Steel's edge - VISIONVOX

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Limites de AçoIlona Andrews

Livro 4Copyright © 2012

Charlotte de Ney é tão nobre quanto parece, uma Sangue-azul direto do Weird. Masembora possua habilidades de cura mágica raras, sua vida trouxe nada além de dor.

Depois que seu casamento desmoronou, ela fugiu para o Edge1 e construiu uma nova vidapara si mesma. Até que Richard Mar, muito ferido, é levado até ela, e a vida de Charlotte

vira de cabeça para baixo mais uma vez.

Richard é um espadachim sem igual, futuro chefe de seu grande e indisciplinado clã Edege—e ele está em uma missão clandestina para eliminar os escravos que traficam humanosno Weird. Então, quando sua presença leva seus perigosos inimigos a Charlotte, ela jura

ajudar Richard a destruí-los. O comércio de escravos, no entanto, é mais profundo do queRichard sabe, e mesmo trabalhando juntos, Charlotte e Richard podem não sobreviver ...

Prólogo

— MINHA SENHORA?Charlotte ergueu os olhos de sua xícara de chá para Laisa. A jovem segurava um envelope

de papel grosso e pesado.

— Isso chegou para você.

Uma dor repentina perfurou o peito de Charlotte, como se algo vital tivesse se quebradodentro dela. Sentiu-se fria e nervosa. Era uma má notícia. Se fossem boas notícias, teria recebidouma ligação do escriba. Ela sentiu a necessidade de apertar e amassar o cabelo loiro entre osdedos. Charlotte não fazia isso desde que era criança.

— Obrigada, —se obrigou a dizer.

A funcionária se demorou, preocupação estampada no rosto dela. — Posso providenciaralguma coisa, minha senhora?

Charlotte balançou a cabeça.

Laisa a estudou por um longo momento, relutantemente cruzou a varanda até a porta eentrou.

O envelope estava na frente de Charlotte. Ela se forçou a levar a xícara de chá aos lábios. Aborda da xícara estremeceu. Seus dedos tremiam. Concentrou-se na xícara e nos exercícios decontrole sobre suas emoções, praticados anos a fio. Calma e controle, esse era o mantra de umCurador. Um Curador eficaz não pode ser insensível, mas também não pode ser compassivo,ouviu sua mente sussurrar. Ela não podia se permitir sucumbir ao descontrole ou ao desespero, enunca permitir que seu ofício fosse comprometido por suas emoções.

Charlotte vivia nessa crença há vinte anos. Isso nunca falhou com ela.

Calma acima de todas as coisas.

Calma.

Ela respirou fundo, contando cada subida e descida de seu peito.

Um, dois, três, quatro ... dez. A xícara em suas mãos parou de tremer.

Charlotte bebeu, colocou a xícara de volta na bandeja e rasgou o envelope. As pontas dosdedos dela estavam dormentes. O selo ornamentado da Academia de Médicos de Adriangliamarcava o topo do papel. ‘Lamentamos informar a vossa senhoria ...’

Charlotte se obrigou a ler até a última palavra, então olhou além do parapeito de pedrabranca da varanda do jardim abaixo. Lá embaixo, um caminho de tijolos cor de areia corria paraas árvores distantes. A grama curta e prateada acompanhava o caminho de ambos os lados,flanqueada por uma fileira de cercas baixas e pintadas de verde esmeralda. Atrás das cercasflores desabrochavam: rosas em uma dúzia de tons com suas flores perfeitas, arbustos com ramosde flores em forma de constelações de estrelas vermelhas, rosas e brancas, lanças-do-rei2

amarelas, suas delicadas flores em forma de minúsculos sinos ...

Ao contrário dessas plantas, ela não floresceria. Não daria frutos. A última esperançafechou-se como uma porta batendo em seu rosto. Charlotte se abraçou. Ela era estéril.

A palavra a pressionou, como um peso físico esmagador, uma âncora pesada em volta dopescoço. Nunca sentiria uma vida crescer dentro dela. Nunca iria passar seu dom ou ver a sombrade suas feições no rosto de seu bebê. O tratamento e a magia dos melhores Curadores deAdrianglia falharam. A ironia era tão estúpida, ela riu, um som amargo e frágil.

No país de Adrianglia, somente duas coisas realmente importavam: o sobrenome e a magiada pessoa. Sua família biológica não era antiga nem rica, e seu sobrenome era comum. Porémsua magia era tudo menos isso. Aos quatro anos, Charlotte curou um gatinho ferido e a vida deladeu uma guinada abrupta em uma direção inesperada.

Os dons da cura eram raros e altamente valorizados pelo reino, tão raros que, quando tinhasete anos, Adrianglia veio buscá-la. Seus pais explicaram o que iria acontecer com ela:Adrianglia a matricularia no Instituto de Artes Médicas Ganer. Iriam abrigá-la, ensiná-la, nutrirsua magia e, em troca, ao concluir sua educação, Charlotte daria ao reino dez anos de serviçocivil. No final desses dez anos, ela receberia um título de nobreza, fazendo dela uma parte dacobiçada elite, e uma pequena propriedade. Seus pais, por sua vez, receberiam uma grandequantia em dinheiro para apaziguar a tristeza deles pela perda de sua filha. Mesmo com aquelaidade, Charlotte percebeu que tinha sido vendida. Três meses depois, foi para o Instituto e nuncamais voltou.

Aos dez anos, ela era uma criança prodígio, aos quatorze anos, uma estrela em ascensão, eaos dezessete anos, quando seu serviço começou oficialmente, Charlotte era a melhor aluna queo Instituto tinha a oferecer. Eles a chamavam de a Curadora e a protegiam como um tesouro. Naexpectativa de assumir seu título, Charlotte recebeu instruções dos melhores tutores. Senhora

Augustine, cuja linhagem se estendia por séculos até o Velho Continente, supervisionoupessoalmente a educação dela, garantindo que Charlotte entrasse na sociedade Adrianglianacomo se sempre tivesse pertencido a ela. Sua postura era perfeita, seu gosto refinado e seucomportamento exemplar. Quando saiu do Instituto, ela era Charlotte de Ney, Baronesa de Ney,dona de uma pequena propriedade, e já havia curado milhares.

Mas nunca poderia curar a si mesma.

Nem ninguém poderia. Depois de dezoito meses de tratamentos, especialistas e magia,Charlotte segurava o veredicto final em suas mãos. Ela era estéril.

Estéril. Como um deserto. Como uma terra devastada.

Por que ela? Por que não poderia ter um bebê? Ela curou inúmeras crianças, tirando-as dabeira da morte e devolvendo-as aos pais, mas o pequeno berçário que montou ao lado do seuquarto permaneceria vazio. Será que não merecia nem mesmo um pouco de felicidade? O que fezde tão horrível que não poderia ter um bebê? Um soluço se rompeu dela. Charlotte se conteve ese levantou. Sem histeria.

Elvei teria que ser avisado. Ele ficaria arrasado. Ter filhos significava muito para o seumarido.

Charlotte desceu as escadas até o caminho que levava ao pátio norte. A velha casa seespalhava no jardim como uma fera branca preguiçosa, uma coleção aparentemente aleatória dequartos, pátios, sacadas e escadas de pedra de três andares.

O pátio norte ficava no lado oposto da mansão, e ela precisava de alguns minutos para serecompor. Seu marido precisaria de seu apoio. Pobre Elvei.

Charlotte estava começando a se acostumar com a sua nova vida quando Elvei Leremine seaproximou dela e a pediu em casamento. Ela tinha 28 anos na época, mal havia saído do Institutohá um ano e era solitária. Não sobrava muito tempo para romances na vida de uma Curadora. Aideia de se casar, de compartilhar sua vida com outro ser humano de repente pareceu muitoatraente. O barão Leremine era atencioso, cortês e bonito. Ele queria uma família, e ela também.

Passado um ano de casados sem conseguir engravidar, Charlotte resolveu fazer algunsexames, dando o primeiro passo na cansativa jornada de dezoito meses.

Ela queria um filho. Essa criança seria coberta de amor e carinho, e nunca teria que sepreocupar em ser arrancada de seus braços, porque mesmo que o talento dela passasse para obebê, ela iria para o Instituto com ele. Charlotte parou por um momento e fechou os olhos comforça. Não haveria nenhum bebê.

Uma semana atrás, os meses de tratamentos, testes e espera, pesaram sobre ela. Sentia-se

sozinha, desesperada e apavorada com o futuro, assim como se sentiu quando tinha sete anos deidade e atravessou os enormes portões de pedra do Instituto Ganer pela primeira vez. Entãodecidiu ir até o Instituto Garner e procurar pela mesma pessoa que a confortou naquela época, amulher que se tornou sua mãe depois que seus pais biológicos a venderam, Senhora Augustine.

Elas caminharam pelos jardins juntas, assim como estava fazendo agora, vagando ao longodos caminhos curvos de pedra, as altas paredes de pedra do Instituto atrás delas. SenhoraAugustine não havia mudado muito. Cabelos escuros, graciosos, rosto classicamente bonito, asenhora não andava, deslizava. Seu comportamento ainda era régio, seus traços eram elegantes esua magia, que podia acalmar em um suspiro o psicótico mais violento, ainda tão potente comosempre.

— A Senhora acha que isso é alguma punição? —Charlotte perguntou.

A senhora arqueou as sobrancelhas. — Punição? Por quê?

Charlotte apertou a mandíbula.

— Pode me dizer qualquer coisa, —Senhora Augustine murmurou. Não vou trair sua confiança, querida. Você sabe disso.

— Carrego algo sombrio em mim. Algo vicioso. Às vezes sinto uma ponta disso, olhandoatravés dos meus olhos de dentro de mim.

— Você sente o Impulso? —A mulher mais velha disse.

Charlotte acenou com a cabeça. O Impulso era um fantasma constante pairando sobre cadaCurador. Os Curadores podiam unir feridas devastadoras e eliminar doenças, mas tambémpodiam causar danos. Usar o lado destrutivo de sua magia era proibido. ‘Não causar o mal’ era adeclaração de abertura do juramento de um Curador. Foram as primeiras palavras da primeiralição que recebeu, e ao longo dos anos tinha ouvido isso ser dito inúmeras vezes. Ferir alguémera sedutor. Aqueles que experimentavam ficavam viciados e se perdiam no vício.

— Está ficando mais forte? —Senhora Augustine perguntou.

Charlotte acenou com a cabeça negando.

— Você é humana, perdoe-se.

O que? Charlotte olhou para a mulher mais velha.

Um sorriso triste curvou os lábios da Senhora Augustine. — Minha querida, acha que é aprimeira a ter esses pensamentos? Nossos talentos nos fornecem os meios para curar e causardanos. É da nossa natureza fazer as duas coisas, mas somos treinados a reprimir metade de nossa

natureza e curar por anos e anos. Isso cria um desequilíbrio. Acha que nunca imaginei o quepoderia fazer se eu libertasse todo o meu poder? Eu poderia entrar em uma sala cheia dediplomatas e mergulhar o país em uma guerra. Poderia incitar motins. Poderia levar as pessoasao assassinato.

Charlotte olhou para ela. De todas as pessoas, sua mãe adotiva era a última que elaimaginaria ter esses pensamentos.

— O que você sente é normal. Não seria motivo para uma punição. Está sob muito estressee seu corpo e mente estão na defensiva, acaba se colocando sob muita pressão, e isso a tornavulnerável. Você quer atacar, extravasar, mas Charlotte, precisa manter sua magia sob controle.

— E se eu falhar? —Charlotte perguntou.

— Não pode haver falha. Ou você é uma Curadora ou uma Abominação.

Charlotte estremeceu.

— Eu tenho fé em você. Você sabe quais são as consequências.

Ela sabia. Todo Curador sabia sobre as consequências. Os Curadores que escolhiam causaro mal se transformavam em Portadores das Pragas, escravos de sua própria magia, existindoapenas para trazer mortes e doenças. Séculos atrás, no Velho Continente, foi feita uma tentativade usar os Portadores das Pragas como arma durante uma guerra. Dois dos Curadores entraramno campo de batalha e se deixaram levar pelo Impulso. Nenhum dos dois exércitos sobreviveu, ea praga que eles desencadearam durou meses e eliminou reinos inteiros.

Senhora Augustine suspirou. — O reino nos tira de nossas famílias muito jovens com oobjetivo de nos doutrinar. Mesmo com toda educação e treinamento que recebemos, eles pedemsomente dez anos de serviço porque sabem que o que fazemos nos desgasta. Damos muito de nósmesmos. Somos a última esperança de muitas pessoas e estamos expostos a coisas horríveis:feridas de violência, crianças moribundas, famílias dilaceradas pela dor. É um fardo pesado paracarregar e tem um efeito em você, em mim, em todos nós. Sentir o Impulso destrutivo é natural,Charlotte. Mas agir sobre ele a tornará uma assassina. Talvez não de imediato. Talvez você possaaté controlá-lo por um tempo, mas no final, a magia irá consumi-la e você caminhará pela terraespalhando a morte. Não há exceções a esta regra. Não se torne uma Abominação, Charlotte.

— Eu não vou. —Ela conteria o Impulso. Precisava, simplesmente não tinha escolha.

As duas caminharam em silêncio por alguns momentos.

— Vamos imaginar o pior, —disse a Senhora Augustine. — Suponhamos que seja estéril.

O coração de Charlotte parou de bater. — Sim.

— Isso não significa que não possa ter filhos. Existem centenas de crianças esperando paraserem amadas. Você não pode dar à luz, Charlotte. Isso é apenas uma pequena parte de ser mãe.Ainda poderá ser mãe e conhecer todas as alegrias e torturas de criar um filho. Ficamos muitopresos a linhagens, nomes de família e nossas próprias noções estúpidas de aristocracia. Sealguém deixasse uma cesta com um bebê na sua porta, você realmente hesitaria em pegá-laporque o bebê não é do seu sangue? É um bebê, uma pequena vida apenas esperando para seralimentada. Pense nisso.

— Não preciso pensar. Ficaria com o bebê, —disse Charlotte. Ela iria aceitar e amar,mesmo que não tivesse gerado em seu ventre, não importava.

— Claro que sim. Você é minha filha em tudo, menos no sangue, e eu a conheço. Acho queserá uma excelente mãe.

Lágrimas aqueceram os olhos dela. Charlotte as manteve sob controle. — Obrigada.

— O que seu marido acha de tudo isso?

— Ter filhos é muito importante para ele. Sua herança depende da vinda de um herdeiro.

A mulher mais velha revirou os olhos. — Sucessão de herança condicional? Oh, as alegriasde ter uma linhagem de sangue nobre e um pouco de dinheiro. Você soube dessa condiçãoagora? Não me lembro disso no seu contrato matrimonial.

Charlotte suspirou. — Não há nada sobre isso no contrato.

— Ele mencionou em algum momento antes do casamento que precisava de um herdeiro?

Charlotte negou com a cabeça.

O rosto da Senhora Augustine gelou. — Então ele me enganou, não gosto de ser enganada.Quando você descobriu?

— Quando percebemos a minha dificuldade em engravidar.

— Isso era algo que ele deveria ter conversado com você antes de assinar o contratomatrimonial. Não só isso, mas essa condição da sucessão de herança deveria ter sido registradaformalmente. —Ela olhou para longe, como fazia quando tentava se lembrar das coisas. —Como eu poderia estar tão errada? Ele parecia um parceiro tão adequado, um homem comedido.Parecia ser improvável que causasse quaisquer problemas.

Um homem comedido? — O que isso significa?

— Charlotte, você precisa de alguém estável, alguém confiável, que irá tratá-la comconsideração e respeito. Você já tem mais de uma década de cura, e sua magia está faminta ecansada de fazer a mesma coisa repetidamente. Não é preciso muito para fazê-la cair no

precipício. É por isso que permaneci aqui. —A Senhora Augustine apontou o jardim com umelegante gesto de mão. — Serenidade, beleza e baixa probabilidade de que eu sofra algumtrauma físico ou psicológico. É por isso que depois de uma guerra sangrenta, alguns veteranosCuradores se tornam monges.

Então o que? Viveria presa dentro dos muros da Instituição porque era de alguma formafrágil demais para viver no mundo lá fora? Charlotte cerrou os dentes. — Talvez Elvei nãosoubesse sobre essa condição para a sucessão da herança.

— Ah não, ele sabia. Esse é o tipo de coisa que se cresce sabendo, Charlotte. Elvei escondeudeliberadamente porque eu nunca teria dado meu consentimento para esse casamento.

Charlotte ergueu a cabeça. — Se ele fizesse disso uma exigência no contrato de casamento,eu não teria me casado com ele. Não aceitaria um contrato para gerar um bebê. Eu queria umcasamento e acho que ele também.

— Ele queria filhos com talentos de cura, —disse a mulher mais velha.

Charlotte parou.

— Sinto muito, querida, —disse Senhora Augustine. — Eu não deveria ter dito isso. Foigrosseiro da minha parte. Estou muito furiosa e isso está atrapalhando meu julgamento. É minhaculpa. Isso era exatamente o tipo de coisa que eu tentei evitar que acontecesse com você e falhei.Me desculpe.

— Eu não sou uma criança, —disse Charlotte. — Tenho quase trinta anos e sou responsávelpelo meu casamento.

— Você é culta e inteligente, mas a Instituição Ganer não a preparou para as realidades domundo fora dessas paredes. Não importa quantos anos tem, não tem a experiência de interagircom pessoas fora de um ambiente controlado. Você nunca foi traída, ferida ou enganada. Nuncasofreu humilhação. Eu olho para a alma das pessoas todos os dias, e o que vejo lá me enche dealegria, mas também de pavor. Eu queria tanto poupá-la.

Ela estava falando como se o fim de seu casamento fosse uma conclusão eminente.

— Meu casamento não acabou, e Elvei não é uma espécie de vilão insensível. Tudo bemque ele não me contou sobre a condição da sucessão de herança. Foi um descuido bastantelamentável, mas vamos lidar com isso. Entendo que o amor não acontece da noite para o dia, masacho que ele se preocupa comigo, e eu me importo com ele profundamente. Vivemos juntos háquase três anos. Acordamos na mesma cama. Ele me disse que me amava quando comecei ostratamentos de fertilidade.

Senhora Augustine a estudou. — Talvez você esteja certa, e ele simplesmente te ama. Se ele

realmente se preocupa com você, vai lidar com isso.

Elas deram mais um passo. A mistura de preocupação e ansiedade turvou dentro deCharlotte. O calor subiu por trás de seus olhos e ela tapou a boca com a mão.

A Senhora Augustine abriu os braços.

As últimas defesas de Charlotte quebraram. Ela deu um passo para o abraço reconfortante echorou.

— Minha querida, minha preciosa. Vai ficar tudo bem, —Senhora Augustine acalmou,segurando-a. — Tudo ficará bem. Coloque tudo para fora.

Mas não estava tudo bem, e agora Charlotte tinha que contar a Elvei sobre isso.

O que diziam sobre começar a amar uma pessoa com quem se convive diariamente eraverdade: ela passou a amá-lo. Elvei sempre foi gentil, e agora poderia se aproveitar um poucodessa gentileza. Charlotte se sentia fraca e desamparada. Tão indefesa. O caminho a levou aopátio norte. Seu marido estava sentado em uma cadeira, bebendo seu chá matinal e examinandopapéis. De estatura mediana e constituição muscular, Elvei era bonito naquele jeito aristocráticodos Sangues-azuis: traços precisos, esculpidos com uma perfeição que parecia um pouco frio,queixo quadrado, nariz estreito, olhos azuis, cabelos castanhos com um toque de vermelho.Quando ela acordava ao lado dele, com a luz da manhã brincando em seu rosto, muitas vezes oachava lindo.

Charlotte subiu os degraus. Elvei se levantou e estendeu uma cadeira para ela. Ela se sentoue passou a carta para ele.

Ele leu, impassível, seu rosto agradavelmente calmo. Charlotte esperava outra reação.

— Isso é lamentável, —disse Elvei.

Só isso? Lamentável? Os instintos dela lhe disseram que algo estava seriamente errado comaquela expressão plácida no rosto dele.

— Eu realmente me importo com você, —disse Elvei. — Muito. —Ele se aproximou damesa e segurou a mão dela. — Estar casado com você é fácil, Charlotte. Não tenho nada além deadmiração pelo que faz e por quem é.

— Sinto muito, —disse ela. A parte lógica dela sabia que ela não tinha culpa por ser infértil.Não foi ela que causou isso, e fez tudo ao seu alcance para se curar. Ela queria um bebê tantoquanto Elvei. Mas se sentia culpada do mesmo jeito.

— Por favor, não sinta. —Ele se recostou. — Não é sua culpa ou minha. É apenas um

acidente do destino.

Ele estava muito calmo, quase arrogante sobre isso. Teria sido melhor se tivesse xingado oujogado algo. Mas não, ficou lá, sentado em sua cadeira, e cada palavra que dizia a distância entreeles aumentava. — Poderemos adotar, —disse ela, esperançosa.

— Tenho certeza de que você poderá.

O alarme disparou na cabeça dela. — Você disse ‘você’. Não ‘nós’.

Ele empurrou um pedaço de papel sobre a mesa na direção dela. — Achei que as coisaspoderiam acabar assim, então tomei a liberdade de preparar isso.

Ela olhou para o papel. — Anulação? —A compostura dela foi destruída. Ele poderia muitobem tê-la esfaqueado. — Depois de dois anos e meio, você quer anular nosso casamento? Estálouco?

Elvei fez uma careta. — Já falamos sobre isso antes: tenho três anos a contar do início docasamento para gerar um herdeiro. Meu irmão está noivo, Charlotte. Eu te falei sobre isso hádois meses. Ele terá três anos para gerar um filho. Preciso da anulação do nosso casamento. Se sónos divorciarmos, mesmo que eu case novamente com outra pessoa, ainda continuarei tendosomente seis meses antes de me tornar inelegível para herdar. A mulher com quem irei me casarnão pode conceber um bebê em seis meses. Preciso que o nosso casamento seja anuladototalmente, para que meus três anos possam recomeçar, ou Kalin conseguirá a herança antes demim. Ele ainda pode, considerando todas as coisas, já que me casar de novo levará tempo paraorganizar ...

Isso não estava acontecendo. — Então você vai apenas fingir que tudo o quecompartilhamos nesses anos não existiu e me descartar? Como se eu fosse um lixo?

Ele suspirou. — Eu te disse, tenho uma grande admiração por você. Mas o propósito destecasamento era ter uma família.

— Nós somos uma família. Você e eu.

— Esse não é o tipo de família de que preciso. Não posso perder a herança, Charlotte.

Ela sentia frio e calor ao mesmo tempo, toda mágoa e raiva congeladas pelo choque. — Édinheiro? Você sabe que posso ganhar todo dinheiro que precisarmos.

Ele suspirou. — Você é tão perfeita na maioria das vezes que esqueço que não é umaSangue-azul por nascimento. Não, claro que não é dinheiro. Quem herdar a propriedadegovernará a família. É meu direito. Eu nasci primeiro, estudei a maior parte da minha vida paracuidar dos interesses de minha família e não vou deixar isso escapar.

— É só uma maldita propriedade! —A voz dela estalou.

A compostura de Elvei derreteu, a civilidade e educação escorregando dele. Sua voz seelevou. — É a minha casa de infância. Minha família remonta a dezesseis gerações. Você esperaque eu simplesmente deixe meu irmão idiota herdá-la enquanto você e eu fingimos brincar decasinha aqui, nesta ruína decrépita? Não, obrigado. Tenho ambições maiores na vida.

As palavras dele queimaram. — É isso que estávamos fazendo? —Ela perguntou baixinho.— Quando você e eu fizemos amor em nosso quarto, estávamos brincando de casinha?

— Não seja melodramática. Nós dois nos divertimos, mas agora acabou.

A indignação cresceu nela, misturada com mágoa. Na noite anterior, ele a beijou antes deadormecerem um ao lado do outro. Este era o homem com quem ela acordava todas as manhãs?— Elvei, percebe que está me dizendo que eu não tenho valor para você, exceto como uma éguade cria?

— Não me torne o vilão nisso. —Elvei recostou-se. — Eu te acompanhei em todos os testese tratamentos. Escutei pacientemente enquanto você se entusiasmava com este e aqueleespecialista, sentei-me na sala de espera e dediquei-lhe o máximo de tempo que pude. Não hámais tratamentos disponíveis. Eu só quero ter um filho, como qualquer adulto normal e saudável.

Cada vez que ela pensava que tinha atingido o limite da dor, ele torcia a faca um poucomais, cavando cada vez mais fundo dentro dela, cortando uma ferida aberta.

— Então, eu sou anormal?

Ele abriu os braços. — Você pode engravidar? Não. É uma deficiente, Charlotte.

Deficiente. Ele realmente a chamou de deficiente. A dor dentro dela começou a arder deraiva. — Estou curiosa, qual é a próxima palavra que você dirá? Será algo mais cruel do queisso, Elvei?

— Você me custou dois anos e meio do meu tempo.

Dois anos e meio de decepção, de procedimentos dolorosos e esperanças destruídas, de sesentir aleijada, mas não, só o que importava era ele. Ela nunca teria um filho, mas ele era único ase sentir lesado. Charlotte deveria ter percebido isso nele. Deveria saber. Como pode ter sido tãoestúpida? — Você é um ser humano terrível.

Ele ficou de pé e se inclinou sobre a mesa. — Se eu tivesse casado com outra pessoa, já teriaminha herança. Tentei terminar nosso relacionamento com o máximo de civilidade possível, masvocê decidiu causar uma cena. Preciso de um herdeiro, Charlotte, e você não pode me dar um. Oque há de tão complicado nisso? Eu cansei de perder meu tempo com você.

— Você disse que me amava. —Ela ainda se lembrava da expressão do rosto dele quandoele disse isso.

— Você precisava de incentivo para começar as terapias. Queridos deuses, Charlotte, érealmente tão ingênua ou apenas estúpida?

As palavras a esbofetearam. O Impulso sombrio dentro dela estremeceu, esticando-se,preparando-se para escapar. Ela o apertou, tentando segurá-lo.

— Deixe-me esclarecer: casei-me com você por causa de seu dom de cura que poderiatransmitir a nossos filhos, e de seu equilíbrio. Você é atraente e educada, e eu sabia que nuncame envergonharia em público. Fora isso, não havia muito a seu favor.

O ar ficou espesso e escaldante como cola fervente. Ela não conseguia respirar.

— Você é uma Sangue-azul há menos de três anos. Minha família veio para este continentena Segunda Frota, e eles já tinham títulos de nobreza.

A escuridão se contorceu dentro dela, implorando para ser liberada.

— Meu pai é um conde, minha mãe era uma baronesa antes de se casar com o meu pai. Seupai era um cozinheiro e sua mãe uma garçonete. Em que mundo você poderia pensar que dealguma forma estaria a minha altura? Eu te concedi um favor. Eu te elevei socialmente quandome casei com você, Charlotte, e você ficou aquém das expectativas. Aceite com dignidade.Acredito que um pedido de desculpas é necessário.

Ele empurrou a lâmina tão fundo na ferida que alcançou a escuridão que ela escondia bemno fundo. Suas defesas explodiram. O Impulso deslizou para fora, cobrindo sua pele de dentropara fora. — Tem razão. Você vai se sentar agora e se desculpar comigo. —A ameaça impregnoua voz dela.

Ele olhou para ela. — Você dificilmente está em posição de me dar ordens.

A magia dela deslizou para fora dela e envolveu seus braços, curvando-se ao redor de seucorpo em riachos escuros, brilhando em um vermelho profundo e intenso. Ela nunca tinha vistoesse vermelho antes. O dourado claro da cura, sim, centenas de vezes. Mas esse vermelho escuroe furioso? Não. Então era assim que a magia de uma Abominação se parecia.

— Eu posso arruinar sua família inteira, seu idiota. Sou uma Curadora. Escolha qualquerpraga e as dezesseis gerações de sua família acabarão agora mesmo.

A boca de Elvei se abriu. — Você não faria.

A magia saiu dela como uma serpente atacando e o mordeu. Elvei estremeceu, seu rostoconfuso. Charlotte sentiu sua magia picá-lo, cortando a mucosa interna da garganta dele, e uma

onda de prazer inesperado a inundou. Oh deuses. O medo tomou conta de Charlotte. Ela puxou acorrente escura para trás, puxando seu poder para dentro de si. Ela deixou sua magia ter apenasum mero sabor, uma pequena mordida, mas a magia escura queria mais, e Charlotte teve que seesforçar para mantê-la contida.

Elvei tossiu cada vez mais forte, tapando a boca com a mão. O sangue escorria dos dedosdele, manchando a pele dele com um vermelho brilhante e quente. Ele começou a se levantar,mas congelou no meio do caminho.

Charlotte percebeu que o odiava, e machucá-lo a deixaria feliz. O poder percorreu seucorpo, sombrio, mas estimulante. Sua magia implorou por mais.

Não. Não podia se deixar sucumbir.

— Sente-se.

Ele caiu na cadeira.

— Você terá sua anulação, —disse ela. — No entanto, com a anulação de nosso casamento,não posso considerar que viveu todo esse tempo na minha casa na condição de meu marido. Porisso vou tratá-lo como meu inquilino. Você irá me reembolsar pelo aluguel, pela comida, roupas,presentes e os serviços de minha equipe. Você entrou neste casamento falso sem nada e irá sairsem nada.

Era um pequeno preço a pagar, mas ela não podia simplesmente deixá-lo ir embora livre,leve e solto. A raiva dela não deixaria. Charlotte precisava de uma compensação nominal. Se nãoo fizesse, sua magia cobraria seu próprio preço.

— Não tenho esse dinheiro, —disse ele.

— Não estou interessada em seus problemas financeiros, —disse ela. — Eu o apoieifinanceiramente todos esses anos, e você não conseguirá tirar vantagem de mim. Vou pedir aomeu advogado que redija uma fatura e você vai pagá-la integralmente, ou vou forçá-lo a fazer umpedido de desculpas muito mais público.

Todo o sangue deixou o rosto dele. — Você terá seu dinheiro.

— Envie para a instituição de caridade Mãe da Aurora. —O dinheiro iria para curarcrianças. Alguma coisa boa viria desse pesadelo.

A magia dela implorou para ter outra pequena mordida dele. Charlotte apertou sua magiaem seu punho e a manteve contida. — Peça desculpas por ser um bastardo sem coração.

— Peço desculpas, —ele disse, sua voz dura.

Charlotte se concentrou. A magia revestiu seu braço novamente, mas dessa vez no tom

dourado radiante da cura. — Me dê sua mão.

Ele estendeu a mão sobre a mesa. Os dedos dele tremiam. Ela agarrou o pulso dele, lutandocontra a repulsa. Eles haviam acordado na mesma cama esta manhã. Ficou deitada lá, o achandobonito e desejando ter os filhos dele, enquanto ele devia estar repassando mentalmente ascondições de anulação. O documento foi redigido por um advogado, o que provavelmente levoutempo. Elvei deve ter começado os preparativos para este momento há alguns dias. Sua mentelutou para aceitar que ele pudesse ser tão frio.

Charlotte forçou os pensamentos para longe e se concentrou em reparar as lacerações namucosa interna da garganta dele, que ela mesma havia aberto. Um momento depois, as feridasinternas se fecharam. Ela o soltou e limpou a mão na toalha de mesa.

— Vá embora. Suas coisas serão enviadas quando a instituição de caridade me informar queseu pagamento foi feito.

Ele se levantou e saiu correndo. Ela se sentou lá, sozinha, no pátio de uma casa que nãoparecia mais um lar e se perguntou o que faria a seguir.

A escura corrente de poder enrolou-se e girou ao redor dela. Charlotte sentiu a fome de suamagia, acenando para ela. Queria ser alimentada.

Finalmente, todas as lições e instruções intermináveis fizeram sentido. Seus professoresdisseram que usar o dom de cura para fazer mal era viciante, mas eles se esqueceram demencionar o porquê. Machucar seu ex-marido lhe trouxe prazer. Ela queria fazer isso de novo.

‘Não se torne uma Abominação, Charlotte.’

Não havia exceções à regra. A magia sombria ressurgiria e o prazer que viria com ela aconsumiria. Ela seguiria a isca escura para o abismo impensado, onde apenas o próximomomento de euforia induzida pela dor importaria. Charlotte agora era uma bomba-relógio. Tinhaque conter seus poderes a qualquer custo.

Charlotte caiu contra a cadeira. Tinha poucas opções. Poderia voltar para o Instituto Ganer ese esconder do mundo. Não, voltar para o Instituto onde todos a conheciam e saberiam sobre seucasamento fracassado estava fora de questão. O compadecimento deles a levaria ao limite.

Ela poderia permanecer nessa mansão, viver em reclusão e esperar que o isolamentoreduzisse a tentação de usar o lado sombrio de sua magia, mas também não queria ser maisCharlotte de Ney. Senhora de Ney era uma mulher estúpida e ingênua que ficou cega por umrosto bonito e a promessa de um amanhã feliz. Pensou que depois de anos de treinamento eserviço, merecia ser amada por quem era, como se o amor fosse uma espécie de direito. Seficasse aqui, teria que enfrentar seus vizinhos e amigos e explicar por que seu casamento foi

anulado. Não, também não seria uma boa ideia, especialmente porque Elvei estaria se movendonos mesmos círculos, procurando uma nova esposa.

A memória de Elvei fez a magia dentro dela ferver novamente. Charlotte se abraçou. Feri-lofoi tão bom. Podia deixá-lo doente. Talvez só um pouquinho. Nada drástico. Sabia onde elemorava antes de se casarem. Ele ainda era o dono daquela casa e provavelmente voltaria para lá.E se ele se casasse, poderia tornar sua noiva, feliz e saudável, um pouco menos vivaz. Opensamento disso a corroeria até que a consumisse, então acabaria fazendo. Era errado e cruel.Sabia disso, mas estava muito cansada e suas feridas emocionais estavam muito cruas. Charlottenão tinha certeza de quanto tempo poderia aguentar. Tinha que desaparecer, fugir para algumlugar, longe dos Sangues-azuis, de Adrianglia e de Elvei.

De repente se lembrou de um incidente de muitos anos atrás, quando foi chamada para curarum grupo de soldados. Ela se lembrou de ter sentido uma forte barreira mágica, uma paredeinvisível que parecia separar o mundo que vivia, e de ver os soldados passarem por essa barreira,um por um, seus rostos contorcidos de dor. Ela falou com um deles enquanto fechava suasferidas. Ele disse que eles pertenciam ao Espelho, uma agência secreta de contraespionagem3, eque ele e seus companheiros estavam em uma missão fora de seu mundo, em um lugar onde amagia era mais fraca. O soldado chamou esse lugar de Edge. O homem estava delirando, e elateria relevado as palavras dele se não tivesse sentido a parede invisível subindo como umabarreira de magia pressurizada.

Neste lugar, o Edge, a magia era mais fraca, a atração da escuridão poderia ser mais fracatambém, então mesmo se a escuridão a vencesse nesse lugar, causaria menos danos.

A verdadeira questão era: ela poderia encontrar esse lugar?

******ÉLÉONORE Drayton recostou-se na cadeira de balanço e bebeu o chá gelado em um copode vidro alto com o formato do centro de um narciso4. O sol da primavera aquecia a varanda.Éléonore sorriu, aconchegada em todas as camadas de suas roupas rasgadas. Ultimamenteandava sentido o peso de cada um de seus 109 anos, e o calor era muito bom.

Além do gramado, uma estrada corria ao longe e, do outro lado, a floresta do Edge seerguia, densa, nutrida por magia. O ar cheirava a folhas frescas e flores da primavera.

Ao lado dela, Melanie Dove, que também não era uma jovem flor da primavera, ergueu ocopo contra a luz e semicerrou os olhos para analisá-lo. O sol refletiu um fino fio de ouroespiralando dentro das paredes de vidro. — Copos bonitos. Eles são do Weird?

— Hum-rum. Mantém o chá gelado com magia. —Os copos funcionavam mesmo aqui, no

Edge, onde a magia não era tão forte. Não conseguia evitar que o gelo nunca derretesse comoprometia o bilhete que veio com ele, mas durava umas boas cinco a seis horas e, convenhamos,quem não conseguiria beber um copo de chá em cinco horas?

— Seus netos trouxeram para você?

Éléonore acenou com a cabeça. Os copos eram os mais recentes de uma série de presentes evieram por um mensageiro especial, direto de Adrianglia em uma caixa com o selo do CondeCamarine. Rose, a mais velha de seus netos, escolheu pessoalmente os copos e escreveu um belobilhete.

— Quando irá se mudar para lá?

Éléonore ergueu as sobrancelhas. — Tentando se livrar de mim?

— Por favor. —A outra bruxa balançou a cabeça grisalha. — Sua neta se casou com umnobre de Sangue-azul endinheirado, seus netos estão há meses pressionando você para se mudar,mas está aqui, sentada como uma galinha em uma pilha de lixo. Em seu lugar, eu já teria ido.

— Eles têm suas próprias vidas, eu tenho a minha. O que vou fazer lá? Os meninos ficam naescola o dia todo. George tem treze anos, Jack, onze, e Rose tem seu próprio casamento para sepreocupar. Eu nem mesmo tenho uma casa própria lá. Aqui eu tenho duas casas.

— O Conde Camarine comprará uma casa para você. Ele mora em um castelo, mulher.

— Nunca aceitei a caridade de ninguém e não vou começar agora.

— Bem, no seu lugar, eu iria.

— Bem, você não está no meu lugar, está?

Éléonore sorriu para o chá. Elas eram amigas há cinquenta anos e, durante todo o meioséculo, Melanie sempre opinou na vida de todo mundo. Nunca foi sutil nas intromissões da vidados outros e a idade apenas a tornou mais incisiva.

Mas a verdade era que Éléonore sentia falta de seus netos. Rose, George e Jack, sentia tantoa falta deles que seu peito doía às vezes com as memórias. Mas ela não pertencia ao Weird,refletiu Éléonore. Tinha ido visitá-los e provavelmente iria de novo, mas não se sentia em casa.A magia era mais forte lá, e ela provavelmente viveria mais, mas aqui no Edge, em um espaçoentre o Weird com toda a sua magia e o Broken desprovido dela, era seu verdadeiro lugar.

Éléonore era uma Drayton e uma Edege, por completo. Ela entendia esta pequena cidade,conhecia todos os seus vizinhos, seus filhos e netos. E também tinha prestigio. Um certorespeito. Quando Éléonore ameaçava amaldiçoar alguém, as pessoas se levantavam e ouviam.No Weird, ela seria apenas uma pedra pesada no pescoço de Rose.

Não tinha como ser diferente, ela se reassegurou. As crianças crescem e saem do ninho.Tudo estava como deveria ser.

Uma caminhonete passou rasgando no pátio, Sandra Wicks ao volante, seu cabelo loirodescolorido uma bagunça.

— Vadia, —disse Melanie baixinho.

— Sim.

Sandra acenou para elas pela janela. Ambas as bruxas sorriram e acenaram de volta.

— Então, você ouviu falar sobre a tal da ‘amiga’ que mora perto de Macon5? —Éléonoreperguntou.

— Hum-rum. Assim que o marido vira as costas, ela atravessa a fronteira para o Broken.Passa tanto tempo por lá que é um milagre que ela ainda tenha alguma magia. Alguém deveriaavisar Michael.

— Fique fora disso, —disse Éléonore. — Não é da sua conta.

Melanie fez uma careta. — Quando eu tinha a idade dela ...

— Quando você tinha a idade dela, todos achavam que usar uma camisole6 de cetim porbaixo da roupa em vez de um espartilho era ousado.

Melanie apertou os lábios. — Só para a sua informação, eu usava calcinha e sutiãcombinando.

— Bem, uma verdadeira rebelde.

— E também era de seda.

Uma mulher tropeçou na curva da estrada. Ela caminhava vacilante, cambaleando enquantocolocava um pé na frente do outro, o cabelo loiro enrolado na cabeça, o rosto manchado de terra.

— Quem diabos é? —Melanie pousou o copo.

As duas conheciam toda a população de Laporte do Leste, e Éléonore tinha certeza de quenunca tinha visto essa mulher antes.

Roupa de lã, cortada nos modelos usados em Weird. Qualquer pessoa do Broken usariajeans ou calça cáqui, sapatos de salto ou tênis. Ela usava botas e estava andando estranhamente.

A mulher cambaleou e caiu no acostamento.

Éléonore se levantou.

— Não se precipite, —sussurrou Melanie. — Você não sabe o que ela é.

— Meio morta, é isso que ela é.

— Tenho um mau pressentimento sobre isso.

— Você tem maus pressentimentos sobre tudo.

Éléonore saiu de sua varanda e correu pela estrada.

— Você vai ser a minha morte, —murmurou Melanie, e a seguiu. A mulher se viroulentamente e se sentou. Ela era alta, magra, mas não naturalmente magra. Faminta, Éléonorepercebeu. Não era uma adolescente, uma mulher, cerca de trinta anos ou mais.

Ainda uma menina para os padrões de Éléonore.

— Você está bem, querida? —Éléonore gritou.

A mulher olhou para ela. Sim, definitivamente do Weird e nobre também: o rosto erabonito e sem rugas, sem dúvida bem cuidado em algum momento, mas agora abatido,acentuado pela falta de comida e manchado de sujeira.

— Eu levei um tiro, —disse ela, com a voz baixa.

Mon Dieu7. — Onde?

— Coxa direita. É uma ferida superficial. Por favor. —A mulher olhou para ela e Éléonoreleu desespero em seus olhos cinzentos. — Eu só quero um pouco de água.

— Éléonore, não se atreva a levá-la para dentro de sua casa.

Rose estava a muitos quilômetros de distância, e essa garota não se parecia em nada comela, mas de alguma forma havia sombras de sua neta no rosto da desconhecida. Éléonore agarrouas mãos da garota. — Tente se levantar.

— Isso vai acabar em lágrimas, —Melanie agarrou o outro braço da menina. — Venha.Apoie-se em mim.

A mulher se endireitou e ofegou, um som pequeno e doloroso.

Para uma mulher alta, não pesava quase nada. Elas a fizeram subir os degraus, um degrau decada vez. Levaram-na para dentro e a colocaram-na na cama extra. Éléonore puxou a calça de lãpara o lado. Um pequeno ferimento vermelho a bala apareceu em sua coxa.

— Melanie, pegue o kit de primeiros socorros.

— Estou indo. Estou indo. —A bruxa foi para a cozinha

— A bala está alojada? —Éléonore perguntou.

A garota negou com a cabeça.

— Como você foi baleada?

— Havia um menino ... —Sua voz estava fraca. — Com um braço quebrado. Tentei curar a fratura, e o pai da criança atirou em mim. —Surpresa e indignação vibraram na voz da mulher.

A magia de cura era realmente rara, quase inexistente. Éléonore franziu a testa. O quediabos essa mulher estava fazendo aqui no Edge?

Melanie apareceu na porta com um kit de primeiros socorros. — Se pode curar, por que nãocura o buraco em sua perna?

— Não consigo me curar, —disse a garota.

— Acho que você está mentindo, —disse Melanie, passando o kit.

A mulher ergueu a mão. Seus dedos roçaram o braço cheio de machas de idade de Melanie.Um fraco fluxo de faíscas douradas chamejou dos dedos da desconhecida, afundando na pele deMelanie. As manchas escuras de idade desapareceram.

Éléonore ofegou.

Melanie ficou paralisada.

A mulher sorriu, um sorriso triste e fraco nos lábios. — Posso, por favor, beber um pouco deágua? —A perna dela ainda estava sangrando.

— Pegue um pouco de água para ela, Melanie.

— O que sou? Sua escrava? —Melanie foi para a cozinha.

Éléonore desatarraxou uma garrafa de álcool, derramou um pouco sobre a gaze do kit epressionou contra a ferida. A garota estremeceu.

— Você é do Weird, não é? O que está fazendo aqui no Edge?

— Precisei ir embora de lá, —a garota disse. — Eu tinha um cavalo e dinheiro. Alguém meroubou. Tentei ganhar mais dinheiro, mas ninguém me deixa curá-los. Tentei ajudar o filho dessehomem e ele atirou em mim. Ele atirou em mim! Que tipo de lugar insano é esse?

— Aqui é o Edge. —Éléonore espremeu um pouco de pomada antibiótica na ferida. — Nãotratamos bem forasteiros.

Melanie reapareceu com uma xícara. A garota bebeu grandes goles sedentos.

— Obrigada.

— Quem atirou em você? —Perguntou Melanie. — Como ele era?

— Homem alto, cabelo vermelho ...

— Cara de doninha8? —Perguntou Melanie.

— Parece mais um arminho9, —a mulher ofereceu, sua voz fraca.

— Marvin, —Éléonore e Melanie disseram em uníssono.

— Ele é o nosso paranóico e louco oficial, —continuou Éléonore. — O homem nãoconsegue ficar parado na igreja porque precisa procurar por helicópteros pretos no teto.

— O que é um helicóptero? —a mulher perguntou.

— É uma grande engenhoca de metal com uma hélice no topo. A polícia do Broken usa essacoisa para voar.

— O que é o Broken?

— Ah garota. —Melanie suspirou.

— O lugar de onde você veio chama-se Weird, —disse Éléonore. — Você passou por umafronteira para chegar aqui, uma barreira mágica, não foi?

— Sim.

— Bem, agora você está no limite, entre dois mundos. Do outro lado do Edge, há outrabarreira mágica, e além dela há outro lugar, igual ao Weird, exceto que o mundo lá não possuimagia.

— É por isso que é chamado de Broken, —disse Melanie. — Se você for lá, a passagempela fronteira rouba a magia de você.

— O que quer dizer com não tem magia? —A mulher perguntou.

Éléonore continuou trabalhando na ferida. A bala entrou na espessura da parte externa dacoxa da garota e saiu cinco centímetros depois. Pouco mais que um arranhão. Marvin nãopoderia atingir uma manada de elefantes se eles estivessem vindo direto para ele. — Qual o seunome?

— Charlotte.

— Você precisa dormir agora, Charlotte. Não se preocupe. Está segura aqui. Pode ficar aquiaté se sentir melhor. Ninguém vai atirar em você novamente, e teremos muito tempo para falarsobre o Broken e os helicópteros.

— Obrigada, —Charlotte sussurrou.

— De nada, querida.

A garota fechou os olhos. Sua respiração se equilibrou. Éléonore terminou de curar a ferida.

— Parece que você encontrou outro pássaro com a asa quebrada, —disse Melanie. — Eainda se pergunta a quem George puxou.

— Olha para ela. Como posso mandá-la embora?

Sua amiga balançou a cabeça. — Oh, Éléonore. Espero que saiba o que está fazendo.

******ERA A NOITE do dia seguinte. Éléonore sentou-se na varanda de sua casa, bebendo chágelado do copo do Weird e observando as andorinhas do Edge deslizarem para frente e para trás,comendo mosquitos.

A porta de tela se abriu atrás dela. Charlotte saiu para a varanda, enrolada no cobertor. Seucabelo estava uma bagunça e seu rosto ainda pálido, mas seus olhos estavam lúcidos.

— Se sentindo melhor? —Éléonore perguntou.

— Sim.

— Venha se sentar comigo.

A garota se abaixou na cadeira com cuidado. A ferida ainda devia doer.

— Como está essa perna?

— Foi apenas um arranhão, —disse a garota. — Desculpe-me por ter chegado aqui daquelaforma. Foi choque e desidratação mais do que qualquer coisa.

— Aqui. —Éléonore empurrou a travessa de biscoitos na direção da mulher. — Parece quejá faz um tempo que você não come.

Charlotte pegou um biscoito. — Obrigada por me ajudar. Não sei como irei retribuir.

— Não se preocupe com isso, —disse Éléonore. — De onde você é? No Weird, quero dizer.Que país?

Charlotte parou por um segundo. — Adrianglia.

— Minha neta se casou com um homem de Adrianglia, —disse Éléonore. — CondeCamarine.

— O Marechal das Províncias do Sul, —disse Charlotte.

Talvez ela conhecesse Rose. — Exatamente. Você o conhece?

— Eu nunca o conheci pessoalmente, —disse Charlotte. — Conheço a família pelareputação.

Ela olhou para a floresta. A exaustão transparecia em seu rosto, uma boca cansada e frouxa

e olheiras sob os olhos tristes. Havia claramente um ‘passado’ ali, refletiu Éléonore. A moça nãoparecia uma criminosa fugitiva. Era mais como se ela fosse uma vítima, fugindo de algo,sozinha, mas determinada.

Ela tinha visto esse olhar no rosto de sua neta algumas vezes: quando Rose ficava semdinheiro ou quando os meninos surgiam com alguma emergência inesperada. Era um olhar de‘A vida me derrubou de novo, mas vou me levantar’.

— Então, para onde você está indo? —Éléonore perguntou.

— Nenhum lugar em particular, —Charlotte disse.

— Bem, você não está mesmo em condições de ir a lugar nenhum.

Charlotte abriu a boca.

— Está debilitada, —disse Éléonore. — Minha neta deixou uma casa aqui. Eu pretendiaalugá-la, mas nunca encontrei ninguém de confiança o suficiente para não destruir o lugar. Estácheio de teias de aranha agora, mas se você não tem medo de água, sabão e uma vassoura, vaiconseguir limpá-la. Pode ficar lá. E se quiser praticar a cura, podemos fazer isso também. Vocêsó precisa de uma apresentação adequada às pessoas. As coisas são feitas de uma certa maneiraaqui.

Charlotte estava olhando para ela com os olhos arregalados, parecendo atordoada. — Porquê? Você nem me conhece. Eu poderia ser uma criminosa.

Éléonore tomou um gole de chá. — Quando o Conde Camarine apareceu pela primeira vezno Edge, não fiquei feliz com a chegada dele. Minha neta é especial, Charlotte. Todas as avósacham que seus netos são especiais, mas Rose realmente é. Ela é gentil, inteligente edeterminada. Praticou por anos e aprendeu sozinha a manipular seu flash branco, melhor do quequalquer Sangue-azul. E ela é linda. Sua mãe morreu e seu pai ...

Éléonore fez uma careta.

— Não fiz boas escolhas durante a minha vida. Não casei sabiamente, e consegui criar umfilho que fugiu dos próprios filhos. John deixou Rose e seus dois irmãos sem um dólar em seusnomes. Aos dezoito anos, Rose era mãe de duas crianças. Ela estava presa aqui no Edge,trabalhando em um emprego terrível no Broken e tentando criar seus irmãos. Eu queria tantascoisas maravilhosas para ela e, em vez disso, a observei murchar lentamente, mas não havia nadaque eu pudesse fazer a respeito. E então Declan Camarine veio, e ele prometeu a ela tudo: queiria amá-la, cuidar dela e cuidar de George e Jack. Eu a avisei que era bom demais para serverdade, mas ela foi com ele mesmo assim. Acontece que eu estava errada. Ela vive como umaprincesa agora. Seu marido a ama. Eles estão falando sobre ter filhos, quando os meninos

ficarem mais velhos.

Um breve lampejo de dor refletiu no rosto de Charlotte. Então era isso. Ela estava fugindode um casamento desfeito ou de uma criança morta. Pobre menina.

Éléonore sorriu. — Minha neta está feliz, Charlotte. Tem tudo que eu sempre quis para ela.Quando Rose foi embora, eu me preocupei sobre ela se encaixar no meio social dos Sangues-azuis, mas sua sogra e a recebeu imediatamente, colocando-a sob sua proteção. Não sou duquesa,mas agora tenho a oportunidade de fazer o mesmo. Quero retribuir a Província pelas bênçãos denossa família. Nós, Draytons, somos muitas coisas: piratas, bruxas, bandidos ... mas ninguémjamais nos acusou de sermos ingratos. Uma família tem que ter padrões. Mesmo no Edge. Vocêé bem-vinda para ficar o tempo que precisar.

UmTRÊS ANOS DEPOIS

RICHARD MAR CORREU PELA FLORESTA. A FERIDA EMSEU lado gotejava sangue escuro, quase preto. Isso não era um bom sinal. Seu fígadoprovavelmente estava lacerado. Parabéns, disse a si mesmo. Você finalmente conseguiu sermorto por um amador, nada menos. Sua família ficaria muito orgulhosa se soubesse.

Em sua defesa, não havia ocorrido a ele que um homem iria conceber, conspirar e executarum plano que envolvia ter sua própria irmã estuprada por um canalha, apenas para montar umaarmadilha para ele. Apesar de tudo que Richard tinha visto, a profundidade da depravaçãohumana o surpreendia até hoje. Por isso a traição o pegou desprevenido. Ele agradeceu a JackalTuline por alertá-lo sobre esse descuido separando a cabeça do homem do corpo dele.Infelizmente, Tuline tinha seis comparsas o apoiando e, embora no geral os comparsasdemonstrassem uma notável falta de treinamento adequado, um deles acabou o atingindo.

Os troncos das árvores passaram por ele, os enormes pinheiros de Adrianglia eram retoscomo mastros. Sua respiração vinha em suspiros irregulares e dolorosos. Uma dor quente seespalhou em seu lado, mordendo a ferida a cada passo.

Um uivo distante rolou pela floresta. Os traficantes de escravos tinham cães de caça eRichard estava deixando um rastro de sangue. Ele estava em apuros e não via saída para isso.

As árvores balançaram ao redor dele, tornando-se desfocadas, depois voltando ao foco. Suavisão estava falhando. Richard sacudiu a cabeça e avançou.

Ele tinha que chegar a fronteira. Além da fronteira estava o Edge. Com a floresta do Weird

se estendendo por muitos quilômetros em todas as direções, o Edge seria sua única chance. Nãoque os Edeges o ajudariam com a bondade de seus corações. Ele nascera no Edge e sabia melhordo que ninguém que, no espaço entre os mundos, era cada um por si. Mas os Edeges, paranóicose desconfiados, possuíam armas e tinham seus dedos prontos no gatilho. Eles veriam um grupode traficantes de escravos armados cavalgar por suas terras e atirariam neles por uma questão deprincípio.

A tontura se apoderou dele, o jogando contra o tronco de uma árvore. Richard agarrou acasca do tronco para se firmar, seus dedos grudando na seiva, e desejou que as árvores parassemde girar. Vamos, recupere-se. Isso não é uma maneira honrada de morrer. Pelo menos elepoderia usar seu flash para acabar gloriosamente com a sua vida em vez de sangrar até a mortesob algum pinheiro.

De repente a floresta desapareceu e no lugar dela um pântano cinza encharcado pela chuvasurgiu diante de seus olhos. Richard sentiu o cheiro pungente das ervas do Mire misturando-secom o fedor da água estagnada. Conheceria esse cheiro em qualquer lugar—cresceu envoltodele. Ele correu pela eclusa de solo lamacento até a clareira escorada pelos ciprestes. Buracoslargos se abriam no chão como bocas escuras. Verificou o primeiro buraco e viu o corpo de umacriança, uma forma pálida e magra, flutuando com o rosto para baixo em meio metro de águalamacenta ...

Richard balançou a cabeça, jogando a memória para longe. A floresta reapareceu. Ele estavaalucinando. Esplêndido. Empurrou-se do tronco e continuou se movendo.

À distância, outro uivo de cachorro rolou, mais para o oeste. Os traficantes devem ter sedividido em dois grupos. Eram covardes, mas tinham muita prática em perseguir escravosfugitivos e eram terrivelmente bons nisso.

A floresta terminou abruptamente. Ele viu a colina, mas tarde demais. O chão coberto defolhas dos ciprestes se mexeu sob seus pés, a borda da colina desabou e Richard rolou encostaabaixo, se chocando contra uma árvore. Suas costelas foram esmagadas e a dor explodiu nalateral do seu corpo.

A lama do pântano esguichou sob seus pés. Um homem avançou sobre ele, ziguezagueandoentre os buracos, espada na mão, boca escancarada em um grito, o cabelo molhado grudado nocrânio pela chuva. Richard o cortou. O corpo se desfez diante dele. Outro traficante de escravosatacou da esquerda. Um segundo golpe da espada de Richard, e a cabeça do traficante rolou deseus ombros e caiu no buraco mais próximo. O sangue vermelho jorrou do coto do pescoço esalpicou na lama ...

A realidade se chocou contra Richard em uma onda de agonia. Ele cerrou os dentes, rolou

de quatro, desajeitado como um bebê aprendendo a andar, e se forçou a ficar de pé. Uma pressãoconhecida empurrou sua pele e o resto de seu corpo. Ele deu um passo à frente, e a parede demagia se chocou contra seus sentidos. A Fronteira. Ele não podia ver ou cheirar, mas opressionava, como se uma mão invisível pressionasse contra seu interior. Ele havia alcançado oEdge. Finalmente.

Um grande corpo peludo desceu pela borda da colina. Richard girou, desembainhando aespada. O sol atingiu a lâmina longa e fina. Um cão Estripador-de-lobos pousou na encosta edisparou para a frente, oitenta quilos de músculos revestidos de pêlo preto curto e denso. Richardse inclinou para frente, fechando a mão esquerda no pequeno emissor ultrassônico no punho daespada. Um presente de seu irmão. Kaldar havia comprado ou provavelmente roubado odispositivo em uma de suas excursões ao Broken, e funcionava no Weird. Os cães dos traficantesde escravos odiavam, e Richard o usava com frequência. Ele nunca gostou de matar cães. Osanimais apenas faziam o que seus mestres lhes diziam para fazer.

Três pessoas apareceram na borda da colina. Dois homens, um magro a ponto de seresquelético, o outro vestido em roupas de couro e segurando uma coleira de cachorro, e umamulher, alta, musculosa e de olhos duros. Os caçadores de escravos. Olá.

O cão estava quase chegando a ele, correndo rápido em patas enormes, robusto, de ossosgrandes, criado para matar uma matilha de lobos e voltar para casa inteiro. Quinze metros.

Dez.

Richard apertou o emissor. O som, muito alto para ouvidos humanos, atingiu os tímpanossensíveis do cão.

A besta parou.

— Pegue-o! —O traficante com a guia gritou. — Pegue! Pegue!

O Estripador-de-lobos mostrou grandes dentes.

Richard apertou o emissor novamente, segurando o botão por alguns dolorosos segundos.

O cão ganiu e trotou para o lado, circulando atrás dele.

O traficante magricela à direita do adestrador do cão praguejou e puxou uma arma dacintura. Os Traficantes de escravos eram bandidos oportunistas—a maioria deles mal tinha magiao suficiente para nascer no Weird ou no Edge, mas não tinham o suficiente para ter sucesso navida. Eles superavam as dificuldades de ascensão social usando crueldade, armascontrabandeadas do Broken e todo tipo de artifícios para enganar e sequestrar pessoas.

O traficante de escravos apontou a arma para Richard. Ele era jovem, loiro e a maneira

como segurava a arma, de lado, fez a cabeça de Richard doer.

— Precisamos dele vivo, seu idiota, —disse o adestrador.

— Foda-se, cara. —O cano preto encarou o rosto de Richard. — Vou matá-lo agora mesmo.

— Ele é um novato? —Richard perguntou, preparando-se.

— O que? —A mulher olhou para ele.

— Ele é algum tipo de estagiário de traficante? —Richard olhou para o atirador. — Pelomenos tenha a decência de segurar a arma corretamente, seu idiota. Se não sabe como, passe paraalguém que saiba. Eu não vou sofrer sendo baleado por nada menos do que um atiradorexperiente.

O atirador gaguejou. — Foda-se.

A arma rugiu, o som crescendo através da floresta.

O flash de Richard brilhou, transformando sua magia em um escudo defensivo. A magiabranca translúcida pulsou, formando uma meia esfera na frente dele por um segundo, apenas otempo suficiente para desviar a bala para o lado. Mesmo com a saúde plena, ele não conseguiamanter o escudo por mais de alguns segundo, mas usado no momento certo, era o suficiente paraprotegê-lo. O flash de Richard era azul e quando se mudou para o Weird sua magia ficou maisforte.

O traficante cuspiu outra maldição e disparou, apertando o gatilho em um ritmo rápido.Boom, boom, boom.

O flash de Richard disparou novamente, piscando na cadência dos tiros um momento antesdeles dispararem. O escudo branco pulsou, desviando os projéteis.

Boom, boom, boom.

Um grito agudo se sobrepôs aos tiros. A arma clicou. O homem estava sem munição.

Richard se virou. O cão havia caído. O idiota atirou no próprio cão. Isso era o que aconteciaquando o potencial destrutivo de uma arma era maior do que a inteligência de quem a usava.

— Por que diabos você fez isso? —O adestrador olhou para o cão ofegante de dor na grama.— Você vai pagar esse prejuízo do próprio bolso. A culpa será só sua, não vou tirar um centavodo meu bolso.

— Merda. —O atirador enfiou a arma de volta no cinto.

— Eu poderia ter te avisado, —disse a mulher. Ela era a mais alta dos três e tinha aconstituição óssea de um lutador experiente. — As balas não atingem um Sangue-azul.

Ele não era um Sangue-azul. Longe disso. Richard ponderou sobre os três traficantes.

— Até agora, vocês atiraram no seu próprio cão e desperdiçaram doze balas. Alguma outratentativa de me deslumbrar com suas habilidades superiores de luta?

— Temos que descer até lá e pegá-lo, —disse a mulher.

Os dois traficantes olharam para ele. Nenhum se moveu.

— Não, —disse o adestrador.

— É uma má ideia, acrescentou o atirador.

— Ah, bando de covardes. —A mulher sacudiu a cabeça. — Olhe para aquele desgraçado,ele é quinze anos mais velho que vocês e mal pode ficar de pé. Provavelmente vai morrer desangrar antes que eu chegue lá.

Richard se deixou cambalear. Não era exatamente difícil em sua condição atual. Eleprecisava dos três ao alcance da sua espada, e rápido, porque as árvores estavam ameaçandodesaparecer novamente.

— Vou descer lá, —disse a mulher. — E só para avisar, qualquer bônus que eu ganhar, nãovou compartilhar.

A mulher começou a descer a encosta. O atirador cuspiu para o lado e a seguiu. Oadestrador de cães olhou para Richard por um longo momento e desceu atrás deles.

A mulher puxou uma espada longa e esguia de sua bainha. O adestrador de cães brandia ummachado de cabo curto. O atirador sacou um bastão.

Richard lutou para ficar de pé. Uma gota de sangue pingou do tecido saturado de seu casacode couro e caiu nas folhas de pinheiro no chão. Outra gota pingou ...

A mulher golpeou. Ela era alta e rápida, com passos firmes e um bom alcance. Na fração deum segundo entre ler a intenção nos olhos dela e o corpo dele processar, Richard liberou suamagia. Espalhando-a em uma linha fina e letal sobre sua lâmina, cobrindo seu gume. Ele deu umpasso à frente, evitando o ataque da mulher, e golpeou selvagemente o braço dela. A espadarevestida com flash cortava tendões e ossos humanos como uma tesoura afiada cortava uma folhade papel. O membro decepado da mulher caiu no chão.

Antes que ela conseguisse gritar, Richard enterrou sua lâmina no peito do adestrador decães, perfurando o coração. Libertou sua espada com um puxão, se virou e golpeou para trás,deslizando a lâmina no atirador, rasgando-o das costelas até a virilha.

A mulher finalmente gritou. Ele a decapitou com um golpe afiado, girou e terminou degolpear o traficante magricela com um único corte cruel na garganta.

Três corpos caíram no chão.

A cabeça de Richard girou. Suas pernas fraquejaram. Ele se ajoelhou, enfiando a espada nochão e segurando-a como uma muleta. Matar os três deveria ter exigido somente três cortes,acabou sendo cinco. — Simplesmente constrangedor, ele sussurrou. Duas gotas vermelhasrespingaram nas folhas verdes, seu sangue. O chão ao redor dele estava manchado de sangue,parte disso era dele, mas também dos traficantes de escravos.

O cão ganiu ao lado dele. Richard se concentrou e viu dois olhos castanhos olhando para elecom uma súplica canina silenciosa.

— Me desculpe, garoto. Não posso te ajudar.

Richard se forçou a se levantar e cambaleou para a frente, até a fronteira.

A magia o envolveu, esmagando-o, apertando-o, como se o próprio ar tivesse ficado pesadoe viscoso. Seu corpo gritou em protesto, sentindo uma parte de sua magia sendo arrancada. OEdge era seu limite. Ele tentou entrar no Broken uma vez e quase morreu. A própria magia que otornou bom com sua espada o manteve ancorado. Parecia que ele estava morrendo agora, masiria sobreviver. Tinha apenas que continuar. Um pé na frente do outro.

Um passo.

Outro passo.

A magia lambeu sua pele com uma língua serrilhada e a pressão desapareceu. Conseguiupassar.

A floresta balançou em torno dele, as árvores deslizando para o lado. Richard tropeçou parafrente. O frio deslizou ao longo de sua pele. Os músculos de suas pernas tremiam, lutando parasustentar seu peso. Algodão obstruiu seus ouvidos, seguido por uma náusea profunda eavassaladora. Ele caiu, meio cego, no meio do mato.

A clareira do pântano se estendia diante dele. Os traficantes de escravos jaziam mortos,entregues à vida após a morte por sua lâmina. Ele correu de buraco em buraco. Criançasmortas olharam para ele com olhos opacos.

— Sophie! Sophie!

— Aqui! —A voz de sua sobrinha soou tão fraca.

— Onde você está? —Buracos cheios de crianças mergulhadas na água lamacenta.

Ele verificou cada um, correndo para frente e para trás em pânico. Um cadáver. Outrocadáver. Ela estava aqui, em algum lugar. Ele tinha que encontrá-la.

O mundo ficou preto. Richard rasgou a escuridão por pura vontade e viu a beira de umaestrada de terra correndo pela floresta, pouco mais do que duas marcas de pneus com uma faixade grama crescendo entre elas. Ele não tinha certeza se era real ou um delírio, lembrança dealguma memória.

A escuridão o sufocou.

Richard cerrou os dentes e rastejou em direção à estrada. Não seria seu fim. Não morreriaagora. Ele tinha coisas para fazer.

A clareira encharcada pela chuva com seus ciprestes apareceu em seu campo de visão.

— Me ajude! —Sophie gritou.

Ele tropeçou nos corpos dos traficantes, rastreando a voz dela.

— Me ajude!

Estou tentando, ele queria dizer a ela. Estou tentando, querida. Aguente. Espere por mim.

A escuridão pisou na parte de trás de sua cabeça. O mundo desapareceu.

******CHARLOTTE EXAMINOU os mantimentos dispostos na ilha de sua cozinha.

Quase pronto. Só sobrou o grande pedaço de carne moída. Ela cortou com uma faca emcinco porções iguais—cada uma seria o suficiente para completar com as sobras do almoço evirar um jantar—e começou a embrulhá-las em plástico.

A primeira vez que contratou uma Edege para trazer seus mantimentos do Broken, a mulherentregou um grande pacote de carne moída. Charlotte tinha congelado a coisa toda como estava,na embalagem. Infelizmente, descobriu que, depois de descongelar a carne no micro-ondas, nãoera seguro congelá-la novamente. Ela acabou jogando metade da carne fora. Lição aprendida.

Cozinhar era apenas uma das coisas que Charlotte teve que aprender no Edge. No InstitutoGaner, a equipe preparava suas refeições e, em sua propriedade, ela contratou uma cozinheira.Charlotte suspirou com a memória. Nunca tinha realmente dado valor a Colin até que teve que sevirar sozinha na cozinha. Éléonore lhe dera um livro de receitas e, quando Charlotte seguia asreceitas com exatidão, o resultado ficava aceitável, às vezes até saboroso. Décadas gastasaprendendo a misturar ingredientes para produzir medicamentos garantiram que ela tivesse umaboa técnica e prestasse atenção, mas se não tivesse os ingredientes culinários exatos em mãos,

tentar substituí-los terminava em completo desastre. Há algumas semanas ela observou Éléonorefazer pão de banana. Tudo o que viu a senhora fazer foi misturar um punhado de farinha umpouco de canela e adicionar banana amassada até o ponto certo. Charlotte tinha devidamenteanotado tudo, e quando ela tentou recriar a receita, acabou com uma pedra em forma de pãosalgado.

Charlotte também aprendeu outras lições. Ser humilde. Viver uma vida mais simples. A magia sombria dentro dela estava adormecida há muito tempo, e era assim que ela gostava.

A forte luz do sol se derramava pela janela aberta, desenhando retângulos brilhantes no chãoda cozinha. O dia estava lindo. O ar cheirava a primavera e madressilvas10. Quando elaterminasse, iria sair e ler em seu balanço da varanda. E tomar um bom copo de chá gelado.Humm, um chá seria perfeito.

— Charlotte? Você está aí? —Uma voz familiar chamou da varanda da frente. Éléonore.

— Talvez. —Charlotte sorriu, envolvendo o último pedaço de carne moída em plástico.

Éléonore entrou na cozinha. Ela parecia ter cerca de sessenta anos, mas a senhora deixouescapar no ano passado que ter 112 anos não era uma coisa tão ruim para uma mulher. Suasroupas eram uma bagunça artística de camadas esfarrapadas e retalhadas, todas perfeitamentelimpas e com um leve cheiro de lavanda. Seu cabelo estava penteado em uma bagunça fofa ecinza e generosamente decorado com amuletos, gravetos e ervas secas. No meio de seu ninho decabelo havia um pequeno relógio cuco.

Éléonore a preocupava. Nos três anos que Charlotte a conheceu, a condição física da mulhermais velha havia declinado gradativamente. Seus ossos estavam ficando mais frágeis e seusmúsculos cada vez mais atrofiados. Éléonore escorregou em um caminho coberto de gelo quatromeses atrás e quebrou o quadril. Charlotte a curou, mas o talento de cura dela tinha limites. Elasó poderia curar até o potencial de cura já existente no corpo. Em crianças, esse potencial era altoe ela podia até mesmo regenerar dedos decepados. Mas o corpo de Éléonore estava cansado.Com ossos tão frágeis, induzi-los a crescer novamente foi difícil.

A velhice era a única doença para a qual não havia cura. No Edge, como no Weird, aspessoas alimentavam suas vidas com magia, mas eventualmente até a magia acabava.

O relógio cuco caiu e ficou pendurado.

— Vai cair, —disse Charlotte.

Éléonore suspirou e puxou o relógio do cabelo. — Ele simplesmente não quer ficar aqui,quer?

— Você já experimentou alfinetes?

— Tentei de tudo. —Éléonore olhou a ilha repleta de carnes e vegetais, todos em porções detamanho perfeito, embrulhados em plástico ou colocados em sacos Ziploc. — Você é obcecada,minha querida.

Charlotte riu. — Gosto de ter um freezer organizado.

Éléonore abriu o freezer e piscou.

— O que foi? —Charlotte se inclinou para trás, tentando descobrir o que a bruxa estavaadmirando. Seu freezer não era realmente digno de admiração. Ele tinha quatro prateleiras demetal, cada uma com uma etiqueta escrita em marcador permanente em um pedaço de fitabranca: carne de vaca, porco e frango, frutos do mar e vegetais.

Éléonore bateu na etiqueta mais próxima com o dedo. — Não há esperança para você. —Éléonore procurou o banquinho mais próximo e se sentou nele. — Charlotte, alguma vez vocêfez alguma bagunça só por diversão?

Charlotte balançou a cabeça, escondendo um sorriso. — Gosto de organização. Isso memantém com os pés no chão.

— Se você ficar um pouco mais com os pés no chão do que já tem, vai criar raízes.

Charlotte riu. Era verdade.

— Você e Rose se dariam bem, —disse Éléonore. — Ela era do mesmo jeito. Tudo tinhaque ser assim.

Rose era uma presença constante na maioria das conversas delas. Charlotte escondeu umsorriso. Ser uma substituta de Rose não a incomodava em nada. Ela percebeu há muito tempoque para Éléonore não havia elogio maior, e tomava isso como um elogio.

— Vim atrás de um favor, —anunciou Éléonore. — Porque sou egoísta.

Charlotte ergueu as sobrancelhas. — O que posso fazer por você, bruxa?

— Pode curar a acne11 de uma adolescente? —Éléonore perguntou.

— Acne é um efeito colateral dos processos normais do corpo. —Charlotte começou aempilhar seus sacos no freezer em pequenas torres. — Eu posso tratá-la, e o problema vaidesaparecer por um tempo, mas eventualmente irá voltar.

— Depois de quanto tempo irá voltar?

Charlotte torceu a boca. — Seis a oito semanas, mais ou menos.

Éléonore ergueu a mão. — Vai servir. Um amigo meu, Sunny Rooney, tem duas netas. Boasgarotas. Daisy tem vinte e três e Tulip dezesseis. São órfãs, a mãe delas morreu há um tempo, e o

pai faleceu há seis meses. Daisy tem um emprego decente no Broken e Tulip mora com ela.Tulip vai começar a estudar em uma nova escola no Broken neste outono. O problema é que orosto da moça está uma bagunça por causa da acne e Daisy disse que isso está causando muitotrauma na menina. Elas tentaram cremes e sabonetes, mas não resolveu. Estão na frente do seujardim agora, esperando que você dê uma olhada. Eu irie pagar pelo seu serviço. Sei que acaboude curar os problemas de estômago de Glen há dois dias, e odeio te pedir isso, mas você é aúltima esperança delas.

Ela já tinha ouvido isso antes. Charlotte colocou o último saco no freezer, lavou as mãos eas enxugou na toalha. — Vamos ver o que posso fazer.

******AS DUAS meninas estavam na beira do gramado. Baixinha e cerca de trinta quilos acima dopeso, Daisy tinha um rosto redondo, grandes olhos castanhos e um sorriso nervoso.

Tulip era o oposto da irmã. Magra quase ao ponto de ser esquelética para sua idade, estavameio escondida atrás da irmã. A calça jeans que vestia parecia que iria cair. Sua blusa, desenhadapara ser justa ao corpo, balançava com o vento. Tulip tinha coberto seu rosto com umamaquiagem pesada, e a base espessa pálida fazia sua pele parecer sem sangue. Se não fosse pelomesmo cabelo chocolate e olhos grandes, Charlotte nunca teria imaginado que elas eram irmãs.

Nenhuma das jovens fez qualquer esforço para se aproximar. Um anel de pequenas pedraslisas, cada uma posicionada a poucos metros uma da outra, circundava a casa, e Daisy e Tulip semantiveram bem longe do anel. As pedras não afetavam Éléonore, na verdade foi a própria bruxaque as colocou lá.

— Você as deixou fora da barreira das pedras de proteção? —Charlotte murmurou.

— É a sua casa, —murmurou Éléonore de volta.

Charlotte desceu o caminho e pegou a pedra mais próxima. A magia a beliscou. Umapequena rocha do tamanho de seu punho, a pedra de proteção estava enraizada no chão. Juntas,as pedras formavam uma barreira mágica que protegia a casa melhor do que qualquer cerca. OEdge não era o mais seguro dos lugares. O Weird tinha xerifes, o Broken tinha policiais, mas noEdge, proteções e armas eram a única defesa das pessoas.

— Entrem, —Charlotte convidou.

As mulheres correram para a casa e ela colocou a pedra de volta no lugar.

— Oi! —Daisy ofereceu-lhe a mão e Charlotte a apertou. — É muito bom conhecê-la. Digaoi, Tulip.

Tulip prontamente se escondeu atrás de sua irmã.

— Está tudo bem, —Charlotte disse a ela. — Eu preciso que você lave seu rosto. O banheiroé direto por ali.

— Venha, eu levo você, —ofereceu Éléonore.

Ela sorriu, e Tulip a seguiu escada acima e direto para dentro de casa.

— Muito obrigada por nos receber, —disse Daisy.

— Sem problemas, —disse Charlotte.

— Deus, isso é estranho. Eu sinto muito. —Daisy mudou de um pé para o outro. — É quetentamos todos os cremes e medicações, e depois nos disseram que o tratamento a laser é a únicaopção. Eu sou uma contadora. Ganho um bom dinheiro, mas não o suficiente para isso, sabe? —Ela riu nervosamente.

E era isso que sempre a comovia, Charlotte refletiu. Esse olhar de súplica desconfortávelnos olhos. As pessoas olhavam para ela como se ela fosse a resposta a todas as orações delas.Charlotte queria ajudar—sempre queria—mas havia limites para o que a magia poderia fazer.

Daisy deu um sorriso estranho. — A senhora Drayton nos disse que você pode estarcansada. Obrigada por nos receber de qualquer maneira.

— Não há problema. —Charlotte sorriu. — Por que não vamos para a cozinha?

Na cozinha, elas se sentaram na ilha, e Charlotte serviu dois copos de chá gelado. Daisyempoleirou-se na beirada da cadeira, parecendo querer fugir.

— Essa casa era de Rose, —disse Daisy. — A irmã da minha melhor amiga estudou comela. Eu vi o flash de Rose na Feira de Formatura. Foi uma loucura. Branco puro. Ninguém doEdge tem flash branco. Você pode manipular seu flash?

No Edge, a maioria das pessoas tinha um talento mágico. Alguns eram úteis, outros não,mas todo usuário de magia poderia manipular seu flash com prática e treinamento adequado.

Flash era um puro fluxo de magia. Parecia uma fita de luz, ou às vezes, um açoite derelâmpago. Quanto mais claro o flash, mais forte era a magia do manipulador. O flash mais forte,branco puro, poderia cortar um corpo como um cutelo através de um pedaço de manteiga quente.Era uma arma letal, e Charlotte tinha visto as feridas que essa arma provocava, em grandesdetalhes.

— Não, —disse Charlotte. Ela nunca aprendeu a fazer isso porque não houve necessidade.— Esse não é o meu talento.

Daisy suspirou. — Claro. Sinto muito. Eu não deveria ter mencionado Rose.

— Eu não me importo, —disse Charlotte. — Éléonore fala dela e dos meninos o tempotodo.

Daisy remexeu-se na cadeira. — Então, como você conheceu a Senhora Drayton? Vocês sãoamigas, suponho?

Éléonore era mais do que uma amiga. A mulher idosa era sua família escolhida. — Quandovim para o Edge pela primeira vez, vim pelo Oeste, perto de Ricket. Afastei-me do cavalo porum minuto para fazer xixi e alguém o roubou com todo o meu dinheiro.

— Esse é o Edge. —Daisy suspirou.

— O plano era encontrar trabalho, mas ninguém me deixava curá-los. Andei de povoado empovoado, tentando encontrar um lugar para me encaixar, e quando vim para Laporte do Leste,estava morrendo de fome. Sem dinheiro, sem lugar para ficar, minhas roupas rasgadas e sujas.Eu estava no fim do meu limite. Éléonore encontrou-me na beira da estrada e acolheu-me. Deu-me um lugar para ficar e me conseguiu os meus primeiros clientes. Ela foi comigo a todos osmeus compromissos e conversou com as pessoas enquanto eu trabalhava. Devo tudo a ela.

Havia mais do que simples gratidão. Éléonore sentia muita falta dos netos. A mulher idosatinha um desejo tão forte, quase uma necessidade, de cuidar de alguém, Charlotte refletiu, assimcomo ela mesma sentia a mesma necessidade de curar uma doença ou consertar um membroquebrado. Ela e Éléonore eram almas gêmeas.

Éléonore saiu do banheiro trazendo Tulip pela mão. O rosto da garota era um mar deinchaços vermelhos e duros enterrados sob a pele. Acne cística12. As primeiras cicatrizes jáestavam aparecendo.

— Sente-se, —Charlotte convidou.

Tulip obedientemente sentou-se no banquinho. Éléonore colocou um pequeno espelho nailha. — Caso precise.

— Olhe em direção a sua irmã, deixe-me ver, está bem? —Charlotte deslizou as pontas dosdedos sobre as protuberâncias duras na bochecha esquerda de Tulip. A magia revestiu sua mão,um fluxo constante de faíscas douradas brilhantes.

— É lindo, —sussurrou Tulip.

— Obrigada.

— Vai doer?

— Não, não vai doer nada. Agora olhe direto para mim. Assim mesmo.

As faíscas penetraram na pele da moça, encontrando os minúsculos folículos pilosos

infectados. A magia escorreu de Charlotte. Era uma sensação curiosa, como se parte davitalidade dela estivesse sendo sugada e convertida em corrente de cura. Não era doloroso, maspoderia ser alarmante e desconfortável para um Curador inexperiente. Charlotte fechou os olhos.Por um momento, tudo que viu foi escuridão, então sua magia fez a conexão e a seçãotransversal da pele de Tulip apareceu diante dela. Ela viu os poros, os fios dos pêlos, as paredesdo folículo rompido derramando fluidos infectados na derme, contaminando os folículospróximos e as glândulas sebáceas gravemente inflamadas.

Charlotte empurrou ligeiramente, testando a pele. Sua magia saturou completamente ostecidos da bochecha. Ela abriu os olhos. O funcionamento interno do rosto de Tulip permaneceudiante dela, quase como se estivesse olhando através de dois pares de olhos diferentes ao mesmotempo, escolhendo no que queria se concentrar em seguida.

Charlotte anestesiou as terminações nervosas que alcançavam a pele de Tulip. — Olhedireto para mim.

A pele de Tulip se contraiu. O pus saiu de uma dúzia de pequenas lesões.

Tulip piscou, surpresa. — Não doeu.

Charlotte rasgou um lenço embebido em álcool, o levantou e passou-o na bochecha damoça. — Viu? Eu te disse.

Ela se concentrou em restaurar o tecido ferido, eliminando a infecção. Os caroços no rostode Tulip estremeceram e começaram a desaparecer, dissolvendo-se em uma pele rosada esaudável.

Daisy ofegou.

O resto da acne desapareceu. Charlotte deixou a corrente de sua magia morrer, pegou oespelho e o ergueu para Tulip.

— Oh meu Deus! —A garota tocou sua bochecha esquerda. — Oh meu Deus, desapareceu!

Era para isso que ela vivia, Charlotte refletiu, afastando o cabelo de Tulip de seu rosto.Apreciar no rosto das pessoas o alívio espontâneo quando a doença desaparecia. Isso fazia tudovaler a pena.

— Não irá sumir para sempre, —advertiu Charlotte. — Provavelmente voltará em seis a oitosemanas. Vamos fazer a bochecha direita. Não queremos que fique desigual ...

Um veículo guinchou até parar na frente da casa.

— Quem no mundo será? —Éléonore levantou-se da cadeira.

— Vamos ver. —Charlotte caminhou até a porta de tela e saiu para a varanda.

Na beira do gramado, Kenny Jo Ogletree saltou de um caminhão Chevy. Com dezesseisanos, ombros largos, mas ainda magro, Kenny foi um de seus primeiros pacientes. Tentandoevitar que os galhos de um pinheiro batesse no telhado da casa de sua mãe, ele o escalou paracortar um galho e caiu. Duas pernas quebradas e costelas feridas da serra elétrica que caiu emcima dele. Poderia ter sido pior.

O rosto de Kenny estava pálido. Ela olhou nos olhos do rapaz e viu medo.

— O que há de errado? —Charlotte gritou.

Ele correu para a caminhonete de volta e largou a porta traseira. — Eu o encontrei na beirada estrada de Corker.

Um homem estava deitado na caçamba do caminhão. Sua pele era branca como alabastrocontra o couro escuro de suas roupas. O sangue se acumulou ao redor dele em uma poça viscosa.

Charlotte desceu correndo o caminho, passou pela barreira de pedra e subiu no caminhão. Amagia girou das mãos dela, para o corpo do homem e de volta para suas mãos. O interior docorpo brilhou diante dela. Ferimento por arma branca, laceração no lado direito do fígado, perdagrave de sangue, choque hemorrágico. Ele estava morrendo.

Charlotte se inclinou sobre o corpo, despejando sua magia com urgência, ligando-a aohomem moribundo em uma corrente brilhante de energia. Suas reservas de energia começaram ase esgotar, como se a magia se alimentasse de sua força vital. Ela direcionou a corrente de magiapara o fígado. Ela fluiu pela veia, ramificando-se como uma teia de aranha vermelha dentro dosfrágeis tecidos do órgão. A corrente de energia dourada iluminou os vasos sanguíneos por dentro,regenerando as paredes. Charlotte liberou uma pouco mais de magia, enviando rajadas de energiano lado esquerdo do fígado para consertar o dano.

A temperatura e pressão arterial do desconhecido caíram novamente.

Ela empurrou mais magia nos tecidos feridos, tentando tirar o corpo do estado de choque. Ocorpo quase morto lutou com ela, mas Charlotte o ancorou à vida com sua magia e se recusou adeixá-lo morrer. Ela não o deixaria partir. O desconhecido não morreria. A morte o queria, masCharlotte o reivindicou, e ele agora era dela. Charlotte não podia ressuscitar mortos, mas podialutar pela última gota de vida existente com tudo que tinha. A morte teria que se conformar.

O coração do desconhecido palpitava como um pássaro ferido. Ele corria o risco de sofreruma parada cardíaca. Charlotte dividiu sua corrente de magia em duas e envolveu umas dascorrentes em torno do coração dele, enquanto urgentemente remendava as lacerações dos tecidoscom a outra corrente.

Cada batida do coração do homem ressoou pelo corpo dela.

Pulso.

Fique comigo.

Pulso.

Fique comigo, estranho.

As lesões no fígado fecharam. A pressão arterial estabilizou. Finalmente. Charlotte fechouos músculos feridos e acelerou a produção de sangue.

Estou aqui. Você não vai morrer hoje.

A respiração do homem se estabilizou. Ela estimulou a circulação sanguínea e a estabilizou,observando a temperatura interna subir. Charlotte estava queimando as escassas reservas degordura que ele tinha para gerar células sanguíneas. Não havia muito, o homem era praticamentetodo músculo e pele.

A temperatura interna se aproximou dos níveis normais. O coração pulsou forte e estável.

Ela deixou sua magia agarrada a ele um pouco mais, apenas para se certificar de que elehavia passado do ponto de perigo. O desconhecido tinha um corpo forte e saudável. Iria serecuperar.

Charlotte recolheu sua magia, se libertando do homem, lentamente, um pouco de cada vez, erecostou-se. A cabeça dela girou. O sangue manchava suas mãos. Seu nariz coçou e ela esfregoua parte de trás do pulso contra ele, atordoada e desconectada da realidade.

O homem estava deitado ao lado dela, seu pulso regular. Ela engoliu em seco. Estava semfôlego, como se tivesse corrido algum tipo de corrida maluca. A fadiga pós-luta contra morte, tãoconhecida dela, a ancorou no lugar. Seus músculos doíam. O cansaço passaria em um minuto.Durante seu tempo na Instituição, um Curador, depois de uma cura de emergência difícil comoessa, geralmente descansava um dia inteiro na cama, mas Charlotte não usava mais seu dom decura todos os dias, e nem com a mesma intensidade, por isso, não estava perto de seu limite.

Ela derrotou a Morte novamente. O alívio a inundou. A vida desse homem não acabou aqui.Sobreviveu para ver a família dele. Ela fez isso acontecer, e ver o peito dele subir em um ritmouniforme a deixou profundamente feliz.

O cabelo do desconhecido era muito escuro, um preto brilhante, quase azulado. As mechasse espalhavam ao redor da cabeça dele, emoldurando o rosto. O homem não estava mais pálido.Provavelmente, antes dela o curar, ele não parecesse tão pálido para outras pessoas quantopareceu para ela. Anos de prática sintonizavam os sentidos dela para reagir a sinais específicosde sofrimento em seus pacientes, e às vezes sua magia distorcia sua visão para produzir um

diagnóstico mais rápido. A pele do homem tinha uma tonalidade bronzeada, tanto por um tomnaturalmente mais escuro quanto pela exposição ao sol. Seu rosto era esculpido com precisão,com uma mandíbula quadrada, um queixo forte e um nariz que deve ter sido perfeito em algummomento, mas agora era um pouco largo na ponte, o resultado de uma lesão antiga,provavelmente. Uma barba curta e escura cobria sua mandíbula. Sua boca não era nem muitolarga nem muito estreita, seus lábios eram suaves, sua testa alta. Seu corpo estava em excelenteforma, mas o agrupamento de linhas de riso leves nos cantos de seus olhos denunciavam suaidade. Ele tinha pelo menos a idade dela, provavelmente alguns anos mais velho, trinta e tantosanos. Sua pele e roupas estavam manchadas de lama e sangue, seu cabelo estava uma bagunça,mas havia algo inegavelmente elegante nele.

Um belo homem.

Os cílios do homem tremeram. Charlotte se inclinou, o alarme pulsando por ela. A magiadela se preparou novamente. Ele deveria ficar inconsciente por mais algum tempo. Seu corpoprecisava de todos os recursos para se curar.

O homem abriu os olhos. Ele olhou para ela, seus rostos a poucos centímetros de distância.Seus olhos eram escuros e inteligentes, e essa inteligência mudou todo o seu rosto, catapultando-o de belo para irresistível. — Sophie, —disse ele.

Ele estava delirando. — Acabou agora, —ela disse a ele. — Descanse.

Os olhos dele focados nela. — Linda, —ele sussurrou.

Ela piscou.

— Eu conheço essa voz. —Éléonore subiu na caminhonete. — Richard! Mon dieu, ques'est-il passé13?

Richard tentou se levantar. Seu pulso acelerou para níveis perigosos.

— Não! —Charlotte lutou para segurá-lo. Ele se esticou sob ela. Ele era forte como umcavalo. A magia dela ainda espiralava ao redor dele, envolvendo-o em um casulo de faíscas, seesforçando para curar o dano enquanto ele se movia. Sem saber, ele se apoiava em seu poder decura como uma muleta. — Eu tenho que fazê-lo dormir. Ele não pode se mover, ou vai abrirtudo.

— Quem fez isso com você? —Éléonore perguntou. — Richard?

Richard empurrou Charlotte, levantando seu peso. Ela sentiu o tecido recém-remendadorasgar. Seu domínio sobre sua magia vacilou. Charlotte o sentiu escorregar.

Os olhos de Richard se fecharam e ele caiu de volta na caçamba da caminhonete. Charlotte

inclinou-se sobre ele. Frio.

Éléonore se virou para o menino. — Kenny, ajude-nos a colocá-lo em casa.

Kenny resmungou. A magia estalou, acumulando-se ao redor do rapaz. Ele estendeu osbraços, pegou Richard no colo como uma criança e o carregou para dentro. Charlotte colocou apedra de proteção de volta no lugar, e as quatro seguiram o rapaz.

— Para onde?

— Quarto de hóspedes à direita. —Charlotte abriu a porta.

Kenny depositou Richard na cama e se virou. — Tenho que ir para a casa da mamãe.

— Obrigada, querido. —Éléonore disse. — Diga olá para sua mãe por mim.

Kenny acenou com a cabeça e saiu.

Charlotte se ajoelhou ao lado da cama. O pulso de Richard ainda estava regular. Bom. —Como você o conhece?

Éléonore suspirou. — Já nos conhecíamos antes. Sua prima se casou com o primo adotivodo marido de minha neta. Somos uma família.

Família, certo. — Ele é um Sangue-azul?

— Não. Ele mora no Weird agora, mas é um Edege como nós, do Mire. Quando o vi pelaprimeira vez, pensei a mesma coisa, pensei que Richard pertencia a alguma família nobre. Masnão, ele é um Edege.

— Quem é Sophie? —Uma esposa? Talvez, uma irmã?

Éléonore encolheu os ombros. — Eu não sei, querida. Mas seja ela quem for, deve ser muitoimportante para ele. Posso dizer que Richard é um espadachim habilidoso. Era ele que estavaensinando meus netos a lutar na última vez que estive no Weird. Quem o atacou provavelmenteestá morto.

Charlotte deixou a magia dela deslizar sobre o corpo de Richard. Um espadachimhabilidoso. Ela podia acreditar nisso, o corpo dele era forte, mas flexível, aprimorado porexercícios constantes. Sua pressão arterial ainda estava muito baixa. Com o tempo, o organismodele iria repor o sangue que perdeu, mas demoraria um pouco, e ela não queria arriscar.

Ele a havia chamado de linda.

Ela sabia que era uma mulher razoavelmente atraente, e ele estava delirando, então nãodeveria ter importado, mas por algum motivo importou. Charlotte tinha ficado longe derelacionamentos amorosos no Edge—um Elvei foi o suficiente—e ela quase se esqueceu que era

uma mulher. Uma única palavra de um completo estranho tocou algo feminino dentro dela.Sentiu-se irracionalmente satisfeita quando se lembrou dele dizer isso, como se ele tivesse lhedado um presente que ela realmente queria, mas não esperava. O homem nunca saberia que aelogiou em seus delírios, mas ela estava grata por isso.

Charlotte se levantou e pegou o celular.

— Para quem você está ligando? —Éléonore perguntou.

— Luke. Richard vai precisar de uma transfusão de sangue, quanto mais cedo melhor.

— Devemos ir embora? —Daisy perguntou.

Éléonore levou o dedo aos lábios, pedindo silenciosamente para as meninas aguardarem.

— Sim? —Luke respondeu.

Charlotte o colocou no viva-voz. Manter o telefone próximo ao ouvido era algo realmenteestranho para ela. — É Charlotte. Preciso de A+14. —Charlotte levou algumas semanas paraaprender a terminologia médica do Broken, mas com a ajuda de livros, acabou aprendendo. Elaidentificou o tipo de sangue de Richard quando sua magia deslizou por suas veias.

O paramédico ficou em silêncio. — Eu posso conseguir duas bolsas para você. Quinhentos.

Duas bolsas. Teria que servir. — Vou ficar.

— Encontre-me no final da estrada em vinte minutos. —Luke desligou.

— Quinhentos dólares? —Os olhos de Daisy eram do tamanho de pires.

— Isso é um roubo, —disse Éléonore.

— Luke é a única fonte de sangue para os Edeges, a menos que façamos uma transfusãodireta de uma pessoa para outra. —Charlotte encolheu os ombros. — É apenas dinheiro. —Elasempre poderia trabalhar e ganhar mais um pouco.

— Você quer que a gente vá embora? —Daisy perguntou novamente.

— Eu tenho que encontrar Luke e pegar o sangue, mas se vocês não se importarem emesperar, posso cuidar de Tulip quando voltar. —Charlotte estava cansada, mas não conseguiriamandar Tulip embora com uma bochecha curada e a outra marcada por acne.

Daisy franziu os lábios. Tulip puxou sua manga. A irmã mais velha suspirou. —Esperaremos.

— Por favor, fiquem à vontade, —disse Charlotte. — Tem chá e salgadinhos na geladeira.Estarei de volta em meia hora ou mais.

As meninas foram para a cozinha.

— Obrigada por fazer isso por ele, —disse Éléonore.

— O sangue vai ajudá-lo a se curar. Como você disse, ele é família. —Charlotte sorriu e puxou um dicionário médico da prateleira. Dentro, em um espaço vazio, estava sua reserva de dinheiro. Ela arrancou a pilha de notas de vinte e contou quinhentos. — Você vai ficar de olho nele?

— Claro. Charlotte, leve uma arma.

— É aqui perto.

Éléonore balançou a cabeça. — Nunca se sabe. Eu não tenho um bom pressentimento sobreisso. Leve uma arma por precaução.

Charlotte tirou um rifle da parede, o carregou e abraçou Éléonore.

— Eu voltarei logo.

— Está bem.

Charlotte saiu, cruzou o gramado e entrou na caminhonete. A caminhonete pertencera aRose e ela finalmente aprendera a dirigi-la no ano passado. O automóvel não tinha a elegânciadas carruagens de Adrianglia, mas os mendigos não podiam escolher.

Ela girou a chave. O motor ligou. Havia algo no rosto de Richard que a chamou. Não tinhacerteza se eram as belas linhas masculinas ou a intensidade ígnea em seus olhos. Ou talvez fosseporque ele a achara bonita. Fosse o que fosse, Charlotte havia investido na sobrevivência dele.Ela queria vê-lo abrir os olhos novamente e ouvi-lo falar. Acima de tudo, queria que ele serecuperasse com segurança.

Quinhentos dólares era um pequeno preço a pagar por isso.

doisÉLÉONORE VERIFICOU O PULSO DE RICHARD. FORTE.Charlotte fazia milagres, e a pobre garota não fazia ideia. A maioria das pessoas em seu lugarestaria rolando no dinheiro. Ninguém seria mais desesperado do que uma mãe com um filhodoente ou um marido com uma esposa moribunda. Eles dariam a ela seus últimos dólares. MasCharlotte curava todos eles por uma ninharia e agia como se não fosse nada especial.

Algo aconteceu com ela no Weird. Charlotte era como um pássaro que teve suas asasquebradas uma vez e não estava disposta a correr o risco e tentar voar novamente. Ela negava odinheiro e o reconhecimento de propósito, como se estivesse se escondendo, apesar de nunca terdito de quem ou por quê. Éléonore suspirou. Bem, particularmente, Éléonore estava satisfeita em

deixá-la ter um canto seguro no Edge para se esconder.

Uma batida a fez virar. Daisy e Tulip estavam na porta.

— Recebi uma ligação do trabalho, —disse Daisy. — Querem que eu chegue mais cedo.Tudo bem se eu trouxer Tulip essa noite, em vez de esperar? Acha que Charlotte se importaria?

— Acredito que ela não se importaria. Vá. O trabalho é mais importante. —Éléonore sorriu.

— Obrigada, —disse Daisy.

— Obrigada, —Tulip ecoou.

Tulip era uma garota tão doce e tímida. — Não se preocupe. Charlotte vai terminar de curarseu rosto logo.

— Precisamos que você mova as pedras de proteção? —Daisy perguntou.

Foi isso que viver no Broken faz com você, pensou Éléonore. Daisy não tinha ideia de comoa magia básica funcionava e não queria aprender. — Não, as pedras apenas impedem que alguémentre. Depois de entrar, você pode movê-las ou simplesmente passar por cima delas para sair.

— Obrigada! —Daisy disse novamente. As meninas saíram. Éléonore ouviu a porta de telase fechar.

Verificou a hora. Charlotte tinha saído há vinte minutos. Ela não podia cruzar a fronteirapara o Broken. Sua magia era muito forte, então provavelmente apenas esperaria no final daestrada, antes da fronteira, até que Luke viesse e entregasse o sangue.

Uma pontada de ansiedade se contorceu por Éléonore, um pressentimento desagradável quedeixou inquietação em seu rastro. Ela não sabia dizer se era sua magia avisando-a ou se havia setornado paranoica na velhice. Estava sendo terrível envelhecer. Mas não havia outra alternativa.Além disso, Charlotte ficaria sentada dentro da caminhonete com as portas trancadas.

Apesar de Charlotte ter um rifle com ela, não adiantaria muito. Não que a moça não fosse sedefender, mas ela não tinha aquele núcleo duro de aço que a neta de Éléonore tinha. Adeterminação de Rose a guiou pelas águas turbulentas da vida. Charlotte tinha resistido aalgumas tempestades, mas não tinha aquela crueldade primitiva de um Edege nato. Isso é o que atornava tão especial, e é por isso que gostava tanto dela, refletiu Éléonore. Ela também não tinhanascido em Laporte do Leste. A presença de Charlotte a lembrava de uma época diferente e umlugar mais gentil.

Éléonore afastou o cabelo de Richard de seu rosto. — Quem é Sophie, Richard?

Ele não respondeu. Pode ser qualquer pessoa, uma esposa, um amante, uma irmã.

Éléonore sabia muito pouco sobre Richard. Só o encontrou uma vez, mas ele deixou uma

boa impressão. Foram os modos como ele se portava, com dignidade serena. O irmão dele eratodo fogo, charme e piadas, mas Richard tinha aquela sagacidade sardônica e afiada. Ele nãofalava muito, mas às vezes dizia coisas inteligentes com uma cara completamente séria ...

— Senhora Drayton! —O grito ecoou, agudo e vibrando de puro terror. Tulip.

Éléonore correu para a porta. Tulip estava na barreira de proteção, seu rosto distorcido pelomedo em uma máscara de horror. — Senhora Drayton! Pegaram Daisy!

Éléonore tentou correr pelo gramado. Movendo as pernas o mais rápido que podia. —Quem? Quem pegou Daisy?

— Homens. —Tulip acenou com os braços. — Com armas e cavalos.

Um uivo longo e ululante rolou pelo Edge. Os minúsculos pêlos da nuca de Éléonore searrepiaram. Ela agarrou uma pedra de proteção e puxou Tulip para o círculo protetor. — Paradentro, agora!

Tulip correu para a porta. Éléonore recolocou a pedra e correu atrás dela, pela grama, até osdegraus da varanda.

O som de cascos a fez girar. Um cavaleiro desceu a estrada. Sua cabeça era raspada. Eleusava couro preto e, enquanto cavalgava, o sol brilhava nas longas correntes penduradas em suasela.

Traficantes de escravos.

A compreensão a açoitou como um chicote. Éléonore correu pela varanda e entrou em casa,fechou a porta e a trancou.

Tulip a encarou com olhos enormes. — O que está acontecendo?

— Shiii! —Éléonore foi até a janela e espiou pela fresta da cortina. O cavaleiro parou pertoda casa, virou o cavalo e tentou cavalgar até a varanda. A barreira das pedras de proteçãoestremeceu. O cavalo recuou, quase derrubando seu cavaleiro. O homem olhou para a casa,enfiou os dedos na boca e assobiou.

Mais cavaleiros o seguiram, juntando-se ao primeiro. Todos usavam roupas escuras e seusrostos eram sombrios. Alguns tinham tatuagens, outros eram pintados, alguns usavam ossoshumanos no cabelo. Meia dúzia de grandes criaturas de aparência selvagem flanqueavam oscavalos, Cães Estripadores-de-lobos. Um homem à esquerda, coberto de cicatrizes, rosto cheiosde hematomas e longos cabelos loiros presos em uma trança, subiu e jogou um corpo no chão.Daisy. Mon dieu. A moça estava pálida como um lençol.

Os homens cercaram o gramado. Um, dois, três ... Dezesseis que ela podia ver.

O coração de Éléonore afundou. Não haveria misericórdia.

— O que aconteceu? —Éléonore sussurrou.

— Estávamos descendo a estrada para o carro. Daisy procurava as chaves na bolsa. Aquelecara loiro cavalgou e a chutou. Ele apenas a chutou bem na cara! —A voz de Tulip guinchou. —Daisy caiu e gritou para eu correr, então eu corri ...

O homem loiro com cicatrizes puxou Daisy para frente.

— Fique quieta, —sussurrou Éléonore.

— Faça, —o homem lá fora gritou.

Daisy alcançou a pedra de proteção mais próxima com a mão trêmula. Sua bochecha estavasangrando. Ela tocou a pedra e tentou levantá-la. A magia pulsou. Daisy gritou, puxando a mãopara trás. O traficante deu um chute no estômago da moça. Daisy gritou e se enrolou em umabola. Tulip gritou e Éléonore tapou a boca da garota com a mão.

A voz do líder se prolongou, áspera e irritante. — Nós não queremos nenhuma de vocês.Não nos importamos. Queremos o homem que está escondido aí dentro. Daisy aqui diz que nãoconsegue abrir a proteção e, por mais que ela tente, estou inclinado a acreditar nela. Depende devocês, então. Dê-me o que eu quero e eu irei embora. É simples assim.

Dezesseis homens. Muitos. Um ou dois, até quatro, ela poderia lidar. Éléonore os deixariaentrar e os amaldiçoaria, mas dezesseis era demais. Os pensamentos passaram rapidamente pelacabeça de Éléonore. Ela precisava de ajuda.

— Você tem um telefone? —Éléonore sussurrou.

Tulip tirou um celular do bolso.

— Ligue para Charlotte, —sussurrou Éléonore. — Dois-dois-sete, vinte e um, trinta.

Tulip discou o número com dedos trêmulos e entregou o telefone para ela.

— Aqui Charlotte, —Charlotte disse, sua voz calma.

— Onde você está? —Éléonore sussurrou.

— No fim da estrada. Luke se atrasou e eu acabei de receber o sangue.

— Não volte para casa!

— Por quê? Éléonore, o que há de errado?

— Preciso que vá até os Rooneys. Pegue a segunda bifurcação à esquerda e vá até ofinal da estrada. Diga a Malcolm Rooney que há Traficantes de escravos em nossa casa.São dezesseis deles e eles querem Richard. Diga a ele que ele me deve um favor, e o

lembrem que ele tem uma filha bonita e não quer esses traficantes aparecendo na casadele para raptá-la. Se Rooney sabe o que é bom para ele, vai reunir a milícia e expulsaresses traficantes do Edge. Vá, Charlotte. Vá agora.

O telefone tocou e ela empurrou-o de volta a Tulip.

— Tudo o que precisam fazer é virem até aqui e mover uma dessas pedras de proteção. —Otraficante gritou. Éléonore olhou pela brecha. Ele puxou uma faca. A grande lâmina curvarefletiu na luz do sol. — Sabe muito bem o que vai acontecer, —ele gritou. — Sou um homempacífico. Não me obrigue a fazer isso.

******CHARLOTTE DEU uma guinada em uma velocidade vertiginosa. Traficantes deescravos? Não fazia sentido. A escravidão era proibida em Adrianglia e no Broken por séculos.Mas o medo na voz de Éléonore era vívido e real.

Precisava chegar aos Rooneys. Laporte do Leste não tinha força policial, mas quando algoameaçava a cidade inteira, os Edeges às vezes se reuniam em uma milícia para enfrentá-lo.

Árvores passaram por ela. Vamos, ela desejou. Vá mais rápido, carro. Vá mais rápido.

******— ME ESCUTE. —Éléonore agarrou os ombros ossudos de Tulip. — Eles vão machucarDaisy. Não há nada que possamos fazer sobre isso. A barreira de proteção me impede de usarmagia neles, e se tentarmos atirar, eles vão matá-la.

— Ela é minha irmã! —Tulip sussurrou de volta. — Se dermos o cara que eles querem ...

— Eles vão matar todas nós. Estão mentindo, minha querida. São mentirosos, bastardoscruéis e horríveis. Temos que esperar até que a ajuda chegue. —Éléonore a abraçou, envolvendoos braços em volta dos ombros ossudos da garota. — Não importa o que você ouça, não importao que veja, você não pode ir até lá. Temos que esperar.

— Segure-a, —disse o traficante.

Daisy choramingou.

Éléonore apertou Tulip contra ela. — Não ouça. Tampe os ouvidos.

— Última chance. Movam a pedra e todos estarão a salvo.

Éléonore prendeu a respiração.

— Tudo bem, —disse o traficante.

Daisy gritou, um som agudo impregnado de dor.

Éléonore arriscou olhar pela janela. O traficante loiro segurava algo pálido e ensanguentadoentre o dedo indicador e o polegar. Daisy se retorceu nas mãos de outros dois homens.

— Foi uma orelha agora, —anunciou o traficante. — Os próximos serão os dedos.

******— Temos que ir. —Charlotte olhou para Malcolm Rooney, mais alto do que ela uns vintecentímetros.

Ao redor deles, a casa Rooney fervilhava de atividade: a baixinha e gordinha Helen Rooneydiscava um número após o outro em seu celular, examinando a lista de contatos, enquanto seusdois filhos adolescentes estocavam armas na varanda. Assim que ela terminava de ligar, o filhoe a filha mais velhos saíram para levar a mensagem aos vizinhos, e agora homens armadoscirculavam pela casa.

— Agora me escute, —o homenzarrão se aproximou. — Elas estão seguras atrás dasproteções, e Éléonore é uma velha bruxa durona. Pode cuidar de si mesma. Dezesseis homens émuito poder de fogo. Cavalgar até lá despreparados é o mesmo que cortarmos nossas própriasgargantas e acabar logo com isso.

— Elas estão sozinhas em casa! —Charlotte viu uma dúzia de homens prontos para partir.

— Vai ficar tudo bem, —disse Malcolm.

Charlotte olhou nos olhos dele e soube que discutir seria inútil. Malcolm Rooney faria issoem seu próprio ritmo ou não faria.

— Mais uma hora e estaremos prontos para ir.

— Uma hora? —Estava louco. Se quisesse ele poderia colocar toda a cidade em movimentoem trinta minutos.

— Vai ficar tudo bem, —disse Helen Rooney, o telefone ainda no ouvido. — Leva tempopara reunir todos, só isso. Tudo ficará bem.

A sensação nauseante e incômoda na boca do estômago de Charlotte dizia o contrário.

Malcolm puxou uma espingarda da parede. — Você tem sorte que Laporte do Leste é umlugar diferente agora do que era há seis anos. Naquela época, você não teria nenhuma ajuda, masagora os moradores se unem para ajudar.

Ele deu as costas enormes para ela. Charlotte percebeu o que estava acontecendo: os Edegesestavam atrasando o socorro de propósito. Ninguém queria enfrentar dezesseis homensarmados, então estavam enrolando, esperando que as coisas se resolvessem.

Charlotte respirou fundo e deixou de lado sua personalidade de modesta Curadora do Edge.Ela ergueu a cabeça, afundando o tom glacial e inconfundível de comando em suas palavras. —Senhor Rooney.

Ele se virou, a surpresa estampada no rosto do homem. Malcolm esperava a Charlotte quemorava na estrada. Em vez disso, ganhou a Baronesa Charlotte de Ney, a Curadora de Ganer. Elaestava diante dele, todo o poder da magia dela irradiando em seus olhos e através de seu corpo. Acasa ficou repentinamente silenciosa.

— Sua esposa tem um início de osteoporose15, você tem a próstata aumentada16 e seu filhomais novo não tem TDAH17, como sua esposa me disse, ele tem hipertireoidismo18. Se quiserque algum desses problemas seja tratado no futuro, pare de dar tapinhas no meu ombro e medizer para não preocupar minha linda cabecinha com isso. Você vai reunir essa gente agora e meseguir até lá, ou então, que os deuses me ajudem, vou tornar sua vida um inferno. Acha que todasessas dores e incômodos que sente agora são ruins. Depois que eu terminar com você, será umhomem destruído. Mova-se.

******TULIP FICOU rígida em seus braços. — Não olhe, —sussurrou Éléonore.

Daisy se debateu, jogando todo o seu peso. — Não! Não, não, não ...

Os traficantes de escravos a arrastaram para o chão e prenderam sua mão na beira dacalçada.

A faca brilhou. Daisy gritou, um grito agudo de dor.

— Mindinho esquerdo, —o traficante anunciou. — Você está pensando em se casar? Porqueestou prestes a tirar o dedo anelar.

Tulip se sacudiu, tentando sair dos braços de Éléonore.

— Pare! —Éléonore tentou segurá-la, mas a garota lutou como uma fera, forte demais parasegurar. Éléonore tentou agarrá-la, segurando-a, mas Tulip, em pânico, a chutou e a empurroucontra uma janela.

Um tiro foi disparado. O vidro se estilhaçou e algo atingiu Éléonore no ombro, direto noosso. Seus dedos escorregaram, repentinamente fracos. Tulip a empurrou de volta e correu emdireção à porta.

— Não! —Éléonore gritou.

Tulip saiu pela porta e foi para o gramado.

Éléonore abriu a porta. — Pare, Tulip!

Uma dor quente e penetrante atingiu Éléonore no peito, jogando-a para trás. Ela perdeu oequilíbrio e caiu na varanda, meio escondida pelo parapeito de madeira.

De repente, ficou muito difícil respirar. O ar ficou amargo. Eles atiraram nela, percebeu.Éléonore começou a puxar seu poder, concentrando sua magia. A magia veio lenta, como melaçofrio.

Nas pedras de proteção, Tulip se virou e a olhou com olhos arregalados em pânico.

— Tulip, não é? —O traficante com cicatrizes disse. — Não olhe para ela. Olhe para mim.Ela é sua amiga? Irmã talvez, não? Irmã, então.

— Se você abrir a proteção eles vão te matar, —gritou Éléonore.

— Dou-lhe a minha palavra, —disse o traficante. — Ninguém vai te matar.

A magia continuou girando em torno de Éléonore. Muito pouca. Quase não o suficiente. Amagia dela estava muito velha, percebeu. Muito velha e muito fraca. Seu poder foi deixando-a aolongo dos anos.

— Não faça isso!

— Você quer ir para casa, Tulip? —Perguntou o traficante.

Éléonore tentou se levantar, mas suas pernas não a seguraram.

— Mova a pedra de proteção e estará tudo acabado, —disse o traficante. — Você e sua irmãpoderão ir para casa. Vou até devolver as partes dela. Veja? —Ele estendeu o cotoensanguentado de um dedo.

Tulip se encolheu.

— Não! —Éléonore gritou. Sua voz estava ficando rouca. O sangue manchava as tábuas davaranda e percebeu que era o dela.

— Eu disse para atirar nela, —disse o traficante. — Será que sou eu quem terei que acabarcom a velha?

As balas assobiaram ao redor de Éléonore, atingindo o parapeito de madeira ao redor davaranda.

— Pare! —Tulip gritou.

O traficante loiro ergueu a mão. Os tiros acabaram.

— Viu? Parei porque você me pediu. Posso ser razoável. Não escute a velha, —disse otraficante. É só uma velha egoísta. Você tem que fazer o que é bom para você e sua irmã. Mova a

pedra, pegaremos nosso cara e seguiremos nossos caminhos separados. Caso contrário, terei quecortar outra coisa. Talvez os lábios da sua irmã ou o nariz dela. Ela ficaria desfigurada para oresto da vida.

Tulip ficou paralisada.

— Segure ... —disse o traficante.

Eles viraram Daisy de costas. Ele se inclinou sobre ela com a faca na mão.

— Não! —Éléonore gritou.

Tulip agarrou a pedra da proteção e a puxou para o lado. O círculo de magia protetora sequebrou.

Oh, criança tola. Criança tola, tola ...

O grande bandido ao lado do homem com cicatrizes passou por cima da pedra inútil eempurrou Tulip para fora do caminho. Ela caiu na grama.

Uma arma disparou duas vezes. Éléonore estremeceu e viu o traficante de escravos comcicatrizes erguer uma arma fumegante. A nuca de Daisy estava uma bagunça sangrenta. A moçanão se movia mais.

Tulip gritou, um grito agudo e desesperado.

Éléonore precisava tentar salvá-la. Ela cerrou os dentes. Era velha, mas ainda era uma bruxada floresta.

O traficante maior se virou para Tulip.

Éléonore se apressou, puxando magia para ela em uma corrida desesperada.

— Não a mate, —disse o líder.

Sinto muito, Rose. Sinto muito. Eu só queria que pudesse ter visitado vocês uma última vez.

— É mercadoria de graça.

— Você olhou para o rosto dela? Precisa pensar antes de agir, Kosom. Quem vai comprá-lacom essa cara? Pode até foder com ela uma vez, se colocar um lençol sobre a cabeça dela, masninguém vai comprar isso. Os compradores não querem mulheres feias. Você tem quedesenvolver algum senso de negócios. Vá matar a velha na varanda e arraste o Caçador para foradesta maldita casa.

Tulip se sentou com os olhos arregalados.

O último fio de magia condensou-se em Éléonore. Era tudo o que ela conseguia segurar.

O grande bandido apontou sua arma para o rosto de Tulip.

Éléonore libertou. A magia dela disparou pelo gramado, atingindo o bandido com a arma ealcançando os outros três homens perto dele, cercando-os como um enxame de morcegosescuros.

— Corra! —Éléonore gritou. — Corra, Tulip!

Tulip cambaleou para trás, pôs-se de pé e disparou pela estrada em direção a floresta.

Os quatro bandidos caíram, contorcidos por espasmos, mas o líder e mais de dois terços dostraficantes de escravos permaneceram de pé. Sua magia tinha sido muito curta.

O líder de cabelos claros correu para a varanda. — Sua puta velha.

Ela fugiu. Pelo menos a criança fugiu.

O traficante puxou uma arma de um coldre. — Sua vadia de merda.

Éléonore olhou para ele. Ela morreria aqui, nesta varanda, mas o levaria com ela. Éléonorecuspiu sangue de sua boca e falou as palavras, unindo o que restava de seu poder nelas,utilizando a própria magia que a ancorou à vida. Não havia cura para a maldição da morte. — Eute amaldiçoo. Você não verá o pôr-do-sol ...

— Foda-se. —Ele ergueu a arma. O cano preto olhou para ela.

Em sua mente, Éléonore se imaginou abraçando os meninos, George à sua direita e Jack àsua esquerda. As flores desabrocharam ao redor deles e Rose estava acenando para ela do outrolado de um jardim ensolarado ... — E vai sofrer antes de morrer.

As últimas palavras deixaram sua boca, levando sua vida com elas. O mundo desapareceu.

******CHARLOTTE VERIFICOU o relógio do painel. Quinze minutos depois do meio-dia.Ela havia partido havia quase uma hora. A milícia improvisada deixou a casa dos Rooneys dezminutos depois que ela tomou posição. Três caminhões cheios de pessoas armadas viajavam àsua frente e, nas laterais, meia dúzia de Edeges cavalgavam a cavalo.

Estava demorando muito. Por favor, Mãe da Aurora. Por favor, não deixe ser tarde demais.

O caminhão da frente acelerou. O mesmo aconteceu com os próximos dois. Ela franziu ocenho.

Na caçamba do caminhão, à sua frente, as pessoas estavam olhando para cima e para adireita. Charlotte se inclinou para frente, tentando obter uma visão melhor através do para-brisa.

Uma coluna de fumaça preta e gordurosa subiu acima das copas das árvores.

Ah não.

Ela buzinou.

Os caminhões subiram apressadamente a estrada. Charlotte apertou o volante. Vamos.Vamos!

As árvores se separaram.

Uma torrente de fogo devorava a casa. Chamas laranja e vermelhas saíam do telhado, vigasde suporte enegrecidas projetando-se como ossos de um esqueleto. O fogo saía pela porta,fervendo dentro da casa, serpenteando pelas colunas da varanda e soltando fumaça. As chamaslaranja surgiram pelas janelas, lambendo o revestimento.

Charlotte estacionou a caminhonete no estacionamento, abriu a porta e correu pelo gramado.O calor a atingiu, empurrando-a para trás, e ela ergueu a mão, tentando proteger os olhos do pior.Cinzas giraram em torno dela.

Cadáveres esparramados na grama, quatro homens armados, seus corpos contorcidos, seusrostos máscaras grotescas. Sua pele se arrepiou. De repente, ficou quente e fria ao mesmo tempo.

Um som agudo de lamento a fez se virar. Na beira do gramado, o corpo de Daisy estavadeitado de bruços. Um buraco vermelho úmido aberto em sua cabeça. Tulip caída perto do corpo.

A magia de Charlotte explodiu dela, deslizando sobre as meninas, verificando-as ... Tulipestava ilesa. Pequenos hematomas no rosto, mas sem ferimentos graves. Daisy estava morta.Irreparavelmente, irreversivelmente morta. Não sobrou um traço de vida.

O frio passou por ela. Não foi rápida o suficiente. Elas ligaram pedindo ajuda, e ela não foirápida o suficiente.

Tulip se sentou na grama ao lado da irmã, com as mãos ensanguentadas, o rosto coberto delágrimas e sujeira, e chorou. Sua dor atingiu Charlotte, quente, aguda e avassaladora. Não havianada que ela pudesse fazer para evitar. Toda a sua magia e todo o seu poder eram inúteis.

Helen Rooney caiu no chão perto de Tulip, tentando abraçá-la, mas Tulip se soltou econtinuou chorando. A cinza preta chovia no rosto da menina. Tulip gemia e gritava, como seestivesse tentando expulsar seu coração e toda a dor nele para fora de seu corpo com a voz.

— Onde está Éléonore, querida? —Helen perguntou.

Tulip apontou para o fogo.

Charlotte voltou-se para a casa. Uma figura carbonizada jazia na varanda, pouco mais doque uma casca chamuscada.

O mundo de Charlotte parou bruscamente. Ela não conseguia se mover. Apenas ficou lá,

olhando para o corpo queimado. Éléonore ... Éléonore estava morta. Como isso aconteceu? Suamente se recusou a aceitar. Éléonore estava viva e vibrante há menos de uma hora. Estava viva,falando e andando, e agora estava morta, e Daisy estava morta com ela.

Éléonore nunca mais voltaria a sorrir. Nunca pegaria o relógio cuco quando caísse de seucabelo. Sem mais histórias sobre Rose e os meninos. Nada mais.

— E quanto ao homem? —Helen perguntou.

— Eles o levaram, —soluçou Tulip.

Helen se inclinou em sua direção, murmurando algo. Malcolm se curvou sobre elas.

Preciso fazer algo, a ação brilhou na cabeça de Charlotte. Precisava fazer algo, dizer algo,mas simplesmente não conseguia. Apenas ficou lá, presa em uma névoa dolorosa.

Malcolm Rooney atravessou o gramado até ela. Viu os lábios do homem se moverem, masnão ouviu o som das palavras dele.

As vigas do telhado desabaram com um estalo alto e caíram em uma explosão de faíscas.Charlotte estremeceu. Sua audição voltou, e ela ouviu a voz profunda de Malcolm: — ...traficante. —Ele balançou vários pares de algemas para ela. — Encontrei isso nos corpos. Nãovejo traficantes por aqui há dez anos. Deve ter atacado rápido. Parece que deram um tiro nacabeça de Daisy, atiraram em Éléonore, pegaram o homem e botaram fogo na casa. Tulip seescondeu na floresta e assistiu tudo, pobre garota. A casa pegou fogo rapidamente. Era uma casaantiga. Queimou como gravetos secos. Eles estão a cavalo, há uma dúzia deles, talvez mais, alémdesses. —Malcolm acenou com a cabeça para os corpos distorcidos. — Esse é o trabalho deÉléonore. Chamam de maldição de Ossos Quebrados, porque paralisa aquele que foramaldiçoado em formas distorcidas como essa. A velha senhora tinha muito poder nela.

Sua boca finalmente conseguiu dizer uma palavra. — Por que fizeram isso?

— Isso é o que os traficantes fazem. Eles invadem cidades como a nossa, roubam crianças emulheres bonitas e as levam para o Weird, para vender como escravas lá. Esse tal de Richarddeve tê-los irritado de alguma forma.

Richard ... Os traficantes o haviam levado. Sua mente começou a funcionar lentamente,como se estivesse enferrujada. Ela chegou tarde demais para Éléonore e Daisy, mas ainda haviauma vida que poderiam salvar. — Temos que ir atrás deles.

Malcolm balançou a cabeça. — Os traficantes são um bando de bandidos perigosos. Elesconseguiram o que queriam e foram embora. Esse Richard não é meu parente. Inferno, nemmesmo cresceu por aqui. Os traficantes são como um enxame de vespas, esse Richard agitou oenxame e os trouxe até aqui, mas agora eles se foram e não é mais nosso problema. Dê uma

olhada no que ele trouxe para você. Por mim, boa viagem para ele.

Charlotte olhou para o homem, chocada. Ele não faria nada. Já havia se decidido, ela viu adecisão nos olhos dele. Malcolm Rooney, o grande e forte touro em forma de homem, estavacom medo. Ele iria embora.

— Aqueles bastardos destruíram quatro vidas. Éléonore me acolheu. Ela me acolheu, me deu uma segunda chance na vida, e eles a assassinaram e queimaram seu corpo e sua casa. —A voz dela se elevou. — Eles mataram Daisy, que mal tinha vinte anos, e sua irmã de quinze anos a viu morrer. E você simplesmente vai deixar isso para lá?

Malcolm fechou a boca com força.

Charlotte olhou além dele para os Edeges. A culpa e a tristeza estampavam seus rostos. Nemum deles a olhava nos olhos.

Queridos deuses. Os minúsculos pêlos de sua nuca se arrepiaram.

Eles concordavam com Malcolm. Todos simplesmente iriam embora e fingir que esse horrornunca aconteceu. Ela sabia que no Edge era cada um por si, mas isso? Isso parecia desumano.

— Éléonore viveu aqui toda a sua vida. —Ela apontou para o cadáver carbonizado. — Ocorpo dela ainda está fumegando ali. Não entende? Se não os impedirmos, eles farão isso denovo. Olhe para a Tulip. Olha para ela!

As pessoas olhavam para os pés, para a grama, para qualquer lugar, menos para ela ou paraa criança que chorava muito.

— Persegui-los só fará com que mais pessoas morram, e nenhum de nós tem filhos ouparentes de sobra, —Malcolm disse calmamente. — Encontraremos um lugar para Tulip.Inferno, Helen não a abandonaria, então acho que a menina vai voltar para casa conosco. Vocêdeveria vir também.

Charlotte olhou para ele porque olhar para os corpos de Daisy e Éléonore doía. A dor aencheu até a borda, amarga e opressora. Ela estava sufocando. Oh deuses! Rose e os meninoseventualmente precisariam saber. O que diria a eles? Desculpe, não cheguei a tempo. Lamentoter fechado os olhos para isso como se a vida de Éléonore não importasse e deixei aquelesbastardos irem embora e espalharem mais miséria?

— Podemos arrumar um quarto para você, —Malcolm disse suavemente. — Quanto mais,melhor, não é o que dizem? Vai ficar tudo bem, Charlotte. Tudo vai dar certo. Você ajudoumuitas pessoas aqui. Vamos encontrar um novo lugar para morar, não se preocupe com isso. Oque acha da ideia?

A dor, tristeza, choque e culpa agitaram-se dentro dela. Ela não conseguiu conter. Tinha quefazer algo. Os traficantes achavam que podiam pisar nas pessoas, irem embora e continuarmatando, queimando e ferindo crianças. Eles destruiriam outras vidas, assim como haviamdestruído seu pequeno mundo confortável. Causaram tudo isso e foram embora, impunes,levando o homem que ela havia curado, e ela nem sabia por que tudo isso tinha acontecido. Elesmachucariam Richard, o torturariam e provavelmente o matariam.

Alguém tinha que se posicionar. Se nenhum dos Edeges se ofereceu, ela teria que ser essealguém. Não havia mais ninguém.

Charlotte alcançou a escuridão profundamente dentro de si mesma, cuidadosamenteescondida e trancada, e encontrou uma única faísca vermelha. Ela forjou uma conexãoprovisória. A necessidade a inundou, a magia muito faminta, muito desesperada para sair, sealimentar e matar. O medo passou por ela. Charlotte quase recuou. Se ela soltasse a escuridão,não haveria mais volta. Havia se esforçado tanto para controlar por completo esta parte de simesma. Quase conseguiu.

Charlotte olhou para o rosto de Tulip, para as faixas úmidas de lágrimas manchadas decinzas.

— Tulip!

A garota ergueu os olhos.

Charlotte segurou a faísca. — Não posso trazer Daisy de volta à vida, querida. Mas possoter certeza de que eles não machucarão outra garota do jeito que machucaram você. Eu vou fazê-los pagarem. Prometo a você, eles não irão levar a irmã de mais ninguém embora.

O rosto de Tulip estremeceu e ela soluçou.

— Charlotte? —Malcolm perguntou.

Charlotte respirou fundo e libertou a faísca.

— Está me ouvindo?

O vermelho e a escuridão explodiram dentro dela, retorcendo-se em um inferno faminto efurioso.

Ela olhou para Malcolm Rooney. A expressão do rosto dela deveria ser terrível, porqueMalcolm deu um passo para trás. Charlotte se virou e caminhou pela grama até sua caminhonete.

— Se você for, irá sozinha! —Malcolm gritou.

Ela continuou andando, sua magia rugindo dentro dela.

— Isso não trará Éléonore de volta! Eles vão matá-la. Charlotte? Charlotte!

Charlotte entrou em sua caminhonete e ligou o motor. O fogo dentro dela explodiu, girandosobre ela em tentáculos de um vermelho profundo e raivoso.

Esses bastardos não machucarão mais ninguém. Ela se certificaria disso.

TrêsQUANDO UM HOMEM SE ENCONTRA EMCIRCUNSTÂNCIAS DIFÍCEIS, sempre vale a pena avaliar a situação.Especialmente se depois de acordar, descobrir que não consegue se mover.

Richard abriu os olhos.

Vamos ver. Primeiro, estava em uma jaula, um fato dolorosamente evidenciado pelo padrãode barras de aço usadas por caçadores, colocada no meio de uma velha floresta. Em segundolugar, suas mãos estavam amarradas nas costas. Terceiro, uma corrente pesada prendia suaspernas a um anel de aço no fundo da jaula. Quarto, uma corrente mais grossa prendia a jaula auma carroça, dando várias voltas, como se o peso da jaula, presa na base da carroça não fossesuficiente para mantê-la no lugar. Avaliando tudo isso, poderia concluir que foi capturado pelostraficantes de escravos, e os seus captores temiam que ele brotasse asas e decolasse com umajaula de mais cento e trinta quilos ao seu redor.

Richard não conseguia se lembrar de como foi colocado na jaula. Em algum momento, eledeve ter sido espancado—seu rosto doía e provavelmente estava machucado. Sentiu o gosto delama nos lábios, provavelmente da bota de alguém. Além disso, a julgar por um odor nadaagradável, alguém tinha se dado ao trabalho de urinar no peito dele. Traficantes, uma raçaencantadora, sempre feliz em tratar seus convidados com sua lendária hospitalidade.

A ferida na lateral do seu corpo não doía nada e, apesar de todas as suas expectativas, eleainda estava vivo.

Como diabos ainda estava respirando? Ele havia sofrido ferimentos suficientes parareconhecer que a punhalada em seu fígado era fatal, mesmo se tivesse sido magicamentetransportado para a mesa de um cirurgião no momento em que recebeu a facada. Em vez disso,Richard tornou os ferimentos mais fatais ainda correndo por horas.

Ele se lembra de ter caído em alguma estrada. Algo aconteceu entre esse momento e oagora, aqui na jaula, algo confuso. Por algum motivo, tinha a sensação de que envolvia Éléonore,

a avó de Rose, que ele conheceu uma vez. Outra memória veio à tona, uma mulher com olhoscinzentos e cabelos loiros. O rosto dela era um borrão, mas ele se lembrava dos olhos dela sob assobrancelhas loiras escuras, intensas e lindas—sua memória nebulosa a tornou radiante—e apreocupação que ele leu na profundidade dos olhos dela o prendeu. Ninguém olhou para eleassim há anos. Era uma lembrança tão bela que tinha quase certeza de que era produto de seucérebro alucinante, ansiando por algo radiante em sua vida sombria e ensanguentada.

Exceto que alguém o curou porque seu ferimento havia sumido. Ferimentos de facadas nãodesapareciam por conta própria. Esse fato o fazia ter esperanças de que as lembranças turvas damulher dos olhos cinzentos não eram produto de sua imaginação, porém a magia de cura eraextremamente rara e altamente valorizada. Encontrar alguém no Edge com esse tipo de dom seriaimprovável. O Edge era um lugar infernal, um lugar para onde se ia quando nem o Weird nem oBroken o queriam. Um Curador com talento como esse seria valorizado no Weird.

Essas conjecturas não estava o levando a lugar nenhum. Ele não tinha uma explicaçãoplausível de porque estava vivo, então teria que deixar isso de lado por enquanto. Seu problemamais imediato era a jaula e o bando de traficantes de escravos que a vigiavam.

Não havia como saber há quanto tempo ele estava inconsciente, mas era improvável queestivesse inconsciente por muito tempo. Eles estavam viajando através da floresta do Weird e amagia fluía com força total. A floresta era densa, os enormes troncos das árvores, alimentadospor magia e nutridos pelo rico solo de Adrianglia, subiam a alturas improváveis. Contra essepano de fundo, os traficantes, montados em seus cavalos na trilha quase invisível, pareciaminsignificantes e pequenos. Os cavalos andavam devagar, atrapalhados pela carroça quetransportava a jaula.

Richard catalogou os rostos dos traficantes. Alguns eram desconhecidos, mas elereconheceu cerca de metade deles, excelentes exemplos de escória flutuando na sarjeta dahumanidade. A memória dele o fez lembrar o nome de cada um dos conhecidos, assim comosuas breves biografias e fraquezas. Richard havia os estudado da mesma forma que outrosestudam os livros. Alguns deles vinham de famílias estruturadas, outros nasceram psicóticos eoutros eram apenas gananciosos e estúpidos. A maioria carregava rifles e lâminas, suas armaseram velhas e sujas.

Ele não viu nenhum Cão Estripador-de-lobos e também não ouviu nenhum. Para onde foramtodos os cães?

******CHARLOTTE DESCEU da caminhonete. Adiante, a estrada de terra coberta de mato

terminava, transformando-se em um caminho na floresta. A fronteira para o Weird apareceudiante dela. Ela sentiu na própria medula óssea, uma pressão estranha e perturbadora queameaçava sufocá-la.

Os traficantes haviam passado pela fronteira. O mato rasteiro ainda estava amassado,perturbado pelos cavaleiros. Ela viu os rastros de pegadas no chão e duas ranhuras de rodaslargas. Eles tinham uma carroça, e não era movida por magia como as carruagens modernas doWeird, mas uma carroça antiga puxada por cavalos, do tipo que os camponeses ainda usavam nasprovíncias. A trilha dos traficantes passava pela fronteira, então ela teria que passar também. Aúltima vez que a cruzou, a sensação de sua magia sendo desfeita quase a fez desistir.

Charlotte respirou fundo e entrou na fronteira. A magia a agarrou, apertando seus órgãoscomo se tentasse arrancar o sangue deles. A pressão a empurrou, impulsionando-a para frente.Cada passo foi um esforço consciente. O suor brotou de sua testa. Outro passo. Outro. A pressãoa esmagou. Charlotte se curvou. Ela engatinharia se precisasse.

Outro passo.

De repente, o fardo opressor desapareceu. A magia a inundou, rejuvenescendo seu corpo.Era uma sensação absurda, mas se sentiu se abrindo como uma flor saudando o sol da manhã. Setivesse asas, elas teriam se desenrolado. Charlotte inalou lentamente. Aqui estava ela, a familiarmagia poderosa que estava tão acostumada a usar. Durante seus anos no Edge, vivendo compouca magia, ela havia esquecido como era maravilhoso esse poder.

Nunca tinha entendido por que Éléonore não se mudou para o Weird ...

Éléonore.

Ela teve que seguir em frente. Estava pelo menos meia hora atrás dos traficantes,provavelmente mais. A velha floresta Adriangliana se estendia diante dela. O caminho da florestabifurcou à frente. E agora? Para que lado, direita ou esquerda?

Charlotte se ajoelhou no chão, tentando seguir as pegadas dos cascos. Um tapete de velhasagulhas de pinheiro cobria o chão da floresta e o caminho, obscurecendo a trilha. Ela aprenderaum pouco sobre rastreamento quando era menina, com um velho explorador veterano quemorava no Instituto Ganer, porque o achava interessante. Mas essas lições foram há muito tempoe ela nunca as levou muito a sério.

Um gemido agudo e forçado veio de debaixo de um arbusto à sua esquerda. Ela se virou.Dois olhos castanhos caninos olharam para ela por cima de um grande focinho preto.

Charlotte congelou.

O cão abaixou sua grande cabeça e soltou outro ganido fino. Ela cheirou sangue. O

sofrimento do animal açoitou o instinto curador dela como um chicote. A magia sombriaenfurecida dentro dela desapareceu, como se nunca tivesse existido.

— Calma. —Charlotte se agachou e foi em direção ao cachorro. — Calma.

Ele estava deitado de lado, ofegante.

Ela estendeu a mão para tocá-lo.

Os lábios do cão tremeram, revelando um lampejo de presas.

Charlotte parou de se mover, sua mão estendida. — Se você me morder, não vou te ajudar.—O cachorro não conseguia entendê-la, mas conseguia entender o tom de sua voz.

Lentamente, ela se aproximou. O cão abriu a boca. As mandíbulas estalaram, mas nãoalcançaram seus dedos. Ele estava muito fraco.

— Se estivesse saudável, teria arrancado minha mão, hein?

Charlotte tocou a pele, enviando uma corrente de faísca dourada pelo corpo peludo. Macho,pressão arterial baixa. Um ferimento de bala passando pelo abdômen. Alguém atirou no cão.

— Este mundo está cheio de pessoas terríveis, —ela disse a ele, e começou a reparar osferimentos. A bala entrou no peito, cortou o pulmão esquerdo e saiu pela lateral do cachorro. Ajulgar pelo estado da ferida e perda de sangue, acontecera cerca de cinco a seis horas atrás.

Charlotte costurou os tecidos feridos, reconstruindo o pulmão.

O cão se inclinou e lambeu a mão dela, uma lambida rápida e curta, como se envergonhadode sua própria fraqueza.

— Agora não dói tanto, não é? Por isso mudou de ideia? —Ela selou a ferida e acariciou opêlo do cão. Sua mão deslizou contra uma coleira com pontas.

— Você não seria um cão dos traficantes, seria?

O cachorro se levantou. Ele era uma fera enorme—se ficassem de pé em suas duas patastraseiras, poderia colocar as patas dianteiras nos ombros dela.

Charlotte se levantou. — Onde estão seus donos?

O cachorro olhou para ela, farejou o ar e virou para a direita.

Ela não tinha uma opção melhor para continuar.

— Certo, à direita, —Charlotte disse, e seguiu o cachorro pelo caminho.

******A CARROÇA rolou sobre uma raiz, rangendo.

— Longe o suficiente, —gritou uma voz áspera. Voshak Corwen, um traficante de escravosexperiente com mais de uma dúzia de ataques em seu currículo. Dificilmente uma surpresa,Richard refletiu. Este era o homem que Tuline havia prometido trair. Eles devem ter concordadoem montar aquela pequena armadilha juntos, e quando Richard abriu caminho através doshomens de Tuline, Voshak pegou seus homens e veio atrás dele.

— Faremos acampamento aqui, —disse Voshak.

— Estamos a apenas duas horas da fronteira, —gritou um homem alto e ruivo. Richard nãoo reconheceu. Provavelmente um novato. Os traficantes de escravos precisavam reabastecer seusbandos regularmente—e Richard não se cansava de diminuí-los.

Voshak apareceu à vista. De altura média, o corpo do homem aprecia ser feito só decartilagem e tendões de força: esguio, com alta resistência. Ele não era o mais rápido ou o maisforte, mas era muito resistente. Uma rede de cicatrizes cortava seu rosto. Sem dúvida, Voshaktinha uma história heroica sobre como as conseguiu, em vez de admitir que um tratador decavalos havia arranhado seu rosto com um forcado19 durante uma fracassada invasão deescravos.

O cabelo de Voshak, uma trança loira clara, que ele descoloriu, era sua marca registrada.Isso o tornava inesquecível. É assim que os traficantes operavam. Eles adotavam personagens,tentando se tornar maiores do que a própria vida e na esperança de inspirar medo. Contavam comesse medo. Qualquer pode lutar contra um homem, mas poucos podem lutar contra um pesadelo.

Voshak encarou o ruivo. — Milhem, eu fiz de você meu segundo no comando?

Milhem baixou os olhos.

Ceyren, o segundo de Voshak, provavelmente estava morto, caso contrário, ele estaria aquitirando Milhem de seu cavalo e o espancando até virar uma polpa de sangue. Interessante.

— Então não abra sua maldita boca, —disse Voshak. — Se eu quiser sua opinião, vou exigi-la de você. —Ele examinou os cavaleiros. — Ninguém está nos seguindo seus idiotas. Nãoprecisam se preocupar com isso. São Edeges. Eles só pensam em si próprios e nenhum deles iriaquerer ser atingido por uma bala. Já se passaram vinte horas desde a última vez que dormimos,estou cansado. Agora montem o maldito acampamento. —Ele se virou para um traficante maisvelho, caolho. — Crow, você é o meu segundo agora. Coordenem o trabalho deles.

Crow, um bastardo de ombros largos e castigado pelo tempo, rugiu: — Andem logo!

Escolha razoável para um segundo no comando, Richard refletiu. Crow era mais velho,tinha experiência e trabalhava duro para inspirar medo. Se seu tapa-olho e altura não bastassem,o couro escuro que vestia e o cabelo preto, preso em um rabo de cavalo decorado com ossos de

dedos, bastariam.

Voshak virou seu cavalo. Seu olhar parou em Richard. — Acordada, minha gentil donzela? Você tem algo bem aqui. —O traficante tocou o canto esquerdo da própria boca. — O que é isso? ... Oh, isso é a merda da sola da minha bota.

Risos soaram.

Richard sorriu, mostrando os dentes. — Sempre iluminando o dia com seu humor,Esquerdinha.

Um músculo se contraiu no rosto de Voshak. Ele apertou as rédeas. — Fique quietinho emsua jaula, Caçador. Porque quando chegarmos aonde estamos indo, você cantará como umpassarinho quando eu começar a cortar suas juntas.

— O que foi que disse? Não ouvi direito. —Richard se inclinou para frente, encarandoVoshak. Uma pitada de medo estremeceu nos olhos do traficante de escravos, e Richard seaproveitou. — Aproxime-se da jaula, Voshak. Não se acovarde como um garotinho seescondendo do cinto do seu pai.

Voshak cravou as esporas nos flancos do cavalo. O animal saltou e ele partiu. Covarde. Amaioria deles era covarde, cruéis e covardes. Homens corajosos não sequestravam crianças nomeio da noite e as vendiam a pervertidos para ganhar seu dinheiro.

Os cavaleiros desmontaram. Dois seguraram os cavalos, mantendo-se bem longe de suajaula. Outros começaram a puxar barracas dos alforjes, verde-oliva e cinza, com um logotipovermelho escrito COLEMAN20 costurado de um lado. As barracas devem ter vindo do Broken.Alguns traficantes trouxeram galhos secos e os empilhou. Um homem de cabelos escurosderramou um fluido de um frasco nos galhos, riscou um fósforo e o jogou no combustível. Ofogo cresceu como um cogumelo laranja. O homem recuou, esfregando o rosto.

— Ainda tem sobrancelhas, Pavel? —Crow gritou.

Pavel cuspiu no fogo. — Está queimando, não está?

Um traficante parou perto da jaula. Ele era magro, com cabelos castanhos sujos e olhosclaros. Subiu na carroça, abriu uma pequena porta perto do topo da jaula, mal grande o suficientepara passar uma tigela, e mergulhou uma concha com um cabo longo em um balde.

Richard esperou. Sua boca estava tão seca que quase podia sentir o gosto da água.

O traficante passou a concha pela janela. — Por que Esquerdinha? —O traficantemurmurou.

— Era como o pai dele costumava chamá-lo antes de espancá-lo em seus ataques de

embriaguez, —disse Richard. — O testículo direito de Voshak nunca desceu.

O traficante segurou a concha mais perto. Richard bebeu três goles profundos e deliciosos,então o homem retirou a concha e fechou a janela.

Os traficantes começaram a se estabelecer. Uma panela foi posta sobre o fogo, dois coelhosforam preparados e picados na panela. Voshak veio sentar-se perto das chamas, de frente para ajaula. Ele se abaixou para cutucar as brasas, e Richard ponderou o topo da cabeça loira dohomem. O crânio humano era uma coisa muito frágil. Se ao menos suas mãos não estivessemamarradas ...

Ele tinha que sobreviver e esperar o momento certo. Os traficantes de escravos estavamlevando-o para o Mercado, tinha certeza disso. Se fosse pela vontade de Voshak, ele teria sidopendurado na primeira árvore que visse. Richard sorriu. E depois que o pescoço dele se partisse,Voshak provavelmente apunhalaria seu cadáver algumas vezes, o afogaria e depois o incendiaria.Apenas por precaução.

Alguém no topo da cadeia de comando deve ter percebido que os bandos de traficantes deescravos temiam o Caçador. Eles o queriam vivo porque pretendiam fazer de sua morte umgrande show para levantar a moral da categoria. Richard trabalhou por um ano inteiro parachegar ao Mercado de escravos, mas não tinha intenção de chegar lá nos termos deles. Umaoportunidade se apresentaria. Ele apenas tinha que reconhecê-la e tirar o melhor proveito quandosurgisse.

Se falhasse agora, Sophie tomaria o lugar dele nessa vingança. O pensamento encheuRichard de pavor.

A vingança era uma doença infecciosa. Por um tempo, deu-lhe força para continuar, mas odevorou por dentro como um câncer, e depois que seus alvos eram finalmente destruídos, tudo oque restava dele era uma casca vazia de seu antigo eu. Então, os parentes de seus alvoscomeçavam a caçá-lo e o ciclo recomeçava. Ele aprendeu essa lição aos dezessete anos, quando abala de uma família rival explodiu no crânio de seu pai, espalhando névoa sangrenta por toda abarraca do mercado. O que ele havia perdido era insubstituível. Nenhuma quantidade de mortetraria seu pai de volta à vida. Naquela época, Richard já era um guerreiro, um assassino, econtinuou a matar, mas nunca por vingança. Ele matou para que a sua família ficasse segura e asnovas gerações nunca sentissem a dor de ter seus pais arrancados de suas vidas. Ele lutou paramanter o resto deles a salvo.

E falhou.

A memória de Richard o lembrou de como Sophie costumava ser—uma criança engraçada,

linda e destemida. O pântano lamacento passou diante de Richard. Quando ele finalmenteencontrou Sophie em um dos buracos, ela estava de pé sobre o corpo de um traficante que elamatou. Quando ele a puxou para fora, os olhos dela queimavam com um medo e um ódio quenão tinham lugar no rosto de uma criança de 12 anos. Sophie havia sobrevivido aos traficantes,mas nunca mais seria a mesma. Ele esperava que os anos curassem esses sentimentos, mas otempo apenas alimentou. Richard observou, impotente, enquanto o medo e o ódio germinaram ese transformaram em auto aversão.

Quando Sophie o procurou pedindo que ele a ensinasse a usar uma espada, achou que erapor diversão. Sophie nunca havia levado suas aulas de espadas a sério antes, nem de seu própriopai, nem de sua irmã. Richard pensou que ela desistiria das aulas, como sempre tinha feito. Elenão fazia a menor ideia do que estava por vir.

O ódio por si mesma cresceu e amadureceu em uma determinação de aço. Richard via issono rosto de Sophie todas as manhãs, quando ela pegava sua espada para enfrentá-lo nas aulas.Ele já estava ficando sem coisas para ensiná-la. Um dia, Sophie decidiria que era boa osuficiente, pegaria sua lâmina e iria caçar. Ninguém seria capaz de detê-la, então Richardescolheu caçar por ela. O que ele estava fazendo não era vingança, mas justiça. O mundo haviafalhado com Sophie ao permitir que traficantes de escravos existissem. Ele havia falhado comSophie ao deixá-la sofrer nas mãos deles. E agora esperava restaurar a fé de ambos.

Uma mulher saiu da floresta. Ela era alta, cerca de um metro e setenta e cinco, e pálida. Alama respingava em seus jeans desbotados. Sua camiseta lavanda tinha um decote redondo eestava manchada com algo escuro, sujeira ou possivelmente fuligem. Seu cabelo loirodescansava no topo de sua cabeça em um nó frouxo. Seus lábios eram cheios, seus olhos eramgrandes e redondos, e a linha de sua mandíbula era suave e feminina. Ela era linda, refinada, masfria pela falta de emoção e uma calma estranha e anormal.

Seus olhares se conectaram. Cada célula do corpo dele entrou em alerta. Richard nãoconseguia ver a cor dos olhos dela à distância, mas tinha certeza de que os olhos dela eramcinzentos.

Ela era real.

O estômago dele se contraiu em alarme. O que você está fazendo aqui? Corra. Corra antesque eles a vejam.

A conversa ao redor morreu. Os traficantes ficaram olhando.

Crow pegou seu rifle e se agachou.

— Isso é o que chamo de mercadoria fácil, —murmurou Voshak de seu poleiro sobre um

tronco caído.

— Não há cidades por aqui, —disse Crow calmamente. — De onde ela veio? Por mimatirava nela agora.

— Que pressa é essa? —Voshak se inclinou para a frente. — Sem arma, sem faca. Sepudesse manipular um flash, já teria nos atingido.

— Eu não gosto disso, —disse Crow. — Ela pode ter vindo por ele.

Voshak olhou para a jaula. Richard se virou para olhá-lo nos olhos e o líder dos traficantesdeu de ombros.

— O Caçador é um animal do Weird. Ela está vestindo jeans. E se veio por ele, então oCaçador vai gostar de me ver fodê-la até explodir seus miolos. —Voshak ergueu a voz. — Ei,querida! Está perdida?

A mulher não respondeu. Ela ainda estava olhando para ele, e seus olhos diziam a Richardque não estava perdida. Não, ela estava exatamente onde queria estar. Tinha algum tipo de plano.Como chegou aqui?

— De onde você é? —Voshak perguntou. — Fale comigo. Seus pais estão preocupados comvocê?

A mulher não disse nada.

— Ela é muda, —alguém disse.

— Uma mulher bonita que não fala. Meu Deus, podemos cobrar o dobro.

Voshak sorriu.

Uma risada apreciativa de meia dúzia de gargantas soou.

— Eu não gosto disso, —repetiu Crow.

— Eu já vi uma assim antes. —Pavel cuspiu no fogo. — Ela deve ser uma Maluca.

— O que é uma Maluca? —Um jovem traficante perguntou.

— Um Edege ou alguém do Broken, —disse Voshak. — Às vezes eles tropeçam no meio docaminho para o Weird e ficam presos aqui. Não possuem magia suficiente para voltar dequalquer maneira. Eventualmente, a fronteira os expulsa, mas perdem a mente depois disso.Continuam vivos, mas enlouquecem. Simplesmente vagam por aí até morrerem de fome.

— A magia forte do Weird ... —Pavel acenou com a mão em torno da orelha. — Frita seuscérebros.

— Eu não ... —Crow começou.

— Sim nós sabemos. Você não gosta disso. —Voshak fez uma careta e a transformou em um sorriso. — Não se preocupe, querida, gritou o líder. — Cuidaremos bem de você. Venha sentar-se ao meu lado. —Ele acariciou o tronco ao lado dele.

A mulher não se mexeu.

— Vamos. —Voshak piscou para ela. — Está tudo bem.

A mulher se aproximou, movendo-se com uma graça inata.

Richard a observou. Ela olhou para ele brevemente enquanto se sentava, e ele viu umamente inteligente e ágil por trás de seus olhos. Não, ela não estava frita. De jeito nenhum.

Mas Voshak estava certo. A mulher não tinha armas. Mesmo se fosse uma manipuladora deflash, os traficantes eram muitos e estavam espalhados. Alguém atiraria nela antes que elapegasse todos eles. Ele tinha que sair dessa jaula amaldiçoada.

— Passe-me a corrente de cachorro, —disse Voshak.

Pavel passou a corrente de três metros para ele. Os traficantes as usavam como amarrashumanas—comprimento apenas o suficiente para permitir que os escravos se arrastassem para osarbustos e fazerem suas necessidades. Voshak sorriu e prendeu uma algema de ferro no tornozeloda mulher, acima de seu sapato. Ele travou o outro em seu próprio tornozelo. — Estamos presosum no outro. Assim como em um casamento.

A mulher não deu nenhuma indicação de que entendia o que acabara de acontecer.

Voshak se inclinou para mais perto dela e tirou uma pequena mecha de cabelo da parte detrás de seu pescoço longo e gracioso. — Você é uma boa garota.

Richard desejou uma espada, uma faca, um prego. Qualquer coisa que pudesse alimentarcom seu flash. Ele cortaria as barras com o primeiro corte e separaria os dedos de Voshak doresto dele com o segundo. Vê-lo tocá-la era como ver sujeira sendo espalhada na pele dela.

Voshak soltou o pescoço dela. — Se ao menos você fosse quinze anos mais jovem, valeria odobro.

— Ela teria o que? Dez anos? —Um jovem perguntou da direita.

— Acho que quinze, —disse Voshak. — Ela parece bem, mas você tem que olhar comatenção. Veja, não há mais nenhum traço infantil. Não tem rugas ainda, e seus lábios ainda sãocarnudos, mas o rosto não tem mais traços joviais. Os compradores gostam delas bem jovens. Eladeve ter trinta anos, ou um pouco menos. Mas ainda vai valer um bom troco. O problema é quepara o nosso tipo de comércio, uma mulher com mais de vinte e cinco anos já passou do seuauge. E algumas dessas cadelas parecem bruxas aos trinta. Tudo depende da delicadeza com que

foram usadas.

A mulher ficou quieta, seu olhar fixo nas chamas.

Voshak se inclinou e verificou seu rosto.

— Eu disse a você, —disse Pavel. — A mente dela não está mais aí.

— Isso não é uma coisa ruim, —disse Voshak.

Richard cerrou os dentes. Foi preciso uma coragem incrível para entrar no acampamentoassim, para se entregar à custódia física deles. Ela tinha que saber o que eles fariam com ela. Eleviu o que acontecia com as mulheres bonitas nos campos de escravos. Eles iriam estuprá-la,todos eles, e Richard não seria capaz de impedi-los. Teria que assistir, indefeso. Tinha vistocoisas piores, mas nunca de dentro de uma jaula com as mãos amarradas. Queria gritar e se jogarcontra as barras, mas não conseguia nem se mover.

A mulher tinha que ter algum tipo de plano. Por favor, quem quer que seja, me diga que temum plano. Talvez ela planejasse esperar até que fossem dormir e enterrar uma faca na gargantade Voshak. Ela sabia que não sobreviveria depois disso. Era uma missão suicida?

Voshak meio que se virou para ele e passou a mão pelas costas da mulher.

— Sua amiga, Caçador?

A raiva ferveu dentro dele. Richard imaginou cortando Voshak em pedaços.

— Não.

— Aposto que você não tem amigos, Caçador. Matamos todos eles ou você é apenas umidiota?

Um tentáculo de magia roçou contra ele, um fluxo sutil e delicado. Richard se forçou a ficarcompletamente imóvel. A magia o tocou novamente, beliscando suavemente seu corpo,avaliando-o. Ele se concentrou e sentiu outros tentáculos deslizando ao redor dos traficantes.Seguiu a fonte dos tentáculos de volta à mulher. Seus olhares se conectaram.

O rosto dela estava muito plácido, mas seus olhos ardiam. A mulher desviou o olhar. Ofluxo de magia se afastou dele para encontrar outra vítima.

A sensibilidade dele em sentir a magia era fora do comum—um dos benefícios de nascer emuma antiga família Edege—mas ele não tinha ideia do que ela estava planejando.

Fosse o que fosse, a mulher precisava de uma distração, e ele era o homem certo para essetrabalho.

— Que falar sobre seus amigos, Voshak? —Disse ele, recostando-se o mais casualmente

que suas restrições permitiam. — Jeremy Legs. Chad Gully. Black Nil. Isabel Savage. Os irmãosStrikers. Angelo Cross. Germaine Coutard. Carmen Sharp. Tempest Wolf. Julius Maganti.

O rosto de Voshak torceu de raiva.

Os misteriosos tentáculos de magia ondulavam para frente e para trás entre os traficantes.Raiva e medo marcavam os rostos deles, mas Richard não podia ver nenhum efeito que a magiada mulher estaria provocando neles.

O roçar do tentáculo que passou por ele foi muito leve para causar algum dano real. Talvezela precisasse de mais tempo.

Richard continuou martelando cada nome.

— Ambrose Club. Orville Fang. Raoul Baudet. Meu favorito: Jackal Tuline. Onde estãoseus amigos, Voshak? Ou melhor, ‘seus comparsas’, já que bandido como você não tem amigos.

A mulher olhou para as chamas. Talvez sua magia não estivesse funcionando.

Interiormente, Richard xingou. Ele se arriscou provocando os traficantes. Os homens agoraolhavam para ele como uma matilha de cães vira-latas. Se continuasse a irritá-los, poderiarealmente levar um tiro. Tinha que sair dessa maldita jaula antes que matassem a ele e a ela, e elenão tinha ideia de como fazer isso.

Richard fingiu indiferença e encolheu os ombros. — Você quer que eu continue? Gostariade saber as expressões dos rostos de cada um deles antes de morrer?

— O que diabos nós fizemos a você? —Voshak rosnou. — Nós estupramos sua esposa,sequestramos seus filhos, o quê? Para que diabos tudo isso?

— Vocês negociam vidas humanas, o que os tornam aberrações. Seu tipo de gente nãodeveria existir. Vocês são um erro e eu decidi corrigi-lo. Ou talvez eu esteja apenas entediado evocês são estúpidos e fáceis de matar.

Voshak xingou.

A magia ao redor deles estava ficando mais densa. A mulher ainda estava trabalhando, fosseo que fosse. Ele precisava criar algum conflito. Enquanto estiverem lutando entre si, nãoprestarão atenção as mudanças mais sutis ao redor deles. Richard escolheu um rosto conhecido.Daryl Long, mal-humorado, neurótico e nervoso. Perfeito.

— Daryl?

O traficante esguio de cabelos escuros se assustou.

— Duas semanas atrás, eu matei seu irmão.

Daryl recuou.

— Cada vez que eu encontro um de vocês, espero ter algum tipo de combate decente antesde matá-los, mas seu irmão não morreu como um homem. Antes que eu pudesse cortar a cabeçadele, ele se ofereceu para entregar você se eu o libertasse. Eu o matei de qualquer maneiraporque não havia nada que ele pudesse me oferecer. Veja, já sei tudo, Daryl. Sei sobre o velho.Sei sobre o celeiro. Sei o que vocês dois fizeram com ele antes de cortar a garganta dele, e seipor que você teve que colocar fogo no lugar.

O controle escasso de Daryl estourou. Ele investiu contra a jaula. — Vou matar você. Voute matar, porra!

Crow balançou a coronha de seu rifle e acertou Daryl no rosto. O golpe o jogou para trás. Otraficante caiu no chão, sangue encharcando seu rosto.

— Ninguém toca nesse desgraçado! —Voshak trovejou. — As ordens são para levá-lo aoMercado vivo e vamos entregá-lo lá, mesmo que eu tenha que estourar os miolos de cada umaqui.

Ninguém disse nada.

— Nós o pegamos. —Voshak apontou para a jaula. — Ele está acorrentado! Tudo o quepode fazer é falar. Deixe-o latir. Se alguém tocá-lo, vai morrer. Alguém tem algo a acrescentar?

À esquerda, Pavel, aquele que começou o fogo, tossiu.

Voshak se virou para ele.

O homem ao lado de Pavel tossiu também.

Pavel tossiu de novo, com mais força.

— Vocês dois acham isso engraçado ... —O final da frase se dissolveu em um engasgoúmido. Voshak ficou tenso. — Que diabos?

Do outro lado da clareira, outro traficante tossiu, depois outro e mais outro.

— Todos vocês, parem com isso, —vociferou Voshak. — Eu disse parem!

A tosse morreu.

Pavel se esforçou, obviamente tentando conter sua necessidade de tossir.

Voshak apontou o dedo para ele. — Não faça isso.

Pavel tampou a boca com a mão, amordaçando-se ... A tosse explodiu para fora dele em umjorro vermelho. O sangue jorrou de seu nariz e dos cantos de sua boca. O traficante caiu dequatro, vomitando. Um amontoado de algo úmido, mole e sangrento caiu de sua boca.

Voshak pegou sua arma.

Em frente a Pavel, do outro lado da fogueira, outro homem caiu, tossindo e sangrando. Aspessoas seguraram suas armas, olhando ao redor.

— O que diabos está acontecendo? —Voshak rugiu. Sua voz falhou, ele tossiu e olhou parasua mão, coberta com uma névoa vermelha e pequenos pedaços de carne.

Os traficantes caíram em uníssono, como se tivessem sido cortados de uma vez por umafoice invisível. Voshak girou, olhando para a esquerda, para a direita, seus olhos selvagens.

— A mulher, —Crow resmungou, caindo de joelhos. — A mulher!

Voshak se virou para ela. Ela ainda estava sentada no tronco.

— Sua vadia! —O traficante loiro se lançou sobre ela e caiu para trás, cambaleando soboutro acesso de tosse.

Crow lutou para ficar de pé, erguendo o rifle.

Um familiar Cão estripador-de-lobos saiu dos arbustos e atingiu Crow. Um tiro de rifleestourou, indo bem para o céu. O cão mordeu o traficante. Crow gritou uma vez, se contorcendono chão e ficou em silêncio.

Um fluxo de escuridão translúcida e cintilante, com faíscas vermelhas, espiralou ao redor damulher. Um fluxo idêntico torceu na direção oposta, enrolando em torno do corpo de Voshak.Ela se virou lentamente para olhar para Voshak que tossia sangue sem parar.

Richard viu os olhos dela, e seu olhar o congelou até os ossos. O poder iluminava suas íris.

A mulher se levantou. Os fluxos escuros de sua magia se alargaram e colidiram. As faíscasbrilharam em um carmesim profundo. Os fluxos se dividiram em dezenas de pequenos tentáculose dispararam como cobras, atacando e mordendo o líder dos traficantes.

Voshak gritou. Os joelhos do traficante cederam e ele caiu no chão.

— Socorro!

Os corpos ao redor não se moveram.

Voshak tentou rolar para ficar de pé, mas suas pernas se recusaram a suportar seu peso e elecaiu, tossindo sangue. — O que você quer?

Ela não respondeu.

Voshak gritou. Tremores sacudiram o corpo do homem.

— Você quer dinheiro? Eu tenho dinheiro!

A mulher não disse nada.

— O que? O que quer?

— Você matou Daisy, —disse ela. Sua voz rouca tremia com raiva mal contida. — MatouÉléonore.

Então, suas memórias da avó de Rose não era um sonho ou alucinação. O pesar tomou contade Richard. Indiretamente ou não, ele causou outra vítima. Os meninos ficariam com o coraçãopartido.

Guardou o pesar no mesmo lugar que guardava a culpa pelas coisas que havia feito.

Voshak se contorceu no chão. — Te odeio. Foda-se, te odeio. Faria de novo. Eu deveria termatado aquela vadia magrinha também.

Um tentáculo pontudo de magia sombria saiu da mulher, perfurando o líder dos escravos.Ele estremeceu, gorgolejando.

— Éléonore era como uma mãe para mim. Você abriu um buraco na minha vida. Assassinouuma jovem. Ela tinha toda uma vida pela frente e você tirou isso. A irmã dela terá que viver comas lembranças da morte da própria irmã, —disse a mulher, com o rosto gelado. — Quero queentenda quanto sofrimento você causou. Quero que sofra antes de morrer.

Voshak se debateu, como se a mulher tivesse o chicoteado.

Ela assistiu, a dor clara em seu rosto. Richard se perguntou por que ela não prolongou atortura com os outros traficantes. Considerando as circunstâncias, a morte instantânea era um atode misericórdia.

Voshak deu um último suspiro, estremecendo, e ficou imóvel. O odor de putrefação inundoua clareira. A náusea sufocou Richard. O corpo de Voshak começou a se decompor.

Os tentáculos de magia escura diminuíram, outrora dragões poderosos, e agora apenascobras de estimação, deslizando sobre a pele da mulher.

Ela deu um passo à frente. A corrente da algema em torno de seu tornozelo puxou a pernade Voshak. Os ossos do traficante se desfizeram, carne podre rolando deles, e de repente ela nãoestava acorrentada a ninguém. Caminhou em direção a ele, abrindo caminho entre os corpos,linda e aterrorizante, como um anjo da morte.

A mulher alcançou a jaula.

Eles se entreolharam através das barras.

Os olhos dela eram exatamente como ele se lembrava: luminescentes com poder edolorosamente belos, mas desta vez não viu nenhuma preocupação em suas profundezas.

A jaula dele havia mudado de dono. Restava saber se era para melhor.

Richard pesou suas opções. Uma de três coisas aconteceria: ela poderia matá-lo, poderiavirar as costas e ir embora, deixando-o morrer lentamente; ou ela poderia libertá-lo da jaula. SeRichard tinha alguma esperança de sair dessa bagunça vivo, tinha que acalmá-la. Ele tinha quesobreviver e terminar o que começou.

Os tentáculos escuros da magia dela lamberam as barras da jaula, faiscando em vermelho nometal. Richard se preparou. Ele poderia dizer pelos olhos dela que sair da jaula como um homemlivre ou morrer de fome e sede dentro dela, dependeria do que ele diria a seguir.

******TODOS ESTAVAM mortos. Todos eles. Foi incrivelmente maravilhoso experimentar amorte de cada um. A escuridão uivou dentro dela, triunfante, enquanto o resto dela tremia, sentiarepulsa e terror. Estava dolorosamente ciente dos cadáveres espalhados pela clareira atrás dela.

Precisou de toda a sua força de vontade para sentar-se em silêncio e sugar a força vital decada um, enfraquecendo seus corpos e alimentando a própria magia dela. Havia imaginado queassim seria a única maneira de matar rapidamente todos de uma vez. Finalmente, ela os infectoue usou sua magia para alimentar a doença dentro deles.

Ninguém sentiu nada até que a doença, magicamente acelerada, finalmente progrediu earrancou suas vidas em poucos instantes dolorosos. Eles não mereciam misericórdia, mas ela nãoqueria o sofrimento deles tanto quanto queria suas vidas. Esses homens não podiam continuarespalhando desgraça, então acabou com eles rapidamente.

Todos, exceto seu líder. Algo a compeliu a matá-lo lentamente. Ela monitorou o corpo dele,enquanto a doença o comia, e a sensação de saciedade intensa que se apoderou dela, quando eleestava ali morrendo, aterrorizou Charlotte até o âmago de seu ser. Teve que interromper e matá-lo antes de começar a se deleitar com sua dor.

A magia sombria a empurrava até agora, sussurrando em sua mente, implorando para queela continuasse. Charlotte trancou a magia na jaula de sua vontade, forçando-a a diminuir. Haviaquebrado seu juramento de Curador, tornou-se uma Abominação, mas não seria umaAbominação estúpida. Ainda não. Ainda podia se controlar.

Richard se aproximou das barras da jaula, seu cabelo comprido e escuro caindo sobre orosto. Charlotte quase deu um passo para trás.

O rosto dele estava corado, Charlotte notou. Sinais vitais estáveis. O corpo estava forte e emforma, mas ainda assim, continuava a se recuperar, apesar de ser em uma velocidadesurpreendente. O rosto dele estava enlameado e machucado, e o fedor de urina velha subia de

suas roupas.

Os bandidos tentaram espancá-lo e humilhá-lo, mas não tiveram sucesso. Richard se recusoua se rebaixar, ignorou esses detalhes da mesma maneira que as pessoas ignoram conscientementeuma chuva leve quando estão com pressa. Ele não se sentiu humilhado. Não se deixou intimidarou se abater. Uma mente calculista olhava para ela através dos olhos dele. Ele era como um lobovelho preso em uma corrente, letal, ardiloso, contido por enquanto, mas ganhando tempo paraatacar. O perigo transbordava dele. Em seus anos como Curadora, Charlotte tratou muitaspessoas ameaçadoras: soldados, agentes, espiões. Os instintos dela a alertavam para ficar longedele.

Richard abriu a boca.

O pulso dela disparou em alarme.

— Você é real, —disse ele.

O que? — Sou.

— Quando acordei na jaula, pensei que havia sonhado com você.

Ela não tinha certeza do que fazer com isso. — Você estava delirando quando nosconhecemos.

— Você me curou?

Ela afirmou acenando com a cabeça.

— Obrigado.

Charlotte se forçou a sentar em uma pilha de sacolas no chão. O cão dos traficantes trotou ese deitou a seus pés entre ela e a jaula. Richard ergueu as sobrancelhas.

— Éléonore está morta, —disse ela. — Eles a mataram e mataram uma jovem, Daisy. Em seguida, incendiaram minha casa.

— Sinto muito, —disse ele.

Havia uma sinceridade inesperada na voz dele.

— Você levou esse pesadelo para mim, —ela disse.

Ele assentiu. — Sim, levei. Não era minha intenção, mas a responsabilidade é minha.

— Quero saber por quê. Por que eles fizeram isso conosco?

Richard mudou de posição na jaula. Suas mãos estavam amarradas nas costas. Estavadoendo, Charlotte sentiu.

— Esses homens são traficantes de escravos. Eles invadem comunidades isoladas no Weirde no Edge e às vezes até no Broken. Sequestram homens e mulheres e os levam para a costa, paraos pontos de encontro secretos, onde os navios os buscam. De lá, os cativos são levados para oMercado, uma casa de leilões oculta onde são vendidos pelo lance mais alto. A escravidão foiproscrita por trezentos anos, mas eles ainda prosperam.

— Como? Se a escravidão é ilegal ...

— Os barões do crime da fronteira sempre precisam de mão-de-obra para construção eexércitos. Proprietários de minas usam trabalho escravo. Os usuários de magia que se envolvemcom pesquisas ilegais compram escravos para seus experimentos. E outros fins, bem, quandovocê vê um homem rico com uma mulher jovem e bonita em seus braços, precisa se perguntar seela é livre.

— Isso é bárbaro.

Os olhos de Richard ficaram duros. — Ficaria surpresa com a quantidade de ‘funcionários’das famílias nobres que são provenientes do Mercado.

Ele estava certo. Nunca teria ocorrido a ela perguntar a alguém se seus funcionários eramescravos. Ela simplesmente assumiu que não.

— Os traficantes alimentam suas próprias lendas, —disse ele. — Eles se vestem de preto, searmam com Cães estripadores-de-lobos, montam cavalos negros. Aparecem do nada no meio danoite, colhem sua colheita humana, queimam as comunidades e desaparecem como fantasmas.

— Como um pesadelo noturno, —disse ela. Bastardos.

Richard acenou com a cabeça. — Eles querem ser vistos como pesadelos porque lutar contrao medo de alguém é sempre mais fácil do que lutar contra outro homem. Eles se veem comofora-da-lei, como lobos que atacam ovelhas. A maioria deles vem de uma origem miserável, e seapegam às suas ilusões de grandeza porque não têm mais nada e porque consideram a crueldadefortalecedora. Então, se deseja uma resposta realmente honesta. Eles mataram Éléonore e Daisy,e queimaram sua casa porque é isso que fazem. Não foi pessoal ou planejado. Não pensaramduas vezes. Simplesmente fizeram porque é assim que operam. A vida de outras pessoas nãoimporta para eles de forma alguma. São traficantes de escravos.

Suas palavras apenas alimentaram a raiva dela. — E você?

— Eu caço traficantes. Matei dezenas nos últimos meses. Eles acham que são como lobos,então me chamam de Caçador. E não gostam de mim.

— Deu para perceber.

— Cometi um erro e eles finalmente me pegaram. Estavam me levando ao Mercado parauma execução pública.

Isso explica as coisas. Os traficantes o espancaram não para machucá-lo, porque ele estavainconsciente, mas para torná-lo menos assustador. Estavam com medo do Caçador. Se queriamcontinuar sendo conhecidos como pesadelos noturnos, teriam que matar o seu lendário assassino,e quando se mata uma lenda, deve torná-la o mais público possível.

— Há mais deles? —Ela perguntou.

— Muito mais. —Richard fez uma careta. — Não importa quantos eu mate, sempre haverámais.

Muito mais. Isso significava muito mais Daisys e Éléonores mortas, muito mais Tulips,chorando sobre os corpos. Muitas pessoas sentindo o que ela estava sentindo agora, com umburaco aberto em suas vidas, sem saber como juntar os cacos e seguir em frente.

A magia dela fervilhava. Seu corpo estava quase exausto, mas Charlotte queria gritar deindignação. Por que isso acontecia? Quem permitia que isso continuasse acontecendo? Elespensavam que ninguém poderia detê-los? Porque ela podia, e tinha, e faria isso de novo. Nãotinha terminado. Ela ainda não acabou.

— Conte-me mais, —Charlotte disse.

Ele balançou sua cabeça. — Não através das barras de uma jaula.

Ela se recostou. — Não tenho certeza se é uma boa ideia deixá-lo sair. Não sei o que vocêpode fazer.

Os olhos dele encontraram os dela. — Minha senhora, garanto-lhe, não sou um perigo paravocê.

— Diz o Caçador de lobos.

— Você me vê como perigoso, mas permite que um cão estripador-de-lobos com dentesensanguentados se coloque a seus pés.

— Eu conheço o cão há mais tempo do que você.

Ele sorriu para ela. — ‘Será que duas pessoas podem realmente se conhecer através dasgrades de uma jaula humana?’

Charlotte piscou. Ele citou a Balada do Prisioneiro, uma obra que foi considerada um dospináculos da literatura Adriangliana. Ela estava sentada em alguns sacos sujos no meio de umaclareira cheia de cadáveres, e um homem que, segundo ele mesmo, era um assassino em série,apenas citou uma obra-prima filosófica para ela. Isso tinha que ser algum tipo de sonho surreal.

— Posso simplesmente ir embora e deixá-lo na jaula, —disse ela.

— Acredito que você não vai, —disse Richard.

— O que te dá tanta certeza?

— Você me curou, —disse ele. — Eu me lembro dos seus olhos. Você não condenaria umhomem a uma morte lenta.

Ele a chamou de blefe. Deixá-lo morrer de fome estava além dela agora, não importa o quãoperigoso ele fosse. — Se eu abrir esta jaula, você responderá às minhas perguntas.

— Tão honestamente quanto possível.

— Antes de eu deixá-lo sair: tifo21, malária22, morte rubra23, ebola24, tuberculose25 ... temalguma preferência? Eu também tenho outras opções.

— Como? —Richard perguntou.

— Carrego amostras dormentes dessas doenças dentro do meu corpo. Para curar umadoença, deve-se primeiro entendê-la e, às vezes, causar uma infecção deliberada é necessáriapara a imunização. Se tentar me atacar, vou acabar com você, Richard. Olhe ao seu redor se tiveralguma dúvida.

— Vou me esforçar para lembrar disso.

Charlotte se levantou. O traficante de cabelos brancos era o líder. Ele provavelmente teria achave. Ela se agachou perto do resto do corpo dele—o cheiro era horrível—e vasculhou suasroupas, revirando rapidamente os bolsos. Dinheiro, balas ... — Não achei nenhuma chave.

— Obrigado, mas não precisamos de uma, —disse Richard. — Só preciso de uma faca emãos livres.

Ela puxou uma lâmina da bainha na cintura do traficante, colocou a mão entre as barras ecortou a corda dura que prendia os pulsos dele. A corda estalou. Ele revirou os ombros eestendeu a mão.

Charlotte podia se arrepender disso, mas não podia simplesmente deixá-lo na jaula. Colocoulâmina na mão dele. Richard inverteu e segurou a faca pelo cabo. Ela sentiu a magia dele fluirem direção à lâmina. Escoando de seu corpo para o metal, estendendo-se em uma fina linhabrilhante de um branco pálido ao longo da borda.

Richard cortou a corrente enrolada em seus pés.

O metal se desfez.

Charlotte tinha visto flash concentrado cortar um corpo antes, mas nunca metal. Não dessa

forma.

Ele atingiu a corrente que prendia a porta da jaula, derrubando a corrente no chão. Richardempurrou a porta, deslizou para fora e oscilou, segurando-se na carroça. Ela não tinha percebidoo quão alto ele era, quase quinze centímetros mais alto que ela. Charlotte esperou que ele sesentasse, mas ele permaneceu de pé. Seu esforço de se manter assim era obvio.

Então ela compreendeu. Charlotte se sentou novamente nas sacolas e só depois Richard sesentou no chão também, encostado na roda da carroça. Ridículo. Richard podia não ser umSangue-azul, mas se comportava como tal, e as maneiras arraigadas do Weird não permitiriamque ele se sentasse se ela estivesse de pé.

— Quais são suas perguntas? —Ele perguntou.

— Conte-me sobre seu envolvimento com os traficantes, —disse ela.

— Você conhece o Marechal das Províncias do Sul? —Richard perguntou.

— Conde Declan Camarine? Marido de Rose, —disse Charlotte. — Éléonore falava delecom bastante frequência. Nunca o conheci pessoalmente, mas conheço a família.

— O Departamento do Marechal das Províncias do Sul luta contra a escravidão há anos, —disse Richard. — Sem sucesso. Os traficantes têm uma organização elaborada, e bandos detraficantes como esse são apenas o degrau mais baixo dela. Os traficantes empregamcarregadores, contadores, corretores e guardas. A lista continua. Na última década, o Marechaldas Províncias do Sul liderou várias operações contra os traficantes e falhou. De alguma forma,eles sabiam exatamente quando e onde o Marechal atacaria.

— Alguém está os protegendo, —Charlotte adivinhou.

— Alguém de alto cargo e bem relacionado, com acesso ao funcionamento interno doMinistério de Estado. Há pouco mais de um ano, Declan me convidou para uma conversa.Declan precisava de alguém de fora, um homem que pudesse agir sem as restrições de seuDepartamento. Ele me perguntou se eu seria esse homem e eu concordei.

— Por quê?

Richard fez uma pausa. Os olhos dele ficaram mais escuros. — Minha família é do Edge.Tenho minhas próprias motivações para querer os traficantes mortos. Basta dizer que minhasrazões são altamente convincentes.

Havia trauma aí, ela podia sentir isso. Alguma grande injustiça foi feita a Richard. Charlottequeria saber o que o movia, mas os olhos dele lhe diziam que essa era a única pergunta que elenão responderia. E Sophie, quem quer que fosse, tinha que fazer parte disso.

— Passei oito meses coletando informações e reunindo pessoas em quem pudesse confiar, eoutros quatro perseguindo os traficantes. Eu os estudei, então os matei. Eu os massacreiabertamente contra todas as probabilidades. Eu os matei durante o sono. Destruí seusacampamentos. Quatro líderes de bandos morreram pelas minhas mãos. Não fez diferença. Elessimplesmente recrutam mais bandidos. Eu sabia que precisava chegar na cadeia de comandodeles e cortar o chefe da organização. E para isso, precisava encontrar a localização do Mercadodeles, onde os escravos são vendidos. Durante meu último ataque, encontrei um mapa. É oregistro de onde os navios de escravos estão atracados, mas o mapa está em código e nãoconsegui decifrar esse código. Eu precisava da chave.

— E foi assim que você acabou na jaula?

— Negociei com um homem e caí em uma armadilha, —disse Richard. — Foi um erro decálculo que não irie repetir. Eles me perseguiram e eu corri. Eu sabia que o Edge era minhamelhor chance. Infelizmente, estava delirando demais para saber para onde estava indo ou parame comunicar com alguém quando chegasse lá.

Ele se inclinou para frente e abaixou a cabeça em uma respeitosa reverência. Foi umareverência digna de qualquer lorde de Sangue-azul. — Sinto muito por ter trazido isso para você.Eu os farei pagar. É tudo o que posso oferecê-la.

Ele estava prestes a ir embora, aproveitando o gesto de reverência e as desculpas paraencerrar a conversa. Não. Não, ela não iria deixar. As feridas dentro dela eram muito cruas, amemória do fogo muito recente. — Nem tudo, —disse Charlotte. — Eu vou contigo.

— Isto está fora de questão, —disse ele.

Ela se recompôs e olhou para ele com toda a altivez que sua educação poderia proporcionar.— Você não entendeu, meu senhor. Não estou perguntando.

— Peço desculpas. Nesse caso, devo avisá-la que não respondo favoravelmente a ameaças.

O cão ergueu a cabeça e mostrou os dentes.

— Você não é meu inimigo, —disse Charlotte. — Eu não quero matá-lo, Richard. Queroacabar com isso. —Ela apontou para a jaula atrás dele.

Ele suspirou e, pela primeira vez, Charlotte viu os sinais de cansaço no rosto dele.

— Talvez, eu deva explicar melhor. Mencionei que precisava de uma chave de criptografia.

— Sim.

— Jackal Tuline, um dos sub capitães traficantes, tem uma irmã. Um mês atrás, ela estavaservindo bebidas em uma taverna. Voshak bateu na cabeça dela com uma garrafa e a estuprou à

vista de uma dúzia de testemunhas. Ele quebrou o nariz dela e deslocou sua mandíbula. Eu a vi pessoalmente, e a mulher está quase irreconhecível. A experiência a deixou profundamente danificada, e seu rosto é o menor de seus ferimentos.

Charlotte olhou para o cadáver em decomposição. O morto não estupraria mais ninguémnovamente. Esse conhecimento a encheu de uma alegria assustadora e selvagem.

— A conversa na rua dizia que Tuline queria vingança, mas estava com muito medo deatacar Voshak diretamente. Aproximei-me dele e lhe ofereci uma chance de se vingar. Nósbarganhamos.

A voz de Richard gotejava com escárnio, como se ele estivesse descrevendo nadar noesgoto.

— Chegamos a um acordo. Ele me venderia a chave e eu veria a morte de Voshak. Quandoencontrei Tuline na floresta para entregar o pagamento, seis de seus homens me emboscaram. —Richard sorriu. Foi um sorriso duro e sem humor. — Demorei alguns instantes para reagir, mesurpreendendo com a esperteza de Tuline. Ele planejou deliberadamente o estupro de sua própriairmã. —Richard fez uma pausa. — Elaborou esse plano, conversou sobre ele com Voshak eentão o fez. Tudo para me atrair. O nível de depravação desses desgraçados é incompreensível.

Isso a fez querer vomitar. — O que aconteceu?

— Eu o separei em dois pedaços. —Richard se inclinou para frente. — Quando Declan veioaté mim com esta proposta, ele me disse que esta missão iria me consumir, e é verdade. Ele meescolheu por vários motivos, em grande parte porque não tenho nada a perder. Minha família nãoprecisa de mim agora. Minha esposa me deixou. Não tenho filhos.

Uma velha dor agitou-se nela. Ela também não tinha filhos. — Sinto muito.

Ele fez uma pausa, momentaneamente surpreso. — Obrigado.

Um silêncio constrangedor se estendeu entre eles.

Richard pigarreou. — Escolhi esse caminho deliberadamente e, quando comecei, pensei queseria fácil. Engano meu. Já vi atrocidades ao longo do caminho que horrorizariam a maioria daspessoas, e cometi algumas porque precisava ser tão implacável quanto meus inimigos. Não háespaço para misericórdia ou compaixão nesta caça, e não há como voltar atrás. Isso muda amente de qualquer um, e se eu sobreviver, não tenho certeza se serei capaz de viver uma vidanormal. Não se engane, minha senhora. Sou um monstro. Não me siga. É uma viagem só de ida.Pessoas sãs e gentis não devem aceitar isso.

— E assassinos em massa eu devo aceitar? —Ela perguntou. — Quais os limites detolerância?

Richard balançou a cabeça. — Vá para casa, minha senhora.

— Minha casa está queimada até o chão.

— Essas pessoas são bandidos implacáveis e cruéis. Pense no que deverá se tornar paracaçá-los.

Ele não entendia. — Olhe ao seu redor, —ela disse suavemente. — Eu fui para o Edge parame esconder da minha magia. Fugi porque tenho a obrigação, como Curadora, de conter a minhamagia e evitar que ela machuque alguém. Eu precisava estar em um lugar onde meu poderestivesse enfraquecido e ninguém me conhecesse. Decidi fugir porque alguém me feriu e eu nãotinha certeza se conseguiria controlar minhas emoções e não buscar vingança. Eu vim para oEdge sozinha e quase estava morta de fome quando Éléonore me encontrou. Ela me salvou,Richard. Eu reconstruí minha vida. Eu estava contente e isso ... —ela indicou os cadáveres comum movimento de sua mão

— ... estava adormecido. E então eles a mataram e mataram Daisy.

A voz dela estalou e ela engoliu em seco. — A moça tinha apenas vinte e três anos, Richard.Vinte e três. Mal havia começado sua vida, e eles a esmagaram e arrancaram o coração de suairmã. Cada vez que fecho meus olhos, vejo Tulip gemendo sobre o corpo de sua irmã. Não possodesfazer isso. Não posso simplesmente deixar para lá.

— Você tem que tentar, —disse ele. — A vingança vai comê-la viva.

— Não se trata de vingança. —Ela balançou a cabeça. — Se trata de parar essesdesgraçados. Você está tentando me avisar sobre a estrada, mas o problema, é que eu já estoucaminhando sobre ela. Você já ouviu falar do juramento de um Curador?

— ‘Juro tratar o corpo humano como algo sagrado’, —ele citou. — ‘Aplicarei todos osmeus esforços, toda a minha magia e todo o meu conhecimento sobre procedimentos eremédios para preservar a vida, tratar doenças e aliviar o sofrimento. Juro não causar nenhumdano intencionalmente através do uso de minha magia ou arte. Não irei prescrever remédiosquando nenhum for necessário. Não irei procurar aperfeiçoar a natureza humana por causa davaidade, do conhecimento ou da paixão humana.’

— Como você sabe disso?

— Um dos meus parentes era um Curador certificado, —disse Richard.

— Há mais, —ela disse. — 'Juro, que se eu quebrar este voto por minha ignorância, merenderei à misericórdia de meus colegas. Aceitarei o julgamento e minha desonra e, caso mecondenem, deixarei de praticar a cura. Se eu quebrar esse voto por ação deliberada, saberei queme traí. Terei afogado meus professores em culpa e lançado dúvidas e suspeitas sobre meus

alunos. Que meu nome seja um gosto amargo nos lábios daqueles que me conheceram, quemeu semblante seja de desonra, deixe-me desvanecer no nada e ser esquecido, exceto como umexemplo de fracasso e fraqueza, pois eu me tornaria uma Abominação aos olhos do mundo.’

Ele esperou.

— Sou uma Curadora certificada pelo Instituto Ganer. Hoje matei seres humanos com o usode minha magia. Eu fiz isso de livre vontade. —As palavras tinham um gosto horrível em sualíngua. — Minha vida acabou. Entende? Sacrifiquei tudo que eu era para que pudesse fazer isso,porque, como uma cidadã do reino e um ser humano, era também minha responsabilidadedestruir estes cânceres humanos antes que machucassem mais pessoas.

Ela apontava para os cadáveres. Eles estavam ali, silenciosos e acusadores, evidência de suaqueda em desgraça.

Charlotte se virou para Richard. — Eu sou responsável pelas consequências dos meus atos.Não tenho nada a perder. Preciso do seu conhecimento e experiência, mas vou continuar, com ousem você, e não vou parar até que o comércio de escravos seja interrompido. Você pode sebeneficiar dessa aliança, assim como eu. Pense em como posso ser um benefício. Não deixe meusacrifício ser desperdiçado.

******RICHARD RECOSTOU-SE. Ela estava olhando para ele, esperando uma resposta.Ele fizera o possível para persuadi-la a ir embora, mas tudo nela, desde a frieza em seus olhos atésua postura cautelosa, o convenceu de que não o faria. Richard não tinha ideia de quem ela era.Apenas sabia que eles tinham o mesmo propósito.

Ela era linda e radiante. Ele se lembrou da preocupação nos olhos dela enquanto o curava. Amesma preocupação a dirigia agora, empurrando-a para atos de violência. Superficialmente, seriaum tolo se recusasse. Ela foi conduzida pela tragédia, assim como ele, e seria incorruptível,assim como ele. Ele precisava de uma lâmina para matar, mas ela poderia matar dezenas de umavez com as mãos vazias. Ela era a Morte e acabara de pedir para ser sua aliada.

Caminhar ao lado dele iria destrui-la. Richard lutou tanto para poupar Sophie desse terrívelfardo comedor de almas. Não conseguia dizer sim a esta mulher.

— Com que frequência você conseguiria fazer isso? —Ele apontou para os cadáveres,retardando sua necessidade de responder.

Ela franziu o cenho. — O processo é complicado. Quando eu te curei, usei as reservas demagia do meu próprio corpo para acelerar sua regeneração. Quando eu matei esses homens, ométodo foi semelhante. É preciso muito pouca magia para introduzir um patógeno no corpo, mas

fazer o patógeno matar em uma velocidade não natural requer muito poder e controle. Para matartantos, infectei todos eles, então suguei a energia natural de vida dos corpos deles até transbordarmeu corpo com ela. Há um alto grau de risco: se eu tivesse sugado demais a energia deles noprocesso, teria morrido, e por estar muito zangada e nunca ter matado antes com minha magia,arrisquei. Com bastante descanso e as circunstâncias certas, posso fazer isso de novo amanhã.

— Você faria novamente sem descanso? —Richard perguntou.

— Se o incentivo for alto o suficiente, —disse ela.

Portanto, ela valorizava seu objetivo mais do que sua vida. Ele teria que levar isso emconsideração. Era provável que ela se esforçasse demais por conta própria.

— Você pode fazer isso em uma escala individual menor?

A mulher encolheu os ombros. — Infectar um único alvo é muito mais fácil.

— Ainda é capaz de curar?

Ela estendeu a mão e passou a mão pela bochecha dele, deixando as minúsculas faíscasdouradas penetrarem em sua pele. A dor em seu rosto se dissolveu.

— O hematoma ainda dói? —Ela perguntou.

— Não. —Era do seu interesse manter a boca fechada, mas ele não se conteve. — O quevocê faz ... é um dom precioso. Reconsidere.

Amargura escorreu da voz dela. — Tarde demais.

— Você é capaz de controlar sua magia? Pode controlá-lo? —Richard tinha que cobrir todasas contingências possíveis.

— Sim, —ela disse. — O que eu faço requer uma intenção e concentração muitodeliberadas. Não vou infectá-lo enquanto durmo porque tive um pesadelo.

— Você tem família? Alguém que poderia ser usado para obrigá-la a fazer algo contra a sua vontade? —Qualquer um que ele pudesse usar para dissuadi-la dessa loucura.

— Não.

— Tem algum inimigo?

— Sim. Elvei Leremine, meu ex-marido. Ele tem medo de mim e aproveitará todas asoportunidades para se vingar. Além disso, ao usar minha arte e magia para matar hoje, quebrei ojuramento do Curador. Se eu for descoberta pelo reino, Adrianglia irá me executar. Se você nãoquer que isso aconteça, o uso da minha magia deve permanecer em segredo.

Ele estava ficando sem perguntas.

— Há mais uma coisa de que precisa estar ciente, —disse ela. — Não consigo me curar. Seeu estiver ferida, terei que me recuperar por meios normais, a menos que possamos encontraroutro Curador.

Ela havia se comprometido com isso. Embarcaria neste caminho com ou sem ele, mas aschances de sobrevivência dela seriam muito maiores se ele a levasse com ele. Ela tinha grandepoder, mas era vulnerável. Desta vez teve sorte. Se ele a abandonasse agora, eventualmente elaentraria no acampamento errado. Seria necessário apenas um homem para matá-la ou deixá-lainconsciente. A mulher o salvou duas vezes, uma do ferimento e a segunda vez da jaula. Nãoimporta o quanto Richard não quisesse testemunhar sua transformação em alguém como ele,devia isso a ela para protegê-la.

Richard estendeu a mão. — Última chance para voltar atrás.

— Não. —Ela colocou a mão na dele.

— Estas serão as minhas condições: Você vai aceitar minha autoridade. Se eu disser paraesperar em um determinado lugar, esperará. Se eu disser para matar alguém, o matará. Precisaentender que sua vida será secundária em relação à nossa causa. Se sua compaixão comprometernossa missão, posso não estar em posição de ser misericordioso. Se você decidir me atrapalhar,eu irei cortá-la.

Ele aguardou, esperando que a tivesse assustado.

O rosto dela não mostrou hesitação. — De acordo.

Eles apertaram as mãos.

— Meu nome é Richard Mar.

— Charlotte de Ney, —ela disse com um suspiro.

Um título nobre. Charlotte mencionou que tinha um, mas mesmo que não tivesse, Richardsaberia simplesmente pela maneira como ela se portava. O próprio sangue, nobre ou não, nãoconferia nenhum benefício especial. Ele era a prova viva disso—era um vira-lata Edege, maspodia e já passara por um Sangue-azul muitas vezes.

Richard teve anos de educação, e reconheceu em Charlotte a graça e equilíbrio que otreinamento proporciona. O decoro ditou que ele deveria soltar a mão dela. Então fez, emboranão quisesse.

— Começaremos vistoriando os corpos, —disse Richard. — Voshak deve carregar umacópia da chave. Mais uma coisa.

— Sim? —Ela ergueu as sobrancelhas.

— O cão.

— O que tem ele?

— Não pode levá-lo conosco.

Ela ergueu as sobrancelhas para ele.

— Ele é um Estripador-de-lobos. Nasceu e foi criado para caçar lobos e, como erapropriedade dos traficantes, foi treinado para caçar homens. Estamos olhando para oitenta quilosde um predador inteligente e cruel.

— Estou tão feliz que você pense que ele é inteligente. —Charlotte sorriu para o cão. — Ocão irá conosco, Richard.

Ele suspirou.

Charlotte se levantou da pilha de sacolas. Ele leu exaustão na queda dos ombros dela. Usar amagia tinha um custo. Então decidiu não discutir com ela.

— Como quiser. —Richard entregou a ela sua faca. — Temos alguns cadáveres para despir.É mais fácil cortar bolsos do que vasculhar. Talvez tenhamos que cavalgar bastante assim queencontrarmos o que procuramos. Consegues fazê-lo?

Charlotte ergueu a cabeça, seu olhar majestoso e orgulhoso. — Claro que consigo.

quatroJEANS DEFINITIVAMENTE TINHA SUAS VANTAGENS,CHARLOTTE decidiu. Uma delas, era que eles forneciam uma boa proteção entre as coxase a sela. Infelizmente, não podiam fazer nada para aliviar a dor em seus músculos centrais.Passaram-se dois anos e meio desde a última vez que ela montou a cavalo e, embora sua posturae equilíbrio ainda fossem bons, depois de oito horas, os músculos internos do quadril e sua bundahaviam se transformado em uma papa dolorosa. A realidade de gastar tanta magia tãorapidamente havia colidido com ela um tempo atrás. Sua cabeça estava confusa. Seus olhosqueriam fechar.

— Quase lá, —Richard murmurou.

— Estou bem. Não se preocupe.

Considerando que ele esteve perto da morte há menos de vinte e quatro horas, dos dois elaestava em muito melhor forma.

Eles cavalgaram lado a lado na estrada Adriangliana Salino-Kelena. Ao redor, altoscarvalhos pingavam longas folhagens de musgo. O dia já havia se transformado em noite, e a luabrilhava no céu, encharcando a estrada com uma luz prateada. A escuridão se escondia entre ostroncos das árvores. Ruídos estranhos vinham de dentro da floresta: um grunhido guturalprofundo, seguido pelos rosnados distantes de um predador, o guincho agudo de algum roedor eo pio sinistro das grandes corujas da noite, tentando expulsar suas presas das tocas. Em algumlugar entre os arbustos, o cão trotava, silencioso apesar de seu tamanho.

Eles vasculharam as malas de Voshak e encontraram a chave e outro mapa, escondidos nofundo falso de seu cantil. Richard traduziu enquanto ela escolhia os melhores cavalos eprocurava por armas úteis. O mapa indicava um ponto de embarque ao norte de Kelena, umagrande cidade portuária. O mapa dava uma data e hora específicas, onze horas da noite, depoisde amanhã. No momento em que terminaram de reunir os suprimentos e Richard terminou deenfiar algumas das peças mais estranhas de couro em seus alforjes, eles partiram.

Richard diminuiu a velocidade de seu cavalo.

— O que há de errado?

— Minha ferida está doendo, —disse ele.

Sua magia disse a ela que seu ferimento não estava pior do que estava horas atrás. Richard

estava dando a ela uma oportunidade de descansar, e ela estava muito cansada e muito grata paranão aceitar. Ainda assim, tinha que continuar. — Agradeço, mas, por favor, não faça concessõespor minha causa. Eu me viro.

— Estamos a apenas alguns quilômetros de distância, —disse ele. — Você já esteve emKelena?

— Não.

— É uma cidade ruidosa e movimentada. Estaremos entrando no Caldeirão, um dos bairrosmais perigosos de Adrianglia. Eles o chamam de Caldeirão porque é onde o pior que ahumanidade tem a oferecer é jogado junto e deixado ferver até que a escória flutue até o topo.

Charlotte riu suavemente. Ela não pensou que iria rir de novo depois do que tinha feito, masseu corpo havia passado do ponto da dor, e se sentia leve e desconectada. — Você perdeu suaverdadeira vocação.

— Sou um completo fracasso como poeta, —disse ele. — Quando eu tinha quatorze anos,escrevi um longo poema sobre a desolação da minha vida e o peso do fardo que eu carregava.Meu irmão roubou e recitou em voz alta em uma reunião de família. Essa foi a primeira e aúltima vez que consegui fazer toda a família rir.

A risada continuou vindo. Ela ouviu o tom histérico em sua própria voz, mas não conseguiuevitar.

Richard parou seu cavalo e desmontou.

Os olhos dela se encheram de lágrimas. Ela tinha que se controlar.

Richard pegou as rédeas dela e conduziu os cavalos para fora da estrada. Ela deslizou parafora da sela, seu corpo gemendo em protesto. Seus membros tremiam. Um grande pinheirosurgiu diante dela. Charlotte circulou o tronco da árvores e se sentou no chão, envolvendo osbraços em volta das pernas, transformando-se em uma bola, como costumava fazer quando erauma garotinha com saudades de casa.

Tudo acabou. Se for mais arraigado do que isso, criará raízes, Charlotte. Ela não era maisarraigada. Todas as provações que passou, todo o seu exílio autoimposto, tudo tinha sido em vão.Ela assassinou pessoas. Segurou as vidas daquelas pessoas em suas mãos e os extinguiu. Issotrouxe alegria para ela. E Éléonore estava morta, e não havia absolutamente nada que Charlottepudesse fazer sobre isso. Éléonore se foi e deve ter sofrido antes de morrer. Eu sinto muito. Eusinto muito.

Charlotte mordeu o lábio inferior, tentando conter a inundação de lágrimas.

Oh, Mãe da Aurora. Como tudo deu tão errado? Por favor, ela orou silenciosamente, porfavor, por favor, transforme tudo isso em um pesadelo. Por favor, deixe-me acordar. Eu sóquero acordar. Por favor ... Ela teria dado qualquer coisa para voltar as últimas vinte e quatrohoras. Qualquer coisa para impedir a morte de Éléonore e Daisy. Qualquer coisa para protegerTulip. Pobre Tulip. Estava sozinha agora. Os traficantes destruíram a vida da menina. Em ummomento Tulip tinha uma irmã e um futuro, e no próximo não tinha nada, apenas tristeza.

O calor por trás de seus olhos se transformou em lágrimas. Elas rolaram, molhando suasbochechas. Seu peito doía. Charlotte. De repente, não aguentou mais. As lágrimas saíram dela.

Uma sombra escura emergiu dos arbustos. O cão se abaixou aos pés dela e lambeu seutornozelo. Ela dobrou seus joelhos e chorou como uma criança.

Por favor. Por favor, deixe-me acordar.

Chorou e chorou, orando em sua cabeça, embora soubesse que ninguém a ouviria. Era muitoinjusto. Por quê? Por que elas tiveram que morrer? Charlotte matou os bastardos que asassassinaram, mas isso não concertou as coisas. Apenas iniciou um círculo de dor e morte, eestava presa nesse círculo, com raiva, tristeza e desamparo.

Os soluços se transformaram em suspiros secos. Não havia bálsamo, cataplasma, pílulas quepudesse criar para tornar as coisas melhores. Os mortos permaneceriam mortos. Nada poderiarecuperar o sofrimento deles ou o dela.

Finalmente, até seus soluços morreram. A exaustão a sufocou. Sentia-se sozinha.Totalmente, completamente sozinha. Levantou a cabeça, endireitando-se, e percebeu que umtecido tocava seus ombros. Richard colocou a capa dele sobre ela. Nem tinha notado quando elefez isso.

— Obrigada. —Charlotte puxou a capa mais apertada em torno de si. Foi um gesto gentil,totalmente em desacordo com sua confissão de ser um assassino e o ar de perigo que aindaemanava dele.

Richard estava sentado ao lado dela, encostado no tronco áspero do pinheiro, o perfil dorosto dele gravado contra o céu iluminado pela lua. Se o tivesse conhecido em circunstânciasdiferentes, poderia ter sentido medo por sua proximidade. Agora ela estava muito entorpecida eemocionalmente abatida para sentir qualquer ansiedade.

— Suponho que esteja arrependido de ter me trazido junto, —disse ela.

— Eu me arrependi desde o momento em que decidi trazê-la.

O orgulho dela foi ferido. — Não serei um fardo.

Ele se virou para ela, os olhos escuros cheios de preocupação. — Nunca a vi como umfardo.

— Então por que o arrependimento?

Ele olhou para a lua. — Nesta vida, alguns de nós são assassinos, nascidos com um instintopredatório. Eu sou um, mas você não.

Ele deve ter esquecido que ela acabara de assassinar uma dúzia de homens. — Por quê? Éporque sou mulher?

— Não, não é nada tão óbvio quanto o gênero. Minha tia foi a melhor assassina que conheci.Por alguma razão, alguns de nós nascemos para destruir, e outros, homens e mulheres, nascempara criar. Seus instintos a levam a ajudar os outros. Meus instintos me levam a acabar comvidas.

Ela fungou. — Você não me conhece.

Richard sorriu. Apesar da sujeira, ele realmente era um homem incrivelmente bonito.Arrogante, predatório, mas bonito.

— Aqueles de nós que são assassinos aprendem a reconhecer outros de nosso tipo.Conhecemos rivais porque eles representam perigo.

— E eu não? —Charlotte perguntou baixinho.

Ele sorriu novamente, e desta vez seu rosto estava quase triste. — Mesmo a pessoa maispacífica e gentil se tornará perigosa se encurralada. Eu não questiono seu poder, mas você nãotem a agressão inata ou o impulso predatório de um assassino nato. Sempre tive essas coisasdurante toda a minha vida, mas mesmo assim, o que fiz e vi durante os últimos meses meassombra. Sei o que vem pela frente. Sei que será muito difícil para você. Você pensa agora queestá lidando com a dor e a purgando de si mesmo, mas é apenas a primeira amostra do que estápor vir. Tem certeza de que não quer voltar? Eu consideraria uma honra escoltá-la até a fronteira.

— Não.

— Acha que os Edeges não aceitariam você de volta?

Ela suspirou. — Eles aceitariam, mas eu não posso voltar para Laporte do Leste. Quando ostraficantes cercaram a minha casa, Éléonore me ligou. Fui até nossos vizinhos para pedir ajuda.Eles reuniram cerca de vinte pessoas, todas carregando armas, e então esperaram.

— Ninguém queria lutar, —disse Richard. — Eles provavelmente demoraram de proposito,esperando que os traficantes fossem embora. Típico.

Ela se virou para ele. — Isso mesmo. Éléonore viveu entre eles durante toda a vida dela. Ela

ajudou muitos deles, e eles simplesmente a abandonaram e a deixaram para morrer. E quando eupedi ajuda a eles para ir atrás daqueles bastardos, nenhum deles olhou nos meus olhos. Nãoposso voltar lá. Tomei minha decisão. Não sei quais são suas motivações, Richard, mas asminhas são igualmente válidas. Por favor, respeite minha necessidade de justiça.

— Minhas desculpas, —disse ele. — Não vou mencionar isso de novo.

Charlotte enxugou o rosto com a manga e se levantou. Richard se levantou.

Ela estendeu a capa dele. — Obrigada por sua capa.

— O prazer é meu.

Richard segurou as rédeas de seu cavalo enquanto Charlotte colocava o pé no estribo emontava. Ele entregou as rédeas a ela, subiu na sela e partiram. Meia hora depois, a floresta seabriu. Charlotte parou seu cavalo. Um amplo campo de grama da altura da cintura se espalhava àsua frente, rolando ao longe, onde a costa de um mar perolado se encontrava com um céu escuroao horizonte. À esquerda, banhada pela água salgada do oceano, erguiam-se torres incrivelmentealtas. Construídas em pedra cinza claro, elas eram triangular, suavemente curvas nos cantos.Uma estrutura de metal turquesa em forma de onda marcava cada torre, descendo pelos lados dapedra clara, como plantas trepadeiras que haviam gerado uma rede de raízes finas. O luarbrincava no metal e seu brilho combinava com os reflexos no oceano plácido. As torresformavam um semicírculo perfeito, envolvendo a maior parte da cidade, como ondas quequebram.

— Dentes-de-Kelena, —disse Richard. — Durante os furacões, as torres enviam umabarreira mágica, protegendo a cidade das tempestades e do pior das ondas.

— Parece que a cidade está no meio da água.

— Cerca de um terço. Existem canais em toda a cidade, então quando a maré sobe, a águasimplesmente passa por Kelena para os pântanos salgados. Toda aquela grama é enganosa. Issonão é solo sólido sob ela, são planícies pantanosas com uma fina camada de água sobre a lama.Um lar ideal para tartarugas com chifres. Elas crescem até um metro e meio de largura e podempartir um fêmur humano ao meio com suas mandíbulas. Felizmente, são lentas e raramente seaventuram na estrada. Vamos?

Charlotte acenou com a cabeça e eles trotaram pela estrada em direção à cidade. Ela podiaver entre as torres agora, e de sua posição alta na sela, o interior da cidade parecia uma confusãode telhados, varandas e bandeiras brilhantes e puídas. Uma colmeia humana, exatamente comoRichard a havia descrito: bagunçada, caótica, cheia de estranhos. Uma vaga ansiedade cresceunela. Dali, a cidade parecia muito grande, muito cheia de gente. Enquanto estava no Instituto,

sonhava em viajar, mas assim que o deixou, o casamento e a casa passaram a ser prioridade.

Agora Charlotte estava cavalgando em direção a esta cidade fervilhante durante a noite,acompanhada por um homem nascido no Edge, que cortava aço com sua espada e tinha modosperfeitos. Parecia surreal.

— Meu irmão me disse que no Broken tem uma cidade exatamente neste mesmo lugar.Segundo ele, seus cidadãos têm um fascínio doentio por piratas, —disse Richard.

Ela achou sua voz estranhamente reconfortante. — O mesmo irmão que roubou seu poema?

— Infelizmente, sim.

— O que ele faz? —Ela insistiu na conversa.

— Ele é um agente do Espelho.

Charlotte se virou para ele. — Ele é um espião? —O Espelho era a agência de inteligência eespionagem de Adrianglia, a principal arma do reino em sua guerra fria com o vizinho Ducadode Louisiana. O Espelho operava nas sombras, e as façanhas de seus agentes eram lendárias.

Richard fez uma careta. — Ele rouba todo mundo que encontra, convence pessoas aparticiparem de esquemas improváveis e possui um talento único que o permite ganhar toda vezque aposta. Era o Espelho ou uma cela de prisão.

O tom de desgosto na voz de Richard era falso e despretensioso. — Você está orgulhosodele, —disse ela.

Um sorriso estreito iluminou o rosto de Richard. — Extremamente.

— Eu nunca estive no Broken, —ela disse a ele. — Tentei, mas minha magia é muito forte.

— Nem eu, —disse ele. — Eu também tentei atravessar e quase morri. O Edge é meu limite.Eu adoraria conhecer o Broken.

— Eu também.

Os dispositivos do Broken a fascinavam. Alguns, como fornos de micro-ondas, tinham umdispositivo equivalente no Weird, mas outros, como filme plástico e telefones celulares, eramcompletamente novos para ela. Quando ela recebeu a mansão de Ney, procurou explorar o sótão.Estava cheio de coisas estranhas das viagens dos proprietários anteriores, e ela adorava separarseus tesouros abandonados. Cada item era uma pequena descoberta, envolta em ecos de aventura.Sentia exatamente a mesma emoção quando ia nas feiras de troca que do Edge. Raramentecomprava coisas, mas acompanhar Éléonore em uma de suas caças ao tesouro era umaexperiência em si. Éléonore encontrava algum dispositivo estranho do Broken, e o rosto da suaamiga se iluminava.

A dor a esfaqueou. Charlotte olhou fixamente para a cidade. Acabaria com eles. Eles searrependeriam do dia em que foram para Laporte do Leste.

— Nós temos um plano? —Ela perguntou.

— O navio do tráfico atraca amanhã à noite, —disse Richard. —Esperam encontrar na costaum bando de traficantes de pelo menos dez homens e um grupo de escravos, geralmente de dozea quinze adolescentes e jovens adultos. Se não virem o bando e nem a mercadoria na costa, onavio não atracará. É imperativo que entremos naquele navio.

— Porque irá nos levar ao Mercado de escravos?

— Sim. Os traficantes são comandados por um conselho administrativo, como um negócio.Os líderes dos bandos individuais não sabem quem são os conselheiros.

— Você parece ter muita certeza disso, —disse ela.

— Depois que se pendura um homem em cima de uma fogueira, geralmente ele responderáfacilmente a qualquer pergunta, —disse Richard. — Os traficantes não sabem as identidades dosconselheiros, mas sabem que, uma vez que os escravos embarcarem nos navios, serão levadospara uma ilha. Existem sessenta e sete ilhas ao longo da costa de Adrianglia. Os escravos sãovendidos no Mercado, e as vendas são registradas e presididas por um contador. Ele édiretamente responsável perante os conselheiros. Ele saberá as identidades e rostos de cada um.

— Então, onde vamos conseguir um bando de traficantes e escravos? —Ela perguntou.

— Vamos negociar com Jason Parris, —disse Richard.

— Quem é ele?

— O senhor do crime mais cruel do Caldeirão.

A ansiedade que ela estava sentindo desde que avistou Kelena voltou com força total. — Ah,—Charlotte disse, forçando sua voz soar leve. — Estou tão aliviada. Achei que iríamos fazeralgo perigoso.

******RICHARD DESCEU o calçadão de madeira ao longo do Canal Sharkmonger doCaldeirão, ciente de Charlotte caminhando ao lado dele e do cão trotando alguns metros atrás. Àdireita, edifícios de dois andares—construídos de qualquer material, desde pedra até madeiradescartada, cada andar com seu próprio toldo desbotado e castigado pelo tempo—erguiam-se emuma parede contínua. Os toldos pairavam sobre o calçadão, protegendo-o da chuva e do sol. Eratarde da noite e as numerosas lanternas coloridas penduradas em correntes e cordas pareciamquase criar mais sombras do que iluminar.

Além dos prédios, estruturas ainda mais altas se estendiam para cima, fazendo o canal se

assemelhar a um rio correndo ao longo do fundo de um desfiladeiro profundo feito pelo homem.A água, da cor do chá com leite, era completamente opaca. Pequenas docas pontuavam o canalaqui e ali, marcadas com faixas laranja e verdes brilhantes em forma de vela que se estendiam doandar de cima até o solo.

O ar cheirava a sal amargo, algas marinhas, fumaça e um amálgama confuso e ligeiramentenauseante de odores próprios do Caldeirão: incenso, carne cozida, vapores de álcool, o cheirodistinto de sumah, um narcótico ilegal, e o fedor sempre presente de tripas de peixe.

Eles passaram por um pequeno cais quadrado. Um corpo flutuou de bruços, batendo nossuportes de madeira. Ao lado dele, Charlotte parou por um breve momento e depois continuouandando.

Ela provavelmente nunca tinha estado em um lugar como este antes, mas se tivesse, ele nãopodia afirmar. Charlotte obviamente não parecia pertencer a cruel sarjeta humana. No lugar dela,Cerise, sua prima, teria colocado a mão em sua espada e caminhado como uma predadora emterritório desconhecido. Rose, a esposa de Declan, teria sido desconfiada, alarmada, no mínimocautelosa. Charlotte flutuava. A maneira como ela se portava com segurança e leve indiferença,como se estivesse passeando por um jardim, ouvindo uma monótona conversa de uma amiga,tornava impossível questionar o direito de ela estar aqui. Ela se obrigou a pertencer ao lugar, equando viu um cadáver inchado na água, apenas parou por um momento, como se fosse uma florestranha, e voltou a andar.

O treinamento e a educação dela eram tão fortes que mesmo aqui sua postura era perfeita.Charlotte deve ter tido um mentor, alguém com uma linhagem ancestral e uma compreensãoinstintiva de etiqueta. Ele sabia disso porque, apesar de ser um pobre rato do Edge, a própriaeducação dele veio de tal pessoa. Seu mentor foi seu tio-avô, um exilado do Ducado deLouisiana, e Richard tinha certeza de que se Vernard ainda estivesse vivo, não teria oferecidonada a Charlotte além de elogios.

Quem poderia tê-la machucado tanto que a fez abandonar tudo e fugir para o Edge?

******MÃE DA AURORA, havia uma pessoa morta flutuando na água.

O gelo desceu pela espinha de Charlotte, uma mistura alarmante de repulsa, medo eansiedade. A visão de um único cadáver depois dela ter feito tantos não deveria ter sido tãoperturbadora, mas de alguma forma este corpo solitário e inchado, descartado como lixo eignorado por todos, quase a fez vomitar.

— Conte-me sobre esse senhor do crime, —disse Charlotte, esperando ser distraída antes

que seu estômago se revoltasse e se esvaziasse no calçadão.

— Jason Parris nasceu no Broken, em uma pequena cidade nas montanhas, —disse Richard.— Sua família era pobre, então, depois que ele terminou o ensino médio, se juntou ao Corpo deFuzileiros Navais. É um dos ramos de elite do exército do Broken. Ele sobreviveu a uma guerraem um país estrangeiro e decidiu partir após o término de seu período de quatro anos de serviço.Quando voltou para casa, não conseguia manter um emprego. Trabalhou para uma série deempresas fazendo trabalhos manuais, mas foi demitido ou pediu demissão, não durava muito emnenhuma delas.

— Por quê? Ser militar não ensinou a ele disciplina?

— Oh, ele tem disciplina. —Richard encolheu os ombros. — Ele também tem ideias muitodefinidas sobre quem é ou não digno de sua lealdade. Ouvia e obedecia seus sargentos e oficiaisporque era inteligente o suficiente para reconhecer que seus superiores, mais experientes nocampo de batalha, estavam tentando mantê-lo vivo. Na mente de Parris, seus superioresconquistaram o direito de lhe dar ordens. Seus patrões civis não eram dignos do mesmo respeito.Compreensivelmente, os donos das empresas tiveram uma visão um tanto obscura das atitudesdele. Parris frequentemente ficava desempregado. Ele estava acostumado a ter seu própriodinheiro e, de repente, teve que depender de parentes para ter um teto sobre sua cabeça. Isso odeixou com raiva. Uma noite, em uma briga de bar, a raiva transbordou e ele feriu gravementeum homem. Um parente o levou ao Edge para mantê-lo fora da prisão. Parris ainda estava seacostumando com a ideia de que a magia existia quando os traficantes de escravos invadiram oassentamento onde ele morava no Edge. Ele era um homem em forma e saudável, mercadoria deprimeira do ponto de vista dos traficantes. Eles o dominaram. Parris provou ser um prisioneirodifícil e os atacava sempre que podia.

Voshak tentou o seu melhor para dominá-lo, mas não conseguiu. Parris passou peloMercado e foi vendido para uma mina de granadas. Um mês depois, no meu segundo ataque aostraficantes, fiz uma incursão naquela mina e o encontrei em um buraco no chão. Mas sabendo oque sei agora, eu teria dúvidas sobre se tirá-lo daquele buraco seria algo certo a se fazer.

— Ele não quis voltar para a casa dele no Edge?

Richard fez uma careta. — Não. Parris me pediu instruções de como chegar a cidade maispróxima. Eu o deixei em Kelena. Ele começou a se chamar Jason Parris26 e disse que estacidade ficaria conhecida como sua ilha. O sobrenome parece ser uma alusão, se você preferir, aolugar onde ele recebeu seu primeiro treinamento militar. Agora, um ano depois, Parris possuitudo que você pode ver atualmente. Os antigos senhores do crime que dirigiam o Caldeirãohaviam estabelecido certos limites. Eles tinham famílias e interesses comerciais e não estavam

dispostos a arriscá-los. Parris não tinha nada. Ele passou por cima deles e conquistou todo oterritório. Ele mata quem sempre que achar necessário, sem reservas ou remorso.

— Por que alguém iria segui-lo? —Mais cedo ou mais tarde, alguém assim se voltariacontra seu próprio povo.

Richard balançou a cabeça. — Jason não é um psicopata. Ele é cruel, mas mataseletivamente, com uma estratégia em mente. Seu povo o teme, mas também sabe que, enquantocumprir suas exigências, estará seguro e recompensado. Ele respeita a força. Pode ser charmoso,mas não importa o que ele diga ou como nos cumprimente, não confie nele ou em sua segundaem comando, Miko. Na verdade, não confie em ninguém naquele prédio. Jason é o impulso e omúsculo, mas Miko é a mente, e essa mente sonha com planos com grande contagem de corpos.

Richard parou e Charlotte parou ao lado dele. A parede contínua de edifícios aqui eraparticularmente em ruínas, o toldo pálido e desbotado pelo tempo de uma ferrugem profundapara um laranja pálido e triste. Madeira solta havia sido pregada na parede em todas as direções.

— Por que paramos? —Charlotte murmurou.

— Há sentinelas nos vigiando, —disse ele. — Do outro lado da rua, no telhado, um à direitado barco, e há um logo acima de nós na varanda, ouvindo tudo o que falamos. Eles se dirão aJason, vamos esperar aqui e ver se ele quer nos ver.

Ela se inclinou para mais perto dele. — E se ele não quiser?

— Então eu bato na porta, —disse Richard.

A parede da casa atrás deles se abriu. Uma velha surgiu, usando um vestido vermelho semforma e um lenço vermelho no cabelo. Ela acenou para eles com a mão marrom enrugada edesapareceu dentro, na escuridão.

— Fomos convidados. —Richard sorriu.

— Parece que sim.

— Siga-me por favor.

Richard caminhou pelo corredor estreito. O cão trotou atrás dele. Ela foi a última a passarpela porta, no comando da ala traseira, ou qualquer que seja o termo militar adequado. Charlotteseguiu o cão por um pequeno lance de escadas estreitas e escuras, por um corredor e por outraporta. Uma sala espaçosa se estendia diante deles, iluminada pelas familiares lanternas de estiloestranho. Com a forma de cachos de delicadas flores brilhantes, as lanternas caíam dos ganchosentre as janelas perto do teto alto. Um tapete caro se estendia pelo chão de madeira polida até alareira de pedra. No centro, uma mesa de chá esperava, cercada por poltronas macias estofadas

em couro claro.

Um homem esparramado na cadeira maior. Seus ombros largos esticavam o tecido de suacamisa cinza. Seu peito era largo e seus braços, revelados pelas mangas curtas de sua túnica,protuberantes com músculos. Ele devia ter mais de um metro e oitenta de altura, e seu corpoenorme tornava a cadeira pequena. Sua cabeça havia sido raspada em uma série de tirasmeticulosamente espaçadas de várias larguras que iam da testa à nuca, o efeito era alternar listrasde cabelo brilhante e couro cabeludo castanho claro, raspado e liso.

Seus traços teriam sido bonitos em um estilo masculino, de mandíbula quadrada, do tipolíder do bando, mas uma cicatriz cobria a maior parte do lado esquerdo de seu rosto. Umaqueimadura, Charlotte diagnosticou. Não por aplicação direta de algum objeto quente, mas apartir do vapor ou, mais provavelmente, do calor mágico. Linhas mais profundas cruzavam acicatriz. Provavelmente de algum tipo de grade que havia coberto a fonte de calor. Então esse eraJason Parris. Ela esperava alguém mais velho, mas ele parecia ter vinte e poucos anos.

Os olhos do homem, surpreendentemente verdes contra sua pele mais escura, examinaramRichard e pararam nela. Olhos inteligentes. Ele irradiava poder e ameaça, e quando Charlotte oencarou, as sobrancelhas dele se ergueram por alguns milímetros. Talvez Parris esperasse que elaestremecesse sob o olhar dele.

Uma garota estava ao lado dele, tão magra e leve quanto ele era corpulento. Ela pareciamuito jovem para estar aqui, dezessete, talvez dezoito. Seu rosto era liso e um tom mais escuroque o dele. Seu cabelo caía sobre o rosto em mechas retas e rígidas, o resultado de algum tipo deproduto para o cabelo. Ela usava jeans justos e um moletom cinza com HARVARD impresso emletras vermelhas. Deve ter vindo do Broken.

— O Caçador, —Jason disse. Sua voz era profunda e ressonante, e ele falava sem pressa. —Me sinto honrado. Você se sente honrada, Miko?

Miko não disse nada.

— Veja, ela se sente honrada. —Jason abriu seus braços enormes. Sua voz tinha um levetom de zombaria. — Você cheira a mijo e parece ainda pior.

O olhar de Jason deslizou para ela. Seus olhos claros se arregalaram. — Richard, você temuma garota. E tem um cão também. Onde e quando se casou? Vou comprar uma torradeira paravocê.

— O cão é dela, —disse Richard.

O Estripador-de-lobos mostrou a Jason seus grandes dentes.

— Então, o que podemos fazer pelo poderoso Caçador?

Richard enfiou a mão na bolsa.

Miko se inclinou para frente, focada.

Um homem saiu da porta com uma besta27 nas mãos.

Richard tirou a trança loira descolorida de Voshak da bolsa e a jogou para o senhor docrime. Parris o pegou no ar e olhou para os fios loiros. — Quando?

— Cerca de dez horas atrás.

— Alguém saiu vivo do bando dele?

— Não.

Parris olhou para o homem com armada com a besta e jogou a trança no ar. Uma flechaassobiou e atingiu a parede oposta, prendendo a trança com segurança no lugar.

O senhor do crime voltou-se para Richard. — Você me traz presentes tão bons, Caçador. Oque quer?

— Há um navio de traficantes atracando ao norte da cidade às onze da noite. Eles esperamque um bando de traficantes de escravos e escravos embarque nele, —disse Richard.

Parris se inclinou para frente, seus olhos repentinamente predatórios. — Eles vão levá-los aoMercado.

— Sim. Mas há um pequeno problema: o bando de escravos está morto e eles nãoconseguiram capturar nenhum escravo. Se alguém conseguir montar um bando falso detraficantes, esse alguém poderia tomar o lugar do bando verdadeiro.

O senhor do crime sorriu. Foi um sorriso arrepiante. — Se ao menos conhecêssemos umhomem com tal capacidade.

Richard encolheu os ombros. — Ele poderia se tornar um homem conhecido e de grandevalor. E se tornaria muito rico, mas o mais importante, seria o homem que saqueou o Mercado.

Parris ergueu uma sobrancelha.

— A segurança na ilha é voltada para lidar com escravos fugitivos e clientes chateados. Elesnão esperam um ataque de uma dúzia de lutadores armados. É uma oportunidade de ganhardinheiro com o comércio de escravos, dinheiro dos agentes dos compradores e uma chance devingança.

— Arriscado, —disse Parris. — Não sabemos o quão bem o lugar é guardado. Eu estavameio morto quando me arrastaram, mas me lembro dos guardas.

— ‘Sem coragem, sem glória’, —citou Richard.

Arriscado era um eufemismo, Charlotte refletiu. Este plano que Richard havia traçado fez aimagem que ela tinha dele, de um criminoso endurecido pela vida, cair por terra. Haviaprometido obediência inquestionável a ele, mas uma coisa era saber que ele poderia ser capaz demuita violência e perigo, outra coisa era não saber de todo o potencial dessa violência e perigocom antecedência. Ele nem mesmo mencionou esse plano a ela antes. Ela teria que apontar issopara ele quando estivessem sozinhos.

— Qual porcentagem dos ganhos você quer? —Perguntou Parris.

— Nenhuma. Eu só quero o contador e o quero vivo.

O senhor do crime ponderou sobre isso. Ela podia sentir a hesitação de Parris. Ela e Richardprecisavam oferecer a ele algo para inclinar a balança a favor deles. O que poderiam propor aParris? Em que um senhor do crime estaria interessado?

Dinheiro, é claro, mas mesmo se ela pudesse ter acesso às finanças dela, duvidava queapenas o dinheiro o fizesse arriscar sua vida e seu povo. O olhar de Charlotte parou no rosto deParris. A cicatriz se destacava na pele do homem como uma marca. Devia ser difícil olhar noespelho todas as manhãs.

— Como você conseguiu essa cicatriz? —Charlotte perguntou.

Parris se virou para ela. — Um presente de Voshak. Eu tinha escapado do compartimento decarga. O plano era dar um mergulho, mas o plano falhou, e Voshak fez com que seus meninosme segurassem contra a unidade de aquecimento do navio. Tentei ver isso como uma lição. —Parris mostrou os dentes para ela. — Eu aprendo muito.

— Você gostaria que eu a removesse? —Ela perguntou.

Parris ergueu as sobrancelhas. — Você pode fazer isso?

— Sim. —A pele era o mais fácil de curar de todos os tecidos do corpo.

Parris ponderou a ideia por um momento. — Obrigado, mas acho que vou ficar com ela. Éparte de mim agora.

Miko se inclinou para ele e sussurrou algo, seu rosto urgente.

Jason franziu a testa. — Sim, mas você poderia deixá-la como se fosse antiga.

Miko sussurrou novamente.

Parris considerou. — Se ela me curar e eu ficar com todos os lucros que conseguirmos nosaque do Mercado, você tem um acordo.

— Antes de fazer qualquer coisa, ela precisa de descanso e comida, —disse Richard.

Eles estavam falando sobre ela como se ela nem estivesse na sala.

Parris olhou para ele. — Eu pareço uma pousada para você?

— Oito horas de descanso ininterrupto atrás de uma porta segura, uma nova muda de roupa,comida e água limpa para nos lavar, —disse Richard. — Essas são as nossas condições.

Parris suspirou. — Está bem. Mas se meu rosto não estiver curado até o meio-dia, vocêdescansará dois metros abaixo do solo por muito mais do que oito horas.

******CHARLOTTE SEGUIU Richard e uma mulher armada com uma espada escada acima.Eles entraram em outro corredor estreito e a mulher parou perto de uma porta e a abriu. Richardentrou e Charlotte e o cão o seguiram até uma pequena suíte. Perfeitamente limpo, com painéisde madeira clara e quase dourada nas paredes e grandes janelas emolduradas por cortinas verdes,o quarto poderia ter pertencido a qualquer um dos hotéis mais agradáveis. Uma cama grandedominava o chão, seus lençóis e colcha de um amarelo claro convidativo. Duas pilhas de roupasestavam na cama. À direita, outra porta se abria para um pequeno banheiro.

Cama de casal em quarto individual. Jason estava presumindo que eles eram um casal.

O cão se jogou no tapete e farejou o chão. Richard fechou a porta, a trancou e baixou umapesada barra de madeira no lugar, protegendo a porta como se fosse a entrada de um antigocastelo.

A pele dele estava amarelada. A sujeira manchava seu rosto. Um fedor abominável subia desuas roupas. Richard tinha que estar espremendo as últimas gotas de energia de seu corpoexausto para permanecer em pé.

— Não me importo de esperar pelo banheiro, —disse ela.

Ele baixou ligeiramente a cabeça. — Nem eu.

Ela cruzou os braços.

— Você concordou em seguir minhas ordens, —disse ele.

— A ordem do nosso banho não tem nada a ver com a nossa missão.

— Charlotte, —ele disse, sua voz cansada. Eu não vou tomar banho antes de você.

O som do nome dela vindo dele a assustou. Algo na maneira como Richard pronunciou seunome provocou a mesma vibração feminina que ela sentiu quando ele a chamou de linda. Foi asensação muito estranha, uma mistura de ansiedade, surpresa e prazer, embebida em excitação.Mas nada sobre isso fazia sentido. Ela estava coberta de sangue e sujeira. Não só isso, ele a tinhavisto recentemente matar pessoas e depois vasculhar seus bolsos. Romance tinha que ser a última

coisa na mente dele e deveria ter sido a última coisa na mente dela.

— Richard, —ela disse, sua voz firme. — Você está fedendo. Por favor, tenha misericórdiado meu nariz.

— Você merece ir ao banheiro primeiro. Oferecer-se para consertar o rosto dele foi umgolpe de gênio.

— Obrigada, mas estarei perfeitamente feliz esperando.

Richard olhou para ela. Eles estavam em um impasse.

— Já que está me dando sua atenção, —disse Charlotte, — eu apreciaria se no futuropróximo, quando você tiver planos que envolvam crimes, pudesse pelo menos me passar a ideiadeles com antecedência. Em amplos detalhes. Embora eu não tenha sua experiência em lidar como submundo do crime, sou uma mulher de razoável inteligência e reajo mal quando surpreendida.Entendo que está acostumado a ser um espadachim solitário, mas prometo que posso ser umtrunfo na fase de planejamento e posso ajudá-lo melhor se souber para onde estamos indo. Use-me como seu, qual é a expressão do Broken? Caixa de som?

— Caixa de ressonância28, —ele disse, sua voz seca.

— Exatamente.

O rosto de Richard tinha uma expressão muito curiosa. A maior parte da expressão eraexasperação, uma parte de choque e outra de polidez tão arraigada nele que estava mantendo oresto de suas emoções sob controle. — Há mais alguma coisa, minha senhora?

— Sim. Ficaria muito feliz se, quando nós dois estivermos presentes durante uma conversa,você pudesse ocasionalmente reconhecer minha presença e permitir que eu falasse por mimmesma, em vez de se referir a mim na terceira pessoa.

Richard travou sua mandíbula. Ela esperou pacientemente para ver se ele explodiria.

— Na próxima vez que tivermos que falar com um psicopata violento, vou me esforçar paramanter isso em mente, —disse ele.

Na próxima vez que você fizer isso, eu não vou ficar lá quieta. — Obrigada por me agradar.

— O prazer é meu.

Ele abaixou a cabeça em uma reverência tão cheia de exasperação que, se fossetransformado em energia, poderia mover um pequeno navio em uma viagem através do oceano.Muito bem. Ela fez também uma reverência. O esforço de dobrar as pernas quase a tirou do chão.

Eles se endireitaram.

— Ainda temos a questão do banheiro, —disse ela.

Ele enfiou a mão no bolso e tirou uma moeda de prata. — Cara ou Coroa.

— Cara. —Ela tirou a moeda da palma da mão dele. — E eu vou lançá-la.

— Você não confia em mim.

— Você me disse para não confiar em ninguém. Além disso, não sou eu que tenho umirmão que magicamente ganha apostas.

Ela jogou a moeda e a pegou na parte de trás do pulso.

— Coroa. —Richard sorriu. — Eu ganhei. O banheiro é todo seu, minha senhora.

Acusá-lo de traição não seria apenas ilógico, seria bobo. Charlotte pegou sua pilha de roupase entrou no banheiro. O cão a seguiu.

— Não, —disse ela com firmeza, e fechou a porta. Um gemido desapontado respondeu aela.

Dentro, uma ducha estilo Adriangliana esperava por ela: uma grande ducha posicionadadiretamente acima, sobre sua cabeça. Charlotte girou a manivela e a água quente caiu em umacascata bem-vinda. Charlotte se despiu e entrou no chuveiro.

A água espirrou sobre ela em um fluxo purificador. Suas pernas se dobraram um pouco.Seus músculos doíam, e o chuveiro não fez nada para lavar a sonolência que a invadia. Charlottelavou o cabelo despreocupadamente. Parecia que outra pessoa estava dirigindo seu corpo. Se elanão se apressasse, entraria em colapso antes de chegar à cama. Ela lavou toda a sujeira, enrolouuma toalha no cabelo, se enxugou com a toalha maior e pegou a primeira peça de roupa da pilhade roupas.

******RICHARD OUVIU uma palavra abafada vinda do banheiro. O corpo dele estavafraquejando de cansaço e a porta do banheiro era relativamente grossa, mas ele tinha certezaabsoluta de que Charlotte de Ney acabara de chamar alguém de idiota.

Considerando sua última posição, ele realmente não deveria estar surpreso. A parceria delestinha menos de um dia e ele já havia sofrido uma repreensão. Culpa sua, ele se parabenizou.Você a trouxe.

O cão se levantou de seu lugar junto à porta do banheiro, trotou e se jogou aos pés dele coma graça de um saco de batatas. Grandes patas peludas ergueram-se no ar e ele foi presenteadocom um peito canino.

— É sério?

O cão olhou para ele. Tudo bem. Richard estendeu a mão e esfregou o pêlo. Ele não poderiaficar mais fedorento do que já estava. Os cães estripadores-de-lobos não foram treinados paramatar humanos, apenas para encontrá-los e segurá-los. Os traficantes não queriam danificarindevidamente suas mercadorias. Apesar do tamanho e dos dentes, os Estripadores-de-loboseram apenas cães, e esse idiota peludo parecia faminto de afeto.

Richard coçou a barriga do cão. Ele não tinha certeza do porquê não pensou em dizer aCharlotte o que estava planejando. Foi simplesmente força do hábito. Tem vivido sozinho pormuito tempo. Ser repreendido por isso, como se fosse uma criança que cometeu um lapso deeducação, no entanto, não estava em seus planos. Charlotte teria que aceitar. Ele também nãoestaria obedecendo às ordens dela. Na verdade, colocaria as coisas às claras assim que ela saíssedo banheiro, para evitar futuros mal-entendidos.

A porta se abriu lentamente.

— Parece que nosso anfitrião tem senso de humor, —Charlotte disse, e saiu.

Seu cabelo caia sobre suas costas em uma onda molhada penteada. Ela usava um mantoesvoaçante rosa claro que terminava alguns centímetros acima dos joelhos. O manto eracompletamente e decadentemente transparente. Ele podia ver cada curva do corpo dela, desde opescoço elegante até a protuberância de seus seios, mal obscurecida pelas dobras do tecido, até acurva flexível de sua cintura e o alargamento de seus quadris ...

Ele estava olhando. Todos os seus anos como homem adulto haviam desaparecido, apagadoscomo se nunca tivessem existido, e agora era um adolescente de novo, desajeitado e perplexo.Ficou boquiaberto, incapaz de desviar o olhar, incapaz de fazer um som, incapaz de fazerqualquer coisa além de olhar.

Richard a queria. Charlotte era um sonho erótico.

Isso não era real, decidiu. Ele ainda estava em uma jaula ou deitado na estrada morrendo, eseu cérebro febril tinha conjurado uma bela fantasia para provocá-lo uma última vez antes depassar para a vida após a morte.

Um rubor rosa claro se espalhou pelas bochechas de Charlotte.

Desvie o olhar, seu idiota.

Richard fechou a boca e se forçou a virar para a cama e pegar sua própria pilha de roupas.— Parece que você tem razão. Jason tem senso de humor. Vamos torcer para eu não sair comuma tanga de couro.

Ele se dirigiu ao banheiro, obrigando-se a olhar para qualquer lugar, menos para Charlotte,enquanto ela cruzava o quarto e se enfiava debaixo das cobertas.

No chuveiro, ele se encostou na parede, apoiando-se com os dois braços, e deixou a águaespirrar na nuca e nas costas, massageando seus músculos cansados. Richard fechou os olhos eviu Charlotte em sua mente. Recomponha-se. Você é o homem que ela tirou de uma jaula,coberto de sujeira, urina e sangue. Ela teve pena dele e o curou. Charlotte não tinha ideia de quetudo que fez por ele tinha sido a única gentileza que receberá de uma mulher em anos. Para ela,era apenas caridade comum.

Charlotte era uma mulher bonita e refinada. Um homem teria que estar morto para nãoresponder a ela. Ele havia chegado tão perto da morte, e agora seu corpo estava alegre pelo fatodele ter sobrevivido. Agir a partir disso estava fora de questão. Ela confiava nele, e ele não iriaquebrar essa confiança. Mesmo se Charlotte o convidasse, o que não faria, ela acabara de sofreruma catástrofe emocional. Só um canalha tiraria vantagem disso, e ele não seria o erro de que elase arrependeria logo de manhã.

Richard desligou sua mente, ensaboou a esponja e esfregou-se até não conseguir detectarnenhum outro odor além do cheiro forte e picante do sabonete. O banho exigia quase maisesforço do que ele podia suportar. Enquanto estava sob a água, considerou brevementesimplesmente sentar no chão e não se levantar. Mas tinha certeza de que ela iria procurá-lo, e serencontrado nu caído no chão do chuveiro seria verdadeiramente desastroso.

Jason havia deixado aquela roupa de propósito. O homem era inteligente e perspicaz.Provavelmente leu a linguagem corporal deles e deduziu que estavam viajando juntos, mas nãoeram íntimos, e aproveitou a oportunidade para zombar dele. Se Richard estivesse marcandopontos, este iria para Jason Parris, mas ele não estava interessado em batalhas paralelas.

As roupas dele acabaram sendo um traje simples do Weird: simples cuecas cinza escuras,uma camisa e calças de algodão marrom. Isso serviria até que pudesse adquirir novas roupas. Elesaiu do banheiro. Charlotte estava deitada de lado, escondida sob um lençol. Os olhos delaestavam semicerrados e ele não tinha certeza se ela estava dormindo ou olhando para ele atravésda cortina de seus cílios macios.

Richard pegou sua espada de onde ele a havia deixado, ao lado da porta, e deslizou as costascontra a porta, cruzando as pernas, a lâmina apoiada em seu ombro. Gerações de seus ancestraisdormiram exatamente assim, e alguns deles acordaram com suas lâminas enfiadas em seusatacantes. Se Jason tivesse um momento de insanidade e decidisse interromper o descanso deles,Jason é quem descansaria para sempre.

— Richard, —disse Charlotte.

— Sim?

— Você está preocupado que possamos ser atacados à noite?

Não havia sentido em mentir. — Prefiro ser cauteloso.

— Você gostaria de um cobertor e um travesseiro?

Ele gostaria de se juntar a ela na cama. E o que faria se o fizesse? Está tão cansado que nãoconsegue nem ver direito. — Não, obrigado. Estou acostumado a dormir assim. Isso me dáconforto.

Ela se mexeu na cama. — Obrigada.

— Pelo que?

— Por guardar a porta e por me trazer com você.

Havia muitas perguntas que queria fazer a ela. Ele queria saber de onde ela era, por quehavia fugido para o Edge e como seu ex-marido a machucou, mas o cansaço o sufocou. Richardfechou os olhos e se rendeu ao sono.

cincoQUANDO CHARLOTTE ACORDOU, A LUZ DO SOL ESTAVADERRAMANDO pelas janelas do quarto, o brilho delicado e pálido do final da manhãcolorindo o amarelo claro da cama com uma leve cor de pêssego.

Richard estava parado na porta, de costas nuas para ela. Ele vestiu uma calça escura e estavasegurando uma camisa branca. Os músculos tensos em suas costas, duros e poderosos,protuberantes sob a pele bronzeada, como se tivesse absorvido o calor do sol e agora estivesseimpregnado dele. Richard tinha o físico de um predador, esbelto, forte, rápido e perfeitamenteequilibrado. Um corpo com um assustador potencial para a violência, mas irresistivelmenteatraente. Ela queria correr a mão pelas costas dele, traçando os contornos do músculo por baixoda pele. Era um desejo completamente sensual, uma necessidade física livre de pensamentosracionais. Ele era tão diferente dela, tão masculino, e ela queria tocá-lo.

Richard ergueu os braços, vestindo a camisa. Os músculos flexionaram sob sua pele,salientes em seus ombros largos. Charlotte observou, hipnotizada. Na noite anterior, quando searrastou para uma cama estranha, sentindo-se meio morta, ocorreu-lhe que estava na casa de umcriminoso, bem nas profundezas da pior parte da cidade. Se Jason Parris quisesse matá-los, o

faria a qualquer momento e com total impunidade. Ninguém sabia onde eles estavam. O medodela aumentou, ameaçando explodir em um ataque de pânico. Depois, Richard sentou-se com ascostas apoiadas na porta na noite anterior, e a ansiedade desapareceu. De alguma forma, elaestava completamente certa de que nada passaria por ele para machucá-la. Era egoísta, masfechou os olhos sabendo que ele não se moveria até de manhã, e então dormiu bem.

Nenhuma mulher poderia confundir a maneira como Richard olhou para ela na noiteanterior, quando saiu do chuveiro. Ela também olhou para ele, através da cortina de seus cílios,quando ele emergiu, com a pele limpa, o cabelo úmido.

Charlotte olhou para ele, mesmo sabendo que não devia, e o desejou. Ela o queria. Richardpersonificava a força, e ela se sentia fraca, apesar de saber o contrário. Além disso, ela haviasobrevivido a coisas terríveis e por isso se sentia tentada a se lembrar, da forma mais primitiva,que ainda estava viva. Mas Charlotte não usaria Richard dessa forma, no entanto. Em primeirolugar, simplesmente não acontecia assim, não desta forma e não depois de meros dois dias deterem se conhecido. Em segundo lugar, Richard deixou claro que a eficácia dela nessa missãodependeria diretamente com a capacidade de não se apegar a ninguém. Nada nem ninguém teriaque ser mais importante do que a missão. Ela se apegaria a ele e ele ficaria ressentido com ela.Ontem à noite, nenhum deles estava em seu juízo perfeito. Pessoas que não tinham nada a perdermuitas vezes faziam loucuras, coisas sem sentido, e ela tinha que ouvir a voz da razão.

Ele se virou.

Charlotte se lembrava da beleza dele, mas seu rosto a pegou de surpresa. Seus olhosinteligentes e intensos a avaliaram, e ela teve que lutar para não gaguejar.

— Bom dia, —disse Richard.

Ela contou com seus anos de treinamento e, quando falou, a voz dela era completamentetranquila. — Bom dia.

— O pessoal de Jason nos trouxe roupas novas, —disse ele, apontando para uma pilha deroupas na cadeira. — Elas são usadas e provavelmente não tão legais quanto as que você estáacostumada, mas não devemos chamar a atenção. No Caldeirão, roupas novas podem nos matar,e obviamente queremos evitar isso, se possível.

Richard deveria ter dormido muito mais, considerando a lesão dele. — Há quanto tempovocê está acordado?

— Não muito tempo.

— Venha aqui por favor.

Ele se aproximou da cama. Charlotte se sentou, segurando o lençol sobre o peito, ergueu a

mão e tocou o pescoço dele com os dedos. A pele estava quente sob a ponta dos dedos dela. Umavibração excitada a percorreu. Ela sentiu o cheiro leve de sabonete que emanava do cabelo e peledele, uma pitada de especiarias e frutas cítricas.

É sério, Charlotte? Ela tinha trinta e dois anos. Poderia manter sua libido sob controle.Charlotte se concentrou. Sua magia escorregou de seus dedos e se afundou na pele de Richard. Aferida estava quase completamente curada. A temperatura estava normal. Desidratação leve,pulso ligeiramente elevado. Na verdade, aumentou nos breves segundos em que ela o tocou.Claro, disse a si mesma. Ele a viu massacrar dezesseis pessoas. Naturalmente, ficaria alarmadoquando ela o tocasse.

Charlotte abaixou a mão.

— Atestado de saúde aprovado, —disse ela.

— Fico feliz em ouvir isso.

Richard estava olhando para ela. A luz do dia fluindo pela abertura nas cortinas pintou umafaixa dourada clara no rosto dele, tingindo sua pele de ouro e refletindo um rico tomavermelhado em suas íris. Ele era bonito, seu corpo era forte e em forma, e o perigo que irradiavaapenas aumentava sua atração, mas quando Charlotte olhou, realmente olhou para ele comoagora, ele não era só bonito, era impressionante.

E ela não tinha nada que olhar para ele. Ambos estavam em uma missão, e isso não deixavaespaço para suavidade ou atração.

— Nunca conversamos sobre o plano, —disse ela.

— É simples, —disse ele. — Nós nos disfarçaremos de traficantes e suas capturas,embarcaremos no navio rumo ao Mercado. Assim que chegarmos perto do porto, você terá queeliminar a tripulação. Terá que ser feito de forma rápida e silenciosa, para não alarmar os queestão em terra.

— O pessoal de Jason pode operar o navio? —Ela perguntou.

— Ele me garantiu que sim. Jason pode ter muitos defeitos, mas ineficiência eincompetência não são um deles. Esta é uma cidade portuária e há muitos ex-marinheiros em suaequipe. Atracaremos o navio e deixaremos Jason e seus assassinos fazerem o que fazem melhor.Enquanto isso, você e eu iremos encontrar o contador. Devemos eliminar as pessoas no topo dacadeia de comando dos traficantes e, para isso, precisamos do contador vivo. Assim quesoubermos a identidade de seus superiores, resolveremos o que faremos a seguir.

Ela teria que matar novamente. Sabia no que havia se metido quando exigiu ir com ele.Agora não era hora de ficar enojada.

— É um bom plano, —disse ela. — Quão grande é a tripulação que você espera que eumate?

— O navio que eles usarão provavelmente é rápido, manobrável e normal. Estou apostandoem um bergantim29 ou albatross30, o que significa quinze a vinte pessoas no máximo. Será umproblema?

Essa era uma pergunta complicada. — Não. Sem problemas, —ela disse a ele.

Richard se levantou. — Vou esperá-la do lado de fora da porta.

Ele pegou sua espada e saiu.

Nesse momento, quando Charlotte tocou aquela faísca vermelha dentro dela, sabiaexatamente quais seriam as consequências. Sua vida como Curadora havia acabado. Sua vidacomo uma Abominação seria brutal e desprovida de simpatia ou calor, mas provavelmente curta.Valeria a pena, disse a si mesma. Se nenhuma outra criança tivesse que chorar como Tulipporque os traficantes tiraram alguém dela, valeria a pena.

******UM CADÁVER estava sobre uma mesa, um grande homem cerca de dez anos mais velhoque Jason, mas com um tom de pele semelhante. A pele desconfigurada na bochecha do cadávertinha o mesmo padrão da cicatriz no rosto de Jason.

O cadáver parecia fresco. Era um rival, um inimigo de longa data? Ou, mais provavelmente,algum homem na rua que por acaso se parecia com Jason Parris.

Charlotte exalou baixinho. Ela havia entrado neste mundo sozinha. Teria que lidar com isso.

Richard encostou-se na parede com os braços cruzados. O senhor do crime sentou-se aolado do cadáver em uma cadeira. Miko se encostou na parede também, espelhando a posição deRichard, uma perna dobrada, o pé apoiando-a. Ela era uma garota estranha, quieta, seu rostoestreito sempre transparecia calma, mas havia um bizarro indício de imprevisibilidade sobre ela,como se estivesse apenas esperando o momento certo para esfaquear alguém.

A desfiguração no rosto do cadáver estava vermelha e parecia recente. As cicatrizes no rostode Jason tinham mais de um ano.

— Como pretende fazer parecer mais velha a queimadura no rosto do homem morto? —Charlotte perguntou.

— Temos uma necromante, —disse Jason. — Ela vai envelhecer a cicatriz. Existe algumacoisa que você precisa para me curar?

Ela balançou a cabeça.

Os efeitos colaterais da fadiga ainda estavam lá, acumulando-se nos ossos dela, mas ela serecuperou muito mais rápido do que esperava. Se tivesse curado dezesseis pessoas ontem, estariade cama, incapaz de se mover. Mas agora, sentia-se ... revigorada. Aliviada, como se algumfardo físico pesado tivesse sido tirado de seus ombros. A ironia.

A cura é um sacrifício nobre, a voz da Senhora Augustine ecoou em suas memórias. Ferir éuma perversão egoísta.

O fardo não tinha realmente ido embora, Charlotte refletiu. Ela simplesmente trocou apressão criada pelo desequilíbrio em sua magia pelo peso do assassinato em sua mente.

— Então, essa cura é um dom especial? —Jason perguntou.

— Sim.

— Algumas magias podem ser ensinadas.

Charlotte acenou com a cabeça. — Sim. Manipuladores de magia podem aprender amanipular seus flashs através do treinamento e prática. Podem se tornar Flashsniper31, mesmosendo alguém do Broken, assumindo que tenha alguma magia, é claro. Mas no caso de umCurador, deve-se nascer com o dom da cura. O treino o tornará eficiente.

Jason estava olhando para Richard. — A coisa que você faz com a sua espada é um flash,não é?

Richard acenou com a cabeça.

Jason olhou para ela. — Já vi muita coisa mágica estranha aqui, mas nunca vi o que ele podefazer. Pedi a ele que me ensinasse, mas ele não quis.

— Você já faz mal demais, —disse Richard.

Jason sorriu. — Ai, você me magoou, meu velho.

Richard ergueu os olhos para o céu. — Eu o libertei e o joguei nesta pobre cidadedesavisada. Simplesmente sinto pena dos assassinos de Kelena. Se eu te ensinar a usar o flash emuma arma, não sobrará nenhum deles.

— Não preciso de flash para isso. —Jason tocou sua cicatriz. — Vamos acabar com isso.

Charlotte pegou uma cadeira e a colocou sob o feixe de luz que entrava pela janela alta pertodo teto. — Sente-se por favor.

Ele sentou. Charlotte se aproximou, virando o rosto dele com a ponta dos dedos para vermelhor a cicatriz na luz. Uma queimadura de segundo grau, estendendo-se até a dermereticular32, a camada profunda de pele que protege o corpo contra o estresse. Ela tinha curadocicatrizes de queimaduras piores.

Charlotte ergueu a mão e deixou as faíscas douradas de sua magia penetrarem na pele deJason. Ele ficou completamente imóvel, seus enervantes olhos cinzentos firmes.

O dano era extenso. Ela mergulhou na tarefa de reparar a destruição do tecido. Quando umcorpo sofria um ferimento, células especializadas—que os médicos do Broken chamavam de‘fibroblastos33’ e os Curadores do Instituto chamavam de ‘células de sutura’—surgiam emsocorro. Elas se moviam para a ferida e começavam a secretar colágeno, viajando dentro docoágulo até que finalmente ancoravam e fechavam o corte. O momento dessa ancoragem eradeterminado por diversos fatores e, quando o processo se prolongava por muito tempo, levava aoacúmulo de tecido fibroso, causando fibrose34, e às vezes, se as cicatrizes se formassem nosórgãos, poderia ser fatal.

A cicatriz em si era composta pelas mesmas fibras de colágeno da pele normal, mas em vezde se entrecruzarem, essas fibras se alinhavam na mesma direção. Ela precisava suavizar o tecidorígido da cicatriz e, em seguida, mover meticulosamente as fibras de colágeno dentro da pelepara aproximar seu padrão normal de cicatrização. Era um trabalho lento e metódico. Ascicatrizes faciais exigiam precisão—a simetria do rosto estava em jogo. A sala, Richard, Jason,todos eles se desfocaram de sua visão. Apenas o tecido ferido permaneceu, e ela se concentrouem realinhá-lo.

Como se estivesse através de uma parede, as vozes que ouvia eram abafadas.

— Você está curando sua cicatriz e arranjou um dublê de corpo, —disse Richard. — Porque a necessidade repentina de parecer morto?

— O Espelho está de olho em mim, —respondeu o paciente dela.

— O que você fez?

— Muitas coisas, nenhuma delas boa, mas nenhuma delas diz respeito aos agentes doEspelho também. Eles estão me observando e eu não gosto disso.

— Eu avisei você, Jason, —disse Richard.

— Não me dê lições, meu velho.

— Você está se expandindo muito rápido e matando muitos. A violência atrai a atenção.

Jason suspirou. — Caso você não tenha percebido, estou indo muito bem.

— As Cinco Gangues estão espumando pela boca tentando colocá-lo no fundo do oceano,Rook colocou uma recompensa por sua cabeça e agora os agentes do Espelho estão vigiando suacasa. Sua definição de ‘bem’ é, na melhor das hipóteses, preocupante. —Ele sorriu de repente eincorporou um leve sotaque. — ‘Não acho que essa palavra signifique o que você pensa que

significa’.

Richard estava obviamente citando algo que só ele e Jason pareciam saber.

Jason sorriu. — Ha, ele não é uma gracinha, pensei que que só era um bom espadachim. —Ele se virou para Charlotte. — Como o suporta?

— Ele dorme perto da porta com sua espada para me manter segura, —ela disse a ele. —Não se mova.

Finalmente satisfeita, Charlotte retirou sua magia e deu um passo para trás.

Jason parecia bem. Foi uma de suas melhores restaurações. O alívio tomou conta deCharlotte. Ela ainda poderia curar. Não tinha perdido nada de sua habilidade ou poder. Não tinhapercebido até agora que temia que tirar vidas pudesse custar o propósito principal de sua magia.Ela sabia que isso não a impediria de continuar curando; só não tinha certeza se seu controle ouprecisão iriam ser comprometidos.

O cansaço pós-cura a envolveu, deixando-a tonta. Jason tocou o próprio rosto. A cicatrizhavia esvanecido e ficado como se fosse muito antiga, e agora ela podia ver o rosto dele commais clareza. Charlotte percebeu que ele ainda era um homem jovem.

Miko se aproximou e ofereceu-lhe um espelho. Jason olhou para si mesmo. Seus olhos searregalaram.

— Mãos mágicas, —disse ele. — Esse é um dom muito valioso. É de fazer qualquer homemlamentar de não possuir tal dom.

— Toque-a e perderá seus dedos, —disse Richard, sua voz casual.

Jason olhou para ela. — Venha trabalhar para mim. Vou cuidar melhor de você.

— Não.

— Veja, o problema com Richard é que ele não sabe como tratar uma mulher. É precisocuidar bem das mulheres. Uma mulher é como uma égua.

Mãe da Aurora, não acredito que ele disse isso. — Como assim?

— Quando se quer domar uma égua, oferece a ela uma maçã. Ela tem que se acostumar comseu cheiro e suas deliciosas maçãs antes de deixá-lo colocar o cabresto nela. Logo depois, se aignorar, ela o seguirá esperando por uma esmola. Se continuar dando a ela guloseimas,eventualmente ela vai deixar que a monte.

Hummm.

Richard estava encostado na mesa como uma sombra escura, sua pose relaxada, seus lábios

sorrindo, mas seus olhos observavam Jason com foco completo.

Como um lobo avistando sua presa, ela conclui.

Jason sorriu, exibindo dentes brancos uniformes. Em sua posição na parede, Miko revirou osolhos.

— O que eu quero dizer é que tenho muitas maçãs, —disse o senhor do crime. — Vocêdeveria pensar um pouco. Sei que iria gostar das minhas maçãs.

Charlotte se aproximou dele. — Jason, quem quer que tenha dito a você essa bobagem não éseu amigo. As mulheres não são éguas, cadelas ou gatas. Nós somos seres humanos, e quantomais cedo descobrir isso, menos provável que você acorde com a faca de Miko em sua garganta.

Jason olhou para Charlotte.

— Você não me perguntou o que eu quero. Mas direi assim mesmo. Eu quero acabar com ocomércio de escravos. Ter um caso com você não me atrai. Você é bonito, mas é muitoinexperiente e muito arrogante para ser bom de cama. Ter montado muitos cavalos diferentes nãoo torna um bom cavaleiro, só prova que você não conseguiu reconhecer um bom cavalo ou nãosoube como mantê-lo e acabou trocando-o por outros. Você é muito jovem para mim e, em dezanos, quando se tornar mais experiente, estarei muito velha para você. Portanto, não vamos falarsobre isso de novo.

Um som fino e agudo veio da parede. Miko estava gargalhando.

Jason se virou na cadeira e olhou para ela, indignado.

Ela gargalhou mais ainda.

O senhor do crime piscou e se voltou para Charlotte. — Algumas pessoas deveriam ser maiscautelosas. Palavras como essas podem levar a gargantas cortadas.

— Algumas pessoas não percebem que quem cura também pode ferir, —disse ela a ele. —Por que você não pergunta a Voshak o que ele pensa sobre isso?

Richard cruzou o chão e veio ficar ao lado dela.

— Você é tão louca quanto ele, —Jason rosnou.

— Agora você está entendendo a ideia, —disse Richard.

— Mesmo que saquemos o Mercado e vocês consigam suas informações, o que vocêspoderão fazer? —Miko disse de repente. — São só vocês dois. Os traficantes são centenas.

Richard fez uma careta. — Eu sei. É uma pena, realmente. Eu gostaria de dar a eles umachance justa, mas às vezes a vida simplesmente não é justa.

Charlotte sorriu. Precisava admitir que o homem era louco.

— Seu rosto foi restaurado à sua beleza anterior. —Richard se virou para Jason. — Você vaicumprir sua parte do acordo?

Jason se levantou e puxou o capuz de seu casaco sobre o rosto. — Claro, meu velho. Estoudentro. Você disse que o navio atracará à meia-noite. Onde estão planejando atracar?

— Na baía Teal.

— Encontre-me a três quilômetros ao norte hoje às dez.

Ele saiu da sala, Miko a reboque.

— E agora? —Charlotte perguntou.

— Agora vamos para a cidade, —disse Richard. — Eu tenho contatos aqui. Vamos precisardeles esta noite.

******À LUZ DO DIA, Kelena não parecia nada melhor, Charlotte refletiu, caminhando comRichard ao longo do canal. O cheiro também era o mesmo. Pelo menos o cadáver tinha sumido,provavelmente levado para dentro do mar pela maré. Eles haviam deixado o cão na casa deJason. Ela não percebeu o perigo para o cão quando chegaram, mas Richard apontou que, semordesse alguém, provavelmente matariam e jogariam o cão no canal mais próximo. Eles otrancaram em um quarto e deram a ele um osso de vaca da cozinha de Jason.

Richard entrou no beco estreito entre as casas, mal largo o suficiente para deixá-los andarlado a lado. O beco se abria para um pequeno pátio, formado pelas altas paredes dos edifícioscircundantes. Outro beco muito mais largo à direita saía do pátio e três homens bloqueavam aentrada.

Eles não pareciam amigáveis.

A garganta dela se apertou. Seu pulso acelerou e um peso desconfortável encheu seu peito.Charlotte engoliu em seco, mas o aperto se recusou a se dissolver.

Haveria uma luta.

É apenas uma reação física, disse a si mesma. É apenas medo. Sua raiva e indignação acobriram ontem como uma armadura, entorpecendo-a, mas essa armadura derreteu durante anoite. Ela estava muito ciente de que estava viva. E estava com medo.

Charlotte endireitou os ombros. Tinha que lidar com isso.

O homem da frente, duro, grande, careca, com redemoinhos de tatuagens escuras em seucouro cabeludo pálido, sorriu. Seus lábios se esticaram anormalmente largos, mostrando uma

boca cheia de presas de cinco centímetros de comprimento. Tiras pontiagudas de metal cobriamos nós dos dedos dele.

A magia do homem a envolveu, arranhando a pele dela como um punhado de areia afiada.Uma repulsa familiar afogou Charlotte. O medo aumentou nela. O homem tinha sido alteradocom magia ilegal, o tipo que o Ducado de Louisiana usava para criar os agentes secretos da Mão.Ela já havia lidado com isso antes. Uma alteração por magia tornava suas vítimas mais fortes,mais rápidas e mais mortais. Também roubava a humanidade delas e era quase sempreimpossível de reverter.

Charlotte se concentrou nos dois amigos da Boca-de-Crocodilo. O da esquerda era alto,armado com uma clava curta de metal do tamanho de um punho. O da direita, mais magro eprovavelmente mais rápido, carregava duas facas. A erupção vermelha no pescoço do homemcom as facas indicava um caso de lury avançado, algo que comumente acontecia quando se fazsexo com parceiros insalubres e sem medidas de proteção.

Dos três, a aberração Boca-de-crocodilo representava a maior ameaça. Charlotte sentiu suamagia mexer dentro dela. Ela bocejou, espreguiçou-se, como um gato saindo de uma soneca, elambeu os dentes, faminta. Uma infecção não mataria rápido o suficiente. Ela teria que rasgá-lose tentar causar falência de órgãos.

— O homem com dentes estranhos é um aprimorado com magia ilegal, —ela murmuroupara o benefício de Richard. — O das facas tem uma virilha inchada, provavelmente muitodolorido.

Ele piscou. — Obrigado. Vou levar isso em consideração.

Ela nunca havia ferido alguém de forma direta e rápida antes. Uma infecção, sim, mas nadaque causasse hemorragia interna, exceto quando feriu Elvei. Um gosto acobreado apareceu emsua língua. Adrenalina.

O Boca-de-crocodilo percebeu que sua exibição de dentes não estava surtindo o efeitodesejado. — Estão perdidos? —Ele gritou, sua voz profunda.

Richard continuou andando. Ela o seguiu, os tentáculos de magia sombria girando dentrodela.

— Não se preocupe, vamos mostrar a você e a sua cadela a direção certa.

— Quanta gentileza da sua parte, —disse Richard, e então se moveu.

Num momento ele estava ao lado dela, no próximo ele estava esmurrando a mão na gargantado Boca-de-crocodilo. O homem deu um salto para trás e Richard o girou sobre o braço, jogandotodo o peso do oponente no chão. Antes que o líder batesse no chão, Richard deu um chute no

joelho do agente que segurava a clava. A cartilagem estalou, a perna dobrou-se para o ladoerrado e o homem desabou. Richard pegou a clava, a puxou da mão do homem que caía e giroupara o lutador das facas. O cabo da clava dançou na mão de Richard, afundando golpes sólidos—cabeça, tórax, virilha—e o lutador das facas caiu no chão, se enrolando em uma bola.

O Boca-de-crocodilo ergueu-se e avançou sobre Richard, com as mãos estendidas e oqueixo aberto. Richard empurrou o braço direito do atacante para o lado, travou a mão no pulsodo homem, puxando-o para baixo, esmagou o cabo da clava contra o conjunto de nervos na basedo pescoço exposto do homem e o atingiu novamente logo abaixo do queixo.

O grande homem cambaleou, como se estivesse bêbado, agitou os braços, lutandodesesperadamente para se manter de pé, depois meio sentado, meio caído no chão, os olhosatordoados.

Charlotte fechou a boca.

Aconteceu tão rápido que ela nem ajudou. Simplesmente ficou lá. A Curadora nelacatalogou os ferimentos: uma garganta traumatizada, uma laceração no ligamento cruzadoposterior do joelho—pelo menos uma parcial. Uma ruptura completa era mais provável comimpactação da face anterior do côndilo femoral35 contra a face anterior do planalto tibial36.Richard chutou o atacante com tanta força que atingiu os ossos da perna, machucando o fêmur ea tíbia37. A cura para uma ruptura inteira como essa só seria possível se um Curador como ela ocurasse ou fosse feito um enxerto de ligamento, porque uma vez que o ligamento se rompecompletamente, nenhum cirurgião pode costurá-lo novamente. Duas concussões—uma leve, umagrave—um pescoço torcido, um braço torcido, vários hematomas e três dignidadesirreparavelmente danificadas. Tudo em menos de cinco segundos. E ele nem mesmodesembainhou sua espada.

Richard se aproximou dela e estendeu a mão. Em estado de choque, ela pousou os dedos nosdele e ele a ajudou a passar por cima dos corpos e entrar no estreito beco que saía do pátio.

Fale alguma coisa, ela disse a si mesma. Falar vai lhe fazer parecer confiante. Charlottenão podia permitir que ele soubesse que tinha a deixado chocada. Ela tinha que parecer fria econtrolada, porque isso é o que ele precisava em um parceiro. — Achei que Jason controlavamelhor o território dele, —disse ela. Sua voz parecia normal. Ela esperava que tremesse.

— Os três provavelmente eram capangas de Jason, —disse Richard.

— Como assim?

— Você o humilhou, —disse Richard. — É assim que ele escolheu demonstrar odescontentamento dele.

— Suponho que agora você vai apontar que isso é o que acontece quando eu resolvo que ireifalar por mim mesma. —Apenas tente ...

— Colocar culpa em você seria satisfatório para mim, mas não seria totalmente preciso.Visitei a cidade em quatro ocasiões desde que ele assumiu o controle do Caldeirão e Jasonsempre preparou uma bela surpresa para mim. A mais difícil foi uma mulher Erkiniana. Lutamospor três minutos inteiros e pensei que ela fosse me matar.

Richard e Jason pareciam ter uma relação de amor e ódio. Jason admirava Richard—elahavia lido isso no rosto dele e na maneira como ele o olhava—e queria a aprovação de Richard,ao mesmo tempo que se ressentia de Richard por isso. — Jason tem problemas com a figurapaterna, não é? —Ela perguntou.

— Sim. —Richard suspirou.

— Nesse caso, é bom que você seja um Processador de alimentos humano, —disse ela.

— O que? Não entendi.

— Um Processador de alimentos. É um aparelho do Broken. Você coloca vegetais nele,aperta um botão e o aparelho os corta em pedacinhos.

Richard franziu a testa. — Por que alguém precisaria de um eletrodoméstico para picarvegetais? Não seria mais fácil cortá-los com uma faca?

— O objetivo é economizar tempo, —ela explicou.

— Será?

— Bem, limpá-lo geralmente consome a maior parte do tempo que você economiza aocortar.

— Então você está me dizendo que sou um inútil.

— É um aparelho bacana!

— E eu sou difícil de limpar, aparentemente.

Ela verificou seu rosto. Minúsculas faíscas dançavam nos olhos dele. Ele estavaprovocando-a. Bem. Se é assim ... — Considerando a discussão de ontem à noite, acho que vocêé extremamente difícil de limpar.

— Provavelmente há uma réplica para essa sua provocação que não seja indecente, —disseele. — Mas não consigo pensar em nenhuma.

Eles chegaram ao meio do beco. Um morador de rua estava sentado na calçada imunda, umafigura triste e curvada envolta em trapos. Seu cabelo caía sobre o rosto em um emaranhado

oleoso e cinza. Um fedor amargo de peixe podre subia de suas roupas. Ele parecia velho ecansado, seu rosto uma confusão de fuligem. A sujeira estava tão endurecida que ela malconseguia ver os olhos dele, suas pupilas eram de um branco leitoso. O homem estava sofrendode catarata.

O mendigo ergueu sua xícara e a sacudiu para Richard.

Richard olhou para o mendigo. Sua expressão não mudou, mas seus olhos ficaram maisescuros. Richard se abaixou e colocou uma moeda na xícara. — Terceiro dente, —disse ele, suavoz quase um sussurro. — Duas horas. Leve seu irmão.

O mendigo puxou sua xícara, sua cabeça caindo mais para baixo.

Richard endireitou-se e a segurou com firmeza pelo cotovelo dela. Seu toque era leve, masCharlotte percebeu que não seria capaz de escapar. Richard a puxou para longe do mendigo, pelobeco.

— Não olhe para trás, —ele murmurou. — Aquele era George.

O desejo de dar meia volta era opressor. — George Drayton? George de Éléonore?

Ele assentiu.

Seu coração bateu mais rápido. Os meninos teriam que saber o que aconteceu com Éléonore.Ela era sua avó. Eles mereciam saber. A garganta dela se fechou. O que ela diria? Não haviacomo amenizar o golpe. Seria devastador. Ela era uma mulher adulta, e ver o corpo de Éléonorequeimado abriu um buraco em sua vida que se encheu de tristeza, culpa e raiva.

Eram crianças que conheceram Éléonore por toda a vida. Ela era o porto seguro de suasinfâncias, a única pessoa além de sua irmã que os amava de qualquer maneira e nunca osabandonaria. Éléonore tornou o mundo deles mais seguro, e agora aquela ilusão de segurançaseria destruída. Charlotte engoliu em seco. Ela tinha que encontrar as palavras certas de algumaforma.

Ocorreu a ela que George estava sentado em uma rua suja. — Por que George está vestidode mendigo? Achei que a família Camarine tivesse adotado os meninos?

— Ele e o irmão trabalham para o Espelho.

Eles são espiões? Espere um minuto. — Richard, George tem apenas dezesseis anos. Jackdeve ter quatorze anos.

Richard levou um segundo para olhar para ela. — E?

— Eles não são muito jovens? Mal são adolescentes.

— Algumas crianças são menos infantis do que gostaríamos que fossem, —disse ele. — Na

idade de George, eu matei duas pessoas e vi a cabeça do meu pai explodir quando ele foi morto atiros em um mercado. O que você estava fazendo aos dezesseis anos, Charlotte?

O longo campo de batalha cheio de pessoas gemendo emergiu de sua memória. O cheiroacobreado de sangue, misturado com o fedor tóxico de magia distorcida e o cheiro de fumaçasubindo da cidade a alguns campos de distância.

— Aos dezesseis anos, eu estava curando as vítimas do Massacre do Vale Verde.

— E George está disfarçado para ...

Um garoto disparou para o beco em frente, escorregou no lixo, se controlou e correu emdireção a eles. Cabelo castanho-avermelhado, cortado curto, rosto bonito, olhos escuros,completamente selvagem de excitação. Ela já tinha visto esse garoto antes em uma fotografia ...Jack!

— Corre! —Jack gritou. — Corre! Anda, George!

Atrás dele, uma multidão de pessoas enfurecidas invadiu o beco, brandindo facas ecassetetes.

O mendigo George levantou-se de um salto. — O que você fez?

— Ali está ele! —O homem à frente da multidão rugiu. Uma pedra passou assobiando porsuas cabeças, ricocheteando na lateral do prédio.

— Corre! —Jack gritou.

Um flash azul disparou na multidão—alguém havia disparado. Ah não.

Jack pulou quase dois metros no ar, evitando o raio brilhante de magia por um fio de cabelo,ricocheteou na parede e correu direto para eles.

— Oi, Richard, oi, linda senhora! —Jack passou correndo por eles.

Richard agarrou a mão dela. — Temos que correr!

Eles começaram a correr e acompanharam, Jack, correndo rápido pelas pedras deparalelepípedo. George xingou e jogou algo sobre suas cabeças em direção a multidão. Umaexplosão seca estourou atrás deles. Charlotte olhou por cima do ombro. Uma nuvem de fumaçadensa e branca encheu o beco. Pessoas tossiram.

O chicote de brilho azulado do flash de alguém saiu da fumaça, lambendo as pedras.Alguém nesta turba estava jogando magia cegamente.

Esta cidade era uma loucura.

Eles atravessaram o pátio e o beco estreito, irromperam no calçadão e seguiram pela rua. A

entrada para o esconderijo de Jason passou voando. O ar ficou quente nos pulmões de Charlotte.

Um pequeno cais de madeira erguia-se à esquerda. — Virem a direita! —Richard gritou altodemais e saltou do calçadão para a água escura, puxando-a com ele. A água morna a engoliu.Charlotte engoliu um gole de líquido salgado e quase afogou. Só Deuses sabiam que tipo decontaminação havia nessa água.

Charlotte deu um chute e voltou à superfície, cuspindo a água. Richard a puxou para baixodo cais, no momento em que duas outras pessoas atingiram a água a trinta centímetros dedistância. Um momento, e George e Jack surgiram na superfície ao lado deles. Os quatro seamontoaram sob o cais, com as costas contra a parede do canal, entre espuma suja e lixo.

A multidão espalhou-se pelo calçadão. Charlotte prendeu a respiração.

— Eles viraram a direita! —Alguém gritou. — Para o Beco dos Juncos!

Botas batiam acima deles, jogando gotas de água das tábuas do cais sobre eles.

A criatura imunda e molhada que era George ergueu a mão, lançou um olhar mortal para oirmão e passou o polegar pelo pescoço, como se estivesse cortando-o com uma faca. Jack sorriu.

Um peixe morto flutuou das profundezas ao lado de Charlotte. Ai credo. Ela o empurrousuavemente para o lado com os dedos.

O último dos retardatários passou correndo, o barulho da multidão recuando.

Richard caminhou para a esquerda, caminhando ao longo da parede do canal em um ritmoacelerado. Ela esperou para ter certeza de que as crianças o seguiam e seguiu atrás deles.

Quinze minutos e dois canais depois, eles escalaram o calçadão. Jack se sacudiu. Água sujaescorria dos trapos de George em riachos sujos. Seu cabelo pingava. Ele olhou para seu irmão,seu rosto sombrio. Se os olhares pudessem colocar fogo, Jack teria se transformado em umfósforo queimado.

Charlotte respirou fundo, esperando por um pouco de ar fresco e não o encontrou.

Suas próprias roupas encharcadas cheiravam a algas rançosas. A água encheu seus sapatos,e algo viscoso havia se firmado sob os dedos do pé esquerdo.

Richard entrou em outro beco e ela o seguiu, mancando e fazendo barulhos úmidos naspedras do calçamento. Os meninos ficaram na retaguarda.

Ninguém disse nada nos dez minutos seguintes até que Richard parou diante de umarmazém. A pequena porta de madeira se abriu. Uma mulher saiu na frente deles, carregando umbalde de metal cheio de água ensanguentada. Ela jogou o conteúdo no canal.

Excelente. Maravilhoso. Uma vez que eles estivessem em algum lugar seguro, ela sentaria

todos e verificaria se estavam infectados.

Richard segurou a porta aberta, seus olhos examinando o calçadão. Charlotte passou pelaporta e entrou em um grande ginásio. Homens e mulheres, despidos e suados, socavam echutavam pesados sacos de areia. Um homem e uma mulher, ambos musculosos com definiçãonítida, treinavam nas esteiras de junco, outro par de lutadores se enfrentava, com as mãoslevantadas, no ringue amarrado sobre uma plataforma de madeira. Um barulho pairava sobre oscorpos musculosos: o staccato rápido de pequenos sacos de pancadas sendo atingidos, asbatidas de chutes martelando nos sacos maiores, gritos guturais e respiração rítmica.

Charlotte deu um passo à frente. Tudo parou. O ginásio ficou completamente silencioso.Como um só, os lutadores olharam para ela. Nenhum dos rostos era amigável.

Isso não é bom. Ela endireitou os ombros, levantando a cabeça. Atrás dela, Jack respiroufundo. Richard passou pela porta e caminhou à frente dela, alheio à hostilidade na sala.

Um homem de meia-idade e obeso se afastou do ringue e caminhou na direção de Richard,seus passos sem pressa. Uma cicatriz, apenas a um fio perto de seu olho esquerdo, cortava orosto bronzeado dele. Metade do lóbulo da orelha direita tinha sumido, a borda do antigoferimento era rasgado e irregular. Ferimento por mordida, Charlotte concluiu.

Se houvesse um problema, ela empurraria os adolescentes para fora e bloquearia a porta.Pelo menos conseguiria alguns minutos para os meninos fugirem.

Richard e o homem obeso se encontraram no meio da sala. Os olhos do homem estavamsombrios.

Aqui vamos nós.

O homem acima do peso abraçou Richard, se virou e voltou para o ringue.

Os socos e grunhidos recomeçaram. Richard acenou para eles. — Sala dos fundos.

Assim que estivessem sozinhos, ela iria socá-lo, Charlotte prometeu a si mesma. Não, não,ela não faria, porque recorrer à violência física não era adequado. Por outro lado, pode serconsiderado legítima defesa. Se ela morresse como resultado desta jornada, não seria por causados traficantes. Seria porque a incapacidade de Richard de se comunicar lhe causaria um ataquecardíaco.

******RICHARD FECHOU a porta da sala dos fundos do Barlo e olhou ao redor: uma mesalonga, dois bancos, uma pia com uma unidade de congelamento ao lado e uma balança ... vazio.Barlo usava essa câmara como uma das duas salas onde os lutadores se aqueciam antes dos

combates.

Seu batimento cardíaco desacelerou. Muito de sua vida nos últimos meses tinha sidopassada esperando, calculando, observando. Momentos como este, nascidos da excitação e doperigo, quando ele corria ao longo do fio de aço de sua espada, comparando sua inteligência comoponentes, eram quando ele se sentia verdadeiramente vivo. Seu coração batia forte, o mundoparecia mais brilhante, as experiências mais nítidas e ele amava cada pedacinho disso.

— Richard!

Ele virou.

Charlotte o enfrentou. Sua túnica molhada moldava-se a ao corpo dela, e seu cabelo, que elahavia prendido em um nó elegante, tinha se desfeito e caído sobre seu rosto. Aquele ar dedistanciamento e civilidade tinha ido embora, como se alguém tivesse pegado um gato elegante,dado uma surra severa e jogado um balde de água nele. A expressão de Charlotte tinha o mesmochoque, indignação e promessa de violência.

Se ele risse, ela provavelmente o mataria. Literalmente.

Charlotte abriu a boca, a fechou com força e tornou a abri-la ...

Ele se esforçou para manter o rosto solene. — Minha senhora?

— Palavras.

Ela parecia à beira de desabar ou gritar. Era melhor pisar com cuidado. — Palavras sãoboas, —ele concordou.

Ela ergueu as mãos. — Eu quero dar um soco em você.

Richard quase se dobrou. Ele levou uma aristocrata por excelência à violência crua. Tinhaque ser sobre o que aconteceu no canal. Oh, que indignidade. — Eu sei que a água não era amais limpa, mas não tínhamos alternativa. —Ele deixou a máscara cair um pouco e sorriu. —Prometo a você, vai ficar tudo bem. Antes que você perceba, estaremos aquecidos e secos.

— Eu não me importo com aquele canal dos infernos! Palavras simples, Richard! Como‘Estamos seguros’ ou ‘Eles não vão nos machucar!’ Ou ‘Ele é um velho amigo’. —Ela fez umbreve movimento de corte com as mãos. — Alguma coisa! Achei que íamos levar uma surra.

Uma surra? Aqui? No Barlo? Ela achava que ele a levaria para algum lugar onde estariainsegura? — Você sempre esteve segura. Eu a trouxe aqui.

— Você também me levou para a casa de Jason, onde então dormiu segurando uma espada.

Oh, mas essa agora. Ele deu um passo na direção dela. — Eu lhe asseguro, minha senhora,que sempre esteve perfeitamente segura. Se alguém colocasse a mão em você, eles a perderiam, e

todos dentro daquele lugar sabiam disso.

Charlotte apertou as mãos. — Que raiva!

— Estou apenas tentando esclarecer. —Ele sabia que deveria deixar isso passar, mas a ideiade que estupidamente a colocaria em perigo o irritava inexplicavelmente. — Deixe-me ver seentendi, você quer que eu lhe diga quando estaremos em perigo ou quando estaremos seguros.Percebe que pode não haver uma oportunidade para avisá-la todas as vezes?

Charlotte se sentou no banco. — Eu me daria por satisfeita se fosse pelo menos algumasvezes.

Richard não conseguiu se conter. — Por mais chocante que pareça, ocasionalmente terá queconfiar em seu próprio julgamento. Por exemplo, se estamos fugindo de uma multidão,provavelmente não estamos seguros.

O olhar de Charlotte era mais afiado do que uma faca. — Mais uma palavra de zombaria e oinfectarei com o papilomavírus38.

Charlotte sabia como fazer uma ameaça. O que há com essa mulher? — Por favor, me diga,o que seria isso?

— Verrugas, —disse George.

Rir estava fora de questão, ele lembrou a si mesmo. — Me desculpe. Permita-me remediar asituação usando palavras: estamos seguros aqui. Barlo é um velho amigo. Seus lutadores meconhecem. Podemos falar abertamente aqui.

Ela abaixou a cabeça.

George arrancou a massa encharcada de cabelo de sua mão e a atirou do outro lado da salaem seu irmão. Jack se esquivou e a peruca respingou na parede.

— Seu idiota!

— Eu? —Jack piscou, uma expressão de inocência angelical em seu rosto.

— Você mesmo! —Um brilho branco revestiu os olhos de George. — Duas semanas! Passeiduas semanas de olho em Parris, e você estragou todo o meu trabalho. Tudo que você tinha afazer era ficar fora do caminho e observar os capangas de Parris saindo. O que diabos fez?

Jack encolheu os ombros. — Eu roubei um peixe.

Richard escondeu uma risada. Se ele tivesse uma moeda para cada vez que ele e Kaldartiveram essa mesma conversa ...

Os olhos azuis de George se arregalaram. — Por quê?

— Estava com fome. E entediado. Mas principalmente com fome. —Jack abriu os braços.— Olha, eu peguei um peixinho e o cara começou a gritar, então dei um tapa nele. Não foi minhaculpa que ele tropeçou e caiu em uma barraca de frutas. Então eu ri e todos começaram a meperseguir.

A raiva escrita no rosto de George implodiu em determinação gelada. Sua voz estavarepentinamente calma. — E então você tinha uma multidão enfurecida te perseguindo. Por quediabos você os levou em minha direção?

Jack arregalou os olhos com uma sinceridade zombeteira. — Porque você precisava de umbanho.

George puxou os trapos pela cabeça e os jogou no chão. Ele usava uma túnica e calça cinzae preta. Boa escolha, decidiu Richard. As roupas abraçavam seu corpo, permitindo amplaliberdade de movimentos. Nos poucos anos em que o conhecia, o menino tinha crescido. Georgenunca seria um homem grande, mas tinha aquela combinação devastadora de músculos magros,rapidez e disciplina que tornava alguém um espadachim letal.

— Duas semanas naquele beco. Chuva, calor, pessoas me chutando enquanto passavam. Evocê decidiu que eu precisava de um banho.

— Água seria bom para você. Estou falando sério. Você estava imundo.

— Humm, —disse George.

— Você tem ideia de como estava fedendo? —Jack torceu o nariz.

— Eu precisava está fedendo. Estava disfarçado de um mendigo. Você estragou meudisfarce.

— Seu disfarce já tinha sido descoberto, —disse Richard. — Parris sabe que o Espelho temo observado.

— Viu? —Disse Jack.

— Isso não vem ao caso. Você arruinou duas semanas de trabalho porque estava entediado.Agora, serei retirado desta tarefa e outra pessoa terá que assumir o meu lugar.

Jack encolheu os ombros, um pouco menos seguro de si. — Bom. É verão. Tudo que vocêfaz é trabalhar. Talvez possamos finalmente nos divertir um pouco.

— Eu vou matar você, —disse George calmamente.

Outra lembrança familiar. Essa briga tinha que seguir seu curso, ou iria apodrecer.

— Rapazes, —Charlotte começou a dizer. — Eu realmente acho que não ...

Um brilho amarelo rolou sobre as íris de Jack. Ele era dois anos mais novo, mas já damesma altura que George e mais largo nos ombros, com o início de uma musculatura poderosa.Benefícios de seu sangue metamorfo. Apesar de que, ser mais encorpados também tinha muitasdesvantagens.

Jack acenou para George. — Pode vir.

George se lançou para frente, balançando o braço. Jack moveu-se para bloquear. No meiodo soco, George girou, ganhando velocidade, saltou e chutou o irmão no peito. Jack saiu voandopela porta e entrou no ginásio.

Muito bem, cara!

Charlotte ofegou.

George caminhou até a porta com uma expressão determinada no rosto.

— George! —Charlotte gritou.

Ele girou na ponta dos pés, fez uma reverência elegante e disse: — Com licença, minhasenhora. Isso não vai demorar muito, —e saiu.

Charlotte olhou para Richard. — Por que você está parado aí?

— Eles são jovens. Normal, —disse ele, e segurou a porta aberta para ela. — É melhor queresolvam agora e acabem logo com isso.

Ela suspirou, levantou-se e saiu para o ginásio.

Os dois garotos dançavam pelo chão, lançando uma enxurrada de chutes e socos,bloqueando, girando, pulando. As atividades ao redor pararam e os lutadores os observavam.Jack claramente tinha força e velocidade superior, mas George havia treinado muito. Seusmovimentos tinham a segurança nascida de muitas horas de treinamento, enquanto Jack lutavapor instinto. Apesar do instinto dele raramente errar, Richard refletiu, enquanto George deslizavapelo chão depois de dar um chute poderoso. Mas instinto não substituía uma boa prática. Aindaassim, desde que William, o marido metamorfo de sua prima, assumiu o treinamento de Jack, omenino mostrou uma melhora notável.

George ficou de pé, avançou, ficando dentro da guarda de seu irmão e prendeu as mãos nobraço de Jack. Golpe de três pontos ao norte, Richard diagnosticou. Jack tentou contra-atacarcom o golpe inferior ao sul—influência de William—mas o golpe de três pontos era quaseimpossível de parar, e George tinha conseguido uma boa pegada. Cair, virar, virar. Jack vooupelo ar e George o jogou no chão. As costas de Jack bateram no chão.

Ai. Richard fez uma careta de simpatia. Isso deve ter doído.

George se agachou em cima dele e prendeu seu braço em uma barra. Os lutadoresaplaudiram. Ao lado dele, Charlotte estremeceu novamente. Assistir uma luta do ponto de vistade um Curador provavelmente devia ser mais difícil. Ele decidiu tranquilizá-la. — Eles sãomuito cuidadosos um com o outro. Por exemplo, essa queda foi projetada para incapacitar oadversário. Um quarto de volta para a direita e Jack teria batido o pescoço.

Ela deu a ele um olhar ilegível.

Ele se sentiu obrigado a explicar. — George poderia ter quebrado a coluna de Jack ...

Ela ergueu a mão. — Richard, pare de tentar me fazer sentir melhor. Você está tornandotudo pior.

— Não seja idiota, —disse George, pressionando o braço de Jack. — Você perdeu.

— Estou apenas descansando, —disse Jack com os dentes cerrados.

— Acabou, —disse George.

Eles estavam em um impasse. Jack não admitiria a derrota e George, apesar de toda a suaraiva, não deslocava o braço de seu irmão. Ele deu um passo à frente para separá-los, masCharlotte o adiantou.

Ela atravessou o ginásio e se agachou perto dos dois adolescentes. — Isso é o suficiente,George. —Ela gentilmente colocou a mão dela nos dedos do braço que George segurava seuirmão. — Eu tenho algo muito importante para dizer a vocês dois, e isso não pode esperar.

— É uma boa notícia? —Jack gritou.

Profunda tristeza refletiu no rosto de Charlotte. — Não. Não é.

George soltou o braço de Jack. Os meninos ficaram de pé.

— Venham, —disse ela, pegando um braço de George, o outro a Jack, e conduziu os dois devolta para a sala.

seis— MEU NOME É CHARLOTTE. —QUERIDA DEUSA, não haviapalavras certas.

Charlotte respirou fundo. — Sua avó pode ter mencionado meu nome.

— Você é a moça que alugou nossa casa, —disse Jack.

— Sim. —Ela acenou com a cabeça.

George se inclinou para frente. — Algo aconteceu com a vovó. —Não foi uma pergunta.

— Sim, —ela respondeu de qualquer maneira. — Eu sou uma Curadora. Richard foi ferido efugia de traficantes. Ele chegou a Laporte do Leste e acabou perdendo a consciência. Alguém oencontrou e o trouxe até mim para que eu pudesse curar os ferimentos dele. —Ela engoliu emseco. — Sua avó e eu éramos muito próximas. Ela sempre foi gentil comigo. Era minha amiga.

As palavras ficaram presas na garganta de Charlotte. Ela as forçou a sair, cada somcortando-a por dentro. — Éléonore estava comigo quando Kenny levou Richard para nós. Haviatambém conosco outra jovem acompanhada da irmã dela.

O peito dela estava pesado. Uma dor se instalou, rolando ao redor de seu coração como umabola de chumbo. George e Jack olhavam para ela, e ela não conseguia desviar o olhar. O som daprópria voz soou estranha.

— Eu curei Richard. Ele havia perdido muito sangue, então saí para comprar. Enquanto euestava fora ...

Ela não iria conseguir fazer isso. Não tinha coragem de dizer as palavras.

— Os traficantes queimaram a casa e assassinaram uma das moças e sua avó, —disseRichard. — Éléonore está morta.

Charlotte viu o momento preciso em que o significado das palavras penetrou em George.Ele deu um pequeno passo para trás. Seu rosto estremeceu e seus ombros caíram para frente,como se tivesse sido apunhalado e quisesse se enrolar em uma bola para proteger o ferimento.

— Não, —disse Jack. — Há pedras de proteção ao redor da casa. Tem pedras ao redor dacasa! Ninguém pode entrar.

Os olhos de George brilharam em luz branca. A luz aumentou, derramando-se comolágrimas de relâmpago em suas bochechas. Ele entonou algo selvagem sob sua respiração. Elasentiu a magia crescer ao redor dele. Os minúsculos pêlo de sua nuca se arrepiaram. Imensopoder. Imenso poder. A magia de George se construiu sobre si mesma, como uma avalanche.

— Pare! —Ela gritou. — George, não ...

A magia atingiu o ápice e quebrou. Uma luz branca disparou dos olhos e boca dele. Georgebrilhava de dentro para fora por todos os poros, deixando sua pele iluminada. Éléonore disse aela que o menino era um necromante. Mas nunca disse nada sobre isso.

Os pés de George deixaram o chão. Ele ficou pendurado no ar vazio. A magia dele sechocou contra Charlotte como uma onda de choque. Ela ofegou e o viu através das lentes de sua

própria magia. Ele brilhava como um farol radiante de luz, seu poder focado em um feixe,procurando na escuridão.

A voz fantasmagórica de George ecoou na mente dela.

— Mémère. Mémère, sou eu. Responda-me. Responda por favor.

Por favor, Mémère.

O desespero nas palavras do rapaz a alagou. As lágrimas aqueceram seus olhos. Ele estavaindo muito longe, além da fronteira do Weird, atravessando o Edge. Era impossível, mas eleestava fazendo isso.

— Por favor, Mémère. Eu te amo tanto. Responda por favor.

A voz, impregnada de tanto amor e esperança, arrancou lágrimas dela. Lágrimas quentesmolharam as bochechas dela. Alguém colocou os braços em volta dela e ela percebeu que eraRichard. Ele a abraçou. Ela sabia que precisava se afastar, mas precisava do calor dos braçosdele, o vínculo com outro ser humano enquanto ele está à deriva em um mar da angústia, comoestava agora George, a dilacerava.

— Mémère ... —A voz fantasmagórica de George implorou.

A escuridão não respondeu.

— Por favor, não me deixe. Por favor ...

A luz brilhante diminuiu. A magia cessou e George caiu, agachando-se. Suas pernascederam e ele se sentou desajeitadamente no chão.

— Ela se foi, —disse ele, sua voz tão jovem.

Ela se afastou de Richard, caiu no chão e abraçou o rapaz. — Eu sinto muito. Eu sinto muito

A pele de Jack rasgou. Uma explosão selvagem de músculos e pele surgiu, e um enormelince pousou no chão. O grande gato rosnou e saiu correndo porta afora.

Richard se levantou de um salto. — Eu vou cuidar dele. Ele saiu atrás do lince.

George olhou para o chão, seu olhar distante. Nenhuma palavra resolveria isso. Nada do queela dissesse faria qualquer diferença, então se sentou ao lado dele e o abraçou. Era tudo o quepodia fazer.

******Richard correu porta afora. O calçadão estava vazio. Ele parou por um segundo preciosopara pegar um conjunto de roupas sobressalentes de Barlo, e agora Jack havia sumido.Metamorfos como Jack não eram exatamente bem-vindos na sociedade. Suas mentes

funcionavam de forma diferente das pessoas normais. Eles tinham problemas para entender asrelações humanas e as regras de comportamento, mas sentiam cada emoção profundamente, emuitas vezes essas emoções os levava à violência. O Ducado da Louisiana os assassinava nonascimento, enquanto Adrianglia os tratava como seu segredo sujo, transformando-os emsoldados em suas escolas militares prisionais.

Jack não foi entregue ao reino ao nascer, como a maioria de sua espécie. Ele cresceu emuma família amorosa, que fazia concessões à sua natureza. Kelena não seria tão gentil. Se elefosse localizado e identificado, alguém tentaria matá-lo.

Richard se virou, examinando os edifícios. O menino era rápido, especialmente em quatropatas, e não estava pensando com clareza. Os linces eram gatos das árvores; eles atacavam suaspresas dos galhos acima. Jack procuraria um lugar alto, onde pudesse ficar sozinho.

O armazém do outro lado do canal era muito baixo. Os arranha-céus distantes do DistritoComercial eram muito distantes e muito povoados. Para onde ele poderia ter ido?

À direita, uma das torres altas e pálidas dos Dentes-de-Kelena mais próximo raspava o céu.Alto e isolado. Um esconderijo perfeito.

Richard correu pelo labirinto emaranhado do Caldeirão, ao longo dos calçadões até a beirada água, depois continuou ao longo das docas que se estendiam até o oceano. O dia estavanublado e a água refletia o céu cinza.

Ele havia passado por muitas perdas em sua vida. Sua mãe foi a primeira a morrer, mortaaos 28 anos de um aneurisma. Richard se lembrava da aparência dela no caixão, uma imitaçãopálida e sem sangue de si mesma. Ele se perguntou por um momento absurdo se alguém haviasubstituído sua mãe por uma boneca. Seu pai foi o próximo. Marissa. Depois, tia Murid e Erian...

Richard gostaria de ter poupado George e Jack do mesmo destino. Mais uma vez, estavavendo crianças sofrerem e nada podia fazer a respeito.

A última doca terminou. À distância, as ondas quebraram contra os Dentes-de-Kelena,espirrando contra as bases de pedra das torres. A maré estava baixa e morrinhos de areiaapareciam aqui e ali. Richard arriscou e saltou. A água desceu até seus joelhos. Ele caminhou atéo trecho de areia mais próximo, em direção à torre mais próxima. Uma trilha de pegadas marcavaa areia. Passos de gato, sem garras. A trilha levava à torre.

Os Dentes-de-Kelena tinham guardiões que monitoravam o clima e ativavam defesasmágicas quando as tempestades chegavam. Eles ficavam vigiando em turnos dentro das torres.Richard começou a correr, movendo-se a toda velocidade, devorando a areia em longas passadas.

Adiante, um bloco de pedra deslizou para o lado na parede da torre, cerca de seis metros

acima da água. Mais pedras deslizaram das paredes, enrolando em uma espiral ao redor da torre,levando para baixo. Um homem saiu correndo, seus olhos selvagens, e desceu correndo asescadas recém-formadas.

Richard alcançou a torre. Finalmente.

O guardião espirrou água na direção dele. — Há um metamorfo na torre!

Richard enfiou a mão nas calças e tirou uma moeda de ouro. — Não há metamorfos natorre.

— Eu o vi! —O homem mais velho acenou com os braços. — Um gato enorme do tamanhode um cavalo!

Um cavalo era exagero. Um pônei na melhor das hipóteses. Richard pegou a mão dohomem, colocou a moeda de ouro nela e olhou nos olhos dele. — Não há metamorfos, —elerepetiu lentamente.

A compreensão surgiu nos olhos do homem. — Eu não vi nada.

— Isso mesmo. Vou precisar de sua torre emprestada por alguns minutos, depois vouembora, e estará seguro para você entrar.

Richard começou a subir as escadas.

— Se ele quebrar alguma coisa, você vai pagar por isso! —O guardião gritou. — E nãotoque em nada também!

Richard escalou as pedras que formavam a escada e se abaixou para entrar. Era incrívelcomo o medo diminuía rapidamente quando o ouro se envolvia.

Uma escada em espiral envolvia o núcleo de pedra da torre, iluminada pela luz de muitasjanelas. Ele subiu os degraus, cada vez mais alto, até que viu uma porta aberta no final da escada.

Um som cru e cheio de dor veio de cima. Não era um rosnado felino ou qualquer outro somque alguém esperaria que um lince fizesse. Era uma mistura de um uivo e um grito, violento ebrutal, e o som vibrava no ar. Se Richard tivesse pêlos, eles teriam se levantado em resposta.

Richard se sentou. Não havia necessidade de entrar. O menino precisava de privacidade.

Outro grito se seguiu, sem palavras e cheio de tristeza e culpa.

Richard encostou as costas na parede. Jack e ele, ambos eram homens, e os homens tinhamregras não ditas.

Muitos anos se passaram desde que seu pai morreu, e durante muitos desses anos sua tiaMurid cuidou dele e de Kaldar. Ele era quase um adulto quando ela o acolheu, mas se lembrava

de como doía. Ele se sentiu abandonado, apavorado, culpado por não estar lá, mas a únicaemoção que as regras permitiam que ele mostrasse era a raiva, então se enfureceu como umlunático. Tia Murid lidou com sua fúria inútil com a mesma perícia com que lidou com o rouboobsessivo de Kaldar. Ele e seu irmão perderam o controle da própria vida e fizeram muita merdamundo à fora. Era assim que podiam sentir que ainda estavam vivos. Mas mesmo nos momentosmais sombrios deles, os dois sabiam que eram amados. Eles tinham uma casa. Não era a mesmade antes, mas estavam gratos por isso.

Quando Richard tinha trinta e dois anos, a Mão atacou a família. Na batalha final com osespiões da Louisiana, Murid morreu. Ele não tinha a visto morrer, mas Kaldar sim. Richardlembrava vividamente de ter olhado para o corpo destruído dela. Ele se lembrou de sua dor nopeito e da expressão no rosto de Kaldar, o olhar vidrado de um homem cujas emoções haviam seafogado em profunda tristeza.

Eles não falaram sobre isso. Ficaram um ao lado do outro no funeral, com seus rostos empedra, porque essa era a coisa a fazer. Depois do funeral, beberam juntos como era apropriadopara uma família do Mire e seguiram seus caminhos separados dentro da casa Mar.

Richard subiu para seu quarto pensando que iria ler um livro. Em vez disso, se sentou emsua cadeira, catatônico, olhando para o nada, até que percebeu que estava chorando. Kaldartambém deve ter chorado. Nenhum deles jamais admitiria sua dor. Eles nunca falaram sobre isso.

A mulher que cuidou deles, os abrigou e os guiou, tomando o lugar de ambos os pais de umavez, havia morrido. Mas ele não conseguia consolar seu irmão, embora soubesse que os doisprecisavam desesperadamente desse conforto.

Agora Jack e George haviam perdido uma mulher que os amava e os protegia, e elesseguiram o mesmo padrão. Se transformar e sair correndo provavelmente foi o melhor para Jack.Se George quisesse sofrer livremente, ele poderia, porque Charlotte era uma mulher e suapresença não seria um impedimento. E Jack ...

Outro uivo desesperado rolou pela torre.

Ele falaria com Jack quando o menino terminasse. Havia coisas que precisava dizer, coisasque gostaria que alguém tivesse dito a ele ou a Kaldar anos atrás. Quaisquer que fossem asdiferenças que ele e Kaldar tivessem, eram irmãos, refletiu Richard. Eles lidavam com sua culpae dor da mesma maneira. Kaldar transformou a dor em uma obsessão insana em destruir a Mão.Mesmo o casamento com a mulher que ele claramente amava além de toda razão não fez nadapara tirar o propósito de seu irmão. Richard, por outro lado, escolheu ir atrás dos traficantes deescravos. Provavelmente havia um toque de loucura no que ele fazia. Não, talvez não sejaloucura. Fanatismo.

‘Fanático’. Era uma palavra antiga que originalmente significava ‘inspirado por deus’, e seuprimeiro significado era para descrever uma pessoa possuída por um deus ou demônio. Era umadescrição muito precisa, ele refletiu. Ele estava possuído, não por um demônio, mas pelanecessidade de corrigir um erro. Richard era um verdadeiro crente, sua causa era justa e ele seentregou a ela sem se arrepender. Mas, no fundo, era sobre desamparo. Quando Sophie parou detomar banho, parou de falar e saia correndo quando ele tentava perguntar por que, ele não podiafazer nada. Nunca se sentiu mais impotente em sua vida, nem mesmo quando sua esposa,Marissa, o abandonou.

Ele amava Marissa completamente, com absoluta devoção, e quando ela o deixou após doisanos de casamento, seu mundo inteiro se despedaçou. Richard decidiu que era uma boa lição.Eventualmente, quando conseguiu rastejar para fora do buraco profundo e escuro onde viveu pormeses, pensou que a experiência o havia curado do desejo por companhia feminina, assim comopensou que a vida que levava agora havia queimado toda a capacidade de sentir emoção. Masaqui estava Charlotte, e ela mexeu com algo dentro dele que o obrigou a responder. Ele não seconteve.

Se ele tivesse conhecido Charlotte antes de começar ... Era um pensamento intrigante, masfundamentalmente estúpido. Se ele tivesse a conhecido, ela não o teria dado uma segundaolhada. Charlotte era uma Sangue-azul e uma Curadora, provavelmente muito respeitada,enquanto ele era um rato do Mire sem nome, sem status, sem posição e meios muito modestos desustento.

E ainda assim não conseguia parar de pensar nela. Era assim que tudo começava, Richardrefletiu sombriamente. Pensando em uma mulher, imaginando como seria, visualizando-a. Umaatração puramente física ele poderia lidar, mas a viu em um momento de vulnerabilidade. Sabiaexatamente o que custava para ela segui-lo. Charlotte era corajosa, no verdadeiro sentido dapalavra. A experiência e o treinamento deram a ele uma vantagem, e raramente experimentavamedo agudo ao enfrentar um oponente. Na maioria das vezes, nem sentia ansiedade, como se suaalma tivesse ficado calejada. Talvez fosse porque simplesmente não tinha nada a perder.

Charlotte não tinha experiência em combate. Ela escondia bem o medo, mas ele estavaaprendendo a lê-la. Quando ela erguia o queixo e endireitava os ombros, era porque estava commedo. Charlotte ficou alarmada quando encontraram Jason Parris, amedrontada quandoenfrentaram os bandidos e assustada quando a multidão os perseguiu. Ainda assim, elacontinuou, superando seus medos todas as vezes. Essa força de vontade era digna de admiração erespeito. A humanidade dela a tornava fascinante e o atraía para ela. Ele queria saber mais sobreela. Queria poupá-la desse medo. Queria remover o que quer que estivesse causando desconforto

nela. No entanto, não havia maneira de fazer isso sem barrá-la nessa loucura, e ele havia feitouma promessa de respeitar a missão dela.

Jack saiu da sala. Ele estava nu e seus olhos estavam vermelhos.

Richard ofereceu-lhe as roupas. O menino se vestiu.

Richard se levantou. — Não há vergonha no luto. É humano. Você não fez nada de errado.Isso não o torna fraco e você não precisa esconder isso.

Jack desviou o olhar.

— Você não poderia ter evitado a morte da sua avó. Não coloque nenhuma culpa sobre simesmo. Culpe aqueles que são realmente responsáveis.

— O que aconteceu com os traficantes assassinos? —Jack perguntou, sua voz rouca.

— Sua avó matou alguns deles. Charlotte matou o resto.

Eles desceram as escadas lado a lado.

— Eu quero ir, —disse o menino.

— Ir para onde?

— Você é o Caçador. Está caçando traficantes. Quero ir com você.

— Como você sabe disso? —Se alguém tiver aberto a boca, ele vai ficar realmentechateado.

Jack encolheu os ombros com um ombro só. — Nós ouvimos você e Declan conversando.

— O escritório de Declan é à prova de som.

— Não para ratos reanimados, —disse Jack. — George quer ser um espião. Ele ouve tudo edepois me conta.

Fantástico. Declan e ele tomaram medidas extras: ativavam dispositivos e magia à prova desom e se encontravam durante a madrugada. Mas parece que mesmo com todos os cuidados,dois adolescentes conseguiram furar todas as precauções de segurança deles. Que reconfortante.E agora nem estava se sentindo um idiota completo, de jeito nenhum. Richard tinha certeza deque Declan não se sentiria um idiota também.

— Eu vou com você, —disse Jack.

— Absolutamente não.

Jack mostrou os dentes em um rosnado de dor feroz.

— Não, —disse Richard. — Não será uma aventura divertida.

— Kaldar, nos deixa ...

— Não. —Ele afundou determinação suficiente em sua voz para encerrar todas asdiscussões.

Jack fechou a boca e caminhou carrancudo ao lado dele. Eles deixaram a torre e seguiramem direção à cidade.

Esta luta não estava ainda ganha, Richard refletiu, olhando para a teimosa mandíbula dogaroto. E assim que voltassem, George se uniriam a Jack na luta. Se o pior acontecesse, Richardconvenceria Barlo a mantê-los trancados enquanto ele e Charlotte cuidavam do navio.

******— GEORGE, —Charlotte murmurou.

George continuou caído em seus braços, catatônico. Ela o examinou novamente. Semferimentos físicos. Muita magia, gasta muito rapidamente. Não tinha ideia se ele estava entrandoem coma permanente ou apenas descansando, exausto.

Eu não deveria ter te contado. Ela percebeu que tinha falado as palavras em voz alta.

— Ela era nossa avó, —disse George. — Nós tínhamos o direito de saber.

Charlotte exalou de alívio. Consciente. Finalmente.

O menino se afastou dela com muito cuidado, levantou-se e ofereceu-lhe a mão. Ela o pegoue se levantou.

— Richard valoriza a família acima de tudo, —disse George. — Ele teria nos contado sevocê não tivesse.

— Você sabe o que ele faz? —Ela perguntou.

George acenou com a cabeça.

— Então sabe que ele fará tudo o que puder para fazer justiça a sua avó, e eu também.

— Ela gostava de você, —disse George. — Ela nos contou muito sobre você. Vimos suafoto.

Charlotte engoliu em seco. — Sua avó foi muito gentil comigo.

— É por isso que você está com ele agora? —George perguntou.

— É complicado, —disse Charlotte. — Mas sim.

— Vamos nos juntar a vocês.

Ele disse isso com naturalidade, como se fosse a coisa mais natural do mundo para um

jovem de dezesseis anos se tornar um assassino. Não. Não enquanto ela estiver respirando.

— Não há lugar para crianças no que estamos prestes a fazer. Richard vai te dizer a mesmacoisa.

— Tenho dezesseis anos, —disse George. — Estou a menos de um ano de me tornaroficialmente um adulto. Eu preciso disso. Preciso fazer minha própria justiça. Você sabe comoeu me sinto. Você gostava dela. Por que me impediria?

— Olhe para mim. —Ela esperou até que ele encontrasse seu olhar. — Não. Faremos anossa parte e vocês dois cuidarão de Rose. Você tem minha palavra de que os traficantes pagarãopelo que fizeram. Vou lutar contra eles até acabar com eles, ou eles acabarem comigo. Esta é aminha batalha e você ficará fora dela.

— Exatamente, —disse Richard, abrindo a porta.

Jack entrou na sala.

— Sua irmã vai precisar de apoio. —Richard entrou e fechou a porta.

— Ela tem Declan, —Jack disse.

Richard se virou para ele, seu rosto repentinamente rígido. Charlotte lutou contra a vontadede recuar e Jack ficou tenso.

— É seu dever cuidar de sua família, e Rose e seu irmão são a única família que você temagora. Um homem não evita suas responsabilidades. Eu fui claro?

— Como um cristal, —disse George.

— Esta noite, um navio de traficantes vai atracar em um local secreto, —disse Richard. —Você nos observará embarcar e entregará o nome do navio ao seu cunhado. Ele vai rastreá-lo.Caso as coisas não saiam como planejado, Declan pelo menos terá essa informação. Isso é tudoque estou disposto a deixar vocês fazerem.

Jack abriu a boca.

— Pense antes de dizer qualquer coisa. —A voz de Richard não tinha piedade. — Porque,ao contrário do meu irmão, não tenho escrúpulos em nocautear vocês dois e pagar a Barlo para sesentar em cima de seus corpos até que estejamos no mar.

Jack fechou a boca com força.

— Nós aceitaremos, —disse George.

— Escolha inteligente. Eu tenho sua palavra de honra?

O rosto de George não mostrou dúvidas. — Sim.

— Esperem por mim lá fora.

As crianças foram embora.

— O que está fazendo? —Charlotte olhou para ele. — Por que envolvê-los, afinal?

— Porque a avó deles está morta e eles se sentem desamparados e com raiva. Permitir queparticipem dessa vingança aliviará essa raiva. Caso contrário, a dor os levará a fazer algoprecipitado, e nenhum de nós terá a oportunidade de salvá-los das consequências.

Obviamente, isso era um erro. — Como você está planejando evitar que eles embarquemnaquele navio?

Richard sorriu. — George me deu sua palavra. A honra é importante para ele.

Como pode um homem inteligente ser tão idiota? — Richard, você sentiu quanta magiaaquele garoto liberou? Se ele se importava tanto com a avó, uma vaga noção de honra viril não oimpedirá de ir atrás de vingança.

— Minha senhora, nós combinamos que você não me questionaria.

— Meu senhor, isso vai acabar em desastre.

Ele sorriu, um sorriso estreito e sardônico. — Então você vai me dizer, ‘eu te avisei’.

Era como discutir com uma parede de tijolos. Charlotte abriu a porta e saiu.

Ela tinha que se lembrar por que estava fazendo isso: se sacrificou e matou para queninguém mais sofresse como essas crianças estavam sofrendo agora. Lidaria com Richard eentraria naquele navio. Quando ela terminasse, os traficantes seriam pouco mais do que umahistória assustadora.

seteA NOITE CHEGOU RÁPIDO DEMAIS, CHARLOTTE REFLETIUENQUANTO dava tapinhas no focinho de seu cavalo. Ela estava debaixo de um carvalho.O cão estripador-de-lobo sentou-se aos pés dela e mostrava os dentes para qualquer um que seaproximasse demais. Na frente dela, cerca de quarenta pessoas se reuniram na clareira. A lua seescondia atrás das nuvens irregulares e a pouca iluminação que tinham vinha das altas tochas

colocadas ao longo da borda da clareira.

Cerca da metade do pessoal de Jason, os ‘traficantes’, usava uma variedade de roupas decouro e carregava armas. A outra metade, a maioria mulheres com roupas sujas, usavam facas eporretes escondidas sob as saias e camisas. Algumas usavam jeans do Broken, outras usavamvestidos do Weird. Aqui e ali as roupas estavam sendo estrategicamente rasgadas. Uma jovemcaminhou ao redor da multidão com um balde de sangue e um pincel e espalhou o líquidovermelho em corpos aleatórios.

Richard estava em algum lugar lá fora, se preparando. George e Jack se esconderam em umbom ponto de observação, prontos para desempenhar seu papel na missão. Ela e Richard haviamdeixado os Draytons a oitocentos metros de distância, com Richard dando-lhes instruções estritaspara ficarem fora da vista, ao que os dois adolescentes os informaram que não era a primeira vezdeles.

— Linda, —disse Jason ao lado dela.

O cão rosnou baixo. Ela acariciou a grande cabeça negra.

Charlotte não tinha ouvido Jason se aproximar. Ele usava um capuz de monge. Listras detinta branca cruzavam seu nariz e bochechas, enquanto uma faixa preta horizontal escurecia apele ao redor de seus olhos. Ele parecia assustador.

— Você não deveria se juntar a eles? —Ele acenou para os falsos escravos.

— Suponho que sim. —Ela se aproximou e ocupou seu lugar entre duas mulheres‘escravas’. A ruiva com o balde de sangue parou perto dela e casualmente pintou um pouco desangue em seu pescoço.

— De quem é esse sangue? —Charlotte perguntou.

A ruiva encolheu os ombros. — Não tenho ideia. Comprei no açougue. —Ela seguiu emfrente.

Pelo menos não era humano.

— Você tem uma faca? —Uma garota esguia e imunda perguntou a ela. Havia algo familiarsobre ela ... Miko.

— Eu não preciso de uma, obrigada.

— Pegue uma faca. —Miko ofereceu a ela uma lâmina curva de aparência perversa. — Issopode salvar sua vida.

— E você?

A garota sorriu para ela. — Tenho várias.

Charlotte pegou a lâmina, a enfiou no cós da calça e puxou a túnica por cima. Ela olhou paracima e viu um fantasma caminhando pela multidão em sua direção. Ombros largos, vestindo umajaqueta de couro acolchoada, seu cabelo em um rabo de cavalo, um tapa-olho cobrindo seu olhoesquerdo, conduzindo um cavalo preto.

Seu nome era Crow, e ela o matou. Ela o viu morrer naquela clareira com o resto datripulação de escravos.

Seu coração disparou. Charlotte deu um passo para trás.

Crow continuou vindo.

Isso não era nada bom. Iria matá-lo novamente. Os tentáculos sombrios deslizaram para foradela.

— Charlotte? —O traficante caolho disse na voz de Richard.

Charlotte sempre se orgulhou de ter um excelente controle de sua magia. Entre o momentoem que sua magia deslizou para matá-lo e o próximo instante, seu cérebro fez a conexão, e elasegurou seu poder de volta, abortando seu assassinato no meio do ataque.

— Sim? —Ela perguntou, soando tão normal quanto podia.

— Você está bem? —Ele perguntou.

— Sim. —Não. Não, por favor, me tire daqui. — Você parece mais velho, —ela disse, sópara dizer algo. Seu rosto estava coberto de rugas.

— Látex líquido, —disse Richard. — Seiva de árvore processada misturada com água. Sevocê passar no rosto, vai encolher à medida que seca, enrugando a pele.

Ele se parecia tanto com o homem que ela matou. Era estranho.

Richard se inclinou na direção dela. — Assim que chegarmos à ilha, as coisas ficarãocaóticas. É essencial que não estejamos separados. Precisamos encontrar o contador. Ele é anossa única esperança para chegarmos ao topo do círculo de traficantes.

Um assobio estridente os fez se virar. Jason havia montado um cavalo.

— Miseráveis, escória e criminosos, —ele gritou. — Empreste-me seus ouvidos!

Uma risada leve percorreu a multidão.

— Cada um de vocês tem uma dívida a cobrar com os traficantes. Esta noite nós acoletaremos. Vamos embarcar no navio deles. Vamos saquear o Mercado. Seremos lenda. —Elefez uma pausa e sorriu. — Seremos ricos.

Um tumulto entusiástico de vaias e grunhidos guturais respondeu a ele.

Ele inclinou a cabeça. — Mas não faremos isso apenas para nos tornar ricos.

— Não? —Alguém perguntou com choque fingido.

Mais risadas se seguiram.

— Não, não precisamos. Olhem a sua volta. —Jason abriu os braços. — Vão em frente,olhem.

As cabeças se viraram enquanto as pessoas olhavam para a floresta e o céu noturno.

— Esta noite, somos os mestres de tudo o que vemos. Esta noite, triunfaremos eesmagaremos aqueles bastardos sob nossas botas. Vamos tirar seu dinheiro e suas vidas. —A vozde Jason ganhou uma intensidade selvagem. — Vamos ouvir enquanto eles gritam e implorampor misericórdia. Sentiremos o cheiro do sangue quando os abrirmos e lavarmos as nossas mãosem suas tripas. Vamos arrancar a luz de seus olhos. Hoje à noite, nós realmente viveremos!

O silêncio reivindicou a clareira.

— Isso aí! —Richard gritou com uma voz profunda.

— Sim! —Outro rosnado masculino ecoou.

A multidão explodiu em gritos, sacudindo os punhos.

— Ele se empolga às vezes, —disse Richard baixinho.

— Não me diga. —Mais violência. Mais assassinato. Mais emoção enquanto sua magiadevorará vidas. Charlotte engoliu em seco. Ela vividamente se lembrou da onda sedutora deprazer que sentiu ao matar os traficantes, e a perspectiva de experimentá-la novamente aaterrorizava até o âmago. Seus dentes batiam. Ela os apertou e seus joelhos começaram a tremer.

— Vamos em frente! —Jason rugiu.

Ao redor dela, as pessoas pegaram seus equipamentos. Ela queria dar meia volta e correrpara o outro lado.

— Posso? —Richard perguntou, segurando um par de algemas.

Charlotte ergueu as mãos. Com cuidado, Richard colocou o par de algemas em seus pulsos.— Torça assim, e elas abrirão.

As algemas pareciam tão pesadas em seus pulsos. Charlotte se obrigou a acenar com acabeça.

Os dedos dele roçaram as mãos dela, os calos ásperos do mestre da espada arranharam apele dela. Suas mãos estavam quentes. Ela olhou para ele, pedindo segurança.

Ele encontrou seu olhar. — Eu não vou deixar nada acontecer com você, minha senhora.

Ele disse ‘minha senhora’ como se fosse um termo carinhoso. Havia uma convicção tãosilenciosa em sua voz que, por um momento, a clareira e todos ao redor desapareceram. Eramapenas os dois, e ele estava tocando suas mãos e olhando para ela daquele jeito particular,preocupado, quase terno. Uma emoção tão estranha nos olhos de um homem que era umassassino. A preocupação dela derreteu no ar. Se ela pudesse andar bem ao lado dele, com ele asegurando, nada poderia machucá-la.

— Formem duas filas, —Jason gritou. — Escravos no meio, traficantes nas laterais.

A realidade correu para ela em uma avalanche terrível. O que ela estava fazendo? Pensarnele dessa forma, era totalmente inapropriado. Mas a verdade é que não importava, nãoconseguia evitar.

— Fique seguro, —disse ela.

— Você também.

Richard a soltou e acenou com a cabeça para o cão. — Venha.

A besta hesitou.

— Venha, —ordenou Richard. A grande besta ergueu-se das ancas e trotou até Richard.Richard prendeu uma longa corrente na coleira do cão, montou em seu cavalo e se posicionou aolado de Jason. As mulheres formaram duas filas atrás dela e de Miko, e começaram a descer aestrada, os ‘traficantes’ montados a cavalo ao redor.

Eles marcharam pela trilha. Os carvalhos acabaram e o pântano começou, um campoperfeitamente uniforme de grama baixa. A trilha desviou para a esquerda e para a direita, cortadana grama. Os cavalos trotavam pelo solo lamacento e saturado, seus cascos respingando lama emsuas roupas e rosto.

A ansiedade voltou com força total. Charlotte sabia que estavam caminhando há apenasalguns minutos, mas esta jornada pelo vasto campo de lama parecia interminável. Parecia que elaestava marchando por um longo pesadelo até a morte. O vento aumentou, jogando o cheirosalgado do oceano em seu rosto.

Charlotte pensou nos olhos cinzentos de Tulip, no corpo carbonizado de Éléonore e na vozassustadora de George. ‘Por favor, Mémère ...’

Ela iria parar tudo isso. Não importa o quanto custasse a ela.

Uma eternidade depois, o pântano deu lugar a dunas de areia ásperas com tufos de grama deaveia do mar e coberto com manchas de grama curta e rasteira com folhas largas. Finospináculos, como os estames de um lótus39, erguiam-se entre as folhas, brilhando em verde, e

quando a brisa os tocava, eles balançavam, enviando pontos de esmeralda brilhante para a noite.

— Não pise nisso, —disse Miko ao lado dela. — Isso é grama armadilha-de-pescador. Vaiqueimar suas pernas.

Eles cruzaram as dunas e finalmente chegaram à praia. À sua frente, o oceano se estendia,escuro e ameaçador. À esquerda, a costa se curvava, formando uma pequena península, cortandosua visão com árvores. À direita, as luzes turquesa distantes de Kelena cintilavam, como umamiragem acima da água.

— Três tochas, —disse Richard. — Uma na frente, duas atrás, com cerca de seis metros dedistância.

Um ‘traficante’ à sua direita desceu do cavalo, tirou três tochas do alforje, correu, enfiou aprimeira tocha na areia e a acendeu.

— É uma noite escura, —disse Jason.

— Noite escura é bom para nós, —disse Richard.

A terceira tocha ganhou vida. Eles esperaram.

O cão trotou, se aproximando dela, a corrente se esticou e o animal lambeu sua mão.

A silhueta escura de um bergantim deslizou por trás da península.

******GEORGE ESTAVA deitado de bruços no topo de uma duna de areia. Uma pequenacaixa preta repousava na areia à sua frente. Abaixo, os falsos traficantes e seus ‘cativos’esperavam na praia. Ao longe, o bergantim lançou âncora. Era um navio de estilo estranho, comseis mastros segmentados que se erguiam em semicírculo do convés, como as asas de um pássaroaquático prestes a levantar voo. Os mastros exibiam painéis de velas verde-acinzentadas. Em maraberto, as velas desapareceriam contra o céu, tornando o navio mais difícil de ver.

Mémère estava morta. Passaram-se seis meses desde a última vez que ele a viu. Ela tinhavindo fazer uma visita por uma semana no Solstício de inverno40. Ele se lembrava do rosto delacomo se a tivesse visto ontem. Lembrava do sorriso dela. O cheiro de lavanda que sempreflutuou ao seu redor. Ele conhecia aquele cheiro tão bem que, anos depois, sentir esse cheiro oacalmava.

Quando era mais novo, Mémère foi uma presença constante em sua vida. Ele mal selembrava de sua mãe. Ela era uma mancha distante em sua memória. George se lembrava melhorde seu pai, um homem grande e engraçado.

Quando tinha oito anos, foi convidado para ir à casa de um amigo no Broken. Ele pôde

escolher os filmes para assistir e, enquanto folheava as capas, viu um homem de jaqueta de couroe chapéu de aba larga, segurando um chicote. O título dizia ‘Caçadores da Arca Perdida41’. Eleleu a descrição e percebeu que aquele homem estranho, Indiana Jones, fazia a mesma coisa queseu pai. Ele caçava tesouros.

George assistiu ao filme duas vezes seguidas, provavelmente foi por isso que nunca mais oconvidaram de novo. Mas à medida que ele crescia, a maturidade deu a ele uma novaperspectiva. Seu pai não era Indiana Jones, não importa o quanto ele quisesse que fosse verdade.Seu pai os abandonou quando mais precisavam dele, forçando Rose a assumir toda aresponsabilidade de cuidar deles. Havia dias em que ela chegava em casa tão cansada que malconseguia se mover—uma vez até adormeceu na cozinha enquanto descascava batatas.

Mas Mémère sempre esteve lá. A casa de sua avó servia como seu porto seguro. Nãoimportava em que encrenca ele se metesse ou o quanto Rose estivesse brava com ele, Mémèreestava sempre lá com abraços, biscoitos e livros antigos. Ela estava lá na primeira vez que suamagia se mostrou. Ele tinha três anos. Estava brincando no quintal quando viu um esquilo. Acriaturinha tinha uma cauda espessa e pêlo vermelho fofo e não parecia ter medo dele. Ela apenassentou em um galho alto na árvore. Ele queria acariciá-la, então começou a se aproximar cadavez mais, um pequeno passo de cada vez. Estava quase lá, e então ela caiu do galho e morreu.

Ele pegou o corpo fofo. George realmente não entendia a morte. Apenas sabia que acriaturinha não se movia mais. Ele queria que ela se movesse, mas ela não se moveu. Ficoupendurada em suas mãos, mole, como um brinquedo velho. Ele sentiu uma sensação de terrorabsoluto. Por um segundo pensou que iria morrer também, assim como a esquilo, então algo opuxou, ele sentiu dor, e a esquilo se virou e olhou para ele.

George a largou e correu, através do quintal e subindo a varanda. Ele deve ter gritadoporque sua avó correu para a varanda e o pegou. Ele enterrou o rosto no ombro dela e ela oabraçou. O fantasma da voz dela vibrou em sua memória: ‘Vai ficar tudo bem. É um dom,Georgie. Não há nada a temer. É um dom ...’

George cerrou os dentes. Seis meses atrás, ele pediu a ela novamente para se mudar para oWeird. Estavam sentados na varanda tomando chá. Sua avó voltaria para o Edge mais tardenaquele dia, e uma sensação de pavor o sufocou, pesada, como um cobertor molhado. Em suamente, Mémère parecia exatamente a mesma de quando ele era pequeno, mas agora, toda vez queela o visitava, ele notava mudanças incrementais e alarmantes. O cabelo dela estava caindo. Suasrugas cortavam mais profundamente seu rosto. Ela parecia menor de alguma forma. Isso odeixou doente de preocupação.

‘— Por favor, fique, —ele pediu.

— Não, querido. Meu lugar é no Edge. É onde eu pertenço. Aqui é muito bom, mas não épara mim.’

Ele a ajudou a entrar na carruagem naquela manhã. Ela deu um beijo de despedida nele.

Ele deveria ter tentado mais. Deveria ter insistido mais. Deveria tê-la obrigado a ficar. Serealmente tivesse implorado, ela teria. Como ele pôde ser tão descuidado e estúpido? Agoraestava morta. Ele nem sabia como ela morreu, se tinha queimado viva naquela maldita casa ... elefechou os olhos com força, impedindo que as lágrimas brotassem.

Teria que contar a Rose.

O bergantim estava baixando dois barcos de apoio. As pessoas na praia esperavampacientemente.

— Nós deveríamos estar lá, —disse Jack ao lado dele.

Mas eles não estavam. Dos dois irmãos Mares, Kaldar era o mais maleável. A ética deKaldar tinha limites flexíveis e ela se curvava, se o vento fosse forte o suficiente. Mas Georgetinha tido aulas de luta de espadas com Richard no ano anterior. Richard era como um penhascode granito em uma tempestade, imóvel e resoluto. O olhar nos olhos de Richard disse a Georgeque não conseguiria convencê-lo a nada. Não dessa vez.

Sua missão no Espelho havia acabado. George falhou. Jason Parris o identificou como umagente Adriangliano, e ele já havia enviado o despacho para o Escritório Central. Erwin nãoficaria satisfeito, mas agora a decepção de seu treinador era a menor das preocupações deGeorge. Ele observaria Richard e Charlotte embarcarem, e então ele e Jack seriam forçados avoltar para casa como boas crianças. Por dentro, ele estava gritando.

Os barcos se afastaram do navio, acelerando através da água, movidos por motores movidosa magia. O resíduo mágico escorregava das hélices, transformando o caminho por onde passavaem uma trilha brilhante de esplendor amarelo e esmeralda.

Finos raios verdes brilharam na popa do bergantim. Eles tinham um dispositivo decamuflagem e o estavam acionando. Claro. A Frota Sul de Adrianglia possuía três navios do tipoCruzadores42, cinco caçadores43 e um navio de apoio aéreo44. Cada um carregava canhõespulverizadores, bem como uma série de outros brinquedos mortais. Um bergantim civil rápido eleve como este não podia aguentar mais do que um ou dois tiros. A melhor estratégia de umbergantim estava na velocidade e em não ser detectado em primeiro lugar, que é onde odispositivo de camuflagem seria útil.

Um dispositivo de camuflagem também era terrivelmente caro. O comércio de escravosdeve estar indo muito bem para o proprietário do bergantim. George rangeu os dentesnovamente.

Jack mostrou os dentes, sua voz um sussurro cruel. — Pare de ranger os dentes.

— Cale a boca, —George sussurrou de volta.

— Isso me incomoda.

— Tampe os ouvidos, então.

Os finos raios mágicos, provocados pelo dispositivo de camuflagem, se aumentaram,formando uma rede. George abriu a caixa que ele trouxe. Dentro havia uma única esfera devidro. Ele abriu esfera, retirou uma lente de vidro com minúsculos cílios de metal e a colocou noolho. Os delicados cílios de metal da lente se moveram, procurando e travaram nos nervos doolho dele.

A dor atingiu diretamente seu cérebro, como se alguém tivesse martelado um prego em suaórbita ocular. Os dispositivos do Espelho podiam fazer coisas incríveis, mas sempre tinha umpreço. Ele balançou a cabeça, se concentrou e ergueu os olhos. O bergantim surgiu em sua visãoem um foco claro e nítido, como se estivesse bem ao lado dele. George podia ver as lateraisesculpidas e as linhas delgadas do cordame45 do navio. Se este bergantim seguisse o CódigoMarítimo de Adrianglia, o nome estaria perto da proa.

Ao lado dele, Jack rosnou. — Vamos ficar deitados aqui como idiotas?

— Sim, nós vamos.

Um fino raio do dispositivo de camuflagem desceu da popa em direção à proa, seespalhando sobre as laterais do navio, iluminando-o. Esse era o momento que George esperou.Ele rastreou o raio com sua visão.

— Não está certo isso, —disse Jack.

— Nós vamos ficar aqui.

As faíscas verdes iluminaram o nome, escrito em letras pretas grossas no arco, edesapareceram na escuridão. George prendeu a respiração.

Não. Não, ele deve ter lido errado.

George esperou por outro raio.

— George, respire, —Jack rosnou em seu ouvido.

Um novo raio brilhou, iluminando as letras mais uma vez. Ele leu a mesma coisa de antes,

não tinha se enganado. George ficou frio. Só poderia haver duas possibilidades para este navioestar aqui agora, e ele não conseguia lidar com nenhuma delas.

De novo. Ele tinha que ver de novo.

— Qual é o seu problema? —Jack assobiou.

Outro raio se espalho pela lateral e ele leu o nome novamente, pela terceira vez, cada letracomo a punhalada de uma espada em seu estômago.

George arrancou a lente de vidro do olho. — Temos que descer lá.

— Você disse que íamos ficar aqui.

— E agora estou dizendo que temos que descer lá.

Ele escorregou para trás da duna e saiu correndo em direção à praia.

Jack o alcançou. Eles diminuíram a velocidade, logo atrás dos ‘escravos’.

— Por quê? —Jack sussurrou, quase inaudível.

George parou por um segundo, analisando o direito de Jack de saber mesmo tendo contra otemperamento explosivo dele. Se Jack explodisse, eles nunca entrariam naquele navio. Mas Jackmerecia saber. Melhor fazer agora.

— Porque o nome desse navio é ‘Destemido Drayton’.

Jack recuou. Por um momento ele pensou sobre isso, e então as engrenagens se encaixaramna mente dele. Jack fez a conexão entre o sobrenome deles e o nome do navio. Seus olhosbrilharam com fogo. — Eles mataram papai?

— Não sei.

— Papai está vendendo escravos?

— Não sei.

— Ele nos deixou apodrecendo no Edge para vender escravos? —Um rosnado rugiu na vozde Jack.

George agarrou seu ombro. — Controle-se. Não faça nada até que estejamos a bordo esaibamos exatamente o que está acontecendo.

Jack abaixou a cabeça, escondendo o brilho metamorfo de seus olhos, e respirou fundo pelonariz.

Eles teriam apenas uma chance nisso. Os barcos deviam estar perto o suficiente para queRichard não pudesse fazer nada sobre a presença deles, mas longe o suficiente para que os

marinheiros não vissem qualquer comoção.

George respirou fundo.

O barco da frente rolou sobre as ondas, sua tripulação distraída.

É agora.

George se lançou para frente e Jack o seguiu. Eles correram para a linha de escravos e selançaram atrás de Charlotte.

— O que diabos estão fazendo? —Richard rosnou baixinho.

O homem nem mesmo se virou. Ele deve ter olhos atrás da cabeça.

— Mudança de plano. —George arrancou um pedaço de sua camisa e amarrou nas mãos deJack em uma algema improvisada.

— Voltem, —Charlotte assobiou.

Richard desmontou e caminhou em direção a George, puxando um par de algemas de seucinto. Eles ficaram cara a cara, Richard olhando para baixo da altura de dez centímetros extras.Os olhos dele brilhavam furiosamente, impregnado de tanta ameaça que poderia acabar com emtumulto. George encarou Richard. Hoje, ele tinha todos os direitos para confrontá-lo.

— Você me deu sua palavra, —Richard grunhiu.

George deu um passo à frente, sua voz quase um sussurro, dirigida apenas a Richard. — Onome da embarcação é Destemido Drayton. Antes do Conde Camarine me adotar, meusobrenome era Drayton. Há uma pintura desse navio na casa da minha avó morta.

George tirou as algemas das mãos de Richard e as colocou em seus próprios pulsos com umclique. — É o navio do meu pai. Ou os traficantes mataram meu pai e roubaram seu navio, oumeu pai está trabalhando para eles e é responsável pela morte de sua própria mãe. Eu precisosaber a verdade. Se você ficar no meu caminho, vou movê-lo, Richard.

Por um momento, Richard ficou parado, carrancudo, depois verificou as algemas nos pulsosde George. — Não faça nada estúpido.

Ele se virou e caminhou para a frente, ao lado de Jason.

George exalou. Para Richard, família era tudo. O homem entendia sobre dívidas de sangue eo direito de exigir justiça para a família de alguém, mas confrontá-lo tinha sido uma aposta.

Não podia acreditar que seu pai trabalhava para os traficantes. Mesmo seu pai não poderiater caído tão baixo. Até mesmo Rose, que quase odiava o homem, sempre disse que ele nuncatinha sido mal ou violento. Oportunista, imprudente e egoísta, sim. Mas poderia ser egoísta o

suficiente para trabalhar para os traficantes de escravos? George estava pensando em círculos.Ele tinha que se controlar.

Os barcos pousaram, o fundo plano dos barcos rasparam a areia com um sibilo suave. Umhomem mais velho saiu primeiro, seguido por quatro outros marinheiros. Alto e de ombroslargos, o homem caminhava como um marinheiro, cambaleando ligeiramente a cada passo,plantando os pés firmemente no chão.

George olhou para ele, observando cada detalhe. Olhos acinzentados, cabelo loirodesbotado, rosto curto, mais velho, provavelmente bonito, mas inchado por falta de sono eprovavelmente muito álcool, barba grisalha nas bochechas ... Seria ele? George se esforçou,tentando se lembrar, mas em sua memória o rosto de seu pai era um vago borrão. Ele costumavase lembrar. Costumava saber como seu pai era, mas os anos se passaram e agora as memóriasforam perdidas.

— Crow, —disse o homem. — Onde está Voshak?

— O Caçador o pegou, —Richard respondeu, sua voz um grunhido áspero. — Atirou nelena beira de Veresk quando estávamos cavalgando.

— E Ceyren?

— O Caçador também o pegou. Flecha no olho. Uma coisa fodida de se ver.

O homem suspirou. — Isso é o que o Caçador geralmente faz. Alguém deveria cuidardaquele filho da puta. Ele está cortando nossos lucros.

— Alguém vai derrubá-lo, uma hora ou outro, —Richard/Crow disse em uma falsa revolta ecuspiu na areia. — Mas esse alguém não será eu, te digo isso.

— Eu te entendo. —O homem olhou além de Richard para os escravos. — Faz bem vocêcuidar de si mesmo.

— Isso mesmo, —concordou Richard/Crow.

Talvez não fosse seu pai. Talvez os traficantes o tivessem matado e outra pessoacomandasse o navio. Seria muito melhor se seu pai estivesse morto do que lucrar com oassassinato de sua própria mãe. Diga seu nome, George desejou em silêncio.

— Presumo que será você que embarcará no lugar de Voshak, —disse o homem.

— Eu e todos que você vê aqui, —Richard/Crow rosnou.

O homem ergueu as sobrancelhas.

Richard deu um passo à frente, inclinando-se como se estivesse pronto para socar. — Estouem um bando há quatro anos. Primeiro, eles deram a liderança do bando para Bes. Então, quando

sua velha o matou, deram para Carter. Depois que Carter levou um tiro idiota, fui até eles e disse-lhes para me darem o bando. Eles disseram que eu não tenho potencial de liderança. Em vezdisso, deram a Voshak. Bem, o maldito potencial de liderança está apodrecendo na floresta. Esteé o meu bando agora, e estou levando a caça dos meu lobos para que eles mesmos avaliem.

O marinheiro ergueu a mão. — Está bem, está bem. Não é da minha conta. Eu não meenvolvo na política. Só transporto a mercadoria. Se quer uma carona para a ilha, conseguirá.Carregue-os.

— Mova-os, —Richard rosnou.

Um chicote estalou acima da cabeça de George. Os traficantes começaram a avançar, emdireção aos barcos. Ele estava sendo conduzido como gado humano.

George se moveu, seguindo Charlotte. Sentia calor e frio ao mesmo tempo, todas as célulasde seu corpo tensas, como se o núcleo de seu corpo estivesse fervendo. O suor encharcou seucouro cabeludo.

O olhar do marinheiro se fixou em Charlotte. — Que bela. Eu sempre fui caidinho por loiraspeitudas.

George fechou os olhos por um minuto, tentando se lembrar das poucas lembranças querestavam de sua infância. A mãe era loira? Ele se esforçou, procurando através das lembrançasvagas ... Seus olhos se abriram. Ela era loira. Ele estava certo disso. Mas isso não significa nada.Muitos homens gostavam de mulheres loiras.

O marinheiro estava olhando diretamente para ele. — Garotos bonitos. Eles não são muitovelhos para o Mercado? Os compradores gostam de crianças mais novas.

O estômago de George se agitou com ácido. Ao lado dele, Jack cerrou os punhos. Uma gotade sangue escorregou entre os dedos de Jack sobre o pedaço de tecido pálido amarrado em suasmãos.

Controle-se Jack, George orou.

— Encomenda especial, —disse Richard.

O marinheiro fez uma careta. — Vá entender esses caras.

— Contanto que me paguem. —Richard cuspiu novamente.

George subiu no barco, Jack em seus calcanhares, e olhou para o marinheiro na praia. Digaseu maldito nome.

O marinheiro sorriu. — Olá, meus senhores e senhoras. Meu nome é John Drayton. Eu sereiseu capitão esta noite.

Uma faca quente e invisível apunhalou George direto na boca do estômago. O mundoganhou uma tonalidade vermelha. A lógica lhe dizia a ele que eram os capilares de seus olhos seexpandindo em reação ao aumento do fluxo sanguíneo, mas essa lógica falou de algum lugardistante em seu cérebro, e ele o desligou. A sua avó estava morta, e o canalha que era o filho delae pai dele ganhava dinheiro bancando o capitão dos assassinos dela. John Drayton traficavaescravos. Ele havia abandonado seus filhos, para que pudesse enriquecer com a miséria de outraspessoas.

Seu pai poderia muito bem ter matado a própria mãe com as próprias mãos. Ele era oresponsável.

— Bem-vindo a bordo do Destemido Drayton em um cruzeiro com destino a ilha. Vocêsnotarão tubarões-atuns-azuis46 seguindo nosso navio. Se causarem algum problema,amarraremos uma corda em seus pescoços e os jogaremos ao mar. Os tubarões-atuns-azuisgostam de uma pequena perseguição antes do jantar. Se comportem direitinho e os tubarõesficaram com fome. Pessoalmente, espero que não se comportem, eu gosto de um pequenoespetáculo. Alegra uma viagem entediante.

George tinha que matar seu pai. Precisava fazer justiça. Era a única coisa certa a fazer.

Uma corrente calmante de magia formigou a pele dele. Seu batimento cardíaco desacelerou.

— Sente-se comigo, George, —Charlotte chamou, sua voz como um jato de água fria emsua raiva escaldante. — Por favor.

Ele se forçou a se virar. Ela se sentou no fundo da barcaça, a mão apoiada no antebraço deJack. A cabeça de seu irmão estava abaixada, a massa de cabelo castanho caindo sobre seu rosto.Um som rouco e tenso, um rosnado abafado e controlado, emanava de Jack a cada respiração.Seu irmão estava oscilando à beira de perder sua forma humana.

Eles ainda tinham um trabalho a fazer. Tinham que chegar à ilha. Sua vingança teria queesperar. Suas pernas pareciam de madeira. Ele não conseguia se mover. Um bastão de madeiraduro bateu na parte de trás de seus joelhos. George desabou.

— Sente-se, caralho, —disse um dos traficantes de Jason.

— Vejo que temos o primeiro candidato para a alimentação de tubarões, —disse seu pai. —Mais uma vez, garoto, e eu irei pessoalmente te empurrar para fora do meu barco.

George se obrigou a se sentar ao lado de Charlotte. Ela estava observando o resto dosescravos embarcarem, com o rosto calmo.

— Haverá o momento certo, —ela disse, sua voz calma misturada com ameaça. — Essemomento não demorará muito.

oitoCHARLOTTE FECHOU OS OLHOS E OUVIU AS ONDASBATENDO NO CASCO. Duas horas antes, eles foram jogados dentro do porão donavio, escravos primeiro, depois os traficantes. John Drayton era um homem prevenido, entãotrancou seus passageiros, eles querendo ou não. Richard e Jason foram os únicos dois homensque permaneceram no convés.

George e Jack sentaram-se no chão perto da antepara47. Os ombros de Jack, rígidos com atensão, caíram para frente. Ele não disse uma palavra desde que embarcaram, mas Charlotte tinhaolhado nos olhos dele. Uma coisa violenta e furiosa olhou para ela de volta através de suas íris.Algo selvagem vivia dentro de Jack, e ele estava usando todo o seu poder para mantê-lo sobcontrole. Ela queria dizer a ele que sabia exatamente como ele se sentia, mas os instintos dela aalertaram de que qualquer palavra errônea poderia inclinar a balança a favor daquela coisaselvagem. Ela havia tratado metamorfos antes, ou melhor, havia tratado soldados metamorfos,homens endurecidos, matadores sobre humanos que saíram do treinamento esmagador daacademia de metamorfos de Adrianglia. Se Jack perdesse o controle agora, no porão, nenhumdeles sobreviveria. George também sabia disso. Ele se sentou ao lado de seu irmão, pairandoprotetoramente sobre ele. Seus olhos estavam claros de determinação, seu rosto marcado pela dore raiva. George se sentia traído e queria vingança, e ela não o culpava nem um pouco.

A raiva a encheu também, e Charlotte se agarrou a essa raiva, deixando-se mergulhar nela,solidificando sua determinação. John Drayton, o filho há muito perdido de Éléonore, não estavamais tão perdido. Ela se lembrou do sorriso presunçoso do homem. ‘Garotos bonitos’. Eles sãoseus filhos, seu bastardo imundo. Não bastava que a avó deles foi assassinada, agora você éindiretamente responsável pelo assassinato dela. Charlotte gostaria de poder estrangular o porco,mas ele estava lá em cima. A vida desse homem ela arrancaria com prazer. Ela olhou para osmeninos novamente. Sim com prazer.

Charlotte olhou para fora de uma janelinha estreita, pouco mais do que um respiradouro. O navio ativou um dispositivo de camuflagem no momento em que levantou a âncora. Uma densa nuvem de névoa com infusão de magia deslizou sobre o navio, envolvendo-o como um cobertor.

As miríades de pequenas gotas de água que criavam a névoa agiam como incontáveis espelhosminúsculos, refletindo ativamente os arredores do navio. Um observador externo não veria onavio. Ele poderia talvez notar uma mancha contra a linha perfeita de água e céu. À luz do dia,essa distorção seria bastante óbvia, mas à noite, com a névoa subindo da água, o DestemidoDrayton era praticamente invisível. Infelizmente, por dentro, a névoa refletiva era opaca e tudo oque ela via agora era uma densa cortina de névoa.

Eles deviam estar navegando há pelo menos uma ou duas horas. O tempo se esticou aqui,dentro do porão.

— Eu quero sair deste maldito navio. Como vamos sair daqui? —Uma mulher loira ao ladodela murmurou para Miko. — Não podemos matar os marinheiros até chegarmos ao porto, e seos matarmos quando chegarmos lá, haverá uma comoção.

Uma garota esguia acenou com a cabeça para Charlotte. — Ela é nossa chave.

A loira olhou para ela. — Você não parece grande coisa.

— As aparências enganam, —Charlotte disse a ela.

— É melhor que tenha razão. —A loira mostrou os dentes. — Porque se eles me levarempara fora deste navio acorrentada e para os currais de escravos, você será a primeira a quem euirei atrás. Sua garganta é fininha. Fácil de cortar.

A magia de Charlotte agitou em resposta à ameaça na voz da mulher, borbulhando para asuperfície. Ela se controlou e olhou para a loira com desdém.

A mulher puxou uma faca de dentro de seus trapos.

Miko entrou na frente dela e sibilou. — Não seja estúpida.

— Você viu o jeito que essa mulher olhou para mim? Como se eu fosse um lixo de sarjeta eela fosse a marquesa da Louisiana. Vou cortar a garganta dela!

Miko se moveu e de repente havia duas lâminas delgadas em suas mãos.

— Você é um lixo de sarjeta, Lynda. Jason tem um plano. Se você foder com o plano dele,fode comigo.

— Você tem uma boca grande para uma vadia tão burra. Já é hora de alguém fechá-la devez.

Lynda se lançou para frente. Miko girou, empurrando, e a mulher desabou nas tábuas,borbulhando em seu sangue.

Miko se virou, um braço erguido, o outro baixo, sangue escorrendo de suas facas, eexaminou o porão. — Alguém mais quer foder com o plano?

Ninguém se ofereceu.

Lynda se contorceu no chão, sangue quente e escuro se espalhando ao redor dela namadeira. Charlotte deixou sua magia tocar o corpo da mulher. Corte da veia jugular externa, veiajugular interna parcialmente cortada, perda rápida de sangue, tempo estimado de morte: dois atrês minutos. Um sentimento familiar de obrigação chamou Charlotte, mas desta vez não foiapoiado pela bondade, apenas hábito.

— Quer que eu a cure? —Charlotte perguntou.

— Não. Um psicopata a menos.

— Então termine. Ela está sofrendo.

Miko se ajoelhou. A faca subiu e mergulhou, e Lynda parou de lutar.

A porta se abriu, revelando Richard. Já estava na hora.

Ele acenou para ela. Charlotte se aproximou.

— Estamos prestes a chegar à terra firme, —ele sussurrou. — Há dezenove marinheirosneste barco.

— E o capitão? —Ela perguntou, olhando para os meninos.

Dois pares de olhos a encararam de volta, um deles brilhando em âmbar.

— Ele é nosso, —disse Jack, sua voz um rosnado áspero e desumano. As pessoas por pertose afastaram dele.

— Espere até que eu diga que é a hora, —disse Richard, e olhou para ela. — E somentemarinheiros.

Ela ergueu o queixo. — Muito bem. Vamos acabar com isso.

Richard se virou e subiu a escada até o convés. Ela o seguiu. O navio cortava as águas azul-esverdeadas e a brisa salgada, mal roçando a superfície do oceano, suas velas grandiosas bemabertas. A densa barreira de névoa mágica o cercava por todos os lados, exceto na proa, onde acortina se abria. Luzes laranja e azuis piscavam no horizonte da abertura—o destino deles.

Os marinheiros moviam-se ao longo do convés. Alguns estavam sentados, outrosconversavam baixinho. Richard a puxou contra a cabana e a segurou com seu grande corpo,escondendo-a do resto da tripulação. Ela pousou as mãos em seu corpo revestido de couro,sentindo a força reconfortante de seus ombros musculosos. Parecia tão íntimo estar assim. Eraquase um abraço. Ela sabia que estava dando mais significado sobre isso do que realmente era,mas precisava tanto de um abraço.

Algo roçou nela. Charlotte olhou para baixo. O cão estripador-de-lobo encostou-se em suaspernas.

— Quão rápido você precisa que eles morram? —Ela sussurrou. Charlotte estava com tantaraiva. Eles eram a escória que transportava escravos e alimentava tubarões com crianças. Elaextinguiria suas vidas.

— Na velocidade em que estamos indo, atracaremos em quinze minutos. Eles estão prestes asinalizar as cores, —disse ele. — O porto provavelmente está armado com canhões e enviará umsinal de desafio. Devemos enviar a resposta adequada, ou vão nos considerar hostis. Assim que aresposta for aceita, eles são seus. Mate-os o mais rápido e silenciosamente que puder.

— Desafio! —Alguém gritou.

Richard se inclinou para olhar a proa do navio.

Ela também.

Um clarão verde-claro disparou do porto. Charlotte prendeu a respiração, esperando.

— Se sinalizarem verde de novo é porque nos deram uma entrada segura, —sussurrouRichard em seu ouvido, sua respiração uma nuvem quente.

— Sinalizem as cores, —uma voz profunda berrou do convés acima deles.

— Um, dois, dois, um, três!

A magia subiu pelos mastros. Símbolos arcanos acenderam-se na superfície das velas, umde cada um nas do mastro do meio e o terceiro nas velas do mastro central do lado esquerdo.

Uma segunda chama verde floresceu no céu noturno.

A voz profunda gritou uma série de tolices náuticas. A tripulação acelerou ao redor donavio, girando as rodas, ajustando as alavancas de metal nos consoles de controle junto aosmastros. As velas encolheram. Os mastros segmentados começaram a se endireitar lentamente.

— Agora, —disse Richard.

A monstruosa magia no peito dela se agitou, acordando. Ela a sentiu, separando as pragasque carregava dentro de si, até encontrar uma que serviria perfeitamente.

Um marinheiro passou por eles. — Ei, Crow, quem você está escondendo aí?

Charlotte estendeu a mão por cima do ombro de Richard e acariciou suavemente o rostoenvelhecido do homem. A magia dela subiu em estreitos tentáculos escuros, como os tentáculosde um polvo, e mordeu o marinheiro. Ele mal percebeu. A pele dele se rachou sob a ponta dosdedos dela, formando pequenas escamas brancas de epitélio brilhando com magia, e a brisa os

carregou até o resto da tripulação. O homem olhou para ela, aparentemente hipnotizado, mas naverdade morrendo muito rapidamente. A pele do rosto do marinheiro se transformou em pó,como se ele tivesse mergulhado a cabeça em um balde de farinha prateada.

A magia dela envolveu o marinheiro, drenando as reservas de vida dele, e se retirou. Ovento agitou o pó que costumava ser as camadas superiores da pele dele, soprando-o para longe.As minúsculas partículas ficaram presas em seus cílios. Ele suspirou e caiu suavemente.

Richard se virou, ainda a protegendo, para olhar por cima do ombro. Os marinheiroscomeçaram a cair um por um, silenciosamente, suavemente, cada um liberando uma nuvem depó escamoso e prateado enquanto desabavam imóveis no convés.

Eles eram pessoas más que mereciam morrer, mas mesmo assim Charlotte sentiu umatristeza esmagadora pela morte deles. Ela enterrou essa tristeza bem no fundo, envolvendo-a nascamadas de sua raiva e determinação. Haveria tempo para autopiedade mais tarde.

Richard tinha a expressão muito estranha em seu rosto. Não exatamente choque, nãoexatamente pânico, mas uma estranha mistura de admiração e espanto, como se ele não pudesseacreditar no que viu.

Na outra extremidade do navio, Jason Parris se virou, com os olhos arregalados, enquanto osmarinheiros ao seu redor se dobravam como balões vazios. O cão ergueu o focinho para a lua euivou, seu grito solitário flutuando sobre as ondas como um lamento de luto.

Acima deles, algo bateu baixinho. Um homem caiu do convés superior, o rosto pálido de póprateado. Richard se lançou sobre ele, tentando segurar o corpo para evitar que fizesse um baqueforte. Mas uma rajada de vento o venceu—a um metro do convés, o corpo se partiu em umanuvem de partículas prateadas. Eles deslizaram inofensivamente da pele de Richard e derreteramna brisa.

Ele se virou para ela. — O que é isso?

— Lepra branca48, —disse ela. É uma doença terrível. Ela conhecia em detalhes todas asparticularidades e peculiaridades da doença, já tinha a tratado antes, e a distorceu com sua magiaapenas o suficiente para transformá-la em sua assassina silenciosa. Richard agora pensaria duasvezes antes de deixá-la tocá-lo de novo. Algo dentro dela se contraiu com esse pensamento.

— Jack, —disse Richard, em voz baixa. — Diga aos outros que o navio é nosso.

— Ele não pode ouvir você, —ela disse a ele.

— Jack tem excelente audição, —Richard a lembrou.

Sem demora o pessoal de Jason saiu do porão de carga e se espalhou pelo convés, as pessoas

ocuparam as posições onde os marinheiros estavam. Tentaram chutar os corpos caídos para omar, mas os cadáveres se desfizeram com o vento.

Alguém ofegou. Ela viu pânico em alguns rostos.

— Agradeçam a Morte Prateada pelo lindo navio, —Jason disse a eles. — E parem deparecer chocados. Ainda precisamos levar este bebê para o porto.

Não havia como escapar. A morte agora fazia parte de seu nome.

George e Jack emergiram da multidão.

— Eu preciso que fique de olho em seu pai e não o mate ainda, —disse Richard. — Hácoisas que ele sabe que precisamos tirar dele. Se acha que não consegue fazer isso, me digaagora.

— Posso fazer isso, —disse George. — Jack vai precisar de alguns momentos paradesabafar.

— Estou contando com você, George. Esta é sua única segunda chance. Se eu voltar e eleestiver morto, você e eu terminamos. Não machuque seu pai.

O menino colocou a mão atrás do pescoço e puxou uma lâmina longa e fina de dentro dasroupas. — Entendido. Vou mantê-lo em perfeita saúde.

Richard bateu com as mãos na porta da cabine.

— O que é? —Drayton gritou.

— Há um problema, —respondeu Richard em sua voz normal.

A porta se abriu, revelando Drayton com um rifle nas mãos. Ele viu o pessoal de Jason epuxou a arma para cima. A magia pulsou de George, escura e potente. Uma mulher saiu damultidão e agarrou a arma. Charlotte viu seu rosto e quase ofegou. Lynda, sua garganta cortadacomo uma fita vermelha no pescoço, o rosto ainda respingado com o jato de seu próprio sangue.

Drayton puxou a arma, mas Lynda segurou, bloqueando os canos com o estômago. Ocapitão de traficantes puxou o gatilho. O tiro abafado estourou, como um foguete seco,espalhando pequenos pedaços de carne das costas de Lynda.

A mulher morta-viva arrancou o rifle da mão de Drayton e o quebrou ao meio como umpalito de dente.

Drayton cambaleou para trás.

Lynda largou o rifle quebrado aos pés de George. — Meeeestre, —ela sussurrou, sua vozuma bagunça sibilante. Seu pescoço vazava pequenas gotas de sangue. Ela olhou para George em

completa adoração, como um cão leal olha para seu dono. — Eu te venero, mestre.

Atrás dela, Jack rosnou como um monstro de pesadelo.

O rosto de George não mostrou misericórdia. — Olá, papai. —Ele deu um passo à frente,empurrando o homem maior para dentro da cabine. — Viemos visitá-lo.

Lynda se abaixou atrás dele. A porta se fechou.

Oh, George ...

— Para a proa, —disse Richard, pousando os dedos levemente no braço dela.

Ela o seguiu até a frente do navio e parou perto de um dos consoles de controle, todas asengrenagens de bronze e cobre envoltas em vidro e magia.

Sua própria magia uivou dentro dela, o monstro saciado, mas não totalmente satisfeito.Quanto mais Charlotte o alimentasse, mais comida o mostro desejaria. Sua magia se enrolava emtorno dela em correntes escuras, quase como se fosse uma entidade própria, e a adorava, comoum animal de estimação leal, existindo para servi-la e trazê-la conforto. Todas aquelas horasintermináveis de palestras de advertência que ela ouviu dentro das paredes do Instituto estavamcertas. A morte era sedutora e auto recompensadora, enquanto a cura era uma tarefa árdua.

Charlotte tinha se arriscado desta vez. Em vez de sugar as vidas dos marinheiros paraalimentar sua própria magia, ela simplesmente os matou, alimentando a doença assassina comseu próprio poder. Matar para alimentar sua magia foi muito bom. Se ela provasse de novo, haviauma chance de que não parasse, e ela não queria arriscar.

Estranhamente, mesmo depois de ter usado somente suas próprias reservas de poder, ela nãose sentia tão esgotada. Matar foi mais fácil do que da última vez—e da próxima vez seria aindamais fácil. Estava em uma ladeira escorregadia. Ela tinha que lutar para não cair.

Um dos homens de Jason veio ficar ao lado deles, viu Charlotte ainda envolta em magia eparou no meio do passo, mantendo distância. Ele olhou para ela, olhou para o console, passou deum pé para o outro desconfortavelmente ...

— Você gostaria que eu saísse do caminho? —Ela perguntou.

— Sim, —ele exalou.

Charlotte deu dois passos para a direita, para longe do console e em direção a dois outroshomens perto de Jason, ambos nitidamente pareciam homens que esmagavam crânios para viver.Os assassinos fugiram dela, recuando. Jason se manteve firme, mas seu rosto travou em umamáscara dura e impessoal. Ele estava com muito medo e determinado a não demonstrar.

Charlotte se sentia totalmente sozinha. Então é isso que é ser uma pária.

— Minha senhora. —Os dedos de Richard tocaram seu braço.

Ela quase saltou.

Ele ofereceu-lhe o braço. — Posso?

Charlotte descansou os dedos em seu antebraço e ficou ao lado dele, dolorosamente cientede que suas pernas estavam quase se tocando e os tentáculos de sua magia podiam tocá-lo. Ela seatreveu a olhar para ele. Seu rosto estava relaxado.

Richard olhou para ela e sorriu, como se tivessem parado durante um passeio em um parquepara admirar algumas flores. Isso a fez se sentir humana.

Por que, por que ela não aceitou o convite de Éléonore para visitar sua família? Se tivesseconhecido Richard há um ano, as coisas poderiam ter sido tão diferentes. Ele era o tipo dehomem que ela sempre quis conhecer. Forte, honrado e gentil. Ele também é um assassino, umavoz irritante sussurrou em sua mente. Bem, ela também.

Tarde demais agora. Estavam em um navio navegando para entregar a morte. As fantasiasromânticas não a levariam a lugar nenhum. Ela desistiu desse luxo.

Charlotte olhou para frente. Uma grande ilha surgiu à distância. Dois portos abraçavam acosta. À direita, belos pilares de pedra cortada empurrados para o oceano, flanqueados porgraciosos iates e barcos particulares. Palmeiras pitorescas espalhavam suas folhas em leque eestradas largas, iluminadas com lanternas azuis e amarelas, corriam mais para o interior, emdireção a casas em tons pasteis, turquesa, branco, amarelo e rosa. À esquerda, cais mais rústicosofereciam refúgio a rebocadores e barcaças, levando a um calçadão decadente e ruas hostis eescuras. Mais à esquerda, um Forte49 naval de pedra cinza trespassava o oceano, supervisionandoos dois portos.

— Onde diabos estamos? —Alguém perguntou.

Richard xingou, um som baixo e selvagem sob sua respiração, e se conteve. — Desculpe-me.

— Que lugar é esse? —Charlotte perguntou.

— A Ilha do Divino Na, —disse ele. — É um baronato independente, o Barão de Na acomprou de Adrianglia quando o continente estava sendo colonizado. Todo o lugar é um granderesort de luxo, cheio de turistas no final do verão e no outono. Veja, o porto de luxo fica ao norte,e o porto comercial, para onde vamos, fica ao sul. Estamos a apenas três horas de Kelena. Euolhei para esta ilha como uma possibilidade para o Mercado, mas rejeitei porque achei que seriamuito arriscado conduzir uma operação de escravos em uma ilha cheia de turistas. Estava aquitodo esse tempo debaixo do meu nariz, e eu perdi isso.

— Não se culpe, meu velho. —Jason sorriu, dando um tapinha no ombro de Richard. —Acontece com os melhores.

Richard olhou de volta para Jason, sua compostura escorregando, e por um segundoCharlotte pensou que ele iria arrancar o braço de Jason e bater nele de volta com o membrodecepado.

Ela se aproximou de Richard e murmurou: — Se você decidir jogá-lo no chão, prometochutá-lo. Vigorosamente.

— Obrigado, —disse Richard. — Vou gostar disso. —Ele parecia sincero.

Um sinalizador verde surgiu na doca à esquerda.

— Eles querem que atraquemos, —disse um dos homens mais velhos a Jason.

— Então vamos atracar. Suavemente. Vamos precisar deste navio inteiro para dar o foradaqui.

O homem gritou algumas ordens. O navio diminuiu a velocidade, aproximando-se da docaem um arco gracioso.

— Um Forte, —Jason murmurou, seu rosto pensativo.

— Tem cinco canhões de longo alcance com carga rápida, —disse Richard.

Os ‘escravos’ se organizaram em duas filas no convés. Jack foi para a frente.

— Quem diabos colocou o garoto na frente? —Jason deu um passo em direção às filas.

— Deixe-o onde está, —disse Richard. — Ele ficou sentado no porão por duas horas,controlando-se. Precisa desabafar, e é bom que nenhum de nós fique na frente dele.

O senhor do crime olhou para Richard. — Ele é só uma criança.

— Ele é um metamorfo, treinado, —respondeu Richard. — Você nunca o viu em uma luta.Dê a ele o benefício da dúvida.

O leve zumbido do dispositivo de camuflagem parou abruptamente. A névoa se dissipou.Charlotte abraçou seus ombros, sentindo-se repentinamente exposta.

Uma corrente de metal ressoou—eles soltaram a âncora. O navio desacelerou ainda mais,aproximando-se da doca com cuidado, quase suavemente.

— Assim que desembarcarmos e tomarmos o forte, levem o navio daqui, atraque-o aalgumas centenas de metros, —disse Jason a um de seus homens. — Não quero destruir esta ilhae voltar para um navio naufragado.

Três estivadores esperavam no cais de madeira. Atrás deles, um bando de traficantes de

escravos esperava, sem dúvida pronto para receber a mercadoria. Alguns dos traficantes erammulheres. As mulheres não eram menos capazes de crueldade do que os homens.

Cordas voaram do navio até o cais. Os estivadores as prenderam.

— Abaixem a prancha de desembarque, —disse Jason.

Dois homens giraram uma grande roda. Uma rampa de metal deslizou da lateral do navioem direção ao cais. No momento em que a rapa tocou o calçamento do cais, Jack começou adescer a prancha. As mulheres o seguiram em duas filas, ainda com as mãos amarradas.

— Você está ansioso para chegar aos currais de escravos, docinho? —Perguntou uma dastraficantes no cais.

Jack balançou. Um sorriso psicótico apareceu nos lábios do garoto. Seu rosto estremeceu,sua expressão feroz.

Um traficante alto deu um passo à frente. — Vamos logo ...

Jack girou, saltando tão rápido que Charlotte mal viu a faca em sua mão cortar o pescoço dotraficante. Jack pousou, agarrando a cabeça decepada do homem pelos cabelos e a atirou nostraficantes.

— Puta merda, —disse Jason.

A mente de Charlotte hesitou com a quantidade de força necessária para cortar o músculo eo osso de um pescoço humano grosso com uma faca.

Os traficantes congelaram, chocados, e Jack os atacou como uma lança em um cardume depeixinhos. O sangue jorrou, as pessoas gritaram de dor. Os ‘escravos’ arrancaram suas algemasfalsas e avançaram para se juntar ao massacre. O cão desceu a prancha de embarque e entrou nomeio da luta. Ela tentou acompanhar Jack, mas ele disparou dentro e fora do banho de sangue.Ela pegou um vislumbre de seu rosto—ele estava sorrindo.

Em dois minutos, tudo acabou. Oito corpos deitados no chão. Jack se sacudiu e disparoupela rua escura, desaparecendo na escuridão. O cão o perseguiu. As mulheres de Jasoncomeçaram a se mover atrás dos dois.

— Parem! —Jason rugiu.

As falsas escravas pararam.

— Alinhem-se! Encontrem o seu capitão de esquadrão. Agora.

Os criminosos se separaram com disciplina quase militar, formando quatro grupos.

— Esquadrão um, currais de escravos, —Jason gritou. — Libertem todos os prisioneiros,

coloquem fogo, matem quem tentar apagar. Os escravos vão correr soltos, deixe-os. Não ossigam. Esquadrão dois, vá para o quartel e queime essa merda no chão. Mate o máximo quepuder. Esquadrão três, comigo. Eu quero esses canhões e os quero ontem. Assim que tivermos oForte, sinalizem com uma chama verde dupla. Esquadrão quatro, mantenham a formação aqui.Cortem este porto da cidade. Pessoal, se virem no céu um sinalizador vermelho, abortem amissão e caiam fora da forma que puderem. Sinalizador azul, levem seus traseiros em direção aosinal azul. Não parem de saquear até que eu dê a ordem. Se pararem de encher os bolsos antesque eu ordene, eu mesmo irei matá-los. Entenderam?

Os criminosos uivaram concordando.

— Vão! —Jason puxou uma grande espada de debaixo de sua capa. — Boa sorte, meuvelho. Tente não ficar no meu caminho.

Ele desceu a prancha de desembarque, sua capa de monge flamejando.

Os criminosos se dispersaram.

Richard estendeu uma capa cinza esfarrapada para ela. — Eu estou usando um disfarce, masvocê não. Alguém pode reconhecê-la.

Era improvável, mas não havia necessidade de desafiar o destino. Charlotte vestiu a capa,escondendo o rosto no capuz fundo, e ajustou a bolsa de suprimentos de primeiros socorros sobas dobras.

Richard desembainhou sua espada. A ligeira curva da lâmina longa e delgada refletia a luzdas lanternas.

— Nossa vez, —disse Richard. — Precisamos encontrar o contador. Fique perto de mim.

******RICHARD DESCEU a prancha de embarque, ciente de que Charlotte o seguia. OBroken era lamentavelmente inacessível para ele, mas os livros de lá não, e ele tinha lido muitosobre as tradições militares do Broken. Como fuzileiro naval, Jason foi treinado na arte depequenas guerras. Seu ramo particular das Forças Armadas se especializou em responder a uminimigo que empregava guerra assimétrica50, usando a tática que envolvia atacar asvulnerabilidades do oponente em vez de tentar eliminar a maior parte de sua força. Jason tirariade letra os ensinamentos do manual das Forças Armadas: ele desferiria golpes brutais deprecisão contra os pontos vitais da ilha, afogaria a cidade-ilha no caos e na confusão,desmoralizando o inimigo e interrompendo a comunicação, então eliminaria a oposiçãofragmentada. Jason seria implacável e impossível de controlar, mas ele não poderia dominar ailha inteira. Eles precisavam se apressar, antes que o contador percebesse e tentasse escapar.Precisavam arrancar informações do contador o mais rápido possível.

Richard virou à esquerda, seguindo as ruas de paralelepípedos em uma caminhada rápida.Teria corrido, mas o rosto de Charlotte ficou pálido como giz depois que ela eliminou atripulação, e a cor ainda não havia retornado. Ele não queria pressioná-la.

O que Charlotte fez à tripulação do Destemido Drayton o chocou profundamente. Haviauma espécie de beleza terrível na magia dela, e quando ele estava no epicentro da tempestadesilenciosa e sombria provocado por ela, um sentimento de admiração sobrenatural o reivindicou,como se ele se tornasse parte de um evento místico que não poderia ser explicado, apenasexperimentado. Era uma serenidade peculiar e hipnotizante com um toque de medo, do tipo queàs vezes sentia quando caminhava sozinho pela floresta imponente de Adrianglia ou fitava ooceano agitado e seu céu, carregado de uma tempestade. Richard havia encontrado algo maior doque os limites de sua vida normal, e estava alarmado e atraído por isso.

Jason estava certo quando chamou Charlotte de Morte Prateada. O nome se encaixava.Horror e beleza misturados em um só. Mas por baixo ela era uma mulher viva, respirando, equando ele olhou para ela, de pé sozinha na proa do navio, vulnerável apesar da poderosa magiagirando em torno dela, enquanto o resto das pessoas se afastavam dela, com medo de seaproximar, ele sentiu seu isolamento. Ele queria protegê-la, e o fez.

Richard ainda queria protegê-la agora. Apesar de tudo que passou, apesar do objetivo de suamissão estar tão perto, se alguém tivesse oferecido a ele a chance de transportá-lainstantaneamente para algum lugar seguro em troca de ter que reviver os últimos seis mesesnovamente, ele teria aceitado em um piscar de olhos.

E ela o odiaria profundamente por isso.

Três pessoas dispararam de uma rua lateral, dois homens e uma mulher. Boas armas, boasroupas, tipo de roupas usada pela milícia da cidade ou traficantes do Mercado. Os três atacaram.Richard liberou um pouco de seu flash e cobriu a sua lâmina, sentindo a magia deslizar ao longodo fio de sua espada. No Edge, alimentar sua lâmina com o seu flash levava tempo e esforço,mas aqui no Weird, onde a magia era mais forte, bastava uma mera fração de segundo. Seu flashdisparou ao longo da lâmina, puro branco, alimentado pela adrenalina correndo por ele.

O primeiro homem o golpeou com uma espada curta e leve. Richard cambaleou para fora docaminho e empurrou a sua lâmina na axila do homem. A espada deslizou na carne do atacante,cortando ossos e cartilagens como se fosse manteiga quente. Ele sentiu a mais leve resistênciaquando o coração se rompeu e liberou sua lâmina com um puxão afiado a tempo de acertar opunho no rosto do segundo homem. O segundo atacante cambaleou para trás. A mulher saltouem seu lugar, balançando uma clava pesada em um golpe lateral devastador direcionado aoombro de Richard para incapacitar seu braço da espada.

Richard desviou, deixando a clava passar por ele em um assobio e cortou a garganta delacom a espada. Um corte raso, mas suficiente. Ela engoliu o próprio sangue e caiu. Ele agarrou ohomem restante e o atirou contra a parede, segurando a lâmina a uma polegada da garganta dobandido. Os olhos do homem disseram a Richard que ele estava se afogando em puro terroranimal.

— O contador?

— Casa na colina, —disse o bandido, com a voz trêmula. — Colunas. Colunas brancas.

Richard o soltou, e o homem saiu correndo rua abaixo.

Charlotte ficou ilesa, respirando curta e superficialmente. Uma expressão de profundafrustração tocava seu rosto.

— Venha, temos que nos apressar, —disse ele.

Ela o alcançou e juntos começaram a subir a rua, em direção à colina baixa.

— Por que eu sempre faço isso? Por que eu congelo em vez de ajudar você?

— Sem instinto assassino, lembra? —Ele disse. — É uma reação natural. Quando emperigo, lutamos, fugimos ou congelamos.

— Você não congela.

— Estou muito ocupado tentando impressionar você, —disse ele. — Está funcionando?

Ela deu a ele um olhar ilegível. Talvez agora não fosse o melhor momento para leviandade.

A rua terminava em um muro de pedra de dois metros e meio de altura. Pedras pequenas—cada uma mais clara do que a pedra cinza que formava a maior parte da parede—protegiam seutopo, incrustadas a cerca de seis metros umas das outras.

— Pedras de Proteção, —Charlotte disse.

Escalar a parede estava fora de questão. A Proteção não os deixava passar.

— Novo plano. —Richard se virou e eles seguiram pela parede, descendo. Em algum lugardeveria haver um portão ou uma abertura.

À frente e à direita, gritos cortaram o silêncio. Um brilho laranja e vermelho iluminou anoite, pontuado por uma coluna de fumaça. A tripulação de Jason havia posto fogo em algo.

A rua lateral fazia uma curva, e eles a seguiram contornando as casas, mais perto do fogo ede outra parede. Um portão de ferro estava torcido para o lado. Richard se abaixou pela abertura.Um amplo pátio estendia-se diante dele. À direita, perto de um prédio de blocos, uma lutatravava-se entre os traficantes e uma multidão esfarrapada armada com algemas e pedras. Os

escravos atacaram, seus rostos abatidos, contorcidos com fúria bestial, seus corpos escancaradospelos buracos em seus trapos, exibindo marcas de chicote. Eles não tinham armas. Atacavam ostraficantes com suas unhas e dentes como animais selvagens.

Estes não eram escravos recém-adquiridos para serem vendidos. Não, eles eram osrejeitados, provavelmente usados para o trabalho manual na ilha, pouco mais do que bestas decarga. Nenhum ser humano deveria ser tratado dessa forma, mas era, e agora eles estavamfinalmente extravasando sua raiva. Matariam qualquer um em seu caminho.

Bem à frente, uma plataforma elevada com sete conjuntos de postes de metal se erguia, cadaum deles se alargando no topo. As algemas dos escravos seriam fixadas aos postes, sob aqueletopo largo, para que pudessem ser avaliados. À direita, outro portão se abriu e outro grupo seposicionou para vigiá-lo. Nove traficantes armados, vestidos em roupas de couro de um lado equatro do pessoal de Jason do outro.

Nenhum dos dois estava disposto a dar o primeiro passo. O pessoal de Jason era bom eparecia afoito, mas os traficantes os superavam em dois para um.

Ele tinha que passar por aquele portão.

Richard agarrou a mão de Charlotte e apertou. — Teremos que abrir caminho. Fique atrásde mim.

Ele caminhou em direção à luta. Um traficante girou em seu caminho. Richard o empurroupara o lado e se lançou entre os dois grupos, segurando a espada levemente em um ângulo. Ostraficantes o examinaram, espalhando-se. Ele ouviu o pessoal de Jason recuar.

Aqui, equilibrado no limiar entre a violência e a paz, estava seu verdadeiro lugar. Geraçõesde guerreiros—desde os primeiros e ferozes clãs nativos que fugiram para o Mire, escapando deuma catástrofe mágica—sentiam-se como ele, equilibrados na lâmina da espada entre a vida e amorte. Aqui ele estava no controle, sereno e em paz.

Nesses breves momento, quando a vida de seus oponentes e a dele estava em jogo, elerealmente vivia. Mas para experimentar a vida, seus oponentes tinham que morrer.

O primeiro traficante moveu-se para a direita. Richard golpeou, perfurando e cortando coma precisão e velocidade de um cirurgião aprimorado por incontáveis horas de prática. Ele girouem um movimento fluido e parou, sua espada apontada para baixo.

Os traficantes olharam para ele.

O segundo, quarto, quinto e sétimo deles caíram. Eles não fizeram barulho, simplesmentecaíram no chão.

Os traficantes restantes congelaram por um agonizante segundo e avançaram sobre ele.Richard se fundiu no momento, golpeando sem pensar, completamente por instinto. Corte nopeito, golpe invertido, corte na garganta, corte no abdômen, facada sob a caixa torácica àdireita, corte livre da lâmina no peito no mesmo movimento, golpe invertido, corte na garganta,impulso para frente ... e acabou.

Cedo demais. Sempre acabava muito cedo.

O último traficante parou perto de sua espada, mas ele nem se quer o tocou. O homempermaneceu ereto pelo espaço de uma respiração e caiu de joelhos, lutando para respirar. Atrásdele, a magia de Charlotte se enrolou de volta no corpo dela. Ela estava muito quieta, seus olhosarregalados, olhando para ele como se o visse pela primeira vez. É isso é, ele queria dizer a ela.Isso é o que eu sou.

Richard não sabia dizer se Charlotte estava surpresa ou horrorizada ou talvez as duas coisasou nenhuma. O arrependimento o apunhalou, mas então era melhor que ela conhecesse averdadeira natureza dele. Precisavam se mover. Ele pegou a mão dela e a puxou correndo para oportão.

— Obrigado, —ele disse a ela. — Isso foi corajoso da sua parte, mas também desnecessário.Por favor, não faça isso de novo. Eu não quero machucá-la acidentalmente.

Ela tirou a mão de seus dedos. — Eu não sou indefesa, Richard.

Ela achou o toque dele repulsivo? Ele cortou a fechadura que protegia o portão. — Eu seique você é tudo menos indefesa. Mas já fez a sua parte e é a minha vez. Guarde suas reservas.Podemos precisar delas.

Eles passaram pelo portão e Charlotte ofegou. Acima deles, um cadáver pendurado em umposte. Um menino, da idade de Jack. Seus olhos haviam sido arrancados. Sua boca estavacosturada. Seu nariz era uma bagunça quebrada de carne e cartilagem em um rosto cheio demarcas de queimaduras. Uma placa pendurada em seu pescoço dizia: ‘Estamos semprevigilantes’.

Ele já tinha visto uma cena como essa antes—o recurso visual favorito dos traficantes paradesencorajar a fuga. Ele havia arrancado Jason de um buraco no chão pouco antes do homemacabar em um poste da mesma forma. A raiva, quente e furiosa, queimou dentro de Richard,então aqueceu até ferver.

— Ele estava vivo, —Charlotte sussurrou.

— O que?

— Ele estava vivo quando o mutilaram. Essas são feridas anteriores à morte.

A escuridão saiu dela. Os pêlos da nuca dele se arrepiaram.

Charlotte cerrou os punhos. — Vou matar todo e qualquer traficantes que eu encontrar.

Ele notou a mandíbula tensa e a linha fina dos lábios dela. Seus olhos queimavam. Richardreconheceu essa fúria. Era velha amiga dele, e ele sabia que era inútil tentar controlar osentimento. — Será como você quiser, —ele disse a ela. — Tudo o que peço é que subamos acolina em direção ao contador.

À frente, as ruas se desenrolavam diante deles, subindo uma colina baixa. Eles caminharampara cima juntos.

******A CASA ficava recuada na rua, uma mansão imponente e respeitável de dois andares,flanqueada por colunas esculpidas e palmeiras. Um cavalo marrom estava amarrado ao lado,sacudindo as orelhas e lançando olhares nervosos para a rua.

Richard olhou para trás. Nenhum movimento. Eles haviam deixado um rastro de cadáveres,e metade deles pertencia a Charlotte. Ela matou repetidas vezes, impulsionada por umanecessidade irresistível de impedir que a selvageria dos traficantes acontecesse. Ele era assimtambém, no início dessa bagunça. Naquela época, cada nova mutilação e atrocidade o enfurecia.Ele tinha visto coisas tão injustas e chocantes que a única reação que teve foi destruir aqueles queas cometeram. Tornou-se seu imperativo moral e a única resposta humana possível.

Ele viu isso agora em Charlotte. Ela estava tentando limpar a cidade. Richard não era umleitor de mentes, mas sabia exatamente o que se passava na cabeça dela. Se Charlotteconseguisse matar todos os traficantes em seu caminho, a dor iria parar. Se ela não matasse, teriaque processar todo o horror do que tinha visto nos últimos cinco dias, e isso a faria em pedaços.

Levou vários meses antes de perceber que matar traficantes nada adiantava. Novostraficantes sempre tomavam o lugar daqueles que ele matava. Eles eram os algozes imediatos,mas não importava quantos abatesse, porque em algum lugar, alguém rico estava ganhando maisdinheiro com o tormento das pessoas escravizadas. Charlotte perceberia isso também, mas porenquanto ela precisava agir, e o fez. Ele sabia da existência de muitas pragas, mas vê-las em todaa sua glória aterrorizante foi uma experiência que não esqueceria.

Charlotte estava caminhando estranhamente agora, como se os pés dela doessem quandotocavam no chão. Os lábios dela estavam pressionados em uma linha fina e dura. Sua pele estavapálida, os olhos muito brilhantes. Ela parecia febril. Deve estar gastando muita magia. Haviaapenas dois caminhos a partir daqui: ou ela para de se esforçar e se recupera, ou drenará até amorte.

— Estamos quase terminando, —disse ele. — Não se esforce mais, Charlotte. Polpe-se.

Charlotte acenou com a cabeça.

Ele cortou a porta, abrindo a fechadura com golpes precisos, e empurrou as pesadas metadesde madeira abertas, revelando um grande corredor com uma escada curvando-se para o segundoandar.

Sua mente mal registrou os três homens armados com bestas, agachados atrás de umacômoda virada. Ele viu as flechas voando na direção deles e automaticamente disparou seu flash,transformando sua magia em um escudo pálido na frente dele.

As flechas quicaram no escudo. Richard correu para frente.

— Morram, —Charlotte ordenou, sua voz exausta. Os três homens engasgaram. Ele saltousobre a cômoda e os cortou com três golpes. Atrás dele, Charlotte se curvou e se apoiou nacoluna. Maldição.

******ELA ESTAVA exausta. A última centelha de magia queimava vagamente dentro dela. SeCharlotte desistisse, seu controle sobre a sua magia iria escorregar. Ela quase ficou tentada afazer a deixar que isso acontecesse.

Como ficou tão cansada rapidamente? Já tinha gastado muito magia antes, mas nunca sesentiu cansada. Pelo contrário, se sentia leve e onipotente, como se sua alma tivesse sedesconectado de seu corpo. Mas então, nos últimos cinco minutos, enquanto subia a rua íngremeaté a casa, a realidade a atingiu novamente. Seu corpo parecia tão pesado, sentia-se tão acuada,como se cada quilo de seus músculos e ossos triplicado de peso. Seus pés doíam. Ela queriavomitar apenas para aliviar a carga.

No momento em que sua magia fluiu para atacar os arqueiros, suas pernas falharam. Muitode si mesma tinha saído com a magia. Ela teve que se apoiar contra a coluna, ou cairia.

Richard pairou sobre ela. Ela vislumbrou raiva nos olhos dele.

— Não mais. —Sua voz cortada continha um comando inconfundível.

Charlotte sentiu a magia do corpo dele, uma força vital vibrante estremecendo a poucoscentímetros dela. Tudo o que precisava fazer era alcançá-lo. A magia dela choramingou, ansiosapor alimento. É assim que os Portadores das Pragas nasciam—o esforço levava o Curador abuscar uma fonte alternativa de energia e drenar a vida mais próxima para continuar matando.

Ele abaixou a cabeça e encontrou os olhos dela. — Charlotte!

Ela não estava pronta para desistir da vida ainda. — Não levante a voz para mim, meu

senhor. Sei onde estão meus limites e não tenho intenção de desmaiar ou morrer. Não vou mais usar minha magia. Estará sozinho agora.

Um homem magro de cabelos escuros saiu de trás da escada. Ele carregava uma espada.

******UM HOMEM segurava uma espada Sudanesa51, longa e fina. O homem era jovem, emforma e caminhava com equilíbrio perfeito, carregando sua espada de aço com total confiança.Um mestre de espada Sudanês, provavelmente um lutador profissional.

Richard sacudiu o sangue de sua lâmina.

Eles se entreolharam.

O Sudanês atacou. Richard defendeu e avançou. A lâmina dele encontrou uma parede deflash azul e ricocheteou. A magia do atacante queimou o braço de Richard. O Sudanês usou flashpara reforçar a lâmina da espada dele. Fantástico. E aqui ele pensou que isso seria fácil.

Richard ignorou a dor e girou, desferindo uma curta saraivada de golpes. O Sudanês,dançando e girando. Eles se moveram pelo chão.

Richard atacou. Golpeou, golpeou, golpeou. Sua lâmina ricocheteava na espada do Sudanês.Normalmente, sua lâmina afiada como flash teria cortado a arma de seu oponente.

O mestre de espada Sudanês era bom, Richard tinha que admitir.

Richard recuou. Alimentou sua lâmina um pouco mais com o seu flash e contou com umgolpe rápido e surpreso para tentar incapacitar instantaneamente seu oponente. Falhou. O mestrede espada lutava com precisão, poder e controle. O rápido tumulto de aparar e trocar golpesenquanto cobre uma grande quantidade de terreno era a fraqueza de Richard, ao contrário dosespadachins Sudaneses que eram especialistas nisso.

O Sudanês atacou com uma rajada de golpes. Richard defendeu, investindo, empurrando,procurando uma abertura e não encontrando nenhuma. O Sudanês revestiu toda a espada delecom uma bainha mágica de proteção, tornando quase impossível quebrá-la e a usava comoescudo. Vencer essa luta dependeria de habilidade e velocidade, e o Sudanês ambos de sobra.

O homem fintou para a direita. Richard se afastou, evitando a armadilha. Enquanto ele seesquivava, o homem saltou para frente, transformando o golpe em um giro, e chutou. Richardviu, mas não tinha como evitá-lo. Ele girou direto para o golpe, flexionando-se, recebendo ogolpe em seu ombro esquerdo. O chute atingiu o músculo e Richard cambaleou para trás. Foicomo ser atingido por um porrete.

O espadachim Sudanês pousou e girou sobre um pé, exibindo-se.

— Minha técnica é superior.

Vaidoso. O Sudanês era jovem, tinha fome e estava ansioso para provar que era melhor.Obrigado por me mostrar a rachadura em sua armadura, meu caro.

— Continue pulando, —disse Richard. — Seu professor de dança não está aqui paraaplaudir você, mas eu estou gostando do show.

A maioria dos homens a essa altura de uma luta já estariam começando a se cansar. Richardduvidava que isso estivesse acontecendo com esse. O Sudanês parecia literalmente estar à frentedele. Sua espada era inquebrável, sua técnica perfeita. Mas todo homem tinha falhas.

Uma sugestão de movimento chamou a atenção de Richard. Ele virou ligeiramente a cabeça.Charlotte se afastou da coluna em que ela se apoiava. Ele tinha que impedi-la de fazer qualquercoisa precipitada. Charlotte era uma mulher orgulhosa. Se ela tivesse bem, estaria em pé e nãoapoiada em uma coluna. Provavelmente ela estava no seu limite máximo.

Se Charlotte achasse que ele estava em perigo e desesperado, ela tentaria salvá-lo. Deixá-lamorrer por causa dele não estava no plano.

Ele encolheu os ombros, indiferente. — Minha senhora, estarei com você em um momento.Só preciso arrancar as asas dessa linda borboleta.

O Sudanês cerrou os dentes, fazendo os músculos da mandíbula tensionarem. Nãodemoraria muito mais para empurrar o jovem exibicionista na direção certa.

— Não se preocupe comigo, —disse Charlotte.

— Primeiro vou matá-lo, depois cuide de você, —o Sudanês prometeu.

— Acho que não. —Charlotte sentou-se em um baú tombado. — Ele é melhor.

— Eu sou melhor e mais rápido, —disse Sudanês.

Ela balançou a cabeça, sua voz natural. — Além dele ser melhor, você luta só por dinheiro.Ele luta por algo maior.

Não havia pânico, nem tremor na voz dela. Apenas uma declaração calma. Ela acertou oSudanês bem onde doía, e fez isso como se o resultado da luta já fosse uma conclusãoprecipitada. Droga, isso foi impressionante.

Charlotte não tinha dúvidas de que ele venceria. Richard mudou o aperto de sua espada. Elenão poderia decepcioná-la. Acenou para o Sudanês com os dedos da mão esquerda. — Venha,vamos terminar isso. Não posso perder mais tempo com você. A senhora está esperando, e eunão quero ser rude.

O Sudanês saltou, desencadeando uma enxurrada de golpes, rápido demais para

acompanhar. Richard defendeu o primeiro, o segundo, o terceiro e contra-atacou, segurando aespada com as duas mãos, concentrando toda a sua força no golpe acima. O Sudanês brilhou,liberando seu flash e protegendo sua lâmina, mas o poder do impacto o surpreendeu.

Richard atacou novamente, trazendo uma saraivada de golpes na espada do Sudanês,forçando-o a recuar a cada golpe. O suor apareceu na testa de Richard.

Este ataque estava drenando todas as suas reservas, mas ele estava apostando no ego doSudanês. Se tivesse sorte, o jovem aceitaria o desafio. Um espadachim mais sábio simplesmenteesperaria Richard cansar, uma vez que ele se cansasse, o mataria quando quisesse, mas juventudee sabedoria nem sempre andavam juntos.

O Sudanês se lançou para frente, esfregando sua lâmina contra a de Richard, flash contraflash. Eles lutaram, travados. O Sudanês torceu, tentando pegar a perna dianteira de Richard como pé, com o objetivo de derrubá-lo. Richard o empurrou de volta. O jovem tropeçou, semequilíbrio. Richard deu um chute frontal em seu peito.

O Sudanês caiu para trás e rolou como um gato. Seu rosto era uma máscara furiosa. Elegritou e atacou. Richard evitou sua enxurrada de golpes, esquivando-se, aparando, batendo alâmina de lado quando podia. Sabia que uma parede estava atrás dele, mas não havia para ondeir.

Seu pé tocou a pedra da parede. O Sudanês girou como se suas juntas estivessem líquidas eimpulsionadas, mirando no coração, tão rápido que o golpe foi um borrão. Richard desviou porpuro instinto, deslizando sua lâmina sob o golpe. Suas magias se chocaram uma contra a outra,azul contra branco. Todo o peso do homem pressionou a lâmina de Richard, arrancando umgrunhido irregular dele.

A lâmina do espadachim deslizou para cima, ganhando um centímetro. Richard empurroupara trás, seus braços tremendo com a tensão. Segurar o peso do jovem estava espremendo asúltimas gotas de força de seu corpo cansado.

Mais um centímetro. A lâmina estreita do Sudanês deslizou ao longo da espada de Richard.Ele viu o movimento, mas não conseguiu impedir. A espada cortou o bíceps esquerdo deRichard, cortando o músculo em uma queima lenta e agonizante.

Filho da puta. Não havia maneira de sair dessa posição que não terminasse com ele sendoferido. Mesmo que conseguisse reunir força suficiente para empurrar o jovem para trás, o esforçoo deixaria exposto para um contra-ataque e, de costas para a parede, não teria como manobrar.

O Sudanês sorriu.

Se ele perdesse, Charlotte morreria. Ele iria falhar, e Sophie ficaria sozinha com seus

demônios. Richard tinha que matar o outro homem. Ele suportaria a dor se isso significasse quevenceria.

Richard largou sua lâmina. A espada do Sudanês, abruptamente livre de resistência, deslizoupara frente e cortou mais fundo no braço dele, mordendo o osso em um flash de dor.Desequilibrado, o Sudanês caiu para a frente e Richard deu um soco na garganta do homem. Oespadachim recuou com o golpe. Richard arrancou a espada da mão de seu oponente, liberou seuflash mais uma vez, revestiu a espada roubada com sua magia e a empurrou para cima, sob acaixa torácica do Sudanês.

A lâmina cortou os pulmões e o coração como uma faca em uma pêra macia. A extremidadesangrenta emergiu do peito do Sudanês e cortou a parte inferior de seu queixo.

O homem abriu a boca, a surpresa fazendo seu rosto parecer jovem demais ... O sanguejorrou de seus dentes, encharcando-os de vermelho. Richard o empurrou para trás, e o Sudanêscaiu, seus olhos mortos fixos no teto.

Richard caiu para frente, tentando recuperar o fôlego. Seu braço esquerdo pendurado inútil,o corte em seu músculo queimando como se alguém tivesse derramado chumbo derretido naferida. Ele olhou para o homem a seus pés. Quantos anos tinha, vinte e cinco? Vinte e oito? Todauma vida pela frente, boa aparência, talento e agora estava morto. Que desperdício.

Richard cerrou os dentes e olhou para o corte no ombro. O sangue encharcava sua pele epingava no chão. Ele não tinha muito energia de sobra como estava.

Deuses, doía como o inferno. Respirou fundo pelo nariz, tentando se separar da dor, forçouo rosto em uma máscara de calma e se virou para Charlotte.

Ela estava sentada meio dobrada no baú revirado, os ombros caídos, a costas dobrada. —Deixe-me ver.

— Não. —Se visse, tentaria curá-lo, e ele não podia deixar que ela fizesse isso.

— Meu Senhor ...

— Eu disse não.

— Não seja um bebê.

Um bebê? Ele rasgou uma manga da camisa do Sudanês e a envolveu em seu braço. —Pronto. Resolvido.

— Não seja ridículo.

Ele pegou sua espada. Seu braço esquerdo parecia estar pegando fogo e doía mover-se.

— Richard, não me ignore. Você acabou de enrolar um trapo imundo sobre uma ferida

aberta, que certamente está infectada agora.

Ele caminhou até ela. — Estou bem. Você está exausta.

— Pelo menos deixe-me dar uma olhada nisso!

— Você está bem o suficiente para subir?

Ela se levantou do baú, aquele gelo familiar brilhando em seus olhos. — Mesmo sem minhamagia e de olhos fechados, sou uma médica de campo melhor do que você. Você vai me deixarolhar o seu ferimento e vai me deixar fazer um curativo adequado, em vez de enrolá-lo com umpano sujo. Levará dois minutos, então podemos subir e caçar o contador. Ou podemos fazer doseu jeito, e pode acabar desmaiado com a perda de sangue. Nesse caso ambos estaremos mortosporque não posso carregá-lo ou protegê-lo. Seu braço, meu senhor. Agora.

Ele se virou, dando a ela o braço esquerdo. Era mais fácil do que discutir.

Charlotte puxou um saco de debaixo de sua capa, o abriu e tirou um kit de primeirossocorros de plástico, completo com a cruz vermelha familiar do Broken nele. Charlotte abriu okit, tirou um pequeno frasco e entregou a ele. — Beba isso.

Ele puxou a rolha com os dentes e engoliu o líquido amargo. O frio correu por ele, descendopelo músculo ferido, direto para a fonte da dor. Uma dormência bem-vinda veio. Pareciacelestial. Charlotte respingou algo no corte e começou a envolver seu braço.

— Ele cortou o osso.

— Hum-rum.

— Se mostrar imperturbável não é necessária. Eu sei que a dor é insuportável.

— Se eu rolar no chão e chorar tornará as coisas mais fáceis para você? Posso fazer essefavor. —Finalmente a realidade o penetrou. Ele venceu e viveu, e ela também.

Charlotte revirou os olhos. — Teve sorte que a espada do espadachim era muito afiada. Ocorte foi limpo. Se me der uma ou duas horas para me recuperar, vou curar isso. Era mesmonecessário deixar que ele te cortasse?

Argh. — Sim, era. Ele era muito bom e eu não tive escolha. Desde quando você é umaconhecedora de artes marciais? —Ele acabou de confessar que era um espadachim inferior aoSudanês? Não acreditou que acabou de dizer isso.

— Desde que minha vida começou a depender deles.

— A próxima vez que eu lutar pela minha vida, com certeza vou pedir seu conselho, minhasenhora.

— Se fizer isso, vou aconselhá-lo a não jogar fora sua espada.

Ele quase rosnou, mas isso a teria assustado, e ele se controlou. Uma mulher irritante eimpossível.

Ela deu o nó final e enrolou uma fita branca em volta da bandagem.

— E agora?

— Vamos lá para cima.

— Tudo bem. —Ela se inclinou na direção dele para amarrar uma tipoia em seu ombro.

Seu cabelo roçou a bochecha dele. O desejo o apunhalou, repentino e avassalador. Suairritação só o fez desejá-la mais.

Charlotte deslizou o braço dele na tipoia e colocou o kit de volta no saco. — Se vocêprometer não se cortar ou ser espetado pela espada de outra pessoa, eu prometo não desmaiar.

Que adorável. — Eu seria um tolo se não aceitasse essa oferta generosa.

Eles começaram a subir as escadas, agonizantemente lentos.

— Você realmente achou que eu iria ganhar a luta? —Ele perguntou.

Ela se virou para olhar para ele, olhos cinzentos tão bonitos em seu rosto adorável. — Claro.

Richard se imaginou dando um passo à frente, a puxando para si com a mão ilesa ebeijando-a ali mesmo na escada. Em sua mente, os lábios dela eram quentes e convidativos. Emsua mente, ela adorou e o beijou de volta.

Sua mente era um lugar de muitos sonhos, a maioria deles mortos e abandonados. Ela estácaminhando ao seu lado, ele disse a si mesmo. Viu o seu verdadeiro eu e ainda está disposta acuidar de você. Aproveite o pouco que tem enquanto o tem.

Eles chegaram ao corredor. Uma luz fraca refletia no chão sob a porta à direita. Richardapontou para a parede perto da porta. Charlotte pressionou suas costas contra a parede.

Ele chutou a porta, girando para o lado, se protegendo. Balas salpicaram a parede oposta,arrancando pedaços do gesso. Richard tinha visto o interior da sala por uma fração de segundo,mas foi o suficiente: uma mulher ruiva estava sentada atrás de uma mesa e um homem altoestava ao lado dela, armado com uma das armas do Broken.

Richard puxou uma faca de arremesso da bainha de seu cinto, se lançou contra a entrada earremessou a lâmina. A faca atingiu a garganta do atirador. O homem tropeçou para trás e caiu.

A mulher o encarou com olhos frios e claros. Ela tinha um rosto em formato de coração,com maçãs do rosto salientes e contornadas. Seu cabelo vermelho-fogo enrolado em torno de sua

cabeça em uma trança complexa. Sua túnica era de seda, cortada no que era seguramente o estilomais recente. Um pingente oval pendia de seu pescoço em uma fina corrente de ouro: uma pedraclara água-marinha do tamanho da unha do polegar. Ela parecia ter quase a idade de Charlotte.Parecia também ser uma Sangue-azul.

Atrás dela havia duas grandes janelas. Fileiras de prateleiras sustentavam uma variedade delivros na parede direita, enquanto uma grande lareira de pedra calcária branca ocupava aesquerda. Uma arithmetika, uma calculadora movida a magia, estava em sua mesa, ao lado depilhas de papel. Nenhuma arma parecia estar nas proximidades.

— Encontramos a contadora, —disse Richard. — Entre, Charlotte.

Ela entrou na sala. Charlotte viu o atirador morto. Suas sobrancelhas se erguerambrevemente, então ela se sentou na cadeira mais próxima.

— Se tinha uma faca, por que não a jogou no espadachim lá embaixo?

— Teria sido um desperdício. Ele teria aparado. —Richard acenou com a cabeça para amulher. — Coloque as duas mãos na mesa.

A mulher fez isso. Dedos delicados, adornados com finos anéis de ouro cravejados depedras. Bom gosto e dinheiro eram, às vezes, incompatíveis, mas, neste caso, eram claramenteinimigos do peito. Uma raiva familiar acendeu nele.

— Você é rica, provavelmente bem-educada, —disse ele. — Academia Juliana, talvez. —AAcademia Juliana era considerada o melhor lugar para meninas Sangue-azuis ricas estudarem.Ele pesquisou profundamente as opções de escolas de Adrianglia para o bem de Cotovia. Foiuma perda de tempo. Sua sobrinha negou todas as suas escolhas cuidadosas.

— Instituto Winters, —Charlotte disse. — A túnica dela combina perfeitamente com o tomde seus olhos. A Academia Juliana incentiva mais criatividade.

A mulher arqueou uma sobrancelha e olhou para Charlotte, avaliando suas roupas sujas emanchadas de sangue. Seu desejo de feri-la disparou.

— E onde você estudou, se posso perguntar?

— Tive tutoria pessoal de uma dos Dez Primeiros, —disse Charlotte, a voz glacialmente friae cortante com desprezo como uma faca. — Não tente me menosprezar, você estáirremediavelmente derrotada. Vejo falhas em todos os seus aspectos, desde sua falta de gosto atésua moralidade podre. Você se envolveu no mais vil dos crimes. Facilitou o assassinato, oestupro e a tortura de crianças. Sua conduta é imprópria para uma nobre do reino.

Richard quase estremeceu.

A mulher recuou, suas bochechas ficando vermelhas. — Por favor, poupe-me da retórica.Somos uma raça superior. Você sabe disso tão bem quanto eu. Simplesmente coloca vendas echama isso de altruísmo. Eu chamo isso de ignorância intencional. Aqueles de nós que têmSangue-azul se tornaram assim porque nossos ancestrais surgiram das fileiras de turbas sujas.Eles eram os Cavaleiro, os chefes, os líderes de seu povo. Os melhores dos melhores em virtudede suas habilidades e vontade. Nós somos seus descendentes. Eles subiram ao poder e nós omantemos. É simples assim. Essas pessoas que você me acusa de praticar crimes contra vivemcomo animais. Em muitos casos, ser despojados de suas liberdades é a melhor coisa queaconteceria com eles.

Charlotte olhou para ela. — A função de um título nobre é servir ao povo. Sete quarteirõesdaqui, está o corpo de um menino cujos olhos foram arrancados e a boca costurada. Ele aindaestava vivo quando fizeram isso. O que há de errado com você? É mesmo humana, afinal?

— Uma vítima lamentável, mas necessária. —A contadora cruzou os braços magros sobre opeito. — Mas você está certa, talvez devêssemos tê-lo deixado com sua adorável família paraviver na miséria enquanto seus pais bebiam até perder os sentidos em um esforço para esquecersua própria preguiça e batiam nele quando sua existência os lembrava de sua incapacidade.Aqueles que são capazes agem. Escolhe fazer algo de valor na vida. Não vivem na sujeira,empanturrando-se de comida barata, se afogando em vícios e no cio para produzir ainda mais desua laia. Resgatamos crianças disso. Oferecemos um serviço valioso.

Inacreditável.

Charlotte fez um barulho sufocado.

— Seu julgamento não significa nada, —disse a contadora. — Este empreendimento foiconcebido por uma mente muito superior à sua ou à minha. Pense nisso, quando um Sangue-azulcompra uma jovem bonita, ela tem a chance de uma vida melhor. Se a jovem for inteligente,começará a ter filhos para se valorizar. Outro dia, cumprimos um pedido especial para um casalsem filhos. Eles queriam um par de gêmeos, um menino e uma menina, com idades entre dois equatro anos, semelhantes aos dois. Você tem ideia de como foi difícil encontrar criançasadequadas? Ainda assim, conseguimos. A escravidão é uma oportunidade. É lamentável quevocê não consiga entender isso.

Nada que Charlotte ou Richard pudessem dizer faria esta mulher ver a razão.

— Mate-a, —disse Charlotte. — Se você não a matar agora, eu mesmo o farei.

— Precisamos de seu testemunho e informações. —Ele se aproximou da mesa. Richard nãotinha ideia de como iriam descer a colina e chegar ao porto carregando uma prisioneira, mas

pelos deuses, ele tentaria.

— Me matar não será necessário. —A mulher ergueu o queixo. — Ao contrário de você, eusei meu dever para com a lança.

A mulher agarrou o pingente do pescoço dela.

Richard se lançou para detê-la.

A pedra rangeu sob a pressão dos dedos da mulher. Um ponto de luz ofuscante explodiu emseu queixo, através de sua cabeça e fora de seu crânio.

Charlotte ofegou.

A contadora caiu na cadeira, morta, a cabeça tombando para o lado.

A coisa toda demorou menos de um segundo. A mulher estava usando um colar de Posse-do-Proprietário. Ele deveria ter visto isso, malditos deuses.

O mundo parou bruscamente. Richard se sentia como se estivesse caindo.

Todo esse tempo, todo esse trabalho e a escória arrogante se matou. Não havia justiça nomundo?

Talvez Charlotte ... Ele girou para ela.

— Muito morta, —ela disse, seu rosto enojado. — Irreversivelmente morta.

— Maldição.

Sua mente zumbia, tentando reavaliar a situação. Afundar na derrota nunca serviu a nenhumpropósito. Não, Richard estava se enganando. Mesmo se tivessem conseguido capturá-la comvida, nenhum deles poderia tê-la levado ao navio em suas condições atuais, e se conseguissem,por algum milagre, conseguissem, ela nunca testemunharia. Mas não acabou, ele lembrou a simesmo. Ainda não. Podiam não ter a contadora viva, mas ainda tinham o escritório dela e tudodentro dele.

‘Dever para com a lança’. Apenas uma lança veio à mente dele. — Gaesum, —ele pensouem voz alta. O símbolo da família real de Adrianglia.

— Isso explicaria a devoção dela, —disse Charlotte. — Se a mulher pensava que estavaservindo à coroa de alguma forma, não poderia se permitir reconhecer que a própria coroa estariafazendo algo vil, ou visão de mundo dela inteira desabaria.

Eles se entreolharam. Em Adrianglia, a coroa era reverenciada. O poder da linhagem realtinha suas limitações, mas o monarca ainda ocupava a posição de presidente do Conselho,exercendo grande parte do poder dentro do ramo executivo. A família real era considerada o

epítome do comportamento e da honra pessoal. A ideia de que a coroa pudesse estar envolvidano comércio de escravos era impensável.

— Tem que haver evidências em algum lugar. Ela era contadora, deve ter mantido registros financeiros. —Richard foi até as prateleiras e puxou uma pilha de livros. Ele os entregou a Charlotte. Ela os folheou enquanto ele vasculhava a mesa. Sua busca nas gavetas encontrou uma caixa de madeira, destrancada. Dentro, vários colares estavam enfileirados, cada um com uma grande e simples pedra preciosa em uma variedade de cores. Ao contrário do pingente da contadora, as correntes eram muito curtas. Uma vez presas ao pescoço dos escravos, os colaresnão podiam ser removidos deslizando-os sobre a cabeça.

— É isso que ela usou para se matar? —Charlotte perguntou, sua voz seca.

Ele assentiu. — São chamados de Posse-do-proprietário. Ele pegou um, balançando opingente de rubi falso. — Eles são colocados em escravos jovens e atraentes que são usados parao abuso sexual. Os colares têm um bloqueio de uso único: uma vez presos, são impossíveis detirar sem cortar a corrente. Cada um contém uma pequena carga mágica projetada para matar ousuário. O colar detona se a corrente for cortada ou se a pedra for danificada. Um lembrete deque se o escravo desobedecer ou desagradar, sua vida pode terminar em um instante. Elesfuncionam muito melhor do que algemas e são muito menos óbvios.

Ela cerrou os dentes e ele leu uma mistura de horror e nojo em seu rosto. — Cada vez quepenso que alcancei o limite, o próximo lugar me choca.

E isso era verdade, Richard percebeu. Ele pensou que ela ficaria insensível ou entorpecida,mas cada nova evidência de crueldade criava uma nova ferida nela. Novamente, desejou não tê-la trazido aqui. Havia limites na quantidade de ferimentos que alguém poderia sofrer.

— O que acha disso? —Charlotte mostrou a ele um livro vazado.

A esperança se agitou nele. — Há alguma coisa dentro?

— Não.

E a esperança recém-nascida despencou para a morte. — Temos que continuar procurando.

Vinte minutos depois, eles se entreolharam sobre a mesa. O escritório estava um desastre.Não deixaram nada intocado. Os livros-contábeis, se existissem, não estavam à vista.

Richard se apoiou na mesa. Ele sentiu outra crise de tontura chegando. Havia superado oprimeiro há alguns minutos, mas agora a vertigem estava de volta. Ser ferido tinha um preço.

— Richard, —disse Charlotte.

Ele virou.

Uma figura ensanguentada estava parada na porta, seu cabelo e roupas manchados desangue coagulado e fuligem. Seus olhos estavam cansados e ele carregava um pé-de-cabraensanguentado. Um enorme cachorro preto ofegava ao seu lado.

— Jack? —Disse Richard.

— Oi. —Jack largou o pé-de-cabra. O objeto bateu no chão.

— Como você está? —Charlotte perguntou.

— Bem, —ele disse, sua voz maçante. — Acabou a diversão para mim. Acho que devemosvoltar para o navio agora. A cidade está queimando, o fogo está vindo para cá e a fumaça estáfazendo minha garganta coçar.

— Não podemos sair ainda. —Charlotte suspirou. — Procuramos em todos os lugares, masnão encontramos os livros-contábeis. Temos que encontrá-los, ou tudo isso foi em vão.

— Vocês olharam no cofre? —Jack perguntou.

— Que cofre? —A sala não tinha cofre, apenas uma mesa e as prateleiras, e ele havia batidoem todas as paredes transparentes à procura de um vazio.

— Na lareira.

Richard se voltou para a lareira. Era uma típica lareira de pedra calcária estranha sem umamoldura de lareira. Nenhum fogo foi colocado e a fogueira estava perfeitamente limpa. Semmarcas de fuligem. Definitivamente não tinha sido usada, mas pode ter sido concebido comodecorativo. Richard foi até lá, sondando as pedras com a mão. — O que te faz pensar que há umcofre aqui?

Jack sentou-se no chão ao lado de Charlotte. — Não há chaminé. Tem o cheiro do perfumeda mulher morta, posso sentir o cheiro daqui. Além disso, há um batente de porta.

— Onde? —Charlotte perguntou, tirando os detritos do cabelo de Jack.

Jack apontou para o chão. Um pequeno batente de porta ornamentado projetado para serdeslizado sob uma porta ao lado da escrivaninha. Se a frente da lareira se abrisse como umaporta, estava na posição perfeita para ser agarrada e enfiada embaixo dela.

Não havia motivo para a contadora passar tempo junto à lareira.

Ela não teria chegado perto disso. Richard bateu nas pedras. Se houvesse algum mecanismopara desbloquear, ele não poderia ver. Ele pegou sua espada.

— Talvez haja um interruptor escondido, —Charlotte disse.

— Encontrar demoraria muito. —Ele se concentrou, alimentando magia na lâmina,forçando-a em direção à ponta da espada. A borda revestida de flash brilhou cada vez maisintenso, até que brilhou como uma pequena estrela. Richard ergueu a espada e forçou a ponta nocalcário, testando-o. A lâmina afundou na lareira, cortando a rocha com uma facilidadesurpreendente. Não mais do que alguns centímetros, ele decidiu. Se houvesse um cofre, ele nãoqueria danificar o conteúdo. Richard se ajoelhou, cortou horizontalmente a lareira, levantou-se e

cortou novamente na altura dos olhos.

A frente da lareira deslizou alguns centímetros. Richard deu um passo para trás. A seção decorte desabou e caiu com um baque forte, sua parte traseira exposta—tábuas de madeira comuma fina camada de calcário afixada em sua frente. Dentro da lareira destruída, as prateleirasestavam abertas, contendo cinco pequenos livros pretos e um vermelho.

Ele se virou para Jack. — Bom trabalho.

— Você é um gênio. —Charlotte abraçou o menino.

Richard puxou os livros e os trouxe para Charlotte. Suas mãos tremeram. Ela abriu oprimeiro livro preto e seus olhos se arregalaram enquanto lia. Ele folheou o volume vermelho,examinando as páginas cheias de fileiras organizadas de números contábeis. Investimentos epagamentos feitos para cinco nomes. Aqui estavam eles, as pessoas que lucravam diretamentecom a venda de seres humanos. Lorde Casside, um rico Sangue-azul que ganhava dinheiro nocomércio de importação e exportação. Richard o tinha visto uma vez na casa de Declan duranteum jantar formal. Senhora Ermine. Ele não tinha ideia de quem ela era, mas iria descobrir. BarãoRené, outro nome desconhecido. Lorde Maedoc, um general aposentado, um herói de guerracondecorado. E ...

— Visconde Robert Brennan.

— O primo do rei? —Charlotte perguntou.

Richard acenou com a cabeça. Então era verdade. A contadora realmente serviu à lança.Robert Brennan, o sétimo herdeiro na fila para o trono. Nunca em seus cálculos Richard pensouque a cadeia de comando fosse tão alta.

— Você está chocado, —disse Charlotte.

— Não entendo. —Richard se encostou na mesa. — O homem nasceu em berço de ouro.Tem riqueza, posição social, o privilégio concedido à sua linhagem, a melhor educação que sepode comprar ...

Todas as coisas que foram negadas a Richard. A educação que ele recebeu foi uma faca dedois gumes: ampliou seus horizontes, mas ao mesmo tempo, o tornou dolorosamente conscientedas oportunidades que nunca teria. Houve um tempo em que Richard se sentiu preso no Mire,ciente do mundo fora do Edge, mas incapaz de chegar até ele, acorrentado ao pântano. Ele nãotinha linhagem, nem dinheiro, nem oportunidade de passar pelas tropas da Louisiana queguardavam a fronteira com o Edge, mas tinha o intelecto e a educação para compreender a totalfutilidade de sua posição. Ele teria matado para abrir apenas uma porta e escapar. Brennan tevetodas as vantagens. Todas as portas estavam abertas para ele.

— Por quê? Por que fazer isso? É como um milionário que rouba mendigos.

— Quem sabe, —Charlotte disse. — Talvez seja a emoção de fazer algo criminoso.

Ela parecia exausta. A preocupação o apunhalou. Ele tinha que tirar ela e o menino daqui.

Richard cortou um pedaço do tecido da cortina transparente, empilhou os livros sobre ele e oamarrou em uma sacola improvisada. Roubar era criminoso. Escravizar pessoas era umaatrocidade. Mais ainda, porque Brennan, nascido com privilégios, tinha deveres. Ele tinha aresponsabilidade de exercer sua influência para o benefício do reino e, em vez disso, cuspiu nele.

Qualquer que fosse a justificativa que levasse Brennan a liderar o comércio de escravos,Richard faria questão que ele pagasse. Teria certeza. Ele tinha prometido isso a Sophie, e iriacumprir.

Richard embainhou sua espada e entregou a sacola de livros para Jack. — Isso é de vitalimportância. Guarde-o.

O menino acenou com a cabeça.

Richard ofereceu a Charlotte sua mão direita. Ela se levantou da cadeira, balançando umpouco. Eles desceram as escadas e saíram pela porta da frente. Abaixo deles, a cidade se estendiacolina abaixo até o porto. Chamas laranja surgiram de dois lados diferentes da cidade, bem àesquerda e mais perto à direita, devorando as estruturas. Aqui e ali, disparos isolados ecoavam,seguidos de gritos. Um único navio esperava no meio do porto, como um pássaro gracioso emum mar de vidro negro e, acima de tudo, no céu noturno sem fim, uma lua pálida se erguia,derramando sua luz indiferente sobre a cena.

Richard virou para a esquerda, atrás da casa. O cavalo ainda esperava. Ele desamarrou asrédeas e o trouxe para Charlotte.

— Eu posso andar.

— Charlotte. —Ele não pretendeu colocar toda a sua frustração em uma única palavra, masde alguma forma o fez.

Charlotte piscou assustada.

— Por favor, suba no cavalo.

Ela subiu na sela. Ele pegou as rédeas e começou a descer a rua, Jack ao seu lado. O cãoposicionou-se à frente deles. O rosto de Richard coçava impiedosamente. Assim que chegassemà costa, lavaria toda a gosma do disfarce da pele.

— George está sozinho com nosso pai há muito tempo, —disse Jack.

Era esperar muito, mas Richard confiava em George e o rapaz precisava de redenção. — Ele

vai ficar bem.

— Você vai matar nosso pai? —O menino perguntou baixinho.

— Não cabe a mim decidir o que fazer com o pai de vocês. —John Drayton merecia morrer,e se Drayton não estivesse ligado aos meninos, Richard se livraria do homem como o pedaço delixo que ele era. Mas a família tinha prioridade e a reivindicação dos filhos superava a vontadedele.

— Se vai nos deixar cuidar disso, não deixe George resolver, —disse Jack. — Eu vou matarmeu pai, pela nossa avó. Não me importo. Nem me lembro dele, mas George esperou por eletodo esse tempo. Não seria bom para o meu irmão.

Diziam que os metamorfos não entendiam as emoções humanas. Eles entendiam muito bem,refletiu Richard. Eles simplesmente não conseguiam entender por que as pessoas escolhiammascarar o que realmente sentiam. Jack queria poupar seu irmão. Mesmo no Mire, onde coisascomo traição e punição eram mantidas na família, nenhuma criança deveria matar seu pai.

O menino ... não, o rapaz estava olhando para ele.

— Não se preocupe, —disse ele a Jack. — Esse é um fardo que nenhum de vocês terá decarregar.

nove— VOCÊ PARECE BEM, —DISSE JOHN DRAYTON DOOUTRO lado de sua cabana. — Forte. Crescido. Lembro-me de quando estava muito doente.Na época você reanimava todos os animais mortos que encontrava porque não suportava ver algomorrer. Acho que superou isso.

George examinou o homem à sua frente. O segredo era isolar sua própria raiva e avaliá-locomo faria com qualquer outro oponente. Os anos haviam passado para John, mas ele estava comboa saúde. Aparentemente comia bem e carregava alguns quilos extras. O ar na cabine sugerianotas picantes de colônia cara. Suas roupas eram bem cortadas com um bom tecido. Seu cabeloera cortado profissionalmente para embelezar seu rosto. John Drayton era um homem vaidoso egostava de gastar dinheiro consigo mesmo.

George se lembrava dele como um homem grande, uma sombra alta. Lembrava-se dele serengraçado. Contava anedotas.

A lembrança de seu pai daquela época alimentou uma parte perversa na mente de George.

Anedotas. Certo.

Durante a primeira hora e meia, John manteve a boca fechada, provavelmente esperandoque George falasse algo do tipo: ‘Como pode nos abandonar, pai?’ ou ‘Eu esperei você voltar,pai!’ John esperava por alguma pista, alguma pista ou alavanca para empurrar suas histórias nele.Continue esperando, seu desgraçado.

A maioria das pessoas não lidava bem com o silêncio, e John apostou nisso e perdeu.George não tinha problemas com o silêncio. Era uma ferramenta eficaz de manipulação e tinhavisto seus instrutores do Espelho usá-lo com grande efeito. Tendo finalmente percebido quenenhuma pista viria de George, John decidiu começar a falar e sondar os pontos fracos. Georgeassistiu a interrogatórios suficientes do Espelho para adivinhar o curso mais provável que essaconversa tomaria: John tentaria preencher a lacuna entre a criança doente de seis anos que eleabandonou e o jovem de dezesseis que ele via agora.

— Lembra-se do que eu disse a você quando saí?

Como se fosse ontem.

— Eu disse ...

Você cuida da família, Georgie. Fique de olho na sua irmã e no seu irmão por mim.

... — Para você ficar de olho em sua irmã e irmão por mim. Você fez bem. Jack ainda estávivo, isso é alguma coisa. Não deve ter sido fácil fazer esse milagre acontecer.

O que você sabe sobre isso? O que sabe sobre Jack, sobre a eterna raiva que ele sente,sobre ele não entender como as pessoas pensam, sobre Rose passando horas para convencê-lo avoltar a sua forma humana? O que sabe sobre isso, seu patife asqueroso? Você não sabe nadasobre nossa família. Escolheu não saber.

— Como está Rose?

Onde você estava quando ela quase se matou de tanto trabalhar para nos dar de comer?Oh, é mesmo, ganhando dinheiro com a miséria, estupro e dor.

— Você está com medo de falar comigo, Georgie? —John bateu com a palma da mão namesa. — Droga, garoto. Diga-me como está minha filha!

George moveu Lynda um passo mais perto de John. — Grite de novo comigo, e vou deixá-la roer seu pescoço, lentamente, uma mordida de cada vez. Rose ficará encantada quando eulevar sua cabeça para ela.

John se recostou. O medo passou pelos olhos dele. Ele escondeu rápido, mas George viu.Sim, conhecia o tipo. John faria qualquer coisa, diria qualquer coisa para evitar dor física e

punição. O homem temia ser responsabilizado mais do que qualquer coisa.

— Você não faria isso, —disse John. — Não o Georgie que eu me lembro. O Georgie deque me lembro era gentil.

— O Georgie de que você se lembra tinha pai. —Argh. Sabia que não deveria ter pegado àisca. Tarde demais agora.

O rosto de John se iluminou. — Você ainda tem um pai. Olha, sei que não fiz bem comvocês, crianças. E não é como se eu tivesse a intenção de transportar escravos para viver. Eumeio que caí nisso.

— Diga-me. Como alguém cai no comércio de escravos?

— Da mesma forma que alguém cai em qualquer coisa. —John abriu os braços. Ele estavaficando mais animado, feliz por George ter dado abertura para uma conversa. — Eu estava semdinheiro, um dia no porto, um homem me perguntou se eu queria ganhar dinheiro fácil.

Fácil e despreocupado. Sem a necessidade de se preocupar com coisas insignificantes comohonra, integridade e dormir bem à noite. — O tipo de dinheiro que sempre interessou à você, nãoé? O dinheiro fácil.

— Ei, eu trabalho duro como qualquer outra pessoa. Apenas tive um período de azar por um tempo. —John se inclinou para frente. — Georgie, me escute. Aconteça o que acontecer, aindasou seu pai. Já ganhei bastante dinheiro aqui, e planejava ir visitá-los. Mas aí, ficava pensando,só mais uma viagem, ganhe um pouco mais de dinheiro. Planejava ir embora e largar tudo isso.Mas agora, eu estou rico o suficiente e farto desses babacas traficantes. Podemos ir emborajuntos, você sabe. Você e eu. Posso ensinar-lhe a arte da navegação, trazê-lo para o negócio dafamília. Eu sou um bom marinheiro, Georgie. Deixe-me dizer a você, quando se navega pelooceano, deixando a costa para trás, é uma coisa incrível. Apenas água por toda parte, azul safirapor quilômetros e quilômetros. Água, vento e céu. Você irá poder saborear a liberdade. Existetantas aventuras por aí. Mistérios.

Ele era bom.

— E quanto a Jack?

John encolheu os ombros. — O que tem ele? Jack é um bom garoto. Não ficou louco comoo resto do pessoal dele.

— Pessoal dele?

John se aproximou. — Oh, admita, Georgie. Todos nós sabemos disso. Rose é minha filha,você é meu filho, mas Jack nunca foi meu. Para ele ser o que é, um dos pais dele tem que ser um

metamorfo, e não há nenhum metamorfo na minha família ou na de sua mãe. Eu investiguei.Meu pai não era, minha mãe não era ...

George lutou para não cerrar os dentes.

— Os pais de meu pai não eram metamorfos, e do lado da mãe de vocês, ninguém foi ummetamorfo por três gerações atrás também. Sua mãe não era uma mulher má, mas estavaperturbada. Acha que foi fácil saber que ela abria as pernas para cada bastardo que chegava acidade? Isso me machucou. Realmente me machucou, mas eu superei. E você também devesuperar. Você sempre cuidou de Jack. Rose e sua avó colocaram esse fardo em suas costas, e eusempre pensei que fosse injusto. Todo mundo merece viver a própria vida, Georgie. Todomundo. Venha comigo. Jack pode cuidar de si mesmo. E mais tarde, quando você estiver maisvelho e eu estiver pronto para me aposentar, você pode assumir. Este navio não tem apenas omeu sobrenome. Também tem o seu sobrenome.

Não, não tem. Ele olhou nos olhos de John e viu um homem calculista e frio lá. Naquelemomento, George percebeu que seu pai o mataria no momento em que deixassem a costa paratrás. Alguém encontraria o que restou dele mais tarde, boiando nas ondas com a garganta cortadae seu corpo dilacerado por peixes. Meu próprio pai.

— Obrigado, mas já tenho uma carreira profissional.

— Que tipo de carreira é essa? —John olhou intencionalmente para os trapos de George. —Se tem uma, não paga muito bem pelo que parece. Sem ofensa, garoto, mas você pode ter umacarreira melhor. Ou está falando desses bandidos que vieram conosco aqui? Se for, não é bom.Pegamos vocês perto de Kelena, o que significa que trabalha ou para Rook, ou para as famíliascriminosas ou Jason Parris. Provavelmente você trabalha para Parris, porque as famílias sãomuito cuidadosas, e Rook gosta de trabalhar sozinho, e eu não o vi. Estou certo? Eu estou certo.Parris é um tubarão faminto, isso é o que ele é. Cruel e implacável. Você é capaz de tirar a vidade um homem, Georgie? Pense sobre isso, porque tem que ser um assassino frio e calculista paratrabalhar para Parris.

— Eu não trabalho para Jason Parris. —George se recostou.

— Com quem trabalha, então?

George enfiou a mão na manga da camisa, tirou uma moeda que mantinha colada noantebraço e jogou para John. — Trabalho para as pessoas que pescam tubarões vorazes.

John pegou a moeda. A carga mágica mordeu os dedos dele com pequenas faíscas. Ele seencolheu. A superfície da moeda fluiu, transformando-se em um espelho em miniatura.

Cada agente do Espelho carregava um. Alguns usavam anéis, outros tinham brincos e alguns

os embutiam no cabo de uma faca. George escolheu uma moeda. Pareceu apropriado.

John olhou para seu próprio reflexo. O sangue foi drenado do rosto dele. John largou amoeda como se estivesse quente.

— Eu sou um subagente de terceiro grau, pai. Comecei meu treinamento quando tinhaquatorze anos. Trabalhei em doze missões até agora, dez obtive sucesso e dois foram cancelados.Tenho sete mortes em minha conta, e sou muito bom com um florete52. Em dois anos, quando euconcluir meu treinamento, serei o agente de pleno direito mais jovem na história recente doEspelho. Coincidentemente, em mais dois anos também vou me formar na Academia Brasil, jáque fiz o vestibular e passei com nota perfeita. Há um lugar para mim esperando no CorpoDiplomático.

John Drayton olhou para ele, seu rosto frouxo com o choque.

— Então, como pode ver, pai, se algum dia eu sentir a necessidade de brincar de marinheiro,uma embarcação será fornecida para mim ou eu comprarei uma. Dado que meu nome agora éGeorge Camarine e o Duque das Províncias do Sul me considera seu neto, posso pagar uma frotainteira. Uma pequena frota, mas será suficiente. —George sorriu, uma exibição controlada dedentes. — Já realizei mais na minha vida do que você jamais poderia esperar. Suas promessas deuma vida grandiosa de contrabandista não me atraem, então cala a boca, pai. Estou lutandocontra um forte desejo de matá-lo, e odiaria perder o controle e matá-lo antes que Jack volte.

Alguém bateu na porta com os nós dos dedos.

— Entre, —disse George.

A porta se abriu. Richard abriu caminho para dentro, segurando o lado esquerdo. Seu braçoesquerdo descansava em uma tipoia. Ele havia lavado o disfarce do rosto e parecia com elemesmo. Jack apareceu logo atrás, apoiando Charlotte. Ela, por outro lado, parecia uma sombrade quem era: pálida, exausta e enjoada.

— Tiveram problemas? —George perguntou.

— Alguns, —disse Richard. — E por aqui?

— Sem problemas. Apenas conversando com um homem morto.

John lambeu os lábios. — O que eu fiz de tão grave para você me odiar tanto?

— O bando de traficantes que você deveria receber no porto de Kelena estava meperseguindo, —disse Richard. — Eu sou o Caçador.

John recuou.

— Acabei indo parar na casa da sua mãe, —disse Richard. — Somos parentes distantes por

casamento, e ela me reconheceu e tentou me ajudar.

— Vovó está morta, —Jack disse. — Os traficantes queimaram nossa casa. Você matou avovó, pai.

As mãos de John tremeram. Ele engoliu em seco. — Eu não estava lá.

Ah não, você não vai escapar dessa culpa. — Não diretamente, mas tornou isso possível, —disse George. — Você contribuiu.

John passou a mão pelo rosto e pelos cabelos.

Richard pegou um pedaço de papel da mesa, escreveu algo nele e o empurrou para John. —Esses cinco nomes. O que sabe sobre eles?

John olhou a lista. Sua voz perdeu toda emoção. — Eles são chamados de Conselho. É paraonde vai o dinheiro real. Maedoc é o músculo, ele fornece os traficantes. Casside é o principalinvestidor. Eu não sei o que os outros dois fazem. Brennan comanda todo o show. Isso é tudoque sei. Estou em uma posição baixa na cadeia de comando. Se espera que eu testemunhe, não ofarei. Não conseguiria. Brennan cortaria a minha garganta antes que eu dissesse uma palavra, emesmo se eu dissesse, seriam só rumores. Nunca conheci nenhum deles. Nós nuncaconversamos. Eu sigo o cronograma, pego os escravos, trago-os aqui e sou pago. Isso é tudo oque faço.

— Eu terminei com ele. —Richard se virou para George. — Ele é seu.

Finalmente. Ele se levantou.

— George, —Charlotte disse suavemente.

Ele se virou para ela.

— Pense no que está prestes a fazer. Ele é seu pai. Pense no custo. —Ela olhou além dele.— Pense na culpa.

George se deu conta: Jack. Jack sempre quis que seu pai voltasse. Quando eram pequenos,seu irmão ficava sentado em uma árvore, olhando a estrada, esperando que seu pai voltasse. Naescola primária, no Broken, Jack lutaria contra qualquer um que ousasse dizer algo ruim sobreseu pai, e ele os espancava até sangrar. George não tinha problemas com sangue em suas mãos,nem Jack no calor do momento, mas ele poderia se arrepender mais tarde. Jack tendia a remoertudo o que fazia, e às vezes seus pensamentos inquietantes o levava a lugares sombrios. Ele tinhaapenas quatorze anos.

John Drayton tinha que morrer. Tinha que pagar o preço pelas desumanidades que ajudou acometer, mas George não podia deixar a morte de John arruinar seu irmão. O canalha não valia

um único minuto da auto-aversão de Jack.

— Você está certa, —disse George. — Não vale a pena. Vamos pegar um barco, levá-lopara o continente e prendê-lo. Você vai ficar na prisão por tanto tempo que vai esquecer como éo sol.

— Vamos fazer o que o garoto decidiu, levante-se, —disse Richard.

John se levantou. — Certo. —John estendeu a mão para tocar o cabelo de Jack. Jack seafastou, evitando o toque.

John abaixou sua mão. — Está certo.

Eles saíram, Richard primeiro, depois John e George, com Lynda a reboque. Jack foi oúltimo.

Lá fora, o fedor de fumaça invadiu as narinas de George. A cidade-ilha queimava, o brilhoalaranjado de seu fogo refletindo nas águas do porto. Fogo purificador, refletiu George. E umaviso. Richard soltou Jason Parris na ilha como um tornado. A notícia do incêndio da ilha e adestruição do Mercado iria se espalhar, e em breve todos os traficantes e compradores deescravos ao longo da costa leste saberiam que não eram invencíveis e que o dinheiro deles nãoestava seguro. Foi uma jogada brilhante.

Richard era um estrategista nato. George teria que se lembrar disso.

A porta da cabine se abriu atrás dele. Jack emergiu. Richard se aproximou de seu irmão. —Eu preciso que você cuide de Charlotte para mim. Ela se desgastou demais.

— Por que eu? —Jack perguntou.

— Porque o pessoal de Jason está cheio de homens maus, e ela está sozinha e vulnerável.

Jack olhou primeiro para Richard, depois para George. George não estava acreditando nateimosia de seu irmão em uma hora como essa. — Você é capaz de fazer apenas uma coisa semdiscutir? —George jogou o cabelo para trás. — Só uma? Apenas faça.

— Faça você.

— Você me deve pelo que aprontou no canal.

Jack resmungou algo baixinho.

— Não se preocupe, —disse Richard. — Eu não esqueci o que conversamos.

Esqueceu o quê? Que conversa?

Jack encolheu os ombros e entrou na cabine.

— Para dentro do barco. —Richard apontou para uma pequena barcaça esperando ao lado

do navio. A mesma que eles devem ter usado para subir a bordo.

Eles entraram na barcaça, Richard na frente, depois John Drayton. George posicionouLynda atrás de John, segurança adicional. Todos se sentaram. George sentou-se no fundo, passoua mão sobre o motor, iniciando a reação em cadeia mágica, e o barco acelerou através do portoaté a costa. No meio do caminho, George libertou Lynda. Ela se lançou nas ondas, suavemente, eafundou nas profundezas frescas e calmantes para finalmente descansar. Ele não precisava maisdela. Meio minuto depois, o barco bateu na areia fofa da praia. Os dois homens saíram. Eleseguiu.

— Ainda protegendo seu irmão, —disse John.

A frustração que ele estava segurando finalmente se libertou. — Cale a boca. Você não oconhece. Não fale o que não sabe. Por sua causa, Mémère está morta. E agora eu vejo que émelhor assim, porque se ela soubesse no que você se tornou, isso a mataria de desgosto.

John inalou. — Tudo bem. Acabe logo com isso.

Richard puxou sua espada.

— Ele é minha responsabilidade, —disse George. — Minha família e minha vergonha.

John estremeceu.

Richard estendeu a lâmina. George pegou. A espada fina e afiada parecia muito pesada. Opunho estava frio. Ele se concentrou, canalizou sua magia e ela escorreu como um riacho demetal derretido, espalhando pelo braço, seus dedos, cobrindo a espada e, finalmente, deixando-ase estender pelo gume. A lâmina faiscou em branco. George havia treinado por meses paraaprender como fazer isso, e agora a magia cobria rapidamente o aço como se por conta própria.

Ele não conseguia levantar a espada.

George estava preso entre a culpa e o dever. A indecisão doía, decidir doía mais, e estavamuito furioso com o pai por obrigá-lo a fazer uma escolha como essa. Ele era realmente tãofraco?

— C’est la différence entre lui et toi. —Richard mudou para a língua da Louisiana.

‘Essa é a diferença entre você e ele.’

— Se você erguer a espada, estará permitindo que as ações dele determinem as suas, —continuou Richard em gaulês. — Estará simplesmente reagindo ao que ele já fez. Ficamos parasempre ligados àqueles que matamos. Se acabar com a vida dele, arrastará o seu cadáver comvocê para o resto da sua. Quando seu irmão e sua irmã olharem para você, eles verão o assassinode seu pai, quando você se olhar no espelho, verá um assassino. Se ele tivesse vivido e abusado

de você ou de pessoas próximas, acabar com a vida dele poderia ser catártico, um sinal derenascimento. Mas este homem é um estranho para você. Mal o conhece. Não haverá redençãona morte dele por sua mão. E ele não tem o direito de governar sua vida. Deixe suas própriasações definirem quem você é.

Richard estava certo. Matar John Drayton simplesmente não valia a pena. Se ele seobrigasse a fazer isso, se arrependeria. Isso o consumiria, e por que deveria se condenar aomesmo fardo que tentou poupar Jack?

George engoliu em seco e baixou lentamente a espada.

— Não pode fazer isso, hein? —John sorriu. — Eu ainda sou seu pai, garoto.

O fato de que o próprio pai o estava incitando significava que matá-lo seria uma má ideia.— Não, —disse George. — Você não é meu pai. É apenas um porco nojento que dormiu comminha mãe e fugiu.

Richard puxou uma arma de dentro de suas roupas. Era uma arma de fogo do Broken, umgrande e pesado pedaço de metal. Ele virou a arma e ofereceu o cabo para John. — Você estálivre para ir. Use a arma para se proteger.

O que? O que Richard estava fazendo? John Drayton matou, torturou e estuprou. Se forposto em liberdade, ele voltará para essa vida na primeira chance que tiver. Continuará roubando,machucando e lucrando com a miséria de outras pessoas. Tinha que acabar, aqui e agora. Essehomem não podia continuar vivo e assombrando o futuro de seu irmão ou de Rose.

George se virou para Richard.

— Confie em mim, —disse Richard. — É a coisa certa a fazer.

John ergueu a arma em sua mão, dando alguns passos para trás. — Está carregada.

— Há seis balas no tambor, —disse Richard.

— Mais do que o suficiente.

John ergueu a arma e apontou em direção a George. Ele se viu olhando para um cano pretodo tamanho de um canhão. Tudo ao redor dele parou. O mundo ganhou uma clareza cristalina, eGeorge viu tudo nos mínimos detalhes: as folhas individuais da palmeira atrás de John, a gota desuor escorrendo na têmpora dele, as minúsculas veias vermelhas nos olhos de seu pai ...

O som da trava se segurança da arma sendo liberada sacudiu George como o golpe de ummartelo gigante contra seu crânio e o trouxe para a realidade. Ele sabia que a bala que seu paidispararia acertaria bem entre olhos dele. George estava encarando a morte de frente. Iria morrerpelas mãos de seu próprio pai.

— Você é um idiota, —disse John a Richard.

— Ele é seu filho, —disse Richard. Sua voz estava calma, muito calma.

Richard estava planejando alguma coisa, George percebeu. Ele estava ...

— Sim, sobre isso, —John fez uma careta. — Desculpe, garoto. Eu sempre achei que vocêtambém não é meu.

John apertou o gatilho. Um raio branco saiu da arma e atingiu o peito de John. Eleconvulsionou silenciosamente, como uma marionete sacudindo em cordas invisíveis, e caiu naareia. George sentiu o momento em que seu corpo cruzou o limiar da vida e entrou no domínioda morte. Está feito, Mémère. Está feito. Ele não machucará mais ninguém.

O alívio tomou conta de George, substituído instantaneamente por vergonha. — Como?

— Um colar Posse-do-proprietário, —disse Richard. — Eu coloquei uma pedra do colar notambor da arma em vez de bala. Quando ele tentou atirar, a pedra se estilhaçou e liberou magia.

— E se ele tivesse ido embora?

— Eu o teria impedido e retirado a pedra.

George não sabia se Richard estava mentindo para confortá-lo ou se realmente estavadizendo a verdade. O mais terrível era que ele nem se importava. Estava simplesmente aliviadopor John Drayton ser agora um cadáver. O que isso diz sobre mim?

Richard o abraçou com um braço só. — Ele morreu do jeito que viveu. Esse é o tipo dehomem que ele era.

— Eu esperei por ele. —George mal reconheceu o som rouco e aborrecido da própria voz.— Esperei por ele durante anos. Quando Rose trabalhava em um serviço pesado e malremunerado no Broken, eu sentava na varanda e, enquanto esperava por ela, eu o imaginavacaminhando até a casa. Ele vinha com um grande sorriso e me dizia: ‘George, venha velejarcomigo. Vamos procurar tesouros juntos.’

Os olhos dele se encheram de lágrimas. George as forçou de volta. — Ele tentou meconvencer abandonar meu próprio irmão. Tentou me matar. Eu olhei nos olhos dele. Olhos frios,como os de um tubarão. —George queria chorar e gritar como uma criança.

— Nada do que ele fez ou do que se tornou é sua responsabilidade, —disse Richard. — Eleera um homem adulto e foi responsável por seus próprios pecados. Tudo o que ele fez em suavida o levou a este ponto. Eu sabia que ele puxaria o gatilho e tentaria nos matar. Era tãoinevitável quanto o nascer do sol.

George olhou para ele. — Eu deveria ter feito isso. Eu deveria ter terminado ... com ele.

— Você se sente assim agora, no calor do momento, porque olha para o seu pai e vê olegado de seus crimes. Isso lhe traz uma vergonha profunda. Você quer limpar e corrigir os erros,mas se tivesse o matado não corrigiria, —disse Richard. — Meu irmão mais novo traiu nossafamília e muitos de nossos parentes morreram por causa disso. Primos, sobrinhas, sobrinhos,filhos, pessoas que o amavam e cuidavam dele. Ele partia o pão conosco, compartilhava nossatristeza e felicidade, depois nos traiu. Ele era um ser humano profundamente egoísta. Viu nossopai ser assassinado, estava ferido e queria vingança. Isso era tudo o que importava para ele. Euolhei nos olhos dele também, quando ele me disse que tinha feito isso deliberadamente, e foicomo olhar para a alma de um estranho.

— O que aconteceu com seu irmão? —Por algum motivo, a resposta parecia de vitalimportância.

— Nós o forçamos a caminhar conosco para a batalha final. Eu o vi lutar no campo debatalha. Achei que fosse minha culpa, porque ele era meu irmão e havia colocado a família emrisco. Mas percebi que ele fez suas próprias escolhas. Eu poderia tê-lo matado, mas escolhideixá-lo ir embora. Já acabei com muitas vidas, mas estou aliviado por não ter tirado a dele. Elenão estava entre os mortos quando terminamos a batalha, então ainda está por aí em algum lugar.

Richard se abaixou para olhar nos olhos de George. — Seu pai fez o próprio destino, e opeso disso o esmagou. Ele estava destinado a morrer aqui, pelas próprias mãos. Semarrependimentos, George. Sem culpa, sem vergonha. Deixe tudo isso aqui nesta praia. Deixe-oaqui nessa praia. Se carregá-lo, ele o envenenará. Vamos. Precisamos voltar para o navio.

Richard o levou de volta para o barco. Eles aceleraram pelo porto de volta ao navio.

George olhou para a água. Sua alma estava ferida, mas ele embalaria toda essa dor na bocado estômago e tentaria fazer crescer um calo sobre a ferida.

******RICHARD PISOU no convés do navio. À sua frente, George entrou na cabine. Richardse virou e olhou para o inferno que reivindicava a ilha. Chamas laranja se alastravam, enviandonuvens de fumaça preta e gordurosa para o céu. Gritos distantes ecoavam, alguns de fúria, outrosde dor. Uma embarcação afundava lentamente à esquerda. Os canhões de Jason haviamdisparado um único tiro do forte, e o golpe certeiro parou o imponente iate, que provavelmentetentava escapar do massacre. As bombas operadas por magia conseguiram mantê-lo flutuando,mas aos poucos a elegante embarcação perdia a batalha, e agora inclinava-se, servindo como umaviso para qualquer um que estivesse pensando em uma fuga rápida.

É assim que o inferno deve ser.

Uma pequena frota de barcos partiu das docas e acelerou através da água, seus motores

movidos a magia deixando trilhas pálidos e luminescentes em seu caminho. A tripulação deJason estava voltando.

Atrás dele a porta da cabine se abriu. — Richard!

Ele se virou.

Charlotte caminhou na direção dele, impulsionada pela raiva, a indignação tão evidente norosto dela, que ela quase brilhava. Ela havia esgotado todas as suas energias na ilha. Não poderiater se recuperado nos escassos quinze minutos que ele e George levaram para ir até a praia evoltar. A preocupação se contorceu por ele. Se Charlotte não tomasse cuidado, o esforço amataria.

— Você deixou aquela criança matar o pai?

Ele ficou admirado com a fúria dela.

— Responda-me, seu bastardo sem coração!

Este lugar, este inferno na terra, deveria tê-la traumatizado. Da última vez que a viu,Charlotte parecia ter desistido, abatida pelos horrores e pelo cansaço. Mas ela deve ter visto a dorem George, e isso a impulsionou a confrontá-lo. Richard concluiu que que ela nunca desistiria.Nunca se cansaria ou perderia sua determinação. Não importa quanto tempo se passasse, verpessoas sendo mortas ou matar pessoas sempre a incomodaria. Charlotte tinha a nobreza deespírito, algo que Richard aspirava ter e que tanto faltava nele. Ela não era ingênua ou cega;simplesmente escolheu fazer o que era certo, não importando o custo pessoal.

Richard queria esta mulher mais do que queria qualquer coisa em seu mundo inteiro. A vidacom ela nunca seria fácil, mas ele ficaria orgulhoso disso.

Ele a queria tanto que quase doía.

Em sua mente, o navio se dividiu, ela em uma extremidade de um abismo, ele na outra. Elapresenciou muitas coisas que ele era capaz de fazer. Havia muitos problemas entre eles a seremsuperados. Nunca daria certo. Quando tudo estivesse dito e feito, Charlotte não iria querer umassassino endurecido com sangue nas mãos. Ela iria querer alguém que a fizesse esquecer esteinferno.

— Richard, não fique aí parado. Eu mereço uma resposta!

— John Drayton tirou a própria vida, —disse ele. — George não matou o pai. Maspresenciou a morte dele. Isso foi bom para ele. Deu ao garoto uma conclusão.

Charlotte olhou para ele por um longo momento, seus olhos cinza brilhantes, quaseprateados. Será que havia alguma chance entre eles ...?

— Eu sou um bastardo sem coração, —disse ele, desejando poder diminuir a distância entreeles. — Mas nem mesmo eu deixaria uma criança assassinar o próprio pai. É assim que você mevê? Sou um monstro aos seus olhos, Charlotte?

Ela se virou e foi embora. Ele fechou os olhos, inalando a fumaça da pira funerária que aIlha do Divino Na se transformou. Bem, aí estava. Ele teve sua resposta.

Charlotte estaria livre dele em breve. Eles tinham conseguido achar os livros-contábeis.Tudo acabaria em questão de dias.

— Richard! —Charlotte chamou.

Ele se virou.

Ela parou perto da cabine. — Você não é um monstro. Você é o homem mais nobre que jáconheci. Em todos os sentidos da palavra. Quem me dera se ...

O pulso dele acelerou.

Jason Parris saltou para o convés. — Estou interrompendo algo?

Charlotte fechou a boca.

Deuses o amaldiçoe, mas iria estrangular esse idiota e jogar seu corpo sem vida ao mar.

— Sim.

Parris sorriu. — Bem, que pena. Precisamos tirar o nosso traseiro daqui.

O pessoal de Jason inundou o navio, baixando as redes e colocando as mercadoriassaqueadas nelas.

— Se eu tivesse cinquenta homens a mais comigo, poderia ser o dono desta ilha. —Jasonvarreu a cidade em chamas com a mão. — Eu faria dela a minha própria Tortuga53.

Tortuga, um porto pirata do Broken. Ele tinha lido sobre essa ilha em livros. — Adriangliadificilmente toleraria uma Tortuga tão perto de seus limites. O que você faria quando a Marinhade Adrianglia bloqueasse a ilha e começasse a atacá-la com mísseis mágicos do tamanho de umacarruagem?

— Nos escondemos? —Jason mostrou os dentes. — O que aconteceu com o seu braço, meuvelho? O poderoso Caçador realmente se machucou desta vez?

Os joelhos de Charlotte dobraram e ela deslizou ao longo da parede da cabana até o convés.

Ele empurrou Jason para fora do caminho, limpou a distância entre eles e caiu de joelhos. —Charlotte?

Ela olhou para ele com os olhos claros. — Bem, isso é constrangedor.

— Você está bem?

— Estou bem, —disse ela. — Mortificada, mas bem. Eu não deveria ter saído da cabine.Acho que me esforcei demais. Acredito que não é nada grave, mas provavelmente vou perder aconsciência. Por favor, não me deixe aqui no convés.

— Não deixarei. —Ele a envolveu com o braço direito. Ela se encostou nele, a testa delaapoiada em sua bochecha. Richard não conseguia acreditar que a estava tocando. — Eu prometo.

— Olhe para vocês dois, —Jason disse acima dele. — Vocês estão uma bagunça. Talvezdepois disso, devam planejar algo menos cansativo. Um chá, um clube do livro ou seja lá o quevelhinhos façam nas horas vagas. Olhe para mim—seis homens mortos, a cidade saqueada eestou bem. Olhe meu pessoal. Vocês estão cansados?

— Não! —Uma dúzia de pessoas rugiu.

— Viu? Frescos como margaridas.

Richard rosnou baixo em sua garganta. Um dia ...

Charlotte acariciou a bochecha dele. Os lábios dela roçaram os dele e ele se esqueceu deonde estava ou o que estava fazendo.

— Obrigada, —disse ela.

Ele ficou parado por um minuto inteiro antes de finalmente perceber que ela havia perdido aconsciência.

******QUANDO CHARLOTTE acordou, estava deitada em um assento almofadado, sob umcobertor. Em torno dela, as paredes polidas de uma carruagem sem cavalos brilhavam à luz dosol, filtrada por uma cortina transparente. Por trás das paredes polidas, a estrutura da carruagemconsistia em engrenagens e delicadas estruturas de metal, com finos fios brilhantes de magiapassando por tudo. Luzes fracas de magia âmbar e verde deslizavam ao longo dos fios de vez emquando, derretendo-se na estrutura de metal, como fogo-fátuo54 artificial. Sonolenta e confortávelno assento macio, Charlotte observou a interação relaxante de magia e metal. Ocorreu-lhe quenão tinha ideia de como a carruagem mágica realmente funcionava. Ela tinha andado nelascentenas de vezes e nunca pensou em descobrir.

Alguém estava a observando. Charlotte virou a cabeça. Em frente a ela, Richard estavasentado o assento da frente. Ele ainda usava as mesmas roupas, cheirava a fumaça. Seu cabeloestava uma bagunça. Seu braço descansava em uma tipóia. Richard era ridiculamente bonito eseus olhos escuros eram calorosos, quase convidativos.

A noite passada foi um borrão. Ela se lembrava de ter esperado Richard e George voltar e de

estar muito cansada. Quando George voltou, contou a ela uma história sem sentido, e elaresolveu ir atrás de Richard no convés e exigir saber se ele tinha deixado o garoto matar opróprio pai. A mente dela ficou confusa com a ideia de que Richard poderia forçar a criança aviver com esse tipo de culpa. Isso teria deixado uma cicatriz em George de uma maneira queninguém poderia curar.

Richard a olhou diretamente nos olhos, parado ali contra o pano de fundo da cidade em chamas, como um belo demônio, e não disse nada. Então ela se enfureceu com ele e o acusou de ser cruel. Ele tinha uma expressão muito estranha em seus olhos, e depois disse a ela que John Drayton se matou. Charlotte acreditou nele. Richard não mentiu.

E então ele perguntou se ela pensava que ele era um monstro.

Nesse momento Charlotte desejou abrir o coração para ele. Quis explicar a gratidão quesentiu quando ele lhe ofereceu o braço na proa do bergantim. Ela quiz dizer a ele que o admiravapor tudo o que ele fez e fazia e que gostaria de tê-lo conhecido antes de tudo isso acontecer, antesde jogar a vida dela fora.

Então o pessoal de Jason embarcou no navio, e ela quase desmaiou como um idiotaneurótica. Suas pernas se recusaram a sustentá-la e ela caiu como uma boneca de pano. Dealguma forma, tinha passado os trinta e dois anos de sua vida sem nunca ter desmaiado, e nosúltimos dias ela conseguia a proeza de quase desmaiar duas vezes por dia. Tinha que ser algumtipo de recorde. Que vergonha. Que tipo de parceira acabou sendo. É uma maravilha que ela nãomorreu de puro constrangimento.

Richard tinha vindo em seu socorro. Charlotte se lembrou do cheiro dele quando ele aenvolveu com o braço, o cheiro de suor, fumaça e sândalo, uma fragrância rica, suave, terrosa epoderosa que a levou a lugares que ela não tinha o direito de ir. Tinha certeza de que em seuestado confuso acabou dizendo a ele alguma coisa, mas não conseguia se lembrar.

— Onde estão os garotos?

— Na frente, —disse ele. — Eles insistiram em dirigir.

— E o cão?

— Está com eles. Você tem que dar um nome a ele.

— Onde estamos?

— Meia hora da Mansão Camarine, —Richard ainda estava olhando para ela com aqueleolhar caloroso em seus olhos. — Estamos quase lá.

— Já?

— É fim de tarde, —disse ele. — Saímos de Kelena ao amanhecer e dirigimos sem parardurante o dia.

— Os livros contábeis ainda estão com você?

Ele enfiou a mão em uma bolsa que estava a seus pés e puxou uma ponta do pequeno livrode couro vermelho.

A realidade lentamente foi chegando a ela. Os horrores da noite anterior acabaram, e elapoderia esquecê-los, como se tudo não passasse de um pesadelo terrível. Eles tinham as provasque precisavam. Levariam os livros ao Marechal das Províncias do Sul, e o comércio de escravosnão existiria mais. Na noite passada ela estava muito cansada e traumatizada para compreender arealidade, mas agora finalmente entendeu. Eles haviam vencido.

Charlotte olhou para Richard. — Nós vencemos.

— Nós vencemos. —Ele sorriu. Foi um sorriso genuíno e lindo que a puxou como se elafosse uma partícula de ferro e ele um poderoso ímã, sua atração tão repentina e forte que elapressionou as costas ainda mais contra o assento da carruagem. Charlotte o beijou na noiteanterior antes de desmaiar. Tinha quase certeza disso.

— Você está bem, minha senhora? —Ele perguntou.

O ‘minha senhora’ deslizou sobre a alma dela como um veludo macio deslizando sobre apele. — Estou bem, obrigada.

Charlotte esperou, mas Richard não disse mais nada. Ele não fez nenhum movimento emdireção a ela. Provavelmente estava deixando-a se recompor. Ela sentia que ele a queria, mastalvez estivesse interpretado muito em um olhar. Talvez não houvesse atração mútua. Charlotteprocurou em sua memória, tentando encontrar alguma evidência definitiva de que Richard estavaatraído por ela. Não conseguiu encontrar nenhuma. Ela pensou ter ouvido algo na voz e vistoalgo nos olhos dele, mas mal o conhecia. Estavam juntos há apenas dois dias. Charlotte poderiater se enganado.

Ela jogou fora tudo que foi ensinado e voluntariamente entrou no inferno, onde matouinúmeras pessoas. Isso a encheu de vergonha. Odiava o que havia se tornado. E o desejo de saberse ainda merecia ser amada estava influenciando seu julgamento. Richard deixou claro quaiseram as prioridades dele. É verdade que ele sempre se dirigia a ela com total cortesia e tentavaprotegê-la do perigo, embora Charlotte fosse uma ferramenta útil. Qualquer homem acostumadoaos costumes do Weird lhe daria essa cortesia, porque ela era uma Sangue-azul e uma mulher.

Charlotte tinha que parar de se iludir. Tinha se deixado levar por suas fantasias uma vez, eagora estava perfeitamente ciente dos monstros e desgostos que estavam à espreita nesse

caminho. Ela já tinha feito papel de idiota. Se ele tivesse algum tato—e Richard tinha tato desobra—ele não mencionaria o beijo.

Charlotte reuniu todo o equilíbrio que ainda tinha. — Como está o seu ferimento?

— Melhor. É muito gentil de sua parte perguntar, minha senhora.

E por que diabos ‘minha senhora’ soou como uma expressão carinhosa para os ouvidosdela? Charlotte examinou o ferimento dele. Estava se regenerando bem, mas uma infecçãoemergente poderia se transformar em um problema sério. — Eu vou precisar te curar quandopararmos.

— Por que não agora? —Ele bateu levemente no assento ao lado dele.

Charlotte piscou. Richard estava esparramado no assento, alto, bonito, perigoso e estavasorrindo. Era um sorriso malicioso, convidativo, não, sedutor, como se ele estivesse prometendoque se ela se sentasse ao lado dele, ele a reclamaria, e ela iria gostar.

Recomponha-se, Charlotte. Você não é uma colegial. Charlotte deu de ombros e o convidoupara se sentar ao lado dela com um aceno indiferente de sua mão. — Por que não se senta aqui?

Richard se levantou e se sentou ao lado dela. Ela sentiu o mesmo cheiro de que se lembravada noite anterior, um rico sândalo ligeiramente picante misturado com fumaça. Deuses, isso nãoia dar certo.

Não olhe nos olhos ou no sorriso dele, e você ficará bem. O olhar dela parou na linha afiadada mandíbula dele, dos lábios .... Ela queria beijá-lo.

Argh.

Charlotte se forçou a se concentrar no ferimento, que estava escondido debaixo do casacodele. O braço estava fora da tipóia. — Por que você colocou o seu casaco de volta?

— Parecia uma má ideia viajar cercado por assassinos com meu braço ferido em exibição. Opovo de Jason é como tubarões, como você mesma viu. Uma sugestão de fraqueza, e eles te farãoem pedaços.

— Tire seu casaco.

— Acho que vou precisar de ajuda.

Charlotte poderia jurar que havia um toque de humor na voz dele. Talvez Richard achasse aatração dela por ele algo divertido. Parecia estranho ele brincar com ela, mas então, os homensfaziam coisas estranhas quando as mulheres estavam envolvidas. Talvez Richard estivessezombando dela.

Ela tinha que parar de deixar seus pensamentos correrem como cavalos selvagens. Isso

estava deixando-a maluca. Será que ele precisava mesmo de ajuda para tirar o casaco? Tudobem. Ela o ajudaria. Charlotte se levantou e gentilmente o ajudou a tirar o casaco, revelando umatúnica escura de mangas compridas por baixo. Teria gostado de ter arrancado o casaco comforça, apenas para mostrar sua frustração, mas seu orgulho profissional não permitiria que elacausasse dor propositalmente a um paciente.

O braço dele ainda estava coberto pela manga da túnica. Teria que tirar a túnica deletambém? A mente dela evocou imagens do corpo de Richard sob a túnica, os músculos fortes etensos sob a pele bronzeada. Não. Não, isso está completamente fora de questão.

— Você tem uma faca? —Charlotte perguntou.

Ele puxou uma faca e ofereceu a ela, o cabo primeiro.

— Perfeito. —Ela pegou a faca e cortou a manga, expondo a bandagem.

Charlotte devolveu a faca para ele. Ele estendeu a mão para pegá-la. Seus dedos roçaram osdela, e cada nervo dela ficou em alerta total. Isso é absolutamente ridículo, Charlotte.

Ela removeu a fita e as bandagens. O corte não sangrou tanto quanto esperava. Richard tinhaum talento notável para uma recuperação rápida. Ela tocou o corte, deixando um fluxo de faíscasdouradas passar por ele. Richard ficou completamente imóvel.

— Você tem permissão para estremecer, —disse ela.

— Só se você prometer não contar a ninguém.

— Seu segredo está seguro comigo.

Charlotte colocou a mão sobre a ferida, seus dedos tocando os bíceps esculpidos dele, ecanalizou sua magia, reparando o tecido ferido, fundindo os vasos sanguíneos e eliminandoqualquer indício de infecção. Ela selou a pele, dolorosamente ciente de que ele estava sentadobem ali, a apenas alguns centímetros de distância. Ela queria arrancar a túnica dele. Queria tocaressa pele bronzeada e deslizar a mão pelas duras cristas de seu estômago para acariciar seu peito.

— Acabei, —disse ela.

— Obrigado.

Uma horrível cicatriz de queimadura cruzava o ombro dele alguns centímetros acima doferimento. As bordas da cicatriz eram perfeitamente retas, como se alguém tivesse aquecido umretângulo de metal e o pressionado contra a carne.

— Posso?

— Claro.

Ela tocou. O metal quente deve ter sido mantido na pele por pelo menos alguns segundos.— Você foi marcado?

— Digamos que sim.

Bárbaro, infligir esse tipo de dor a um ser humano. — Quem fez isto?

— Eu fiz isso.

Ela olhou para ele. — Você fez isso consigo mesmo? Por quê?

Ele suspirou. — Eu tinha uma tatuagem no ombro. Queria arrancar ela.

— E você pensou que desfigurar-se era a melhor maneira de fazer isso?

— Parecia adequado na época.

— O que diabos estava em seu ombro que você queria tanto que saísse?

— O nome da minha esposa, —disse ele.

— Oh. — Charlotte se afastou. — Eu sinto muito. Não queria me intrometer.

— Está tudo bem, —disse ele. — Isso não me incomoda mais. Eu era jovem e estava muitoapaixonado. Fiz coisas ridículas como colher flores silvestres e deixá-las na varanda dela, só paraquando ela acordasse, visse as flores logo de manhã.

Nenhum homem jamais levou flores para ela. Elvei preferia presentes mais substanciais.Acordar alguém com uma varanda cheia de flores silvestres é algo que só uma pessoa afetuosapoderia fazer. Mas isso eram tão em desacordo com quem ele era agora: um espadachim cruelque dominava a arte de matar com muita eficiência.

— Escrevia horríveis poesias. Depois que nos casamos, eu escondia pequenos presentespara ela pela casa.

— Eu não te conheço há muito tempo, mas isso não parece ser você, Richard. Você é ...

— Amargo? Fatalista?

— Prático.

Ele sorriu para ela. — Como disse, eu era jovem e romântico. Ou um idiota sentimental,como dizia meu irmão. Marissa odiava o Mire. Ela odiava tudo ali. Eu a queria mais do que tudo,então me tornei o que pensei que ela desejava em um homem. Funcionou. Ela se casou comigo.

— Ela deve ter te amado. —Como alguém não podia amá-lo?

Richard suspirou. — Marissa decidiu que eu era o melhor que ela poderia conseguir nascircunstâncias. O Mire é um lugar muito diferente do resto do Edge, é um lugar isolado:

pântanos intransponíveis de ambos os lados, o Estado da Louisiana na fronteira com o Broken,o Ducado da Louisiana no Weird do outro. A viagem para o Broken é longa e perigosa, e muitosde nós, das antigas famílias do Mire, não conseguimos passar pela fronteira. Muita magia emnosso sangue. Por outro lado, a fronteira com o Ducado é fortemente protegida. Louisiana estáciente de que o Edge existe e usa o Mire para despejar seus exilados, então eles não querem queninguém cruze a fronteira de volta. Os recursos do pântano são limitados e o número de pessoascontinua aumentando à medida que Louisiana empurra mais e mais seus indesejáveis para ooutro lado da fronteira.

— Parece um inferno, —ela disse honestamente.

— Tem uma certa beleza primitiva e selvagem. De manhã, quando a névoa se eleva acimada água e os crocodilos gigantes cantam, os pântanos têm um ar quase sobrenatural. Minhafamília vivia uma condição ... melhor do que muitos lá. Éramos numerosos, tínhamos terras etínhamos a reputação de retaliar com rapidez e força.

Charlotte podia acreditar nisso. Todo um clã de espadachins como ele faria qualquer umhesitar. — E sua esposa?

— Ela nasceu no Mire, filha de um exilado do Ducado de Louisiana e de uma mulher local.—Ele se aproximou um pouco mais dela. — Nossa família também tinha Vernard. Ele era umexilado, um Sangue-azul da melhor linha de sangue. Sua família inteira foi enviada para o Mirecom ele, e meu tio se casou com sua filha. Vernard assumiu nossa educação. Eu fui seu melhoraluno.

Então era por isso. Como ela, Richard teve o benefício de uma instrução pessoal de umnobre Sangue-azul do reino. É por isso que suas maneiras e postura eram tão polidas. Viver noMire e ter autoconsciência e saber que existe lugares melhores lá fora, mas que estavam fora deseu alcance, deve ter sido terrível para Richard.

— Eu não era como a maioria dos homens do Mire, e isso atraía Marissa. Ela cresceu ouvindo as histórias de seu pai sobre mansões e bailes, e eu era o mais próximo disso que ela poderia encontrar no pântano. Ela era muito bonita e eu era como um cego que de repente viu o sol. —Um sorriso mordaz apareceu nos lábios dele. — Kaldar quase nunca para e pensa nasconsequências de suas ações, e muitas vezes suas aventuras, divertidas ou não, o leva a lugaresinteressantes, como prisões ou castelos pertencentes aos barões do crime da Califórnia. Ondeoutras pessoas veriam a morte certa, meu irmão vê uma oportunidade para uma aventura hilária eemocionante. Mas quando fiz a tatuagem, Kaldar me avisou que casar com ela era uma má ideia.

— Uau.

— Isso deveria ter me impedido, mas não impediu. Eu me casei com ela. Marissa queriauma casa limpa, livre da lama do pântano, e eu dei a ela. Ela queria roupas do Weird, e eu ascomprava quando encontrava um contrabandista.

— Então, o que deu errado? —Era impróprio bisbilhotar, mas ela não se conteve.

— A avó dela morreu.

— Foi muito traumático? —Às vezes, a morte de um membro da família causa umamudança irreversível na vida de uma pessoa. Ela era um excelente exemplo disso.

— Não. O avô de Marissa já havia morrido muito antes, e sua avó deixou todas as suaseconomias para ela. Foi o suficiente para comprar uma passagem do Mire para o Broken,comprar documentos falsos e começar uma nova vida lá.

Charlotte recuou. — Mas você não podia ir. Você não consegue atravessar para o Broken.

Richard acenou com a cabeça. Havia a sombra de antiga uma dor no sorriso e nos olhosdele. Ela sentiu vontade de abraçá-lo e beijá-lo até que a dor fosse embora.

— Ela aproveitou a minha ida a uma missão da família no interior do pântano e fugiu.Quando voltei, havia um bilhete na mesa da cozinha e uma coleção de coisas que dei a ela. Joias,livros, a aliança de casamento. Marissa não levou nada que a fizesse se lembrar de mim ou dacasa. O bilhete me dizia que eu tinha sido um bom marido, mas que ela não podia perder aoportunidade de sair do pântano, e precisava ir embora.

Ela o deixou? A mulher havia deixado este homem? Inacreditável. Charlotte quase balançoua cabeça. Daria qualquer coisa para ter Richard trazendo flores para ela.

— Você foi atrás dela?

— Não fazia sentido. Ela deixou claro que não me queria, e eu ainda tinha algum orgulho.Fiquei bêbado. Em algum momento, queimei a tatuagem do nome dela. Lembro-me de ter feitoisso, mas não sei dizer quando. Fiquei bêbado por muito tempo.

— Você já descobriu o que aconteceu com ela?

— Sim. Kaldar a encontrou em uma de suas excursões à Louisiana no Broken. Ela é casadacom um homem que possui um comercio de lagos e fontes artificiais para quintais e jardins. Elatambém trabalha na loja. Têm três filhos, dois desse atual casamento e um menino de seucasamento anterior. Kaldar me perguntou se eu queria que ele arruinasse o pequeno refúgio dela.Eu soube naquele momento que, apesar de todos os meus esforços, eu era um homem imperfeitoporque por alguns minutos pensei seriamente em aceitar a proposta. Mas consegui deixar issopara lá. —Richard fez uma careta. — Acabei contando minha triste história, mas não era minha

intenção.

— Você tem minha palavra de que não a compartilharei, —disse ela.

— Não é isso.

— Então, o que é?

Ele tensionou as mandíbulas, a linha de sua boca decidida.

— Richard?

— Não quero parecer um idiota patético e lunático, —disse ele calmamente. — Até aqui,você me viu como um assassino, me viu como um monstro, e agora adicionei umsentimentalismo doloroso a isso. Espero que não lamente ou me ridicularize por isso. Eucontinuo falhando em meu objetivo.

O pulso dela acelerou. Charlotte prendeu a respiração. — E qual é o seu objetivo?

— Meu objetivo é parecer capaz e confiante. Um homem melhor do que realmente sou.

Richard estava olhando para ela novamente com aquela intensa necessidade masculina. Elanão poderia estar imaginando. Estava bem ali. Charlotte se perguntou se ele sabia o que o olhardele estava dizendo a ela. Não, provavelmente não.

Richard queria parecer um homem melhor por causa dela. Ele queria que ela gostasse dele edisse a ela algo que não pretendia compartilhar. Charlotte queria dizer a ele que ela entendia,precisava compartilhar algo igualmente íntimo ...

— Quase matei meu ex-marido. —Simplesmente saiu dela. Mãe da Aurora, por que diabosela disse isso? De todas as coisas que poderia ter dito a ele, essa era a última da lista.

Os olhos de Richard se arregalaram.

— Eu sou uma idiota, —ela sussurrou.

A carruagem parou. Charlotte olhou para fora da janela em reflexo. Uma bela mansão estavadiante deles, três andares de paredes de pedra bege, janelas em arco e uma grande cascata deescadas claras rolando sobre o gramado verde.

George abriu a porta. — Bem-vindos à Mansão Camarine.

Ele estendeu o braço para ela. Ela pousou a mão sobre ele e saiu. Três pessoas esperavampor eles no topo da escada. O homem era, sem dúvida, um Sangue-azul: alto, ombros largos,feito para a batalha. Seu rosto era classicamente bonito, ainda mais porque escolheu puxar seulongo cabelo loiro claro em um rabo de cavalo baixo e o penteado acentuava o corte masculinode sua mandíbula.

A mulher ao lado dele tinha que ser Rose. Ela era perfeita, não muito magra, nemvoluptuosa, mas em forma. Seu rosto era delicado, com traços finos e grandes olhos emolduradospor densos cílios naturais, pelos quais em algum momento de sua vida Charlotte daria seu braçodireito. Apesar da beleza e do equilíbrio da mulher, a origem Edge dela era óbvia, sua escolha deestilo a delatava. Rose se vestia de uma forma despreocupada com a moda Weird, mas para a altasociedade, poderia muito bem ter pendurado uma placa no pescoço que dizia ‘Amadora’.

Seu vestido era provavelmente da última moda—o tecido era de boa qualidade e oacabamento parecia perfeito—mas o amarelo claro, uma cor atraente por si só, não era agradávelpara a pele dela. O cabelo estava excessivamente elaborado para uma noite em casa, e o estilo deseus cachos era decididamente inverno, em vez de final da primavera. Todo o conjunto pareciamais adequado para uma mulher um pouco mais velha, que ganhou o direito de se vestir fora daúltima tendência em virtude de sua posição social, realizações ou reputação.

Rose ainda estava na faixa etária em que se esperava que as mulheres estivessem no auge damoda. Ela provavelmente estava seguindo o exemplo do estilo de outra mulher, talvez a mãe doconde ou sua irmã muito mais velha.

Os Camarines certamente haviam contratado um estilista, mas nenhuma mulher queria ouvirconsistentemente que seu gosto para roupas era inapropriado. Se as histórias que Éléonorecontou sobre a personalidade de Rose forem verdadeiras, Rose se desagradaria e demitiria oestilista ou, mais provavelmente, o consultava apenas em ocasiões especiais. A mulher nãocometeu nenhum crime relacionado à moda, de forma alguma, mas também não seria apontadacomo um exemplo do que fazer.

Charlotte deu uma segunda olhada no Conde. Ele também preferiu se vestir em um estiloum pouco mais velho. E tinha consciência de sua escolha, Charlotte percebeu. O Conde percebeuo estilo natural de Rose e ajustou o próprio estilo para combinar com a sua esposa. Rose eramuito amada. Uma dor familiar, entorpecida pelo tempo, apunhalou Charlotte. O casal à suafrente tinha aquilo que ela tanto desejou e foi negado. Rose teve muita sorte.

Uma jovem estava do lado esquerdo de Rose, não mais do que quinze anos. Charlotte olhoupara o rosto da moça e teve que lutar para desviar o olhar. A garota era extremamente bonita.Não apenas bonita, linda, quase chocante. Seu rosto, um oval perfeito, tinha cobiçadas maçãs dorosto salientes e a boca pequena, mas carnuda. Seu nariz sugeria um toque de algo exótico, suaslinhas retas, mas um pouco incomuns para Adrianglia, e seus olhos reforçavam isso. Grandes,largos, mas ligeiramente alongados nos cantos internos, eles sugeriam algum mistério, algumaherança incomum e uma ameaça perigosa. A moça não era apenas deslumbrante, pareciaintrigante, o que era infinitamente mais importante do que a perfeição ou beleza clássicas. O tipo

de beleza que quando entra em um salão de baile cheio de pessoas, cada uma delas param parauma segunda olhada.

Essa beleza sombria e assustadora parecia familiar, mas Charlotte nunca a viu antes. Elatinha certeza disso.

Richard abriu os braços.

A moça desceu correndo as escadas.

Ele a pegou e a abraçou, e Charlotte percebeu onde ela tinha visto a moça antes: haviatraços de Richard naquele lindo rosto. Ele tinha uma filha? Não, não poderia ser—ele disse quenão tinha filhos.

— Richard, —Declan disse. — É bom vê-lo inteiro. Por que os meninos estão com você?

Rose estava olhando além deles para seus irmãos. — Aconteceu alguma coisa? Por quevocês dois estão me olhando assim?

George respirou fundo.

— Diga logo de uma vez, George. —Jack avançou, passando por seu irmão.

Ah não.

— Vovó está morta. Papai estava trabalhando para as pessoas que a mataram. George matoupapai, embora não queira admitir.

Charlotte olhou diretamente para Rose, e viu o momento preciso em que o mundo da outramulher se quebrou em pedaços.

******CHARLOTTE SE sentou na poltrona macia do escritório de Declan Camarine. Richarddescansava em uma outra. A mocinha estava sentada a seus pés no chão como um cachorrinholeal, sua pose completamente diferente de suas roupas ou idade. Ela deveria ter se apresentado,mas todos tinham coisas mais importantes a fazer. Em algum lugar da casa, Rose estava tentandoentender o que aconteceu. Seus irmãos estavam com ela. Charlotte tentou oferecer algumconsolo, mas ficou bastante claro que Rose precisava de privacidade agora, então acompanhouRichard em vez disso.

Em sua mesa, Declan fechou o livro-contábil vermelho. — A evidência é contundente.

— O livro mostra uma trilha financeira direta, —disse Richard.

— Exatamente. —O rosto de Declan tinha uma expressão sombria. Ela esperava que Declanestivesse um pouco mais animado com a descoberta. Talvez tenha ficado chocado com oconteúdo ou talvez o impacto da tragédia que sua esposa estava tentando superar ainda o deixou

atordoado. — Brennan se encaixa perfeitamente nessa situação. A posição dele no Departamentode Políticas Internas permite que ele controle as movimentações do meu departamento. Elesupervisiona a segurança interna. Meu pessoal é legalmente obrigado a informar o Departamentode Políticas Internas sobre qualquer operação que requeira o transporte de mais de dez agentes.Ele sabia onde iríamos atacar antes que tivéssemos a chance de chegar lá.

Declan ficou em silêncio.

— E então, meu senhor? —Charlotte perguntou gentilmente.

Declan olhou para ela. — Se fosse qualquer um que não fosse Brennan, eu tomariaprovidências imediatamente.

Richard se inclinou para frente, focado. — Os números não mentem. Examine suas contas.Você verá o registro dos pagamentos feitos a ele.

— Se fosse qualquer outra pessoa, meu nome e posição seriam suficientes para obter acessoinstantâneo e isolar o suspeito de quaisquer canais de influência. Mas, neste caso, Brennan éprimo do rei, —Declan disse. — Seu primo favorito, o homem que o rei vê como seu irmão maisnovo. Eu conheço Brennan. Ele é inteligente e navega nas águas do Departamento de PolíticasInternas como se fosse o dono delas. Ele não comete erros. Se eu solicitar uma auditoria combase na existência deste livro-contábil, terei que jogar toda a minha influência e toda a reputaçãodo meu pai e da minha mãe apenas para entrar em ação. O livro-contábil será revisado por meiadúzia de pessoas, nenhuma das quais deseja fixar um alvo em seu próprio peito. Brennan saberáquase imediatamente. Alguém dirá a ele simplesmente para ter a chance de ser convidado para opróximo piquenique real. Vou ser questionado sobre como obtive a posse desse livro, umaquestão, como muitas outras, que terei que evitar. Dias passarão, a investigação no livro-contábilse arrastará, até que Brennan finalmente se apresentará e se oferecerá para simplesmente resolverisso, porque ele não tem nada a esconder. Faremos a auditoria e não encontraremos nada. O livroserá denunciado como falso. Desculpas serão apresentadas, durante as quais Brennan parecerámagnânimo e gracioso, enquanto eu serei retratado como excessivamente ávido, diligente eingênuo na melhor das hipóteses, e invejoso e vingativo na pior. Minha credibilidade serádestruída, me forçando a renunciar, e comigo fora do caminho, Brennan estará livre parareconstruir seu vil empreendimento em seu lazer.

Charlotte ficou em silêncio atordoada. Os fragmentos de sua vitória flutuaram sobre ela,derretendo em nada.

— Então é isso? Tudo que passamos foi por nada?

— Não, —Declan disse. — Nós agora sabemos quem ele é, o que significa que podemos

controlar com mais eficácia o acesso dele às nossas operações antiescravidão. Brennan sofreuuma perda catastrófica com o saque do Mercado. Se desmantelarmos consistentemente ocomércio de escravos, arruinando seus lucros ao longo dos próximos anos, ele chegará aconclusão que se continuar nesse ramo terá muito prejuízo ...

O rosto torturado de Tulip brilhou diante dela. — Não.

Os dois homens olharam para ela.

— Não, —ela repetiu. — Isso não é o suficiente. Próximos anos? Você tem alguma ideia doque eu vi? Sabe o custo que esses próximos anos terão?

— Charlotte, —disse Richard calmamente. A moça sentada ao chão olhou para ela, olhosescuros alarmados.

Charlotte se conteve e só aí viu os tentáculos sombrios da própria magia espalhados ao redorde seu corpo. Seu controle estava começando a escorregar. Ela puxou sua vergonha de volta parasi mesma.

— Você tem meu mais profundo respeito e admiração pela magnitude de seu sacrifício,minha senhora. —Declan se levantou e se curvou em reverência para ela. — Estou apenasapontando os fatos.

— O que você precisa para acabar com ele? —Richard perguntou.

— Uma confissão, —Declan disse. — De preferência na frente de uma dúzia detestemunhas ilibadas.

Isso nunca aconteceria. Algo dentro dela estava morrendo pouco a pouco. Talvez fosse aesperança.

— Então teremos que conseguir essa confissão para você. —Richard se levantou. Declantambém. Ela se levantou.

— Vocês são bem-vindos em minha casa, —disse Declan.

Richard olhou para ela. Charlotte balançou a cabeça suavemente. A família Camarineprecisava de privacidade agora para lidar com a dor. Richard e ela não faziam parte disso. Elatambém queria a sua própria privacidade para lidar com o seu desespero.

— Obrigado. É muito gentil de sua parte, mas acredito que seria melhor se continuássemosnosso caminho, —disse Richard. — Quanto menos formos vistos na mansão Camarine, melhor.

Declan os acompanhou para fora de seu escritório.

Lá fora, nuvens densas da cor de chumbo haviam tomado conta do céu. Uma rajada de ventopuxou seu cabelo—uma tempestade estava chegando. Charlotte percebeu pela primeira vez que

ainda usava as mesmas roupas que usava na ilha. Um respingo de sangue manchava suas calças,um resíduo da espada de Richard. Ela podia sentir o cheiro de fumaça em sua túnica. Estava umdesastre em pessoa. Era uma maravilha que eles a tivessem deixado entrar em sua casa.

Na escada, a moça olhou para Richard com um desespero sem palavras. Ele a abraçou ebeijou suavemente o cabelo dela. — Eu estarei no Covil. —Ele entregou a ela um pedaço depapel dobrado. — Dê isso à George. Não saia da mansão. Posso precisar de você.

A moça acenou com a cabeça.

Richard começou a descer as escadas em direção a carruagem, e Charlotte o seguiu. O quemais ela poderia fazer?

As portas se abriram e Rose correu para fora. — Espere!

Charlotte parou.

— Como a vovó estava antes de morrer?

— Sua avó estava bem, —Charlotte disse. — Ela falava de você e dos meninos comfrequência. Guardou todos os presentes que enviaram. Os copos mágicos que vocês mandaramforam motivo de inveja de toda a cidade. Mary Tomkins quase adoeceu de pura inveja.

Um olhar assombrado passou por Rose.

— Ela estava saudável, —Charlotte continuou. — Fiz questão de acompanhar as queixas desaúde dela. Éléonore era respeitada. Sua maior preocupação era tentar manter um relógio cucopreso no cabelo. Sua avó sabia que você e os meninos a amavam, Senhora Camarine. Continuarmorando no Edge foi escolha dela, e você sabe muito bem que nem um par de cavalos selvagenspoderia tê-la tirado de lá. Sua avó nunca se viu como uma vítima. Talvez seja presunção daminha parte, mas eu sugeriria que você também não deveria vê-la dessa forma. Se há culpados, aculpa pertence às pessoas que a mataram—e a mim, porque quando ela precisou de ajuda, eu nãofui rápida o suficiente.

Charlotte se virou e caminhou em direção a carruagem. Ela se sentia exausta e vazia,completamente seca.

— Senhora de Ney, —Rose gritou.

Charlotte se virou novamente.

Rose fez uma reverência. Foi uma reverência profunda, formal e estranha. — Eu não aculpo. Eu culpo os assassinos. Obrigada por cuidar da minha avó.

— De nada, —Charlotte disse a ela. Ela só queria ir embora.

Richard abriu a porta da carruagem e ela entrou.

— A viagem não vai ser longa, —ele prometeu, e fechou a porta. Ela o ouviu entrar nafrente, no banco do motorista, onde um painel de instrumentos esperava. A carruagem semcavalos disparou estrada abaixo.

Dois anos, Charlote refletiu. Foi o tempo que Richard levou para chegar a este ponto. Elaestava nisso há menos de uma semana. Foi a semana mais difícil de sua vida, mas foi apenas umasemana. Mesmo que parecesse uma vida inteira.

A chuva encharcou a carruagem. Ela olhou para fora da janela de vidro e viu uma névoacinzenta de água. As gotas de chuva bombardeavam o teto, deslizando ao longo das paredes lisasde resina da carruagem, como se ela estivesse sob uma cachoeira e ainda assim permanecessecompletamente seca. Charlotte cobriu o rosto e chorou. Foi um choro silencioso e sem palavras,nascido da pura pressão que espremeu as lágrimas de seus olhos, era mais de alívio do estressedo que por luto.

A carruagem parou. A porta se abriu novamente e ela saltou para o dilúvio, grata que achuva limparia de seu rosto os sinais de fraqueza.

Árvores altas rodeavam uma entrada estreita. Na frente dela, uma casa esperava debaixo dachuva, como um urso peludo. Ela mal conseguia distinguir as paredes de madeira escura sob otelhado, cobertas de musgos verdes. Raios brilharam acima. Um momento depois, o trovãorasgou o zumbido da chuva. Richard agarrou a mão dela e eles correram pela calçada para a casa.Charlotte subiu correndo as escadas para a varanda estreita, Richard abriu a porta e ela entrouagradecida.

dez

— LUZES, —DISSE RICHARD.Lanternas amarelas pálidas acenderam nas paredes, banhando a cabana com sua luz suave.

As lanternas eram esferas delicadas de vidro que pendiam do teto de madeira como cachos deuvas brilhantes. A cabana era aberta e simples: no centro, dois grandes sofás frente a frente,flanqueados por uma cadeira estofada, toda em um belo marrom. Uma construção retangular depedra com uma grade parcialmente obscurecida por um exaustor saindo da casa, ficava entre ossofás, um clássico poço de fogo55 Adriangliano.

À esquerda, escadas de madeira levavam a um pequeno quarto suspenso que sustentava umacama. Debaixo da escada, uma mesa estava cheia de pilhas de papel. Um grande mapa de

Adrianglia decorava a parede, com setas desenhadas à mão e anotações escritas com a letra deRichard.

Na parede direita, uma cozinha ocupava o canto mais distante, completa com a caixaornamentada de uma unidade de gelo e um pequeno fogão.

Richard passou por ela, riscou um fósforo e o jogou no poço de fogo. Imediatamente, aschamas se acenderam. Ele deve ter apagado o fogo antes de partir.

Longas janelas ofereciam uma visão externa da casa, toda a floresta lá fora se ensopava nodilúvio cinza da chuva fria. Cada centímetro do espaço sem janelas das paredes estava cheio deestantes de livros. Volumes de todas as formas e tamanhos estavam nas prateleiras,interrompidos por objetos estranhos. Richard gostava de livros. Ela também.

O espaço era quente e convidativo, o crepitar das toras um contraponto relaxante à chuva.Por alguma razão estranha, Charlotte esperava que a casa fosse austera, quase sombria, mas eraconfortável e convidativa. Ele estava deixando-a entrar em seu espaço pessoal, em sua casa.

— Uma toalha? —Richard perguntou, oferecendo a ela uma toalha verde.

— Obrigada. —Ela pegou e ficou lá, olhando para a toalha como uma idiota.

— Você gostaria de tomar um banho? A água é aquecida pelas espirais de vidro, então deveestar quente, —disse ele. — É por aquela porta à direita. Há roupas limpas no armário.

Charlotte finalmente poderia lavar a Ilha do Divino na da pele dela.

O banheiro era equipado com um chuveiro padrão Adriangliano. Quando as primeiras gotasd'água a atingiram, Charlotte exalou.

Dez minutos depois, vasculhou o armário e encontrou uma túnica que era muito longa e umacalça de lã macia, que ficou justa em seus quadris. Ela torceu a toalha em um turbante na cabeçae saiu do banheiro. Richard esperou até que ela se sentasse no sofá perto do poço de fogo eentrou no banheiro levando sua própria toalha.

Charlotte observou as chamas e tentou não pensar. Se não se sentisse tão esgotada, estariaagora caminhado ao longo das prateleiras, acariciando as laterais das capas com os dedos. Elaqueria saber do que ele gostava, quais livros havia lido, mas a derrota a envolveu, como umcobertor grosso e sem graça, e ela não conseguia lutar contra isso.

O calor do fogo aqueceu sua pele. Charlotte se forçou a desfrutar do prazer simples eescasso de estar limpa, aquecida e segura, pelo menos por enquanto. Quando olhou para cima,Richard havia saído do banheiro e estava vindo em sua direção. Ela puxou a toalha do cabelo e asoltou.

Ele se sentou em frente a ela. Por alguns minutos, os dois ficaram sentados em silêncio, ofogo crepitando entre eles.

— Você está bem? —Ele perguntou.

— Nós perdemos, —ela disse, odiando o fracasso na própria voz.

— Perdemos uma batalha. Pretendo vencer a guerra.

— Como? —Ela perguntou.

— Agora sabemos quem comanda os traficantes. Temos os nomes das cinco pessoas. Nós osestudaremos, nos prepararemos e depois iremos atrás deles, —disse ele.

Ir atrás deles? Enfrentar Sangues-azuis endinheirados, poderosos nobres do reino e o primodo rei ... — Você faz isso parecer tão simples.

— Charlotte? —Ele chamou baixinho. — Você está desistindo?

— Não. Preciso ir até o fim disso. É só que ... eu me sinto exausta. Pensei que tínhamosresolvido.

— Mas não resolvemos.

— Eu sei. —Ela o enfrentou. — A verdade é que me sinto uma fracassada, Richard. Apesarde toda a minha determinação, no momento em que vi uma chance de sair disso tudo, me agarreia ela. Quando encontramos os livros-contábeis, senti um alívio avassalador. Senti esperança. Eunão precisaria correr o risco de ir além do meu limite de controle. Eu poderia parar e nunca maisusar esse lado da minha magia. Vislumbrei uma nova chance de viver, mas agora ela se foi.

— Você não é uma fracassada. É forte e determinada. Apesar de tudo que viu e fez, mantevesua humanidade. Eu admiro isso.

Ela balançou a cabeça. — Não há nada digno de admiração em mim. Eu sou simplesmenteuma mulher muito egoísta. Nossa vitória foi roubada e, embora mal tenha começado a luta, jáestou desesperada com o primeiro revés. Como você consegue? Achei que ficaria mais abatidocom a nossa derrota.

— Eu estou. Mas já estou acostumado a contratempos, apesar que esse último foi esmagador. —O cabelo úmido dele, quase preto, caía sobre seu rosto. A luz do fogo brincava em sua pele. — Estou chateado que as coisas não terminaram ainda, mas a verdade é quetambém sou um homem muito egoísta.

— O que quer dizer?

Ele olhou para ela. — Percebi que se isso tivesse acabado, você iria embora.

Os traficantes, Brennan e os obstáculos intransponíveis para trazê-los à justiçadesapareceram da mente dela. Richard estava bem ali. Tudo o que Charlotte precisava fazer erase levantar e dar dois passos à frente ou convidá-lo para chegar mais perto. Ele poderia ser dela.Charlotte ergueu o queixo. — Eu estou aqui agora. Em sua casa.

Richard parou de se mover. Ela tinha sua atenção completa. Ela se inclinou para frente epassou a mão pelos longos cabelos loiros, deixando-os cair sobre os ombros para emoldurar orosto. Ele se concentrou nela completamente.

Charlotte leu admiração no rosto dele, desejo e um toque de possessividade masculina emseu olhar. Isso a deixou tonta.

— A questão é: irá fazer algo a respeito disso, Richard?

Richard atravessou a distância entre eles em um passo rápido, então os braços dele aenvolveram. Ela o viu se abaixando e fechou os olhos. O primeiro toque de seus lábios a fezestremecer, não de medo ou excitação, mas de desejo desesperado e devorador. Seus lábios lhedisseram tudo o que ela precisava saber, sem fazer um único som: que ele a queriadesesperadamente, que a respeitaria, que não a forçaria. Que a achava linda.

A língua dele roçou os lábios dela, e ela inclinou a cabeça e abriu a boca, deixando-o saberque ela o queria também. Richard a saboreou, beijando mais profundamente, seduzindo com umapromessa de mais, mas contendo-se. O corpo dela ficou tenso. Seus seios pressionados contra opeito dele. Um desejo profundo acendeu dentro dela. De repente, Charlotte se sentiu vazia equeria estar cheia dele. Richard percebeu, como se estivessem perfeitamente sintonizados, e apuxou com mais força, possessivo.

As mãos dele acariciaram suas costas, sob sua túnica, e a aspereza dos calosidades nosdedos dele rasparam levemente contra a pele dela, enviando tremores pelos músculos sensíveisde suas costas. Envolvida em sua força aquecida, ela deixou de lado as palavras e aautoconsciência e apenas o beijou, deliciando-se com o simples prazer de tê-lo. Richard tinhagosto de sândalo, fumaça e promessa de felicidade.

— Tão linda, —ele sussurrou em seu ouvido, e beijou seus lábios, suas bochechas, depoisseu pescoço, persuadindo-a a derreter, muito lentamente. Um medo repentino de que ele mudassede ideia se apoderou dela.

— Cama, —ela sussurrou para ele.

Ele a pegou como se ela não pesasse nada e a carregou escada acima até o quarto,depositando-a nas cobertas.

A cama era enorme.

Toda a realidade do que estava prestes a acontecer caiu sobre os ombros de Charlotte, comoum fardo paralisante.

Ela engoliu em seco. Lembranças dos respingos de sangue em suas roupas apareceram namente dela. Charlotte queria esquecer tudo isso. Sua pele estava limpa. As roupas que usavaagora estavam limpas, mas ainda assim queria se ver livre delas.

Ela começou a tirar a túnica de si mesma, então as mãos dele tocaram a pele nua doestômago dela e deslizaram para cima, ao longo das costas, acariciando lugares que nuncapensou serem eróticos, mas que agora enviavam pequenos impulsos de desejo por ela. Richardbeijou seu pescoço, tirou sua túnica e beijou seu seis, movendo-se para baixo em uma seduçãolenta e confiante. Seu marido costumava fazer isso.

Charlotte engoliu em seco e se afastou.

Richard parou.

A confiança dela evaporou. Charlotte se sentiu tão vulnerável sentada ali, sem camisa,dolorosamente autoconsciente.

Richard engoliu em seco. Ela sentiu que ele estava prestes a recuar e agarrou a mão dele. —Não vá.

Ele parou.

— Eu quero você, —ela disse a ele. — É só ... —Charlotte tentou entender o emaranhado desentimentos que estava sentido.

Richard se agachou ao lado da cama. — Uma mulher uma vez me disse para usar palavras.

— Eu sou estéril, —disse ela com brutal honestidade. — O sexo só tinha um objetivo: meengravidar. Eu quero ser amada. —Ela parecia tão carente e desesperada. — Estou com medo.

— De mim?

— Da intimidade. —Ela engoliu em seco. — Preciso que seja diferente do que era com ele.

Ela conseguiu acabar com o clima. Estragou tudo, trouxe a sombra do ex-marido para oquarto, e agora Richard teria o fardo de ser diferente dele sem ao menos saber como era. Erainjusto e egoísta. Richard iria se afastar dela.

— Você me quer? —Richard perguntou.

— Sim. —Ele não tinha ideia do quanto.

Richard tirou a própria camisa. Por baixo, seu corpo ondulava com músculos fortes eesculpidos, sua pele bronzeada marcada por velhas cicatrizes. Charlotte assistiu em silêncio

enquanto ele tirava os sapatos. Suas calças foram as próximas. Ele estava excitado.

Oh deuses, ele estava muito excitado.

Richard se sentou na cama, encostou-se na cabeceira de madeira entalhada e apoiou osbraços musculosos na borda superior. Seu corpo magro e duro parecia quase decadente contra oslençóis.

— Venha, —ele convidou.

Ela olhou para ele com os olhos arregalados.

— Você quer diferente. Venha, faça diferente.

— Eu?

— Você.

Richard estava dando a ela o controle. Ela não tinha certeza do que fazer com isso. Masfaria algo.

Charlotte se despiu, balançou a cabeça, deixando seu cabelo loiro cair como uma nuvem, ese sentou na cama.

Ele estava olhando para ela com uma necessidade tão desenfreada, quase selvagem, que afez corar. Todo o domínio dele despareceu. Este era Richard sem boas maneiras, sem etiquetaadequada, sem restrições. Ela achava que ele era gelo. Nunca imaginou que ele fosse fogo.

O embaraço que ela sentia desapareceu, deixando pura emoção.

— O que eu posso fazer? —Ela perguntou a ele.

— O que você quiser.

Qualquer coisa que ela quiser. Charlotte ergueu a mão e tocou o peito dele, passando osdedos ao longo de seus músculos peitorais. Ele se esticou, o corpo dele se contraiu sob o toquedela, mas manteve as mãos na cabeceira da cama. Ela se sentia tão livre e tão... devassa. Sim.Essa era a palavra.

Charlotte deslizou os dedos para baixo, acariciando as protuberâncias duras de seusmúsculos abdominais, deslizando a mão para baixo, passando pelo umbigo, traçando a longalinha de pêlos escuros apontando para baixo.

— Richard?

A voz dele respondeu tensa. — Sim?

— Quão bom é o seu controle?

— Quão bom você precisa que seja? —A voz dele parecia que iria quebrar. Seus bíceps setensionaram enquanto ele agarrava com mais força a cabeceira da cama.

— Você pode manter suas mãos na cabeceira da cama?

— Se você quiser, sim.

Ela tocou a cabeça lisa de seu eixo, e ele flexionou em resposta, levantando-se ligeiramentedas cobertas.

— Vamos ver, —ela sussurrou.

Charlotte acariciou o comprimento duro dele e abaixou a cabeça para beijar seu pescoço. Abarba rala arranhou sua língua. Ela sentiu o gosto de suor e sabão. Ele gemeu. Charlotte sorriu eo beijou novamente, os lábios, o peito dele, passando a língua sobre seus mamilos, sobre seuestômago duro. Um calor líquido incessante se espalhou entre as pernas dela. Ela realmentepoderia fazer qualquer coisa. Ele a deixaria. Ela tinha controle total. Sua excitação aumentou.

Charlotte traçou uma linha do umbigo com a ponta da língua, sentindo os músculos tensos,como aço endurecido sob a pele dele. Ela deslizou sua boca no eixo duro dele.

As costas de Richard arquearam quando ele flexionou os braços, levantando a si mesmo e aela. A cabeceira da cama rangeu.

Charlotte o lambeu, testando a disciplina dele. O corpo dele estremeceu. Richard gemeunovamente. — Isso pode acabar ... rápido ... é que isso. Já faz um tempo para mim.

— Para mim também. —Ela montou nele, seus seios a centímetros dos lábios dele. Sentiu adureza dele pressionar entre as pernas dela. Richard estava olhando para ela, seu olhar era umacarícia intensa. Tudo nele era incrivelmente erótico, desde seu forte corpo musculoso, a formacomo sua pele, aquecida pelo fogo, queimava sob o toque dela, até a maneira como ele a olhava.

Charlotte inclinou os quadris. O comprimento duro e quente dele deslizou dentro dela emuma onda de prazer, esticando-a por dentro. Ela ofegou, arqueando as costas, sentindo toda aextensão dele dentro dela. Sentiu-se apertada, mas flexível, elástica, quente e muito impacientepor mais.

— Deuses, eu a quero tanto, —ele rosnou.

Charlotte começou a balançar para frente, deslizando sobre ele. Parecia o paraíso, mas elaqueria mais.

— Toque-me, —ela sussurrou. — Por favor.

Ele se empurrou para cima, agarrando os quadris dela, moendo, mais profundamente nela.Sua boca encontrou o seio dela, a língua dele deslizou sobre seu mamilo, ainda fresco do banho,

e ela apertou em resposta. A sensação tão intensa que quase doeu. Ele a chupou e ela estremeceuem cima dele, curvando-se para trás, montando-o mais rápido. Suas pernas ficaram líquidas.

Richard deslizou a mão entre as pernas dela e tocou o nó sensível dos nervos ali. Êxtase caiuem cascata por ela.

— Por favor, —ela gemeu. — Por favor.

Richard continuou a acariciá-la, seus dedos hábeis, adicionando a quantidade certa depressão, combinando com o movimento dela. A sensação combinada a oprimiu, levando-a cadavez mais perto. Sua cabeça girava, mas ela sentia cada momento, cada carícia, enquanto pairavano precipício.

A respiração dos dois sai em choramingos rápidos. O corpo dele estava duro sob ela, cadamúsculo esticado com a tensão. Ele soltou um gemido masculino, nascido de pura luxúria. Issodesencadeou um profundo instinto feminino dentro dela que lhe disse que o prazer dele era tãointenso quanto o dela.

E então as ondas de prazer cresceram dentro dela, se encontraram, e ela caiu no penhasco.Toda a força saiu de seu corpo. Charlotte caiu para frente, com os olhos arregalados, perdida nafelicidade erótica.

Ele a virou e a jogou de costas nas cobertas. Ela o beijou, passando as mãos por suas costas.Ele a imobilizou, fingindo impedi-la de se mover, e olhou para ela, para a sua boca, seus seios,seus quadris. Havia algo profundamente gratificante na expressão de satisfação masculina norosto dele.

Charlotte percebeu que Richard deve tê-la desejado por muito tempo, e agora ele finalmentea tinha.

— Eu o quero, —ela sussurrou.

— Você é minha, Charlotte?

— Sim.

— Você deveria ter dito não. Agora você é minha, e eu não vou deixá-la ir.

Richard se empurrou dentro dela, se movendo em um ritmo rápido e suave. Ela o encontrou,combinando com seus impulsos, mais uma vez desesperada por aquele pico de prazer. Charlottenão fechou os olhos. Observou o rosto dele, absorvendo cada momento de prazer dele. Elecontinuou se empurrando, ser corpo inteiro tenso, os músculos de suas costas fortes como cabosrígidos sob os dedos dela. Richard se deleitou com ela. Momentos depois, Charlotte atingiugozou novamente, os tremores do orgasmo a balançou. O corpo dele ficou rígido, um tremor o

agarrou, e ele se esvaziou nela com um gemido masculino de satisfação.

Charlotte se agarrou a ele, sem querer soltá-lo. Richard se virou, mudando seu peso para acama, e ficaram enrolados um no outro. Ela se sentia tão feliz, tão dolorosamente feliz.

— Pode ser assim de novo? —Ela perguntou.

— Pode ser como você quiser, —ele disse a ela, e beijou seus lábios.

Charlotte fechou os olhos e sorriu.

******— VOCÊ NUNCA me contou por que faz isso. Por que resolveu ir atrás dos traficantes?

Richard virou a cabeça e olhou para ela. Charlotte estava deitada de bruços nas cobertas,ainda nua e completamente dele. O cabelo glorioso derramado sobre as costas dela como umacachoeira de seda. A pele de seus seios e nádegas eram um pouco mais claras que a pele de seurosto, pescoço e braços. Ela ainda estava gloriosamente nua, e vê-la assim era intensamenteerótico. Charlotte se deitou ao lado dele, contente, talvez até feliz, completamente à vontade,olhando para ele com seus olhos prateados. Era como a luz do sol brilhando através da chuva, elepensou.

Humm. Minha. Minha Charlotte.

Ele a fez feliz, a fez gemer e pedir mais dele. Se estivesse em seu poder, faria com que fossesempre assim.

Pode ser sempre assim, uma voz baixa sussurrou dentro dele. Richard poderia levá-la comele e desaparecer. Apenas vá embora. Ninguém o culpará.

Ninguém, exceto os fantasmas em suas memórias.

Richard estendeu a mão e acariciou o ombro dela.

— Você se lembra da menina na Mansão Camarine? Aquela que nos recebeu?

— Ela se parece com você. É sua filha?

— Ela é minha sobrinha. O nome dela é Sophie.

— Sophie? A que você chamou quando estava delirando?

Ele assentiu. — Meus avós tiveram vários filhos. Meu pai era o filho mais velho, e Gustave,meu tio, era o segundo mais velho. Nossa família estava envolvida em uma rixa entre famílias.No Mire, todo mundo briga com alguém. Nossa rivalidade era antiga, com raízes profundas.

— É por isso que seu pai foi baleado no mercado?

— Sim. Eu era muito jovem para cuidar da família, ainda uma criança para os padrões doMire, e Gustave se encaixava muito melhor. Ele se tornou o chefe do nosso clã. Gustave teveduas filhas, Cerise, que agora é casada com o melhor amigo do conde Camarine, e Sophie.

— Então você é primo dela?

— Tecnicamente. Nossa relação sempre foi mais de tio e sobrinha. Tenho idade suficientepara ser pai dela. Gustave estava sempre ocupado. Um dia, ele saiu e levou sua esposa e Cerisecom ele. Sophie veio me ver. Ela queria pegar um barco rio abaixo até Sicktree, a cidade maispróxima. O aniversário de sua mãe estava chegando e ela queria vender um pouco de vinho ecomprar um presente para ela.

Contar a história era como abrir uma velha ferida bem no fundo dele. Richard ficou surpresopor ainda doer tanto, depois de tantos anos. — Celeste, minha prima em segundo grau, seofereceu para ir com Sophie. Eu não vi mal nisso. Celeste era uma jovem capaz e boa atiradora.No Mire, todo mundo conhece todo mundo, e nossa família tinha uma reputação perigosa.Ninguém, exceto a família que tínhamos uma rixa, ousaria incomodá-las, e a rixa havia esfriadopor um tempo. Eu as autorizei ir. Cerca de vinte minutos depois, um grupo de traficantes asencontrou. Eles atiraram na cabeça de Celeste. Ela caiu na água e Sophie mergulhou atrás dela.Quando Sophie emergiu da superfície, os traficantes bateram em sua cabeça com um remo e apuxaram para dentro do barco.

Charlotte se aproximou dele, envolvendo os dedos nos dele.

— Nunca tínhamos ouvido falar de traficantes no Mire. A fronteira com a Louisiana é aúnica entrada para o Mire, e é protegida por um exército. Alguém do lado do Ducado daLouisiana deve ter facilitado a passagem dos traficantes pelo exército. Nunca descobrimos quemou por quê. As nossas meninas não voltaram para casa e, naquela noite, saímos a procura delaspelo rio e encontramos o corpo de Celeste. Começamos a vasculhar o pântano, mas não tínhamosideia de quem havia levado Sophie ou por quê.

— Para onde eles a levaram? —Charlotte perguntou.

— Para um buraco na floresta. Eles queriam crianças, especificamente. Eles a colocaram emum buraco no chão. Sophie disse que no segundo dia um homem desceu no buraco para abusardela. O homem a apalpou e tentou arrancar as roupas dela.

Os olhos de Charlotte brilharam de indignação.

— Sophie consegue manipular seu flash. Ela foi devidamente treinada desde muito cedocomo a maioria de nós. Seu treinamento não estava completo ainda, mas foi o suficiente para sedefender. Sophie explodiu os olhos do homem com o flash dela e o matou. Como punição, os

traficantes pararam de alimentá-la ou dar-lhe água. Levamos oito dias para encontrá-la. Lembro-me daquele acampamento como se fosse ontem. Buracos inundados de lama pela metade,crianças famintas, algumas mortas, outras morrendo. Nós massacramos os traficantes. Entrei noburaco para puxar Sophie para fora. Eu subi no cadáver do traficante para levantá-la fora doburaco. Uma parte do corpo dele estava faltando.

— Mãe da Aurora, ela o comeu?

— Não sabemos. Nunca perguntamos. Ela não sabia quando iríamos buscá-la e fez o quetinha que fazer para sobreviver. Mas Sophie nunca mais foi a mesma. Primeiro, ela parou deescovar os cabelos. Depois parou de usar roupas bonitas. Decidiu que não gostava de seu nome equeria ser chamada de Cotovia. Ela passava a maior parte do tempo na floresta e parou de falar.Caçava pequenos animais ou os encontrava mortos e os pendurava em uma árvore na floresta,porque estava convencida de que era um monstro, e nós acabaríamos expulsando-a de casa, entãodessa forma ela estaria pronta para viver sozinha na floresta.

Charlotte se sentou. — Vocês conseguiram alguma ajuda profissional para ela?

— Não há institutos de cura no Mire, —disse ele. — Cada vez que eu tentava falar comSophie, ela fugia como se eu fosse um deles. Uma das minhas primas é farmacêutica. Não tem odom da cura como você, mas ela é talentosa à maneira dela. Ela examinou Sophie várias vezes.Não encontrou nada fisicamente errado com a menina. Sophie sempre foi próxima da mãe dela, epensei que enquanto houvesse alguma conexão entre ela e sua família, com o tempo, ela iria securar lentamente. Mas a Mão chegou.

— Os espiões da Louisiana? —Os olhos de Charlotte se arregalaram.

— Eles queriam algo que nossa família tinha. Você se lembra do exilado que mencionei?Vernard?

— Sim.

— O sobrenome dele era Dubois. Esse sobrenome significa alguma coisa para você?

Charlotte franziu a testa. — Vernard Dubois foi um célebre cientista médico no Ducado daLouisiana algumas décadas antes da minha época. Eu li alguns de seus trabalhos, ele seconcentrava na botânica médica aplicada. Ao contrário do que algumas pessoas pensam, osCuradores do Instituto não apenas limitam seu treinamento médico ao uso da magia. Estudamosfarmacologia, herbologia e outras disciplinas como qualquer outra medicina ... Estou divagando.É desse Vernard Dubois que você está falando?

— Sim. Ele é o avô de Sophie.

Charlotte piscou.

— Louisiana o exilou no Mire porque Dubois cruzou a linha para um território proibido daalteração por magia.

— Isso é piada. —Charlotte bufou. — A Louisiana altera seus espiões através da magia atétransformá-los em monstros. Se eu te dissesse você não acreditaria nas coisas que eles sãocapazes de fazer nos corpos humanos.

— Eu acreditaria, —ele disse a ela. — Matei muitos deles.

Ela se inclinou e deu um beijo em seus lábios. — O que Dubois tem a ver com tudo isso.

— Vernard construiu um dispositivo. Ele queria que fosse um aparelho de cura, mas em vezdisso transformou o corpo humano em um monstro indestrutível. A Mão queria o dispositivo.Louisiana enviou uma unidade de seus espiões magicamente alterados para o Mire, liderados porum homem que se autodenomina Aranha. Eles sequestraram os pais de Sophie. Custou-nos doisterços de nossa família, mas nós eliminamos os espiões de Aranha.

— Pais de Sophie?

— Aranha fundiu a mãe dela.

O choque bateu no rosto de Charlotte. Foi assim que Richard reagiu quando descobriu. Oprocesso de fusão fundia o tecido humano ao de uma planta, criando uma entidade simbióticacom todas as memórias do ser humano, mas sem vontade própria. Era um processo irreversível eagonizante, e havia arrancado a mãe de Cerise e Sophie.

— Gustave sobreviveu, —disse ele. — Sophie ainda tem um pai. Quando o Espelho mudounossa família para Adrianglia, eu esperava que Sophie deixasse Cotovia para trás. Ela voltou ausar vestidos bonitos e agora tem aulas de etiqueta. O resto do tempo ela treina.

— Com uma espada? —Charlotte concluiu. Ela estava começando a ter uma ideia de comoa família dele funcionava.

Richard acenou com a cabeça. — Eu nunca vi em uma criança o nível de dedicação como odela. Sophie pratica constantemente. Três anos atrás, ela não tinha o menor interesse em treinar.Se você me perguntasse naquela época, eu diria que Sophie seria uma lutadora medíocre namelhor das hipóteses. Hoje, já não tenho mais quase nada para ensinar a ela. Ela desenvolveu uminstinto assassino, é implacável, e eu me preocupo com sua falta de controle. Algo a impulsiona.

— Você acha que ela quer ir atrás dos traficantes?

— Não sei. Eu te contei sobre meu irmão. Eu tenho, tive, outro, nosso meio-irmão Erian.Ele era apenas uma criança quando meu pai morreu e presenciou a morte dele. Isso o danificouirreparavelmente. Erian escondeu por anos o que sentia, mas eventualmente seu ódio o

consumiu. Eu não quero isso para Sophie.

— E então acha que se você sair caçando e matando traficantes pode curá-la? —Charlotteperguntou.

— Não. Mas posso poupá-la da necessidade de se vingar. Ela é uma boa lutadora, mas aindaé uma criança. Se for atrás dos traficantes, morrerá. E mesmo que não morra, sair em busca devingança irá prejudicá-la ainda mais. A escravidão é uma aberração. Não deveria existir emnosso tempo, mas existe, e decidi que não permitiria. Não posso impedir isso em todo ocontinente, mas posso fazer isso em Adrianglia. Sophie nunca terá que ver o que eu vi. Eu não vou deixar as atrocidades da escravidão marcá-la ainda mais. —A voz dele degenerou em um rosnado. Ele se conteve. — Eu a autorizei ir naquele maldito barco. Fui eu quem disse: ‘Não vejoproblema nenhum. Pode ir.’

— Não tinha como você saber.

— Isso não muda o que aconteceu.

— Richard, não foi sua culpa. Também não é culpa dela. Posso levá-la para a SenhoraAugustine. Ela é minha mãe de criação no Instituto Ganer. Senhora Augustine é uma Curadorada mente, e é tão boa em curar a alma quanto eu sou em curar o corpo. Se alguém pode ajudarSophie, será ela, e o fará.

— Não tenho certeza se Sophie quer ajuda. —A desconfiança era típica de sua família. Elesnão confiavam em estranhos.

Charlotte ergueu os braços. — Claro que ela não quer ajuda. Nenhum de nós quer ajudaquando temos quinze anos e o mundo nos vitimou. É por isso que temos adultos em nossas vidas,que tomam essas decisões por nós. Ela pode não querer, mas precisa. Prometa-me que assim queterminarmos, de uma forma ou de outra, você a levará para o instituto. Se nenhum de nóssobreviver, sua irmã ou Rose devem se certificar de levá-la até lá. Vou escrever uma carta. Sevocê ou Cerise levá-la, a Senhora Augustine os receberá. Promete-me?

— Eu prometo, —disse Richard.

— Vou cobrar de você.

Um gemido triste ecoou pela casa.

Charlotte piscou. — É o cão?

— Não pode ser. Nós o deixamos com os meninos. —Richard deslizou para fora da cama.— Eu volto já.

Ele desceu a escada e abriu a porta. Uma forma negra passou por ele, fedendo a pêlo

molhado e pingando água da chuva.

— Pensei que tinha me livrado de você, —ele rosnou.

O cão se sacudiu, espalhando água por todos os lados e respingando no poço de fogo,fazendo o fogo crepitar.

— Parece que ele decidiu que é nosso, —disse Charlotte do quarto.

Richard pegou a toalha que ela havia deixado no sofá e a estendeu para o cachorro. Ogrande vira-lata caiu sobre ela.

Richard subiu as escadas de volta, se esticou na cama e a puxou para mais perto. — Sua vez.

Ela ergueu as sobrancelhas.

— Diga-me por que você quase matou seu ex-marido.

Charlotte se virou de costas, olhou para o teto e suspirou.

— A barganha é um jogo justo?

— Sim.

— Fui levada para o Instituto quando tinha sete anos. Foi a única vida que conheci até os 27anos. Eu li livros sobre aventuras e amor. Flertei. Até beijei alguns rapazes.

— Impressionante.

— Ah, foi. Nos últimos anos em que vive lá, mal podia esperar para escapar. Eu planejavaviajar e ter todas as aventuras que poderia desejar. —Ela suspirou novamente. — Aos vinte esete anos, recebi minha concessão de terras, minha casa e meu título de nobreza pelos dez anosde meus serviços ao reino. Eu me mudei e logo percebi que não tinha ideia de quão grande omundo realmente era. Eu ia viajar, realmente ia, mas a casa precisava de reforma e o jardimprecisava ser cuidado, e havia bons livros ...

Ela arregalou olhos para ele.

— Você estava com medo, —ele adivinhou.

Charlotte acenou com a cabeça. — Tive todo o treinamento e a confiança de que precisava,mas simplesmente não conseguia fazer nada com isso. E então Elvei Leremine entrou na minhavida. Ele era um Sangue-azul, perfeito, bonito ...

— Já o odeio, —disse Richard.

Charlotte sorriu, uma triste separação de lábios sem humor. — Fiquei obcecada com a ideiade me apaixonar e ter uma família. Ali estava meu príncipe, tão atencioso, tão seguro. A coisatoda parecia um atalho perfeito para a felicidade. Em vez de conhecer outros homens e aprender

a lidar com a rejeição, encontrei imediatamente o marido ideal e me casei com ele. Fui estúpida.Elvei estava esperando herdar as terras de sua família, enquanto isso não acontecia decidimosque seria melhor se ele viesse morar comigo. Ele começou a falar de filhos imediatamente.Tentamos por seis meses e Elvei ficou cada vez mais alarmado quando eu não engravidei. Então,finalmente, procurei ajuda profissional. Por mais um ano e meio, adiei o inevitável. Procurei osmelhores Curadores que conhecia. Passei por todo tipo de procedimento médico, lembrar dessesprocedimentos ainda me dão pesadelos. Recusei-me a desistir. Sempre fui ensinada que se vocêse esforçar o suficiente, alcançará o que deseja. Eu li todos aqueles livros românticos, onde umamulher não consegue engravidar, então ela encontra o homem certo, e o poder do amor acabasuperando todos os problemas, e magicamente ela engravida de trigêmeos lindos. Minha curamágica estava chegando, eu tinha certeza disso.

Charlotte se virou e olhou para ele. — Eu sou estéril, Richard. Irreversivelmente. Nuncaterei um filho. Não há cura.

— Sinto muito, —disse ele.

Ela hesitou. — Isso é importante para você? Eu nunca poderei te dar um filho.

Ela estava pensando em ficar com ele. Não dê muita importância a isso, ele avisou a simesmo. Os dois vinham de mundos completamente diferentes. Ela era uma Sangue-azul, e eleuma fraude, com quase nada em seu nome.

— Há dezesseis adultos em minha família, tudo o que restou de mais de cinquenta, e quasevinte crianças, a maioria delas com um dos pais ou ambos mortos, —disse a ela. — Tenhomuitos filhos para cuidar. Meu valor não está vinculado a ter um biologicamente meu.

Charlotte suspirou e acariciou sua bochecha. Os dedos dela traçaram seus lábios.

— Engraçado, se alguém tivesse me perguntado isso antes de me casar com Elvei, eu teriadito a mesma coisa que você acabou de dizer. Mas, de alguma forma, depois que me casei, abusca por um filho se tornou a coisa mais importante da minha vida. Eu me sentia deficiente. Eracomo se eu não fosse uma mulher se eu não conseguisse engravidar. Em algum lugar no meio detudo isso, percebi que Elvei precisava de um filho para que pudesse herdar a propriedade dafamília dele. Ele estava competindo com seu irmão mais novo, e estava correndo até a linha dechegada, tentando produzir um bebê saltitante para reivindicar suas terras, casa e liderança dafamília.

— Ele parece um idiota. —Quem diabos se importaria com terras e casa quando tinhaCharlotte?

Charlotte encolheu os ombros. — Eu era muito ingênua. E cega. Elvei estava sempre atento.

Ele foi comigo em alguns dos meus procedimentos. Essa jornada para ter um filho foi algo quefizemos juntos. Era uma busca que tínhamos em comum e achei que isso nos aproximaria. Naverdade, nós dois éramos culpados. Ele deveria ter deixado sua condição clara antes docasamento, e eu não deveria ter confundido a cortesia e atenção dele com amor. Eu acho que issocustou muito a ele. Elvei ficou obsessivo. Chegamos a fazer sexo em uma posição específicaporque alguém disse a ele que aquela posição facilitava a concepção. Ele me ajudava a mapearminha ovulação. Foi uma espécie de insanidade que tomou conta de nós dois. Olhando para trás,tudo isso parece ... aterrorizador.

Richard olhou para ela, sem palavras. Seu marido era um idiota. Ele queria encontrá-lo eesfolá-lo vivo. Dizer isso em voz alta, no entanto, provavelmente não era a melhor estratégia.

— No final, quando todas as opções se esgotaram, fui até ele com a notícia. Eu esperava queele me abraçasse e me dissesse que tudo ficaria bem e que ele me amava de qualquer maneira.Ele me recebeu com os documentos de anulação de nosso casamento.

Charlotte riu amargamente. — Meu mundo entrou em colapso. Eu queria machucá-lo, equase o fiz. Cheguei tão perto. —Ela segurou o indicador e o polegar separados por um fio decabelo.

— O que a fez parar? —Richard perguntou.

— Era errado, —disse ela simplesmente. — Eu era uma Curadora. Deveria curar as pessoas,não machucá-las simplesmente porque elas esmagaram meu coração.

E é por isso que Charlotte sempre seria o raio de luz na escuridão dele. Richard precisavadela. Ele não podia deixá-la ir. Ele tinha que lutar para não estragar tudo.

Charlotte fechou os olhos. — Nós, Curadores, temos dois lados em nosso poder: um ladocura, o outro mata. Somos condicionados a usar apenas um desses lados. Há um mantra emnosso treinamento que é repetido tantas vezes que, antes mesmo de entrarmos na adolescência, játemos isso gravado em nossas mentes: não faça mal. A cura é um trabalho penoso. Você sentirácomo se sua magia fosse deixá-lo. Já fazer o mal é mais fácil. Você se sentirá poderoso e forte. Équase eufórico. Por isso não perceberá quanta magia gastou até que ela acabe, e você desmaiedramaticamente, fazendo papel de um completo idiota.

— Você pode desmaiar como quiser. Eu sempre estarei aqui para te pegar.

Ela riu.

Ele sorriu.

Charlotte se virou de lado e olhou para ele. — Duas coisas podem acontecer quandoCuradores matam. Um, eles matam usando sua própria magia, drenando suas reservas até o fim e

consequentemente morrem. E dois ...

Ela hesitou.

— Dois? —Richard perguntou.

— Eles se tornam uma praga ambulante. Gastam sua magia e antes de se drenarem até o fimpercebem que precisam de mais e começam a se alimentar daqueles ao seu redor, convertendooutras vidas em combustível para mais mortes. Deixam de ser humanos. A primeira vez quematei, quando infectei Voshak e seus traficantes, não tinha certeza se tinha poder suficiente paramatar todos eles. Então eu me alimentei deles. Você não tem ideia de como foi maravilhoso.

A voz dela tremeu.

— Você tem medo disso, —ele adivinhou. O alarme gritou na parte de trás de sua cabeça.Richard tinha certeza de ter lido um artigo descrevendo algo muito semelhante alguns anos atrás.O livro afirmava que era uma sentença de morte para o usuário de magia.

— Sim. Desde então, não tenho alimentado a minha magia. Depois de começar, a tentaçãode continuar é muito forte. Todos os outros que matei, fiz usando as minhas próprias reservas.Na mansão da contadora, quando estava perto do meu limite, senti a sua magia. Eu podia sentirsua força vital. Isso me deixou com fome. —Ela tocou seu rosto. — Você está assustado?

— Não. —Ele não tinha medo dela, estava com medo por ela.

Charlotte pigarreou. Sua voz estava baixa. — Algumas pessoas acham que são melhores do que outras no que fazem. Eu não acho, sei que sou. Sou a Curadora mais poderosa da minha geração. Eu não me tornaria só uma Portadora da praga, iria desencadear uma pandemia nestemundo. Eu me tornaria uma morte em vida. Prefiro gastar toda a minha magia e morrer do quematar milhares de pessoas.

Charlotte fechou os olhos. — Eu nunca deveria ter feito isso. Mas precisa entender, lá naclareira eu vi você na jaula, preso e ferido, e eles estavam se divertindo como se estivessem emum piquenique. Isso me deixou com tanta raiva. Drená-los parecia a única maneira, e eu fiz isso.Eu conhecia os riscos, só não acreditava o quão forte era a atração da magia.

— Você estava em choque, —ele disse a ela. — Acredite em mim, eu estava lá. Vi seurosto.

— Isso não é uma desculpa. Muitos Curadores desaparecem após alguns anos. Sempre acheique fosse porque eles se esgotavam. Mas talvez não. Talvez eles sucumbam em vez disso etenham que ser abatidos como cães raivosos.

— Pare, —ele disse. — Não faça isso consigo mesma. Você não será abatida. Eu não vou

deixar ninguém tocar em você.

— Richard, se eu me perder, você precisa me impedir. —Os lábios dela tocaram os dele,quentes e macios, e ele saboreou seu gosto. — Eu sei que é pedir muito, mas me prometa.

Algo dentro dele ficou morto e frio com o pensamento. — Eu cuidarei disso.

Ele faria isso porque ela pediu. No mínimo, tentaria.

Richard passou os braços em volta dela e a puxou para si, desejando que pudesse protegê-lade tudo, desejando que pudesse mantê-la segura. Homens, criaturas, bestas, ele poderia acabarcom todos eles. Mas como alguém poderia lutar contra a magia? Não se pode cortar a magia,nem matá-la, e se isso tirasse Charlotte dele, não havia nada que ele pudesse fazer.

Charlotte o abraçou, deslizando ao lado dele. — Parece que temos algum tipo de romancedistorcido aqui.

Ele forçou um sorriso. — Não sei. Pode ficar pior.

— Como?

— Ainda temos uma batalha pela frente. Mas poderíamos simplesmente desistir.

— Não podemos desistir, —disse ela. — Se fizermos isso, tudo o que fizemos até agora terásido em vão.

— Sua magia luta com você por controle?

— É quase como se tivesse vida própria. Eu a imagino como uma besta escura ou um ninhode cobras. Às vezes dorme, como agora, perfeitamente contente. E então eu a uso, e a bestaacorda e arranha por dentro, tentando rasgar seu caminho para fora.

— Eu gostaria que você tivesse me contado antes. —Ele a apertou mais perto e beijou seuslábios. Ela tinha um gosto tão doce. — Eu não deveria ter pedido a você para matar a tripulaçãodo navio. Não deveria ter deixado você sair daquele navio, ponto final.

— Você não pode me dizer o que devo ou não fazer. —Ela sorriu.

— Sim, eu posso. Você prometeu me obedecer.

Ela rolou e subiu nele, seu rosto cheio de travessura. — E se eu desobedecer, oh poderosoSenhor Richard, o que fará?

— Não faço ideia. Acho que vou rosnar de uma forma feroz e viril. —Ele colocou os braçosatrás da cabeça. O cabelo dela caiu sobre o seio esquerdo. Seu seio direito estava nu, perfeito eglorioso com a ponta de um mamilo pequeno e escuro, quase rosa contra sua pele macia e pálida.

Charlotte era tão linda. Richard ficou surpreso por ela deixar que ele a tocasse. Só o fato

dela estar aqui, ao lado dele, era algum tipo de milagre do universo.

— Você está cobiçando meus seios.

Ele ergueu as sobrancelhas. — Claro.

Ela se inclinou sobre ele, seus cachos caindo ao redor deles como uma cortina cintilante. Osmamilos dela roçaram seu peito, picos frios contra o calor de seu corpo. Richard sentiu o cheirodelicado de frutas cítricas de seus cabelos úmidos.

— Você tem medo de que se amar irá torná-lo mais fraco, Richard? —Ela sussurrou.

— Não. —Ela não tinha ideia do quanto ele a queria. Se alguém agora lhe oferecesse umagarantia de que Charlotte ficaria com ele em troca de se afastar de sua missão, ele não tinhacerteza de qual seria a resposta dele.

Você se apaixonou muito forte e rápido, seu idiota.

Não, amá-la não o tornava mais fraco. Só o deixava mais desesperado.

— Você é minha, —disse ele, e passou os braços em volta dela. — Eu não tenho nenhumaintenção de deixá-la ir.

Ela sorriu, um sorriso perverso e sexy.

— Estou falando sério, —ele disse a ela. — Você não irá escapar.

O lado lógico dele avisou que a esperança de um futuro juntos só iria atrapalhá-los. Isso osfaria hesitar. Isso faria com que eles evitassem o perigo e abandonassem a cautela pelo bem umdo outro. Eles foram capazes de fazer o que tinham que fazer precisamente porque cada um delesnão tinha nada a perder. Mas isso já não era mais possível, então ele deixou a lógica de lado. Nãoajudaria.

— Talvez eu não queira escapar. —Ela pegou seu lábio inferior entre os dentes, puxousuavemente e o soltou. Seus olhos estavam luminescentes. — Meu nobre espadachim mortal.

Ele estava tão duro que isso estava o deixando louco.

— Eu quero você de novo, —ela sussurrou. — Posso tê-lo de novo?

Ele a rolou de costas e a imobilizou. Ela arregalou os olhos. — Oooh, estou presa. O que vaiacontecer comigo?

Ele se abaixou, saboreando a suavidade do corpo dela sob ele. — Deixe-me te mostrar ...

OnzeCHARLOTTE VARREU O CHÃO DA CABANA,EMPURRANDO A POEIRA e as minúsculas partículas das cinzas em uma pilhaorganizada. Passaram-se três dias desde que chegaram à cabana. Richard chamava de seu Covil,mas mesmo os covis precisavam de limpeza de vez em quando. Três dias de nada além deconversa, refeições saborosas e sexo. Sexo incrível e desenfreado. Charlotte sorriu sozinha.

Um delicioso aroma de carne assada subia da cozinha, acompanhado do chiado da comidaem uma frigideira quente. Ela não tinha certeza do que Richard estava cozinhando no café damanhã, mas o que quer que fosse, tinha um cheiro divino.

Richard gostava de cozinhar, ela descobriu.

Um leve assobio anunciou a chegada de uma charrete. Richard estava esperando alguém?

— Viemos em paz, —uma voz masculina anunciou do lado de fora. — Não atire em nós.

Richard se afastou do fogão. — É meu irmão.

— Vou abrir para ele, —disse ela.

Charlotte destrancou a porta e a abriu. Um homem de trinta e poucos anos estava navaranda, carregando uma pasta de couro muito grossa. A semelhança entre ele e Richard eradefinitivamente evidente: cabelos semelhantes, exceto que Richard o penteava e Kaldar odeixava em uma bagunça desorganizada, rostos semelhantes, ambos bonitos, com mandíbulascontornadas e maçãs do rosto pronunciadas, altura semelhante. Mas ainda assim eramdiferentes. As feições de Richard tinham nobreza e orgulho, enquanto Kaldar era bonito de umaforma malandra, com um brilho selvagem nos olhos e um sorriso encantador. Ela tinha asensação de que Kaldar sorria com frequência e mentia facilmente, enquanto cada um dos rarossorrisos de Richard era um milagre.

Kaldar piscou. — Quem é você?

— Charlotte, —ela disse a ele.

— Prazer em conhecê-la. Diga-me, Charlotte, você viu Richard? Um sujeito taciturno quasetão alto quanto eu, mas muito mais feio e mal-humorado?

— Muito mais feio?

— Bem, talvez não muito mais feio, mas definitivamente mais mal-humorado. O problemadele é que ele pensa demais. Isso o impede de aproveitar a vida. Você o viu?

— Ele está cozinhando lá dentro.

— Cozinhando? Ele odeia cozinhar.

Kaldar passou pela soleira e desviou para a esquerda, se abaixando. Uma faca cravou nobatente da porta, onde a cabeça de Kaldar estava a um momento atrás. Kaldar passou os dedos nalâmina da faca. — Está vendo? Mal-humorado.

— Do que você está falando? —Richard ergueu as sobrancelhas. — Eu achei a suaexpressão de medo muito engraçada.

— Quem é você e o que fez com meu irmão?

Um jovem entrou depois de Kaldar pela porta. Um casaco de corte impecável envolvia seucorpo esguio, e ele se movia com a elegância casual que tantos Sangues-azuis se esforçavam paraalcançar nas aulas de dança. Caminhava com graça flexível, mas com certa segurança, não umdançarino, mas sim um espadachim.

Seus cabelos loiros, cortados longos, que geralmente era típico de um mago, acentuavam odesenho preciso de seu rosto, ainda com toques de feições juvenis. Ele se virou para ela. Olhosazuis familiares a encararam de um rosto que já era impressionante, mas em poucos anos seriadevastador.

— George? —Ela ofegou.

— Bom dia, minha senhora. —Ele pegou a vassoura dela. — Deixe que eu termino isso.

Charlotte tentou reconciliar o menino imundo, que ela conheceu durante a missão deles,com o perfeito príncipe de Sangue-azul que estava agora na sua frente e falhou. As peçassimplesmente não se encaixavam.

— Isso é uma tragédia, não é? —Kaldar balançou a cabeça em falsa resignação. — Olha otamanho da competição com a qual tenho que lidar. Agora, mulheres com menos de 25 anos nemme notam mais quando eu o carrego por aí.

George revirou os olhos.

— Você é casado, —lembrou Richard.

— Eu estava reclamando em um sentido puramente hipotético. —Kaldar se virou paraRichard. — O que está cozinhando? Tem o suficiente para todo mundo?

— Ninguém vai ficar sem comer, não se preocupe. —Richard puxou a frigideira com ummovimento brusco. Uma panqueca voou no ar e voltou para a frigideira.

— O mínimo que você pode fazer é me alimentar. Eu trouxe as informações que vocêqueria. —Kaldar balançou a pasta. — Minha esposa roubou de nossa ilustre agência de

espionagem, e passamos a noite toda copiando tudo isso à mão, antes de levarmos de volta aoEspelho ...

— Ele tem um copiador de imagens em sua casa, —disse George. — Demorou menos demeia hora para copiar tudo.

— Criança traidora. —Kaldar largou o arquivo no balcão. — Um presente para meu mal-humorado irmão mais velho. —Kaldar fez uma reverência floreada com a mão e um pedaço depapel apareceu em seus dedos do nada. Richard largou a colher de pau e abriu o papel. O rostode Richard não mostrou nada. Ele olhou para ela por um longo momento e depois passou o papelpara ela.

Era a imagem de Richard capturada por um gerador de imagens e impressa em papel, com apalavra CAÇADOR escrita no topo. A foto o pegou em um momento de batalha. Ele tinhaacabado de balançar a espada e o corpo à sua frente ainda estava caindo. Respingos de sanguemanchavam sua pele. Seu cabelo chamejava, movendo-se com o impulso de seu golpe. O rostodele parecia sereno.

— Onde você conseguiu isso? —Richard perguntou.

— Passei por Rodera por acaso, enquanto procurava as informações que você me pediu.Rodera é uma cidade grande, e eu fiz uma excursão nas periferias e levantei algumasinformações. Os traficantes estão distribuindo essa imagem. Você está encrencado. Quantasvezes já te disse para usar máscara? Por que nunca me escuta?

Meia hora depois, quando terminaram a omelete que Richard fez, Kaldar havia feito pelomenos dez piadas, contado uma história engraçada sobre sua esposa e zombado do embaixadorda Louisiana. Ela entendeu por que Richard ficava um pouco tenso quando mencionava seuirmão. Eles eram polos opostos. Kaldar era a vida louca em pessoa, o homem não tinha a mínimavontade de explorar as virtudes da dignidade e da contenção, enquanto Richard não fazia questãode impressionar ninguém com sua inteligência ou chamar a atenção para si mesmo.

— Acho que devemos começar, —disse Kaldar.

George arrastou um grande quadro de cortiça portátil à vista.

A alegria sumiu do rosto de Kaldar. — Muito bem, vamos lá.

Ele abriu o arquivo de couro e começou a fixar imagens no quadro, cinco ao todo. Charlottesentiu uma pontada de arrependimento. Ela ainda via Tulip em seus sonhos, mas agora, quandoacordava, Richard a abraçava, e a sensação de deitar ao lado dele era indescritível. Richard nuncadisse isso, mas a maneira como a olhava, a maneira como a ouvia, a maneira como eles davamprazer um ao outro a fazia se sentir amada, e bem no fundo, uma pequena esperança patética

surgiu em sua mente. Charlotte se odiava por essa esperança. A esperança prejudicaria adeterminação na missão deles. Esse tipo de missão exigia sacrifícios. Ambos sabiam disso.Ambos concordaram em aceitar. Mas cada momento que ela o tinha para si parecia um presente.Agora essa esperança estava morrendo, e a agonia de sua morte lhe trouxe ao mesmo tempoalívio e um medo nauseante.

— Senhor Casside.

Kaldar apontou para a primeira imagem. Um homem de cabelos escuros com um perfil forteos encarou de volta.

— Um nobre de baixa posição social, do ramo menos conhecido da família Dweller. Filhoúnico. Parece que conquistou sozinho sua fortuna. Cerca de cinco anos atrás, ele silenciosamentecomeçou a liquidar seus ativos e investir todo o seu dinheiro na Blackwolf Importações eExportações.

— Blackwolf? —Richard fez uma careta.

— Não é realmente um cara imaginativo. —Kaldar bateu na foto. — Você estava certo, apropósito. Altura, peso, cor da pele e dos olhos. Tudo é consistente. Se não fosse pelo nariz epelo queixo, ele poderia fazer parte da família.

— Que família? —Charlotte perguntou.

— Nossa família, —disse Richard. — Vou explicar em um minuto.

— Depois temos Conde Maedoc.

Kaldar bateu na segunda foto. Nele, um homem mais velho olhava carrancudo, feições durase olhar direto. Seu cabelo grisalho estava cortado rente ao couro cabeludo e seus olhossemicerrados pareciam hostis.

— Veterano do Exército de Adrianglia, condecorado, elogiado, respeitado. Ele supervisionao recrutamento de novatos. Também fornece novos homens para o tráfico.

— A posição de Supervisor de recrutamento o permite que reprove aqueles que não sãoadequados para o serviço militar, —disse George. — Os homens reprovados, mas que elepercebe que possuem inclinação para o sadismo, por exemplo, são conduzidos para os bandos detraficantes.

— Senhora Ermine.

Kaldar tocou na próxima imagem. Uma mulher de quase trinta anos. Estrutura ósseadelicada, cachos de cabelos caramelos, olhos estreitos, mas uma cor rara e muito apreciada: umverde claro translúcido.

— Outra investidora. Senhora Ermine também tem um interesse especial por escravas. Elaseleciona várias a cada temporada e as treina para aumentar o valor delas.

— Como você sabe disso? —Richard perguntou.

— O Espelho tem uma lista que a Senhora Ermine esqueceu em seu quarto em uma dasfunções do estado. A lista detalha as compras de itens pessoais para sete mulheres com diferentestamanhos de roupas, incluindo roupas intimas e várias coisas inadequadas, mas divertidas. Hátambém prescrições detalhadas para a compra de Erva Bane ...

Esses bastardos.

—... que aparentemente é uma erva ...

— Usada como meio de controle de natalidade. —Charlotte gritou, furiosa. — Se a dose forgrande o suficiente, pode causar danos ao revestimento do útero, tornando a mulher infértil. —Eles estavam roubando a fertilidade das escravas para evitar descendentes inconvenientes.Charlotte era infértil e entendia a enormidade das perdas dessas mulheres. Ela esmagaria essa talde Ermine como um verme sob seu sapato.

— Isso mesmo, —disse Kaldar. — Os nomes da lista sugerem que as mulheres são doBroken. Havia uma Britney, um nome que não é comum por aqui, e também havia umaChristina, que é um nome especificamente do Broken.

Bom argumento.

— Por quê? —George perguntou.

— Porque o nome Christina é derivado da palavra ‘cristão’, —disse Charlotte. — NoBroken, Jesus Cristo é visto como o filho de Deus, e seus seguidores são chamados de cristãos.No Weird, é John, o Nazarite, cujos seus seguidores são chamados de nazaritos. No Weird, umaChristina se chamaria Johanna.

Kaldar encolheu os ombros. — É claro que pelo menos algumas mulheres nessa lista vieramdo Edge, se não do próprio Broken. Não há nenhuma razão lógica para uma Angelica fazer partedessa lista, e quando um agente secreto do Espelho, fingindo ser um servo, tentou devolvê-la, aSenhora Ermine afirmou que nunca tinha visto a lista antes. O Espelho colocou a lista no arquivoda Senhora Ermine como uma raridade. Agora que sabemos que ela está ligada ao comércio deescravos, faz muito mais sentido.

Richard estava olhando para a imagem de um homem loiro e bem cuidado, com traçosmarcantes e um corte de cabelo excessivamente elaborado. O olhar de Richard tinha um toquepredatório. — E esse?

— Barão Oleg René. —Kaldar cruzou os braços. Seu rosto tinha ganhado um tominesperado e cruel. — Você não vai acreditar de quem ele é parente. Viu a semelhança?

— Aranha. —Richard cuspiu a palavra como se fosse veneno.

— Um primo distante. Que tal isso?

Os dois homens olharam para aquela foto, o ódio em seus rostos tão semelhante, elespareciam gêmeos.

— O mesmo Aranha que matou a mãe de Sophie? —Charlotte perguntou.

Kaldar acenou com a cabeça. — René é filho da meia-irmã mais nova de Aranha, o ramoAdriangliano da família. Por causa dessa conexão inconveniente, René foi colocado na listanegra do serviço militar, do Departamento de Políticas Internas e do Corpo Diplomático.

— O que ele faz? —George perguntou.

— Artes, esportes e entretenimento, —disse Kaldar. — Ele viaja pelo país trabalhandocomo um famoso planejador de eventos. Organiza festivais, torneios e assim por diante. ODepartamento de Políticas Internas não tem problema com isso, desde que outra pessoa forneçasua segurança. Ele é muito bom nisso, aparentemente.

— Ser um planejador de eventos é muito conveniente. Ele consegue andar pelo paíspraticamente livre, —disse Richard.

Kaldar acenou com a cabeça. — Estou pensando que eles o usam comocomprador/espião/consertador de problemas.

Kaldar voltou-se para a última fotografia. Nela, um homem de quarenta e poucos anosolhava para o mundo com olhos castanhos. Ele era bonito, mas sua beleza masculina era umpouco áspera para ser considerada perfeita, e essa ligeira aspereza apenas aumentava seu apelo.Sua expressão era digna, mas sem fingimento. Um sorriso envolvente brincava em seus lábios eolhos, proclamando em voz alta que este homem era digno de lealdade porque era bom e faria acoisa certa. Seu poder era tão pronunciado que Charlotte se sentiu tentada a sorrir de volta.

— Visconde Robert Brennan, —disse Kaldar. — A cabeça principal desta hidra56

distorcida.

Kaldar se sentou. — Como você pretende pegá-los?

— Precisamos de uma confissão, —disse Richard. — Ou, pelo menos, uma admissão deculpa.

— Brennan é um osso duro de roer. —O rosto de Kaldar ficou sério. — Não é só porque eleé primo do rei. Ele também é popular. As senhoras de Sangue-azul o acham adorável, e os

homens acham que ele é um homem digno de admiração. É atlético, charmoso, engraçado etodos o amam. Você estará lutando contra a maré da opinião pública.

— Então teremos que virar essa maré contra ele, —disse Richard.

— Como diabos vai fazer isso?

— Por que não podemos simplesmente matá-lo? —George perguntou.

— Porque se o matarmos, a organização do tráfico não acabara, —disse Richard. — Penseem uma monarquia. Um rei morre, outro toma seu lugar, mas a instituição sobrevive.

— Richard está certo. —Charlotte se levantou.

Os dois homens e um menino imediatamente se levantaram.

— Por que você se levantou? —Ela perguntou a George.

— Você é uma mulher, —respondeu George.

— Sim, mas qual é o motivo?

— Não sei.

— Você se levantou porque centenas de anos atrás, quando uma mulher entrava em umasala cheia de homens, ela não estava exatamente segura. Especialmente se fosse bonita ou rica. Amagia em nós mulheres é tão mortal quanto a magia nos homens, mas fisicamente, um homem égeralmente mais forte do que uma mulher, então, quando uma mulher entrava na sala, os homensque a conheciam se levantavam para indicar que a protegeria do perigo. Vocês três acabaram dese declarar meus protetores.

Eles olharam para ela.

— Uma mulher moderna dificilmente corre o risco de um ataque direto, —disse Charlotte.— Então, por que os homens ainda se levantam?

George franziu a testa.

Charlotte sorriu para Kaldar. — Você sabe, não é?

— Nós nos levantamos porque as mulheres apreciam o gesto. —Kaldar deu um tapinha noombro de George. — Você não vai querer parecer um caipira mal-educado na frente de umagarota. E se você se levantar, ela pode notá-lo e se sentir segura em se sentar ao seu lado.

— Exatamente. Não existe nenhuma lei que diga que os homens devem se levantar, mashomens muito educados ainda o faz porque as mulheres gostam dessa demonstração de atenção.É tão arraigado na natureza deles que, quando eu conheci Richard, ele se recusou a se sentarantes de mim, mesmo estando meio morto na época.

Richard pigarreou. — Isso é um grande exagero. Eu estava um quarto morto, no máximo.

Kaldar girou na direção de Richard e olhou para o rosto de seu irmão. — Foram duas piadas em menos de uma hora. Você está se sentindo bem? —Ele perguntou baixinho. — Alguma febre?

— Estou bem. Sai da minha frente.

Kaldar olhou para ela, depois de volta para Richard e novamente para ela.

Charlotte se sentou. Os três homens se sentaram.

— A monarquia sobrevive porque os Sangues-azuis gostam de viver sobre a falsa liderançade um monarca, —disse ela. — A maioria dos Adrianglianos aprovam a monarquia. É uma ideiaque os atrai em algum nível. Todos sabem que o rei tem menos poder do que a Assembleiacoletiva ou o Conselho e que ele pode ser derrubado. Mas gostamos de fingir que ainda somosuma nação guerreira sob um único líder forte e idealizamos o trono e aqueles que nele ocupam.

— Ou idealizamos sermos o mais próximo possível deles, —acrescentou Richard.

— Os Sangue-azuis não temem as leis, —continuou Charlotte. — Alguns nobres aindaacham que a lei não se aplica a eles. Temem apenas o julgamento público. O público considera afamília real um modelo de virtude. Não podemos lutar contra isso, não sem esfregar os narizesdos nobres Sangue-azuis no fato de que suas longas linhagens não lhes conferem nobreza deespírito ao nascer.

Richard acenou com a cabeça. — A contadora da ilha é um excelente exemplo, ela era tãocomprometida com a lealdade a Brennan que os olhos dela praticamente brilharam ao pensarnele. Na mente distorcida dela, Brennan era incapaz de fazer algo vil.

A mente dela e de Richard corriam em trilhas paralelas. — Não podemos lutar contra osistema, —concordou Charlotte. — Mas podemos manchar a reputação de indivíduo. Paradestruir o círculo de comando do tráfico, temos que fazer Brennan admitir um ato tão vil, tão emdesacordo com o padrão de comportamento de um Sangue-azul, que a sociedade não terá escolhaa não ser julgá-lo como corrompido. Ele será visto como uma aberração, indigno de sua estirpe.Qualquer coisa em que ele se engajar se tornará impuro. Os Sangues-azuis irão destruí-lo apenaspara escapar da contaminação.

— Gosto da sua maneira de pensar, —disse Kaldar.

Richard acenou com a cabeça. — Eu concordo. O desprezo e a repulsa pública devem sertão severos que causariam gritos de indignação. Os proprietários de escravos devem reconhecerque serem descobertos os tornaria instantaneamente párias sociais. Essa é a única maneira que aorganização de tráfico de escravos pode ser extirpada.

Richard se levantou e foi até o quadro. — Brennan construiu esta organização. Ele a tornoueficiente, resiliente e lucrativa. Não sabemos por quê. Brennan não precisa do dinheiro e, se issose tornasse público, ele perderia tudo. Algo deve tê-lo compelido a criar essa organização. E issoé muito importante para ele. Quando lutamos contra a Mão, sofremos revés após revés, maspermanecemos unidos até o fim.

Um músculo se contraiu no rosto de Kaldar. — Erian.

O meio-irmão que Richard mencionou. — Não entendi, o que tem Erian? —PerguntouCharlotte.

— Nosso irmão mais novo entregou a família à Mão, —disse Kaldar.

— O que aconteceu com ele?

— Ele desapareceu, —disse Richard.

— Richard o deixou ir, —Kaldar disse a ela. — Ele viu Erian fugindo e o deixou ir. Todosnós vamos nos arrepender disso um dia, guarde minhas palavras.

— Voltemos para Brennan. Nós o faremos pensar que está sendo traído, —disse Richard. —Faremos ele pensar que haverá um golpe e que um dos outros conselheiros pretende assumir ocomando do tráfico. Isso o levará ao limite.

— Você vai precisar de pelo menos duas pessoas infiltradas para isso, —disse Kaldar. —Uma pessoa só criando problemas será muito fácil de ser descoberta. Precisa de pelo menos duaspessoas fingindo agir de forma independente. E uma dessas pessoas não poderá ser você, meuquerido irmão, porque sua cara feia já chegou à mesa de Brennan.

— Eu posso fazer isso, —Charlotte disse. — Eles não me conhecem. Eu nem mesmo tenhoque fingir ser ninguém além de mim mesma.

— Certo, já temos uma pessoa, —disse Kaldar. — Mas eu e nem Audrey poderemos teajudar. O Espelho teria nossas cabeças e, além disso, estamos de plantão. O Grande Barão deCallis vai se casar com a Marquesa Imelle de Lon em um mês. O porquê aquele velhote nãoconseguiu encontrar uma mulher Adriangliana para se casar, eu nunca vou saber. Há um reinocheio de velhinhas esperando por ele, mas não, aquele velho bode resolveu ir para a Louisianaarranjar uma esposa.

O Grande Barão nunca se preocupou em seguir as regras. Aproximadamente oitenta anosatrás, quando Rogan Brennan se sentou no trono, sua irmã Solina Brennan se casou com o CondeUlrich Hakonssen do norte da Vinlândia. Depois de Rogan, a coroa passou para seu filho Olred,o que fez o Conde Ulrich se tornar o Grande Barão de Callis, um título tradicionalmente dado aotio mais velho do rei. Como Grande Barão, Ulrich defendeu o reino, liderou o Exército de

Adrianglia e a Frota à vitória na Guerra dos Dez Anos. O rei Olred foi morto antes de produzirum herdeiro. Por causa da origem estrangeira do Conde Ulrich, Solina não pôde assumir o trono,e sua filha Gallena se tornou a monarca de Adrianglia. Agora o filho de Gallena está sentado notrono. O Grande Barão foi o pai da rainha anterior, é o avô do atual rei e de Brennan, mas ovelho manteve o título que o tornou famoso. Charlotte o tinha visto duas vezes de longe: ele eraum homem enorme e cheio de cicatrizes de batalha, famoso por sua magia, poder físico embatalha e voz estridente. Senhora Solina havia morrido quase quinze anos atrás, e agora oGrande Barão finalmente escolheu se casar novamente. Charlotte imaginou que ele não queriapassar a velhice de sua vida sozinho.

— Estarão nesse casamento os nobres da Louisiana e os de Adrianglia, —Kaldar continuou.— Todo o Espelho está em alerta máximo.

— Esse seria um excelente lugar para expor Brennan, —Charlotte pensou em voz alta.

— Concordo, mas não posso me envolver nisso. Tentei insinuar essa possibilidade paraErwin, que é o responsável pelas operações da minha unidade, e ele me cortou rapidamente. Játemos Charlotte como voluntária, precisam de mais um, —disse Kaldar. — Vocês precisam deuma sobreposição de influência. O esquema só funcionará assim. Vocês devem trabalhar deforma totalmente independente de dois ângulos diferentes em direção a um objetivo comum.

— Talvez eu possa ... —George disse.

— Não, —todos os três responderam em uníssono.

— Você tem que pensar no seu futuro, —Charlotte disse a ele. — Se falharmos, Brennantomará como missão destruí-lo da maneira mais horrível possível.

— Não só isso, —acrescentou Richard, — você é bem conhecido e bem relacionado. Secair, arrastará sua irmã, seu cunhado e seu irmão juntos. Você pode ajudar, George. Mas devefazer isso secretamente.

— Estamos sem sorte, —disse Kaldar.

— Não se eu me tornar Casside, —disse Richard.

O que?

— Repita? —Perguntou Kaldar.

— Eu o conheci, —disse Richard. — Ele não seria difícil de personificar. Você mesmodisse que há uma forte semelhança entre nós.

— Você é bom com próteses de disfarce, eu admito. —Kaldar cruzou os braços. — Masisso não será uma reunião no meio da noite em uma taverna mal iluminada. Você não se parece

com ele o suficiente para passar despercebido, e se colar aquelas merdas que você cola no rosto,ficará claramente visível nas luzes brilhantes de todos aqueles salões de baile.

— Não se estiver debaixo da minha pele, —disse Richard.

Charlotte percebeu onde ele queria chegar. — Cirurgia plástica facial?

Ele assentiu.

Charlotte olhou para a foto, comparando os dois rostos. O queixo de Richard era muitopontudo, a ponta do nariz muito baixa, suas feições muito definidas e as sobrancelhas muito altas... Não, muitas diferenças. Isso nunca funcionaria.

— Isso é insanidade. Quem irá fazer essa cirurgia? —Perguntou Kaldar.

— Dekart, —disse Richard.

Kaldar franziu a testa.

— Quem é Dekart? —Ela perguntou.

— Ele é um desertor da Louisiana, —respondeu Kaldar. — O Ducado o exilou depois queele se envolveu em algumas cirurgias criativas, e o homem escapou do exilio e correu pelafronteira para a proteção do Departamento de Políticas Internas de Adrianglia. O que te fazpensar que ele vai aceitar participar disso?

— Eu tenho acesso às finanças tanto dos Camarines quanto dos Sandines, —disse Richard.— Dekart precisa de dinheiro.

— Isso é ridículo, —ela disse a Richard. — Você vai confiar seu rosto a qualquer desertor?

— Charlotte está certa. O homem é um artista com um bisturi, mas você vai acabarmorrendo na mesa de cirurgia, —disse Kaldar.

— Não necessariamente. —Richard olhou para ela.

Não. Nem em um milhão de anos. — Esqueça.

— Charlotte ...

— Eu disse para esquecer! —Ela se levantou da cadeira. — Eu teria que te curarcontinuamente enquanto o cirurgião corta seu rosto. Olhe para o seu queixo e olhe para o dele.Significa cortar o osso vivo, Richard, e remodelá-lo. Terei que fazê-lo crescer além de sua formanatural. Você tem ideia de como isso é difícil? Já ajudei em cirurgias reconstrutivas antes. Seiexatamente o que está envolvido. O que está propondo é suicídio. Não há garantia de que possomantê-lo vivo. Na melhor das hipóteses, você ficará desfigurado. Na pior, morrerá. É muitoperigoso.

Richard simplesmente olhou para ela.

— É muito perigoso, Richard. Eu não vou fazer isso. Um deslize da lâmina, uma infecçãonegligenciada e você morrerá.

— Charlotte, —ele disse calmamente. — Você não precisa participar disso. Posso encontrarum outro Curador.

— Primeiro, se fizer isso você vai morrer com toda certeza. Segundo, nenhum Curadoraceitará participar disso. É suicídio.

— Que outra maneira há?

— Não sei, mas não assim.

— Estou disposto a correr o risco, —disse Richard.

— Eu não estou!

— Por favor, respeite a minha necessidade de justiça, —disse ele.

As palavras de Richard a açoitaram. Ela havia dito a mesma coisa quando ele tentoudissuadi-la de ir com ele. Eles concordaram em evitar que o relacionamento deles interferisse namissão. Mesmo que se não tivessem feito amor e ele fosse simplesmente um homem que elaconhecia, ainda seria contra essa cirurgia, mas não estaria no limite da histeria tentandoconvencê-lo a não fazê-la.

Mas eles fizeram amor. E estava apaixonada por ele, quer ele sentisse o mesmo por ela ounão.

As palavras saíram dela antes que Charlotte pudesse segurá-las, mas como tinha serecomposto, elas saíram calmamente, com um toque de distância. — E se eu perder você?

— Não vai me perder. Você é a melhor Curadora de sua geração.

******RICHARD ESTAVA deitado de bruços na mesa sob a forte luz estéril da lâmpada docirurgião. Desta posição, ele tinha uma excelente visão de Dekart, um homem baixo e magro,vestido com roupas de cirurgião. O rosto do homem demostrava completa concentraçãoenquanto revisava seus instrumentos. Na mesa à sua frente, um gerador de imagens apresentavao rosto de Casside, ampliado duas vezes o tamanho normal. Um gerador de imagens reproduzia aimagem de uma pessoa nos mínimos detalhes, e Dekart era muito bom no que fazia.

Charlotte estava ao lado do cirurgião. Seu rosto estava glacialmente frio, sua beleza cobertade gelo quase afiada o suficiente para cortar. Ela o encarava com o olhar mais frio que já vira.

A filha e assistente de Dekart apertou o último cinto de couro, puxando o braço esquerdo de

Richard com força contra a superfície da mesa. A fivela estalou, travando. Ele estava amarrado.

— Suicídio, —disse Charlotte.

Richard sorriu para ela.

Desde que ele apontou que ela estava pensando com as emoções, Charlotte se fechou. Elahavia discutido por três dias com uma lógica fria e perfeita, tentando convencê-lo com fatos.Charlotte explicou a cirurgia em detalhes enquanto eles se sentavam perto do fogo. Elaencontrou um livro de anatomia na prateleira e detalhou como um bisturi pode facilmente causardanos. Ela o informou sobre o risco de dor crônica persistente como consequência de ter os ossosremodelados e os nervos danificados. E quando fizeram amor, ela o deixou sem fôlego. Charlotteestava tentando dar a ele um motivo para desistir da ideia.

Ela não tinha ideia de que fazendo isso só piorava as coisas. Richard queria mantê-la longede usar o lado sombrio de sua magia a qualquer custo. Ele havia bolado um plano que poupariaCharlotte do perigo. Ela não teria nenhum motivo para matar ninguém. O plano dependia dele tero rosto de Casside, então ele ouviu tudo o que ela disse e reconheceu a total validade dosargumentos dela, mas se recusou a ceder.

Dekart começou a desenhar linhas no rosto de Richard, segurando um pincel com as mãosenluvadas. — Quão apta você é na cura, minha senhora? —A voz de Dekart era suave etranquila. Um leve sotaque da Louisiana matizava suas palavras.

— Eu sou a Curadora, —disse Charlotte em um tom enérgico.

— Entendo que você é uma Curadora, —ele disse.

— Não ‘uma’. ‘A’, —disse ela.

Dekart olhou para ela. — Perdoe-me, se eu não acreditar em você. A Curadora anterior fezmuitos milagres, mas está aposentada. Nunca mais ninguém ouviu falar dela. Ainda assim, vocêdeve ter alguma habilidade, já que meu paciente deposita tanta confiança em suas mãos. Essetipo de cirurgia é ... bastante apavorante. Peço que você se contenha em curá-lo até eu pedir, ouirá curar prematuramente as mudanças que farei.

Charlotte fixou em Richard um olhar mortal. — Se morrer, eu irei atrás de você, Richard.Não espere uma vida-pós-morte pacífica.

Deve ser doloroso para ela, ele percebeu. Se as posições estivessem invertidas e elaestivesse deitada na mesa, enquanto ele era forçado a ver o rosto dela ser cortado, ser forçado alimpar seu sangue, ele poderia fazer isso?

— Dekart, dê-nos um minuto.

O cirurgião encolheu os ombros e saiu levando sua assistente.

— Teve um momento de lucidez? —Ela perguntou. — Devo desfazer os cintos?

— Perdoe-me por obrigá-la a fazer isso. Deve ser difícil para você. —Ele não podia deixá-lasaber o porquê precisava fazer isso. Se ele morresse, Charlotte nunca se perdoaria.

As sobrancelhas estreitas dela se ergueram. — Tenha cuidado, Senhor Mar. Primeiro vocêignora meu conselho, agora me insulta. Garanto-lhe que ver carne viva cortada por um cirurgiãonão é nenhuma novidade para mim. Contrariamente às suas expectativas, você não é tão especial.

Charlotte estava furiosa com ele. — Se eu pudesse trocar de lugar com você, eu trocaria ...

Os olhos dela brilharam de raiva. Ele claramente disse a coisa errada.

Charlotte estendeu a mão e o esbofeteou.

— Se pudesse trocar de lugar comigo, eu morreria na mesa de cirurgia. Você depositou aresponsabilidade por sua sobrevivência em meus ombros, contra a minha vontade. Não meofereça banalidades vazias. —Ela se afastou dele e saiu de seu campo de visão. — Ele estápronto.

A porta se abriu. Um momento depois, Dekart apareceu sobre ele. — Por favor, Curadora,não machuque o paciente. Se sentir necessidade de machucá-lo, faça-o gentilmente em outraspartes do corpo.

— Vou curá-lo antes de você começar, —foi a resposta gelada dela.

Uma agulha fria perfurou o braço dele.

— Vou contar até dez, —disse Dekart. — Quero que repita os números depois que eu osdisser. Dez.

— Dez.

A sala ficou confusa. — Nove.

— Nove.

— Oito. —A voz de Dekart soou como se estivesse vindo de uma grande distância.

— Oito, —sussurrou Richard.

— Sete.

A luz apagou. Tudo escureceu.

******

— OLHE PARA MIM.Uma voz o chamou. Richard nadou na direção da voz através da água incolor sem fim. Ele

não tinha certeza de quem era a voz, mas ela o despertou e agora ele se movia. Uma pequenaparte dele se perguntou por que não estava se afogando e onde estava a superfície, mas essasperguntas eram banais e não precisavam de sua atenção agora.

Abaixo dele, a escuridão se abriu, estendendo a mão para ele, seus longos tentáculostorcidos, prontos para enrolá-lo e puxá-lo para baixo. Richard sabia que não era a morte. A mortenão estava perto. Era outra coisa. Enquanto nadava, sentia essa coisa escura fria, se espalhandopelas águas abaixo. Cheirava a sangue, ele percebeu.

Richard não teve medo disso. Ao contrário, parecia familiar, como se fosse uma parte dele.

— Richard?

Charlotte ... Ele girou na água procurando por ela. Onde você está, amor? A água seespalhava por todos os lados dele, uma eternidade transparente.

— Volte para mim, Richard.

Estou tentando. Estou tentando, meu amor. Estou procurando por você.

— Volte para mim.

Ele sentiu um calor tocar em sua pele e se virou em direção a isso. Um brilho douradoluminescente inundou a profundidade cristalina. Ele nadou para dentro desse brilho.

A escuridão o perseguiu. As restrições de gelo de seus tentáculos envolveram suas pernas.Puxou, mas a luz o ancorou, recusando-se a deixá-lo ir.

— Volte para mim, Richard.

Eu te amo, ele queria dizer a ela. Não me deixe ir.

— Volte.

Ele foi puxado para baixo com mais força. A escuridão se espalhou. Os fragmentos rasgadosde seus tentáculos queimaram a pele dele, longas marcas pretas. Richard sabia que essas marcasestariam lá para sempre. Ele chutou as pernas com tudo que tinha e nadou para a luz.

Seus olhos se abriram e viu Charlotte inclinada sobre ele, os olhos dela luminescentes. Ela osalvou. Richard queria dizer a ela, mas a dor reivindicou sua boca, acumulando em suamandíbula.

Charlotte pegou a mão dele e beijou seus dedos. Ele percebeu que os cintos de restriçõeshaviam sumido.

Dekart estava encostado ao carrinho de instrumentos. O homem parecia que iria desmaiar aqualquer momento.

Richard lutou contra a dor. — Como foi?

— Meu melhor trabalho, —disse o cirurgião. Ele se afastou do carrinho e fez umareverência para Charlotte. — Foi uma honra, minha Senhora.

— Para mim também, —ela disse a ele.

Dekart deu meia-volta e saiu da sala.

Charlotte se inclinou sobre ele. Richard viu as lágrimas nos olhos dela e abriu a boca.

Ela colocou a ponta dos dedos nos lábios dele.

— Fique quieto, —Charlotte sussurrou, e o beijou. Ele sentiu o gosto de lágrimas edesespero em seus lábios. Ela se agarrou a ele por um longo momento e o soltou, puxando suacompostura como uma máscara. Ele quase desejou que ela não tivesse feito isso.

— Você quer um espelho? —Charlotte perguntou.

— Sim.

Ela acenou com a cabeça para a mão que ele segurava. — Precisa me soltar.

— Não.

Charlotte sorriu de volta para ele e se sentou em uma cadeira. Dez minutos depois, elefinalmente se convenceu que ela não desapareceria e soltou a mão dela. Charlotte trouxe umespelho. Um homem estranho olhou para ele. Ele ainda podia ver as velhas sombras de simesmo. Seus olhos eram os mesmos. Possivelmente suas sobrancelhas e até mesmo sua testa. Oresto pertencia a Casside.

— Não sou eu, —disse ele.

— Isso é o que você queria, —lembrou Charlotte.

— Isso te incomoda?

— Seu novo rosto?

Ele assentiu.

Ela suspirou. — O que me incomoda é o fato de que você arriscou sua vida por isso. Masnão me importo com quem seu rosto parece, Richard.

Ele percebeu que a amava, dolorosamente, intensamente, com o desespero de um homemmoribundo, mas ávido por cada último momento da vida.

doze

LÁBIOS QUENTES TOCARAM SUA BOCA.Charlotte abriu os olhos. Ela tinha adormecido no sofá ao lado da fogueira. A maratona de

cura havia cobrado seu preço. A fadiga cobria seu corpo. Ela tinha a noção absurda de que acobria como um cobertor, drenando sua força vital a cada respiração que dava.

Richard estava olhando para ela. Charlotte estendeu a mão e tocou o novo rosto dele,sondando por qualquer sinal de infecção. Estava tudo bem.

— Dói?

— Não.

Dekart era realmente um artista com um bisturi. O que ela e o cirurgião realizaram juntosnão foi nada menos que um milagre. O rosto de Richard se assemelhava ao de Casside comincrível precisão, mas onde os olhos do outro nobre eram cautelosos, os de Richard erambrilhantes de inteligência, dando às feições de um Sangue-azul perigoso. As feições originais deCasside pareciam taciturnas, melancólicas e pessimista, mas agora, esse rosto, iluminado pelointelecto e pela força de Richard, se tornou feroz—não apenas bonito, mas masculino e forte, orosto de um guerreiro e um líder. Era uma pena que Casside não aproveitou os dons que anatureza lhe dera.

— Deve tentar se parecer menos com você mesmo, —disse ela, acariciando a bochecha deRichard com a ponta dos dedos. Ele ainda era dela, não importava de quem era o rosto.

Richard pegou os dedos dela e os beijou. — Quando chegar a hora, eu vou. Quer caminharum pouco?

— Depende do tamanho dessa caminhada.

— Até a porta dos fundos. Há alguém que eu gostaria que você recebesse.

— Acho que posso fazer isso.

Charlotte se levantou do sofá e o seguiu até o fundo, passando pela mesa cheia de pilhas depapel e cristais precisamente organizados. Dias examinando os documentos valeram a pena.Passaram a chamar os nobres Sangues-azuis de ‘os Cincos’ e descobriram muitas coisas sobreeles. Agora sabiam de muitos detalhes da vida de cada um deles e no final formaram o plano. Amudança do rosto de Richard foi a primeira parte desse plano. A parte dela envolvia fazeramizade com Senhora Ermine. Desempenharia sua parte com prazer, Charlotte refletiu. Se

tornaria a melhor amiga e confidente da mulher, faria de tudo para o plano deles ter sucesso. Elaprecisava quer isso tudo acabasse e pudesse apagar essa parte de sua vida como a chama de umavela suja.

— Depois que eu tomar o lugar de Casside, não poderei mais cuidar de você. —Richardparou na porta dos fundos e pegou uma laranja da travessa de frutas no balcão da cozinha.

— Não sou uma vulnerável, —ela disse a ele.

— Sim, mas você não pode usar sua magia em público sem correr o risco de ser presa. Evocê não tem reflexos de lutador.

Charlotte não discutiria com ele. Richard estava certo. Ela poderia facilmente matar emgrande escala, mas um lutador comum iria derrubá-la. O tempo de reação dela não era aguçado osuficiente. Sua jornada pela ilha tinha demonstrado isso.

— Um guarda-costas seria uma adição bem-vinda, —disse ele.

— Não posso estar no meio social dos Sangues-azuis com um guarda-costas ao meu lado,—ela disse a ele. — Não é de bom tom e mais importante, a presença de um lutador treinadoentre eles deixaria os Cinco nervosos, incluindo Brennan.

— Não o guarda-costas que tenho em mente. —Richard abriu a porta.

Sophie estava no gramado. Ela usava calças azuis largas e uma camisa branca. Seu cabeloescuro estava puxado para trás em um rabo de cavalo bem penteado. Uma espada em uma bainhapendurada em seu quadril.

— Não, —disse Charlotte.

Richard jogou a laranja na direção de Sophie. A garota se moveu, muito rápido, seu golpeum borrão. Quatro pedaços da fruta caíram na grama. Sophie sacudiu o suco de sua lâmina.

— Não, —Charlotte repetiu.

— Só por precaução, —disse ele. — É esperado que você tenha uma companheira depasseio. Por que não pode ser ela?

— Porque estamos jogando um jogo perigoso e não quero que ela se machuque.

Sophie não vacilou. O rosto da moça permaneceu plácido, mas a dor pulsava em seus olhos.Sophie estava acostumada a ser rejeitada, Charlotte percebeu.

— Por que vocês duas não conversam sobre isso? —Richard disse, e entrou na casa.

Ah, ótimo.

A criança no gramado olhava para ela com uma expectativa quase canina, como se Sophie

fosse um cachorrinho meio faminto e Charlotte segurasse um bife na mão. Charlotte pisou nagrama, lutando contra a queimação lenta de seus músculos doloridos. — Vamos caminhar?

******RICHARD OBSERVOU Charlotte e Sophie caminharem em direção a floresta. O cãosem nome trotava atrás delas.

O som fraco de passos veio de trás dele. Ele conhecia esses passos.

Kaldar apareceu ao lado dele, o rosto pensativo. — Que bela cena, as duas caminhandojuntas. As duas mulheres que você mais gosta. —Havia um leve toque de desaprovação no tomde seu irmão.

— Suponho que irá me informar que estou cometendo outro grave erro.

— Não. —Kaldar fez uma careta. — Sim.

Richard suspirou e acenou para ele com a mão.

— Eu pesquisei sobre ela, —disse ele. — Você sabe quem são os Dez Primeiros?

— As primeiras dez famílias de Sangue-azul que chegaram a Adrianglia. —A nata dasociedade.

— Tiraram Charlotte de sua família quando ela tinha sete anos e a levaram para o InstitutoGaner, onde conheceu a Senhora Augustine al Ran, uma descendente direta da família Ran, quepor acaso é um dos Dez Primeiros. A Senhora a adotou.

— Humm.

— Richard, você não está ouvindo. A Senhora Augustine a adotou formalmente. O nomecompleto de Charlotte é Charlotte de Ney al-te Ran. Se o rei oferecer um jantar, ela pode sesentar na primeira mesa, bem ao lado da família real.

Richard se virou para ele.

— A Senhora Augustine não divulgou a adoção, provavelmente para dar a Charlotte umachance justa de ter uma vida normal. Essa informação não está nem mesmo na certidão decasamento dela—Charlotte assinou seu nome na certidão só como de Ney. Acredito que o idiotado ex-marido dela não sabia desse detalhe. Mas está no arquivo que o Espelho possui sobreCharlotte. Você tem ideia de quantos homens matariam por uma chance de se casar com alguémpertencente a umas das famílias dos Dez Primeiros?

Richard tinha uma ideia muito boa. — Onde quer chegar?

— Princesas não se casam com pastores de porcos no mundo real, —disse Kaldar. —

Quando as pessoas ouvem o nome dela, elas se levantam. Você é um Edege, um rato do pântano.

— Eu sei, —disse Richard. — Mas obrigado por me lembrar.

Kaldar rangeu os dentes. — Deixe-me lembrá-lo de outra coisa: quando Marissa foiembora, você bebeu por dois meses seguidos, depois tentou se afogar.

— Pela última vez, não tentei me afogar. Eu estava bêbado, o vinho tinha acabado e saí parao cais porque me lembrei que tinha deixado uma garrafa no barco. —E então ele escorregou edescobriu que nadar bêbado era muito mais complicado do que parecia. Richard havia chegado àcosta e desmaiado na margem de exaustão, onde Kaldar o encontrara. Por algum motivo, todosna família insistiram que foi uma tentativa de suicídio e nada do que ele dissesse poderiaconvencê-los do contrário.

— Você é o único irmão que tenho, —disse Kaldar. — Se seguir com este seu plano, elaentrará na sociedade sem você. Não estou culpando seu plano—você não poderia mantê-latrancada para sempre e ela acabaria mergulhando o dedo do pé nessas águas mais cedo ou maistarde. A realidade é que Charlotte é independente, bonita e possui um sobrenome que virarátodas as cabeças. No momento em que ela for anunciada, os pretendentes começarão a circularem torno dela como tubarões. São pessoas que nunca na vida tiveram que se preocupar com aorigem de suas próximas refeições. Eles podem recitar dez gerações de ancestrais na queda deum chapéu. São uma raça diferente. Alguém jovem, bonito, com a estirpe certa e a quantidadecerta de dinheiro pode chamar a atenção dela.

— Você está realmente preocupado comigo.

Um músculo se contraiu no rosto de Kaldar. — Quando Marissa foi embora, você ainda erajovem. Uma parte de você sabia que ainda tinha toda a sua vida para viver. Você está mais velhoagora e perdeu a cabeça por causa dela. Você não se apaixona por mulheres com frequência, masquando o faz, é tudo ou nada.

— Desde quando você se tornou um especialista em minha vida amorosa?

Kaldar acenou com o braço. — É obvio. Você a observa. Tenta fazê-la rir. Se ela o deixar,isso pode quebrá-lo, e eu posso não estar aqui para manter sua cabeça acima da água. Eu sóquero que considere a possibilidade agora, então não ficará surpreso quando acontecer.

— Se eu precisar de ajuda para nadar, avisarei você.

Kaldar abriu a boca como se fosse dizer algo mais e a fechou com força.

— Mais alguma coisa? —Richard perguntou. — Diga logo.

— Se resolver se casar com ela, se tornará um membro da família al Ran. Senhora

Augustine al Ran, a mulher que a adotou, deve aprovar o casamento. —Kaldar puxou umpequeno cubo de imagem transparente do bolso e o entregou a ele. — Veja isso antes de fazerqualquer outra coisa.

Kaldar foi embora.

— Kaldar!

Seu irmão se virou e olhou para ele. Kaldar estava genuinamente preocupado com ele. Seuirmão usava piadas e humor como armadura. O fato dele não está usando nada disso agora diziamuito. Quando Declan o abordou pela primeira vez com sua proposta de caçar os traficantes,Richard nunca considerou o que poderia acontecer com Kaldar se ele falhasse. Ver famíliasdilaceradas o ensinou a prestar mais atenção àqueles que mais importavam para ele. Seu irmãotinha uma esposa que o amava e o apoio do que restava de sua família, mas se algo acontecessecom Richard, Kaldar não se perdoaria. Richard poderia no mínimo dar a Kaldar a satisfação desaber que fez tudo o que podia para salvá-lo de si mesmo.

— Vamos assistir juntos.

Kaldar fez uma careta, deu meia-volta e se juntou a ele. Eles caminharam para a casa lado alado. Richard havia considerado a possibilidade de que Charlotte pudesse deixá-lo, seduzida peloglamour da alta sociedade de Sangues-azuis. A adoção dela por uma dos Dez Primeiros tornavaisso ainda mais provável.

O cubo estava frio em sua mão. Ele entrou na casa e se aproximou do gerador de imagens. Odispositivo ficava à esquerda dos sofás, uma mesa alta e redonda com cerca de trinta centímetrosde diâmetro, com ornamentos de metal decorando sua única perna. Uma carapaça marrom edourada de metal polido protegia o tampo da mesa. Ele a tocou e ela se abriu ao meio, as duasmetades da carapaça deslizando pelos lados da mesa, revelando uma superfície delicadaincrustada com desenhos estranhos. Um brilho azul pálido cintilou ao longo da superfície,banhando os desenhos em seu brilho suave. No centro, três pontas de metal se erguiam naaparência de uma perna de pássaro invertida armada com garras malvadas.

Richard olhou para o cubo. Algo dizia que ele realmente não queria saber o que havia nessecubo. O Espelho era a pega57 do reino: a agência de espionagem reunia pedaços deinformações, alguns preciosos, outros inúteis, e os arrastava para seus arquivos, como umpássaro tolo que arrasta bugigangas chamativas para seu ninho. Não havia como dizer o quetinha nesse cubo.

As garras no dispositivo esperavam.

É melhor saber logo. Richard colocou o cubo nas garras. As pontas fecharam sobre o objeto.

Uma luz azul fraca acendeu dentro do cubo e a imagem de Charlotte formou-se acima dele. Elaestava sentada em uma varanda, em algum lugar lá alto. Charlotte parecia mais jovem, maissuave de alguma forma. Seu cabelo estava enrolado em um rolo como uma coroa em sua cabeça,e seu vestido, um verde claro, espalhado, tocando o chão. Parecia uma princesa.

Um homem estava ao lado dela. Era esguio, cabelo castanho claro. Ele usava uma jaquetaleve, ajustada com precisão ao seu corpo, calças combinando, botas macias. As roupasanunciavam dinheiro e um bom alfaiate.

— Você está muito bonito, Elvei, —disse Charlotte.

— Obrigado. E você parece divina, como sempre.

Elvei. O ex-marido de Charlotte. Richard olhou para o rosto do homem, o avaliando comoum lutador avaliaria outro. A menos que o homem fosse um Flashsniper incrivelmente talentoso,Richard tinha quase certeza de que poderia vencê-lo em um duelo. Não conseguia encontrarnenhuma semelhança entre ele e Elvei. Não se pareciam em nada.

Talvez fosse justamente por isso que Charlotte se sentia atraída por ele. Uma parte egoístade Richard dizia que não importava os motivos que faziam Charlotte gostar dele, mas aindaassim, queria que ela ficasse com ele por causa de quem ele era, não por causa de sua total faltade semelhança com o homem que ela havia escolhido antes.

Elvei sentou-se em uma cadeira perto do banco. — Espero que

não se importe se eu te perguntar algo.

— Eu não posso te dizer antes que me faça a pergunta.

— Então serei direto e franco. Por que é necessário que

Senhora Augustine al Ran aprove nossa união?

Charlotte se recostou. — Eu já te contei a história de como

vim parar no instituto. Fui retirada da minha família quando era

criança. Com o passar dos anos, a Senhora Augustine se tornou a

minha mentora. A opinião dela é muito importante para mim. Por

que está preocupado com isso?

Elvei sorriu. — Parece que hoje é o meu dia de ser franco.

Admiro sua devoção à sua mentora, mas a extensão das

investigações de Senhora al Ran sobre meu passado tem sido

excepcionalmente ... abrangente. Ela solicitou arquivos das

primeiras sete gerações de meus ancestrais.

— Você tem algo a esconder? —Charlotte perguntou.

— Claro que não.

— Então não se incomode. —Ela sorriu e estendeu a mão para

acariciar o rosto do outro homem. Os músculos dos braços de

Richard se contraíram. — Você se preocupa demais, Elvei.

— Charlotte, já faz algum tempo que você não é mais menor de

idade. Não precisa da permissão dela para se casar.

— Elvei, eu nunca consideraria um relacionamento de longo

prazo, muito menos um casamento, com qualquer homem que não

tivesse a aprovação da Senhora Augustine. Ela é como uma mãe para

mim, e a aprovação dela é vital.

— E se ela me desaprovasse?

— Eu romperia nosso noivado. Temo que esse seja o preço que

você tem que pagar por estar comigo.

— Então, terei prazer em pagá-lo.

Charlotte sorriu. A imagem desapareceu.

— Viu? —disse Kaldar. — Se você quer uma vida com Charlotte, terá que lutar contraSenhora Augustine, e essa não será uma guerra que poderá vencer. Quando ela perguntar sobresua história, o que dirá a ela?

— Direi que sou um rato do Mire. —Richard sorriu. — Que meu pai era um rato do Mire,que meu avô era um também, e assim por diante, até chegar ao início de nossa família quando osantigos legionários, que colonizaram o continente, ficaram presos no Mire e se misturaram comos nativos.

— Sim, e não se esqueça de mencionar Vernard enquanto estiver contando a ela sobrenossas origens. —Kaldar balançou a cabeça.

— Sim, como eu poderia esquecer. Querida Senhora, meu tio-avô era um exilado, um dosmeus tios é um metamorfo e alguns dos meus primos nem mesmo são humanos. Tenho umapequena fatia de terra e muito pouco dinheiro, e a única razão pela qual tenho permissão paraentrar em Adrianglia é porque minha prima Cerise se casou com um metamorfo, que prometeuao Espelho dez anos de serviço em troca de asilo e cidadania para a família Mar. Eu esquecialguma coisa?

— Não se esqueça de levar Charlotte com você quando for contar isso. A nobre Senhorapode acabar sofrendo um AVC58. Não está levando isso a sério, está Richard?

— Isso é comovente, vindo de um homem que nunca levou nada a sério.

— Levo muito a sério a segurança da minha esposa e da minha família. O que deu em você?Alguma coisa do que acabou de ver aqui penetrou nesse seu crânio grosso?

— Não estou preocupado com nobres Sangues-azuis roubando Charlotte. Ela conheceumuitos antes e mesmo assim me escolheu. Além disso, tenho problemas maiores do que aaprovação da Senhora Augustine. —Richard cruzou a sala até a estante e puxou um pesadovolume em relevo de cima da prateleira. Ele escondeu o livro lá para que Charlotte não oencontrasse.

— Como o quê?

— Charlotte pode matar com sua magia.

Kaldar olhou para ele. — Ela é uma Curadora corrompida. Richard, eles vão matá-la sedescobrirem.

— Isso é parte do problema.

— Qual é a outra parte?

O livro parecia pesado, como um pedaço de rocha sólida. Richard folheou as páginas,passou pelas folhas de papel grosso, parou em um artigo específico e ofereceu o livro a seuirmão. Richard leu o artigo tantas vezes que tinha guardado as palavras na memória. Todas asvezes que leu esperava que o artigo lhe dissesse algo diferente. Mas não disse.

O ato de drenar a magia de outra pessoa para abastecer

a propria magia é coloquialmente conhecido como dreno de

‘força vital’, um termo que se originou dos relatos em

primeira pessoa dos raros poucos que o experimentaram.

Eles descreveram esse fenômeno como drenar ou roubar a

vida do alvo. Na realidade, o usuário e o alvo formam um

ciclo de retroalimentação mágica, e é a energia mágica do

alvo, que está sendo drenada, não alguma ‘força vital’

misteriosa. No entanto, uma vez que um corpo humano é

incapaz de permanecer vivo sem sua energia mágica, quando

a magia de um alvo se esgota, o alvo morre, então o termo

‘força vital’ não é tão impreciso quanto pode parecer à

primeira vista.

No caso de drenagem da força vital, o usuário encontra

a magia do alvo, puxando-a para si e absorvendo essa

energia. O usuário rapidamente fica sobrecarregado com o

influxo de magia que absorve, e seu corpo começa a

dispensá-la em qualquer forma que pareça mais natural

para o usuário. O usuário invariavelmente dispensa mais

magia do que absorve, o que, por sua vez, faz com que ele

absorva mais magia em um volume cada vez maior, e que

acaba dispersando novamente. Este ciclo essencial de

absorção e dispersão está sempre se expandindo, quanto

mais tempo continua, mais difícil é parar. Considere uma

bola de neve rolando colina abaixo: quanto mais rola,

maior fica. Quanto mais longa a duração do ciclo de

retroalimentação, maior a quantidade de magia que passa

pelo usuário, até que, eventualmente, o usuário se torne

um canal irracional para o fluxo de energia mágica.

Existem casos conhecidos de ciclos de retroalimentação

interrompidos. Nesses casos, só foi possível romper o

ciclo porque o usuário que iniciou o ciclo de absorção e

dispersão de energia, o fez no início do processo. Esses

usuários relatam emoções de euforia e extremo prazer

associados à absorção de magia. Sem dúvida, essas emoções

contribuem para a dificuldade de interrupção do ciclo de

retroalimentação. Em termos simples: absorver magia

produz prazer e recompensa a si mesmo, tanto que muitos

usuários não querem parar e, depois de alguns minutos,

descobrem que não podem.

Para os fins deste estudo, onze casos confirmados de

ciclo de retroalimentação interrompido foram examinados

e, em nove dos onze casos, os usuários tentaram novamente

o ciclo de retroalimentação em uma data posterior. Todos

os nove perderam sua humanidade e tiveram que ser

destruídos, pois representavam uma ameaça iminente para

os outros. A conclusão que chegamos até aqui é que, mesmo

sendo muito difícil, é possível controlar e interromper a

um ciclo de retroalimentação; no entanto, interromper

esse ciclo pela segunda vez está além dos limites da

vontade humana.

Kaldar ergueu os olhos da página. — O que isso significa?

— O que George contou a você?

— Eu sei que você foi ferido, correu para o Edge, Charlotte te curou, então os traficanteschegaram, mataram a avó dos meninos, colocaram fogo na casa e jogaram você em uma jaula.Charlotte salvou você.

— Quando Charlotte me encontrou na jaula, ela iniciou um ciclo de retroalimentação. Foi aprimeira vez que ela matou, e por não achar que tinha poder suficiente, absorveu a energia dosalvos. Ela pode matar sem precisar absorver a energia do alvo, mas toda vez que o faz seenfraquece quase até a própria morte, e por isso que sua magia a obriga a absorver a energia dequalquer um que estiver por perto.

— E se ela ceder a exigência da própria magia?

— Ela vai absorver magia de seus inimigos e dispersá-la em forma de pragas, então vaiabsorver mais magia e dispersar, e assim por diante, até que todos ao seu redor estejam mortos.Charlotte se tornaria uma Portadora da Praga. Ela nunca conseguiria mais parar.

— Então Charlotte se tornaria uma assassina em massa, enlouquecida e imparável.

— Sim.

— Ela sabe dessa possibilidade?

— Sabe. Ela me pediu para matá-la se sucumbisse a isso. Tentei convencê-la a não lutarcontra os traficantes, mas Charlotte se recusa a desistir.

Kaldar afundou no sofá. Seu rosto estava completamente sério, algo que quase nuncaacontecia.

— Parabéns, —ele disse, sua voz seca. — Você finalmente conseguiu encontrar uma mulhertão tragicamente nobre quanto você. Pensei que isso fosse impossível.

— Eu não sou tragicamente nobre.

Kaldar ergueu a mão. — Me poupe. Algumas crianças nascem em berço de ouro, vocênasceu em berço de melancolia. Quando a parteira bateu em seu traseiro para lhe fazer chorar,você apenas suspirou tragicamente e uma única lágrima rolou de seu olho. —Kaldar arrastou odedo do canto do olho esquerdo até a bochecha. — Suas primeiras palavras provavelmente foram‘pobre de mim’.

— Minhas primeiras palavras foram ‘Kaldar, cale a boca!’ Porque você falava demais. Aindafala.

— Você reconheceu severamente a tristeza de sua situação desde que era criança. E tornouisso parte de sua natureza.

Richard se inclinou para frente. — Seria melhor se eu transformasse tudo em uma piadaconstante?

— Bem, alguém tem que fazê-lo rir; caso contrário, entrará em colapso sob o peso de servocê. As pessoas gostam de compartilhar piadas. Ninguém gosta de compartilhar angústias.

— Eu tenho sido o alvo de suas piadas toda a minha vida, e deixe-me dizer a você, não é tãodivertido.

Eles se encararam. Se Richard tivesse uma peruca molhada nas mãos, ele a teria jogadocontra a parede e chutado seu irmão no peito. Infelizmente, estavam velhos demais para brigar.

— A cirurgia no rosto, —disse Kaldar. — Você fez isso por ela, não foi? Foi o jeito quevocê encontrou para entrar direto no meio dos Cinco e poupá-la. Ela vale a pena?

— Audrey vale a pena? —Richard perguntou.

— Deixe minha esposa fora disso.

— Você se entregou à Mão por ela. Valeu a pena?

— Sim. E faria de novo. —Kaldar suspirou. Seus ombros caíram em derrota. — O queprecisa de mim?

— Vou precisar da sua ajuda, —disse Richard.

— Você a tem. Somos uma família.

Richard foi até o armário de vinhos, pegou uma garrafa de vinho de frutas vermelhas e duastaças. Ele serviu o vinho. Kaldar engoliu um pouco e sorriu. — Tem gosto de casa. Onde vocêencontrou as frutas? Pensei que elas só cresciam no Mire?

— Tia Pete as cultivou de alguma forma em uma estufa atrás de sua casa. —Ele deixou ovinho rolar garganta abaixo. O delicioso e leve sabor o refrescou, o fazendo lembrar do pântano ede casa.

Brennan, Senhora Augustine, alta sociedade de Sangue-azuis, tudo isso, Richard poderialidar. Eles eram apenas pessoas. Mas não tinha ideia de como proteger Charlotte de si mesma.Ele não podia perdê-la. Só o pensamento disso o deixou tenso, seus músculos travados, como seestivesse lutando por sua vida. O medo se apoderou dele. Richard raramente tinha medo, e aquiestava ele, apavorado.

Sugerir que Charlotte ficasse de fora do plano teria o efeito oposto. Só faria ela lutar mais.

Richard repassou o plano em sua cabeça. Eles armariam uma armadilha de duas partes paraBrennan, e ele cuidaria da primeira parte da armadilha. Com sorte, Brennan morderia a isca, e oenvolvimento de Charlotte poderia nem ser necessário. Mesmo que ele falhasse em atrairBrennan, o plano não exigia que Charlotte usasse de sua magia. Ela usaria apenas o nome e aposição social dela, dessa forma estaria em perigo mínimo.

Por sorte, se tiverem sucesso nessa loucura toda, ele faria tudo ao seu alcance para fazê-lafeliz.

— Diga-me com sinceridade, você tentou ou não tentou se afogar até a morte no pântano?—Perguntou Kaldar.

Inferno. — Suicídio requer desespero. Eu não estava desesperado. Você sabe por que bebi?Bebi porque estava com raiva. Jurei amar e defender Marissa. Dei uma casa a ela, cuidei dela e atratei bem. Mesmo que ela não me amasse, deveria ter sido o suficiente. Se ela tivesse medeixado por um homem, eu entenderia. Teria ficado com raiva, mas não a aceitaria ao meu ladocontra a vontade dela se ela escolhesse outro homem. Ela me deixou porque a vida que eu podiadar a ela não foi boa o suficiente. O máximo que eu pude dar foi uma casa agradável sem lamano quintal e isso não foi o suficiente. Eu bebi porque estava chateado e não queria fazer algoestúpido.

— Não minta para mim. Diga-me como você realmente se sentiu.

— Eu merecia coisa melhor do que a porra de um bilhete!

— Talvez ela tenha tido medo de ir embora com você presente na casa, —disse Kaldar.

— Que diabos você quer dizer? —Richard abriu os braços. — Está insinuando que eu amachucava e por isso ela teve medo de mim?

— Não, estou sugerindo que Marissa nunca gostou muito de confrontos. Eu te conheçomuito bem, você é um bastardo implacável quando começa a discutir com alguém. —Kaldarpiscou para ele.

Richard apontou para ele.

— Oh deuses, o dedo da desgraça. Alguém me ajude!

Richard não iria esmurrar seu irmão. Não seria certo. ele se obrigou a sentar na cadeira. —Já terminou?

— Sim. Bem, eu poderia continuar, mas vou poupá-lo. —Kaldar serviu mais vinho. — Vaidar tudo certo. Sempre dá.

Richard ergueu a taça. — Vou beber a isso.

******SOPHIE TIROU um pano do bolso da túnica e limpou cuidadosamente a lâmina. Ela eCharlotte caminharam pelo caminho aberto para a floresta, o cão Estripador-de-lobos trotando nafrente delas como um monstro de um conto de fadas infantil.

— Você tem que limpar a sua espada toda vez que a usa? —Charlotte perguntou.

— Se eu a sujar de sangue, sim, —a garota respondeu calmamente. — Mas o suco de laranjaé ácido. Pode corroer a lâmina.

— Por que não fazer uma espada de aço inoxidável?

— O aço inoxidável não dobra. Uma espada deve ser flexível ou ela se quebrará.

Assim são também as pessoas. — Foi Richard que a convenceu a se tornar minha guarda-costas?

— Perguntei a ele como eu poderia ajudar. Ele disse que havia algo que eu podia fazer, masque a decisão final seria sua. Na verdade suas palavras exatas foram: ‘não tenho a capacidadenem a inclinação de obrigá-la a fazer qualquer coisa contra a vontade dela’. Richard é muitoformal às vezes.

Ele diria algo assim, não diria? — As pessoas contra as quais lutamos não hesitarão emmatá-la, mesmo que você seja uma criança.

— Eu também não hesitarei, —disse Sophie com determinação silenciosa. — E sou maisrápida e mais apta do que qualquer um deles.

— Você ainda é uma criança.

Sophie deu um passo para trás. A mão dela se moveu em grande velocidade: golpe, golpe,golpe—foram três? Quatro? —e depois ela embainhou sua espada.

A floresta ficou em silêncio. Nada mudou.

Sophie suspirou, estendeu a mão e empurrou um tronco de uma árvore de dez centímetrosde diâmetro com o dedo. A árvore deslizou para o lado, quebrando-se em quatro pedaços ao cair.

— Não foi tão dramático quanto seria se tivesse caído sozinha, —disse Sophie. — Eu soumais rápida do que Richard. Ele leva um terço de segundo a mais para espalhar o flash nalâmina. Você sabe o que isso significa?

— Não. —De alguma forma, Charlotte sabia que a resposta não seria boa.

— Isso significa que posso matá-lo, —disse Sophie.

Mãe da Aurora. Precisava escolher as palavras com cuidado. — Você quer matar Richard?

Sophie balançou a cabeça. — Quando Aranha fundiu minha mãe, William a matou. Ele émeu cunhado e deu a minha mãe uma morte misericordiosa. Meu pai morreu com ela. Ele estávivo, tecnicamente. Come, respira e fala. Mas é ... ausente. Ele tenta cuidar da família porque éseu dever, mas se o resto de nós desaparecesse amanhã, meu pai se jogaria do penhasco maispróximo.

Sophie se virou para ela. — Não é justo. Eu não morri. Ainda estou aqui, mas ele não seimporta.

Sophie disse isso muito categoricamente, suas feições muito neutras. Ela tinha apenasquinze anos e já estava mascarando a própria dor. Charlotte lutou contra o desejo de estender amão e abraçá-la. Provavelmente não seria bem-vinda.

— Ele devia se importar. Um pai não abandona simplesmente um filho.

— Meu pai abandonou. Ele amava muito minha mãe e agora ela se foi, e o mundo acaboupara ele. Ele parou de me treinar. Parou de falar comigo depois do jantar. Parou de falar comtodos, a menos que seja absolutamente necessário, então suponho que não devo esperar umtratamento especial só porque sou filha dele.

Tanta magoa, tanto sofrimento. Uma dor baixa apertou o peito de Charlotte. Parecia que seucoração tinha dado um salto.

— Richard é o único pai que tenho agora. Ele cuida de mim. Mas eu sou mais rápida e elehesitaria em me cortar. Ele me ama muito. Então sei que posso matá-lo.

— Isso é uma coisa fria de se dizer.

Sophie olhou para ela, surpresa. — Você acha?

— Sim.

— É apenas um fato. —Ela encolheu os ombros. — Eu não posso evitar.

Qualquer coisa que Charlotte dissesse soaria como uma crítica. A frieza era provavelmenteuma barreira que Sophie havia construído, e o fato dela ter construído essa barreira significavafragilidade. Charlotte ficou em silêncio. Talvez mais tarde, se elas tivessem a chance de criarmais confiança, Charlotte pudesse continuar essa conversa.

— Vocês estão planejando expor Brennan no casamento do Grande Barão, —disse Sophie.

— Como sabe disso? —Será que Richard disse a ela?

Sophie ergueu a cabeça. A luz do sol filtrada pelas árvores iluminava o rosto da menina.

— O Falcão.

Charlotte olhou para cima também. Uma ave de rapina voava acima da copa das árvores,circulando ao redor deles.

— Está morto, —disse Sophie. — É George quem o guia. Ele é muito poderoso.

A compreensão tomou conta de Charlotte em uma onda de vergonha.

— George está nos espionando?

— Sempre, —disse Sophie. — Todos os modos perfeitos que ele tem são uma farsa. Georgeespia tudo e todos. Declan não fez uma única reunião de negócios no ano passado sem queGeorge soubesse de todos os detalhes. No entanto ele não espia você e Richard quando estãofazendo amor. Ele é um puritano.

— ‘Puritano’ é uma palavra grosseira. O que George tem é senso de tato, —Charlottecorrigiu antes de se conter.

— Senso de tato, —Sophie repetiu, saboreando as palavras. — Obrigada. O outro está emalgum lugar por aqui também.

— O outro?

Sophie examinou a floresta e gritou: — Eu posso sentir seu cheiro, Jack!

— Não, você não pode, —respondeu uma voz distante.

O cão latiu e disparou em direção aos arbustos.

— Eu te disse. —Sophie sorriu. — Aranha irá ao casamento do Grande Barão. Ele é umnobre do Ducado da Louisiana. Sua posição exige que esteja presente.

— Você não pode matar Aranha, —Charlotte disse a ela.

— Só quero vê-lo. Ele tirou minha mãe e meu pai de mim. —Os olhos escuros de Sophiepareciam sem fundo. — Quero ver o rosto dele. Quero marcá-lo na minha mente. —Sophie bateuem sua cabeça. — Dessa forma, nunca vou esquecer de como ele é. Porque nos encontraremosnovamente e, quando o fizermos, quero ter certeza absoluta de que matarei o homem certo.

Sophie era assustadora.

— Por favor, deixe-me fazer isso, Senhora de Ney. Por favor. —As palavras da meninaeram um sussurro feroz e selvagem. Sophie se ajoelhou em um joelho só. — Você perdeualguém. Sabe como é. Estou correndo em círculos, como um rato em uma roda. Só quero umamaneira de sair. Por favor.

A memória de Charlotte evocou o pesadelo de sua casa pegando fogo. Ela se sentiu tão

desamparada ali, naquele gramado, vendo os restos mortais de Éléonore fumegarem enquanto ascinzas choviam no cabelo de Tulip. Charlotte escolheu fazer algo a respeito porque possuía osmeios para fazê-lo. Quando Aranha arrancou os pais dessa criança, ela deve ter se sentidodesamparada também. Sophie desistiu da pessoa que era e se tornou Cotovia, a garota quecortava árvores em pedaços mais rápido do que os olhos podiam acompanhar.

Sophie e Richard eram exatamente iguais. Gelo sobre fogo, um exterior frio escondendopaixão e emoção incontroláveis por baixo. Se Charlotte negasse Sophie agora, infligiria maisoutro ferimento a garota. A própria fúria que alimentou a transformação da criança poderiadestrui-la.

Charlotte suspirou. — Quão habilidosa você é em etiqueta?

Sophie se levantou. — Tive algumas aulas.

— O mesmo instrutor de Rose?

— Como você sabe?

Charlotte estendeu a mão e tirou um galho da túnica de Sophie. — Por causa do vestido quevocê usava quando te vi pela primeira vez. O modelo é dez anos mais velho para moças de suaidade. Temos muito trabalho a fazer, minha querida. Se você realmente quer vir comigo, deveestar perfeita.

******SOPHIE BEBIA de uma xícara minúscula, segurando-a com graça sem esforço. Charlottese sentou em frente a ela. Nos três dias que passou com ela, Sophie absorveu informações comouma esponja. A moça era uma imitadora natural no melhor sentido possível da palavra, imitavanão apenas a ação, mas a atmosfera, o ambiente que Charlotte projetava, e a mudança em seucomportamento foi imediata.

A porta se abriu e Jack entrou na cabana. Movendo-se em completo silêncio, ele seaproximou da mesa e deixou cair um cristal no meio dela.

— Isso é tudo.

— Obrigada, —Charlotte disse a ele.

Jack examinou Sophie sentada em um vestido simples cor de pêssego pálido e se agachouao lado dela, seus olhos grandes em seu rosto bonito. George tinha elegância, não havia dúvida.Mas Jack era um incêndio. Havia algo sobre a criança, sobre a maneira como ele se comportava,o potencial bruto de imprevisibilidade, talvez, ou o ar de perigo que ele emitia, que daria a Jackum fascínio todo dele em alguns anos.

— Tive uma ideia, —disse ele.

Sophie inclinou a cabeça, olhando para ele com seus olhos de veludo escuro.

— Livre-se desse vestido e venha caçar comigo.

— Você é uma criança, —ela disse a ele.

— E você está se transformando em uma velha senhora.

Sophie sorriu e cravou uma adaga na mesa. A moça se moveu tão rápido que parecia umborrão, mas de alguma forma Jack havia movido sua mão a tempo, e a adaga perfurou a madeiraem vez de carne.

Charlotte deu um gole em sua xícara. — Mais uma provocação, e os dois estarão comdisenteria por uma semana.

Jack recuou e se esparramou em uma cadeira, exasperado.

Charlotte deslizou o cristal na fina garra de metal de um gerador de imagens. Uma luzfiltrada através do cristal formou a imagem de uma jovem em um vestido azul vivo.

— Próximo.

Outra jovem Sangue-azul vestida em outro cetim azul.

— Próximo.

Mais garotas. Azul-violeta. Azul-royal. Azul-celeste.

— Pessoas chatas, fazendo coisas chatas, usando roupas chatas, —disse Jack.

— O azul é a cor da estação. —Charlotte examinou Sophie. — Que tom de azul ficaria bemem você?

— Eu não sei, minha senhora, —respondeu Sophie.

— Nenhum, —disse Jack.

Sophie arqueou as sobrancelhas para ele. — Quando eu quiser sua opinião, vou arrancá-lade você.

— Nesse caso, ele está certo. Você ficaria surpresa, mas os homens geralmente têm umavisão excelente quando se trata de roupas femininas. Olhe para o seu pulso. Você também, Jack.

Ambos viraram o braço direito, exibindo o pulso. Ela fez o mesmo. — Vê como as veias domeu pulso e de Jack parecem realmente azuis? Temos um tom frio em nossa pele. As veias doseu pulso têm uma leve tonalidade esverdeada por causa dos tons quentes de sua bela pelebronzeada e dourada. Cores frias como azul, roxo ou turquesa não ficarão bem em você.

— Eu poderia usar branco, —Sophie ofereceu. — Senhora Renda disse que o branco estásempre na moda.

— Branco é para covardes, —disse Charlotte. — E a Senhora Renda é uma dinossaura.

Sophie engasgou com o chá.

Jack deu uma risadinha.

— Quando as pessoas dizem branco, muitas vezes se referem a um branco-gelo, que é umtom frio. Preto puro também não é uma boa ideia. Jack, por causa de seu tom de pele mais frio,ficaria muito bem de preto, já você não. O tom de pele de Richard é semelhante ao seu. Ele seveste de preto e, embora seja um homem muito bonito, não ressoa em sua pele, só o faz parecerameaçador. O branco verdadeiro é uma cor neutra em que todos ficam bem, mas não há ousadiana cor branca, nenhum senso de estilo. Use-o e estará sinalizando que você é insegura. Nós não podemos parecer inseguras. Precisamos sempre nos mostrar seguras de si e arrojadas. —Charlotte passou a mão sobre o cristal para reativá-lo.

— Roda de cores59, estágio doze.

Uma complexa roda de cores acendeu-se no ar acima do gerador. No centro, doze coresbrilhantes formavam o núcleo interno: primeiro, os tons primários de vermelho, laranja,amarelo, verde, azul e violeta. Entre eles havia seis tons de transição. Além do centro, a roda decores se dividiu, com cada uma das doze cores internas se dividindo em quatro tons. Fora docentro, os tons de cor ficaram escuros, quase pretos. Linhas finas de cabelo cortavam a roda emcores individuais, cada novo tom um tom mais claro que o anterior, até que na borda externa daroda as cores se tornassem quase brancas.

— Esta é a sua arma secreta. Lembra da imagem do primeiro vestido azul? —Charlotteacenou com a cabeça para a roda. — Encontre o segmento de cor correspondente daquelevestido.

Sophie olhou para a roda por um segundo. — Número vinte e seis.

— Muito bem. É um derivado saturado do azul-cobalto. Charlotte tocou as engrenagens. A roda de cores deslizou para cima e a fileira de fotos de vestidos que ela tinha visto acendeu-se abaixo da roda.

— Os vestidos estão todos no mesmo segmento de cor, —disse Sophie. — O tom varia umpouco, mas não ousaram sair da cor principal.

— Exatamente. Essas são jovens solteiras que supostamente devem estar no auge da moda,e é por isso que todas vestem o que consideram a tendência de vanguarda. Quanto mais velha amulher, mais vivo o tom de azul, mas nenhuma delas ousou usar outra cor, são como ovelhas em

um rebanho, todas seguindo a ovelha líder. As mulheres independentes ou que não procuramimpressionar os outros com sua consciência da moda, usarão a cor que quiserem. Esta é a filhada Duquesa Ramone.

Charlotte apontou para a penúltima foto de uma jovem alta e esguia.

— Eu a conheci antes. Veja, ela está vestindo verde.

— Chocante! —Jack gritou de sua cadeira.

— Ela é jovem e solteira, mas tem posição social suficiente e ousadia para fazer o quequiser. Ela também sabe que o azul vivo também não é sua cor. Ainda assim, se olhar o vestidode perto, há notas de azul nele. A ideia não é negar totalmente a tendência da moda atual, mastorcê-la sutilmente para torná-la algo exclusivo seu.

— Isso é ridículo, —disse Jack.

— Concordo, não há mais nada ridículo do que a moda, —Charlotte disse a ele. — Enoventa e nove por cento da moda depende de quem está usando. Se alguém desconhecido usarum chapéu feio, vão apontá-lo e dizer ‘que chapéu feio’. Mas se a duquesa Ramone usar umchapéu feio, as pessoas vão achar interessante e dizer que é a nova tendência da moda.

— Então, é sobre posição social e dinheiro? —Perguntou Sophie.

— Não. É uma questão de equilíbrio. Você deve estar extremamente confiante no que estávestindo e confortável em sua própria pele. Ser um Sangue-azul não é apenas conhecer as regras.É saber a coisa precisamente correta a fazer em cada situação, então fazê-lo com um direitoinabalável.

Sophie franziu a testa, confusa.

Charlotte sorriu para ela. — Não é muito difícil. Não tenha medo, vamos praticar. Masvoltando à roda das cores. Esqueça o branco e o preto. Devemos mostrar sua pele, seu pescoço eesse rosto. Devemos vesti-la de modo a causar impacto. —Charlotte pegou um bloco de desenho.— Segmento 28, linha 17.

Um lindo cinza quente, lembrando ao mesmo tempo o interior perolado de uma concha deostra e o brilho suave do alumínio polido, apareceu acima no gerador de imagens.

Sophie se inclinou para frente com os olhos arregalados. — É a cor da minha espada.

Charlotte sorriu e começou a desenhar. Elas teriam que adicionar alguns detalhes em azulclaro para combinar com a tendência da moda, mas nada importante.

— Mas onde vamos conseguir o vestido? —Perguntou Sophie.

— Vestidos. Cada uma de nós precisa de um conjunto de pelo menos seis roupas, todas

combinadas com elementos de design semelhantes. Vamos seguir a página de emergência domanual de Richard: entraremos em contato com a melhor costureira que pudermos encontrar ejogaremos uma quantia obscena de dinheiro nela. —Charlotte continuou a desenhar. Acostureira provavelmente hesitaria, o modelo que surgia no papel era um pouco incomum parauma garota, mas combinava perfeitamente com Sophie. — Se a costureira não aceitar,encontraremos outra. Tenho meios para isso e, quando se trata de vestidos, o dinheiro é umargumento muito convincente.

— Você não precisa gastar dinheiro comigo, —disse Sophie. — Minha irmã é casada comWilliam Sandine. Posso ter o dinheiro que eu quiser.

— Eu não preciso, mas quero. —Charlotte sorriu e se virou para Jack.

— Você quer ajudar?

A expressão no rosto de Jack mudou rapidamente de surpresa e medo para entediado edistante. — Pode ser, —ele disse, e bocejou. — Estou um pouco entediado mesmo.

— Essa é a falsa expressão indiferente dele, —disse Sophie. — Ele a coloca quando nãosabe como responder.

— Você se dá bem com a Duquesa das Províncias do Sul?

Charlotte perguntou. A mãe de Declan era precisamente o tipo de peso pesado que faria umadiferença decisiva na entrada dela e de Sophie na alta sociedade.

— Eu sou adorado, —disse Jack.

Sophie bufou.

Jack olhou para ela, indignado. — Isso é o que ela sempre diz. —Ele colocou em seu tom devoz uma imitação perfeita de um sotaque de um nobre Sangue-azul. — ‘Ah, Jack. Eu te adoro,seu garoto bobo.’

Charlotte perdeu o controle e riu. — E você acha que a sua ‘adorabilidade’ podeprovidenciar para que nós duas tomemos chá com Sua Graça?

— Moleza, —disse Jack.

******RICHARD ABRIU os olhos. Charlotte subiu as escadas e parou, estudando-o deitado nacama. A escuridão havia caído e as luzes suaves das lanternas iluminavam seu rosto. Ela eralinda. Olhar para ela abriu um buraco dentro dele, nascido do conhecimento que ele logo teriaque se afastar dela.

Eles não faziam amor desde a cirurgia em seu rosto. Richard a queria tanto, que queimava.

Era mais do que um desejo físico, era uma necessidade semelhante a um vício. Estava viciadoem Charlotte, no cheiro, no gosto, no toque suave da pele dela contra a dele. Gostava de vê-lasuspirar de surpresa quando ele a levava ao clímax. Precisava dela do jeito que precisava de ar, ea expectativa de sua separação fazia seus músculos ficarem tensos.

Naquele momento, ele se arrependeu de tudo: cada palavra que disse a ela parecia errada,cada gesto grosseiro e estúpido. Charlotte merecia ... alguém melhor do que ele, mas Richardera profundamente egoísta e faria tudo ao seu alcance para mantê-la.

— Onde está Sophie?

— Já foi, —disse Charlotte. — Segundo ela para se despedir de Cerise. Infelizmente, Jackdeixou escapar que Cerise e William estão fora em missão. Então, acredito que Sophie quis nosdar privacidade. Acredito também que todos os ratos, esquilos e pássaros mortos-vivos, quevigiam o Covil, se foram.

Richard mudou para um tom mais afetado e formal dos Sangues-azuis. — Queridos deuses,essas crianças esperam que tenhamos relações íntimas?

— Parece que sim. As crianças sabem algo que eu não sei? —Charlotte perguntou.

Ele percebeu que ela mudou de assunto. — Kaldar enviou uma mensagem por meio deGeorge, —disse Richard. — Brennan partiu para a costa sul. Supostamente foi visitar um amigodoente.

— Ele foi averiguar a ilha pessoalmente, —disse ela.

— Sim.

— E agora, com Brennan longe, você quer fazer a troca e se tornar Casside?

— Só se você estiver pronta para iniciarmos nosso esquema. —E uma vez que começassem,não poderiam mais ser vistos juntos. Nenhuma pista ou sugestão do relacionamento deles poderiaexistir.

— Estou pronta, —ela disse a ele. — Arranjar uma costureira foi um pouco mais difícil doque eu esperava, mas encontrei uma talentosa, precisando de dinheiro e ansiosa para serreconhecida. Enviei os modelos junto com uma pilha de dinheiro e promessas de mais. Os doisprimeiros vestidos ficarão prontos em tempo recorde. Jack está organizando um chá com a mãede Declan. Pretendo contar a ela nosso plano e pedir a ajuda da Duquesa. Minha entrada na altasociedade Sangue-azul será muito mais tranquila se ela estabelecer as bases. Acho que poderiaconvencê-la a nos ajudar. Com ou sem o apoio de Sua Graça, devo fazer uma aparição na capitaldentro de dois dias na Celebração do Fim da Primavera.

— Sophie estará pronta?

— Sim e não. —Charlotte balançou a cabeça. — Ela tem o básico, e é muito inteligente. Seruma donzela de companhia não é exatamente algo difícil. Eu fui uma quando tinha a idade dela.Basta andar três passos atrás de sua madrinha e não falar a menos que seja solicitada. EmboraSophie não saiba tudo ainda, ela se sairá bem.

A ansiedade o consumia. — Parece que você tem tudo sob controle.

— Sim.

— Devemos repassar o plano? —Eles haviam repassado esse plano uma dúzia de vezes,mas nem por isso sua ansiedade diminuía. No momento em que partisse, os eventos sairiam docontrole dele.

— Você vai viajar até a capital e trocar de lugar com Casside. O plano é sequestrá-loquando Casside estiver voltando do jogo de cartas semanal dele. Depois disso você tomará olugar dele. O ataque à ilha provavelmente deixou Brennan furioso, e os quatro Sangues-azuis sobo comando dele se esforçarão para manter o status quo60 por pura autopreservação. Depois quevocê sequestrar Casside e tomar o lugar dele, removerá seus capangas da casa. A família Marestará encarregada de seus capangas até que terminemos a missão. —Ela o convidou a continuar com um gesto de mão.

— Em dois dias, você fará uma aparição no Baile da Celebração do Fim da Primavera, —disse Richard. — Sua missão será causar uma boa impressão em Angelia Ermine. Irá fazeramizade com ela. É provável que a Senhora Ermine esteja dormindo com Brennan.

— Você já falou isso antes, —disse Charlotte. — O que te dá tanta certeza?

— Você se lembra daquele discurso que Brennan escreveu enquanto estava na Academia,sobre a liderança ser o verdadeiro propósito da monarquia?

Charlotte acenou com a cabeça. Eles tinham lido o discurso um para o outro em voz alta.

— Ele quer o trono. Brennan acha que é digno da coroa, mas sabe que nunca a terá, —disseRichard. — Ele está muito distante da linha de sucessão. Essa realidade o mata por dentro. Oesquema do tráfico de escravos é seu reino, e Casside, Angelia, René e Maedoc são seusguerreiros. Brennan exigiria lealdade absoluta deles. Angelia é jovem, independente e atraente.Ele iria querer a satisfação de tê-la completamente.

— Angelia é a escória. Vou ter que me esforçar para não matá-la. —Charlotte balançou acabeça. — Enquanto estou trabalhando nela, você organizará um atentado contra a vida deBrennan, fazendo-o pensar que Maedoc está tentando matá-lo.

Era um plano difícil, que exigiria que ambos abrissem mão de suas melhores armas. Richardteria que usar sua espada sem o benefício da técnica do flash, mas em compensação Charlottetambém não poderia usar a magia dela. Esse fato o encheu de alívio. Apesar de que, matarBrennan seria muito mais fácil se eles pudessem usar suas magias plenamente.

De repente, Charlotte deu um passo na direção dele e o abraçou. Os lábios dela tocaram osdele. Ele a beijou profundamente e sentiu o gosto do desespero dela. — Você está com medo?

— Estou apavorada, —disse ela.

Ele a abraçou com força. — Gostaria de saber o que dizer, —ele murmurou. — Gostaria deter as palavras certas.

— Diga-me o que acontecerá conosco se vencermos, —ela perguntou.

— Se vencermos, eu vou te encontrar, —ele disse a ela. — E se estiver em meu poder,nunca mais nos separaremos. Se você me quiser.

— E se eu não quiser?

Ele ergueu as sobrancelhas. — Provavelmente vou implorar. Ou fazer uma daquelas coisasdramáticas e estúpidas que os homens fazem para conquistar as mulheres. Se ainda vivêssemosna época dos cavaleiros, eu simplesmente tiraria o cavalo de qualquer um que se interpusesse nomeu caminho.

— Eu vou cobrar isso, —ela sussurrou, e o beijou de volta.

******SUA GRAÇA, Senhora Jane Olivia Camarine, Duquesa das Províncias do Sul, era perfeita,Charlotte refletiu. Ela parecia estar no final dos quarenta anos, embora provavelmente mais velhado que isso, já que seu filho, o Conde Camarine, tinha mais de trinta. Vestia túnica e calçasverdes-esmeraldas e creme, costuradas com uma simplicidade enganosa que disfarçava as curvasdo corpo curvilíneo da Duquesa. Seu cabelo, artisticamente em camadas em sua cabeça emtranças gêmeas, alongava seu rosto redondo. A Duquesa usava uma única joia, uma aliança decasamento feita de fios de ouro finos como seda de aranha. Era extremamente cara e de bomgosto. A mulher a esperava no terraço, ao lado de uma mesa de piquenique, banhada pela luz damanhã.

— Olhe para ela, —murmurou Charlotte, enquanto ela e Sophie seguiam Jack para a mesa.— O queixo inclinado para cima para fazer o pescoço parecer mais esbelto, ela se posicionou àesquerda da luz, de modo que as linhas verticais do drapeado em sua túnica fiquem realçadas.Linhas verticais longas, como essas, fazem parecer mais magra. Você deve estar sempre atenta àluz e conhecer seus melhores ângulos.

— Vossa Graça, —disse Jack. — Apresento-lhe Charlotte de Ney e Cotovia.

— Sophie Mar, —Charlotte murmurou baixinho.

— E Sophie Mar, —ele entoou.

Charlotte fez uma reverência. Ao lado dela, Sophie sentou-se graciosamente.

— Prazer em recebê-las. —A duquesa sorriu calorosamente.

— Crianças, vocês realmente querem ficar aqui?

— Não, —disse Jack e Sophie em coro.

A duquesa sorriu. — Broderick consertou a fonte da piscina. —Ela apontou com o polegarpor cima do ombro em um gesto distintamente não-Sangue-azul. — Fujam enquanto pode!

Os dois adolescentes desceram as largas escadas brancas em direção à piscina que brilhavano meio do gramado. No último degrau, como se por algum sinal, eles começaram a correr,voando pela grama. Jack tirou suas roupas. Sophie agarrou a bainha de seu vestido. Querida Mãeda Aurora, por favor, deixe que haja algo embaixo desse vestido. O vestido voou, revelando umpequeno maiô. Os dois adolescentes pularam em uníssono e desapareceram na água.

— Eles planejaram isso, não foi?

— Eu imagino que sim, —disse Sua Graça. — Podemos?

Elas se sentaram à mesa.

— Eu me lembro de você. Você tinha só quinze anos na época, mas me lembro de vocêacompanhando Augustine al Ran.

— Estou lisonjeada, —disse Charlotte.

— Então é Charlotte de Ney?

Não adiantava esconder. — Charlotte de Ney al-te Ran, Vossa Graça.

— Imaginei que fosse. Jack mencionou que você tem vivido no Edge nos últimos três anos.Foi ver sua mãe desde que voltou?

— Não, Vossa Graça.

— Os meninos me deram um resumo do plano de vocês. É verdade? Brennan está envolvidocom o tráfico de escravos?

— Sim, Vossa Graça.

A Duquesa olhou para os dois adolescentes pulando na piscina. — Eu conheço os pais deBrennan. São boas pessoas. Competentes, moralmente íntegros, conscientes de suas

responsabilidades. Eu me pergunto se eles sabem. Duvido. Como pais, sempre nos preocupamose sempre nos perguntamos onde erramos, se foi algo que dissemos ou algo que fizemos. O quepode ter acontecido para que um filho nosso tenha se desviado do caminho certo.

— Com todo o respeito, Vossa Graça, Brennan fez mais do que se perder do caminho certo,—disse Charlotte. — A senhora não acreditaria nos horrores que eu vi.

Uma expressão sombria passou pelo rosto da Duquesa. — Talvez eu acredite. Eu vou teajudar, minha querida. Temos o dever de derrubá-lo.

— Obrigada, Vossa Graça.

Um uivo indignado veio da piscina, seguido pela risada de Sophie.

A Duquesa suspirou. — Sophie não confia em muitas pessoas. Tentei forjar um vínculo com ela, mas a menina, muito educadamente, me mantém à distância. Se Sophie quisesse, poderia morar com a irmã, mas optou por não fazer isso. Ela se mantém afastada. Mas parece que ela tem uma aproximação com você. Isso é algo precioso vindo de Sophie. Por favor, proteja-a.

Treze

GEORGE POSTOU-SE AO LADO DA DUQUESA DASPROVÍNCIAS DO SUL, ou Senhora Olivia, como ela preferia ser chamada, e avaliouo encontro reluzente da alta sociedade de Adrianglia. Nem todos eram Sangue-azuis, mas todoseram ricos, poderosos ou ambos. Senhora Olivia usava uma pulseira verde no pulso esquerdo, oque indicava que ela desejava manter sua privacidade, por isso ninguém ousava se aproximardeles.

Ao redor, o vasto terraço do castelo Evergreen estendia-se pela noite, rodeado por colunasaltas e claras, cada uma sustentando uma cascata de belas flores que cresciam em vasos demármore. Árvores densas cercavam o terraço ao norte e ao sul. Para o oeste, a entrada para oprimeiro andar do castelo estava aberta, iluminada com luz dourada. Lá, os recém-chegadosparavam na entrada e eram anunciados e reconhecidos antes de se misturarem.

À direita, as árvores haviam sido removidas e o solo descia até as águas cintilantes do LagoEvergreen. No céu, acima deles, queimava o pôr do sol, um espetáculo berrante de vermelho edourado tão vívido que quase doía os olhos.

Parado ali, observando as pessoas passarem, George teve uma sensação peculiar dedistanciamento, como se estivesse em um sonho. O Fim da Primavera era uma celebraçãomilenar, nascida em uma época mais violenta, quando a fome dizimava a população, a guerra erafrequente e a vida humana não valia nada. As primeiras pessoas que criaram a Celebração doFim da Primavera usavam roupas simples e carregavam armas selvagens. Elas davam graças aosseus deuses por terem sobrevivido ao verão. Agora seus descendentes flutuavam, vestidos comvestidos finos e casacos feitos sob medida, conhecedores, mas negando a tradição de sangue quedeu origem ao festival. Apesar de toda a pompa essas pessoas ainda eram tão brutais quanto seusantepassados. Se uma ameaça aparecesse, todos neste encontro iriam brilhar com as rajadas deseus flashs enquanto suas magias despedaçava a ameaça.

Como um Camarine George sabia dos fatos comumente conhecidos sobre cada rostofamiliar, como um agente do Espelho, George sabia dos segredos de cada um. A sua frente,Senhora Olla estava vestida em um lindo vestido verde-água-do-mar, uma flor branca sedestacava no cabelo ruivo da senhora. A mulher tinha uma queda por colecionar estatuetas decristal de dragões e era viciada em sumah, um narcótico ilegal. George sabia quem eram seusfornecedores e onde eles podiam ser encontrados. Lorde Ronkor, um ex-oficial de logística eagora supervisor de transporte no Departamento de Políticas Internas. O homem tinha ombroslargos, confiante, exalava um ar de arrogância masculina enquanto dava passos largos pelo chão.Lorde Ronkor gostava de ser espancado por mulheres jovens e era notoriamente rápido na cama,de acordo com as prostitutas que ele frequentava. A esposa de Ronkor nunca descobriu o casoextraconjugal de uma década que seu marido tinha com a irmã da sua melhor amiga. Olha só

quem está aqui! Como vai seu primo, aquele que trabalha na Autoridade Portuária de Kamen?Ele ainda está aceitando subornos? Que patife encantador.

Uma pequena mão repousou no ombro dele. — Você parece distante, meu querido.

Ele curvou ligeiramente a cabeça. — Perdoe-me, Vossa Graça.

A mulher ao lado dele franziu a testa. Seu rosto permaneceu perfeitamente agradável. SuaGraça Olivia Camarine usava um vestido roxo escuro. O tema do Festival era natureza erenascimento, uma celebração da primavera, e o tom do vestido dela combinava precisamentecom os cachos de flores em forma de lágrimas que derramavam dos vasos ao redor. Seu cabeloescuro estava arrumado em um penteado de bom gosto. No final de seus cinquenta anos, aDuquesa parecia vinte anos mais jovem e, apesar de sua idade e de uma vida mais do que penosa,ela continuava muito bonita. Olivia era a mãe de Declan e assumiu o papel de avó, dele e deJack, assim que chegaram do Edge. Esse papel foi oficialmente gravado em pedra quando Declane Rose formalmente adotaram ele e Jack.

— Não deixe que eles incomodem você, —disse ela.

— Eles não me incomodarão. —George sentiu uma onda de gratidão. Muitas dessas pessoasreunidas aqui nunca o deixariam esquecer que ele veio do Edge. Mas muito poucos delesousariam lembrar que a mãe de Sua Graça era um rato Edge como ele.

Sua Graça estava acima de qualquer repreensão em virtude de sua posição e sucesso, masGeorge ainda era um alvo fácil. — Eu sei os segredos de cada um deles.

Ela ergueu as sobrancelhas. — Gabando-se?

— Só um pouco.

— Cuidado para isso não lhe subir à cabeça.

Ele se inclinou para ela e sorriu. — Muito tarde.

— George, você é um malandro terrível.

— Senhora Virai não me aceitaria de outra forma.

— É verdade, infelizmente.

O fato que sua supervisora direta, que também era a líder do Espelho, ser a melhor amiga deSua Graça às vezes tornava a vida dele complicada, mas George aprendeu a lidar com isso.

Os olhos escuros de Senhora Olivia brilharam. — Vamos começar nosso joguinho?

— Como desejar.

Sua Graça tirou a pulseira do pulso esquerdo e a colocou em seu pulso direito.

Imediatamente, o fluxo da multidão mudou. Pequenos redemoinhos se formaram quandoSenhores e Senhoras mais próximos encontraram maneiras graciosas de se desligar de suasconversas para saudar a Duquesa das Províncias do Sul.

Senhora Olivia escondeu sua diversão em um meio sorriso plácido. Ele não estava presentequando ela conheceu Charlotte, mas desde então teve muitas chances de observar as duas.Senhora Olivia gostou de Charlotte instantaneamente. Estava muito claro que elas eram doispássaros da mesma pena, nenhuma das duas nasceram em uma família de Sangue-azul e ambashavia alcançado o auge da realização social. Elas eram ardilosas, hábeis e inteligentes, e ouvir asconversas delas o fez se sentir um pouco perdido.

Pessoas se aproximaram. George proferiu gentilezas, fazendo-as soar como se as quisessedizer. Cerca de dez minutos depois, com a multidão no auge, Senhora Olivia se virou para ele.

— George, você a viu?

— Não, minha Senhora. —Ele podia ver a lista de perguntas nos rostos das pessoas ao redordeles.

— Ela disse que pretendia comparecer?

— Sim, minha senhora. Você deixou bem claro que, de outra forma, ela sofreria sua ira.

Senhora Olivia deu um suspiro de mártir. — Eu realmente não sou tão assustadora assim.

Ninguém riu. História de Adrianglia era uma disciplina obrigatória para qualquer pessoa quedesejasse alcançar qualquer posição significativa dentro do reino, e todas as pessoas ao alcanceda voz da Duquesa sabiam sobre o massacre que encerrou a Guerra dos Dez Dias entre o Ducadoda Louisiana e Adrianglia e quem era a responsável por isso.

— Verifique se ela está vindo para mim, —Sua Graça solicitou.

George abaixou a cabeça e se concentrou. Um falcão disparou de seu posto na coluna maispróxima e voou para longe, na direção do portão da frente. Ele se conectou mais profundamentecom o falcão, olhando através dos olhos do pássaro para a sequência de carruagens. Ai está,modelo mais recente, ornamentação delicada, o rosto de Sophie na janela.

George fez o pássaro sobrevoar a carruagem. — Vossa Graça, elas estão chegando. Dezminutos no máximo.

— Maravilhoso. Obrigada, meu menino.

George colocou de volta no rosto sua expressão de tédio, examinando todos ao redor,observando os mínimos detalhes, enquanto as pessoas tentavam frenéticamente, masdiscretamente, descobrir quem era a pessoa que a Duquesa estava esperando. Um homem alto de

cabelos escuros adentrou na multidão. Lorde Casside. Um membro dos Cinco. O Festival do Fimda Primavera não parecia o tipo de evento que o Lorde estaria presente. Ele deve ter recebido umconvite pessoal de alguém que não podia recusar ...

George se conteve. Não, não é o verdadeiro Casside. É Richard.

Ele assistiu através dos olhos de um morcego quando, duas noites atrás, o pessoal da famíliade Richard sequestrou Casside em uma rua escura. O homem havia deixado o clube onde jogoucom seus parceiros habituais, dobrou a esquina na rua escura e se dirigiu para sua carruagem.Três homens pularam sobre ele, o amordaçaram, o derrubaram, colocaram um saco em suacabeça e o puxaram para o beco escuro. Um momento depois, Richard saiu para a rua, vestidoexatamente com as mesmas roupas de Casside caminhando exatamente igual. Ele se dirigiu acarruagem, entrou e partiu. George sabia disso, mas quando olhou para o homem magro do outrolado do terraço, sua mente não dizia ‘Richard’. Dizia ‘Casside’ e insistia nisso.

Tinha que ser algum tipo de magia sutil, George decidiu. Um desses talentos secretos que osEdgers escondem de todos.

Richard olhou na direção deles, parecendo entediado.

******CHARLOTTE FEZ uma pausa antes da entrada para o terraço. Através das portas, elapodia ver a multidão: pessoas, suas roupas, as joias ... Uma onda elétrica de excitação percorreuo corpo dela. Charlotte tinha feito isso dezenas de vezes, mas a ansiedade da entrada nesseseventos nunca envelhecia.

Sophie deu um passo à frente e passou um pequeno cartão com os nomes e títulos dela parao arauto. O homem pegou o cartão, a moça voltou para seu lugar ao lado de Charlotte. Sophieparecia um pouco mais pálida do que quando saíram da carruagem. Pobre criança.

Charlotte colocou o braço em volta dos ombros de Sophie. — Vai ficar tudo bem, —elamurmurou. — Respire e mantenha sua cabeça erguida. Lembre-se da postura. Você pertenceaqui. É seu direito estar aqui.

Sophie engoliu em seco.

— Baronesa Charlotte de Ney al-te Ran e Sophie al-te Mua, —anunciou o arauto.

******— ALI ESTÁ ELA, —exclamou Senhora Olivia.

Todas as cabeças ao seu lado do terraço se voltaram para a entrada. Charlotte entrou eGeorge piscou. Ela usava um vestido cintilante de azul delicado. O vestido abraçava seu corpo.

Literalmente abraçava seu corpo, exibindo cada curva antes de se alargar em uma saiaesvoaçante que caia no chão, e ele se sentiu vagamente envergonhado de olhar. Tiras de tecidomarrom saiam da parte superior do vestido e se estreitavam na lateral, se espalhando pela saiaazul, imitando galhos finos e retorcidos de uma macieira. Flores brancas, acentuadas com prata,floresciam nos galhos. A silhueta era simples, mas a cor, o corte e o padrão combinavam em umtodo elegante e refinado, e Charlotte, com seu cabelo loiro claro e olhos cinzentos, flutuava nele,como a rainha da primavera.

George quase podia ouvir o suspiro coletivo de uma dúzia de mulheres que perceberam quetinham acabado de ser ofuscadas. Ele arriscou um olhar para Richard. O homem estavaparalisado, seu olhar fixo em Charlotte enquanto ela caminhava pelo chão, e apesar de seu novorosto, naquele momento Richard não se parecia em nada com Casside. Uma mistura de emoçõesrefletia no rosto dele, desespero, paixão, desejo. Durou meio momento e pareceu uma tortura,então Richard vestiu de volta a personagem de Casside, do jeito que alguém veste uma camisapela manhã. Ele deve sentir falta dela.

George voltou a olhar em direção a Charlotte e se esqueceu de respirar. Três passos atrásdela, à esquerda, Sophie atravessou o terraço.

O mundo parou.

Sophie usava um esvoaçante vestido cinza claro com um toque de azul, drapeado no topo,preso por uma faixa, flutuando em uma saia longa leve. Ele via essa mesma cor quando eladesembainhava a espada dela. O vestido brilhava enquanto Sophie caminhava, liso e fluido,como se o metal de sua lâmina tivesse ganhado vida e escorrido sobre ela como um líquido,mudando a cada movimento.

Ele viu as linhas graciosas de seu pescoço.

Ele viu seu cabelo escuro e uma única flor azul claro nele.

Ele viu o rosto dela.

Ela era bonita.

George percebeu que estava parado ali como um idiota, com a boca aberta, e a fechou comforça.

Um momento depois, Charlotte se juntou a eles. Sua Graça a abraçou suavemente.

— Minha querida, eu quase perdi as esperanças.

— Não me atreveria desapontá-la, —Charlotte sorriu.

— E você trouxe Sophie. —Sua Graça abriu os braços e Sophie a abraçou. — Como

conseguiu esconder esta linda flor naquela sua casa de campo?

— O campo é onde as flores desabrocham melhor, —respondeu Charlotte.

— Oh, por favor. —Senhora Olivia fez um gesto de desprezo que poderia orgulhar umadançarina profissional. — Já era hora dessa moça ampliar seus horizontes.

— Com licença, Lorde Camarine?

Uma voz feminina o chamou. George se virou. Senhora Angelia Ermine estava ao lado dele,usando um vestido rabo de sereia61 azul claro. Seu cabelo dourado caramelo caía em umacascata de mechas em seu lado esquerdo, chamando a atenção para seus ombros delicados epescoço longo. Ela era muito atraente, George refletiu de maneira imparcial. Ela também lucravacom a venda de mulheres escravas e roubava-lhes seus futuros filhos.

Seu acompanhante, um homem loiro elegante e bem-vestido em um casaco castanho-avermelhado, sorriu para ele com um brilho sardônico nos olhos—o Barão René, primo deAranha. Barão René parecia se divertir e estava perfeitamente à vontade. Dois dos Cinco de umavez só.

George sorriu. — Posso ajudá-la, minha senhora?

— Por acaso você conhece a Senhora de Ney?

— Eu só a conheci casualmente. Sei que ela tem um talento muito raro. Sua Graça a tem emalta consideração. Algum tipo de favor da família.

— O vestido dela é divino, —Barão René ofereceu. Ele estava olhando para Charlotte comuma apreciação distintamente masculina.

— O modelo é provavelmente da própria autoria da Baronesa, —disse George, mantendosua voz leve. — Você gostaria que eu a apresentasse?

— Suponho que podemos ceder um ou dois minutos. —Angelia encolheu os ombros.

A mulher estava claramente morrendo de vontade de ser apresentada. George deu um passopara o lado, esperou até que Sua Graça se inclinasse para Sophie e ele pudesse captar o olhar deCharlotte.

— Minha senhora, Senhora Angelia Ermine e Barão René.

Charlotte sorriu. — Um prazer.

O Barão René fez uma reverência, levando os dedos de Charlotte aos lábios. Quando ohomem se inclinou, George avistou o rosto de Richard. A expressão dele era tão perfeitamentetranquila e uniforme, que chegava a ser um pouco alarmante.

O Barão René se endireitou. Charlotte e Angelia tocaram as costas das mãos uma na outra.Quando a pele delas se conectaram, um finíssimo tentáculo escuro disparou da mão de Charlottepara a de Angelia. Se George não estivesse olhando de perto, ele teria perdido.

Os dois Sangue-azuis disseram mais algumas palavras sobre o festival e o clima e se foram.

O centro do terraço retumbou. Estava quase escuro. Até aqui tudo bem, ele refletiu.

Os ladrilhos do meio no piso do terraço deslizaram para o lado. A magia surgiu em umaparede translúcida, formando uma coluna alta. Dentro da coluna, algo acendeu. As chamasexplodiram, rugindo para o céu, perfeitamente contidas pela parede de magia—uma imitaçãoperfeita de uma antiga fogueira.

Os Sangue-azuis aplaudiram. George bateu palmas junto com eles, observando Charlotte eSophie com o canto do olho. O terreno estava preparado. Cabia a Charlotte armar sua armadilha.

******CANSADA, CHARLOTTE desceu a escada pela entrada principal, onde a carruagemalugada esperava, o motorista segurava a porta aberta. Sophie caminhava ao lado dela. Elasdesceram os últimos degraus, entraram e afundaram nas almofadas macias dos assentos. Omotorista fechou a porta e, um momento depois, partiram.

Charlotte tirou os sapatos e colocou os pés no assento oposto.

Em frente a ela, Sophie gemeu e fez o mesmo. As duas balançaram os dedos dos pés umapara a outra.

— Ai, ai, ai. —Sophie se inclinou para frente e massageou os dedos dos pés. — Por que ossaltos têm que ser tão altos?

— Primeiro, porque alongam as panturrilhas e fazem com que as pernas pareçam maismagras. Segundo, porque ninguém calçado em saltos tão altos como esse poderia trabalhar,então, se os possui, é porque deve viver uma vida de lazer. —Charlotte se recostou. — No geral,correu muito bem. Devemos um favor a Senhora Olivia.

— O que você fez com Angelia? —Perguntou Sophie.

Charlotte sorriu. — Você percebeu?

— Eu estava muito atenta.

— Angelia já estava infectada com a doença-do-porto, uma forma muito forte e virulenta deherpes. Eu apenas induzi a um surto.

Os olhos de Sophie se arregalaram. — A doença-do-porto não é uma doença sexual?

Charlotte acenou com a cabeça. — Sim. Chamam de doença-do-porto porque éfrequentemente encontrado entre as prostitutas do porto. É curável, mas o tratamento é longo ecaro, e é facilmente evitável com o uso de invólucro masculino62 e vacinação.

— Então, por que ela não foi vacinada?

— Provavelmente porque não ocorreu a ela que poderia pegar essa doença. A questão é:como uma flor delicada Sangue-azul como Angelia acabou contraindo uma doença típica dasprostitutas do porto?

Sophie sorriu. — Essa é uma pergunta interessante.

— Não é? —Charlotte esfregou as mãos. — Acho que podemos entrar em contato comSenhora Olivia e garantir que Angelia receba um convite para um chá. Humm, cerca de dois diasdevem bastar.

— Você é assustadora, —Sophie disse a ela.

Você não tem ideia, querida. Você não tem ideia. — Sim, mas estou do seu lado. —Charlotte estendeu a mão e apertou a mão de Sophie. — Você se saiu tão bem hoje. Vai ficarmais fácil, eu prometo.

— Foi ... emocionante.

— Estou feliz. —Charlotte sorriu. — Você viu George?

Sophie se encostou no encosto do assento. — Eu vi! Ele é tão perfeito, que chega a serrevoltante. —Os olhos de Sophie se arregalaram. — Aquela mulher ao meu lado, aquela comuma rosa verde no cabelo? Ela se inclinou para a outra senhora e disse: ‘Aposto que possoensiná-lo uma ou duas coisas’. E a outra mulher disse: ‘Ele é apenas um garoto’, e a mulher coma rosa verde disse: ‘Esse é o melhor momento na vida de um homem: são fáceis de controlar epodem gozar uma vez e outra e mais outra.’ Dá para acreditar nisso? Aquela mulher deve tertrinta anos! É nojento.

Sophie mostrou a língua e fez um barulho de ânsia de vômito.

Charlotte sorriu. — Não acho que George esteja em perigo. Ele tem aquela expressão‘estou-acima-de-tudo-isso’ e se mantem friamente distante de qualquer um. Além disso, aduquesa iria fritar qualquer uma que olhasse para ele da maneira errada.

Os olhos escuros de Sophie ficaram sérios. — É assim que deve ser?

— Como?

— Devemos ser obcecadas por sexo?

Sophie perguntou em voz baixa, e Charlotte sentiu que a resposta era muito importante. —

Depende da mulher. Não somos todas feitas do mesmo tecido. Algumas mulheres amadurecemmais rápido, outras mais devagar; algumas buscam ativamente o prazer sexual, e outras nãovalorizam tanto. Por que você pergunta?

— Eu não quero fazer isso.

Charlotte inclinou a cabeça, tentando ver melhor o rosto de Sophie.

— O que você não quer?

— Não quero fazer sexo, —disse Sophie. — Talvez mais tarde. Mas agora não. Eu tenhoamigos. Eles se beijam. Os garotos só querem saber de ... você sabe. Tocar.

— Humm. —Charlotte acenou com a cabeça.

— Eu não gosto de ser tocada. Um deles tentou, e eu disse a ele que não gostei. Ele agiucomo se houvesse algo errado comigo.

Charlotte fez uma pausa. Havia tanta coisa que ela queria explicar, mas o pequeno vínculode confiança entre elas era ainda muito frágil. Ela tinha que encontrar as palavras certas.

— Não há nada de errado com você. Seu corpo pertence somente a você. Tocar é umprivilégio e cabe a você concedê-lo. Alguns meninos e homens, não lidam bem com a rejeição, eeles vão tentar envergonhá-la ou pressioná-la a deixá-los fazer o que querem porque se sentemno direito. Eles não valem o seu tempo. Além disso, não há nada de errado em não gostar detoques ou beijos sexuais. Para algumas meninas, o despertar sexual chega cedo, para outras, maistarde. Eu tinha quase dezessete anos quando me interessei sexualmente por um garoto e, mesmoassim, foi por causa desse garoto em particular de que eu gostava, e não dos homens em geral.

Sophie olhou pela janela.

Charlotte não sabia se havia dito a coisa certa ou errada.

É assim que os pais devem se sentir. A Duquesa estava certa. Nunca saber se fez mal oubem era horrível.

— Desculpe-me, —disse Sophie. — É que não tenho mais ninguém a quem perguntar.Minha irmã está sempre ausente nas suas missões com William. Minhas tias sempre queremsaber quem é e qual é o nome dele. E eu não posso perguntar a Richard.

— Oh, deuses, não, não pergunte a Richard.

— Ele ficaria escandalizado. —Sophie apertou os lábios, como se tentasse conter umarisada.

— Se ele souber que alguém tentou tocá-la contra a sua vontade, ele matará esse alguém. —Charlotte pigarreou e tentou produzir uma imitação razoável da voz rouca de Richard. ‘Eu vou

decapitar esse desgraçado. Por favor, não me esperem para o jantar. Não há necessidade de seincomodar por minha causa.’

Sophie apertou os lábios com mais força, mas a gargalhada explodiu de qualquer maneira.— Ele diria isso! ‘Vou trazer a cabeça dele. Se quiser pode usar o crânio dele como um vaso.Não tem porque desperdiçar um crânio perfeitamente bom.’

Charlotte deu uma risadinha. — Somos tão mórbidas.

Elas gargalharam novamente. Sophie tentou se conter e bufou. — Oh não, eu sou tão poucofeminina.

Isso só as fez gargalhar ainda mais.

Finalmente, elas pararam.

— Pode me perguntar qualquer coisa, Sophie, —disse Charlotte. — Eu não me importo.

— E agora, qual o próximo passo? —Perguntou Sophie.

— Amanhã, Richard vai ao clube para seu jogo de cartas semanal. É possível que Brennanesteja lá. —O coração de Charlotte deu um salto. Não haverá perigo, ela se tranquilizou. Richardhavia enganado a todos, exceto um antigo criado particular, que ele teve que substituir. Overdadeiro Casside e seu criado particular estavam agora guardados em segurança em uma dasmasmorras de Declan. A chance de Brennan perceber que Richard era um impostor era muitopequena.

Muito, muito pequena.

— E depois? —Perguntou Sophie.

— Então faremos Brennan pensar que ele está sendo traído.

******RICHARD ESTAVA sentado em uma mesa pentagonal, revisando suas cartas. Ele tinhao jogo vencedor. Examinou os rostos dos outros quatro homens à mesa. A Cimeira do Weird eraum jogo de estratégia e blefe, muito parecido com o pôquer do Broken. Ele aprendeu a examinarcartas quando mal tinha idade para entender o jogo. Era um jogo que exigia boa memória eatenção. Brincadeira de criança.

À sua direita, Lorde Korban franziu a testa ligeiramente, tentando disfarçar que tambémestava revisando as próprias cartas. Ao lado dele, Robert Brennan sorriu para Richard por cimade suas cartas. O homem parecia despreocupado e completamente à vontade, como se estivesserelaxado em casa. Brennan não se parecia com o homem que teve seu comércio de escravos nailha virado cinzas uma semana e meia atrás.

Lorameh, um veterano da Força Aérea, sentava-se ao lado de Brennan. Lorameh parecia serum homem completamente normal: cabelo loiro claro, preso em um rabo de cavalo na nuca,olhos claros, nem bonito nem feio. Ele conhecia Brennan há muito tempo, e os dois se tratavamcom muita familiaridade.

Ao lado de Lorameh, Maedoc, que olhava severamente e fixamente as cartas em sua mão,completava o círculo. Diferente da despreocupação de Brennan, Maedoc revia suas cartas comum ar mortalmente sério, como se o destino do reino dependesse da sua vitória nesse jogo.

Se Richard lançasse uma aposta, Lorameh desistiria do jogo, Korban entraria em pânico e aprincípio aceitaria a aposta, mas depois mudaria de ideia e desistiria na primeira oportunidade.Maedoc aceitaria obstinadamente a aposta, porque embora as cartas na mão de Maedoc fossemmedíocres, o homem via a desistência como a mais fraca das escolhas. Brennan ... as cartas namão dele eram fracas, mas Brennan era um enigma.

— Aposto, —disse Richard.

— Aceito. —Korban deslizou uma moeda em direção à pilha de ouro no centro da mesa.

— Desisto. —Lorameh jogou suas cartas. — Muito dinheiro para o meu gosto.

— Aceito, —disse Brennan, acrescentando sua própria moeda na pilha de ouro. O canto daboca de Brennan se curvou.

— Aceito, —rosnou Maedoc.

— Vivendo perigosamente, Robert, —disse Lorameh.

— O perigo adiciona tempero a uma existência mundana, —disse Brennan.

— Você acabou de chegar de uma viagem para a costa sudeste, enquanto eu trabalhei comoescravo sentado em minha mesa, —disse Lorameh. — De nós dois, minha existência é muitomais mundana.

— Fui visitar um amigo, —disse Brennan.

— Um amigo com belas curvas suaves e lindos olhos azuis, talvez? —Lorameh perguntou.

— Um cavaleiro jamais fala. Sua jogada, Casside.

Havia uma leve nota de comando na voz de Brennan. — Aposto, —disse Richardnovamente, e deslizou uma outra moeda de ouro para o centro da mesa.

Brennan também avaliou as cartas. Ele sabia exatamente que tipo de cartas Richard tinhanas mãos. Onde Brennan queria chegar com este plano?

— Desisto! —Korban largou suas cartas.

— Aceito. —Brennan adicionou mais dinheiro.

Maedoc hesitou.

— Nosso bravo soldado está pensando em se render? —Disse Brennan.

Risadas baixas rolaram ao redor da mesa. Richard se permitiu um sorriso esparso para nãodestacar o rosto.

O rosto de Maedoc ficou mais vermelho. Ele deslizou outra moeda para a pilha.

— Aceito.

O que está acontecendo aqui? Richard considerou as possíveis respostas para decidir o quefaria a seguir. Casside continuaria jogando. O homem era movido por dinheiro e o pequenotesouro de ouro na mesa era substancial. — Aposto.

— Aumentando a aposta, Casside? —Brennan olhou diretamente para ele. — Você deveriafazer uma grande aposta de uma só vez.

O tom de Brennan era suave, mas seu olhar não deixava dúvidas, era uma ordem.

— Muito bem. —Richard deslizou todas as suas moedas para o centro da mesa.

Lorameh assobiou baixinho. Korban ficou um pouco mais pálido.

— Aceito, —disse Brennan. Ele empurrou uma torre de moedas para o centro com ummovimento descuidado da mão e se virou para Maedoc.

Era um castigo, Richard percebeu. Maedoc estava sendo punido pelo fracasso dostraficantes na ilha. Maedoc era quem supervisionava os bandos de traficantes contratados. Aviolação da segurança foi culpa de Maedoc, e agora Brennan o estava humilhando publicamente.

O grande homem olhou para Brennan com os dentes cerrados.

— Você está do nosso lado ou contra nós, Maedoc? —Brennan perguntou.

Os músculos da mandíbula de Maedoc tensionaram. Ele olhou para as moedas. Dos cinco,Maedoc era o menos rico. Tanto Brennan quanto Casside tinham recursos, mas para os outrostrês Sangue-azuis, a falta de recursos era um perigo real.

A tensão no rosto de Maedoc era claramente visível. Richard não sentiu simpatia pelohomem. As memórias de buracos no solo, inundados pela água da chuva e cheios de crianças, domenino com os lábios costurados e de pessoas escravizadas meio mortas eram muito recentes.

— E então? —Brennan bateu na mesa.

— Do lado de vocês. —Maedoc empurrou o ouro para a frente.

— Sua vez, —Brennan olhou para Richard.

— Ataque Triplo Real. —Richard deixou cair um rei, três cavaleiros e um arqueiro na mesa.

O rosto de Maedoc ficou roxo. — Ataque duplo, —ele resmungou, e deixou as cartascaírem. Dois cavaleiros, um escudeiro, um mensageiro e um ferreiro.

— Dois mensageiros, dois escudeiros e um carpinteiro. —Brennan espalhou as cartas namesa. — Você venceu, Casside.

— Suas cartas foram as piores, Brennan, —disse Korban.

— Questão de sorte. —Brennan sorriu.

Ele se levantou e deslizou o dinheiro para Richard. — Pegue antes que mudemos de ideia.

Maedoc parecia que teria um ataque a qualquer momento. Richard escondeu um sorriso.Isso dizia muito sobre sua própria moral, mas qualquer coisa que ferisse os Cinco lhe traziaalegria.

Lorameh tinha uma expressão estranha no rosto, o homem não tinha certeza do que tinhaacontecido, mas não gostou.

— Acho que vou levar meu pequeno tesouro para casa. —Richard colocou as moedas emum saco.

— Eu vou acompanhá-lo. —Brennan se levantou.

Eles saíram do clube na noite. Choveu. A umidade pairava no ar e a água da chuvaacumulava-se nas pedras irregulares sob seus pés. O clube ocupava um dos prédios restauradosdo Castelo Carver, e a rua estreita se curvava, serpenteando pelo emaranhado de edifícios, queoutrora abrigaram servos, cavaleiros e soldados. Aqui e ali, lanternas mágicas caíam em cascatadas paredes, suas luzes pálidas diluindo a escuridão em vez de bani-la.

— Você jogou de forma bastante ousada esta noite, —disse Brennan.

O que Casside responderia? — Não gosto de perder dinheiro.

Brennan fez uma careta. — Todos nós acabamos de perder muito dinheiro com o queaconteceu na ilha.

— Quão rápido podemos nos recuperar? —Richard perguntou.

— Os esforços estão em andamento agora. Seis meses. —O rosto de Brennan estremeceu.Uma carranca feia distorceu suas feições, como se a fúria dentro dele lutasse para rasgar amáscara fina de papel de seu comportamento tranquilo. O homem tinha um temperamento.Richard o arquivou para referência futura. — Foi o Caçador. Coloquei trezentos homens e um

ano inteiro atrás do desgraçado, mas não conseguiram matá-lo.

A ironia era muita generosa. Era hora de empurrar cuidadosamente Brennan na direçãocerta. — Eu me pergunto como isso é possível.

Brennan girou em um pé em direção a ele. — O que está insinuando?

— Acho estranho que esses trezentos homens possam encontrar um casal de gêmeos deidade e cor específicas, mas não consigam encontrar o Caçador.

A passagem se alargou, circulando a fortaleza principal. Alguns momentos e eles passariampelo portão em arco e alcançariam o pátio principal e suas carruagens.

Algo se moveu na escuridão perto do arco.

Brennan parou. Richard colocou a mão no florete. Casside era um esgrimista habilidoso—como muitos Sangues-azuis, ele teve uma educação marcial adequada. A espada fina não era aarma preferida de Richard, e não poder usar sua magia o atrapalharia. Casside não sabia esticar oflash em sua espada. Era uma arte perdida, conhecida por poucos. E agora que ele era Casside,Richard teria que se virar sem isso.

Pessoas se moveram dentro do arco, silhuetas sombrias na escuridão.

Brennan ergueu a cabeça. — O que temos aqui?

Flechas assobiaram no ar. A magia de Brennan brilhou, explodindo dele em um escudo deflash branco brilhante, desintegrando as flechas.

Um flash azul brilhante disparou atrás deles, ameaçando cortar Brennan ao meio. Richard oempurrou para fora do caminho. O flash queimou as pedras entre eles.

Richard disparou na escuridão na direção do flash, seu florete desembainhado, contando ossegundos baixinho. Um, dois, três, quatro. Outro raio azul o atingiu. O flash precisava de quatrosegundos para recarregar. Os usuários de magia mais talentosos podiam fazer issoinstantaneamente, mas a maioria precisava de tempo para recarregar sua magia.

Richard se esquivou e a magia atingiu as pedras. O atirador de flash entregou sua posição.Richard agora sabia de onde o ataque vinha: três pessoas esperando na alcova à esquerda, umusuário de magia e dois lutadores.

Richard atacou. Um.

A lutadora à esquerda, uma mulher esguia e ágil, o atacou, girando, suas duas espadascortando como um tornado afiado. Ele se esquivou para a esquerda, para a direita e para aesquerda novamente. Dois. A espada maior roçou seu peito, cortando o casaco de couro. O açoqueimou sua pele.

Três.

A mulher aproveitou a vantagem.

Quatro. Ele desviou para a direita, evitando o flash por um mero segundo, avançou e sorriuquando a ponta de seu florete estourou o coração de seu oponente. A mulher caiu.

Um. O homem grande atrás dela saltou, tomando o lugar da mulher, atacando-o com ummachado curto e cruel. Dois. Três. Richard recuou. Quatro. Seus instintos gritaram e ele se jogoupara a esquerda, meio segundo antes de outro raio abrir um buraco na parede de pedra atrás dele.

O lutador com machado se chocou contra ele, desequilibrando-o. Perto demais para umainvestida. Richard virou para a esquerda, agarrou o braço direito do lutador com machado, opuxando para frente e acertou o punho pesado do florete no olho esquerdo dele. O homem uivoude dor. Três. Richard o girou e o empurrou para frente. O flash atingiu o lutador com machado.O fedor de carne humana fumegante encheu o ar.

Richard correu, colocando toda a sua velocidade na corrida. O tempo desacelerou,estendendo-se como mel viscoso.

Ele viu a usuária de magia, uma mulher baixa e gorda. Lentamente, como se estivessedebaixo d'água, ela abriu a boca, erguendo os braços. A primeira faísca azul brilhante do flash seformou entre seus dedos, saído da pele dela como raízes de relâmpago.

Ele a golpeou com a espada. A lâmina atravessou o crescente emaranhado de magia, depoiso seio esquerdo da mulher e direto em seu pulmão. Richard havia errado o coração dela por umfio.

Ele se jogou para a esquerda. A magia saiu dela em um feixe largo. Ela tentou gritar, mas aspalavras gorgolejaram em sua garganta. Richard largou o florete, a agarrou pelo lado e quebrouseu pescoço com um puxão rápido.

Custou-lhe meio segundo para recuperar sua espada. Richard correu de volta. Quando elepediu a Garett, seu primo, para contratar bandidos para matar Brennan, ele o avisou paracontratar bandidos capazes o suficiente para fazer Brennan se preocupar seriamente com umapossível ameaça, mas não tanto que matassem Brennan de verdade. Por mais satisfatório quepudesse ser, Brennan não poderia morrer. Mas Richard nunca imaginou que seu primocontrataria uma manipuladora de flash e monte de lutadores habilidosos. Havia uma pequenachance de que esses bandidos pudessem realmente ter matado Brennan, e seu esquemadesmoronaria antes mesmo de começar.

Richard dobrou a curva. Brennan curvava-se sobre um homem deitado, respirando comdificuldade, seu rosto uma máscara feia e selvagem. Uma gota espessa de sangue vermelho

brilhante derramava de seu couro cabeludo em seu rosto. Três corpos esparramados nas pedrasdo calçamento. Nenhum deles se movia.

Brennan agarrou um homem pela camisa e o esfaqueou.

O homem gritou.

— Quem os mandou? —Brennan exigiu, sua voz um grunhido áspero. — Quem?

— Eu não sei, —o homem gemeu.

Brennan torceu a adaga na ferida. — Quem?

— Kordon disse ... —A voz do homem estava sumindo. — Ele disse ... que foi ...

— O que? —Brennan o puxou mais alto.

— Águia, —sussurrou o homem. Seus olhos reviraram em seu crânio. Seu corpo seconvulsionou uma vez e ele cedeu nas garras de Brennan. O primo do rei olhou para o corpoinerte, com os olhos esbugalhados. Ele parecia perturbado. Então a raiva desapareceu e Brennanrecobrou a compostura como uma máscara.

— Robert! —Richard afundou a força em seu sussurro. — Devemos partir. Haveráperguntas.

Brennan largou o cadáver, espanou as mãos e entrou na rua em forma de arcos, com passosrápidos. — Você trouxe uma carruagem?

— Sim.

— Vamos nela, então. Seus servos são confiáveis?

Richard escondeu um sorriso. Ele havia substituído todos os funcionários da casa pormembros de sua família. Não havia uma única pessoa naquela casa cujo sobrenome não fosseMar. — Completamente.

— Bom.

A rua em forma de arco terminou, abrindo-se para um pátio bem iluminado cheio decarruagens e cavalos. Richard parou, puxou um lenço de suas roupas e o empurrou para Brennan.— Sangue.

— Obrigado. —Brennan pressionou o pano sobre o sangue. Eles cruzaram o espaçorapidamente. Richard abriu a porta da carruagem e Brennan entrou no banco largo. Richard subiuatrás dele e deixou seus dedos voarem sobre os controles. O painel ornamentado zumbiu, asengrenagens começaram a girar e a carruagem ganhou vida. Ele saiu do pátio, mantendo umavelocidade constante.

Sete vidas perdidas. Eram assassinos profissionais. Ele não sentia culpa, mas uma vagainsatisfação. Alguma parte dele deve ter secretamente esperado que Brennan morresse.

Brennan limpou o sangue do couro cabeludo. — Bem! Já tinha um tempo que eu não medivertia tanto. E você?

Richard analisou as possíveis respostas de Casside. — Você tem uma ideia estranha dediversão.

— Você sempre foi um homem cauteloso, Casside. —Brennan deu um soco amigável emseu ombro. — Vamos lá. Assuma. Você deve ter se sentido vivo por alguns minutos.

— Eu sempre tive plena consciência de estar vivo. E queria continuar assim, também.

— E você está. Toda aquela esgrima valeu a pena. Não se preocupe, Casside. Você não erao alvo. Eles vieram direto para mim. —Brennan sorriu aquele sorriso contagiante que o tornoufamoso. — É uma pena que não tenham sido um desafio maior.

Se Richard não tivesse evidências irrefutáveis de que Brennan foi responsável por centenasde vidas destruídas, ele poderia ter se imaginado gostado deste homem.

Depois de dez minutos, Richard estacionou em frente à mansão de Casside e conduziuBrennan para dentro. Orena, sua prima em segundo grau, os encontrou em um saguão, viuBrennan sangrando e arregalou os olhos. — Álcool, pomada, trapos, —disse Richard. —Imediatamente.

Brennan piscou para a mulher. — Ele é sempre tão mandão?

Orena baixou a cabeça e saiu.

— Seu pessoal é muito sério, Casside.

— Eles conhecem minha família há muito tempo. Não assumem seus deveres levianamente.—Richard conduziu Brennan para o escritório. Orena reapareceu com suprimentos médicos,seguida por tia Pete.

— Ambas são cirurgiãs treinadas, —assegurou Richard a Brennan.

Brennan se recostou, oferecendo o corte em sua testa para Orena. — Acha que pode medeixar bonito de novo?

— Sim, meu senhor.

Em dez minutos, o corte na cabeça de Brennan foi lavado, desinfetado e costurado. Seupróprio ferimento exigia apenas curativo e algumas bandagens de borboleta. As mulherespartiram, levando trapos ensanguentados.

Richard afundou em uma cadeira. — Eu abomino a violência.

Brennan olhou para ele. — E quem não abomina, meu amigo? Todos nós.

Richard acenou com a cabeça. Casside nunca havia servido o serviço militar, um fato queBrennan provavelmente sabia. Ele pegou uma jarra com chá vermelho e tremeu a mãofalsamente ao despejá-lo no copo. O bico do jarro bateu na borda do copo.

Brennan se levantou. — Deixe-me fazer isso. —Ele pegou a jarra e encheu dois copos.

— Obrigado. —Richard deu um gole em sua bebida.

— Parece que isso realmente o abalou. —Brennan observou Richard com atenção.

— Nem um pouco, —disse Richard, fazendo um falso esforço óbvio para manter o copofirme. — Eu só quero saber quem e por quê. E o que diabos é a ‘Águia’?

Brennan bebeu de seu copo e o estudou. — Bom chá. A Águia está no brasão da famíliaMaedoc. Seu pai era conhecido como Águia Branca. Maedoc, em sua própria época de serviçomilitar, era chamado de Águia Negra. Seu filho, desde que escolha uma carreira militar como asquatro gerações anteriores, também será chamado de Águia. Bela tradição, não é? Há umaelegância sutil nas antigas linhagens de Sangue-azul.

— Maedoc? —Richard ergueu as sobrancelhas. — Suponho que ele sabia exatamente ondevocê estaria. Tenho certeza de que perder o dinheiro o afetou muito, mas assassinato? Por quê?

— Uma tentativa de tomar o poder, talvez. —Brennan virou o copo para a direita e depoispara a esquerda, estudando o jogo de luz no chá vermelho de framboesa. — Ele pode ter secansado da minha liderança. O ataque à ilha desestabilizou nosso pequeno empreendimento.Seria um excelente momento para uma troca de liderança, e ele pretende tomar o meu lugar.

Beleza. Richard se inclinou para frente. Brennan mordeu a isca, anzol, linha e chumbada. —Maedoc nunca poderia comandar nossos negócios. Ele sabe isso. Não só isso, mas o resto de nóstrês não aceitaríamos isso.

Brennan franziu as sobrancelhas. — Não se engane. René odeia Adrianglia por ser obrigadoa estar aqui. Ele não se importa quem está no comando, contanto que tenha permissão para lucrarenfiando uma vara na engrenagem de nosso reino. Angelia é uma criatura distorcida, ela seguiráquem lhe entregar o maior diamante e sussurrar palavras doces em seus ouvidos enquantodespeja moedas em sua bolsa. E você, bem, você gosta de dinheiro. Você está à venda, meuamigo. Foi assim que eu o convenci em primeiro lugar. Estou muito velho para ilusões, amizadese lealdades são qualidades excelentes, mas a voz da ética enfraquece diante da riqueza.

O plano dependia de lançar suspeitas sobre o general aposentado. Brennan considerava

René e Angelia muito fracos para vê-los como verdadeira ameaça. De todos eles, apenas Maedocpoderia representar uma séria ameaça a liderança de Brennan no comércio de escravos, eBrennan tinha que ver a ameaça como significativa ou não o abalaria.

— Maedoc estava encarregado da segurança da ilha, —pensou Richard em voz alta.

Brennan deu a ele um olhar penetrante. Gelado e calculista, aquele olhar agarrou Richard epor um segundo sentiu a mesma calma que descia sobre ele quando enfrentava um lutador comuma espada a um metro dele em terreno aberto.

Dentro da cabeça de Richard, um alarme soou. Cuidado. Cuidado, agora. Não seja muitoóbvio.

— Você sabe como a ilha foi saqueada?

Sim ou não? Qual foi a resposta certa? — Não os detalhes.

— Os bandidos fingiram ser traficantes e escravos e tomaram posse do nosso navio.Drayton, aquele idiota, deve tê-los deixado embarcar. Os falsos traficantes enviaram todos ossinais corretos e tiveram permissão para entrar no porto e atracar bem à vista do forte.Testemunhas dizem que um bando de traficantes e escravos desembarcaram. Eles massacraramos traficantes que encontraram e se espalharam pela ilha, atingindo alvos precisos. Um grupoatacou o forte, o seguinte atingiu o quartel, o terceiro abriu os currais de escravos. Admirável,não é? Audaz. Imaginativo. Arriscado.

Brennan fez uma pausa, oferecendo a ele a oportunidade de fazer uma contribuição. É umaarmadilha. Um teste. Brennan estava o observando muito de perto. Richard precisava de umaresposta neutra. — É difícil achar isso admirável sabendo o quanto de dinheiro perdemos.

— Esqueça o dinheiro por um momento. Pense na petulante elegância do que fizeram. Esteataque é tudo o que Maedoc não é. Oh, ele é aclamado como um estrategista brilhante, mas euestudei seu histórico militar. Maedoc é um touro, meu amigo. Ele vê o alvo e avança na direção.Ousadia e artifícios estão muito além dele. Se Maedoc quisesse me substituir, teria me atacadodiretamente. Não apenas isso, mas por que Maedoc se identificaria como a ‘Águia’? Por que nãosimplesmente inventar um nome? Na verdade, por que dar um nome? Aqueles eram assassinoscontratados, os termos desse tipo de assassinos são simples: dinheiro em troca de vidas, de seusalvos ou de suas próprias.

Brennan não acreditou na traição de Maedoc. A decepção em Richard era tão forte que elepodia sentir o gosto. Richard enterrou o sentimento, no mesmo lugar profundo em que enterrousua culpa e memórias. Nenhuma expressão poderia aparecer em seu rosto. Ele esperava pouparCharlotte de se envolver, mas Brennan era muito lógico e cauteloso. Teria agora que contar com

a parte do plano de Charlotte. Inferno.

Brennan deu um grande gole no chá. — Não, este assunto é muito mais intricado. A menteque concebeu o ataque é provavelmente a mesma que lucraria com as repercussões que causaria.Essa pessoa procuraria usar minha fraqueza em seu proveito. Sabemos que ela é traiçoeira eastuta. Considerou a possibilidade do ataque não ter sucesso e tomou precauções para apontar onome de outra pessoa. Portanto, o culpado não pode ser Maedoc. Seria simplesmente muitoóbvio, mesmo para ele. Não, o culpado é um de vocês, René, Angelia, ou talvez até mesmo você,meu amigo.

Richard colocou o copo na mesa. — O que está insinuando?

Brennan sorriu, outro sorriso encantador. — Oh, relaxe, Casside. Você está no fim da minhalista de suspeitos. Não acredito em banalidades ou garantias de lealdade, mas acredito nessetremor em sua mão. Você simplesmente não tem coragem para tanto. Não colocaria sua própriavida em perigo.

— Estou inclinado a considerar isso um insulto. —Richard se levantou da cadeira.

Brennan suspirou. — Oh, sente-se. Você é corajoso o suficiente. Não estou contestando suacoragem. Ninguém pode evitar a simples reação biológica do próprio corpo. A questão é quetemos um traidor em nosso meio. Pretendo descobrir quem é.

Brennan sorriu.

— Isso será muito divertido, Casside. E aqui estava eu planejando ficar entediado.

— Prefiro o tédio em vez disso, obrigado. Você está cansado? É bem-vindo para passar anoite.

Brennan acenou com a mão. — Não. Preciso da noite, respirar, viver. Uma mulher. Talvezeu faça uma visita a Angelia, embora ela realmente seja muito problemática. A mulher gosta deser persuadida e não estou inclinado a me incomodar. Você costuma se misturar as ralés?

— Não.

— Deveria. —O rosto de Brennan assumiu uma qualidade sonhadora. — É bom para ocorpo e, ocasionalmente, para a alma. Há um lugar maravilhoso na Baixada da Cidade. Eles ochamam de Palácio das Delícias. Pergunte por Miranda.

— Deixe que alguém de meu pessoal te acompanhe até sua casa. Os ferimentos na cabeça àsvezes têm consequências ocultas. Robert, não brinque com sua vida. Não sabemos quantos delesestão emboscados por aí. Talvez haja outro bando ...

— Tudo bem, tudo bem. —Brennan acenou com a mão. — Você arruinou toda a minha

diversão.

Richard se levantou. — Pedirei para providenciarem uma carruagem.

— Casside?

— Sim.

— Não vou esquecer o que fez por mim hoje, —disse Brennan.

— Como quer que eu haja daqui para frente? —Richard perguntou.

—— Haja normalmente. Nada fora do comum. Ligarei para você quando o plano estiverpronto. Este jogo promete ser brilhante e pretendo aproveitar cada momento dele.

QuATORZECHARLOTTE SENTOU-SE EM FRENTE A ANGELIA ERMINEE OBSERVOU A outra mulher tentar ignorar a coceira ardente sob a túnica rendadamodelo do Sul que ela vestia. Elas se sentaram em uma varanda da casa da Senhora Olivia nacidade, ao redor de uma mesa delicada esculpida em uma peça sólida de cristal. Havia na mesauma dúzia de sobremesas e três chás diferentes. Outras seis mulheres estavam presentes nareunião e pareciam apreciar o momento, com exceção de Angelia. A mulher parecia queapreciaria mais uma boa esfregada na pele, possivelmente com uma lixa de alta qualidade.Infelizmente para ela, Sua Graça estava contando uma história encantadora de seu passado, e ameia dúzia de outras participantes prestava atenção em cada palavra dela. Pedir licença para e secoçar não era uma opção.

— E então eu disse que se ele fosse cair a esse nível de grosseria, eu seria forçada a retaliar... —Sua Graça parecia completamente absorta em sua anedota, exceto por um breve olharocasional na direção de Charlotte.

A coceira deve ter atingido níveis torturantes, porque Angelia desistiu de manter umafachada de atenção e trancou os dentes. O suor brotou na testa dela. Sua doença atingira o auge eCharlotte a estimulava em silêncio. Qualquer outra mulher teria enviado suas desculpas e ficadoem casa, mas Angelia era uma alpinista social. Ela era uma Sangue-azul sem muito prestígio,com uma linhagem de sangue indistinta e realizações medíocres. Um chá com a Duquesa dasProvíncias do Sul era uma isca que ela não podia ignorar.

Charlotte bebeu um gole de chá de sua xícara. O sabor refinado, matizado com uma gota delimão e um toque de menta, era excepcionalmente refrescante. Teria que implorar a SenhoraOlivia pela receita.

— E então eu dei um tapa nele, —Sua Graça anunciou.

As mulheres ao redor da mesa ofegaram, algumas genuinamente surpresas, outras, comoCharlotte, por senso de dever.

— Com licença, —Angelia disse. Ela se levantou de um salto e saiu correndo da mesa.

Um silêncio chocado reivindicou a reunião.

— Bem, —disse Senhora Olivia.

— Com sua permissão, Vossa Graça, eu deveria dar uma olhada nela, —Charlotte dobrou oguardanapo.

— Sim, claro, minha querida.

Charlotte se levantou e foi em direção ao banheiro. Atrás dela, Senhora Olivia perguntou: —Onde eu estava mesmo?

— Você deu um tapa nele, —sugeriu Sophie prestativamente.

— Ah sim ...

Charlotte saiu da varanda, atravessou a marquise e parou no banheiro. Soluços histéricosecoaram pela porta. Perfeito.

Charlotte tirou uma chave de dentro da manga, destrancou a porta e entrou. Angeliacongelou. Ela estava diante do espelho, sua túnica jogada descuidadamente no chão. Bolhasvermelhas brilhantes cobriam seu corpo, algumas do tamanho de uma unha, rodeadas por úlcerasmenores, lembrando constelações. Algumas estavam abertas, com pus úmido.

— Oh meu Deus, —Charlotte murmurou, e fechou a porta atrás de si.

As emoções caíram em cascata pelo rosto de Angelia: choque, indignação, fúria, vergonha,contemplação ... A mulher pairava entre essas emoções, tentando escolher a certo, a maisvantajosa para ela. Durou apenas alguns segundos, mas Charlotte viu claramente. O rosto doce emuitas vezes vazio de Angelia Ermine escondia a mente de uma estrategista. Charlotte teria queser excepcionalmente cuidadosa. Angelia levou as mãos ao rosto e chorou. Escolha apropriadade emoção, com certeza para ganhar simpatia. Charlotte apertou a chave em seu punho. Angeliahavia arrancado a maternidade de dezenas de mulheres. Se pudesse matá-la. Oh, se pudesse.

— Shiii, shiii. —Charlotte forçou uma calma tranquilizante em sua voz. — Está tudo bem.

Angelia curvou-se sobre a pia, chorando como uma pomba histérica. — Oh, Senhora al-teRan. Olhe para mim.

Muito dramática. — Você sabe que doença é esta? —Charlotte perguntou.

A mulher soluçou. — Olha, está no meu pescoço agora. Todo mundo vai ver.

Boa distração, minha querida. Não vai funcionar. — Você está usando renda com fibras deseda crua. A seda crua tende a agravar a doença-do-porto.

Angelia se engasgou com as lágrimas.

Isso mesmo, sei exatamente a causa dessas suas feridas. Angelia estava dormindo comBrennan, que era, ao que tudo indicava, possessivo. Provavelmente Brennan era o único amanteatual de Angelia, mas Angelia não era a única diversão de Brennan. Parece que o primo do reicostuma visitar profissionais do sexo e acabou dando essa doença como um presente paraAngelia.

— Está tudo bem. —Charlotte fingiu hesitação. — Olha, esse é o seu segredo. Eu tambémtenho meu próprio segredo. Vou ajudá-la com o seu se prometer manter o meu para si mesma.Pode fazer isso, Angelia?

A mulher acenou com a cabeça.

Charlotte estendeu a mão e a tocou, lutando contra a náusea. Ajudar Angelia revirou seuestômago. Charlotte deixou sua magia infiltrar-se no corpo moribundo da mulher. Ela encontrouo patógeno63 , forçou a doença entrar em dormência e estimulou a regeneração das células dapele. As bolhas estouraram, secaram e cicatrizaram, transformando-se em manchas vermelhasfracas.

— Oh, meus deuses, —sussurrou Angelia, esquecendo-se por um momento de representarseu papel dramático.

Charlotte olhou para as duas no espelho, próximas uma da outra. — Sentir-se melhor?

— Você é uma Curadora!

— E você não pode contar a ninguém, Angelia. Ninguém. Os Curadores não estão segurosfora de seus Institutos de Cura. Como somos proibidos de causar danos a alguém, acabamossendo alvos fáceis. Tenho sua promessa?

— Claro. Não contarei a ninguém.

Charlotte pegou a túnica de Angelia. — Aqui, vista-se.

A mulher mais jovem vestiu a túnica. Charlotte ajeitou o cabelo dela. — Bela como sempre.

Angelia fungou. Foi uma fugada adorável. Teria funcionado ainda melhor se ela não fosseum monstro.

— A partir de hoje, você deve me visitar. Curá-la completamente demorará muito maistempo, e não temos tempo agora. Queixo para cima.

— O que vamos dizer a elas?

— Vamos dizer que você teve um ataque de alergia alimentar. Vai ficar tudo bem. ADuquesa sabe o que eu sou e confia no meu julgamento. —Charlotte abriu a porta e a segurou.— Sabe quem é o responsável por transmitir essa atrocidade para você?

— Sei. —O rosto de Angelia ficou sombrio.

— Não sei quem ele é e não cabe a mim perguntar, mas você deve saber que essa doença éfacilmente evitável. Ele não usou invólucro masculino, provavelmente deixando-a carregar ofardo de prevenir uma gravidez, mas poções e pílulas não evitam a propagação de doenças.

— Foi muito egoísta da parte dele, —disse Angelia. Se a voz da mulher fosse uma adaga,teria cortado. — Mas então, isso é o que os homens são, porcos egoístas.

— Bem, estou indignada em seu nome. Ele não está apenas sendo infiel, mas está forçando-a a sofrer as consequências de sua infidelidade. Espero que você o deixe provar seu próprioremédio.

A jovem se virou para ela, o rosto confuso. — O que exatamente propõe?

Charlotte encolheu os ombros, desprezo gotejando dela. — Ele está te traindo. Talvez vocêdevesse mostrar algum interesse em algum homem que ele considera inferior a ele. Algumhomem interessante.

— Alguém que possa ameaçar o ego dele, —disse a outra mulher.

— Exatamente.

— Eu conheço exatamente esse homem. —Angelia sorriu.

— Que sorriso lindo.

— Sabe, Charlotte, acredito que vamos nos dar muito bem.

— Certamente espero que sim. Venha agora, antes que sintam nossa falta.

******CHARLOTTE ESTAVA na varanda de sua casa. O sol havia se posto, mas o céuainda estava iluminado com o rastro de sua passagem. A casa dava para um jardim, e o ventonoturno sussurrava nos galhos. Insetos minúsculos, luminescentes com o verde e o laranja,

perseguiam-se entre as folhas.

Dois dias se passaram desde que ela curou Angelia no banheiro, seguido por outra sessão detrês horas em sua casa. A ideia que ela plantou na cabeça de Angelia já deve ter dado frutos, eera hora de uma atualização.

Em algum lugar lá fora, Richard aguardava, assim como ela. Charlotte se abraçou.

Ela sentia falta dele. Sentia falta da intimidade fácil e da sensação de ser abraçada, nãoapenas fisicamente, mas emocionalmente. Quando eles estavam juntos, ela não precisavaenfrentar as coisas sozinha. Não tinha percebido até agora o quanto precisava dessa proximidade.No pior momento de sua vida, ela havia se apoiado nele, às vezes sem perceber e às vezesconscientemente, e agora Richard estava longe. Parecia que algo havia sido arrancado dela.

É assim que é o amor? Charlotte o conheceu a tão pouco tempo, mas sentia que o conheciatoda uma vida, intimamente o conhecia melhor do que conheceu qualquer um.

Ela se perguntou se ele sentia falta dela.

Um pássaro azul pousou na grade da varanda e ficou estranhamente imóvel.

— Oi, George.

— Boa noite. —A voz de George emanava de um ponto um pouco mais alto do que acabeça do pássaro.

— Ainda não entendo como você faz isso.

— É uma técnica que aprendi no Mire. Um dos parentes de Richard é umnecromante talentoso, e Richard me levou para conhecê-lo.

— Richard está pronto? —Ela perguntou.

— Sim, estou em contato com ele também. —George fez uma pausa. — Richarddiz olá.

Ela gostaria que eles pudessem se encontrar, mas os encontros podiam ser observados e ascomunicações por meio de dispositivos mágicos podiam ser interceptadas. Através de George eraa única maneira segura.

— Participei do almoço de Lorde Caraway, —relatou George. — Senhora Apassou o tempo todo pendurada no braço de M e parecia se interessar emcada palavra dele.

— Bom. —Angelia estava seduzindo Maedoc. Brennan notaria, especialmente agora queRichard colocou a ideia da traição de Maedoc em sua mente. Com sorte, Brennan veria o súbitointeresse de Angelia pelo general aposentado como um sinal de uma mudança de lealdade.

— Richard diz que você é brilhante.

— Por favor, diga a ele obrigada por mim. Como foi o ataque?

— Richard diz que o ataque saiu conforme planejado, mas B não mordeu aisca.

Inferno. — Ele não acreditou na traição de M?

George fez uma pausa. — Não. Richard diz que subestimou B. B julgou o ataquecomo muito óbvio. Ele provavelmente está investigando o resto dos jogadores.

Brennan não confiava em ninguém, mesmo em um aliado que estava ao lado dele em umaluta de espadas. Isso era uma má notícia. — Vamos para a Etapa 2?

— Sim. Ele envia suas sinceras desculpas. Esperava evitar que você seenvolvesse.

Cabia a ela executar a Etapa 2. Na prática de planejamento, Richard esperava que o ataquepor si só fosse suficiente para fazer Brennan suspeitar de Maedoc. Caso isso não acontecesse, elateria que fornecer uma confirmação da culpa de Maedoc a Brennan. Como Richard e ela agiamde forma independente, Brennan não tinha motivos para suspeitar de uma conspiração.

Antes de começarem o jogo, Richard pediu a seu irmão que plantasse um arquivo nosregistros do Arquivo Militar. A imagem do rosto de Richard estava agora ligada à identidadefalsa de um veterano do Exército Adriangliano, que havia servido por vários anos sob a liderançade Maedoc. Os Cinco sabiam como era a aparência do Caçador, e agora cabia a ela conectar ospontos entre o Caçador e Maedoc, e apresentá-lo a Brennan.

— Não há necessidade de desculpas. Preciso passar-lhe algumas informações. Não tive queinfectar A. Ela já carregava o patógeno da doença-do-porto. B não é fiel a ela, assim comoRichard antecipou. Preciso rastrear a prostituta com quem ele está dormindo.

— O nome dela é Miranda, —disse George. — Trabalha no Palácio dasDelícias na Avenida Griffon, na Baixada da Cidade.

Às vezes, Richard era assustadoramente meticuloso. — Diga a ele obrigada.

— Ele diz que está com saudades.

— Estou com saudades também.

— Por favor, seja cuidadosa.

— Você também, —ela murmurou.

O pássaro abriu as asas e disparou no ar.

Ela sentia falta de Richard. Se fechasse os olhos, poderia imaginá-lo, os olhos, o corpomusculoso, o sorriso nos lábios dele ... Sua memória conjurou a sensação da pele dele contra adela e até mesmo seu cheiro. Charlotte sentia tanto a falta dele que quase doía. Quanto mais cedodestruíssem Brennan, mais rápido eles poderiam ficar juntos. Supondo que ele ainda a quisesse.

Charlotte sentiu uma certa distância entre eles antes de partirem, como se Richard estivesseconscientemente construindo uma barreira entre ele e ela. Algo havia mudado entre eles. Ela nãotinha certeza do que, mas isso a incomodava.

Charlotte entrou. Sophie estava sentada no sofá, com as pernas dobradas sob o corpo e umlivro aberto à sua frente. O cão estripador-de-lobo esparramado no chão ao lado dela.

— Preciso de sua ajuda, —Charlotte disse. — Vamos visitar uma parte perigosa da cidade.

Sophie se desenroscou do sofá. — Vou pegar minha espada. Podemos levar o cão?

— Claro.

Meia hora depois, envolta em uma capa com capuz, Charlotte deixou cair duas moedas deouro no balcão do Palácio das Delícias. — Miranda.

A proprietária, uma mulher mais velha com um vestido de seda amassado, nem piscou. —Segundo andar, porta azul.

A porta azul se abriu para um quarto confortável com uma cama de dossel, tudo em váriostons de vermelho. Os lençóis eram de seda preta. Um tapete vermelho grosso escondia o chão. Amobília era rica, mas ligeiramente vulgar.

Um momento, e uma mulher entrou pela porta. Ela era esguia, loira e tinha olhos de corça.Ela viu Sophie.

— Não gosto de crianças.

— Vamos conversar.

— Sobre quem?

— Brennan.

— Não conheço nenhum Brennan.

Charlotte abriu a carteira e jogou uma moeda na mesa. Os olhos de Miranda se arregalaram.Isso mesmo, uma moeda de ouro. Charlotte adicionou outra a primeira, fazendo-as tilintar. Outramoeda. Mais outra. Cinco agora. Cinco moedas de ouro provavelmente era mais do que Mirandaganhava em um mês.

— Eu poderia simplesmente tomar as moedas de você, —disse Miranda.

— Eu cortaria sua mão antes de você tocá-las, —disse Sophie. Os olhos da moça estavamglacialmente frios. Miranda olhou para ela e deu um pequeno passo para trás.

Seis moedas.

— Assim que eu parar de jogar moedas, minha oferta de pagar por suas informações seráretirada, —disse Charlotte. — Melhor se decidir.

Sete.

Charlotte segurou a oitava moeda entre os dedos por um longo momento. Miranda respiroufundo. A moeda tilintou contra as outras na mesa.

Charlotte suspirou.

— Tudo bem! —Miranda encolheu os ombros. — Vou te contar. Dinheiro primeiro.

Charlotte a deixou varrer o ouro da mesa.

— Ele vem, fode e vai embora. Se está procurando segredos de estado, ele não oscompartilha.

— Conte-me sobre os hábitos dele. Do que ele gosta?

Miranda se sentou na cama. — Nada muito distorcido. Ele gosta de sentir que é seu dono.Às vezes, me faz rastejar até ele e implorar para ser fodida. Eu não me importo, contanto que mepague. Ele tem essa coisa de que todas as mulheres são secretamente prostitutas. Às vezes ele mefaz vestir uma roupa bonita e afetada, vestido formal, flores no cabelo, a coisa toda, e chupá-lo.Ele se diverte com a perversidade disso, eu acho.

— Você sabe que está infectada com a doença-do-porto?

Miranda fez uma careta. — Sei. Malditos soldados. Tenho tomado remédios.

******DEPOIS DO ar afetado do Palácio das Delícias, a brisa fria da noite era refrescante.Charlotte e Sophie desceram a rua. Charlotte caminhou rápido. Lamentavelmente, o lugar maispróximo onde elas puderam deixar sua carruagem ficava a cinco minutos a pé, e o bairro não eraexatamente seguro. Elas deixaram o cão amarrado ao veículo para o caso.

— Fazê-la rastejar até ele é doentio, —disse Sophie.

— Brennan gosta de rebaixar as mulheres. Ele também gosta de se sentir poderoso.

— Por que precisamos saber disso?

— Porque ele está investigando Richard, o que significa que não acreditou na nossa históriacompletamente. Angelia está o ignorando e tentando seduzir Maedoc. Ele procurará maneiras de

punir Angelia e possivelmente substituí-la. Pode chegar um momento em que terei de distraí-lo.

Sophie refletiu sobre isso. — Dessa forma?

— Brennan tem fome de poder e eu sou o tipo dele: alta e loira.

Elas entraram no estacionamento da carruagem. Dois homens bloquearam seu caminho. Omais alto dos dois mostrou uma faca. — Dinheiro. Agora.

Boa tática. O Palácio das Delícias matinha a segurança do local porque se os clientesfossem assaltados seria ruim para os negócios. Mas alguém por perto percebeu que elaschegaram e saíram muito rápido e mais cedo do que se esperava, e deve ter presumido que asduas estavam procurando por informações, e não por prazer. Ou Miranda os avisou.Provavelmente a primeira opção. Miranda foi muito bem paga, não abriria a boca. Havia tambéma possibilidade da proprietária do lugar ter providenciado assustá-las e garantir que elas nãovoltassem mais ali. Quando Charlotte e Sophie saíram do palácio receberam um olhar dedesgosto da proprietária.

— Dinheiro, sua vaca! —O homem ergueu a faca.

— Posso? —Perguntou Sophie. — Por favor?

— Vão embora ou ela matará vocês, —disse Charlotte.

— Como quiser, puta. —O homem se lançou e ofegou quando o braço dele escorregou docorpo e caiu no chão. A boca do homem se abriu no início de um grito horrorizado. Ele não tevea chance de vocalizar o som. Sophie passou por ele e ele caiu no chão. O outro bandido recuou,com as mãos no ar, e fugiu noite adentro.

Sophie puxou um pano de sua túnica e limpou o sangue de sua lâmina.

Charlotte olhou para o corpo no chão. Estava danificado além da habilidade de cura dela. Jáa criança acabara de arrancar a vida de um homem e parecia completamente imperturbável.

— Vamos. —Charlotte se dirigiu para seu veículo. — Você gosta de matar, Sophie?

— Eu gosto das sombras, —disse Sophie.

— As sombras?

Na carruagem, o cão estripador-de-lobo lambeu a mão dela. Charlotte o colocou na parte detrás e elas entraram no veículo. Sophie ligou a carruagem e sumiram noite adentro.

— Eu sigo o caminho da lâmina. Um guerreiro que segue esse caminho deve estarequilibrado entre a luz e as trevas. É difícil de explicar.

— Eu apreciaria se você tentasse de qualquer maneira.

Sophie franziu a testa, seu perfil, iluminado pelo brilho dourado do painel de instrumentos,gravado contra a noite lá fora. — A morte não é importante. A única coisa que importa é omomento da decisão. Meu caminho é uma linha. O caminho do meu oponente é outra linha. Noinstante em que nos conhecemos, as nossas vidas estão alteradas para sempre. Podemos ambos irembora, ou minha linha ou a linha dele podem terminar, mas por um breve tempo existimos nomesmo espaço à beira da ação, e esse espaço está cheio de possibilidades. É o momento em querealmente vivo. Ele curto. Sempre é muito curto.

Uma velha memória passou diante de Charlotte. Ela tinha dezesseis anos, participava de umbaile durante um encontro com outro Instituto e, enquanto estava lá, conversando com suasamigas, viu um rapaz mais velho olhando para ela do outro lado da sala. Ela viu admiração nosolhos dele. Naquele breve instante, quando seus olhares se encontraram, uma série depossibilidades passou diante dela: ele poderia vir, poderia falar com ela, poderia haver o começode algo ... Era um tipo doce de emoção, ligeiramente assustadora, mas excitante. Mas Sophiedescobriu esse tipo de emoção em uma batalha e era viciada nisso. Como se poderia começar acurar algo assim?

— O que faremos agora? —Perguntou Sophie.

— Agora nos prepararemos para o casamento do Grande Barão. Precisamos fazer as malas epartir em três dias. Levaremos pelo menos um dia para chegar lá, e precisamos ter certeza de nãochegar muito cedo ou muito tarde. Você vai adorar Pierre de Rivière. Eu vi pela primeira vezquando tinha sua idade, e é um lindo castelo. Iremos ao casamento, onde vou chamar a atençãode Brennan e encontrar uma maneira de conectar o Caçador a Maedoc. —Ela não tinha certezade como faria isso.

Pensar no casamento a deixou inquieta. A ansiedade tomou seu coração em um punho frio eapertou. E se algo acontecesse com ela ou com Richard? Isso não era um jogo. Se elestropeçassem, Brennan os mataria.

Ela não queria fazer isso, Charlotte percebeu. Estava com medo. Queria fugir com Richardde volta para a cabana na floresta e fingir que nada disso tinha acontecido. A expectativa do queestava prestes a fazer a pressionou como um peso esmagador. Queria fugir.

— É onde Aranha estará, —disse Sophie. — No casamento.

— E você não vai matá-lo.

— E se eu puder? —Perguntou Sophie.

— Diga-me, quem é Aranha e o que ele faz?

— Ele é um agente da Mão e chefe dos agentes aprimorados da Mão, —disse Sophie.

— As pessoas sob o comando de Aranha são aprimoradas através de magia distorcida aníveis monstruosos. Acho muito improvável que ele viaje sozinho. Olhe para mim, Sophie.

A garota virou o rosto para Charlotte.

— Prometa-me que não vai matá-lo. Eu coloquei toda a minha confiança em você. Diga-meque não vai trai-la.

— Eu não vou, —disse Sophie. — Você tem sido muito gentil comigo. Não precisa sepreocupar, Senhora Charlotte. Eu cumpro minhas promessas.

QuinzeA CARRUAGEM ADAPTADA PARA LONGAS DISTÂNCIASSAIU DISPARADA DA floresta. Era hora de acordar Sophie. Charlotte tocou a mãoda garota e ela acordou instantaneamente, totalmente alerta.

— Olhe pela janela, —disse Charlotte.

Sophie se inclinou em direção ao amplo painel de vidro da carruagem. Um vasto rio seestendia diante delas, suas águas plácidas douradas e peroladas, refletindo a glória do sol poente.Uma ponte plana cruzava a largura infinita do rio e, no meio da ponte, projetando-se diretamentepara fora da água, um castelo se erguia.

Sophie respirou fundo.

O castelo de Pierre de Rivière erguia-se diante delas como uma enorme montanhaimponente de edifícios feitos de pedra da cor creme. Cercado por árvores verdes crescendo emvasos, suas paredes e incontáveis terraços e varandas quase brilhavam ao sol. Torres finas eornamentadas se estendiam até o céu. Janelas gigantes olhavam para o mundo por entre osparapeitos texturizados e as esculturas ornamentais nas paredes, tão delicadas, tão leves, que todaa enorme estrutura parecia flutuar sobre as águas do rio.

— É tão lindo, —Sophie sussurrou.

— Eu sabia que você iria gostar. É uma das maravilhas do continente.

A carruagem subiu na ponte. O cão estripador-de-lobo ergueu a cabeça peluda em alarme.

— Está tudo bem, —Charlotte disse a ele.

Charlotte sugeriu deixar o cão na propriedade Camarine, mas Sophie abraçou o animal eolhou para ela como se ela tivesse sugerido cortar um braço. Diante de dois pares de olhos decachorrinhos tristes, Charlotte voltou atrás, mas insistiu em uma coleira, um banho e uma tosa.Tudo isso não conseguiu transformar o cão em um animal de estimação mimado, ele aindaparecia que perseguia lobos pela floresta. Elas teriam que fazer um esforço para mantê-lo o maisescondido possível, e ele tornaria as coisas menos convenientes, mas não havia como evitar.

Um alto e desamparado brado rolou pelo céu, como se as nuvens tivessem cantado.

— Olhe! —Charlotte apontou para uma faísca verde brilhante e descendo do céu.

A faísca desceu ainda mais, crescendo, tornando-se uma forma coberta por escamas earmada com asas enormes. O serpe64 circulou o castelo, o sol refletindo na cabine em suascostas. Outro serpe se juntou ao primeiro, depois outro ... Um por um, eles pousaram no terrenodo castelo.

— A elite de ambos os reinos estará lá. —Charlotte sorriu. — Você está animada?

Sophie acenou com a cabeça.

— Fico feliz. Aproveite, —Charlotte disse a ela. — Será uma experiência mágica.

Elas tinham trabalho a fazer, mas por enquanto Charlotte iria apenas sentar aqui e assistir omundo das maravilhas florescer nos olhos da criança e, por alguns breves momentos, ela poderiater quinze anos novamente, cavalgando em uma carruagem para seu primeiro baile.

A ponte as levou por baixo da ponte levadiça para a via principal que circundava o castelo.A carruagem virou à direita, ao longo de uma rota lateral, e finalmente parou no pátio diante deuma grande escadaria. Um homem conhecido estava no último degrau, falando com um outronobre vestido em um casaco de couro escuro.

Brennan, Charlotte percebeu.

O motorista abriu a porta e Charlotte saiu.

— Charlotte! —Angelia gritou.

Oh, Mãe da Aurora. — Angelia!

Angelia Ermine apareceu em seu campo de visão. — Estou tão feliz por você ter vindo.

Na escada, Brennan se virou. Seu olhar se fixou nelas. Ele sorriu para o homem com quemestava falando também e caminhou em direção a elas.

A ansiedade a atingiu. Ela fingiu ouvir Angelia. Charlotte usava uma túnica e calças deseda, ambas em um belo tom de verde. As roupas eram ajustadas ao seu corpo e apenas um

pouco sugestivas, o que as tornava bastante afetadas para os padrões da sociedade. Ela nãoesperava encontrar Brennan assim que descesse da carruagem, mas a possibilidade existia, eestava vestida precisamente para a ocasião.

— Angelia, —disse Brennan.

A outra mulher girou, surpresa. — Robert ...

— Minha querida, estou muito chateado. —Brennan pegou a mão de Angelia e beijou seusdedos. — Você tem me negado o prazer de sua companhia. Posso até pensar que você estejainsatisfeita comigo.

Angelia piscou. — Claro que não.

— Quem é sua amiga?

Angelia deu um sorriso encantador. — Charlotte de Ney al-te Ran.

Brennan piscou. O sobrenome surtiu o efeito desejado.

— Charlotte, Lorde Robert Brennan.

Charlotte fez uma reverência. — Sua Alteza.

— Oh não, por favor. Sem títulos. —Brennan acenou com a mão. — Minha memória pode estar me traindo, mas tenho quase certeza de nunca a ter visto antes. Eu teria me lembrado de nosso encontro.

— Posso contar a ele? —Angelia perguntou. — Posso?

— Como quiser.

— Charlotte estudou no Instituto de Artes Médicas Ganer. Viveu a maior parte de sua vidalá.

— Eles não nos deixam sair muito. —Charlotte sorriu. — É quase como um convento.

O interesse despertou nos olhos de Brennan. Charlotte estava certa—a tentação de seduziruma mulher que viveu trancada do mundo dentro de convento atrairia Brennan.

— Que peculiar, —disse Brennan. — Eu não lembro de ter conhecido uma fugitiva de umInstituto.

— Então, estou lisonjeada por ser a primeira, meu senhor.

— Você é uma Curadora? —Brennan perguntou.

— Apenas uma médica, meu senhor. —Para a sorte dela, o Instituto Ganer era o lar deambos os profissionais, Curadores mágicos e médicos. Dado que Brennan tinha ido visitar a Ilha

de Na, ele deve ter ouvido falar da Morte Prateada matando pessoas na ilha com magia estranha.Ela não queria anunciar seus talentos. Ele poderia conectar os pontos.

— Ela é uma Curadora, —Angelia deixou escapar. — Uma excelente.

Charlotte deu um pequeno suspiro. — Perdoe-me, meu senhor. Normalmente não nosidentificamos fora dos Institutos de cura.

— Perfeitamente compreensível. Eu imagino que você seria inundada com pedidos de curavindo de todos. —Brennan olhou para Angelia. — Eu não tinha ideia de que você matinhaamizade tão exótica. Espero que não tenha estado doente, minha senhora.

A compostura de Angelia desmoronou. — Senhora Charlotte é uma amiga, —ela apertouentre os dentes. — Mas agora que você mencionou, sim, estive doente. Peguei uma doença muitodesagradável de uma fonte surpreendente. Mal posso esperar para te contar tudo sobre isso.

— Eu adoraria ouvir, mas estamos sendo rudes com sua amiga.

— Ah, não, de jeito nenhum, —disse Charlotte. — Estou cansada da minha viagem epreciso fazer todas aquelas pequenas coisas femininas e secretas que as mulheres fazem paraficarem apresentáveis antes do jantar. Por favor, dê-me licença.

— Obrigado por sua compreensão, —disse Brennan. — A perda será inteiramente nossa.

Charlotte fez uma reverência e os observou se afastar. As costas de Angelia estava rígidacomo uma lança—a mulher estava fumegando de raiva, afinal ela estava prestes a revelar aBrennan que ele havia a infectado com a doença-do-porto, e essa conversa não correria bem.

— Como foi? —Sophie murmurou em seu cotovelo.

— Foi bem. Agora devemos preparar nossa armadilha.

Uma hora depois, Charlotte andava em seu quarto. Seu vestido esperava na cama. Ela usavaum longo robe preto. Suas roupas íntimas foram escolhidas com muito cuidado: uma minúsculacalcinha de renda preta, um sutiã de renda translúcida e alças pretas, e meias pretassustentadas por fitas finas que simulavam couro. Charlotte mandou fazer o conjunto sobmedida, modelado a partir de algumas das roupas sexy que vira anunciadas em panfletos doBroken. A roupa não era apenas sedutora, era erótica, explícita e atrevida. Uma mulher de suaposição não devia usar esse tipo de roupa íntima, a menos que tivesse como objetivoproporcionar um entretenimento muito específico para seu amante. Estava calçada em sapatos desalto agulha que a deixou mais alta do que já era. Seu cabelo tinha sido penteado em uma ondaelegante apropriada para um jantar formal. Sua maquiagem estava perfeita e ela estava tão prontaquanto poderia estar.

Esta era uma oportunidade excelente—Brennan ainda se lembrava dela—e capturar aatenção dele mais tarde seria significativamente mais difícil. Por ser solteiro, ele seria inundadopor mulheres. Ela precisava causar uma impressão inesquecível imediatamente.

Sophie se sentou na cama, observando-a andar de um lado para o outro. — E se ele não ficarinteressado?

— Ele ficará. Homens como Brennan pensam que toda mulher é secretamente devassa. Eleadora a justa posição do pretensioso e apropriado com o sujo e sedutor. Brennan adoracorromper. Isso o faz se sentir poderoso.

— Como consegue andar com esses sapatos?

— Prática. Muita prática.

— E se ele ...

A porta se abriu e Jack enfiou a cabeça na fresta. — Ele está vindo!

Obrigada, deuses.

A porta se fechou.

— Rápido! —Charlotte tirou o robe, o jogou de lado e se posicionou bem à vista da porta.Sophie agarrou o vestido e o ergueu como se estivesse ajudando-a a se vestir.

******GEORGE ENCOSTOU-SE na coluna e observou com o canto do olho enquantoBrennan subia as escadas. A disposição dos quartos dos hóspedes no castelo se assemelhava coma dos hotéis no Broken: uma escada conduzia do andar inferior a um longo patamarconectando-se a um corredor, em seguida, outra escada na extremidade oposta do patamarlevava ao próximo andar superior. Cada um dos hóspedes Sangue-azuis recebeu um conjunto dequartos, e a lista dos quartos foi afixada em cada cruzamento de escadas e corredores. De suaposição privilegiada no patamar do quarto andar, George tinha uma vista excelente da escadainferior e da lista.

Brennan estava a um terço do caminho subindo as escadas.

Kaldar, vestido com o uniforme cinza e azul dos funcionários do castelo, surgiu no corredor.Ele casualmente caminhou até a lista, a arrancou com cuidado para fora da parede, pendurou umanova lista no lugar da anterior e foi embora.

Foi por pouco. Kaldar gostava de viver perigosamente.

Brennan terminou de subir as escadas e parou diante da lista. A verdadeira lista colocavaBrennan e o resto dos parentes reais hospedados no quinto andar. A lista falsa, trocada por

Kaldar, o colocava no terceiro.

George ponderou as costas de Brennan. Ele era um homem grande, forte, atlético. Pescoçogrosso e musculoso. Jack poderia quebrá-lo, mas teria problemas.

Este homem era o responsável pelo tormento de Sophie. Ele transformou bandos detraficantes invasores aleatórios em uma organização criminosa. Suas mãos estavam manchadascom o sangue de Mémère. Brennan tornou possível que John Drayton afundasse tanto nessamiséria que se afogou nela.

Uma voz furiosa gritou dentro de George: ‘Mate-o, mate-o, mate-o ...’ Mas não haveriamorte, não agora. Não, primeiro haveria humilhação pública. Depois haveria vergonha, angústiae punição.

Brennan virou à direita, descendo o corredor em direção ao quarto de Charlotte. George seconcentrou, enviando sua voz para um rato morto-vivo empoleirado no bolso de Jack. — Eleestá a caminho.

Brennan desapareceu no corredor. Kaldar caminhou até a lista falsa, a arrancou da parede ecolocou a original em seu lugar.

******A PORTA SE ABRIU.

Charlotte respirou fundo.

Brennan entrou na suíte e parou. Os olhos do homem se arregalaram. Ele ficou boquiaberto,a boca ligeiramente aberta.

Sophie congelou, seu rosto em uma falsa expressão adequadamente chocada.

Charlotte encontrou o olhar de Brennan. Ela sabia que a postura dela era perfeita, mas pordentro tremia. Ela não fez nenhuma tentativa de se cobrir. Simplesmente ficou lá, como seestivesse usando a roupa íntima mais conservadora possível, sua expressão uniforme.

O olhar de Brennan vagou pelo corpo dela, parando em seus seios, estômago e, finalmente,no triângulo entre as pernas, mal obscurecido pela renda preta translúcida. Ela tinha a atençãocompleta dele. Uma mulher de sobrenome nobre, que era adequada em todas as aparênciasexternas e que acabara de sair da reclusão, vestindo secretamente uma roupa íntima queenvergonharia uma profissional do sexo. Brennan mordeu a isca. Foi feito sob encomendaespecificamente para ele.

Um longo momento se passou.

Charlotte ergueu as sobrancelhas e disse, sua voz perfeitamente uniforme: — Acredito queestá no quarto errado, meu senhor.

Brennan piscou como se estivesse acordando. Uma vida inteira de experiência em etiqueta ofez voltar a realidade. — Claro. Perdoe-me, minha senhora.

Ele fechou a porta.

— ‘Saber a coisa precisamente correta a fazer em cada situação, então fazê-lo com umdireito inabalável’, —Sophie sussurrou.

Os joelhos de Charlotte tremeram. Ela desabou em uma cadeira.

******GEORGE OBSERVOU quando Brennan emergiu no patamar e marchou para aescadas. Seu rosto exibia uma expressão de intensa concentração. Ele parou diante da lista eolhou para ela por um longo momento.

O número do quarto dele e o de Charlotte diferiam em exatamente um dígito. O dela era o322 e o dele 522. Foi preciso muita manipulação por parte de Kaldar para organizar isso.Qualquer diferença significativa entre os números, Brennan teria desconfiado.

O homem balançou a cabeça e começou a subir as escadas. George se afastou da coluna,saiu da visão de Brennan e se afastou rapidamente, ficando perto da parede. Ele dobrou a esquinaassim que Brennan pisou no patamar do quarto andar.

******O JANTAR foi servido em um dos enormes terraços e consistia em aperitivos leves.

— Estou com fome, —murmurou Sophie.

— Espera-se que, depois do baile, tenhamos uma refeição reforçada em nossos quartos, —murmurou Charlotte, e ajustou a alça no ombro esquerdo de Sophie. O vestido que Sophie vestia,uma bela variação de azul-cinza com brilho metálico, foi desenhado por Charlotte com acolaboração da costureira. Duas alças finas sustentavam um corpete linear modesto que abraçavaa figura esguia de Sophie. Folhas finas de um azul claro e mais escuro se sobrepunham aocorpete, construídas do lado esquerdo e estendendo-se em leque para a direita. Dois pedaços detecido dobrados sobre os quadris de Sophie, apertados o suficiente para acentuar o modestoalargamento de seus quadris, mas frouxo o suficiente para ainda ser apropriado. Além do tecidodrapeado, uma saia larga construída com camadas de chiffon descia até o chão.

Era um vestido refrescante, jovem e leve, e seu estilo combinava com o vestido da própriaCharlotte. Ela escolheu um chiffon verde-azulado. Duas folhas de tecido prateado serviam como

mangas. O padrão continuou ao longo de seus lados, as folhas se esticando para abraçá-la,destacando sua cintura e a curva de seus quadris. Minúsculos pontos prateados, cada umligeiramente menos brilhante do que as folhas, traçavam um padrão delicado sobre seus seios eestômago, até que finalmente sua saia se alargava em camadas e camadas de chiffon leve.

Sophie estava linda e elegante, uma verdadeira Sangue-azul, exatamente a imagem queCharlotte projetou. A música estava ficando mais alta. Logo a dança iria começar. Sophie nãoprecisaria dançar se não quisesse, mas deveria pelo menos uma ou duas vezes. Além disso,Charlotte sabia que a moça se divertiria. E provavelmente causaria rebuliços. Charlotte pediu queSophie dançassem para ela, e Sophie a surpreendeu com a sua excelente habilidade com os pés.

Charlotte sentiu a pressão do olhar de alguém, examinou a multidão e esbarrou no rosto deRichard. Ele estava parado do outro lado do terraço, à sombra de uma coluna, e estava olhandopara ela com choque e desejo, como se tivesse sido atingido por um trovão. Isso doeu. Doeumuito ficar ali em frente a ele e saber que não poderia andar até lá, não poderia tocá-lo ou irembora com ele. Charlotte desviou o olhar.

Não importa o que estava acontecendo ao seu redor, no fundo sempre se lembrava de quequalquer um deles, ou ambos, poderiam não sobreviver a isso. Eles estavam em perigo constante,e um resultado feliz não era garantido. Esse conhecimento a pressionou todos esses dias comoum fardo esmagador e sempre presente. Charlote acordava com ele e ia para a cama com ele. Issoa assombrava durante o dia. Ocasionalmente, se distraía e esquecia, mas inevitavelmente selembrava e, quando o fazia, o medo e a ansiedade a atingiam como um soco no estômago. Suagarganta fechava, seus olhos lacrimejavam e seu peito doía. Por alguns momentos, ela pairava àbeira das lágrimas e tinha que se convencer a se segurar para não cair do penhasco.

Sentia falta de Richard. Ela se preocupava mais com ele do que com ela mesma.

Não foi feita para isso, ela percebeu. Algumas pessoas podiam se divertir com o perigo e amaledicência, mas Charlotte só queria que tudo terminasse. Queria que tudo acabasse. O estressee a pressão caíram sobre ela, e se sentiu quebrando sob o peso de um martelo. Quanto mais fortea pressão, mais queria escapar. Na noite anterior, sonhou caminhando até Brennan, matando-o ese jogando da varanda. De manhã, ficou horrorizada—não com o sonho suicida, mas porque porum breve momento antes de acordar, ela sentiu alívio.

Não podia se deixar levar. Muitas pessoas dependiam dela, Sophie, Richard, Tulip ... Porfalar em Sophie, para onde ela foi?

Charlotte se virou e viu um grupo de jovens, todos à beira da idade adulta, cercando umSangue-azul vestido em um casaco de couro verde escuro. Ele era alto, loiro e muito bonito.Estava contando algum tipo de história, e seu rosto tinha a expressão confortável de um orador

experiente. Sua audiência prestava atenção em cada palavra sua.

Charlotte se aproximou, analisando seus gestos. Não qualquer Sangue-azul, mais um delinhagem antiga. Não era Adriangliano, definitivamente parecia ser um Louisianano—elelevantou a mão em um gesto elegante, palma para cima, dedo indicador quase paralelo ao chão,três outros ligeiramente curvados—uma indicação clara. A etiqueta da corte da Louisiana ditavaque, quando o imperador estivesse presente, os nobres carregassem um símbolo, uma pequenamoeda de prata gravada com a imagem do imperador, usada em uma corrente enrolada nosdedos. O gesto foi projetado para exibir a moeda e estava tão arraigado nos modos das famíliasmais antigas, que eles o faziam inconscientemente quando queriam enfatizar uma opiniãodurante uma discussão ou reconhecer a opinião de outra pessoa.

Charlotte se aproximou o suficiente para ouvi-lo.

— ... Afinal, como afirma Ferrah, a excelência no serviço à multidão é a vocação maiselevada. O ego pode atingir seu ápice somente quando trabalha para o bem maior da maioria.

Houve acenos de cabeça e sons de concordância. Ele realmente os tinha fascinado.

— Mas Ferrah também diz que comprometer a ética é a traição definitiva de si mesmo, —avoz de Sophie soou na parte de trás. O grupo de jovens se separou e Charlotte a viu. — E umavez que ele define a ética como a expressão máxima da individualidade, seus argumentos sãocontraditórios e suspeitos.

O Sangue-azul olhou para Sophie com interesse genuíno. — A contradição está presente àprimeira vista, mas desaparece se assumirmos que o código moral do indivíduo está alinhadocom os objetivos da multidão.

— Mas a multidão não consiste de indivíduos com códigos morais extremamenteconflitantes?

— Sim. —O Sangue-azul sorriu, claramente gostando do debate. — Mas as atitudes damultidão visam a autopreservação, portanto, temos o surgimento de leis comuns: não mate, nãocometa adultério, não roube. É essa semelhança que levou Ferrah a embarcar no exame damultidão e do eu.

Sophie franziu a testa. — Tive a impressão de que Ferrah embarcou no exame da multidão edo eu porque desejava sua irmã sexualmente e estava chateado porque a sociedade não permitiriaque ele se casasse com ela.

Os jovens ficaram boquiabertos. O nobre riu. — A que tesouro você pertence, minhajovem?

— Ao meu, —Charlotte disse.

O nobre se virou para ela e executou uma reverência perfeita. — Minha senhora, meusmaiores cumprimentos. É raro ver uma jovem instruída nos dias de hoje. Posso ter o prazer doseu nome?

— Charlotte de Ney al-te Ran.

O nobre se endireitou. — Um sobrenome antigo, minha senhora. Sou Sebastian Lafayette,conde de Belidor. E quem é a jovem?

— Sophie.

O nobre sorriu para Sophie. — Precisamos nos falar mais, Sophie.

Sophie fez uma reverência com perfeita graça. — Você me honra, meu senhor.

— Espero que ela não o tenha chateado, Lorde Belidor, —disse Charlotte.

O nobre se voltou para ela. — Sebastian, por favor. Pelo contrário. Muitas vezes ficofrustrado com a falta de coragem da geração mais jovem. Parece que tínhamos ... não umaeducação melhor, por si só, mas talvez mais incentivo para usá-la. Eles aprendem, masdificilmente pensam.

Atrás de Sebastian, Sophie murmurou algo silenciosamente.

Uma mulher com uniforme azul escuro da equipe de funcionários do castelo se aproximoudeles e fez uma reverência, segurando um pequeno cartão para Charlotte. — Senhora de Ney al-te Ran.

— Com licença, —Charlotte sorriu para Sebastian e pegou o cartão. — Obrigada.

No cartão, lindas letras de caligrafia diziam: ‘Sua Alteza Lorde Robert Brennancordialmente pede o prazer de sua companhia para a Dança Rioga.’

Charlotte piscou. A Dança Rioga era uma tradição antiga. O salão de dança era esvaziado eum único casal—formado por um nobre de Sangue-azul e um integrante da família real, mas quenão podia ser o monarca reinante—dançavam sozinhos no salão. O casal dava início oficial aobaile, e era um privilégio pelo qual a maioria das mulheres mataria, literalmente.

— Parece que vou dançar a Rioga, —disse ela.

— Parabéns. —Sebastian baixou a cabeça. — Que honra.

Antes que ele se endireitasse, Sophie murmurou algo novamente. O que ela estava tentandodizer?

— Abram alas para o Grande Barão! —O arauto gritou.

Charlotte fez uma reverência. Como um só, os nobres ao seu redor se curvaram. Uma

procissão saiu pelas portas, liderada pelo Grande Barão, um enorme homem do tamanho de umurso, sua juba de cabelo completamente prateado. A Marquesa da Louisiana, sua futura noiva,que caminhava ao lado dele, parecia minúscula em comparação. Ela era apenas cinco anos maisnova que o Barão, mas se movia com a graça de uma mulher muito mais jovem. Seu vestido,cintilante de creme claro faiscava com pequenas luzes, como se cravejado de estrelas. Atrásdeles, os membros mais próximos de ambas as famílias caminhavam lado a lado. Charlotteavistou Brennan diretamente atrás do Grande Barão. Ele parecia esplêndido vestido em umcasaco justo, seu tom vermelho tão escuro que era quase preto. Seu maldito bastardo.

A procissão varreu a multidão. O Grande Barão conduziu a Marquesa até um par de cadeirassemelhantes a um trono. Ela sentou. As mulheres na plateia se levantaram, Charlotte também selevantou. O Grande Barão sentou-se e os homens também se levantaram.

Brennan deu um passo à frente.

— Está na hora, minha senhora, —disse a mulher que entregou o convite.

Sophie estava sorrindo. Havia algo profundamente perturbador no sorriso dela.

No meio do salão, Brennan acenou com a cabeça para Charlotte.

— Minha senhora, está na hora, —a mulher solicitou novamente.

Os lábios de Sophie se moveram novamente.

Aranha.

Sebastian era Aranha. Mãe da Aurora. Estou deixando Sophie ao lado de Aranha.

As notas de abertura da Rioga flutuaram no ar. Charlotte não teve tempo de parar. Tudo oque podia fazer era dar um passo à frente.

******Richard fingiu estar entediado. Ao lado dele, René conversava sobre algo com Lorameh eSenhora Karin, prima de René. Logo a dança iria começar.

Ele não falava com Charlotte há nove dias. Nove dias sem contato. Os pássaros de Georgerealmente não contavam. Nove dias meditando e dormindo sozinho, apenas ele e seuspensamentos, e seus pensamentos se tornaram bastante sombrios.

Richard queria vê-la. Queria dizer a Charlotte que a amava e ouvir dela que também oamava. No momento em que sua boca não estava ocupada em conversas fiadas, pensamentossobre ela invadiam sua mente. Ele imaginou uma vida com ela. Imaginou uma vida sem ela.Talvez estivesse ficando louco.

Brennan saiu para a expansão aberta do salão.

Richard teve que lutar para não ranger os dentes. Ficar na presença de Brennan estava setornando cada vez mais difícil, tanto porque ele odiava o homem quanto porque a boa vida e asoportunidades de Brennan colocava em foco as dificuldades que Richard teve em sua própriavida. O homem que recebeu literalmente todas as vantagens na vida—enquanto ele não recebeunenhuma—usava todos os seus recursos e talentos para lucrar com a miséria dos outros. Richardmal podia esperar para derrubar Brennan.

— Acho que Robert será o cordeiro sacrificial no altar da Rioga, —brincou René.

— Eu me pergunto quem será a parceira dele, —disse Lorameh.

— Angelia? —Senhora Karin sugeriu.

— Bem que ela queria. —Lorameh riu.

A música começou.

— Espero que ele não caia, —disse René com uma preocupação fingida.

A multidão se separou e Charlotte saiu.

O mundo parou bruscamente. Seu vestido se alargava a cada passo, as camadas diáfanas detecido verde-azulado finas como teias, sugerindo os contornos de seu corpo, depois osescondendo. Ela não andava, deslizava.

— Divina. Quem é ela? —Lorameh perguntou de algum lugar distante.

— Senhora de Ney al-te Ran, —disse René. — Deslumbrante, não? E com esse sobrenome.

— Oh, não, —disse Senhora Karin. — Acredito que ela não esperava ser convidada paradançar. Seus saltos são muito altos.

Richard se lembrou que pelas regras da etiqueta Charlotte não poderia ser tão alta quantoBrennan durante a Rioga: Brennan era homem e tinha sangue real. Seria um grosseiro erro deetiqueta social. A maioria das pessoas que a observavam sabia disso. Ela provavelmente sabiadisso também.

Sem diminuir o passo, Charlotte tirou os sapatos. Ela não diminuiu a velocidade, não deuqualquer indicação do que tinha feito. Simplesmente continuou deslizando para frente, deixandodois sapatos de salto alto atrás dela.

Sophie os pegou e se misturou à multidão.

Senhora Karin ofegou. Alguém à esquerda bateu palmas, depois alguém à direita, eCharlotte fez uma reverência diante de Brennan ao som de aplausos apreciativos. Brennan

curvou-se, oferecendo-lhe a mão. Ela colocou a mão na palma dele.

Uma dor aguda apunhalou Richard entre as costelas do lado esquerdo. De repente, o ar ficouviscoso. Ele lutou para respirar.

Brennan se endireitou e apoiou o braço em volta de Charlotte, tocando suas costas.

Ele estava tocando-a.

A música entrou em um ritmo rápido, e os dois começaram a dançar, o vestido de Charlottefluindo ao redor de Brennan como correntes de água ao redor de uma rocha.

As mãos do outro homem estavam sobre ela. Seus dedos estavam tocando a pele dela. Elaestava o tocando de volta. A mão dela descansou na dele. Ela estava sorrindo. Parecia estargostando. Charlotte olhou para Brennan e seu rosto brilhou de admiração.

Uma onda de gelo rolou sobre a pele de Richard e evaporou, queimada pela raiva que tudoconsumia. Ele estava assistindo Charlotte e Brennan girar sem parar na pista de dança, impotentepara fazer qualquer coisa a respeito.

— Eles ficam tão bonitos juntos, —disse Senhora Karin.

— Todos os homens deviam odiar Brennan, —disse René. — Sangue real, rico, inteligente,bom lutador. Deveria ter nascido pelo menos feio, seria uma forma do destino fazer justiça, masnão, o bastardo é bonito, e no momento em que uma mulher sofisticada e encantadora entra nasociedade, ele a agarra antes que qualquer um de nós sequer troque duas palavras com ela.

Isso mesmo. Brennan era bonito, rico, de linhagem real. E quem era Richard? Um rato depântano sem um tostão, com uma espada e um rosto roubado.

Em sua mente, Richard se imaginou entrando na pista de dança, segurando sua própriaespada na mão, não esse fraco florete de Casside. Ficaria entre eles, os separando, giraria emuma explosão de magia e aço, e a cabeça de Brennan rolaria de seus ombros para o chão.Charlotte ofegaria surpresa. Ele caminharia até ela ...

A música terminou e Richard ouviu o próprio batimento cardíaco, alto demais, como obadalar de um sino gigante. Brennan estava se curvando. Charlotte fez uma reverência. Brennanse endireitou. A emoção no rosto de Brennan era inconfundível: era a necessidade primordial deum homem que encontrou uma mulher que precisava ter.

As pessoas aplaudiram. Parecia uma tempestade aos ouvidos de Richard. Charlotte nuncadisse que o amava. Ela deu a ele seu corpo na cabana, talvez em um momento de fraqueza, masnunca prometeu nada a ele. E se tivesse, promessas muitas vezes eram quebradas.

Brennan levou Charlotte até o Grande Barão e a Marquesa. Charlotte fez uma reverência

novamente, uma reverência profunda e graciosa. A marquesa disse alguma coisa. Charlotterespondeu. Brennan sorriu, exibindo dentes regulares.

A multidão se transformou em uma mancha de rostos, as vozes se misturaram em umzumbido alto, e o rosto de Brennan e aqueles dentes brilhantes entraram em foco.

Richard se imaginou enfiando a lâmina de sua espada no olho de Brennan.

Tudo dentro dele queria o sangue de Brennan. Ele ficou parado na ponta da lâmina, lutandopara manter o equilíbrio.

— Casside, você está bem? —Lorameh perguntou, olhando para ele com muito cuidado. —Você não disse uma palavra.

Responda, seu idiota. Diga algo.

Ele forçou seus lábios a se moverem. — Estou com dor de cabeça. Acho que vou merecolher aos meus aposentos.

— São as flores, —disse Lorameh. — Tanto perfume e pólen se misturando, é um milagreque muitos de nós não tenhamos desmaiado ao respirar isso. Vamos beber alguma coisa, meuamigo.

Richard se esforçou para se mover, mas seus pés permaneceram enraizados no chão.

— Venha, —disse Lorameh. — Você vai se sentir melhor depois de um pouco de ar maisfresco e um pouco de vinho.

Ficar aqui, observando os dois, não faria nada a não ser colocá-lo em risco de comprometertoda a missão. Richard se virou, quebrando a corrente de ciúme e dor que o prendia no lugar, eseguiu Lorameh para o castelo, onde as bebidas haviam sido servidas.

******CHARLOTTE MEXEU os dedos dos pés na bacia de cerâmica. Dançar descalça nochão de pedra antiga não foi a mais agradável das experiências. Ela pisou duas vezes em algumapedra afiada, e a terra das pedras, embora tivessem sido lavadas, a mancha de sujeira agoraestava permanentemente cravada em seus pés. Ela os ensaboou, esfregou e até experimentouuma pedra-pomes, mas a mancha permaneceu. Finalmente, Charlotte recorreu à imersão.

Seu plano saiu muito melhor do que o esperado. Ela havia causado uma impressão emBrennan e, coincidentemente, uma impressão favorável na marquesa. Brennan estava se sentindoclaramente possessivo. Ele a segurou alguns momentos depois da dança e parecia não querer seafastar dela.

Charlotte finalmente pediu licença e foi ao banheiro. Ele esperou nas proximidades, mas ela

apostava que um primo solteiro do rei não ficaria sem vigilância por muito tempo, e provou estarcerta. Um grupo de senhoras da Louisiana o cercou, e Charlotte silenciosamente escapou.

Ela encontrou Sophie na mesa de Aranha/Sebastian, ouvindo atentamente enquanto eledebatia algum ponto da política da Louisiana com um homem mais velho e sua comitiva.Enquanto elas se despediam e agradeciam pela torrente de elogios recebidos, Charlotte preparouuma surra de palavras devastadora em sua mente para Sophie, e assim que as duas entraram emseus aposentos e fecharam a porta, Sophie ouviu cada palavra e no final a abraçou, dizendo: —Obrigada, você é incrível, e desapareceu em seu quarto.

Charlotte ficou parada na porta, olhando para ela por um tempo, sem saber o que fazer, e foitomar um banho. E agora estava encharcando os pés.

Charlotte afundou na cadeira. O quarto estava silencioso e escuro ao seu redor. As portas devidro da varanda estavam abertas e o vento noturno penetrava pelas cortinas brancas etransparentes. Uma lua grande e pálida iluminava o céu e a grade de pedra da varanda. Alémdele, o rio se estendia, refletindo o luar.

Como acabou aqui? Oito semanas atrás, ela era simplesmente Charlotte vivendo sua vidasilenciosamente no Edge. Agora estava participando de um casamento real, seu sobrenomeexposto. Ela pensou na Senhora Augustine. Sua mãe de criação não teria aprovado a divulgaçãodo sobrenome. No momento em que sua adoção foi tornada pública, ela se tornaria um alvo paraos alpinistas sociais empreendedores. Mas então o sobrenome era a menor de suas preocupações.

Charlotte quebrou seu juramento. Senhora Augustine ficaria horrorizada ao saber o quãolonge sua pupila tinha caído.

Uma corda caiu de cima, estendendo-se até a varanda.

Charlotte piscou.

A corda ainda estava lá.

Pés com botas escuras deslizaram à sua vista, seguidos por pernas longas e magras, seguidaspor quadris estreitos, um peito musculoso coberto por tecido escuro. Richard.

Seu coração bateu forte no peito. Ela tentou se levantar e jogou água em todo o tapetebranco felpudo. Caramba. E agora estava xingando em sua cabeça.

Maravilhoso.

Charlotte tirou os pés de dentro da bacia e correu para a varanda na ponta dos pés.

Richard pousou no corrimão da varanda.

— O que você está fazendo? —Ela assobiou em um sussurro alto.

— Eu precisava ver você.

— O que? Pegue essa corda de volta. Você vai estragar tudo.

— Brennan não é tudo.

O rosto dele estava aguçado, quase contorcido, pelo desespero.

— O que está dizendo? —Ela sussurrou. — Algo ruim aconteceu? Você está machucado?

Ele saltou do corrimão, a puxou para dentro do quarto e a apertou contra si. Sua bocaencontrou a dela, quente, possessiva e exigente. Ele a beijou como se esta fosse a última vez quea veria.

Por um momento ela quase derreteu, mas o alarme venceu. — Richard, você está meassustando.

— Vamos embora, —ele sussurrou. — Vamos embora, você e eu.

— O que? Por quê?

— Porque eu não quero perdê-la. Amo você, Charlotte. Venha comigo.

Ela estudou o rosto dele. — Você está com ciúmes de Brennan?

— Sim.

Oh, pelo amor de ... — Richard!

— Sei que não posso te dar um título, ou riquezas, ou ...

Ela colocou a mão na boca dele. — Cale-se. Eu tenho um título e riquezas. Você não podeabortar o plano porque não gostou que eu dancei com ele.

— Você gostou de dançar com ele, —ele disse através da mão dela.

— Não, não gostei

— Parecia estar gostando.

— Eu tinha que parecer que estava gostando, seu idiota. Isso se chama ‘atuação’.

Richard olhou para ela, claramente sem palavras.

— Se você pode entrar na frente de uma faca e correr o risco de morrer, também possomuito bem dançar com Brennan e desfilar na frente dele de calcinha.

— O que?

Ela não deveria ter dito isso.

— Charlotte?

— Eu deixei ele me ver meio nua. Vou desfilar para você também depois, se desejar. Agoraprecisa ir embora! —Ela o empurrou para a varanda. — Vá, vá, vá. E leve sua corda com você.Você está muito velho para isso. Estou muito velha para isso. —Ela fechou as portas de vidro.

Richard ficou parado por um longo momento, então saltou, agarrou a corda e se levantou.

Charlotte caiu de costas na cama. Idiota. Idiota. Ele escalou a parede para ela como umaespécie de príncipe ladrão de um romance de aventura. Escalou uma corda em um acesso deciúme. Sério, quem escala cordas?

Uma batida soou em sua porta. O que agora? Ela se aproximou, puxando seu robe fino maisapertado em torno de si, e verificou a janela de vidro da porta. Brennan.

— Isso é altamente impróprio, —disse ela através da porta.

— Eu sou um homem altamente impróprio.

— Que deve permanecer no corredor.

— Charlotte, eu só queria conversar.

— Um momento.

Charlotte foi até um comunicador e ligou para o pessoal do castelo. As engrenagens girarame o rosto de um homem apareceu acima da meia esfera de cobre. — Ao seu serviço, minhasenhora.

— Robert Brennan está à minha porta. Ele deseja ter uma conversa. Eu preciso deuma escolta.

O homem se virou por um momento e a encarou novamente. — A escolta foi enviada. Elesestarão à sua porta em vinte segundos.

— Obrigada.

Ela caminhou até a porta e olhou através do vidro. Momentos se arrastaram. Charlottecontou até vinte em sua cabeça. Aos dezoito segundos, um homem e uma mulher vestidos nouniforme dos funcionários do castelo dobraram a esquina e pararam perto de sua porta. Charlottea destrancou e a abriu.

Brennan suspirou. — Uma escolta? Somos crianças?

— Somos adultos, e é exatamente por isso que preciso de uma escolta.

Ele sorriu. — Eu assusto você, Charlotte?

— Alteza, eu vi coisas que deixariam o cabelo da maioria das pessoas branco durante anoite. Não tenho medo de você. Estou simplesmente sendo prudente.

Ele inclinou a cabeça. — Você solta o cabelo à noite.

— Claro. —Usar o cabelo solto não era um dos melhores penteados para ela. Ela ficavamuito melhor com o cabelo preso, mas seu couro cabeludo tinha que descansar em algummomento.

— Por que foi embora do baile?

— Minha pupila teve animação suficiente para a noite.

— A garotinha? Ela é o que sua?

— Ela é filha de um amigo. Sua mãe morreu e seu pai não está apto para cuidar dela.

Brennan balançou a cabeça. — Essa conversa seria muito melhor sem um público.

— E é exatamente por isso que temos um.

— Eu gostaria de conhecê-la melhor, —disse ele.

— Você gosta de chá da manhã?

— Eu poderia gostar.

— Nesse caso, darei um chá da manhã amanhã às dez.

— Nesse caso, eu definitivamente comparecerei. Quem mais estará lá?

— Minha pupila e eu. Se você está planejando comparecer, talvez eu convide algumasoutras pessoas para manter o decoro.

— Você parece ser muito preocupada com o decoro.

E você parece muito preocupado em lucrar vendendo crianças como escravas. — Hámomentos em que posso ser inapropriada.

Uma pequena luz faminta brilhou nos olhos de Brennan. — Quão inapropriada?

— Se tiver paciência para esperar, talvez eu te mostre.

Ele sorriu. — Você vai fazer disso um jogo, não é?

— Se decidiu ver as coisas dessa maneira.

— Eu adoro jogar. —Ele se inclinou para frente, pegou a mão dela e beijou seus dedos. — Enunca perco.

Ela se inclinou na direção dele e disse, pronunciando as palavras muito claramente: — Vádormir, Sua Alteza.

Brennan sorriu, uma exibição de dentes feliz e satisfeita, e se dirigiu para o corredor.

— Obrigada, —disse ela a escolta.

— De nada, minha senhora, —eles disseram em coro.

Charlotte fechou a porta, a trancou, virou-se e deu de cara com Richard.

— Eu disse para você ir embora.

Ele olhou para a porta com aquele foco predatório familiar. — Eu vou matá-lo.

— Não, você não vai. Você vai escalar sua corda e sair.

Ele não estava ouvindo. Richard nem estava olhando para ela. Ele simplesmente se moveupara a porta, e ela sabia que tinha que detê-lo agora, ou ele iria perseguir Brennan e matar ohomem, e todo o esquema deles desmoronaria.

Charlotte agarrou a parte de trás da cabeça dele e o puxou para baixo em sua direção. Beijá-lo era como beber vinho com especiarias—o calor dele se espalhou por ela, queimando seucorpo. Imediatamente, ela o desejou.

Richard passou os braços em volta dela, puxando-a para perto. A língua dele tocou a dela eela estremeceu. Quando Charlotte abriu os olhos, ele estava realmente olhando para ela.

— Você tem que ir, —ela sussurrou.

— Não.

— Sim. Você deve ir. E se ele for procurar por Casside e você não estiver lá?

Os olhos dele ficaram escuros.

— Olhe para mim, Richard. Você não pode matar Brennan até que o exponhamos. Não podefazer isso, ou será tudo em vão. —Ela o beijou novamente, tentando afastá-lo da raiva destrutiva.— Você não tem nada com o que se preocupar.

Ele piscou, como um homem acordando de um sono profundo, concentrando-se nela.

— Não há nada com que se preocupar, —ela repetiu. — Eu te amo, Richard. Vá.

— O que disse?

— Eu disse que te amo, seu idiota.

— Quando isso acabar ...

— Sim, —ela disse a ele.

Ele olhou para ela.

— A resposta é sim, Richard. Sim, irei com você e viveremos em seu Covil, porque te amo.Agora deve ir. Saia daqui!

Ela o empurrou para a varanda, fechou as portas e fez questão de trancá-las.

Richard olhou para ela por trás do vidro. Ele tinha uma expressão muito estranha em seurosto, uma espécie de espanto atordoado.

— Vá! —Ela murmurou para ele.

— Eu também te amo, —ele murmurou, então saltou e se pendurou de volta na corda.

Charlotte atravessou o quarto, caiu na cama e cobriu o rosto com um travesseiro. Sentia-sequente e tonta. Richard a amava. Isso fazia tudo valer a pena.

E se ele fosse descoberto e o pegassem? E se algo acontecesse e ele morresse?

A ansiedade a atingiu no coração. De novo. Olá, ansiedade.

Por favor, Charlotte orou silenciosamente. Por favor, por favor, por favor, que acabe tudobem. Por favor, deixe tudo dar certo.

Por favor.

dezesseiisCHARLOTTE ESTAVA SENTADA EM UMAESPREGUIÇADEIRA EM sua varanda, bebendo um chá vermelho da cor do sanguee sutilmente observando Brennan sentado desconfortavelmente em sua cadeira, em frente a ela,diretamente do outro lado da mesa de centro. À direita, Sophie estava sentada em silêncio, lendoum livro. À esquerda, no divã, a Duquesa das Províncias do Sul relaxava, bebendo seu chá empequenos goles e mantendo uma conversa.

Brennan deve ter esperado que Sophie e quem quer que Charlotte convidasse para o chá nãoseriam um grande obstáculo. Ele poderia intimidar a maioria das pessoas pelo simples fato de serum primo do rei. Mas Senhora Olivia era outra história, a mulher era uma barreira impenetrável.Mais velha, bem-vista e a influência e poder dela superavam os dele.

Sua Alteza foi forçado a se comportar e não estava gostando disso. A conversa fiada estavaclaramente irritando-o. Brennan estava desesperadamente entediado.

Entediado o suficiente para quase fazê-lo pegar o álbum que Charlotte colocara na mesa decentro ao alcance dele. Com trinta centímetros de comprimento por trinta de largura,encadernado em couro marrom luxuoso e gravado com uma serpente prateada mordendo suaprópria cauda, o símbolo do Instituto Ganer, o álbum continha aproximadamente oitenta páginasde papel pesado, intercaladas com papel de seda transparente. O álbum acenava para ser pego.

Só mais um pouco, pensou Charlotte. Mais um pouco.

Senhora Olivia iniciou uma discussão sobre as propriedades agrícolas das laranjas.

Brennan escondeu um bocejo e se inclinou para frente ... e pegou o álbum.

Senhora Olivia olhou para Charlotte e tomou um momento para fazer comer algunsbiscoitos.

— Que álbum requintado, —disse Brennan, obviamente aliviado com a oportunidade deiniciar uma conversa. — São membros da sua família?

— Não, meu senhor. —Charlotte tomou um gole de chá. — São imagens de minhas maioresrealizações como Curadora. A verdade é que somos muito vaidosos.

Brennan virou a página e estremeceu. — Queridos deuses, esta criança está horrivelmentequeimada.

— Um acidente infeliz, —disse Charlotte. — Ela ficou presa em um celeiro durante umincêndio que atingiu a aldeia. Se virar a página, verá que ela ficou consideravelmente melhordepois que terminei de curá-la. As queimaduras são difíceis de curar completamente, mas tiveum sucesso modesto com ela.

Brennan virou a página. — Isso é inacreditável.

— Você se dá muito pouco crédito, minha querida, —a duquesa murmurou.

Charlotte tinha que manter Brennan interessado no álbum. — Acredito que haja casos pioresum pouco mais adiante.

Brennan virou uma página. Outra. Outra. A mão dele congelou.

No alvo.

— Este homem. —Brennan girou o álbum, segurando-o com uma das mãos para quepudesse mostrar a ela. Uma foto de Richard olhou para ela. Ele parecia alguns anos mais jovem.Seu cabelo estava mais longo, mas a imagem tinha uma semelhança inconfundível com a fotoque Brennan tinha do Caçador.

Brennan manteve a voz tranquila, apesar do tom afiado do comando. — Fale-me sobre estehomem.

Senhora Olivia ergueu as sobrancelhas. Charlotte se inclinou para frente, olhando para aimagem. — Este não foi um dos meus piores casos.

— Por favor. Conceda-me.

— Muito bem. Ele era um soldado, um daqueles tipos secretos e extremamente perigosos.

Você sabe, o tipo de soldado que entra em uma floresta com nada além de uma faca e um pedaçode corda, e uma semana depois sai dela após ter destruído sozinho uma legião de inimigos. Eleestava gravemente ferido. Seu fígado e rim foram cortados com uma lança e, quando foi trazidoaté mim, estava delirando. Ele não parava de contar seus momentos de maior orgulho na vida:quando foi escolhido para sua unidade de combate, quando seu filho nasceu, e quando LordeMaedoc o premiou com o Escudo da Bravura.

— Tem certeza disso? —O rosto de Brennan ficou completamente plano.

— Sim. A mente das pessoas com febre funciona de maneira estranha. Ele falou sem pararsobre os olhos de seu filho e sobre o reconhecimento de Lorde Maedoc a seus serviços. Contouque serviu por algum tempo sob o comando de Lord Maedoc após a cerimônia, e foi o ponto altode seu serviço. Curá-lo durou aproximadamente dezesseis horas. Eu estava exausta e precisavadescansar. Quando voltei para vê-lo no dia seguinte, um grupo de soldados esperava para levá-loembora.

— Maedoc? —Brennan repetiu. — Este homem pertencia aos oficiais sob o comando deMaedoc?

— Sim. Fiquei chateada porque o Instituto havia autorizado a liberação do soldado, eleainda não estava em condições de viajar, e por isso fiz o grupo de soldados obter uma ordem deliberação para que eu pudesse dar alta a ele. Isso é importante?

— De jeito nenhum. —Brennan fechou o álbum e se voltou para Senhora Olivia. — Estavanos contando sobre laranjas, Vossa Graça?

******RICHARD SE ESTUDOU no espelho. O homem que olhava no reflexo não era nadaparecido com ele. Rosto roubado, roupas roubadas, até a espada era de outro homem. Eramferramentas, disse a si mesmo. Ferramentas de seu ofício. Ela o amava de qualquer maneira. Elao amava.

Alguém bateu na porta em uma batida rápida. Kolin, seu primo em segundo grau, olhou paraele. Richard acenou com a cabeça. Kolin abriu a porta. Brennan entrou, quase derrubando Kolin.Seu rosto brilhava com uma determinação implacável. Atrás dele, René parou na porta, com orosto pálido.

— Pegue sua espada e venha comigo, —disse Brennan.

— Aconteceu alguma coisa?

— Casside, pegue sua espada.

Richard pegou seu florete. Brennan girou em seu pé e marchou para fora. Richard o seguiu,caminhando lado a lado com René pelo corredor.

Eles subiram a escada, cruzaram outro corredor e entraram em um elevador de metal evidro. Brennan digitou um código no painel e a pequena cabine deslizou para cima. As paredesexternas passaram rapidamente, então a luz do dia entrou na cabine. Estavam subindo direto pelalateral do castelo.

— O Caçador pertence a Maedoc, —disse Brennan. — Ele é cria de Maedoc.

— Tem certeza? —René perguntou.

Brennan se virou para ele, seu rosto distorcido pela fúria, e René deu um passo para trás.

— Foi muito inteligente da parte dele. Use o Caçador para desestabilizar o comércio deescravos, faça Brennan parecer fraco, façam perder dinheiro e dessa forma fomente odescontentamento de todos. Achei que Maedoc fosse muito limitado para um plano como esse,mas ele enganou a todos nós.

— O que você vai fazer? —René perguntou, uma nota de ansiedade em sua voz.

— Não só eu. Todos nós.

A cabine parou. As engrenagens na parede giraram, as portas se abriram e eles saíram parauma varanda estreita, ofuscada por uma torre. Bem abaixo, o rio brilhava. Estavam bem no topodo castelo.

Na outra extremidade da varanda, Maedoc e Angelia conversavam perto do parapeito depedra. O rosto de Angelia ficou pálido. O medo estremeceu nos olhos dela, como um pequenoanimal encurralado em um canto.

— O que é tão importante? —Perguntou Maedoc.

Ela apontou para eles.

Maedoc se virou. — Brennan? O que está acontecendo?

— Temos um traidor entre nós, —disse Brennan, fechando a distância entre eles.

— Ele está por trás do Caçador e do ataque à ilha.

— Quem é? —Maedoc franziu o cenho.

Brennan puxou uma adaga de sua bainha e a enfiou no lado direito de Maedoc.

Angelia ofegou com um grito.

Brennan desceu a adaga pela carne do homem com um golpe afiado, seu rosto a centímetrosdos olhos chocados de Maedoc, e puxou a lâmina. A primeira perfuração provavelmente

perfurou o pulmão, decidiu Richard. O rasgo lacerou o fígado de Maedoc.

— O que você está fazendo? —René gritou. — Robert, o que é que você ...

Maedoc caiu contra o parapeito, lutando para se manter de pé. Brennan se aproximou deRené e colocou a adaga ensanguentada na mão dele. — Sua vez.

— O que?

— Sua vez, seu covarde de merda. Estamos nisso juntos. Faça ou junte-se a ele.

René olhou para Maedoc. O grande homem ergueu a mão esquerda, a direita agarrada aoparapeito. — Não faça isso ...

— Não vou tolerar traidores na minha casa! Faça! —Brennan gritou.

René esfaqueou Maedoc no estômago. O sangue jorrou, encharcando o cabo da adaga.

O comandante gritou.

René largou a adaga e saiu cambaleando. Brennan pegou a adaga do chão e se virou paraAngelia. — Você é a próxima, minha querida.

— Não. —Ela recuou. — Não.

— Sim. —A voz de Brennan vibrou com fúria. — Vou te ajudar.

Ele agarrou a mão de Angelia com os dedos ensanguentados, colocou a adaga nela e fechouos dedos dela com a mão dele, movendo-se atrás dela, empurrando-a na direção de Maedoc.

— Não, —ela gemeu.

A bile subiu na garganta de Richard. Finalmente, a máscara de Brennan caiu. O nobrehomem estava mostrando sua verdadeira face. Matar um homem em uma luta justa era umacoisa, mas isso—era uma carnificina doentia e perversa.

— Vamos, —Brennan disse no ouvido de Angelia, segurando-a por trás em um meioabraço. — Pelo menos uma vez em sua vida, Angelia, faça alguma coisa com as suas própriasmãos. Não é difícil.

Brennan a forçou a avançar, ergueu a mão dela e apunhalou Maedoc no peito. O sanguejorrou. Maedoc gemeu.

Angelia choramingou.

— Ah não, você se sujou um pouco de sangue, minha querida, —disse Brennan. — Mas nãoimporta, não é? Ou acha que todo aquele dinheiro que despejou em suas contas não é sujo desangue? Acha que essas pedras brilhantes em suas orelhas não estão encharcadas de sangue?

Ela se afastou dele.

Brennan se virou para Richard e estendeu a adaga. — Casside. Junte-se a nós, meu amigo.

Richard avançou, pegou a adaga e a empurrou, entre as costelas e para cima, perfurando ocoração. Maedoc engasgou e caiu de vez no parapeito de pedra. A luz sumiu dos olhos dohomem. A tortura acabou.

Brennan olhou para o corpo deitado. — Olha só vocês três. Muito bem. Todos fizeram issocomigo. Agora estamos ligados por sangue.

Angelia escondeu o rosto nas mãos e chorou.

— Pegue as pernas dele.

Richard pegou as pernas de Maedoc. Brennan deslizou as mãos sob os braços de Maedoc.Eles levantaram e jogaram o corpo pela sacada no rio abaixo. Brennan pegou a adaga, a limpoucom um lenço e a atirou na água. A lâmina refletiu a luz do sol, faiscando enquanto voava, edesapareceu abaixo.

René abraçou Angelia e a puxou em direção ao elevador. Richard os seguiu. Brennanpermaneceu no parapeito, de costas para eles, os braços cruzados.

— Ele enlouqueceu, —Angelia soluçou no elevador. — Ficou louco.

— Vai ficar tudo bem, —René disse a ela.

Não iria ficar tudo bem. O castelo de cartas que Brennan havia construído estavadesmoronando e Richard esperava o momento certo para colocá-lo em chamas. E enquanto oelevador descia, ele pensou em uma maneira perfeita de fazer exatamente isso.

Cinco minutos depois, Richard entrou em seus aposentos. — George! Sei que você estáaqui.

Um rato saiu correndo de debaixo de uma estante.

— Encontre meu irmão, —disse Richard. — Nós temos coisas para organizar.

******GEORGE FICOU nas sombras, apoiado na coluna, e observou o salão de jantar se encherde gente. O livro ridiculamente pretensioso que ele leu sobre o Castelo Pierre de Rivièreafirmava que o Grande Salão de Jantar era um salão de ‘elegância quase dolorosa’. Não era. Eraum salão opulento, preenchido com mobílias luxuosas e antigas.

As paredes claras se elevavam a quinze metros de altura, atingindo um teto de vidro tãoclaro que era invisível, exceto pelos três enormes lustres suspensos nele. Cada lustre de três

metros e meio de largura era feito com finos fios de metal e vidro em uma perfeita imitação deuma nuvem iluminada pela luz do sol. Milhares de cristais suspensos por finos fios caíam emcascata do lustre, como gotas de chuva em tons de arco-íris. Os fios eram invisíveis vistos dochão, e olhar para cima dava a ilusão de estar embaixo de uma ducha.

O chão era uma pedra única de mármore cor de creme, salpicado de veios de prata e ouro.Lindas vinhas ornamentadas feitas de bronze subiam pelas paredes, ostentando flores cravejadasde cristais e pedras preciosas. O mesmo padrão de videira decorava as cadeiras e as mesas,envoltas em tecido de seda. O livro afirmava que não havia duas cadeiras iguais no salão dejantar. Olhando para os detalhes das pequenas folhas e botões, George acreditou. Os pratos eramde prata e os talheres tinham uma tonalidade dourada. O salão em si era enorme, e um espelho dochão ao teto à sua direita refletia o espaço, fazendo com que parecesse ainda maior.

Este espaço não era apenas antigo, era atemporal. Nunca sairia de moda em virtude dariqueza concentrada nele. Era uma sala construída por antigos homens e mulheres ricos paraentreter outros homens e mulheres ricos, nenhum dos quais jamais experimentou a pobreza.Apenas uma daquelas flores ou pratos alimentaria uma família inteira do Edge por uma semana.A quantidade de comida que jogariam fora, depois que os Sangues-azuis acabassem de mexer emseus pratos, poderia sustentar uma pequena cidade do Edge por um dia.

George conheceu a pobreza esmagadora. Ele se lembrava intensamente de como era, e essaexibição de luxo extravagante o deixava nauseado.

Pedaços incompletos de conversas flutuavam.

— ... encontraram um corpo.

— ... água. Esfaqueado uma dúzia de vezes...

— Deuses, que horrível ...

— ... o casamento pode ser adiado ...

George avistou Charlotte e Sophie. Sophie estava segurando seu cão em uma bela coleiracom detalhes em metal prateado. A coleira parecia que deveria pertencer a um filhote decachorro fofo de cinco quilos, com patas delicadas e unhas bem cuidadas. Ver um cachorrogrande e musculoso deitado de costas foi desconcertante.

Charlotte e Sophie se sentaram ao lado de um loiro Sangue-azul. Ele se virou, exibindo umperfil conhecido. Aranha. Também conhecido como o Conde de Belidor. Sophie murmurou algo.O Conde se inclinou com uma expressão quase paternal no rosto e disse algo. Ela acenou com acabeça.

Deve ser doído para ela sentar perto dele. George havia tentado conversar com ela sobre

isso na noite anterior. Conversaram pouco, visto que a comunicação entre eles se deu por meiode um esquilo morto e projeção de voz. Ela disse que era tão doloroso, que chegava a ser quasedoce. George pensou sobre isso, mas ainda não conseguia entender o que ela quis dizer.

George viu Jack entrar pelas portas. Ele se movia silenciosamente, deslizando entre osgrupos de pessoas, e ninguém prestou atenção nele, como se fosse invisível. Um momentodepois, Jack parou ao lado dele. — E aí, coisa feia.

— E aí, idiota.

— Sente algum cheiro forte em mim?

George olhou para ele. — Não.

Ele, Kaldar e Jack passaram as últimas três horas na sala atrás do espelho do salão. Era umasala estreita, usada principalmente pelos funcionários e atualmente estava vazio. Os trêsarrancaram os finos painéis de madeira da parede da sala que ficava atrás do espelho, deixando oespelho exposto, retiraram a camada de tinta protetora que fica por trás do espelho e borrifaramum solvente de prata em seu lugar, transformando o espelho em um vidro simples.

Kaldar havia invadido o estoque de dispositivos do Espelho e eles anexaram quatrogeradores de barreira na parte de trás do vidro, agora transparente, estendendo um feitiço em suasuperfície posterior. Enquanto a sala ao lado permanecesse intacta, ninguém poderia dizer que oespelho no salão de jantar foi adulterado.

Imediatamente depois de terminarem o trabalho, Jack começou a ficar obcecado pelo cheirodos produtos químicos que usaram. Normalmente, George tolerava as peculiaridades de seuirmão, mas agora eles tinham coisas maiores com que se preocupar.

— Você acha que irá funcionar? —Jack perguntou.

— Se isso não funcionar, vou matá-lo eu mesmo.

George não precisou especificar que quem ele mataria seria Brennan. Brennan era a raiz domal que havia prejudicado suas vidas. Muitas pessoas sofreram, muitas morreram. O homem nãopoderia ter permissão para existir.

— Concordo, —disse Jack. — Faremos isso juntos.

Do outro lado do corredor, Richard entrou. Ele viu René e Angelia parados juntos no canto ecaminhou na direção oposta, tomando posição contra uma coluna, muito parecida com a deGeorge.

O Grande Barão entrou no saguão, a Marquesa em seu braço. A conversa acabou. O homemmais velho conduziu sua noiva pelo centro do salão até a mesa deles, e sentou-se. Brennan o

seguiu entre os outros Sangues-azuis, sentando-se em uma mesa próxima. Seu rosto tinha umaexpressão solene.

Jack mostrou os dentes, rapidamente, como um corte de faca, e os escondeu novamente.

— Vamos. —George se afastou da coluna e eles se sentaram na mesa designada ao lado daDuquesa das Províncias do Sul.

— Rapazes, —ela os cumprimentou com um sorriso.

— Minha Senhora. —Ambos se curvaram em uma reverência.

— Por favor, sentem-se.

Eles sentaram.

— Como vão as coisas? —Senhora Olivia perguntou baixinho.

— Bem, até agora, —George respondeu. A coisa mais difícil sobre Brennan era que ele eraum oponente imprevisível. O assassinato de Maedoc provou isso. O que eles planejaram fazer eestava prestes a acontecer era tentar desequilibrar Brennan, fazê-lo mostrar as suas garras, eassim que o fizesse, o homem se tornaria uma bola de demolição humana, destruindo tudo emseu caminho.

Um homem alto com o uniforme da Guarda do Castelo entrou no salão e subiu naplataforma elevada da frente. — Meus senhores e senhoras, posso ter um momento de seu tempo.

O silêncio caiu sobre a multidão.

— Meu nome é Celire Lakita. Sou encarregado da segurança do Pierre de Rivière. Estamanhã, um assassinato ocorreu nestas instalações.

Ninguém ofegou. Todo mundo já tinha ouvido a notícia.

— Quero garantir-lhes que a segurança dos senhores não está em questão. —Celire fez umapausa. — Sabemos que o assassinato ocorreu na Varanda Superior Norte. Sabemos que quatroagressores estavam envolvidos. Sabemos por que isso ocorreu. Nós sabemos quem é oresponsável.

George se concentrou em Brennan. O grande homem estava absolutamente imóvel, o rostouma máscara fria.

— Minhas palavras serão dirigidas agora diretamente aos assassinos. —Celire olhou para amultidão. — Nós sabemos quem você é. Tenha certeza de que este assunto será resolvido nofinal do dia. Tentar escapar será inútil, você notará uma presença cada vez maior de segurançanos corredores. Você tem até esta noite para se entregar e manter um pouco de dignidade. Se nãocooperar, seus companheiros conspiradores o farão. A medida da minha misericórdia é pequena

e diminui a cada minuto. Para o resto de vocês, por favor, apreciem o baquete.

O Guarda desceu.

O corredor zumbia com uma dúzia de conversas simultaneamente iniciadas. Foi um discursocuidadosamente elaborado. Kaldar e Richard passaram quarenta e cinco minutos escrevendo.Assim que Kaldar mostrou suas credenciais do Espelho e balançou a possível prisão dosassassinos de Maedoc na frente de Celire, o chefe da segurança do castelo se mostrou mais doque disposto a fazer sua parte para preparar a armadilha.

Agora, Brennan precisava reagir.

Vamos lá, George desejou silenciosamente, olhando para as costas de Brennan. Vamos.Você sabe que quer falar com eles.

Brennan pegou uma caneta.

— Caneta, —murmurou Jack.

— Eu vi.

Brennan escreveu algo em um pedaço de papel e sinalizou para um garçom. O garçom foiaté a mesa onde René e Angelia estavam sentados juntos. O garçom deixou o bilhete. René leu obilhete. Seu rosto ficou pálido. Ele passou o bilhete para Angelia.

Cinco minutos depois, René enviou um de sua autoria. O segundo bilhete chegou à mesa deRichard. Richard dobrou o guardanapo, levantou-se e saiu.

Três minutos depois, Angelia se levantou. René a acompanhou cuidadosamente até a porta.

Brennan foi o último a sair.

Brennan iria levá-los para a sala ao lado. Era a única sala privada e a mais próxima doGrande Salão de Jantar. A segurança bloqueara o corredor à esquerda, e o corredor à direita abriapara áreas de funcionários e cozinhas cheias de pessoas.

O grande espelho na parede do salão estremeceu. Alguém abriu a porta da sala lateral, e acorrente de ar perturbou a delicada teia da magia dos dispositivos, colocados mais cedo porKaldar.

— Isso, —Jack assobiou.

A magia dos dispositivos se rasgou como uma película de óleo sendo varrida da superfícieda água. O espelho do salão desapareceu, revelando uma parede de vidro perfeitamentetransparente e Brennan atrás dela. A raiva distorcia o rosto do homem. Angelia encostou-secontra a parede. René parecia irritado. Richard permaneceu impassível, como uma sombraescura. Ele estava olhando diretamente para o salão de jantar. Nenhum alarme registrado no rosto

de Richard. A magia dos dispositivos deve ter funcionado como pretendido. De dentro da sala aolado a parede do fundo do espelho parecia uma parede normal.

— Eles não sabem de nada, —Brennan rosnou, sua voz ligeiramente abafada, masclaramente reconhecível, pois saía das grades escondidas entre os enfeites na parede. — Eles nãotêm prova nenhuma, não sabem de nada, estão mentindo.

O Grande Barão ergueu a mão. O barulho no salão de jantar morreu, como se cortado poruma espada.

— Acorde! —René retrucou. — Eles sabem. Devemos negociar.

Brennan deu um soco na mandíbula de René. O homem loiro cambaleou para trás.

— Agora me ouçam, todos vocês. —Brennan gritou. — Não haverá negócios. Não falemcom ninguém, não digam nada, nem mesmo respirem sem esclarecer comigo em primeiro lugar.Se fizerem isso, vou esmagá-los. Não pensem por um segundo que sairão ilesos enquanto eu caí.Sou um nobre real do reino. Vocês não são nada. Vocês são lixo.

Brennan se virou para Angelia. — Você é só uma prostituta que não consegue manter aspernas fechadas. — Você, —ele se virou para René, — é um metido a besta e fracassado. —Brennan enfrentou Richard. — E você, é um covarde ganancioso. Posso substituir cada um devocês, e haverá uma dúzia de ansiosos para tomar seus lugares. Eu fiz de vocês o que são hoje.Peguei criminosos de merda e a escória e os moldei em uma força militar. Nem um únicoescravo foi vendido nesta costa nos últimos cinco anos sem que eu recebesse uma parte. Há maisde trezentos traficantes lá fora sob o meu comando e assim permanecerá. Sou o dono do litoral.Sou o verdadeiro poder deste reino.

O Grande Barão se levantou. Seus olhos saltavam. Seu rosto estava roxo de raiva.

George sentiu uma necessidade irresistível de ficar muito quieto e escondido.

— Vão abrir a boca? Tentem. Não viverão para ver o pôr-do-sol. Estão me ouvindo?

O Grande Barão foi em direção ao vidro.

Brennan girou, seus olhos perturbados. — Você vai ter sorte se eu matá-lo. Possosimplesmente despojá-los de tudo que são. Vou vendê-los ao degenerado mais vil que puderencontrar. Vão terminar seus dias se afogando na mais vil das perversidades, mantidos presos emcorrentes, para a diversão de quem os comprar ...

O Grande Barão agarrou a cadeira mais próxima, quase como uma reflexão tardia, e a jogouno vidro, quebrando-o. Fragmentos choveram, espalhando-se pelo chão. De repente, o salão dejantar e a pequena sala se tornaram um único ambiente. Brennan viu todos na sala de jantar

olhando para ele e congelou.

— Seu pirralho arrogante e patético, —o Grande Barão rugiu.

Brennan pegou sua espada. — Não ouse colocar suas mãos em mim, meu velho!

— Essas mãos vão acabar com você, garoto!

René colocou a mão no punho da espada.

Um raio, fino como um cabelo, de puro flash branco pulsou da esquerda e atingiu a mão deRené. Sangue derramou. René gritou.

Na mesa mais distante, Lorameh estava parado calmamente, raios brancos dançando emseus dedos. Havia algo familiar no rosto de Lorameh. O reconhecimento atingiu George comoum soco. — Erwin!

O homem era seu supervisor há dois anos. Como diabos ele não o reconheceu? Erwin nemestava usando um grande disfarce.

— Claro que é Erwin, —disse Jack. — Ele tem o mesmo cheiro. Você descobriu isso agora?

A magia faiscou nos olhos de Brennan. Um escudo de flash branco o envolveu.

O Grande Barão plantou seus pés no chão, firmando-se.

Richard saiu da sala para o corredor.

Raios brancos de flash saíram do cabelo do Grande Barão. Uma enorme pressão mágicacresceu ao redor dele, girando em torno do velho como um casulo riscado com veias radiantes depoder. Merda.

As pessoas nas mesas da frente se afastaram.

— Temos que sair daqui! —Jack deu um pulo.

— Não há necessidade, —disse Senhora Olivia.

Um chicote de flash branco disparou de Brennan em direção ao peito do Grande Barão ericocheteou. Brennan realmente tentou matar seu próprio avô.

— Você tem o meu sangue, —o Grande Barão trovejou. — É meu dever acabar com você,moleque!

O Grande Barão abriu os braços, as palmas para cima. Uma esfera brilhante de magiacrescente girou entre as mãos.

— Fiquem perto de mim, crianças, —disse Senhora Olivia.

Kaldar apareceu entre as mesas e correu até eles.

Uma parede de flash branco revestiu Brennan.

Nas mãos do Grande Barão, a esfera pressurizada de magia explodiu. Uma torrente de podersaiu do velho. A explosão do flash atingiu Brennan.

Kaldar se abaixou entre Jack e George. George se preparou para a onda de choque. Seuescudo de flash era forte, mas George não tinha certeza se aguentaria.

Uma esfera branca se desenrolou tranquilamente da Senhora Olivia, envolvendo a mesa. Emtorno deles, as mesas voaram para trás, como se um gigante tivessem as varrido com as mãos. ADuquesa deu um gole em sua xícara, imperturbável.

A esfera da Duquesa desapareceu.

As paredes da sala ao lado haviam desaparecido. Um buraco colossal se abriu na lateral docastelo. Angelia estava deitada no chão. René estava agachado contra uma parede lateral.Brennan se levantou, ileso. O homem conseguiu se proteger do ataque do Grande Barão, eacabou protegendo René que se escondeu diretamente atrás dele.

Brennan desembainhou sua lâmina. — É só isso velho? É tudo que pode fazer?

Brennan usou todo o poder dele para se proteger do ataque. Não há mais magia.

O Grande Barão não tinha espada.

Brennan atacou o Grande Barão com um golpe rápido e direto. A espada dele brilhou,refletindo a luz do sol, e se chocou retinindo contra a lâmina de Richard. Não era o florete deCasside, mas a própria espada de Richard.

O casaco de Richard havia sumido. Ele usava uma camisa branca larga. Pequenos pontosvermelhos marcavam o rosto e as mãos de Richard. Sangue, George percebeu. O escudo de flashde Richard não era dos melhores, mas ele conseguiu bloquear o suficiente da explosão do GrandeBarão para sobreviver à explosão. Isso lhe custou, e agora Richard estava sangrando por todos osporos. Chamavam esse fenômeno de Punção do Flash, um sinal claro de que a magia de Richardfoi totalmente gasta. A magia de Brennan também se fora. Se lutassem agora teria que ser espadacontra espada.

Os olhos de Brennan se arregalaram. — Casside, o que diabos está fazendo? Você perdeu acabeça?

— Eu não sou Casside. —Richard olhou para o Grande Barão, uma pergunta óbvia no rostodele. O velho nobre ponderou sobre a pergunta silenciosa de Richard por um momento.

Deixe-o fazer isso, George desejou. Ele precisa fazer isso.

— Você tem minha permissão, —o Grande Barão retumbou.

Richard se colocou entre o velho e Brennan.

À esquerda, Charlotte se levantou e ficou totalmente imóvel.

Brennan recuou, erguendo a espada. Era uma espada simples e funcional de design simples,mas brutal, que servira aos Brennans por séculos, abrindo o caminho da família até o trono.Tinha uma lâmina de dois gumes de oitenta centímetros, afiada e polida com uma suavidadeacetinada; um punho de vinte e cinco centímetros com uma empunhadura de vinte, envolto emum cordão de couro liso que permitia a Brennan empunhar a espada com uma ou duas mãos; umpunho redondo e uma guarda cruzada. George havia empunhado uma espada assim antes, feitapelo mesmo ferreiro que fez a espada de Brennan, Declan a tinha em seu arsenal. O equilíbrio dalâmina era de quatorze centímetros e pesava cerca de um quilo e meio, uma combinação quetornava a espada ágil apesar de seu tamanho. Quando George segurou uma espada como essa nãomão o fez se sentir indestrutível.

A espada de Richard tinha um único gume e era curvada levemente. Afiada como umanavalha, pesava apenas meio quilo, com uma lâmina de sessenta e cinco centímetros e umaempunhadura de dez centímetros. A espada de Brennan era dez centímetros mais longa, meioquilo mais pesada, mas também mais lenta. Era a poderosa lâmina de açougueiro de Brennancontra o bisturi de Richard.

Brennan cortou para a direita, mirando no lado direito de Richard, logo abaixo das costelas.Richard moveu-se para desviar, mas em vez de seguir em frente, Brennan reverteu o golpe eatacou a esquerda de Richard. Richard trouxe sua espada, com a ponta para baixo, encontrando alâmina de Brennan bem a tempo. Brennan estava testando a velocidade, George percebeu.

— Se não é Casside, quem é você?

— Você me chama de o Caçador.

Brennan atacou novamente, a espada dançando em sua mão. Lado direito, lado esquerdo,lado direito, esquerdo. As espadas tocaram uma na outra. Richard recuou sob o ataque, seusmovimentos eram curtos e medidos. Brennan o conduziu pelo salão. As lâminas brilharam,Richard moveu-se um pouco devagar demais e a ponta da espada de Brennan roçou o ombrodele. O sangue manchou a manga branca de Richard. Inferno.

— Não! —Jack rosnou.

— Foi apenas um arranhão. Ele está bem. —O primeiro sangue65 foi a favor de Brennan.Isso não era um bom sinal. O pulso de George disparou. Richard não podia perder. Elesimplesmente não podia perder essa luta.

Os dois homens circularam um ao outro como dois predadores vigiando. Richard, um lobo

calejado, e Brennan, um tigre mimado.

— Por quê? —Brennan perguntou.

— Você lucra com a venda de seres humanos.

— Um verdadeiro defensor da moral, então. —Brennan mostrou os dentes. Quem é vocêpara me julgar?

— Um homem qualquer, —disse Richard.

Brennan agarrou a espada com as duas mãos e golpeou, trazendo-a em um movimentocircular sobre o peito de Richard. Richard recuou e a espada passou assobiando por sua camisa.Brennan reverteu o golpe e golpeou diagonalmente para baixo. Richard defendeu, desviando ogolpe com a parte plana de sua lâmina. O aço tocou. Richard cambaleou para trás. Brennan eramaior e pelo menos quinze quilos mais pesado de puro músculo. George sabia que Richard tinhauma resistência ímpia, mas o ataque do flash claramente tinha cobrado seu preço.

Brennan balançou novamente, um corte alto e horizontal. Richard se defendeu com umtilintar de aço. Eles cruzaram as espadas repetidas vezes, bloqueando com a parte plana de suaslâminas. Brennan grunhiu e martelou em Richard, golpe após golpe, afundando sua enorme forçanos ataques. Richard estava recuando, cambaleando com os golpes. George cerrou os punhos.Saia daí. Ele vai prendê-lo contra a parede. Saia.

— Brennan está apenas batendo nele, —Jack apertou entre os dentes. — Ele não estáusando nenhuma técnica.

— Ele está muito cansado para sobreviver a uma longa luta. Quer acabar com isso rápido.

Brennan estava familiarizado com todas as técnicas de esgrima adequada e conhecia todosos truques também. Membros da família real começavam a treinar em artes marciais desde ainfância. George não teve permissão para começar a praticar até os nove anos. Na idade dele,Brennan já vinha aprendendo esgrima há seis anos. Brennan estava contando com seu poderbruto agora. Isto não era um duelo, isto era uma luta até a morte, rápida e brutal. Apenas umsobreviveria, e Richard parecia em desvantagem.

Brennan cortou o ombro direito de Richard. Outro arranhão. Droga. George escondeu umrosnado. Ele queria correr até lá e terminar isso de uma vez.

Jack ficou tenso ao lado dele, recolhendo-se como um gato antes de um ataque.

— Não se atrevam, —disse a Duquesa. Ouvir a voz dela foi como jogar um balde de águagelada em cima dele. George recuou.

— Essa luta não é de vocês. Precisam ficar fora disso.

Brennan bateu com o ombro em Richard, empurrando-o para trás. Richard bateu na parede.

Saia, saia, saia ...

Brennan empurrou. Richard jogou sua lâmina de lado e girou para a esquerda, se libertando.Brennan puxou uma adaga da bainha em seu cinto. O ataque bruto falhou. Ele estava indo para oplano mais inteligente agora. Brennan cortou da direita. Richard desviou a lâmina e Brennancortou a mão de Richard com a adaga, jogando sangue para o ar.

Argh!

Richard girou e empurrou. Brennan bateu a lâmina de lado e esculpiu a parte interna doantebraço de Richard. A mão da espada era vital. Um corte no lugar certo e Richard perderiamobilidade, força ou sua espada completamente. Brennan o estava desmontando peça por peça.Richard parecia estar no último suspiro, diminuindo sua velocidade. Sua camisa estava vermelhade sangue.

Outro corte. Dane-se tudo para o inferno.

Brennan sentiu a fraqueza, como um tubarão sente sangue na água. Ele fez um corte amplo ehorizontal, da esquerda para a direita. Richard se inclinou para trás com velocidade repentina. Aespada cortou o ar vazio. Richard apertou a mão esquerda no pulso da espada de Brennan.Brennan avançou com a adaga, lutando para enfiá-la na garganta de Richard. Richard seesquivou do golpe e enfiou o punho da espada sob o queixo de Brennan. Sangue derramou daboca de Brennan. Ele recuou e Richard cortou a parte interna de seu bíceps esquerdo. Brennanlargou a adaga e cambaleou para trás. — Quem diabos é você? —Brennan engasgou.

— Sou um Edege, um ninguém. Você atacou meu povo, então tirei tudo de você. Matei seusbandos de traficantes, destruí sua ilha, o enganei fazendo-o pensar que Maedoc era um traidor.As peças do seu reino de cartas estão desabando ao seu redor, e eu sou o responsável por isso.

Brennan rosnou, cuspindo sangue. — Eu vou te matar, seu pedaço de merda do Edge.

— Você nunca chegará a governar nada, —Richard rosnou de volta. — Não temcompetência para isso.

Brennan se lançou em uma batalha furiosa. Sua espada brilhou, cortando arcos largos:esquerda, direita, esquerda. Richard desviou. Brennan deu uma cabeçada nele. Richard se jogoucontra o lado de Brennan. Eles se enfrentaram novamente, ensanguentados, focados apenas umno outro. O toque de aço contra aço era como uma batida de coração.

Brennan fez outro corte no pescoço de Richard. Todos os golpes de Brennan estavamconcentrados acima do peito, George percebeu. Fixação do inimigo. Ele tinha ouvido falar sobreisso, mas nunca tinha visto. Nesse momento, Brennan odiava tanto Richard que não conseguia

desviar o olhar do rosto dele. Todos os seus cortes foram desferidos para arrancar a cabeça deRichard.

Richard girou para fora do caminho e deu um chute na lateral de Brennan. O homem maiordeu um passo para trás. A ponta da espada de Brennan caiu. Cansado! Ele estava cansado. Alâmina demorou a subir.

Brennan exalou, sangue borbulhando em seus lábios e atacou. Richard o deixou levantar aespada e cortou o estômago de Brennan em um corte relâmpago.

Brennan tropeçou, apertando o braço contra o estômago, tentando segurar suas entranhas.Richard andava de um lado para o outro, perseguindo-o, como um lobo faminto perseguindo umurso ferido. O grande homem tentou se endireitar. Richard se abaixou, quase de joelhos, e cortouas pernas de Brennan, da direita para a esquerda, sua espada um borrão de velocidade.

Brennan cambaleou. O tecido da calça dele se rasgou, mostrando cortes entrecruzados. Osangue encharcou. Brennan rosnou e caiu de joelhos. Richard deu uma joelhada no rosto dohomem. Brennan tombou. Richard sacudiu o sangue de sua espada com um puxão afiado e olhoupara Charlotte.

Ela ainda estava de pé à mesa, tão pálida que parecia sem sangue. Lentamente, Richardergueu a espada em uma espécie de saudação.

O Grande Barão gritou. — Alguém, leve este lixo para fora.

Celire apareceu, apoiada por meia dúzia de guardas. Eles rodearam Brennan.

Três espadas foram apontadas para Richard.

— Não ele, —disse o Grande Barão. — Ele pode ir.

Richard abaixou a cabeça. Os guardas se afastaram e ele caminhou em direção a mesa daDuquesa.

— Uma desgraça. —Erwin disse. George se virou. O espião estava de pé à mesa deles. Seusupervisor se parecia muito menos com Lorameh e muito mais com Erwin. Algum tipo de magiatinha que estar em ação aqui. George teria que descobrir mais sobre isso.

— Erwin? —Kaldar olhou para ele. — Você é Lorameh?

— Sim. Que parte do ‘não se envolva’ não ficou clara para você? Estou cercando Brennanpor dez meses, construindo meu caso para que eu pudesse pegá-lo em silêncio, sem escândalos econstrangimentos para o reino. —Erwin ergueu o braço, indicando o salão de jantar destruído. —Isso é exatamente o que eu estava tentando evitar.

Richard os alcançou. — Onde está Charlotte?

George olhou para a mesa de Charlotte. Estava vazia. Charlotte se foi. Sophie também ... eAranha também.

— Ela estava aqui, —disse ele.

— Jack! —Richard gritou.

— Deixe comigo. —Jack correu pelo salão de jantar, agachou-se à mesa, respirou fundo eapontou para a porta. — Corredor direito.

Richard correu pelo corredor.

******— MEU SENHOR! —Sophie chamou.

Aranha parou e se virou. Ele estava no meio do caminho através dos jardins, e quando girouem seu pé para encará-la, os belos canteiros de flores o emolduraram. O homem parecia umapintura elegante, banhada pela luz do sol. Ela soltou o cão da coleira.

— O que você está fazendo aqui, Sophie?

— Fiquei assustada quando a gritaria começou, —disse ela. — Eu corri e vi você indoembora.

Ele ergueu a mão, convidando-a a caminhar ao lado dele. Ela a alcançou e, juntos,caminharam pelo caminho sinuoso. O cão correu de lado para fuçar em algumas flores.

— Vejo que trouxe seu cão. Finalmente escolheu um nome para ele?

— Sim. Acho que devemos chamá-lo de Callis.

— Em homenagem ao Grande Barão? —Aranha sorriu.

— Eles têm o mesmo tipo de dignidade rude. Onde você está indo?

A lâmina dura da espada curta dela, a única arma que poderia estar escondida em seuvestido, estava quente contra sua coxa. Rosas floresceram em ambos os lados do caminho, rosa,vermelho escuro e creme, suas pétalas de veludo enviando um perfume requintado para o ar.

— Vim aqui para atrapalhar este casamento, —disse ele.

— Mas por quê? Você não gosta da Marquesa?

— Gosto. Gosto muito, na verdade. Ela é um belo exemplo do melhor que um sangue nobretem a oferecer. Mas sou um patriota, minha querida. E às vezes as necessidades do meu paísentram em conflito com meus gostos pessoais.

— Entendo, —disse ela. — O dever. —Ele não era um monstro por escolha própria,

coitado. Era um patriota. A única diferença entre um assassino sádico psicótico comum eAranha era que ele tinha a autorização do reino da Louisiana para ser um.

— Sim. —Aranha concordou. — A Marquesa tem grandes propriedades. Não é do nossointeresse deixar essas terras caírem sob a influência de Adrianglia. Eu estava planejando umshow bastante espetacular para cumprir a minha missão. Mas um verdadeiro profissional sabequando é derrotado. Os próprios Adrianglianos criaram um caos tão glorioso por conta própria,que eu não conseguiria contribuir com mais nada para isso. É hora de deixar o palco.

Aranha parou. Eles estavam bem no centro do jardim, onde o calçamento formava umcírculo.

— Gostei muito da sua companhia. Você é muito inteligente, —disse Aranha. — Tem acapacidade de raciocinar e manter a mente aberta. Se você desenvolver ambição, irá longe.Desejo-lhe boa sorte, minha querida. Vou ficar de olho em você, se puder. Estou interessado emacompanhar seu crescimento.

— Como alguém desenvolve a ambição?

Ele inclinou a cabeça. — Você já quis alguma coisa? Algo que sabe que não pode ter? Algoque é o desejo do seu coração?

— Claro.

— Convença-se de que você deve tê-lo. Coloque em sua mente que é seu pelo direito de suaforça, inteligência ou simples desejo. Alcance-o e pegue-o. Entendeu?

Oh, ela entendeu. Entendeu muito bem.

— Até a próxima. —Aranha se virou. Ele estava prestes a sair do jardim. Ela podia nuncamais ter outra oportunidade como esta.

— Lorde Sebastian?

— Sim?

Sophie afundou a mão na dobra oculta de sua saia. — Você gostaria de saber qual é o desejodo meu coração?

Aranha se virou para ela, um leve sorriso nos lábios. — Muito bem. Qual é, minha querida?

Sophie enfiou a faca no peito dele, esticando o flash dela pela lâmina em uma fração desegundo.

Aranha ofegou.

Sophie agarrou a lâmina com mais força e a rasgou através das entranhas de Aranha,

cortando os tecidos moles dos órgãos. O sangue jorrou dos lábios de Aranha, seu rosto surpresocom a descrença.

— É vê-lo morrer, seu pedaço de merda, —disse ela. — Você fundiu minha mãe.

Ele se lançou para frente, empalando-se mais profundamente na lâmina. A mão dele agarroua garganta de Sophie, apertando-a com força de aço. O ar desapareceu. Não entre em pânico.Aconteça o que acontecer, não entre em pânico.

— Sophie Mar, eu suponho. —A voz de Aranha era um rosnado áspero e desumano. Seusolhos se cravaram nela. O mundo estava desaparecendo na escuridão. — Boa jogada, minhapequena. Boa jogada.

Sophie libertou a adaga com um puxão afiado. O ar em seus pulmões ferveu.

— Você não tem ideia do quanto eu odeio sua família.

Com o canto do olho, Sophie viu um borrão preto disparar pela grama.

Callis bateu em Aranha e apertou os dentes no antebraço direito do homem, adicionandoseus cinquenta quilos ao peso de Sophie. Aranha gemeu. Seus dedos se abriram, liberando suagarganta. Ela caiu e se agachou, ofegando por ar. Sophie precisava se mover, mas seu corpo serecusava a fazer qualquer coisa além de respirar, perdendo segundos preciosos.

Callis rosnou, puxando Aranha, tentando arrancá-lo do chão. Com a mão esquerda, Aranhapuxou uma lâmina da bainha em sua cintura e acertou o cão na cabeça. Callis rosnou. Aranhaafundou sua lâmina na pele escura das costas de Callis. A lâmina saiu vermelha.

Não! Você não vai matar meu cachorro! As pernas dela finalmente obedeceram. Ela saltou,a adaga erguida e cortou as costelas de Aranha. Por que diabos ele não estava morto? E se elenão puder ser morto?

Aranha chutou Callis para o lado. O cão caiu no chão com um rosnado cruel e tentou atacar.

— Não! Meu, —ela disse a Callis.

Aranha riu. — Vamos ver do que você é capaz. —Ele golpeou. Ele era rápido, muito rápido,quase tão rápido quanto Richard.

Ela defendeu e golpeou o ombro dele, cortando um corte em seu casaco.

O sangue derramou. Não foi profundo o suficiente. Sua adaga era muito curta. Ele a cortouem um corte vicioso e horizontal. Ela não tinha como se esquivar para o lado, então se curvoupara trás. A dor a queimou logo abaixo da clavícula. A ponta da lâmina dele cortou a partesuperior exposta de seu peito. O sangue derramou em seu vestido. Quando Aranha terminou ogolpe, ela agarrou o pulso dele com a mão esquerda e cortou o peito dele. A lâmina, afiada com o

flash dela, cortou as costelas dele.

Aranha rosnou. Ele ainda estava de pé.

— Não é boa o suficiente, Sophie Mar.

— Boa o suficiente para você. Não pode tirar mais nada de mim.

Ele riu.

— Morra. —Ela o cortou novamente. — Morra, morra, morra!

Aranha tropeçou para trás e continuou rindo.

Ela o golpeou uma e outra vez, tornando-se um redemoinho, sua adaga coberta por seu flashera uma extensão dela, ligada a ela por sua magia. Ela o cortou repetidamente, alheia aosferimentos que sofreu.

Finalmente, Aranha caiu de joelhos.

Ela parou, respirando irregularmente. Callis choramingou a seus pés.

— Nada mal, —disse Aranha, sua boca pingando sangue. — Olhe atrás de mim. O que vaifazer agora, minha querida?

Sophie ergueu a cabeça. Monstros estavam escalando a parede de tijolos para o jardim.

******CHARLOTTE DESCEU correndo as escadas. Ela tinha perdido a noção das coisas porum momento, assistindo Richard lutar, e quando se virou, Sophie e Aranha haviam sumido.

O corredor terminava em uma entrada em arco, inundada pela luz do sol. Ela correu por ele.Um grande jardim estendeu-se diante dela. No meio dela, Sophie estava em um vestidoencharcado de sangue, segurando uma pequena adaga. O cão tremia ao lado dela. O olhar deSophie estava fixo na parede oposta.

Charlotte ergueu os olhos.

Monstros escalavam a parede, pousando no jardim um por um. Alguns ainda pareciamhumanos, outros eram uma coleção grotesca de partes de animais enxertadas em corposhumanos. A magia deles espirrou nela como uma onda de esgoto. A Mão. Certamente a equipede Aranha. Sophie estava sozinha contra duas dúzias de assassinos treinados, e segurava apenasuma adaga.

Charlotte correu. O tempo ficou lento. Ela viu tudo com clareza cristalina—os monstros nojardim. O rosto pálido de Sophie quando a menina se virou e olhou para ela. o desespero deSophie em perceber que ela estava em desvantagem contra os monstros ...

A magia saiu de Charlotte, os tentáculos sombrios fluíram como dragões negros, famintospara encontrar suas vítimas. Os tentáculos golpearam o primeiro agente, mordendo seu corpomusculoso. Ele rosnou, um som desumano, e continuou ainda vivo. Regeneração, Charlottepercebeu. O corpo aprimorado dele estava curando os danos que ela infligia tão rápido quanto elapodia feri-lo. Charlotte teria que liberar mais magia.

Charlotte quebrou algumas de suas correntes internas. A magia saiu dela, seus tentáculosnegros luminescentes com faíscas vermelhas, carregando a morte. A magia se espalhou emdireção ao agente da Mão, roçando o cão estripador-de-lobo ao passar. O cão uivou, girou epassou por ela para a segurança do castelo. A magia sombria dela atingiu o primeiro agentenovamente. Ele caiu de joelhos. Uma lesão vermelho-sangue abriu a pele de suas costas.Charlotte lutou para manter a ferida aberta, sentindo o corpo dele lutar contra ela. O homemcurava com uma velocidade não natural. Como isso é possível?

Sophie correu pelo jardim até ela. — Perdoe-me. Eu sinto muito. Não tive a intenção.Simplesmente aconteceu. Aranha estava indo embora ...

Charlotte se colocou entre a criança e os monstros. — Fique atrás de mim.

Ela deu mais magia de si mesma e empurrou. Seus tentáculos escuros estalaram e atingiram,mordendo profundamente os agentes da Mão que se aproximavam. Eles ainda continuavamvindo. Devia ter mais cinquenta deles nos jardins. Estavam encurralando-as, fechando-as em umcírculo. Em alguns momentos, as duas estariam cercadas.

Elas iriam morrer. Se Charlotte não começasse a se alimentar deles para alimentar suaprópria magia, a Mão iria rasgar ela e Sophie. Mas mesmo se conseguisse matar todos eles, issodestruiria de vez seu frágil controle, deixaria de ser quem ela era, e ela tiraria a vida de Sophiesem nem mesmo pensar nisso.

Sophie segurava sua faca, seu rosto sem sangue e apavorado.

Charlotte tinha que salvar Sophie. Seus anos de treinamento, tomando decisões rápidas emuma crise valeram a pena. O medo desapareceu. Sua cabeça ficou clara de repente. Só havia umasaída, Charlotte percebeu. Era impossível para as duas saírem disso com vida, mas se ela desse aSophie tempo suficiente para escapar ... Era possível que a criança pudesse sobreviver. Era aúnica chance delas.

Você se tornará uma Portadora da Praga, uma voz a advertiu.

Verdade, uma vez que fosse por esse caminho, nada impediria esse destino para ela. Poroutro lado, os agentes da Mão estavam em grande quantidade, e eles curavam muito rápido.Iriam dominá-la antes que ela pudesse seguir em frente para o castelo e causar danos a pessoas

inocentes. Era suicídio, mas era a melhor opção possível.

O primeiro agente que Charlotte derrubou, levantou-se, sacudindo seus ferimentos como sefossem meros arranhões. Charlotte chicoteou sua magia, e os tentáculos negros apertaram ohíbrido revoltante de humano e animal. Um influxo estimulante de força vital a inundou. Elaabsorveu a vida do agente e a transformou em poder.

Os tentáculos negros de sua magia se chocaram contra o segundo agente, drenando-o atédeixá-lo seco e despejando seu corpo morto nas flores. Os tentáculos golpearam outro e maisoutro, roubando mais vida, alimentando-a de volta.

Charlotte apertou o ombro de Sophie. — Corra!

— Eu não vou te deixar!

— Se você ficar, vou te matar. Vou matar tudo que estiver no meu caminho. Corra, querida.Mantenha Richard longe de mim. Corra!

Sophie correu. Ela voou ao longo do caminho de volta ao castelo como se tivesse asas.

Charlotte abriu as comportas. Seu poder avançou, mordendo profundamente os monstrosque estavam no caminho de Sophie. Ela roubou a força vital deles e a vomitou de volta comouma praga devoradora. Os agentes da Mão estremeceram e caíram.

Sophie correu pelo espaço entre os corpos.

A magia dela finalmente colheu sua terrível colheita. Os agentes aprimorados lutaram paraalcançá-la e caíram, reduzidos a nada, e ela se alimentou de suas vidas, deleitando-se com osabor disso.

Sophie disparou escada acima e pelas portas em arco. Longe suficiente. Ela podia puxar suamagia de volta agora. Charlotte se esforçou, tentando controlar sua magia de volta. A escuridãose dobrou dentro dela, lutando para permanecer livre. Tão forte, tão avassaladora. Seu controlesobre seu poder diminuiu, então um pouco mais. Era como ser pega na corrente de um rioviolento que a empurrava para trás, e não importava o quanto ela tentasse, não conseguia selivrar da força do fluxo da água.

Charlotte se tornou uma Abominação. A magia fluiu dela como uma tempestade negra, e elaera impotente para detê-la. Como em um sonho, corpos caíram ao seu redor, lentamente esuavemente, como flores murchas. O rio escuro dentro dela aumentou, a corrente furiosarastejando mais e mais alto.

Oh, Richard ... deu tudo errado. Tudo deu tão, tão errado. Ela estava chorando, as lágrimasrolando por seu rosto. Sinto muito, amor. Perdoe-me. Você era tudo que eu queria. Era tudo que

eu esperava. Sinto muito.

Ela não deveria tê-lo afastado na noite passada. Deveria tê-lo convidado a entrar, amar e seramada pela última vez.

A corrente dentro dela aumentou e ela se afogou.

******RICHARD CORREU pelos corredores, tão rápido que as paredes passaram por ele emum borrão. Adiante, Sophie disparou pela entrada em arco, o rosto molhado de lágrimas.

— Ela se foi!

— O que?

— Charlotte se foi, ela se foi!

Richard se afastou de Sophie, mas ela agarrou suas roupas, arrastando-o para longe do arco.— Não, Richard, não! Não, você vai morrer. Não! Não vá! Ela disse para você não ir!

Ele a abraçou, beijou seu cabelo e se soltou.

— Richard, —Sophie gritou.

Ele irrompeu na luz do sol.

Charlotte estava parada no meio do jardim. Sua magia se enfureceu, derrubando os agentesda Mão, os tentáculos negros fervendo, retorcendo-se, como uma tempestade terrível. Asaberrações da Mão tentavam correr, mas a magia os mordia sem parar. Alguns rastejavam, outrosestavam imóveis, pouco mais do que cascas ressequidas, e alguns já se decompondo.

Charlotte se virou e ele viu os olhos dela. Eles eram totalmente pretos. As flores a seus pésmurcharam. A praga se rompia dela, espalhando-se pelo jardim. Rosas morreram apodrecendopela raiz. O último monstro da Mão balançou e caiu.

Charlotte havia se tornado o que sempre temeu. Ela havia se transformado em uma morteem vida.

Richard tinha que chegar até ela. Ele tinha que alcançá-la.

As flores nos degraus de pedra em que estava murcharam. Ele pisou em seus galhos secos eatravessou o jardim.

A magia escura fluiu para ele e o encobriu. Ele sentiu sua picada mortal e fria.

— Eu te amo, Charlotte.

Três metros o separavam dela.

O corpo dele se dobrou. Parecia que estava sendo virado do avesso.

Dois metros. Os ossos de suas pernas derreteram em agonia.

— Amo você. Não me deixe.

Três passos.

O coração dele estava batendo muito rápido, cada contração cortando-o como se alguémestivesse enfiando cacos de vidro direto em sua aorta.

Richard largou a espada, seus dedos não conseguiam mais segurá-la, e fechou os braços aoredor dela. — Meu amor, minha luz ... Não me deixe.

******CHARLOTTE ESTAVA submersa na corrente negra do rio que sua magia havia setornado. As ondas vermelhas de essência mágica caiam sobre ela uma por uma, brilhandosuavemente, e ela se banhou delas em uma cascata de euforia.

Sem pensamentos ruins. Sem problemas. Apenas liberdade e felicidade.

Outra onda vermelha se chocou contra ela. Charlotte provou e recuou. Tinha um gostomuito familiar. Ela não tinha roubado esse. Foi dado a ela livremente, mas tudo nela se rebelavacontra consumi-lo. Por quê?

Charlotte se forçou a provar a essência, deixando-a impregná-la. Fluía ao longo dela,percorrendo-a, de forma incrivelmente deliciosa. Não! Esse não! Esse não podia. Sua magiaencolheu diante disso.

Ela se esforçou, tentando entender. Deve haver um motivo.

Richard!

Era Richard.

Charlotte ouviu uma voz de uma grande distância. Isso a encobriu, separando-a por umbreve segundo da escuridão.

‘Meu amor, minha luz ... Não me deixe.’

Ela estava matando Richard. Estava drenando sua vida, gota a gota preciosa.

Não! Não, ela não queria. Devolva a vida dele! Devolva!

Charlotte tentou reverter o fluxo e enviar vida de volta para ele, mas a corrente a agarrou,sufocando-a, tentando banir a razão. Ela sentiu que estava se afogando e lutou contra isso comtudo que tinha.

Não! Eu sou a Curadora. Você é parte de mim. Você é parte de mim. Vai me obedecer.

A dor a inundou, a corrente martelando contra seu corpo. Centenas de agulhas finas aperfuraram, queimando-a. A agonia a oprimiu e ela se derreteu em uma dor cegante.

Se desistisse agora, Richard morreria.

Charlotte superou a dor. Um brilho dourado a revestiu. A corrente do rio escuro diminuiu.

Você vai obedecer ao meu comando.

A dor era insuportável. Ela gritou, embora não tivesse voz.

O brilho saiu dela, transformando o rio em um ouro radiante. Sua magia ferveu.

A escuridão se desfez. Ela viu o corpo caído de Richard na grama morta e caiu de joelhos aolado dele.

Não morra. Por favor, não morra.

Charlotte se concentrou, mas nenhuma magia veio. Não sobrou nada, nem luz nemescuridão.

Richard mal respirava.

Ela se esforçou, tentando puxar a última gota de magia dourada de cura. A magia se dobroudentro dela, ameaçando rasgá-la, mas não obedeceu. A dor explodiu dentro dela em explosõesexcruciantes de agonia. Charlotte sentiu o gosto de sangue na boca.

Minúsculas partículas de sangue se formaram em sua pele, saindo de seus poros.

Finalmente sua voz obedeceu e ela gritou, a dor fluindo para fora dela. Parecia que estavamorrendo. Ela quase queria morrer só para acabar com a agonia, mas tinha que salvá-lo.

Me obedeça. Funcione. Você vai funcionar.

Algo quebrou dentro dela.

Sua magia explodiu para fora dela, o dourado tão potente que ergueu Richard acima do solo.Seu poder os uniu em um. Tudo que ela havia tirado, cada vida que ela roubou, tudo foi paraRichard. Ela o encharcou com o ouro curativo, várias vezes, esperando que ele vivesse.

Volte para mim. Volte para mim, amor.

Parecia que seu corpo estava derretendo. Ela tinha que aguentar. Tinha que curá-lo.

— Volte para mim. Eu te amo tanto.

Ele abriu os olhos.

Ela não acreditou. Devia ser uma ilusão de sua mente.

Richard ergueu a mão. Seus dedos tocaram os lábios dela. — Eu também te amo. —Ele selevantou do chão e se sentou.

Charlotte desabou em seu peito e se rendeu à dor.

******RICHARD ESTAVA sentado junto às pesadas portas de madeira. Atrás das portas, osCuradores do Instituto Ganer trabalhavam em Charlotte. Ele pensou que ela tinha adormecido deexaustão e levou cinco horas preciosas para perceber que Charlotte não conseguia acordar.Richard a colocou em uma carruagem e dirigiu em uma velocidade vertiginosa para o InstitutoGaner. Ele atravessou os portões, carregando-a, e as pessoas se aproximaram e a levaram paralonge dele. Richard os seguiu pelo labirinto de corredores e escadas até este corredor e depoisesta sala, onde fecharam as portas na cara dele. Estava aqui por horas, sem saber se Charlotteviveria ou morreria. Um homem havia trazido um prato de comida em algum momento, mas elenão sentiu vontade de comer. Ele se levantou algumas vezes para se aliviar no banheiro, duasportas abaixo.

Estava tão zangado.

Os dois haviam feito tanto, haviam se sacrificado tanto, e depois de tudo isso, ela morreria.Richard queria se enfurecer e socar as paredes com a injustiça disso, mas em vez disso tinha queficar parado. Tentou se imaginar indo para casa sem ela, mas não conseguiu.

Se Charlotte morresse ... qual sentido teria a vida?

— Normalmente, não há sentido. Buscar algum tipo de justificativa no fluxo da vida é inútil,—disse uma mulher.

Richard olhou para cima. Uma mulher elegante e mais velha estava diante dele, alta e muitomagra, com cabelos escuros e olhar penetrante e intenso.

— Ela vai sobreviver?

— Sim. Está descansando agora.

O alívio o inundou.

— Meu nome é Augustine al Ran. Ande comigo, Richard. Existem algumas coisas quedevemos conversas.

Ele se levantou e a seguiu pelo corredor. — Você está lendo minha mente?

— Não, estou lendo suas emoções. Você está se afogando em amargura. Sou uma sensitivae, ao longo dos anos, me tornei muito boa em fazer as conexões.

Eles alcançaram outro conjunto de portas. Richard as segurou abertas para ela. A Senhorapassou. Richard seguiu atrás dela e se viu em uma longa passagem de pedra a cerca de quinze

metros do chão. Um telhado os protegia do tempo lá fora, mas as grandes janelas em arco nãotinham vidro e a brisa soprava através delas. O sol estava alto, sua luz brilhante e dourada.Quando ele trouxe Charlotte, a noite estava caindo.

— Que horas são? —Ele perguntou.

— É final da manhã, —disse ela. — Para você é outro dia. Você passou as últimas quatorzehoras esperando.

— Já faz tanto tempo?

— Sim.

A raiva que ele sentia até agora a pouco estava desaparecendo no vento, carregando suaamargura. Ele sentiu ... calma.

— O que está fazendo comigo?

— Preciso que esteja de cabeça limpa, —ela disse, parando em uma das janelas. — Vocêprecisa tomar algumas decisões e não quero que suas emoções interfiram nelas. Eu sei sobrevocê, Richard. Ela me escreveu antes de sair para o casamento. Charlotte me contou tudo sobrevocê. Ela o ama e foi por amar você que Charlotte conseguiu fazer o impossível. Eu não estavalá, mas o corpo e a mente dela carregam as cicatrizes do que ela fez. Diga-me o que aconteceu.

Richard contou tudo a Senhora Augustine. Os traficantes, a luta de Charlotte com sua magiasombria, Sophie, todo o resto.

— Eu tinha suposto isso, —disse ela, olhando para os jardins lá embaixo. — Charlottesempre foi muito forte.

— Haverá repercussões?

Senhora Augustine ergueu as sobrancelhas estreitas. — Formalmente? Não. Charlotte émuito valiosa como Curadora, e a ideia de que um ciclo de retroalimentação pode ser quebradosó daria aos tolos o pretexto para experimentá-lo. Não, não haverá sanções, mas háconsequências. Quando Charlotte quebrou o ciclo de retroalimentação para curar você, o fez aum custo terrível. Ela experimentou o que chamamos de Discordância. É um fenômeno muitoraro, onde o usuário de magia fica tão absorvido em canalizar sua magia que perde as habilidadesmotoras. Charlotte deve reaprender coisas básicas, Richard. Ela deve reaprender como andar,como segurar uma colher ou um lápis, como virar a página de um livro.

O coração dele afundou. — Mas ela pode reaprender?

— Oh sim. Não há nada fisicamente errado com o corpo dela. Nós reparamos todos osdanos físicos e a deixamos tão saudável quanto poderia ser. Mas vai exigir muita paciência e

reabilitação. Ela ficará acamada por semanas.

Charlotte estava viva. Ela estava saudável e havia sobrevivido. Isso era tudo o queimportava. — Quando poderei levá-la para casa?

Senhora Augustine se voltou para ele. — Isso pode não ser uma boa ideia. Acho que vocênão entendeu. Charlotte precisará ser carregada para o banheiro. Precisará ser banhada. Precisaráser alimentada com colher e ficará acamada por semanas até que possa começar a reabilitação, oque provavelmente levará meses. Você tem filhos, Richard? Terá que cuidar dela como se elafosse uma criança. Pense no que isso fará com quaisquer sentimentos românticos que você possater por ela. Nunca mais poderá vê-la sob a mesma luz. Vá embora, Richard. Deixe-a aquiconosco. Isso é o que fazemos. Cuidamos dos doentes e somos muito bons nisso.

— Ela disse se queria que eu a levasse para casa?

— Disse.

— Então vou levá-la para casa.

A mulher mais velha olhou para ele. — Você deve saber que não consentirei com umcasamento entre vocês.

— Eu não me importo, —disse Richard a ela. — Não me importo com sua família, seu títuloou sua linhagem. Ficarei com Charlotte de qualquer maneira que ela me aceitar.

Richard se virou e marchou de volta pelo caminho por onde tinham vindo. Ele abriucaminho pelo corredor e atravessou as portas. Charlotte estava acordada. Estava deitada na cama,seu cabelo caindo sobre os travesseiros como um véu dourado, seus olhos prateados alertas econscientes. Ele se ajoelhou ao lado da cama.

— Não posso te abraçar, —ela disse a ele.

Ele beijou os lábios dela suavemente. — Eu não me importo.

— Eu me importo. Você não precisa, se for demais ...

Ele ouviu lágrimas na voz dela.

— Não vou deixar você, —ele disse a ela. — Eu nunca te deixarei. Passaremos por issojuntos. Venha para casa comigo. Por favor.

Richard a abraçou. — Diga sim, Charlotte.

— Sim, —ela disse a ele.

EpílogoTrês meses depois.

O CÉU NOTURNO HAVIA COMEÇADO A ESCURECER.CORDAS de lanternas coloridas e redondas pendiam das árvores, brilhando suavemente emamarelo, verde, azul e vermelho. Minúsculos vaga-lumes dourados flutuavam no ar. O ar desetembro estava quente e agradável. Charlotte balançou ligeiramente para trás em sua cadeira.Diante dela um vasto lago se espalhava, calmo e brilhante como a superfície de uma moeda. Seela se inclinasse para frente, seria capaz de ver a casa de Kaldar e Audrey do outro lado da água àesquerda.

As águas do lago espirraram contra o cais de madeira. Jack estava deitado de costas nastábuas, olhando para o céu, as mãos atrás da cabeça. George jogou uma pequena pedra no lagoao lado dele. Sophie estava sentada na beirada, os pés na água. Duas semanas depois que a casaterminou de ser construída, Sophie perguntou se poderia vir e ficar com eles por alguns dias. Elanunca mais foi embora.

Charlotte sorriu. Adoraria se levantar da cadeira, caminhar pelo caminho sinuoso do convése mergulhar os pés na água verde também, mas conhecia seus limites. Ela teria que esperar.

Em mais ou menos uma hora, Richard pegaria uma carruagem e eles iriam até a casa deDeclan e Rose. O Senhor e a Senhora Camarine estavam grávidos. George e Jack se tornariamtios. Pensando bem, isso seria interessante de se ver.

A seus pés, Callis ergueu sua cabeça negra e desgrenhada. O cão estripador-de-lobo soltouum latido silencioso. Alguém estava chegando.

Passos leves e sem pressa a fizeram se virar. Senhora Augustine subiu a varanda.

Durante esses últimos três meses elas não se falaram. Charlotte agarrou sua bengala, plantouos pés no chão e se levantou. — Oi, mãe.

As sobrancelhas de Senhora Augustine se ergueram. — Você já está de pé.

Charlotte deu um passo à frente. — E caminhando. Com muita dificuldade. —Charlottetinha os melhores cuidadores do mundo, mas seu progresso ainda era dolorosamente lento.

Elas se entreolharam. Suas pernas tremeram e Charlotte voltou a sentar-se na cadeira.

Senhora Augustine se sentou ao lado dela. — Esse é um cachorro enorme.

— Sim. Ele costumava ser um cão de traficantes, mas evoluiu. —Charlotte esfregou o ladopeludo de Callis com os dedos dos pés. — Ainda está com raiva de mim?

— Você quase jogou sua vida fora. Acho que nunca vou parar de sentir raiva. —SenhoraAugustine suspirou.

— Então por que veio?

— Porque apesar de nunca ter conhecido os Camarines, recebi um convite para comemorara gravidez deles, e as regras de decoro determinam que eu aceite o convite.

Charlotte sorriu. — Richard.

— Suponho que sim. Foi feito com bastante elegância. Admito que, embora ele não seja deberço nobre, o homem entende como nós funcionamos.

— E explora isso, de forma bastante implacável.

— Vejo que ele construiu uma casa para você. —Senhora Augustine olhou para a casa atrásdeles. — Como ele pagou por isso?

— Acredito que é extremamente rude da sua parte perguntar. —Charlotte não pode deixarde sorrir.

— Não estou perguntando como Senhora al Ran, mas como sua mãe. As mães têm o direitode serem rudes.

— A família dele construiu. Eu me ofereci para pagar por isso, mas Richard recusou. Eles sereuniram e levantaram a casa em cerca de duas semanas. Eu assisti ela subir. Foi fascinante.Você sabia que Lorde Sandine é um metamorfo?

— Ouvi algo sobre isso, mas pensei que era apenas um boato. Que tipo?

— Um lobo. Eu vi três homens grandes lutando para levantar uma viga de madeira. LordeSandine se aproximou, a tirou das mãos deles e a carregou sozinho.

— Lorde Sandine ajudou a construir a sua casa?

Charlotte acenou com a cabeça. — Ele é casado com a prima de Richard.

— Você gostaria disso?

— Disso o quê?

— Casar. —Senhora Augustine pronunciou a palavra com uma precisão nítida.

Charlotte encolheu os ombros. — Talvez. Eu tenho um homem que me ama. Tenho umafilha, que mora conosco nesta grande casa que ele construiu para nós. Somos felizes. Ocasamento é apenas uma formalidade. Você deveria conhecer sua neta, mãe. Ela é linda e precisade você e de mim.

Senhora Augustine olhou para o cais. O rosto da mulher assumiu uma expressão estranha,

como se estivesse olhando para uma grande distância. — Queridos deuses, —ela sussurrou. —Está tão danificada, querida.

— Está. Ela não confia facilmente, mas me ama e eu a amo. Podemos ajudá-la juntas.

Richard subiu na varanda. — Minha senhora, Charlotte. A carruagem está pronta. Você seimportaria de nos acompanhar, Senhora al Ran?

— Claro. —A senhora se levantou. — Mas primeiro vou descer ao cais, quero conhecerSophie. Desculpe.

— Boa sorte! —Charlotte disse depois dela. Ela levantou. Richard a abraçou, suportando amaior parte de seu peso enquanto ela se apoiava em seu corpo forte.

— Ficou chateada? —Ele perguntou.

— Não. Eu pretendia escrever para ela, mas minha caligrafia ainda é horrível. Parecemarranhões de pés de galinha na terra.

— Eu te amo, —ele disse a ela.

Ela o beijou. O toque de seus lábios despertou uma necessidade persistente dentro dela. —Eu também te amo, —sussurrou. — Você acha que poderia me mostrar esta noite o quanto meama?

Ele riu baixinho, uma risada masculina satisfeita. — Eu acho que isso poderia serprovidenciado.

Charlotte encostou a cabeça no peito dele. Eles ficaram juntos, envoltos no calor um dooutro. Amanhã seria um novo dia, novas preocupações, novos problemas, novos desafios. Masesta noite seria tranquila e doce.

— Podemos fazer isso de novo amanhã? —Ela murmurou. — Você e eu podemos vir aqui esentar no convés, beber vinho e observar a água?

— É um encontro. —Richard a beijou.

Charlotte sorriu.

FIM ...

Notes

[←1]Edge, quer dizer Borda, então vamos manter Edge mesmo *-*

[←2]

Lança-do-rei

[←3]A contraespionagem ou contrainteligência é uma tarefa que procura identificar e neutralizar ações de espionagem que vão de encontro aos

interesses do país, de empresas ou mesmo do cidadão, e avaliar as ameaças cibernéticas aos interesses nacionais.

[←4]

O centro da flor Narciso é essa estrutura mais alta onde fica os órgãos reprodutores da flor. Possuem uma forma de

tulipa comprida.

[←5]

Macon é uma cidade localizada no estado americano de Geórgia, no Condado de Bibb, fundada em 1806.

[←6]

Camisole antigo. Versão moderna. Uma camisole é uma roupa interior sem mangas ou roupa interior normalmente usadapor mulheres, normalmente estendendo-se até à cintura. A camisola é geralmente feita de cetim, náilon, seda ou algodão.

[←7]francês: Meu Deus.

[←8]

Doninhas são excelentes caçadoras. De sua família fazem parte o visom e o carcaju. A doninha-anã é o menor carnívoro do mundo. Elavive na Europa, na Ásia e na América do Norte.

[←9]

O arminho é um carnívoro mustelídeo de pequeno porte pertencente ao grupo das doninhas. A espécie ocupa todas as florestastemperadas, árticas e sub-árticas da Europa, Ásia e América do Norte. Há 38 subespécies de arminho, classificadas de acordo com a distribuiçãogeográfica.

[←10]

A Madressilva (Lonicera japonica) é uma trepadeira pertencente à família Caprifoliaceae, nativa da Ásia, Japão Oriental e Coreia.A espécie ficou conhecida por suas flores que nascem brancas e envelhecem amarelas, preenchendo qualquer jardim com seu perfume.

[←11]

Acne é uma doença de pele que ocorre quando as glândulas secretoras de óleo (glândulas sebáceas) tornam-seinflamadas ou infectadas, provocando cravos, espinhas, cistos, caroços e cicatrizes.

[←12]

Quando a acne cística aparece em grandes quantidades, é indicado o uso de antibióticos ou da isotretinoína, além doscuidados tópicos

[←13]Meu Deus, o que aconteceu? (francês)

[←14]

Os grupos sanguíneos ou tipos sanguíneos foram descobertos no início do século XX, quando o cientista austríaco KarlLandsteiner se dedicou a comprovar que havia diferenças no sangue de diversos indivíduos.

[←15]Osteoporose é definida como a perda acelerada de massa óssea, que ocorre durante o envelhecimento. Essa doença provoca a diminuição da

absorção de minerais e de cálcio. Três em cada quatro pacientes são do sexo feminino. Afeta principalmente as mulheres que estão na fase pós-menopausa.

[←16]A próstata aumentada é um problema muito comum em homens acima dos 50 anos de idade, podendo gerar sintomas como jato de urina fraco,

sensação constante de bexiga cheia e dificuldade para urinar, por exemplo.

[←17]Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) é um transtorno neurobiológico que inclui dificuldade de atenção, hiperatividade

e impulsividade.

[←18]O hipertireoidismo é uma condição na qual a glândula tireoide é hiperativa e produz excesso de hormônios tireoidianos. Se não tratado, o

hipertireoidismo pode levar a outros problemas de saúde.

[←19]

Forcado

[←20]

Coleman Company, Inc. é uma marca americana de produtos de recreação ao ar livre, especialmente equipamentos decamping, de propriedade da Newell Brands. A sede da Coleman Company está localizada em Chicago e possui instalações em Wichita, Kansas e noTexas.

[←21]Tifo epidêmico é uma doença por riquétsia causada por Rickettsia prowazekii e disseminada por piolhos do corpo. As pessoas com tifo

epidêmico têm febre, dor de cabeça intensa e exaustão extrema, seguida por uma erupção cutânea quatro a seis dias mais tarde.

[←22]A Malária é uma doença infecciosa, febril, potencialmente grave, causada pelo parasita do gênero Plasmodium, transmitido ao homem, na

maioria das vezes pela picada de mosquitos do gênero Anopheles infectados.

[←23]A “Morte Rubra” foi uma pestilência fatal que devastava “o país”, supostamente, a Itália medieval. A vítima acometida dessa doença

apresentava tonturas súbitas, dores agudas e um profuso sangramento pelos poros, e terminava em óbito dentro de trinta minutos.

[←24]Ebola é uma doença que também pode ser chamada de Febre Hemorrágica Ebola ou de doença por vírus ebola, sendo que ela possui altas taxas

de letalidade e é capaz de levar um indivíduo ao óbito ou deixá-lo com severas sequelas.

[←25]A tuberculose é uma doença infecciosa e transmissível que afeta prioritariamente os pulmões, embora possa acometer outros órgãos e/ou

sistemas. A doença é causada pelo Mycobacterium tuberculosis ou bacilo de Koch.

[←26]

Parris Island é uma Região censo-designada localizada no estado norte-americano de Carolina do Sul, no Condado deBeaufort. É atualmente parte da cidade de Port Royal. É talvez mais conhecido por seu centro de treinamento do Corpo de Fuzileiros Navais dosEUA, o Marine Corps Recruit Depot Parris Island, onde cerca de 16.000 fuzileiros navais passam pelo campo de treinamento todos os anos.

[←27]

Besta

[←28]Sounding board: Expressão idiomática que significa sondar a opinião do outro; um Sounding board é um ouvinte que irá dar ou não a sua opinião

sobre algo.

[←29]

Bergantim é uma embarcação do tipo da galé, de um a dois mastros e velas redondas ou vela latinas. Levava trinta remose era utilizado como elemento de ligação, exploração, como auxiliar de armadas ou em outros serviços do género.

[←30]

Albatross, originalmente chamado Albatros, mais tarde Alk, era um veleiro que ficou famoso quando afundou em 1961, comum grupo de adolescentes americanos a bordo.

[←31]Atiradores de elite de flash

[←32]

A camada reticular é a camada mais profunda da derme, formada por tecido conjuntivo denso não modelado. Nelaencontramos os capilares sanguíneos, fibras elásticas e de colágeno, fibroblastos, vasos linfáticos e terminações nervosas.

[←33]

Os fibroblastos são as principais células envolvidas na cicatrização e têm por principal função a manutenção da integridade dotecido conjuntivo, pela síntese dos componentes da matriz extracelular.

[←34]A fibrose do termo descreve a revelação do tecido conjuntivo fibroso como uma resposta reparativa a ferimento ou a dano. A fibrose pode

referir o depósito do tecido conjuntivo que ocorre como parte da cura normal ou ao depósito adicional do tecido que ocorre como um processopatológico.

[←35]

segmento de osso localizado na extremidade inferior do fêmur (fêmur).

[←36]

A parte proximal da tíbia é conhecida como Platô ou Planalto.

[←37]

A tíbia é o principal osso que suporta peso na parte inferior da perna. É o segundo maior osso do corpo e serve de localpara fixação distal do ligamento da patela, que se insere na tuberosidade da tíbia. A porção proximal do osso, o platô tibial, forma a superfícieinferior da articulação do joelho.

[←38]

O HPV (sigla em inglês para Papilomavírus Humano) é um vírus que infecta a pele ou mucosas. (oral, genital ou anal)das pessoas, provocando verrugas anogenitais (na região genital e ânus) e câncer, a depender do tipo de vírus. A infecção pelo HPV é umaInfecção Sexualmente Transmissível (IST).

[←39]

Flor de lótus. Os estames do lótus são essas estruturas em pé no meio da flor.

[←40]Solstício de inverno é um fenómeno astronómico que marca o início do inverno. Ocorre normalmente por volta do dia 21 de junho no hemisfério

sul e 21 de dezembro no hemisfério norte

[←41]

Raiders of the Lost Ark (Brasil: Indiana Jones e Os Caçadores da Arca Perdida /Portugal: Os Salteadores da Arca Perdida) é umfilme de aventura americano, dirigido por Steven Spielberg, que estreou em 1981.

[←42]

Cruzador

[←43]

Caçador

[←44]

Navio porta aviões.

[←45]Conjunto de cordas. Conjunto de cabos que aparelham um navio ou que servem para manobrar qualquer máquina ou engenho; cordagem.

[←46]Animal fictício do Weird.

[←47]Uma antepara é uma parede vertical dentro do casco de um navio ou dentro da fuselagem de um avião.

[←48]A lepra, também conhecida como hanseníase ou doença de Hansen, é uma doença infecciosa causada pela bactéria Mycobacterium leprae (M.

leprae), que leva ao aparecimento de manchas esbranquiçadas na pele e alteração dos nervos periféricos, o que diminui a sensibilidade da pessoaà dor, toque e calor, por exemplo.

[←49]

Uma fortaleza (forte ou fortificação) (do latim fortis = forte ou facere = fazer) é uma estrutura arquitetônica militar projetada paraa guerra defensiva.

[←50]A guerra assimétrica é a guerra entre beligerantes cujo poder militar relativo difere significativamente, ou cuja estratégia ou táticas diferem

significativamente.

[←51]

espada Sudanesa

[←52]

florete

[←53]

Ilha Tortuga é uma ilha do Caribe que faz parte do Haiti, na costa noroeste de Hispaniola. Constitui a comuna de Île de laTortue no distrito de Port-de-Paix do departamento Nord-Ouest do Haiti.

[←54]

Fogo-fátuo, também chamado de fogo tolo ou, no interior do Brasil, fogo corredor ou João-galafoice, é uma luz azulada quepode ser avistada em pântanos, brejos et.

[←55]

Os Fire Pit são lareiras ecológicas que utilizam combustível renovável e não poluente. Não produzem fumaça, nãotêm cheiro e não necessitam de instalações elétricas ou dutos de exaustão e chaminés. São muito comuns em países como Estados Unidos, porexemplo, e agora vem ganhando força no Brasil.

[←56]

A Hidra de Lerna, na mitologia grega, era um monstro, filho de Tifão e Equidna, que habitava um pântano junto ao lago de Lerna,na Argólida, hoje o que equivaleria à costa leste da região do Peloponeso. A Hidra tinha corpo de dragão e várias cabeças de serpente.

[←57]

Pegas são aves da família corvídea, incluindo o pega-rabuda branco e preto, que é uma das poucas espécies animaiscapazes de reconhecerem a si mesmas em um teste do espelho. Na cultura europeia, a pega é conhecida por coletar objetos brilhantes.

[←58]Acidente Vascular Cerebral: O AVC acontece quando o suprimento de sangue que vai para o cérebro é interrompido ou drasticamente reduzido,

privando as cédulas de oxigênio e de nutrientes. Ou, então, quando um vaso sanguíneo se rompe, causando uma hemorragia cerebral.

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rodas de cores

[←60]Status quo é uma expressão do Latim que significa “o estado das coisas”. Ela também pode ser escrita sem o “s” (statu quo), mudando apenas o

começo da frase: “no estado das coisas”. ... Por isso, geralmente é usada em frases como “mudar o status quo”, “defender o status quo” ou“desafiar o status quo”.

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Vestido rabo de sereia

[←62]É como os Adrianglianos chamam a camisinha ou preservativo.

[←63]Em biologia, um agente patogénico ou agente patogênico ou patógeno, no sentido mais antigo e amplo, é qualquer organismo que pode

produzir doença. Um patógeno também pode ser referido como um também chamado de agente infeccioso ou etiológico animado.

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Serpe, derivada da palavra francesa wivre, "víbora", é todo réptil alado semelhante a um dragão, muito encontrado na heráldicamedieval.

[←65]Em um duelo o termo ‘primeiro sangue derramado’ significa a primeira pessoa ferida. Isso conta como vantagem a favor do adversário.