A Ascensão de Talulla - VISIONVOX

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Transcript of A Ascensão de Talulla - VISIONVOX

TraduçãoMARCELO SCHILD

2014

D932a

14-12437

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Duncan, Glen, 1965-A ascensão de Talulla [recurso eletrônico] / Glen Duncan; tradução Marcelo Schild. - 1. ed. -

Rio de Janeiro: Record, 2014.recurso digital

Tradução de: Talulla risingFormato: ePubRequisitos do sistema: Adobe Digital EditionsModo de acesso: World Wide WebAgradecimentos, epílogoISBN 978-85-01-04659-8 (recurso eletrônico)

1. Ficção inglesa. 2. Livros eletrônicos. I. Schild, Marcelo. II. Título.

CDD: 823CDU: 821.111-3

TÍTULO ORIGINAL EM INGLÊS:Talulla Rising

Copyright © Glen Duncan, 2012Publicado mediante acordo com Canongate Books Ltd, 14 High Street, Edinburgh EH1 1TE

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios.Os direitos morais do autor foram assegurados.

Editoração Eletrônica da versão impressa: Abreu’s System

Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa somente para o Brasil adquiridos pelaEDITORA RECORD LTDA.Rua Argentina, 171 – Rio de Janeiro, RJ – 20921-380 – Tel.: 2585-2000,que se reserva a propriedade literária desta tradução.

Produzido no Brasil

ISBN 978-85-01-04659-8

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Para Isobel

AGRADECIMENTOS

Meus agradecimentos a todos na Canongate no Reino Unido, na Knopf nosEstados Unidos e na Text Publishing na Austrália, especialmente: FrancisBickmore, Jamie Byng, Jenny Todd, Norah Perkins, Lorraine McCann,Angela Robertson, Cate Cannon, Jaz Lacey-Campbell, Polly Collingridge,Andrea Joyce, Morven Dooner, Marty Asher, Sonny Mehta, DianaCoglianese, Kim Thornton, Ruth Liebmann, Peter Mendelsund, Mandy Brette Jane Novak. Mais uma vez, estou em dívida com meus agentes brilhantes,Jonny Geller em Londres e Jane Gelfman em Nova York, e com meus amigose familiares, sem cujo apoio e a ocasional ridicularização salutar eu teria hámuito tempo perdido a cabeça. São eles: Louise Maker, Mark Duncan, MarinaHardiman, Stephen Coates, Nicola Stewart, Jon Field, Vicky Hutchinson, PeteSollett, Eva Vives, Andrea Freeman, Glen & Dave Teasdale, Bryn & SallyTeasdale, Sarah Forest, Ben Ball, Paige Simpson, Alice Naylor, Jon Cairns,Gavin Butt, Nicola Harwood, Tracy Ryan, Mike Loteryman e Anna BakerJones. Agradeço especialmente à minha mãe e ao meu pai inspiracionais e,finalmente, a Kim Teasdale, por todas as razões habituais, masprincipalmente por me permitir roubar suas melhores ideias e receber créditopor elas.

PRÓLOGO

DOCES E CONDIMENTOS E TUDOQUE CAUSA CONTENTAMENTO

Talulla Demetriou, você tem sido uma Garota (pausa) Muito (pausa) Má.Minha mãe sempre dizia isso com um cintilar de deleite nos olhos. Ela

própria era uma Garota Muito Má. Acima de tudo, o que ela mais odiava erafraqueza. Especialmente nas mulheres. Preferia o mal puro. Ela era o malpuro, quando precisava. Ela admitia uma elite: nossa família, alguns amigos,certas celebridades. O resto do mundo era formado por idiotas e medíocres.Os humanos, como os chamava.

(Com Deus morto, a ironia ainda viva e despreocupada...)Mais tarde, por cortesia da minha Tia Theresa, psicótica-terrorista e

católica, descobri que eu também era uma Garotinha Suja. Uma GarotinhaSuja, Imunda, para ser mais exata. Quando eu tinha 8 anos, ela me pegou comToby Greely no porão, um examinando as partes íntimas do outro. Em umminuto eu e Toby estávamos sozinhos, observados pela miscelânea chocadado cômodo – caixas de papelão e uma mesa quebrada de pingue-pongue ealgumas persianas enroladas –, no seguinte, o silêncio mudou e eu soube quehavia mais alguém ali. Tia Theresa estava no primeiro degrau que levava aoporão. O rosto dela estava sempre úmido de Creme Frio Pond’s, mas naqueleinstante brilhava com o que parecia uma divindade recém-esculpida. Meurosto, quando o virei para ela, estava quente e inchado. O que eu senti eracomplexo e delicado, graças às calças em volta dos tornozelos, de Tobyajoelhado e do silêncio que nos envolvera em um casulo enquanto ele meobservava demoradamente, com cuidado – e até mesmo com ternura. Euacreditava ter me aproximado de alguma grande revelação, e junto com ohorror de ter sido descoberta havia uma irritação majestosa por ter sidointerrompida. Mesmo naquele momento, eu pensava que Toby e euprecisaríamos retornar àquilo, e logo.

– Talulla Demetriou – disse Tia Theresa. – Você é uma garotinha suja. – Edepois, uma vez que aquilo não havia sido suficiente: – Uma garotinha suja,imunda.

A Garotinha Suja e Imunda era bonita e gostava de coisas más. Nosegundo ano do ensino médio ela era amiga de Lauren Miller, que tambémera bonita e gostava de coisas más. Por exemplo, havia uma garota irritante ecom herpes permanentes a quem elas atormentavam e apelidaram deSEMPERES (Sem Perigo de Estupro). Um dia, a Garotinha Suja e Imundaestava sentada no colo de Jason Wells no recreio e Lauren gritou algo terrívelpara a SEMPERES quando ela passou e foi possível ver em seu rosto queaquilo realmente a magoou, e bem fundo, no coração. Ao mesmo tempo, aereção de Jason pressionava a bunda da Garotinha Suja e Imunda e,novamente, ela teve aquela sensação complexa e delicada e soube que haviauma ligação. Era como se o Diabo abraçasse você por trás e você se reclinasse,indo de encontro a ele e desfrutando o calor adorável e inesperado.

Na faculdade, a Garotinha Muito Má Suja e Imunda soube de uma vez portodas que era uma agente das forças do mal. Ela era o pior tipo de jovemmulher: uma que reconhecia a fêmea ativamente politizada na qual deveria setornar, mas não se tornou. Em vez disso, continuou sentindo-se atraída porhomens maus, tendo os tipos errados de fantasias sexuais e construindo parasi uma aparência o mais atraente possível até finalmente aceitar que erademasiadamente egoísta e bonita e preguiçosa e pervertida para ser capaz dealgum dia viver o tipo de vida que sabia que deveria. No final do segundo ano,lia abertamente os autores errados e não passava mais pela angústia de NossoSenhor em Getsêmani cada vez que usava um vestido sexy, um par de sapatosque, definitivamente, a levavam à falência ou deixava um cara fodê-la portrás, o que, para ser justo com ela, era um privilégio que Talulla concediamuito (pausa) muito (pausa) raramente, geralmente com sentimentosambíguos ou quando completamente massacrada.

Finalmente, a Garotinha Muito Má Suja e Imunda coroou sua carreira dedecadência moral abandonando o mestrado em literatura e tornando-se umamulher de negócios. Uma serva de Mammon! Sem grande surpresa – na

verdade, com uma satisfação relaxada –, ela descobriu que tinha umainclinação para aquilo que um futuro amante (o amante que acabaria comtodos os amantes) definiria como “o lixo e a sabedoria do ComércioAmericano”. A mãe ficou decepcionada, mas era igualmente vaidosa parasentir-se lisonjeada com o quanto a filha se tornara parecida com ela.

Considerando o histórico da Garotinha Muito Má Suja e Imunda, foichocante que, quando seu casamento ruiu, não fosse ela que estivesse traindoo marido, e sim que a traição viesse dele. Ela desfrutou de uma brevepermanência no nível de superioridade moral.

Sendo “breve” a palavra em vigor. Ela mal se acostumara com a deliciosasatisfação de ser todo tipo de coisas horríveis, mas pelo menos não ser umamaldita mentirosa, seu merda miserável, quando certa noite foi mordida porum lobisomem no deserto de Arizona e foi obrigada a dizer adeus parasempre ao nível de superioridade moral. Ela descobriu que não somente eracapaz de matar e comer gente uma vez por mês, mas que era capaz de matar ecomer gente uma vez por mês e amar aquilo.

Até descobrir que estava grávida. E então uma espécie totalmente nova deproblemas começou.

PARTE UM

NATIVIDADE

“Tudo é incerto neste mundo que não passa de um monte fedidode estrume, menos o amor de mãe.”

James Joyce – Retrato do artista quando jovem

1

– Oh, mon Dieu – disse Cloquet quando abriu a porta do abrigo e me viu nochão. – Merda.

Eu estava deitada de lado, joelhos encolhidos, rosto molhado de suor. Agravidez e a fome não se davam bem. Odiavam-se mutuamente, na verdade.Eu imaginava o bebê pressionando unhas de lobisomem contra o meu útero,cinco cacos de vidro na superfície de um balão. E somente a mim mesma paraculpar: quando poderia ter me livrado dele, não tive vontade. Agora que euqueria, era tarde demais. A consciência da vida antiga dizia: bem feito. Euhavia demitido a consciência alguns meses antes, mas ela permanecia porperto, miserável, barba por fazer, sem nenhum outro lugar para ir.

– Conseguiu? – perguntei ofegante. Atrás de Cloquet, a porta abertadeixava ver montes de neve, o começo da floresta de pinheiros, constelaçõesfrágeis. A beleza me arrebatava mesmo eu estando neste estado. Ahipersensibilidade estética era um subproduto da carnificina. No fim dascontas, a vida era repleta dessas relações amorais.

Cloquet correu até mim, retirando as luvas térmicas.– Fique parada – disse ele. – Não tente falar. – Ele cheirava a ar livre, a

densas árvores de folhas perenes e ao ar do extremo norte, como se fosse algopurificado pelo voo dos anjos. – Você está com febre. Bebeu bastante água?

Pela enésima vez desejei que minha mãe estivesse viva. Pela enésima vezpensei no quão indescritivelmente feliz eu ficaria se ela e Jake entrassem pelaporta naquele instante, sorrindo, juntos. Minha mãe largaria a bolsa sobre amesa em uma lufada de Chanel e diria: Pelo amor de Deus, Lulu, olha só o seu

cabelo – o clima ficaria mais leve e tudo estaria bem. Jake não precisaria dizernada. Ele olharia para mim e eu encontraria lá, em seus olhos, o sinal de queele estará ao meu lado, sempre, sempre. Assim, o pesadelo se reduziria a umpunhado de problemas solucionáveis. (Eu esperara que viessem os fantasmasdeles, naturalmente. Eu exigira os fantasmas deles. Não obtive nada. Ao final,descobri que o universo tampouco estava mais interessado nas demandas doslobisomens do que nas dos humanos.)

– Talulla?A dor intensificava-se sob minhas unhas, aquecia meus globos oculares.

Wulf sorria maliciosamente e chutava e implorava pelo meu sangue. Vamoslá, o que são algumas horas entre amigos? Deixe-me sair. Deixe-me sair. Todomês o mesmo assédio delirante, a mesma impaciência inútil. Fechei os olhos.

Má ideia. Imediatamente o filme começou: o quarto de Delilah Snow, aporta do armário se abrindo, o longo espelho apresentando-me a mim mesmaem toda a minha glória grotesca, o que eu era, o que eu era capaz de fazer, agama completa de opções que eu tinha. Monstro. Assassina. Futura mãe.

Abri os olhos.– Me deixe pegar um pouco de água para você – disse Cloquet.– Não, fique aqui.Eu havia agarrado o casaco dele e o retorcia. Meus mortos gemiam e

latejavam. Meus mortos. Meus inquilinos inquietos. Minha família forçada de13 integrantes. Esses fantasmas, sim, é claro. Tantos quantos você quiser. Aúnica maneira de ter certeza de que jamais perderá aqueles que você ama. Omaldito método Dahmer. Extremo mas eficaz.

– Respire, chérie, respire.Chérie, Mon ange. Ma belle. Expressões de ternura de amantes, embora

não fôssemos, e jamais seríamos.Uma a uma, as unhas de cacos de vidro se retraíram. A dor enrolou-se

para dentro de si e cessou, como um filme em time-lapse de uma flor sefechando. Gradualmente, com a ajuda de Cloquet, fui até a poltrona. Wulfsorriu. O sorriso do prisioneiro para o carcereiro, sabendo que a gangue queprovidenciará sua fuga já está a caminho.

– Você conseguiu? – perguntei outra vez, depois de recobrar o fôlego. –Ao menos diga que conseguiu.

Cloquet fez que não com a cabeça.– Houve um problema. Está preso com uma carga aguardando liberação

em Anchorage. Chegará em Fairbanks sábado de manhã. Só que nevará mais.Vou precisar levar o snowmobile e o trailer.

Não falei nada. Estava me lembrando de uma obra de arte que vi certa vezno MOMA: um feto feito inteiramente de arame farpado. Lauren e eu ficamoslá paradas olhando, emudecidas.

– Não se preocupe – disse Cloquet. – São dois dias. Você ainda tem seissemanas. Voltarei para Fairbanks no sábado, bem cedo. Me prometeram queestará lá. Precisa estar.

Estávamos nos referindo a uma encomenda de equipamentos deobstetrícia, incluindo uma máquina de oxigênio, fórceps, estetoscópios fetaise para adultos, monitores cardíacos, uma bomba PCA, umesfigmomanômetro e material para sutura. “Fairbanks” era Fairbanks, Alasca.Obscuridade necessária: a WOCOP – World Organization for the Control ofOculto Phenomena* (pense num encontro entre a CIA, os Keystone Kops e aInquisição espanhola, Jake dissera) – sabia que eu tinha sobrevivido à mortede Jake e que carregava o filho dele. Os caçadores da organização queriamminha cabeça e os cientistas queriam me amarrar em algum laboratório. Masnão parava por aí. Tendo descoberto uma correlação entre sobreviventes amordidas de lobisomens e um aumento na tolerância à luz solar, os vampirosestavam atrás – do que mais? – do meu sangue. Acima de tudo isso, meusubconsciente, desesperadamente em busca de uma saída, vira a neve comoum ambiente estéril, um hospital natural. A medicina convencional estavafora de questão – Bem, senhorita Demetriou, como pode ver no monitor, aquiestá o cordão umbilical, e aqui está uma placenta com aparência muitosaudável e, é claro, aqui está o – MALDITO JESUS CRISTO, O QUE É ISSO?–, então Cloquet encontrara este abrigo para caçadores reformado, com vigasexpostas, fogão à lenha e armários que cheiravam a cânfora. Três mil dólarespor semana, nenhum outro residente em um raio de 24 quilômetros, sem

recepção telefônica, 800 metros de estrada de terra em meio ao silêncioexcitante dos pinheiros natalinos até a estrada, da qual Fairbanks ficava anoventa minutos de carro ao sudoeste. Eu poderia gritar tão alto quantoquisesse. Ninguém ouviria. Eu tinha uma visão recorrente de mim mesmadeitada na mesa de jantar, envolta por uma poça de sangue e gritando tão altoquanto quisesse. Eu tinha muitas visões recorrentes.

– Não importa – eu disse. – Esta coisa vai me matar de qualquer jeito.Não tinha fundamento. Pós-Delilah Snow eu estava repleta de crueldades

aleatórias. Eu sabia o quanto o perturbava o medo de que eu morresse, agoraque ele era cúmplice de assassinato. Assassinatos, plural. Cuidar de umlobisomem desqualifica uma pessoa totalmente para fazer qualquer outracoisa. Como Harley, o pobre cuidador de Jake, poderia ter confirmado, se nãotivessem cortado sua cabeça. Que Cloquet tivesse se tornado o meu cuidadorainda me fascinava ocasionalmente, o absurdo gigantesco do fato. Contudo,eu recordava a sensação de uma inevitabilidade onírica naquela noite nafloresta, cinco meses antes, quando eu estendi minha mão – minha mãotransformada em garra, molhada e pesada de sangue – e ele, após uma risadacujo som falhara, a pegara. O que havia acontecido momentos antes –carnificina, morte, vingança, perda – nos deixara com uma consciência crua epermissiva, na qual este novo relacionamento havia se insinuado. Espere oabsurdo, Jake havia me avisado. Espere a reviravolta risível, o desenlacegrotesco. Espere o perverso. É o destino do lobisomem.

Cloquet fechou a porta, pegou um lenço de papel grande e branco e assoouo nariz. O frio havia deixado Cloquet com um ar de inocência surpresa. Àsvezes, eu o via desta maneira, humana, a pessoa destruída e sua estrada devolta à infância marcada por curvas erradas e coincidências desagradáveis. Hámuito tempo, ele fora um garotinho, cabelo repartido para o lado e ummundo volátil de brinquedos amados e adultos tempestuosos. Agora,enquanto fungava e se limpava com o lenço de papel, narinas em carne viva,sobrancelhas erguidas, vislumbrei aquela criança de olhos escuros sozinha depé em um píer observando a água negra, aguardando o reencontro que jamaischegaria. Uma sensação de ternura revolveu-se em mim – e, como um reflexo

desconfortável, a nova força a obscureceu, dizendo que tal sensação não seadequava à gramática, não era a coisa certa a se fazer. Havia muito maisocorrendo dentro de mim para discutir, mas eu já havia deixado claro quenão gostava de regras. Só Deus sabe a quem eu havia deixado claro. A algumvago esquema das coisas de lobisomem no qual eu nem sequer acreditava.

– Como está? – perguntou ele.– Melhor.– Eu queria que você tomasse os remédios.Apenas diga não. Até o momento eu havia dito. Paracetamol,

pseudoefedrina, codeína, Demerol, morfina. Tudo com potenciais efeitoscolaterais que minha imaginação dava como certos. A administração destadroga durante o primeiro trimestre da gravidez pode causar anomaliascomportamentais na criança.

Anomalias comportamentais. Jake e eu teríamos trocado um olhar. Masironias eram como segredos: quando não compartilhadas, morriam. Jake e euteríamos. Jake e eu. Jake. Eu. Havia aqueles momentos nos quais não havianada entre mim e a realidade da morte dele, quando o futuro sem elebocejava, um vasto espaço de quedas íngremes e perspectivas erradas. Haveriacada vez mais desses momentos, eu sabia, até que, eventualmente, não haveriamomento algum, apenas as coisas sendo como são, de modo contínuo eesmagador. As coisas sendo como são supostamente encontrando alívio nonascimento de nosso filho.

– Economize as drogas para quando eu realmente precisar delas – eu disse.Ambos sabíamos que eu já precisava delas, com wulf superlotando a sala

com seu fedor, seus choques de arame farpado em minhas unhas e o zunidometálico nos olhos, dentes e, lá fora, sussurrando a conversa indecente danatureza selvagem. Faltavam menos de 24 horas para a transformação.

– Você não precisa ser corajosa, você sabe – disse ele.– Eu não sou. Estou apenas pensando à frente. – Eu não queria pensar à

frente. (E tampouco queria pensar para trás. Havia horror em ambas asdireções.) Rufus, meu fornecedor de peixes para as lanchonetes no Brooklyn,descrevera a experiência de assistir a esposa dando à luz. Quero dizer a vocês

que foi lindo, comentou ele, mas, basicamente, parecia alguém que levara umtiro de calibre 12 na boceta. Esta imagem não parava de vir, assim como ovídeo de educação sexual que exibiram para nós no ensino médio, cenasamareladas de uma mulher de ancas largas dando à luz e suandoprofusamente. Repulsa adolescente unânime. Lauren dissera para mim:“Foda-se o milagre da vida, onde assino para fazer uma histerectomia?”

– Vou dar uma olhada lá embaixo – disse Cloquet.– Não, eu vou.– Você precisa descansar.– Preciso me mover. Ai. Merda. – O bebê fez um movimento anormal,

arranhando alguma coisa dentro de mim. Ele enviava aqueles comunicadosviolentos. O mesmo comunicado todas as vezes: Eu vi você. No espelho. Você eDelilah Snow. Mãe.

Aguardei até que a dor se enrolasse novamente sobre si mesma.– Tem certeza de que não quer nada? – perguntou Cloquet.Balancei a cabeça, não. Depois, estendi a mão para ele.– Mas acho que não consigo levantar da cadeira sozinha.

Nota

* Organização Mundial para o Controle de Fenômenos Ocultos. (N. do T.)

2

Em um minuto você é a pequena Lula, 8 anos de idade, sentada no balcão dalanchonete da Tenth Street, tomando um milk-shake de baunilha sob o neoncor-de-rosa da Coors – no minuto seguinte, isto, o fedor de fígado sob suasunhas e a água no chuveiro escorrendo vermelha aos seus pés. Noexperimento mental, você comete suicídio. Eu não faria isso. Eu me mataria.Na realidade, não é isso que você faz. Na realidade, você mata e come outrapessoa. Você começa por uma das extremidades da experiência, passa por elae sai do outro lado. Você matou e devorou um ser humano. O sangue reflete aluz em suas unhas, embaraça os pelos nos braços e no focinho. A vidaingerida debate-se e luta – é tocante – no que ela considera, por engano, serum pesadelo. A lua se põe. No dia seguinte, você acorda entre lençóischeirando a amaciante. Lá está a CNN. Lá está o café. A previsão do tempo.Seu rosto humano no espelho. O mundo, você descobre, é um lugar de umacontinuidade pavorosa. Comi o coração dele. Parece incrível que as palavrasnão recusem, não se revoltem. Mas por que deveriam? Você não fez isso. Eisseu horror, sim. Mas seu horror é uma maré baixando: cada onda para umpouco mais longe. Eventualmente, a maré não se aproxima mais.Eventualmente, resta apenas o delta suspirante, o novo você, o lobisomem. Oúltimo lobisomem, diga-se de passagem.

Jake havia pensado ser o último. Havia pensado, também, que estavapronto para partir. Um a um, esgotei os métodos, ele escreveu:

hedonismo, asceticismo, espontaneidade, reflexão, tudo entre omiserável Sócrates e o porco feliz. Meu mecanismo se desgastou.Não possuo o necessário. Ainda tenho sentimentos, mas estoucansado de tê-los. O que é outro sentimento do qual estou cansadode ter. Eu apenas... Apenas não quero mais nenhuma vida.

Então, ele me conheceu. Cortesia da reviravolta risível, da coincidênciaridícula. O amor chegou, ele escreveu.

Pleno, incendiário, inquestionável. O amor chegou, e com ele arenovação do valor inestimável do tempo. Penso em uma hora comela – depois, nas minhas centenas de milhares de horas antes desaber que ela era possível, horas desperdiçadas, por definição. A vidaque poderíamos ter tido se ela estivesse presente há um século (ou hácinquenta anos, ou dez, ou, meu Deus do céu!, cinco) é umaobscenidade na minha imaginação. A maior obscenidade, é claro, éa questão de quanta vida nós temos. Deus não existe, mas conheço oestilo dele: ele não lhe ensinaria o valor do tempo a menos que nãolhe restasse merda nenhuma de tempo...

Ele estava certo. Tivemos dois meses. Cuidado com o que você deseja, eletransmitira o pensamento para mim, morrendo em meus braços. Antes denos conhecermos, ele havia desejado a morte. A morte lhe dera ouvidos. Amorte fizera uma anotação. Impossível de apagar, como ficou evidente.

Um século e meio de solidão encerrado por sessenta dias e noites de amor.Não é lá uma equação e tanto. Invertida, parecia muito pior: sessenta dias enoites de amor seguidos por centenas de anos de solidão. Não é desurpreender que eu tivesse faltado a todos os agendamentos que fiz paraabortar.

Eu tinha três visões recorrentes. Uma era de mim com uma filha de 12anos vivendo em uma villa em Los Angeles. Piscina azul-turquesa, jardim decáctus, luz do sol, Cloquet com um chapéu de palha e bermudas brancas nosensinando francês.

Outra era de um garotinho lobisomem em um uniforme escolar rasgado ecoberto de sangue, um globo ocular que sobrara dentro da lancheira, umalíngua humana balançando para fora do bolso de seu blazer. É claro que erahumor negro. Este é sempre uma opção, se não existe Deus.

Eu disse três visões recorrentes.Eu sei.Ainda não.

*

Na metade da escada para o porão minhas pernas cederam. Agarrei ocorrimão, deslizei até ficar de joelhos e vomitei. Bílis e água, já que eu nãocomia nada sólido há 12 dias. Nem sempre fora assim. Feito um cisne, eunavegara tranquilamente pelas primeiras 18 semanas da gravidez, semqualquer sintoma. Depois, sem aviso, tudo mudara. Cãibras, enjoos, suoresnoturnos, distúrbios visuais, sangramentos nasais, dores nas costas, diarreia,dores uterinas sufocantes. De um dia para o outro, a biologia fez de mim seusaco de pancadas. Quando tinha sorte, conseguia cerca de uma semana degraças pós-transformação, e a violência corporal diminuía, mas quando a luaatingia o primeiro quarto crescente tudo recomeçava, e quanto mais feroz afome, mais forte era a surra da maternidade. Uma maldição em cima daMaldição: você está morre de fome, mas seu apetite lhe deixa enjoada. (Minhaúltima vítima, um gigolô temperado com cebola e uísque na Cidade doMéxico, tinha gerado acessos de vômito obscenos menos de uma hora depoisque o devorei. Uma morte sem sentido. Agora, ele era uma esquisitice entremeus mortos, confuso e espectral por não ter sido ingerido apropriadamente

– ou por ter sido ingerido e depois parcialmente expelido.) Durante algumtempo me prendi à teoria moral de que a maternidade abominavaassassinatos. Mas coisas aconteceram. Coisas aconteceram e a teoriadesaparecera.

– Está tudo bem – falei com a voz rouca para Kaitlyn. – Sou eu.As coisas com as quais você se sai: Sou eu. Seu outro sequestrador. Mas

que reconfortante. Kaitlyn não respondeu. Ela estava de pé ao lado do catre,segurando o cabo que a prendia. Vinte e três anos, segundo sua carteira demotorista. Pele clara, cabelos louros oleosos, olhos azuis um poucoesbugalhados e lábios carnudos de boneca. No geral, aparentava não sermuito asseada (imaginei um umbigo sujo e um quarto que parecesse ter sidoatacado por poltergeists), porém magra e suficientemente bonita para não tersuspeitado de nada além de um encontro de apenas uma noite quandoCloquet deu em cima dela em Fairbanks. Ela se resignara cedo à crença deque sexo era a única coisa que tinha a oferecer, tendo passado muito tempona cama fazendo docilmente coisas que realmente não queria, mas, ei, vocêssabem, homens são assim, o mundo é assim. Havia milhões de mulheresjovens exatamente como ela em todos os Estados Unidos. Nunca fui umadelas. Porque, quando criança, eu tinha recebido amor e passado noites deinverno com meu pai me mostrando as constelações. Porque, quandopequena, eu tivera tios catastroficamente bêbados que, com olhos turvos,pediam minha opinião de 8 anos de idade e tias espertas (excluindo Theresa)que marcharam contra a guerra no Vietnã. Porque eu tivera A Ilíada e EmilyDickinson e o fabuloso espetáculo do ego da minha mãe, seu senso ultrajantede merecimento.

– É mentira sobre o resgate, não é? – perguntou Kaitlyn quando chegueiao último degrau. – Quero dizer, não sou burra. Ninguém que dê a mínimapor mim tem dinheiro.

Ela havia superado a fase do choro. Havia superado todas as fasesdramáticas: choque, terror, fúria, pesar. Levara 72 horas. Agora, o que haviaera um sofrimento mecânico. Se a mantivéssemos presa por tempo suficiente,o sofrimento daria lugar ao tédio. Eventualmente, à aceitação. Mas era claro

que não a manteríamos presa por tempo suficiente. Por que você vivedescendo para o porão? Cloquet queria saber. Você não precisa ter contatocom ela. Por que não me deixa cuidar disso?

– É mentira – disse Kaitlyn. – Sei que é. Não existe nenhum malditoresgate.

A história do resgate foi contada por bondade. Para preencher o vazio. Oqual, do contrário, seria preenchido por coisas terríveis. Mesmo que nem emcem anos pela terrível coisa correta. Eu sentia pena dela. A Maldição nãoeliminava a empatia; aguardava até que a transformação, alquimicamente, afizesse virar crueldade. Era por isso que eu vivia descendo para o porão, paramedir o quanto restava da minha humanidade. Demais. Sempre demais. Estaera a questão da licantropia: o divórcio entre as espécies nunca era finalizado.Não importava o que você fizesse aos humanos, as súplicas deles aos seussentimentos permaneciam. (Wulf revirava os olhos. É claro que as súplicasdeles aos seus sentimentos permanecem. Caso contrário, matá-los e devorá-los não teria uma sensação tão inacreditavelmente boa, não é mesmo?)

– Me diz – implorou Kaitlyn.Os jeans dela tinham um cheiro apetitosamente azedo. Minhas mãos

estavam tomadas por uma débil agitação. Três meses antes eu devorara umandarilho de 24 anos nos montes Allegheny. Ele estava coberto de poeirafúcsia e cheio de uma força surpreendente e flexível, como ficariam umcoelho ou um ganso quando você os agarra. Ele nunca se apaixonara. Tinhamuito amor em espera, não descarregado. Cortesia do humor negro, imagineique Kaitlyn seria boa para ele. Eles seriam bons um para o outro. Quando seconhecessem. Dentro de mim. Talulla, a casamenteira. Este era o lance com ohumor negro: uma vez começado, não tem mais fim.

– Não – disse ela quando me aproximei um passo. Sem aviso, wulf sedilatou e fez minha barriga protuberar ainda mais, pressionando a intuiçãodela como um polegar em um machucado. Um medo renovado abriu osporos dela, que emanava grandes quantidades de feromônios, uma misturasuculenta com o denim azedo. O animal moveu-se na minha mandíbula,agitando-se, dilatando-se, e por um segundo parecia ter rompido e escapado

– aquele truque familiar, tão convincente que ergui a mão até onde deveriahaver um focinho gigantesco. Nada. É claro. Ainda não.

– Me diz por que vocês estão fazendo isso – Kaitlyn, implorou à beira daslágrimas.

Não respondi, mas, ao levantar a cabeça, soube que o monstro olhava portrás dos meus olhos. O rosto de Kaitlyn enrugou-se e tremeu. O cômodo deteto baixo ficando óbvio de repente e eu, diferente de qualquer mulher que elajá conhecera. Ela levantou a mão até a garganta, onde a pele era tão pálidaquanto a polpa de uma maçã. As garras fantasma repuxavam os nervos sobminhas unhas. Elas conheciam as tensões macias do corpo e o prazer daruptura. Durante um momento ela sentiu o que saía de mim e pensou nãohumano – mas a náusea assaltou-me outra vez e virei para o outro lado,vomitando mais bílis. Meus dedos das mãos e dos pés contorciam-se nasarticulações. Os caninos tornavam-se mais afiados. Um muro ergueu-sedentro de Kaitlyn contra o próprio pensamento, porque a ideia de nãohumano era, afinal de contas, uma loucura.

– Como você pode fazer uma coisa dessas? – perguntou ela, sem saberexatamente o que queria dizer. – Quero dizer, merda, você está grávida.

Pensei que ela fosse dizer: Quero dizer, merda, você é uma mulher.Tecnicamente, eu não era uma mulher, mas mesmo eu, sendo a garotinha

suja, imunda que era, havia me perguntado se a Maldição não seria umaoportunidade de oferecer à Irmandade alguma ajuda atrasada que tomavamsomente vítimas masculinas. Vítimas masculinas babacas, sempre quepossível. Mas os gostos de wulf eram agressivamente católicos, exigindo obom, o mau, o feio, o belo – e tudo que havia no meio. Jake havia tentado adieta forçada de vilões (certa vez, devorara cinco assassinos em sequência),mas o monstro contra-atacara, forçando-o a uma série reativa de inocentes.Wulf possui o apetite de Deus, Lu, ele dissera. Ou o da literatura. Ele desejatoda a diversidade humana, dos santos aos psicopatas. Confie em mim: vocêtenta equilibrar a balança e o maldito não aceita. Jake tinha um humor negro.Essa característica era o modus operandi dele – mas não era o bastante por sisó. Ele também precisava de um propósito. Este era o kit de sobrevivência do

lobisomem, humor negro mais propósito. Durante 167 anos o propósito delefora penitência. Então, ele me conheceu – e seu propósito foi amor.

– Você me ouviu? – perguntou Kaitlyn.Endireitei a postura, limpei a boca, aguardei o enjoo passar.– Logo vai acabar – eu disse. – Só vim ver se você precisava de alguma

coisa. Ele vai trazer um pouco de comida para você daqui a pouco.

3

Richard, meu ex-marido, disse certa vez: Odeio esse ar arrogante que asmulheres adquirem quando estão grávidas, como se a boceta tivesse atendidoa um chamado divino. Era o tipo de coisa que ele dizia para ofender oscarrancudos, mas, bem lá no fundo, nós dois sabíamos que ele falava sério. Eumesma tinha visto aquilo em mulheres grávidas, o novo centro de gravidade,o autismo benigno. Então, quando minha barriga começou a aparecer, eu vipessoas percebendo aquilo em mim: uma mulher rica ou emburrecida deconvicção, brilhando com uma autossatisfação oca. Nem mesmo o pesar eracapaz de tocá-la. Eu ficava deitada encolhida no chão do banheiro de umquarto de hotel, o rosto sujo de lágrimas e coriza porque meu coração idiotanão conseguia parar de penetrar no vazio onde Jake deveria estar – mas umaparte de mim sempre permanecia lacrada, inviolada, como se um campo deforça envolvesse a nova vida que eu carregava.

Até a noite em que conheci Delilah Snow. Depois dela, o campo de forçabasicamente se abriu.

*

Quando cheguei ao meu quarto, no andar superior, as cãibras estavam tãofortes que não consegui alcançar a cama. Meu rosto era um mapa nevrálgico.Meus dentes batiam. Agachei-me lentamente, me apoiando nas mãos, nosjoelhos e na testa. O fino tapete Inupiat tinha um cheiro caloroso de poeira,

patchuli e mofo. Graças à dor, eu havia redescoberto a sensaçãohumildemente recompensadora de me deitar em lugares improváveis. Davapara ouvir Cloquet conferindo as armas no andar de baixo. Era o que ele faziapara se tranquilizar. Tínhamos equipamentos escondidos por todo o abrigo.Metralhadora no cesto da lavanderia. Lança-chamas sob a pia. Bestas nosarmários. Uma dúzia de granadas. Escondidas sob o travesseiro, quatroestacas de madeira e uma Glock 9 milímetros. (Glocks, Colts, Springfields,Walthers, Tri-Stars, Magnums, Berettas. Antes da Maldição eu era tãoinclinada a ter uma arma quanto a ter um elefante. Agora, poderia abrirminha própria loja.)

Demorei muito tempo para me arrastar até a en suite e começar a encher abanheira. (Eu tomava muitos banhos de banheira, menos para alívio físico doque para conforto psicológico: eles me faziam lembrar do meu eu adolescente,do pequeno banheiro branco no terceiro andar da casa de Park Slope, no qualeu entrava e me encharcava e lia e meditava e fazia planos e inspecionava meucorpo e me masturbava.) Tirar a roupa era uma provação onírica. Por uminstante, ajoelhei-me diante do espelho. Seios de pedra com um emaranhadode veias que eu jamais vira. Barriga grande como um caldeirão. Umbigoprotuberante como um gesto obsceno. É nojento, Lauren dissera da enormegravidez da irmã. Ela costumava ser bonita. Agora, é só essa vaca gorda queanda arrastando os pés. Lauren preferiria nem ter um corpo. No que lhe diziarespeito, seu corpo estava envolvido em uma campanha em tempo integralpara enojá-la ou constrangê-la em público. Me lembro da reação dela quandocontei – antes que qualquer uma de nós começasse – o que era menstruar.Como assim, você expele um óvulo com sangue? Um óvulo? Jesus Cristo, Lu,isso é muito repugnante. Por que você inventa essas coisas? Mas mesmoquando ela contestava, eu sabia que ela sabia que eu não estava inventando.Sentia saudades de Lauren, que findou siliconada e divorciada de um gângsterde Los Angeles. Fazia anos desde a última vez em que colocamos o papo emdia, e agora, não importava o quanto conversássemos, jamais colocaríamos opapo em dia de verdade.

Me ergui com dificuldade sobre a privada e desmoronei nela, exausta.

Jamais vi uma coisa selvagem com pena de si mesma, minha mãecostumava citar, erguendo meu queixo com as pontas dos dedos, secandominhas lágrimas com a manga da camisa. Um passarinho vai cair congeladode um ninho sem jamais sentir pena de si mesmo. Aquilo funcionava sempre,até que um dia, eu com 17 anos e de ressaca e com o coração partido, mevoltei contra ela e disse que as coisas selvagens eram incapazes, por malditadefinição, de sentirem pena de si mesmas e que aquilo era um poema fajuto eestúpido e D. H. Lawrence era um babaca. E ela dissera: Oh, eu não sabia quevocê tinha se tornado tão literal. Creio que se juntou aos Humanos. Que pena.

Uma única cãibra forte arrancou alguma coisa de mim. Fiquei de pé,trêmula, e olhei dentro da privada.

Sangue. Meu. Muito. Por um momento pensei que tivesse sofrido umaborto. Alívio, pânico, excitação, raiva – então, a percepção de queclaramente eu não tinha abortado, que um feto de sete meses e meio nãopoderia simplesmente escorregar para fora desse jeito, que não havia limitespara o tipo de idiota que eu poderia ser. Enquanto isso, a privada continhameu sangue com uma espécie de sentimentalismo, algo triste e feio que elaestava condenada a me mostrar. De pé ali, olhando para baixo, senti pena dagarotinha que eu tinha sido, que não fazia ideia das mudanças terríveis queiriam castigá-la.

Jamais vi uma coisa selvagem com pena... Minha mãe disse isso umaúltima vez, no hospital, entre períodos de ausência provocados pela morfinaem seu dia final. Meu pai tinha ido ao banheiro. Eu estava sozinha com ela.Peguei sua mão.

– O que foi, mãe?A doença e as drogas a tinham deixado com uma versão traumatizada da

própria beleza. Quando eu era pequena, uma das minhas coisas favoritas eraobservá-la se arrumando para sair, o que sempre fazia ironicamente, como seaquilo fosse algo inferior a ela, até o último instante, quando estava pronta eme lançava um olhar de conluio feminino, de mulher para mulher, peloespelho. Eu amava aquele olhar.

– Você é como eu, ela disse.

Nós nos encaramos. Por um momento que se prolongou, era como sefôssemos nos tornar uma única pessoa. Ela disse: Não quero partir. Então adroga agiu novamente e os olhos dela se fecharam. Foi a última vez que falou.Quatro horas depois, estava morta.

Dei a descarga para limpar o sangue. Arrepiada, couro cabeludo doendo,entrei na banheira, me agachei, relaxei os ombros dentro d’água. O calortornava a dor menos aguda, e a mudança de temperatura surpreendeu o bebê,que ficou quieto. Pensei em Kaitlyn dizendo: Como você pode fazer umacoisa dessas? Quero dizer, merda, você está grávida.

Então uma coisa pesada e viva passou sobre o telhado, muito perto,movendo-se rapidamente.

4

WOCOP. Vampiros. Não importava quem. Tinham nos encontrado.Adrenalina de zero a cem – instantaneamente. (E um lampejo de alívio

surpreendente: vão me matar e tudo vai terminar e estarei morta e junto aJake ou pelo menos junto a mamãe. Tive uma visão de nós três em uma lindaversão pós-morte do fórum romano, oliveiras, céu azul, eu carregando o bebê,rindo.)

Escorreguei ao sair da banheira e senti uma lasca de osso se soltar dentrodo meu joelho. Ignorei-o. Me vesti rapidamente, agarrei a Glock e uma estacae desci para acordar Cloquet.

– Viu alguma coisa? – perguntou ele num sussurro. O rosto de Cloquetestava inchado de um sono bêbado e o hálito estava podre de Jack Daniels,mas ele havia liberado a trava de segurança da Cobra e rapidamente estavadesperto.

– Senti – eu disse. – Não vi. – Ele compreendeu: estando tão perto datransformação, wulf fazia várias invasões.

– Aqui – apontou ele. – Pegue isso. – Uma besta e uma aljava de setas demadeira retiradas do armário de bebidas. – Se alguém entrar pela porta, vocêsabe o que fazer.

– Você precisa de mim ao seu lado – contestei. Ele começou a protestar,mas o interrompi. – Se for um vampiro, você vai precisar do meu nariz. Nãoestou pedindo.

Ele sabia que eu estava certa.– Tudo bem – concordou ele. – Mas, por favor, fique por perto.

Abrimos a porta e saímos. O frio nos tomou de assalto. A neve iluminadapelo luar cintilava como que com deleite. A entrada para carros, que Cloquetlimpara dias antes, corria diretamente até a estrada de terra sob as árvores, 30metros adiante. Em ângulos retos em relação à casa havia uma construçãoexterna de pedra que abrigava snowmobiles, snowcats, minilimpadores, umgerador de emergência e ferramentas variadas. A neve ao redor do Cherokeefora removida e o jipe estava com os pneus especiais, pronto para partir.Coloquei a mão na traseira do carro quando passei por ele, da maneira casualcomo uma garota afirmaria a ligação com seu cavalo. Examinamos a beiradado telhado em silêncio. Cloquet olhou para mim. Ainda está aqui? Fiz quesim com a cabeça. Sim, mas não está próximo. Vampiro? Não dava para tercerteza. Não nos damos bem com vampiros, Jake tinha me avisado. Aversãomutuamente assegurada. Somos hostis aos chupadores em um nível genético.Fosse ou não genética, não suportávamos o cheiro uns dos outros. Sehouvesse um por perto, em pouco tempo o fedor me deixaria cambaleante.Meus mortos formigavam em meus braços e pernas. Cloquet moveu os lábios,enfaticamente: Você fica aqui.

Movi os meus em resposta: Nem fodendo.Devemos ter levado de 15 a vinte minutos para contornar o abrigo,

parando, escutando. Em certos lugares, a neve era tão funda que atravessamoscom dificuldade. Havia uma atividade celular frenética no meu joelholascado. Cloquet usou binóculos de visão noturna para fazer uma varreduradas árvores. Nada. Ainda assim, o éter tremulava. O que quer que fosse, aindaestava ali, e movia-se enquanto nos movíamos, preservando a distância entrenós, um odor ou vibração fora de alcance enlouquecedoramente por muitopouco.

Retornamos até a entrada para carros, exaustos, sem incidentes. O rosto deCloquet estava amarrotado de sono. Uma gota de orvalho pendia da ponta donariz dele. Eu sabia o que ele pensava: se eu tinha sentido a presença de umvampiro, então um vampiro tinha sentido a minha. Nosso esconderijo foracomprometido. Precisaríamos partir. Naquele mesmo instante. Talpensamento – fugir, de novo, a energia que aquilo exigiria – me enchia de

uma fraqueza ardente. Tentei visualizar a mim mesma correndo para osegundo andar e jogando itens essenciais em uma mala. A imagem meexauriu. Fechei os olhos e descansei a cabeça delicadamente contra a janela docarona do Cherokee. Eu queria dormir. Para sempre. Deitar na neve e apagar.Apagar, apagar sem que restasse qualquer dúvida...

Então o cheiro me atingiu com toda a força, e eu soube o que era.Abri a boca para dizer a Cloquet – não foi necessário: um lobo, esguio e

negro e silencioso, caiu como um longo bocado de melaço do telhado para oalpendre inclinado, saltou de lá para o capô do jipe, parou, não olhou paramim e depois saltou para o solo e saiu em disparada pela entrada para carros.

Observamos sem dizer nada até ele desaparecer entre as árvores.Sorrindo, percebi que era a primeira vez que o fazia em dias, talvez

semanas. Eu havia capturado um vislumbre de seus olhos verdes minerais eum grande pulso de sua obediência masculina e alerta. Eu sentira a mimmesma estendendo-me até ele, vendo através de seus olhos e (paradoxal comouma parábola zen-budista) dos meus, simultaneamente. Um sistema nervosoinvisível estendeu-se através e além dele até uma matilha de lobos não vista.Os demais estavam com ele, comigo, éramos parte da mesma consciênciatemporal.

– É por isso que estamos aqui fora? – perguntou Cloquet num sussurro.– Sim.– Mon dieu, ele era grande.– Você não vai acreditar – eu disse –, mas nunca tinha visto um lobo na

vida real. Nem mesmo no zoológico.– Qual foi a sensação?Com o sorriso, algumas lágrimas brotaram, caíram, pararam. Não era

sentimento. Apenas o efeito do alívio da dor, que agora voltava depois que oanimal partira. Pisquei os olhos. Era um reconforto profundo que ele nãotivesse realmente olhado para mim. Não fora necessário. A força de vontadedele se dissolvera dentro da minha, depois saíra novamente.

– Não fui rápida o bastante – eu disse. – É como alguma coisa passandoem uma corrente de fluxo rápido.

– O quê?– Eu poderia ter controlado ele.– É mesmo?– É.O bebê, que ficara quieto, agora chutava de novo. Trinquei os dentes,

fechei os olhos e suportei a dor. Cloquet ainda olhava para o ponto entre asárvores no qual o lobo desaparecera.

– Me faça um favor, chérie – disse ele. – Assegure-se de que ele saiba queeu estou do seu lado, OK?

5

Havia um comercial de fraldas na TV que eu sempre via. Uma sucessão debebês ridiculamente fofos rindo ou gorgolejando ou engatinhando oudeitados de barriga para cima balançado os pés e as mãos sobre uma ricatrilha sonora de clarinetes. O último quadro dissolvia em uma mãe jovem ebonita, loura e fabulosamente saudável, em um casaco de lã azul-claro e blusabranca, segurando nos braços o filho com a fralda recém-trocada. Enquantoisso, os clarinetes se harmonizavam em uma nota surpreendente, terna eintensa, para simbolizar a ligação entre a madona e o bebê, que se olhavamolho no olho, sacrossantos e eternos. Não havia dúvida de que aquela jovemsaudável, cheia do cálcio norte-americano, mataria para proteger seu bebê,tampouco de que seria recebida com aplausos de aprovação de sua espéciecaso o fizesse. Eu via o comercial sem parar, não conseguia me desligar dele.Sempre que ouvia as primeiras notas dos clarinetes, o medo descia em umadescarga que ia do meu couro cabeludo até as pontas dos dedos, e o bebêdentro de mim se transformava em uma coisa agourenta. Mas eu não mudavao canal. Era impelida a assistir, mesmo nos dias antes de conhecer DelilahSnow – apesar de ter compreendido por que somente depois que a conheci.

*

Duas horas antes de a lua atingir o zênite, eu estava sentada com uma pilhados diários de Jake na poltrona ao lado da janela do meu quarto, enrolada em

um cobertor, suando e tremendo e sendo casualmente trespassada eabandonada pela dor, me perguntando o quão pior dar à luz ainda poderiaser. Minha prima Janine disse que é como cagar um cocô duro como pedra dotamanho de um bebê, Lauren dissera. Imagine só. E poderia ser um bebêenorme. Eu dei uma checada. Em 1879, uma mulher teve um bebê que pesava12 quilos. Isso é como 12 sacos de arroz colados em um só volume... Quandocrianças, Lauren e eu amávamos nossas bonecas. Mas também arrancávamosseus braços e suas pernas, ou enfiávamos alfinetes nos olhos, fascinadas pelasensibilidade aprisionada delas, pela paralisia absoluta das bonecas diante danossa vontade. E quando ficávamos cansadas de torturá-las, voltávamos acuidar delas como se os abusos jamais tivessem ocorrido.

Wulf ajustou sua posição, espremeu minha espinha, partiu meus cotovelospor um instante. Meus dentes rangeram, depois pararam. Peguei um dosdiários de Jake da pilha ao meu lado.

Enquanto isso, Bloomingdale’s e Desperate Housewives e o Natal e ogoverno seguiam adiante, foi o que li.

Ela seguia em frente por conta própria, em uma fusãoextraordinária. Eu percebia em seus ombros tensos, no rostovermelho e no cuidado com o qual aplicava a maquiagem. Aquiloferia meu coração, a coragem não recompensada daquilo, o grauparticular da determinação dela em não ceder apesar de tudo. Meucoração doía (oh, o coração estava desperto agora, o coração estavaapontado em riste para cima) por ela precisar ser fortecompletamente sozinha.

Mas ela jamais acreditou que estivesse completamente sozinha. Erasuficientemente romântica para supor que não poderia estar.

E não estava.Agora está.

Eu tinha todos os diários. Seis semanas após a morte de Jake meu pai metelefonara para dizer que havia uma carta marcada como particularendereçada para mim no restaurante. (Meu pai. As mentiras necessárias.Obviamente, eu não podia ficar ao lado dele. Qualquer um próximo a mimcorria perigo. Portanto, eu disse a ele que retornaria aos estudos na UCLApara terminar o mestrado. Suavizei a notícia atribuindo a ele a tarefa deencontrar um terceiro restaurante, do qual ele seria o único responsável. Mase o dinheiro, Lu, por Deus do céu, de onde vem o dinheiro? Dois amigos dePalm Springs estão querendo investir. O quê, aqueles dois caras gays? Não,não eles. Você não os conhece, estudaram comigo na faculdade... E daí emdiante uma ficção em eterna expansão lutando para encobrir a verdade insanaque, do contrário, o mataria: Nikolai, sua filha é um lobisomem. Cabelo,garras, presas, todo aquele lance dos filmes B. Doze vítimas. Você não quersaber. A pequena Lula, cujas fraldas você trocou e que lhe dava um dosprazeres mais puros ao observar seu rosto absorto ouvindo Fatos sobre osplanetas ou Contos da Grécia Antiga. Oh, sim, e ela tem um pãozinho noforno. O pai da criança também era um lobisomem, mas está morto. Ele adeixou rica, veja bem. É daí que a grana está vindo...) A carta, a qual envieiCloquet para pegar, era de Miles Porter, presidente do Banco PrivadoInternacional Coralton-Verne, na esquina da Quinta Avenida com a 45. Jakedeixara instruções: se, após uma certa data, o banco não recebesse outrasinstruções, o senhor Porter deveria me contatar. Eu estaria autorizada aacessar a caixa no cofre do banco guardada no nome de Jake. Eu tinha onúmero da linha direta de Porter e, como instruída por Jake, “deveriatelefonar quando tivesse o código de segurança de seis dígitos”.

O qual eu não tinha. O qual eu não tinha a menor pista de como obter.Um artifício dos vampiros? Uma armadilha da WOCOP? Durante nossa

primeira semana juntos em Manhattan, Jake havia me dito que tomaraprovidências além dos 20 milhões, mas o assunto era tão mórbido que jamaisentramos em detalhes. Agora, ele tinha partido e eu não sabia o que fazer.

Telefonei para Miles Porter e disse a ele que estava viajando (na verdade,eu estava em Cold Spring, em um pequeno hotel, caro demais e

excessivamente decorado com madeira, uma vez que abandonei meuapartamento), mas que gostaria de entrar em contato quando retornasse àcidade. Depois, contratei um detetive particular para me assegurar de que“Miles Porter” era quem dizia ser. A identidade foi confirmada. Infelizmente,aquilo não garantia nada. A WOCOP usava civis e os vampiros usavamfamiliares. De todo modo, eu não tinha o código de seis dígitos.

Uma semana se passou. Telefonei para o inquilino do meu antigoapartamento para ver se havia recados ou correspondência ainda nãoreencaminhados. Nada. Então, Alison Ambidestra telefonou. A livraria de St.Mark’s telefonara para o restaurante. Minha cópia de Heart of Darknessaguardava a coleta. Procure por Stevie.

Eu não havia encomendado nenhum livro.Heart of Darkness.Marlowe.Jake.Conrad, não Chandler. Um esnobe literário até o fim. Retornei

sorrateiramente a Manhattan usando uma peruca loura e óculos de armaçãovermelha. Stevie era um rapaz rechonchudo, com cabelo descolorido, rosáceae um olhar que, qualquer que fosse o seu tipo de babaquice, ele já tinha vistoaquilo mil vezes antes. Usava uma camiseta do Pearl Jam e um piercingbranco no nariz que inicialmente confundi com uma espinha enorme. Ocliente pagou por isso há cinco meses e disse para telefonarmos para você nadata especificada. Ou seja, ontem. Não deixou nome, mas disse que vocêsaberia.

Páginas três, oito, catorze e setenta com os contos dobrados e dígitoscirculados. 3, 8, 1, 4, 7, 0.

Um grande risco, mas eu o assumi.Sozinha em uma das salas seguras do banco, abri a caixa de metal.

Cinquenta e três diários, tomados pela minúscula caligrafia em itálico de Jake.Pequenos Moleskines pretos para os anos recentes; retrocedendo um pouco,encadernamentos de pele de bezerro ou de tecido, meia dúzia deles com ascapas rachadas e presos com elásticos ou barbante, dois ou três deformados

pela água e salpicados de mofo. Algumas entradas datadas, outras não.Longos períodos – décadas, às vezes –, nos quais ele desistiu totalmente deescrever.

Havia um envelope lacrado colocado ali de forma a ser a primeira coisaque eu visse ao abrir a caixa. Nele estava escrito:

Para o caso de não termos tido tempo suficiente.Amo você.Jake.Dentro havia instruções sobre como acessar seis contas bancárias na Suíça,

todas protegidas por códigos de segurança, mais uma lista com meia dúzia denomes, telefones e serviços, nomeada “Pessoas em quem você pode confiar”.Não reconheci nenhuma.

Para o caso de não termos tido tempo suficiente.Amo você.Jake.Até aquele momento eu estivera na fase do luto em que se sorri feito uma

idiota: eu veria Jake de novo e riríamos junto de tudo aquilo. Agora, derepente, estava acabado. Me sentei no chão da cabine como se meu peitoestivesse partido. A vida tolerava semanas, meses, anos da nossa negação –depois, saía desse estágio em apenas um instante e voltava-se contra você comdesdém: sua burra de merda. Ele se foi. Você nunca mais vai vê-lo. Você achaque há uma recompensa por não chorar? Acha que segurando essa tristezapor tempo suficiente a morte ficará tocada e o trará de volta à vida? Acorda,minha filha. Último lobisomem ou não, ele era mais um pedaço de papel acaminho da fornalha – assim como você. Portanto, derrame as lágrimas,levante-se e pare de enganar a si própria ao achar que a morte – ou a vida,neste caso – dá a mínima.

Foi um momento detalhado de desolação, lá dentro, sob as lâmpadasfluorescentes, inalando o cheiro químico do carpete e o odor triste e velho doscadernos. Jake tornara a vida suportável. Jake se fora. Tire as conclusõesóbvias.

Toda vez que pensava: Certo, levante-se, sua estúpida, eu descobria que

não conseguia, e, em vez disso, fechava os olhos e colocava de novo os braçosao redor de mim mesma.

Eventualmente, acabei levantando. Eu precisava, ou me molharia ondeestava sentada. A biologia é indiferente aos nossos grandes momentos. Abiologia das grávidas, duplamente. Eu não tinha nada para carregar os diários.Precisei guardá-los de novo e retornar com uma mala com puxador parapegá-los. (Miles Porter, em seu terno prateado, reagiu a todas essas manobrascom um deleite quase incontido diante da sanidade das minhas ações.) Vocêpoderia pensar que eu me trancaria em algum lugar e leria tudocronologicamente, mas, de alguma maneira, eu não conseguia. Ir do início aofim confirmaria que eu tivera tudo dele que haveria para possuir. Em vezdisso, ao longo dos meses, fui lendo aleatoriamente. Era mais parecido comuma conversa. Mais parecido com tê-lo ao meu lado.

Fico pensando que deveria dar um pouco de sexo a Harley antes de partir,li.

Afinal de contas, já fiz sexo com homens. Duzentos anos, você chegalá, além de tudo mais que você chega a fazer. No final do séculoXIX, eu fizera o possível para me tornar completamente AC/DC(Oscar Wilde estava no banco dos réus, portanto, minha viadagemadquiria credenciais políticas) e orgulho-me, como poucos homenspodem fazer, de ter dado o melhor de mim. Mas, na alvorada doséculo XX, fui forçado a reconhecer, tendo um ânus nobrementeelástico como o meu, que possuía um ponto fraco permanente, ouseja, um ponto forte, pelas garotas...

Até o segundo trimestre transformar meu corpo em uma zona de guerra, sexofora o mesmo esquema de sempre. Um negócio sujo, de recompensas cadavez menores. Era impossível discutir com a libido da Maldição (de verdade,não dava para discutir), mas na maioria das vezes era como beber quando jánão se pode ficar mais bêbado do que já está. Fiquei enojada das manchas de

gozo e do cheiro sem amor de camisinhas e cortinas fechadas à tarde, desujeitos que não sabiam o que dizer ou não conseguiam calar a boca. Opronunciamento de Tia Theresa me cutucava como um cão que não entendiaque eu não era mais sua dona. Mesmo sendo fruto da era pós-moralista, eume sentia uma vadia e miserável boa parte do tempo, visitada ocasionalmente– rosto contorcido no travesseiro, bunda no ar, boca engolindo as palavras mecome... me come... me come... – por uma visão de meu pai com seus olhos decorça (nunca minha mãe) de pé no canto, balançando a cabeça em tristedescrença. Presumivelmente como uma substituição da imagem dele de pébalançando a cabeça em triste descrença quando eu arrancasse os rins dealguém e os engolisse como vol-au-vents. Não demorou muito até que eucomeçasse a recorrer a acompanhantes, que ao menos não esperavam papo-furado e iam embora quando eu mandava; mas mesmo aquilo não eraobjetivo. Por um lado, eu não tinha a mesma habilidade que Jake para ficarexcitada com alguém que eu achasse idiota. Por outro, a perversidademasculina que costumava me deixar culpadamente molhada perdia seu podererótico quando eu imaginava aqueles homens me encontrando na minhaoutra forma. Era difícil levar a sério a arrogância-porque-tenho-um-pau deum cara quando você sabia o quanto poderia reduzi-lo a um bebê chorãoquando chegasse a próxima lua cheia. Além do medo do que o excesso desexo poderia causar ao meu bebê, tudo isso significava que eu acabava memasturbando. Muito. O bastante para uma comédia de humor negro, se issonão me deixasse tão solitária e miserável. Pelo menos, dizia para mim mesma,quando conseguia dragar esse humor rascante, eu não corria nenhum perigode me apaixonar.

Jake nunca dormiu com Harley, assim como agora eu sabia que nãodormiria com Cloquet. Eu descobrira isso da maneira mais difícil, tomada,certa noite, pelo desejo da Maldição uma noite apenas cerca de duas semanasapós a morte de Jake. Cloquet tomava uma ducha e a porta do banheiroestava entreaberta. Passei por ela. Parei. Olhei. Ele estava de perfil, com aspalmas das mãos contra a parede do cubículo, cabeça baixa, olhos fechados,água batendo em suas costas. Alto, pele clara, corpo com músculos magros,

uma tatuagem que eu não conseguia decifrar no quadril esquerdo. O pau dele(circuncidado) não estava ereto, mas tampouco totalmente flácido. Wulfsorriu e lambeu os lábios. Me imaginei entrando, abrindo a porta do cubículo,o rosto dele, surpreso, o momento de nos enxergarmos mutuamente, minhamão procurando em meio ao vapor e ele subindo, subindo para mim...

Não.Verboten.Eu soube intuitivamente, e como aqueles eram os dias antes de Delilah

Snow, interpretei como sendo a prova de um esquema das coisas delobisomem, um catecismo não dito. Um lobisomem não deverá desfrutar derelações carnais com seu familiar. O laço precisava ser desigual, talvez exigisseespecificamente um não correspondido...

Justamente naquele momento Cloquet levantou o olhar e me viu.Não falamos nada. Ele não se virou ou tentou se esconder, mas eu soube

pelo seu olhar – parte tristeza pelo que estava morto nele, parte alívio porestar livre daquilo – que, Mandamentos de lobisomem ou não, ele não seriameu amante. Alguém havia matado ou fraturado o homem sexual dentrodele, embora não tenha atingido, eu sabia, a necessidade de se submeter a algoque considerasse maior do que ele próprio. (Inclusive, eu sabia quem era esse“alguém”: Jacqueline Delon, uma garota endiabrada, bilionária ocultista efemme fatale que não parava diante de nada para obter o que desejava. O queela desejava era imortalidade. Do tipo não metafórico. Ela queria viver parasempre e jamais aparentar estar um dia mais velha. Para atingir tal objetivo,ela havia capturado [e levado para a cama] Jake Marlowe, com a ideia deentregá-lo, e seu sangue resistente, à luz solar aos vampiros, recebendo emtroca o tipo de vida eterna deles. Cloquet fora seu amante desequilibrado. Elesabia que a perderia se Jacqueline conseguisse o que queria. Portanto, Cloquettentara matar Jake. Duas vezes, com resultados ridículos. Ele não precisava terse dado o trabalho. O acordo de Jacqueline com os vamps nunca seconcretizou. No meio da transação em seu retiro em Biarritz, a WOCOP, queestava monitorando os procedimentos, lançou um ataque. O corpo deMadame foi visto pela última vez sendo usado como escudo humano por um

de seus sócios não vivos. Depois disso, Cloquet parou de tentar matar Jake ecomeçou a tentar matar o homem responsável pela morte de Jacqueline, ocaçador de lobisomens da WOCOP, Eric Grainer. A vida é geralmentesimples, Jake escreveu, mas, ocasionalmente, ela tem esse tesão pelas tramas.Ela conecta coisas, nefastamente, pelas suas costas e, antes que você se dê conta,está no ato final de um filme ruim. Geralmente um filme de terror ruim...Cloquet conseguiu matar Grainer – mas não antes que Grainer matasse Jake.Em uma noite de lua cheia, cinco meses atrás, em uma floresta no País deGales, onde, depois que a carnificina, a morte, a vingança e a perdaterminaram seu trabalho conosco, ofereci minha mão a ele...)

Virei as costas para a porta do banheiro e fui embora, constrangida.Telefonei para uma agência de acompanhantes e selecionei um cara querecebia clientes em um local próprio. Peguei um táxi e fui até o apartamento(estávamos em São Francisco na época) e tive duas horas de sexo profissionaldeprimentemente muscular e eficiente, sans conversa. Na manhã seguinte, fuiao quarto de Cloquet. Ele estava vestido e de pé, ao lado da janela,aparentemente sem fazer nada, aparentemente esperando por mim. Eu disse:Sinto muito. Ele olhou para o chão e falou: Sou seu amigo. É uma coisa muitoboa na minha vida, ter um amigo. Então, ele levantou os olhos para mim e, derepente, pareceu ser o homem mais triste e delicado que eu já vira. Houve ummomento suspenso no qual ambos soubemos que aquela era uma chance denos separarmos tanto quanto de continuarmos, depois o constrangimento sedissolveu entre nós e sabíamos ter deixado para trás o que ocorrera. Eurespondi: Fico feliz por sermos amigos. Compreendo. Agora, vamos tomarcafé.

Depois disso, me organizei, aplicando à libido as mesmas práticasadministrativas que tinha aplicado aos restaurantes e delicatessens – até agravidez e a Fome iniciarem sua guerra e meu impulso sexual morrer, mesmodeixando o aviso de que não permaneceria morto para sempre.

Duzentos anos, você chega lá... Será que eu chegaria? Eu jamais fizera sexocom uma mulher, apesar da ideia funcionar com bastante frequência comofantasia. Mulheres juntas em filmes pornô também era algo que me excitava,

se bem que, em dias de desespero, duas águas vivas juntas teriam me excitado.(Eu sabia o que havia de errado com filmes pornô. Mas a parte de mim quesabia era mais fraca do que a parte que não se importava, desde que aquilofuncionasse. É claro que era deprimente – e responsável por criar a perguntacom a qual toda mulher do século XXI mais cedo ou mais tarde se deparava:Você quer colocar na boca algo que acaba de sair da sua bunda? No passado,quando eu poderia ter desejado a emoção barata do desdém de um cara ou aonda sombria provocada pela autodegradação, talvez; mas depois daMaldição descobri que desejava coisas diferentes... Quando a gente precisa semasturbar, é difícil adotar uma visão a longo prazo. Ainda mais difícil quandoa visão a longo prazo em questão era de quatrocentos anos.) Talvez eu játivesse dormido com outra mulher se a onipresente coerção masculina nãotivesse tirado meu interesse. (Richard, meu ex-marido, transformou isso emuma arte monótona, supostamente mitigada pelo que ele considerava ser umahonestidade glamorosamente brutal: Não quero que você queira fazer isso,por Deus. Quero que você chupe outra mulher apesar de não querer. MeuDeus, onde está a graça para mim se você quiser? Achei que todo mundosoubesse disso.) Jake teria acrescentado sua parte, se tivesse vivido. Ele erawulf, mas suficientemente wer de modo que muito em breve estaria tramandoum fodermatarcomer com duas garotas e um cara se o fato de eu ser o únicolicantropo feminino do mundo não tornasse tal ideia impossível.

Fodermatarcomer.Eu não gosto apenas, havia confessado a Jake. Não gosto apenas. Eu amo.

(E a mão dele entre as minhas pernas me recompensou. Tínhamos trocadohorrores como se fossem votos de casamento. O amor e uma naturezacompartilhada poderiam tornar bela qualquer feiura. Deixando restos quandoseu amante estivesse morto.) Aquela era a verdade inconveniente: matar edevorar uma vítima era muito (pausa) muito (pausa) gostoso. E matar edevorar uma vítima com alguém que você amava? Era parecido com o que osviciados em heroína diziam da droga: se Deus criou algo melhor, Ele guardoupara Si. A memória do assassinato com Jake no Big Sur borbulhava de modogrudento ao redor de tudo mais na minha cabeça, caramelizando meu

cérebro. Tinha sido um êxtase. Esta era a palavra: êxtase. Você não se esquecedo êxtase. Especialmente quando sabe que jamais o terá outra vez. Mesmoque eu recuperasse o apetite, não seria a mesma coisa. A Maldição insistia quenão havia um caminho solitário para o paraíso. Era necessário um parceiro nocrime. Melhor ter amado e perdido do que jamais ter amado. É mesmo? Nãoparecia assim encarando quatro séculos sem jamais drenar o imundo Graalnovamente. Minha mãe me disse certa vez que pensava que o inferno nãoseria nada mais do que um vislumbre de Deus – e depois ter essa imagemremovida de si para sempre.

Tal pensamento me levou de volta à pergunta que eu me proibira de fazere que não conseguia parar de perguntar, e que eu estivera perguntando desdeos primeiros dias após a morte de Jake: Será que eu não poderia criar umcompanheiro para mim?

Lobisomens não se reproduzem sexualmente, o diário dissera:

Garotas uivantes não possuem óvulos, a porra dos garotos queuivam é inócua. Se você não teve filhos antes de se transformar, nãoterá nenhum, acostume-se com isso. A reprodução licantrópicaocorre através da infecção: sobreviva à mordida e a Maldição serásua.

Mas eis a questão, a velha notícia, a manchete amarelada:ninguém mais sobrevive à mordida.

Graças a um vírus. Para o qual a WOCOP encontrara uma cura. Uma curaque injetaram em mim na noite em que fui mordida. (A organização sofrerauma crise interna: com os lobisomens à margem da extinção, a Caçadapraticamente havia cancelado o próprio salário; os caras fizeram tão bem opróprio trabalho que acabaram ficando sem trabalho. Certos membrostinham se dado conta disso e decidiram aumentar novamente o número demonstros. A Organização Mundial para o Controle de Fenômenos Ocultosviu-se diante de uma descendência insurgente, a Organização Mundial para a

Criação de Fenômenos Ocultos. Os ideólogos e membros da tradição antigaficaram horrorizados e reagiram atacando violentamente a facção rebelde. Sóque, nesse ínterim, eu fora atingida por um dardo – acidentalmente –, com oque acabou provando ser uma versão eficaz do antivírus. Fui mordida, nãomorri, me transformei.) Então, se alguma das minhas vítimas sobrevivesse,também não se tornaria lobisomem, à moda antiga? Teoricamente, era tãosimples quanto encontrar um cara de quem eu gostasse e depois levá-lo paraum passeio ao luar naquele período do mês. Se você for à floresta hoje...Exceto, é claro, pelo pequeno empecilho dos sentimentos dele em relação amim mudarem quando ele se desse conta de que, em toda lua cheia, precisariase transformar em um monstro, rasgar pessoas em pedacinhos e comê-las. Seique você me odeia por ter feito isto com você, mas confie em mim, quando tiverexperimentado fodermatarcomer, ficará feliz por eu ter feito... Não é um bomcomeço para uma relação. Mas qual era a alternativa? Minha libido estavamorta, mas a ressurreição era apenas uma questão de tempo. Era impossívelenganar a mim mesma dizendo que suportaria, pelos próximos anos, ser –segundo os padrões de lobisomem – efetivamente celibatária.

Isso não será o problema, Lulu, imaginei minha mãe dizendo. O problemaserá encontrar um homem digno de Transformar...

Naquele momento eu estava tremendo que não conseguia manter o diárioestável. Deixei-o de lado e me arrastei até a cama, mãos inchadas, corpotomado de cãibras. Memórias aleatórias explodiam: deitada com o rosto nasacada do Brooklyn observando uma abelha bebericando uma poça de Pepsiderramada; minha mãe gargalhando em algum papo de adultos; minhaprimeira menstruação, aquele gotejar quente como uma grande lágrima, mascoloquei meus dedos lá, havia sangue, e a senhora Herschel dizendo de umamaneira misteriosa e fraternal “agora você é uma jovem lady, Talulla”, o queapenas me fez pensar em lady Diana e no sinistro e orelhudo príncipeCharles.

– Está na hora – disse Cloquet da porta.– Eu sei.– Faremos como decidimos?

– Sim.Como decidimos. Não tínhamos decidido nada. Tínhamos feito

observações hipotéticas. Ao ar livre seria mais fácil de lidar com a questão.Não devemos esquecer que temos sedativos. Seria melhor se eu saísse primeiro.Por trás disso havia especificidades triviais: Cloquet daria um sedativo a ela.Eu iria para a floresta. Ele a levaria para fora e a amarraria. Eu sairia daescuridão e tomaria a vida dela, rapidamente. Ou tão rapidamente quanto afome permitisse.

Ao pensar nisto, wulf me fez um pedido em forma de coice que quase mejogou para fora da cama.

– É melhor você ir – eu disse. Meu relógio marcava quatro e quarenta edois. A lua nasceria às cinco e onze da tarde. Vinte e nove minutos. Será queKaitlyn estaria acordada? Que tipo de vida ela estaria deixando para trás?Ninguém que dá a mínima para mim tem dinheiro. O jeans com cheiroazedo, o esmalte da unha descascado e a tentativa de não ver o desdém que oscaras sentiam por ela mesmo enquanto seguravam sua cabeça e diziam: Oh,sim, querida, isso mesmo, desse jeito. Ainda dava para dizer que logo abaixoda superfície o que havia era desdém – mas a fome me interrompeu ao trazerum lampejo do diafragma dela perfurado e a carne branca e macia abrindo-secom uma obediência impotente (a palavra “esfolar” insinuou-se, apesar de eunem sequer ter certeza de saber o que ela significava) e eu não consegui maisficar deitada, me levantei e cambaleei com os joelhos fracos até o andar debaixo, onde eu e Cloquet não conseguimos propriamente olhar um nos olhosdo outro.

– Você está bem? – perguntou ele.Eu estava de pé na porta, minha carne pesada com a essência sórdida das

minhas necessidades. Minha antiga voz interior ocasionalmente aindaobjetava: Você não pode fazer isso. É a pior coisa do mundo. Você precisaparar. A voz antiga era uma máquina que não reconhecia a própriaobsolescência. Porque, enquanto ela continuava, a nova voz, eloquente, nãodizia nada, sabendo que não era necessário, sabendo que a discussão já estavavencida. E, de todo modo, aquela não era a pior coisa do mundo, matar

Kaitlyn. Eu sabia qual era realmente a pior coisa do mundo. Sabia desde anoite em que conheci Delilah Snow.

– Estou bem – respondi. Ele deixara cobertores para mim no sofá, paraque eu tivesse algo entre mim e o frio quando me despisse. Os aspectospráticos, como a biologia, persistiam.

– Vou descer agora – falou ele. Delicadamente. Para meu benefício. Paraque eu fosse gentil comigo mesma e não me importasse com o assassinato.

Quando me transformo, faço isso rapidamente. A lua traga o o-que-quer-que-seja da Terra, coisa essa que passa por mim com uma impaciência louca esinuosa. Visualizo isso como uma descarga elétrica, entrando pelas solas dospés e disparando para cima em detonações histéricas, que dão choques nosossos e explodem os neurônios. A mágica é vermelho-escuro, violenta,comprimida. Tenho lampejos aleatórios de memória mundana – empurrandoum carrinho de compras no Met Foods; abrindo a janela do meuapartamento; parada de pé em uma plataforma do metrô; dizendo paraalguém Não, nada de carboidratos à noite – intercalados por imagens dasmortes: um corpo de homem branco no chão manchado de óleo de umarmazém; um trailer solitário com um lampião queimando; uma coxafeminina liberando um arco escuro de sangue; minha mão em forma de garrapegando um coração ainda quente. Este é o truque mais legal da Maldição:um tipo de memória não destrói o outro. Ainda é você. Ainda é inteiramentevocê. Você não imaginaria ter sido feito para suportar tais opostos, mas foi.Você poderia pensar que o sistema entraria em pane, mas ele não entra.

Enquanto isso, o espetáculo de aberrações da biologia. Os pulmões seexpandem, ameaçam explodir contra as costelas sem nunca o fazer. A espinhase alonga em três, quatro, cinco espasmos, e as garras saem todas de uma vez,como filmes acelerados de brotos desabrochando. Sou retorcida, rasgada,sacudida, sufocada – depois, graças a um subterfúgio invisível, lançada até umpoder absurdo. Um erro muscular e esquelético corrigido em uma pulsação

ardilosa. Um calcanhar pousa no chão. Um último canino despontarapidamente. Uma escápula salta com um estalo. A mulher é um lobisomem.

E ela está faminta.

Parei de pé, transformada (mandíbulas abertas, língua grossa como um braçode bebê, respiração elevando-se em sinal de uma vida temerosa), meia dúziade árvores além da margem da entrada para carros. Momentos antes eu nãohavia desejado isso. Agora, não queria outra coisa. É sempre o mesmo: vocêesquece que a Maldição é uma troca, ela rouba sua voz e sua piedade, mas lheretribui com o pulsar surdo do planeta e sua própria parte nele. Sombraslilases na neve, as árvores bem harmonizadas, a lua feito uma hóstia e ocoração da vítima feito uma canção chamando você para casa.

Kaitlyn não me veria aguardando aqui. Ela não me veria até o últimomomento, mas em todos os momentos antes do último momento ela saberiao que não queria saber: o pior havia lhe acontecido. O pior era uma coisasimples, uma coisa antiga, uma coisa comum – e aqui estava ele. Elaprocuraria por Deus, anjos da guarda, uma intervenção milagrosa – e nãoencontraria nada. Somente as árvores e a neve e a lua – nada viria delas,tampouco. Ela obteria o universo real, uma única vez, antes do fim.

Os dois emergiram pela porta da frente, Kaitlyn sedada, Cloquetesforçando-se para mantê-la de pé. Ele a vestira com roupas quentes, gorro,luvas, casaco de lã. Gentileza automática. Ou, então, ele não queria que o frioreduzisse o efeito do sedativo. Alguns passos além do Cherokee o joelhoesquerdo de Kaitlyn cedeu e ela caiu, com o corpo fora de prumo. Pude verCloquet refletindo sobre a hipótese de levantá-la ao estilo dos bombeiros,sobre o esforço que seria necessário para carregá-la toda a distância até asárvores. Ele conformou-se com desalgemá-la e colocar um braço de Kaitlynsobre seu ombro, passando o outro braço em torno da cintura dela, a cabeçada garota balançando. Enquanto avançavam com esforço em minha direção,pensei: Parece um cara com a namorada bêbada.

Uma voz com um sotaque estranho disse:

– Vinte mil anos, você pensaria que já viu de tudo.Dei um pulo. Estava bem atrás de mim (como assim, merda?), mas quando

me virei, não havia ninguém.Durante um momento fiquei imóvel, a respiração úmida e quente ao redor

do meu focinho.Então, minha bolsa rompeu.

6

Como acontece com todas as coisas temidas, quando ocorreu pareceuinevitável.

É claro que eu soubera que era uma possibilidade. Matemática simplesdeterminava uma chance em trinta de que o trabalho de parto coincidissecom uma lua cheia. Cloquet e eu havíamos nos preparado. Tínhamosmedicamentos indutores de parto: Pitocin, dinoprostona, misoprostol.Tínhamos (ou teríamos, se a encomenda não estivesse parada em Anchorage)meia dúzia de ganchos amnióticos – pequenos instrumentos parecidos comminúsculas agulhas plásticas de crochê, utilizados quando os medicamentosnão funcionavam para romper a membrana da bolsa amniótica –, embora aideia de precisar recorrer a eles aterrorizasse nós dois. O plano era aguardaraté a 36ª ou 37ª semana e, depois, tomar uma decisão: induzir e correr o riscoda prematuridade ou aguardar e correr o risco de ter que dar à luz... destejeito. Eu recusara me preparar para uma prematuridade radical.Prematuridade radical simplesmente significaria – no antigo universo, ondecoisas significavam coisas – que o bebê não sobreviveria.

Bem, agora, descobriríamos.Depois de expulsar a voz fantasma, baixei os olhos para a poça fumegante

que meus líquidos fizeram na neve. A passagem do plugue de muco do cérvix éconhecida como o aviso. É um sinal de que o trabalho de parto está prestes acomeçar, mas costuma passar despercebido por muitas mulheres. Muitasmulheres e uma lobisomem idiota. A bolsa amniótica rompe pouco antes ouem qualquer ponto durante o primeiro estágio do trabalho de parto. O primeiro

estágio do parto dura, em média, entre seis e 12 horas. O segundo estágio dotrab – gritei. Ou melhor, gani. Todas as vezes que você ouviu mulheresfalarem sobre essa dor, ela permaneceu um mistério. Até que, um dia, essador chega a você. A sua versão. A única que importa. Pensei em minha tiaVera contando à minha mãe sobre o trabalho de parto de trinta horas peloqual ela passara ao dar à luz meu primo Andy: Ficavam me mandandorespirar ofegante feito um cachorro, mas não fazia a menor diferença.Perguntei para aquele médico idiota por que ele não tentava miar como umgato... Nos westerns, havia homens andando de um lado para o outro do ladode fora, tentando entrar e sendo expulsos por uma simples empregadarepentinamente tomada por uma autoridade oculta, ou por uma avó amargaque todos imaginavam odiar a parturiente, mas que, no final das contas, aamava e traz ao mundo o bebê. Havia esse borrão, essa confusão mental,imagens de pessoas rasgando lençóis e colocando água para ferver, gritosfemininos e uma mulher suada e de quadris largos no vídeo de EducaçãoSexual, Lauren sussurrando: Se seu filho for grande demais, sua boceta rasga eeles precisam costurar você. Isso reescreve o contrato, eu tinha lido em algumlugar. Você não é mais o centro. Aquela coisa sai de você e arrasta metade dasua alma atrás de si como um lençol.

Outra dor me trespassou, um efeito parecido com o repentino trovãoestilhaçante de um caça de combate no céu. Ficavam me mandando respirarofegante feito um cachorro. Como um cachorro. Ha ha...

Um momento de cegueira, o mundo balançou para cima. Descobri quecaíra de joelhos e curvei o corpo para a frente, afundando os cotovelos naneve. Minha cabeça estava gigante e instável, pesada demais para meupescoço. Arrastei-me para o luar, aguardando um alívio, mas não houve nada.Apenas outra contração, que me dobrou o corpo, lábios contorcidos, punhoscerrados. Pensei no cuidado com o qual Poulsom me tratara na prisão branca,nas toalhas da Harrods e no banheiro luminoso. À sua própria maneira, elecontribuíra, caso a criança sobrevivesse. Eu queria a minha mãe. O fantasmadela, a voz dela em minha cabeça, qualquer coisa dela para que eu não

passasse por aquilo sozinha. Qualquer coisa para que ela pudesse me dizerque tudo estaria bem e porque, sendo ela, eu acreditaria.

Mas não havia nada. É claro que não havia nada.Fiquei de pé e avancei com dificuldade, com as coxas molhadas, até a

entrada para carros.Cloquet percebeu imediatamente que algo estava errado, e quase

simultaneamente o quê estava errado. Ele largou Kaitlyn (que desabou nochão) e veio na minha direção, mas acenei para que não se aproximasse.(Acenando, gesticulando, fazendo mímicas. Não havia momentos muitopiores para perder o poder da fala.) Ele parou, sofreu um momento deparalisia, boquiaberto, braços levemente afastados das laterais do corpo,depois deu meia-volta, agarrou a mão de Kaitlyn, puxou-a até que estivesse depé e praticamente a arrastou de volta para dentro da casa. Quando termineide me arrastar pela soleira da porta, ele havia algemado a garota,semiconsciente, ao cano da cisterna no banheiro do andar de baixo.

– Merde... merde... merde... – disse ele, neutramente, como se as emoçõessob a palavra tivessem desaparecido. Seu rosto estava pálido e não apenasúmido, mas sim molhado. – Oh, mon ange, mon ange... – disse ele, ainda semsentimentos discerníveis. – Jesus. Caralho. Merde.

Tive força suficiente para voltar ao sofá, mas sabia que aquilo seria o fimdas minhas pernas durante algum tempo. Cloquet, agora que havia chegado ahora, congelou. Através da dor pude ver que, confrontado com o fato central– você precisa dar à luz um bebê lobisomem –, ele era capaz de todo tipo decoisa: desmaiar; pegar um snowmobile e fugir; cortar a minha cabeça;procurar auxílio médico; sentar-se e fumar um cigarro.

Ele não precisava ter se preocupado. Eu não queria a presença dele. Nãosomente porque na ausência de qualquer conhecimento real (apesar do livroConhecimentos essenciais de obstetrícia e ginecologia em sua mesa decabeceira) não havia nada que ele pudesse fazer, mas porque eu não podiaabrir mão da consciência que a presença dele exigiria. O que estavaacontecendo comigo exigiria toda ela, todo o ser, tudo o que quer que fosseque eu tivesse. O que ainda não seria suficiente.

Uma contração veio, e um último impulso desafiador de fome colidiu decabeça contra ela. Um momento de equilíbrio – uma lufada do cheiro salgadode Kaitlyn, grogue; até Cloquet arriscou brevemente uma pancada com a mãoem garra –, e depois o apetite se foi, arrancado na tempestade solar de outracontração. Fui deixada com a única prioridade, a paranoia da ideia fixa egritante do útero: Tire esta maldita coisa de dentro de mim.

7

Findei debaixo da mesa de jantar, apesar de não saber dizer como cheguei ali.Sua cadela procurará um lugar coberto ou escondido para a ninhada. Pode serque ela ignore a caixa para filhotes, por mais confortável que você a tenha feito,mas isso é normal. Deixe-a seguir as próprias inclinações. Uma grande vaiapois wulf estava eliminando qualquer ilusão de dignidade que sua metadehumana pudesse ter. Em algum lugar entre reprises de Friends em hotéis eElles incrivelmente folheadas, eu acessara saudecanina.com, cujo tomalternava entre o pseudoclínico e o irritantemente rural. Mamãe NÃO vai lheagradecer por luzes brilhantes e multidões em seu grande dia, por mais que ascrianças (e os adultos!) possam querer assistir. Conceda um pouco dePRIVACIDADE à pequena dama. Eu visitara o site em um momento deautorridicularização, e não devo ter perdido mais do que dois minutospassando os olhos pelo conteúdo, mas acabara o absorvendo. Mecanismonatural dos licantropos ou uma concessão subconsciente à probabilidade deuma em trinta de precisar de tal informação. E agora me encontrava ali,precisando dela.

Empurre. Não empurre. Respire. Respiração curta. Empurre. Respire. Nãoempurre. Segundo os Conhecimentos Essenciais, havia uma técnica, ummétodo. Eu poderia tê-la memorizado algum dia, mas não me lembravaagora. O que me vinha no momento era a sensação de estar lentamente sendorompida – a começar pelas pernas – ao meio. (Além da irritação por nemsequer existir um método. E quanto aos milhões de mulheres que tiverambebês sem que lhes dissessem quando empurrar e encurtar a respiração? Isso é

tudo besteira, Lauren tinha sussurrado na aula de Educação Sexual. Mulheresna Amazônia simplesmente vão para a selva e dão à luz sozinhas. Elas cavamum buraco, preenchem ele com folhas e se acocoram sobre ele. Elas não têmganchos, nem enemas e tampouco malditos médicos conversando sobre golfe.)Nenhuma posição era suportável por muito tempo. Eu precisava permanecerem movimento: de quatro; de lado; de costas; acocorada. As contraçõesesvaziavam minha mente de tudo, do modo que Deus deve ter se sentidoantes da criação, quando havia apenas Ele, sozinho, sem os anjos e até mesmosem o Tempo passando. Entre as contrações havia o terrível fato da minhafinitude, a forma e o tamanho exatos do corpo que de alguma maneiraprecisava acomodar tudo aquilo. Mamãe NÃO vai lhe agradecer por luzesfortes. Isso revelou-se verdade. O teto do abrigo tinha spots de luz angulososnas vigas expostas e, por algum motivo, Cloquet (mais mímicas fizeram-nosair da casa, de onde ele poderia ter seguido até a Disneyland, pelo que meimportava) havia deixado todos acesos. Nos momentos em que eu não eraDeus, tinha consciência deles me dando dor de cabeça. Minhas garrasarranhavam o chão de carvalho. O sangue murmurava e pulsava em meucrânio. Detalhes aleatórios vinham e iam com uma vividez sem sentido: opequeno logotipo de latão na porta da garagem; o atlas amarelo de estradasdos Estados Unidos e do Canadá de Cloquet; um pequeno urso de madeiraentalhada sobre a cornija; meu casaco da North Face em uma cadeira; umaúnica luva térmica vermelha pendendo para fora do bolso. A sala era feitouma coisa que sorria estupidamente diante do terror. Eram os vietnamitasque sorriam quando aterrorizados? Algum filme. Platoon ou Nascido paraMatar. Eu estava ciente do meu próprio silêncio forçado. Em certo momento,ouvi algo parecido com metal rangendo ritmadamente no banheiro ondeKaytlin estava amarrada, depois o silêncio retornou.

Não sei por quanto tempo durou. Empurrei quando meu corpo exigiu.Uma ou duas vezes tentei não fazê-lo. Não pude dizer qual efeito teve, excetome fazer sentir estar no limite do que poderia suportar. Lembro-me de tercolocado a mão entre as pernas para tentar sentir o quanto estava dilatada(pensando vagamente: dez centímetros para humanos – o dobro?), mas não

consegui avaliar, e meus dedos saíram molhados de sangue. De todo modo, oque importava aquilo, visto que eu já começara a empurrar? Pensei: Certo,acabou. Você vai morrer. Ela morreu de parto. Apropriadamente vitoriano,para Jake. Então a realidade da morte me atingiu – morte aqui, neste instante,morte real – e tudo que eu tinha além da dor era medo. Vestígios do medo doDemônio e do inferno irromperam rapidamente através do medo maior. Ummedo atualizado de cair através do nada gelado, escuro e silencioso como umpoço de elevador vazio entre dois universos – para sempre.

Mas você não morreu. Esta era a traição do sofrimento. Ele te leva até oponto no qual você pensaria que a morte deveria vir em seguida, depois tedeixa saber que poderia mantê-la ali, indefinidamente. Isso acontece quandovocê deixa de temer a morte e começa a desejá-la, a rezar por ela, a implorarpor ela. Eu sabia como aquilo funcionava. Bem feito para você. Monstro.Assassina. Futura mãe.

Deitei-me de lado, mandíbulas trincadas em torno de uma das pernas damesa. Minhas coxas estavam grudentas de sangue. Durante os estágios finaisdo parto, as contrações uterinas são muito fortes e, geralmente, dolorosas. Acabeça do bebê faz pressão contra a base pélvica, o que faz com que a mãe sintaum impulso incontrolável de empurrar para baixo. No intervalo antes dacontração final ouvi Kaytlin se debatendo no banheiro. Então aquela foi aúltima contração, e com uma sensação aguda de ser fatiada e um som como ode uma luva de borracha sendo retirada da mão, o bebê, em uma massaacetinada de tripas, deslizou para fora de mim.

Naquele momento, Cloquet estilhaçou a janela e passou voando pela sala.

8

Eles estavam aqui.Todos os cálculos, evasões, disfarces e rechecagens agora tinham sido em

vão, e não havia tempo e nenhuma força. Comecei a me perguntar comotinham me encontrado, mas não importava como. Apenas que tinhamconseguido. Eu estava me virando para ver o bebê quando o primeiro vampirosaltou pela janela quebrada. Vislumbrei cabelos grisalhos bem curtos e umrosto pequeno e bonito antes de ele se virar para levar quatro tiros de Cloquetno ombro, praticamente sem estremecer. Havia uma inexplicável pressãosufocante nos meus braços e no peito, apesar das pernas parecerem sem peso.A porta da frente se abriu. Ar frio que deveria ser gélido como uma facainvadiu a sala, mas, em vez disso, estava repleto com o fedor-de-bosta-de-porco-e-carne-podre dos Não Mortos.

Apesar disso, era urgente simplesmente ver o bebê, verificar sua existência,confirmar que estava respirando. Com um esforço embrutecido de umelefante, estiquei as mãos para baixo e o levantei para junto de mim.

Era um menino. Seus olhos estavam fechados, e ele estava coberto demuco e sangue. Lambi seu focinho, rapidamente, desobstruindo o narizmacio. Ele tossiu e aconchegou-se mais perto de mim. Eu sabia que eraapenas um momento, mas ele estava pateticamente intacto, como uma pétaladentro de um peso de papel, minha perplexidade diante das mãos e péshíbridos em miniatura, o pequeno pênis e a macia pelugem dourada e preta.Ele abriu os olhos. Eram escuros, como os meus, como os de Jake. Pensei:Você anda por aí com isso dentro de si e nada a prepara para a concretude

absurda do fato: uma nova criatura está aqui de repente, desarranjando suaparcela de átomos. Coloquei a mão sob a cabeça dele e senti o bruxulear deuma consciência ali dentro. Ele piscou os olhos para mim, uma, duas vezes.

Quero – você não tem ideia do quanto – ser capaz de dizer que o amei,instantaneamente. Quero ser capaz de dizer que o milagre aconteceujustamente como deveria, que a vida dele assumiu prioridade imediata sobretudo. Quero lhe dizer que assim que o vi o paradigma mudou, que o acúmulode lixo que era o meu eu desmoronou, que o contrato foi reescrito, que elesaíra de mim arrastando metade da minha alma atrás de si como umcobertor, que eu agora era, com uma certeza molecular e antes de serqualquer outra coisa, Mãe.

A verdade é que eu me sentia neutra. Uma criatura viva saíra do meucorpo, mas aquilo era simplesmente um fato bizarro, apenas mais uma coisaque acabou acontecendo. Se eu quisesse, poderia quebrar seu pescoço derecém-nascido ou arrancar seu coração de recém-nascido. Ali estava ele,carne quente e sangue latejante, braços e pernas e cabeça, dentes e língua,mas, naqueles primeiros momentos puros, ele era simplesmente um objetovivo e estranho em minhas mãos, sem nenhuma relação comigo. Era feitouma palavra que de tantas vezes repetida perde o sentido e se torna puro som.

O legado de Delilah Snow.Tudo, desde quando eu a conhecera, estivera conduzindo a este momento.A mesa foi levantada e voou, girando no ar até colidir com o fogão. Dois

vampiros estavam de pé sobre mim. Uma perspectiva à la Henry Moore, ascabeças remotas. Um deles era (aparentemente) um rapaz com cabelo escurocacheado e um rosto prepotente de cílios longos, um jovem Bob Dylan. Ooutro era uma mulher magra, atraente, de olhos verdes, (parecia que) beiravaos 40, com cabelos ruivos cor de cobre e cortados como os de Hitler. Ambosusavam jeans pretos e casacos de couro fechados com zíper com um emblemavermelho de couro gravado na lapela esquerda – algo como um caracterecuneiforme, imaginei. – Ambos tinham uma faixa espessa de uma pastabranca sob as narinas – um bloqueador olfativo, se bem que, pela expressãoem seus rostos, não completamente eficaz. O cheiro deles me dava ânsias de

vômito. A ruiva estava incrivelmente excitada, em um nível que lhe atribuíaum brilho constante. Eu ouvia um helicóptero. O som trouxe uma sensaçãode estar exposta. Não sei por que, mas mal conseguia me mover. Minhaspernas estavam leves como fronhas. Um peso invisível repousava sobre meuabdome. Tentei me virar para proteger o bebê (se fosse um reflexo, então eraum reflexo trabalhoso, algo que eu vagamente sabia que deveria fazer), mas amulher me chutou com força na lateral da cabeça, e no tempo que levei paraabsorver o golpe o jovem enfiou um objeto grande e pontiagudo diretamenteatravés da minha garganta e cravou-o no chão, me prendendo. A dor melevou à margem da inconsciência, depois me trouxe de volta em um borrãonauseante. Levantei o braço esquerdo, pesado como um saco de areia, mas odescobri agarrado e preso pelo vampiro de cabelo grisalho. Sem o menor sinalde esforço no rosto elegante e civilizado, ele forçou o braço para baixo, pegouuma segunda estaca (não era de prata; alguém me queria viva durante tudoaquilo) e empalou minha mão indefesa. Comecei a sufocar.

VENHA PARA MIM. AGORA.Os três baixaram os olhos para mim. O jovem Bob Dylan sorriu. O

helicóptero estava próximo com seu som de urgência monótona. Lufadas dear gelado como a neve passavam sobre mim. Minhas pernas eraminsignificantes, duas tiras de chiffon. Tentei virar a cabeça para ver se Cloquetestava vivo, mas era impossível. As únicas duas certezas eram a minhaimpotência e o peso da cabeça ensanguentada do bebê na minha mão. Meucoração ainda não se movera. Ele era como um cavalo de corrida quepermanece parado na baia depois que todos os outros partiram: eu não sentianada por ele (exceto pela curiosidade), apesar de ele ter me olhado com umavigília tamanha e desnuda. Talvez o coração dele também estivesse suspenso?Havia aquilo entre nós, a intuição de que até o momento não havia nada emjogo. Nenhum amor perdido, como costumavam dizer. Havia tempo livrepara considerar tudo aquilo. O universo emocional encontrava espaço emuma fração de segundo para expansões elaboradas.

MAIS RÁPIDO.Pedindo permissão para a ruiva com um olhar, o jovem vampiro enfiou

um terceiro espeto de aço através da parte superior do meu braço direito, cujamão ainda segurava a cabeça do meu bebê. O metal atravessou o bíceps longoe peludo em um ângulo que o fez perder o úmero e repuxou um nó de nervos.A dor chiou estridente, como se alguém tropeçasse em um sino de vento.Sangue e oxigênio formavam espuma em torno do ferimento em minhagarganta, o que me lembrava um experimento de biologia que tínhamos feitona escola com bicarbonato de sódio. O qual, por sua vez, me fez lembrar deuma frase do diário de Jake: Eu perdi, pensei, propriedade mental. Minhaspernas flutuavam. Eu era uma inválida amarrada a um pilar em meio a um riode corrente rápida. A ruiva puxou uma faca militar da bota e cortou o cordãoumbilical. Ela era linda. Sua boca com batom movia-se levemente com aconcentração.

ISSO MESMO. MAIS RÁPIDO.– Pegue-o, Noah – disse ela.O jovem Bob Dylan, Noah, estendeu os braços para pegar o bebê – e o

bebê o mordeu.Noah recolheu a mão, ensanguentada.– Ai! – disse ele, meio que rindo. – Isso doeu pra cacete.– Estamos perdendo tempo – disse o vampiro de cabelo grisalho. – Me dê

as coisas.A mulher tinha uma mochila de couro.– Aqui – disse ela. – Vá em frente.Separadamente, havia uma leve raiva por eu ter realizado todo aquele

trabalho exaustivo de trazer o bebê em segurança para o mundo e agora aquiestavam eles, apagando-o. Separadamente, quero dizer, do desejo opressivode fechar meus olhos, virar a cabeça para o outro lado, permitir que olevassem. O que importava? Por que eu deveria me importar? Será que asmulheres estupradas sofriam aquela indiferença profana? Seriam algunsabusos tão extremos que tornavam mais fácil render o ego do que sustentá-lo?

– Atenção com a boca... – disse a ruiva. – Cuidado...“As coisas” eram um aguilhão de gado, uma vara com laçador e uma saca

de fibra de aço. Eles trabalhavam em equipe, e captei tudo em detalhes

nebulosos, os zapes secos do aguilhão, meus dedos forçados um a um paratrás, os espasmos e as esquivas do bebê, seus ganidos e rosnados agudosexpondo caninos brancos e uma língua rosada como um camarão, o cintilarde dois tons da saca de fibra de aço que me lembrava ternos zoot ou airidescência do óleo no chão da rua, o deleite de absorver aquilo, a peleperolada e o fedor latejante da ruiva. Ela não tinha nenhuma malíciadirecionada para mim. Apesar do frio que entrava no abrigo, eu me sentiaquente como um pão recém-assado. Observei minha cria ser erguida,sacudida, golpeada, ensacada, amarrada. A escuridão fechando-se sobre acabeça dele rompeu algo entre nós.

Por um instante, todo o som e movimento cessaram, como se alguémtivesse pressionado um botão de pausa na realidade.

Então a lamúria e o ruído cortante do helicóptero irromperam no silêncio– e tudo voltou rapidamente a se mover. A aeronave estava muito próxima doabrigo, levantando neve e assoprando ar congelante para o interior.

MATEM-NOS! MATEM-NOS AGORA!Houve uma saraivada de disparos de armas automáticas, praticamente

inaudível sob o barulho da hélice do helicóptero, e então o primeiro dos lobos– o preto da noite anterior – atravessou a porta.

A mordida e o talho do animal arrancaram um terço do rosto de Noah. Elecaiu de joelhos com um ganido em falsete e estremeceu violentamente, comose estivesse revoltado. Ao mesmo tempo, o vampiro grisalho, segurando asaca que continha meu filho, saltou diretamente para o alto e parou com ascostas contra o teto, o volume que se contorcia pressionado com firmeza nopeito. Um segundo lobo cinzento saltou sobre a ruiva. Ela ergueu o braçoesquerdo e as mandíbulas da criatura travaram-se ao redor dele, o ímpeto deseu movimento derrubando-a de costas sobre o fogão. Por um instante, elapareceu uma mulher em um bar resistindo a um bêbado insistente e com mauhálito. Depois, vi o detalhe das pequenas narinas circulares dela dilatando-se,como se estivéssemos em absoluto silêncio e, com uma espécie de deleite, elaperfurou repetidamente o animal na barriga com a faca que ainda seguravaapós cortar o cordão umbilical. Fez isso até que na sexta ou sétima perfuração

o grande corpo deslizou de cima dela para o chão, não como se estivessemorto, mas triunfantemente desmaiado. Mais três lobos entraram correndopela porta e um quarto apareceu na janela quebrada. O calor deles seexpandia através do ar congelante e penetrava em mim. Eu sentia a minhaforça de vontade em seus ombros, pernas traseiras e pescoços. Uma espécie dealegria frenética ia e voltava entre nós. O lobo preto dilacerou a garganta deNoah, que se debatia. Tiros foram disparados. O lobo na janela caiu com umganido. Meu útero contraiu-se. O vampiro grisalho recuava muito lentamenteno teto para apoiar os pés em uma viga. Dois lobos cinzentos saltaram etentaram mordê-lo por baixo, mas era óbvio que ele estava fora de alcance.Enquanto o vampiro olhava para eles, piscando os olhos, um tiro abriusilenciosamente um grande ferimento em sua têmpora direita sem qualquerefeito visível. Rastreei a origem do disparo: Cloquet, um braço inutilizado, ooutro segurando a Cobra, claramente sem forças para disparar outro projétil.Por um momento Cloquet franziu a testa, lutando para se arrastar àconsciência total, e depois, com um ar confuso e franzindo a testa como setivesse sido traído por algo, desmoronou. Um dos lobos cinzentos saltarasobre a ruiva em uma reprodução exata do movimento de seu irmão, excetoque, desta vez, as mandíbulas travaram-se em torno da mão que segurava afaca. A mão livre da vampira – anel de diamante, unhas pintadas àfrancesinha – tateou o cinto. Um lobo cor de torrada queimada juntou-se aoataque a Noah e, após um momento singular, intenso, de concentração, comose os animais estivessem enfrentando dificuldades para ficar parados parauma foto, a cabeça do vampiro foi arrancada de seus ombros com um ruídoúmido de trituração. Imediatamente, o sistema capilar do cadáver começou aescurecer, como se a morte tivesse apenas um pequeno intervalo para fazersua reivindicação.

Lá fora, o helicóptero baixou, e uma nuvem de neve invadiu a sala comoum turbilhão. Pensei em guerras de travesseiros na TV. Era o que garotas daTV faziam, de camisolas, de calcinhas, nos sonhos dos homens. Eu nuncaparticipara de uma guerra de travesseiros na minha vida. O lobo sobre a ruivacontorceu-se quando uma saraivada de balas atingiu suas costas, depois

deslizou para o chão com a língua para fora. Dois vampiros masculinos, altos,jovens e segurando metralhadoras estavam na porta, um voltado para dentrodo abrigo, o outro para fora, dando cobertura, disparando fogo. Eu sentialobos sendo baleados em grande número, uma leve tatuagem dos tiros nosmeus ossos. A ruiva, encharcada e manchada de sangue, correu até os amigosna porta. Lobos uivavam e ganiam, dando piruetas, sendo alvejados. Trêssaltaram para dentro pela janela e ficaram de guarda sobre mim. O aromarico e agradável deles embotava o cheiro dos vampiros. Olhei de novo para oteto. O grisalho, acocorado contra uma viga, me encarou por um instante, asaca agarrada com firmeza contra o peito, depois saltou e mergulhou para aporta, onde os outros três, como numa coreografia, abaixaram para deixá-losair sobre suas cabeças junto ao prisioneiro ensacado.

– Au revoir, Talulla – disse a ruiva. Depois, todos correram para ohelicóptero.

9

Nuvens vieram do sul e cobriram a lua. Lá fora, a escuridão e a neve tinhamum tom amarelado. Ar frio serpenteava pela porta escancarada e pela janelaquebrada, farfalhavam as páginas de Moll Flanders sobre a mesa. (Continuelendo, Lu, Jake tinha aconselhado. Literatura é o alter ego de mente aberta dahumanidade, com espaço no coração até mesmo para monstros, até mesmopara você. É humanidade sem o julgamento. Confie em mim, vai ajudar.) Noverso da capa, eu recordava, havia uma citação: “Moll é imoral, superficial,hipócrita, cruel, uma mulher má: ainda assim, Moll é maravilhosa.” Aquelaera o tipo de personagem que supostamente eu deveria ter me tornado.Aquela era o tipo de personagem na qual eu havia fracassado em me tornar.Não, pensei, enquanto dois dos meus lobos de guarda lutavam para agarrarfirme com os dentes o espeto de aço que atravessava minha mão direita,Talulla não é maravilhosa. Talulla é inútil pra caralho. Continuava vendo oslobos puxarem meus dedos para trás, um a um. Continuava sentindo o pesoperceptível da criança sendo tirada de mim. Seguia tateando no vazio ondemeu horror ou minha fúria deveriam estar. Lembrei-me de ter lido umahistória sobre uma mulher cuja filha de 10 anos desaparece e eventualmente éencontrada morta, depois de ter sido estuprada e assassinada. Há ummomento no qual a polícia vai à casa da mãe para dizer que encontraram ocorpo, e ao mesmo tempo em que está ouvindo as palavras e compreendendoo que havia acontecido, está com os olhos fixos no chão da sala de estar, ondehá um guia de programação da TV com Monica e Chandler de Friends nacapa. Simultaneamente a Lamento muito ter que lhe informar, encontramos o

corpo de uma garota que corresponde à descrição havia um lance sobreMatthew Perry estar em uma clínica para viciados em sexo, as duas coisasestão na cabeça da mulher ao mesmo tempo e é uma comparação nojenta eaquilo deve significar que ela é má ou maluca.

Aquilo era eu. Eu era daquele jeito. Sempre fora. Aos 9 anos, eu tivera umcamundongo de estimação, mas não cuidei dele e ele morreu. Meu pai apenasdissera, muito tranquilamente: Estou tão triste por isso, Lulu. E meu coraçãose enchera de um ódio de mim mesma, imerso em pânico, ao ouvi-lo falaraquilo e ao ver que ele realmente estava triste. Mas também havia umaexcitação sensual por eu ter feito aquilo com ele – eu! Meu rosto tinha ficadoquente e macio, exatamente como quando me virei e vi Tia Theresa de pé noporão, minha calcinha estava ao redor dos meus tornozelos e ela dissera:Talulla Demetriou, você é uma garotinha suja, imunda.

Tinha esperado sentir um vazio no útero, como o espaço deixado por umcaroço removido de um abacate, mas a sensação nele era a de que o parto nãoocorrera. As dores (eu diria contrações, se o bebê já não estivesse do lado defora) significavam que havia algo errado. Algo diferente do vazio ondedeveria haver um amor instantâneo, algo diferente do meu coração morto,minha maternidade fracassada, meu terceiro devaneio recorrente.

Os animais começavam a se dar conta de que não conseguiriam agarrar osespetos. Observei seus longos dentes deslizando e roçando. O nervosismocomeçou a aumentar dentro deles, meu nervosismo. Virei a cabeça para ooutro lado. Cloquet permanecia inconsciente, talvez morto, até onde eu sabia.

A única maneira de soltar minha mão era deslizá-la para cima ao longo dahaste do espeto até que ela saísse pela outra extremidade, como um naco decarne de um kebab. Um metro, mais ou menos. O que me fez pensar o quantoo tempo deveria ter se arrastado para Cristo na cruz, uma cauda de cavalozunindo, um centurião afrouxando seu capacete de couro, um garotodesenhando com um graveto na terra. Assim era o mundo: uma continuidadeinocente e vívida, não importava o que se passasse.

Meus lobos se deitaram ao meu redor. Agora, havia uma dúzia deles nasala, e outros chegando. Mais do que tudo, eu desejava apenas ser capaz de

me virar de lado e ficar em posição fetal. Trinquei as mandíbulas e comecei aforçar a mão para cima ao longo do espeto, lentamente no começo, e depoismais rápido, quando a escala de dor aumentava, para acabar logo com aquilo.Três segundos com um círculo branco de tão quente na palma da mão –depois, ela estava livre. Os primeiros momentos com o sangue transbordandoforam piores do que a empalação, mas, com um nojo repentino da figura queeu havia cortado – indefesa, pernas abertas, engasgando –, me forcei asuportar aquilo, agarrei o espeto cravado na garganta e o removi com umpuxão. Meu braço esquerdo permanecia preso ao chão, mas tive a alegria deser capaz de me virar sobre essa mesma lateral do corpo e dobrar um poucoos joelhos, até onde minha barriga ainda grande permitia. O sangue que saírado pescoço formava uma poça como um balão de fala de revistas emquadrinhos. Cloquet tossiu e gemeu, depois se calou novamente.

Desmaiei.Quando despertei, a porta estava fechada e havia pelo menos vinte lobos

deitados em um círculo ao meu redor. O calor deles me aquecia, mas eradesperdiçado aqui e ali pelo ar que entrava pela janela quebrada. Puxei aúltima estaca e sangue fresco escorreu pela ferida. Depois, veio outracontração – e, com ela, compreendi que a razão pela qual eu sentia como seainda estivesse em trabalho de parto era porque eu ainda estava em trabalhode parto.

10

Meu filho, cujo nome eu perdera o direito de lhe dar, nasceu cercado porviolência e morte. Sua irmã gêmea, a quem dei o nome de Zoë, nasceucercada pelo calor dos lobos.

Adormeci depois de dar à luz. Apesar da convicção de que os vampirosretornariam, afundei na escuridão, e a escuridão fechou-se sobre mim. Foimaravilhoso me render. A última coisa da qual me lembro foi limpar ofocinho dela com lambidas, deitando-me de lado e segurando-a próxima aomeu peito. Disto e de três dos lobos arrastando o corpo e a cabeça do vampiropara a neve lá fora.

*

Difícil dizer quanto tempo fiquei apagada. Talvez minutos, ou horas. De todomodo, a luz do dia estava fraca quando acordei. Em forma humana.

Com uma bebê humana nos braços.Eu dormira durante a transformação.Pensei no quanto precisaria estar exausta para aquilo, no quão vulnerável

estaria se...Espere. Ela também: ela se transformara de volta. Nenhum sinal de

trauma. Estava desperta, calma, piscando os olhos escuros em seu rostomanchado de sangue.

Então, imediatamente, ali estava.

O que eles tinham feito.Como um estupro cuidadoso.E eu simplesmente havia permitido.Eu vira uma notícia alguns anos atrás. Um grupo de mães dos conjuntos

habitacionais em Nova Jersey que foram acusadas de agredir um vizinhoquando descobriram que ele estava no cadastro de infrações sexuais amenores. Uma delas ficava repetindo: Se você precisar matar para protegerseus filhos, então você mata. Você não tem nenhum direito de se chamar demãe se não é capaz de matar para proteger seus filhos. Você nem mesmo temo direito de ter filhos se não é capaz de matar para protegê-los. O bando demulheres em torno dela estava hipnotizado e com rostos cheios de espírito dejustiça. Você não é mãe de jeito nenhum se não é capaz de matar por seusfilhos.

Permaneci deitada, imóvel. A renovação molecular coçava nos meusferimentos. Meu casaco cobria parcialmente a mim e ao bebê. Um lobocinzento estava deitado pressionando seu corpo quente e macio contra asminhas costas. Outro estava deitado perto, na minha frente, mantendo o bebêacomodado. A sala pulsava com a consciência da matilha, com o calor doscorpos deles e o não silêncio da neve caindo. Todos os cadáveres dos animaistinham sido removidos, e a porta da frente do abrigo fora empurrada e estavafechada. Paz retornara ao meu útero, o que, por um instante, me fez sentirpequena, com pena de mim mesma, e grata.

Mas ali estava de novo, como um reflexo. O que eles tinham feito. E eusimplesmente havia permitido.

Documentários sobre animais amam se deter sobre o horror de mães querejeitaram as crias. A ovelha que pasta roboticamente surda aos berros docordeiro trêmulo. Agora eu me juntara ao clube. Assim como acontece comtoda autodescoberta pavorosa, veio uma excitação – e uma sensação de déjà-vu. E como acontece com toda autodescoberta pavorosa, não havia nada afazer exceto aceitá-la, como quando a cabeleireira segura um espelho e lhemostra a parte de trás da sua cabeça.

Quando me movia para aliviar o formigamento na perna esquerda, senti

algo molhado e carnudo entre as coxas. A placenta é expelida em cinco a 15minutos após a saída do feto. Duas placentas, neste caso. O cordão umbilicalde Zoë ainda a prendia à placenta dela – pânico novamente –, até que melembrei de ter lido que não importava: caso nada fosse feito, o cordão sesoltava naturalmente. Eram os médicos que tinham pressa para cortar eamarrar tudo, com partidas de tênis e garotas de programa esperando. Não háterminações nervosas no umbilicus, portanto, tampouco a mãe ou o bebêsentem o corte. Ainda assim, o pensamento de mim mesma cortando-o medava uma pontada. Eu, que despedaçava pessoas e as devorava. Bem feito...

Cloquet tossiu, e percebi que aquele fora o som que me despertara. Virei-me para vê-lo sentado no chão com as costas contra o sofá, segurando umaatadura improvisada, que pressionava um ferimento no ombro esquerdo. Eleestava pálido, desgrenhado e cheio de manchas de sangue. Suas mãos e seurosto tinham grandes cortes, originados quando ele atravessara a janela. Umcorte profundo acompanhando a linha da sobrancelha precisava levar pontos.O cabelo dele estava ensebado. Além de outros ferimentos no corpo, eu sabiaque seu couro cabeludo devia estar doendo. Havia tais pensamentos, maseram pequenos detalhes contra a consciência pulsante e contínua do que elestinham feito e que eu simplesmente havia permitido.

– O quanto você está ferido? – perguntei.– A bala me atravessou. Você? – Ele evitava olhar para mim porque,

apesar do casaco, muito de mim estava exposto, e ele continuavaestranhamente delicado quanto a tudo aquilo.

– Estou bem – eu disse. – Eles o pegaram.– Eu sei. Sinto muito.Eles o pegaram. Ter de volta a linguagem tornava o ocorrido uma coisa

precisa, feia e real. De repente, existia esse espaço que fora fatiado de mim, oburaco deixado pela semente removida do abacate, chocante, cru, básico. Oespaço continha uma memória pungente do que acontecera nele, como ocheiro de pólvora após um disparo. Eu os vi cravando os espetos em mim,alavancando meus dedos para separá-los do corpo quente do bebê e oenfiando na saca. Vi a mim mesma presa ao chão e senti a massa escura do

helicóptero subindo, mais alta, para além, mais silenciosa, silêncio, foi-se.Reencenar aquilo mentalmente preencheu-me de antienergia, uma massaautorregenerativa de fraqueza. O espaço que fora fatiado não estava vazioafinal de contas. Estava cheio de fracasso.

Imaginei a mim mesma dizendo a Cloquet: Vou recuperá-lo. Vi o futurodizendo que me comprometeria a fazê-lo, todas as coisas que eu precisariafazer, a desprezada pilha de lixo de Jake, cheia de se e então, a certeza de queeu não o tomaria de volta, mas morreria tentando e deixaria minha filha órfã.Eu não deveria pensar nela. O irmão dela a deixara para trás, portanto, eujamais esqueceria o que permiti que fizessem com ele – e por que permiti.Novamente, me imaginei dizendo a Cloquet: Vou recuperá-lo. Eu sabia queera o que deveria dizer. Este cordeiro, a narração do documentário sobreanimais dizia, foi rejeitado pela mãe. Fraco e desprotegido, ele oferece um alvofácil para predadores à espreita para uma morte rápida. Pensei no quantodemoraria até que eu pudesse sentir prazer ao comprar um belo par desapatos, ou caminhar pela praia ao anoitecer, ou me sentar em um café comuma xícara de café e um cigarro, observando completos estranhos passarem.Provavelmente nunca. Entre outras coisas, eu o odiava por ter sido capturado.Eu poderia ter rido disso. Um tipo diferente de humor, não negro, mas com acor do nada.

Um lobo levantou-se, espreguiçou-se, bocejou. Pela terceira vez. Imagineia mim mesma dizendo a Cloquet: Vou recuperá-lo. Fazia os nervos em minhaboca perderem a força.

– Era ela – disse Cloquet com a voz rouca.– O quê?– A mulher. A vampira. Era Jacqueline Delon.Au revoir, Talulla. Ficara registrado que ela sabia meu nome. Bem, agora

eu sabia o dela. Jacqueline Delon. Jake havia comido ela, é claro (e, segundo odiário, fizera ela gozar, oralmente, como bem me lembrava), fato pelo qualmeu eu obsoleto ficava ressentido com ele, injustamente, pois eu sabia bematé demais como era estar sob a Maldição. Na última visão que Jake tiveradela, ela estava sendo usada como escudo humano por – ah, o pequeno

vampiro de cabelo grisalho e boa postura. Mas Jacqueline sobrevivera. E, dealguma maneira, tornara-se superior ao tal vampiro grisalho, se é que euinterpretara corretamente a dinâmica deles.

– Eu achei que ela estivesse morta – eu disse.– Moi aussi. – Ele fora apaixonado por ela. As ramificações disso eram

óbvias. Eu estava impressionada que ele tivesse sido capaz de me enganar. Eupoderia ter gargalhado outra vez.

– Calme toi – disse ele, lendo meus pensamentos. – Não fui eu. Não seicomo nos encontraram. Acha que traí você? Pergunte aos seus lobos! – Eledisse isso com um acesso louco, mas estava certo. Os animais saberiam sefosse falso. Eu podia sentir aquilo na corrente que circulava entre mim e eles.O poder sobre os caninos que Jake utilizara para levar suas jovens donas paraa cama. Eu sentia saudades dele, de sua voz dizendo meu nome, dos seusbraços em torno de mim. A parte mais burra de mim ainda esperava vê-lo embreve. Tudo aquilo ao mesmo tempo em que estava ciente do que haviaacontecido, feito um furo aberto na sala, na parede, na construção das coisas.E eu sabia que se olhasse dentro dele veria o nada, puro e negro, estendendo-se eternamente em total silêncio.

– Ahhh – disse Cloquet. – Dieu est miséricordieux. – Ele encontrara agarrafa não exatamente vazia de Jack Daniel’s de ontem ao lado do sofá.Tomou um gole, fechou os olhos, suspirou. Seus ombros relaxaram.

– Sinto muito – eu disse. – Sei que você a amava.Delicadeza. Vinda da extremidade do meu fracasso. Da paz de não poder

cair ainda mais. Tais relações amorais estavam disponíveis em todos oslugares. Ele tomou outro gole.

– O que estou sentindo – disse ele – é como quando seu corpo lhe diz quevocê o feriu com bebida ou cocaína demais ou qualquer outro veneno.Entende?

– Sim.– É tipo isso... mas na alma. Lamento pelo que permiti que ela fizesse com

a minha alma. Eu era nada. Eu era un drogué, um maldito junkie inútil.– Certo.

– Je suis libre.– Compreendo.Eu realmente compreendia. Ele substituíra Jacqueline por mim. Não

abandonara um vício, apenas tomava uma droga diferente. E eu nem sequerestava dormindo com ele. Talvez eu devesse dormir com ele, içar seu egosexual à terra dos vivos para selar a aliança, fodê-lo até que perdesse aconsciência e para o inferno com os protocolos de lobisomem. Era isso oumatá-lo. Eu precisaria matá-lo se não pudesse confiar nele. Enquanto isso, adistância ampliava-se no rastro do helicóptero. Já eram quilômetros.Centenas deles. Pensei em todas as coisas que os vampiros sabiam que eudesconhecia, todas as preparações que teriam feito, todos os poderes quetinham à disposição. A vantagem deles era risível. Era uma piada. Será que eunão poderia simplesmente esquecê-lo? Apostar na sorte com minha filha efugir? Conjurei meu primeiro devaneio recorrente, nós duas daqui a algunsanos em uma villa branca em Los Angeles – Brentwood, Marina del Rey ounas colinas de West Hollywood – com buganvílias e o jardim de cactos e apiscina turquesa, tranquilamente seguindo com nossa vida. Teríamos aulas detênis e passearíamos no shopping e daríamos festas ocasionais e de algumamaneira conseguiríamos matar e nos alimentar uma vez por mês sem quenada desse errado ou que ninguém descobrisse o que éramos. Eu amaria aspernas e os braços bronzeados dela, seu bom equilíbrio, as joias usadas comtimidez e a forma com que ela tomaria coragem para me fazer perguntasdifíceis.

Mas o primeiro devaneio recorrente apenas trazia o segundo, do pequenogaroto lobisomem em um uniforme escolar todo rasgado, coberto de sangue.

E o segundo trazia o terceiro. Com cumprimentos de Delilah Snow.Cloquet fechou os olhos esgotados. Até o instante em que abri a boca, eu

não sabia o que iria dizer.– Vou recuperá-lo – eu disse.Assim que falei, eu soube que era uma causa perdida. Saber que era uma

causa perdida foi um alívio. O alívio de descobrir, depois de toda sua correriae loucura para chegar ao portão de embarque, que perdeu seu voo, e agora há

apenas o peso e o calor do próprio corpo e o tempo estendendo-se diante devocê.

– Sim – disse Cloquet, abrindo os olhos. – É claro.– Se não quiser me ajudar contra ela, eu compreendo.Ele ficou olhando para o chão por alguns instantes, como que recebendo

algo do submundo. Por fim, piscou, tomou o último gole da garrafa, sorriu edepois, abruptamente, parou de sorrir. Olhou para mim.

– Ela está morta para mim – disse ele. – C’est tout.Com esforço consegui vestir o casaco e me coloquei em uma posição

sentada, a bebê aninhada na articulação do meu braço esquerdo. As placentasdeslizaram para o chão. Pareciam um par de bolsas repugnantes. (Eu haviame perguntado se teria vontade de comê-las. Animais comiam. Algunshumanos também, eu tinha lido. Eu não.) Meus ferimentos doíam, mastinham parado de sangrar. Em uma ou duas horas, mal haveria sinal deles.Vinte mil anos, você pensa que já viu tudo. Sangue nos tímpanos. Alucinaçãoaural. Wulf fodendo comigo. Uma das minhas vítimas falando enquantodorme. O que quer que fosse, encolhia-se perto do que havia adiante.Desconsiderei aquilo.

– Sei que está ferido – falei para Cloquet. – Mas acha que consegue ferverum pouco de água e esterilizar uma faca? Preciso cortar isto. Se abrir a porta,os lobos irão embora. Está tudo bem, eles não farão nada com você.

Os animais levantaram-se em massa quando falei. Cloquet levantou-secambaleante e os deixou sair. A maioria ficaria perto da casa. Algunspatrulhariam. O preto permaneceu comigo dentro da casa. Minha força devontade ainda estava um pouco sem controle em relação a ele, como osúltimos espasmos de eletricidade após um grande choque. Cloquet trabalhoucom extrema delicadeza, mas com eficiência, e parou um momento enquantoa chaleira fervia para entregar-me uma colcha do sofá. Ele tambémdesencavou o kit de primeiros socorros do abrigo, o qual eu nem sequer sabiaque existia. Luvas de látex, água oxigenada, iodo, ataduras, Band-Aids,suturas.

– Eu seguro – disse para ele. – Você corta.

Um momento de silêncio. As mãos dele, sangrando, tremiam. Seu hálitoestava carregado de uísque. Tive uma visão vívida dele cravando a tesoura nopeito minúsculo da bebê.

– Ai – disse ele, com a voz muito baixa. Mas o trabalho foi feito.– Obrigada – eu disse. – Você é bom em me ajudar.Ele fez um movimento tímido, abaixando a cabeça, e desviou o olhar,

constrangido. Então, de repente, eu soube que, se me deixasse levar, poderiachorar.

Jamais vi uma coisa selvagem com pena de si mesma.Portanto, engoli, engoli, engoli.

11

Pelo menos meia dúzia dos ferimentos de Cloquet – mais obviamente ospontos de entrada e saída da bala e o corte longo e profundo na testa –precisava ser sutura. Tudo que eu sabia é que é preciso limpar o máximopossível o ferimento, costurar para unir as duas metades e depois manter asutura coberta e estéril até que esteja curada. Dei a ele cinco miligramas demorfina. O efeito foi rápido.

– Está doendo?– Não. Vá em frente.Duas horas depois, eu havia feito o que fora capaz. Depois de lavar a bebê,

envolvê-la em um lençol e improvisar um berço de um cesto de roupas cheiode toalhas limpas, tomei um banho (tranquei-a na en suite comigo),inspecionei superficialmente meus próprios ferimentos, que ainda doíam, evesti roupas limpas. A perda de peso pós-parto era desorientadora. Sete,talvez 8 quilos. Meu útero pulsava espantado. Resíduos da Maldição davampontadas em meus ombros, minha bunda e meus pulsos, formigando ondemeus dentes encontravam as gengivas. A consciência coletiva dos loboscirculava através e em torno do abrigo como um circuito vivo. Eu podiaentrar e sair dela. Entrar proporcionava o consolo de uma consciência difusa:o sofrimento era distribuído, os limites do meu ser ficavam indefinidos. Umadiamento sem sentido. Mais cedo ou mais tarde eu precisaria retornar àsminhas próprias e desagradáveis dimensões.

Comecei a fazer as malas, mecanicamente, listando os fatos, tentando efracassando na elaboração de um primeiro movimento para transformar

aquilo em um problema que pudesse ser solucionado passo a passo: osvampiros queriam meu filho para o Projeto Helios, sim. Jacqueline Delon eraum deles, sim. Eu tinha poder sobre os lobos, sim. Cloquet era digno deconfiança, sim. Havia minha filha a ser levada em conta, sim, sim, sim – Edaí? Eu não sabia onde começar a procurar por ele. Essa era a grandeincógnita.

Havia também a grande obscenidade.Eu não sentira nada.Uma versão mais jovem de mim mesma, a garota de 20 e poucos anos (eu

a via: eu com mais maquiagem e menos conhecimento e algo que me faziapensar na palavra fora de moda: “ardor”), estava em algum lugar perto demim, partindo o próprio coração porque fracassara, porque seu eu futuro –eu – se revelara uma vagabunda sem coração que não amava os própriosfilhos. A mãe e o bebê do anúncio de fraldas saíram de seu transe de amorpara se virar e olhar para fora da tela, para mim. Serenamente mecondenando. Entre eles e as mães dos conjuntos habitacionais havia umpalpitante senso de justiça que eliminava as diferenças sociais. Você não temo direito. Você não tem o direito de ter filhos se não for capaz de matar poreles.

Cloquet bateu na porta aberta do quarto.– Sei onde podemos começar a procurar – disse ele.– O quê?– Há um sujeito em Londres. Vincent Merryn. Antiguidades. Ele cuida das

mercadorias europeias para Housani Mubarak. Jacqueline usava os serviçosdele. Merryn conhece os vampiros, é uma espécie de honoraire. Ele podesaber para onde o levaram.

Housani Mubarak? Eu já vira aquele nome... O diário de Jake. Comercianteegípcio de antiguidades roubadas. Não deve ser confundido com HosniMubarak, apesar de, provavelmente, ter a mesma influência... Alguém invadiuo depósito dele e roubou uma urna cheia de porcarias. Que não eramporcarias. O Livro de Quinn. Os homens que se tornaram lobos. A origem daespécie. Supostamente. Eu jamais ouvira a respeito de Vincent Merryn.

Jacqueline usava os serviços dele. Harley contara a Jake que o trabalho foraexecutado por alguém de dentro.

– Você conhece esse cara?– Encontrei com ele algumas vezes. Sei onde mora. Conheço a casa dele

em Londres, pelo menos. – Ele podia sentir a ideia perdendo força. Abaixou acabeça. – Merda – disse ele. – Não é muita coisa.

Muitas coisas se chocavam: imagens de Londres em minha última visita, oassassinato logo antes de conhecer Jake; o helicóptero dos vampiros cobrindoos quilômetros; a saca quente fechando-se sobre a pequena cabeça; eu a fizgozar, usando só a boca; aspectos práticos imediatos – passaportes,identidades, companhias aéreas, passagens; e, apesar de mim mesma, umaleve excitação ao pensar no Livro de Quinn, Os homens que se tornaram lobos,a possibilidade de respostas. Não se dê o trabalho de procurar pelo sentido detudo isso, Jake me dissera. Não há sentido.

– Você tem algum número de telefone de Merryn? – perguntei.– Oui.– Por que ele nos contaria qualquer coisa?– Porque vamos obrigá-lo. Você vai precisar telefonar para ele. Talvez ele

reconheça a minha voz.– Telefonar para ele e dizer o quê?– Pensaremos em alguma coisa. Você terá alguma coisa para vender.Fraco. Ambos sabíamos. Minha pele era feito um enxame de moscas

pousadas. O furo na construção de tudo aquilo estava naquela sala, naquelemomento, a janela para o nada puro e negro através do qual eu não ousavaolhar. Ela estaria em todos os cômodos nos quais eu me encontrasse a partirde agora até eu ter meu filho de volta. (Você? A voz de Tia Theresa dentro demim disse. Pegá-lo de volta? Uma garotinha suja, imunda como você, queapenas ficou aí deitada, deitada enquanto permitiu que o levassem? E agorasabemos por que, não sabemos? Sim, nós...)

– Vou guardar as coisas nas malas – disse Cloquet.– Eu faço isso. Você ainda está atordoado. Vá deitar.Ele concordou e seguiu para a escada, mas retornou alguns instantes

depois. Assim que vi o rosto dele, soube do que Cloquet se dera conta:havíamos nos esquecido, ambos, de Kaitlyn.

– Ela se foi – disse ele.– Como?– O cano estava solto. O chão está coberto de água. A culpa é minha.Ela viu a gente.– Vou procurar por ela – disse Cloquet. – Talvez ela nem tenha

conseguido chegar à estrada.Coloquei o último dos diários na mala e fechei o zíper. Havia parado de

nevar.– Esqueça – eu disse. – Não temos tempo. – Não que eu acreditasse que ela

houvesse chegado à estrada em segurança, e sim que, caso a encontrássemos,precisaríamos matá-la e, de uma forma ou de outra, eu não conseguiriaencarar fazer aquilo. Simplesmente não conseguiria. Eu jamais deveria terimaginado o quarto sombrio de Kaitlyn e a triste aceitação dos pedidos torpesque os caras faziam para ela. – Vá se deitar um pouco – eu disse. – Precisoalimentar a bebê antes de partirmos.

O que eu não queria fazer. Eu não admitira plenamente a existência dela.Mesmo durante o momento de intimidade apavorante ao lavá-la, eu amantivera apenas em um nível periférico de consciência, um truque deautoengano que me proporcionara o equivalente emocional de um incômodovisual. O que tampouco havia funcionado. Ali estava ela, pequena e limpa eabsurda no cesto plástico para roupas sujas, irradiando poder para recriar omundo. Cada humilde átomo glorificado, Jake escrevera sobre a vivificaçãoem Heathrow quando nos conhecêramos. Agora, aqui estava o céu cinza-claro e a cortina cor-de-rosa e as tábuas de carvalho no assoalho e o cheiro depoeira do cômodo e bolas de naftalina e velhas roupas de cama, todas essascoisas se perguntando por que eu não aceitava a beatificação que meofereciam.

Desabotoei minha camisa, tentei não sentir nada, depois levantei-acuidadosamente até meu seio.

A sensação física foi chocantemente literal, depois que a dura e pequena

boca de anêmona encontrou meu mamilo e fixou-se a ele: uma criatura vivasugando alimento de dentro do meu corpo. (Em Conhecimentos Essenciaisestava escrito que o leite propriamente dito poderia levar até três dias parasurgir; enquanto isso havia o colostro, a secreção pré-láctea repleta deanticorpos e, quem sabe licantrópicos extras.) Eu mergulhava e saía de umhorror suportável, como se um parasita de 3 quilos tivesse se prendido a mim,mas também entrava e saía da sensação de ter adentrado de forma sangrentaem uma herança. Todas aquelas Madonas com o Bebê; o Compêndio demitologia grega do meu pai mostrando o leite do seio de Hera jorrando paracriar a Via Láctea; ligação com todo animal fêmea que eu vira com uma criapuxando sua teta (a desanimadora palavra “teta”); Richard retornando deuma visita à irmã que acabara de ter um bebê e eu perguntando “E aí, comoela está?”. E ele respondendo “Feito uma porra de uma vaca”; a Polaroide daminha mãe me amamentando sob o bordo, e através da fotografia se podiasentir a excitação, o orgulho e o medo dela sendo absorvidos pelo meu pai,mãos segurando a câmera e o coração de homem batendo, o qual aindamantinha dentro de si o garotinho maravilhado e ciumento.

Enquanto isso, o bebê olhava fixamente para mim, como uma divindadesem emoções. Aquele era o traço divino, caso carregássemos um, uma lasca defragmento da infinita capacidade de Deus para a observação neutra. Ou assimparecia, enquanto ela me encarava – então ela piscava, com cílios longos, ouseu rosto se contorcia, e Deus desaparecia, deixando um bebê humano vazio,pouco mais do que o instinto de sugar tornado carne e osso. Havia o encantosobre o qual eu havia lido, o ritmo do conforto que ninava as glândulas, mashavia também repulsa, uma cascata de seios pornográficos e implantes desilicone malsucedidos, aquela vez na aula de biologia quando o senhorShaeffer disse que os seios eram para alimentar bebês e Lauren disse: “Escute,senhor, estes são meus peitos, o que significa que eu escolho para o queservem”, os seios pálidos de Jennifer Snow molhados de sangue e uma tristezaimparcial diante de tamanha crucificação por opostos que fora a história dafêmea humana até então. Seguida por uma autocomiseração barata, porqueeu – obviamente – nem sequer continuava sendo uma fêmea humana.

12

– O que faremos com o corpo do vampiro? – perguntei a Cloquet.A bebê, no cesto de roupas sujas, fora transferida para o sofá. Ela estava

gorgolejando baixinho, transbordando a divina energia recreativa que euprecisava seguir ignorando. Eu via uma imagem de Jacqueline Deloninserindo lentamente um arame no olho do meu filho. Havia dezenas deimagens similares entrando na fila, tremulando com detalhes.

– Rien – disse Cloquet. – Veja com seus próprios olhos.Abri a porta da frente e olhei para fora. Pelo menos uma dúzia de lobos

ocupava o jardim diante do abrigo. Eu sabia que havia mais ao redor da casa.Onde estava o corpo do jovem Bob Dylan havia um declive na neve, cobertocom um resíduo acinzentado e alguns filamentos enegrecidos do quepareciam tecidos intestinais. Dentro de mais uma hora não restaria nada.Fechei a porta. Wulf disparou uma dúzia de minúsculos fogos de artifícioremanescentes em minha espinha.

Cloquet não estava em condições de dirigir, portanto, assumi o volante,com a bebê no cesto de roupas entre nós e o lobo no assento traseiro. Mesmocom pneus especiais, foi um trajeto arrastado e cheio de desvios através dafloresta, mas chegamos à estrada sem incidentes. Tínhamos um carro reserva(além de uma mala cheia de perucas e óculos e bigodes falsos, precauçõesbásicas) em um estacionamento em Fairbanks. O plano era trocar de veículo epegar o primeiro voo que deixasse o Alasca.

Um plano com um grande problema: a bebê. Talvez conseguíssemoscolocá-la em um voo doméstico sem documentos de identidade, mas não em

um internacional. E, mesmo em um doméstico, acho que ela precisaria deuma certidão de nascimento. Uma dessas coisas ostensivamente simples queacabavam se tornando incrivelmente difíceis. Nada de médico, nada departeira, nada de tratamento pré-natal... Como, exatamente, eu poderiaprovar que ela era minha filha? Exame de DNA? Quanto tempo aquilolevaria? (E, imediatamente, pensando melhor: DNA? Não era uma opção.)Imaginei as perguntas razoáveis das autoridades: se eu sabia que teria umbebê, o que estava fazendo no meio do terreno selvagem do Alasca? Eu eralouca? Estava fugindo? Eu tinha uma ficha criminal? Perguntas razoáveis quese transformariam em suspeitas. Suspeitas que se tornariam investigação.Investigação que se tornaria, eventualmente, em horror.

Portanto, nada de burocracia. Meu falsificador ficava em Nova York. Onome dele fora o primeiro na lista de Jake de pessoas nas quais eu poderiaconfiar: Rudy Kovatch – DOCUMENTOS/IDENTIDADE. Eu sabia o númerodele de cor e vinha tentando obter sinal para o celular desde quando saímosdo abrigo. Até agora nada.

Depois de avançar 40 quilômetros na estrada, parei o carro. A estrada erademarcada em ambos os lados por florestas cobertas de neve macia. Umaavenida de céu acinzentado feito lá acima de nós. Nenhum tráfego. Cloquetolhou para mim aguardando uma explicação.

– É o limite do território dele – eu disse. – Ele precisa partir. Por mais queeu queira ficar com ele.

Abri a porta traseira para deixar o lobo sair. Novamente, o animal e eu maltrocamos um olhar. Não que não houvesse necessidade de agradecimento,mas agradecer não faria sentido. Eu estaria agradecendo a mim mesma.Enquanto ele se transforma de volta em um ser separado de mim, senti amudança com um leve pesar físico. Ele sacudiu os pelos, cheirou o solo e, emseguida, disparou com os ombros baixos para as sombras sob as árvores.Desapareceu.

13

– Não consigo comer mais nada – disse Cloquet.Estávamos no Grand Hotel em Anchorage, em um quarto no terceiro

andar e com vista para as luzes da estação ferroviária. Era pouco depois dameia-noite. O céu era de um azul da prússia com manchas escuras de nuvenssobre a grande e fria senciência da água ali perto, do Braço de Knik, a qual,conforme a luz sumia, tornava-se azul-prateada, indo ao cinza-ardósia edepois ao negro.

– Estou ficando enjoado – disse ele.Permanecer em Fairbanks seria procurar problemas, mas de todo modo o

pensamento de ficar sentada sem me mover e não fazer nada (os cientistas deJacqueline loucos para começar) era sufocante. Portanto, eu dirigira os 560quilômetros até Anchorage, parando somente para alimentar a bebê,enquanto Cloquet, sob o efeito da morfina, cochilava no assento traseiro. Euhavia passado a viagem em choque, o que tornara vívidos pedaços aleatóriosdo mundo: uma placa da Texaco; gado vermelho em um campo nevado; umcorvo quicando em quatro saltos para alçar voo; a roda gigante de umcaminhão que passava. Senti que toda a minha vida era um pequeno detalhe,como se o planeta já tivesse visto tanta coisa que agora acontecimentos comoaqueles simplesmente não eram sequer registrados. Somente guerras eterremotos ainda eram sonolentamente percebidos. Quando uma coisa quesignifica tudo para nós acontece, nos damos conta de que não significa nadapara todo o resto. Enquanto isso, continuei a sentir que versões mais jovensde mim que trazia por dentro estavam repletas de um misto de decepção e

fascínio diante daquilo que acabaram se tornando. Eu mesma. O adultomoderno, Jake escrevera, na verdade possui apenas uma única coisa a dizer àsua criança interior: Lamento muito, lamento pra caralho... E a mesma coisa adizer à sua criança biológica, também, pensei. Comprei fraldas descartáveis evaselina em um posto de gasolina. Dinheiro. Itens. Troco. Tenha um bom dia.Você também. Tudo aquilo ainda continuava. É claro que continuava.Kovatch telefonou. Ele poderia obter as certidões de nascimento de “ZoëDemetriou” e de sua meia dúzia de pseudônimos em 24 horas e enviá-las porcorreio expresso. Fax não era bom, eles pediriam os originais, ou melhor, oque presumiriam que fossem os originais. Em dois dias poderíamos voar paraLondres. O número que Cloquet tinha de Vincent Merryn era atendido poruma secretária eletrônica na V.M. Antiguidades e Belas-artes em Bloomsbury,uma entre a dúzia de representantes que formavam a fachada comercial deMerryn. Ensaiei meu recado – meu nome era Lauren Miller; eu possuíadiversos itens de valor considerável e negociaria apenas diretamente com osenhor Merryn – e deixei-o na secretária eletrônica. Uma inglesa de vozafetada, Althea Gordon, retornou a chamada quatro horas depois. Todos osvendedores em potencial encontravam-se com ela em primeira instância.Sujeitos à sua avaliação (na qual presumia-se que pudesse ser confirmado queo cliente não era um policial disfarçado ou um fanfarrão), um encontro com osenhor Merryn poderia então ser providenciado. O senhor Merryn estava emLondres? Eu estaria na cidade somente por 48 horas. Sim, o senhor Merrynestava em Londres, mas, ela precisava repetir, qualquer encontro estariasujeito a ela etc.

– Beba a água, pelo menos – disse para Cloquet. – Você precisa delíquidos.

Eu havia trocado os curativos e pedido comida para ele (salmão cozido,batatas fritas, sopa de tomate), já que ele não comia havia mais de 24 horas,mas ele mal tinha tocado na comida. Bizarramente, eu mesma começava asentir fome. Ou talvez nada bizarramente: eu não me alimentara. Era isso oque tinha acontecido? Perca uma refeição wulf e seu apetite humano retornaem um dia em vez de em uma semana? Experimentei um pedacinho de pão

amanteigado da bandeja. Não imediatamente. Por um momento após engolirpensei que fosse vomitar. Mas um registro mais profundo disse “Não,continue comendo para que o leite venha”. Dei outra mordida. Os dentesfantasmas do monstro se opuseram. Um silencioso ultraje de wulf vindo deoutra dimensão.

– Como ela está? – perguntou Cloquet.– Dormindo. É o que você também deveria fazer.– O enxoval dela melhorou.Mais cedo eu saíra com a bebê – com Zoë, mas usar o nome despertava

uma sensação de fraude nauseante – enrolada em lençóis e no meu casaco,para comprar itens essenciais. Agora ela já possuía roupas, mais fraldas, umcarrinho-berço e roupa de cama, um carregador e, sem o menor sentido, umpequeno e macio urso de pelúcia dourado. A loja de departamentos estavaquente, reluzente e cheirando a carpete industrial, e eu pensara no dinheiro àminha disposição, em todas as coisas que poderia dar a ela. E ao seu irmão.Quando o pegasse de volta. Exceto pelo fato de que cada célula do meu corposabia que eu não conseguiria tê-lo de volta. Não parava de me lembrar dele –depois sentia meu couro cabeludo contraindo-se porque, para lembrar, vocêprecisa ter esquecido, e como esquecer uma coisa dessas? Como aquilopoderia não estar dilacerando seu coração a cada segundo de cada minuto decada dia?

Total nojo de si próprio é uma espécie de paz, Jake escreveu.Total nojo de si próprio estava disponível, um sono no qual eu podia

entrar enquanto permanecia desperta. Só que a presença da bebê no quartoseguia perturbando-o.

– Você reservou os voos? – perguntou Cloquet, irritado.– Sim.– Eu gostaria de poder sonhar que estou voando. Eu costumava ter sonhos

assim o tempo todo quando era garoto.– Eu também – eu disse.– Você alguma vez sonhou que estava sonhando? – perguntou Cloquet.– O quê?

– Você sabe. No seu sonho... No seu sonho você está tendo um sonho.Sonhos são o univers parallèle mais próximo. Como o universo vizinho.Portanto, quando você sonha, na realidade está entrando no universo vizinho.Mas se você sonha que está sonhando, trata-se do universo ao lado douniverso vizinho...

Ele caiu no sono. A carne dele emanou seus odores: tabaco mofado, suorvelho, cabelo ensebado. Um resíduo dos esforços recentes de seu corpo orodeava como um rumor infrassônico. Preparei para mim uma xícara de caféinstantâneo e fui, sentindo-me levemente enjoada com o primeiro gole, olhara bebê.

Ela dormia com o rosto quente virado para a esquerda e as mãos fechadas.Até ter o seu, você simplesmente não conseguirá entender. Naturalmente, eutinha revirado os olhos diante da fascinação de novos pais com seus bebês. Euabominava o indefeso dar de ombros, a rendição imbecil. Bem, aqui estava eu,e aqui estava um bebê próprio, e aqui, tarde demais e vetada pela minhamaternidade deformada, estava a mesma fascinação horrorizada. Veja asunhas, os cílios, as narinas, a boca. Veja o cintilar obscuro e as luzes piscantesno futuro dela. Era obscena a cota de amor que um bebê era capaz de cobrarsomente por existir, somente por estar ali. Uma cota que eu não podiapreencher agora, muito tarde, tendo deixado de preencher na hora certa. Nãoqueria. Não deveria. Não ousaria.

Porque nada se compara a matar aquilo que se ama.É claro que não fora Cloquet quem nos vendera aos vampiros. Fui eu. Eles

vieram porque eu, obscuramente, os havia convocado. A tradição não diziaque um vampiro não podia entrar sem ser convidado? O primeiro espeto deaço atravessando minha garganta foi uma consumação a ser desejada comdevoção: melhor outra pessoa matando meu filho do que eu mesma.

Naquele exato momento, eu estava bem perto de entrar em colapso total.É impressionante o quanto se pode estar perto disso sem se dar conta de terseguido em tal direção. Está bem ali. Você pode ver a si própria como seatravés de um espelho de duas faces, destruída, libertada, sem contabilizar ocusto porque somente o ego conta, e o ego se foi. Você pode ver a si mesma

em um ambiente cheio de um caos caloroso e inofensivo no qual todosdeixaram de esperar qualquer coisa de você.

Todos, exceto seus filhos.Eu estava no chão, encolhida de lado, apesar de não me lembrar de ter

deitado. Não estava chorando, mas sabia que não conseguia me mover. Algoparecido com minha própria voz falando comigo sobre que fracasso nojentocompleto eu era. Mas eu tinha o silêncio – uma parcela do vasto silênciomatemático que eu descobrira na noite em que conheci Delilah Snow – paraabafá-la. Se ficasse deitada ali por tempo suficiente, conseguiria evocartambém uma parcela da escuridão impenetrável. Então não seria capaz de verou ouvir absolutamente nada. Mais tempo ainda e os outros sentidos tambémcessariam.

PARTE DOIS

O TERCEIRODEVANEIO

RECORRENTE

“Pensei neste instante que se podia atirar ou não atirar – e oresultado seria o mesmo.”

Albert Camus – O estrangeiro

14

Aconteceu no norte do estado de Nova York, sob uma lua cheia de agosto,quando eu estava no sexto mês, executando o que sabia que seria a últimamorte antes que a gravidez tornasse necessária a ajuda constante de Cloquet.A vítima era George Snow, advogado aposentado de 74 anos, viúvo, pai dequatro, avô de seis, bisavô de três, que morava sozinho com dois gatos,caminhava 5 quilômetros todos os dias, pescava, estava sempre em dia com osAcontecimentos, lia ocasionalmente um romance literário, comia uma dietacom pouca gordura e escutava jazz dos anos 1940 para si mesmo e JoniMitchell em memória da amada esposa. A casa da família era umapropriedade de seis quartos, elegantemente preservada, situada em quatroacres de campina gramada e florestas entre Spencertown ao sul e Red Rock aonorte, a pouco menos de 3,5 quilômetros da Floresta Estadual de Beebe Hill.Em cerca de cinco anos ela seria demais para George administrar, mas eletentava não pensar a respeito. Mesmo assim, quando reparava em umretângulo de sol no chão de carvalho no saguão ou no cheiro de lenha seca doalpendre dos fundos da casa ou na tranquilidade acarpetada do patamar dosegundo andar, seu coração doía, porque deixar o lugar seria um segundo lutobrutal, depois da perda de Elaine.

A logística do assassinato fora simples. O número 22 da Country Roadestendia-se diretamente pelo meio da floresta e havia uma coberturaexuberante que se estendia virtualmente por todo o percurso até a porta dafrente de George. Cloquet me deixara perto do local de transformação umahora antes do nascer da lua e viria me pegar no ponto de encontro marcado,

no lado leste da floresta, três horas mais tarde. De lá pegaríamos a estrada.Três horas era uma janela limitada – e haveria cinco horas de wulf engaioladocom a qual deveria lidar enquanto estivesse em trânsito –, mas minhapreferência para me afastar da cena do crime o máximo e mais rápidopossível aumentava cada vez mais. (As longas noites lunares provaram-secomplicadas. Era preciso pesar a dificuldade de permanecer escondida atévoltar à forma humana contra o risco de ser vista – com 3 metros de altura ecoberta de sangue – entrando na traseira de uma van. E mesmo que sejapossível colocar alguns quilômetros entre você e os restos da vítima ao optarnão ficar na cena esperando a lua se pôr, fazer isso também deixava vocêexposta aos riscos da estrada: problemas com o motor; um acidente; serparado por uma luz de freio defeituosa. “Certo, senhor, precisarei dar umaolhada no porta-malas do veículo...”) De todo modo, aquele era o plano e, deacordo com ele, logo após as nove da noite, entorpecida pela fome eapreciando a aproximação através da floresta enluarada, abri a porta traseira,abaixei minha cabeça gigante para a soleira da porta e entrei na casa.

É um deleite entrar sorrateiramente no lar de um estranho, sentir suaparalisia horrorizada, todos os objetos, ali indefesos com suas histórias, sendodespidos por seu olho desautorizado. Ali estava uma cozinha grande e limpaque, em seus átomos, murmurava coisas sobre ensolarados cafés da manhãem família, fartura dos Estados Unidos, disfuncionalidade administrável,amor. Mas aquilo fora há muito tempo. O cômodo sabia que seus dias deglória haviam terminado. Atravessei a cozinha e desci o corredor em silêncioaté o escritório.

A porta estava aberta. George, grisalho, trajando uma camisa de flanelaverde-clara e calças de veludo cinza, estava sentado em uma cadeira giratóriade couro atrás de uma escrivaninha de madeira de pinho, iluminado por umaluminária articulada, examinando alguns envelopes. As costas dele estavamvoltadas para a porta, para mim, para a morte. As de todos sempre estão.

Minhas mãos estavam grandes e pesadas e elétricas. Pensei em como todosos alarmes do corpo dele disparariam de uma só vez, o espetacular caosquímico. Ele estava apenas começando a perceber a mais leve alteração na luz,

o tremor periférico da minha sombra. O quarto imobilizou seus detalhes. Eleergueu a cabeça e tirou os óculos de leitura.

Disparei pelo cômodo e girei a cadeira para que ele ficasse de frente paramim.

Você quer que eles vejam você. Você quer porque o horror enche a carnecom tudo que ela irá perder. Memórias invadem as células, disparam parauma coerência final, como se soubessem que para a morte somente a vida emseu ápice servirá.

George não temia morrer, mas desfrutava estar vivo. As estações do anoainda tinham significado para ele; seu eu infantil permanecia presente quandoas folhas tremulavam ou estouravam os trovões. Ele amava a família,desesperadamente, desesperançosamente, aqueles pequeninos com os genesainda sendo coletados, inesgotavelmente. O cheiro de ar e pedra e matonaquelas crianças quando entravam em casa vindas da floresta era o cheiro davida. Ele ainda se permitia deixar envolver em dramas da HBO. Ainda tinhaamigos em Nova York. Ano passado tivera um caso de seis meses de darinveja a Philip Roth com a restaurateuse divorciada Amber Brouwer, umamulher 21 anos mais nova que ele. O primeiro sexo de verdade desde a mortede Elaine, quase quatro anos antes. (Nos perturbados primeiros meses deluto, quando tudo de feio havia parecido não apenas permitido, masobrigatório, houvera meia dúzia de noites desoladas com garotas de programaem hotéis em Manhattan, mas havia sido fogo de palha, uma inversão devalores que logo se esgotara.) Ambos sabiam, ele e Amber, que aquilo nãodaria em nada, mas também sabiam que por algum tempo aquilo nãoimportaria e, portanto, aproveitaram o máximo do que tiveram. As manhãsde domingo na cama dela (a profunda e moribunda formação episcopal deGeorge ainda emitindo vagamente uma culpa por não ir à missa, apesar denão ter frequentado a igreja praticamente durante toda a vida adulta) eramdemoradas, ricas e impressionantes. Ele havia se esquecido de como issopodia ser. A particularidade hipnótica do corpo de uma amante, a pele finasobre a clavícula, os rabiscos liláses das varizes na coxa, a maneirasurpreendentemente graciosa que as mãos dela se afinavam. Para George, o

mundo estremecera até ficar mais desperto naquelas primeiras semanas. Mas,eventualmente, a janela deles se fechara. Ele não se dera conta do quantoprecisava de uma mulher, fisicamente, até ela dizer que aquilo precisavaterminar. Agora, sentia-se outra vez totalmente solitário sexualmente.

E como eu sabia qualquer uma dessas coisas? Porque, depois de torcer acabeça dele para trás e abrir sua garganta (cordas vocais, retire as cordasvocais) com as unhas, atirei George no chão e cravei os dentes em seu ombro,trespassando nas duas primeiras mordidas as artérias carótida, subclaviana eaxilar, os músculos mastoides e o trapézio, dezenas de capilares e umamultidão de nervos que gritavam. A vida dele, esvaindo-se rapidamente,levou consigo todas essas coisas e incontáveis outras ao sair (para dentro demim), mas em um clarão entre todas elas havia: Ah!, meu Deus, Jenny fujaquerida saia...

Virei-me.Uma garota magrela, com cerca de 18 anos, vestindo calças de moletom

cor-de-rosa e um robe de banho branco estava recostada contra o flanco daescada, do lado oposto da porta aberta do escritório. Seus cabelos escurosestavam molhados do banho. O olhar em seu rosto era aquele com o qualvocê se habituava, o olhar de um esforço excessivo de revisão, o sistemahumano tentando encaixar a noção de algo que parece invalidar o própriosistema – da mesma maneira que todos pensavam que os computadores sesentiriam no momento do Bug do Milênio, à meia-noite de 1999.

Durante talvez dois segundos olhamos uma para a outra. Eu estavapensando que, não importava o que se fizesse para eliminar riscos, elesencontravam uma maneira. Cloquet e eu passáramos uma semanaobservando George, estabelecendo a rotina dele. Hoje, houvera somente umahora, no máximo duas, em que ele não estivera sob vigilância. Mas riscos nãoprecisam de horas. Riscos podem fazer maravilhas em cinco segundos.

Os olhos de Jenny estavam tomados por mim. Lobisomem. Real. Todoaquele tempo. Filmes de terror.

Um músculo tardio de wulf saltou em meu ombro, fazendo-me contorcer.Preparei meu quadril para o salto. Ela deu meia-volta e correu.

Não chegou longe, mas não é isso o que importa. O que importa é que suaprópria construção de imagens trazida pela corrente sanguínea – cheiro dedesinfetante de jardim de infância, a mãe dela deixando o granulado doce nacolher, o mundo verde de ponta-cabeça naquela vez que caiu da árvore, orosto de Chris enquanto gozava, a visão que ela tivera do próprio futuro –desintegrara-se em pedaços incertos que ela não conseguia unir, no momentoem que o marcador sobre o qual havia urinado tornara-se inequivocamenteazul. Absorvido junto com tudo isso como uma explosão repetida havia OBEBÊ O BEBÊ O BEBÊ e percebi (sangue saía do pescoço dela em jatosritmados como um mágico puxando lenços de seda) que ela não estivera,como eu havia pensado, correndo para a porta da frente. Ela tinha corridopara a escada.

Para o bebê.Meus dentes acabavam de se encontrar no meio do corpo dela. Por um

breve momento mantive-os ali, enquanto o pulso dela diminuía dentro domeu e vi tudo: a gravidez não planejada, o diploma universitário suspenso, afamília balançando coletivamente a cabeça, Vovô George ficando do lado dela(sempre que precisar dar uma escapada, querida, venha e fique o tempo quequiser), a dor do parto como nenhuma outra coisa que já tivesse sentido e aenfermeira dizendo “Você tem uma menininha” e erguendo-a toda coberta desangue e nojeiras e, apesar de ter passado meses sem a menor ideia de como achamaria, o nome Delilah surgindo de repente. E imediatamente ela soubera,sob as luzes quentes, como se a própria bebê tivesse dito a ela: Delilah JaneSnow.

Mas agora, ela pensou, enquanto as batidas de seu coração diminuíam sobas do meu, enquanto seu sangue ondulava sem força, e a escuridão cerrava-secomo água quente e negra sobre sua cabeça, um monstro... um monstro... issotudo é meu sangue, ah, meu Deus, é parecido com o sono a maneira... com queo sono... rouba... você...

O coração dela encolheu-se suavemente pela última vez – e parou. A casaestava em choque por causa do sangue nos tapetes e nas paredes, meu graffitiobscenamente básico. Rasguei a carne que tinha nas mandíbulas (oblíquos

externos e internos, transversus e rectus abdominis) e senti o espírito deladeslizar não exatamente em segredo para dentro de mim. Sempre há ummomento obscuro, quando a vida ingerida luta para encontrar seu lugar nanova prisão. Mastiguei, parando, excitada nas palmas das mãos, nas solas dospés, no ânus, no focinho. A intuição cintilando em meu clitóris.

Uma opção (não havia como negar que era uma questão de opções, deescolha, de livre-arbítrio) seria me alimentar com Jennifer e/ou George atéficar satisfeita, até literalmente não conseguir engolir mais uma mordidasequer. E depois? Deixar a bebê sozinha na casa? Levá-la comigo e mandarCloquet deixá-la nos degraus da igreja local? Telefonar para emergência?Obviamente, eu não podia falar, mas se a ligação permanecesse ativa portempo suficiente, enviariam uma viatura. Naquela altura, eu já teria partido.Ou deixá-la no vizinho mais próximo, a 800 metros descendo a estrada. Haviacobertura. Eu poderia deixá-la no alpendre, como nos filmes.

Outra mordida em Jennifer. Minhas unhas tinham perfurado seu seioesquerdo. Sangue e o odor comprimido de leite materno. Grande parte dewulf esforçava-se e agachava-se, ultrajada por ser reprimida a não mergulharde cabeça no banquete. Mas a parcela mais astuta de seu eu sorria, um efeitoparecido com o do prazer de fazer xixi em uma piscina, porque ele sabia, elesabia, ele sabia: aquelas eram apenas opções por causa da outra opção, aquelaque me via subindo a escada com a pulsação latejando e o apetite atiçado,rumo ao quarto cor-de-rosa que um dia pertencera à mãe de Jennifer e que setornara – sempre que ela precisava dar uma escapada – da própria Jennifer.

E de Delilah.

*

Meu terceiro devaneio recorrente era o de um lobisomem virando-se para verseu reflexo em um espelho desconhecido, um bebê lobisomem, morto,pendendo de suas mandíbulas.

*

Lobos não são conhecidos por devorar sua cria, me disse o Google todas asvezes que perguntei.

Não são conhecidos por devorar a cria. Não são conhecidos por devorar acria.

Lobos não são conhecidos por matar as coisas que amam.São lobisomens, querida.

*

Eu esperava por este momento desde quando descobri estar grávida. E agoraali estava, a última chance de Deus. Minha última chance. Deveria haveralgumas coisas que eu não seria capaz de fazer. Deveria haver algumas coisasque uma mãe não seria capaz de fazer. Um traje espacial de calor me envolvia.Minha cabeça era um calombo de fogo brando. Wulf sorria dentro de mim, oprofundo reconforto de que toda sorte de coisas terminaria bem. Eu memovia como que coreografada, hipnotizada pela visão das minhas coxaslongas, musculosas e peludas subindo e descendo para cada degrauascendido, no ritmo do latejar da nova vida lá em cima. Meu eu humanoestava em profundo encantamento na região dos rins, repetindo seu mantracomo um padre atordoado: Não vou fazer isso de verdade... não vou fazer issode verdade... enquanto minhas pernas subiam e fotografias emolduradas dafamília Snow passavam por mim, uma a uma testemunhando aquela coisaque eu não iria fazer de verdade, porque, se eu conseguisse resistir àquilo,então, com certeza, com certeza, quando fosse com meu próprio... Até queveio uma lufada de vapor do banheiro, toalhas molhadas, loção hidratante decoco, a pele jovem e molhada de Jeniffer como costumava ser apenas minutosantes, e depois o quarto em um tom claro de cor-de-rosa com o cheiro defraldas, talco e roupas lavadas e a coisa que eu não iria fazer de verdade.

Delilah Jane Snow. Dois meses de idade, quieta e desperta em seu berço. Ocabelo escuro de Jennifer (tão escuro quanto o meu, tão escuro quantocertamente seria o do meu bebê) e um rosto bonito, arredondado, comdetalhes bem-definidos que me fizeram pensar em Deus usando umaferramenta muito delicada de escultura. Ela era absurdamente única,envolvida em seus próprios esquemas, os quais exigiam socos, cruzados echutes ocasionais, como se uma mosca-varejeira invisível testasse suapaciência.

Eu não iria fazer aquilo de verdade, quando deslizei a mão sob ela elevantei-a do berço. Eu não iria fazer aquilo de verdade, quando a virei para ajanela, onde a lua cheia, em deleite, projetou a silhueta de sua cabeça felpuda.Eu não iria fazer aquilo de verdade, porque deveria haver algumas coisas queeu não seria capaz de fazer. Deveria haver algumas coisas que eu não seriacapaz de fazer.

Por um instante, foi fascinante tal pensamento, tão pequeno einsignificante quanto um nadador solitário em um paredão de água de umtsunami, com 330 metros. Tudo dependia daquilo. Deveria haver algumascoisas que eu não seria capaz de fazer.

*

Você quer não saber o que está fazendo. Você quer desfalecer, mergulhar naescuridão, obliteração de tudo que não seja a besta. Eu estava drogada e umato obsceno foi executado em mim. Não teria tanta sorte. Você também nãofica observando impotente enquanto o monstro segue descontrolado. AMaldição insiste na fusão total. Você e o lobo não servem. Somente olobisomem, único e indivisível. E quem é o lobisomem se não você?

*

Ela estaria morta em cinco segundos. Eu sentiria o esterno dela se partir emeu maior canino perfurar seu coração, enquanto o canino opostoatravessaria um dos pulmões com um arfar pungentemente audível. Algo separtiria em mim também, um osso minúsculo na alma que, ao ceder,permitiria a entrada de todo o universo sem Deus. O sangue dela seria quente,de uma doçura meio amarga, e entraria em mim com inocência, jovemdemais para compreender que estava sendo derramado. Na antiga vidahumana, a falta de sentido era uma ideia, um palpite, uma filosofia. Aqui,agora, olhando através da visão da morte de cinco segundos de Delilah, elaera um fato. Ninguém estava assistindo. Ninguém contabilizava a pontuação.Não havia nada. Apenas um vasto silêncio matemático. Não havia nada,portanto, não havia nada que eu não pudesse fazer. Até mesmo a pior dascoisas. Especialmente a pior.

E nós sabíamos, Delilah, eu e meu filho ainda por nascer, que em brevehaveria somente uma única coisa que seria a pior que poderia existir.

Ergui a criança até o nível do meu focinho, minhas mãos grandes feito umberço escuro. Ela não reagiu. Apenas gorgolejou levemente, chutou com aperna direita, o pezinho gordo como um pedaço de bala de goma. Jennifergritava dentro de mim, a mais tênue coceira neural.

Naquele instante, um carro parou na entrada e virou a balança (o únicoequilíbrio perfeito que eu jamais atingira), salvando a vida de Delilah Snow.

PARTE TRÊS

MORDIDAS DE AMOR

“Nesta cidade uma mulher precisa de duas bocetas, uma para osnegócios e outra para o prazer.”

Jerzy Kosinski – The Devil Tree

15

Na noite que antecedia nossa reunião fajuta com a afetada secretária AltheaGordon fiquei sentada com Cloquet em um Corolla alugado, na esquina dagrande casa isolada de Merryn em Royal Oak, no oeste de Londres. Chovia.As primeiras folhas da cidade tinham caído.

*

Vasto silêncio matemático e escuridão impenetrável. Sim. Durante algumtempo. Mas alguma gravidade perversa havia me forçado a retornar aosdetalhes do quarto do hotel, à efervescência da consciência plena. A sensaçãode retornar a mim mesma naquela noite no Anchorage Grand fora comonascer com uma sentença de morte. Eu abrira os olhos com uma sensação derendição. Cloquet ainda dormia. Zöe continuava acordada. Durante muitotempo fiquei sentada olhando para ela no carrinho-berço. Estava com medode tocá-la.

(O carro que havia salvado Delilah Snow e condenado a mim pertencia,como revelaram notícias subsequentes, a Amber Brouwer, a ex-amante deGeorge. Ela fora até lá porque seu cachorro tinha morrido e ela, um poucobêbada e chorosa. de repente percebera que sentia saudades de George. Umcachorro morto. Sentimentalismo. Um percurso de carro. Uma vida nãotomada.)

Somente quando minha filha fechou os olhos pousei a mão levemente emseu corpo, senti suas costelas minúsculas, a solidez e o calor, o coração e olobo adormecido dentro dela. Isto, e o quanto eu era indigna de tudo aquilo.

Travei um diálogo imaginário com minha mãe.“Mãe, o que você faz quando é capaz de qualquer coisa?”“Só porque você é capaz de qualquer coisa não significa que deva fazer

tudo. Não é uma sentença de morte, Lulu. É uma sentença de vida. Lamento,meu anjo. Ou você abandona isso ou dá uma chance.”

*

– Isto é loucura – disse Cloquet. A chuva ficou mais forte por algunssegundos, depois diminuiu de novo.

Sem Zöe, eu poderia ter sido capaz de abandonar tudo. Sem ela, eupoderia ter sido capaz de engolir a perda, cauterizá-la, cultivar uma novaversão deformada de mim mesma para acomodá-la: a Mãe Inadequada. Masali estava Zöe. A apólice de seguros do irmão.

Eles estão com seu filho. Pensar nele como uma pessoa me deixava enjoada.Sentia um aperto no coração. Eu precisava pensar nele como um objeto.Como uma mala perdida que eu tinha que recuperar. Era um alívio,repentinamente, ser reduzida a um único propósito. Nada mais importa,dizemos, quando nos apaixonamos. Eu sabia que era em vão. Sabia que tudoque estava fazendo era escolher uma rota para minha própria morte. Nãoimportava. Era tão libertador quanto abandonar tudo teria sido.

O irmão de Zöe não era mais “ele” ou “o”. Como Cloquet havia destacado,poderíamos precisar viajar para longe e rápido se e quando o encontrássemos;não daria para esperar novamente por documentos. Cloquet estava certo, mastal fato não amenizava a peculiar agonia de dar um nome a ele. Eu sentia queestava tomando algo que não me pertencia. Minha mãe sofrera um abortodois anos depois que eu nasci. Era um menino. Um dia ela me disse que iriam

chamá-lo de Lorcan. Portanto, batizei meu filho com este nome, com umaperversidade clínica, uma vez que o nome já possuía a morte ligada a ele. Eutelefonara para Kovatch antes de deixarmos Anchorage, e a certidão denascimento (além de nomes falsos para combinar com os da irmã) chegaranaquela manhã. O nome impresso desconcertou-me por um momento, comose até então eu não soubesse que o Deus que não estava lá levava tais desafiosa sério. Guardei os documentos e disse a mim mesma que não usaria o nome,nem para mim mesmo. Mas é claro que aquilo já era impossível. Ele estavaentranhado no conceito do meu filho, e agora, todas as vezes em que eupensava nele, pensava no nome, Lorcan, e aquilo era como um convite para aMorte vir e reclamar sua propriedade.

Eu fizera um testamento, deixando para meu pai mais dinheiro do que eleseria capaz de saber lidar, o bastante para Cloquet sustentá-lo até o fim dosseus dias, um dos restaurantes para Alison Ambidestra, 1 milhão de dólarespara Lauren, que fizera de sua vida um caos, 1 dólar para Richard – e todo oresto para os gêmeos, em um fundo a ser administrado pelo meu pai ou seusnomeados até que eles atingissem a maioridade. Ajudou ter feito isso, saberque pelo menos materialmente eu não estava deixando nenhum ponto semnó. De certo modo, aquilo me deixou com um pouco menos de medo demorrer.

Um Land Rover preto estava parado do outro lado da rua na qualestávamos. Nele, trajando uniformes policiais, estavam Draper e Khan, osdois caras fornecidos por Charlie Proctor da Aegis Segurança Privada. Onome de Charlie estava na lista de Pessoas Nas Quais Eu Poderia Confiardeixada por Jake. Draper era um escocês de cabelos claros e voz suave, comuma maneira de se mover que jamais parecia apressada e um âmago dedelicadeza que parecia intocado pela violência de sua vida. Khan era inglês, daterceira geração de uma família de origem paquistanesa, com olhos negrosluzidios e uma boca fina e esperta, mais superficial que o colega, e que ficavamais feliz dando ordens do que recebendo. Eles tinham passado a vésperaexaminando minuciosamente o local. (Duas câmeras de circuito fechado nafrente da casa, três nos fundos. Dois seguranças. Uma empregada. Um gato

siamês.) Cabia a eles colocar Cloquet dentro da casa e imobilizar Merryn paraque fosse interrogado. Eles não sabiam o que eu era. No que lhes diziarespeito, eu era apenas mais uma cliente capaz de pagar pelos serviços daempresa deles. O primeiro momento de contato visual com os dois disserasexo, sim – depois, prevalecera a postura profissional dos dois, e isso anularao impulso. Era uma fonte de orgulho para eles que tal sistema funcionasse,que pudessem ser soldados em primeiro lugar. Eu os invejava: minha libidoainda dormia, mas eu soube, desde quando o segundo bebê saiu do meucorpo, que não dormiria por muito tempo mais. Tal pensamento me deixavairritada, os ajustes que eu precisaria fazer. O filho dela está sendo torturado eaqui está ela – fodendo! Por Cristo!

– Isto é loucura – repetiu Cloquet. – Você consegue se dar conta disso?– Sinto muito. Preciso estar aqui.Eu não deveria estar lá. Eu deveria estar no hotel, em Kensington, com a

bebê. A bebê dormia no carregador amarrado ao meu peito. Desde osequestro, eu achava perturbador ficar sozinha com ela. Sozinha com ela, oamor ameaçava. Sozinha com ela, o amor vinha a mim como o Demônio,cheio de tentações. Eu não ousava olhar, precisava, de alguma maneira,permanecer de costas. Eu seguia pensando na frase do Antigo TestamentoMas Deus endureceu o coração do faraó. Era algo possível de se fazer, euacreditava, endurecer seu coração.

– É completamente desnecessário, porra – esbravejou Cloquet.– Escute, cale a boca. Eu sei. Sinto muito – retruquei.– Quando eu entrar, você fica aqui.– Eu sei.– É sério. No carro – insistiu ele.– Sim. Eu sei.Os olhos de Cloquet estavam vermelhos. Ambos sofríamos com a

diferença de fuso horário. Ele estava parando aos poucos com a morfina, oque o tornava irritadiço. Draper, que era paramédico, examinara o ferimentono ombro, anunciando que estava bem-suturado e livre de infecções eprescrevendo a Cloquet um tratamento de uma semana com antibióticos.

A voz de Khan surgiu no fone de ouvido.– Estão me ouvindo?– Sim.– Certo, vamos entrar. Fiquem sentados. Não usem o comunicador. Nós

contataremos vocês, entendido?Observamos os dois até que desaparecessem ao dobrar a esquina. Cinco

minutos se passaram. Dez. Quinze. A pequena atmosfera do Corolla foipreenchida com nossa espera. Eu estava mentalmente ocupada com apergunta que me ocorrera pela primeira vez na manhã em que deixáramosAnchorage e que desde então se tornara monolítica: por que os vampirostinham tomado meu filho? A resposta automática – que o queriam para oProjeto Helios – não se sustentava sob uma análise mais cuidadosa.Presumindo que Jake entendera direito, durante pelo menos os últimos 170anos os lobisomens vinham carregando um vírus que os impedira decontinuar a passar adiante a Maldição. Em vez da Transformação, vítimasmordidas morriam em menos de 12 horas. No entanto, vampiros mordidospor lobisomens infectados não apenas sobreviviam como apresentavam umatolerância ampliada à luz solar. Daí a importância repentina dos lobisomenspara o Projeto Helios.

Mas eu não estava infectada. O soro da WOCOP matava o vírus em novasvítimas mordidas (nunca chegaram a determinar se o vírus curavalobisomens existentes, embora eu me lembrasse vagamente de Ellis ter dito aJake que andavam colocando o vírus na bebida dele de vez em quando), e euera a prova viva de sua eficácia. Mas não havia nenhum motivo para suporque os vampiros soubessem disso. Para eles eu era apenas um lobisomem.Lobisomens tinham o vírus. O vírus proporcionava resistência à luz solar.Portanto, eu era uma valiosa commodity de pesquisa.

Exceto que os vampiros não tinham me capturado. Tinham tomado meufilho. De novo: por quê?

Obviamente, eles já sabiam que haveria um bebê, do contrário, por que asaca, o atiçador de gado, o laçador? Sem dúvida, possuíam um ou dois agentesda WOCOP na folha de pagamentos. Isso explicaria como sabiam que eu

estava grávida (do contrário, como sabiam exatamente a hora em que euentrei em trabalho de parto?). Mas se isso fosse verdade, então, com certeza,eles também saberiam que eu – esplendidamente – não estava carregando ovírus. E, sendo assim, o mais provável seria que meus filhos tampoucoestivessem.

Então, o que queriam com ele?Eu expusera tudo a Cloquet no voo de partida do Alasca, mas ele não

conseguiu chegar a nenhuma conclusão. Ou, pelo menos, foi o que disse. Eleparecera um pouco distraído. Na hora, atribuí ao fato de ele estar sentindomuita dor (como não tínhamos receituário para a morfina, ele fora rebaixadoa doses de Advil a bordo), mas me perguntei desde então se haveria algo mais.

Havia algo mais me incomodando. Desde quando chegamos a Londres,diversas vezes tive a sensação de... não exatamente de estar sendo observada,mas de haver coisas invisíveis passando por perto. Alguém passou em cima daminha sepultura. Na rua diante do hotel eu parei e dei meia-volta, esperandover alguém conhecido atrás de mim – mas não havia ninguém. Eu não disseranada a respeito para Cloquet. Mas isso continuava acontecendo – e agora eunão conseguia parar de pensar nisso.

Um clique-arranhão no fone de ouvido.– Estão ouvindo? – perguntou Khan.– Sim – respondemos em uníssono.Uma pausa.– Estão todos mortos.– O quê?– Temos cinco corpos. Os dois guardas, a empregada e seu homem,

Merryn...Por um instante pensei que, de alguma maneira, Draper e Khan tivessem

entendido a missão completamente errado e estivessem nos dizendo que atinham executado ao matar todos na casa.

– ... Além disso... Não sei. Acho que é um corpo. É basicamente gosmapreta com pedacinhos. Parece que tomou um banho de ácido.

Cloquet e eu nos entreolhamos. Cadáver de vampiro.

– Como os outros foram mortos?– Cada um dos dois gorilas levou um tiro na cabeça à queima-roupa. A

empregada e Merryn... Não sei. Grandes ferimentos no pescoço e nos quadris.Hemorragias muito graves. E o velhote no banho de ácido, não faço a menorideia. Parece uma coisa de outro mundo. Precisamos, ah... ir embora destamerda. Todos os discos do circuito interno de TV foram levados e o sistemaestá desativado, portanto, se tivermos sorte, talvez possamos não ser suspeitosem uma investigação de múltiplos assassinatos.

– Esperem – eu disse, e, depois, para Cloquet: – Você precisa entrar e daruma olhada.

– Esqueça – respondeu ele.– Aquilo é o cadáver de um vampiro.– E daí?– Não seja idiota. Precisamos dar uma olhada. Precisamos.Cloquet fechou os olhos e deixou a cabeça cair até tocar no assento. Ele

parecia precisar dormir por uma semana.– Khan? – disse ele ao microfone ligado aos fones de ouvido.– Aqui.– Preciso entrar. Preciso dar uma olhada.Percebi Khan cobrindo o próprio microfone. Para confabular com Draper.– Cinco minutos. Depois, saímos. Vocês têm luvas?– Não – dissemos eu e Cloquet ao mesmo tempo.– Sem problema, temos um par reserva. Apenas não toque em nada ao

entrar. Vocês... – disse algo fora do alcance do microfone para Draper... –Vocês dois vão entrar?

– Sim – respondi.– Não – disse Cloquet.– Entendido. A porta da frente está aberta. Não pisem no sangue –

instruiu Khan.

16

Cloquet fumou rapidamente um cigarro inteiro enquanto caminhávamos.Chiados de vento assopravam a chuva ao nosso redor, jogando-a contranossos rostos marcados pela diferença de fuso horário. Um corredor vestindoagasalho e trazendo um Collie na coleira passou por nós, aparentando estarde mau humor. Zöe, chocada por sair repentinamente do calor no interior doCorolla, despertou silenciosamente. Olhos de bebê, negros como ônix, naescuridão. Aquela era a primeira vez que ela pegava chuva. Uma das inúmerasprimeiras coisas que o mundo tinha a oferecer. O irmão dela também estariaexperimentando primeiras coisas, se já não estivesse morto. A imagem deJacqueline inserindo um arame no olho dele estava bem presente. Não pensenisso. Mas não dava. Pensar nisso está entranhado em dizer não pense nisso.Eu o via amarrado com braços e pernas estirados sobre uma mesa de açoescovado, a cabeça tomada por uma focinheira, pálpebras abertas combraçadeiras, seu pelo quente e úmido. Jacqueline fazia uma incisão semanestesia. Ele gritava, incapaz de se mover. Vampiros de jaleco faziamanotações. Eu tinha essas visões o tempo todo. Dizia a mim mesma que nãofazia nenhuma diferença: o projeto ainda era recuperá-lo. Eu dizia a mimmesma que era sorte eu não ter sentido nada por ele, do contrário, imaginecomo tais visões fariam com que eu me sentisse. Imagine.

Zöe espirrou contra mim, delicadamente. A noite cheirava a folhasmolhadas e a asfalto. A chuva embaralhava os halos das luzes da rua.Andávamos rapidamente.

A frente da propriedade de Merryn era delimitada por um alto muro depedra, mas os portões de ferro estavam abertos. Uma curta entrada paracarros pavimentada com tijolos seguia dos portões em uma única curva,passava entre pequenos jardins com arbustos cultivados até a frente da grandecasa branca. Georgiana? Eduardiana? Eu era ignorante quanto a essas coisas.A casa parecia datar da época de perucas empoadas e carruagens, mas, atéonde eu sabia, poderia ter sido construída no ano passado. Um grande cavaloreluzente de madeira de castanheira despontava sobre o pórtico com colunas.Atrás das cortinas fechadas as luzes do andar inferior estavam acesas. O andarsuperior estava na escuridão. O jardim úmido exalava seu odor pesado etranquilo.

Draper nos recebeu na porta da frente, fechando-a quando entramos e nosentregando as luvas de látex.

– Não sei o que estão procurando aqui – disse ele. – Mas o que quer queseja, vocês têm cinco minutos. Se o bebê começar a fazer barulho, sairemosdaqui imediatamente, sem discussão. Entendido?

– Certo – respondi.– Tem certeza de que querem ver isto?– Precisamos.– Não vão vomitar nem nada?– Não – eu disse, passando por ele. – Não vamos.O corpo da empregada estava ao pé da escada em uma poça de sangue

coagulado. Ela estava de bruços, com uma perna dobrada, a outra voltadacompletamente na direção oposta à da articulação. A garganta dela nãoparecia ter sido mordida, parecia ter sido ferozmente triturada. As veiasestavam expostas: jugulares, faríngeas, tireoide. Esôfago e traqueia rompidos.(Aprenda anatomia, Jake me dissera. Ajuda. Por que você acha que osmédicos conseguem viver sendo tão babacas?) A mulher tinha pouco mais de50 anos, raízes grisalhas sob tintura louro mel. Uma fivela de tartaruga pendiade sua franja. Agasalho de lã bege, saia azul-escuro. A perna virada peloavesso evocava todas as bonecas das quais eu e Lauren havíamos abusado.Um sapato estava faltando, expondo seu pé surpreendentemente bem-

cuidado, unhas pintadas com esmalte cor de pêssego. Imaginei umamaternidade solteira, um cara que não a valorizara, uma vida com um buracono meio agora que os filhos tinham partido para a faculdade, um inesperadotoque de glamour tardio ao trabalhar para Merryn.

A surpresa de Draper diante de meu sang-froid era palpável.– Os outros estão aqui – disse ele, com as sobrancelhas erguidas.Nós o seguimos até um espaçoso escritório, com livros do chão ao teto,

um Chesterfield de couro verde, uma escrivaninha colossal de madeiravermelho-escuro, um tapete persa dourado, uma lareira cujo fogo estavaextinto havia muito tempo. O cômodo, iluminado por candelabros, erapreenchido por uma luz cintilante. Khan, pistola com silenciador em punho,estava de pé ao lado das cortinas fechadas da janela, vigiando. Pelo modocomo vacilou, surpreso, ao entrarmos, ficou claro que entre o momento nocarro e agora ele havia se esquecido da existência do bebê.

– Cristo – disse ele. – Isso é surreal.Os dois seguranças tinham sido alvejados na cabeça e jaziam lado a lado,

de bruços, de modo nada espetacular. Merryn – presumi que fosse Merrynem função de sua posição proeminente – fora dilacerado com extravagânciana garganta e na virilha, devorado e depois apoiado em uma posição de pésobre o Chesterfield. Calculei que deveria ter pouco mais de 60 anos. Tinhamembros longos e o rosto comprido, com um nariz adunco e uma grandetesta de intelectual, de onde o cabelo grisalho retraíra. A boca dele estavaaberta, e os olhos, fechados. Ele parecia aguardar receber a Hóstia Sagrada.

Os restos do vampiro estavam no chão, perto da janela. Faltava a cabeça,pelo que eu podia dizer. A massa do corpo se decompunha avançadamente aárea abdominal era uma poça negra e viscosa; as costelas eram tocos decarvão; uma coxa permanecia reconhecível, assim como o pé esquerdo, longo,delicado e exibindo em preto cada minúsculo detalhe de seu sistema capilarmorto. Unhas de vidro polido. Além disso, o que ainda não haviadesaparecido estava sumindo rapidamente.

– Querem nos contar qual é a história? – perguntou Khan.– Não podemos – disse Cloquet. – Não sabemos.

– Presumo que saibam o que estão procurando – disse Draper.– Veja se o telefone dele está com ele – falei para Cloquet, apontando para

Merryn, enquanto cutucava os restos do chupador em busca da mesma coisa.– Uma agenda com endereços... qualquer coisa.

Nada. Todas as seis gavetas da escrivaninha estavam no chão e todas asseis estavam vazias. Conferi a lareira. Nos filmes se encontra apenas osuficiente de um mapa ou de um diário queimado, mas não havia nada dogênero.

– Procurem um computador – disse eu. – Um laptop, celulares.Precisamos revistar a casa apropri... – Então Zöe tossiu e começou a chorar.

– Vamos embora – ordenou Draper. – Agora.– Espere.– Sem discussão, lembra?– Ela só precisa se alimentar – eu disse, mas eles já estavam indo para o

saguão. – Espere – disse, sibilando. – Khan! Pare! – Incrivelmente, ele parou.– Estou pagando por isso – argumentei.

– Ninguém disse mulheres e crianças. Ninguém disse bebês chorando,certo? Isso não era o trabalho. Se você quer ficar, muito bem. Mas você estáaqui sentada com quatro presuntos e um alienígena, uma criança aos berros esabe-se lá que porra de coisa aparecerá a qualquer minuto. Portanto,aconselho a não fazer isso. Seja esperta, saia com a gente agora.

– Não vou sair até que tenhamos revistado este lugar apropriadamente –eu disse.

Pensei que Draper poderia ter ficado. Toda aquela masculinidadetranquila, mas ele me abriu um sorriso de desculpas, sorriso esse indicandoque pularia fora daquele jogo em breve, que tinha outra identidade quasepronta (vi uma mulher tímida a quem ele amava, uma casinha no meio donada, prazer nas coisas simples), e em questão de segundos ele e Khan tinhampartido. Parabéns para a Aegis. Parabéns para Charlie Proctor e as PessoasNas Quais Eu Poderia Confiar. Perguntei-me quem mais não se sairia bem.

– Vou alimentá-la – falei para Cloquet. – Continue procurando.– Continuar procurando? Continuar procurando o quê? Endereços

secretos de vampiros pregados na geladeira?– Escute – eu disse, acomodando Zoë em meu seio. – Jacqueline sabia que

você conhecia Merryn. Ele sabia para onde estavam levando meu filho.Jacqueline matou Merryn para impedi-lo de falar com você. Foi isso o queaconteceu. Agora, por favor, você poderia apenas ver se consegue encontrarqualquer coisa que possa ser uma pista?

– Só isso? E quanto àquilo?O vampiro morto, ele queria dizer.– Não sei. Talvez Merryn tenha conseguido cravar uma estaca em um

deles. Talvez houvesse outro guarda, que escapou. Só continue procurando!Um dia, existira uma longa lista hipotética de coisas que eu jamais

imaginaria fazer. Em algum lugar nela haveria: amamentar um bebê nacompanhia de cinco cadáveres, um deles o de um vampiro. Devido àscircunstâncias, sentei-me na cadeira de couro, ergonômica e giratória, daescrivaninha com Zoë bebendo de mim e não achei nada estranho. O leitevinha de alguma outra dimensão através de mim para dentro dela, feito umacorrente elétrica. Uma microatmosfera de paz física formou-se em torno denós, apesar de o meu cérebro continuar trabalhando freneticamente.Prontamente, eu tinha dado minha explicação para a morte de Merryn, masserá que eu realmente acreditava nela? Seria mesmo provável que Merrynsoubesse de alguma coisa? Segundo Cloquet, o maior interesse de Merryn(além de negociar relíquias roubadas) era literatura vampiresca. Dentro dohumanamente possível, ele era o mais próximo de ser um expert em línguasvampirescas. Olhei para a prateleira de livros mais próxima. Históriamesopotâmica, arqueologia, antiguidades, moedas raras, cunhos. Nadaincomum. Imaginei meu filho, de alguma maneira, vendo tudo aquilo, a mãedele seguindo as pistas erradas, entrando em becos sem saída, sendodespistada, desperdiçando tempo e energia enquanto ele... enquanto ele...

Pare com isso. Não ajudará em nada. Você precisa pensar nele como umobjeto, como fez quando ele nasceu.

A mão de Zoë estava enrolada no meu cabelo. Baixei os olhos para vê-la.Tinha os cílios longos de Jake. Garota de sorte. Na villa de Los Angeles ela

usaria uma tornozeleira de coral durante o verão e ficaria surpresa se eu nãome importasse se ela fizesse uma tatuagem, embora precisasse avisá-la que acarregaria por 400 anos. Ela começaria a ler literatura barata, mas um dia euiria notar Emily Dickinson ou uma cópia de O apanhador no campo decenteio em sua mesa de cabeceira. Quando saísse da piscina, o sol brilharia emsuas omoplatas molhadas. Não haveria nenhum pesar pelo tempo anterior àMaldição porque, para ela, não existiria um tempo antes da Maldição. Eu iriacriá-la isenta de vergonha, na elite, triunfante, amada por aquilo que era, umalobisomem nascida naturalmente. Depois, garotos. E nada de Jake para fazero papel do pai assustador. “Ei, Zoë, aquele cara francês é bicha, né? Um tipode eunuco, ou sei lá?” Ela iria me perguntar sobre o pai e eu não seria capazde me conter. Eu perderia um pouco dela para ele, para o glamour dosmortos. Ela começaria a procurá-lo nos rapazes, então, toda a confusãocomeçaria.

Mas Deus endureceu o coração do Faraó...– Precisamos ir – avisou Cloquet. Ele estivera no andar de cima,

revistando os quartos. – Me desculpe. Pode ser verdade isso que você estádizendo, que há alguma coisa aqui, mas precisamos de uma semana paraprocurar. Devêssemos partir e encontrar a assistente amanhã? Ela pode saberde algo.

Era improvável. Mas, com Merryn morto, o que mais tínhamos? Meuplano de revistar a casa era puro desespero e, de todo modo, executá-loapropriadamente levaria horas. Ainda assim, o pensamento de partir semestarmos mais perto de encontrar meu filho era intolerável. Precisávamos deinformações.

– Vou procurar – afirmei. Zoë terminara de se alimentar. Coloquei-asobre meu ombro e fiquei de pé, me sentindo tonta de repente. O fedorresidual do não morto tinha me deixado enjoada logo que entramos na casa. –Não teremos outra oportunidade. Deve haver algo, uma fatura para algumadas companhias deles, um e-mail... Merda, eu sei lá.

Bati com o joelho na quina da escrivaninha ao sair de trás dela e fechei osolhos por um instante para absorver a dor.

Eu ainda estava com os olhos fechados quando uma voz americanamasculina disse:

– Não se mova, por favor.

17

Abri os olhos. Um cara bonito, com ar de garoto, cabelo bagunçado louro-escuro estava de pé na porta do escritório com uma pistola apontadadiretamente para Cloquet. Ele segurava a arma com as duas mãos. Semtremer. Profissional. Glamorosos olhos azul-esverdeados e uma boca quequeria sorrir. Calça Levis, camisa vermelha xadrez, casaco de combate verde-claro. Um odor de roupas úmidas e pele cansada. Aparentava ter 25 anos, masalgo dizia que era dez anos mais velho. Sedutor, seria o consenso feminino.

– Ei, você – disse ele, e a boca realmente sorriu, com o que pareciasatisfação por estar vivo. – Qualquer arma, muito devagar, pegue e coloqueno chão. – O sotaque era da Costa Leste, talvez até mesmo de Nova York. Meperguntei se já teria passado por ele na rua ou sentado ao lado dele no metrô.Eu podia imaginá-lo em Veselka com uma hipster de East Village, encantadae sem saber que ele estava, sem malícia e compreensivelmente, fodendotambém com a amiga que morava com ela. – Cloquet, você primeiro.Senhorita D, por favor, nada de acrobacias com o bebê.

– Quem é você? – perguntou Cloquet.– Armas primeiro, apresentações depois. Façam agora, por favor.

Lentamente.Cloquet colocou a mão dentro do casaco e tirou uma Beretta do coldre do

ombro esquerdo. Ele tinha uma Luger no direito, mas não a tocou. Eu tinhauma Smith and Wesson M&P (todas fornecidas pela Aegis) em um coldretraseiro sob meu casaco. Pegá-la estava fora de cogitação.

– Muito bem, empurre-a na minha direção. Isso mesmo. Eu mesmo nãopoderia fazer melhor. Agora, Monsieur Cloquet, deite de bruços no chão,mãos sobre a cabeça. Pense toupée, pense gale.

Um segundo cara apareceu ao lado do pistoleiro, também armado. Maisalto, mais velho, cabelo escuro salpicado com cinza. Olhos negros polidospela exaustão. Jeans azul-escuro e um paletó de lã e botões. Ele fez somenteum leve gesto com a cabeça para o mais jovem: o andar superior forarevistado.

– Muito bem. Fabuloso. Senhorita D, está armada?– Sim.– Você sabe o que fazer. Acha que consegue?Segurei Zoë (que vomitara insignificantemente no meu ombro) com mais

firmeza e movi lentamente o braço para pegar a pistola no coldre nas minhascostas. Curvei-me para a frente e coloquei a Smith & Wesson no chão. O caramais velho revistou Cloquet – descobrindo e retirando a Luger, semcomentar, para que todos víssemos. Nova York veio até mim.

– Em função disso – disse ele –, peço-lhe desculpas, mas...Ele me revistou, eficientemente, sem ser inconveniente, apesar da minha

blusa ainda estar parcialmente desabotoada depois de amamentar Zoë. Havianele uma autoconfiança que era ao mesmo tempo ultrajante, delicada ereluzente. Mais de perto, percebi que não dormia há algum tempo. Tambémreparei em uma pequena cicatriz branca logo abaixo de seu olho direito.

– Muito bem, eis as pistolas – eu disse. – Agora posso me vestir e colocarminha filha no carregador?

– Claro, claro, vá em frente. Mais uma vez, peço-lhe desculpas.– O que é isso? – perguntou Cloquet. – Quem são vocês?Nova York apontou para as armas capturadas com outro grande sorriso.– Nós fazemos as perguntas – disse ele. – Vocês não mataram essas

pessoas, suponho, mas viram o que aconteceu?– Não – disse Cloquet. – Me deixem levantar deste maldito chão.– Calma, garotão, calma. Tire o pé do acelerador. Você pode se levantar,

muito devagar, muito tranquilamente. Calmo como Carradine. Muito bem.

Maravilha. Eu mesmo não conseguiria fazer melhor.Eu havia abotoado a blusa e recolocado Zoë no carregador, acomodada

junto a mim. Eu ficava imaginando a sensação de uma bala a atingindoenquanto eu a estivesse segurando. O cara mais velho estava acocorado,examinando os restos do vampiro. Ele cutucou o pé com um lápis.

– Como sabem quem somos? – perguntei a Nova York.– Em nossa organização, todos sabem quem você é. Um colega meu tem

você como papel de parede no computador. E, com o maior respeito, o retratonão chega aos seus pés.

– Qual organização?– Ex-organização. Não nos consideramos mais membros da WOCOP.

Não desde quando começaram a nos matar.– WOCOP?– Vamos embora – disse o cara mais velho. O V do “Vamos” indicava a

Europa Oriental, talvez a Rússia. Ele tinha se desviado de qualquer fuga naqual estivera.

– Para onde? – perguntei.– Se vocês fizerem mal a ela... – ameaçou Cloquet. – Se fizerem qualquer

coisa.– Calma, calma, calma – disse Nova York. – Mas esse cara sempre com

esse drama. Deve ser um inferno dividir uma cozinha com você, Magrelo.Estamos apenas falando em ir para algum lugar que não seja tanto uma cenade assassinato. Viu a senhora no saguão? Não sei quanto a você, mas eu não...

– Vamos embora – o Russo repetiu. – Agora.

18

Nova York, sorrindo, manteve-nos logo atrás dos portões. Minha peleformigava. A adrenalina forçava a entrada em meio a exaustão. Cloquet ardiaao calcular ações que não dariam em nada. Em menos de um minuto, o Russoparou em uma BMW 4x4 com vidros espelhados. A única maneira de vendarnossos olhos era com o enorme lenço de bolso de Cloquet. Eles poderiamconfiar que eu manteria os olhos fechados? Ou eu precisaria ficar com umcasaco sobre a cabeça? O Russo dirigiu. Nova York voltou-se para trás noassento para se assegurar de que eu não estivesse espiando. Ele deve ter sidosurfista. Seu rosto era cheio de beleza masculina, imensamente adorável. Oque, pela lei da estética invertida do horror, me fez ter certeza de queestávamos sendo levados para a morte.

Viajamos por menos de dez minutos, depois fomos conduzidos, aostropeções, do carro até o saguão do que presumi ser um prédio de conjuntohabitacional. Um elevador trêmulo e pichado que fedia a urina e haxixe noslevou ao vigésimo andar. O Russo conferiu o patamar antes de atravessarmosa porta sem número de um apartamento. De um andar inferior alguémcantava acompanhado de uma máquina de karaokê “Simply Having aWonderful Christmas Time”, de Paul McCartney, completamente desafinado.

– Sem dúvida, a pior música de Natal já composta – disse Nova York paramim, em voz baixa. – Como um pedido a Deus para acabar com o universo.Cuidado aqui.

No interior, mobília deprimente de segunda mão, carpete puído, umbanheiro espartano cujos canos estavam expostos e a lateral da banheira

faltando, além de uma cozinha azul e branca minúscula, massurpreendentemente limpa, ao lado da sala de estar. Cheiros de comidachinesa delivery, garrafas de cerveja vazias e fumaça rançosa de cigarro. Umalvo de dardos quase partido em dois encostado em um canto. A grande eúnica janela da sala de estar proporcionava uma vista da Londres noturna: aigreja de St. Paul’s; Canary Wharf; a London Eye; o Gherkin. Uma extensãode luzes sob a nuvem baixa e fofa. A beleza da vista fez meu coração doer porum momento, do mesmo modo que a árvore de Natal costumava fazerquando meu pai ligava os pisca-piscas pela primeira vez. À esquerda dajanela, uma porta de vidro dava para uma varanda estreita, ocupada por umquadro enferrujado de bicicleta e uma arara de roupas quebrada. Era poucodepois das duas da manhã. Tinha parado de chover. Pensei: “É assim queacontece: certo lugar acaba sendo o lugar no qual você morre.”

Trancaram-nos na sala de estar e começaram a confabular aos murmúriosno corredor. Principalmente Nova York, pelo som. Cloquet transformou seuterror em uma fúria fervente. Tentou abrir a porta da varanda, que não estavatrancada, e não nos ajudou em nada, a menos que quiséssemos saltar vinteandares. Saltar vinte andares não me mataria – e tampouco Zoë –, masmesmo com os poderes regenerativos de wulf, levaria algum tempo até quenos levantássemos do concreto. Eu caminhava de um lado para o outro comZoë, embalando-a. Em um ou dois minutos, ela estava dormindo. Estavapensando no que ela significava ali. Naquela situação, ela significava que elespoderiam me obrigar a fazer qualquer coisa que quisessem. Não havia fimpara as coisas que poderiam me forçar a fazer. (Como era possível? Eu nãohavia endurecido meu coração quanto a ela?) Comecei a pensar sobre essascoisas. Pensei sobre como o tempo passaria lentamente quando começassem.Pensei sobre o quanto a sala sem graça se tornaria familiar, o alvo de dardosquebrado, o sofá forrado com imitação de veludo e com o estofamentosaindo, a mancha de óleo no carpete verde. Pensei sobre o quanto eles setornariam familiares, os dois homens, a sensação das mãos deles, de suasbocas e paus, o som de suas vozes, o cheiro único de sua violência. Pensei que,como eram da WOCOP – ou mesmo ex-WOCOP –, eles teriam munição de

prata ou os recursos para cortar minha cabeça. O que significava que fariam oque quisessem sabendo que, quando estivessem satisfeitos, quando ficassemenjoados de mim, poderiam me matar e pronto. Imaginei Jacqueline exibindoa filmagem para o meu filho. Tenho certeza de que você deveria estarpensando que maman viria pegar você. Bem, como pode ver, ela não virá,mais.

Eu não me dera conta, mas enquanto tudo isso passava pela minha cabeça,eu estava examinando atentamente o lugar em busca de qualquer tipo dearma. Havia uma faca de pão em uma das gavetas da cozinha. Uma pequena eafiada faca de frutas em outra. Enchi a chaleira elétrica e a liguei. Haveriaágua fervente, se eu tivesse tempo. Não havia mais nada. Dei a Cloquet a facade pão. Ele rasgou o forro de seu casaco e escondeu-a ali dentro. Tenteicolocar a faca de frutas no bolso de trás do meu jeans, mas ela me cortariacaso eu me sentasse. No final, coloquei-a no bolso do meu casaco e disse amim mesma que precisaria tomar qualquer atitude antes que me obrigassem atirá-lo.

Tudo isso com um bebê amarrado a mim.A chaleira desligou sozinha justamente quando eles voltaram.– Muito bem – disse Nova York, sentando-se à mesa de jantar desgastada

e abrindo para nós outro sorriso cheio de satisfação. – Quem quer começar?O Russo, que estava revirando a cozinha, emergiu carregando uma garrafa

quase cheia de Stolichnya e quatro copos (diferentes). Ele os colocou sobre amesa, serviu a cada um de nós uma grande dose e entregou os copos. O quecom certeza ele não faria, pensei, se os dois fossem matar Cloquet para depoisme estuprar, torturar e matar, não é? (Não necessariamente. Uma coisa nemsempre significava a outra. A realidade poderia estar servindo bebidas antes.O mundo era livre para aplicar suas extraordinárias sobreposições. Atémesmo os filmes faziam uso disso. Hoje em dia você raramente encontra umpsicopata nas telas que não murmure Bartok ou cite trechos de Paraísoperdido.) Eu sabia que deveria evitar álcool durante a amamentação (oumelhor, sabia que os humanos deveriam), mas já que iríamos morrer ali, dequalquer maneira, que diferença faria? Tomei um grande gole. Uma

queimação benevolente e instantânea no peito. A primeira bebida desde aestrada para a Califórnia com Jake. Me fez lembrar dele, evocou o pontosensível onde o fantasma dele deveria estar. Pensei em encontrá-lo na vidaapós a morte, na qual eu não acreditava. Nossos filhos mortos não estariam lá.Estariam em outro lugar. Jamais os veríamos de novo. Ele diria: “Não foiculpa sua, Lu. Não culpo você.” Mas ele pareceria estranho para mim, umaversão de Jake que eu não conhecia. A versão que mentia.

– Ei – disse Nova York, com o copo erguido. – Você não me deu aoportunidade de dizer stin iya sas!

– É stin iya mas – corrigi. – A menos que esteja se excluindo do brinde.– Droga. Eu sempre erro.– O quê? – perguntou Cloquet. – O que ele disse?– Nada. Está dizendo saúde em grego.– Stin iya mas – disse Nova York, virando sua dose de uma só vez.– Vocês trabalham ou não para a WOCOP? – perguntou Cloquet.Nova York suspirou, fechou os olhos, abriu-os de novo. O que significava:

Estou tentando ser civilizado quanto a isto, mas esta pessoa está fodendotudo. Ou talvez fosse uma simulação disso, parte de um personagemsatiricamente educado que ele adotava para aquele tipo de divertimentopróprio ou do Russo, apesar de o Russo fazer parecer que a fiação por ondecorriam seus estímulos para diversão tivesse queimado – junto com suacapacidade de dormir – há décadas.

– Que tal isto? – disse Nova York. – Uma sugestão radical: eu conto avocês nossa história, vocês nos contam a de vocês. – Ele olhou de Cloquetpara mim, sorrindo, sempre sorrindo. Para Cloquet, o sorriso dizia: “Vocêprecisa abaixar a bola, filho da puta, porque estou perdendo a paciência.” Paramim, dizia: “Este idiota vai acabar fazendo com que matem você, e, sim, estouatraído por você, sim, desejo você, daquele jeito, mas só se for mútuo.” (Ecomo a vida ama inconveniências, a libido de wulf contorceu-se em seu sono,enviou o primeiro sinal de que o despertar estava na mesa. É claro que viriaagora. É claro que viria no momento em que era menos desejada. É claro queviria quando a morte já poderia estar na sala. Desviei o olhar.) – Juro a vocês

– disse Nova York –, que correm zero perigo conosco. Eu devolveria a vocêsas armas imediatamente para provar isso, mas o problema é – confessou,olhando para Cloquet – que há uma boa chance de você atirar em nós porconta da sua indignação gaulesa.

– Vocês não precisam das facas – disse o Russo. A voz era suave da cor deseus olhos esfomeados. – Mas fiquem com elas caso se sintam melhor.

– Facas? – perguntou Nova York, mas o Russo apenas balançou a cabeça.Não seríamos nenhum problema com as facas.

– Ah, sim, a cozinha. E a água fervendo. Entendi. Não precisarão de nadadisso. Mas compreendo. Não ficamos ofendidos.

Cloquet, de pé ao lado da janela, tinha a bainha do casaco nas mãos, umtique dele que eu não via há algum tempo. Sentei-me em um canto do sofá. Acabeça de Zoë tinha o perfume que têm as cabeças de bebês, o que era umadaquelas coisas que, sem aviso, relembravam ou recarregavam o fato de queera minha. Uma dos meus. Senti, de repente, o intervalo de tempo que sepassara desde quando os vampiros tinham tomado Lorcan. Se aqueles doisfossem realmente ex-WOCOP, talvez soubessem de algo. Se tivesseminformações e não estivessem interessados em nos assassinar, eu dariadinheiro a eles por isso. Muito dinheiro. Eu foderia com eles, se ajudasse.Uma decisão surpreendentemente fácil de se tomar, mas sem sentido, já queeu não conseguia me permitir acreditar que eles não fossem nos matar,quisessem ou não me comer.

– Poderiam nos dizer quem são? – perguntei.Nova York encheu novamente o copo dele e o do Russo, depois ofereceu a

garrafa a Cloquet, que largou a aba do casaco, mas balançou a cabeça,negando.

– Sou Walker. Ele é Mikhail Konstantinov. Trabalhávamos para aWOCOP. Agora, não mais. Agora, somos freelancers.

– Para que nos querem? – rosnou Cloquet.– Nossa Senhora – exclamou Walker. – Mas que sorte nós sermos

amigáveis, caso contrário eu já teria te dado um tiro nas bolas a esta altura.Ele é sempre assim tão nervoso?

A piadinha bem-humorada de Walker teria começado como uma defesacontra algo, a consciência, talvez, as lembranças, o que quer que tivesseacontecido com ele. Agora, era parte dele, como um chapéu que nunca tiravada cabeça. Para as pessoas que o conheciam, seria alarmante se algum dia eleo fizesse. Eu tentava captar alguma noção de qual seria a relação entre ele eKonstantinov, porém, havia muito mais acontecendo. O Russo era intenso edistante ao mesmo tempo, como uma estrela vista através de um telescópio.

– Respondendo à sua pergunta – disse Walker a Cloquet –, não queremosvocês para nada. Ficamos tão surpresos ao vê-los na casa de Merryn quantovocês ficaram. – Depois, quando Cloquet visivelmente não relaxou,acrescentou: – Certo, escute. Compreendo. Você está desconfiado. Eucomeço.

Tentei me prender à crença de que a amabilidade era um disfarce sádico,destinado a amplificar nosso horror (e, com isso, o prazer deles) quandochegasse o momento de descobrirmos que havíamos sido enganados.Contudo, quanto mais Walker falava, mais difícil era não ficar desarmada. AWOCOP, ele nos disse, tinha sofrido uma ruptura. O plano de Ellis paramatar Grainer e os jogadores do escalão superior tivera repercussões. Umprograma para “identificar e eliminar” membros da facção rebelde foralançado, baseado inicialmente em inteligência e logo sendo amplificado atéum clima de paranoia stalinista. Agentes sem qualquer relação com Ellisforam “desmascarados”, submetidos à corte marcial, executados.

– Vocês sabem como é – disse ele. – Pessoas sendo presas por usar óculossuspeitos, por ter cortes de cabelo suspeitos. A organização matou mais deduzentos membros nos últimos quatro meses.

– E você estava com os rebeldes? – perguntei.Eu havia me lembrado – chocada com minha própria lerdeza – de que o

objetivo dos renegados era evitar ficar sem trabalho permitindo que onúmero de lobisomens aumentasse. A Organização Mundial Para a Criaçãode Fenômenos Ocultos. Neste caso, obviamente...

– Não – disse Walker. – Quero dizer, eu entendia... A lógica de Ellis faziasentido: a organização estava se tornando obsoleta... Mas eu estava pronto

para abandoná-la de qualquer modo. Eu estava saturado. Além disso, eu nãosuportava Ellis. Ele era branco demais e louco demais. Sempre imaginei queele tivesse genitais alienígenas. Talvez como uma bola com talos saindo dela.Ou algo parecido com uma alcachofra. De todo modo, ele me dava arrepiosmajestosos.

Eu começava a obter uma noção de Walker. Eu não conseguia evitar.Alguma perda ou violência na juventude havia criado a forma particular coma qual ele ganhava a vida, irrelevante para ele. O choque empurrara-o para arealidade quando ainda era novo demais, de modo que nada tinhaimportância. O sorriso, a satisfação, as roupas largadas, tudo derivavadaquilo. Era aquilo que ele defendia com esse tipo de artifício. Walker sentiaque eu estava captando isto dele, o que o excitava, mas também o irritava,levando-o de volta ao que quer que tivesse rompido seu contrato com a vidaem primeiro lugar, a coisa em torno da qual aquela triste e brilhante pérola desua personalidade havia se formado. Amor. Ou morte. Ou ambos. Enquantoisso, uma parte de mim permanecia distante, de braços cruzados, lábiosapertados, balançando a cabeça para o resto de mim, para o matadouro.Realmente? Isto? Agora?

– Mas se vocês não estavam com os rebeldes – perguntei –, por que aorganização está atrás de vocês?

Pausa. Uma troca de olhares entre ele e Konstantinov.– O cara que assumiu o posto de Grainer é John Murdoch – disse Walker.

– Agora é ele quem coordena as operações em terra. Ele não é meu fã.Pausa.– É puramente pessoal.– Ele dormiu com a mulher de Murdoch – disse Konstantinov em um tom

neutro.– Sim, dormi – confirmou Walker com uma expressão séria que ele

próprio não conseguia levar a sério. – E testemunho a vocês aqui e agora quefoi um evento bom, honesto e bonito entre duas pessoas em um mundocaótico. Angela é uma boa pessoa. Afastar-se daquele psicopata foi a melhor

coisa que ela já fez na vida, e se eu a ajudei a fazê-lo, fico realmente orgulhoso.Ela é de uma personalidade belíssima, inteligente e complicada, e ele... não.

O sorriso surgia e desaparecia conforme ele falava. Aqui havia mais umainformação, quer eu gostasse ou não disso: ele sempre teve mulheres. Elaseram atraídas por ele independente de sua vontade. Mesmo quando era umgaroto na escola, as meninas procuravam apaziguar a exasperação de Walkercom os garotos. Aos 14 ou 15 anos, teria havido uma tia divorciada ou umaviúva da cidade, horrorizada consigo mesma, mas mesmo assim... Desdeentão, ele aceitara aquilo como um dom, feito a memória fotográfica ou oouvido absoluto, uma compensação pelo contrato rompido com a vida. Nãohavia qualquer crueldade nele. Ele era um filho de Eros. Imaginei a esposa deMurdoch como uma morena instável com sandálias de salto alto, confusa ecom uma cota de coisas loucas que precisava fazer para finalmente se livrardo casamento nocivo. Eu não conseguia deixar de imaginar queprovavelmente fora uma coisa boa no mundo. Pela primeira vez, desde a casade Merryn, relaxei um pouco.

Enquanto isso, Cloquet estava praticamente levitando de desconfiança.– Enfim – prosseguiu Walker –, Murdoch não gostou e elaborou uma

armação simples: forjou uma troca de e-mails entre nós e os rebeldes. Oshomens dele estavam todos prontos para nos prender, mas fomos avisados eescapamos. Desde então, Murdoch ficou mais louco e, para início deconversa, ele sempre foi meio gagá. Com alguma sorte, os burocratasacabarão com ele, mas até que o façam, ele vai continuar atrás da gente e aPurificação prosseguirá.

– E quanto a você? – perguntei a Konstantinov. – Dormiu com a mulherde quem?

Konstantinov olhou para mim e me dei conta de que dissera a coisaerrada. A sala foi instantaneamente tomada pelo meu erro de julgamento. Osolhos negros dele falavam de uma resistência sobre-humana.

– Vá fumar um cigarro, Mike – disse Walker. – Eu cuido disso.Konstantinov permaneceu sentado e imóvel, sem piscar os olhos por um

longo momento durante o qual pude sentir a mobília desgastada e as paredes

manchadas da sala prenderem a respiração. Depois, levantou-se, passou pormim – a aura dele raspando na minha – e atravessou a porta para a varanda,fechando-a ao sair.

– Péssima escolha de palavras – disse Walker. – Mike tem esposa. Casou-se há seis meses. Agora, os vampiros estão com ela. Vingança por ummembro do grupo que Mike matou. Estão se alimentando dela apenas osuficiente para que permaneça viva. Eles têm enviado vídeos para ele.

– Oh – lamentei. – Isso é terrível. Sinto muito.Imaginei a esposa de Konstantinov como uma mulher pálida, de cabelos

escuros, magra como uma bailarina e com olhos negros como os dele, alguémque a maioria dos homens acharia sem graça. Era visível em seu rostoesgotado que, para ele, o sol nascia e morria com ela. E agora ela era umamáquina que vendia lanches para vampiros. Vídeos. Eu também conseguiaimaginar aquilo, além de todas as outras filmagens que conseguia imaginar,com meu filho na mesa de aço escovado, o arame entrando em seu olho, ocírculo de médicos, o sorriso feliz de concentração no rosto de Jacqueline.

– Sinto muito – disse novamente.– Vocês não tinham como saber – disse Walker. – Ele não vai guardar

rancor em relação a você.Estão se alimentando dela apenas o suficiente para que permaneça viva.

Naturalmente, a linguagem da alimentação trouxera a minha natureza para asala. Walker precisava permanecer lembrando a si mesmo do que eu era. Ohomem sexual que brilhava nele veio na minha direção, sorrindo seu sorrisodeslumbrante, e depois foi puxado de volta pelo humano: “Ela é umlobisomem, pelo amor de Deus. Você é louco?” Para o que o homem sexualque brilhava, voltando-se de novo para mim com o sorriso que se recusava aser suprimido, disse: “Sim, talvez.” Era difícil olhá-lo nos olhos. Um pouco doespírito santo da inevitabilidade que havia em Manhattan pairou sobre nós.Todo o sexo que eu tivera depois de Jake fora feito de mau humor efriamente. Aquilo era um convite para algo mais. Wulf revirou-se, sim, mastambém a fêmea humana há muito negligenciada, a garota burra com quem

não faziam amor honestamente há tanto tempo que pareciam eras. Não haviafim para o meu comportamento impróprio, aparentemente.

– Quais vampiros estão com ela? – perguntou Cloquet.– Como?– Quais vampiros estão com a esposa dele? – repetiu Cloquet.– O grupo de Jacqueline Delon. Os Discípulos de Remshi.– Os o quê?Cloquet moveu-se para encher novamente seu copo – depois lembrou-se

de que ainda estávamos tecnicamente sendo vigiados.– Vá em frente – estimulou Walker. – Só não faça nada atlético, por favor.

Estou exausto. Aqui, dê uma olhada nisto. – Ele pegou o iPhone, deu unstoques, rolou a tela, girou o aparelho e entregou-o a Cloquet. – Já viu istoalguma vez?

Cloquet olhou para a imagem na tela, depois passou o aparelho para mim.Um símbolo cuneiforme vermelho sobre um fundo negro. O emblema queJacqueline e os amigos tinham nos casacos.

– Eles usavam isto – eu disse.– Quem? – perguntou Walker.– Os vampiros que tomaram meu filho. Os vampiros de Jacqueline Delon

– respondi.– Seu filho?Contei a ele o que ocorrera. Tudo, sem hesitação. Em parte devido à

diferença de fuso horário, em parte por me sentir atraída, em parte por causada geografia compartilhada. Principalmente porque eu havia suportado omáximo que conseguia sem ser capaz de confiar em ninguém.

– Era o que estávamos fazendo na casa de Merryn – eu disse. – Achávamosque ele saberia para onde o levaram. Mas quando chegamos lá ele estavamorto. Os vampiros chegaram primeiro.

– Posso lhes dizer o que Merryn teria dito a vocês – falou Walker. – Eleteria dito que os vampiros de Jacqueline estavam em uma antiga vinícola emProvença. Mas isso não vai ajudar vocês. Eles abandonaram o local.Descobriram que Merryn estava vazando informações.

– Merryn era um agente duplo?– Ele trabalhou para a WOCOP durante anos, até esta situação recente

com os rebeldes. Ele favorecia o grupo renegado, naturalmente. A zona docrepúsculo era a vida dele.

Cloquet acendeu um cigarro. Havia algo de errado com ele. Os músculosem seu rosto haviam perdido um pouco da firmeza. Por um instante, penseique fosse ciúme – a atração entre Walker e mim era um gatinho flexível ali nasala conosco –, mas não. Ou melhor, não era só isso.

– Mas como você sabe que os vampiros se mudaram? – perguntou ele. –Como sabe que deixaram a vinícola?

– Porque acabamos de voltar de Provença – disse Walker a ele. – Eles nãoestão lá, sabiam que estávamos chegando. A única maneira pela qualpoderiam saber disso seria descobrindo que Merryn era um informante. Foipor isso que o mataram.

– Mas eles estavam no Alasca – destaquei.– Jacqueline tem mais de trezentos em seu grupo – disse Walker. – Não

estavam todos no Alasca. Não havia ninguém na vinícola em Provença, o localfoi completamente abandonado. Descobriram que Merryn era uminformante, abandonaram Provença e o mataram. Podem estar em qualquerlugar, nesta altura. Junto com a esposa de Mike, se ela ainda estiver viva. Ecom seu filho.

Podem estar em qualquer lugar. Uma montagem de lugares: aeroportos;campos; ruas. As viagens dos últimos seis meses tinham encolhido o mundo.Podem estar em qualquer lugar tornava-o vasto novamente.

O desconforto de Cloquet aumentava. Eu me lembrava dele dizendo:“Acha que traí você? Pergunte aos seus lobos!” E os lobos, com seu hálito decarne crua, seus ombros relaxados e milhares de quilômetros em suas patas,diziam que ele falava a verdade. O que seria, então?

– Do que chamou os vampiros de Jacqueline? – perguntei a Walker.– Os Discípulos de Remshi. – Ele olhou para Cloquet. – Você sabe do que

estou falando, certo?Cloquet não respondeu. E não conseguia olhar para mim.

De repente, compreendi: o rapto não tinha nada a ver com o ProjetoHelios.

Tinha a ver com isto. Os Discípulos de Remshi.A menção daquilo me deixou esperança. Cloquet soubera, e não havia me

contado. Agora, ele estava enjoado. E eu também.– Mike acha que o chupador morto lá na casa era um dos sacerdotes deles.

Eles possuem uma tatuagem no pé – disse Walker.Cloquet ainda não me olhava nos olhos.– Olhe para mim – eu disse para Cloquet. – O que você não está me

contando?Um momento em suspenso, os sentimentos dele travados como teclas de

uma máquina de escrever. Depois, Cloquet esmagou o cigarro no cinzeiro depapel-alumínio sobre a mesa, exalando a última baforada com uma expressãode quem sente gosto de coisa estragada.

– Remshi é um... – Ele parou. Girou a cabeça em um rápido movimentopara aliviar a tensão. Começou de novo. – Segundo a mitologia vampiresca,Remshi é o mais velho da espécie. Não faz sentido contar isso a vocês, porqueele não existe. Jacqueline disse que para os próprios vampiros ele era como lePére Noël ou La Petite Souris, um conto de fadas. Mas ela acreditava nele.Estava obcecada. Supostamente, Remshi teria poderes extraordinários. Seriacapaz de mudar de forma para se parecer com animais ou pessoas. Era capazde se tornar invisível, de criar fogo do nada. Era por isso que ela queria setornar uma vampira. Porque ela achava que... – Ele se interrompeu e fez umleve gesto que demonstrava irrelevância. – Não importa. Ela é louca. Tudoisso é porque o pai dela morreu. Sabem que o cara comia Jacqueline desde os8 anos de idade?

Porque ela achava que...Eu precisava ser cautelosa. Talvez ele não pudesse se dar o luxo de dizer o

que queria diante de Walker.– Ele está certo – disse Walker. – Para a grande maioria dos vampiros,

Jacqueline simplesmente iniciou o equivalente à Sociedade da Terra Planapara os chupadores. Sempre houve um bando de astrólogos vampiros que

levam a sério o mito de Remshi, mas eles não eram levados a sério há umséculo ou mais. Nossa garota iniciou esse revival como uma jogada paradesenvolver um novo poder político ou porque acredita genuinamente naprofecia.

– Que profecia? – perguntei.– Profecias – disse Walker. – Há um monte delas. O problema é que O

livro de Remshi, no qual elas estão reunidas, é traduzido de maneira poucoconfiável e extensivamente editado e modificado. Além disso, éinacreditavelmente tedioso. Mas a grande profecia é que Remshi deveráretornar... Embora jamais tenha ficado claro para mim de onde ele deveriaretornar, exatamente. Animação suspensa ou o que for. O consensoastrológico diz que é agora, neste ano. Na verdade, supostamente, ele jáestaria desperto, mas ainda não revelado... – Depois, para Cloquet: – Certo?

Minha impotência parecia vir de fora para dentro, como se o espaço aomeu redor estivesse se solidificando. Eventualmente, isso me imobilizariacomo um inseto em um pedaço de âmbar. Pensei no quanto seria melhor seeu soubesse que Lorcan estava morto. Assim eu poderia dar as costas paratudo aquilo. Assim, haveria apenas um monte feito de resíduos de culpa paratranspor, até que eu me tornasse uma nova versão de mim mesma em umavida fraturada ao lado da minha filha.

– Essa história de Remshi – falei para Walker. – Você acredita nela?Me perguntei, brevemente, o que uma conversa com o vampiro mais velho

do mundo revelaria. Brevemente porque, quase no mesmo instante, eu soubea resposta: nada conclusivo. Talvez nem sequer nada de novo. Mais umacriatura, mais um conjunto de fomes, temores, ilusões e perguntas nãorespondidas.

– Quem sabe? – indagou Walker. – Este trabalho deixa a mente da genteaberta. Acho que, caso ele exista, será mais um personagem vagando por aí, seperguntando de onde virá a próxima refeição e tentando trepar. Ou talvez nãotentando trepar, se ele for realmente um vampiro. Se bem que, supostamente,o equipamento sexual dele ainda funciona. De todo modo, se é uma religião,

então precisamos nos preocupar é com quem acredita nela e no que estãodispostos a fazer em seu nome.

Konstantinov voltou para a sala.– Sinto muito – disse para ele. – Estupidez da minha parte.– Não é culpa sua – disse ele. – Deixa pra lá.A diferença de fuso horário fizera com que o tempo se comportasse mal.

Havia um ponto de nebulosidade na consciência. Eu estava ciente, atravésdessa névoa, de que Walker havia parafraseado meus próprios pensamentos.Uma pequena satisfação na desordem. Eu via imagens: a saca fechando-sesobre a pequena cabeça de lobo; a cabeça escura de Jake movendo-se comoum brinquedo mecânico entre as pernas de Jacqueline; o olhar de meu pai aodizer: “Estou tão triste por isso, Lulu.” Delilah em minhas mãos. Nana,neném.

– Portanto, segundo a profecia – prosseguiu Walker, novamente olhandopara Cloquet em busca de corroboração –, Remshi desperta, se estabelececomo rei dos chupadores, inaugura uma era de domínio mundial dosvampiros e, enquanto isso, elege uma noiva, a nova rainha dos vampiros, comquem compartilha todos os seus poderes extraordinários. Segundo os crentes,ele é até capaz de ter filhos. Vocês devem dar o crédito disso a Jacqui: ela nãopensa pequeno.

Em algum ponto os aquecedores tinham ligado, e agora a sala estavatomada por um calor com sabor de cobre. Meu rosto estava corado. Eu sabiaque se fechasse os olhos e me deitasse cairia no sono imediatamente. O filhodela é raptado e torturado e aqui está ela – dormindo!

Zoë despertou e gorgolejou. Um som de absurda inocência. Eu estavamuito ciente de que a coisa a se fazer era tirar-nos dali para que Cloquetpudesse falar livremente. Pressioná-lo agora era um risco.

– Quero que você me conte tudo o que sabe sobre isso – eu disse para ele.– Agora.

19

O que restava da capacidade de Cloquet para tensionar o corpo, visível nosombros e nos joelhos e no pé esquerdo e na ponta dos dedos, entrou emcolapso. Como acontece em todas as derrotas, foi também uma libertação. Elecerrou os olhos por alguns momentos, depois os abriu.

– Só não lhe contei isso para protegê-la, chérie. Você precisa acreditar emmim.

– Apenas me conte.Ele suspirou. Serviu um pouco mais de vodca para si mesmo. Quando

falou, sua voz estava rouca.– Jacqueline estava obcecada com a história de Remshi e a profecia sobre o

retorno dele. Ela encontrou os vampiros acadêmicos que levavam isso a sérioe deu a eles tudo o que pediram em troca de informação. Eram nojentas, ascoisas... Enfim. É claro que ela via a si própria tornando-se rainha de Remshi,sua amant royale. As profecias eram muito claras no que dizia respeito acomo ele escolheria uma noiva. Você precisa compreender: o pai dela... Éapenas uma espécie de extensão de...

– Não me importo com os malditos traumas de infância dela – eu disse.Walker e Konstantinov ouviam atentamente. Da mesma forma com que afloresta de pinheiros fazia na neve. (Havia essas correspondências semsentido. Pensei: é para isto que serve a arte, para caçá-las, para revelá-las. Opesadelo era quando você não conseguia desativá-la, quando você nãodesejava arte.) – Só me diga o que eles querem com meu filho – pedi. Não seipor que falei aquilo, pois já sabia a resposta.

Cloquet correu a mão pelos cabelos de aparência suja.– Há um ritual – disse ele.É óbvio que havia. Eu soubera daquilo desde quando Walker dissera “os

Discípulos de Remshi”. Imaginei Jake balançando a cabeça da maneira quealguém faria diante daqueles idiotas que se fantasiavam para recriar a TerraMédia ou a Guerra Civil Americana todo fim de semana. Jake não estar aomeu lado nesse momento era como ar frio subindo contra minhas costasvindo de um abismo logo atrás de mim. Por um momento, odiei Jake. Elehavia me deixado com coisas demais para fazer sozinha – e ninguém comquem buscar reconforto quando fracassasse.

– A profecia diz que Remshi não atinge o poder máximo até... até beber osangue de gammou-jhi – disse Cloquet. – Gammou-jhi é uma antiga palavravampiresca para lobisomem.

E lá estava.Vi uma caverna subterrânea de um filme B, rochedos de papel machê, um

vampiro de barbas longas erguendo uma adaga cerimonial (algo feito umaestalactite multicolorida) sobre o peito hiperventilante de meu filho.Enquanto isso, Jacqueline e seu rei observam a boca da vampira pintada debatom e levemente aberta, seu cabelo vermelho curto, alisado e reluzente soba luz das tochas.

– Então, ele está morto – eu disse, experimentando as palavras,perguntando-me o que contaria a Zoë sobre o irmão que jamais conhecera.Que eu jamais conhecera. Que eu jamais amara. Que eu havia deixado quetomassem de mim.

– Não – disse Cloquet, inclinando-se para a frente. – O ritual só pode serrealizado au milieu d’hiver, no solstício de inverno... Mas, Lulu, isso não éreal. Essa coisa não existe. Não haverá nenhum sacrifício, porque não existeninguém para quem se realizar o sacrifício. Jacqueline, essa visão que ela tem,essa crença em Remshi, c’est une fantasie.

– Ele vai morrer de qualquer jeito – falei. – Ou vai passar o resto da vidaem uma jaula. Se Lorcan não tiver utilidade para Jacqueline, ela irá vendê-lopara a WOCOP ou para o Projeto Helios.

Eu conseguia ver aquilo à minha frente como um casamento sem amor,todas as coisas que eu precisaria pensar, planejar e tentar, a falta de sentidoem tudo aquilo, o fracasso garantido. E não importava o quanto fosse semsentido, eu sabia que não seria suficientemente forte ou corajosa para dar ascostas e abandonar tudo. Eu era uma mãe ruim, mas não ruim o bastante aponto de ser minimamente boa para mim mesma. Pernas e braços doíam.Cloquet estava sentado com a cabeça baixa. Ele corria dentro de si própriotentando encontrar saída para algum lugar onde tudo aquilo não tivesseacontecido. Compreendi por que não me contara. Eu ainda teria feito tudoque fizera até o momento, mas talvez com um desespero que teria me tornadoimprudente. Os lobos não o julgaram erroneamente. No fundo, ele visavameus interesses da melhor maneira. Meu rosto e minhas mãos estavamtomados por uma fúria paralisada.

– Quanto tempo eu tenho? – perguntei.– Até o dia 21 de dezembro – disse Walker. – O solstício de inverno. Neste

ano, coincide com um eclipse lunar total durante uma lua cheia. Mas, escute,precisamos discutir...

– Só fiz isso para proteger você – disse Cloquet. – Eu não queria que vocêprecisasse carregar isto na sua cabeça.

– Essa decisão não era sua.– Eu só...– A porra da decisão não era sua. Agora, cale a boca e pare de falar sobre

isso.Meu coração trabalhava. Toda uma nova informação com a qual meu

estrategista, exausto, apenas conseguia lidar freneticamente, sem propósito.Konstantinov e Walker estavam sentados imóveis, Konstantinov com a mãoossuda com pelos negros em torno do copo de vodca e Walker com os braçoscruzados, pernas esticadas diante de si e tornozelos cruzados. O diálogo entremim e Cloquet arrebatara um pouco os dois, especialmente Walker, ao mever acelerar a marcha, meu calor apaixonado. Imaginei de novo a caverna dofilme B, a adaga multicolorida de estalactite. Seria para aquele tipo de coisaque meu filho morreria? Charlatanismo? Um ritual fajuto? Mágica? Mas, é

claro, nós mesmos éramos mágicos. Zoë. Konstantinov. Cloquet. Walker.Minha própria carcaça amaldiçoada – o que era tudo aquilo se não mágica? Asensação não era essa. A sensação era a do peso das coisas simples. A vodcaera uma sedução indesejada nas pontas dos meus dedos, embora fosse maisuma indicação de como eu era uma mãe inútil.

Zoë precisava ter a fralda trocada. Havia duas descartáveis no bolso docarregador. Eu não queria fazer aquilo na frente de todos, com as mãostrêmulas: “Vejam, garotos, a mamãe lobisomem. Exatamente como umamamãe humana, só que ela não ama os filhos e mata pessoas e as devora.”

Peguei uma das fraldas.– Há algum lugar onde eu possa cuidar disso?Walker se levantou e fez um movimento com a cabeça para que eu o

seguisse. Havíamos passado por três pequenos quartos no caminho da portada frente até a sala de estar, um dos quais, claramente, não estava em uso.Uma única cama com um colchão descoberto, uma mesa de cabeceira, umarmário da Ikea caindo aos pedaços. Desafivelei o carregador de Zoë, peguei-ae deitei-a na cama. Walker estava de pé na porta. A consciência dele metocava nos quadris, na clavícula, nos seios e nas coxas. Havia tais momentosnos quais o universo insistia que aquilo era puramente perverso, semqualquer outro aspecto ou truque: Agora que ela sabe que irão matar seu filho,sua libido desperta. Não significava nada. Ou significava o que sempresignifica: que somos criaturas estranhas, que existem sistemas meteorológicosinternos pelos quais não respondemos. Menos de três horas depois dedescobrir sobre o caso de Richard, eu havia me masturbado furiosamente,pensando nos dois juntos em nossa cama, e tive um clímax magnífico. Nãosignificava que eu não o desprezava. Era apenas mais alguma coisa que estavaocorrendo. Lembrei-me de uma citação de Susan Sontag do diário de Jake:Seja lá o que estiver acontecendo, sempre está havendo algo mais.

– Vou te dizer o que eu acho – disse Walker.– O quê?– Acho que você quer que a ajudemos a recuperar seu filho.– Eu vou pagar vocês – eu disse a ele

– Eu sei. O dinheiro será útil para Mike e Natasha.– E para você, não?– Para mim também, claro. Não sou da nobreza.– E então, vão me ajudar?– Bem, é isto ou matar você.Não falei nada. O quarto cheirava a carpete úmido e aquecedores.

Perguntei-me quem vivera ali antes de o apartamento se transformar no localusado por aqueles sujeitos. Imaginei uma mulher cansada, três crianças,seguro-desemprego, a televisão sempre ligada.

– De qualquer forma, tentaremos pegar seu filho de volta – disse Walker. –São os mesmos vampiros que estão com a esposa de Mike. Se não ajudarmosvocê, há uma grande chance de que acabemos prejudicando uns aos outros.

Então, por que não nos matam agora? Não precisei perguntar.Entreolhamo-nos. A atração era obstinadamente suave entre nós. Eratambém a primeira honestidade sexual que eu sentia em meses. Nãosignificava que ele não me mataria e vice-versa. Pensei: todos os homens emulheres deveriam começar a partir de tal entendimento.

– E quanto a Konstantinov? – perguntei. – Ele não me quer morta?Sendo a advogada dos cínicos, só por precaução. Talvez eles quisessem me

trocar pela esposa de Konstantinov? Mas Jacqueline já estava com ela e, se mequisesse, poderia ter me capturado no Alasca. Muito bem, mas havia outrosvampiros. Pode até ser que Jacqueline não se importe com o Projeto Helios,mas os intelectuais das Cinquenta Famílias se importam. Se não soubessemque eu estava livre do vírus, desejariam ter a mim. Talvez o bastante paraobrigar os Discípulos a abrirem mão de uma prisioneira. Eu precisariaproceder com cautela.

– Mike não quer matar ninguém que ele não precise matar – disse Walker.– Pode soar uma loucura para você, mas é tudo que tenho. – Então, depois deuma pausa: – Olhe para mim.

A ordem me assustou, a repentina mudança de tom masculino que éregistrada no coração de uma garota. E na boceta, se for o tipo errado degarota. Olhei para ele. Eu o havia perturbado, despertado Walker

inexplicavelmente. Fazia muito tempo desde que qualquer coisa fora capaz defazê-lo. Mas ele também me perturbava. Eu podia imaginar toda a doçura deouro dos seus tempos de menino ainda ali, sobre os ombros dele. Nada secompara a matar a coisa que você ama. Mas estava tudo bem, porque aquilonão seria amor.

– Não estou mentindo para você – disse ele. – Você sabe que não.O que estava implícito era como eu sabia. Eu era como ele. Uma assassina.

Assassinar é um clube. Sem apertos de mão secretos. Apenas um olhar. Vocêtambém fez isso. Sim.

Admiti, silenciosamente. Desviei o olhar, passei o dedo indicador pelabochecha de Zoë. Ela balançou as pernas, fez formas sem palavras com a boca.Como Delilah fizera. O pensamento sobre os discípulos, em loop na cabeça,me deixava agitada e exausta, apesar de seguir dizendo a mim mesma queLorcan estaria melhor com eles: Não precisariam dele até a metade doinverno. Precisariam mantê-lo vivo até então, quando os cientistas do Heliosteriam iniciado o trabalho imediatamente. Eu seguia dizendo aquilo paramim mesma, mas não conseguia repelir a náusea, sabendo que havia religiãoenvolvida, sacerdotes, profecias, rituais. Maldito charlatanismo. Aquilosignificava que todas as apostas estavam encerradas. Significava que qualquercoisa que não fizesse sentido seria possível. Provável, na verdade.

– Quantos de vocês existem? – perguntei.– Muito menos do que precisamos. Você está se esquecendo de que não

estávamos com os rebeldes, e a maioria deles sumiu no submundo, de todomodo. Duvido que os veremos de novo. Os que Murdoch não pegar obterãonovos rostos, novas identidades.

– E eu fico com o quê? Uma força de dois homens?– Ei, são dois caras muito bons. Mas não, ficará com mais do que dois. Há

cerca de uns vinte no mesmo barco que eu e Mike, acusados injustamente eem fuga, além de algumas pessoas infiltradas que nos ajudam a permanecerum passo à frente. E não se esqueça de que você tem Clouseau.

– Ele não é ridículo – eu disse. – Sei que você pensa que ele é, mas euestaria morta nesta altura se não fosse por ele.

– Aceitarei sua palavra quanto a isso. Mas é melhor que ele entenda: nadade ataques de cólera na passarela.

– Não se preocupe com isso. Ele ficará bem.Eu estava pensando: mais ou menos 20. Jacqueline tem 300 vampiros.

Probabilidades hollywoodianas. Gostasse ou não, eu precisaria telefonarnovamente para Charlie na Aegis. No entanto, aquele não era o momento demencionar isto a Walker.

– O que você tem a ganhar? – perguntei. – Ou melhor, o que você tinha aganhar, antes da chance de ganhar algum dinheiro se apresentar?

O reflexo do sorriso disparou, começando a fazer alusão ao nossopotencial sexual, mas Walker não conseguiu levá-lo a cabo. Ele baixou osolhos.

– Devo isto a Mike – disse ele. – Você sabe como é.Não agora, seja lá qual fosse a história. Honra masculina,

presumivelmente. Muito bem. Não fazia diferença para mim. Eu estavacansada. Minhas costas doíam por causa do carregador de bebê. Eu sabia oquanto seria maravilhoso deitar-me na cama e aninhar-me com Zoë ao meulado, deixando o sono se fechar sobre mim como água negra.

– Me diga uma coisa – falei, descolando a fralda. – Não o incomoda que eutenha matado outros da sua espécie?

A pergunta feia, feita de modo feio, não somente por irritação com o sensode oportunidade da libido, mas devido ao conhecimento de que seria bom seeu dormisse com ele – e por melhor que fosse, não seria bom o bastante. Pois,para aquilo que eu era, havia somente uma coisa que jamais seria boa obastante. Uma única coisa, e ninguém com quem a compartilhar.

– Por quê? – respondeu ele. – Não a incomoda que eu tenha matadooutros da sua?

20

De volta ao nosso hotel em Kensington acomodei Zoë em seu carrinho-berçoe fiz Cloquet se sentar diante de mim.

– Muito bem – eu disse. – Me conte o conto de fadas vampiresco.Os cômodos – um quarto de dormir com suíte e uma área separada para a

sala de estar/jantar – eram luxuosamente corporativos, decorados em tons debege com planos ocasionais de marrom-escuro. A noite tensa e úmida deLondres era como uma inteligência escutando com o ouvido pressionadocontra a janela.

– Você acha que eu deveria ter lhe contado – disse ele. – Talvez eu devesse.– Cloquet parecia cansado, e um pouco ensandecido.

– Só me conte tudo que sabe – eu disse. – E sem enrolação, por favor,esteja você pensando ou não que com isso vise meu melhor interesse.

Ele afundou na poltrona de couro, que o recebeu com um suspiro. O rostodele estava com a barba por fazer, inchado, olhos injetados. Caso eu pensasseem me livrar dele, descobri que não conseguia imaginá-lo vivendo qualqueroutro tipo de vida. Era o padrão dele se dissolver sob a vontade de umamulher monstruosa. Minha parte humana, ocasionalmente, levantava a ideiade obter ajuda para ele, mas ela não conseguia sustentar por muito tempo,não com wulf zombando e dizendo a ela que estava desperdiçando tempo. Elevai ficar pior sem você agora. Esta é a natureza da doença do familiar: ele nãoconsegue viver com a cura.

– Já contei tudo – disse ele. – De verdade.– Então, conte outra vez. Quero saber com o que estamos lidando.

Eu sabia com o que estávamos lidando: o desespero por sentido, porrespostas, por um esquema invisível das coisas sustentando a absurdaconcretude do aqui e agora. Estávamos lidando com vampiros aterrorizadoscom o vasto silêncio matemático. Sempre que eu via massas muçulmanascurvadas em oração ou fieis católicos reunidos, tudo o que eu via era medo.Judeus chassídicos idioticamente fazendo que sim com a cabeça, hindusjogadores de tintas, evangélicos trêmulos e tagarelas, todos se borrando demedo de que aquilo fosse tudo que existisse. Até mesmo os budistas (cujosenrugados lamas sorridentes sempre me deixavam com vontade de estapeá-los) estavam aterrorizados com a própria carne e sangue, precisavam dealguma terra desencarnada, uma terra de conto de fadas e isenta de desejos àqual almejar.

Os Discípulos não eram diferentes. A crença em um messias era aconfissão coletiva de que não eram capazes de se virar sozinhos. Meu próprioJake querido passara 40 anos de sua vida obcecado com a coisa mais próximade um texto sagrado que os lobisomens tinham, o Livro de Quinn, a históriados Homens que se tornaram lobos. Segundo Cloquet, o livro (e a placa depedra que pertencia a ele) realmente existia, apesar de agora, graças amadame Delon, encontrar-se nas mãos dos não mortos. Cloquet alegava tê-lovisto com os próprios olhos (mas que jamais o lera), e que não havia motivopara não acreditar nele, mas a minha sensação era a mesma com a qual Jakeacabara ficando: a de que, mesmo que o livro fosse real, não se poderia inferirque a história nele contida fosse verdadeira. E como não havia nenhum meiode verificar a veracidade da mesma, qual diferença ela possivelmente poderiafazer? Além do mais (já que era inegável que as duas coisas se conectavamexaustivamente, gostasse eu ou não), mesmo se o vampiro mais antigo fossevelho o bastante para ter vivido na época dos eventos descritos pela história,não havia nenhum motivo para que ele soubesse qualquer coisa a respeitodeles. Certamente, nenhum motivo pelo qual ele saberia se eram verdadeiros.

Emergi do meu devaneio para deparar com Cloquet repetindo o que ele eWalker, entre si, haviam descrito mais cedo: que, segundo a lenda, Remshi erao vampiro mais antigo ainda vivo, que ele existia, como dizia a inútil frase,

“desde os primórdios”, que possuía poderes extraordinários, que retornavaperiodicamente para reclamar seu reinado.

– De onde ele retorna?– Do sono. Ele adormece por longos períodos, décadas, talvez séculos.

Retorna quando a raça dos vampiros necessita de... de uma espécie derenovação. É uma coisa vaga.

– Portanto, deve haver registros. Eles escrevem a própria história, nãoescrevem?

– Houve um incêndio que destruiu a grande biblioteca dos vampiros emPasárgada em 2500 a.C. – disse Cloquet. – Era lá onde quase todas as históriasautorizadas eram mantidas. Havia cópias, mas não muitas. Com o passar dosanos, elas se espalharam, se perderam. Alguns registros posteriores dizem queRemshi reapareceu por um curto período na China, em torno de 400 a.C.Mas, depois disso, nada, e mesmo naquela época houve muitos vampiros quenão o aceitaram. Agora, o mundo progrediu. Vampiros são pragmatique. Aideia de um messias perdeu... credibilidade.

– Mas se Remshi existiu, deve haver vampiros vivos que se lembrem dele –eu disse.

– É possível. Mas eles não vivem tanto tempo – explicou Cloquet.– Como assim? Eles não são imortais?Ele ficou de pé e serviu para si mesmo um Jack Daniel’s do minibar.

Colocou a mão no bolso procurando cigarros, então lembrou-se de Zoë,desistiu. Velhos hábitos.

– Eles são imortais – disse ele. – Mas não significa que suportem viver parasempre. A maioria desiste. Caminham até a luz do sol ou se atiram contrauma estaca de madeira. Não são muitos os que passam dos mil anos.

– Como você sabe tudo isso?– Jacqueline.Exaustão vampiresca. (Literalmente.) Era plausível. O pensamento de

meros 400 anos me dava vertigem quando eu parava para pensar a respeito, eeram 400 anos sem perder a capacidade de fazer sexo e comer alimentosnormais e se mover à luz do dia. Chupadores são depressivos, eu recordava ter

lido em um dos diários. Séculos sem a luz do sol. Transtorno afetivo sazonalem escala gigantesca. O que você esperava?

Cloquet permaneceu ao lado do minibar, recostado na parede,visivelmente sentindo dor. Já havia passado da hora de encontrar alguém paraexaminar aquele ferimento no ombro dele.

– A ideia de Remshi sobreviveu – disse ele – através da Grécia e de Roma,mas sempre com um número menor de crentes. Houve um revival entre osvikings, mas não durou. Na época da Renascença, mal era um culto. Antes deJacqueline aparecer, era um bando de fanáticos reunidos em torno de dois outrês sacerdotes. As Cinquenta Famílias consideravam-nos loucos inofensivos.

– Mas não mais – eu disse.– Não. Agora, estão começando a ficar preocupadas. Os loucos não são

mais inofensivos. Nem tão poucos assim.– E quanto ao Livro de Remshi? – perguntei, odiando até mesmo ter que

dizer tais palavras. – E quanto a tais profecias?– Jacqueline acreditava serem autênticas, mas para mim elas eram a parte

mais fraca da história. Existem versões diferentes do livro. Ninguém sabe quala origem delas, ou quem as escreveu. A cópia mais antiga era datada dosegundo século de Atenas, mas alegava ser uma tradução de algo muito maisantigo. Não sei.

– Mas você o viu?– É claro. Ela tem cópias – respondeu Cloquet.– E?Ele balançou a cabeça, lentamente.– Não compreendi. Eram só... devinettes... adivinhações. E também

matemática e astronomia. Supostamente para, de alguma maneira, forneceras datas e os locais do retorno dele.

– E Jacqueline sabia onde e quando seria? Em nosso tempo, desta vez?– A data não é nenhum segredo. Um eclipse lunar total au solstice d´hiver

não ocorre desde 1638. Mas ele ressurge antes disso. Onde, apenas ossacerdotes deveriam saber. Eles deveriam manter o local em segredo até oúltimo momento, para caso alguém... Caso alguém tente algo. Mas ela

encontrou um jeito. – Ele gargalhou, sem achar graça. – Ela encontra umjeito, sempre.

Imagens de novo: Lorcan sobre o altar, Jacqueline nua, boca aberta, Jakede joelhos, lambendo a boceta dela. Percebi que, até aquele instante, eu nãosentira nada por ela. Ela fora um obstáculo a ser superado, e não uma pessoade quem se gosta ou não. Agora, após ouvir ela encontra um jeito, sempre, eusabia que queria matá-la. Eu queria olhar no rosto dela, deixá-la saber que euestaria saboreando o momento, e depois matá-la. Aquilo me proporcionariauma satisfação profunda, estrutural. Saber aquilo era um prazer pequeno enítido, como se cegamente eu suportasse um espinho no pé até que fossesubitamente removido.

– Lamento não saber mais – disse Cloquet. – Mas, na época, tudo isso mepareceu ridículo.

Era ridículo para mim agora, mas não significava que meu filho não seriasacrificado. Até que ele beba o sangue de gammou-jhi. A frase me deixavafuriosa e exausta. Furiosa porque não era mais artificial, arbitrária e estúpidado que se transformar em um monstro de 3 metros toda lua cheia eestraçalhar uma pessoa e devorá-la. Quem era eu para desconsiderá-la? Hádois anos eu teria desconsiderado a realidade na qual eu mesma vivia nesteinstante.

Apesar disso, eu a desconsiderei. Não pude evitar. Quando perguntava amim mesma se acreditava que um vampiro de milhares de anos passariaadiante previsões de seu reaparecimento regular durante os milêniosvindouros, e que tais previsões teriam sido precisas e preservadas comsucesso, a resposta era “Não, não acredito”. Quando perguntava a mimmesma se Jacqueline e seus Discípulos acreditavam na história, a resposta era“Sim, acreditam”. E como Walker destacara, no que dizia respeito à vida domeu filho, isto era tudo o que importava.

Walker.Eu sabia duas coisas. Uma era que dormir com ele seria uma ideia

profundamente ruim. A outra era que eu iria dormir com ele.– Vou tomar um banho – falei para Cloquet. – Você deveria descansar um

pouco.Ele permaneceu onde estava por um momento, olhando para o dourado

flamejante do uísque. Depois, ergueu o copo, bebeu o que restava nele,colocou-o sobre o bar e foi até a porta. Parou. Não se virou.

– Talvez você esteja certa – disse ele. – Não cabia a mim tomar a decisão.Não respondi de imediato. Minha parte humana sabia o quão pouco me

custaria dar a ele uma palavra de conforto. Wulf permanecia afrontado porseu familiar ter tomado a lei com as próprias mãos. Durante algunsmomentos a gramática da Maldição insistiu que uma dose de sofrimentoagora seria salutar. Ponderei. O cansaço deixara minha visão periférica comum leve tremor. Depois, me lembrei de Jake me contando uma história sobreHarley saindo disparado do boudoir de um amante em tamanha fúria quesomente quando chegara à rua se dera conta de que calçara os sapatos aocontrário, esquerdo no pé direito e vice-versa. Jake tinha gargalhado, com umdeleite genuíno e caloroso. Depois, quando a gargalhada parou, ele dissera:“Meu Deus, eu gostaria de ter sido mais gentil com Harley.”

– Foi errado de sua parte – falei para Cloquet, tranquila. – Mas foi erradopelos motivos certos. Agora, pelo amor de Deus, vá dormir um pouco.

21

Na tarde seguinte telefonei para Walker com o que imaginava ser másnotícias: Charlie Proctor, o homem de Jake (e, subsequentemente, o meu) naAegis, sumira. Quando eu telefonara para o número dele, uma mulher comum sotaque levemente irlandês me disse que o Sr. Proctor não estava mais nacompanhia. Não, não havia nenhum número novo. Não, ela não poderiaencaminhar um recado. Não, não havia mais informações que ela pudesse medar. Ela poderia me conectar com o Sr. Hurst, substituto do Sr. Proctor – mas,naquela altura, eu já sabia que aqueles eram, todos, sinais errados. Eu disse aela que voltaria a ligar. Não diria nada a respeito daquilo a Walker. Qual seriao sentido? De qualquer forma, não poderíamos usar Aegis agora. Aindaassim, algo me fez telefonar para ele.

Houve um silêncio no outro lado da linha, depois ele disse:– Não diga nada mais. Desligue. Deixarei um recado para você na

recepção. Não use este número e não traga seu celular. Diga a Cloquet paratambém não usar o telefone dele.

Depois, ele desligou.Quatro horas mais tarde, Walker me pegou no estacionamento no subsolo

do shopping de Hammersmith. A BMW 4x4 fora substituída por umaminivan da Ford que dizia EMMERSON ENGENHARIA na lateral. Ao verZoë amarrada a mim no carregador, ele disse:

– Você sabe que vai ser difícil conseguir equipamentos de camuflagem quesirvam nela, não é?

– Qual é o problema?

– Você deixou seu celular para trás? – perguntou ele.– Sim. De que trata tudo isso?– Adivinhe para quem Murdoch trabalhou depois que deixou as Forças

Especiais e antes de se juntar à WOCOP?Um momento para cair a ficha. Aegis. Me senti burra – e incapaz de

calcular os danos que eu já poderia ter causado. Deixando de lado a sirene dealarme que disparou com o desaparecimento de Proctor (estaria morto? Porse recusar a me delatar? Teria sido uma Pessoa Na Qual Eu Poderia Confiarafinal de contas?), era obviamente possível que Murdoch soubesse a respeitoda missão abortada na casa de Merryn. Mas, se ele soubesse, por que eu aindaestava viva? Será que, da mesma forma com que Grainer fora antes dele,Murdoch fosse da velha-guarda e só matasse lobisomens transformados sob alua cheia? Se fosse o caso, eu teria 24 dias antes de esperar qualquer atentadocontra a minha vida. E se Draper e Khan tivessem ficado por perto e vistoWalker e Konstantinov chegando? Murdoch poderia estar nos seguindonaquele instante.

– Provavelmente, está tudo bem – disse Walker. – Faz dez anos queMurdoch trabalhou para a Aegis, portanto, duvido que muitos colegas deleainda estejam lá, mas não queremos correr riscos desnecessários. É claro queé possível que ele tenha ouvido sobre o que ocorreu na casa de Merryn, masnão há razão para presumir que os capangas da Aegis soubessem que eravocê. Além disso, alvos sobrenaturais não ocupam muito a cabeça deMurdoch atualmente. Tudo com o que ele se importa é a Purificação.Provavelmente você está segura. Sou eu quem está prestes a levar um tiro nacabeça. Talvez você devesse dirigir.

Chovia forte e estava quase escuro. Seguíamos para o oeste, deixando acidade, rumo à M4.

– Eu deveria ter contado que estava pensando em usar a Aegis – eu disse. –Sinto muito.

– Esqueça. Mas, daqui para a frente...– OK – respondi.Obviamente, o fato de estarmos a sós exercia alguma pressão. Depois da

dificuldade gritante de escondermos o que havia se passado entre nós na noiteanterior, desfrutávamos de um imenso constrangimento. Gostasse eu ou não,as férias da Puta da Babilônia chegaram ao fim. Era impossível negar o queocorria, para empregar o eufemismo de Tia Theresa, “lá embaixo”. Durante ocochilo que tirei pela manhã, eu tivera sonhos eróticos surreais: reluzentescorpos masculinos e femininos sem rosto, fodendo em um desespero groguesob o que seria a trilha sonora dentro de um abatedouro. Às vezes, eu era umdeles, em forma humana. Noutras, não. Uma imagem muito clara e frequentede mim arrastando o focinho de monstro sobre a barriga coberta de porra deum homem, deixando um rastro de sangue escuro. Tinha acordado com orosto quente, as mãos trabalhando inequivocamente entre as minhas pernas.Eu hesitara – termine isso, senhorita, e o gênio sairá feliz da garrafa –, depoisacabei cedendo e gozando muito, com uma deliciosa e compreensívelsensação de desintegração. Agora você fez. Bem, sim, eu fizera. Venha o quevier, disse o humor negro num trocadilho proposital.

– De todo modo – prosseguiu Walker –, na bolsa aos seus pés há doistelefones limpos, um para você, outro para o Francês. É improvável que o seutenha sido grampeado, mas como Proctor desapareceu, seríamos burros senos arriscássemos. Usem apenas estes aparelhos de agora em diante. Tambémprecisarão mudar de hotel.

A lembrança da masturbação me deixara risivelmente molhada. Wulfestava apropriadamente desperta agora, enrolando os lábios e lambendo osdentes. Não deveria ser assim. Como mãe de um filho desaparecido, minhaexistência deveria ser uma agonia sem alívio. Não deveria haver espaço paramais nada, especialmente não para aquilo. Ainda assim, ali estava. Seja lá oque estiver acontecendo, sempre haverá algo mais. Só a arte de má qualidadee a imprensa marrom insistem no contrário.

– Quanto tempo até sabermos de algo? – perguntei a ele.– Não sei dizer – ele respondeu. – Jacqui dividirá seu grupo. Acho que não

seria possível mudar trezentos vampiros para algum lugar sem respondeu quealguém perceba. Ela dispersará a maioria, mas manterá os favoritos por perto.Também irá manter seu filho por perto, com certeza, mas Natasha? Não sei.

Você compreende que ela é a nossa prioridade, certo? Quero dizer, semofensas, mas a única coisa pela qual Mike dá a mínima é a esposa.

– Eu sei – respondi.– E escute... – O sorriso novamente, Walker deslizando de volta para seu

cintilante comportamento defensivo. – Se a pegarmos e eu ainda estiver vivo,imagino que será mais ou menos nessa hora em que pularei fora, enquantoestiver na dianteira. A menos, é claro, que você e eu tenhamos nosapaixonado até lá.

– Nunca discutimos valores – falei.– Não, mas você iria contratar a Aegis, e sei que eles não são baratos.– É verdade. Eu deveria ter ficado de boca fechada. Não sou muito boa

nisso – confessei.– Falemos disso mais tarde. Está acabando com o clima. Essa sua bebê é

bem quieta. Sabe que se precisar amamentá-la não vou ficar constrangido.– Terei isto em mente, mas acabei de alimentá-la.– Ela nunca chora? – perguntou Walker– Quase nunca. Acho que talvez quatro vezes desde que nasceu. Ela é

como o menino Jesus. Ou talvez seja muda. – Era verdade que Zoë era umabebê extraordinariamente tranquila. Dormia, acordava, alimentava-se, faziaxixi, vomitava e evacuava negligentemente – mas raramente derramava umalágrima.

Julgando você em silêncio em favor do irmão.– O que você vai fazer com ela? – perguntou Walker. – Se e quando

estivermos prontos para seguirmos em frente?Bem, sim, aquela era a questão. Deixá-la com Cloquet? Permanecer em

casa com ela e confiar em outra pessoa para resgatar o irmão? Levá-lacomigo? As duas primeiras opções eram difíceis de engolir. A terceira era umdelírio. Até então, eu lidara com o problema esperando que surgisse algo parasolucionar magicamente a questão.

– Me pergunte isso quando estivermos prontos – respondi. – Enquantoisso, qual é a história de... Merda!

– Qual é o problema?

Alguém passou em cima da minha sepultura.Ou melhor, correu sobre ela, arrastando um ancinho. O corpo de Zoë, que

estava contra o meu, também registrara aquilo, como se compartilhássemosum choque elétrico ou uma explosão de formigamento no corpo. Senti a bebêretesar-se e depois relaxar. Dois segundos e estava terminado.

– O que foi? – perguntou Walker.– Não sei. Algo estranho... Desde que cheguei aqui tenho tido esses

pequenos episódios de...– De quê?– De algo por perto. Algo passando perto de mim.– Algo ruim?– Não sei.– Quer que eu pare o carro?– Não, está tudo bem. Na verdade, espere, podemos não pegar a estrada?

Quero dizer, podemos ficar na cidade? – O que quer que fosse, estava ali, tivecerteza. Não importava o quanto eu desejasse que fosse o fantasma de Jakeatirando-se violentamente contra a barreira entre nós, eu sabia que não eraaquilo.

– Sem problema – disse Walker. – Tem certeza de que está bem?– Estou bem. Me desculpe.Era um lembrete para ele daquilo que eu era, do tipo de criatura que estava

dentro do carro com ele. Eu podia sentir a lucidez trabalhando contra aatração dentro dele. A adrenalina da noite anterior dissera que qualquer coisaera possível. Agora, ele estava maravilhado consigo mesmo. Ele queria dizeralgo, fazer uma piada a respeito, mas o momento o deixara à deriva. As luzesda rua deslizavam sobre seu belo perfil. Seu belo perfil. Está vendo o que vocêfez? Está vendo o que você libertou?

– Vou lhe perguntar o que eu iria perguntar – falei. – Qual é a história deKonstantinov?

Eu não tinha a intenção de prestar atenção, seja lá qual fosse a história; eraapenas para dar a Walker algo para fazer enquanto eu continuasse tateandoem busca do que sentira um momento antes (medo? Déjà-vu? uma espécie de

excitação abstrata?), mas quando ele começou a falar, me senti atraída, apesarda minha própria vontade...

Konstantinov, Walker me disse, crescera em uma Fazenda Estatal emMorshansk, e aos 14 anos se apaixonara pela filha do diretor, Daria Petrov, damesma idade e com quem compartilhava a mesmo jeito de ser e que tambémestava apaixonada por ele.

– E quando digo apaixonados – continuou Walker –, quero dizer em umaintensidade profana. Os dois poderiam ter se sentado com Romeu e Julieta emantido as cabeças erguidas. Não se pode falar com Mike a respeito, ou pelomenos não se podia, durante anos. Ainda agora é preciso escolher o momentocerto e tomar cuidado com o tom de voz.

Os jovens amantes adotaram o hábito de escapulir tarde da noite paraencontros eróticos em uma floresta próxima. Certa noite, no verão de 1980,receberam uma companhia não convidada. Um vampiro.

– Foi um daqueles sincronismos terríveis – disse Walker. – Até então, elessó tinham feito umas sacanagens, mas não fodido de verdade. Naquela noite,pela primeira vez, sob um grande carvalho, foram até o final. Aquilo mudouMike para sempre. – Walker balançou a cabeça em um maravilhamento triste.– Imagino que haja somente algumas primeiras vezes como aquela pormilênio – disse ele. – As de todas as outras pessoas parecem histórias deterror. Ou comédias. – Ele me lançou um olhar rápido.

– Horror-comédia – falei, pensando apesar da perturbação duradoura daminha primeira vez, aos 16 anos, com Luke Peters nas dunas em uma festa depraia da Rehoboth. Tudo ia bem até uma brisa assoprar um saco de lixorasgado sobre a bunda nua de Luke e ele levar o maior susto de sua vida; e eunão consegui parar de rir, depois precisei me afastar, me arrastando, paravomitar, porque a bebida e a maconha da noite tinham me derrotado.

– Você teve sorte – disse Walker. – A minha foi puro horror. Enfim, noque dizia respeito a Mike, o momento foi definitivo: aquela era a garota com aqual ele passaria o resto da vida. É uma coisa russa, essa certeza épica.Americanos não são feitos para isso.

Arrebatadamente esgotado, sensualmente reinventado, o jovem

Konstantinov afastara-se alguns passos para esvaziar a bexiga. Quandoretornou, teve uma visão estranha. Daria parecia adormecida, mas com ascostas arqueadas e a cabeça vários centímetros acima do solo. Os braços delaestavam flácidos. Era como se um mágico invisível estivesse no meio doprocesso de levitá-la. Por um momento Konstantinov ficou parado, sementender o que via. Depois, percebeu a enorme mão branca na base dopescoço dela, e gritou – o que fez o vampiro levantar o olhar, e o quebra-cabeça visual se solucionou. A criatura – um vampiro masculino, maduro, decabelos escuros e corpo comprido – pendia de cabeça para baixo do galhomais baixo, uma das mãos sob as costas de Daria, a outra sob seu pescoço. Eleprovavelmente estivera o tempo todo na árvore, observando o casal. Eleencarou Konstantinov por alguns momentos, depois ergueu Daria ainda maisdo solo e cravou novamente os dentes no pescoço dela.

– Ele poderia ter fugido – disse Walker. – Ela estava morta, de todo modo.Qualquer outra pessoa teria fugido. Eu teria.

Mas Konstantinov não fugiu. Ele agachou, procurou no chão, pegou namão esquerda o que sabia que era um pedaço inadequado de madeira morta eavançou contra a criatura.

– Ele tinha um lápis na outra mão – disse Walker. – No bolso do casaco,escondido. Mikhail é assim. Um lápis. Ele ia ameaçar um golpe com amadeira morta na mão esquerda e cravar o lápis com o máximo de força coma direita. Perguntei a ele por que não fugiu. Sabe o que ele disse?

– O quê? – perguntei.– Ele disse: “Você já se apaixonou?”Passamos pela estação de Kew Bridge, e em um momento estávamos

atravessando a própria ponte. Londrinos estavam sob guarda-chuvas, ouandando apressados, ombros curvos, rostos enrugados, ou fumegando nasentradas das lojas, falando em celulares. O mundo humano ao qual eu nãotinha mais direito, mas não conseguia abandonar. Você já se apaixonou? Aspalavras tinham alarmado suavemente nós dois, no pequeno espaço aquecidodo interior da van. Tive uma sensação pungente do amor se movendo atravésda história como uma corrente de água, estreita e cintilante. De repente, no

meio das coisas, você sentia essas pungências, encontrava-se piscando osolhos ou engolindo em seco ou precisando desviar o olhar.

– Segundo Mike – disse Walker –, o vampiro ficou surpreso, talvez atémesmo um pouco tocado. Ele pousou o corpo da garota e saltou para o chão.Mike estava a menos de 2 metros de distância. Dava para sentir o cheiro dosangue de Daria. Ele disse que foi a primeira vez que percebeu que sanguetinha cheiro, sabe?

Walker esquecera-se de novo do que eu era. Não respondi. Depois, elelembrou. Sim, ela sabe sobre o cheiro de sangue. Ainda assim, havia umaparte dele que não se importava, que seguiu em frente e aguardava até que oresto alcançasse o mesmo ponto. Se isso chegasse a acontecer, era impossíveldizer qual forma a vida de Walker poderia tomar. Imaginei minha mãedizendo: “Fique com ele, Lulu. Você sabe como são poucos os homens dignosde se ficar?” Imaginei a sensação da cintura dele, rígida entre minhas mãos, asensação doce e sem-vergonha de envolver as pernas em torno dele, ao redorde todas as deliciosas complicações...

Konstantinov jamais chegou a saber se seu plano com o lápis teriafuncionado. Algo perturbou o ar muito perto de sua cabeça.Simultaneamente, ele viu o vampiro estremecer, como se alguém o tivesseatingido com um atiçador de gado. Naquele instante, a lua escapou por detrásdas nuvens e ele viu a estaca de madeira – mais espessa do que a flecha de umarqueiro – cravada no peito do monstro. Uma voz de homem disse, em russode Moscou: “Por Cristo, garoto, quase arranquei sua cabeça. Por que nãofugiu?”

– E o resto – disse Walker – é história.O assassino do vampiro era um membro da divisão soviética da Caçada.

Ele e o parceiro estavam no rastro do chupador há uma semana. Mikhail teriapartido com eles naquele instante, mas não permitiram. Ele levou dois anospara localizar a organização e ingressar nela, mas quando ele decide umacoisa...

Desde então, por trinta anos, Walker enfatizou, Konstantinov se recusaraa se aproximar de uma mulher – até 12 meses atrás, quando conhecera

Natasha.– Vai saber – disse Walker. – Talvez houvesse uma quantidade enorme e

específica de “não amar ninguém” que ele tivesse se determinado a cumprir,uma penitência que precisasse concluir. Creio que ele nem sequer soubessedisso até conhecer Natasha. Mas quando a conheceu, reagiu como se amulher tivesse sido enviada a ele por Deus.

E como Deus nunca estava satisfeito, Konstantinov também a perderapara os não vivos.

– A culpa é minha – disse Walker, enquanto o Tâmisa reaparecia àesquerda. – Ele estava a apenas duas mortes confirmadas de um grandebônus, e o dinheiro seria uma ótima ajuda para ele e Natasha. Elescomprariam um pequeno bar na Croácia ou na Turquia ou na Grécia. Elequeria cair fora assim que a conheceu, mas eu o convenci a ficar para ganharo bônus.

O que era a minha deixa para dizer que não era culpa dele, mas minhamente retornara para alguém passou em cima da minha sepultura. Eu aindanão conseguira definir o que era, nem mesmo se sentira medo. A única coisada qual tinha certeza era que Zoë sentira o mesmo.

– O corpo do vampiro na casa de Merryn – falei. – Você disse que era umdos sacerdotes de Jacqueline. O que está por trás disso? Você acha que umdos capangas de Merryn o matou?

– Bem, ele foi decapitado, portanto, acho que não. Não havia nada ali como que ele pudesse ter sido decapitado, pelo que pude ver.

– Então...? – perguntei.– Não sei. Talvez houvesse alguém mais ali que não soubéssemos. Estou

aguardando um telefonema de nossos caras da WOCOP. Eles já devem terdescoberto a esta altura. São lentos, mas acabam chegando lá.

Dirigimos de volta ao estacionamento sob o shopping de Hammersmith.O lugar cheirava a concreto congelado, dutos de alumínio e fumaça deexaustores. Agora que chegara a hora de sair do carro, eu não queria. Opensamento do percurso de volta ao hotel me deixava com a sensação de estarexposta. Os espaços da cidade estariam repletos de vigilância abrasiva. Me

perguntei o que Walker faria se eu o beijasse. Entre outras coisas, ele pensariaem toda a carne e sangue humanos que minha outra boca mastigara eengolira.

– Você está bem? – perguntou ele.Não, não estou. Estou solitária e exausta e sou uma péssima mãe e, acima

de tudo, estou morrendo de enxaqueca por causa de um maldito desejoidiota.

– Estou bem – respondi, abrindo a porta do carona.No mesmo instante, uma bala silenciosa atravessou a janela com um

inconfundível tch bem ao lado da minha cabeça.

22

Walker me puxou em sua direção e engrenou o veículo.– Fique abaixada – disse ele, muito tranquilamente.Uma segunda bala – delicadamente audível apesar do motor acelerado e

dos pneus gritando – perfurou o para-brisa e enterrou-se no assento traseiro.Prata? A cabeça de Zoë por pouco não atingira o câmbio. Rapidamente girei ocorpo para me posicionar entre ela e o painel enquanto a van guinava edesviava de faixa, a porta do carona ainda aberta.

– Cuidado com a cabeça dela – disse Walker. Havia pneus cantando emalgum lugar atrás de nós. A porta do carona bateu em um pilar de concreto efechou com uma pancada. A janela da porta se estilhaçou – como se acabassede se lembrar do que deveria fazer, uma vez que era de vidro. Meu rostoestava no colo de Walker. Calças cáquis com cheiro de lavadas e que melembravam da lavanderia do brownstone da rua 11 – isto e a conotação desexo oral, visto que mesmo em tais momentos conexões são conexões, océrebro diz “Não faça perguntas, eu só trabalho aqui”. Zoë, assustada pelapancada da porta, pelo estilhaçar da janela e atenta ao meu coração disparado,começou a chorar. O que só fez crescer a pequena tortura de não ser capaz deconfortá-la apropriadamente.

– Segure firme – disse Walker.Perdi todo o senso de direção. Havia um padrão – aceleração, frear, curva

fechada, aceleração –, e eu soube que estávamos subindo as rampas parachegar ao nível da rua, mas estava tão desorientada quanto estaria dentro deuma secadora de roupas.

De repente, aceleramos por mais tempo num trecho mais nivelado, osmúsculos abdominais de Walker tensos e o que pareceu um momento depuro silêncio – depois, o para-brisa estilhaçando ao nos chocarmos com acancela na saída. O cheiro e os barulhos da noite molhada de Londresinvadiram o carro.

– Ainda estão nos seguindo? – perguntei.– Não tenho certeza. Continue abaixada. Estamos na maldita rua principal

agora.– Quem são eles?– Não consigo ver. Os homens de Murdoch, provavelmente. Nossa

pequena dama está bem? – perguntou Walker.A mudança no ar e no som fizeram com que Zoë se aquietasse novamente.– Ela está bem – respondi. – O que vamos fazer?– Precisamos nos livrar dessa van. Ela foi identificada, obviamente. Creio

que o melhor seja... Espere. Segure firme. Vamos passar por um quebra-molas...

Pelo salto que eu e Zoë demos no assento, soube que ainda estávamos emalta velocidade. Buzinas explodiam ao nosso redor. Um pedestre bem ao ladoda janela ausente disse “Cacete”. O ar que entrava no carro era frio, tinhagosto de pavimentação, fumaça de canos de descarga e fritura.

– Consegue correr? – perguntou Walker.– Sim.– Rápido?– Sim.– Certo, em um minuto vou parar. Estaremos bem diante do shopping da

estação do metrô. Saímos e atravessamos. Há táxis no outro lado.– Ficou maluco de vez?– É mais difícil seguir um carro que tem 20 mil cópias. Confie em mim.

Esse monte de merda não presta mais para nós. Está com os telefones limpos?– Sim.– Ótimo. Ao meu sinal. Somente ao meu sinal. Entendeu?– Entendi.

Aconteceu rapidamente, mas foi rico em detalhes: o cheiro da jaqueta decouro de Walker; uma van de sorvete cor-de-rosa e branca; a mão úmida deZoë como uma pequena criatura marinha pressionada contra meus lábios porum instante.

– Um grande quebra-molas, e depois partimos – disse Walker. – Pronto...– Subimos com violência no meio-fio. Pedestres se afastaram com umestranho som coletivo, um misto de medo, ofensa e satisfação por algoinesperado estar ocorrendo. – Vá!

Os rostos das pessoas não passaram, como dita a convenção, em umborrão, e sim em vívidos instantâneos. Tive uma breve ciência da friaescuridão de Londres e da suavidade do calor da multidão, depoisatravessamos a entrada e estávamos correndo ao longo da plataforma central,Walker com a arma visivelmente escondida sob a jaqueta, eu agarrando Zoëcomo uma bola de futebol americano, pensando que a qualquer segundo... aqualquer segundo.... você sente a bala apenas em uma terrível fração desegundo antes de ouvir o disparo... As vitrines das lojas eram nítidas, urgentese desimportantes – WH Smith; Superdrug; Tesco Express; coisas desprezíveise sem alma para serem as últimas que você vê –, depois, estávamos além dasescadas rolantes e de volta à rua.

Olhei para trás. Caso houvesse alguém nos seguindo, estava oculto pelosconsumidores que se arrastavam.

– Aqui dentro!Walker já estava abrindo a porta do primeiro táxi em uma fila de três

carros. O interior iluminado era uma coisa linda. Segurando Zoë firmemente,entrei.

23

Levou pelo menos meia hora e muitas ruas transversais antes que Walkerficasse convencido de que não estávamos sendo seguidos, e mesmo assim eleme aconselhou a não retornar ao hotel em Kensington.

– Estavam atirando em você ou em mim? – perguntei.– Quem sabe? – disse ele. – Mas não era Murdoch.– Como assim?– Ele não teria errado. Só estou surpreso que ele tenha aberto o caso para

os subalternos. Achei que ele quisesse o prazer para si.– Talvez estivessem atirando em nós dois – eu disse. – Quero dizer, ainda

é a WOCOP, não é? Acho que não existe uma anistia para lobisomens.– Mesmo assim devemos presumir que seu hotel foi descoberto. Meu

apartamento também. Mike e eu estamos ficando sem locais seguros.Eu estava preocupada com Cloquet. Eu estava fora do hotel há horas. Ele

estaria mastigando o papel de parede aquela altura. Mas se o celular dele e otelefone do quarto estivessem grampeados, como eu poderia contatá-lo paralhe dizer que saísse de lá?

No final das contas, telefonei para o concierge. Pela graça do Deus que nãoexistia, ele se lembrava de mim (eu tinha ficado sem fraldas para Zoë na noiteem que chegamos ao hotel e precisei encontrar a loja 24 horas mais próxima)e, apesar de precisar de um pouco de persuasão, o homem concordou emfazer o que pedi. Ele chamaria o “Sr. Malraux” na suíte 472 e diria a ele paradescer à recepção a fim de receber um recado urgente da “Srta. Atwood”. Euaguardaria dez minutos, depois telefonaria para o concierge em seu próprio

celular, o qual ele entregaria a Cloquet. Nem mesmo as suspeitas de Walker seestendiam à possibilidade de o celular pessoal do concierge estar grampeado.

Cloquet estava previsivelmente agitado. Ele não disse, mas estava óbvioque pensava que eu planejava abandoná-lo. Ele tinha quebrado a minhaconfiança e eu fugira com meu garoto de praia americano. Seria necessárioreassegurá-lo, eu sabia – mas não agora. Agora era a hora dos aspectospráticos. Dei a ele o número do celular limpo e contei o que ocorrera. Eleprecisava deixar o hotel. Viajávamos com pouca bagagem, portanto, ele nãoteria dificuldade em sair discretamente. O concierge providenciaria para queum carro o pegasse na saída da cozinha. De lá, Cloquet poderia se juntar amim no Dorchester, o primeiro hotel que me ocorreu, provavelmente porcausa de algum filme do James Bond. Walker me aconselhou a simplesmentesair de Londres, mas eu não conseguia aceitar a ideia. Eu queria estar láquando localizassem Jacqueline e os Discípulos. Além disso, meuconhecimento da geografia britânica era terrível. Em Londres eu ao menosconseguia me locomover.

Fiz o check-in: Jane Dickinson. (Cloquet seria novamente Pierre Rennardpor algum tempo.) Walker subiu comigo até o que se revelou uma suíte artdéco iluminada em tons quentes. Cor-de-rosa, bege, verde-claro, detalhescastanhos e um carpete fofo da cor de areia caribenha. A sensaçãoaconchegante da cabine de um navio de cruzeiro de luxo, um choque bem-vindo depois da noite fria e úmida e da adrenalina que gastamos. Fechei ascortinas. Uma nota de cinquenta levou o carregador de malas até o 7-Elevenmais próximo com uma lista de itens essenciais para bebês, e vinte minutosdepois Zoë estava de novo com Pampers e Sudocrem em dia. Alimentei-a (decostas para Walker; compreensão mútua sem constrangimento; e um acenode cabeça para manter seca a pólvora erótica criada pela carne) enquanto eletelefonava para Konstantinov e o atualizava sobre o que ocorrera. Nenhumanotícia sobre Jacqueline por parte do informante deles na WOCOP. ColoqueiZoë sobre meu ombro, fiz massagem, dei tapinhas, cantei os murmúrios eandei enquanto Walker servia para si um Laphroaig do bar. Cinco minutos eum arroto indigno de uma dama mais tarde, minha menina estava dormindo.

Na falta do carrinho-berço, o único lugar para ela era a enorme cama. Pousei-a sobre ela, estabilizada por quatro dos travesseiros monumentais do hotel.Depois, telefonei para a recepção com um recado a ser dado ao “MonsieurRennard” quando ele chegasse: Faça o check-in. Vá para o seu quarto.Aguarde meu telefonema.

Nada disso passou despercebido a Walker.Quando desliguei o telefone, ali estávamos, olhando um para o outro.Os tiros e a perseguição tinham nos levado até o hotel, mas, agora que

estávamos ali, o adiamento – pois era tudo que jamais seria – era em vão.Ficamos nos encarando, a 3 metros um do outro. Me perguntei se eu aindaestava muito próxima do período pós-parto para ele. Ou, menos vagamente,se eu ainda estava gorda demais. O peso pós-parto tinha diminuído em umavelocidade (como não?) assustadora, mas eu estava muito longe dos meus 52quilos de sempre. Eu tinha esse mesmo peso desde os 18 anos e a Maldiçãonão fizera nenhuma diferença. (Ou melhor, nenhuma diferença para o pesohumano. Eu só havia me pesado enquanto transformada uma vez, depois domeu nono assassinato: um viúvo em uma casa angulosa e de pé-direito altonos limites do Parc National des Cèvennes, a qual, por alguma razão, tinhaum conjunto arcaico de balanças de farmacêutico na cozinha. Grogue desangue e lenta de carne, eu subira na balança banhada em carnificina. Abalança marcava 185,5kg. Aquilo parecia impossível. Precisei esperar até estarem forma humana novamente para compreender. Cento e oitenta e cincoquilos e meio. Ei, Lauren, aqui é Lu. Sei que não nos vemos há anos, masapenas achei que você se divertiria com isso...) Nunca me dei o trabalho de mepesar enquanto grávida, mas deveria estar com pelo menos 63 quilos. Agora,imaginava que estava com cerca de 57. Seis quilos perdidos em seis dias. Umrecorde humano, se ao menos eu fosse humana. Eu ainda tinha umabarriguinha atrevida, e meus seios permaneciam o dobro do tamanhoanterior (se bem que 36B não dobram muito de volume), mas o resto de mimestava quase de volta às dimensões pré-gravidez.

Portanto, ali estávamos, Walker e eu, olhando um para o outro da maneiraque um olha para o outro quando estão ali, olhando um para o outro. Eu

sabia que quanto mais esperássemos, mais eu começaria a pensar que nãoimportaria o quanto pudesse ser bom, não seria bom o bastante. Sendo assim,atravessei o quarto até parar diante dele, suficientemente perto para o calordos nossos corpos se tocar. Uma gravidade profunda trouxe as mãos dele paraa minha cintura. Wulf fazia uma fiesta silenciosa em minha pele, sim, mastambém era humanamente bom ser tocada, estar sozinha com alguém nobanquete secreto que remontava todo o tempo até Adão e Eva. Um olha parao outro e sente justamente o quanto esse contrato é antigo, ocomprometimento do rosto corado com a aventura, o passo que dão juntospara fora da luz rumo à escuridão recompensadora.

Havia forças em turbilhão nele. Desejo era uma. Medo era outra. Aconsciência de que se fizesse aquilo ele estaria deixando a si próprio para trás.Assumir que deixar a si mesmo para trás era o que precisava continuarfazendo. Eu estava prestes a sair de qualquer jeito, ele dissera sobre aWOCOP. Era o padrão da vida dele percorrendo todo o caminho de volta atéseja lá o que o desencaminhou inicialmente; ele adentrava as coisas por algumtempo, permitia que lhe dessem uma nova pele, mas sempre, mais cedo oumais tarde, despia-se dela e seguia em frente. Apenas o sorriso e o brilho eramconstantes. Fora a aparência desejável e benigna e o charme infalível.

Beijei-o. A boca de Walker tinha sabor de Laphroaig, mas tudo bem,aquilo era grão para o meu moinho. O quadril dele se pressionou contra omeu, mãos firmes na minha cintura. O calor entre nós ficou difuso e umapequena rede de eletricidade pousou sobre minha boceta.

Algo ainda o continha.– O que foi? – perguntei, reclinando-me para trás para focalizar o rosto

dele.Ele manteve as mãos em mim.– Você está bem? – perguntou ele. – Para fazer isso?Anatomicamente, ele queria dizer. Ele era o tipo de cara que saberia por

quanto tempo depois de ter um bebê as partes de uma mulher estariam forade ação. Ele saberia porque era o tipo de cara que já teria estado naquelasituação.

Mas não com uma mulher como eu.– Eu me curo rápido – eu disse. – Muito rápido.– É mesmo?– Sim. Me beija.Era difícil não me apressar. Se Zoë acordasse ou Cloquet ignorasse as

instruções e batesse na porta, sabíamos que provavelmente não nosrecobraríamos a tempo. Peguei o edredom reserva do armário e desdobrei-ono chão. Nada de cadeiras, nada de mesas, nada de contra a parede, nada dese reclinar sobre a escritoire ou de se pendurar do lustre do teto. Nada quepudesse aumentar as chances de foder com tudo. Esta era a outra razão pelaqual era difícil não me apressar: eu estava com pressa. Excluindo a autoajudadaquela manhã, eu não fazia sexo há mais de três meses. Agora, com wulf devolta em plena atividade libidinal, flertar era a última coisa em minha mente.Eu só faço sexo com mulheres das quais não gosto, Jake escrevera. Para evitarse apaixonar e matar a amada. Sim. Mas aquilo não teria problema porquenão seria amor.

Ainda de pé, desabotoei a camisa dele e tirei-a de seus ombros junto com ajaqueta. Elas caíram no chão com um som que nos acomodou maisprofundamente na sensação de não precisar dizer nada. O tronco dele erasubestimadamente musculoso – trabalho de verdade em vez das confecçõesda academia de ginástica – e salpicado com pequenas cicatrizes feitomonogramas. Nossos olhos se encontraram, arriscaram se prender, mas sedesviaram antes do sorriso que poderia ter feito soar uma nota fatal de meraamizade. Ele puxou minha camisa de dentro dos jeans e começou pelosbotões. Desabotoou os quatro rapidamente, sonoramente excitado. O sutiãtambém, aleluia.

Em um grande lampejo de constrangimento quanto aos aspectos práticos,me dei conta de que o leite poderia sair caso ele chupasse meus seios – mas,novamente, ele saberia disso, e saberia que eu tinha consciência dapossibilidade. Aquilo aconteceria ou não, e caso acontecesse, não iriaincomodá-lo. Ele era uma criatura de fácil promiscuidade física, dionisíaco

sem complicações: quando seu desejo era estabelecido, tudo do corpo erasagrado.

A culpa estava disponível para mim, é claro, mas a humana em mim eramaior do que isso, e wulf simplesmente não dava a mínima. A estéticasuperficial dizia que o que eu estava fazendo – sexo enquanto meu filho estavaem perigo – era uma coisa feia, mas o ser mais profundo a desconsiderou.Havia aquelas sequências obscuras necessárias, com as quais era impossíveldiscutir. Hoje em dia, até filmes idiotas sabiam que Eros encontrava seucaminho até as fronteiras do pesar, da perda, do anseio, do tédio, da raiva, davergonha – e tinha a entrada concedida. O perigo real aqui não era a culpa,mas a tristeza. Não apenas a minha (e não somente pelo meu filho ou pelomeu coração fracassado, mas pela amputação de minha normalidade), mastambém a de Walker, por qualquer dano antigo em torno do qual eleenvolvera sua mistura de leveza, brilho e sexo.

Isso era minha parte humana, diga-se de passagem, ocupada,humanamente, com ele, Walker, a pessoa. Havia a chama esquecida noâmago dele, o garoto perdido em torno do qual o homem sorridente eescondido crescera, atrás do qual os restos da mulher romântica em mimfarejava. Enquanto isso, um eu posterior (com a voz de Lauren) dizia “Não,deixe isso para lá, não tem nada a ver com você e, de uma forma ou de outra,isso irá arruiná-lo sexualmente para você, justamente como o velhinho atrásda cortina arruina Oz para todos na primeira vez que o veem”. Portanto,beijei-o, sujamente, e senti através da boca e do tórax dele sob minhas mãosos últimos fios de resistência se rompendo docemente. Ele iria fazer isso, ahsim, render-se à droga desonesta. O grande tabu – de outra espécie – rompeu-se com insignificância por fim, deixando-o penetrar no calor, no meu calor,em mim. Pude sentir a imaginação dele abrindo espaço para as atrocidades,pois não era possível negá-las, pois estavam presentes em minha pele e emminha boca e no calor malicioso da minha boceta, que agora ele desejava, ah,sim, desejava, não importava mais nada, não importava mais nada, nãoimportava mais nada.

Por um acordo telepático, separamo-nos para tirar os jeans e as roupas de

baixo, depois nos agarramos de novo, lado a lado, cara a cara. Empurrei-opara deitar de costas e deslizei para cima dele. Um pouco de leite tinha, sim,escorrido dos meus seios. Walker não o evitara e tampouco fizera dele umfetiche. Para ele, era parte do continuum casualmente santificado do corpo. Seele desejava você, fisicamente, desejava tudo de você. Era o que as garotas nopátio da escola tinham sentido animalmente nele quando garoto. Era por issoque o isentavam. Alcancei minha bolsa, peguei um preservativo, rasguei aembalagem e deslizei para baixo ao longo de seu torso. O pau dele, detamanho modesto mas com uma adorável curvatura lasciva e otimista,pulsava visivelmente. Repleto de sangue, o monstro lembrou-me, com umcutucão, um piscar de olho e uma lambida nos dentes – mas eu estava longe obastante da lua cheia para silenciá-lo. Ele apoiou-se nos cotovelos. Seu rostoestava cheio de vida e focado em mim, os olhos azul-esverdeados cintilando, aboca beirando uma versão menos inocente do seu sorriso. Respirei, com aboca aberta na cabeça de seu pau, observei sua obediência rítmica, sofri umaimagem mental de tentar arrancá-lo com uma mordida, um caos de sanguejorrando, Walker gritando. Mais um olhar astuto para ele – sim, seiexatamente o quanto isso será gostoso –, depois o tomei em minha boca. Senti-o engolir em seco, senti a cabeça dele pender para trás – depois de novo para afrente, para outro olhar ávido.

Depois. Mais disso depois. Porque, naquele momento, eu estavadesesperada, inequívoca, virtuosamente egoísta. Coloquei o preservativo semproblemas, deslizei de novo sobre o corpo dele, peguei-o com uma das mãos,baixei os olhos para o rosto plenamente seduzido e radiantemente famintodiante de mim e desci sobre o pau dele.

24

Não foi perfeito, mas foi mais do que o suficiente para um começo. Osinstintos dele eram bons, mãos e boca liam os sinais, moviam-se mais oumenos para onde eram desejadas. Ficou entendido entre nós que o primeirogrande esforço era para mim, mim, mim, tudo para mim, e ele se conteve,trabalhando com uma combinação de galanteio e concentração artesanal parame fazer gozar. Não que aquilo – no meu estado – fosse alguma granderealização. Levou cerca de três minutos. Depois mais três, depois cinco,depois dez. Depois, me acalmei, e foi possível argumentar comigo. Quandoele gozou (estávamos aproximadamente na posição de conchinha), toda a suaforça se concentrou no quadril e no peito, seus braços me envolveram e arespiração dele arfou suave e quente no meu ouvido, um toque de doçurapresente ali no final como um adorável arabesco. Gostei de Walker porquenão havia como disfarçar a honesta felicidade masculina que passou do corpodele para o meu.

– Nossa Senhora – disse ele, depois.– Esta frase é minha – falei.– É mesmo?– É.– Nunca mais vou usá-la.– A maneira de lidar com isso, diga-se de passagem, é não falar a respeito.– Isso?– Isso que acabamos de fazer – esclareci.– Minha boca é um túmulo.

– Não estou falando de outras pessoas. Quero dizer entre nós dois.– Entendi.– Você é sempre tão influenciável?– Bem, você sabe, você é tipo uma encantadora de cavalos.Eu estava pensando nos diários. (Eu pensava com frequência nos diários.

A infidelidade perene e fria seria parte do meu pacote, por décadas. Talvezpara sempre.) Humanos modernos falam de seus casos amorosos até morreremcedo, Jake escrevera. Eros não tem nenhuma chance com as pessoastagarelando entre si sobre tudo o tempo todo. Acho que deveríamos conversar.Não, acredite em mim, não deveríamos. Quer dar uma chance ao amor?Encontre alguém com quem não consiga se comunicar.

O celular de Walker tocou. Era Hoyle, o informante dele na WOCOP, comuma atualização. O atentado contra nós no estacionamento emHammersmith fora realizado por dois atiradores desgarrados da divisãoespanhola da organização que estão – vejam só – de férias. Murdoch arriscarauma ruptura internacional ao espancá-los quase até a morte quandodescobriu. O vampiro morto era, definitivamente, um dos sacerdotes,praticamente com certeza Raphael Cavalcanti, de 600 anos, pois foradetectado em Londres apenas uma semana antes. Contudo, até que ossacerdotes remanescentes (conhecidos) fossem detectados, seria impossívelter certeza. Enquanto isso, ainda não tínhamos nenhuma notícia deJacqueline e dos Discípulos. Portanto, nenhuma notícia de Lorcan. O que mereduziu de volta às dimensões mais sombrias.

Walker sentiu a mudança de humor. Em voz alta, não perguntou qual erao problema. Parte de mim ficou grata por isso, parte de mim gostaria queperguntasse. Eu não dissera a ninguém, nem mesmo a Cloquet, a verdadeimunda sobre o rapto: que meu coração havia permanecido grotescamenteneutro, apesar de eu ter segurado nos braços meu filho ainda quente emolhado após o parto. Você não consegue viver se não consegue aceitar o queé, dizia o último diário de Jake, e você não consegue aceitar o que é se nãoconsegue dizer o que faz. O poder de nomear as coisas, tão antigo quanto Adão.

Se eu parasse para pensar por tempo demais, o momento passaria.

– Tem uma coisa que você deveria saber sobre mim – falei. – Algo mais,quero dizer.

– O quê?– Sou defeituosa.– Defeituosa?– Sim – confirmei.Ele não disse nada. Zoë choramingou por um instante em seu sono, depois

ficou de novo em silêncio. Ainda estávamos deitados no edredom, agora decostas, sem nos tocarmos.

– Quando meu filho nasceu – falei, para o teto –, não senti nada por ele.Havia apenas um espaço vazio onde deveria haver o amor. Depois, ele se foi.

Walker não respondeu por algum tempo. Tampouco, graças a Deus,tentou pegar minha mão ou me abraçar.

– Uma lacuna – disse ele, por fim.– Sim.Ele ficou em silêncio de novo. Então, continuou:– Não há conforto.Não era uma pergunta. Era um diagnóstico.– Não há – concordei.– Apesar de você saber que não foi nada – disse ele.– Não foi nada?– Foi apenas azar que o tenham levado durante uma lacuna. Sessenta

segundos depois o amor poderia ter chegado, inundando tudo. Ele estápresente para a pequena dama.

Está presente para a pequena dama.Estava mesmo? As tentações mais sutis do Demônio são aquelas às quais

você cede sem sequer saber que cedeu. Havia imagens que, embora eu tenhame fechado para a maioria delas enquanto ocorriam, tornavam-se disponíveisagora: eu beijando a cabeça dela, cheirando seu couro cabeludo, falando comela e chamando-a de Doçura ou Senhorita ou Fofura, que eram todos nomespelos quais minha mãe me chamara. Eu fizera tudo aquilo obliquamente,guardando um terrível segredo do meu coração faraônico e endurecido.

Fizera tudo aquilo sem olhar realmente para minha filha, essa que era comouma pequena assassina, filha essa que, se eu realmente olhasse, recebia todo omeu amor oculto junto a todo meu fracasso exposto. Os olhos delacontinham todos os direitos que eu confiscara. Ela era como Deus: não dizianada, refletia tudo que eu havia feito, tudo que eu era e tudo que eu não era.Se eu viesse no estado onírico de falar, beijar e não olhar, se eu viesse, honestae completamente para ela, ela olharia para mim de modo que meu amorparecesse uma coisa obscena, gananciosa, feito um vício, e eu tinha a sensaçãode estar me distanciando dela, esmaecendo, dentro do nada. O amor voltava-me para ela e voltar-me para ela expunha a enorme defasagem do amor.

– Não foi uma lacuna – falei. – Não senti nada por ele porque pensei quese sentisse, poderia matá-lo. O que seria a pior coisa. E é isso o que fazemos,minha espécie. Fazemos a pior coisa. Só para que você saiba.

Nossas auras estavam ali, uma contra a outra, permitindo a passagem deinformações não ditas. O que eu acabara de dizer a ele não o impediria de medesejar. Ele era atraído por uma monstruosidade maior do que a dele. Hámuito tempo Walker havia parado de procurar qualquer coisa além de sexotemporariamente divertido entre as mulheres normais do mundo. Eleacreditava que a única chance para profundidade estava em alguém maisperdido ou mutante do que ele próprio.

– E quanto a este momento? – perguntou ele. – Você acha que é um perigopara seus filhos neste momento?

No quarto cor-de-rosa com Delilah Snow, a porta do armário se abriramisteriosamente, e quando olhei para ela ao ouvir o som, fui apresentada aomeu reflexo no espelho. Um monstro com uma bebê humana nas mãos.Como o terceiro devaneio recorrente. Exceto, é claro, que no terceirodevaneio recorrente a bebê era um lobisomem, e pendia das mandíbulas damãe monstro.

– Não sei – respondi.Permaneci deitada, imóvel, existindo com o que eu era, com o que as

pessoas pensariam de mim. Havia um impulso superficial ou cinematográficode me levantar e colocar a roupa, novamente enojada com meu talento para a

carnalidade quando deveria ser visível somente um tormento. Ignorei asensação, no entanto, e permiti que queimasse até sumir, deixando apenas onível de realidade que não estava interessado em filmes, o suposto consenso, oroteiro ruim. Não era desafio ou autoindulgência. Era a estranha expansão daminha alma para acomodar a si mesma, todos os seus opostos eaproximações. Pensei no quanto o Deus que não estava lá deveria estarexausto, ele que estaria fazendo aquilo desde o Início, sem ter um fim emvista.

Não falamos por algum tempo. Ele não disse: Não chore. Apenas esperoupassar. O hotel murmurava delicadamente debaixo de nós. Jamais subestime oconsolo de um hotel de qualidade, Jake escrevera. Ele é como você. Cheio defantasmas. Para o lobisomem, há uma simpatia natural com essa estrutura.

– Esqueci de dizer – falou Walker. – Segundo Hoyle, Merryn estavatrabalhando em uma nova tradução do Livro de Remshi.

Deixe as outras coisas para lá, por enquanto. Ótimo. Eu dissera tudo queiria dizer sobre o assunto. Eu gostava dele, amargamente, por ter entendidoaquilo.

– Para Jacqueline? – perguntei.– Não sabemos. Pode não ter nenhuma relação com ela. Merryn era um

acadêmico genuíno.– Só que parece um pouco coincidência, não parece?– Eu sei. Mas mesmo que Merryn estivesse fazendo o trabalho para ela, se

ela descobriu que ele era um informante o contrato teria sido revogado.Terminantemente.

– De toda forma, onde está?– A tradução? Só Deus sabe. O grupo de Jacqueline foi muito minucioso.

A WOCOP esteve na casa de Merryn depois que estivemos lá. SegundoHoyle, não encontraram nem mesmo um recado na geladeira.

– Você conseguiria uma cópia para mim? Quero dizer, não a de Merryn,obviamente, mas a que é usada mais amplamente? Estou me sentindo deolhos vendados.

– Pelo que me lembro, é um texto bastante impenetrável. Mike talvez

tenha uma cópia em algum lugar... Ou talvez em disco. Verei o que possofazer.

Zoë acordou. Reapresentou-se ao mundo em uma série de gorgolejos,depois ficou em silêncio, como que esperando a resposta.

Levantei da cama. Eu era a resposta. Eu era a resposta à qual ela estavapresa.

25

Os dias que se seguiram foram a estática provação de esperar o telefone tocar,aliviado por sexo cada vez melhor, portanto, cada vez pior, com Walker. Emtorno da quarta ou quinta vez que fizemos, parei de mentir para mim mesmaao dizer que não estava brincando com fogo. Nosso entendimento foiimediato e chocante, uma intuição mútua que, sem surpresa, ignoravagrandes trechos de linguagem e dizia, em alto e bom som: perigo. Dez anosatrás, teríamos nos parabenizado. Agora, mantínhamos as bocas fechadas edesviávamos os olhares. Não porque éramos mais velhos e estávamossuficientemente mutilados, mas porque sabíamos que, em nosso caso,motivos para elogios eram razões para recuar. Não era possível evitar duranteo sexo, no entanto, quando nossos olhares se encontravam em momentos nosquais permitíamos que aquilo fosse o que era: algo muito mais do que o queera bom para nós. Isso não é seguro, não é? Não, não é. Não pare. Ah, meuDeus, não pare.

Pós-coito, a Hollywood que todo americano carrega insinuava suasnormas, sugeria repetidamente a cena do momento caloroso no qual eupercorria o dedo pelo peito dele e perguntava a história de cada uma de suascicatrizes, ou contava a ele alguma recordação da minha infância, ao mesmotempo inspirando simpatia e me deixando constrangida. Nós ignorávamosisso. O silêncio nos impedia de deslizarmos para o roteiro ruim, mas nosexpunha à ameaçadora excitação do quão pouco precisávamos falar. E, apesardos esforços, epifanias banais nos emboscavam. Uma vez, vestindonovamente o jeans, um pé agarrou na calça e eu perdi o equilíbrio. Não caí,

mas fiz um ato chaplinesco de saltos laterais, ao qual ele assistiu, sorrindo edizendo: Cuidado, gatinha... cuidado, o que me fez gargalhar pela primeiravez desde antes do Alasca e abriu mais uma terrível flor de simpatia entre nós.Em determinado momento, percebi que ele tinha vergonha de dizer meunome. Ele me chamava de Srta. D, quando precisava me chamar de algumacoisa. Então, certa vez, sem pensar, disse em voz baixa: “Talulla?”, quando euestava deitada sobre ele, o quarto estava escuro e ele não tinha certeza se euhavia adormecido. Para mim, teria sido mais inteligente fingir que eu estava,sim, dormindo, mas, em vez disso, eu me vi apoiada em um cotovelo,beijando-lhe a boca, toda cheia de uma ternura feminina e acesa por ele terdito meu nome desarmadamente. Desarmadamente: era isso o queimportava, essa coisa tão frágil e corajosa de estar desarmado com alguém...eu dizia a mim mesma o tempo todo, não faça isso... não faça isso... pelo amorde Deus, não faça isso sua idiota... e sentia o abismo entre ele e seu eu anteriorse abrindo mais, como se fosse um planeta do qual Walker estivesse seafastando na vastidão absolutamente desconhecida do espaço. Eu.

Seguimos não falando sobre nada daquilo. Falar sobre o assunto só noslevaria ao quanto havíamos sido burros por começar e o quanto seríamos pornão parar. Imaginei minha mãe observando a deliciosa confusão que euestava fazendo com as coisas. Ela aprovaria, uma vez que sempre havia sido afavor da vida, e a vida estava em seu ápice quando se encontrava em umadeliciosa confusão; ela teria aprovado, mas encurtaria o período de lua de melonde se esquivavam os fatos: Ele não é um lobisomem, Talulla. O quesignifica transforme-o ou o abandone-o. Caso contrário, a deliciosa confusãose torna um acidente de carro. A questão de se eu seria capaz de transformaralguém foi, naturalmente, reavivada, mas não menos atormentada pelo bom-senso: quem em suas boas faculdades mentais me agradeceria por fazeraquilo? Não se poderia iniciar um caso de amor com um ato mais egoísta. Umcaso de amor? Dificilmente, tomando-se o que havia entre mim e Jake – mashavia um potencial em nós, feito uma tempestade em formação.Superficialmente, tínhamos o mito dos estranhos-em-uma-terra-estranha doqual beber, corpos que se encaixavam em uma hábil cooperação, a

proximidade afrodisíaca da morte e o excitante e profano efeito hipnótico denão sermos da mesma espécie. Por baixo de tudo aquilo, contudo, havia minhalibertadora falência moral e a quedinha dele por alguém que (Walker pensava,erroneamente) poderia desligá-lo do passado de uma vez por todas aotransformá-lo em Outra Coisa. Aquele era o potencial: parte dele queria serTransformado.

Havia momentos nos quais eu sabia que Walker estava prestes a me contaro que acontecera com ele. Ele se movia até chegar bem perto de fazê–lo...depois recuava, todas as vezes. Até que, certa noite, de madrugada (ele nuncapermanecia no hotel durante mais de duas ou três horas em cada encontro),quando estávamos deitados lado a lado depois de uma sessão de sexo quehavíamos forçado para que durasse por frações de tempo demais, e eu estavapensando que não poderia levar mais do que dez minutos até que Zoëdespertasse para mamar, algo mudou ou se partiu na atmosfera que ali haviaentre nós. Então eu soube o que estava por vir antes que ele falasse.

– É impressionante – disse ele, depois empacou.Hollywood não desistia. Em oferta, estava a cena na qual a mulher

aninhava maternalmente o homem e absorvia silenciosamente a história dehorror dele, dizendo depois que estava tudo bem. Eu sempre achei essas cenasesteticamente nauseantes. Minha consideração pelo homem sempre acabavadiminuindo depois que ele se aliviava de seu fardo. Eu estava bem perto dedizer: “Não se dê o trabalho. Seja lá o que for, não dou a mínima.”

– É impressionante – repetiu ele – que não possa ser nada mais do queuma coisa sem importância para você.

Ele se referia ao que havia acontecido com ele. A coisa em torno da qualele se envolvera.

– Por que apenas não me conta os fatos? – perguntei.Pausa. Ambos estávamos momentaneamente cientes da triste essência do

hotel como algo sempre passageiro, sempre de partida. Então, a tensão saiudos ombros dele, saiu totalmente de cima dele, como se, de repente, ele tivessedesabado por um alçapão.

– Eu matei meu pai quando tinha 7 anos – disse ele. – Ele era policial.

Atirei nele com sua própria arma. Ele estava esmagando o rosto da minhamãe contra a televisão. Esses são os fatos.

Se você me perguntasse o que eu tinha achado que Walker iria me dizer,eu não poderia ter previsto com precisão. No entanto, cada palavra e imagemtinha a qualidade de um sonho que eu agora me lembrava em uma descarga,vívida e inevitável: o garotinho se esforçando para levantar a arma; a sala deteto baixo; os joelhos bambos da mulher e a boca do homem arqueada parabaixo como a máscara da tragédia, como a face de De Niro, na verdade, queera com quem eu imaginava que o pai dele se parecia. Pude ver o momentofixando o garoto feito um alfinete em uma borboleta. Pude ver o assassino, osorriso, a leveza, o sexo e a mudança de pele como um filme acelerado de algocrescendo e saindo dela. Me desgastava ser capaz de ver aquilo, umesvaziamento que vinha com a compreensão. Pensei: Todo insight deixa agente triste. Nos faz lembrar da perfeição que costumávamos pensar que fossenosso estado original.

– Você queria matá-lo? – perguntei.– Não tenho certeza. Eu queria fazê-lo parar. De uma forma ou de outra,

ele morreu. Minha mãe ligou para a emergência, mas ele morreu antes quechegassem. Eu tinha atirado no coração dele.

– O que aconteceu com sua mãe depois? – perguntei.– Ela perdeu o controle. Passamos dois anos mudando de um lugar para

outro. Eu pensei que, com ele tendo partido, ela ficaria bem, mas não. Elanunca esteve bem. Morreu de overdose três semanas antes do meu décimoaniversário.

Pude imaginar a história que se seguiu. Serviços de Proteção à Criança.Lares adotivos. Instituições. Experiências demais, exposição precoce, todas asformas erradas. Inicialmente, não senti nada. Depois, quando pensei neledizendo “Calma, gatinha... calma”, e no quão puro tinha sido o alívio degargalhar por um momento, senti pena dele. Mas quase de imediato eaparentemente de modo involuntário me forcei a sair deste estado com umsobressalto.

– É da menor importância para você – disse ele. – Impossível não ser.

“Menor” dificilmente era a palavra apropriada, mas entendi o que elequeria dizer. Ele estava acostumado a ser a maior deformidade presente.Agora, não era. Era um alívio e uma perda. Parte dele ressentia-se com isso.Novamente, ser capaz de ver tudo aquilo me desgastava. Tentar encontraralgo para dizer era tentar escapar de uma câmara com muitas portas abertas,as quais fechavam-se todas com uma forte batida, no segundo em que eu asalcançava.

– Você sabe como é para mim – acabei dizendo.Eu havia surpreendido a mim mesma. A saída era simplesmente declarar a

verdade, com neutralidade. Walker realmente sabia como era para mim. Eu, amulher cujo ápice até o momento fora ser comida por seu amante lobisomemcujo focinho estava banhado nos intestinos da vítima deles e cujo fundo dopoço fora observar com indiferença enquanto estranhos raptavam seu filho. Amulher com mais de uma dúzia de assassinatos nas costas e de fantasmastagarelando em sua corrente sanguínea. Você atirou no seu pai bem nocoração? Impressionante. Meu último beau matou e devorou a esposa e ofilho. Eu ando com um pessoal perigoso, sabe? Pergunte a Delilah Snow.

– É – disse ele tranquilamente, como se eu tivesse falado em voz alta. – Eusei.

Aquilo foi tudo. O diálogo deixara nós dois tristes, como ambos sabíamosque deixaria. Alguém indo pegar um voo na madrugada puxou uma malacom rodinhas ao longo do corredor acarpetado. Uma onda atrasada depiedade por Walker cresceu em mim, de modo que, por alguns segundos,fiquei equilibrada entre o desejo de me virar para ele e tocá-lo em umacompaixão animal e a compreensão de que aquilo não iria, a longo prazo,ajudar.

Naquele instante, uma coisa estranha aconteceu. Pensei em como meu paicostumava, às vezes, pegar a mão da minha mãe e pressioná-la contra o rostodele porque ele amava a sensação e o cheiro da palma da mão dela e porqueele era um daqueles homens que estavam sempre, no final das contas,procurando se dissolver dentro de uma mulher. E como minha mãesimplesmente aceitava. Por que a palma da mão dela no rosto dele não o faria

se sentir melhor? Aquela imagem, da minha mãe conversando comigoenquanto meu pai pegava a mão dela e a pousava sobre seu rosto, virou abalança (e me fez lembrar, com uma repentina queda de temperatura interna,da outra balança que virou); virei-me para Walker e o beijei.

*

Agora, eu sonhava todas as noites com Lorcan, com todas as mudanças esobreposições de identidade que isso envolvia, mas sempre com a mesmaestrutura: desespero, obstáculos, perda. Em um pesadelo recorrente, eu estavade volta à casa em Park Slope. Eu o ouvia em um dos quartos do segundoandar. O lugar estava movimentado com parentes preparando uma refeição,meu pai, inebriado, supervisionando minha mãe enquanto ela conversava aotelefone. A atmosfera de intimidade e preguiça, e levou algum tempo para queeu mudasse de uma curiosidade calma (onde ele está, exatamente?) para aautorridicularização (não seja boba, ele está bem aqui, no segundo andar!),para uma irritação levemente descontrolada (onde ele está, meu Deus?), parao pânico completo (ah, meu Deus, por favor...) à medida que eu ia de quartoem quarto sem o encontrar. Até que, no último quarto, eu abria a porta doarmário e encontrava não um armário, mas uma queda livre até a água negrae turbulenta que se estendia até onde a vista alcançava.

*

Eu não deveria deixar o hotel (além da ordem formal de Walker parapermanecer escondida, havia a paranoia padrão de Cloquet), mas no sexto diaeu não aguentava mais. Os quartos estavam me sufocando. Uma pressãoestranguladora subia dos carpetes.

Pelo menos, foi o que eu disse a Cloquet. A verdade era que alguém passouem cima da minha sepultura não me deixava em paz. Não me deixava em pazdesde Hammersmith. Estava comigo agora como um som contínuo. Crescianos silêncios mais profundos da suíte, arrastava-se para dentro do pouco sonoque eu tinha, sussurrava e às vezes urrava quando eu atingia o clímax. Wulf,normalmente entrando em seu período mais calmo do mês (dez dias desde aúltima aparição; 18 dias até a próxima), permanecia com os olhos injetados edesperta, orelhas fantasmas eriçadas, focinho fantasma perplexo. Nãoadiantava. Não haveria paz. O que quer que houvesse lá fora, eu estavacansada de não saber o que era. Não falei nada a respeito para Walker, queteria tentado me impedir.

Cloquet veio dar uma olhada em mim justamente quando eu estavavestindo a peruca loura platinada. As janelas da suíte, com vista para o HydePark, exibiam nuvens brancas altas e a folhagem remanescente das árvorestremulava. Um ar frio, que suavemente as debulhava e que eu queria sentirnas minhas mãos e no rosto e no pescoço.

– Você vai sair – disse Cloquet. Ele estava incomodado pela ligação comWalker, sim, porém mais por pensar que ele próprio havia causado danosirreparáveis à confiança que eu sentia por ele. Eu também não havia contadoa ele sobre alguém passou em cima da minha sepultura. Não teria ajudado emnada. Ele já estava tenso o suficiente com aquela ferida. – Só vim para ver... Sópara ver se você precisava de algo.

O que ele quis dizer é que tinha vindo só para ter um pouco decompanhia. Os últimos poucos dias haviam esfolado nossa relação até osossos. De repente, ocorreu-me o quanto Cloquet era delicado com Zoësempre que precisava pegá-la, e senti uma grande ternura por ele.

– Vem cá – chamei.Eu estava sentada em um banco de veludo cor-de-rosa diante da

penteadeira de madeira de bordo. Ele atravessou o quarto e, com muitanaturalidade, ajoelhou-se e pousou a cabeça em meus joelhos. Corri os dedospelos cabelos dele e recebi, em sua rendição muscular, o quanto Cloquetestivera faminto por contato físico. O corpo dele estava envolto pela dor. Não

amada, não acariciada, a carne desenvolvera um microclima equivocado, quea tornava ainda menos amável, ainda menos acariciável. Permiti a mimmesma imaginar que chegaria um momento quando, com meu filho de voltaàs minhas mãos e Deus em Seu paraíso e tudo certo com o mundo, eu poderiaordenar Cloquet a obter algum conforto nos braços de uma mulher, estivesseou não sua libido morta.

– Você está exausto – constatei. – Sabia disso?Ele não respondeu. O médico que Walker trouxera para examinar o

ombro de Cloquet havia declarado que ele estava livre de infecções ecicatrizando, mas o ferimento permanecia visivelmente desgastante, umaforça que devorava a energia de Cloquet e o deixava sem jeito.

– Vou dar uma caminhada com a bebê – disse a ele. – Por que não tira umcochilo?

– Não consigo dormir.– Tente. Tome um conhaque, coloque um filme, tire os sapatos e deite na

cama. Faça isso. Descanse – falei tranquilamente, correndo os dedos por seucabelo, pensando na cicatriz no pé dele onde a mãe o queimara com oatiçador. Mais uma vez, senti a natureza injustificável da nossa relação. E,novamente, a obscura sensação de estar no meu direito. Wulf sabe o que lhecabe, e terá tudo. – Me escute – falei. – Sei que você queria me proteger. Achaque não confio em você? Você é a única pessoa em quem eu confio. Não sabedisso?

Ele não conseguia responder. Ternura deixava Cloquet irritado, tendo elaestado ausente de sua vida por tanto tempo. Agora, quando aparecia, eracomo o retorno de um pai glamoroso e pouco confiável que o abandonaraenésimas vezes antes. Ele sabia que não duraria.

E não durou. Com uma delicada insinuação dos meus joelhos e dasminhas mãos, informei que estava na hora dele levantar. Quando o fez, oombro provocou dor.

– Quanto tempo você vai ficar fora? – perguntou ele, em voz baixa.– Não sei. Não mais que duas horas. Vou telefonar para você se for

demorar mais.

Acrescentei as últimas camadas de roupas de Zoë, coloquei seu gorro e asluvas, enfiei um par de fraldas no bolso do carregador e afivelei-a contra opeito.

– É assim que Dolly Parton deve se sentir o tempo todo – falei,endireitando a coluna contra o peso. – Vou acabar corcunda carregando estacriatura por aí.

26

Só Deus sabe o que eu esperava com isso. Que o que quer que estivesse meperseguindo ficasse suficientemente provocado, suponho, para pôr fim a todaessa coisa sorrateira e caminhasse diretamente até mim para fazer o que querque fosse. Não que eu tivesse certeza de estar sendo seguida. A sensação eramais parecida com a que eu tinha quando estava próxima da transformação,aquele chamado da floresta que ia da inocência para a astúcia para avulgaridade para a fúria, a necessidade do luar e do solo passando sob mim edo fluxo de ar em meu focinho e o fedor repentino explodindo de umavítima...

O que quer que eu estivesse desejando, não consegui obter. O Hyde Parkestava verde e molhado e coberto de folhas vermelhas e douradas, mas isentode sinais sobrenaturais. Comprei um chocolate quente da Serpentine Gallerye dei meia-volta, para o nordeste, na direção do Marble Arch. Zoë descansavaacomodada contra mim, estupefata pelo tumulto suave do mundo e peloscheiros que mudavam. A tentação não era uma tentação naquele momento,mas sim uma frágil revolta, uma rebelião abandonada contra o coraçãoendurecido. Não faça isso. Não faça isso. Não faça isso. Mas, quisesse eu ounão, havia a particularidade letal da minha filha, aquela característica únicaque invocava o amor. Amor esse, por sua vez, tão tardio que devedesmoronar, se atomizando até se tornar nada, o mesmo nada que minhamãe via entre doses de morfina, o mesmo nada que era onde eu queria que ofantasma de Jake estivesse, o mesmo nada que todos vislumbravam de vez emquando, e negavam. Puxei o gorro dela para cobrir suas orelhas, e por dentro

ainda me sentia caindo, caindo. Bem feito, dizia a voz de Tia Theresa. Vocêteve sua chance.

Peguei um táxi para Leicester Square. Talvez o-que-diabos-fosse seescondesse entre as multidões. Lá era onde estavam as multidões. Humanos,com gorros de lã e cachecóis, narinas em carne viva, franzindo a testa,tagarelando nos celulares, envolvidos nos próprios detalhes. O Natal jácomeçava a aparecer nas vitrines, cintilante e impiedoso como Lúcifer. Osnervos da capital estavam desgastados por causa do colapso econômico e, emtodas as partes, os londrinos pareciam tentar não pensar no quanto as coisasficariam ruins. Afastei-me deles, me esforçando para bloquear a percepçãoregular e abrir-me para a zona do crepúsculo, em contrapartida.

Tive zero sucesso.Não consegui nada. Passei duas horas sem conseguir nada. Se alguma

coisa aconteceu, foi o sinal ficando mais fraco. O que havia sido umainterferência incômoda e contínua se dissipara, às vezes desaparecendo porcompleto.

Charing Cross Road. Soho. Piccadilly. Regent Street. Oxford Circus.Nada.Minhas costas doíam. Meu olho esquerdo lacrimejava no frio. Zoë queria

mamar. Ela mamava a cada duas horas, como um cronômetro, com um sonode quatro horas entre uma e cinco da madrugada. Minha escolha eraencontrar uma sala para mães e bebês em uma loja ou fazer sinal para um táxie voltar para o hotel.

Chamei um táxi.O tráfego estava lento no sentido leste da Oxford Street. Peguei o celular

para dizer a Cloquet que estava voltando para casa – depois, pensei melhor arespeito: Eu não queria deixar a linha ocupada e perder um telefonema deWalker. Zoë contorceu-se e chutou as pernas contra mim, depois ficouimóvel de repente.

Eu também havia sentido.Um segundo de... o quê? Algo que parecera um gesto de intimidade

forçada. A respiração de um tarado no pescoço. Um formigamento furioso

nas pernas e nos seios e no couro cabeludo. Depois, passou.– Por favor, pare aqui.– Você não quer ir para o Dorchester?– Não. Aqui, por favor. Pare.De volta à calçada, girei lentamente 360 graus. A rua estava rotulada de

marcas globalizadas: McDonald’s; Nokia; Subway; Gap. Luz refletia nastraseiras dos carros. Um ônibus conversível passou soltando um enormebocejo de diesel, turistas no topo exposto, congelando, tirando fotos.

Nada.Na ponta dos pés, caminhei de volta os 12 metros que o táxi percorrera até

encontrar um local para encostar.Frio. Mais frio.Me virei outra vez e caminhei lentamente para o oeste. Zoë tinha os olhos

fechados contra a luz ofuscante que diminuía. Parecia um minúsculo anciãotentando recordar algo de muito tempo atrás.

Um pouco mais quente... Mais quente.Parei do outro lado da rua em frente a Selfridges.Mais quente.Atravessei a rua.Mais quente.Segui na direção de uma das portas – ENTRE – e entrei.Balcões de perfumes. Prísmicos, ruidosos, entulhados de odores em uma

concentração de dar enxaqueca. Garrafas como objects d’art de ficçãocientífica. Vendedoras maquiadas com precisão, olhos cintilantes e chignonsnos quais se via o esforço que faziam para manter intactos durante o dia todo.Mulheres e homens se curvavam, cheiravam, franziam a testa, debatiam comose o destino do mundo estivesse em jogo. O que faz a gente se perguntar – damaneira como uma autoestrada engarrafada ou vomitar um lanche do BurgerKing faziam – por que vivemos dessa maneira. Por que humanos vivem dessamaneira, quero dizer.

A loja estava quente e iluminada por um excesso de lâmpadas dicroicas.Tirei o gorro e as luvas de Zoë. Ela estava quieta e alerta. Não havia nada a

fazer além de continuar andando.Bolsas. Óculos de sol. Joias. Roupas masculinas: uma parede de gravatas

como um gráfico colorido feito a tinta. Odores de couro novo e sarja e talco.Muito levemente... muito levemente, um puxão subindo a escada rolante.

Eu estava suando quando alcançamos o segundo andar. Roupas femininas.Uma atmosfera ou murmúrio subsônico familiares de concentração feminina.Autoavaliação, autoquestionamento, autodesprezo, autocrueldade, amor-próprio. A discussão interminável entre forma e tamanho. Algumas mulheresestavam na frente de espelhos segurando coisas diante de si e avaliando oresultado da mesma maneira que um patologista poderia fazer com umcadáver. Outras visivelmente desejavam ser diferentes – quadris, coxas,barriga, seios –, trabalhando em meio à gama finita de ajustes diminutos napostura e na expressão facial que deveriam fazer, mas jamais faziam, qualquerdiferença.

Entrei na seção dos designers.Mais quente.Versace. Karen Millen. Armani.Muito mais quente.Dolce & Gabbana. Diesel.Quente.Prada...Parei. Zoë ficou tensa contra mim.Estava nos provadores.E eu soube, sem dúvida, assim que todo o cheiro impossível me atingiu,

exatamente o que era.Minha pele estava molhada e pesada, minha cabeça, repleta de sangue.

Baixei os olhos para o rosto de Zoë. Seus olhos negros estavam arregalados.Perguntas se acumulavam. Eu precisava ignorá-las, ignorá-las e pensar –pensar!

– Senhora? – chamou uma voz feminina. – A senhora está bem?Eu estava recostada na quina da entrada para os provadores. Uma jovem

vendedora de cabelos castanhos cacheados como a lâmina de um saca-rolhas

e olhos cor de avelã juntos demais tinha as mãos estendidas para mim.– A senhora está passando mal?– Estou bem – respondi, meu rosto inchado de calor.– Deixe-me pegar uma cadeira para você. Dois segundos.– Não, está tudo...– Volto já.Fiquei de pé, abatida, pele formigando. O couro cabeludo de Zoë estava

fervendo, o cabelo dela arrepiado por causa da estática. Minhas pernaspareciam vazias. Não é possível. Não é possível.

Então, a porta de um dos cubículos se abriu – e o lobisomem deu umpasso para fora.

27

Era uma garota com cerca de 25 anos, cabelo louro esticado para trás em umrabo de cavalo, olhos verdes como limão em um rostinho malicioso e umcorpinho sem um grama de gordura. Ela não usava maquiagem mas davapara ver que seria glamorosa como uma gatinha pop se usasse. Homens, semexceção, diriam: “Sim. Absolutamente sim.” Era uma parte enorme da vidadela, os homens olhando. Era a aura dela: tanto um poder quanto umincômodo. Ela vestia um suéter branco de gola rulê, leggings pretas, botas decouro cor de vinho até os joelhos e carregava uma bolsa de courocombinando. Tinha um sobretudo preto sobre o braço direito.

Durante o que pareceu muito tempo, nos encaramos. O ar entre nóspulsava intensamente com as primeiras palavras de Jake para mim noHeathrow: “Sei o que você é e você sabe o que eu sou.”

– Aqui está, madame, sente-se por um minuto. Posso pegar um copod’água para a senhora? – A vendedora retornara com uma cadeira plástica. –Alguma sorte? – perguntou ela à garota loura.

Nenhuma de nós foi capaz de responder. Agora que eu sabia o que alguémpassou em cima da minha sepultura era, parecia que jamais poderia ter sidonenhuma outra coisa.

– Bem – disse a vendedora (pensando “OK, fodam-se vocês duas”) – Acadeira está aqui, caso precise dela. Voltarei em um momento.

E mesmo depois que ela partiu e a garota e eu estávamos sozinhas cara acara, o tempo e o silêncio solidificaram-se em torno de nós. Enquanto isso, omundo reorganizou-se silenciosamente como um efeito de computação

gráfica em escala planetária. Uma irmandade alarmante fluía entre, através eao redor de nós. (Como sabemos com certeza que não há mais nenhum? Euperguntara a Jake. Ele dissera que Harley saberia. Mas Harley estava novemeses atrasado quando descobriu que eu existia.) Em algum lugar na loja, euhavia passado pelo slogan do anúncio para o último iPhone: Isto muda tudo.De novo.

Finalmente, fiz minha boca se mover.– Quem é você? – perguntei.Ela engoliu em seco. Abriu a boca, fechou-a. Começou de novo.– Quem é você? – perguntou ela. A voz dela me surpreendeu: classe

operária de Londres, do East End, imaginei. Pela roupa exagerada, eu estiveraesperando classe alta de uma escola de elite.

– Não é “quem”, não é mesmo? – eu disse. – É o quê.– Puta merda – disse ela. – Puta merda.Alguém chiou em um dos outros cubículos.– Você é americana – disse ela.– Sim – respondi.– Quem fez isso com você? – perguntou ela.– Talvez devêssemos...A porta de um cubículo abriu-se e uma mulher pesada em um sobretudo

xadrez saiu entre nós duas, braços carregados de produtos. O rosto delaestava corado. Não era a reclamona. Estava profundamente imersa nospróprios esquemas e ansiedades. Precisei ficar de lado para lhe dar passagem.Exceto que o éter permaneceu denso com o cheiro dela. Tão diferente do deJake. Respirá-lo causava um amontoado de sensações: excitação,familiaridade, claustrofobia, estímulo, um traço de vergonha. Dava para ver omesmo no rosto dela, a compulsão atordoada, a intimidade imediata eforçada. Era como se alguém tivesse nos agarrado e nos empurrado umacontra a outra.

– Vamos para algum lugar onde possamos conversar – falei. Ela estavaimóvel, o rosto ainda lutando para aceitar. – Vai ficar tudo bem – eu disse. –Não se preocupe.

– Não acredito que você tem um bebê – disse ela.Zoë se acostumara assimilara a jovem. O corpo pequenino relaxara. Agora,

minha filha era novamente apenas uma bebê faminta. Se eu não a alimentassenos próximos minutos, ela realmente começaria a chorar.

– Como isso é possível? – perguntei. – Quero dizer, como isso aconteceu?– Era você na Great West Road?– O quê? – perguntei.– Você estava em Hammersmith no outro dia?– Sim.– Eu sabia – disse a jovem.– Você estava lá?– Tenho estado... – Ela não conseguiu completar. Muitos pensamentos.

Demais.– Desde quando cheguei aqui – falei –, venho tendo esta sensação, em

partes diferentes da cidade. Imaginei que fosse... Não sei o que imaginei quefosse. – Alívio... alegria, quase... era como uma presença física próxima,porque o que quer que significasse além daquilo, significava que eu nãoestava... que nós não estávamos, eu, minha filha, meu filho... sozinhos. Nãoestávamos sozinhos! Os provadores, o cubículo, as mãos dela e seu rosto e suavoz e seu cheiro compacto de wulf... Tudo aquilo formava o ponto a partir doqual o mundo mudava novamente para me deixar entrar de volta. Era comoum caso de amor rompido contra todas as probabilidades de obter umasegunda chance. Eu poderia ter deitado no chão e dormido de alívio.

– Você sabe a respeito? – perguntou ela. – Quero dizer, você sabe qualquercoisa?

Mais uma vez, pude sentir minhas perguntas do Heathrow saltandodentro dela: O que isso significa? Como começou? Existe uma cura? Melembrei da convicção repentina assim que conheci Jake. De que, já que nãoera só comigo, já que não era uma ocorrência aberrante, então alguém, emalgum lugar, deveria ter as respostas. Senti pena dela, pois eu só poderia lhecontar o que Jake me contara: Não se dê o trabalho de procurar pelo sentido de

tudo isto. Não há nenhum. A menos, é óbvio, que o Livro de Quinn acabassesendo mais do que uma futilidade.

– Vamos sair daqui e sentar em algum lugar – sugeri. – Deve haver umacafeteria aqui dentro, certo? – Zoë emitiu a primeira nota queixosa. – Merda– falei. – Escute, eu só preciso... Ah, foda-se, vou fazer aqui mesmo. – Fui atéa cabine do provador e me sentei no cubículo do qual a garota acabara de sair.O vestido que ela havia experimentado ainda estava pendurado ali, verde-claro, estilo anos 1920, em seda e com uma barra com pendões. Havia umlenço de seda verde-oliva para acompanhá-lo. – Preciso dar de mamar – eudisse, fazendo os ajustes necessários ao carregador e às minhas roupas. – Olhepro outro lado caso te deixe enjoada. – Certa vez, em um Wendy’s com aLauren, uma mulher amamentara um bebê em público. Lauren dissera: Achoque vou vomitar meus malditos nuggets.

– O quê? Ah, sim, não, eu não me importo. Puta merda, meu Deus, nãoacredito nisso.

– Olhe o linguajar – disse a reclamona, meio que murmurando.– Vá se foder, sua vaca idiota – gritou a garota. Ela estava de pé na porta

do cubículo, tensa, braços cruzados sob o casaco preto. Havia uma vivacidadenervosa e peculiar em suas mãos brancas e na garganta. Fiquei apenassentada, incapaz de decidir por onde começar. O leite vinha do universo e eracompelido através de mim para Zoë – mas o universo tinha mudado. Pensei:E se não gostarmos uma da outra?

– Há quanto tempo você...? – sussurrou ela. – Há quanto tempo você éum?

– Um ano e meio – sussurrei de volta. – E você, há quanto tempo?– Nove meses.O que trouxe o número de luas, o número de mortes. O que éramos

repentinamente se incandesceu ao nosso redor no espaço confinado. Tive umclarão mental do rosto de um adolescente com os olhos arregalados e a bocacheia de sangue. Só é o melhor para nós quando é o pior para eles.Incrivelmente, ela ruborizou. Não tão incrivelmente: eu mesma estavaruborizada.

– E quanto a ele? – perguntou ela, indicando a bebê com a cabeça.– Ela – falei.– E quanto a ela?– Ela é como nós.– Puta que pariu.A porta de um cubículo abriu e fechou. Não pude ver quem era, mas sabia

que era a mulher antipalavrões.– O que foi? – perguntou a garota para ela.Sem resposta.– Sai daqui – ordenou a garota, e senti a mulher obedecer. – Meu Deus, é

tão estranho – disse ela, voltando as costas para mim. – Sabíamos que haviaalguém. Temos dito isso há dias.

Pare.Nós.Plural.Um efeito como uma enorme mudança efêmera de luz. Um eclipse de

uma fração de segundo.– Quem é “nós”?– Eu e os outros.– Que outros?– Você sabe. Como nós.– Existem outros, como nós, aqui?– Não existe nenhum nos Estados Unidos?O leite e o sangue pulsavam, ritmadamente. Meu rosto estava quente.

Apesar de tudo, eu ainda tentava entender o efeito do cheiro dela. Era comoaquela vez no banheiro de Lauren quando as roupas que ela havia acabado detirar estavam em uma pilha no chão e, porque a curiosidade sempre mevencera, eu peguei a calcinha dela e cheirei. Uma pequena excitação profana eespasmódica com um toque de nojo e a satisfação de um segredo, mastambém um brotar de simpatia pela mesma espécie, uma sensação deacomodar algo dentro de si para o que você jamais imaginaria que teriaespaço. No momento, pensei: é o que Deus quer que façamos, que

encontremos espaço um para o outro da maneira que Ele encontra espaçopara tudo.

– Algum dos outros cubículos está ocupado? – perguntei.Ela deu uma olhada rápida.– Não.– Muito bem, uma coisa de cada vez. Você está me dizendo que há outros,

como nós, aqui em Londres, certo?– É.– Quantos?– Somos quatro. Eu fiz para a Trish. Depois, Lucy foi um acidente. Depois,

Trish fez merda com esse tal de Fergus, e agora há ele, também. Ele diz quenão passou para ninguém, mas não sei se está mentindo. Lucy também,falando nisso. Quero dizer, não a conheço realmente, não como pessoa.

Você leva um momento para confirmar que não está sonhando.Vislumbrei-os juntos em uma pequena sala de reuniões sem amor. Como umgrupo de apoio.

– Todos estávamos sentindo – prosseguiu ela. – Você, quero dizer.Estávamos tipo: Algo está acontecendo. Alguém está aqui. Outro dia dessesTrish disse que quase desmaiou em South Kensington. É como uma, como sediz mesmo... uma compulsão. Ela nem mesmo sabia o que estava fazendo lá.É como eu, agora, aqui dentro. Não estou fazendo compras, na verdade. Eusó... Entende?

– Estive em South Kensington – falei. – Também senti. Isto é... Espere. Oque quer dizer que fez para Trish?

– Ela pediu para mim – disse a jovem.– Pediu o que a você?– O que você acha?– Para transformá–la?– É – admitiu ela.– Por quê?– Bem, é uma longa história. Você precisa saber o contexto. Ela já teve

muito mais do que a parcela de merda que deveria suportar. Depois, viu o que

fiz com aquele babaca... Tinha esse cara babaca, Alistair. Ele livrava a cara deum monte de coisa, entende? É complicado.

Uma parte destacada de mim, calma e incrédula, estava preenchendo aslacunas na narrativa. Trish escravizada pelo tal babaca, Alistair, a garota lourafazendo uma visita a ele em uma lua cheia, Trish vendo o atalho para umavida na qual jamais seria controlada... Pensei: Jake, você deveria estar aquipara ver isso. O Novo Feminismo.

E com tal pensamento, a pergunta mais óbvia – a que deveria ter sido aprimeira na multidão – de repente abriu caminho para a primeira fila.

– Quem fez isso com você?Ela girou os olhos, como se recordasse um absurdo sem importância.– Um cara com quem eu estava saindo. Ele desapareceu. Portanto, na

verdade, há outros quatro além de mim.– Qual era o nome dele?Zoë tinha parado de sugar, mas, por um instante, não consegui me mover.

O ar no cubículo doía com nossas intuições mútuas. O odor dela intensificou-se, repentinamente.

– Jake – disse ela. – Eu nunca soube o sobrenome dele.O efeito de computação gráfica em escala planetária estava quase

terminado. Além da sensação de inevitabilidade, eu estava magoada: Por queele não me contara? E como ele fizera aquilo? Ele não tinha o vírus? Ele nãoera incapaz de transmitir a Maldição? Espere. Não. Ellis informara a Jake quea WOCOP estivera aplicando o antivírus nele sempre que possível. Drinquesno Zetter. O hotel em Caernarfon. Teria funcionado?

Um cara com quem eu estava saindo.O Zetter. Caernarfon.O último detalhe da metamorfose gigantesca em computação gráfica

resolveu-se. Tínhamos nosso novo formato.– Você é Madeline – eu disse.– Sou – respondeu ela. – Como você sabe?

28

Foi imprudente voltar com ela ao Dorchester, mas eu não estava emcondições de fazer bons julgamentos. Falei para ela que não poderíamosconversar no táxi, de modo que, quando ficamos atrás de portas fechadas naminha suíte, as perguntas fervilharam agitadamente. Expliquei o que sabia domodo mais rápido (e simples) que pude: Jake; a quase extinção da espécie; aWOCOP; os vampiros; o vírus. Ela não sabia nada a respeito da Caçada,nunca, até onde podia imaginar, havia sido perseguida, e nunca encontraraum vampiro, apesar de ter aceitado sem questionar a descoberta da existênciadeles. Não fiz nenhuma menção aos diários. Ela iria gostar de lê-los e Jake nãofoi muito gentil nos comentários. Que nós o tivéssemos em comum estreitavaa intimidade, é claro, e me obrigava a imaginar coisas, os pequenos disfarcesdo rostinho bonito dela quando ele enfiava o pau em seu ânus, os doisbebendo champanhe, de pé, nus, ela rolando sobre o celular dele na cama doCaernarfon. Deveria significar inimizade, ou ao menos ciúme, mas não. Wulfpisoteava tudo: estávamos mutuamente fascinadas, como irmãs recém-apresentadas uma à outra.

Havia as diferenças superficiais: nacionalidade, educação, gosto (a humananela havia rotulado a mim como uma mulher esperta, talvez um poucoarrogante e não tão bonita quanto ela, o que era crucial e gratificante), maselas se queimaram sob o calor do monstro que compartilhávamos, que agorase sentava conosco como um tio pedófilo deleitado com as duas sobrinhascorruptas. De todo modo, apesar do desdém de Jake em relação à capacidadeintelectual dela, Madeline alcançava a mulher de negócios em nós duas, a

mácula do comércio, a relação objetiva com o dinheiro. Isto e ocomprometimento com a autopreservação, com a vida a qualquer customoral. Você ama a vida pois a vida é tudo que existe. Não existe Deus, e este éSeu único mandamento. Jake não precisaria contar isso a ela.

Ela transformara-se na noite após o último encontro deles no Castle Hotelem Caernarfon. Mais tarde retornara em busca de Jake, mas é claro que,naquela altura, ele já estava na França.

– Ele costumava me contar a respeito – disse ela. – Sobre como tinha 200anos de idade, sobre como matava pessoas toda lua cheia. – Ela estava sentadaem uma das cadeiras de couro bege da suíte, bebendo gim-tônica, uma pernamagra e de bota cruzada sobre a outra. Zoë, atordoada pelo leite e com asensação de segurança perceptivelmente ampliada, dormia no carrinho-berço.Cloquet estava em seu quarto. Eu havia telefonado para dizer a ele que estavade volta, mas que não queria ser perturbada. Eu precisava de Madeline paramim primeiro; ele complicaria tudo. – Clientes estão sempre contando coisaspra gente. – prosseguiu Madeline. – Metade do tempo, é para isso que pagam.Normalmente, você escuta com uma grande dose de distanciamento, né? Masele era diferente. Quero dizer, quando contava coisas, era como se lesse de umlivro ou algo parecido. – “Ele”, Jake, seguia incensando e apagando entre nóscomo uma luz do sol prazerozamente envergonhante. Era como seestivéssemos uma vendo a outra nua. – E depois a cabeça daquele pobresujeito na bolsa – continuou ela. – Cristo. E o outro cara diz “Ele é umlobisomem, querida, você não sabia?”, e eu tipo: Que porra é esse. Querodizer, ele tentou desconversar depois, fazer daquilo uma piada, mas eu sabianaquela altura que alguma coisa muito estranha estava acontecendo.

– Ainda não compreendo como ele fez com você – falei.Ela balançou a cabeça, deu de ombros.– Na época, apenas presumi... – Ela fez uma expressão para indicar sexo. –

Entende?– Mas não é disseminado dessa maneira – falei. – Pelo que sei, não tem

nenhuma relação com contato sexual.– Olha só, você pode até estar certa, mas o que você quer que eu diga? Ele

não me mordeu, com certeza. Ele não se transformou. Tudo que sei é queaconteceu, definitivamente, depois da primeira noite que passamos emCaernarfon.

Ambas ficamos em silêncio – atingimos o silêncio, na verdade, pois o queela acabara de dizer trazia a primeira morte dela – o adolescente – para oquarto conosco. Entreolhamo-nos – um momento de absoluta transparência(sim, sabíamos o que tínhamos feito; sim, realmente fizemos) – e depoisdesviamos o olhar, não constrangidas, mas chocadas com a excitação obscenade nossa admissão mútua. Pude imaginar o primeiro toque incestuoso entreirmãos sendo daquela maneira. Também pensei – vinha pensando,praticamente desde o primeiro momento em que reconhera o que ela era:Será que deveria permitir que fosse com ela minha primeira relação sexualcom outra mulher? Como seria fodermatarcomer com ela? Será que elasequer iria querer?

– Tem alguma coisa errada com você – disse Madeline.– O quê?– Algo aconteceu com você. O que foi?Superficialmente, eu estava me contendo quanto a contá-la sobre o rapto

para testar a intuição de wulf, para ver se ela captaria. Não superficialmente,não o fiz porque contar a ela traria de volta a totalidade do meu fracasso.Fracasso como mulher, como mãe, como um indivíduo caracterizado pelopronome Ela. Meu próprio nojo fora ruim o bastante. Agora, haveria tambémo nojo da própria espécie com o qual lidar.

O calor aumentou entre nós. O momento ampliou-se. Nossos olhosseguiam se encontrando e desviando porque nenhuma de nós tinha certeza seestávamos prontas para a brutal telepatia que nos era disponível. Eu estavapensando nos lobos do Alasca, na maneira que minha força de vontade haviapassado para os ombros e quadris deles e suas mandíbulas e patas...

– Pare!Ela tinha ficado tensa na cadeira. Pensei que o copo fosse quebrar em sua

mão.– Me desculpe, eu não perc... – Mas ali estava ela, na minha nuca e

antebraços, um movimento que rebatia a minha intrusão de modo chocante.– Espere – falei. – Sinto muito. Eu não sabia que isso ia acontecer. Vá com

calma.Ficamos nos encarando. O pânico e a repulsa eram humanos. Enquanto

isso, wulf relaxou em deleite. Ficamos equilibradas naquele estado durante oque pareceu muito tempo. Então, nós duas – devido a uma mistura deconstrangimento com uma repentina confiança mútua – gargalhamos.Recuamos simultaneamente, uma sensação como a fina beirada de uma ondadissolvendo-se ao retroceder sobre a areia. Shshsh.

– É assim com os outros? – perguntei a ela.– Sim, é– Demora até a gente se acostumar.– Nem me fale – concordou ela.– Quero conhecê-los.– O que, agora?– Bem... Não, espere. Precisamos pensar a respeito. Precisamos ser

cuidadosas.– Como assim? – perguntou Madeline.– O que você disse antes, sobre haver algo de errado, sobre algo ter

acontecido comigo? Você tinha razão.– O que foi que aconteceu?Zoë emitiu um pequeno ruído em staccato no sono, chutou as pernas

algumas vezes, ficou quieta de novo. Começou a chover. Eu odiava aquelaspalavras. Cada uma delas era como um enorme inseto vivo dentro da minhaboca.

– Meu filho foi levado – falei, sentada na beirada da cama. – Não tenho amenor ideia de onde ele está, e eles vão matá-lo.

29

Contei tudo a ela e vice-versa. O crepúsculo ficou mais profundo. O quartotornou-se um local secreto, com nossas vozes falando baixinho. Em silêncio,nossas mortes brotavam ao nosso redor e através de nossos rubores enquantofalávamos. Eu sabia que ela fizera a mudança, reconhecera a culpa como umacoisa sem sentido visto que aqui ela ainda estava, apesar do que tinha feito, doque continuava fazendo, do que sabia que continuaria a fazer. Aqui ela aindaestava, trajando boas roupas e cheirando a Dior Addict, com dinheiro nabolsa e pessoas em sua vida. Você rasgava a carne humana e penetrava nelaaterrorizada, via o coração de cetim e o fígado de borracha, todas as coisasocultas do corpo, por fim, mostravam-se obedientes às leis da nossa violência.Você quebrava os ossos e bebia o sangue. Você tomava uma vida e o roubopassava impune. Deus não fulminava você. O céu não desmoronava. Namanhã seguinte, você abria a torneira e a água continuava a sair. Jingles decomerciais continuavam grudando em sua cabeça. A sensação ainda era boaquando você levantava o braço para chamar um táxi e, saindo do trânsitocomo que por mágica, um deles vinha em sua direção. Você tinha feito coisasque deveriam acabar com você e descobria que essas eram apenas coisas quemudavam você. Era uma decepção, uma revelação, um pesar e uma nova eexcitante nudez. Era a obscenidade básica e vulgar: você seguia em frente.

Impossível saber se ela um dia fora a boneca unidimensional que Jakeretratara, mas, de todo modo, a Maldição – para afirmar o óbvio – haviaalterado Madeline. Segundo Jake, toda a personalidade dela fora movida pelainsegurança: a vaidade, o materialismo, os clichês dos tabloides, as fixações

por celebridades e o conhecimento de cosméticos. A coisa toda era umanebulosa que precisava permanecer girando protetoramente em torno de umnúcleo de medo. Mas não mais. A vaidade ainda estava ali, assim como ovocabulário empobrecido e a total ausência de leitura. Mas wulf, se nãoenlouquecesse você, tornava você mais esperta. Gostasse ou não, cada vítimaforçava você a absorver a vida de um estranho. Sua visão se ampliava.Perspectivas estranhas tornavam-se disponíveis. Novas compreensõessurpreendiam e tornavam você mais profundo. As vítimas eram a leitura. Elatinha apetite por aquilo agora, aquela expansão que nunca soube que existia.

Lucy, “o acidente”, era uma oftalmologista do Hospital Oftalmológico deMoorfield, 38 anos, recém-divorciada e que saíra do acordo do divórcio com,entre outras coisas, um chalé isolado em Wiltshire, onde fora passar um finalde semana solitário há três meses. Madeline, sendo suficientemente racionalpara não matar na porta da própria casa, estivera na área, observara o chalé eentrara por uma janela do segundo andar. Depois, fora interrompida.

– Ouvi um carro e pessoas saindo bem na entrada do chalé. Entrei empânico – disse ela para mim. Então Madeline fugiu, deixando Lucy, que seriasua vítima, com uma grande mordida, uma história de terror e uma estruturainteiramente nova. – Foi assim que descobri como funcionava – disseMadeline. – Lucy me localizou seis semanas depois.

Sim, presumindo que não houvesse o vírus, era assim que funcionava.Você era mordido, sobrevivia, se transformava. Mas ali estava Madeline, certade que não fora mordida. Como seria possível?

Trish era amiga dela desde o ensino fundamental e acabara encantada pelotal babaca, Alistair. O cara tinha um sistema muito simples. Viciavaadolescentes em heroína e depois as obrigava a fazer pornografia cada vezmais radical para pagar pela droga. Ele fizera Trish ir parar no hospital umadúzia de vezes, mais recentemente com quatro costelas quebradas e umaborto. Quando Madeline foi visitá-la, Trish pediu que a amiga lheemprestasse dinheiro para matar Alistair. Madeline fez uma oferta: Elaconseguiria alguém para dar fim em Alistair se Trish prometesse abandonar adroga.

As providências não foram difíceis de tomar. Alistair vinha tentandodormir com Madeline há anos.

– Sabe o que foi estranho? – perguntou Madeline. – Contei a história todapara Trish, o que eu era, o que iria fazer com ele... E ela acreditou em mim.Simplesmente acreditou em mim de cara. Ela disse que queria assistir. Então,deixei.

O problema foi que, mesmo depois de Alistair ter um fim, Trish nãoconseguiu se livrar do vício.

– Ela havia passado por coisas demais – disse Madeline. – Você realmentenão tem ideia. As coisas que ele fazia com ela. Inacreditável. – Ela balançou acabeça, enojada. – E depois de tudo isso, ela vai e tenta se matar. Duas vezes!Honestamente, a mulher estava um caco. Por fim, ela simplesmente meperguntou na caradura se eu faria... você sabe. Ela disse que tinha visto o queaquilo fizera comigo. Digo, agora eu sou diferente de como costumava ser. Eucostumava ser... Bem, anyway. Você sabe. Digo, você sabe mesmo. – Penseique sabia. Além de tudo mais que Maldição fizera comigo, ela haviaeliminado o medo físico. Você não sabe quanto medo físico esteve carregandopor aí até que ele seja removido. Pense em toda vez que você se encontrasozinha com um homem que não conhece. Caminhar em uma rua. Em umposto de gasolina no meio da noite. Imagine saber que ele não pode matarvocê. Imagine saber que você pode trazer justamente o bastante de wulf até asuperfície para que ele saiba que irritar você será uma ideia muito, muitoruim. Madeline bebericou a gim-tônica e prosseguiu: – Então, pensei: “Sevocê deixá-la por conta própria, Mads, ela estará em um caixão em um mês.E, depois, isso tudo terá sido para quê?” Soa idiota, eu sei, mas realmente nãovia o que Trish tinha a perder. Então eu fiz.

Uma camareira passou pela porta empurrando um carrinho tilintante. Omundo recuara de nós. O quarto estava escuro. Levantar e acender uma luzteria sido brutal.

– Ela abandonou a droga agora – disse Madeline. – Foi completamente emoutra direção. Você deveria vê-la. Ela parece uma maldita Lara Croft.

Lara Croft ou não, Trish tinha feito um péssimo trabalho em sua morte no

mês passado, e agora elas tinham Fergus, um representante de vendasalcoólatra, de 53 anos, três vezes divorciado, para somar à família. ComoLucy, ele rastreara sua criadora.

– Isso é o que há de diferente com você – disse Madeline. – Lucy e Fergus,eles conseguiram nos encontrar. Quero dizer, todos temos uma sensação emrelação à localização dos outros. Instinto ou o que quer que seja. Se eu sairdaqui e começar a andar, logo vou saber em qual direção devo ir paraencontrar qualquer um deles. Não é assim com você. É mais confuso.

Madeline não era sentimental. Quando contei a ela sobre o nascimento emeu coração morto, sobre o espaço vazio onde o amor deveria estar, ela nãodisse que eu não deveria me culpar, ou que não era minha culpa, ou que nãohavia nada que eu pudesse ter feito. Apenas ficou sentada, intrigada, fisgadapela história. Algumas vezes fiz uma pausa longa demais na narrativa. “Eentão o que aconteceu?”, perguntou ela. Me vi gostando de Madeline. Ela nãoconseguia disfarçar a satisfação com o pensamento de nunca envelhecer;queria a confirmação da estimativa de vida de 400 anos e da imunidade adoenças. Contei a ela que fora isso o que Jake me dissera – e se alguémsaberia, seria ele.

Era uma fascinação um pouco amarga para ela que Jake tivesse me amado.Não porque ela gostasse dele, mas porque era impelida a descobrir quaisméritos ou habilidades as outras mulheres possuíam. Pude sentir Madelinetentando imaginar como havia sido entre mim e ele. Pude senti-lacompreendendo, relutantemente, que era a outra coisa, a coisa misteriosa, acoisa da qual até mesmo o sexo fabuloso era apenas uma parte. Ela nuncahavia se apaixonado. Não na vida adulta. Ainda não tinha se formado nestedepartamento. Eu sentia aquilo em seus ombros magros, tensos. Estavapresente no apetite dela por coisas. Estava presente na prostituição. Houveum momento estranho no qual perguntei se ela ainda trabalhava comoacompanhante, e ela respondeu que sim. Estranho porque, obviamente, issotrazia Jake novamente, as imagens, a especulação (com você, ele gostavade...?); estranho novamente porque, apesar de tudo, ela achava que eu poderiareprovar (a princípio, ela adotou uma simulação brilhante e pragmática de

sem-vergonhice); mas estranho principalmente porque provocava em nósduas, feito um rubor quente, a presença da outra, a mais gentil atrocidade danossa condição: a libido da wulf. De repente, o fato da ninfomania daMaldição estava presente, ostensivamente, e por um momento não soubemosse o reconhecíamos ou não. Houve um breve silêncio. Depois, como antes,gargalhamos.

– Tive três meses de trégua quando estava grávida – falei para ela. – Agora,voltou.

Ela estava na quarta dose.– Do jeito que vejo as coisas – disse ela –, por que abandonar o trabalho

agora? Pelo menos há mais nele do que só o dinheiro.Já era mais de oito horas quando Cloquet bateu para ver o que eu queria

para o jantar. Naquela altura, eu já tinha feito o possível para marretar emMadeline a necessidade de extrema cautela em todos os nossos movimentos ecomunicações a partir de agora. Ela também conseguira contatar dois dos trêsoutros (Trish e Fergus) e combinar um encontro para a noite seguinte, àsnove horas, em um local (insisti) a ser determinado por mim não mais deduas horas antes do horário marcado. Ela me deu o número dela e não crioucaso quando eu disse que não poderia lhe dar o número do meu celularlimpo. Falei para ela que providenciaria outro telefone no dia seguinte e quedaí em diante usaríamos esse. Apresentei-a a Cloquet como uma amiga e nãodisse nada sobre o que ela era. Em parte, para ver se ele conseguiria perceber(era uma das coisas que nunca tive certeza: se nós não – através de algumavibração ou feromônio – nos entregávamos aos humanos), masprincipalmente porque eu não conseguia encarar explicar tudo de novo comMadeline presente.

– Você reparou algo de esquisito nela? – perguntei a Cloquet, depois queela foi embora. Estávamos sozinhos na minha suíte, ele no assento da janela,eu na beirada da cama. Estava totalmente escuro lá fora e chovia. A TV estavaligada, sem som. CNN, canal que Walker e eu ficamos meio que assistindo naúltima visita dele, como duas pessoas olhando para trás, através do tempo edo espaço, para o mundo que tínhamos perdido havia muito tempo.

– De esquisito? Não. Por quê? O que há de estranho?Ele mesmo reagira estranhamente quando eu os apresentara, mal dissera

uma palavra, pareceu incerto quanto a apertar a mão dela. Agora, reagiaestranhamente à pergunta.

– Você pareceu um pouco estranho com ela – comentei.– Estranho? Pas de tout. Não sei nada sobre ela.– Oh, meu Deus – exclamei, com a intuição atrasada. – Você gostou dela.– Não seja ridícula.O eu sexual dele estivera adormecido por tanto tempo que fiquei chocada

com a certeza de que era aquilo mesmo. Mas não menos certa, chocada ounão.

– É claro. Ela é linda – declarei.– Ela parece com alguém com quem trabalhei uma vez, é só isso.– Não é nada do que se envergonhar.– Merde alors. Ela se parece com uma maldita modelo com quem trabalhei,

anos atrás.– Ela é um lobisomem – disse a ele.– O quê?– Isso mesmo. Ainda quer o número dela?Ele escutou em silêncio, com a testa franzida, depois fez uma série de

perguntas, para a maioria das quais eu não tinha resposta. Toda aquelamudança repentina estava deixando Cloquet desconcertado, primeiro Walkere Konstantinov, depois eu e Walker, agora mais quatro lobisomens.

– Eles são uma matilha – disse ele.– E daí? – perguntei.– Talvez não seja nada. Mas não gosto que possam encontrar você tão

facilmente.– Não com tanta facilidade, pelo que parece.– Que possam encontrar você, de qualquer forma.– Posso confiar nela. Eu sei. Não me pergunte como. É uma coisa de

espécie.– Ela é uma entre quatro – disse Cloquet.

– Sim, bem, a cavalo dado não se olha os dentes. Eles vão nos ajudar.Ele abriu a boca para dizer algo, mas depois parou.– Mon Dieu – disse ele. – Olhe.Para a TV, foi o que quis dizer. Na tela, havia uma grande construção

escura no meio do nada com neve até as janelas do andar térreo. Não areconheci de cara. Depois, sim. Era o abrigo no Alasca. A imagem seguinteera dentro da cozinha da sala de estar. Uma equipe de homens em roupastérmicas conduzia o que parecia ser uma varredura pericial. Cloquetencontrou o controle remoto e ligou o som.

– ... nos estágios iniciais. – Um dos integrantes da equipe disse para umentrevistador fora da câmera. – Mas encontramos o que, à primeira vista,parece ser material geneticamente anormal. Não estamos nos adiantando emtirar uma conclusão precipitada, entenda, mas este trabalho nos ensina amanter a mente aberta.

– A mente aberta? – A voz em off do repórter nos perguntou,retoricamente. – Uma pessoa cuja cabeça já está feita é a jovem cuja incrívelhistória deu início a esta investigação.

E ali estava ela: Kaitlyn. Ela parecia atormentada e ensebada sob o clarãodas luzes. Usava uma parca enorme e botas grandes.

– Olha só, eu nunca acreditei em nada disso – disse ela. – Mas o queaconteceu aqui foi real, e esses caras com os equipamentos... esses caras comos equipamentos científicos e tudo mais, eles já encontraram partículas,certo? Quero dizer, são evidências biológicas, são evidências concretas. Essenegócio foi tão real quanto você de pé bem aqui e todas as pessoas que dizemque sou louca, elas simplesmente podem conversar com esses cientistas aqui,elas simplesmente podem... entende? Esse negócio foi real. Foi mesmo real.

Cloquet e eu assistimos ao restante da reportagem. A história teriacomeçado como um artigo minúsculo em um programa de telefonemas emuma rádio de Fairbanks ou em um talk show barato e o interesse de alguémfora fisgado. Um paranormal maluco com dinheiro. Agora, ciência. Agora, apolícia. Havia emblemas do município na equipe forense.

– Merda – disse Cloquet. – Maravilha.

– Não há nada que possamos fazer agora – falei. – De toda forma, nãopegamos o voo com as identidades que usamos para alugar o local. Nãoestarão procurando por nós. Nem sequer sabem que deixamos o país.

– Ela deve ter dado uma descrição – disse Cloquet. – Se procurarem nocircuito interno de segurança do aeroporto de Anchorage...

– Escute, esqueça. Está fora do nosso controle.O telefone tocou.O número de Walker. Meu couro cabeludo ferveu.– Alô?O silêncio logo antes da voz dele era como a vastidão do espaço sideral. Eu

sabia o que estava por vir.– Encontramos eles – disse ele. – Estão com seu filho e Natasha. Mas

precisamos agir rápido.

30

Segundo Hoyle, eles estavam em uma casa de fazenda abandonada, a 24quilômetros de Macerata, no distrito de Le Marche, na Itália. JacquelineDelon, outros cinco vampiros, quatro familiares, Natasha Konstantinov e umbebê lobisomem do sexo masculino, duas semanas e meia de idade.

Disse a mim mesma para ficar tranquila. Não colocar o coração. Deixe ocoração tomar conta e você fode com tudo. Mas continue sentada na cama,enjoada de adrenalina, esperança e medo.

– Voaremos para Roma – disse Walker para mim. – E, depois, paraFalconara, de onde haverá transporte. O grande problema são as armas.

– Por quê? – perguntei.– Porque pode não haver nenhuma.Tentei visualizar aquilo. Vislumbrei a mim mesma, Walker e

Konstantinov avançando em meio a um campo de grama seca e alta sob umcéu azul-claro. Tive uma sensação muito clara de como seria estarcompletamente desarmada, do ar passando pelas minhas mãos vazias.

– Como faremos isso sem armas?– Bem, vamos entrar de dia, o que elimina os vampiros. E aí estaremos

lidando apenas com os quatro familiares.– Quatro familiares armados – ressaltei.– Eu sei, eu sei. Mas haverá seis de nós.– Seis? O que aconteceu com os vinte? – perguntei.– Bem, Murdoch matou quatro deles. O restante ou está no submundo ou,

francamente, não está interessado. Não é como se todos eles dessem a mínima

para a esposa de Mike. E nenhum deles dá a mínima para você ou seu filho.Eu disse a eles que você iria pagar, mas não estão preocupados com dinheironeste momento. O que importa a eles, agora, é permanecer vivos. Sintomuito. Você simplesmente vai precisar confiar que conseguiremos fazer isso.Além do mais, não mencione ao grupo que poderá não haver armas. Casonão haja, vamos lidar com o problema na hora certa. Agora, me passe asinformações do seu passaporte.

– Pegaremos um voo comum? – perguntei a ele.– Em vez de?– Não sei. Alguma coisa fora do radar.– Isso era nos bons e velhos tempos. Agora estamos fora da organização.

Helicópteros, grandes equipamentos, voos fantasmas, carta-branca paramobilidade... tudo se foi.

Então, por que estou contratando vocês?, não precisei perguntar.Porque somos nós ou você por conta própria, ele não precisou responder.Um breve silêncio durante o qual ambos sentimos a conexão e o quanto

nós a tornáramos muito mais complicada ao dormirmos juntos.– O que faremos com nossa pequena senhorita? – perguntou ele.Me pergunte quando estivermos prontos para agir, foi o que eu disse.Bem, estávamos prontos para agir agora – ou melhor, precisávamos agir,

prontos ou não.

*

Cloquet ficou sentado na beirada da cama e escutou. Eu havia acabado de leras instruções para a preparação da fórmula de leite, a qual, tendo sabido quetal momento chegaria, eu havia comprado e escondido no quarto.

– Não há outra alternativa – justifiquei.– Eu sei – respondeu ele.– Você vai ficar bem.

– E se você não voltar? – perguntou Cloquet.– Eu vou voltar, prometo.– Você não pode prometer.– Não, não posso. Lamento.Eram duas da manhã e chovia muito, barulhentamente. O primeiro voo

no qual Walker conseguira nos colocar partiria em três horas e meia. Eu oencontraria no Heathrow. Transferi eletronicamente um dinheiro para aconta de Cloquet e escrevi uma carta para o meu pai, que deveria ser entregueem mãos por Cloquet caso me matassem. O testamento estava com oadvogado de Manhattan que havia cuidado do meu divórcio. Pensei emescrever uma carta para Zoë (para ambos, visto que era teoricamente possívelque Lorcan sobrevivesse, ainda que eu não), mas não consegui. Parecia falsa,uma coisa que era, para mim mesma, disfarçada de algo para eles. Melhorpermanecer um mistério limpo. Melhor deixá-los livres para imaginar a mãeque gostariam de ter. Assim como precisariam imaginar o pai.

Dei a Cloquet o número de Madeline.– Não está falando sério, né? – perguntou ele.– Caso sobrevivam, precisarão de outros da própria espécie. Sei que você

cuidará deles, mas vai precisar de ajuda. Madeline não é má pessoa. Confieem mim, eu sei. Além disso, você sabe... quem sabe, certo? Ela pode ser boapara você.

– Isso é...– Isso é necessário. Não discuta. Tem certeza do que está fazendo com a

fórmula?Eu havia preparado as malas, se é que se poderia chamá-las disso.

Identidades, dinheiro, cartões, a certidão de nascimento de Lorcan, umaescova de dentes, três mudas de roupas de baixo. O último diário de Jake. Eunão queria estar pronta até o carro chegar. Queria precisar partir às pressas enão ter de pensar em nada para dizer. Eu queria não poder segurar Zoë pormais de um momento.

Para matar o tempo, entrei na pequena en suite e coloquei um pouco demaquiagem. Usei fio dental. Enxaguei a boca com pasta de dentes. Fiquei

sentada na privada pelo que pareceu muito tempo depois de fazer xixi. Me viabsorvendo os detalhes do banheiro da maneira que alguém faria se aquelesfossem seus últimos segundos antes de ser executado. O vasto silênciomatemático estava presente, na porcelana branca e nas lâmpadas frias que sedeleitavam. Novamente, me imaginei atravessando o campo de capim seco ealto sem arma nas mãos – e, na realidade, tendo nas mãos a sensação de quehaviam perdido a metade da massa. Me curvei sentada na privada,convencida de que iria vomitar. Nada aconteceu. Endireitei a postura,tremendo.

O telefone do quarto tocou.– O carro está aqui – disse Cloquet.Ele estava com Zoë nos braços quando saí do banheiro. Peguei-a

rapidamente, segurei-a, olhei para ela. Senti tudo ao que não tinha direitocomo um tsunami trêmula e reprimida. O rosto dela estava aquecido porcausa do cochilo, marcado em uma bochecha no ponto em que uma dobrafizera pressão. Ela me focalizou com os olhos vesgos. Rapidamente, antes daqueda para o nada, rápido, rápido. Beijei-a, cheirei a cabeça dela, mantivemeu rosto contra o dela por um instante, comecei a dizer por dentro Sintomuito, meu anjo, sinto muito por tudo – depois parei. A escuridão corria sobas luzes cintilantes do futuro dela. Aquilo amolecia o coração do Faraó, epensei que não poderia abandoná-la, o que me lançou imediatamente numaqueda nauseante para longe dela, pois o que eu era? Quem eu era? Quando acoloquei de volta no carrinho-berço, a transferência do peso dela repuxouminhas entranhas, uma delicada evisceração. Dê meia-volta agora ou vocênunca conseguirá partir. Imediatamente. Imediatamente.

De repente, Cloquet estava tomado por realidades, todos os seusmecanismos de adiamentos e negações falhando. Seu rosto estava cheio deterror. Abracei-o, rapidamente, murmurei “Não diga nada”. Os braços deleme envolveram. Eu sabia que se permitisse a Cloquet estabelecer um abraçoadequado eu teria grande trabalho para me livrar dele.

– Preciso ir – falei, me afastando. Peguei minha mochila, atravessei a suítee abri a porta. Imaginei minha mãe de pé atrás de mim como um talismã,

dizendo em voz baixa: “Não olhe para trás. Não olhe para trás. Não olhe paratrás.”

Então não olhei.

31

Em Falconara, pegamos um Land Rover e uma Mercedes sedã. Para visívelalívio de Walker, havia armas no bagageiro do jipe: quatro pistolas com umpente cada e duas AK-47s Lancaster Tactical com um carregador de 30 tirospara cada uma. O que ainda deixava uma pessoa desarmada. Com Walker eKonstantinov, havia três outros ex-agentes da WOCOP – Hudd, Carney ePavlov (todos na lista de morte de Murdoch) –, nenhum dos quaisconcordaria em entrar sem equipamentos.

– Imagino que isto significa que eu fico com o prêmio – disse Walker. –Presumo que ninguém irá se opor caso eu fique na retaguarda, com minhashabilidades letais de kung fu.

Hudd tinha trinta e poucos anos, era atarracado, musculoso, com a cabeçaraspada, cavanhaque preto e parecia movido por uma força demoníaca.Carney era mais jovem, alto e magro, com o cabelo louro em um corte militare um rosto delicado com olhos azuis. Vestido com um jeans bem largo,camisa xadrez e chapéu de palha, ele seria o amável idiota da aldeia. Oterceiro renegado, Pavlov, tinha cerca de 45 anos, com cabelo liso ruivo egrisalho até o ombro e um rosto plácido, com os ossos da face amplos. Olhoscastanhos estreitos repletos de um niilismo tão satisfeito que diziam que elepossivelmente não estaria ali por nada além do dinheiro. Não se apresse, eurepetia para mim mesma, mas eu tinha amor por eles, um carinho de imensariqueza, pronto para ser dado caso fossem os homens que me ajudassem arecuperar meu filho.

Deixamos o aeroporto logo após o meio-dia no horário local e rumamospara o sudoeste. Walker, Konstantinov (dirigindo) e eu na Mercedes, osoutros no Land Rover. Fazia frio. Céu azul e tiras de nuvens brancas.Konstantinov tinha uma calma e uma precisão de movimentos que indicavamum potencial terrível.

– Não é longe – disse Walker para mim. – Você deveria dar outra olhadanas imagens.

Era meia dúzia de imagens de satélites do Google Maps exibindo a casa emruínas e o terreno ao redor. Uma enorme construção quadrada com umtelhado acastelado e um torreão quebrado que ficava em sete acres nãocuidados onde, nos fundos, havia um morro baixo. No limite sul, apropriedade era margeada por um cinturão estreito de floresta decídua. Haviatrês outras construções no terreno, em diferentes estados de ruína, e umpequeno pomar não cultivado a talvez 20 metros do lado leste da casaprincipal. Aquele ponto era o mais próximo que conseguiríamos chegar antesque fôssemos descobertos.

– Não temos silenciadores – dissera Walker. – Portanto, quandocomeçarmos a atirar, é melhor que saibamos o que estamos fazendo.

Graças a Deus, tínhamos equipamentos de comunicação. Acredite ou não,é permitido transportar walkie-talkies e radiotransmissores em vooscomerciais, desde que você não os use a bordo, portanto, cada um de nósestava equipado com headsets. O plano era que Walker e Hudd seguiriam nafrente para examinar o local e assegurar que não estaríamos enfrentando maiscapangas do que tinham nos avisado. Embora, na verdade, Walker tenhaconfidenciado para mim, isso não irá fazer muita diferença para Mike. De umjeito ou de outro, ele vai entrar. (O que significa “Eu vou entrar”, ele nãoprecisou acrescentar.) Depois, era simplesmente uma questão de eliminar osfamiliares, localizar os prisioneiros e resgatá-los. Simplesmente uma questãode, Walker havia repetido. “Este é meu idioma escolhido para este tipo decoisa. Não faz sentido ser negativo.” Depois de uma hora de voo eu queriatransar com ele. Wulf, naturalmente, mantinha a demanda de chova ou façasol, boquiaberta, língua pendendo para fora, olhos cintilando com uma

obscenidade honesta. Só que a grande pressão dolorosa vinha da partehumana, da minha garota, que apenas acabara de despertar para aproximidade da morte e sentira grande ternura por si mesma e por seu corpoe por toda a rica finitude que seria perdida. Ela queria, uma última vez, estar omais perto possível de outro ser humano. Mas, ao contrário do que os filmesdizem, não é tão fácil fazer sexo em um avião. Em primeiro lugar, o avião eraminúsculo. A estação de trabalho da tripulação era praticamente dentro dobanheiro. Além disso, havia uma fila permanente de pessoas aguardando parautilizá-lo. Fiquei ali sentada ao lado de Walker sem dizer nada sobre oassunto, me sentindo cada vez mais absurda e desesperada, e, finalmente,visto que era óbvio que aquilo não aconteceria, esmagada. O outro tapa derealidade do avião foi que eu não havia parado para pensar que precisariaparar repentinamente de amamentar. Quando a hora da terceiraamamentação consecutiva de Zoë chegou e passou, o leite não sugado deuinício a um protesto lancinante. Escute, sei que estamos em uma missão – masvocê se incomodaria se tentássemos encontrar algum lugar que venda bombasde sucção quando aterrissarmos? Fiz o que pude para expelir um poucomanualmente no banheiro, tomei dois comprimidos de ibuprofeno e disse amim mesma que não demoraria muito até que eu precisasse do leite paraLorcan.

Junto com as imagens de satélite da casa, havia uma xerox de um retratoda esposa de Konstantinov, Natasha. “Todos os caras têm uma cópia”, disseWalker, “para que ninguém atire nela por engano.” A fotografia mostravaNatasha olhando diretamente para a câmera, sem sorrir, uma mulher de rostomagro com cabelo escuro amarrado para trás. Sem glamour, mas olhosnegros, os quais não se poderia iludir. Ela vê diretamente através de você, aspessoas diriam. Parecia pelo menos 15 anos mais nova que Konstantinov, masainda assim eu conseguia imaginar os dois juntos. A mesma intensidade. Semmedo da morte – especialmente agora que tinham amor. Se ela estivesse emum quarto com Madeline, nove entre dez homens a ignorariam.Konstantinov era o um entre os dez para quem não haveria mais ninguém noquarto.

– Muito bem – disse Walker. – Chegamos.Paramos em uma estrada estreita de calcário que corria ao longo da

encosta de uma colina íngreme. Árvores subiam a encosta à nossa direita,campos abertos de fazendas desciam à esquerda. Depois de uma curva cercade 75 metros adiante, de acordo com o mapa, a estrada passava pela entradada Casa del Campanile. Seguiríamos Walker e Carney até o lado sul do pomare aguardaríamos o sinal deles para avançarmos.

– Obviamente, os vampiros estarão no subsolo – disse Walker quando nosreunimos um pouco adiante, sob as árvores. – Assim como os prisioneiros.Haverá alguém vigiando o menino, portanto, não importa quantos familiaresdetectemos acima, devemos presumir que haja pelo menos mais um eprovavelmente dois no porão. Todos prontos?

Confirmação coletiva, tensa e silenciosa, uma versão diluída daquilo queeu havia compartilhado com os lobos do Alasca. Carney levantou lentamenteos polegares e, sem motivo, enquanto eu o observava fazer o gesto, tudo foifinalmente absorvido pela minha mente e acumulado pelo meu corpo: a faltade sono, o voo, o país estranho, a proximidade do meu filho, a percepção deque aquele lugar – cheirando a folhas caídas, pedra fria, madeira morta emato ressecado – poderia ser onde eu morreria. A exaustão estava presente,mas wulf a desconsiderou. Não porque seu filho estava perto, mas porquehavia algo a ser caçado e morto. Faltavam 18 dias para a transformação, mas ohumano em modo de caça tinha arrastado o animal fantasma, quente etrêmulo, para a superfície. Eu a sentia nas unhas e nos pés, na coluna e nocouro cabeludo. Podia sentir a frustração dela diante daquilo com o qualtinha de trabalhar. Mas, graças a ela, todos os cinco sentidos estavamviolentamente ampliados. Satisfação percorreu meus membros como umabebida de efeito rápido. Além disso, a dor nos meus seios passou.

Walker olhou para Konstantinov.– Não falta muito agora, Mike.Konstantinov não disse nada.

32

Aguardamos, eu, Konstantinov, Carney e Pavlov, pelo que pareceu umperíodo muito longo, na cerca quebrada onde a floresta encontrava o pomar.Até que a voz baixa de Walker chegou aos nossos ouvidos.

– Na escura?– Câmbio – disse Konstantinov. – Prossiga.– Certo, temos dois capangas, repetindo, dois capangas visíveis, ambos

armados com metralhadoras. Primeiro capanga logo após a entrada principal,vestindo uma camisa de futebol azul-escura e jaqueta de couro preta. Segundocapanga fazendo rondas lentas no telhado, agasalho verde, óculos escuros,gorro de lã preto. Confirmem.

– Entendido.– Ao meu sinal, avancem lentamente pelo pomar. Permaneçam agachados

e sigam rapidamente. Assim chegarão aqui antes que o vigia do telhadoretorne para o lado onde estão.

– Entendido. Ao seu sinal.Levamos menos de dois minutos, e, quando nos juntamos a Walker e

Hudd, o capanga do telhado ainda não havia reaparecido.– Precisamos olhar mais de perto – disse Walker. – A casa é grande. Pode

haver cinquenta homens lá dentro.– A inteligência diz quatro – disse Konstantinov, sem emoção.– Mike, você sabe que só temos uma chance aqui.– Precisamos chegar mais perto – disse Hudd. Sua cabeça careca, seus

olhos esbugalhados e o cavanhaque preto deixavam-no com a aparência de

uma divindade caótica. Tudo que ele precisava fazer seria colocar a línguapara fora, ao estilo Maori haka. – Não podemos ver noventa por cento destelugar. São três andares, caralho.

Eu sabia o que Walker estava pensando: mesmo que se aproximassemmais e descobrissem cinquenta caras, aquilo não impediria Konstantinov deentrar.

– Espere aqui – ordenou Konstantinov. E antes que qualquer um pudesseargumentar, ele tinha deixado o pomar, saindo em uma extraordináriadisparada, atravessando agachado o terreno aberto até a lateral da casa.

– Jesus Cristo – disse Carney, em voz baixa.Depois de tanta discrição, Kosntantinov parecia apavorantemente visível.

Durante os poucos segundos que ficou exposto, foi como se o sol tivesseaumentado o termostato, desesperado para que ele fosse visto. Mas Mikealcançou o final da casa e pressionou as costas contra a parede.

– Não é tão ruim assim – sussurrou Pavlov, cobrindo o microfone. – Ocara da porta da frente não consegue ver Mike deste ângulo, e o cara dotelhado não vai vê-lo também, a menos que venha até a beirada e olhediretamente para baixo.

Havia o espaço de uma janela – sem vidro – a 2 metros do Russo. Ele seaproximou lentamente. Ficou de pé, postura ereta. Em olhadas muito rápidas,espreitou o interior. Sinalizou de volta. Vazio. Ele passou rapidamente pelajanela e seguiu até a quina nos fundos da casa. Parou. Deslizou e contornou aquina.

Um minuto se passou. Dois. Quatro. Cinco. O calor emanava do corpo deWalker, bem ao lado do meu. O Dorchester parecia ter ocorrido há semanas.Pela primeira vez desde o rapto, conheci a sensação de puro alívio que seriater meu filho de volta, mas wulf a extinguiu: aquilo a atrapalhava. Ela estavaimpaciente. Os cheiros dos quatro corpos próximos a ela cutucavam,prematuramente, sua fome.

Konstantinov reapareceu na beirada da quina nos fundos. Ergueu trêsdedos. Walker disse:

– Pavlov, o cara no telhado, agora.

Pavlov levantou-se, ergueu a AK-47, disparou uma rajada curta quepareceu estilhaçar o céu. O homem no telhado caiu para trás. Ouvimos aarma dele bater no chão.

– Agora! – disse Walker... E todos, eu inclusive, avançamos.Konstantinov içou seu corpo pela janela e entrou na casa. A grama alta e

macia era um obstáculo enlouquecedor. Carney tropeçou, xingou, levantou,sentiu uma saraivada de balas passar por ele e atingir o mato. Olhou paramim com uma expressão de surpresa moderada, como se levar um tiro fosse aúltima coisa que esperasse. A disparada de três segundos estendeu-se,distendeu-se, durou uma hora onírica. Tiros de revólver soaram de dentro dacasa. Walker saltou pela janela. Carney e Pavlov foram para os fundos da casa.Por um momento, Hudd tomou posição na quina oposta, depois tambémdesapareceu. Outros dois tiros foram disparados. Depois, silêncio. Derepente, havia a zona rural italiana novamente em completo silêncio. Wulfenervava-se e contorcia-se em seus trapos humanos, os braços e as pernasinadequados, os músculos ridículos trabalhando. Icei meu corpo para abeirada da janela e caí na grande sala vazia do outro lado.

33

Do outro lado da sala, a 10 metros de mim, uma porta abria para o cômodoseguinte. Walker apareceu na porta e me chamou para seguir em frente. Asegunda sala era maior do que a primeira. A luz do dia penetrava através devários buracos enormes na alvenaria. Uma precária escadaria de pedra aolongo de uma parede levava aos andares superiores. Konstantinov, Hudd eCarney estavam lá em cima, indo de quarto em quarto. O capanga com acamisa de futebol jazia morto na porta da entrada aberta. Um segundo corpoestava nos degraus e um terceiro era visível deitado de bruços na câmaraanexa.

– Por aqui – disse Walker.Eu o segui até o que poderia ter sido algum dia a cozinha da casa, no lugar

em que Pavlov fazia guarda em uma porta de onde mais degraus de pedralevavam para um porão.

– Vamos aguardar os andares de cima serem liberados – disse Walker.Passaram-se alguns minutos estranhos. Não havia nada a dizer. A casa, já

que não havia escolha, começou a nos oferecer seus detalhes decrépitos: umfoco de líquen verde-amarelado iluminado pelo sol; pedaços de madeiraapodrecida; teias de aranha góticas; os cheiros de pedra úmida e de mijo degato e de mofo. Como acontecia com estranhos esperando por um elevador,cada segundo aumentava o absurdo da situação. Então, Konstantinovapareceu na porta, seguido por Carney e Hudd. Os quartos nos andaressuperiores estavam vazios.

– Certo, estou pensando em...

Konstantinov não iria esperar. Ele passou por Walker sem dizer nada ecomeçou a descer os degraus.

– Pav, assuma posição aqui – disse Walker e depois seguiu Konstantinovna escuridão. Fui atrás dele, com Hudd e Carney.

Ar frio subia do porão. A escada era estreita, íngreme, coberta de limo eúmida, mas os dois homens à frente e Hudd atrás iluminavam o caminhocom lanternas. Quatorze degraus. Um calor de flambar e um fedor de urinavinha dos quatro corpos humanos. Wulf dilatava-se e dava socos na zonalimítrofe sob minha pele. Memórias dos assassinatos brotavam edesabrochavam: o pau do viúvo francês no chão como um camarão V.G. emuma poça de sangue; a perna nua do cafetão mexicano chutando,repetidamente, apesar do meu braço enterrado até o cotovelo revirando sobsuas costelas. Algo lutava para entrar em primeiro plano na minha cabeça,tentando tomar forma enquanto aguardávamos na porta no topo da escada.

– Mikhail! – sussurrou Walker. – Jesus, vá mais devagar.Konstantinov afastara-se rapidamente dos degraus, revelando seção por

seção na escuridão com a lanterna. O espaço subterrâneo parecia ocuparmetade da área da planta da casa. Paredes e chão de pedra nua, o quepareciam restos de caixotes e garrafas quebradas, latas de óleo enferrujadas,prateleiras pendendo das paredes, mais fantásticas teias de aranha.

– Certo, confiram – disse Walker. – Com calma, cavalheiros. Srta. D, fiquepor perto. Pavlov, tudo bem aí em cima?

– Ótimo – respondeu Pavlov. – Tomem seu tempo.A equipe moveu-se em torno do perímetro do porão, armas e lanternas

em riste. As energias silenciosas e furiosas de Konstantinov eram palpáveisatravés da escuridão. O restante de nós tinha desaparecido para ele: o homemestava sozinho no universo inescrutável.

Durante o tempo que levou para cobrirmos a área, mantivemos umasuspensão de julgamento simbólica, mas ninguém estava realmente emdúvida: não havia nada ali embaixo.

Konstantinov estava de quatro examinando o chão – em busca de umalçapão ou algum acesso escondido para um nível inferior. Por

constrangimento, Carney e Hudd juntaram-se a ele. A coisa que estavalutando para ficar em primeiro plano em minha mente abriu passagem, comuma estranha sensação interior de wulf caindo repentinamente, agarrando oespaço. Não pude acreditar que havia demorado tanto.

– Walker – eu disse. – Se ele estivesse aqui, eu já teria sentido a esta altura.– O quê?– Meu filho. E os vampiros. Não estão aqui. Não há nenhum cheiro.O método de Konstantinov estava indo por água abaixo. Ele se levantou

do chão e começou a correr as mãos pela seção mais próxima da parede.– Mike? – disse Walker. – Tem alguma coisa errada aqui.Konstantinov ignorou-o.– Pavlov – disse Walker. – Alguma coisa no seu lado?Sem resposta.– Pavlov, está ouvindo?Silêncio.Carney e Hudd ficaram de pé num salto, armas prontas. Konstantinov

pousou a cabeça contra a parede. A lanterna em sua mão projetava uma forteelipse de luz sem sentido na pedra molhada.

– Aqui – falei para Walker, entregando a pistola a ele. – É melhor vocêficar com isto. Você precisa mais do que eu.

No topo da escada encontramos Pavlov inconsciente com um dardominúsculo no pescoço. O terreno em torno da casa estava novamenteprestando atenção em nós. Dentro de mim, wulf estava confusa e inflamada,como se uma queimadura tivesse inchado seus olhos e os fechado. Minhaparte humana precisou se restabelecer, arrastar o controle de volta para osistema inferior.

– Merda – disse Walker. – Estamos com probl...Não sei como se desdobraria o reflexo que os quatro homens estavam

prestes a manifestar, mas jamais cheguei a descobrir, porque, naquelemomento, uma figura apareceu na porta entre a cozinha e a sala ao lado,parou por um momento, tentou dar um passo à frente, depois desabou.

34

Era um homem, e estava nu. Também estava, por cortesia do que ocorreracom ele, praticamente irreconhecível como um homem. Era difícilcompreender como estava de pé. Na confusão de seus ferimentos – osinchaços faciais parecendo um aglomerado de frutas grotescas, as feridascoagulando psicodelicamente em amarelo e um vermelho intenso, arroxeado–, dois detalhes foram registrados: que a ulna de seu braço esquerdo estavaatravessando a pele logo acima do pulso e que o pênis dele estava coberto doque pareciam feridas venéreas, mas que o contexto deixava claro que eramqueimaduras de cigarro.

– Oh, não – disse Walker, em voz baixa.– Quem é ele? – perguntei.– É Hoyle.Ele deu um passo na direção do homem caído. Ao se mover, a luz mudou

levemente e todos se viraram para a fresta na parede da cozinha, onde ocapanga de camisa de futebol azul e jaqueta de couro preta estava de pé,sorrindo. Walker, Carney e Hudd dispararam – mas o cara apenas ficou aliparado, acenando, pensei, até eu ver que ele segurava os restos rasgados deum pequeno saco plástico. Agora era óbvio: anteriormente, ele estava cheio desangue. Sangue animal. Sangue cenográfico. De todo modo, não o sanguedele.

– A beleza de vocês confiarem em nós para obter armas – disse uma voz –é que nos deixam com liberdade para carregá-las com festim.

Todos nos viramos de novo.

De pé sobre Hoyle estava um homem alto com cerca de 45 anos, trajandoum uniforme militar preto da Caçada e carregando uma metralhadora. Tinhacabelo grisalho curto e olhos azuis que pareciam ter uma íris extra. Uma leveruga de expressão na testa atribuía a ele um olhar de águia de loucuradignificada. Senti a energia de Walker afundar como um avião em um bolsãode ar.

Pelo menos duas dúzias de membros totalmente armados da Caçada daWOCOP entraram na casa, enfileirados, alguns pela fenda na parede, outrosno rastro do águia, após ele passar sobre o homem no chão e aproximar-se denós. O cheiro da lona de uma tela em branco e couro e sabão medicinal oprecediam.

– Pensei em trazer Hoyle com a gente – disse ele para Walker. – Para quevocê pudesse ver no que o envolveu. Foi uma noite longa para todos nós. –Ele se virou para mim e disse: – Senhorita Demetriou. Deve estar arrependidade ter se envolvido com esses homens. Não que eu a culpe. O pequeninodesaparece, uma mulher fica desesperada. Você aceita ajuda onde consegueencontrá-la. É compreensível.

O pequenino desaparece.Será que ele sabia onde estavam os Discípulos?Dava para sentir o quanto estava custando a Walker permanecer imóvel, a

dor que estava sentindo por Hoyle; o coração que queria gritar e adeterminação dentro dele que sabia que isso seria uma derrota caso o fizesse,inútil para o homem no chão. O raciocínio lógico de Walker era praticamenteaudível para mim: Hoyle sofrera porque era o informante de Walker. MasWalker não havia obrigado Hoyle a fazer nada. Hoyle conhecia os riscos.Qualquer momento de ternura que se passasse agora entre os dois seria umasatisfação deliciosa para o inimigo. Hoyle teria concordado, se não se sentisseincapaz de falar. Portanto, Walker conteve o coração e, em vez de gritar,virou-se para mim e disse:

– Se você visse a esposa dele, ficaria impressionada. Ela é muito bonita.Sem mencionar que é uma feiticeira com o dedo indicador.

Murdoch (o escárnio de Walker explicou) olhou para ele por um

momento, sorrindo. Não disse nada. Então, para um da sua equipe:– Senhor Tunner, vamos algemar essas pessoas e encaminhá-las.Vários Caçadores equipados com algemas para os pulsos e tornozelos

avançaram. Hudd saltou sobre um deles e levou imediatamente um tiro noquadril. Carney largou sua pistola inútil e permitiu que o algemassem. Trêscaçadores abordaram Konstantinov.

– Quer da maneira fácil ou da difícil, Mike? – perguntou um deles. – Vocêque sabe.

Então, antes que Konstantinov respondesse, o Caçador disparou um dardotranquilizante na perna dele. Seu rosto escuro estava inexpressivo. Com umesforço descomunal e fascinante, Mike levantou-se novamente e apoiou-seem um joelho. Então colocou o pé direito sob o corpo, agarrou o ar uma vez,procurando um lugar para segurar... e depois caiu para a frente.

Murdoch voltou-se para Hoyle. Pude sentir em Walker uma espécie deexaustão porque ele sabia o quanto Murdoch viajara para longe de certascoisas, o quanto era sem sentido ter esperança por compaixão.

Eu queria que Hoyle estivesse inconsciente, mas ele não estava. Ele nãopodia se mover, mas estava ciente do homem de pé sobre ele. Sensações quenão me pertenciam vacilaram em mim.

Murdoch estava em um familiar beco sem saída de irritação. Era sempreirritante, eventualmente, que você pudesse descobrir exatamente quantaviolência um corpo é capaz de absorver antes de morrer. Cada corpo erainicialmente fascinante e único. Cada corpo era inicialmente o corpo de umapessoa. Como na pornografia. Mas como os rituais da pornografia, a violênciadesgastava a individualidade muito rapidamente. Em pouco tempo a pessoa iae tudo o que restava era carne, irracional e finita. E a burrice e a finitude eramum beco sem saída, porque a vontade do observador era infinita e impossívelde satisfazer. A vontade do observador precisava que a pessoa durasse parasempre.

(Enquanto que, para o lobisomem... O quê? A pessoa durava para sempre?Certamente, minhas vítimas jamais deixavam de ser pessoas. Certamente,seguiam vivendo em mim. Certamente, a pessoa jamais era separável da

carne. Aqui estava um novo cômodo na casa onde habitam tantos absurdos:eu lia os livros, Murdoch os queimava. Eu era erotismo, ele era pornografia.Jake sentiria orgulho de mim.)

Murdoch ergueu a bota e pisou com toda a força na cabeça de Hoyle. Aspálpebras da vítima tremularam. Sangue escorreu da boca dele, exatamentecomo o caldo de uma lata de cerejas que um dia, sem propósito, perfurei como canivete de Lauren. Murdoch balançou o pé para trás e chutou Hoyle nacara. A cabeça de Hoyle foi jogada para trás e um dente voou. Murdoch paroupor um momento com a boca fina apertada, respirando pelo nariz. Então,tirou a alça da metralhadora do ombro e segurou a arma pelo cano.Posicionou-se cuidadosamente, ergueu a arma sobre o ombro e golpeou-acom toda a força contra o crânio de Hoyle.

Ele repetiu o movimento durante talvez um minuto, uns 15 ou 20 golpes,depois parou.

Hoyle estava morto, é claro. Seu olho esquerdo estava no chão e metade docérebro para fora. Uma auréola de sangue escuro formara-se em torno do querestava da cabeça. A imagem me lembrava um desenho do Monty Python,uma das animações surrealisticamente instigantes de Terry Gilliam. Murdochcutucou o globo ocular com a ponta do pé. Havia uma massa de energiasilenciosa nos homens ao nosso redor. Murdoch olhou para Walker, com umar vazio, por alguns momentos. Parecia que algum deles deveria dizer algo,mas nenhum o fez. Tive uma percepção profunda de todo o tempo e energiaque eu gastara dizendo a mim mesma para não acreditar, mas acreditandoassim mesmo, que aquilo traria meu filho de volta. Todo aquele tempo eenergia e fé despejados em nada, como confiança em um traidor, comobilhões em um golpe.

Foi quando senti uma picada no ombro, e em cinco segundos tudoescureceu.

35

Despertei diante do fedor dos vampiros.E de desinfetante. Imediatamente juntaram-se a eles a lembrança do rosto

entediado de Murdoch e do olho de Hoyle expelido junto com o nervo ótico,e a cabeça quente, frágil e cheirando a sono de Zöe quando me despedira delacom um beijo.

Girei o corpo de lado e vomitei.Eu estava sozinha no chão de uma cela. Três por quatro metros, concreto

nu em todos os lados exceto um, o qual era uma fileira de barras de aço de 10centímetros de diâmetro que nem mesmo wulf em toda a sua glóriaconseguiria mover. Um balde amarelo. Uma garrafa plástica grande comágua. Uma lâmpada fluorescente zunia exausta, o que atribuía à luz umtremor irritante.

Presuma que Walker esteja morto.O pensamento estava ali comigo na cela como uma lápide. Admiti que

estava ali, mas era só isso. O pensamento estava ali e era só isso. Era tudo queeu precisava reconhecer.

Durante algum tempo, não consegui fazer nada além de ficar deitada delado, encolhida, com os braços em volta do corpo, respirando, humilhada. Foicomo da vez em que eu havia ficado no chão do cubículo do cofre depósitoem Coralton-Verne. Sempre que eu me dizia: “Certo, levante, sua burra”, eudescobria que não conseguia. Se não fosse pelo cheiro me atormentando, eupoderia ter caído de volta no sono.

Por fim, aos poucos, me sentei. A desidratação fazia minha cabeça latejar.O leite não sugado apunhalava meus seios. Dutos entupidos, abscessos, câncer.Agora pouco importava. Meu pescoço estava dormente na área onde otranquilizador fora injetado. Me arrastei até a garrafa de água, meus músculospareciam estar se rompendo audivelmente, descobri que tinha força suficienteapenas para abrir a tampa, e bebi, pensando o tempo todo, não beba muito,você não sabe quando terá mais, só que eu estava com sede demais para darouvidos ao meu próprio conselho. Quando larguei a garrafa, ela estava pelametade.

Fiquei de pé, graças a uma série de tentativas vacilantes e fracassos. Deixeio sangue correr pelos meus membros. Minha mochila tinha desaparecido. Fuiaté as barras e olhei para fora.

Havia seis celas, três de cada lado em um corredor lacrado por uma portade cofre de banco em cada ponta. Acesso por cartão magnético. Uma fileirade câmeras de circuito interno de TV ao longo do teto pelo corredor, umaapontada para cada cela. A minha ficava no meio das três. Eu não conseguiaver se as outras na minha fileira estavam ocupadas, mas na cela diante daminha havia um garoto de cerca de 11 ou 12 anos, esquelético, deitado emposição fetal no chão com os braços em torno do corpo, olhando para mim.Tinha um rosto ossudo, grandes olhos verdes e cabelo louro-claroemaranhado. Tudo que vestia era uma calça Adidas branca e suja. O sistemacirculatório dele estava visível através da pele. O menino parecia algo deporcelana com uma teia de fraturas.

O fedor vinha dele.– Ei – eu disse.– Ei – respondeu ele. Estava molhado com o que parecia ser um suor rosa-

claro, gelatinoso em algumas partes.– Somos só nós dois aqui embaixo? – perguntei a ele.Ele confirmou com um aceno de cabeça.– Onde estamos?Ele engoliu em seco. Fechou os olhos. Engolir doía. A existência doía.– Não sei – respondeu ele. Tinha um sotaque inglês que não consegui

identificar. Ou um sotaque inglês com influência de vários lugares.– Onde estava quando capturaram você?– Escócia.– Há quanto tempo está aqui?– Vinte e um dias.– Existem outros vampiros aqui?Com uma velocidade palpitante bizarra, ele apoiou-se nos ombros, teve

ânsias de vômito e estremeceu. Um único fio rosado do que parecia mucopendia de seu lábio inferior. Ele cuspiu. Havia uma pequena poça daquelacoisa ao lado dele no chão.

– É por minha causa? – perguntei.Ele não conseguia responder. Percebi que tinha os braços em torno de si

para conter o que pareciam ser espasmos musculares. Cada vez que um delesocorria, a vascularização dele escurecia, depois clareava novamente, quando oespasmo passava. Pensei: vinte e um dias. Jake disse que vampiros precisam sealimentar a cada três ou quatro dias. Estavam matando ele de fome.

– Você... um lobisomem? – perguntou ele.– Receio que sim.– Me disseram que vocês fedem muito. Quero dizer... – Ele foi tomado

pela dor outra vez. Puxou os joelhos junto ao peito, travou as mandíbulas.Respirou através delas. – Isso soou mal.

– Sim, bem, se serve de consolo, você também fede.Ele não sorriu, mas seus olhos disseram que o faria se tivesse forças.– Você não precisa... falar comigo... como se eu tivesse 10 anos – disse ele,

tremendo.– Não me dei conta de que estava.– É o tom de voz. Tenho 17 anos.Agora que ele tinha dito, percebi que eu vinha entonando a voz como se

falasse com uma criança. Velhos hábitos. Pelo que eu sabia, ele poderia sermais velho que Moisés.

– Me desculpe – eu disse. – Foi estupidez minha. – Era um esforço nãoreagir à péssima aparência dele. Um esforço não pensar tão obviamente: você

está morrendo, garoto.– Quantos anos você tem? – perguntou ele.– Trinta e quatro – respondi. – Sou nova. Escute... Ah, merda.Eu precisava vomitar de novo. Desta vez alcancei o balde. A amônia do

desinfetante era um paliativo brutal contra o fedor dele. Mantive a cabeçasobre o balde.

– Acho que eles pensam que isso aqui é muito engraçado – disse, depois deme recuperar e me arrastar de volta até as barras. Levei o balde comigo,segurando-o sob o nariz.

– Você sabe há quanto tempo estou aqui? – perguntei. – Havia alguémcomigo quando me trouxeram?

– Não sei – respondeu ele. – Eu estava dormindo. Acordei... há umas duashoras. Você estava aqui.

Presuma que Walker esteja morto.Agora exigia-se mais. Apenas admitir o pensamento não era o bastante.

Portanto, ali estava a sensação, como se algo vital tivesse sido removidocirurgicamente de mim enquanto estava inconsciente. Presuma que ele estejamorto. A realidade com um valor diferente sem a presença dele. A solidãorenovada, o fracasso renovado, o mundo como um grande quarto fortementeiluminado, um gigantesco espaço vazio dentro do qual eu possa sentir penade mim mesma. Bem-feito para você. Presuma que ele esteja morto. Presumaque Konstantinov esteja morto. Presuma que você esteja sozinha aqui e quejamais sairá e que sua filha nunca irá conhecê-la e que seu filho morrerá.Presuma o pior para tudo.

– Como eles... capturaram você? – perguntou ele.– Fomo pegos em uma emboscada – respondi. – É uma longa história.

Olha, vou lhe contar tudo, mas primeiro você pode só me dizer o que sabesobre este lugar? A propósito, qual é o seu nome?

– Caleb.– Talulla.Ele fez um leve movimento com a cabeça. Um olá oficial. O suor rosa

havia escurecido.

– Está com disposição para falar? – perguntei.Ele engoliu em seco. Como se forçasse vidro em pó a descer pela garganta.– Cansado – disse ele.– Compreendo. Sinto muito. – Eu realmente sentia muito. A repulsa entre

espécies não era brincadeira... wulf queria o máximo de distância possívelentre nós... mas a situação desagradável que compartilhávamos fazia muitopela compreensão. – Está tudo bem – eu disse. – Apenas descanse um pouco.Conversaremos quando você se sentir melhor.

– Não vou me sentir... melhor. Vou me sentir pior. Eles vão... chegar logo.Eu vou... morrer neste maldito lugar.

Outro espasmo tomou o corpo dele. As veias escureceram. Era algodesagradável de se ver, mas a solidariedade exigia.

– Eles vão se arrepender – disse ele, quando recuperou o fôlego. – QuandoRemshi... vier... eles desejarão nunca... ter nascido.

36

Antes que eu pudesse me prender ao assunto, a porta de cofre na extremidadedireita do corredor emitiu uma sequência de blips eletrônicos, seguidos porum suspiro hidráulico e o som de uma tranca pesada se abrindo. Olhei paraCaleb. Os olhos dele estavam fechados. Seja lá o que fosse, ele já estavafamiliarizado. Seja lá o que fosse, era ruim.

A porta se abriu e Murdoch entrou, seguido por um Caçador mais jovem,mais baixo e musculoso, cheio de energia, trajando calças de combate pretas ecolete, carregando um par de algemas e o que parecia um atiçador de gado.Tinha a cabeça raspada e orelhas de abano, olhos azuis redondos e a bocacomo a de um chimpanzé. O efeito geral era o de um pequeno primatasaltitante e sob o efeito de esteroides. O murmúrio de um grande grupo depessoas seguiu o rastro deles. Murdoch veio diretamente à minha celaenquanto encaixou o que parecia uma chave de radiador (pendurada em umacorrente em torno de seu pescoço) em um dos seis encaixes em um painel decontrole ao lado da porta. Uma volta no sentido anti-horário e uma luzindicadora vermelha ficou verde. Dois segundos depois as seis barras do meioda grade da minha cela deslizaram para cima, projetadas com precisão, livresde fricção, e desapareceram no teto.

– Como se sente? – perguntou Murdoch.– Onde estou?– Você está em uma unidade de detenção no condado real de Berkshire,

Inglaterra. Hoje é terça-feira, seis de Novembro, e são... – Ele olhou seurelógio... – Sete e trinta e seis da noite. Você foi trazida para cá de avião,

sedada, junto com Walker e sua equipe, os quais estão vivos, você ficará felizem saber, alojados individualmente e em outras partes do prédio. Agora, issopode parecer injustificável, mas... – O capanga-chimpanzé entrou na minhacela com o conjunto de algemas para as mãos e os tornozelos. – Precisareipedir a você para que as use por enquanto, para que possamos dedicar nossaatenção total ao negócio que precisamos tratar agora.

Hesitei.– Por favor – disse ele, lendo meus pensamentos. – Sem artimanhas. Você

não vai conseguir pegar a minha arma, e mesmo que conseguisse, há vintehomens na sala ao lado. Sem falar no Sr. Tunner aqui. Absolutamentenenhum mal vai lhe acontecer se você cooperar. É somente um pouco de pazde espírito para seu tio John.

– Você não precisa me algemar – eu disse. – Eu não vou...Ele me deu um soco, com força, no estômago, mais rápido do que eu

imaginaria ser possível. O universo sugou todo o ar dos meus pulmões e eucaí, primeiro de joelhos e depois de quatro. A dor absorveu-me, imediata ecompletamente. Não havia para onde escapar dela, porque a dor era tudo.Pude ver o quanto estava longe de ser capaz de respirar, como uma luz em umlitoral distante. Eu estaria morta muito antes de alcançá-la.

– Comigo funciona assim – disse Murdoch –, eu peço para que você sealinhe voluntariamente à minha vontade. Se não vier voluntariamente, étrazida à força. Eu deveria ter dito que só peço uma vez. Foi negligênciaminha. Peço desculpas.

– Está ficando descuidado, tio – disse Tunner enquanto começava acolocar as algemas que agora eram redundantes.

– Ela vai vomitar – disse Murdoch.Tunner agarrou o balde e colocou-o sob mim bem a tempo. Vomitei em

três etapas abrasivas e depois desabei de lado. Pelo que podia dizer, eu aindanão tinha conseguido inspirar. Havia uma bigorna de sangue onde meuspulmões costumavam ficar.

– Traga ela quando estiver recuperada. Aqui, me dê isto.Murdoch, agora armado com o atiçador de gado, retornou ao painel de

controle, inseriu a própria chave, girou-a, aguardou a luz verde, depois foi atéa cela de Caleb, onde as barras já estavam se levantando.

Eu não conseguia ver Caleb, mas teria ouvido caso algo ocorresse entre elee Murdoch. Nada aconteceu. Murdoch só ficou ali parado por algunsmomentos, com o atiçador de gado na mão. Caleb, evidentemente, estavafraco demais para se mover.

Murdoch retornou à porta de cofre.– Sobel – gritou ele. – Me dê uma bolsa.Alguém entregou a Murdoch um saco plástico transparente

aproximadamente do tamanho de uma carteira masculina.Estava cheio de sangue.

37

A sala ao lado era grande e sem janelas e tinha a sensação ressonante de umginásio escolar. Não continha nada além de uma jaula muito grande (talvezde 7 por 7 metros, paredes com o dobro da altura de uma pessoa mediana), aqual fora claramente construída a partir de outras jaulas, modificadas e presasumas às outras. Arame farpado fora preso ao longo de dois lados opostos.Cerca de duas dúzias de Caçadores estavam de pé ao redor da jaula, a maioriarelaxada (um ou dois fumavam, outro bebia uma Coca-Cola), mas alguns seaqueciam fazendo alongamentos. Duas portas, uma fechada e a outrarevelando um corredor bastante iluminado. Uma lousa branca na paredeexibia uma lista de nomes e números em cores diferentes.

Caleb estava na jaula. O sangue dera a ele força suficiente para se arrastaraté lá, conduzido por Murdoch com o atiçador. Agora, ele havia desabadonovamente. Tunner, tendo prendido minhas algemas a uma barra na porta decofre, tirara seu uniforme militar preto e andava de um lado para o outroperto da jaula, deltoides contraídos, músculos abdominais como um conjuntode tigelas de metal.

Murdoch ergueu a mão. O murmúrio entre os homens morreu.– Muito bem – disse ele. – Sr. Tunner. Seleção de tempo, por favor.Tunner girou a cabeça um par de vezes como que para aliviar a tensão no

pescoço, franziu os lábios, respirou fundo uma vez, depois disse:– Dois minutos e 45 segundos, Tio, por gentileza.Murdoch pegou um cronômetro do bolso.

– Dois minutos e 45 no relógio para o sr. Tunner. Número de bolsas, sr.Tunner?

– Mais duas bolsas, Tio.– Mais duas bolsas, sr. Sobel. O tempo começa quando a segunda bolsa for

terminada. Pinte-se e vá lá para dentro.Um dos Caçadores entregou a Tunner um cassetete e uma grossa caneta

marcadora vermelha. Sobel, enquanto isso, enfiou a mão em uma bolsa eretirou mais dois sacos plásticos de sangue. Tunner entrou na jaula e a portafoi trancada atrás dele. Sobel jogou os sacos de sangue para onde Caleb jazia.Caleb os encarou. Perguntei-me quantas vezes ele havia enfrentado aquelabatalha contra a própria sede. Fossem quantas fossem, ele perdera todas asvezes. A única saída era não beber. Mas o vampiro sempre bebia. Sempre.

Observei tudo o que aconteceu depois. Em parte porque, mais uma vez, asolidariedade forçada entre aqueles que estão aprisionados exigia, masprincipalmente porque eu não era mais (na verdade, jamais fora) do tipo paraquem não observar era uma opção. Seja lá qual fosse o horror, se fossecolocado diante de mim, eu olharia. (Minha mãe era igual. Eu pegara o finalde uma discussão que ela tivera com meu pai. “Você não tem coração”, elerosnara. “Você tem um maldito globo ocular. Sem pálpebras, simplesmenteaberto o tempo todo, obrigado a ver tudo.” “Sim”, minha mãe respondera,com uma calma e doçura terríveis, como Deus.) O que aconteceu em seguidafoi que Caleb mordeu os sacos e bebeu o sangue. O mapa circulatório lívidoesmaeceu um pouco. Ele apoiou-se nos joelhos e depois se levantou, apesar deestar óbvio que permanecia fraco e, agora que sentira um gostinho,desesperado por mais sangue.

Tunner aproximou-se, descaradamente relaxado.– Ele não tem coragem – gritou um dos espectadores.– Claro que tem – respondeu outro. – Vamos lá, filho, o bar está aberto.– Vamos lá, Casper.– Ensine uma lição a ele, filho.Mas Caleb permaneceu imóvel. Pude ver em sua mandíbula o quanto

aquilo lhe custava, seu cavalgador simultaneamente cravando as esporas e

puxando as rédeas.– Vejam só a força de vontade do meu garoto. Vejam a força de vontade.– Ele vai... Ele vai...– Ele não vai. Ele é um maldito mestre zen. Contenha-se, filho. Bom

garoto.– Vamos logo, Tunner, que diabos.Tunner estava quase ao alcance. Caleb olhava para o chão. Seus pés

brancos e descalços eram lindos, coisas com delicados ossos.– Vam’bora, filho, mostre a ele.– Ele não quer parecer frouxo na frente da namorada nova.Tal comentário teve dois efeitos. O primeiro foi que a cabeça de Caleb

girou para ver quem o fizera. O outro foi inspirar Tunner. Ele saltou para afrente e puxou para baixo o elástico da cintura das calças de Caleb. Derepente, os pequenos genitais do garoto foram expostos – para aplausos daplateia. Levou apenas um segundo para que Caleb agarrasse as calças e aslevantasse de volta –, mas aquele foi o fim de sua resistência. Ele voou contraTunner, boca aberta, presas expostas – com uma velocidade que Tunnermanifestamente não havia esperado, pois seu salto evasivo levou-odiretamente de encontro ao arame farpado. Caleb girou de volta para ele e, derepente, a atmosfera na sala ficou tensa. Tunner, agora sangrando em váriospontos, afastou-se de novo do garoto, mas por pouco. A plateia concentrou-se. O calor humano e o cheiro oriundo dele ficaram mais fortes.

– Quarenta segundos já se passaram! – gritou Murdoch.Caleb deu dois passos à frente e caiu sobre um joelho, mas imediatamente

levantou-se. A ração de sangue ainda estava fazendo efeito. Tunneraproximou-se, hesitou, aproximou-se mais um pouco. Eles circulavam um aooutro.

– Não sei com o que você está tão constrangido – provocou Tunner. – Nãoé como se isso tivesse qualquer utilidade para você, não é mesmo? Querodizer, no fundo dá no mesmo que ele não seja enorme, porque seria umdesperdício.

O garoto cambaleou para a frente. Tunner fintou para a esquerda – depois

avançou pela direita e atingiu com o cassetete, com força e velocidade, arótula de Caleb. Ouvi o osso estilhaçar. Quando Caleb caiu, Tunner marcou-onas costas e no ombro – uma, duas, três vezes com o marcador com ponta defeltro – para mais gritos e uma salva de aplausos.

– Sobel! – gritou Tunner. – Dá outro saco para ele. Ele é mais lento do queminha maldita avó.

Sobel olhou para Murdoch. Murdoch ergueu dois dedos. Mais dois. Sobelsorriu. Depois, jogou os sacos dentro da jaula.

Desta vez Caleb pegou os dois com uma velocidade impressionante dasmãos, rasgou um e começou a sugar.

– Tio, isso não é justo! – disse Tunner.Murdoch ignorou-o.Tunner chutou a mão de Caleb – e o saco ainda por abrir voou para um

canto da jaula. Caleb virou-se para ir atrás do saco e Tunner saltou sobre ele,na verdade caindo sobre as costas do garoto, e então começou a marretar acabeça dele com o cassetete. Caleb deu três ou quatro passos – um garoto de11 anos dando uma carona nas costas para um homem de 85 quilos –, depoisdesabou sobre os dois joelhos. Tunner atingira Caleb dez ou 12 vezes com omarcador.

– Um minuto e trinta corridos – gritou Murdoch.Tunner largou a caneta para trás e, com a mão agora livre, agarrou Caleb

pelo cabelo e puxou a cabeça do garoto para trás. Caleb estava a 15centímetros do saco de sangue, lutando para alcançá-lo. A teia circulatóriaestava mais tênue agora. Tunner acertou o cassetete contra a traqueia dogaroto. Caleb, engasgando, empurrou o corpo para se levantar – depois,lançou-se para trás, jogando Tunner contra o arame farpado. Tunner gritou ese contorceu, rasgando a carne nas costas e salpicando os Caçadores maispróximos com sangue. Vários deles olhavam para Murdoch que, de lábiosfranzidos, mantinha a atenção no relógio.

Caleb estava enfraquecendo de novo. Ele precisou das duas mãos paraprender o braço de Tunner que segurava o cassetete, o que deixou o outro

braço do Caçador livre. Com uma precisão estranha, Tunner esticou o braço,agarrou a cabeça do garoto e cravou o polegar no olho de Caleb.

– Eu não me preocuparia muito – disse Murdoch para mim quando oolho, ou melhor, metade dele, pendeu para fora. – Ele terá outro amanhã demanhã. Você sabe como funciona. – Depois, para Tunner: – Dois minutos.Esteticamente muito pobre, sr. Tunner. Esteticamente muito pobre.

O resto da disputa foi pesado e repugnante. Tunner perfurou o outro olhode Caleb o suficiente para que o garoto mal conseguisse enxergar, e depoisdisso o Caçador pôde atacá-lo praticamente à vontade. Depois de chutar osaco fechado para fora da jaula, Tunner teve tempo para recuperar omarcador com ponta de feltro, e quando Murdoch parou o relógio, o garotojazia semi-inconsciente no chão, coberto de traços de tinta vermelha, o rostouma confusão de sangue negro. Como um insulto final, Tunner abaixou denovo as calças esportivas do garoto e fez uma grande marca vermelha em umanádega nua. Caleb, cego, com os membros quentes e confusos, precisou detrês tentativas para levantar as calças de volta.

– Parabéns, idiota – disse um dos Caçadores que se aquecia para Tunnerenquanto ele saía da jaula. – Ele cego não presta muito para nós, não émesmo?

38

Depois do que pareceram muitas horas, Murdoch veio me ver. Eu havia sidocolocada de volta na minha cela e recebido metade de um pão e um pouco defrango frio, os quais, após um embate e um conflito de fomes, eu comera.Havia passado o tempo tentando expelir leite e quicando entre os mesmospoucos pensamentos: Eu morreria ali. Os vampiros matariam Lorcan.Cloquet abandonaria Zoë. A Caçada a encontraria. Eu jamais voltaria a ver orosto do meu pai. Eu precisava sair. Eu morreria ali...

Meus ritmos estavam embaralhados. Wulf vinha em ondas, com umaviolência confusa, bem até o limite – a força repentina e profunda no peito enas ancas, o ferro nos olhos e nos dentes, o grito nos encaixes dos dedos dasmãos e dos pés –, e depois explodia, deixando seu fantasma como uma névoana máquina humana. Eu seguia me perguntando se, transformada, seria capazde dobrar as barras. Eu seguia sabendo a resposta: Não. O aço dizia às minhasmãos humanas exatamente por quanto o poder de wulf fracassaria: nãomuito, mas o suficiente. De todo modo, eu estaria morta àquela altura, ouseria um vegetal em uma maca.

Trouxeram Caleb de volta umas duas horas depois de mim. Ele estavainconsciente – ou talvez, caso fosse dia lá fora, apenas dormindo o sono desua espécie. O fedor dele era denso e crescente. Se eu já não tivesse esvaziadoo estômago de tanto vomitar, vomitaria outra vez. Eu tinha visto o tecidolesionado dos olhos dele escurecer, encolher, cair. Murdoch estava certo, eurealmente sabia como era: o jazz silencioso da regeneração celular. Quando

despertasse, ele piscaria e olharia para mim com seus grandes olhos verdes,novos em folha.

– Você deve estar se perguntando se será estuprada – disse Murdoch. Aoodor dele, de couro e lona limpa, fora somado o perfume de pinheiro detoaletes masculinas . Ele tinha tomado banho e feito a barba depois da jaula. –A resposta é Não. A Ciência virá amanhã para iniciar exames e análisescompletos, e meus homens receberam ordens para que você não seja tocada.De todo modo, estupro não é algo que eu permita.

Eu quase disse “Que pena, eu poderia aproveitar a ação”. Eu teria ditoaquilo só para provocá-lo, mas ter pensado aquilo, naquele lugar, como umodor constrangedor, era a verdade. O desejo estava, gostasse eu ou não, secontorcendo dentro de mim como uma cobra insone. Agora, além do esforçopara não me odiar pela minha maldita inutilidade, além do esforço para nãopensar em Lorcan e Zoë, além do desespero como uma cama branca e maciaaguardando para que eu me deitasse, além da realidade da morte meatingindo em momentos aleatórios, feito explosões em uma fornalha –somado a tudo isso, havia a confiabilidade sorridente e idiota do desejo dewulf. Bem, diga o que quiser sobre a Maldição, Jake escrevera, mas não digaque ela não tem senso de humor. Sádico, pastelão ou absurdo, mas humor dequalquer jeito. Na prisão branca de Poulsom eu tivera um quarto com umaporta e uma luz que podia ser desligada, e apesar de, lá no fundo, eu suspeitarque havia vigilância infravermelha, havia pelo menos a ilusão de privacidade.Mas não aqui. As luzes na cela permaneciam acesas 24 horas por dia, sete diaspor semana, e o circuito interno de TV jamais dormia.

– Sexo é uma força do caos – explicou Murdoch. Ele possuía uma voz cujotom era suave e adorável. – Se eu permitir sua entrada nesta arena, muito embreve terei distração, conflito, insubordinação. É uma energia trapaceira. Issoé um insight que tenho.

Tive uma visão vívida dele esmagando o crânio de Hoyle. Ele fizera aquilocom o rosto perfeitamente tranquilo. O rosto que usaria sentado sozinho emum café olhando a chuva pela janela. O que me fez perguntar a mim mesmaem que estado Walker estaria, onde ele estivesse.

– O que vai acontecer comigo? – perguntei.– Cabe à Ciência – respondeu ele. – Pesquisas com licantropos foram

encerradas há uns dois anos, mas eventos recentes as retomaram de novo.Principalmente o trabalho de Poulsom, do antivírus. Os intelectuais vãoexaminar você e tomarão uma decisão. Se coubesse a mim, obviamente, eucortaria sua cabeça. Seja lá o que aconteça, você não voltará a ver o mundoexterior.

Em algum momento no passado, as mulheres (através de uma mulher)fracassaram em viver de acordo com o que Murdoch achou que lhe tivessemprometido. Imaginei paixões não correspondidas, uma intensidadeconstrangedora a princípio, depois desesperada, depois desastrosa. Ele eratodo errado para as mulheres, exatamente da mesma maneira misteriosa queWalker era todo certo. O que, no final das contas, não o proibiu de se casar oude trabalhar ao lado de agentes femininas. Uma mulher só era um problemaquando gerava conflitos, fundamentalmente. A esposa, Angela, a qualparecera suficientemente insignificante, na verdade havia se revelado umageradora de conflitos. Analisando Murdoch e trepando com outros homens.Eu poderia ser uma geradora de conflitos. Ele ainda não se decidira.

– Você sabe onde os vampiros estão mantendo a esposa de Konstantinov?– perguntei a ele.

– E seu filho? Você não o mencionou para o caso de não sabermos sobreele. Mas é claro que sabemos.

Calor tomou meu couro cabeludo. Fúria, náusea e desgosto repentinos porsempre ser a trouxa, por estar a cada minuto ainda mais atrasada em relaçãoàs informações. Aquela era uma versão do inferno: quanto mais perto do meufilho eu imaginava estar chegando, mais para longe me movia. ImagineiJacqueline assistindo isso, o Talulla Show, estremecendo com uma satisfaçãosilenciosa diante das minhas pisadas na bola. Imaginei Jake, assistindo àsgravações, sem piscar, em silêncio, queimando.

– E sua filhinha também, obviamente – disse Murdoch. – Graças a Hoyle.Graças a Walker. Por que motivo Walker achou necessário dar toda a

informação a Hoyle? A resposta é: ele não achou necessário. Walkersimplesmente não pensou. Ele tem a língua solta.

E Murdoch se arrependeu de tal escolha de palavras, o que foi admitidopor uma levíssima mudança em seus olhos de gavião. A língua de Walker. Naboca da esposa dele. Nos seios dela, entre as pernas dela, sobre todo o corpodela. Não que aquela fosse a raiz da inimizade. A raiz da inimizade era queambos, ele e Walker, tinham o mesmo tédio, a mesma solidão, a mesmacerteza de que não tinham importância – mas, ainda assim, Walker tinha umaespécie de virtude, ainda que ao menos a virtude de ser agradável. ParaMurdoch, aquele era o incômodo que desabrochara em paranoia, o fato deWalker casualmente ter provado que havia outra resposta para o vastosilêncio matemático. E ter comido a esposa de Murdoch.

– Além disso – continuou Murdoch –, a certidão de nascimento deleestava na sua mochila. Junto com... – Ele puxou o diário do bolso de seucasaco. – O diário de Jake Marlowe. Eu não sabia que matar e comer pessoasera sexualmente excitante para vocês.

Eu queria dizer algo impertinente – porém queria ainda mais o livro devolta.

– Sei que a resposta para isso é provavelmente não – falei. – Mas será queeu poderia ter isso de volta? Bem, vocês fizeram cópias ou o escanearam paraseus arquivos ou algo do gênero, certo?

– Sim.– Bem, eu poderia tê-lo de volta?A questão trouxe-nos a um silêncio curioso. Não havia nenhuma razão

para que ele concordasse. Exceto o prazer que teria em confundir minhaexpectativa de que não iria concordar. O que ele sabia que eu esperava.Portanto, ele faria o contrário. O que ele também sabia que eu esperava –portanto, a inclinação seria confundir aquela expectativa... E daí em diante,potencialmente ad infinitum. Era como se estivéssemos travando este diálogohipnótico em voz alta – contudo, eu sabia que caso dissesse qualquer coisa emvoz alta – Por favor, apenas para me fazer companhia enquanto o garoto

dorme – ele simplesmente me encararia com uma dignidade calma eequilibrada... depois, daria meia-volta e iria embora, sem dizer nada.

Murdoch me entregou o diário através das barras. A leitura mental tornouo gesto íntimo. Era como se ele estivesse testando o próprio ódio. Estas eramas margens da curiosidade nas quais ele operava.

– Para responder à sua outra pergunta – disse ele –, não, não sei onde osvampiros estão mantendo seu filho ou, diga-se de passagem, a esposa deKonstantinov. Depois de lidarmos com Walker e companhia, e quando oscientistas tiverem determinado seu destino, investigarei apropriadamente essahistória de Remshi.

– Então você conhece a lenda? – perguntei a ele.– Todos nós conhecemos a lenda. Todos passam pela fase do Livro de

Remshi em algum momento ou outro. “Fase” sendo a palavra em vigor. Éuma ideia atraente, o vampiro mais antigo vivo... Imagine as histórias que elepoderia contar! Mas o livro é entediante. Ninguém lê de verdade. – Jake teriaacrescentado (ou eu teria, ou Grainer, ou possivelmente até Ellis): É oFinnegan’s Wake da WOCOP. Mas Murdoch não lia. Assim como asmulheres, os livros tinham fracassado em proporcionar o que um diapareceram prometer a ele. Como as mulheres, livros eram astutos e falsos e nofinal não eram antídoto algum para o vazio no qual ele estivera caindo egritando durante todos aqueles anos. Assim como as mulheres, os livros nãopodiam fazê-lo parar.

– Mas você acredita que ele existe? – perguntei.O fone de ouvido dele emitiu um clique. Ele levou um dedo ao ouvido.– Vá em frente.Pausa.– Certo, estou a caminho. – Depois, para mim: – O dever me chama. – Ele

atravessou o corredor. – Caso exista – disse ele –, não fará a menor diferença.Ele não saberá de onde veio ou para onde estará indo. Ele terá histórias... Nósteremos as histórias. Mas é tudo que serão. No final das contas, ele será maisuma aberração vivendo de seres humanos, o que significa que, no final dascontas, será meu trabalho encontrá-lo e matá-lo.

Passou o cartão no leitor, aguardou a sequência de blips e o suspirohidráulico. A porta fechou-se atrás dele com os sons abafados da tecnologiade precisão. Repousei a cabeça contra as barras. Me dei conta, entre outrascoisas, de que estava me habituando ao cheiro de Caleb.

39

Li Jake por algum tempo. Uma fuga que me autolacerava: Heathrow, o Plaza,a longa viagem de carro até o Big Sur; amor, amor, amor – mas também umpouco de Madeline. Eu não conseguia evitar, agora que a conhecera. Não erauma boa ideia no meu estado. O amor feria meu coração e o sexo (meu e deJake, mas, sendo sincera, o dele e dela também) me deixava deploravelmenteexcitada. Walker oscilava para dentro e para fora de tudo aquilo. Eu queriaver o rosto dele e ouvir sua voz. Contemplei – sorrindo por dentro ao pensarem como Jake teria simpatizado – simplesmente aceitar o inevitável, medeitar em um canto e me masturbar. Mas não o fiz, no entanto. Nãosuportava a ideia de Murdoch observando, com a mesma expressão que tinhaquando espancou Hoyle até a morte. Durante o que pareceu muito tempo,fiquei deitada de costas tentando pensar em qualquer coisa – a fórmula paraequações quadráticas, os romances de Graham Greene, a sequência dospresidentes dos Estados Unidos – que não fosse sexo. Eventualmente, porqueaté mesmo o corpo do lobisomem é uma máquina honorável, adormeci.

Quando despertei, Caleb estava deitado sobre as próprias costas, olhandopara o teto com os olhos novos em folha.

– Ei – eu disse.Ele não se virou para olhar para mim. É claro: as calças arriadas, os

genitais expostos, a humilhação por um humano masculino, a impotência e asprovocações sobre a namoradinha. Um garoto de 17 anos em um corpo pré-puberdade. Quanto mais eu pensava a respeito, mais via que não poderia ter

sido muito pior para ele. E ele estava ali há 21 dias. Quantas vezes estivera najaula?

Meu primeiro instinto foi não dizer nada sobre o que havia acontecido.Dar tempo e espaço para o ego dele. Mas quanto mais pensava a respeito,mais eu sabia que não adiantaria. Ele veria, de fato já estava vendo, a verdadeno silêncio enquanto eu tentava encontrar uma solução. Essa verdade ohumilharia. Inflaria o sofrimento que deveria diminuir. Eu precisava ficar merelembrando de que ele não era uma criança.

– Lamento que aquilo tenha acontecido com você – falei. Eu nãoconseguia pensar em nada menos brusco. – Caso seja algum consolo, estoupraticamente certa de que serei a próxima. Precisamos sair daqui.

Ele permaneceu em silêncio por algum tempo. Estava pensando seconseguiria superar a vergonha. Uma alternativa seria me dar as costas enunca mais falar comigo. Me forcei a não persuadi-lo. Que a decisão fossedele.

Depois de dois minutos, ainda sem olhar para mim, ele disse:– Como?– Ainda não sei. Mas vão me levar para outro lugar amanhã. Há Cientistas

chegando. Talvez isso me proporcione uma oportunidade para dar umaolhada no esquema do lugar.

– Vão aplicar doenças em você – disse ele. – Para ver como seu sistemaimunológico funciona. Fazem você comer coisas para ver o que acontecequando as rejeita.

– Eu posso comer coisas – retruquei. – Mas não o tempo todo.– Eles cortam pedaços seus.– Oh!– Isto vai machucar você? – perguntou ele.– Sim.– Mas você vai se regenerar?– Parece que sim – respondi. – Tudo, exceto a cabeça, aparentemente.– É outra coisa na qual eles apostam. Quanto tempo partes diferentes de

você demoram para crescer de novo.

– Não me conte mais nada – pedi. – Prefiro não saber. Você conseguiu daruma olhada em qualquer outra parte deste lugar quando foi transportado?

– Não, me levaram enquanto eu dormia. Não vai fazer nenhuma diferença.Vamos morrer aqui.

– Suponha que Remshi venha – eu disse. – Ele não saberia onde você está eviria lhe buscar?

Uma pausa. Ele havia se esquecido que mencionara Remshi. Observei-orefazer mentalmente seus passos.

– Não se trata de Jesus e seus cordeiros perdidos – respondeu ele. – Não setrata de amor. Eu seria ninguém para ele.

– Achei que tinha dito que esse pessoal receberia o que merecia quando elechegasse.

– Eles receberão, mas não tem nada a ver comigo. Os humanos nãosaberão o que os atingirá. Ele pode caminhar durante o dia. Todos seremoscapazes de caminhar durante o dia novamente.

– Quem lhe disse isso?– Jacqueline. Mas está no livro – respondeu ele.– Foi Jacqueline... Ela foi sua criadora?Silêncio.– É falta de etiqueta perguntar?Ele continuou sem responder.– Bem, isso é problema seu – eu disse. – Só preciso de alguma coisa para

tirar a minha cabeça do que me aguarda.Durante alguns minutos permanecemos assim, eu sentada com as costas

contra a parede, ele deitado olhando para o teto da cela. Quando ele falou, eraóbvio que estava embargado.

– Não devemos contar para qualquer um – disse ele. – Mas se vou morrerde qualquer jeito, suponho que não faça diferença. – Os olhos verdes de Calebestavam se enchendo com o que em um vampiro sadio eu imaginaria queseria sangue; no caso dele, era um fluido cinza-rosado. – E se você sair daqui– acrescentou ele –, poderia dizer a ela que lamento por ter sido tão idiota?

– Jacqueline? – perguntei.

– Não. Quem me criou.Caleb estava no Asilo Trinity em Clapham, morrendo de câncer. Câncer

gástrico em primeira instância, o que fez os médicos demorarem tanto paradiagnosticar (é raro em crianças) que, quando finalmente o fizeram, ele tinhatumores nos pulmões, no pâncreas e no intestino grosso. Ele fora submetido a18 meses de rádio e quimioterapia, sem resultado. A mãe, solteira (o pai foraum romance de uma noite, desaparecido há muito tempo), morrera em umacidente de carro quando Caleb tinha 4 anos e, desde então, ele fora criadopela tia e pelo tio em Wimbledon – não havia sido ruim, me pareceu, mastampouco com muito amor.

– Eu não era o filho deles. Jeff era o segundo marido da minha tiaRochelle, e não me queria por perto. Ele trabalhava na cidade e estavatreinando para ser psicoterapeuta. Eu passava o tempo com uma série deempregadas domésticas e babás. Não era ruim. Jeff e Rochelle tinham muitodinheiro e sentiam-se culpados por não me amar, de modo que, quando eutinha 8 anos, estava afogado naqueles malditos brinquedos e gadgets. Tenhoquase certeza de que se pedisse a eles um traficante de cocaína e KylieMinogue como empregada eles teriam providenciado, de alguma maneira.Então, fiquei doente.

O estranho, Caleb me contou, é que ele nunca havia realmente acreditadoque fosse morrer.

– Eu via, nos outros garotos, a maneira como olhavam pelas janelas para ochão e para o céu, eu via que lentamente se davam conta de que estavampartindo, de que este mundo e todas as coisas que tinham deixadocompletamente de dar valor seriam perdidas, e que eles estariam em qualquerlugar, no céu ou no inferno, ou foda-se onde. Todos pensavam que estariamem algum lugar, mesmo que fosse apenas flutuando por aí como uma névoano espaço ou caminhando pela Terra como fantasmas infelizes. Havia apenasuma garota, Hannah, que não achava que iria para lugar nenhum. Morta ecremada, disse ela. Acabada. Nenhuma merda de contos de fadas.

Havia um sentimento juvenil entre ele e Hanna, a pequena pausa nesteponto, revelou.

– Eu voltei – prosseguiu Caleb. – Depois, quando eu era um vampiro. Eupretendia Transformar Hanna, se ela quisesse. Mas, naquela altura, ela estavamorta.

Imaginei, embora tenha resistido a perguntar, quantas crianças vampiroshaveriam. Era óbvio pelo âmago de estranheza de Caleb que não eram muitas.

– Mas isso é pular adiante – contou. – Antes de tudo isso, minha mãecomeçou a me visitar no meio da noite.

– Sua mãe?– Minha criadora – disse ele. – Mia Tourisheva.Mia. Eu conhecia o nome. A linda vampira loura que Jake matara com o

lança-chamas na casa de Harley. Era demais esperar – o nome sendoincomum, Deus estando morto, a ironia de sempre etc. – que se tratasse deoutra Mia.

– Eu acordava e ela estava lá – disse Caleb. – De pé ao lado da janela ousentada ao lado da minha cama. O cabelo dela era da mesma cor do meu.

Ela visitou-o todas as noites durante uma semana.– Foi como um déjà-vu que se repetiu por dias – disse ele. – Tudo que ela

dizia, tudo sobre o que conversávamos, o som da voz dela, o cheiro do abrigo,sua pele branca e sua mão fria como gelo sobre a minha testa... era como setudo aquilo já tivesse acontecido. Ela sabia tudo sobre mim. Sabia sobreminha mãe, e Jeff e Rochelle, e o câncer. Ela disse que se eu quisesse, poderiacurá-lo e eu poderia ir morar com ela. – Ele fez uma pausa. Falar, e talvez falarsobre aquele assunto específico, drenava suas forças. A rede circulatóriaescurecera em sua pele. Ele estava molhado com o suor rosa-acinzentado.Caleb engoliu em seco, esforçando-se como quem sobe em alguma coisa. –Ela não estava mentindo – disse ele. – Em um filme, ela estaria mentindo. Emum filme, um garoto de 11 anos não compreenderia realmente o que lheestariam oferecendo. Em um filme, ela seria astuta, malvada, faria caretas paraa câmera ou algo do gênero. Ela não era nada disso. Ela disse – Caleb engoliuem seco, vidro moído pela garganta – que não podia ter filhos como umamulher normal. Compreendi. Mais tarde você diz a si mesmo que nãocompreendeu de verdade, mas compreendeu. Ela jamais usou a palavra

“vampiro”, mas estava em tudo que dizia. Eu poderia viver com ela e jamaisadoecer de novo. Eu sabia que era verdade. Não posso explicar... – Eleprecisou parar por um momento. O que restava da energia do sangue estavase esgotando. Uma convulsão tomou-o por dois segundos. O odor dele ficoumais forte, começou a me incomodar de novo. – Não posso explicar como eusabia. Simplesmente parecia a coisa mais óbvia do mundo. Perguntei a ela seiria doer. Ela não – veio um espasmo que o levantou quase até ficar sentado –,ela não mentiu sobre isso também. Disse que iria doer no começo, masapenas por alguns segundos. Depois, a sensação seria como a de cair no sono.

Eu queria ouvir o resto, é claro, mas também queria voltar e folhear aspartes do diário sobre Mia. Ela havia criado aquela criança. Jake a incendiara.Eu havia sido amante de Jake. Agora, eu estava aqui na prisão com o filhodela. Conexões. A vida e sua trama novamente. O que provará ser mais difícilpara a humanidade?, Jake escrevera. A mudança de um universo comsignificado para um sem significado – ou a mudança de volta? Só existem essesdois modos, transportando-nos incessantemente de um para o outro como osmalditos Tweedle Dum e Tweedle Dee...

– Doeu – disse Caleb. – Muito. Mas, como ela disse, apenas por algunssegundos. Depois, foi como afundar na escuridão e no calor. Ela me dissepara imaginar uma corda amarrada em torno do meu pulso, para que nãoimportasse o quanto eu afundasse, eu permanecesse conectado à superfície.Quando eu sentisse um puxão na corda, não importasse o quanto... Nãoimportasse o quanto eu estivesse cansado... Eu deveria começar a subir.

O que, quando as primeiras gotas do sangue dela tocaram os lábios dele,foi o que Caleb fez.

– É muito difícil no começo. Como se todos os seus ossos e músculostivessem sumido. Depois, fica mais fácil. Depois, muito fácil. Depois, virafelicidade. Então... não é subir. É como... ser empurrado para cima por umaforça... por baixo...

Ele ficou um tempo sem conseguir continuar. Novamente, pensei nos 21ou agora provavelmente 22 dias que ele estava aqui, naquele nível desofrimento, completamente sozinho no subsolo. Assim como meu filho, onde

quer que ele estivesse – se bem que assim que pensei nisso falei para mimmesma que a ideia deles torturando Lorcan não fazia o menor sentido. Elesnão poderiam arriscar que algo desse errado com ele. Desejariam que eleestivesse saudável para o sacrifício. Eu dizia isso para mim mesma enquantomeu lado ridículo dizia “Sim, diga para si mesma o que quer que preciseouvir, querida”.

– Ela disse para mim que precisaria da minha ajuda mais tarde –prosseguiu Caleb. – Disse que eu estaria forte, e ela estaria fraca. Eu vi tudocomo um filme, o que ela dizia, como me dizia que as coisas seriam. Levei-apara o quarto vizinho ao meu. Havia um garoto... Lembro-me de terpensado... na escola... Ah, merda...

– Está tudo bem – eu disse. – Descanse. Podemos conversar mais tarde.Mas ele queria aquilo. Me lembro do alívio ao contar a Jake sobre a noite

em que fui atacada no deserto, sobre meu primeiro assassinato em Vermont.Você não consegue viver se não consegue aceitar o que é, e não pode aceitar oque é se não disser o que faz. O poder de nomear as coisas, tão antigo quantoAdão.

– Na escola – Caleb –, antes de eu ficar doente, as pessoas começaram adar chupões umas nas outras. Era uma... modinha. Você era... legal... setivesse um... chupão.

– Ah, meu Deus! – Exclamei.Eu poderia ter gargalhado. Eu quase não pedira o diário de voltar a

Murdoch.Mas eu havia pedido. E ele o devolvera. Continue lendo, Lula, Jake dissera.

Bem, eu seguira lendo. Pensei no rosto de Lauren quando a Sra. Maguire, naaula de inglês, dissera que se um livro não valesse a pena ser lido duas vezesentão ele não valia a pena ser lido uma vez. Lauren havia esperado até que eladesse as costas e disse “Sim, idem para os caras e as trepadas, masinfelizmente só há um jeito de descobrir”.

– Não importa – concluí. – Mais tarde eu conto.– Me conte agora. O que foi?Quantos dias desde quando me prenderam? Não mais do que dois. O que

significava no máximo 15 ou 16 dias até a lua cheia. Duas semanas. Talvezpouco mais de duas semanas. Com muito trabalho a ser feito. Deus estandomorto, a ironia ainda viva e despreocupada.

– Acho que sei como tirar a gente daqui – eu disse.

40

“Ciência” eram três seres inabordáveis de jaleco, todos homens, dois (emobediência ao deus dos estereótipos) na casa dos 60 anos, de óculos e carecas,mas um terceiro que parecia um jovem Clint Eastwood – ou melhor,considerando sua pele lisa, um boneco de cera do jovem Clint Eastwood. Nãoera bom. Ele possuía uma obsessão brilhante, firme e impenetrável em relaçãoà sua disciplina, impenetrável sendo a palavra-chave. A idade e a baixapontuação estética dos carecas os excluía. Mesmo deixando de lado as minhaspreferências, havia uma óbvia lacuna de credibilidade: eles precisariam sernarcisistas ou impossivelmente estúpidos para não perceber que algo estivesseocorrendo. Se o que eu tivesse em mente funcionasse, não seria graças aoshomens de branco.

Felizmente, havia guardas.– Eu não vejo nenhuma câmera no corredor. Isso está certo?Era o terceiro dia desde a minha transferência para as instalações do

laboratório. Nenhuma amputação (ainda), mas tinham me aplicado febresuína, hepatite C, HIV e tuberculose, e meu sistema imunológico se livrara detodos com uma pancada lânguida. Incessantes exames de sangue e urina;nenhum de fezes (graças a Deus), graças a wulf vomitar tudo que lhealimentavam à força, apesar de ensacarem o vômito e o levarem embora comuma reverência religiosa. O grande alívio foi que me bombearam os seios comuma bomba movida a bateria. Não por compaixão, e sim porque queriam oleite para análise. Eu estava secando. No terceiro dia meu volume de leiteestava reduzido a duas colheradas. Não era humanamente normal, mas todos

sabíamos qual era a resposta para isso. Eu não olhava em um espelho desdequando deixara o Dorchester, mas podia dizer que tinha perdidopraticamente todo o resto do peso pós-parto. Um recorde mundial,presumivelmente, outra dádiva aleatória e redundante da Maldição – e umacondição da qual (por vaidade ou estupidez) eu não percebera que meu planodependia.

Meu novo quarto não era exatamente a acomodação de luxo da prisãobranca de Poulsom (sem TV, sem suíte, sem itens de toalete da Harrods, semroupão de banho), mas era uma melhora em relação à hospitalidade deMurdoch. As mesmas paredes de concreto sem janelas, mas um piso detatames azuis de ginástica que evocavam, de modo confortante, o ensinomédio; um travesseiro, um cobertor de lã e uma pequena e estilosa latrina deacampamento cheirando a plástico novinho em folha e água sanitária. Minhasroupas foram confiscadas (apesar de terem me permitido manter o livro) esubstituídas por uma bata branca e dura de hospital. Amarras dependiam dosguardas. Havia uma única algema para uma perna em um cabo de aço preso àparede que me permitia caminhar pelo meu pequeno quadrado, ou havia aalgema para tornozelos, ou, para os ultracautelosos, ambos. Tudo lacradoatrás de uma porta de aço com uma escotilha para comida e uma placa paraobservação. Ela deveria deslizar para abrir ou fechar ao comando de umobservador, mas, na verdade, estava emperrada e permanentemente aberta.Além da porta da minha cela havia um corredor – sem câmeras,aparentemente –, com outras três celas (vazias) e, na extremidade, umcubículo de tijolo recuado com um chuveiro, onde eu tinha permissão parame lavar (e escovar meus dentes – alegria!) quando minhas tarefas nolaboratório estavam concluídas. Do corredor, outra porta se abria para umapequena antecâmara de paredes brancas, onde um de três guardas em serviçoficava sentado com um laptop e um comunicador em uma mesa e cadeiradobráveis.

Três guardas.Três homens.– Não, não há nenhuma câmera lá dentro. Por que, o que tinha em mente?

Isto era Devaz. De ascendência goana, beirando os 30 anos, não muitomais alto do que eu, com o cabelo repartido como um estudante, rostoarredondado, brilhantes olhos castanhos e uma pequena e charmosa falhaentre os dentes superiores da frente. Não era bonito, mas não havia nadainsuperavelmente errado com ele. Fora ele quem me entregarasorrateiramente a escova e a pasta de dentes, portanto, eu não podia odiá-lo.Crucialmente, ele era tão suscetível a sexo (o que provavelmente estava portrás da escova e da pasta de dentes) que quem quer que fosse responsável porcolocá-lo em serviço ali teria problemas épicos com Murdoch se meu planofuncionasse – e se Murdoch sobrevivesse a ele.

– Percebo, senhor, que você obtém um prazer nada cavalheiresco em fazeruma dama pedir.

– Madame, de jeito nenhum. De jeito nenhum.Este era o nonsense estabelecido. Ele sabia o que eu tinha em mente

(apesar de não o porquê), pois eu lhe dissera no primeiro dia sob sua guarda.Ele me supervisionara tomando banho, me secando, me vestindo, e quandotinha terminado eu sabia tudo que precisava saber. Mais tarde, através daplaca aberta da minha porta, eu conversara com ele muito tranquila eracionalmente, exatamente do modo como uma mulher inteligente dominavaum enorme nojo de si mesma porque era necessário. A leveza e o decoro,deixei óbvio, eram em proporção inversa à odiosa baixeza do meu desejo.Memsahib colonial sob o poder do criado. Ele adorou.

– Você falou com Wilson? – perguntei a ele, no dia seguinte, quandocomeçou seu turno.

– Sim.– E?– Seria adorável, tenho certeza, se não fosse por essas ideias de que tenho

de manter meu emprego.Retórica. Ele ter falado com Wilson me dizia que era um fait accompli. Eu

poderia, é claro, ter falado eu mesma com Wilson, mas, entre os dois, eraDevaz quem tomava as decisões. Além disso, o ego do goano era grande obastante para ter sido ofendido se eu tivesse procurado Wilson primeiro. Ele

fora adorado pela mãe e pelas irmãs. Estava evidente no cintilar de seus olhose na falha não corrigida entre os dentes.

– Bem – eu disse. – Você sabe onde estou.Era uma sedução em duas partes. A Parte Um era simples. Ela abordava,

através, sob ou paralelamente ao nonsense estabelecido, exclusivamente ohomem pornografado. Tudo que ela exigia era eu olhando para ele de umamaneira que dizia que eu sabia o que ele queria, que faria a maioria das coisade bom grado e as poucas restantes ou com um ressentimento excitantementeóbvio ou com uma surpresa ruborescente comigo mesma. A Parte Doisabordava o empregado cético e incompetente da WOCOP. Exigia persuasão,diálogo, argumentação. Ele não sabia o que acontecia com a minha espécie àmedida que nos aproximávamos da lua cheia? Além de tudo que eu estavasofrendo – aprisionamento, a perda dos meus filhos, as indignidades dolaboratório, a certeza da morte –, havia o ataque incessante de você sabe o quê.Contei a ele, mais uma vez muito tranquilamente, que no mundo exterior eunão olharia duas vezes para ele, mas que aquelas circunstâncias eramextraordinárias. Naquelas circunstâncias, acredite ou não (mais uma veztranquilamente), ele estaria me fazendo um favor. Eu até manteria as algemas,se aquilo tornasse as coisas mais fáceis para ele. O homem pornografado jádissera sim, sim, Jesus Cristo, sim. O empregado cético e incompetente daWOCOP tinha um período de negação para trabalhar.

– Como você pode esperar que eu mantenha relações com você quandome disse que não me considera nem um pouco atraente?

– Porque sei que esta é justamente a coisa para atiçar o ardor de umcavalheiro – respondi.

– Meu Deus, mas que coisa horrível de se dizer!– De jeito nenhum. Nós, damas modernas, sabemos como as coisas

funcionam.– Estou chocado e atordoado. Estou entristecido – disse Devaz.– Ah, posso ajudá-lo com isso. Posso mesmo.Eu precisava permanecer brincalhona e tranquila, uma combinação de

prontidão sexual e realismo resignado. Nada fácil, considerando o relógio que

tiquetaqueava tão alto. Se as amputações começassem, eu teria problemas.Estar ensanguentada, com ataduras ou com tocos visivelmente emregeneração não ajudaria. Obviamente, havia homens que gostavam daqueletipo de coisa (o irmão de Lauren tinha uma coleção de pornografiapervertida: uma foto de uma mulher com pernas amputadas e dois homensbarbados esfregando os paus contra os grandes tocos acetinados), mas Devaznão me parecia um deles.

– Realmente, senhor, acredito que a aquiescência de Wilson nesta questãoremova o último obstáculo para a nossa felicidade.

Naturalmente, Wilson, um rapaz musculoso de 26 anos, alto, com cabelosruivos e um pomo de adão que curvava sua garganta como um pequenocotovelo (mas que mesmo assim era o campeão de chave de braço daunidade) e que deveria ficar de olho enquanto Devaz estivesse comigo, queriasaber o que ele teria a ganhar. O que ele pensa que tem a ganhar?, perguntei aele, tendo perdido momentaneamente a paciência com o nonsenseestabelecido. Ele não é gay, não é mesmo? Não é como se eu e vocêestivéssemos ficando noivos. A verdade era que eu precisava de Wilson.Devaz por conta própria poderia não ser o bastante. O terceiro guarda,Harris, era o mais bonito do grupo, com angelicais olhos negros e ossos daface cruéis, mas também era, segundo Devaz, Wilson e minha própriaintuição, um defensor rigoroso do protocolo e um ideólogo da WOCOP emformação. Uma pena! Eu realmente precisava de três. Três era o número queeu tivera em mente desde quando decidira o que iria fazer.

– Não sinto que você avalie plenamente o risco envolvido, madame. Orisco atroz para a minha reputação.

O tempo certo era a hora do banho. Os cientistas deixavam o laboratório ecerca de 15 ou vinte minutos poderiam se passar antes que eu precisasseaparecer esfregada, com o hálito fresco, de cabelo molhado e de bata nocircuito interno de tevê da minha cela. Quinze ou 20 minutos de tempo a sósno corredor sem câmeras e com meu voyeur armado. Wilson ocuparia aantecâmara e avisaria Devaz se alguém aparecesse. Tudo que eu precisavafazer era não perder a paciência com Devaz.

Harris, o rigoroso, nem sequer falava comigo. Quando estava em serviço,não havia nada a fazer além de ficar sentada ou deitada em minha cela,revisando O Plano (o qual, na verdade, era apenas uma única ideia, umaaposta do tipo tudo-ou-nada) ou lamuriando sobre meus filhos ouponderando sobre tudo que acontecera. Caleb havia ficado em silêncioquando eu lhe contei qual gammou-jhi eles iriam sacrificar. Depois de algumtempo, ele tinha dito: “Se eu soubesse que estavam com ele, não seria capaz delhe contar.” Depois, após outra pausa: “Portanto, fico feliz por não saber.Sinto muito.”

Mia, a “mãe” dele, não era uma crente. Para ela, os Discípulos eram idiotasfanáticos e Remshi estava na mesma lacuna que Cinderela ou o coelho na lua.Como em todos os cultos, Jacqueline inicialmente desencorajou, depoispassou a olhar com maus olhos, até que, finalmente, proibiu completamentequalquer contato com não membros. Uma crise teve início. Caleb romperacom Mia. E partira o coração dela, li nas entrelinhas. A última briga entre elesfora traumática. Ele a havia criticado por tê-lo prendido para sempre nocorpo de um garoto de 11 anos, por tê-lo transformado em um monstroassassino, por fazê-lo odiar a si mesmo, por roubar-lhe a chance de morrercom uma alma limpa. As últimas palavras que disse a ela antes de partirforam que a desprezava, que desejava que estivesse morta. Realmente morta.Três dias depois, a WOCOP o capturou.

– Melhor do que nada – disse Devaz quando, no quinto dia, sem aviso,abandonou o nonsense estabelecido e arrastou um dos tatames azuis deginástica da minha cela para o corredor.

Pensei em todas as vezes em que estive bem perto de gritar Por favor,simplesmente me coma, pelo amor de Deus! – e agradeci a Deus, que nãoestava lá, por me dar paciência.

– Estenda as mãos. Não temos muito tempo.A mudança para a verbalização direta nos enervou. Perguntei-me,

brevemente, se ele seria violento, depois me dei conta de que não poderia sedar o luxo: a violência deixaria marcas. A ciência descobriria. A ciênciainvestigaria. Murdoch descobriria.

– Preciso deixar o comunicador ligado – disse Devaz, o que conjurouWilson na porta ao lado, escutando. – Não – acrescentou ele, lendo meuspensamentos. – Só os fones de ouvido.

Estávamos numa emboscada, de certo modo, quando chegou a hora.Devaz, destrancando as algemas que prendiam meus pulsos e tornozelos, pelaaura quente do meu corpo, pela minha feminilidade e personalidadeparticulares. Eu, pela queda acentuada do desejo e pela visão borrada: tãopróxima de fazer sexo, não era brincadeira o quanto eu precisava daquilo. Apalavra “ânsia” apresentou-se, fresca, legítima e surpresa. Meu clitóris estavadiabolicamente desperto e dando as ordens, o representante objetivo paratoda a carne e sangue intoxicados, para todo o coral mudo do desejo. Manter-me fiel ao plano seria como segurar um talismã em uma visita ao submundosob o efeito de peiote. Dei-me conta (enquanto Devaz removia as algemas) deque não podíamos perder o momentum. Pausar ou dizer a coisa errada oassustaria. Com tal pensamento, me preocupei de repente (como mepreocupara com Walker; presuma que Walker esteja morto, presuma queWalker – mas por favor, Deus, faça com que ele não esteja), que leite pudessesair caso ele chupasse meus mamilos. A pontuação da bomba para seiosdaquela manhã fora zero, mas quem sabia o que uma boca humana poderiafazer? Não fazia sentido mencionar aquilo agora. Seria justamente o tipo decoisa que o assustaria. Ou talvez ele gostasse. Não havia nada que um carapudesse não gostar. Se gostasse, não seria a tranquilidade dionísica de Walker,mas uma perversão horripilante, um segredo oculto em sua psique como umagrande ratazana em uma caixa pequena demais.

– Me beije – eu disse, pois estava óbvio quando ficamos cara a cara que elenão sabia se algum código prostitucional oculto proibia aquilo. – Me beije.

O beijo o deixou surpreso. Ele se esquecera de seus poderes intricados. Eleestava flácido quando nossos lábios se encontraram, mas eu sabia o que estavafazendo, e ele estava duro quando paramos a primeira vez para respirar.Devaz havia se tornado intenso muito rapidamente, seu ego sexualconcentrado, e agora ele se equilibrava entre a pornografia e tudo o que apornografia não era. Wulf estava desperta, agarrando avidamente através da

névoa do meu sangue, desejando o momento para si. Minha estrategista tontatrabalhava como se enfrentasse uma droga poderosa: Mantenha-o no ladopornográfico da linha. Se você permitir que seja qualquer outra coisa para ele,ele não desejará compartilhar você, e você precisa de Wilson. Você precisa pelomenos de Wilson.

Então eu o beijei de um modo diferente, desdenhando a ternura, e senti-ofechar algo dentro de si em resposta, senti seu desdém, na verdade, pelo idiotade coração mole dentro de si que quase desperdiçara uma tremendaoportunidade pornográfica. O odor dele lembrava canela e seu rosto tinha umpequeno campo de força tropical. Ajoelhei-me, abri o zíper dele, libertandoseu pau. Ele tinha se lavado, graças a Deus! Meu nariz aguçado por wulf emseu zíper captou primeiro o cheiro de lona e um leve traço salgado de urina,depois uma explosão de gel de banho com aroma de coco e melanina e pelospúbicos limpos. Ele era do tipo que tinha preferências por marcas de gel debanho e cuecas de qualidade, vivendo em perpétua prontidão otimista para osexo, para o que a mãe e as irmãs idólatras o haviam preparado. O pau deleera grande, não circuncidado e tinha uma curvatura para baixo em vez depara cima. No entanto, meu olhar deve ter sido francamente avaliadordemais, porque ele amoleceu um pouco sob meus olhos. Para remediar isso,portanto, levantei os olhos corruptos de colegial para ele – sim, realmente voufazer isso, em pleno e imundo conhecimento – e em movimentos crescentes,constantes e maliciosos, deslizei-o para dentro da minha boca.

– Uh – disse ele.Uh!, mesmo, mas não fique confortável demais aqui, garotão. Era um

cálculo delicado (até onde os cálculos eram possíveis através da urgênciarisonha do meu sangue) a quantidade de tempo que eu deveria permanecerchupando. Tempo suficiente para que ele não sentisse que fosse muito poucoquando eu parasse, mas não tempo demais para que ele ejaculasse – earruinasse o plano. E se eu mantivesse aquele desempenho – ah, eu sou umagarotinha suja, não sou? –, ele gozaria na próxima meia dúzia de movimentos.

– Não – disse ele com a voz rouca quando parei. – Vire de costas. – Eu opuxara para baixo, sobre o tatame comigo, e ele rasgara a embalagem do

preservativo com os dentes afastados. O rosto dele estava úmido e tinha novasluzes acesas. – Vire de costas.

Atingida pelo meu próprio petardo: eu fora tão convincente em meu papelde vagabunda onisciente que ele esperara proceder diretamente au derrière.Wulf estava pronta para dar um tapa afrontado nele, não porque a área estavafora dos limites, ou porque ir diretamente para lá falava tão claramente deegoísmo sexual (mesmo quando uma garota tem a perversão mental quetorna aquilo divertido, sempre há muito mais naquilo para o cara) – masporque naquela posição eu não seria capaz de executar O Plano.

– Já, já – sussurrei. – Primeiro aqui. Por favor, só por um minuto. Depois,onde você quiser.

Calculação nervosa nos olhos de Devaz. Eu era uma garota moderna; euconhecia a matemática do homem moderno: se uma mulher estivessedisposta a deixar você fodê-la na bunda, você não iria querer gozar na bocetadela. Era deprimente como a pornografia demovera a vagina tãoenfaticamente. A pobre e velha vagina! Não era de surpreender que osMonólogos fizessem tanto sucesso.

– Não se preocupe – eu disse, lambendo o lóbulo da orelha dele enquantoele colocava a camisinha com as mãos trêmulas. – Você vai ter o que deseja.Só não goze ainda.

Ele parecia um homem não confiante quanto ao próprio controle (bocaaberta, olhos mostrando branco demais), mas com um pouco de manobracoloquei-me sob ele e deslizei seu pau para dentro de mim. Pensamentos eperguntas dispararam como pássaros assustados com um tiro. Teria Zoë seacostumado com minha ausência? Caleb estaria de volta à jaula. Lua cheiadaqui a nove dias. Meus filhos mudariam, ansiariam por carne e sangue, pormais jovens que fossem. Cloquet precisaria telefonar para Madeline. O que osvampiros fariam por Lorcan? Nada? Acrescentariam fome a seus sofrimentos?Qual era a realidade dele? Um mundo sem o calor suficiente, nenhum cheirode sua espécie, mas sim presenças sobre ele como sombras frias de nuvens.Como um estupro cauteloso. E eu simplesmente havia deixado que fizessemaquilo. Me coma, me coma, ah, meu bom Deus, sim, assim...

Enquanto isso, conforme wulf clamava meu ventre desavergonhado esorridente, minha pobre estrategista, cega de sangue, cambaleava adiante, deacordo com O Plano. Eu dera em Devaz algumas mordiscadas preparatóriasmisturadas com beijos em seu peito e ombros, as quais pareceram nãoincomodá-lo, mas eu precisava ter certeza de que ele não sairia de dentro demim no momento crucial. E a única maneira de garantir aquilo era deixá-loincapaz de tomar decisões. E a única maneira de assegurar aquilo... Moviminha mão ao redor de suas nádegas até seu escroto furiosamente enrugado.Uma leve carícia rápida com as pontas dos dedos.

– Gosta disso? – perguntei a ele.– Muito.Eu estava molhada o bastante para fornecer meu próprio lubrificante.

Manobras ágeis com minha mão direita...– Você vai enfiar seu pau no meu cu? – sussurrei em seu ouvido.– Ah, meu Deus! – disse ele.– Você vai, não é? Vai comer meu buraquinho safado...– Por favor... não...Deslizei meu dedo médio umedecido contra o buraquinho safado dele.– Você sabe que eu quero, não sabe? – Estímulo mais rápido nas bolas

com a mão esquerda.– Espere... – disse ele.– Você metendo bem fundo no meu buraquinho safado, doce,

apertadinho...– Você precisa pa...– Ah, meu anjo, goze para mim, goze para a sua putinha...O universo dele parou. Ele disse “Oh, meu Deus” com uma neutralidade

metálica – e penetrei com o dedo preparado, inteiro, para dentro de seu ânusgraças a Deus vazio até a próstata indefesa. Simultaneamente, cravei minhaboca em seu pescoço.

– Ahhgggh! – disse ele. – Merda... merda... merda...Chupei e mordi. O mais forte que ousei, mas não tão forte a ponto de ser

interpretado como nada mais do que paixão de vadia ensandecida.

– Ummmm – eu disse, ainda mordendo, ainda chupando. – Ummmm.– Santa mãe de Cristo – disse ele, aparentemente à beira das lágrimas.Então, conforme o universo dele se recompôs, fluiu novamente e a

oportunidade anal desperdiçada foi novamente registrada:– Putamerda.– Shshsh. – Consolei-o. – Não importa... não importa. Podemos fazer de

novo amanhã.– Putamerda.Segurando o preservativo, ele tirou o pau de dentro de mim. Devaz estava

atordoado, ainda não pronto para o mundo. Ele perdera o trinado. O rostodele parecia inchado.

– Você não...?Não, eu não tinha. E apesar de a minha estrategista estar soluçando de

alívio, a Puta da Babilônia franzia a testa e respirava exasperada pelas narinas.Aquele era o lado ruim do Plano: se ele não coçasse o comichão de wulf,apenas a tornaria pior. E bem no último segundo contive-me de dizer: “Vai sefoder e mande Wilson entrar, por favor?”

– Não tem problema – menti. – Está tudo bem.– Não, não está. Deite-se.Meu bom Deus, o homem esquecera completamente onde estava! Só

Cristo sabe quantas personas eu tinha em jogo naquele instante, mas umadelas estava lutando para não cair na gargalhada. Não importa quantaspersonas fossem, wulf era a maior e a mais ruidosa de todas, e estava deleitadaao descobrir que Devaz era suficientemente uma criatura do absurdo parasentir que era seu dever masculino não deixar uma mulher insatisfeita. Nãoque eu fosse capaz – depois que ele estava lá embaixo chupando e lambendomeu clitóris com um entusiasmo chocante e uma eficácia surpreendente – dequalquer outra coisa além de agarrar a cabeça dele e aproveitar o passeio(considerei tentar colocar o dedo que estivera na bunda dele dentro de suaboca, pela Irmandade, por vingança, mas não confiava em mim mesma parafazê-lo com sutileza), mas, de todo modo, além da compostura, o que eu tinha

a perder? Se minha teoria estivesse certa, então até o momento tudo tinhacorrido de acordo com o planejado.

E, de todo modo, foda-se, eu merecia.Ele conseguiu, talvez depois de dez minutos, me fazer gozar, apesar de eu

quase arrancar os dentes dele com meu púbis ao me contorcer. Me senti umpouco tonta depois e, idiota que eu era, mais bem-disposta em relação a ele.

– Ande logo – disse ele. – Já se passaram vinte minutos. Você deveria estarde volta à cela.

– Espere – eu disse.– O quê?– O chuveiro. Preciso molhar meu cabelo para que pensem...– OK, vá em frente... Mas anda logo.Ele desapareceu. Um momento depois, Wilson entrou. Ele ficou parado,

meio ruborizado e meio sorrindo com desdém enquanto eu amarrava minhabata. Sexualmente, ele era menos seguro do que Devaz, necessitava deparâmetros claros e de que outra pessoa estivesse indubitavelmente nocomando. Portanto, para ele, eu fora seca e professoral, incomodada pelasminhas necessidades, manifestamente o tipo de vontade à qual ele poderia serender durante vinte minutos. A mãe dele não o idolatrara. Eu duvidava queele tivesse irmãs. Havia – é claro – um homem pornografado nele também,mas diferentemente de Devaz, Wilson não se sentia à vontade com isso.Provavelmente, eu poderia ter feito com que se apaixonasse por mim, setivesse um pouco mais de tempo.

– Deixe a câmera ver você me colocando de volta na cela – eu disse. – Enão se esqueça da algema na perna.

– Certo.– Você vai vir me ver amanhã, certo?Ele não respondeu, mas o calor ao redor dele era palpável. As mãos dele

tremiam ao trancar a algema.– Ótimo – eu disse, sem olhar diretamente para ele. – Vejo você então. E

não se esqueça de se lavar, por favor.

41

Dois dias depois, após eu ter fodido Wilson uma vez (e Devaz pela segundavez), os cientistas deceparam minha mão direita.

42

Eu gostaria de poder dizer que o tempo que se seguiu foi um borrão, mas nãofoi. Foi denso em detalhes. Aprendi duas coisas. Uma delas foi que nenhumaquantidade de violência que você cometeu contra os outros o prepara para aviolência cometida contra você. A outra era que você não pode escapar docasamento com seu corpo. O divórcio não é uma opção. Mesmo quando vocêquer parar de se importar com ele, não consegue. Mesmo quando a soluçãopara saber que removerão seu seio esquerdo é renegá-lo, não consegue. Ele éseu. É um amigo que você jamais se dera conta do quanto amava tão terna ecompletamente – até o separarem de você. Ele grita em silêncio. Ele retém,pelo menos durante algum tempo, sua vida, a ligação que tem com você. Masentão, quando ele compreende que você jamais o reclamará, que o contratofoi definitivamente rompido, ele morre, sozinho e traído, e torna-se umobjeto inerte e patético, indecente e esquecido.

O novo regime totalitário era a dor. A dor era exaustiva em suacaracterística impenetrável e fútil em relação a tudo. Não havia nada,nenhuma persuasão ou suborno que você pudesse oferecer a ela. A dor erafeito um idiota monolítico, a coisa mais burra do universo, com plenospoderes concedidos sobre a coisa mais inteligente, uma inversão de partir ocoração. Acostumei-me à sensação dos meus gritos sufocados por umamordaça, precisando recuar e descontar a si mesmos dentro do meu crânio.Descobri sentir pena pelo meu corpo. Era infinitamente renovável, esse poçode pena. Cada mutilação desenhava sua porção única. Cada amputaçãosubtraía, pungentemente removia – literalmente – um pouco do que eu era.

Eu chorava. Não diante deles. Mais tarde, atada à minha cama, cercada noescuro pelas luzes natalinas da tecnologia laboratorial, eu chorava, primeiro,pelas minhas perdas e, depois, porque quem as merecia se não eu mesma? Oscientistas eram indiferentes ao meu sofrimento – mas, pelo menos, não seregozijavam diante dele. Só é o melhor para nós quando é o pior para eles.Estas foram as minhas palavras para Jake, na cama. Só é o melhor para nósquando é o pior para eles. Diferentemente dos homens de branco, nós,monstros, desejávamos que a pessoa que estivéssemos matando soubesse –através da névoa de sangue e do barulho dos próprios gritos – não somenteque sabíamos o que estávamos fazendo, mas que amávamos fazer aquilo.Queríamos que nossas vítimas vissem que nosso prazer aumentava com ohorror deles, que o horror deles era necessário, que a situação deles não tinhaesperança. Aquela era a verdade imunda, o coração imundo dofodermatarcomer: a falta de esperança deles servia à nossa alegria. Na corte deapelações humanas, os cientistas se saíam melhor. Pelo menos, não estavamfazendo aquilo por diversão. Pelo menos, aquilo não os excitava.

Não que fizesse qualquer diferença para mim quando cortaram meu seioou arrancaram meu olho ou meus dentes da mandíbula. A carne em dor nãoestá interessada na justiça do Velho Testamento ou na justiça irônica ou emqualquer outro tipo de justiça. Não está interessada em nada que não seja otérmino da dor. Eu odiava aqueles homens e chorava pelo meu pobre corpo epelo meu eu solitário na escuridão piscante, mesmo quando wulf apressava ascélulas decepadas em ação regenerativa, uma sensação nos ossos e nervos etecidos como uma massa de insetos correndo na direção de algo. Não importaquais atrocidades tenha cometido, você fica furiosa com aqueles que ascometem contra você.

Fizeram uma histerectomia.Eu dormia, intermitentemente, mergulhava e lutava para sair de sonhos

incendiários: um (nada surpreendente) de ser devorada por formigas; outrodos dedos com unhas francesinhas de Jacqueline removendo a pele do crâniode Lorcan; outro da lanchonete na rua 10, com o neon da Coors e as cabinesde imitação de couro cor-de-rosa e o balcão revestido de falsa goma-laca

sobre o qual Clay me deixava sentar com meu milk-shake de baunilha e mecontava sobre o inferno que sua namorada fazia de sua vida como se eu fosseadulta; outro do laboratório misturado com a noite no Big Sur, Jakemergulhando o pau na massa em carne viva onde o coração rasgado docientista costumava ficar.

Então as lâmpadas fluorescentes vibravam e tremulavam em vida e osjalecos brancos apareciam, e outra sessão começava. Eu jamais conhecera omedo. Você não conhece o medo – não do tipo fundamental – até saber o quefarão com você e ser completamente incapaz de impedir. Invariavelmente, eume mijava quando as luzes acendiam, trêmulas. Os cientistas não seimportavam. Os cientistas esperavam que isso acontecesse. Vi meu reflexodistorcido em um prato de rim de aço inoxidável. O jovem Clint Eastwooddebruçou-se sobre mim e senti cheiro de alho e uma pastilha para hálito deanis. Perfuraram meus pulmões e quebraram duas das minhas costelas. Umdos carecas chamava-se Hugh. Tinha grandes pontas dos dedos comimpressões profundas que cheiravam a látex. Ele acendeu um maçarico deacetileno e segurou-o contra mim, canelas, abdome, costas. Primeiro grau,segundo, terceiro. A lâmpada cirúrgica principal era como um disco voadorde A Guerra dos Mundos. Arrancaram minhas unhas. Em uma caixa depapelão azul e branca em uma maca lia-se ZENIUM esponja abdominaldetectável por raios x. Às vezes, um rádio tocava a duas salas de distância. TheBlack-Eyed Peas; Kylie Minogue; Lady Gaga. Os sapatos dos cientistasguinchavam no chão emborrachado. Soava como uma linguagem. Hughergueu minha mão decepada como se ela tivesse sido quebrada de umaestátua sagrada. Estavam interessados em tudo. Primariamente, emvelocidades de regeneração (meu seio levou 24 horas, o olho, 6, mão e pé, 48,pele, 2, órgãos internos, uma questão de minutos), mas também tudo mais, decélulas-T a fibras-C, de nódulos linfáticos a hormônios. Às vezes, usavamanestésicos, outras, não. Eu me curava 30 por cento mais rápido sem eles,determinaram os cientistas. Uma sessão particularmente rigorosa com omaçarico de acetileno e alicates revelou que até certo ponto – até certo ponto– a taxa de regeneração aumentava de acordo com o aumento da dor. Eles

chamavam tal ponto de HUD: Horizonte Útil da Dor. O sexo com Devaz eWilson retrocedeu, tornou-se anos atrás. Toda a vida antes da primeiraamputação estava distante e lacrada. Cauterizada. Eventualmente, até aprimeira amputação parecia remota. Minha mente era um terminal no qualqualquer lixo velho poderia entrar: jingles publicitários; canções pop; cenas defilmes obscuros da TV; a tabela laminada com o alfabeto do jardim deinfância.

Enquanto isso, através da névoa, eu sabia que os dias passavam: a fome,primeiro, se contorceu, confusa, depois despertou, e então, apesar da dor,começou a pulsar e a arranhar suas demandas distintivas. O nariz de wulf seafirmou, insistia na visão dos cientistas como carne viva. Desodorantes e oabafamento químico do laboratório eram atravessados pelos cheiros do suor edo sangue deles, uma lufada ocasional de mijo velho ou merda recente. Ohálito de Clint falava agora não somente de um sanduíche de atum ao meio-dia ou do uísque de ontem, mas de suas próprias secreções profundas e vitais.A lua estava engordando e atraindo o monstro através do meu tricô humano.Eu a sentia na articulação da minha mandíbula, meus fêmures, minhaespinha. Perguntei-me o que teriam planejado para a minha transformação.O que quer que fosse, não era a mesma coisa que eu tinha planejado. Agora,eu passava o tempo todo presa no laboratório e não via nenhum dos guardashá dias. Só que Devaz e Wilson ainda estavam por perto, não muito longe. Eupodia sentir.

Eu tentava não pensar nos meus filhos. Fracassava. Teria Cloquetcontatado Madeline? Será que eu havia sido burra ao sugerir aquilo? Ela nãoera uma traidora, mas não seria uma mulher inconsequente? Será que elatomaria as precauções necessárias? Cloquet providenciando uma vítima paraminha garotinha já era suficientemente arriscado, mas pelo menos ele eracauteloso. É claro que Zoë não seria capaz de matar por conta própria, amenos que a vítima fosse uma criança. Cloquet precisaria sujar as mãos maisdo que nunca. Será que conseguiria? Pegar Kaitlyn em um bar e trazê-la parasua mestra para que fosse assassinada era uma coisa. Iniciar o assassinato porconta própria era bastante diferente. Talvez aquilo por si só o levasse à

matilha de Londres. E Lorcan? De certo modo, ele estaria em uma situaçãomelhor. Se a especificação da profecia para o sacrifício no solstício de invernoestivesse correta, ele ainda tinha mais de um mês de vida. Como os vampirossabiam que ele precisaria se alimentar, eu não duvidava de que cuidariamdele. (Uma visão perversa – Deus estando morto, a ironia etc. – delesalimentando-o com a esposa de Konstantinov e dando uma risada coletiva,mas ignorei-a.) Se a profecia estivesse correta. De vez em quando, o tamanhodaquele se tornava real. Traduzido de modo pouco confiável e maciçamenteeditado, dissera Walker. Suponha que a versão do Livro de Remshi usada pelosfiéis fosse diferente da adquirida pela WOCOP. Suponha que ela não dissesse“solstício de inverno” e sim “seis semanas antes do solstício de inverno”?Suponha que não dissesse absolutamente nada sobre o solstício de inverno.Suponha que Remshi pudesse tomar o sangue de sua vítima quando sentissevontade. Meu filho poderia já estar morto.

Então, abruptamente, as mutilações cessaram. Tive um longo período deparalisia à base de morfina. Era como se tivessem removido uma armaduraquente e me colocado em uma banheira de alovera fresca. Um deliciosochoque prolongado. Tudo que tinham cortado ou quebrado ou queimado serenovou impecavelmente graças a um bacanal molecular. Na verdade, nãoimpecavelmente. Durante algum tempo houve uma sensação debilitante ondeo novo material celular encontrava o antigo, um efeito parecido com oestremecimento e o zumbido do sangue quando a gente bate com o cotovelo.Clint & Cia. pareciam incomodados – não pelos resultados, mas porprecisarem parar. Tive a impressão de que tinham sido interrompidos commuita ciência ainda por fazer. Uma ou duas vezes, através do isolamentosonoro da droga, captei referência a “eles” ou “deles” em um tom que diziaque uma decisão à qual não apoiavam tinha vindo de cima.

Certa manhã (ou melhor, na hora que as luzes se acenderam), desperteipara descobrir Hugh preparando uma injeção hipodérmica. Eu ainda estavaatada, mas tinham removido a amarra que normalmente mantinha minhacabeça imóvel. O medo, no final das contas, não tinha realmentedesaparecido. Estava bem ali, imenso e imediatamente disponível. Ele deve ter

sentido o medo emanado de mim, pois me lembro dele dizendo: “Não sepreocupe, é apenas um relaxante”, antes de todas as luzes se apagaremnovamente.

43

A fome me arrastou de volta à vigília. Antes mesmo que abrisse os olhos, eusabia que faltavam menos de 24 horas para o nascer da lua cheia. Wulf,impaciente para encher os pulmões, praticamente esmagava os meus. Opreâmbulo da transformação moía e estalava nos meus músculos e ossos.Minha espinha queria sair, ansiava por todo o seu comprimento lupino.Nervos tremiam nas articulações dos meus dedos das mãos e dos pés e, comoum pesado capacete, havia o fantasma do crânio do monstro em torno domeu. Uma das minhas mãos estava no bolso da bata, onde, talvez como piada,talvez como um gesto de “sem ressentimentos”, Clint & Cia. tinham enfiado odiário de Jake.

Era impossível não reconhecer onde eu estava: o cheiro renovadamenterepulsivo de Caleb e o aroma agressivo de mijo, vômito e água sanitária dobalde, sim, lar doce lar – mas com um novo toque olfativo: o cheirosugestivamente premente de carne e sangue humanos. Abri os olhos.

Eu estava, é claro, de volta à minha antiga cela, mas não estava sozinha.Walker, magro, com hematomas, barba por fazer e fedendo não somente acarne viva mas também a excremento seco, urina e suor, estava deitado eencolhido, com algemas nos pulsos e tornozelos ligados a um cabo de açopreso nas barras. Ele estava tão claramente incapaz de fazer qualquer coisaque as algemas eram uma sátira. Das roupas que usava quando noscapturaram restavam apenas as calças, agora imundas. O rosto dele estavaesgotado. Os olhos azul-esverdeados estavam grandes, brilhantes e fraturados.Um deles – o esquerdo – tinha um terçol gravemente infeccionado. Era o tipo

de irritação que eu sabia que ele já não reparava mais, algo que não era grandeo bastante para ser registrado acima do ruído constante dos outrosferimentos.

– Ah, meu Deus! – eu disse.– Não toque em mim.Pequenas palavras que diziam que algo grande havia mudado. Ou

morrido. Teria sido menos terrível se a voz dele tivesse mudado, mas nãotinha. Ainda era ele, profundamente alterado.

– Trouxeram ele hoje – sussurrou Caleb, não por delicadeza, mas porquemal conseguia falar. Olhei para ele. O garoto continuava vestindo somente ascalças esportivas da Adidas. O suor rosado secara. A pele dele estava tesa etranslúcida, veias lívidas. Quantas vezes ele teria estado na jaula desde quandoeu me fora? Uma parte distante de mim estava surpresa ao encontrá-lo aindavivo. Uma não tão distante estava aliviada. Não amoleça, idiota. Você precisadele vivo, é tudo.

Voltei-me para Walker.– Ei – eu disse.Ele não respondeu. Ele não me queria. Eu enviava sinais para tudo nele

que ele achou ter deixado morrer. Se ele tivesse uma arma com munição deprata, poderia ter atirado em mim apenas para acabar com o apelo que eufazia ao seu eu morto. Ele estava aterrorizado diante da possibilidade de quenão estivesse inteiramente morto, de que pudesse começar a fazer demandashorripilantes a ele, ou apenas a única demanda horripilante: que conseguisseencaixar em si o que havia lhe acontecido sem se tornar alguémcompletamente diferente.

Me perguntei o que ele tinha pensado que estivera acontecendo comigo.Ali estava eu, como nova, nenhuma cicatriz para provar que qualquer coisativesse ocorrido comigo. Ali estava ele, totalmente mudado. Era uma traiçãoque seu próprio corpo apagasse as provas dos abusos sofridos. O que tornavaas evidências internas mais difíceis de suportar. As evidências internas eramcomo ser estuprada à luz do dia em uma rua movimentada sem uma únicatestemunha.

Ser estuprada. Telepatia como a sombra de um pássaro passando sobrenós. Nossos olhos se encontraram. Ele desviou o olhar. Pensei em uma notíciaque ouvi anos atrás, um prisioneiro haitiano sob custódia do departamento depolícia de Nova York sendo sodomizado com cassetetes e uma mangueira deincêndio. Depois, uma sequência de outras imagens. As fotos de detentosdespidos e encapuzados em Abu Ghraib. O peculiar júbilo de aspecto vítreodos policiais militares observando-os. Perguntei-me se Walker tinha forçaspara se recuperar daquele tipo de violação. Se você era mulher, uma parte deseu medo cedia, em parcelas que começavam quando ainda era menina, aoestupro. Como não? Mulheres eram estupradas no mundo todo diariamente.Era uma latência estrutural. Mas não se você fosse homem. Se você fossehomem, não começava a se preocupar com estupro até quando estivesse acaminho da prisão. Isso tornava a situação mais difícil de absorver quandoocorria? Os homens achariam que sim.

A inutilidade de dizer qualquer coisa estava conosco na cela como umsorridente gênio da lâmpada. Walker passou a língua nos lábios rachados. Aaura dele estava escassa e concentrada equivocadamente, seu efeito era comoo mau hálito de uma pessoa muito doente. Todo o charme e a históriacintilante das mulheres que o desejaram tinham sumido. Era como se alguémtivesse encontrado o resto do ouro escondido de sua infância e o arrancadodele. Pensei nele dizendo meu nome naquela noite no escuro, desguarnecido– Talulla? –, a ternura e o deleite que me emboscaram. Queria colocar osbraços em torno dele e sabia que era a última coisa que ele queria que eufizesse. Ele jamais iria querer ser tocado novamente por ninguém, excetotalvez brutalmente, para honrar o deus perverso que o visitara.

– Você vai me matar – disse ele, ainda sem olhar para mim. – Amanhã. Épor isso que estou aqui.

Não me dei o trabalho de perguntar Como assim? Eu sabia o que ele queriadizer. Vítima viva. Entretenimento de primeira. Doçura ao extremo paraMurdoch, que assistiria, e que talvez trouxesse a esposa e a obrigaria a assistir.Eis seu amante. Olhe bem. A Ciência aguardaria até que eu estivesse de voltaà forma humana e então me levariam para outra sessão. Até agora, eles

tinham tido a oportunidade de estudar o lobisomem de estômago vazio.Agora, poderiam aprender tudo sobre ele quando estivesse empanturrado.Colocariam eletrodos em mim para ver o que se passaria em meu cérebroenquanto eu assistisse a gravação de mim mesma matando Walker.

– Não – eu disse. – Não vou.– Você não vai ter escolha. E, de qualquer forma, eu...– Não vai acontecer. Você não vai dar a eles a satisfação.Satisfação. Má escolha de palavra. Tantas palavras agora o levariam

diretamente de volta ao que fora feito a ele. Ele fechou os olhos e puxou osjoelhos de encontro ao peito.

– Você não vai ter escolha – afirmou.– Sempre há uma escolha – eu disse tranquila e delicadamente. (Sim,

havia. Mas era sempre o lobisomem que devia fazer. Pergunte às vítimas.Pergunte a Delilah Snow.) Eu queria envolvê-lo em tranquilidade edelicadeza, deixá-lo dormir por uma longa e escura temporada ao meu lado.Exceto, é claro, que agora a ternura era crueldade para ele, qualquer coisa queo lembrasse da personalidade que fora quebrada e corrompida. Ele não queriaser convidado de volta ao estado de se importar se viveria ou se morreria. Sevocê se importa, então o que fazem com você – o que fizeram com você –conta em dobro. Vi uma imagem do rosto de Murdoch, uma expressão defúria tão resignada e extrema que parecia um tédio moderado. Porquedestruir uma pessoa não era o bastante. Não importava o que você fizesse,não era o bastante. Você permanece ali depois que o resto da dignidade dapessoa se foi. Você permanece ali, insatisfeito, como Deus.

Caleb teve ânsias de vômito, travou a mandíbula, acalmou–se.– Me mate enquanto... estiver... fazendo isso – implorou. – Não...

aguento... mais.– Não matarei nenhum de vocês.– Ah, sim – soluçou Caleb. – Me esqueci. Você vai nos... libertar.Os olhos de Walker se abriram, mas apenas para olhar para o chão.– Ela não pode lhe dizer como – disse Caleb. – Porque eles estão...

escutando.

Eu precisava presumir que estavam escutando. Por isso não tinha dito aCaleb o que tivera em mente antes que a Ciência me transportasse para fora.Não fazia sentido dizer nada agora. Se meu plano funcionasse, elesdescobririam muito em breve. Se não funcionasse, então eu os pouparia de teras esperanças frustradas.

– Mike escapou – disse Walker, ainda olhando para o chão.– Escapou? Como você sabe?– Eu escutei quando eles falaram... – Ele pausou, pareceu divagar. A

palavra “eles”. Certos pronomes tinham sido reinventados. “Eles”, “deles”,“ele”, “dele”. Essas palavras o empacavam, lembravam-no de que ele não eramais ele mesmo. – Escutei – disse ele. – O Russo escapou.

Vislumbrei Konstantinov bebendo de um córrego na floresta, feito umanimal, sua carne branca na escuridão verde.

– Quando? – perguntei.Os olhos de Walker se fecharam de novo. Era um peso incalculável para

ele se levantar, ter esta conversa como se nada tivesse mudado.– Walker?– Uma semana, talvez mais – respondeu ele.– E quanto aos outros?– Mortos.A porta de cofre abriu-se. Murdoch e Tunner entraram, o Tunner das

pernas arqueadas, com o sorriso de macaco característico e os músculoscheios de prazer, Murdoch placidamente dando corda em um despertadorcom suas mãos de diretor de escola. O despertador era antiquado, com meiossinos no topo. Eu costumava ter um idêntico no meu quarto quando eracriança. Walker, com uma hemorragia de adrenalina, encolheu-se mais aindanas algemas, rosto fechado, tentando encontrar um lugar para se esconderprofundamente dentro de si. Vislumbrei-o nu, algemado das mãos aos pés eagarrado por dois Caçadores de preto enquanto Tunner enfiava um malditocassetete para dentro e para fora de sua bunda, e Murdoch atendia umachamada no celular e observava.

– São três horas e nove minutos da manhã – disse Murdoch,

tranquilamente. – A lua cheia nascerá em 14 horas e dois minutos. – Elecolocou o despertador no chão, de frente para nós, depois parou sobre ele,mãos nos bolsos. – Neste momento, é claro, a Srta. Demetriou irá setransformar em um monstro.

– Um monstro faminto, Tio – acrescentou Tunner.– Faminto, como você disse, Tunner.– Isenta de moralidade.– Isenta de...– Eis um pensamento – eu disse. – Por que não deixam a encenação de

lado e vão se foder?Caleb gargalhou com um chiado. Foi a primeira vez que eu o ouvi

gargalhar. Obtive uma pequena detonação de prazer graças a isso e ao efeitoda interrupção de Murdoch, cuja boca empacou por um doce segundo oudois. Depois, ele disse:

– Isto foi muito benfeito. Como levar um tapa. Estou levementeconstrangido.

Durante alguns instantes não tão doces, ninguém falou. Murdoch tinhaum poder sobre o silêncio como o meu sobre os lobos. Ele podia invocá-lo etorná-lo uma extensão de si. Nele, vimos a pequenez do ponto que eumarcara contra o tamanho daquilo que nos aguardava.

– De todo modo – disse ele, quando soube que tempo suficiente havia sepassado –, estarei de volta a tempo de ver tudo. Portanto, até lá, direi até logo.Sr. Tunner?

Quando tinham partido, Caleb disse:– Você consegue alcançar o relógio?– Não – eu disse. – Por quê?Ele engoliu em seco. A garganta ainda cheia de vidro moído.– O tique-taque... – disse ele. – Vai me deixar... completamente louco.

44

Walker adormeceu. Finalmente, às sete e quinze, (ao amanhecer no mundoexterior, presumivelmente), Caleb também. Então, ficamos apenas eu e orelógio e a fome – e as duas novas perguntas.

A primeira nova pergunta era: o que Konstantinov faria se realmentetivesse escapado? Era excitante imaginá-lo reunindo uma equipe para vir nosresgatar – excitante e fora da realidade. Ele não devia nada a Walker. Walkerdevia a ele. Tudo com o que Konstantinov se importava era recuperar aesposa. Além disso, não havia nenhuma equipe que pudesse ser reunida.Walker já tinha tentado aquilo para a viagem à Itália: apenas três integrantes– e todos estavam mortos agora. Analisando de qualquer ângulo,Konstantinov livre não era mais útil para nós do que preso. O que não meimpedia de ver todos os ângulos, repetidamente.

A segunda nova pergunta era: o que aconteceria com Walker se meu planonão funcionasse, se a teoria na qual ele se baseava não funcionasse, se euperdesse a grande aposta?

A resposta era: eu o mataria e o devoraria. Se não neste mês, então nopróximo. Se Murdoch estivesse determinado na morte-por-lobisomem deWalker, então mais cedo ou mais tarde a fome lhe daria o que desejava.

Havia, é claro, uma saída drástica para Walker, se minha teoria estivessecorreta. Mas se minha teoria estivesse correta, O Plano funcionaria. E se OPlano funcionasse, ele não precisaria da saída drástica. Se eu lhe oferecesse asaída drástica agora e ele a aceitasse (e ele a aceitaria, no estado em que se

encontrava) e O Plano funcionasse, a saída drástica não pareceria de formaalguma uma saída...

Enquanto isso, a fome seguia compreensivelmente com seu trabalho. Wulfcaminhava em sua jaula humana, às vezes se atirava contra as barras queficavam com os hematomas. Meu sangue se acumulava. Como sempre, nãohavia nada para vomitar. Como sempre, as entranhas burras continuavamtentando. Como havia sido durante o trabalho de parto, nenhuma posiçãoajudava. No minuto que qualquer parte do meu corpo se dava conta de queeu estava deitada sobre ela, a mesma começava a protestar. Eu queria umabanheira quente, analgésicos, bebida. Cloquet estaria bastante ocupado comZoë. Presumindo que não a tivesse abandonado em algum lugar. Imagineiuma pilha de lixo com a perna nua dela despontando para fora, moscaszumbindo em torno de seu pé.

ME ESCUTE. VOCÊ PODE ME OUVIR?Me permiti examinar o pensamento dos meus dois filhos estando mortos.

Wulf não gostou, cortou-me por dentro. A cadela monstro não estava prontapara admitir a derrota maternal, ainda que a cadela humana estivesse.

NÃO RESISTA.Me vi com as presas no ombro de Walker e os dedos cravados até as

palmas das mãos em sua coxa. Wulf destacou o óbvio: Você estaria fazendoum favor a ele. Que horas são?

Dez para as três da tarde. Quanto mais faminta eu ficava, mais lentamenteos ponteiros do relógio se moviam, e mais rápido o monstro andava em suajaula. Logo, a náusea passaria e eu estaria no estágio cheia de energia. Entãoeu estaria de pé, caminhando com ela. Uma jaula com um animal dentro delaque era uma jaula com um animal dentro dela. Uma versão repugnante deuma matrioska.

VOCÊ PODE ME SENTIR. SEI QUE PODE.Walker despertou por um momento e não moveu nada além das

pálpebras. Permaneceu encolhido deitado de lado, me observando.– Suas costelas estão quebradas? – perguntei a ele.Ele piscou, lentamente. Ele queria sair. Da existência. Todo despertar

agora era um despertar para a decepção de que o sonho que ele estava tendoera apenas aquilo, um sonho.

– Me escute – eu disse. – Quando a hora chegar, não serei capaz de falar.Você sabe disso, não sabe? Você não vai acreditar que ainda serei eu pordentro. Você vai pensar que não vou reconhecê-lo. Mas vou. Quando metransformar, você precisa lembrar que saberei que é você e que não omachucarei.

Quando ele falou, sua garganta estava tão seca que nenhum som saiu. Melevantei e lhe dei um pouco de água. Bondade era crueldade para alguém quequeria morrer tanto quanto ele. Que queria tanto morrer, morrer, morrer,além de qualquer dúvida.

– Você vai fazer o que você faz – disse ele, tranquilamente. A barbacastanha e dourada suja deixava-o parecido com João Batista.

– Sim – falei. – Finalmente vou fazer. Serei capaz de me conter poralgumas horas, mas mais cedo ou mais tarde, se nada acontecer, vou matarvocê. – Debrucei-me e sussurrei em seu ouvido fétido. – Mas alguma coisa vaiacontecer. Confie em mim.

VOCÊ SABE O QUE PRECISA FAZER.Ele abriu a boca mas coloquei meus dedos em seus lábios rachados.– Shshsh – falei. – Não fale. Apenas descanse.Estava tudo bem, tudo tranquilo, mas o cheiro da carne dele e o calor de

seu sangue não faziam nenhum favor a wulf.– Apenas descanse – repeti. – Não vai demorar muito agora.Fiquei de pé, braços em torno do corpo, e olhei para o relógio.Faltavam duas horas e 45 minutos.

45

Nos segundos nebulosos e trêmulos antes da transformação Caleb despertou,muito pior. A pele dele estava quase transparente. Eu não teria ficadosurpresa se visse um órgão interno dele se contorcendo ou estremecendo. Osistema circulatório estava negro e pulsante, um aspecto de ultraje nãonegociável.

– Você se esqueceu de alimentá-lo, sr. Tunner – disse Murdoch. – Quandoviemos mais cedo e levei meu tapa verbal.

Eu estava de quatro no fundo da cela. Pensei que haveria maisespectadores, mas eram apenas os dois, ambos em calças e camisetas pretas decombate, ambos armados, Tunner com um cassetete.

– Tirei completamente da cabeça, senhor – disse Tunner. – Tamanho foimeu choque.

Minha culpa, em outras palavras. Sem o caos interior, eu poderia ter meimportado. Na situação atual, até o lembrete desesperado do meu estrategistainterior de que precisávamos de Caleb vivo estava perdido no sangue quelutava contra si mesmo. Um instinto obscuro (para encarar a morte de pé?)havia forçado Walker a lutar para se levantar contra as barras. Ele nãoconseguia ficar propriamente ereto. As costelas.

– Não se esqueça do que eu lhe disse – falei para ele. – Olhe para mim.Não se esqueça. Confie em mim.

Ele sorriu, levemente, com seu rosto arruinado.– Confie em mim – falei novamente... e congelei.O alarme disparou.

Ah.Agora.A lua havia me encontrado, clamara sua posse no meu céu da boca,

descendo ao longo da minha espinha e como uma firme e experiente mãoentre as minhas pernas. Havia um leve tom de repreensão gargalhante em seutoque, por eu ter me permitido descer até a terra; uma pequena zombaria daprópria terra, também, que deveria saber que não importava o quãoprofundamente me engolisse, ela jamais romperia a posse da minha amantelunar. Wulf respirou fundo, esmagou meus pulmões. Eventualmente, se nadaacontecer, vou matá-lo. Sim, me lembrou a cadela, vou matar. Ela era a adultavolátil, eu era a criança com o jogo mais ou menos divertido de se jogar poralgum tempo – até que, de repente, não era mais. Serei capaz de me conter poralgumas horas. Aquilo, ela destacou, era uma alegação tola. Ela perdera – seráque eu esquecera? – sua refeição do mês passado. Ela já estava atrasada. Ela jácobrava em dobro.

– Acredito, senhor...– Silêncio, por favor.A bata de hospital era intolerável, de repente (e, de todo modo, havia o

pensamento como uma tocha trêmula de que eu precisaria dela se O Planofuncionasse), abri a fivela e a arranquei. Nua. Bizarramente, a sensação foi depoder. Os imperativos de Murdoch em Tunner engasgaram: será que eledeveria fazer uma piada? Gargalhar? Fingir que aquilo não ocorrera? Olharboquiaberto? No fim das contas, ele ficou imóvel, boca levemente aberta,odor ficando estranho. Murdoch, por outro lado, absorveu o gesto compraticamente nenhum abalo em sua aura. Sexo não tinha nenhum valor ali.

O sangue acelerou, recuou, parou, disparou, quebrou as próprias leis paraencontrar um espaço não existente para o que estava por vir. O primeirochoque sacolejou minha espinha. Um canino precipitado disparou através daminha gengiva superior e perfurou meu lábio inferior. Pelos saltaram com umsuspiro crepitante da pele das costas, coxas e braços. Ossos fizeram o que aMaldição mandou. Imagine todos aqueles bonecos de massinha de modelarque você fazia e depois puxava e contorcia casualmente até que se tornassem

outra coisa; imagine que cada um tivesse um sistema nervoso. Imagens entreos espasmos: o viúvo francês abanando violentamente a cabeça “não, não,não”, enquanto sua boca se enchia de sangue; minha mãe afivelando um parde sapatos de salto alto e depois levantando uma sobrancelha como quesatirizando o próprio glamour – em seguida fazendo uma cara estranha comum olhar vesgo que me fez gargalhar, mas ao mesmo tempo me deixoulevemente aterrorizada, porque a beleza dela desapareceu por um instante; amão de Jake ao lado da minha no peito aberto de Drew Hillyard enquantoAmerica’s Next Top Model soluçava e tagarelava na tela coberta de sangue;Richard subindo a escada em nosso antigo prédio no dia em que descobrisobre seu caso, o pequeno redemoinho em seu cocoruto e eu sabendo, comum vazio, que toda aquela parte da minha vida tinha acabado; o rosto docafetão mexicano lutando para conter o horror do que ele estava vendo...

Meu crânio estendeu-se – parou –, estendeu-se, uma repentina distensãofluida, os guinchos e estalidos da qual eram minúsculos fogos de artifíciosdentro da minha cabeça. Todas as garras vieram simultaneamente, umasensação como dez grandes furúnculos explodindo ao mesmo tempo, a únicaparte inequivocamente prazerosa de todo o processo. Os ossos das coxascolocaram-me ereta ao se estenderem. Havia espaço, finalmente, para meuspulmões. Os pelos nas pontas das minhas orelhas tocaram o teto. A últimapresa saiu com um ruído molhado ridiculamente íntimo.

– Jesus – exclamou Tunner, inconscientemente.Walker permaneceu de pé, curvado, olhos erguidos para mim sob as

sobrancelhas, castigado contra meu novo calor.ANDA. FAÇA AGORA. FAÇA AGORA.Caleb estava me assistindo com um olhar que dizia que jamais vira aquele

truque. Mesmo no estado em que se encontrava, havia espaço para sesurpreender. Não morra, enviei o pensamento para ele, apesar de saber queele não o captaria. Difícil me concentrar sob o eclipse total do apetite. Haviaali, afinal de contas, três seres humanos quentes e suculentos explodindo devida comestível, o mais próximo deles algemado, preso e completamentecrédulo de uma piedade que eu não deveria ter prometido. Dei um passo na

direção dele. Eu podia sentir a primeira mordida subindo desde as solas dospés, um movimento como o serviço de um tenista: a contração; o arremesso;o zênite congelado da bola ou do meu focinho – depois a descida emandíbulas atingindo como o golpe da raquete. Por que eu pensei que seriacapaz de me conter?

Mas wulf, descobri, tinha as próprias divisões. Meus filhos também eramfilhos dela – e ela os queria de volta.

É ISSO. CORRA.Em parte para descarregar a energia que se acumulava e em parte para

prender a atenção dos Caçadores, joguei minha cabeça para trás, abri agarganta e uivei. Bom para mim (as últimas bolhas humanas presasexplodiram), nada bom para eles: o espaço pequeno conteve o somterrivelmente, marretou os animais humanos, irritou-os. O fedor zoológico deTunner havia mudado de novo, algum feromônio além da preocupação quedizia que o medo estava transbordando. Saltei, rosnando, até as barras.Tunner não se conteve de saltar para trás, apesar do espaço entre as barras serestreito demais para que eu conseguisse passar mais do que a mão entre elas.Murdoch não se moveu. Me vi sobre ele, uma das mãos segurando suagarganta, a outra balançando seu pau e suas bolas casualmente arrancadoslogo acima de seu rosto. A carne dele conteria todos os sabores de suaviolência e o fedor lamuriento de sua vida transviada. Wulf o desejava, asenergias furiosas que corriam em seu sangue, a infância oculta, o coraçãomisterioso, solitário como o do Demônio. Ela o desejava da maneira que eu (eminha mãe antes de mim) sempre quisera ver, seja qual fosse o horror, sefosse possível ver.

Enquanto isso, Murdoch estava parado, suspenso. Suponho que esperavaque eu começasse com Walker no instante em que a transformação estivessecompleta. Agora, os olhos azuis vítreos admitiam uma leve confusão. Fiz umagrande demonstração rosnando e rangendo os dentes e movendo os braçospor alguns segundos – depois parei, abruptamente. Fiquei completamentesilenciosa e imóvel. Sim, tenho isto sob controle. Não, não vou atuar segundoas deixas.

Ele levantou o queixo, levemente, num gesto para reforçar sua posiçãocomo supervisor.

Com exagero pantomímico, mostrei a ele meu dedo médio.Caleb gargalhou, apesar de soar como se o esforço pudesse matá-lo.

Tunner gargalhou – ou começou, mas foi cortado por Murdoch sacando umafaca (deveria estar atrás do coldre), saltando para a frente e cravando–a noombro de Walker.

Mesmo para meus padrões de monstro, foi um movimento rápido, umgolpe, para dentro, depois para fora. Murdoch não disse nada. Apenas ficouparado com as mãos na cintura e seu olhar de gavião de concentraçãoinabalada, aguardando para ver o efeito de sua ação.

E, oh, céus, houve um efeito, o cheiro de sangue fresco se prendeu ao meunariz como uma poção de desenho animado. Minhas narinas se abriram eabsorveram o perfume do precioso licor vermelho do corpo. Detonaçõesirresistíveis na barriga e no cérebro, um relaxamento obsceno até a alegriaanimal. Tudo reduzido em um fato de duas cabeças: eu estava faminta, epodia comer. Walker caíra de novo de joelhos. Agora, em movimentosgeriátricos, ele agachou-se de lado, pousou a cabeça no chão e cerrou osolhos. Vá em frente. Estou acabado de qualquer jeito.

Eu poderia mesmo – se um alarme eletrônico muito alto não tivessedisparado.

Tunner cobriu as orelhas de abano. O som era quase insuportável paramim, com a minha audição.

– Alarme de incêndio, senhor – gritou Tunner, fazendo careta.Os olhos de Murdoch fecharam-se por um momento em irritação sublime.

Ele os abriu, respirou fundo, depois moveu a cabeça com um gesto paraTunner ir conferir.

Tunner passou seu cartão. A porta estalou, engasgou, destrancou – depoisabriu ao som de gritos e ao festival de cheiros da carnificina.

46

O tempo fez o que ele faz nesses momentos, se expandiu e desacelerou, criouum espaço interno de onde era possível observar os detalhes – Tunnerolhando para cima, Murdoch virando-se e tateando em busca de sua arma,Walker erguendo a cabeça como se estivesse saindo de um cochilo que nuncapretendera tirar, o braço de Devaz – peludo, molhado de sangue e fedendo deseu novo material bruto de lobisomem – estendendo-se para dentro eenvolvendo os dedos em torno da garganta de Tunner.

NÃO. A CHAVE. A CHAVE.Murdoch disparou sua arma, atingindo Devaz no ombro. Devaz, focinho

pingando sangue da fatia que ele cortara para chegar até aqui, balançouTunner pelo pescoço para que ele levasse os dois tiros seguintes de Murdochnas costas.

ESTÁ TUDO BEM, ELAS NÃO SÃO DE PRATA. PEGUE A CHAVE.A qual permanecia em torno do pescoço de Tunner. Murdoch deu meia-

volta, correu para a porta oposta do cofre e passou o cartão. A melodiainocente de blips, o suspiro e o estalido da tranca. O novo instinto predatóriopuro de Devaz lutou contra mim para ir atrás dele.

NÃO! FODA-SE ELE! TIRE-NOS DAQUI!Havia outros instintos de Devaz com os quais eu precisava trabalhar. O

pau dele estava ereto, meato perolado, artéria dorsal pulsante. Naturalmente:ali havia presas frescas e uma fêmea. Uma fêmea que já o fodera na formahumana. Uma corrente de conhecimento mútuo sobre o imperativo daespécie. A qual tampouco passou despercebida para mim. A heroína

cinematográfica teria cauterizado o foco: seu filho, portanto, a fuga imediata,portanto, nenhum tempo para safadezas de lobisomem. A realidade não eratão acomodante. Meu clitóris pulsava e minha boceta ansiava. Não erapropriamente fodermatarcomer (eu não estava apaixonada por Devaz), masuma alternativa mais barata, mais pornográfica, que era mais do quesuficiente para mexer com minha força de vontade. Apesar de mim mesma,quase fui dominada.

Mas eu não estava, aparentemente, completamente fora de controle.NÃO AGORA. ELES VÃO MATAR A GENTE. ELES TÊM PRATA.O humano que se afogava em Devaz me odiava pelo que eu fizera com ele

(o que não abalava em nada seu desejo, obviamente), mas o monstro recém-criado estava sob o meu controle – por pouco. Aquilo não duraria. Tratava-sede uma pseudoautoridade paternal cuja expectativa de vida era a mesma deuma borboleta. Duas ou três lunações e ele estaria mandando eu me foder –ou melhor, tentaria ele próprio me foder. Mas, por enquanto, o sangue recém-transformado fazia o que eu mandava. Havia um lampejo de prazer para ele, osubmisso sob o salto de sua senhora, um potencial que ele jamais soubera ter,apesar de, obviamente, aquilo alimentar ainda mais seu desejo, de modo quefazer o que era mandado tornava mais difícil fazer o que era mandado.Absurdos formavam-se e se acumulavam. “Bem”, imaginei Jake dizendo,“você sai por aí distribuindo a Maldição indiscriminadamente, Lu... o queesperava?”

A porta se fechou atrás de Murdoch. Devaz arrancou a chave do pescoçode Tunner e moveu-se até o painel de controle. Na sala vizinha, o som de tiroshavia cessado, mas os gritos, não. Duas ou três vozes distintas, pensei. Euconseguia sentir o cheiro de Wilson lá fora, um odor mais ralo e perverso doque o fedor de mardi gras de Devaz. Wilson estava perto da saciedade,empanturrado e tonto de tantas vítimas. Se continuasse comendo, iria searrepender.

RÁPIDO, POR FAVOR.Foi de uma agonia onírica observar os dedos híbridos de Devaz lutando

pela precisão necessária para encaixar e girar a chave. Perguntei-me quantos

homens a instalação conteria, quantos ainda estariam vivos, quanto tempo atéque Murdoch os reagrupasse. Alguém, em algum lugar, estaria distribuindoas munições de prata. Até onde eu sabia, portas de contenção paracontingências exatamente desse tipo estavam isolando o local naquelesegundo.

Uma das luzes vermelhas do painel ficou verde. As barras deslizaram paracima. O cabo de aço de Walker soltou-se. Devaz olhou para mim. Ele tambémjá havia se alimentado, mas não como Wilson. Sua fome permanecia feroz,indiscriminada, disposta a tudo – e ali estava Walker, praticamente incapazde se levantar.

ELE NÃO. E VAMOS LEVAR O GAROTO.Devaz me deu as costas com um rosnado e caiu sobre Tunner, que

permanecia vivo, mas praticamente inconsciente. Uma mordida arrancoumetade da garganta do caçador. Durante alguns segundos a jugular jorrousangue como um bebedouro bem pressurizado, depois parou. Walker, aindaalgemado nos pulsos e tornozelos, observou enquanto girei a chave nafechadura da cela de Caleb.

O garoto tinha desmaiado. Para jamais voltar, até onde eu sabia. Aindarespirava, pelo menos. Ou a minha tolerância ao fedor de vampiros atingiraum novo ápice ou ele estava tão próximo da morte que perdera o fedor da suaespécie. Seja qual fosse a explicação, tive apenas uma ânsia de vômito quandoo ergui pela primeira vez. Ele praticamente não tinha peso. Eu poderia estarcarregando um saco cheio de flocos de isopor.

Não havia falta de sangue. Mergulhei meus dedos na poça que se formaraao redor de Tunner e toquei com eles os lábios de Caleb.

Dois segundos. Três. Cinco. A língua dele se moveu, saboreou, registrou.A boca delicada fechou-se com força em torno do meu dedo. Alimentei-o umpouco mais. Os olhos dele se abriram. Ele resistiu ao reflexo de se afastar.Abri a coxa de Tunner com uma garra e segurei Caleb ao lado dela.

– Não posso – disse ele. – Ele está morto. Não posso beber... morto.Em vez disso, ele lambeu o sangue no chão como um gato lambe uma poça

de leite. Não era tóxico, imaginei, porque escorrera enquanto Tunner ainda

estava vivo. Olhei para Walker, que estava de pé segurando as costelas,reclinado contra as barras remanescentes. Medo emanava dele, mas semforça. O que ele estava vendo, a situação na qual se encontrava, era tudoimpressionante, mas aquilo não mudava o que havia acontecido com ele.Aquilo me irritou, de repente. Pare de ser um maldito bebê. Uma mulher éestuprada a cada minuto nos Estados Unidos. Você acha que todas deveriamdesistir e morrer?

Rasguei os bolsos de Tunner até encontrar um que tivesse um molho dechaves, depois o joguei para Walker. Você vai pensar que não o reconhecerei.Mas vou reconhecer. Ele sabia que sim, mas não tinha nenhuma garantia. Oespaço confinado estava quente e repleto de possibilidades brutais. De todomodo, como a coxa de Tunner estava aberta, arranquei um naco de carne eenfiei-o na boca. Ah, meu Deus, sim. Mais. Mais mais mais.

Mas não havia tempo para mais. Se não saíssemos agora, não sairíamosmais. Me agachei para entrar de volta na cela, recolhi a bata e o diário eempurrei-os para Walker. Depois, agarrei Caleb e icei-o para que ficasse depé. Ele silvou para mim, mas sem convicção. O garoto não tinha bebido nemuma fração do que necessitava (mal conseguia ficar de pé), mas precisaria sersuficiente. Walker removera as algemas. Passei sobre o cadáver devorado deTunner, deixando uma trilha mental para Devaz, atordoado pelo gosto dacarne fresca, para nos seguir. Walker, abraçando as costelas e mancando,vinha na retaguarda.

O estado da sala vizinha – o local dos testes de Caleb na jaula –testemunhava o isolamento acústico da porta de cofre, pois mesmo comouvidos lupinos eu não ouvira nada das coisas que evidentemente ocorreramlá dentro. A jaula propriamente dita estava intacta, apesar de a porta ter sidoarrancada e algumas das barras estarem retorcidas. Havia sangue em todas aspartes, espalhado de maneira grandiosa, desesperadamente manchando olugar, coagulando em poças. A placa de pontuação de Caleb estava caída nochão. Uma longa espiral de arame farpado fora puxada entre as barras. Umjovem Caçador com uma camisa ensanguentada do Metallica e as calças decombate pretas obrigatórias estava enrolado no arame, morto. Havia outros

cinco corpos, um deles com os intestinos expostos, ainda sendonauseabundamente devorado por Wilson, que estava salpicado e brilhandocom sangue da cabeça aos pés.

Os joelhos de Caleb cederam e ele caiu. Wilson virou-se e nos viu. Eleestava prestes a saltar. Senti o movimento se formando em suas pernas elombo.

NÃO! ESTES NÃO!Ele me reconheceu: eu era a mulher que havia trepado com ele e lhe dado

a pior de todas as mordidas de amor; eu era a voz de lobisomem dentro de suacabeça, a vontade de lobisomem em seus membros. A fartura de sanguepesava sobre o ressentimento que ele poderia ter nutrido se estivesse com oestômago mais vazio. Wulf o dominara, completamente, das orelhas às garras.Ele ficou ereto e seu pau arqueou para cima junto com ele.

TIRE-NOS DAQUI.Caleb havia encontrado sangue potável e o sugava do chão. Não pude

permitir que tomasse demais. Não só porque não tínhamos tempo. Meagachei e peguei seu braço. Ele tentou se desvencilhar. Ergui o corpo dogaroto e joguei-o sobre meu ombro. Era mais rápido desta maneira, pelomenos até depararmos com problemas. Walker estava ajoelhado sobre umdos Caçadores mortos. Tinha os braços ao lado do cadáver, o corpocompletamente relaxado. Ele poderia estar prestes a iniciar uma meditação.Havia uma metralhadora (era de Sobel, cuja garganta fora arrancada por umamordida e estava sem o braço esquerdo) ao alcance do meu pé, portanto,chutei-a pelo chão para Walker. Ela acertou a lateral do pé dele.

Sim, pegue-a. Não era necessário telepatia. (Os comandos para Devaz eWilson eram transmitidos em um meio que não era propriamente linguagemnem tampouco feito de imagens, estava disponível somente em pedaçosindispensáveis, cuja sensação, para quem os recebia, era a de instintosimpostos, forças que os capturavam e os moviam como uma correntemarinha.) Walker pegou a arma, mas não fez nenhum gesto que indicasse quefosse ficar de pé. Apesar de tudo mais que ocorria, parte de mim consideravaa questão de se ele agora seria menos homem para mim. Sim, era – muito da

minha ideia humana de masculinidade estava ligada à ideia do poder para queeu descartasse a ideia –, mas ele não era menos interessante sexualmente porcausa disso. Me dei conta de que as coisas são assim. Quando seus própriosfundamentos começam a mudar e a se dissolver, todos os outros passam aimportar cada vez menos. Todos deveriam passar um ano sendo lobisomens.Como serviço militar. Ensinar a eles a não se prenderem tanto a categorias.

Perdi, pensei, o raciocínio lógico.Wilson já estava no corredor iluminado cujo acesso se dava pela porta no

outro lado do salão, Devaz não muito atrás dele. Um único salto me levoupara o outro lado, com uma sensação de profunda alegria ao passar por cimada jaula. (Me lembrei de meu pai me levantando sobre sua cabeça quando euera criança, a paisagem remota do teto repentinamente em um close-upchocante.) Havia outros três Caçadores sem garganta, sangue esparramado aoestilo de Pollock nas reluzentes paredes. Corremos até o final e, seguindoWilson, dobramos à direita para outro corredor, ainda mais amplo, queconduzia a uma escadaria de metal. À esquerda, uma seção de vidro rachadoque ia do chão ao teto mostrava uma sala com uma bancada de monitores detevê e três ou quatro mesas com laptops. Um agente, cortado do umbigo até agarganta, jazia estremecendo em uma poça cada vez mais espessa do própriosangue. Seus intestinos, visíveis, pareciam uma criatura alienígena enroladaem um sono trêmulo. Os olhos dele estavam abertos e cheios de vida,incrédulos. Nós o ignoramos e corremos para a escadaria. Depois de subircinco degraus, quase caí, torcendo um tornozelo sobre uma cabeça humana,cujo corpo permanecia no patamar inferior. Devaz parou de novo, agachou-se, mordeu um naco do tronco e praticamente o engoliu inteiro.

RÁPIDO.Wilson estava dois lances acima, mas desacelerando. A fartura de carne

começava a pesar nele, um efeito como o de sangue hiperoxigenado: vocêengordava nos vasos e nas veias, mãos e pés ficavam cheios a ponto deexplodir. Juntei-me a ele onde os degraus terminavam – outro corredor, comum chão de vinil espelhado que cheirava a desinfetante – bem a tempo de verdois agentes da WOCOP desaparecendo ao subir uma segunda escadaria, a 20

metros de distância. Olhei para trás, além de Devaz. Walker se esforçava parasubir os degraus. Parecia que ele, a qualquer momento, iria parar, sentar-se,fechar os olhos. Eu não podia esperar por ele.

Uma bala me atingiu no ombro. Outra acertou Caleb na coxa. Um agentemusculoso que aparentava ter cerca de 20 anos, vestindo apenas shortsvermelhos de corrida e ofuscantes tênis brancos, armado com uma pistola,saltou por detrás de uma porta à nossa esquerda e disparou ao nos ver,embora devesse saber pelo treinamento básico que seria inútil sem prata.Devaz o alcançou em três passos largos e girou-o pelo cabelo. O agente caiude joelhos, encarando-me. Ele disparou mais uma vez – acertando umaparede – antes que Devaz chutasse a arma de sua mão. Os músculosabdominais jovens eram lindos. Devaz puxou os cabelos dele para trazer acabeça para trás, então abriu a garganta esticada com uma garra, lançando umfino arco de sangue. Foi demais para mim. Saltei para a frente, larguei Caleb,cortei o tronco flexível com minhas unhas letais e depois caí de joelhos ecravei meus dentes logo abaixo das costelas.

Em meu cérebro, um analista que nunca tinha folga e vivia em uma alcovaali dentro disse: “Você precisa tomar cuidado, há uma preferência emergindopor homens jovens e saudáveis. Você não pode se dar o luxo de estabelecerum tipo. Estabeleça um tipo e estabelecerá um padrão. Estabeleça um padrãoe será pega...” Oh, mas era bom. Era bom sentir a vida dele pulsando dentrode mim (ela não era toda minha; Devaz devorava nacos aleatórios, tendocravado o punho através do esterno e arrancado o coração); a fome dobrada eforçada pela abstinência do mês anterior tornava cada fragmento brilhante: amãe dele com seus cabelos claros, um jardim branco e ensolarado com umcarro vermelho com pedais, o díptico rechonchudo da bunda de uma morenae ele sem conseguir acreditar que conseguira fazer diretamente um 69 com elenaquela vez, o cara desmaiando em uma poça de vômito em um show doWhite Stripes e todas as sensações remotas e gigantescas da infância, comoaquela vez em que as nuvens corriam e, se a gente deitasse de costas na rua,parecia que os prédios estavam caindo, o pai dele carregando-o para osegundo andar quando ele estava doente, e de repente, em meio à febre, ele

conhecera naqueles braços quentes e fortes a certeza do amor do pai, mas quede alguma forma foi embora ou se dissolveu, e muito de sua cabeça agoraestava repleto de lixo e TV e pornografia e ele nem queria ter se juntadoàqueles caras mas Nog disse que conseguiria colocá-lo para dentro e que seriadivertido.

Pare. Pare.Mas não parei imediatamente. Alimentar-se rouba de você segundos,

minutos, horas. A carne com hemorragia de vida estende o tempo. Como umburaco negro. Só mais alguns segundos. Só mais uma mordida.

O corredor estava qualitativamente diferente quando ergui a cabeça, comose alguém tivesse aberto uma comporta e todo o barulho e a urgênciativessem sido drenados. O alarme de incêndio havia parado, mas o silênciocontinha mais do que aquilo. Me virei e vi Caleb lambendo o sangue pré-morte. Ainda estava fraco, mas havia uma nova tensão em seus cotovelosdobrados, uma nova promessa em seus pulsos. Levantei-me e agarrei-o. Elenão estava forte o bastante para oferecer nada além de uma resistênciacômica, mas me perguntei o que aconteceria comigo se ele me mordesse,coisa que, quando o joguei sobre meu ombro, tive certeza de que faria.Contudo, ele não mordeu.

Walker estava no topo da escadaria, o rosto repleto daquilo que tinhaacabado de ver: eu, a mulher que estivera trepando com ele, agora com umagradação crescente e um calor perigoso, ali de quatro devorando um serhumano eviscerado. Ele estava pensando nas vezes em que nossos olhos seencontraram com um reconhecimento profundo. Sim, era eu. E aquilo era eu.A mulher era eu e o monstro era eu. Ele não tinha compreendido antes. Elehavia reconhecido, intelectualmente, mas não acreditara. Agora, ali estava.Três metros de altura usando luvas de noite ensanguentadas e mastigandopedaços de carne. O choque daquilo foi um descanso brutal. Uma possívelmudança de paradigma para o futuro, visto que não havia nenhum caminhode volta para seu passado.

A amante queria confortá-lo. O monstro estava empanturrado de sangue eexcitado e pronto para mais carne. A mãe estava desesperada, sentindo o

tempo se evaporar em nada.Virei-me e corri.Mais dois lances de escada levaram-nos, pude sentir pelo cheiro, para o

nível do solo. Portas duplas estavam abertas para um escritório grande ebagunçado, mais mesas e computadores, papéis espalhados, nenhum pessoal.Portas duplas idênticas no lado oposto da sala. Portas trancadas. Eletrônicas.Cartão magnético e código de acesso necessários.

Mas as portas não tinham a espessura de portas de cofres, e desta vezéramos três. Pus Caleb no chão. Não havia necessidade de instruir Wilson eDevaz. No terceiro puxão, a porta da esquerda guinchou e abriu, livrando-seda tranca. Do outro lado, não o átrio ou a recepção que eu esperava, mas umaárea de carga e descarga. Urnas de metal empilhadas, empilhadeiras, umcaminhão em estilo inglês de frente arrebitada e sem caçamba. O lugar estavamanchado de óleo, frio de congelar e fedendo a ferrugem. A porta rolantepara o mundo exterior estava a um metro do chão. Devaz saltou sobre ocaminhão, agarrou a alça e moveu a porta para cima.

O ar da noite cheio de campos úmidos, frio e enluarado. Um grandecomplexo asfaltado contendo alguns caminhões pequenos e vans, maistrailers de carga canelados, grama nascendo através do concreto. Todo oespaço contornado por cercas de alumínio com arame farpado no topo. A 30metros, o silêncio úmido de um arvoredo cerrado. Os cheiros e o espaçoaberto entalhado pelo luar fez meu coração disparar de alegria. Era comocorrer para os braços de um amor perdido.

Devaz e Wilson, banhados com o primeiro luar da Maldição, levantaramas cabeças arrebatadas para uivar – quando vi o pistoleiro.

Ele estava despontando do teto solar de um 4x4 estacionado de modo aficar praticamente escondido entre dois trailers.

Disparei ANDE! para Wilson com uma violência que deve ter atingido suacabeça como um disco – então ele caiu, atingido no peito –, e desta vez, eusabia, as balas contariam.

Não havia tempo para se mover e todo o tempo do mundo para ter asensação de não me mover, as sinapses travadas, a matemática retardada dos

neurônios que não poderia ser possivelmente efetuada antes que a bala nosatingisse. O momento expandiu-se, grande, lento e suficientemente claro paraque eu pensasse: este é meu último instante, de pé com uma criança vampironos meus braços em uma...

Então veio o sangue disparando, as células cintilando como um bilhão deminúsculas estrelas acendendo-se na carne quando, da escuridão que haviaalém da grade, um lobisomem caiu no encerramento letal de sua parábolagigantesca, um salto que começara a 20 metros dali, disparado pela prataexplodindo através do peito de Wilson.

Madeline, transformada, atingiu o atirador como um meteoro.

47

O motorista do 4 x 4 – Murdoch, eu sabia – reagiu prontamente. Menos deum segundo depois do impacto de Madeline no teto do veículo, ele engrenouo carro e arrancou. Madeline, tendo mordido a garganta do atirador,arrancou a cabeça dele e atirou-a na nossa direção. Murdoch pisou fundo noacelerador. Pneus cantaram. Disparos de armas laterais explodiram, secos ecurtos, sobre o motor acionado violentamente. Madeline segurou firme.Murdoch precisou bater de lado em uma urna de carga para deslocá-la. Maisum momento e Madeline teria outra cabeça para jogar para nós.

Murdoch investiu contra a cerca e irrompeu sob o arame farpado. Virou ocarro para a direita e atingiu o que deveria ser uma rua transversal. Disparosde armas automáticas o seguiram, mas ele continuou em frente.

Devaz estava de quatro sobre o corpo de Wilson, cabeça pendida,fungando. Coloquei Caleb no chão e corri para onde Madeline caíra.

BEBÊ ESTÁ BEM. COM LUCY.Ela não estava ferida e de pé, me enviando tal mensagem quando a

alcancei. Mas tinha muita fome. Seu cheiro bruto e o calor trêmulo queemanava informavam que a necessidade de alimento já era insuportável. Seusmortos despertos estavam presentes, miseráveis em seu hálito; sua bocetaagora vívida tinha uma gravidade própria. Eu poderia ter colocado os braçosem torno dela. Ela sentiu isso, mas não tinha espaço para tanto porque jápassava por mim; elétrica de apetite. O cheiro de Caleb em mim deu-lheânsias de vômito.

POR FAVOR, ESPERE. POR FAVOR.

Ela esperou, mas fazê-lo puxou seu sangue no sentido contrário. Pudesentir o que ela sentia: que o prédio ainda estava habitado, que presas vivasestavam correndo de um lado para o outro a menos de cinquenta metros dedistância.

NÃO POSSO ESPERAR. PERGUNTE A ELES. VEJA.Atrás de mim. Me virei. Cloquet e Konstantinov se aproximavam,

armados. Mike escapou. Um portão de metal balançou nas dobradiças atrásdeles.

– Zoë está segura – disse Cloquet. – Graças a Deus você está bem. Otransporte está próximo. Rápido.

Konstantinov carregava uma AK-47, mas também portava prata. Aspistolas nos coldres, uma em cada lado da cintura. A lâmina na bota. Ele nãocorreria nenhum risco.

– Rápido – repetiu Cloquet.Walker tinha desabado a poucos metros de mim. Konstantinov correu em

sua direção e quebrou uma ampola de alguma coisa sob o nariz dele. Caleb,pálido como uma raiz, tinha se arrastado até um dos caminhões e agoraestava sentado, semiconsciente, contra uma das enormes rodas. Hesitei. Averdade era que eu não comera o bastante. A meia dúzia de bocadas que deino jovem no corredor atiçaram a fome em vez de saciá-la. Se eu não comessemais, em breve os humanos estariam correndo risco. Daqui a algumas horasnem mesmo Cloquet estaria seguro. Uma nuvem mudou de ondeparcialmente cobria a lua e a luz no pátio caiu sobre nós. Foi demais paraMadeline. Ela saltou na direção da boca aberta do prédio.

Naquele instante, várias saraivadas de tiros foram disparadas lá de dentro.Mais tiros – então três agentes da WOCOP saíram cambaleando em retiradada área de carga e descarga.

Seguidos por mais dois lobisomens.TRISH, FERGUS, captei de Madeline. Ambos sangrando de um punhado

de perfurações de balas que não eram de prata, claramente sem sofrer porisso. Konstantinov era o cérebro na situação. Ataque dos dois lados. De

alguma maneira Murdoch havia fugido, outra saída. Murdoch sempre saberiade uma outra saída.

Devaz agarrou o primeiro agente pela garganta, levantou-o do chão equebrou seu pulso, arrancando a metralhadora de sua mão. Os outros doisagentes ficaram sem munição. Não havia escapatória para eles.

48

Trish e Fergus logo estavam prazerosamente fora da missão. No tempo queKonstantinov e Cloquet levaram para colocar Walker na van, eles entraramno estado além da razão, no estado além – ponto final. Trish estava de quatro,focinho enfiado sob as costelas da vítima, e Fergus, garganta erguida, focinhoassoprando buquê após buquê de hálito iluminado pelo luar, comia ela portrás. Um nervo na perna da vítima deles a fazia balançar acompanhando oritmo deles, como se desfrutasse a melodia da própria morte. Eu estavamolhada de observá-los, por causa da carne viva, por causa da cota que mecabia na consciência caótica da pequena matilha, além, é claro, daressurgência descontrolada da noite com Jake no Big Sur. Não era o mesmosem amor – sem ternura para adoçar a crueldade, ser um contrapontorefinado para a bestialidade –, mas, ainda assim, uma alternativa bacanalesca,um banquete unicamente imundo para os Amaldiçoados.

Não que eu tenha passado todo o tempo observando. Eu havia clamado aminha vítima – um irlandês de 30 e poucos anos, nadador fracassado, comum corpo longo e lânguido, com o topo pesadamente musculoso – em umúnico salto e um único golpe, tomando o máximo dele que consegui em umataque furioso e indiscriminado: sangue, carne, fígado, rins, vida; a vida dele,a vida dele – a baby-sitter loura sem graça com quem queria casar aos 60 anosde idade; feixes de sol dourado e alaranjado feito divisores em uma floresta aoanoitecer; o rosto pequeno de fuinha da mãe e aquela vez em que ele fora paracasa e a encontrara chorando no pé da escada; uma rua de pedras com umcarro em blocos de cimento e seu rosto inchado e quente quando Sean Neagle

o atingira naquela manhã congelante no playground em St. Michael’s emBallyhist...

Madeline, enquanto isso, estava de quatro ao meu lado, fazendo um 69sobre sua vítima. Ela rasgara as calças do homem com as garras e arrancarametade da carne da coxa dele. Quando suas presas perfuraram a artériafemoral, sangue quente me molhara, boca, seios, barriga. O ar tornou-semúsica com o odor. Ela estava bem próxima, ocorreu-me naquele instante,com um relaxamento malicioso do meu eu sexual. Se eu quisesse estender amão e tocá-la, para inaugurar a nova era do vale-tudo sexual...

Mas o tempo, o tempo, o tempo. Além da mãe em mim gritando para oresto que havia CRIANÇAS PARA SEREM RESGATADAS, minhaestrategista sabia que o intervalo de tempo no qual estávamos era minúsculo.Ainda estávamos nele porque ninguém que ainda restava lá dentro gostavadas chances que existiam aqui fora. Os sobreviventes na instalação nãopretendiam sair, procuravam permanecer no interior, encontrar um par deportas de incêndio atrás das quais pudessem se trancar e aguardar até a lua sepôr. Mas os telefones estariam tocando em outras bases da WOCOP. Sereforços chegassem, estariam armados com prata – e se viessem pelo ar,poderiam estar aqui em minutos.

Uma gigantesca mão tocou o meu traseiro. Devaz, ostentando uma ereçãoprodigiosa, aproximara-se sorrateiramente e agora, com orgulho óbvio,apresentava-se para mim. A carne no meu ventre e o sangue em minha línguadispararam uma ordem incandescente até a minha boceta. Ah, Deus! Será quenão haveria tempo? É claro que havia tempo? Certamente, se fôssemos...

A mãe dos meus filhos estava gritando e saltando de um lado para o outroe puxando os cabelos e torcendo as mãos e forçando as imagens pertinentes:me vi de volta sobre a mesa dos cientistas ou deitada morta e nua aqui noasfalto quando o sol nascesse, e Lucy em breve se dando conta de que anovidade passara e alimentando Zoë com um brinco de prata ousimplesmente abandonando-a em um saguão de algum hotel e Lorcan noaltar sem saber o que estava acontecendo com ele e sem jamais ter conhecidonada além de solidão e medo e presenças estranhas pairando sobre si...

Era o bastante – o suficiente. Ainda assim, precisei me arrastar sob o pesosedutor do resto de mim. Ainda assim, foi necessário que Cloquet tocasse abuzina da van para finalmente me lançar no tipo correto de ação. Saltei de pée empurrei Devaz para o lado. Ele tentou me morder, errou por 2centímetros, depois se virou de imediato, caiu de joelhos e cutucou a coxa deMadeline com o pau. Madeline parou de comer e olhou para ele.

Caleb tinha desmaiado pela segunda vez. Estava deitado onde caíra, aolado da grande roda do caminhão, que pairava sobre ele como um guardiãomudo. Corri até ele e peguei-o.

PRECISAMOS PARTIR.Madeline virou-se para mim. Na mão esquerda segurava o pau

ensanguentado que tinha arrancado da vítima, na direita, o de Devaz, aindapreso ao próprio. (Pensei: Isso não deve ser muito afrodisíaco para ele,mesmo neste estado.) Como eu, ela mal cruzara o limite para O Bastante, ecomo eu, ela sabia que O Bastante nunca era bastante para wulf. Para wulf,somente mais do que O Bastante era bastante. Mas, assim como eu, elatambém era uma mulher de negócios. Compreendia riscos, lucros, apostas,perdas. Eles tinham me resgatado, matado alguns daqueles que, do contrário,os teriam matado, e se alimentaram. Nada mal para uma noite. Pare enquantoestiver com vantagem. Ela largou o pau decepado, largou o pau ainda presoao dono e arrancou o que restava da perna da vítima – completamente, atélogo acima do joelho, depois osso puro – para trazer com ela.

OS OUTROS.Mas nada alterou o estado de Fergus e Trish. Era praticamente impossível

alcançá-los. Mesmo quando – com a mesma sensação assustadora de invasãomútua que compartilháramos no Dorchester – Maddy e eu nos abrimos umapara a outra, entrelaçamos nossas vontades e gritamos mentalmente emuníssono para eles VAMOS AGORA!, não obtivemos nenhuma resposta. Outalvez alguma coisa, tipo um bêbado bem no limite da absoluta falta dearticulação tentando dizer Foda-se, mas a distância a viajar era longa demaisde onde estavam, lá longe no vazio da constelação lupina. A cabeça de Trishestava agora para trás, a garganta com pelos macios totalmente esticada. As

mãos de Fergus tateavam e apertavam como que procurando loucamente poralgo oculto sob a pele dela. O fedor do sexo deles era violentamente doce,envolto em torno da grande massa olfativa da carnificina, a qual, mesmoagora, mesmo agora era uma tentação profunda...

– Entrem aqui agora! – gritou Konstantinov. – Ou partiremos sem vocês!Pendurei Caleb em meu ombro e corri para o portão.

49

Dez horas depois, novamente humana, eu estava sentada de banho tomado evestida nas minhas próprias roupas (fornecidas por Cloquet) à mesa de caféda manhã no chalé de Lucy, segurando Zoë nos meus braços. Segurando Zoënos meus braços. Segurando Zoë nos meus braços. O amor ainda fazia demim uma obscenidade. O amor ainda forçava o afastamento doentio dela.Aquilo não mudaria. Não durante muito tempo. Não, a menos que eurecuperasse o irmão dela. Tal lógica, como a lógica à prova de idiotas daMaldição, era um conforto. Uma coisa com a qual eu poderia contar. Algopara me ajudar através da crueldade que eu precisaria infligir se jamais fosserecuperá–lo.

Um fogão a lenha irradiava um calor narcótico. Todas as cortinas estavamfechadas, mas cada janela mostrava um losango de luz azul-esverdeada. Olugar era impecável, cheirava (além do turbilhão de perfumes vestigiais dewulf) a roupas de cama limpas, incenso de frangipana, tijolos de terracota ecarvalho oleado – apenas ocasionalmente escondidos pelo odor do nãomorto: Caleb estava na cama em um quarto no andar de cima, tremendo,oscilando entre o delírio e a consciência, pele emanando o suor gelatinosocor-de-rosa. Eu não sabia quanto tempo o sistema dele levaria para queimar osangue consumido na noite anterior, mas ele não parecia que iria morrer porenquanto. Eu havia tentado conseguir com ele o número de telefone de Mia,mas ele estava completamente fora de si.

Um garoto vampiro, obviamente, não fora esperado. Lucy quase vomitaraquando o carregamos para dentro do chalé. (O que, considerando o que ela

teria vomitado, teria sido um desastre forense, apesar da tinta acrílica napintura das paredes e do chão.) Eu não tinha percebido o quanto mehabituara ao cheiro de Caleb na prisão. No confinamento da van (sim, umavan Transit com um conteúdo cômico: três humanos na frente, trêslobisomens, um vampiro e meia perna humana atrás), o fedor dele tinhacausado sérios problemas: deixou Madeline e Devaz enjoados demais parafoder. Tampouco conseguiam comer. Acabei terminando sozinha boa parteda perna. (“Quem quer uma perna?”, meu pai costumava perguntar ao cortaro peru no Natal ou no Dia de Ação de Graças.) Eles ficaram enojados efuriosos com a oportunidade desperdiçada. Infantilmente, Devaz começou achutar as paredes da van, até que Konstantinov virou-se para trás com aSpringfield carregada com munição de prata e disse muito tranquilamente aDevaz que se ele não parasse de fazer aquela maldita bagunça atiraria nele alimesmo. Viajamos talvez por uma hora – sempre por estradas secundárias,sem iluminação – até o chalé que Lucy obteve com o divórcio, que pareciaficar no meio do nada, mas que na verdade ficava a apenas 400 metros daaldeia mais próxima – Yatesbury (sobre a qual eu nunca tinha ouvido falar,naturalmente) –, mas fora da vista da estrada, protegida por um jardimfronteado por árvores e flanqueado por um terreno pontilhado de ovelhas. Amenos que alguém estivesse nos procurando e com os ouvidos atentos, nãoperceberiam nossa chegada. Tampouco se todas as precauções tivessemservido aos seus propósitos, teriam qualquer ideia de que dentro do chalé emformato de caixa de chocolate, paredes caiadas, telhado de palha emadressilva e arbustos de rosas, um homem fora morto e devorado pormonstros. Um deles com menos de 1 mês de idade.

Mesmo agora, sentada em roupas limpas, aquecida e em liberdade comminha filha nos braços (e meu coração obsceno preso no loop de ser forçadapara perto do amor que o havia forçado a desmoronar), achei incrível que oque aconteceu realmente tivesse acontecido. Depois da fuga, Konstantinovretornara a Londres e telefonara para Cloquet. Não porque tivesse qualquerconsideração pelas habilidades dele, mas porque precisava de dinheiro. Demuito dinheiro. Para comprar informação e montar uma equipe. Eu tinha

subestimado a amizade dele com Walker. Ele não estava preparado paraabandoná-lo. “A equipe” não se materializou. A notícia do destino de Hoylehavia se espalhado. Os informantes da WOCOP silenciaram e, dos indivíduosna lista de alvos de Murdoch, apenas três permaneciam no Reino Unido – eenfaticamente disseram não estar interessados, por nenhum preço. Cloquet,enquanto isso, sem notícias minhas há dias, havia entrado em contato comMadeline para obter ajuda com Zoë. Os pontos estavam ali para seremligados: Madeline, Fergus, Lucy e Trish sairiam dessa cheios da grana,Konstantinov teria quatro lobisomens prontos para massacrar humanos (oumelhor, três lobisomens, porque um deles ainda precisaria servir de babá paraZoë) e os monstros teriam um bufê do qual poderiam comer à vontade naWOCOP, mais ou menos sem riscos de represália legal. Konstantinovdeduzira o tipo de show que Murdoch teria em mente, portanto, estavaconfiante de que Walker seria mantido vivo até a lua cheia. Precisariam entrarrapidamente, assim que as tropas de lobisomens estivessem transformadas.

Permanecia – para Cloquet, para Lucy, para Zoë – o problema daalimentação.

Uma deixa para Madeline – e para o cliente de quem ela não gostava.– Espancador de esposa – dissera-me ela, mais cedo. – Queria me

contratar para me juntar a ele.– Em espancar a esposa?– É – confirmou ela.– Mas a mulher é masoquista?– Você não está entendendo. Ela não é masoquista... ela está aterrorizada

com ele. O cara queria que eu a queimasse com cigarros e depois cagasse emsua boca. Na esposa dele, entende?

O esperado reflexo da moralidade – visto. Só é a melhor coisa para nósquando é a pior coisa para outra pessoa. Direitos a julgamentos morais seforam naquela noite no Big Sur. Até antes dela. Não falei nada.

– Então pensei: Bem, precisa ser alguém, sabe?Ela entrou em contato com o sujeito e disse que estava considerando a

proposta dele (o dobro do pagamento normal, para tornar a mentira crível),

mas que queria vê-lo sozinho mais uma vez antes de mergulhar de cabeça.Neste final de semana ela estaria usando o chalé de uma amiga em Wiltshire.Que tal se ele fosse até lá para que pudessem discutir o assunto?

– E isso foi o que fodeu ele. Coloquei um sonífero na bebida dele e o caralogo caiu no sono. Luce disse que ele não despertou até que as coisas tivessemcomeçado a acontecer.

Quando ele acordou – quando as coisas começaram a acontecer –, estavanu, amordaçado e com as mãos e os pés amarrados na banheira de Lucy. ComLucy de pé sobre ele. Não se parecendo com a Lucy que qualquer um dosamigos dela reconheceria.

– Bem feito para ele – dissera Madeline. – E tomara que ele tenha umseguro de vida até o rabo, também. A pobre vaca merece uma compensação.

Eu não fui capaz de discutir nada daquilo com Lucy, como havia sido,como Zoë tinha ficado, se ela teve alguma dificuldade em se alimentar. Aprincípio porque todos ainda estávamos em modo wulf e fisicamenteincapazes de discutir qualquer coisa. Depois porque, uma vez que a lua se pôs,havia aspectos práticos e sombrios demais com os quais lidar. Antes quepudesse ser descartado, o corpo do espancador de esposa precisava serpreparado: decapitado, impressões digitais queimadas, dentes quebrados,pulmões perfurados. Fiz a maior parte dessas coisas. Parecia apropriado. Boaparte do rosto dele se fora. Não devorada, apenas arruinada. Para eliminar apessoa, eu sabia. Sua medalha de São Cristóvão tinha sobrevivido a tudo,como que para provar a própria inutilidade. Foi jogado na água sanitáriajunto com a aliança de casamento e o relógio dele, para ser descartadoseparadamente em um lugar distante. Separadamente do resto dele. O ex deLucy tinha um barquinho em um ancoradouro tranquilo alguns quilômetrosao sul de Weston-Super-Mare. Assim que voltou à forma humana, ela partiucom Cloquet (e uma única porção de restos humanos) na van. Eles o levariamaté o canal de Bristol e jogariam a carniça pesada na água.

Konstantinov tinha partido com Walker em outro carro depois de nosdeixar aqui. Cortesia do meu financiamento via Cloquet, ele tinha um médicocorrupto a postos e um lugar para se esconder. Eu não fui capaz (novamente

por questões físicas) de contar nada a ele sobre o que havia acontecido comWalker durante a reclusão. Me perguntei se ele saberia. Radar masculino paraestupro. Pensar em Walker fazia meu coração doer. Deduzi que estavaterminado entre nós dois. Não somente por causa do que acontecera com ele,mas devido ao que ele vira: eu em toda a minha glória imunda. Richardcostumava alegar que Linda Blair nunca mais foi para a cama com ninguémdepois de O Exorcista; os caras não conseguiam tirar as imagens do filme dacabeça. Nonsense, obviamente, mas talvez não quando as imagens fossem davida real. O adeus entre nós fora um olhar através do para-brisa. O que maispoderia ter sido? Um abraço? Eu era um monstro de 3 metros, coberto desangue. A mulher em mim estava envergonhada e o monstro ao redor delaestava cheio de desdém. De todo modo, mesmo que ele me desejasse (e nãotivesse sido deixado terminalmente impotente), que futuro haveria? Quefuturo houvera? Até mais tarde, querido. Um-hum. Tenha uma boa matança.E isso foi antes de chegarmos à outra verdade amargamente risível: quequanto mais sentimentos eu tivesse por ele, mais provável seria que eleacabasse se tornando o objeto dessa boa matança.

A menos, é claro, que eu o Transformasse.E por que não? Se eu não recuperasse Lorcan, não haveria fim para os

gestos distorcidos que eu poderia fazer no vazio. Bem, conseguia imaginarminha mãe dizendo, com uma racionalidade maliciosa: “Por que não? O quemais ele tem a perder?”

Mas esse não era o problema. O problema era que se eu o Transformasse,ele acabaria me odiando. Mais cedo ou mais tarde, ele esqueceria ter desejadoaquilo. Mais cedo ou mais tarde, ele começaria a se perguntar como eupoderia ter feito aquilo com ele. Mais cedo ou mais tarde, cada merda queacontecesse com ele seria culpa minha. Era uma certeza estrutural. Eu sabiadisso, o monstro sabia disso, até Walker sabia disso.

Estava anoitecendo. Zoë dormia em meus braços. Bolhas de wulf estavampresas nas minhas veias e as vidas ingeridas dentro de mim estavam confusase chorando como crianças no primeiro dia na escola. Pedaços do monstro seenroscavam nos meus músculos do pescoço, das nádegas, dos tornozelos. As

virtudes do sangue das vítimas e da carne das vítimas brilhavam, umasensação parecida com o calor de um ambiente fechado após o friocongelante do lado de fora.

Devaz, que tinha demorado mais tempo no chuveiro do que qualquer umde nós, dormia deitado no sofá na sala de estar. Ele tampouco fora esperado,de modo que não havia roupas masculinas para ele. Portanto, precisou seapertar em uma das calças de moleton mais largas de Lucy. Era uma visão tãopouco apetitosa que todos ficaram aliviados quando ele apagou e pudemosjogar um cobertor sobre ele.

– Eles já não deveriam estar de volta? – perguntei.Madeline, também de banho tomado, precisamente maquiada e de roupas

limpas (calças Levis azul-escuras, camiseta branca apertada, botas de caubóivermelhas de camurça), tinha acabado de entrar e colocar a chaleira no fogo.Havia uma atmosfera rica e ambígua entre nós, a telepatia de wulf aindavolátil. Eu sabia que ela estava ciente de que eu havia encerrado apossibilidade lésbica nas instalações da WOCOP, apesar de não saber comoela teria reagido se eu estendesse a mão e a tocasse. Suponho que ela “fizesse”garotas, profissionalmente, ao menos porque seria economicamente estúpidonão o fazer, mas, até onde eu sabia, estritamente a negócios. Além disso,agora havia Devaz e Fergus, se eu estivesse em busca de uma versão sem amordo fodermatarcomer, nenhuma necessidade de recorrer ao lesbianismo. Ouviesta frase – nenhuma necessidade de recorrer ao lesbianismo – na voz denossa vizinha em Park Slope, a Sra. Spears, que era curta e grossa, que sempresabia da vida dela e também da nossa e que sempre dizia não somente aquiloque eu deveria mas sim o que todos no mundo deveriam fazer. “Pelo bomDeus, Talulla, não há nenhuma necessidade de recorrer ao lesbianismo!”Diante disso, fui forçada a reconhecer que estava mais interessada emMadeline do que em qualquer um dos dois machos. Em parte, era umexcitante ciúme masoquista. Em parte, era irritação diante do querepentinamente foi sentido como uma absurda (superabsurda, considerandominhas outras atividades) repressão burguesa anacrônica. Em parte, umacuriosidade sexual que remontava até a época de Lauren. Em parte, apenas a

sensação de que, já que iria acontecer mais cedo ou mais tarde, seria melhor irlogo adiante com aquilo. Em parte, é claro, Jake entre nós. Jesus, ele deveriaestar amando aquilo! Imaginei-o acomodando-se com um Macallan, umCamel e um grande sorriso diante de sua TV pós-vida: e agora, um poucomais cedo do que anunciado, ação ultraquente com duas garotas lobisomens.Absolutamente fantástico pra caralho. Onde fica a câmera lenta nesta coisa?Onde fica o repeat?

– Não se preocupe – disse Madeline, abrindo uma caixa de leite. – Lucesabe o que está fazendo. Eles ficarão bem. De todo modo, vamos lá, vocêainda não me contou.

Ela se referia a como eu tinha terminado com Devaz e o falecido Wilson,lobisomens conjurados entre os fiéis da WOCOP. O diário de Jake,incrivelmente, sobrevivera à noite, mas ela ainda não o vira. Não eranecessário. Eu sabia de cor as partes relevantes. Eu sabia os trechos e o local: oquarto do Castle Hotel, Caernarfon, noite. Jake olhando para o telefone deHarley após receber a mensagem do mesmo. Madeline saindo da en suite,reparada pós-coito, afivelando o cabelo:

– Olhe só para isso – disse ela, virando o rosto e mostrando paramim uma minúscula marca de mordida em seu jovem pescoçoflexível.– É uma marca, não é?

Eu sabia bem o bastante, tendo lido e relido a passagem inúmeras vezesdepois que a ficha caiu, graças à história de Caleb sob a própria criação,

– Jake deu um chupão em você – eu disse. – Naquela noite em Caernarfon.A noite em que Grainer e Ellis apareceram com a cabeça de Harley em umabolsa.

Observei-a relembrando-se. Isso trouxe as imagens novamente, Jakecomendo Madeline, a expressão trabalhada de conluio profissional no rostodela. Em algum outro lugar, a garotinha dentro dela (como o garotinhodentro de Cloquet no píer) esperava pela reunião que jamais viria. E, ainda

assim, talvez ela viesse agora. Meu próprio eu da infância não tinha seimportado muito com o monstro. Eram as outras versões que tinhamsurtado. Na verdade, era como a vingança da garotinha: estão vendo? Eu dissea vocês que era assim. Todas essas coisas terríveis e maravilhosas.

– Ele deu um chupão em você – eu disse. – Ele deve ter rompido a peleapenas o suficiente. Enquanto isso, o antivírus que estavam aplicando nele fezefeito. Não há outra explicação. Na noite seguinte, lua cheia, você setransformou, assim como ele.

Alguns momentos enquanto ela absorvia tudo aquilo.– Como você sabe disso tudo?Impossível evitar a verdade agora.– Ele mantinha um diário.– É mesmo?– Sim.Mais cogitações. Aqui estavam as versões do rosto dela que seus clientes

nunca viram. Ela chegou a alguma conclusão.– Não suponho que ele tivesse muitas coisas boas a dizer sobre mim.

Loura burra. Jamais leu um livro na vida.– Ele disse que desejava ter beijado você mais vezes.Isso causou um repentino engarrafamento psíquico nela.

Constrangimento. Curiosidade. Orgulho. Demoraria um pouco até que eladeixasse de ficar fascinada com o efeito que tinha sobre as pessoas.

– Você não deu nenhum em ninguém, ou deu? – perguntei a ela. – Umchupão.

Ela balançou a cabeça, ainda processando.– Ninguém com um fetiche por eles?– Acho que não – respondeu ela.– Porque eles vêm com um preço muito alto agora. Só para você saber.– Ele sabia? – perguntou Madeline.– Jake? Não. Ele não teria feito se soubesse. – Não com você, meu lado

realista e perverso poderia ter acrescentado... pensamento esse que euesperava que ela estivesse mentalmente ocupada o bastante para deixar

passar. Jake não teve noção do que fizera, mas ele... ou wulf... esteve ciente deque havia algo que o deixara desconfortável enquanto pensava em Madelinenaquelas últimas horas no Castle Hotel.

Algo me incomoda quando penso em Madeline aqui. Este quartotrouxe o que quer que seja até as margens da memória, mas nãoconsegue propriamente içar esta coisa até aqui.

Estava no diário, praticamente a última coisa que ele escreveu antes deLlewellyn chegar para levá-lo à floresta de Beddgelert, para mim, paraGrainer, para a morte. Algo mais esperto do que o humano nele sabia: você amordeu. Ela irá se transformar. E se ele não a mordesse, eu estaria mortaagora.

Não se dê o trabalho de procurar pelo sentido de tudo isso agora. Não hásentido.

Talvez não, mas a vida balançava compulsivamente a possibilidade. Vida,esse dramaturgo sob efeito de anfetamina. Vida, que não conseguia parar comseus presságios, suas ironias, seus símbolos e suas pistas, suas piadasdesgraçadas, finais falsos e reviravoltas. Vida, com seu vício incurável portramas.

– Não conte a Fergus – advertiu Madeline.– O quê?– Não conte a ele que você pode Transformar alguém com um chupão.– Ele começaria a distribuir chupões por aí?.– Eu não excluiria a possibilidade. Ele é um fio desencapado. Na verdade,

eu tampouco mencionaria isso a Trish. Não me entenda mal: eu amo Trish.Mas ela é feito uma criança com um brinquedo novo, é sério. Não possoculpá-la depois de toda merda qual enfrentou.

Caleb tossiu. Cuspiu alguma coisa. A respiração dele não era boa. Euprecisaria encontrar sangue para ele. Será que um animal serviria? Eu sempre

poderia dar a ele um pouco do meu, supus – mas como saber no que aquilo otransformaria?

– Então você simplesmente... mordeu eles? – perguntou Madeline.– Sim.– Como você conseguiu?– O que você acha?Uma pausa enquanto ela me reavaliava. Agora eu era o tipo de mulher

capaz de foder estrategicamente. Senti Madeline percebendo que havia mesubestimado – e senti que ela percebeu que eu captei isso. Esses calafrios eessas sombras de uma leitura mental cuja regressão era infinita. Oreconhecimento mútuo forçado ainda estava fresco o bastante para nos fazercócegas – mas sabíamos que não duraria: mais adiante precisaríamosencontrar um meio de manter privado o que fosse privado. Sendo assim,naquele instante, li Madeline perguntando a si mesma se houvera algumprazer naquilo para mim.

Não muito.Ela concordou com a cabeça. Homens que não eram bons no sexo. Ela

sabia tudo a respeito. O que disparou de novo a ambiguidade de modo queminha pele eriçou, meu rosto ficou quente e, por um instante, ficou óbvio quenão estávamos olhando uma para a outra – mas fomos trazidas de volta pelosom de um carro estacionando. Um momento depois, Lucy e Cloquetentraram, olhos arregalados e pálidos, cheirando a resíduos de wulf, apântanos, a diesel e ar gelado.

– Tudo certo? – perguntei.– Quem sabe? – retrucou Lucy. – Fizemos o possível.Lucy era uma morena com tons ruivos, alta, magra, olhos castanhos

quentes e tristes, maçãs do rosto proeminentes e uma boca larga, masindefinida. Todos os traços dela se dissolviam levemente sob as sardas. Openteado era um cacheado triangular até a altura dos ombros, com franja. Elaficaria bem em qualquer tom de verde, mas agora vestia calças de cotelê corde ferrugem e um agasalho preto de gola rulê. A maioria dos homens nosclassificaria em ordem descendente: Madeline, eu, Lucy, mas para uma

minoria alerta, Lucy teria mais sex appeal do que Maddy e eu juntas. Updiketeria feito uma rapsódia sobre sua pele oleosa e seus dedos longos e peitossardentos.

– Ainda não tive a oportunidade de agradecer a você – falei. – Por cuidarde Zoë. Por tudo.

– Ela não deu trabalho – disse Lucy. – Mas, antes de mais nada, vocêpoderia me dizer que diabos aquele garoto está fazendo lá em cima no meuquarto de hóspedes?

Na comunicação febril que nos estava disponível quando chegamos, tudoque eu pude transmitir a ela fora POR FAVOR. EMERGÊNCIA. PORFAVOR. O bastante para assegurar um quarto para Caleb passar a noite, masmuito claramente com objeções deferidas. Agora, os deferimentos estavamencerrados.

– Ele é um vampiro – eu disse. – Um vampiro muito doente.– Isso eu sei – Lucy soube por Cloquet, que ouvira o que Walker tinha dito

na frente da van. – Claramente, você tem algum investimento nele, mas seimportaria de compartilhar conosco?

– É óbvio, não é? – disse Madeline. – Eles estão com o filho dela e vãomatá-lo. Agora, ela tem um deles. Poder de barganha. – Ela olhou para mim.– Certo?

– Certo – concordei. – Infelizmente, é exatamente isso.Ou por coincidência ou por um toque barroco do dramaturgo usuário de

anfetamina, assim que as palavras saíram da minha boca Caleb começou agritar.

50

– Merda, é o sol – eu disse, sobressaltada. – Rápido, um lugar escuro.– O porão – disse Lucy. – Mas está cheio de porcaria lá...– Ele não vai se importar. Onde fica? Madeline, pode segurá-la por um

segundo?Tínhamos fechado as cortinas no quarto de Caleb, mas não eram espessas

o bastante para bloquear totalmente a luz do sol. Quando Cloquet e euchegamos lá em cima, ele estava no chão, envolto na colcha, tentando searrastar para baixo da cama.

– Vamos levar você para baixo da terra – falei, agarrando-o. – Você vaificar seguro lá, prometo.

Ele não conseguia responder. A colcha deixava vazar fios de fumaça.Cinco minutos depois ele estava no porão de Lucy (que não estava cheio

de porcaria, mas era um lugar pequeno e arrumado, repleto de caixas plásticasfechadas a vácuo) envolto na colcha, encolhido em posição fetal. Os olhosdele estavam fechados, a boca escancarada e a respiração, entrecortada.

– Ele não pode ficar aqui – disse Lucy, quando voltamos para a cozinha.– Hoje à noite vou levá-lo comigo. Não se preocupe.– Vai levá-lo para onde? – perguntou Madeline.Olhei para Cloquet.– Para a costa sul – disse ele. Para onde Konstantinov e Walker estavam

escondidos. Londres era arriscado demais para nós agora.– Certo – disse Lucy. – Ele fica até o pôr do sol. Tudo bem. Mas

precisamos conversar.

Uma manhã e uma tarde surreais. Lucy queria respostas. De formasuperficial, para perguntas sobre ciência – imunidade a doenças, expectativade vida, genética, drogas –, de forma indireta, para o grito metafísico quetremulava no vazio: o que diabos tudo isso significa?

Eu não tinha nada para dar a ela além do que Jake dera. Nós existíamos.Nada mais ou menos misterioso do que leopardos ou cavalos-marinhos oubaleias. Lucy permaneceu sentada, franzindo a testa e ouvindo tudo. Elaestava despedaçada, ofendida, enojada, com medo – mas nunca considerou,eu sabia, se matar. Lucy tinha uma essência de merecimento obstinado. Elahavia pensado que o casamento arruinado (e a aparente marcha fúnebre paraa maternidade) seria o evento que definiria sua vida. Agora, havia isso. Alémdos outros sentimentos, havia uma excitação profana de que toda ainformação não estava, de fato, absorvida, e que, para melhor ou para pior,um novo mundo violento estivesse aberto para ela. A grama ainda crescia,passarinhos ainda cantavam, a chuva ainda caía. Enquanto você estivessepreparado para permanecer nela, a vida encontrava espaço para você. A vidaera assim, impotentemente promíscua, um porteiro que deixava todosentrarem.

– Por que prata? – perguntou ela.Dei de ombros.– E se nos abstivermos?– Morte. Consegui passar duas luas me alimentando de animais. Eu não

recomendaria. Jake me contou que passou quatro meses e acabou arrancandoa própria pele.

Madeline abriu uma garrafa de Absolut e serviu as doses. Desde atransformação, meus seios tinham leite novamente, mas Zoë não haviademonstrado nenhum indício de que necessitava mamar. Lobisomens adultosnão comiam comida comum por pelo menos uma semana após matar; aintuição dizia que era o mesmo para bebês. De todo modo, uma dose devodca não faria mal. Bebemos. Sem brindar, mas com um reconhecimentosilencioso do absurdo, do horror e do caráter ordinário da nossa condição.

Houve uma profunda tentação de gargalhar. Os brincos de diamante deMaddy cintilaram quando ela bebeu sua dose.

– Não deveria ser assim – falei para eles. – Não deveríamos passar tempojuntos.

– Por que não? – perguntou Madeline.– Não quero dizer que não seja permitido, quero dizer que, segundo Jake,

somos solitários, evitamos uns aos outros. Ele só chegou a encontrar cerca demeia dúzia de outros, e não pareceu interessado. Disse que era umacompetição por comida e sexo. Eram todos machos, diga-se de passagem.Talvez, se houvesse fêmeas, fosse diferente.

– Ou talvez ele fosse só um solitário – disse Lucy.– Ele nunca mencionou ninguém para mim – disse Madeline. – A maioria

dos clientes menciona uma esposa, ou uma namorada, ou um colega detrabalho ou o que quer que seja, alguém, em algum ponto. Ele, não. Quandoaqueles caras apareceram no hotel no País de Gales, percebi que realmentenunca havia imaginado Jake conhecendo qualquer pessoa.

– Tem mais uma coisa – acrescentei. – Jake disse que o número de fêmeasera ínfimo em comparação com o número de machos. Algo como um em mil.Ninguém sabia por quê. Não pode ter sido porque menos mulheres tivessemsido mordidas. Só pode ser que menos mulheres sobrevivem à mordida. Masolhe para nós.

– Sim, bem, deve ser a água de Londres – disse Maddy, enchendo oscopos. – Salut.

Devaz despertou – perdido. O rosto dele dizia que tinha acabado de terum sonho aterrorizante. Então seu rosto percebeu que não tinha sido umsonho. Por alguns instantes olhou para cada um de nós, reconstruindo suahistória. Sua psique cambaleou, quase entrou em colapso. Então a imagem deseu passado recente fixou-se com firmeza, além da negação ou da fuga. Devazsabia o que tinha acontecido, o que ele era, o que tinha feito. Ele se virou paramim.

– Sua puta de merda. Você fez isso comigo. Vou matar você, caralho.Cloquet, ainda armado, sacou a Luger.

– Prata – disse ele, tranquilamente. – Todas as balas de prata. O Russoinsistiu.

Eu sabia que ele estava mentindo. Devaz, não. O rosto dele estavamolhado e a boca, aberta, revelando o espaço charmoso entre os incisivossuperiores. Com um grande bigode, percebi, ele pareceria um imitador baratodo Freddie Mercury.

– Nenhum de nós pediu por isso – disse Lucy. – Estamos todos no mesmobarco.

– Ela fez isso comigo de propósito.– Sim, eu fiz – concordei. – Está a fim de saber o que os seus colegas

fizeram comigo de propósito? Seu babaca hipócrita, idiota de merda.Cloquet colocou a arma na cabeça de Devaz muito rapidamente.– Nem pense nisso – advertiu. – Sério. Nem pense nisso.– Todo mundo precisa se acalmar, por favor – pediu Lucy. – Agora.Felizmente, naquele instante, Trish chegou. Ela era uma ruivinha de 27

anos, atlética, com cabelos curtos repicados e olhos verdes cor de jade. Ascalças de combate grandes demais e a jaqueta preta tornavam óbvio ondetinha escolhido suas roupas. Os tênis masculinos caíam-lhe como sapatos depalhaço. Ela não conseguiu permanecer séria quando Madeline nosapresentou.

– Desculpe por mais cedo – disse ela, sorrindo. – Me distraí um pouco.Você sabe como é.

Dizer o quê? Eu sabia como era.Ela e Fergus tinham deixado a instalação de detenção talvez meia hora

depois de nós (com uma mochila cheia de equipamentos dos Caçadores ecerca de 80 libras em dinheiro – obrigado, pessoal, por nos deixarcompletamente ilhados, diga-se de passagem), foram trepar no pasto,dormiram em um celeiro vazio até a lua se pôr, lavaram-se com a água de umcano, depois se vestiram, caminharam até a vila mais próxima e pegaram umônibus. Fergus havia retornado sozinho para Londres, de trem. Os nomes doslugares envolvidos – Wantage, Swindon, Lambourne – não significavam nadapara mim. Trish tinha roupas para vestir depois de tomar banho, o que

liberou o uniforme da WOCOP para Devaz. Assim que estava vestido, eleexigiu ser liberado.

– Ninguém está mantendo você prisioneiro – disse eu. – Cai fora.Ele não partiu. Em vez disso, ficou de cara amarrada circulando pelo chalé.

Observei-o lançando olhares para Madeline. Observei-a balançando a cabeça:“Não”. Como na declaração: “Não. Disposição para foder com você ontem ànoite não se traduz em disposição para foder com você agora. Se afaste,babaca.”

Telefonei para Konstantinov. Ele e Walker estavam instalados na casa nacosta. Walker fora tratado pelo médico. Feridas limpas, suturadas, curativosfeitos, costelas com ataduras, antibióticos. Estava dormindo. O médico partirahá 20 minutos.

– Chame o médico de volta.– O quê? – perguntou Konstantinov.– Diga a ele para trazer o equipamento que for necessário para uma

transfusão de sangue. Estamos levando o garoto conosco. Escute.Konstantinov não interrompeu. Quando terminei, ele apenas disse:– Certo. Que horas vocês vão chegar?Conferi como Caleb estava no porão. A rede vascular estava escura em seu

rosto e nas mãos, mas eu já tinha visto pior. No espaço confinado, não erapossível escapar da feiura da minha intenção. Durante semanas a vida delefora prisão e sofrimento. Agora, graças a mim, continuaria assim. Ele tinhapensado que eu era amiga dele. Eu tinha sido amiga de Caleb. Um pouco daculpa dele e do anseio pela mãe fora desviado para mim, e eu aceitara.Naturalmente: eu tinha minha própria culpa e anseio desviáveis. Ele haviadecepcionado a mãe, eu havia fracassado com meu filho. A barriga de aluguelque não ousa dizer o próprio nome. Agora, com o poder de reunir mãe e filhovampiros, eu os manteria separados. O único conforto do Velho Testamentoera saber que, não importava como as coisas se desenrolassem, Mia viria atrásde mim por vingança.

– Você vai precisar de nós – disse Madeline, quando subi de volta. – Parapegar seu filho de volta. Vai precisar de todos nós.

Estávamos na sala de estar. Trish estava no segundo andar, falando comalguém no celular. Lucy, Cloquet e Devaz, bastante envergonhado agora,estavam na cozinha com a porta dos fundos aberta para a manhã luminosa,fumando e bebendo café com vodca. Lá fora havia um céu alto e azul comfaixas estáticas de nuvens brancas, ar fresco gelado tremulando as folhas e agrama.

– Já devo minha vida a você – eu disse.– Besteira – disse ela. – Precisava ser alguém. Dava no mesmo que fossem

aqueles merdas. De todo modo, o que importa é: não se preocupe. Precisamoscuidar uns dos outros.

Abri a boca para dizer “Vou fazer valer a pena”, significando que pagaria,mas não disse nada. Teria sido vulgar. Não que Maddy não pudesse aceitardinheiro – é claro que sim –, era outra coisa. Sem que eu percebesse, asensação de estar em (agora que eu tinha me dado conta, a sensação foi comoum choque quente no sangue) família penetrara em mim. A pequenaconsciência coletiva, com seus insights e suas oclusões, movia-se como umacorrente entre nós. Em parte, era por isso que Devaz permanecia ali.Madeline – captei, vislumbrando o que ela vinha escondendo em nossosmomentos de abertura – estava solitária. Pude vê-la em um banheiro de hotelretocando a maquiagem. Em casa, em seu apartamento, sentada na privadaolhando para o chão. No assento traseiro de um táxi em Londres, olhandopara as luzes líquidas. Sozinha. Sempre sozinha. Agora havia isso, nós, damesma espécie, a matilha.

Lucy apareceu na porta, mãos em volta de uma caneca de café vermelha,ombros magros curvados. Por um momento nós três nos entreolhamos.

– Suponho que isto esteja realmente acontecendo – disse Lucy, ombrosabaixando. – Fico pensando... – Ela balançou a cabeça, deixou para lá o que iadizer. Sabíamos o que era. Apesar das evidências concretas, havia certaquantidade de perguntas sem sentido que Lucy fazia para si mesma; se tudonão poderia, mesmo agora, revelar-se uma ilusão, um sonho, um enganofabuloso e revoltante.

– Eu estava justamente dizendo a ela – comentou Madeline – que vamos

ajudá-la a recuperar o filho. Fergus e Trish toparam. Se bem que – dissediretamente para mim, com um desdém exagerado – Fergus vai querer falarsobre dinheiro. Você vai ajudar, não é, Lucy?

Os olhos de Lucy encontraram os meus. Vi o que ela queria que eu visse:que não queria que nada fosse dado como certo, que ela ainda não aceitaraaquilo, que tinha feito o que fez na noite anterior pelo dinheiro, porqueprecisava comprar espaço e tempo, que não tinha o desespero de Madeline,que existia uma conexão, mas que havia um limite até onde ela nos levaria.

– Não é responsabilidade de ninguém, só minha – respondi. (Sim, eu sei.Eu compreendo.) – Mas levarei toda a ajuda que puder. Não espero nada.Vocês todos já foram bons demais para mim.

Zoë, de costas no meu colo, abriu os olhos. Meu amor direcionou-senovamente para ela, com um pânico impotente pois sabia que precisaria meafastar. Me ocorreu que, enquanto nos afastávamos (como a caudadesintegrante de um foguete de 4 de julho), que eu jamais tinha visto o irmãodela na forma humana. Se me mostrassem o retrato dele, eu não saberia quemera.

Trish desceu a escada, saltitante. Ela havia trocado o uniforme de combatepor um jeans apertado e um agasalho de mohair quase exatamente do mesmotom de verde dos seus olhos. Pés brancos descalços, unhas pintadas de cereja.Ela parecia ter dormido durante uma semana e despertado completamenterenovada.

– Vocês já estão atacando a vodca? – perguntou ela. – Cadê a minha?

51

Lymington é uma cidade georgiana mercante e um resort de iatismo na costade Hampshire. Imediatamente ao sul, o estreito de Solent separa a Inglaterrada ilha de Wight. Ao norte fica a Floresta Nova, 375 quilômetros quadradosde brejo ancestral e florestas. Southampton e Portsmouth ficam ao leste, e aoeste fica o pântano de Keyhaven, uma reserva natural de 6,4 quilômetros quetermina em um longo promontório de cascalho conhecido como Hurst Spit.A casa que Konstantinov garantira ficava bem no limite da cidade, justamenteonde o pântano de grama salgada começava. Era uma propriedade isolada decinco quartos, com pé-direito alto, piso de madeira, correntes de ar,desgastada, surrada e, de modo geral, maltratada por décadas de famílias deférias.

O médico corrupto, Budarin, era um russo pequenininho beirando os 50anos, de cabelos escuros, mas muito calvo, com olhos azul-claros surpresos euma boca pequena ridiculamente angelical. Um alcoólatra funcional.Konstantinov o conhecia havia anos. O homem não me fez uma perguntasequer. Na verdade, quase não falava, e quando o fazia, era em russo. Comosolicitado, ele coletou meio litro de sangue de Konstantinov, de Cloquet, deWalker, de mim (amostra que foi marcada e separada), e quando lhe passeimais 300, dele próprio, apesar de ter dito alguma piada sem graça sobre osatributos em comum entre o sangue dele e o do conterrâneo. Ele estavahospedado em um hotel na cidade próxima de Keyhaven e, cortesia de nossodepósito, estaria “de plantão” indefinidamente. Ele poderia obter mais sangue

para nós, mas levaria 48 horas e custaria 10 mil. Eu disse a ele para fazer o quefosse necessário.

Madeline e Lucy vieram conosco. Trish tinha retornado a Londres parafazer seu exame de habilitação para motocicletas. Para ela, o dia dopagamento da missão de resgate financiaria um ano de viagem: sudeste daÁsia durante a primavera, depois os Estados Unidos e a América do Sul noverão e no outono. Os planos de Fergus eram incertos, mas Madeline estavaconfiante de que poderíamos contar com ele em cima da hora. Devaz tinhasumido.

– Me dê o número do telefone de Mia, querido, para que eu possa dizer aela onde você está – pedi para Caleb.

Ele estava no porão, em uma cama dobrável de acampamento. Eu tinhadado a ele 125 mililitros do sangue de Cloquet. Apenas o suficiente paratrazê-lo de volta à consciência atordoada.

– Tenho um telefone bem aqui. Você pode falar com ela. – Afastei seucabelo quente da testa, observei seus olhos flutuarem até fixarem o foco. Uminstinto perverso me disse que ele estava suficientemente enfraquecido paraquerer a mãe. Semanas de doença e isolamento, de degradação e dor. Calebtinha 17 anos. Dezessete anos não eram nada. – Só diga a ela que você estábem – falei. – Vou dizer onde estamos e que ela pode vir pegar você. – Orosto dele dramatizou um breve conflito interior. Uma lágrima em um tomescuro de cor-de-rosa escorreu de seu olho esquerdo. Depois, ele me deu onúmero.

Deixei que ele falasse com ela por um minuto – uma narrativa arrastada econfusa de nosso período encarcerados –, depois tomei o telefone e meapressei de volta para o andar de cima, para a grande sala de estar na parte dafrente da casa. As luzes estavam apagadas. Estava escuro lá fora, mas eu aindaconseguia ver o grande jardim da frente, a cerca viva, os 50 metros de grama,do mar até a beira d’água, para onde Lucy tinha ido, enrolada e aquecida, detesta franzida, caminhar. Dava para ouvir Madeline conversando suavementecom Zoë na cozinha. Alguma coisa temperada para os humanos fervia nofogão: obra de Cloquet. O telefone estava quente e pesado na minha mão. Por

sorte, eu tivera todos aqueles meses para me acostumar com amonstruosidade.

– Mia?– Sim, quem fala? – Um sotaque russo muito leve. Calma como um rio

congelado.– Meu nome é Talulla Demetriou. Você precisa ouvir com muita atenção.– Onde está Caleb?– Cale a boca e escute, ou você nunca mais voltará a ver seu filho.Silêncio. Recalibração imediata. Nada de histeria. Ela estava acostumada às

coisas não serem como à primeira vista. Eu olhava pela janela, ciente dasenciência do quarto, normalmente amorfa, firmando-se de repente. Dei asinstruções: ela descobriria onde os discípulos estariam. Ela se juntaria a eles.Ela nos ajudaria a entrar e a salvar meu filho e Natasha. Depois, o filho delalhe seria devolvido. Ela ouviu sem emitir uma palavra sequer. Konstantinovapareceu na porta.

– O que faz você achar que serei capaz de encontrá-los? – perguntou ela,quando terminei e, como uma idiota, perguntei: Ainda está aí?

– Porque a vida do seu filho está em jogo.– Ponha Caleb de volta na linha.– Não, isso é tudo por enquanto. Você sabe que ele está vivo. Temos

sangue. Ele estará confortável e bem-cuidado, prometo a você. Não tenhoabsolutamente nenhuma intenção de machucá-lo. Mas, compreenda, não hánada que eu não faria para recuperar meu filho. Se você me foder, tornarei ascoisas muito ruins para ele. Está claro?

Uma pausa.– Se você vai falar desta maneira – disse ela, tente não fazer soar como se

fosse tão trabalhoso.Tive uma imagem vívida dela do diário de Jake. A loura de traços finos

vestida de preto. Rosto branco, boca coberta de sangue, olhos azuis. Pernasque fariam jus a uma propaganda de meias-calças de qualidade. Obrigada,Jacob Marlowe.

– Não ajuda você em nada fazer de mim sua inimiga – eu disse.

– Você está mantendo meu filho prisioneiro. Você já é minha inimiga –rebateu Mia.

– Também salvei a vida dele. De todo modo, esta conversa está encerrada.Telefonarei de novo para você...

– Espere – disse ela.– O quê?– Se você machucar Caleb, de qualquer maneira, eu mesma vou matar seu

filho. Você entendeu?– Sim – respondi– Agora, me deixe...Konstantinov tomou o telefone da minha mão e pressionou o comando

ENCERRAR.– Não a deixe falar – disse ela. – Ela tem 300 anos. É mais esperta do que

você. Dê as instruções a ela e desligue. Só isso. Nada de bom resultará paranós em falarmos com ela. Da próxima vez, eu telefono.

Ele me entregou o telefone. Houve um momento entre nós no qual eu nãodisse “Escute, é graças a mim que temos uma chance de encontrar suaesposa”, e ele não falou “Escute, é graças a mim que você não está deitada emum frigorífico da WOCOP com uma bala de prata na cabeça”. Olhamos umpara o outro, trocamos tudo isso e depois nos deixamos mutuamente, semdizer nada.

Fui à porta do porão e destranquei-a. Os degraus que desciam para aescuridão me deprimiam. Respirei fundo, senti dez mil tendõesmicroscópicos de wulf estalarem quando girei o pescoço, depois, ainda semsaber se diria a verdade ou se mentiria entre meus dentes formigantes, descipara falar com meu prisioneiro.

52

Eu contei a verdade, e foi tão ruim quanto poderia ser. Foi lamentável vertanto sofrimento e traição com tão pouca força física para serem expressados.Ele tentou se levantar, não conseguiu, desabou da cama dobrável para o chão.Precisei levantá-lo para colocá-lo de volta. Ele tentou bater em mim e chutar,mas seus membros eram como lanternas de papel. Ele teria me mordido,portanto, mantive a cabeça dele imóvel pelo seu ninho de cabelo louro-esbranquiçado. Ele cuspiu no meu rosto.

– Você lembra quando eu lhe disse que era meu filho quem planejavamsacrificar? – perguntei, quando a pouca energia que ele tinha fora gasta.

– Foda-se.– Você disse que não sabia onde o estavam mantendo, mas, mesmo se

soubesse, não poderia me contar. Só vou repetir isto para você: Mesmo sesoubesse, não poderia me contar.

– Eu nunca disse isso.– Sim, disse, e você se lembra de ter falado, portanto, não se dê o trabalho

de negar.– Não é a mesma coisa.– É a mesma coisa – retruquei.O rosto dele franziu de novo por um momento: fúria, impotência, ele

perdia o argumento, recordando as humilhações na jaula, mas sempre, antesde tudo, estar preso em um corpo de 11 anos. Sempre, antes de tudo,parecendo uma criança. O que o levou a dizer a única coisa que poderia terme magoado.

– Confiei em você.– Sei que confiou.– Pensei que fosse minha amiga.– Eu era. Eu sou. Sinto muito. Eu não faria mal a você.– E se minha mãe não tivesse concordado? – perguntou Caleb.Sim, bem, era ali que a lógica nos pegava. Você me fode e tornarei as coisas

muito ruins para ele. Será que eu faria isso? Trabalhar nele como os cientistasda WOCOP, filmar tudo e enviar as filmagens para Mia Tourisheva? Cooperee farei parar.

– Não sei – eu disse.Ele não tinha esperado pela honestidade, que lhe queimou o coração outra

vez. Mas Caleb forçou-se a ficar frio.– Bem, você não precisaria sujar as suas mãos, não é mesmo? Não com

todos os seus amiguinhos lobisomens em volta. Este lugar FEDE pra caralho.– O verbo foi gritado, para benefício do lar.

– Posso lhe oferecer alguma coisa? – perguntei. Eu não gostava de olharpara ele. Estava tão óbvio o quanto aquilo o magoara, ainda o magoava. Eratão óbvio o quanto ele tinha gostado de mim.

– Sim – respondeu ele, acrescentando –, sua filha.Eu absorvi o que ele disse. Expirei. Me virei para ir embora.– Cigarros – disse ele. – Camel. – Depois, quando me viu sorrir,

perguntou: – O quê?– Eu costumava fumar Camel.– Parabéns. Que porra eu tenho a ver com isso?– Nada. Vou trazer uns para você.Era um bom trabalho que eu tivesse praticado tanto endurecer meu

coração. Ainda assim parei no pé da escada e me perguntei pela enésima vezse não haveria outra maneira. Não havia.

– Minha mãe vai matar você – disse ele, tranquilamente, quando eu estavano terceiro degrau. O pensamento era desagradável para ele, entre outrascoisas.

– Estou certa de que ela vai tentar.

– Você não entende. Você não pode fazer esse tipo de coisa com ela.– E ainda assim, estou fazendo – devolvi.Ele fechou os olhos. Rendido, submetido, entregue a uma nova situação. A

uma nova versão da antiga situação. Ele estivera exausto por tanto tempo!Muitos não sobrevivem mais de mil anos, Cloquet dissera. Eu não conseguiaver Caleb sobrevivendo mais dez.

53

Walker estava sentado no escuro em uma cadeira ao lado da janela de seuquarto, bebendo um copo de uísque. A garrafa – Glenmorangie – estava noparapeito da janela, pela metade. Sentei-me diante dele na beirada da camadesfeita. Nossos olhos se encontraram por um instante. O efeito de todas asvezes em que nos olhamos em fascinação chocada ainda estava presente. Masagora uma versão destacada de Walker pairava sobre ele, como um agentefunerário sobre um cadáver. Eu queria colocar os braços em torno dele.Walker desviou o olhar.

– Sei o que quer de mim – eu disse, delicadamente. – Não posso fazer isso.Ele não respondeu. Não havia conforto. Conforto, por definição, referia-se

ao que tinha acontecido com ele. Conforto era, logicamente, autoderrotante.Apesar disso, eu queria tanto colocar os braços em torno dele. Nestesmomentos, era como se Deus dissesse: “Está vendo? Há uma razão pela qualcoloco a alma no corpo. O corpo está lá para quando o valor da alma nãovaler nada.” Mas, naquele momento, o valor do corpo também não valianada. Não tínhamos tido nenhum contato físico – eu, literalmente, não otocara desde a emboscada de Murdoch na Itália. A perda era uma dor, naminha pele, no meu coração. Entre nós havia sido tão caloroso e cheio decumplicidade naquelas horas escuras no hotel. Com um pouco de prática,pegamos o jeito de gozar, juntos, com ele dentro de mim. Me lembrei daprimeira vez em que aconteceu, da intuição obscura, o foco repentinamenteacentuado, o deleite disparando precariamente e, no final, um segundo ou

dois de uma unidade impressionante, que dilacera os dois no vazio e os trásde volta, gratuitamente enriquecidos, atordoados, deliciosamente finitos.

– Você não precisa dizer nada – falou ele, tranquilamente.Imaginei entrar no quarto dele de madrugada e começar a me despir. Eu

sabia claramente como o não dele soaria se ele tivesse dito em voz alta, antesque eu abrisse o segundo botão da minha camisa.

– Você deveria comer alguma coisa – eu disse. Coisas que você diz quesabe que são inúteis e ainda assim não completamente, porque sua utilidade éestar ali quando não dizer nada é insuportável.

– Ela concordou? – perguntou ele.Mia Tourisheva, ele queria dizer. Era uma opção. Discutir os objetivos, os

planos, as questões práticas.– Parece que sim – respondi.– Você sabe que Natasha provavelmente está morta.– Por que diz isso?– Quando foi a última vez que enviaram qualquer coisa a Mike? A

novidade está ficando gasta – respondeu ele.Aquilo não tinha me ocorrido. Mas agora, pensando a respeito, havia certa

característica esbugalhadas nos olhos de Konstantinov que dizia que a ideia játeria lhe ocorrido. Já ocorrera a ele, sim, mas ele seguiria em frente como senada tivesse lhe passado pela cabeça. Eu não o via sobrevivendo se elaestivesse morta. Ele não tinha o talento de Walker para permanecer vivofascinado com a própria deformidade. Talvez Walker também não, não mais.

– Não importa – disse ele. – Ele não vai aceitar até que a tenha visto comos próprios olhos. E aí será o fim dele.

A cama era uma terceira presença conosco, atenta. Isto é bom? Ah, Deus,é. É sim. As lembranças de nós dois juntos eram como filhos que tínhamossido obrigados a renegar. Me levantei e fui até ele. Ele não protestou. Monteinele e o abracei, puxei-o para perto. Ele deixou. Como um experimento em simesmo. Para ver se ainda restava algo viável. Abracei-o mais forte, desejando-o de volta. Minúsculos, vagos impulsos neurais... resultando em nada. O quesignificou que em uma questão de segundos tê-lo em meu braços ficou feio.

Saí de cima dele. A perda do corpo dele era um luto peculiarmente distinto.Lá embaixo, podia ouvir Cloquet colocando pratos e talheres para ele eKonstantinov na mesa. Alguém sacou a rolha de uma garrafa. Zoë emitiu umúnico ruído melodioso de surpresa, depois ficou quieta. Me perguntei seWalker ficaria conosco quando estivesse recuperado o bastante para viajar, ese partisse, para onde iria. Nenhum lugar seria adequado para ele. Precisariaficar se mudando. Nunca ficar tempo demais para ninguém – especialmenteele – começar a fazer as perguntas que importavam.

– Sinto muito – eu disse. Ele olhou para mim, mas como se eu fosse umaimagem em uma tela, algo transmitido para ele anos-luz de distância. Notávelo que podiam fazer com tecnologia hoje em dia. Me deixava enojada aquelaruptura entre nós, o fato de não haver nada que eu pudesse fazer. Ou melhor,havia algo que eu poderia fazer, mas não ousava. – Sinto muito – repeti...Exatamente no mesmo momento que ele estendeu a mão para pegar a garrafae sua cadeira rangeu, o leve confronto de sincronicidade fez alguma coisaestalar e me virei para sair da sala.

Na sala da frente, encontrei Konstantinov e Budarin conversando emrusso.

– De qualquer modo precisaremos de pessoal e armas – disseKonstantinov para mim, mudando para o inglês. – Alexi talvez possa nosajudar.

“De qualquer modo” referia-se às logísticas intratáveis. Se Mia localizasseos Discípulos, havia dois cenários possíveis. No primeiro, entraríamosimediatamente, como um esquadrão de humanos. No outro, aguardaríamosaté a noite do ritual – lua cheia, solstício de inverno, eclipse lunar – eentraríamos como lobisomens. Se entrássemos como humanos, poderíamos irdurante o dia, o que, obviamente, eliminaria o problema de lidar com osvampiros. Por outro lado, seríamos uma oposição risível a qualquer guardarelativamente decente de familiares. Apenas Konstantinov e Walker tinhamhabilidades de combate, e Walker estava frágil. Mas se aguardássemos até alua cheia (assumindo a premissa repugnante de que Konstantinov e eupoderíamos esperar, poderíamos suportar esperar sabendo onde estariam)

para entrar em força lupina total, precisaríamos entrar após o anoitecer (ouseja, após o pôr do sol), o que significaria que só Deus saberia quantosvampiros a mais precisaríamos encarar. E o intervalo de tempo seria curto. Alua nasceria às nove e três da noite. O eclipse atingiria o ápice às onze ecatorze. Duas horas para apostar a vida do meu filho. Madeline, eu sabia,estivera imaginando uma reprise do ataque ao local de Murdoch emBerkshire, um banquete liberado de sexo e violência. Todos estiveramimaginando isso, com a exceção de Lucy que, de todo modo, tinha deixadosutilmente claro que não se considerava comprometida com nada. De todomodo, como dizia Konstantinov, precisaríamos de ajuda.

– Certo – eu disse. – Contrate quem você puder.– Estes não são bons homens, compreende? – disse Budarin. – Não são

soldados.– Não me importa quem sejam ou o que tenham feito. Se vão lutar por

nós, estão contratados. – Pensei em Delilah Snow, pela primeira vez no quepareceu anos, e me ouvi rindo e dizendo “Quem sou eu para me importar?”,apesar de não ter, de fato, soltado uma risada ou dito isso em voz alta.

– Muito bem – disse Budarin. – Verei o que posso fazer.Pela segunda vez desde o Alasca entrei no inferno da espera.Nada ajudava. Ali estava o celular. Ali bocejava todo o universo para que

eu estendesse a mão a fim de procurar uma maneira de fazer acontecer o queeu queria que acontecesse. Você se levanta, caminha de um quarto para ooutro, senta-se. Dezoito segundos se passaram. Nada mudou.Você nãoconsegue acreditar que possui uma provisão para lidar com mais milhares desegundos, horas, dias. A todo momento você interpreta o ditado zen-budistade suportar o insuportável.

No quinto dia Konstantinov disse: “Você vai precisar aumentar oincentivo.”

Eu respondi: Ainda não.As coisas seguiam em segundo plano. Novos documentos para Lorcan

chegaram de Kovatch. Lucy retornou para Londres e entregou umanotificação ao senhorio, depois sumiu por alguns dias, até aparecer de volta

na casa em Lymington e, depois, ir embora de novo. Trish apareceu em suanova moto (com notícias de Fergus dizendo que estava “profissionalmentedisponível” quando necessário), mas partiu para Cornwall depois de apenasum dia. Madeline retornou para seu apartamento no oeste de Londres. Alibido deixava todos nós claustrofóbicos, mas entre nós ela era aguda. Ambassabíamos que se ela ficasse na casa havia boas chances de que algo acontecesse– coisa que, embora pudesse ter excitado Walker em sua vida antiga, teriasido um tormento para ele em sua nova existência.

Walker ficava em seu quarto, embora às vezes caminhasse pelo Solent ànoite. Eu sentia tanta saudade de Walker que isso me deixava com raiva dele.Depois, com raiva de mim, pois eu jamais deveria ter começado aquilo, parainício de conversa. Pensei em me renegar e Transformá-lo. É claro que issofaria Walker me odiar, eventualmente, mas ao menos eu o teria agora. Não seio que me impediu de seguir em frente. Possivelmente, nada além deconvicção irracional de que, neste frágil hiato, fazer qualquer coisa que eu nãoprecisasse seria perigoso, uma provocação contra o Deus que não estava lá.Budarin mantinha o fornecimento de sangue (ninguém sabia de onde vinha eninguém perguntava), e com ele eu mantinha Caleb fraco, mas confortável.Ele teve permissão para falar com Mia Tourisheva, somente por temposuficiente para estabelecer que estava vivo e que ninguém fizera mal a ele.Caleb parou de falar comigo quando eu descia para levar Camels (e,eventualmente, uma tevê/DVD, uma pilha de filmes que Cloquet tinhaalugado na cidade), até que o tédio o levou a começar novamente.Konstantinov e Budarin iam e vinham. Conheci os caras que elescontrataram, homens de aspecto musculoso – três russos, um nigeriano –,com vocabulários econômicos e uma autocontenção física que poderia tersido incutida pela prisão. Não me importei.

No dia 16 a BBC News transmitiu uma reportagem breve e superficialsobre as preparações no Reino Unido para o eclipse lunar total durante osolstício de inverno. Homens barbados e mulheres gordas em robes e colaresde margaridas. Astrônomos nos conduziram pela matemática com gráficosdirecionados a crianças de 7 anos de idade.

– Você precisa entender – me disse Mia Tourisheva ao telefone. – Estoufazendo tudo que posso. Essas pessoas não querem...

Konstantinov agarrou o telefone:– Escute – disse ele. – Hoje, meu amigo químico trará para mim 5 litros de

HS204. Sabe do que se trata? Não vai matar seu filho, mas seráexcruciantemente doloroso para...

– Putamerda, Mikhail, pare com isso. Pare. – Tentei agarrar o telefone devolta. Acabamos deixando-o cair. Quando o peguei, estava mudo. Ele tocouimediatamente.

– Por favor – disse Mia. – Não façam isso. Não façam isso. Juro a vocêsque estou fazendo tudo que posso. As 50 Famílias estão procurando e elas nãosabem onde eles estão. – Ela soava exausta. A súplica era horrível de se ouvirna voz normalmente calma. Deixei Konstantinov e levei o telefone comigopara o segundo andar. Me tranquei em um dos banheiros. Eu estava prontapara reconfortá-la, mas quando abri a boca ela havia recuperado acompostura. – Faça o que precisar fazer – disse ela. – Apenas se lembre: eunão morro. Tenho a eternidade para encontrar você, e depois de você, seusfilhos, e os filhos deles. Vai levar muito tempo até que eu fique satisfeita.Agora, me deixe falar com meu filho.

– Consiga alguma porra de resultado – falei.– Depois, deixarei você falarcom seu filho. Se ele ainda tiver uma língua com a qual possa falar. – Emseguida, desliguei.

Dormi com Zoë no carrinho-berço ao meu lado, quando consegui pegarno sono, quando não estava olhando para o teto ou vagando pelos cômodosdo andar de baixo ou (naturalmente: wulf não se importa) me masturbando.Dez dias depois da primeira transformação, minha filha tinha começado atomar meu leite de novo. Eu não tinha tido nada de leite desde quando estehavia secado na prisão, mas quando Zoë despertou no meio da décima noite,ali estava ele, justamente como eu soubera que estaria no sonho que tivemomentos antes. Era um pesar ímpar, sentada com ela no meu seio, sentindoa vida e o amor que poderiam ter sido. Ela olhava para mim com umacompreensão desapaixonada, como se soubesse que meu amor tinha sido

afastado dela mas que não havia nada que ela pudesse fazer. A ligação naturalprimária de Zoë era com o irmão. Nada poderia vir dela para mim enquantoele estivesse preso. Era impessoal, estrutural, necessário. Se eu falhasse – seLorcan morresse, mas eu e ela continuássemos vivas –, então alguma coisaseria possível entre nós duas, se eu suportasse. Mas não enquanto ele estivessevivo, não enquanto estivesse preso. Até que ele fosse declarado de um modoou de outro – resgatado vivo ou descoberto morto –, a alma dela estava empausa. Eu disse a mim mesma, obviamente, que nada disso vinha dela, quetudo aquilo era uma projeção minha. Meu eu pensante compreendia aquilo.Não fazia nenhuma diferença. Cada vez que nossos olhos se encontravam, aliestava. Eu deveria ter impedido que nossos olhos ficassem se encontrando.Mas em vez disso eu não conseguia impedir. A verdade era viciante.

Cinco dias antes do solstício de inverno despertei em torno das 4 horas damanhã e percebi que havia algo errado. A fome estava escancarada, estiveraesperando por mim, tagarelando, remexendo, atacando ocasionalmente (elanão reconhece o sono, mas, eventualmente, a exaustão o supera e seu corpodesaba), mas em meio à algazarra em meu sangue, a casa me introduz em umoutro silêncio, silêncio esse que ela estava contendo em algum lugar. Meurelógio marcava 4h17.

Turno de Konstantinov.Oh!Olhei no carrinho-berço. Zoë estava desperta, mas tranquila. Me levantei

da cama, vesti jeans, tênis, uma camisa e, sem protesto por parte dela,coloquei-a no carregador em torno do meu corpo. Havia uma Springfield eum pente sob o meu travesseiro. Peguei a arma.

A porta de Walker estava fechada, mas eu sabia que ele não dormia. Eusentia o cheiro de uísque, roupas por lavar, o sofrimento do corpo dele. Aporta de Cloquet, escancarada, revelava-o adormecido, totalmente vestido,um braço pendendo no lado da cama, seu raio imediato cheio de cigarros,notas fiscais amassadas, moedas, chaves. As cortinas estavam fechadas até ametade, mostravam a barriga cheia da lua – quarto crescente –, o relógio que

não contava regressivamente, mas que engordava até a morte de Lorcan e ofim de tudo que eu conhecia.

– O que quer que estiver fazendo, Mikhail, por favor, pare. Por favor.Eu estava no topo da escada do porão. Konstantinov estava de pé sobre a

cama de Caleb, de costas para mim. Tinha meu celular em uma das mãos. Nochão, ao lado dele, havia uma garrafa plástica opaca, sem rótulo e aindatampada. Eu não conseguia ver o rosto de Caleb, mas pelo som que emitiapude perceber que estava amordaçado. Os pulsos e os tornozelos dele estavamalgemados à cama – desnecessário, já que não o mantínhamos forte osuficiente para ficar de pé.

– Mikhail, apenas espere, por favor. Ainda está tudo bem. Você ainda nãofez nada.

Desci a escada, a Springfield presa atrás do jeans.– Vamos lá, olhe para mim – eu disse a ele.– É a única maneira – disse Konstantinov. – É a única maneira.– Sério, Mikhail, deixe disso. Olhe para mim.Ele se virou. Seu rosto estava pálido e com os poros abertos. A barba tinha

crescido. Os cantos dos olhos eram de um cor-de-rosa avermelhado. Eleparecia um monge louco, à beira de deixar-se para trás.

– Se fizer isso – eu disse –, você não será a mesma pessoa. Não será amesma pessoa para Natasha. Você precisa pensar em Natasha vendo vocêfazer isso, pois ela verá na mente dela tão claramente quanto se estivesse de péaqui ao seu lado.

Caleb estava olhando para mim, através de sua doença e do medo. Eupensava: se você um dia tiver chance de interceder por mim, não se esqueçadisso.

Aproximei-me de Konstantinov.– Isso é só desespero – eu disse. – Isso é só a necessidade de fazer algo.

Compreendo. Também sinto o mesmo. Mas você sabe que lá no fundo nãofará diferença, exceto para tornar você outra pessoa. Agora, você ainda é apessoa que Natasha conhece. Não se transforme em alguém que será umestranho para ela.

Ele baixou o olhar para Caleb. Não com compaixão ou inimizade. Comnada. Com a versão facial humana do vasto silêncio matemático.

– Vamos lá – eu disse. – Deixe disso. Já passou. Você nunca mais vaiprecisar passar por isso de novo.

Gosto de pensar que foi aquilo. Gosto de pensar que o convenci, que sejalá o que tenha ocorrido em seguida não tenha sido Mikhail derramando ácidosulfúrico no rosto de um garoto para que a mãe desse garoto pudesse ouvirseus gritos. Gosto de pensar nisso, mas eu nunca terei como saber, porque oque aconteceu em seguida foi o telefone tocando na mão dele.

Era Mia.Ela havia encontrado os Discípulos.

PARTE QUATRO

LACUNA

“Cuidado com os falsos profetas. Eles vêm a vocês vestidos empeles de ovelhas, mas por dentro são lobos devoradores.”

Mateus (7:15)

54

Konstantinov estava conferindo as armas quando lhe dei a notícia:– Vampiros estão andando à luz do sol.– O quê?– Acabo de falar com Mia. Primeiro, era apenas Remshi. Agora há pelo

menos uma dúzia.– É uma armadilha. Nada muda. Vamos amanhã conforme o planejado –

disse ele.– Não creio que seja uma armadilha – retruquei.– Nada muda.Eu segurava meia caneca de café frio. Joguei-a contra a parede atrás da

cabeça dele. Ela se estilhaçou com um barulho surpreendentemente alto. Elecolocou a AK-47 no sofá e olhou para mim. Pouca coisa o abalava. Aquilotampouco, mas fora registrado, levemente, no exterior de sua obsessão.

– Vá se foder – eu disse, enquanto uma cãibra de fome apertava minhasentranhas. – Eu sei que nada muda. Mas estou cansada dessa porra detragédia russa. Pare de continuar agindo como se você fosse o único que temalgo a perder.

Era pouco mais de dez da noite. Estávamos na grande sala de estar de umavilla de três andares a 5,5 quilômetros da aldeia de Falasarna, na ilha de Creta.Tijolos travertinos, paredes caiadas, mobília contemporânea neutra, odoresde sândalo e do mar. Portas francesas abriam-se para uma varanda comdegraus que desciam para uma área com piscina e outra para o cultivo deoliveiras. Nosso vizinho mais próximo estava a meio quilômetro de distância,

descendo a colina por uma estrada de cascalho íngreme e sinuosa com espaçopara pouco mais de dois carros passarem. Cloquet encontrara a casa poracidente, tentando reservar quartos para 12 pessoas em um hotel em Chania.O gerente tinha baixado a voz e perguntado se ele não preferiria alugar umacasa. Do primo dele. Praia a dez minutos de caminhada. Valores de baixatemporada.

Konstantinov me encarou. O olhar dele dizia, sem malícia: tenho mais aperder porque não sobreviverei se a minha estiver morta. Você vai sobreviverse o seu estiver. Ele estava certo. Eu já sabia que a morte de Lorcan não memataria. Se o preço que eu precisaria pagar para ter um futuro com a minhafilha seria aceitar a culpa pela morte dele, que assim fosse. Teríamos um amordanificado cujo âmago conteria minha vergonha, mas ainda seria amor. Isto,é claro, era em parte por que eu tinha jogado a caneca de café. Isto e ascãibras, os suores, as esquisitices incômodas do lobo sob minha pele.

– Me conte sobre os vampiros que saem à luz do dia – disse ele.Sessenta horas antes tínhamos recebido o telefonema de Mia. Os

Discípulos estavam em Creta, nas colinas a leste de Ano Sfinari, em um antigomonastério agora ostensivamente transformado em um hotel de luxo, mas, naverdade, adquirido e adaptado pelos seguidores para dar as boas-vindas aRemshi de volta ao mundo dos vivos. E Remshi, aparentemente, estava devolta. Quando Mia se juntara, ele já havia estado “entre eles” (tendo aparecidoao ser invocado por três sacerdotes e Jacqueline à meia-noite no dia 12 dedezembro), há vários dias, um vampiro belo e carismático que alegava ser“mais velho do que a primeira manifestação de fala humana”, que executavadiversos feitos extraordinários e exibia um número de parar o show: um filmedele próprio caminhando pelo terreno do hotel com alguns familiares emplena luz do dia. Em plena luz do dia. Conforme sua força aumentasse,prometeu que seria capaz de conceder tal dádiva a todos eles, em troca dalealdade a ele e à sua futura rainha, ninguém menos do que nossa própriaMadame Jacqueline Delon. “Então é ele?”, perguntei a Mia. Ela dissera:“Truques de salão e poesia barata.” Mas alguma coisa em sua voz reconheciaque não era tão bem-definido assim. Pressionei-a. “Havia algo ali, é verdade”,

disse ela. “Muito antigo. Não sei. Isto é irrelevante. Não desperdice tempo.Me deixe falar com meu filho.”

Encontrar os fiéis e se unir a eles não fora fácil para ela. O clima deparanoia era denso. Seis meses antes houvera um ataque contra umlaboratório do Projeto Helios em Pequim, e apesar de os Discípulos teremnegado qualquer envolvimento, as cinquenta famílias (tendo decidido queaquilo já era o bastante) estavam usando-o como pretexto para acusação. Umjulgamento fora realizado. Esquadrões da morte vampirescos foram enviados,mas naquela altura Jacqueline e seu grupo estavam fora dos radares. Algunsmembros do culto foram encontrados e decapitados em Istambul, mas aliderança e sua cabala de sacerdotes permaneciam escondidas. Como teriampermanecido escondidos para Mia, se o irmão dela não fosse membro. Osdois tinham sido transformados em vampiros juntos (ela não queria dizerquando) pelo mesmo imortal. “Não é telepatia”, disse ela. “Mas quandodecido encontrá-lo, acabo conseguindo mais cedo ou mais tarde. Isso valepara ambos. Não faça mais perguntas.” Se eu perguntasse mais,provavelmente indagaria se ela poderia ter certeza de que o irmão acreditavaque os motivos dela para se juntar aos Discípulos eram genuínos; e ambassabíamos que qualquer coisa que ela dissesse não faria diferença alguma, poisera o único plano que tínhamos.

Assim, seguiram-se os telefonemas, o reagrupamento, o voo, o alvoroçopara obter as armas. As armas, é claro, sofreram atraso. Tínhamos perdidomais 48 horas. Konstantinov estava pronto para a invasão, suicidamente,desarmado. Quando o barco finalmente chegou, no início da noite, preciseiimpedi-lo de atacar a tripulação. Agora (de novo, obviamente, obviamente),não tínhamos escolha: amanhã à noite seria lua cheia. Lua cheia, solstício deinverno, eclipse lunar. Acabamos ficando, com uma inevitabilidade delirantee submissa, sem tempo.

– O que está acontecendo? – perguntou Trish.Ela havia entrado na varanda, com Lucy logo atrás, ambas usando

agasalhos e jeans. Em dezembro fazia frio. (Eu não tivera expectativas de queLucy fizesse parte disso. Ela havia deixado isso claro para mim ao longo das

semanas. Contudo, no final das contas, ao desligar o telefone, Trish virou-separa mim e disse: “Luce está dentro.” “Há meses tenho retornado a partes daminha antiga vida como um maldito cão retorna ao próprio vômito”, Lucyme dissera, no saguão de embarque em Heathrow. “Na última quarta-feira,fui ao jantar do meu grupo de leitura. Maldita Carol Shields que acha quepode transformar a arrumação de uma mesa de jantar em um ato religioso. Eenquanto todo mundo fica lá tagarelando sobre isso eu estou lá sentada,pensando em... Bem. Você sabe. De todo modo, alguma coisa se foi. A últimaparte da negação, suponho. Não existe vida antiga para mim agora.)

– Houve um desenvolvimento – eu disse. – Vampiros estão caminhando àluz do dia.

Tínhamos julgado que entrar de dia, como humanos, seria o menor dosdois males. Com os quatro caras de Budarin, Konstantinov, eu, Trish, Lucy,Cloquet e Fergus (a quem eu conhecera há somente dois dias: um irlandêsgrande, de rosto escurecido pela bebida e um físico como a de um urso),tínhamos uma força de dez pessoas. Walker também estava conosco, mas sesentira mal durante o voo e oscilava entre períodos de febre desde então.Recusava-se a ver um médico. Recusava-se a ver qualquer um, excetoKonstantinov, e nas últimas 24 horas estivera em seu quarto, de cama. Nãoera provável que estivesse apto para entrar em ação. Se a inteligência de Miaestivesse correta, haveria 79 vampiros com uma guarda de vinte familiareshumanos. Dez humanos (presumindo a ausência de Walker) contra vintehumanos era melhor do que dez contra 79 vampiros, mesmo que quatro denós estivessem transformados em toda a sua glória. Mas agora, se a história deMia sobre os vampiros diurnos fosse verdadeira, nossas chances tinhamdiminuído.

– Como isso é possível? – perguntou Lucy.– Só Deus sabe – respondi. – Mia disse que, agora, um grupo de quatro

vampiros fora selecionado três vezes para “receber a dádiva”. Remshi os levapara o quarto. Na noite seguinte, há filmagens dos quatro caminhando emtorno do local durante o dia. Depois do primeiro turno de ceticismo, elespróprios se filmaram ao lado de televisões transmitindo notícias ao vivo para

confirmar a data e o horário. Difícil de simular. São âncoras da CNN e daBBC News. Não importa como previmos, devemos contar com uma dúzia devampiros despertos no local amanhã quando invadirmos.

– Deve ser interessante – disse Trish.Lucy sentou-se à mesa na qual as armas estavam empilhadas.– Não precisamos... Vocês sabem, de estacas de madeira ou algo do

gênero? Alho?Fui até a varanda e telefonei para Madeline. Ela atendeu dizendo:– Ela está absolutamente bem. Pare de se preocupar.A lua tinha nascido e estava baixa sobre o mar. Amanhã, estaria cheia.

Wulf estava grande, angulosa e impaciente sob minha pele. Pensei naquelesdesenhos animados nos quais alguém engole uma coisa e fica do mesmoformato daquilo que engoliu. Havia um cheiro maravilhoso de concretolimpo, de cloro da piscina e de alguma coisa parecida com sálvia ou alecrimnos arbustos próximos. Todos contrapontos ilusórios ao latejar grave dafome.

– Quero que saiba de uma coisa: confio em você – disse a Madeline.– OK, OK. Aqui, escute isso. – Farfalhar, depois o som da minha filha

respirando. Continuamente. Forte. Mil e seiscentos quilômetros de distância.– Ela dormiu assistindo a um DVD comigo.

– O que vocês estão assistindo?– Não ria. A pequena sereia – disse ela.– Você é uma boa pessoa.– Oi? Fora matar e devorar pessoas?– É, fora isso.– O que está acontecendo aí, diga-se de passagem? – perguntou Madeline.Atualizei-a. Não consegui perguntar a ela o que queria: “Você resolveu a

questão da presa? Está seguro? Minha filha estará segura?” O questionamentoexplícito morreu na minha garganta. A pequena visionária, verdadeiramenteindiferente de mim mesma, disse: “deixe para lá, não há nada que possa fazeragora, e o mais provável é que você esteja morta amanhã de qualquermaneira. Morta e rumo a se juntar ao vasto silêncio matemático”.

– Quanto ao dinheiro – eu disse. – Se eu não retornar...– Lá lá lá lá...– Escute, é sério. Falei com meu advogado. Ele está com a cláusula

adicional. Vocês ficarão bem.– Você me contou tudo isso – disse ela.– Eu sei, eu sei. Me deixe ouvir Zoë outra vez.– Não desligue, a ligação está ficando ruim...– Ah, espere aí, vou mudar de lugar. Tem um lugar onde o sinal não

pega... Está melhor assim? Está me ouvindo?– Sim, está melhor. Aqui está. Não acorde ela!Escutei, sem emitir um som. Sem emitir um som por fora. Por dentro, não

conseguia me calar. Sinto muito, meu anjo. Estraguei tudo. Lamento tanto.Essa garota com quem deixei você, ela é um pouco maluca, mas o coraçãodela está no lugar. Se eu não vir você de novo, acho que ela vai cuidar bem devocê. É o que meu instinto me diz. Não temos muita coisa a nosso favor, mastemos bons instintos. Amo você. Amo você. Amo você.

– Tudo bem? – perguntou Madeline, com uma voz que dizia que tinhaescutado tão claramente quanto se eu tivesse dito em voz alta.

– Sim. Obrigada. Obrigada por fazer essa coisa incrível – agradeci.– Escute, não fique sentimental. Você vai estar em casa com seu filho

amanhã e então vamos abrir uma garrafa de champagne. OK?– OK.– Como vai Fergus, o Lergus?– O quê?– O Lergus. Como em o Lergie. Como ele está se comportando?Fergus, na verdade, havia acabado de aparecer na varanda, uma das mãos

segurando o telefone no ouvido, a outra segurando um uísque e um cigarro.– Para fazer o dinheiro funcionar, você precisa desdenhar dele – dissera

ele para mim, sem motivo, cerca de um minuto após termos sidoapresentados. – Você precisa desdenhar da obediência estúpida do dinheiro.O problema é que, para desenvolver o desdém, você precisa ganhar muito

dinheiro. Quando estiver pronta para discutir sua fortuna, como tratá-la como desdém necessário, me conte.

– Exuberante – falei para Madeline. – Estranhamente, há algo nele queinspira confiança.

– Sim, é a ganância. Você sabe que vai poder contar com ele enquanto oseu pedido maximizar o lucro dele. E quanto a Walker? – perguntouMadeline.

– Continua doente. Não quer me ver.– Você sabe que ele está apaixonado por você, não sabe?Pausa. E então? Eu não sabia?– Você está apaixonada por ele? – perguntou ela novamente.Nossa conexão vacilou sombriamente sobre a linha. Me ocorreu que ela

sabia o que tinha acontecido com ele enquanto estávamos sendo mantidosprisioneiros. Algo em seu tom de voz. O que trouxe de volta, quisesse eu ounão, a imagem de Walker debruçado e com o corpo dobrado, Tunnerenfiando fundo o maldito cassetete, Murdoch observando inexpressivoenquanto conduzia uma conversa ao telefone.

– Você poderia se sair muito pior – disse Madeline.Há algo melhor do que matar quem você ama.– Só estou dizendo – disse Madeline. – Não há muitos caras que valham a

pena ter. Mas Walker é um deles. O seu sinal está ruim de novo, querida.– Eu já tenho mesmo que entrar – eu disse, quando a fome enviou uma

onda estremecedora pelas minhas pernas e cambaleei. – Me sinto uma merda.– Madeline, cortesia da mesma arbitrariedade que governava a outramaldição mensal, não sofria nada até algumas horas antes de a lua nascer nodia da transformação. Era a outra razão pela qual ela fora a escolha óbvia paraservir de babá. A primeira razão fora que Lucy não quisera a responsabilidadede novo. – Amanhã telefono para você – eu disse, adentrando na pequenaplantação de oliveiras além da pavimentação da piscina, onde, por algummotivo, o sinal era forte. – Presumindo que eu ainda esteja viva, obviamente.– Vi Konstantinov sair do quarto de Walker e deixar a porta aberta. Estavacom a testa franzida.

– Walker? – gritou ele.– Não seja boba – disse Madeline.– Walker? – gritou Konstantinov pela segunda vez. Eu não o via agora,

mas ouvia portas abrindo e fechando. Fergus, atento à mudança no ar,desligou o telefone e virou-se para a casa.

– Você ainda está aí? – perguntou Madeline.– Aconteceu alguma coisa – disse a ela.– O quê?– Acho que Walker sumiu.– Sumiu? Como assim?– Espere um segundo.Konstantinov apareceu na varanda.– Escute – disse Madeline. – Eu não est...Você sempre sabe uma fração de segundo antes. Em todos os grandes

momentos é como se, durante o menor fragmento de tempo neutro, vocêpercebesse que toda a sua vida estivesse conduzindo a isto.

Uma figura não saltou ou pulou mas pareceu caminhar muitorapidamente da escuridão à minha esquerda. Tive tempo. Tive algum tempomudo para reparar que estava vestido como um ladrão, roupas justas pretas,balaclava e luvas, tive tempo para reconhecer seu cheiro compactado, tempopara perceber que eu não era mais visível para quem estivesse na varanda epara me perguntar para onde Walker poderia ter ido e o que Madelineestivera prestes a dizer – antes que o homem de preto acertasse o punhocontra o meu rosto.

Senti meu maxilar quebrar e meus joelhos cederem. Meus braçospareceram passar muito tempo debatendo no nada. Algo me atingiu, comforça, na coxa esquerda. Eu estava ciente de tentar segurar o telefoneenquanto o chão pareceu subir. Senti a poeira fresca e ouvi o sangue pulsaruma vez na minha cabeça. Depois, o que parecia ser uma pedra depavimentação atingiu a parte posterior do meu crânio, e todas as luzes seapagaram.

55

A primeira sensação ao abrir os olhos foi de alívio: a fome me dizia que eunão tinha dormido durante a transformação. Me dizia através de espasmosdestruidores e de uma náusea fútil, mas, ainda assim, dizia. Lorcan estavavivo, apesar de não poder restar (a fome também me dizia) mais de três ouquatro horas até o nascer da lua.

Este era o fim das boas notícias.Eu estava deitada de costas em uma jaula trancada dentro do que, em

segundos, eu soube se tratar de um trailer de carga – os flancos sulcados e ofrio com sabor de aço. Meu tornozelo e pulso esquerdos estavam algemados auma das barras, os direitos misteriosamente livres. Dois lampiões brilhantespendiam de ganchos fora da jaula. Eu sentia suor seco nos meus lábios.

– Feliz solstício – disse Murdoch.Me levantei com esforço, primeiro de lado, depois com a ajuda das barras,

até me sentar. Você agradece as pequenas coisas. Agradeci por estar vestindojeans, e não uma saia. As pessoas começam a tentar matar você, você para deusar saias. Ele se moveu para debaixo da luz clara dos lampiões e ali estavam aaltura, a pose e o cabelo branco em corte militar. Ainda vestia a roupa deladrão, menos a balaclava e as luvas. Tinha perdido um pouco de peso, masmantinha a expressão facial de um gavião silenciosamente perturbado.

– O que você quer? – perguntei.Minha garganta doía. A desidratação era um cão emitindo o mesmo latido

agudo repetidamente na minha cabeça. Wulf, no limite de sua paciência,tentava burlar as regras em meus ossos. Mas eram as regras da lua, e por elas

os ossos estavam condenados a preservar a forma. Por ser seu ofíciodepartamental, parte do meu cérebro disparava por entre fluxogramas depossibilidades, os odiados ses e entãos de Jake, no que o resto de mim sabiaque se tratava de um exercício sem sentido. Não havia saída. Não havia saídapois não havia nada que Murdoch desejasse. Ou melhor, o que quer que eledesejasse, necessariamente envolvia o fato de eu não ter saída. Apesar disso, efora os cálculos redundantes, a maternidade animal lançou um imperativoestúpido: implore a ele. Ofereça dinheiro. Ofereça qualquer coisa.

– Reintegração – disse ele.Por favor, por favor, por favor. A maternidade insistia que algum tom

ilusório funcionaria, mas eu precisava identificá-lo. Idiotice em nível celular.Me empurrei, trêmula, até ficar de pé. Suor novo alfinetou minha pele. Wulfrespirava quente em minhas palmas e seios e couro cabeludo.

– Você se lembra da nossa conversa sobre a relação entre sexo e caos? –perguntou Murdoch.

Mentalmente, eu revia os conteúdos dos meus bolsos. Nada no jeans,alguns euros, um lenço, um papel de chiclete, pedacinhos que se soltam dotecido da calça. O casaco? Era um que eu não tinha usado muito e do qual nãogostava particularmente, de lona preta, um pouco largo nos ombros. Naverdade, ele só sobrevivera até Creta por nunca ter sido retirado da bolsa deviagem que eu vinha usando desde quando deixei Nova York, o que pareciaestar uma década de distância. Ele só havia saído da bolsa agora porque a ilhatinha se revelado fria e era a única roupa pesada que eu havia trazido. De todomodo, eu não me lembrava dos bolsos terem algum dia contido um caniveteou um saca-rolhas ou um alfinete ou uma chave de fenda ou qualquer coisaque pudesse concebivelmente servir de arma. Eu estava habituada a carregar aSpringfield em um coldre no ombro, e estava armada quando Murdochsaltara sobre mim, mas a arma fora removida, naturalmente, junto comchaves, relógio, telefone.

– Estou certo de que você se lembra – prosseguiu ele. – Eu disse que sexoera uma força desonesta. Dentro desta arena, significaria distração, conflito,

insubordinação. Em uma instalação como aquela, ele não é apenas um luxoincomportável, é um vírus potencialmente letal.

A lua estava próxima. A astronomia contava regressivamente através deesferas e sombras até o assassinato de meu filho. Todo aquele tempo – vastasmontanhas de tempo –, desde quando ele fora sequestrado, e aqui estávamosdiante do último pedaço se derretendo, um pedaço que mal era grande obastante para ficar em pé sobre ele. A morte de um ente amado vivifica tudobrutalmente, Jake escrevera; ali estava minha previsão repugnante da suaverdade, a violenta sensação de presença contínua que o mundo infligiriaatravés de seus carros, máquinas de vendas, previsões do tempo e comerciaisna tevê, através do meu próprio corpo obstinado que precisaria das unhascortadas, da bexiga esvaziada e das coceiras coçadas. O mundo traía osmortos prosseguindo sem eles, e você, cheia de vida vergonhosamenteconfiável, colaborava.

– Mas não estamos mais naquela instalação – disse Murdoch.O som da própria voz o fascinava porque, não importava o que dissesse,

aquilo quicava no vasto silêncio matemático. Ele não sorria ou olhava comdesdém, cinematograficamente. Apenas se virou e caminhou para a escuridãoalém do brilho das luzes de tempestade. Por causa da leve oscilação enquantoele andava, pude perceber que o trailer ainda estava preso ao caminhão.Onde? A que distância dos Discípulos? Será que ele nem sequer sabia queestavam aqui? Ele tinha que saber. Do contrário, seria coincidência demais.Mas, se ele estava ali, quem mais estaria? Reintegração. Eu compreendia. Elefora rebaixado ou expulso. Escapamos sob sua guarda. Nossa recaptura eraseu único meio de reingresso. Herr Direktor, apresento, para suaconsideração, Objeto A, Talulla Demetriou, lobisomem fugido, ninfomaníaca,mãe ausente...

Uma cãibra dobrou meu corpo, puxando meu tornozelo e meu pulsoalgemados. Alguém fora morto aqui antes. Não recentemente, mas eraimpossível enganar o nariz de cadela aflorando. A lua repuxava meu sangue.Mais próxima do que eu imaginava. Talvez duas horas. Era impossível veralém da parede de luz artificial, mas uma corrente de ar com sabor de capim

seco e resina de pinheiro dizia que a porta do trailer permanecia aberta.Como não era possível piorar a situação, gritei por socorro o mais alto quepude.

Murdoch, saltando de volta para dentro, não se deu o trabalho de me dizerpara não tentar, estamos a quilômetros de qualquer lugar. Era maissatisfatório para ele deixar que seu silêncio tornasse aquilo óbvio.

Ele não estava sozinho. Ao seu lado havia um sujeito com aparênciaestúpida e musculoso, de quarenta e poucos anos, em uma jaqueta de couropreta, calças de combate de cor cáqui e largas e uma string vest. Uma medalhade São Cristóvão brilhava nos pelos de seu peito. Ele tinha lábios carnudos,estava com a barba por fazer e seus olhos cor de tâmaras eram grandes,molhados e de pálpebras grossas. Ele não disse nada. Apenas olhava para mimcom uma espécie de desesperança que me esvaziou de tudo exceto da certezado que estava por acontecer. Eu havia me perguntando por que tinha sidodeixada com o uso de dois membros. Agora, sabia. Pelo mesmo motivo quetinham dado a Caleb as rações de sangue antes de enviá-lo para sua jaula:espetáculo máximo. Murdoch não me queria impotente, ele me desejavasubjugada, com o suficiente de força de vontade para realmente sentir quenão era o suficiente.

Enquanto String vest tirava a jaqueta e abria o zíper das calças, pensei emtodas as vezes que ouvira ou lera sobre alguém sendo estuprado. Decidiimediatamente que não iria lutar. Alguns estupradores gostavam disso. Decidique iria lutar contra o filho da puta com todas as minhas forças. Algunsestupradores gostavam disso. Lutei contra ele no início, mas no final nãoconsegui impedi-lo. Muitos estupradores pareciam gostar disso. Não havia umtipo de estupro para o qual não houvesse um estuprador. Eu nunca havia sidoestuprada. Diante de tal realidade, senti o peso fantasmagórico de todas asmulheres que tinham sido, fileiras e mais fileiras estendendo-se até asprimeiras tristes fêmeas hominídeas galopantes. Números incalculáveis, umairmandade desgraçada e apenas verdadeiramente visível quando você se viaprestes a ingressar nela. Ao mesmo tempo, ali estava a terrível solidão que eusentira quando minha bolsa se rompera. Não importava quantas centenas de

milhões tivessem passado por tal experiência, quando ela ocorria, somente asua versão importava.

– Bem, aqui estamos – disse Murdoch tranquilamente, destrancando aporta da jaula.

Encarei-o.– Vou matar você – eu disse, também tranquilamente. – Você vai me

entregar à organização e vou escapar, como fiz antes, e vou...– Descubro que preciso fazer essas coisas – disse ele, o que impôs uma

pausa estranha entre nós três. – Há um momentum – prosseguiu. – Quandoeu era garoto, me lembro de ter aprendido que se você desse apenas umpequeno empurrão em um objeto no espaço ele continuaria em movimentopara sempre. Presumindo que ele não atingisse nada. Ele apenas seguiria emmovimento, para sempre.

String vest respirava audivelmente pelas narinas úmidas. Eu sentia seucheiro. A mulher em mim cheirava fumaça de cigarro e cerveja e suor,comida frita em gordura velha. O lobo cheirava seu sangue excitado e osferomônios estavam frenéticos, mijo seco, hálito de carne temperada e oprimeiro exsudar de sêmen. Ele queria que aquele período provisório desinceridade terminasse. Era perigoso para ele, minha personalidade feito umachama trêmula ou vacilante, num momento sendo a razão pela qual ele nãopodia, noutro, razão pela qual ele não podia deixar de seguir em frente. Eudisse a ele:

– Espere. Você não precisa fazer isso. Você sabe que não precisa fazer isso.Mas eu sabia que não fazia sentido. O momento de sinceridade tinha

terminado. Estava terminado desde o primeiro passo que ele dera na minhadireção. Agora, tudo que eu dissesse ou fizesse seria provocação. Agora, osimples fato da minha existência era uma provocação. Esta é a natureza doestupro. O rosto dele endureceu um pouco, seus membros se retesaram. Erapor aquilo que ele estava aguardando: a ilusão de necessidade, submissão àforça da droga enfraquecedora.

Este homem vai estuprar você.Todos os documentários e artigos e testemunhos dados por silhuetas.

Todas as pequenas intuições que eu tivera sobre certas mulheres. Ela foi. Elafoi. Ela foi. Tudo isso fulgurava e ondulava como uma nuvem sufocante aomeu redor, e percebi que por trás delas havia um evento real, um homem deverdade eliminando a distância entre ele e uma mulher de verdade. Umhomem pressionando-se contra ela, para dentro dela, através dela, rompendoo limite físico e pilhando imundamente a casa da alma e de memóriasinestimáveis. Por trás de todas essas histórias havia odores cândidos, palmasformigantes, pernas entupidas de adrenalina e a obediência indiferente douniverso à física: a física dizia que se você não pudesse lutar e suas coxasestivessem abertas e o homem estivesse determinado a enfiar o pau dele emvocê, era isso o que iria acontecer. Seu corpo acomodaria aquilo porque seucorpo estava sob a mesma administração sem sentido que as estrelas e asmoléculas. Eu vira aquilo nas minhas vítimas, é claro, a percepção chocantede que uma garra aplicada com a pressão certa abriria a carne macia abaixodas costelas e que não havia nada que o universo pudesse fazer a respeito.Certo, errado, bem, mal, crueldade, compaixão... o universo apenas dava deombros: não conheço essas coisas, só conheço física. Eu vira aquilo nasminhas vítimas. Não vamos esquecer disso. Milhões de mulheres poderiamter perguntado aos seus estupradores, legitimamente: Como você conseguefazer isso? Milhões de mulheres que genuinamente não sabiam. Mas não eu.Eu sabia como ele conseguia fazer aquilo. Ele conseguia fazer porque era bompara ele se fosse ruim para mim. Ele conseguia fazer porque só era o melhorpara ele quando era o pior para mim. Eu conhecia a equação. A equação eraíntegra. A equação não mudava. Somente o meu lugar nela.

Isto era uma opção, é claro, interpretar como justiça poética, umapenitência conquistada através dos meus próprios pecados mortais. TiaTheresa dava muito valor a oferecermos nossos sofrimentos a Deus. Euentreouvira minha mãe discutindo com ela: “Que tipo de sádico torpe Deus épara desejar meus sofrimentos? Não seja tão retardada, Theresa.” Umlampejo de amor por minha mãe explodiu como um belíssimo fogo deartifício – e gargalhei alto.

Sei o quanto seria animador dizer que a gargalhada enervou meu

estuprador, mas não foi o que ocorreu. Ele estava além de tudo aquilo. Agargalhada poderia ter tido alguma chance durante o período de sinceridade,mas não agora. Agora, ele havia mergulhado fundo no próprio sangue esomente uma força externa poderia fazê-lo parar.

Ele estava a menos de 60 centímetros de mim. O calor do corpo deletocava o suor frio no meu rosto. Wulf estava ultrajada com o timing. Umahora, talvez duas, e ela poderia partir o homem ao meio. Mas aquilo faziaparte do plano de Murdoch. Ele queria que eu estivesse o mais próximapossível da dádiva de força física da Maldição sem ser capaz de usá-la. “Penseno que você poderia fazer com ele se ao menos a lua tivesse nascido! Oh, masela não nasceu. É claro. Que pena.”

Sem aviso, String vest avançou contra mim, atirando-me contra as barras.O peso dele foi um eclipse momentâneo – mas atravessado por uma dordistinta e repentina no meu flanco esquerdo, logo abaixo das costelas. Por umsegundo, pensei que ele tivesse me esfaqueado, só que com uma facaabsurdamente pequena e cega. Depois, me dei conta de que havia realmentealgo nos meus bolsos.

Eu tinha parado de usar maquiagem quando estava grávida. Não porprincípio, mas porque na maior parte do tempo minha pele estava tãosensível que esfregar cosméticos nela seria puro masoquismo. Mas aqui, dosdias anteriores à maternidade, havia um lápis de olho. Então me lembrei.Certa noite, em Palm Springs, enquanto eu ainda fingia me sentir ótima arespeito do divórcio, tropecei, bêbada de margaritas, ao sair de um táxi, emetade dos conteúdos da minha bolsa acabou na calçada. Uma amiga meentregou o lápis de olho que eu havia esquecido no chão, e eu o enfiei nobolso ao subir a escada para a boate. Desde então ele tinha ficado lá, com aponta presa em um buraquinho no tecido.

Não se dê o trabalho de procurar pelo sentido de tudo isso. Não há nenhum.Não, não havia. Mas eu não conseguia deixar de pensar no jovem

Konstantinov e no lápis que ele tinha no bolso na noite em que sua amadaDaria Petrov fora atacada por um vampiro. De vez em quando, a vida nosvendia uma ilusão de propósito. Uma coincidência, um paralelo, um símbolo

marcante. Os bens sempre eram defeituosos. Você gastava mais dinheiro sópara descobrir que eles tinham quebrado quando chegasse em casa. Mas avida seguia em frente. A vida não conseguia evitar. A vida era um vendedorcompulsivo.

Por puro reflexo, eu lutava, sem muito sucesso, para manter minha mãolivre. Sem eficácia, eu havia estapeado umas duas vezes a lateral da cabeçamonumental dele, tentei dar uma joelhada em sua virilha, mas as algemasarruinaram meu equilíbrio. Ele só precisava da mão esquerda para prender aminha direita. Ele só precisava se apoiar na minha perna direita para manterminhas pernas abertas.

“Você sabe o que precisa fazer”, disse a voz de minha mãe dentro de mim.Ele rasgou minha camisa e puxou o sutiã até meus seios ficarem expostos.

O ar do trailer em minha carne nua era uma indecência abrupta. Ele emitiuum ruído de aprovação animal moderada, como se tivesse aberto uma caixade chocolates e, apesar de estar de barriga cheia, fosse comê-los mesmo assim.Minha cabeça estava quente. Ele me olhou nos olhos. Ele queria que eu visseque não havia esperança. É claro que era isso o que ele queria que eu visse.Quem sabia melhor do que eu? Fechei os olhos, virei o rosto e deixei meucorpo totalmente flácido. Eu tinha uma escolha: poderia deixar que ele ocolocasse dentro de mim, deixá-lo engrenar, para que seu tempo de reaçãofosse reduzido ao máximo, ou poderia fazer o que quer que eu fosse fazer(“você sabe o que precisa fazer, Lula”) antes que ele me penetrasse,poupando-me os segundos ou minutos de – falhando o eufemismo – serestuprada.

O pau dele estava para fora da calça, a cabeça pressionando contra meuabdome. Era escuro, duro e pornograficamente enorme, cheirando a vaselinae mijo. Eu não o queria dentro de mim. Eu realmente não o queria dentro demim.

Virei o rosto de volta para ele, encontrei seu olhar, depois o deixei me verolhando para o pau dele com um nojo ambíguo. Depois eu o encareinovamente.

– Sem trapaças – disse Murdoch. – Você precisa estar ciente, amigo, de

que ela tem um hist...Um celular tocou. Era o de Murdoch. Ele olhou. Precisava atender. Eu o

ouvir dizer: “Senhor?”, depois ele recuou um passo além da luz.– Por favor, não – eu disse. – Por favor... Por favor... – Deixei minhas

pernas cederem. Deslizei para o chão. Ele me deu um soco, com força, naboca. Meu lábio inferior partiu contra meus dentes. Gritei. Desequilibrado,puxado para baixo ao tentar me segurar, ele largou minha mão livre.

O imperativo gritante era agir naquele instante, mas simplesmente oignorei.

– Ai, meu Deus! – Sussurrei, soluçando. – Ai, meu Deus, ai meu Deus...Imaginei minha mãe de pé perto de mim. “Venda a ele a ideia de que não

resistirá, meu anjo. Vamos lá, venda a ideia. Você consegue. Este merda nãosabe de nada. Este merda é humano.”

Ele me deu outro soco, uma sensação igual a quando caí descendo osdegraus de concreto do jardim de Lauren e bati com a cabeça em uma daslajes. Lauren fora estuprada em um encontro aos 23 anos. Estávamosconversando a respeito e ela havia tentado fazer a coisa soar como umaaventura maluca, como uma noite com um cara hilariamente terrível quedizia e fazia todas as coisas erradas e que até chegou a derramar uma bebidanela – depois ela foi correndo para o banheiro de repente e eu fui atrás dela,onde a encontrei vomitando, e mesmo então passaram-se anos antes que elaparasse de tentar rir do ocorrido como se ele tivesse sido só mais uma de suasestripulias de menina selvagem e pelo qual recusou-se absolutamente adenunciar à polícia.

Ele estava desabotoando meu jeans e – uma vez que eu estavachoramingando, fraca e com o rosto coberto de sangue e catarro – usava asduas mãos para fazê-lo. O homem fervilhava de excitação. Era como se dentrodele houvesse um encantamento inaudível em andamento. Lembrei-me de terlido a cópia da minha mãe de A mulher eunuco. “As mulheres não têm ideiado quanto os homens as odeiam.” Isto não era mais verdade. Minha geraçãotinha uma ideia muito boa. Minha geração tinha decidido permanecer friaquanto a isso, mais ou menos. Sim, os caras odeiam as mulheres. Isto é um

pouco... interessante. Existem apenas dois tipos de caras, Lauren dissera. Otipo que se sente péssimo por degradar você e o tipo que não. O que deixa parauma garota a escolha entre ser degradada e detestar isto ou encontrar umamaneira de gostar de ser degradada. Ou, obviamente, não se meter com oshomens.

Muito lentamente, coloquei minha mão livre no bolso do casaco e pegueio lápis de olho. Joguei a cabeça para a frente e solucei contra o peito úmidodele. Minha testa tocou a medalha de São Cristóvão, evocando a vítima nacasa de Lucy e meu próprio catálogo de carnificina. Wulf estava em atençãoimóvel, intrigada. As mandíbulas fantasma moviam-se nas minhas. Os nervossaltavam sob minhas unhas. Minha mãe disse: “Seja precisa, meu anjo.Acredite que é capaz de fazer isso, e seja precisa. Estou tão orgulhosa devocê.”

Ele havia desabotoado minha calça e enfiado a mão quente dentro daminha calcinha. Palmas calejadas. Perguntei-me o que as mãos dele fariam,em sua outra vida, caso houvesse uma outra vida. Então, envolvi a coxa delecom minha perna livre, apertei com força, fiz um último conjunto de cálculosàs pressas, e disse:

– Ei.Ele olhou para mim.Pensei: olhos grandes. Ótimo. O esquerdo talvez um pouco maior.Então, foi o que escolhi.

56

Com força e precisão, profundo e rápido. Córnea, pupila, lente. A maioria daspessoas erraria. A maioria das pessoas erraria porque o conceito iria derrotá-las. O conceito não era nada para mim. Portanto, não errei. Acertei o fundoda órbita e puxei, minha perna direita livre ainda travada em torno da pernadele como se estivéssemos posando para simular um tango. O urro deleagrediu meu rosto com um hálito quente e que dizia desidratação, nicotina,café, uma samosa. Como o reflexo dele de me repelir foi impedido pela minhaperna, encontramo-nos em um momento estendido, eu ruborizada, elesofrendo o desligamento do choque. Ele parou no meio do grito, como sedesse à realidade uma oportunidade para lhe dizer que estava brincando, avagabunda não tinha realmente acabado de enfiar um lápis em seu globoocular. Mas a realidade não tinha tais notícias. O movimento seguinte dele olibertaria da minha perna e o colocaria fora do meu alcance. As duas mãosdele tinham voado para cobrir o olho destruído.

Portanto, enfiei o lápis no olho saudável.Não foi um golpe tão certeiro.O lápis entrou sob o globo ocular, raspando a órbita – e partiu quando o

homem se curvou para trás, caiu sobre a minha perna e arrastou-se, cego egritando, para o mais longe possível de mim. Não havia muito sangue, masera mais do que suficiente para deixar wulf espumando. Durante um ou doissegundos o animal enrijeceu os músculos nas minhas costas, enviou osprimeiros sinais sérios da transformação através do sacrum, do calcanhar e docrânio. Se há sangue, deve estar na hora. Com certeza, deve estar na hora?

Raios precipitaram nos ossos da minha perna, cotovelos, pulsos; por uminstante senti toda a cabeça gigante empurrando para cima por trás dascostelas, um mergulhador faminto por ar chutando freneticamente até asuperfície. Forcei-me a seguir respirando. Ainda não. Ainda não.

Olhei para Murdoch, o qual, tendo terminado ao telefone, havia voltadopara a luz. A expressão dele permanecia inalterada. O sujeito no chão gritava.

– Você mordeu ele? – perguntou Murdoch, quando o grito morreu.– Me diga o que está acontecendo no plano geral e respondo se o mordi.Ele sacou uma pistola de seu coldre lateral.– Prata desta vez – disse ele. Depois atirou na cabeça de String vest. –

Agora podemos parar de conversar como se você tivesse qualquer coisa com aqual possa barganhar.

– Quem é “Senhor”? – Perguntei.– “Senhor” estará aqui muito em breve. – Ele olhou para o relógio de

pulso. – Se tudo der certo, dentro dos próximos... 22 minutos. Faz muitotempo desde a última vez em que ele viu uma transformação ao vivo,aparentemente.

– Me diga uma coisa. Você sabe o que estou fazendo aqui em Creta? –perguntei a ele.

– Está dizendo que ainda está em Creta?– Bem. Estou? – indaguei.Não sei se Murdoch teria respondido. O telefone dele tocou de novo e ele

atendeu mais uma vez. A mudança no peso do caminhão dizia que ele tinhasaltado do veículo. A porta do trailer se fechou com um barulho. Vinte e doisminutos para o nascer da lua, às (eu sabia) nove e três da noite. Eu ficarainconsciente por uma noite e um dia. Tempo suficiente para Murdoch metirar da ilha. Ou seria mesmo? Se ele tivesse sido demitido, não teriahelicópteros e aviões à sua disposição. Será que ele arriscaria fazer isso debarco? Mas se a WOCOP estivesse na região, eles certamente saberiam sobreos Discípulos. Neste caso, eles próprios estariam em Creta e não haverianenhum motivo para Murdoch me levar para outro lugar. Decidi presumiristo, por enquanto, já que não havia nada a ganhar presumindo outra coisa.

O que não me levava a lugar nenhum. Não faria a menor diferença se euestivesse em Creta ou em Marte, se eu não conseguisse sair da jaula. Vinte edois, ou melhor, 21 minutos para o nascer da lua: quanto tempo Lorcan teriadepois que se transformasse? E será que os outros iriam em frente sem mim?Konstantinov iria, obviamente – mas e o restante deles? Até onde eu sabia,todos pensavam que eu estava morta. Walker teria acompanhadoKonstantinov e, mais provavelmente, jogado fora sua vida, mas Walkertambém desaparecera. Por quê? Eu me lembrava do rosto de Konstantinov,arrastado ladeira abaixo em sua remota agonia épica para o aqui e agora,irritantemente mundano. Ele parecera incomodado; mas nesta altura, seWalker realmente tivesse desaparecido, ele pareceria desesperado.

Enquanto isso, a cadela se desembrulhava, nas fibras, nos ossos. Os nervosnos meus dentes ganiam. Tive uma repentina e equivocada visão da altura dacabeça do monstro e depois voltei rapidamente para a minha própria. A fomeesticava meu sangue. String vest ainda estaria quente quando metransformasse. Havia comida, se nada mais. Você vive. Não existe Deus e esteé o único mandamento Dele. Quinze minutos. Doze. Murdoch ainda aotelefone. As algemas quebrariam ou decepariam minha mão e meu pé.Pareciam mais fracas (de todo modo, mais finas) do que as que tinham meprendido na van com Poulsom, uma vida atrás na floresta de Beddgelert, eaquelas quebraram, enfim, após vários segundos de dor excruciante.

A transformação estava próxima. Me virei e agarrei as barras da jaula.Algo em que me segurar, enquanto fosse possível me segurar em algo. “Aqui”,eles dizem nos filmes, “morda isso.”

A porta se abriu. Vozes. Murdoch subiu no trailer. Não estava sozinho.– Não estou prometendo nada, John. Sou um de seis. Você sabe disso. –

Sotaque inglês forte, classe alta.– Estou ciente, senhor. Sei o quanto preciso compensar. Isto é um começo.– Bem, e então, onde ela está? – perguntou o outro homem.O companheiro de Murdoch – “Senhor” – era um asiático (Indiano?

Paquistanês? Cingalês?) com pouco mais de 60 anos, cabelo grisalho espesso eoleoso penteado para trás da testa em um topete ondulado. O tipo de olhos de

pálpebras pesadas que me fez pensar na lagarta fumante de narguilé de Alice.O rosto dizia que o corpo havia absorvido prazer excessivo como seu direitode nascença. Terno de três peças feito sob medida, camisa branca, gravatavermelho-sangue. Um anel de ouro losangular no dedo mínimo com umenorme rubi achatado. Odores superficiais de Chanel pour homme, fumaça decharuto e incenso de jasmim em torno dos fedores mais profundos de suor,urina, merda. A carne dele era pesada de bebida e colesterol, sua barrigamorosa lotada. Ele tivera recentemente os dedos e o rosto entre as pernas deuma mulher. Eu esperava que tivesse sido com o consentimento dela – e talpensamento evocou Madeline. E, consequentemente, Zoë, e Lorcan, e,portanto, o tempo acabando.

Ele caminhou até a jaula, olhou para o cadáver de String vest.– Suponho que não deva perguntar – disse ele.– Danos colaterais, senhor – explicou Murdoch. – De todo modo, ela

precisará se alimentar.– “Ela” está aqui, diga-se de passagem – eu disse, tremendo. – Se alguém

estiver interessado.Senhor virou-se para mim:– Como está se sentindo, Srta. Demetriou? – perguntou ele.Não pude responder. A penúltima fase estava passando. A lua já se

conectara com o que quer que fosse na terra. As solas dos meus péspinicavam. A primeira da meia dúzia de cãibras fortes veio, dobrou-me omáximo que as algemas permitiriam. Bile quente subiu e foi expelida.Murdoch ergueu uma câmera digital. Minha escápula guinchou, estendeu-se,estalou. Tirei meu braço solto do casaco enquanto ainda podia. Senhorobservou. Ele parecia Deus piscando malignamente em uma nuvem de tédiocósmico. Pense em Konstantinov com três lobisomens atrás dele arrombandouma porta com um chute e uma multidão de vampiros gritando. Espere, meuanjo. Espere. Eles estão vindo. Mas e se não estiverem? Nenhum sentido empensar nisso. As costuras no meu jeans explodiram. Senhor acendeu umcigarro fino e, com uma boca de peixe, fez um anel de fumaça que tremulou

entre as barras e flutuou na minha direção como um pequeno espíritozombeteiro.

– Senhor – disse Murdoch. – Sei que minha opinião não é importante...– Relevante, John, não é relevante. Sua opinião sempre é importante para

mim.– Como quiser, mas, neste caso... devo dizer...O que quer que fosse, ele não estava exatamente pronto para sua

articulação diplomática.– Eu sei, John, a companhia que estamos mantendo. Mas você mesmo

sabe que há uma longa tradição de cooperação.– Mas eles estão nos pagando – disse Murdoch.– Generosamente. Chamam de recessão global por um motivo, John.– Eu sei, senhor. Mas ainda assim.– Flexibilidade, John. Resolvemos o mistério do Clube do Café da Manhã,

diga-se de passagem.– Senhor?– A fórmula é falha. Letalmente. Eles morrem mais cedo ou mais tarde,

dependendo do número de doses.– Mas Remshi? Ele ainda resiste? – perguntou Murdoch.– Ele só aparece claramente em close-up nos dois primeiros filmes. Depois

disso, poderia ser qualquer um.Os dois primeiros filmes. Eles tinham visto as filmagens sobre as quais Mia

nos contara. O Clube do Café da Manhã: vampiros que caminhavam duranteo dia. O que significava que eles sabiam que os Discípulos estavam aqui. Oque significava quase com certeza que ainda estávamos na ilha. O quesignificava o que significava o que significava?

Nada, se eu não conseguisse sair dali.Dor. Pulso esquerdo, tornozelo esquerdo. As algemas tinham cortado a

carne. Por um instante, tive dois braceletes ardentes. Depois, a algema dotornozelo estourou. Doce alívio, apesar de o ferimento imediatamente terjorrado sangue.

– Está tudo bem – disse Murdoch. – Estavam aí só para a mulher.

A algema do pulso quebrou. Outro desabrochar de dor aliviada. Wulfsubiu sinuosamente pelas minhas canelas, detonou simultaneamente nosjoelhos e cotovelos e com um som de gelo partindo repuxou minhasmandíbulas e nariz em presas e focinho – o que rompeu o último lacrehumano sobre o olfato, e o mundo gloriosamente fétido falou plena elivremente outra vez: a descarga de adrenalina e o suor resfriando de Stringvest; as toxinas ricas do charuto; o odor de assassinato e de aço lubrificado dotrailer; o fedor rítmico de carne e sangue excitados dos dois corpos vivos.

Me joguei contra a porta da jaula. Não cedeu. Os arrebites eram sólidos eas barras eram um limite. Nenhum dos homens recuou. Fechei os olhos e vigrama úmida passando sob mim, senti o peso da minha filha nas minhascostas. Zonas rurais escuras e ondulantes, uma corrente prateada pelo luar.Abri os olhos. Sofri a atração do cadáver ainda quente. Fechei-os de novo e vio solo diferente, terra e agulhas de pinheiro caídas correndo sob mim em umavelocidade incrível, senti uma batida de coração dentro de mim e um sextosentido ignorado em Murdoch marretando tão alto que não dava paraacreditar que ele simplesmente estava ali parado, segurando a câmera,enquanto a cabeça que eu tinha por dentro se levantava para ver os fundos deum caminhão com um trailer flanqueado por cedros, iluminado pela lua nocéu, um guarda solitário em uniforme da Caçada espiando nas sombras, rifleno ombro. Nossas bocas se abrindo de alegria quando saltamos e sentimos osminúsculos detalhes do ar, trapaceiros, passarem voando pelos cabelos emnossas orelhas antes do doce impacto e o grito, meu uivo temporizado sendoabafado, e o primeiro sabor de sangue da noite vindo da garganta rasgadaantes que suas mãos gigantes abrissem a porta e Walker, transformado,aparecesse emoldurado pela floresta iluminada pelo luar.

57

Escute. Eu não ia...Escute. Eu não ia contar a você, mas eu o mordi. Sei porque você não

conseguiria. Entendo. Mas não importa se ele acabar me odiando, não émesmo? É o que ele queria. E não reclame. Foi só uma mordida. Nada desafadezas. Como eu disse, você precisa de toda a ajuda que conseguir, e comoestou nesta maldita função de babá...

PRATA! MURDOCH! PISTOLA!Murdoch estava a caminho de sacá-la quando Walker saltou. Vi o rosto de

Murdoch. Todo o tédio desapareceu como se fosse uma graça repentinamenteretirada por Deus, e ali, deixado para trás, estava o desesperado e totalmentegenérico desejo de não morrer. Ele pensou ter chegado ao final de si anosatrás, através da violência e do vasto vazio matemático. A morte iminentetornava a ideia nonsense. Ele poderia muito bem ter 8 anos de idade.

Reflexos são coisas terríveis. Confrontado com o lobisomem solto, reflexosempurraram Senhor dois passos mais perto do lobisomem enjaulado.

Dois passos eram o bastante.Se a mão dele não estivesse entrando no paletó (para pegar uma arma), eu

poderia ter acabado somente com o paletó. Mas ele não conseguiu tirar obraço rápido o bastante, apesar de eu ter ficado impressionada pela manobrater ocorrido a ele. Em vez disso, icei o homem pela gola para juntar-se a mimnas barras, onde a parte de trás da cabeça dele bateu com um estalo tão altoque fiquei espantada por ele não ter desmaiado. O pânico levou Senhor poruma via expressa até a verdade: ele estava prestes a morrer. Captei um

segundo da corrida que a psique dele dava através de seus conteúdosempilhados, na esperança desesperada de que houvesse alguma coisa, algumacoisa, alguma coisa ali dentro que pudesse salvá-lo. Mas é claro que não havia.Nunca há. Afundei todos os cinco dedos com unhas de navalha da minhamão direita em sua garganta e fechei rapidamente, fazendo de sua traqueia,esôfago, laringe, faringe e veias tireoides um punhado de coisas escorregadias,que apertei – e arranquei.

Enquanto isso Walker, alcançara Murdoch antes que este alcançasse suaarma. Murdoch estava deitado de costas, menos o braço que tentava pegar aarma. Agora o ombro terminava em carne irregular em torno da junta aberta,veias rasgadas bombeando sangue para fora como se tivessem pressa para selivrar dele, como se estivessem morrendo de vontade de fazer aquilo há anos.A arma em si estava ao meu alcance. Espremi o resto da vida de Senhor (aliestava um banquete barroco, uma vida cheia de extremos casuais e desviosindulgentes, mas se eu começasse iria me perder dentro daquilo), deixei-ocair e agarrei a pistola. Não foi fácil retirar um pente com mãos de lobisomemmolhadas de sangue – e a prata zunindo em meus ossos –, mas consegui naterceira tentativa.

NÃO TEMOS TEMPO!Para tudo que você quer fazer. Por favor. Nós temos que partir.Murdoch já tinha gastado o pouco de atenção que o corpo dele permitia

com o braço perdido, apesar do encaixe ainda cuspir sangue sem força, agorauma imagem fútil de ejaculação. O corpo dele tinha o quadro geral em vista.O quadro geral era a morte. O rosto de Murdoch havia mudado. O olhar deáguia permanecia, com um tremor apavorante. A boca tornara-se infantil.Walker, eu sabia, queria duas coisas. Ele queria que Murdoch o reconhecesse,e queria que Murdoch sofresse durante muito tempo antes de morrer.

EU SEI, MAS, POR FAVOR, APENAS LIVRE-SE DELE.Anticlímax. O momento de vingança sempre é assim. É apenas a fome por

vingança que nos vivifica. Murdoch não saber que aquele lobisomem eraWalker era como uma perda.

De repente, Walker investiu, mordeu e, como um cachorro, sacudiu o

braço remanescente na altura do ombro, puxando com fúria concentrada. Aboca de Murdoch virou-se para baixo, pálpebras tremulando como as de umagarotinha sedutora. Depois de uma pausa estranha, silenciosa, trêmula –Murdoch tentando desacreditar o que sabia que estava acontecendo –, obraço saiu da articulação com um enfático ruído molhado. Murdoch gritou.

POR FAVOR, WALKER. MEU FILHO. VÃO MATÁ-LO.Mas não era o bastante. É claro que não era o bastante. Tudo o que

Murdoch tinha feito a ele (ou mandado que fizessem com ele, para mostrarque era algo sem importância, delegável) estava de volta com Walker, em suapele, seu sangue, seus ossos, exigindo que ele encontrasse uma equação deviolência para apagar tudo. Tal equação não existia. Nada seria suficiente. Elerasgou as calças e a cueca de Murdoch. Murdoch, sem braços, contorcia-se egania. As últimas luzes de sua consciência crepitaram. Com o que pareciabizarramente ternura, Walker colocou a mão por trás da cabeça de Murdoche o levantou, da mesma maneira que se faria com um homem doente paraajudá-lo a bebericar em um copo d’água. A outra mão de Walker pousousobre os genitais de Murdoch. Murdoch, tremendo, olhos arregalados,disperso, repentinamente focado.

– Você? – sussurrou ele.Walker concordou com a cabeça. Sorriu, embora olhos humanos não

pudessem perceber.Então ele arrancou o pau e as bolas de Murdoch. Jogou a cabeça para trás.

Uivou.

58

Levamos dez minutos correndo o mais rápido possível para chegar aomonastério, que ficava em um vale que tinha aproximadamente a forma deuma colher, na metade da subida para a parte côncava em uma amplaprateleira natural, cercado por uma muralha de pedras brancas. A frente domonastério era voltada para a parte longa e estreita do vale; os fundos eramconstruídos na curva da encosta.

A lua ainda estava descomplicadamente cheia. O eclipse não começariaantes das onze e quatro da noite e atingiria o ápice à meia-noite e quarenta edois – segundo Mia, a hora sacrificial. Tínhamos tempo. Por todo o benefícioque nos traria. O plano, antes de tudo dar errado, havia sido simples. Nãosimples no sentido de que fosse provável dar certo, mas simples por terapenas três componentes. O primeiro era eliminarmos os seis guardas noperímetro, dois em cada um dos três portões na muralha. O segundo eraKonstantinov, Lucy, Fergus e três dos mercenários entrarem na ala leste (trêsguardas) e libertarem Natasha. O terceiro era eu, Cloquet, Walker, Trish e osoutros mercenários entrando na ala oeste, onde Lorcan estava instalado (maisquatro guardas), e pegá-lo. Tudo isso deveria acontecer em plena luz do dia,com zero vampiros e liberdade para fazer quanto barulho quiséssemos. Anotícia de Mia, que uma dúzia ou mais de vampiros poderia estar desperta esaboreando o ar do meio-dia, não havia mudado nada, apesar de ter reduzidoo que já era um otimismo risível para suicídio puro. Balas não matariamchupadores, obviamente, se bem que balas suficientes iriam retardá-los umpouco. A escolha de armas fora baseada em combates com familiares

humanos. Konstantinov tinha encomendado um par de bestas apenas porgarantia, e havia três facões, mas não era nem de longe o bastante.

Contudo, mesmo tais probabilidades eram melhores do que as queenfrentávamos agora. Até onde Walker e eu sabíamos, éramos uma força dedois contra vinte humanos e 79 vampiros totalmente despertos.

Uma trilha de terra clara descia pelo lado oeste da colina em uma série decurvas sinuosas. Ignoramos esta opção, preferindo cortar caminho através dacobertura das árvores. Plainas, ciprestes, carvalhos e muitos pinheiros perenespara manter a escuridão profunda. Ali o ar estava frio e parado, a gramasurpreendentemente viçosa sob nossos pés. Nenhum de nós tinha sealimentado. Deliberadamente. A saciação teria nos deixado lentos. Estávamosentrando e saindo de um estado de intuição mútua que beirava a telepatia. Eusentia o choque dele diante de quão vorazmente ele desejava a vida agora. Nofim das contas, a licantropia não tinha apagado o que ocorrera com ele, masobrigara Walker a superar o episódio. A dádiva brutal da Maldição era que,não importava quais fossem suas histórias de terror humanas, ela as reduziacom a nova manchete: VOCÊ SE TRANSFORMA EM UM MONSTROTODA LUA CHEIA!

Walker estava tonto com a nova perspectiva, imaterial, mostrando a eleque o mapa de si próprio que ele havia considerado completo era agoraapenas uma pequena parte de um vasto e desconhecido continente. Os fatospuramente físicos ainda eram um sacrilégio formigante nas palmas das mãosdele, nas solas dos pés. O corpo de Walker ainda retumbava assombro diantedaquele novo truque celular. Wulf esticava-se e estalava nele, chicoteava coma satisfação da posse, enviava boletins obscuros do escopo de sua força atravésdos nervos mutantes. O eu humano fugira e se escondera como um gato, eagora espiava espantado para o novo morador da casa, objetivo, o qual – eraóbvio – não se satisfaria com nada menos do que a fusão completa. Ele sótinha 12 noites ao ano. E nessas 12 noites ele exigiria tudo e não negaria nadaa si próprio.

Meu coração batia forte por causa da corrida. O ar era muito frio para arespiração ficar visível, as fumacinhas de desenho animado para indicar um

touro furioso. Algumas minúsculas flores de inverno, pálidas, nosobservavam como fadas na escuridão inferior. A fome ardia e se contorcia emmeu sangue. Mais uma hora e ela nos deixaria inconsequentes. O âmago dewulf era um idiota com um vocabulário de uma única palavra:Comer...Comer...Comer... – até que você realmente come, então o idiota ébeatificado e lhe dá em troca uma profunda paz animal.

Cinquenta metros. Quarenta. Trinta.Segundo os rascunhos da planta do monastério enviados por Mia pelo

smartphone, a estrutura era construída na forma de uma cruz de braçoslargos. Além da muralha havia um pátio semicircular com degraus em umadas extremidades que conduziam à entrada principal. Através das portasprincipais, um saguão oferecia cinco escolhas, dois corredores à esquerda,dois à direita e um bem adiante. Ele seguia por algumas portas duplas e ia darna câmara principal, o quadrado no centro da cruz, uma grande sala semjanelas e com um altar em um estrado na extremidade oposta. Tínhamosorientações detalhadas de onde Lorcan e Natasha estavam sendo mantidos nosubsolo. No caso de Lorcan, provavelmente inúteis agora. Eu me perguntavaquanto a Natasha. Especificamente, se ela ainda estaria viva. Konstantinovpedira a Mia que fizesse uma descrição física da esposa. Mia fizera melhor.Tinha enviado uma fotografia. Era difícil distinguir o fundo, mas não haviadúvida de que era Natasha. Tirada com um flash que a deixava mais branca,franzindo levemente os olhos, a mão erguida como que para manter ofotógrafo afastado.

Parei na margem da cobertura fechada das árvores. Havia apenas cerca deuma dúzia de árvores entre onde eu estava e o aclive que conduzia até amuralha e o portão. Walker estava atrás de mim e colocou os braços ao meuredor. As mãos dele cobriram meus seios, o focinho roçou em mim. Sim. Istoestava disponível, apesar de tudo. É claro que estava. Havia urgência em seutoque, mas também tristeza. Todo o tempo que tínhamos perdido. E agora,em breve, estaríamos mortos. Reclinei-me para trás, pressionando o corpocontra o dele e senti a gigantesca corrente subjacente. Seria tão docemergulhar nela. Durante algum tempo não haveria mais nada. A lua não faria

objeções. A lua estava pronta com sua bênção. Eu estava prestes a me virarpara ele – Eu sei, mas não posso, mesmo apesar de nada importar, mesmoapesar de Deus ter endurecido o coração do Faraó...

Congelamos. O ar se moveu, pouco mais do que o suficiente para balançaras pétalas de fadas. Ele também sentira o cheiro.

Um galho quebrado estalou e algo passou rapidamente pela grama.Depois, três figuras vieram da escuridão até nós.

59

Lucy, Fergus, Trish.Com uma saca de estacas manufaturadas às pressas. Reconheci pernas de

cadeiras e mesas da villa, afiadas grosseiramente. Mais os facões.A história deles vinha em clarões e tropeços, três versões como três sacas

de objetos variados sendo esvaziadas em uma colina, detalhes distintosaleatórios, confusão geral, nenhum tempo de parar e criar ordem.

Não ordem, talvez, mas sentido: Konstantinov e Cloquet tinham pegadoos mercenários e entrado como planejado durante o dia. Não tinham sidovistos desde então. Uma combinação de pragmatismo (Fergus), medo (Lucy)e instinto (Trish) fizera os lobisomens aguardarem.

Portanto, as probabilidades tinham melhorado e piorado. Melhoradoporque agora havia cinco de nós. Piorado porque os vampiros quasecertamente sabiam que estávamos chegando.

*

Só havia duas opções. A primeira era invadir em massa e esperar que nãosoubessem que estávamos a caminho. A segunda era presumir que nãosoubessem quantos estavam chegando, e tentar fazer com que istofuncionasse a nosso favor.

COM VOCÊ.NÃO. COM ELES. PROFISSIONAL.

Ele sabia que fazia sentido. Meus três companheiros não contavamquando era cada um por si. Lucy estava à beira de nos abandonar. Trish eFergus estavam dentro, mas sem liderança abandonariam a missão – fodendo,perseguindo familiares dos vampiros – em uma questão de minutos.

VOCÊ SABERÁ QUANDO.EU SEI.Para garantir, manteríamos o plano pós-resgate original: passaportes,

dinheiro, primeiros socorros e roupas estavam escondidos no entulho de umacasa de fazenda decrépita a 1,6 quilômetro dos limites da cidade de Mesavlia,e duas vans alugadas estavam estacionadas na própria cidade. Se acabássemosnos separando, quem quer que chegasse aos veículos deveria aguardar até asnove da manhã. Quem quer que não aparecesse até este horário, estaria porconta própria. Dali, era um trajeto curto de carro até o aeroporto em Chania.

ME DESCULPE POR TUDO.É sempre tudo errado, o timing, a brusquidão com a qual a única coisa a

dizer é adeus, seu corpo descrente obrigando a si próprio a dar meia-volta,afastar-se e sair correndo.

60

A muralha em torno do monastério tinha três portões. O do meio estavaaberto. Não havia ninguém visível, mas quando cruzamos a entrada, o fedorde vampiro me derrubou. Estremecendo, expeli bile e saliva. O mundooferecia detalhes vívidos, caso eu desejasse coisas com as quais desperdiçarconsciência: a sombra de uma pedra do pavimento iluminada pela lua; umaguimba de cigarro; a frieza do chão. Você precisa superar isso. Você precisa. Aurgência do heroísmo. Não significava nada para o meu corpo. Quando melevantei cambaleante, minhas pernas estavam vazias. Minha cabeça era aanfitriã de um enxame murmuriante.

Uma mudança na luz me fez olhar para o alto, à esquerda. Um vampiro,macho, jovem, alto, louro, usando uma faixa da ridícula pasta bloqueadora deolfato sob o nariz, estava de pé sobre o portão oeste com uma pistolaapontada para mim. Outros dois – um macho negro de meia-idade e umafêmea com um rosto amassado de passarinho e cabelos negros divididos aomeio – apareceram ao lado do primeiro como se estivessem simplesmentetomando forma do nada. Esses dois também estavam com os bigodes depasta. Não foi surpresa ver outros dois quando virei a cabeça para o portãoleste – uma fêmea com jeito de Meg Ryan e um macho com moicano epiercings no rosto – empoleirados no lado oposto dos colegas. Todosmirando em mim, todos em silêncio.

– Munição de prata – disse Rosto de Passarinho. – Você está sendoaguardada. Siga em frente.

Presuma que não saibam a respeito dos outros, presuma que não saibam arespeito dos outros. Presuma que – mas se souberem estamos fodidos.

SUBAM A RAVINA. CINCO NA MURALHA DO PÁTIO. DESÇAMRAPIDAMENTE.

Os planos de pedra do prédio estavam saturados de luar. Subi, precedidapor minhas sombras ondulantes, a meia dúzia de degraus até as portasprincipais. Elas estavam entreabertas. Abri-as totalmente com um empurrão,e o cheiro que rolou para fora como a língua de um animal morto mederrubou novamente de joelhos. Ouvi um dos vampiros – Meg, pensei –gargalhando atrás de mim. Fiquei de pé novamente, corpo dobrado, mãos nosjoelhos, pernas combatendo o próprio delírio particular. O corredor tinha opé-direito alto, piso de mármore azul-escuro e era iluminado por suavesluminárias de marfim embutidas nas paredes. Segundo a inteligênciafornecida por Mia, dois outros corredores se abriam à esquerda e à direita.

Respire. Respire. Respire. Para derrotar um odor desagradável, você bebedele, aplica uma overdose daquilo em seus receptores, torna o relatório delesredundante. Endireitei a postura, estremecendo. Trinta passos diante de mimuma porta dupla de aço bateu, estalou e silvou ao se abrir 15 centímetros. Armais frio. Nele, o fedor concentrado dos não mortos, incenso, cera de vela,carne e sangue humanos.

E o cheiro do meu filho.Isso limpou minha mente. Me senti cansada, luminosa e calma, como me

sentia depois de um dia de muitas brincadeiras quando era criança. Apesar detudo, o pequeno espírito da mais pura vida estava feliz por ver os últimosgramas de escolhas flutuando para longe. Havia tão poucas coisas que eupodia fazer agora que seria mais fácil fazê-las. Enchi os pulmões, me alonguei,fiquei totalmente ereta e caminhei na direção das portas.

A sala além das portas era alta, quadrada, branca e sem janelas, comparedes cobertas de placas de vidro, e parecia que todos os Discípulos (com aexceção do meu comitê de boas-vindas lá fora) estavam presentes. Uma dúziade familiares favoritos atendia aos donos.

Lorcan, transformado e irradiando sofrimento, estava deitado de costas

sobre o altar, pulsos e tornozelos presos por amarras. Ele virou a cabeça aocaptar o meu cheiro e olhou para mim.

Tudo parou. Ele me reconheceu, soube quem eu era, me desejou. Foiterrível. A instantânea disposição dele para recomeçar do zero, para deixarque nada mais importasse, a perdoar-me completamente se ao menos – ah, seao menos – eu viesse e o reclamasse agora. Até aquele momento, eu não mepermitira me ver recuperando-o como qualquer outra coisa que não umproblema que eu me determinara a solucionar. Eu jamais havia me imaginadosegurando-o em meus braços. Eu jamais havia me imaginado colocando-opara dormir ao lado da irmã. Eu jamais havia imaginado o depois. Imaginar odepois seria uma provocação contra o Deus que não estava lá para que Eleterminasse as coisas no antes. Agora, a 10 metros dele, eu sabia que havia algodo tamanho de um oceano inclinado atrás de mim, querendo desmoronar.Estivera lá o tempo todo, como a morte.

NÃO TENHA MEDO. NÃO VOU ABANDONAR VOCÊ.Como foi estranho saber que era verdade. Eu não o abandonaria. Foi uma

dádiva surpreendente para o meu coração. Sorri, embora apenas um outrolobisomem pudesse ter visto.

– Talulla – disse Jacqueline, ela própria sorrindo, enquanto os vampirosmais próximos de mim recuavam, tapando os narizes apesar das ridículastiras de pasta. – Bem-vinda. Se por nenhuma outra razão, pelo menos agorasei exatamente onde você está.

Ela vestia calças pretas e justas de camurça e uma blusa de seda preta.Cabelo vermelho ao estilo Hitler, como antes. Olhos vermelhos salpicados emaquiagem precisa, glamorosa. De pé ao lado dela estava um vampiro macho,alto, magro e consideravelmente bonito. Transformado com pouco mais de30 anos de idade e só Deus sabe há quanto tempo. Cabelo escuro na altura doombro, um rosto de traços finos, com maçãs proeminentes e olhos queimobilizavam uma pessoa; eram de um verde-prateado pálido, repletos deuma onisciência clemente. Ele poderia ter interpretado o papel de Jesus.Estava descalço, vestindo um conjunto indiano de seda marfim, uma kurtalonga com gola de Nehru e calças largas de pijama decoradas no tornozelo.

Pensei no que Mia dissera: Há algo aqui, é verdade. Muito antigo. Eu não sei.Muito antigo. Eu podia sentir. Luz do sol em um pátio romano. O cheiro deescravos e terra. Grandes pedras indo para cima. Mil e seiscentos quilômetrosde floresta. Luz de fogo na boca de uma caverna. Gelo, em todas as partes.Não são muitos os que vivem mais de mil anos. Aquele vivera. Remshi.

Havia outros vampiros dispostos em um semicírculo malformado emtorno do casal real, segurando velas ou incensários. Um pequeno púlpitoficava ao lado do altar, ocupado por um chupador gorducho e baixinho comcabelos brancos cheios em corte de cuia e uma barba branca feito um pincelendurecido. Ele usava o que para mim parecia um macacão branco deoperário. Um grande livro estava aberto sobre um atril diante dele. Doisoutros... sacerdotes, supus, visto que eram os únicos vestidos de modouniforme nos macacões absurdos, estavam de pé um em cada lado do altar.As roupas deles me fizeram pensar em Laranja mecânica. Seis colunas de açoexposto sustentavam o telhado. Konstantinov, coberto de sangue, estavasentado algemado, inconsciente (não morto, meu nariz dizia), à base dacoluna à esquerda do altar. Cloquet, ileso, até onde eu podia dizer, estava depé, algemado à coluna do lado direito.

Eu estava correndo os olhos pelas fileiras em busca de Mia. Eu nunca avira, mas tinha dito a mim mesma que a reconheceria quando isso ocorresse.A lógica precisava se sustentar: até onde ela sabia, se eu não saísse dali viva,ela nunca mais encontraria o filho. Portanto, Mia precisaria se assegurar deque eu sairia viva dali.

– Estão todos mortos – disse Cloquet.– Receio que seja verdade. – concordou Jacqueline. – Mas você já sabia

disso. Do contrário, não estaria aqui.Estão todos mortos. Ela concordara. Ela não sabia sobre os outros.– C’est vrai, n’est pas? – perguntou Jacqueline a Cloquet. – Ela quer

negociar?AINDA NÃO.Cloquet olhou para mim. Não havia o menor sinal que eu pudesse dar a

ele de que eu não estava sozinha. Ele estaria se perguntando se jamais veria

outro nascer do sol.– Você quer oferecer a si mesma em troca do seu filho – disse Jacqueline

para mim.Lorcan debateu-se contra as amarras. Senti nos meus próprios pulsos e

tornozelos. O esforço para permanecer parada estava me deixando tonta.Todos os meus fracassos formavam um calor que se comprimia ao meu redor.Respire. Respire. Respire.

– Eu, pessoalmente, não tenho filhos – prosseguiu Jacqueline. – E, nadapessoalmente, devo lhe dizer que odeio a idiotice que toma conta adultos nominuto em que se tornam pais. Mas é claro que compreendo. É um instinto.

– Não somos sádicos, Sra. Demetriou – disse Remshi, sorrindo. A voz deleera quente, ressonante, delicada, com um sotaque diferente de tudo que eu jáouvira. Era difícil, depois que o primeiro olhar revelava você, encontrar osolhos prateados do vampiro. Vi uma imagem dele de pé em um deserto,sozinho, à noite. Areia gelada. Estrelas que desciam até o chão. O passadoremoto estava aqui, na sala, séculos tornados insignificantes, um aterrorizanteefeito de compressão. Era terrível estar conectado àquilo, como quando eu eragarota e meu pai me deu a linha da pipa para segurar e, ao vê-la lá no alto, tãodistante no céu, mas ligada a mim, fiquei aterrorizada e enjoada e comecei achorar. – O sangue de gammou-jhi é o sangue de gammou-jhi – prosseguiuRemshi. – Seu, do seu filho, não faz diferença. Se você quiser tomar o lugardele, isto é aceitável para mim.

– Não dê ouvido a eles – disse Cloquet. – Eles vão dar você ao Helios paraque tirem as Famílias das costas deles.

Remshi gargalhou, com o que parecia divertimento genuíno.– É claro – disse ele. – E vamos frequentar cemitérios, vestir capas negras e

girar nossos bigodes dizendo “Ha–harr” com grande satisfação pela nossaperversidade.

Konstantinov, em uma corrente intrometida de consciência, gemeu,depois voltou ao silêncio. Jacqueline olhou para ele.

– A ironia é inexaurível – disse ela. – Soltamos Natasha ontem à noite. Elaestá lá fora, livre como um passarinho. Provavelmente, em um avião indo

para casa neste instante.Olhei para Cloquet.– Quem sabe? – disse ele. – Provavelmente está morta.– Garanto a você que ela está muito viva – disse Jacqueline. – Viva e em

liberdade, se bem que não propriamente a mesma mulher que era quandoveio a nós.

O vampiro arrumado de cabelo grisalho, o mesmo do ataque no Alasca,entregou uma seringa a Jacqueline. Ela contornou o altar, desceu os quatrodegraus e caminhou pela coxia para ficar a 2 metros de mim. Agachou-secorretamente, com os joelhos juntos, pousou a seringa no chão, ficou de pé.

– Um sedativo – disse ela. – Você entende?Sim, eu entendia.AGORA! AGORA!Nada aconteceu.Apontei para Lorcan. Ele primeiro.– Talulla – disse Jacqueline. – Sejamos adultas. Ou você pode confiar em

nós e fazer exatamente como mandarmos, e neste caso há alguma chance deque seu filho sobreviva, ou pode morrer exatamente aqui e agora, e neste casoseu filho certamente seguirá o seu caminho. Olhe ao seu redor, por favor.

Pelo menos uma dúzia de membros da congregação tinha armasapontadas para mim. Prata, minha espinha dizia. Todos os que nãoseguravam armas carregavam cópias de um livrinho com capa de courovermelho. Naturalmente. O Livro de Remshi.

AGORA!Nada aconteceu.– É agora ou nunca, Srta. Demetriou – disse Remshi. – Não temos muito

tempo. Perdoe-me caso eu soe meticuloso, mas, para melhor ou pior, háprotocolos, e aguardei quatroc...

– Mova-se e isto vai atravessar o seu corpo – disse a voz de Mia. – Nãofale, só faça exatamente o que eu mandar.

Ela era um dos membros do grupo em torno do altar. Agora, tinha o braçoem torno da garganta de Remshi.

– Céus, isto é uma estaca? – perguntou Remshi. – Sério? Você realmenteacredita que uma estaca vai...

– Cale a boca – disse Mia. – Jacqueline, solte o garoto.– Você perdeu a cabeça? – perguntou Jacqueline.– Não fale. Apenas faça.– Meu Deus, pelo amor de Deus – disse Jacqueline.– Vou lhe dizer uma coisa – falou Remshi. – A última vez que alguém

tentou isso foi em Florença em mil duzentos e oitenta e...Não sei como ele fez aquilo. Os movimentos foram tão rápidos que,

quando cessaram, foi como se uma fração de tempo tivesse simplesmente sidoremovido. Em um momento, Mia estava atrás de Remshi com o braço emtorno da garganta dele, no seguinte ela estava no chão, desarmada, com acabeça sangrando onde ela rachara ao bater na lateral do altar. Remshi tinhaum joelho cruzando a garganta de Mia e a estaca pousada sobre o seio dela.

– Quem é você? – perguntou ele.Mia cuspiu na cara dele.– Pizda – disse ela.– Encantador! Que fala bonita para uma dama.Um murmúrio espalhara-se pela congregação. Um vampiro de cabelo

claro destacou-se do aglomerado e pisou na coxia.– Mia – disse ele. Depois, prosseguiu em russo que autoevidentemente se

traduzia em algo como: Mas que merda você está fazendo? O irmão dela,percebi. Dimitri. Os mesmos olhos glaciais e a boca sensual.

Mia respondeu ao irmão em russo, com significado que não eraautoevidente. Perguntei-me o quão forte seria a fé dele. Sem dúvida,Jacqueline havia pregado que o novo messias dividiria entes amados,colocaria marido contra mulher, irmão contra irmã...

– Solte-a – disse Dimitri. O inglês dele veio com um leve sotaqueamericano.

– Fique quieto, Dimitri – disse Jacqueline.– Solte-a agora.– Dimi, por favor – insistiu Jacqueline.

Ele deu três passos na direção do estrado, narinas tensas, mãos sepreparando.

– Segurem ele! – ordenou Jacqueline. Imediatamente, três vampirosmasculinos da primeira fileira agarraram Dimitri e imobilizaram-no no chão.

– Meu senhor – disse o sacerdote ao púlpito. – Realmente precisamosprosseguir. O tempo é crucial.

– É isto? – gritou Mia, olhos fechados. – Isto é o melhor que você conseguefazer? Sua merda inútil.

Ela estava falando, percebi, comigo. Sim, isto era o melhor que eu podiafazer. Fracassar. Meu filho morreria e Mia também, acreditando que eu tinhamatado o garoto dela. Se eu fosse capaz de falar, teria dito a ela: “Está tudobem. Deixarão que ele parta em uma semana.” Mas eu não podia falar. Elamorreria me odiando.

– Se você não se incomodar, Talulla – disse Jacqueline. – O sedativo?Não restava nada. Me agachei, ostensivamente, para pegar a seringa, na

verdade para obter o máximo de velocidade e força para um salto. Perguntei-me quantos eu conseguiria matar antes que uma das balas me atingisse.Jacqueline primeiro. Arrancar aquele sorriso pintado com precisão em seurosto precisamente satisfeito consigo mesma. Lorcan olhou para mim, soltouum apelo com um pequeno som entre um latido e um ganido.

“Sinto muito, garoto. De verdade, lamento tanto.”– Isso está demorando demais – disse Jacqueline. – Injete-se agora ou eles

atiram.– Irmãos e irmãs – disse Remshi, braços erguidos. – Foi uma longa espera,

mas finalmente um novo dia está nascendo!– Mentira! – gritou uma voz masculina do meio da congregação.Vampiros e familiares, atordoados, se viraram para a origem da voz.– Fraude! – gritou a voz, aparentemente de um lugar totalmente diferente.– Silêncio! – gritou o sacerdote ao púlpito. – Quem é você? Quem está

falando?– Perguntem a eles por que mataram Raphael Cavalcanti – disse a voz, de

um terceiro lugar. – Vamos lá, perguntem a eles por que eliminaram o pobre

e velho Vincent Merryn...Olhei para Mia. O olhar que ela devolveu me disse que o que quer que

fosse aquilo não tinha nada a ver com ela. A parte do olhar dela que nãoestava tomada de ódio por mim.

– Jacqueline? – perguntou Remshi, com a voz muito baixa.Madame estava visivelmente confusa. Seus pequenos punhos se fecharam

sob os seios. Eu sabia que era um hábito de infância. Eu tinha uma imagemdela quando criança, de pé, justamente naquela posição diante do pai ao levarum sermão.

– Mostre-se – gritou ela. – Mostre-se!– Me mostrar? O que você é? Cega? – disse a voz... E ali, de repente, para

onde todos olharam, havia uma figura descendo pelo ar com os pés na frente.

61

O silêncio era denso, parecia realçar sinestesicamente detalhes visuais: aschamas das velas; os brincos de pérolas de Jacqueline; a borda branca edourada do livro do sacerdote. Com a possível exceção do meu filho, todos nasala estavam olhando para o vampiro que agora estava parado – fumando umcigarro – na base dos degraus que conduziam ao altar.

A idade humana o teria colocado na faixa dos quarenta e poucos anos, umhomem magro e de olhos escuros com não mais de 1,72m, com a pele da corde café com leite e cabelos pretos longos e empoeirados. Um rosto de lábiosgrossos com a mobilidade e a travessura de um chimpanzé. Lindas mãosescuras, apesar de as unhas estarem imundas. Usava uma jaqueta em estiloaviador, o couro rachado, sobre uma camiseta branca e calças de combateverde-claro enfiadas dentro de botas de caubói gastas. Não seria uma surpresadescobrir que ele tinha acabado de completar uma viagem de moto de 1.600quilômetros. Seria uma explicação para seu ar de exaustão, alegria jovial eimundície.

– Vocês são ridículos – disse ele. – Absolutamente ridículos.Eu estava pensando: Ele não fede. Impossível. Mas não fede. O sotaque

dele, como o de Remshi, não tinha origem, mas era bastante diferente. Eupoderia jurar que já o ouvira antes.

– Me dê isto aqui – disse ele, aproximando-se de um vampiro atarracadode cavanhaque que estava na primeira fila da congregação, arrancando olivrinho vermelho de suas mãos.

– Quem diabos é este sujeito? – perguntou Remshi.

– Quem diabos é este sujeito? – imitou o recém-chegado em falsete. –Bem, você deveria saber, Bolhinhas.

– É... Ele é um de nós – disse Jacqueline. – Marco, o que está fazendo?O vampiro de jaqueta de aviador, “Marco”, folheou o livro vermelho,

cigarro encaixado no canto da boca, olhos apertados contra a fumaça quesubia pela lateral do rosto. Olhei para Mia. Remshi ainda a mantinhaimobilizada no chão, mas a atenção dele mudara de foco. Ela sabia, e estava sepreparando.

– Repito – disse Marco. – Perguntem a eles por que mataram RaphaelCavalcanti e Vincent Merryn.

– Merryn estava trabalhando para a WOCOP – disse Jacqueline. – Todossabem disso. O que você pode possivelmente pensar...

– Merryn estava trabalhando para a WOCOP, sim, mas isso não era tudoque estava fazendo, e não foi por isso que vocês o mataram, não é mesmo, mabichette? Ah, aqui estamos: Vor klez mych va gargim din gammou-jhi:“Quando ele beber o sangue do lobisomem.” Algum acadêmico na plateia?

A sala permaneceu absolutamente imóvel, sólida com a consciênciaconcentrada da congregação. Jacqueline estava no seu limite. A expressão emseu rosto tremulou.

– Linguistas? Historiadores? Não?– A tradução está correta – disse o sacerdote, exasperado. – “Vor klez

mych” é “quando ele beber” e “va gargim” é “o sangue”. Todos aqui sabem oque significa “gammou-jhi”. Realmente, madame, isso é ridículo. Ele deve serexpulso imediatamente.

Em um movimento quase tão rápido quanto o que o subjugara, Mia socoupara o alto com a base da mão e atingiu Remshi com uma força incrível sob oqueixo. Todos ouvimos o pequeno tuc! dos dentes inferiores dele se chocandocom os superiores. Ela se contorceu para sair de baixo da estaca e, antes queRemshi pudesse reagir, se lançou no ar para longe dele – embora depois desomente um segundo ela estar de novo no chão, atraída, parecia, por ummagnetismo repentino.

– Fique quieta, srta. Tourisheva, pelo amor de Deus – disse Marco. –

Gosto de seu estilo, mas 74 contra um... ou dois – ele deu uma piscadela paramim – são probabilidades idiotas. Agora, onde eu estava? Sim, a tradução. –Ele deu o último trago no cigarro e jogou-o fora. – “Vor klez mych”, como osacerdote destacou, é realmente “quando ele beber”. O problema é que“mych” é um verbo errôneo. Ele está aí há mais de 4 mil anos, mas estáerrado. O original tinha um verbo completamente diferente. Não é verdade,Madame?

As narinas de Jacqueline fumegavam. Ela recuou na direção do altar, ondeRemshi estava de pé segurando a mandíbula.

– A palavra original foi perdida porque a palavra original no texto foiobliterada – disse Marco. – Fisicamente obliterada por uma ponta de flecha,diga-se de passagem, mas isso é outra história. Fora o autor do livro, somenteduas pessoas sabiam o que a frase dizia, antes da lacuna.

– Matem-no – disse Jacqueline. – Matem-no agora.Pelo menos dez chupadores da congregação saltaram para a frente –

depois pararam, como que em confusão profunda. As bocas deles abriam efechavam. As pálpebras tremelicavam.

– E as armas – disse Marco.Os vampiros armados fizeram todos exatamente a mesma coisa: olharam

para suas armas, franziram a testa, desenvolveram uma breve porém intensatremedeira nas mãos que as seguravam, emitiram um barulho de surpresa,depois as largaram. Uma das pistolas disparou e atingiu um dos Discípulos nacanela. Os vampiros que seguravam Dimitri mal se moveram quando ele sesoltou com um movimento dos ombros e foi até a irmã.

– Quem é você? – repetiu Jacqueline.– E outra coisa – disse Marco, baixando o livro e dirigindo-se aos fiéis. –

Esta baboseira sobre a luz do dia. Onde estão eles, estes cretinos crédulos quecaminharam por aí durante o dia?

– Remshi deu o dom a eles – disse Jacqueline. – Vocês viram com ospróprios olhos. Todos vocês viram. – Definitivamente, sua voz tinha agora umtom de defesa. – Olivia. Olivia? Olivia e Federico, onde estão vocês?Apareçam. Pronto. Eles andaram sob o sol na manhã de hoje.

Dois vampiros, uma mulher magra e sardenta com quarenta e poucosanos e um rapaz com pele olivácea e todas as características fisionômicas umpouco próximas demais no meio do rosto foram até a frente do grupo.

– Pronto – disse Jacqueline. – Você mesmo viu o filme.– Certamente o vi – afirmou Marco. – Vi todos os filmes. Eles caminham,

falam, sorriem para a câmera, assistem à CNN, ficam por aqui um ou doisdias, depois desaparecem. Nenhuma dor de cabeça, Olivia? E Federico, comoestá aquela erupção no seu calcanhar?

A fórmula é falha. Letalmente. Eles morrem mais cedo ou mais tarde,dependendo da quantidade de doses.

Federico e Olivia entreolharam-se. Depois, olharam para Jacqueline.– Dores de cabeça, erupções cutâneas, febre, coma, morte. Qualquer coisa

entre 48 horas e uma semana. Uma melhoria no Helios. As cobaias delessaltaram essas preliminares sem importância e simplesmente foram diretopara a morte. Geralmente, em 12 horas. – Depois, para Federico e Olivia, eledisse: – Sinto muito, pessoal.

A pergunta era: será que eu conseguiria arrancar as amarras de Lorcan doaltar? Quando iniciasse minha ação, eu teria talvez dois segundos. Eu não viaas fivelas claramente de onde estava. Se eu tivesse um dos facões, poderiadecepar as mãos e os pés dele. Eu poderia ter feito isso. Ele me odiarianovamente. Mas eles cresceriam de novo, e eu compensaria para ele...

Marco seguira Jacqueline quando ela subiu os degraus. Agora, ele estavacara a cara com Remshi. Visualmente, uma oposição ridícula. Remshi eraalto, belo, vestia roupas elegantes, tinha os olhos transcendentais e a pele demarfim imaculada. Marco parecia um vagabundo maltratado pela estrada.

– O autor de O livro de Remshi – disse Marco em voz alta o bastante paraque todos ouvissem – era um indivíduo errático e impulsivo. Ele renegou olivro, o qual, de todo modo, ele alegava ter elaborado como uma piada àprópria custa. Das duas pessoas que conheciam o verbo original, uma não seimportava com esse tipo de coisa, mas a outra fez uma cópia para si com overbo correto reinserido. Cópias posteriores seguiram-se, mas nenhumasobreviveu... ao menos, era o que se pensava. Mas Vincent... – Ele fez uma

pausa... – Merryn... – Na palavra “Merryn” ele deu um tapa tão forte nacabeça de Remshi que o vampiro cambaleou, ficou sobre uma só pernadurante um momento cômico e quase caiu antes que Jacqueline agarrasse seubraço para ajudá-lo a se equilibrar. – Vincent Merryn, Deus abençoe esseintelectual fantástico, encontrou uma. Imaginem só! Uma versão corretapalavra a palavra do livro sagrado! A palavra viva!

– Ai, meu Deus! – disse Jacqueline, em voz baixa, no que soou como a vozde um homem. – Ai, meu Deus!

– Vincent Merryn contou a Raphael Cavalcanti, e Raphael Cavalcanti,querido espetacular idiota que era, contou à Sua futura Alteza Real, MadameJacqueline Delon.

Com a ajuda do irmão, Mia Tourisheva se levantara, mas com umaexpressão de estar lidando com significativas obstruções invisíveis. Umacrescente do suor cor-de-rosa que eu vira em Caleb aparecera sobre seu lábiosuperior.

– E vocês sabem, pequenos famintos – prosseguiu Marco –, vocês sabemqual era o verbo perdido? Podem imaginar por que ele não se adequava aopequeno plano de Madame? Vocês ficarão impressionados quando eu lhescontar, ficarão mesmo.

Palpável suspense entre os discípulos. Não me surpreenderia ver paredes eteto desenvolvendo uma pulsação visível. Jacqueline afastou-se de Remshi.Havia uma película úmida em seu rosto perverso e belo.

– Madame? – perguntou Olivia, em uma voz baixíssima. – É verdade? Nósvamos morrer?

Duvido que Jacqueline fosse responder a essa pergunta, mas jamaisdescobrimos, pois naquele momento as portas se escancararam e quatrolobisomens encharcados de sangue invadiram a câmara.

62

ELES NÃO SENTIRAM NOSSO CHEIRO CHEGANDO!Durante um instante ninguém se moveu. Foi como se o universo exigisse

que todos os envolvidos parassem por alguns segundos para absorver arealidade incendiária da situação: espaço confinado; mais de 70 vampiros emestado de choque coletivo; cinco lobisomens famintos.

Então Trish jogou a cabeça decepada da vampira parecida com Meg Ryannos pés do altar, no qual ela bateu com um inocentemente ressonante crack! –e a paralisia coletiva explodiu.

Saltei para meu filho.O altar era de granito branco, refrescantemente frio para as palmas das

minhas mãos e as solas dos pés. As amarras de Lorcan eram braceletes presosa painéis por cabos curtos e pregados à pedra: tudo feito de aço. Mais do quesuficiente para deter um bebê lobisomem. Não o bastante para conter umlobisomem adulto. Dois, três, quatro segundos de resistência – então o anelprendendo o cabo da mão esquerda estourou. Felicidade lógica instantânea:se eu podia quebrar um, poderia quebrar quatro. Tive uma visão atordoantede mim mesma com meu filho e minha filha em forma humana (o rosto deLorcan como o rosto humano que wulf conseguia ver ainda que o resto demim não conseguisse) aninhados juntos em um sofá em uma casa perto domar, com uma lareira acesa e a tevê ligada, Cloquet fazendo o jantar nofundo. Precisei expulsar a visão da minha mente. Me fechar para tudo, excetoromper os cabos. Tudo exceto isso.

O segundo cabo estourou. Estendi a mão para o terceiro. Detalhes doborrão que era o ambiente registravam-se, quisesse eu ou não. A maioria dosvampiros, desnorteados, traumatizados pela missa fracassada e pelo messiasestapeado, tentava simplesmente escapar da câmara, e os poucos que nãotentavam fugir estavam sentindo a força total dos lobisomens furiosos defome. Mas a fome funcionava de duas maneiras: frustrada, era combustívelpara a fúria; confrontada com presas vivas, esquecia-se de tudo mais.Chupadores não eram comida (o veneno gritava, na verdade), mas o punhadode familiares humanos em debandada era. Por enquanto, minha força devontade e o fedor de medo de Lorcan eram uma coleira frágil, contendo amatilha, mas não havia nenhuma garantia de que duraria. O ar era uma orgiade odores: sangue de vampiro e carne humana e nossos próprios fedoreshonestos e caninos. Vi Walker arrancar a cabeça de um Discípulo com umaúnica patada. Fergus saltou para interceptar o sacerdote de cabelos brancosno meio do voo (uma colisão de basquete), cravou uma estaca nele, ficou como punho preso nas costelas do vampiro, arremeteu de volta para o chão epuxou o braço rasgado pelos ossos quebrados.

Minhas mãos sangravam. Os cabos deixaram linhas de fogo nas palmas,mas restava apenas um para romper. De repente, senti as mãos quentes domeu filho agarrando o pelo nas minhas costas.

Mãe.Direito. Perdão. Demanda.Quase lá, meu anjo.O corpo decapitado de um vampiro voou sobre minha cabeça e chocou-se

contra o pilar de aço de Cloquet. Cloquet, mãos atadas, chutou-o para longe.Meu filho primeiro. Não se preocupe. Vou resgatar você.Alguém estava próximo. Levantei os olhos.Marco estava a 2 metros de mim, acendendo outro cigarro, me

observando. Atrás dele, Walker tinha alcançado Konstantinov e estava quaselibertando-o. Tive uma ilusão do som – a trilha sonora da sala, de carnificinaou da câmara de torturas – sumindo, como se eu tivesse mergulhado. O ar detravessura não deixara totalmente o rosto de Marco, mas fora o bastante para

dar lugar a uma cintilante expressão de reconhecimento – parte convite, parteprovocação –, sob a qual me senti peculiarmente pequena, finita e conhecida.Peculiarmente jovem. O Ai, meu Deus! de Jacqueline me ocorreu novamente,o rosto dela com a expressão de ter perdido momentaneamente a inteligênciaque a guiava.

Sua expressão indicava que eu deveria olhar para a minha esquerdajustamente quando o som voltou de repente. Então me virei tarde demaispara desviar de um enorme vampiro com corte de cabelo militar que caiusobre mim como uma bigorna, arrancando o cabo da minha mão (senti umafatia de pele ser arrancada da palma da mão esquerda como se alguémpuxasse o maior Band-Aid do universo) e me impulsionando com ele do altaraté os degraus. Ele tinha uma teia de aranha tatuada no rosto. Hálito de carnepodre e o fedor de merda de porco da pele dele encheram minha boca, nariz,cabeça, tudo de mim. O apelido dele, provavelmente, era Geronimo ouBanzai ou Cachorro Louco. Era um idiota sorridente cuja única rota para acredibilidade era realizar feitos insanos. Ele caíra sobre mim. O braçoesquerdo dele estava atravessado sobre minha traqueia e a mão direita tinhaos dedos cravados profundamente no meu seio esquerdo. Ele ia arrancá-locompletamente. Ei, olhem só isso: peito autêntico de lobisomem! Meu ladoesquerdo retinia de choque por causa da queda (os degraus quebraram três ouquatro costelas), mas meu braço direito estava livre e em pleno comando desuas faculdades. Cravei com força meus dedos afiados como vidro na partemacia de suas costas, forcei uma ação de rosca até conseguir atravessar omúsculo e alcançar a privacidade molhada de seus órgãos mutantes. Agarreium punhado do que quer que ele tivesse lá dentro – caso fossem intestinos,tinham a consistência de carne seca coberta de vaselina –, fiz novamente omovimento de rosca e puxei o mais forte que consegui. Dois segundos deresistência – depois aquilo que eu segurava rasgou, saiu solto na minha mão edestampou um jato repentino de sangue escuro cheirando a esgoto nãotratado. Ele gritou, perdeu a força por um instante. Tempo suficiente para euenfiar de novo a mão no buraco que abrira, pressioná-la contra a espinha eempurrar com a minha pélvis, para virá-lo de costas. Eu só tinha um segundo,

mas não precisava de mais do que isso. Fechei minha mandíbula em torno dopescoço dele, não engula o sangue, até juntar os dentes, enfiei dois dedos naboca que gritava, então mordi, balancei a cabeça e puxei até a cabeça grande ecareca do vampiro se soltar.

A sensibilidade começava a voltar ao meu lado esquerdo. Fiquei de pé ecorri de volta para meu filho.

Como o universo é perverso, o quarto cabo mostrou-se mais difícil do queos outros três. Minhas palmas cortadas ardiam e estavam escorregadias desangue, e fiquei ali durante o que pareceu uma hora, firme e fazendo força,mãos em hemorragia, coxas trêmulas, enquanto ao meu redor o som sumiude novo e imaginei a mim mesma ficando presa daquele jeito para sempre,como uma cena em uma versão macabra daqueles globinhos com neve.Walker libertara Konstantinov e o colocara, inconsciente, sobre o ombro.Dezenas de vampiros tinham escapado (quando a munição de prata saía dojogo, eles realmente não queriam jogar), mas ainda restavam pelo menos 20em diversos estados de combate ou mutilação. Trish abrira caminho atéCloquet e cortara suas amarras com um dos facões.

Lorcan era agora o único de nós que permanecia prisioneiro.Uivei. Os cabelos dos vampiros se eriçaram.O cabo roçava em osso exposto nas duas mãos.Vi Marco levantar os olhos e dizer:– Visitantes. Em outra ocasião, senhora.Então as fibras de aço se romperam, a cacofonia da sala voltou de repente

– e meu filho saltou nos meus braços.Felicidade fecha seus olhos.Mas se você é um lobisomem, prata os abre.Neste caso, para ver Remshi no chão, convulsionando perto de uma de

nossas estacas improvisadas, e Jacqueline Delon de pé sobre ele, segurandouma das pistolas abandonadas com as duas mãos, apontada diretamente paramim.

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Tudo que eu queria tempo para fazer era me virar e colocar meu corpo entrea bala e meu filho. Nem isso consegui. Eu ainda estava na metade domovimento e da compreensão de que Jacqueline não se daria o trabalho defazer o discurso de vitória dos vilões de Hollywood e que na verdade iriadisparar imediatamente quando uma explosão (como se uma bomba-relógioestivesse tiquetaqueando dentro do próprio Remshi) detonou aos seus pés.

Calor do tamanho de um planeta nos atingiu, fazendo as paredes, o teto eo chão girarem. Ficamos no ar, girando, por horas. Tempo suficiente pelomenos para ver que Marco desaparecera e que não havia sinal de Jacqueline.A metade inferior do cadáver de Remshi desaparecera. Sem ser desafiado,Fergus alimentava-se de um familiar em um canto. Lucy tinha as mandíbulasem torno da garganta de uma vampira, idade humana em torno dos 70 anos,com manchas hepáticas nas mãos, brincos de diamantes e o que havia sidoum elaborado coque prateado no começo da noite. Trish dera o facão aCloquet, mas os vampiros remanescentes na sala estavam mais interessadosem escapar do que em lutar.

Lorcan e eu caímos no chão quando uma segunda explosão abriu umburaco na parede oeste e junto com o cheiro de explosivos deixou entrar o arfresco da noite de Creta com seus aromas de tomilho, pinheiros e capimúmido. Também permitiu a entrada de tiros e do barulho sem alma dehelicópteros.

Meu filho moveu-se contra mim.Vivo. Ele está vivo, e você o tem.

Eu sabia que ele estava vivo porque as queimaduras da explosão faziamLorcan ganir, e os ganidos me contorciam por dentro. Em algum lugardistante, Zoë também estava sentindo uma versão atenuada do trauma delena pele dela. Precisei esmagar uma descarga de felicidade diante dopensamento dos dois deitados encolhidos um ao lado do outro. Ainda não.Ainda não. Mais duas explosões, das quais a segunda arrancou um grandepedaço do telhado e enviou Fergus voando através da coxia para aterrissar,atordoado e ensanguentado, a alguns metros de mim.

WOCOP. VAMOS EMBORA AGORA.Walker, com Konstantinov desmaiado sobre seus ombros, estava me

levantando com uma das mãos sob meu braço.NÃO SEI SE É PRATA. PRECISAMOS NOS MOVER RÁPIDO.Fergus estava se levantando com esforço. Trish e Lucy revezavam-se entre

bloquear a saída e se alimentar de um familiar infeliz que caíra ali. Osvampiros remanescentes fugiam na direção do buraco no telhado. Holofotesazuis e brancos dos helicópteros da WOCOP iluminaram o interior da sala,oscilaram, apagaram. Um vampiro atingido por pelo menos 20 setas demadeira (os dardos de nogueira da Ave Maria) gritou e caiu de um dos pilaresde aço.

Ao lado de Mia.Ela estava consciente, mas presa sob uma laje de alvenaria caída. O irmão

dela tinha desaparecido.Olhamos uma para a outra. Eu sabia o que ela estava pensando: Você

conseguiu o que queria. Você me deixa aqui, eu morro. Ninguém para irprocurar por você e seus filhos. Ela estava resignada e desgostosa. Resignadaporque não vivia em um mundo no qual uma apelava à melhor natureza daoutra. Desgostosa porque, depois de todas as coisas que vira e fizera (suahistória flutuava ao seu redor, como se o fantasma dela ensaiasse a partida),aqui estava ela prestes a encontrar seu fim ignominiosamente, impotente,imobilizada, pronta para um figurão da WOCOP lhe cravar uma estaca oudecapitá-la ao seu bel-prazer, algum idiota mortal cujas memórias em relaçãoàs dela eram como uma pulga para uma cidade.

Vampiros são fortes, mas não como nós. Sentindo meu sinal, Lorcanbalançou-se para as minhas costas e pendurou-se, deixando meus braçoslivres. A expressão de Mia não mudou. Nós nos compreendíamosmutuamente.

Se você pensa que isto significa que não vou matá-la, está enganada.Eu sei. Consegue andar?O fêmur e a tíbia esquerdos dela estavam quebrados, a tíbia perfurando a

pele leitosa logo abaixo do joelho. (Pernas que fariam jus a uma propagandapara meias-calças de qualidade. Ah, Deus, Jacob, eu queria que você estivesseaqui!) Por mais rápido que ela se regenerasse, não seria rápido o bastante paratirá-la de lá antes que os capangas chegassem. Um dardo de nogueira atingiu-a no rosto, atravessou a bochecha esquerda e entrou em sua boca. Ela puxou-o para fora e cuspiu sangue negro. Outros dois atingiram a perna quebrada.

Ofereci a ela minha mão.Visivelmente nauseada – narinas tremendo, ânsia de vômito, boca

revirada para baixo nos cantos –, ela a pegou. Perguntei-me se algum dia elateria tocado em um lobisomem.

Walker, incapaz de suportar o cheiro dela tão próxima, abriu algumadistância entre nós.

Juntas, Trish e Lucy tinham comido pelo menos um terço da vítima. Nasminhas costas, Lorcan ficou teso ao sentir seu cheiro – mas não faminto.Tinham-no alimentado naquela noite de alguma maneira. Possivelmente,algum drogado ou retardado ou um familiar obrigado. Ou, como homenagemaos filmes, uma jovem camponesa com seios inquietos e saia rasgada, olhosarregalados, pele molhada de suor. Não importava como tivessem feito, euconseguia sentir nele os respingos de vida estranha, o enriquecimento sujo.Apesar de aliviada, eu ainda estava faminta. Walker também. Ele haviatomado a vida de Murdoch, mas não o devorara. Na hora pensei: ele não oquer dentro dele. Não Murdoch. Não dentro dele.

ME AJUDEM COM ELA.Mas eles não conseguiam. O cheiro. O cheiro. Em vez disso, Trish pegou

Lorcan. Ele foi para ela prontamente, quando lhe enviei o sinal. Minha alma

se rasgou um pouco quando o peso dele saiu de mim. Isso sempre aconteceriadali em diante, enquanto nós dois vivêssemos. Coloquei Mia sobre meuombro, apesar de saber que aquilo a mortificava. Senti-a tendo ânsias devômito, percebi que ela não estava usando a pasta sob o nariz; é claro: elaqueria saber quando estivéssemos chegando.

Corremos até o pátio. As tropas da WOCOP ainda não estavam em solo, ehavia apenas quatro helicópteros. Alguns vampiros tinham assumidoposições – armados com metralhadoras – e devolviam o fogo. A lua, naprimeira fase de seu eclipse agora religiosamente redundante, era um pêssegocom as pontinhas vermelhas. Walker, carregando Konstantinov no ombro,estava adiante, à minha esquerda, Fergus à direita. Cloquet (tendo largado ofacão em troca de uma metralhadora abandonada) estava perto de mim, aomeu lado, correndo rapidamente com a aparência de que fazer aquilo iriamatá-lo. Lucy e Trish cobriam a retaguarda. Uma espécie de vertigem fluíaentre nós. Cloquet não seria capaz de seguir na nossa velocidade. Precisariasofrer a indignidade de ser carregado. Fergus, assim que pensei, virou para aesquerda e içou Cloquet como um bombeiro faria.

A primeira das árvores fora da muralha estava próxima. Arrastando-se nadireção dela, hilariamente exposto, havia um familiar ferido de algumvampiro.

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Corremos até nos aprofundarmos mais na floresta, avançamos 400 metros eparamos para respirar. Pinheiros, azinheiras, bordos. Ar com sabor demadeira e uma sensação de santuário. A WOCOP não nos seguira. Pensei quecompreendia: Mas eles estão nos pagando, Murdoch dissera. As CinquentaFamílias, foi o que ele quis dizer. Incapaz de localizar os Discípulos, elastinham terceirizado ao contratar a Caçada. Trabalho feito e nenhum sanguede vampiro nas mãos deles. E um bônus se deixassem os lobisomens vivos. Oprojeto Helios não desistira de encontrar na genética licantrópica a chavepara a tolerância à luz do dia.

A lua estava quase totalmente eclipsada. Eu tinha me perguntado se fariaalguma diferença. Não fez. Se alguma coisa, a energia de wulf estava maior.Certamente, o eclipse não havia afetado meu apetite. Tínhamos rasgado ohumano dos vampiros em pedaços portáteis e Walker e eu devoramos nossasporções em dois minutos, mal levantando as cabeças. Trish e Fergus tinhamescapulido para foder. Depois de alguns momentos de vacilação palpável,Lucy os seguira. De todo modo, alguma coisa se perdeu, lembrei-me deladizendo. Não existe vida antiga para mim agora.

Walker, obviamente, estava excitado. Ele me desejava (e sabia que eu odesejava), mas ele sabia que eu não deixaria Lorcan de novo. Não agora.

VÁ COM ELES. QUERO QUE VÁ.Atordoada, relaxada e destravada de alívio, eu realmente queria que ele

fosse. O pensamento dele se divertindo com Trish ou Lucy (ou Fergus, se aMaldição tivesse começado a devorar suas outras certezas) ou todos os três

juntos não me incomodava em nada, porque eu sabia o quanto faria bem aele. Não somente não me incomodava como me enchia de um prazertranquilo e benigno. Justamente naquele momento, a noção de monogamiaparecia grotesca, antivida e absurda.

NÃO HÁ TEMPO. MIKE.Alívio, naquela escala, evidentemente despertava a idiotice. É claro que

não havia tempo. Konstantinov precisava de tratamento. E assim que nosorientássemos, precisaríamos seguir em frente. Os outros se perderiam ou nosalcançariam, mas, de todo modo, wulf tinha terminado sua discussão comeles.

E NÃO É SEGURO.Mia, ele queria dizer. A perna dela (ela empurrara a tíbia de volta com a

mão) estava regenerando ninguém sabia com que velocidade, e apesar de nãohaver muito que ela pudesse fazer comigo ali havia Cloquet e Konstantinov alevar em consideração. Ela já conseguia andar, embora mancasse de modoobviamente excruciante.

ESTÁ TUDO BEM. OLHE.Joguei um pequeno graveto em Cloquet, que estava recostado em uma

árvore parecendo que ia vomitar, para chamar a atenção dele. Apontei paraMia, depois gesticulei como se estivesse ao telefone.

– Estou entendendo você? – perguntou Cloquet. – Esta é a situação quediscutimos?

Os olhos de Mia observavam tudo. Concordei com a cabeça: Sim. Vá emfrente.

Ele virou-se para Mia.– Caleb está no porão de uma casa na cidade de Lymington na costa sul da

Inglaterra – falei. – Estou enviando agora uma mensagem de texto com oendereço para você. Ele está sendo cuidado por um médico que lhe fornecesangue quando necessário. Seu filho está bem, mas não em plena força.Depois de falar com ele, o médico deixará sangue suficiente para que ele serecupere completamente. Ele também deixará dinheiro e o número do

telefone no qual você está prestes a falar com ele. Você pode fazer acombinação que desejar para encontrá-lo. Isto é aceitável?

Mia olhou para mim. Como eu, ela havia treinado a si mesma paraendurecer o coração. Mas agora estávamos ali, e eu podia sentir o pequenocampo de força de desespero em torno dela. Era desespero querendo apermissão para assumir sua forma verdadeira: amor.

Gesticulei para Cloquet seguir em frente. Ele discou. Não deve ter tocadomais do que uma vez. (Imaginei Budarin escutando: o rosto redondo,imperturbável, o corpo tão elegante quanto o de um pardal bem alimentado.)

– Ponha Caleb na linha – disse Cloquet e depois entregou o telefone a Mia.Ela falou uma palavra em inglês: “Caleb?”, depois mudou para o russo.Ou foi uma coincidência ou um testemunho ao poder de sua língua nativa

que Konstantinov, que estivera inconsciente durante todo o tempo (eu penseique estivesse em coma), tossiu, disse algo em russo, cuspiu uma bolha desangue e sentou-se.

Problemas acumulavam-se como tráfego aéreo. Como Murdoch haviaemboscado a casa em Falasarna, havia todas as chances de que saberia sobreas identidades escondidas e as vans de fuga. No pânico da fuga, acabamos nosdesviando muito do caminho. Mesavlia estava agora a quase 10 quilômetrosde onde nos encontrávamos e não haveria cobertura durante todo o percurso.Nosso único contato prático era o vendedor de armas suspeito em Atenas eseus colegas não confiáveis em Heraklion. Konstantinov precisava de água ede antibióticos. Não tínhamos nada.

Mas eu tinha meu filho de volta. Desmerecidamente, injustificadamente,uma segunda chance.

Ele estava encolhido no meu colo, adormecido, pensei, mas quando baixeios olhos, vi que olhava para mim. A gigantesca primeira realização – mãe –ardera através dele nos segundos e minutos estendidos do resgate e tornoutodo o resto irrelevante. Mas agora sua descarga emocional por reflexo tinhaterminado, e outras informações – mais verdades inconvenientes – estavam sereafirmando. Ele sabia, em um nível inferior ou além da articulação, duascoisas. Uma, eu era culpada. Dois, ele tinha sofrido. Havia um espaço vazio

entre essas duas coisas sabidas. Olhando para mim, deixando o calor do meucorpo fundir-se com o dele, ele estava decidindo o que fazer com aqueleespaço vazio. Estava decidindo se o fechava ou não com uma conexão.Consegui visualizá-lo daqui a anos como um adolescente magro e fortesentado na margem da piscina na villa em Los Angeles, movendo as pernaslentamente na água marmorizada pelo sol, depois levantando o olhar paramim com a versão humana do olhar que me dava agora, um olhar de quemsabia ter poder de julgamento sobre mim. Seria como um talismã que elepoderia utilizar a qualquer momento, para me fazer parar no meio do quequer que eu estivesse fazendo, para me fazer parar no meio de estar amando-o, provavelmente, se ele tivesse herdado alguma das perversidades e acrueldades da mãe.

Olhamos um para o outro e compreendemos tudo isso, mascompreendemos também que haveria amor a ser arruinado, o que era melhordo que nenhum amor.

Ele piscou. Gradualmente, deixou as peças se desligarem em sua mente –por enquanto. Coloquei minha mão em seu peito quente e senti as batidas deseu coração se estabilizando. A irmã dele seria o que ambos amaríamos. Nósnos encontraríamos nela, como chefes de gangues rivais em terreno neutro.

– Ya teebya lyubyu, Angel moy – disse Mia, encerrando o telefonema. Elaregistrou o número em seu telefone, jogou o aparelho de Cloquet de voltapara ele, olhou para mim. – Nos encontraremos novamente – disse ela.

– Quando isto acontecer – disse Cloquet –, lembre-se de que ela salvou suavida.

Ela não o ouviu. Cloquet não contava. Humanos não contavam. Ela virou-se e partiu, mancando na escuridão. Alguns momentos depois de sumir devista nós a ouvimos subir de repente e ruidosamente através das árvores... ealguns momentos depois descer ruidosamente de novo. Mia não estava emcondições para o esforço exigido pelo voo dos vampiros. Mas estavadesesperada para ver o filho.

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No fim das contas, não havia outra opção além de mantermos o plano de fugaoriginal. Mesmo que Murdoch soubesse sobre as vans e as identidadesescondidas, ele não teria passado a informação para a WOCOP. Afinal decontas, deveria ser o show solo dele: capturar sozinho um lobisomem vivopelo qual Helios pagaria a WOCOP – ou agora que eu pensava a respeito,mais provavelmente Senhor pagaria, quase com certeza tirando do própriobolso – generosamente, e em troca Murdoch seria readmitido pela Caçada.

Tudo que precisávamos fazer agora era percorrer os quase 13 quilômetrosde terreno com pouca cobertura com um homem ferido.

O que, incrivelmente, foi o que fizemos. Cloquet telefonou para o contatoem Atenas, o qual prometeu (meio bêbado, soou para mim) enviar uma“pessoa médica” para nos encontrar no estacionamento do aeroporto. Walkercarregava Konstantinov, o restante de nós se revezava dando carona aCloquet. Em um perdoável desvio de conduta, meu familiar trouxera umpouco de cocaína para celebrar. Ele deu dois tecos ao passar de Lucy paraFergus, olhou para mim e disse:

– Sinto que deveríamos ir para o Caribe. A água lá é como topázio líquido.Chegamos à fazenda decrépita, recolhemos as roupas e identidades, e

fizemos o pouco que podíamos por Konstantinov com o pequeno kit deprimeiros socorros. Cloquet até encontrou um pequeno córrego ali perto, doqual, quando o carregamos até lá, Konstantinov bebeu sem parar. Depoisdisso, não havia nada a fazer além de esperar que a lua se pusesse. Quandochegou a hora, um acordo tácito viu todos nós procurando nossos próprios

locais de privacidade entre as árvores, apesar de o ar ficar pesado e ativoquando nos transformávamos, como se cada um de nós fosse uma tempestadeelétrica individual, confinada. Nos vestimos, e Fergus e Lucy foram, com omistério de sua forma humana renovado (a pungência dos joelhos ecotovelos, a elegância dos dedos, a nudez única do rosto), pegar as vans.

Seis horas depois, com Konstantinov costurado e medicado por umestudante de 22 anos, o qual, apesar do jaleco branco e do estetoscópio,parecia estar ensaiando com sua banda em uma garagem, embarcamos novoo 341 da Aegean Airlines de Chania para Heathrow, Londres, Inglaterra,onde Madeline – e minha filha – estariam esperando por nós.

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Konstantinov passou 48 horas de cama, atendido por Budarin, depoisdesapareceu. Sem dizer nada a ninguém. Nenhum bilhete, nenhumamensagem, nada de atender o telefone quando telefonávamos.

– É Natasha – disse Walker. – Ele deve ter recebido notícias dela.Eram em torno das dez da noite do terceiro dia depois de Creta; véspera

de Natal. Estávamos na casa que Madeline providenciara para nós no DartValley, em Devon, um lugar grande, isolado e úmido a 800m de Dartmouth,em uma encosta de carquejas e faias com vista (através de espiadelas entre asárvores) para o rio. O lugar cheirava a camas velhas, mofo e a fantasmas demil refeições. Tivemos sorte de conseguir a casa: um aluguel de Natal foracancelado no último minuto. Madeline, com Zoë em um novo carrinho rosa-shocking, nos encontrara no aeroporto com carros alugados a postos edirigimos para o sul quando os primeiros flocos de neve começaram a cair. Àmeia-noite havia 25 centímetros no chão e, pela manhã, um pouco deimaginação poderia fazer você se sentir preso em casa pela neve. Felizmentepreso. Com seus filhos. Com seu amor. Com sua matilha.

– Ou isso – disse Walker – ou ele foi para algum lugar se matar.Estávamos na grande sala de estar com um loquaz fogo à lenha

queimando. (Em um dos diários, estava escrito: Escute com atenção àtagarelice suave do fogo, seus estalidos e centelhas de Tourette. Escute comcuidado: O fogo fala em línguas. Agora que eu tinha nossos filhos comigo, aausência de Jake foi renovada, a ruptura irreparável, a perda incorrigível. Euvia imagens: os gêmeos com 5 ou 6 anos, ouvindo, maravilhados, alguma

história absurda que ele inventara, ou ele apresentando aos filhos algumaprova de suas atividades nefastas e dizendo: “E, agora, o que vocês acham queé isto, exatamente?” Ou os dois fazendo graça dele, arriscadamente,exatamente fora do alcance de uma patada, ou os dois segurando as mãos delecaminhando pela rua, sentindo-se absolutamente seguros e ignorandoqualquer perigo porque ele estava ali e ali estava o calor e a força dele em suasmãos, e a existência do pai seria a liberdade deles para desfrutarem o mundo,a luz do sol, a cidade, suas histórias, a lua...)

Os proprietários tinham arrumado o lugar para o Natal, com uma grandeárvore iluminada e decorações na lareira e guirlandas nas portas. Os cômodospiscavam e cintilavam e me faziam lembrar da infância e faziam meu coraçãodoer porque eu não via meu pai há o que pareciam anos, apesar de terem sepassado apenas seis meses, e ele não tinha absolutamente nenhuma ideia emque eu me transformara. Arriscado ou não, no Ano-novo eu iria para casa eapresentaria os netos a ele. Somente como seres humanos, por enquanto. Umchoque de cada vez. Primeiro, ele ficaria impressionado, depois a ferida damorte de minha mãe seria reaberta, depois ele começaria a ficar maravilhado,depois começaria a ser tomado por amor como conhaque saturando um bolo.Ele teria vontade de vê-los o tempo todo. Tudo ficaria mais complicado.

– Ele não deveria estar fora da cama – eu disse. – Muito menos vagandosozinho na neve.

– É, pois é... esse é o Mike. É uma coisa russa.Zoë e Lorcan estavam dormindo um ao lado do outro em um novo (e

maior) carrinho-berço perto de mim. (Era uma loucura perdoável que eu,literalmente, não deixasse nenhum dos dois fora da minha vista.Temporariamente perdoável. Em pouco tempo, se eu não quebrasse o hábito,ele iria se tornar tóxico. Observá-los dormindo juntos era uma felicidadeinterminavelmente renovável. Eu ficava ali de pé, transfigurada,indescritivelmente feliz, feliz nas unhas, nos dentes, na barriga, nas palmasdas mãos e nos seios, depois me afastava para fechar as cortinas ou colocaroutro tronco na lareira e, quando retornava, havia de novo toda aquelaalegria, completamente refrescada, nova em folha e autoincrédula. A beleza

de um universo sem sentido é que você não recebe o que merece.) Fergus jáestava de volta a Londres, tratando seu dinheiro com um desdém lucrativopela estupidez que continha. Lucy e Trish estavam na cozinha, na metade dasegunda garrafa de um Bordeaux, Trish tentando ensinar a Lucy não apenascomo fumar, mas também como enrolar os próprios cigarros, agora que atínhamos convencido de que a menos que fossem cigarros contendo prata,eles não lhe fariam mal. (Se fumar fosse completamente inócuo, Jake escreveu,todos fumariam.) Madeline estava no banheiro do segundo andar fazendouma preparação langorosa e épica: Cloquet não sabia ainda, mas hoje à noiteele dormiria apropriadamente com alguém. Perigoso, todos concordavam,mas estávamos inconsequentes e frívolos depois do que tínhamos passado, eMadeline, eu sabia, sentia pena dele. “Além disso”, disse ela, “nunca fiz comum francês.” Ela não aceitaria dinheiro. “Não sejam bobos. Eu provavelmentepreciso disso mais do que ele. Está tudo bem para você, com essa grande ondade amor. Caso tenha esquecido, eu estava de babá para a sua cria quandodeveria estar fazendo você-sabe-o-quê.” Sim, ela estava. Ela tornara tudopossível – e também me dera o presente de Walker, sem compromissos.“Você tem alguma ideia do quanto você é uma pessoa boa?”, eu haviaperguntado a ela. Foi um momento estranho. Estávamos sozinhas no quartodela, ela sentada diante da penteadeira, eu de pé ao lado da janela com umaxícara de café preto, naquela luz peculiar da tarde que só se vê quando háneve lá fora. Eu não tivera a intenção de que soasse tão sério, mas estiverapensando em Jake escrevendo que desejara tê-la beijado mais, esimultaneamente fui intimada a ver um período desastroso na vida delaquando tinha 17 ou 18 anos, era nova em Londres, assustada, perdida. Elausava uma grande jaqueta de couro porque lhe dava a sensação de ter sempreum amigo ao seu lado. Ela se viu em situações erradas. Depois, conheceupessoas. Então, começou a Vida. E, até a Maldição, viveu em perpétua solidão,tédio e medo. Eu não tivera a intenção de soar tão séria, mas o coração doFaraó, agora desendurecido, estava errático em seus momentos emotivos. Elaestava prestes a desconsiderar o que eu tinha dito – está bem, está bem, foda-se – mas descobriu que não conseguia, porque estávamos nos entreolhando e

ela sabia que eu falava sério, e de repente nós duas estávamos à beira daslágrimas, e precisamos tentar rir para espantá-las, mas o riso piorou asituação, então nós duas realmente vertemos algumas lágrimas, rindo,sabendo que não havia nada a fazer além de deixar aquele momento tomarvida e morrer. Em algum lugar no meio disto, ela falou: “Está tudo bem, vocêsabe, não faço isso com ninguém a menos que eu queira.” Depois, ela riu denovo e disse: “O problema é que eu quero o tempo todo. Não posso perder,na verdade.”

Eu podia ouvir Cloquet agora, movendo-se em seu quarto acima de nós,murmurando “Amsterdã”, de Jacques Brel, pensando que iria cedo para acama. Me deu prazer pensar na riqueza erótica que aguardava seu pobrecorpo negligenciado. E porque todo pequeno sentimento bom se conectavaao sentimento grande, me levantei para olhar novamente os gêmeos.

Walker veio até mim e me abraçou por trás. Ainda não tínhamos feitosexo, mas estávamos perto disso. Ele estava com medo de não conseguir,apesar das ereções manifestas quando nos beijávamos e nos tocávamos, e elesabia que ficaria mentalmente mais difícil quanto mais esperasse. Como estarde pé na beira de um trampolim, ele tinha dito para mim na noite anterior,quando, no meio de uns amassos, ele tinha ficado duro e depois entrado empânico e recuado, com um silêncio expandindo-se entre nós.

Durante algum tempo ficamos sem falar, pressionados contra toda anovidade. Estávamos com medo, nós dois, de que agora que não havia nadaque nos impedisse de ficar juntos não tivéssemos vontade. Ambos sabíamosque eu era atraída por pessoas maiores do que eu – mais inteligentes, maisprofundas, menos temerosas; Jake, mais recentemente e mais obviamente,mas mesmo antes dele, todo o caminho de volta até a Garotinha Suja MuitoMá e Imunda na faculdade, o padrão fora este. Até Richard fazia o tipo, sebem que no caso dele confundi vaidade e cinismo articulado porprofundidade. Só que de qualquer maneira que olhassem para mim e Walker,eu havia avançado mais do que ele e aguardava até que ele me alcançasse.

– Como você fez isso sozinha durante todos esses meses? – perguntou ele.Madeline, é claro, estava ardentemente conectada a ele, apesar de fazer o

melhor para permanecer afastada. Não era culpa dela. Transformar alguémcriava um cordão umbilical psíquico pouco confiável. Ela estava dentro dele,erraticamente, quisesse ou não. Fora esta, imaginei, a razão real pela qual eladecidira dar a Cloquet o trato amoroso de sua vida, para me dar o máximo deespaço possível com Walker. Como Jake subestimara aquela mulher!

– Jamais pensei que estava realmente sozinha. Sempre pensei... Querodizer, havia quem tinha me Transformado, para começar.

– E depois Jake, eventualmente.– Sim.E assim havia começado: ele precisaria se comparar, precisaria saber quem

era melhor. Apesar de tudo, aquilo me irritava. Me irritava porquedemonstrava a inevitabilidade da competitividade masculina e tambémporque Jake era melhor e estava morto e eu nem sequer tinha o fantasma delecom o qual pudesse conversar.

Mas Jake tivera duzentos anos para se aperfeiçoar. Walker tinha apenasquatro dias de idade.

– Você o sente, ao menos um pouco? – perguntou Walker, afastando-se demim. Um copo de Laphroaig estava sobre a lareira. Ele o pegou, bebericou,saboreou, engoliu. – Quero dizer, o morto. O cara que nós...

O cara que nós devoramos. A vítima que compartilhamos. A refeiçãoinaugural dele. Ele sentia os primeiros lampejos de ser habitado daquelamaneira. Um aquário para os peixes etéreos. Você acha que já sentiu de tudo.Então, isto. (E tal pensamento produziu algo como um déjà-vu, por um oudois segundos – depois desapareceu. Os pelos na minha pele tiveram umpequeno momento elétrico.)

– Não Jake, não – eu disse. – Nem minha mãe. Mas as mortes, sim.Ele baixou os olhos para o copo.– Isso faz de nós uma pós-vida – disse ele.Eu sabia o que o incomodava. Se os mortos que devorávamos iam para

dentro de nós, então os mortos que não devorávamos deveriam ir para outrolugar. Se houvesse um Outro Lugar, então qualquer coisa seria possível: Deus,um esquema das coisas, moralidade, consequências. Neste caso...

– Não creio que seja assim – continuei. – Creio que não somente as vidasdeles passem em um clarão diante dos olhos, elas passam em um clarão diantedos nossos, também. Elas morrem para o nada, mas ficamos com o clarão,como um instantâneo, como um eco incrivelmente detalhado quepermanecerá ressoando em nós enquanto vivermos. Não são realmente eles.São o que foram. Eu não sei.

– O download máximo – disse Walker.– Sim, talvez.– Quer dizer que você acredita que não exista nada?Me lembrei da certeza que eu sentira olhando além da morte de Delilah

Snow para o vazio que a teria engolido. Me lembrei da certeza de nada.Ontem à noite, de madrugada, eu havia começado a escrever em um diário.Estamos sozinhos na escuridão, escrevi, portanto, nos damos as mãos econtamos histórias sobre o bem e o mal para nos confortarmos. Funciona, poralgum tempo, por uma vida, por uma civilização, talvez enquanto a espéciesobreviver. Mas não tenha ilusões: não faz diferença para a escuridão. Aescuridão engole todos nós – tanto os bons quanto os maus – com umdesinteresse monolítico.

Um começo estranho, considerando que eu estava feliz, mas eu pousara acaneta com uma sensação de contentamento.

– Não se dê o trabalho de procurar pelo significado de tudo isso – eu disse.– Não há nenhum.

Não era um bom afrodisíaco conversacional. Pegamos o carrinho-berçodos gêmeos e fomos nos juntar a Lucy e Trish na cozinha. Era um grandecômodo quadrado com um fogão Aga, spots com um tom lilás e decoraçãodourada na cômoda. Trish e Lucy estavam à mesa de jantar, uma lajota decarvalho que parecia ter sido escavada arqueologicamente dos dias daBretanha romana. O rádio, em baixo volume, tocava canções de Natal,presentemente “Gloria in Excelsis”. Servi para mim uma Hendricks grande.Zoë e Lorcan não precisariam de leite (ambos bebiam água de vez em

quando) por dias. Wulf seguia me dizendo que eu estava sendo uma idiotaquanto a essas coisas, que nada que não me fizesse mal não poderiapossivelmente fazer mal a eles, mas remanescia o suficiente do meu euhumano para manter acesos os fogos da paranoia. Não até que eles tenhamdesmamado. Mais alguns meses, segundo a internet, se bem que, obviamente,o Google presumia se tratarem de bebês que não se transformavam emmonstros uma vez por mês e devoravam carne e sangue humanos.

– Ainda não consigo me convencer do quanto foi fácil – disse Trish. – Nãosei por que não pensamos no plano assim desde o início. Eles eram um bandode maricas. – Ela estava, como sempre estava quando na forma humana, cheiade uma energia compacta. Os olhos verdes eram o verdadeiro tesouro de suaface, contrastados com rebeldia pelo cabelo vermelho-escuro habilidosamenterepicado. Ela era capaz de beber, Fergus reconhecera masculinamente, atéderrubar qualquer um.

– Sim, mas sem o Marco Misterioso teríamos tido problemas – disse Lucy.Já tínhamos passado por aquilo inúmeras vezes. Quem quer que fosse,

“Marco” tinha poder sobre os vampiros. Os chupadores armados largaramsuas armas sob seu comando. “Remshi” – sem dúvida, uma fraude – tinhalevado um tapa dele como um retardado. Jacqueline retirou-se. Até Mia ficarapresa ao chão, aparentemente por vontade dele.

– Só poderia ser um ancião – disse Walker. – Não há outra explicação.– A menos que ele seja um original – disse Lucy, como um de nós sempre

dizia, mais cedo ou mais tarde, sempre que conversávamos sobre o assunto. Apossibilidade nos excitava. (Com exceção de Walker.) Há algo aqui, é verdade,Mia relatara. Como a sensação de algo muito antigo. Não sei. É claro que faziasentido, e já que o modelo masculino de Jacqueline estava sendo citado comoa fonte de tal sensação, seria dele que Mia presumiria que ela viria. Mas“Marco” também estava lá, como um dos Discípulos. A sensação poderiamuito facilmente estar vindo dele. Eu mesma a sentira, a proximidade de umpassado que deveria ser remoto, a aterrorizante compressão temporal. Haviatambém a ausência de odor, e a maneira como ele havia falado sobre o livro.

Houve o olhar que ele lançou para mim, de reconhecimento profundo.

– Senti pena da Olivia – disse Trish. – Dava para ver que ela acreditavatotalmente.

– Pelo menos sabemos que eles não podem caminhar por aí durante o dia– disse Lucy. – Ou ainda não, pelo menos.

Evidentemente, o ataque contra o laboratório do Helios em Pequim foraobra dos Discípulos no fim das contas. Eles chegaram a uma fórmula falha e aadministraram a fiéis dispostos como a ferramenta máxima do marketing deRemshi. Os recipientes eram isolados dos olhos públicos (segundo Jacquelinee seu messias fantoche, partindo mundo afora para desfrutar da novaliberdade diurna), monitorados e mortos assim que começassem a apresentarefeitos colaterais graves. Aquela altura, os membros da congregação faziamfila para receber a dádiva. Não era de surpreender que as Cinquenta famíliastivessem pedido tempo: não haveria concorrência com um grupo queprometia aos membros uma libertação da restrição imposta pela noite. Aaposta de Jacqueline foi que aperfeiçoariam a fórmula antes que aapresentação dos efeitos colaterais chegasse ao fim, pois naquela altura suaposição como Rainha do Rei mágico estaria estabelecidainquestionavelmente. Também nesse mesmo ponto, a dádiva teria cessado deser uma dádiva para se tornar uma recompensa, conquistada somente atravésda completa e ilimitada submissão à vontade real. A antiga oligarquia doschupadores precisaria ceder à nova monarquia. Era preciso tirar o chapéupara Jacqui, como Walker dissera: ela não pensa pequeno.

– Quero saber qual é o verbo perdido – disse Lucy.Walker não queria, eu sabia.– O que quer que fosse – disse Trish –, foi o bastante para que um dos

próprios sacerdotes deles fosse morto quando o descobriu.– Alguma blasfêmia – disse Lucy.Walker encheu seu copo.– Esqueça isso – falei. – O principal é que todos saímos ilesos.– Vou brindar a isso – disse Trish, enchendo as taças dela e de Lucy com

Bordeaux.– Saúde.

– Sláinte!– Stin iya mas. – disse Walker... justamente quando seu celular tocou.Ele olhou para o número.– Puta merda – disse ele. – É Mike.

67

Walker soubera. Eu mesma soubera, desde quando Jacqueline tinha dito queNatasha estava livre, se bem que não exatamente a mulher que era quandochegou aqui. Era o estilo de Madame, retorná-la ao amante sendo tudo que elenão desejava.

Mas ela subestimara ambos. Ela subestimara o amor.– Talulla Demetriou, Natasha Alexandrova – disse Mikhail. – Sem dúvida,

a apresentação mais estranha que já fiz.Odor, mutuamente repulsivo, era um problema farsesco para todos nós, se

bem que menos para mim depois do meu período trancafiada bem ao lado deCaleb. Dei um passo à frente e Natasha e eu apertamos as mãos, ambas nosforçando para não segurar o nariz. Ela sorriu.

– Pode ser que não pareça – disse ela, com apenas o mais leve traço de umsotaque russo. – Mas é uma honra conhecer você. Mikhail me contou que temsido uma boa amiga para ele. Estou em dívida com você.

Estávamos no grande jardim nos fundos da casa, agora com 45centímetros de neve. Nem Natasha nem Konstantinov jamais voltariam asentir frio. Não muitos vivem além dos mil anos. Esses dois poderiam.

Trish e Lucy, cada uma com um gêmeo totalmente desperto enrolado emum cobertor, estavam na porta da estufa, observando. De repente, Madelineapareceu atrás delas, em um robe curto de seda cor-de-rosa sobre lingeriebranca. Ela parecia uma versão pornô do anjo na árvore de Natal.

– Por Cristo, será que ninguém mais sente o cheiro de... Oh, porcaria.Certo. Merda.

– Eu apenas gostaria que você soubesse – disse Konstantinov. – Esta éminha escolha. Esta é a única maneira que poderia ser.

Ele estava um pouco mais pálido, é claro, mas, fora isso, em perfeita saúde.Ele tinha raspado a barba por fazer que ganhou enquanto esteve doente e decama e, em sua face nua, os olhos negros polidos eram joias renovadas.Somente pela aparência, ele e Natasha poderiam ter sido irmão e irmã. Oamor deles tinha um ar disso, também, uma claustrofobia excitante,incestuosa. Não era o vampirismo que fazia daqueles doistranscendentalmente indiferentes a qualquer lei, era o amor. Ao lado doamor, o vampirismo era pequeno.

– Estou feliz por vocês – eu disse. – Estou mesmo. Devo tanto a você. Vocêpode... Vocês gostariam de entrar?

Houve um momento de silêncio carregado, depois todos gargalhamos.– Temos um lugar para onde precisamos ir – disse Konstantinov. – Eu só

queria que você conhecesse Natasha, além de pedir desculpas por partir comoum ladrão no meio da noite.

Era Walker quem ele viera ver, eu sabia. E agora, de repente, não haviapalavras entre eles.

Konstantinov estendeu a mão. Walker apertou-a e, depois de uma pausana qual percebi, atrasada, que o céu estava gigantesco e claro e repleto deestrelas, ele abraçou o amigo.

68

Na imobilidade absoluta da neve e no silêncio da noite, muito depois deMadeline ter fodido Cloquet e a si própria até a exaustão, e de Lucy e Trishterem cambaleado com boas-noites em vozes arrastadas para suas camas ecaído em suas fatias do sono, e Walker e eu (auxiliados por uísque e gim epelo choque da transformação de Konstantinov) fazermos sexo apressada eprecariamente – sexo para nada além de estabelecer que poderíamos fazê-lo,que Walker não estava permanentemente aleijado – e ele caíra, arrasado dealívio, no sono, logo após tudo isso, os gêmeos e eu permanecíamos despertose inquietos.

Durante algum tempo lutei contra a falta de sono, tentei meia dúzia devariações sobre o tema de contar carneirinhos, mas eventualmente melevantei e me vesti, em silêncio, dizendo a mim mesma que era um choqueretardado: durante três meses a vida se resumira a um único propósito. Umpropósito horrível, sim, mas que tinha me aliviado de todas as outras questõese incertezas, todo desconforto e ambivalência e medo. Mas não mais. Omundo estava aberto de novo, e o fato vertiginoso de passar 400 anos nele –com filhos para criar, com inimigos contra os quais nos proteger – estava sereafirmando. Quatrocentos anos! Impossível conceber isso. Você tentaagarrar o conceito vagamente através da NASA e do Projeto Genoma e deefeitos especiais, mas não faz sentido. Haveria convulsões, revoluções, coisasde uma originalidade horrível, coisas que se você as visse agora pareceriamcom milagres ou mágica. Eu havia me esquecido da vertigem que sentia

pensando a respeito. Era apenas isto me mantendo acordada, falei para mimmesma, apenas o potencial de expansão da minha condição.

Não, não é, wulf disse.Zoë e Lorcan piscaram para mim olhando para cima no escuro. Olhei para

eles. Felicidade. Felicidade é uma circularidade. Há a felicidade. Depois, adescrença, que diz que você deve estar sonhando. Depois a pausa mental ou opasso atrás para dar ao universo uma chance de despertar você. Depois oretorno para ver se a felicidade permanece – e ali está a felicidade de novo,insanamente real e desmerecidamente toda sua.

Peguei o carrinho-berço e meu diário recém-iniciado e me arrastei para oprimeiro andar.

O fogo na lareira da sala de estar tinha morrido, mas o Aga da cozinhaainda irradiava calor, então coloquei duas cadeiras juntas diante dele,coloquei os gêmeos no chão perto de mim, levantei os pés e reli o parágrafoque escrevi mais cedo.

Você mata por dois motivos. Primeiro, porque é matar ou morrer.Segundo, porque a sensação é boa. Na corte humana de apelações, aprimeira razão conquista para você mitigação teórica. A segundaconquista uma bala de prata.

Ainda restavam uns dois goles na garrafa de Hendricks. Não me dei otrabalho de pegar um copo. Escrevi: Torne- se um lobisomem e você rompecom a humanidade.

Ou a humanidade rompe com você. Não se pode culpá-la. Não sepode esperar que alguém siga lhe amando depois de saber que vocêvai matá-la e devorá-la. Infelizmente, não é uma ruptura tranquila.Na verdade, é o tipo mais confuso de ruptura. Vocês ainda vivemjuntos. Vocês ainda fazem sexo. Vocês ainda possuem as memórias.

Vocês ainda, em alguns momentos, sentem o amor. Contudo, maiscedo ou mais tarde, um de vocês arruina tudo. A humanidadearruina ao lembrar a você que você é um assassino, ou você arruinatudo assassinando alguém. O que deveria ser o ponto final para vocêe a humanidade, uma troca final de bagagem de mão, foda-se muitoobrigado, e adeus. Mas não. Seguimos em frente, a vida em comum,o sexo, as memórias, o fantasma do amor...

– Já está na hora de você parar de aceitar a palavra de Jake para tudo – disse avoz de Marco. – Embora o que ele pensaria de você bebendo gim nesta hora,só Deus sabe.

Eu dei um sobressalto tão violento que quase caí da cadeira, mas saltei depé e posicionei meu corpo entre ele e os gêmeos.

Ele não se moveu, exceto para erguer uma das mãos, com a palma voltadapara fora. Ele parecia exatamente idêntico a quando estivera no monastério,exceto que, aparentemente, tinha tomado um banho e lavado o cabelo. Aliestava o rosto de olhos escuros com ar de travessura faceira, a vibraçãoinodora de divertimento cansado e energia inexaurível. Ele estava sentadodiretamente à minha frente em uma das bancadas da cozinha, pernascruzadas. Meu corpo ainda estava reagindo: axilas, couro cabeludo, bexiga,tudo arrebatado pela adrenalina, rico em sangue. Não era medo objetivo, sebem que o sabor predominante era de medo. Excitação, terror, algo comoreconhecimento.

– O que você quer? – perguntei.– Não vou fazer mal a você ou aos seus filhos ou a qualquer pessoa nesta

casa – disse ele. – A menos que flagrantemente provocado. Imaginei quepudéssemos conversar. – Ele pegou um maço de American Spirits e um Zippode bronze, acendeu um cigarro, deu uma tragada visivelmente saboreada. –Presumo que tenha perguntas. – Ele reparou que eu mantinha um olho nocarrinho-berço. – Realmente, juro, você está completamente segura. Ospimpolhos também.

– Quem é você? – perguntei.– Direto ao ponto, sem preliminares. Gosto disso. Quem eu sou? Acho que

essa é uma pergunta cuja resposta você já saiba.– Remshi?– É você quem está dizendo.– O quê?– Me diga uma coisa. Você ainda acredita que o universo é um acidente

sem sentido?– O quê? – perguntei.– Eu estava pensando em nomes, veja só. O seu, para começar. Talulla

Mary Apollonia Demetriou. “Talulla”, como você sabe, é uma formaanglicizada do nome gaélico “Tuilelaith”, composto pelos elementos tuile,significando “abundância”, e flaith, significando “dama” ou “princesa”.Comumente, dizem que significa “dama próspera”. Depois, você tem “Mary”,com a conotação de nascimento milagroso... certamente, deve ter parecidomilagroso para você quando descobriu que estava grávida... Apollonia é aforma feminina de “Apollonios”, significando “destruidor”, e, finalmente,para concluir tudo, “Demetriou”, cuja raiz é “Demeter”, deusa da fertilidade.Portanto, você tem uma dama próspera com uma história de fertilidademilagrosa que também é, uma vez por mês, uma destruidora.

– Espere. Pare de falar. O que você quer? – perguntei.– Já respondi isso. Falar com você. A coisa não para por aí, não é mesmo?

Vejamos os bebês: Zoë, grego, significando “vida”, e “Lorcan”... Este é meufavorito... Derivado do gaélico irlandês lorce, “feroz”, combinado com umsufixo diminutivo para formar “pequenino feroz”, quando praticamente aprimeira coisa que ele fez ao entrar no mundo foi morder alguém!

– Como você sabe disso? Você estava lá?– Vinte mil anos, você imagina que já viu de tudo.Quando ele disse isso, foi como se estivesse de pé bem atrás de mim. A

respiração dele tocou na minha orelha, apesar de eu ainda conseguir vê-lo dooutro lado da cozinha. A sensação física era real. Não consegui evitar darmeia-volta.

– Desculpe – disse ele. – Veja, estou bem aqui, sentado e parado. Não voume mover sem sua permissão. Chega de truques tediosos.

No monastério, tive a sensação de já ter ouvido a voz dele. Vinte mil anos,você imagina que já viu de tudo. Eu a ouvira antes. Naquela noite no Alascaquando minha bolsa rompeu, falando bem atrás da minha orelha. Vinte milanos! Era impossível. Exceto, é claro, que não era.

– Alguém está acordado no segundo andar – disse ele, olhando para cima.– Teremos comoção se descerem.

Era Lucy, indo desequilibrada e descalça para o banheiro. Ficamosouvindo-a mijar. Um suspense absurdo.

Quando a porta dela se fechou de novo, eu disse:– Você é um vampiro, certo?– O vampiro, pode-se dizer.– Você não cheira mal.– Não no momento.– No momento?– É uma longa história. É realmente esta a que quer ouvir?– Você escreveu O Livro de Remshi?– Sim.– Quando?– Quando o papiro era novidade.Outra vez a compressão vertiginosa, o passado ancestral arrastado até

aqui, a cozinha. A inimaginável história de toques das belas mãos. Tivevislumbres: uma pequena jarra feita de lápis-lazúli; uma sela de courotrabalhado, aquecida pelo sol; um ombro masculino coberto de óleo, pele dacor de chocolate ao leite. Pensei: “Não consigo. Não consigo.” Eu não sabia oque era que eu não conseguia. Eu estava excitada e enjoada.

– No Egito?– Eu não estava no Egito quando o escrevi. Eu estava na China.– E você esteve adormecido?– Sim, mas estive desperto e ativo desde antes de você nascer. Você e Jake

passaram de carro pela minha casa no Big Sur.

– O quê?– Há padrões em todas as partes. Histórias. Esta é a minha maldição.– Espere. Por favor. Uma coisa de cada vez.– Me desculpe. Pode começar.Baixei os olhos para os gêmeos. Dormiam de novo, Zoë com um braço

sobre o irmão. Eu estava ciente, em uma parte destacada de mim, de quedeveria estar com medo, fazendo planos, avaliando se haveria qualquer coisaafiada de madeira que eu pudesse alcançar. Eu estava ciente disso, mas presano estado de excitação nauseante e debilitante, cheia de energia inútil.

– Você tem respostas? – perguntei. – Existe algum significado?– Tenho a resposta para o verbo perdido.– Então isto seria um “não”.– Deus abençoe Manhattan por gerar as pessoas mais impacientes do

planeta! A impaciência de Manhattan economiza para o mundo décadas que,do contrário, seriam gastas fazendo rodeios sem ir direto ao assunto.

– Escute, se você possui genuinamente...– Shshsh! É Walker.Sons de passos no segundo andar. Walker gritou:– Talulla?Silenciosamente, o vampiro ficou de pé.– Preciso ir. Nada de bom virá para nenhum de nós se ele descer e eu

estiver aqui.– Por que você diz isso? – perguntei.– Acho que você sabe.– Não, não sei.– Ele adivinhou o verbo perdido.E então, com um constrangimento repentino igual ao mergulho nauseante

de uma montanha-russa, eu também adivinhei.– Vor klez mych va gargim din gammou-jhi. “Quando ele beber o sangue

do lobisomem.” Não é mych. Jamais foi mych. Era fanim. Tempo presente dopequeno e humilde verbo fan, que significa “unir”. Vor klez fanim va gargim

din gammou-jhi. “Quando ele unir o sangue do lobisomem.” Verei você emoutra ocasião.

Walker estava de pé, movendo-se com determinação. Eu estava vendo omesmo que ele: eu não estava mais no quarto, nem os bebês. Eu podia senti-losentindo a casa guardando um segredo. Baixei o olhar para os gêmeos. Elesabriram os olhos ao mesmo tempo.

– Você não me contou nada – eu disse, levantando os olhos... mas estavafalando sozinha. O vampiro se fora.

Epílogo

TALULLA VICTRIX

– É dinheiro antigo, pai, fico repetindo para você – digo tranquilamente. – Olado do pai dele era originalmente da Inglaterra. Microeletrônicos que vieramdo aço, do carvão, do algodão e da borracha. Esta é a linha oficial da família,mas pergunte a Walker e ele vai lhe contar que tudo realmente começou coma venda de ópio indiano aos chineses.

– Jesus, não vou perguntar isso a ele – disse meu pai.– Bem, então pare de me alugar sobre isso, por favor?Estamos em espreguiçadeiras na piscina em uma villa de luxo no vale de

Napa, logo ao norte de Calistoga (ao sul do Parque Estadual Robert LouisStevenson – Jake teria aprovado), em um dia quente, estático e azul de agosto.Luz do sol na água. O cheiro de concreto limpo, lavanda, pinheiros. Estamosbebendo; uma Hendricks com limão e gelo para mim, um Bushmills comsoda para ele. Zoë e Lorcan estão em um grande cercado protegido do sol,Zoë com uma imensa concentração, de testa franzida, empurrando diferentesformas em 3D nos buracos apropriados em um globo vermelho, Lorcansentado de pernas cruzadas e chupando catastroficamente uma fatia demanga. Em dois meses eles irão celebrar o primeiro aniversário.

Walker está lá dentro pegando batatas chips e molho, já que estamos nomeio do ciclo e comendo comida comum como pessoas normais. Tenho todoum calendário preparado em função disso para quando meu pai pode nos ver.

– Escute, você não pode esperar que eu simplesmente absorva tudo issocomo um... Você não pode esperar que eu não fique curioso.

– Eu sei, pai. Entendo. Mas já se passaram meses, com a mesma merda.Você está derramando, está derramando... espere. – Ele não consegue pararde mexer na espreguiçadeira, e o último ajuste o fez perder metade dodrinque. – Espere. Me deixe limpar. Pronto. Tudo bem?

Cloquet foi enviado em uma viagem de férias de um mês pelo Caribe comtodas as despesas pagas. (“Você não precisará mais de mim”, dissera ele,depois de Creta, quando ficou aparente que Walker seria mais do que umcaso passageiro. “Procurarei por algo. Está tudo bem. Compreendo.”“Besteira”, falei para ele, meu coração faraônico não endurecido em umabagunça sentimental. “Vá se quiser, mas não porque imagina que eu nãopreciso de você. Sempre precisarei de você. Sempre.” Coloco os braços emtorno dele. Ambos choramos. Foi ridículo. Portanto, ele permaneceu comigo.Praticamente, pouco mudou de qualquer maneira: Walker e eu, tecnicamente,não moramos juntos; tampouco, com a exceção de fodercomermatar, somossexualmente monogâmicos, se bem que fazemos um com o outro muito maisdo que com qualquer outra pessoa. Portanto, o papel de Cloquet permaneceuaproximadamente o mesmo: familiar, logístico, de babá, de amigo. Ascrianças o adoram.) De todo modo, ele está no Caribe. Madeline (que medisse que o sexo foi, “diga-se de passagem, in-crí-vel” e que desce até aqui devez em quando, fode com Cloquet até acabar com ele, depois desaparece) vai“esbarrar com ele” em Barbuda. Tudo planejado por quem escreve estaspalavras.

– Não sei por que você está obcecado com o dinheiro, afinal de contas –falei para meu pai. – Apenas fique feliz que o tenhamos. – Como a históriafinanceira de Jake estava livre, fiz uso dela e tornei-a de Walker. A do meumarido. O pai dos meus filhos. Mentiras, mentiras e mais mentiras de novo,mas o velho precisa de um quadro que fosse seguro, estável e sensível.Duplamente, após o choque de eu apresentar a ele os netos gêmeos há oitomeses. – Você se preocupava com dinheiro quando tínhamos o bastante –falo para ele. – Agora que temos mais do que o bastante, você continua sepreocupando. É deprimente.

– Tudo bem, tudo bem. Jesus! Você pelo menos assinou um contrato pré-nupcial?

– Pai, pelo amor de Deus! Sim. Sim. Se nos divorciarmos, recebo umabolada. Confie em mim, mais do que jamais precisarei.

Walker, bronzeado, esguio, saúde de lobo, de bermuda, sai da casa com as

batatas chips e o molho em uma bandeja.– Nikolai, você parece mais do que pronto para uma bebida refrescante.

Aqui, deixe-me pegar isso.O maravilhamento do meu pai diante da suposta riqueza de Walker

provoca curtos-circuitos regulares em suas funções sociais básicas e ele acaba,como agora, olhando boquiaberto para ele, como se esperasse ver notas de 50e de 100 brotando da cabeça do sujeito.

– Pai! – eu disse. – Quer um refill?– O quê? Oh, claro, claro. Obrigado, Robert.– Senhorita D?– É lógico.A tarde derrete-se em calor e sol e álcool e conversa cada vez mais franca e

livre. A frase que escrevi no meu diário ontem à noite depois que Walkeradormeceu continua batendo no meu cérebro: Talulla Demetriou, você temsido uma Garota (pausa) Muito (pausa) Má. Meu pai, bêbado, cozinhacordeiro com pimentões vermelhos e verdes em um saboroso molho detomate – arnaki kokkinisto –, meu favorito de quando era pequena. A visãodele diante do forno, em um perfil barrigudo, tufos cinzentos de cabelo ecílios longos e com uma ponta da camisa para fora da calça, cozinhando,calmo como Deus, me proporciona um prazer profundo. É um risco, é claro,manter contato com ele. A WOCOP (ou SLOW COP, como nos habituamosa chamá-los), recentemente, tomou ciência de uma nova geração delobisomens (a contagem atual está acima de cinquenta: Fergus descobriusobre o chupão, e em algum lugar lá fora Devaz anda descontrolado) e oHelios permanece determinado a decifrar a mágica da luz do dia do genelicantrópico. Qualquer uma das organizações poderia me atingir através domeu pai. Mas sei que se eu desse a ele a escolha, ele preferiria ver a mim e ascrianças. Portanto, fiz a escolha por ele. Só precisamos ser cautelosos. Muitocautelosos. Jacqueline Delon, segundo rumores, sobreviveu ao ataque aomonastério, se bem que com um prêmio das Cinquenta Famílias por suacabeça, ela está escolhendo amigos com muito cuidado. Mia não deu as caras,mas sei que esteve por perto. A irmandade diz que ela não consegue

propriamente se levar a assassinar a mulher que lhe salvou a vida (e a do filhodela). Wulf diz que ela está me provocando por diversão. Algo entreirmandade e wulf diz que, por enquanto, a fascinação é mais doce do que avingança. A sensação é esta: a morte de qualquer uma seria umempobrecimento para a outra, a subtração de uma mágica amarga poréminstigante.

Depois do jantar, Walker leva as crianças para o segundo andar para obanho (elas ainda não saem da minha vista a menos que ele ou Cloquetestejam com elas; se isto for neurótico, ótimo, sou neurótica) e meu paidorme na poltrona reclinável diante da TV. Saio com um drinque novo parafumar. Passei o dia todo morrendo por um cigarro, mas não posso na frentedo meu pai. Câncer; minha mãe; sacrilégio.

Descalça, deleitada após duas tragadas, caminho além da piscina, atravessoo jardim e saio pelo portão, que se abre para uma trilha que sobe um pouco aencosta entre os pinheiros até encontrar a estrada no alto. O sol está baixo e oar é azul-dourado, suave, quente. Uma nuvem de pernilongos está a algunsmetros no que parece um frenesi sem sentido.

Verei você em outra ocasião.Aquilo havia sido há oito meses, e não o vi desde então.Não posso fingir que não estou um pouco decepcionada.Vor klez fanim va gargim din gammou-jhi. Quando ele unir o sangue do

lobisomem. Quando ele unir. Como em... unir. O que Deus uniu, nenhumhomem poderá separar...

Quase não contei a Walker, naquela noite. Cinco minutos de conversasurreal com um vampiro na cozinha me deu a sensação de uma infidelidadesacrílega. Mas contei a ele. Pelo menos uma vez me foi concedida a graça defazer a coisa certa. Com a face quente, tremendo, coloquei para fora toda ahistória. Se eu não tivesse contado, a omissão teria se desenvolvido emdesdém. É o que acontece quando você guarda um segredo de alguém queama: você começa a odiá-la por permitir que você prove a própria disposiçãopara enganá-la.

Portanto, contei a ele, mas a sensação de infidelidade não havia ido por

completo. Não por completo.Termino o cigarro e caminho de volta até a piscina. Os cheiros do jardim

são benignos: cloro; pedras limpas; loção bronzeadora; lavanda. Ouçocomentários sobre basquete vindo de dentro da casa.

Verei você em outra ocasião.Oito meses. Vinte mil anos.Não posso fingir que uma parte minha ainda não está esperando.

Dentro de casa, vejo que Walker adormeceu na minha cama com as roupas debaixo, com um gêmeo aninhado (também dormindo) em cada axila. Cubro ostrês com o edredom e apago a luz. Eles não vão rolar. Ele não vai esmagá-los.Certeza da espécie. Gravidade da espécie.

Na sala de estar, meu pai ronca, de boca aberta, na poltrona reclinável.Cubro-o com um cobertor, desligo o som da tevê e coloco um copo d’água namesinha ao lado para quando ele acordar, sedento. Eu deveria estar com sono,depois de tanta bebida e sol e comida, mas não estou. Estou alerta, agitada,vagamente pesarosa. Me ocorre pela primeira vez em muito tempo que nãoestou preocupada com nada.

Eu não tinha imaginado que a sensação de paz seria assim.Não irá durar, é claro.

Este e-book foi desenvolvido em formato ePub pela Distribuidora Record de Serviços de Imprensa S.A.

A ascensão de Tallulla

Wikipedia do autorhttp://en.wikipedia.org/wiki/Glen_Duncan

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Capa

Rosto

Créditos

Dedicatória

Agradecimentos

PRÓLOGO – DOCES E CONDIMENTOS E TUDO QUE CAUSA CONTENTAMENTO

PARTE UM – NATIVIDADE

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PARTE DOIS – O TERCEIRO DEVANEIO RECORRENTE

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PARTE TRÊS – MORDIDAS DE AMOR

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PARTE QUATRO – LACUNA

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Epílogo – TALULLA VICTRIX

Colofão

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