocante dopátio. — Você partiu o coraçãodele! Nunca mais volte aqui! Nunca!Nunca!

— Por favor — disse a sra. M. —Não me faz mais perguntas, Mike.Não posso entrar na lista negra deBill Dean, da mesma forma queminha mãe não podia arcar com o

peso de entrar na lista negra deNormal Auster ou Fred Dean.

Mudei o telefone para a outraorelha.

— Tudo que eu quero saber é...— Nessa parte do mundo, são os

caseiros que dirigem todo oespetáculo. Se dizem para umsujeito de verão que ele devecontratar tal carpinteiro ou taleletricista, o sujeito contrata. Ou seum caseiro diz que alguém deve serdespedido porque não tá semostrando de confiança, ele édespedido. Ou ela. Porque o quevale pra bombeiros e jardineiros eeletricistas vale duas vezes mais

pra diaristas. Se a gente quer serrecomendada, e continuarrecomendada, tem que ficar debem com gente como Fred e BillDean, ou Normal e Kenny Auster.Não entende? — Ela quaseimplorou. — Quando Bill descobriuque eu contei pra você o queNormal Auster fez ao Kerry, nossa,ficou tão furioso comigo.

— O irmão de Kenny Auster,aquele que Normal afogou debaixoda bomba. O nome dele era Kerry?

— É. Conheço um monte degente que põe nomes parecidos nosfilhos, acham bonitinho. Olha, fuicolega de escola de dois irmãos

chamados Roland e RolandaTherriault, acho que Roland tá emManchester agora e Rolanda casoucom aquele rapaz de...

— Brenda, responda só a umapergunta. Nunca vou contar aninguém. Por favor.

Com a respiração suspensa,esperei o clique que viria quandoela desligasse. Em vez disso, elapronunciou duas palavras numa vozmacia, quase pesarosa.

— Qual é?— Quem foi Carla Dean?Esperei através de outra longa

pausa, minha mão brincando com afita que saiu do chapéu de palha da

virada-do-século de Ki.— Você não vai dizer a ninguém

que eu contei — ela finalmentefalou.

— Não vou dizer.— Carla era a irmã gêmea de

Bill. Morreu há 65 anos, durante aépoca dos incêndios. — Osincêndios que Bill afirmou teremsido ateados pelo avô de Ki, seupresente de despedida para a TR.— Não sei como aconteceu. Billnunca fala nisso. Se disser a eleque eu contei isso pra você, nuncamais vou fazer outra cama na TR.Ele vai providenciar isso. — Então,numa voz desesperançada, ela

disse: — De qualquer modo, elepode saber.

Baseado em minhas própriasexperiências e suposições, imagineique ela podia ter razão. Mas,mesmo se tivesse, receberia umcheque da minha parte todos osmeses pelo resto de sua vida útil.Mas eu não tinha nenhumaintenção de lhe dizer aquilo portelefone — isso escaldaria sua almaianque. Em vez disso, agradeci,assegurei-lhe mais uma vez daminha discrição e desliguei.

Sentei à mesa por um momentoencarando inexpressivamenteBunter, e então disse:

— Quem está aí?Nenhuma resposta.— Ora — eu disse. — Não seja

tímido. Vamos a 19 ou 92. Depoisdisso, podemos conversar.

Ainda nenhuma resposta. Nemum só tremor do sino no pescoçoempalhado do alce. Dei uma olhadano bloco de anotações em querabisquei ao falar com o irmão deJo e puxei-o para mim. Eu coloqueiKia, Kyra, Kito e Carla dentro de umquadrado. Então risquei a linha debaixo do quadrado e acrescentei onome Kerry à lista. Conheço ummonte de gente que põe nomesparecidos nos filhos, tinha dito a

sra. M. Acham bonitinho.Eu não achava aquilo bonitinho;

achava era sinistro.Ocorreu-me que pelo menos dois

daqueles nomes parecidos tinhamsido afogados — Kerry Auster sobuma bomba, Kia Noonan no corpomoribundo da mãe quando não eramaior do que uma semente degirassol. E eu vi o fantasma de umaterceira criança afogada no lago.Kito? Seria Kito? Ou Kito era o quetinha morrido de toxemia?

Eles põem nomes parecidos nosfilhos, acham bonitinho.

Quantas crianças de nomeparecido tinham existido ali, para

começar? Quantas tinham sobrado?Achei que a resposta à primeirapergunta não tinha importância, eque eu já sabia a resposta àsegunda. Esse rio quase chegou aomar, disse Bill.

Carla, Kerry, Kito, Kia... todosmortos. Só Kyra Devore tinhasobrado.

Levantei tão rápida ebruscamente que derrubei acadeira. O barulho no silêncio mefez dar um grito. Eu ia emboraimediatamente. Nada mais detelefonemas, nada mais de bancarAndy Drake, detetive particular,nada de depoimentos ou paqueras

meio idiotas à bela moça. Devia terseguido meus instintos e dado ofora na primeira noite. Bem, eu ofaria agora, era só entrar no Chevye levantar acampamento paraDer...

O sino de Bunter sacudiu-sefuriosamente. Eu me virei e o vi seagitando no pescoço do alce comose badalado para a frente e paratrás por uma mão invisível. A portade correr que dava para o deckcomeçou a abrir e fechar como sepresa a uma roldana. O livro dosproblemas de palavras cruzadasNível difícil na mesinha da sala e arevista de programação da TV a

cabo se abriram, as páginaspassando rápido. Houve uma sériede baques surdos pelo chão, comose algo enorme se arrastasserapidamente na minha direção,batendo com os punhos enquantose deslocava.

Uma forte corrente de vento —não era fria, mas tépida, como arajada de ar produzida por um tremde metrô numa noite de verão —me esbofeteou. Nela ouvi uma vozestranha que parecia estar dizendotchau, tchau, tchau, como se medesejasse uma boa viagem paracasa. Então, quando já me ocorriaque a voz estava na verdade

dizendo Ki, Ki, Ki, Ki, Ki, Ki, algo meatingiu, golpeando-meviolentamente para a frente.Parecia um grande punho macio.Caí sobre a mesa, agarrando-me aela para continuar em pé,derrubando a bandeja giratória como saleiro e a pimenteira, o porta-guardanapos e o pequeno vaso quea sra. M. tinha enchido demargaridas. O vaso rolou da mesa ese espatifou. A TV da cozinhacomeçou a fazer barulho, algumpolítico dissertando sobre como ainflação estava subindo novamente.O aparelho de CD também foiligado, afogando o político; eram os

Rolling Stones fazendo um cover de“I Regret You, Baby”, de SaraTidwell. No andar de cima, umalarme de incêndio disparou, depoisum segundo e um terceiro. Foramseguidos um momento depois pelotrinar da buzina de alarme doChevrolet. O mundo inteiro era umacacofonia.

Algo quente e fofo pegou o meupulso. Minha mão se lançou para afrente como um pistão e golpeoucom força o bloco de anotações.Observei-a quando se moviadesajeitadamente sobre a páginavazia, depois peguei o lápis queestava ali perto. Agarrei-o como um

punhal e então algo escreveu comele, não guiando minha mão, masviolentando-a. A mão se moveulentamente no início, quase àscegas; então ganhou velocidade atévoar, quase rasgando a página:

Eu quase tinha alcançado o final

da página quando o frio desceu denovo, aquele frio externo que eracomo granizo em janeiro, gelandominha pele, fazendo estalar o muco

do nariz e lançando dois arrepiantessopros de ar branco de minha boca.Minha mão se dobrou e o lápis separtiu em dois. Atrás de mim, osino de Bunter teve uma furiosaagitação final antes de silenciar.Também por trás de mim ouvi umpeculiar e duplo pop, como o somde rolhas de champanhe sendoretiradas. Depois terminou. Fosse láo que tivesse estado ali, ou quantostivessem estado ali, tinhaterminado. Eu estava sozinho denovo.

Desliguei o aparelho de CD

exatamente quando Mick e Keithmudaram para uma versão derapaz branco de Howling Wolf,depois corri escada acima, desligueio alarme dos detectores de fumaçae tornei a colocá-los em posição.Debrucei-me da janela do grandequarto de hóspedes, apontei ocontrole remoto do Chevrolet parao carro e apertei o botão. O alarmeparou.

Com o pior dos barulhos tendodesaparecido, ouvi a TVmatraqueando na cozinha. Desci,desliguei-a e então me imobilizeicom a mão ainda no botão dedesligar, olhando para o irritante

gato oscilante de Jo. Sua caudafinalmente parou, e os grandesolhos de plástico estavam no chão.Tinham saltado para fora dacabeça.

Fui até o Village Café para jantar,arrebatando o último Telegram dedomingo do suporte de jornais(DEVORE, MAGNATA DO COMPUTADOR, MORRE NA

CIDADE DO MAINE OCIDENTAL ONDE CRESCEU, diziaa manchete), antes de me sentarao balcão. A foto que aacompanhava era um instantâneode estúdio em que Devore pareciater 30 anos. Ele sorria. A maioriadas pessoas faz isso muito

naturalmente. No rosto de Devore,o riso parecia uma habilidadeadquirida.

Pedi o feijão que sobrara dojantar de sábado à noite naespelunca de Buddy Jellison. Meupai não era muito de aforismos —na minha família, distribuir pedaçosde sabedoria era tarefa de mamãe—, mas quando papai esquentavaos feijões da noite de sábado noforno nas tardes de domingo, diziainvariavelmente que feijões eguisado de carne eram melhores nodia seguinte. Acho que aquilopermaneceu comigo. O único outropedaço de sabedoria paterna de

que consigo lembrar foi que sedevia sempre lavar as mãos depoisque se desse uma cagada numaestação de ônibus.

Enquanto eu lia a reportagemsobre Devore, Audrey se aproximoue me disse que Royce Merrill tinhafalecido sem recuperar aconsciência. O funeral seria na terçaà tarde na igreja batista,acrescentou. A maioria do pessoalda cidade estaria lá, muitaspessoas apenas para verem abengala do Boston Post serconcedida a Ila Meserve. Acha quevai aparecer? Não, eu disse,provavelmente não. Achei prudente

não acrescentar que gostaria de ir àfesta da vitória de Mattie Devoreenquanto o funeral de Royceestivesse descendo a estrada.

O fluxo habitual de clientes dastardes de domingo entrava e saíaenquanto eu comia, gente pedindohambúrgueres, feijão, sanduíchesde salada de frango, caixas decerveja. Alguns eram da TR, outrosde fora. Não reparei na maioriadeles, e ninguém falou comigo. Nãotenho a menor ideia de quemdeixou o guardanapo no meujornal, mas quando larguei ocaderno A e me virei para pegar aseção de esportes, lá estava ele.

Peguei-o, querendo apenas deixá-lode lado, e então vi que no versodele, em grandes letras sombrias,estava escrito: SAIA DA TR.

Nunca descobri quem o deixoulá. Acho que pode ter sido qualquerum deles.

Capítulo Vinte eTrês

As trevas voltaram, transformandoa escuridão da noite de domingoem algo de decadente beleza. O solficou vermelho enquanto afundavapor trás das colinas e a névoarecebeu o seu fulgor,transformando o céu do poentenuma hemorragia nasal. Sentei nodeck e fiquei observando o céu,

tentando fazer palavras cruzadas,mas sem conseguir ir muito longe.Quando o telefone tocou, coloquei oNível difícil em cima do manuscritode meu livro enquanto fui atendê-lo. Estava cansado de olhar paraaquele título cada vez que passavapor ali.

— Alô.— O que é que está acontecendo

aí? — perguntou John Storrow, semsequer se dar ao trabalho de dizeroi. Mas não parecia zangado e simcompletamente excitado. — Estouperdendo a droga da novela toda!

— Eu me convidei para almoçarna terça — falei. — Espero que não

se importe.— Não, quanto mais gente, mais

alegre. — Ele parecia estar sendoabsolutamente sincero. — Queverão, hein? Que verão! Aconteceualguma coisa ultimamente?Terremotos? Vulcões? Suicídios emmassa?

— Nenhum suicídio em massa,mas o velho morreu — eu disse.

— Pombas, o mundo inteiro sabeque Max Devore bateu as botas —disse ele. — Surpreenda-me, Mike!Atordoe-me! Faça-me berrar “Puxavida!”.

— Não, o outro velho. RoyceMerrill.

— Não sei a quem você... ah,espere. Aquele com a bengala deouro que parecia uma peça deJurassic Park?

— Ele.— Que bode. No mais...?— No mais está tudo sob

controle — eu disse, então penseinos olhos estourados do relógio-gato e quase ri. O que me fez pararfoi uma espécie de certeza de que osr. Bom Humor era apenas umarepresentação. John tinha ligadomesmo para perguntar o queestava acontecendo entre Mattie eeu, se é que estava havendoalguma coisa. E o que é que eu ia

dizer? Nada ainda? Um beijo, umaereção instantânea dura como aço,as coisas fundamentais se ajustamcom o tempo?

Mas John tinha outras coisas nacabeça.

— Escute, Michael, liguei porquetenho algo a lhe contar. Acho quevai achar divertido e surpreendenteao mesmo tempo.

— Um estado pelo qual todosansiamos. Chute.

— Rogette Whitmore ligou e...você não deu a ela o número demeus pais, deu? Estou de volta aNova York agora, mas ela ligoupara mim na Filadélfia.

— Eu não tenho o número deseus pais. Você não o deixou emnenhuma das duas secretárias.

— Ah, certo. — Nenhumadesculpa; ele parecia excitadodemais para pensar em taisfrivolidades. Comecei a ficaranimado também, nem sabia quedroga estava acontecendo. — Eu odeixei com Mattie. Você acha que atal Whitmore ligou para Mattie parapedir o número? E será que Mattieo deu?

— Tenho certeza de que seMattie esbarrasse com Rogette seincendiando numa via públicamijaria nela para apagar o fogo.

— Que vulgar, Michael. Trèsvulgaire. — Mas ele estava rindo. —Talvez Whitmore tenha conseguidoo número da mesma forma queDevore conseguiu o seu.

— É provável. Não sei o queacontecerá nos meses pela frente,mas neste momento tenho certezade que ela ainda tem acesso aopainel de controle pessoal de MaxDevore. E se alguém sabe comoapertar os botões dele, sem dúvidaé Rogette. Ela ligou de PalmSprings?

— Ligou. Disse que tinhaacabado de ter um encontropreliminar com os advogados de

Devore a respeito do testamento dovelho. Segundo ela, vovô deixou 80milhões de dólares para MattieDevore.

Silenciei. Não achei aquilodivertido, mas certamente estavasurpreso.

— Te peguei, hein? — disse Johnalegremente.

— Você quer dizer que ele deixouo dinheiro para Kyra — faleifinalmente. — Deixou o dinheironum fundo para Kyra.

— Não, foi exatamente o quenão fez. Perguntei três vezes aWhitmore, mas na terceira comeceia entender. Havia um método na

loucura dele. Não muito, mas umpouco. Porque há uma condição. Seele deixasse o dinheiro para umamenor em vez de para a mãe, acondição não teria nenhum peso. Éengraçado quando se considera quea própria Mattie não perdeu ostatus de menor há tanto tempoassim.

— Engraçado — concordei, epensei no vestido dela deslizandoentre minhas mãos e sua maciacintura nua. Também pensei em BillDean dizendo que os homens queandavam com garotas daquelaidade sempre pareciam iguais,tinham todos a língua pendurada

para fora da boca mesmo com elafechada.

— Que restrição ele impôs aorecebimento do dinheiro?

— Que Mattie permaneça na TRpor todo o ano seguinte à morte deDevore... até 17 de julho de 1999.Ela pode sair em viagens durante odia, mas tem que estar enfiada emsua cama na TR-90 todas as noitespor volta das nove, ou o legadoserá confiscado. Já ouviusemelhante besteira em toda a suavida? Isto é, a não ser num velhofilme de George Sanders?

— Não — eu disse, e lembrei deminha visita à Feira de Fryeburg

com Kyra. Até na morte ele estábuscando a custódia, eu tinhapensado, e claro que aquilo ali eraa mesma coisa. Ele as queria lá.Mesmo na morte ele as queria naTR.

— Dá mesmo pra acreditar? —perguntei.

— Claro que sim. O velho piradopoderia também ter escrito quedaria a Mattie 80 milhões dedólares se ela usasse tampõesazuis por um ano. Mas ela vaireceber os 80 milhões, sem sombrade dúvida. Estou empenhado nisso.Já falei com três de nossos homensque cuidam de espólios e... você

acha que eu devia levar um delescomigo na terça? Will Stevensonserá o homem principal na fase doespólio, se Mattie concordar. —John estava bem falante. Eu podiaapostar minha vida que ele aindanão tinha bebido nada, mas pairavanas alturas diante de todas aspossibilidades. Havíamos alcançadoa parte viveram felizes-para-sempredo conto de fadas, no que diziarespeito a John; Cinderela chegaem casa do baile em meio a umachuva de dinheiro.

— ... claro que Will é umpouquinho velho — dizia John —,tem mais ou menos 300 anos, o

que significa que não é exatamenteum sujeito engraçado numa festa,mas...

— Deixe-o aí, por favor — falei.— Vai haver muito tempo paradestrinchar o testamento de Devoredepois. E, no futuro imediato, achoque Mattie não vai ter nenhumproblema para cumprir essacondição idiota. Seu emprego acabade ser devolvido, lembra?

— Lembro, o búfalo branco caimorto e toda a manada sedispersa! — exultou John. — Olhesó eles indo! E a novamultimilionária volta a registrarlivros e a pôr no correio recados

dizendo que o prazo do cartão dabiblioteca se esgotou! Tudo bem,na terça a gente faz só a festa.

— Ótimo.— Vamos festejar até vomitar.— Bem... talvez nós, os caras

mais velhos, só festejemos atéficarmos ligeiramente enjoados,está bem assim?

— Claro. Já liguei para RomeoBissonette e ele vai trazer GeorgeKennedy, o detetive particular queé impagável quando bebe um oudois drinques. Pensei em levaralguns filés da Peter Luger’s, já lhedisse isso?

— Acho que não.

— Os melhores filés do mundo.Michael, você se deu conta do queaconteceu com aquela moça?Oitenta milhões de dólares!

— Ela vai poder trocar o Scoutie.— Hã?— Nada. Você vai vir amanhã à

noite ou na terça?— Terça pela manhã por volta

das dez, chegando ao aeroporto docondado de Castle. New EnglandAir. Tudo bem, Mike? Você estáesquisito.

— Estou bem. Estou como deviaestar. Acho.

— O que significa isso?Eu tinha perambulado pelo deck.

A distância, um trovão roncou.Estava quente como o inferno, nemum fiapo de brisa sequer. O pôr dosol transformava-se num sinistrocrepúsculo. O céu no poenteparecia o branco de um olhoinjetado.

— Não sei — eu disse. — Masacho que a situação vai seesclarecer sozinha. Eu pego você noaeroporto.

— Certo. — Então, numa vozabafada, quase reverente, Johnacrescentou: — Oitenta milhões dedólares, porra.

— É uma baita grana —concordei, desejando-lhe uma boa

noite.

N a manhã seguinte, tomei café ecomi torrada na cozinha, assistindoao boletim do homem do tempo.Como muitos naqueles dias, eleexibia uma expressão ligeiramentelouca, como se todas aquelasimagens de radar Doppler otivessem levado à beira de algumacoisa. Para mim é o clássico olharde viciados em video game.

— Vamos ter mais 36 horasdesse clima e então passaremospor uma grande mudança — diziaele, e apontou para uma espuma

cinza-escuro pairando no Meio-Oeste. Minúsculos relâmpagos dedesenho animado dançaram nelacomo velas de ignição com defeito.Além da espuma e dos relâmpagos,os Estados Unidos pareciam clarospor todo o caminho até a regiãodesértica, e as temperaturasinscritas eram dez graus maisbaixas. — Veremos temperaturasna casa dos 30 e tantos hoje, e nãopodemos esperar muita reduçãohoje à noite ou amanhã de manhã.Mas amanhã à tarde essastempestades frontais alcançarão oMaine ocidental, e acho que amaioria de vocês vai querer se

manter atualizado sobre ascondições do tempo. Antes devoltarmos a temperaturas maisfrescas e céus claros na quarta,provavelmente vamos ter violentastempestades com trovões erelâmpagos, chuva pesada egranizo em alguns lugares. Ciclonessão raros no Maine, mas emalgumas cidades do Maine ocidentale central eles podem ocorreramanhã. É com você, Earl.

Earl, o camarada do noticiáriomatinal, tinha a aparência inocentee robusta de um recém-aposentadode Chippendales, e lia oteleprompter como um deles.

— Uau — disse ele. — É umaprevisão e tanto, Vince. Ciclonessão uma possibilidade.

— Uau — falei. — Diga isso denovo, Earl. Repita até eu ficarsatisfeito.

— Caramba — disse Earl só parame irritar, e o telefone tocou. Fuiatendê-lo, dando uma olhada nogato oscilante ao passar por ele. Anoite tinha sido quieta, nenhumsoluço, nenhum grito, nenhumaaventura noturna, mesmo assim orelógio era inquietante. Pendia daparede morto e sem olhos, comouma mensagem cheia de másnotícias.

— Alô?— Sr. Noonan?Eu conhecia a voz, mas por um

momento não consegui identificá-la. Isso porque ela me chamou desr. Noonan. Para Brenda Meserveeu fui Mike por quase 15 anos.

— Sra. M.? Brenda? O que...— Não posso mais trabalhar para

o senhor — disse ela depressa. —Desculpe não poder avisar antes,nunca parei de trabalhar paraalguém sem avisar antes, nem parao velho Croyden que é bêbado, mastenho que fazer isso. Entenda, porfavor.

— Bill descobriu que eu liguei

para você? Juro por Deus, Brenda,eu não disse uma palavra...

— Não. Não falei com ele nemele comigo. Mas não posso voltar aSara Laughs. Tive um sonho ruimontem à noite. Um sonho horrível.Sonhei que... alguma coisa estáfuriosa comigo. Se eu voltar aí,posso ter um acidente. Pelo menosvai parecer um acidente, mas... nãoseria.

Isso é tolice, sra. M., eu quisdizer. A senhora certamente jápassou da idade de acreditar emhistórias de acampamento sobremortos-vivos, fantasmas eassombrações.

Mas claro que não pude dizeressas coisas. O que andavaocorrendo em minha casa não eranenhuma história de acampamento.Eu sabia disso, ela também.

— Brenda, se te causei algumproblema, lamento profundamente.

— Vá embora, sr. Noonan...Mike. Volte para Derry e fique lápor enquanto. É a melhor coisa quepode fazer.

Ouvi as letras deslizando naporta da geladeira e me virei. Destavez vi de fato o círculo de frutas elegumes se formar. Ficara aberto naparte de cima tempo suficiente paraque quatro letras escorregassem

para dentro dele. Então umpequeno limão de plástico tapou oburaco e completou o círculo.

quifedisseram as letras, depois mudaramrapidamente de lugartransformando-se em

fiqueA seguir, tanto o círculo quanto

as letras se desmancharam.— Mike, por favor. — A sra. M.

estava chorando. — O funeral deRoyce é amanhã. Todas as pessoasimportantes da TR, do pessoal da

velha guarda, vão comparecer.Claro que iriam. Os velhos, os

sacos de ossos que sabiam dascoisas e as guardavam para simesmos. Só que alguns delestinham conversado com minhamulher. O próprio Royce tinhafalado com ela. Agora estavamorto. Ela também.

— Seria melhor se você tivesseido embora. Quem sabe você podelevar aquela moça com você. Ela ea menina.

Mas poderia? De algum modo, euachava que não. Achava que nóstrês ficaríamos na TR até que aquiloterminasse... e estava começando a

ter um palpite de quando seria isso.Uma tempestade se aproximava.Uma tempestade de verão. Talvezaté um tornado.

— Brenda, obrigado por me ligar.Mas não vou deixar você ir embora.Vamos chamar isso de licença, estábem?

— Tá bom... como você quiser.Pelo menos vai pensar no que eudisse?

— Vou. Enquanto isso, não voudizer a ninguém que você me ligou,está bem?

— Não! — disse ela, parecendochocada. E a seguir: — Mas elesvão saber. Bill e Yvette... Dickie

Brooks na oficina... o velho AnthonyWeyland e Buddy Jellison e todosos outros... eles vão saber. Adeus,sr. Noonan. Lamento muito. Pelosenhor e por sua esposa. Sua pobreesposa. Lamento muito. — Entãodesligou.

Fiquei com o telefone na mãopor muito tempo. Então, como numsonho, eu o coloquei no gancho,atravessei a sala e tirei o relógiosem olhos da parede. Joguei-o nolixo e fui até o lago para dar umasbraçadas, me lembrando da históriade W. F. Harvey, “Calor de agosto”,aquela que termina com a frase “Ocalor é suficiente para levar um

homem à loucura”.

Não sou um mau nadador quandonão estão me jogando pedras, masminha primeira etapa praia-plataforma de flutuação-plataforma-praia foi hesitante edesarmônica — feia —, porque euestava na expectativa de que algosurgisse do fundo e me agarrasse.Talvez o garoto afogado. A segundaetapa foi melhor, e na terceira euestava apreciando as batidas maisrápidas de meu coração e a sedosafrieza da água passando rápido pormim. Na metade da quarta etapa,

me alcei pela escada da plataformae me deixei cair sobre as tábuas,me sentindo melhor do que mesentia desde o encontro comDevore e Rogette Whitmore nasexta à noite. Eu ainda estava nazona, e por cima daquilo sentiauma gloriosa corrente de endorfina.Naquele estado, até o desalentoproduzido pela sra. M. ao me dizerque estava entregando o posto sedesvaneceu. Ela voltaria quandotudo tivesse acabado; claro quevoltaria. Enquanto isso,provavelmente era melhor queficasse longe.

Alguma coisa está furiosa

comigo. Eu poderia ter umacidente.

Realmente. Ela poderia se cortar.Poderia cair da escada do porão.Poderia até ter um ataque aoatravessar correndo umestacionamento quente.

Sentei e olhei para Sara nacolina, o deck salientando-se acimado declive, os degraus dedormentes que desciam. Eu estavafora da água só por alguns minutos,mas o pegajoso calor do dia já sedesdobrava sobre mim, roubandomeu ímpeto. A água ainda eracomo um espelho. Eu podia ver acasa refletida nela, e o reflexo das

janelas de Sara se tornaram olhosvigilantes.

Eu achava que o foco de todos osfenômenos — seu epicentro —estava muito provavelmente na Ruaentre a verdadeira Sara e suaimagem afogada. Foi aqui queaconteceu, disse Devore. E opessoal da velha guarda? Eraprovável que a maioria delessoubesse o que eu sabia: queRoyce Merrill tinha sidoassassinado. E não era possível — eaté provável — que o que o matoupudesse ir até eles quandosentavam em seus bancos de igrejaou se reunissem depois em volta do

túmulo de Royce? Que essa coisapudesse roubar parte da força deles— sua culpa, suas lembranças, suaqualidade de habitantes da TR —para ajudar a terminar o serviço?

Sentia-me muito contente de queJohn fosse estar no trailer no diaseguinte, assim como RomeoBissonette e George Kennedy, tãodivertido quando tomava um oudois drinques. Contente que fossemais do que apenas Mattie, Ki e euquando os velhos se reunissempara despachar Royce Merrill. Jánão me importava muito com o quetinha acontecido a Sara e aos Red-Tops, ou mesmo com o que estava

assombrando minha casa. O que euqueria era passar pelo dia deamanhã, e que Mattie e Ki tambémpassassem. Almoçaríamos antesque a chuva começasse a cair eentão deixaríamos que atempestade despencasse com seusraios e trovões, como tinha sidoprevisto. Pensei que, sepudéssemos aguentá-la, nossasvidas e nossos futuros poderiamclarear como o tempo.

— Está certo? — perguntei. Nãoesperava resposta nenhuma. Falaralto era um hábito que eu tinhapassado a ter desde que voltei paracá, mas em algum ponto do bosque

a leste da casa uma coruja piou. Sóuma vez, como se para dizer queestava certo, aguente atempestade que as coisas ficarãoclaras. O pio quase me trouxe algoà mente, uma associação que nofinal se mostrou muito vaga paraser capturada. Tentei uma ou duasvezes, mas a única coisa que surgiuem minha cabeça foi o título de umvelho e maravilhoso romance Ouvia coruja chamar meu nome.

Rolei da plataforma para a água,agarrando os joelhos contra o peitocomo um garoto brincando de balade canhão. Mantive-me submerso omáximo de tempo que pude até

que o ar dos meus pulmõescomeçasse a parecer um líquidoquente engarrafado, e entãoemergi para a superfície. Fiqueimexendo com as pernas por uns 30metros até recuperar o fôlego,depois olhei para a Senhora Verdee me dirigi para a praia.

Saí da água, comecei a subir osdormentes, parei e voltei à Rua.Fiquei ali por um momentotomando coragem, depois andei atéonde a bétula curvava seu ventregracioso sobre a água. Agarrei acurva branca como o fiz noentardecer de sexta-feira e olheidentro d’água. Tinha certeza de que

ia ver a criança, seus olhos mortoserguidos para mim do inchado rostoescuro, e que minha boca egarganta mais uma vez seencheriam com o gosto do lago:socorro estou afogando, me solta,Ah, meu bom Jesus, me solta. Masnão havia nada. Nenhum garotomorto, nenhuma bengala do BostonPost envolvida pela fita, nenhumgosto do lago em minha boca.

Eu me virei e espiei a partedianteira da rocha destacando-seda palha vegetal. Pensei Ali, bemali, mas foi apenas um pensamentoconsciente e calculado, a menteverbalizando uma lembrança. O

cheiro de decomposição e a certezade que algo horrível aconteceu bemali desapareceu.

Quando voltei a casa e fui pegarum refrigerante, descobri que aporta da geladeira estava nua.Todas as letras magnéticas, todasas frutas e legumes tinham sumido.Nunca os encontrei. Provavelmentepoderia tê-los encontrado sehouvesse mais tempo, mas naquelamanhã de segunda-feira o tempoestava quase esgotado.

Depois de me vestir, liguei paraMattie. Conversamos sobre a futura

festa, sobre como Ki estavaanimada e Mattie nervosa de voltara trabalhar na sexta-feira — tinhamedo de que os habitantes locaisfossem maus com ela, mas, de ummodo esquisito e feminino, tinhamais medo ainda de que fossemfrios, que a desprezassem. Falamossobre o dinheiro, e rapidamente mecertifiquei de que ela nãoacreditava na realidade do legado.

— Lance costumava dizer queseu pai era o tipo de homem quemostraria um pedaço de carne a umcão faminto e depois o comeria elepróprio — disse. — Mas já querecebi meu emprego de volta, não

vou ficar faminta, nem Ki.— Mas e se houver mesmo essa

grana toda?— Ah, então passe ela para cá —

disse rindo. — O que acha que sou?Maluca?

— Não. Por falar nisso, o queestá acontecendo com o pessoal dageleira de Ki? Estão escrevendocoisas novas?

— Isso é o mais esquisito —disse ela. — Sumiram.

— O pessoal da geleira?— Eles, não sei, mas as letras

magnéticas que você deu a eladesapareceram. Quando pergunteia Ki o que tinha feito com elas, ela

começou a chorar e disse queAlamagusalum as tinha levado.Disse que ele as comeu, que asdevorou no meio da noite enquantotodo mundo dormia.

— Alama o quê?— Alamagusalum — disse Mattie,

soando cansadamente divertida. —Outra pequena herança do avô. Éuma palavra indígena que significa“bicho-papão” ou “demônio”. Olheina biblioteca. Kyra teve muitospesadelos sobre demônios, espíritosdo mal e o alamagusalum noinverno passado e nesta primavera.

— Que vovozinho doce ele era —eu disse sentimentalmente.

— É, uma verdadeira maravilha.Ela ficou triste de perder as letras;mal consegui acalmá-la antes de acarona dela para a EBF chegar. Porfalar nisso, Ki quer saber se vocêvem para os Exercícios Finais natarde de sábado. Ela e o amigo BillyTurgeon vão contar a história deMoisés quando bebê noflanelógrafo.

— Não vou perder isso — eudisse... mas é claro que perdi.Todos perdemos.

— Alguma ideia sobre que fimlevaram as letras, Mike?

— Não.— As suas ainda estão no lugar?

— Estão, mas é claro que asminhas não conseguem escrevercoisa alguma — eu disse, olhando aporta vazia de minha própriageladeira. Minha testa transpirava.Podia sentir o suor descendo pelassobrancelhas como óleo. — Você...não sei... sentiu alguma coisa?

— Quer saber se ouvi o malvadoladrão de alfabeto quando eleentrou pela janela?

— Você sabe o que quero dizer.— Acho que sim. — Uma pausa.

— Tenho a impressão de que ouvialgo naquela noite. Lá pelas três damanhã. Levantei e fui até ocorredor. Não tinha nada lá. Mas...

você sabe como tem estado quenteultimamente.

— Sei.— Bom, não no meu trailer, não

na noite passada. Estava frio comogelo. Juro que quase podiaenxergar minha respiração.

Acreditei nela. Afinal de contas,eu tinha visto a minha.

— Então foram as letras nafrente da geladeira?

— Não sei. Não andei por todo ocorredor para olhar na cozinha. Deiuma olhada por ali e depois volteipara a cama. Quase corri de voltapara a cama. Às vezes, a camaparece mais segura, sabe? — Ela riu

nervosamente. — É uma coisa decriança. As cobertas são a criptonitacontra o bicho-papão. Só que noinício, quando entrei na cama... nãosei... achei que alguém já estava lá.Como se tivesse estado escondidono chão debaixo da cama e então...quando fui checar o corredor...tivesse entrado nela. Também nãoera ninguém legal.

Me dá meu pega-poeira, pensei,e estremeci.

— O quê? — perguntou Mattieasperamente. — O que é que vocêdisse?

— Perguntei quem você achouque era. Qual é o primeiro nome

que lhe veio à cabeça?— Devore — respondeu. — Ele.

Mas não havia ninguém. — Umapausa. — Gostaria que vocêestivesse lá.

— Eu também.— Fico contente. Mike, o que é

que você acha disso? Porque émuito esquisito.

— Acho que talvez... — Por ummomento estive à beira de lhecontar o que tinha acontecido comminhas próprias letras. Mas se eucomeçasse a falar, onde pararia? Eaté que ponto ela acreditaria? — ...talvez a própria Ki tenha tirado asletras. Caminhou dormindo e jogou

as letras debaixo do trailer ou coisaparecida. Acha que seria possível?

— Acho que gosto ainda menosda ideia de Kyra caminhando por aídormindo do que da ideia defantasmas de respiração geladatirando as letras da geladeira —disse Mattie.

— Leve-a para a cama com vocêesta noite — eu disse, e senti opensamento de Mattie disparar devolta como uma flecha: Preferialevar você.

O que ela disse depois de umapausa foi:

— Vai aparecer hoje?— Acho que não — respondi. Ela

estava lanchando um iogurte comsabor de fruta enquantoconversávamos, comendo-o empequenos bocados. — Mas amanhãvocê vai me ver. Na reunião.

— Espero que a gente consigacomer antes da tempestade. Pareceque vai ser tremenda.

— Tenho certeza de que vamosconseguir.

— E você, ainda está pensando?Só pergunto porque sonhei comvocê quando finalmente conseguidormir de novo. Sonhei que mebeijava.

— Ainda estou pensando — eudisse. — Pensando muito.

Mas, na verdade, não me lembrode pensar muito sobre coisa algumanaquele dia. O que me lembro é deser levado cada vez mais paradentro da zona, algo que expliqueitão mal. Quase ao crepúsculo, saípara um longo passeio apesar docalor — por todo o caminho em quea estrada 42 se junta à rodovia. Aovoltar, parei à beira do prado deTidwell, observando a luzdesaparecer do céu e ouvindo otrovão rolar em algum ponto emNew Hampshire. Mais uma vez tivea sensação de como a realidade erafrágil, não apenas ali, mas em todaparte; como se esticava feito pele

por cima do sangue e tecidos de umcorpo que nunca podemos conhecerclaramente nesta vida. Eu olhavapara árvores e via braços; olhavapara arbustos e via rostos.Fantasmas, disse Mattie. Fantasmasde respiração gelada.

O tempo também era frágil, meparecia. Kyra e eu tínhamosrealmente estado na Feira deFryeburg — alguma versão dela, dequalquer forma; tínhamosrealmente visitado o ano de 1900. Eà beira do prado em que os Red-Tops quase estavam agora, onde játinham estado no passado, em suasorganizadas cabaninhas.

Praticamente podia ouvir o som deseus violões, o murmúrio de suasvozes e seus risos; quase podiaouvir o cintilar de suas lanternas esentir o cheiro da carne de boi e deporco sendo frita por eles. “Diga,benzinho, ainda se recorda demim?”, dizia uma das canções deSara. “Bem, acho que pra você meumel chegou ao fim.”

Algo chacoalhou na vegetaçãorasteira à minha esquerda. Eu mevirei para aquele lado, esperandover Sara sair do bosque usando ovestido de Mattie, assim como seustênis brancos. Na penumbra,pareceriam quase flutuar sozinhos

até que se aproximassem de mim...Não havia ninguém lá, claro.

Indubitavelmente não tinha nada anão ser a marmota vindo para casa,depois de um duro dia no escritório,mas eu já não queria ficar ali,observando como a luz desapareciado dia e o nevoeiro subia do chão.Eu me virei para casa.

Em vez de entrar em Sara Laughsquando voltei, tomei o atalho parao estúdio de Jo, onde não tinhaestado desde a noite em que leveiminha IBM de volta num sonho.Clarões intermitentes de

relâmpagos distantes iluminavam ocaminho.

O estúdio estava quente, masnão bolorento. Podia sentir umaroma apimentado agradável, e meperguntei se isso podia vir dealguma das ervas de Jo. Havia umar-condicionado ali que funcionava— liguei-o e então simplesmentefiquei à sua frente durante certotempo. Tanto ar frio no meu corposuperaquecido não eraprovavelmente saudável, masproduzia uma sensaçãomaravilhosa.

Fora isso, não me sentia nadamaravilhoso. Olhei em torno com

uma crescente sensação de algopesado demais para ser meratristeza; parecia desespero. Achoque causado pelo contraste entrequão pouco tinha sido deixado deJo em Sara Laughs e quanto delaainda permanecia no estúdio.Imaginava nosso casamento comouma espécie de teatro — e não éisso que é o casamento, em grandeparte?, brincar de casinha? —, ondesó metade do negócio era mantidoseguro. Unido por pequenos ímãsou cabos escondidos. Algo tinhasurgido e pegado nossa casinha poruma ponta — mais fácil éimpossível, e suponho que deveria

ser grato por esse algo não terresolvido chutar a pobre coisa porali. Ele só pegou aquela ponta,como se vê. As minhas coisastinham ficado no lugar, mas todasas coisas de Jo tinham escorregadopara...

Fora da casa até ali.— Jo? — perguntei, sentando na

cadeira. Nenhuma resposta.Nenhuma pancada na parede.Nenhum corvo ou coruja gritandodos bosques. Pus a mão naescrivaninha, onde havia estado amáquina de escrever, e a fizdeslizar por ali, levantando umacamada de poeira.

— Sinto falta de você, meu amor— eu disse, e comecei a chorar.

Quando as lágrimas terminaram— de novo —, enxuguei o rosto coma barra da camiseta como umacriança e olhei ao redor. Lá estavaa foto de Sara Tidwell naescrivaninha e outra foto de quenão me lembrava na parede — estaúltima era velha, tingida de sépia eamadeirada. Seu ponto focal erauma cruz de madeira de vidoeiro daaltura de um homem, numapequena clareira num declive sobreo lago. Provavelmente a clareira játinha sumido da geografia agora,havia muito preenchida pelas

árvores.Olhei para os jarros de ervas e

pedaços de cogumelo de Jo, seusarquivos e pedaços de colcha. Otapetinho verde no chão, o potecom os lápis sobre a escrivaninha,lápis que ela havia tocado e usado.Segurei um deles e pousei-o sobreuma folha de papel em branco porum momento ou dois, mas nadaaconteceu. Eu tinha uma sensaçãode vida naquele cômodo, e asensação de ser observado... masnão de ser ajudado.

— Sei um pouco disso, mas nãoo suficiente — falei. — De todas ascoisas que não sei, talvez a mais

importante seja quem escreveu“ajude ela” na geladeira. Foi você,Jo?

Nenhuma resposta.Fiquei sentado um pouco mais —

esperando contra todaprobabilidade, eu acho —, depoisme levantei, desliguei o ar-condicionado, apaguei as luzes evoltei para a casa, caminhando sobas brilhantes e suavesintermitências dos dispersosrelâmpagos. Sentei um pouco nodeck contemplando a noite. Emcerto momento, percebi que haviatirado a fita de seda azul do bolso ea enrolava nervosamente para a

frente e para trás entre os dedos,fazendo camas de gato sem parar.Teria ela vindo realmente do ano1900? A ideia parecia perfeitamentedoida e perfeitamente sã ao mesmotempo. A noite se estendia quentee abafada. Imaginei velhos por todaa TR — talvez em Motton e Harlowtambém — pegando suas roupas defuneral para amanhã. No trailerduplo da estrada Wasp Hill, Kiestava sentada no chão assistindoao vídeo de Mogli, o menino lobo —Balu e Mogli cantavam “The BareNecessities”. Mattie estava no sofácom ela, os pés para cima, lendo onovo romance de Mary Higgins

Clark e cantando enquanto o fazia.As duas usavam pijamas curtos, ode Ki rosa e o de Mattie branco.

Após algum tempo, perdi minhapercepção delas; a coisa se esvaiucomo os sinais das ondas de rádiotarde da noite. Fui para o quartonorte despido e entrei sob o lençolde cima de minha cama desfeita.Adormeci quase imediatamente.

Acordei no meio da noite comalguém passando um dedo quentepara cima e para baixo nas minhascostas. Fiquei de bruços e, quandoo relâmpago iluminou o quarto, vique havia uma mulher na camacomigo. Era Sara Tidwell. Ela sorria.

Seus olhos não tinham pupila. “Ah,benzinho, estou quase de volta”,sussurrou ela no escuro. Tive aimpressão de que estendia a mãopara mim de novo, mas quando orelâmpago seguinte se acendeu,aquele lado da cama estava vazio.

Capítulo Vinte eQuatro

Nem sempre a inspiração é umaquestão de fantasmasmovimentando ímãs em portas degeladeira, e na manhã de terça-feira tive um insight maravilhoso.Ele ocorreu enquanto eu mebarbeava pensando apenas em nãoesquecer a cerveja da festa. E comoas melhores inspirações, saiu de

lugar nenhum.Entrei rapidamente na sala de

estar, mas sem correr, enxugando ocreme de barbear do rosto comuma toalha enquanto andava. Deiuma olhada rápida na coletânea depalavras cruzadas Nível difícil emcima do manuscrito do meu livro.Foi a ela que eu me dirigi primeironum esforço para decifrar “vá a 19”e “vá a 92”. Um ponto de partidaracional, mas o que é que Níveldifícil tinha a ver com a TR-90? Eucomprei a coletânea na Mr.Paperback, em Derry, e das trintapalavras cruzadas ou mais quecompletei, todas, à exceção de

meia dúzia, haviam sido terminadasem Derry. Os fantasmas da TRdificilmente mostrariam alguminteresse em minhas palavrascruzadas de Derry. A listatelefônica, por outro lado...

Eu a peguei da mesa da sala dejantar. Embora ela cobrisse toda aparte sul do condado de Castle —Motton, Harlow e Kashwakamakalém da TR —, era bastante fina. Aprimeira coisa que fiz foi checar aspáginas em branco para ver sehavia pelo menos 92 delas. Havia.Os Ys e Zs terminavam na página97. Aquela era a resposta. Tinhaque ser.

— Achei, não é? — perguntei aBunter. — É isso.

Nada. Nem mesmo umabadalada do sino.

— Foda-se. O que é que umacabeça empalhada de alce sabe deuma lista telefônica?

Vá a 19. Procurei a página 19 nalista, onde a letra F figurava emdestaque. Comecei a escorregar odedo pela primeira coluna abaixo e,enquanto o fazia, minha animaçãodiminuiu. O nome de número 19 dapágina 19 era Harold Failles. Nãosignificava nada para mim. Haviatambém Feltons e Fenners, umFilkersham e diversos Finneys, meia

dúzia de Flahertys e mais Fosses doque se podia contar. O último nomeda página 19 era Framingham.Também não significava nada paramim, mas...

Framingham, Kenneth P.Olhei fixamente o nome por um

momento. Uma compreensãocomeçou a surgir. Não tinha nada aver com as mensagens dageladeira.

Você não está vendo o quepensa que está vendo, pensei. Écomo quando você compra umBuick azul...

— Você vê Buicks azuis em todaparte — eu disse. — Praticamente

tem que chutá-los para fora do seucaminho. É, é isso. — Mas minhasmãos tremiam quando procurei apágina 92.

Ali estavam os Ts do sul docondado de Castle, juntamente comalguns Us, como Alton Ubeck eCatherine Udell só para arredondaras coisas. Não me dei ao trabalhode checar a entrada de número 92na página; a lista telefônica não eraa chave para as palavras cruzadasmagnéticas, afinal de contas. Masde fato sugeria algo de grandesproporções. Fechei a lista, continueisegurando-a por um momento(gente feliz segurando um ancinho

na capa da frente), depois a abri aoacaso, desta vez na letra M. E, namedida em que se sabe o que seestá procurando, a coisa pula nasua frente.

Todos aqueles Ks.Ah, havia Stevens, Johns e

Marthas; havia Meserve, G., eMessier, V., e Jayhouse, T. Erepetidamente vi a inicial K onde aspessoas tinham exercido seu direitode não listar os primeiros nomes nalista. Havia pelo menos vinteiniciais K só na página 50, e outras12 iniciais C. Quanto aos nomespróprios...

Havia 12 Kenneths nessa página

ao acaso na seção M, inclusive trêsKenneth Moores e dois KennethMunters. Havia quatro Catherines eduas Katherines. Havia um Casey,uma Kiana e um Kiefer.

— Deus do céu, é comoirradiação atômica — murmurei.

Folheei a lista incapaz deacreditar no que estava vendo, evendo-o mesmo assim. Kenneths,Katherines e Keiths estavam portoda parte. Vi também Kimberly,Kim e Kym. Havia Cammie, Kia(sim, e tínhamos nos consideradotão originais), Kiah, Kendra, Kaela,Keil e Kyle. Kirby e Kirk. Havia umamulher chamada Kissy Bowden e

um homem chamado Kito Rennie —Kito, o mesmo nome mencionadopelo pessoal da geleira de Kyra. Epor toda parte, afogando iniciaisgeralmente tão comuns como S, T eE, estavam aqueles Ks. Meus olhosdançaram por eles.

Eu me virei para olhar o relógio— não queria deixar John Storrowplantado no aeroporto, puxa, nãomesmo —, mas não havia nenhumrelógio ali. Claro que não. O VelhoGato Maluco tinha batido as botasdurante um evento psíquico. Deiuma risada alta e áspera que meassustou um pouco — não eraespecialmente sã.

— Controle-se, Mike — eu disse.— Respire fundo, filho.

Respirei fundo. Prendi arespiração. Deixei-a sair. Consulteio relógio do micro-ondas. Oito equinze. Tempo suficiente para John.Voltei à lista telefônica e comecei afolheá-la rapidamente. Tive umasegunda inspiração — não amegaexplosão da primeira, masque se revelou muito mais acurada.

O Maine ocidental é uma árearelativamente isolada — é umpouco como a região de colinas dafronteira sul —, mas sempre haviapelo menos algum influxo de gentede longe (“gente da planície” é o

termo dos locais quandodesdenhosos), e no último quartode século a região passou a seruma área popular para cidadãosidosos ativos que querem pescar eesquiar até se aposentarem. A listatelefônica faz uma grandeseparação entre os recém-chegadose os antigos residentes. Babickis,Parettis, O’Quindlans, Donahues,Smolnacks, Dvoraks, Blindermeyers— todos de fora. Todos da planície.Jalberts, Meserves, Pillsburys,Spruces, Therriaults, Perraults,Stanchfields, Starbirds, Dubays —todos do condado de Castle.Entende o que estou dizendo, não

é? Quando se vê toda uma colunade Bowies na página 12, sabe-seque esse pessoal tem estado poraqui tempo suficiente para relaxar ede fato espalhar esses genesBowie.

Havia algumas iniciais K e nomescom K entre os Parettis e osSmolnacks. Só poucos. As fortesconcentrações estavam ligadas àsfamílias que estavam lá temposuficiente para absorver aatmosfera. Para respirar airradiação atômica. Só que não erairradiação exatamente, era...

Subitamente imaginei umalápide negra mais alta do que a

maior árvore do lago, um monolitoque lançava sua sombra sobremetade do condado de Castle. Essequadro era tão claro e terrível quecobri meus olhos, deixando cair alista telefônica sobre a mesa.Afastei-me dela, estremecendo.Esconder meus olhos na verdadepareceu realçar ainda mais aimagem: uma lápide tão enormeque bloqueava o sol; a TR-90 jaziaa seus pés como uma coroafúnebre. O filho de Sara Tidwell seafogou no Dark Score... ou ali foiafogado. Mas ela marcou seufalecimento. Tinha feito ummemorial. Eu me perguntei se mais

alguém na cidade tinha notadoalgum dia o que eu notei. Eu nãoachava que aquilo fosse provável;quando abrimos uma listatelefônica, estamos procurando namaioria dos casos um nomeespecífico, e não lendo páginasinteiras linha por linha. Imaginei seJo teria notado — se soube quequase toda família antiga nessaparte do mundo tinha, de algummodo, batizado pelo menos um deseus filhos em homenagem ao filhomorto de Sara Tidwell.

Como Jo não era idiota, acheique teria notado isso.

Voltei ao banheiro, tornei aensaboar meu rosto e comeceinovamente do zero. Quandoterminei, voltei ao telefone e olevantei. Apertei três números eparei, olhando para o lago. Mattie eKi estavam acordadas e na cozinha,ambas de avental, ambas numaonda de entusiasmo. Ia ter umafesta! Elas usariam roupas bonitase novas de verão, e haveria músicasaindo do CD player portátil deMattie! Ki estava ajudando Mattie afazer biscoitos para a totinha demolango, e enquanto os biscoitosestivessem assando, fariamsaladas. Se eu ligasse para Mattie e

dissesse Arrume uma valise, você eKi vão passar uma semana naDisney World, Mattie ia achar queeu estava brincando, e depois mediria para me apressar e me vestirlogo para estar no aeroportoquando o avião de Johnaterrissasse. Se eu insistisse, elame lembraria de que Lindy tinha lhedevolvido seu velho emprego, masa oferta seria retirada bem rápidose Mattie não aparecesse láprontamente às duas da tarde nasexta-feira. Se eu continuasse ainsistir, ela simplesmente diria quenão.

Porque eu não era o único a

estar na zona, era? Não era o únicoa realmente senti-la.

Devolvi o telefone ao suporte derecarga e voltei ao quarto da alanorte. Quando terminei de mevestir, minha camisa limpa jáparecia encolhida debaixo dosbraços; estava tão quente naquelamanhã como na última semana,talvez ainda mais quente. Mas euteria muito tempo para chegarantes do avião. Jamais me senticom menos vontade de festejar,mas iria à reunião mesmo assim.Mikey presente ao local, era o meulema. Mikey na droga do local.

John não me disse o número de seuvoo, mas no aeroporto do condadode Castle tais amenidadespraticamente não eramnecessárias. Esse alvoroçado eixode transporte consiste em trêshangares e um terminal que haviasido um posto de gasolina Flying A— ainda se pode ver a forma de asado A quando a luz está forte noenferrujado lado norte do pequenoedifício. Há uma pista. A segurançaé fornecida por Lassie, a velhacollie de Breck Pellerin, que passaos dias deitada no chão de linóleo eergue uma orelha para o teto cadavez que um avião aterrissa ou

decola.Meti a cabeça no escritório de

Pellerin e lhe perguntei se o voodas dez vindo de Boston estava nohorário. Ele disse que sim, emboraesperasse que a pessoa que euestava aguardando planejasse voarde volta antes do meio da tarde, ouviesse para passar a noite. O mautempo estava chegando, minhanossa, sem dúvida alguma. O quePellerin chamou de tempo“elétrico”. Eu sabia exatamente oque queria dizer, pois aquelaeletricidade já parecia ter chegadoao meu sistema nervoso.

Eu me dirigi para o lado da pista

do terminal e sentei num banco queanunciava o Cormier’s Market (VOEPARA NOSSA DELICATÉSSEN PARA AS MELHORES

CARNES DO MAINE). O sol era um botãode prata espetado na encosta lestede um céu branco e quente. Tempode dor de cabeça, minha mãe oteria chamado, mas ele estavadestinado a mudar. Eu me agarrariaà esperança daquela mudançatanto quanto podia.

Às 10h10 ouvi um zumbido deabelha vindo do sul. Às 10h15, umbimotor saiu da obscuridade,desceu desajeitadamente na pista etaxiou para o terminal. Havia sóquatro passageiros, e John Storrowfoi o primeiro a sair. Sorri quando o

vi. Usava uma camiseta preta coma inscrição SOMOS OS CAMPEÕES na frentee bermudas cáqui que exibiam umperfeito par de canelas citadinas:ossudas e brancas. Estava tentandocarregar ao mesmo tempo umisopor e uma pasta. Agarrei oisopor talvez quatro segundos antesque ele o deixasse cair e enfiei-odebaixo do braço.

— Mike! — gritou, levantandouma palma para cima.

— John! — respondi no mesmoespírito (evoé é a palavra queimediatamente vem à mente doaficionado de palavras cruzadas), ebati com a mão espalmada na dele.

Seu rosto bonito e doméstico abriu-se num sorriso, e senti umapequena punhalada de culpa.Mattie não havia manifestadonenhuma preferência por John, bemo oposto, na verdade, e elerealmente não tinha resolvidonenhum dos problemas dela;Devore foi o culpado disso,acabando com a própria vida antesque John tivesse alguma chance defazer algo em benefício de Mattie.Mesmo assim, senti aquelapontadinha desagradável.

— Venha — disse ele. — Vamossair desse calor. Você tem ar-condicionado no carro, não tem?

— Claro.— E um toca-fitas? Porque, se

tiver, vou pôr uma fita que vai fazervocê dar uma casquinada.

— Acho que nunca ouvi essapalavra usada numa conversa,John.

O sorriso mostrando os dentes seabriu de novo, e notei seu montede sardas.

— Sou advogado. Uso palavrasque ainda não foram inventadas.Você tem um toca-fitas?

— Claro que tenho. — Levantei oisopor. — Filés?

— É. Da Peter Luger’s. São...— ... os melhores do mundo.

Você me disse.Quando entramos no terminal,

alguém falou:— Michael?Era Romeo Bissonette, o

advogado que me acompanhou emmeu depoimento. Numa das mãoslevava uma caixa embrulhada empapel azul e amarrada com fitabranca. Ao lado dele, acabando dese levantar de uma das cadeirasencalombadas, vi um sujeito altocom uma franja de cabelo grisalho.Usava um terno marrom, camisaazul e uma gravata de laço com umtaco de golfe no nó. Parecia maisum fazendeiro num dia de leilão do

que o tipo de sujeito que semostraria impagável depois de umou dois drinques, mas não tivedúvidas de que aquele era odetetive particular. Ele pulou porcima do comatoso collie e apertouminha mão.

— George Kennedy, sr. Noonan.Estou contente de conhecê-lo.Minha mulher leu cada livro que osenhor escreveu.

— Agradeça a ela por mim.— Vou agradecer. Tenho um livro

no carro... um de capa dura... —Parecia tímido, como tantas outraspessoas quando estão no momentoexato de pedir. — Será que podia

autografá-lo para ela, em algummomento?

— Com o maior prazer —respondi. — Agora mesmo émelhor, porque assim não esqueço.— Virei-me para Romeo. — Bom tever, Romeo.

— Pode me chamar de Rommie— disse ele. — É bom vê-lotambém. — Estendeu a caixa. —George e eu nos juntamos paraisso. Achamos que você mereciaalgo simpático por ajudar umamoça em aflição.

Kennedy agora parecia umhomem que podia ser engraçadodepois de alguns drinques. O tipo

que poderia simplesmente ter oímpeto de pular na mesa maispróxima, transformar a toalha demesa num kilt e dançar. Olhei paraJohn, que deu de ombros, como sedissesse não me pergunte.

Retirei o laço de cetim, deslizei odedo sob a fita adesiva segurando opapel e depois ergui os olhos.Peguei Rommie Bissonettecutucando Kennedy com o cotovelo.Agora ambos sorriam.

— Não há nada aqui que vá pularem cima de mim e gritar buga-buga, não é, rapazes? — perguntei.

— De modo nenhum — disseRommie, mas seu sorriso se

alargou.Bem, posso ter tanto espírito

esportivo quanto qualquer outro.Acho. Desembrulhei o pacote, abria caixa branca e, dentro dele,descobri simplesmente um forroquadrado de algodão, levantei-o.Eu vinha sorrindo enquanto faziatudo isso, mas senti o sorrisomurchar e morrer em minha boca.Algo se enroscou por minha espinhaacima também, e acho que estivemuito perto de deixar cair a caixa.

Era a máscara de oxigênio queDevore trazia no colo quandoencontrou comigo na Rua, aquelaem que resfolegava ocasionalmente

enquanto ele e Rogette memantinham a distância dentro dolago, tentando fazer com que euficasse na área profunda temposuficiente para que me afogasse.Rommie Bissonette e GeorgeKennedy tinham me trazido oobjeto como o escalpo de uminimigo morto e eu devia acharaquilo engraçado...

— Mike? — perguntou Rommieansioso. — Mike, tudo bem? Foi sóuma brincadeira...

Pisquei os olhos e vi que não erade modo algum uma máscara deoxigênio — Deus do céu, como éque pude ser tão estúpido?

Primeiro, era maior do que amáscara de Devore; segundo, erafeita de material opaco e não deplástico claro. Era...

Dei uma risadinha hesitante.Rommie Bissonette pareceutremendamente aliviado. Kennedytambém. John apenas se mostravaintrigado.

— Muito engraçado — eu disse.— Puxei o pequeno microfone dedentro da máscara e deixei-opendurado. Ele balançou para afrente e para trás no fio, melembrando da cauda oscilante dorelógio.

— Que droga é essa? —

perguntou John.— Advogado de Park Avenue —

disse Rommie a George,aprofundando o sotaque paraAadvogaadah de Paa-aak Avenew.— Você nuncah viu um desses, viu,companheiro? Nãh senhor, claaroque nãh. — Então passou à falanormal, o que foi um alívio. Vivi noMaine toda a minha vida, e paramim o fator diversão no burlescosotaque ianque já está bastantegasto. — É uma Stenomask. Oestenógrafo que registrou odepoimento de Mike estava usandouma dessas. Mike olhou tanto paraele...

— Ele me assustou — eu disse.— O velho sentado no canto emurmurando dentro da máscara deZorro.

— Gerry Bliss assusta um montede gente — disse Kennedy. Emitiaum ruído surdo e prolongado aofalar. — É o último por aqui a usaresse aparelho. Guarda dez ou 11em seu hall de entrada. Eu sei,porque comprei esse aí dele.

— Espero que ele o tenhapendurado em você.

— Achei que seria umarecordação simpática — disseRommie —, mas por um segundoachei que tinha te dado a caixa com

uma mão decepada. Detestoquando alguém troca as caixas dosmeus presentes. O que foi, Mike?

— Julho está sendo longo equente — eu disse. — Deve serisso. — Segurei a correia daStenomask com um dos dedos,balançando-a.

— Mattie disse para chegar às 11horas — John falou. — Vamostomar uma cerveja e brincar umpouco com o frisbee.

— Posso fazer essas duas coisasmuito bem — disse GeorgeKennedy.

Do lado de fora, no minúsculoestacionamento, George foi até um

empoeirado Altima, remexeu naparte detrás do carro e voltou comum exemplar surrado de O homemda camisa vermelha.

— Frieda me fez trazer esse. Elatem os mais recentes, mas este é oseu preferido. Desculpe a aparênciado livro... ela o leu umas seis vezes.

— É o meu preferido também —falei, o que era verdade. — E gostode ver um livro com milhagem. — Oque também era verdade. — Abri olivro, olhei de forma aprovadorapara uma mancha de chocolate hámuito seco na folha de guarda eescrevi: Para Frieda Kennedy, cujomarido estava lá para dar uma

mão. Obrigada por compartilhá-lo epor ler meus livros, Mike Noonan.

Para mim, era uma longadedicatória — geralmente meatenho a Com os melhores votos ouBoa sorte, mas queria compensar aexpressão azeda que tinham vistoem meu rosto quando abri oinocente presente brincalhão.Enquanto eu fazia a dedicatória,George me perguntou se eu estavaescrevendo um novo romance.

— Não — respondi. — Nomomento, estou recarregando asbaterias. — Entreguei-lhe o livro.

— Frieda não vai gostar disso.— Não. Mas sempre há a Camisa

vermelha.— Nós vamos atrás de você —

disse Rommie, e um estrondo surdoveio das bandas do oeste. Não eramais alto do que o trovão queandou rugindo intermitentementepela última semana, mas aquele alinão era um trovão seco. Sabíamosdisso, e olhamos naquela direção.

— Acha que vamos ter chance dealmoçar antes da tempestade? —perguntou George.

— Acho. Por um triz.

Eu me dirigi ao portão doestacionamento e dei uma olhada à

direita para checar o tráfego.Quando o fiz, vi John olhandopensativamente para mim.

— O quê?— Mattie disse que você estava

escrevendo, só isso. O livro virou acara para você ou coisa assim?

Na verdade, Meu amigo deinfância estava vivo como sempre...mas nunca seria terminado.Naquela manhã, eu sabia disso tãobem quanto sabia que havia chuvaa caminho. Os rapazes do porão,por algum motivo, decidiram tomá-lo de volta. Perguntando por quetalvez não fosse uma ideia muitoboa — as respostas poderiam ser

desagradáveis.— Alguma coisa assim. Não

tenho bem certeza por quê. —Entrei na rodovia, chequei aretaguarda e vi Rommie e Georgeatrás no pequeno Altima de George.Os Estados Unidos se tornaram umpaís cheio de homens grandes emcarros pequenos. — O que é quevocê quer que eu escute? Se for umkaraokê doméstico, eu passo. Ouvirvocê cantando “Bubba Shot theJukebox Last Night” é a última coisado mundo que quero.

— Ah, é melhor do que isso.John abriu a pasta, remexeu nela

e tirou dali uma caixa com uma fita

cassete. A fita em seu interior tinhaa inscrição 20-7-98 — ontem.

— Adoro isso — disse ele.Inclinou-se para a frente, ligou orádio e enfiou o cassete no toca-fitas.

Eu esperava já ter tido minhacota de surpresas desagradáveisnaquela manhã, mas estavaenganado.

— Desculpe, tive que me livrarde outra ligação — falou John doalto-falante do meu Chevy, com suavoz mais macia e advocatícia. Euapostaria um milhão de dólares quesuas canelas ossudas não estavamaparecendo quando a fita tinha sido

gravada.Ouviu-se um riso, ao mesmo

tempo enfumaçado e arranhado.Meu estômago se apertou anteaquele som. Lembrei-me de quandoa vi pela primeira vez em pé dolado de fora do Sunset Bar, de shortpreto sobre um maiô preto inteiriço.Em pé e parecendo uma refugiadado inferno de uma dieta de fome.

— Você quer dizer que teve queligar seu gravador — disse ela, eagora eu lembrava como a águaparecia ter mudado de cor quandoRogette me despachou aquelapedrada realmente boa atrás dacabeça. De laranja vivo para

vermelho-escuro. E então eucomecei a engolir a água do lago.— Tudo bem. Grave tudo quequiser.

John esticou a mão e fez ocassete ser expelido.

— Você não precisa escutar isso— disse ele. — Não é importante.Achei que ia se divertir com atagarelice dela, mas... puxa, vocêestá com uma cara horrível. Querque eu dirija? Está branco comopapel, porra.

— Posso dirigir — eu disse. — Váem frente, ponha a fita. Depois eulhe conto uma pequena aventuraque tive na sexta à noite... mas

você não vai contá-la a ninguém.Eles não precisam saber — espeteio polegar por sobre o ombro para oAltima —, e Mattie também nãotem que saber. Sobretudo Mattie.

Ele esticou a mão para a fita,mas hesitou:

— Tem certeza?— Tenho. Foi só por ouvir a voz

dela de repente, sem estarprevenido. A voz dela. Cristo, quegravação de boa qualidade.

— Nada senão o melhor paraAvery, McLain e Bernstein. Temosprotocolos muito estritos sobre oque podemos gravar, por falarnisso. Caso você esteja pensando

no assunto.— Não estava. De qualquer

modo, acho que nada disso éadmissível num litígio, é?

— Em certos casos raros, um juizpode aceitar uma gravação, masnão é por isso que o fazemos. Umafita dessas salvou a vida de umhomem quatro anos atrás, bem naépoca em que entrei para a firma.O sujeito agora está no Programade Proteção à Testemunha.

— Ponha a fita.John se inclinou para a frente e

apertou o botão.

John: — Como anda o deserto,srta. Whitmore?

Whitmore: — Quente.John: — As providências estão

avançando bem? Sei comopodem ser difíceis essesmomentos...

Whitmore: — O senhor sabemuito pouco, advogado, podeacreditar. Vamos deixar essababoseira de lado?

John: — Considere-a posta delado.

Whitmore: — O senhortransmitiu as condições dotestamento do sr. Devore ànora dele?

John: — Transmiti.Whitmore: — E a resposta dela?

John: — Não tenho nenhumapara lhe dar agora. Posso ter,depois que o testamento do sr.Devore for homologado. Mascertamente a senhora sabeque esses codicilos raramentesão aceitos pelo tribunal, se éque o são alguma vez.

Whitmore: — Bem, se a mocinhase mudar da cidade, veremos,não é?

John: — Acho que sim.Whitmore: — Quando é a festa

da vitória?John: — Como?Whitmore: — Ah, por favor.

Tenho sessenta compromissos

diferentes hoje, além de umpatrão para enterrar amanhã.O senhor vai até lá paracelebrar com ela e a filha, nãoé? Sabia que ela convidou oescritor? Seu companheiro defoda?

John se virou para mimalegremente.

— Está vendo como ela pareceirritada? Tenta esconder isso, masnão consegue. Está devorando-apor dentro.

Praticamente não o escutei. Euestava na zona com o que ela dizia

(o escritor, seu companheiro de

foda)e o que estava sob o que ela

dizia. A natureza característica porbaixo das palavras. Só queremosver quanto tempo você pode nadar,tinha gritado para mim.

John: — Não creio que o que eue os amigos de Mattie fazemosseja da sua conta, srta.Whitmore. Posso sugerirrespeitosamente que asenhora se reúna com seusamigos e deixe Mattie Devorese reunir com os del...

Whitmore: — Dê um recado aele.

Eu. Ela estava falando de mim.Então percebi que era até maispessoal do que aquilo — ela estavafalando para mim. Seu corpo podiaestar do outro lado do país, massua voz e seu espírito rancorosoestavam bem ali no carro conosco.

E o testamento de Max Devore.Não a merda sem sentido que osadvogados dele tinham colocado nopapel e sim o testamento dele. Ovelho patife estava tão morto comoDâmocles, mas definitivamenteainda buscava a custódia, semdúvida nenhuma.

John: — Dê um recado a quem,

srta. Whitmore?Whitmore: — Diga a ele que

nunca respondeu à perguntado sr. Devore.

John: — Que pergunta?

A boceta dela suga?

Whitmore: — Pergunte a ele. Elesabe qual é.

John: — Se está se referindo aMike Noonan, pode perguntara ele pessoalmente. A senhorao verá na Corte Testamentáriado condado de Castle nesseoutono.

Whitmore: — Acho difícil. Otestamento do sr. Devore foi

feito e testemunhado aqui.John: — Apesar disso, será

homologado no Maine, ondeele morreu. Estou empenhadonisso. E a próxima vez em quevocê for embora do condadode Castle, Rogette, suainstrução em questões legaisestará consideravelmenteampliada.

Pela primeira vez ela pareceuzangada, sua voz passando a umcrocitar esganiçado.

Whitmore: — Se você acha...John: — Eu não acho. Eu sei.

Adeus, srta. Whitmore.

Whitmore: — Acho melhor vocêficar longe d...

Ouviu-se um clique, o zumbidoda linha desligada e então uma vozde robô dizendo “Nove e quarentada manhã... horário de verão noleste... julho... 20”. John apertouEJECT, recolheu a fita e a guardouna pasta.

— Desliguei na cara dela. —Parecia um homem contando sobreseu primeiro salto livre deparaquedas. — Desliguei mesmo.Ela estava danada, não estava?Não acha que ela estavatremendamente furiosa?

— É. — Era o que ele queriaouvir, mas não o que eu realmentepensava. Furiosa, sim.Tremendamente furiosa? Talveznão. Porque a localização de Mattiee seu estado de espírito não erampreocupações de Rogette; ela tinhaligado para falar comigo. Para medizer que estava pensando emmim. Para despertar lembranças decomo era agitar-se na água com aparte de trás da cabeça sangrando.Para me assustar. E tinhaconseguido.

— Qual era a pergunta que vocênão respondeu? — perguntou John.

— Não tenho a mínima ideia —

respondi —, mas posso lhe dizer porque ouvir a voz dela me deixou umpouco pálido. Se você for discreto equiser ouvir.

— Ainda temos 30 quilômetrospela frente. Desembuche.

Contei-lhe sobre a sexta-feira ànoite. Não atravanquei minhaversão com visões ou fenômenospsíquicos: falei apenas sobreMichael Noonan saindo para umpasseio pela Rua ao pôr do sol. Euestava perto da bétula que pendiasobre o lago, vendo o sol mergulharpor trás das montanhas, quandoeles surgiram às minhas costas. Doponto em que Devore investiu

contra mim com a cadeira de rodasao ponto em que finalmentecheguei a terra firme, de modogeral me pautei fielmente pelaverdade.

Quando terminei, John mostrou-se completamente silencioso, sinalde como tinha ficado atônito; sobcircunstâncias normais era tãotagarela quanto Ki.

— E então? — perguntei. —Comentários? Perguntas?

— Afaste o cabelo para eu veratrás da orelha.

Fiz como ele pedia, revelandoum grande Band-Aid e uma amplaárea inchada. John debruçou-se

para mim para estudá-la como umacriança observando a cicatriz debatalha do melhor amigo durante orecreio.

— Puta que pariu — disse elefinalmente.

Foi minha vez de não dizer nada.— Aqueles dois velhos nojentos

tentaram afogar você.Eu não disse nada.— Tentaram afogar você por

ajudar Mattie.Então eu realmente não disse

nada.— E você não deu queixa?— Ia dar, depois percebi que isso

me faria parecer um idiota chorão.

E muito provavelmente ummentiroso.

— Quanto acha que Osgood podesaber?

— De tentarem me afogar?Nada. Ele é só um garoto derecados.

Um pouco mais daquela raraquietude de John. Depois de algunssegundos nesse estado, eleestendeu a mão e tocou no caroçona parte de trás de minha cabeça.

— Ai!— Desculpe. — Uma pausa. —

Deus do céu. Então ele voltou aoWarrington’s e deu um tiro naprópria cabeça. Deus do céu.

Michael, eu jamais teria postoaquela fita para tocar sesoubesse...

— Tudo bem. Mas nem pense emcontar a Mattie. Estou usando ocabelo em cima da orelha por causadisso.

— Acha que algum dia vai contara ela?

— Talvez. Algum dia, quando elejá estiver morto tempo suficientepara que a gente possa rir de meubanho de roupa.

— Pode ser daqui a um bomtempo.

— É. Pode sim.Rodamos em silêncio por um

período. Eu podia perceber Johnprocurando um modo de trazer aalegria de volta ao dia, e graças aisso senti um grande afeto por ele.Debruçou-se, ligou o rádio eencontrou algo ruidoso e irritantedos Guns’n Roses — welcome to thejungle, baby, we got fun andgames.

— Vamos festejar até vomitar —disse ele. — Certo?

Sorri. Não era fácil, com a voz davelha ainda grudada a mim comolodo, mas consegui.

— Já que você insiste — eudisse.

— Eu insisto. Não tem dúvida.

— John, para um advogado, vocêé um bom sujeito.

— E para um escritor vocêtambém é um bom sujeito.

Dessa vez, o sorriso em meurosto pareceu mais natural epermaneceu mais tempo. Passamosa placa em que se lia TR-90 e,enquanto o fazíamos, o sol surgiupor entre a névoa e inundou o diade luz. Parecia um presságio demomentos melhores pela frente atéque olhei para o oeste. Ali haviamanchas negras na claridade, pudever nuvens carregadas de chuva seformando sobre as WhiteMountains.

Capítulo Vinte eCinco

Acho que para os homens o amor éalgo formado de lascívia eperplexidade em partes iguais. Aparte da perplexidade as mulheresentendem. A da lascívia, apenasacham que entendem. Muito poucas— talvez uma em vinte — têmalgum tipo de conceito do que sejarealmente a lascívia, ou quão

profunda ela corre. Talvez isso sejabom para o sono delas e sua paz deespírito. Não estou falando dalascívia de libertinos, estupradorese molestadores; falo da dosvendedores de sapatos e diretoresde ensino médio.

Sem mencionar a dos escritorese advogados.

Chegamos ao pátio de Mattie às10h50. Enquanto estacionava meuChevy ao lado do enferrujado jipedela, a porta do trailer se abriu eMattie surgiu no degrau de cima.Prendi a respiração e pude ver queJohn fazia o mesmo a meu lado.

Mattie era provavelmente a

moça mais bonita que eu já tinhavisto em minha vida, com seu shortcor-de-rosa e blusa com gola demarinheiro combinando. O shortnão era curto o suficiente para servulgar (palavra de minha mãe),mas era curto o suficiente para serprovocante. Amarrada com laçosnos ombros, a blusa mostrava umpedaço certo de bronzeado parafazer sonhar quem o olhasse. Ocabelo de Mattie caía sobre osombros. Ela sorria e acenava.Pensei: Mattie venceu, levem-napara a sala de jantar do countryclub agora, vestida como está, queela ofuscará todo mundo.

— Ah, meu Deus — disse John.Havia um desalentado desejo emsua voz. — Tudo isso e um saco debatatas fritas.

— É — falei. — Ponha seus olhosde volta na cabeça, garotão.

Ele colocou as mãos em conchano rosto, como se fizesseexatamente aquilo. Enquanto isso,George estacionava o Altima pertode nós.

— Vamos — eu disse, abrindo aporta. — Hora da festa.

— Não posso tocar nela, Mike —disse John. — Vou derreter.

— Ande logo, seu idiota.Mattie desceu os degraus e

passou pelo vaso com o tomateiro.Atrás dela, Ki vestia uma roupasemelhante à da mãe, só que numtom verde-escuro. Vi que estavaacometida outra vez de um acessode timidez; mantinha uma mãofirme na perna de Mattie e umpolegar na boca.

— Os rapazes chegaram! Osrapazes chegaram! — exclamouMattie, rindo, e se atirou nos meusbraços. Abraçou-me apertado ebeijou o canto de minha boca.Respondi ao abraço e beijei-lhe orosto. Então ela foi até John, leu oque estava escrito em suacamiseta, bateu as mãos num

aplauso e o abraçou. Ele a apertoubastante para um cara que estavacom medo de derreter, pensei,levantando-a no ar e girando-a numcírculo enquanto ela pendia de seupescoço e ria.

— Moça rica, rica, rica! — cantouJohn, e a colocou sobre as solas decortiça dos sapatos brancos.

— Moça livre, livre, livre! —cantou ela de volta. — Para oinferno com os ricos!

Antes que ele pudesseresponder, ela beijou-o firmementena boca. Os braços dele seergueram para enlaçá-la, mas elarecuou antes que pudessem

completar o gesto. Ela se virou paraRommie e George, em pé lado alado e dando a impressão desujeitos que quisessem explicartudo sobre a Igreja Mórmon.

Dei um passo à frentepretendendo fazer asapresentações, mas John ocupou-sedisso, e um de seus braçosconseguiu realizar sua missãofinalmente — enlaçou a cintura deMattie ao conduzi-la até os homens.

Enquanto isso, uma mãozinhadeslizou para a minha. Olhei parabaixo e vi que Ki erguia os olhospara mim, o rosto grave e pálido etão bonito quanto o da mãe. O

cabelo louro, brilhante e recém-lavado estava preso atrás com umapresilha de veludo.

— Acho que o pessoal da geleiranão gosta de mim agora — disseela. O sorriso e a despreocupaçãohaviam sumido, pelo menos nomomento. Ki parecia à beira daslágrimas. — Minhas letras todasdisseram tchau.

Levantei-a, sustentando-a sobreo braço dobrado como fiz no dia emque a encontrei andando pelo meioda rota 68 de roupa de banho.Beijei sua testa e depois a ponta donariz. Sua pele era uma sedaperfeita.

— Sei que disseram — falei. —Vou comprar outras para você.

— Promete? — Olhos azul-escuros e duvidosos fixaram-se nosmeus.

— Prometo. E vou te ensinarpalavras especiais como zigoto ebíbulo. Conheço um monte depalavras especiais.

— Quantas?— Cento e oitenta.Um trovão estrondeou no oeste.

Não parecia mais alto do que osoutros, mas de algum modo maispreciso. Os olhos de Ki viraramnaquela direção, depois voltaramaos meus.

— Estou com medo, Mike.— Medo? De quê?— De não sei o quê. Da mulher

com o vestido de Mattie. Doshomens que a gente viu. — Entãoolhou por cima de meu ombro. —Lá vem mamãe. — Já ouvi atrizespronunciarem a fala Não na frentedas crianças exatamente comaquele tom de voz. — Me põe nochão.

Coloquei-a no chão. Mattie, John,Rommie e George se juntaram anós. Ki correu para Mattie, que apegou e então nos olhou como umgeneral supervisionando suastropas.

— Trouxe a cerveja? —perguntou.

— Sim, senhora — falei. — Umacaixa de Budweiser e uma dúzia derefrigerantes variados. Além delimonada.

— Ótimo. Sr. Kennedy...— George, senhora.— Então, George. E se me

chamar de senhora de novo eu lhedou um soco no nariz. Meu nome éMattie. Você pode dar um pulo decarro no Armazém Lakeview — elaapontou para a loja na rota 68,cerca de uns 800 metros dedistância — e comprar gelo?

— Claro.

— Sr. Bissonette...— Rommie.— Há uma hortazinha na

extremidade norte do trailer,Rommie. Pode pegar umas duasalfaces com uma cara boa?

— Posso, sim.— John, vamos pôr a carne na

geladeira. Quanto a você,Michael... — Ela apontou para achurrasqueira. — Os carvões são dotipo instantâneo, deixe cair umfósforo e se afaste. Cumpra o seudever.

— Pois não, minha senhora — eudisse, caindo de joelhos diantedela. Aquilo finalmente arrancou

uma risadinha de Ki.Rindo, Mattie pegou minha mão

e me levantou.— Vamos, Sir Galahad — disse

ela. — Vai chover. Quero estarsegura dentro de casa e tão cheiade comida que não possa dar umpulo quando a chuva começar.

Na cidade, as festas se iniciam comcumprimentos à porta,recolhimentos de casacos e aquelespeculiares beijinhos no ar (quandoexatamente terá começado essaesquisitice social?). No campo, elascomeçam com tarefas. Você vai

buscar, carrega, parte à procura decoisas como pinças de churrasco eluvas de cozinha. A anfitriã convocadois homens para mudar de lugar amesa do piquenique, depois decideque, na verdade, ela ficava melhoronde estava antes, e pede que aponham no lugar anterior. Derepente, em determinadomomento, você descobre que estáse divertindo.

Empilhei os carvões atéparecerem com a pirâmide no sacoe então joguei um fósforo neles.Incendiaram-se satisfatoriamente eme afastei, enxugando a testa como antebraço. O frio e o ar limpo

podiam estar chegando, mascertamente ainda não estavam aoalcance de um grito. O sol tinhaperfurado as nuvens e o dia passoude opaco a ofuscante; no entanto,pesadas nuvens de cetim negrocontinuavam a se empilhar nooeste. Era como se a noite tivesseestourado um vaso sanguíneonaquele céu.

— Mike?Procurei Kyra com os olhos.— O que é, meu bem?— Você vai cuidar de mim?— Vou — respondi sem a menor

hesitação.Por um momento, algo na minha

resposta — talvez só a rapidez comque foi dada — pareceu perturbá-la.Então sorriu.

— Tá — disse. — Olha ali ohomem do gelo!

George estava de volta doarmazém. Estacionou o carro esaiu. Andei até ele, com Kyrasegurando minha mão ebalançando-a possessivamentepara a frente e para trás. Rommieveio conosco, fazendomalabarismos com três alfaces —não acho que ele era uma grandeameaça ao sujeito que tinhafascinado Ki no parque, sábado ànoite.

Abrindo a porta de trás doAltima, George retirou dois sacos degelo.

— O armazém estava fechado —falou. — Tinha um cartaz dizendoREABRIRÁ ÀS 17 HORAS. Era muito tempopara esperar; então peguei o gelo ecoloquei o dinheiro na fenda para acorrespondência.

Haviam fechado para o funeralde Royce Merrill, claro. Tinhamdesistido de quase um dia inteirode clientes no auge da estaçãoturística para acompanhar o enterrodo velho companheiro. Era umtanto tocante. Achei também queera um tanto sinistro.

— Posso carregar o gelo? —perguntou Kyra.

— Acho que sim, mas não vá secongelizar — disse George, ecuidadosamente colocou um sacocom 2 quilos de gelo nos braçosesticados de Ki.

— Congelizar — disse Kyra,dando uma risadinha. Começou aandar na direção do trailer, de ondeMattie acabava de sair. Atrás dela,John a contemplava com olhos deum beagle. — Mamãe, olha! Estoucongelizando!

Peguei o outro saco.— Conheço a geladeira do lado

de fora, mas não fica trancada a

cadeado?— Sou amigo da maioria dos

cadeados — disse George.— Ah, entendo.— Mike! Pegue! — John me

atirou um frisbee vermelho, queflutuou na minha direção, masmuito alto. Eu pulei e o peguei, esubitamente Devore voltou à minhamente: O que há de errado comvocê, Rogette? Você nunca lançoucomo uma garota. Pegue ele!

Olhei para baixo e vi Ki meolhando.

— Não pense nessa coisa triste— falou.

Sorri para ela e então lhe atirei o

frisbee.— Tá, nada de coisa triste.

Continue, meu bem. Jogue o discopara mamãe. Vamos ver se vocêpode.

Ela sorriu de volta, se virou e fezum lançamento rápido e acuradopara a mãe — um lançamento tãoforte que Mattie quase o deixouescapar. Fosse lá o que KyraDevore pudesse ser além disso, erauma campeã em potencial nolançamento de frisbee.

Mattie atirou o frisbee paraGeorge, que se virou, com a caudado absurdo paletó marromalargando-se, e pegou-o com

habilidade por trás das costas.Mattie riu e aplaudiu, a borda dablusa flertando com seu umbigo.

— Que exibido! — gritou Johndos degraus.

— A inveja é um sentimento feio— disse George para RommieBissonette, atirando-lhe o frisbee.Rommie jogou-o para John, mas,atirado longe demais, o disco bateuna lateral do trailer. Enquanto Johncorria degraus abaixo para pegá-lo,Mattie virou-se para mim.

— Meu som está na mesinha dasala, junto de uma pilha de CDs. Amaioria deles é bem velha, maspelo menos é música. Você os traz

para cá?— Claro.Entrei. Lá dentro estava quente,

apesar dos três ventiladoresestrategicamente colocados etrabalhando em tempo integral.Contemplei a lamentável mobíliafabricada em massa e o nobreesforço de Mattie para acrescentar-lhe alguma personalidade; agravura de Van Gogh que não deviacombinar com uma quitinete detrailer, mas combinava; areprodução de Nighthawks, deEdward Hopper, acima do sofá; ascortinas tingidas que teriam feito Jorir. Havia ali uma coragem que me

deixou triste por ela e novamentefurioso com Max Devore. Morto ounão, tive vontade de lhe dar umchute no traseiro.

Entrei na sala de estar e vi onovo romance de Mary HigginsClark na mesinha junto ao sofá,com um marcador pendurado parafora. Ao lado dele, duas fitas decabelo de menina com algo que mepareceu familiar, embora nãoconseguisse lembrar sequer de tervisto Ki usá-las. Fiquei ali por maisum momento, franzindo assobrancelhas; então peguei o rádio,os CDs e voltei para fora.

— Ei, rapazes! Vamos agitar!

Eu estava bem até que eladançasse. Não sei se isso temimportância para você, mas paramim tem. Eu estava bem até queela dançasse. Depois eu me sentiperdido.

Levamos o frisbee para a partede trás da casa, parcialmente paranão enfurecermos nenhumhabitante da cidade a caminho dofuneral com a nossa barulheira eanimação, mas principalmenteporque o quintal de Mattie era umbom lugar para jogar — solonivelado e grama baixa. Apósperder uns dois lançamentos,Mattie jogou para longe os sapatos

de festa, entrou correndo na casa evoltou de tênis. Depois daquilo elaficou muito melhor.

Brincamos com o frisbee,insultamo-nos uns aos outros,tomamos cerveja, rimos umbocado. Ki não era grande coisapara pegar, mas tinha um braçofenomenal para uma criança de 3anos, e jogava com animação.Rommie tinha colocado o rádio numdegrau dos fundos do trailer, e oaparelho soltou uma nuvem demúsicas do final dos anos 1980 einício dos 1990: U2, Tears for Fears,Eurythmics, Crowded House, AFlock of Seagulls, Ah-Hah, os

Bangles, Melissa Etheridge, HueyLewis e os News. Tive a impressãode conhecer cada canção, cadarefrão.

Suamos e corremos à luz domeio-dia. Contemplamos as pernaslongas e bronzeadas de Mattiemovendo-se de cá para lá eescutamos os alegres trinados doriso de Kyra. Em determinadomomento, Rommie Bissonetteplantou bananeira, sendo todos osseus trocados cuspidos dos bolsos.John riu até ter que sentar, aslágrimas lhe rolando dos olhos. Kicorreu e atirou-se sentada em seucolo indefeso. John parou de rir na

hora. “Uuf!”, gritou, me olhandocom os olhos brilhantes emagoados, enquanto seus colhõesamassados tentavam sem dúvidavoltar para dentro do corpo.

— Kyra Devore! — gritou Mattie,olhando apreensiva para John.

— Deúbei meu própio quarterbak— disse Ki com orgulho.

John sorriu debilmente para ela elevantou-se cambaleando.

— É — disse. — É verdade. E ojuiz vai lhe tirar pontos por vocêamassar o adversário.

— Tudo bem, cara? — perguntouGeorge. Parecia preocupado, massua voz sorria.

— Estou ótimo — disse John, eatirou-lhe o frisbee que flutuoulentamente pelo pátio. — Vá emfrente, jogue. Vamos ver o queconsegue.

O trovão soou mais alto, mas asnuvens negras ainda estavam todasa oeste de nós; o céu lá em cimacontinuava de um inofensivo eúmido azul. Os pássaros aindagorjeavam e os grilos cantavam nagrama. Havia um tremor de calorsobre a churrasqueira, e logochegaria a hora de atacarmos osfilés nova-iorquinos de John. Ofrisbee ainda voava, vermelhocontra o verde da grama e das

árvores e o azul do céu. Ainda mesentia tomado pela luxúria, mastudo ainda estava bem — oshomens estão sempre com tesãopelo mundo afora, e praticamente otempo inteiro, e as calotas polaresnem por isso derretem. Mas Mattiedançou, e tudo se modificou então.

Era uma velha canção de DonHenley, conduzida por um estribilhode guitarra realmentedesagradável.

— Nossa, eu adoro essa —exclamou Mattie. O frisbee vooupara ela, que o pegou, deixou-ocair, pisou nele como se fosse umquente holofote vermelho mirado

sobre um palco de boate e começoua dançar. Colocou as mãos atrás dopescoço, depois nos quadris, edepois atrás das costas. Dançavaem pé, com as pontas dos tênis nofrisbee. Dançava sem se mover.Dançava como falam naquelacanção — como uma onda nooceano.

“The government bugged the men’s roomin the local disco lounge,

And all she wants to do is dance...to keep the boys from selling all the

weapons they can scrounge,And all she wants to do is dance, dance.”9

As mulheres ficam sexy quandodançam — tremendamente sexy —,

mas não foi só a isso que eu reagi.Com a luxúria eu podia lidar.Aquilo, porém, era mais do que aluxúria, e nada fácil de administrar.Era algo que sugava meu ar e faziacom que me sentisse, literalmente,à mercê dela. Naquele momento,ela era a coisa mais bela que eu játinha visto, não uma mulher bonitade short e blusa de marinheirodançando num frisbee sem sair dolugar, e sim Vênus revelada. Eratudo que eu perdi durante osúltimos quatro anos, quando estivetão mal que sequer tinha noção deestar perdendo alguma coisa.Mattie me despojou das últimas

defesas que eu possa ter tido. Adiferença de idade não tinhaimportância. Se para os outros euparecia ter a língua pendurada parafora mesmo de boca fechada, entãoque fosse. Se perdesse minhadignidade, orgulho, senso deindividualidade, então que fosse.Quatro anos sozinho tinham meensinado que há coisas piores a seperder.

Quanto tempo ela ficou lá,dançando? Não sei. Provavelmentenão muito tempo, nem mesmo umminuto, e então percebeu que acontemplávamos extasiados —porque, em algum grau, todos viam

o que eu via e sentiam o que eusentia. Por aquele minuto, ou sejalá quanto tempo foi, acho quenenhum de nós conseguiu respirarmuito.

Mattie desceu do frisbee, rindo eenrubescendo ao mesmo tempo,confusa, mas não pouco à vontadede fato.

— Desculpe — disse. — Eusimplesmente... adoro essa música.

— Ela só quer é dançar — disseRommie.

— É, às vezes é só isso que elaquer — disse Mattie, e enrubesceumais do que nunca. — Desculpe,tenho que ir lá dentro. — Ela me

atirou o frisbee e disparou para otrailer.

Respirei profundamente,tentando voltar à estável realidade,e vi John fazendo o mesmo. GeorgeKennedy tinha uma expressãosuavemente atônita, como sealguém lhe tivesse dado umsedativo leve que agora finalmentefazia efeito.

Um trovão retumbou. Desta vezparecia mais perto.

Lancei o frisbee para Rommie.— O que é que você acha?— Acho que estou apaixonado —

respondeu, e então pareceu se daruma pequena sacudida mental,

como pude ver em seus olhos. —Também acho que já é hora deprepararmos esses filés, se vamoscomer aqui fora. Quer me ajudar?

— Claro.— Eu ajudo também — disse

John.Voltamos ao trailer, deixando

George e Kyra brincando com odisco. Kyra lhe perguntava se ele játinha pegado algum “crinimoso”. Nacozinha, em pé junto à geladeira,Mattie empilhava os filés numatravessa.

— Obrigada por terem vindo,rapazes. Eu estava a ponto dedesistir e engolir um bife desses

exatamente como está. São ascoisas mais bonitas que eu já vi navida.

— Você é a coisa mais bonitaque eu já vi na vida — disse John.Estava sendo totalmente sincero,mas o sorriso que Mattie lhe lançouera distraído e um tanto divertido.Anotei mentalmente: jamais elogiea beleza de uma mulher quando elatem dois filés na mão.Simplesmente não funciona.

— Você é um bom churrasqueiro?— perguntou-me ela. — Diga averdade, porque essa carne aqui éboa demais para ser estragada.

— Posso dar conta do recado.

— Certo, está contratado. John,você é o assistente. Rommie, meajude com as saladas.

— Com todo prazer.George e Ki tinham ido para a

frente do trailer e estavam agorasentados em espreguiçadeirascomo dois velhos companheirosnum clube londrino. George contavaa Ki como trocou tiros com RolfeNedeau e a Gangue do Mal na ruaLisbon em 1993.

— George, o que aconteceu como seu nariz? — perguntou John. —Está ficando tão comprido.

— Quer me dar licença? — falouGeorge. — Estou tendo uma

conversa aqui.— George prendeu um monte de

crinimosos — disse Kyra. —Prendeu a Gangue do Mal e pôseles na prisão de segurançamáxima.

— É — eu disse —, e tambémganhou o Oscar por atuar num filmechamado Rebeldia Indomável.

— Exatamente — disse George.Ergueu a mão direita e cruzou doisdedos. — Eu e Paul Newman.Assim.

— Temos o molho dispuguetedele — acrescentou Ki gravemente,e isso fez John rir de novo. Emboranão me pegasse da mesma

maneira, o riso é contagioso; só verJohn rir foi suficiente para me fazerrir também depois de algunssegundos. Estávamos urrando comoum par de idiotas quandocolocamos os filés na churrasqueira.Foi surpreendente não termosqueimado as mãos.

— Por que estão rindo? — Kiperguntou a George.

— Porque são homens boboscom cérebros pequenininhos —disse George. — Agora escute, Ki,peguei todos eles, a não ser oLouco. Ele pulou no carro dele, eupulei no meu. Os detalhes dessaperseguição não são de jeito

nenhum para os ouvidos de umagarotinha...

Mesmo assim George a regaloucom eles enquanto John e eusorríamos um para o outro dos doislados da churrasqueira de Mattie.

— É ótimo, não é? — disse John,e concordei com a cabeça.

Mattie saiu com milhoembrulhado em folhas de alumínio,seguida por Rommie com umagrande saladeira aninhada nosbraços e descendo os degraus comcuidado, tentando espiar por cimada tigela enquanto descia.

Sentamos à mesa de piquenique,George e Rommie de um lado, John

e eu ladeando Mattie do outro. Kisentou-se à cabeceira, empoleiradasobre uma pilha de revistas velhas,numa cadeira de jardim. Mattieamarrou um pano de prato à voltado pescoço da filha, um ultraje aque Ki se submeteu apenas porque:a) estava usando roupas novas e b)o pano de prato não era umbabador de bebê, pelo menostecnicamente.

Comemos muito — salada, filé(John tinha razão, era realmente omelhor que eu já tinha comido),espiga de milho assada e totinha demolango de sobremesa. Nomomento em que tínhamos

chegado à totinha os trovõesrolavam nitidamente mais próximose uma brisa irregular e quentesoprava no quintal.

— Mattie, se eu nunca maiscomer tão bem quanto hoje, nãovou ficar surpreso — disse Rommie.— Muito obrigado por me convidar.

— Obrigada a você — disse ela.Seus olhos estavam marejados. Elapegou minha mão e a de John.Apertou as duas. — Obrigada avocês todos. Se soubessem comoas coisas iam para Ki e para mimantes dessa última semana... —Balançou a cabeça, deu um apertofinal na mão de John e na minha e

soltou-as. — Mas já acabou.— Olhem a criança — disse

George, divertido.Ki se jogou para trás na cadeira,

nos olhando com olhos vidrados. Amaior parte de seu cabelo tinhasaído do prendedor e pendia emmechas junto às faces. Tinha umamanchinha de chantili na ponta donariz e um grão de milho amarelono meio do queixo.

— Joguei o frisbee 6 mil vezes —disse Kyra. Falava num tomdistante, declamatório. — Cansei.

Mattie começou a se levantar.Pus a mão em seu braço.

— Posso?

Ela assentiu com a cabeça.— Se você quiser.Levantei Kyra no colo e

carreguei-a até os degraus. Otrovão roncou de novo, um roncolongo e baixo, parecendo o rosnadode um cão gigantesco. Olhei paraas nuvens que se acotovelavam láem cima e, enquanto o fazia, ummovimento atraiu minha visão. Eraum velho carro azul indo para oestepela estrada Wasp Hill, na direçãodo lago. Só o notei porque exibiaum daqueles idiotas adesivos depara-choques do Village Café: BUZINA

QUEBRADA — AGUARDE PELO DEDO.Carreguei Ki degraus acima e

passei pela porta, virando-a paraque não batesse com a cabeça.

— Toma conta de mim — disseela em seu sono. Sua voz tinha umatristeza que me arrepiou. Era comose soubesse que estava pedindo oimpossível. — Toma conta de mim,eu sou pequena, mamãe disse quesou pequenininha.

— Vou tomar conta de você — eudisse, beijando o sedoso espaçoentre seus olhos de novo. — Não sepreocupe, Ki, durma.

Levei-a para o quarto dela e acoloquei na cama. A essa alturaestava totalmente apagada. Limpeio chantili de seu nariz e peguei o

grão de milho de seu queixo. Deiuma olhada ao relógio e vi queeram 13h50. Eles estariam sereunindo na igreja batista nessemomento. Bill Dean usando umagravata cinza. Buddy Jellison dechapéu. Buddy estava de pé atrásda igreja, com alguns outroshomens que fumavam antes deentrar.

Eu me virei e dei com Mattie àentrada.

— Mike — disse ela. — Venha cá,por favor.

Fui até ela. Não havia nenhumtecido entre sua cintura e minhasmãos desta vez. Sua pele era

quente, e tão sedosa quanto a dafilha. Ela ergueu os olhos para mim,os lábios entreabertos. Seus quadrisse impeliram para a frente, equando ela sentiu o que estavaduro ali, pressionou ainda mais.

— Mike — disse ela de novo.Fechei os olhos. Eu me sentia

como alguém que tinha acabado dechegar à entrada de uma salabrilhantemente iluminada, cheia degente rindo e conversando. Edançando. Porque às vezes é sóisso que queremos fazer.

Quero entrar, pensei. É isso queeu quero fazer, é só o que eu querofazer. Me deixa fazer o que eu

quero. Me deixa...Percebi que falava aquilo alto,

sussurrando rapidamente no ouvidodela, as mãos subindo e descendopor suas costas, percorrendo suaespinha, tocando suas omoplatas edepois envolvendo seus pequenosseios.

— Sim — disse ela. — O que nósdois queremos. Sim. Isso é bom.

Lentamente, ela ergueu ospolegares e enxugou os locaisúmidos sob meus olhos. Eu meafastei dela.

— A chave...Ela sorriu ligeiramente.— Você sabe onde ela está.

— Vou aparecer esta noite.— Ótimo.— Eu ando... — Tive que clarear

a garganta. Olhei para Kyra, quedormia profundamente. — Eu andosolitário. Acho que não sabia disso,mas ando.

— Eu também. E sabia disso pornós dois. Me dá um beijo, por favor.

Beijei-a. Acho que nossas línguasse tocaram, mas não tenho certeza.Lembro-me com mais clareza é davivacidade de Mattie. Era como umdreidel, o pião hebreu de quatrofaces, girando levemente em meusbraços.

— Ei! — gritou John do lado de

fora. Nós nos afastamos. — Nãoquerem dar uma ajudinha? Vaichover!

— Obrigada por finalmente sedecidir — disse Mattie para mim emvoz baixa. Virou-se e voltouapressada para o estreito corredordo trailer. Na próxima vez em queela falou comigo, não acho quesoubesse o que dizia. Na próximavez em que falou comigo ela estavamorrendo.

— Não acorde a criança — ouvi-adizer a John, e a resposta dele: —Ah, desculpe, desculpe.

Fiquei onde estava por mais ummomento, recuperando o fôlego, eentão entrei no banheiro e molhei orosto com água fria. Lembro-me dever uma baleia de plástico azul nabanheira quando me virei para tirara toalha do suporte e de pensarque provavelmente esguichavabolhas de seu furo, e me lembroaté de ter tido o momentâneovislumbre de uma ideia — umahistória infantil sobre uma baleiaesguichante. Que tal pôr nela onome de Willie? Não, óbvio demais.Mas Wilhelm — este, sim, tinha umsom bem redondo,simultaneamente grandioso e

divertido. Wilhelm, a baleiaesguichante.

Lembro-me do estrondo detrovões lá no alto. Lembro-me decomo eu estava feliz, com a decisãoafinal tomada e com a noite pelaq u a l esperar ansiosamente.Lembro-me do murmúrio doshomens e do murmúrio de Mattieem resposta, dizendo a eles ondecolocar as coisas. Depois ouvi todossaindo novamente.

Olhei para a parte de baixo domeu corpo e vi certo volumediminuindo. Lembro-me de pensarque nada tinha uma aparência tãoabsurda quanto um homem

sexualmente excitado, e sabia queo mesmo pensamento já tinha meocorrido antes, talvez num sonho.Saí do banheiro, chequei Kyranovamente — ela tinha rolado parao lado e adormecido logo — eentão entrei no corredor. Tinhaacabado de chegar à sala de estarquando ouvi os tiros lá fora. Nempor um momento confundi essesom com o dos trovões. Por ummomento ainda passou por minhacabeça que pudessem serestampidos de cano de descarga —o carro envenenado de algumgaroto —, e então eu soube. Partede mim já esperava que algo desse

tipo acontecesse... mas esperavafantasmas e não armas de fogo.Um lapso fatal.

Foi o rápido pa! pa! pa! de umaarma automática — uma Glock denove milímetros, como soubedepois. Mattie deu um grito alto eperfurante que gelou o meusangue. Ouvi John gritar de dor eGeorge Kennedy berrar:

— Abaixe, abaixe! Pelo amor deDeus, abaixe-a.

Alguma coisa atingiu o trailercomo uma forte chuva de granizo —um chocalhar de sonsmatraqueados correndo de oestepara leste. Algo cortou o ar na

frente de meus olhos — eu oescutei. Isso foi acompanhado porum sproing quase musical, comoalguém dedilhando uma corda deviolão. Na mesa da cozinha, a tigelade salada que um deles acabara detrazer se espatifou.

Corri para a porta e quasemergulhei pelos degraus decimento. Vi a churrasqueiraderrubada, com os fumegantescarvões já fazendo manchas nagrama escassa que ardia no pátioda frente. Vi Rommie Bissonettesentado com as pernas estendidas,olhando estupidamente o própriotornozelo ensopado de sangue.

Mattie estava de quatro junto àchurrasqueira, o cabelo caído sobreo rosto — era como se pretendessevarrer os carvões quentes antesque pudessem causar realmenteum problema. John cambaleou emminha direção, a mão esticada. Obraço ligado a ela estavaencharcado de sangue.

Então vi o carro que tinha notadoantes — o indefinido sedã com oadesivo brincalhão. Subiu a estrada— os homens nele dando o primeiropasso para nos aferir —, depoisvirou e voltou. O atirador ainda sedebruçava à janela do passageiroda frente. Eu podia ver a arma

compacta e fumegante em suamão, a coronha feita de filamentosde metal. Os traços do homemeram só um azul vazio interrompidoapenas por enormes olhosarregalados — uma máscara deesquiador.

Lá em cima, os trovões deramum longo rugido que acordou todomundo.

George Kennedy caminhava emdireção ao carro sem se apressar,chutando os carvões quentescuspidos da churrasqueira enquantoandava, sem se preocupar com amancha vermelho-escuraespalhando-se pelo tecido que

cobria sua coxa direita, com a mãopara trás, sem se apressar mesmoquando o atirador recuou e gritou“Vá, vá, vá!” para o motorista quetambém usava uma máscara azul,mesmo assim George continuavaandando sem se apressar, sem seapressar nem um pouquinho, emesmo antes que eu visse a pistolaem sua mão soube por que ele nãotirou o paletó, porque até brincoucom o frisbee sem tirá-lo.

O carro azul (soube-se depoisque era um Ford 1987 registradoem nome da sra. Sonia Belliveau,de Auburn, e cujo roubo tinha sidocomunicado no dia anterior) passou

para o acostamento e não desligouo motor. Agora acelerava, cuspindopoeira marrom e seca com os pneustraseiros, num zigue-zague,derrubando a caixa decorrespondência de Mattie do postee fazendo-a voar até a estrada.

Mesmo assim George não seapressou. Juntou as mãos,segurando a arma com a direita eapoiando-a na esquerda, edeliberadamente disparou cincotiros. Os dois primeiros acertaramna mala — vi os buracos surgirem.O terceiro estourou a janela de trásdo Ford que partia, e ouvi alguémdar um grito de dor. O quarto foi

parar não sei onde. O quintoestourou o pneu esquerdo traseiro.O Ford deu uma guinada para aesquerda. O motorista quaseconseguiu trazê-lo de volta, masperdeu completamente o controledo carro, que mergulhou na vala 30metros depois do trailer de Mattie ecaiu de lado. Ouviu-se um huumpf!e a traseira do veículo foiconsumida pelas chamas. Um dostiros de George deve ter atingido otanque de gasolina. O atiradorcomeçou a lutar para sair pelajanela do passageiro.

— Ki... leve Ki... embora... —Uma voz murmurada e rouca.

Mattie estava se arrastando naminha direção. Um lado de suacabeça — o direito — ainda pareciabem, mas o esquerdo estavadestruído. Um ofuscado olho azulespiava por entre tufos de cabeloensanguentado. Fragmentos decérebro salpicavam seu ombrobronzeado como pedacinhos decerâmica quebrada. Como euadoraria dizer a você que nãolembro nada disso, como adorariaque alguém lhe contasse queMichael Noonan morreu antes dever isso, mas não posso. Ai de mimé a expressão para isso usada naspalavras cruzadas, e que significa

grande tristeza.— Ki... Mike, leve Ki...Ajoelhei e a abracei. Ela lutou

comigo. Era jovem e forte, emesmo com a massa cinzenta deseu cérebro surgindo da paredequebrada do crânio, ela lutoucomigo, chorando pela filha,querendo chegar até ela, protegê-la, colocá-la em segurança.

— Mattie, tudo bem — eu disse.Na igreja batista da Graça, naextremidade longínqua da zona emque eu me encontrava, elescantavam “Blessed Assurance”...mas a maioria dos olhos estavamtão vazios como o olho que agora

me espiava através do emaranhadode cabelo ensanguentado. —Mattie, pare, descanse, está tudobem.

— Ki... pegue Ki... não deixaeles...

— Eles não vão fazer mal a ela,Mattie, eu prometo.

Ela deslizou contra mim,escorregadia como um peixe, egritou o nome da filha, estendendoas mãos ensanguentadas para otrailer. O short e blusa cor-de-rosatingiram-se de um vermelho vivo. Osangue pingava na grama enquantoela se debatia e empurrava. Dacolina houve uma explosão gutural

quando o tanque de gasolina doFord explodiu. Uma fumaça negrasubiu ao céu negro. O trovão rugiuextenso e alto, como se o céudissesse: Querem barulho, é? Euvou lhes dar barulho.

— Diz que Mattie está bem,Mike! — John gritou numa vozhesitante. — Ah, pelo amor deDeus, diz que ela está...

Ele caiu de joelhos a meu lado,os olhos rolando para cima atémostrarem apenas o branco.Estendeu a mão para mim, agarroumeu ombro e então rasgou quase ametade de minha camisa enquantoperdia a batalha para se manter

consciente, caindo de lado próximoa Mattie. Um coágulo de substânciabranca e viscosa borbulhou numcanto de sua boca. A uns 4 metrosde distância, perto da churrasqueiraderrubada, Rommie tentava ficarem pé, os dentes cerrados de dor.George estava em pé no meio daestrada de Wasp Hill, recarregandoa arma de uma bolsa queaparentemente levava no bolso dopaletó e observando o atirador seesforçar para se livrar do Fordvirado antes de o carro ser engolidopelas chamas. Toda a perna direitada calça de George estavavermelha agora. Ele pode

sobreviver, mas jamais usaráaquele terno de novo, pensei.

Abracei Mattie. Abaixei meurosto até ela, levei a boca até aorelha que ainda estava lá e disse:

— Kyra está bem. Está dormindo.Ela está bem, juro que está.

Mattie pareceu entender. Paroude se debater contra mim edesmoronou na grama, o corpointeiro tremendo.

— Ki... Ki... — Foi a últimapalavra que pronunciou nestemundo. Uma de suas mãosestendeu-se às cegas, agarrou umtufo de grama e arrancou-o.

— Aqui — ouvi George dizer. —

Vem até aqui, filho da puta, nempense em virar as costas para mim.

— Ela está muito mal? —perguntou Rommie, mancando, orosto branco como papel. E antesque eu pudesse responder: — Ah,meu Jesus. Santa Maria, mãe deDeus, rogai por nós pecadores,agora e na hora de nossa morte.Abençoado o fruto de Vosso ventre,Jesus. Ó Maria, concebida sempecado, rogai por nós querecorremos a Vós. Ah, não, não,Mike, não. — Começou novamente,desta vez recaindo no francês derua de Lewiston, que a velhaguarda chama de La Parle.

— Deixe isso para lá — falei, eele deixou. Era como se apenasesperasse a ordem. — Entre notrailer e dê uma checada em Kyra.Pode fazer isso?

— Posso. — Começou a andar nadireção do trailer, segurando aperna e cambaleando pelocaminho. Com cada guinada, davaum ganido agudo de dor, mas dealguma forma conseguiu continuar.Eu sentia o cheiro de tufos degrama queimando. Sentia o cheiroda chuva elétrica no vento que selevantava. E sob minhas mãospodia sentir o leve girar do dreidellentamente se esvaindo enquanto

Mattie ia embora.Eu a virei, segurei-a em meus

braços e embalei-a. Na igrejabatista da Graça, o ministro liaagora o Salmo 139 para Royce: “Seeu dissesse: pelo menos as trevasme ocultarão, e a noite, como sefora luz, me há de envolver.” Oministro estava lendo e osmarcianos ouviam. Balancei-a emmeus braços para a frente e paratrás sob as nuvens negras detrovões e relâmpagos. Eu iria aoseu encontro naquela noite, pegariaa chave sob o vaso e iria ao seuencontro. Ela tinha dançado naponta dos pés de tênis brancos em

cima do frisbee vermelho, dançoucomo uma onda no oceano e agoraestava morrendo em meus braços,enquanto a grama queimava empequenos trechos e o homem quetinha ficado tão encantado com elaquanto eu jazia inconsciente a seulado, o braço direito todo pintadode vermelho, da manga curta dacamiseta SOMOS OS CAMPEÕES até opulso ossudo e sardento.

— Mattie — eu disse. — Mattie,Mattie, Mattie. — Embalei-a eacariciei sua testa, que no ladodireito estava miraculosamentelimpa do sangue que a tinhaensopado. Seu cabelo caía pelo

lado esquerdo destruído do rosto.— Mattie — falei. — Mattie, Mattie,ah, Mattie.

Um relâmpago estourou — oprimeiro que eu via. Ele iluminou océu do poente num brilhante arcoazul. Mattie tremia com força emmeus braços — do pescoço aos pésseu corpo inteiro tremia. Os lábiosapertados. A testa franzida comonuma concentração. Sua mão subiue pareceu querer segurar minhanuca, como uma pessoa caindo deum rochedo pode agarrarcegamente qualquer coisa para sesegurar um pouco mais. Então amão se afastou e caiu frouxamente

na grama, a palma para cima.Mattie estremeceu mais uma vez —todo o delicado peso tremeu emmeus braços —, e então seimobilizou.

9 O governo grampeou o banheiro dos homens /na sala de estar da discoteca local / E só o queela quer é dançar, dançar... / Para impedir osrapazes de vender / todas as armas que podemfilar, / E só o que ela quer é dançar, dançar.

Capítulo Vinte e Seis

Depois disso, fiquei a maior partedo tempo na zona. Saía algumasvezes — quando aquele pedaçorabiscado de genealogia caiu de umde meus velhos blocos de notas,por exemplo —, mas tais interlúdioseram breves. De certo modo, eramcomo meu sonho com Mattie, Jo eSara; eram como a febre terrívelque tive quando criança, quandoquase morri de sarampo; eram,

sobretudo, como coisa nenhuma,exceto eles mesmos. Eram apenasa zona. Eu a sentia. Como gostariade não estar fazendo isso.

George se aproximou,pastoreando o homem de máscaraazul à sua frente. George mancavaagora, gravemente. Eu sentia ocheiro de óleo quente, gasolina epneus queimando.

— Ela morreu? — perguntouGeorge. — Mattie?

— Morreu.— E John?— Não sei — respondi, e então

John se torceu e gemeu. Estavavivo, mas continuava perdendo um

bocado de sangue.— Mike, escute — começou

George, mas antes que pudessedizer algo mais, um terrível gritolíquido começou a vir do carroincendiado na vala. Era o motoristasendo cozinhado lá dentro. Oatirador começou a se virar paraaquele lado, mas George levantou aarma.

— Um movimento e eu te mato.— Não pode deixá-lo morrer

assim — disse o atirador por trás damáscara. — Você não deixaria umcachorro morrer assim.

— Ele já está morto — disseGeorge. — Não se pode chegar nem

a 3 metros daquele carro, a não sercom uma roupa de amianto. — Elevacilou. Tinha o rosto branco comoa mancha de chantili que limpei daponta do nariz de Ki. O atirador deua impressão de que ia se jogar emcima dele, mas George levantoumais a arma. — Da próxima vezque se mexer, não pare — disseGeorge —, porque eu não vouparar. Te asseguro. Agora tira essamáscara.

— Não.— Estou farto de você, cara.

Pode se despedir do mundo. —George engatilhou o revólver.

O atirador disse:

— Jesus Cristo — e arrancou amáscara. Era George Footman. Nãome surpreendeu muito. Por trásdele, o motorista deu mais umguincho dentro da bola de fogo doFord e então silenciou. A fumaçasubia em grandes nuvens. Novostrovões rugiram.

— Mike, vá lá dentro e veja seencontra alguma coisa paraamarrá-lo — disse George Kennedy.— Posso segurá-lo mais umminuto... dois, se for preciso, masestou sangrando como um porco.Procure silver tape. Aquela merdasegura até Houdini.

Footman ficou onde estava,

olhando de Kennedy para mim e denovo para Kennedy. Então deu umaespiada para a rodovia 68,sinistramente deserta. Talvez nãofosse tão sinistro na verdade — astempestades a caminho haviamsido bem anunciadas. Os turistas eo pessoal de verão estariamabrigados. Quanto aos habitanteslocais...

Os locais estavam... meio queouvindo. Isso era pelo menosparecido. O pastor falava sobreRoyce Merrill, uma vida longa efrutífera, um homem que serviu aseu país na paz e na guerra, mas opessoal da velha guarda não estava

escutando o ministro. Eles nosescutavam, do mesmo modo comocerta vez tinham se reunido à voltado barril de picles no ArmazémLakeview a fim de escutar ocampeonato de pesos-pesados pelorádio.

Bill Dean segurava tão apertadoo pulso de Yvette que suas unhasestavam brancas. Ele amachucava... mas ela não seque i xava . Queria que ele seagarrasse a ela. Por quê?

— Mike! — A voz de George semostrava perceptivelmente maisfraca. — Por favor, homem, meajude. Esse cara é perigoso.

— Me solte — disse Footman. —É melhor, não acha?

— Vai se foder, seu escroto —disse George.

Eu me levantei, passei pelo vasocom a chave debaixo dele, subi osdegraus de blocos de concreto.Relâmpagos explodiram no céu,seguidos pelo berro do trovão.

Lá dentro, Rommie sentava-senuma cadeira à mesa da cozinha, orosto ainda mais branco do que ode George.

— A criança está bem — disseele, forçando as palavras. — Masparece que vai acordar... não possoandar mais. Meu tornozelo está

totalmente fodido.Andei até o telefone.— Não se dê ao trabalho — disse

Rommie numa voz áspera etrêmula. — Já tentei. Não dá linha.A tempestade já deve ter atingidooutras cidades. Desligou algunsequipamentos. Deus do céu, nuncative nada que doesse tanto comoisso em toda a minha vida.

Fui até às gavetas da cozinha ecomecei a puxá-las uma a uma,procurando silver tape, corda denáilon, qualquer porcaria. SeKennedy desmaiasse pela perda desangue enquanto eu estivesse ali, ooutro George pegaria sua arma, o

mataria, e então mataria Johninconsciente na grama fumegante.Com eles fora do caminho, entrariae dispararia em Rommie e em mim.Terminaria com Kyra.

— Não vai não — eu disse. — Elea deixará viva.

E isso podia ser até pior.Talheres na primeira gaveta.

Sacos para sanduíche, sacos de lixoe pilhas de cupões de armazémimpecavelmente presos por elásticona segunda. Luvas para forno epegadores de panela na terceira...

— Mike, onde está a minhaMattie?

Eu me virei, tão culpado como

um homem flagrado ao misturardrogas ilegais. Em pé naextremidade do corredor que davapara a sala de estar, eu vi Kyra, ocabelo caindo à volta do rostorosado de sono e o prendedorpendurado num pulso como umbracelete. Seus olhos estavamabertos e em pânico. Não foram ostiros que a acordaram,provavelmente nem mesmo o gritoda mãe. Eu a acordei. Meuspensamentos a despertaram.

No instante em que percebi issotentei de alguma forma velá-los,mas era tarde. Ela tinha lido emmim a respeito de Devore

suficientemente bem para me dizerque não pensasse em nada triste, eagora lia o que tinha acontecidocom a mãe antes que eu pudessetirá-lo de minha mente.

Sua boca se abriu, frouxa. Osolhos se arregalaram. Ela deu umgrito agudo, como se tivesse sidopresa num torno, e correu para aporta.

— Não, Kyra, não! — Corri pelacozinha, quase tropeçando emRommie (ele me olhou com aobscura incompreensão de alguémque não está mais completamenteconsciente), e agarrei-a a tempo.Enquanto o fazia, vi Buddy Jellison

deixando a igreja batista por umaporta lateral. Dois dos homens quehaviam fumado com ele tambémsaíram. Então entendi por que Billestava segurando Yvette tãoapertado, e o amei por isso... ameios dois. Alguma coisa queria queele fosse com Buddy e os outros...mas ele não estava indo.

Kyra lutou em meus braços,dando grandes saltos convulsivosna direção da porta, arquejando edepois gritando novamente. Mesolta, quero ver mamãe, me solta,quero ver mamãe, me solta.

Gritei seu nome com a única vozque eu sabia que ela ouviria, a que

só eu podia usar com ela. Pouco apouco relaxou em meus braços e sevirou para mim. Seus olhosestavam enormes, confusos ebrilhantes de lágrimas. Ela meolhou por um momento mais eentão pareceu entender que nãodevia ir lá fora. Eu a pus no chão. Kificou ali um momento, depoisrecuou até que suas costasesbarrassem na lava-louça. Entãodeslizou pela macia frente brancada máquina até o chão. A seguircomeçou a choramingar — os sonsde dor mais terríveis que eu játinha ouvido. Via-se que elacompreendeu totalmente. Tive que

lhe mostrar o suficiente para quecontinuasse dentro de casa, tivemesmo... e porque estávamos nazona juntos, pude fazê-lo.

Num caminhão picape dirigindo-se para este local, vi Buddy e seusamigos . CONSTRUÇÃO BAMM, dizia alateral do veículo.

— Mike! — gritou George,parecendo em pânico. — Depressa!

— Aguenta aí! — gritei emresposta. — Aguenta aí, George!

Mattie e os outros haviamcomeçado a empilhar as coisas dopiquenique ao lado da pia, mastinha quase certeza de que o balcãode fórmica acima das gavetas

estava limpo e vazio quando eucorri para Kyra. Agora não. Orecipiente amarelo do açúcar tinhasido derrubado. Escrito no açúcarderramado vi as palavras:

— Tá brincando — murmurei, e

examinei as gavetas que sobravam.Nada de silver tape ou de corda.Nem mesmo um nojento par dealgemas, e nas cozinhas mais bemequipadas podem-se encontrarumas três ou quatro. Então tiveuma ideia, e procurei no armárioembaixo da pia. Quando voltei parafora, o nosso George oscilava sobas vistas de Footman, que o olhava

com uma concentração predatória.— Achou silver tape — perguntou

George Kennedy.— Não, algo melhor — eu disse.

— Diga aqui, Footman, quem lhepagou? Devore ou Whitmore? Ouvocê não sabe?

— Vai se foder.Eu estava com a mão direita

escondida nas costas. Entãoapontei para a colina com minhamão esquerda e fiz um ar surpreso.

— Que droga Osgood estáfazendo? Diga a ele para ir embora!

Footman olhou na direçãoapontada — foi instintivo — e eubati na parte de trás de sua cabeça

com o martelo encontrado na caixade ferramentas sob a pia de Mattie.O som foi horrível, o borrifo desangue que esguichou do cabeloem movimento foi horrível. Pior doque tudo, porém, foi a sensação docrânio cedendo — um colapsoesponjoso que subiu diretamentedo cabo do martelo até meusdedos. Ele caiu como um saco deareia e eu larguei o martelo,arquejando.

— Certo — disse George. — Umpouco feio, mas provavelmente amelhor coisa que você podia fazernas... atuais... circun...

Ele não caiu como Footman — foi

mais lento e controlado, quasegracioso —, mas estava tãoapagado quanto o outro. Peguei orevólver, o fitei e então o atirei nobosque do outro lado da estrada.Não era bom eu ter uma armanaquele momento; só podia mearranjar mais problemas.

Mais dois homens haviam saídoda igreja; assim como um carrocheio de senhoras de vestidospretos e véus. Tinha que meapressar ainda mais. Desafivelei ascalças de George e desci-as. A balaque o atingiu na perna tinharasgado sua coxa, mas o ferimentoparecia estar coagulando. O braço

de John era outra história — aindabombeava sangue para fora emquantidades assustadoras.Arranquei seu cinto e apertei-o emtorno de seu braço tão forte quantopude. Então dei-lhe uns tapas norosto. Seus olhos se abriram e sefixaram em mim com uma toldadafalta de reconhecimento.

— Abra a boca, John! — Eleapenas me fixava. Debrucei-mepara a frente até que nossosnarizes quase se tocavam e griteiABRA A BOCA! AGORA! Ele a abriu comouma criança quando a enfermeiralhe diz para dizer aahh. Enfiei aponta do cinto entre seus dentes. —

Feche! — Ele fechou a boca. —Agora fique assim. Mesmo que vocêdesmaie, continue assim.

Não tive tempo para ver se eleestava prestando atenção. Levanteie olhei para cima enquanto omundo inteiro ficava de um azulofuscante. Por um segundo foicomo estar dentro de um letreiro anéon. Lá em cima havia umsuspenso rio negro, rolando eziguezagueando como uma cestade serpentes. Eu jamais tinha vistoum céu tão maléfico.

Subi correndo os degraus decimento e entrei no trailer de novo.Rommie tinha desmoronado para a

frente na mesa, o rosto sobre osbraços dobrados. Ele poderiaparecer um professor de jardim deinfância descansando se não fossea tigela de salada quebrada e ospedaços de alface em seu cabelo.Kyra ainda estava sentada com ascostas na lavadora de pratos,chorando histericamente.

Levantei-a e percebi que elatinha se molhado.

— Temos que ir agora, Ki.— Cadê Mattie? Eu quero

mamãe! Eu quero minha Mattie, fazela parar de tá machucada! Faz elaparar de morrer!

Cruzei o trailer depressa. A

caminho da porta, passei pelamesinha com o romance de MaryHiggins Clark. Notei o montinho dasfitas de cabelo de novo — fitastalvez experimentadas antes dareunião e depois descartadas embenefício do prendedor. Erambrancas com bordas vermelhasbrilhantes. Bonitas. Sem parar,peguei-as e enfiei-as no bolso dascalças, depois mudei Ki para meuoutro braço.

— Quero Mattie! Quero mamãe!Faz ela voltar! — Ela me batiatentando me fazer parar, depoiscomeçou a se debater e chutar emmeu colo novamente. Batia com os

punhos nos lados da minha cabeça.— Me põe no chão! Me põe nochão!

— Não, Kyra.— Quero descer! Me põe no

chão! Me põe no chão! QUERO DESCER!

Eu estava perdendo o controledela. Então, quando chegamos aodegrau de cima, ela parouabruptamente de se debater.

— Me dá o Stricken! Quero oStricken!

No início, eu não tinha ideia doque ela estava falando, mas,quando olhei para onde estavaapontando, entendi. No caminho,não longe do vaso que escondia a

chave, estava o brinquedo depelúcia do McLanche Feliz. Pelaaparência, Strickland tinhaaguentado muita brincadeira ao arlivre — o pelo cinza-claro estavaagora cinza-escuro de poeira; masse o brinquedo a acalmava, euqueria que ficasse com ele. Não erao momento de me preocupar comsujeira e germes.

— Vou lhe dar Strickland se vocêprometer fechar os olhos e nãoabrir até eu lhe dizer para abrir.Promete?

— Prometo — disse, tremendoem meu colo, e grandes lágrimasredondas, das que se espera ver

em contos de fadas e nunca na vidareal, surgiram em seus olhos etransbordaram pelo rosto. Eu podiasentir o cheiro de grama queimandoe bife carbonizado. Por ummomento terrível, pensei que iavomitar, mas consegui controlar avontade.

Ki fechou os olhos. Mais duaslágrimas rolaram para o meu braço,quentes. Ela esticou a mão,tateando. Desci os degraus, pegueio cachorro e hesitei. Primeiro asfitas, agora o cachorro. Com as fitastudo bem, provavelmente, mashavia algo errado em lhe dar ocachorro, e que o levasse com ela.

Errado mas...É cinzento, irlandês, a voz de

OVNI sussurrou. Não precisa sepreocupar com ele porque écinzento. O brinquedo de pelúcia deseu sonho era preto.

Eu não sabia exatamente o quea voz queria dizer com aquilo e nãotinha tempo para descobrir.Coloquei o cachorro de pelúcia namão aberta de Kyra. Com os olhosainda fechados, ela o levou ao rostoe beijou-lhe o pelo empoeirado.

— Quem sabe Stricken podefazer mamãe melhorar, Mike.Stricken é um cachorro mágico.

— Continue de olhos fechados.

Não abra até que eu diga que pode.Ela apoiou o rosto no meu

pescoço. Carreguei-a daquele modopelo pátio até o meu carro e ainstalei na frente, no banco depassageiro. Ela se deitou cobrindo acabeça com os braços, e uma dasmãos gorduchas agarrava ocachorro de pelúcia sujo. Eu lhedisse para ficar exatamente assim,deitada no banco. Apesar de nãome dar nenhum sinal externo deque tinha me ouvido, eu sabia quesim.

Tínhamos que correr porque avelha guarda estava chegando. Avelha guarda queria terminar o

negócio, queria que aquele riochegasse ao mar. E só havia umlugar para onde pudéssemos ir,onde pudéssemos estar seguros, eesse lugar era Sara Laughs. Masantes eu tinha algo a fazer.

Eu guardava um cobertor velhomas limpo na mala do carro.Peguei-o, atravessei o pátio e oestendi sobre Mattie Devore. Aelevação que encobriu ao descersobre ela era dolorosamentediminuta. Olhei em volta e vi Johnme fitando. Apesar de seus olhosestarem vidrados pelo choque,achei que talvez ele estivesserecobrando a consciência. Ainda

continuava com o cinto entre osdentes; parecia um drogadopreparando-se para a injeção.

— Nã pod taa acontcend — disseele. — Não pode estaracontecendo. Eu sabia exatamentecomo se sentia.

— A ajuda vai chegar em algunsminutos. Aguenta aí. Eu tenho queir embora.

— Ir oond?Não respondi. Não tinha tempo.

Parei e tomei o pulso de George.Lento, mas firme. A seu lado,Footman, embora profundamenteinconsciente, murmurava algoininteligível. De modo nenhum à

beira da morte. É preciso muitopara matar um machão. O ventoirregular soprou a fumaça do carroderrubado na minha direção, epude sentir o cheiro de carnecozinhando, assim como dechurrasco de filé. Meu estômago serevirou.

Corri para o Chevy, deixei-mecair atrás do volante e dei marcha aré na entrada de carros. Dei maisuma olhada no corpo com ocobertor, para os três homensderrubados, para o trailer com alinha de furos negros de balasondulando por sua lateral e a portaescancarada. John estava apoiado

no cotovelo bom, a ponta do cintoainda nos dentes, olhando paramim com olhos que nãocompreendiam. Um relâmpago tãofulgurante rasgou o céu que tenteiproteger os olhos, mas quandominha mão chegou ao alto orelâmpago já se fora e o diacontinuava tão escuro quanto umcrepúsculo no fim.

— Fique abaixada, Ki — eu disse.— Continue assim.

— Não tô ouvindo — respondeu,a voz tão rouca de lágrimas quequase não consegui distinguir suaspalavras. — Ki tá tirando umasoneca com Stricken.

— Tudo bem — eu disse. —Ótimo.

Passei de carro pelo Ford queardia e rodei até o início da colina,onde parei diante da enferrujadaplaca de PARE perfurada de balas.Olhei para a direita e vi o caminhãopicape estacionado noacostamento; CONSTRUÇÃO BAMM, era ainscrição na sua lateral. Dentrodele, três homens me observavam.O que estava à janela dopassageiro era Buddy Jellison,podia identificá-lo pelo chapéu.Muito lenta e deliberadamente,ergui a mão direita e mostrei-lhes odedo médio. Nenhum deles

respondeu, seus rostos de pedranão se modificaram, mas a picapecomeçou a rodar lentamente naminha direção.

Virei à esquerda para a 68,dirigindo-me à Sara Laughs sob umcéu negro.

A pouco mais de 3 quilômetros,onde a estrada 42 se bifurca narodovia e vira a oeste para o lago,via-se uma velha granjaabandonada na qual ainda sedistinguia, em letras desbotadas, oletreiro LATICÍNIOS DONCASTER. À medidaque nos aproximávamos dela, todo

o lado leste do céu se iluminounuma bolha branco-púrpura. Eugritei e a buzina do Chevy soou —sozinha, tenho quase certeza. Umzigue-zague de raio surgiu do fundoda bolha de luz e atingiu a granja.Por um momento, a construçãoainda permaneceu totalmente lá,fulgurando como algo radioativo;então explodiu em todas asdireções. Nunca vi nada sequerremotamente parecido àquilo, anão ser em filmes. O estrondo detrovão que se seguiu foi como oestouro de uma bomba. Kyra gritoue escorregou para o chão a meulado no carro, as mãos tapando os

ouvidos. Numa delas aindaagarrava o cachorrinho de pelúcia.

Um minuto depois cheguei aoalto da crista Sugar Ridge. Aestrada 42 se abre à esquerdavindo da rodovia no fundo dodeclive norte da crista. Do alto, eupodia ver uma ampla faixa da TR-90 — bosques, campos, granjas efazendas, e até mesmo o cintilarsombrio do lago. O céu estavanegro como pó de carvão,iluminado quase constantementepor relâmpagos internos. O ar tinhaum claro fulgor ocre. Cada vez queeu respirava, sentia o gosto deserragem numa caixa de metal. A

topografia além da cristadestacava-se numa claridadesurreal que não consigo esquecer.Uma sensação de mistério tomoumeu coração e minha mente, umasensação do mundo como uma pelefina esticada sobre ossaturas eabismos enigmáticos.

Olhei pelo retrovisor e vi quedois outros carros haviam sejuntado à picape, um com umaplaca V, o que significava que oveículo tinha sido registrado por umveterano das Forças Armadas.Quando diminuí a velocidade, elesdiminuíram também. Quando aaumentei, também o fizeram. Mas

eu duvidava que continuassem ame seguir mais longe quando euvirasse para a 42.

— Ki? Tudo bem?— Mimindo — disse ela do chão

do carro.— Tá — falei, e comecei a descer

a colina.Quase não enxerguei os faróis da

bicicleta vermelha ao fazer a curvapara a 42 quando o granizocomeçou — grandes pedaços degelo branco que caíam do céu,tamborilavam no teto do carrocomo dedos pesados e quicavampara fora da capota. Começaram ase amontoar na parte de baixo,

onde ficam os limpadores de para-brisa.

— O que que tá acontecendo? —gritou Kyra.

— É só granizo — eu disse. —Não vai nos machucar. — Tinhaacabado de pronunciar a frasequando uma pedra de granizo dotamanho de um limão pequenoatingiu meu lado do para-brisa edepois quicou alto para o ar denovo, deixando uma marca brancade onde se irradiavam inúmerasrachaduras curtas. John e GeorgeKennedy estariam deitados lá foradebaixo disso? Virei a mentenaquela direção, mas não consegui

apreender nada.Quando entrei à esquerda para a

42, a chuva de granizo era tantaque quase não havia visibilidade.Os sulcos das rodas estavam cheiosde gelo. Contudo, o branco diminuíasob as árvores. Dirigi-me paraaquela cobertura, ligando eapagando os faróis ao fazê-lo. Elesjogavam brilhantes cones de luz nogranizo caído.

Quando entramos sob asárvores, a bolha branco-púrpurafulgurou novamente, tornando meuespelho retrovisor brilhante demaispara que eu pudesse olhar por ele.Ouviu-se um choque e um estalo

lacerante. Kyra gritou de novo.Olhei em volta e vi um enorme evelho abeto caindo lentamenteatravés da pista, seu toco denteadoem fogo, arrastando os fioselétricos consigo.

Estamos bloqueados, pensei.Nesta ponta, e provavelmente naoutra também. Estamos aqui. Parao bem e para o mal, estamos aqui.

As árvores cresciam sobre aestrada 42 num dossel, exceto naestrada que passava ao lado doprado de Tidwell. O barulho dogranizo no bosque produzia umtinido estilhaçante. Claro que asárvores estavam se estilhaçando;

era a chuva de granizo mais danosaa cair naquela parte do mundo e,apesar de passar em 15 minutos,foi suficiente para estragar toda atemporada de safras.

O relâmpago cortou o ar acimade nós. Levantei os olhos e vi umagrande bola cor de laranjaperseguida por uma menor. Elascorreram pelas árvores à nossaesquerda, ateando fogo em algunsramos altos. Chegamosrapidamente ao abrigo no prado deTidwell, e enquanto o fazíamos, ogranizo se transformou numa chuvatorrencial. Eu não poderia tercontinuado a dirigir se não

tivéssemos corrido de volta aobosque imediatamente; mesmoassim, o dossel forneceu coberturasuficiente apenas para que eupudesse me arrastar sob ele,curvado ao volante e vendo acortina de chuva cair através dovidro dos faróis. Os trovõesestouravam constantemente; entãoo vento começou a soprar forte,passando pelas árvores como umavoz barulhenta. Um galho pesadode folhas caiu na estrada à minhafrente. Passei por cima dele e oescutei estalar, arranhar e rolarcontra a parte de baixo do Chevy.

Por favor, nada maior do que

isso, pensei... ou talvez estivesserezando. Por favor, me deixe chegarem casa. Por favor, nos deixechegar em casa.

Quando alcancei a entrada decarros, o vento tinha setransformado num furacão uivante.As árvores que se torciam e a chuvamatraqueando faziam o mundointeiro parecer prestes a desfazer-se num mingau ralo. O declive daentrada de carros se transformounum rio, mas enfiei a dianteira docarro por ela sem qualquerhesitação — não podíamos ficaraqui fora; se uma árvore grandecaísse em cima do carro, seríamos

esmagados como insetos sob umachinelada.

Sabia muito bem que não podiausar o freio — o carro teriaderrapado e talvez fosse varridopelo declive abaixo na direção dolago, rolando repetidamente até lá.Em vez disso, passei a mudançapara a marcha lenta, acioneilevemente o freio de mão e deixei omotor nos empurrar para baixo,com a chuva batendo como umacortina no para-brisa etransformando o vulto da casa detroncos num fantasma.Inacreditavelmente, algumas luzespermaneciam acesas, brilhando

como escotilhas de uma batisferasob 3 metros d’água. Então, ogerador estava funcionando... pelomenos por enquanto.

Os relâmpagos lançaram-sesobre o lago, fogo azul-esverdeadoiluminando um poço escuro de águacom a superfície cortada em ondasespumosas. Um dos pinheiroscentenários à esquerda dos degrausde dormentes de estrada de ferrojazia agora com metade de seucomprimento dentro d’água. Emalgum ponto atrás de nós, outraárvore caiu com grande estrondo.Kyra cobriu as orelhas.

— Tudo bem, querida — eu

disse. — Estamos aqui,conseguimos chegar.

Desliguei o motor e apaguei osfaróis. Sem eles, pouco podia ver;quase toda a luz tinha desaparecidodo dia. Tentei abrir a porta do carroe no início não consegui. Empurreicom mais força e ela não só abriucomo foi arrancada da minha mão.Saí e, num brilhante fulgor derelâmpago, vi Kyra se arrastandono assento na minha direção, orosto branco de pânico, os olhosarregalados e cheios de terror.Minha porta bateu de volta e megolpeou o traseiro com forçasuficiente para machucar. Ignorei a

dor, peguei Kyra no colo e me vireicom ela. A chuva gelada nosensopou num instante. Na realidadenão era absolutamente como estardebaixo da chuva; era como entrarsob uma cachoeira.

— Meu cachorrinho! — berrouKyra. Apesar do grito, quase nãoconsegui ouvi-la. Mas podia ver seurosto, e suas mãos vazias. —Stricken! Deixei Stricken cair!

Olhei em volta e lá estava ele,flutuando pelo macadame daentrada de carro, depois doalpendre. Um pouco mais adiante, aágua escorrendo era cuspida dopavimento e descia o declive; se

Strickland fosse com a enxurrada,provavelmente acabaria em algumponto do bosque. Ou desceria todoo caminho até o lago.

— Stricken! — soluçou Kyra. —Meu CACHORRINHO!

De repente nada passou a terimportância para nós senão oestúpido brinquedo de pelúcia.Palmilhei a entrada de carros atrásdele com Ki nos braços, esquecidoda chuva, do vento e dos clarõesbrilhantes dos relâmpagos. Emesmo assim eu ia ser derrotadono declive — a água que tinhacapturado o brinquedo corria rápidodemais para que eu o alcançasse.

O que o impediu de ir além dabeira do pavimento foi um trio degirassóis oscilando selvagementeao vento. Pareciam membros deuma seita religiosa tomados peloêxtase por Deus: Obrigado, Jesus!Aleluia, Senhor! Pareciam tambémfamiliares. Era impossível serem osmesmos três girassóis que haviamcrescido por entre as tábuas doalpendre no meu sonho (e na fotoque Bill Dean tirara antes de minhavolta), claro, e ainda assim erameles; sem dúvida nenhuma erameles. Três girassóis como as trêsirmãs esquisitas em Macbeth, trêsgirassóis com faces como faróis. Eu

tinha voltado a Sara Laughs; estavana zona; voltei a meu sonho, edesta vez ele me possuía.

— Stricken! — Ki se dobrava e seagitava no meu colo, ela e euescorregadios demais para nossasegurança. — Por favor, Mike, porfavor!

Um trovão explodiu lá em cimacomo uma cesta de nitroglicerina.Nós dois gritamos. Deixei-me cairnum joelho e peguei o pequenocachorro de pelúcia. Kyra o agarrou,cobrindo-o de beijos frenéticos.Cambaleei para cima e fiquei em péenquanto outro trovão estourava,este parecendo percorrer o ar como

um louco chicote líquido. Fitei osgirassóis e tive a impressão de queme olhavam também — Alô,irlandês, há quanto tempo, o que éque me diz? Então, reacomodandoKi nos braços tão bem quantopodia, virei-me e chapinhei emdireção à casa. Não era fácil; aágua na entrada de carros estavaagora à altura do tornozelo e cheiade granizo que derretia. Um galhopassou voando por nós e aterrissoubem perto de onde eu tinha meajoelhado para pegar Strickland.Houve um ruído de colisão e umasérie de baques quando um galhomaior caiu sobre o telhado, rolando

dali para baixo.Entrei correndo no alpendre de

trás, um tanto na expectativa dever a Forma se atirando velozmentepara fora para nos receber,erguendo os flácidos não braços emmedonhas boas-vindas. Mas nãohavia Forma nenhuma. Haviaapenas a tempestade, e já erasuficiente.

Ki agarrava o cachorro bemapertado, e vi sem nenhumasurpresa que a umidade unida àsujeira de todas aquelas horas debrinquedo ao ar livre tinham feitoStrickland ficar preto. No final dascontas, era o que eu tinha visto no

sonho.Tarde demais agora. Não havia

mais nenhum outro lugar para se ir,nenhum outro abrigo contra atempestade. Abri a porta e leveiKyra Devore para dentro de SaraLaughs.

A parte central de Sara — o coraçãoda casa — aguentou por quase cemanos e já teve sua cota detempestades. A que caía na regiãodos lagos naquela tarde de julhopode ter sido a pior de todas, masvi, assim que entramos, arquejandocomo alguém que escapou por

pouco de se afogar, que a casasuportaria também aquela. Suasparedes de tronco eram tãoespessas que entrar ali era quasecomo entrar numa espécie decripta. Os estrondos e pancadas datempestade transformaram-se numzumbido ruidoso pontuado pelastrovoadas e o ocasional e fortebaque surdo de um galho caindosobre o telhado. Em algum lugar —no porão, acho eu — uma porta seabriu e ficou batendo. Parecia apistola de um juiz dando a largada.A janela da cozinha tinha sidoquebrada pelo desabamento deuma pequena árvore. Sua ponta

perfurante se erguia sobre o fogão,fazendo sombras nos queimadorese no balcão ao oscilar. Pensei emquebrá-la, mas decidi não fazê-lo.Pelo menos estava tapando oburaco.

Levei Ki para a sala de estar eolhamos para o lago lá fora, águanegra decorada com pontossurrealistas sob um céu negro. Osraios lampejavam quaseconstantemente, revelando um anelde bosques que dançavam ebalançavam num frenesi em tornodo lago. Por mais sólida que fosse acasa, ela gemia profundamente pordentro enquanto o vento a agredia

com os punhos fechados e tentavaempurrá-la colina abaixo.

Ouvi um tilintar suave econtínuo. Kyra ergueu a cabeça demeu ombro e olhou em volta.

— Você tem um alce — disse ela.— Tenho, é o Bunter.— Ele morde?— Não, meu amor, não morde,

não. É como uma... como umaboneca, acho.

— Por que o sino dele estátocando?

— Ele ficou contente porestarmos aqui. Ficou contente de agente ter vindo.

Vi que ela queria se sentir feliz, e

então vi sua percepção de queMattie não estava ali para sentir-sefeliz com ela. Vi a ideia de queMattie nunca mais estaria ali paraser feliz com ela lhe atravessar amente... e senti que a afastava.Sobre nossas cabeças, alguma coisaimensa caiu sobre o telhado, asluzes tremeluziram e Ki começou achorar de novo.

— Não, meu bem — eu disse,começando a andar com ela. —Não, meu bem, não Ki, não. Não,meu bem, não.

— Quero minha mãe! Querominha Mattie!

Andei com ela no colo como se

anda com os bebês com cólica. Elacompreendia demais para umamenina de 3 anos, econsequentemente seu sofrimentoera mais terrível do que o dequalquer outra criança dessa idade.Assim, eu a carregava e andava deum lado para outro com ela, seushort úmido de urina e chuva sob asminhas mãos, seus braços febris emtorno de meu pescoço, asbochechas manchadas de meleca elágrimas, o cabelo uma massaensopada por nossa breve corridasob o aguaceiro, a respiração ácida,o brinquedo de pelúcia umamaçaroca preta e estrangulada que

deixava sair uma água suja porentre os dedos de Ki. Andei com elapara a frente e para trás na sala deestar de Sara Laughs, para a frentee para trás à luz fraca fornecidapela única lâmpada que brilhava doteto. A luz de gerador nunca émuito firme, nunca muito estável —parece respirar e suspirar. Para afrente e para trás ao som baixo eincessante do sino de Bunter, comomúsica daquele mundo que àsvezes tocamos, mas que nuncavemos na realidade. Para a frente epara trás ao som da tempestade.Acho que cantei para ela, e sei quea toquei com minha mente e

entramos cada vez maisprofundamente naquela zonajuntos. Acima de nós, as nuvenscorriam e a chuva tamborilava,molhando os incêndios que osrelâmpagos haviam iniciado nobosque. A casa gemeu, o ar semovia como redemoinho, emlufadas, penetrando pela janelaquebrada da cozinha; através detudo aquilo, porém, havia umasensação de triste segurança. Umasensação de voltar para casa.

Finalmente as lágrimascomeçaram a arrefecer. Ki ficoudeitada com o rosto e o peso desua cabeça em meu ombro, e,

quando passávamos pelas janelasdando para o lago, eu reparava emseus olhos fitando a tempestadenegro-prateada lá fora, arregaladose sem piscar. Quem a carregava eraum homem alto começando aperder cabelo. Notei que eu podiaver a mesa da sala de jantar bematravés de nós. Nossos reflexos jásão fantasmas, pensei.

— Ki? Quer comer alguma coisa?— Não tô com fome.— Que tal um copo de leite?— Não, chocolate. Tô com frio.— Eu sei que está. E tenho

chocolate.Tentei colocá-la no chão, mas

ela se agarrou em mim com oaperto do pânico, aferrando-se ameu corpo com as perninhasgorduchas. Icei-a para o colonovamente, desta vez instalando-aem meu quadril, e ela se aquietou.

— Quem está aqui? —perguntou. Ela tinha começado atremer. — Quem está aqui além dagente?

— Não sei.— Tem um menino — disse ela.

— Vi ele lá. — Apontou comStrickland para a porta de vidro decorrer que dava para o deck (todasas cadeiras lá fora haviam sidoderrubadas e atiradas contra os

cantos; faltava uma delas,aparentemente impelida por cimada balaustrada). — Era negro comonaquele programa engraçado queMattie e eu assistimos. Tem outrosnegros também. Uma mulher dechapéu grande. Um homem decalça azul. O resto é difícil ver. Maseles vigiam a gente. Vigiam agente. Não tá vendo eles?

— Não podem nos fazer mal.— Tem certeza? Tem, não tem?Não respondi.Encontrei uma caixa de chocolate

em pó instantâneo escondida atrásdo pote de farinha de trigo, abri umdos pacotinhos individuais e

derramei-o numa xícara. Um trovãoestalou com força lá em cima. Kideu um pulo no meu colo e emitiuum longo e infeliz choramingo.Abracei-a e beijei-a na bochecha.

— Não me põe no chão, Mike, tôcom medo.

— Não vou pôr. Você é a minhaboa menina.

— Tenho medo do menino, dohomem de calça azul e da mulher.Acho que é a mulher que estavacom o vestido de Mattie. Eles sãofantasminhas?

— São.— São maus, como os homens

que perseguiram a gente na feira?

São?— Não sei bem, Ki, e é verdade.— Mas vamos descobrir.— Hã?— Isso que você pensou. “Mas

vamos descobrir.”— É — eu disse. — Acho que

estava pensando isso. Alguma coisaparecida.

Levei-a para o quarto principalenquanto a água esquentava nachaleira, achando que poderia tersobrado alguma roupa de Jo comque eu pudesse vesti-la, mas todasas gavetas da cômoda de Jo

estavam vazias. Assim como aparte dela no armário. Pus Ki em péna grande cama de casal em queeu havia tirado apenas um cochilodepois que voltei, despi suasroupas, levei-a para o banheiro eembrulhei-a numa toalha de banho.Ela se enrolou na toalha, tremendo,com os lábios roxos. Usei outrapara secar o seu cabelo da melhorforma que pude. Durante tudo isso,ela não soltou nem uma vez ocachorro de pelúcia, que agoracomeçava a expelir o recheio porsuas costuras.

Abri o armário dos remédios,remexi por ali e encontrei o que

procurava no alto da prateleira: oBenadryl que Jo sempre tinha porperto para sua alergia a pólen.Pensei em checar a data devalidade no fundo da caixa, mas aseguir quase ri alto. Que diferençafaria? Instalei Ki no assento fechadodo vaso e deixei que segurassemeu pescoço enquanto eu retiravaa tampa à prova de criança epescava quatro cápsulas cor-de-rosa e branco. Então enxaguei ocopo de escovar os dentes e enchi-o de água fria. Ao fazê-lo noteimovimento no espelho do banheiro,espelho que refletia a entrada e oquarto principal mais adiante. Disse

a mim mesmo que estava vendoapenas as sombras das árvoressopradas pelo vento. Ofereci ascápsulas a Ki. Ela as pegou e entãohesitou.

— Tome — eu disse. — Éremédio.

— Que remédio? — Suamãozinha ainda estava pousadasobre o punhado de cápsulas.

— Remédio para tristeza — eudisse. — Você sabe engolircomprimidos, Ki?

— Claro. Aprendi sozinha quandotinha 2 anos.

Ela hesitou mais um momento —olhando para mim e dentro de mim,

acho, certificando-se de que euestava lhe dizendo algo em querealmente acreditava. O que viu ousentiu deve tê-la deixado satisfeita,porque ela pegou os comprimidos eos colocou na boca, uma depois daoutra. Engoliu-os com pequenosgolinhos do copo e então disse:

— Ainda tô triste, Mike.— Leva um tempo para fazer

efeito.Remexi na minha gaveta de

camisas e encontrei uma velhacamiseta Harley-Davidson que tinhaencolhido. Ainda era quilômetrosgrande demais para ela, mas,quando a amarrei num nó lateral,

ficou parecendo um sarongue quecontinuava escorregando por um deseus ombros. Era quase bonitinho.

Levo sempre um pente no bolsode trás. Peguei-o e afastei o cabelode Ki de sua testa. Ela começava aparecer mais serena agora, masalgo ainda faltava. Algo que, emminha mente, se relacionava comRoyce Merrill. Mas isso era umamaluquice... não era?

— Mike? Que bengala? Quebengala é essa que você tápensando?

Então me ocorreu.— Uma bengala doce — eu disse.

— Aquela com listas. — Peguei do

bolso as duas fitas brancas. Suasbordas vermelhas pareciam quasecruas à luz instável. — Como essas.— Amarrei seu cabelo para trás emdois pequenos rabos de cavalo.Agora Ki tinha as fitas; o cachorropreto; e os girassóis tinham sedeslocado quase um metro para onorte, mas estavam lá. Tudo estavamais ou menos como deveria.

Trovões estouraram com força;em algum lugar, uma árvoredespencou e as luzes se apagaram.Após cinco segundos de sombrascinza-escuro, voltaram de novo.Levei Ki novamente para a cozinhae, ao passarmos pela porta do

porão, alguma coisa riu por trásdela. Eu ouvi; Ki também, pude verque sim pela expressão de seusolhos.

— Toma conta de mim — disseela. — Toma conta de mim porqueeu sou pequenininha. Vocêprometeu.

— Vou tomar.— Eu amo você, Mike.— Eu também amo você, Ki.A chaleira estava soprando. Pus

água quente na xícara até ametade e depois a enchi com leite,esfriando-a e fazendo com que abebida ficasse mais forte. LeveiKyra para o sofá. Enquanto

passávamos pela mesa da sala dejantar, dei uma olhada na máquinade escrever IBM e no manuscritocom o livro de palavras cruzadasem cima. Tais coisas pareciamvagamente tolas e de certo modotristes, como aparelhos que nuncatrabalharam muito bem e agoranão funcionavam.

Um relâmpago iluminou o céuinteiro, lavando a sala de luzpúrpura. Ao clarão, as árvoresdesatinadas pareciam dedos setorcendo e, quando a luzatravessou o vidro da porta decorrer que dava para o deck, vi umamulher em pé atrás de nós, junto

ao aquecedor à lenha. Usava umchapéu de palha com a aba dotamanho de uma roda de carroça.

— O que que é “o rio tá quase nomar” que você tá dizendo? —perguntou Ki.

Sentei e lhe entreguei a xícara.— Beba.— Por que os homens

machucaram mamãe? Não queriamque ela se divertisse?

— Acho que não — respondi.Comecei a chorar. Eu segurava Kiem meu colo e enxugava aslágrimas com as costas da mão.

— Cê também devia ter tomadoremédio pra tristeza — disse.

Estendeu o chocolate. As fitas comque tinha amarrado seu cabelo emgrandes laços malfeitos sacudiram-se.

— Toma. Bebe um pouquinho.Bebi um pouquinho. Da

extremidade norte da casa chegououtro estrondo dilacerante. O ruídobaixo do gerador falhou e a casamergulhou na penumbra cinzentade novo. Sombras correram pelorostinho de Ki.

— Aguente aí — falei. — Tentenão ficar assustada. Talvez as luzesvoltem. — No momento seguinte,voltaram, embora eu pudesse ouviragora uma nota desigual no ruído

do gerador e o bruxulear das luzesfosse muito mais nítido.

— Conta uma história — disse Ki.— Conta a Cinerela.

— Cinderela.— É, essa.— Está bem, mas os contadores

de história são pagos. — Franzi oslábios e fiz um som de beber.

Ela estendeu a xícara. Ochocolate estava doce e gostoso. Asensação de ser observado eraforte e nada doce, mas queobservassem. Que observassemenquanto podiam.

— Havia uma moça bonitachamada Cinderela...

— Era uma vez! É assim quecomeça! É assim que todascomeçam!

— Tem razão, eu esqueci. Erauma vez uma moça bonita chamadaCinderela, que tinha duas meias-irmãs malvadas. Os nomes delaseram... você lembra?

— Tammy Faye e Vanna.— É, as Rainhas do Spray de

Cabelo. E elas obrigavam Cinderelaa fazer tudo que era desagradável,como varrer a lareira e limpar ococô do cachorro no quintal. Entãoum dia a conhecida banda de rockOasis ia se apresentar no palácio, eapesar de todas as moças terem

sido convidadas...Cheguei até a parte em que a

fada madrinha pega o camundongoe o transforma numa limusineMercedes antes de o Benadryl fazerefeito. Era mesmo um remédio paraa tristeza; quando olhei de novopara Ki, ela dormia profundamentena dobra do meu braço, a xícara dechocolate inclinada radicalmentepara o lado. Peguei a xícara ecoloquei-a na mesinha de centro;depois afastei o cabelo quase secoda testa de Ki.

— Ki?Nada. Partira para a Terra do

Cochilo. Provavelmente ajudada

pelo fato de que sua soneca datarde tivesse terminado quaseantes de começar.

Levantei-a e a carreguei para oquarto norte, seus pés balançandofrouxamente no ar, a bainha dacamiseta sacudindo nos joelhos.Coloquei-a na cama e puxei acoberta até seu queixo. Trovõesestouravam como fogo deartilharia, mas Ki sequer se mexeu.Exaustão, dor e Benadryl a tinhamlevado para bem longe, bem alémde fantasmas e tristeza, e isso erabom.

Debrucei-me e lhe beijei o rosto,que finalmente tinha começado a

esfriar.— Vou tomar conta de você —

falei. — Prometi e vou tomar.Como se me ouvisse, Ki se virou

de lado, pôs a mão segurandoStrickland sob o maxilar e emitiuum suave suspiro. Suas pestanaseram fuligem escura contra asfaces, num surpreendente contrastecom os cabelos claros. Olhando-a,eu me senti tomado de amor,abalado por ele como se é abaladopor uma doença.

Tome conta de mim, eu soupequenininha.

— Vou tomar, bichinho — falei.Entrei no banheiro e comecei a

encher a banheira do mesmo modoque no meu sonho. Ela dormiriadurante toda a coisa se euconseguisse água quente suficienteantes que o gerador pifassecompletamente. Gostaria de ter umbrinquedo de borracha para lhe darcaso acordasse, algo como Wilhelm,a Baleia Esguichante; mas Ki tinhaseu cachorro e, de qualquer modo,provavelmente não acordaria. Nadade batismo congelante debaixo deuma bomba de mão para Kyra. Eunão era cruel, e não era louco.

Só tinha navalhas descartáveisno armário de remédios, nada bompara o outro trabalho à minha

frente. Não eram bastanteeficientes. Mas uma das facas decarne da cozinha serviria. Seenchesse a banheira com águaquente de verdade, eu nem mesmosentiria o que fizesse. Uma letra Tem cada braço, a barra de cimariscada atravessando os pulsos...

Por um momento saí da zona.Uma voz — a minha própria,falando como uma combinação deJo e Mattie — gritou: Em que estápensando? Ah, Mike, pelo amor deDeus, em que está pensando?

Então os trovões chocaram-secom estrondo, as luzes vacilaram ea chuva começou a desabar de

novo, impelida pelo vento. Voltei aolugar onde tudo era claro, e meurumo indiscutível. Que tudoterminasse — a tristeza, a mágoa,o medo. Eu não queria pensar maisem como Mattie tinha dançado naponta dos pés sobre o disco deplástico, como se ele fosse umholofote. Não queria estar láquando Kyra acordasse, não queriaver a infelicidade encher seus olhos.Não queria atravessar a noiteadiante, o dia que chegaria depoisdela ou o que viria depois daquele.Eram todos vagões no mesmo velhotrem de mistério. A vida era umadoença. Eu ia dar um bom banho

quente em Ki e curá-la daquilo.Levantei os braços. No espelho doarmário de remédios, uma figuraobscura — uma Forma — ergueu osbraços numa espécie de saudaçãode brincadeira. Era eu; tinha sidoeu o tempo todo. Tudo bem. Tudosimplesmente ótimo.

Dobrei um joelho e chequei a água.Estava saindo gostosa e quente.Ótimo. Mesmo que o geradorpifasse agora, tudo bem. Abanheira era antiga e profunda.Enquanto ia até a cozinha pegar afaca, pensei em entrar com Kyra na

água depois de ter terminado decortar meus pulsos na água maisquente da banheira. Não, decidi.Isso podia ser mal-interpretadopelas pessoas que chegassemdepois, gente de mente suja esuposições mais sujas ainda. As queviriam quando a tempestadecessasse e as árvores caídas naestrada já tivessem sido removidas.Não, depois de seu banho eu aenxugaria e a colocaria de volta nacama com Strickland na mão.Sentaria na outra extremidade doquarto onde ela se encontrava, nacadeira de balanço junto às janelas.Estenderia algumas toalhas no colo

para manter o máximo de sanguepossível longe de minhas calças, eentão dormiria também.

O sino de Bunter ainda tocava.Muito mais alto agora. Estavairritando meus nervos e, secontinuasse daquele jeito, poderiaaté acordar a criança. Resolviarrancá-lo e silenciá-lo de uma vez.Atravessei o quarto e enquanto ofazia era golpeado por fortesrajadas de ar. Não era uma brisaentrando pela janela quebrada dacozinha; era outra vez a golfada dear quente do metrô. Varreu o Níveldifícil para ao chão, mas o peso depapel em cima do manuscrito

impediu que as páginas soltasvoassem. Quando olhei naqueladireção, o sino de Bunter silenciou.

Uma voz suspirou na obscuridadedo quarto palavras que nãoconsegui entender. E qual aimportância? Que importância teriamais uma manifestação — maisuma explosão de ar quente doGrande Além?

Trovões estouraram e o suspirose manifestou novamente. Destavez, quando o gerador pifou e asluzes se apagaram mergulhando oquarto na penumbra cinzenta,consegui entender claramente umapalavra:

Dezenove.

Girei, fazendo um círculo completo.Acabei olhando através do quartosombrio para o manuscrito de Meuamigo de infância. Subitamente aluz se fez. A compreensão chegou.

Não era o livro de palavrascruzadas. Nem a lista telefônica.

Era o meu livro. Meu manuscrito.Fui até ele, vagamente

consciente de que a água tinhaparado de correr na banheira da alanorte. Quando o gerador pifou, abomba parou. Tudo bem, já teriabastante água. E quente. Ia dar o

banho em Kyra, mas antes eu tinhaque fazer uma coisa. Tinha que ir a19 e depois devia ir a 92. E podiafazê-lo. Já tinha escrito 120 páginasdo manuscrito, portanto, podiafazê-lo. Peguei a lanterna de pilhade cima do armário onde aindaguardava centenas de discos devinil, liguei-a e coloquei-a na mesa.A luz jogou um círculo branco eradiante sobre o manuscrito — natarde sombria, era tão brilhantequanto um holofote.

Na página 19 de Meu amigo deinfância, Tiffi Taylor — a call-girlque tinha se reinventado comoRegina Whiting — estava em seu

estúdio com Andy Drake,relembrando o dia em que JohnSanborn (o pseudônimo de JohnShackleford) salvou sua filha de 3anos, Karen. Este foi o trecho que lienquanto os trovões ribombavam ea chuva chicoteava novamente aporta de correr que dava para odeck:

AMIGO, de Noonan/Pág. 19“Com certeza era daquele lado”, ela

disse,

“o problema é que não consegui vê-la

em lugar nenhum. Então fui

rapidamente até a hidromassagem.” Ela

acendeu

um cigarro. “O que eu vi me deu

vontade de gritar, Andy. A Karen

jazia debaixo d’água. De fora vi

apenas a mão dela...

As unhas ficando roxas. Depois... Acho

que mergulhei, mas não lembro. Estava

simplesmente fora do ar. A partir dali

tudo é como um

sonho onde as coisas se atropelam na

minha mente.

O jardineiro — Sanborn — me empurrou

para o lado e mergulhou na

banheira. O pé dele me atingiu na

garganta e por uma semana não pude

engolir. Ele deu um puxão no braço da

Karen

sem controlar a força. Quando vi o

movimento,

tive certeza de que deslocaria o braço

dela, mas ele a pegou. Com um

único e brusco puxão, ele conseguiu

pegá-la.”

Drake, em meio à penumbra, viu que

ela chorava

incontrolavelmente. Apenas repetia as

palavras:

“Oh, meu Deus, pensei que ela estava

morta. Achei mesmo que estava.”

Entendi imediatamente, mascoloquei meu bloco de notas aolongo da margem esquerda domanuscrito para que pudesse vê-lomelhor. Lendo de cima para baixo,como se lê uma solução de palavrascruzadas verticais, a primeira letrade cada linha emitia a mensagemque esteve lá quase desde quecomecei o livro.

CorujAs sOb estú iO

Então, levando-se em conta a

inserção na antepenúltima linha debaixo para cima:

CorujAs sOb estúDiO

Bill Dean, meu caseiro, estásentado ao volante de seucaminhão. Cumpriu dois objetivosao vir aqui — dar-me as boas-vindas e avisar-me para não memeter com Mattie Devore. Agoraestá pronto para ir embora. Sorripara mim, exibindo aquela grandedentadura postiça. “Quando vocêpuder, devia procurar aquelascorujas”, diz ele. Pergunto-lhe oque Jo teria querido com duascorujas de plástico e ele responde

que elas impedem os corvos defazerem cocô no madeirame. Aceitoisso, tenho outras coisas parapensar, mas mesmo assim... “Foicomo se ela viesse para fazerespecialmente isso”, diz ele. Nuncame passou pela cabeça — nãonaquele momento, pelo menos —que no folclore indígena as corujastêm outra função: dizem quemantêm os espíritos maus adistância. Se Jo sabia que ascorujas de plástico espantam oscorvos, saberia daquilo também.Era exatamente o tipo deinformação que ela pegava earmazenava. Minha esposa curiosa.

Minha desmiolada brilhante.Trovões rugiram no céu. Os

relâmpagos devoravam as nuvenscomo borrifos de ácido brilhante.Fiquei em pé junto à mesa da salade jantar com o manuscrito nasmãos trêmulas.

— Meu Deus, Jo — murmurei. —O que é que você descobriu?

E por que não me contou?Mas achei que já sabia a

resposta. Ela não me contou porquede certo modo eu era como MaxDevore; seu bisavô e o meu tinhamcagado no mesmo fosso. Isso nãofazia sentido, mas era assim. E elatambém não contou ao próprio

irmão. Tirei um conforto esquisitodesse fato.

Comecei a folhear o manuscrito,arrepiado.

Andy Drake raramente fechava acara em Meu amigo de infância, deMichael Noonan. Em vez disso elearregalava os olhos como umacoruja. Sempre há uma coruja emsuas expressões. Antes de ir para aFlórida, John Shackleford moraraem Studio City, Califórnia. Oprimeiro encontro de Drake comRegina Whiting tinha ocorrido noestúdio dela. O último endereçoconhecido de Ray Garraty era oStudio Apartments, em Key Largo.

A melhor amiga de Regina Whitingera Steffie Sobone, casada comTowle Sobone — isso era bom, doispelo preço de um.

Corujas sob estúdio.Estava por toda parte, em cada

página, exatamente como osnomes começados por K na listatelefônica. Uma espécie demonumento, este aqui construído —eu tinha certeza — não por SaraTidwell e sim por Johanna ArlenNoonan. Minha mulher passandomensagens por trás das costas doguarda, rezando com todo seuconsiderável coração para que euas visse e entendesse.

Na página 92, Shacklefordconversava com Drake na sala devisitas da prisão — sentado, ospunhos entre os joelhos, olhandopara a corrente que ligava seustornozelos, recusando-se a fazercontato visual com Drake.

AMIGO, de Noonan/Pág. 92

“Considerando tudo que aconteceu, é só

isso que eu posso dizer. Qualquer

outra coisa, porra, que bem faria? A

vida é um jogo, e a

realidade é que eu perdi. Você quer

que eu te diga que arranquei

uma criança da água, a tirei de lá e

dei um

jeito de botar o motor dela para

funcionar de novo? Fiz isso, mas não

a salvei porque sou herói ou um

santo...”

Havia mais, porém não eranecessário continuar a ler. Amensagem, corujas sob estúdio,percorria a margem exatamentecomo na página 19. Comoprovavelmente o faria também emqualquer outra página. Lembrei-mede como tinha ficadodelirantemente feliz ao descobrirque o bloqueio tinha sido dissolvidoe eu podia escrever novamente. Foidissolvido, sem dúvida nenhuma,mas não porque finalmente eu otivesse derrotado ou conseguissecontorná-lo. Jo o dissolveu. Jo oderrotou, e a continuação de minha

carreira como escritor de romancesde suspense de segunda categoriafoi a última de suas preocupaçõesquando o fez. Enquanto eu estavaali sob a luz bruxuleante dosrelâmpagos, sentindo meushóspedes invisíveis girarem ao meuredor no ar instável, lembrei-me dasra. Moran, minha professora dofundamental. Quando os esforçosdos alunos em reproduzir as curvassuaves do alfabeto no MétodoPalmer começavam a falhar e avacilar, ela colocava a mãocompetente sobre a do aluno e oajudava no quadro-negro.

Assim Jo tinha me ajudado.

Folheei o manuscrito e vi aspalavras-chave por todas as partes,às vezes colocadas de modo a quese pudesse realmente vê-lasempilhadas em linhas diferentes,uma acima da outra. Que esforço Jotinha feito para tentar me dizerisso... e eu não tinha nenhumaintenção de fazer coisa alguma atédescobrir por quê.

Larguei o manuscrito novamentena mesa, mas antes que pudesseprendê-lo com um peso uma furiosarajada de ar gelado passou pormim, levantando as páginas eespalhando-as como um ciclone. Seaquela força pudesse rasgar as

folhas em pedaços, estou certo deque o teria feito.

Não!, ela gritou enquanto euagarrava a lanterna. Não, termine otrabalho!

O vento soprou em meu rostolufadas geladas — era como sealguém que eu não pudesse verestivesse em pé bem na minhafrente e respirasse em meu rosto,recuando enquanto eu me moviapara a frente, xingando e soprandocomo o grande lobo mau diante dascasas dos três porquinhos.

Pendurei a lanterna no braço,estendi as mãos para a frente ecruzei-as com força. As lufadas em

cima de meu rosto pararam. Agorahavia apenas ar rodopiando aoacaso, entrando da janela dacozinha parcialmente tapada.

— Ela está dormindo — eu dissepara o que sabia que estava lá,observando silenciosamente. — Háalgum tempo.

Saí pela porta dos fundos e ovento me empurrou imediatamente,fazendo-me cambalear, quase mederrubando. E nas árvoresoscilantes enxerguei rostos verdes,os rostos dos mortos. Devoreestava lá, e Royce, e Son Tidwell.Vi principalmente Sara.

Sara em toda parte.

Não! Volte! Você não precisa denenhum caminhão com corujas,benzinho! Volte! Termine otrabalho! Faça aquilo que veiofazer!

— Não sei o que vim fazer — eudisse. — E até descobrir, não voufazer coisa alguma.

O vento gritou como se ofendido,e um enorme galho foi arrancadodo pinheiro à direita da casa,caindo em cima do meu Chevroletnum borrifo de água, amassandoseu teto antes de rolar para o meulado.

Entrelaçar as mãos lá fora seriatão útil quanto a ordem do rei

Canuto para que a maré virasse.Aquele era o mundo dela, não omeu... e só a margem dele, porfalar nisso. Cada passo mais pertoda Rua e do lago me levaria paramais perto do coração daquelemundo, onde o tempo era frágil eos espíritos governavam. Ah, meuDeus, o que aconteceu paraprovocar isso?

O caminho para o estúdio de Jose transformou num riacho. Dei uns12 passos antes que uma pedracedesse sob meu pé e eu caísse delado com força. Relâmpagoscortaram o céu, ouvi o estalo deoutro galho que se quebrava e

então alguma coisa começou a cairna minha direção. Levantei as mãospara proteger o rosto e rolei para adireita, para fora do caminho. Oramo chocou-se com o solo logoatrás de mim, e meio que tropeceipor um declive abaixo que estavaescorregadio com agulhas depinheiro ensopadas. Finalmenteconsegui me levantar. O galho nocaminho era ainda maior do que oque tinha aterrissado no telhado docarro. Se tivesse me atingido,provavelmente teria amassado meucrânio.

Volte! Um vento rancoroso eassobiante passou por entre as

árvores.Termine! Era a voz gutural e

babada do lago batendo nas pedrase a margem abaixo da Rua.

Vá cuidar de seus assuntos! Eraa própria casa, gemendo nasfundações. Vá cuidar de seusassuntos e me deixe cuidar dosmeus!

Mas Kyra era um assunto meu.Kyra era a minha filha.

Levantei a lanterna. O estojoestava rachado, mas a lâmpadaacendeu brilhante e firme — umponto para o time da casa. Curvadocontra o vento uivante, a mãoerguida para afastar outros galhos

que caíssem, escorreguei e tropeceicolina abaixo até o estúdio deminha falecida esposa.

Capítulo Vinte eSete

Inicialmente a porta não abriu. Amaçaneta girou na minha mão epercebi que não estava trancada,mas a chuva parecia ter inchado amadeira... ou algo teria sidocolocado contra ela. Recuei, curvei-me um pouco e golpeei a porta como ombro. Desta vez cedeuligeiramente.

Era ela. Sara. Em pé do outrolado da porta e tentando mantê-lafechada contra mim. Como podiafazer isso? Como, em nome deDeus? Ela era uma merda de umfantasma!

Pensei na picape da CONSTRUÇÃO

BAMM... e como se eu a conjurasse,quase pude vê-la no final daestrada 42, estacionada junto àrodovia, o sedã das velhotas decalça atrás dele e três ou quatrooutros carros agora atrás delas.Todos com os limpadores de para-brisas movendo-se para a frente epara trás, os faróis cortando débeiscones de luz no aguaceiro.

Formavam uma fileira noacostamento como num pátio devenda de carros de segunda mão.Não havia nenhuma venda ali, só avelha guarda sentadasilenciosamente em seus carros. Avelha guarda tão na zona quantoeu. A velha guarda mandandovibrações.

Sara os induzia. Roubava deles.Fez o mesmo com Devore — ecomigo também, claro. Muitas dasmanifestações que senti desde quevoltei provavelmente foram criadasde minha própria energia psíquica.Era divertido, quando se pensava arespeito.

Ou talvez “aterrorizante” fosse apalavra que eu procurava.

— Jo, me ajude — eu disse paraa chuva caindo. Relâmpagosfaiscaram, transformando astorrentes numa prata brilhante ebreve. — Se algum dia você meamou, me ajude agora.

Recuei e golpeei a portanovamente. Desta vez não houvenenhuma resistência e entrei aostrancos, dando uma canelada nobatente e caindo de joelhos. Massegurando a lanterna.

Houve um momento de silêncio.Senti nele forças e presenças sejuntando. Naquele momento, nada

pareceu se mover, embora atrás demim, no bosque por onde Joadorava perambular — comigo ousem mim —, a chuva continuasse acair e o vento a uivar, implacáveljardineiro podando seu caminhoatravés das árvores que estavammortas e quase mortas, fazendo otrabalho de dez anos mais suavesnuma única hora turbulenta. Entãoa porta se fechou com uma batida ea coisa começou. Vi tudo à luz dalanterna, que acendi sem nemperceber, mas no início não sabiaexatamente o que estava vendo,além da destruição dos bem-amados artesanatos e tesouros de

minha esposa pelo poltergeist.O quadrado da manta de tricô

emoldurado foi arrancado daparede e voou de um lado a outrodo estúdio, a moldura preta decarvalho se espatifando. As cabeçasdas bonecas das colagens saltaramcomo rolhas de champanhe numafesta. A lâmpada pendente seestilhaçou, caindo com uma duchade vidro em cima de mim. Umvento gelado começou a soprar, e aele juntou-se rapidamente outro,mais tépido, quase quente, girandoem um ciclone. Passaram por mimcomo se imitassem a tempestademaior lá fora.

A cabeça de Sara Laughs naestante, a que parecia construídade palitos e pauzinhos de picolé,explodiu numa nuvem de lascas demadeira. O remo de caiaqueencostado à parede ergueu-se noar, remou furiosamente no nada eentão se atirou sobre mim comouma lança. Eu me joguei notapetinho verde para evitá-lo esenti pedacinhos de vidro quebradoda lâmpada estilhaçada cortarem apalma de minha mão quando desci.Senti algo mais — uma saliênciapor baixo do tapete. O remo atingiua parede em frente com forçasuficiente para partir-se em dois

pedaços.A seguir, o banjo que minha

mulher jamais conseguiu dominarse ergueu no ar, girou duas vezes etocou um alegre carrilhão de notasfora do tom mas apesar dissoinequívocas — eu gostaria de estarna terra do algodão, velhos temposnão são esquecidos. O banjo girouem torno de si uma terceira vez,suas peças de aço brilhanterefletindo carreiras de luz nasparedes do estúdio, e então sejogou para a morte, o corpo doinstrumento se espatifando no chãoe as cravelhas de afinação saltandofora como dentes.

O som do ar se movendocomeçou — como posso dizer? —de certo modo a se focalizar, aténão haver mais o som do ar e sim ode vozes, ofegantes,fantasmagóricas e cheias de fúria.Elas teriam gritado se tivessemcordas vocais com que fazê-lo. O arempoeirado girava no facho dalanterna, mostrando espirais quedançavam juntas, depois seseparavam, girando de novo. Porum momento, ouvi a voz ríspida erouca de fumaça de Sara. Dá o fora,sua vaca! Dá o fora daqui! Isso aquinão é da sua... E então houve umchoque curioso e frágil, como se ar

tivesse colidido com ar. Isso foiseguido por um grito estridente detúnel de vento que eu reconheci: euo tinha ouvido no meio da noite. Jogritava. Sara a machucava, a puniapor interferir, e Jo gritava.

— Não! — berrei, levantando. —Deixe-a em paz! Deixe-a existir! —Avancei para dentro da sala,balançando a lanterna na frente dorosto como se pudesse afastar Saracom aquilo. Garrafas arrolhadaspassaram por mim — algumascontendo flores secas, outrascogumelos cuidadosamentefatiados, outras, ervas do bosque.Elas se espatifaram na parede

distante com um som quebradiçode xilofone. Nenhuma delas meatingiu; foi como se alguma mãoinvisível as guiasse para longe.

Então a escrivaninha com tampode correr de Jo se ergueu no ar.Devia pesar pelo menos uns 180quilos, com suas gavetas cheiascomo estavam, mas flutuou comouma pena, inclinando-se primeiropara um lado e depois para o outroem correntes de ar opostas.

Jo gritou de novo, desta vez commais raiva do que dor, e cambaleeipara trás contra a porta fechadacom a sensação de que eu tinhasido esvaziado. Sara não era a

única que podia roubar a energiados vivos, parece. Algo branco eviscoso como esperma —ectoplasma, acho eu — espirrou dosescaninhos da escrivaninha em umadúzia de pequenos filetes, e aescrivaninha subitamente se lançouatravés do aposento. Voou quaserápido demais para ser seguida comos olhos. Alguém em pé na frentedela teria sido completamenteesmagado. Ouviu-se um gritodilacerantemente agudo deprotesto e agonia — Sara destavez, eu sabia —, e então aescrivaninha atingiu a parede,rompendo-a e deixando entrar a

chuva e o vento. O tampo de corrersoltou-se de sua fenda e pendeucomo uma língua desarticulada.Todas as gavetas foram lançadaspara fora. Carretéis de linha,meadas de lã, pequenos livros deidentificação de fauna e flora, guiasde bosque, dedais, cadernos denotas, agulhas de tricô, canetasmarca-texto secas — os restosmatais de Jo, como diria Ki. Voarampor toda parte como ossos epedaços de cabelo cruelmentecaídos e dispersos de um caixãodesenterrado.

— Parem — resmunguei. —Parem, vocês duas. Chega.

No entanto, não era maisnecessário lhes dizer isso. Excetopelo furioso estrépito datempestade, eu estava só entre asruínas do estúdio de minha esposa.A batalha havia terminado. Pelomenos por enquanto.

Ajoelhei e dobrei em dois otapetinho verde, pondocuidadosamente nele o máximo devidro quebrado da lâmpada quepude. Abaixo dele havia um alçapãodando para uma área de guardadoscriada pelo declive da terra ao seinclinar na direção do lago. A

saliência que notei era uma dasdobradiças do alçapão. Eu conheciaessa área e pretendia examiná-lapor causa das corujas. Então ascoisas tinham começado aacontecer e eu havia esquecido.

Havia um anel embutido noalçapão. Agarrei-o, pronto paramais resistência, mas ele se abriufacilmente. O cheiro que flutuou atémim me congelou. Não era deúmida decomposição, pelo menosnão no início, mas Red — o perfumefavorito de Jo. Ele pairou em tornode mim por um momento e entãodesapareceu. O que o substituiu foio cheiro de chuva, raízes e terra

molhada. Não era agradável, masjá senti cheiros bem piores junto aolago, perto daquela bétuladesgraçada.

Fiz minha lanterna brilhar nostrês degraus íngremes. Eu podia veruma forma agachada que serevelou um velho vaso sanitário —eu lembrava vagamente de Bill eKenny Auster colocando-o ali em1990 ou 91. Havia caixas de metal— gavetas de arquivos, narealidade — embrulhadas emplástico e empilhadas em estrados.Velhos discos e papéis. Umgravador de fitas de oito faixasembrulhado num saco plástico. Um

velho videocassete perto dele, emoutro saco. E no canto...

Sentei com as pernaspenduradas e senti algo tocar notornozelo que torci no lago. Dirigi alanterna para o espaço entre osjoelhos e por um momento vi umgaroto negro. Mas não o que tinhase afogado no lago — este aqui eramais velho e muito maior. Doze,talvez 14 anos. O garoto afogadonão tinha mais que 8 anos.

Aquele ali arreganhou os dentespara mim e silvou como um gato.Seus olhos não tinham pupilas;como os do garoto no lago, eraminteiramente brancos, como os de

uma estátua. E ele sacudia acabeça. Não desça aqui, homembranco. Deixe os mortosdescansarem em paz.

— Mas você não está em paz —eu disse, e dirigi a luz da lanternatotalmente para ele. Tive umvislumbre momentâneo de umacoisa verdadeiramente medonha.Podia ver através dele, mas podiatambém ver dentro dele: os restosapodrecidos de sua língua na boca,os olhos nas órbitas, os miolosfervilhando como um ovo estragadona caixa craniana. Então eledesapareceu, e a seguir não haviamais nada além de uma daquelas

hélices giratórias de poeira.Desci com a lanterna levantada.

Abaixo dela, ninhos de sombrasoscilavam e pareciam erguer asmãos para cima.

A área de guardados (na verdade,não mais que um impressionanteespaço onde se podia rastejar)recebeu um assoalho de estrado demadeira apenas para manter ascoisas fora do solo. Agora a águacorria por baixo dele num riocontínuo, e a terra já tinha sidobastante erodida para que mesmorastejar fosse um trabalho difícil. O

cheiro do perfume desapareceuinteiramente. O que o substituíraera um odor fedorento de fundo derio e — improvável, dadas ascondições, eu sei, mas estava lá —o cheiro leve e sombrio de cinzas efogo.

Vi imediatamente aquilo que fuibuscar. As corujas de Jo pedidaspelo correio, as que ela recebeu emnovembro de 1993, estavam nocanto nordeste, onde havia apenasuns 60 centímetros entre oassoalho de estrado em declive e aparte de baixo do estúdio. Deus docéu, pareciam verdadeiras, disseBill, e Deus do céu, ele tinha razão:

ante o fulgor brilhante da lanterna,pareciam pássaros primeiroenfaixados, depois sufocados emplástico claro. Seus olhos erambrilhantes alianças contornandolargas pupilas negras. Suas penasde plástico estavam pintadas da corverde-escuro das agulhas dospinheiros, e suas barrigas de umtom de laranja claro e sujo.Rastejei até elas sobre o estradoque rangia, instável, e com o brilhoda lanterna oscilando para frente epara trás entre as ripas, tentandonão pensar se o garoto estava atrásde mim, arrastando-se em minhaperseguição. Quando cheguei às

corujas, levantei a cabeça sempensar e bati com ela noisolamento que percorria o assoalhodo estúdio. Bata um para sim, doispara não, idiota, pensei.

Firmei os dedos no plásticoembrulhando as corujas e puxei-asna minha direção. Queria estar foradali. A sensação de água correndologo abaixo de mim era estranha edesagradável. Assim como o cheirodo fogo, que parecia mais forteagora apesar da umidade. E se oestúdio estivesse pegando fogo? Ese Sara de algum modo tivesseposto fogo nele? Eu assaria aliembaixo mesmo, enquanto a

correnteza enlameada datempestade estivesse encharcandominhas pernas e minha barriga.

Vi que uma das corujas tinhauma base de plástico — era melhorpara colocá-la no deck ou noalpendre para assustar os corvos,meu caro —, mas a base da outraestava faltando. Recuei até oalçapão, segurando a lanternanuma das mãos e arrastando o sacode plástico com as corujas na outra,encolhendo-me cada vez que otrovão rugia lá em cima. Eu sóavancei um pouco quando a fitaúmida segurando o plástico cedeu.A coruja cuja base faltava inclinou-

se lentamente para mim, seusolhos cor de petróleo fixando-searrebatadoramente nos meus.

Um redemoinho do ar. Umatênue e reconfortante lufada doperfume Red. Puxei a coruja parafora pelos tufos que cresciam comochifres em sua testa e virei-a decabeça para baixo. No local ondetinha sido ligada à base de plásticosó havia agora duas cavilhas comum espaço oco entre elas. Dentrodo buraco estava uma pequenacaixa de metal que reconheci antesmesmo de estender a mão para abarriga da coruja e puxar a caixapara fora. Dirigi a luz da lanterna

para ela, sabendo o que veria: IDEIAS

DE JO em letras douradas emanuscritas em estilo antigo. Elaencontrara a caixa num celeiro deantiguidades.

Fitei-a, o coração batendo comforça. Trovões sacudiam o céu. Oalçapão continuava aberto, mas euesqueci de subir. Esqueci de tudo,exceto da caixa de metal quesegurava, mais ou menos dotamanho de uma caixa de charutos,mas não muito profunda. Coloqueia mão sobre a tampa e puxei-apara fora.

Havia papéis dobradosespalhados em cima de dois

cadernos de taquigrafia, os deespiral que eu mantinha por pertopara anotações e listas depersonagens. Esses estavam presosjuntos com um elástico. Em cima detudo, havia um brilhante quadradopreto. Enquanto não o peguei e osegurei junto à lanterna, nãopercebi que era o negativo de umafoto.

Fantasmagoricamente, invertidoe numa tênue cor laranja, vi Jo comseu maiô cinzento de duas peças.Estava em pé na plataforma deflutuação, as mãos por trás dacabeça.

— Jo — eu disse, e então não

pude dizer mais nada. Minhagarganta se fechou com lágrimas.Segurei o negativo por ummomento, sem querer perdercontato com ele, e então o coloqueide volta na caixa com os papéis eos cadernos de taquigrafia. Foidevido a eles que ela veio paraSara em julho de 1994; para pegá-los e escondê-los tão bem quantopodia. Tirou as corujas do deck(Frank tinha ouvido a porta lá defora bater) e as trouxe para cá. Eupraticamente podia vê-la retirandoa base de uma coruja e enfiando acaixa de metal em seu tubo deplástico, embrulhando ambas em

plástico e depois as arrastando paracá, enquanto o irmão fumavaMarlboros e sentia as vibrações. Asmás vibrações. Eu tinha dúvidas dealgum dia conhecer todos osmotivos pelos quais ela tinha feitoaquilo, ou qual teria sido seuestado de espírito... mas ela quasecertamente acreditou que euacabaria encontrando meu caminhoaté aqui embaixo. Por que outromotivo teria deixado o negativo?

Os papéis soltos eramprincipalmente recortes xerocadosd o Castle Rock Call e do WeeklyNews, o jornal que aparentementeprecedeu ao Call. As datas estavam

escritas na caligrafia nítida e firmede minha esposa. O recorte maisantigo era de 1865, e seu título eraOUTRO LAR A SALVO. Quem voltava dascinzas era um tal de Jared Devore,de 32 anos de idade. Subitamenteentendi uma das coisas que haviamme intrigado: as gerações pareciamnão combinar. Uma canção de SaraTidwell me veio à mente enquantoeu estava encolhido ali no estrado,com minha lanterna iluminandoaquelas letras numa tipologiaantiga. Era a cançoneta que diziaOs velhos fazem a coisa, e osjovens também/E os velhosmostram aos jovens como fazê-la

bem...Quando Sara e os Red-Tops

apareceram no condado de Castle ese instalaram no que ficouconhecido como prado de Tidwell,Jared Devore teria 67 ou 68 anos.Velho, mas ainda vigoroso. Umveterano da Guerra Civil. O tipo develho para quem os mais jovenspodiam olhar como exemplo. E acanção de Sara estava certa — osvelhos mostram aos jovens comofazê-la bem.

O que exatamente eles haviamfeito?

Os recortes sobre Sara e os Red-Tops não diziam. Passei-os em

revista, de qualquer forma, mas otom geral me abalou mesmo assim.Eu o descreveria como um afável epersistente desprezo. Os Red-Topseram “nossos pássaros pretossulistas” e “nossos neguinhosrítmicos”. Eram cheios “do bomtemperamento escurinho”. Aprópria Sara era “uma maravilhosafigura de mulher preta, com narizlargo, lábios grossos e testa nobre”que “fascinava homens e mulherescom sua alegria animal, sorrisobranco e riso ruidoso”.

Eram — Deus nos proteja e salve— resenhas. Boas, se você não seimportasse de ser considerado

“cheio do bom temperamentoescurinho”.

Folheei-os rapidamente,procurando algo sobre ascircunstâncias em que os “nossospássaros pretos sulistas” haviampartido. Não encontrei nada. Emvez disso, achei um recorte do Callcom a data de 19 de julho (vá a 19,pensei) de 1933. Seu título diziaVETERANO, CASEIRO E GUIA NÃO CONSEGUE SALVAR A

FILHA. Segundo a reportagem, FredDean vinha combatendo incêndiosna parte leste da TR com duzentosoutros homens quando o ventosubitamente mudou, ameaçando aextremidade norte do lago,previamente considerada a salvo.

Naquela época, muitos habitanteslocais continuavam pescando ecaçando em acampamentos alilocalizados (até aí eu sabia). Acomunidade tinha tido um armazéme um nome: Halo Bay. Hilda, amulher de Fred Dean, estava lácom os gêmeos William e Carla, de3 anos, enquanto o marido seencontrava fora comendo fumaça.Muitas outras esposas e filhostambém estavam em Halo Bay.

Os incêndios tinham chegadorápido quando o vento mudou, diziao jornal — “como explosõesmarchando”. Elas saltaram o únicoaceiro que os homens deixaram

naquela banda e dirigiram-se àextremidade norte do lago. EmHalo Bay não havia homens paraassumir o combate, eaparentemente nenhuma mulhercapaz de fazê-lo, ou de querer fazê-lo. Em vez disso entraram empânico, correndo para encher oscarros com filhos e bens doacampamento, entupindo a únicaestrada com seus veículos.Posteriormente um dos velhoscarros ou caminhões quebrou e,enquanto os incêndios seaproximavam, correndo pelosbosques que não viam chuva desdeo final de abril, as mulheres que

esperavam encontraram o caminhode fuga bloqueado.

Os bombeiros voluntárioschegaram para o resgate a tempo,mas quando Fred Dean alcançou amulher, que estava no grupotentando empurrar um Ford cupêempacado para fora da estrada,descobriu uma coisa terrível.Embora Bill estivesse deitado nochão do banco traseiro do carro,adormecido, Carla não estava ali.Hilda havia pegado os dois, claro —que se instalaram no banco de trás,de mãos dadas como semprefaziam. Mas em algum momentodepois que o irmão adormeceu no

chão do carro, e enquanto Hildacolocava o resto da bagagem noporta-malas, Carla deve terlembrado de um brinquedo ou deuma boneca e voltado ao chalépara buscá-lo. Enquanto o fazia, amãe entrara no velho DeSoto delese partira, sem verificar se ascrianças ainda continuavam nocarro. Carla Dean ainda estava nochalé em Halo Bay ou andando pelaestrada. De um modo ou de outro,os incêndios a teriam alcançado.

A estrada era estreita demaispara que um veículo pudesse fazera volta, e bloqueada demais paraque um deles apontasse para a

direção certa no espaço lotado.Portanto Fred Dean, herói que era,partiu correndo na direção dohorizonte enegrecido pela fumaça,onde brilhantes fitas laranja játinham começado a surgir. Impelidopelo vento, o incêndio aumentou ecorreu ao encontro dele como umaamante.

Ajoelhei no estrado, lendo isso àluz da lanterna, e de repente ocheiro de incêndio e coisas queardiam se intensificou. Tossi... e atosse foi apagada pelo gosto deferro da água em minha boca egarganta. Mais uma vez, agoraajoelhando na área dos guardados

sob o estúdio de minha esposa,senti como se estivesse meafogando. Mais uma vez medebrucei para a frente e tive ânsiade vômito, mas só expeli um poucode saliva.

Virei-me e vi o lago. Em suaenevoada superfície gritavam osmergulhões-do-norte, voando emminha direção numa fila, batendoas asas contra a água enquanto ofaziam. O azul do céu havia sidoapagado. O ar cheirava a carvão epólvora. A cinza tinha começado apeneirar do céu. A margem leste doDark Score estava em chamas, e eutinha ocasionais e abafadas

informações a respeito quando asárvores ocas explodiam. Soavamcomo tiros em profundidade.

Olhei para baixo, querendo melibertar dessa visão, sabendo queem breve não haveria nada distantecomo uma visão e sim algo tão realquanto a viagem que Kyra e eutínhamos feito à Feira de Fryeburg.Em vez de uma coruja de plásticode olhos debruados de ouro, eufitava uma criança com olhos azuisbrilhantes sentada a uma mesa depiquenique, e que esticava osbraços gorduchos e chorava. Eu avia tão claramente como a meupróprio rosto no espelho a cada

manhã ao fazer a barba. Notei quetinha mais ou menos...

A idade de Kyra, mas era muitomais gorducha, de cabelos pretosem vez de louros. Seus cabelos sãodo mesmo tom que os que o irmãoterá até finalmente começar a ficargrisalho no verãoinacreditavelmente distante de1998, um ano que ela nunca verá anão ser que alguém a tire desseinferno. A garota usa um vestidobranco, meias vermelhas até ojoelho e estende os braços paramim, chamando papai, papai.

Começo a andar até ela e entãoum estouro de calor organizado me

desintegra por um momento — aquieu sou o fantasma, percebo, e FredDean acaba de correr através demim. Papai, grita ela, mas para ele,não para mim. Papai!, e ela oabraça, sem se importar com afuligem manchando o seu vestidode seda branca e o rostorechonchudo quando ele a beija, emais fuligem começa a cair, e osmergulhões-do-norte se dirigem àmargem, dando a impressão dechorar num lamento agudo.

Papai, o incêndio estáchegando!, grita ela quando ele arecolhe nos braços.

Eu sei, seja corajosa, diz ele.

Tudo vai ficar bem, meu docinho,mas você tem que ser corajosa.

O incêndio não está chegando; jáchegou. Toda a extremidade lestede Halo Bay está em chamas,chamas que se movem agora paraesta direção, devorando uma a umaas pequenas cabanas onde oshomens gostam de ficar bebendona estação de caça e de pesca. Portrás da cabana de Al LeRoux, asroupas lavadas que Margueritependurou naquela manhã estão emchamas, calças e vestidos e roupade baixo ardendo em fileiras quesão em si cordões de fogo. Folhas ecascas de árvore caem como chuva;

uma brasa ardente toca o pescoçode Carla, que dá um grito agudo dedor. Com um tapa, Fred afasta abrasa enquanto desce o declive daterra para a água.

Não faça isso!, eu grito. Sei quenão tenho poder para mudar nada,mas grito para ele mesmo assim,tento mudá-lo mesmo assim. Lutecontra isso! Pelo amor de Deus,lute contra isso!

Papai, quem é esse homem?,Carla pergunta, e aponta para mim,enquanto o telhado de ripas verdesda casa dos Dean pega fogo.

Fred dá uma olhada para ondeela está apontando, e vejo em seu

rosto um espasmo de culpa. Elesabe o que está fazendo, isso é queé terrível — bem no fundo sabeexatamente o que está fazendoaqui em Halo Bay onde a Ruatermina. Ele sabe e está com medode que alguém testemunhe o seutrabalho. Mas não vê nada.

Ou vê? Seus olhos arregalam-seem dúvida por um momento, comose visse algo — uma espiraldançante de ar, talvez. Ou talvezele me sinta? É isso? Ele sente umamomentânea corrente de ar emtodo esse calor? Uma corrente queé percebida como mãos queprotestam, mãos que reprimiriam

se ao menos tivessem substância?Então ele afasta os olhos; e seguepela água ao lado do trecho de caisdos Dean.

Fred!, eu grito. Pelo amor deDeus, homem, olhe para ela! Vocêacha que sua mulher pôs nela umvestido branco por acaso? É issoque alguém veste para brincar?

Papai, por que a gente táentrando na água?, pergunta ela.

Para fugir do fogo, docinho.Papai, eu não sei nadar!Você não vai ter que nadar,

responde ele, e que calafrio eusinto ante aquilo! Porque não émentira — ela não vai ter mesmo

que nadar, nem agora nem nunca.E pelo menos o método de Fredserá mais misericordioso do que ode Normal Auster quando a vez deNormal chegar — maismisericordioso do que a guinchantebomba manual, do que os galõesde água gelada.

O vestido branco flutua em tornodela como um lírio. Suas meiasvermelhas tremulam na água. Elaabraça o pescoço do pai bemapertado e agora eles estão entreos mergulhões que fogem; osmergulhões espancam a água comsuas asas poderosas, formandopedaços de espuma e olhando

fixamente para o homem e a garotacom seus distraídos olhosvermelhos. O ar está pesado defumaça e o céu desapareceu.Cambaleio atrás deles, avançandopela água — posso sentir que estágelada, embora eu não a agite nemdeixe traço. As orlas leste e nortedo lago estão em fogo agora — háum crescente ardendo em torno denós enquanto Fred Dean penetramais na água com a filha,carregando-a como para algum ritode batismo. E mesmo assim ele diza si mesmo que está tentandosalvá-la, apenas salvá-la,exatamente como Hilda se dirá a

vida inteira que a criançasimplesmente voltou ao chalé paraprocurar um brinquedo, que nãotinha sido deixada para trás depropósito, deixada com vestidobranco e meias vermelhas para serencontrada pelo pai, que certa vezcometeu algo inominável. Isso é opassado, essa é a Terra que Ficoupara Trás, e aqui os pecados dospais são visitados nos filhos,mesmo na sétima geração, queainda não chegou.

Ele a leva cada vez mais paradentro e ela começa a gritar. Seusgritos se misturam aos gritos dosmergulhões até que ele faz os sons

cessarem com um beijo na bocaaterrorizada da criança. Eu te amo,papai ama seu docinho, diz ele, eentão a mergulha. É uma imersãocompleta tipo batismo, só que nãohá coro nenhum na margemcantando “Shall We Gather at theRiver”, ninguém está gritandoAleluia!, e ele não a está deixandovir à tona. Ela luta furiosamente nafloração branca de seu vestido desacrifício e, por um momento, elenão suporta vê-la; em vez dissoolha para o lago, para o oeste,onde o fogo ainda não chegou (enunca chegará); para o oeste, ondeo céu ainda está azul. A cinza cai

em torno dele como chuva negra,as lágrimas escorrem de seus olhose, enquanto ela luta furiosamentesob suas mãos, tentando libertar-seda garra que a afoga, ele diz a simesmo Foi um acidente, apenas umterrível acidente, levei-a para olago porque era o único lugar paraonde podia ir, o único lugar quesobrara, e ela então entrou empânico, começou a lutar, estavatoda molhada e escorregadia e nãoconsegui segurá-la direito e entãoperdi totalmente qualquer controlesobre ela e aí...

Esqueço que sou um fantasma.Grito “Kia! Aguenta aí, Ki!”, e

mergulho. Alcanço-a, vejo seu rostoaterrorizado, seus olhos azuissaltados, sua boca de botão quetraça uma linha prateada deborbulhas em direção à superfícieonde Fred continua na água até opescoço, segurando-a ali embaixoenquanto diz a si mesmorepetidamente que está tentandosalvá-la, esse é o único modo, estátentando salvá-la, esse é o únicomodo. Estendo a mão para elarepetidamente, repetidamente,minha criança, minha filha, minhaKia (todos são Kia, tanto osmeninos quanto as meninas, todosminha filha), e todas as vezes meus

braços a atravessam. Pior — ah,muito pior — é que agora é ela queestá estendendo os braços paramim, os braços sardentosflutuando, implorando um resgate.Suas mãos tateantes se dissolvemnas minhas. Não podemos nos tocarporque agora eu sou o fantasma.Eu sou o fantasma, e enquanto aluta dela arrefece percebo que nãoposso não posso ah eu

não podia respirar — estava meafogando.

Eu me curvei, abri a boca e destavez um vômito de água do lago saiude mim, ensopando a coruja deplástico no estrado junto a meus

joelhos. Agarrei a caixa IDEIAS DE JO

junto ao peito, não querendo queseu conteúdo se molhasse, e omovimento disparou outra ânsia devômito. Desta vez jorrou águagelada de meu nariz, assim comoda boca. Respirei profundamente eentão tossi, expelindo-a.

— Isso tem que terminar — eudisse, mas claro que aquilo ali era ofim, de um modo ou de outro.Porque Kyra era a última.

Subi os degraus para o estúdio esentei no chão cheio de lixo pararecuperar o fôlego. Do lado de forao trovão estalava e a chuva caía,mas achei que a tempestade já

tinha superado o auge de sua fúria.Ou talvez isso fosse apenas o queeu esperava.

Descansei com as pernaspenduradas através do alçapão —não havia mais fantasmas ali paratocar meus tornozelos, não seicomo sabia disso, mas sabia — etirei o elástico que unia os cadernosde taquigrafia. Abri o primeiro,folheei-o e vi que estava quasetotalmente preenchido com a letrade Jo e um número de folhasdatilografadas e dobradas (tipoCourier, claro), espaço um: o frutode todas aquelas viagensclandestinas à TR durante 1993 e

1994. Notas fragmentadas, em suamaioria, e transcrições de fitas quepodiam ainda estar embaixo demim em algum lugar na área deguardados. Num local afastado,junto com o videocassete ou ogravador de oito faixas talvez. Maseu não precisava delas... Quandochegasse o momento — se omomento chegasse — tinha certezade que descobriria a maior parte dahistória ali. O que aconteceu, quemo fez, como foi encoberto. Naquelemomento, eu não me importava.Naquele momento, só queria tercerteza de que Kyra estava a salvoe continuaria a salvo. Só havia um

modo de concretizar isso.Na oh.Tentei passar o elástico em volta

dos cadernos de taquigrafia denovo, e o que eu não tinhaexaminado escorregou da minhamão úmida, caindo no chão. Umpedaço de papel verde saiu dedentro dele. Peguei-o e vi oseguinte:

Por um momento, saí daquelaestranha e aguda consciência naqual estava vivendo. O mundoassumiu suas dimensõescostumeiras. As cores, porém, decerto modo estavam fortes demais,os objetos presentes de maneiraexcessivamente enfática. Senti-mecomo um soldado num campo debatalha subitamente iluminado porum medonho clarão brancorevelador de tudo.

O pessoal de meu pai tinha vindode Prout’s Neck, disso eu tinhacerteza; portanto meu bisavô eraJames Noonan, e ele jamais cagouno mesmo fosso que Jared Devore.

Max Devore mentiu quando disseaquilo a Mattie... ou estava mal-informado... ou simplesmenteconfuso, como as pessoasgeralmente ficam quando chegamaos 80 anos. Mesmo um sujeitocomo Devore, que de modo geraltinha continuado astuto, não teriaescapado muito daquilo. Porque,segundo aquele pequeno pedaço dediagrama, meu bisavô teve umairmã mais velha, Bridget. E Bridgettinha se casado com... BentonAuster.

Meu dedo escorregou para alinha de baixo, para Harry Auster.Nascido de Benton e Bridget

Noonan Auster no ano de 1885.— Jesus Cristo — murmurei. — O

avô de Kenny Auster era meu tio-avô. E era um deles. Seja lá o quefizeram, Harry Auster era um deles.Está aí a conexão.

Pensei em Kyra com um terrorsúbito e agudo. Ela tinha ficadosozinha na casa por quase umahora. Como é que eu fui tão burro?Alguém podia ter entrado enquantoeu estava ali embaixo no estúdio.Sara podia ter usado alguém para...

Percebi que não era verdade. Osassassinos e as vítimas criançastinham sido todos ligados pelosangue, e agora que o sangue

escasseava, o rio quase alcançou omar. Havia Bill Dean, mas estepermanecia bem longe de SaraLaughs. E Kenny Auster, mas Kennytinha ido com a família paraTaxachusetts. E os parentes desangue mais próximos de Ki —mãe, pai, avô — estavam todosmortos.

Só eu tinha sobrado. Só eu tinhao mesmo sangue. Só eu podia fazê-lo. A menos...

Disparei de volta a casa tãorápido quanto pude, tropeçando eescorregando pelo caminhoencharcado, desesperado para mecertificar de que ela estava bem.

Não achava que Sara pudessemachucar a própria Kyra, nãoimporta o quanto daquela vibraçãoda velha guarda ela absorvesse...mas e se eu estivesse errado?

E se eu estivesse errado?

Capítulo Vinte e Oito

Ki dormia exatamente como eu atinha deixado, de lado, com oimundo cachorrinho de pelúcia sobo rosto. Embora ele lhe tivessedeixado uma mancha no pescoço,não tive coragem de tirá-lo dela.Além de Ki, à esquerda, através daporta aberta do banheiro, eu ouviao contínuo plink-plonk-plink da águacaindo da torneira para a banheira.Um ar frio foi soprado ao meu redor

com um toque sedoso, acariciandomeu rosto, enviando umdesagradável calafrio por minhascostas abaixo. Na sala de estar, osino de Bunter sacudiu-selevemente.

A água ainda está quente,benzinho, murmurou Sara. Seja seuamigo, o seu papai. Vá em frente.Faça o que quer fazer. Faça o quenós dois queremos.

E eu queria fazê-lo, razão pelaqual Jo havia tentado inicialmenteme manter longe da TR e de SaraLaughs. Razão pela qual fezsegredo de sua possível gravideztambém. Era como se eu

descobrisse um vampiro dentro demim, uma criatura sem qualquerinteresse no que considerava umaconsciência piegas e umamoralidade discutível. Uma parteminha que só queria levar Ki para obanheiro, mergulhá-la na banheiracom água quente e mantê-lasubmersa, observando as fitasbrancas de borda vermelhatremularem como o vestido brancoe as meias vermelhas de CarlaDean haviam tremulado enquantoos bosques ardiam em volta dela edo pai. Uma parte minha que ficariamais do que contente em pagar aúltima prestação daquela velha

conta.— Meu Deus — murmurei, e

enxuguei o rosto com a mãotrêmula. — Ela conhece tantostruques. E ela é tão forte, porra.

A porta do banheiro tentou sefechar na minha cara antes que eupassasse por ela, mas a empurrei,abrindo-a quase sem qualquerresistência. A porta do armário dosremédios bateu e o vidro seespatifou na parede. Seu conteúdovoou para mim, mas não foi umataque muito perigoso; desta vez, amaioria dos mísseis consistia emtubos de pasta de dente, escovasde dente, vidros de plástico e

alguns velhos inaladores de Vick.Fraco, muito fraco, eu podia ouvi-lagritando de frustração enquanto eupuxava o tampão no fundo dabanheira e deixava a água escorrergorgolejando pelo cano. Meu Deus,tinha havido suficientesafogamentos na TR por um século.E ainda assim, por um momento,senti um impulsoinacreditavelmente forte de colocaro tampão de volta enquanto aindahavia bastante água para que otrabalho fosse feito. Em vez disso,arranquei-o da corrente e atirei-ono corredor. A porta do armário dosremédios se fechou com força de

novo e o resto do vidro caiu.— Quantos você teve? —

perguntei a ela. — Quantos além deCarla Dean, Kerry Auster e a nossaKia? Dois? Três? Cinco? De quantosprecisa antes de poder descansar?

Todos eles! , foi disparado emresposta. Também não era só a vozde Sara; era a minha também. Elaentrara em mim, esgueirara-se paradentro pelo porão, como umarrombador... e eu já estavapensando que, mesmo que abanheira estivesse vazia e a bombad’água temporariamentedesativada, sempre havia o lago.

Todos eles! , a voz gritou de

novo. Todos eles, benzinho!Claro — só todos serviriam. Até

isso acontecer, não haveria nenhumrepouso para Sara Laughs.

— Vou ajudá-la a descansar —eu disse. — Prometo.

O final da água girou canoabaixo... mas sempre havia o lago,sempre havia o lago se eu mudassede ideia. Saí do banheiro e fuichecar Ki novamente. Ela não tinhase movido, a sensação de que Saraestava ali comigo tinhadesaparecido, o sino de Bunter seaquietou... e mesmo assim eu mesentia desconfortável, sem quererdeixá-la sozinha. Mas tinha que

deixá-la se ia terminar meutrabalho, e não seria bom ficarprotelando. Os tiras do condado edo estado apareceriam sem dúvida,tempestade ou não, árvores caídasou não.

É, mas...Entrei no corredor e olhei em

torno, inquieto. Trovõesribombavam, mas estavamperdendo parte de sua urgência. Ovento também. O que não estavasumindo era a sensação de quealgo me observava, algo que nãoera Sara. Fiquei onde estava pormais um tempo, tentando dizer amim mesmo que era apenas o

chiado dos meus nervosfervilhando, e a seguir caminheipelo corredor até a entrada.

Abri a porta que dava para oalpendre... e então olhei à volta denovo atentamente, como seesperasse ver alguém ou algopairando atrás da estante. UmaForma, talvez. Algo que aindaqueria o seu pega-poeira. Mas euera a única Forma que restava, pelomenos naquela parte do mundo, eo único movimento que vi foram assombras ondulantes formadas pelachuva escorrendo pelas janelas.

Ainda chovia com força suficientepara tornar a me encharcar quando

fui do alpendre à entrada de carros,mas não prestei atenção. Eu tinhaacabado de estar com umagarotinha enquanto ela se afogava,eu mesmo quase me afoguei hánão muito tempo, e a chuva nãome impediria de fazer o que tinhaque fazer. Peguei o galho caído quetinha amassado o teto do carro,atirei-o para um lado e abri a portatraseira do Chevy.

As coisas que comprei no Slips’nGreens ainda estavam no banco detrás, enfiadas na bolsa de pano queLila Proulx tinha me dado. A colherde jardineiro e a faca de podareram visíveis, mas o terceiro item

estava num saco plástico. Quer issonuma sacola especial?, Lila meperguntou. Sempre seguro, nuncaem apuros. E depois, quando euestava indo embora, ela tinhafalado do cachorro Mirtilo, deKenny, perseguindo as gaivotas, edeu uma risada grande e vigorosa.Mas seus olhos não tinham rido.Talvez seja isso que diferencie osmarcianos dos terráqueos — osmarcianos jamais conseguem rircom os olhos.

Vi o presente de Rommie eGeorge no banco da frente: aStenomask que eu acheiinicialmente que fosse a máscara

de oxigênio de Devore. Os rapazesdo porão então falaram — pelomenos murmuraram — e inclinei-me sobre o banco para pegar amáscara por sua tira de elásticosem a mais leve ideia de por queestava fazendo aquilo. Deixei-a cairdentro da bolsa de compras, bati aporta do carro e então comecei adescer os degraus de dormentespara o lago. No caminho fiz umapausa para descer sob o deck, ondesempre guardávamos algumasferramentas. Não havia picareta,mas peguei uma pá que parecia uminstrumento para cavar túmulos.Então, no que eu pensei ser a

última vez, segui o curso de meusonho até a Rua. Não precisava queJo me mostrasse o lugar; a SenhoraVerde o vinha apontando o tempotodo. Mesmo que ela não o tivessemostrado, e ainda que Sara Tidwelljá não fedesse tanto, acho que euteria sabido. Acho que teria sidoconduzido até lá por meu própriocoração assombrado.

Havia um homem em pé entre olugar onde eu estava e o ponto emque o frontão cinzento da rochaguardava o caminho. Enquanto fizuma pausa no último dormente, ele

me saudou com uma voz irritanteque eu conhecia bem demais.

— Diga lá, devasso, onde estásua puta?

Embora estivesse parado nomeio da Rua sob a chuva que caía,seu traje de lenhador — calça deflanela verde, camisa de lã xadrez— e o desbotado quepe azul doExército da União estavam secos,pois a chuva caía através dele enão sobre ele. Parecia sólido, masnão era mais real do que a própriaSara. Eu me lembrei disso quandodesci até o caminho para enfrentá-lo, mas meu coração continuava aacelerar, batendo no peito como

um martelo acolchoado.As roupas dele eram as de Jared

Devore, mas aquele não era Jared.Era seu bisneto Max, que começoua carreira com um ato de roubo detrenó e a terminou com o suicídio...mas não antes de arquitetar oassassinato da nora que cometeu atemeridade de recusar-lhe o queele tanto desejava.

Comecei a andar em sua direção,e ele se moveu para o meio docaminho para bloquear minhapassagem. Eu sentia o frio que eleemitia. Estou querendo dizerexatamente isso, expressando oque lembro tão claramente quanto

posso: eu sentia o frio emitindo-sedele. Sim, era Max Devore mesmo,mas vestido como um lenhadornuma festa à fantasia e com aaparência que devia ter quando seufilho Lance tinha nascido. Velho,mas vigoroso. O tipo de homemque podia ser uma referência paraos mais jovens. E agora, como se opensamento os convocasse, eupodia ver o resto tremulando numatênue existência atrás dele, em pénuma fila atravessando o caminho.Eram os que haviam estado comJared na Feira de Fryeburg, e agoraeu sabia quem eram alguns deles.Fred Dean, claro, com apenas 19

anos em 1901, o afogamento dafilha ainda a mais de trinta anos dedistância no futuro. E o que melembrou de mim mesmo era HarryAuster, o primogênito da irmã demeu bisavô. Ele estaria com 16anos, quase sem idade suficientepara tomar um pilequinho, masvelho o bastante para trabalhar nosbosques com Jared. Velho obastante para cagar no mesmofosso que Jared. Para considerarequivocadamente o veneno deJared como sabedoria. Um dosoutros tinha torcido a cabeça eestreitado os olhos ao mesmotempo — eu já vi aquele tique

antes. Onde? Então me ocorreu: noArmazém Lakeview. Aquele rapazera o pai do falecido Royce Merrill.Os outros eu não conhecia. Nemfazia questão de conhecer.

— Você não vai passar por nós —disse Devore. Levantou as mãos. —Nem pense em tentar. Não tenhorazão, rapazes?

Eles resmungaram algoconcordando — como se ouviria dequalquer gangue de drogados oudesordeiros dos dias atuais,imagino —, mas suas vozes eramdistantes; na verdade mais tristesdo que ameaçadoras. Havia algumasubstância no homem com as

roupas de Jared Devore, talvezporque em vida ele tinha sido umhomem de enorme vitalidade outalvez porque tivesse morrido tãorecentemente, mas os outros erampouco mais do que imagensprojetadas.

Comecei a andar, penetrando nofrio congelante, penetrando nocheiro dele — os mesmos odoresdoentios que o haviam rodeadoquando eu o encontrara antes.

— Aonde pensa que está indo? —exclamou.

— Fazer uma caminhadaterapêutica — falei. — E não hánenhuma lei contra isso. A Rua é o

lugar onde bons cachorrinhos ecães malvados podem andar lado alado. Você mesmo disse isso.

— Você não entende — disseMax-Jared. — Nunca vai entender.Não pertence àquele mundo.Aquele era o nosso mundo.

Parei, olhando-o comcuriosidade. O tempo era curto, euqueria terminar com aquilo... mastinha que saber, e achei queDevore estava pronto para contar.

— Me faça entender — eu disse.— Convença-me de que qualquermundo era o seu mundo. — Olhei-o,e depois para as bruxuleantes etranslúcidas figuras por trás dele,

carne diáfana empilhada em ossosbrilhantes. — Conte-me o que fez.

— Era tudo diferente então —disse Devore. — Quando vocêdesce até aqui, Noonan, pode andar5 quilômetros ao norte para HaloBay e ver apenas uma dúzia depessoas na Rua. Depois do Dia doTrabalho pode não se verabsolutamente ninguém. Destelado do lago você tem quecontornar os arbustos que estãocrescendo desordenadamente, asárvores derrubadas — haverá atémais delas depois destatempestade — e até um ou doisamontoados de mato e árvores

caídas, porque hoje em dia opessoal da cidade não se junta paramantê-la limpa como antigamente.Mas em nosso tempo!... Os bosqueseram maiores então, Noonan, asdistâncias mais longínquas, evizinhança significava alguma coisa.A própria vida, com frequência.Naquela época, isso aqui erarealmente uma rua. Não vê?

Eu poderia ver. Se olhasseatravés das formas fantasmas deFred Dean, Harry Auster e osoutros, poderia ver. Não eramapenas fantasmas; eramtremeluzentes janelas de vidrodando para outra época. Vi

uma tarde de verão no ano de...1898? Talvez 1902? 1907? Nãoimporta. Aquele era um período emque todo tempo parece o mesmo,como se tivesse parado. Aquele éum tempo que o pessoal da velhaguarda lembra como uma espéciede época dourada. É a Terra queFicou para Trás, o Reino doQuando-Eu-Era-um-Garoto. O sollava tudo com a fina luz de ouro dofinal interminável de julho; o lago étão azul quanto um sonho,enfeitado com um bilhão decentelhas de reflexos de luz. E aRua! Tem uma relva tão maciaquanto um gramado e tão larga

quanto um boulevard. Vejo que éum boulevard, um lugar onde acomunidade se realizacompletamente. É o principal canalde comunicação, o cabo-chefenuma região crivada deles. Senti aexistência desses cabos o tempointeiro — mesmo quando Jo estavaviva eu os sentia sob a superfície, eali estava seu ponto de origem. Opasseio do pessoal na Rua: paracima e para baixo do lado leste dolago Dark Score eles passeiam empequenos grupos, rindo econversando sob um céu de verãoempilhado de nuvens, e foi ali quetodos os cabos começaram. Olhei e

percebi como estava errado empensar neles como marcianos,como alienígenas cruéis ecalculistas. À leste de seu passeioensolarado paira a escuridão dosbosques, clareiras e bolsões, ondequalquer coisa miserável podeespreitar, de um pé decepado numacidente de corte de árvore até umparto que deu errado e uma jovemmãe morta antes de o médicopoder chegar de Castle Rock emsua charrete. São pessoas semeletricidade, sem telefone, semUnidade de Resgate do condado,sem ninguém em quem se apoiarexceto uns aos outros e um Deus

de que alguns já tinham começadoa desconfiar. Moram nos bosques enas sombras dos bosques, mas nasbonitas tardes de verão eles vêmpara a beira do lago. Vêm para aRua e olham os rostos uns dosoutros e riem juntos, e então estãoverdadeiramente na TR — no queeu passei a pensar como a zona.Não são marcianos; são pequenosseres vivos habitando à beira daescuridão, só isso.

Vejo o pessoal de verão doWarrington’s, os homens vestidosde flanela branca, duas mulheresem vestidos longos de tênis, aindacarregando as raquetes. Um sujeito

dirigindo um triciclo com umaenorme roda dianteira costuratremulamente entre eles. O grupodo pessoal de verão parou parafalar com um grupo de rapazeslocais; os rapazes de longe queremsaber se podem participar do jogode beisebol do pessoal da cidade noWarrington’s na terça à noite. BenMerrill, o futuro pai de Royce, dizPodem, mas não vamos dar molezaa vocês só porque são de NoovaYak. Os rapazes riem; as tenistastambém.

Um pouco mais longe, doisgarotos estão pegando e lançandouma bola simples de beisebol, feita

em casa. Além deles vê-se umareunião de jovens mães, falandoveementemente de seus bebês,todos bem seguros dentro decarrinhos e reunidos num grupopróprio. Homens de macacãodiscutem o tempo e as safras, apolítica e as safras, os impostos eas safras. Uma professora doConsolidated High está sentada nasaliente pedra cinzenta queconheço tão bem, orientandopacientemente um garotoemburrado que deseja estar emoutro lugar, fazendo outra coisaqualquer. Acho que, quandocrescer, esse garoto será o pai de

Buddy Jellison. Buzina quebrada —aguarde pelo dedo, penso.

Ao longo de toda a Rua, opessoal está pescando, e pegammuitos peixes; o lago praticamentefervilha de peixes diversos, comopercas, trutas e lúcios. Um artista— outro sujeito de verão, julgando-se pelo guarda-pó e pela boina —instalou seu cavalete e estápintando as montanhas, enquantoduas senhoras assistem cheias derespeito. Um grupo de garotaspassa, sussurrando sobre rapazes,roupas e escola. Há beleza ali, epaz. Devore tem razão de dizer queaquele é um mundo que eu jamais

conheci. Ele é— Lindo — digo, voltando de lá

com esforço. — É, eu vejo isso. Masqual é o ponto de vista que estádefendendo?

— Qual é? — Devore pareceuquase comicamente surpreso. — Elapensou que podia andar ali comoqualquer um, é esse o ponto, porra!Pensou que podia andar ali como sefosse uma garota branca! Ela, seusgrandes dentes, seus grandespeitos e seu ar esnobe. Achou queera algo especial, mas nós lheensinamos. Ela tentou passar pormim, e, quando não conseguiu,colocou as mãos sujas em mim e

me derrubou. Mas, tudo bem,ensinamos a ela boas maneiras.Não ensinamos, rapazes?

Eles resmungaram concordando,mas achei que alguns deles — ojovem Harry Auster, por exemplo —pareciam nauseados.

— Nós lhe ensinamos qual eraseu lugar — disse Devore. — Nóslhe ensinamos que ela era apenasuma

crioulo. Essa é a palavra que eleusa repetidamente quando elesestão nos bosques naquele verão, overão de 1901, o verão em queSara e os Red-Tops se tornaram “o”espetáculo musical nesta parte do

mundo. Ela, seu irmão e toda suafamília de crioulos tinham sidoconvidados pelo Warrington’s paratocar para o pessoal de verão; elesforam alimentados com champanhee ostras... ou assim diz JaredDevore para sua pequena escola dedevotados seguidores enquantoestes almoçam seus alimentoscomuns, pão, carne e pepinossalgados tirados de tinas detoucinho e dados a eles pelas mães(nenhum dos rapazes é casado,embora Oren Peebles esteja noivo).

Entretanto, não é a crescentefama dela que aborrece JaredDevore. Não é o fato de que tenha

estado no Warrington’s; ele não dáa mínima também para o fato deque ela e o irmão tenhamrealmente sentado e comido comgente branca, tirado pão da mesmacesta que eles com seus dedospretos. Afinal de contas, o pessoaldo Warrington’s é gente da planície,e Devore conta aos rapazessilenciosos e atentos que ouviudizer que, em lugares como NovaYork e Chicago, as mulheresbrancas às vezes chegam até afoder com pretos.

Não!, diz Harry Auster, olhandonervosamente ao redor, como seesperasse que algumas mulheres

brancas viessem saltitando pelosbosques ali em Bowie Ridge.Nenhuma mulher branca foderiacom um preto! Deixa disso!

Devore apenas lhe lança umolhar do tipo que diz Quando vocêestiver com a minha idade. Alémdisso, ele não se importa com o queacontece em Nova York ou Chicago;viu toda a gente da planície quequeria durante a Guerra Civil... e,dirá ele, nunca lutou naquelaguerra para libertar aquelesescravos desgraçados. Eles podemmanter os escravos lá na terra doalgodão até o final da eternidade,no que diz respeito a Jared Lancelot

Devore. Não, ele lutou na guerrapara ensinar àqueles filhos da putapirados ao sul da linha Mason e aDixon que você não abandona ojogo só porque não gosta dealgumas regras. Foi até lá paraarrancar o couro de Johnny Reb.Imagina só, tinham tentado deixaros Estados Unidos da América!Santo Deus!

Não, ele não dá a mínima paraos escravos e não dá a mínima paraa terra do algodão e não dá amínima para os crioulos que cantamcanções sujas e então são tratadosa champanhe e oostras (Jaredsempre diz ostras daquela forma

sarcástica) em pagamento por suashistórias obscenas. Ele não dá amínima para coisa alguma desdeque se mantenham no seu lugar e odeixem continuar no dele.

Mas ela não vai fazer isso. Avadia arrogante não vai fazer isso.Já foi avisada para ficar longe daRua, mas não vai obedecer. Vaipara lá de qualquer jeito, epasseará de vestido brancoexatamente como se houvesse umapessoa branca dentro dele, àsvezes com o filho, que tem umnome de negro africano e nenhumpai — o pai provavelmente sópassou uma noite com a mãe num

monte de feno em algum lugar láno Alabama, e agora ela anda porali com o fruto daquilo, tão atrevidaquanto um macaco insolente. Andapela Rua como se tivesse direito deestar lá, ainda que nem uma sóalma fale com ela...

— Mas isso não é verdade, é? —perguntei a Devore. — Foi isso querealmente não passou pelagarganta do velho bisavô, não é?Eles falavam com ela. Ela tinha umjeito... aquele riso, talvez. Oshomens conversavam com elasobre as safras e as mulheres lhemostravam os bebês. Na verdade,entregavam a ela os bebês para

que segurasse. As moças lhepediam conselhos sobre os rapazes.Os rapazes... apenas olhavam. Mascomo olhavam, hein? Enchiam osolhos, e acho que a maioria delespensava nela quando ia para obanheiro e enchia as mãos.

Devore me olhou com raiva.Estava envelhecendo na minhafrente, as rugas se desenhandocada vez mais fundas em seu rosto;tornava-se o homem que tinha meempurrado para dentro do lagoporque não suportava que ocontrariassem. À medida que ficavamais velho, começava adesaparecer.

— Foi o que Jared mais detestou,não foi? Que eles não a pusessemde lado, não se afastassem. Elaandava pela Rua e ninguém atratava como crioula. Eles atratavam como uma vizinha.

Eu estava mais profundamentena zona do que havia estado algumdia, bem lá no fundo onde oinconsciente da cidade pareciacorrer como um rio enterrado. Eupodia beber daquele rio enquantoestava na zona, podia encher minhaboca e garganta e ventre com seugosto frio e mineral.

Por todo aquele verão, Devorefalou com eles. Eram mais do que

seu grupo, eram os seus rapazes:Fred, Harry, Ben, Oren, GeorgeArmbruster e Draper Finney, quequebraria o pescoço e se afogariano verão seguinte tentandomergulhar na pedreira Eadesquando estava bêbado. Só que foium tipo de acidente proposital.Draper Finney tinha bebido muitoentre julho de 1901 e agosto de1902, porque essa era a únicamaneira de ele poder dormir. Aúnica maneira de tirar aquela mãode sua mente, aquela mão esticadapara fora d’água, abrindo efechando até que se quisesse gritarPare, pare de fazer isso.

Por todo o verão, Jared Devoreencheu os ouvidos deles com vadiacrioula e vadia arrogante. Por todoo verão ele lhes falou de suaresponsabilidade como homens, seudever de manter a comunidadepura, e como deviam enxergar oque os outros não enxergavam efazer o que os outros não fariam.

Era uma tarde de domingo emagosto, uma hora em que o tráfegoao longo da Rua diminuíadrasticamente. Mais tarde, por voltadas cinco, as coisas começariam ase animar de novo, e das seis aopôr do sol o largo caminho ao longodo lago ficaria lotado. Mas às três

da tarde a maré estava baixa. Osmetodistas estavam em sessão emHarlow para sua tarde de cultomusical no Warrington’s, o grupo degente de férias da planície estavareunido, sentado para uma pesadarefeição do sabá no meio da tarde,composta de presunto e galinhaassada; por toda parte, famílias dodistrito sentavam-se ante suaspróprias refeições de domingo. Osque já haviam terminado tiravamuma soneca no calor do dia —numa rede, sempre que possível.Sara gostava daquela hora quieta.Adorava mesmo. Tinha passadoboa parte da vida em animadas

ruas principais de feiras eenfumaçadas espeluncas quevendiam gim, berrando suascanções a fim de ser ouvida acimadas vozes de bêbados desordeirosde rostos vermelhos, e, emboraparte dela adorasse a excitação e aimprevisibilidade dessa vida, partedela adorava a serenidade daquelaali também. A paz daquelescaminhos. Afinal de contas, nãoestava ficando mais jovem; tinhaum filho que agora já tinha deixadoboa parte da infância para trás.Naquele domingo em particular, eladeve ter achado a Rua quase quietademais. Andou um quilômetro e

meio para o sul do prado sem veruma viva alma — até Kito sumiraentão, tendo parado para pegarfrutinhas vermelhas. Era como setodo o distrito estivesse

abandonado. Ela sabe que há umjantar da Eastern Star emKashwakamak, claro, chegou até acontribuir com uma torta decogumelos porque tinha ficadoamiga de algumas senhoras daEastern Star. Estarão todas lápreparando as coisas. O que elanão sabe é que hoje é também oDia da Consagração da nova igrejabatista da Graça, a primeira igrejaverdadeira a ser construída na TR.

Um bando de habitantes locaiscompareceu, batistas e pagãos. Elapode ouvir levemente osmetodistas cantando, do outro ladodo lago. O som é doce, tênue ebelo; a distância e o eco afinaramtodas as vozes azedas.

Ela não percebeu os homens —na maioria rapazes muito jovens,do tipo que em circunstânciascomuns só ousam olhá-la com ocanto do olho — até que o maisvelho dentre eles fala:

— Vejam só, uma puta preta devestido branco e cinto vermelho!Sabe-se lá se isso não é um poucode cor demais para a beira do lago.

O que há de errado com você, suaputa? Não aceita um aviso?

Ela se vira para ele, com medo,mas sem demonstrá-lo. Viveu 36anos nesta terra, sabe o que umhomem tem e onde ele quer colocá-lo desde que fez 11 anos, eentende que, quando eles estãoreunidos e de cara cheia (podesentir o cheiro da bebida), desistemde pensar por si mesmos e setransformam numa matilha de cães.Se você demonstrar medo, elescaem sobre você como cães eprovavelmente a dilaceram comocães.

Além disso, eles vêm querendo

se deitar com ela. Não pode haverqualquer outra explicação para elesse mostrarem assim.

— Que aviso foi esse, benzinho?— pergunta ela, mantendo terreno.Onde está todo mundo? Ondepodem estar todos? Que droga! Dooutro lado do lago, os metodistaspassaram a “Trust and Obey”, acoisa mais monótona do mundo.

— De que você não tem nada deestar andando onde os brancosandam — diz Harry Auster. Sua vozadolescente se quebra numaespécie de chiado de camundongona última palavra, e Sara ri. Elasabe que não é inteligente fazer

isso, mas não consegue secontrolar... nunca foi capaz decontrolar seu riso, assim comonunca foi capaz de evitar quehomens desse tipo olhem para seuspeitos e seu traseiro. Quepusessem a culpa em Deus.

— Ora, eu ando onde ando — dizela. — Me disseram que isso aquiera um espaço público, e ninguémtem o direito de me impedir.Ninguém tem. Já viu alguémfazendo isso?

— Você vai ver a gente agora —diz George Armbruster, tentandoparecer durão.

Sara o fita com uma espécie de

amável desdém que faz Georgemurchar por dentro. O rosto delefulgura, vermelho e quente.

— Filho — diz ela —, você estáse mostrando agora só porque aspessoas decentes não estão aqui.Por que deixa que esse sujeito lhediga o que fazer? Aja com decênciae deixe uma senhora caminhar.

Eu vejo aquilo tudo. EnquantoDevore desaparece cada vez mais,finalmente se tornando apenasolhos sob um quepe azul na tardechuvosa (através dele posso ver osrestos espatifados de minhaplataforma de flutuação boiandocontra a margem), eu vejo aquilo

tudo. Eu a vejose mover para a frente,

caminhando direto para Devore. Seela ficar ali batendo boca com eles,alguma coisa ruim vai acontecer.Ela sente isso, e jamais discuteseus sentimentos. E se andar paraqualquer um dos outros, o Olemassa a empurrará do caminho,levando o resto com ele. O Olemassa com o quepezinho azul é ochefe da matilha, aquele que elaprecisa enfrentar. Ela pode fazê-lo,sem dúvida. Ele é poderoso,poderoso o suficiente para fazerdesses rapazes uma criatura só,uma criatura dele, pelo menos por

enquanto, mas ele não tem a força,a determinação e a energia dela.De certo modo, ela dá as boas-vindas a esse confronto. Reg aavisou para ter cuidado, não andarrápido demais ou tentar fazerverdadeiros amigos até que oscaipiras (só Reggie os chama de“crocodilos machos”) se mostrem —quantos são e a que ponto sãomalucos —, mas ela segue seupróprio curso, confia nos própriosinstintos profundos. E ali estão eles,só sete, e de fato apenas umcrocodilo macho.

Sou mais forte que você, Olemassa, pensa ela, andando para

ele. Fixa seus olhos nos dele e nãovai abaixá-los; são os dele que seabaixam, a boca dele que tremeincerta num canto, é dele a línguacolocada para fora, tão rápidaquanto a de um lagarto paramolhar os lábios, e tudo aquilo ébom... mas é até melhor quandoele recua um passo. Quando ele fazisso, os outros se amontoam emdois grupos de três, e é isso, lá estáa abertura no caminho dela.Frouxos e doces são os metodistas,música de fé arrastando-se pelaimóvel superfície do lago. Um hinomonótono, sim, mas doce adistância.

“When we walk with the Lordin the light of His world,

what a glory He sheds on our way…”10

Sou mais forte que você,benzinho, ela envia, sou pior do quevocê, você pode ser o crocodilomacho, mas eu sou a abelha-rainha, e, se não quer que eu lhedê uma ferroada, é melhor ficarlonge de mim pelo resto docaminho.

— Sua vadia — diz ele, mas suavoz é fraca; ele já está pensandoque esse não é o dia, que há algonela que ele não viu bem atéencará-la tão de perto, um feitiço

de crioula que ele não sentiu atéagora, melhor esperar outro dia,melhor...

Então ele tropeça numa raiz ourocha (talvez seja a grande pedraatrás da qual ela finalmente veio adescansar) e cai. Seu quepetambém, mostrando a grande evelha mancha de calvície no alto desua cabeça. As calças dele serasgam por toda a costura. E Saracomete um erro crucial. Talvezsubestime a própria forçaconsiderável de Jared Devore, outalvez simplesmente não possaevitar — o som de suas calçasrasgando é como um peido alto. De

qualquer modo ela ri — aquele risoestridente, um sorriso amareladoque é sua marca registrada. Eaquele sorriso se torna a suacondenação.

Devore não pensa. Elesimplesmente a golpeia dali ondeestá deitado, grandes pés em botascom chapinhas de ferro impelidaspara a frente como pistões. Ele aatinge onde ela é mais fina e maisvulnerável, nos tornozelos. Elaberra com o choque da dor quandoo esquerdo quebra; começa a caircambaleando, a mão soltando asombrinha fechada. Ela respira egrita de novo, e Jared diz de onde

está deitado:— Não a deixem gritar! Não a

deixem gritar!Ben Merrill cai em cima dela de

corpo inteiro, todos os seus 86quilos. O fôlego que ela tinhatomado para gritar sai empequenas ondas, em vez do gritotempestuoso, quase um suspirosilencioso. Ben, que jamais tinhadançado com uma mulher, muitomenos ficado em cima de umaassim, sente-se instantaneamenteexcitado pela sensação delalutando debaixo de seu corpo. Elese contorce contra ela, rindo, equando ela arranha seu rosto ele

quase não o sente. Sente-se só umpau de um metro de comprimento.Quando ela tenta rolar e sairdebaixo dele, ele rola com ela,deixa que ela fique no alto, e ficatotalmente surpreso quando ela lhedá uma cabeçada. Ele vê estrelas,mas tem 18 anos, é forte comojamais seria algum dia, e não perdea consciência nem a ereção.

Oren Peebles rasga a parte detrás do vestido dela, rindo.

— Coladinho! — grita ele nummurmúrio ofegante, e cai por cimadela. Agora ele está se esfregandoa seco de lá de cima e Ben está seesfregando a seco tão

entusiasticamente quanto eleembaixo, se esfregando como umbode mesmo com o sangueescorrendo pelas laterais da cabeçada fenda no centro da testa, e elasabe que se não puder gritar estáperdida. Se puder gritar e Kitoouvir, ele fugirá e trará Reg...

Mas antes que possa tentar denovo, o Ole massa está agachadoao lado dela mostrando-lhe umafaca de lâmina comprida.

— Se der um pio eu corto seunariz — diz ele, e é então que eladesiste. Eles a derrotaram, afinal decontas, em parte porque ela riu nomomento errado, principalmente

por pura e simples falta de sorte.Agora eles não pararão, e é melhorque Kito continue longe — porfavor, Deus, mantenha-o onde está,era uma grande quantidade defrutinhas, e que deve mantê-loocupado uma hora ou mais. Eleadora colher as frutinhas e esseshomens não vão levar uma horanisso. Harry Auster puxa o cabelodela para trás, rasga seu vestidonum ombro e começa a chupar seupescoço.

O Ole massa é o único que não atoca. O Ole massa está em pé erecuado, olhando para os dois ladosda Rua, os olhos apertados e

cautelosos; o Ole massa parece umrepulsivo lobo cinzento que acaboude comer uma geração inteira degalinhas de quintal evitando aomesmo tempo cada armadilha etocaia.

— Ei, irlandês, solte-a um minuto— ele diz a Harry, então dirige seuolhar sagaz para os outros. —Acertem ela no buraco, seusidiotas. Acertem ela lá no fundo.

Eles não o fazem. Nãoconseguem. Estão ávidos demaispara possuí-la. Puxam-na pelobraço para trás do frontão da pedracinzenta e acham que está bom. Elanão reza facilmente, mas está

rezando agora. Reza para que adeixem viva. Reza para que Kitofique distante, para que continue aencher seu balde lentamenteenquanto come um terço do quecolhe. Reza para que, se ele aalcançar, veja o que estáacontecendo e corra para o outrolado tão rápido quanto puder, corrasilenciosamente e chame Reg.

— Meta isso na boca — ofegaGeorge Armbruster. — E não memorda, sua vadia.

Eles a tomam por cima e porbaixo, pela frente e por trás, doisou três ao mesmo tempo. Eles atomam onde alguém aparecendo

não pode deixar de vê-los, e o Olemassa fica um pouco afastado,olhando primeiro para os ofegantesrapazes agrupados em torno dela,ajoelhando-se com as calçasabaixadas e as coxas arranhadasdas moitas onde estão ajoelhando,depois ele examina o caminho decima a baixo com seus olhosalucinados e cautelosos.Inacreditavelmente, um deles — éFred Dean — diz:

— Desculpe, dona — depois desoltar sua carga e de se sentir pralá de Marrakech. É como se tivesseacidentalmente chutado a caneladela ao cruzar as pernas.

E a coisa não termina. Descepela garganta dela, desce pelafenda de seu rabo, o jovem tirousangue ao morder seu seioesquerdo, e a coisa não termina.Eles são jovens, e quando o últimoterminou, o primeiro, ah, Deus, oprimeiro está pronto de novo. Dooutro lado do rio os metodistasestão agora cantando “BlessedAssurance, Jesus is mine”, e quandoo Ole massa se aproxima dela elapensa. Está quase terminado,mulher, ele é o último, aguente,aguente firme que vai terminar. Eleolha para o ruivo magricela e parao que continua estreitando os olhos

e agitando a cabeça e lhes diz paravigiarem o caminho, é a sua vezagora, agora que ela está mansa.

Ele desafivela o cinto, desabotoaa braguilha, desce as ceroulas —com sujeira preta nos joelhos eamarela no gancho — e enquantocai de joelhos sobre ela, ela vê queo Ole massa do Ole massa está tãomole quanto uma cobra de pescoçoquebrado e, antes que ela possaimpedir, o riso estridente explodeinesperadamente de novo —mesmo deitada ali, coberta com ageleia quente dos estupradores, elanão consegue se controlar ao ver olado engraçado.

— Cale a boca! — resmunga eleguturalmente, e senta a palma durade sua mão no rosto dela,quebrando-lhe o malar e o nariz. —Pare com esse uivo!

— Acho que ele ia ficar mais durose fosse um dos seus garotos quemestivesse deitado aqui, com o cucor-de-rosa virado pro ar, não é,benzinho? — diz ela, e então Sara ripela última vez.

Devore levanta a mão para baternela de novo, seus quadris nuscontra os quadris nus dela, seupênis uma minhoca flácida entreeles. Mas, antes que possa descer amão, uma voz de criança grita:

— Mãe! O que é que tão fazendocom você, mãe? Larguem minhamãe, canalhas!

Ela se senta apesar do peso deDevore, o riso morrendo, os olhosarregalados procurando Kito e oencontrando, um esbelto garoto de8 anos em pé na Rua, de macacão,chapéu de palha e sapatos de lonanovos em folha, carregando umbalde de lata. Seus lábios estãoazuis do sumo das frutas. Os olhossurpresos de confusão e medo.

— Foge, Kito! — grita ela. —Foge...

Um fogo vermelho explode emsua cabeça; ela desmaia

novamente entre os arbustos,ouvindo o Ole massa a uma grandedistância:

— Peguem ele. Não deixem eleficar por aí, agora.

Então ela está descendo umgrande declive negro, está perdidanum corredor da Casa Fantasmaque leva cada vez mais para ofundo de suas emaranhadasentranhas; daquele lugar profundopor onde vai caindo ela o escuta,ela escuta o seu querido, ele está

gritando. Eu o ouço gritarenquanto ajoelho junto à rochacinzenta com minha bolsa decompras ao lado e não tenho ideia

de como cheguei ali — certamentenão tenho nenhuma lembrança deter andado até lá. Eu estavachorando de choque, horror e pena.Ela era maluca? Bem, não é deespantar. Absolutamente nada deespantar, porra. A chuva caíacontinuamente, porém não mais deforma apocalíptica. Contempleifixamente minhas mãos de umbranco mortiço na pedra cinzentapor alguns segundos, depois olheiem torno. Devore e os outroshaviam desaparecido.

O fedor maduro e gasoso dedecomposição encheu meu nariz —era como um ataque físico. Remexi

na bolsa de compras, encontrei aStenomask que Rommie e Georgetinham me dado de brincadeira, ecoloquei-a sobre a boca e o narizcom dedos entorpecidos edistantes. Respirei levemente, comhesitação. Melhor. Não muito, maso suficiente para me impedir defugir, o que indubitavelmente era oque ela queria.

— Não! — gritou ela de algumponto atrás de mim quando agarreia pá e cavei. Arranquei um grandenaco do solo com o primeiro golpe,e os que vieram depoisaprofundaram e alargaram oburaco. A terra era macia e dócil,

misturada ao emaranhado de raízesfinas que se partiam facilmente soba lâmina.

— Não! Não ouse fazer isso!Eu não ia olhar em volta, não ia

lhe dar a chance de me empurrarpara longe. Ali ela era mais forte,talvez porque fosse o local onde acoisa aconteceu. Seria possível? Eunão sabia e não me importava.Importava-me apenas fazer oserviço. Onde as raízes eram maisespessas, eu as cortava com apodadeira.

— Deixe-me existir!Então olhei ao redor, arrisquei

uma rápida olhada por causa dos

sons de estalo pouco naturais quehaviam acompanhado a voz dela —e que agora pareciam formar suavoz. A Senhora Verde tinhadesaparecido. A bétula de algummodo tinha se tornado SaraTidwell: era o rosto de Sara quesaía de suas folhas brilhantes egalhos entrecruzados. O rostolustroso de chuva oscilou,dissolveu-se, juntou-se, dissolveu-se e agregou-se de novo. Por ummomento, todo o mistério que sentinaquele lugar tinha sido revelado.Os olhos dela, úmidos e mutáveis,eram totalmente humanos. Eles sefixaram em mim com ódio e súplica.

— Eu não acabei! — gritou comuma voz fraca e embargada. — Eleera o pior de todos, não entende?Ele era o pior, e seu sangue estánela, e não vou descansar enquantoele não estiver derramado!

Ouvi um medonho som de algose rasgando. Ela tinha habitado abétula, feito dela de algum modoum corpo físico e pretendia libertá-la do solo. Teria vindo até mim eme pegado se pudesse; me matadose pudesse. Teria me estranguladocom os galhos flexíveis, mesufocado com folhas até que euparecesse uma decoração de Natal.

— Por mais que ele tenha sido

um monstro, Kyra não tem nada aver com o que ele fez — eu disse.— E você não vai tê-la.

— Vou, sim! — gritou a SenhoraVerde. Os sons rasgados edilacerantes eram mais altos agora.A eles se juntou um estaloassobiante e trêmulo. Não olhei emvolta de novo. Não ousei olhar. Emvez disso, cavava mais depressa. —Vou ter ela, sim! — gritou, e agoraa voz estava mais próxima. Elaestava vindo na minha direção, masme recusei a ver; quando se tratade árvores e arbustos que andam,eu fico com Macbeth, obrigado. —Vo u tê-la! Ele tirou o meu e eu

pretendo tirar a dele!— Vá embora — disse outra voz.A pá se soltou de minhas mãos,

quase caiu. Eu me virei e vi Jo empé abaixo de mim, à direita. Elaolhava para Sara, que tinha sematerializado num delírio delunático — uma coisa monstruosaverde-musgo escorregando a cadapasso que tentava dar pela Rua.Deixou a bétula para trás, masassumiu de certo modo suavitalidade — a árvore realavolumava-se atrás dela, negra,enrugada e morta. A criaturanascida dela parecia a Noiva deFrankenstein esculpida por Picasso.

Nela, o rosto de Sara aparecia edesaparecia, aparecia edesaparecia.

A Forma, pensei friamente.Sempre tinha sido real... e se erasempre eu, era sempre elatambém.

Jo usava a mesma camisa brancae a calça amarela do dia em quemorreu. Através dela, eu não podiaver o lago, como conseguia veratravés de Devore e de seus jovensamigos; ela se materializoucompletamente. Senti uma curiosasensação de drenagem na parte detrás do crânio, e achei que sabia oque era.

— Dá o fora, sua vaca! — rosnoua coisa-Sara. Ergueu os braços nadireção de Jo como o fez para mimem meus piores pesadelos.

— De modo nenhum. — A voz deJo continuava calma. Ela se viroupara mim. — Depressa, Mike. Vocêtem que ser rápido. Já não é maisela, exatamente. Ela deixou que umdos Forasteiros entrasse, e eles sãomuito perigosos.

— Jo, eu te amo.— Eu te amo t...Sara deu um guincho agudo e

começou a girar. Folhas e ramosformaram uma mancha e perderamconsistência; era como observar

algo se desfazer num liquidificador.A entidade que, no início, só separecia um pouco com uma mulheragora foi inteiramentedesmascarada. Algo elementar egrotescamente inumano começou ase formar do redemoinho. A coisasaltou para minha mulher. Quandoa atingiu, a cor e a solidezabandonaram Jo como se elativesse sido esbofeteada por umamão gigantesca. Ela se tornou umfantasma lutando com a coisa querugia, guinchava e lhe cravava asgarras.

— Depressa, Mike! — gritou Jo.— Depressa!

Voltei-me para a tarefa.A pá atingiu algo que não era

lixo, não era pedra, não eramadeira. Raspei-o, revelando umaamostra de lona imunda eincrustada de mofo. Agora eucavava como um louco, querendolimpar o objeto o máximo possível,querendo aumentar ao máximopossível minhas chances de êxito.Por trás de mim, a Forma berrouem fúria, e minha esposa gritou dedor. Sara tinha desistido de partede si mesma desincorporada a fimde obter vingança, e deixou entrarnela algo que Jo chamou deForasteiro. Eu não tinha ideia do

que podia ser isso, e não gostariade vir a ter. Sara era o canal dele,disso eu sabia. E se eu pudessecuidar dela a tempo...

Entrei no buraco gotejante,dando tapas para retirar a terra davelha lona. Desbotadas letrasgravadas em estêncil apareceramquando o fiz: SERRARIA J. M. McCURDIE. Eusabia que a McCurdie tinha sidoqueimada nos incêndios de 1933; vium retrato dela em chamas emalgum lugar. Enquanto pegava alona, as pontas de meus dedos seenfiaram nela e deixaram sair umnovo vagalhão de fedor verde egasoso. Ouvi um gemido. Ouvi

Devore. Ele está em cima dela egrunhindo como um porco. Sara seencontra semiconsciente,murmurando coisas ininteligíveisatráves dos lábios machucados ebrilhantes de sangue. Devore olhapor cima do ombro para DraperFinney e Fred Dean. Eles haviamcorrido atrás do garoto e o trazidode volta, mas Kito não parou deberrar, está berrando de modo aestourar qualquer tímpano,berrando de modo a acordar osmortos, e se eles podem ouvir osmetodistas cantando “How I Loveto Tell the Story” dali, então épossível que de lá eles escutem o

crioulo uivando. Devore diz:— Coloquem ele dentro d’água,

obriguem ele a calar a boca. — Nominuto em que diz isso, como se aspalavras fossem mágicas, seu paucomeça a endurecer.

— O que é que quer dizer isso?— pergunta Ben Merrill.

— Você sabe muito bem, porra— diz Jared. Ele pronuncia aspalavras movimentando com forçaos quadris enquanto fala. Suabunda estreita cintila à luz da tarde.— Ele nos viu! Quer cortar suagarganta e se sujar todo desangue? Para mim está ótimo. Aqui.Pegue minha faca, sirva-se!

— N-não, Jared! — exclama Bencom horror, na verdade parecendose encolher ante a visão da faca.

Jared finalmente está pronto.Demora um pouco mais, só isso, jánão é um garoto como os outros.Mas agora... Pouco importa a bocaesperta dela, seu modo de ririnsolente, o distrito inteiro. Quetodos eles apareçam e fiquemolhando, se quiserem. Enfia nela, oque ela vinha querendo o tempotodo, o que toda a raça dela quer.Desliza nela e enfia bem fundo.Continua dando ordens mesmoenquanto a estupra. Sua bundasobe e desce, tique-toque,

exatamente como a cauda de umgato.

— Um de vocês cuide dele! Ouquerem passar quarenta anosapodrecendo em Shawshank porcausa da tagarelice de um garotocrioulo?

Ben pega um braço de KitoTidwell, Oren Peebles pega o outro,mas quando o arrastam até amargem já perderam a coragem defazê-lo. Estuprar uma crioulaarrogante que teve o descaramentode rir de Jared quando ele caiu erasgou as calças é uma coisa.Afogar um garoto assustado comoum gatinho numa poça de lama é

outra completamente diferente.Eles afrouxam o aperto com que

o seguram, olhando-se fixamentecom olhos assombrados. Então Kitose solta.

— Foge, meu amor! — gritaSara. — Foge e... — Jared fecha asmãos na garganta dela e começa asufocá-la.

O garoto tropeça no própriobalde de frutinhas vermelhas e caide forma pouco graciosa no chão.Harry e Draper o recapturamfacilmente.

— O que vai fazer? — perguntaDraper numa espécie de gemidodesesperado, e Harry responde:

— O que tenho que fazer. — É oque ele respondeu, e agora eu iafazer o que tinha que fazer...apesar do fedor, apesar de Sara,apesar dos guinchos de minhamulher morta. Arrasto o rolo delona para fora do buraco. As cordasque o amarram nas duas pontas semantêm firmes, mas o próprio roloabre-se no meio com um medonhosom de arroto.

— Depressa! — grita Jo. — Nãoposso aguentar muito mais tempo!

A coisa rosnou; a coisa latiucomo um cachorro. Houve umapancada forte de madeira, comouma porta batida com força

suficiente para que lascas sesoltassem, e Jo gemeu. Agarrei abolsa de compras com o nomeSlips’n Greens impresso e abri-aenquanto

Harry — os outros o chamam deirlandês devido a seus cabelos corde cenoura — agarra a criança quese debate numa espéciedesajeitada de abraço de urso epula no lago com ele. O garoto sedebate com mais força do quenunca; seu chapéu de palha caiu eflutua na água.

— Pegue aquilo! — ofega Harry.Fred Dean se ajoelha e pesca ochapéu gotejante. Os olhos de Fred

estão desnorteados, ele exibe o arde um lutador prestes a cair nalona. Atrás deles, Sara Tidwellcomeçou a vibrar bem no fundo dopeito e da garganta — tais sons,assim como a visão da mão fechadado garoto, vão assombrar DraperFinney até seu mergulho final napedreira Eades. Jared afunda maisos dedos, penetrando e sufocandoao mesmo tempo, o suorescorrendo. Nenhuma quantidadede água tirará o cheiro daquelesuor de suas roupas, e, quando elecomeça a pensar naquilo como“suor de assassinato”, queima asroupas para se livrar dele.

Harry Auster quer se livrar dissotudo — quer se livrar disso e nuncamais ver esses homens,principalmente Jared Devore, queagora ele acha que deve ser opróprio Satã. Harry não pode ir paracasa e encarar o pai a menos queesse pesadelo esteja terminado,enterrado. E sua mãe! Como podeencarar sua adorada mãe, BridgetAuster, com seu doce rosto redondoirlandês e cabelos grisalhos e coloreconfortante, Bridget que sempreteve uma palavra amável ou umamão calmante para ele, BridgetAuster que foi Salva, Lavada noSangue do Cordeiro, Bridget Auster

que agora mesmo está servindotortas no piquenique que estãofazendo na nova igreja, BridgetAuster que é sua mãe; comopoderá olhá-la de novo — ou elapara ele — se ele tiver queenfrentar um tribunal sob aacusação de estupro eespancamento de uma mulher,mesmo sendo negra?

Assim, ele afasta o garoto — Kitoo arranha uma vez, só um risconum dos lados do pescoço, enaquela noite Harry dirá a mãe quefoi o espinho de um arbusto que opegou desprevenido, e ele adeixará dar um beijo no arranhão —

e então mergulha a criança no lago.Kito olha para cima, o rostotremulando, e Harry vê um peixinholampejar próximo. Uma perca,pensa. Por um instante, cogita oque será que o garoto vê, olhandoatravés do escudo prateado dasuperfície para o rosto do sujeito láem cima que o segura embaixod’água, o sujeito que o estáafogando, e então Harry afasta opensamento. É só um crioulo,lembra desesperadamente a simesmo. É só o que ele é, umcrioulo. Não é da sua espécie.

O braço de Kito sai da água —um braço marrom-escuro e

gotejante. Harry o empurra devolta, não querendo ser agarrado,mas a mão se estende para ele,apenas se espeta reta para cima.Os dedos se curvam, fechando opunho. Abrem. Fecham-se numpunho. Abrem. Fecham-se de novo.O garoto começa a se debatermenos, os pés chutando começama arrefecer, os olhos fitando osolhos de Harry vão assumindo umaexpressão curiosamente sonhadora,e mesmo assim aquele braço magrose estica para cima, mesmo assim amão se abre e se fecha, se abre ese fecha. Draper Finney fica namargem chorando, é claro que

agora alguém verá a coisa terrívelque eles fizeram — a coisa terrívelque, na verdade, ainda estãofazendo. Esteja certo de que seupecado encontrará você, diz o BomLivro. Esteja certo. Ele abre a bocapara dizer a Harry para largar ogaroto, talvez não seja tardedemais para recuar, deixe-o subir àsuperfície, deixe-o viver, mas nãoconsegue emitir nenhum som. Atrásdele, Sara está sufocando pelaúltima vez. Na frente dele, a mãodo filho dela que se afoga abre efecha, abre e fecha, seu reflexotremulando na água, e Draperpensa Ele não vai parar de fazer

isso, não vai parar de fazer issonunca? E como se isso fosse umaprece que agora está sendoatendida, o cotovelo esticado domenino começa a se curvar e obraço se afrouxa; os dedoscomeçam a se fechar novamentenum punho e então param. Por ummomento, a mão oscila e então

com a palma da mão, dou umtapa na testa para afastar essesfantasmas. Por trás de mim há umfrenético ruído e os estalos dearbustos molhados, enquanto Jo eseja lá o que ela está segurandocontinuam a lutar. Ponho minhasmãos dentro da fenda da lona como

um médico alargando umferimento. Um som baixo de rasgãose faz ouvir enquanto o rolo serasga de cima a baixo.

Dentro estava o que tinhasobrado deles — dois crâniosamarelados, fronte contra frontecomo numa conversa íntima, umdesbotado cinto de mulher de courovermelho, roupas femininasdesfeitas em pó... e uma pilha deossos. Duas caixas torácicas, umagrande e uma pequena. Doisconjuntos de pernas, um compridoe outro curto. Os restos matais deSara e Kito Tidwell enterrados alijunto ao lago por quase cem anos.

O crânio maior se virou. Olhou-me ferozmente com suas órbitasvazias. Os dentes matraquearamcomo se quisessem me morder, eos ossos abaixo começaram ummovimento tenebroso e agitado.Alguns se desmantelaramimediatamente; todos estavammacios e corroídos. O cintovermelho moveu-se inquietamentee a fivela enferrujada ergueu-secomo a cabeça de uma cobra.

— Mike! — gritou Jo. —Depressa, depressa!

Puxei o saco da bolsa decompras e agarrei a garrafa deplástico dentro dele. Na oh, tinham

dito os ímãs, ou NaOH. Hidróxidode sódio. Outra mensagem passadaàs costas distraídas do guarda.Outra palavrinha-truque. SaraTidwell era uma criatura temível,mas havia subestimado Jo... etambém a telepatia de uma longaassociação. Eu tinha ido ao Slips’nGreens e comprado uma garrafa desoda cáustica. Então a abri ederramei o hidróxido sobre os ossosde Sara e de seu filho, fumegando.

Houve o mesmo som de assobioque se ouve ao se abrir umagarrafa de cerveja ou refrigerante.A fivela do cinto derreteu. Os ossosse tornaram brancos e enrugados

como coisas feitas de açúcar — tiveuma imagem de pesadelo decrianças mexicanas comendocadáveres de açúcar queimadoespetados em longas varetas no diados mortos. As órbitas de Sara sealargaram quando a soda cáusticaencheu os buracos escuros ondesua mente, seu prodigioso talento esua alma sorridente um diahabitaram. Era uma expressão queinicialmente pareceu de surpresa, ea seguir de tristeza.

O maxilar caiu; os nacos dedente ficaram salientes.

O topo do crânio afundou.Os ossos dos dedos

estremeceram e depois sedissolveram.

— Ahhhhhhh...O som perpassou através das

árvores encharcadas como umvento soprando... só que o ventotinha morrido enquanto o armolhado recuperava o fôlego antesda próxima investida. Era um somde inominável dor, anseio erendição. Não senti nenhum ódionele; seu ódio tinha desaparecido,queimado no corrosivo que eucomprei na loja de Helen Auster. Osom de Sara partindo foi substituídopelo grito queixoso e quasehumano de um pássaro, e me

acordou no lugar onde eu haviaestado, trazendo-me final ecompletamente para fora da zona.Levantei trôpego, virei-me e olheipara a Rua.

Jo ainda estava lá, uma formaturva através da qual eu podia veragora o lago e as nuvens escurasdas próximas rajadas de ventoseguidas de raios e trovoadas vindosobre as montanhas. Algobruxuleou além dela — aquelepássaro aventurando-se de seuabrigo seguro para uma espiadanas modificações do meioambiente, talvez —, mas quase nãoo registrei. Era Jo que eu queria

ver, Jo que veio só Deus sabia deonde, assim como só Deus sabia oque ela tinha sofrido para meajudar. Parecia exausta, machucadae, de algum modo fundamental,diminuída. Mas a outra coisa — oForasteiro — tinha ido embora. Empé, num círculo de folhas de bétulatão mortas que pareciamcarbonizadas, Jo se virou para mime sorriu.

— Jo! Nós conseguimos!Sua boca se moveu. Ouvi o som,

mas as palavras estavam muitodistantes para serem distinguidas.Estava em pé ali, mas poderia estarfalando do outro lado de um largo

desfiladeiro. Mesmo assim aentendi. Li as palavras de seuslábios, se você preferir o racional,ou direto da mente dela, se preferiro romântico. Eu prefiro o último. Ocasamento é uma zona também,você sabe. O casamento é umazona.

— Então isso está certo, nãoestá?

Olhei para o escavado rolo delona e não vi nada a não ser tocose lascas espetando-se para fora deuma pasta inquieta e nociva. Umsopro chegou até mim e, mesmoatravés da Stenomask, me feztossir e recuar. Não era

decomposição; soda cáustica.Quando olhei para Jo, ela quasenão estava lá.

— Jo! Espere!— Não posso ajudar. Não posso

ficar.Palavras de outro sistema solar,

quase vislumbradas de uma bocaque se esvai. Agora ela era poucomais do que olhos flutuando natarde escura, olhos que pareciamfeitos do lago atrás deles.

— Depressa...Desapareceu. Escorreguei e

tropecei para o lugar onde ela haviaestado, meus pés esmagandofolhas mortas de bétula, mas não

agarrei nada. Que idiota devo terparecido, encharcado até os ossos,usando uma Stenomask torta nametade inferior do rosto, tentandoabraçar o úmido ar cinzento.

Captei a mais débil lufada doperfume Red... e então só ficou aterra úmida, a água do lago e ofedor ruim da soda cáusticacorrendo por baixo de tudo. Pelomenos o cheiro de putrefação sefora; aquilo não havia sido maisreal do que...

Do que o quê? Do que o quê? Ouera tudo real, ou nada daquilo erareal. Se nada daquilo fosse real, eutinha perdido as faculdades mentais

e estava pronto para o hospício.Olhei para a rocha cinzenta e vi osaco de ossos que havia tirado dochão molhado como um denteapodrecido. Lentos filetes defumaça erguiam-se ainda daextensão rasgada. Aquilo pelomenos era real. Assim como aSenhora Verde, que era agora umaSenhora Negra cor de fuligem —tão morta como o galho morto portrás dela, o que parecia apontarcomo um braço.

Não posso ajudar... não possoficar... depressa.

Não podia ajudar com o quê? Deque outra ajuda eu precisava?

Havia terminado, não havia? Sarase fora: o espírito segue a carne,boa noite, caras senhoras.

E uma espécie de terrorfedorento, não tão diferente docheiro de putrefação que saiu dosolo, pareceu permear o ar; o nomede Kyra começou a pulsar na minhacabeça, Ki-Ki, Ki-Ki, Ki-Ki, como ocanto de algum exótico pássarotropical. Subi os degraus dedormentes para a casa e, apesar deexausto, no meio do caminhocomecei a correr.

Subi a escada para o deck econtinuei por aquele caminho. Acasa parecia a mesma — a não ser

pela árvore quebrada espetando-sepela janela quebrada da cozinhaadentro, Sara Laughs aguentou atempestade muito bem —, masalgo estava errado. Havia algo cujocheiro eu quase podia sentir... ecujo cheiro talvez sentisse mesmo,amargo e suave. A loucura pode terseu próprio aroma. Não é o tipo decoisa que eu me daria ao trabalhode investigar.

No corredor da frente parei,vendo no chão uma pilha de livrosem edições em brochura de ElmoreLeonard e Ed McBain. Como se umamão os tivesse varrido daprateleira. Mão descontrolada,

talvez. Podia ver também minhaspegadas lá, indo e vindo. Já tinhamcomeçado a secar. Deviam ser asúnicas; eu estava carregando Kiquando tínhamos entrado. Deviamser, mas não eram. Havia outrasmenores, mas não tão pequenasque eu as confundisse com pegadasde criança.

Desci correndo o corredor nadireção norte gritando o nome deKyra, e poderia muito bem estargritando Mattie, Jo ou Sara. Saindode minha boca, seu nome soavacomo o de um cadáver. A cobertahavia sido atirada no chão. Excetopelo cachorro preto de pelúcia,

jogado no mesmo local em queesteve em meu sonho, a camaestava vazia. E Ki tinhadesaparecido.

10 Quando andamos com o Senhor / recebendode Sua palavra o fulgor /que glória sobre nós sederrama...

Capítulo Vinte eNove

Tentei alcançar Ki com a parte damente que, nas últimas semanas,conseguia saber o que ela estavausando, em que cômodo do trailerse encontrava e o que fazia lá. Nãosurgiu nada, claro — aquele vínculotambém foi dissolvido.

Gritei por Jo — acho que o fiz —,mas Jo também se fora. Eu estava

sozinho. Deus me ajude. Deus nosajude. Podia sentir o pânicotentando descer e o combati. Tinhaque manter minha mente clara. Seeu não pudesse pensar, qualquerchance que Ki pudesse ter estariaperdida. Andei rapidamente devolta pelo corredor até o vestíbulo,tentando não ouvir a voz doentia naparte de trás de minha cabeça, aque dizia que Ki já estava perdida,já estava morta. Eu não podiasaber de tal coisa, não podia saberdisso agora que a conexão entrenós foi quebrada.

Olhei para a pilha de livros nochão, depois para a porta. As novas

pegadas tinham entrado por aquelecaminho e saído por aquelecaminho também. Um relâmpagoriscou o céu e um trovão estalou. Ovento começava a soprar forte denovo. Fui até a porta, estendi amão para a maçaneta e entãoparei. Algo estava preso na fendaentre a porta e a maçaneta, algotão fino e flutuante quanto umateia de aranha.

Um único cabelo branco.Olhei para ele com uma

nauseada falta de surpresa. Eudevia ter sabido, claro, e se nãofosse a tensão pela qual vinhapassando e os sucessivos choques

daquele dia terrível, teria sabido.Estava tudo na fita que John haviaposto para tocar naquela manhã...uma época que parecia parte davida de outro homem.

Por um lado, havia o marcadorde tempo assinalando o ponto emque John tinha desligado na caradela. Nove e quarenta da manhã,horário de verão no Leste, disse avoz de robô, o que significa queRogette tinha ligado às seis equarenta da manhã... isto é, serealmente ligou de Palm Springs.Era pelo menos possível; se aestranheza tivesse me ocorridoenquanto estávamos rodando do

aeroporto para o trailer de Mattie,eu teria dito a mim mesmo quesem dúvida havia insones por todaa Califórnia que concluíam seusassuntos na Costa Leste antes queo sol raiasse inteiramente nohorizonte, e que ótimo para eles.Mas havia algo mais que não podiaser explicado com tanta facilidade.

Em determinado ponto, Johnretirou a fita. Segundo ele, porqueeu tinha ficado branco como umpapel em vez de me divertir. Eu lhedisse que deixasse a fita tocar até ofim: simplesmente me surpreendipor ouvi-la novamente. A qualidadede sua voz. Cristo, como a

reprodução era boa. Só que isso, naverdade, eram os rapazes do porãoreagindo à fita; meuscoconspiradores do subconsciente.E não foi a voz dela que osassustou tanto a ponto de fazermeu rosto ficar branco. O que osassustou foi o zumbido subjacente,o zumbido característico quesempre há nos telefonemas da TR,tanto os que se fazem quanto osque se recebem.

Rogette Whitmore jamais tinhadeixado a TR-90. Se minha falhaem perceber isso naquela manhãcustasse a vida de Ki Devorenaquela tarde, eu seria incapaz de

conviver comigo mesmo. Disse issoa Deus repetidas vezes, enquantodescia novamente pelos degraus dedormentes abaixo, correndo para omeio de uma tempestaderevitalizada.

Foi realmente de espantar que eunão saísse voando direto damargem. Metade de minhaplataforma de flutuação tinhaaterrissado lá, e talvez eu tivesseme empalado nas lascas de suasbordas e morrido como um vampiroretorcendo-se numa estaca. Quepensamento agradável.

Correr não é bom para alguémquase em pânico; é como searranhar com hera venenosa.Quando abracei um dos pinheirosao pé dos degraus para deter meuavanço, estava à beira de perderqualquer pensamento coerente. Onome de Ki pulsava em minhamente de novo, e tão alto que nãohavia espaço para muito mais.

Então o clarão de um relâmpagosaltou do céu à minha direita ederrubou pelo menos um metro daparte de baixo de um enorme evelho abeto que provavelmente jáestava lá quando Sara e Kito aindase encontravam vivos. Se eu

estivesse olhando diretamente paraele, teria ficado cego; mesmo coma cabeça virada em três quartos, ogolpe deixou uma gigantescamancha azul flutuando em frenteaos meus olhos, como o momentoposterior ao flash de uma câmeragigantesca. Houve um som detrituração e uma vibração quando60 metros de abeto azul caíramsobre o lago, borrifando no ar umalonga cortina d’água, que pareceupairar entre o céu e a águacinzentos. O toco ardia na chuva,queimando como o chapéu de umafeiticeira.

Aquilo teve o efeito de um tapa,

clareando minha cabeça e medando uma chance final de usar océrebro. Respirei fundo e me forceia fazer exatamente aquilo. Emprimeiro lugar, por que eu tinhadescido até ali? Por que pensei queRogette havia trazido Kyra para olago, onde tinha acabado de estar,em vez de levá-la para longe demim, pela entrada de carro e nadireção da estrada 42?

Não seja burro. Ela desceu paracá porque a Rua é o caminho devolta ao Warrington’s, e é noWarrington’s que ela tem ficado,sozinha, desde que mandou o corpodo patrão de volta à Califórnia no

avião particular dele.Ela se esgueirou por minha casa

adentro enquanto eu estavaembaixo do estúdio de Jo,descobrindo a caixa de metal noventre da coruja e estudandoaquele recorte sobre genealogia.Teria levado Ki então se eu lhetivesse dado uma chance, mas eunão lhe dei. Voltei correndo, commedo de que algo estivesse errado,com medo de que alguém pudesseestar tentando se apossar dacriança...

Rogette a teria acordado? Ki ateria visto e tentado me avisarantes de adormecer de novo? Foi

isso que me levou para lá comtanta pressa? Talvez. Eu aindaestava na zona então, aindaestávamos ligados. Rogettecertamente estava na casa quandoeu voltei. Podia até mesmo estar nocloset do quarto norte, espiando-me pela fenda. Parte de mim soubedisso também. Parte de mim asentiu, sentiu algo que não eraSara.

Então eu saí de novo. Agarrei abolsa de compras do Slips’n Green edesci aqui. Virei à direita, virei parao norte. Na direção da bétula, darocha, do saco de ossos. Eu fiz oque tinha de fazer, e enquanto o

fazia Rogette carregou Kyra pelosdegraus de dormentes abaixo portrás de mim e dobrou à esquerdana Rua. Virou ao sul para oWarrington’s. Com uma sensaçãode afundamento no ventre, percebique eu provavelmente ouvi Ki...podia até tê-la visto. Aquelepássaro espiando timidamente doabrigo durante a calmaria não tinhasido pássaro nenhum. Ki estavaacordada então, Ki me viu — talveztivesse visto Jo também — e tentouchamar. Ela conseguiu exatamenteaquele pequeno pio antes queRogette lhe cobrisse a boca.

Há quanto tempo tinha sido

aquilo? Parecia uma eternidade,mas eu tinha ideia que de modonenhum podia ter sido há muitotempo — menos de cinco minutos,talvez. Mas não é preciso muitotempo para se afogar uma criança.A imagem do braço nu de Kitoesticando-se para fora da águatentou voltar — a mão se abrindo efechando, se abrindo e fechando,como se tentasse respirar pelospulmões que não podiam fazê-lo —e eu a afastei. Também suprimi oímpeto de simplesmente dispararna direção do Warrington’s. Se eufizesse isso, sem dúvida o pânicome dominaria.

Em todos os anos, desde a mortede Jo, jamais ansiei por ela com aamarga intensidade de então. MasJo se foi; não havia sequer umsussurro dela. Sem poder dependerde ninguém a não ser de mimmesmo, comecei a avançar para osul ao longo da Rua juncada degalhos, contornando árvores eramos derrubados quando podia,arrastando-me sob eles quandobloqueavam inteiramente meucaminho, quebrando os ramosapenas como último recurso.Enquanto andava, emitia o queimagino que sejam as orações-padrão em tais situações, mas

nenhuma delas pareceu afastar aimagem do rosto de RogetteWhitmore erguendo-se em minhamente. Seu rosto penetrante eimplacável.

Eu me lembro de pensar Isso é aversão ao ar livre da CasaFantasma. Certamente os bosquespareciam assombrados para mimenquanto me esforçava parapercorrê-los: as árvores apenasafrouxadas na primeira grandeventania caíam aos montes nessesegundo turno de vento e chuva. Obarulho era o de grandes passos

estalando estrondosamente, e eunão precisava me preocupar com oruído de minhas próprias passadas.Quando passei pelo campo dosBatchelder, uma construção circularpré-fabricada situada numafloramento de rochas, como umchapéu sobre uma bancada, vi quetodo o telhado havia sido achatadopor um pinheiro do Canadá.

A uns 800 metros ao sul de Sara,reparei numa das fitas brancas deKi caída no atalho. Peguei-a,pensando como aquela bordavermelha parecia com sangue.Então a enfiei no bolso e continueiem frente.

Cinco minutos depois, cheguei aum velho pinheiro recoberto demusgo que tinha caído atravessadono caminho; ainda estava ligado aotoco por uma rede torcida eesticada de lascas, e guinchavacomo uma fila de dobradiçasenferrujadas enquanto a águaondulante erguia e deixava cair oque tinha sido a parte superior deseus 6 ou 9 metros, agora flutuandono lago. Havia espaço para que eume arrastasse por baixo dele, equando caí de joelhos vi outraspegadas de joelhos começando a seencher de água. Vi outra coisatambém: a segunda fita de cabelo.

Enfiei-a no bolso com a primeira.Estava na metade do caminho

debaixo do pinheiro quando ouvioutra árvore cair, esta muito maispróxima. O som foi seguido por umgrito — não de dor ou medo, masde raiva e surpresa. Então, mesmocom o silvo da chuva e do vento,pude ouvir a voz de Rogette: Volte!Não vá aí fora, é perigoso!

Esgueirei-me o resto do caminhopor baixo da árvore, quase nãosentindo o toco de um galho mearranhar na parte inferior dascostas, levantei e corri pelo atalho.Quando as árvores caídas com queme deparava eram pequenas, eu

pulava por cima delas sem diminuira corrida. Se eram maiores, eu asescalava com dificuldade, sempensar onde podiam me agarrar ouespetar. Trovões abalaram o céu.Um relâmpago brilhante faiscou, eem seu clarão ofuscante vi tábuasenvelhecidas cinzentas através dasárvores. No dia em que encontreiRogette pela primeira vez, tive unsvislumbres do hotel doWarrington’s, mas agora a florestatinha se dilacerado como umaroupa velha — aquela área levariaanos para se recuperar. A metadeda parte dos fundos do hotel foipraticamente demolida por duas

árvores enormes que pareciam tercaído juntas. Haviam-se cruzadocomo uma faca e um garfo numprato de jantar e jaziam sobre asruínas num X felpudo.

A voz de Ki se ergueu por cimada tempestade apenas porqueestava aguda de terror: Vaiembora! Não quero você, vóbranca! Vai embora! Era horrívelouvir o terror em sua voz, mas eramaravilhoso ouvir sua voz.

A uns 12 metros de distância deonde o grito de Rogette meimobilizou, mais uma árvore jaziaatravés do atalho. A própriaRogette permanecia em sua outra

extremidade, estendendo a mãopara Ki. Da mão pingava sangue,mas eu mal notei aquilo. Eu olheimesmo foi para Kyra.

O cais percorrendo o espaçoentre a Rua e o Sunset Bar eracomprido — uns 20 metros, talvez30. Longo o suficiente para que,num bonito entardecer de verão,você pudesse passear de mãosdadas com a namorada ou aamante e construir uma recordação.A tempestade não o haviaarrastado — ainda não —, mas ovento o torceu como uma fita.Lembro-me de um documentário,em alguma matinê de sábado,

mostrando uma ponte suspensadançando num furacão, e eraparecido com aquele cais entre oWarrington’s e o Sunset Bar. Ele semovia para cima e para baixo naágua ondulante, gemendo em todasas suas articulações de ripas comoum acordeão de madeira. Existiaum corrimão — presumivelmentepara guiar de volta à praia emsegurança os que tinham feito umanoitada —, mas este agoradesapareceu. Kyra se encontravana metade daquela oscilante egotejante extensão de madeira. Eupodia ver pelo menos trêsretângulos de escuridão entre a

praia e onde ela estava, lugaresonde as tábuas haviam sidoarrancadas. Da parte de baixo docais, chegava o agitado clang-clang-clang dos tambores vazios deaço que o seguravam. Váriosdesses tambores haviam sidodesancorados e estavam flutuandopara longe. Ki tinha os braçosestendidos para se equilibrar, comoalguém andando sobre uma cordabamba de circo. A camisa preta daHarley-Davidson batia com forçaem seus joelhos e ombrosbronzeados.

— Volte! — gritou Rogette. Seucabelo escorrido voava em torno da

cabeça; a brilhante capa de chuvapreta que estava usando tinha serasgado. Ela estendia as mãosagora, uma ensanguentada e aoutra não. Imaginei que Ki pudessetê-la mordido.

— Não, vó branca! — Ki balançoua cabeça numa negação alucinadae eu quis dizer-lhe não faça isso,bichinho, não balance a cabeçaassim, é uma péssima ideia. Elacambaleou, um braço apontadopara o céu e outro para a água, demodo que por um momentopareceu um avião inclinando-sefortemente de lado. Se o caistivesse escolhido aquele momento

para se mover com força por baixodela, Ki teria sido cuspida na água.Em vez disso, reconquistou umprecário equilíbrio, embora eutenha pensado ter visto seus pésdescalços escorregarem um pouconas tábuas lisas.

— Vai embora, vó branca, nãoquero você! Vai... tirar uma soneca,você parece cansada!

Ki não me viu; toda sua atençãoestava fixada na vó branca. A vóbranca também não me viu. Deitei-me no chão de bruços e me arrasteipor debaixo da árvore, puxando-mepara a frente com as mãos emgarras. O trovão ressoou através do

lago como uma grande bola demogno, o som ecoando para asmontanhas. Quando fiquei em péde novo, vi que Rogette avançavalentamente em direção àextremidade do cais que dava paraa praia. Para cada passo que elaavançava, Kyra dava um vacilante eperigoso passo para trás. Rogetteestendia a mão boa, embora porum momento eu tenha achado queaquela também tivesse começado asangrar. Mas o que escorria atravésde seus encalombados dedos eraescuro demais para ser sangue, equando ela começou a falar numamedonha voz persuasiva que

arrepiou minha pele, percebi queera chocolate derretendo.

— Vamos fazer a brincadeira,Kizinha — arrulhou Rogette. — Quercomeçar? — Ela deu um passo. Kideu um passo compensatório paratrás, cambaleou, recuperou oequilíbrio. Meu coração parou,depois retomou a disparada.Percorri a distância entre mim e amulher tão rapidamente quantopude, mas não corri; não queriaque ela soubesse de coisa algumaaté acordar. Se acordasse. Poucome importava se acordasse ou não.Que droga, se eu pude fraturar ocrânio de George Footman com um

martelo, certamente poderiamachucar aquela pessoa horrível.Enquanto andava, entrelacei asmãos num grande punho.

— Não? Não quer começar? Estámuito assustada? — disse Rogettenuma açucarada voz de programainfantil que me fez ranger osdentes. — Muito bem, eu começo.Peteca! Quais são as rimas parapeteca, Kizinha? Sapeca... esoneca... você estava tirando umasoneca, não estava, quando eu vime acordei você? E moleca... a minhamolequinha não quer sentar nomeu colo, Kizinha? A gente dáchocolate uma para a outra, como

costumávamos fazer... Vou teensinar uma brincadeira nova de...

Outro passo. Ela tinha chegado àborda do cais. Se a ideia lhe tivesseocorrido, podia simplesmente jogarpedras em Kyra como fez comigo,jogar pedras até acertar uma eatirar Ki dentro do lago. Mas achoque não chegou nem perto de talideia. Uma vez que a loucura passade certo ponto, você está numaautoestrada sem retornos. Rogettetinha outros planos para Kyra.

— Vamos, Ki-Ki, vem jogar com avó branca. — Estendeu o chocolatede novo, um pegajoso chocolateHershey gotejando através do

amassado papel laminado. Os olhosde Kyra se moveram e elafinalmente me viu. Balancei acabeça, tentando lhe dizer paraficar quieta, mas não adiantou —uma expressão de alegre alívioatravessou seu rosto. Ela gritoumeu nome e vi os ombros deRogette se erguerem surpresos.

Corri os últimos 4 metros,erguendo as mãos unidas como umbastão, mas escorreguei no solomolhado no momento crucial eRogette se esquivou, encolhendo-se. Em vez de atingi-la na nuca,como pretendia, minhas mãos sólhe roçaram o ombro. Ela

cambaleou, caiu num joelho e selevantou de novo quaseimediatamente. Seus olhos eramcomo pequenas lâmpadas de arcovoltaico azuis cuspindo fúria em vezde eletricidade.

— Você! — disse ela, fazendo apalavra silvar entre a língua e osdentes, transformando-a no som dealguma antiga maldição. —Voosscccêêê! — Atrás de nós, Kyragritou meu nome, numa dançavacilante na madeira molhada,agitando os braços num esforçopara evitar que caísse no lago. Aágua varreu o deck e correu porcima de seus pequenos pés

descalços.— Aguenta aí, Ki! — gritei de

volta. Rogette viu minha atençãomudar de direção e aproveitou achance, girou e correu para dentrodo cais. Disparei atrás dela,agarrei-a pelo cabelo e este saiu naminha mão. Todo ele. Fiquei ali àbeira do lago ondulante com aesteira de cabelos brancossuspensa na mão como um escalpo.

Rogette olhou por cima doombro, rosnando, um antigo gnomocareca na chuva, e então pensei Éele, é Devore, ele nunca morreu detodo, de algum modo ele e amulher trocaram de identidade, foi

e l a quem cometeu suicídio, foi ocorpo dela que voltou para aCalifórnia no jato...

Mesmo enquanto ela virava parao outro lado de novo e começava acorrer em direção a Ki, eu soube averdade. Era Rogette, sem dúvida,mas ela tinha chegado àquelamedonha semelhançahonestamente. Fosse lá o quehouvesse de errado com ela, tinhafeito mais do que seu cabelo cair;também a tinha envelhecido.Setenta anos, pensei, mas issoseria pelo menos dez anos além daidade atual.

Conheci um monte de gente que

põe nomes parecidos nos filhos,disse a sra. M. Eles achambonitinho. Max Devore deve terachado isso também, porque deuao filho o nome de Roger e à filha onome de Rogette. Talvez elativesse chegado à parte Whitmorehonestamente — podia ter sidocasada na juventude —, mas umavez que a peruca tinhadesaparecido, seus antecedenteseram indiscutíveis. A mulhercambaleando pelo cais molhadopara terminar o trabalho era tia deKyra.

Ki começou a recuar rapidamente,sem fazer nenhum esforço para tercuidado e ver onde pisava. Ia cair;não havia jeito de se manter lá emcima. Mas antes que issoacontecesse, uma onda varreu ocais entre elas num lugar ondealguns dos tambores tinham-sesoltado e, sem apoio, o caminho jáestava parcialmente submerso.Água espumante voou para cima ecomeçou a girar numa daquelasespirais que eu já tinha visto antes.Rogette parou com os pésmergulhados até os tornozelos naágua que invadia o cais e eu parei auns 4 metros atrás dela.

A forma se solidificou, e mesmoantes que eu pudesse discernir seurosto, reconheci o short folgadocom seu turbilhão de cor desbotadae a blusa da parte de cima. Só oKmart vende blusas com umaassimetria tão perfeita; acho quedeve ser uma lei federal.

Era Mattie. Uma Mattie séria ecinzenta, olhando Rogette comgraves olhos cinzentos. Rogetteergueu as mãos, vacilou, tentouvirar. Naquele momento uma ondase levantou sob o cais, erguendo-oe depois abaixando-o como umbrinquedo de parque de diversões.Rogette caiu por sua lateral. Além

dela, além da Forma-água nachuva, pude ver Ki esparramada navaranda do Sunset Bar. Aquelaúltima oscilação a enviara para umasegurança temporária como umapulga humana.

Mattie olhava para mim, oslábios se movendo, os olhos nosmeus. Eu pude compreender o queJo havia dito, mas desta vez nãotinha a mínima ideia. Fiz o máximode esforço, mas não conseguientender.

— Mamãe! Mamãe!A figura não se virou

propriamente, girou em torno de si;na verdade, não parecia ter

existência abaixo da bainha doshort longo. Moveu-se pelo cais atéo bar, onde Ki estava agora em péde braços estendidos.

Algo agarrou o meu pé.Olhei para baixo e vi uma

aparição afogando-se nas ondas dolago. Olhos escuros me fixavam dedentro do crânio calvo. Rogettetossia água de lábios tão roxosquanto ameixas. Sua mão livre seagitava enfraquecida para mim. Osdedos se abriam... e fechavam. Seabriam... e fechavam. Dobrei umjoelho e peguei sua mão. Esta sefechou na minha como uma garrade aço e deu um solavanco,

tentando me puxar para a águacom ela. Os lábios roxos searreganhavam de cacos de dentescomo os da caveira de Sara. E sim— eu pensei que desta vez eraRogette quem ria.

Balancei os quadris e dei umsolavanco nela para cima. Sempensar, foi puro instinto. Segureipelo menos 45 quilos dela, sendoque três quartos saíram do lagocomo uma monstruosa trutagigante. Ela gritou, lançou a cabeçapara a frente e enterrou os dentesno meu pulso. A dor foi enorme eimediata. Dei um puxão no meubraço bem mais para cima e então

o abaixei, sem pensar se ia feri-laou não, querendo apenas me livrardaquela boca de doninha. Enquantoo fazia, outra onda atingiu o caismeio submerso. Sua borda lascadaque se erguia empalou o rosto deRogette que descia. Um olho puloufora; uma lasca amarela gotejanteenfiou-se em seu nariz como umpunhal; a pele fina da testa rasgou-se, soltando-se do osso como duaspersianas repentinamente soltas.Então o lago a puxou para longe. Via topografia rasgada de seu rostopor um momento mais, reviradapela chuva torrencial, molhada etão pálida como a luz de uma

lâmpada fluorescente. Então elarolou para cima, a capa de chuvapreta de vinil rodopiando em tornode si como uma mortalha.

O que vi quando olheinovamente para o Sunset Bar foioutro vislumbre sob a pele destemundo, mas um muito diferente dorosto de Sara na Senhora Verde, ouda rosnante e meio vislumbradaforma do Forasteiro. Kyra estavaem pé na larga varanda de madeirana frente do bar, em meio a umadesordem de mobília de vimederrubada. Na frente dela haviauma tromba-d’água na qual euainda podia ver — muito levemente

— a forma desvanecida de umamulher. Ela estava de joelhos,estendendo os braços.

Elas tentaram se abraçar. Osbraços de Ki fecharam-se em tornode Mattie e saíram gotejando.

— Mamãe, não posso pegarvocê!

A mulher na água estava falando— eu podia ver seus lábios semovendo. Ki olhava para ela,extasiada. Então, por apenas ummomento, Mattie se virou paramim. Nossos olhos se encontraram,os dela feitos da água do lago. Eleseram o Dark Score, que estava aquihá muito tempo antes de eu chegar

e permaneceria ali muito depoisque eu me fosse. Levei as mãos àboca, beijei as palmas e as estendipara ela. Mãos tremulantes seergueram, como se para receber osbeijos.

— Mamãe, não vai! — gritouKyra, e envolveu a figura com osbraços. Ficou imediatamenteensopada e recuou, os olhosfechados, tossindo. Não havia maisnenhuma mulher com ela; só haviaágua correndo pelas tábuas epingando através das fendas paravoltar ao lago, que sobe de fontesprofundas bem lá debaixo, dasfissuras na rocha subjacentes à TR

e a toda essa parte do nossomundo.

Movendo-me cuidadosamente,fazendo meu próprio ato deequilíbrio, fui andando pelo caisoscilante até o Sunset Bar. Quandocheguei lá, peguei Kyra nos braços.Ela me abraçou apertado, tremendoferozmente contra mim. Ouvi o levematraquear de seus dentes e ocheiro do lago em seu cabelo.

— Mattie veio — disse ela.— Eu sei. Eu vi.— Mattie fez a vó branca ir

embora.— Vi isso também. Fique bem

quieta agora, Ki. Vamos voltar para

terra firme, mas você não podeficar se mexendo muito. Se fizerisso, vamos acabar tendo quenadar.

Ela foi um doce de obediência.Quando estávamos na Rua de novoe tentei colocá-la no chão, agarrou-se fortemente ao meu pescoço.Para mim, tudo bem. Pensei emlevá-la para o Warrington’s, masnão o fiz. Haveria toalhas lá,provavelmente roupas secastambém, mas tive a ideia de quepoderia haver também umabanheira cheia de água mornaesperando. Além disso, a chuvaestava diminuindo de novo e o céu

parecia mais claro no oeste.— O que é que Mattie te disse,

meu bem? — perguntei enquantoandávamos para o norte ao longoda Rua. Ki deixou que eu a pusesseno chão para que pudéssemos nosarrastar por baixo das árvorescaídas com que nos deparamos,mas levantava os braços para sererguida de novo do outro lado daárvore.

— Para ser uma boa menina enão ficar triste. Mas eu tô triste.Muito triste. — Ela começou achorar e eu acariciei seu cabelomolhado.

Quando chegamos aos degraus

de dormentes, ela tinha choradotudo que podia... e por sobre asmontanhas no oeste pude ver umafaixa pequena, mas muito brilhantedo azul.

— Todas as árvores caíram —disse Ki, olhando à volta. Seusolhos estavam arregalados.

— Bem... não todas, mas muitas,acho.

Na metade dos degraus, euparei, esbaforido e seriamente semfôlego. Mas não perguntei a Ki seeu podia colocá-la no chão. Eu nãoqueria colocá-la no chão. Só queriarecuperar o fôlego.

— Mike?

— O que é, meu amor?— Mattie me disse mais uma

coisa.— O quê?— Posso falar baixinho?— Se você quiser, claro.Ki se aproximou ainda mais, pôs

a boca junto à minha orelha esussurrou.

Escutei. Quando ela terminou,assenti com a cabeça, beijei seurosto, passei-a para meu outroquadril e carreguei-a pelo resto docaminho até a casa.

Não foi a tempestaaade do século,

companheiro, não fique pensandoque foi. Não senhor.

Assim falava o pessoal da velhaguarda sentado em frente à grandetenda de médicos do Exército queservia como a Geral de Lakeviewnaquele final de verão e outono.Um enorme olmo tinha caídoatravessado na rota 68 e amassadoo armazém como uma caixa debiscoitos. Para piorar ainda mais osestragos, o olmo carregou consigoum monte de fios cuspindo faíscas.Eles inflamaram o propano de umtanque rachado e a coisa todaexplodiu. A tenda, porém, era umsubstituto bastante bom para o

tempo quente, e o pessoal da TRpassou a dizer que ia até o ESCOMBRO

para pão e cerveja — isso porqueainda se podia ver uma cruzvermelha desbotada dos dois ladosda cobertura da tenda.

A velha guarda se sentava aolongo da parede de lona emcadeiras dobráveis, acenando paraos outros da turma quando esteschegavam em seus enferrujadoscarros de velha guarda (toda avelha guarda de carteirinha temFords ou Chevys, portanto estou nocaminho certo quanto a isso),trocando suas camisetas porcamisas de flanela quando os dias

começaram a esfriar em direção àestação da cidra e à época dedesenterrar as batatas, observandoo distrito começar a se reconstruirem torno deles. E, enquantoobservavam, falavam datempestade de gelo do invernopassado, a que derrubou luzes eestilhaçou um milhão de árvoresentre Kittery e Fort Kent; falavamdos ciclones que haviam passadopor lá em agosto de 1985; dofuracão de granizo de 1927.Aquelas, sim, foram tempestades etanto, disseram. Aquelas sim, SantoDeus.

Tenho certeza de que têm lá

suas razões, e não discuto com eles— raramente se ganha umadiscussão com um genuíno ianqueda velha guarda, nunca, se é sobreo tempo —, mas para mim atempestade de 21 de julho de 1998sempre será a tempestade. Econheço uma garotinha que sente omesmo. Ela pode viver até 2100,graças aos benefícios da medicinamoderna, mas acho que para KyraElizabeth Devore aquela sempreserá a tempestade. A tempestadeem que sua mãe que tinha morridovoltou para ela vestida do lago.

O primeiro veículo a percorrerminha entrada de carros só chegouquase às seis horas. Notei entãoque não era um carro da polícia docondado de Castle e sim umabanheira amarela com luzesamarelas piscando no alto dacabine e um sujeito com uniformeda Companhia de Energia do MaineCentral ao volante. Mas o cara nooutro banco era um tira — naverdade, era Norris Ridgewick, opróprio xerife do condado. E eleveio até minha porta com a armana mão.

A mudança de tempo que ocamarada da TV tinha prometido

finalmente chegou, nuvens enúcleos de tempestade impelidospara leste por um vento frio comapenas um pouquinho menos deforça que uma ventania.

As árvores continuaram a cairnos bosques gotejantes por pelomenos uma hora depois que achuva cessou. Por volta de cincohoras, fiz sanduíches de queijoquente e sopa de tomate paranós... comida que conforta, diria Jo.Kyra comeu, apaticamente, mascomeu, e bebeu bastante leite. Eu avesti com outra de minhascamisetas e ela prendeu o própriocabelo para trás. Ofereci-lhe as fitas

brancas, mas ela balançoudecididamente a cabeça e, em vezdelas, optou por um elástico.

— Não gosto mais dessas fitas —disse ela. Cheguei à conclusão deque eu também não, e joguei-asfora. Ki me observou e não fezobjeções. Então atravessei a salade estar e fui até o aquecedor àlenha.

— O que está fazendo? — Elaterminou o segundo copo de leite,se contorceu para fora da cadeira eveio até mim.

— Acendendo um fogo. — Talveztodos aqueles dias quentes tenhamafinado meu sangue. Era o que

minha mãe diria, de qualquermodo.

Silenciosamente, ela meobservou puxar folha após folha dapilha de papel que eu tinha trazidoda mesa e empilhado no alto doaquecedor, fazendo uma bola comcada uma e jogando-a pela suaportinhola. Quando senti que erasuficiente, passei a colocar pedaçosde gravetos sobre as bolas depapel.

— O que é que tá escrito nessespapéis? — perguntou Ki.

— Nada de importante.— É uma história?— Na verdade, não. Era mais

uma... ah, não sei. Um jogo depalavras cruzadas. Ou uma carta.

— Carta muito comprida — disseela, e apoiou a cabeça na minhaperna como se estivesse cansada.

— É — eu disse. — Cartas deamor geralmente são compridas,mas ficar com elas por aí não é boaideia.

— Por quê?— Porque elas... — Podem voltar

para assombrar você foi o quepassou pela minha cabeça, mas eunão ia dizer isso. — Porque elaspodem embaraçar você mais tarde.

— Ah.— Além disso, esses papéis são

como as suas fitas, de certo modo.— Você não gosta mais deles.— É.Então ela viu a caixa — a caixa

de metal com IDEIAS DE JO escrito natampa. Estava no balcão entre asala de estar e a pia, perto de ondeo velho Gato Maluco estiverapendurado na parede. Eu não melembrava de ter trazido a caixa doestúdio comigo, mas suponho quepodia não lembrar; estava muitoatônito. Também acho que elapodia ter aparecido... por si mesma.Acredito nessas coisas agora; tenhomotivos para isso.

Os olhos de Kyra se iluminaram

de um modo que eu não via desdeque ela acordou daquela curtasoneca para descobrir que a mãehavia morrido. Ficou na ponta dospés para pegar a caixa, depoisalisou com os pequenos dedos asletras douradas. Pensei em comoera importante para uma criançapossuir uma caixa de metal. Vocêtem que ter uma para suas coisassecretas — o melhor brinquedo, ospedacinhos de renda mais bonitos,a primeira joia. Ou um retrato damãe, talvez.

— Isso é tão... bonito — disseela numa voz suave e reverente.

— Pode ficar com ela, se não se

importar que esteja escrito IDEIAS DE JO

em vez de IDEIAS DE KI. Aí dentro temalguns papéis que eu quero ler,mas posso colocá-los em outrolugar.

Ela me olhou para ter certeza deque eu não estava brincando, e viuque eu não estava.

— Eu vou gostar muito — disseela com a mesma voz suave ereverente.

Peguei a caixa, retirei oscadernos de taquigrafia, anotaçõese recortes, e então a entreguei devolta para ela, que ficou praticandotirar a tampa e depois colocá-la.

— Adivinha o que vou colocar

aqui — disse ela.— Tesouros secretos?— É! — disse ela, e sorriu de fato

por um momento. — Quem era Jo,Mike? Eu conheço ela? Conheço,não é? Ela era do pessoal dageleira.

— Ela... — Um pensamento meocorreu. Folheei os recortesamarelados. Nada. Pensei que atinha perdido em algum ponto docaminho, então vi uma ponta delaespiando do meio de um doscadernos de taquigrafia. Peguei-a ea passei a Ki.

— O que é?— Uma fotografia ao contrário.

Segure contra a luz.Ela o fez, e olhou-a por um longo

tempo, fascinada. Tênue como umsonho, eu podia ver minha mulherna mão dela, minha mulher em péna plataforma de flutuação, comseu maiô de duas peças.

— É Jo — eu disse.— Ela é bonita. Tô contente de

ganhar a caixa dela para as minhascoisas.

— Também estou, Ki. — Beijei-lhe o alto da cabeça.

Quando o xerife Ridgewick marteloua porta, achei mais prudente

atender com as mãos para cima.Ele parecia eletrizado. O quepareceu relaxar a situação foi umapergunta simples e inesperada.

— Onde está Alan Pangborn nomomento, xerife?

— Lá em New Hampshire —disse Ridgewick, abaixando umpouco a pistola (um ou doisminutos depois ele a guardou nocoldre sem nem perceber que otinha feito). — Ele e Polly estãoindo muito bem. A não ser pelaartrite dela. Aquilo é horrível, achoeu, mas ela ainda tem seus bonsdias. A pessoa pode se dar bem porbastante tempo se consegue um

bom dia de vez em quando, é o queeu penso. Sr. Noonan, tenho muitasperguntas a lhe fazer. Sabe disso,não é?

— Sei.— Primeira e mais importante, o

senhor está com a criança? KyraDevore?

— Sim.— Onde ela está?— Eu lhe mostro com o maior

prazer.Descemos o corredor da ala

norte e paramos à entrada doquarto, olhando para dentro. Acolcha estava puxada até o queixode Kyra e ela dormia

profundamente. O cachorro depelúcia estava enroscado em suamão — podíamos ver apenas acauda enlameada saindo do punhodela de um lado e o narizespetando-se do outro. Ficamos alipor muito tempo, sem que nenhumde nós dissesse coisa alguma,observando-a dormir à luz de umatarde de verão. Nos bosques, asárvores haviam parado de cair, maso vento ainda soprava. Pelos beiraisde Sara Laughs, ele produzia umsom como o de música antiga.

Epílogo

Nevou no Natal — educados 15centímetros de neve fofa fizeramcom que aqueles que cantavamcanções natalinas pelas ruas deSanford parecessem personagensdo filme A felicidade não secompra. Quando fui checar Kyrapela terceira vez, era 1h15 damadrugada do dia 26, e a nevetinha cessado. Uma lua tardia,redonda, mas pálida, espiava

através de nuvens emaranhadas efofas.

Eu passava o Natal novamentecom Frank, e éramos os únicosacordados. As crianças, inclusive Ki,haviam morrido para o mundo,descontando no sono a farra anualde comidas e presentes. Frankestava em seu terceiro uísque —tinha sido uma história de trêsuísques se algum dia houve uma,acho —, mas eu bebi apenas umdedo de minha primeira dose.Penso que poderia ter mergulhadocom fé na garrafa se não fosse porKi. Nos dias em que estou com ela,geralmente não bebo mais do que

um copo de cerveja. E ficar com elatrês dias seguidos... mas que droga,cara pálida, se você não podepassar o Natal com sua filha, paraque porcaria serve o Natal?

— Tudo bem com você? —perguntou Frank, quando senteinovamente e tomei outro golinhosimbólico de meu copo.

Sorri ante aquilo. Não ela estábem e sim você está bem. Bom,ninguém nunca disse que Frank eraidiota.

— Você devia ter me vistoquando o Departamento deServiços Humanos me deixou ficarcom ela por um fim de semana em

outubro. Eu devo tê-la checado umadúzia de vezes antes de ir para acama... e depois continueichecando. Levantando e espiando,ouvindo-a respirar. Não preguei oolho na noite de sexta, tirei umcochilo de três horas no sábado.Portanto, já fiz um grandeprogresso. Mas, se você algum diabater com a língua nos dentessobre o que lhe contei, Frank, sealgum dia eles souberem que euenchi aquela banheira antes que atempestade fizesse o gerador pifar,posso dizer adeus às minhaschances de adotá-la.Provavelmente terei que preencher

um formulário tríplice antes queeles sequer me deixem assistir àsua formatura no ensino médio.

Eu não pretendia contar a Franka parte da banheira, mas, quandocomecei a falar, despejei quasetudo. Acho que tinha que serdespejado para alguém, se algumdia eu quisesse prosseguir comminha vida. Imaginei que JohnStorrow fosse a pessoa do outrolado do confessionário quando omomento chegasse, mas John nãoqueria falar sobre nada do quetinha acontecido, exceto o que diziarespeito a nosso contínuo assuntolegal, que hoje em dia é única e

exclusivamente Kyra ElizabethDevore.

— Vou ficar de boca fechada, nãose preocupe. Como vai a batalha daadoção?

— Lenta. Passei a odiar osistema jurídico do estado do Mainee o Departamento de ServiçosHumanos também. Se você analisaras pessoas que trabalham nessasburocracias individualmente, sãoboas pessoas na maioria, mas oconjunto...

— Ruim, é?— Às vezes me sinto como um

personagem daquele romance, Acasa abandonada. Aquele em que o

Dickens afirma que nos tribunaisninguém ganha, só os advogados.John me fala para ter paciência ever quanto de bom já temos, queestamos fazendo progressossurpreendentes, considerando-seque sou uma das criaturas maisindignas de confiança no mundo,um homem branco solteiro e demeia-idade, mas Ki já esteve emdois lares de adoção desde queMattie morreu e...

— Ela não tem parentes numadaquelas cidades vizinhas?

— A tia de Mattie. Que nãoqueria nada com Ki quando Mattieestava viva e tem menos interesse

agora. Sobretudo desde que...— ... desde que Ki não vai ser

rica.— É.— A tal Whitmore estava

mentindo sobre o testamento deDevore.

— Totalmente. Ele deixou tudopara uma fundação que incentivaráo conhecimento de computação nomundo inteiro. Com o devidorespeito à enorme quantidade defanáticos do mundo, não possoimaginar uma caridade maisgelada.

— Como vai John?— Muito bem recuperado, mas

jamais vai voltar a usarcompletamente o braço direito. Elequase morreu com a perda desangue.

Frank me afastou dos assuntosinterligados de Ki e da custódia comhabilidade, para um homem já noterceiro uísque, e o segui de boavontade. Quase não suportavapensar nos longos dias e noitesmais longas ainda de Ki naqueleslares onde o Departamento deServiços Humanos guarda ascrianças como bugigangas queninguém quer. Ki não vivia nesseslugares, apenas existia, pálida eapática, como um coelho bem

alimentado mantido numa gaiola.Cada vez que via meu carroaparecendo ou parando, ela voltavaà vida, agitando os braços edançando como Snoopy em suacasinha de cachorro. Nosso fim desemana em outubro tinha sidomaravilhoso (apesar de minhaobsessiva necessidade de checá-laa cada meia hora depois de eladormir), e os feriados de Natalhaviam sido até melhores. Seuenfático desejo de estar comigoajudava mais do que qualquer outracoisa no tribunal... mas as rodasainda giravam lentamente.

Talvez na primavera, Mike, disse-

me John. Era um novo Johnnaqueles dias, pálido e sério. Oesquilinho diligente e levementearrogante que quis bater cabeçacom o sr. Maxwell “Grana Preta”Devore não estava mais visível.John tinha aprendido algo sobremortalidade no dia 21 de julho,assim como algo sobre a crueldadeidiota do mundo. O homem queensinou a si mesmo acumprimentar com a mão esquerdaem vez de com a direita não estavamais interessado em festejar atévomitar. Andava saindo com umamoça da Filadélfia, a filha de umaamiga de sua mãe. Eu não tinha

ideia se a coisa era séria ou não, o“Ti-John” de Ki mantém a bocafechada sobre essa parte de suavida, mas, quando um rapaz estásaindo com a filha de uma amigada mãe por sua própria vontade,geralmente a coisa é séria.

Talvez na primavera: tinha sido oseu mantra naquele final de outonoe princípio de inverno. O que é queestou fazendo de errado?,perguntei-lhe certa vez — logodepois do Dia de Ação de Graças ede outro revés.

Nada, respondeu ele. Adoçõespor pessoas que não são casadassão sempre lentas, e quando o

adotante putativo é um homem,pior ainda. Naquele ponto daconversa, John fez um pequenogesto feio, enfiando o indicador damão esquerda para dentro e parafora de seu punho direitofrouxamente fechado.

Isso é uma escandalosadiscriminação sexual, John.

É, mas geralmente justificada.Ponha a culpa em todos os idiotasde mente torta que algum dia seacharam com o direito de tirar ascalças de uma criança, se quiser;ponha a culpa na burocracia, sequiser; que droga, ponha a culpanos raios cósmicos, se quiser. É um

processo lento, mas você vaiganhar no final. Você tem uma fichalimpa, você tem Kyra dizendo“Quero ficar com Mike” para cadajuiz e assistente social do DSH queela encontra, você tem dinheirosuficiente para ficar atrás deles pormais que se contorçam e por maisformulários que joguem em cima devocê... e principalmente,companheiro, você tem a mim.

Eu tinha outra coisa também — oque Ki tinha sussurrado em meuouvido quando parei para recuperaro fôlego nos degraus. Nunca conteia John sobre isso, e era uma daspoucas coisas que eu também não

contei a Frank.Mattie disse que eu sou sua

garotinha agora, ela sussurrara.Mattie disse que você vai tomarconta de mim.

Eu estava tentando — desde queos malditos molezas dos ServiçosHumanos me deixassem —, mas aespera era dura.

Frank pegou o uísque e o inclinouna minha direção. Balancei acabeça. Ki estava certa de que fariaum boneco de neve, e eu queriapoder enfrentar o sol ofuscantesobre a neve fresca bem cedo demanhã sem dor de cabeça.

— Frank, em quanto disso você

realmente acredita?Ele se serviu do uísque, depois

ficou quieto por um tempo, olhandopara a mesa e pensando. Quandolevantou a cabeça de novo, sorria,um sorriso tão parecido com o de Joque me partiu o coração. E quandofalou, apimentou seu sotaque deBoston geralmente leve.

— Claro que sou um irlandêsmeio bêbado que acaba de ouvir oavô de todas as histórias defantasmas na noite de Natal —disse ele. — Acredito em todaselas, seu idiota.

Eu ri, e ele também. Nós ofizemos principalmente através do

nariz, como os homens fazemquando ficam acordados até tarde,talvez um pouco bêbados, e nãoquerem acordar o resto da casa.

— Vamos, quanto de verdade?— Toda ela — repetiu ele, sem o

sotaque de Boston. — Porque Joacreditava nela. E por causa dela.— Apontou a escada com a cabeçade modo que eu soubesse quemera “ela”. — Ki não é comonenhuma outra garota que já vi. Ébastante doce, mas há algumacoisa em seus olhos. No início acheique era a perda da mãe do modocomo foi, mas não. Há mais do queisso, não há?

— Sim.— Está em você também. Tocou

os dois.Pensei na coisa que latia e que

Jo tinha conseguido segurarenquanto eu derramava a sodacáustica no rolo de lona podre. UmForasteiro, ela o chamou. Eu nãodei uma olhada nítida nele, eprovavelmente isso foi bom.Provavelmente foi muito bom.

— Mike? — Frank pareceupreocupado. — Você estátremendo.

— Estou bem — eu disse. —Mesmo.

— Como está a casa agora? —

perguntou ele. Eu ainda estavamorando em Sara Laughs. Adiei atéo princípio de novembro, então pusa casa de Derry para vender.

— Quieta.— Totalmente quieta?Assenti com a cabeça, mas não

era totalmente verdade. Em umasduas ocasiões, tinha acordado coma sensação que Mattie mencionoucerta vez — de que havia alguémna cama comigo. Mas não umapresença perigosa. Em duasocasiões, senti o cheiro (ou penseiter sentido) do perfume Red. E àsvezes, mesmo quando o ar estáperfeitamente parado, o sino de

Bunter toca algumas notas. Comose alguém solitário quisesse dar umalô.

Frank deu uma olhada no relógioe depois em mim, quase pedindodesculpas.

— Tenho mais algumasperguntas, tudo bem?

— Se a gente não consegue ficaracordado até de madrugada no dia26 de dezembro, acho que nuncavai conseguir. Chute.

— O que é que você disse àpolícia?

— Não tive que dizer muitacoisa. Footman falou o suficientepara contentá-los...

excessivamente, para NorrisRidgewick. Footman disse que ele eOsgood, era Osgood quem dirigia ocarro, o corretor de estimação deDevore, fizeram o atentado porqueDevore os tinha ameaçado com oque lhes aconteceria se não ofizessem. Os tiras do estadotambém encontraram a cópia deuma ordem de pagamento entre ascoisas de Devore no Warrington’s.Dois milhões de dólares para umaconta nas Ilhas Caimãs. O nomeescrito na cópia é o de RandolphFootman. Randolph é o nome domeio de George. O sr. Footmanestá residindo agora na Prisão

Estadual de Shawshank.— E Rogette?— Bem, Whitmore era o nome de

solteira da mãe dela, mas acho queé mais seguro dizer que o coraçãode Rogette pertencia ao papai. Elatinha leucemia, foi diagnosticadaem 1996. Em pessoas da idadedela, tinha só 57 anos quandomorreu, por falar nisso, é fatal emdois de cada três casos, mas elaestava fazendo quimioterapia. Daí aperuca.

— Por que ela tentou matarKyra? Não entendi. Se você quebrouo domínio de Sara Tidwell nessenosso plano terreno quando

dissolveu os ossos dela, a maldiçãodeveria ter... por que está meolhando dessa maneira?

— Você entenderia se tivesseconhecido Devore — eu disse. —Ele foi o homem que pôs fogo emtoda a porra da TR como umaforma de despedida ao partir para aensolarada Califórnia. Pensei neleno segundo que puxei a peruca;pensei que de certo modo eleshaviam trocado de identidade.Então pensei Ah, não, é ela, sim, éRogette, ela apenas perdeu ocabelo de algum modo.

— E você estava certo. Aquimioterapia.

— Eu estava também errado. Seimais sobre fantasmas do que sabia,Frank. Talvez o mais importante é oque você vê primeiro, o que vocêpensa primeiro... geralmente é oque é a verdade. Era ele naqueledia. Devore. Ele voltou no final.Tenho certeza disso. No final, acoisa não tinha a ver com Sara, nãopara ele. No final, não tinha a vernem com Kyra. Tinha a ver mesmocom o trenó de Scooter Larribee.

O silêncio se instalou entre nós.Por alguns momentos foi tãoprofundo que pude realmente ouvira casa respirar. Pode-se ouvir isso,sabe? Se você ouve de fato. Isso é

outra coisa que eu sei agora.— Cristo — disse ele finalmente.— Não acho que Devore veio da

Califórnia para o leste para matá-la— eu disse. — Não era esse o planooriginal.

— Então, qual era? Veioconhecer a neta? Consertar suascercas?

— Minha nossa, não. Você aindanão entendeu o que ele era.

— Então me diga.— Um monstro humano. Ele

voltou para comprá-la, mas Mattienão a vendeu. Então, quando Sarao dominou, ele começou a planejara morte de Ki. Suspeito que Sara

jamais encontrou um instrumentomais disposto.

— Quantos ela matou ao todo?— perguntou Frank.

— Não sei bem. Acho que nemquero saber. Baseado nasanotações e recortes de Jo, diriaque foram talvez mais quatro...assassinatos dirigidos, chamemosassim... nos anos entre 1901 e1998. Todos crianças, todos nomescomeçados com K, todosestreitamente aparentados com oshomens que a mataram.

— Meu Deus!— Não acho que Deus tenha

muito a ver com isso... mas ela os

fez pagar, não há dúvida.— Você tem pena dela, não é?— Tenho. Eu a teria dilacerado

se ela tivesse posto um dedo em Ki,mas claro que tenho pena dela. Foiestuprada e assassinada. O filhoafogado enquanto ela estavamorrendo. Meu Deus, você não tempena dela?

— Acho que sim. Mike, você sabequem era o outro menino? Omenino que chorava? Foi ele quemmorreu de toxemia?

— A maior parte das anotaçõesde Jo tinha a ver com isso. Foi ondeela começou. Royce Merrill conheciabem a história. O menino que

chorava era Reg Tidwell Júnior.Você precisa entender que, porvolta de setembro de 1901, quandoos Red-Tops fizeram seu últimoespetáculo no condado de Castle,quase todo mundo na TR sabia queSara e o filho haviam sidoassassinados, e quase todo mundotinha uma boa ideia de quem tinhafeito aquilo.

“Reg Tidwell passou bastantetempo naquele agostoatormentando o xerife do condado,Nehemiah Bannerman. No início foipara encontrá-los vivos, Tidwellqueria uma busca a cavalo, depoisfoi para achar seus corpos, e depois

para encontrar os assassinos...porque, uma vez que ele aceitou ofato de que haviam morrido,sempre soube que tinham sidoassassinados.

“No início, Bannerman foisolidário. Todos pareceramsolidários no início. O pessoal dosRed-Tops tinha sido muitíssimobem tratado durante o tempo quepassou na TR. Foi isso o que maisenfureceu Jared, e acho que vocêpode perdoar Son Tidwell porcometer um erro crucial.”

— Que erro foi esse?Ora, ele pensou que Marte era o

céu, cogitei. A TR deve ter parecido

o céu para eles, até que Sara e Kitosaíram para um passeio, o garotocarregando seu balde de frutinhas,e jamais voltaram. A impressão quea TR deu a eles foi de quefinalmente haviam descoberto umlugar onde podiam ser negros emesmo assim lhes era permitidorespirar.

— Pensar que seriam tratadoscomo pessoas comuns quando ascoisas deram errado só porquetinham sido tratados assim quandoas coisas estavam bem. Em vezdisso, a TR se uniu contra eles.Ninguém que tinha uma ideia doque Jared e seus protegidos haviam

feito desculpou a coisa exatamente,mas quando os navios estãoafundando...

— Você protege os seus, lava aroupa suja com as portas fechadas— murmurou Frank, e terminou abebida.

— É. Quando os Red-Topstocaram na Feira do condado deCastle, sua pequena comunidadeperto do lago tinha começado a sedesfazer... Tudo isso segundo asanotações de Jo, sabe; não há umpio a respeito do assunto emnenhuma das histórias sobre acidade.

“No Dia do Trabalho, a

intimidação ativa começou. Foi oque Royce contou a Jo. Ficou umpouco mais feia a cada dia, umpouco mais assustadora, mas SonTidwell simplesmente não queria irembora, não até descobrir o quetinha acontecido à irmã e aosobrinho. Aparentemente mantevegente da família no prado mesmodepois que os outros tinham partidopara lugares mais amigáveis.

“Então alguém pôs a armadilha.Havia uma clareira no bosque acerca de uns 1.500 metros a lestedo que agora é chamado de pradode Tidwell; havia uma grande cruzde bétula no meio dele. Jo tinha

uma foto dela em seu estúdio. Eralá que a comunidade negracelebrava seus cultos depois que asportas das igrejas locais sefecharam para ela. O garoto, Júnior,costumava ir muito lá para rezar ouapenas para sentar e meditar.Havia muita gente na cidade queconhecia esse hábito dele. Alguémpôs uma armadilha no pequenoatalho através dos bosques que ogaroto usava. Coberta com folhas eagulhas de pinheiro.”

— Deus do céu — disse Frank.Ele parecia nauseado.

— Provavelmente não foi JaredDevore ou seus rapazes lenhadores

que a instalaram... eles nãoqueriam mais nada com o pessoalde Sara e Son depois dosassassinatos, ficavam longe deles.Não pode nem mesmo ter sido umamigo daqueles garotos. Eles jánão tinham tantos amigos assim.Mas isso não mudou o fato de que opessoal perto do lago estavaesquecendo seu lugar, esmiuçandocoisas que deviam ser deixadas empaz, recusando-se a aceitar um nãocomo resposta. Então alguémcolocou a armadilha. Penso quetalvez a intenção não tenha sidorealmente matar o garoto, masmutilá-lo? Talvez vê-lo sem o pé,

condenado a uma vida inteira demuletas? Acho que podem ter idoaté esse ponto em imaginação.

“Seja como for, funcionou. Ogaroto pisou na armadilha... e porum bom tempo não o encontraram.A dor deve ter sido excruciante.Então veio a toxemia. Ele morreu.Son desistiu. Tinha que pensar nosoutros filhos, sem falar no pessoalque continuava com ele.Arrumaram suas roupas e violões epartiram. Jo rastreou alguns delesna Carolina do Norte, onde muitosde seus descendentes ainda vivem.E durante os incêndios de 1933,aqueles que o jovem Max Devore

ateou, as cabanas se queimaramaté o chão.”

— Não entendo por que oscorpos de Sara e seu filho nãoforam encontrados — disse Frank.— Entendo que o cheiro que vocêsentiu, a putrefação, não era emqualquer sentido físico. Mascertamente na época... se essecaminho que você chama de Ruaera tão popular...

— Devore e os outros não osenterraram onde eu os encontrei,inicialmente. Devem ter começadopor arrastar os corpos mais para ofundo dos bosques... talvez paraonde fica a ala norte de Sara

Laughs agora. Então os cobriramcom matagal e voltaram naquelanoite. Deve ter sido naquela noitemesmo; deixá-los ali por maistempo teria atraído todos oscarnívoros do bosque. Eles olevaram para algum outro lugar eos enterraram naquele rolo de lona.Jo não sabia onde, mas meu palpiteé Bowie Ridge, onde passavam amaior parte do verão cortandomadeira. Que droga, Bowie Ridgeainda é um lugar bastante isolado.Colocaram os corpos em algumlugar; podemos muito bem acharque foi lá.

— Então como... por quê...

— Draper Finney não foi o únicoassombrado pelo que tinham feito,Frank. Todos o foram. Literalmenteassombrados. Com a possívelexceção de Jared Devore, acho eu.Ele viveu outros dez anos eaparentemente jamais perdeu umarefeição. Mas os rapazes tinhampesadelos, bebiam demais,brigavam demais, discutiam... seenfureciam se alguém chegasse acitar os Red-Tops...

— Podiam do mesmo modoandar por ali usando cartazesdizendo CHUTEM-NOS, SOMOS CULPADOS —comentou Frank.

— É. Provavelmente não ajudou

que a maioria da TR estivessedando a eles o tratamentosilencioso. Então Finney morreu napedreira, cometeu suicídio napedreira, acho, e os rapazeslenhadores de Jared tiveram umaideia. Que pegou como umresfriado. Só que era mais umacompulsão. Sua ideia era que, sedesenterrassem os corpos etornassem a enterrá-los onde acoisa tinha acontecido, tudo voltariaao normal para eles.

— Jared aceitou a ideia?— Segundo as notas de Jo,

naquela época eles já não seaproximavam de Jared. Tornaram a

enterrar o saco de ossos, sem aajuda de Jared Devore, onde euposteriormente o desenterrei. Nofinal do outono ou princípio doinverno de 1902, acho eu.

— Ela queria voltar, não queria?Sara. Voltar para onde realmentepoderia trabalhar neles.

— E no distrito inteiro. Sim. Joachava isso também. O suficientepara ela não querer voltar a SaraLaughs uma vez que tinhadescoberto parte do negócio.Especialmente quando descobriuque estava grávida. Quandocomeçamos a tentar ter um filho eeu sugeri o nome de Kia, como isso

deve tê-la assustado! E eu nuncapercebi.

— Sara achava que podia usarvocê para matar Kyra, se Devorebatesse as botas antes que pudessefazer o serviço... Ele estava velho ecom uma saúde ruim, afinal decontas. Jo apostou que, aocontrário, você a salvaria. É o quevocê acha, não é?

— É.— E ela estava certa.— Eu não poderia tê-lo feito

sozinho. Desde a noite em quesonhei com Sara cantando, Joesteve comigo a cada passo docaminho. Sara não conseguiu

afastá-la.— Não, Jo não se dava por

vencida facilmente — concordouFrank, e enxugou um olho. — O quevocê sabe sobre sua tia-avó duasvezes? A que se casou com Auster?

— Bridget Noonan Auster — eudisse. — Bridey, para os amigos.Perguntei à minha mãe e ela jurade pés juntos que não sabe denada, que Jo nunca lhe perguntousobre Bridey, mas acho que podeestar mentindo. A moçadefinitivamente era a ovelha negrada família. Posso dizer isso apenaspelo som da voz de mamãe quandoo nome dela surge. Não tenho ideia

de como ela conheceu BentonAuster. Digamos que ele estivessena parte do mundo em que ficaProut’s Neck visitando amigos ecomeçou a flertar com ela numamariscada animada e barulhenta.Isso é tão provável quanto qualqueroutra coisa. Foi em 1884. Elaestava com 18 anos; ele, com 23.Eles se casaram, um daquelesnegócios apressados. Harry, o queafogou Kito Tidwell, apareceu seismeses depois.

— Então ele mal tinha 17 anosquando a coisa aconteceu — disseFrank. — Deus do céu.

— E, na época, sua mãe já tinha

se tornado religiosa. O terror dele arespeito do que ela pensaria sedescobrisse foi parte do motivo deele ter feito isso. Alguma outrapergunta, Frank? Porque eurealmente estou começando adesmoronar.

Por algum tempo, ele não dissenada — eu comecei a achar que elehavia terminado, quando...

— Mais duas. Você se importa?— Acho que é tarde demais para

recuar agora. Quais são?— A Forma de que você falou. O

Forasteiro. Aquilo me perturba.Eu não disse nada. Perturbava-

me também.

— Acha que há uma chance deque ele possa voltar?

— Sempre volta — eu disse. —Me arriscando a parecer pomposo,o Forasteiro finalmente volta paratodos nós, não é? Porque somostodos sacos de ossos. E oForasteiro... Frank, o Forasteiroquer o que está no saco.

Ele ruminou isso, depois tomou oresto do uísque de um gole só.

— Mais alguma pergunta?— Tenho — disse ele. —

Começou a escrever de novo?

Subi a escada poucos minutos

depois, chequei Ki, escovei osdentes, chequei Ki de novo, depoissubi na cama. De onde eu estavadeitado podia ver a pálida luabrilhando na neve do lado de forada janela.

Começou a escrever de novo?Não. Além de um extenso ensaio

de como passei as férias de verãoque talvez eu mostre a Kyra nofuturo, não tenho escrito nada. Seique Harold está nervoso, e maiscedo ou mais tarde suponho queterei que ligar para ele e dizer oque ele já adivinha: a máquina quedeslizou tão suavemente por tantotempo parou. Não está quebrada —

essas memórias surgiram sem umofegar ou sem que meu coraçãofalhasse uma batida —, masmesmo assim a máquina parou. Hágasolina no tanque, as velas deignição funcionam e a bateriatambém, mas o local do palavróriocontinua quieto no centro de minhamente. Pus uma lona em cima dele.Ele me serviu bem, não há dúvida,e não gosto de pensar que estáficando empoeirado.

Parte disso tem a ver com omodo como Mattie morreu. Emalgum momento desse outono,ocorreu-me que eu tinha escritomortes semelhantes em pelo

menos dois dos meus livros, e aficção popular está repleta deoutros exemplos da mesma coisa.Algum dia você já montou umdilema moral que não saberesolver? O protagonista estásexualmente atraído por umamulher que é jovem demais paraele, digamos assim. Você precisadar um jeito rápido? É a coisa maisfácil do mundo. “Quando a históriacomeça a azedar, chame o homemcom a arma.” Raymond Chandlerdisse isso, ou algo semelhante —parecido com o trabalho dogoverno, cara pálida.

O assassinato é o pior tipo de

pornografia. O assassinato é medeixar fazer o que eu quero levadoao extremo. Acredito que mesmoassassinatos de faz de contadeviam ser encarados seriamente;talvez essa tenha sido outra ideiaque me ocorreu no último verão.Talvez eu a tenha tido enquantoMattie se debatia em meus braços,expelindo sangue da cabeçaamassada e morrendo cega, aindagritando pela filha enquantodeixava este mundo. Pensar que eupossa ter escrito tal morteinfernalmente conveniente numlivro, algum dia, me deixanauseado.

Ou talvez eu desejasse apenasque tivesse havido um pouco maisde tempo.

Eu me lembro de dizer a Ki que émelhor não deixar cartas de amorpor aí; o que pensei, mas não disse,foi que elas podem voltar paraassombrá-lo. Seja como for, estouassombrado... mas voluntariamentenão vou assombrar a mim mesmo,e, quando fechei meu livro desonhos, fiz isso por minha própriavontade. Acho que eu poderia terderramado soda cáustica sobreaqueles sonhos também, mas entãorecolhi minha mão.

Tenho visto coisas que jamais

esperei ver e sentido coisas quejamais esperei sentir — e o quesenti e ainda sinto pela criançadormindo no final do corredor não éde modo nenhum a menosimportante dentre elas. Ki é aminha garotinha agora, e eu souseu garotão, e é isso que importa.Nada mais parece ter tantaimportância.

Thomas Hardy, quesupostamente disse que opersonagem mais brilhantementedelineado num romance era apenasum saco de ossos, parou deescrever romances após terminarJudas, o Obscuro, e enquanto

estava no auge de seu gênionarrativo. Continuou escrevendopoesia por outros vinte anos, e,quando alguém lhe perguntava porque tinha abandonado a ficção, eledizia que, em primeiro lugar, nãoconseguia entender por que tinhase envolvido tanto tempo com ela.Retrospectivamente, parecia-lheuma coisa tola, acrescentou. Semsentido. Sei exatamente o que elequis dizer. No período que seestende entre agora e o momentoem que o Forasteiro se lembrar demim e decidir voltar, deve haveroutras coisas para fazer, coisas quesignifiquem mais do que aquelas

sombras. Acho que poderia voltar aarrastar correntes atrás da parededa Casa Fantasma, mas não tenhonenhum interesse em fazer isso.Perdi o gosto por fantasmas. Gostode imaginar o que Mattie pensariade Bartleby na história de Melville.

Deixei de lado minha pena deescrivão. Hoje em dia, prefiro nãoescrever.

Center Lovell,Maine:25 de maio de1997-6 de fevereirode 1998