Nada Mais a Perder - VISIONVOX

598

Transcript of Nada Mais a Perder - VISIONVOX

DADOS DE COPYRIG HT

Sobre a obra:

A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversosparceiros, com o obj etivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisase estudos acadêm icos, bem com o o sim ples teste da qualidade da obra, como fim exclusivo de com pra futura.

É expressam ente proibida e totalm ente repudiável a venda, aluguel, ouquaisquer uso com ercial do presente conteúdo

Sobre nós:

O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dom inio publico epropriedade intelectual de form a totalm ente gratuita, por acreditar que oconhecim ento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquerpessoa. Você pode encontrar m ais obras em nosso site: LeLivros.site ou emqualquer um dos sites parceiros apresentados neste link.

"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não maislutando

por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a umnovo

nível."

Copy right © Joj o’s Moj o Ltd, 2009

Esta edição não pode ser exportada para Portugal.

TÍTULO ORIGINAL

The Horse Dancer

PREPARAÇÃO

Nina Lua

REVISÃO

Marcela de Oliveira

Juliana Pitanga

ADAPTAÇÃO DE CAPA

Aline Ribeiro | linesribeiro.com

ILUSTRAÇÃO DE CAPA

© Sarah Gibb

GERAÇÃO DE EPUB

Intrínseca

REVISÃO DE EPUB

Juliana Pitanga

E-ISBN

978-85-8057-971-0

Edição digital: 2016

1a edição

Todos os direitos desta edição reservados à

EDITORA INTRÍNSECA LTDA.

Rua Marquês de São Vicente, 99, 3o andar

22451-041 – Gávea

Rio de Janeiro – RJ

Tel./Fax: (21) 3206-7400

www.intrinseca.com .br

Sum ário

Folha de rosto

Créditos

Dedicatória

Epígrafe

Prólogo

1

2

3

4

5

6

7

8

9

10

11

12

13

14

15

16

17

18

19

20

21

22

23

24

25

26

Epílogo

Agradecim entos

Sobre a autora

Conheça os outros títulos da autora

Leia tam bém

Para C, S, H e L

E para Mecca Harris

Mostre-me seu cavalo e eu lhe digo o que você é.

Antigo provérbio inglês

PRÓLOGO

A prim eira coisa que ele viu foi o vestido am arelo dela, brilhando à luz quese esvaía; um facho claro na outra extrem idade do estábulo. Ele parou porum instante, sem saber ao certo se podia confiar nos próprios olhos. Então elaergueu o braço bem branco, e a cabeça elegante de Gerontius se abaixou porcim a da portinhola para pegar o petisco que oferecia. Ele cam inhoudepressa, quase correndo, com a ponta m etálica das botas estalando no pisode pedra m olhado.

— Você chegou!

— Henri!

Quando ela se virou, ele j á a abraçava. Ele a beij ou e afundou o rosto no m

aravilhoso perfum e do cabelo dela. O suspiro que lhe escapou parecia vindode algum lugar dentro das botas.

— Nós chegam os hoj e à tarde — contou ela com o rosto encostado no ombro dele. — Mal tive tem po de m e trocar. Devo estar horrorosa… Mas euestava na plateia e vi você pela cortina. Tinha de vir aqui lhe desej ar boasorte.

As palavras dela tinham saído em baralhadas, m as, de qualquer m aneira, elem al conseguia escutar. Estava em bevecido pela pura e sim ples presença dagarota, pela sensação de tê-la em seus braços depois da ausência de tantos meses.

— E olhe só para você!

Ela deu um passo atrás, percorrendo com o olhar do chapéu preto pontudo atéa parte de baixo do im aculado uniform e dele, então tirou com a m ão umfiapo im aginário dos alam ares dourados. Agradecido, ele reparou na suarelutância em recolher os dedos. Ficou m aravilhado por não haver m al-estar,apesar de terem se passado tantos m eses. Nada de provocações. Ela eratotalm ente sincera; a garota de sua im aginação estava ali m ais um a vez, emcarne e osso.

— Você está incrível — elogiou ela.

— Eu… não posso dem orar. A apresentação com eça daqui a dez m inutos.

— Eu sei… O Le Carrousel é m uito em ocionante. Nós assistim os aos motoqueiros e ao desfile de tanques. Mas vocês, Henri, vocês e os cavalosdefinitivam ente são a m aior atração. — Ela deu um a olhada atrás dele, nadireção da arena. — Acho que a França inteira está aqui para ver vocês.

— Você… pegou les billets?

Eles se entreolharam com a testa franzida. O idiom a ainda era um problem a,apesar de todo o esforço dos dois.

— Billets… — Ele sacudiu a cabeça, irritado consigo m esm o. — Ingresso.

Ingressos. Os m elhores ingressos.

Ela ficou radiante, e a breve insatisfação dele evaporou.

— Ah, sim . Edith, a m ãe dela e eu estam os na prim eira fila. Elas m alpodem

esperar para ver você cavalgar. Contei tudo sobre você a elas. Estam oshospedadas no Château de Verrières. — A voz dela baixou para um sussurro,apesar de não haver ninguém por perto. — É m uito grandioso. Os Wilkinsontêm m uito dinheiro mesmo. Muito m ais do que nós. Foi m uita gentilezadeles m e trazer.

Ele a observava falar, distraído pelo arco do cupido dos lábios dela. Elaestava ali. As m ãos dele, cobertas pelas luvas de pelica branca, aninhavamseu rosto.

— Florence… — disse ele com um suspiro e voltando a beij á-la. O cheiro dosol perm eava a pele dela, apesar de j á ter anoitecido. Era inebriante, com ose ela tivesse sido criada para irradiar calor. — Sinto sua falta todos os dias.Antes, não havia nada além de Le Cadre Noir. Agora… nada é bom semvocê.

— Henri…

Florence acariciou a bochecha de Henri com o corpo colado ao dele. O

hom em quase ficou tonto.

— Lachapelle! — Ele se virou de supetão. Didier Picart estava paradopróxim o à cabeça de seu cavalo com o cavalariço ao lado, preparando a sela.

Estava colocando as luvas. — Talvez, se você pensasse na sua m ontariatanto quanto pensa na sua vagabunda inglesa, nós conseguiríam os algum acoisa, hein?

Florence não sabia francês o suficiente para entender o que fora dito, m aspercebeu a breve expressão de Picart. Henri então viu que ela adivinhara queas palavras do outro francês não tinham sido nada elogiosas.

A irritação de sem pre veio à tona, e ele cerrou os dentes para se controlar.

Sacudiu a cabeça para Florence, tentando indicar a estupidez e a irrelevânciade Picart, que Picart vinha agindo assim , com insultos e provocações, desdea viagem à Inglaterra, quando ela e Henri se conheceram . Garotas inglesasnão tinham classe, exclam ara Picart no refeitório, depois do encontro; Henrisabia que o com entário havia sido dirigido a ele. Elas não sabiam se vestir.Com iam feito porcos na cocheira. Iam para a cam a com qualquer um emtroca de alguns francos, ou do equivalente a um a caneca daquela cervej ahorrível.

Henri levara sem anas para com preender que o m au hum or de Picart tinhaquase nada a ver com Florence e tudo a ver com sua fúria por seu lugar no LeCadre Noir lhe ter sido roubado, por ter sido preterido pelo filho de um camponês. Não que isso tornasse m ais fácil ouvir tudo aquilo.

A voz de Picart ecoou pelo pátio:

— Ouvi dizer que há quartos perto do cais Lucien Gautier. Seria um pouco mais adequado do que um estábulo, n’est-ce pas?

A m ão de Henri apertou a de Florence. Ele tentou m anter a voz calm a aoretrucar:

— Mesm o que você fosse o últim o hom em da terra, ela seria dem ais paravocê, Picart.

— Por acaso não sabe, seu cam ponesinho, que qualquer vagabunda fica com

você se pagar o preço certo?

Picart sorriu com desdém , apoiou a bota perfeitam ente engraxada no estriboe m ontou o cavalo. Henri passou a im pressão de que ia dar um passo àfrente, m as Florence o deteve.

— Querido… olhe, é m elhor eu voltar para o m eu lugar — disse, afastando-se. — Você precisa se preparar. — Ela hesitou, então estendeu o braço e obeij ou m ais um a vez, puxando-o pela nuca com a m ão delicada e branca.

Henri sabia o que ela estava tentando fazer: queria que ele parasse de pensarno veneno de Picart. E estava certa; era im possível sentir qualquer coisa quenão alegria quando os lábios de Florence tocavam os seus. Ela sorriu. —Bonne chance, écuyer.

— Écuyer! — repetiu ele, distraído por um instante, com ovido pelo fato deela, na sua ausência, ter descoberto a palavra certa para “cavaleiro”.

— Estou aprendendo!

Ela j ogou um beij o, seus olhos cheios de travessura e de prom essa, e entãose foi, a garota inglesa dele, correndo de volta pelo longo estábulo, com ossaltos estalando no piso de pedra.

* * *

O festival m ilitar anual Le Carrousel m arcava o fim de um ano de treinamento para os j ovens oficiais da cavalaria de Saum ur. Com o sem pre, no fimde sem ana de j ulho a cidadezinha m edieval se enchia de visitantes, ansiosospara ver não apenas o desfile dos j ovens cavaleiros, m as tam bém asexibições tradicionais de m ontaria, acrobacias em m otocicletas e o desfilede tanques com as enorm es carrocerias ainda m arcadas pela guerra.

Era 1960. A velha guarda vacilava perante um m assacre da cultura pop e dasatitudes em m utação e de Johnny Hally day, m as em Saum ur havia poucafom e de m udança. A apresentação anual dos vinte e dois cavaleiros de elitefranceses, alguns m ilitares, outros civis, que form avam o Le Cadre Noir, oápice do fim de sem ana do Le Carrousel, sem pre bastava para garantir queos ingressos esgotassem em poucos dias, com prados pela com unidade local,por gente que se orgulhava da herança cultural da França e, em nível m enoscerebral, por pessoas instigadas pelos cartazes espalhados por toda a regiãodo Loire que prom etiam

“Pom pa, Mistério, Cavalos que desafiam a gravidade”.

Le Cadre Noir fora criado quase duzentos e cinquenta anos antes, depois de acavalaria francesa ter sido dizim ada nas Guerras Napoleônicas. Na tentativade reconstruir aquilo que tinha sido considerado um excelente bando de

cavaleiros, foi aberta um a escola em Saum ur, a cidadezinha que abrigavaum a academ ia equestre desde o século XVI. Ali, um corpo de instrutorestinha sido form ado com representantes das m elhores escolas de m ontaria deVersailles, das Tuileries

e de Saint Germ ain para transm itir as elevadas tradições da m ontaria formal a um a nova geração de oficiais, e continuou sendo assim desde então.

Com o advento dos tanques e da aparelhagem de guerra m ecanizada, LeCadre Noir enfrentava questionam entos sobre a utilidade de um aorganização tão arcaica. Mas, por décadas, nenhum governo fora capaz deacabar com a instituição que, àquela altura, tinha se tornado parte do legadocultural da França.

Os cavaleiros, com seu uniform e preto, tinham se transform ado em ícones, ea França, com suas tradições da Académ ie Française, da haute cuisine e dacouture, com preendia a im portância da tradição. De sua parte, os cavaleiros,talvez cientes de que a m elhor m aneira de garantir sua sobrevivência eracriando um novo papel para si m esm os, am pliaram seu escopo de ação:além de treinar hom ens de cavalaria, a escola abriu as portas para revelarsuas habilidades raras e seus cavalos m agníficos em apresentações públicasna França e no exterior.

Assim era o Le Cadre Noir em que Henri Lachapelle então se encontrava, e aapresentação daquela noite era a de m aior im portância sim bólica no ano, nasede do grupo, um a oportunidade de m ostrar aos am igos e fam iliares ashabilidades adquiridas com tanto esforço. O ar cheirava a caram elo, vinho ebusca-pés, e fazia calor com os m ilhares de corpos que se m oviam comdelicadeza. A m ultidão j á se reunia no entorno da place du Chardonnet, nocoração da École de Cavalrie, com suas construções elegantes desgastadaspelo tem po. O clim a de festej os era acentuado pelo calor do verão em julho, pelo ar parado da noite e pela crescente expectativa. Crianças corriamde um lado para outro com balões ou palitos de algodão-doce; os pais seperdiam nos aglom erados que exam inavam as barraquinhas vendendo cata-ventos de papel e espum ante, ou apenas cam inhavam em grupos que, àsrisadas, atravessavam a grande ponte até os cafés na calçada do lado norte.Enquanto isso, um bochicho baixo de em polgação em anava das pessoas quej á tinham ocupado seus assentos ao redor do Grand Manège, a am pla arena

de areia da apresentação pública, e agora se agitavam , im pacientes,abanando-se com leques e transpirando à luz que ia enfraquecendo.

— Attends!

Henri, ao ouvir o pedido de atenção, conferiu a sela e a rédea, perguntou aodresseur pela décim a quinta vez se o uniform e dele estava direito e entãoafagou o focinho de Gerontius, seu cavalo, adm irando as trancinhas minúsculas e com fitas que o cavalariço tinha feito na crina do anim al,balbuciando elogios e palavras de incentivo nas orelhas aparadas comelegância. Gerontius tinha dezessete anos — idade avançada para os padrõesda academ ia — e logo seria aposentado. Era a m ontaria de Henri desde achegada dele ao Le Cadre Noir, três anos antes, e um a conexão instantânea epassional se form ara entre os dois.

Ali, no confinam ento dos m uros antigos da escola, não era incom um verrapazes beij ando o focinho dos cavalos e m urm urando palavras afetuosasque teriam

vergonha de declam ar a um a m ulher.

— V ous êtes prêt? — Le Grand Dieu, o cavaleiro-m estre, dirigia-se aocentro da arena de preparação, seguido por um cortej o de écuyers, com seuuniform e dourado e o quepe que o distinguiam com o o m em bro m ais importante entre os praticantes da escola. Ele se colocou na frente dos j ovenscavaleiros e de seus cavalos irrequietos. — Com o sabem , este é o ponto altodo nosso ano. A cerim ônia rem onta a m ais de cento e trinta anos, e astradições da nossa escola, de m uitos anos antes disso, até o tem po deXenofonte e a era dos gregos. Tanta coisa no m undo de hoj e parece estarrelacionada à necessidade de m udança, ou a j ogar fora os m étodostradicionais em busca do que é gratuito ou fácil. Le Cadre Noir acredita queainda há lugar para um a élite, para a busca da excelência acim a de tudo.Esta noite vocês são em baixadores, dem onstrando que a verdadeira graça ea verdadeira beleza só podem ser resultado de disciplina, paciência,solidariedade e abnegação. — Ele olhou ao redor e continuou: — A nossaarte é do tipo que desaparece no m om ento em que é criada. Vam os fazercom que o povo de Saum ur se sinta privilegiado por testem unhar talespetáculo.

Ouviu-se um m urm úrio de aprovação, então os hom ens m ontaram oscavalos, alguns aj eitaram o chapéu ou esfregaram m arcas inexistentes nasbotas —

pequenos gestos para dispersar a ansiedade que tom ava conta deles.

— Está pronto, Lachapelle? Não está m uito nervoso?

— Não, senhor.

Henri perm aneceu ereto, sentindo os olhos do hom em m ais velho passearpor todo o seu uniform e, em busca de qualquer m ácula à perfeição. Ele tinhaconsciência de que a calm a ensaiada era traída pelo suor que escorria das têmporas até a gola chinesa engom ada.

— Não é vergonha nenhum a sentir um pouco de adrenalina no prim eiro LeCarrousel de que se participa — disse ele, acariciando o pescoço deGerontius. —

Este velho aj udante vai garantir que tudo dê certo. Então, você fará ocapriole na apresentação da segunda equipe. Depois, m ontado no Phantasme, o croupade.

D’accord?

— Sim , senhor.

Ele sabia que os maîtres écuyers não tinham sido unânim es quanto a dar aele um papel de tam anho destaque na apresentação anual, tendo em vista seuhistórico dos últim os m eses, as discussões, a clara e catastrófica falta dedisciplina dele… O cavalariço de Henri tinha lhe contado o que fora dito nasala dos arreios: que a rebeldia dele quase tinha lhe custado seu lugar no LeCadre Noir.

Ele não tentara se defender. Com o poderia explicar a eles a m udança sísmica que tinha ocorrido dentro de si? Com o poderia explicar que, para umhom em que nunca escutara um a única palavra afetuosa, nem sentido umtoque suave, a voz,

a gentileza, os seios, o perfum e e o cabelo dela tinham se revelado nãoapenas um a distração, m as um a obsessão m uito m ais forte do que umtratado intelectual sobre os m ínim os detalhes do ofício de cavaleiro?

A infância de Henri Lachapelle fora um m undo de caos e desordem dominado pelo pai. Refinam ento era um a garrafa de vinho de dois francos, equalquer tentativa de aprendizado era recebida com m enosprezo. Entrar paraa cavalaria tinha lhe oferecido algo a que se apegar, e a progressão dele nasfileiras até ser recom endado para um a das raras posições no Le Cadre Noirparecera o auge do que qualquer hom em poderia esperar da vida. Aos vinte ecinco anos, ele se sentia em casa pela prim eira vez.

O talento dele era prodigioso. Os anos passados na fazenda tinham lhe dadoum a rara capacidade para o trabalho árduo. Ele possuía aptidão para lidarcom cavalos difíceis. Havia um a conversa de que ele talvez pudesse se tornarum maître écuyer — em m om entos m ais fantasiosos, até um Grand Dieu.Ele então estava certo de que o rigor, a disciplina, o puro prazer e a satisfaçãodo aprendizado seriam o suficiente para o resto de seus dias.

E então Florence Jacobs, de Clerkenwell, Londres, que nem sequer gostavade cavalos, m as tinha ganhado um ingresso para a apresentação da escola dehipism o francesa na Inglaterra, havia acabado com toda a sua paz de espírito,sua determ inação, sua paciência. Bem m ais tarde, com o tipo de perspectivaque só se adquire com a experiência, ele teria dito a seu eu m ais j ovem quetal paixão só se esperava do prim eiro am or, que sentim entos assim tãocataclísm icos iriam se atenuar e talvez até desaparecer. Mas Henri, um homem solitário com poucos am igos que pudessem oferecer conselhos assim tãosábios, só sabia que não conseguiu pensar em m ais nada desde o m om entoem que reparou na m oça de cabelo escuro que assistiu às três noites deapresentação da lateral da arena com os olhos arregalados. Ele tinha ido falarcom ela depois do espetáculo, sem nem sequer ter certeza do que o levara afazer isso e desde então cada m inuto passado sem ela parecia um a irritaçãoou, pior, um abism o sem fim e sem sentido. E, com isso, com o ficava todo oresto?

A concentração dele desapareceu quase da noite para o dia. Ao voltar para aFrança, ele com eçou a questionar a doutrina, passou a se irritar com os mínim os detalhes que considerava irrelevantes. Acusou Devaux, um dos

maîtres écuyers seniores, de estar “preso ao passado”. Só quando faltou àterceira sessão de treino seguida, e seu cavalariço avisou-lhe que seriadispensando, foi que Henri percebeu que precisava tom ar j eito. EstudouXenofonte, debruçou-se sobre suas obras. Tom ou cuidado com o asseio. Elese sentia seguro pelas cartas cada vez m ais frequentes de Florence, com aprom essa dela de que iria à França para vê-

lo no verão. Alguns m eses depois, talvez com o recom pensa, ele recebeu opapel principal em Le Carrousel: fazer o croupade, um dos m ovim entos mais difíceis que um cavaleiro poderia tentar, preterindo Picart e deixando orapaz

privilegiado ainda m ais inj uriado, sej a lá quais fossem seus m otivosanteriores.

O Grand Dieu m ontou seu cavalo, um garanhão português robusto, e deudois passos elegantes para perto dele.

— Não m e decepcione, Lachapelle. Vam os tratar esta noite com o se fosseum recom eço.

Henri assentiu, silenciado por um ataque de nervos repentino. Ele m ontou ocavalo, pegou as rédeas, conferiu se o chapéu de pontas estava bem aj eitadona cabeça. Escutava o m urm úrio da m ultidão, o burburinho abafado e cheiode expectativa enquanto a orquestra tocava algum as notas introdutórias, otipo de silêncio pesado que só pode ser criado por m il pessoas assistindo aalgo com atenção. Ele m al notou os votos de boa sorte m urm urados entre oscom panheiros e então j á estava conduzindo Gerontius para seu lugar, no meio da perfeita fila m ilitar de cavalos reluzentes com a crina trançada. A montaria de Henri esperava ansiosa o prim eiro com ando dele quando a cortinaverm elha pesada foi puxada, convidando-os a entrar na arena ilum inada porholofotes.

* * *

Apesar da aparência calm a e organizada dos vinte e dois cavaleiros, danatureza graciosa de suas apresentações públicas, a vida no Le Cadre Noir eracheia de provações físicas e intelectuais. Dia após dia, Henri Lachapelle

ficava exausto, quase reduzido a lágrim as de frustração devido às infinitascorreções dos maîtres écuyers, a sua aparente incapacidade de convencer osenorm es e hipersensíveis cavalos a executar os “ares acim a do solo” deacordo com os padrões específicos. Em bora não pudesse provar, ele percebiaum preconceito palpável contra quem tinha entrado na escola de elite vindodo Exército, com o era o caso dele, e não das com petições de hipism o civis,não com o parte da alta classe da sociedade francesa que sem pre tivera oluxo com binado de ter bons cavalos à disposição e tem po para refinar suashabilidades. Em teoria, todos eram iguais no Le Cadre Noir, separadosapenas pela destreza em cim a do cavalo. Henri tinha consciência de que oigualitarism o não ia além dos uniform es de sarj a.

No entanto, devagar e de m odo contínuo, trabalhando das seis da m anhã atétarde da noite, o cam ponês de Tours tinha construído a reputação de serdedicado e hábil em se com unicar com os cavalos m ais difíceis. Com o osmaîtres écuyers observavam de baixo de seus chapéus pretos, HenriLachapelle tinha um “j eito tranquilo”. Ele era sympathique. Foi por essarazão que, além de seu adorado Gerontius, ele tinha sido alocado a Phantasme, o j ovem cavalo castrado cinza-chum bo e explosivo, que por qualquer motivo tinha um com portam ento catastrófico. Henri passara a sem ana todacom um a ansiedade disfarçada em relação a colocar Phantasm e em tal papel.Mas, ali, sob o olhar da m ultidão, a beleza m usical das cordas enchendoseus ouvidos, o ritm o contínuo dos passos de

Gerontius em baixo de si, ele de repente sentiu, nas palavras de Xenofonte,que era de fato um “hom em com asas”. Ele sentia o olhar adm irado deFlorence e sabia que m ais tarde seus lábios tocariam a pele dela, por issocavalgou com m ais sagacidade e elegância, com um a leveza que fez ocavalo veterano se exibir, com as orelhas asseadas se inclinando para a frentede prazer. Nasci para isso, pensou, cheio de gratidão. Tudo de que precisoestá aqui. Viu as cham as das tochas trem eluzindo nas paredes das pilastrasantigas, ouviu as batidas ritm adas dos cascos dos cavalos ao entrarem bemorganizados em um a fila, um atrás do outro, ao redor dele. Seguiu a m eio-galope na form ação ao redor do grande picadeiro, perdido no m om ento,ciente apenas do cavalo que se m ovia com tanta beleza em baixo dele,agitando os cascos de um j eito que fez Henri ter vontade de rir. O cavalovelho estava se exibindo.

— Aprum e as costas, Lachapelle. Está m ontado feito um cam ponês. — Elepiscou, deu um a olhada em Picart, que se aproxim ava, cavalgando a seulado, e passou por ele om bro a om bro. — Por que está tão agitado? A suavagabunda passou sarna para você? — sibilou, bem baixinho.

Henri fez m enção de retrucar, m as deteve-se quando Le Grand Dieu gritou:

— Levade!

Em um a fileira, os cavaleiros fizeram os anim ais se erguerem nas patastraseiras e receberam um a salva de palm as.

Quando as patas da frente dos cavalos tocaram o chão, Picart se virou para ooutro lado, m as a voz dele continuava clara e audível.

— Ela tam bém trepa igual a um a cam ponesa?

Henri m ordeu os lábios por dentro, forçando-se a m anter a calm a para nãodeixar a irritação passar pelas rédeas e contam inar seu cavalo dócil. Eleouvia o locutor explicando os aspectos técnicos dos m ovim entos doscavaleiros e tentou dom ar seus pensam entos, para deixar as ordens fluíremdentro de si. Em silêncio, repetiu as palavras de Xenofonte: “A raiva m ina aeficiência da com unicação com o seu cavalo.” Ele não perm itiria que Picartdestruísse aquela noite.

— Mesdames et messieurs, agora, no centro da arena, verão Monsieur deCordon fazendo a levade. Vej am com o o cavalo se equilibra nas patastraseiras no ângulo exato de quarenta e cinco graus.

Henri estava levem ente ciente do cavalo negro que em pinava em algumlugar atrás dele, do súbito arroubo de aplausos. Ele se forçou a se concentrar,a m anter a atenção de Gerontius. Mas não parava de pensar na expressão deFlorence quando Picart tinha berrado suas obscenidades perto dela, aansiedade que tinha tom ado conta de seu rosto. E se ela soubesse m aisfrancês do que deixava transparecer?

— E agora verão Gerontius, um dos nossos cavalos m ais velhos, fazendo acapriole. Este é um dos m ovim entos que exigem m ais talento, tanto do

cavalo quanto do cavaleiro. O cavalo salta e dá um coice com as quatro patasno ar.

Henri fez Gerontius desacelerar, com binando a resistência das m ãos comum com ando rápido das esporas. Sentiu o anim al com eçar a sacudir,fazendo o terre à terre, o m ovim ento de cavalinho de balanço parado queconcentraria a força sob ele. Vou mostrar a todos, pensou, e depois: Voumostrar a ele.

Tudo o m ais desapareceu. Eram só ele e o velho cavalo coraj oso, a forçaque aum entava em baixo dele. E então, gritando de “Derrière!” , ele levou am ão com o chicote para a traseira do cavalo, com as esporas fincadas nabarriga do anim al, e Gerontius pulou no ar estendendo as patas traseiras atrásde si. Henri notou um espocar repentino de flashes, um enorm e uaaaaauestereofônico de encantam ento, aplausos, e então ele seguiu a m eio-galopena direção da cortina verm elha, levando consigo um vislum bre de Florence,que o aplaudira de pé, com um enorm e sorriso de orgulho.

— Bon! C’était bon!

Ele j á estava apeando de Gerontius, esfregando o om bro do cavalo, e odresseur j á o levava em bora. Henri tinha um a vaga consciência de algum asexclam ações de aprovação, depois da m udança de ritm o da m úsica naarena, um vislum bre através da cortina verm elha e dois outros écuyersfazendo a própria apresentação a pé, controlando os cavalos por duas rédeascom pridas.

— Phantasm e está m uito nervoso. — O cavalariço tinha aparecido ao ladodele, com as sobrancelhas pretas e grossas j untas em sinal de preocupação.Ele deu um a chicotada no cavalo cinzento, que fez um a volta ao redor deles.—

Cuidado, Henri.

— Ele vai conseguir — disse Henri, sem se incom odar e levantando ochapéu para secar o suor da testa.

O cavalariço entregou as rédeas para o cavaleiro que esperava ao lado dele e

então se virou para Henri e tirou seu chapéu. O próxim o m ovim ento erafeito com a cabeça descoberta para não haver risco de se distrair com umchapéu escorregando, m as aquilo sem pre fazia Henri se sentir estranhamente vulnerável.

Ele observou o cavalo cinzento com o o m etal de um a arm a cavalgar pelaarena à sua frente, com o pescoço j á escuro de suor, e um hom em de cadalado.

— Vá. Agora. Vá.

O dresseur esfregou as costas da j aqueta dele com força e então o em purroupara a arena. Três écuyers rodearam o cavalo, um de cada lado da cabeça,outro na traseira.

Ele foi para baixo das luzes, de repente desej ando que, com o eles, tivesse apresença de um cavalo com o âncora a que se agarrar.

— Bonne chance! — Ele ouviu a voz do cavalariço antes de ela ser engolidapelos aplausos.

— Mesdames et messieurs, voilà La Croupade, que se originou na cavalariado século XVIII, quando conseguir perm anecer na sela era considerado umteste

das habilidades de um integrante dessa tropa. Pode levar de quatro a cincoanos para dom inar estes m ovim entos. Monsieur Lachapelle m ontaráPhantasm e sem rédeas nem estribos. Este m ovim ento, que rem onta ao tempo dos gregos, é ainda m ais difícil para o cavaleiro do que para o cavalo.Trata-se de um a versão m ais elegante do rodeio, se assim preferirem .

Ouviu-se um a grande onda de risos. Henri, m eio cego por causa dosholofotes, deu um a olhada em Phantasm e; o olho esbranquiçado do anim alrevirava com um a m istura de nervosism o e fúria m al contida. Cavalonaturalm ente acrobático, ele não gostava de ser segurado com tanta firm ezana cabeça, e o barulho, os sons e os cheiros do Le Carrousel pareciam terexacerbado seu m au hum or.

Henri tocou o om bro tenso do cavalo.

— Ssshiii — m urm urou. — Está tudo bem . Está tudo bem .

Deu um a olhada nos breves sorrisos de Ducham p e Varj us, os dois hom ensao lado da cabeça de Phantasm e. Am bos eram cavaleiros eficientes, rápidosna reação às variações de hum or m ercuriais dos cavalos.

— Bem acom odado, hein? — com entou Varj us, sorrindo, ao lhe oferecerapoio para o pé. — Un, deux, trois… hup.

O cavalo irradiava tensão. Isso é bom , disse Henri a si m esm o e se aj eitouno lom bo do anim al. A adrenalina vai lhe dar m ais altivez. Vai ficar m aisbonito para o público, para Le Grand Dieu. Ele se forçou a respirar fundo. Foientão, quando cruzou as m ãos na lom bar, na posição de passividadetradicional que sem pre o fazia pensar com desconforto em um prisioneiro,que Henri olhou para o lado e percebeu quem estava na traseira de Phantasme.

— Vam os ver que tipo de cavaleiro você é de verdade, hein, Lachapelle? —

provocou Picart.

Henri não teve tem po de responder. Esticou as pernas o m áxim o possível,apertando as m ãos enluvadas às costas. Ouviu o locutor dizer m ais algum acoisa e sentiu o clim a de expectativa na arena.

— Attends. — Varj us olhou para trás. O terre à terre ia aum entando embaixo de Henri. — Un, deux, derrière!

Ele sentiu o cavalo ganhando im pulso, ouviu um estalido repentino quando ochicote de Picart atingiu os flancos do anim al. Phantasm e deu um coice,lançando o traseiro para o alto, e Henri foi j ogado para a frente com tantaforça que m al conseguiu m anter as m ãos unidas atrás de si. O cavalo seaquietou e ouviu-se um a explosão de aplauso.

— Nada m al, Lachapelle. — Henri escutou Varj us balbuciar, apoiado nopeito de Phantasm e.

E então, de repente, antes que Henri tivesse tem po de se preparar, ouviu mais um grito “Derrière!” . As patas de Phantasm e o lançaram para cim a epara a frente, m as dessa vez Henri abriu os braços para tentar m anter oequilíbrio.

— Não tão rápido, Picart. Assim vai desestabilizá-lo.

Desorientado, Henri ouviu a voz irritada de Varj us, o guincho m al contidodo cavalo enquanto se preparava para saltar de novo.

— Dois segundos. Preciso de dois segundos — balbuciou Henri, tentando seaj eitar.

Mas, antes que pudesse se recom por, ouviu outro estalido. O chicote desceuforte, bem do alto, e dessa vez o coice do cavalo foi violento. Henri foi jogado para a frente m ais um a vez a um a distância abrupta e desconcertanteentre si e o lom bo do anim al.

Phantasm e naquele m om ento se j ogava de lado, furioso, e os hom ens seesforçavam para segurar sua cabeça. Varj us sibilou algo que Henri nãoconseguiu escutar. Estavam perto da cortina verm elha. Ele deu um a olhadaem Florence, com seu vestido am arelo, percebeu sua confusão epreocupação. E

então:

— Enfin! Derrière!

Antes que pudesse se reposicionar, ele ouviu m ais um estalo alto atrás de si.

Foi lançado para a frente outra vez, com as costas viradas, e Phantasm e,enfurecido pelo uso desregrado do chicote, saltou para a frente e para o ladobem no m om ento em que Henri enfim perdeu o equilíbrio. Foi parar em cima da crina trançada do cavalo, ficou de ponta-cabeça, tentando se segurar nopescoço de Phantasm e, quando o cavalo deu m ais um coice e ele atingiu ochão (com um uou audível).

Henri ficou estirado ali, pouco ciente da com oção na arena: Varj us

xingando, Picart reclam ando, o locutor rindo. Quando ergueu a cabeça daareia, m al pôde distinguir as palavras:

— Então é isso. Um m ovim ento m uito difícil de m anter. Mais sorte no anoque vem , Monsieur Lachapelle, hein? Sabem , mesdames et messieurs, àsvezes são necessários m uitos anos de prática para alcançar os altíssim ospadrões dos maîtres écuyers.

Henri ouviu un, deux, trois e Varj us estava ao seu lado, sibilando remonte,remonte. Olhou para baixo e percebeu seu im aculado uniform e preto estavacoberto de areia. Então estava em cim a do cavalo, com m ãos em suaspernas, em seus pés, e deixaram a arena sob aplausos de solidariedade. Foi osom m ais dolorido que ele ouviu na vida.

Estava atordoado com o choque. À sua frente, reparou que Varj us e Picartdiscutiam em voz baixa e m al conseguia escutar por cim a do rugido dosangue nos ouvidos.

— O que foi aquilo? — Varj us sacudia a cabeça. — Ninguém nunca caiudurante a croupade. Você nos deixou parecendo idiotas.

Levou um m inuto para Henri perceber que Varj us se dirigia a Picart.

— Não é culpa m inha se a única coisa que Lachapelle sabe m ontar é a

vagabunda inglesa.

Henri apeou do cavalo e foi até Picart, com um zum bido nos ouvidos. Nãotom ou consciência do prim eiro soco, só do som de algo se quebrandoquando o punho fechado encontrou os dentes do hom em , acom panhado porum a sensação quase satisfatória, um conhecim ento físico de que algo haviase despedaçado m uito antes de a dor suscitar a possibilidade de que pudesseter sido a m ão dele.

Cavalos relinchavam e saltavam . Hom ens gritavam . Picart estava estateladona areia, a m ão pressionando contra o rosto, os olhos arregalados de espanto.Então ele se levantou com dificuldade, j ogou-se para cim a de Henri e deuum a cabeçada no peito dele, deixando-o sem fôlego. Foi um golpe que

poderia ter derrubado um hom em m aior, e Henri só m edia um m etro esetenta e sete de altura, m as a vantagem era que tinha levado m uitas surrasna infância, além dos seis anos na Guarda Nacional. Em poucos segundos, eleestava em cim a de Picart, com os punhos voando para o rosto, as bochechase o peito do rapaz m ais j ovem , despej ando toda a raiva contida dos últimos m eses.

O punho dele acertou algo duro e quebrado. Fechou o olho esquerdo quandoum golpe m aldoso o atingiu. Havia areia em sua boca. E então m ãos oarrastavam , acertando-o; vozes davam bronca, exaltadas e descrentes.

— Picart! Lachapelle!

Quando sua visão se turvou e depois clareou, ele se levantou, cuspindo e cambaleando, m ãos agarrando seus braços, os ouvidos ainda cheios do adágio decordas que vinha de trás da cortina. Le Grand Dieu estava em pé diante dele,o rosto verm elho de raiva.

— Que. Diabo. É. Isto?

Henri sacudiu a cabeça e então reparou no sangue respingando.

— Senhor… — Ele arfava, só agora se dando conta da m agnitude de seuerro.

— Le Carrousel! — sibilou Le Grand Dieu. — O epítom e da graça e dadignidade. Da disciplina. Onde está o seu autocontrole? Vocês dois nosenvergonharam . Voltem para o estábulo. Eu tenho um a apresentação a terminar.

Ele m ontou o cavalo quando Picart passou m ancando, pressionando umlenço no rosto pálido. Henri o observou enquanto ele se afastava. Aospoucos, deu-se conta de que a arena além da cortina estava estranham entequieta. Eles tinham visto, percebeu com pavor. Eles sabiam .

— Dois cam inhos. — Le Grand Dieu olhou para ele do alto do garanhãoportuguês. — Dois cam inhos, Lachapelle. Eu lhe disse da últim a vez. Aescolha era sua.

— Eu não posso… — com eçou Henri.

Mas Le Grand Dieu j á tinha partido em direção aos holofotes.

1

“O cavalo que assim recua é uma coisa tão maravilhosa que prende o olharde todos os espectadores, jovens e velhos.”

XENOFONTE, SOBRE EQUITAÇÃO, C. 350 A.C.

AGOSTO

O trem das seis e quarenta e sete para a Liverpool Street estava abarrotado.

Parecia ridículo que um trem estivesse assim tão cheio àquela hora da manhã.

Natasha Macauley se sentou, j á com calor apesar do ar fresco do início dodia, m urm urando um pedido de desculpas para um a m ulher que precisoutirar a j aqueta do assento. O hom em de terno que tinha subido no vagãoatrás dela havia se enfiado em um a brecha entre os passageiros do outro ladoe logo abriu o j ornal, alheio à m ulher cuj o livro ele em parte cobriu.

Não era o traj eto que ela costum ava fazer para chegar ao trabalho: tinhapassado a noite em um hotel em Cam bridge depois de um sem inário sobredireito. Levava no bolso do casaco um núm ero satisfatório de cartões devisitas de advogados de várias especialidades; tinham lhe dado parabéns porsua palestra, então sugeriram reuniões futuras e possíveis trabalhos. Mas ovinho branco barato que circulara em abundância agora fazia seu estôm agorevirar, e ela desej ou, por um instante, que tivesse arrum ado tem po paratom ar café da m anhã. Ela não costum ava beber e era difícil controlar oconsum o em eventos em que sua taça era com pletada o tem po todoenquanto estava distraída com a conversa.

Natasha apertava com força o copo de isopor com café escaldante e deu um aolhada na agenda, prom etendo a si m esm a que em algum m om entodaquele dia iria encontrar um pouquinho m ais do que m eia hora para clarear

as ideias. A agenda deveria ter um a hora reservada para a academ ia. Eladeveria tirar um a hora de alm oço. Afinal, era com o a m ãe sem pre dizia,brigando: ela tinha que cuidar de si mesma.

Mas, no m om ento, estava escrito na agenda:

9h LA contra Santos, Sétimo Tribunal

Divórcio Persey. Avaliação psicológica da criança?

Honorários! Ver com Linda a situação do auxílio legal Fielding — onde estáa declaração da vítima? MANDAR FAX

HOJE

Cada página, pelo m enos durante as duas sem anas seguintes, era um a sériede listas feitas e refeitas de m odo incansável e infinito. Quase todos oscolegas dela no escritório Davison Briscoe tinham m igrado para oseletrônicos, que usavam para organizar a vida, m as ela preferia a simplicidade da caneta e do papel, apesar de Linda reclam ar que as agendas delaeram ilegíveis.

Natasha tom ou um gole do café, se deu conta de que dia era e fez um acareta.

Adicionou:

Flores/desculpas — aniversário da mamãe O trem sacudia em direção aLondres, o terreno plano de Cam bridgeshire se transform ando nos arredorescinzentos e industriais da cidade. Natasha não tirava os olhos de seus papéis,esforçando-se para se concentrar neles. Estava de frente para um a m ulherque parecia achar norm al com er um ham búrguer com queij o extra no caféda m anhã e um adolescente cuj a expressão vazia não com binava em nadacom o tum -tum -tum que em anava de seus fones de ouvido. O dia seriabrutalm ente quente: o calor penetrava o vagão de trem lotado, transferido eintensificado pelos corpos.

Fechou os olhos e desej ou ser capaz de dorm ir em trens, então os abriu ao

ouvir o celular tocar. Rem exeu na bolsa e encontrou o aparelho entre a maquiagem e a carteira. Um a m ensagem de texto pipocou na tela: Autoridadelocal do caso Watson adiou. Não precisa estar no tribunal às 9h.

Ben

Nos últim os quatro anos, Natasha fora a única advogada do escritórioDavison Briscoe que lidava diretam ente com os clientes e não atuava nascortes m ais altas, papel que tinha se m ostrado adequado j á que suaespecialidade era representar crianças e adolescentes. Eles ficavam m enosabalados de ir ao tribunal com a m ulher para quem j á tinham se explicadoem seu escritório. De sua parte, Natasha gostava de poder ter um a relaçãocom os clientes e ainda curtia os elem entos m ais controversos da advocacia.

Obrigada. Chego ao escritório em m eia hora

* * *

Foi a resposta que ela m andou, com um suspiro de alívio. Então xingou emsilêncio: no fim das contas, ela não precisava ter pulado o café da m anhã.

Estava guardando o celular quando o aparelho voltou a tocar. Era Ben, seuestagiário:

— Só queria lem brar que nós… Ah… rem arcam os a garota paquistanesapara as dez e m eia.

— Aquela cuj os pais estão sendo acusados de m aus-tratos? — A m ulher aolado dela tossiu para cham ar sua atenção. Natasha olhou para cim a e leu “É

proibido o uso de celulares” escrito na j anela, baixou a cabeça e folheou aagenda. — Tam bém tem os os pais do caso de sequestro infantil às duas.Você pode providenciar os docum entos relevantes? — m urm urou.

— Já providenciei. E com prei alguns croissants — com pletou Ben. — Imagino que você não tenha com ido nada.

Ela nunca com ia nada. Suspeitava que, se o escritório algum dia acabassecom o program a de estágio, ela m orreria de fom e.

— São de am êndoas. Os seus preferidos.

— Ben, o puxa-saquism o vai te levar longe.

Natasha fechou o celular e depois a bolsa. Tinha acabado de pegar na pasta apapelada da m enina quando o telefone voltou a tocar.

Dessa vez, os passageiros suspiraram alto, indicando irritação. Ela m urmurou um pedido de desculpas sem fazer contato usual com ninguém .

— Natasha Macauley.

— Sou eu, Linda. Acabei de receber um a ligação de Michael Harrington. Eleconcordou em trabalhar com você no divórcio dos Persey.

— Maravilha.

Era um divórcio envolvendo m uito dinheiro, com questões com plicadas deguarda. Ela precisava de um advogado peso pesado para cuidar do ladofinanceiro.

— Ele quer discutir algum as questões hoj e à tarde. Pode ser às duas?

Natasha estava ponderando quando a m ulher ao seu lado com eçou a resmungar num tom nada sim pático.

— Acho que tudo bem . — Ela se lem brou da agenda que estava na pasta. —

Ai. Não. Tenho um a reunião. — A m ulher no trem cutucou o om bro dela.

Natasha cobriu o bocal do celular com a m ão. — Só vou dem orar m ais doissegundos — disse, em um tom m ais brusco do que pretendia. — Sei queneste vagão é proibido usar celular e sinto m uito, m as preciso term inar estaligação.

Ela prendeu o celular entre a orelha e o om bro, achou a agenda comdificuldade na pasta e então se virou irritada quando a m ulher voltou acutucar seu om bro.

— Eu disse que só vou…

— Seu café está em cim a da m inha j aqueta.

Ela olhou para baixo. Viu o copo equilibrado com precariedade na borda da jaqueta cor de crem e.

— Ah. Desculpe. — Pegou o copo. — Linda, será que podem os reorganizara tarde? Devo ter um a brecha em algum m om ento.

— Hah!

A risada da secretária ecoou em seu ouvido depois que ela fechou o celular.

Riscou a ida ao tribunal na agenda, adicionou a reunião e ia guardá-la nabolsa quando algo na m anchete do j ornal à sua frente lhe cham ou a atenção.

Ela se inclinou para conferir se tinha lido direito o nom e no prim eiroparágrafo. Curvou-se tanto que o hom em que lia o j ornal abaixou-o e olhoufeio para ela.

— Desculpe — disse, ainda atônita pela notícia. — Será que eu… Será queeu poderia dar um a olhadinha no seu j ornal?

Ele ficou m uito espantado para recusar. Natasha pegou o j ornal, encontrou apágina certa e leu a m atéria duas vezes, em palideceu e devolveu o j ornalpara o hom em .

— Obrigada — falou, com a voz fraca.

O adolescente ao lado dela dava um sorrisinho, com o se m al pudesseacreditar na quebra de decoro entre passageiros que acabara de acontecerdiante dele.

* * *

Sarah cortou o segundo quadrado de sanduíche duas vezes na diagonal, entãoem balou os dois conj untos com cuidado em papel-m anteiga. Um , elacolocou na geladeira, o outro, guardou com cuidado na m ochila, j unto de

duas m açãs. Ela lim pou a bancada com um pano úm ido e depois exam inoubem a cozinha em busca de m igalhas antes de desligar o rádio. O avôdetestava m igalhas.

Lá em baixo, o lam ento distante do cam inhão de leite assinalava sua partidado quintal. O leiteiro não entrava m ais nos apartam entos para fazer asentregas desde que alguém fora em bora com o cam inhão enquanto eleestava no quinto andar. Ele ainda deixava garrafas para as velhinhas doprédio do outro lado da rua, m as todas as outras pessoas tinham de ir aosuperm ercado e depois carregar as caixas em ônibus lotados ou levá-las a péem sacolas de com pras grandes. Se ela chegasse lá em baixo a tem po, elelhe deixaria com prar um a; na m aioria das m anhãs, ela conseguia.

Conferiu o relógio e depois o filtro de papel para ver se o líquido m arrom -

escuro tinha passado por com pleto. Toda sem ana ela dizia ao avô que o deverdade custava m uito m ais do que o instantâneo, m as ele apenas dava deom bros e argum entava que algum as econom ias eram porcas. Ela lim pou ofundo da caneca, então seguiu pelo corredor estreito e parou diante do quartodele.

— Vô?

Havia m uito tem po que ela tinha parado de cham á-lo de Vovô.

Ela em purrou a porta com o om bro. O quartinho brilhava com o sol da manhã e, por um m inuto, dava para fingir que o lado de fora era um lugarbonito, um a praia ou um j ardim no interior, em vez de um im óvel gasto dadécada de 1960 na parte leste de Londres. Do outro lado da cam a dele, um apequena côm oda brilhava com suas escovas de cabelo e de roupas bemalinhadas em baixo da fotografia da Vovó. Ele não tinha um a cam a de casaldesde que ela m orrera; dizia que seu quarto ficava m ais espaçoso com um ade solteiro. Sarah sabia que ele não conseguiria encarar o vazio de um a cama grande sem a esposa.

— Café.

O idoso se ergueu da cam a e tateou a m esinha de cabeceira em busca dos

óculos.

— Está saindo agora? Que horas são?

— Seis e pouquinho.

Ele pegou o relógio e estreitou os olhos. Aquele hom em , que usava asroupas com o se fossem uniform es, parecia estranham ente vulnerável de pijam a. Vovô sem pre estava vestido de m aneira adequada.

— Vai conseguir pegar o das seis e dez?

— Se correr, eu consigo. Seus sanduíches estão na geladeira.

— Diga ao caubói m aluco que vou pagá-lo hoj e à tarde.

— Eu avisei ontem , Vô. Ele disse que não tem problem a.

— E peça que ele traga alguns ovos. A gente com e am anhã.

Ela conseguiu pegar o ônibus, m as só porque ele se atrasou um m inuto.

Arfando, Sarah entrou no veículo com a m ochila balançando sem parar àscostas. Ela m ostrou o passe, sentou-se e cum prim entou com um aceno aindiana que se sentava à sua frente todas as m anhãs, ainda segurando oesfregão e o balde.

— Dia lindo — disse a m ulher quando o ônibus passou diante da casa deapostas.

Sarah deu um a olhada para além da m oça, para as ruas cinzentas ilum inadaspela luz úm ida da m anhã.

— Vai ser — concordou.

— Você vai sentir calor com essas botas — observou a m ulher.

— Estou com os sapatos da escola aqui — explicou ela, dando um tapinha nam ochila.

As duas trocaram um sorriso sem j eito, com o se depois de m eses desilêncio estivessem acanhadas por terem dito tanta coisa, e Sarah se acomodou no assento e se virou para a j anela.

* * *

O traj eto até o Cowboy John dem orava dezessete m inutos àquela hora da manhã; um a hora m ais tarde, quando as ruas que levavam à parte leste dacidade estavam com trânsito pesado, dem oraria quase o triplo do tem po.Sarah costum ava chegar antes dele e era a única pessoa a quem o hom emdera cópias das chaves. Na m aioria dos dias, ela j á estava soltando asgalinhas quando ele chegava subindo a rua com as pernas rígidas. Geralmente, vinha cantarolando.

Sheba, a pastora-alem ã, latiu um a vez quando Sarah rem exeu no cadeadodo portão de alam brado, m as, ao se dar conta de quem era, sentou-se eesperou balançando o rabo ansiosa. Sarah tirou um petisco do bolso e j ogoupara a cadela, entrou no pequeno pátio e fechou o portão com um a batidaabafada atrás de si.

No passado, aquela parte de Londres era pontilhada de estábulos cravados nofim de ruazinhas estreitas e de paralelepípedos, atrás de portas de m adeira e

em baixo de arcos. Cavalos puxavam as carretas das cervej arias e osreboques de carvão e de sucata, e não era incom um ver um a charretetransportando um a fam ília am orosa ou um casal trotando em um passeio noparque em um a tarde de sábado. O de Cowboy John era um dos poucos quetinham sobrado, ocupando uns quatro arcos com três ou quatro baias edepósitos em cada um , no final de um a alam eda que dava na rua principal.Havia um pátio m urado na frente dos arcos, com piso de pedra sobre o qualse em pilhavam pallets, ninhos de galinha, latas de lixo, um ou dois latões equalquer carro velho que Cowboy John estivesse vendendo, além de umbraseiro sem pre aceso. A cada vinte m inutos m ais ou m enos, um trempassava no alto fazendo barulho, m as nem os anim ais nem os hum anosreparavam . Galinhas ciscavam , um bode m ordia algo que não deveria estarcom endo para descobrir o que era, e os olhos cor de âm bar de Shebaobservavam com cautela o m undo além do portão, pronta para atacarqualquer um que não estivesse em seus registros.

Havia doze cavalos m orando ali no m om ento, incluindo os Cly desdale gêmeos de Tony, o carreteiro aposentado, os trotadores de pescoço fino e olhosagitados de Maltese Sal e seu grupo de apostas, além de um sortim ento depôneis desm azelados pertencentes às crianças locais. Sarah não tinha noçãode quantas pessoas sabiam que eles existiam . O guarda do parque, quecostum ava expulsá-

los de lá, sabia e de vez em quando eles recebiam cartas endereçadas aos

“Donos dos Cavalos, Arcos de Sparepenny Lane”, com am eaças deprocessos se os anim ais continuassem invadindo a propriedade. CowboyJohn ria e as j ogava no braseiro.

— Até onde eu sei, os cavalos estavam aqui prim eiro — dizia ele com suafala arrastada.

Ele se dizia um integrante original dos Philadelphia Black Cowboy s. Elesnão eram caubóis de verdade, pelo m enos não do tipo que trabalhava emfazenda de gado. Nos Estados Unidos, ele dizia, havia estábulos urbanos feitoo dele, m aiores, onde se podia m anter os anim ais e organizar com petições,e crianças frequentavam o lugar para aprender e vislum brar outraspossibilidades além do confinam ento do gueto. Ele chegou a Londres nosanos 1960, vindo atrás de um a m ulher que havia se revelado “problem áticadem ais”. Tinha gostado da cidade, m as sentia tanta falta dos cavalos quecom prara um puro-sangue com as patas m achucadas no m ercado deSouthall e estábulos vitorianos m eio que abandonados da subprefeitura. Peloque se sabia, a subprefeitura se arrependera da venda.

Hoj e Cowboy John era um a instituição, ou um incôm odo, dependendo doponto de vista. Os funcionários da prefeitura não gostavam do estábulo e sempre em itiam advertências relativas à saúde am biental e ao controle depragas, apesar de John dizer-lhes que podiam passar a noite toda sentados ali,cobertos de queij o derretido, que não veriam um roedor sequer: ele tinha umbando de gatos

m alvados. Os incorporadores im obiliários não gostavam nada daquiloporque queriam enfiar seus blocos de apartam entos ali e Cowboy John serecusava a vender o espaço. Mas a m aioria dos vizinhos não se incom odava:

eles davam um a passada por ali todos os dias para bater papo ou com prarqualquer produto fresco que ele tivesse para oferecer. Os restaurantes locaisgostavam do estábulo: às vezes Ranj eet ou Neela do Raj Palace ligavamquerendo frangos ou ovos ou se precisassem do bode estranho, e havia também algum as pessoas feito Sarah, que sem pre apareciam quando nãoprecisavam estar na escola. Com as baias vitorianas arrum adas e as pilhasoscilantes de feno e de palha, aquele era um refúgio do barulho im placável edo caos das ruas da cidade ao redor.

— Já soltou aquele ganso bobo?

Sarah estava j ogando feno para os pôneis quando Cowboy John chegou. Eleusava seu chapéu de caubói Stetson — para o caso de as pessoas nãoentenderem o recado — e suas bochechas caídas estavam m arcadas peloesforço de cam inhar e fum ar sob o sol j á quente.

— Não. Ele fica bicando as m inhas pernas.

— As m inhas tam bém . Vou ver se aquele restaurante novo quer ficar comele. Nossa, m inhas canelas estão cheias de m arcas. — Os dois observaram aenorm e ave que John com prara num a extravagância na feira da sem anaanterior. — Molho de am eixa! — vociferou ele, e o bicho sibilou emresposta.

Sarah j á não se lem brava m ais de ter vivido um período em que nãopassava a m aior parte do tem po em Sparepenny Lane. Quando era bempequenininha, Vô a colocava nos pôneis peludos Shetland de Cowboy John eVó estalava a língua, fingindo desaprovação, com o se a paixão por cavalosde Vô não devesse ser passada adiante. Logo que a m ãe de Sarah osabandonou pela prim eira vez, Vô levava a m enina ali de vez em quandopara que não ouvisse Vó chorando ou, nas poucas ocasiões em que a m ãe deSarah voltava para casa, berrando com ela ou im plorando para que tom asse jeito.

Foi ali que Vô a ensinou a m ontar, correndo para cim a e para baixo pelasruas secundárias até que ela dom inasse o trote crescente. Vô desprezava aform a com o a m aioria dos donos no estábulo de Cowboy John cuidava deseus cavalos; ele dizia que estar na cidade não era desculpa para não exercitá-

los todos os dias.

Nunca perm itia que ela com esse antes que seu cavalo tivesse sido alimentado, nunca perm itia que tom asse banho antes de engraxar as botas. Eentão, depois que Vó m orreu, Baucher, que eles cham avam de Boo, chegou.Precisavam de algo em que se concentrar, um a razão para ficar fora de casa,que j á não parecia m ais um lar. E Vô, que via perigos para um a garota deolhos arregalados que m al tinha entrado na adolescência, concluíra que elaprecisava de um a válvula de escape. Ele com eçou a treinar o potro cor decobre e a neta. Ele a treinou para m uito além do que as crianças locais chamavam de m ontaria: subir no lom bo de um pônei com um único im pulso ecorrer pelas ruas até chegar ao

charco, saltar bancos do parque, caixotes de frutas, qualquer obstáculodesafiador. Vô a fazia repetir inúm eras vezes coisas que nem sequerpercebiam

— o ângulo correto da parte de baixo da perna com m argem de erro de um milím etro, a im obilidade perfeita das m ãos — até ela chorar porque às vezessó queria brincar com os outros e ele não deixava. Não apenas porque elequeria proteger as patas de Boo das ruas asfaltadas, m as tam bém porque, Vôdizia, ela devia aprender que a única m aneira de atingir algo m ágico era porm eio do trabalho e da disciplina.

Vô ainda falava assim . Era por isso que John e os outros o cham avam deCapitão. Era para ser um a brincadeira, m as Sarah sabia que tam bém tinhamum pouco de m edo dele.

— Quer chá? — perguntou Cowboy John, apontando para o bule.

— Não. Só tenho m eia hora para m ontar. Preciso chegar cedo na escola hoje.

— Ainda está trabalhando nos seus truques?

— Na verdade — com eçou ela, com polidez exagerada —, nesta m anhãvam os trabalhar a m eia-passada, com troca de patas no ar e um a tal depiaffe.

São ordens do Capitão.

Sarah acariciou o pescoço reluzente do cavalo.

Cowboy John deu um a risadinha.

— Tenho que tirar o chapéu para o seu avô. Da próxim a vez que o circopassar pela cidade, vão ficar loucos por ele.

* * *

Na área de atuação de Natasha, não era raro ver, em um intervalo de poucassem anas, um a criança que ela havia acabado de representar no tribunalrecebendo m ais um a vez m edidas restritivas ou um a ordem de detenção.De vez em quando seus clientes até viravam m atéria de j ornal. No entanto,aquela notícia a surpreendeu, não apenas devido à gravidade do crim e cometido, m as por causa de quem era. Dia após dia, crianças chegavam econtavam histórias de desespero, m aus-tratos e negligência. Na m aior partedo tem po, ela conseguia escutar sem estrem ecer. Depois de dez anos, j átinha ouvido tantas histórias que poucas a faziam ir além da lista dechecagem m ental: Ele se encaixa nos critérios? Ela assinou os docum entosde assistência legal? Quão forte será a defesa? O testem unho dele temcredibilidade? Assim com o os outros, Ali Ahm adi deveria ter desaparecidoda m em ória dela, cuidado por sua equipe, m ais um nom e na transcrição dotribunal que logo seria esquecido.

Ele fora ao escritório dela dois m eses antes, com a expressão cautelosa eolheiras, a desconfiança e o desespero que tantos exibiam , com os pésesprem idos nos tênis baratos de doação, com um a cam isa que não serviadireito, m uito larga para seu corpo m agro. Ele precisava de um a ordem liminar para não

ser m andado de volta ao país que, segundo alegava, quase o havia destruído.

— Na verdade, eu não trabalho com im igração — explicara ela, m as Ravi,que cuidava desse tipo de caso, saíra de férias, e eles estavam desesperados.

— Por favor — pediu a m ulher do lar tem porário. — Eu conheço você,

Natasha. Pode fazer isso por nós.

Dois anos antes, Natasha tinha representado outra de suas crianças.

Ela exam inou a papelada, olhou para ele e sorriu, e, depois de um tem po, eleretribuiu o sorriso. Não um sorriso confiante, foi m ais de conciliação. Com ose esperassem isso dele. Enquanto Natasha lia as anotações m uito depressa,ele com eçou a falar cada vez com m ais urgência, enquanto a m ulhertraduzia e fazia gestos para ilustrar as palavras que a advogada não entendia.

A fam ília dele tinha sido m arcada com o dissidente política. O pai haviadesaparecido no cam inho de volta do trabalho; a m ãe fora espancada na rua,depois sum iu com a irm ã dele. O desespero de Ali fora tal que ele andou atéa fronteira em treze dias. Com eçou a chorar enquanto falava, tentando conteras lágrim as, cheio da vergonha típica de adolescente. Ele seria m orto sevoltasse para casa. Estava com quinze anos.

A história dele não tinha nada de extraordinário, com o costum ava acontecer.

Linda estava à porta.

— Pode ligar para o auxiliar do j uiz para m im ? Vej a se conseguim os oQuarto Tribunal.

Quando saíram , ela tocou o om bro do m enino, e só então se deu conta decom o ele era alto. Ali parecia ter encolhido enquanto contava sua história,com o se partes dele lhe tivessem sido arrancadas com a narrativa.

— Vou fazer o possível — prom eteu ela. — Mas ainda acho que seria melhor que outra pessoa o aj udasse.

Natasha conseguiu a ordem e não teria m ais pensado nele, só que, enquantoguardava os papéis na pasta, preparando-se para deixar o tribunal, reparouque Ali voltara a chorar, no canto da sala, com grandes soluços silenciososque agitavam seu corpo. Um tanto surpresa, Natasha desviou o olhar aopassar por ele, que se desvencilhou da m ulher do lar tem porário, tirou um acorrente do pescoço e a pressionou na m ão dela. Não olhou para ela nemquando Natasha disse que aquilo não era necessário. Só ficou ali parado, com

a cabeça baixa, o corpo bem curvado, as palm as das m ãos encostadas nasdela apesar desse contato ir contra as regras da religião dele. Ela se lem bravade com o as m ãos do garoto tinham se fechado sobre as suas em um gestoestranham ente adulto.

As m esm as m ãos que duas noites antes aparentem ente tinham perpetradoum

“ataque prolongado e perverso” a um a vendedora de vinte e seis anos, cuj onom e fora om itido, na casa dela.

O celular de Natasha tocou de novo. Mais interj eições em sinal dedesaprovação, dessa vez de m odo generalizado. Ela pediu desculpas novamente,

j untou suas coisas e saiu andando pelo vagão lotado, tentando a todo custo sem anter de pé quando o trem guinou de repente para a esquerda. Enfiou apasta em baixo do braço e avançou com dificuldade até a área em que seficava de pé e encontrou um espacinho perto da j anela, o m ais próxim opossível de um vagão em que era perm itido falar ao celular. Ela largou asbolsas no m om ento em que a pessoa do outro lado da linha desligou exingou. Perdera o assento à toa. Estava prestes a enfiar o celular no bolsoquando viu a m ensagem de texto: Oi. Preciso pegar algum as coisas. Econversar. Posso passar aí na sem ana que vem ? Mac

Mac. Ela ficou encarando a telinha e tudo ao seu redor congelou. Mac.

Ela não tinha escolha.

Sem problem a

Respondeu e então fechou o celular.

* * *

No passado, aquela região da City, o centro financeiro de Londres, era cheiade escritórios de advocacia, um ao lado do outro, em prédios dickensianos,com as placas douradas de “associados” prom etendo representar a variedade

em presarial, tributária e m atrim onial. A m aioria deles havia m uito tem pose m udara para novas prem issas com erciais, em prédios de vidro reluzentenos arredores do distrito financeiro, em espaços proj etados por arquitetosque faziam os ocupantes sentirem que sua visão do século XXI estavarefletida ali de m aneira adequada. Até então, o Davison Briscoe tinharesolutam ente falhado em seguir essa tendência, e a sala apertada deNatasha, abarrotada de livros, no prédio georgiano capenga que acom odava aela e m ais cinco advogados, parecia m ais a sala de um acadêm ico do queum a em preitada com ercial.

— Aqui estão os docum entos que você pediu. — Ben, um rapazdesengonçado e dedicado, com faces tão lisas que não com binavam comseus vinte e cinco anos, colocou a pasta am arrada com fita cor-de-rosa nafrente dela. — Você nem tocou nos croissants — observou.

— Desculpe. — Ela analisou as pastas na m esa. — Perdi o apetite. Ben, vocêpoderia m e fazer um favor? Ache a pasta de Ali Ahm adi. Ordem lim inar háuns dois m eses.

Então Natasha deu um a olhada no j ornal que tinha com prado no cam inhodo escritório, em um a tentativa vã de se convencer de que o que tinha lidoera um a alucinação, talvez causada pelas poucas horas de sono.

A porta se abriu e Conor entrou. Vestia a cam isa azul listrada que ela lhedera

de presente de aniversário.

— Bom dia, Poderosa. — Ele se inclinou por cim a da m esa e lhe deu umselinho. — Com o foi ontem à noite?

— Foi bom — respondeu ela. — Bom m esm o. Sentiram sua falta.

— Minha noite de ficar com os m eninos. Desculpe, m as você sabe com o é.

Até eu ter m ais acesso, não tenho coragem de perder nem um a noite sequer.

— Vocês se divertiram ?

— Foi um a loucura. DVD do Harry Potter, feij ão com torrada. A gentecurtiu de verdade. E aquela cam a enorm e de hotel ficou grande dem ais semm im ?

Natasha se aprum ou na cadeira.

— Conor, por m ais desesperada que eu fique pela sua com panhia, estava tãodestruída à m eia-noite que poderia ter dorm ido em um banco de parque.

Ben entrou na sala m ais um a vez e, com um aceno de cabeça para Conor,deixou a pasta na m esa dela.

— Do Sr. Ahm adi — avisou.

Conor deu um a espiada.

— Não foi o seu caso de deportação de uns dois m eses atrás? Por que pegouesse arquivo?

— Ben, você poderia pegar um café para m im , por favor? Vá com prar um ,não quero a água suj a de Linda.

Conor lhe deu um a nota de dinheiro e disse:

— Para m im tam bém . Um espresso duplo. Sem leite.

— Você vai se m atar — ralhou Natasha.

— Mas, por Deus, vou fazer isso direito. Certo — retrucou ele ao notar queNatasha estava esperando Ben sair. — O que está acontecendo?

— Isto.

Ela entregou-lhe o j ornal, apontando para a m atéria. Conor leu depressa.

— Ah. É o seu rapaz — observou ele.

— Pois é. — Ela esticou os braços e abaixou a cabeça por um instante. Entãopegou um croissant de am êndoas. — É o m eu rapaz. Não sei se devo contar

a Richard.

— Nosso sócio sênior? Ah, não, não, não! Não há m otivo para se m artirizar,Poderosa.

— O crim e é m uito sério.

— E você não tinha com o prever. Deixe para lá, Natasha. Faz parte do nossotrabalho, querida. Você sabe disso.

— Sei, sim . É que é tão… tão horrível. E ele era… — Balançou a cabeça aose lem brar. — Não sei. Ele sim plesm ente não parecia ser esse tipo de cara.

— Não parecia ser esse tipo de cara — repetiu Conor, rindo.

— Bom , não parecia. — Natasha tom ou um gole do café frio. — Eu simplesm ente não gosto de ter feito parte de algo tão terrível. Não consigodeixar

de m e sentir responsável.

— Com o assim ? Por acaso você o forçou a atacar a m oça?

— Você sabe que não é isso que eu quis dizer. Apresentei um a boa defesapara que ele pudesse perm anecer no país. Sou a responsável por ele estaraqui.

— E nenhum a outra pessoa teria feito com que ele ficasse, não é m esm o?

— Bem …

— Desencane, Natasha. — Conor deu um tapinha na pasta. — Se Raviestivesse aqui, teria sido ele. Deixe para lá. Siga com a vida. Vam os sair paratom ar um drinque hoj e à noite. Ainda está de pé? Que tal o Archery ? Elesagora estão servindo tapas, sabia?

Mas Natasha sem pre foi boa apenas em dar conselhos, não em acatá-los.

Naquele m esm o dia, ela se pegou abrindo a pasta de Ahm adi pela segunda

vez, em busca de pistas, de algum a razão para aquele garoto, que tinhachorado, que havia segurado as m ãos dela com tanta delicadeza, ter sidocapaz de um ato de violência tão aleatório. Não fazia sentido.

— Ben? Preciso que você m e arrum e um atlas.

— Um atlas?

Em vinte m inutos, ele encontrou um exem plar surrado com lom badacosturada e algum as partes faltando.

— Deve estar bem desatualizado. Tem , hum , referências à Pérsia e a Bombaim — explicou, em tom de quem pede desculpas. — É m elhor procurar oque você precisa na internet. Posso fazer isso para você.

— Eu sou avessa à tecnologia, Ben — retrucou Natasha, folheando aspáginas.

— Você sabe m uito bem disso. Preciso ver no papel.

Quase com o um desatino, ela resolvera olhar no m apa a localização dacidade de onde o rapaz vinha; o nom e tinha ficado gravado na sua m em ória.

Foi aí que, olhando o m apa, percorrendo os nom es dos lugares com oindicador, percebeu que nenhum dos assistentes sociais, ninguém da equipe jurídica, nem a m ulher do lar tem porário tinha feito a pergunta m ais óbvia aAli Ahm adi. Mas lá estava a questão, encarando Natasha: com o alguémpoderia cam inhar quase m il e quinhentos quilôm etros em treze dias?

* * *

Naquela noite, Natasha se acom odou no bar e ficou se m aldizendo por nãoter sido cuidadosa. Contou a história a Conor, que riu, um a risada curta eseca, e então deu de om bros.

— Você sabe com o esses garotos ficam desesperados. Eles falam o queacham que você quer ouvir.

Ela via crianças assim todos os dias: refugiados, garotos e garotas

“problem áticos”, j ovens que tinham sido expulsos ou negligenciados,

adolescentes que nunca receberam um elogio nem um abraço, com o rostoprem aturam ente, a m ente j á treinada para buscar a sobrevivência aqualquer custo. Natasha se achava capaz de identificar os que estavam mentindo: as m eninas que alegavam que os pais eram abusivos porque nãoqueriam m ais m orar com eles; os que buscavam asilo j urando ter doze outreze anos, apesar de ser possível identificar os pelos bastos da idade adultaem seus rostos. Ela estava acostum ada a ver sem pre os m esm os j ovensinfratores em um ciclo infinito de m au com portam ento e supostoarrependim ento, m as tinha ficado comovida com Ahm adi.

Conor lhe deu toda a atenção.

— Certo. Tem certeza de que é essa a cidade?

— Está nos depoim entos.

Natasha pediu água m ineral a um garçom que passava.

— E ele realm ente não poderia ter cam inhado tanto assim ?

— Em m enos de duas sem anas? — Ela foi sarcástica, não pôde evitar. —São uns cento e quinze quilôm etros por dia. Eu calculei.

— Não sei por que você está tão aborrecida. Está protegida pelo privilégioadvogado-cliente. Não sabia nada disso quando fez a defesa dele, então, deque im porta? Você não precisa contar nada. Não precisa fazer nada. Caramba, isso acontece com igo o tem po todo. Preciso pedir para m etade dos meus clientes calar a boca na prim eira reunião antes que m e digam algo queeu não deveria saber.

Mas, se tivesse verificado a história dele por conta própria, Natasha queriadizer, poderia ter descoberto antes que Ahm adi estava m entindo. Poderia terse retirado do caso, alegando “constrangim ento”. Isso em geral bastava parafazer as pessoas analisarem os fatos com um pouco m ais de atenção. Elapoderia ter salvado a m ulher, a vendedora desconhecida de vinte e seis anos.Mas Natasha só havia dado um a olhada nas anotações. E tinha deixado o

rapaz partir, perm itiu que ele desaparecesse entre as rachaduras da paisagemde Londres, acreditando que era um dos bons que não voltariam ao tribunalalgum dia.

Se ele foi capaz de m entir sobre com o chegara até ali, pode ter m entidosobre qualquer coisa.

Conor se inclinou para trás e tom ou um grande gole de vinho.

— Ah, deixe para lá, Natasha. Um garoto desesperado conseguiu não ser mandado de volta para um buraco infernal infestado de pragas. E daí? Siga coma sua vida.

Mesm o quando tratava dos casos de m aior destaque, Conor tinha um arconfiante que enganava qualquer um , radiante fora do tribunal, todo simpático, com o se o resultado dos j ulgam entos não o afetasse. Ele apalpou osbolsos.

— Você m e paga m ais um ? Preciso passar no caixa eletrônico.

Ela rem exeu na bolsa para pegar a carteira e seus dedos se enroscaram em

algo. Então tirou a m ão da bolsa. Era o pequeno am uleto, o cavalo de pratagrosseiro que Ahm adi lhe dera na m anhã em que ganharam o caso. Natashahavia decidido enviá-lo para a casa do rapaz — ele tinha pouquíssim os benspara dar algo —, m as logo se esqueceu disso. Agora o obj eto era um lembrete de com o havia falhado. De repente ela se recordou da visão improvável daquela m anhã, um a aparição sobrenatural em am biente urbano.

— Conor, eu vi a coisa m ais estranha do m undo hoj e de m anhã.

O trem tinha ficado parado quinze m inutos em um túnel perto da estação deLiverpool Street, apenas tem po suficiente para a tem peratura subir a umponto em que as pessoas com eçaram a se agitar incom odadas nos assentos eum m urm úrio de descontentam ento percorrer todo o trem . Tem posuficiente para Natasha, agora protegida das ligações telefônicas, olhar para onada escuro feito breu e pensar em um ex-m arido que não era ex o bastante.

Ela havia se m exido, desconfortável quando, com um guincho alto de m etalsuperaquecido, o trem avançou bem devagar para a luz do dia. Ela não iriapensar em Mac. Não iria pensar em Ali Ahm adi, que de m odo tão deprimente tinha se revelado tão díspar da pessoa que lhe tinha apresentado.

E foi naquele instante que ela viu, tão rápido e tão im provável que, m esm oquando virou o pescoço para tentar ver m elhor, não teve certeza se haviaregistrado corretam ente. Desapareceu em um segundo, engolido pelas ruas equintais dos fundos borrados, pelas sacadas im undas e pelos varais de roupasalpicados de chum bo.

Mas a im agem tinha ficado gravada na m ente dela o dia inteiro, m uitodepois de o trem tê-la levado até o centro enevoado do distrito financeiro. Emum a rua de pedras tranquila, esprem ida entre quarteirões de arranha-céus,ladeada por pátios de cam inhões e carros estacionados, havia um a m eninaem pé com o braço erguido e segurando um a vara com prida: não em sinalde am eaça, m as de instrução.

Além dela, no m eio da rua, um cavalo enorm e, perfeitam ente equilibradonas patas traseiras reluzentes e m usculosas, recuava.

Natasha largou o pingente de prata na bolsa, m al conseguindo refrear umcalafrio.

— Você ouviu o que eu acabei de dizer?

— Hã?

Conor estava lendo o j ornal, j á tinha perdido o interesse. Siga com a vida,ele sem pre lhe dizia. Com o se ele pudesse fazer isso.

Natasha ficou encarando-o.

— Nada — respondeu. — Vou pegar as bebidas.

2

“Faça com que o potro seja gentil, goste dos homens e esteja acostumadocom sua mão. (…) Em geral ele fica assim quando se sente à vontade.”

XENOFONTE, SOBRE EQUITAÇÃO

Boo não era o tipo de cavalo que costum a ser visto nos pátios das ruazinhasda parte leste de Londres. Não era um cavalo de carga pesadão com pataspeludas nem um puro-sangue de pescoço esguio de andadura, do tipo quepoderia ser m ontado rapidam ente para que se realizassem corridas ilegais nafaixa de pista dupla, trotando para os registros particulares que faziam m açosgrossos de notas de apostas ilegais m udarem de m ãos. Ele não era umcavalinho bem -

com portado de escola de hipism o no Hy de Park nem pertencia a um a dasvárias espécies de pôneis baixinhos e corpulentos, brancos e pretos ou malhados, que toleravam com grau variado de bom hum or descer escadas,saltar barris ou entrar em elevadores para que, sob risadas e gritinhos, seusdonos pudessem levá-los até a sacada dos apartam entos para dar um avoltinha.

Boo era um Selle Français, um puro-sangue de ossos largos com patas m aisfirm es e lom bo m ais forte do que sua raça poderia sugerir. Era atlético, mas tinha passo firm e. Por causa do dorso estreito, era bom para saltos, e suanatureza dócil, quase com o a de um cachorro, fazia dele um anim al tolerantee sim pático.

Ele não se deixava abalar pelo pior dos trânsitos nem por com panhias indesejáveis. Tam bém se entediava com facilidade, e Vô tinha pendurado tantasbolas com cordas na baia para Boo se distrair que Cowboy John resm ungavaque ele deveria arrum ar um lugar para o cavalo na liga de basquete.

Os outros alunos da escola de Sarah ou os j ovens que m oravam na região sedivertiam com pacotinhos de papel ou saquinhos de plástico, cantando pneude carros roubados em pequenos terrenos baldios ou gastando horas se arrumando para ficar parecidos com celebridades, estudando as revistas com m uitom ais atenção do que j am ais dariam aos livros didáticos. Sarah não se importava com nada daquilo. No instante em que colocava a sela e sentia o familiar cheiro de cavalo quente e do couro lim po, ela se esquecia de todo oresto.

Montar Boo a afastava de tudo que era irritante, im undo e deprim ente.

Aj udava a fazê-la esquecer que era a m enina m ais m agricela da turm a e aúnica com pouca j ustificativa para usar sutiã; que ela era a única — além deRenee, a m enina turca com quem ninguém falava — que não tinha celularnem com putador. Sarah se esquecia de que eram apenas ela e Vô.

Era isto que sentia por seu cavalo nos dias bons: reverenciava seu porte m ajestoso, a força bruta em baixo de si e o que o anim al faria por ela. Ele só se

com portava m al quando a m enina não pedia do j eito certo — quando aindaestava com a cabeça na escola, ou tinha sede ou estava cansada — e a doçuraque irradiava dele quando fazia tudo certo dava um nó na garganta dela. Booera seu, e era especial.

Vô dizia a quem não entendia nada de cavalos que Boo era um Rolls-Roy cecom parado a um trator: tudo era bem aj ustado, bom de m anobrar, elegante.A com unicação era silenciosa, não precisava de alarde nem de gritos. Haviaum a com unhão de m entes, de obj etivos. Ela fazia um pedido a Boo: ele seaprum ava, as ancas se firm avam , a cabeça pendia até o peito e então ele aobedecia. Vô dizia que os únicos lim ites do anim al eram os lim ites deSarah. Dizia que, de todos os cavalos que conheceu, Boo era o que tinha o maior coração.

As coisas não haviam sido sem pre assim : Sarah tinha duas cicatrizes emform a de lua no braço onde ele a m ordera, e havia dias em que ele sedesvencilhava do cabresto e saía em disparada pelo parque, com o raboerguido feito um estandarte, enquanto m ães berravam e saíam correndo comos carrinhos de bebê, e Vô rezava em francês, em voz alta, para que Boo nãofosse atropelado por um carro. Toda vez que isso acontecia, Vô dizia que aculpa era dela, o que deixava Sarah com vontade de gritar com ele, m asagora ela entendia m ais as coisas e sabia que Vô tinha razão.

Os cavalos, talvez até m ais do que qualquer outra criatura, eram m oldadospelo hom em . Podiam ser naturalm ente assustadiços, m edrosos ou teimosos, m as suas reações ao m undo eram delineadas pelo que se fazia comeles. Um a criança é capaz de lhe dar um a segunda chance porque tem aesperança de ser am ada. Um cachorro volta todo subm isso depois de levar

um a surra. Um cavalo nunca m ais perm itirá que você — ou qualquer outrapessoa — se aproxim a dele novam ente. Por isso, Vô j am ais gritava comBoo. Nunca perdia a paciência nem dem onstrava frustração, m esm o quandoficava claro que Boo estava sendo m alandro ou desobediente feito qualqueradolescente.

E com oito anos, agora ele estava adulto. Era educado o suficiente para terbons m odos, inteligente o bastante para que seus passos flutuassem ,elegante o suficiente, se Vô o tivesse avaliado de form a tão precisa quantoparecia avaliar tudo o m ais, para levar Sarah para longe daquela cidadecaótica em direção a seu futuro.

* * *

Cowboy John se apoiou na vassoura e olhou através dos portões para oparque, onde a m enina cavalgava a m eio-galope em círculos pequenos eregulares no canto perto das árvores, desacelerando de vez em quando paraelogiar o anim al ou perm itir que ele se esticasse um pouco. Ela estava semcapacete — um raro ato de rebeldia contra o avô, que não perm itiria que elam ontasse em um cavalo

sem o acessório —, e o sol ilum inava seu cabelo com o m esm o brilho quedava às ancas do cavalo. Ele viu o carteiro passar de bicicleta e gritar algopara ela, Sarah então ergueu a m ão para cum prim entá-lo sem desviar oolhar do que estava fazendo.

Ela era um a boa m enina, bem diferente de m uitas das crianças que iam aoestábulo. Elas disputavam corrida com os cavalos pelas ruas vazias até seuscascos racharem e os puxavam de volta às baias, suados e exaustos, antes deretornarem para casa apressadas, prom etendo que a m ãe ou o pai pagaria nodia seguinte. Elas enganavam os adultos e gastavam o dinheiro do lanche emcigarros que Cowboy John confiscava quando estavam no estábulo.

— Não estou nem aí para os pulm ões deles, m as não quero ver m eus amigos virarem churrasco — dizia ele.

A fala costum ava vir acom panhada de um a tragada pensativa no própriocigarro. O últim o m aço apreendido por ele fora tirado de um m enino que

não tinha nem oito anos.

Ele duvidava que Sarah Lachapelle tivesse fum ado um único cigarro na vida.

O Capitão a m antinha com a rédea tão curta quanto fazia com o cavalo: nadade brincar até tarde, nada de beber, nada de fum ar, nada de ficar à toa pelarua. A m enina parecia nunca questionar. Era com o se ele tam bém a tivessedom ado.

Bem diferente da m ãe dela.

Cowboy John tirou o chapéu e enxugou a testa, j á sentindo o calor do diapenetrar pelo couro surrado até sua pele. Maltese Sal havia lhe garantido que,se assinasse o contrato de aluguel, o cavalo do Capitão ficaria seguro ali,assim com o os anim ais de qualquer um que não estivesse devendo. O lugarcontinuaria sendo o que era havia quarenta anos: um estábulo.

— Eu preciso de um a base — repetia a Cowboy John. — Aqui é perto da minha casa, m eus cavalos se sentem à vontade. — Ele falava com o se j áestivesse decidido.

E essa propriedade velha caindo aos pedaços seria um a fachada útil paraqualquer coisa que você quisesse com prar ou vender, Cowboy John querialhe responder, m as isso não era algo que se diria a um hom em feito Sal.Ainda m ais com ele oferecendo a quantia que estava sugerindo.

A verdade era que Cowboy John estava cansado. Ele bem que gostava daideia de se aposentar e ir para o interior, de trocar sua casa por um chalé comum terreno onde os cavalos pudessem pastar. A vida na cidade estavapiorando, e ele, envelhecendo. Estava cansado de brigar com a prefeitura, derecolher as garrafas quebradas que os bêbados e os idiotas j ogavam peloportão toda noite para os anim ais se cortarem . Estava cansado de discutircom crianças que não queriam pagar o que deviam . Cada vez m ais, ele se imaginava em um a varanda em algum lugar, olhando para um horizonte formado apenas por um a linha de verde.

Sal m anteria o lugar com o estábulo. E estava oferecendo um a boa quantiade dinheiro, suficiente para que Cowboy John realizasse seu sonho. Mas, m

esm o assim … Apesar do dinheiro, apesar da prom essa de paz, de ver seusvelhos com panheiros abanando o rabo no m eio do capim alto, parte delerelutava em deixar tudo nas m ãos daquele hom em . Pressentia que as promessas de Sal não tinham valor algum .

* * *

— Bon anniversaire!

Sarah, com um pouco de dificuldade para tirar a chave da fechadura, entrouno apartam ento e escutou a voz do avô antes de vê-lo. Ela sorriu.

— Merci!

Pensara que ele talvez houvesse arrum ado a m esa da cozinha com um bolode aniversário, com o fizera no ano anterior, m as ela atravessou o corredor eo encontrou diante da televisão.

— Voilà! Sente-se, sente-se — pediu Vô, depois de dar um beij o nasbochechas dela. Estava usando sua m elhor gravata.

Sarah deu um a olhada na m esinha da cozinha.

— Não vam os tom ar chá?

— Pizza. Depois. Você escolhe — respondeu, apontando para um cardápio.

Pedir com ida fora era um luxo raro.

— Depois do quê?

Ela largou a m ochila e se sentou no sofá, sentindo um arroubo de anim ação.

Vô parecia tão contente, com um sorriso se form ando no canto da boca. Elanão se lem brava da últim a vez que o vira assim . Desde que Vó m orrera,quatro anos antes, ele havia se retraído, só se revelando quando Boo chegou.Ela sabia que o avô a am ava, m as o am or dele não era do tipo que se vê natelevisão: ele não lhe dizia que a am ava, não perguntava o que estavapensando. Vô garantia que ela estivesse sem pre alim entada, lim pa e que

fizesse o dever de casa. Ensinava coisas práticas a ela, sobre dinheiro, fazerconsertos e hipism o. Havia m uito tem po os dois tinham dom inado a máquina de lavar, as tarefas da casa e a form a de econom izar ao m áxim o nascom pras da sem ana. Quando Sarah estava triste, ele colocava a m ão no ombro dela e às vezes lhe dizia para analisar o contexto da situação. Se estavaagitada de tanto entusiasm o, ele esperava até que ela se acalm asse. Se Sarahfizesse algo errado, ele lhe m ostrava sua insatisfação sendo um pouco seco,com um olhar de desaprovação. Em resum o, ele provavelm ente a tratava umpouco com o tratava um cavalo.

— Prim eiro nós vam os assistir a um a coisa — anunciou Vô.

A m enina acom panhou o olhar dele e reparou no aparelho de DVD que até ahora em que ela saiu de m anhã não estava ali.

— Você com prou um aparelho de DVD para m im ?

Ela se aj oelhou e passou o dedo pela superfície m etálica brilhante.

— Não é novo — explicou ele, em tom de desculpa. — Mas está parfait. Enão é roubado. Com prei em um a queim a de estoque.

— A gente pode assistir a qualquer coisa?! — exclam ou Sarah.

Ela poderia alugar film es com o as outras m eninas da escola. Sarah sem preestava anos atrasada quando o assunto era cinem a.

— Não vai ser qualquer coisa. Vam os assistir a un spectacle. Mas, primeiro…

— Ele colocou a m ão atrás de si e pegou um a garrafa, que abriu com umfloreio e serviu. — Quatorze anos, hein? Já tem idade suficiente para tom arum pouco de vinho. — Ele assentiu ao lhe entregar a taça.

Sarah deu um gole e tentou disfarçar o fato de não ter ficado im pressionadacom o sabor am argo. Teria preferido Coca Zero, m as achou que não deveriaestragar o m om ento com tal pedido.

Vô pareceu satisfeito, aj ustou os óculos, exam inou o controle rem oto e,

com um gesto exagerado que sugeria que havia ensaiado m ais cedo, apertouum botão. A tela da televisão se acendeu e ele se acom odou no sofá ao ladoda neta, sem pre ereto apesar das alm ofadas que sucum biam . Tom ou umgole do vinho.

Sarah observou a expressão de prazer silencioso do Vô e se recostou nele.

A m úsica com eçou a tocar, m úsica clássica, e um cavalo branco atravessouespalhafatosam ente a tela.

— Isso é…?

— Le Cadre Noir — confirm ou ele. — Agora você vai ver o que alm ej amos.

* * *

Era raro até entre conhecedores de cavalos alguém ter ouvido falar do LeCadre Noir. Tratava-se de um a organização obscura de cavaleiros de elitefranceses que existia desde o século XVIII e ainda seguia as práticasestabelecidas por seus fundadores, um a academ ia em que os debates podiamgirar em torno do ângulo exato das patas traseiras de um cavalo ao executarm anobras m ilenares com o croupade ou levade, e os cavaleiros usavam umuniform e preto antigo. A instituição só aceitava um ou dois novos m em brospor ano e não tinha o obj etivo de ganhar dinheiro nem de dissem inar suashabilidades e conhecim ento para as m assas, m as de alcançar a perfeição emcoisas que a m aioria das pessoas nem era capaz de notar. Ciente disso, erapossível questionar o propósito da academ ia, m as ninguém que visseaqueles cavalos se m ovendo sob os cavaleiros com uniform es escuros,alinhados em sim etria perfeita ou desafiando a gravidade com saltossurpreendentes, observando os passos de dança estranhos, a aceitação muscular dos desej os de seus cavaleiros, poderia não se em ocionar com aobediência, a beleza, a agilidade espantosa daqueles anim ais. E talvez, mesm o

que não gostasse especialm ente de cavalos (ou de franceses), a pessoa ficariacontente de saber que um a organização com o aquela ainda existia.

Sarah assistiu à apresentação de quarenta m inutos em silêncio. Ficouhipnotizada. Queria ir até Boo e copiar o que tinha visto. Ele conseguiriafazer aquilo, ela sabia que sim . Ele era m ais estreito, m ais forte do quealguns dos cavalos que ela vira na tela, m as tinha o m esm o poder: Sarahsentira aquilo várias vezes. Enquanto assistia, as m ãos e os pés da garota sem exiam , cavalgando os cavalos da tela, incentivando-os para além dos limites, nos m ovim entos executados desde o tem po da Grécia Antiga.

A arena dela podia até ser um parque descoberto e cheio de lixo e não opalácio am plo de um a cidadezinha histórica francesa, ela vestia calça j eanse cam iseta em vez do paletó preto form al, alam ares dourados e quepe. Massabia com o aqueles hom ens se sentiam : quando a câm era focava poralguns instantes nos rostos tensos de esforço e com paixão, cheios de desej o,ela sentia um a afinidade que nunca havia sentido em relação às garotas daescola. Todas as coisas que Vô lhe ensinara com eçaram a fazer sentido. Eledisse que os dois ainda tinham anos de trabalho pela frente. Disse que permitir que ela tentasse seria com o se o Cowboy John quisesse correr um a maratona com o cigarro na m ão. E agora ela entendia qual era o obj etivo dele,o grande propósito: capriole.

O m ovim ento m ais com plexo, exigente e bonito que um cavalo poderiaexecutar, tirando os quatro cascos do chão em um salto gracioso e preciso,erguendo-se com o se não pesasse nada, dando um coice no ar com o sedesafiasse as leis da gravidade. Lindo. Apavorante. Im ponente.

Quando Vô falava repetidas vezes sobre a escola francesa, Sarah nuncaconseguira expressar o que sentia e questionar: que chance eles de fatotinham ?

Apesar do que Vô dizia, ela nunca tinha conseguido transpor sua vida noestábulo de Cowboy John e as sessões de treinam ento no parque para ofuturo que ele descrevia. Agora, enquanto assistia aos créditos, percebeu queo DVD tinha surtido o efeito contrário ao que ele esperava. Sim plesm enteconfirm ara que Vô estava alim entando um sonho. Não im portava quão bomera o cavalo dela. Com o alguém poderia executar o salto que m ais desafiavaa gravidade das ruazinhas de Londres para a glória refinada do Le CadreNoir?

Ela se sentiu culpada quase no m esm o instante em que o pensam entosurgiu.

Os olhos dela foram até ele, e Sarah se perguntou se seus pensam entos eramtão óbvios quanto pareciam . Vô continuava vidrado na tela. Foi então que elaviu a lágrim a escorrer pela bochecha dele.

— Vô?

O m axilar dele ficou tenso. Ele levou um instante para se recom por, entãodisse, baixinho:

— Sarah. É assim que você vai escapar. — Escapar do quê? Ela nunca tinhaachado que sua vida fosse tão ruim quanto Vô parecia achar que era. — Éisto

que eu quero para você.

Ela engoliu em seco.

Vô então ergueu a caixa do DVD e continuou:

— Tenho um a carta de Jacques Varj us, m eu velho am igo de Saum ur. Elem e contou que j á aceitaram duas m ulheres. Durante centenas de anos, aacadem ia não aceitava m ulheres, nem considerava essa possibilidade, m asagora aceita.

Não é preciso ser m ilitar. Basta ser excelente. É um a oportunidade, Sarah.— Ela ficou um pouco nervosa com a intensidade dele. — Você temhabilidade. Só precisa da disciplina. Não quero que desperdice a sua vida.Não quero vê-la aqui, andando com esses imbéciles, para acabar em purrandoum carrinho de bebê por este bairro.

Ele acenou para a j anela, em direção ao estacionam ento.

— Mas eu…

Vô ergueu a m ão.

— Não tenho nada a lhe dar a não ser isto. O m eu conhecim ento, o m euesforço. — Ele sorriu e tentou suavizar o tom . — Minha m enina vestida depreto, que tal? La fille du Cadre Noir.

Sarah assentiu sem falar nada. Seu avô nunca era em otivo, m as naquele mom ento parecia vulnerável, arrependido, e ela estava um pouco assustada.Era o vinho, disse a si m esm a — ele raram ente bebia. O vinho tinhaexaltado as em oções dos dois. Rem exendo a taça, ela tentou não olhar norosto dele.

— Foi um presente legal.

Ele se arrastou até ela, parecendo ter controlado as em oções.

— Non! Un demi cadeau — disse ele. — Quer saber qual é a segunda parte?

Ela sorriu, aliviada.

— Pizza?

— Pff! Pizza! Non, non… regarde.

Ele pegou um envelope e lhe entregou.

— O que é isto?

Vô indicou o envelope com a cabeça.

Sarah o abriu, exam inou o conteúdo e suas m ãos ficaram im óveis. Quatroingressos. Dois para um a viagem de trem e balsa. Dois para um aapresentação do Le Cadre Noir.

— De Varj us. En novembre. Vam os tirar férias.

Eles nunca tinham saído do país, nem quando Vó era viva.

— Vam os para a França?

— Está na hora. Está na hora de você ver, de eu voltar. O m eu am igo Varj

us agora é o Grand Dieu. Você sabe o que é isso? É o cavaleiro m ais importante e com m ais experiência do Le Cadre Noir. Não… da França.

Ela olhou para o folheto, para os cavaleiros vestidos de preto e os cavalosreluzentes.

Vô parecia tom ado por um novo zelo.

— Preenchi os form ulários para os passaportes. Só preciso da sua foto.

— Mas com o conseguiu dinheiro?

— Vendi algum as coisas. Pas du tout. Está feliz? É um bom aniversário?

Foi então que Sarah reparou que o avô não estava usando o relógio de pulso.O

Longines tinha sido presente de casam ento de Vó. Um obj eto tão preciosoque, quando era pequena, ela não podia tocá-lo. Quis perguntar, m as aspalavras se em baralharam em sua garganta.

— Sarah?

Ela deu um abraço nele, incapaz de m urm urar agradecim entos com o rostono pulôver m acio e puído dele, porque as palavras não lhe vieram .

3

“Nunca lide com o cavalo em meio a um arroubo de paixão, raiva,impaciência, medo. (…) Praticamente toda emoção humana acaba com aeficiência da comunicação com um cavalo.”

XENOFONTE, SOBRE EQUITAÇÃO

Nos dias em que conseguia pensar naquilo de m aneira racional, Natashaobservava, com um a espécie de hum or negro, que seu casam ento havia começado com a m ão esquerda e term inara com a direita. Estranho os dedos delaserem capazes de tal desgraça, m as tinha sido assim .

A ironia era que ela e Conor ainda nem haviam se beij ado quando Mac adeixou. E não foi por falta de oportunidade. À m edida que o casam ento delase deteriorava e os alm oços brincalhões e atenciosos de Conor forneciam umalívio bem -vindo, ele deixara bem claro o que sentia por ela.

— Você parece deprim ida, m oça. Terrível — dizia Conor com o charm ehabitual. Ele apoiava a m ão sobre a dela, gesto que Natasha sem preafastava. —

Precisa resolver a sua vida.

— Para acabar com o você?

A ferocidade do divórcio dele tinha virado lenda no escritório.

— Ah. É só é um a dor intensa e debilitante. Você se acostum a.

Mas, devido a sua situação, Conor entendia um pouco do que ela estavavivendo. E isso era m ais do que qualquer outra pessoa conseguia.

No m undo dos pais dela, casam entos term inavam com catástrofes, porcausa de m orte, desastre ou infidelidade recorrente e descarada. Acabavamporque as feridas se tornavam insuportáveis, e os danos colaterais, grandesdem ais. Não m orriam com o o casam ento de Natasha, devagar, por causade negligência.

Com frequência, nos últim os m eses, ela se perguntava se de fato estavacasada.

Mac, raram ente estava presente, não apenas do ponto de vista em ocional, mas físico tam bém , j á que desaparecia em serviços cada vez m ais regularesno exterior. Quando estava em casa, as trocas m ais inofensivas entre os doisse transform avam em discussões am argas e cheias de ressentim ento. Ambos agora tinham tanto m edo de se m agoar ou de serem ainda m ais rejeitados que era m ais fácil não ter que lidar um com o outro.

— Tem um a conta de gás aqui que precisa ser paga — dizia ele.

— Está m e pedindo para pagar ou está dizendo que vai pagar?

— Só achei que você ia querer dar um a olhada.

— Por quê? Por que você não m ora m ais aqui de verdade? Quer umdesconto?

— Não sej a ridícula.

— Bom , então vá lá e pague a conta em vez de agir com o se, de algum modo, a responsabilidade fosse m inha. Ah, por falar nisso, Katrina ligou denovo. Você sabe qual, a Katrina de vinte e um anos siliconada. A que cham avocê de

“Mackie”. — Ela trem eu a voz em um a im itação ofegante da m odelo.

Nesse ponto, ele sem pre batia a porta e fugia para outra parte da casa.

Eles tinham se conhecido sete anos antes, em um voo para Barcelona. Elaestava com am igos da faculdade de direito, com em orando que um deleshavia passado no exam e da ordem . Ele estava voltando de férias curtas,depois de ter esquecido a câm era no apartam ento de um am igo. Mais tardeela percebeu que deveria ter considerado aquilo um aviso em blem ático danatureza caótica da vida dele, de sua falta de praticidade (ele nunca ouvirafalar do FedEx?). Mas, na ocasião, a única coisa em que ela conseguirapensar fora na sorte de se sentar ao lado do hom em charm oso de cabelocurtinho com j aqueta de sarj a que, além de rir das piadas dela, parecerainteressado, interessado de verdade, no que ela fazia.

— Então, o que m esm o você vai fazer?

— Vou atuar com o advogada nas instâncias m ais baixas. Então vourepresentar as pessoas dos casos que estou cuidando. Sou especializada emcasos envolvendo crianças.

— Crianças crim inosas?

— Na m aior parte, crianças sob a tutela do estado, m as tam bém trabalhoem poucos casos de divórcio, tentando cuidar dos interesses dos filhos. É uma área em expansão, por causa do Estatuto da Criança.

Ela ainda tentava obter o m elhor acordo para as crianças atingidas pordivórcios, ainda forçava autoridades locais e agências de im igração a lhesoferecer um lar tem porário. Mas, para cada criança desesperada, havia um atentativa dissim ulada de obter asilo; para cada nova colocação em lar temporário, um ciclo deprim ente de abuso e retorno. Natasha tentava não pensarm uito nisso. Era boa no que fazia e dizia a si m esm a que as poucas vidasque conseguia im pactar bastavam .

Mac tinha gostado dela por causa disso. Disse que ela tinha conteúdo, bemdiferente da m aioria das pessoas que ele conhecia em seu trabalho. Um anam orada m al-hum orada fora encontrá-lo no aeroporto de Barcelona eficou olhando feio quando Natasha se despediu dele com educação. Em menos de seis horas Mac j á havia ligado para o celular dela, depois dedispensar a nam orada, para perguntar se poderia convidá-la para sair emLondres. Natasha não deveria se sentir culpada por causa da nam orada, elecom pletou, todo alegre. Não era sério. Nada na vida de Mac era sério.

Ela era a responsável pelo casam ento deles: por Mac, os dois teriam ficadoapenas m orando j untos para sem pre. Natasha tinha percebido, com certa

surpresa, que queria se casar. Queria aquela noção de perm anência, que oponto de interrogação fosse rem ovido da relação deles.

Não houve pedido de casam ento propriam ente dito.

— Se é tão im portante assim para você, eu caso — disse ele, na cam a, certatarde, com as pernas enroscadas nas dela. — Mas você vai ter que organizar.

Mac participou ainda que não o bastante; a história do casam ento deles.

No com eço, ela não se im portou. Com preendeu que tinha tendênciascontroladoras, com o Mac falava brincando. Gostava das coisas do j eito dela.

Essa era a form a que tinha encontrado de organizar a vida, que era tãofrenética, o resultado de ter sido criada em um a casa cheia e caótica. Ela eMac entendiam as fraquezas um do outro, faziam piada delas. Mas então obebê que nenhum dos dois sabia que queria criou um a divisão que se

transform ou em abism o.

Quando sofreu o aborto espontâneo, Natasha sabia que estava grávida haviaapenas um a sem ana. Tinha atribuído o atraso da m enstruação ao estresse(estava trabalhando em dois casos difíceis ao m esm o tem po) e, quando sedeu conta do tam anho do atraso, o núm ero de dias era irrefutável. No começo, Mac havia ficado bem chocado, m as ela não poderia ficar brava porquetam bém fora um choque para ela.

— O que vam os fazer? — questionou ela com o teste na m ão, rezando paranão odiá-lo por causa da resposta.

Ele tinha passado a m ão no cabelo.

— Não sei, Tash. Eu aceito o que você decidir.

E então, antes que tivessem a oportunidade de pensar no que fariam , aquelem ontinho de células, o bebê em suspenso, havia tom ado a própria decisão eido em bora.

A tristeza que sentiu a deixou chocada. O alívio que esperava ter não seconcretizou.

— No ano que vem — concordaram depois de ela lhe fazer essa confissão. —

Vam os tirar um as boas férias este ano. Aí vam os tentar direito.

Eles ficaram um pouco agitados de anim ação. Mac arranj aria um a série detrabalhos de verdade em vez de só ficar fazendo bico. Ela conseguiria um emprego em um escritório com bons benefícios para funcionários com filhos.

Então ofereceram a ela o em prego no escritório Davison Briscoe, e os doisconcordaram que seria m elhor esperar m ais um ano. E depois m ais um ,após com prarem um a casa em Islington e Mac com eçar a fazer a reform a.Naquele ano, duas coisas aconteceram : a carreira de Mac sofreu um a quedavertiginosa e a dela foi para a estratosfera. Eles passaram m eses quase semse ver. Quando estavam j untos, Natasha pisava em ovos, tentando evitar queseu sucesso destacasse o fracasso dele. E então, talvez m ais por acaso do que

por qualquer coisa tão definitiva quanto um a tentativa, ela engravidou denovo.

* * *

Mais tarde, bem m ais tarde, ele acusou Natasha de se isolar dele m uito antesde a situação com Conor Briscoe ter com eçado. O que ela poderia dizer?Sabia que era verdade, m as era seu direito não falar sobre o assunto. Afinal,o que havia para ser dito? Três possíveis bebês em quatro anos, nenhum delesindo m uito além da fase de girino. O m édico disse que ela estava“qualificada” para um a investigação m ais detalhada, com o se isso fossealgum a espécie de conquista.

Mas Natasha não quis. Não queria que ninguém a tocasse, não queria reviveraquelas horas lúgubres. Não queria provas de suas suspeitas.

E Mac, que Natasha esperava que vencesse a raiva e as lágrim as dela, que aabraçasse, que a reconfortasse, sim plesm ente se retraiu. Parecia que ele nãoera capaz de lidar com a dor dela, nem com a Natasha confusa e chorona quepassou um a sem ana sem sair da cam a e que caía em prantos toda vez quevia um bebê na televisão.

Quando conseguiu se recom por, ela se sentiu traída. Mac não esteve presentequando ela precisou. Só m uito tem po depois ocorreu a Natasha que ele também devia ter sofrido. Mas aí j á era tarde dem ais. Na época, só notava queele preferia viaj ar para m ais um trabalho e gritava quando ela reclam ava,dizendo que não tinha com o agradá-la, que ela sem pre lhe fazia exigências.A vida sexual do casal se tornara inexistente. Ela ficou supereficiente, dandoconta de tudo com um a determ inação gélida, e se enfurecia com ele por nãoconseguir fazer o m esm o.

E, durante o tem po todo, as garotas não paravam de ligar. Vozes coquetescom sotaque eslavo, adolescentes insolentes que pareciam indignadas quandonão o encontravam em casa.

— É trabalho — insistia Mac. — Os books são o m eu ganha-pão. Você sabeque não gosto de fazer isso.

Dada a ausência de intim idade entre eles, Natasha não sabia em queacreditar.

E durante todo aquele tem po, houve Conor… Conor com o cérebro brilhantepara assuntos j urídicos, que com preendia casam entos desastrosos devido aocolapso espetacular do próprio.

— Um a pequena questão de infidelidade em série da m inha parte —

argum entava ele. — Só Deus sabe com o algum as m ulheres são irracionais.

Ela enxergava a dor por trás da m áscara de alegria, e algo nela seidentificava com aquilo. Natasha via a própria vida refletida ali.

Os dois tinham passado a alm oçar j untos, era tão frequente que o pessoal noescritório reparou. Então com eçaram os drinques esporádicos depois dotrabalho.

Que m al fazia j á que Mac nunca estava presente? Às vezes ela achava que oflerte com Conor era j ustificável. Mac devia estar paquerando alguém no mesm o m om ento, em algum a locação glam orosa. Mas, quando Conor se

debruçou na m esa do pub certa noite e encostou os lábios nos dela, Natasharecuou.

— Eu ainda sou casada, Conor — censurou, perguntando-se, antes de terminar a frase por que tinha incluído a palavra ainda. E desej ando não ter tantavontade de retribuir o beij o.

— Ah. Você não pode condenar um a alm a solitária por tentar — retrucouele, que a levou para alm oçar no dia seguinte.

Não dem orou m uito para Natasha com eçar a confiar nele. Ela não se sentiaculpada; parecia não fazer diferença algum a para Mac se ela era legal ou nãocom outro. Os dois j á nem discutiam m ais: a vida do casal se resum ia agoraa um a série de questionam entos educados e repostas m alcriadas, com araiva borbulhando sob a superfície, e de vez em quando entrando em erupçãoe se transform ando em algo que o fazia lhe dar as costas ou bater m ais um a

vez a porta.

* * *

A festa deles, planej ada durante tanto tem po, a princípio era para com emorar o fim da reform a da casa, para alardear o ressurgim ento deles de baixodos plásticos de proteção e da poeira do reboco, transform ados em algo nãoapenas bonito, m as a que aspirar. Quando chegou a hora, Natasha não queriam ais dar festa nenhum a, achava que tinham pouco a celebrar. Mas cancelaro evento parecia um a declaração tão definitiva que ela achou que nãoconseguiria fazê-lo.

Teve serviço de bufê e um a banda com quatro m úsicos no j ardim . Paraalguém de fora, deveria parecer que ela e Mac form avam um casal perfeito,com a turm a de Mac, os fotógrafos acom panhados de m odelos lindíssim as,se m isturando com os am igos dela do m undo da advocacia, com as risadasde todos se elevando para além dos m uros altos de tij olinhos. Natashapercebera que deveria usar a festa com o oportunidade de fazer contatos e,apesar de estar um pouco atordoada por m orar em um a casa tão grande e tãoelegante, ela sabia que a presença deste j uiz titular ou daquele j uizcondecorado não lhe faria m al algum . O cham panhe corria solto, a m úsicatocava, o sol de Londres adentrava a tendinha que tinham m ontado no cantodo j ardim . Era um a cena gloriosa.

E ela se sentia arrasada.

Mac a evitara durante a m aior parte do dia. Estava com um grupo de pessoasque ela não conhecia, de costas para ela, gargalhando. Todas as m ulheresconvidadas por ele pareciam ter um m etro e oitenta de altura, Natashaobservou com am argura. Usavam roupas interessantes, aparentem entevestidas m eio que ao acaso, sem pensar m uito, o que as fazia pareceremsofisticadas e sensuais. Ela não tivera tem po de passar o vestido que queriausar e a blusa e a saia que escolhera para substituí-lo pareciam desalinhadas,sem estilo. Mac não lhe

dissera que estava bonita. Nos últim os tem pos, era raro ele fazer comentários sobre a aparência dela.

Do alto dos degraus de pedra York, Natasha observou Mac. Será que eratarde dem ais para salvar a relação? Será que havia restado algo a ser salvo?Enquanto estava ali parada, ele cochichou no ouvido de um a m ulher altaalgo que a fez estreitar os olhos e dar um sorriso m aroto. O que ele tinhadito? O que ele tinha dito?

— Tom e j eito — disse um a voz ao lado dela. — Você é m uitotransparente.

Vam os tom ar um drinque.

Conor. Natasha perm itiu que ele a conduzisse pelo j ardim , abrindo caminho pelos grupos de convidados, agora com um sorriso estam pado no rosto.

— Você está bem ? — perguntou ele quando chegaram ao canto da tenda.

Ela fez que não com a cabeça sem falar nada.

Conor a encarou por alguns segundos. Ele não fez piada.

— Margarita. É a cura de todos os m ales conhecidos.

Ele pediu para o barm an preparar quatro, ignorando os protestos dela, e a fezbeber duas, um a atrás da outra.

— Ah, uau — disse Natasha, alguns m inutos depois, apoiada no braço dele.—

Mas que diabo você fez?

— Fiz você relaxar um pouco. Não ia querer que ficassem cochichando:

“Nossa, o que há de errado com ela?” Você sabe com o esse pessoal gosta deum a fofoca.

— Conor, o que você fez? — Ela deu um a risadinha. — Estou m e sentindocom uns setenta por cento de teor alcoólico.

— Natasha Margarita. Soa m uito bem . Venha com igo, vam os dar um a

volta.

Ela sentiu os saltos afundarem na gram a e não sabia ao certo se tinhaequilíbrio suficiente para dar m ais um passo. Conor percebeu o im passe eestendeu o braço, no qual ela se apoiou, agradecida. Foram até algunsadvogados de um tribunal em que sem pre atuavam .

— Vam os conversar com esse pessoal — m urm urou Conor. — Você soubeque Daniel Hewitson foi flagrado em um bordel no m ês passado? Então, façaqualquer coisa, m as não com ente: “Ouvi dizer que você foi pego em umbordel.”

— Ele esperou um instante. — É a única coisa em que você consegue pensaragora, não é?

— Conor! — m urm urou ela, sem largar o braço dele.

— Está m elhor agora?

— Só não se afaste de m im . Talvez eu precise m e apoiar em você.

— Estou à disposição, querida.

Com um cum prim ento anim ado, Conor os introduziu ao grupo.

Natasha só tinha um a leve noção da conversa ao seu redor. Os efeitos da margarita pareciam se intensificar à m edida que o álcool se espalhava pelo

corpo. Ela j á não se im portava m ais, só estava feliz por ter Conor ao seulado.

Recusou-se a pensar em qualquer coisa que não fosse a presença dele,assegurou-se de rir das piadas certas, assentindo e sorrindo para todos a suavolta.

Os saltos voltaram a se enterrar na gram a, e Natasha, tonta, se apoiou nele. O

j ardim estava tão abarrotado de gente que não parecia fazer diferença; aspessoas naquele canto estavam bem j untas, em grupos. Quando sentiu a m ão

de Conor passar atrás do seu corpo, em busca da sua, ela pegou o m indinhodele e não soltou m ais, tentando transm itir sua gratidão. Ele a salvara, impedindo que fizesse papel de boba. Foi um passo tão fácil de dar, um aprogressão tão natural do ponto em que se encontravam , que dem oroualguns m inutos para ela suspeitar que o calor que sentia na nuca talvez nãofosse só do sol.

Ela se desligou da conversa e virou a cabeça apenas o suficiente para ver Macparado a uns seis m etros. Olhava fixam ente para a m ão de Natasha.

Desequilibrada e verm elha, ela largou o dedo de Conor. Depois percebeuque aquela era a pior coisa que poderia ter feito, um gesto carregado de culpa.Mas o m al j á estava feito.

A expressão de Mac deixou claro que a relação estava acabada. Talvez j áestivesse havia m uito tem po.

* * *

— Você realm ente precisa de um bom corte no cabelo — disse Linda atrásdela.

No descanso de tela, Natasha só distinguiu os lábios curvados da secretária.O

pano de prato do escritório cobria os om bros de Natasha para aparar os fioslouro-escuro cortados enquanto ela trabalhava.

— Não tenho tem po. — Natasha voltou a pegar a pasta à sua frente, com osóculos na ponta do nariz, os pés cobertos por m eia-calça apoiados na m esa.—

Preciso ler o conteúdo dessas pastas. Tenho que voltar ao tribunal às duaspara fazer o encerram ento.

— Mas a sua raiz cresceu. Precisa retocar as luzes.

— Você não pode fazer?

— Há anos não faço luzes em ninguém , ainda m ais na hora do alm oço.Você ganha bem . Deveria fazer direito. Ir a um desses cabeleireiros decelebridades.

Ela pegou um a m echa de cabelo e a soltou. Natasha desdenhou.

— Meu pior pesadelo.

— Você deveria se cuidar m ais.

— Parece m eus pais falando. Vai sair m ais chá?

Natasha fez um a leitura dinâm ica da últim a página de suas anotações, entãofechou a pasta e pegou a seguinte, que estava em baixo. O celular apitou.Mac tinha m andado duas m ensagens de texto para ela naquela m anhã,perguntando quando poderia passar na casa. Já fazia quase dez dias que ela oenrolava.

Desculpe. Estou ocupada dem ais am anhã. Quem sabe na quinta. Eu aviso.

Mal tinha largado o celular quando o aparelho apitou de novo.

Meia hora. Quarta à noite.

Ela não queria encará-lo. Havia coisa dem ais acontecendo. Ele tinha passadoum ano afastado; m ais um ou dois dias não faria m al algum . Ela respondeu:Não vou conseguir sair. Ordem lim inar. Desculpe.

Mas naquele dia aparentem ente Mac perdeu a paciência: Preciso das m inhascoisas. Sexta que vem é o lim ite. Posso pegar tudo sem você. Por favor, digase trocou as fechaduras.

Natasha fechou o celular e parou para organizar os pensam entos.

— Mas, Lin, por que eu deveria ir a um cabeleireiro de verdade? Os seuscortes são ótim os.

— Chega de baj ulação, Sra. Macauley.

— Senhorita.

— Ah, sim . Ia m esm o perguntar com o deve ficar o seu cartão de visitasnovo… Preciso fazer um a nova encom enda. Coloco seu nom e de solteira?

— Por que eu ia querer m udar?

Linda deu de om bros.

— Sei lá. Parece o seu estilo.

Natasha se inclinou para a frente, para longe da tesoura, e se virou para trásna cadeira giratória.

— Que estilo?

Linda não pestanej ou.

— Independente, quer que todo m undo saiba disso, e é feliz por ser assim .—

Ela refletiu sobre a questão. — Voltar ao nom e de solteira dá a im pressão deque não está nem aí. Ficar com o de casada dá a entender que você sepreocupa em m anter o status de m ulher casada. — Colocou as m ãos naslaterais da cabeça de Natasha e a virou para a frente.

— Não está nem aí — repetiu Natasha. — Não sei se você acaba de m einsultar ou se disse algo bem legal.

Ben entrou e colocou m ais um a pasta na m esa. Ela se inclinou para pegá-la,provocando um palavrão atrás de si.

— Linda, a assistente social ligou para dar o retorno sobre Ahm adi?

Natasha não sabia ao certo o que perguntar, m as precisava de pistas: com opoderia ter se enganado tanto sobre o garoto? Será que outra pessoa tinhapercebido que a história dele não podia ser verossím il?

— Ahm adi… É aquele garoto que apareceu no j ornal? Aquele que você

representou? Achei m esm o que conhecia o nom e de algum lugar. — Lindanão deixava passar nada. — Ele atacou alguém , não foi? Que surpresa, deverdade.

Ele não parecia ser desse tipo.

Natasha não queria discutir o assunto na frente do estagiário.

— Eles nunca parecem . Ande logo, Linda, você j á devia ter term inado.

Preciso estar no tribunal daqui a vinte m inutos e ainda nem com i umsanduíche.

* * *

— Com o foi?

Conor estava a espera dela do lado de fora do tribunal. Ela se inclinou e o beijou, j á não se preocupando m ais com os olhares dos outros advogados. Osdois agora form avam um casal estabelecido. Duas pessoas divorciadas, m aisvelhas, m ais sábias. Não tinha nada de escandaloso ali.

— Acabei com eles. Sabia que acabaria. Pennington estava tão despreparadoque deu dó.

— Essa é a m inha garota. — Conor fez carinho na nuca dela. — Seu cabeloficou legal. Vam os j antar?

— Nossa, eu adoraria, m as preciso ver um a tonelada de papéis para amanhã.

— Natasha percebeu que o rosto de Conor se anuviou, então pegou no braçodele.

— Mas um drinque m e faria bem . A gente m al se viu essa sem ana.

Atravessaram a relativa paz do Lincoln’s Inn depressa e saíram para a ruacheia e m ovim entada. O sol refletia na calçada quando atravessaram a ruapara chegar ao pub, por isso Natasha j á estava tirando o casaco antes de

entrarem .

— Neste fim de sem ana eu não posso — disse logo Conor ao se aproximarem do balcão. — Vou ficar com os m eninos. Achei que deveria avisar comantecedência.

Os filhos de Conor tinham cinco e sete anos e, ao que parecia, estavam magoados e vulneráveis dem ais para saberem da existência da nam orada dopapai, por m ais que estivesse divorciado da m ãe deles havia m ais de umano.

Natasha tentou não parecer tão decepcionada.

— Que pena — disse ela com o quem não quer nada. — Fiz um a reserva noWolseley.

— Está de brincadeira.

Ela tentou sorrir.

— Não. É o nosso aniversário de seis m eses, caso não tenha reparado.

— E eu aqui achando que você tinha um coração de pedra.

— Você não detém o m onopólio dos gestos bacanas, sabe? — retrucou ela,coquete. — Acho que terei que achar outra pessoa para m e acom panhar.

Tal possibilidade não pareceu incom odá-lo. Ele pediu os drinques e se virou

para ela m ais um a vez.

— Ela vai passar o fim de sem ana em Dublin. — Colin sem pre se referia àex-m ulher com o “ela”. — Por isso, vou ficar com eles de sexta até segundade m anhã. Só Deus sabe o que vou fazer com os dois. Eles querem patinarno gelo.

Patinar no gelo, dá para acreditar? E está fazendo oito graus.

Natasha deu um gole na bebida, perguntando-se se valia a pena se oferecer

para aj udar. Se Conor tivesse que recusar a com panhia dela pela segundavez, com certeza ia ficar um clim ão. Fingir que não havia possibilidade deela querer acom panhá-lo tornava a situação m ais segura e fácil para todos.

— Tenho certeza de que você vai dar um j eito — disse ela com cautela.

— Que tal segunda-feira à noite? Posso ir direto para a sua casa se quiser.Vou estar recuperado e pronto para você.

— Vou m e contentar com o que posso ter — respondeu Natasha, sem deixarque o am argor m aculasse suas palavras.

Por que ele não a apresentava aos filhos? Será que a relação deles era apenastem porária e por isso não valia a pena eles a conhecerem ? Ou, pior, será queela transm itia um ar nada m aternal, fazendo com que Conor tivesse m edode apresentá-los?

Natasha passava o dia todo lidando com conflitos no tribunal, e o últim o anotinha feito com que ela não buscasse desentendim entos na vida pessoal.

— Segunda, então — concordou com um sorriso.

Eles term inaram o vinho, conversaram sobre questões de trabalho, e Conor aaconselhou sobre um j uiz com quem ela lidaria na sem ana seguinte. Eles sedespediram na porta do pub e ela voltou para o escritório e ficou ali por m aisum a hora. Ligou para a m ãe, ouviu um corolário sobre os problem as desaúde do pai e tentou dar a entender que tinha vida social quando a m ãeperguntou o que ela andava fazendo. Às nove fechou tudo, saiu naquela noitede verão e cham ou um táxi para voltar para casa.

Observou as ruas de Londres passarem depressa pela j anela, com casaissaindo preguiçosam ente de pubs e restaurantes. O m undo ficava cheio decasais quando se estava sozinho. Talvez ela devesse ter saído com Conor, mas o trabalho era a única constante em sua vida. Se ela o deixasse de lado paraj antar com ele, sua vida inteira teria sido em vão.

De repente, sentiu um a tristeza profunda e enfiou a m ão na bolsa à procurade um lenço de papel, então se forçou a dar um a olhada em um a das pastas

separadas para o dia seguinte. Vam os lá, Natasha, tom e j eito, disse a si mesm a, tentando entender por que se sentia tão instável. Encontrar a respostanão era difícil.

Fechou a pasta, então exam inou as m ensagens de texto que tinham acabadode chegar. Respirou fundo e digitou:

Não troquei as fechaduras. Venha quando quiser. Se for tarde, por favor,deixe a luz acesa e feche as cortinas quando sair.

4

“O som mais doce de todos é o elogio.”

XENOFONTE, SOBRE EQUITAÇÃO

Quando ela chegou, Ralph estava no portão. Olhou para ele, m eio sementender, então conferiu o relógio. Aos doze anos, ele raram ente se levantavaantes do m eio-dia. Segundo Ralph, a escola era algo opcional. O horário deleera praticam ente todo noturno.

— Maltese Sal está tendo um a discussão — contou, indicando o cam inhãodo outro lado da rua. Sal dava de om bros dentro da j aqueta, conferindo ocelular. —

Você vem com igo?

— Para onde?

— Para o viaduto. O que fica perto dos cam pos de futebol. Só vai levar vintem inutos. Venha… Vicente disse que dá um a carona para a gente na traseirada cam inhonete dele.

Ralph olhou para ela, cheio de expectativa, com um cigarro na boca.

— Eu aj udei Sal a preparar a égua. Está irrequieta.

Ela então entendeu por que havia o dobro de carros do que o norm al do ladode fora, em Sparepenny Lane. Hom ens entravam nos veículos, batiam as

portas, falavam em voz baixa na m anhã estagnada. Ela ouviu os carros dandopartida, sentiu o cheiro da expectativa no ar. Sarah olhou m ais um a vez parao relógio, um pouco incerta.

— Cowboy John j á está lá — observou Ralph. — Vam os, vai ser divertido.

Ela deveria estar treinando Boo, m as Ralph estava ali parado, esperando. Eela era a única ali que nunca tinha assistido a um a corrida.

— Vam os, provavelm ente será a últim a do verão.

Ela hesitou apenas por um instante, então saiu correndo atrás dele em direçãoà picape verm elha, que j á soltava um a fum aça roxa pelo escapam ento noar parado da m anhã. Jogou a m ochila na traseira, segurou a m ão de Ralphpara subir e então se acom odou na pilha de cordas e lonas. Vicente lhes dissepara se segurarem , depois saiu para a rua tranquila atrás de quatro outrosveículos, cada um deles cheio de hom ens de cabelo escuro e com fum aça decigarro escapando das j anelas um pouco abertas.

— Ele fez um a aposta alta contra o pessoal de Picketts Lock — gritou Ralphpor cim a do barulho do m otor.

Eles se abaixaram por um tem po, quando um a viatura da polícia passou.

— Qual é a égua?

— Ele vai disputar a corrida com a cinza.

— A que deu um coice na charrete?

— Ele com prou um a nova, além de antolhos m elhores. Colocou umdinheirão nisso, estou dizendo. Muito dinheiro.

Ralph afastou as m ãos uns quinze centím etros e deu um enorm e sorriso.

— Não conte a Vô que vim com você — gritou Sarah.

Ele deu um a tragada profunda e então j ogou a bituca do cigarro na rua.

Algum as coisas não precisavam ser ditas.

* * *

Ao contrário da corrida de cachorros ou do futebol am ador, a corrida decharrete era um acontecim ento interm itente e não anunciado nos anais doesporte na zona leste da cidade. Não havia estádio, não havia pista ilum inadapor holofotes na qual os m elhores cavalos pudessem com petir, nenhumagente de apostas regulam entado para falar das m elhores probabilidades ebancar as apostas. Em vez disso, várias vezes por ano, os com petidores combinavam de se encontrar em um local erm o com um a extensão de asfaltoliso acertada com antecedência.

O fato de a “pista” inevitavelm ente ser um a via pública não era obstáculopara a realização de um a corrida. Cam inhonetes dos dois lados sim plesmente iam para o local depois do am anhecer, quando havia pouco trânsito. Iamfazendo m anobras ao redor um as das outras até ocuparem as duas pistas davia de m ão dupla e então, em pontos com binados, dim inuíam a velocidade,ligavam o pisca-alerta e forçavam os outros veículos a pararem atrás deles.Antes que os outros m otoristas se dessem conta do que estava acontecendo,os cavalos rivais j á estavam na pista com as charretinhas leves de duas rodasatreladas atrás de si. A corrida então se desenrolava em um a reta de doisquilôm etros, acom panhada de gritos, suor, xingam entos, um borrão depatas e chicotes, os condutores inclinados para a frente, instando os anim aisa cruzar logo a linha de chegada com binada, talvez um pedaço de fitasegurada por dois garotos. Em questão de m inutos a fita era rom pida, acorrida estava decidida e os participantes desapareciam nas ruas secundáriaspara com em orar, discutir ou distribuir o dinheiro das apostas.

Quando a polícia chegava, havia poucas evidências — fora um a ou outrapilha de esterco, algum as guim bas de cigarro — sugerindo que algoacontecera ali.

Ralph contou a Sarah que aquela era a pista de corrida preferida de MalteseSal.

— Asfalto novo, não é?

Ele passou a bota na superfície lisa em um gesto de aprovação.

Eles tinham pulado da traseira da cam inhonete e agora estavam em baixo doviaduto que saía do parque industrial, observando o dinheiro m udar de m ãosa alguns m etros de distância. Hom ens tatuados saídos de trailers, poucovisíveis sob as pilastras de sustentação, estavam sentados diante de caminhonetes reluzentes

com rodas superdim ensionadas, com celular colado na orelha e os cigarrossem pre presentes entre os dedos grossos e suj os. Tiravam notas de m açosenorm es de dinheiro e cuspiam na palm a antes de trocar apertos de m ão,com os olhos frios e brilhantes revelando a falta de confiança e am izade nogesto. O lado de Sal, m ais curto e lustroso do que o dos viaj antes, tinhacarros m ais feios, porém as roupas eram im aculadas. Cada grupo estava deum lado da rua.

Cowboy John estava encostado em um a cam inhonete, fum ando de m odopensativo um cigarro enrolado à m ão, apontando para os cavalos econversando com alguém no banco do carona. Um garoto que Sarah nãoreconheceu estava m ontado nas costas nuas de um cavalo preto, com aspernas para a frente, conduzindo o anim al por entre os carros com umcabresto.

Perto dali, Maltese Sal conferia os fechos do arreio de seu cavalo, dandobronca quando a égua se agitava, com o am plo sorriso revelando um dentede ouro, um boné enfiado em cim a do cabelo cortado bem curto. Ele estavarindo, desdenhando do cavalo dos adversários, im itando o ângulo infeliz daspatas dele, do peito supostam ente estreito dem ais.

— Eles odeiam Sal — revelou Ralph, acendendo m ais um cigarro. — Foiflagrado com a m ulher de alguém no ano passado. Vai ser forçado a vender.

— Forçado a vender?

Ralph a encarou com o se fosse burra.

— Se perder, ele terá que abrir m ão da égua.

— Mas não vai ficar louco da vida? — questionou Sarah.

Ralph cuspiu no chão.

— Que nada. Os Pikey sabem que todo pessoal do Sal vem em grande número. E eles vieram preparados, só para garantir. Acho m elhor ficarm os nacam inhonete de Vicente, para o caso de precisarm os sair correndo.

Ele riu. Sem pre se anim ava com a perspectiva de confusão.

Os hom ens estavam voltando para as cam inhonetes e Sarah trem eu, semsaber m uito bem se de nervoso ou de anim ação. Acim a deles, apoiado nospilares de concreto rústico gigantescos, o trânsito rugia pelo viaduto eevidenciava o início da hora do rush através da densidade crescente deveículos.

Alguém assobiou, um cachorro latiu, e Ralph a puxou para a entrada darodovia. Três cam inhonetes deram ré, voltando na direção de onde tinhamvindo, num a form ação previam ente acertada. Desapareceram , prontas parase j untar ao trânsito no viaduto, e então só havia hom ens parados na entradada rodovia, e os cavalos, com vapor saindo das narinas, os cascos batendodelicadam ente na superfície de asfalto, com a cabeça firm e, segurada pelosencarregados. Atrás da égua cinza, Sal estava agachado em sua charrete vermelha, pernas a postos, rédeas frouxas na m ão, olhando para trás o tem potodo, esperando o sinal. A presença dele era m agnética. Sarah se pegouobservando-o, seu sorriso longo e confiante, os olhos que pareciam saber detudo. Ralph, ao lado dela, acendeu

m ais um cigarro e resm ungou, baixinho:

— Vam os lá, vam os lá…

Agora todos os olhos estavam fixos no trânsito no viaduto. Os hom ens resmungaram entre si. O fluxo de carros era intenso.

— Aposto que Donny foi parado por um guarda. Ele não pagou a porcaria doim posto.

Alguém riu, quebrando a tensão.

E então se ouviu um grito e, acim a deles, dava para ver a picape de um dosadversários com o pisca-alerta ligado, form ando a barreira de segurança.

— Vão! — gritou alguém . — Vão!

E, com um m ovim ento fluido, os dois cavalos estavam na entrada darodovia, com as rodas das charretes quase se tocando, os dois condutorescurvados para a frente, os chicotes em riste enquanto instigavam os anim aisa avançar pela extensão da estrada vazia.

— Vai, Sal! — berrava Ralph com a voz aguda de anim ação. — Vai!

E Sarah sentiu quando ele pegou a m anga do seu blazer e a puxou emdireção à cam inhonete de Vicente, que j á estava acelerando, pronta paraseguir os cavalos de corrida, então quase fora de vista.

Ele a em purrou para a traseira e Sarah ouviu as buzinas dos carros queestavam parados, a borracha cantando no asfalto. Agarrou firm e as barras dovidro traseiro, o vento cantava em seus ouvidos.

— Ele está ganhando! — berrava Ralph. — Ele está na frente!

Sarah viu a égua cinza com seu trote nada natural, rápido dem ais, um passosurreal. Dava para discernir a careta do adversário, com o chicote erguidoenquanto incitava o cavalo a ir m ais depressa, a com em oração dele quandoentrou a um galope breve que arrancou dos Maltese urros de protesto.

— Vam os, Sal! Acabe com ele!

O coração dela estava na boca, os olhos fixos na eguinha valente, cuj ostendões estavam todos retesados com o esforço de m anter aquela velocidadeno trote, com os pequenos cascos m al tocando a superfície da estrada. Vai,ela incentivava, com m edo de que a égua perdesse e fosse entregue aosadversários, perdida para sem pre em algum a terra desolada coberta de mato, com cavalos feios e carrinhos de superm ercado quebrados. Ela sentia uma com unhão silenciosa com a eguinha, lutando pela própria sobrevivência

entre os gritos, o suor e o barulho. Vai.

E então, com um grito de vitória, estava term inado, os cavalos fora doviaduto tão depressa quanto o tinham tom ado. As cam inhonetes sedispersaram atrás deles, os carros avançaram em um a confusão m al-humorada. E a cam inhonete de Vicente fez um a curva à esquerda na entrada darodovia, os j oelhos e os braços de Sarah bateram dolorosam ente nas lateraisdo veículo quando passaram em um buraco, a sua m ochila da escola se abriue seus livros, com as folhas

balançando, voaram . Ela ergueu a cabeça e viu Sal descendo da charreteantes m esm o de a eguinha parar, a m ão erguida em triunfo, um colega cumprim entando-o com um toca aqui. Ela e Ralph riam , abraçavam -se,contagiados pela loucura e pela vitória de Sal.

A eguinha cinza estaria a salvo durante m ais algum as sem anas. A salvo noestábulo de Cowboy John.

— Eu tinha apostado um centavo! — berrava Ralph com o rosto corado,agarrando o blazer do uniform e da escola dela. — Vam os! Sal disse que, seganhasse, pagaria o café da m anhã para todos nós quando voltássem os aoestábulo.

* * *

Vô estava lá quando ela voltou, depois da escola. Estava na baia de Boo,abaixado, escovando o pelo do anim al até deixar seus quartos brilhando como espelho. Sarah ouviu a respiração pesada antes de vê-lo e reparou no T desuor na cam isa bem passada antes de ele se virar. Vô só fazia algo se pudessefazê-lo da m aneira correta. Era por causa de todos aqueles anos de treinamento m ilitar.

Quando ela entrou nos arcos, Cowboy John estava apoiado na porta da baiatom ando um a caneca de chá cor de verniz. Ele nunca parecia se esforçar muito para nada, m as de algum m odo o estábulo estava sem pre em ordem .

— A m enina do circo chegou — avisou, e Ralph, apoiado na traseira de umcavalo de trabalho branco e preto com a cabeça achatada, piscou para ela.

— O ônibus atrasou — explicou Sarah, colocando a m ochila em cim a de umfardo de feno.

— Ela esqueceu o tutu — brincou Cowboy John.

— Já recebeu a nota da prova de m atem ática? — perguntou Vô.

— Tirei seis.

Sarah acenou com o livro, torcendo para que ele não percebesse as m arcas depneu e a suj eira na capa. Olhou para Ralph, que teve um ataque de tosserepentino.

— Eu lhe contei que Maltese Sal com prou e vendeu aquele cavalo preto hoje, o que ele conseguiu com os italianos de Northolt?

O avô dela apoiou a m ão no peito de Boo, que recuou, obediente.

— Aquele de andadura? — perguntou.

Maltese Sal sem pre com prava e vendia cavalos de trote. Cowboy Johnassentiu.

— O suj eito veio buscá-lo hoj e à tarde.

— Ele vai ter sorte se conseguir fazer aquele cavalo andar rápido —ponderou Ralph. — O bicho corre igual a um caubói de pernas arqueadasusando salto alto.

— Do j eito que ele o vendeu, era Bucéfalo. — Cowboy John im itou a maneira

com o Sal sacudia a cabeça. — O cavalo saiu da baia com o se estivessepronto para o Derby do Kentucky.

— Mas com o… — com eçou Sarah.

— Sal enfiou um a bolinha de gude na orelha dele — interrom peu Ralph.

Cowboy John bateu no garoto com o chapéu.

— Você anda escutando as m inhas conversas?

— Você falou isso para todo m undo que passou por aqui hoj e à tarde —

protestou Ralph.

— O cavalo saiu daqui sacudindo a cabeça com o se fosse selvagem . Com odinheiro que recebeu por ele, Sal com prou m ais dois. Chegam no sábado.Os dois para corrida.

Sarah sabia que Vô não gostava dos truques dos velhos negociantes. Elefingia que não escutava a conversa.

Ralph tirou o chiclete da boca e colou na porta da baia.

— Lem bra quando você vendeu aquele velho cavalo palom ino para oitaliano lá do cam po e enfiou um pedaço de gengibre no rabo dele paraparecer anim ado?

O chapéu de Cowboy John desferiu m ais um golpe.

— Não sei com o foi parar lá! — afirm ou. — Não tinha nada de errado comaquele cavalo. Nada. Vocês estão m e difam ando. Você tem sorte por eudeixá-lo ficar aqui no estábulo, com o tanto que fala m al de m im . Vocêdeveria estar na escola. Por que diabo nunca vai à escola?… — Ele saiupisando firm e em direção ao portão, resm ungando sozinho e correndo aosgritos quando viu um a ruiva de m eia-idade passando na rua. — Sra. Parry !Foi a senhora que eu vi na televisão ontem à noite? — A m ulher seguiuandando. Parado ao lado do portão, ele tirou o chapéu e acenou para cham ara atenção dela. — Foi, sim ! Eu sabia!

Ela desacelerou o passo e virou um pouco a cabeça, perplexa.

Ralph deu um a gargalhada.

— No Britain’s Next Top Model! Pronto… viu? Está sorrindo. Eu sabia queera a senhora. Quer com prar alguns ovos? Tam bém tenho uns abacates bem

bonitos.

Um a bandej a inteira, se quiser. Não? Volte logo, viu? Quando o contrato dem odelo term inar. — Ele estava sorrindo quando voltou para o arco daferrovia.

— Essa Sra. Parry do correio, ela é bacaaana. — Ele prolongou a palavra emtom de apreço. — Se fosse vinte anos m ais nova…

— …ela poderia aj udá-lo com o andador — disparou Ralph.

Vô não falou nada. Tinha voltado a escovar Boo com força, em m ovim entosríspidos: de vez em quando o cavalo tinha que se escorar contra a pressão.

Cowboy John deu m ais um gole no chá.

Sarah adorava tardes assim , quando os cavalos ficavam sonolentos ao sol eos hom ens trocavam insultos de brincadeira. Ali, Vó não parecia um agrande ausência. Aquele era o lugar em que Sarah se encaixava.

— Menina, eu vivo dizendo para o seu avô. É por isso que ele nunca vaiarrum ar outra nam orada. Olhe só para isso! — Ela seguiu o olhar dele atéonde a escova de Vô passava pela anca reluzente de Boo com força. CowboyJohn estendeu as m ãos e deslizou-as com ar sonhador para o lado, entãopiscou para Sarah. — Vou lhe dizer um a coisa, Capitaine, as m ulheresgostam de m ão lenta, de tratam ento suave.

Vô o olhou com desprezo, então voltou à sua tarefa.

— E eu aqui pensando que os franceses deviam ser ótim os am antes —

provocou Cowboy John.

O avô dela deu de om bros e bateu a poeira da escova.

— John, se você não sabe qual é a diferença entre am ar e escovar, não é param enos que os seus cavalos pareçam tão confusos.

Os m eninos gargalharam . Sarah sorriu com m alícia, apesar de saber que

não deveria entender a piada, então fez um a expressão séria quando Vô lhepediu para pegar o capacete.

* * *

O sol ia se pondo, baixando em direção à ponte da ferrovia e do viaduto alémdela. Era a hora do rush, e filas de veículos esperavam no engarrafam ento aoredor do parque enquanto os m otoristas se distraíam por um instante com oque viam no gram ado.

Sarah não reparou neles. Vô estava ao seu lado com os braços abertos, ajudando a concentrar a energia que im pulsionaria Boo para o alto.

— Sente-se ereta — m urm urou. — Está tudo no j eito com o você se senta,Sarah. Mantenha a perna esticada… m as im óvel, controle o cavalo peloassento, comme ça.

Ela suava de tanto esforço. Via o chicote de Vô pelo canto do olho esquerdo—

ele nunca encostou na bela pelagem castanho-averm elhada de Boo —, sentiaa força se concentrando em baixo de si. Estava sentada o m ais im óvelpossível, com as pernas apoiadas de leve nas laterais, olhando diretam enteatravés das orelhas pontudas do cavalo.

— Non — disse ele m ais um a vez. — Para a frente. Faça-o avançar. Agoratente outra vez.

Estavam trabalhando no piaffe havia quase quarenta m inutos, e o suor tinhacolado a cam isa da escola dela nas costas, com o sol batendo na cabeçaquente.

Avançar em trote, então parar, depois trotar de novo, tentando concentrar aenergia para que o anim al trotasse sem sair do lugar, com o passo ritm adoque seria o ponto de partida de m ovim entos m ais com plexos, que Vô tinhalhe dito várias vezes que ela ainda não era boa o bastante para executar.

Alguns m eses antes, quando ela im plorou, Vô lhe m ostrara do chão com oBoo

poderia ser convencido a fazer o levade, equilibrado nas patas traseiras, como se estivesse em pinando, e ela ficou louca para experim entar os m ovimentos que o fariam sair do chão — o courbette, o capriole — com ela em cima. Mas Vô não deixou. Tinha que fazer o trabalho de base, vez após outra.Com certeza não haveria levade em um parque público com gente olhando. Oque ela estava tentando fazer? Dizer a Boo que ele era um cavalo de circo?Ela sabia que o avô tinha razão, m as às vezes o treino era m uito entediante.Era com o ficar presa na largada de um a corrida para sem pre.

— Podem os fazer um intervalo? Estou com m uito calor.

— Com o é que você vai conseguir se não treinar? Não. Continue. Ele estápegando o j eito.

Ela fez bico em um protesto m udo. Não adiantava discutir com Vô, m asparecia que estavam fazendo a m esm a coisa havia horas. Sarah pensou naeguinha cinza daquela m anhã. Pelo m enos ela havia ido a algum lugar.

— Vô…

— Concentre-se! Pare de falar e concentre-se no seu cavalo.

Duas crianças passaram correndo, e um a delas berrou:

— Manda ver, caubói!

Ela m anteve o olhar fixo entre as orelhas de Boo. O curto espaço entre asduas estava m olhado de suor.

— E avance. Dê um a recom pensa a ele. — Sarah perm itiu que o cavaloavançasse, então m eio que fez com que parasse, tentando trazê-lo para tráscom um a transferência de peso e a pressão m ais leve possível nas rédeas. —Non!

Está se inclinando para a frente de novo.

Ela se j ogou sobre o pescoço do cavalo e resm ungou.

— Não estou!

— Está enviando sinais conflitantes para ele — ralhou Vô com o rosto marcado pela frustração. — Com o ele vai entender se as suas pernas dizem uma coisa e a sua posição diz o contrário?

Ela m ordeu o lábio. Por que estam os fazendo isto?, queria berrar. Nuncaserei boa o bastante para o que você quer. Isto aqui é um a idiotice.

— Sarah… concentre-se.

— Eu estou concentrada. Ele está com calor dem ais e incom odado. Não estám ais m e escutando.

— Ele sabe que você não m e escuta. É por isso que ele não escuta você. —A culpa era sem pre dela. Nunca do cavalo. — Se você se senta comme ça,está ensinando a ele a não escutar.

Ela estava esquentada dem ais.

— Certo — disse, pegando as rédeas com um a das m ãos e descendo docavalo. — Se sou tão incom petente, faça você.

Sarah ficou ali parada no chão, surpresa com o próprio desafio. Era raro elacontradizer Vô.

Ele olhou feio para a neta, com os olhos ardendo de raiva de um j eito que fezcom que ela, feito um cachorro desgraçado, baixasse a cabeça.

— Je m’excuse — disse ele de repente.

Sarah esperou, sem saber o que Vô ia fazer. Ele foi a passos firm es até alateral de Boo e, com um leve resm ungo por causa do esforço, colocou o péesquerdo no estribo, ergueu-se e deixou o corpo descer com suavidade sobreo lom bo do cavalo. As orelhas de Boo se voltaram para trás, o anim al ficouassustado com o peso desconhecido. Vô não disse nada para ela. Cruzou osestribos na frente da sela e deixou as pernas soltas. Então, com as costasincrivelm ente retas e as m ãos aparentem ente im óveis, ele fez Boopercorrer um círculo am plo, depois colocou o cavalo em ação.

Sarah, com a m ão na testa para proteger os olhos do sol, observou o avô, umhom em que ela nunca tinha visto m ontado em um cavalo, pedir, com movim entos quase im perceptíveis, algo que o anim al não sabia com o fazer, eBoo, com a boca branca de espum a, ergueu as patas cada vez m ais altoenquanto perm anecia no m esm o lugar. Sarah perdeu o fôlego. Vô era com oos hom ens do DVD. Fazia tudo enquanto parecia não fazer nada. Elapercebeu que as m ãos tinham se fechado em punhos e estavam enfiadas nosbolsos. Boo estava tão concentrado que o suor escorria em filetes pelopescoço m usculoso. O avô dela ainda parecia não fazer nada enquanto oscascos de Boo cravavam um a tatuagem ritm ada na terra m arromcraquelada. De repente, ele passou para o m ovim ento de balanço, o m eio-galope estacionário do terre à terre. E

finalm ente, do nada, ela escutou um “Hup!” e, quando ela deu um passoatrás, Boo se ergueu nas patas traseiras com o par dianteiro bem dobradinhosobre o corpo, com os m úsculos dos quartos trem endo enquanto ele seesforçava para m anter o equilíbrio. Levade.

Alguém berrou: “U-huh!” do passeio, e ouviu-se um m urm úrio coletivo depreocupação vindo de algum as pessoas atrás de Sarah. E então Boo baixou.Vô passou a perna por trás da sela; o único sinal de seu esforço eram as marcas escuras na cam isa azul.

Ele m urm urou algo para o cavalo e passou a m ão devagar pelo pescoçodele, em agradecim ento, então entregou as rédeas à neta. Sarah quisperguntar com o ele tinha feito aquilo, por que não m ontava m ais se eracapaz de m ontar daquele j eito. Mas Vô falou antes que ela conseguissearticular o que queria dizer.

— Ele está se esforçando dem ais — disse, com indiferença. — Está tensodem ais. Precisam os fazer com que recue um estágio para que se preocupe menos com o equilíbrio.

Um grupo de m ulheres estava sentado na gram a, observando a um adistância segura. Chupavam picolés com as saias erguidas acim a dos joelhos, revelando

pernas bronzeadas.

— Faça de novo — gritou um a delas.

Sarah ainda estava um pouco estupefata com o que tinha visto.

— Quer que eu continue tentando? — perguntou a garota.

Vô passou a m ão no pescoço de Boo.

— Não — respondeu, baixinho. Então passou a m ão no próprio rosto paralim par o suor. — Não. Ele está cansado.

Ela soltou as rédeas e Boo esticou o pescoço, agradecido.

— Monte. Vam os voltar — disse Vô.

— Tem um carrinho de sorvete ali — disse Sarah, esperançosa, m as elepareceu não escutar.

— Não se sinta tão frustrada — disse Vô enquanto cam inhava. — Àsvezes…

às vezes eu exij o dem ais. Ele é novo… Você é nova…

Ele tocou a m ão da neta, e Sarah percebeu que aquilo era o m ais próxim oque conseguiria de um a confissão de que ele estava errado.

* * *

Eles deram um a volta no perím etro do parque para perm itir que os músculos de Boo se alongassem e relaxassem , então pegaram a trilha até oportão do parque.

Vô parecia im erso em pensam entos e Sarah não sabia o que dizer. Ela ficavapensando no avô m ontado no cavalo. Ele parecia alguém que ela nunca tinhavisto. Sarah sabia que o avô fora um dos cavaleiros m ais j ovens do Le CadreNoir. Vó havia lhe contado que apenas vinte e dois hom ens tinham permissão para vestir o uniform e preto com os alam ares dourados que osdistinguia com o m estres de sua arte. A m aioria deles j á havia representadoo país no exterior —

em adestram ento, cross-country ou salto —, m as Vô havia entrado para aacadem ia do j eito m ais difícil: tinha subido pelas fileiras da cavalaria atéque enfim o filho de um cam ponês agricultor de Toulon fora aceito com oparte da élite na escola clássica.

Quando o viu pela prim eira vez, Vó contou a Sarah, olhando para afotografia dos dois j untos, achou Vô tão bonito m ontado no cavalo que seucoração parou e ela pensou que ia desm aiar. Ela nem gostava de cavalos, mas viaj ara para vê-lo todos os dias, ficando em pé na parte frontal doauditório público, perdida na contem plação do hom em que tam bém estavaperdido, concentrando-se em algo que ela não era capaz de entender.

Aquilo foi o que Vó tinha visto, pensou Sarah ao se lem brar de com o o avôsim plesm ente ficou ali sentado, e Boo entendera, com o que por telepatia, oque lhe era pedido. Sarah tinha visto a m agia.

Com um aceno de cabeça e um gesto para o vigia do portão, que nunca seincom odou com eles, os dois subiram a rua até o estábulo, com os cascos deBoo

estalando no asfalto, suas pernas se m ovendo, pesadas.

Finalm ente, quando atravessaram a rua principal em direção ao estábulo, Vôrom peu o silêncio:

— John m e contou que está pensando em vender.

Ele só se referia a John pelo nom e, e não com o “o caubói m aluco”, quandoo assunto era sério.

— Mas onde vam os deixar Boo? — perguntou ela.

— Ele disse que nós não precisam os ir a lugar algum . O estábulo serávendido, m as continuará funcionando com o está.

Mal se passava um m ês sem que Cowboy John recebesse um a oferta emdinheiro para deixar o estábulo; às vezes eram valores altos, som as que ofaziam debochar de tão ridículas. Ele sem pre recusara, pedindo ao comprador em potencial que lhe explicasse para onde levaria os cavalos, os gatose as galinhas dele.

Vô sacudiu a cabeça.

— Ele diz que alguém próxim o está interessado, e que nada vai m udar. Nãoestou gostando disso. — Ele hesitou para enxugar o rosto, parecendodistraído. —

Nós pegam os os ovos, não é?

— Eu disse que sim , Vô. Estão no estábulo.

— É este calor — disse ele.

O colarinho da sua cam isa estava escuro de suor. Se é que não estava pior doque quando ele m ontava. Vô estendeu a m ão até o pescoço do cavalo com o

se buscasse apoio e a passou pela crina dele, m urm urando algo para o animal.

Quando ela refletiu sobre a questão m ais tarde, concluiu que deveria ternotado com o o hum or dele m udou, com o ele não corrigiu Boo quando nãoficou quietinho no m eio-fio — Vô sem pre insistia que um cavalo tinha queficar im óvel e quieto ao receber a ordem de parar. Dois cam inhões passarame o m otorista de um deles fez um gesto grosseiro. Com o Vô estava decostas, Sarah retribuiu a ofensa. Alguns hom ens gostam de pensar que meninas m ontam cavalos pelas razões erradas.

Eles foram para as ruas m ais tranquilas, onde as castanheiras ofereciam um asom bra bem -vinda. Boo se esticou, em purrando as costas do avô dela, como se quisesse cham ar a atenção, m as ele pareceu não ter notado. Enxugou orosto de novo, depois o braço.

— Omelette hoj e à noite — anunciou. — Omelette aux fines herbes.

— Eu preparo — disse Sarah. Estavam atravessando a rua que levava aoestábulo e ela ergueu a m ão para agradecer ao m otorista que tinha diminuído a velocidade para eles. — Podem os fazer um a salada tam bém .

Então Vô largou as rédeas que vinha segurando.

— Você pega… ovo — disse ele e apertou os olhos.

— O quê?

Mas ele não estava escutando.

— Está na hora de se sentar…

— Vô?

Ela deu um a olhada no carro, que esperava. Eles ainda estavam no m eio darua.

— Tudo se foi — m urm urou Vô.

Sarah não entendia o que ele estava fazendo.

— Vô — gritou. — Nós precisam os atravessar.

Boo estava agitado, com os cascos tirando faíscas das pedras da rua, a cabeçapuxando para trás. Na frente, o avô de Sarah se sentou, com o que sepreparando para se deitar na cam a, com o corpo um pouco virado para olado. O hom em no carro buzinou um a vez, im paciente, então pareceu notarque algo estava errado e olhou com m ais atenção pelo para-brisa.

Tudo desacelerou ao redor de Sarah. Jogou-se de cim a do cavalo, pousandocom leveza no asfalto.

— Vô! — berrou, puxando o braço dele sem soltar as rédeas.

Os olhos dele se fecharam e ele parecia estar pensando com m uita força emalgo tão no fundo de sua m ente que não conseguia escutar a neta, por m aisalto que ela berrasse. Um dos lados do rosto dele ficou caído, com o sealguém estivesse puxando, e a expressão estranha daquele hom em que elasem pre tinha visto com o controlado e reservado a assustou.

— Vô! Levante!

O som fez Boo dar um solavanco e tentar se desvencilhar dela.

— Ele está bem ? — gritou alguém do outro lado da rua.

Não estava. Sarah sabia que não estava.

Então, quando o hom em desceu do carro e correu até Vô, Sarah se agarrouao cavalo agitado e deu um grito estridente, com a voz tom ada de m edo:

— John! John! Me aj ude!

A últim a coisa de que ela se lem brou foi de Cowboy John, o habitual ardescontraído dele sum indo à m edida que absorvia a cena à sua frente,berrando algo que ela não conseguiu entender enquanto corria pela rua ao seuencontro.

* * *

O faxineiro se m ovia devagar pelo linóleo, as escovas duplas da enceradeirazum bindo com eficiência. Cowboy John estava sentado na cadeira deplástico duro ao lado da m enina e conferiu o relógio pela quadragésim asétim a vez. Fazia quase quatro horas que estavam sentados ali, e só um aenferm eira tinha parado para conferir se estava tudo bem com Sarah.

Ele j á deveria ter voltado para o estábulo àquela altura. Os anim ais deviamestar com fom e, e ele tinha sido obrigado a trancar o portão, então no dia

seguinte provavelm ente precisaria passar pelos sete círculos do inferno porMaltese Sal e a garotada não terem podido entrar.

Mas ele não tinha com o deixá-la. Por Deus, ela era só um a m enina. Estavaim óvel, com as m ãos bem unidas no colo; o rosto pálido era um a m áscarade concentração intensa, com o se estivesse fazendo o velho ficar bom denovo.

— Você está bem ? Quer que eu pegue um café para você?

O faxineiro passou devagar por eles. Deu um a olhadinha no chapéu deCowboy John e então seguiu direto para a ala da cardiologia.

— Não — respondeu ela. Então com pletou, baixinho: — Obrigada.

— Ele vai ficar bom — disse Cowboy John, pela décim a vez. — O seu avô éresistente com o um par de botas velhas. Você sabe disso. — Ela assentiu, mas sem convicção. — Aposto que alguém vai aparecer aqui a qualquer minuto para nos dizer isso.

Um a leve hesitação. Então ela assentiu outra vez.

E os dois esperaram , ignorados pelas enferm eiras, que passavam apressadascom aventais de plástico, escutando os apitos e zum bidos distantes das máquinas.

John se rem exeu, querendo um a desculpa para se levantar e se distrair. Nãoconseguia tirar o rosto do velho da cabeça: o olhar angustiado e furioso, o m

axilar ainda rígido enquanto caía, claram ente m ortificado por algo assimderrubá-lo.

— Srta. Lachapelle?

Sarah estava tão im ersa em pensam entos que se sobressaltou quando o médico falou.

— Sim ? Ele está bem ?

— O senhor é… da fam ília?

O m édico estava olhando para John.

— Sou com o se fosse — respondeu ele, levantando-se.

O m édico deu um a olhada para o corredor.

— A rigor, não posso falar com ninguém além da…

— Sou o m elhor que há à disposição — disse John devagar. — O Capitãonão tem fam ília viva, só Sarah. E eu sou o am igo m ais antigo dele.

O m édico se sentou ao lado deles. Dirigiu-se a Sarah.

— O seu avô sofreu um a hem orragia cerebral. Um derram e. Você sabe oque é isso?

Ela assentiu.

— Mais ou m enos.

— Ele está estável, m as um pouco confuso. Não consegue falar nem fazernada sozinho.

— Mas ele vai ficar bem ?

— Ele está estável, com o eu disse. As próxim as vinte e quatro horas são muito im portantes.

— Posso vê-lo?

O m édico olhou para John.

— Acho que nós dois gostaríam os de ver se ele está bem — disse John comfirm eza.

— Ele está atrelado a vários aparelhos. Pode ser um pouco chocante.

— Ela é forte. Feito o avô.

O m édico conferiu o relógio.

— Certo. Venham com igo.

* * *

Meu Deus, o velho estava em um estado deplorável. Parecia trinta anos m aisvelho, com tubos enfiados no nariz e presos à pele com fita adesiva; o rostoestava cinzento e flácido. John levou a m ão à boca em um gestoinvoluntário. Ao redor dele, aparelhos m ostravam linhas em néon, chamando uns aos outros com apitos baixos e irregulares.

— O que eles fazem ? — perguntou, para quebrar o silêncio.

— Só m onitoram os batim entos cardíacos, a pressão, esse tipo de coisa.

— E ele está bem ?

A resposta do m édico foi genérica e, John desconfiou, vazia.

— Com o eu disse, as próxim as vinte e quatro horas são cruciais. Vocêsfizeram bem ao procurar aj uda tão rápido. Isso é vital em casos de derram e.

Os dois hom ens ficaram parados em silêncio enquanto Sarah se aproxim ouda beirada da cam a e se sentou na cadeira ao lado com cuidado, com o setem esse incom odar o avô.

— Pode conversar com ele se quiser, Sarah — disse o m édico, baixinho. —

Diga a ele que você está aqui.

Ela nunca chorou. Não derram ou nem sequer um a lágrim a. Estendeu a m ãom agra para tocar a dele e a segurou por um instante. Mas estava com o maxilar tenso. Era m esm o neta de seu avô.

— Ele sabe que ela está aqui — disse John, que saiu da área fechada pelacortina para lhe dar um pouco de privacidade.

* * *

Estava escuro quando eles foram em bora. John j á estava do lado de forahavia um tem po, andando de um lado para outro no estacionam ento das ambulâncias, fum ando, ignorando as enferm eiras que olhavam feio quandopassavam .

— Querida — disse a um a delas. — Vocês deviam m e agradecer. Só estougarantindo o em prego de vocês.

Ele precisava dos cigarros. O Capitão sem pre fora forte, sem pre dera a impressão de que estaria ali, orgulhoso e inflexível, sólido com o um a árvore,

m uito depois de John ter partido para outro lugar. Vê-lo ali, deitado indefesofeito um bebê naquela cam a, com enferm eiras para lim pá-lo e enxugar-lhe ababa…

Bem , aquilo lhe dava calafrios.

Ele então a viu parada à porta de correr com as m ãos enfiadas bem fundo nosbolsos e os om bros curvados. Sarah não tinha reparado nele.

— Tom e — ofereceu ele ao perceber que a m enina não havia trazido nadaconsigo. — Pegue o m eu casaco. Você está com frio.

Ela fez que não, presa na própria tristeza.

— Você não vai aj udar o Capitão em nada pegando um resfriado —

argum entou John. — Além do m ais, ele vai m e xingar de todos aqueles

palavrões franceses dele se eu não tom ar conta de você.

Sarah olhou para ele.

— John, você sabia que m eu avô sabia m ontar… Quer dizer, m ontar deverdade?

John perdeu o equilíbrio por um instante. Deu um passo teatral para trás.

— Montar? Claro que eu sabia. Não posso dizer que concordo com todasaquelas coisas espalhafatosas, m as, caram ba, sim , eu sabia. O seu vovô éum cavaleiro.

Sarah tentou sorrir, m as ele percebeu que era forçado. Ela aceitou a j aqueta jeans velha que John j ogou sobre seus om bros, e os dois cam inharam assim ,o velho caubói negro e a m enina, até o ponto de ônibus.

5

“Ao avaliar um potro não domado, o único critério obviamente é o corpo, jáque ainda não é possível detectar qualquer sinal claro sobre seutemperamento.”

XENOFONTE, SOBRE EQUITAÇÃO

As luzes da casa estavam acesas. Ela ficou observando enquanto desligava ocarro, tentando lem brar se as tinha deixado acesas de m anhã. Nunca deixavaas cortinas abertas, pois denunciava que não havia ninguém em casa. Só quehavia alguém , sim .

— Ah — disse ela ao abrir a porta da frente. — Era para você ter vindo hásem anas. — Ela soou am arga, m as não tinha sido sua intenção.

Mac estava parado no corredor, carregando um m onte de papel fotográfico.

— Desculpe. O trabalho ficou m eio insano. Tive que resolver algum ascoisas.

Mas deixei um recado no seu celular hoj e à tarde avisando que vinha.

Ela rem exeu na bolsa em busca do aparelho.

— Ah — disse, ainda eletrizada pela presença dele. — Eu não recebi.

Os dois ficaram parados, frente a frente. Mac, ali, na casa dela, na casa deles.

O cabelo dele estava um pouco diferente, e ela não reconheceu a cam isetaque vestia. Ele parecia m elhor, Natasha percebeu, com um a pontada — melhor por ter passado quase um ano sem ela.

— Preciso de alguns equipam entos — disse ele, apontando para trás de si. —

Só que não estão onde achei que estivessem .

— Eu m udei de lugar — retrucou Natasha, notando, ao proferir as palavras,que tinha soado desagradável, com o se estivesse determ inada a rem overtodos os vestígios dele. — Está tudo no andar de cim a, no escritório.

— Ah. Foi por isso que não achei. — Ele tentou sorrir.

— Precisei colocar alguns arquivos m eus aqui… e… — A voz dela foi sumindo. E era doloroso demais ver todas as suas coisas ao meu redor. De vezem quando, só de vez em quando, tive vontade de destroçar tudo com umamarreta.

Natasha queria ter se preparado para ele. Tinha trabalhado até tarde, tom adocafé dem ais, m esm o sabendo que isso lhe tiraria horas de sono m ais tarde.Havia m uito tem po a m aquiagem tinha saído. Ela desconfiava que pareciapálida, cansada.

— Vou dar um a subidinha, então — disse Mac. — Não vou dem orar.

— Não… não! Não se apresse. Eu tenho que… preciso m esm o sair paracom prar leite. Vai encontrar tudo de que precisa.

Sinto muito, dissera ela. Mac, sinto muito.

Pelo quê? A voz dele parecera tão calma, tão racional. Você acabou de medizer que não aconteceu nada. Ele olhara para ela sem entender. Você

realmente acha que estou indo embora por causa dele, não acha?

Ela saiu da casa antes de escutar o protesto dele. Sabia que Mac estava sendoeducado. Provavelm ente achava que ela havia chegado tarde em casa porqueestava com Conor. Mas ele não diria isso. Não era do seu feitio.

* * *

Ela não costum ava ir àquele superm ercado, que ficava na pior parte dobairro; era o tipo de lugar em que alguém de vez em quando ia em bora comum carrinho sem pagar e todo m undo na loj a com em orava. Mas ela j áestava no carro antes de se dar conta do que fazia, tinha desligado o celularpor m edo ou raiva. Ela só queria se afastar daquela casa.

Estava parada no corredor dos laticínios, tentando evitar um m endigo queconversava com um frozen yoghurt, e seus pensam entos zuniam tanto queela esquecera por que estava ali.

Mac, o m aterial de casam ento m ais inapropriado que os pais dela j á tinhamvisto, o enigm a de hom em incapaz com quem ela havia se casado, a outra metade com balida de um a união que quase destruiu os dois, estava de volta àcasa deles.

Natasha tinha se recusado a pensar nele por tanto tem po, e Mac haviafacilitado as coisas. Às vezes a sensação era de que ele tinha evaporado daface da Terra. Durante o últim o ano do casam ento, ele passara tanto tem pofora que Natasha até parecia solteira. Quando ele estava em casa, ela percebiaque se irritava tanto com tudo que a solidão parecia m ais fácil. Pegue as suascoisas e vá em bora, Mac, tinha vontade de dizer, sentindo um ecodesconfortável dos dias m ais som brios que apenas recentem ente tinhamsido elim inados. Não quero lidar com nada disso. Não quero sentir nem o menor vestígio do que senti no ano passado. Faça o que tem de fazer e m edeixe em paz.

Ela foi trazida de volta à realidade por um a confusão no corredor adj acente,ao lado dos caixas. Foi até a ponta das gôndolas dos cereais, de onde podiaver o que estava acontecendo.

Um hom em negro bem gordo segurava um a adolescente. Ela não devia term ais de dezesseis anos e tentava se desvencilhar dele com força, o cabelocaindo no rosto, m as ele a segurava sem piedade pela parte superior dosbraços.

— Está tudo bem ? — perguntou Natasha ao sair de trás dos flocos de aveia.

Tinha se dirigido à m enina; a cena era confusa. — Sou advogada —explicou. Foi então que reparou no crachá de segurança do hom em .

— Pronto. Vai precisar de um a advogada na delegacia — disse a m ulher docaixa. — Nem vai precisar dar um telefonem a.

— Eu não roubei. — A m enina sacudiu o braço de novo. Seu rosto estavapálido sob a im placável luz néon e seus olhos, arregalados e alertas.

— Hã. Então o peixe em panado sim plesm ente saltou para fora do freezer efoi parar no seu casaco?

— Eu só coloquei aqui enquanto ia pegar outras coisas. Olhe, por favor, m esolte. Juro que não estava roubando.

A m enina estava quase chorando. Não tinha a atitude desafiadora dagarotada que Natasha costum ava ver.

— Ela passou direto por m im , direto — afirm ou a m ulher do caixa. —Com o se achasse que eu sou burra.

— Que tal se ela pagasse agora e vocês a deixassem ir em bora? — sugeriuNatasha.

— Ela vai pagar? — O hom enzarrão deu de om bros. — Não tem dinheiro.

— Essa gente nunca tem — sentenciou a m ulher.

— Eu devo ter deixado cair. — A m enina estava de cabeça baixa. — Eu nãovolto m ais aqui, ok? Só m e deixem procurar o m eu dinheiro antes quealguém o pegue.

— Quanto custa? — perguntou Natasha, pegando a bolsa. — O peixe empanado?

A m ulher do caixa ergueu as sobrancelhas.

Natasha estava cansada. Só queria ir para casa sem a im agem de um a menina aos soluços pega por um segurança.

— Vam os partir do princípio de que este é um erro sincero. Eu pago.

Os dois a olharam com o se, de algum m odo, ela fizesse parte da arm ação,até que Natasha estendeu um a nota de cinco libras. E então, depois de um apausa m inúscula, a m ulher do caixa bateu o peixe em panado e lhe entregouo troco.

— Não quero m ais ver a sua carinha de ladra aqui — am eaçou, apontando odedo m anchado de nicotina. — Entendeu?

A m enina não retrucou. Ela se desvencilhou do segurança e correu para aporta com o peixe em panado na m ão. A porta se abriu autom aticam ente,libertando-a, e ela sum iu, engolida pela escuridão.

— Olhe só para isso. — A pele do segurança reluzia sob a ilum inação forte.—

Nem agradeceu.

— Ela roubou o em panado. Nós a pegam os na sem ana passada, m as naocasião não pudem os provar.

— Se isso faz vocês se sentirem m elhor, esta provavelm ente será a m elhorrefeição que ela terá na sem ana — disse Natasha.

Ela pagou o leite, deu um a olhada no m endigo, que estava discutindo comos sabões em pó, e saiu para a rua.

Só tinha dado alguns passos quando a m enina surgiu ao seu lado. Seestivesse m enos preocupada, poderia ter se sobressaltado, teria im aginadoalgum a

m otivação escusa, m as a m enina estendeu a m ão.

— Encontrei um a parte. Acho que caiu do m eu bolso.

Na palm a de sua m ão, Natasha viu um a m oeda de cinquenta centavos ealgum as de um centavo. Mais tarde se lem brou de que a m ão era estranhamente calej ada para um a m enina daquela idade.

Mas não queria se envolver ainda m ais, por isso continuou andando.

— Guarde o seu dinheiro — disse ela. Abriu a porta do carro. — Tudo bem .

— Eu não roubei — insistiu a m enina.

Natasha se virou.

— Você sem pre faz com pras às onze da noite?

A m enina deu de om bros.

— Tive que visitar um a pessoa no hospital. Acabei de chegar em casa e nãotinha com ida.

— Onde você m ora?

A m enina era m ais nova do que Natasha havia pensado. Talvez não tivessem ais do que treze ou quatorze anos.

— Sandown.

Natasha deu um a olhada no condom ínio m onolítico e extenso; dava paraver os prédios daquela rua. O lugar tinha m á reputação no bairro. Ela nãosabia por que fez aquilo. Talvez só detestasse a aparência daquele lugar noescuro. Talvez não estivesse pronta para voltar para casa e ver Mac, ou, pior,perceber sua ausência. Ao seu redor, a cidade fervilhava: carros buzinavam adistância, na esquina dois hom ens travavam um a discussão acalorada, asvozes erguidas em ultraj e m útuo.

Não acho que você seja tão durona quanto parece, dissera-lhe Conor Deans

certa vez, baixando a voz. Acho que tem uma Natasha Macauley totalmentediferente aí dentro.

Ah, eu sou cheia de surpresas, respondera ela. Até m esm o para Natasha,aquilo tinha soado com o um desafio.

Os dois hom ens estavam brigando, trocando chutes e pontapés ligeiros. Aenergia no am biente se transform ou, sugada para um vórtice de violência.

Ouviram -se alguns xingam entos gritados, depois passos quando outras sombras de hom ens correram ao encontro deles. Natasha viu o brilho de um abarra de ferro.

— Você não deveria estar sozinha na rua assim tão tarde — disse ela e caminhou depressa até o carro. — Venha. Eu levo você para casa.

A m enina a exam inou por um instante, a roupa de trabalho, os sapatoselegantes, depois deu um a olhada no carro. Talvez tenha concluído quealguém que dirigia um veículo tão austero e sensato quanto um Volvo velhoprovavelm ente não iria sequestrá-la.

— A tranca da porta do carona está quebrada — avisou Natasha. — Talvez

isso faça você se sentir um pouco m elhor…

A m enina suspirou, com o se nada que pudesse fazer ou dizer fizessediferença, e entrou no carro.

* * *

Natasha tinha com eçado a se arrepender das atitudes precipitadas um poucoantes de entrar no estacionam ento do condom ínio. Grupos de j ovens sereuniam em rodinhas am orfas, alguns se separavam para em pinar bicicletas,outros j ogavam guim bas de cigarro no chão e insultavam uns aos outros.Pararam por um instante, aparentem ente registrando o carro desconhecidoenquanto ela entrava de ré em um a vaga.

— Você não m e disse qual é o seu nom e — falei Natasha.

A m enina hesitou.

— Jane.

— Faz tem po que m ora aqui?

Ela assentiu.

— Está tudo bem — disse ela, baixinho, e fez m enção de sair do carro.

Natasha queria ir para casa, para sua sala de estar segura e aconchegante.

Para a paz de seu lar confortável, com boa m úsica, um a taça de vinho tinto.Para o seu m undo. A experiência lhe dizia que deveria dar m eia-volta com ocarro e ir em bora. Os condom ínios populares eram dom inados pelos jovens, alguns deles raram ente se distanciavam m ais do que três quilôm etrosdali e tinham interesse ferrenho, quase feroz, por tudo o que acontecia em seu“território”. Natasha sabia que o carro e a roupa a m arcavam com o classe média em um m undo m uito m ais difícil, m uito m ais duro do que o queexistia a várias ruas de distância.

Mas então olhou para a m enina m agra e pálida ao seu lado. Que tipo depessoa a despacharia sem se certificar de que estava segura em casa?

Enfiou discretam ente a aliança no bolso de trás, j unto dos cartões de crédito.

Se arrancassem sua bolsa, só levariam alguns trocados.

— Não se preocupe — disse Jane, olhando para os garotos. — Eu conheçotodos eles.

— Vou acom panhá-la até em casa — disse Natasha com o tom de vozdesinteressado e profissional que usava com seus j ovens clientes. Com o a menina não pareceu nada contente, com pletou: — Está tudo bem . Não voufalar nada sobre o que aconteceu. Está tarde e quero ter certeza de que vocêchegará em casa em segurança.

— Só até a porta — disse a m enina.

Saíram do carro, e Natasha cam inhou um pouco m ais ereta e com m aisdeterm inação do que de costum e, com os saltos batendo firm e pelos caminhos cheios de chiclete velho grudado.

Quando se aproxim aram da escada, um garoto passou de bicicleta. Natashatentou não se retrair. A m enina nem sequer olhou.

— Aquela é a novinha do seu avô, hein, Sarah?

Ele cobriu a cabeça com o capuz e se afastou, rindo, com o rosto envolto emsom bras sob a ilum inação fraca da rua.

— Sarah?

Os elevadores estavam quebrados, por isso as duas subiram a escada até oterceiro andar. A escada tinha um a fam iliaridade deprim ente: coberta depichações, fedendo a urina, repleta de em balagens de com ida que ainda emanavam o odor de gordura rançosa ou peixe. Em um corredor, m úsica ribombava por j anelas abertas e, em baixo, o alarm e de um carro tinha disparado.Natasha levou um segundo para perceber que não era o dela.

— Meu apartam ento é aqui — disse Sarah e apontou. — Obrigada pelacarona.

Mais tarde, Natasha não soube dizer ao certo por que sim plesm ente não foiem bora. Talvez por causa do nom e falso. Talvez a m enina estivesse umpouco ansiosa dem ais para se livrar dela. Mas Natasha continuou avançando,seguindo a m enina apressada à sua frente. E então chegaram à porta, e Sarahparou. Foi sua postura de surpresa que fez Natasha se dar conta de que aporta não estava aberta para recebê-la. Tinha sido arrom bada. A m adeiraestilhaçada perto da fechadura apontava para um apartam ento com todas asluzes acesas.

Ficaram ali, im óveis, por um instante. Então Natasha deu um passo adiante eabriu a porta de vez.

— Tem alguém aí?

Natasha não sabia o que esperava que os intrusos fizessem … Responder àpergunta? Olhou para Sarah, que tinha levado a m ão à boca.

Quem quer que fosse o invasor j á tinha ido em bora havia m uito tem po. Aporta dava para um corredor pequeno que levava à sala de estar im aculada osuficiente para destacar qualquer discrepância. Um vazio gritante em umrack.

As portas abertas dos arm ários da cozinha. Gavetas puxadas na pequena cômoda, um porta-retratos esm agado no chão. Foi até ele que Sarah se dirigiuprim eiro: pegou-o do chão e tirou o vidro quebrado da foto. Era um a fotoem preto e branco de um casal na década de 1960. De repente, Sarah pareceum uito nova e pequena.

— Vou cham ar a polícia — disse Natasha, tirando o celular da bolsa eligando-o.

Cheia de culpa, viu que Mac tinha telefonado para ela.

— Não adianta — avisou Sarah, cansada. — Eles não se im portam com oque acontece aqui. Assaltaram o apartam ento da Sra. O’Brien na sem anapassada e a polícia disse que não valia a pena vir até aqui.

Ela então circulou pelo apartam ento, desaparecendo em outros côm odos e

voltando.

Natasha foi até a porta da frente pelo corredor e a fechou com a correntinha.

Ainda escutava os garotos reunidos ali em baixo e tentou não se preocuparcom o carro.

— O que está faltando? — perguntou, seguindo a m enina.

Aquele não era o lar caótico que talvez esperasse encontrar. Aquele era umlar com algum as coisas decentes, um lar arrum ado.

— A televisão — respondeu Sarah com o lábio inferior trem endo. — O m euDVD. O dinheiro para as nossas férias.

Ela pareceu de repente se lem brar de algo e disparou para dentro de um dosquartos. Natasha ouviu um a porta sendo aberta, o som de algo sendo remexido.

Sarah reapareceu.

— Não levaram — disse ela e, por um instante, abriu um leve sorriso. — O

talão da aposentadoria do m eu vô.

— Onde estão os seus pais, Sarah?

— Minha m ãe não m ora aqui. Som os só eu e o m eu Vô — respondeu, semj eito.

— Onde ele está?

Ela hesitou.

— No hospital.

— Então, quem está cuidando de você? — Sarah não respondeu. — Háquanto tem po está sozinha?

— Há um as duas sem anas.

Natasha suspirou discretam ente. Havia tanta coisa acontecendo na sua vida,tantas coisas que tinha que se virar para dar conta, e se m etera naquilo.Deveria ter deixado o superm ercado com a caixa de leite de que nemprecisava. Deveria ter ficado em casa e brigado com o ex-m arido.

Digitou o núm ero de casa.

— Meu Deus, Tash, onde diabo você se m eteu? — explodiu Mac. — Quantotem po você dem ora para com prar um a caixa de leite?

— Mac — disse ela, com cuidado. — Preciso que você venha até onde estou.

Traga as suas ferram entas. E a m inha bolsa… Preciso da m inha agenda de

telefones.

* * *

Mac levara quatro anos para concluir a reform a da casa deles. Aos olhos dospais de Natasha, era isso que o redim ia. Ele havia passado m assa corrida efeito o serviço de carpintaria, praticam ente tudo m enos o telhado e otrabalho de alvenaria. Até participou do proj eto. Trabalhava bem com as mãos, era tão habilidoso com ferram entas elétricas quanto com sua câm era.Natasha não tinha

nenhum pendor artístico, m as ele enxergava as coisas m uito antes de seconcretizarem : o form ato de um côm odo, a com posição de um a vista ouum a fotografia. Era com o se tivesse um a biblioteca de im agens bonitas nacabeça, só esperando para se tornarem realidade.

Um a fechadura nova em um a porta não era problem a, ele disse a Natasha,assobiando entre dentes. Natasha havia com preendido bem rápido que chamar um chaveiro de em ergência estava m uito além das possibilidades da menina, principalm ente porque ainda estava irritada por causa do dinheiro dasférias. Mac tinha levado um a fechadura velha e dem orou m enos dequarenta m inutos para instalar.

— Crista? É Natasha. — E então, ao receber com o resposta um silênciototal, com pletou: — Natasha Macauley.

— Natasha. Oi. Não deveria ser eu te ligando?

— Eu sei. Mas estou com um a situação inusitada aqui. Preciso de um acolocação de em ergência para um a adolescente.

Resum iu então os acontecim entos.

— Não tem os nada — respondeu Crista. — Absolutam ente nada. Recebemos quatorze crianças em busca de abrigo que chegaram ao distrito ontem de manhã e todos os lares provisórios estão cheios. Passei a noite toda ao telefone.

— Eu…

— E antes que você venha com um a lim inar, saiba que o único lugar em queconseguirei colocá-la hoj e à noite é na delegacia de polícia local. É m elhorvocê econom izar o seu tem po e o de um j uiz e levá-la direto para lá. Talvezam anhã a situação estej a m elhor, m as, sinceram ente, eu duvido.

Quando ela voltou para a sala, Mac havia term inado. Tinha trazido consigoum a faixa de ferro — só Deus sabe onde ele guardava todas aquelas coisas— e a aparafusara ao batente da porta.

— Assim ninguém m ais entra aqui — disse enquanto guardava a últim aferram enta.

Natasha sorriu sem j eito, grata por ele ser tão prático, pelo fato de não terproferido nenhum a palavra de ressentim ento por ter sido arrastado no m eioda noite para fazer um conserto sim ples. Mac estava sentado a certa distânciade Sarah no sofá. Exam inava as fotos em olduradas — esse era o prim eiroponto de referência para ele na casa de qualquer pessoa.

— Então, este é o seu avô?

— Ele antes era capitão — respondeu Sarah, baixinho, com um lencinho amassado em um a bola na m ão.

— Essa foto é fantástica — elogiou Mac. — Você não acha, Tash? Olhe sópara os m úsculos do cavalo.

Ele tinha aquele j eito de fotógrafo de deixar as pessoas à vontade. Era raronão conseguir estabelecer um a intim idade im ediata e descontraída com as

pessoas. Natasha tentou parecer im pressionada, m as só pensava no fato deque precisava dizer a Sarah que a próxim a cam a dela seria em um a cela dedelegacia.

— Você preparou um a m ala? Pegou o uniform e da escola?

Sarah deu um tapinha na bolsa de viagem ao seu lado. Ela parecia um poucodesconfortável, e Natasha teve de lem brar a si m esm a que a garota nãoconhecia as pessoas que de repente tinham invadido sua vida. Já passava de

m eia-noite e m eia.

— Então, para onde vam os levar você, m ocinha? — perguntou Mac, m as sedirigindo, na verdade, a Natasha.

A advogada respirou fundo.

— Hoj e à noite está um pouco difícil. Vam os ter que colocar você em acomodação de em ergência até encontrarm os um lugar m ais adequado. — Osdois olharam para ela, cheios de expectativa. — Falei com as pessoas queconheço e, infelizm ente, não tem m uita coisa disponível. É o horário… echegaram m uitas crianças…

— Então, para onde nós vam os? —perguntou Mac.

— Infelizm ente tem os que levar você para a delegacia hoj e à noite. Nãotem nada a ver com o que aconteceu antes — garantiu Natasha ao ver Sarahem palidecer. — É só que não há nenhum a casa de acolhim ento disponível.Nem cam as em albergues. E provavelm ente não haverá nas próxim as horas.

— Delegacia? — questionou Mac, sem acreditar.

— Não tem os opção.

— Mas você deve ter contatos. Passa a vida toda fazendo esse tipo de coisa,forçando as autoridades a acolherem crianças.

— E às vezes algum as vão parar em delegacias. É só por um tem po, Mac.

Crista disse que arranj ará um lugar m elhor pela m anhã. Ela vai nosencontrar lá.

Sarah negava com a cabeça.

— Eu não vou ficar em um a cela de delegacia.

— Sarah, você não pode ficar aqui sozinha.

— Não vou.

— Tash, isso é ridículo. Ela tem quatorze anos. Não pode ir para um a cela dedelegacia.

— É a única opção que tem os.

— Não, não é. Eu j á disse. Vou ficar bem aqui — argum entou Sarah.

Um longo silêncio se instalou.

Natasha se sentou, tentando raciocinar.

— Sarah, tem m ais alguém que você conhece? Algum am igo da escola quepode hospedar você? Outros parentes?

— Não.

— Você tem o telefone da sua m ãe?

O rosto de Sarah se fechou.

— Ela está m orta. Som os só Vô e eu.

Natasha se virou para Mac, na esperança de que ele com preendesse.

— Não é tão insólito assim , Mac. Vai ficar tudo bem , é só por um a noite. E

não podem os deixá-la aqui.

— Então ela fica na nossa casa. — Natasha ficou chocada tanto com o uso dopronom e possessivo quanto com a ideia por trás dele. — Eu não vou j ogarum a m enina de quatorze anos que acaba de ter a casa arrom bada em um acela de delegacia com Deus sabe quem — com pletou.

— Ela estará segura lá — ponderou Natasha. — Não ficará em um a cela comoutras pessoas. Vão cuidar dela.

— Não quero saber — retrucou ele.

— Mac, eu não posso levá-la para casa. É contra todos os procedim entos,

todos os conselhos…

— Fodam -se os procedim entos. Se os procedim entos dizem que é certo jogar um a m enina em um a cela de delegacia em vez de na casaaconchegante e segura de alguém para passar a noite, então os seus procedimentos não valem porra nenhum a.

Era raro Mac usar palavrão. Isso fez Natasha perceber que ele estava falandom uito sério.

— Mac, nós não tem os perm issão para abrigar crianças necessitadas. Elaserá considerada vulnerável…

— A m inha ficha é lim pa. Tive tudo checado quando com ecei a dar aula noensino m édio.

Dar aula?

Ele se virou para Sarah e continuou:

— Você ficaria m ais contente na… nossa casa? Podem os ligar para o seuavô e avisar.

Ela olhou para Natasha, depois de novo para ele.

— Acho que sim .

— Tem m ais algum m otivo de procedim ento para ela não poder passar anoite na nossa casa?

Ele disse “procedim ento” com sarcasm o, com o se Natasha estivessetentando dificultar as coisas.

Meu em prego, Natasha quis responder. Se corresse a notícia de que estouacolhendo crianças necessitadas, m inha isenção profissional seriaquestionada. E

eu não conheço essa m enina. Eu a encontrei roubando em um supermercado, e ainda não estou convencida da explicação que deu.

Encarou Sarah, tentando não pensar em Ahm adi, outro j ovem que pareciadesesperado e que a convencera a se arriscar.

— Podem m e dar cinco m inutos?

Ela foi para o quarto da m enina e ligou para Crista.

— Estou atrasada — disparou Crista antes que Natasha pudesse falar. —

Estam os com um problem a em um dos lares. Precisam os buscar um acriança.

— Não é isso. — Natasha se apressou em dizer. — Crista, estou com umproblem a. A m enina se recusa a ir para a delegacia. O m eu… Mac tam bémnão gostou nada da ideia. A ficha dele é lim pa, j á foi checada pelo sistem ade ensino.

Mac acha que ela deveria ficar na nossa casa. — Um longo silêncio seinstalou.

— Crista?

— Certo… Você é am iga da fam ília dessa m enina? Conhece os pais dela?

Pode dizer que eles pediram para você cuidar dela?

— Não exatam ente.

Mais um longo silêncio.

— Afinal, você a conhece?

— Nós nos conhecem os hoj e à noite.

— E você está… contente com isso?

— Ela parece… — Natasha hesitou, lem brando-se do superm ercado — …ser um a boa m enina. Capaz. Só que não tem ninguém em casa e o apartamento foi arrom bado. É… difícil.

Ela percebeu a descrença no silêncio de Crista. Fazia quase quatro anos que aconhecia e não havia nada que sugerisse que Natasha poderia ser capaz de talcoisa. Então falou, por fim :

— Vou lhe dizer um a coisa. O m elhor conselho que posso lhe dar é que nósnunca tivem os esta conversa. Ainda não há nenhum registro. Se você achaque não tem nada de errado com ela e que ela vai ficar m ais segura comvocês, e prefere não passar m etade da noite na delegacia, sinceram ente, eunão preciso saber que ela existe até am anhã. Ligue para m im am anhã.

Natasha fechou o celular. O quarto da m enina era lim po e organizado, m aisdo que se esperaria de um a garota da sua idade. Havia fotos de cavalos portodos os lados, grandes im agens coloridas de cavalos trotando que vieram degraça em revistas, fotos pequenas de um a m enina que podia ser ela com umcavalo castanho. Os fundos de cam pinas verdej antes e praias sem fim eramincongruentes com parados à paisagem do outro lado da j anela de vidroduplo.

Ela estava cansada e fechou os olhos por um m om ento, então foi para a sala.

Mac e Sarah pararam de conversar e olharam para ela. Natasha reparou queSarah estava com olheiras de exaustão e choque.

— Você vai passar a noite na nossa casa — disse, forçando um sorriso. — E

am anhã de m anhã vam os resolver tudo com um a assistente social.

* * *

Ela fora dorm ir sem reclam ar. Tinha ficado em silêncio durante o traj eto,com o

se tivesse acabado de se dar conta da precariedade de sua posição, e Mac,talvez por perceber isso, havia se esforçado para brincar e fazê-la se sentirsegura. Mal parecia o hom em com quem Natasha conversara da últim a vez:estava doce, atencioso, gentil. Era difícil ver o m elhor dele dirigido a outrapessoa. Era m ais fácil quando ela se lem brava das deficiências.

Natasha não falou quase nada enquanto dirigia, agitada pelas em oçõesconflitantes que a presença de Mac e da garota tinham despertado nela. Anoite havia se tornado cada vez m ais surreal. Ele era tão fam iliar e, ao mesm o tem po, depois de um período tão curto, estranho. Com o sepertencesse a outro lugar.

Ela havia se esquecido de com o Mac sabia ser legal com pessoas m aisnovas, porque, tirando os sobrinhos dela, era m uito raro estarem perto decrianças.

— O quarto de hóspedes está arrum ado? — perguntou Mac quando ela seafastou da porta para deixá-los entrar.

— Tem algum as caixas na cam a.

Os livros dele. Coisas que ela havia separado nos dias em que conseguiaencarar tal tarefa. Mac era tão desligado que ela sentia m edo de que misturasse suas coisas com as dela.

— Eu as tiro dali. — Ele fez um gesto para Sarah. — Por que não pergunta aela se quer beber algum a coisa?

— Chocolate quente? — ofereceu Natasha. — Algo para com er?

Ela se sentiu um a idiota quase no m esm o instante em que disse aquilo, feitoum a tia velha que não fazia ideia Das Coisas De Que os Jovens GostavamHoj e em Dia.

Sarah fez que não. Deu um a olhada pela porta aberta na sala. Mac tinhatentado arrum ar suas coisas de fotografia: caixas cobriam o chão.

— A sua casa é bacana.

Natasha de repente a viu através dos olhos de um a desconhecida: grande,confortável, m obiliada com bom gosto. Dem onstrava um a renda alta, coisasescolhidas com cuidado. Ela se perguntou se a m enina percebia as lacunas,as pistas de um hom em que recentem ente fora em bora.

— Posso lhe aj udar com algum a coisa antes de você subir? Quer que eu…

passe o seu uniform e?

— Não, obrigada.

Sarah segurou a m ala um pouco m ais próxim a de si.

— Então vou acom panhá-la até lá em cim a — disse Natasha. — Tem umbanheiro perto da escada que você pode usar.

* * *

— Espero que você não se incom ode — disse Mac enquanto descia a escadadevagar. — Eu arrum ei o sofá-cam a no escritório.

Ela m eio que esperava por isso; não podia colocá-lo para fora àquela hora dam adrugada, não depois de tudo que ele tinha feito. Ainda assim , aperspectiva de Mac dorm ir sob o m esm o teto que ela estranham ente aperturbava.

— Quer um a taça de vinho? — ofereceu ela. — Sei que estou precisando.

Ele respirou fundo.

— Ah, sim .

Ela serviu duas taças e lhe entregou um a. Mac se sentou no sofá, e Natashatirou o sapato, então recolheu as pernas para se acom odar na poltrona. Eramquinze para as duas.

— Am anhã você vai ter que resolver tudo, Mac. Tenho que estar no tribunalbem cedinho.

— Só m e diga o que fazer.

Ela notou distraidam ente que ele não deveria ter que trabalhar, do contrárionão teria oferecido.

— Escreva para quem eu devo ligar ou onde devo deixá-la. Talvez eu a deixe

dorm ir até um pouco m ais tarde… Ela teve um a noite e tanto.

— Todos nós tivem os.

— Foi um choque horrível para ela — observou ele. — Teria sido difícil atépara um adulto.

— Ela lidou m uito bem com a situação.

— Foi a coisa certa a fazer — disse ele, indicando a escada. — Teriaparecido… errado abandoná-la. Com tudo aquilo.

— É.

Deram um gole no vinho em silêncio.

— Então, com o você está? — perguntou Natasha enfim , quando o peso denão indagar se tornou insuportável.

— Ok. Você parece bem . — Ela ergueu as sobrancelhas. — Certo, cansada,m as bem . O corte fica bem em você.

Ela se segurou para não levar a m ão ao cabelo. Mac sem pre fazia aquilocom ela.

— No que você está trabalhando? — perguntou, para m udar de assunto.

— Estou dando aula três vezes por sem ana e fazendo trabalhos com erciaisno resto do tem po. Retratos. Um pouco de turism o. Não m uita coisa, paraser sincero.

— Dando aula? — Ela se esforçou para não deixar a incredulidadetransparecer na voz. — Achei que tinha entendido errado.

— Eu não m e incom odo. Paga as contas.

Natasha digeriu a inform ação. Por anos ele se recusara a se com prom eter.

Quando o trabalho com publicidade m ingou, ele havia desprezado a sugestão

dela de dar aulas. Não queria ficar am arrado, com prom etido de um j eitoque pudesse im pedir que aceitasse um serviço m ais interessante de últim ahora. Apesar de

isso significar que o lado dele das finanças do casal era claram ente oito ouoitenta, com m ais frequência o prim eiro.

Agora ele era Mac, o Maduro, Mac, o Motivado. Natasha se sentiu traída.

— É. Eu m e desiludi um pouco com a cena com ercial. Dar aula não é tãoruim quanto achei. Parece que gostam de m im .

Ah, mas que surpresa, pensou Natasha.

— Vou continuar dando aula até saber o que fazer. O salário não é dos melhores.

Ela se retesou, preparando-se para o im pacto.

— E…

— E, em algum m om ento, Tash, terem os que pensar em com o dividir acasa.

Ela sabia o que ele estava dizendo. Acordos financeiros perm anentes.

— E isso quer dizer o quê?

— Não sei. Mas não posso viver só com um a m ala para sem pre. Já fazquase um ano.

Natasha olhou para a taça durante m uito tem po. Então é isso, pensou. Mas,quando ergueu o rosto e olhou para ele, assegurou-se de estar com um aexpressão vazia.

— Está tudo bem com você?

Ela bebeu o resto do vinho.

— Tash?

— Não posso pensar nisso agora — disse, abruptam ente. — Estou cansadadem ais.

— Claro. Am anhã, talvez.

— Tenho que estar no tribunal bem cedo. Eu j á disse.

— Eu sei. Mas quando você…

— Você não pode sim plesm ente voltar aqui e de um a hora pra outra acharque vou vender a m inha casa — explodiu.

— A nossa casa — corrigiu ele. — E não pode fingir que isso surgiu do nada.

— Nos últim os seis m eses, eu nem sabia em que país você estava.

— Poderia ter ligado para a m inha irm ã se precisasse entrar em contato. Masfoi m uito conveniente ficar aqui sem fazer nada, esperando a poeira baixar.

— A poeira baixar? — repetiu ela.

Ele suspirou.

— Não quero brigar, Tash. Só quero resolver as coisas. Você era quem sempre pegava no m eu pé para eu m e organizar.

— Eu sei m uito bem disso. Mas estou cansada. Tenho um dia cheio pelafrente, então, se você não se incom odar, eu gostaria de dividir os bens matrim oniais num a outra hora.

— Tudo bem . Mas tenho que lhe dizer que daqui para a frente preciso ficarem Londres, preciso de um lugar para m im . E, a m enos que você tenha uma

obj eção m uito boa, eu gostaria de ficar no quarto de visitas até nósresolverm os as coisas.

Natasha ficou im óvel, certificando-se que tinha escutado direito.

— Ficar aqui?

— Sim , aqui.

— Está de brincadeira?

Ele deu um sorrisinho.

— Morar com igo era tão ruim assim , é?

— Nós não estam os m ais j untos.

— Não. Mas sou dono de m etade desta propriedade e preciso de um tetosobre a m inha cabeça.

— Mac, vai ser im possível.

— Eu dou conta, se você der. Será apenas por algum as sem anas, Tash. Sintom uito por j ogar suj o, m as, se você não gostar da ideia, pode alugar outrolocal para m orar. Até onde sei, eu deixei você ficar aqui sozinha durantequase um ano. Agora tenho direito a algo. — Ele deu de om bros. — Falasério. A casa é grande. Só será um pesadelo se a gente quiser.

Ele estava relaxado de um j eito que a deixou desconcertada. Estava quasefeliz.

Ela queria xingá-lo.

Queria j ogar algo na cabeça dele.

Queria sair batendo a porta da frente e ir para um hotel. Mas havia um adesconhecida de quatorze anos na sua casa, e ela havia concordado em assumir a responsabilidade conj unta por ela.

Sem falar m ais nada, ela saiu, irritada, e subiu a escada até o quarto que nãoparecia m ais ser seu, im aginando se seria m uito difícil para um corretorvender um a casa onde a cabeça da proprietária explodira.

6

“É igual com cavalos e homens: é mais fácil curar todas as destemperançasem tenra idade do que quando já se tornaram crônicas e foram tratadas deforma inadequada.”

XENOFONTE, SOBRE EQUITAÇÃO

A m enina na foto olhava radiante para os pais, que a seguravam pelas m ãoscom o se estivessem prestes a erguê-la do chão. “Lar provisório”, dizia opôster.

“Faz toda a diferença.” Então, não eram os pais dela. Em todo caso, não haviaum a fam ília ali. Provavelm ente eram todos m odelos, pagos para agir com oum a fam ília feliz.

De repente irritada pelo sorriso da criança, Sarah se rem exeu na cadeira dasala da assistente social e deu um a olhada pela j anela, pela qual via osarbustos e as árvores do parque m unicipal. Ela precisava ir a SparepennyLane. Sabia que Cowboy John cuidaria de Boo naquela m anhã se ela nãoaparecesse, m as não era a m esm a coisa. Ele precisava sair. Precisava manter o treinam ento.

A m ulher tinha term inado de escrever.

— Então, Sarah, agora tem os a m aior parte dos seus dados e vam os traçarum plano de cuidados para você. Vam os tentar encontrar um lar tem porárioaté o seu avô m elhorar. O que acha disso?

A m ulher falava com ela com o se tivesse a idade da criança no pôster. Cadafrase se elevava no fim , com o se fosse um a pergunta, apesar de estar claroque não havia nenhum a questão no que ela tinha dito.

— Eu sou da Equipe de Recepção e Avaliação dos Serviços à Criança —

dissera ela. — Vam os ver se conseguim os resolver o seu caso, certo?

— Com o isso funciona? — perguntou Mac, ao lado. — Há fam ílias que…se especializam em ficar com crianças por períodos curtos?

— Nós tem os m uitas fam ílias que recebem crianças nos nossos registros.

Alguns j ovens, os nossos clientes, só passam um a noite com elas. Outrospodem ficar vários anos. No seu caso, Sarah, esperam os que sej a só por umperíodo curto.

— Só até o seu avô m elhorar — disse Mac.

— É — confirm ou a m ulher. Tinha um quê de indefinição na m aneira como a m ulher tinha respondido, pensou Sarah. — Mas há m uitos j ovens emsituação parecida com a sua, Sarah, de fam ílias que necessitam de um poucode aj uda.

Não precisa se preocupar.

Mac e a esposa tinham falado só com ela durante o café da m anhã, não umcom o outro. Sarah ficou im aginando se haviam brigado, se tinha algum acoisa a

ver com ela. Não conseguia se lem brar de nenhum a discussão entre Vô eVó. Vó brincava que até podia discutir com Vô, m as que ele nuncarespondia. Quando se irritava, Vô só ficava quieto, com o rosto im passível.

— É com o discutir com um a estátua — dizia ela em tom de conspiração,com o se fosse um a grande piada interna delas.

Lágrim as com eçaram a se form ar, fazendo seus olhos arderem , e elacontraiu o m axilar, refreando-as. Já estava arrependida de ter ido para a casade Mac e Natasha. Na noite anterior ela havia ficado com m edo, m as no mom ento percebia que o controle de sua vida lhe estava sendo tirado. Porpessoas que não entendiam nada da sua vida.

A m ulher tinha consultado um arquivo.

— Vej o que os seus avós têm a sua guarda. Você sabe onde a sua m ãe está,Sarah? — A m enina fez que não. — Posso perguntar qual foi a últim a vezque você a viu?

Sarah olhou de soslaio para Mac. Ela e Vô nunca falavam sobre sua m ãe.

Parecia estranho lavar a roupa suj a da fam ília na frente de desconhecidos.

— Ela está m orta. — Sarah se atrapalhou com as palavras, silenciosam entefuriosa por ter que dar tal inform ação. — Morreu há alguns anos.

A m enina viu com paixão no rosto deles, m as nunca sentira saudade da mãe, não com o sentia saudade de Vó. Sua m ãe nunca tinha sido um abraçocaloroso, um par de braços em que se j ogar, m as sim um a som bra caótica eim previsível sobre os prim eiros anos de sua vida. Sarah se lem brava delacom o um a série de im agens, de ser arrastada para a casa de várias pessoas,de dorm ir em sofás, do barulho distante de m úsica alta e discussões, um asensação desagradável de im perm anência. E então, quando ela foi m orarcom Vó e Vô, ordem , rotina.

Am or.

A m ulher estava escrevendo.

— Tem certeza de que não tem nenhum am igo com quem possa ficar?

Nenhum parente?

Ela parecia esperançosa, com o se não quisesse ter que lidar com Sarah. MasSarah precisou adm itir que não havia ninguém que pudesse querê-la em suacasa por sem anas a fio. Ela não era popular. Os poucos am igos que tinha moravam em apartam entos tão pequenos quanto o dela; ela não conhecianinguém bem o suficiente para pedir, m esm o que quisesse.

— Eu preciso ir — disse ela baixinho para Mac.

— Eu sei — retrucou ele. — Não se preocupe, a escola sabe que você vaichegar atrasada. É m ais im portante resolverm os isto.

— E onde m esm o você disse que o seu avô está?

A m ulher sorriu para ela.

— Ele está no hospital Santa Teresa. Disseram que será transferido, m as nãosei quando.

— Podem os descobrir isso para você. Vam os providenciar para que entremem contato.

— Vou poder visitá-lo todos os dias? Com o eu tenho feito?

— Não sei dizer. Vai depender de onde conseguirm os colocar você.

— Com o assim ? — questionou Mac. — Não vão colocá-la em um lugarperto da casa dela?

A m ulher suspirou.

— Infelizm ente, o sistem a está sob enorm e pressão. Não podem os sem pregarantir que os clientes fiquem tão próxim os de onde m oram quantogostaríam os.

Mas vam os fazer o possível para garantir que Sarah visite o avô comregularidade até que ele volte para casa.

Sarah distinguia lacunas enorm es entre as palavras da m ulher, buracos ondedeveria haver certeza. Im aginei a si m esm a acom odada com algum a família sorridente a quilôm etros de distância de Vô. De Boo. Com o é quecuidaria dele se dem orasse horas para chegar a qualquer lugar? Isso nãodaria certo.

— Quer saber de um a coisa? — disse ela, olhando para Mac. — Eu possocuidar de m im m esm a. Na verdade, se alguém puder só dar um a aj udinha,ficarei bem em casa.

A m ulher sorriu.

— Sinto m uito, Sarah, m as, legalm ente, não podem os deixar você m orarsozinha.

— Mas eu dou conta. O problem a foi ter sido assaltada. Eu preciso ficarperto de casa.

— E nós vam os fazer o possível para garantir que isso aconteça — disse a mulher com delicadeza. — E agora é m elhor você ir para a escola. A suaassistente social vai se encontrar com você depois da aula e, espero, vai levá-la para o seu lar tem porário.

— Não posso — disparou Sarah. — Preciso ir a um lugar depois da aula.

— Se for um clube da escola, podem os acertar direto com a secretaria.Tenho certeza de que não vão se im portar se você faltar um a vez.

Sarah ponderou quanto revelaria a eles. O que fariam se ela falasse sobreBoo?

— Certo, Sarah. Se puderm os ver a questão da religião agora, não vai demorar m uito. Pode m e dizer em qual destas categorias você se encaixa?

A voz da m ulher ficou distante e Sarah se pegou encarando Mac. Dava paraver que ele não se sentia à vontade naquele lugar. Estava agitado, com o sepreferisse estar em qualquer outro lugar. Bem , agora ele sabia com o ela sesentia. De repente sentiu ódio dele, raiva dele e da esposa por m etê-lanaquela confusão. Se não tivesse ficado tão chocada no dia anterior, elapoderia ter consertado a porta sozinha. Cowboy John poderia ter aj udado. Eela ainda estaria em casa, tocando a vida, vendo Boo duas vezes por dia,dando conta de tudo,

esperando Vô voltar.

— Sarah? Igrej a anglicana? Católica? Hinduísta? Muçulm ana? Outra?

— Hinduísta — respondeu, em um ato de rebeldia. Então, quando os doisolharam para ela, descrentes, repetiu: — Hinduísta. — Quase riu quando viua m ulher anotar a resposta. Talvez, se ela dificultasse bem as coisas, teriamque deixá-la ir para casa. — E sou vegana — com pletou.

O rosto de Mac lhe m ostrou que ele se lem brava do sanduíche de bacon quepreparara para ela no café da m anhã. Ela o desafiou a contradizê-la.

— Ceeeerto. — A m ulher continuou escrevendo. — Estam os quase term

inando. Sr. Macauley, se precisar ir em bora, posso resolver tudo sozinha.

— E sou claustrofóbica. Não posso m orar em nenhum lugar com elevador.

Dessa vez, a expressão da m ulher ficou séria. Sarah desconfiou que ela nãoera assim tão com preensiva com o tinha parecido no com eço.

— Bem — disse ela, ríspida. — Preciso conversar com a sua escola e com oseu m édico. Sem dúvida, se houver algum a exigência ou problem a real,eles poderão confirm ar.

Mac estava rabiscando algo.

— Você está bem ? — perguntou, baixinho, para Sarah.

— Estou ótim a.

Ele parecia preocupado. Sabia que tinha destruído a m inha vida, pensouSarah.

Entregou um pedaço de papel para ela.

— São os m eus telefones — explicou. — Se tiver algum problem a, pode me ligar, certo? Eu aj udo com o puder. Está bem assim ? — com pletou,dirigindo-se à m ulher.

Ela sorriu para Mac. Sarah tinha reparado que várias m ulheres sorriam paraele.

— Claro que sim . Nós incentivam os nossos clientes a m anter o m áxim opossível de sua rotina norm al.

Mac se levantou para sair e entregou a Sarah a pasta de docum entos e papéispessoais que pegara no apartam ento para ela.

— Cuide-se, Sarah — disse ele. Dem orou-se, com o se não tivesse certeza sedeveria ou não ir em bora. — Espero que vá logo para casa.

Sarah chutou a perna da cadeira e não disse nada. Estava descobrindo que

não fazer nem dizer nada era o único poder que lhe restava.

* * *

— Graças a Deus. Achei que teríam os que apelar para a internet.

— Desculpe. Tive um im previsto. — Mac deixou as bolsas das câm eras nochão. Deu um beij o em Louisa, a diretora de arte, que ele reconheceu, entãose voltou para a m oça sentada diante do espelho, digitando m ensagens detexto

furiosam ente, alheia à m aquiadora atrás dela, que torcia m echas de seucabelo em enorm es bobs de cerâm ica. — Oi, eu sou o Mac — apresentou-se, estendendo a m ão.

— Ah. Oi. Serena.

— Você deveria ter chegado há um a hora.

Maria bateu no relógio com o dedo. A sua calça j eans era tão baixa quebeirava a indecência; acim a da calça, duas cam adas de tecido escuroesvoaçante estavam habilm ente am arradas, revelando a barriga em form a.Atrás dela, alguém m exia em um CD-play er.

— Achei m elhor dar m ais tem po para você fazer a sua m ágica, querida. —

Deu-lhe um beij o na bochecha e passou a m ão pelas suas costas nuas. —Vou m ontar o equipam ento, pode ser? Louisa, que tal repassar o briefing?

Louisa especificou o tipo de visual e clim a que eles queriam para o ensaio daj ovem atriz; a m enina do figurino ficou assentindo, prestando atenção. Mactam bém assentiu, parecendo lhe dar toda a atenção, m as sua cabeça estavano departam ento do bem -estar da criança. Ele tinha descido os degraus doprédio desolador correndo, quarenta m inutos antes, sentindo-se m enosaliviado do que esperava. Sarah parecia arrasada, retraindo-se enquantoestavam naquela sala à m edida que se dava conta da extensão das m udançasem sua situação. Ele m eio que tinha pensado em perguntar a Tash se a menina poderia ficar com eles, m as quando form ulara a frase, enquanto

preparavam o café da m anhã em um silêncio pesado, percebeu com o a ideiaera absurda. Tash havia deixado claro que sua carreira estava am eaçada pelapresença de Sarah, e ela m al conseguia lidar com a presença dele em casa.Aquele lugar j á nem parecia m ais a casa de Mac. Com o ele poderia lhe impor a presença de um a desconhecida?

— Muito verm elho. Bem ousado. Nós querem os m andar um a m ensagemcom esta foto, Mac. Ela não é só m ais um a j ovem atriz, é um a atriz sériado futuro, um a Judi Dench j ovem , um a Vanessa Redgrave m enospolitizada.

Mac olhou para Serena, que ria de um a m ensagem de texto, e conteve umsuspiro. Ele tinha perdido a conta das j ovens atrizes excepcionais quefotografara nos últim os dez anos. Apenas duas haviam sobrevivido à torrentede divulgação inicial e conseguido um papel em um seriado de com édia.

— Certo. Ela está pronta para você.

Maria surgiu à porta com um pincel fino de m aquiagem entre os dentes, ajeitando o cabelo loiro da m oça com dedos habilidosos. A figurinista tiravaroupas de um a arara com prida e as pendurava no braço.

— Vou levar estas aqui.

— Vam os com eçar em dez m inutos. Só vou checar o cenário — disseLouisa antes de sair.

Maria se aproxim ou dele.

— Eu ia perguntar por que você se atrasou tanto — com entou ela com seu

sotaque eslavo carregado. — Mas aí percebi que não estou nem aí.

Mac enganchou o dedo no passador da calça dela e a puxou para perto. O

cabelo da m ulher tinha cheiro de m açã, a pele, de m aquiagem e spray decabelo, as cam adas de unguento de sua profissão.

— Se eu lhe contasse, você não acreditaria.

Ela tirou o pincel da boca.

— Estava por aí pegando m ulheres.

— Meninas de quatorze anos, na verdade.

A boca de Maria estava tão próxim a que dava para ver a pintinha m inúsculaao lado do lábio superior.

— Não é surpresa algum a. Você é um hom em noj ento.

— Eu faço o que posso.

Ela o beij ou, então se afastou.

— Tenho outro trabalho quando sair daqui. Soho. Quer se encontrar com igodepois?

— Se puderm os ir para a sua casa.

— Está na casa da sua ex-m ulher?

— A casa é m inha tam bém . Eu j á disse.

— E essa m ulher não se im porta de você voltar a m orar lá?

— Não posso dizer que conversam os sobre o assunto nesses term os.

Ela estreitou os olhos.

— Não confio nela. Que m ulher com am or-próprio aceitaria o ex-m arido devolta assim ? Quando o m eu ex-nam orado na Cracóvia tentou voltar para am inha casa, apontei o revólver do m eu pai para ele — revelou Maria, imitando o gesto.

Mac refletiu sobre a questão.

— É um a opção… acho.

— Não m e senti nada bem com isso depois. E ele só queria devolver o m euCD-play er. — Ela se virou para sair e pegou um a uva da fruteira no caminho até a porta. — Foi bom eu ter errado o alvo.

* * *

A porcaria do portão estava em perrado de novo. Cowboy John puxava,tentando fazer com que as duas partes ficassem alinhadas, brigando com ocadeado, quando viu um a silhueta conhecida correndo na sua direção, com am ochila batendo na cintura.

— Eu estava fechando — disse ele, tirando o cadeado. — Passei o dia inteiroontem esperando você. Achei que tinha acontecido algum a coisa. Por ondeandou, m enina?

Ele tossiu, um som rouco e áspero.

— Me m andaram para Holloway.

Ela largou a m ochila da escola na rua de pedra e foi correndo até a baia deBoo.

Cowboy John fechou o portão e foi atrás dela, m ancando. O frio do outonopenetrava em seus ossos.

— Você foi para a cadeia?

— Não é cadeia — respondeu ela, tentando abrir a tranca da porta da baia. —

É serviço social. Disseram que não posso m ais ficar em casa sem o Vô lá em e obrigaram a ficar com um a fam ília idiota. Mas eles m oram emHolloway.

Acham que estou visitando Vô agora… foi o único j eito que encontrei paravir até aqui.

Sarah se j ogou no pescoço do cavalo e o hom em percebeu que a m eninachegou a estrem ecer, com o se toda a tensão concentrada do dia tivesse sidoliberada.

— Um m inuto, só um m inuto. — Ele acendeu a luz. — Precisa voltar. Quediabo está acontecendo?

Ela o encarou com os olhos m arej ados.

— Arrom baram o nosso apartam ento na terça-feira. E um a m ulher que m edeu carona até em casa, e é advogada ou algo assim , m e fez passar a noitena casa dela porque disse que não era seguro ficar ali. Então eles m e levarampara o serviço social e, quando eu vi, estava m orando na casa de outrapessoa, e vou ter que ficar lá até Vô m elhorar. A fam ília em Holloway. E eunem conhecia aquela gente. Levei um a hora e quinze m inutos no ônibuspara chegar aqui.

— Por que eles estão se dando a esse trabalho todo?

— Eu estava bem — disse ela. — Até o arrom bam ento.

— O seu avô está sabendo disso?

— Não sei. Só vou poder ir lá am anhã. Ninguém sabe sobre Boo. Não possodeixar que saibam , ou podem querer m andá-lo para outro lugar tam bém .

Cowboy John sacudiu a cabeça.

— Não se preocupe. Ele não vai a lugar algum .

— Eu nem tenho o dinheiro do aluguel para te pagar. Levaram os talões daaposentadoria de Vô, por isso não tenho nada além do dinheiro do ônibus edo alm oço.

— Não se preocupe — disse ele, enquanto ela estava girando, transformando-se em um m inifuracão. — Eu resolvo o aluguel com o seu vô quandoele voltar.

Você tem dinheiro para a com ida do seu cavalo?

Ela enfiou a m ão no bolso, contou o dinheiro e entregou a ele.

— Tenho o suficiente para quatro fardos de feno e dois sacos de com ida.

Mas preciso que dê a com ida para ele. Nem sei se vou conseguir vir aquipara lim par a baia.

— Certo, certo. Eu lim po a baia dele para você, ou m ando um dos m eninoslim parem . Mas e o ferreiro? Você sabe que ele vem na terça-feira, certo?

— Eu sei. Tenho algum as econom ias. Posso usar esse dinheiro para pagareste m ês, m as não posso pagar o aluguel.

— Eu j á disse, seguro o aluguel até o Capitão estar de volta.

— Eu vou pagar.

Sarah soou com o se achasse que ele não acreditaria nela. Cowboy John deuum passo atrás.

— Eu sei. Acha que eu sou idiota? — Ele fez um gesto na direção dos outroscavalos. — Eu não perm itiria que nenhum desses ratos de esgoto atrasasseum único dia de aluguel, j á você e o seu Vô… Agora, acalm e-se, cuide doseu cavalo e vam os resolver tudo, um dia de cada vez.

Ela pareceu relaxar um pouco. Pegou um a escova e com eçou a escová-lo,descendo o braço pela lateral do anim al de m aneira m etódica, ritm ada, como o seu avô fazia, com o se aquela sim ples ação lhe trouxesse conforto.

— Sarah… eu poderia oferecer a m inha casa para você, m as é m eiopequena. E eu m oro sozinho há m uito tem po. Se a m inha casa fosse m aior,ou se tivesse um a m ulher… Não sei bem se é o tipo de arranj o que elesacham adequado para um a m enina.

Sarah disse a ele que não tinha problem a.

Ele ficou ali parado durante um m inuto.

— Tem problem a você trancar tudo se eu for em bora? — Dava para ver queela não ia querer sair dali tão cedo. Ele se apoiou na porta da baia e colocou ochapéu para trás, para ver m elhor o rosto dela. — Quer saber, Sarah. Querque eu vá visitar o seu avô am anhã para você vir aqui?

Ela aprum ou o corpo.

— Você faria isso? Não quero deixá-lo sozinho por dois dias.

— Sem problem a. Ele iria querer que Boo continuasse com o lance de circodele. Mas eu preciso dizer um a coisa para ele. E, querida, tam bém tenho queconversar com você sobre isso. — Ela então pareceu preocupada, à espera dem ais um golpe. — Estou pensando em vender para Maltese Sal.

Ela arregalou os olhos.

— Mas o quê…

— Vai ficar tudo bem . Com o vou dizer ao seu avô, nada vai m udar. Vouficar por aqui até a m inha casa ser vendida. Até lá, vou continuar abrindo oestábulo e cuidando dos negócios.

— Para onde você vai?

Ela havia abraçado o pescoço do cavalo e estava agarrada a ele com o se oanim al tam bém estivesse sendo despachado para outro lugar.

— Eu vou m e m udar para o interior. Para algum lugar com um pouco deverde. Acho que os m eus m eninos m erecem . — Indicou com a cabeça oscavalos. Hesitou. Tirou o cigarro dos lábios e cuspiu no chão. — Ter visto oque aconteceu com o seu avô, Sarah, m e deixou balançado. Já não sou tão jovem

quanto antes, e se só tiver m ais alguns anos, quero passar esses anos em umlugar tranquilo.

Ela não disse nada, só olhou para ele.

— Maltese Sal m e prom eteu que nada vai m udar, m enina. Ele sabe doCapitão, sabe que as coisas não estão fáceis para você agora. Ele diz que vaideixar tudo do j eito que está.

Sarah não precisou dizer nada. Ele viu no rosto dela. Dada a situação em quese encontrava, com o ela poderia acreditar naquilo?

* * *

— Obrigada por m e atender tão rápido, Michael. A Sra. Persey vai chegardaqui a pouco e eu queria dar um a olhada em alguns dos docum entos preliminares com você. — Ela hesitou quando Ben entrou com um a caixa de lençosde papel e um a garrafa de vinho branco gelado. — Nós geralm ente nãoincentivam os a

“hora do choro” — explicou ela no m om ento em que a garrafa foi colocadacom cuidado em sua m esa —, m as quando se tem um a cliente dessecalibre…

— …você perm ite que ela chore um pouco.

Natasha sorriu.

— E am enize a dor com um a taça de seu Chablis preferido.

— Achei que nesta parte da cidade o negócio era m ais confiscar um a lata decervej a ou outra.

Fam oso advogado de divórcios, o charm e e o m odo divertido de falar deMichael Harrington escondiam a m ente afiada com o navalha. Natasha selem brava da prim eira vez que o vira no tribunal, quando era estagiária e elerepresentava a outra parte. Ela queria ter um gravador para depois im itar a maneira dissim uladam ente relaxada com o ele destruiu os argum entos doadvogado para quem ela trabalhava.

— Certo. — Ela deu um a olhada no relógio. — Em resum o, casada por dozeanos, segunda esposa, algum a discordância sobre com o ela e o Sr. Perseyacabaram ficando j untos depois que a prim eira esposa o deixou. Há pouco mais de um ano, ela o pegou em flagrante com a babá. O de sem pre. Nós temos dois problem as. Prim eiro, não há acordo sobre a questão financeira,devido a declaração de bens inadequada. Segundo, ela se recusa a perm itir avisitação, alegando que ele com eteu abusos físicos e m entais contra eladurante o casam ento, além de agredir verbalm ente a filha de onze anos.

— Que confusão.

— Nem m e diga. Os docum entos não sugerem que isso tenha ficadoevidente durante o casam ento. — Natasha folheou a pasta. — Ela afirm aque fez o possível para esconder, porque não queria prej udicar a im agemdele no m eio profissional. Agora ela diz que não tem nada a perder. Mas eleestá am eaçando

retirar a oferta de acordo financeiro que fez por causa da restrição à visitação.

— Não preciso nem dizer que este será um caso de grande im portânciadevido à reputação dele. A audiência está m arcada para o Cartório Principalda Vara de Fam ília dos Tribunais Reais de Justiça. A audiência deconciliação foi um total desastre. Mas a Sra. Persey parece… Bem , elaparece bastante disposta a divulgar sua versão dos fatos. Não tenho m ais oque fazer para im pedir que procure os j ornais. — Ela hesitou, unindo aspontas dos dedos. — Você vai ver, Michael, que ela não é das clientes m aisfáceis de representar.

Ben enfiou a cabeça pela porta entreaberta.

— Ela chegou.

Com um brevíssim o olhar para Natasha, Michael se levantou com a m ãoestendida, pronto para dar as boas-vindas a Sra. Persey.

Natasha tinha visto m uitas m ulheres espancadas no tem po que passou noDavison Briscoe; tinha representado crianças cuj as m ães j uravam que oparceiro j am ais encostaria o dedo em vivalm a, apesar de os pontos na têmpora ainda nem estarem cicatrizados e os olhos ainda estavam roxos. Tinhavisto m ulheres tão tolhidas por anos de abusos que m al conseguiam falaralto o suficiente para serem ouvidas. Nunca havia conhecido alguém com oGeorgina Persey.

— Ele está m e am eaçando de novo! — Antes m esm o de Ben ter fechado aporta, ela segurou o braço de Natasha com am bas as m ãos, as unhas bem -feitas cravadas na pele de Natasha. — Ele m e ligou ontem à noite para dizerque, se não puder ver Lucy, vai fazer com que eu sofra um acidente.

O cabelo longo dela caía sobre os om bros em cachos cuidadosam ente

esculpidos. As roupas caras se acom odavam sobre um corpo que passava porexercícios rigorosos, m arcado por anos de autonegação. Mas seu rosto, comm aquiagem im aculada, parecia paralisado em um a careta perpétua de ultraje.

Quando ela falava, era com o se toda a energia fosse sugada da sala.

— Por favor, sente-se, Sra. Persey. — Natasha a colocou na frente da cadeira,serviu um a taça de vinho e entregou para ela. — Perm ita-m e apresentá-

la a Michael Harrington. Ele é o advogado sobre o qual conversam os, lembra?

Vai representá-la no tribunal.

Pareceu que a Sra. Persey não tinha ouvido.

— Eu disse a ele que estava tudo gravado. As am eaças. Tudo. Não gravei, éclaro, m as fiquei com m uito m edo. Disse a ele que, se fizesse algo com igo,eu daria a fita para você. E sabe o que ele fez? Ele riu. Tam bém ouvi aquelavagabunda rindo atrás dele. — Ela olhou para Michael Harrington com ar desúplica. — Ele cancelou os m eus cartões de crédito. Você tem noção davergonha que é ter o cartão recusado na Harvey Nichols? Tinha conhecidosm eus na fila atrás de m im .

— Vam os fazer o m áxim o possível para ter um acordo provisório empoucos dias.

— Quero um a ordem de restrição. Quero que ele fique longe de casa.

— Sra. Persey — com eçou Natasha. — Eu j á expliquei que é m uito difícilpara nós aj udá-la nessa questão sem term os provas de que a senhora ou suafilha correm risco de agressão.

— Ele está tentando m e enlouquecer, Sr. Harrington. Está m e pressionandocada vez m ais para que eu pareça louca e o j uiz tire a m inha filha de m im .

Agora que o advogado estava presente, ela só se dirigia a ele. Era o tipo de mulher para quem outras eram irrelevantes, pensou Natasha.

— Sra. Persey. — Michael Harrington se sentou ao lado dela. — Pelosdocum entos que vi até agora, sou obrigado a dizer que correm os m uito mais risco de a senhora perdê-la por não acatar as determ inações da Justiça doque por qualquer sugestão de instabilidade m ental.

— Eu nunca vou deixar a m inha filha nas m ãos dele — disse ela enfaticamente. Com o se tivesse notado a presença de Natasha pela prim eira vez,arregaçou a m anga da blusa e m ostrou o braço. Um a longa cicatriz brancaia até o cotovelo. — Isto é de quando ele m e em purrou escada abaixo. Vocêacha que ele não faria isto com Lucy ? Acha que eu devo deixar a m inhafilha ficar em casa com aquele hom em ?

Michael exam inava a papelada. Natasha se inclinou para a frente.

— Nós dissem os que precisam os corroborar as suas afirm ações relativasaos riscos a Lucy. A senhora m e disse que a babá um a vez viu seu m aridobater na senhora, m as não há m enção a isso nos depoim entos dela.

— Foi a babá da Guatem ala, não a da Polônia.

— A babá da Guatem ala pode dar um depoim ento?

— Com o eu vou saber? Ela está na Guatem ala! Ela era péssim a. Tivem osque m andar em bora. — Deu um gole no vinho. — Eu a flagrei experimentando as m inhas roupas. Com o se fossem servir nela! Devia ser no m ínimo m anequim quarenta e dois.

Michael Harrington tam pou a caneta.

— Sra. Persey, algum a outra pessoa testem unhou qualquer ato de violênciacontra a senhora ou a sua filha?

— Eu j á disse! Ele é tão sagaz! Fez tudo a portas fechadas. Disse queninguém acreditaria em m im .

Ela explodiu em soluços altos. Natasha olhou para Michael e pegou a caixade lenços de papel, que estendeu para a m ulher.

— Vou falar com a im prensa! — A Sra. Persey a encarou com um aexpressão petulante. — Vou contar para o m undo com o ele é, ele e aquelavagabunda.

— Sugiro que não abra fogo na m ídia por enquanto — disse Michael em tomdiplom ático. — Isso não vai nos favorecer com o j uiz, e é m uito importante que nós pareçam os irrepreensíveis em nossas ações.

— Vocês acham ? — Os dois advogados assentiram . — Mas é tão horrível—

com pletou, assoando ruidosam ente no lencinho. — Tão horrível.

— Fique à vontade, Sra. Persey — disse Michael enquanto ela soluçava.

O tem po foi passando. Impressionante como os advogados podem ficarrelaxados quando alguém está pagando trezentas e cinquenta libras porhora, pensou Natasha.

— Agora talvez possam os recom eçar. É m uito im portante fazer isso da maneira certa.

Natasha m andou um a m ensagem de texto para Ben:

Pode sair m ais cedo hoj e. Vam os ficar aqui um tem pão. Até am anhã.

* * *

Ficar na companhia de gente rica de verdade é um pouco como ler revistasde decoração, pensou Natasha enquanto exam inava as roupas em sua cam a.Fazia qualquer um se sentir insatisfeito com a parte que lhe cabia. Aoobservar aquela m ulher com a pele im pecável, as roupas de caxem ira e sedade corte incrível, os sapatos de m arca m inúsculos, o guarda-roupa utilitáriode Natasha de repente pareceu desm azelado, e seu corpo — que não era maior do que o padrão — de repente pareceu grosseiro e gordo. Mas ela haviasobrevivido ao divórcio m elhor do que Georgina Persey, pensou, ao dobrar acalça j eans. A m ulher havia tagarelado por m ais de um a hora, sem escutaros conselhos oferecidos, contradizendo as próprias afirm ações, em um a

confusão de fúria, rancor e talvez ansiedade genuína. Quando ela foi em bora,até Michael Harrington estava exausto.

Agora, em pé ao lado da cam a, Natasha se sobressaltou ao ouvir a porta dafrente sendo aberta. Houve um a breve pausa, com o se ela estivesseponderando o que dizer, e então o ouviu oferecer, um tanto incerto, docorredor:

— Oi.

Natasha contraiu o m axilar em um gesto involuntário: oi, querida, cheguei,com o se de algum m odo tivessem voltado a ser um a fam ília feliz. Elaesperou um instante, então gritou, em um tom que não soava com o convite:

— Estou aqui em cim a.

Para irritá-la, subiu m esm o assim . Enfiou prim eiro a cabeça pela porta,então preencheu com o corpo todo o espaço vazio.

— Estou pensando em pedir com ida e achei que você tam bém podia querer.

— Não — respondeu ela. — Eu… eu vou sair.

— Vai viaj ar — corrigiu ele, claram ente reparando na m ala.

— Só vou passar o fim de sem ana fora.

Natasha foi até a côm oda e pegou duas blusas dobradas.

— Vai para algum lugar bacana?

— Kent. — Ela havia se perguntado se deveria lhe contar sobre o chalé quealugara desde que ele fora em bora. Mas teve m edo de que ele achasse queela tinha outro lugar para m orar, o que lhe faria acreditar que tinha ainda mais direito sobre a casa. Conor a alertara para que não revelasse nada a Mac,por m ais que ele parecesse legal ( No fim, tudo se volta contra você). —Então, pode ficar com a casa toda para você no fim de sem ana — completou.

Aj eitou as roupas na m ala e foi ao banheiro da suíte para pegar o hidratantee a m aquiagem . Mac tinha enfiado as m ãos bem no fundo dos bolsos dacalça j eans. Olhava ao redor, sem j eito, com o se o espectro do tem po queos dois haviam passado j untos naquele quarto estivesse ali para assom brá-lo.Natasha percebeu que não tinha m udado nada desde que ele fora em bora.Desconfiava que essa fosse um a das razões para Conor não gostar de passara noite ali.

— Então — disse ele. — Vai ser festa a noite toda para m im .

Natasha se virou para ele de supetão.

— Estou brincando. Você esqueceu a escova de cabelo.

Ela hesitou, então a pegou. Não podia dizer a ele que tinha um a no chalé.

Mac passou a m ão no cabelo.

— Im agino que vá viaj ar com Conor.

Ela ficou de costas para ele, arrum ando a m ala.

— Vou.

— Com o ele está?

— Bem .

— Se for porque estou aqui, não se preocupe — disse ele. — É só pedir queeu passo a noite fora. Não quero invadir o espaço de ninguém . Não se sintana obrigação de sair de casa.

— Não m e sinto. Quer dizer, você não está invadindo — m entiu ela. —

Passam os quase todos os fins de sem ana fora.

— Tenho lugares para onde posso ir. É só pedir.

Ela continuou arrum ando a m ala. A presença dele fazia com que se sentisse

cada vez m ais constrangida e invadida. O quarto era seu santuário, o únicolugar que sentia que continuava sendo seu desde que ele havia voltado. O fatode ele estar ali era um lem brete som brio dos m om entos em que tinhamcaído na cam a alegrem ente, do tem po que passaram assistindo a DVDs ecom endo torradas queim adas… das noites em que se deitou a dezesseis frioscentím etros de distância dele, sentindo-se a pessoa m ais solitária do m undo.Tênis, botas, calças j eans. Escova de cabelo. Teve dificuldade para organizaros pensam entos.

— Para que lugar de Kent você vai? — perguntou ele.

— O que é isto? Um questionário? — As palavras ríspidas saíram antes quepudesse refreá-las.

— Só estou sendo educado, Tash. Estam os pisando em ovos um com o outro

todos os dias. Estou tentando agir com o se nós pelo m enos pudéssem os terum a conversa civilizada. — Ele continuou, com a voz firm e: — Aliás, soueu quem estou aqui m e despedindo da m inha m ulher…

— Ex-m ulher.

— …quase ex-m ulher, que vai passar um fim de sem ana com o am ante.

Acho que isso é bem civilizado, certo? Será que não podem os encontrar umm eio-term o?

Natasha quis dizer que estava achando difícil, m uito m ais do que esperava,porém até essa pequena confissão parecia entregar dem ais.

— É só… — disse ela — …um a cidadezinha perto da divisa com Sussex.

Ele franziu a testa se m exeu desconfortável.

— Bem , acho que não vou ficar por aqui m ais m uito tem po. Os corretoresm e ligaram para dizer que concluíram os detalhes. Vai ser posta à venda amanhã.

De novo aquela sensação de ter sido enganada. Ela ficou parada no m eio do

quarto com um par de botas pendurado na m ão.

— Nós com binam os, Tash — disse Mac ao ver sua expressão.

— Pare de m e cham ar assim — retrucou, irritada. — Meu nom e é Natasha.

— Desculpe. Se eu tivesse dinheiro para não precisar fazer isso, não faria.

Tam bém não gosto da ideia de esta casa ser vendida. Não se esqueça dequanto tem po dediquei a ela.

Natasha pressionou as botas no corpo. Do lado de fora, alguém colocou música para tocar e as batidas ecoavam sem perdão nas fachadas iguais dascasas gem inadas.

— Mas talvez assim sej a m ais fácil ao longo prazo.

— Duvido m uito — disse ela, ríspida. — Mas se é isso que precisa ser feito,então façam os logo.

Natasha fechou o zíper da m ala com um sorrisinho que não era bem umsorriso, passou pelo hom em que em breve seria seu ex-m arido e desceu aescada.

7

“Qualquer sinal repentino fará com que um cavalo espirituoso se sobressalteda mesma maneira que um homem se sobressalta com qualquer visão, somou outra experiência repentina.”

XENOFONTE, SOBRE EQUITAÇÃO

OUTUBRO

Ele tinha sido transferido de novo, e Sarah levou vinte m inutos para localizá-lo.

Vô estava na ala das vítim as de derram e, onde tinha ficado até a sem anaanterior, quando a pneum onia fizera com que voltasse para o CTI.

— Esperávam os que ele estivesse um pouco m elhor a esta altura — disse aenferm eira ao conduzir Sarah até a área fechada com cortina. — Mas oproblem a é a disfagia, a dificuldade de engolir. Coitado deste velho rapaz,está lutando um bocado.

— Ele não é rapaz — disse Sarah, ríspida. — Tem setenta e quatro anos.

A enferm eira hesitou, com o se fosse dizer algo m ais, então sim plesm entepassou a andar m ais depressa, e Sarah teve que se apressar um pouco paraacom panhá-la. Parou na frente de um a cortina azul florida e a abriu paradeixar Sarah entrar.

A m enina puxou um a cadeira para perto da cam a, que estava com acabeceira levantada, para que ele ficasse m eio sentado. Sarah sofria ao ver oqueixo grisalho dele apoiado no peito. Nunca tinha visto o avô com m ais deum dia de barba por fazer, e aquele desleixo com os cuidados pessoais iriadeixá-lo m agoado.

Ela abriu o arm ário ao lado da cam a sem fazer barulho, para descobrir se ospertences dele tinham sido trazidos para aquela ala, j unto com ele. Era comum ela precisar ir atrás das enferm eiras para descobrir onde estavam . Desdeque fora internado, dois pij am as tinham sum ido j unto do sabonete novo edo saco de barbeadores que ela havia trazido. Exam inou a prateleira e viucom alívio a nécessaire dele, um a toalhinha e a foto dele com Vó. Pegou afoto e colocou em cim a do arm ário. Se Sarah a posicionasse com cuidado,ele poderia passar o dia inteiro olhando para ela.

Deu um a olhada no relógio para calcular quanto tem po ainda tinha. A família Hewitt era inflexível quando o assunto era rotina. Queriam que elaestivesse em casa às quatro da tarde, apesar de lhes ter dito aonde ia. Eramquase duas horas, e seria im possível ir até Sparepenny Lane a tem po delevar Boo para dar um a volta.

Tocou a m ão do avô. A pele dele, seca e fina com o papel, fez algo dentrodela se contrair. Quatro sem anas no hospital pareciam ter sugado a essênciadele, arrancado sua robustez. Era difícil im aginá-lo com o alguém que haviam ontado um cavalo que em pinava apenas algum as sem anas antes. Ainversão de seus papéis fazia com que ela se sentisse irrequieta, sem um lar

para onde voltar, com o se m ais nada em seu m undo fizesse sentido.

— Vô? — Ele abriu só um olho e olhou vagam ente para o cobertor. Sarah seperguntou se ele estava tentando entender que lugar era aquele. Então eleergueu a cabeça devagar. — Vô?

A expressão dele era vazia. Sarah olhou para a gam a de rem édios nocarrinho ao lado dele. As enferm eiras lhe disseram que ele tom ariaantibióticos durante algum as sem anas só para garantir. Ela estendeu a m ãoe colocou os óculos dele.

— Eu trouxe iogurte.

Com o tinham tirado o tubo da garganta dele, na m aioria dos dias ela tentavatrazer algo que o avô pudesse engolir com facilidade. Sabia que ele detestavaa com ida do hospital.

Os olhos dele se suavizaram , e Sarah percebeu que ele a tinha reconhecido.

Ela segurou a m ão dele.

— O de cerej a negra que você adora. — Ele fechou a m ão sob a dela. —

Acho que vai gostar de saber que Boo j á com eçou a ficar com a pelagem deinverno, m as ele está m uito bem . Nós cavalgam os m uito a m eio-galopeontem , e ele não titubeou nenhum a vez. Aum entei um pouco a com idadele, porque está fazendo m ais frio à noite. Estou dando um a porção extrade açúcar de beterraba… Tudo bem ?

Ele assentiu de form a quase im perceptível, m as foi o suficiente. As coisasestavam com o deveriam : ela buscando a aprovação dele.

— Vou ao estábulo quando sair daqui. Acho que vou com ele até a beira dorio. Não posso ir ao parque hoj e, nem sábado à tarde, porque tem gente demais.

Mas ele vai gostar de esticar as patas. — Isso era m entira, m as, nos últim ostem pos, Sarah editava tudo. Era im portante que ele só tivesse coisas boasem que pensar enquanto estivesse ali, sem m ais nada para fazer. — E a fam

ília nova com que estou é bacana. Tem m uita com ida, m as não é tão boaquanto a nossa.

Quando você voltar, vou preparar um cozido de peixe com m uito alho, do jeito que você gosta.

Os dedos dele se agitaram sob a m ão dela. Era a m ão ruim dele, a que tinhadificuldade de erguer. Sarah continuou falando, com o se o papo furadopudesse trazer de volta a norm alidade à vida deles.

— Quer beber algum a coisa? — perguntou ela finalm ente.

Ergueu o recipiente de plástico com a água dele. Um a leve inclinação dacabeça. Ela o levou até os lábios do avô e ergueu um pouco o queixo delecom a outra m ão para que a água caísse na boca. Ela havia perdido o pudorde fazer esse tipo de coisa. Tinha percebido que, se não fizesse, provavelmente ninguém m ais faria.

— Temps — disse ele. Sarah olhou para ele. — Pão. Chapeau — disse,fechando os olhos, irritado.

— Quer que eu cham e a enferm eira? — Ele franziu a testa. — Deixe eulevantar você um pouco m ais. — Ela aj eitou os travesseiros nas costas dele,tentando fazer com que ficasse m ais aprum ado. Aj ustou a cam a com m ãosexperientes, depois aj eitou a cam isa do pij am a ao redor do pescoço paraque o avô parecesse m ais digno. — Está m elhor?

Ele assentiu. Parecia derrotado.

— Certo. Não desanim e, Vô. O m édico disse que vai m elhorar. Disse quetalvez sej a a últim a coisa a voltar. Você lem bra. E, com o não tem passadom uito bem , acho que esses rem édios todos não aj udam . Talvez o tenhamdeixado confuso.

A desaprovação surgiu nos olhos do velho. Não gostava que Sarah fossecondescendente com ele. E então, enquanto ela observava, o olhar dele foipara a m esa, para a m ochila dela.

— O iogurte. Quer um pouco de iogurte?

Ele suspirou e o alívio tom ou conta de seu rosto.

— Chapeau — repetiu ele.

— Certo — retrucou Sarah. — Chapeau.

Pegou um a colher da m ochila e tirou a tam pa do iogurte.

* * *

Mesm o com a boa distância de um ano, era difícil ver a verdade sobre o quetinha levado ao fim do casam ento deles. Talvez fosse im possível encontrar averdade em tais situações; talvez a única coisa que se podia esperar era averdade de cada um a das pessoas. Verdade do tribunal: nada de absoluto,apenas pontos de vista, dependendo de quem argum entava m elhor. Só que,de algum m odo, havia term inado m uito antes que eles tivessem aoportunidade de argum entar.

Logo depois que Mac a deixara, Natasha tinha dito a si m esm a que fora melhor assim . A natureza deles não com binava. Sentir-se irritada o tem potodo a tinha esgotado; aquilo a transform ara em um a pessoa de quem elanão gostava, e estava claro que no últim o ano nenhum dos dois foi feliz. Erapossível que, se tivessem passado m ais tem po j untos, houvessem percebidom ais cedo. Ela disse isso a si m esm a m uitas vezes.

Mas não conseguia ficar sozinha na casa de Londres. Afinal de contas, com oele costum ava brincar, aquela era “A Casa que Mac Construiu”, e ele permeava cada centím etro do lugar. Cada côm odo tinha um eco do que ela haviaperdido: a escada que ele tinha refeito, as prateleiras que ele teve que instalarduas vezes, os espaços onde os livros, os CDs e as roupas dele costum avamficar. Mac tinha levado a m aioria das coisas, colocara em um depósito, e atéisso a incom odava: as coisas que eles adoravam , que tinham escolhido juntos, largadas em algum espaço im pessoal porque ele preferia deixá-lastrancadas em vez de sugerir que algum a parte dele ainda integrava a vidadela.

— Pegarei o restante daqui a um a ou duas sem anas — dissera Mac quandoela ficou parada no hall de entrada.

Ela se lem brava de ter ficado ciente da pedra fria sob seus pés descalços.

Tinha assentido, com o se de algum m odo estivesse concordando que aqueleera um plano sensato. E então, quando a porta se fechou atrás dele, Natashase perm itira deslizar devagar parede abaixo, até o chão. Tinha ficado alisentada por um período desconhecido, catatônica devido à escala do quetinha acontecido.

Durante sem anas depois daquilo, m uito antes de a fam ília e os am igossaberem que o casam ento havia acabado, nos fins de sem ana, cedo pela manhã ou tarde da noite, nos períodos em que era im possível para ela estar noescritório e se concentrar no trabalho, tinha pegado o carro e saído por aí.Percorria as ruas da cidade, passava por viadutos, em baixo de pontes eseguia por vias de m ão dupla m al ilum inadas, parando apenas para encher otanque do carro. Dirigia escutando o rádio, ouvia program as de entrevistasem que os ouvintes que telefonavam supostam ente deveriam lem brá-la deque a vida não era assim tão ruim , m as, de algum m odo, isso não davacerto. Escutava os program as políticos, os docum entários, os dram as e asnovelas. Não escutava m úsica: era o equivalente auditivo a andar por umcam po m inado. Logo que a pessoa achava que estava bem , algum a m úsicacheia de significado surgia para despedaçá-la sem aviso prévio. Nós dançamos essa m úsica, fizem os um churrasco com aquela. Natasha m exia no botãoenquanto lágrim as escorriam pelo seu rosto. Era m elhor ouvir o noticiário,desaprovar as m anchetes, espantar-se com as notícias irritantes.

O cérebro dela, funcionando pela m etade, só se concentrava nas exigênciasduplas de escutar e dirigir até que, em um a m anhã de sábado, ela foi pararem Kent. Havia sentido um vazio inesperado no estôm ago e percebeu, comcerta surpresa, que fazia quase dezoito horas que não com ia. Tinha visto uma casa de chá do tipo que faz questão de parecer antiquada e que seenquadraria no ideal de Inglaterra dos não ingleses. Depois de ter com ido meio pãozinho com m anteiga (fazia sem anas que não conseguia engolir nada),pagou a conta e saiu para cam inhar na m anhã úm ida de outono pelas alamedas da cidadezinha, apreciando os cheiros defum ados, as folhas em decomposição, o gosto am argo dos frutos de abrunheiro nas sebes. Para sua

surpresa, sentiu-se um pouco m elhor.

Quando viu o chalé com um a placa dizendo “aluga-se”, no m eio de um aalam eda que parecia levar apenas a um a fazenda, nem se deu ao trabalho dedar um a olhada. Ligou para a corretora e deixou um recado, dizendo que, seainda estivesse disponível, ela queria alugá-lo. Dinheiro não com pravafelicidade, ela refletiu m ais tarde, porém sem dúvida garantia lugares melhores onde se sentir arrasada.

De lá para cá, Conor tinha passado a m aioria dos fins de sem ana ali com ela,quando não estava com os m eninos. Ele não era prático com o Mac, m asficava feliz de estar na com panhia de Natasha. Ficava deitado no sofá lendo jornal, acendia a lareira só pelo prazer de observar o fogo queim ando ou a ajudava a preparar um a refeição. Na m aior parte do tem po, se o clim aestivesse bom , ele

ficava sentado do lado de fora tom ando um a cervej a enquanto ela cuidavado j ardim . Natasha não entendia m uito de plantas, m as logo descobriuprazer em arrancar ervas daninhas e circular em um j ardim bem longe dasinfinitas tristezas urbanas que perm eavam seu trabalho.

Já fazia quase um ano que ela alugava o chalé, e o trabalho investido no jardim dera resultados no verão: plantas perenes tinham brotado, sempercalços, do solo enriquecido, rosas haviam desabrochado, m acieirastinham dado frutos. A m ulher da fazenda no fim da alam eda, que era umharas e não um a fazenda, tinha deixado sacos de esterco no portão.

— Não, eu não quero nada em troca — dissera ela. Era do tipo direta. —

Estou abarrotada disso. Quanto m ais você usar nas suas rosas, m elhor.

O chalé em Kent tinha lhe dado um pouco de paz de espírito. Não carregavanenhum a história anterior e dem andava cuidados constantes. Nos fins desem ana em que não conseguia ir até lá, ficava inquieta em casa.

E agora Natasha tinha m ais um m otivo para evitar ficar em Londres.

Mac tinha levado quase um ano para recolher aquilo que havia deixado para

trás.

* * *

— Então… o que os m eninos vão fazer neste fim de sem ana?

— Não tenho certeza. Acho que ela vai levá-los para a casa da m ãe.

— Não tem certeza? Isso não é do seu feitio.

— É. Bem . Ela estava tão azeda quando os devolvi que a gente nemconversou

— argum entou Conor com a boca curvada para baixo enquanto falava.

Natasha sem pre ficava espantada com os sinais físicos de ressentim ento quetom avam conta dele quando falava sobre a ex-m ulher.

— Mas você disse que eles tinham gostado de patinar.

Estavam no carro esportivo de crise de m eia-idade de Conor. Ele deu um aolhada no retrovisor e m udou de pista. Sua voz ficou m ais leve.

— Adoraram . Eu parecia um a vovozinha, m as os dois j á estavampatinando de costas no gelo depois de vinte m inutos. Você trouxe água?Nossa, estou m orrendo de sede.

Ela enfiou a m ão na bolsa, pegou um a garrafinha e desenroscou a tam papara ele. Conor a levou aos lábios e bebeu.

— Você os levou ao restaurante de que eu falei? O do m ágico?

— Levei — respondeu. — Eles adoraram . Desculpe… eu ia com entar.

— Acha que eles gostariam de ir de novo?

— Por que não? — Ele deu um longo gole. — Talvez eu os leve lá de novono dom ingo que vem . Tenho quase certeza de que ficarão com igo.

Natasha ficou encarando-o, então pegou a garrafinha quando ele a entregou.

Era raro ela ficar no apartam ento de Conor — nunca estivera em um aresidência tão im pessoal. Tirando as fotos dos filhos, os brinquedosespalhados e a roupa de cam a colorida no segundo quarto, nada ali sugeriaque fosse algo m ais do que um a suíte de hotel. Conor vivia com a estéticade um m onge. Ele tinha m áquina de lavar, m as m andava a roupa para alavanderia, que a entregava pronta para usar, porque não gostava de roupasestendidas pela casa. Não cozinhava — e por que cozinharia, ele dizia, se osrestaurantes próxim os faziam isso m uito m elhor? A cozinha ficavareluzente, intacta, e era lim pa duas vezes por sem ana sem m otivo algum .

Ela desconfiava que um a parte dele renegava aquela nova vida, que a recusadele de fincar raízes no apartam ento executivo era seu m odo de dizer quenão tinha intenção de ficar ali m uito tem po. Ele se soltava um pouco nochalé de Kent: quando acendia a lareira ou a churrasqueira, ou arrum ava uma prateleira, Natasha tinha um vislum bre do hom em superdedicado à mulher que ele deveria ter sido.

— Sabe… eu não deveria falar nada, m as, se o caso Persey for bem , Richarddeve querer conversar com você.

— Sobre o quê?

— Ah, fala sério. Você não é assim tão ingênua.

Ele deu um sorrisinho.

— Quer que eu m e torne sócia?

— Não fique tão espantada. Você anda trazendo m uitos casos ultim am ente,e este dos Persey está elevando o nosso status. Eu sei que ele estava receosode você trabalhar m ais na vara de fam ília, m as está surpreso por estarrendendo frutos tão rápido. O que você tem agendado para a sem ana quevem ?

Natasha tentou acalm ar a m ente, que de repente tinha disparado em direçõesinesperadas.

— Outra reunião com Harrington por causa dos Persey. Um a criança que foisequestrada. Ah, e um caso de questionam ento de idade de um j ovem embusca de asilo. Mais um de Ravi. — Ela se lem brou de que não tinhaconferido o celular naquela m anhã e o pegou na bolsa. — O m enino chegousem docum entos, alega ter quinze anos, as autoridades locais dizem que é mais velho.

Ele se enquadrava na Seção 17: as autoridades seriam obrigadas a pagar peloscuidados com ele. Se provassem que era m ais velho, o garoto seriatransferido para o Serviço Nacional de Apoio aos Refugiados. Com o sempre, era um a questão de despesas.

— Você vai pegar esse caso?

— Será um caso difícil. O ônus de provar que ele é criança é nosso. Minhaúnica esperança está nos procedim entos: ele não recebeu um relatório dooficial de triagem quando a questão veio à tona. Vou contestar isso.

A docum entação da criança era caótica, e casos assim estavam ficando m ais

difíceis de ganhar: a pressão política das instâncias superiores significava queou eram considerados adultos ou eram m andados de volta para casa.

— Você parece insegura. Em relação à idade dele.

— Não sei o que pensar. Quer dizer, ele não faz a barba nem nada, m as podeestar m entindo. Todos alegam que têm quinze anos hoj e em dia.

— Mas que cética, Poderosa. Não é do seu feitio.

— Bem , é verdade. Ou então têm m uitos m eninos com barba por aí.

Ela sentiu que Conor a observava fixam ente.

— Você nunca contou nada sobre aquele seu garoto iraniano, não é? —

Natasha olhou para ele. — Aquele sobre quem você falou, o “Senhor Quilometragem ”, que não veio de onde disse que veio. Nem foi para onde deveriater ido.

— Ali Ahm adi? Não.

— Nem com a assistente social?

Natasha cruzou o braços.

— O que eu poderia dizer? A coisa toda era inútil.

— Que bom . Você realm ente poderia ter se prej udicado. Não é sua função julgar as pessoas. O seu trabalho é apenas representar as pessoas da m elhor maneira possível com a inform ação que recebe. — Ele deu um a olhada nela,preocupado de talvez ter soado condescendente. — Só achei que você ficouenvolvida dem ais com a história dele. E daí que o garoto não poderia terandado tanto quanto disse que andou? Ele não estava tentando enganar vocêespecificam ente.

— Eu sei.

Natasha tinha levado aquilo para o lado pessoal: detestava quando m entiampara ela. Era por isso que havia se sentido tão culpada em relação a Mac portanto tem po.

— Você não tinha com o saber o que ele ia fazer.

— Eu sei — retrucou ela. — Você tem razão. Mas… isso realm ente afeta am aneira com o vej o todos eles. Fico lendo os relatórios e procurando osburacos.

— Mas não é sua função fazer um exam e forense da história deles.

— Talvez não, m as isso não m uda o fato de que o garoto será j ulgado pelotribunal. E a culpa em parte é m inha.

Conor sacudiu a cabeça.

— Você é exigente dem ais consigo m esm a. Não está levando em conta anatureza hum ana. Caram ba, se eu exam inasse a fundo a história das pessoasque represento, não pegaria caso nenhum .

Ela desatarraxou a tam pa da garrafinha e bebeu um pouco de água.

— Na m aior parte do tem po, consigo m e convencer de que estou fazendoalgo bom . Penso que estou do m elhor lado da lei. Não quero dizer que o seulado não sej a ótim o, m as você nunca quis tirar disso o m esm o que eu.

— O dinheiro.

— É. — Natasha riu. — Mas a coisa com Ahm adi… Bem , acho que aquilom e deixou mesmo cética, e eu nunca quis ser assim .

Conor deu um sorriso.

— Não sej a tão rígida, m oça. Se nunca quis ser cética, deveria trabalhar emum hospital de doentes term inais, não em um escritório de advocacia.

* * *

Conor não era do tipo possessivo; pelo contrário, durante toda a relação delesele se esforçara para deixar bem claro que era incapaz de lhe dar qualquerdem onstração de com prom isso. Ele não pisava na bola: chegava na horaque com binava, ligava quando prom etia que ia ligar, m as, da m esm a maneira, m antinha paredes invisíveis ao redor de si. Não expressava nem desejo, nem carência. Era afetuoso, sem sugerir que isso pudesse significar algo.Por isso, Natasha tinha poucos m otivos para acreditar que seu novo arranj odom éstico poderia ser um problem a. Até que, enquanto tiravam as coisas doporta-m alas do carro, ela contou para Conor.

— Ele passou a sem ana toda lá?

Conor colocou a m ala dele no chão.

— Chegou na terça.

— E você nem pensou em m e contar?

— Eu m al vi você esta sem ana. E foi difícil. Não vou passar por você notribunal e cochichar: “Oi, querido, m eu ex-m arido voltou a m orar lá emcasa.”

— Você poderia ter ligado.

— É. Mas não quis. Com o eu disse, pareceria estranho.

— Im agino que sim .

Ele pegou a m ala e um saco de com pras e entrou no chalé, com as costastensas.

— Mas não é assim , é? — perguntou ela ao perceber o tom dele.

— Não sei, Natasha. Com o é? — retrucou Conor com a voz excessivam entecalm a.

Ela o seguiu para dentro da cozinha. As flores que ela havia deixado na piano fim de sem ana anterior tinham m urchado, com as pétalas m arrons securvando sobre a borda do vaso.

— Ele não tem onde ficar, e é dono de m etade da casa.

Conor se virou para encará-la.

— Eu poderia ter um a doença term inal, estar falido e ter sido lobotom izadoe, m esm o assim , não chegaria a vinte m etros da m inha ex e da casa dela.

— Bem , nós não passam os por todo o processo pelo qual vocês passaram .

— Está dizendo que não se divorciaram . Eu perdi algum a coisa?

— Você sabe que nós vam os nos divorciar, Conor. Estam os só no com eço.

— No com eço? Ou será que ainda não é definitivo?

Ele tinha com eçado a desem pacotar as com pras com vigor excessivo.Apesar de estar de costas para ela, dava para im aginar a rigidez de seu maxilar.

— Está falando sério?

— Você acaba de m e contar que o seu ainda não ex-m arido voltou a m orar

com você. Com o é que posso não estar falando sério?

Natasha passou por ele pisando firm e.

— Meu Deus, Conor! Com o se a m inha vida j á não estivesse um a complicação danada. Você é a últim a pessoa que eu esperava que desse um a deSr. Possessivo.

— O que quer dizer com isso?

— Você não assum e o com prom isso de passar férias com igo e agora vemm e j ulgar pela m aneira com o o m eu ex e eu dividim os os nossos bens?

— Não é a m esm a coisa.

— Não? Você nem m e apresentou para os seus filhos.

Ele j ogou as m ãos para o alto.

— Eu sabia. Eu sabia que você ia m eter os dois no m eio.

— Bem , se quer m esm o entrar nesse assunto, vou m eter, sim . Com o vocêacha que m e sinto quando age com o se eu não existisse? Você nem m eencontra para tom ar um café quando está com eles.

— Os m eninos ainda estão em estado de choque. A vida deles anda o m aiorturbilhão. A m ãe deles e eu m al nos falam os. Apresentá-los à m am ãe número dois não vai aj udar m uito, não é?

— Por que eu tenho que ser a m am ãe núm ero dois? Não posso ser só suaam iga?

— Você acha que crianças são burras? Vão entender o que está acontecendorapidinho.

Agora ela estava gritando:

— Bem , e daí? Se estam os j untos, eu vou fazer parte da vida deles emalgum m om ento. Ou será que sou eu que perdeu algo?

— Claro que não. E, sim , nós estam os j untos. Mas por que essa pressatoda? —

Então ele suavizou o tom : — Você não entende as crianças, Natasha. Nãovai entender até ter filhos. Eles… Eles precisam estar em prim eiro lugar.Ainda estão m agoados. Muito tristes com tudo. Eu tenho que protegê-los.

Natasha ficou encarando-o.

— E eu não teria com o entender isso, não é, Conor? Afinal, sou estéril etudo o m ais…

— Ah, m erda. Natasha, não leve as coisas para esse lado…

— Vá para o inferno — sibilou.

Ela subiu a escada correndo, dois degraus de cada vez, e se trancou no

banheiro.

* * *

As narinas do cavalo pareciam pires, estavam tão abertas que ela via a carnerosada além do veludo negro. Os olhos estavam brancos, e ele agitava asorelhas para a frente e para trás, checando o tem po todo a atividade atrás desi, com as patas esguias im itando algum passo duplo com plicado. MalteseSal desceu da charrete de duas rodas, foi até o anim al e passou a m ão nopescoço dele, que reluzia de suor.

— O que acha, Vicente? Ele vai m e render um dinheiro?

Com eçou a soltar os arreios da charrete e fez um gesto para que o sobrinhoos soltasse do outro lado.

— Vai custar um pouco caro. Tem algum a coisa engraçada no passo dele.

Não gostei das patas.

— Este cavalo venceu quatorze vezes de quinze. As patas dele são m elhores

do que as suas. Este é o equivalente equino de um a superm odelo.

— Você é que está dizendo.

— Você não sabe distinguir um trotador de um cavalo de andadura. Estecavalo é bom . Estou sentindo. Ralph? Você lava as patas do m eu cavalopara m im ?

Ralph se adiantou para pegar o cavalo, que, livre das am arras da charretinha,deu um a volta com passos graciosos pelo terreno, fazendo com que Ralphtivesse de segurar as rédeas com força.

Sarah se desviou deles, fechando o portão atrás de si. Cowboy John nãoestava à vista, e ela sem pre se sentia um pouco acanhada perto dos hom ensde Maltese Sal.

Sal sem pre estava rodeado por eles. Supostam ente existia um a Sra. Sal, dom esm o m odo que a m aioria dos hom ens dele tinha esposa, m as CowboyJohn dissera que, até onde sabia, ela nunca saía de casa.

— Acho que ele m anteve a m ulher trancada ali pelos últim os vinte anos.Ela só serve para cozinhar, lim par e… — Ele aj eitou o chapéu. — Deixepara lá.

Sarah tinha consciência do olhar deles sobre si ao avançar até a baia de Boo eficou contente quando eles se distraíram com a incapacidade de Ralph delavar as patas inquietas do anim al.

Ela sem pre sentia pena dos cavalos trotadores e de andadura: com patasesguias e olhos doces, eram m andados para o estábulo, alim entados até atam pa e explorados sem descanso até as patas cederem , ou Sal perder ointeresse, e eles sim plesm ente desaparecerem . Vô não aprovava a m aneiracom o eram forçados a se arrastar pelas ruas, os castigos severos dados aosque dem onstravam m edo ou desobedeciam . Havia trocas silenciosas deolhares quando Sal perdia a cabeça

e batia em um deles. Mas ninguém nunca lhe dizia nada. Ele não era esse tipode pessoa.

Boo assoprou com o focinho de leve quando Sarah entrou na baia; a cabeça já se esticava por cim a da porta em busca de guloseim as. Ela lhe deu hortelãe abraçou o pescoço dele, sentindo seu cheiro doce, e deixou que ele fuçasseem seus bolsos em busca de m ais com ida, então foi trocar a água dele e ajeitar a forração de palha.

Apesar da aj uda de Cowboy John, cuidar de Boo estava ficando cada vez mais difícil. Os Hewitt, que nunca tiveram nem um peixinho dourado, haviamficado frustrados pela aparente incapacidade dela de chegar em casa na horaestipulada. Sarah j á não tinha m ais explicações críveis (logo exauriu osônibus atrasados, os castigos na escola e as visitas de em ergência ao avô;sabia que j á não acreditavam m ais nela) e enfrentaria m ais um serm ãoexasperado sobre com o era im portante eles sem pre saberem por onde elaandava e sobre os perigos de ela sum ir por horas a fio. Então, quandodesconfiava que estavam m esm o m onitorando-a, ela m atava aula no diaseguinte. A escola não parecia ter reparado nas faltas, m as Sarah sabia queisso aconteceria m ais cedo ou m ais tarde. Mas que escolha tinha? Às vezes,esse era o único j eito de ela ir até o estábulo alim entá-lo.

Ela deixou Boo sair da baia e cam inhou com ele, usando um a guia comprida, por Sparepenny Lane, sem pre perto da calçada para evitar os carrosque passavam e conversando baixinho com ele quando a energia arm azenadafazia com que se deslocasse de lado ou refugasse com um a placa de trânsito.Isso era esperado: ele era um cavalo que gostava de trabalhar, que precisavanão apenas do desafio físico, m as tam bém do exercício m ental.

— É inteligente dem ais para seu próprio bem — dizia Cowboy John depoisque Boo abria a tranca da baia pela m ilésim a vez.

— É inteligente dem ais para você — retrucava Vô.

— De quanto cérebro ele precisa para fazer piruetas?

Ela estava parada no fim da alam eda, calada com o cair da noite, e tentounão pensar em com o Vô parecera frágil naquele dia. Com o deveria ter seuâm ago de aço reduzido a algo fraco e dependente? Era difícil vê-lo daquele jeito, acreditar que ele voltaria ao apartam ento deles, à antiga vida. Mas Sarahtinha que acreditar que sim .

Ela cam inhou com o cavalo de ponta a ponta m ais um a vez, pedindo-lhedesculpa pela falta de tem po, com o se ele pudesse entender. Boo agitou acabeça com as orelhas em pé e o passo apressado em um pedido m udo parair m ais rápido, m ais longe. Quando ela virou em direção ao portão, elependeu um pouco a cabeça, com o se estivesse decepcionado, e Sarah sesentiu culpada. Maltese Sal e os am igos estavam na outra extrem idade dopequeno pátio, fum ando e falando um m ais alto do que o outro. Quandoabriu o portão, ela viu Ralph próxim o ao

grupo. Ele idolatrava Maltese Sal; quando Sal j ogava um cigarro para ele,chegava a corar de prazer.

Foi quando ela abriu o arm ário onde guardava a ração que seu coração ficouapertado. Havia quatro porções de feno, m enos do que m etade de um fardo.Ela passara a sem ana tão ocupada que tinha se esquecido de pedir m ais aCowboy John. O arm ário dele estava trancado.

Ela enfiou as m ãos nos bolsos em busca de dinheiro, para quem sabe comprar um pouco m ais de Ralph. Quarenta e seis centavos e o passe de ônibus.

Ouviu um barulho atrás de si. Sal estava abrindo o arm ário dele, assobiando.

Pela porta, ela viu os fardos bem -arrum ados em pilhas, os sacos de ração decavalo cara. Nunca tinha visto tanta forragem boa em um lugar só. EnquantoSarah observava, ele se virou para trás de repente e ela corou por ter sidopega observando.

Ele deu um a olhada no arm ário atrás dela.

— Você tem pouco, não é? — Ela não respondeu. Ocupou-se soltando um arede de feno. Ele fez um barulho com a boca. — Parece que o arm ário estávazio.

— Está tudo bem — retrucou Sarah.

Maltese Sal deixou a porta se fechar atrás de si e deu um passo na direçãodela. A cam isa dele era im aculada, com o se nem tivesse chegado perto deum cavalo, e o dente de ouro dele brilhou quando abriu a boca.

— Você tem feno suficiente?

Ela olhou nos olhos dele, então desviou o olhar.

— John ia… ia m e em prestar um pouco.

— John está resolvendo uns negócios. Só volta am anhã. Então você está comum problem a.

— Eu tenho feno o bastante.

Sarah pegou os quatro punhados de feno. Endireitou o corpo e fez m enção depassar por ele, m as Sal estava em seu cam inho. Não o bloqueava, porémisso bastou para que ela precisasse pedir que saísse da frente.

— O seu cavalo é m uito bom .

— Eu sei.

— Não pode alim entar um cavalo desses com m erda que cata no chão.

— É só até am anhã.

Ele tirou o cigarro da boca e pegou um chum aço de feno do m onte que elacarregava, encostou a brasa acesa nele e ficou observando enquanto sereduzia a um fiapo preto.

— É bom para queim ar. Só para isso. E m ais nada. O seu avô continuadoente, não é? — Ela assentiu. Um trem chacoalhou acim a dos dois, m asSarah não tirou os olhos dele. — Não quero que você dê essa m erda para oseu cavalo com er.

Coloque aqui no chão.

Sal enfiou o cigarro de volta na boca, foi até seu arm ário e trouxe um fardode feno. Ainda estava um pouco verde e exalava um cheio suave de cam pina.Ele o carregou sem esforço, segurando pelo barbante, indo até o arm ário delae colocando no canto. Enquanto ela ficou ali parada, encostada na parede, elevoltou e pegou m ais um . Então pegou um saco grande de ração prem ium de

cavalo e, com um grunhido, colocou no arm ário dela.

— Pronto — disse ele. — Isso vai aj udar por um tem po.

— Não posso aceitar — sussurrou ela. — Eu não tenho dinheiro.

Ele parecia conseguir ler sua m ente.

— Você m e paga quando tiver dinheiro, certo? Se vou gerenciar este lugar,não quero ver um bom cavalo se deteriorar por causa de um a alim entaçãoruim .

— Ele bateu com o calcanhar nos quatro punhados de feno. — Jogue isso nobraseiro.

— Mas…

— Você aceita do John, não aceita? — Os olhos de Sal estavam fixos nela.

Sarah assentiu com relutância. — Então, aceite de m im . Agora eu precisocuidar da vida.

Ele saiu para o pátio gingando ao cam inhar.

Sarah o observou se j untar aos hom ens e se abaixou para sentir o cheiro dofeno novo. Tinha qualidade m elhor do que a que estava acostum ada. Sarahdesconfiava que, se Vô estivesse ali, não iria deixá-la aceitar. Mas essa era aquestão.

Olhou o relógio e sentiu um calafrio. Faltavam quatorze m inutos para a horaem que deveria estar de volta à casa dos Hewitt. Quatorze m inutos parapercorrer um traj eto de ônibus que dem orava cinquenta e cinco m inutos.Cortou os barbantes do feno, pegou um a braçada e saiu m eio que correndoaté onde o seu cavalo esperava.

* * *

O silêncio de um a casa londrina tinha um a angústia curiosa, ela observou aofechar a porta atrás de si, com seu cham ado ecoando no nada. De algum m

odo, o silêncio da rua londrina que se estendia ao hall de entrada fez com quea dela parecesse bem m ais vazia do que o chalé no interior. Ou talvez fosse apossibilidade de, naqueles últim os tem pos, haver alguém em casa.

Natasha passou por cim a das então onipresentes bolsas de câm eras e entrouna sala. Suspirou levem ente ao ver o equipam ento de ilum inaçãofotográfica em pilhado em um canto e conferiu a secretária eletrônica: a luzverm elha sem piscar lhe dizia que não havia m ensagem .

Fungou em busca de vestígios de vinho ou de fum aça de cigarro, um sinal deque ele teria recebido visita, m as não havia nada. As alm ofadas do sofáestavam

am assadas, revelando um a noite diante da televisão. Ela pegou um a por uma, afofou e devolveu ao lugar correto e então se sentiu levem ente irritada porter feito isso.

Voltou para o hall, pegou a m ala e subiu a escada, com o som dos passosecoando de um j eito que a deixou constrangida, sentindo-se um a estranha naprópria casa.

Ela e Conor tinham salvado o fim de sem ana depois do início am argo, m asela sabia que os dois haviam ficado chocados com a ferocidade da discussão,pelo espectro repentino de sentim entos que am bos tinham tentado negar. Emseu íntim o, ela estava contente por ele se incom odar com o fato de Macestar ali, m as, ao m esm o tem po, sentia-se ressentida. Conor estava lhepedindo perm issão para opinar sobre a vida dela sem lhe abrir m ais espaçona dele.

— Você vai conhecer os m eninos, Poderosa — disse ele quando a deixou emcasa. — Prom eto. Só preciso de um pouco m ais de tem po, certo?

Ele não tinha pedido para entrar em sua casa.

Natasha deixou a m ala na cam a e abriu o fecho. Ia colocar a roupa suj a nam áquina de lavar e depois passar as cam isas sociais na frente da televisão.Mais tarde, iria se sentar à escrivaninha para preparar a papelada para otribunal da m anhã seguinte, garantindo que tinha tudo de que precisava —

um a rotina de dom ingo à noite tão conhecida para ela com o a palm a da mão.

Natasha ficou de pé, parada, por vários m inutos, de algum m odo paralisadapor aquela nova atm osfera. Apesar da sua ausência física, Mac pareciaonipresente na casa, com o se a tivesse retom ado para si.

— É m elhor você conferir se ele não está pegando livros e fotos escondido—

aconselhara Conor. — Dar-lhe acesso a tudo é o equivalente no divórcio aassinar um cheque em branco.

Mas ela não se incom odava com a perspectiva de perder coisas, m esm o queconsiderasse Mac capaz disso. Era a presença dele, o ar ao redor dele, que adesorientava.

Percebeu que ainda sentia raiva; raiva por ele não ter estado presente quandoela precisou, raiva por ele ter voltado para desestabilizar a vida dela quando atinha reconstruído. Era típico de Mac entrar de sola sem pensar nasconsequências. Ela o culpava pelo fim de sem ana, apesar de seu ladoracional saber que a culpa não era dele. Ela o culpava pelo fato de serobrigada a sair da própria casa. E ele parecia alheio a tudo isso: chegava, como sem pre, com seu sorriso encantador e seu j eito sim pático, com o se nadapudesse afetá-lo. Com o se seu casam ento não tivesse passado de umpontinho m inúsculo no radar em ocional dele.

Quase sem saber o que estava fazendo, Natasha atravessou o patam ar e foiaté o quarto de visita. Cham ou de novo, então em purrou a porta devagar;reparou na cam a de Mac por fazer, as pilhas de roupa suj a no canto, perto dacesta, o

leve cheiro de m aconha.

No fim das contas, ele não havia se em endado tanto assim . Natasha ficou àporta por um instante e então se pegou cam inhando em silêncio pelo quartoaté o banheiro anexo. O barbeador dele estava em um copo com a pasta dedentes e um a escova. O tapetinho estava em bolado no piso ladrilhado e ela

teve de se segurar para não aj eitá-lo. Mas a bagunça lhe dava um a noção desegurança perversa: um eco do hom em que Natasha sabia que ele era.Caótico. Im perfeito.

É por isso que estam os nos divorciando, lem brou a si m esm a, quasesentindo carinho por ele por causa daquela certeza.

Foi quando ela estava saindo que reparou no pote na prateleira de vidro naoutra ponta do banheiro, dentro de um a caixa cara cor de crem e e dourada: ohidratante de um a m ulher. Ao lado dele, um pacote de lencinhos demaquilantes.

Algo nela gelou e se solidificou. E então, piscando rápido, com os pés sem seim portarem com onde pisavam nem se faziam barulho, Natasha deu m eia-volta e saiu apressada do quarto de visita.

8

“A majestade dos próprios homens é mais bem percebida na maneiragraciosa de lidar com tais animais.”

XENOFONTE, SOBRE EQUITAÇÃO

O tapete na sala do diretor era felpudo e azul, tão exuberante e m acio quequase nenhum aluno que ia parar ali conseguia tirar da cabeça a ideia de como seria arrancar os sapatos e as m eias e afundar os pés nele. Talvez fosse porisso que tantos visitantes esporádicos do Sr. Phipps pareciam distraídos, nãorefletindo fielm ente o nível de déficit de atenção na escola.

Sarah não estava distraída por causa do tapete, m as sim pelo fato de não terconseguido ir ao haras nas quarenta e oito horas anteriores.

— É a quarta vez que você perde os dois tem pos de inglês neste sem estre,Sarah. Antes, essa era um a das suas m elhores m atérias. — O Sr. Phippsexam inou os papéis à m esa. Ela retorceu as m ãos diante do corpo. — Seique as coisas estão um pouco difíceis na sua casa, m as você nunca faltou àsaulas. Está com dificuldade para chegar à escola? A fam ília com que está morando não aj uda?

Ela não podia contar a verdade, que dissera a eles que perdera o passe deônibus e usara o dinheiro que então lhe deram para com prar a forragem dabaia de Boo.

— Eles têm a obrigação de garantir que você vá à escola, Sarah. Então, senão estiverem lhe aj udando a chegar aqui a tem po para as aulas da m anhã,nós precisam os saber.

— Eles estão aj udando.

— Então por que você tem faltado?

— Eu… m e confundo com as linhas de ônibus. Eu perdi o ônibus.

Boo estava com eçando a sentir falta da rotina. Naquela m anhã, ele quasetinha fugido do estábulo, depois havia assustado um a m ulher com umcarrinho de bebê e disparado pela rua, o que fez um táxi buzinar para ele.Sarah ficou parada na frente do capô, berrando com o m otorista. Quandochegara ao parque com Boo, ele refugara e então se recusara a obedecer àsordens dela, posicionando a boca no bidão. Ela ficara irritada e decepcionadacom ele, m as se arrependera depois, quando voltaram para o estábulo, suadose arrasados.

— As autoridades locais vão pagar um táxi. Vam os fazer o que fornecessário, Sarah, se o transporte for m esm o o problem a. — Ele uniu aspontas dos dedos. —

Mas não acho que você estej a m e contando tudo. Diz aqui que faltou duasvezes à aula de geografia nas quintas-feiras à tarde e três vezes à educaçãofísica nas

tardes de sexta-feira. Gostaria de m e explicar com o isso aconteceu?

Ela olhou para os pés. Alguém que tinha um tapete tão luxuoso com o aquelenão conseguiria entender um a vida com o a dela.

— Eu fui visitar o m eu avô — m urm urou ela.

— Ele continua no hospital?

Ela assentiu. Até Vô ficara bravo quando ela aparecera lá na sexta-feira. Elehavia olhado para o relógio na parede e m urm urado:

— Errado. Après.

Ela não precisara se esforçar para entender o que ele queria dizer. O avô tinhadito que não era m ais para ela ir naquele horário. Mas ele não fazia ideia.Não sabia que ela passava a m etade do dia correndo pelo nordeste deLondres, pulando de um pé para outro nos pontos de ônibus, ou disparandopor ruazinhas para tentar chegar ao estábulo e sair de lá a tem po de respeitaros horários de todos.

— Ele está m elhorando? — perguntou o diretor.

A expressão do hom em tinha se suavizado. Se fosse um tipo diferente depessoa, pensou Sarah, ela teria chorado: todo m undo sabia que Phipps nãosuportava ver m eninas se esvaindo em lágrim as.

— Um pouco — respondeu.

— Este é um m om ento difícil para você. Eu com preendo. Mas precisaconsiderar a escola com o algo constante na sua vida, algo em que pode seapoiar.

Se está com dificuldades, Sarah, precisa conversar conosco. Com igo ou comseus professores. Todo m undo aqui quer que você tenha sucesso. — Ele serecostou na cadeira. — O que você não pode fazer é faltar aula para visitar oseu avô na hora em que quiser. Vai ter que com eçar a pensar nas suas provasem breve, e este m om ento é fundam ental na sua vida escolar. Você achaalgum as m atérias difíceis, certo? Então, precisa vir às aulas, não im porta oque estej a acontecendo na sua vida, para sair daqui com um a educaçãosólida. — Ela assentiu sem olhá-

lo nos olhos. — Quero ver um a m elhora, Sarah. Um a m elhora real. Achaque pode fazer isso?

Cowboy John estava lá na últim a vez. Ele tinha ido visitar Vô e a prim eira

coisa que disse quando ela passou pelo portão foi que ia liberá-la de pagar oaluguel atrasado. Ele falaria com Maltese Sal, e ficaria tudo bem . Ela só teriaque com eçar do zero quando Sal assum isse. Dava para ver pela expressão deJohn que ele esperava que Sarah ficasse aliviada. Mas ela havia sentido osangue se esvair do rosto. Sabia o que aquilo significava: que ele j á nãoacreditava que Vô poderia pagar a dívida.

Ele não acreditava m ais que Vô voltaria para casa.

— Chega de m atar aula, Sarah. Com binado?

Ela ergueu a cabeça.

— Com binado — disse, im aginando se o Sr. Phipps conseguia ler seus

pensam entos.

* * *

Natasha se sobressaltou quando o viu na cozinha. Eram quinze para as sete dam anhã. Quando m oravam j untos, ele m al se m exia antes da dez.

— Arrum ei um trabalho em Hertfordshire. Um ensaio publicitário. Cabelo,m aquiagem , o serviço com pleto. Vou dem orar um a boa hora e m eia parachegar lá. — Mac estava com cheiro de xam pu e crem e de barbear, com o sej á tivesse tom ado banho. Ela não tinha ouvido nada que indicasse aquilo,pensou, enquanto disfarçava o choque preparando o café da m anhã. —Espero que você não se incom ode. Eu usei o últim o saquinho de chá. — Eleergueu a m ão e acenou com um a fatia de pão torrado. Estava lendo o j ornal.— Com pro m ais hoj e. Você ainda tom a café, certo?

Ela fechou a porta do arm ário.

— Acho que vou ter que tom ar — respondeu.

— Ah. E lem bra que eu disse que ia sair quinta-feira e passar uns dias fora?

Bom , o trabalho foi cancelado, então vou ficar por aqui, no fim das contas.Tudo bem por você?

— Tudo.

Ele havia derram ado um pouco de leite na bancada da pia.

— Quer ler? — Ele indicou o j ornal. — Desculpe. Eu não tive a intenção deroubá-lo.

Natasha sacudiu a cabeça. Tentou resolver onde ia se sentar. Se ficasse emfrente a ele, os dois poderiam encostar os pés. Se ficasse ao lado de Mac na mesa, poderia parecer que queria estar perto dele. Paralisada entre as duasopções, Natasha perm aneceu em pé ao lado dos arm ários com sua tigela decereal.

— Eu fico com a seção de esportes. Pode ficar com a parte principal. Alguma notícia do corretor? Eu queria ter perguntado ontem à noite.

— Dois casais vão visitar a casa no fim de sem ana. Aliás, eu queria que vocênão fum asse m aconha aqui.

— Você não se incom odava com isso antes.

— Na verdade, eu m e incom odava, sim . Só nunca falei. Mas essa não é aquestão. Se vai ter gente aqui para ver a casa, não acho que sej a bom o lugarcheirar com o um café de Am sterdã.

— Anotado.

— E o corretor tem a chave, então você não precisa estar em casa.

Ele aj eitou a cadeira para olhar m elhor para ela.

— Eu não preciso estar aqui? Você vai viaj ar de novo?

— Vou.

— Nossa, você tem passado m uitos fins de sem ana fora. Para onde vai dessavez?

— Faz diferença?

Ele ergueu as m ãos.

— Só estou tentando ser educado, Tash.

— Vou para Kent de novo.

— Legal. Você deve gostar de lá. Conor tem um a casa lá, é isso?

— Algo assim .

— Ele não vem m uito aqui, vem ?

— Por que será?

Ela se concentrou no cereal.

— Você m e surpreende. Até parece que ele se preocupava tanto quando agente ainda estava j unto… Certo… Certo — com pletou ao vê-la levantar acabeça de supetão. — Eu sei. Ano zero. A gente não deve falar sobre O QueAconteceu Antes.

Natasha fechou os olhos e respirou fundo. Era cedo dem ais para aquilo.

— Claro que a gente pode conversar sobre o que houve antes, Mac. Só achoque a vida vai ficar m ais fácil sem com entários sarcásticos sobre o queaconteceu no nosso casam ento. Ou sobre o que não aconteceu — retrucouela, dando um a ênfase m aior às últim as palavras.

— Por m im , tudo bem . Eu j á disse que, se ele quiser vir aqui, eu posso sair.A gente pode com binar as noites se você quiser. Eu saio na terça, você sai naquarta, esse tipo de coisa. — Ele exam inou algo no j ornal com m uitaconcentração e com pletou: — A gente pode ser um ex-casal m oderno.

Natasha estendeu a m ão para pegar o café.

— Acredito que tudo isso será resolvido m uito antes de a gente com eçar acom binar “noites de nam oro”.

Noites de nam oro. Ela sentiu a existência da m ulher invisível com toda a

força: sabia que, nos fins de sem ana em que não ficava em casa, a m ulherestava lá, m esm o não entrando m ais escondida no banheiro de visitas paraconfirm ar. Às vezes desconfiava que dava para detectar o cheiro da outra noar.

Outras vezes, era só o com portam ento de Mac. Ele ficava solto, relaxado…do m esm o j eito que costum ava ficar depois de passarem boa parte do diana cam a.

Você passou o fim de semana inteiro transando na nossa casa, pensava ela,então se condenava por isso.

O cereal tinha ficado em papado em sua boca. Engoliu o resto e em purrou atigela na direção do lava-louça.

— Está tudo bem com você?

— Tudo.

— Tudo bem de novo. Não está achando isso difícil dem ais?

Às vezes Natasha tinha a im pressão de que ele a estava testando. Com o se

quisesse que ela dissesse que não aguentava m ais e fosse em bora. Não váem bora, Conor a tinha advertido, apesar do que sentia. No m om ento emque saísse de casa, ela perderia a vantagem m oral e j urídica. Se Mac estavainvestindo tanto tem po e esforço naquilo, talvez não quisesse tanto assim irem bora.

— É ele que quer vender — argum entara Natasha.

— É o que ele quer que você pense — respondera Conor. Ele conseguiavislum brar possibilidades subversivas em quase todo tipo de com portamento e considerava a presença de Mac sem elhante à de um inim igo em plenaocupação.

— Não ceda nem um centím etro. Não recue. Não perm ita que ele saibaquais são os seus planos.

— Não estou achando nem um pouco difícil — respondeu ela, anim ada.

— Ótim o. — A voz de Mac ficou m ais suave. — Antes de voltar, eu fiqueicom um pouco de m edo de com o isso funcionaria.

Ela não sabia bem se acreditava naquilo. Mac não parecia nem um poucopreocupado com coisa algum a. Isso não havia m udado.

— Bom , com o eu disse, não se preocupe por m inha causa. — Ele nãoencarou Natasha. — O que foi? — perguntou ela.

— Nada m uda, não é m esm o, Tash?

— O que você quer dizer com isso?

Ele a exam inou por um m om ento, sem sorrir.

— Você continua sem revelar nada. — Eles se encararam . Mac desviou oolhar prim eiro e engoliu o chá, então com entou: — Ah, aliás, eu lavei roupaontem à noite e tinha algum as coisas suas na cesta, então lavei tudo.

— Que coisas?

— Ah… um a cam iseta azul. E basicam ente roupa íntim a. — Ele term inoude tom ar o chá. — Quer dizer, lingerie. — Virou um a página do j ornal. —Reparei que você deu um upgrade desde que a gente se separou… — O rostode Natasha ficou quente. — Tudo bem . Eu coloquei na tem peratura baixa.Entendo dessas coisas. Acho que até botei no m odo delicado.

— Não — disse ela. — Não…

Ela se sentiu terrivelm ente exposta. Só de pensar naquilo.

— Eu só estava tentando aj udar.

— Não. Não estava. Você está… está… — Ela pegou a pasta de trabalho esaiu, irritada, em direção à porta. Então deu m eia-volta. — Não encoste na minha roupa íntim a, certo? Não encoste nas m inhas roupas. Não encoste nasm inhas coisas. A sua presença aqui j á é ruim o suficiente sem você rem

exendo nas m inhas calcinhas.

— Ah, fala sério. Você acha que a m aior em oção que eu posso ter é remexer na sua roupa suj a? Caram ba, eu só estava tentando aj udar.

— Bom , não tente, pode ser?

Ele j ogou o j ornal na m esa.

— Não se preocupe. Daqui para a frente não vou nem chegar perto das suascalcinhas. Se m e lem bro bem , na verdade, nunca cheguei m esm o.

— Ah, m as que legal — disse ela. — Isso é m esm o algo m uito legal parase dizer, m aravilha.

— Desculpe. Eu só…

Mac suspirou fundo. Os dois ficaram olhando para o chão, então ergueram oolhar e se encararam . Ele levantou as sobrancelhas.

— Vou passar a lavar a m inha roupa separada. Certo?

— Ótim o — disse ela, fechando a porta com firm eza atrás de si.

* * *

Sarah estava debruçada por cim a do pescoço do cavalo, os dedos dos pésapertados nos estribos, o vento levando as lágrim as que escorriam nahorizontal pelo canto de seus olhos. Avançava tão rápido que seu corpo tododoía: as m ãos, que seguravam firm e na cernelha com as rédeas bem presas;a barriga, por conta do esforço para m anter a posição contra as forças conjuntas do vento e da gravidade; as pernas, que se em penhavam para seprender com firm eza nos flancos do anim al. A respiração dela era ofegante,os braços apertavam o pescoço do cavalo à m edida que ele disparava,enquanto o trovej ar dos cascos enchia os ouvidos dela. Sarah não faria comque ele parasse. Fazia sem anas que Boo precisava daquilo, e ali o terreno eraam plo e nivelado o suficiente para que ela o deixasse disparar até que secansasse.

— Vá em frente — sussurrou para ele. — Vá.

As palavras ficaram presas na garganta dela. Boo não teria escutado nem setivesse berrado; estava perdido em algum m undo puram ente físico só dele.O

instinto lhe dizia para aproveitar a liberdade, perm itir que seus m úsculostolhidos se esticassem , que as pernas voassem pelo chão áspero, que os pulmões se contraíssem com o esforço de m anter a velocidade acelerada. Elaentendia.

Tam bém precisava daquilo.

Ao longe, pilares de aço perfuravam o horizonte, unidos por cabos quetraçavam um a progressão delicada pela cidade. Abaixo deles, em um a faixafina erguida por pilastras de concreto que atravessava os pântanos, o trânsitose m ovia em um a procissão infinita. Várias buzinas soavam a distância;talvez fossem para ela, m as Sarah não poderia se concentrar por tem posuficiente para saber. Boo avançava m ais depressa do que os carros e caminhões presos no trânsito da hora do rush, e a m aneira com o aquilo aeletrizava am eaçava se transm utar em m edo enquanto ela se perguntava seconseguiria parar. Nunca tinha ido tão longe com ele, nunca perm itira quecorresse tão rápido. Ele deu um a guinada para evitar um a bicicleta velha nom eio do capim alto, quase fazendo com que ela caísse.

Ao se esforçar para m anter o equilíbrio, Sarah sentiu os quartos fortes doanim al se retesando enquanto ele avançava com m ais rapidez, deixando avisão dela borrada, prendendo sua respiração no peito. Ela ergueu a cabeçado pescoço dele e cuspiu os fios da crina que batiam em sua pele, tentandoavaliar a distância que haviam percorrido. Puxou as rédeas de leve,reconhecendo que teria pouca força para segurá-lo se ele resolvesse serebelar. Algum a parte distante dela pouco se im portava: com o seria m aisfácil para eles continuar indo em frente. Subir correndo aquele barranco decapim e atravessar direto a estrada, desviando do tráfego, as ferradurassoltando faíscas. Saltariam por cim a dos carros, das cercas. Disparariam porsob as pilastras, passariam pelos arm azéns e estacionam entos e seguiriamem frente até saírem da cidade. Só ela e seu cavalo, galopando no m eio docapim alto rum o a um futuro descom plicado.

Mas em algum a m edida Boo ainda pertencia a Vô. Sentindo a tensãocrescente nas rédeas, ele dim inuiu a velocidade, obediente, com as orelhasindo para a frente e para trás, com o se tentasse conferir se tinha entendido am ensagem . Sarah se perm itiu afundar na sela e foi deixando o corpo eretolentam ente, reforçando que dizia a ele para ir m ais devagar. Para fazer o queela pedia. Para retornar ao m undo deles.

A uns quinze m etros da estrada de m ão dupla, Boo desacelerou e passou acam inhar, com as laterais do corpo suadas, arfando com o esforço do queacabara de fazer; a respiração saía das narinas em arroubos curtos e ruidosos.

Sarah perm aneceu sentada, estreitando os olhos para a distância que haviapercorrido. Já não estava m ais ao vento, porém as lágrim as continuavamescorrendo.

* * *

Ruth, a assistente social, estava no portão da escola. Sarah estava procurandom oedas na m ochila quando a viu. A m ulher se postara de pé ao lado dasaída e tinha estacionado o carrinho verm elho do outro lado da rua, com o senão quisesse ser introm etida. Todos os alunos olhavam para ela de bocaaberta ao sair pelo portão. Sarah foi até ela com relutância; Ruth não teriacham ado m ais atenção se estivesse usando um avental com as palavras“Assistente Social” escritas em néon. Todos os assistentes sociais tinhamaquela m esm a aparência, feito um policial à paisana.

— Sarah?

O coração dela deu um salto ao se dar conta do possível significado dapresença da m ulher ali. Ruth devia ter percebido, porque, quando Sarahcorreu na sua direção, disse:

— Não aconteceu nada com o seu avô. Não precisa se preocupar.

Seu peito m urchou de alívio, e, com relutância, Sarah seguiu a m ulher até o

carro, abriu a porta do carona e entrou. Tinha planej ado visitar Vô naquelanoite; m etade dela ficou se perguntando se conseguiria convencer Ruth a lhe

dar um a carona. Foi então que reparou nas duas m alas pretas no bancotraseiro. Pela abertura de um a delas, identificou sua calça de m oletom .Cinco sem anas e duas m udanças lhe diziam o que aquelas m alassignificavam .

— Estou indo para algum lugar?

— Sarah, os Hewitt se cansaram . — Ela deu a partida no carro. — Não évocê… Eles a acham um a m enina adorável… Mas assum ir aresponsabilidade por alguém que vive desaparecendo é dem ais para eles. Foio m esm o com os MacIver. Eles têm m edo de que algo aconteça com você.

— Não vai acontecer nada com igo — disse Sarah, com a voz carregada deescárnio.

— A escola tam bém está preocupada. Me contaram que você anda faltandoàs aulas. Quer m e dizer o que está acontecendo?

— Não está acontecendo nada.

— Tem algum garoto envolvido? Algum hom em ? Você tem sum ido por muito tem po, Sarah. Não pense que a gente não repara. Entre os Hewitt e aescola, fizem os as contas.

— Não. Não tem garoto nenhum . Nem hom em nenhum .

— Então o que é?

Sarah raspou os pés no tapete de borracha. Queria que Ruth fosse para algumlugar em vez de ficar ali parada na frente da escola, onde todo m undo podiaolhar para o carro ao sair pelo portão. Mas a assistente social estavaesperando um a resposta.

— Eu queria ver o m eu avô.

— Mas não é só isso, é? Fui ao hospital na terça-feira, na últim a vez que aescola m e ligou para dizer que você tinha sum ido. Fui pegar você lá, m asvocê não tinha ido ao hospital naquele dia. Onde estava?

Sarah ficou olhando para as m ãos, que ainda tinham bolhas das rédeas. Elesiam descobrir. Ela sabia que iam . Pensou em Boo, na sensação de m ontá-lo,a noção fugidia de liberdade enquanto corriam rum o a um futuro diferente.Enfiou a m ão na m ochila, em um reflexo, procurando as chaves do estábulo.

— Você tem que m e aj udar, Sarah. Estou ficando sem opção para você. Jápassou por duas fam ílias em cinco sem anas. Essas pessoas são boas, legais.Você quer ir parar em um a instituição? Posso colocá-la em um abrigo, ondevão se certificar de que você não saia. Podem os im por um toque de recolher,ou arrum ar alguém para acom panhá-la até a escola na ida e na volta todos osdias.

É isso que você quer, Sarah?

A m enina enfiou a m ão na m ochila e tirou de lá um pedaço de papel.

“Qualquer coisa que você precisar”, dissera ele. “Qualquer coisa m esm o.”

— Mac — disse ela, erguendo o rosto para encarar Ruth. — Eu quero voltar

para a casa de Mac.

* * *

Dez pessoas. Seis visitas à casa. E nenhum a oferta. O corretor tinha tentadose j ustificar.

— São as taxas de j uros — argum entara ele. — Deixam as pessoasnervosas, e aí elas dem oram o dobro do tem po para fazer um a oferta.

— Mas a gente precisa vender esta casa.

Natasha tinha se espantado consigo m esm a. No com eço não quisera sair, mas isso tinha sido antes de Mac fixar residência.

— Então m inha única sugestão é reduzir o preço. Tudo vende se estiverbarato o suficiente. Ah, e, se m e perm ite dizer, acho que aj udaria se dessemum a arrum ação no quarto de visita. Nunca aj uda quando com pradores empotencial precisam passar por cim a de… hum … cuecas para chegar ao

banheiro.

Natasha estava na banheira, im aginando quanto teriam que baixar o preçopara conseguir vender. Precisaria ser o suficiente para atrair com pradores, mas, se baixasse dem ais, ela se sentiria enganada. Era um a casa linda em um arua bacana. Todo m undo dizia que aquela área de Londres estava em alta.Além disso, ela precisava do suficiente para com prar um apartam ento emoutro lugar.

Quando pensava sobre voltar a m orar em um apartam ento, não conseguiadispersar a nuvem de tristeza que pairava sobre ela. Ao chegar à m etade dacasa dos trinta, era de se esperar que a pessoa tivesse estabelecido a base dasua vida.

Já deveria ter achado um parceiro e se fixado em um a casa que adorava, comum a boa carreira. Quem sabe um bebê ou dois. Mal dava para ver sua barrigalisinha por baixo do m apa em relevo das bolhas de sabão. Um em quatro dosrequisitos. Pensando bem , não era um resultado nada bom . E, desde oepisódio com Ahm adi, ela j á nem sabia m ais se realm ente se sentiaconfiante em relação à carreira.

— Natasha?

Ela se sentou ereta na banheira e viu que tinha se lem brado de trancar aporta.

— Estou aqui — gritou ela.

Por favor, que ele não tenha trazido ninguém para casa.

Ela ouviu o baque seco de obj etos sendo largados no chão, os passos dele naescada. O equipam ento dele ia sendo em pilhado cada vez m ais no hall deentrada: m ontes de holofotes, bolsas de câm eras de lona, rebatedores de luz.Era tanta coisa que em breve Natasha seria forçada a brincar de saltarpedrinhas para entrar ou sair de casa.

— Estou na banheira — gritou de novo.

Escutou quando Mac parou do outro lado da porta e se sentiu estranham enteconstrangida. Quase podia vê-lo com a cam iseta e a calça j eans, passando am ão

pelo topo da cabeça.

— Fui ao superm ercado — disse ele. — Trouxe um m onte de coisa. Estátudo na cozinha. Chá e tudo o m ais. — Maravilha, pensou ela. Quer umamedalha? —

E liguei para o corretor — continuou ele. — Disse que aquelas últim aspessoas talvez ainda façam um a oferta. Só faz dois dias que estiveram aqui.

— Não vão fazer, Mac. Quando se gosta de um lugar, se faz um a ofertadireto. Você sabe com o funciona.

Ela escutou quando ele recebeu um a m ensagem de texto. Ao voltar a falar,parecia distraído, com o se estivesse escrevendo a resposta. Ele nuncaconseguira fazer duas coisas ao m esm o tem po. Natasha afundou m ais nabanheira, deixando as bolhas subirem até o queixo, e a voz e Mac ficouabafada.

— Bom , de qualquer form a, ele deve ter contado para você que um a pessoavem na quarta-feira. Então, nunca se sabe.

Eles tinham visto a casa j untos. Mac viera direto do trabalho, ainda com acâm era pendurada no pescoço. Ela tinha dito que ele parecia alguémquerendo se exibir, m as ele havia tirado fotos dos côm odos, e depois os doisficaram anim ados com a luz, com o espaço. Fizeram um a oferta na m anhãseguinte.

— E eu recebi outra ligação.

Dessa vez ele pareceu um tanto inseguro. Natasha secou os olhos.

— O que foi?

Ela se sentou ereta.

— Da assistência social. Aquela m enina que passou a noite com a gente.

— O que tem ela?

— Perguntaram se a gente poderia considerar ficar com ela durante algum assem anas. Parece que seu lar não está dando certo. — Ele hesitou. — Elapediu para ficar com a gente.

Os olhos cautelosos daquela m enina para o prato do café da m anhã. Aexpressão de choque dela ao confrontar a devastação da sala do apartam entodo quinto andar.

— Mas a gente não conhece a m enina.

— Ela disse a eles que nós dois som os am igos da fam ília dela. Eu não quiscontradizer. Mas acho que é irrelevante. Eu respondi que achava que nãoseria possível.

Natasha saiu da banheira.

— Por quê?

Ele não respondeu de im ediato. Natasha ouviu quando Mac chegou m aisperto da porta.

— É que você pareceu… relutante antes. Eu não sabia se ia querer um aestranha em casa, com tudo o que está acontecendo. Eu disse a eles que vocêtalvez estivesse com trabalho dem ais.

— A gente não sabe nada sobre ela.

— É verdade.

Natasha se enrolou em um a toalha branca m acia e se sentou na lateral dabanheira.

— O que você acha?

Ela estava de frente para a porta.

— Eu não m e incom odo, se for para aj udar a m enina durante algum as semanas. Só até a gente vender a casa. Ela pareceu ser um a garota legal.

Natasha percebeu na voz dele que ficaria tão aliviado quanto ela. Um foco deatenção diferente. Um a quebra forçada na tensão.

Pensou de novo no pacote roubado de peixe em panado. A m enina tinha jurado que ia pagar. Vam os lá, disse a si m esm a. Nem todos os j ovens estãocondenados.

Talvez ela só precisasse de um a chance.

— Tash?

Talvez isso fosse o mais próximo que ela chegaria de ser mãe.

— Acho que não teria m al em algum as sem anas — respondeu. — Masvocê vai ter que adaptar o seu trabalho em função dela. Vou com eçar umcaso im portante e não vou conseguir tirar folga.

— Acho que eu consigo.

— Não sei… É m uita responsabilidade, Mac. Você vai ter que fazer suaparte: parar com os baseados, beber m enos. Não vai poder ir e vir com o bementender.

Seria um a grande m udança de estilo de vida para você. Aliás, não sei sevocê…

— Vou ligar para eles — interrom peu Mac. Seus passos j á se dirigiam paraa escada. — Para saber o que a gente precisa fazer.

9

“Primeiro, então, deve-se perceber que o humor em um cavalo é exatamenteo mesmo que raiva em um homem.”

XENOFONTE, SOBRE EQUITAÇÃO

Ela escutou Sarah descer a escada antes de vê-la. Seus passos enganavam detão leves, quase com o se ela não quisesse que a escutassem , m as, paraNatasha, ainda m uito consciente da presença de outras pessoas em sua casa,foi o bastante para distraí-la de seus docum entos. Estava trabalhando na mesa da cozinha (tinha perdido o escritório para Mac, que passara a dorm ir lá)e se inclinou na cadeira para ver atrás da porta.

— Vai sair?

Sarah deu m eia-volta no hall de entrada, quase com o se não esperasse tersido vista. Usava um casaco acolchoado e um cachecol de lã listrado.

— Não vou dem orar — respondeu ela.

— Aonde você vai? — questionou Natasha, tentando parecer despreocupada.

— Vou visitar um am igo.

Natasha se levantou.

— Quer um a carona?

— Não… obrigada.

— Bom , quer que eu vá buscar você depois, agora que está ficando m aisescuro no fim da tarde? Não m e daria trabalho nenhum .

Sarah sorriu. Não foi m uito convincente.

— Não, obrigada. Eu posso pegar o ônibus.

Antes que Natasha pudesse retrucar, a m enina j á tinha saído. A m ulherficou olhando para a porta de entrada, com a caneta ainda entre os dedos.

Fazia dez dias que Sarah estava com eles, e, depois do estranham ento inicialdos dois prim eiros dias, em que a m enina m al falara e ficara escondida noquarto nas horas em que Natasha estava em casa, os três tinham entrado emum a espécie de rotina. Natasha preparava o café da m anhã (era geralm entequem acordava prim eiro) e Mac deixava Sarah na escola, por conselho da

assistente social. Ele era responsável pelas duas horas após a aula, e, depois,dependendo da hora que Natasha chegasse do trabalho, Sarah e Mac, ou ostrês, j antavam j untos em algum tipo de sim ulação de vida em fam ília. Nocom eço havia sido m eio constrangedor fazer refeições com Mac. O papo eraforçado e incerto. Mas ele falava com Sarah, e, m esm o que ela não dissessem uito em resposta, tinham pelo m enos se acom odado com algo que pareciaum pouco m ais seguro e até, de vez em quando, agradável. A vida de Sarah,suas pequenas necessidades e até sua

relutância davam foco ao diálogo deles.

A escola tinha ligado duas vezes para dizer que ela havia faltado à aula. Sarahafirm ou que se confundira com o horário. E, um a vez, que estava presente eo professor se enganara. Tinham sido avisados por Ruth, a assistente social,de que a m enina nem sem pre seguia as rotinas estabelecidas para ela.

— Tivem os alguns problem as por ela não estar onde deveria — contaraRuth.

Natasha ficou com a im pressão de que a assistente social não estavacontando tudo o que eles precisavam saber.

— Mas esse não é o obj etivo de ser adolescente? — com entara Mac, todoanim ado. — Eu nunca estava onde deveria.

— Só acho que vocês não devem dar tanta liberdade a ela — prosseguiuRuth, direcionando os com entários a Natasha. — De acordo com o quesabem os, o avô dela era bem rígido, e ela parece estar saindo um pouco dalinha para reagir à falta de estabilidade. Faltou a várias aulas e parece bemrelutante em falar sobre o que anda fazendo. Não estou sugerindo que ela váser um problem a para vocês

— com pletou, depressa. — Só quero dizer que ela parece ser um a m eninaque se dá m elhor quando tem um a rotina. E, se vocês puderem estabeleceralguns lim ites em relação a quando ela sai e para onde vai, acho que será melhor para todos.

Ruth dissera, sorrindo, que tinham a vantagem de Sarah ter pedido para ficar

com eles.

— Percebem os que os j ovens ficam bem m elhores quando estão no ambiente em que escolhem . Tenho certeza de que esse será o caso aqui.

Natasha não tivera tem po de se sentir lisonj eada. Depois que Sarah havia seacom odado, parecia ter vontade de passar o m ínim o de tem po possível ali.Era m onossilábica no j antar, ficava no quarto durante a m aior parte do tempo em que estava em casa e passava tantas horas fora que às vezes nemparecia que eles estavam hospedando m ais um a pessoa.

Naquele prim eiro j antar, Mac dissera:

— Certo. A gente nunca teve um a hóspede da sua idade aqui em casa. Como você quer fazer?

Ele parecera m uito anim ado e relaxado. Natasha estava ao fogão, raspandopizza queim ada da assadeira, tentando fingir que não escutava.

— Eu costum o visitar os m eus am igos depois da aula — respondera a menina, com cautela.

Mac dera de om bros.

— Tudo bem . Então vam os fazer isso duas vezes por sem ana para começar.

Acho que você deve voltar direto para cá nos outros dias, e vam os repassarseu dever de casa j untos. Só não garanto ter a m enor ideia do que vocêdeveria estar fazendo.

— Estou acostum ada a entrar e sair de casa sozinha.

— E a gente não está acostum ado a ter alguém em casa, então será precisoum tem pinho para todo m undo se aj ustar, Sarah. Tenho certeza de que logoa gente vai poder dar as chaves para você, m as coopere por enquanto. Certo?

A m enina tinha dado de om bros.

— Certo.

Natasha pensara que tê-la em casa era sim plesm ente a cortina de fum aça deMac para disfarçar o desconforto que sentiam em relação um ao outro. Masele estava se desdobrando para cuidar de Sarah. Tinha parado de fum ar e nãobebia m ais do que um a taça de vinho ou um copo de cervej a por noite. Deraum a olhada nos livros de receita para cozinhar quando Natasha não estivesseem casa.

Parecia saber de m odo instintivo com o conversar com Sarah, o que elapoderia gostar de com er ou ver na televisão. Algum as vezes, a garota sorriaquando Mac dizia algo e contava a ele alguns acontecim entos do dia depoisde voltar da escola.

Natasha tinha dificuldade de encontrar o tom certo: com frequência, até mesm o para os próprios ouvidos, soava com o se estivesse falando com umcliente.

— Você precisa de algum a coisa? O que costum a levar de alm oço para aescola?

Parecia sem j eito, um interrogatório, e Sarah ficava com um a expressão decautela durante esses diálogos, com o se de algum m odo tam bémparecessem constrangedores para ela.

A m enina não quis que Natasha a aj udasse a personalizar o quarto dehóspede.

Tinha sorrido educadam ente quando a anfitriã lhe m ostrara a nova capa deedredom que havia com prado e os produtos de higiene que colocara nobanheiro.

Recusara com gentileza o convite para sair no fim de sem ana e com praralguns pôsteres ou fotos para pendurar na parede. Natasha tinha entrado noquarto certa tarde, quando Sarah estava na escola, para tentar entender quemela era, do que podia estar precisando, m as seus pertences davam quasenenhum a pista: algum as roupas baratas de loj as de departam ento, nadadiferentes das que ela via em outras adolescentes, um a foto dela com dois

idosos, provavelm ente os avós.

Alguns livros sobre cavalos e o uniform e da escola. Era estranho, porque,por m ais que ela estivesse lim pa, seus sapatos geralm ente estavam imundos, cobertos de lam a, e a calça j eans tinham m anchas de terra e umcheiro que Natasha não conseguia identificar. Quando tentara tocar noassunto certa noite, Sarah ficara corada e dissera que ela e um am igo tinhampasseado com o cachorro no parque.

— Tudo bem . Ela vai se abrir, dê um tem po — aconselhara Mac, depois queSarah se enfiou no quarto. — Pense em com o deve ser estranho para ela. Nosúltim os m eses, a vida dela virou de cabeça para baixo.

Natasha teve vontade de dizer que não tinha sido só a vida da m enina. Mas

pegou seus papéis e foi trabalhar na cozinha, sentindo-se um a intrusa naprópria casa, com o vinha acontecendo cada vez m ais.

* * *

— …Então, eu não vou para Kent neste fim de sem ana.

Conor parecia não acreditar no que estava escutando.

— Você e Mac estão com um a criança? — repetiu ele.

— Não fale assim , Conor. A gente não está com ela desse j eito. É só um a menina que conheci e que vai ficar conosco até o avô m elhorar. Na verdade…

está tornando as coisas m ais fáceis para nós. Está tudo m enos tenso.

Conor não com partilhava do ponto de vista de Natasha.

— Será que estou entendendo errado, Poderosa? — perguntou ele, passandoos dedos na pasta de couro. — Prim eiro, ele volta para a sua casa. Agora,vocês dois estão cuidando de um a m enina j untos. E você não pode passar ofim de sem ana com igo porque estão brincando de fam ília feliz.

Ela estava conseguindo m anter a calm a.

— É o prim eiro fim de sem ana que ela passa aqui. A assistente social vaifazer um a visita na sexta-feira à noite para ter certeza de que está bem acomodada, e eu não posso sim plesm ente sum ir logo depois que ela acabou de sem udar.

— Então, vocês estão brincando de fam ília feliz.

— Conor, as coisas estavam im possíveis. Acho que Mac tam bém estavatendo m uita dificuldade com a situação. Ter um a terceira pessoa em casasignifica que a gente não precisa lidar um com o outro do m esm o j eito.

— Parece ótim o, m as estou com dificuldade de ver as coisas assim . Quandose tem filhos…

— Não é igual a ter filhos. É um a m enina com vida e interesses próprios.Ela m al fica em casa na m aior parte do tem po.

— Então qual é o obj etivo se ela nem fica lá? Você disse que com ela emcasa vocês nem têm que lidar um com o outro.

Meu Deus, ela detestava discutir com um advogado.

— Não tente distorcer as m inhas palavras. Ela pediu para ficar, e tanto oMac quanto eu consideram os isso um a possibilidade de transform ar um asituação dom éstica difícil em algo não tão ruim . E um a m aneira de aj udarum a garota que está enfrentando problem as.

— Mas que altruísta da sua parte.

Ela deu a volta na m esa de trabalho, foi até onde Conor estava sentado e seacom odou ao lado dele. Baixou a voz.

— Se você conhecesse um a garota bem bacana que precisasse de um lardurante algum as sem anas, alguém que você talvez pudesse aj udar a ter uma vida m elhor, não diria sim ? — Com esse argum ento, ela o desarm ou. —Você é pai.

Im agine se fosse um dos seus filhos. Não ia querer que alguém decente oacolhesse? — Natasha tentou fazer com que ele a olhasse nos olhos. —

Quando a gente vender a casa, ela vai voltar para onde m ora e cada um vaipoder tom ar o seu rum o. Funciona para todo m undo.

Ela estendeu a m ão para pegar a dele, m as Conor recolheu o braço einclinou a cabeça.

— Claro. Entendo tudo isso. Mas m e explique só um a coisa. — Ele securvou para a frente. — Com o foi que você explicou a sua situação para asautoridades?

Tenho certeza de que deve ter parecido estranho… Duas pessoas que quasenão se viram durante um ano, que nem gostam um a da outra até onde sesabe, de repente se oferecendo para tom ar conta de um a alm a em apuros…— Natasha respirou fundo, e Conor concluiu: — Ah. Ah, eu sabia…

— Não, Conor, é que…

— Não explicaram , não é m esm o? Eles acham que vocês ainda estão juntos.

Para todos os efeitos, não passam de m ais um casal. — A voz dele era ferina.

— Não havia m otivo para levantar a questão… E você sabe m uito bem queeu não m udei o m eu sobrenom e.

— Que conveniente.

— Acabei nunca contando para todo m undo — reclam ou ela. — É só isso,nada m ais. Profissionalm ente, as pessoas m e conhecem com o Macauley.Eu não soube o que fazer.

— E agora o Sr. e a Sra. Macauley estão adotando um a m enininha. Bom ,isso aj eita bem as coisas para vocês, não é m esm o? Voltaram a ser um afam ília.

— A gente não está adotando a garota. Ela é um a adolescente que precisa deum lugar para ficar durante algum as sem anas. Por favor, Conor. Não comece a procurar pelo em cabeça de ovo.

Mas ele parecia ver um a infinidade de intenções, subterfúgios, enganos.Fazia dias que estava de m au hum or com ela, dizendo que tinha outros comprom issos quando ela o convidava para sair ou a evitando. Ele vai acabarentendendo, Natasha disse a si m esm a. Olhou para o celular, que m ostrava,pela décim a quarta vez naquele dia, que ninguém além do escritório tinhaligado. Trabalhe, aconselhou a si m esm a. Apenas se concentre no trabalho.

A casa estava em silêncio. Durante algum as horas, seria só dela m ais um avez. Natasha apoiou a cabeça nas m ãos e fechou os olhos. Então a ergueu,respirou com o alguém que vem à tona de um m ergulho, ligou para oescritório e deixou recado na caixa postal.

— Ben, quando receber esta m ensagem , pode j untar todos os depoim entosdos especialistas no caso Nottingham ? Preciso que estej a tudo na m inha mesa quando eu chegar. E m e avise im ediatam ente quando tiver notícias doTerceiro Tribunal.

Acho que a autoridade local do caso Thom pson vai recorrer.

* * *

Tinha acontecido de novo. Três fardos de feno fresquinhos estavamencostados na parede do arm ário dela, exalando um leve cheiro doce, um ecodas cam pinas no verão. Ao lado deles havia um saco fechado de ração. Sarahnão pagara por nada daquilo. Pegou o cadeado frio e ficou olhando para a mesm a coisa com a qual se deparara duas vezes nas sem anas anteriores,sentindo um a m istura desconfortável de gratidão por Boo ter o que com er epreocupação acerca da origem daquilo.

O outono havia se firm ado no estábulo, trazendo noites frias e um a fom eque parecia insaciável nos cavalos. Sarah espiou para fora do arm ário eobservou o braseiro, onde Cowboy John estava j ogando vários envelopespardos e conversando com o cachorro. Ele havia lim pado a cabana de tij olosque cham ava de escritório e queim ava vários anos de correspondênciasoficiais que nunca haviam sido abertas. Sarah pedira feno para ele, querespondera, em tom de desculpa, que tinha vendido para Sal tudo o que nãofosse para os próprios cavalos.

Sarah encheu um a rede de feno e atravessou o pátio até a baia de Boo.

Com pletou os baldes dele com água e lim pou a forragem , parando de vezem quando para enfiar os dedos enregelados em baixo do cobertor do cavalo,onde o pelo dele estava m acio e quente, e escutando a m astigação ritm adado anim al.

Pensara que ficar com os Macauley tornaria tudo m ais fácil, e em certosentido estivera certa. A casa era bacana. Era m ais perto da escola e doestábulo.

Mas o dinheiro era um problem a. Sem Vô para pagar o aluguel, ela estavacom dificuldades. Natasha fazia questão de preparar sanduíches para ela emvez de lhe dar dinheiro para o alm oço, e tinham lhe entregado um novo passede ônibus, de form a que não podia pedir dinheiro para a passagem . Davamm esada para ela todo fim de sem ana, algo que nenhum a das outras fam íliashavia feito, m as m esm o assim a quantia não cobria os custos de Boo.

Ela não gostava de pensar no quanto j á estava devendo. Mesm o sem o feno.

Pensou no pote que vira no quarto de Natasha. A m ulher não devia fazer a menor ideia de quantas m oedas de um a libra havia ali. Ao passar pela portadela, Sarah focou a atenção naquilo, calculando que devia haver centenas, misturadas com m oedas prateadas. Natasha Macauley assinava cheques semolhar a quantia. Deixara um a fatura de cartão de crédito na m esa da cozinhaque m ostrava que ela gastara quase duas m il libras no m ês anterior, apesarde Sarah não ter tido coragem de conferir com o que fora gasto. A advogadaparecia ter tanto dinheiro que nem se im portava com as m oedas que j ogavano pote. Era provável que só não quisesse que pesassem nos bolsos dosterninhos.

Sarah sabia o que Vô diria sobre m eninas que pegavam dinheiro que nãolhes pertencia. No entanto, cada vez m ais se flagrava respondendo: E daí?Você não

está aqui. Como vou cuidar do nosso cavalo até você voltar para casa?

— Sarah.

Ela se sobressaltou. Cowboy John tinha desaparecido em algum lugar, eSheba não havia latido, com o costum ava fazer quando alguém chegava.

— Você m e assustou.

Ela deu um passo atrás e bateu na porta do arm ário, sem largar o cadeado.

Maltese Sal estava atrás dela, com o rosto indistinto no escuro do anoitecer.

— Eu estava passando e vi o portão aberto — explicou ele. — Só quis tercerteza de que estava tudo bem .

— Está tudo bem — disse ela, virando-se e tentando se entender com achave.

— Eu j á estava indo para casa.

— Vai trancar para John?

— Eu sem pre tive as chaves — respondeu ela. — Eu aj udo quando eleprecisa sair cedo. Eu… posso continuar fazendo isso quando você assum ir.

— Quando eu assum ir? — O dente de ouro brilhou. — Querida, eu sou donodeste lugar. Já faz m ais de um a sem ana que é m eu. — Ele se apoiou nobatente da porta. — Mas, claro, fique com as suas chaves. Pode ser útil.

Sarah exam inou o chão em busca da m ochila, contente por saber que a lâmpada de sódio bruxuleante na calçada do lado de fora não deixava Sal ver queela estava ficando verm elha.

— Para onde você vai?

— Para casa — respondeu ela.

— O seu avô voltou?

— Não. Estou… estou m orando com um as pessoas.

— Está escuro — com entou ele. — Não é bom um a m enina nova ficar

andando sozinha à noite.

— Está tudo bem — disse ela, pendurando a m ochila no om bro. — Sério.

— Quer um a carona? Tenho tem po de sobra.

Ela continuava sem ver o rosto dele. Sal tinha cheiro de tabaco, não o decigarro, m as algo forte e doce.

— Prefiro ir sozinha.

Sarah fez m enção de passar por ele, m as Sal ficou parado. Ela desconfiou deque deixar as pessoas desconfortáveis fosse um a brincadeira para ele. Ficouim aginando se os hom ens dele não estavam em outra parte do pátio, rindodela.

— Você pegou o feno, certo?

— Obrigada. Desculpe. Eu ia agradecer. — Ela enfiou a m ão no bolso etirou o dinheiro que contara naquela m anhã. — Isto é pelos dois últim oslotes.

Estendeu o braço e estrem eceu de leve quando seus dedos tocaram a m ão deSal. Ele ergueu o dinheiro e o exam inou sob a luz. Então riu.

— Querida, isto aqui é pelo quê?

— Pelo feno. E pela ração. Por duas sem anas.

— Isto aqui não cobre nem dois daqueles fardos. Aquilo é coisa boa.

— Duas libras por fardo. É o que eu pago ao John.

— Este aqui é m uito m elhor do que o dele. Estes fardos custam cinco librascada. Eu disse que só ia alim entar o seu cavalo com o que há de m elhor.Você m e deve o triplo dessa quantia.

Sarah ficou olhando para ele. Sal não parecia estar brincando.

— Eu não tenho tudo isso — sussurrou.

Sheba gania nas pernas dela.

— Isso é um problem a — retrucou ele, assentindo, com o que para si m esmo.

— É um problem a, porque tam bém tem o aluguel atrasado.

— Aluguel atrasado?

— De acordo com os registros do Cowboy John, faz seis sem anas que vocênão paga.

— Mas John disse que não ia cobrar o aluguel atrasado. Por causa do m euavô.

Maltese Sal acendeu um cigarro.

— A prom essa é dele, querida. Não m inha. Até onde sei, assum i o negócioe os registros dizem que há um a grande dívida no seu nom e. Eu não sou uma instituição de caridade. Preciso do aluguel.

— Vou conversar com ele. Eu…

— O estabelecim ento não é m ais dele, Sarah. É a m im que você deve.

Sarah com eçou a calcular o aluguel equivalente a seis sem anas, além dodinheiro que devia pela com ida. A quantia fez sua cabeça girar.

— Não… não tenho com o arrum ar esse dinheiro, não de um a vez.

— Bem … — Maltese Sal deu um passo atrás para ela passar. Com eçou acam inhar em direção ao portão. — Tudo bem por enquanto. Eu não vou alugar nenhum , Sarah. Você resolve e vem falar com igo depois.

* * *

Ela estava saindo do tribunal quando Linda chegou correndo pela escada.

Natasha desviou a atenção do advogado com quem conversava e Lindaenfiou um pedaço de papel em sua m ão, ainda arfando.

— Você precisa ligar para essa m ulher. Ela disse que um a m enina chamada Sarah faltou à escola de novo.

— O quê?

A cabeça dela ainda estava cheia com os procedim entos do tribunal.

— Ligaram um pouco depois das dez. Eu não quis interrom per. — Lindaindicou com a cabeça o tribunal. Então, com o Natasha parecia não terentendido a m ensagem , ela com pletou: — Sarah não foi à escola hoje demanhã. Acharam que você saberia o que isso significa. É um a cliente?Fiquei tentando entender de

quem estavam falando.

Natasha deu um a olhada no relógio. Faltavam quinze para o m eio-dia.

— Você ligou para Mac?

— Mac? — questionou Linda. — Mac, seu ex? Por que eu ligaria para ele?

Natasha procurou o celular.

— Não se preocupe. Eu explico outra hora.

Quando encontrou o aparelho, saiu pelo corredor, passando pelos clientes eadvogados que estavam reunidos em grupinhos, até chegar a um cantotranquilo.

— Natasha?

Ele pareceu surpreso ao ouvir a voz dela. Ao fundo, ela escutou risadas e música, com o se Mac estivesse em um a festa.

— Ligaram da escola. Ela faltou de novo.

— Quem ? Sarah? — Ele tapou o bocal e m andou alguém ficar quieto. —Mas eu a deixei lá às quinze para as nove.

— Você a viu entrando pelo portão da escola?

Um a pausa.

— Pensando bem , não. Ela se despediu de m im antes de entrar. Caram ba,não achei que a gente ia precisar levá-la pela m ão.

— Ligaram duas vezes para m im . Legalm ente, tem os que inform ar que elaestá desaparecida depois de duas horas. Você vai ter que resolver isso, Mac.

Tenho m enos de um a hora, depois ficarei presa no tribunal a tarde toda. Nãovou sair antes das quatro, levando em conta a m anhã de hoj e.

— Droga. Estou no m eio de um a sessão de fotos e depois tenho um trabalhona zona sul. — Ela quase podia escutar o cérebro dele trabalhando. Mac sempre cantarolava quando tentava resolver um problem a. — Certo. Vocêtelefona para a escola, confere se ela não apareceu, e eu vou para casa parater certeza de que ela não está lá e ligo para você.

* * *

Sarah não estava em casa nem na escola, e tam bém não estava no hospital.Mac ligou enquanto Natasha andava de um lado para outro no escritório epediu para ela esperar até de noite para telefonar para a assistente social.

— Vam os conversar com ela prim eiro — sugeriu ele.

— Mas e se tiver acontecido algum a coisa? Da últim a vez foi só um a aula.

Agora é quase um dia inteiro. Mac… tem os que ligar para a assistente social.

— Ela tem quatorze anos. Só está andando por aí, provavelm ente com acabeça cheia de cidra, na porta de algum lugar com os am igos.

— Ah, estou bem m ais calm a agora.

— Ela vai voltar. Não vai se afastar do avô, não é m esm o?

Natasha não conseguia ter a m esm a certeza. Naquela tarde, sentiudificuldade

de se concentrar na audiência. Quando olhou para Lindsay, sua cliente dedoze anos, sentada ali, cabisbaixa, ladeada por seu tutor e pelo assistentesocial que supervisionavam a últim a audiência para o pedido de acomodação segura, se lem brou do rostinho vazio de Sarah ao sair de casa. Estavaacontecendo algo que eles não sabiam , e aquilo deixava Natasha nervosa.Ela variava entre a preocupação de que a m enina estivesse de fatoenfrentando problem as e um a ansiedade crescente e incôm oda com a ideiade que havia trazido um m onte de confusão para sua vida, até então segura eorganizada.

— Suas anotações — sussurrou Ben, acom odando-se discretam ente noassento ao lado dela. — Você esqueceu lá fora, na cadeira.

— Caram ba. Obrigada.

Eu devia ter avaliado isso com mais cuidado, pensou enquanto escutava oadvogado da autoridade local. Fiquei tão nervosa com a perspectiva dedividir a casa com Mac que não passou pela minha cabeça a possibilidadede as coisas se complicarem ainda mais.

— Sra. Macauley, tem algo a acrescentar? — perguntou o j uiz.

Ela não estava prestando atenção. Sentiu que perdia a concentração.

— Não, Excelência. É só isso.

— Achei que você ia m encionar o relatório do psiquiatra — sussurrou Ben.

Droga. Ela se levantou abruptam ente.

— Na verdade, peço desculpas, Excelência, há m ais um item para o qual eugostaria de cham ar a sua atenção…

* * *

Mac estava à m esa da cozinha quando Natasha chegou em casa. Ela colocoua pasta ao lado da geladeira e tirou o cachecol.

— Nada ainda?

— Desde que você saiu do trabalho, não.

— Está escurecendo. Quanto tem po você acha que a gente deve esperarantes de ligar para alguém ?

O nó apertado de ansiedade que surgira no estôm ago dela durante a prim eiraligação de Mac havia se transform ado em um a bola enorm e e pesada.Natasha repassara várias vezes na cabeça a conversa com a assistente social.As autoridades iam considerá-los burros, ou, pior, irresponsáveis. A únicacoisa que tinham pedido era que se assegurassem de que ela fosse à escola.As pessoas do ram o iriam com entar. Poderiam até questionar a capacidadeprofissional de Natasha. E, por trás dessas preocupações, a voz apavorante nofundo de sua m ente, que ela tentara abafar com racionalidade, praticidade em ais um telefonem a para Mac: e se, dessa vez, algo realmente tiveracontecido? Eu não tenho prática nisso. Pais de verdade têm anos para seacostumar a esse nível de

ansiedade.

— Vam os esperar m ais m eia hora — pediu ele. — Até as seis da tarde.Assim vam os ter dado chances suficientes a ela.

Natasha se sentou em frente a Mac e aceitou a taça de vinho que ele lhe haviaservido. Ele não estava m ais sorrindo. O ar relaxado de antes desaparecera,substituído por silêncio, tensão.

— Você conseguiu ir ao outro trabalho? — perguntou ela.

Ele fez que não com a cabeça.

— Achei m elhor ir à escola na hora da saída. Só para o caso de ela aparecer.

— Ele suspirou e tom ou um gole de vinho. — Além do m ais, eu não estavacom cabeça. Mas tudo bem , m e deixaram rem arcar para am anhã.

Os dois se entreolharam por um instante. Desde que ela apareça até amanhã.

— Não rendi nada no tribunal — confessou Natasha. — Não consegui prestaratenção no caso de j eito nenhum . Fiquei surpresa com igo m esm a.

— Não é do seu feitio.

— Não m esm o.

Havia perdido o caso. A expressão de Ben quando ela deixou o Alto Tribunallhe dissera que ela própria tinha sido o m otivo.

— Essas crianças, hein? — com entou Mac, desconsolado. Eles sesobressaltaram ao escutar a cam painha. — Eu atendo — disse ele, afastandoa cadeira da m esa.

Natasha ficou ali bebendo vinho, escutando Mac abrir a porta da frente. Elebalbuciou algo que ela não entendeu e então seus passos voltaram pelocorredor.

Atrás dele, com o rosto m eio escondido pelo cachecol e com a roupa aindairradiando o frio da noite, estava Sarah.

— Bem -vinda de volta — disse Mac, virando-se para ela. — A gente nãotinha certeza se você havia feito reserva em outro hotel. — Mal dava para veros olhos da m enina, que disparavam de um para outro enquanto tentavaavaliar o tam anho da encrenca em que se m etera. — Será que você podecontar por onde andou? — A voz de Mac era leve, m as Natasha detectoudecepção nela.

Sarah baixou um pouco o cachecol.

— Saí com um am igo.

— Não estou falando de hoj e à noite — retrucou Mac. — Estou falando dodia inteiro. Quando você deveria ter estado na escola.

Ela chutou algum a coisa invisível no chão.

— Eu não estava m e sentindo bem .

— Então…

— Então saí para cam inhar. Para arej ar a cabeça.

Natasha não conseguiu m ais se conter.

— Durante nove horas? Você fez um a cam inhada de nove horas para arej ara cabeça? Tem algum a noção da confusão que causou?

— Natasha…

— Não! — Ela desprezou o aviso de Mac. — Eu perdi um caso hoj e porqueestava ocupada dem ais m e preocupando em saber onde você estava.Ficaram ligando para a gente da escola de hora em hora. Mac teve quecancelar um trabalho im portante. O m ínim o que você pode fazer é contaraonde foi. — Sarah levantou o cachecol m ais um a vez e ficou olhando parao chão. — Você está sob nossa responsabilidade, Sarah. Isso significa quenós som os legalm ente responsáveis por você. Tem os que garantir que vocêvá à escola e depois volte para casa. É um a questão j urídica. Você compreende? — A m enina assentiu, então Natasha indagou: — Pois bem , ondevocê estava?

Um silêncio longo e desconfortável se instalou. Por fim , a m enina deu deom bros. Então Natasha continuou:

— Quer ir para um a instituição para m enores? Porque essa é a quarta vezque você som e em dez dias. Se fizer isso de novo, e se a escola notificar aassistente social prim eiro, e não a nós, você vai para um a instituição. Sabe oque isso significa? — Natasha tinha aum entado o tom . — Significa que vãotrancar você lá dentro.

— Tash…

— Isso não vai depender da gente, Mac. Sim plesm ente vão concluir que nósdois som os incapazes de tom ar conta dela, e, se acharem que ela corre orisco de sum ir, vão aplicar as norm as j urídicas para m andá-la para um a

instituição. — Os olhos da m enina estavam arregalados por cim a docachecol. — É isso que você quer?

Sarah fez um gesto negativo com a cabeça devagar.

— Por favor — pediu Mac. — Vam os nos acalm ar. Sarah, a gente só querque você siga as regras, certo? A gente precisa saber aonde você vai.

— Eu tenho quatorze anos.

A voz dela era baixa, porém desafiadora.

— E está sob nossa responsabilidade — argum entou Natasha. — Você pediupara vir para cá, Sarah. O m ínim o que pode fazer é obedecer as nossasregras.

— Desculpe — disse a garota.

Natasha não achou que ela estivesse arrependida. Em seguida, disse:

— Am anhã, o Mac vai levar você para a escola antes do sinal e vai entregá-la para o professor. E um de nós estará no portão na saída. Até você nosprovar que podem os confiar que está m esm o onde diz.

Mac se levantou, foi até o arm ário e pegou um pacote de m acarrão.

— Certo, vam os deixar as coisas assim , e acredito que isso não vá se repetir.

Sarah, tire o casaco e se sente. Você deve estar com fom e. Vou prepararalgum a coisa para a gente.

Mas Sarah deu m eia-volta e saiu da cozinha. Os dois a ouviram subir aescada pisando duro e fechar a porta do quarto com força

Um breve silêncio se instalou.

— Isso correu bem .

Mac suspirou.

— Dê um a chance a ela. As coisas estão difíceis.

Natasha tom ou um pouco de vinho, suspirou fundo e então olhou para ele.

— Será que isso significa que não é o m elhor m om ento para eu lhe contarque anda sum indo dinheiro do pote no m eu quarto? — Ficou em dúvida seele tinha escutado. — Bastante dinheiro. Acabei de reparar que o nívelbaixou. E m e lem bro de ter colocado quatro m oedas de um a libra no topoum a noite dessas.

Ontem , não estavam lá.

Ele continuou m edindo o m acarrão.

— Ah… não… — disse ela.

— Eu não queria dizer nada — com eçou ele —, m as m e lem bro de terdeixado um a nota de cinco libras que tirei do bolso da calça na m esinha decentro outra noite e queria pegá-la na m anhã seguinte. Quando desci, nãoestava m ais lá. — Mac foi até a porta da cozinha e a fechou, sem fazerbarulho. — Você acha que são drogas?

— Não sei. Nunca desconfiei de que ela estivesse alterada.

— Não… ela não parece…

— Não são roupas — observou Natasha. Era um a das coisas que consideraraquase adoráveis. Sarah parecia não se interessar por m oda nem por revistasde celebridades, não passava m ais do que dez m inutos no banheiro pela manhã. —

Ela não tem celular, que eu saiba. E não cheira a cigarro.

— Ela está aprontando algum a.

Natasha ficou olhando para a taça de vinho. Em seguida, disse:

— Mac, preciso contar um a coisa. Quando eu a vi pela prim eira vez, elatinha sido pega roubando.

Ele parou o que estava fazendo.

— Era só um a em balagem de peixe em panado. Topei com ela em umsuperm ercado. Ela j urou que ia pagar. — Fui enganada de novo, pensou.Achei que estava fazendo uma coisa boa. Sua liberal de classe média idiota echeia de culpa. Sou muito inocente. — Sinto m uito, de verdade. Eu deveriater lhe contado.

Mac balançou a cabeça. Natasha percebeu, com gratidão, que ele não criariacaso por aquilo.

— Você acha… — com eçou ela, arriscando — …que a gente…

— Am anhã eu não posso — interrom peu Mac, enfim colocando o m acarrãona água fervente. — Mas m e dê um ou dois dias e vou segui-la. Para ver oque anda fazendo. Vam os descobrir o que está acontecendo.

10

“Que espírito e que índole. Como ele se conduz com altivez — uma alegriapara variar e, no entanto, um terror a presenciar.”

XENOFONTE, SOBRE EQUITAÇÃO

Por dois dias, Sarah foi um exem plo de obediência. Perm itiu que Mac aacom panhasse até a sala de aula, apesar de se sentir m uito ressentida, eestava no portão da escola, arrastando os sapatos, quando ele chegava parabuscá-la. Mas o bom dos adolescentes, pensou Mac, é que se achavam maisespertos do que todo mundo. E Sarah não era exceção.

No terceiro dia, quando a deixou na escola, ele disse que não tinha tem popara acom panhá-la até a sala de aula e perguntou se haveria problem a elaentrar sozinha. Mac percebeu um brilho m om entâneo no rosto dela, logosuprim ido, então acenou, saiu acelerando, com o se estivesse com pressa, edeu a volta no quarteirão. Parou na frente de um a garagem , contou até vinte,então voltou devagar para a rua da escola. Ainda havia alunos entrando peloportão com m ochilas nos om bros, gritando uns para os outros ou reunidosem grupinhos m exendo no celular. E, claro, lá estava Sarah, andando na

direção oposta, indo apressada para o ponto de ônibus.

Mac torceu para ela não virar para trás, m as a m enina j á estava m uitoconcentrada em seu destino. Caram ba, Sarah, disse ele em silêncio. Por quevocê está tão determ inada a sabotar o próprio futuro? Mac observou quandoela entrou em um ônibus e anotou o núm ero e o destino. Não ia na direçãodo hospital, observou. A assistente social a levara para visitar o avô na semana anterior e havia com entado onde ficava. Mac prom etera levá-la tam bémno fim de sem ana e anotara o endereço. Então, aonde ela estava indo?

Ele ficou no carro, atrás do ônibus, j á sem conseguir vê-la, m as com acerteza de que a avistaria quando descesse. Deixou dois carros passarem nasua frente, para ser m ais discreto, porém o trânsito da hora do rush garantiaque os carros e o ônibus avançassem devagar.

Por favor, que sej a um m enino, desej ou Mac, m exendo no rádio. Se fosse,ele e Natasha poderiam convidá-lo para um a visita, conversariam com osdois. Um m enino seria algo com que poderiam lidar. Marcar horário. Masdrogas, não. Por favor, que não sej am drogas.

Durante vinte m inutos, o carro atravessou Londres lentam ente, seguindopara a City. Mac gerou reclam ações ferozes de vans brancas, com hom ensque berravam com ele por não andar m ais rápido, e gestos grosseiros de mulheres elegantes que ele esperava que se com portassem m elhor. Quandoficava ruim

dem ais, Mac encostava por alguns segundos e deixava as pessoas passarem ,im aginando o núm ero de m ultas que levaria por entrar tantas vezes na faixaexclusiva para ônibus. Fora tão longe que não podia se dar ao luxo de perdê-la.

Quando chegou nos lim ites de Square Mile, com eçou a chover, e ele seesforçou para discernir o uniform e escuro de Sarah no m eio dostrabalhadores do centro financeiro, que a cada parada Saíam e entravam noônibus, com seus ternos e guarda-chuvas. Ali, onde a população era m aisdensa, foi ficando cada vez m ais difícil distinguir as pessoas. Várias vezesele se perguntou se a teria perdido de vista, se estava alucinada em um acaçada, m as perm aneceu no carro.

Finalm ente, quando os arranha-céus espelhados da City com eçaram a setransform ar em prédios m ais acanhados e blocos residenciais de apartamentos, Mac a viu. Sarah saltou do ônibus, correu e pulou para a divisória entreas duas ruas. Mac prendeu a respiração, ciente de que, se ela olhasse para adireita, o veria. Mas ela estava focada no trânsito que corria na direçãooposta. Ela soltou a grade e atravessou correndo. Antes que Mac se desseconta de que estava virado para o lado errado, Sarah j á descia um a ruazinhalateral.

— Merda — xingou em voz alta. — Merda, merda, merda.

Mac contornou o ônibus, ergueu a m ão para pedir desculpa quando o carroatrás dele teve que frear bruscam ente e, no cruzam ento, passou a todavelocidade pelo sinal am arelo. Um a pedestre chutou a lateral do carro emprotesto.

— Desculpe, desculpe, desculpe — balbuciou ele, acelerando o m ais rápidopossível em direção à rotatória.

Deu a volta derrapando e voltou à estrada principal na m ão oposta, examinando os arredores pelo para-brisa para tentar encontrar a garota. Foi até aruazinha secundária em que a vira desaparecer e então percebeu, quandoligou o pisca-alerta, que era de m ão única. Não podia entrar ali.

Mac hesitou por um m om ento. Então acelerou pela rua, rezando paraconseguir chegar à esquina seguinte antes que alguém viesse na m ãocontrária.

— Eu sei… Eu sei… — berrou para a bicicleta m otorizada que precisoudesviar dele, enquanto o condutor berrava obscenidades sob o capacete.

E então, no cruzam ento, não havia nada. Ele não viu nenhum carro, ninguém, apenas um a fileira de construções vitorianas m anchadas de chum bo, aentrada de um estacionam ento, um bloco de apartam entos. À esquerda,avistou um a rua com ercial, um café e um restaurante delivery de com idaindiana, escondido brevem ente por um ônibus. Por im pulso, Mac virou àdireita e dirigiu devagar pela rua de pedras, exam inando cada rua por ondepassava em busca de um a m enina de uniform e escolar. Nada. Parecia que

ela havia evaporado.

Mac achou um a vaga e estacionou. Ficou ali parado por um m om ento,xingando a si próprio. Xingando Sarah. Mas que diabo estou fazendo?

Perseguindo uma estudante que mal conheço pela cidade inteira, e paraquê? De

qualquer m aneira, ela deixaria sua casa a algum as sem anas. Se queriaestragar a vida com nam orados idiotas ou drogas, será que era m esm oproblem a dele? O

avô dela iria m elhorar, iria discipliná-la, e todos seguiriam com a vida.

O celular dele tocou. Procurou o aparelho em baixo do banco do carona aoperceber que sua perseguição alucinada fizera seus pertences voarem dosbolsos e se espalharem pelo carro. Dem orou alguns m inutos para localizá-lo.

— Mac?

Era Maria.

— Oi — respondeu ele.

— Não venha m e dizer que queria m e ligar, m as não conseguiu porqueprendeu o pé em baixo de um m óvel pesado. — A voz dela estava impregnada de m ágoa. Mac não levou para o lado pessoal: ela usava aqueletom até m esm o se o seu chá ficasse da cor errada. — Você ia m e ligar paraa gente alm oçar.

— Caram ba. Desculpe, querida. Eu m e enrolei. Não vou poder.

— É trabalho?

— Não exatam ente.

Ele se recostou no assento e passou a m ão na cabeça.

— É a sua ex-m ulher de novo. Vocês passaram a noite toda transando feitoloucos, apaixonados, e agora você não tem m ais energia para m im .

Ela com eçou a rir.

— Não tem nada a ver com Natasha.

— Na Polônia, Natasha é o nom e m ais com um entre as prostitutas. Sabia?

— Vou contar para ela. Tenho certeza de que vai gostar de saber.

Maria berrou com alguém , então voltou ao telefone.

— Que triste para você. Não vai m e ver nas próxim as duas sem anas.

— Não?

Será que era Sarah na outra ponta da rua estreita? Ele espiou, m as, quando am enina se virou, viu que estava em purrando um carrinho de bebê.

— Tenho um trabalho im portante no Caribe. Eu lhe contei.

— É m esm o.

— É para a Elle espanhola. Adivinha quem vai fotografar?

— Maria, você sabe que não conheço os fotógrafos de m oda.

— Sevi. Todo m undo conhece Sevi. — disse ela. Mac precisaria ligar paraTash e contar que havia perdido a m enina. Os dois decidiriam j untos setelefonariam para a assistente social. — Ele fez a foto de capa da MarieClaire deste m ês. — Quem sabe ele devesse ligar para a escola para dizerque ela tinha um a consulta m édica. Então a forçaria a contar aonde fora. —Marie Claire —

repetiu Maria, para dar ênfase.

— Devem ter m andado o m eu exem plar para outra pessoa este m ês.

— Você é um hom em m uito triste. Suas piadas são péssim as.

— Maria, querida. Preciso desligar. Tenho que dar um telefonem a.

— Você está virando hom ossexual?

— Hoj e, não, m as vou pensar no assunto.

— A m inha irm ã se casou com um hom ossexual. Já te contei?

Ele j á não escutava. Um cavalo m arrom grande passava por um portão noalam brado m ais para cim a na rua. O anim al tom ou um susto com um acaçam ba de lixo, então derrapou um pouco de lado quando chegou à rua depedras m ais à frente, com os cascos fazendo barulho na superfície dura. Macestreitou os olhos quando o cavalo se aproxim ou. O carro estava ficando embaçado, m as não havia dúvida sobre a identidade da cavaleira. Mac sentiu-seeletrizado de choque.

— Maria… preciso desligar. Ligue para m im de onde você estiver e a gentecom bina algum a coisa.

Ele enfiou o celular no bolso e, com o cavalo a uns bons seis m etros dedistância, abriu a porta sem fazer barulho e saiu do carro. O cabelo de Sarahestava preso. Seu corpo esbelto, acom odado sobre o anim al enorm e, o moletom da escola aparente. O cavalo deu um pulo para o lado m ais um a vez,m as ela pareceu não se m over. Mac viu a m enina acariciar o pescoço dele,com o se tentasse reconfortá-lo.

Ele fechou a porta e foi depressa até o porta-m alas, de onde tirou sua Leica,m al desgrudando os olhos da garota no cavalo. Trancou o carro e foi pela ruaatrás dela, observando-a acom odada, tranquila, aparentem ente alheia aobarulho e ao caos da cidade ao redor. Quando dobraram a esquina, Macpercebeu que ela se dirigia para o parque.

Pensou por um instante, então pegou o celular e deixou um núm ero,abrigando-se na entrada de um a casa para que sua voz não fosse abafadapelo vento.

— É da secretaria da escola? Olá… Sim . Aqui é o tutor de Sarah Lachapelle.

Estou ligando para avisar que ela tem um a consulta m édica hoj e de m anhãe vai faltar. É, eu sinto m uito… Sei que deveria ter ligado antes…

* * *

Até Vô ficar doente, quase todo o treinam ento de Boo tinha sido feito dochão. Vô colocava um a rédea com prida no cavalo e ficava atrás dele,incentivando-o a com preender as diversas pressões da m ão e da rédea com oinstruções, a aj ustar o equilíbrio, a posicionar os quartos m ais em baixo docorpo, a virar para a esquerda ou para a direita. Sarah se posicionava à cabeçaou ao om bro do anim al, reforçando todas as instruções do avô com levespressões ou com a voz suave, às vezes um estrem ecim ento fraco ou um achicotada didática. Dessa m aneira, explicara Vô, Boo aprenderia sem ter quelidar com a perda de equilíbrio dela tam bém . Vô sem pre dava a im pressãode que ela era um em pecilho, que sua presença dificultava a vida de Boo.Havia m uito tem po que

ela parara de levar aquilo para o lado pessoal.

O avô j á tivera um cavalo cham ado Gerontius, que fora treinado com rédeacom prida durante três anos antes que qualquer um tivesse perm issão para montá-

lo. Não é um substituto para o treino, dizia-lhe Vô. Era a fundação do treino.

Todos os “ares acim a do solo”, os sauts d’école, derivavam dessa base. Essafase não podia ser negligenciada.

Tudo isso era lindo, pensava Sarah, m as ela precisava m ontar. Acom odou-se e perm itiu que Boo se alongasse um pouco, dando bronca com a voz firme quando ele se sobressaltava com postes, cones de trânsito e tam pas debueiro, obstáculos para os quais não teria nem piscado seis sem anas antes.Ela fora forçada a ficar longe por dois dias: dois dias em que ele poderia tersido alim entado e recebido água fresca, m as em que não dera um passo parafora da baia. Para um cavalo inteligente e em form a com o Boo, era o m esmo que tortura, e ela sabia que provavelm ente pagaria por isso.

Tinha com eçado a chover m ais forte, e Sarah estendeu o braço para pedirque os m otoristas parassem enquanto atravessava a rua. Boo viu a gram a, eela sentiu a energia dele aum entar. A chuva deixaria o parque vazio, dando aela espaço para treinar sem interrupção. Mas o cavalo estava eletrizado,talvez até dem ais.

Depois do confinam ento, seus cascos reagiriam à superfície m acia com o seo chão estivesse carregado de eletricidade.

Escute o que eu digo, disse ela a Boo por m eio do j eito com o se sentava,pelo posicionam ento das pernas, das m ãos. Mas havia algo de exultante emsaber que tanta força estava apenas à espera de ser libertada.

Levade, disse um a vozinha na cabeça dela.

Vô dissera que ela não deveria tentar, que era um m ovim ento am biciosodem ais. O levade exigia que o anim al colocasse todo o peso do corpo naspatas traseiras, m antendo um ângulo de trinta e cinco graus. Era um teste deforça e equilíbrio, um a transição para os m aiores desafios do adestram entoclássico.

Mas Vô tinha conseguido. Ela o fizera do chão. Sabia que Boo era capaz.

Sarah inalou o ar úm ido e enxugou a um idade do rosto. Fez o cavalo trotarem pequenos círculos, parando e em seguida avançando, forçando-o a seconcentrar nela, criando um a arena invisível entre as latas de lixo, os postes ea cerca do playground do parque. Quando teve certeza de que ele estavaaquecido, com eçou a avançar a m eio-galope, prim eiro em um a rédea,depois na outra, tentando lem brar as instruções do avô: sente-se afundada,com as m ãos im óveis, as pernas um pouco para trás, m ais contato na rédeaexterna. E em poucos m inutos ela estava concentrada, distraída dasfrustrações sem fim de viver de acordo com as regras dos outros, do dinheiroque devia, da visão de Vô frustrado e infeliz em um a cam a que cheirava apinho quím ico e gente velha. Eram só ela e Boo, presos em seu ritm o,trabalhando até soltar vapor sob a névoa rala da chuva. Ela fez o cavaloretornar ao passo e soltou as rédeas, perm itindo que ele se alongasse.

Boo não se sobressaltou m ais com os barulhos da rua, nem com os três

ônibus de dois andares que passaram : o treino duro o relaxava, fazia com quese firm asse.

Vô teria ficado satisfeito com ele hoj e, pensou ela, passando a m ão pelopescoço m olhado do anim al.

Levade. Seria m esm o um pecado tão grande testá-lo um pouquinho? Seráque Vô precisava saber? Ela respirou fundo e firm ou as rédeas m ais um avez, fazendo o cavalo entrar em trote lento, que foi restringindo até ele estarem piaffe, erguendo os cascos de m aneira ritm ada sem sair do lugar. Sarahse em pertigou e tentou se lem brar das instruções do avô. As patas traseirasprecisam ficar em baixo do centro de gravidade do cavalo, com os j oelhosquase tocando o chão. Ela se inclinou um pouco para trás, incentivando-ocom as pernas, dizendo-lhe que sua energia precisava ir para algum lugar,segurando-o com um a leve pressão na rédea. Sarah estalou a língua, dandoum a série de instruções, e Boo ficou tenso, escutando-a com as orelhasagitadas. Ela percebeu que ele não conseguiria. Precisava de m ais um apessoa, alguém para lhe explicar do chão. Então sentiu a traseira de Boo seafundar e, por um instante, entrou em pânico, com o se aquilo fosse fazê-losperder o equilíbrio. Contudo, de repente a parte da frente do corpo do cavalocom eçou a se erguer diante dela e Sarah se inclinou para a frente a fim de ajudá-lo, sentindo-o trem er na tentativa de m anter a pose. Eles perm aneceramali, desafiando a gravidade, com Sarah olhando para o parque de um novoângulo, m ais elevado.

E então ele baixou. Pega desprevenida, Sarah desabou sobre o pescoço dele eBoo disparou adiante, refugando com exuberância um a, duas vezes, de modo que foi difícil não se desequilibrar.

Sarah se esforçou para voltar a se sentar ereta e riu. Sentiu um enorm e êxtasese inflar dentro de si e deu tapinhas no pescoço do cavalo, reconhecendo seuesforço, tentando lhe transm itir um a noção de com o era m agnífico. Elaabaixou os braços e abraçou o pescoço dele.

— Mas que cavalo inteligente — disse de novo, enquanto observava asorelhas de Boo se agitarem ao escutarem a aprovação.

— Im pressionante — elogiou um a voz atrás dela.

Sarah se virou na sela. Sentiu um nó no estôm ago. O casaco de Mac estavaescuro por causa da chuva.

— Posso? — perguntou ele, depois avançou para acariciar o pescoço de Boo.

— Ele está quente — observou, recolhendo a m ão para esfregar as pontasdos dedos.

Ela não conseguia falar. Seus pensam entos sum iram e um pavor enj oativotom ou conta dela.

— Term inou? A gente pode voltar agora?

Mac fez um gesto na direção de Sparepenny Lane. Ela assentiu e apertou osdedos nas rédeas. Sua m ente estava a m il. Ela podia fugir naquele m omento.

Podia sim plesm ente fazer Boo sair correndo, e os dois disparariam peloparque em direção ao cam po. Poderia percorrer quilôm etros antes que Mac aalcançasse. Mas ela não tinha nada. Nenhum lugar para ir.

Cam inhou devagar de volta ao estábulo, o pescoço de Boo esticado parabaixo, aparentem ente cansado por causa do trabalho intenso. A postura delatam bém era de derrota. Sarah exam inava as costas de Mac enquanto eleandava, incapaz de detectar qualquer coisa nos gestos dele.

Parou diante do portão. Cowboy John saiu de sua cabana e o abriu para ela.

— Tom ou chuva, Menina do Circo? Você está ensopada. — Ele deu unstapinhas em Boo enquanto o cavalo passava, então viu Mac ao lado de Sarah.—

Posso aj udar em algum a coisa, m oço? Está interessado em alguns ovos?Frutas?

Tenho belos abacates hoj e. Posso lhe dar um a bandej a inteira por apenastrês das suas libras.

Mac encarou Cowboy John, com o se nunca tivesse visto algo feito ele.

Talvez fosse porque John estava com seu chapéu de caubói m aisesfarrapado, um lenço verm elho e a j aqueta néon que um dos operários quehaviam consertado a rodovia deixara no estábulo no ano anterior. Masprovavelm ente foi por causa do enorm e cigarro enrolado preso entre osdentes am arelados.

— Abacates? — indagou Mac ao se recuperar. — Parece bom .

— Muito m elhor do que bom , m eu rapaz. Estão m adurinhos. Se ficarem mais m aduros, vão explodir para fora da casca e se transform ar sozinhos emguacam ole. Quer dar um a olhada? Meu Deus, esta vai ser a m elhor ofertaque você vai receber hoj e.

Ele soltou um a risadinha m aliciosa. Mac entrou pelo portão atrás de Sarah.

— Mostre o cam inho — pediu.

Sarah levou o cavalo até a cocheira. Tirou a sela e o freio, enxugou as gotasde chuva e os guardou com cuidado no arm ário, então com eçou a cuidar deBoo.

Do outro lado do pátio, ela viu Cowboy John entregando frutas e legum es aMac, que assentia. Ele ficava olhando ao redor, com o se tentasse absorvertudo; parecia fazer perguntas. Ela viu John apontando para os diversoscavalos, para as galinhas, para o escritório. Mac parecia interessado em tudo.Por fim , quando Sarah estava enchendo o balde de Boo com água lim pa,John e Mac passaram por baixo do arco da ferrovia e foram até a cocheira.Estava chovendo ainda m ais forte e riachos de água corriam pela descida, embrenhando-se nas pedras da rua.

— Term inou aí, Menina do Circo? — perguntou Cowboy John. Sarahassentiu e ficou parada ao lado do cavalo. — Faz dois dias que não vej ovocê. Está difícil vir aqui? O nosso velho Boo am eaçou fugir de m im denovo hoj e de m anhã.

Ela olhou para Mac, depois baixou a cabeça.

— Foi algo assim — respondeu.

— Foi visitar o seu avô?

Ela fez que não. Para seu pavor, achou que ia com eçar a chorar.

— A gente está indo lá agora — disse Mac. Sarah ergueu a cabeça desupetão.

— Você quer ir? — perguntou ele.

— Conhece esta m enina? — Cowboy John deu um passo atrás de m odoteatral, então fez um gesto para a caixa de papelão cheia de frutas de Mac. —

Você conhece a Sarah? Cara, deveria ter dito. Eu nunca ofereceria essaporcaria para você se soubesse que era am igo da Sarah. — Mac ergueu asobrancelha. —

Não posso vender isso para você. Volte ao m eu escritório que vou lhe dar ascoisas boas. Deixo isso aqui para as pessoas que passam . Sarah, diga ao seuavô que eu m andei um oi. Avise que vou passar lá no sábado. Dê isto a ele— pediu, j ogando um cacho de bananas para ela.

Enquanto os dois hom ens voltavam ao escritório, Sarah percebeu umsorrisinho surgindo na boca de Mac.

* * *

As roupas dela ainda estavam m olhadas quando entrou no carro. Mac tinharecebido um a m ulta por estacionar em local proibido e estava descolando opapel do para-brisa para j ogar no porta-luvas quando percebeu que ela estavatrem endo.

— Quer um a roupa seca para vestir? Tem um blusão no banco de trás.

Coloque por cim a do uniform e.

Sarah fez o que ele disse. Mac saiu com o carro pela rua, com a m ente emdisparada enquanto tentava decidir o que dizer. Quando chegaram ao sinal,ele falou:

— Então o m otivo é esse. É por isso que você falta à escola. E som e. — Elenão m encionou o dinheiro.

Sarah assentiu de leve.

Ele ligou a seta e virou à esquerda.

— Bom … Você com certeza é cheia de surpresas. — Mac se sentiu seguro.

Era só um a m enina com um cavalinho. Apesar de o dela ser bem grande. —O

que era aquilo que você estava fazendo? A coisa de saltar?

Sarah balbuciou algo que ele não conseguiu entender.

— Levade — repetiu ela, m ais alto.

— E isso é o quê?

— Um m ovim ento da haute école. É tipo adestram ento.

— Adestram ento? É aquela coisa de eles ficarem andando em círculos?

Ela deu um sorriso relutante.

— Mais ou m enos.

— E o cavalo é seu?

— Meu e do Vô.

— Ele é bem esperto. Eu não entendo nada de cavalos, m as ele parecefantástico. Com o foi que você arrum ou um cavalo desses?

Sarah o observou por um instante, com o se calculasse quanta inform açãopodia confiar a ele.

— Vô com prou na França. Ele é um Selle Français. É a raça que usam na

academ ia de hipism o onde Vô estudou. — Ela fez um a pausa. — Ele sabetudo sobre hipism o.

— Sabe tudo… — m urm urou Mac. — Faz tem po que você pratica isso?

— Desde que m e entendo por gente — respondeu Sarah. O blusão dele aengolia. Ela cobriu as m ãos puxando as m angas e enfiara os j oelhos embaixo do casaco. Parecia um a bola de lã totalm ente na defensiva. — Erapara a gente ir lá. Ver os cavaleiros. Na França. Antes de ele ficar doente.

Mac a vira atravessando a estrada entre os ônibus e os cam inhões, depoisperdida nos próprios pensam entos enquanto traçava círculos pelo gram ado.Mas que diabo nós fom os arrum ar?, perguntou-se.

— Ia ser um presente — arriscou Sarah. — Para m im e para ele. Férias. Eununca saí do país. — Ela ficou m exendo nas m angas do blusão. — Eu nãoqueria perder. Vô não queria perder.

— Bem … — Mac deu um a olhada no espelho do retrovisor. — Muita genteadia as férias quando alguém fica doente. Tenho certeza de que, se vocêexplicar o que aconteceu, o agente de viagem vai deixá-los irem quando elem elhorar. —

Mac a observou roendo as unhas. — A gente liga m ais tarde. Eu aj udo, sevocê quiser. — Ela lhe deu um sorriso cauteloso. Duas vezes em um dia,pensou Mac.

Talvez a gente possa fazer algum bem aqui, no fim das contas. Ele estendeu am ão e program ou o GPS. — Certo. Para o hospital. Vam os aum entar a temperatura do aquecedor. Não posso deixar o seu avô ver você ensopada até osossos.

* * *

Mac entendia quase tão pouco sobre questões m édicas quanto entendia sobrecavalos, m as ficou claro para ele que, independentem ente do que Sarahquisesse acreditar, o Sr. Lachapelle não sairia de férias (nem voltaria paracasa) no futuro próxim o. O avô da m enina estava deitado, parcialm ente

ereto, apoiado em travesseiros, com a pele daquele tom que indica um adoença grave, e não acordou quando eles entraram no quarto. Enfim , assimque Sarah segurou sua m ão, ele abriu os olhos. Mac ficou à porta sem j eito,sentindo-se um intruso.

— Vô — cham ou ela, baixinho.

Os olhos do idoso logo se fixaram nela e um véu se ergueu quando ele captouquem estava à sua frente. Deu um sorriso torto.

— Desculpe não poder ter vindo aqui nos últim os dois dias. Foi difícil.

O senhor sacudiu a cabeça. Apertou de leve a m ão dela. Sarah percebeu oolhar dele se desviar para Mac.

— Este é o Mac. Ele é um a das pessoas que estão cuidando de m im . —Mac sentiu que estava sendo exam inado. Apesar da fragilidade do idoso,havia algo de rígido nos olhos que o avaliavam , com o se buscasse pistas. —Ele… é m uito gentil, Vô. Ele e a esposa — com pletou Sarah, e Mac viu queela corou, com o se, em sua determ inação de deixar o avô tranquilo, tivessese exposto dem ais.

— É um prazer conhecê-lo, Sr. Lachapelle. — Mac deu um passo adiante eapertou a m ão do hom em . — Enchanté.

Outro pequeno sorriso. Um m aior de Sarah.

— Você nunca contou que fala francês.

— Não tenho certeza se o seu avô vai concordar que eu falo — retrucou Mac.

Ele se acom odou na cadeira do outro lado da cam a. Sarah foi arrum ar opequeno arm ário do avô, checando a nécessaire e reposicionando asfotografias.

Mac, pouco à vontade no silêncio, voltou a falar, ciente de que sua voz estavasaindo um pouco alta dem ais.

— Eu vi a sua neta m ontar. Ela tem um talento fantástico.

Os olhos do idoso se voltaram para Sarah.

— Eu saí para m ontar hoj e de m anhã.

— Bom — disse ele devagar, com a voz rangendo feito um a dobradiçapouco usada.

Dessa vez, o sorriso de Sarah foi instantâneo e transform ador.

— Bom ! — repetiu ela, com o que para confirm ar o que ele dissera.

— Bom — repetiu o avô.

Os três assentiram em um gesto de satisfação. Mac ficou com a im pressão deque aquele tinha sido um enorm e avanço na conversa.

— Ele se esforçou de verdade, Vô. Estava chovendo, e você sabe com o elepode ficar ruim na chuva, m as apesar disso conseguiu se concentrar. A bocadele estava superleve, e ele estava obedecendo. — Sarah estava apoiada, comas costas eretas, as m ãos à frente do corpo. O avô absorvia tudo o que eladizia, prestando atenção a cada detalhe. — Você teria ficado satisfeito. Deverdade.

— Eu nunca vi algo com o aquilo — com pletou Mac. — Não entendo nadade cavalos, Sr. Lachapelle, m as, quando o vi saltitando daquele j eito naspatas traseiras, fiquei sem fôlego.

De repente, um silêncio se instalou. O senhor se virou devagar para encarar aneta. Já não estava sorrindo.

Mac gaguej ou:

— Foi tão… bonito…

Ele percebeu que Sarah tinha corado até o couro cabeludo. O avô ainda aencarava.

— Levade — sussurrou ela, com a voz cheia de culpa. — Desculpe. — O

idoso m oveu a cabeça de um lado para outro. — É só que ele estava tãocheio de energia. E eu precisava de algo novo para prender a atenção dele.Precisava de um desafio…

Mac percebeu que, quanto m ais ela apresentava argum entos, m ais o avôsacudia a cabeça em um a fúria m uda.

— Gourmand — disse ele. — Non gourmand. Pequeno. De novo. — Mac seesforçou para encontrar sentido no que ele dizia, até se dar conta de que nãohavia sentido. Lem brou que pessoas que sofriam um derram e tinhamdificuldade de encontrar as palavras corretas. — O. Avant. Non. Cavalo.Cavalo. —

Claram ente decepcionado, o idoso tensionou o m axilar e desviou o olhar deSarah.

Mac se sentiu péssim o. Sarah roeu as unhas. A expressão do avô era de umm utism o furioso. A culpa era toda dele, pensou. Tentou fingir que nãoestava ali, m as então ergueu a câm era, que continuava pendurada nopescoço, e a estendeu.

— Hum … Sr. Lachapelle? Tirei algum as fotos de Sarah m ontando.Trotando e tal. O senhor gostaria de ver?

Ele se debruçou por cim a da cam a e foi passando as im agens digitais.Quando enfim encontrou um a que provavelm ente não despertaria a ira doidoso, ele a am pliou. Sarah colocou os óculos no avô.

Ele exam inou a im agem e pareceu se distrair por um m om ento. Então sevirou para Sarah e fechou os olhos, com o se estivesse se concentrando muito.

— Boca — disse, por fim , agitando os dedos.

Sarah deu um a olhada na foto.

— É — concordou ela. — Boo estava resistindo a m im aí. Mas só fez isso nocom eço, Vô. Assim que consegui fazer os quartos traseiros dele entrarem no

ritm o, passou a obedecer.

O velho assentiu, aparentem ente satisfeito, e Mac sentiu um a expiraçãolenta saindo do próprio peito.

— Tem m ais? — perguntou Sarah. — De m ais tarde?

Mac deu um a olhada e então entregou a câm era para a m enina.

— Para falar a verdade, eu preciso dar alguns telefonem as — disse ele. —

Vou deixar vocês dois sozinhos. Tom e, Sarah, pode passar as im agens assim.

Am plie com este botão, para você e o seu avô poderem ver m elhor.Encontro com você lá em baixo daqui a m eia hora. — Ele ergueu a m ão doidoso. —

Monsieur Lachapelle, foi um prazer.

— Capitão — corrigiu Sarah. — Todo m undo cham a o m eu avô deCapitão.

— Capitão — disse Mac. — Espero voltar a vê-lo em breve. Prom eto quevam os cuidar bem da sua neta até o senhor voltar para casa.

Só Deus sabe quando isso vai acontecer, pensou, ao sair do quarto.

* * *

— Você está de brincadeira.

— Não estou, não. Quer ver?

Ele lhe entregou a fotografia que im prim ira ao chegar em casa. Natashaenfiou a m ão na bolsa, pegou os óculos e o encostou no rosto para olhar.Antes ela não usava óculos, observou Mac.

— Não são drogas — disse ele, j á que Natasha não falou nada.

Ela assentiu.

— É verdade. — Tirou os óculos e ergueu os olhos para ele. — Mas umcavalo? — Devolveu-lhe as fotos. — Mas que diabo a gente vai fazer comum cavalo?

— Até onde eu sei, a gente não tem que fazer nada. Ela é a dona do cavalo,cuida dele.

— Mas… durante todo esse tem po? É para lá que ela vai?

— Eu não a confrontei sobre o dinheiro, m as acho que podem os partir doprincípio de que é para isso.

— Com o é que um a garota dessas pode ter um cavalo?

— Ele fica em baixo de um arco de ferrovia — prosseguiu Mac. O cérebrodele ainda estava girando com as im agens do estábulo no m eio da cidade. —

Parece que tem algo a ver com o avô. Ele é algum tipo de m estre cavalariço.E

não é um cavalo qualquer. O anim al parece ter saído de um quadro deStubbs.

Tem um físico e tanto. E ela faz um m onte… de coisas de adestram ento comele.

Dá saltos.

— Ai, m eu Deus. — Natasha olhou para o vazio. — E se ela se m achucar?

— Até onde eu vi, o controle dela era perfeito.

— Mas a gente não entende nada de cavalos. A assistente social não dissenada.

— A assistente social não sabe. Ela não quer que ninguém saiba. Acha que,se souberem , vão tirá-lo dela. Eles podem fazer isso?

Natasha deu de om bros.

— Não faço a m enor ideia. Acho que não existem m uitos precedentes.

— Ela m e fez prom eter que não íam os falar nada — disse Mac.

Natasha o olhou, incrédula.

— Não podem os fazer essa prom essa!

— Bom , eu fiz. E ela prom eteu que não vai m ais faltar à aula. Achei umbom acordo.

Ele havia deixado Sarah na escola na hora do alm oço, depois de rabiscar umbilhete apressado. A garota parecia não acreditar que ele estava em conluiocom ela.

— Esta é a única vez — advertira Mac, ciente de que j á tinha sido bonzinhodem ais. — Vam os resolver isso quando você chegar em casa. Certo?

Ela assentira. Não agradecera, Mac se deu conta, m al-hum orado, então riude

si m esm o quando se afastou com o carro. Estava pensando com o se fossepai dela. Quantas vezes ouvira os am igos reclam arem da suposta ingratidãodos filhos?

Natasha se sentou. Tinha resm ungado algum a coisa sobre um caso difícil,violência entre fam ílias e dentro de casa, com o se ele fosse entender o queela estava falando. Mac percebeu, com um pouco de culpa, que durante anosraram ente escutara o que Natasha lhe contava sobre seu trabalho.

— Olhe, essa é um a boa notícia, Tash — disse ele. — Significa que ela nãoestá usando drogas. Não é um garoto m al-intencionado. Ela é só um aadolescente obcecada por cavalos. A gente consegue dar conta disso.

— Do j eito que você fala, parece fácil. — O tom de voz dela era quaseressentido. — Mas a gente está com um problem a, Mac. Ela não pode cuidardo cavalo sozinha. É por isso que está m atando aula. Você m e disse que era

o avô que fazia a m aior parte do trabalho. Quem vai cuidar do anim alenquanto ela supostam ente está na escola? É você quem vai fazer isso?

Ele m eio que riu.

— Eu não tenho com o. Não entendo nada de cavalos.

— E eu, m uito m enos. Tem alguém que possa fazer isso para ela?

Mac pensou no velho am ericano com os cigarros estranhos.

— Acho que não. É, entendi sua questão — concordou ele. — É difícil.

Eles ficaram em silêncio durante algum tem po.

— Certo — disse Natasha. Ela não o encarou. — Tenho um a ideia.

11

“Faça com que ele se acostume com todos os tipos de visões e todos os tiposde ruídos. Sempre que o potro se assusta com qualquer uma dessas coisas,deve ser ensinado, não por meio de irritação, mas acalmando-o, mostrandoque não há nada a temer.”

XENOFONTE, SOBRE EQUITAÇÃO

Deveria ter ficado óbvio desde o início que a ideia de Kent seria um desastre,pensou Natasha depois. Sarah se opôs com veem ência a transferir o cavalo.

— Não. Ele precisa continuar aqui, onde posso ficar de olho nele — disseraela.

— Ele estará em total segurança no haras Howe. A Sra. Carter é cavalariçaexperiente.

— Ela não conhece o m eu cavalo. Ele vai acabar rodeado de gente que não oconhece.

— Tenho certeza de que a Sra. Carter sabe m ais sobre cavalos até do que

você m esm a.

— Mas ela não conhece o Boo.

Era estranho, pensou Natasha, que aquela m enina, que não tinha faladopraticam ente nada durante dias, erguesse a voz com tanta insistência.

— Sarah, você não tem tem po para fazer tudo sozinha. Você m esm a disse.E, se quiser que m antenham os a nossa parte do trato e não inform em os àsautoridades, precisa aceitar que tem os que encontrar outro j eito de cuidardele, com o seu avô no hospital. E no haras Howe vão tom ar conta dele asem ana toda.

Então poderem os visitá-lo no fim de sem ana, e você pode passar o diainteiro com ele.

— Não. — Sarah estava de braços cruzados, o m axilar, travado. — Não voudeixar o m eu cavalo em um lugar que não conheço.

— Mas você vai conhecer. E é só por pouco tem po. O lugar parece m aisprofissional do que onde ele está agora.

Sarah praticam ente cuspiu a resposta:

— Ele está feliz lá. — Ela olhou feio para Natasha. — Você não sabe nadasobre ele. O Boo está feliz lá em Sparepenny Lane.

Natasha se esforçou para não erguer a voz.

— Mas não está dando certo, não é? Até saberm os quando o seu avô voltarápara casa, não dá para m anter as coisas com o estão. Você não estáconseguindo dar conta.

— Você não vai tirar o m eu cavalo de m im .

— Não sej a dram ática, Sarah. Ninguém quer tirar o cavalo de você.

— Pense com o se fossem férias para ele. — Mac estava esparram ado nosofá, com endo um a m açã. A casa era dele tam bém , Natasha tinha que ficar

lem brando a si m esm a. — Ele pode passar o dia todo galopando pelos campos, ou fazendo as coisas de cavalos. Isso deve ser m elhor do que ficarenfiado em baixo de um arco de ferrovia, não é? — Com seu olhar deadvogada, Natasha percebeu que Mac ganhou a garota ali. Por um instante,Sarah pareceu fraquej ar.

— Im agino que ele não tenha passado m uito tem po brincando em um campo, não é? — continuou Mac, j ogando o m iolo da m açã no lixo, que bateuno alvo com um baque m etálico.

— Às vezes eu o deixo pastar com um a corda com prida — disse a m enina,na defensiva.

— Mas isso não é o m esm o que ter a liberdade de sair trotando com o elebem entender, não é?

— Mas ele nunca entrou em um a carreta de cavalo.

— Então ele vai ter que aprender.

— E ele…

— Na verdade, Sarah, por m ais que eu deteste ditar as regras aqui, esseassunto não está aberto a discussão — interrom peu Natasha com firm eza. —

Você não tem tem po de cuidar dele e estudar. Mac e eu não sabem os osuficiente sobre cavalos para aj udar. Podem os pagar de bom grado para eleficar no haras Howe, e, quando o seu avô ficar bom , pagarem os para trazê-lo de volta para cá, e vocês poderão continuar com o antes. Agora, se m e dálicença, preciso trabalhar.

Natasha hesitou um pouco ao sair da sala. Quando o avô de Sarah fora mencionado, Mac parecera sem j eito de repente, com o se soubesse algo quenão poderia contar. Ela sentiu os olhos rebeldes de Sarah queim ando em suascostas m uito tem po depois de deixar o côm odo.

* * *

A viagem foi traum ática. Contrataram um a em presa de transporte de

cavalos de Newm arket para levar Boo, com o Sarah o cham ava, em umsábado. Mac depois contou a Natasha que o cam inhão enorm e tiveradificuldade de chegar a Sparepenny Lane, e o m otorista pareceu descontentecom o endereço do estábulo, ainda m ais quando viu o que teria pela frente.

— Ele estava acostum ado com estábulos de corrida — contou Mac. —

Lugares grandiosos.

— Não m e surpreende, tendo em vista quanto eles cobraram — retrucouNatasha.

O cavalo, que j á estava assustadiço por causa de algum a m udança

m icroscópica no ar, recusou-se a entrar no cam inhão. Sarah im plorou eargum entou com ele, xingou todo m undo para que ficasse longe e tentouconduzi-lo várias vezes ram pa acim a, para dentro do vagão luxuoso. MasBoo parou, ficou puxando a rédea, em pinou várias vezes de m edo e fez apequena m ultidão de transeuntes pular para trás quando bateu os cascos naspedras da rua ao recuar. Quanto m ais a situação se arrastava, contou Mac, mais gente parava na rua para assistir, e m ais perturbado ficava o cavalo,suando, com os olhos brancos, quase incontrolável. Garotos passavam de lambretas; m otoristas bloqueados pela carreta de cavalo buzinavam de m au humor; Cowboy John, fum ando ao portão, colocou o chapéu para trás e sacudiu acabeça, com o se tudo o que acontecia fosse um assunto digno de um a levedesaprovação.

Duas vezes, Sarah berrou para os observadores irem para casa, darem umpouco de paz para eles, até que o m otorista e o aj udante dele disseram quenão tinham tem po para esperar m ais e, com um a m istura de força bruta eum a corda com prida, forçaram o cavalo a entrar. Deu para ouvir o anim alrelinchando lá dentro, os cascos batendo nas laterais enquanto o cam inhãoavançava devagar em direção à estrada.

Sarah não foi autorizada a viaj ar com eles (“É o seguro, cara, desculpe”).

Quando a convenceu, com o rosto pálido, a entrar no carro dele, Macobservou que as palm as das m ãos dela estavam sangrando.

Sarah se recusou a falar com ele durante todo o traj eto.

* * *

Mac contou tudo isso a Natasha pelo celular, durante um a breve parada naestrada. Ela havia ido na frente no próprio carro para preparar o chalé. Pelo menos era o que dissera a eles que queria fazer. Na verdade, queria elim inarqualquer sinal de Conor e, m ais im portante, preparar-se para aquilo queparecia um a invasão ao único espaço só dela que lhe restava.

O chalé só tinha dois quartos. Sarah ficaria com o quarto extra e Mac dormiria no sofá. A sim ples ideia de os dois irem até lá fazia Natasha se sentirtolhida, presa. Tinha m edo de que, depois que Mac fosse em bora, aquelacasa tam bém ficasse contam inada por seu casam ento fracassado; um espaçoque havia se livrado dele, de lem branças, passaria a carregar um eco indesejado. Com o diabo ela tinha acabado ali? Com o sacrificara sua independência,sua paz de espírito e possivelm ente seu relacionam ento? Conor fez questãode ignorá-la no trabalho, dizendo que estava ocupado se com etesse o erro deatender o telefone quando ela ligava. Natasha enviara um a m ensagem detexto para ele naquela m anhã, furiosa por ele estar lhe dando gelo.

Só porque a sua m ulher foi cruel com você, não significa que sou farinha

do m esm o saco.

Ela m andara a m ensagem antes de o bom senso poder refreá-la.

Eu não m ereço isso, Conor.

* * *

Natasha fechara o celular e ficara sentada na cozinha silenciosa, m eio queesperando um a resposta. Mas não recebeu nada, e isso fez com que ela sesentisse ainda pior.

Foi até o j ardim sentindo a aproxim ação do inverno nos pelos que searrepiaram em seus braços. Tinha aparado a gram a havia duas sem anas, mas o frio crescente fizera com que crescesse m ais devagar, e o gram ado

ainda estava uniform e e verde. Ela lim para as folhas, podara os arbustos queconseguira identificar e plantara fileiras com pridas de bulbos onde anteshavia m ato. Por cim a das floreiras ficavam lanternas chinesas reluzentes,com as cabeças cor de laranj a brilhando sob o ar cinzento de outono. Asúltim as rosas tinham desabrochado alegres dos arbustos espinhentos. Aquelelugar, antes negligenciado e cheio de m ato, até que estava bonito.

Ela respirou fundo e abraçou a si m esm a, dizendo-se que não tivera opção.

Com sorte, Mac nunca m ais precisaria voltar ali. Ela traria Sarah consigo nosfins de sem ana (por m ais que, pelo que parecia, a m enina fosse preferirpassar o tem po todo com o cavalo) e Conor nunca precisaria saber que Macestivera ali.

Talvez um dia Conor e Sarah pudessem se dar bem . Afinal de contas, eleentendia as crianças. Sabia falar com elas. Ao contrário de Natasha.

Ela cam inhou devagar pelas beiradas, observando os sapatos escureceremcom a um idade, desej ando não se sentir assim tão desequilibrada com apresença de Sarah em sua vida. Toda conversa que tinham parecia enviesada,com o se ela nunca acertasse o tom . Enquanto isso, Mac tratava a m eninacom a naturalidade casual de um irm ão m ais velho. Quando os dois compartilhavam algum a piada interna à m esa da cozinha ou quandoconversavam sobre o avô dela, Natasha se sentia excluída.

Pensou que Sarah não gostava dela. Tratava qualquer pergunta norm al com ose fosse um inquérito e parecia olhar para Natasha com um a desconfiança mal disfarçada. Quando Mac lhe contara ao telefone que Sarah estava serecusando a conversar com ele no carro, sentira-se quase alegre. Não sou sóeu!, foi o que teve vontade de gritar. Ela tam bém sabe ser m al-hum oradacom você!

Caso se forçasse a ser sincera, Natasha saberia que Sarah estava ciente de quenão tinha a confiança dela. Sim , o dinheiro provavelm ente fora gasto com ocavalo. Não, não havia sinal de uso de drogas nem de álcool. Mas a m enina,de algum j eito, parecia contida dem ais, com o se ainda houvesse coisas quenão

tinham sido reveladas.

Ela não podia dizer nada disso a Mac. Com o poderia, se escondera dele aexistência do chalé em Kent durante sem anas? E a resposta dele a tudo erasim plesm ente que Sarah tinha passado por tantas dificuldades que era normal ela se fechar. O tom dele dava a entender que a culpa por não compreender era da própria Natasha.

Fantástico, era o que Natasha tinha vontade de dizer. Acabei abrigando o meu ex-m arido, um a adolescente que não gosta de m im e ainda gastandodinheiro com um a porcaria de um cavalo. Quanto m ais de com preensãovocê quer de m im ?

* * *

Ele ligou de novo às quinze para um a.

— Pode vir ao haras nos encontrar? — perguntou ele. — Você conhece a mulher, certo?

— Acabei de colocar o alm oço na m esa — respondeu ela, de olho nospãezinhos frescos e na panela de sopa no fogão.

— Quer dizer isso ao cavalo? Ele acabou de sair em disparada do cam inhãoe quase m atou alguém — disse Mac. — Ai, m eu Deus! Sarah está gritandocom a m ulher. É m elhor eu ir lá.

Natasha pegou o casaco e saiu correndo pela rua. Quando chegou, Macestava tentando am aciar a Sra. Carter, que dem onstrava sua desaprovaçãocom prim indo a boca em um a linha rígida.

— Ela anda um pouco exaltada — dizia Mac. — Estava preocupada com ele.

Não teve intenção de dizer aquilo.

— Todos que deixam um cavalo aqui precisam obedecer às m inhas regras —

argum entou a Sra. Carter.

— Não quero que ele fique aqui — interrom peu Sarah de trás da porta dacocheira. De vez em quando, um a cabeça de cavalo aparecia ao lado dela,então desaparecia irrequieta na escuridão.

De dentro da cocheira, Natasha escutava os sons de tábuas rachando.

— Se ele quebrar a parede — alertou a Sra. Carter —, você vai ter que pagar.

— É porque você o assustou.

— Sarah, por favor — interveio Mac. — Claro que nós vam os pagar porqualquer dano.

Nós? , pensou Natasha.

Dois hom ens aguardavam ao lado da carreta de transporte.

— Alguém vai pagar a gente? — perguntou um deles. — A gente tem que ir.

Natasha foi até eles e enfiou a m ão no bolso do casaco em busca da carteira.

— Deu um pouco de trabalho — observou um dos hom ens.

— Sinto m uito, m as não entendo m uito de cavalos — disse ela.

— Eu não estava falando do cavalo — retrucou ele.

Natasha se virou no m om ento em que Sarah saiu da cocheira. A discussãoentre a m enina e a Sra. Carter parecia estar esquentando.

— Faz quarenta anos que eu cuido de cavalos, m ocinha, e não vou adm itiresse tipo de com portam ento no m eu haras. Não vou aceitar que um a pessoacom o você sej a tão grosseira.

— Você nem deu um a chance para ele — berrava Sarah. — É a prim eiravez que ele sai do estábulo. Ficou com m edo.

— Aquele cavalo precisava sair da carreta antes que se m achucasse.

— Vocês deveriam ter deixado que eu fizesse isso.

— Sarah, acalm e-se. — Mac tentou fazer com que ela ficasse quieta denovo.

— Vam os todos nos acalm ar. Nós vam os pagar qualquer prej uízo —repetiu.

— Eu não quero que aquela m ulher chegue perto dele — apelou a garota aMac.

A Sra. Carter se virou para Natasha.

— Você disse que ele era com portado. Disse que a m enina era com portada.

Sarah abriu a boca, m as foi Mac quem falou.

— Ele era m uito tranquilo no outro estábulo — afirm ou. — Eu vi. Erabastante calm o.

— Calm o? — repetiu a Sra. Carter.

— Ele fica bem perto de gente que sabe com o tratar os cavalos.

Sarah estava chutando o chão.

— Mocinha, preciso lhe avisar que…

— Um a sem ana — interrom peu Natasha. — Por favor, apenas tom e contadele por um a sem ana. Se achar m esm o que não tem j eito, eu providenciopara que sej a levado de volta. — Ela olhou para Sarah. — E aí terem os quepensar em outra solução. — O cam inhão estava indo em bora. Natashapensou na sopa que estava endurecendo na panela na cozinha. — Por favor,Sra. Carter, Sarah está obviam ente exaltada, assim com o o cavalo. E nãopodem os levá-lo daqui hoj e.

Do ponto de vista logístico, seria im possível.

A Sra. Carter suspirou. Olhou feio para Sarah, que se esticava por cim a daporta da cocheira, ainda tentando acalm ar o cavalo.

— Não posso garantir que vou sair com ele todos os dias.

— Tudo bem — disse Natasha, que não fazia a m enor ideia do que a m ulherestava falando.

— E ela terá que ficar com ele no bloco do outro lado, longe dos outros.

A senhora deu m eia-volta e saiu a passos firm es em direção ao escritório.

— Ótim o. Tudo acertado — disse Mac. Ele sorriu, com o se essa fosse um aconclusão definitiva. — Estou m orrendo de fom e. Venha, Sarah. Vam os

deixar que ele se acalm e e vam os alm oçar. Você pode voltar direto para cáe ficar com

ele depois.

* * *

Sarah tom ou a sopa em tem po recorde e passou o resto da tarde no haras.Mac sugeriu que a deixassem sozinha. Ela era um a garota bacana, de acordocom o raciocínio dele. A Sra. Carter provavelm ente se daria conta dissoquando passasse a conviver com a m enina. As duas adoravam cavalos. Comcerteza encontrariam interesses em com um bem rápido.

Natasha desej ou se sentir tão confiante quanto ele.

Depois que Sarah saiu, os dois ficaram na cozinha, com Mac equilibrado naspernas traseiras da cadeira. Ela o flagrou exam inando a foto dos pais delaque antes ficava pendurada no escritório da casa deles em Londres e oequipam ento de cozinha que ela havia trazido consigo.

— Este chalé não é do Conor, é? — perguntou ele enquanto Natasha tirava am esa.

Ela viu o lugar do ponto de vista dele: um espaço fem inino. Não queescolhesse coisas cheias de frufrus ou floridas, m as os obj etos eramcuidadosam ente posicionados, um a delicadeza de tom e arranj o que traía osexo da ocupante do chalé.

— Eu não com prei, se é isso que você está perguntando. Eu só alugo.

— Não estou perguntando nada. Só… — ele se virou na cadeira e observou asala através da porta — …estou um pouco surpreso. — Ela não sabia o quedizer, por isso não falou nada. — E é para cá que você vem todo fim de semana.

— A m aioria dos fins de sem ana.

Ela de repente ficou constrangida, com o se fosse derrubar a louça.

— Nunca achei que você fosse do tipo interiorano.

— E eu nunca achei que fosse do tipo que se divorcia. Mas, ei, acontece.

— Você, Sarah… São m uitas surpresas.

— Bem , você aparecer à m inha porta não foi exatam ente anunciado.

Ela abriu a torneira da pia, grata por ter algo a fazer. Aquilo parecia tãoestranho, ele estar ali, com o se tivesse se transform ado em alguém que elanão conhecia. Às vezes era difícil acreditar que um dia haviam estado j untos.Mac parecia tão m udado, tão afastado, e ela tinha consciência de que poucacoisa em sua vida avançara.

— Obrigado — disse ele, quebrando o silêncio.

Ela estava preparada para a resposta sarcástica.

— Pelo quê?

— Por perm itir que a gente viesse aqui. Dá para perceber que não é fácilpara você.

Não havia tom de sarcasm o na voz dele. Seus olhos castanhos eram sinceros.

Aquilo a deixou m uito assustada.

— Não é nada.

— Nesse caso, este seria o m om ento certo de lhe contar que durante todoesse tem po eu tinha um apartam entinho em Notting Hill? — Ele j á estavarindo antes m esm o de ela se virar. — Brincadeira! — com pletou ele. —Tash, estou brincando!

— Hilário — retrucou ela, em tom am eno, então ficou se perguntando porque estava sorrindo.

— Ela vai acabar se acalm ando, você sabe — disse Mac, um instante depois.

Natasha ficou paralisada. Então, ele tam bém tinha visto.

Mac foi até o lado dela na pia. Natasha perm aneceu com os olhos na louça.

— Acho… que não tem m uita coisa que im porta para ela além do avô edaquele cavalo. Levando em conta tudo o que aconteceu, ela provavelm enteestá apavorada com a ideia de perdê-lo tam bém . E por isso está reagindo deum j eito exagerado. Não é difícil entendê-la. — Ele entregou a Natasha um acolher que sobrara. Talvez para você, pensou ela. Mas não podia adm itiraquilo em voz alta.

— Eu am pliei algum as fotos — com entou Mac, voltando a se sentar. —Estão no m eu carro. Se eu fizer um chá, você dá um a olhada?

Ela não tinha m ais nada para fazer. Tentou não reagir enquanto ele rem exianos arm ários em busca de xícaras e colheres. Com ele fazendo chá no lugarde Conor, Natasha se sentia com o se estivesse sendo infiel. Com am argor,tom ou consciência da ironia daquilo.

Os dois se acom odaram na sala, Mac, na poltrona que Conor geralm entepreferia, ela, no sofá em frente. Ele exam inava um a pasta transparente defotos.

— O lugar em que ele fica é tipo da era vitoriana… tirando os carros e tal.

Este velho — ele apontou para um hom em negro j á de idade com umchapéu de caubói esfarrapado — disse que ainda existem alguns dessesestábulos pequenos espalhados pela zona leste de Londres. Antes tinha m ais,porém as construtoras foram derrubando.

Natasha olhou para o estábulo apertado, o braseiro em cham as e as galinhassoltas, tentando encaixar aquele lugar em sua localização na cidade. Era um am istura do seriado Steptoe and Son e algo oculto, m ágico, rem anescente deum m odo de vida que desaparecera m uito tem po atrás. Havia galinhas,cabras, cavalos enorm es e crianças m agrelas. Atrás de um a pilha enorm ede estrados, um trem brilhante passava lá em cim a, com os ocupantes alheiosà cena abaixo deles. Aquele era o lugar de onde Sarah vinha. Era o m undodela. Onde um local daqueles se encaixava nos tem pos m odernos? Com o é

que um a garota com o Sarah se encaixava?

— O que você acha?

Quando Natasha tirou os olhos das fotos, Mac estava olhando para ela. Elerealm ente queria saber.

— Nunca vi nada com o isto, tenho certeza.

Outra im agem cham ara a atenção dela, um cavalo em pinando, m as comum a silhueta conhecida m ontada no lom bo. Um a abertura nas nuvens tinhaperm itido que a cabeça do cavalo fosse ilum inada pelo sol, em um asobreposição etérea em contraste com a rua cinzenta atrás. Ela percebeu, comum sobressalto, que j á vira aquilo. Um a vez, de um trem em m ovim ento.

— Mas você gostou? — A voz de Mac estava m ais anim ada. — Porque euestava pensando em fazer um proj eto fotográfico. Eu m ostraria ao curadordaquela galeria perto de Waterloo… lem bra? Aquela em que fiz um aexposição há uns três, quatro anos? Falei para ele sobre as fotos e ele pediupara ver. — Mac se inclinou para a frente e aj ustou as m ãos grandes emvolta da im agem que ela exam inava. — Achei que podia cortar esta bemaqui. O que você acha?

Mac tirara aquelas fotos com film e, não eram digitais, explicou. Usara suaantiga Leica, e aquelas eram só uns dez por cento das im agens nas folhas decontato. Fora im possível fazer um a foto ruim naquele lugar. Para todo ladoque ele olhava, havia um a im agem prontinha para ser registrada. Não demoraria m uito para aquele estábulo se transform ar em um m undo perdido. Ocaubói tinha lhe dito. John sabia de uns cinco que ainda restavam , dos trintaoriginais. Quem sabe Mac até fosse dar um a olhada nos outros. Talvez elepudesse transform ar aquilo em um a série. Estava anim ado, entusiasm ado.Fazia anos que Natasha não o escutava falar do trabalho daquele j eito.

No final, ele foi desistindo.

— Você está achando isso um a chatice — disse Mac, sorrindo com o quempede desculpas e recolhendo as fotos.

— Não — reagiu ela ao lhe entregar as fotos que tinha no colo. — Deverdade. São m aravilhosas. Acho que… são a m elhor coisa que j á vi vocêfazer.

— Ele levantou a cabeça de supetão. — De verdade. São lindas. Não que euentenda algum a coisa de fotografia.

Ele sorriu.

— Afinal de contas, você é a m ulher…

— …que certa vez fotografou um rolo de film e inteiro com a lente tam pada.

Eu sei.

Eles riram , m eio sem j eito. No silêncio que se seguiu, ela deixou o j oelhom arcado de tanto bater com o dedo nele.

— Mas, bem — continuou ele, levantando-se. — Ela j á está lá há um a horae m eia. É m elhor a gente ver que confusão o cavalo está causando na região.

Natasha aj eitou as revistas na m esa, estranham ente sentindo-se com o setivesse perdido algum a coisa. Não conseguia olhar para ele.

— É. Acho que é m elhor irm os até lá.

* * *

Cam inharam pela alam eda na direção do haras Howe, agasalhados por causado ar frio, Natasha acanhada e deslocada com seu sobretudo de lã azul.Enquanto andavam , esbarraram os cotovelos um no outro e ela se afastou.

Natasha ouvira casais que descreviam os ex com o m elhores am igos. Com oisso era possível? Com o é que se podia passar com tanta facilidade da paixão(sej a am or ou ódio) ao tipo de fam iliaridade fácil em que dá para andar debraços dados? Natasha se lem brava de m om entos em que odiara Mac de talform a que tivera vontade de m atá-lo, e outras vezes em que o desej ara tantoque achara que m orreria. Com o toda essa energia podia ser convertida emalgo tão neutro, tão bege, quanto a am izade? Com o era possível que ele

tivesse se divorciado disso sem nenhum a cicatriz visível? Ela sabia que o fimdo casam ento deles ainda estava m uito perto da superfície para ela,revelando-se em seus gestos, suas reações nada naturais a ele, seus arroubosde raiva sem pre presentes.

E, no entanto, Mac seguia em frente, alheio, um barco em águas eternam entecalm as. Natasha enfiou o queixo atrás do cachecol e cam inhou um pouco mais depressa, com o se estivesse im paciente para chegar, torcendo para quesua confusão não transparecesse no rosto.

Aquilo era m uito diferente do estábulo urbano apertado das fotos de Mac.Ao redor de um pátio pitoresco de tij olinhos verm elhos, m ulheres de m eia-idade e adolescentes com coxas m agrelas enfiadas em calças de m ontaria detodas as cores conversavam por cim a do som de um rádio transistorizado minúsculo enquanto cuidavam dos cavalos e varriam as baias, com brevestrechos das conversas chegando até ela.

— Ele nunca anda direito na areia. Parece que a traseira trava.

— Eu estava fazendo um a serpentina de três voltas com m udança de pata nom eio…

— Jennifer só deu palha de cevada para ele, até com eçar a tossir. Estácustando um a fortuna em serragem …

Os cavalos esperavam pacientem ente ao lado de blocos de m ontar, ouenfiavam o focinho, curiosos, por cim a das portas das baias, envolvidos emum a com unhão silenciosa entre si. Era um m undo fechado, com linguagense costum es estranhos, com seus habitantes unidos por um a paixão que elanão podia nem com eçar a entender. Mac observava tudo com interesse, as mãos inquietas na lateral do corpo, com o se ficassem perdidas sem um a câmera para segurar.

O cavalo de Sarah não estava na baia dele. A porta fora escancarada. A Sra.

Carter saiu do escritório.

— Eu disse que ela podia usar a escola durante m eia hora, apesar dos

pesares.

Achei que devia deixar o anim al descansar, m as ela disse que ele se acalmaria m ais rápido se fizesse exercício. — Sua opinião ficou clara no m axilartenso. —

Não dá para conversar m uito com ela, não é?

— O avô dela tem m uita experiência. Ele ensinou a m aioria das coisas paraela.

— Não ensinou m uito no que diz respeito à boa educação. — Ela fungou. —É

m elhor eu dar um a olhada. Para garantir que ela não está bagunçando aarena.

Natasha e Mac se entreolharam e Natasha percebeu que, perigosam ente,estava com vontade de rir.

Seguiram os passos levem ente artríticos da Sra. Carter, tentando não pisar nocachorrinho dela, e viraram um a curva, depois da qual encontraram Sarahparada no m eio de um círculo de areia. O cavalo estava na ponta de duasrédeas com pridas, trotando ao redor dela, m udando de direção várias vezes,seguindo algum a instrução invisível, desacelerando até parecer que trotavasem sair do lugar. Ela se aproxim ou dos quartos dele, quase encostada noanim al. Sem dúvida, bem atrás de um cavalo era o lugar em que ninguémdeveria ficar.

Natasha enfiou as m ãos bem fundo nos bolsos e ficou observando emsilêncio.

O cavalo trotava tão devagar que parecia flutuar, os j oelhos se erguendo, umleve saltitar no passo. Dava para ver a concentração intensa do anim al,espelhando a da m enina. Os flancos dele trem iam , a cabeça descia à medida que ele erguia e baixava os cascos no ritm o de algum a batida que nãose escutava. E

então ele saiu a m eio-galope m ais um a vez, traçando um pequeno círculoao redor da m enina, que voltara a m urm urar.

— Parece balé para cavalo — com entou Mac, ao lado dela. Ele estava com acâm era na frente do rosto e batia um rolo inteiro de fotos. — Eu j á a vifazendo essa coisa de erguer e baixar. Não lem bro com o cham a.

— Piaffe — interveio a Sra. Carter. Ela estava em pé ao lado do portão,observando com atenção. Tinha ficado m uito quieta.

— Ela é boa, não é? — perguntou Mac, baixando a câm era.

— O cavalo é talentoso — reconheceu a Sra. Carter.

— Ela quer fazer… adestram ento com ele. Algo assim . Tipo m ovim entosde balé. Ar algum a coisa.

— Ares acim a do solo?

— Acho que foi o que ela disse.

A Sra. Carter balançou a cabeça.

— Acho que você não entendeu bem . Ela não faria ares acim a do solo. Nãona idade dela. Isso é exclusivo das academ ias europeias.

Mac refletiu por um m om ento.

— Ela com certeza disse adestram ento.

— Bom , ela precisa trabalhar nos testes básicos para com eçar, prelim inar,noviça, elem entar… Se for boa, pode chegar ao nível m édio com o tem po,com instrução adequada, m as não vai chegar a lugar algum se não com petircom ele.

A Sra. Carter parecia tão certa disso que Natasha sentiu um a pontada desolidariedade por Sarah. Ela não sabia m uito bem o que via, m as a m eninaestava

m uito concentrada, m uito focada nos m ovim entos do cavalo. Não haviasinal da adolescente ressentida, apenas um a com petência calm a, am or peloque estava fazendo, um a atitude silenciosa, recíproca e de bom grado, doanim al próxim o a ela. É isso, pensou. Sua grande paixão.

— A senhora ainda não a viu m ontar — com entou Mac, com o sedefendesse Sarah. — Ela é fantástica.

— Qualquer um fica bem em cim a de um cavalo um pouco decente.

— Mas ela só fica lá parada. Até quando ele faz aquela coisa de em pinar…

Ele im itou o m ovim ento de um cavalo em cim a das patas traseiras.

Os olhos da Sra. Carter se arregalaram .

— Nenhum cavalo deve ser incentivado a em pinar — disse com firm eza. —

Se cair para trás, ele pode se m achucar ou até se m atar. Com o cavaleiro.

Mac am eaçou dizer algo, então suspirou fundo e fechou a boca.

Tinham term inado. Sarah se virou e com eçou a levar Boo na direção doportão. O cavalo estava de cabeça baixa e parecia relaxado. Ele a cutucoucom o focinho quando ela se aproxim ou dos outros.

— Ele gostou daqui — disse ela, parecendo não pensar em si m esm a por umm om ento. — Toda a ação dele m udou. Ficou saltitante. — Sarah sorria. —Ele nunca esteve em um a arena.

— Não? Mas onde você treina com ele? Em casa?

A Sra. Carter abriu o portão para deixá-la sair. Natasha deu vários passosnervosos para trás.

— No parque, principalm ente. Na verdade, não tenho outro lugar.

— Em um parque?

— Eu delim itei um a área perto do playground.

— Você não pode treinar em um parque. No verão o solo fica duro dem ais, eno inverno você vai prej udicar os tendões dele se tiver lam a. Vai estragar aspatas dele se não tom ar cuidado.

A voz da Sra. Carter tinha um tom de bronca, e Natasha viu Sarah se retesar.

— Eu não sou burra — retrucou a garota. — Só treino com ele quando o soloestá bom .

Seu breve sorriso exultante desaparecera. As coisas são assim com ascrianças, pensou Natasha. Uma palavra dura no momento errado e elas sesentem esmagadas. Ficou com a im pressão de que Sarah não voltaria a sorrirpara a Sra.

Carter.

— Bom , coloque-o na cocheira. A que fica atrás das outras, com oconversam os.

Sarah parou.

— Mas ele vai se sentir solitário lá. Está acostum ado com a com panhia deoutros cavalos.

— Ele vai escutar os outros — disse a Sra. Carter, com firm eza. — É m uito

grande para aquela cocheira. E, além do m ais, preciso pedir a Brian paraconsertar os buracos que ele abriu com os coices que deu na parede.

— Faça com o a Sra. Carter diz — im plorou Mac. — Vam os lá. Ele parececontente.

O olhar que Sarah lançou para ele foi de aceitação ressentida. Natasha nãoconseguia entender por que aquilo a fazia se sentir tão estranha, até se darconta do que m ais vira no rosto de Sarah. Confiança. A m enina levou ocavalo até a cocheira nova.

— Certo. Preciso que vocês preencham alguns form ulários — pediu a Sra.

Carter, levando-os até o escritório. — Tam bém gostaria de receber o chequedo depósito e o valor dos reparos se não se incom odam . — Ela estavaganhando velocidade, com o cachorro trotando atrás. Tocou o braço de Mac.Todas as m ulheres que tinham um a oportunidade faziam isso. — Sabe, elenão é um cavalo ruim . A m elhor coisa que poderia fazer, Sr. Macauley —disse ela, baixinho —, é achar um novo lar para ele. Algum lugar em que elepossa desenvolver seu potencial.

Um breve silêncio se instalou.

— Acho que eu prefiro garantir que isso aconteça com a dona dele —

retrucou Mac.

* * *

Quando voltaram para o chalé, Sarah desapareceu em seu quarto. Natashapassou um tem po procurando toalhas lim pas e arrum ando o arm ário deroupa de cam a e banho. Só quando voltou para o andar de baixo pensou emconferir o celular, que tinha ficado na m esa.

Havia um a ligação perdida de Conor e um a m ensagem do corretor: Sr. eSra. Freem an fizeram oferta pela casa. Ligue urgente Mac estava do lado defora, pegando lenha para a lareira. Ela o observou se abaixar e se levantarcom facilidade enquanto j ogava a lenha para um lado, então foi para acozinha fazer a ligação. O corretor disse que a oferta era

“razoável”, só uns dois m il abaixo do que pediam . Os com pradores estavamdesim pedidos e queriam se m udar logo.

— Eu recom endo que aceitem , tendo em vista a situação do m ercado —

aconselhou ele.

— Vou conversar com o m eu… Eu retorno. Obrigada — disse ela, depoisdesligou.

— Fico surpreso por você não estar com os m úsculos iguais aos do ArnoldSchwarzenegger depois de carregar estas coisas — com entou Mac, entrandocam baleante pela porta, de algum m odo grande dem ais para a casinha, com

um a cesta cheia de lenha. Ele a largou com um baque ao lado da lareira e uma chuva de lascas de m adeira e poeira cobriu o chão.

— É que eu costum o trazer só dois ou três pedaços de cada vez, não a cestatoda.

Ele lim pou as m ãos na calça j eans.

— Quer que eu acenda, então? Vai ser gostoso ter um a fogueira. Dá parasentir que a tem peratura está caindo.

Ele se sacudiu todo em um gesto teatral, e pedaços de casca de árvore caíramde seu casaco. O frio deixou as pontas de suas orelhas cor-de-rosa.

Ela ficou se perguntando com o ele podia estar tão relaxado ao acender um alareira em um lugar que com certeza parecia ser a casa de outro hom em .Mac aj eitou a m adeira em cim a da isca, então se agachou, acendeu o j ornalpor baixo e soprou até ter certeza de que o fogo tinha m esm o pegado.

— Recebem os um a oferta pela casa — disse Natasha, estendendo o celular.

— Menos dois m il do que pedim os, m as não há restrições contra os compradores.

O corretor acha que devem os aceitar.

Ele a encarou por um a fração de segundo a m ais do que o necessário, entãose virou para o fogo m ais um a vez.

— Para m im , parece bom — disse ele, colocando m ais um pedaço de lenhano fogo. — Se estiver bom para você.

Em um filme, pensou Natasha depois, esse teria sido o ponto em que ela diriaalgo. O ponto em que a coisa toda de fato se tornaria irreversível, quando ossentimentos e as ações assumiriam um ritmo próprio. Porém , por m ais que

ela se esforçasse, não conseguia decidir o que queria falar.

— Vam os ter de contar para a Sarah — disse, afinal. — Para o caso… para ocaso de as coisas acontecerem rápido e term os que encontrar outro lugar paraela ficar.

— A gente lida com esse problem a quando chegar o m om ento.

Ele não tirou os olhos do fogo.

— Então, vou ligar para eles — disse ela.

Em seguida, voltou para a cozinha com os pés frios no piso duro, m esm oestando cobertos por m eias.

* * *

Mac perguntara se podia cozinhar. Tirou do porta-m alas do carro dele um acaixa cheia de ingredientes, coberta com um pano de prato, e avisou que nãoera para elas olharem até ficar pronto. Natasha, um pouco desarm ada pelofato de o ex-m arido ter adquirido habilidades culinárias, sentiu-se m aisabalada do que anim ada pela perspectiva daquele agrado nada característico.Por que ele tinha que se transform ar no Sr. Perfeição quase im ediatam entedepois de eles se

separarem ? Mac estava m ais bonito, com portava-se m elhor, tinha se comprom etido com um em prego de adulto. Não perdera nada de seu charm e. Avida dela, em com paração, estava em pacada. Era o m áxim o que haviaconseguido fazer para seguir com seu dia a dia. Ela se sentiu estranham entereconfortada quando a com ida chegou à m esa.

— É… hum … m exicana — disse ele, com um leve tom de desculpa na voz.

Natasha e Sarah ficaram olhando para o m onte pastoso m arrom na tigelaazul, com os tacos ainda no pacote. Tiras de um a substância irreconhecívelnadavam em óleo pegaj oso, intercaladas com algum a coisa verm elha. Osolhos deles se encontraram por um breve instante, e todos com eçaram a rirespontaneam ente.

— Certo… Então, eu ainda não dom inei m uito bem o tem po de preparo —

reconheceu Mac. — Desculpem . A carne deve estar um pouco passada.

— O que é isso? — Sarah cutucou a m ontanha m olenga de com ida.Parecia, pensou Natasha, tentando não dem onstrar, algo que o cavalo deSarah poderia ter deixado para trás.

— São feij ões refritos — respondeu Mac. — Você nunca com eu feij õesrefritos?

Ela balançou a cabeça, levem ente desconfiada, com o se a coisa toda talvezfosse um a pegadinha.

— O gosto é m elhor do que a aparência. É sério.

Ele esperou, observando as duas.

— Ah, tudo bem — cedeu ele. — Vam os pedir com ida.

— Por aqui não tem delivery, Mac — explicou Natasha. — Estam os nointerior. Olhe. — Ela abriu o pacote de tacos. — Se a gente encher de sourcream e queij o, vai ficar bom . Afinal, com ida m exicana é isso, certo?

* * *

Depois do j antar, Sarah desapareceu para tom ar um banho, então voltoupara dizer que, se eles não se incom odassem , iria dorm ir. Estava com umlivro bem gasto debaixo do braço.

— São só nove e m eia! — exclam ou Mac. Ele e Natasha tinham ido para asalinha da frente, onde os pés dele estavam apoiados na cesta de lenha. —Que tipo de adolescente você é?

— Um a adolescente cansada, im agino — disse Natasha. — Você teve umdia e tanto.

— Que livro é esse?

Sarah pegou o livro em baixo do braço. Estava encapado com papel vermelho, preso com durex.

— É do m eu avô — respondeu ela, e então, com o os dois pareciam estar naexpectativa, com pletou: — É Xenofonte.

— Você lê clássicos? — Natasha não conseguiu esconder a surpresa.

— É sobre cavalos. Vô costum ava ler, então achei que podia aj udar…

— Os gregos têm coisas a ensinar sobre hipism o?

Ela entregou o livro para Mac, que exam inou a capa.

— Nada m uda m uito. Sabe os cavalos brancos de Viena? — indagou a menina. Até Natasha j á ouvira falar daqueles garanhões brancos reluzentes.

Pensara que não passavam de um a atração turística decorativa, com o osBeefeaters da Torre de Londres. Sarah continuou: — Aqueles cavaleirosainda trabalham para o Tratado de La Guérinière, que foi redigido em 1735.Capriole, croupade, curvets… Os ares, os m ovim entos, quer dizer, não mudaram desde que foram apresentados para o Rei Sol.

— Muitos dos princípios da lei rem ontam a essa época — com entouNatasha.

— Estou im pressionada por você se interessar por textos clássicos. Já leu AIlíada? Tenho um exem plar lá em cim a, pode ser que você goste…

Mas Sarah j á estava balançando a cabeça.

— É só… é para ensinar o Boo. Enquanto Vô não está aqui.

— Diga um a coisa, Sarah. — Mac pegou um taco e o enfiou na boca. — Quenegócio é esse?

— O quê?

— Essa coisa dos aj ustes. Tudo isso de ter certeza de que os seus pés estão

exatam ente no lugar certo. Que o seu cavalo m ove as patas exatam entedesse ou daquele j eito. Que a cabeça dele está exatam ente aqui. Quer dizer,eu vej o sentido em saltar obstáculos ou disputar corrida. Mas observei vocêno parque, fazendo as m esm as coisas várias vezes. Para que serve aquilo?

Ela ficou estupefata, pensou Natasha, como se a pergunta tivesse sido umaheresia.

— Para que serve? — repetiu Sarah.

— Para que serve fazer esses pequenos m ovim entos de um j eito tãoobsessivo. Dá para ver que é bonito, m as não entendo qual é o obj etivo.Metade do tem po, eu nem consigo entender qual é a sua intenção.

Ela havia lavado o cabelo, que, m olhado, ainda exibia os sulcos regulares em inúsculos dos dentes do pente. A garota o encarou.

— Por que você fica tirando foto?

Ele sorriu, contente com aquilo.

— Porque sem pre tem um a foto m elhor para tirar.

Ela deu de om bros.

— E eu sem pre posso fazer m elhor. Nós sem pre podem os fazer m elhor.Tem a ver com tentar alcançar a com unicação perfeita. E um pequeno movim ento do dedo em um a rédea ou um aj uste m inúsculo do peso podefazer isso. Cada vez é diferente porque ele pode estar de m au hum or ou euposso estar cansada, ou o

solo pode estar m ais m acio. Não é só técnica, são duas m entes, doiscorações…

tentando entrar em equilíbrio. Tem a ver com o que se passa entre os dois.

Mac ergueu a sobrancelha para Natasha.

— Acho que a gente entende — disse ele.

— Mas quando Boo entende — prosseguiu Sarah —, quando nós doisacertam os j untos, não tem sensação m elhor. — A m enina olhou para olado, as m ãos se fecharam sobre rédeas im aginárias à sua frente, em umgesto inconsciente. — Um cavalo é capaz de fazer coisas lindas, coisasincríveis se você descobrir com o pedir do j eito certo. Tem a ver com tentardestravar isso, destravar a capacidade dele… e então conseguir fazer com queele execute. E, m ais do que isso, conseguir fazer com que ele execute porquequer. Porque a execução faz com que ele sej a o m elhor possível. — Umbreve silêncio se instalou. Sarah ficou um pouco sem j eito, com o se tivessefeito revelações dem ais. — Só que, bom , ele preferia estar em casa —concluiu.

— Bem , você vai poder levá-lo de volta logo, logo — disse Mac, todo animado. — Depois destas pequenas férias. E nós dois serem os só um a lembrança ruim . Algo para você contar para os am igos.

— Não acho que ele vá ficar m uito feliz quando eu não estiver aqui durantea sem ana — prosseguiu Sarah, com o se não tivesse ouvido Mac.

Natasha sentiu a im paciência crescendo dentro de si e assum iu um tom mais ríspido.

— Mas a gente j á conversou sobre isso. Mesm o que ele estivesse emLondres, você não poderia vê-lo. Pelo m enos aqui tem a certeza de quealguém está tom ando conta dele. Por favor, Sarah… — Ela não teve aintenção de parecer irritada, m as estava exausta.

Sarah am eaçou sair da sala, m as se virou para eles.

— Estão vendendo a casa? — perguntou, da porta. — Ouvi vocêsconversando quando eu estava tom ando banho — com pletou.

O chalé era pequeno dem ais para segredos. Natasha olhou para Mac,suspirou fundo.

— Estam os — respondeu ele. — Estam os, sim .

— Para onde vocês vão se m udar?

Ele j ogou um a caixa de fósforos para o alto e a pegou no ar.

— Bom , provavelm ente vou m e m udar para algum lugar em Islington, enão sei bem para onde Natasha vai, m as você não precisa se preocupar.Ainda vai dem orar um pouco, m uito tem po depois de você voltar a m orarcom o seu avô.

Ela parou à porta.

— Vocês não estão m ais j untos, estão? — Foi m ais um a observação doque um a pergunta.

— Não — respondeu Mac. — Só estam os j untos pelo bem das crianças.Você, aliás. — Ele j ogou o livro para Sarah e ela o pegou. — Olhe, não sepreocupe

com a gente — disse ele, ao perceber com o ela ficou sem j eito. — Nós somos am igos e não tem os problem a nenhum em ficar j untos até tudo seresolver. Não é m esm o, Tash?

— É.

A palavra saiu rouca. Sarah a observava, e Natasha sentiu que a m eninaconseguia ler seus pensam entos, sentir seu m al-estar.

— Eu m e viro com o café da m anhã — disse Sarah, enfiando o livro embaixo do braço. — Quero ir para o haras o m ais cedo possível se vocêsconcordarem .

E então ela se retirou, fazendo a escada estreita ranger, a cam inho da cam a.

* * *

Em sua prim eira noite na casa de Londres, Mac e Natasha haviam dorm idoem um colchão no piso em poeirado. Em algum ponto da m udança doapartam ento dela, os parafusos que prendiam as duas partes do sofá-cam adeles tinham sum ido e, exaustos depois de um dia inteiro desem pacotandocoisas, os dois colocaram o colchão na frente do aquecedor na sala e secobriram com um edredom . Ela se lem brou disso naquele m om ento,

deitada nos braços dele, em baixo das j anelas sem cortinas que davam para arua escura, com um avião distante cruzando o céu noturno. Estavam rodeadospor caixas de papelão am ontoadas que ficariam daquele j eito durante meses, o papel de parede de algum a outra pessoa, a sensação estranha de dormir em um a casa que era deles, m as que ainda não parecia ser. Acam padosnaquele espaço, de algum m odo os dois haviam elevado a sensação dealheam ento, de irrealidade. Ela ficara ali deitada, com o coração batendorápido dem ais, sem nem m esm o im aginar onde eles estariam , no queaquela casa se transform aria, m as aproveitando um pequeno m om entoperfeito, um a convergência de felicidade e possibilidade que ela desconfiavasaber, até m esm o na época, que não duraria m uito.

Sentindo o braço dele esticado por cim a de seu corpo, o am plo espaço dacasa antiga ao redor deles, Natasha se sentia preenchida pela ideia de que elesseriam capazes de fazer qualquer coisa. Com o se aquele fosse apenas oponto de partida de algo tão infinito quanto o céu. E ela se virara para olhá-lo,aquele hom em lindo e apaixonante, passando os dedos de leve pelo rostoadorm ecido dele, dando beij os em sua pele até ele acordar devagar e, comum m urm úrio sonolento de surpresa e prazer, puxá-la m ais para perto.

Natasha serviu um a taça grande de vinho. Não tirou os olhos da televisão,sem saber ao certo a que estava assistindo. Sentia-se estranham ente exposta epercebeu, com pavor, que seus olhos estavam ardendo por causa das lágrimas.

Ela se virou um pouco de costas para Mac, piscou com fúria e tom ou umlongo gole de vinho.

— Ei — disse Mac, baixinho.

Ela ainda não podia se virar. Nunca conseguira chorar com discrição. Àquelaaltura seu nariz estaria brilhando feito um a lanterna. Ouviu quando ele selevantou e atravessou a salinha para fechar a porta. Então ele se sentou edesligou a televisão. Ela o xingou em silêncio.

— Você está bem ?

— Estou — respondeu ela, m eio irritada.

— Não parece.

— Bem , estou.

Ela ergueu a taça m ais um a vez.

— Está aborrecida por causa dela?

Natasha aprum ou o corpo.

— Não… — Isso não seria o suficiente. — Acho que essa história toda docavalo é um tanto exaustiva para m im . Na verdade, só o fato de ter um aadolescente em casa j á é exaustivo.

Ele assentiu.

— Não tem sido… nada óbvio, não é m esm o?

Mac sorriu.

Não seja simpático, pensou ela, não faça isso. Mordeu o lábio.

— É por causa… da casa?

Ela se forçou a assum ir um a expressão de indiferença.

— Ah… acho que não tinha com o não ser um pouco estranho.

— Eu tam bém não estou m e sentindo m uito bem , não — confessou ele. —

Adoro aquela casa.

Os dois ficaram sentados em silêncio, olhando para o fogo. Do lado de fora, ochalé estava envolto pela noite escura do interior, que abafava o som e a luz.

— Mas foi tanto trabalho… — disse ela. — Todos aqueles anos de planej amento, decoração e im aginação. É só… difícil saber que tudo vai desaparecer.Não consigo parar de m e lem brar de com o foi da sensação de quando agente foi para lá, quando a casa era um a desgraça m as cheia de potencial.

— Eu ainda tenho as fotos — adm itiu ele. — Um a foto sua derrubandoaquela parede dos fundos, toda coberta de poeira, com a m arreta…

— É que m e parece estranha a ideia de outra pessoa m orar lá. Ela não vaisaber nada da história, dos corrim ãos de m adeira de dem olição, nem porque a gente colocou aquela j anela redonda no banheiro… — De repente,Mac pareceu ficar sem palavras. — Tanto trabalho. E aí, nada. A gente simplesm ente segue em frente. — Ela sabia que estava falando dem ais porcausa do vinho, porém de algum m odo não pôde se conter. — Parece… quea gente está deixando um pedaço para trás. — O olhar dele encontrou o dela,e Natasha teve que olhar para outro lugar. Na lareira, um a lenha se m oveu eprovocou um a chuva de faíscas pela cham iné. — Acho que eu nãoconseguiria dedicar tanto trabalho a qualquer

outro lugar — disse ela, quase para si m esm a.

Apesar do estalar abafado do fogo, Natasha ouviu Sarah abrir e fechar um agaveta no andar de cim a.

— Sinto m uito, Tash.

Ele hesitou, então esticou o braço e pegou a m ão dela. Natasha ficou olhandopara os dedos dos dois, entrelaçados. A sensação estranha, porém fam iliar,da pele dele na dela lhe deixou sem fôlego.

Natasha afastou a m ão e sentiu as bochechas corarem .

— É por isso que eu não costum o beber — disse ela, levantando-se. — O diafoi longo. E acho que todo m undo se sente assim quando vende um lugar emque passou m uito tem po. Mas é só um a casa, certo?

O rosto de Mac não revelava nada do que ele estava pensando.

— Com certeza — disse ele. — É só um a casa.

12

“Os deuses concederam ao homem, de fato, o dom de ensiná-lo por meio dafala e da razão, mas o cavalo, obviamente não está aberto a instruções por

meio da fala e da razão.”

XENOFONTE, SOBRE EQUITAÇÃO

Apesar da exaustão, o sono de Natasha foi agitado. O silêncio do cam po lhedava um a sensação opressiva, e a proxim idade de Mac e de Sarah pareciaexcessiva no confinam ento do chalé. Ela escutou o ranger do sofá quando elem udou de posição no andar de baixo e os diplom áticos passos descalços emdireção ao banheiro quando Sarah foi fazer xixi no m eio da m adrugada.Achou até que conseguia ouvir a respiração deles e ficou im aginando se issosignificava que Mac tam bém escutava cada m ovim ento seu. Dorm iu eacordou depois de sonhos breves e agitados em que discutia com ele, oualucinações de que desconhecidos invadiam sua casa, até que, por fim ,quando a luz azul surgiu e o sol ártico cor de laranj a se ergueu sobre asárvores distantes, ela parou de tentar m anter os olhos fechados. Um a pazbaixou sobre ela, com o se sua m ente tivesse sido convencida porcircunstâncias físicas a ficar quieta. Ela continuou ali deitada, olhando para oteto que ia se ilum inando, até vestir um penhoar e sair da cam a.

Não pensaria em Mac. Perm itir-se ficar aborrecida por causa da casa erabobagem . Fixar-se num toque seu era a estrada para a loucura. Tinha ficadobêbada e baixara a guarda. Só Deus sabia o que Conor teria dito se visseaquilo.

Conferiu a hora (seis e quinze) e então escutou o rugido seco que lhe avisavaque o tim er do aquecim ento central com eçara a funcionar. Deu um a olhadana porta fechada do quarto, com o se pudesse enxergar através dela e verSarah dorm indo do outro lado do patam ar.

Tenho sido egoísta, pensou. Ela não é burra e sente o meu desconforto.Como deve ser perder tanta coisa, depender tanto de desconhecidos? Odinheiro, a idade, a vida que tinha davam a Natasha escolhas que Sarah talveznunca tivesse.

Decidiu que, nas sem anas seguintes, seria m ais sim pática, disfarçaria areserva e a desconfiança que sentia. Faria com que aquela curta estadia fosseútil. Um pequeno ato, m as que valeria a pena. Se ela se concentrasse m aisem Sarah, poderia se distrair m enos com a presença de Mac. Talvez se im

pedisse de acabar na m esm a situação da noite anterior.

Café, resolveu ela. Faria um café e aproveitaria um a hora de paz.

Abriu a porta fazendo o m ínim o barulho possível e saiu. A porta do quartode hóspedes estava aberta, e Natasha ficou olhando por um m om ento antesde, por im pulso, dar um passo adiante e se encostar nela com delicadeza. Eraisso que as

m ães faziam , disse a si m esm a. No m undo todo, m ães se apoiavam nasportas dos quartos para observar os filhos adorm ecidos. Talvez ela sentisseum pouco do que as m ães sentiam . Só um pouquinho. De algum m odo eram ais fácil sentir algo, tentar sentir algo, quando a m enina estava dorm indo.

Foi interrom pida pelo toque estridente do celular e recolheu a m ão. Ligaçõesàquela hora da m anhã só podiam significar m ás notícias. Que não sejamminha mãe e meu pai, im plorou para algum a deidade invisível. Nem asminhas irmãs, por favor.

Mas a voz do outro lado da linha não era da fam ília.

— Sra. Macauley ?

— Pois não?

Mac estava acordando. Natasha observou quando ele se desenroscou do sofá.

— É a Sra. Carter aqui do haras. Peço desculpas por ligar tão cedo, m as temos um problem a. Parece que o seu cavalo fugiu.

* * *

— Com o diabo ele saiu de lá?

Mac se sentou e esfregou os olhos. Estava vestindo um a cam iseta velha queela reconheceu, m acia depois de tantos anos de uso.

— Ela disse que eles às vezes conseguem abrir as trancas. Tem algo a vercom bater na porta e fazer a tranca pular. Na verdade, eu não estava prestando

atenção.

Estava pensando: ai, meu Deus. O que vamos dizer para a Sarah? Ela vaificar histérica. E colocará a culpa em nós por forçá-la a trazê-lo para cá.

— O que farem os?

— O m arido da Sra. Carter saiu no quadriciclo para procurar nos cam pospróxim os. Ela vai sair com o quatro por quatro dela. Perguntou se poderíamos pegar um laço e sair com o nosso carro. Ela está com m edo de que ele vápara a estrada. Pode ter passado a noite toda fora. — Natasha abraçou a si mesm a, trem endo. — Mac, nós precisam os acordar Sarah e contar para ela.

Ele esfregou o rosto. Sua expressão dizia que estava tão apavorado quanto elacom a providência.

— Não — disse ele, vestindo um suéter. — Vam os tentar encontrar o cavaloprim eiro. Não adianta nada fazer com que ela entre em pânico se ele simplesm ente estiver em um cam po próxim o. Ela estava tão exausta ontem ànoite que, com sorte, quando acordar j á vam os tê-lo encontrado.

Havia um a leve geada no solo, e, enquanto eles avançavam pela alam eda, ospneus iam am assando a cobertura prateada do asfalto. Seguiam devagar, comas j anelas abertas, esforçando-se para ver ou escutar um cavalo m arromgrande.

Cada som bra que se m ovia na m ata distante, cada m arca no solo geladosugeria

algum a presença recente. Natasha tentou form ar um m apa m ental das alamedas ao redor, se esforçando para im aginar as intenções de um anim al noqual ela nunca nem tinha tocado.

— Isto é inútil — disse Mac, não pela prim eira vez. — Mal dá para ver porcim a das cercas vivas, e o barulho do m otor não vai nos deixar ouvir nada.

Vam os a pé.

Estacionaram no alto do vilarej o. Natasha se lem brou de que havia um lugar

bem ao lado da igrej a de onde dava para ver a m aior parte do vale. Obinóculo de Conor ainda estava no bolso; ela não sabia direito se conseguiriadistinguir o grande cavalo de Sarah de qualquer outro que estivesse no campo.

O dia j á estava claro, m as o ar ainda perm anecia gelado por causa da noite,e ela estava com frio. Pegara um casaco, m as a cam iseta que usava porbaixo não era proteção suficiente para a tem peratura próxim a de zero.

Mac estava em cim a de um túm ulo, olhando para o outro lado do cem itério,estreitando os olhos por causa do sol baixo. Quando lhe entregou o binóculo,Natasha percebeu que estava abraçando a si m esm a.

— Você está bem ?

— Estou com um pouco de frio. Acho que a gente saiu com pressa dem ais.

E se Sarah tivesse acordado? , pensou de repente. E se ela já tiverdescoberto que o cavalo fugiu?

— Tom e.

Ele tirou o cachecol e lhe entregou.

— Mas você vai ficar com frio.

— Eu não sinto frio. Você sabe disso.

Ela pegou o cachecol e o enrolou no pescoço. O pano ainda m antinha o calorda pele de Mac, estava tão im pregnado pelo cheiro dele que Natasha sesentiu tonta por um instante e disfarçou, afastando-se em direção a um acerca. Ela conhecia m uito bem aquele cheiro, de ervas com um leve toquecítrico. A m asculinidade lim pa dele. Que tipo de m asoquism o era aquele?Ela tirou o cachecol e, assegurando-se de que ele não estava olhando, enfiou-o no bolso e puxou a gola do casaco para cim a.

— Não estou vendo cavalo nenhum — disse Mac, baixando o binóculo. —Isto aqui é inútil. Ele pode estar em qualquer lugar. Pode estar atrás de umarbusto grande. Na floresta. Talvez até a m eio cam inho de Londres. Sim

plesm ente não sabem os há quanto tem po ele fugiu.

— A culpa é nossa, não é?

Natasha cruzou os braços.

— Só estávam os tentando aj udar.

— É. E isso deu m uito certo até agora.

Ela chutou o chão e ficou observando os cristais da geada derreterem em seussapatos. Mac desceu com agilidade e colocou a m ão no braço dela.

— Não fique se culpando. Só estávam os tentando fazer o m elhor.

Os dois se entreolharam enquanto as palavras dele ecoavam ao redor.

— Precisam os voltar. — Mac passou por ela e seguiu na direção do carro. —

Talvez a Sra. Carter j á tenha encontrado o cavalo.

Natasha desconfiou de que nenhum dos dois acreditava nisso. Algo lhe diziaque, para Sarah, não havia finais felizes descom plicados.

* * *

Fizeram o curto traj eto de volta em silêncio. Se Mac reparou que ela nãoestava usando o cachecol dele, não disse nada. O chalé estava silencioso,envolto em escuridão, e eles entraram sem fazer barulho, felizes com oaquecim ento.

— Vou ferver a água.

Natasha tirou o casaco, foi para perto do aquecedor e colocou os dedosrosados na superfície quente.

— O que vam os dizer a ela?

— A verdade. Quer dizer, caram ba, Mac, talvez ela tenha deixado a tranca

aberta. Talvez a culpa até sej a dela.

— Ela m e pareceu bem rigorosa. Ai, caram ba. — Ele passou a m ão noqueixo com a barba por fazer. — Isso vai ser a m aior confusão.

Natasha pegou duas canecas e com eçou a preparar o café, vendo de soslaioque Mac andava de um lado para outro na sala. Ele estava à j anela, abrindoas cortinas, e Natasha percebeu quando a sala se encheu de luz cinzenta, iluminando os detritos da noite: taças de vinho azedo e a lareira cheia de cinzas.

Café, pensou. Então ligaria para a Sra. Carter. E acordaria Sarah.

— Tash.

Ela tensionou o m axilar em um reflexo. Quando ele ia parar de cham á-laassim ?

— Tash.

— O que foi?

— É m elhor você vir até aqui.

— Por quê?

— Olhe pela j anela. A lateral.

Natasha foi até onde ele estava, entregou-lhe um a caneca e espiou o j ardim .

Diante dela, o que antes tinha sido um gram ado certinho e retangular setransform ara em um a m assa de lam a e m ato revirado. As lanternaschinesas haviam desaparecido e os caules dos últim os botões que resistiramao frio estavam quebrados, pisoteados na terra m olhada. Na direção do campo aberto, a cerca de chorão feita com cuidado fora derrubada e se tornara uma pilha de m adeira quebrada, encostada na m acieira. Os vasos dela estavamespatifados sobre as laj otas do pátio. Era um cam po de batalha, um a cenade crim e. Parecia

que um a escavadeira tinha passado por seu lindo j ardim , tão bem cuidado.

Natasha tentou assim ilar a extensão do caos, com dificuldade de respirar,enquanto seu olhar incrédulo se aproxim ava da j anela em baçada.

Quase não dava para ver Sarah à esquerda do pátio, a um a curta distância,em um banco de j ardim , dorm indo. Estava enrolada em seu casaco deinverno e coberta com os restos enlam eados daquele que tinha sido o m elhoredredom de Natasha.

A alguns passos da m ão relaxada dela, parecendo gigante no j ardinzinho,determ inado em pegar as últim as m açãs que restavam nos galhos e compequenas nuvens de vapor em anando com suavidade das narinas, havia umenorm e cavalo m arrom .

13

“Para direcionar um cavalo, primeiro é preciso olhar na direção em que sedeseja ir.”

XENOFONTE, SOBRE EQUITAÇÃO

Sarah se sentou no segundo andar do ônibus, contando o dinheiro que tinhano bolso pela quarta vez. O bastante para duas sem anas de aluguel, cincofardos de feno e um saco de ração; o suficiente para encher o seu arm ário porm ais um a quinzena. Nem de perto o bastante para evitar Maltese Sal. Eramtrês e quinze.

Ele raram ente chegava no estábulo antes das quatro e m eia. Ela ia deixar oque tinha com Cowboy John, ou enfiaria por baixo da porta da sala dele comum bilhete, e com sorte j á teria ido em bora antes de precisar ter m ais um aconversa com ele sobre isso. Am bas as vezes desde que voltara, Sal mencionara os pagam entos atrasados. Am bas as vezes ela prom etera quearrum aria o dinheiro, sem saber m uito bem com o faria isso.

Só estava aliviada por ter voltado. Boo fora devolvido a Sparepenny Lane menos de um a sem ana depois de ter sido levado em bora. Mac e Natasha nãotiveram m uita escolha em relação a isso: a m ulher do haras havia ficadoenlouquecida, falando que passara duas horas andando de carro no escuro, àprocura dele, acusando Sarah de ser irresponsável e idiota e perguntando se

ela não sabia que tinha arbustos de teixo e alferneiro, além de m ais m eiadúzia de coisas, que poderiam envenená-lo naquele j ardim . Nem Mac ficarado seu lado.

Ele e Natasha tinham agido com o se ela fosse um a crim inosa, só por revirarum pouco de gram a. E ela nunca via Mac sendo inflexível. Não estavaexatam ente com raiva, só tinha aquele olhar de decepção que se lança aalguém antes de suspirar fundo.

Ele ficou com aquela cara de decepção ao acom panhar a ela e a Boo de voltaao haras. Com as m ãos enfiadas nos bolsos, ele lhe dissera que o j ardinzinhode Natasha era precioso para ela, que, só porque Natasha não dem onstrava muita em oção, não significava que ela não sentia nada. Todo m undo eraapaixonado por algo e queria protegê-lo; Sarah sem dúvida deveria saberdisso m elhor do que a m aioria das pessoas.

Ela havia ficado m al ao ver Natasha chorando no corredor. Não tinha sedado conta de com o Boo ficaria desaj eitado no j ardim , só pensou que eraum lugar onde ele poderia ficar trancado em segurança. E perto dela. Macnão disse m ais m uita coisa, porém as lacunas em sua fala a deixaramdesconfortável. Ele term inou sugerindo que talvez fosse prudente ela eNatasha ficarem um tem po afastadas.

Ninguém perm itiu que ela dissesse o que queria: que não podiam culpá-lapor tudo. Ela havia falado para os dois um m onte de vezes que não podia serseparada de Boo. Precisavam entender que ela não poderia deixá-lo em umlugar desconhecido, procurando naqueles cam pos escuros coisas fam iliares.A m aior ironia era que ela havia ficado tão perto de casa j ustam ente paranão causar preocupação ou dar trabalho.

O clim a ruim durara alguns dias depois de voltarem para Londres. Dava paraperceber que Natasha ainda estava m agoada. Às vezes Sarah escutava elesdois conversando baixinho, fechando a porta sem fazer barulho quando começavam , com o se a garota não soubesse que estavam falando dela. Mac sempre saía do côm odo depois e agia de um j eito forçado e alegre quando a via,cham ando-a de

“Menina do Circo”, com o Cowboy John fazia, e fingindo que estava tudo

bem .

Por um tem po, Sarah tem eu que eles a m andassem em bora. Mas as coisasvoltaram a se acom odar em um a espécie de rotina. Ela passou a acordarcedo e ir ao haras antes da escola. Em alguns dias, Mac até levantava a tempo de lhe dar carona. Naquelas m anhãs, ele tirava fotos do haras, de Boo e deCowboy John, m as então ficou sobrecarregado na escola e não voltou m ais.

Na noite anterior, Mac a cham ara à cozinha (Natasha estava no trabalho;quase sem pre estava) e lhe entregou um envelope.

— John m e falou de quanto você precisa — dissera ele ao estendê-lo. — Nósvam os pagar a m anutenção de Boo por enquanto, m as você terá que fazer asua parte. Se descobrirm os que faltou a algum a aula, ou que não estava ondedisse, vam os m andá-lo para outro lugar. É um acordo j usto?

Sarah assentira, sentindo as notas através do fino envelope branco. Precisouse segurar para não arrancá-lo da m ão dele. Quando ergueu os olhos, notouque Mac a observava.

— Então… acha que isso pode fazer com que… pare de sum ir dinheiro pelacasa?

Ela havia corado.

— Acho que sim — balbuciou.

Sarah não podia contar sobre o dinheiro que devia a Sal, não enquanto os doisainda estivessem chateados com ela. Não com Mac praticam ente a acusandode roubar.

Ela tentara olhar pelo lado positivo. Eles não eram assim tão ruins. O cavaloestava com ela. A vida era com o deveria. Ou pelo m enos o m ais próxim opossível disso, sem Vô em casa. E, no entanto, às vezes, quando estava noônibus pela m anhã, ela se lem brava de com o Boo ficara naquela arena deareia m acia, com o parecia quase flutuar, seu prazer de estar em um lugarque lhe perm itia usar todo o seu potencial. Ela se lem brou de seu cavalo,longe da fum aça do barulho e dos trens ruidosos, galopando em círculos no

cercado verdej ante, com a bela cabeça erguida, com o se estivesseabsorvendo o horizonte longínquo, com

o rabo erguido feito um estandarte.

* * *

— Então, com o estão as coisas?

Ruth Tay lor aceitou a xícara de chá e se recostou no sofá bege m acio.Aquele não era o tipo de sala de estar que costum ava ver no dia a dia de seutrabalho, pensou ela, observando as obras de arte nas paredes, o piso decarvalho antigo polido. Era gostoso tom ar um a xícara de chá sem ter queficar pensando nos locais por onde a xícara passara.

— Está tudo bem ?

Pegou a pasta de Sarah Lachapelle da bolsa e constatou, desanim ada, quetinha m ais quatro visitas naquela tarde. Nada de sofá m acio nelas. Duaschecagens com j ovens em busca de asilo em um a pensão suj inha emFernley Road, um m enino que j urava que o padrasto o surrava e um a m ãeadolescente viciada em crack em Sandown.

O casal se entreolhou. Definitivam ente, pensaram em algo não dito antes deo hom em responder.

— Está. Está tudo bem .

— Ela está bem adaptada? Faz… O quê? Quatro sem anas?

— Quatro sem anas e três dias — respondeu a m ulher. A Sra. Macauleyhavia chegado logo depois de Ruth e estava acom odada na poltrona, com apasta aos pés, conferindo o relógio sorrateiram ente, com o se esperasse aperm issão para sair correndo de novo.

— E a escola? Algum problem a com faltas?

Mais um a troca de olhares.

— Tivem os alguns problem as no com eço — disse o Sr. Macauley. — Masacho que agora resolvem os a questão. Parece que nós conseguim os…chegar a um acordo.

— Deram alguns lim ites a ela, com o nós sugerim os.

— Dem os, sim — retrucou ele. — Acho que estam os nos entendendo umpouco m elhor.

Ah, m as ele era bonito. Bem o tipo dela, com o cabelo todo bagunçado eolhos brilhantes. Nem pense, Ruth se repreendeu. Não se deve pensar em umcliente dessa form a. Ainda m ais com a m ulher dele sentada bem ao lado.

— A saúde dela está boa — prosseguiu ele. — Ela se alim enta bem . Faz odever de casa. Tem … os próprios interesses. — Ele se voltou para a esposa.—

Não sei m ais o que posso dizer, de verdade.

— Sarah está ótim a — acrescentou ela, ríspida.

— Não se preocupem , não estou aqui para j ulgar vocês, nem para avaliarsua capacidade com o pais. — Ela sorriu para os dois. — Esta é um acolocação

inform al, de afinidade, com o cham am os, por isso não nos envolvem os muito. Já conversei com Sarah, que disse estar feliz aqui. Mas, só achei que,devido ao histórico recente dela, seria bom dar um a passada para conferircom o as coisas estão.

— Com o eu disse — retrucou o Sr. Macauley —, está tudo bem , m esm o.Nós não recebem os nenhum a reclam ação da escola. Ela não atrapalha onosso sono com m úsica alta. Só tem seis ou sete nam orados. Não usa muitas drogas pesadas.

Brincadeira — com pletou quando a esposa olhou feio para ele.

Ruth deu um a olhada na ficha de Sarah.

— Tem os novidades sobre o avô dela? Peço desculpas, sei que deveria terligado, m as estam os um pouco sobrecarregados no departam ento.

— Ele está m elhorando aos poucos — respondeu o Sr. Macauley. — Mas eunão sou nenhum especialista.

Ruth se arrependeu de ter vestido a saia m arrom . Fazia as pernas delaparecerem roliças.

— Ah, sim . Lem brei agora. Derram e, não foi? Hum m . Não está serecuperando tão rápido quanto gostariam . Tudo bem … ela continua morando aqui? Sei que originalm ente acham os que seriam apenas algum assem anas… —

Eles trocaram outro olhar. — A rigor, quando passa de seis sem anas, épreciso fazer um a revisão, talvez considerar um a ordem especial de guarda,que daria a vocês certa responsabilidade parental.

— Há um a possível com plicação — alertou a Sra. Macauley. — Vam osvender esta casa m uito em breve. Na verdade, j á aceitam os um a oferta.

— E haverá espaço para Sarah na casa nova?

Dessa vez eles não se entreolharam . O m arido falou prim eiro:

— Ainda não sei.

— Querem que ela volte para a tutela do estado? Devolver a responsabilidadepara nós?

Por favor, não digam que sim , desej ou Ruth em silêncio. Preciso resolverum a lista de casos assim tão com prida quanto o seu braço. E, podemacreditar, não tem m uitas casas com o esta para onde estas crianças possamir.

— Estam os tentando resolver isso. Apenas não decidim os ainda para onde agente… hum m … vai. Não é m esm o, Tash? Mas com certeza não temproblem a ela ficar aqui nas próxim as sem anas.

Sem anas. Tudo podia acontecer em algum as sem anas. Ruth relaxou umpouco.

— Vam os torcer para que ela volte a m orar com o avô em pouco tem po. —

Ela sorriu e olhou ao redor, observando a sala. — A casa de vocês é adorável.

Tenho certeza de que não será fácil deixá-la.

Nenhum dos dois falou. Ela colocou as m ãos sobre a pasta e se inclinou paraa frente.

— E vocês, com o estão? Quando não se está acostum ado a m orar comadolescentes, eles podem se revelar difíceis de lidar.

Ela dirigiu os com entários a Sra. Macauley, que havia falado m enos.

— Estam os bem — respondeu o Sr. Macauley.

— Sra. Macauley ?

A m ulher refletiu antes de falar. Ruth observou no docum ento à sua frenteque ela era advogada. Nenhum a surpresa.

— Está sendo m ais cansativo do que eu esperava — respondeu com cuidado.

— Mas, bem , eu na verdade não sei o que esperava.

— Algum problem a específico?

Ela ponderou sobre a questão.

— Não — respondeu enfim . — Acho que é… principalm ente… um j eitodiferente de ver as coisas.

— Adolescentes são um ponto fora da curva.

O Sr. Macauley deu um sorriso.

— Pode repetir?

— Eles apresentam os próprios desafios. Mas a escola disse que ela está bemm ais adaptada.

— Ela é um a garota bacana — continuou ele. — Tem ím peto.

— Talvez, se considerarem abrigar outra criança, se sintam m elhor comalguém m ais novo. Vocês considerariam a possibilidade de se transformarem em tutores registrados? — Não adianta enfatizar os benefíciosfinanceiros, pensou Ruth. Dinheiro não parecia ser problem a para aquelesdois. — Estam os com um a dem anda enorm e nessa área. Muitas criançasnecessitadas.

— Sei m uito bem disso — disse a Sra. Macauley com a voz baixa.

Enquanto Ruth observava, o m arido tocou as costas da m ão da esposa comas da sua. Um gesto bondoso. De apoio. Estranham ente, ela corou.

— Vam os pensar no assunto — disse ele. — No m om ento, estam osvivendo um dia de cada vez.

* * *

Havia um bilhete que fora passado por baixo da porta de seu arm ário. Ela aabriu com um chute, pegou o pedaço de papel e reparou nos garranchosdesconhecidos.

Olá, Menina do Circo. Peço desculpa por não ter podido conversarpessoalmente com você, mas precisei voltar para os Estados Unidos. Aminha irmã Arlene ficou doente, e como não tem mais ninguém na nossafamília (aquela tola espantou três maridos), precisei ir lá cuidar dela.

Maltese Sal tem as chaves e vai dar comida para os animais, mas fique

de olho para mim, certo?

Diga ao Capitão que eu realmente sinto muito por não ir lá neste fim desemana, mas volto daqui a uma ou duas semanas. Vou levar um uísque para

ele também se eu conseguir passar por aquelas enfermeiras nazistas.

CJ

Ela dobrou o bilhete com cuidado e o colocou no bolso, sentindo-seestranham ente abalada com a ausência de John. Sabia que ele tinha um a irmã nos Estados Unidos — Cowboy John sem pre fazia piadas sobre com o elaera feia —, m as nas poucas vezes que ele havia desaparecido para visitá-la,Vô sem pre ficara a cargo de tudo. Agora, sem a presença de nenhum dosdois, o haras parecia desam parado. Não seria por m uito tem po, disse a si mesm a. Tudo logo se resolveria.

Com eçou a garoar, e as pedras do pátio ficaram m uito escorregadias ondenão tinham varrido os restos de feno e com ida. Ela pendurou o casaco nogancho e vestiu o sobretudo velho de trabalho de Vô, o que ele usava paraproteger as roupas. Ciente, por instinto, de que trabalhar aplacaria suaansiedade, conferiu a tigela de água de Sheba, então foi dar um a olhada noscavalos, endireitando tapetes tortos, assegurando-se de que as portas dascocheiras estavam fechadas com firm eza. Ela lim pou a cocheira de Boo,trocou o feno e a água dele, conferiu os cascos, espantou as galinhas e umbode novo, não identificado, então conversou com Ranj eet, do restauranteRaj Palace, que fora com prar alguns ovos. Enfim voltou para o arm ário paracalçar os sapatos.

Quando estava para fechar o cadeado se lem brou do dinheiro no envelope.

Enfiou a m ão no bolso… e se sobressaltou ao sentir um toque suave na nuca.Ela se virou para trás, pronta para atacar.

— O que foi? Acha que sou um m aluco que vai atacar você?

Maltese Sal estava alegre dem ais, com o dente de ouro no canto da bocavisível na escuridão da área dos arm ários enquanto ele agitava o dedo nafrente dela.

Sarah estrem eceu, com a m ão no pescoço.

— Vai deixar um a carta de am or para m im , Menina do Circo?

Pegou o envelope dela; na outra m ão tinha um cigarro aceso e os pésestavam plantados firm es e separados no chão, com o se enfatizasse a suaposse do lugar.

O cheiro de loção pós-barba e de fum aça de cigarro de algum m odo sesobrepôs aos odores suaves e doces de feno e forragem .

— Você sabe que sem pre pode conversar com igo pessoalm ente.

— Dinheiro — disse ela, envergonhada pelo m odo com o a voz falhara aofalar. — É o seu dinheiro.

— Ah…

Ele aceitou o envelope, tocando de leve em seus dedos.

— Preciso ir andando — disse ela, pegando a m ochila, m as Sal ergueu apalm a da m ão.

Abriu o envelope e olhou o conteúdo. Então franziu a testa e o estendeu paraSarah.

— O que é isto?

— O dinheiro do m eu aluguel. Duas sem anas. E para o feno e a ração.

Do lado de fora, chovia m ais forte. Sheba surgiu atrás deles com o pelodesgrenhado brilhando com gotas reluzentes. Sob os arcos da linha do trem ,um dos cavalos relinchou e raspou os cascos no piso de concreto.

— E?

Ele a encarou, esperando um a resposta. Estava sorrindo, m as não era umsorriso de verdade. Sarah engoliu em seco.

— Não entendi.

— É o pagam ento atrasado?

— Ainda não.

Maltese Sal sibilou por entre os dentes e sacudiu a cabeça.

— Sabe, você tem sorte por eu ter segurado aquela cocheira para você. Háduas sem anas você veio aqui e pegou o cavalo, levou em bora e nem avisou.

Acha isso educado?

— Não foi m inha…

— Deixei aquela cocheira reservada para você, Sarah, apesar de poder dá-lapara vinte outras pessoas. Aí você sim plesm ente aparece aqui de volta comele com o se nada tivesse acontecido. Nem agradece.

— Mas, com o eu disse, não foi m inha culpa. Foi…

— Querida, não estou nem aí para quem é culpado. A única coisa que estoupensando é que não tenho com o saber que você não vai sum ir de novo…Com todo o dinheiro que ainda m e deve? Você tem as chaves. Até onde sei,você e o seu cavalo podem estar planej ando ir até a m etade do cam inhopara Tim buktu am anhã.

Ele se aproxim ou m ais, o colarinho de sua cam isa na altura dos olhos dela.

Sarah percebeu que não conseguiria engolir sem fazer um barulho notável.

— Eu não vou sum ir — disse ela, baixinho. — Sem pre pago as m inhasdívidas.

Vô sem pre paga as dívidas dele. John sabe disso.

Nós nunca tivemos dívidas antes, pensou ela.

— Mas John não está aqui. Seu avô não está aqui. E agora este haras é m eu,não deles.

Ela não pôde retrucar.

Um trem fez barulho sobre os arcos, as luzes dos vagões ilum inaram o haraspor um instante, com m il pessoas passando ali em cim a, a cam inho de casa,de sua vida confortável e segura. Sal inclinou a cabeça, com o se ponderassealgo.

Então deu m ais um passo na direção dela. Estava m ais perto, perto dem ais.A

respiração dela ficou presa no peito.

— Seu avô está doente, Sarah — disse ele com a voz m ais baixa.

— Eu sei disso — sussurrou.

— O seu avô está doente de verdade, pelo que John diz. Então, você precisam e dizer um a coisa. Com o é que vai pagar o que m e deve?

A voz dele era suave, m usical, com o se estivesse cantando, com o se aquilopudesse dissim ular a am eaça im plícita. Ele estava tão próxim o que Sarahsentia o calor de sua respiração no rosto, o cheiro alm iscarado da loção pós-barba, da j aqueta de couro, com algo m asculino e desconhecido por baixo.

Ela tentou m anter o olhar baixo. Tinha ouvido boatos som brios sobreMaltese Sal. Ninguém se m etia com ele. O hom em havia passado um tem pona cadeia, tinha am igos barras-pesadas e interesse em coisas sobre as quaisnão se devia fazer perguntas.

— Então?

— Eu j á disse…

— Você não disse nada. Com o eu falei, achei que você tinha ido em bora.

Agora, preciso garantir que serei pago. — Os olhos dele queim avam nela. —

Tem os que descobrir um a m aneira, Sarah.

Ela ficou piscando para ele, tentando não ofegar.

— Tem os que descobrir um a m aneira de você dar um retorno ao m euinvestim ento.

Você não entende, Sarah teve vontade de lhe dizer, que isso tam bém é tudoque eu quero? Essa coisa da dívida pairava sobre ela, retorcia suas entranhasem um nó de ansiedade sem pre que pensava sobre o assunto. Contam inavatodas as suas visitas ao cavalo, tanto que encontrava pouco conforto em simplesm ente estar com ele. Mas não havia ninguém com quem ela pudesseconversar sobre isso em segurança. Ninguém além de Maltese Sal poderiatirar aquele fardo dela.

— Eu posso cuidar dos cavalos para você — soltou ela.

— Tenho garotos para fazer isso, Sarah.

— Então eu posso cuidar do estábulo nos fins de sem ana — sussurrou.

— Mas eu não preciso que você faça isso — retrucou ele. — Se você venderovos ou andar para cim a e para baixo com um a vassoura, não tem valor param im . Com preende isso? O conceito de valor?

Sarah assentiu.

— Eu sou um hom em de negócios. Dito isso, tentei relevar as suascircunstâncias especiais. Tentei ser com preensivo. Se fosse outra pessoa,Sarah…

— Ele sacudiu a cabeça. — Eu teria perdido a paciência há m uito tem po.

Ele deu um a olhada para trás, para além do arco, por onde a chuva escorriapelo calçam ento em direção ao portão, que reluzia sob a ilum inação desódio.

Por um m om ento, Sarah achou que ele iria em bora. Que havia term inado.Mas Sal se virou de novo para ela.

Deu m ais um passo silencioso adiante, deixando-a encurralada na porta doarm ário. Então ergueu a m ão e tirou, com delicadeza, um a sem ente de fenodo cabelo da garota; segurou-a diante do rosto dela antes de j ogá-la fora com

um peteleco dos dedos calej ados.

Sarah m anteve o olhar fixo adiante, tentando não estrem ecer. Maltese Salsorriu, um sorriso grande e lento, com os olhos lhe dizendo que tudo bem ,ele com preendia. Então, enquanto ela tentava retribuir o sorriso, ele colocoua m ão no seio direito dela e passou o polegar devagar pelo m am ilo. Fez issocom tanta leveza e com um a segurança tão despreocupada que Sarah demorou dois segundos para registrar o que ele estava fazendo.

— Não tem que ser dinheiro, Sarah — disse ele com suavidade.

Então, com um breve sorriso, afastou a m ão antes que ela tivesse a chance deerguer a sua em protesto.

A pele dela queim ava com a m arca dele. Suas bochechas ardiam . O ar ficoupreso na garganta.

— Você está crescendo depressa, querida — disse ele, enfiando o envelopeno bolso e sacudindo os dedos, com o se tivesse acabado de tocar algoquente. —

Tem sem pre um j eito para um a m enina bonita. É só avisar ao Sal.

E ele foi em bora, assobiando, pelo portão de aram e, enquanto ela ficou ali,paralisada, com a m ochila na m ão.

* * *

— Vou sair hoj e à noite.

Eles enfim tinham fechado a porta quando Ruth saiu.

Ao sair, ela lançara um daqueles sorrisos para Mac — um daqueles levemente abertos dem ais, que as m ulheres sem pre lançavam para ele — e, contrasua vontade, Natasha ficara irritada. Ela agradeceu a Deus por ter com binadode encontrar a irm ã.

— Certo. De todo m odo, prom eti a Sarah que a levaria ao hospital depois daescola. Mas vou sair am anhã, se estiver tudo bem por você. — Ele não disse

aonde ia.

— Certo. — Natasha deu um passo adiante, m as ele não saiu da frente. —

Tenho um com prom isso, Mac, e j á estou atrasada.

Natasha percebeu que ele estava usando a calça j eans que ela adorava, de umazul bem escuro, m acia e lisa, desbotada nos bolsos em que ele sem preinsistia em carregar coisas dem ais, apesar das reclam ações dela. Ela se lembrou de estar descansando, apoiada nele, em um fim de sem ana em queforam viaj ar, m uitos anos antes, com o vento batendo nas orelhas dela e asm ãos enfiadas naqueles bolsos de trás.

— Com prei um a coisa para você — disse ele. Pegou atrás de si um saco

grande com m udas variadas e lhe estendeu. — Eu sei que é só um com eço…

m as você ficou tão triste. — Natasha pegou o saco dele. Sua m ão ficou umpouco suj a de terra. — Eu aj udo, se você quiser, no fim de sem ana que vem. Posso pelo m enos consertar a cerca.

Ela engoliu em seco.

— Tudo vai voltar a crescer. Um dia. — Ela o encarou e sorriu. — Masobrigada.

Ela teve um a visão repentina de Mac, rindo e batendo papo, com o cinto deferram entas preso, ela ternam ente substituindo as plantas perdidas. Isso éprudente?, ela teve vontade de perguntar. Nossos cam inhos j á não tinham seaproxim ado dem ais?

Ficaram parados no corredor, cada um perdido nos próprios pensam entos.

Quando Mac falou, ficou claro que a m ente dos dois tinha seguido cam inhosdiferentes.

— Não conversam os sobre isso, Tash, m as o que farem os se o velho não melhorar? — Mac se apoiou na porta da frente, im pedindo que ela saísse. —Ele não está nada bem , sabe? Não acho que vá se recuperar logo.

Natasha respirou fundo.

— Então ela terá que virar problem a de outra pessoa.

— Problema de outra pessoa?

— Certo. A responsabilidade de outra pessoa.

— Mas o que farem os com o cavalo?

Ela im aginou o anim al andando sem cuidado nenhum pelo seu quintal,deixando um rasto de destroços atrás de si. Naquele dia, a história perdera agraça e a beleza para ela.

— Mac, no dia em que sairm os daqui, deixarem os de ser um a fam ília. Nósnão poderem os oferecer um lar a ela, com ou sem cavalo. O seu trabalho nãoperm itirá que tenha a guarda plena, e você sabe que o m eu com certeza também não. Nós estam os com dificuldades diárias do j eito que está agora.

— Então, vam os deixá-la na m ão.

— É o sistem a que vai deixá-la na m ão. Ele não tem flexibilidade nemrecursos para lidar com alguém feito ela. — Ao ver a expressão dele, Natashatentou suavizar o tom . — Olhe, talvez encontrem um lugar tem porário parao cavalo em um santuário ou algo assim até arranj arem um lar novo para ela,quem sabe no interior, se ela estiver desesperada para ficar com ele. Talvezsej a m elhor para Sarah.

— Não im agino que isso sej a m uito provável.

— Bem , eu posso dar um a sondada. Ver quais são as opções. Sem revelarnada.

Ele ainda bloqueava a porta. O relógio de Natasha lhe dizia que ela seatrasaria para o encontro.

— Você quer que ela vá em bora?

— Eu nunca disse isso.

— Mas… parece que não gosta dela.

— Claro que eu gosto.

— Nunca tem nada de bom a dizer sobre ela.

Natasha rem exeu na bolsa para esconder o corado das bochechas.

— O que você quer que eu faça? Não m e transform e no bandido aqui, Mac.

Ela era um a desconhecida. Eu ofereci a m inha casa a ela… e, devo completar, no processo m enti para o serviço social sobre o nosso relacionamento. Paguei um a fortuna para transferir o cavalo dela para Kent e de voltapara cá.

Sacrifiquei o m eu am ado j ardim …

— Não é isso que estou dizendo.

— Então o que você está dizendo? Que nós devíam os estar trocando dicas dem aquiagem ? Eu tentei, certo? Eu tentei levá-la para fazer com pras. Oferecipara decorar o quarto dela. Tentei conversar. Já pensou na possibilidade deque ela sim plesm ente não goste de m im ?

— Ela é um a criança.

— O quê? Então ela é incapaz de não gostar de alguém ?

— Não. Só quero dizer que é função de um adulto superar isso.

— Ah. Então agora você é especialista em criação de crianças.

— Não. Só sou alguém com um pouco de hum anidade.

Os dois ficaram se encarando.

Ela colocou as m udas na m esinha do corredor e pegou sua pasta de documentos com as bochechas cor de escarlate.

— Provavelm ente é legal ser você, Mac. Todo m undo adora você. Queinferno, aquela assistente social estava quase se sentando no seu colo. E, sej alá por que m otivo, você surte o m esm o efeito sobre Sarah, e isso é ótim opara os dois. — Ela pegou o celular. — Mas não m e ataque por eu nãocausar o m esm o efeito, certo? Estou dando o m elhor de m im . Estouabrindo m ão da m inha casa.

Estou sacrificando o m eu relacionam ento só porque vocês dois estão aquitodos os dias, brincando de porcaria de fam ília feliz. Estou batalhando dia adia. Estou dando o m elhor de m im .

— Tash…

— E PARE de m e cham ar de TASH.

Ela passou por ele em purrando-o, abriu a porta e desceu pelos degraus, aindaescutando a voz dele por cim a das batidas fortes de seu coração e seperguntando por que lágrim as tinham surgido em seus olhos.

* * *

— Ok. Você é louca de carteirinha. — Jo tirou as luvas de borracha e foi atéa

m esa da cozinha, onde Natasha tom ava um a taça de vinho. — Mac? Seuex-m arido Mac?

— Mas essa é a questão, não é? Ele ainda não é exatam ente m eu ex, por issotem direitos sobre a casa.

— Então você deveria sair. Isso é loucura. Olhe só para você. Está acabada.

Dottie, a filha caçula de Jo, entrou na cozinha m ordendo um osso deborracha do cachorro.

— Não, querida. Você vai pegar verm e. — Ela tirou o obj eto da boca dacriança e o substituiu por um pedaço de dam asco seco antes m esm o queDottie tivesse oportunidade de reclam ar. — A m am ãe e o papai sabemdisso?

— Claro que não. Só será por algum as sem anas.

— Você tem que sair de lá. Vá para um hotel. Você estava péssim a quandom orava com ele. Isso não vai aj udá-la em nada a superar, não é m esm o?Pelo am or de Deus, Tash, você só com eçou a colocar a sua vida no lugar nom eio do ano. Cam a, vocês dois! — berrou ela ao som distante de brigavindo da sala. —

Preciso colocar esta aqui na cam a tam bém . Tudo bem eu sair um m inutopara cuidar das crianças? São quinze para as oito.

— Tudo bem .

Natasha se sentiu secretam ente aliviada quando a fofa Dottie, com seu rostogorducho suj o de geleia e cheirando a talco, foi tirada da cozinha. Ascrianças m ais velhas de algum m odo tinham perdido tanto da infantilidadeque se pareciam m ais com pessoas. Mas Dottie era um lem brete agudo epungente de algo que deveria ser dela. Um a ausência com a qual ainda nãotinha feito as pazes.

— Dê boa noite para a tia Tash.

Natasha se preparou para o beij o e se esforçou para parecer natural.

— Não — disse a m enininha, enfiando a cabeça nas pernas de Jo.

— Dottie, isso não é legal… Dê boa-noite para…

— Tudo bem . De verdade. — Natasha a dispensou com um gesto. — Elaestá cansada.

Ela sabia que a irm ã consideraria a reação ríspida com o m ais um sinal deseu gene m aternal defeituoso.

— Me dê cinco m inutos para ler um a história para ela.

Jo tinha engordado, pensou Natasha ao observá-la colocar a criançaencaixada no quadril com a facilidade fluida de m uita prática. Ela vivia

reclam ando que não tinha tem po, que engravidar acabara com seu corpoenquanto m ergulhava m ais um biscoitinho em um a xícara de chá.

— Açúcar no sangue — explicava. — Im pede que eu grite tanto na hora dolanche.

Por m uito tem po, Natasha evitara a casa da irm ã. Durante seus abortosespontâneos — dos quais a fam ília só sabia de um —, ela achou que a casa

barulhenta de Jo, com desenhos feitos a dedo, as paredes suj as e osbrinquedos de plástico espalhados, era um lem brete pesado dem ais dosbebês que perdera. Ela havia se odiado por não ser estoica o suficiente parasuperar a invej a daquelas três crianças, porém fora m ais fácil fingir que simplesm ente estava ocupada dem ais. A fam ília dizia que ela era determ inada,workaholic, desde que se m atriculara na faculdade de direito. Ela era aacadêm ica, a bem -sucedida.

Quando explicava que estava com trabalho dem ais e não podia ir a um almoço de fam ília, que precisava se preparar para este ou aquele caso, ela sabiaque fariam algum com entário indulgente para dem onstrar que sentiam suafalta, talvez certa m elancolia da parte da m ãe por sua aparente incapacidadede dedicar suas energias às coisas m ais im portantes da vida.

Não tinham ousado m encionar a vida pessoal dela desde que Mac fora embora.

— Pelo m enos você tem o seu trabalho — diziam nas poucas ocasiões queela com parecia, reconfortando a si m esm os com a crença de que, naverdade, essa era m esm o a única coisa que ela queria.

Jo voltou cerca de dez m inutos depois, j ogou o dam asco na pia e depoisprendeu o cabelo em um rabo de cavalo.

— Estou louca para ir ao cabeleireiro — disse ela. — Eu havia m arcado nasem ana passada, m as Theo ficou doente. Tive que pagar cinquenta por centom esm o assim … Que absurdo!

Ela se sentou e deu um longo gole apreciativo no vinho branco.

— Hum . Obrigada por isso. Maravilhoso. Certo. Vou deixar os outrosficarem acordados ou nunca vou conseguir conversar com você.

— E está tudo bem com vocês? — perguntou Natasha, desconfiada de que airm ã sem pre a considerava egocêntrica. Mulheres solteiras de certa idade esem filhos costum avam ser assim . Ela ouvia isso o tem po todo. — EDavid?

— Nada que duas sem anas nas ilhas Sey chelles e algum as cirurgiasplásticas não possam resolver. Ah, e sexo. Não m e lem bro do que é isso. —Ela riu com desdém . — Mas, bem . Você. Você nunca m e conta nada. Podeabrir o j ogo.

A vida dela tinha se transform ado em um a pequena e estranha bolha intensa,percebeu Natasha. Esta era a norm alidade. Mas não tinha um a vida nem umpouco norm al.

— Achei que ele só ficaria por duas sem anas — disse ela. — Não valia apena contar.

— Estou falando sério, Tash. Saia de casa. Eu ofereceria um quarto aqui, mas a gente te enlouqueceria em cinco m inutos. — Ela tom ou m ais um golede vinho.

— Você tem dinheiro. Vá se hospedar em um lindo hotel-spa. Faça massagem e m anicure toda noite depois do trabalho. Deduza do valor da partedele da casa. É

Mac que está obrigando você a sair de lá. Que coragem a dele.

— Não posso.

Natasha ficou rabiscando com o lápis de cera de um a das crianças.

— Pode, sim . Meu Deus… Eu aproveitaria a oportunidade. Que paraíso!

— Não, eu não posso. — Ela suspirou e se preparou. — Porque m eio queassum i a responsabilidade por alguém . Um a m enina.

Mais tarde, Natasha se arrependeu levem ente por ter visitado a irm ã tãopouco nos últim os dois anos porque, contra todas as expectativas, a reaçãode Jo à novidade foi m agnífica. Ela havia feito Natasha repetir a históriaduas vezes e então, enquanto Natasha explicava, com a voz falhando de tãosem j eito, tinha se levantado da cadeira, ido até o outro lado da m esa eabraçado a irm ã m ais nova bem apertado, deixando m arcas de farinha noterninho escuro.

— Meu Deus, Tash. Que coisa m aravilhosa. Que coisa fantástica de se fazer.

Eu gostaria que existissem m ais pessoas feito você. Acho isso o m áxim o.— Jo se sentou com os olhos brilhando. — Com o ela é?

— Essa é a questão. Não é com o pensei que seria. Ela e eu… a gente simplesm ente parece não se entender.

— Ela é um a adolescente.

— É. Mas ela se dá bem com Mac.

— Saddam Hussein se daria bem com Mac. Ele é noventa e sete por centoflerte.

— Eu tentei, Jo. A gente sim plesm ente parece não se encaixar. As coisasnão estão com o eu esperava…

Jo se inclinou na direção da porta, talvez para garantir que os filhos nãopoderiam escutar.

— Vou ser sincera com você. Quando fez treze anos, Katrin virou um a vaca.

Parecia que a m inha filhinha doce tinha desaparecido e sido substituída porum m onstro cheio de horm ônios. Ela olha para m im com tanto… noj o,com o se eu fosse fisicam ente repulsiva. Tudo que digo a deixa irritada.

— Katrin?

— Você não tem estado m uito com ela ultim am ente. Fala palavrão feito umcam inhoneiro. É respondona. Rouba dinheiro aqui e ali, apesar de David

fingir não notar. Mente sobre tudo. É sócia plena no clube das vacasprecoces. Posso dizer isso porque sou a m ãe dela e a adoro. Se eu nãosoubesse que a velha Katrin ainda está lá, e não tivesse fé de que um dia elavoltará, j á teria expulsado de casa há m eses.

Natasha nunca a vira falar tão friam ente sobre os filhos. Aquilo fez com quese perguntasse quanto da m aternidade ela escolhera deixar de fora,preferindo im aginar a versão cor-de-rosa e nebulosa que sentia ter lhe sidonegada. Isso a fez questionar se não estava sendo dura dem ais com Sarah.

— A questão não é você. E parece que ela passou por m uita coisa. Só… esteja lá para dar apoio.

— Eu não sou com o você. Não consigo fazer essas coisas.

— Bobagem . Você é brilhante, faz todo um trabalho com as criançasdesprivilegiadas.

— Mas elas são clientes. É diferente. Eu estou com dificuldade… E tem mais um a coisa. Fui enganada por um garoto que representei. Ele disse quetinha enfrentado um a viagem terrível, e depois descobri que era m entira.Depois disso perdi a fé na m inha capacidade de perceber quando estão m eenganando.

— Você acha que ela está te enganando?

— Acho que não está m e contando a história toda.

Jo fez que não com a cabeça.

— Ela tem quatorze anos. Haverá um m onte de história que você não vaificar sabendo, am or não correspondido, ou bullying, ou problem as de peso,ou algum a vaca na escola que não quer m ais ser am iga dela. Elas nãocontam as coisas para a gente. Têm m edo de serem j ulgadas ou levarem uma bronca. — Jo riu. — Ou, pior ainda, têm m edo de que a gente se m eta paratentar resolver.

Natasha encarou a irm ã. Com o ela sabia tudo isso?

— Olhe, eu duvido que ela estej a enganando você em relação a qualquercoisa im portante. Provavelm ente só tem um a alm a apavorada lá dentro quetalvez se sinta feliz em poder se abrir com alguém . Leve a m enina para comer fora, só você e ela. Não, não para com er. — Ela roeu um a unha. — Épressão dem ais. Saiam para fazer algo j untas. Algo de que você gosta. Nadaintenso dem ais. Quem sabe assim ela relaxa um pouco. — Deu tapinhas nobraço de Natasha. — Faça isso. No m ínim o, vai forçar você a não pensarque aquele infeliz está na sua casa. E lem bre-se de que você está fazendoalgo m aravilhoso só por abrigá-la.

— É um a coisa pequena.

— Nem por isso é m enos m aravilhosa. Certo. Agora vou colocar aquelesdois terrores na cam a.

E Mac?, queria perguntar. Com o vou m e sentir m elhor a respeito de Mac?Mas sua irm ã tinha desaparecido.

* * *

O idoso pegou o garfo de Sarah com a m ão boa e levou devagar as fatias dem anga à boca, com satisfação silenciosa e intensa. Mac com prara um pacoteda fruta j á fatiada no superm ercado a cam inho do hospital, e Sarah espetavacada pedacinho e então entregava a ele o garfo de plástico branco, permitindo-lhe a dignidade de com er sozinho.

Mac esperou até term inarem e o Capitão lim par a boca com cuidado comum guardanapo de papel, para pegar a pasta.

— Trouxe um a coisa para o senhor, Capitão — disse ele.

O idoso virou a cabeça na direção dele. Naquele dia parecia m ais anim ado,

pensou Mac, com reações m ais alertas, a fala um pouco m enos confusa.Tinha pedido água duas vezes, com bastante clareza, e disse “Chérie” quandoviu Sarah.

Ele puxou um a cadeira para o outro lado da cam a e abriu a pasta de m odo

que o conteúdo ficasse bem visível.

— Nós resolvem os decorar o seu quarto.

Antes que pudesse parecer surpreso, o Capitão pegou a prim eira im agem ,um a am pliação em preto e branco em tam anho A4 de Sarah com o cavalodela executando o trote estacionário que ela cham ara de piaffe no parque. Oidoso deu um a olhada, então se voltou para a neta.

— Bom — disse a Sarah.

— Ele foi bem naquele dia — contou ela. — Estava realm ente m eescutando.

Se esforçou de verdade. Cada m ovim ento…

— Pequeno ato de beleza — disse ele com cuidado.

Aparentem ente com ovida pelo repentino arroubo de fala, ela subiu na cam ae se acom odou ao lado dele. Apoiou a cabeça no om bro coberto com o pijam a.

Mac, tentando não olhar, pegou outra foto.

— Acho que esta foi…

— Om bro para dentro — disse ela.

— Je ne peux pas voir — com entou o idoso.

Esperou pacientem ente enquanto Sarah colocava os óculos nele, então fezum gesto para que Mac aproxim asse a fotografia. Ele m ostrou outra foto aolado da prim eira. O Capitão assentiu aprovando.

— Estas são todas para o seu quarto — disse Mac.

Ele enfiou a m ão no bolso para pegar a fita adesiva. Com eçou a colá-lascom cuidado ao redor da cam a, tapando aos poucos as paredes verde-claras,que só exibiam a cópia de um a aquarela dos anos 1980 e um recado para os

visitantes (“Por favor, lave as m ãos.”) Afixou m ais duas na ponta da cam ado Capitão.

Ele observou com cuidado, detendo-se em cada um a delas, com o seabsorvesse cada m ínim o detalhe. Mac teve a im pressão de que ele ficariaolhando para as fotos o dia inteiro.

Quando ele contou a Sarah o que ia fazer, no traj eto até o hospital, ela haviaexam inado as fotos em um silêncio estupefato.

— Elas estão boas? — perguntou Mac, preocupado com o silêncio da menina.

— Não incluí nenhum a em que você estej a fazendo coisas que não deve,com o ficar em pinando e tal.

Sarah sorriu para ele, m as foi um sorriso triste.

— Obrigada — disse ela. Sua voz sugeria que não tinha visto m uitos atos degenerosidade gratuitos, e que os esperava ainda m enos.

— E eu guardei a m elhor para o final.

Mac desem balou a foto que m andara em oldurar. Nem Sarah vira. Não eranada caro, só um a m oldura de m adeira leve com base de papelão, m as, portrás

do vidro polido, a fotografia da m enina com a bochecha pressionada na docavalo era colorida e de definição clara o suficiente para o idoso distinguircada detalhe. Capturava a vulnerabilidade dela, a estranheza de um rosto queainda não tinha decidido m uito bem se seria bonito, pressionado em um aespécie de com unhão etérea com a finesse da estrutura óssea do cavalo, queparecia um a pintura. O tom m onocrom ático e a alta resolução davamdignidade, m istério aos dois rostos, coisas que estariam ausentes em cor. Eraum de seus m elhores trabalhos, Mac sabia. Soubera quase assim que fez afoto. Quando viu a cópia pronta, seu coração bateu m ais forte.

— Baucher — disse o Capitão, sem tirar os olhos da fotografia. — Sarah. —

Ele pronunciou “Sarrá”.

— Eu adoro essa foto — disse Mac. — Foi logo antes de sairm os doestábulo certa m anhã na sem ana passada. Ela nem sabia que eu estavafotografando.

Adoro a m aneira com o a luz do rosto de Sarah passa para o do cavalo. A maneira com o os olhos dos dois estão m eio fechados, dando a im pressão deestarem em algum outro lugar em seus pensam entos.

O hom em da galeria tinha concordado. Dissera a Mac que queria exibir otrabalho. Ele adorou. Aquela era um a parte de Londres que estavadesaparecendo, dissera. Ecos das crianças com cavalos de Dublin. Só que melhor. Ele tinha sugerido um preço para cada obra que fez Mac arregalar osolhos.

— Talvez façam parte de um a exposição no com eço do ano, se vocêconcordar, m as estas cópias são suas. Achei que seria bacana você ter algopara o qual olhar…

Um longo silêncio se instalou. Mac não era do tipo que costum ava ficarinseguro, m as sentiu um calafrio. É demais, pensou. Simplesmente estoulembrando a ele o que perdeu. Ele está com medo de que eu a estejaexplorando.

Afinal, quem Mac era para chegar ali com o se fosse um salvador, tom andoconta do espaço do idoso, decidindo o que ele veria o dia inteiro? Será queencher as paredes dele com aquelas fotos — um m undo que ele não podiadesfrutar —

era esfregar a im obilidade na sua cara?

Mac deu um passo em direção à parede.

— Quer dizer, se for dem ais, eu posso…

O idoso estava gesticulando para ele, pedindo que se aproxim asse. QuandoMac se abaixou, ele pegou as m ãos dele entre as suas e apertou. Seus olhos

estavam cheios de lágrim as.

— Merci — sussurrou com a voz rouca. — Merci, Monsieur.

Mac engoliu em seco.

— Não é nada — respondeu, forçando um sorriso despreocupado. — Voutrazer m ais na sem ana que vem .

Foi só então que ele reparou em Sarah. Estranham ente, ela m al tinha faladoa

noite toda. Ainda estava encostada no avô, com a m ão segurando o braçodele com firm eza, com o se não quisesse deixá-lo outra vez. Os olhos delaestavam fechados bem apertados, e sua cabeça, virada para o outro lado. Uma lágrim a solitária escorreu pela sua bochecha, ilum inada pela luz despojada. Ela era um a im agem chocante da tristeza.

Era um a garota tão contida, tão prática, tão obcecada por seu cavalo, que àsvezes Mac se esquecia de com o devia se sentir perdida. Com o devia sentirfalta do avô com quem tinha passado a infância. Mais um a vez, ele ficouconstrangido e enfiou a fita adesiva na bolsa.

— Muito bem . Sarah, encontro você lá em baixo, se não se im portar. Quinzem inutos?

Ele colocou a foto em oldurada na cam a e saiu do quarto, assom brado pelaúltim a im agem do idoso, perplexo, erguendo a m ão trêm ula em direção aocabelo da neta, cuj o rosto estava enterrado no om bro dele, na tentativa deesconder as lágrim as.

14

“Longe de mim dizer que, porque um animal não consegue desempenhartodas estas partes com perfeição, deve ser rejeitado imediatamente, já quemuitos cavalos vão falhar no início, não por incapacidade, mas por falta deexperiência.”

XENOFONTE, SOBRE EQUITAÇÃO

Alguns anos antes, quando Mac e Natasha tinham se m udado para aquelarua, o bairro havia sido descrito, com otim ism o, com o “prom issor”. Sefosse m esm o, pensara ela na época, levaria um tem po para se concretizar. Arua era caracterizada por um a uniform idade desprezível. Três quartos dascasas não viam um a dem ão de tinta havia cinco, quem sabe dez anos. Noexterior, num a rua sem faixas am arelas, carros defuntos sem rodas seequilibravam sobre tij olos enquanto pequenos veículos am assados levavame traziam fam ílias para suas atividades.

As casas, com as fachadas vitorianas de estuque rachado e com a tintadescascando, ficavam atrás de pequenos j ardins que davam para a rua, quemsabe com um a cerca errante de alferneiro, um a m otocicleta coberta comlona ou algum as latas de lixo com tam pas descom binadas que nãoencaixavam . Ela costum ava parar para conversar com os vizinhos, o Sr.Tom kins, o pintor caribenho idoso, Mavis e os gatos dela, a fam ília daassociação de m oradias a baixo custo com oito filhos banguelas. Todostinham sido sim páticos, com entado sobre o clim a, perguntado o que Macestava fazendo na casa, se ela sabia sobre os planos de introduzir vagas fixaspara os m oradores, que um centro budista se instalara na rua com ercial.Assim com o existe um a noção de com unidade em toda rua da capital,naquela tam bém era assim .

O Sr. Tom kins havia ido em bora, Mavis fora enterrada fazia m uito tem po ea associação tinha se desfeito de suas propriedades, m andando os m oradorespara só Deus sabe onde. Quase todas as casas haviam sido pintadas debranco-porcelana, com as rachaduras cuidadosam ente preenchidas e asportas da frente com algum a cor de bom gosto da Farrow and Ball. Loureirose arbustos podados ladeavam os degraus de entrada e m etade dos jardinzinhos se transform ara em espaço pavim entado para carros ou forafechado por brilhantes grades de ferro ornam entadas e antipáticas. Na frentehavia veículos quatro por quatro grandes dem ais e Mercedes reluzentes.Profissionais estressados se cum prim entavam com acenos de cabeça em meio aos passos apressados indo ou vindo da estação, com o tam anho dahipoteca garantindo que havia pouco tem po para m ais do que isso.

Era um a rua afluente, o que fazia com que os poucos m oradores antigos sedestacassem , as cortinas de renda nas j anelas com tinta descascando com o

lem bretes de um a época anterior.

Do ponto de vista financeiro, Natasha sabia que se beneficiara desse processode m odernização, m as, no fundo, sentia um m al-estar profundo com apolarização de seu m undo. Atualm ente era um a rua que espelhava suasvizinhas, pequenos oásis de aspirações da classe m édia rodeados por conjuntos habitacionais que conspiravam para parecerem m ais obscuros, severose am eaçadores, habitados por pessoas que tinham cada vez m enos chance deescapar.

Os dois m undos nunca colidiam , a m enos que fosse por m eio de crim es (oúltim o carro roubado ou casa arrom bada, a bolsa furtada no m ercadinho),transações com erciais (todo m undo tinha faxineira e babá, claro) ou aquelesque trabalhavam com isso (Natasha representando um m enino de doze anoscuj os pais alcoólatras se recusavam a levá-lo para casa).

Natasha pensava nisso naquele m om ento, enquanto entrava de carro no conjunto habitacional Sandown, passando pelos veículos queim ados e as luzes darua que falhavam . Sarah estava sentada ao lado dela em silêncio, agarrandoas chaves na m ão. Ela não tinha falado nada desde que saíram da ala dohospital em que o avô estava internado, e Natasha, ainda chocada com o quevira, não tentara puxar papo. Nada tinha confirm ado m ais a m agnitude e adureza daquilo por que haviam passado do que a visão do idoso com opescoço frágil sustentado por travesseiros, o rosto um pouco caído em umlado.

— Ele está se recuperando — dissera a enferm eira especializada em derrame, toda anim ada. — Nós j á progredim os m uito, não é, Henry ?

— Henri — rosnara Sarah. — Pronuncia-se Henri. Ele é francês.

A enferm eira erguera as sobrancelhas para Natasha quando ela saiu.

— Por quanto… Por quanto tem po você acha que ele ainda precisará ficaraqui?

Natasha tinha saído correndo atrás da m ulher enquanto Sarah cum primentava o avô.

A enferm eira olhou para ela com o se fosse um pouco im becil.

— Ele teve um derram e — explicou. — Essa é um a pergunta do tipo “Qualé o com prim ento de um pedaço de corda”.

— Mas você deve poder m e dar um a ideia. Dias? Sem anas? Meses? Nósestam os… cuidando da neta dele, então seria bom ter um a ideia.

A enferm eira olhou para trás. Sarah estava arrum ando a roupa de cam a doavô, conversando com ele enquanto a encarava.

— Você na verdade precisa falar com o m édico dele, m as posso dizer comtoda a certeza que não é questão de dias — disse ela. — E eu tam bém nãoapostaria que seriam sem anas. Ele sofreu um derram e grave e ainda vai terum a

longa reabilitação.

— É algo que… alguém m uito j ovem pode adm inistrar? Cuidar dele?

A enferm eira fechou a cara.

— Alguém da idade dela? Não. Nós não recom endaríam os. É

responsabilidade dem ais para um a criança. No m om ento, o Sr. Lachapelleainda tem hem iparesia, ou sej a, fraqueza em um dos lados do corpo. Precisade aj uda para tom ar banho, para ir ao banheiro. Tivem os alguns problem ascom escaras e a fala dele não está cem por cento. Continua fazendofisioterapia duas vezes por dia. Mas agora j á consegue se alim entar.

— Ele vai ficar aqui?

— Nós som os um a unidade de longo prazo. Não acho que seria apropriadocolocá-lo em um a casa de repouso por enquanto, não durante suarecuperação

— Ela conferiu o relógio. — Sinto m uito, preciso ir. Mas ele estáprogredindo.

Acho que as fotos aj udaram , o que é engraçado. Deram a ele algo em que seconcentrar. Nós todos gostam os delas.

Natasha olhou para o quartinho, para o trabalho de Mac cobrindo as paredes.

O outro Mac de novo, deixando as enferm eiras encantadas, aj udando osdoentes, até em sua ausência.

Entraram no enorm e conj unto habitacional e foram até o estacionam ento deHelm sley House. Com eçara a chover, e alguns dos j ovens que Natashatinha visto quando conheceu Sarah estavam protegidos em baixo de capuzes,agitando fósforos uns na frente dos outros. Observaram Natasha sair doVolvo com balido, m as se distraíram quando o celular de alguém tocou.

— O que m esm o você quer pegar?

Natasha seguiu atrás de Sarah pela escada úm ida. A chuva chiava ao redordelas, entrando pelas calhas quebradas, rodopiando em ralos bloqueados porsacos de salgadinhos e papéis de chiclete.

— Só alguns livros — respondeu ela, com pletando com algo que Natashanão conseguiu escutar.

Atravessaram o corredor, destrancaram a porta e a fecharam depressa depoisque entraram — Natasha se sentiu grata pela proteção sólida da faixa de ferrode Mac no batente. Lá dentro, o apartam ento estava frio. Sarah estivera alipela últim a vez várias sem anas antes, com Ruth, a assistente social, quandotinham desligado o aquecim ento e pegado m ais coisas para Sarah. Naquelem om ento, a m enina desaparecera dentro do quarto enquanto Natashaesperava na sala.

Estava tudo arrum ado, m as o côm odo tinha o aspecto frio e negligenciadode um lar vazio havia m uito tem po. Todas as fotos tinham sido levadas parao quarto de Sarah na casa deles ou para o hospital, e as paredes estavamvazias e nada aconchegantes.

Ela ouviu o barulho de gavetas sendo abertas e fechadas, e o zíper de um a mala de m ão. Sarah não voltaria para aquele apartam ento, ela tinha certeza.

Mesm o que o idoso se recuperasse, ele não conseguiria subir ou desceraquela escada. A ideia pesou sobre ela. Será que Sarah tinha noção disso? Eraum a m enina inteligente. O que achava que aconteceria com ela?

Natasha notou um a foto que não para levada: na parede da entrada, Sarah,com três ou quatro anos, no colo de um a m ulher de cabelo grisalho com umsorriso que parecia com o da garota. Sarah era com o qualquer outra criança:segura, ancorada no abraço da fam ília, os olhos claros livres de m edo ouincerteza. Em poucos anos, ela havia passado a depender da bondade dedesconhecidos.

Natasha apoiou a cabeça nas m ãos. Aquele era o lado negativo da maternidade, a responsabilidade absoluta pela felicidade de alguém .

* * *

— Vam os sair para com er algum a coisa — disse Natasha quando voltarampara o carro e tiraram as gotas de chuva das m angas. — O que você acha deum a pizza?

Sarah a olhou de soslaio e Natasha percebeu, envergonhada, que a m eninatinha ficado surpresa com o convite espontâneo. Sarah parecera introvertidanos últim os dias, até m esm o para seus padrões. Pedira para com er sozinhano quarto duas vezes e m al se com unicou, nem com Mac, que antes a faziarir.

Natasha se lem brou do que a irm ã dissera. Era responsabilidade dela tom arum a atitude, pelo m enos tentar.

— Ah, vam os. Não estou com vontade de cozinhar, e a noite foi longa.

Conheço um lugar legal no fim da rua principal. — Ela tentou parecer animada, relaxada. Meu Deus, teria sido tão bom se Sarah pudesse dem onstraralgum entusiasm o, quem sabe prazer. Caram ba, quantas vezes ela haviasaído em sua vida antiga? — As pizzas são bem boas.

Sarah apertou a m ala de m ão no colo.

— Tudo bem — respondeu.

O restaurante não estava m uito cheio e elas foram acom odadas em um a mesa perto da j anela. Natasha pediu pão de alho e dois refrigerantes enquantoSarah olhava para a rua m ovim entada e escura com a m ala de m ão deixadaem baixo da cadeira. Escolheu um a pizza de presunto e abacaxi, depois m altocou nela, rem exendo nas fatias tão devagar que Natasha se perguntou seela estava desenvolvendo algum distúrbio alim entar.

— Então — com eçou Natasha quando o silêncio entre as duas se tornoudesconfortável. — Você sem pre se interessou por cavalos?

Sarah assentiu, em purrando um pedaço de m ozarela pelo prato.

— Por causa do seu avô?

— Sim .

As sobrancelhas de Sarah se ergueram o suficiente para m ostrar a Natashacom o ela achava aquela pergunta idiota.

— De que parte da França ele é?

— Nasceu em Toulon, depois m orou em Saum ur. Na academ ia.

Natasha insistiu:

— Com o ele acabou vindo m orar aqui?

— Ele se apaixonou pela m inha avó. Ela era inglesa. Foi por isso que eleparou de m ontar.

— Uau. — Natasha im aginou o interior francês, a m udança para um conjunto habitacional com o Sandown. — E o que ele fazia quando chegou aqui?

— Trabalhava na ferrovia.

— Deve ter sido m uito difícil para ele. Abandonar os cavalos. A França. Avida toda dele.

— Ele am ava a m inha avó.

Aos ouvidos de Natasha, aquilo tinha soado quase com o um a bronca. Seráque as coisas eram m esm o assim tão sim ples? Se você am asse tantoalguém , o seu am biente deveria perder a im portância e todos os sacrifíciosque você fez deveriam desaparecer no passado? Estava claro que os cavaloseram a paixão do idoso, um a paixão que não se extinguira apesar do exílioautoim posto. Mas com o ele se reconciliara com o que havia perdido?

Ela se lem brou da foto da avó de Sarah, um a m ulher acostum ada a ser amada. Seu rosto não dem onstrava nada além de contentam ento, apesar daperda da m ãe de Sarah. Natasha pensou nas brigas m esquinhas, no acúm uloinfindável de m al-estar tóxico que levara ao fim de seu casam ento. Será quea geração dela sim plesm ente era incapaz de conservar o am or em escala tãoépica?

— Com o você conheceu Mac?

O garfo de Natasha parou a cam inho da boca. Ela o apoiou no prato.

— Foi em um avião.

— Você gostou dele de cara?

Natasha refletiu por um m om ento.

— Gostei. Ele… ele é um a pessoa fácil de se gostar.

Ela pareceu aceitar isso.

Ele conquistou você também, pensou Natasha, um pouco tristonha.

— Quem term inou: você ou ele?

Natasha tom ou um gole do refrigerante.

— Bem , não foi tão sim ples assim …

— Então foi ele quem term inou.

— Se está perguntando quem saiu de casa, sim , foi ele. Mas, àquela altura,nós dois teríam os concordado que precisávam os dar um tem po.

— Você quer voltar?

Natasha sentiu o rubor surgir nas bochechas.

— Esta, na verdade, não é um a questão. Por que está perguntando?

Sarah pegou um pedacinho m inúsculo da borda da pizza e colocou na boca.

Mastigou, engoliu, então disse:

— Minha vó um a vez m e disse que queria que m eu avô m orresse primeiro.

Não porque ela não o am ava, m as porque se preocupava em com o elelidaria com a sua ausência. Vó achava que se sairia m elhor do que ele.

— Mas você e ele se viraram j untos.

— Ele não é tão feliz com o na época em que ela estava viva. Minha vó sempre o fazia rir. — Sarah pensou sobre o assunto. — Eu não consigo fazê-lorir.

Principalm ente lá. Ele odeia aquele lugar.

— O hospital? — perguntou, e Sarah assentiu. — Deve ser difícil para ele —

disse Natasha, com cuidado.

— Para ele, é pior do que se tivesse m orrido.

A faca e o garfo de Natasha ficaram paralisados em suas m ãos. As palavrasde Sarah provavelm ente continham algum a verdade, por m ais intragávelque fosse. Para alguém que passara a vida ao ar livre, buscando o vigor físicoe a agilidade, ficar preso em um a existência com o aquela, sendo alim entadoe trocado feito um bebê, devia ser quase insuportável.

Ela tentou m anter a voz firm e.

— Ele vai m elhorar — disse, com delicadeza. — A enferm eira disse que eleestava progredindo.

Talvez Sarah não tivesse ouvido aquilo, ou talvez fosse um a contradição aoque ela considerava a verdade, m as ela cruzou a faca e o garfo no prato, mostrando que term inara, apesar da evidência física do contrário.

— Você acha que ele voltará para casa a tem po do Natal?

Natasha ergueu o guardanapo, para ganhar tem po, m as até essa brevehesitação deve ter sido ruidosa.

— Para m im , é im possível dizer. Não sou especialista — respondeu ela,enfim , e Sarah m ordeu o lábio e olhou para algo na rua. — Sinto m uito,Sarah. —

A garota estava m uito pálida. Talvez até tivesse perdido peso. Natasha seperguntou se deveria estender a m ão. — Eu sei que isso deve ser m uitodifícil para você.

— Preciso de um pouco de dinheiro.

— Com o?

— Preciso com prar algum as coisas para m eu avô. Presentes de Natal.

Pij am as novos e coisas assim — respondeu Sarah, bem direta.

Desconcertada com a m udança de assunto, Natasha colocou m ais umpedaço de pizza na boca e m astigou.

— Do que ele precisa? — perguntou depois de engolir. — Posso com prar amanhã no cam inho para o trabalho se você quiser.

— Eu posso com prar se você m e der o dinheiro.

— Você não vai ter tem po, Sarah. Todo o seu tem po está tom ado por Boo e

os trabalhos da escola.

— Posso ir na hora do alm oço.

— Isso não faz sentido. Você não pode sair da escola na hora do alm oço.Não sei em que outro m om ento poderia fazer isso.

— Isso é porque eu peguei as m oedas do seu pote, não é?

— Não. Só não quero que você perca m ais…

— Eu sinto m uito, ok? Sinto m uito por aquilo. Foi quando eu não podiacontar sobre Boo. Eu vou pagar.

— Você não precisa pagar.

— Então m e deixe com prar algum as coisas para m eu avô. Eu é que precisoescolher os presentes — insistiu. — Conheço o gosto dele. — Ela ergueu avoz por causa do barulho de talheres do restaurante. — Sem pre roubam osprodutos de higiene pessoal e as roupas dele, e eu não posso com prar nadaporque o serviço social pegou os talões da aposentadoria dele. Eu não pediriase não precisasse de verdade.

Natasha lim pou os lábios no guardanapo.

— Então vam os j untas no sábado de m anhã. Podem os com prar tudo quevocê acha que ele precisa e eu deixo você no estábulo depois.

Os olhos de Sarah traíram seus sentim entos em relação a essa ideia.

Por que ela queria ir sozinha?, perguntou-se Natasha. Será que não queriacom prar pij am as e o dinheiro era para outra coisa? Ou será que sair comNatasha de novo era dem ais? Ela se sentiu exausta. Sarah olhava pela j anela,tão indecifrável e inalcançável quanto no com eço.

— Quer m ais algum a coisa? Um sorvete? — Sarah negou com a cabeça.

Nem sequer olhou para ela. — Vou pagar a conta — disse Natasha, cansada.—

E depois, é m elhor irm os em bora. Eu não avisei a Mac que íam os sair.

* * *

Natasha não confiava nela. Sarah se repreendeu por ter tirado dinheiro dopote de m oedas. Se não tivesse m exido nele, poderia ter pegado um pouconaquele m om ento, quando de fato era im portante.

Ela tocou a m ala de m ão com o pé para ter certeza de que continuava ali. O

serviço social levara os talões da aposentadoria e da poupança de Vô paragarantir que o aluguel fosse pago, m as ninguém sabia dos títulos. Seconseguisse trocá-los por dinheiro e evitar Maltese Sal m ais um pouco, elatalvez conseguisse pagar o que devia. Ela o viu m ais um a vez, sentiu a m ãono seio, ouviu suas palavras e estrem eceu.

Ela precisava daquele dinheiro. Pensou nas outras coisas que pegara: um

enfeite antigo de vidro, que tinha enrolado com cuidado em um casaco e queachava que conseguiria vender para o hom em na loj a de penhores. Os CDsdela, que alguém podia querer com prar na escola. Algum a coisa. Qualquercoisa.

— Caram ba — disse Natasha. — São dez e quinze. Não pensei que fosse tãotarde.

Ela pegou a carteira para pagar a conta. Colocou o cartão na m áquina e ficouconversando com o garçom enquanto digitava a senha.

2340.

Fácil de lem brar.

Ela fechou os olhos e fez um a careta ao pensar o que seu avô diria sesoubesse que ela pensara aquilo. Nada poderia j ustificar um roubo, disseraele quando um dos garotos do andar de baixo fora levado por um a viatura depolícia pela quarta vez naquela sem ana. Ao roubar algo, não se ganhavanada. Na verdade, a pessoa se dim inuía com o ato. Vô não acreditava nemem crédito. Havia dito que nunca tivera nada pelo qual não pudesse pagar.

Mas, ao cam inhar de volta para o carro, seguindo os estalos secos dos saltosaltos de Natasha pelo piso m olhado, aqueles quatro dígitos foram martelando um a tatuagem ritm ada, gravando-se em um canto escuro de sua mente.

* * *

Ele prom etera deixá-la em casa e havia pedido que ela esperasse dois minutos na entrada enquanto ele corria para pegar as chaves do carro. Reparouque a luz do quarto de Sarah estava acesa. O carro de Natasha não estava lá.Ela dissera que talvez trabalhasse até tarde, m as ficou surpreso por ela deixarSarah sozinha durante tanto tem po. Enquanto Mac estava parado à porta,procurando a chave, Maria de repente apareceu atrás dele. Ela grudou nele,enroscando seu corpo com prido e curvilíneo no dele.

— Vam os entrar.

— Não.

— Você m e deve isso. Aquele foi o pior film e que eu j á vi. Você m e deveum a hora e m eia da m inha vida de volta.

— Anotado. Mas não aqui.

Ela fez um a careta.

— Mas estou com saudade de você. Faz m ais de um a sem ana! Eu m ostroas m inhas partes brancas — ofereceu, baixando a barra da calça j eans pararevelar o abdôm en bronzeado. — São m uito, m uito pequenas — completou com a voz ofegante. — Você terá que olhar bem de perto.

Maria era linda, descom plicada e ela o desej ava. Mac desconfiava de que elanão o am ava, que nem sequer precisava dele, e ele não conseguia evitargostar dela por isso. Mac precisava dessa robustez, saber que, não im portavao que

fizesse, não iria m agoá-la.

— Querida, eu não posso — disse ele.

— Você m e traz aqui nos fins de sem ana. Por que não agora?

Ele olhou a rua.

— Porque a m inha ex vai voltar logo e não é j usto.

Maria se afastou dele.

— Não é j usto com igo. Grrr! Por que você deixa a sua vida ser ditada poressa m ulher infeliz? Você m e disse que ela tem nam orado, não tem ?

— Tem .

— Ela transa com ele?

— Não sei — balbuciou Mac, desconfortável. — Acho que sim .

— É claro que transa. — Maria colocou a m ão no peito dele. — Faz m uitosexo com aquele velho horroroso. Duas pessoas horrorosas e pavorosas juntas.

Então, com o você sabe que ela não está com ele agora?

Mac tentou se lem brar do que Natasha dissera de m anhã, se ia sair aquelanoite. Ele estava tentando ver o resultado de um j ogo de críquete e nãoprestou atenção.

— Eu não sei.

Maria sorriu.

— Está fazendo um sexo noj ento com ele. Sexo de pessoas horríveis edetestáveis. E rindo ao pensar no ex-m arido que não tem coragem de transarcom a nam orada linda dele na própria casa para não deixá-la aborrecida.

Ela deu um sorriso doce para ele, deliciada com seu desconforto.

— Você é um a m ulher m uito m á.

— Ah, eu posso ser m uito pior.

— Não duvido.

— Então venha. Você m e leva escondida para o seu quarto. A gente faz um arapidinha e depois vou em bora. Vai ser com o se voltássem os a seradolescentes.

Bem , com o se você fosse adolescente. Para m im , não faz tanto tem poassim .

Ela o abraçou pela cintura, enfiou as m ãos nos bolsos de trás da calça dele eo puxou em sua direção. Mac deu um a olhada no relógio. Não dava paragarantir que Sarah estivesse dorm indo.

— Que tal irm os para a sua casa?

— Minhas duas prim as estão no m eu apartam ento. E o m eu tio Luca.Parece Piccadilly Circus. Com bigos.

— Bigos?

— É… repolho cozido.

— Bem , isso é excitante.

— Mac… — A voz dela se transform ou em um m urm úrio rouco. — Mac…

Eu gosto da sua casa. — Ela enroscou os dedos no cabelo dele. — Eu gosto

do seu quarto. Eu gosto da sua cam a…

Ele tentou se m anter firm e.

— Tenho certeza de que posso aprender a gostar de bigos.

Ela estreitou os olhos e deu aquele seu sorriso felino.

— Sabe o que essa palavra quer dizer? Ao traduzi-la?

— Não estou com o m eu dicionário de inglês-polonês aqui.

— Confusão — sussurrou, roçando os lábios na orelha dele. — Significaconfusão.

Sarah provavelm ente estaria dorm indo. Mesm o que não estivesse, será queera tão ruim assim ? Ela costum ava ficar no quarto quase todas as noites mesm o.

Tinham deixado que ela ficasse com a pequena televisão portátil, j á que a menina não queria assistir a nada que os outros queriam . Ou talvez ela só nãoquisesse ficar com eles.

Maria se afastou um pouco. Olhou para baixo, então ergueu os olhos até osdele.

— Não pode dizer que não está com saudade de m im — observou.

Natasha devia estar na casa de Conor, ele ponderou, ao em purrar Maria portaadentro, enquanto ela dava risadinhas. E Maria era um a m ulher que tinhadificuldade de se concentrar. Um a frase antiga invadiu sua m ente aindaenquanto tentava expulsar a voz que o alertava contra o que estava fazendo.Tinha a ver com cavalos dados e dentes.

* * *

— As luzes estão acesas, Mac j á deve estar em casa — disse Natasha, com ose não conseguisse pensar em m ais nada para falar. Sua boca estava comprim ida em um a linha fina, Sarah percebeu. Ela tirou a chave da ignição e

pegou a bolsa do chão do banco de trás, deixando um leve rastro de perfum ecaro no ar. —

Precisa de aj uda com a m ala?

Com o se ela fosse um a criança.

— Não — respondeu Sarah. — Obrigada.

Ela não largava aquela m ala. Em alguns m om entos da noite, parecia que seagarrar àquela m ala era a única coisa que a m antinha em pé.

— Você vai ter que ir de ônibus am anhã — avisou Natasha enquantotrancava o carro atrás delas. — Mac m e m andou um a m ensagem de textodizendo que ele tem um trabalho cedo, e eu tenho um a reunião. Tudo bempara você?

— Tudo.

— E vam os garantir que seu avô ganhe algum as coisas legais. Vai ser umprazer pagar por elas, Sarah.

Ela abriu a porta de entrada e se virou de frente para Sarah quando a fechou.

Estava com aquela expressão de solidariedade, a que provavelm ente usavacom os clientes. Fazia calor no interior da casa, e Sarah tirou o casaco.

— Não é um a questão de confiança, Sarah. De verdade. Se não confiasse emvocê, eu não a deixaria ficar na m inha casa. Só acho que será m elhor nósfazerm os isso j untas no sábado à tarde. Eu cuido da m inha papelada de manhã e busco você no estábulo. Vam os a qualquer loj a que você quiser.Podem os pegar um táxi e ir à Selfridges, se quiser. O que acha?

Sarah deu de om bros. Mesm o sem que a m enina tivesse olhado para ela,Natasha percebeu que estava exasperada.

— Olhe, está tarde. É m elhor você subir e voltam os a conversar de m anhã.

Elas se viraram ao ouvirem um barulho na cozinha. Natasha tirou o cachecol

enquanto se dirigia à porta.

— Mac? Eu estava falando para Sarah que…

Ela parou de supetão quando viu um a loira alta só de cam iseta m asculina ecalcinha surgir no corredor com duas taças de vinho. Tinha o tipo de cabeloque se vê em propaganda de xam pu, incrivelm ente fino e brilhante e pernasbronzeadas que pareciam não ter fim . As unhas dos pés eram conchinhas deesm alte cor-de-rosa.

— Você deve ser Natasha. — Ela sorriu, equilibrando as taças m eio desajeitadam ente em um a das m ãos e estendendo a outra. — Eu sou Maria.

O sorriso era grande, m as nada sim pático. Havia um quê de desdém nele.

Sarah ficou parada atrás de Natasha, fascinada, enquanto a m ão esperava,solta no ar.

Natasha parecia ter perdido a capacidade de falar.

— Mac m e falou m uito de você — disse a m ulher alta, recolhendo a m ãosem parecer ofendida. — Eu ia fazer um chá, m as aqui não tem leite de soj a,tem ?

Laticínios fazem tão m al para a pele. — Os olhos dela se dem oraram norosto de Natasha por um instante longo dem ais. — Peço licença. Precisovoltar lá para cim a. Tem alguém m e esperando…

Com um sorriso, ela passou por Natasha com os seios sem sutiã fazendovolum e por baixo da cam iseta e deixando no ar um leve perfum e almiscarado.

Natasha não se m exeu.

Sarah ficou observando a cena com a boca entreaberta. Natasha estava m uitopálida, e os nós de seus dedos estavam brancos agarrados à alça da pasta.

Pareceu se sentir com o Sarah quando ia chorar e não queria.

Depois de alguns m inutos, Sarah deu um passo adiante para sentir o terreno.

— Quer que eu prepare um chá? — Alguém precisava fazer algum a coisa.

Era horrível ver um a pessoa passando por aquilo. — Eu gosto de leite normal —

com pletou, baixinho.

Mas foi com o se Natasha tivesse esquecido que Sarah estava ali. Ela ergueuos olhos, arregalou-os e se forçou a sorrir.

— É… m uita gentileza. Mas, não, obrigada, Sarah.

Ela parecia não saber o que fazer.

Sarah abraçava a m ala. Sua vontade era se esconder no quarto, m as, sesubisse, poderia dar a im pressão de ter tom ado partido, e ela não sabia muito bem o que pensar sobre o que acabara de acontecer.

— Sabe… — Natasha levou a m ão à bochecha. A cor tinha voltado a seurosto, e ela estava bem verm elha. — Sabe… acho que eu vou…

Ouviram um a porta se abrir e risadas. Então Mac desceu a escada apressado,com as m ãos no corrim ão. Estava só de calça.

— Tash. — Ele parou no m eio da escada. — Sinto m uito. Achei que vocêestava… Achei que Sarah estava…

Natasha o encarou. De repente ela pareceu m uito cansada, pensou Sarah.

— Quanta classe, Mac — disse ela, bem baixinho.

Ficou ali parada m ais um pouco e assentiu com o se confirm asse algo parasi m esm a. Então deu m eia-volta, saiu de casa e fechou a porta com força.

15

“Pois aquilo que um cavalo faz forçado, (…) ele faz sem compreender. Sob

tal tratamento, tanto cavalo quanto homem farão muito mais coisas feias doque graciosas.”

XENOFONTE, SOBRE EQUITAÇÃO

Sarah estava na cam a, abraçando os j oelhos bem j untos ao corpo. Oedredom de pena de ganso se estendia com leveza sobre seu corpo encolhido,criando um ninho m acio, um casulo que ela fingia que nunca m ais deixaria.Os lençóis de algodão egípcio ainda exalavam o delicioso arom a do spray deroupa de cam a que a faxineira usava quando passava tudo a ferro; tinhalavanda e alecrim . As cortinas, um a seda cinza pesada forrada com voile,deixavam entrar um a luz suave que a protegia de um despertar m uitoabrupto. Mas, à m edida que o quarto, com sua côm oda antiga e seu enorm eespelho veneziano, seu pequeno lustre de cristal, ia se ilum inando, Sarah sesentia m ais som bria.

Não tirou os olhos da parede, concentrando-se na respiração. Se não pensassesobre a questão, a respiração entrava e saía do corpo norm alm ente. Não importava o que fizesse, correr, cavalgar, dorm ir, sim plesm ente entrava e saía,cum prindo sua função, m antendo a pessoa viva. Assim que se com eçava aprestar atenção dem ais nela, transform ava-se em algo passivo. Esperandoque a pessoa enchesse os pulm ões. Ficando presa quando coisas ruinsvinham à m ente, quando o estôm ago se contraía de m edo.

Naquele m om ento, não havia com o evitá-lo. Ele estaria lá na sexta-feira,sem pre estava. Estaria lá no fim de sem ana. Não iria se contentar com o queela j untara até então. Sarah fechou os olhos, afastando os pensam entos àforça, inspirou e expirou m ais um a vez.

Vô provavelm ente estaria acordado; sem pre fora de levantar cedo. Será queestava olhando para a parede? Esperando até que a luz do sol revelasse as imagens do cavalo, da neta que am ava? Será que estava se im aginando noscavalos perdidos que havia conhecido, num a concentração silenciosaenquanto eles dançavam em um a arena am pla? Ou será que estava m eiosonolento por causa de tanto rem édio, babando e sendo lim pado comgrosseria por enferm eiras terceirizadas que, além de falar com ele com o sefosse velho dem ais para entender as coisas, tam bém o tratavam com o sefosse idiota? Sarah apertou os j oelhos com m ais força e estrem eceu.

Na noite anterior, o avô pegara a m ão dela em seus dedos trêm ulos. A peledele parecia m uito fina, o seu cheiro habitual substituído por algo forte edesinfetante. Ele j á não era m ais o m esm o. Cada vez que ela o via,

independentem ente do que dissessem sobre a recuperação, ele estava umpouco m ais distante, um pouco m ais desesperador, com o se as partes que ofaziam ser o Vô, o Capitão, o m arido adorado da sua avó estivessem sendoexpulsas a cada respiração. Às vezes Sarah tinha a sensação de que sabiaexatam ente com o ele se sentia.

* * *

A três quilôm etros dali, Natasha acordou com o som da água da banheira dovizinho correndo e divagou sonolenta sobre o egoísm o das pessoas queconsideravam aceitável ligar a televisão no volum e m áxim o apesar deserem seis e quinze da m anhã. Por que alguém precisava ouvir a televisãoenquanto tom ava banho? Será que não havia nenhum lugar em que podiamsim plesm ente ficar em silêncio?

Um noticiário. Seis e m eia. Ela conseguiu até deduzir que horas eram atravésdas paredes finas com o papel. Levantou-se, sentiu as prim eiras pontadas dealerta de um a forte dor de cabeça e, por um m om ento, esforçou-se paraentender onde estava, com um a sensação incôm oda de algum acontecimento do qual pouco se lem brava que j á indicava um problem a m aior. Asuspeita crescia dentro dela. E lá estava: um a colcha desconhecida. A bolsadela pendurada nas costas de um a cadeira. Carpete bege com estam pa. Um agarrafa de vinho tinto quase vazia.

A noite anterior voltou à sua m ente com o um a enxurrada e ela deitou acabeça nos travesseiros do hotel, de olhos fechados. O j eito com o aquela mulher olhara para ela, com o se fosse irrelevante. A alegria no olhar queevidenciava segredos expostos, um passado ridicularizado. Com o ele pôdefazer um a coisa dessas? Ela enxugou os olhos. Então, por que não faria? Oque tinha sido isso, afinal, se não a separação final deles? O que ela poderiaesperar dele? Tantas im agens: Mac, quando estavam j untos, rodeado por mulheres que pareciam considerá-la não m ais do que um obstáculo. Aaparência dele: um hom em que virava a cabeça de todas, sem pre um degrauacim a dela na escala da atração hum ana, e as m ulheres sabiam disso. Elas

tam bém haviam deixado isso bem claro para ela. No com eço, Natasha nãoachara que tinha im portância, quando ele dirigia todo o seu charm e só paraela, quando ela se sentira adorada, necessária, desej ada. Em festas ela lhedissera, de brincadeira, para “ir paquerar”, observando quando os olhos deleencontravam os seus depois, dizendo que as outras não eram nada perto dela.

E então, a cada aborto espontâneo, a confiança dela na própria fem inilidadefoi dim inuindo. Pegava-se avaliando em silêncio a fertilidade de outras mulheres, com parando-se de m odo desfavorável. Aos seus olhos, as outraspareciam fecundas, perfeitas. Jovens. Ela com eçara a se sentir velha, secapor dentro. E ali

estava ele, deixando todas elas encantadas, talvez j á planej ando um novorelacionam ento com um a parceira m ais j ovem , m ais bonita. Um a que lhedesse filhos. Com o poderia esperar que ele continuasse com ela? Ele ficoubravo quando ela disse isso. No fim , fora m ais fácil não dizer nada. Conortinha sido o prim eiro hom em a fazer com que ela sentisse que Mac é quetivera sorte.

Mac não era dela. Era inteiram ente possível que nunca tivesse sido. Aquiloapenas fora disfarçado m ais um a vez pelo fato de estarem m orando j untos,a proxim idade artificial forçada pelas circunstâncias.

Natasha saiu com esforço da cam a, foi para o banheiro e abriu as torneiras.

Então voltou para o quarto e ligou a televisão. Em volum e bem alto.

* * *

O dom ínio de Sarah sobre passos quase silenciosos deixaria um rastreadorindígena envergonhado. Nas últim as sem anas, não tinha sido incom um elaaparecer sem aviso atrás dele na escada ou ao lado dele na cozinha. Pareciaque ela havia decidido ser a presença m enos obstrutiva possível, não ocuparnenhum espaço, não perturbar a casa com som algum . Norm alm ente, orangido leve de um a adolescente descendo a escada não o deixariasobressaltado. Mas Mac j á estava acordado havia horas.

Na noite anterior, Maria tinha ido em bora um pouco antes das onze, um a

boa m eia hora depois de Natasha sair. Não adiantaria nada ir atrás dela: Macnão fazia ideia de para onde ela estava indo nem o que iria dizer se aencontrasse.

Maria dera um a gargalhada de desdém quando ele voltou para cim a, sentou-se pesadam ente na cam a e baixou a taça de vinho que estendeu para ele.

— Ela está puta por causa do vinho? Eu com pro um a garrafa nova para ela.É

só vinho de superm ercado m esm o. — Ela deu um gole. — Na Polônia, é muito grosseiro não receber bem as visitas.

Ele tinha certeza de que Maria sabia que não tinha nada a ver com o vinho e,só por um instante, sentiu grande desprezo por ela. Aquilo fora crueldadedeliberada, e ela havia se deleitado.

— Acho que é m elhor você ir andando — dissera ele.

— Afinal, por que você se im porta? — exclam ara ela enquanto vestia acalça j eans, requebrando de propósito. — Passou um ano inteiro sem nemvê-la. Vai se divorciar daqui a sem anas. Você que m e disse.

Ele não pôde responder. Por que não queria m agoar Natasha? Por que,quando voltou a m orar na casa, tinha pensado, de algum m odo idiota e otimista, que eles de algum a form a poderiam se tornar am igos? Que depois queultrapassassem a confusão e o traum a do divórcio, aquela m ulher engraçada,sarcástica e brilhante poderia continuar fazendo parte de sua vida? Ou porque a visão do rosto dela pálido de choque e de m ágoa, a reprovação por trásda fúria que brilhava em

seus olhos, iria assom brá-lo m adrugada afora?

Mac se levantou, j ogou água gelada no rosto, vestiu a calça j eans e desceu aescada com cuidado. Sarah estava na cozinha, vestindo o uniform e da escolabem passado, preparando um sanduíche.

— Desculpe — disse ele, m eio sonado. — Eu devia ter preparado o seu alm

oço.

Ele esfregou a barba por fazer no queixo, im aginando se teria tem po de sebarbear.

— É Natasha quem costum a preparar m eu alm oço — retrucou Sarah.

— Eu sei. Acho que eu não estava raciocinando bem ontem à noite. Você vaipara o estábulo? — Olhou para o relógio. — Está m eio em cim a da hora.

— Eu m e viro.

— Daria um a carona para você, m as tenho…

— Eu não preciso de carona — interrom peu a m enina.

— Quer um a m açã para Boo?

Ele estendeu a m ão até a fruteira e j ogou um a fruta para ela, achando queSarah a pegaria. Aquilo tinha se transform ado em um a espécie de rotinapara eles. Mas ela deu um passo para o lado e deixou a fruta cair no piso decalcário.

Mac pegou a m açã do chão e exam inou as costas m agras e firm es, apostura conscientem ente ereta dela.

— Está brava com igo?

— Não é da m inha conta — respondeu ela enquanto arrum ava ossanduíches na m ochila.

Mac pegou a chaleira e a encheu de água.

— Sinto m uito por ontem à noite.

— Acho que não é para m im que você tem que pedir desculpas.

Ela estava vestindo o casaco.

— Eu não sabia que ela ia voltar — argum entou Mac.

— Mas a casa ainda é dela.

— A casa é nossa.

— Tanto faz. — Ela deu de om bros. — Com o eu disse. Não é da m inhaconta.

Ele preparou café para si m esm o, chocado ao perceber com o um a m eninade quatorze anos podia fazer um hom em adulto se sentir tão m al. Ele sabiaque Natasha ficaria irritada. Mas não esperava por aquilo.

— Você pode m e dar um pouco de dinheiro?

Ela estava parada atrás dele, pronta para sair.

— Claro — respondeu ele, contente de fazer algo, qualquer coisa, quedeixasse o clim a m ais leve. — De quanto precisa? — Ele com eçou a remexer nos bolsos.

— Cinquenta? — arriscou Sarah.

Ele separou a quantia na m ão.

— Tom e — disse ele, estendendo um a m oeda prateada.

— Cinquenta centavos?

— Você queria cinquenta libras? Muito engraçado. Olhe, eu tenho umtrabalho de m anhã. Vou pegar dinheiro no caixa eletrônico hoj e à tarde.Posso dar dez para você. Para se divertir. Vá com er ham búrguer com osseus am igos m ais tarde.

Ela não pareceu tão feliz quanto ele esperava. Mas seria m elhor ele não terque se preocupar com o que faria para o j antar e Sarah estar fora do caminho, em segurança.

Ele precisava falar com Natasha. Mas não sabia o que diabo iria dizer.

* * *

Toda docum entação j urídica recebida por um advogado — que não dissesserespeito a assuntos do governo — vinha am arrada com um a fita cor-de-rosa.

Esse anacronism o não era apenas um a questão de organização, nem um método antiquado de arquivam ento. A fita tinha um significado, sim bolizava acapacidade do advogado de não se envolver em ocionalm ente com o caso. Oadvogado era instruído especificam ente por sua independência, sua objetividade. Quando a fita era am arrada de novo, a docum entação eradevolvida. O advogado deixava para trás os fatos do caso.

Dito isso, era m ais fácil ser obj etiva em alguns casos do que em outros,pensou Natasha, sentada ali diante de Michael Harrington. Estavam reunidosno escritório dele para discutir o caso do divórcio dos Persey, que estava paracom eçar.

— Você parece cansada, Natasha — observou ele, cham ando a estagiária. —

Espero que os detalhes do caso não estej am tirando o seu sono.

— De j eito nenhum .

— Acho que precisam os ter um a conversa com a Sra. Persey am anhã de manhã. Tam bém estam os aguardando os relatórios dos peritos contábeis.Você pode levá-los à reunião? Eu gostaria ainda de decidir quais testemunhas cada um de nós vai interrogar.

Ele a observava atentam ente, e Natasha não soube dizer quanto tem popassara olhando para os papéis.

— Natasha? Você está bem ?

— Estou.

— Vai poder com parecer?

Ela deu um a olhada na agenda; o dia j á estava terrivelm ente cheio.

— Eu arranj o tem po.

— Ótim o. Certo. Acho que, por hoj e, é só. — Ele se levantou e Natasha juntou suas coisas. — Não, não. Eu não quis dizer que você precisava sair

im ediatam ente. Tem alguns m inutos? Tem po para um drinque rápido?

Ela pensou na noite anterior.

— Posso tom ar um chá — disse ela, voltando a se sentar. — Obrigada.

— Muito bem .

A estagiária apareceu à porta.

— Beth, pode preparar duas xícaras de chá para nós, por favor? Açúcar? Osdois sem açúcar. Obrigado.

Abruptam ente, ele m udou o rum o da conversa. Falou sobre os filhosadultos, sobre a paixão redescoberta pelo iatism o. Os dois conversaram sobreum advogado que conheciam que se envolvera em um escândalo envolvendoauxílio j urídico.

— Na verdade — continuou ele —, j á faz um tem po que quero conversarcom você. Estam os reestruturando as coisas por aqui, m udando o equilíbriodas áreas em que atuam os. E é provável que tenham os um a vaga. —Natasha ficou só ouvindo. — Tenho observado o seu desem penho cominteresse. Gostei do seu trabalho em Richm ond contra Turner, e do caso dostrigêm eos sequestrados em que atuou. Muitos dos advogados com quemconverso falam de você e só têm boas coisas a dizer.

— Obrigada.

— Se abrir um a vaga aqui, você estaria interessada?

Natasha ficou chocada. Quando ela era estudante, Harrington Levinson eraconsiderado o epítom e do escritório de advocacia m oderno e progressista,com um a reputação espantosa. E Michael Harrington, o fundador, estava lhefazendo um a proposta.

— Fico m uito lisonj eada — respondeu. A estagiária chegou com o chá.

Esperaram até ela Sair e fechar a porta. — Devo dizer que há a possibilidadede eu m e tornar sócia no m eu escritório atual.

— Não sei bem se esse é o m elhor passo para você. Sabia que m uitosadvogados com uns estão escolhendo se especializar nas instânciassuperiores? —

perguntou. — O cam inho está traçado. E nós gostaríam os que vocêocupasse essa função. Pode fazer o exam e específico na ordem em m enos dedois anos.

Ela tentou digerir o que ele estava dizendo, as im plicações daquilo. Eladeixaria para trás o caos cotidiano de seu trabalho de advogada de pequenascausas e adotaria a postura m ais distante de quem só trata de casos m aiscom plicados, que vão para as instâncias superiores. Não haveria m ais oenvolvim ento diário com a vida dos clientes com o acontecia atualm ente.Desde Ali Ahm adi, ela j á não sabia m ais se isso tinha im portância.

— Michael, este é um grande passo, obviam ente — disse ela, pensando emConor. — Preciso pensar bem na proposta.

Ele rabiscou algo em um pedaço de papel.

— Estes são os m eus núm eros. Não tente falar com igo por m eio da

telefonista… As pessoas aqui m e protegem feito cães de guarda. Mas entreem contato. Pode m e procurar para qualquer pergunta que queira fazer sobrea nossa organização: dinheiro, estagiários, escritórios, qualquer coisa.

— Vai precisar de referências?

— Eu sei tudo de que preciso saber sobre você. — Ele sorriu. — Para ondevai agora? Outra reunião?

Ela olhou para a fita cor-de-rosa, forçando-se a lem brar o que supostam entesim bolizava.

— Algo do tipo — respondeu enfim , deixando a xícara e o pires na m esa. —

Eu ligo para você, Michael. Obrigada. Vou pensar na sua oferta com m uitacautela.

* * *

Quase nada a distinguia das outras casas m odernas de fachada reta, comfeios tij olos m arrons e as cam painhas com o única pista de que aquelaspequenas m oradias eram divididas em apartam entos ainda m enores. Mas,no chão, ainda esvoaçando solta ao vento, o com prim ento da fita de políciaam assada e suj a em baixo do arbusto de alferneiro contava um a históriaprópria. As cores contrastantes davam um a pista da gravidade do que haviaacontecido atrás daquela porta.

Ela ficou parada na calçada, olhando para as j anelas vazias com cortininhasde renda. Onde estaria a vendedora de vinte e seis anos? Será que estava ali,espiando por trás das cortinas, ou ainda no hospital? Estaria com m edo demais para voltar para casa? Será que esm iuçara a sequência de acontecim entosque levaram o j ovem até ela?

O que fizera Ali Ahm adi escolher aquele endereço específico? Com o a jornada épica dele, do outro lado do m undo, tinha acabado nos seis passoscurtos até aquela porta da frente específica? Com o um a pequena om issão daparte dela, da parte de outra pessoa, havia levado a um acontecim ento tãocataclísm ico?

Um a idosa passou por ela em purrando um carrinho de com pras xadrez.

Natasha deu um passo para o lado e tentou dar um leve sorriso, m as a mulher m al reparou nela com os olhos verm elhos e rem elentos e prosseguiuem seu cam inho solitário e determ inado.

Natasha sentiu um nó na garganta. Talvez não estivesse ali em busca depistas.

Talvez quisesse fazer um pedido de desculpas m udo. Eu devia ter conferidoa história dele, disse à m ulher, em silêncio. Se eu tivesse conferido o nom e

da cidade, a distância que ele alegara ter cam inhado, poderia ter salvadovocê. Se não tivesse feito nada para salvá-lo, eu poderia ter salvado você.

Ela foi interrom pida pelo celular.

— Você não esqueceu a reunião das quatro e quinze, certo? Achei que j á

estaria de volta. — Era Ben.

— Adie — respondeu Natasha.

Estava parada ao lado do carro, observando duas m eninas que em purravamcarrinhos de bebê do outro lado da rua. Am bas falavam ao celular,aparentem ente alheias às crianças e um a à outra.

— O quê?

— Cancele. Não vou voltar m ais para o escritório hoj e.

Houve um longo silêncio.

— O que digo a Linda? Você está bem ?

— Estou. Não, na verdade, eu não estou m e sentindo m uito bem . Vou paracasa. Diga que sinto m uito. Rem arque para m ais tarde nesta sem ana. ÉStephen Hart. Ele vai entender.

Depois que desligou o celular, ela se lem brou de que ir para casa não era mais um a opção.

* * *

Jessica Arnold tivera vinte e três nam orados, quatorze do ano dela, quatro doano seguinte e o restante de fora da escola, de Sandown e dos conj untoshabitacionais ao redor. Os nam orados atuais dela eram hom ens m ais velhosque esperavam na frente da escola em carros baixos e turbinados que saíamroncando pela rua, tocando m úsica alta, no instante em que ela entrava. Forapara a cam a com a m aioria deles — o que não era um a ostentaçãoinfundada, com o m uito do que se dizia sobre quem tinha “experiência” no

ano dela —, o que estava detalhado em recados rabiscados nos banheiros, nascartelas vazias de pílula que tinham visto cair da m ochila dela e no rosto doshom ens nos carros. Eles não eram do tipo que se satisfazia com um beij odem orado em um banco de parque. Jessica exibia as m arcas roxas nopescoço com o condecorações. Tinha que se com portar assim , com o sefosse sua escolha, com o se fosse o que ela queria, ou não passaria de um aprostituta.

Se Jessica estava em um a ponta do espectro da atividade sexual do prim eiroano do ensino m édio, Sarah ficava à espreita na outra, com Debbie Derm ott,que usava óculos grossos e aparelho, e Saleem a, que usava burca sem preque estava fora da escola e nunca conversava com m eninos, m uito m enosos beij ava. Não era que Sarah fosse feia. Ela só não se interessava m uito poreles.

Os m eninos que ela conhecia não iam querer saber de Boo nem de seuprogresso contínuo dos m ovim entos da basse école para as exigências m aiscom plexas da haute école. Eles não iriam querer ir até o estábulo com ela evoltar para casa j untos de ônibus. Iriam fazer com entários idiotas sobre ocheiro do estábulo, iriam berrar e incom odar os cavalos e fum ar perto dapalha. Eles não entenderiam a sua vida.

Nunca contara ao avô, m as, às vezes, nos poucos m om entos dolorosos,tarde da noite, quando ela se sentia sobrecarregada e seu corpo se enchia deum sentim ento de perda de algo que ela não entendia, Sarah se im aginavaem Le Cadre Noir. Ela seria a m elhor cavaleira que j á tinham visto. Haveriaum lindo j ovem capitão com uniform e preto com os alam ares dourados. Eleseria um cavaleiro fantástico e com preenderia tudo que ela queria. Ele nãoandaria em um carro cheio de adesivos e sem habilitação pelo conj untohabitacional, gabando-se do núm ero de ordens de restrição e infrações pordirigir ilegalm ente, e oferecendo beij os babados com gosto de kebab e molho de pim enta. Seria um rom ance com portado, que tam bém tinhacavalos, com enorm es lacunas de conhecim ento em seu âm ago, lacunas quea m ochila de Jessica e os rabiscos na parede do banheiro apenas sugeriam .

Era assim que ela sem pre im aginava seu futuro; sabia disso com tantaclareza quanto sabia com o seria o futuro de Boo. Mas ela tinha sete libras equinze centavos da venda de seus CDs e enfeites, as dez libras de Mac e um

título que dem oraria pelo m enos três dias para ser sacado, e apenas com aassinatura de seu avô.

Parecia que essa lacuna seria elim inada m ais depressa do que ela pensava.

— Preciso falar com você.

— Trouxe o m eu dinheiro?

— É sobre isso que quero falar.

— Então fale.

Ela indicou com a cabeça o outro lado do pátio, onde os hom ens deleestavam .

— Não com eles ali.

Ele estava guardando suas escovas de tratar os cavalos, cada um a delasreluzente, im aculada, com o se nunca tivesse visto a poeira de um cavalo.Enfiou a últim a no lugar e então olhou para ela, analisando.

— O que você quer, Menina do Circo?

Sarah baixou a voz, torceu a alça da m ochila ao redor do pulso esquerdo.

— Eu queria saber… Quanto… quanto você pode abater… se…

Ele não respondeu de im ediato. Não sorriu. Não dem onstrou surpresa nemprazer. Não caiu na gargalhada, com o ela m eio que esperava que fizesse,dizendo que era só brincadeira, perguntando que tipo de hom em ela achavaque ele era.

Sal assentiu de leve, com o que confirm ando algo para si m esm o, entãoolhou para ela e deu m eia-volta. Foi até onde seus hom ens estavam , aoredor do braseiro, com o ar frio transform ando a respiração deles em vapor,de m odo que não dava para saber o que era fum aça e o que era sim plesmente ar frio. Ele gesticulou para o bando, balbuciando algo que Sarah nãoentendeu. Eles deram de om bros, exam inaram os bolsos atrás de chaves e

cigarros, j ogaram papel no fogo. Ralph a observou do outro lado do pátio,com o se a reavaliasse. Talvez fosse só ciúm e por ela ter recebido atenção deSal, m as Sarah desconfiava de que se

tornara um a pessoa diferente aos olhos dele. Não m ais a neta do Capitão,um a am iga com quem com partilhar um a aventura ou outra, só alguém paraser com ercializada, sem valor. Ralph não olhou para ela ao ir em bora.

Sarah foi até a baia de Boo e entrou, aj eitou o cobertor dele e apoiou acabeça em seu pelo quente para absorver um pouco de conforto. A cabeçaenorm e do cavalo se virou para analisá-la, para ver o que ela estava fazendo,e a m enina acariciou seu rosto, percorrendo com os dedos o contorno dosossos sob a pele m acia.

Ela viu Sal pela porta, cam inhando alegrem ente, segurando um cigarro meio solto entre o polegar e o indicador. Ele balançou a cabeça, gritou algum acoisa em m altês e os hom ens desapareceram pelo portão. Então, quando oúltim o carro saiu, ele fechou o portão e passou a corrente. Estava escuro, eSheba andava irrequieta de um lado para outro na entrada, talvez esperandoque Cowboy John voltasse.

E então ele foi em direção à baia de Boo, assobiando com o quem não temnenhum a preocupação no m undo.

— Então — disse ela, tentando parecer durona, quando ele parou à porta.

Tentou im itar as m eninas de Sandown, as que ela vira gritar para os meninos de m oto. Duronas. Indiferentes. Com o se nada pudesse abalá-las. —Com o isso seria feito?

Ele agiu com o se não tivesse escutado. Deu um a tragada profunda nocigarro, então entrou na baia e fechou a porta. Boo tinha perdido o interessenela e voltara para o feno, m astigando sem parar atrás dela. Apenas a luz desódio do poste da rua atingia o lugar. Era difícil distinguir o rosto dele, apesarde Sarah saber que a luz a ilum inava, transform ando seu corpo em algolaranj a fantasm agórico.

— Tire a blusa.

Ele falou aquilo com extrem a naturalidade, com o se tivesse lhe pedido paratrancar o portão.

— O quê?

— Tire a blusa. Eu quero dar um a olhada em você.

Sal deu m ais um a tragada no cigarro, sem desviar os olhos dela. Sarah oencarou. Não agora, pensou. Não estou pronta para isso agora. Só queriaentender o que você estava sugerindo.

— Mas…

— Se você não quiser resolver a questão… — Ele am eaçou se virar, para irem bora, com o rosto fechado. — Só está brincando com igo. Achei quepodia levar você a sério.

Ele tirou o cigarro dos lábios com dois dedos e j ogou no chão de concreto. Abrasa brilhou por um instante antes de se apagar com a um idade. Então elaviu a expressão fria e severa dele e sua m ente disparou.

Antes que se desse conta do que estava fazendo, Sarah tirou a blusa. Estava

usando um m oletom . Sem o forro felpudo, sentiu o frio em sua pele, acorrente de ar que entrava pela porta penetrando com dedos gelados o queantes estava protegido e aquecido.

Sal se virou. Sarah não conseguia ver os olhos dele, m as sentiu o olhar,extraindo cada pedacinho para decidir qual era o valor dela. Ao que parecia, adecisão não seria dela. Sentiu-se invadida pelo olhar dele, com o se Salpudesse enxergar através de sua pele nua e ver a carne crua por baixo. Logotudo estará terminado, disse a si m esm a, forçando-se a perm anecer ereta,quase desafiadora em sua postura. E então não vou dever nada a ele. Tudovai ficar bem.

— E o sutiã.

Ele falou devagar, m as era um a ordem . A voz de alguém acostum ado a tero que queria.

Ela verificou se tinha escutado direito.

— Mas o que você quer…? — protestou. — Você não disse…

— Agora vai m andar em m im ? Vai ditar os term os? — A voz deleendureceu.

Ela trem ia, seus braços se arrepiaram .

Fechou os olhos. Seu coração batia tão forte que ela quase o escutava.

— Tire.

Ela engoliu em seco, então levou as m ãos às costas, cerrou o m axilar paraim pedir que os dentes batessem ; não sabia bem se de m edo ou de frio. Semabrir os olhos, tirou o sutiã. Era barato e m olenga, um pouco grande dem ais.Vô estava com prando m eias na m esm a hora, e ela ficou tão envergonhadacom a ideia de ele reparar na sua com pra na loj a de departam ento que saiucorrendo sem experim entar. Sal pegou a peça da m ão de Sarah e largou nochão ao lado dela.

Estava nua da cintura para cim a. Sentiu o ar frio na pele, os m am ilosendurecendo em protesto. Ouviu quando ele respirou fundo, os passos que otrouxeram m ais para perto e percebeu que caíra em um abism o. Um abism oque ela nem sabia que estava lá.

Ela não conseguia abrir os olhos, não conseguia respirar. Ficou ali parada, uma coisa, um nada, saindo de seu corpo para que aquilo não fosse ela, Sarah, alide pé nua no estábulo, com o cavalo novo de Sal relinchando no arcoseguinte e o cachorro latindo ao som de alguém que conversava na rua.Aquela não era ela, com a m ão quente e seca daquele hom em deslizandopela pele fria dela, com o hálito quente perto do rosto dela, as palavras imundas e estranhas m urm uradas no ouvido dela. Um cheiro estranho,desconhecido em suas narinas, o cinto pontudo dele pressionando dolorosamente seu quadril enquanto ele a pressionava na parede de pedra gelada. O mundo real recuou até que sobrassem só ele, aquelas palavras e seu toqueinsistente, incansável, que não cabia a ela m andar parar.

Não era ela. Não era ela. Aliás, o que acontecera com Sarah? Aquilo não eram ais sua vida, nem sua fam ília, nem seu futuro. Ela não tinha voz em nadadisso.

Então, que diferença fazia se aquele hom em tom ava posse dela, a cada

centím etro que apertava e explorava, a cada respiração que exalava? Elaestava hipnotizada, ausente, era um nada.

Não era dela, afinal, a m ão que ele apertava e puxava do lado do corpo trêmulo dela em direção ao dele, enquanto os dentes cerrados dela sufocavam o medo. É uma coisa pequena, disse m ais um a vez a voz repetitiva em sua mente.

Uma coisa pequena, e aí tudo estará terminado. Ouviu um som de zípersendo aberto, a respiração ofegante dele crescia em intensidade, rouca. Ouviuas palavras e pensou, estupidam ente: Eu faço? E sentiu nas pontas dos dedosa calça j eans áspera, então algo m acio e quente, porém firm e. Algo que seuinstinto lhe disse que não deveria tocar.

E ela não conseguiu se conter. Puxou a m ão e os dedos dele se fecharamsobre os dela, trazendo-os de volta à pele quente, insistindo, nem tentandoconvencer. Mandando. Mas aquilo despertara algo dentro dela, a libertara.Um grito escapou dela, e Sarah o em purrou, bateu nele, berrou:

— Saia de cima de mim! Saia de cima de mim!

Boo se agitou e saltou para os lados, batendo os cascos na parede da baia. Elaentão agarrou a m ochila e fugiu das m ãos dele, foi para longe do arm árioúm ido, correu até o portão, abriu-o e disparou pela calçada, em direção àsluzes fortes da rua na hora do rush, ainda vestindo o m oletom por cim a.

* * *

— Fiquei im aginando se você viria. — Conor estava parado diante dela, comum a caneca de cervej a na m ão. — Richard quis falar com você hoj e àtarde.

Tive que enrolá-lo. — Com o ela não disse nada, ele com pletou: — E Lindaestá preocupada com você.

Ela se recostou no assento.

— Linda se interessa dem ais pela vida dos outros. Você pode ver por si mesm o… eu estou bem .

Conor observou as taças vazias na frente dela. Tirou o casaco e se acom odouno assento do outro lado da m esa. Era o fim do expediente e o pub estavaenchendo. Ele deu um gole na cervej a.

— Eu liguei para a sua casa. Mas a sua… a sua j ovem hóspede disse quetinha acabado de chegar e não sabia onde você estava.

Natasha tom ou m ais um gole da bebida. Quando se bebe vinho branco demais, ele fica com gosto de suco de uva ácido.

— Eu não estou ficando lá.

Ele a encarou.

— Certo, Natasha. O que está acontecendo?

— Ah, agora você está interessado?

— Olhe, dá para ver que algo está acontecendo com você. Há cinco anos

você não perde um único com prom isso, e de repente tira a tarde de folgasem m otivo aparente.

Ele não com pletou com : “E você está bêbada.” Não precisava.

— Brilhante, Sherlock Holm es. — A voz dela era baixa e contida. Percebeuque adorava Chardonnay, por m ais fora de m oda que fosse. Por que ela nãotinha descoberto isso antes? — Fui dar um a olhada na casa da m ulher queAli Ahm adi atacou.

— Por que diabo você fez isso?

— Não sei.

— Achei que você tinha deixado isso tudo de lado. Por que ainda estápreocupada?

Ela piscou várias vezes.

— Porque ainda está m e incom odando. Eu fico pensando nela. Ficopensando nele.

Um par de m ãos m orenas e m agras em gesto de súplica. Ao redor dopescoço de um a m ulher.

— Isso é ridículo, Natasha. Você não está… Não está agindo de m aneiraracional.

— Ah. Isso deve ser porque estou bêbada.

— Certo. Vou colocar você em um táxi e m andá-la para casa. Vam os,Poderosa.

Ele pegou a m ão dela, m as Natasha se desvencilhou.

— Eu não vou para casa.

— Por quê?

— Porque estou hospedada em um hotel.

Ele a encarou com o quem olha para um a bom ba prestes a explodir.

— Está hospedada em um hotel.

— No Holiday Inn.

— Posso perguntar por quê?

Não, ela teve vontade de gritar. Não, porque você saiu da m inha vida há muito tem po, no prim eiro sinal de problem as. Não, porque você m e ignorou

e fez com que eu m e sentisse um lixo durante sem anas. Não, porque vocêagiu com o se a m inha felicidade não im portasse.

— Foi m ais sim ples. — Natasha ouviu a pergunta no silêncio dele. Mal ovia do outro lado da m esa. Por que ele não ia em bora? — Foi m ais fácil,ok? Você tinha razão. As coisas ficaram com plicadas dem ais em casa. Eucom eti um erro só de pensar que conseguiria lidar com isso. Está feliz agora?

Conor não disse nada. Ela engoliu em seco e tentou se concentrar nas taças àsua frente, m as elas ficavam se m ovendo, indo na sua direção. Natashafranziu a testa para elas até se colocarem , obedientes, em um a espécie deordem .

Ela enfim desistiu e olhou para Conor. Os olhos dele eram bondosos, sua

expressão, triste.

— Ah, Poderosa. Sinto m uito. — Ele se levantou e deu a volta até o ladodela da m esa, sentou-se e suspirou. — Sinto m uito.

— Não se preocupe. Foi um a coisa ridícula de tentar. Eu devia estar louca.

— Bem , é, tem isso. — Ele a abraçou pelos om bros e a puxou para perto.

Natasha se escorou nele, um pouco relutante, inflexível em seus braços. —Sinto m uito — m urm urou no cabelo dela. — Eu sou um idiota cium ento.Nunca quis ver você infeliz.

— Mentiroso.

— Ok. Eu não queria ver você feliz com ele. Mas nunca quis… isso.

— Eu estou bem .

— Obviam ente. Mas eu não estou. E a culpa é toda m inha. — Ele seinclinou, segurou o rosto dela e o inclinou em direção ao seu. — Venha parao m eu apartam ento.

— O quê?

— Você escutou.

Ela se desvencilhou do abraço.

— Conor, eu não sei. A m inha vida está um a confusão. Eu m e enfiei na maior enrascada e não sei com o sair dela.

— Eu sei com o. — Ele tirou o cabelo da vista dela. — Venha para o m euapartam ento.

— Eu j á disse, tenho que…

— Para ficar. — Ele fez um a pausa. — Para m orar se você quiser. — Elanão se m exeu, em dúvida se tinha escutado direito. — Deixe Mac resolver acoisa toda — continuou Conor. — Foi ele que m eteu você nessa confusão. Evocê vem … vem m orar com igo.

— Você não tem que fazer isso.

— Eu sei que não. Mas, pode acreditar, não penso em outra coisa nas últim asduas sem anas. Fico im aginando vocês dois j antando j untos, batendo papo,fazendo… — ele esfregou o rosto — só Deus sabe o quê. Aliás, não m e digase fez, porque não quero saber. Mas isso m e levou a pensar. Vam os simplesm ente com eçar com isso.

— “Com eçar com isso” — repetiu Natasha. — Seu velho rom ântico.

Ele tinha falado. Oferecera as coisas que ela desej ava havia m eses, apesar denão ter adm itido para si m esm a. Talvez fosse o choque da noite anterior, oudas últim as sem anas, m as ela não soube com o reagir.

— É um passo im portante, Conor. Nós dois…

— …um caos. Um caos que com bina.

— Você faz isso parecer tão tentador…

— Estou falando sério, Natasha. — Ele hesitou. — Eu am o você.

Ela esvaziou a taça.

— Não sei. Isso m eio que saiu do nada.

— Você prefere ficar no Holiday Inn. Sem pre soube que você tinha um aqueda por aquela rotatória. — Ele falava um pouco rápido dem ais, com um arisada estridente.

Natasha sentiu um a ternura repentina e pegou a m ão dele.

— Vou para lá hoj e à noite — disse. Apoiou-se nele e se deixou serenvolvida.

Fechou os olhos quando ele apoiou o queixo em seu om bro, alheio aosolhares das pessoas na m esa ao lado. — Mas vam os dar um passo de cadavez.

16

“Quando ele está próximo do inimigo, precisa manter seu cavalo sobcontrole. Isso (…) lhe permitirá causar o maior dano ao adversário e serprejudicado o mínimo possível em suas mãos.”

XENOFONTE, SOBRE EQUITAÇÃO

Ele ligara quinze vezes entre a noite de segunda-feira e aquela m anhã, m astinha caído direto na caixa de m ensagens todas as vezes. No escritório,diziam que ela estava “no tribunal”. O fato de j á nem perguntarem quemestava falando lhe dava a im pressão de que Natasha pedira para nãotransferirem as ligações dele.

Tinha parado de deixar recado, só dizia o nom e dela, o nom e dele. Havia muito tem po que esquecera o que queria dizer.

Ele se serviu de m ais um a xícara de café, xingando o bule de Natasha, quesem pre parecia derram ar por m ais cuidadoso que fosse. Lem brou-se derepente da linda cafeteira italiana que tinham ganhado de presente de casamento, um a Gaggia reluzente, que estava em um depósito qualquer na zonaoeste de Londres.

Então pareceu estúpido ele ter sido tão obstinado em levar tudo que achavaque era seu, m esm o significando que ninguém iria usar. Jurou que daria acafeteira para Natasha. Não a usara em um ano. Não tinha com o sentir faltadela. Mac fizera vários j uram entos desse tipo nos últim os dias.

No andar de cim a, Sarah dorm ia. Fora direto para o quarto quando chegouem casa na noite de segunda-feira, não quis com er, beber nem conversar.Andava tão evasiva, evitando contato visual, enfurnando-se no quarto, queMac desconfiou que ainda estava sendo punido. Na verdade, era estranho elade repente se m ostrar tão leal a Natasha. Mac tinha vontade de bater naporta, enquadrá-la, lem brá-la de que, na verdade, estritam ente falando,Natasha é que fora infiel prim eiro. Mas, ao refletir sobre a questão, ele sedeu conta de com o seria ridículo incom odar um a m enina de quatorze anospara j ustificar as próprias ações.

No dia anterior, ela dissera que não estava se sentindo bem , passara o diatrancada no quarto. A pele dela estava pálida, translúcida. Não precisou seesforçar m uito para convencer Mac a deixá-la tirar o dia de folga.

Às seis e vinte, cerca de trinta e seis horas depois de Natasha ter saído, eleouviu um a chave na porta da frente. Ela a fechou sem fazer barulho, tirou ossapatos e cam inhou de m eias pelo corredor. Vestia o terninho com o qualdesaparecera, m as com um a cam iseta por baixo. Provavelm ente a cam isetadele, pensou Mac.

Os dois se encararam .

— Estou com um caso im portante — disse ela. — Só vim trocar de roupa epegar o carregador do celular.

O rosto dela estava pálido, sem m aquiagem , o cabelo ainda m eio am assadode dorm ir. Ela parecia exausta.

— Tentei ligar para você. Um m ontão de vezes.

Ela m ostrou o celular.

— Sem bateria. Com o eu disse, preciso do carregador.

Ela subiu os prim eiros degraus da escada.

— Natasha, por favor, espere cinco m inutos. Precisam os conversar, deverdade.

— Hoj e eu não tenho tem po. Preciso estar no escritório em m enos de um ahora.

— Mas nós realm ente precisam os conversar. Você vai voltar hoj e à noite?

Ela parou no m eio da escada.

— Vou chegar tarde. E, quando voltar, terei que trabalhar nos m eus documentos.

— Ainda está brava com igo? Por causa de Maria?

Natasha fez que não com a cabeça, nada convincente.

Mac subiu a escada, dois degraus de cada vez, a ultrapassou e parou numdegrau acim a do que ela estava, olhando para baixo.

— Ah, fala sério — disse ele. — Até parece que você não tem nam orado.

Caram ba.

— E até parece que algum a vez eu o trouxe aqui para hum ilhar você —

disparou Natasha. — Olhe, eu não quero fazer isso agora…

— Não. Você nunca quer. Mas, tendo em vista a nossa situação, com o Mariaestar aqui pode ter hum ilhado você? Você e eu não estam os j untos. Sem prefoi bem aberta sobre ter um nam orado. A única coisa que aconteceu foi quevocês se encontraram pessoalm ente. Olhe, não estou dizendo que tenha sidodiplom ático, m as foi um erro inocente. Achei que você tinha saído. Eununca convidaria Maria para entrar se soubesse… — Natasha parecia nãoquerer olhar para ele. — Tash?

Quando ela finalm ente olhou, seus olhos estavam frios. Parecia estranhamente derrotada.

— Eu não tenho com o fazer isso, Mac. Ok? Você venceu. Fique com a casaaté ser vendida. Convide quem você quiser para vir aqui. Não m e im porto mais.

— Você não se im porta com o quê?

— Só acho que é m elhor para todo m undo se acabarm os com essaenganação agora.

Mac abriu os braços na escada, bloqueando o cam inho.

— Opa, opa, opa. O quê? Você sim plesm ente vai em bora? E com o isso vaifuncionar? O que vam os fazer com Sarah? Você sabe que não posso cuidardela

sozinho.

— Vou em bora assim que providenciarm os um lugar para a m enina ficar.Ela teria que ir em bora em poucas sem anas, de todo m odo. Só adiantaremos as coisas.

— Você não pode ficar m ais um pouquinho? Um as duas sem anas?

Ela falou com o se tivesse ensaiado:

— Você sabe tão bem quanto eu que o avô dela não vai m elhorar. Sarahprecisa ir para um a fam ília estável que possa cuidar dela adequadam ente.Um lugar em que não sej a usada com o um a espécie de am ortecedor entreduas pessoas crescidas que parecem incapazes de lidar um a com a outra feitodois adultos.

— É assim que você enxerga a situação?

— Você vai m e dizer que não é assim ?

Ela forçou o cam inho para subir um degrau, fazendo-o recuar para que não

se tocassem . Aparentem ente, percebendo sua vantagem , ela subiu m ais umdegrau.

— E o cavalo?

— Acredite se quiser, Mac, o cavalo não está no topo da m inha lista deprioridades neste m om ento.

— Então você é capaz de sim plesm ente abandoná-la?

— Nem ouse — disse Natasha. — Nem ouse usar a m enina. Isto aqui é sobrevocê e eu. Por m ais que nós tenham os nos com portado na frente dela ou dequalquer outra pessoa, isto aqui nunca ia term inar com o um a fam ília feliz,Mac, e você sabe m uito bem disso. — Os nós dos dedos da m ão queagarrava o corrim ão estavam brancos. — Faz trinta e seis horas que só pensonisso. Nós nunca devíam os ter oferecido para ela um lar que, para com eçode conversa, não era um lar propriam ente dito. Nós fom os inj ustos com elaao fingir que era.

— Isso é o que você acha.

— Não, isso é o que eu sei. Está na hora de nós serm os honestos… com ela ecom nós m esm os. Agora, por favor, m e dê licença, eu realm ente preciso me trocar.

Ela o em purrou para o lado e subiu o restante da escada.

— Tash. — Ela o ignorou. — Tash… não term ine as coisas assim . — Macestendeu a m ão para ela. — Por favor, eu com eti um erro.

Natasha se virou para ele com um a expressão que era um a m istura de emoções: raiva, ressentim ento, m ágoa.

— Então, com o devem os term inar, Mac?

— Não sei. É só que detesto isso. Eu detesto você… desse j eito. Só acheique nós…

— O quê? Que nós todos nos despediríam os cheios de ternura e sairíam os

velej ando em direção ao pôr do sol?

— Eu não…

— Divórcio nunca é certinho, Mac. E quer saber? Às vezes, as pessoas nãovão gostar de você. Às vezes, o fam oso charm e do Mac sim plesm ente nãovai funcionar. E…

— Tash…

Ela soltou um longo suspiro ofegante.

— E eu… eu não posso m ais ficar perto de você.

Do lado de fora, um carro estacionou com o som alto dem ais, inapropriadopara aquele horário, tão cedo. Eles estavam a centím etros de distância naescada, nenhum dos dois capaz de se m exer. Mac sabia que devia descer, mas não conseguia erguer o pé. Ele sentia um perfum e, um arom a que j á nãoreconhecia m ais com o de Natasha. Via a m ão dela, ainda agarrada aocorrim ão em busca de um apoio sem o qual não conseguiria se firm ar.

— Sabe o que é o pior de tudo? — Ele se preparou para o golpe verbalseguinte. — Sabe o que eu realm ente não suporto? — Mac não conseguiafalar.

— Isto é igual… Parece igual ao que aconteceu antes de você ir em bora daprim eira vez.

A voz dela falhou. Então Natasha foi para o quarto pisando firm e.

* * *

No andar de cim a, Sarah recuou do corrim ão e correu para o seu quarto. Osseus ouvidos tiniam com as palavras de Natasha. Tudo estava desmoronando. Natasha ia em bora, e ela tam bém teria de partir. Nós nuncadevíamos ter oferecido para ela um lar. Não conseguira entender tudo o queestavam falando, m as escutara isso. Ficou olhando para o reflexo no espelho.Estava com seu m aior m oletom , o m ais grosso, e m eia-calça de lã porbaixo da calça j eans. Mas sentia-se paralisada. Será que Ruth iria encontrá-la

na escola, com as m alas pretas com suas coisas no banco de trás, e ela serialevada para outro lugar? Nem haviam tido coragem de conversar com elasobre isso.

Sarah ficou sentada no chão, ao lado da cam a, e cobriu os olhos com ospunhos fechados para não chorar. Durante todo o dia e a noite anterior, elasentira as m ãos de Sal em sua pele, escutara as palavras noj entas dele. Elahavia se esfregado com as loções e os crem es caros de Natasha, tentandoapagar o cheiro dele, o rastro invisível deixado por sua boca. Estrem ecera aopensar em quem poderia encontrar o sutiã dela, que ficara na baia de Boo.Por algum m otivo, a ideia de ele estar ali j ogado na palha a incom odava mais do que qualquer outra coisa.

No quarto ao lado, ela escutava Natasha abrindo e fechando gavetas, o cliquesuave dos arm ários em butidos.

Ela teria que contar para o avô. Faltaria a escola naquele dia de m anhã e,depois de passar no estábulo, diria a ele que precisava que voltasse para casa,que

ele tinha que voltar para casa. Ela cuidaria dele, não im portara o que diziam .Era a única m aneira. Se soubesse que o avô estava de volta, Sal a deixariaem paz.

Natasha bateu na porta do quarto.

— Sarah?

Ela se levantou desaj eitadam ente, forçou um a expressão que não revelavanada.

— Oi — disse ela.

O rosto de Natasha estava m anchado, a pele, pálida por causa da privação desono.

— Só queria dizer que estou um pouco enrolada no m om ento e acho quevou chegar um pouco tarde hoj e à noite, m as quem sabe a gente conversa

depois.

Sarah assentiu. Conversar. Só algumas palavras enquanto eu jogo você devolta na lata de lixo.

Natasha a exam inou com atenção.

— Está tudo bem ?

— Tudo ótim o — respondeu Sarah.

— Muito bem . Com o eu disse, hoj e à noite, nós três. E ligue para m im sevocê tiver algum problem a. Tem o núm ero do m eu celular.

Quando Natasha saiu, Sarah ouviu algo se chocar na porta de entrada. Dez minutos depois, quando se esgueirou escada abaixo, encontrou o sapato deMac.

* * *

O quatro por quatro de Sal estava estacionado na frente do estábulo, um aafronta reluzente e direta, um a visão que fez o estôm ago dela em brulhar eos braços se cruzarem na defensiva. Ela respirou fundo, apertou bem o casacoem volta do pescoço e então entrou pelo portão de alam brado.

Ele estava no outro extrem o do pátio, conversando com Ralph e dois de seuscolegas; todos aqueciam as m ãos no braseiro e tom avam café em copos deisopor. Ralph a viu e tratou de se ocupar, acariciando um dos cavalos de Sal.

Sarah esperou que isso não significasse que ele não dera com ida para Booem seu lugar no dia anterior. Ela não havia aparecido por lá; achou que seriam elhor deixar Sal se acalm ar por vinte e quatro horas.

Esse não fora seu único raciocínio, m as talvez ela não precisasse ter sepreocupado; Sal nem olhou para ela, apesar de provavelm ente ter ouvidoquando abriu o portão. Sarah rezou para que não tivesse reparado que era elaou que tivesse chegado à conclusão de que era m elhor para eles fingir queaquela noite não acontecera. Quem sabe ele até estivesse envergonhado,apesar de lá no fundo ela desconfiar que Sal nunca tinha se envergonhado de

nada.

Foi até o arm ário e trocou os sapatos com uns pelas botas de m ontaria, bemciente das conversas cochichadas do outro lado do pátio. Por favor, nãovenha

aqui. Ela lutou com os botões do casaco para se trocar e conseguir sair daliantes que ele tivesse chance de entrar. Preparou a ração da m anhã de Boo emum balde, encheu um a rede de feno, pendurou no om bro e foi logo para abaia, de cabeça baixa, determ inada a não fazer contato visual com ninguém .

Levou um tem po para ela perceber que a porta da baia estava aberta. Largoua rede de feno.

Boo não estava ali. Ainda havia esterco na forração de palha. Sarah deu um aolhada no pátio. Por que ele tinha sido transferido para outra baia?

Ela saiu procurando pelas outras. Várias cabeças surgiram às portas, malhadas, pintadas, castanhas. Nada do Boo. Sarah sentiu um nó na garganta, eo pânico se instalou em seu peito. Foi quase correndo até onde os hom ensestavam , com a ansiedade se sobrepondo a qualquer sentim ento que tivessesó de pensar em falar com Sal.

— Onde está Boo? — Ela tentou m anter a voz calm a.

— Boo quem ? — Sal nem sequer se virou.

— Boo-ken — balbuciou um dos hom ens dele, dando um a risadadesagradável.

— Onde ele está? Você o m udou de lugar?

— Tem um gato preso em algum lugar? Estou ouvindo um barulho incômodo.

— Sal colocou a m ão em concha atrás da orelha. — Parece um m iado.

Sarah deu a volta no grupo, obrigando-o a olhar para ela. Sua respiraçãoestava acelerada, o pânico se espalhava com o o suor frio que cobria sua pele.

— Onde ele está? Onde você o colocou? Sal, isso não tem graça nenhum a.

— Por acaso estou rindo?

Sarah agarrou a m anga do casaco dele, m as Sal se desvencilhou.

— Onde está o m eu cavalo?

— O seu cavalo?

— É, o m eu cavalo.

— Eu vendi o meu cavalo se é disso que você está falando. — Ela sacudiu acabeça de leve, com a testa franzida. — Eu vendi o m eu cavalo. Você nãotem cavalo nenhum .

— Do que você está falando?

Ele enfiou a m ão no bolso, pegou um caderninho de couro, abriu-o eestendeu as páginas para m ostrar a ela.

— Aluguel de oito sem anas que você m e devia. Oito sem anas. Mais feno eração. Os term os do seu contrato estipulam que, se você tiver oito sem anasde aluguel em atraso, o seu cavalo passa a ser m eu. Eu o vendi para pagar asua dívida.

Os sons da rua foram substituídos por um tinido em seus ouvidos. O chãopareceu oscilar perigosam ente em baixo dela, um convés em alto-m ar. Elaficou esperando o desfecho, que ele negasse o que a expressão lhe dizia quenão

negaria.

— Eu vendi o seu cavalo, Sarah, caso ainda não tenha entendido.

— Você… Você não pode vender Boo! Não tinha esse direito! Que contratoé esse? Do que você está falando?

Sal inclinou a cabeça.

— Todo m undo tem um a cópia dos term os e das condições. A sua está noarm ário. Talvez não tenha reparado. Estou agindo no m eu direito com odono do estábulo.

Os olhos dele eram de um tom preto frio de água parada fétida. Olhavamatravés dela com o se Sarah não fosse nada. Ela olhou para Ralph, quechutava um a pedrinha solta. Era verdade. Dava para ver no rosto dele.

Sarah se virou de novo para Sal, com a m ente em disparada.

— Olhe. Sinto m uito pelo dinheiro. Sinto m uito por tudo. Eu vou dar um jeito.

Pago o valor am anhã. Só traga o m eu cavalo de volta. Eu faço… Eu façoqualquer coisa.

Ela j á não se im portava se eles escutassem . Faria o que Sal quisesse.Roubaria dos Macauley. Qualquer coisa.

— Você não entendeu? — Sal assum ira um tom rude, desagradável. — Euvendi o cavalo, Sarah. Mesm o que estivesse disposto a recuperá-lo, não teriacom o.

— Para quem ? Para quem você o vendeu? Onde ele está?

Ela o agarrava com as m ãos, com força. Sal se desvencilhou.

— O problem a não é m eu. Sugiro que, da próxim a vez, você honre seuscom prom issos financeiros. — Ele enfiou a m ão no casaco. — Ah, sim .Não consegui um preço m uito bom por ele. Péssim o com portam ento. Igualà dona. —

Virou-se para seus hom ens, esperando a risada inevitável. — Aqui está o quesobrou depois que a sua dívida foi paga. — Enquanto Sarah estava ali parada,sem acreditar, ele separou cinco notas de vinte libras e lhe entregou. —Então, agora estam os quites, Menina do Circo. Vá procurar outro cavalinhopara os seus truques.

Ela percebeu, pelo leve sorriso dos hom ens, que eles sabiam o m esm o que

ela: Sal nunca lhe contaria para quem tinha vendido Boo. Sarah o desagradarae ele se vingara dela.

Sentiu as pernas fracas. Voltou aos tropeços para o arm ário e se sentou nofardo de feno. Ficou olhando para as m ãos, que trem iam , e um longo gemido lhe escapou. No canto do arm ário, atrás da porta, um a folha brancadatilografada, com os supostos term os e condições, brilhava am eaçadora àluz fraca. Ele devia ter posto ali no dia anterior.

Ela apoiou a cabeça nos j oelhos e os abraçou, im aginando seu cavalo, amedrontado em um cam inhão, j ogado em algum canto, com os olhosarregalados, a cabeça erguida de m edo. Já estaria a um m ilhão de quilômetros

de distância. Ela batia os dentes. Ergueu a cabeça e, pela fresta da porta, viuos hom ens conversando, parando para rir de algum a coisa.

— Boo-ken — choram ingou um deles, caçoando.

Alguém j ogou um cigarro no chão e am assou com o calcanhar da bota.Ralph olhou em direção aos arm ários, talvez a tivesse visto ali encolhida, emm eio às som bras. Então ele tam bém se virou para o outro lado.

* * *

— Bom trabalho — elogiou Harrington quando saíram do tribunal. — Vocêfez um ótim o trabalho acabando com aquela testem unha. Ótim adesenvoltura.

Com e-çam os bem .

Natasha entregou sua papelada para Ben e tirou a peruca. Ainda sentia o calorda adrenalina, e a peruca pinicava. Tirou os dois gram pos do cabelo e enfiouno bolso.

— Am anhã não será tão fácil — observou. Ben rem exeu nas pastas dela elhe entregou um a. — Estes são os relatórios do outro perito contábil queestávam os esperando. Acho que não tem m uita novidade aí, m as nunca se

sabe.

— Vou analisar hoj e à noite.

Conor apareceu no corredor. Piscou para ela, e Natasha esperou até Ben seenvolver em um a conversa com Harrington antes de falar com ele.

— Com o foi? — perguntou, beij ando-a na bochecha.

— Ah, nada m al. Harrington sim plesm ente acabou com as alegaçõesfinanceiras deles.

— É para isso que ele é pago. Quer voltar para o escritório prim eiro?

Natasha olhou para Ben.

— Não, todos os docum entos de que preciso estão lá em baixo. Vam os.

Ele a pegou pelo braço, um gesto possessivo fora do com um .

— Hoj e à noite ainda está de pé?

Natasha teve um a rápida visão de Mac na escada. Até parece que você nãotem namorado, dissera. Como Maria pode ter humilhado você?

— Não posso ficar. — Estrem eceu dentro do casaco. — Eu disse a Sarah quevam os conversar sobre o futuro dela. Mas um longo banho na sua banheira eum a taça de vinho vão cair m uito bem antes de eu ter que fazer isso.

Ele parou.

— Bem , você poderá tom ar o vinho, m as talvez precise adiar o banho.

Natasha ficou perplexa.

— Convidei os m eninos para virem em casa. Achei que você devia conhecê-

los.

— Hoj e à noite?

Ela não conseguiu disfarçar o espanto.

— Já esperam os dem ais. Eu falei com a m ãe deles. Achei que você fossegostar.

— Mas… — Ela suspirou. — Estou bem no m eio de um processo importante, Conor. Preferia conhecê-los quando estivesse m enos… distraída.

Ele pareceu não se im portar.

— Você não tem que fazer nada, Poderosa, apenas sorria e sej a a pessoaadorável que sem pre é. Basta você estar lá. Que se dane, tom e seu banho debanheira. Podem os ficar brincando na sala. Vam os deixar você ser a mobília. —

Ela abriu um sorriso discreto. — Nós dam os um a canj a para você antes deser forçada a ficar de quatro para brincar de cavalinho.

A palavra a atingiu, m as Conor estava sorrindo para si m esm o, aparentemente preso em um a visão dos quatro j untos na sala de estar. Natasha pensouem Sarah, na conversa que precisava ter com ela e no que aquilo significariapara a m enina. Mas Conor a conduzia em direção à porta.

— E eu vou cozinhar, sua sortuda. O que acha de peixe em panado com pãobranco e ketchup?

* * *

Ela não conseguia discernir as palavras na frente do ônibus. Estava sentadano ponto fazia quase um a hora, olhando para os ônibus verm elhos quepassavam se arrastando, com um chiado dos freios que expelia um a leva depassageiros na calçada e engolia a seguinte, com as luzes dos freios brilhantesna noite urbana.

Não enxergava nada. Os olhos estavam em baçados por causa das lágrim as eos dedos dos pés, entorpecidos por causa do frio. Ela se sentia paralisada,incapaz de decidir que ônibus pegar, m esm o que conseguisse descobrir para

onde ia.

Tudo estava perdido. Vô não ia voltar. Boo desaparecera. Ela não tinha lar,não tinha fam ília. Ficou ali sentada no banco de plástico frio, apertando ocasaco em volta do corpo e ignorando os olhares desinteressados das pessoasque chegavam , esperavam e então partiam para seguirem com a própria vida.

Ele disse seu nom e duas vezes antes que ela escutasse. Estava tão presa emsua dor, tão entorpecida…

— Sarah?

Ralph estava de pé diante dela, com um cigarro preso no canto da boca.

— Você está bem ?

Sarah não conseguia falar. Ficou se questionando por que ele fizera aquelapergunta.

Ele se encolheu em um canto para ficar escondido pelo abrigo e pelos corposdas pessoas que form avam fila.

— Eu sinto m uito, ok? Não tive nada a ver com isso. — Sarah ainda nãoconseguia falar. Não sabia m uito bem se um dia voltaria a abrir a boca. —Ele

fez isso ontem . Disse que você devia um m onte de dinheiro para ele, Sarah.Eu tentei, m as você sabe com o ele é… Não sei o que você fez, m as eleficara com raiva de verdade.

Sarah ouvira dizer que m andavam cavalos para o exterior, am ontoados emcam inhões, sem com ida nem água. Alguns ficavam tão fracos que sócontinuavam em pé por causa da pressão dos outros ao seu redor. Um alágrim a solitária escorreu pela bochecha dela.

— Mas, bem . — Ele deu um a cusparada ruidosa no chão e levou a m aiorbronca de um a nigeriana. — Se eu te contar um a coisa, você não vai m ededurar para ele, certo? — Sarah levantou a cabeça devagar. — Porque, sevocê descobrir algo, ele vai saber que fui eu, certo? Por isso, não vou falar

com você no estábulo nem na rua nem nada. Vou fingir que não conheçovocê, ok?

Sarah assentiu. Algo estava se ilum inando dentro dela.

Ralph olhou para a m enina, depois para trás e por fim deu um a longatragada no cigarro. Quando exalou, foi difícil saber se era fum aça ou anuvem quente de sua respiração.

— Ele está em Stepney. Atrás do lugar dos carros. Os Pikey ficaram com ele.

Sal vai disputar um a corrida entre a égua cinza e ele depois de am anhã, ele ea trotadora baia.

— Mas Boo não sabe puxar carroça. Nunca fez isso.

Ralph pareceu sem j eito.

— Agora j á fez. Sal atrelou Boo à carroça dele e foi até lá antes do café da manhã. — O m enino deu de om bros. — Ele até que se saiu bem . Não tãorápido quanto a égua, m as não deu nenhum coice nem nada.

Por causa de tanto treinam ento com a rédea com prida, pensou Sarahdistraidam ente. Ele teria obedecido a tudo que Sal lhe pedisse.

— Onde será a corrida?

— No lugar de sem pre. No viaduto. Por volta das seis e m eia.

— O que eu posso fazer? Com o posso pegar Boo de volta?

— Não tenho nada a ver com isso. Eu j á falei dem ais.

Ele am eaçou ir em bora, m as Sarah o agarrou pelo pulso.

— Ralph. Por favor. Me aj ude. — A m ente dela estava a m il. — Por favor.

Ele fez que não com a cabeça.

— Não posso fazer isso sozinha.

Mas Sarah raciocinava. Ficou ali parada com a outra m ão no bolso, enquantoRalph tragava o cigarro, fingindo que ela não o tocava.

— Tenho que ir, Sarah — disse enfim . — Tenho que ir a um lugar.

— Olhe. Encontre com igo em algum lugar. Não perto da corrida… Em umlocal onde Sal não possa ver você. Encontre com igo atrás da fábrica de móveis.

Com a sela e o bridão de Boo. — Enfiou a m ão no bolso, pegou as chaves doestábulo e as colocou na m ão dele. — Tom e. Você pode pegá-los m uitoantes de

Sal chegar.

— Para que precisa deles?

— Para m ontar em Boo.

— Com o assim ? Você vai chegar lá e pegar o cavalo, é? Sair cavalgandonele?

“Por favor, senhor, pode devolver m eu cavalinho?”

— Só se encontre com igo, Ralph.

— Não. Que vantagem eu levo nisso? Se descobrir que eu tenho algum acoisa a ver com você, Sal vai m e espancar.

Sarah não soltou o pulso dele, m as baixou bem a voz para que as outraspessoas no ponto não escutassem .

— Um cartão de crédito gold.

Ralph riu.

— Até parece.

— Com a senha. Eu j uro, Ralph, arranj o para você. É de um a pessoa com muito dinheiro. Você vai poder sacar um a grana preta antes de bloquearem .

Talvez até m ilhares de libras.

O garoto exam inou o rosto dela, então desvencilhou a m ão.

— É m elhor você não m e enrolar.

— Tem que prom eter que estará lá — disse ela. — Se não trouxer o equipamento, não tem acordo.

Ele olhou para trás m ais um a vez, então cuspiu na palm a da m ão e aestendeu para Sarah.

— Sexta de m anhã, perto da fábrica de m óveis. Se você não chegar até assete, estou fora.

* * *

Liam cutucou o m acarrão com o garfo e franziu o nariz.

— Parece m eleca — declarou.

— Não parece m eleca coisa nenhum a — retrucou Conor no m esm o tom .—

E, Joseph, não chute a perna da m esa assim , querido. Vai derrubar a bebidade todo m undo.

— E tem gosto de m eleca — insistiu Liam .

Ele olhou feio para Natasha.

— É só m olho pesto. A sua m ãe disse que você com e isso toda hora.

— Eu não gosto deste m olho pesto — disse Joseph, em purrando o pratopara longe com vigor. Se não fosse a reação rápida de Natasha, o suco deleteria caído na com ida dela.

Os m eninos não quiseram com er os peixes em panados do pai. Quiseram irà pizzaria. Fazia quase quarenta e cinco m inutos que estavam ali, e ela eConor m al tinham trocado um a palavra, a não ser para pedir as bebidas.

— Joseph, será que você pode se sentar direito, por favor? Sei que você nãose senta assim em casa.

— Mas aqui não é em casa.

— Isto aqui é um restaurante — argum entou Conor. — Então, é ainda m aisim portante que você se sente direito.

— Mas eu não gostei destas cadeiras. Meu bum bum fica escorregando.

Natasha observou Conor colocar o filho m ais novo ereto na cadeira ao seulado pela décim a quarta vez e ficou se perguntando com o ele conseguia ficarcom aquela expressão de paciência resignada. Jantar com os filhos dele foraigual a pescar com rede ao m esm o tem po que se negocia com osrepresentantes de duas facções dos Bálcãs em guerra. Cada vez que um acoisa era resolvida, outra guerra com eçava, fosse por causa do pão de alho,dos guardanapos ou de um a cadeira que parecia ser escorregadia dem aispara o traseiro de um a pessoa pequena. Tudo isso tinha sido dirigido ao paideles. Os dois não haviam reparado na presença dela nem tentado incluí-la naconversa.

Será que a m ãe lhes dissera com o se com portar? Será que tinha instruído osdois a colher inform ações sobre a nam orada do pai? Será que Natasha j á eraconsiderada alguém odiado m uito antes de conhecê-los?

Sentiu o olhar de Liam sobre si e forçou um sorriso, tentando não pensar notem po que poderia ter passado preparando os docum entos para o diaseguinte.

— Então — disse ela, lim pando a boca com o guardanapo. — Vocês gostamde Locomotiva Thomas? O m eu sobrinho adora.

— Não gostam os — respondeu Liam com escárnio. — Isso é para bebês.

— Mas podem os brincar com uns trenzinhos legais, de adulto, com ospersonagens de Thomas. Eu j á vi. — Os dois m eninos olharam para elainexpressivos. — Então, do que vocês gostam ? — perguntou Natasha, comdeterm inação. — Quais são os seus hobbies?

— Vocês gostam de andar de bicicleta, não gostam , m eninos? — interrompeu Conor. — E de j ogar video gam e.

— Joseph quebrou o m eu Play Station — disse Liam . — E a m am ãe disseque não tem os dinheiro para consertar.

— Eu não quebrei nada — protestou Joseph, acrescentando baixinho e cheiode raiva: — Cabeça de cocô.

— Mam ãe disse que não tem os dinheiro. Não tem os dinheiro para fazernada divertido.

— Bem , isso não é verdade — retrucou Conor. — A sua m ãe recebe um montão de dinheiro de m im . E, se vocês estão precisando de algum a coisa,deviam m e dizer. Sabem que sem pre faço o que posso.

— Mam ãe fala que você só dá para a gente o m ínim o possível.

— Eu quero um Nintendo — pediu Liam . — Todo m undo na escola tem .

— Tenho certeza de que isso não é verdade.

O tom de voz de Conor estava ficando irritado.

— Tem , sim .

— Os m eus sobrinhos não têm perm issão para j ogar video gam e —arriscou Natasha. — Mesm o assim , eles se divertem m uito.

— Bem , são idiotas.

Natasha respirou fundo e pegou um pouco de m assa com o garfo.

— Vam os lá, m eninos. Vam os contar para Natasha algum as das coisas

divertidas que fazem os. Às vezes, andam os de bicicleta no Richm ond Park,não é? Gostam os de andar de bicicleta.

— Não — soltou Joseph. — Você gritou com igo porque eu estava m uitodevagar.

— Eu não gritei, Joe. Só queria que você ficasse em um lugar onde eupudesse vê-lo.

— Mas as suas rodas são bem grandes e as m inhas são pequenas.

— E nós gostam os de patinar no gelo — continuou Conor.

— Você disse que era um assalto — argum entou Liam .

— Acho m esm o que foi um pouco caro, é verdade. — Conor lançou umolhar na direção dela. — Mas, m esm o assim , nós nos divertim os, não?

— Você e m am ãe estão sem pre reclam ando de dinheiro — disse Joseph,desanim ado.

Natasha perdeu o pouco de apetite que lhe restara. Dobrou o guardanapo e ocolocou ao lado do prato.

— Meninos — disse ela, pegando o casaco. — Adorei conhecer vocês, m aspreciso ir.

— Já? — soltou Conor, tocando o braço dela.

— São quase oito horas, e você sabe que tenho coisas para resolver.

— Achei que talvez você pudesse nos priorizar hoj e à noite. Tendo em vistaa ocasião e tal.

— Conor…

— Vou levar os dois para casa daqui a m eia hora. Não vai dem orar m uito,pelo am or de Deus.

— Olhe. — Natasha baixou a voz. — Coloque-se no lugar de Sarah. Ela é uma criança e terá que m udar de casa pela quarta vez em poucos m eses.Poderei passar o tem po que você quiser com os seus m eninos depois disso.— Natasha estendeu a m ão discretam ente para pegar a dele, ciente de queestava sob o olhar dos m eninos. — Talvez sej a m elhor este nosso prim eiroencontro ser breve. Vou conhecer seus filhos, Conor, m as prim eiro precisoresolver essa confusão. Eu a acolhi. Não posso sim plesm ente cair fora.

— Certo — retrucou ele curto e grosso. Voltou a atenção para a com idaenquanto Natasha tirava a bolsa do encosto da cadeira. Então com pletou,com o quem não queria nada: — Mac estará presente?

— Não faço ideia.

— Não. É claro que não faz.

* * *

Por m uito tem po antes de se tornar fotógrafo, Mac tinha usado um aestratégia na vida que, se não fora um presságio para sua carreira, talvezsugerisse algum a aptidão. Quando as situações se tornavam desagradáveis ouem ocionais dem ais, quando não queria lidar com o que estava acontecendodiante de si, Mac desligava o som em sua m ente e via a cena de longe, com ose fosse tirar um a foto. Em oções cruas eram filtradas por essa lente,reduzidas a um a linda com posição, um a com binação extraordinária de luze linhas. Aos vinte e três anos, ele olhara para o corpo do pai no caixão assim; o rosto fam iliar im óvel e frio dem ais, com o se tivesse sido deixado paratrás havia m uito tem po. Ele o enquadrara, observando com o olhar distantecom o a m orte relaxara os m úsculos do rosto e apagara tensões contidashavia tanto tem po, j unto de um a vida inteira de expressões. Ele se lem broude observar Natasha deitada na cam a depois do segundo aborto espontâneo,curvada em baixo da colcha, na posição fetal que inconscientem ente lembrava aquilo que ela perdera. Ela j á tinha se afastado, tinha se fechado. Elesentira o vazio dela ecoar em si m esm o, até ficar quase insuportável; entãose concentrara na m aneira com o a luz brincava nas dobras da colcha, as mechas delicadas do cabelo de Natasha, o ar enevoado de m anhazinha.

E era o que ele estava fazendo naquele m om ento ao observar as duas m

ulheres sentadas à sua frente, a m ais velha acom odada bem ereta no sofá,com terninho de trabalho, explicando para a m ais nova por que sairia de casano dia seguinte e não voltaria m ais e por que a m enina teria que se m udarpara outra casa m ais apropriada.

Sarah não gritou, não im plorou nem discutiu, com o ele tem ia. Só observouNatasha falar e assentiu, sem fazer perguntas. Talvez j á estivesse esperandopor isso desde o m om ento em que chegara. Talvez Mac estivesse seenganando com esperanças de que poderiam fazer aquilo dar certo.

Mas foi Natasha quem cham ou a atenção dele. Encostada nas alm ofadasclaras do sofá, com as costas eretas e firm es, parecia que um a tem pestadehavia passado por ela, deixando para trás um céu que, se não era azul, eracalm o; um céu que cobria um cam inho com prido dem ais até onde estavanaquele m om ento.

Ela havia se desapegado, observou Mac. O que quer que eu tenha feito naoutra noite, eu a libertei. Tal pensam ento lhe causou um a dor inesperada eMac percebeu que ele, ali recuado, era o m ais em otivo dos três: só eletentava segurar as lágrim as.

— Nós vam os dar um j eito, Sarah. — Ele se pegou dizendo quando a sala

ficou em silêncio. — Eu pago o aluguel do seu cavalo, se precisar. Nós nãovam os abandoná-la.

Finalm ente Natasha se levantou.

— Certo — disse ela, olhando-o bem nos olhos pela prim eira vez. — Estamos entendidos. Todo m undo sabe o que está acontecendo. Tudo bem paravocês se eu for fazer as m alas?

Um a m ulher de trinta e cinco anos m ais baixa do que a m édia, com poucam aquiagem e cabelo que não tinha sido penteado desde de m anhã. Não eranenhum a m odelo nem estilista, não era um a visão de beleza clássica. Mac aobservou sair da sala. Diplom ática, Sarah fixou o olhar na bolsa de Natasha.

— Você está bem ? — perguntou Mac. Do andar de cim a, escutavam os

saltos de Natasha, que iam e vinham do guarda-roupa.

— Estou — respondeu Sarah, calm a. — Na verdade, estou com um pouco defom e.

Ele deu um tapa na própria cabeça e forçou um sorriso.

— Jantar. Eu sabia que estava esquecendo algo. Vou preparar. Você vempara a cozinha?

— Vou em um m inuto.

Parecia que ela havia adivinhado que Mac precisava de um m om entosozinho.

Ou, pelo m enos, foi o que ele pensou na hora. Depois descobriu que o motivo fora outro.

17

“Em momentos de perigo, o mestre dá a própria vida para salvar a de seucavalo.”

XENOFONTE, SOBRE EQUITAÇÃO

Sarah estava atrás da van estacionada, a cem m etros do cruzam ento dos doisviadutos, alheia às nuvenzinhas de respiração que evaporavam no ar úm ido àsua frente. Fazia m eia hora que estava ali, tem po suficiente para perder todaa sensibilidade nos dedos dos pés naquela m anhã fria e seu casaco ficar molhado sob a garoa insistente. Estava ali parada, sob a ilum inação pública,naquele pedaço desolado da rua onde o m ato se transform ava em cidade,sob a teia de pilastras que traçavam a m archa inevitável rum o à urbanização.

Sarah quase perdera a esperança quando viu as prim eiras cam inhoneteschegarem . Movim entou-se, tentando aliviar a carga da m ochila nos ombros, sem desgrudar os olhos deles enquanto descarregavam os passageirosna via de acesso. Mesm o dali dava para ver os hom ens de Maltese Salbatendo as m ãos para espantar o frio, dando risada e trocando cigarros, osespectadores que vinham na caçam ba. Era um a corrida im portante, a m aior

que Sarah j á tinha visto. A rua secundária em baixo do viaduto estavaenchendo com rapidez, com um a fileira de veículos liberando um a pequenam ultidão, o clim a era anim ado, cheio de expectativa, apesar de ser tão cedoe do am biente ser tão desolado. A linha de chegada da corrida era ali, noinício da rua em que Sarah estava.

Olhando para todos aqueles hom ens e carros, ela percebeu que estava tremendo.

Enfiou a m ão no bolso e apertou o cartão de plástico.

Eram seis e trinta e cinco.

Ela encolheu os dedos dos pés dentro das botas para testá-los, perguntando-sese conseguiria sair correndo com os pés insensíveis. Os hom ens estavamreunidos em grupinhos, alguns abrindo guarda-chuvas coloridos, conversandocom o se só estivessem se encontrando para botar o papo em dia bem cedopela m anhã. Ela havia perguntado a Ralph três vezes se ele tinha certeza, eele j urara que sim todas as vezes. Mas será que podia confiar nele? Será quea am izade dele superaria a adoração que tinha por Maltese Sal? Será que eraum a arm ação?

Sarah ficava pensando em com o ele lhe dera as costas no estábulo. Ralphvivia de acordo com as próprias regras: sozinho, interesseiro. Não eraconfiável. Mas ela precisava confiar nele: não havia opção.

O estôm ago dela roncava. Eram quase vinte para as sete. Já deviam terchegado havia m uito tem po. Devia ter ocorrido um a m udança de planos.Era outra corrida. Boo não viria, pensou ela, com o coração apertado. Nãoconseguia

sequer pensar no que faria se ele não aparecesse — não tinha um plano B.Tudo estava arruinado desde o m om ento em que saíra da casa dosMacauley. Ela pensou um pouquinho em Mac e em Natasha, que provavelmente j á estariam acordados. Quanto tem po levariam para perceber o que elatinha feito?

Um carro passou bem devagar, o m otorista a observou com curiosidade

através dos lim padores de para-brisa, e ela fingiu procurar algo no bolso,tentando parecer um a pessoa norm al, a cam inho de um dia norm al.

Faltavam dezenove m inutos para as sete.

Ela ouviu um a voz conhecida que chegou carregada pelo vento.

— Aquele m ato ali tem m ais verdinhas do que vocês, garotos. Banquemsuas apostas.

Cowboy John atravessava o centro da fila de vans, com o chapéu gastobrilhando por causa da chuva, estendendo a m ão para cum prim entar osoutros.

Dali, só dava para ver o brilho do cigarro aceso dele.

— Veio para cá direto do aeroporto? O j et lag afetou sua cabeça, Cowboy.

— Não se preocupem com a m inha cabeça. Vocês têm que se preocupar écom as patas daquele cavalo. Já vi cachorros de três patas correrem m aisrápido do que o seu cavalo. — Os outros riram . — Já com eçaram ? Sal m em andou um a m ensagem . Disse que ia com eçar às seis e m eia. Eu deviaestar na cam a, m as o m eu corpo está todo zoado por causa da troca de fusohorário.

— Com eçou lá no Old Axe. Devem aparecer por aqui a qualquer m om ento.

Jogou a cabeça para trás ao ouvir um a buzina e soltou um grito.

Com o que aproveitando a deixa, o trânsito se silenciou, não passaram m aiscarros, o barulho cessou. Um vácuo tom ou conta do local; os hom ensficaram im óveis na expectativa da confirm ação do que estavam vendo,então avançaram correndo, subindo a via de ligação escorregadia por causada chuva para ver m elhor. E prim eiro um pontinho, depois um contornobem definido: ali estava ele, trotando sem parar no viaduto acim a, entre osarreios de um a carrocinha azul-clara, a cabeça erguida de ansiedadeenquanto um hom em de cabelo grisalho e pescoço grosso puxava as rédeascom força do assento da carrocinha atrás dele.

A égua cinza de Maltese Sal, a um a curta distância, passou trotando eleganteenquanto Sal se inclinou para gritar um insulto.

Sarah não conseguia tirar os olhos de seu cavalo com o corpo enorm e e musculoso preso entre os arreios, suas patas eram um borrão no calçam entoduro ao passarem por ela. Boo usava antolhos, que o faziam parecer cego,vulnerável, com o se fosse um refém . Tinham saído da via de m ão duplapelo desvio de saída, obscurecido por um instante pelo cruzam ento, entãoviraram em um a curva fluida na direção da pequena m ultidão quando otrânsito no viaduto acim a deles voltou a fluir. Os hom ens em soloavançaram para a via de acesso para encontrá-los, e Sarah foi para trás da vanbranca, segurando a respiração.

Observou os dois cavalos voltando pela rua secundária, parando atrás das

enorm es pilastras de concreto. Então se ouviram aplausos, exclam ações, osom de portas batendo, um a voz que se ergueu para reclam ar. Boocontinuou avançando, sem saber se devia parar, e a cabeça dele foi puxadapara trás com brusquidão, quase o derrubando.

Sarah ouviu a voz de Cowboy John.

— Mas que diabo ele está fazendo aqui?

E se ela não conseguisse? E se tudo desse errado? Sentiu o ar subir até agarganta e parar ali, então sair dos pulm ões contidos em um longo estremecim ento. Pense. Avalie. Sarah passara as horas insones lendo os conselhosde Xenofonte aos hom ens da cavalaria, e um a frase lhe veio à m ente:

“Ter avaliado a posição do inim igo com antecedência e da m aior distânciapossível só pode ser útil.”

Ela m udou de posição atrás da van branca sem tirar os olhos de seu cavalo.Eu estou aqui, Boo, disse Sarah ao se preparar para entrar em ação.

* * *

Mac ouviu Natasha abrir o chuveiro, deu um a olhada no relógio e fez um a

careta ao constatar a confirm ação do horário surreal. Ficou ali deitado porum m om ento, levem ente consciente de que havia algo que precisava fazer.Então a im portância daquela m anhã abriu espaço em sua consciência. Elaestava indo em bora. Era o fim . A coisa toda estava acabando.

Ele se sentou ereto. Do outro lado do corredor, a água do chuveiro caía, ochiado do exaustor era um a harm onia distante e hesitante. Ela ia quererdeixar a casa com a m enor com oção possível.

— Eu venho para esvaziar a casa a tem po da m udança — dissera a ele nanoite anterior depois que Sarah tinha ido dorm ir. — Rem oções. Inventário.O que for. E posso conversar com a assistente social se você preferir. Mas, apartir de agora, não vou m ais ficar aqui. — Natasha m al havia olhado paraele enquanto falava, ocupada com os livros na estante.

— Você não precisa fazer isso, Tash — dissera Mac, baixinho.

Mas ela havia desprezado tais palavras.

— Estou com um processo im portante, Mac. O m ais im portante da m inhacarreira até agora. Preciso m e concentrar.

Não houvera rancor nem raiva. Era a Natasha que ele detestava: a versãofechada e inacessível de sua m ulher, cuj a postura despreocupada e falsamente agradável apontava para todas as coisas que ele aparentem ente fizera deerrado em seu casam ento.

Ele ouviu a cam painha, estridente e invasiva. Carteiro? A essa hora? Natashanão ouviria o som por causa da água do chuveiro. Ele suspirou, vestiu um acam iseta e desceu a escada.

Conor estava à porta. Mac reparou no terno elegante, no queixo bembarbeado e adm itiu, não pela prim eira vez, que não gostava daquele hom em.

— Mac — cum prim entou Conor em tom neutro.

— Conor.

Ele não ia facilitar as coisas. Ficou ali parado, esperando.

— Eu vim coletar Natasha.

Coletar. Com o se Natasha fosse algo que ele tivesse pegado em prestado.Mac hesitou, então recuou para perm itir que ele entrasse no hall, sentindoum ressentim ento am argo a cada passo que Conor dava além do batente daporta. O

hom em foi entrando com o se tivesse algum direito sobre a casa, virou àesquerda para entrar na sala, se sentou no sofá com a confiança relaxada quederiva da fam iliaridade e então abriu o j ornal.

Mac m ordeu o lábio e disse:

— Perdoe-m e por não ficar e bater um papo. Vou avisar à m inha esposa quevocê está aqui.

Subiu a escada sentindo um a raiva flam ej ante por causa do que estavaacontecendo. O hom em sentado no sofá que Mac tinha escolhido e pagadoestava esperando para levar sua m ulher em bora. Mas, ainda enquanto tomava consciência desse urro de protesto de hom em das cavernas, outra partedele respondeu com um a im agem de Maria, quase pelada, segurando duastaças de vinho. O prazer dissim ulado dela com a dor de Natasha.

O chuveiro foi fechado. Mac bateu na porta do quarto e esperou. Com o nãohouve resposta, bateu de novo, então abriu a porta com cuidado.

— Tash?

Mac viu o reflexo dela antes de vê-la. Natasha estava em pé na frente doespelho, com um a toalha enrolada no corpo e água ainda escorrendo docabelo m olhado sobre os om bros nus. Ela se encolheu quando Mac entrou e,em um gesto inconsciente, levou a m ão ao pescoço. Esse gesto de defesaintensificou a censura.

— Eu bati antes de entrar.

Havia m alas feitas pela m etade por todo o quarto. Ela quer sair fazendo a

menor confusão possível, pensou ele.

— Desculpe. Estou distraída. É esse caso…

— Conor está aqui.

Os olhos dela se arregalaram .

— Eu não esperava que ele viesse.

— Bem , ele está lá em baixo, esperando para buscar você. — A frase saiucom um leve sarcasm o.

— Ah. — Natasha pegou o penhoar da cam a e vestiu. Curvou-se e com eçoua secar o cabelo. — Diga a ele… — com eçou a falar. — Ou m elhor, não sepreocupe.

Mac passou a m ão pela beirada de um a m ala aberta. Não reconheceu muitas das roupas que estavam dobradas ali dentro.

— Então, vai ser assim . Você sim plesm ente vai em bora.

— É. Com o você fez — retrucou. Aprum ou o corpo para pentear o cabelo.—

Sarah está acordada?

— Não fui olhar.

— Com tudo o que aconteceu ontem à noite, acabei não com entando… Elatrouxe um form ulário que precisa ser assinado. Para um passeio da escola.

— Eu assino.

Natasha colocou a m ala na cam a e levantou um a cam isa, depois outra, nafrente do blazer azul-escuro. Quando eram casados, ela sem pre lheperguntava o que achava da com binação e, com m uita frequência, escolhiaoutra roupa. Nos prim eiros anos, isso fora um a piada entre eles.

Ele cruzou os braços.

— Então… para onde devo encam inhar a sua correspondência?

— Não precisa fazer isso. Vou passar aqui de vez em quando. Só m e ligue seprecisar resolver algum a coisa com igo. O que você quer fazer a respeito dosassistentes sociais? Quer que eu ligue quando sair do tribunal hoj e à tarde?

— Não. Vou conversar com Sarah prim eiro. Para ver quando seria… — Elenão conseguiu dizer “m elhor”. Nada seria m elhor para ela. — Tash…

Ela estava de costas para ele.

— O que foi?

— Odeio isso. Sei que as coisas ficaram um pouco com plicadas, m as nãovej o por que precisam term inar assim .

— Já conversam os sobre isso, Mac.

— Não, não conversam os. Estam os m orando na m esm a casa há quase doism eses e não conversam os de verdade nenhum a vez. Não conversam ossobre o que aconteceu entre nós, nem sobre que diabo…

Ele se virou em um m ovim ento abrupto. Conor estava à porta.

— Achei que talvez você precisasse de aj uda com as m alas.

Mac reparou que ele usava loção pós-barba. Quem diabo usava loção pós-barba àquela hora da m anhã?

— Posso pegar estas que estão na cam a, Natasha?

Ela ia responder, m as Mac a interrom peu:

— Se não se incom oda, prefiro que você espere lá em baixo — disse,colocando-se na frente de Conor.

Um silêncio pesado e breve se instalou.

— Eu vim pegar as m alas de Natasha.

— Você está no m eu quarto — insistiu Mac devagar. — E estou pedindopara sair.

— Não acho que isto sej a exatam ente…

Mac disparou:

— Escute aqui, cara — disse, percebendo o antagonism o m al controlado emsua voz. — Esta casa é m inha, m etade dela. Estou pedindo com educaçãopara que você saia do m eu quarto, do nosso quarto, e espere no andar debaixo enquanto eu term ino a m inha conversa particular com a m ulher que,pelo m enos em teoria, ainda é a m inha esposa. Se você não se incom odar.

Natasha tinha parado de pentear o cabelo. Olhou para os dois hom ens, entãoacenou discretam ente para Conor.

— Vou baixar os bancos do carro — disse Conor, retirando-se com as chavesbalançando ostensivam ente na m ão.

O quarto estava m uito silencioso. No banheiro, o exaustor desligou.

Mac sentiu os batim entos cardíacos desacelerarem .

— Bem , então é isso.

Tentou sorrir, m as o sorriso saiu torto. Ele se sentiu um idiota. A expressãode Natasha era indecifrável.

— É — respondeu ela, com o m axilar tenso. Voltou a se arrum ar. — Eupreciso m e apressar, Mac, se não se incom oda. Mas m e ligue hoj e à noitequando você e Sarah tiverem resolvido tudo.

Ela pegou a roupa e desapareceu no banheiro.

* * *

Tinham sido dois trotadores naquela corrida: a égua de Sal e Boo. Ralph

dissera a ela que ninguém esperava que Boo vencesse; havia m uito dinheiroapostado contra ele, apesar da boa aparência do anim al, e, é claro, eleperdera.

Do ótim o ponto de vista atrás da van, Sarah observou o j óquei descer dacharretinha, puxar a rédea e dar um chute forte na anca dele. Boo escorregoupara o lado com a cabeça arqueada para trás de dor. Sarah deixou escapar umresm ungo de protesto, e seus pés a levaram na direção dele quase sem queela se desse conta. Então ela percebeu o que estava fazendo, abaixou, fechouos olhos com força e se obrigou a se concentrar para não agir precipitadamente. A cem m etros de distância, um dos hom ens de Sal segurava a éguasuada por um a rédea, com as m ãos em concha em volta da cham a doisqueiro na tentativa de acender o cigarro.

— Juro, Sal, você deu um as vitam inas estranhas para aquele cavalo —disse, guardando o isqueiro no bolso.

— Não foi o m eu cavalo que perdeu.

— Ele se assustou com o vento. Daquele lado, nós fom os atingidos com todaa força.

— Com o eu disse lá em cim a, Terry, esta corrida acabou.

Boo estava agitado, infeliz com o peso da carroça, com m edo de m ais um

chute, e o hom em , rude, o am arrou ao espelho lateral da cam inhonete,falando grosso com ele, com a m ão erguida em sinal de am eaça. Sarahatirou balas invisíveis na parte de trás daquela cabeça gorda, chutou-o mentalm ente com o ele havia feito com Boo. Teve a im pressão de que nuncatinha sentido tanta raiva.

Forçou-se a respirar e viu Cowboy John a um a curta distância, em um aconversa acalorada com Sal. Ele olhava para Boo, com o chapéu pingandopor causa da chuva e sacudindo a cabeça. Sal deu de om bros, acendeu m aisum cigarro. John colocou a m ão no om bro dele, tentando afastá-lo da multidão, m as assim que Sal se virou foi cham ado de volta ao círculo de homens, onde estavam contando o dinheiro.

Ela se acalm ara. Observou com a atenção aguçada de um caçador, com ocálculo estratégico de Xenofonte enquanto avançava lentam ente em direçãoà aglom eração, cam uflada pelos carros estacionados e pelas pilastras largase grosseiras dos viadutos que se cruzavam . Estava a poucos passos de Boo,perto o suficiente para discernir o suor em seu pescoço, sua pelagemescurecida pela chuva, perto o bastante para avaliar quantas am arras oprendiam à carrocinha de duas rodas. Não me chame, alertou-o. Os hom ensdiscutiam ao lado da égua cinza, Sal alegava com grande alarde que ele era ovencedor, que Boo era seu, e outro hom em contestava. Argum entou que ocavalo de Sal tinha parado de trotar duas, três vezes. Devia serdesclassificado. Ouviu-se um m urm úrio de discórdia, outro deconcordância.

— Precisam os ir em bora agora — gritou alguém com sotaque irlandês. —

Vam os para casa. A polícia vai chegar logo.

Sarah havia passado para o outro lado de Boo e viu o cavalo esticando opescoço para descobrir quem era, preso pelos arreios, pelos antolhos.

— Sssshiii — disse a ele, passando a m ão pela lateral do corpo do anim al,que subia e descia com a respiração pesada. Viu suas orelhas irem para trásquando a reconheceu. Ela deu um a olhada nos hom ens e tirou os paus dacharrete dos arreios, abrindo os fechos com dedos ágeis.

As vozes dos hom ens se silenciaram por um instante e ela se agachou atrásda pilastra com o coração batendo de form a errática. Então as vozes voltarama se erguer, desta vez em um a franca discussão. Ela espiou, viu dinheirosendo dividido, disputado, j ogado nas palm as das m ãos e percebeu queaquela seria sua m elhor chance: eles não desviariam o olhar enquantocontavam as notas.

Sarah só tinha m ais alguns segundos. Os dedos dela trem iam enquantotentavam soltar as correias, a adrenalina bom beando sangue em seusouvidos, abafando o barulho do trânsito acim a deles. Eu vou tirar vocêdaqui, Boo. Três correias. Duas correias. Só m ais um a. Ela m urm uravabaixinho. Ande logo.

Enquanto lutava contra a últim a correia, com os dedos escorregando nocouro m olhado, ela ouviu a exclam ação que tanto tem ia.

— Ei! Você! — O hom em grandalhão, o que tinha o pescoço m aior do quea

cabeça, cam inhava em sua direção. Seus passos eram largos, carregados deam eaça. — Ei! O que acha que está fazendo?

Boo saltitava, contam inado pela ansiedade dela. Sarah sibilou para queficasse quieto.

— Ande logo — resm ungou para a fivela enquanto os outros hom ensolhavam para trás, percebendo que havia algo de errado ali, que a m eninanão era um a deles. Então ela viu a expressão confusa de John, o rosto de Sal,quando, chocados, a reconheceram de repente. Ande logo.

O hom em com eçou a correr. A últim a fivela não abria. Ela rem exeu napeça, com a respiração curta e audível. E então, quando o hom em estava aapenas alguns passos de distância, os paus da carrocinha se soltaram ebateram no chão.

Boo estava solto. Sarah agarrou um a m echa da crina dele, tirou a corda dobridão e saltou para cim a do lom bo de Boo com o m edo im pulsionandoseus pés.

— Vá! — berrou, batendo com as pernas na lateral do corpo dele. O cavaloenorm e saiu saltitando pela rua secundária, com o se aquele fosse o m ovimento pelo qual tanto esperava, com seus m úsculos se retesando em baixo dam enina com tanta força que ela teve que entrelaçar os dedos na crina doanim al para não ficar para trás.

O caos se instalou. Ela ouviu gritos e o som de m otores acelerando, entãobaixou sobre o pescoço do cavalo e ergueu a voz em pânico.

— Corra! — berrou, puxando a rédea direita desaj eitada, as rédeas decharrete eram longas dem ais e j á estavam se enroscando nas patas de Boo.

Ela o guiou para a via de acesso que subia para o viaduto e então, com três,quatro passos, ele estava no alto, ouvindo pneus cantando e buzinas enquantodisparava pelas pistas da via de m ão dupla.

E ela estava galopando pelo viaduto, bem acim a da cidade, correndo no meio do tráfego, m al prestando atenção nos carros que desviavam para nãoatingi-la.

Não via nada além do cam po distante, não ouvia nada além do sangue quedisparava pelas veias, não tinha consciência de nada além da perseguiçãodeles.

Sabia para onde ir: ensaiara o m om ento durante a m aior parte da noite,repassara várias vezes sua rota de fuga. E ali estava, j á se aproxim ando. Viua saída à esquerda, abarrotada de carros parados, a algum as centenas de metros adiante; sabia que, depois que chegasse ali e saísse para a esquerda, nadireção do parque industrial, eles não conseguiriam m ais alcançá-la.

Foi então que o pequeno carro azul deu um a guinada para o acostam entoquando o m otorista resolveu trocar de faixa tarde dem ais, não percebendo ocavalo que galopava logo atrás. Ela engoliu em seco, tentando dim inuir avelocidade de Boo ao perceber que, com o carro ali e o trânsito parado nasduas pistas, estava bloqueada. Olhou para o outro lado da pista de m ãodupla. Não tinha com o saltar a barreira do m eio sem ser atropelada peloscarros que vinham na outra direção. Não havia saída. Olhou por baixo dobraço e notou o quatro por

quatro verm elho de Sal, que buzinava enquanto tentava abrir cam inho entreos carros. Se ela perm anecesse no viaduto, ele iria pegá-la. Sarah engoliu emseco e sentiu o gosto m etálico da bile do m edo.

Olhou para o carro, ainda avançando na direção dele a toda velocidade,instando-o para que saísse da frente. Ela não tinha m uita escolha. Vô, meperdoe, disse em silêncio, agarrando um chum aço da crina de Boo efazendo-o avançar, m irando no capô do carro.

Boo, confuso com o pedido, hesitou, ouviu as pernas dela pressionando emresposta, suas palavras de incentivo, e de repente estava no ar, com o enorm e

lom bo m usculoso se esticando em baixo dela ao saltar por cim a do carro. Eentão ela era Xenofonte, ouvindo os sons da batalha em baixo de si, seucorpo inteiro, ela confiando na coragem do anim al em que m ontava. Eratodo-poderosa, toda protegida, toda talento. Era fúria e glória, não pedia nadaalém da sobrevivência.

O m undo ficou paralisado. Um grito silencioso lhe escapou. Seus olhosestavam fechados, m as logo se abriram e não enxergaram nada além do céu,os carros que desviavam à sua frente, e então, com o baque do im pacto,voltaram ao solo; Boo patinhou pela superfície m olhada com Sarah quasecaindo do seu pescoço, pendurada, agarrando-se freneticam ente às rédeascom pridas dem ais, à crina, a qualquer coisa, para não cair.

Ele galopava pela pista, as patas ligeiras eram um borrão e, com um urro deesforço, Sarah ergueu o braço esquerdo, agarrou o bridão conseguiu m ontardireito nele. E os dois seguiram em frente, enfim tom ando a rua secundáriaque levava até o canal à m edida que o som do trânsito parado e das buzinasdescrentes sum ia atrás deles.

* * *

— Quem é a sua prim eira testem unha?

Natasha m andou outra m ensagem para Ben, pedindo-lhe para conferir m aisum a vez se estava com os docum entos necessários para aquela m anhã e seestaria m esm o à espera dela na frente do tribunal em m eia hora. Ela estavaem um café com Conor.

— O psicólogo infantil. Um dos nossos. Vam os assustar o m arido com asugestão de que podem os corroborar as alegações de violência enquantoHarrington e o outro advogado trabalham com a Sra. P nos bastidores,tentando convencê-la a liberar o acesso do pai à m enina em troca de umacordo financeiro m elhor.

Eu não sou um completo imbecil, respondeu Ben.

Vamos ver, respondeu ela.

— A m ulher vai conseguir o que quer — observou Conor, am argurado. —Ela nunca m ais terá que erguer um dedo e o nom e de um pai perfeitam entebom será arrastado na lam a. Nunca achei que você j ogaria suj o.

Natasha o cutucou.

— É o único j eito de m anter a m enina com a m ãe. Fala sério, Conor, é umdivórcio. Você faria o m esm o se estivesse no m eu lugar. — Ela estreitou osolhos para o outro lado do salão, para o espelho na parede. — Meu cabeloestá bom ?

Harrington acha que haverá j ornalistas na porta para este caso.

— Está ótim o.

Ela não podia se dar ao luxo de com eter nenhum erro. Não bastava vencer ocaso, era vital tam bém usá-lo com o am ostra para Michael Harrington. Aoferta dele pairava sobre sua consciência, sem pre ali, um presentinho para sim esm a nos m om entos em que se sentia sobrepuj ada pela confusão que erao restante de sua vida. Seria assim tão ruim cruzar a fronteira? Sem dúvidaseria m elhor se afastar de todo aquele contato cotidiano com os clientes.Pensou em Ali Ahm adi.

Se fosse para o escritório Harrington Levinson, provavelm ente não voltaria acom eter esse tipo de erro.

Não tinha contado sobre a oferta para Conor. Não queria adm itir para si mesm a quais eram os prováveis m otivos disso.

Conor encostou o pé no dela.

— Não tenho m uita coisa para fazer hoj e de m anhã, então, depois quedeixar você no tribunal, vou levar as suas coisas para casa.

Natasha ficou surpresa.

— Tem certeza?

— Tenho. Mas eu não disse que ia desem pacotar nada. Não espere que eu

entre no m odo dono de casa perfeito assim de repente.

— Obrigada, Conor.

— De nada, Poderosa. Com o eu disse, não tenho m uito o que fazer napróxim a hora m ais ou m enos.

— Eu m e refiro a m e deixar ficar na sua casa.

Ele exam inou os sapatos, então olhou para ela de um j eito um tantoestranho.

— Por que está dizendo isso? Você não é visita. — Conor franziu a testa. —

Está m e dizendo que é apenas tem porário? Que eu sou um quebra-galho?

— Não sej a bobo. Mas, para ser sincera, não sei quanto tem po devo ficar.Não tive oportunidade de refletir sobre nada disso. Só não sei se eu deveria irdireto…

— …da frigideira para o fogo.

— Não foi isso que eu disse. Mas foi você quem observou de um j eito tãodelicado que nós dois som os com plicados.

— Som os com plicações que se com binam . Excelentíssim a, por favor,revej a suas afirm ações.

Natasha percebeu que tinha chegado sua vez na fila para pedir o café.

— Ah. Desculpe. Um descafeinado com leite desnatado, por favor.

— Tam bém conhecido com o Por que se incom odar — soltou Conor. A moça no balcão deu um sorriso am arelo para ele, com o se só escutasse aqueletipo de piadinha várias centenas de vezes por dia. — Um macchiato duplopara m im .

— Deixe eu term inar este processo, Conor. Não consigo pensar em m aisnada agora.

Natasha esperou Conor dizer algo, m as, com o não disse, ela enfiou a m ãona bolsa, anim ada.

— Estes são por m inha conta. É o m ínim o que posso fazer, afinal você nãopôde tom ar café da m anhã por m inha causa. Que tal um m uffin?

Então ela olhou dentro da bolsa.

* * *

Não o viu em lugar nenhum . Entrou derrapando no pátio da fábrica de móveis e deu a volta até onde as vans de entrega protegiam o estacionam entoda vista dos passantes, com a respiração entrecortada e a chuva lheescorrendo pelo rosto, obrigando-a a ficar lim pando os olhos para enxergardireito. Desm ontou. Boo suava, abalado pelos acontecim entos dos últim osdois dias, com frio por causa da chuva forte que caía, e Sarah teve que puxaras rédeas para fazer com que ele cam inhasse atrás dela.

— Ralph? — cham ou.

Nenhum a resposta. Ao redor dela, as j anelas vazias do prédio com ercial aencaravam sem interesse, sua voz era abafada pelo chiado da água. As portasde ferro da fábrica de m óveis ainda estavam abaixadas. Não chegarianinguém para trabalhar na próxim a m eia hora.

Seguiu adiante e espiou atrás de um a van estacionada.

— Ralph?

Nada.

Ela lim pou a água do rosto e foi perdendo a confiança; a adrenalina da última m eia hora foi se esvaindo. Era só um a m enina em um estacionam ento,procurando confusão.

Ele não ia aparecer. Claro que não. Sarah fora ingênua de achar que ele viria.

Aliás, ele talvez tivesse contado a Sal onde haviam m arcado de se encontrar.Ela ficou paralisada por um m inuto, se dando conta de que, se os hom ens de

Sal aparecessem atrás dela, estaria em um beco sem saída.

Controlou o pânico crescente, tentou pensar de form a estratégica. Elaconseguiria fazer aquilo sem sela? Conseguiria fazer aquilo com o arreioidiota com antolhos? A resposta era sim ples: ela não tinha m uita opção. Nãopodia arriscar ficar ali esperando por quem quer que fosse encontrá-la.Segurou as rédeas com a m ão esquerda e se preparou para m ontar de novoem Boo.

— Não precisa gritar, Menina do Circo. — Ralph saiu de um a porta e seaproxim ou dela, saltitante, puxando o capuz por cim a da cabeça. — Masque diabo — soltou ao olhar para o cavalo.

Sarah correu na direção dele, puxando Boo, relutante, atrás de si.

— Você trouxe?

Ele estendeu a m ão.

— Prim eiro, o plástico.

— Não vou dar calote em você, Ralph.

Ela enfiou a m ão no bolso e tirou um m aço de notas.

— Cadê o cartão?

— Eu não consegui pegar, m as tenho vinte libras.

— Deixe disso. Acha que eu sou idiota?

— Cinquenta.

— Posso vender a sela por m ais do que isso. Cento e cinquenta.

— Cem . É tudo o que tenho.

Ralph estendeu a m ão. Ela contou o dinheiro e entregou. Era o dinheiro deSal.

Ficou feliz de se livrar daquilo.

— Onde está a sela?

Ralph apontou para a porta, ocupado em recontar as notas. Sarah pediu quesegurasse Boo enquanto o arreava, respirando rápido ao aj eitar a barrigueira.

Então se livrou dos antolhos, j ogando-os por cim a do m uro para o terrenobaldio que ficava logo atrás, e colocou em Boo o equipam ento que era dele.

— Vou te dizer um a coisa, m enina. — Ralph enfiou o dinheiro no bolso dacalça. — Você tem colhão.

Ela apoiou o pé no estribo e saltou para o lom bo do cavalo. Boo recuou,ansioso para sair em disparada outra vez.

— Para onde vai levá-lo? Você sabe que Sal vai atrás de você. Não adiantatentar Stepney ou um dos estábulos de Whitechapel. Acho que você podetentar ao sul do rio.

— Não vou ficar por aqui. Olhe, Ralph, preciso que você faça m ais um acoisa para m im .

— Ah, não. — Ele sacudiu a cabeça. — Você j á se aproveitou bastante de mim , Menina do Circo.

— Vá até o hospital de Santa Teresa. Diga ao m eu avô… Diga a ele que Booe eu fom os fazer a nossa viagem de férias. Ele vai entender. Diga que vouligar para ele.

— Por que eu deveria fazer m ais qualquer coisa para você? Cara, você m eforçou a acordar às seis e quinze hoj e. Isso é praticam ente ilegal.

— Por favor, Ralph. É m uito im portante, de verdade.

Ele deu tapinhas no bolso e saiu saltitando pela rua.

— Eu posso fazer isso — retrucou, com os tênis grandes dem ais nos pés de

doze anos. — Mas sou um hom em ocupado…

* * *

— Não posso falar agora, Natasha. Estou saindo de casa.

Mac largou a bolsa de equipam ento fotográfico no chão do corredor.

— Mac, o m eu cartão de crédito por acaso está na m esa de centro, ondedeixei a m inha bolsa ontem à noite?

Mac engoliu a resposta que queria dar: ela havia ido em bora de casa e nãopodia querer que ele ficasse correndo atrás das coisas que caíam de sua bolsa.

Deu um a olhada pela porta.

— Não. Não tem nada ali.

Um breve silêncio se instalou. Dava para ouvir a conversa ao fundo, o tilintardas xícaras.

— Merda — disse ela.

Mac ergueu a sobrancelha. Era raro Natasha falar palavrão.

— O que foi?

— Ela está aí?

— Não. Olhei no quarto dela. Deve ter saído antes de nós.

— Ela pegou o m eu cartão de crédito.

— O quê?

— Você ouviu o que eu disse.

Ele revirou os olhos.

— Está im plicando com ela de novo. Você provavelm ente deixou o cartãoem algum lugar.

— Não, Mac. Acabei de abrir a bolsa e vi que está faltando um dos m euscartões de crédito.

— E tem certeza de que foi ela?

— Acho bem difícil ter sido você, certo? Estou dizendo, Mac, ela pegou aporcaria do m eu cartão.

— Mas ela não sabe qual é a senha.

Ele ouviu um a conversa abafada, então Natasha voltou ao telefone.

— Droga. Preciso ir para o tribunal. Não posso chegar atrasada de j eitonenhum . Mac, será que você pode…

— Vou buscar Sarah na escola m ais tarde. Vou conversar com ela.

— Não sei se devo bloquear.

— Não bloqueie ainda. Ela não vai conseguir gastar um dinheirão na cantinada escola. Deixe eu conversar com ela prim eiro. Tenho certeza de que há uma explicação inocente.

— Um a explicação inocente? Para ter roubado o m eu cartão?

— Olhe, nós não tem os certeza se Sarah roubou. Vam os prim eiro conversar

com ela, pode ser? Você não disse que ela queria com prar algum as coisaspara o avô?

Houve um a longa pausa.

— É, ela disse, sim , m as isso não torna o roubo aceitável.

Ele voltou a reclam ar, m as Natasha o interrom peu:

— Quer saber de um a coisa, Mac? A vida dessas crianças pode ser difícil, mas elas nem sem pre são as vítim as.

Mac desligou e ficou parado no hall de entrada. Ficaria irritado com os comentários de Natasha no com eço, tinha se forçado a engolir sua respostainstintiva. Não se lem brava de ela ser assim tão cética em relação aosclientes.

Não gostava disso nela.

Estava prestes a pegar a bolsa com seu equipam ento quando se lem brou docom portam ento estranho de Sarah na noite anterior, de ela ter preferido ficarna sala enquanto ele preparava o j antar. Havia achado que ela estava sendodiplom ática. Ainda acreditava nisso.

Ficou ali parado m ais um instante, então subiu a escada devagar e abriu aporta do quarto de Sarah.

Era im possível entrar no quarto de um a adolescente sem se sentir umintruso.

Mac percebeu que, em um gesto inconsciente, enfiara as m ãos nos bolsos,por m edo de tocar em algo. Não sabia m uito bem o que procurava, só sabiaque queria provas de que as coisas estavam com o deveriam . Talvezdescobrisse que, no fim das contas, ele conhecia aquela m enina. Abriu oguarda-roupa e suspirou de alívio. Ali estavam as roupas dela, as calças, ossapatos. A cam a estava arrum adinha. Pouco antes de sair do quarto, Macparou e deu m eia-volta.

O porta-retratos com a foto do avô de Sarah não estava lá. Assim com o olivro grego sobre equitação. Mac ficou olhando para o espaço vazio na m esade cabeceira onde as duas coisas costum avam ficar, então entrou nobanheiro. Não tinha escova de dentes. Nem escova de cabelo. Nem sabonete.E ali, pendurado atrás do aquecedor, estava o uniform e da escola. Era oúnico conj unto que Sarah tinha.

Mac correu de volta para o andar de baixo e pegou o telefone.

— Tash? — disse, então xingou baixinho. — Sim , eu sei que ela está notribunal. Posso falar com ela, por favor? É urgente. Diga… diga a ela que nóstem os um problem a.

18

“Acho que, se me tornar um cavaleiro, eu serei um homem com asas.”

XENOFONTE, SOBRE EQUITAÇÃO

Havia parado de chover. Sarah trotava alegrem ente pelo infinito m atagal naslaterais das estradas que levavam às Docas Reais e ao aeroporto, observandoo pelo de Boo ficar cada vez m ais claro enquanto secava. Ele tinha se acalmado, sentindo-se seguro com a sensação conhecida de tê-la em seu lom bo ecom a voz dela, m as o coração da m enina ainda batia forte, desconfortável, eseu pescoço doía de tanto olhar para trás.

Os espaços eram m aiores ali, o céu era um a infinidade cinza, sem ainterrupção de prédios enorm es. Ela e Boo podiam avançar com m aisrapidez, porém estavam expostos, e a consciência de sua visibilidade faziacom que ela continuasse indo em frente, sem pre pelas laterais, onde poderia

desviar e m udar de rum o com facilidade caso precisasse. Sarah olhou paraos dois lados e então atravessou a estrada de asfalto; os cascos de Booecoaram pelo espaço vazio.

Quando chegou ao capim , ela voltou a avançar a m eio-galope, saltandosobre as valetas de drenagem .

A nuvem cinzenta estava se dispersando e, de repente, ela avistou o aeroportoà sua frente. Tinha pensado em ir para as pontes de Londres, m as achou queestariam m uito m ovim entadas (um a m enina m ontada a cavalo cham ariabastante atenção), por isso se dirigiu para o leste, passando pelas infinitasconstruções em estilo soviético de Newham e Beckton, e atravessou para asplanícies do norte de Woolwich, com os reluzentes arranha-céus de CanaryWharf se apequenando atrás dela.

A hora do rush estava term inando, e o fluxo infindável de autom óveis nadireção do centro financeiro ia ficando m enos evidente. Um ou outro carroainda passava por ela, talvez em disparada por algum atalho até o túnelBlackwall ou a ilha Dogs, m as nenhum dos m otoristas prestava m uitaatenção nela — um hom em com endo um sanduíche ou um rapaz quegostava de velocidade perdido na m úsica altíssim a. Sarah usava um casacoim perm eável e cobrira a cabeça com o capuz para esconder o rosto.Ninguém parava naquela região a não ser que fosse necessário; ali só haviagalpões e hoteizinhos baratos apertados entre vias m ovim entadas: era o tipode lugar pelo qual as pessoas apenas passavam , povoado por executivos denível m édio e vendedores sem pre em trânsito.

Boo estava se cansando. Conferindo as placas da estrada, ela dim inuiu o ritmo para um a cam inhada, de form a que o cavalo pudesse retom ar o fôlego.Um barzinho suj o se erguia solitário em um a terra de ninguém , onde ocapim

cinzento só era interrom pido por algum as casinhas gastas aqui e ali. Logoatrás delas, havia fileiras de prédios recém -construídos; o Tâm isa, parcamente ilum inado por instáveis faixas de sol que escapavam por entre asnuvens; e então, ao fim de um a rua com asfalto quebradiço ladeado porprédios de concreto, o term inal de balsas. Ela dim inuiu a velocidade, olhoupara trás e conduziu o cavalo na direção do term inal.

* * *

— Sr. Elsworth, poderia inform ar ao tribunal seu nom e com pleto?

— Eu m e cham o Peter Graham Elsworth.

— Obrigada. E pode dizer ao tribunal qual é a sua profissão?

— Eu tenho um a clínica de psicoterapia e aconselham ento especializada notratam ento de crianças, em especial as que sofreram algum tipo de traum a.

— O senhor trabalha com isso há m ais de trinta anos e é considerado um dosm aiores especialistas no ram o, correto?

Elsworth endireitou levem ente a postura.

— Já publiquei trabalhos acadêm icos revisados por pares em diversasrevistas científicas, sim .

Natasha olhou para as suas anotações. Atrás dela, a Sra. Persey batia o pé emum a sandália delicada e suspirava de tédio e frustração de form a quaseinaudível.

— Sr. Elsworth, o senhor diria que todas as crianças tendem a processar otraum a da m esm a m aneira?

— Não. Elas processam o traum a de m odos tão variados quanto um adulto.

— Então não existe um a reação padronizada a um acontecim ento traumático.

— Correto.

— É j usto dizer que algum as crianças podem reagir abertam ente a umacontecim ento traum ático, com o, por exem plo, chorando ou fazendoconfidências a am igos ou adultos, e que outras que passaram porexperiências igualm ente perturbadoras podem dem onstrar pouca coisa?

Elsworth refletiu por um instante.

— Isso depende do grau de desenvolvim ento da criança e da relação delacom as pessoas ao redor… Além da natureza do acontecim ento traum ático,é claro.

— Se um a criança sentisse, por exem plo, que revelar que algo de ruimaconteceu com ela aborreceria o pai ou a m ãe, ela poderia preferir guardarsegredo?

A peruca que os advogados tinham que usar no tribunal, à qual Natasha aindanão havia se acostum ado, estava com eçando a incom odar. Ela se contevepara não coçar a parte de trás da cabeça.

— Sem dúvida, m inha experiência tem sido essa.

O Sr. Persey encarava Natasha. Era um hom em alto e largo, com bochechascarnudas e um tom de pele que revelava três boas férias por ano, e tinha umolhar fixo e penetrante que, em outras circunstâncias, teria feito Natasha sesentir m uito desconfortável. Não era difícil entender por que a Sra. Perseyera tão avoada e histérica.

— Tam bém de acordo com a sua experiência, em um caso em que os paisestivessem , digam os, em conflito, a criança poderia esconder indícios detraum a se acreditasse que isso levaria a m ais conflitos na relação?

— Esse é um fenôm eno psicológico m uito conhecido. A criança tentaproteger o pai ou a m ãe quando acha que falar sobre o traum a pode causarainda m ais problem as.

— Mesm o que sej a o pai ou a m ãe quem está causando o traum a?

— Protesto. — O advogado do Sr. Persey se levantou. — Excelência, j áestabelecem os que não há provas de que o Sr. Persey foi violento com a filhaem m om ento algum , e dar prosseguim ento a essas perguntas, e com o usode um vocabulário tão sentim ental, é algo que conduz ao erro.

Natasha se voltou para o j uiz.

— Excelência, estou sim plesm ente tentando estabelecer que, em tais casos,

a ausência de m aterial óbvio ou provas físicas, ou até m esm o de um testemunho verbal da criança, não significa que não houve traum a.

O advogado do Sr. Persey, um peso pesado cham ado Sim pson cuj o tom devoz parecia um choram ingo, bufou bem alto.

— Tam bém é possível argum entar que um a m ulher que alega ter umrelacionam ento violento deveria estar isenta da necessidade de m ostrar hematom as. Só que, neste caso, nem a própria criança afirm a que a violênciaaconteceu. — Ele era o tipo de advogado que se considerava bom dem aispara discutir com um advogado que não tinha licença para atuar nas altascortes; ainda havia um nível de preconceito surpreendente em relação aadvogados feito Natasha.

— Excelência, se m e perm ite prosseguir, vou m ostrar que crianças são umcaso excepcional por esse exato m otivo. Elas têm m uito m ais tendência aesconder um traum a na tentativa de proteger as pessoas ao redor.

O j uiz não ergueu os olhos.

— Prossiga, Sra. Macauley.

Ela havia se debruçado m ais um a vez sobre seus papéis quando Ben colocouum bilhete na sua m ão. Ligue para Mac urgente, dizia. Pega de surpresa,Natasha se virou para Ben e sussurrou.

— O que ele quer?

— Não sei. Só disse que era extrem am ente im portante que você ligassepara ele.

Ela não tinha com o fazer isso naquele m om ento.

— Sra. Macauley ? Será que poderia prosseguir?

— Sim , Excelência. — Ela fez um gesto discreto para que Ben se afastasse.—

Sr. Elsworth, seria… seria concebível, na sua opinião, que um a criança que

tivesse m edo do pai ou da m ãe pudesse esconder do outro responsávelquaisquer problem as na relação com um dos dois?

— Excelência…

— Vou perm itir, Sr. Sim pson. Sra. Macauley, assegure-se de não se desviarda questão.

Elsworth olhou para o j uiz.

— Depende da idade e das circunstâncias, é claro, m as, sim , é concebível.

— Idade e circunstâncias. O que o senhor quer dizer com isso?

— Bom , entre os j ovens clientes que j á atendi, percebi que, quanto m enorfor a criança, m enos ela conseguirá esconder qualquer acontecim ento traumático.

Isso tende a se revelar por conta própria, m esm o quando a criança não écapaz de articular sua aflição, por m eio de outros com portam entos: fazerxixi na cam a, transtornos obsessivo-com pulsivos e até m esm o agressõesfora do com um .

— E com que idade o senhor diria que um a criança é capaz de esconderaflição… de m aneira eficiente? De m odo que talvez ele ou ela não apresentenenhum a das características que o senhor acabou de descrever?

— Depende da criança, m as j á vi algum as de sete ou oito anos que tinha uma eficiência surpreendente em esconder experiências.

— Acontecim entos profundam ente traum áticos?

— Em alguns casos, sim .

— Então, não é im possível que um a criança de dez anos sej a capaz de fazerisso.

— Certam ente não.

— Sr. Elsworth, j á ouviu falar da síndrom e de alienação parental?

— Já, sim .

— Ela é… fazendo um a citação, “um distúrbio em que as crianças têm um apreocupação obsessiva com relação ao desprezo e/ou à crítica do pai ou da mãe.

Em outras palavras, um aviltam ento que é inj ustificado ou exagerado”. Parao senhor, essa seria um a definição correta?

— Eu não sou especialista nisso, m as, sim , essa definição m e parececorreta.

— Sr. Elsworth, o senhor é, com o disse, um acadêm ico que teve seutrabalho publicado em revistas científicas de psicologia m uito renom adasdurante vários anos. O senhor acredita na existência clínica da síndrom e dealienação parental?

— Não acredito. Mas não tenho certeza se isso é um a…

— Certo, vou reform ular a pergunta. Pode m e dizer quantas crianças osenhor j á tratou?

— Em geral? No m eu consultório? Ao longo dos anos, bom , m ilhares. Maisdo

que duas m il, talvez.

— E j á aconteceu de um de seus j ovens clientes exibir o que o senhor compreende com o síndrom e de alienação parental?

— Já tratei m uitas crianças que foram convencidas a ficar contra o pai ou am ãe, inclusive várias que desenvolveram um a anim osidade em relação aum dos pais que acabou durando m uitos anos. Tratei diversas criançasprofundam ente prej udicadas pelo divórcio dos pais. Mas não posso dizerque acredito que tais estados psicológicos sej am indícios de um a síndrom e.Acho que isso seria certo exagero.

Natasha deixou essa últim a resposta pairando no ar por um m om ento.

— Sr. Elsworth, sabe algum a coisa a respeito do nível de relatos falsos emrelação a violência física ou sexual contra crianças durante processos dedivórcio ou de disputa de guarda?

— Sei que existem diversos estudos recentes sobre esse fenôm eno, sim .

— Estudos revisados por especialistas? Feitos por acadêm icos respeitados?O

senhor poderia nos dar um a ideia das conclusões m ais recentes sobre essesrelatos, sobre quantos deles são falsos?

— Acredito que o estudo m ais recente, publicado em 2005, m ostrou quenesses casos, o núm ero de relatos falsos é m uito pequeno. Acho que umcruzam ento de estudos feito naquele ano m ostrou que a taxa de alegaçõesfalsas em contexto de custódia varia entre um e sete vírgula seis por cento.

— Entre um e sete vírgula seis por cento. — Natasha assentiu, com o queconfirm ando a inform ação para si m esm a. — Então, m ais de noventa porcento seriam alegações de violência válidas. Será que isso reflete a suaexperiência clínica?

Elsworth hesitou.

— Na m inha experiência, Sra. Macauley, um a proporção m uito pequenados casos de violência contra crianças costum a ser relatada, tanto durantequanto fora de situações em que há disputa de guarda.

Natasha reparou no sorriso de satisfação de Michael Harrington. Por poucoela não conseguiu segurar o seu tam bém .

— Não tenho m ais perguntas, Excelência.

* * *

No traj eto do norte para o sul, a balsa de Woolwich estava vazia. Alguns minutos depois de seus ocupantes m ais recentes, todos usando ternos, terem

desem barcado do outro lado e rum ado para a ferrovia de Docklands, a fileirade bancos da Ernest Bevin estava desocupada. Quando a balsa aportou, Sarahhesitou, m as então conduziu Boo pela longa ram pa até o deque dos carros eo posicionou bem longe da cabine. O cavalo olhou ao redor e se agitou umpouco

sobre a superfície coberta de óleo quando os m otores com eçaram a vibrar, mas pareceu não ficar perturbado com esse m eio de transporte estranho. Nãohavia cam inhões nem carros a bordo, só a m enina, Boo e o deque vazio. Elaolhou para trás m ais um a vez, desej ando que a balsa avançasse, rezandopara não avistar aquela cam inhonete. Racionalm ente, Sarah sabia que erapouco provável que a houvessem seguido, m as o m edo se em brenhara atéseus ossos. Ela via aquela cam inhonete em todo lugar, um espectro quedobrava esquinas e estacionava na frente dela; um a am eaça sem prepresente.

Enquanto Sarah estava ali parada, com as rédeas de Boo firm es na m ão, ocondutor saiu da cabine. Era um hom em alto, m agro e levem ente recurvadoe barba grisalha. Ele ficou im óvel por um m om ento, com o se quisesseconfirm ar o que estava vendo, então cam inhou devagar na direção dela.Sarah segurou as rédeas de Boo com m ais força e se preparou para um adiscussão. Mas, ao se aproxim ar, o hom em sorriu.

— Esse deve ser o prim eiro cavalo que vej o aqui em trinta anos — disse ele.

O condutor ficou parado a alguns passos de Boo, balançando a cabeça. —Meu pai trabalhou na balsa nas décadas de 1930 e 1940. Ele ainda se lembrava da época em quase todo o m ovim ento aqui era de veículos puxados acavalo. Posso fazer carinho nele?

Quase fraca de alívio, Sarah assentiu sem dizer nada.

— Que garoto adorável, não é? — O hom em passou a m ão no pescoço deBoo. — Que anim al lindo. Os cavalos em cim a, os hom ens em baixo, ali nafrente; antes era assim . — Ele apontou. — Claro, isso foi antes de todasessas balsas. — O condutor apontou para a enorm e ponte am arela e brancada em barcação. — Ele é bonzinho, não é? Bem -com portado?

— É — balbuciou Sarah. — É, sim .

— Qual é o nom e dele?

Ela hesitou.

— Baucher — respondeu. Em seguida com pletou, sem saber m uito bem porquê: — É em hom enagem a um cavaleiro francês fam oso.

— Um nom e im portante, hein? — O hom em esfregou a testa de Boo. —Um nom e im portante para um garoto im portante. Eu tenho um cartão-postal dos velhos cavalos que puxavam charretes a bordo. De anos atrás.Espere um pouco que m ostro para você depois que derm os partida.

— Quanto custa? — disparou ela. — Para ele, quer dizer. Quanto a gente temque pagar?

O condutor pareceu surpreso.

— Você não tem que pagar nada aqui, não, querida. Ah, não. Ninguém pagapara atravessar com esta balsa desde 1889. — Ele riu. — Foi m ais ou m enosquando eu com ecei… — O hom em cam inhou m ancando de volta à cabinee desapareceu.

A balsa vibrou e então com eçou a se afastar com suavidade da m argemnorte do Tâm isa, rum o às águas turvas e agitadas. Sarah ficou sozinha nodeque aberto ao lado de seu cavalo e, absorvendo o ar úm ido, olhou para aextensão desolada do rio, os guindastes que se avultavam , a coberturabrilhante da barreira do Tâm isa e os prédios azuis e prateados da refinaria deaçúcar Tate.

Estava com fom e. Nas doze horas anteriores, não tinha lhe ocorrido que seuestôm ago pudesse sentir qualquer coisa que não fosse um nó de ansiedade.Tirou a m ochila das costas, abriu e achou um biscoito. Quebrou umpedacinho e deu para Boo, cuj os lábios aveludados ficaram pressionando ocasaco dela com insistência até que Sarah cedesse e lhe desse m ais.

Ela estava, com seu cavalo, no m eio de um rio, em algum a terra interm

ediária, um a paisagem idílica da qual ainda não tinha exatam entedespertado. Mas talvez não fosse tão estranho; só m ais um cavalo em um alinhagem que se estendia para m ais de um século antes. E, conform e adistância em relação à m argem aum entava, a respiração de Sarah foi senorm alizando e seus pensam entos clarearam , com o se ela estivesse saindode um a enorm e som bra. A cam inhonete ficara na m argem norte, com todaa confusão, a ansiedade e o m edo que a haviam sufocado durante m eses.Tudo estava bem sim ples. Percebeu que sorria, exercitando m úsculos quepareciam ter se atrofiado nas sem anas anteriores.

— Pronto — disse ela, dando m ais um pedaço de biscoito para Boo. — Estána hora de seguirm os em frente.

* * *

Ben entregou outro bilhete: Ele ligou quatro vezes para Linda.

Natasha deu um a olhada no papel enquanto aj eitava a peruca, tentandoforçar o gram po através da tela. Havia pouco tem po que os advogados semlicença para litigar nas altas instâncias tinham recebido o privilégio de usarperuca; ela fora contrária à adoção da peça, m as os sócios do seu escritóriohaviam pedido que usasse. Disseram que os adversários a levariam m ais asério. Natasha desconfiava que eles sim plesm ente queriam cobrar m ais dosclientes, e a peruca tornava isso possível.

— Ligue de volta — sussurrou ela, entregando o celular desligado para Ben.

— O núm ero dele está nos contatos. Diga que não posso falar até o intervalo.

— Linda disse que ele parecia enlouquecido. Tinha algum a coisa a ver com…

Sarah ir em bora.

Do outro lado da sala, Sim pson tentava desconstruir o testem unho deElsworth.

Ele teria que se esforçar m uito para isso, pensou Natasha. O psicólogo era

um dos m elhores do ram o, e o preço que cobrava para testem unhar com oespecialista era prova disso.

— Diga a ele que vam os resolver quando ela vai em bora depois que os doisconversarem sobre o m eu cartão. E diga que não posso atender nenhumtelefonem a, então não adianta ficar m e ligando.

Ela com eçou a tom ar notas, tentando organizar os pensam entos.

— Você acabou com ele, certo? — Do outro lado da bancada, os dedos magros da Sra. Persey se fecharam em seu pulso. — Tudo o que você disseprova que ela sofreu violência da parte dele. — Os olhos da m ulher estavamarregalados e, apesar da m aquiagem cuidadosam ente passada, seu cansaçoera evidente.

Natasha olhou para o j uiz, que observava a conversa das duas e parecia nãoestar gostando nada daquilo.

— Vam os conversar sobre isso lá fora. Mas, sim , tudo correu bem —

sussurrou ela, inclinando-se para a frente para se concentrar em Sim pson.

Em poucos m inutos, Ben voltou. Ela não vai embora, já foi, dizia o recado.

Desapareceu.

Ela rabiscou: ??? Para onde?

Ele não sabe. É alguém da sua família?

Natasha afundou a cabeça nas m ãos.

— Sra. Macauley — disse a voz à frente dela. — Está tudo bem ?

Ela endireitou a peruca.

— Tudo bem , Excelência.

— A senhora precisa de um intervalo?

Ela pensou rápido.

— Se Vossa Excelência perm itir, um assunto urgente e inesperado exige a minha atenção.

O j uiz se voltou para Sim pson, que olhava para ela com um a fúria m aldisfarçada, com o se ela tivesse planej ado aquela situação.

— Muito bem . Retom am os em dez m inutos.

* * *

Mac atendeu o telefone antes m esm o de o aparelho tocar.

— Ela foi em bora — disse ele. — Caiu fora e levou m etade das coisas dela.

— Você ligou para a escola?

— Tentei ganhar tem po. Liguei e disse que ela estava doente. Achei que, seela estivesse lá, eu poderia dizer que tinha m e enganado.

— Mas ela não está lá.

— Ela foi em bora, Tash. Fotos, escova de dentes, tudo.

— Ela deve estar no estábulo. Ou com o avô.

— Liguei para o hospital. Ninguém foi visitá-lo hoj e. Eles têm certezaabsoluta. Estou indo para o estábulo.

— Ela não vai abandonar o cavalo — argum entou Natasha, confiante. —

Pense nisso, Mac. Ela não abandonaria o cavalo e tam bém não se afastariadem ais do avô. Ele é m ais im portante para Sarah do que qualquer pessoa.

— Espero que você tenha razão. Não estou gostando nada disso.

Mac parecia preocupado, o que era bem incom um .

Ela de repente pensou em Sarah, silenciosa e aceitando tudo de um j eitoestranho na noite anterior. Natasha percebera que havia algo errado, m asficara tão grata por a m enina aceitar calm am ente a reviravolta que seaproxim ava que nem pensou em questionar.

— Preciso voltar para o tribunal. Me ligue quando chegar ao estábulo. Elaestá com o m eu cartão de crédito, lem bra? Com o você disse, é provável quesó tenha saído para com prar a porcaria de um pij am a novo para o avô às minhas custas.

* * *

O caubói estava encostado em um carro enferruj ado, conversando com umdos garotos, enquanto Mac se esforçava para abrir o portão e tentava ignoraro cachorro, que rosnou um alerta quando ele entrou. Mac deu um a olhada noarco da ferrovia: a baia do cavalo estava aberta. Dava para ver que não havianinguém ali.

— Hum … Sr…. hum … John? Mac… Lem bra-se de m im ? Sou am igo daSarah.

O caubói enfiou o cigarro na boca e apertou a m ão de Mac. Pressionou oslábios.

— Ah, eu m e lem bro de você, sim — retrucou.

— Estou procurando a Sarah.

— Você e todo m undo — disse o velho. — Daqui até as docas de Tilbury.Não tenho ideia do que andou acontecendo por aqui desde que viaj ei.

O m enino olhou de John para Mac e de Mac para John.

— Eu j á disse, John, não passei m uito tem po aqui.

— Você não serve para nada m esm o.

— Eu não m e envolvo com nada, não. Você sabe disso.

— Ela esteve aqui? — perguntou Mac.

— Só vi a Sarah por um segundo. Ela nem chegou a m e contar o que estavaacontecendo. É um a confusão, isso é certo.

Cowboy John balançou a cabeça, triste.

— Espere aí… Você viu Sarah? Hoj e?

— Ah, vi, sim . Vi Sarah às sete da m anhã. Da últim a vez que a vi, elaestava em disparada pelo viaduto, com o se aquele cavalo de circodesgraçado tivesse asas. Com o a garota nunca se m atou fazendo isso é entreela e o Todo-Poderoso.

— Ela saiu andando a cavalo?

— Andando? — Cowboy John olhou para Mac com o se ele fosse idiota. —

Você não está sabendo?

— Sabendo de quê?

— Passei a m anhã toda à procura dela. Ela foi em bora. Pegou aquele cavaloantes que qualquer um percebesse o que estava fazendo e foi em bora.

— Foi em bora para onde?

— Bom , se eu soubesse, ela estaria aqui agora!

Cowboy John sugou os dentes, irritado. O m enino acendeu um cigarro, orosto inclinado em cim a da cham a do isqueiro.

Mac foi até o arm ário de Sarah.

— Você tem a chave disto?

— Este lugar não é m ais m eu. Eu dei…

— Eu tenho — disse o m enino. — Ela m e deu um a cópia para eu dar com

ida para o cavalo quando ela não estivesse aqui — explicou ele.

— E você é…

— Dean.

— Ralph — corrigiu Cowboy John, em purrando o m enino com seus longosdedos negros. — O nom e dele é Ralph.

O garoto rem exeu no bolso e pegou um enorm e m olho de chaves. Foi examinando um a a um a com cuidado e enfim encontrou a que correspondia aocadeado. Mac abriu a porta. O arm ário estava vazio. Não havia sela nosuporte, não havia bridão, só um a pescoceira e algum as escovas em um acaixa.

— John? Você está dizendo que acha que ela foi em bora com o cavalo?

Cowboy John ergueu os olhos para o alto e cutucou Ralph, que estava ao seulado.

— Mas com o ele é esperto, não é m esm o? — com entou. — É, Sarah levoua porcaria do cavalo e m e deixou com um a enorm e pilha de cocô no lugardele.

Algum as pessoas aqui estão m uito, m uito insatisfeitas. Tenho a sensação deque um m onte de coisa andou acontecendo por aqui e não estou sabendo. —Ele olhou cheio de segundas intenções para Ralph. — Mas, em prim eirolugar, eu preciso achar um j eito de dizer a Le Capitaine no hospital que nãofaço a m enor ideia de onde a preciosa m enininha dele se m eteu.

Mac fechou os olhos durante um bom tem po. Suspirou fundo.

— Som os dois.

* * *

O sol estava em seu ponto m ais alto, e, levando-se em conta a época do ano,não era lá m uito alto. Ele dera a volta e seguia na direção de Sarah, fazendocom que ela estreitasse os olhos sob do capuz. A m enina fez alguns cálculos

de cabeça para tentar descobrir aonde conseguiria chegar antes queescurecesse e Boo

ficasse cansado dem ais para prosseguir.

Um cavalo de resistência talvez pudesse andar oitenta, quem sabe cemquilôm etros por dia. Ela lera sobre isso. Anim ais assim tinham que sertreinados aos poucos até alcançar esse padrão, seus m úsculos iamendurecendo com o trabalho lento e incansável, e o lom bo e os quartos sefortaleciam com cavalgadas regulares nas m ontanhas. As ferradurasprecisavam ser checadas e as patas, protegidas.

Boo não havia desfrutado de nenhum a dessas precauções. Sarah conversavacom ele, enquanto avançavam pelos subúrbios em um trote ligeiro, seguindoas placas para Dartford. Sentiu os passos dele ficando m ais pesados e notouem suas orelhas e em seu passo ritm ado a esperança de que ela pedisse paraque andasse m ais devagar. Ainda não, disse-lhe em silêncio, pressionando deleve as pernas, um leve aj uste no assento. Ainda não.

O lugar onde se encontravam no m om ento era m ais m ovim entado, e avisão de um a m enina m ontada a cavalo atraía olhares curiosos e um ououtro grito de m otoristas de van ou de crianças reunidas na fila dalanchonete. Mas ela m antinha a cabeça baixa, com unicando-se som entecom o cavalo. Em geral, Sarah conseguia passar pelas pessoas antes que elasse dessem conta do que tinham visto.

Só depois de encontrar um a rua tranquila ela se arriscou a usar um caixaautom ático. Apeou, conduziu Boo pela calçada, tirou o cartão de Natasha dobolso e digitou o núm ero que sabia de cor. Estava tatuado em sua m ente. Am áquina chiou e exam inou o pedido dela durante um tem po que pareceuinterm inável. O coração de Sarah acelerou. Àquela altura, talvez eles j ásoubessem . Natasha teria descoberto o que ela fizera, a extensão de suatraição.

Sarah tivera vontade de deixar um bilhete para eles, de explicar, m as nãoconseguiu encontrar as palavras, os pensam entos ainda turvos por causa dom edo, do choque e da sensação de perda. E ela não podia arriscar quealguém soubesse aonde ia.

Finalm ente a m ensagem piscou na tela. Quanto dinheiro ela queria? Dez,vinte, cinquenta, cem, duzentas e cinquenta libras? Depois das sem anas quepassara econom izando tanto, preocupada com cada libra, os núm erospareceram estonteantes. Ela não queria roubar, m as sabia que, quandopercebessem que havia levado o cartão, os Macauley o bloqueariam . Nãohaveria m ais dinheiro.

Talvez essa fosse sua única chance.

Sarah respirou fundo e tocou no teclado.

* * *

Ele estava esperando na frente do tribunal quando Natasha apareceu, ao meio-dia. Estava de costas para ela e deu m eia-volta quando escutou sua voz.

— Algum a notícia?

— Ela levou o cavalo.

Mac observou Natasha registrar a inform ação em estágios: prim eiro, um aespécie de incapacidade apática de digerir o que ele dissera, depois a m esm adescrença que ele próprio havia sentido. Um a risada m eio acanhada com otam anho do ridículo daquela ideia.

— Com o assim ela levou o cavalo?

— Estou dizendo que fugiu com o cavalo.

— Mas para onde ela pode ir com um cavalo?

O olhar de Natasha desviou do rosto de Mac e foi parar atrás dele, emCowboy John, que vinha gingando pelo corredor, cantarolando enquantoavançava. Ele tinha dem orado um pouco para conseguir subir a escada.

— Não entendo por que você não podia ter telefonado — reclam ou ele,arfando, e colocou a m ão com força no om bro de Mac.

O caubói cheirava a couro velho e cachorro m olhado.

Mac deu um passo para trás, fazendo com que o velho chegasse m ais para afrente.

— Natasha, este aqui é… Cowboy John. Ele cuida do estábulo onde Sarahdeixa o cavalo.

— Eu cuidava. Caram ba! Se eu tivesse tom ado conta das coisas, nuncateríam os nos m etido nesta confusão.

Cowboy John apertou a m ão dela rapidinho, então se abaixou e tossiu em umlenço.

Natasha fez um a careta, com a m ão ainda estendida. Um pequeno grupo depessoas os observava discretam ente. Mais para o fim do corredor, um a mulher loira e m agra com roupas caras ficou tão chocada que se calou derepente.

— Então, o que vam os fazer?

— Encontrar Sarah seria um com eço. Acho que devíam os nos dividir e começar a perguntar por aí. Um a m enina m ontada em um cavalo daqueles devecham ar atenção.

— Mas você disse que passou a m anhã toda procurando por ela e nãodescobriu nada. John a viu perto do m ato — explicou Mac.

John tocou na aba do chapéu, olhando para o nada com os olhos cheios deágua.

— Ela sabia para onde ia, é só o que posso dizer. Estava com um a m ochilanas costas e saiu em disparada.

— Ela planej ou tudo. Tem os que avisar a polícia, Tash.

John balançou a cabeça com veem ência.

— É m elhor não envolver gente xereta. Foi isso que m eteu Sarah nessaconfusão, para com eço de conversa. Além do m ais… a polícia?Nananinanão.

Aquela m enina não fez nada errado. Ela arm ou um a confusão, sim , m asnão fez

nada errado de verdade…

Mac olhou para Natasha. Nenhum dos dois falou nada. Ele esperou, irritadocom a reticência dela. Então, para lem brá-la do que ela própria declarara,disse:

— Você é quem falou que tem os a obrigação legal de inform ar se ela sumir.

— Natasha deu um a olhada no corredor e estreitou os olhos. — Tash?

O que ela disse em seguida fez Mac baixar a cabeça, sem saber bem se tinhaescutado direito.

— Olhe, eu não quero inform ar às autoridades por enquanto. Ela voltou daúltim a vez, não foi? — Natasha se virou de novo para John. — Vocêconhece Sarah. Para onde ela pode ter ido?

— O único lugar para onde aquela m enina iria é para o avô dela.

— Então, vam os até lá — disse Mac. — Vam os conversar com ele. Quemsabe tem algum a ideia. Tash? — Ela ficou ali parada encarando-o. — O quefoi?

— Eu não posso ir, Mac. Estou no m eio de um a audiência.

— Tash, Sarah desapareceu.

— Eu sei m uito bem disso, m as ela j á desapareceu antes. E eu não possosim plesm ente largar tudo toda vez que ela resolve desaparecer durantealgum as horas.

— Vou dizer um a coisa, acho que ela não pretende voltar logo — soltouCowboy John, tirando o chapéu e coçando o topo da cabeça.

— Eu não posso abandonar este caso. — Natasha apontou para o fim do

corredor, para a loira m agra que, naquele m om ento, estava enrolada em umxale de caxem ira com o se fosse um a vítim a de acidente. — Este é o m aiorcaso da m inha carreira. Você sabe disso. — Natasha não conseguiu olhá-lonos olhos e ficou um pouco corada. O estôm ago dele se contorceu de raiva.— Eu não posso sim plesm ente largar tudo, Mac.

— Então peço desculpas por ter incom odado — disse ele, ríspido. — Ligopara você na casa do Conor quando ela aparecer, pode ser?

— Mac! — protestou Natasha, m as ele j á tinha lhe dado as costas. De algumm odo, quase nada que ela fizera antes o decepcionara tanto quanto aquilo. —

Mac!

Ele escutou Cowboy John arrastando os pés e arfando atrás dele.

— Ai, caram ba, você vai m esm o m e fazer passar por todos aquelesdegraus de novo?

* * *

“Quanto m ais largo o peito, m ais bonito e forte é o anim al. (…) O pescoçoentão protegeria o cavaleiro e o olho veria o que está na frente da pata.”

Ela não se lem brava de um a só ocasião em que Vô a abraçara; não do j eitoque Vó a abraçava, com o se aquilo fosse tão natural para ela quanto respirar.

Quando chegava da escola, Sarah ia até a poltrona da avó e ela a puxava parao avental de ny lon que usava em casa, fazendo o perfum e quente e doce, umcheiro parecido com o de talco, encher as narinas da m enina, que se acomodava no peito coberto de m atelassê, um a fonte eterna de am or e segurança.Quando dava boa-noite a Sarah, a avó a abraçava por m ais tem po do que onecessário e depois repreendia a si m esm a por isso.

Depois que Vó m orreu, Sarah, tom ada pela tristeza, às vezes se encostavaem Vô, que a envolvia com um dos braços e dava tapinhas em seu om bro.Mas não era um gesto que ele fazia com naturalidade, e a m enina sem pretinha a sensação de que o avô ficava um pouco aliviado quando ela se recom

punha.

Sarah sentira a falta de contato hum ano com o se fosse um a dor m uito antesde com preender o que de fato lhe fazia falta.

Certo dia, m ais ou m enos um ano antes, o avô estava sentado na m esa dacozinha quando ela chegou do estábulo m ais cedo do que de costum e eperguntou o que ele estava lendo. Sarah j á vira aquele livro tantas vezes queele nunca lhe despertara a curiosidade. O avô colocara o volum e comcuidado no tam po lam inado da m esa e com eçara a falar sobre um hom emque tinha a habilidade de um poeta, o dom ínio do cam po de batalha de umgeneral e que fora um dos prim eiros a defender um a parceria com o cavaloque não fosse baseada na crueldade nem na força. Vô leu alguns trechos paraela. As palavras, se não fosse pelo tom antiquado da tradução, poderiam tersaído de qualquer m anual m oderno sobre hipism o: “Portanto, sem pre que éinduzido a se com portar de acordo com as atitudes que assum e naturalmente, quando está m ais ansioso para exibir sua beleza, há de dem onstrar queele tem prazer em ser m ontado e que aquilo lhe confere um a aparêncianobre, arrebatada e atraente.”

Sarah se aproxim ara um pouco m ais do avô.

— É por isso que eu sem pre digo a você para nunca perder a paciência comum cavalo. É preciso tratá-lo com bondade e respeito. Está tudo aqui. Ele é opai do adestram ento de cavalos — explicara Vô, dando tapinhas no livro.

— Ele devia am ar m esm o os cavalos — com entara Sarah.

— Não. — Vô balançara a cabeça em um gesto enfático.

— Mas ele disse…

— Não tem nada a ver com am or — explicara ele. — Não tem nem um a menção ao am or no livro. Ele não é sentim ental. Faz todas as coisas, demonstra toda essa douceur, porque entende que é assim que se extrai o m elhorque o anim al tem a oferecer. É assim que hom em e cavalo triunfam j untos.Não com esse negócio de beij inho, beij inho. — Ele fizera um a careta, eSarah rira. — Não tem nada a ver com em oção. Ele sabe que o m elhor para

o cavalo e para o hom em é que sim plesm ente se com preendam e serespeitem .

— Não entendi.

— O que um cavalo desej a não é ser um cachorrinho de colo, chérie. Ele não

quer ser enfeitado com fitas, não quer que cantem para ele com o essas meninas bobas fazem no estábulo. Um cavalo é dangereux, poderoso. Maspode ser obediente. Para m otivar um cavalo a fazer o que você quer, aprotegê-la, você precisa com preender as coisas que ele próprio quer fazer.Assim , você consegue obter algo lindo.

Vô ficara olhando para Sarah, tentando se assegurar de que ela haviaentendido. Mas ela se sentia decepcionada. Queria acreditar que Boo a amava.

Queria que ele fosse atrás dela no pátio não porque ela talvez tivesse com ida,m as porque precisava estar com ela. Não queria pensar nele com o o m eiopara um fim .

O avô deu tapinhas na m ão dela.

— O que Xenofonte pede é m elhor. Ele pede respeito, o m áxim o decuidado possível, consistência, j ustiça, delicadeza. Será que o cavalo ficariam ais feliz se ele falasse de am or? Non. — A m enina estivera determ inada anão concordar com o avô. — Mas com certeza dá para ver que existe am orno que ele faz —

dissera Vô, com o canto dos olhos se enrugando. — Há am or no que ele faz,no que ele… propõe. O sim ples fato de ele não falar disso não significa queo am or não está presente em cada palavra do livro. Está ali, Sarah. Em .Cada. Pequena.

Ação. — Ele batera na m esa.

A m enina não tinha percebido na ocasião, m as nesse m om ento se davaconta: aquilo fora o m ais próxim o que ele chegara de lhe dizer quanto a am

ava.

* * *

Os dois haviam descansado nas proxim idades de Sittingbourne, onde Sarahperm itira que Boo pastasse nas beiradas verdej antes dos cam pos com arédea com prida, ela própria com fom e suficiente para enfim se perm itircom er um dos pãezinhos que trouxera. Acom odou-se em um a alam edatranquila, sentada em cim a de um saco plástico para se proteger da gram a molhada, e observou a cabeça de seu cavalo se levantar quando ele se distraíada pastagem por um corvo distante ou, em um a ocasião, um cervo ao lado deum a m ata.

Sarah cavalgara com rapidez pelo terreno aberto, galopando pelas beiradasdos cam pos arados, seguindo trilhas de terra quando possível, permanecendo nas beiradas para proteger as patas de Boo. Durante todo esse tempo, m antivera a estrada à direita, escutando o ruído distante do trânsito,ciente de que não se perderia enquanto estivesse perto da via. Boo ficaraenergizado com o verde.

Tinha em pinado várias vezes quando Sarah o deixara correr solto em um areta plana e longa, agitando a cabeça de anim ação e com o rabo erguido. Elase flagrara dando risada, incentivando-o para que avançasse, apesar de saberque devia reservar a energia dele para as horas que viriam depois.

Quando é que ele tinha ficado livre assim ? Quando é que os olhos delehaviam

se enchido apenas com horizontes verdej antes ao longe, seus cascosacolhidos pelo piso m acio? Quando é que ela fora tão livre? Durante algunsquilôm etros gloriosos, Sarah se perm itiu esquecer o que estava deixandopara trás e se concentrar apenas no sim ples prazer de estar conectada àqueleanim al m aravilhoso, com partilhando do prazer dele naquele am biente,sentindo a alegria de um a força superior disposta a se aderir a ela. Os doisdispararam pelas beiradas dos cam pos, saltando os arbustos e as valetascheias de água parada.

Boo, contagiado pela disposição dela, avançava cada vez m ais rápido,

recusando-se a desacelerar ao atravessar pequenas alam edas, preferindosaltá-las, com as orelhas eriçadas, as patas longas engolindo o solo.

Acho que, se me transformar em cavaleiro, serei um homem com asas.

Ela ganhara asas, com o Xenofonte. Fez com que o cavalo fosse m ais rápido,engolindo em seco, rindo, com lágrim as se acum ulando nos cantos dosolhos e escorrendo pelo rosto na horizontal. Ele m ordeu o bidão com m aisforça, esticou o corpo e correu do j eito que os cavalos fazem desde o iníciodos tem pos, por m edo, por prazer, pela glória de fazer aquilo. Ela perm itiu.Não im portava para onde ia. O coração dela estava acelerado, transbordante.Era disso que Vô havia falado: da passage, da avaliação cuidadosa do quepoderia ser conquistado, não do tem po interm inável que era gasto paraaperfeiçoar um m ovim ento das patas dele e nem das rodas. Um a frase doavô voltava toda hora à m ente dela, ritm ada, acom panhando as batidas doscascos de Boo no solo.

“É assim que você vai escapar”, dissera ele.

É assim que você vai escapar.

* * *

— Segunda visita desta tarde. Ele vai ficar contente. — A enferm eira tinhaacabado de fechar a porta quando eles chegaram ao quarto do Capitão. Elahesitou. — Preciso dizer que ele não tem passado m uito bem nos últim osdias. O

m édico vai fazer um a consulta hoj e à tarde, m as desconfiam os que eletenha sofrido outro derram e. Talvez vocês tenham um pouco de dificuldadepara entender o que ele diz.

Mac viu a expressão desolada de John. Ele j á havia insistido para fazer umlongo intervalo e fum ar no estacionam ento antes de entrar, para conseguirencarar a provação que teria pela frente.

— Segunda visita? — indagou Mac. — A neta dele esteve aqui?

— Neta? — disse ela, anim ada. — Não… um m enino. Ele parecia conhecê-

lo. Um garoto bonzinho.

Cowboy John m al pareceu assim ilar a inform ação. Balançou a cabeça deleve, com o se estivesse se recom pondo, e os dois entraram no quarto.

A cabeça do Capitão estava apoiada no travesseiro, a boca, um pouco aberta.

Em poucos dias, ele parecia ter envelhecido m ais dez anos.

Cada um se posicionou de um lado da cam a, acom odando-se nas cadeirascom todo o cuidado para não acordá-lo. Mac batucou os dedos nos j oelhos,perguntando-se se eles deviam m esm o estar ali. John deu um a olhada noidoso, então focou o olhar em um a das fotos de Sarah e Boo e nasdesgastadas fitas de decoração de Natal penduradas nas paredes ao seu redor.

— Gostei das fotos — com entou. — É bom para ele poder vê-las.

O caubói e Mac esperaram por um tem po. Nenhum dos dois queria acordar oidoso para lhe dar a notícia catastrófica de que am bos o tinham desapontadoda pior m aneira possível. A respiração do Capitão era superficial, com o secada inspiração fosse um esforço, um a reflexão tardia de um corpo cansadodem ais para fazer qualquer coisa além de existir. A m ão esquerda dele, quefora forte um dia, tornara-se um a garra atrofiada em cim a do peito, m alcoberta pelo lençol. As bochechas estavam fundas, a pele, seca etransparente, exibindo as veias arroxeadas de m aneira dolorosa. Um copotransparente, cheio até a m etade de chá leitoso, fora colocado na m esinha aolado dele, com um bico rígido que saía da tam pa.

Mac rom peu o silêncio.

— Não podem os contar para ele, John — sussurrou.

— Você não tem o direito de não contar para ele. Sarah é a pessoa m aispróxim a do hom em . Ela desapareceu, ele tem o direito de aj udar a gente aencontrar a m enina.

Com o é que ele conseguiria fazer isso?, Mac queria questionar. Com o é que

saber da situação poderia surtir qualquer outro efeito além de deixar o idosoarrasado? Mac apoiou os cotovelos nos j oelhos e deixou a cabeça cair.Preferiria estar em qualquer lugar que não aquele. Queria estar vasculhandoas ruas, conversando com pessoas. Preferiria ir a um a delegacia confessarsua incom petência com o aspirante a pai, interrogando os am igos de Sarah.Um a m enina e um cavalo não podiam sim plesm ente evaporar. Era impossível que ninguém os tivesse visto.

— Ora… ora, Capitaine…

Mac ergueu os olhos. Cowboy John sorria.

— Com o vai, seu filho da m ãe preguiçoso? Já está cansado de ficar deitadonessa cam a?

O Capitão virou a cabeça devagar na direção dele. O m ovim ento pareceuexigir um esforço fora do com um .

— Você quer algum a coisa? — John se inclinou para a frente. — Um copod’água? Algo m ais forte? Tenho um pouco de uísque no bolso.

O caubói sorriu. O Capitão piscou. Talvez estivesse dem onstrando animação.

Ou talvez tivesse apenas piscado.

— Ouvi dizer que você não está passando m uito bem .

O velho olhou firm e para ele.

Mac percebeu que até John estava vacilando: ele se virou para Mac, entãovoltou-se para o idoso.

— Capitaine, eu… eu preciso contar um a coisa. — Ele engoliu em seco. —

Preciso contar que Sarah fez algo m eio m aluco.

O idoso continuava encarando-o, àquela altura sem piscar os olhos azuis.

— Ela fugiu com aquele cavalo. E… e pode ser que, quando eu sair daqui,ela j á tenha voltado para o estábulo e estej a nos esperando. Mas, precisodizer, acho que ela… — Cowboy John respirou fundo. — Acho que elapegou o cavalo e foi para algum lugar.

Atrás dele, Sarah sorria em preto e branco com o corpo inclinado para afrente, apoiada no pescoço do cavalo, com um a m echa solta do cabelo naboca.

— Não queríam os deixar o senhor preocupado — disse Mac. — E ela temficado bem com a gente. De verdade. Anda feliz, o m ais feliz possível sem osenhor… e com toda a certeza nunca deu nenhum m otivo para nospreocuparm os de verdade. Mas, hoj e de m anhã, eu entrei no quarto dela, eaquele livro dela e um a m ochila tinham desaparecido. E quando olhei nobanheiro…

— Mac… — interrom peu John.

— …a escova de dentes dela não estava lá. E é bem provável que o Johntenha razão e agora ela estej a lá, rindo de nós, m as eu fiquei im aginando setem algum lugar em que o senhor acha que ela possa estar, se…

— Mac, cale a boca, caram ba — interrom peu o caubói. Mac parou. Johnindicou o idoso com a cabeça. — Ele está tentando falar — disse, inclinando-se e tirando o chapéu para aproxim ar a orelha da boca do velho. Os olhosdele encontraram os de Mac. — Ei? — disse ele, confuso.

Mac se inclinou para a frente no lugar do caubói, esforçando-se para escutaro suspiro por cim a do barulho dos aparelhos e a conversa das enferm eiras nocorredor. O idoso se sentou ereto.

— Eu sei — repetiu.

Mac percebeu que o idoso não tinha se alterado em absoluto com a revelação.

Não havia vestígio de ansiedade em sua expressão. Os olhos de Mac foramao encontro dos de John.

— Ele disse que sabe.

19

“Um cavalo desobediente não é apenas inútil, mas também com frequênciafaz as vezes de um traidor.”

XENOFONTE, SOBRE EQUITAÇÃO

A chuva tinha se firm ado m ais ou m enos no m eio da tarde. No com eçoeram só alguns pingos incertos, m as o peso deles (e a fatia de céu escuro quese aproxim ava com rapidez) servia de aviso para o que estava por vir. Foicom o se a luz do dia tivesse se apagado em m inutos, sem o cair paulatino danoite, sem a graduação suave do pôr do sol: em um m om ento havia luz eentão, em um intervalo que pareceu durar poucos m inutos, tudo estava pretoe com um a chuva pesada e insistente.

O m otorista freou com um a derrapada diante dela. Sarah puxou Boo paratrás, apreensiva, m as o hom em colocou a cabeça para fora da j anela.

— Sua idiota! Você deveria estar usando um a faixa reflexiva — berrou. —Eu podia ter atropelado vocês dois.

Quando ela conseguiu falar, sua voz saiu esganiçada, tom ada pelo m edo.

— Desculpe. Eu… eu m e esqueci de trazer.

— Então vá para a estrada principal — retrucou ele, com as luzes de freiopiscando. — Onde dá para ver você.

Já estava escuro. A chuva caía sem parar j á fazia quase um a hora, e Boo,com sua anim ação dissipada depois de tantos quilôm etros extras, caminhava e trotava m eio arrastado, com a cabeça tão baixa quanto Sarah permitia, a crina em plastrada no pescoço. A m enina tentou incentivá-lo, m as também estava exausta. A m ochila cheia de coisas que ela havia acreditado quefossem de valor incalculável tinha pesado sobre seus om bros nos dezesseisquilôm etros anteriores, e seu bum bum estava tão dolorido que ela m udavade posição a intervalos regulares, tentando em vão encontrar um j eito de

ficar confortável. A sela ia escurecendo por causa da água e, apesar do casacoim perm eável, sua calça j eans estava ensopada. Ela sabia que, se aindaprecisasse cavalgar por m uito tem po, o tecido áspero e m olhado arranhariaa pele gelada. Mas ainda enxergava as luzes da cidade. Prom eteu ao cavaloque eles logo descansariam .

Quando Sarah chegou à estrada de pista dupla, o trânsito era ensurdecedor.Ela ficou pelas beiradas e ignorou o brilho dos faróis dos carros e o barulhoatordoante, abrindo cam inho por entre os cam inhões que se enfileiravam noacostam ento alargado, todos parados na últim a parte da estrada de altavelocidade. Passou por cabines com as cortinas fechadas, dando indicação deque m otoristas dorm iam lá dentro; em outras, pequenas televisões lançavam

som bras em m ovim ento pelos interiores coloridos e com aparência de lares,enfeitados com obj etos brilhantes. Ela viu cam inhões tchecos, cam inhõespoloneses, fotografias de fam ílias e pôsteres de m ulheres nuas, cartazesfeitos à m ão avisando que “Este cam inhão é vistoriado regularm ente” e que“Im igrantes ilegais serão processados”. Alguns m otoristas a viram quandopassou; um deles gritou algo que ela não entendeu direito.

Boo estava cansado dem ais para se incom odar com qualquer um a daquelascoisas. Com eçara a ficar sem equilíbrio; suas patas avançavam com m uitadificuldade. E então ali estava: a enorm e placa arqueada por cim a da estradaprincipal. Sarah aprum ou o corpo e segurou as rédeas com firm eza. Quandochegou ao topo da colina, viu as balsas de j anelas reluzentes paradas noporto, o elegante labirinto de viadutos guiando o trânsito na direção delas.

Mais três quilôm etros. Ela sentiu o germ e de algo parecido com anim açãodentro do peito. Passou a m ão pelo pescoço do cavalo exausto, im plorando aele que aguentasse m ais um pouco.

— Você consegue — m urm urou. — Só falta a gente chegar até lá. E euprom eto que nunca m ais vou sair do seu lado.

* * *

— Pode inform ar o seu nom e para o tribunal, por favor?

— Constance Devlin.

— E, por favor, diga sua profissão.

— Sou professora na escola Norbridge. Sou a titular do quarto ano e ocupoessa posição há onze anos.

Ela fez um a pausa para beber um pouco de água e deu um a olhada naclaraboia, onde a chuva batia.

— Srta. Devlin, há quanto tem po conhece Lucy Persey ?

— Bom , a escola é pequena. Eu a conheço desde que ela com eçou no jardim de infância e dei aula para ela no ano passado. Tam bém dou aulaparticular de idiom as, e Lucy vem fazendo aula extra há quase dois anos.

— A senhorita poderia falar um pouco m ais alto? — pediu o j uiz. — Nãoconsigo escutá-la direito.

A m ulher ficou verm elha. Natasha sorriu para ela, tentando dar um a força.

Fora do tribunal, Constance Devlin havia sido um a testem unha estranhamente nervosa. Dissera várias vezes a Natasha que não estava nada contente deser arrastada para aquela situação. Aquilo não era responsabilidade dela, quenunca estivera em um tribunal. E a professora tinha certeza de que a escolatam bém não estava nada contente por ela se envolver em um caso dedivórcio. Natasha entendera tudo de im ediato: a m ulher era do tiposolteirona e só se sentia à vontade no próprio am biente, um m undo de meninas boazinhas, a atm osfera

velada e rarefeita de um a escola exclusiva. Ela devia ser dedicada aotrabalho e se desm anchar em lágrim as quando colocavam a m arca errada derem édio para m á digestão na sala dos professores.

— Eu preferiria de verdade que m e fizessem o m enor núm ero possível deperguntas. — As m ãos trêm ulas traíam o tom cuidadoso e determ inado comque ela falava.

— Diria que conhece bem os seus alunos, Srta. Devlin? — Natasha usou o

tom de voz m ais suave possível.

— Conheço. Provavelm ente m elhor do que a m aioria dos professores. —Ela olhou para o j uiz, torcendo o lenço nervosam ente por entre os dedosroliços. —

Nossas turm as são bem pequenas. É um a escola bem … pequena e boa.

— E, desde que passou a conviver com Lucy Persey, o que a senhorita achadela?

Constance Devlin hesitou.

— Bom , ela nunca foi o que se pode cham ar de aluna de destaque. Até mesm o no j ardim de infância era um pouco tím ida. Mas sem pre foi um a menininha alegre. Ela é inteligente. Tem um bom dom ínio dos núm eros, e seunível de alfabetização está bem acim a da m édia. — Sorriu um pouco aopensar na criança. Depois ficou séria. — Mas, no ano passado… elaretrocedeu um pouco.

— Retrocedeu um pouco?

— As notas caíram . Teve dificuldade na escola.

— A personalidade dela chegou a m udar?

— Na m inha opinião, ela foi ficando cada vez m ais fechada.

Ben entrou no tribunal e se sentou em silêncio atrás de Natasha. Ela esperoupor m ais um bilhete, m as ele só lhe entregou um a pasta com boletinsescolares, e a m ente dela divagou. Mac devia estar no hospital. Será que, setivesse encontrado Sarah lá, teria ligado para avisá-la?

— Diz aqui, Srta. Devlin, que Lucy faltou m uito à escola.

— Em diversas ocasiões, sim .

— Um a m édia de quinze dias a cada sem estre. Os pais estavam cientes?

— Eu… parti do princípio que sim . Costum am os lidar com a Sra. Persey.

— Costum am lidar com a Sra. Persey. — Natasha deixou essas palavras noar.

No banco, ela viu o Sr. Persey cochichando em tom de urgência com seuadvogado. — E quais foram as j ustificativas que a Sra. Persey deu para asfaltas da filha?

— Não foi nada m uito específico. Ela dizia que Lucy não estava se sentindobem . De vez em quando era um a dor de cabeça. Houve vezes em que nãodeu j ustificativa algum a.

— E o que a escola achou dessas faltas?

— Nós ficam os um pouco preocupados com a quantidade. E… com a

m udança no com portam ento de Lucy.

— O fato de ter ficado m ais fechada e passado a ir m al nos estudos?

— Isso.

— Srta. Devlin, há quanto tem po a senhorita é professora?

A respiração dela ficou m ais pesada, a voz se exaltou um pouco.

— Vinte e quatro anos. — Ela observou o tribunal quando falou.

Natasha deu um sorriso de incentivo para a m ulher.

— De acordo com a sua experiência, quando a personalidade e o desempenho acadêm ico de um a criança m udam e, além disso, ela passa a faltar àescola com cada vez m ais frequência, qual seria a explicação?

— Protesto. — Sim pson estava de pé. — Isso é pedir para a testem unhaextrapolar.

— Acredito que a experiência da Srta. Devlin nesse assunto sej a válida,

Excelência.

— Reform ule a sua pergunta, Sra. Macauley.

— Srta. Devlin, de acordo com a sua experiência, a senhorita acredita que taism udanças de com portam ento sugerem problem as em casa?

— Protesto, Excelência.

— Sente-se, Sr. Sim pson. Eu gostaria que a pergunta fosse reform ulada,Sra.

Macauley.

— Em casos em que há problem as em casa, Srta. Devlin, quais seriam , nasua opinião, as m udanças de com portam ento m ais com uns que se tornamevidentes na escola?

— Bem … — A Srta. Devlin olhou, sem j eito, para o Sr. Persey — …eudiria desem penho ruim … talvez um com portam ento m ais fechado ou impulsivo. Pode variar entre esses dois.

— E, durante sua carreira de professora, a senhorita deu aulas para m uitascrianças que tinham problem as em casa dos quais a escola estava ciente?

— Ah, sim — respondeu ela, um tanto cansada. — Infelizm ente, o fato de ascrianças estudarem em um a escola particular não garante que elas nãotenham problem as com a fam ília.

— Srta. Devlin, se houvesse algo seriam ente errado em casa; se, digam os,Lucy tivesse sofrido algo ainda m ais grave do que o traum a do divórcio, asenhorita acha que conseguiria perceber?

Um longo silêncio se instalou, tão longo que o j uiz parou de fazer o queestava fazendo e ficou batucando com a caneta, na expectativa. Natasha,enquanto esperava a m ulher organizar os pensam entos, rabiscou um bilhetepara Ben: Mac ligou?

Ele balançou a cabeça.

— Srta. Devlin? — interveio o j uiz. — Ouviu a pergunta?

— Ouvi, sim — respondeu ela em um tom de voz baixo e preciso. — Ouvi, ea

reposta é que não sei. — Droga, pensou Natasha. A Srta. Devlin colocou asm ãos na m adeira à sua frente. — Só sei que, quando um a criança fica muito quieta, significa que ela está sofrendo. Em Lucy, o silêncio, a falta dealegria com as coisas que antes a deixavam contente, o afastam ento dos amigos, tudo isso m e indica que ela está sofrendo. — A professora respiroufundo. — Mas eu não sei exatam ente o que crianças feito Lucy sofrem ,porque elas não confiam o suficiente em nós para contar. Não falam nadapara os professores, e não contam nada aos pais porque não sabem ao certo seeles não vão ficar bravos ao ouvirem algo que não querem . Então, não, Sra.Macauley, as crianças não nos contam nada porque, na m aioria das vezes,ninguém escuta m esm o. — Todos no tribunal ficaram im óveis. A Srta.Devlin passara a falar diretam ente com os pais, com o rosto corado, a vozaum entando de volum e e de urgência. — Vej o isso sem ana após sem ana,ano após ano. Observo o m undo dessas crianças desm oronar, a vida que elasconhecem se dissolver sem que elas tenham o m enor controle sobre isso.Elas não têm poder para decidir onde vão m orar, com quem vão passar o tempo, quem vai ser a nova m am ãe ou o novo papai… Nossa, às vezes elas nãopodem opinar nem no próprio sobrenom e novo. E nós, os professores, quedeveríam os servir de m odelo para essas crianças, tem os que dizer a elas queestá tudo bem , que a vida é assim , que elas só têm que aceitar e seguir emfrente.

Ah, e ainda por cim a garantir que tirem notas boas.

— Srta. Devlin… — interrom peu o j uiz.

No entanto, parecia que um a barragem se rom pera.

— Mas não é. É um a traição. É um a traição, e todos nós ficam os emsilêncio porque… Bom , porque a vida é dura, e às vezes essas criançasprecisam aprender isso, não é m esm o? É só a vida. Mas, se os senhorespudessem olhar para essas situações a partir da posição que ocupo, essascrianças perdidas, perdidas, vagando por aí, m ais solitárias do que se pode

acreditar… Todo o potencial desperdiçado… Bom , sinceram ente, para m imnão faz diferença se a criança apanhou ou não. — Ela enxugou o rosto com am ão gorducha. — Ah, sim , eu sei o que está m e perguntando, Sra.Macauley. Sim , foi o que eu disse: para m im , não faz diferença. E o fato deeu estar aqui e de estarem pedindo para que eu especifique exatam ente qualpedacinho daquela m enina está doendo e de quem é a culpa, para ver quemganha m ais nessa picuinha m arital pavorosa, com toda a sinceridade, fazcom que eu sej a cúm plice.

A Sra. Persey estava sentada em um silêncio paralisante; o m arido dela, dooutro lado da sala, cochichava, furioso, com o advogado dele:

— Não vou ficar aqui escutando isso! Essa m ulher é obviam ente histérica.

— Srta. Devlin… — disse Natasha, hesitando porque a m ulher ergueu a mão.

— Não — disse a professora, com firm eza. — Você m e pediu paraparticipar disto, então eu vou falar tudo. Ah, sim , todos vão sobreviver. —Ela assentiu com sarcasm o. — Com o vocês sem dúvida dizem a si m esmos, essas crianças vão

crescer um pouco m ais rápido e ficar um pouco m ais sábias. Mas queremsaber o que m ais? Elas vão parar de confiar. Vão ficar um pouco m aiscéticas. Vão passar a vida inteira esperando o m om ento em que tudo vaidesm oronar de novo.

Porque é raro, é raríssimo, alguém ser capaz de conter a própria dor e, aindaassim , oferecer a um a criança o apoio e a com preensão de que ela precisa.Pela m inha experiência, a m aioria dos pais e das m ães não tem tem po nemenergia para garantir que isso aconteça. Talvez eles sej am apenas egoístasdem ais. Mas com o é que eu vou saber? Eu não sou m ãe. Não sou nemcasada. Não passo de um a das pessoas azaradas que são pagas para recolheros cacos.

Ela parou. O tribunal estava em total silêncio, em expectativa. O escrivão,que estava digitando em certa velocidade, parou e ficou esperando. Mas aSrta.

Devlin respirou fundo. Quando parecia ter se recom posto, ela se virou para oj uiz.

— Por favor, pode m e dar perm issão para m e retirar? Eu gostaria m uito deir em bora.

O j uiz parecia com pletam ente estupefato. Olhou para Natasha. Ela assentiusem dizer nada e percebeu que Sim pson fazia o m esm o.

A professora pegou a bolsa e saiu cam inhando determ inada na direção daporta. Ao passar pela fileira em que o casal Persey estava, parou. As orelhasdela ficaram rosadas e sua voz falhou conform e falava:

— Vai ser m uito fácil Lucy seguir pelo cam inho errado. É só pararem deescutá-la.

Natasha ficou parada, observando a m ulher baixinha e vestida com esm erodesaparecer pela porta de m adeira pesada. Ouviu um m urm úrio deinsatisfação à direita. De repente, viu a cena com o que do ponto de vista deoutra pessoa, enquadrada feito Mac faria: os pais, para variar, m ais furiososcom um inim igo com um do que entre si; o estagiário dela sorrindo com umprazer só dele diante da reviravolta inesperada; o j uiz cochichando com oescrivão. Então ela com eçou a tirar os gram pos da peruca.

— Excelência. Eu gostaria de pedir um recesso.

* * *

— Você quer o quê?

Ela estava no guichê de bilhetes para passageiros a pé, o casaco pingando nochão da enorm e construção m odular. Havia tirado o capuz, m as ainda assima visão de um a m enina de botas e calça j eans m olhadas cham ava aatenção. Sarah sentia um a queim ação vinda dos olhos dos outrospassageiros, fixos nela.

— Um a passagem — disse ela, baixinho. — Para um a pessoa e um cavalo.

— Você está brincando?

O hom em gordo olhou para a fila atrás dela em busca de apoio. Estão vendoo

que ela está m e pedindo?, era o que dizia a sua expressão.

— Eu sei que vocês aceitam cavalos. Eles atravessam o canal o tem po todo.

— Ela m ostrou o passaporte de Boo. — O m eu cavalo até veio da França.

— E com o você acha que ele chegou aqui?

— Em um barco.

— Ele veio rem ando?

Sarah ouviu risadas abafadas atrás dela.

— De balsa. Eu sei que eles atravessam o tem po todo. Olhe, tenho dinheiro.E

nós dois tem os passaporte. Eu só preciso…

Ele gesticulava para alguém sentado a pouca distância, atrás do enorm evidro.

Um a colega, com o m esm o blazer de cor berrante, levantou-se e se aproximou do guichê. Ela exam inou a aparência desgrenhada de Sarah e o passaportena m ão da m enina.

— Você não pode levar o cavalo com os passageiros norm ais — disse a mulher depois que o hom em lhe explicou a situação.

— Eu sei disso. — A ansiedade endureceu a voz de Sarah. — Não sou burra.

Só quero saber com o posso com prar um a passagem para ele.

— Ele tem que estar em um a carreta. Você precisa contratar um a em presaespecializada. Ele precisa de docum entação do veterinário. Há regras do

governo para o transporte de anim ais de fazenda.

— Ele não é um anim al de fazenda. É um Selle Français.

— Por m im , ele pode ser até um pequinês. Mas existem controles rigorososem relação à travessia do canal por anim ais, e, a m enos que você possa m econvencer de que duas daquelas pernas são falsas, ele está suj eito a essasregras.

— Você pode m e aj udar? Pode m e dizer onde eu encontro um a em presaassim ? É urgente, de verdade. — As paredes da sala úm ida e com iluminação forte pareciam estar se fechando em volta dela. Sarah am arrara Boo àgrade branca do lado de fora e, pela j anela, o via ali parado, obediente, mesm o com um grupo pequeno de pessoas ao seu redor, com crianças seesticando dos braços dos pais para tocá-lo. — Eu preciso fazer a travessiaainda hoj e — disse ela, e sua voz falhou.

— Não tem com o você fazer isso, não sem a docum entação. Não podem ossim plesm ente em barcar um cavalo em um a balsa para passageiros.

Alguém estalou a língua em sinal de desaprovação. De repente, Sarah sesentiu exausta, e lágrim as de frustração fizeram seus olhos arderem . Nãoadiantava. Dava para perceber pelo tom de voz de todos eles. A m enina sevirou sem falar nada e cam inhou em direção à porta.

— O que ela achou que era isto aqui? Escolinha de m ontaria?

Ao sair do recinto Sarah escutou as pessoas rindo, atingida pela brisa fria.

Desam arrou Boo. Um a em presa de transporte? Docum entos? Com o é queela ia saber de tudo aquilo? Olhou para a balsa. A ram pa estava abaixada eos carros

percorriam devagar a distância entre a terra firm e e a em barcação, guiadosaté as filas estreitas por hom ens de coletes em cores néon. Seria im possívelpassar por eles. Não havia chance algum a. Um enorm e soluço suprim idofoi subindo pelo seu peito. Com o podia ter sido tão burra?

Um hom em se aproxim ou dela e exam inou Boo de cim a a baixo com otipo de olhar que dem onstrava que entendia de cavalos.

— Você está participando de algum tipo de cavalgada com patrocínio? —

perguntou ele.

— Não. Sim — respondeu ela, enxugando os olhos. — Estou. Estouparticipando de um a cavalgada com patrocínio. Preciso chegar à França.

— Ouvi o que você disse lá dentro. Você precisa de um local de estabulação.

— Estabulação?

— É tipo um hotel para cavalos. Tem um lugar assim a uns seis quilôm etrosdaqui, seguindo pela estrada. Lá vão poder resolver a situação para você.Tom e.

— Ele rabiscou um nom e em um cartão de visitas e entregou para ela. —Volte até a rotatória, pegue a terceira saída e siga por uns cinco ou seisquilôm etros que você vai encontrar o lugar de que estou falando. É bembásico, m as é lim po e não vai sair m uito caro. De qualquer form a, pareceque o seu cavalo precisa descansar um pouco.

Sarah ficou olhando para o cartão. Estava escrito “Sítio Willett”.

— Obrigada — gritou ela, m as o hom em j á tinha ido em bora, e a voz delafoi carregada pela brisa do m ar.

* * *

Natasha se recostou na cadeira e ficou passando o cavalo de prata de um adas m ãos à outra. O obj eto escurecera um pouco, e ela o esfregou,observando o cinza se transferir para os seus dedos.

Richard, o sócio sênior, estava conversando com um cliente. A voz ribombante dele e a acústica péssim a da construção antiga significavam que o somse propagava pelo corredor com o se ele estivesse na sala ao lado. Estavarindo, um som cordial, explosivo. Por um instante, Natasha se perguntou

quanto Linda j á tinha escutado de suas conversas telefônicas ao longo dosanos: as vistorias do carro, os papanicolaus que ela perdera, as obj eçõesbalbuciadas de seu casam ento falido. Ela nunca havia pensado em com osuas palavras poderiam ser audíveis.

Eram quinze para as quatro.

As pastas à frente dela estavam organizadas, em pilhadas e etiquetadas. Comcuidado, ela colocou o cavalinho em cim a da pilha. Sarah, ao seu m odo, nãoera diferente de Ali Ahm adi. Vira um a oportunidade e a aproveitara; aqueleera o cam inho de todas as crianças cuj os prim eiros anos as haviam forçadoa

depender apenas de si m esm as. O com portam ento da m enina, apesar de imprevisível, não era inexplicável.

E, m esm o que estivesse irritada, Natasha sabia que não podia culpar agarota.

Ela culpava a si m esm a por pensar que poderia absorver Sarah em sua vidasem nenhum custo, sem reverberações para atribular sua existência tãocuidadosam ente organizada. E, assim com o no caso de Ali Ahm adi, elahavia sido recom pensada em dobro.

Natasha levara quase quarenta m inutos para convencer a Sra. Persey de queRichard era a pessoa certa para assum ir o caso.

— Mas eu quero você — reclam ara a cliente. — Sabe com o o m eu m aridoé.

Você disse que estaria presente.

— Nós instruím os Michael Harrington por um m otivo. Ele é o m elhoradvogado nessa área. Acredite em m im , Sra. Persey, a m inha ausência nãotrará nenhum a desvantagem para a senhora. Com sorte, volto daqui a um oudois dias e, enquanto isso, Richard está absolutam ente a par de tudo, prontopara a senhora.

Natasha tinha sido forçada a oferecer um desconto no pagam ento, pela

“inconveniência”. Richard disse rispidam ente que o dinheiro teria de sair doshonorários dela. Natasha desconfiava que a Sra. Persey nem sequer reparariase aquilo apareceria ou não na conta final (e sem dúvida repararia m enos doque Natasha no valor total), m as a m ulher era o tipo de pessoa que precisavasentir que saíra ganhando em qualquer situação. Se isso era o necessário param anter a cliente, disse Richard, era o que precisava ser feito. Seu pequenobufo de desprazer quando Natasha proferiu as palavras “em ergência na família” fez com que ela de repente sentisse solidariedade pelas colegas comfilhos.

— Natasha? Isso é algum tipo de piada?

Conor entrou na sala sem bater. Natasha j á esperava que ele aparecesse.

— Não, não é — respondeu ela, levantando-se e m exendo em um a gavetaem busca das chaves. — É verdade, vou passar o caso Persey para outrapessoa e, sim , todo m undo é capaz de se virar m uito bem sem m im poralguns dias. Com sorte, talvez eu estej a de volta am anhã.

— Você não pode sim plesm ente largar a porcaria do caso. É im portantíssimo, Natasha. Está nos j ornais.

— Richard vai assum ir na m inha ausência. Ela tem o Harrington para oacordo financeiro e, depois de hoj e, eu ficaria m uito surpresa se eles nãoconcordarem com as questões da custódia. Nossa tím ida Srta. Devlin podenos ter feito um favor.

Conor estava do outro lado da m esa, com as m ãos apoiadas no tam po.

— A Sra. Persey quer você. Não pode ficar dando um a de babá para eladurante toda a preparação e cair fora sem m ais nem m enos bem no m eio detudo.

— Já conversei com ela sobre isso. Não tenho m ais nenhum a testem unhapara

interrogar. Posso deixar o resto para Harrington. — Conor balançou a cabeça,m as ela continuou falando: — Conor, nenhum dos dois está preocupado deverdade com o bem -estar de Lucy. Este caso tem a ver com dinheiro e comquem se dá m elhor na vingança. Quase todos os divórcios são assim , com ovocê bem sabe.

— Mas para onde você vai? — perguntou Conor.

— Não sei direito.

— Não sabe direito?

Linda entrara na sala com um a xícara de chá e Ben a seguira.

— Isto é interessante — m urm urou ela.

— Em ergência na fam ília — disse Natasha, fechando a pasta.

Conor a encarou.

— A m enina. Achei que você ia devolvê-la para a assistência social. A essaaltura ela j á devia ser problem a de outra pessoa. — Natasha lhe disse com oolhar que ficasse quieto. Ela percebeu a curiosidade de Ben e Linda. — Deixeo Mac cuidar disso.

— Não posso.

— Mac? — repetiu Linda, j á sem fingir que não estava escutando. — Mac, oseu ex? O que ele tem a ver com qualquer coisa?

Natasha a ignorou.

— Mac não sabe nem por onde com eçar — argum entou. — Não poderesolver isso sozinho.

— Ah, sim . Afinal de contas, é sem pre preciso largar tudo pelo Mac.

— Não é assim .

— Então deixe a polícia cuidar do caso. É roubo.

Linda colocou a xícara de chá na m esa.

— Será que eu posso aj udar de algum a form a?

Natasha ficou em silêncio.

Conor estava com o m axilar cerrado.

— Natasha, preciso dizer que, se você abandonar esse caso agora, significacom eter suicídio profissional no que diz respeito a este escritório.

— Eu não tenho escolha.

— Não sej a tão dram ática.

— “Suicídio profissional”? Quem está sendo dram ático?

— Natasha. É o divórcio dos Persey. Você instruiu Michael Harrington. O

desfecho desse caso pode definir se você se torna sócia ou não. Pode criar uma boa reputação para este escritório. Você não pode sim plesm ente largartudo para sair correndo atrás de um a criança fuj ona que, para com eço deconversa, provavelm ente enganou você para que a acolhesse.

Natasha se levantou e foi até a j anela.

— Lin, Ben, será que vocês poderiam nos dar um m inuto a sós, por favor?—

Ela esperou os dois saírem . Tinha a forte desconfiança de que ficariamescutando atrás da porta, por isso baixou a voz. — Conor, eu…

— Você não pegou a m enina roubando? E nunca teve m uita certeza emrelação a ela. Desde o prim eiro dia.

— Você não sabe da história toda, Conor.

— Por que será?

— Certo. O que você faria, então, se fosse um dos seus filhos?

— Mas ela não é sua filha coisa nenhum a. Esse é o m aldito problem a.

— Eu sou legalm ente responsável por ela. Ela é um a m enina de quatorzeanos.

— Um a m enina que você estava xingando hoj e de m anhã por roubar seucartão de crédito.

— O fato de ela ser um a ladra não m e absolve da responsabilidade.

— Mas vale a pena destruir sua carreira por causa de um a ladrazinha?

Caram ba, Natasha, faz só algum as sem anas que você estava nervosaachando que o garoto com o problem a dos quilôm etros percorridos pudesseacabar com a sua carreira. E agora você está prestes a j ogar tudo fora por uma m aldita adolescente que você nem está representando.

Ela ouviu as palavras dele da m esm a form a que um a daquelas criançaspoderia escutá-las: maldita, ladra, quanto desprezo. Natasha pegou o casaco.

— Olhe — disse ele. — Sinto m uito. Não era m inha intenção falar assim .Só estou tentando proteger você.

— Isso não tem nada a ver com tentar m e proteger, não é, Conor? Não temnada a ver com proteger a m inha carreira.

— O que você está querendo dizer?

— Isso tem a ver com o Mac. Você não suporta saber que eu a acolhi j untocom ele e que o desaparecim ento dela significa que agora eu tenho de lidarcom ele.

— Ah, fala sério.

— Então qual é o problem a?

— Eu sou sócio deste escritório, Natasha. Se você sum ir no m eio do caso,não perdem os só dinheiro. A nossa reputação vai sofrer um trem endo golpe.E você não acha que vai ficar difícil pegarm os um a porcaria de caso importante se as pessoas pensarem que serão deixadas na m ão bem no m eio doprocesso?

— Quem precisa saber? Pode ser que eu j á estej a de volta am anhã. E vouexplicar tudo ao Harrington. Ele vai entender.

— Que bom , porque eu não entendo. Você vai j ogar tudo — ele deu um aênfase horrível à palavra — fora por um a m enina de quem nem gosta e porum ex-m arido que transform ou a sua vida em um inferno. Muito bem , boasorte.

Espero que valha a pena — disse ele, com um tom de voz gélido.

A construção daquele prédio nunca fora das m ais sólidas, m as daquela vez a

batida da porta foi suficiente para derrubar vários livros da estante.

* * *

Boo ouviu o barulho antes dela. Estivera tão cansado no quilôm etro anteriorque Sarah tinha quase chorado de culpa a cada passo. Ia arrastando os cascos,com a cabeça bem baixa, im plorando com cada m úsculo relutante que elalhe perm itisse parar. Mas Sarah não tinha escolha: dolorida, com os ossosentorpecidos pelo cansaço, ela im plorava para que o anim al avançasse.

Finalm ente, quando viu a placa indicando que o Sítio Willett estava a umquilôm etro de distância ladeira acim a, à direita, ela apeou e foi andando paraperm itir que Boo tivesse pelo m enos aquele breve descanso; as lágrim as deexaustão se m isturavam às gotas de chuva que escorriam pelo seu rosto.

E então escutaram o som , que chegou até eles carregado pelo vento furioso:um choque distante, um grunhido e um relincho, vozes de hom em exaltadas.Em seguida, os barulhos desapareceram quando o vento m udou de direção.

O efeito daquilo sobre Boo foi elétrico. Ele ergueu a cabeça, esqueceu a

exaustão e parou, com o corpo todo sintonizado ao som inesperado. Vô lhedissera certa vez que cavalos eram criaturas céticas. Sem pre esperavam opior.

Por m ais coraj oso que fosse, Boo com eçou a trem er, e, enquanto seesforçava para escutar com atenção, Sarah teve que conter um calafrio. Osom , ainda que baixo, alertava sobre algo terrível à frente.

Os dois continuaram avançando, Boo com o passo delicado e m eio trôpegode um a criatura com m edo de ver o que havia adiante e, ainda assim ,incapaz de se segurar e não olhar; o equivalente equino de um a m ulhervestindo penhoar em um film e de terror.

Pararam ao portão e observaram a cena à frente. Um enorm e cam inhão-baúestava estacionado no m eio do pátio com a traseira acesa à vista deles, oinesperado verm elho brilhante cham ando m uita atenção no m eio do breu.Um a m ulher com um a j aqueta acolchoada pairava na ponta da ram pa comas m ãos no rosto enquanto, dentro do cam inhão, dois hom ens seesforçavam para segurar um cavalo que parecia estranham ente recurvado, atraseira forçada para baixo, a parte da frente fora de vista. Parecia que um adivisória tinha m eio que caído em cim a dele, e os dois hom ens, berrando egesticulando entre si, tentavam soltá-

lo.

Havia sangue por todo lado. O líquido cobria o chão e tinha respingado naslaterais m etálicas da traseira; chegou até Sarah em um a névoa fina que fezcom que ela sentisse um leve gosto m etálico. Boo expirou e recuou de medo.

— Não consigo estancar. Preciso de outra atadura, Bob.

Um dos hom ens estava aj oelhado ao lado do pescoço do cavalo, inj etandoalgo ali. Deixou a seringa de lado. Os braços dele estavam cobertos de algo

escarlate, o rosto, suj o de verm elho. As patas do cavalo se agitavam emconvulsões e o hom em m ais pesado, que estava perto da traseira, xingouquando um casco atingiu seu j oelho.

— O veterinário está chegando — berrou a m ulher. — Mas vai dem oraralguns m inutos. Ele está no Jake.

Ela entrou no cam inhão e tentou tirar a divisória de cim a do cavalo.

— Nós não tem os alguns m inutos.

— Posso aj udar em algum a coisa?

A m ulher se virou e exam inou Boo e o capacete de m ontaria de Sarah: símbolos básicos que m ostravam que a m enina podia ser útil. Ela indicou um acocheira com a cabeça.

— Coloque o cavalo lá, querida, e m e aj ude a levantar isto.

— Ela não tem seguro, Jackie — resm ungou o hom em m ais velho enquantotentava soltar um pino no chão.

— Sem ela não vam os conseguir tirar isto daqui — argum entou o hom emna traseira com um sotaque irlandês carregado. — Caram ba, m eu velho,com o foi que você se m eteu nesta confusão? — A cabeça dele desapareceuatrás da divisória. — O sedativo não está adiantando nada. Você tem outraseringa, Jackie?

Sarah enfiou Boo na baia e correu de volta para o cam inhão.

— Tem um arm ário ali no escritório — vociferou a m ulher para ela. — Estáaberto. Encontre um frasco que diz… Ai, caram ba, o que é m esm o?…

Rom ifidina e um a seringa e traga para cá, pode ser?

Ela saiu em disparada, energizada pelo clim a terrível, pelas batidas e pelaagitação desesperada que continuava vindo do cam inhão. Rem exeu no armário até encontrar um frasco pequeno e transparente e um a agulha envolta emplástico. Quando voltou, as m ãos da m ulher j á estavam estendidas, àespera.

— Ai, m eu Deus, Jackie, acho que ele quebrou.

Ela ouviu a voz desesperada vindo do cam inhão. Sangue escorria pelostapetes de borracha para o pátio de pedras. Sarah ficou observando o líquidose espalhar em form as ovais oleosas ao redor de cada pedra.

— Dê o sedativo a ele, m esm o assim . Não vai fazer a m enor diferença paraele se tiver quebrado, m as, se isso ainda não houver acontecido, pode ser queele perm aneça im óvel por tem po suficiente. Cadê a porcaria do veterinário?

— Venha aqui. — Jackie fez um gesto para Sarah. — Tente segurar isto.

Sarah subiu no cam inhão e pegou a parte de baixo da divisória, que estava mal fixada. Tentou segurar a base, j á escorregadia por causa do sangue. Focoua atenção no pátio, tentando não olhar para o cavalo ao seu lado.

Jackie rasgou a em balagem plástica da agulha com os dentes. Abriu a tam pado frasco, enfiou a agulha no líquido e puxou o êm bolo, então entregou aseringa para o hom em que estava m ais para o fundo do cam inhão. Sarahdeu um pulo quando um a das patas traseiras deu um coice em sua direção.

— Está tudo bem aí com você, querida?

Ela assentiu sem dizer nada. Os dois hom ens estavam ensopados de sangue;havia um a poça noj enta ao redor da traseira do cavalo, escorrendo em um movim ento calm o, lúgubre, quase pulsante. Sarah percebeu que sua calça jeans e seu casaco j á estavam suj os.

— Calm a, rapaz, m uita calm a agora. — O irlandês tentava tranquilizar oanim al. — Pronto. Os olhos dele estão fechando, Jackie. Acho que estafuncionou. Mas só posso exam inar a pata quando tirarm os a divisória.

As costas de Sarah doíam , m as ela não podia dizer isso a eles. Ergueu umpouco cabeça quando faróis entraram no pátio e a cegaram , então ouviu abatida de um a porta de carro e passos m olhados. Um hom em ruivo corriaram pa acim a com a m aleta j á aberta.

— Ah, droga, isto aqui não está nada bonito.

— Acham os que ele pode ter quebrado a pata, Tim .

— Tem m uito sangue aqui. Há quanto tem po ele está sangrando assim ?

— Faz alguns m inutos. Am arrei um torniquete na dianteira, m as a patasofreu um im pacto enorm e quando ele caiu.

As patas do cavalo estavam im óveis, ele só dava um coice fraco de vez emquando. Sarah observou o veterinário se abaixar, de costas para ela, e começou a exam iná-lo. A visão do que ele fazia era bloqueada pelo irlandês epela parte da divisória que ainda não tinha caído.

— Não entendo com o ele fez isso. Entrou em pânico quando descarregam oso potro e de algum j eito conseguiu subir e passar a pata por cim a. Quandotentou voltar para trás, puxou tudo para cim a dele m esm o. Foi tão rápido,não dá para acreditar.

— Eu nunca deixo de m e surpreender com os problem as que os cavalosarranj am para si m esm os. Vam os tirar esta divisória daqui para eu examinar o cavalo m elhor. Vocês, garotas, segurem a ponta de trás, e vam ospuxá-lo na nossa direção para soltar a parte da frente.

Sarah se preparou, com eçara suar, prestando atenção na m ulher de cabeloencaracolado, j á corada de tanto esforço, ao seu lado. A j aqueta delacheirava a sangue e fum aça de cigarro. Enfim a enorm e divisória central sesoltou. Eles viraram a peça e a tiraram com cuidado do cam inhão, depois acarregaram ram pa abaixo e a apoiaram na lateral do veículo.

Jackie lim pou as m ãos na parte da frente da calça j eans, aparentem entealheia às m arcas que deixara ali.

— Está tudo bem com você?

Sarah assentiu. A calça dela tam bém estava verm elho-escura.

— Vam os — disse a m ulher. — Não tem nada que você possa fazer agora.

Vam os para o escritório. Vou preparar um chá. Quer um a xícara?

A ideia de um chá quente era tão tentadora que Sarah ficou sem palavras por

um instante. Seguiu Jackie até o pequeno escritório e se sentou onde a mulher indicou. A cadeira de plástico cinza ficou m anchada no m esm oinstante com o sangue das roupas dela.

— Este negócio é um a dureza desgraçada — disse Jackie enquanto enchia obule. — Só perdem os uns dois a cada ano, m as isso sem pre acaba com igo.A culpa não é do Thom . Ele é cuidadoso. — Ela olhou para trás. — Açúcar?É bom para o choque.

— Sim , por favor.

A m enina estava trem endo. Tivera um vislum bre do cavalo quando adivisória fora retirada: ele se parecia com Boo.

— Vou colocar duas colheres para você. E duas para m im tam bém . Cavalodesgraçado.

Em um a das paredes, havia um grande quadro branco com os nom es dequatorze cavalos anotados. Docum entação, diretrizes do Departam ento deAgricultura e um a lista de telefones de em ergência estavam penduradas dolado de cada um . Diversas transportadoras tinham pregado cartões na paredeao lado de um ou outro cartão de Natal e fotos de cavalos sem nom e. Sarahreconheceu Jackie j unto de um deles.

— Tom e. — A m enina aceitou o chá, agradecida pelo calor da xícara emsuas m ãos geladas. — Vou esperar eles term inarem para preparar o chádeles. Se conseguirem salvá-lo, ainda vai dem orar um pouco.

— Você acha que ele vai sobreviver?

Jackie balançou a cabeça.

— Duvido. Nunca vi um cavalo se m eter em um a situação dessas. Ele deveter batido a pata com toda a força para entortar a divisória daquele j eito. Eesses puros-sangues têm patas tão esguias… — Ela desabou em um a cadeiraatrás da m esa e deu um a olhada no relógio. Então se virou para Sarah com ose visse a m enina pela prim eira vez. — Está tarde para você estar montando. Você não é daqui, é?

— Eu… disseram que eu devia falar com você. Preciso de um estábulo parapassar a noite.

Jackie a exam inou com atenção.

— Você está indo para algum lugar?

Sarah deu um gole no chá e assentiu. Se os m eses anteriores tinham lheensinado algo, era que ela deveria falar o m ínim o possível.

— Você parece m uito nova.

Sarah encarou a m ulher.

— É o que todo m undo diz — retrucou, forçando um sorriso.

Jackie abriu um livro grande à sua frente.

— Bom , com certeza podem os oferecer um a cocheira para você. Afinal decontas, parece que vam os ter um a sobrando. Qual é o nom e do seu cavalo?

— Baucher — respondeu Sarah.

— Passaporte?

Sarah enfiou a m ão na m ochila e entregou o docum ento para Jackie.

— Todas as vacinas dele estão em dia — observou.

Jackie folheou o passaporte, rabiscou um núm ero e o devolveu a Sarah.

— Cobram os vinte e cinco por noite, com feno e ração incluídos. Se quiserração seca é m ais caro. É só você m e dizer do que ele precisa queprovidencio.

— Podem os ficar uns dois dias? Preciso resolver a próxim a etapa da m inhaviagem .

Jackie batucou na m esa com a caneta esferográfica.

— Pode ficar quanto tem po quiser, querida, desde que pague. Só m e deixeum telefone para contato.

— Não posso ficar aqui?

— Só se quiser um a cam a de palha. — Jackie suspirou. — Você não estáhospedada em algum lugar?

— Achei que vocês tam bém hospedassem pessoas aqui.

— Não trabalham os com hum anos, querida. Não vale a pena. Os m otoristascostum am dorm ir nos cam inhões, e os outros ficam em algum a pousada.Mas posso lhe dar um telefone se você quiser. Aqui. — Ela apontou para uma lista na parede. — O Crown costum a aceitar hóspedes de últim a hora.Quarenta libras por noite com banheiro no quarto. A Kath vai cuidar bem devocê. As coisas ficam tranquilas por lá nesta época do ano. Vou ligar paraela.

— Fica longe?

— Uns seis quilôm etros ladeira acim a.

Os om bros de Sarah desabaram . Ela ficou em silêncio por alguns m inutos eesqueceu que precisava controlar a voz.

— Eu vim até aqui a cavalo — disse, por fim , com a voz abafada pela gola.—

Não tenho com o ir até lá.

Ela estava m uito cansada. Não conseguiria ir m ais a lugar nenhum .

Im ploraria para que aquela m ulher a deixasse dorm ir no chão do escritório.

Um tiro abafado soou.

As duas ergueram o olhar. Jackie pegou um m aço de cigarros de um a gavetaà sua frente, tirou um com um gesto rápido e bateu a ponta na m esa. Esperouum instante antes de voltar a falar.

— Você disse que veio até aqui a cavalo? De onde?

O coração de Sarah ainda reverberava por causa do tiro.

— É… com plicado.

Jackie acendeu o cigarro, recostou-se na cadeira e deu um a tragada profunda.

— Você está m etida em confusão? — A voz dela havia endurecido.

Sarah conhecia aquele tom . Era o tom de alguém que im aginava o piorpossível sobre o outro.

— Não.

— Aquele cavalo é seu?

— Você viu o passaporte dele.

A m ulher a observava fixam ente.

— Meu nom e está nele. Olhe, ele m e conhece. Faço ele m e cham ar se fornecessário. É m eu desde que tenho quatro anos.

O veterinário estava saindo do cam inhão pois a questão estava resolvida.

— Tem os um quarto vazio nos fundos. Vinte e cinco libras e eu incluo um jantar, j á que você não tem para onde ir. Prom eti a Thom que ia dar com idapara ele hoj e à noite, então m ais um a pessoa na m esa não vai fazer m uitadiferença. Mas… — Ela se inclinou para a frente. — Não vou registrar quevocê está aqui. Tem algum a coisa errada. Posso dar abrigo a você, m as nãoquero m e envolver.

As duas foram interrom pidas quando a porta se abriu. Os hom ens entraram eencheram a salinha. O irlandês balançou a cabeça.

— Ah, que pena — balbuciou Jackie. — Pronto, sente-se aqui, Thom , voufazer um chá para você. E você, Bob. Sente-se ao lado da…

— Sarah — disse ela, m antendo as m ãos em volta da xícara, com m edo deperder a chance de ficar ali se fizesse algo ou falasse dem ais.

— Fratura na pata da frente e artéria perfurada. Coitado, não tinha a m enorchance. — O rosto do irlandês estava lívido de choque, com m anchas vermelhas nos lugares em que ele devia ter encostado sem perceber. — Tim nemteve tem po de assinar a papelada dele. Está com um a égua dando cria. Entraum , sai outro, não é?

— Ah, que se dane o chá. — Jackie bateu a tam pa no bule. — Isto aqui estápedindo um a dose de rem édio. — Estendeu a m ão para a outra gaveta da mesa e tirou um a garrafa de líquido cor de âm bar. — Mas não para você,Sarah.

Os olhos dela brilharam com o aviso.

Jackie adivinhara sua idade, pensou a m enina. Não se envolveria m ais doque o necessário.

Sarah ficou de cabeça baixa.

— Eu prefiro chá — disse.

20

“Nunca lide com ele quando estiver passando por um arroubo passional.

Raiva, impaciência, medo: (…) praticamente qualquer emoção humana minaa comunicação eficiente com um cavalo.”

XENOFONTE, SOBRE EQUITAÇÃO

Apesar da chuva, ela j á estava na frente do escritório, desaj eitada com seuterninho elegante e seus saltos altos, andando pela calçada de um lado paraoutro com passos curtos e im pacientes. Assim que viu o carro dele, correuem sua direção com a bolsa e a pasta em baixo do braço. Mac se sentiualiviado: ainda existia um a parte de Natasha que ele entendia. Sorriu ao seinclinar sobre o banco para abrir a porta do carona para ela, que entrou, alheiaàs buzinas que soavam atrás deles.

— Achei que você…

— Não diga nada — interrom peu ela, com o m axilar tenso e o cabeloescorrido por causa da chuva. — E, assim que a encontrarm os, você e eu nãoterem os m ais nada que tratar entre nós. Certo?

O sorriso de Mac sum iu. Ele estava prestes a entrar no fluxo do trânsito, mas parou.

— Obrigada, Mac, por ter vindo até o outro lado da cidade para m e pegar —

disse ele, irônico.

— Você quer que eu agradeça? Certo. Valeu, Mac. Não tenho com o dizerque estava ansiosa por este passeiozinho. Melhor assim ? — O rosto delaficou verm elho de raiva, com pontos de cor nas bochechas.

— Você não precisa vir j unto, sabe? Já deixou isso bem claro.

— Ela tam bém é m inha responsabilidade. Você deixou isso bem claro.

A paciência de Mac j á estava por um fio.

— Quer saber de um a coisa? Isto aqui j á está difícil o suficiente sem que eutenha que lidar com as suas m erdas. Se quiser vir com igo, beleza, m as, sevai agir assim , deixo você em casa agora e vam os em carros separados.

— Lidar com as m inhas m erdas? Você faz ideia do que eu tive que largarpara sair à procura dela? Ou do que isso acabou de causar à m inhareputação?

— É um prazer ver você de novo. — Natasha se sobressaltou quandoCowboy John enfiou a cabeça pelo espaço entre os bancos da frente. — Sóachei m elhor lem brá-los que vocês têm plateia. — Ele finalizou acendendoum cigarro.

Natasha se virou para Mac, boquiaberta.

— Ele entende de cavalos — explicou Mac. — E conhece Sarah desde queela era bem pequena. — Com o Natasha não disse nada, com pletou: — Vocêvai

resolver a questão do cavalo quando encontrarm os os dois, Tash?

Ela rem exeu na bolsa.

— Então, onde ela está? Vocês tiveram algum a notícia? Preciso voltar para om eu trabalho o m ais depressa possível.

— É — balbuciou Mac, enfim saindo com o carro. — Porque, afinal decontas, você é a única que tem um em prego de verdade.

— Eu estou no m eio de um caso im portante, Mac.

— É. Você j á disse isso.

Natasha se virou no assento para ficar de frente para ele.

— O que está querendo dizer?

— Estou querendo dizer que a única coisa que você fez foi falar de com oesta situação é difícil para você. Com o está atrapalhando a sua vida. Com oeu atrapalhei a sua vida.

— Isso não é j usto.

— Mas é verdade. Você j á parou para pensar na possibilidade de que um aparte dessa confusão sej a culpa sua?

Cowboy John se recostou no assento e colocou o chapéu por cim a do rosto,resm ungando:

— Ai, m eu Senhor.

— Minha culpa?

O trânsito estava péssim o. Mac colocou o braço direito para fora da j anela e

forçou a entrada em outra faixa igualm ente lenta.

— É. Sua — respondeu ele. Talvez fosse porque ele sentia que tinha passadoo dia todo andando em círculos. Talvez fosse m edo de onde a m eninapudesse estar.

Talvez fosse apenas a visão de Natasha, toda arrum ada com seu terninhoelegante, sem pre tratando-o com o se fosse o inim igo, o culpado, um bodeexpiatório conveniente. — Foi você quem caiu fora, Natasha. Foi você quemse ofereceu para cuidar dela e depois chegou à conclusão de que era difícildem ais.

— Mac sentiu o ultraj e no silêncio dela, m as não deu im portância. — Vocêacha que a inconveniência é só para você neste caso? Eu tive que cancelartrabalhos, e John tem coisa m elhor para fazer. — Mac deu um a guinada novolante e foi para a faixa do m eio. O carro parecia encolher ao redor dele. —Se você não tivesse caído fora, se tivesse tratado Sarah com o prioridade emvez do seu orgulho ferido, talvez não estivéssem os m etidos nesta confusão.

— Você está pondo a culpa em mim?

— Só estou dizendo que você tem um papel nisso tudo.

Natasha passara a berrar.

— Bom , quem foi que levou a nam orada para casa e ficou desfilando comela de calcinha na frente da Sarah?

— Eu não fiquei desfilando com ela!

— A m ulher estava quase nua. E entrei na m inha casa, na nossa casa… e lá

estava um a porcaria de um a m odelo pré-pubescente toda glam orosa comum sorriso sarcástico para m im , só de calcinha!

— A casa de vocês parece legal — com entou John.

— Você acha que para Sarah foi legal ver isso? Sendo que até então estávamos nos fazendo de fam ília feliz perto dela?

— Ah, não venha dizer que aquilo teve algo a ver com a fuga da Sarah.

— Bom , não aj udou a criar um clim a m uito harm onioso, não é m esm o?

— Eu j á pedi desculpa. — Mac bateu com a m ão no volante. — Eu disseque não ia voltar a acontecer. Mas, fala sério, até parece que você não levou oseu nam orado para a nossa casa, certo? Para o m eu quarto.

— O quarto não é seu.

— O quarto era nosso.

— Só m elhora — observou John, dando um a tragada no cigarro.

— Ele não ficou em casa nenhuma vez enquanto você estava m orando lá.

Então não m e venha…

— Só porque você tinha outro lugar para ir.

— Ah. — Ela se recostou no assento com os braços cruzados. — Estava mesm o m e perguntando quanto tem po ia dem orar até você tocar nesseassunto.

— Tocar em que assunto?

— Na m inha outra casa. Bem que m e avisaram . — Natasha balançou acabeça. — Eu devia ter escutado.

Mac olhou para ela.

— De que diabo você está falando?

— Que você ia usar isso contra m im na hora de negociar um acordo.

— Ah, pelo am or de Deus, você está sendo ridícula. Acha que eu m e incomodo com a porcaria da sua casinha alugada? Não ligaria nem se você tivesseum cruzeiro para passar os fins de sem ana.

— Sem querer interrom per… — John se inclinou para a frente m ais um avez e soltou um a nuvem de fum aça. — E, podem acreditar, eu passariahoras escutando vocês dois. Mas não estam os m eio que perdendo o rum o?

O coração de Mac batia desconfortavelm ente nas costelas.

Natasha estava sentada o m ais longe possível de Mac no carro pequeno e umpouco carregado dem ais, com o se ele estivesse contam inado, com o se elapreferisse estar em qualquer outro lugar do m undo.

— Será que vocês dois, pessoas adoráveis, podem dar um a trégua? —

perguntou o caubói. — Só até encontrarm os Sarah? Seria tão… legal.

Os três ficaram em silêncio enquanto Mac dirigia pela cidade rum o ao leste.

O m axilar dele estava tenso.

— Por m im , tudo bem — falou Natasha, bem baixinho. Pegou o guia deruas.

— Afinal, para onde estam os indo?

— Ela vai adorar a resposta. — John riu.

Mac m anteve o olhar firm e à frente.

— Para a França — respondeu ele, j ogando o passaporte de Natasha no colodela. — Sarah está indo para a França.

* * *

Eles levaram toda a extensão engarrafada do túnel de Blackwall para explicaro que ocorrera no hospital. Natasha perguntara várias vezes se eles tinhamescutado direito, se o idoso estava m esm o com a cabeça no lugar, até queCowboy John com eçou a ficar irritado.

— Ele está doente, m as é tão esperto quanto você, m oça — resm ungou.

Mac percebeu que ele não gostava de Natasha. Olhou feio para ela, do m esmo j eito que olhava para os gansos ruidosos do pátio dele, com claradesconfiança.

— Mesm o que vocês tenham ouvido direito, acho bem difícil acreditar queSarah pense que tem um a chance real de cavalgar até… Onde é m esm o?

— Olhe no m apa. — Mac apontou para o papel, sem tirar os olhos daestrada.

— Fica no m eio da França.

Natasha estreitou os olhos.

— Mas ela não vai chegar até lá, vai?

— Ela não vai passar do litoral. A m enos que aquele cavalo consigaatravessar o canal da Mancha a nado.

— John e eu acham os que ela não vai chegar nem a Dover. — O carro saiudo túnel, em baixo do céu que ia escurecendo e o coração de Mac se apertouquando viu que o trânsito continuava intenso e lento do outro lado tam bém .Deu seta para a direita e entrou na estrada de pista dupla. — Ele acha que ocavalo vai precisar descansar m uito antes de chegar lá.

Natasha tossiu para dem onstrar sua insatisfação e então baixou a j anela.

Fungou e então se virou no assento. Um silêncio pressagioso tinha seinstalado.

— Isso aí é o que estou pensando? — perguntou ela.

— Com o é que eu vou saber? — respondeu o caubói. — Não leio os seuspensam entos.

— É… m aconha?

Ele tirou o cigarro enrolado de entre os dentes e o exam inou com cuidado.

— Espero que sej a, sim , pelo preço que paguei.

— Você não pode fum ar isto neste carro. Mac, diga a ele.

— Bom , m oça, não dá para eu sair para fum ar, não é?

Natasha deixou a cabeça afundar de leve nas m ãos. Mac olhou para Johnpelo espelho e fez um breve gesto de solidariedade para ele.

Natasha ergueu a cabeça e respirou fundo.

— Sabe, Sr. Cowboy, ou sej a lá qual for o seu nom e, eu gostaria m uito que

você não fum asse drogas no carro. Pelo m enos não enquanto estiverm ospresos no trânsito. — Ela estava sentada na beirada do assento, de olho noscarros dos dois lados.

— Assim eu não fico enj oado. E, além do m ais, estou ficando estressado dever vocês dois brigando. E isso não é nada bom para um velho feito eu.Vocês viram o que aconteceu com o Capitão.

Natasha engoliu em seco. Parecia que o pavio dela estava chegando ao fimcom rapidez.

— Deixe eu ver se entendi. Se não perm itirm os que você fum e substânciasilegais no carro do Mac, você vai vom itar ou m orrer de estresse?

— Isso m esm o.

Mac observou ela se esforçar para controlar a respiração. Pareceu dem orarum pouco. Pela prim eira vez em dias, ele teve vontade de sorrir.

* * *

Houvera um a época, de acordo com Cowboy John, em que a hora do rush deLondres só durava isto: um a hora. O trânsito com eçava a ficar lento e asfilas se alongavam logo depois da saída da escola, e era raro a situação melhorar em m enos de quatro horas. Não podiam ter escolhido um horário piorpara sair, observou ele, tão casualm ente quanto um observador descom prom

issado — ou talvez alguém que tivesse acabado de fum ar um grande baseadoquase inteiro.

Ah, e, se não fosse incom odar, ele precisava fazer xixi. De novo.

Só para deixar as coisas m ais tensas, tinha com eçado a chover forte. O carrode Mac estava parado em um a fila com prida na rodovia A2, a sequência deluzes traseiras verm elhas parecendo o rabo de um dragão enorm e quasevisível por entre os lim padores de para-brisa que guinchavam por cim a dovidro.

Natasha passara a m eia hora anterior em silêncio, enviando m ensagens pelocelular, folheando docum entos e fazendo anotações. Tivera um a conversabreve, acalorada e em voz baixa com outra pessoa sobre o caso em que estavatrabalhando, além de um a conversa cochichada com outra pessoa que Macdesconfiava que fosse Conor. Quando Natasha fechou o celular, ele se sentiulevem ente realizado. Mexeu no rádio pela décim a quinta vez, tentandoencontrar o boletim de trânsito m ais recente.

— Não sei por que você fica fazendo isso — explodiu ela. — É óbvio queestam os presos no trânsito.

Mac deixou passar. Dava para ver que as conversas ao telefone a tinhamdeixado nervosa. Explicar que ele queria ver se havia algum a notícia sobreacidentes com cavalos não aj udaria em nada.

— Tenho a sensação de que ela j á deve ter saído de Londres a esta altura —

disse Mac, batucando no volante. — Acho que devíam os pegar a próxim asaída

da A2, quem sabe seguir por um a estrada secundária. Ela deve ter pegadoum atalho bem antes daqui. Se tiverm os sorte, podem os até ultrapassá-la. —Ele colocou a m ão para fora da j anela e alguém perm itiu que entrasse nafaixa adj acente. — Sugiro irm os tão longe quanto acharm os que ela podeter ido. Se não conseguirm os encontrá-la até as oito, acho que devem os ligarpara a polícia.

No banco de trás, só dava para enxergar o chapéu de John. Ele assentiu.

— Parece um bom plano — disse o chapéu. — Mas continuo não achando muito bom esse negócio de polícia.

— Porque aí você vai ter que j ogar as suas drogas pela j anela?

— Querida, você vai ter que arrancar a droga do m eu cadáver.

— Tam bém podem os providenciar isso — retrucou Natasha, com doçura.

Mac olhou para ela.

— Tam bém pensei em outra coisa. Se cancelarm os o seu cartão de crédito,ela não terá dinheiro nenhum . Terá que dar m eia-volta e retornar.

Natasha refletiu sobre a questão.

— Mas, se ficar sem dinheiro, ela vai correr m ais perigo.

Cowboy John se introm eteu:

— Acho que ficar sem dinheiro não vai im pedi-la de seguir em frente. Ela ém uito determ inada.

— Depende da quantia que ela j á sacou — ponderou Mac. — Mas, se elapuder tirar m ais, não dará para saber até onde pode ir. Estam os praticamente facilitando a fuga dela.

— Vocês têm certeza absoluta de que ela pegou o cartão? — questionouJohn.

— Vou dizer, conheço essa m enina há m uito tem po, e ela não é do tipo querouba.

Mac esperou que Natasha dissesse algo, talvez m encionando os peixes empanados no superm ercado, o dinheiro que sum ira da casa deles. Mas elaficou parada, parecendo refletir profundam ente sobre algo.

— Tash?

— Se Sarah continuar usando o cartão, o rastro vai denunciar por onde elaesteve — disse Natasha, pensando em voz alta. — Tem um serviço para oqual podem os ligar para pedir os detalhes da últim a transação. — Ela sevirou para Mac e, pelo m enos dessa vez, não parecia acusá-lo de nada. —Em geral a inform ação fica disponível cerca de duas horas depois que ocartão é usado. É a nossa m elhor chance de descobrir onde ela está semenvolver a polícia. E, se ela se hospedou em um hotel, bom , m aravilha.Podem os ir direto para lá. — Ela se perm itiu dar um leve sorriso. — Podeaté ser que a encontrem os hoj e à noite.

Cowboy John soltou um a longa nuvem de fum aça.

— Ela não é tão boba quanto parece, essa sua m ulher.

— Eu não sou m ulher dele — retrucou Natasha, ríspida, digitando um número de telefone. — Abra a j anela, Cowboy. O carro está fedendo. — Quinzem inutos

m ais tarde, ela disse, triunfante: — Dartford. Tirou cem libras em Dartfordem algum m om ento antes do m eio-dia. Estam os no cam inho certo.

* * *

Tinha parecido tão simples no guia de estrada, pensou Natasha, passando odedo pela fina linha verm elha. A rodovia A2 seguia um traj eto bastante reto,passando por Sittingbourne, Gillingham e entrando em Canterbury. Mas,conform e o carro se deslocava pela estrada no escuro, com as filas andando eparando, a chuva e o vapor da respiração de três pessoas que em baçava as janelas o tem po todo, não havia sinal de que um a m enina e seu cavalotivessem existido um dia, m uito m enos passado por ali.

Natasha estava sentada em silêncio. Quanto m ais ela se afastava de Londres,m ais pesada ficava a m assa sólida que se form ara em seu estôm ago. Acada quilôm etro que percorriam , ela entendia um pouco m elhor a magnitude da tarefa que tinham pela frente. Sarah poderia estar em qualquerlugar em um raio de oitenta quilôm etros. Poderia ter ido para o leste a partir

de Dartford. Poderia ter calculado que iriam procurá-la em Dover e terdecidido ir para um dos portos m enores. Pior ainda, eles podiam terentendido tudo errado, e a m enina talvez não estivesse indo para a Françacoisa nenhum a.

Quando os três chegaram a Canterbury, Natasha se convenceu de que tinhamido longe dem ais. A m enina nunca teria chegado até aquele ponto, disse aoshom ens. Era só conferir o clim a. Ela forçava os olhos e avistava form as imaginárias à luz fraca, distraída por pessoas e por um ou outro carro sob a iluminação pública.

— Acho que deveríam os voltar — sugeriu Natasha.

Mas Mac insistiu que Sarah devia ter seguido aquele cam inho e que, se nãoestava ali, significava que eles deveriam continuar avançando.

— Ela saiu m ais ou m enos às sete da m anhã — observou Mac. — Pode terpercorrido um a distância e tanto a esta altura.

Ele estava debruçado no volante e exam inava o horizonte escuro.

John parecia incerto. O cavalo era forte e faria qualquer coisa que a m eninapedisse…

— O que foi? — Natasha se virou para ele. — O que você ia dizer?

Estava escuro dentro do carro, e o rosto do caubói estava escondido.

— Eu ia dizer: a m enos que eles tenham sofrido um acidente.

Às sete horas o trânsito havia m elhorado um pouco, e as placas indicandoDover se tornaram m ais frequentes. Eles pararam quatro vezes, nos m omentos em que John anunciara, m ais um a vez, quando precisava esvaziar abexiga ou quando havia placas de pousadas ou hotéis perto da estrada. Mas,quando Natasha entrava para perguntar se um a m enina e um cavalo estavamhospedados nesses

locais, os atendentes da recepção invariavelm ente olhavam para ela com o sefosse louca. Não podia culpá-los: parecia m aluquice para ela tam bém .

Cada vez que voltava para o carro, Natasha perguntava aos dois hom ens setinham certeza de que o avô da m enina dissera que ela estava indo para aFrança, até que Mac lhe pediu para que parasse de tratá-los com o se fossemim becis. E, durante todo o tem po, as leais m ensagens de texto de Beninform avam a Natasha o que acontecia na reunião dos sócios — realizadasem ela.

Linda disse para não se preocupar

Essa foi a últim a m ensagem . Natasha achou que era um sinal de quedeveria se preocupar, sim .

Em algum m om ento da m eia hora anterior, os três tinham perdido umpouco da esperança. Mac ficava repassando um a equação m atem ática,tentando calcular até onde um a m enina e um cavalo se deslocando a cercade vinte e cinco quilôm etros por hora conseguiriam chegar, considerandoque as condições do tem po eram adversas e eles não tinham com ida.

— Acho que ela vai parar em algum lugar nos arredores de Canterbury —

concluiu ele. — Ou talvez devêssem os voltar para Sittingbourne.

— Eles devem estar m olhados dem ais — disse John, tristonho, lim pando a janela com a m anga.

— Acho que devíam os parar em algum lugar, ligar para os hotéis e perguntarse alguém a viu — sugeriu Natasha. — Mas vou precisar de outro telefone. O

m eu está ficando sem bateria.

Mac enfiou a m ão no bolso e lhe entregou o celular. Natasha pegou oaparelho e se flagrou pensando no últim o ano do casam ento deles, durante oqual o telefone de am bos havia ficado escondido com suas m ensagensincrim inadoras de flerte, um sintom a do que estava desm oronando.

— Obrigada.

No fim das contas, ela não queria usá-lo. Não queria se arriscar a ver m

ensagens daquela m ulher, ligações perdidas que apontassem para coisas queele talvez preferisse estar fazendo.

— Preciso fazer xixi — declarou John, m ais um a vez.

— Bem , tem os que abastecer — disse Mac. — Voto em irm os para Dover.Se é para lá que ela está indo, não im porta se estiverm os na frente.

— Mas, se ela tiver parado em Canterbury, só chegará a Dover am anhã.

— Bom , não sei o que m ais sugerir — disse Mac. — Não dá para ver nada.

Podem os passar a noite toda dirigindo no escuro sem conseguir nada. Vamos para Dover e então fazer o que você sugeriu, Tash: parar em algum lugarque tenha um telefone fixo. Podem os fazer algum as ligações e aproveitarpara com er algum a coisa. Está todo m undo exausto.

— E depois? — Natasha colocou o celular de Mac com cuidado no painel.

— Bom … acho que rezam os para descobrir onde ela está por m eio do seucartão de crédito. Depois disso, não tenho a m enor ideia.

* * *

O hotel era de um a rede m ultinacional com instalações sim ples, com doisblocos baixos de tij olinhos cor de vinho unidos por um a passarela de vidro.Natasha estava parada na enorm e área da recepção, am arfanhada e suada emseu terninho, de repente desesperada para se sentar e não fazer nada, paracom er e beber algo. Mac, à frente dela, conversa com a recepcionista, quesorria para ele, um sorriso que obviam ente não era do tipo corporativo.Natasha reparou nisso, m al-hum orada, e se virou para o outro lado. CowboyJohn estava acom odado em um a poltrona reclinável perto da parede, com aspernas abertas, a cabeça baixa entre os om bros ossudos. Natasha percebeuque os hóspedes m antinham certa distância dele ao passar e se sentiu m eioconstrangida por ele.

Então, quando o caubói ergueu a cabeça e deu um a piscadela lasciva para uma m oça, ela percebeu que era provável que sua solidariedade fosse um

desperdício.

— Certo — disse Mac, guardando a carteira no bolso. — Consegui um quartoduplo e um de solteiro.

— Mas precisam os de três quartos.

— Só sobraram esses. Se quiser tentar outro hotel, pode ir, m as estouexausto.

Para m im , isto aqui está de bom tam anho.

Em que quarto você vai dorm ir?, era o que ela queria perguntar, m as o rostode Mac exibia seu cansaço, então ela só o seguiu até os elevadores.

Foi John quem resolveu a questão.

— Vou tom ar um banho e com er algum a coisa — disse ele, pegando um achave de Mac quando as portas se abriram no segundo andar. — Liguem param im quando souberem qual será o nosso próxim o passo.

Ele saiu andando pelo corredor e, de repente, ela e Mac ficaram sozinhos eacanhados no elevador.

O quarto, assim com o todo quarto de hotel em que Natasha j á dorm ira,ficava na ponta m ais distante do prédio. Os dois cam inharam pelo corredoracarpetado em silêncio. Quando chegaram à porta, ela ia dizer algum a coisa,m as Mac lhe entregou a chave.

— Você faz os telefonem as. Vou até o term inal da balsa para ter certeza deque ela não está lá.

— Você não vai com er?

— Com o algum a coisa na rua.

Natasha observou as costas dele desaparecerem pelo corredor, o arqueadoinesperado de seus om bros, e com preendeu todo o peso da responsabilidadeque

Mac sentia por Sarah.

A im agem do desespero dele a im peliu para dentro do quarto, onde sesentou e parou por um instante, tentando não pensar no que estavaacontecendo com sua carreira em sua ausência, no ex-m arido que caminhava pelas ruas chuvosas de Dover, na ausência horrível e vergonhosa dascoisas que ela deveria estar sentindo no lugar daquele ressentim ento.Natasha Macauley fez o que sem pre fizera quando a vida real ficava difícildem ais: colocou água para ferver, pegou um caderno e um a caneta e começou a trabalhar ao telefone do hotel.

* * *

Eram quase dez e m eia quando Mac voltou. Ela pegara um a lista telefônicaem prestada na recepção e havia ligado não apenas para todos os hotéis deDover, m as tam bém para todos os hotéis e pousadas num raio de quinzequilôm etros dali.

Ninguém ouvira falar de Sarah Lachapelle nem vira um a m enina com umcavalo. Natasha ficou em dúvida se devia ligar para Mac, m as isso nãoadiantaria de nada. Ele teria telefonado se tivesse descoberto algo, assim como ela faria.

Cowboy John havia ligado de seu quarto m eia hora antes e anunciado que, senada m ais fosse acontecer, ele ia fechar os olhos durante algum as horas. Eladissera que tudo bem , rezando para que ele não colocasse fogo no quarto.Com o pescoço duro e exausta, ela pediu com ida e um a garrafa de vinho,então cam inhou pelo quarto. Estava esticando os braços por cim a da cabeçaquando ouviu as batidas na porta.

Mac estava parado no corredor. Não disse nada quando passou por ela e sesentou pesadam ente em um a das cam as de solteiro. Ele se deixou cair paratrás e usou um braço para proteger os olhos da luz do teto.

— Nada. É com o se eles tivessem evaporado.

Natasha serviu um a taça de vinho e a estendeu para ele. Mac se ergueu emum m ovim ento cansado e aceitou. Seu queixo estava cinzento com a barba

por fazer, e ele ainda carregava o cheiro da m aresia fria nas roupas.

— Rodei a cidade inteira. Até cam inhei pelas praias, caso ela estivesse lá.

— Você foi até a adm inistração das balsas?

— Perguntei ao pessoal que leva os veículos. Achei que eles reparariam sealguém tivesse ido até lá. Disseram que todos os anim ais precisam sertransportados em cam inhões. Ela não pode passar daqui, Tash. Não tem como.

Os dois ficaram em silêncio, tom ando vinho.

— E se ela tiver ido para outro porto? Presum i que fosse Dover… Mas e seela foi para Harwich? Ou Sittingbourne?

— Ela não estava indo na direção de Harwich.

— Não tem os a m enor ideia do que estam os fazendo — disse ele. — Achoque deveríam os ligar para a polícia.

— Você está subestim ando Sarah. Ela planej ou isso, Mac. Pegou o m eucartão de crédito. Deve estar segura em algum lugar.

— Mas você ligou para todos os hotéis.

Natasha deu de om bros.

— Então talvez ela não tenha chegado até aqui. Não posso ligar para todos oshotéis do sul da Inglaterra. Caram ba… Pode ser que ela estej a em um sítio.Ou em um estábulo. Talvez tenha um am igo aqui por perto. Ela pode estarem um m ilhão de lugares.

— E é por isso que deveríam os ligar para a polícia.

Natasha se sentou na beirada da outra cam a e soltou um urro de frustração.

— Ai, m eu Deus, Sarah. Que porcaria de brincadeira é esta?

As palavras escaparam da boca de Natasha antes que ela se desse conta deque tinha falado em voz alta.

— Não acho que ela estej a de brincadeira, Tash.

— Você acha que ela roubou o m eu cartão por acaso?

— Acho que ela estava desesperada.

— Por quê? Dem os a ela tudo o que pediu. Cuidam os do cavalo. Eu ia levá-la para com prar o que ela quisesse para o avô. — Natasha balançou a cabeça.—

Não — disse. O m edo e a exaustão a deixavam severa. — Acho que era tudotrabalhoso dem ais. Ela não gostava das nossas regras nem das nossas rotinas.Não gostava de não poder sair para ver o cavalo sem pre que quisesse. Nós aobrigávam os a ir para a escola, Mac, e não deixávam os ela ir e vir quando

bem entendesse. Forçam os a ordem no caos. Esse é o j eito dela de se vingar.

— De se vingar?

— Você está partindo do princípio de que ela pensa com o nós. De que é como nós. Mas precisa reconhecer que ela sem pre foi com pletam ente fechada,desde o com eço. Não fazem os a m enor ideia de quem é a verdadeira SarahLachapelle. — Ela ergueu os olhos e percebeu que Mac a encarava. — O quefoi? — perguntou quando isso com eçou a ficar irritante.

— Caram ba. Com o você ficou durona.

Aquilo foi com o um golpe.

— Eu fiquei durona — repetiu Natasha, devagar. Um nó surgiu em suagarganta e ela o forçou a se dissipar. Por que você acha que isso aconteceu?,era o que tinha vontade de retrucar. Quem você acha que me deixou assim?— Certo, Mac. Por que você sem pre acha que Sarah é a vítim a em tudoisto?

— Porque ela tem quatorze anos? E ela não tem ninguém .

Ela pensou em Ali Ahm adi.

— Isso não faz dela um anj o. Ela nos roubou, levou o m eu cartão, escondeuinform ações. E agora fugiu.

— Você sem pre enxergou o pior lado dela.

— Não, eu sim plesm ente não olhei para ela através de lentes cor-de-rosa.

— Então por que está aqui? Por que se dá ao trabalho de tentar encontrá-la?

— Enxergá-la com o ela é não im pede que eu m e preocupe com o bem -estar da garota.

— Será que isso tem m esm o a ver com o bem -estar de Sarah? Ou será que aquestão toda tem a ver apenas com o fato de você não querer ser consideradapor todos um fracasso?

— Mas que diabo você quer dizer com isso?

— Não cai m uito bem para você, não é? A defensora j urídica das criançasperdidas não é capaz de tom ar conta da única m enina que acolheu. Achoque é por isso que você não quer cham ar a polícia.

— Com o tem coragem de dizer um a coisa dessas? — Natasha se seguroupara não j ogar o vinho na cara dele. — Eu vej o essas crianças todos os dias.Eu as vej o im potentes e patéticas no tribunal, aí tenho que parecer alegreenquanto elas ficam m e xingando quarenta m inutos depois, quando eu as mando para algum lugar que vai abrigá-las. Eu sei que, na m etade do tem po,elas só vão sair dali para roubar m ais um carro ou m ais um m onte deroupas. Eu conheço essas crianças. Já fui enganada por elas. Não são burras enem sem pre são im potentes.

— Natasha tirou os sapatos e os j ogou no chão. — Em alguns aspectos,Sarah é um a m enina decente, m as não é nem m elhor nem pior do quequalquer um a das outras. E o fato de eu enxergar isso não faz de m im um apessoa m á, independentem ente do que você queira pensar a m eu respeito.

Ela entrou no banheiro, bateu a porta e se sentou na tam pa da privada.

Estendeu as m ãos para a frente, percebeu que estavam trem endo e então jogou um tapetinho de banheiro e duas toalhas na porta, em um a expressão defúria im potente.

Não havia som algum vindo do quarto.

Ela ficou ali sentada enquanto os m inutos passavam , esperando escutar Macse levantar e sair do quarto. Ele não ia querer ficar no m esm o côm odo queela, da m esm a form a que ela não queria estar com ele. Diria que era m elhorele dividir o quarto com Cowboy John.

Mas o pior de tudo era que havia um fundo de verdade no que Mac dissera.

Natasha não queria envolver a polícia. Não queria ter que explicar ascircunstâncias sob as quais acolhera Sarah, sua total incom petência emcuidar da garota ou de pelo m enos garantir sua segurança básica. Se eles a

encontrassem , Sarah poderia ser passada discretam ente para outra pessoa mais capaz.

Ela suspirou fundo, ofegante. Ah, era fácil para Mac se sentir ultraj ado, ser om ocinho da história m ais um a vez. Era fácil ser o cara bacana quandoaquilo não tinha nenhum custo pessoal para ele. Aquela havia sido a históriado casam ento dos dois. Natasha apoiou a cabeça nas m ãos, inalou o cheirode produto de lim peza barato do banheiro e esperou sua m ente se acalm ar.Não queria que Mac visse com o a afetara. Não queria que ele visseabsolutam ente nada dela.

Quando saiu para o quarto, com a expressão recom posta, os pensam entoszunindo com a discussão ensaiada, tudo estava em silêncio. Mac estava dormindo na cam a, com o braço ainda cobrindo o rosto. Ela cam inhou emsilêncio até a outra cam a de solteiro e ficou olhando para ele, aquele hom emque era quase seu ex-m arido, arrasada pela proxim idade dele e pelo fato denão gostar dela.

Percebeu que não conseguia parar de olhar para Mac e se deu conta de com oo vira pouco nos dois m eses anteriores. Seus olhos foram atraídos para osbraços dele, para o peito sob a cam iseta desbotada. Quantas vezes ela haviase enroscado naquele abraço apertado? E quantas vezes, lem brou a si m esma, dera as costas para ele, com os olhos fechados com força para segurarlágrim as silenciosas? Com o ele podia desprezá-la a tal ponto depois de todoo am or que dem onstrara por ela?

Natasha serviu o resto do vinho em sua taça e virou tudo de um a vez, em umgole longo e cheio de ressentim ento. Então, quase com relutância, estendeu am ão até a colcha dobrada na ponta da cam a de Mac e a aj eitou sobre ele, atécobrir o peito.

Apagou a luz. Não foi para a própria cam a; em vez disso, sentou-se à j anelae ficou olhando para o estacionam ento varrido pelo vento, para o breudistante do m ar, contra todas as esperanças, ainda quase achando queavistaria a form a da som bra de um a m enina em cim a de um cavaloavançando pela rua escura.

Quando Natasha acordou, com o pescoço duro e os braços e as pernas desaj

eitados na cadeira, o quarto estava ilum inado pela luz azul aquosa do amanhecer e Mac não estava lá.

21

“Se deseja que um cavalo aprenda a desempenhar uma tarefa, seu melhorplano será, sempre que ele fizer o que você deseja, demonstrar algumagentileza em troca.”

XENOFONTE, SOBRE EQUITAÇÃO

Sarah estava term inando a últim a baia de Jackie e se sobressaltou com osom da voz de Thom .

— Eu não tive intenção de assustar você — disse ele, do outro lado da portada cocheira.

— É só que… não ouvi você chegando. — Ela falou dentro do cachecol, como hálito quente direcionando para a pele.

— Vim ver se você quer tom ar café da m anhã. Jackie está preparando. Elaestá feliz da vida por você cuidar de todos os cavalos para ela.

Sarah estreitou os olhos ao sol baixo.

— Acordei cedo. E ela lavou a m inha calça e tal…

— Ah, tem boa educação e ética de trabalho. Os seus pais fizeram algum acoisa certa.

Ele sorriu. Havia passado a hora anterior lavando o grande cam inhão. Ela meio que tinha percebido a m angueira de alta pressão atrás do estábulo, a águaesguichando em superfícies m etálicas, um a esfregação esporádica e oassobio anim ado e determ inado dele. Na noite anterior, durante o j antar,Thom ficara desanim ado, ainda abalado pela m orte do cavalo. Ficara remexendo a com ida, resistindo a todos os esforços de Jackie para anim á-lo.Sarah tam bém perm anecera quieta, tão exausta com os acontecim entos dodia que estava à beira da catatonia. Devorara a refeição quase em silêncio eentão, quando seus olhos perderam o foco de tanto cansaço, fora se refugiar

no quartinho, agradecida. Jackie e o m arido obviam ente gostavam de ter uma desculpa para receber visita: ela ainda escutava risadas e conversas quandocaiu no sono.

Sarah acordara logo depois das seis e m eia, um pouco atordoada com oentorno. Então, quase que por reflexo, sua m em ória voltou e ela saltou dacam a, ainda de cam iseta, e saiu correndo da casa para ver Boo.

Quando ele enfiou a cabeça por cim a da porta da cocheira e soltou o ar pelofocinho, ela voltou a respirar aliviada. Entrou na cocheira trem endo com o arfrio da m anhã. Boo estava quieto em cim a do m anto em prestado, mostrando poucos sinais da j ornada que em preendera na véspera. Sarahconferiu as patas dele, ergueu seus cascos e então, sentindo-se m ais segura,encostou o rosto no pescoço dele antes de voltar para a casa. Sem conseguirpegar no sono de novo, ela se

vestiu e saiu para lim par a baia dele.

Cuidar dos outros cavalos não tinha sido um ato de caridade, apesar do queThom parecia pensar: na ausência de um plano claro, ela precisava fazer opossível para garantir acom odação por m ais um a noite. Havia um sistem ade estabulação do qual ela não fazia a m enor ideia antes: pôneis em trânsitodurante a im igração de um a fam ília; cavalos de corrida e outros queparticipavam de eventos, que valiam centenas de m ilhares de libras, a caminho de novos lares.

Todos, assim com o ela, estavam à espera de um a vida desconhecida. Oscavalos de m enor valor, os feridos e doentes, aqueles que iam para ocontinente em caçam bas de gado, não tinham esse descanso. Perm aneciam abordo até serem descarregados no m atadouro.

— Ontem … aquilo foi m uito difícil de ver. Espero que você não tenha tidopesadelos.

Os olhos de Thom estavam acostum ados a sorrir ou tinham passado m uitotem po estreitados ao sol. Dava para ver que era irlandês m esm o antes deabrir a boca.

Sarah se inclinou em cim a do ancinho e im aginou o cavalo sacrificado.

— Você acha que ele sofreu m uito?

— Não. Eles entram em estado de choque. Que nem os hum anos. E daí oveterinário deu cabo dele bem rápido.

— Você está triste?

Ele deu de om bros, parecendo surpreso.

— Ah… não. Ele não era m eu. Eu não sou dono dos cavalos. Só os levo deum lado para outro.

— O dono dele vai ficar triste?

— Não leve para o lado pessoal, m enina, m as é provável que não. Ele só eraum cavalo de corrida ruim com patas bam bas. Foi vendido pelo dono em umlote para um negociador francês. Para ser sincero, quando liguei hoj e de manhã, ele estava m ais preocupado com o seguro.

Sarah tirou um pouco de lam a seca do piso da cocheira com a ponta da bota.

— Qual era o nom e dele?

— Do cavalo? Ah, caram ba, agora que você perguntou…

Ele olhou para cim a. Então Sarah se sentiu livre para exam iná-lo direito; elareparou, com um a em oção estupefata, que a m ão esquerda dele não era deverdade, e sim feita de um tipo de borracha cor da pele.

— Diablo — disse Thom , olhando para ela de repente. Sarah corou,acanhada por ter sido pega observando-o. — Não, Diablo Blue. Esse é ogaroto. Certo.

Posso dizer a Jackie que você vai entrar logo? Preciso ir a Dover paraconsertar a divisória.

Ela pensou a respeito. Talvez fosse pelo fato de ele ter ficado tão m ais

abalado do que Jackie e o m arido na noite anterior, ou pela m aneira com oele acariciava

o focinho dos cavalos quando passava por cada baia, sem nem se dar conta deque estava fazendo aquilo. Talvez fosse aquela m ão. Mas algo em Thom lhedizia que ele não era um a am eaça.

— Posso pegar um a carona com você? — perguntou ela, vestindo o casaco.

— Preciso passar num caixa eletrônico.

* * *

Teoricam ente, Thom Kenneally m orava na Irlanda, m as passava boa parteda sem ana transportando cavalos entre a Inglaterra, a Irlanda e a França. Eledisse a Sarah que tinha sido j óquei até perder parte do braço em um acidentea cavalo.

Desde então, tivera dificuldade de se firm ar em um em prego até com eçar atransportar anim ais.

Nem todo m undo era capaz de fazer aquilo, explicou Thom . Muitos cavalosrelutavam em em barcar, e não bastava ter paciência e um j eito calm o paraconseguir transportá-los em segurança; era necessário saber decifrá-los,perceber se iam refugar, dar coice ou recuar quando chegassem ao alto antesde colocarem a pata na ram pa, às vezes antes m esm o de eles própriossaberem . Ele transportava cavalos velhos, anim ais de evento experientes e,de vez em quando, cavalos de corrida com patas esguias, tão valiosos quefaziam com que Thom dirigisse coberto por um a fina cam ada de suor frio.Até a noite anterior, ele só tivera um a fatalidade em seis anos. Mas, não,aquilo não o desanim aria.

— Eu m e encaixo bem neste trabalho — disse. Ele e Sarah haviam deixado adivisória com um soldador, que prom etera aprontá-la até o m eio-dia. Thomlevaria a carga que sobrara depois do alm oço. — Eu gosto dos cavalos. Alémdo m ais, a m inha nam orada é do tipo independente. Ela precisa de espaço.

— Ela gosta de cavalos?

Ele sorriu.

— Não m uito. Acho que ela sabia que, se o esquem a não fosse esse, eu m em udaria para um estábulo de corrida em algum lugar. Pelo m enos agora elanão tem que lidar com os anim ais o dia inteiro.

— Eu adoraria fazer isso — disse Sarah, ficando corada.

— Tem um caixa eletrônico ali.

Ele dim inuiu a velocidade do cam inhão e encostou em frente a um a loj a deconveniência. Sarah desceu da cabine e atravessou a rua correndo. Tirou ocartão do bolso, colocou-o na m áquina e digitou o núm ero, olhando paratrás para conferir se Thom a observava, então prendeu a respiração.

Sarah m eio que esperava que o cartão fosse ser recusado pela m áquina comum apito, ou até m esm o, em seus piores pesadelos, um alarm e. No entanto,para sua enorm e surpresa, a m áquina funcionou norm alm ente. Ela tirou mais cem libras e enfiou as notas bem no fundo do bolso, pedindo desculpasem silêncio a

Vô, a Mac e a Natasha. Foi quando estava prestes a correr de volta para ooutro lado da rua que reparou no telefone público antiquado, verm elho, coma porta envidraçada. Thom parecia estar lendo o j ornal, então Sarahaproveitou e entrou na cabine e franziu o nariz com o previsível fedor deurina. O telefone aceitou o cartão de crédito e ela discou o núm ero dohospital.

A ligação cham ou, firm e e distante. Quando ela estava a ponto de desistir,enfim ouviu um clique.

— Ala de derram e.

— Eu poderia falar com o Sr. Lachapelle? — Ela precisou gritar por causa dobarulho de um cam inhão que passava.

— Quem ?

— O Sr. Lachapelle. — Ela cobriu a outra orelha com a m ão. — É Sarah, a

neta dele. Pode passar a ligação para ele? Está no quarto núm ero quatro.

Houve um a pequena pausa.

— Só um m inuto.

Sarah ficou parada no pequeno cubículo, olhando para a rua m ovim entadasem focar em nada específico. Da cabine, Thom viu onde ela estava eassentiu, com o se dissesse que não era preciso se apressar.

— Alô? — Dessa vez era um a voz diferente.

— Ah. Gostaria de falar com o Sr. Lachapelle. É Sarah.

— Olá, Sarah. Aqui quem fala é a irm ã Dawson. Vou levar o telefone até ele.

Mas preciso dizer que ele piorou um pouco. Está m uito barulhento aí do seulado, talvez você não consiga escutá-lo direito.

— Ele está bem ?

A freira hesitou por um m om ento, o suficiente para fazer o coração de Sarahse apertar.

— Que horas você vem aqui? Posso providenciar alguém para conversar comvocê e a fam ília que a acolheu.

— Não posso — respondeu ela. — Não posso ir aí hoj e.

— Certo. Bom , ele está… bem . Mas a fala não está m uito boa no m omento.

Você precisa falar alto para que ele entenda. A ligação está bem ruim . Voupassar o telefone para ele.

O som de passos, um a porta rangendo. Um a voz abafada:

— Sr. Lachapelle, é a sua neta. Vou colocar o telefone na sua orelha. Tudobem ?

Sarah prendeu a respiração.

— Vô?

Nada.

— Vô?

Um longo silêncio. Talvez um som . Era difícil saber com o barulho dotrânsito.

Sarah tam pou a outra orelha. A enferm eira voltou a falar:

— Sarah, ele está escutando. Seria m elhor se você só falasse com ele agora.

Não espere um a resposta.

Sarah engoliu em seco.

— Vô? — repetiu. — É Sarah. Eu… Eu não vou poder ir aí hoj e.

Um barulho, então um incentivo abafado da enferm eira.

— Ele está escutando, Sarah.

— Vô, estou em Dover. Precisei pegar o Boo. As coisas ficaram difíceis paraa gente. Mas estou ligando para dizer… — A voz dela falhou. Ela fechoucom força os olhos, tentando m anter a com postura e não deixar que a voztransparecesse seu verdadeiro estado de espírito. — A gente vai para Saumur, eu e Boo. Não pude contar para você antes de sairm os.

Sarah aguardou, tentando escutar algo, tentando avaliar a reação dele. O

silêncio do outro lado da linha era doloroso de tão opressivo. Ela tirou um milhão de conclusões daquele silêncio e sentiu sua determ inação se esvairconform e a falta de resposta se arrastava.

— Sinto m uito, Vô — berrou ela no bocal. — Mas eu não teria feito isso senão fosse necessário. Você sabe. Você sabe. — Ela havia com eçado a

chorar, enorm es lágrim as salgadas caíam no piso de concreto. — Foi oúnico j eito de m anter Boo a salvo. De m e m anter a salvo. Por favor, nãofique bravo —

sussurrou, ciente de que ele não ia escutar.

Ele continuou sem dizer nada.

Sarah chorou em silêncio até a enferm eira retornar à linha.

— Você disse tudo o que queria? — perguntou, anim ada.

Sarah lim pou o nariz na m anga. Ela o via com tanta clareza, deitado, o rostofeito um a m áscara de ansiedade e de fúria m al contida. Mesm o que o avôestivesse confinado à cam a e a tantos quilôm etros de distância, ela sentia ocalafrio da desaprovação dele. Com o ele poderia entender?

— Sarah? Você ainda está aí?

Ela fungou.

— Estou — respondeu, forçando a voz a ficar m ais aguda. — Estou, sim ,não escutei o que você disse. Um cam inhão acabou de passar. Estou em um acabine telefônica.

— Bem , não sei o que você falou, m as ele quer que eu diga… — Os olhosde Sarah se fecharam sobre as lágrim as que os inundavam . — Que ele disse“bom ”.

Um a breve pausa.

— O quê?

— É. É isso com certeza. Ele disse “bom ”. Está assentindo para m im .Certo? A gente se vê em breve.

* * *

Quando voltou para o cam inhão, ela se virou para a j anela do carona para

esconder os olhos verm elhos. Sentou-se e deixou o cabelo cair em cim a dorosto, esperando o barulho da chave na ignição.

Bom. A palavra silenciosa de Vô ainda ressoava em seus ouvidos.

Thom não deu a partida no cam inhão. Quando ela enfim olhou na direção dobanco do m otorista, percebeu que ele a observava com m uita atenção.

— Certo, garota. Vai m e contar o que está acontecendo?

* * *

Ele não ia cair naquela história de cavalgada patrocinada. Com a voz firm e,Sarah lhe contara a história, a que havia ensaiado m entalm ente durante boaparte da m anhã, com os olhos lim pos e a expressão neutra.

— Até a França — repetiu ele. — Você está fazendo um a cavalgadapatrocinada até a França. Para arrecadar dinheiro para vítim as de derram e. E

não tem docum ento algum .

— Achei que ia conseguir tudo em Dover. Ia perguntar a você o que fazer.

Os dois estavam em um café na beira da estrada. Thom com prara para elaum a xícara de chá e um m uffin, que estava no prato à sua frente, molhadinho e sólido em seu pacote de plástico.

— E está viaj ando sozinha.

— Eu sou m uito independente.

— Dá para perceber.

— Então, você pode m e aj udar?

Ele se recostou na cadeira e a exam inou por um m inuto. Depois sorriu.

— Bem , vou lhe dizer um a coisa, Sarah. Vou ser o seu patrocinador. Podem e dar os seus form ulários de patrocínio.

Os olhos dela se arregalaram por um instante e Sarah desviou o olhar, m asele percebeu.

— Acho… que ficaram na m inha m ochila.

— Que coisa.

— Mas você vai m e m ostrar com o conseguir os docum entos para Boo viajar?

Ele fez m enção de dizer algo, m as se conteve. Em vez disso, olhou para a janela, através da qual dava para ver os carros, carregados com pesadosbagageiros de teto, fazendo fila para entrar no term inal da balsa. Sarah ficoubrincando com a em balagem do m uffin m eio úm ido. Não tinha data devalidade nele. Podia estar ali havia três anos.

— Minha enteada é um pouco parecida com você — contou Thom , calm amente. — Quando tinha a sua idade, ela costum ava se m eter em tudo que étipo de confusão, principalm ente porque não colocava nada para fora eachava que podia resolver tudo do j eito dela. No final, e quero dizer bem nofinal — ele

deu um sorriso am arelo, focado em algum a lem brança —, conseguim osconvencê-la de que nada é tão ruim que não se possa contar para alguém .Sabia disso? Nada.

Mas Sarah sabia que ele estava errado. Para com eço de conversa, ela se metera naquela confusão j ustam ente porque dissera a verdade. Se não tivessecontado a Natasha a verdade sobre seu avô naquela prim eira noite…

— Sarah, você está com algum problem a?

Ela fez um esforço para se m anter praticam ente inexpressiva. Então se viroupara ele e teve a estranha sensação de que precisava pedir desculpas. Não énada pessoal, tinha vontade de dizer, m as será que não percebe? Você podeser igual a todos os outros. É bem -intencionado, m as não se dá conta do mal que causa.

— Eu j á disse — respondeu ela, sem alterar a voz. — Estou fazendo um acavalgada patrocinada.

Os lábios dele se apertaram , e sua expressão não era m uito antipática m assim um pouco resignada. Tom ou um gole de café.

— Jackie quase não deixou você passar a noite lá ontem , sabia? Ela tem faropara confusão.

— Eu paguei o que ela pediu.

— Pagou, sim .

— Não sou diferente de ninguém .

— Claro que não. É só um a adolescente qualquer sem transporte que estátentando atravessar o canal da Mancha com um cavalo.

— Eu j á disse. Posso pagar você tam bém se é o que quer.

— Não tenho dúvidas disso.

— Bom , então pronto.

Sarah ficou esperando que ele erguesse os olhos do café. Thom parecia acharaquilo fascinante.

— Que tal m e dar aquele cartão de crédito?

— O quê?

— O cartão que você usou para sacar dinheiro.

— Eu pago em espécie. — Sarah sentiu um nó no estôm ago.

— Prefiro o cartão de crédito se vou aj udar você. Não é nada de m ais, certo?

— O olhar dele encontrou o dela. — A m enos, é claro, que o seu nom e nãosej a o m esm o que está no cartão…

Sarah em purrou o prato para longe e se levantou.

— Quer saber de um a coisa? Eu só precisava de um a carona. Não preciso devocê pegando no m eu pé só porque pedi um a carona até o caixa eletrônico.E

não preciso que você fique m e interrogando, ok? Se não vai aj udar, m edeixe em paz.

Com isso, Sarah disparou porta afora e foi andando pelo estacionam ento nadireção da rua principal.

— Ei — cham ou Thom enquanto ela se afastava. — Ei. — Com o a m eninanão se virou, ele berrou: — Você não vai conseguir a docum entação sem umveterinário. Vai dem orar dias, talvez até sem anas. E é preciso ter dezoitoanos para assinar tudo. Tenho certeza de que você não tem dezoito anos,Sarah. E não sei por quanto tem po Jackie vai deixar você ficar aqui, por mais baias que lim pe.

Você precisa repensar.

Ela parou.

— Menina, acho que você deveria pensar em voltar para casa. — Aexpressão dele era bondosa. — Você e o seu cavalo.

— Mas eu não posso. Sim plesm ente não posso. — Para seu pavor, lágrim astinham se acum ulado em seus olhos, e ela piscou com fúria para tentar selivrar delas. — Eu não fiz nada de errado, ok? Não sou um a pessoa m á. Masnão posso voltar.

Thom continuou observando-a. Ela olhou para baixo, tentando evitar o olhardele. Era com o se ele pudesse ver tudo, a desonestidade e a vulnerabilidadedela.

O olhar dele não era com o o de Maltese Sal, que parecia despir cadapedacinho dela. Em vez disso, tinha certa solidariedade. Era pior.

— Olhe, eu realm ente preciso chegar lá. — Os carros passavam em alta

velocidade por eles na estrada. Por um m om ento, ela pensou em com o erainj usto que os cavalos m etálicos tivessem autorização para atravessar ocanal com tanta facilidade. — Não posso contar m ais nada. Mas precisochegar à França.

Sarah tinha deixado o casaco no cam inhão. Ficou parada no estacionam entofrio, com a brisa do m ar fazendo seu cabelo bater nas orelhas, e cruzou osbraços. Thom a observou por m ais um tem pinho, então se virou. Sarah seperguntou se ele voltaria para o cam inhão, m as o hom em deu alguns passose parou. Por fim , virou-se para ela m ais um a vez.

— Então… se eu não aj udar, o que você vai fazer?

— Vou achar quem m e aj ude — respondeu ela, em um tom desafiador. —Sei que posso encontrar alguém .

— É isso que m e preocupa — balbuciou ele, resignado. Hesitou com o serefletisse. — Certo. Talvez eu consiga levar você para a França. — Ela tentouinterrom pê-lo, m as ele continuou: — Sim , você e o seu cavalo. Mas precisoque você m e conte tudo. Esse é o acordo, Sarah. Não vou aj udar até você me contar o que está acontecendo.

* * *

“Diablo Blue” relutava em subir a ram pa. Ele bufou, fincou as patasdianteiras na base e exibiu a parte branca dos olhos. Com o pescoço musculoso tenso e as orelhas indo para a frente e para trás, tropeçava desajeitado por causa da

sensação desconhecida das bandagens acolchoadas de proteção que Thomenrolara em suas patas.

Thom não se exaltou: ficou tranquilo ao lado dele, conversando gentilm entecom o cavalo quando o anim al se recusou a avançar, relaxando a tensão nacorda com prida nos m om entos em que o anim al parava de puxar para tráspor um instante. Ele tinha pedido a Sarah que colocasse a rédea, e então,enquanto ela observava, passou a corda com prida pelo bidão, por cim a dacabeça e das orelhas do cavalo e, depois, puxou-a até o outro lado.

— Quando recua, ele sente a pressão — explicou Thom . — É tipo um aconsequência do m au com portam ento, e ainda é m ais delicado do queoutros aparelhos que os transportadores usam . Ei, está tudo bem . Não fiquetão preocupada. Não precisam os ter pressa.

— Jackie disse que voltaria à um a e m eia.

— Ah, j á estarem os longe antes disso. — Thom se sentou na ram pa eesticou o braço para acariciar o focinho do cavalo, parecendo ter todo o tempo do m undo.

Sarah não com partilhava da tranquilidade dele. Jackie faria perguntas,exigiria explicações. Pior ainda, talvez convencesse Thom de que estava cometendo um erro.

— Ela só foi com prar ração. Olhe, por que você não m e deixa tentar?

— Não — respondeu Thom . — Você está tensa dem ais. Aliás, ficar aíparada não está aj udando. Vá esperar na cabine.

— Eu não…

— Vá para a cabine. Assim será m ais rápido.

O tom de voz dele não dava espaço para discussão. Os cavalos que j áestavam no cam inhão se agitavam , ansiosos. Um deles m ordeu um fardo defeno e então colocou a cabeça m arrom por cim a da divisória para espiar oque estava acontecendo do lado de fora. Sarah olhou para trás, ansiosa, para oenorm e cavalo baio na ponta da corda de Thom , então obedeceu.

Ela se acom odou no banco do carona, então enfiou a m ão no bolso paraconferir se o cartão de crédito estava ali.

— Quanto você está disposta a pagar pela sua passagem ? — perguntaraThom . Ela dera um passo para trás, com m edo de ter avaliado m al o homem . —

Vam os voltar rapidinho para o café.

Depois disso, Sarah o tinha desprezado, considerando-o apenas m ais umtram biqueiro, m ais um aproveitador, até que ele sacou o celular da j aqueta.Os dois estavam sentados a m esm a m esa em que haviam discutido umpouco m ais cedo. O m uffin dela ainda estava lá, no pacote de plástico.

— Clive? Aqui é Thom Kenneally. Eu queria falar sobre aqueles cavalos. —

Ela tinha ficado em silêncio ali diante dele, sentada à m esinha de fórm ica,enquanto Thom explicava ao desconhecido (que ele conhecia o suficientepara

perguntar sobre os filhos) que estava com um problem a no cam inhão. —Vou dizer, cara, pode ser que eu tenha alguns problem as com o seguroantigo. Os soldadores disseram que tinha um pino faltando na divisória, nadaque eu pudesse ter visto, m as para eles é um a questão. Sabe do que estoufalando? Se isso acontecer, vai acabar com a sua chance de recuperar algumdinheiro, e o preço do m eu seguro vai disparar. É… é, sim , não é? Então.Esse seu Diablo Blue, estou vendo na docum entação que ele não estava naliga da Orquídea do Deserto, sabe do que eu estou falando? — Ele riu. —Nossa, foi m esm o? É, bem que eu achei que ele não era dos m elhores.Queria saber se você pode m e fazer um favor: m e deixar com pensá-lo comum pouco de dinheiro e não registrar esse incidente.

Será que isso funciona para você? Assim é m enos incôm odo para todo mundo.

Eles conversaram por m ais uns cinco m inutos, durante os quais Thomgarantiu a Clive que o conserto estava bom e que, sim , ele ficaria contente depegar os dois cavalos na sexta. Esperava que continuassem trabalhando juntos etc. etc.

Quando o telefonem a enfim foi encerrado, o sorriso determ inado dem orouum tem pinho para sair dos lábios de Thom . Ele guardou de volta o celularna j aqueta.

— Certo, m enina. Você deve ao Sr. Clive trezentos e cinquenta paus pelocavalo m orto dele. Se voltarm os ao caixa eletrônico, você acha queconsegue tirar essa quantia com aquele cartão?

— Não estou entendendo…

— É o preço dos docum entos novos do seu cavalo — disse ele. — Deus m eaj ude por m e envolver nisso, m as esse é o preço da sua passagem .

* * *

Dem orou dez m inutos, durante os quais ela roeu as duas unhas que lherestavam até a carne, para que Sarah escutasse o barulho de cascos e umbaque abafando que lhe dizia que a ram pa finalm ente fora erguida. Então elaouviu o som de pinos sendo fechados e travas de segurança sendo colocadasno lugar. A porta do m otorista abriu, deixando entrar um a lufada de ar frio,e Thom entrou na cabine.

— No fim das contas não foi tão ruim , não é? Os outros dois viaj am bem .Vão aj udar. — Ele sorriu. — Pode respirar aliviada agora.

Thom deu a partida no m otor. O cam inhão vibrou e o enorm e m otor rugiue ganhou vida. Sarah afivelou o cinto de segurança.

— Você deixou um bilhete para Jackie?

Ele aj ustou o retrovisor.

— E o dinheiro. Disse que tinha m udado m eu traj eto e ia para Deal — disseela.

— É assim que se faz. Ah, vam os lá, m enina. Não precisa ficar tão tensa.

Tem os suspensão a ar aqui… é supertranquilo para os cavalos. É m aisconfortável para eles do que para a gente. Aposto que ele j á estará mastigando

feno antes de chegarm os ao fim da alam eda.

Sarah não podia dizer a Thom que não era o com portam ento de Diablo Blueque a am edrontava. Era o receio de que os oficiais da alfândega talvezprestassem atenção dem ais à descrição dele. Era o receio de que alguém queentendesse de cavalos percebesse que Diablo Blue crescera cinco centím

etros nas três sem anas desde que seus docum entos de viagem haviam sidoem itidos.

— Você tem certeza do que está fazendo? — perguntou Thom . — Ainda dátem po de desistir, sabe? Tenho certeza de que tudo pode se aj eitar seconversarm os com a fam ília que está cuidando de você.

Bom, dissera Vô. Bom. A enferm eira garantira.

— Só quero ir em bora. Agora.

Sarah olhou pelo retrovisor. Atrás das cocheiras, fora de vista, o cavalo queera Baucher estava em baixo de um a lona, esperando que o abatedouro localo levasse. Os passaportes e os docum entos de viagem estavam em um a pastaesgarçada no painel à frente dela.

— Certo. — Thom girou o enorm e volante e o cam inhão entrou na estradaprincipal. — Então vam os pegar o bateau grandão, eu, você e o Sr. DiabloBlue.

22

“Um cavalo muito vivaz deve ser impedido de disparar a toda velocidade eabsolutamente proibido de disputar corrida com outro; porque, via de regra,os cavalos mais ambiciosos são os mais vivazes.”

XENOFONTE, SOBRE EQUITAÇÃO

Cowboy John se sentou com o quarto prato de ovos, bacon e pão frito darefeição e esfregou as m ãos.

— Nada m al — disse ele, enfiando o guardanapo na gola da cam isa. —Nada m al m esm o para com ida de beira de estrada.

Mac deu m ais um gole no café.

— Não sei com o alguém consegue tom ar café da m anhã quatro vezesseguidas — com entou, dando um a olhada no bufê saqueado.

— Eu paguei — disse John. — Melhor fazer valer a pena.

Na verdade, eu paguei, observou Mac em silêncio. Mas era um alívio estarcom um a pessoa anim ada, por isso não disse nada. Ao redor deles, o salãode café da m anhã do Tem pest International estava cheio de viaj antes,vendedores falando ao celular, m ães estressadas perseguindo criancinhas aoredor de m esas com cereal derram ado e pais se escondendo atrás de j ornais.De vez em quando, um a garota m uito pálida, com j eito de im igrante doLeste Europeu, se aproxim ava e se oferecia para encher a xícara de café,ocasiões em que John anunciava: “Nossa, claro! Obrigado!”

O velho caubói parecia rej uvenescido naquela m anhã, com o sorriso umpouco m ais espontâneo em baixo do chapéu m arrom gasto, o colarinho e ospunhos da cam isa bem passados. Mac, que com frequência parecia usar a mesm a roupa havia dias, sentiu-se perversam ente desgrenhado na com panhiade John. Acordara antes do am anhecer e, incapaz de dorm ir e na ausência dealgo m ais útil a fazer, cam inhara outra vez pela praia deserta, observando asbalsas irem e virem à luz fraca, escutando os gritos desam parados dasgaivotas que voavam lá no alto e im aginando, com um nó no estôm ago,onde Sarah poderia estar.

Voltara pouco depois das oito, entrara no quarto e encontrara Natasha não napoltrona perto da j anela, onde estava na hora em que ele saíra, m as enroladana outra cam a de solteiro. O quarto estava tranquilo, apenas o m urm úrioabafado das vozes no corredor rom pia o silêncio. Havia puxado os j oelhosaté o queixo, em um a posição curiosam ente infantil. O cabelo cobria partede seu rosto e sua testa estava franzida, em bora estivesse dorm indo. Na mesa, apesar da hora, o celular dela piscava com m ensagens silenciosas. Macpensou em dar um a

olhada, para o caso de Sarah ter resolvido ligar, m as se deteve ao pensar queNatasha poderia acordar e ver que ele estava invadindo sua privacidade. Emvez disso, ele tom ou um banho, fazendo o possível para se sentir lim po como sabonete do hotel, que não fazia espum a, e desceu para tom ar café da manhã.

No salão, encontrou Cowboy John, que parecia j á estar ali fazia um tempinho.

— Então, qual é o plano para hoj e, chefe? — John passou um pedaço de pãofrito em um a poça de ovo.

— Não faço a m enor ideia.

— Bem … eu andei pensando, e posso apostar que ela está em algum lugarpor aqui. Aquela m enina nunca foi a lugar nenhum desde que a conheço. Elanão tem com o nadar até a França com aquele cavalo. Então, na m inhaopinião, ou vai tentar encontrar um local para deixar o anim al e vai para aFrança sozinha, e nesse caso acho que um de nós podia ficar esperando nabilheteria, ou ela vai perceber bem rápido que está num beco sem saída e vaificar por aqui enquanto pensa no que fazer.

— Acho que é quase im possível que ela abandone o cavalo. — Mac se lembrou da breve estadia em Kent.

John sorriu.

— Foi exatam ente o que pensei, m eu rapaz. Portanto, ela só pode terchegado aqui e ficado, é o m ais provável. Então, não vam os cham ar apolícia por enquanto. Só precisam os cobrir todas as possibilidades. Vam osligar para os estábulos e perguntar nos hotéis se algum a m enina fez check-inusando o cartão de crédito de Natasha.

Mac se afundou na cadeira.

— Do j eito que você fala, parece tão sim ples.

— Em geral os m elhores planos são sim ples, e, a m enos que você tenha uma alternativa…

Natasha apareceu à m esa com o cabelo m olhado e um a expressãodesconfiada, com o se esperasse ser criticada por ter sido a últim a a selevantar.

— Sente-se aqui. — Mac puxou um a cadeira. — Quer café?

— Não queria ter dorm ido até tarde. Você devia ter m e acordado.

— Achei que um descanso lhe faria bem . — Ele viu um vestígio de algopassando pelo rosto dela e percebeu que Natasha tentou esconder o queestava sentindo. Com o era fácil um a observação inocente ser m alinterpretada quando qualquer conversa vinha carregada de um histórico.

— O seu celular — disse ela, entregando o aparelho para ele. — Você deixouno quarto. A sua nam orada ligou.

— Deve ser sobre um trabalho que eu ia fazer hoj e de m anhã… — disseMac, m as Natasha j á estava se afastando na direção do bufê.

John se inclinou para perto dele.

— Andei pensando em outra coisa.

Mac m al escutava. Natasha estava perto da cesta de pães, balançando acabeça enquanto falava rápido ao celular.

— Talvez estej am os nos preocupando dem ais.

Mac se voltou para a m esa m ais um a vez.

— O avô dela. Ele treinou aquele cavalo m uito bem , m elhor do que todosos que j á vi, e faz m uito tem po que convivo com cavalos.

— E daí?

— Ela está em segurança com ele.

— Está em segurança com quem ? — Natasha se sentou com um pedaço detorrada preso entre os dentes.

— Com o cavalo. John acha que Sarah está em segurança com ele.

Natasha colocou a torrada no prato.

— Então ele é igual a um cavalo de faroeste? Vai lutar com as cobras que aatacarem ? Vai avisar quando os índios estiverem se aproxim ando?

Cowboy John tom bou o chapéu para trás e olhou feio para ela. Virou-seespecificam ente para Mac.

— O que estou querendo dizer é que ela pode correr m ais rápido do que osoutros, fugir de situações indesej adas. E m uita gente se intim ida comcavalos.

Suj eitos que poderiam querer abordar um a m enina nova sozinha vão deixá-la em paz. — Ele rem exeu o café. — Para m im , ela está m uito m ais seguraem cim a daquele cavalo do que estaria sem ele.

Natasha tom ou um pouco de suco.

— Ou ela pode ser j ogada de cim a dele. Ou cair em baixo dele. Ou seratacada por alguém que queira roubar o cavalo.

John olhou com cautela para ela.

— Nossa, você é tão otim ista. Dá pra entender por que é advogada.

A j ovem garçonete estava perto da m esa deles. Mac sorriu e ergueu acaneca.

Quando a m oça se afastou, ele percebeu que Natasha olhava para ele. De umj eito nada sim pático.

— Acho que Mac preferiria que eu fosse garçonete.

— Mas que diabo você quer dizer com isso?

Ela dirigiu seus com entários a John:

— Quero dizer que ele era um desses hom ens que costum ava com entar como gostava de m ulheres inteligentes. Até que “inteligente” passou a significar

“com plicada” e “sabichona”, e ele resolveu que, em vez desse tipo de mulher, prefere garçonetes e m odelos de vinte e dois anos. — Ela corou.

— Você está dizendo que tem algo de errado com isso? — John riu.

Mac se refugiou em seu café.

— Talvez eu só tenha achado m ais fácil andar com pessoas que não ficavamirritadas com igo o tem po todo.

Esse com entário a atingiu. Mac viu quando ela ficou verm elha e,

curiosam ente, sentiu-se envergonhado.

John se levantou, rígido.

— Bom , pom binhos, vocês com certeza m e lem braram do m otivo peloqual fiquei solteiro. Se quiserem traçar um plano de ação, vou escovar osdentes. Volto em cinco m inutos.

Os dois o observaram enquanto ele saía gingando pelo restaurante. Natasha mastigou a torrada.

— Desculpe — disse ela, olhando para o prato. — Eu não devia…

— Tash?

Ela olhou para Mac.

— Podem os fazer um a trégua? Só até encontrarm os Sarah? Estou achandoisso tudo… um pouco exaustivo.

Um lam pej o m ínim o de raiva passou pelo rosto de Natasha. Ele percebeu oque ela não disse: “Exaustivo? Você acha que a culpa é m inha?”

— Você tem razão. Com o eu disse, sinto m uito.

Do outro lado do salão, John tirara o chapéu para a garçonete. Mac observouquando ele fez um a m esura cortês.

— Certo. Qual é o plano? Porque não tenho nenhum .

— Ela não tem com o chegar m uito longe — disse Natasha. — Acho quedevíam os esperar até… quatro horas? Se Sarah não aparecer até lá, tudo bem

, ligam os para a polícia.

* * *

Natasha e Cowboy John estavam em um banco de frente para a bilheteria, ascabeças enfiadas nos casacos para tentar se proteger do vento enquanto asgaivotas berravam lá no alto. Tinham ligado para quase todo o sul daInglaterra naquela m anhã dos dois quartos de hotel, e então, agitados deansiedade e cansados de ficar parados, foram encontrar Mac na rua. O tem pohavia se arrastado, cada hora que se passava sem que eles tivessem notíciasde Sarah fazia com que se sentissem m ais agitados. Ficaram esperando dolado de fora da construção m odular sem graça, observando o fluxo contínuode passageiros a pé que desem barcavam de ônibus e entravam para com prarpassagens ou só para usar o banheiro. De vez em quando, Ben ligava paraperguntar algum a coisa, em geral um a dúvida de Richard, e ela berrava aresposta para se fazer ouvir por cim a da brisa que vinha do m ar. CowboyJohn se levantou algum as vezes para cam inhar pelo trecho de asfalto e fumar, im passível, erguendo a m ão esguia para segurar o chapéu de vez emquando.

— Não estou gostando nada disso — disse ele, olhando para o m ar. — Sarahnão é assim .

Natasha m al escutou o que ele falara. Estava pensando no que Linda contara

quando perguntara se Conor a tinha defendido na reunião dos sócios na noiteanterior.

— Ele tentou — respondera ela, com um tom de voz que sugeria que ele nãohavia se esforçado m uito. — O engraçado é que foi Harrington quem realmente defendeu você. Em um a teleconferência. Eu… Hum … Por acaso estavaescutando. Ele disse que a sua estratégia tinha sido… inovadora, que sairquando você saiu não faria diferença para o caso. — Ela parecera surpresapor Natasha não ficar m ais contente com a notícia.

Tudo correra bem na m anhã no tribunal. Richard interrogara o m édico dafam ília e Harrington fizera o m esm o com o perito contábil, acabando comas alegações do Sr. Persey sobre perdas financeiras. O hom em ficara tão

abalado, contou Ben, que depois Harrington dissera que se surpreenderia seeles não fechassem um acordo no dia seguinte. Natasha com entara que issoera ótim o, tentando ignorar a invej a e a sensação de perda que aquilo lhesuscitava.

Mac estava indo na direção dela, batendo as m ãos e com o cabelo sopradopelo vento. Observá-lo fez com que ela tom asse consciência de seu terninhoam assado, do cheiro m eio rançoso da blusa. Seus pés doíam de tanto andarpela cidade com os sapatos que usava para ir ao tribunal. Teria que com prarroupas se não encontrassem Sarah logo.

— Nenhum sinal?

Natasha balançou a cabeça.

— Ninguém se lem bra de ter visto um cavalo. Mas disseram que ontem ànoite os funcionários na bilheteria eram outros. E não nos deixaram ver aslistas de passageiros por causa das leis de proteção de inform ações.

Mac xingou baixinho, sem abrir a boca.

— Nada da operadora de cartão de crédito?

— Isso não significa nada. Às vezes dem ora algum as horas para um atransação ser processada.

Estavam ficando sem ideias. E, na ausência de um plano concreto, a urgênciado dia anterior foi se esvaindo aos poucos, substituída por um a m elancoliaestranha.

O dia se arrastou. Eles se separaram e se revezaram para cam inhar oupercorrer de carro as ruas de Dover, ou ficar no quarto do hotel ligando paratodos os núm eros da lista telefônica. O dono de um a loj a de doces na ruaCastle j urou ter visto um a m enina a cavalo na noite anterior, m as não sabiade nada além disso. Mac, cada vez m ais frustrado, parava transeuntes, lojistas, funcionários da balsa. Cowboy John se recolheu em seu quarto,telefonou para os m esm os hotéis para os quais haviam ligado na noiteanterior, só para garantir, e acabou caindo no sono. Natasha atendeu a m ais

ligações do trabalho, explicou que, no fim das contas, não, não estaria devolta à noite e percorreu as ruas úm idas de Dover lutando contra um asensação de desespero arrasadora.

Os três com binaram de se encontrar às seis em um bar à beira-m ar. Natashaqueria com er no hotel, m as John dissera que enlouqueceria de vez sepassasse m ais um m inuto naquele buraco dos infernos todo certinho. O bar,intocado pelas extravagâncias da m oda, era im pregnado de cheiro de cerveja e cigarro velho.

Ao se sentar, o caubói pareceu relaxar.

— Ah, agora sim — repetia, dando tapinhas nos assentos de veludo puído,com o se estivesse se sentindo em casa.

Natasha esperou até os hom ens irem pegar bebida antes de discar o núm ero.

Sentou-se e tapou a outra orelha para conseguir escutar apesar do barulho datelevisão acim a dela, que vociferava placares esportivos.

O telefone cham ou oito vezes antes que ele atendesse. Natasha se perguntouse ele teria visto de quem era a ligação e estava ponderando se atendia ounão.

— Conor?

— Aham .

— Só queria saber com o você está.

— Acharam a m enina?

— Não.

— Onde você está?

— Em Dover. Ela com certeza veio para cá, m as nós não conseguim oslocalizá-la. — Quase instantaneam ente, Natasha desej ou ter om itido o“nós”.

— Certo.

Um longo silêncio se instalou. Natasha olhou para Mac, que estava atrás dela,batendo papo com a atendente do bar, talvez explicando o que ele e Johnestavam fazendo ali. Ela viu a m oça erguer as sobrancelhas e balançar acabeça. Tinha presenciado aquela m esm a reação tantas vezes ao longo dasvinte e quatro horas anteriores que nem precisava escutar as palavras.

— Conor?

— Diga.

— Eu só queria saber… — Ela passou os dedos pelo cabelo. — Eu queria tercerteza de que está tudo bem entre a gente. Detestei deixar as coisas assim .

Houve um a leve dem ora antes que ele respondesse.

— Você queria ter certeza de que está tudo bem entre a gente?

— Sinto m uito por ter saído daquele j eito, m as você precisa entender queeu não podia deixar tudo nas costas do Mac.

Natasha ouviu o som da respiração dele por cim a do barulho da televisão.

— Você não entende, não é m esm o, Poderosa?

— Eu j á expliquei sobre o trabalho. Ouvi dizer que Harrington foi m uitobem no tribunal hoj e. A m inha ausência…

— Não. Você não entende. — A voz dele estava m ais suave.

— Não entendo o quê?

— Natasha, você não pediu nenhum a vez. Quando estava quase j ogandofora

a sua vida inteira por causa dessa situação, você não pediu a m inha aj udanenhum a vez.

— O quê?

— Você nem pensou em m e pedir aj uda, não é verdade? O que issosignifica para a nossa relação?

Mac ria j unto com a m oça.

— Não achei que você… — respondeu ela. — Levando em conta a sua…

— Não. Você não pensou em pedir aj uda. Não sei o que está acontecendoentre você e Mac, m as não quero m e envolver com alguém que nemconsegue ser sincera em relação aos próprios sentim entos.

— Isso não é j usto. Eu…

Mas ele j á tinha desligado.

* * *

Sarah balançava um pedaço de pão no ar, alheia ao fato de que sua vozinglesa alta atraía a atenção dos franceses que j antavam nas m esas adjacentes.

— Eles são um tipo de irm andade, sabe? Usam chapéu preto e uniform epreto…

— Ah. Eu sabia que tinha a ver com m oda — brincou Thom .

Sarah ignorou o com entário.

— …e conseguem convencer os cavalos a fazerem absolutam ente qualquercoisa. Eles pulam um a cadeira de m ais ou m enos trinta centím etros delargura.

Tem noção de com o é difícil fazer isso?

— Posso im aginar.

— Vô sem pre disse que a prim eira vez em que se sentiu com preendido foi

quando chegou ao Le Cadre Noir. Com o se só existissem poucas pessoas nom undo que falavam a língua dele, e todas m oravam naquele lugar.

— Eu conheço essa sensação.

— Mas eles se esforçavam tanto… Ele com eçava a treinar às seis da m anhãe, às vezes, treinava o dia todo, trabalhando com vários cavalos, vários movim entos. Alguns estavam no estágio da basse école, o m ais básico, eoutros eram da haute école. Cada cavalo é especializado em m ovim entosespecíficos.

Vô tinha o cavalo preferido dele, que era especializado no capriole. Vocêsabe o que é isso?

— Não.

Ela suspirou ruidosam ente.

— É um a das coisas m ais difíceis que se pode pedir para um cavalo fazer. É

um m ovim ento que vem de um a m anobra de batalha e é feito há m ilharesde anos. O cavalo dá um salto, usando as patas traseiras, e aí, quando está,tipo, no ar, dá um coice. Antigam ente, eu ficava im aginando com o seriaestar em um

cam po de batalha, partir para atacar alguém e o cavalo do seu inim igo saltare…

Iá! — Ela fez o gesto dos cascos traseiros do cavalo indo para trás.

— Assustador.

— Bom , devia funcionar, se não as pessoas não continuariam fazendo a mesm a coisa durante tanto tem po.

Sarah fizera questão de pagar a conta. Thom não se sentira com pletam ente àvontade de ter seu j antar financiado por um cartão de crédito roubado, m asela garantiu que devolveria cada centavo quando Vô m elhorasse, e Sarah eram uito convincente.

Quando chegaram à França e seguiram pela autoroute, ela foi ficando cadavez m ais anim ada. Era difícil im aginar que aquela m enina tagarela e cheiade confiança habitava o m esm o corpo que a adolescente quieta e cautelosada noite anterior.

— John, am igo do Vô, sem pre brinca dizendo que o que a gente faz sãotruques de circo, m as não tem truque nenhum . Só dá para entender vendo.Os cavalos fazem os m ovim entos porque adoram . Eles têm que sertreinados para quererem fazer. Assim , quando se apresentam , não sentemnenhum a pressão, nenhum a tensão. Por isso, evoluem bem devagar, pouco apouco, para entenderem com o executar o m ovim ento sem resistir. — Elaencheu a boca de m ousse de chocolate. — É assim que eles são treinadospara correr?

Thom quase engasgou com o café.

— Não. Na verdade, não. Não m esm o.

A porta do restaurante do posto de gasolina abriu e fechou, e m ais um a família francesa entrou. Os dois observaram , com endo, enquanto a m ãe falavacom as duas crianças e apontava para as coisas que elas podiam com er nobufê.

— Então, há quanto tem po você e o seu avô estão sozinhos?

— Quatro anos.

— Você não m anteve contato com a sua m ãe?

— Ela m orreu antes da m inha avó.

— Sinto m uito.

— Eu, não. Não quero parecer horrível, m as… ela era o tipo de pessoa quecausa problem as. Eu era bem pequena quando ela m e abandonou. Mas sintosaudade da m inha avó. — Sarah se sentou em cim a dos pés e pegou umpedaço de chocolate. — Eu, Vó e Vô: a gente era m uito feliz. As pessoas nãoacreditam quando digo que não sinto saudade da m inha m ãe, m as nunca

senti. Nem por um dia. Todas as coisas do tem po em que eu estava com elam e dão um a sensação ruim . Não m e lem bro de m uita coisa, m as m e lembro de ter m edo. Quando os m eus avós m e levaram para m orar com eles,nunca m ais tive m edo. Um dia —

disse ela, apontando para os cam pos franceses —, vou trazer Vô de voltapara cá.

Era para a gente ter vindo fazer um a visita em novem bro, sabe? Ele queriatanto… Mas aí teve o derram e e tudo ficou… — Ela se calou, então pareceuse

recom por. — Acho que vai aj udar quando ele souber que estou aqui.Quando ficar bom , ele poderá vir para cá. Vai ficar feliz.

— Você parece bem segura de que pode fazer tudo isso acontecer.

— O m eu avô era um dos m elhores cavaleiros da França. Ele conseguiafazer um cavalo flutuar, fazer coisas que eu não sabia que eram possíveis. —Sarah colocou o chocolate na boca. — E eu só estou tentando cavalgar algunsquilôm etros.

Thom olhou para ela, aquela criança, com seu cavalo que viaj ava de form aclandestina no cam inhão. Ela fazia tudo parecer totalm ente racional.

* * *

Natasha fechou o celular e soltou um palavrão. Estava escuro e os trêsandavam de carro sem destino por Dover, depois de terem ido até um caixaeletrônico localizado em um a área industrial da cidade, bem parada àquelahora, cheia de oficinas m ecânicas e prédios com erciais genéricos. De acordocom a em presa de cartão de crédito, aquele tinha sido o últim o lugar ondeSarah havia sacado dinheiro. Estar tão perto e, m esm o assim , não ver sinaldela aum entava a tensão dentro daquele carro pequeno. Ninguém mencionou a prom essa anterior de ligar para a polícia: eles sabiam que eladevia estar por perto. Aquele pedacinho de plástico era a prova. Mas por queum a m enina com um cavalo pararia em um lugar com o aquele?

Natasha se virou no assento para ficar de frente para Cowboy John.

— Diga um a coisa, John. Com o o avô de Sarah foi parar naquele apartamento. Não era… Bom , não é um lugar m uito legal, não é?

— Você acha que ele tinha a intenção de m orar em um lugar com o aquele?

Acha que era isso que ele queria da vida?

Mac deu de om bros.

— Não sabem os nada sobre ele, a não ser que parece ter criado um a m eninaim possível.

John se recostou no assento com um ar de contentam ento quase palpável.

— Certo. Vou contar sobre Henri. Ele veio de um a fam ília com um asituação bem difícil. Filho de cam poneses de algum lugar no sul da França.Tinha problem as com o pai, e, quando era j ovem , fez de tudo para cair forao m ais rápido possível e entrou para o Exército.

Natasha apostara que John era o tipo de hom em que gostava de contarhistórias e ficou contente de escutar; assim , não precisava pensar em m aisnada.

Mac não se incom odaria: ele adorava saber m ais sobre a vida das pessoas;isso derivava de anos tentando agradar os indivíduos que fotografava.

— Lá Henri acabou m ontando a cavalo, na cavalaria m ontada ou algo assim, e na década de 1950 ele conseguiu se aprim orar até ser aceito pelo LeCadre

Noir, que estava se recuperando depois da guerra. — O caubói olhou bempara os dois à sua frente. — Isso não é pouca coisa, sabem ? Eles são, tipo, osm elhores do país. É um a academ ia de elite. Cara, ele adorava aquele lugar.Quando falava dele, ficava com o corpo um pouco m ais aprum ado… Sabemcom o é?

— Então com o foi que ele acabou em Sandown?

— Mulheres. — John olhou feio para Natasha, com o se ela devesse assum irum pouco da responsabilidade. — Ele se apaixonou.

Le Cadre Noir estava em um a das prim eiras turnês internacionais em 1960

quando Henri Lachapelle reparou na m ulher baixinha de cabelo escuro nafrente da plateia. Ela com pareceu a todas as três apresentações. A grandepiada era que ela na verdade não gostava de cavalos; tinha ido com um a amiga, m as ficara m aravilhada com o rapaz com o colarinho preto engom adoque fazia m ontar a cavalo parecer algo m ágico.

Certa noite, Henri saiu para falar com ela depois da apresentação e, com odescreveu para John anos m ais tarde, sentiu que sua vida inteira tinha sidoum ensaio para aquele m om ento.

— Acho que ele não tivera m uita experiência em term os de am or, e o golpefoi forte — disse John, acendendo m ais um cigarro. — Eles passaram m aistrês noites j untos e depois se com unicaram por carta e se visitaram duranteseis m eses, se encontrando sem pre que possível. O problem a era que,quando estava longe dela, Henri ficava de m au hum or. Vocês sabem com osão os j ovens apaixonados, e Henri nunca foi de fazer as coisas pela m etade.Parou de prestar atenção, e as apresentações dele foram afetadas. Com eçou aquestionar as coisas que lhe diziam na academ ia. Por fim , disseram a ele queteria que obedecer às regras ou ir em bora e, em um acesso de raiva, ele se mandou. Veio para a Inglaterra, casou-se com a m oça e…

— Viveram felizes para sem pre — concluiu Natasha, lem brando-se dafotografia. Da m ulher que parecia m uito am ada.

John olhou ainda m ais feio para ela.

— Está de brincadeira? — perguntou. — Quem vive feliz para sem pre?

23

“Um cavalo desobediente não é apenas inútil, mas costuma fazer o papel deum verdadeiro traidor.”

XENOFONTE, SOBRE EQUITAÇÃO

Antes m esm o de com pletar um ano na Inglaterra, Henri Lachapellepercebeu que havia com etido um erro terrível. Não era culpa de Florence: elao am ava, estava sem pre bonita e tentava ser um a boa esposa. Não era culpadela que sua ansiedade em relação à felicidade dele fizesse Henri se sentir umpouco m ais do que culpado, ou que isso frequentem ente se m anifestasse emum a espécie de irritação.

Ele pedira a m ão de Florence em casam ento na noite do Le Carrousel, semfôlego, ensanguentado e ainda coberto de areia. As pessoas que estavamassistindo nas cadeiras ao redor dela tinham se levantado e com em orado. Osdois cam inharam pelas ruas de Saum ur durante horas, desviando-se dosbêbados e das m otocicletas, planej ando o futuro em com um , cim entando apaixão, agitados com seus sonhos. Na m anhã seguinte, ele não aparecerapara o treino da m anhã.

Em vez disso, arrum ara seus poucos pertences na m ala e pedira para falarcom Le Grand Dieu. Inform ara que desej ava ser dispensado de sua posição.

Le Grand Dieu observara o olho roxo e a bochecha inchada de Henri, ecolocara a caneta na m esa. Houve um longo silêncio.

— Sabe por que nós tiram os as ferraduras de trás dos nossos cavalos,Lachapelle? — perguntara.

Henri piscou em um gesto dolorido.

— Para não m achucarem os outros cavalos?

— E para que, quando estiverem aprendendo a encontrar seu equilíbrio,quando se agitarem , se debaterem e derem coices, com o é inevitável queaconteça, eles não se m achuquem por acidente. — Ele colocara as m ãos nam esa. — Henri, se você fizer isso, vai se m achucar da form a m ais feia quepode im aginar.

— Com todo o respeito, senhor, não acredito que eu possa ser feliz aqui.

— Feliz? Você acha que vai ser feliz se eu liberar você?

— Acredito que sim , senhor.

— Não existe felicidade neste m undo a não ser a alcançada pelo am or aopróprio trabalho. Este é o seu m undo, Henri. Qualquer tolo consegue verisso.

Não se pode isolar um hom em de seu m undo e achar que ele será feliz.

— Com todo o respeito, senhor, eu j á m e decidi. Gostaria de ser liberado.

Ele tinha se sentido bem por estar tão determ inado, por enxergar o futurocom

tanta clareza. O único m om ento em que chegou perto de m udar de ideia foiquando cam inhou pelo pátio coberto para ver Gerontius pela últim a vez. O

m aravilhoso cavalo relinchou quando Henri se aproxim ou, fuçou seusbolsos e então apoiou a cabeça no om bro do cavaleiro enquanto ele fazia umagrado em seu focinho. Henri conteve as lágrim as. Nunca tinha se separadode alguém que am ava; antes de Florence, nunca am ara ninguém . Apenasaquele cavalo m agnífico e gentil.

Ele fechou os olhos e sentiu o cheiro tão fam iliar do pelo quente do anim al,sentindo a m aciez aveludada das narinas dele, a im utável sensação de graçade estar na presença daquele cavalo. E então Henri Lachapelle cerrou osdentes, colocou a m ala no om bro, virou-se e cam inhou na direção dosportões da L’École du Cavalerie.

* * *

Os prim eiros m eses na Inglaterra tinham sido toleráveis, com as provaçõesm ascaradas pela satisfação tranquila que ele sentia com o hom em recém -casado.

Florence reluzia com a atenção dele; um m ilhão de vezes por dia, ele via aspequenas características da esposa que lhe perm itiam j ustificar sua decisão.A fam ília dela, apesar de obviam ente um pouco cautelosa em relação ao j

ovem francês que arrebatara a filha, agia com educação. Os pais dela não sem ostravam tão contrariados quanto o pai dele, independentem ente de quemele levasse para casa. Por esperteza, Florence lhe dissera para vestir ouniform e quando fosse apresentado a eles; com a guerra ainda fresca na mem ória, era difícil para a geração dos pais dela ver qualquer defeito em umhom em de uniform e.

— Vocês não estão pensando em se m udar para a França, estão? — indagarao pai dela várias vezes. — Florence é um a m oça m uito apegada à fam ília.Ela não se daria bem tão longe de casa.

— Meu lar é aqui — dissera Henri, com convicção. E Florence, sentada aolado dele, tinha corado de prazer.

Ele firm ara residência e, poucas sem anas depois de sua chegada à Inglaterra,se casara com Florence no Cartório de Registros de Mary lebone, tãodepressa que os vizinhos passaram os m eses seguintes olhando desconfiadospara a cintura da recém -casada sem pre que passavam . Henri procurou emprego em Londres e nos subúrbios, tentando um posto de instrutor de montaria, m as as cavalgadas por prazer ainda eram reservadas aos ricos. Naspoucas vezes em que aceitaram fazer um teste com ele, seu fraco dom ínio doidiom a, o sotaque im penetrável e as opiniões form ais a respeito da montaria não lhe perm itiram conquistar m uitos adm iradores. Por sua vez, eleconsiderou a postura dos ingleses em relação aos cavalos incom preensível: aabordagem do hipism o era pouco refletida, baseada

no cam po de caça, desleixada, inexata e, pior, nada gentil. Eles pareciam sepreocupar m ais em dom inar o cavalo do que em trabalhar com ele ouincentivá-

lo a atingir seu m áxim o potencial.

Henri ficou decepcionado com a Inglaterra. A com ida era pior do que aquiloque ele recebia na cavalaria. As pessoas pareciam se contentar em com erapenas enlatados; havia poucas feiras em que se podia com prar com idafresca e barata; o pão era esponj oso e sem gosto; a carne era m oída em um apapa m arrom e reform atada em pratos esquisitos: trouxas, risoles, tortas. Emraras ocasiões, ele levava produtos frescos para casa e os preparava pessoalm

ente: salada de tom ate, peixe tem perado com as poucas ervas secas queconseguia encontrar. Mas os pais de Florence arregalavam os olhos à m esade j antar, com o se ele tivesse feito algo subversivo.

— Um pouco forte dem ais para m im — observava a m ãe dela. — Masobrigada, Henri. É m uita gentileza sua tentar.

— Acho que não é do m eu gosto — dizia o pai, em purrando o prato para ocentro da toalha de m esa.

Ele se sentia sufocado pelo horizonte cinzento opressivo e voltava para a casaestreita em Clerkenwell, revelando que tinha sido “dispensado” m ais um avez, quase sem pre sem receber o pagam ento devido. Era im possível argumentar em um a língua que ele ainda não entendia. As refeições em fam íliaeram tensas. O

pai de Florence, Martin, perguntava na hora do chá se ele j á encontrara outrotrabalho e, quando a reposta era não, perguntava tam bém se ele pensava emm elhorar o inglês um pouco para conseguir um em prego “adequado”.

Aparentem ente, isso significava um a função que incluísse ficar sentado atrásde um a escrivaninha.

Florence apertava a m ão dele em baixo da m esa.

— Henri é m uito talentoso, papai — dizia ela. — Eu sei que alguém logo vaiachar um trabalho para ele.

O cavaleiro passou a se sentir grato pela barreira da língua im pedir qualquerconversa que não fosse com pletam ente superficial.

À noite, ele sonhava com Gerontius. Cavalgava até a place du Chardonnet,acom odado em um m eio-galope lento e gingado, pedindo ao seu velhocavalo coraj oso que trocasse a pata dianteira aqui, que dobrasse o casco emum a passage ali. O anim al dançava, dava piruetas, erguia-se nas patastraseiras em um levade perfeito, e Henri via o m undo disposto a seus pés. Eentão inevitavelm ente acordava no apertado quarto em que Florencecrescera, com a m obília m arrom sem graça, a vista para a rua com ercial e a

m ulher, com o cabelo preso em bobes, roncando baixinho ao seu lado.

Depois de um ano, ele não conseguia m ais disfarçar a m agnitude de seuerro.

Os ingleses eram piores do que os parisienses: ficavam desconfiados quandoele abria a boca, e os hom ens m ais velhos balbuciavam com entáriosdisparatados

sobre a guerra, achando que ele não conseguiria entender. As pessoas que ocercavam não tinham fom e de aprendizado nem de se aprim orar. Pareciamse preocupar apenas em ganhar dinheiro, o qual gastavam com bebida nasnoites de sexta-feira, com um a espécie de determ inação som bria. Ouficavam trancadas em casa, m esm o quando o tem po estava bonito, com ascortinas fechadas, hipnotizadas pelos novos aparelhos de televisão.

Florence notou a infelicidade dele e tentou com pensá-la, am ando-o m ais,elogiando-o, garantindo a ele que as coisas iriam m elhorar. Henri sóenxergava o desespero nos olhos dela, sentia sua adoração se transform ar emapego e anunciava que, na sem ana seguinte, sairia para procurar em prego mais um a vez, apesar de saber que não havia nenhum trabalho a serencontrado. As tentativas da esposa de disfarçar sua decepção só serviampara alim entar a culpa e o ressentim ento dele.

Em abril, quase quinze m eses depois de chegar à Inglaterra, ele reuniucoragem para escrever a Varj us. Não era um bom com unicador, por isso foibreve:

Meu caro amigo,

Será que eles me aceitariam de volta? É difícil demais viver apenas com agravidade.

Ele colocou a carta no correio sentindo um a culpa enorm e, m as tam bémesperança. Florence com preenderia. Ela não podia querer um m arido quenão ganhava nada, que não podia lhe dar um lar. Acabaria se adaptando àFrança. E, se não conseguisse (nesse ponto ele sentia a vergonha se embrenhando bem fundo), seria m esm o tão ruim se ele nunca m ais voltasse?

Ela com certeza não era feliz do j eito que as coisas estavam . Sem dúvidaentenderia que hom em nenhum poderia continuar longe daquilo que am ava.

Henri pensava na carta percorrendo seu cam inho pelo continente durante mais um j antar interm inável. Era frango. A Sra. Jacobs tinha cozinhado atéque a carne ficasse com textura de couro e preparara um m olho de queij o.Ao lado do frango havia um m ontinho de legum es irreconhecíveis,picadinhos até não poder m ais.

Henri perm aneceu em silêncio, levando pedacinhos à boca com o garfo deform a diligente enquanto o Sr. Jacobs balbuciava, som brio, algo sobre“aquele suj eito russo” ir para o espaço. Ele parecia considerar a exploraçãodo Sr.

Gagarin um a afronta pessoal.

— Não sei o que eles querem m andando hom ens para o céu — observou,pela terceira vez. — Isso vai contra as leis da natureza.

Henri logo percebera que o Sr. Jacobs não era um hom em que gostasse de mudanças, e, àquela altura, tinha certeza de que o casam ento da filha com umfrancês se encaixava na categoria “desprezível”.

— Eu acho em ocionante — arriscou Florence. Henri ficou surpreso: elararam ente expressava um a opinião que pudesse contradizer o ponto de vistado pai. — É rom ântico — com pletou, cortando um pedaço de frango comcuidado.

— Gosto da ideia de que tem alguém lá em cim a, entre todas as estrelasbrilhantes, olhando aqui para nós. — Ela sorriu para Henri, um sorrisosecreto.

Ele percebeu que a m ãe dela sorria para os dois.

— Florence tem um a coisa para contar, Henri — disse a Sra. Jacobs aoperceber que o genro estava confuso.

Florence lim pou a boca e colocou o guardanapo no colo. Corou um pouco.

— O que foi? — indagou ele.

— Eu ia guardar segredo m ais um pouco, m as não consegui. Contei para mam ãe. Vam os ter que colocar m ais um lugar na m esa.

— Por quê? — perguntou o Sr. Jacobs, desviando a atenção do j ornal. —

Quem vem aqui?

Florence e a m ãe caíram na gargalhada.

— Ninguém vem aqui, papai. Eu… Eu estou com eçando m inha fam ília…—

Ela pegou a m ão de Henri em baixo da toalha da m esa. — Vam os ter umbebê.

Bom , as pessoas sem dúvida faziam as coisas de um j eito diferente naFrança, observou a Sra. Jacobs ao m arido naquela noite, m uito tem podepois de o j ovem casal se retirar para o quarto. Apesar de toda a conversasobre os franceses serem m uito sofisticados, ela achava que nunca tinha vistoum hom em ficar tão chocado.

* * *

Henri estava saindo de casa quando encontrou o carteiro na entrada. Varj us,com o lhe era típico, respondera à carta em um a sem ana. Ele rasgou oenvelope e leu, com um a expressão im passível, as palavras escritas compressa.

Le Grand Dieu é um bom homem, um homem compreensivo. Acho que, sevocê o abordar com humildade, talvez ele perdoe o seu erro. Mais do quetudo, ele sabe que você é um cavaleiro! Anseio pelo seu retorno, meu amigo.

— Boas notícias, am igo? — perguntou o carteiro, enfiando um a revistadobrada na caixa de correio do núm ero quarenta e sete.

Henri am assou a carta em um a bola e o enfiou no fundo do bolso.

— Sinto m uito. Não falo inglês — respondeu.

“Dois cam inhos”, dissera o Le Grand Dieu. Por que ele não o alertara decom o eles se transform ariam em um só com tanta rapidez?

* * *

Henri abriu a porta da frente e entrou no corredor estreito. O cheiro derepolho cozido dem ais tom ava conta do am biente, e ele fechou os olhos porum instante, tem endo em silêncio pela com ida que seria servida naquelanoite. Então um som o deteve. Na sala, do outro lado do papel de parede emrelevo, ele escutou soluços ruidosos.

A porta da cozinha se abriu e Florence apareceu. Ela foi traçando seu caminho por entre os m óveis e ergueu o rosto para dar um beij o nele.

— O que foi? — perguntou ele, torcendo para que ela não detectasse o álcoolem seu hálito.

— Eu disse a eles que, depois que o bebê nascer, nós vam os para a França —

respondeu.

Sua voz estava calm a e as m ãos, unidas na frente do corpo. Com a palavra

“França”, houve m ais um a rodada de soluços.

Henri olhou para a m ulher, confuso.

Florence pegou as m ãos dele.

— Ando pensando nisso há m uito tem po. Você m e deu tudo… tudo. — Elaolhou para baixo, para o ventre. — Mas sei que não é feliz aqui, Henri. E édifícil dem ais achar que isso vai acontecer, com a cabeça tão fechada daspessoas, e com a coisa dos cavalos ser tão diferente aqui e tudo o m ais.Então, eu disse a m am ãe e papai que, assim que nos recuperarm os do parto,você vai cuidar de m im lá. Com o você j á deve ter percebido, a m am ãe nãoaceitou m uito bem . —

Ela ergueu a m ão para tocar no rosto dele. — Será que Le Cadre Noir aceitavocê de volta, querido? Tenho certeza de que, quando eu conseguir m e virar,vou poder cuidar de um a casinha lá perto para você. Vou aprender francês.Vam os criar o bebê lá. O que acha? — Talvez desconcertada pela falta deresposta dele, Florence com eçou a m exer no punho da cam isa. — Eu queriasugerir que fôssem os agora. Mas estou insegura em passar pelo parto semsaber falar com os m édicos… E m am ãe ficaria fora de si se não pudesseestar com igo. Mas eu disse a eles que nós vam os depois que o bebê nascer.Espero ter feito a coisa certa…

Henri?

Que inglesa linda e coraj osa. Henri ficou sem palavras, com ovido. Ele não am erecia. Florence não fazia ideia de com o ele chegara perto… Henri deuum passo adiante e enterrou o rosto no cabelo dela.

— Obrigado — sussurrou. — Você não faz ideia do que isso significa. Voum e assegurar de que o nosso futuro sej a m elhor… para nós e o nosso bebê.

— Eu sei que sim — respondeu ela, baixinho. — Quero que você volte avoar, Henri.

* * *

Ele ouviu o bebê chorar antes m esm o de chegar à casinha, um choram ingoagudo que ecoava pela rua silenciosa. Antes de abrir a porta do quarto, j ásabia o que ia encontrar.

Ela estava debruçada sobre o berço, fazendo barulhinhos para acalm á-la,agitando inutilm ente as m ãos por cim a da criança. Quando Henri seaproxim ou, Florence se virou. Estava pálida, e seus olhos dem onstravamlongas horas de ansiedade.

— Há quanto tem po ela está chorando?

— Não faz m uito. Mesm o. — Ela aprum ou o corpo e deu um passo para olado. — Só desde que a m am ãe saiu.

— Então por quê…?

— Você sabe que tenho m edo de pegá-la no colo sem você aqui. Minhas mãos pararam de funcionar de novo. Derrubei um a xícara hoj e à tarde e…

Ele rangeu os dentes.

— Chérie, não tem nada de errado com as suas m ãos. O m édico disse quenão tem . Você só precisa ser confiante.

Ele tirou Sim one do bercinho e abraçou com habilidade a bebê m inúscula,que se aquietou im ediatam ente. A boquinha da filha se abriu e fechou pertoda cam isa dele, procurando leite. Florence se sentou na poltrona no canto,estendeu os braços para recebê-la e só os fechou em volta da neném quandoteve certeza de que ela fora entregue em segurança ao seu abraço.

Enquanto a m ulher am am entava o bebê, Henri tirou as botas e as deixou aolado da porta. Tirou o paletó e colocou água no bule para ferver. Enfim tinhaencontrado um em prego na ferrovia. Não era m uito ruim . Nada era tão ruimapós saber que aquilo seria tem porário. Nenhum dos dois falou, e o silênciosó era quebrado pela bebê, que m am ava ávida, e por um ou outro carropassando do lado de fora.

— Você saiu de casa hoj e?

— Eu queria… m as, com o disse, fiquei com m edo de pegá-la no colo.

— Os seus pais nos deram um carrinho. Você podia ter colocado a Sim onenele.

— Desculpe.

— Não precisa pedir desculpa.

— Mas eu sinto tanto… Henri…

Ela não precisava pedir desculpa. Podia sim plesm ente ser m enos complicada em relação a tudo. Se ficasse m enos ansiosa em relação à criança eparasse com essas reclam ações ridículas sobre m ãos que supostam ente não

funcionam m ais e da tontura im aginária j á estava bem .

— Nervos — dissera o m édico quando, poucas sem anas depois do nascimento de Sim one, Florence com eçara a reclam ar que seu corpo não estavafuncionando com o deveria.

Parecia que isso acontecia às vezes com m ães de prim eira viagem , o médico confidenciara a Henri e à m ãe dela no corredor estreito, depois deexam iná-la.

Enxergavam terrores, perigos que não existiam . Às vezes chegavam até a teralucinações.

— Pelo m enos ela se apegou à criança — observou ele. — Ela e o bebêdevem passar um tem po com a avó. Só até ela ficar um pouco m ais…

confortável com a m aternidade.

O que Henri poderia ter dito? Ele assentira, im aginando com o é que eles nãopercebiam que cada átom o de seu corpo j á se desviava na direção do canalda Mancha.

Florence estava chorando de novo. Ele a observou com a cabeça baixa,tentando enxugar as lágrim as reveladoras da cam isola de algodão de Simone, e sentiu que um peso sufocante o envolvia. Quanto tempo mais? , tinhavontade de berrar para ela. Pensava em Gerontius, que talvez estivesse àespera dele naquele exato m om ento, com a cabeça por cim a da porta dabaia.

— Sinto m uito. Sei que você achou que a França seria a resposta para nós —

disse ela, baixinho.

Pronto, ali estava. A coisa nunca dita que pairava entre os dois havia semanas.

Ela não daria conta sozinha, e ele não podia arriscar que algo acontecessecom a criança. Não era possível retornar ao Le Cadre Noir e estar presentepara dar apoio à esposa. Não tinha fam ília com quem deixá-la, nem dinheiro

para pagar um a babá.

Teriam que ficar ali, ao alcance dos pais dela.

Henri se levantou e cam inhou até a poltrona dela.

— Vou escrever a Monsieur Varj us — disse.

Ela ergueu os olhos.

— Quer dizer que…

— Vam os ficar na Inglaterra m ais um pouco. — Ele deu de om bros, com osdentes cerrados. — Tudo bem . De verdade.

Outra pessoa montaria o cavalo dele.

Os dedos da bebê se abriam e se fechavam na pele exposta da m ãe,exigentes, rapsódicos.

— Talvez quando eu estiver m e sentindo um pouco m elhor… — sussurrouFlorence.

E, no ano seguinte, haveria novos cavaleiros, écuy ers , esperando paratomar o lugar dele.

Quando ela abraçou o pescoço de Henri, soluçando seus agradecim entos nosom bros doloridos do m arido, ele percebeu, cheio de culpa, que a única coisaque sentia era desespero. Seu segundo pensam ento foi ainda pior: com o éque um a m ulher incapaz de usar as m ãos podia prendê-lo com tanta força?

* * *

— Foi m ais ou m enos um ano depois disso que a gente se conheceu. Eleestava trabalhando no trilho em cim a do m eu estábulo. Era a prim eira vezque via cavalos desde que tinha saído da França, quer dizer, cavalos que nãoestavam puxando um a carroça. — Cowboy John colocou o chapéu para trás.— Levantei a cabeça um a tarde e flagrei Henri olhando para m inha éguavelha com o se fosse um a m iragem . Naquela época nós dois éram os novos

na área, dois forasteiros. Acenei para que ele descesse, e ele com eu ossanduíches que tinha levado para o alm oço na frente da cocheira, afagando ofocinho da égua com a outra m ão o tem po todo. Muita gente achava que eleera um pouco rígido dem ais, m as eu gostei dele. A gente se dava bem .Durante anos, passam os um tem pão no m eu escritório, tom ando chá,falando sobre o sitiozinho que ele teria na França um dia, sobre a escola dehipism o que m ontaria lá quando ganhasse algum dinheiro.

— Era isso que Florence queria? — perguntou Natasha.

Ela havia ficado tão envolvida com a história que percebeu ter esquecido, porum instante, por que estavam naquele carro.

— Ah, Florence teria feito praticam ente qualquer coisa que aquele hom emlhe pedisse. Acredito que ela se sentia culpada de verdade por ter prendidoHenri daquele j eito. Ela sabia, assim com o ele, que não conseguiria se virarsozinha na França com aquela doença. Ela gastava quase toda a sua energiatentando recom pensá-lo por isso.

— Não entendi. Doença?

John olhou para eles com a testa franzida.

— Vocês não sabem ?

— O quê?

— Sarah não contou para vocês? A avó dela tinha… Ah, com o cham a mesm o?… Esclerose m últipla. Passou anos em um a cadeira de rodas. Sarahaj udou o avô a cuidar da velha m ais ou m enos desde que aprendeu a andar.

* * *

Os três haviam desistido de Dover e resolveram seguir pelo litoral, na direçãode Deal. Mac dirigia no escuro, dizendo nom es de hotéis em voz alta para ocaso de Natasha ainda não ter ligado para algum . Ou não ter ligado duasvezes. Ela continuava conversando com John, com a im aginação focada nasprovações de Henri Lachapelle.

— Do j eito que Sarah fala dos avós, parecia que eles eram m uito próxim os.

John deu um a gargalhada de desdém .

— Eles eram próxim os, com certeza, m as a vida toda daquele hom em écheia

de arrependim entos.

— Você está falando da m ãe de Sarah?

— Ai, caram ba, Sim one era um a confusão só. Era explosiva, viviadiscutindo… o oposto dele. Enquanto ele guardava os problem as para si, elacolocava tudo para fora. Florence não conseguia dar conta, não tinha forçaspara isso, e ele tentava deixá-la na rédea curta, com o faz com Sarah. Era umdisciplinador à m oda antiga, um pouco dem ais para o gosto de alguns. Nãogostava que ela se m isturasse com os garotos locais, que ficasse fora de casaaté tarde. É provável que a condição de Florence tenha feito com que elefosse m ais protetor do que seria norm alm ente. Mas Sim one não aceitava.Aaah, não.

Brigava com ele por cada centím etro. Quanto m ais ele a puxava para umlado, m ais ela puxava para outro. — O caubói acendeu outro cigarro. — Aparte triste é que agora ele sabe que fez tudo errado com ela. Devia terrelaxado. Na verdade, eram m ais parecidos do que achavam . Mas é difícil,sabe? Quando se acha que está perdendo um a coisa, nem sem pre se age do jeito m ais inteligente.

Natasha olhou para Mac; ele estava envolvido na história de John.

— Quando Henri percebeu o que estava fazendo de errado, a filha j á estavatão afundada nas drogas que ele não conseguiu trazê-la de volta. Então,durante uns quatro, cinco anos, ela fugiu para Paris e os pais não tiveramnenhum a notícia. A não ser quando ela precisava de m ais dinheiro, claro.Caram ba, quase deixou os dois de coração partido. Eu sei que ele se culpa. Eaí, há dez, onze anos, Sim one apareceu à porta deles com um a m enininha,dizendo que não conseguia cuidar dela. Tivera um bebê na França. Nuncacontara nada aos pais. Foi o m aior choque da vida deles. Ela disse que ia se

aj eitar por aqui e passou a deixar a criança com os avós. Cada vez era porum pouco m ais de tem po, e ela não aparecia quando deveria. No fim , elesentraram com um processo para ficar com a guarda e conseguiram . Sim onenem com pareceu à audiência. No com eço ele ficou irritado… Erasuperprotetor em relação a Florence, então achou que ter que cuidar da menininha era um fardo extra para ela. Mas, para dizer a verdade, os doisficaram bem felizes de ter Sarah com eles.

Cowboy John sorriu.

— No dia em que conseguiram a guarda, parecia que os dois tinham ganhadoum a nova chance na vida. Henri voltou a pensar em cavalos e eles ficaramfelizes. Pelo m enos eu nunca tinha visto os dois tão felizes j untos. Foi umgolpe quando descobriram que Sim one havia m orrido, m as acho que também deu certo alívio. Ele passara anos procurando por ela, m andandodinheiro, dando um j eito nas confusões em que ela se m etia, tentandoendireitá-la… Não que Sarah saiba nada disso. Vocês devem entender, elequeria proteger a m enininha de tudo isso… De algum as coisas que elesabia… Nenhum a garota precisa saber desse tipo de coisa sobre a m ãe…

John estrem eceu.

— Mas, bem , Florence m orreu faz o quê? Uns quatro anos. Depois doenterro, eles receberam um a oferta do governo, um tipo de incentivofinanceiro para abrir m ão do apartam ento no térreo, do qual as autoridadesprecisavam para outras pessoas com dificuldade de locom oção. Bem , eleaceitou o dinheiro, se m udou para aquele apartam ento em Sandown e gastoua quantia que ganhara com Baucher, aquele cavalo dele que é um Rolls-Royce. E, a partir de então, voltou a parecer ele m esm o m ais um a vez. Tudoisso para dar um a vida m elhor para Sarah.

— Ele queria que a neta fosse feito ele — refletiu Natasha.

Cowboy John balançou a cabeça.

— Quer saber de um a coisa, Srta. Dona Advogada? Ele queria exatam ente ocontrário. Ah, pode pensar o que quiser sobre ela, m as Sarah é a única coisaem que aquele hom em sentiu que acertou — disse ele, m irando o vazio com

os olhos lacrim osos.

* * *

A m enina tinha caído no sono. Thom dirigiu noite afora, olhando para ela devez em quando, enroladinha no banco da frente, com a cabeça apoiada na janela. E

então, quase que por reflexo, o m onitor do circuito de câm eras focado nocavalo dela, separado no m eio dos outros dois, m ostrava-o vigilante, com ose não se perm itisse relaxar e estivesse se preparando para o próxim oestágio de sua j ornada.

Ele não contara a Kate o que estava fazendo; sabia o que ela diria. A namorada diria que ele estava louco, iria acusá-lo de ser irresponsável, de arriscara vida da garota. Thom sabia que se a enteada dele, Sabine, tivesse fugidodaquele j eito, pegando carona com um desconhecido para outro país, elesficariam transtornados de m edo e preocupação.

Mas com o explicaria que precisava perm itir que a m enina fizesse aquilo?

Mesm o depois de ouvi-la falando sem parar nas últim as horas, ele a invejava um pouco. Quanta gente tinha a oportunidade de correr atrás de umsonho? Quanta gente sabia o que queria? Quando ela falou sobre sua viagem ,sobre seu am or pelo cavalo, sobre a vida descom plicada que im aginavapara si m esm a e sobre o avô, Thom percebeu com o era fácil se envolver ese acom odar com a rotina e as preocupações do cotidiano.

Mas nada disso o im pediu de se preocupar e de pensar várias vezes quedeveria parar o cam inhão na beira da estrada e ligar para a polícia. Deu m aisum a olhada no m onitor. O cavalo ergueu um pouco a cabeça e, por um mom ento, olhou diretam ente para a câm era. “Cuide bem dela, am igão”, disseThom , baixinho. “Só Deus sabe de com o ela vai precisar de toda a aj uda dom undo.”

* * *

Às oito e quinze, eles pararam em um fast-food para usar o banheiro. Apesar

de Natasha observar que ele andava indo ao banheiro com m uita frequência,John pediu um café grande com duas colheres de açúcar e foi até o telefonepúblico ligar para o hospital. Rotina, anunciou ele, alegre. Gostava de ir até láou ligar todos os dias. O velho gostaria de saber o que estava acontecendo.

— O que você vai dizer a ele? — perguntou ela.

— A verdade. Que a gente sabe que ela está por perto, m as que ainda nãodescobriu exatam ente onde. Mas ele é um velho sabido. Deve ter dito a elaaonde ir para a gente não encontrá-la.

Essa ideia o fez rir, e Natasha o observou enquanto ele se afastava aos risosem direção ao telefone.

Ela chegou à m esa e colocou um a bandej a plástica na frente de Mac,tentando não reparar que ele tinha fechado o celular no m esm o instante, como se conferisse um a m ensagem de texto.

— Se eu disser “surpresa”, você vai m e bater? — perguntou ele.

— Ela nunca contou.

— Nós nunca perguntam os.

— Mas ela nunca disse nada. Conversei com ela sobre os avós, e a únicacoisa que disse é que eles eram felizes.

— Talvez essa fosse a única coisa que ela considerava im portante —

argum entou Mac, m isturando crem e no café.

Ela estendeu o café preto quando John voltou, m as ele balançou a cabeçacom um a expressão som bria.

— Pessoal, vou ter que ir em bora. Henri não está m uito bem . E com oSarah não está presente… Bem , alguém precisa ficar com ele.

— Ele está m uito m al?

— Só pediram que eu fosse até lá. Bem , pediram que Sarah fosse, m as eudisse que não seria possível no m om ento.

Ele rem exia nos bolsos em busca de trocados, conferindo quanto tinha. Derepente, pareceu cansado e um pouco frágil.

Natasha se levantou e enfiou a m ão na bolsa, esquecendo o café.

— Levam os você até a estação. Aqui — disse, entregando um pouco dedinheiro a ele. — Leve isto para pagar a passagem .

— Não preciso do seu dinheiro, m oça — retrucou John, irritado.

— Não é para você, é para ele. Para que não fique sozinho. Ah, pelo am or deDeus, pegue um táxi da estação — insistiu ela. — Você m erece.

Enquanto o caubói olhava para as notas que ela estendia, sua expressãosabichona de desdém pareceu sum ir do rosto enrugado pela prim eira vez.Ele aceitou as notas e tocou o chapéu num gesto de agradecim ento.

— Bom , obrigado. Ligo para vocês quando souber com o ele está.

Antes que Natasha se desse conta de que a ausência repentina do hum or mordaz de Cowboy John a tinha desconcertado m ais do que qualquer outracoisa que havia acontecido até aquele m om ento, os três j á estavam no carropara deixá-lo logo na estação.

Quando chegaram ao estacionam ento da estação o celular dela tocou.

Natasha abriu o aparelho.

— É, sim — disse ela, olhando para John, que j á ia saindo do carro. —

Desculpe… pode repetir? — A ligação estava ruim e ela fez um gesto paraque Mac desligasse o m otor. — Tem certeza?… Muito obrigada pela informação…

Sim , eu entro em contato.

— Está tudo bem ? — perguntou John, segurando a porta de trás aberta.Estava ansioso para sair, m as algo no rosto de Natasha devia ter detido ele.

Natasha fechou o celular.

— O que foi? — perguntou Mac. — Não fique aí parada…

— Era a operadora de cartão de crédito. Vocês não vão acreditar. Ela está naFrança.

24

“A melhor proteção contra o fracasso (…) está no conhecimento completodos poderes do seu cavalo.”

XENOFONTE, SOBRE EQUITAÇÃO

Sarah sonhava com cavalos, sangue e estradas. Acordou com um a raj ada devento frio e viu Thom espiando pela porta do m otorista. Ela se aprum ou nobanco do carona. O relógio no painel do cam inhão lhe dizia que eram quinzepara as oito.

— Bom dia.

Ele estava vestido e com a barba recém -feita, com o se j á estivesse acordadohavia um tem po.

— Onde estam os?

O local tinha um a claridade curiosa, com o se o m undo todo fosse algunstons m ais claro do que na Inglaterra. A um a curta distância, ela viu umestábulo im aculado, cor de m el, com telhado baixo de telhas verm elhas,ladeado por um a cerca viva densa e com o topo bem reto. Havia arbustos deteixo bem podados ladeando os portões e um hom em cuidava de um acocheira, usando um ancinho para colocar a palha suj a em um carrinho de mão de form a bem -hum orada.

— Perto de Blois — respondeu ele. — Você teve um a boa noite de sono.

— Cadê o Boo? — Aquele m esm o pânico por reflexo.

— Está falando do Sr. Diablo? Ele está no estábulo. — Thom apontou opolegar na direção das cocheiras. — Chegam os aqui ontem de m adrugada,m as você estava dorm indo profundam ente e não achei j usto colocar os doispara fora no m eio da noite. Ele está na terceira baia à esquerda. Está bem .Ficou um pouco agitado quando chegam os aqui, m as está ótim o.

Ela piscou e viu o focinho de Boo tentando alcançar um a rede de feno.

— Esta noite fica por m inha conta. Mas preciso voltar para Calais, Srta.Sarah, então acho que chegou a hora de nos despedirm os.

Sarah tentou organizar os pensam entos enquanto Thom a aj udava a descerdo cam inhão e lhe entregava dois croissants que havia pedido ao dono doestábulo.

Ele abriu um pequeno m apa em que tinha m arcado o m elhor traj eto até oLe Cadre Noir.

— São uns cem , cento e dez quilôm etros daqui, na direção sudoeste —

explicou, apontando para um a estrada verm elha com prida. — Eu levariavocê até lá se pudesse, m as não posso perder m ais quatro horas. O tem poestá lindo para um a cavalgada, e essas estradas são bem tranquilas. Acho quevocê não vai ter m uito problem a. É só não se apressar, certo?

Com um calafrio repentino, Sarah percebeu que estava perto de seu destino.

Viu o nom e no m apa. Na com paração com o tam anho da França, estavam aapenas alguns centím etros de distância.

— Tem outro estábulo bem aqui. — Ele fizera um círculo em um vilarej ocom um a caneta esferográfica. — Aqui está o telefone, só para garantir. Bom, j á liguei para lá, então eles j á sabem da sua chegada. Acho que vai poderfazer um a refeição lá hoj e à noite, m as eu tentaria com er algum a coisaantes, só para garantir. E não se esqueça de que eles estão esperando umcavalo cham ado…

— Diablo Blue — respondeu ela.

— Você vai ficar bem ? — Thom estava sério, com o rosto tom ado depreocupação.

— Vou, sim — respondeu ela.

Estava segura de que ia m esm o. Tinha conseguido atravessar o m ar, certo?

Viaj ava com o m elhor cavalo da França e com a bênção do avô.

— Aqui está o m eu telefone. Pode m e ligar se arrum ar algum a confusão.

Caram ba, ligue para m im quando chegar ao seu destino. — Thom colocou om apa dobrado na m ão dela. — Apenas ligue para m im . Vou ficar contenteem saber que está tudo bem com você.

Ela assentiu e enfiou o pedaço de papel no fundo do bolso.

— E não converse com ninguém . Principalm ente se for um a pessoa do meu tipo. Só… m antenha a cabeça baixa e siga em frente até chegar lá.

Sarah assentiu de novo, dessa vez com um sorrisinho silencioso.

— Está com os euros que a gente trocou?

Ela enfiou a m ão na m ochila e tateou o envelope.

Thom suspirou.

— Deus m e aj ude. Você é a carona m ais estranha que j á conheci. Mas boasorte para você e para aquele seu velho cavalo.

Ele hesitou, com o se ainda não tivesse certeza de estar fazendo a coisa certa.

— Vai ficar tudo bem com igo, Thom — afirm ou Sarah. Sentiu um apontada por ele estar indo em bora; tinha se sentido segura com Thom . Nadapoderia acontecer com ela ou Boo sob o cuidado dele. Sentiu um a breve einesperada invej a da enteada dele, de cuj os problem as fizera questão de

solucionar. Depois de um m om ento, com pletou: — Mas obrigada.

— Bah — disse Thom . Ele deu um passo à frente e estendeu a m ão boa.Sarah a apertou, sentindo-se um pouco acanhada. Os dois sorriram , com o seestivessem pensando a m esm a coisa. — Foi um prazer viaj ar com você, jovem Sarah. —

Ele esperou até que a m enina m ontasse, então voltou cam inhando para ocam inhão. — E o seu avô parece ser um ótim o suj eito — berrou, virando-separa ela de repente. — Aposto que ele vai ficar feliz da vida quando souberque você chegou lá.

* * *

Os cam pos da França eram m ais am plos do que os do cam inho até Dover;eram extensões planas e vastas sem lim ites à vista. Mas o solo era parecidocom o da Inglaterra: de um m arrom forte e argiloso, não arado, apenasrevirado em m ontes aleatórios que pareciam um m ar revolto. Boo,descansado, trotava alegre pelos acostam entos gram ados, com as orelhaseriçadas para a frente, obviam ente feliz de estar em terra firm e. A raça deletinha um a pelagem de inverno apenas um pouco m ais grossa do que a deverão. Thom devia tê-lo escovado enquanto ela estava dorm indo, porqueestava im aculado. Os dois avançavam por um a região desconhecida, m asnem tanto: era a terra das histórias do avô dela, um idiom a que escutaradesde m uito cedo. Vendo-o em outdoors e em placas de estrada, Sarah sesentiu um pouco com o se o país falasse com ela. Com o se esperasse que elaentendesse.

Ela passou por pequenos vilarej os com ruas tranquilas, civilizadas e fileirasuniform es de casinhas, tudo de pedra cinzenta, com exceção das floreirasbem cuidadas nas j anelas e das venezianas pintadas de cores fortes. Um homem passou cam inhando com duas baguetes e um j ornal em baixo do braço.Ele assentiu cum prim entando-a, com o se um a m enina m ontada a cavalonão fosse nada incom um .

— Bonjour — disse ele.

— Bonjour — respondeu ela, sentindo um a leve alegria ao falar.

Era a prim eira palavra em francês que proferia desde que chegara ao país.

Parou em um bebedor para anim ais na praça, e Boo bebeu com vontade,agitando as orelhas para a frente e para trás de um j eito côm ico enquanto matava a sede. Ela apeou ali e descansou durante m eia hora, j ogou água friano rosto, com eu seus croissants e perm itiu que um a m ulher se aproximasse com dois filhinhos de expressão solene para que fizessem carinho nele.A m ulher observou que Boo era bonito, e Sarah respondeu, em francês, que araça Selle Français era conhecida por isso. Ela crescera ouvindo o avô dizeraquilo, m as ouvir a própria voz fazendo tal afirm ação a deixou constrangida.

— Ah — disse a m ulher. — Comme le Cadre Noir.

Ouvir o nom e m encionado com conhecim ento de causa foi um a alegria. Am ulher falara do lugar com o alguém poderia m encionar o ginásio local ou oconj unto habitacional onde Sarah m orava em Londres.

Ela voltou a m ontar e seguiu na direção de um a placa que indicava Tours.Saiu pelo outro lado do vilarej o, passou por um m oinho de vento e por um aponte e, em poucos m inutos, estava em cam po aberto outra vez. Passou porbaixo de rodovias, por um grande cam po cheio de turbinas rodopiantes,ouvindo o tump, tump, tump de sua am pla rotação elegante com o se fosse ocoração dela batendo.

Sarah, com o espírito m ais leve a cada quilôm etro, com eçou a cantar algoque

Vô cantava para ela quando era pequena. Baixou o cachecol do rosto,sentindo um a anim ação crescente. “Ah ah, Monsieur Chocolat! Oh, oh,Monsieur Cacao…” A voz dela ecoava pelos cam pos cobertos de geada. Booacom panhava o ritm o e agitava a cabeça, pedindo para ir m ais rápido. Impaciente para chegar e sabendo que estava a apenas algum as horas de seudestino, ela o incitou a avançar, com o ar frio retesando sua pele, seu corpo sealim entando da energia dele. Os sentidos de Sarah pareciam m ais aguçados,com o se cada célula de seu corpo absorvesse aquela nova paisagem . Eramapenas ela e seu cavalo, livres, sem ninguém a observá-los; ela sentiu essaliberdade com o qualquer outro viaj ante a cavalo a sentira ao longo de m ilanos.

Estou na França, e é lindo, Vô, disse em silêncio. Im aginou o avô na cam a,sonhando exatam ente com as estradas pelas quais ela viaj ava naquele m omento, pensando com satisfação no que ela estava prestes a fazer. Talvezouvindo a voz dele, as instruções dele, Sarah aprum ou o corpo um pouco,corrigiu o ângulo das pernas, encurtou as rédeas e com eçou a avançar a meio-galope, com as patas de Boo m ovendo-se com ritm o e elegância pelafaixa de gram a. Se Vô os tivesse visto, talvez assentisse aprovando.

* * *

Mesm o quando criança, ela sem pre detestara viagens longas de carro.Nunca se lem brava dos acam pam entos alegres, dos trailers à beira-m ar, dasfeiras, dos sorvetes, dos parentes felicíssim os que seus irm ãos rem emoravam depois.

Quando pediam que contasse sobre as viagens da infância, Natasha se lembrava apenas das estradas infindáveis, dos quilôm etros entre saídaspontuados por gritos:

“Já está chegando?”, os pais discutindo no banco da frente, os chutes ebeliscões disfarçados das irm ãs, apertadas ao lado dela no banco de trás. Elase lem brava do leve cheiro de vôm ito quando alguém , inevitavelm ente, enjoava no carro.

Atualm ente ela era quase trinta anos m ais velha, m as o pavor nunca tinhasido superado pelo suposto prazer da estrada, pela anim ação de chegar a umnovo destino. Durante o casam ento deles, Mac adorava viagens de carro nasférias, parava onde o acaso os levasse, e era capaz de dirigir a noite toda seachasse que seria divertido, m as ela desej ava em segredo que tivessemestabelecido um itinerário. A incerteza de não ter um a refeição e um a cam areservada com que contar a deixava desconcertada; e sua perspectivasuburbana, com o Mac parecia enxergar aquilo, fazia ela se sentir ao m esm otem po inadequada e culpada por estragar a diversão dele. Nos últim os anosdo relacionam ento, eles tinham se contentado (para a insatisfação de am bos)com pacotes turísticos. Natasha se acom odava à beira da piscina, lendo,tentando disfarçar os docum entos de trabalho que levara escondidos,enquanto ele andava de um lado para outro nas instalações do hotel, com oque tentando se lem brar de onde tinha deixado algo, e

acabava bebendo com os novos am igos no bar.

Na noite anterior, o cartão de crédito de Natasha fora usado em um posto debeira de estrada na França. A operadora do cartão dissera que o problem a eraque a transação tinha aparecido apenas com o “La Bonne Route, Paris”,descrição que englobava sete lugares daquele tipo no norte da França.

— Bom , acho que deveríam os ir para o lugar dos cavalos — opinara Mac nabalsa, na noite anterior.

Eles tinham conseguido em barcar o carro em um a travessia tarde da noite.

Natasha ficou sentada quase em silêncio, olhando para o escuro e para aságuas agitadas pela j anela em baçada, tentando unir o que ouvira daoperadora de cartão de crédito com o que j ulgava possível. Com o Sarahpoderia ter atravessado o canal da Mancha com um cavalo? Com oconseguira chegar à França? Nada daquilo fazia o m enor sentido.

— E se não for ela? — indagou Natasha.

Mac lhe entregou um a garrafa de água e apoiou os pés no assento ao ladodela, que se afastou um pouco deles.

— Com o assim ? — Ele tirou a tam pa da sua garrafa e bebeu. — Meu Deus,que sede. — Ele não tinha se barbeado, o queixo estava coberto por um a camada de penugem .

— E se ela tiver vendido o cartão, ou se houver sido roubada? E se estivermos seguindo a pessoa errada?

— É possível, m as seria um a coincidência absurda a pessoa tam bém quererir para a França. Além disso, não tem os m ais nenhum a pista, não éverdade?

Natasha apontou para o m apa na m esa.

— Olhe essas distâncias aqui, Mac. John disse que um cavalo conseguiriapercorrer de cinquenta a sessenta e cinco quilôm etros por dia, no m áxim o.Já teria sido bem difícil conseguir chegar a Dover com aquele tem po. Com o

é que ela teria conseguido atravessar o canal da Mancha com um cavalo edepois cavalgar até o m eio da França? E, olhe só, Saum ur fica a quasequinhentos quilôm etros de Calais. Ela não tem com o chegar tão longe.

— O que você quer dizer?

Ela se recostou no assento.

— Que deveríam os voltar. — A voz dela estava carregada de incerteza. —Ou talvez ligar para a polícia.

Mac balançou a cabeça.

— Olhe, agora estam os com prom etidos com um plano de ação. Acho quedeveríam os ir para Saum ur.

— Mas e se tiverm os nos enganado?

— E se não tiverm os? Faz sentido ela ir para lá. O avô acha que é para lá queela está indo. O seu cartão de crédito diz a m esm a coisa.

Natasha olhou pela j anela.

— Eu acho… Acho que fizem os tudo errado. Devíam os ter ligado para apolícia ontem de m anhã. Você tem razão, eu não gostaria de envolver apolícia porque não queria que essa situação se tornasse pública. Eu adm ito.Mas agora a coisa toda j á foi longe dem ais, Mac. Nós dois som os supostamente responsáveis por um a m enina de quatorze anos que está perdida, talvezem um país que ela não conhece. Acho que devíam os ligar para a políciaquando desem barcarm os.

É a atitude m ais responsável.

— Não — retrucou ele, decidido. — No m om ento em que ligarm os para apolícia, ela perde o cavalo. Ela perde tudo. Não. Ela só está perdida nosentido de que não sabem os onde está. Ela pode saber exatam ente aondeestá indo. Acho que está bem .

— Essa decisão não é sua.

— Eu sei. Mas eu assum o a responsabilidade se não der certo.

— Ela está sob a m inha responsabilidade tam bém .

Quando o olhar de Mac era tão fixo, ela ainda ficava um pouco agitada.

— Quer saber de um a coisa? Se você quisesse m esm o ligar para a polícia,teria feito isso ontem . Você sabe m uito bem , Tash, que nenhum de nós doisquer que a polícia se envolva, ainda que por m otivos diferentes. — Elenunca tinha sido tão decidido a respeito de algo quando os dois eram casados.— Mas, bem , estam os aqui agora e tem os um a ideia do destino dela. Achoque deveríam os ir até o lugar dos cavalos e esperar por Sarah lá.

A m ágoa deixou a voz de Natasha m ais severa do que ela esperava.

— E, se você estiver errado, se ela não estiver em segurança, se não estiveronde acham os que está, tudo bem para você aceitar as consequências disso,de verdade?

Desde então eles m al tinham se falado. Mac saiu com o carro da balsa emCalais e continuou dirigindo até de m adrugada. Ele não pegou a autoroute,optando por estradas m enores, aquelas pelas quais um cavalo poderiacircular, prestando atenção à escuridão enquanto dirigia.

Natasha cochilou e acordou com o som da voz dele. Estava falando aocelular, com um tom baixo e insistente.

— Não é isso — disse ele. E um tem po depois: — Não, não, querida. Nãoacho que sej a um a boa ideia. Eu sei. Eu sei.

Natasha, acordada e pouco à vontade, ficou com o rosto virado, os olhosfechados, determ inada a m anter a respiração regular até que Mac desligasse.

Deixou passar m ais dez m inutos antes de dar um bocej o exagerado. Àquelaaltura, Mac sugeriu que eles encostassem em um a parada para tirar umcochilo.

Já passava de um a da m anhã e havia pouca chance de encontrarem umhotel.

— Não vam os dorm ir por m uito tem po — disse ele. — Um as duas horasno m áxim o. Aí seguim os em frente.

Depois da tensão silenciosa da hora anterior, Natasha ficou feliz em aceitar.

Saíram da estrada vazia para o estacionam ento de um posto de gasolinaparcialm ente ilum inado por um poste solitário. Não havia m ais nenhumcarro no lugar e, do outro lado de um a cerca viva baixa e m alcuidada, oscam pos planos do Som m e pareciam tristonhos no escuro, im buídos dopeso de sua história. O

m otor foi desligado e ficou em silêncio.

Os dois ficaram ali de m au j eito, um ao lado do outro, um a paródia surreal,pensou Natasha, de um a espécie de encontro am oroso, um prelúdio para umprim eiro beij o.

Mac, talvez sentindo a m esm a coisa, agiu com distanciam ento e educação elhe ofereceu o banco de trás. Com um agradecim ento igualm ente educado,ela passou para trás, enrolou o paletó em form a de travesseiro e apoiou acabeça nele, ciente de que, pela m anhã, seu terninho estaria ainda m ais amassado.

— Quer o m eu casaco em prestado? Não estou com frio.

— Não, obrigada.

Ele caiu no sono, do m esm o j eito que fazia quando estavam casados, com ose caísse de um precipício. Com o o assento de Mac estava inclinado paratrás, Natasha conseguia ver o perfil dele à m eia-luz, relaxado, o braçodobrado por cim a da testa, e ouvia o som fraco e regular da respiração dele.

Natasha não dorm iu. Estava em um carro que não era dela em um paísestrangeiro, a m ente na m esm a velocidade dos carros a distância, pensandoem sua carreira perdida, em um hom em em Londres que não a am ava m ais,em um a m enina que estava perdida naquele m om ento, em algum lugar sobo m esm o céu, um a rede de infelicidade e solidão tendo ela no centro. Ficou

com frio e se arrependeu de não ter aceitado o casaco de Mac; se lem brou deum cliente antigo, um m enino que passara m eses dorm indo em umestacionam ento.

Ela vencera o caso, estivera totalm ente determ inada a vencer, m as não selem brava de im aginar com o aquilo teria sido para ele.

Enquanto isso, durante as horas que se estendiam , o hom em com quem elaachara que passaria a vida toda — o hom em que j urara am ar; o hom emcom quem , em um universo paralelo, devia estar de conchinha em um a cama de casal, ouvindo os filhos dorm irem — se m exeu e m urm urou no bancoda frente, a um m ilhão de quilôm etros de distância daquele lugar. Talvezestivesse desej ando, em sonhos, um a am ante distante de pernas com pridas.Natasha ficou ali deitada no escuro e com preendeu, para sua surpresa, que,no fim das contas, o divórcio não era um a dor finita.

* * *

— Linda? Natasha.

— Com o estão as coisas? Você resolveu os seus… problem as fam iliares?

Todos sabiam . Conor devia ter contado tudo. Natasha observou a blusa

am assada, a m eia-calça que desfiara, tudo bem visível à luz im placável dam anhã.

— Não. Ainda não.

— Onde você está? Quando vai voltar?

Os dois tinham dorm ido por horas e haviam acordado pouco depois do amanhecer. Mac passara a m ão entre os assentos da frente e sacudira o om brodela. Quando abriu os olhos, confusa e desorientada, Natasha dem orouvários segundos até se lem brar de onde estava. Depois de m ais algum ashoras silenciosas e turvas, eles pararam em um posto para irem ao banheiro.

— Não… sei bem . Está dem orando m ais do que esperávam os. Posso falarcom Ben?

— Ele saiu. Com Richard.

— Richard? Por que ele saiu com Richard?

— Ninguém ligou para você?

— Não… por quê?

— É o casal Persey. Eles fizeram um acordo. O outro lado veio falar conoscohoj e de m anhã para fazer um a oferta. Mais do que ela esperava. E elaconcordou com visitas com hora m arcada. Richard diz que só Deus sabe se am ulher vai respeitar esses term os, m as por enquanto eles entraram emacordo.

— Graças a Deus.

— Ele saiu para com em orar com ela. Levou Michael Harrington e Ben. Elesvão ao Wolseley tom ar um café da m anhã com cham panhe. Ela j á é outram ulher. Eu disse a Ben que se cuidasse… Ela o olha com o um leão fam intoencara um a gazela.

Richard nem tinha se dado ao trabalho de ligar para ela. A gratidão fugidiaque Natasha sentiu pelo casal ter entrado em acordo sum iu, tem perada pelaconsciência de que ela não receberia nenhum crédito por aquele desfecho.Aos olhos de Richard, ela não fazia m ais parte do processo.

Naquele instante, Natasha percebeu que não se tornaria sócia. Não naqueleano. Talvez nem dali a vários anos.

— Lin? Será que… — Ela suspirou. — Ah, deixe para lá.

Um a dor forte penetrou sua têm pora. Ela estava parada no estacionam entode um posto de beira de estrada na França, com roupas que vestira dois diasantes, esfregando a cabeça enquanto exam inava os veículos que passavamfeito borrões. Com o fora parar ali? Por que não tinha feito o que aconselhavaa todos os estagiários e m antido a cliente a um a distância segura? Com onão adivinhara que o caos da vida dessas crianças era, na verdade,contagioso?

— Então, com o você está?

— Tudo bem — m entiu ela.

— Ninguém aqui está entendendo tudo isso direito — disse Linda, comcuidado. — Você escondeu suas cartas na m anga.

— E agora estou pagando por isso, certo?

— Algum as pessoas acham que talvez você pudesse ter lidado m elhor coma situação.

Natasha fechou os olhos.

— Preciso desligar, Lin. Ligo m ais tarde.

Mac estava voltando pelo estacionam ento. Aquilo era o purgatório, pensouela: sua carreira destruída, sua vida pessoal em frangalhos, ela e o ex-m aridodestinados a ficarem presos em um carro m inúsculo pelo resto da vida,discutindo picuinhas enquanto tentavam j ustificar as péssim as decisões quehaviam tom ado.

— Ah! Natasha! Quase m e esqueci de contar. Recebem os um a visita aquibem cedo pela m anhã. Você nunca vai adivinhar quem era.

Mac havia parado para dizer algo a duas m ulheres m ais velhas que tinhamacabado de sair do carro. O que quer que ele tenha dito fez as duas começarem a rir, e ela viu o largo sorriso que ele não lançava para ela desde muito antes de sair de casa. Algo se apertou em seu peito.

— Hein?

— Ali Ahm adi.

Natasha parou de prestar atenção em Mac.

— O que você disse?

— Há! Eu sabia que isso prendaria a sua atenção. Ali Ahm adi.

— Mas isso é im possível! Ele está sob custódia. Por que deixaram ele sairantes de o caso ser j ulgado?

Linda riu.

— Aquele garoto que saiu no j ornal era outro Ali Ahm adi. Você sabia queAhm adi é um dos sobrenom es m ais com uns no Irã? Parece que é basicamente um João da Silva iraniano. Mas, bem , o Ahm adi que você representouveio aqui para dizer que conseguiu ser aceito em um a escola técnica e asaulas com eçam em setem bro. Um garoto bacana. Trouxe um buquê de florespara você.

Coloquei na sua sala.

Natasha se sentou em um a m ureta com o celular colado na orelha.

— Mas…

— Eu sei. Devíam os ter checado. Quem ia pensar que existem dois Ali Ahmadi? Mas é legal, não é? Devolve a fé da gente na natureza hum ana. Bem queeu não conseguia im aginar esse m enino com o um m arginal violento. Ah, edevolvi aquele pingente de cavalo que queríam os m andar para ele. Esperoque você não se incom ode. Ele ficou feliz.

— Mas… Mas ele m entiu sobre a distância que percorreu. Ele m e fezrepresentar o caso do j eito errado.

— Foi exatam ente o que ele disse para Ben. Com o a intérprete veio j unto,pegam os o arquivo e pedim os que ela desse m ais um a olhada nasanotações da

tradução. E ela deparou com um a coisa interessante.

Natasha ficou em silêncio. Linda continuou:

— Ali Ahm adi disse m esm o que viaj ou quase m il e quinhentos quilômetros em treze dias, m as não disse que caminhou. Foi isso que nós, e a

intérprete tam bém , entendem os. Antes de ele sair, Ben perguntou… Ah,você não acreditaria com o o inglês dele ficou bom ! Incrível! Mas Benperguntou com o ele conseguiu chegar tão longe. Ele explicou que andou uma parte do cam inho e depois pegou carona em um cam inhão. Então estendeuaquele cavalinho. Ele percorreu um a parte m ontado em um a m ula ou algoassim . Mas o negócio é o seguinte: ele nunca m entiu para você.

Natasha perdeu o fio da m eada de qualquer outra coisa que Linda estavatentando lhe dizer, onde tinha colocado as flores, quando ligaria de novo. Elaapoiou o rosto nas m ãos, exausta, e pensou em um m enino que haviasegurado as m ãos dela em um gesto sincero de agradecim ento, um m eninoque viaj ara quase m il e quinhentos quilôm etros em treze dias. Um m eninoque só tinha dito a verdade, sem pre.

Quando Natasha ergueu os olhos, Mac estava a alguns passos dela com doiscopos de isopor nas m ãos. Ele desviou o olhar de supetão, com o se aestivesse observando havia algum tem po. Natasha fechou o celular.

— Ok, você venceu — disse ela, pegando o café. — Vam os para Saum ur.

* * *

Ela pegara o cam inho errado. Exam inou de novo o pequeno m apa, j á gastode tanto ser dobrado, que não parecia explicar por que a estrada que deveriater levado a Tours e depois m ais alguns quilôm etros até o estábulo queThom havia reservado a levara a um a área industrial sem fim . Fazia algunsquilôm etros que ela avançava m ais ou m enos ao longo de um a estrada deferro, m as o m apa de Thom não m ostrava a ferrovia e Sarah não fazia ideiase estava indo na direção certa. Confiara em seu instinto, acreditando que emalgum m om ento surgiria um a placa indicando Tours ou outro m arco nocam inho. Mas nada aparecera, e a paisagem verdej ante se transform ara aospoucos em algo que lem brava os arredores de Londres, um a expansão deconcreto com galpões am plos e vazios, estacionam entos, enorm es pôsteresdesolados anunciando superm ercados de grandes redes, com os cantossoltando e balançando ao vento. De vez em quando, um trem passava comum rugido, fazendo Boo se sobressaltar, e então o silêncio se instalava,interrom pido apenas por um ou outro carro que passava.

O sol tinha com eçado a descer, a tem peratura caía e Sarah foi perdendo aesperança de que tivesse escolhido o rum o correto. Ela parou, consultou denovo o m apa, depois o céu, tentando entender se ainda estava indo nadireção sudoeste ou se, na verdade, ia para o sudeste. Nuvens tinham tapadoo sol, dificultando a

interpretação das som bras. Ela estava com fom e e arrependida por não terparado nas feiras sim páticas pelas quais havia passado. Tinha ficado m uitoansiosa e só queria seguir em frente. E estivera tão certa de que, àquela altura,j á teria chegado ao estábulo.

A paisagem havia ficado m ais desolada; os prédios com as j anelas tapadaspareciam não ser ocupados fazia um bom tem po. Ela parecia estar chegandoa algum lugar: o trilho se dividira e se transform ara em m ais trilhos, comfileiras de vagões parados, fechados e cobertos de pichações, um a teia depostes e cabos acim a dela. Preocupada, Sarah decidiu voltar pelo m esm ocam inho. Suspirou fundo de exaustão e com eçou a virar Boo.

— Que fais-tu ici?

Ela se virou sobre a sela e viu cinco m otos e bicicletas m otorizadas, duascom passageiros na garupa. Dois m otoqueiros usavam capacete, o resto, não.

Fum avam , olhavam feio. Ela conhecia esses garotos pois eram com oaqueles que m oravam no conj unto habitacional dela.

— Eh? Que fais-tu ici?

Ela não queria falar. Sabia que o sotaque iria denunciar que era estrangeira.

Deu as costas para eles e continuou seguindo em frente, virando Boo para aesquerda. Algo lhe dizia que não conseguiria passar por eles. Torceu paraperderem o interesse e irem em bora.

— Tu as perdu les vaches, cowboy.

As pernas dela apertaram o corpo de Boo em um gesto involuntário. Umcavalo bem treinado detecta a m enor tensão em seu cavaleiro, e esse m ovim

ento, com um leve aum ento de tensão na rédea, cham ou a atenção de Boo.

— Hé!

Um deles passou acelerando por ela. Sarah ouviu os outros atrás, falandoobscenidades, conversando. Com expressão im passível, ela continuouavançando, sem saber se estava se dirigindo para um beco sem saída. Oterreno industrial era enorm e e com preendia construções do tam anho degalpões e estacionam entos desertos. Pichações em verm elho e preto nasparedes revelavam a ausência de m ovim entação, talvez até de esperança.

— Hé! J’ai parlé à toi!

Ela ouviu um a m oto acelerando, e seu coração bateu, disparado.

— Eh! J’ai parlé à toi! Putain!

— Allez-vous en — disse ela, tentando parecer m ais confiante do que sesentia. Vão embora.

Os garotos com eçaram a rir.

— Allez-vous en! — repetiu um deles, im itando a voz dela.

A escuridão caía, e Sarah com eçou a trotar. Ela se sentou m uito ereta eouviu

as m otocicletas cantando pneu e acelerando atrás dela. Havia m ais luzesadiante.

Se ela conseguisse voltar à estrada principal, eles teriam de deixá-la em paz.

— Putain! Pourquoi tu te prends?

Um dos m otoqueiros a alcançara, então recuara. Sarah sentiu o cavalo tenso,as orelhas agitadas, esperando um sinal que ainda não tinha sido dado. Elatocou o pescoço dele, tentando ganhar conforto do anim al, tentando esconderdele seu pânico crescente. Eles vão em bora em um instante, disse-lhe emsilêncio. Vão se cansar e vão deixar a gente em paz. Mas a m otocicleta deu

um cavalo de pau na frente dela. Boo parou abruptam ente, com a traseirabaixa e a cabeça inclinada para o alto. Mais duas m otos a rodearam , de modo que, nesse m om ento, havia três na frente dela. O cachecol envolvia seurosto, o capacete estava afundado por cim a dos olhos.

Alguém j ogou um cigarro no chão. Ela perm aneceu sentada, im óvel,acariciando o om bro de Boo em um gesto inconsciente.

— Putain! Tu ne sais pas qu’il est impoli d’ignorer quelqu’un?

O garoto parecia norte-africano. Indicou Sarah com a cabeça.

— Je… je dois aller au Tours — disse ela, tentando fazer a voz não trem er.

— Tu veux aller au Tours… — A risada dele era desagradável. — Je teprendrai au Tours. Monte à bord. — Ele deu tapinhas no assento e todosderam risada.

— Il y a quoi dans ce sac?

Ela olhou de um para outro.

— Rien — respondeu. Queriam a mochila dela.

— Il est trop plein pour rien.

Um dos garotos, de pele clara, com a cabeça raspada enfiada em baixo de umboné, tinha descido da m oto. Sarah tentou m anter a respiração regular. Elessão iguais aos garotos do conj unto habitacional, disse a si m esm a, estão seexibindo uns para os outros. Você só precisa m ostrar a eles que não está comm edo.

O garoto cam inhou devagar na direção dela. Usava um a j aqueta cáqui suj a,tinha um m aço de cigarros no bolso de cim a. Parou a alguns passos dedistância e então, sem aviso, saltou para a frente berrando “Rá!”.

Boo assoprou pelo focinho e deu um salto para trás. Os garotos riram .

— Calm a — m urm urou ela, pressionando as pernas em volta dele m ais um

a vez. — Calm a.

O garoto de boné deu um a tragada no cigarro e avançou de novo. Sarahdeduziu que eles não iam m ais parar. Tinham sentido o cheiro de algum abrincadeira nova, de algum a tortura fresca. Com discrição, ela avaliou adistância, tentando detectar a m elhor rota de fuga, a saída. Eles deviamconhecer a área, deviam ter passado horas fazendo aquilo, acelerando as motos por ali, passando o tem po, procurando pontos fracos para saquear edestruir por pura

frustração e tédio.

— Rá!

Dessa vez, ela estava pronta, e Boo recuou, m as não saltou. Ela o seguravafirm e entre as pernas e as m ãos, dizendo-lhe em silêncio para não se m over,negando-lhe a oportunidade de sentir m edo. Mas o cavalo estava inseguro.Ela percebeu o olho de Boo virando para trás, o pescoço tenso e arqueado, esentiu a boca de Boo na ponta da rédea, m exendo ansioso no freio. Quandoas m otos aceleraram m ais um a vez, ela soube o que tinha de fazer.

— S’il vous plaît — pediu ela. — Laissez-moi la paix.

— Renvois-moi et je te laisserai la paix. — Ele fez um gesto para a m ochiladela.

— Hé! Putain! Renvois-le ou j’en fais du pâté pour chien!

O garoto norte-africano disse algo sobre carne de cavalo, e aquela palavra foitodo o incentivo de que Sarah precisava. Ela fez Boo se levantar, assinalandoas instruções em silêncio com as pernas. Ele se recusou a escutar durantealguns segundos, ainda transtornado pela ansiedade, m as então seu treinamento se sobrepôs e ele com eçou a trotar sem sair do lugar, obediente, com aspatas se erguendo com cuidado, ritm adas, duas de cada vez, em um a versãoexagerada de piaffe.

— Regardez! Un cheval dansant!

Os garotos com eçaram a desdenhar, acelerando as m otos, chegando cadavez m ais perto, levem ente distraídos com o que ela fazia. Sarah engoliu o medo e tentou bloquear o barulho, concentrando-se, reunindo a energia de Boo,j untando um centro de força secreto no cerne dele. A cabeça do cavalobaixou até o peito, as patas foram se erguendo. Ela sentiu a ansiedade dele,seu coração apertado com a confiança que tinha nela, e percebeu que estavapronto para fazer o que ela pedia, apesar do m edo. Sarah ouviu um dosgarotos berrar algum a coisa, m as o som se perdeu no sangue que pulsava emseus ouvidos.

— Alors, comme ça on se fait valser, hein?

O garoto que estava a pé tinha chegado m ais perto. O sorriso dele estava mais severo, desdenhoso. Ele a fez pensar em Maltese Sal. Sarah usou a pernadireita para fazer Boo se afastar discretam ente dele. Saltitante em um terre àterre, incentivado pelo im pulso crescente dela, o cavalo tam bém iaabsorvendo a tensão, e Sarah quase não conseguiu segurá-lo. Um a energiaperigosa e anim osa crescia entre os garotos. Dava para sentir a fom e deconfusão e de caos deles.

Sarah quase escutava os pensam entos deles enquanto calculavam aspossibilidades. Por favor, disse a Boo. Só uma vez. Você tem que fazer issopor mim.

— Faites-la descendre! — gritou um dos garotos, fazendo um gesto para queos outros a tirassem de cim a de Boo.

Ela sentiu a m ão que se estendia para a sua perna. Era a deixa de queprecisava. Fincou os calcanhares nas laterais do corpo de Boo, dizendo com oj eito de se sentar que era para ele se erguer, se erguer, então gritou:

— Hup!

E ele saltou, acim a dos garotos, com o se tivesse dado um pulo sísm ico, edeu um coice. Capriole! O m undo parou e, por um segundo, Sarah viu o queos hom ens deviam ter visto nas batalhas dois m il anos antes: o rosto dosoponentes cheio de terror quando os enorm es anim ais se erguiam ,desafiando a gravidade, com as patas transform adas em arm as suspensas.

Em baixo dela, alguém soltou um grito de m edo, de ultraj e. Duas m otostom baram e o garoto que estava a pé caiu de bunda no chão. Quando oscascos dianteiros de Boo atingiram o solo, ela se lançou para a frente e fincouos calcanhares nas laterais do corpo dele.

— Vá! — berrou. — Vá!

E o cavalo enorm e saltou por cim a das m otocicletas, fez um a curva edisparou pela estrada asfaltada, pelo m esm o cam inho de onde tinhamvindo.

* * *

Em um quarto escuro de hospital, a várias centenas de quilôm etros dedistância, Henri Lachapelle, com a cabeça inclinada para o lado, onde tinhasido colocada pelas enferm eiras do turno da noite, acordou e olhou para a imagem borrada do cavalo a seu lado, esperando até que ficasse m ais nítida e mais sólida. De algum m odo, o anim al se aproxim ara enquanto ele dorm ia e,naquele m om ento, olhava para ele, seu olho iridescente vidrado no dele comcerta sutileza reconfortante, um a paciência aparentem ente infinita. Os olhosdo próprio Henri, secos e doloridos, se fecharam e se abriram várias vezes emm eio a um a confusão avassaladora. Então: Gerontius! , exclam ou ele, cheiode gratidão. O cavalo piscou devagar, baixando o focinho, com o se oreconhecesse, e ele tentou se lem brar de com o tinham ido parar ali. Poucacoisa estava clara; deixar-se levar por essas novas m arés havia ficado m aisfácil, aceitar as doses de rem édios sem lutar, os rostos de desconhecidos.

Ele sentia o couro duro das botas ao redor das panturrilhas, a sarj a preta macia do colarinho em volta do pescoço, e ouvia a risada distante dos colegasécuyers, que se preparavam em algum lugar ao longe. O cheiro de fum aça delenha, açúcar caram elado e couro quente penetrava suas narinas, as brisassuaves do vale do Loire atingiam sua pele. E então ele estava m ontado,passando pela cortina verm elha, com as m ãos enluvadas leves nas rédeas decouro, os olhos vidrados calm am ente entre as orelhas eretas do cavalo.Sentiu as patas longas e fortes de Gerontius se m overem em baixo de si,aqueles passos únicos e elegantes, tão fam iliares para ele quanto seu andar, eum a alegria profunda, um

tipo de euforia, se espalhou dentro dele. Gerontius não iria decepcioná-lo;dessa vez ele provaria do que era capaz. Dessa vez, ele seria um homem comasas.

Porque dessa vez algo estava diferente: ele m al precisou transm itir seupedido ao cavalo. Havia um a telepatia entre eles, um a com preensão quenenhum Grand Dieu tinha pensado em lhe revelar. Antes que suas esporassussurrassem nas laterais do cavalo, antes que ele transferisse o peso do corpoou proferisse um a única palavra, Gerontius se antecipara a ele. Mas quenobre criatura, pensou Henri, m aravilhado. Como pude abandoná-lodurante tanto tempo?

O cavalo arqueou o pescoço, foi para o centro da arena, com o pelo sedosobrilhando sob as luzes dos arcos, os cascos se erguendo em baixo dele, osdois no centro de um vórtice de expectativa… E então, com um whoosh, eleestava sobre as patas traseiras, em um a altura im possível, sem trem er nemse esforçar, com a cabeça orgulhosa fixa e firm e, olhando para a plateia como se tivesse o direito de ter sua conquista glorificada pelos espectadores. EHenri estava ali, inclinado atrás dele, as pernas firm es, as costas perfeitamente retas, engolindo em seco de êxtase ao com preender que era isto: os doisestavam no ar, e ele nunca m ais precisaria descer.

E foi aí que ele a viu. A garota de vestido am arelo, de pé no assento à suafrente, com as m ãos esguias erguidas sobre a cabeça. Ela batia palm as, seusolhos estavam cheios de lágrim as de orgulho, e deu um sorriso.

Florence! , exclam ou ele. Florence! O aplauso que tom ou conta de toda aplateia encheu os ouvidos e o coração dele. O som era ensurdecedor, as luzesexplodiam à sua frente, Florence, de m odo que aquilo se transform ou emtudo e o elevou ainda m ais, abafando o apito agudo e distante dos aparelhos,as vozes cheias de urgência, a porta da ala do hospital que se abriu desupetão.

* * *

Mac batia à porta do quarto dela.

— Pronta? Madam e disse que o j antar era às oito, lem bra?

Natasha tinha vestido a calça de corte ruim e a cam isa verm elha de algodãofino, os únicos itens no hiperm ercado local que serviam nela, e disse,cansada:

— Preciso de cinco m inutos. Encontro você lá em baixo.

Ela ouvira os passos dele ecoando pelo corredor, ricocheteando nas paredescobertas com painéis de m adeira, e rem exeu na bolsa em busca de rím el,algo para dar um pouco de vida ao rosto pálido e exausto.

Os dois haviam chegado à cidade pouco depois das cinco. A prim eira paradatinha sido a École Nationale d’Équitation, o lar do Le Cadre Noir, m as osportões estavam fechados. Um a voz se fez escutar pelo interfone, aparentemente irritada com a insistência de Mac em tocar a cam painha, revelando queo lugar não estaria aberto ao público até duas sem anas depois do Natal. E aresposta para a

segunda pergunta de Mac foi que não, nenhum a m enina inglesa apareceraali com um cavalo. Nem Mac nem Natasha falavam bem francês, m as afluência não fora necessária para detectar o tom de descrença sádica na vozdo hom em .

— De qualquer form a, ela nunca conseguiria chegar aqui antes de nós —

observou Natasha. — É m elhor encontrarm os um a base e trabalhar a partirde lá.

Ela havia ligado para a operadora de cartão de crédito m ais um a vez, porémnão houvera nenhum a atividade nova. Sarah não sacara dinheiro desde anoite anterior. Natasha não sabia se achava isso bom ou ruim .

O Château de Verrières ficava no centro da cidadezinha m edieval; os fundosdavam para a École de Cavalerie. O château era am plo, ornam entado, lindo;o tipo de lugar em que eles tinham se hospedado no início do relacionamento, quando estavam tentando provar algo um para o outro, quando Macusava loção pós-barba e a elogiava por qualquer coisa que vestisse. QuandoNatasha ainda achava engraçados ou graciosos alguns com portam entos queacabariam se transform ando em m otivo de reclam ação dois anos m aistarde.

— Acho que tanto faz ficarm os em um lugar bacana ou em um a rede dehotel

— disse Mac.

Ele tentava parecer alegre, m as Natasha sabia que, desde que tinhamchegado a solo francês, os m edos dele haviam aum entado, assim com o os

dela. Os dois tinham sido cuidadosos um com o outro nas últim as horas. Eracom o se a situação tivesse tom ado um a proporção tão grande, tão pesada,que não havia m ais espaço para outros sentim entos. Talvez fosse o fato denenhum dos dois continuar tão confiante quanto estava no com eço.

Ela chegou ao andar de baixo e encontrou Mac acom odado na frente de um aenorm e lareira, explicando a situação à dona do château. A francesa escutoua história com um a incredulidade educada.

— Vocês acham que a criança cavalgou de Calais até aqui? — repetiu ela.

— Sabem os que ela está vindo para Le Cadre Noir — explicou Mac. — Sóprecisam os achar um j eito de conversar com alguém de lá, para descobrir seela apareceu por aqui.

— Monsieur, se um a m enina inglesa de quatorze anos tivesse aparecidoaqui desacom panhada e m ontada a cavalo, Saum ur inteira saberia. Temcerteza de que ela consegue chegar até aqui?

— Sabem os que ela sacou dinheiro nos arredores de Paris ontem à noite.

— Mas são m ais de quinhentos quilôm etros…

— É possível — disse Natasha, com firm eza, pensando em Ali Ahm adi. —

Sabem os que é possível. — Ela e Mac trocaram um olhar.

— Não há ninguém lá agora — explicou a m ulher. — Se quiserem , possoligar para os gendarm es e perguntar se há registro de algo assim .

— Isso aj udaria m uito. Obrigado — disse Mac. — Aceitam os toda aj udapossível. — Então, quando a chatelaine desapareceu para checar a com ida,ele

perguntou a Natasha: — Você está bem ?

— Estou.

Ela ficou olhando pela j anela, desej ando que a m enina surgisse de trás das

árvores, na ponta da cerca viva. Passara a ver Sarah em todo lugar; atrás decarros estacionados, fugidia no final de alam edas estreitas. Ela vem para cá.Mas, quando se lem brava de Ali Ahm adi, Natasha não pensava no triunfoda força de vontade dele, no buquê de flores que a esperava no escritório, mas sim nos próprios fracassos. Ela sentia, com um tem or nauseante, que cometera um erro colossal.

Frente a frente com Mac no j antar, em um am biente tão rom ântico, elapercebeu que não estava com fom e e, em vez de com er, bebeu. Três, quatrotaças se esvaziaram sem que ela notasse. Em um acordo tácito, os doisresolveram não falar sobre Sarah, m as Natasha não conseguia pensar emnada a dizer e não sabia para onde olhar. De frente para Mac, ela olhava paraas m ãos dele, sua pele, o cabelo castanho desgrenhado. Estranham ente, eletam bém não estava falando m uito. De vez em quando, soltava pequenossons de aprovação.

— Delicioso, não é? — disse ele, antes de perceber que Natasha m al tocavana com ida no prato.

— Ótim o — respondeu.

Ele parecia cauteloso, com o se não soubesse m uito bem o que dizer a seguir,e a falta de j eito de Mac alim entou a dela, de m odo que, quando ele recusoua sobrem esa, dizendo que ia tom ar um bom banho, os dois m urcharam umpouco de alívio.

— Talvez eu vá dar um a volta aqui por perto — disse ela.

— Tem certeza? Está bem frio lá fora.

— Preciso de um pouco de ar.

Natasha tentou sorrir, m as não conseguiu. O ar frio fez com que ela exalasseforte, apertando o casaco em volta do corpo. O local tinha um leve cheiro defum aça de lenha. À direita, ela viu a fachada clássica da academ ia e, a um acurta distância dali, as ruas largas e calçadas com pedras cor de m el de Saumur.

Natasha cam inhou na direção de um a castanheira e, ao chegar até ela, olhoupara o céu por entre os galhos elegantes. Um a extensão vasta e negra, sem apoluição das luzes urbanas, brilhava com um m ilhão de luzinhas piscantes.Ela j á não estava m ais pensando no trabalho, no processo que perdera, emseu relacionam ento destruído. Não ousava pensar em Sarah e em onde a menina poderia estar. Em vez disso, pensou em Ahm adi, que não havia mentido para ela.

Ficou com vergonha pela rapidez e pela facilidade com que sua opinião sobreele se corrom pera.

Ela não sabia m uito bem quanto tem po ficara ali quando ouviu passos nocam inho de cascalho. Era Mac, e o coração dela deu um salto.

— O que foi? É a polícia? — perguntou ao perceber que ele segurava o

celular. — Encontraram Sarah?

O cabelo dele estava seco, o que significava que não tinha tom ado banho.

— Era o Cowboy John. — A expressão de Mac era séria. — É o avô daSarah.

Ele m orreu hoj e à noite.

* * *

Ela não conseguiu falar nada. Esperou que ele desse um a de Mac, que risse epedisse desculpa, dissesse a ela que tinha sido um a piada sem graça. Mas elenão fez nada disso.

— Caram ba, Tash — disse Mac, por fim . — O que farem os agora?

Ela conseguia escutar os estalos suaves dos galhos da árvore com a brisa esentia, com um a clareza m aravilhosa, o frio em seu rosto.

— Encontrarem os a m enina — respondeu, com a voz estranha e aguda aseus ouvidos. — Precisam os encontrar Sarah. Não sei o que m ais nós…

Algo com eçou a subir em seu peito, um a sensação horrível e desconhecidade sufocam ento que a encheu de pânico por um instante. Natasha passou porele e continuou cam inhando rápido, então correu na direção do château.Passou pelo corredor cavernoso e elegante e subiu a escada de m ogno até seuquarto. As lágrim as caíram antes m esm o de ela se deitar na cam a grande,com os braços sobre a cabeça. Deixou a colcha pesada absorvê-las, sem saberao certo por que chorava: pela m enina, sozinha em um país desconhecido,cuj a últim a conexão com a fam ília querida fora rom pida, pelo m eninoórfão cuj a história ela interpretara m al, ou até pela confusão catastrófica emque tinha transform ado sua vida. Talvez libertados pelo álcool, pelaestranheza de seu entorno, pelo país estrangeiro, pelo deslocam ento dos doisdias anteriores, os soluços de Natasha fizeram seu corpo inteiro estrem ecer,parecendo em ergir das m aiores profundezas. Ela chorou em silêncio, semsaber com o conseguiria parar.

* * *

Sarah ouvia as m otocicletas atrás dela. Disparava a galope, respirando emfôlegos curtos, tom ada pelo m edo. Boo corria com o pescoço bem reto, oscascos soltando faíscas no solo à luz que ia enfraquecendo. Ela virou acabeça dele para a direita e voou na direção de algo que parecia um a estrada,ouviu pneus cantando atrás de si e m ais um grito am eaçador de “Putain! ” epercebeu que estava em um estacionam ento de superm ercado.

Ela galopou pelas vagas, m al reparando nos casais chocados em purrandocarrinhos de com pras e em um m otorista que parou no m eio da ré. As motos tinham se espalhado, ela as via de soslaio. Tentou puxar Boo para trás —se chegasse m uito perto do superm ercado, haveria gente dem ais para osgarotos

fazerem algum a coisa com ela —, m as o pescoço dele estava rígido,inflexível.

Boo, apavorado, estava perdido em um m undo só seu.

Sarah se inclinou para trás; as faixas da estrada eram um borrão em baixodele.

— Boo! Ôa! — berrou ela, m as percebeu, apavorada, que não conseguiriaparar.

Reconhecendo que deveria sim plesm ente continuar avançando, ela saltouum pequeno trilho e um buraco no asfalto, passou voando por um estacionamento vazio e viu que tinha chegado ao lim ite do terreno, que o preto além dom uro baixo era o cam po vazio. Ergueu-se nos estribos, puxando um lado darédea, um velho truque que deveria ter feito com que ele com eçasse a andarem círculo e dim inuísse a velocidade.

Mas Sarah não percebera com o o m uro estava próxim o, com o tinha criadoum ângulo im possível para o anim al. Assim com o o cavalo, ela não vira odesnível do outro lado do m uro, então ele saltou, ainda cego de m edo, e foisó quando as patas dele encontraram o vazio que os dois perceberam o errodo cavalo.

O som das m otos desapareceu. Sarah voou para o céu escuro, m al ciente deum grito que talvez fosse seu. E então Boo tropeçou, a cabeça dele sum iu embaixo dela e Sarah estava caindo. Viu um lam pej o de um a superfície deestrada ilum inada, ouviu um barulho horrível e tudo ficou preto.

* * *

Com o ninguém respondeu quando ele bateu discretam ente à porta, Macgirou a m açaneta, com m edo de que o gesto causasse m ais algum novoantagonism o entre eles. Mas não podia voltar para o seu quarto: ela pareciam uito perdida, o rosto pálido ao luar, a segurança de sem pre dissipada.

— Tash? — arriscou, baixinho. Repetiu o cham ado, então abriu a portadevagar.

Natasha estava na cam a com dossel, com os braços cruzados sobre a cabeça.

Mac achou, por um instante, que talvez estivesse dorm indo. E então, quandoestava para fechar a porta sem fazer barulho, viu o m ovim ento dos om brosdela e escutou o som abafado de um soluço. Ficou im óvel. Natasha nãochorava na frente dele havia anos. Durante m uito tem po depois de enfim irem bora, quinze m eses antes, ele ficara se lem brando da expressão dela no

corredor, o m axilar tenso, o rosto totalm ente im passível enquanto permanecia parada em seu terninho e o observava levar as coisas dele para o carro.

Mas isso parecia ter acontecido séculos antes.

Mac cam inhou m eio incerto pelo assoalho de m adeira. Natasha se encolheuquando ele colocou a m ão em seu om bro.

— Tash?

Ela ficou ali deitada, sem reação. Mac não sabia m uito bem se ela nãoconseguia responder ou se sim plesm ente queria que fosse em bora.

— O que foi? — perguntou. — Qual é o problem a?

Quando ela tirou o rosto das cobertas, ele estava pálido e inchado de tantochorar. O que sobrara do rím el tinha escorrido pelas bochechas, e Macconteve o im pulso de lim pá-las.

— E se não encontrarm os Sarah? — Os olhos dela brilhavam .

A profundidade evidente da dor dela era chocante e a transform ava em um aestranha para ele. Mac não conseguia tirar os olhos dela.

— Vam os encontrá-la. — Foi a única coisa que ele conseguiu dizer. — Nãoestou entendendo, Tash…

Ela se ergueu e se sentou, puxou os j oelhos para baixo do queixo e enterrouo rosto neles. Precisou repetir duas vezes antes que Mac entendesse o queestava dizendo.

— Ele confiou em nós.

Mac se sentou na cam a ao lado dela.

— É verdade, m as…

— Você tinha razão, a culpa é toda m inha.

— Não… não… — m urm urou ele. — Foi um a coisa idiota de se dizer, e eunão deveria ter dito. A culpa não é sua.

— É, sim — insistiu ela, com a voz distorcida pelas lágrim as. — Eu falheicom ele. Eu falhei com ela. Nunca cuidei dela com o deveria. Mas foi muito…

— Você foi ótim a. Com o você m esm a disse, fez o m elhor que pôde. Nósdois dem os o nosso m elhor. Não tínham os com o saber que isso iaacontecer.

Mac estava surpreso pelo fato de que algo que tivesse dito pudesse provocarum a reação daquelas nela. Fazia m uito tem po que Natasha pareciainatingível por qualquer coisa que ele fizesse.

— Ah, Tash, foram só palavras… Eu estava com raiva…

— Não. Você estava certo. Eu não deveria ter caído fora. Se eu tivesseficado… talvez se tivesse conseguido fazer com que ela se abrisse um poucom ais… Mas eu não conseguia m ais ficar perto de você. Eu não conseguia mais ficar perto dela.

Mac via os braços finos dela na cam isa verm elha, m arcada pelas m anchasescuras das lágrim as. Sua vontade era estender a m ão para ela, m as tinha medo de que, se ele fizesse isso, Natasha voltasse a se fechar.

— Você não conseguia m ais ficar perto de Sarah? — indagou, baixinho,num tom cuidadoso.

O rosto dela estava im óvel, os soluços tinham parado.

— Ela m e m ostrou com o eu nunca seria boa nisso. Ter Sarah em casa m efez ver… que talvez haj a um m otivo para eu não ter tido filhos. — Engoliuem seco.

— E as coisas que aconteceram com ela desde então m e m ostraram que euestava certa. — A voz de Natasha falhou, e ela voltou a soluçar, trem endo, ocorpo pequeno de repente.

Mac ficou estupefato com a tristeza repentina dela pelos bebês perdidos.

— Não, Tash — disse ele, baixinho, pegando na m ão dela. Os dedosestavam m olhados de lágrim as. — Não… Não, Tash. Não é isso… Falasério… —

protestou, com a própria voz falhando. Ele a puxou para perto, abraçou-a eninou-a, sem tom ar plena consciência do que estava fazendo. — Ai, m euDeus.

Não… Você teria sido um a ótim a m ãe, eu sei disso.

Ele apoiou o rosto no alto da cabeça de Natasha, sentindo o cheiro conhecidodo cabelo dela, e percebeu que a lágrim a que escorria por sua bochecha eradele m esm o. Então sentiu os braços de sua m ulher envolvendo seu corpo.Ela se agarrou a ele, um a m ensagem silenciosa de que talvez ele tivesse sidonecessário, desej ado, de que, no fim das contas, ele tivera algo a oferecer aela.

Os dois ficaram ali no escuro, abraçados, em luto tardio pelos filhos quehaviam perdido, pela vida j untos que haviam renegado.

— Tash… — m urm urou ele. — Tash…

Os soluços dela se aquietaram e, no lugar do som deles, um a perguntasilenciosa preencheu o ar do quarto, inscrevendo-se sobre a pele nos pontosonde os dois se tocavam . Mac levantou o rosto dela nas m ãos, as pálpebrasverm elhas, a pele m olhada, tentando decifrá-la, e viu algo ali que fezqualquer raciocínio desaparecer.

Mac baixou o rosto até o de Natasha e, com um m urm úrio, beij ou o lábioinferior dela, usando as m ãos para traçar os contornos do rosto dela, estranhoe, no entanto, m uito conhecido. Por um instante, ele sentiu a hesitação dela, ealgum a parte distante dele tam bém em pacou — O que é isto? Será quedeveríamos parar? —, m as então os dedos esguios dela estavamentrelaçados nos dele e sons delicados de um bichinho escapavam delaenquanto seus lábios procuravam os dele.

E Mac a apertava, deixando escapar um suspiro de alívio e desej o. Beij ou opescoço e o cabelo dela, abriu os botões da blusa am assada, sentiu o cheirode alm íscar da pele dela e ficou atrapalhado de tanto desej o. Sentiu aspernas dela se engancharem nas suas costas e observou, com algum a partedistante de si que ainda raciocinava, que ela nunca tinha sido assim . Pelo menos não nos anos anteriores. Que aquela Natasha era um a pessoa nova e queseus sentim entos em relação a isso eram m ais com plicados do que ele eracapaz de com eçar a destrinchar.

Mac abriu os olhos e a observou à luz fraca que vinha da j anela, viu o rím elborrado, o cabelo sem lavar, o pulso fraco no pescoço arqueado e pálido. O

carinho que sentiu foi sufocado por algo obscuro e m asculino que respondiaa algo dentro de si que ele não fora capaz de confessar a ela no tem po emque

tinham estado casados. Aquilo não era voltar a percorrer um terrenoconhecido.

Ele nem sequer reconhecia aquela pessoa.

— Eu quero você. — Mac ouviu a voz dela em seu ouvido com o se issofosse um a surpresa para ela. Natasha estava rouca com algo dentro de si,algo fam into e desesperado. — Eu quero você — repetiu, e Mac, j á tirando acam iseta por cim a da cabeça, com preendeu que, apesar de ela não ter feitoexatam ente um a pergunta, só havia um a resposta possível.

25

“O cavaleiro em si se encontra em extremo perigo se algo acontece com seucavalo.”

XENOFONTE, SOBRE EQUITAÇÃO

Um pássaro branco voava em círculos sobre ela; m ovia-se em círculosenorm es, preguiçosos, em itindo um som m onótono que foi ficando cadavez m ais alto e então, quando se tornou insuportável, recuou. Sarah piscou,incapaz de distingui-lo com clareza sob a luz forte que brilhava por trás, im

plorando em silêncio para que ficasse quieto.

Ela ficou ali deitada, im óvel, enquanto o volum e do barulho aum entava, mas dessa vez o solo trem eu em baixo dela, o que a fez franzir a testa, cienteda dor na cabeça, no om bro direito. Por favor, desej ou, chega. É barulhodem ais. Os olhos dela voltaram a se fechar, bem apertados, contra a invasãobrutal de seus sentidos. Finalm ente, quando se tornou insuportável, o barulhoparou. Ela sentiu um a vaga gratidão antes de ser interrom pida por outro som. Um a porta batendo.

Um a exclam ação.

Ai, pensou ela. Meu ombro. E depois: estou com muito frio, não consigosentir os pés. A luz ficou m ais fraca e ela abriu os olhos um pouquinho e viuum a form a se avultando sobre ela.

— Ça va?

O pânico tom ou conta dela antes que seu consciente tivesse entendido porquê.

Algo estava errado, m uito errado. Sarah piscou e esqueceu a dor aodistinguir os contornos de um hom em olhando de cim a para ela. Deu-seconta de que estava estirada em um a valeta de drenagem . Conseguiu seerguer um pouco e se arrastou para trás até encostar num poste.

Hom ens. Motos. Pavor.

O hom em do cam po ficou a alguns m etros dela, com um a expressãopreocupada, a enorm e m áquina am arela agrícola a curta distância, a portaaberta de onde ele deveria ter descido.

— Que faire? — perguntou.

Os olhos de Sarah se recusavam a entrar em foco. Ela olhou ao redor, começando a distinguir o am plo cam po arado, as construções distantes doparque industrial. O parque industrial. Um salto no escuro.

— O m eu cavalo — disse ela. Levantou-se de um salto e soltou um grito de

dor involuntário. — Onde está o m eu cavalo?

O hom em recuava, gesticulando para que ela ficasse onde estava.

— Je telephonerai aux gendarmes — disse. — D’accord?

Ela j á avançava cam baleando pela estrada, tentando esclarecer as ideias, avista.

— Boo! — berrou. — Boo!

Ela não reparou na desconfiança do hom em enquanto seus dedos grossos equadrados hesitavam sobre os botões do celular. Se tivesse reparado, poderiater entendido. Drogas?, suspeitava. Loucura? Com um dos lados do corpocoberto de lam a, seu rosto estava m achucado; algum tipo de confusão?

— Tu as besoin d’aide? — perguntou, com cautela.

Ela não escutou.

— Boo! — berrou, arrastando-se até um poste, fazendo careta ao tentar manter o equilíbrio. O corpo dela doía; sua visão se recusava a ficar clara. Masaté ela conseguia ver que o cam po estava vazio, a não ser por alguns corvosdistantes, o vapor da respiração dela. Sua voz sim plesm ente desapareceu noar parado da m anhã.

Ela se voltou para o hom em .

— Un cheval? — im plorou. — Un cheval brun? Un Selle Français?

Ela trem ia, um a m istura de frio e m edo. Aquilo não podia estaracontecendo, não naquele m om ento, não depois de tudo aquilo. O m edotom ou conta dela com força, fazendo com que despertasse e a incapacitandocom a enorm idade do que tinha acontecido. Era algo grande dem ais, um aperspectiva pavorosa dem ais. Ele não podia ter ido em bora. Claro que nãopodia ter ido em bora.

O hom em estava parado à porta de sua m áquina.

— Tu as besoin de mon aide? — perguntou m ais um a vez, m enosinsistente, com o se torcesse para que a estrangeira afirm asse que não, queestava bem .

Na verdade, Sarah, que j á avançava m ancando pela estrada, sem saber muito bem onde procuraria prim eiro, estava ocupada dem ais gritando o nom edo cavalo para escutá-lo. O puro choque de Boo ter ido em bora sobrepuj oua dor que ela sentia no om bro, as m arteladas repetitivas em sua cabeça.

Ela tinha quase chegado ao fim do cam po arado antes de perceber que ocavalo não era a única coisa que havia desaparecido.

* * *

A quase cinquenta quilôm etros dali, Natasha tam bém acordou com um asensação inesperada de ausência. Antes m esm o de entender que o som queescutara era Mac desaparecendo no banheiro, j á estava ciente da ausência docorpo ao lado do dela. Ainda sentia o peso do braço dele, o com prim entosólido da perna dele pressionado atrás da dela, a respiração dele quente nopescoço dela. Sem ele, Natasha ficava sem chão, com o se flutuasse solta noespaço em vez de estar bem aninhada em um a cam a de casal grande. Mac.

Ouviu quando ele levantou a tam pa da privada e abriu um leve sorriso com

aquela indicação de dom esticidade. Afundou-se ainda m ais nas cobertas,perdida no ar abafado que falava de horas de prazer, de desej o atendido eretribuído.

Pensou nele, nos lábios dele, nas m ãos dele, no peso dele, na intensidadecom que seus olhos a haviam exam inado, com o se todo o ano anterior nãotivesse sido varrido, m as tornado irrelevante devido à força dos sentim entosdos dois. Natasha pensou nas próprias ações, na sua falta de inibição, nodesej o, aquela coisa que tinha despertado tão inesperadam ente, com o sefosse algo bem separado de quem ela acreditava ser. Foi com o se asdiscussões passadas, as crueldades, as coisas que haviam im pedido quefossem eles m esm os um com outro tivessem exacerbado tudo. Ela osurpreendera, sabia disso, assim com o tinha surpreendido a si m esm a.Quanto tem po fazia que ela não se sentia a m elhor versão de si m esm a aos

olhos dele?

Deslizou para o lado dele da cam a, inalando a m arca ainda quente da peledele. Ouviu a descarga, o som de água corrente enquanto ele lavava as m ãos.

Seria errado ela se enroscar nele de novo antes de se levantarem e retom arema busca? Seria errado usar os lábios, as m ãos, a pele dele para se fortalecerpara o dia que teria pela frente? Com o seria tom ar banho naquela banheiraenorm e de pezinhos, reivindicar o corpo dele, centím etro por centím etroensaboado? Eu o amo, pensou, e a consciência desse fato lhe veio com o umalívio, com o se significasse que podia parar de lutar.

Ela suspirou de contentam ento. Então, de m aneira prosaica, esfregou osolhos, ciente do rím el borrado da noite anterior, tentou aj eitar o cabelo, queestava colado atrás da cabeça. O corpo dela queim ava, atiçado pelaansiedade, e pediu a ele, em silêncio, que se apressasse. Queria senti-logrudado nela, em volta dela, dentro dela. Sentiu um a fom e do físico deleque acreditara não existir m ais em si.

Ela nunca havia se sentido assim com Conor. Sentira desej o físico, sim , mas tinha sido com o saciar um apetite que os dois reconheciam , não essasensação agitada e visceral de fazer parte de um todo, de sentir um aausência, ainda que tem porária, feito um a am putação.

Foi nesse ponto que ela ouviu a voz. No com eço, achara que era alguém nocorredor, m as, ali deitada, esforçando-se para escutar, percebeu que Macestava falando. Saiu da cam a, enrolada na colcha, foi descalça até obanheiro, hesitou por um m om ento, então encostou a orelha na porta decarvalho.

— Querida, vam os conversar sobre isso m ais tarde. Você… você é impossível. — Ele estava rindo. — Não, eu não… Maria, não quero conversarsobre isso agora. Eu j á disse, ainda estou procurando. Sim , vej o você no dia15…

Eu tam bém . — Riu de novo. — Preciso desligar agora, Maria. Falo comvocê quando chegar em casa.

Durante anos depois disso, Natasha se esforçaria para dissociar o cheiro decera da prem onição de um desastre. Afastou-se da porta, j á sem sorrir, oardor transform ado com o que com alquim ia em gelo em seu sangue. Tinhaacabado

de chegar à cam a quando ele saiu do banheiro. Natasha acalm ou arespiração, esfregou o rosto, sem saber m uito bem com o se m ostrar a ele.

— Você acordou — observou Mac.

Natasha sentiu o olhar dele. A voz dele estava rouca pela falta de sono.

— Que horas são? — perguntou ela.

— Oito e quinze.

O coração dela batia de form a desconfortável.

— É m elhor irm os andando — disse ela, olhando para o chão em busca dasroupas. Ela não o encarou.

— Quer sair da cam a? — Mac pareceu surpreso.

— Achei que seria um a boa ideia. Precisam os falar com a polícia, lem bra?

Madam e… ia ligar para nós.

Ela viu a calcinha em baixo da côm oda de nogueira. Ficou verm elha aopensar com o a peça tinha ido parar ali.

— Tash?

— O que foi?

Vestiu a calcinha, de costas para ele, com a colcha escondendo o corpo.

— Você está bem ?

— Estou. — Aj eitou a calcinha no quadril e se virou para ele. Manteve o

olhar alerta, neutro. Por trás dele, desej ava um a m orte lenta e dolorosa paraMac. —

Por que não estaria?

Mac tentava avaliar o hum or dela. Sorriu e deu de om bros, um poucoincerto.

— Só acho que devíam os agir logo — prosseguiu ela. — Lem brar o queestam os fazendo aqui.

E antes que Mac pudesse dizer algo, ela j á tinha pegado suas coisas e entradono banheiro.

* * *

O gendarm e conversara com a adm inistração do Le Cadre Noir antes de irao château.

— Não há notícia de um a m enina assim por aqui — disse ele na sala deestar enquanto tom ava um café trazido por Madam e, que tinha ficado a um adistância discreta. — Mas garantiram que vão inform ar a vocês, com certeza,se ela aparecer. Vocês vão ficar aqui?

Natasha e Mac se entreolharam .

— Acho que sim — respondeu Mac. — Este é o único lugar em que Sarahpode aparecer. Vam os ficar até ela chegar.

A história deles tinha suscitado no policial a m esm a reação que em Madame: um a leve descrença, a pergunta no ar sobre com o pretensos pais podiamtolerar a ideia de um a criança viaj ando sozinha até tão longe.

— Posso perguntar por que acham que ela irá para o Le Cadre Noir? Estãocientes de que se trata de um a academ ia de elite?

— O avô dela. Ele foi um m em bro, ou sej a lá com o cham am , há m uitotem po. Era ele que parecia acreditar que Sarah viria para cá.

O inspetor pareceu satisfeito com a resposta. Fez m ais algum as anotaçõesno bloquinho.

— E ela está com o m eu cartão de crédito. Sabem os que foi usado no caminho para a França — com pletou Natasha. — Tudo indica que está vindopara cá.

A expressão do policial não revelava nada.

— Vam os colocar os gendarm es em um raio de oitenta quilôm etros emalerta.

Se alguém a vir, vam os inform ar a vocês. — Ele deu de om bros. — Masnão será fácil distinguir um a m enina andando a cavalo por aqui… vocêsprecisam com preender que, em um lugar com o Saum ur, estam os rodeadosde pessoas assim .

— Nós com preendem os — disse Natasha.

Depois que o policial foi em bora, os dois ficaram em silêncio. Natasha olhoupara a sala, para as cortinas pesadas, para as aves em palhadas em caixas devidro.

— Nós podíam os sair de carro por aí — sugeriu Mac. — Acho que é m elhordo que ficarm os aqui o dia inteiro sem fazer nada. Madam e disse que ligariase acontecesse algo.

Ele fez m enção de tocar no braço dela, m as Natasha se afastou, ocupando-secom a bolsa.

— Acho que não faz sentido nós dois sairm os — ponderou ela. Teve vontadede socá-lo quando Mac assum iu um a expressão levem ente m agoada. —Vou dar um a volta na academ ia. A gente se fala.

— Isso é ridículo. Por que vam os nos separar agora? Natasha, vam os juntos.

Houve um a pausa curta. Ela j untou suas coisas, recusando-se a olhar paraele.

— Ok — disse, enfim , e saiu da sala.

* * *

Havia pegadas de cavalo na outra ponta do cam po arado. Ela tentara correrquando as viu, m as a lam a grossa, pegaj osa e pesada prendia as botas dela,im possibilitando até o m ais lento dos m ovim entos. Ela finalm ente chegaraao fim , m as, depois de algum as pegadas lam acentas no asfalto, o rastro deBoo tinha desaparecido.

Ela cam inhou durante m ais um a hora, ziguezagueando pelos cam pos,entrando nos bosques, com a voz rouca de tanto gritar, até que chegou aovilarej o seguinte. Àquela altura estava trem endo, com o corpo gelado evazio. O om bro

doía, sentia pontadas de fom e no estôm ago. Carros passavam a todavelocidade por ela, sem reparar ou sem se im portar; de vez em quandobuzinavam quando ela se aproxim ava dem ais da estrada.

Foi quando chegou ao vilarej o que viu a pequena fileira de loj as. O cheirode pão da boulangerie era apetitoso e reconfortante, com pletam ente fora dealcance. Enfiou a m ão gelada no bolso e tirou três m oedas. Euros. Nãoconseguia lem brar com o foram parar ali: Thom tinha colocado o dinheirodela num envelope que estava na m ochila desaparecida. Troco. De algum atransação breve no dia anterior. Ela olhou para as m oedas, para aboulangerie, e depois para o telefone público na praça do outro lado da rua.Havia perdido tudo: seu passaporte, os docum entos de Boo, o dinheiro quetinha, o cartão de crédito de Natasha.

Só havia um a pessoa que talvez pudesse aj udá-la. Enfiou a m ão no bolso dedentro do casaco para pegar a foto de Vô; estava am assada e ela tentou alisá-la com os polegares.

Atravessou a praça com passos rígidos, entrou em um bar tabac e pediu parausar o telefone.

— Tu as tombé? — perguntou a m ulher atrás do balcão, sim pática.

Sarah assentiu, de repente ciente de suas roupas, da lam a.

— Pardonnez-moi — disse, conferindo se não tinha deixado um rastro depegadas.

A m ulher observava o rosto dela de testa franzida, preocupada.

— Alors, assais-toi, chérie. Tu voudrais une boisson?

Sarah sacudiu a cabeça.

— Inglês — disse, com a voz só um pouco m ais alta do que um sussurro. —

Preciso ligar para casa.

A m ulher olhou para as m oedas na m ão de Sarah. Estendeu o braço e tocouno rosto da m enina.

— Mais tu as mal à la tête, eh? Gérard!

Alguns segundos depois, um hom em de bigode surgiu atrás do balcão comduas garrafas de xarope cor de cerej a, que colocou na superfície de m adeira.A m ulher balbuciou para ele, gesticulando na direção de Sarah.

— Telefone — disse ele.

Sarah se levantou e se dirigiu ao telefone público, m as ele sacudiu o dedo.

— Non, non, non. Pas là. Ici.

Ela hesitou, sem saber se aquilo era seguro, m as concluiu que não tinha muita escolha. Ele ergueu a tábua do balcão e a conduziu por um corredorescuro.

Havia um telefone em um a pequena côm oda.

— Pour téléphoner — disse o hom em . Quando ela lhe estendeu as m oedas,ele sacudiu a cabeça. — Ce n’est pas nécessaire.

Sarah tentou lem brar o código da Inglaterra, então ligou.

— Ala de derram e.

O som de um a voz em inglês teve um efeito inesperado: fez com que ela derepente sentisse saudade de casa.

— É Sarah Lachapelle — disse com a voz firm e. — Preciso falar com o meu avô.

Houve um silêncio.

— Pode esperar um m om ento, Sarah?

Ela ouviu m urm úrios, do tipo que se escuta quando alguém cobre o bocal dotelefone com a m ão, e olhou ansiosa para o relógio, não querendo que aligação saísse m uito cara para o casal francês. Via a m ulher pela porta,servindo café, conversando anim ada. Provavelm ente estavam falando dela, am enina inglesa que tinha caído do cavalo.

— Sarah?

— John? — Ela ficou surpresa com a voz dele, esperava a de um a enfermeira.

— Onde você está, m enina?

Ela ficou paralisada. Não sabia o que dizer a ele. Será que Vô não veriaproblem a em Sarah contar a John onde estava? Ou será que ele ia querer queela prosseguisse? Dizer a verdade antes não tinha dado m uito certo.

— Preciso falar com Vô. Pode passar o telefone para ele, por favor?

— Sarah, você precisa m e contar onde está. Tem gente a sua procura.

— Não — retrucou ela com firm eza. — Não quero falar com você. Querofalar com Vô.

— Sarah…

— É im portante, John. Im portante de verdade. Por favor, faça isso por m im.

Por favor, não dificulte as coisas… — Ela estava quase chorando.

— Não posso, querida.

— Pode, sim . Falei com ele anteontem . Se você colocar o telefone na orelhadele, ele pode escutar o que eu…

— Sarah, m enina, seu avô se foi.

Ela ficou olhando para a parede. Alguém tinha acabado de ligar um atelevisão no bar e ela escutou o barulho distante da torcida e os com entáriosanim ados de um j ogo de futebol.

— Para onde ele foi?

Um a longa pausa.

— Sarah, m eu am or, ele se foi.

Ela sentiu um frio subir por seu corpo.

Sarah sacudiu a cabeça.

— Não — disse.

— Meu am or, você precisa voltar para casa agora. Está na hora de voltarpara

casa.

— Você está m entindo — disse ela. Seus dentes batiam .

— Querida. Sinto m uito.

Sarah bateu o telefone. O corpo todo dela trem ia, e precisou se sentar.

Deslizou, sem fazer barulho, até o piso de linóleo e ficou ali sentada enquantoa sala girava lentam ente ao seu redor.

— Alors!

Ela não sabia dizer quantos m inutos tinham se passado, m as percebeu delonge a m ulher gritando para cham ar o m arido e dois pares de m ãos a ajudando a se levantar. Foi levada até o salão principal do bar e colocadasentada com cuidado em um dos sofás com assento de couro verm elho; entãoa m ulher pôs um a caneca fum egante de chocolate quente na frente dela edesem brulhou cubos de açúcar, que despej ou na bebida.

— Regardez! — disse outro cliente. — Elle est si pâle!

Outra pessoa m urm urou algo sobre choque. Ela os ouvia com o se estivesselonge. Percebeu m ais rostos, sorrisos com preensivos. Alguém tirou ocapacete de m ontaria dela e Sarah sentiu vergonha do cabelo suj o, da lam asob as unhas. Não tinha sobrado m ais nada. Vô se fora. Boo se fora.

A m ulher esfregava a m ão dela e a incentivava a tom ar o chocolate quente.

Ela deu um gole educado, se perguntando se ia vom itar.

— Tu as perdu ton cheval? — perguntou alguém , e o cérebro dela pareciatão estranho que ela precisou tentar várias vezes antes de conseguir assentir.

— De quelle couleur est il?

— Brun — respondeu por reflexo.

Ela se sentia leve, ouvia tudo com o se estivesse longe. Perguntou-se, por uminstante, se sairia flutuando se soltassem a m ão dela, se iria para a atm osferae desapareceria. Por que não? Não havia m ais ninguém para ancorá-la àterra, ninguém que se im portava com ela. Não havia nada a que se dirigir,nada a que voltar. Boo provavelm ente estava m orto, estirado em um a valetacom o a que a abrigara até ser encontrada. Os garotos podiam tê-loperseguido por quilôm etros.

Podia ter sido roubado, atingido por um carro, absorvido por aquele vasto

país para nunca m ais ser visto. E Vô… Vô tinha m orrido enquanto elaestava longe.

Nunca m ais veria suas m ãos, nunca m ais veria as escovadas fortes dele, deum lado para outro, o m axilar travado com o esforço. Nunca m ais ficariamdiante da televisão com entando as notícias. Nada fazia sentido.

Teve um a visão repentina de si m esm a, um pontinho, com pletam entesozinha no universo. Não havia m ais lugar para ela, ninguém , não tinha mais um lar. Essa súbita percepção foi tão im pactante que Sarah achou quetalvez fosse desm aiar.

Então percebeu que as pessoas não tiravam os olhos dela e desej ou quefossem em bora. Pensou, de m aneira abrupta, que poderia se deitar no sofá edorm ir por cem anos.

Havia m urm úrios preocupados. Sentiu as pálpebras caírem , então a m ulherforçou a caneca em seus lábios de novo.

— C’est la secousse — disse alguém , que de fato levantou as pálpebras delapara conferir.

— Estou bem — disse Sarah, im aginando com o era possível dizer algo tãoverdadeiro e tão falso ao m esm o tem po.

— Mademoiselle. — Um hom em m agro com um cigarro estava de pé diantedela. — Le cheval est brun? — Sarah ergueu os olhos para ele. — Il est dequelle taille? Comme ça? — Ele indicou com a m ão um ponto bem no alto,perto do om bro.

De repente, ela conseguiu se concentrar. Assentiu.

— Venha, venha — disse ele. — Por favor, venha.

Sarah sentiu o braço da m ulher, que a am parava, e de repente se sentiugrata.

Suas pernas pareciam não lhe pertencer m ais. Pareciam fracas, com o arames que dobram à m enor pressão. Ela piscou, o brilho da luz da m anhã era

forte dem ais depois da escuridão do bar. E então a m ulher estava entrandono banco de trás de um carro com ela e o hom em m agro se acom odou no dafrente. Podem estar me levando para qualquer lugar, pensou Sarahdistraidam ente. Estava fazendo tudo o que Vô lhe dissera para não fazer. Dealgum m odo, não conseguiu reunir a energia necessária para se im portar.Porque Vô não está mais aqui. Ela deixou as palavras rolarem em sua m ente,m as nada aconteceu. Não consigo sentir nada, pensou.

Depois de uns três ou quatro quilôm etros, entraram em um sítio, por um caminho cheio de m áquinas agrícolas enferruj adas e enorm es torres de palhaem rolos envoltos com plástico preto brilhante. Um ganso chiou irritadoquando desceram do carro, e o hom em m agro o espantou.

Então, ao dobrar a esquina de um galpão enorm e, ela o viu: estava em umestábulo para vacas com a sela e o bridão posicionados na beirada do portão.

— Boo? — disse ela, sem acreditar, esquecendo a dor no om bro.

— Il est le vôtre? — perguntou o hom em .

Boo relinchou, com o se disse um a resposta conclusiva.

— Le fermier l’a trouvé ce matin, en haut par le verger. En tremblant commeune feuille, il a dit.

Ela m al ouviu o que ele disse. Desvencilhou-se da m ulher e disparou nadireção do cavalo. Subiu no portão e m eio que caiu do lado de dentro, comos braços em volta do pescoço dele, o rosto m olhado de lágrim aspressionado em seu pelo.

Quem poderia pensar que um a m enina pudesse chorar tanto por um cavalo?,disseram eles no bar tabac m ais tarde, m uito tem po depois de ela ter sidodespachada com m ais um a xícara de chocolate quente e m eia baguete. Elahavia

chorado sem parar por m eia hora, enquanto enfaixava os pobres j oelhosensanguentados do cavalo e o acariciava e lhe dizia palavras carinhosas;Sarah se recusou a sair do lado dele. Não era m uito norm al ver um a garota

tão em otiva por causa de um anim al.

— Ah. Sabem com o são essas m eninas — disse a m ulher do bar enquantopassava um espanador nas garrafas. — São apaixonadas por anim ais nessaidade.

Eu tam bém era assim . — Ela fez um a pausa e indicou com a cabeça o marido, que tinha se distraído do j ornal por um m om ento. — Ainda sou, éclaro —

com pletou, com um a gargalhada de desdém e, ao som das risadas dosclientes, voltou para a cozinha.

* * *

Mac esperou Natasha entrar no carro antes de dar a partida. Ela m al tinhafalado com ele a m anhã toda. Cada vez que ele tentava algum a coisa, fazeralgum a referência ao que havia acontecido, ela adotava a expressão que Maccham ava de rosto m atrim onial, dem onstrando desaprovação reprim ida erecrim inação não dita. Era difícil saber com o reagir àquilo: ela sentira desejo por ele na noite anterior, ele não tinha forçado nada. Por que diabo ela oestava tratando daquele j eito?

Mac sabia que tinha feito a coisa certa, m as era difícil reconciliar a criaturasedenta e passional da noite anterior à m ulher fria e fechada ao lado dele.Havia acordado enroscado nela, com os lábios pressionados na nuca delaenquanto dorm ia, e o prim eiro pensam ento que teve foi um a espécie deanim ação. Havia possibilidades: algo se abrira entre eles, se revelara. Elepensara que talvez não fosse tarde dem ais. Não era só sexo, apesar de aquiloter sido um a surpresa para ele. Parecia que ela tinha retirado um a cam adade si m esm a, perm itido que só ele visse algo que m antivera guardado porm uito tem po. Depois, ela tinha chorado m ais um a vez, só que de alívio, e,abraçado a ela, sussurrando para ela, Mac sentira que ela lhe confiara algo.Ele se surpreendera por terem desperdiçado tanto tem po ficando longe umdo outro.

Eu quero você.

Então, com o explicar aquela m anhã? Mac sabia que am ava aquela m ulhercom plicada, de tem peram ento instável, m as não estava certo de ter energiapara ficar sem pre derrubando as barreiras que Natasha parecia tão determinada a erguer entre eles. Você está certa, disse a ela em silêncio. Os hom ensrealm ente se enchem de m ulheres “difíceis”, e é por isto: vocês pegam um asituação gloriosa e criam algo tóxico com ela.

— Você m e ouviu falando ao telefone hoj e de m anhã? — perguntou derepente.

Natasha nunca fora boa em m entir. Suas bochechas coraram .

— Não — respondeu.

— Nós não estam os j untos, eu e Maria, se o problem a é esse. Nós som osam igos. Era para estarm os fazendo um trabalho j untos hoj e. Tive quecancelar.

Ela fez um gesto com a m ão.

— Olhe. Chegam os.

— Ela está com um nam orado novo — disse ele, m as Natasha j á tinhasaído do carro.

Estacionaram na frente da École National d’Équitation, e Mac a seguia até aadm inistração, onde um a j ovem com o cabelo preso em um rabo de cavaloe a pele brilhante denunciando um a vida ao ar livre os cum prim entou comapertos de m ão. Ela pediu desculpas pelo m al-entendido do dia anterior: nãotinham com preendido a situação, explicou, nem a conexão deles com o LeCadre Noir.

Enquanto Natasha explicava, Mac aproveitou para exam inar algum as dasfotografias em sépia de cavalos paralisados no ar em ângulos im possíveis,hom ens com quepes e uniform es com alam ares acom odados sobre elescom aparência calm a, com o se não estivessem fazendo nada de m ais ao montar um anim al equilibrado sobre duas patas num ângulo de quarenta ecinco graus. Mais para cim a, havia a fileira de honra; todos os écuyers do Le

Cadre Noir desde o século XIX, com os nom es, só um ou dois por ano,escritos em dourado. Um lhe saltou aos olhos: Lachapelle, 1956-60. Pensouno idoso, que provavelm ente nunca soube que o tem po passado ali tinhasido celebrado, que havia sido hom enageado daquela m aneira, e se sentiutriste por alguém que poderia ter passado a vida toda buscando a beleza, aexcelência, ter passado os últim os anos de sua vida onde passou. Eleentendia um pouco m elhor o desej o ardoroso, as instruções rígidas que oidoso dava a Sarah. O que m ais alguém poderia querer para os filhos que nãoa perfeição e a beleza? Ou satisfação na arte de buscar essas coisas?

— Olhe — disse ele, pegando um a pasta com fotografias. — Esta é Sarahcom o cavalo. Dá para ver o rosto dela um pouco m elhor nesta aqui.

A m ulher as exam inou, então assentiu.

— Ela m onta m uito bem .

Foi difícil saber se ela só estava sendo sim pática.

— O nom e do avô dela é Lachapelle. É ele.

Mac apontou para a foto na fileira de honra.

— Ele está com vocês? Tem os vários encontros. Tem os um a publicação,Les Amis du Cadre N…

— Ele m orreu ontem à noite — contou Natasha.

— Foi por isso que ela fugiu?

— Não — disse Natasha e olhou para Mac. — Acham os que ela ainda nãosabe.

A m ulher devolveu as fotos para Mac.

— Sinto m uito por não poderm os aj udar m ais, porém , se souberm os dealgo,

Madam e, Monsieur, claro que vam os avisá-los. Querem conhecer as

instalações j á que estão aqui?

Um rapaz foi incum bido de lhes m ostrar o lugar, e entraram no CarrièreHonneur, um a am pla arena-escola de areia onde um hom em usando umchapéu preto cavalgava um cavalo castanho saltitante, observado por um adúzia de cavalos im aculados em um a fileira de baias. Ele cavalgava a m eio-galope para um lado, depois para outro, fazendo a m ontaria respirarruidosam ente por causa do esforço.

Enquanto cam inhavam , o rapaz explicava: era ali que os cavalos deapresentação ficavam , lá eram m antidos os de adestram ento, do outro lado,os de salto. No total, eram cerca de trezentos anim ais. Um m undo de ordem, de padrões elevados atingidos e conservados. Mac ficou com um sentimento curioso de segurança por aquele lugar ainda existir.

— Por que estam os passeando? — Natasha de vez em quando resm ungavaenquanto cam inhavam por um a avenida arborizada até o bloco de baiasseguinte, a arena de areia seguinte, um m undo dedicado a um a busca quenenhum dos dois com preendia.

Mas Mac sabia que Natasha se sentia com o ele: o que m ais podiam fazer?

Pelo m enos ali tinham com preendido m elhor qual era o obj etivo de Sarah.A várias centenas de quilôm etros de casa, aquilo paradoxalm ente era o m aispróxim o que tinham chegado dela.

Natasha abriu o celular.

— Vou tentar a operadora de cartão de crédito de novo. Já se passaram algumas horas.

— Estão passando férias aqui? — perguntou o guia num inglês carregado desotaque quando Natasha se afastou.

— Não exatam ente — respondeu Mac.

— Fotógrafo — disse o rapaz, apontando para a bolsa de Mac.

— Sou, sim . Mas não estou aqui a trabalho.

— Devia fotografar Le Carrousel. É a apresentação que m arca o fim do anoletivo. Todos os écuyers se apresentam .

— Me dê licença por um m inuto. — O celular dele estava tocando.

— O que foi? — perguntou Natasha, interrom pendo a ligação com aoperadora.

Mac deu as costas para ela e passou a m ão na cabeça enquanto escutava.

— Ah, m eu Deus — disse ele e fechou o celular.

— Ela sabe — adivinhou Natasha. — Ela sabe que o avô m orreu.

Mac assentiu.

Natasha levou a m ão à boca.

— Então ela sabe que não tem m ais nada.

Mac se perguntou se tinha ficado pálido com o ela. Ficaram se entreolhando,

alheios aos cavalos, à beleza do entorno.

— Bloqueie o cartão, Tash — disse ele finalm ente. — Se ela resolver não virpara cá precisam os im pedir que vá para outro lugar.

— Mas aí ela correrá m ais riscos. Precisam os garantir que ela tenha dinheiropara com er, para dorm ir em algum lugar. Está fazendo m uito frio à noite.

— Mas podem os passar sem anas correndo atrás dela pela França. Há um milhão de lugares onde se pode parar um cavalo. Precisam os dar um fim nisso.

— Eu sei, m as tirar a única fonte de apoio que ela tem não é a solução.

— Se tivéssem os cortado o apoio financeiro na Inglaterra, ela não teriachegado tão longe. — Parecia que ele estava culpando Natasha. Mac nãopôde evitar.

— Ela teria encontrado um j eito

— Mas estam os procurando há dois dias e duas m alditas noites e ainda nãotem os a m enor ideia de onde ela…

— Monsieur? — O j ovem guia pressionava o walkie-talkie na orelha. —

Monsieur? Madam e? Attendez, s’il vous plaît — disse rápido em francês. Eentão:

— Tem um a m enina inglesa aqui. Um a m enina com um cavalo. Mademoiselle Fournier disse que é para vocês m e acom panharem .

* * *

Não foi com o ela havia im aginado, um a chegada triunfal. Durante os doisprim eiros dias de viagem , ela havia im aginado aquilo várias vezes, o êxtasequando chegasse ao lugar que com certeza passaria a sensação de ser umsegundo lar para ela. Era o seu destino. Estava em seus ossos, com o o avôdissera.

Mas, nos últim os oito quilôm etros, Sarah tinha se agarrado às palavras como um a m uleta, aquilo que a fazia seguir em frente. Havia se arrastado porSaum ur, alheia às ruas largas e elegantes, às construções antigas, à belezaatem poral da beira do rio. Boo, exausto, atraía olhares curiosos com os joelhos enfaixados, de vez em quando um passante dem onstravadesaprovação, com o se ela não devesse m ontar um anim al m achucado. Elasabia que não parecia m enos estranha com o rosto m achucado e as roupasenlam eadas. Doze quilôm etros, oito quilôm etros, quatro quilôm etros…Tinha im plorado a ele que continuasse seguindo em frente, travara o m axilarcom força para não chorar por causa da dor no om bro, a dor de cabeça quenão ia em bora.

Quase soluçou quando viu as placas indicando a École de Cavalerie, entãoreconheceu em um a rua residencial a fachada georgiana da construção emform a de ferradura. Mas não havia cavalos: os hom ens que cam inhavampelos pátios não usavam preto, m as sim a cam uflagem de guerra m oderna.

— Le Cadre Noir? — perguntou a um deles quando atravessava a place du

Chardonnet.

— Non! — Ele olhou para Sarah com o se fosse louca. — Le Cadre Noir n’apas été ici depuis 1984. C’est à St Hilaire de Fontaine. — Ele apontou paraum a rotatória. — C’est pas loin d’ici… cinq kilometres?

Por um instante, ela achou que não conseguiria avançar. Mas se aprum ara eseguira as instruções do soldado, passando por várias rotatórias, atravessandoum a cidadezinha e então — tão longe que Sarah tem eu ter se perdido denovo —

subiu um longo cam inho verdej ante, flanqueado por cam pos de cavalos.

E, de repente, ali estava, m aior do que ela im aginava, de aspecto m ais moderno. Aquela não era a antiguidade elegante das fotos de Vô, um pátiocheio de gente uniform izada. Havia portões de segurança, seis arenas de dimensões olím picas, restaurantes, estacionam entos, um a loj a para turistas.Sarah entrou pelos portões abertos sem que quase ninguém prestasse atençãonela, com os olhos quase fechando de exaustão, até ver a placa “GrandManège des Écuy ers”, que lhe dizia que sua j ornada tinha chegado ao fim .

Ela guiou Boo pela arena coberta depois da entrada, onde as próxim asapresentações estavam listadas com o preço dos ingressos, percorreu todo ocom prim ento e deu a volta por trás, onde serragem , pegadas de cavalo e umcam inho de concreto do estábulo revelavam um a rota equina. Do outro ladodas enorm es portas de m adeira, ela escutou um a voz m asculina. Endireitouum pouco o corpo, respirou fundo e então se inclinou para a frente, com um acareta de dor, e bateu várias vezes na porta. Um breve silêncio se instalou alidentro, rom pido por alguém dando um a instrução: “Hup! ” Sarah respiroufundo e bateu de novo, a m ão insistente nos painéis de m adeira.

Ouviu um pino deslizar e a porta se abriu para revelar um interior cavernoso:um a catedral m oderna com piso de areia. Nas laterais havia vários cavalos,todos m ontados, os cavaleiros vestidos com o uniform e preto e dourado queela conhecia da infância, com o se fizessem um a espécie de ensaio. O ar erasilencioso, reverente, com cada hom em concentrado nos m ovim entos de

seu cavalo reluzente e m usculoso.

O hom em que abrira a porta a encarou, então deu um a bronca nela emfrancês, agitando os braços. Sarah estava tão cansada que m al distinguia oque ele dizia, m as o interrom peu:

— Preciso falar com o Grand Dieu — disse ela, a voz falhando de cansaço.—

Je dois parler au Grand Dieu.

Houve um breve silêncio estupefato, e ela aproveitou a falta de ação m omentânea do hom em para passar por ele. Boo eriçou as orelhas.

— Non! Non!

Um hom em com um walkie-talkie corria apressado atrás dela.

— Que faire?

Um idoso com um quepe veio na direção deles do outro lado da escola. O

rosto dele era m arcado por rugas, tinha os olhos fundos. O uniform e pretodele era im aculado, engom ado, com o se segurasse o corpo dentro dele.

— Désolé, Monsieur. — O hom em m ais j ovem tinha pegado as rédeas deSarah e puxava Boo na direção da saída. — Je ne sais pas ce que…

— Non! — Sarah forçou Boo a avançar e deu um tapa na m ão do hom em .—

Solte o m eu cavalo. Eu preciso falar com Le Grand Dieu.

O hom em se aproxim ou dela com seu cavalo. Olhou para os j oelhoscobertos de ataduras de Boo, depois para Sarah.

— Je suis le Grand Dieu. — Ela se sentou um pouco m ais ereta. —

Mademoiselle — disse ele, com a voz grave e séria. — Vous ne pouvez pas

entrer ici. C’est Le Cadre Noir. C’est pas pour…

— Eu preciso m ontar para você ver — interrom peu Sarah. — Je… je doismonter mon cheval pour vous. — Tinha consciência de que os outroscavaleiros aos poucos iam parando de fazer o que faziam , que ela havia setransform ado no centro das atenções. — Eu não posso voltar. Você tem quem e deixar m ontar.

Ele estava erguendo a m ão para lhe m ostrar o cam inho da saída.

— Madem oiselle, sinto m uito, este lugar não é para você. Você e seu cavalonão estão em condições…

Sarah viu outro hom em falando em um walkie-talkie, talvez cham ando asegurança. Em pânico, ela enfiou a m ão no casaco e tirou de lá a foto de Vô.

— Monsieur! Regardez! C’est Henri Lachapelle. Você o conhece. Ele esteveaqui. — Ela colocou a foto na frente dele com o braço esticado e a m ão tremendo. — Você o conhece.

Ele parou, pegou a foto dela. O outro hom em no m om ento falava comurgência, gesticulando na direção de Sarah.

— Henri Lachapelle? — indagou, observando a im agem com atenção.

— Mon grandpère. — Um nó tinha se form ando garganta dela. — Por favor.

Por favor. Ele m e disse para vir aqui. Por favor, deixe que eu m onte paravocê.

O idoso olhou para trás, para os outros cavaleiros, depois m ais um a vez paraa foto. Enquanto ele observava a im agem , o outro hom em atravessouapressadam ente a arena, segurando o walkie-talkie. Murm urou algo noouvido do idoso e indicou com a cabeça o aparelho.

Os dois olharam para Sarah.

O idoso a exam inava.

— Você… Você veio cavalgando da Inglaterra até aqui? — perguntou eledevagar.

Sarah assentiu, m al ousando respirar.

Ele sacudiu de leve a cabeça, com o se tivesse dificuldade para entender.

— Henri Lachapelle — m urm urou. Então se afastou devagar dela, criando

nuvens de areia com as botas reluzentes. Sarah ficou im óvel sobre Boo, semsaber o que fazer. Seria esse o j eito dele de m andá-la em bora? Observou ohom em com o walkie-talkie indo atrás dele. Então viu que gesticulavam paraque os outros cavaleiros se afastassem , m andando que se alinhassem naslaterais da escola.

O Grand Dieu se posicionou na extrem idade da am pla arena. Encarou Sarahpor um bom tem po, então assentiu.

— Commence.

* * *

Ninguém sabia direito onde a m enina estava: o guia prim eiro entendeu m ale os levou para um a das arenas externas, antes de um a conversa urgentefazer com que voltassem pelo m esm o cam inho. Natasha se apressou atrásde Mac, com bolhas nos pés por causa dos sapatos que usava no tribunal,tentando não se deixar levar pela euforia.

— Talvez não sej a ela — disse a Mac, tentando não dem onstrar anim ação.

Ele tinha erguido a sobrancelha.

— Quantas outras m eninas inglesas a cavalo você acha que tem por aqui?

O guia fez um gesto para os dois. Haviam passado apressados por pátios, porlongos estábulos, onde cavalos com iam calm am ente em suas baias, pelovigoroso ar de inverno, até que, no lado de fora de um a construção brancaalta, Natasha reconheceu a m ulher de rabo de cavalo que os recebera.

— Ici, Madame — disse ela, acenando. — Ela está no Grand Manège desÉcuy ers. Nossa arena de apresentações. — Quando Natasha passou por ela, am oça sorriu, com os olhos arregalados. — Ela veio m esm o da Inglaterra?

Sozinha? C’est incroyable, eh?

— É — respondeu Natasha. — É m esm o.

Estavam de volta ao saguão de entrada, em baixo das fotografias, da fileira dehonra dos antigos integrantes. Outra porta se abriu e ela viu que Mac, à suafrente, tinha parado de supetão. Ninguém disse nada. A construção era enorme, um m onum ento para a arte da cavalaria. O seu interior ecoava e estavasalpicado de hom ens vestidos de preto m ontados a cavalo. Era com o entrarem um a era antiga, pensou Natasha. Podiam ter voltado quinhentos anos notem po. O

hom em com o walkie-talkie m urm urou algo para a m oça, que fez um gestopara que eles a seguissem até os assentos da plateia, que ficavam abaixo.

Ela sentiu a m ão de Mac puxando a m anga de sua cam isa.

— Tash, olhe — disse, baixinho.

Natasha seguiu a linha de visão de Mac enquanto descia os degraus atrásdele, até chegarem à lateral da arena.

Sarah cavalgava bem devagar em direção ao centro. O cavalo dela, o anim al

im petuoso e reluzente que exibira um a saúde tão robusta no Kent, estavaesfolado e enlam eado. Duas ataduras im provisadas faziam volum e nos joelhos dele e havia carrapichos grudados no rabo. Os olhos estavam vaziosde exaustão. Mas foi Sarah que ela observou: a criança estava tão pálida queparecia fantasm agórica, etérea. Um enorm e ferim ento m antinha um olho meio fechado; as costas e a perna direita estavam cobertas de lam a. Ela pareciapequena dem ais para o cavalo enorm e, as m ãos m agras estavam vermelhas de frio. A m enina parecia alheia a tudo isso: estava totalm enteconcentrada no que fazia.

A um a curta distância, um idoso se postava com o corpo ereto de m aneiranada natural, vestindo o paletó e a calça de m ontaria pretos. Ele observavaSarah, enquanto ela fazia Boo trotar, andar a m eio-galope, form ar pequenoscírculos elegantes ao redor dos hom ens m ontados nos próprios cavalos, queobservavam im passíveis. Natasha percebeu que não conseguia tirar os olhosdela. Sarah parecia outra pessoa, frágil e m ais velha do que realm ente era. Ocavalo desacelerou até um trote, então se m oveu na diagonal pelo am ploespaço, com os cascos se proj etando para a frente em um m ovim entocadenciado, com o se cada passo se sustentasse por um breve instante no ar.E então, aprum ando-se, de um j eito quase im possível, ele desacelerou atéfazer os passos sem avançar.

O rosto de Sarah era um a m áscara de concentração, o esforço se revelavanas som bras em volta dos olhos, na tensão do m axilar. Natasha observou osm ovim entos m inúsculos dos calcanhares da m enina, as pequeninas mensagens enviadas pelas rédeas. Via o cavalo escutando, aceitando,obedecendo apesar do cansaço, e com preendeu que, em bora não entendessenada de cavalos, aquilo a que assistia era belo, algo que só podia seralcançado por m eio de anos de disciplina incansável e trabalho infinito.Natasha olhou para Mac, que estava ao seu lado, e percebeu que ele tam bémvia. Ele estava inclinado para a frente, com os olhos grudados na m enina,com o se desej asse que ela fosse bem -sucedida.

As patas do cavalo se m oviam para cim a e para baixo, um a dança ritm ada,a cabeça enorm e baixa em obediência à tarefa. Só as gotas de cuspe quesaíam de sua boca denunciavam o esforço que o m ovim ento lhe custava. Eentão ele se deslocou, dançando em círculos ao redor dos próprios quartostraseiros, um a m anobra controlada e fluida que fez Natasha ter vontade deaplaudir pela elegância, pela im probabilidade daquilo. Sarah m urm uroualgo bem baixinho para Boo, esticou a m ãozinha para agradecer-lhe; umpequeno gesto que trouxe lágrim as aos olhos de Natasha. Então, quando ocavalo de repente se ergueu nas patas traseiras, equilibrado, absorto noesforço de lutar contra a gravidade, ela estava chorando, com lágrim asescorrendo pelas bochechas enquanto assistia à m enina perdida e o cavalo machucado dando tudo de si. Percebeu que experim entava um sentim ento deposse.

Sentiu a m ão de Mac segurar a sua e a apertou, grata por seu calor, sua força,de repente com m edo de que soltasse a sua. E então Sarah cavalgava a m eio-

galope pela beirada da arena am pla, em um ritm o bonito, lento, controlado,quase lento dem ais para ter m ovim ento, com o corpo tão im óvel com o setivesse sido esculpida. E, quando Natasha olhou para o idoso, percebeu queos outros, nos cavalos, haviam tirado os chapéus e os levado ao peito em umgesto form al, e um por um foram saindo na m esm a direção, atrás dela, coma cabeça baixa, com o que em um a saudação ao que tinham visto.

Mac largou a m ão de Natasha, pegou a câm era e com eçou a fotografar.

Enquanto procurava um lenço de papel, Natasha percebeu que estavacontente.

O que Sarah fizera era m agnífico. Alguém deveria registrar aquilo.

Boo dim inuiu o passo até um trote e, depois, um a andadura. Os hom ensvoltaram a colocar os chapéus e se entreolharam com o se até eles estivessemsurpresos pelo que se pegaram fazendo. Enquanto a m enina ia até o centro daarena, de frente para o idoso, eles se retiraram para as laterais para observar.

Sarah, pálida com o esforço do que conseguira fazer, parou o cavalo bem nafrente dele, com as quatro patas bem alinhadas, os om bros brilhantes com osuor do esforço e da exaustão.

— Ela conseguiu — m urm urou Mac. — Sarah, sua linda, você realm enteconseguiu.

A m enina, com a respiração pesada, baixou a cabeça para saudar o idoso, uma guerreira retornando da batalha. O idoso tirou o chapéu e assentiu emresposta. Mesm o do lugar em que estava sentada, Natasha percebeu com o am enina o observava com atenção, com o cada átom o dela estava ansiosopara ouvir a avaliação dele. Deu-se conta de que estava prendendo arespiração e m ais um a vez pegou na m ão de Mac.

O Grand Dieu deu um passo adiante. Olhou para Sarah com o se tentasseenxergar algo nela que ainda não tinha visto. Seu rosto estava sério; seus

olhos, bondosos.

— Non — disse. — Sinto m uito, m ocinha, m as non.

Ele estendeu a m ão e acariciou o pescoço do cavalo.

Os olhos de Sarah se arregalaram com o se ela não acreditasse no que haviaescutado. Agarrou a crina de Boo, então se voltou para a área da plateia,vendo Natasha e Mac talvez pela prim eira vez. Então, com um suspiro quaseim perceptível, escorregou do cavalo, desm aiada.

26

“Excesso de luto pelos mortos é loucura; porque é uma injúria aos vivos, eos mortos nem sequer tomam conhecimento.”

XENOFONTE, SOBRE EQUITAÇÃO

Ela ficou em silêncio no curto traj eto de volta ao château, aceitando semprotestar a m ão de Natasha segurando a sua, talvez ali para reconfortá-la,talvez por m edo de que pudesse desaparecer m ais um a vez. Não a forçarama falar; ficou subentendido que aquele não era o m om ento para perguntas.

Quando chegaram ao château, Natasha levou Sarah para o seu quarto, tirou aroupa dela com o se fosse um a criança bem m enor e a deitou na cam agrande.

Quando ela tapou seus om bros m agros com a coberta, a m enina fechou osolhos e dorm iu. Natasha se sentou ao lado dela e deixou a m ão no arco docorpo adorm ecido, com o se aquele pequeno contato hum ano pudesseoferecer conforto. Não se lem brava de j á ter visto alguém assim tão pálido,tão vazio.

Após ter se perm itido avaliar a escala das coisas pelas quais Sarah tinhapassado, estava profundam ente abalada.

Durante alguns m inutos depois de o Grand Dieu ter dado seu veredicto, ocaos se instalou. Quando Sarah caiu na areia, Natasha e Mac correram paradentro da arena; Mac recolheu o corpo que parecia sem vida e o Grand Dieu

segurou o cavalo. Mais ou m enos ciente dos gritos de exclam ação, das mãos de Madem oiselle Fournier na frente do rosto quando Mac passou,Natasha se lem brou de ter ficado surpresa com a facilidade com que elelevantou Sarah, com o se ela não pesasse nada, e de com o ficara com ovidacom a m aneira com que ele a abraçou. Alguns m inutos depois, enquantoSarah ia voltando a si aos poucos em um a sala ali perto, os dois haviam seposicionado um de cada lado dela, com Natasha aninhando sua cabeça. Anatureza épica da j ornada da m enina a separara brevem ente deles, transformando-a em alguém a quem nenhum dos dois sabia com o reagir.

E então Sarah olhou para Mac, sem com preender, e voltou a fechar os olhos,com o se o que tinha visto fosse dem ais para assim ilar.

— Está tudo bem , Sarah. — Natasha se pegou dizendo enquanto acariciava ocabelo em baraçado e suado dela. — Você não está sozinha. Não está sozinhaagora. — Mas a m enina parecia não ter escutado.

O m édico residente, cham ado da outra extrem idade da École Nationale,diagnosticara a clavícula quebrada e hem atom as severos, m as afirm ara quea m enina precisava m ais do que tudo de descanso. Trouxeram chá.Orangina.

Biscoitos. Sarah foi forçada a com er e beber, o que fez com gosto. Vozesfalaram

com urgência em francês. Natasha m al as ouviu. Segurou a m enina, queparecia incapaz de se m anter de pé, tentando lhe passar força de vontade ecoragem .

Tentando se desculpar por todas as form as que a decepcionara.

C’est incroyable. A história tinha se espalhado depressa pela École Nationale,e grupos de pessoas surgiram , algum as com calça de m ontaria e quepe, paraver a m enina inglesa que cavalgara por m etade da França.

C’est incroyable. Natasha escutou a frase cochichada enquanto Maccarregava Sarah até o carro. Natasha observou, de longe que os olhares queos seguiram tinham um pouco m enos de adm iração. Com o se o triunfo de

Sarah só pudesse ter sido conquistado por causa de algum a deficiência daparte dela e de Mac. Não se sentiu ressentida com isso; na sua opinião, elesprovavelm ente tinham razão.

Boo foi levado ao centro veterinário para fazer curativos e passaria a noite noestábulo. Era o m ínim o que podiam fazer por um anim al com o ele,observou o Grand Dieu. Mac contou depois que ficara um tem po diante dabaia, olhando por cim a da porta enquanto Boo, alim entado, hidratado e comnovos curativos, baixou o corpo na palha espessa e rolou, com um gem idobaixo de prazer, na forração funda e dourada.

— Alors — dissera o idoso, sem olhar para Mac. — Cada vez que acho quesei tudo sobre cavalos, surge algo a m ais para m e surpreender.

— Eu sinto o m esm o com os hum anos — retrucou Mac.

O Grand Dieu tocou o om bro dele.

— Vam os conversar am anhã — disse o Grand Dieu. — Venham m e ver àsdez. Ela m erece um a explicação.

Sarah finalm ente estava dorm indo, e Natasha a observava com o se o preçode m antê-la por perto fosse a vigilância eterna. O fim da tarde se transformou em noite, o céu escureceu até ficar preto. Natasha havia com ido um abarra de chocolate, bebido um a garrafa de água do m inibar e lido algum aspáginas de um livro deixado por um hóspede anterior. Sarah não se m exia.De tem pos em tem pos, assustada com a im obilidade da m enina, Natasha seaproxim ava de m ansinho para conferir se estava respirando, então voltavapara sua cadeira.

Quando saiu para o corredor, em algum m om ento depois das oito, Macestava à sua espera. Parecia que ele aguardava ali havia algum tem po.Natasha notou que novas rugas m arcavam o rosto dele, a tensão dos últim osdias se revelando.

Ela fechou a porta sem fazer barulho. Ele se levantou.

— Ela está bem — disse Natasha. — Mas apagou. Quer ver…

Mac sacudiu a cabeça. Então suspirou fundo e tentou sorrir.

— Nós a encontram os — disse ele.

— É.

Natasha se perguntou por que nenhum dos dois parecia sentir a alegria queesperavam .

— Fico pensando… — soltou ele. — O j eito com o ela estava… O quepoderia ter acontecido…

— É, eu sei.

Ficaram ali, im óveis. O corredor cheirava a cera velha; os tapetes antigosabafavam o som . Natasha não conseguia tirar os olhos dele.

Mac deu um passo m ais para perto e indicou o quarto dele com a cabeça.

— Quer dorm ir no m eu? Quer dizer, se ela está na sua cam a, você não temonde…

Sempre haveria outra Maria.

Quando ela falou, seu tom de voz foi neutro, profissional:

— Acho… Acho que ela não deve ficar sozinha. Vou dorm ir na cadeira doquarto. Eu não m e sentiria…

— Acho que você tem razão.

— Acho que tenho m esm o.

— Estarei aqui ao lado se precisar de m im .

Ele tentou sorrir, com a expressão triste e de quem sabe dem ais, com o se avolta de Sarah tam bém tivesse lhe perm itido avaliar com o haviam chegadoperto do triunfo e do desastre. E, apenas por um instante, ela não conseguiuse segurar: seus dedos tocaram as novas rugas em baixo dos olhos dele.

— Você tam bém precisa descansar — disse ela com delicadeza.

O j eito com o ele a olhou fez Natasha perceber que estava perdida. Todaaquela vulnerabilidade, aquele am or… um a porta de aço deslizando pararevelar algo que ela achava que havia desaparecido fazia m uito tem po.

E então passou. Mac olhava para os próprios pés.

— Estou bem — disse ele sem encará-la. — Vocês duas, durm am bem .

Am anhã de m anhã, m e cham em .

* * *

Sarah dorm iu tão pesado que, quando acordou, levou vários m inutos paraentender onde estava. Ergueu a cabeça do travesseiro com os olhos coçando eviu através da j anela com prida as folhas distantes de um a castanheira. Umcarro passou, e o som a despertou.

Ela se sentou ereta na cam a, ciente do cheiro rançoso de sua pele, das roupassuadas. Então viu Natasha. Ela estava encolhida em um a poltrona com umcobertor puxado até o queixo, com os pés descalços m eio descobertos.

Sarah se lem brava vagam ente da sensação das m ãos dela acariciando seucabelo, do surpreendente tim bre de m edo e alívio na voz dela quando disseseu nom e. Então se lem brou da arena, da pena nos olhos do Grand Dieuquando disse non.

Algo dolorido se aloj ou em seu peito. Voltou a se recostar nos travesseiros

brancos e m acios e ficou olhando para o teto tão, tão alto — a única barreiravisível entre ela e um m undo enorm e e vazio.

Non, dissera ele.

Non.

* * *

— Se ela não quiser falar, acho que não devem os forçar — disse Natashaesperando no corredor grandioso enquanto Mac pagava a conta.

Olhou na direção dos degraus, onde Sarah esperava no banco de trás do carrocom a têm pora apoiada na j anela. A m enina parecia olhar para o nada.

— Não é só que ela não quer falar sobre o avô, Mac. Parece que ela não querfalar sobre nada.

A polícia havia encontrado o passaporte dela com a carteira vazia e alguns deseus pertences na estrada para Blois. Ela não saiu da inércia nem quando lheentregaram o precioso livro surrado de Xenofonte.

Mac pegou o cartão de crédito e agradeceu Madam e, que insistira empreparar um pacotinho de com ida para a m enina. Todos instavam Sarah acom er, pensou Natasha, com o se a com ida pudesse preencher os enorm esburacos que tinham engolido sua vida.

— Ela está exausta — ponderou Mac. — Tem se agarrado a essa ideia há seilá quantos anos, talvez m ais do que im aginam os, e acabou de saber que nãovai acontecer. O avô dela m orreu. Ela cavalgou oitocentos quilôm etros ou mais. Está chocada, cansada e frustrada. E é um a adolescente. Acho que diz nom anual que ela vai passar um bom tem po sem falar conosco.

Natasha abraçou a si m esm a.

— Acho que você tem razão.

O sol se abria de vez em quando, com o se brincasse de gato e rato com asnuvens cinzentas pesadas, m as nenhum deles reparou que o curto traj eto dochâteau até Le Cadre Noir era pitoresco. O porteiro claram ente fora avisadode que eles viriam ; Natasha o flagrou espiando o banco de trás do carro delescom curiosidade quando entraram .

Madem oiselle Fournier estava à espera deles na frente do estábulo principal.

Ela cum prim entou os dois com beij os, com o se aquilo por que haviampassado tivesse feito com que ficassem íntim os, então segurou Sarah pelos

om bros, sorridente.

— Com o está se sentindo hoj e, Sarah? — perguntou. — Tenho certeza deque precisava dorm ir.

— Estou bem — balbuciou a m enina.

— Quer ver o seu cavalo enquanto esperam os Monsieur Varj us? Baucherpassou um a noite m uito confortável. Acham os que ele deve ser forte. Estálogo

ali…

Ela tinha com eçado a conduzi-los até o bloco quando Sarah a interrom peu:

— Não — respondeu. Um silêncio breve e constrangedor se instalou. — Eunão quero. Não agora.

O tom de desculpa de Mac foi perceptível:

— Acredito que Sarah deva querer falar logo com o Grand Dieu.

O sorriso de Madem oiselle Fournier não se abalou.

— Claro que sim , eu devia ter pensado nisso. Poderiam m e acom panhar?

As paredes da sala eram tom adas de fotografias, certificados e m edalhas.

Natasha observou Mac exam inar cada im agem com atenção.

Monsieur Varj us entrou com o se chegasse de outra tarefa m ais im portante.

Trouxe consigo outro hom em , que apresentou com o Monsieur Guinot, algoa ver com a adm inistração do curso. Sarah se sentou entre ela e Mac.Natasha reparou que a m enina parecia ter encolhido, com o se houvessedecidido ocupar m enos espaço no m undo. Natasha fez m enção de segurar am ão dela, m as se conteve.

Desde que acordara naquela m anhã, Sarah tinha voltado a erguer o m uro ao

redor de si. A vulnerabilidade do dia anterior desaparecera.

O Grand Dieu estava vestindo seu uniform e preto, as botas m uito brilhantes,o cabelo suado, que denunciava as horas anteriores passadas em cim a de umcavalo. Ele se sentou a sua m esa de trabalho e exam inou Sarah por uminstante, com o se m ais um a vez estivesse surpreso por um a criança daqueletam anho ser responsável pelo que ele havia testem unhado no dia anterior.Ele explicou em um inglês carregado de sotaque que Le Cadre Noir nãoaceitava m ais do que cinco novos integrantes a cada ano, em geral apenasum ou dois. Havia um exam e, supervisionado por alguns dos cavaleiros mais experientes do país, para o qual a idade m ínim a era dezoito anos. Paraser aceita, além de passar em todas as provas, ela teria que ser cidadãfrancesa.

— Sarah, você pode ser, se nasceu na França — observou Natasha.

Sarah não disse nada.

— Fora isso, Madem oiselle, eu gostaria de dizer que o que fez foi magnífico.

Você e o seu cavalo. “Um bom cavalo faz os quilôm etros ficarem curtos.”Sabe quem disse isso? Seu George Eliot. — O idoso se debruçou na m esa.— Se você satisfizer os requisitos do nosso sistem a, não há m otivo para,daqui a alguns anos, você e seu cavalo não voltarem para cá. Você tem tantohabilidade quanto coragem . Conseguir fazer aquilo na sua idade é… — elesacudiu a cabeça — …

algo que ainda tenho dificuldade em aceitar. — Ele olhou para as próprias mãos.

— Tam bém gostaria de lhe dizer que o seu avô foi um ótim o cavaleiro.Senti m uito por ele ter ido em bora. Acredito que teria se tornado um maîtreécuyer.

Ele ficaria m uito orgulhoso da sua habilidade.

— Mas você não vai m e aceitar.

— Madem oiselle, eu não tenho com o acolher um a m enina de quatorzeanos

aqui. Você precisa entender.

Sarah desviou o olhar, m ordendo o lábio.

Mac falou:

— Sarah, você ouviu o que Monsieur Le Grand Dieu disse. Ele a achatalentosa. Talvez nós possam os encontrar um j eito para você e Boocontinuarem treinando e talvez um dia voltem para cá. Tash e eu querem os ajudar.

Sarah olhava para os tênis m uito brancos, que Mac com prou naquela m anhãj unto de um a m uda de roupa. Um longo silêncio se instalou.

Do lado de fora, Natasha escutava cascos no concreto, um relincho distante.

Sarah, por favor, diga alguma coisa.

A m enina encarou o Grand Dieu.

— Pode ficar com o m eu cavalo? — indagou ela.

— Com o? — O idoso piscou, estupefato.

— Pode ficar com o m eu cavalo? Baucher?

Natasha olhou para Mac e viu a própria confusão refletida no rosto dele.

— Sarah, você não vai querer abrir m ão de Boo.

— Não estou falando com você — retrucou ela com firm eza. — Estoufalando com ele. Quer ficar com o cavalo?

Os olhos do idoso se dirigiram aos de Natasha.

— Não sei se é o m om ento para…

— Acha que ele é talentoso? Est-ce que vous pensez qu’ il est bon?

— Mais oui. Il a courage aussi, c’est bien.

— Então dou o cavalo para você. Não quero m ais ele.

A sala ficou em silêncio. O hom em do adm inistrativo m urm urou algo noouvido do Grand Dieu.

Natasha se inclinou na direção deles.

— Senhores, acredito que Sarah ainda estej a m uito cansada… não acho queela…

— Pare de explicar o que eu quis dizer! — A voz dela preencheu a salinha.—

Estou dizendo que não quero m ais ficar com ele. Monsieur pode ficar. Querficar com ele? — O tom de voz dela era insistente, im perioso.

O Grand Dieu observou Sarah com cautela, com o se avaliasse sua seriedade.

Ele franziu a testa.

— É isso que você quer, de verdade? Entregá-lo ao Le Cadre Noir?

— É.

— Então, sim , eu aceito, agradecido, Madem oiselle. Ele claram ente é umcavalo de enorm e talento.

Algo em Sarah pareceu relaxar. Ela havia trincado o m axilar com tanta forçaque dava para Natasha ver o contorno de um m úsculo na bochecha dela.Sarah endireitou os om bros e se virou para ela.

— Certo. Podem os ir agora?

Foi com o se todos estivessem paralisados. Mac ficou de queixo caído.Natasha tinha com eçado a se sentir enj oada.

— Sarah… esta é um a grande decisão. Você am a aquele cavalo. Até eu seidisso. Por favor, pense um pouco sobre o assunto. Você passou por m uita…

— Não. Eu não preciso pensar. Só quero que alguém , pelo m enos um a vezna vida, m e escute. Boo ficará aqui. E se vam os voltar, quero ir agora.Agora —

repetiu ela, j á que ninguém se m oveu. — Ou então vou sozinha.

Foi a deixa de que precisavam . Todos se levantaram ao m esm o tem po,Mac lançou um olhar confuso para o idoso enquanto seguia Sarah para a luzdo sol.

— Madam e — disse Le Grand Dieu quando estavam a um a distância emque Sarah não conseguiria ouvir. Pegou a m ão de Natasha. — Se ela quiservisitá-lo, ou m esm o se m udar de ideia, tudo bem . Ela é j ovem . Muitacoisa aconteceu…

— Obrigada — disse Natasha. Ela teria dito m ais, porém algo ficou preso nofundo de sua garganta.

Ele olhou pela j anela, para onde Sarah estava ao sol, com os braçoscruzados, chutando um a pedra.

— Ela é igualzinha ao avô.

* * *

A chuva com eçou a cair ininterruptam ente pouco depois de deixarem Saumur, com as nuvens de tem pestade form ando um bloco assustador nohorizonte e indo na direção deles. Seguiram no carro em silêncio. O automóvel de Mac ia abrindo cam inho pela água acum ulada e ele prestava atençãona estrada.

Natasha quase sentia invej a dele: o silêncio no carro pequeno havia setornado opressivo, o tem po que tinha para ficar sozinha com seus pensamentos era indesej ado. De vez em quando, ela olhava no espelho do para-sol evia o reflexo da silhueta m agra no banco de trás, que olhava para o cenário

que passava. O

rosto de Sarah estava im passível, m as o ar de tristeza que em anava dela eratão esm agador que im pregnava todo o carro. Duas vezes, Natasha tentaradizer a Sarah que não era tarde dem ais, que podiam voltar para pegar ocavalo, m as na prim eira vez Sarah a ignorou e, na segunda, tapou osouvidos com as m ãos.

Natasha ficou tão perturbada com a atitude da m enina que sua voz sum iu.

Dê tem po a ela, repetia para si m esm a. Coloque-se no lugar dela. Elaperdeu o avô, o lar. Mas Natasha não conseguia com preender aquilo: por queum a m enina que lutara tanto para ficar com seu cavalo, a única coisa que lherestava no m undo, sua conexão com o passado e talvez com o futuro, abririam ão dele assim com tam anho desapego?

Ficava lem brando os últim os m inutos da visita ao Le Cadre Noir. O GrandDieu os havia acom panhado até o estábulo.

— Eu gostaria que você visse o seu cavalo antes de ir em bora, Sarah —pediu

ele. — Para garantir que considera a condição dele satisfatória.

Natasha entendera a m otivação dele: o Grand Dieu achava que a m enina mudaria de ideia ao ver Boo, que seria forçada a contem plar os verdadeirosdesdobram entos de sua decisão.

Mas Sarah cam inhara com certa relutância na direção do estábulo e parou aalguns passos de distância, longe dem ais para ver direito por cim a da portaalta.

— Por favor — suplicou ele. — Vej a com o Boo parece m elhor esta manhã.

Vej a os curativos que o nosso veterinário fez nele.

Vam os lá, Sarah, im plorara Natasha em silêncio. Acorde. Vej a o que estáprestes a fazer. Ela j á não se incom odava m ais com a perspectiva de se

responsabilizar por Boo. Àquela altura, ela teria feito qualquer coisa,qualquer coisa m esm o para aliviar o sofrim ento da m enina. Mas Sarah sódeu um a olhada rápida no trabalho do veterinário. Mesm o quando o cavaloenfiou a cabeça por cim a da porta e em itiu um som de cum prim ento queparecia em anar das profundezas de sua barriga, ela não se aproxim ou dele.Com os om bros rígidos, as m ãos enfiadas um pouco m ais fundo nos bolsose depois com o m ais discreto dos acenos de cabeça na direção do GrandDieu, Sarah dera m eia-volta e fora para o carro enquanto o cavalo, com asorelhas eriçadas, procurava por ela.

Não eram apenas Sarah e suas perdas que preocupavam Natasha. Enquanto achuva caía, escondendo as luzes de freio dos veículos à frente e cam uflandoa estrada, ela se pegou observando as m ãos de Mac ao se aproxim arem deCalais.

Quando saíssem do carro dele na Inglaterra, estaria tudo acabado para ela também . Haveria um acordo para ver quem ocuparia a casa nas últim as semanas antes da venda, algum as negociações sobre as questões financeiras eentão ele iria em bora para sua nova casa, e ela ficaria sozinha, recolhendo oscacos do que havia restado de sua vida. Ela não tinha nada. Havia perdido acasa que adorava, colocado sua carreira em risco e destruído um potencialrelacionam ento. Havia perdido o hom em que am ava. Foi terrível perceberque não queria m ais a vida que se estendia à sua frente.

Natasha fechou os olhos. Quando os abriu, observou a cidade abaixo daestrada, avistou um a m enina andando de bicicleta, inclinada, m ovendo-sepela rua vazia com um a graça determ inada que não com binava com o tempo chuvoso. Natasha de repente se lem brou da viagem de trem , m esesantes, quando vira um a m enina m ontada num cavalo que se apoiava naspatas traseiras em um a ruazinha de Londres. A im agem ficara gravada emsua m em ória não por ser tão im provável, m as sim pela calm a, pelasensação da m enina e do anim al trabalhando em harm onia. Mesm o em uma fração de segundo, Natasha havia percebido isso.

E então um a voz surgiu em sua m ente: o tom hostil e agudo de ConstanceDevlin, sua testem unha: Vai ser muito fácil Lucy seguir pelo caminhoerrado. É só pararem de escutá-la.

— Mac, pare o carro — disparou Natasha.

— O quê? — questionou Mac.

— Pare o carro. — Natasha só sabia que não podia perm itir que a viagemprosseguisse. Mac encostou e, quando olhou, confuso, ela saiu do carro eabriu a porta de trás. — Venha — disse para Sarah. — Você e eu precisam osconversar.

— A m enina se encolheu para longe dela, com o se estivesse louca. — Não—

disse Natasha, sem saber direito de onde vinham as palavras. — Nós não vamos sair daqui, Sarah, até você e eu conversarm os. Venha. Com igo.

Ela pegou a m ão da m enina e a puxou para fora do carro. As duas andaramna chuva até um café do outro lado da estrada. Ela ouviu a reclam ação deMac e a própria determ inação ao dizer a ele que as deixasse em paz.

— Certo.

Natasha puxou um a cadeira e se sentou. Não havia m ais nenhum cliente; elanem sequer sabia se o lugar estava m esm o aberto. Um a vez diante de Sarah,não sabia ao certo o que queria dizer. Só que não podia continuar naquelecarro, rodeada pela dor e pelo sofrim ento silencioso sem fazer alguma coisa.

Sarah lhe lançou um olhar de profunda desconfiança e se sentou ao seu lado.

— Certo, Sarah. Eu sou advogada. Passo a vida tentando prever o j ogo queas pessoas vão fazer, tentando estar um passo à frente delas. Sou m uito boaem avaliar pessoas. Costum o descobrir o que as m ove, m as, no seu caso,estou com dificuldade.

Sarah ficou olhando para a m esa. Natasha então continuou:

— Não consigo entender por que um a m enina que m entiu, roubou eenganou os outros para ficar com um cavalo, um a m enina que só tinha umobj etivo na vida, que girava em torno daquele cavalo, j ogaria tudo fora.

Sarah não disse nada. Virou-se para o outro lado com as m ãos apoiadas nos joelhos.

— Isto é algum tipo de birra? Acha que, se j ogar tudo para o alto, alguém vaim udar as regras para beneficiar você? Porque, se for isso, vou logo avisandoque não vão m udar nada. Aqueles hom ens trabalham de acordo comprincípios estabelecidos há trezentos anos. Não vão m udar nada por você.

— Nunca pedi que eles m udassem nada — explodiu Sarah.

— Então ok. Não acredita que estão sendo sinceros quando dizem que vocêserá boa o suficiente um dia? Não sei, talvez você não possa se dar aotrabalho de tentar?

A m enina não respondeu, por isso Natasha prosseguiu:

— É por causa do seu avô? Você tem m edo de não conseguir cuidar docavalo sem a aj uda dele? Nós podem os aj udá-la, Sarah. Sei que você e eunão com eçam os da m elhor m aneira, m as foi… foi porque nós não fom ossinceras um a com a outra. Podem os m elhorar isso.

Natasha esperou. Estava ciente de que parecia falar com um a cliente. Mas

não conseguia evitar. Essa é a m inha voz, disse em silêncio para si m esm a.É o m elhor que posso fazer.

Mas Sarah sim plesm ente ficou ali parada.

— Podem os ir para casa agora?

Natasha fechou os olhos com força.

— O quê? É isso? Você não vai dizer nada?

— Só quero ir em bora.

Natasha sentiu um a onda de irritação que lhe era fam iliar. Por que você temque dificultar tanto as coisas, Sarah?, teve vontade de gritar. Por que está tãodeterm inada a se m agoar? Mas, em vez disso, respirou fundo e disse, com

toda a calm a:

— Não. Não podem os ir em bora.

— O quê?

— Eu sei quando alguém está m entindo e sei que você está m entindo para mim . Então, não. Não vou levar você a lugar nenhum até m e contar o que estáacontecendo.

— Você quer a verdade.

— Quero.

— Você quer conversar sobre a verdade. — Sarah deu um a risada am arga.

— Quero.

— Porque você sempre diz a verdade. — Assum ira um tom de deboche.

— O que você quer dizer com isso?

— Hum … tipo que você ainda está apaixonada por Mac, m as não contapara ele? — Sarah indicou com a cabeça o carro onde Mac, que m al era vistopela j anela lavada pela chuva, exam inava um m apa da estrada. — É tãoóbvio que chega a ser ridículo. Nem no carro você sabe o que fazer quandoestá perto dele.

Vej o você olhando discretam ente para ele. O j eito com o vocês se esbarramo tem po todo sem querer. Mas você não conta para ele.

Natasha engoliu em seco.

— É com plicado.

— Sim , é com plicado. Tudo é com plicado. Porque você sabe, assim com oeu… — A voz dela falhou. — Você sabe, assim com o eu, que às vezescontar a verdade piora as coisas em vez de m elhorar.

Natasha olhou para o outro lado da estrada, para Mac.

— Você tem razão — disse, enfim . — Certo? Você tem razão. Mas, sej a láo que sinto por Mac, eu consigo lidar com isso. Quando olho para você,Sarah, vej o alguém que está j ogando fora um a chance na vida. Vej oalguém que está criando m ais sofrim ento. — Ela se inclinou para a frente.— Por quê, Sarah? Por que está fazendo isso consigo m esm a?

— Porque é o que tenho que fazer.

— Não, não é. Aquele hom em disse que você poderia se tornar boa obastante

daqui a alguns anos se…

— Daqui a alguns anos.

— É, daqui a alguns anos. Sei que parece um tem pão quando som os j ovens,m as vai passar voando.

— Por que você não pode sim plesm ente deixar para lá? Por que não podeconfiar que vou tom ar a decisão certa?

— Porque esta não é a decisão certa. Você está destruindo o seu futuro.

— Você não entende.

— Eu entendo que você não precisa elim inar todo m undo da sua vida sóporque está sofrendo.

— Você não entende.

— Ah, acredite em m im , eu entendo, sim .

— Eu tive que abrir m ão dele.

— Não, estou lhe dizendo que não tinha que fazer isso. Meu Deus! O que oseu avô queria m ais do que tudo para você? O que ele diria se soubesse o quevocê fez?

Sarah a encarou de supetão. Sua expressão era feroz. com eçou a berrar:

— Ele entenderia!

— Não tenho certeza de que ele…

— Eu tinha que abrir m ão dele. Era o único j eito de protegê-lo!

Um silêncio repentino se instalou. Natasha ficou im óvel.

— Protegê-lo?

A m enina engoliu em seco. Então Natasha viu: um brilho no canto dos olhosde Sarah, um trem or nos nós dos dedos esbranquiçados. Quando voltou afalar, seu tom de voz era suave.

— Sarah, o que aconteceu?

De repente, de m aneira abrupta, Sarah com eçou a chorar, um som terrível,carregado de pesar. Chorou com o Natasha havia chorado trinta e seis horasantes, com soluços sufocantes de perda e desolação absolutas. Natashahesitou apenas por um instante, então puxou a m enina para perto, abraçando-a com força, m urm urando palavras de conforto.

— Está tudo bem , Sarah. Tudo bem .

Mas, quando os soluços foram dim inuindo e Sarah com eçou a sussurrar uma história assom brosa de solidão, de segredos, de dívida, de m edo e de umcam inho som brio que não tom ou por um triz, os olhos de Natasha seencheram de lágrim as.

* * *

Através do para-brisa em baçado, Mac observava Natasha abraçando Sarahcom tanta força que havia um a espécie de fúria naquilo. Ela com eçara afalar,

assentindo, e, sej a lá o que estivesse dizendo, a m enina concordava. Macnão sabia o que fazer; parecia claro que Natasha tinha algum plano em m

ente. Ele não queria interrom per se ela estivesse conseguindo arrancar alguma explicação sobre as atitudes da m enina nos últim os três dias.

Então, ficou esperando no carro, observando, aguardando, na esperança deque Natasha tivesse algum j eito de m elhorar as coisas. Pois ele sabia m uitobem que não conseguiria fazer isso.

Um a m ulher se aproxim ou da m esa, provavelm ente a proprietária.Natasha pediu algo e, enquanto Mac observava, ela se virou para ele. Fizeramcontato visual, os olhos dela de repente ficaram brilhantes, e então fez sinalpara que ele se j untasse às duas.

Ele saiu do carro, trancou a porta e foi até onde elas estavam sentadas, embaixo do toldo. As duas sorriam , tím idas, com o se constrangidas por teremsido pegas tão próxim as um a da outra. Sua m ulher, sua quase ex-m ulher,pensou Mac, com um a pontada, estava linda. Quase triunfante.

— Mac — disse Natasha. — Houve um a m udança de planos.

Ele olhou para Sarah, que pegava algo na cesta de pão à frente.

— Essa m udança de planos incluiria um cavalo? — perguntou enquantopuxava um a cadeira.

— Incluiria, com certeza.

Mac se sentou. Atrás deles, o tem po estava abrindo.

— Graças a Deus por isso.

* * *

Por todo o cam inho de volta para a Inglaterra, Natasha ficou com Sarah nobanco de trás, as duas conversando bem baixinho, erguendo a voz de vez emquando para incluir Mac. Não voltariam para Saum ur; Sarah disse a eles queconhecia um hom em em quem confiava para trazer Boo de volta. Tinhamligado para Le Cadre Noir, que, para o alívio visível de Sarah, parecia estaresperando a ligação deles. O cavalo estava bem . Ficaria em segurança ali atéalguém ir buscá-lo. Não, disse Natasha, não achava que Sarah fosse voltar

pessoalm ente…

— Precisam os organizar um enterro — explicou, baixinho.

De vez em quando, Mac olhava para as duas cabeças, organizando,conversando, aparentem ente em perfeita com unicação. Sarah ficaria comNatasha. Estavam considerando todas as opções: internatos (Natasha ligoupara a irm ã, que ouvira falar de um que aceitava cavalos) ou estábulos longedaquela área de Londres. Não haveria m ais problem as com Sal, garantiu-lheNatasha.

Sem a assinatura de Sarah no contrato de aluguel, a alegação dele de quetinha direito sobre o cavalo era infundada, e Natasha enviaria um a cartadizendo-lhe exatam ente isso e instando-o a m anter distância. E Boo ficariaem segurança.

Encontrariam outro tipo de vida para ele. Algum lugar onde pudesse correrpor cam pos verdej antes.

Natasha, pensou Mac, estava fazendo o que sabia fazer m elhor: organizar.

Hora ou outra, quando Henri Lachapelle era m encionado, o rosto de Sarah sefechava um pouco e Natasha estendia a m ão para apertar a dela ou só paralhe dar um tapinha no om bro. Pequenos gestos de gentileza para lhe dizer,repetidas vezes, que não estava sozinha.

Mac assistiu a tudo isso pelo retrovisor, sentindo sua gratidão abafada pelaestranha sensação de exclusão. Sabia que Natasha não o estava deixando defora de propósito, que independentem ente do que tivesse acontecido entre osdois ele tam bém m anteria Sarah em sua vida. Talvez essa fosse a m aneiradelicada de Natasha dizer a ele que a noite que passaram j untos fora um erro,que, longe da atm osfera intensa da busca, ela queria voltar à existência m aisestável com Conor. O que fora aquilo, afinal? Um a espécie de prenúncio dofim ? Um desfecho? Ele não tinha coragem de perguntar. Disse a si m esm oque às vezes as ações falavam m ais do que as palavras, e, nesse aspecto, oque Natasha dizia estava bem claro.

Quando chegaram a Calais, Sarah enfim telefonou para o hom em que disse

que poderia transportar o cavalo dela de volta para a Inglaterra. Ela pegou ocelular de Natasha, foi para o outro lado da pista e ficou ali por um tem po,com o se precisasse que a conversa fosse particular. Mac ficou surpreso emcom o Sarah pareceu tranquila com a perspectiva de deixar Boo em outropaís, até refletir sobre o assunto: não havia nenhum outro lugar (a não sercom ela) em que Sarah gostaria que Boo estivesse.

— Você está m uito calado — observou Natasha enquanto Sarah falava aotelefone a certa distância, cam inhando entre os carros na fila para a balsa,pressionando a m ão esquerda na orelha.

— Acho que não há nada que eu precise dizer. Vocês duas parecem terresolvido tudo.

Natasha então lhe lançou um olhar confuso, talvez percebendo o tomexaltado de sua voz.

— Pronto — disse Sarah ao voltar antes que um deles pudesse dizer algum acoisa. — Thom quer falar com você.

Sarah ficou perto de Natasha quando ela pegou o celular, com o se a distânciaentre as duas tivesse sido elim inada.

Mac observou Natasha falando, seus pensam entos estavam tão densos e complexos que ele não conseguia entender direito o que ela dizia. Algo havia mudado nela, seu rosto estava m ais suave, m ais ilum inado. A m aternidadelhe fora negada, m as era com o se Natasha houvesse encontrado um novopropósito.

Mac se virou para o outro lado, de repente ciente de que não conseguiaesconder os próprios sentim entos.

— Não, realm ente não há necessidade… Tem certeza? — perguntou ela, eentão, depois de um a pausa: — É, eu sei.

Ele voltou a se virar para ela quando encerrou a ligação. Natasha olhava paraSarah.

— Ele não quer aceitar nenhum pagam ento. Não quer nem discutir. Disseque vai para lá no m eio da sem ana e então trará Boo de volta.

O sorriso de Sarah foi breve e surpreendente, com o se estivesse tãoestupefata quanto Natasha com o gesto de generosidade.

— Mas tem um porém — com pletou Natasha. — Ele disse que, em troca,você tem que convidá-lo para a sua prim eira apresentação.

A beleza da j uventude, pensou Mac m ais tarde, era que a esperança aindapodia ser restaurada. Às vezes só eram necessárias algum as palavras deincentivo para reacender um a fagulha da confiança de que o futuro poderiaser m aravilhoso, em vez de um a série infindável de obstáculos e decepções.

— Parece um bom negócio — observou Natasha.

Sarah assentiu.

Ah, se aquilo tam bém valesse para os adultos, pensou Mac ao se dirigir parao carro.

* * *

Natasha rem exeu a chave na fechadura, abriu a porta da frente para ocorredor escuro e acendeu a luz. Passava um pouco da um a da m anhã eSarah, m orrendo de sono, entrou e subiu a escada no piloto autom ático, como se estivesse em casa.

Natasha foi atrás dela, arrum ou a cam a para ela, entregou-lhe um a toalhalim pa e, finalm ente, quando teve certeza de que a m enina ia dorm ir, desceua escada devagar.

Era a prim eira vez em quarenta e oito horas que Natasha se sentia confiantede que Sarah não voltaria a fugir. Algo tinha m udado; houvera um a mudança sísm ica entre elas. Natasha percebeu que, apesar da responsabilidadeque acabara de assum ir, apesar de saber que estava assum indo vários anosde com prom isso financeiro e um a m ontanha-russa em ocional, ela sentia— em algum nível profundo — um a espécie de anim ação que não sentia

havia anos.

Mac estava no sofá da sala com as pernas com pridas esticadas, os pés nopufe estofado de linho, as chaves do carro ainda na m ão. Estava com osolhos fechados, e Natasha se perm itiu olhar por um tem po para ele,absorvendo as roupas am assadas, a presença m asculina indiscutível. Ela seforçou a desviar o olhar. Continuar olhando era m asoquism o.

Ele bocej ou, ergueu o corpo e Natasha fingiu estar ocupada, com m edo deque ele sentisse seu escrutínio. Reparou que o chão estava forrado defotografias, inúm eras fileiras de cópias de vinte e cinco por trinta e oitocentím etros,

alinhadas sobre o assoalho de m adeira polida onde ele devia tê-las deixadodias antes, na m anhã em que descobrira que Sarah tinha desaparecido. Foiquando percorreu com o olhar as séries de im agens em branco e preto, oscavalos no m eio de um m ovim ento, os tons brilhantes do rosto velho eenrugado de Cowboy John, as im agens que anunciavam a sede renovada deMac por aquilo que ele fazia m elhor, que Natasha se deteve em um aespecífica.

A m ulher estava ao celular. Sorria, alheia às atenções da câm era, rodeadapelos galhos nus de um j ardim , com a luz baixa e suave atrás de si. Ela também era bonita: o sol de inverno refletia em sua pele, seus olhos estavamenternecidos com um prazer desconhecido. O olhar da câm era não era umreflexo frio de um a im agem capturada: era íntim o, um conluio secreto coma pessoa fotografada.

Natasha observou a im agem por vários segundos antes de perceber que a mulher era ela. Parecia um a versão idealizada dela, alguém que não conheciam ais, que acreditava estar enterrado havia m uito tem po no am argor dodivórcio.

Sentiu algo dentro de si se apertar e se rom per.

— Quando você tirou esta foto?

Mac abriu os olhos.

— Há algum as sem anas. No Kent.

Ela não conseguia desgrudar os olhos da im agem .

— Mac? É assim que você m e vê?

Natasha enfim teve coragem de olhar para ele. O hom em à sua frente tinhanovas rugas de tristeza no rosto; sua pele estava pálida de cansaço, os lábiostensos com o se aceitassem a decepção de antem ão. Ele assentiu.

O coração de Natasha com eçou a bater m ais rápido. Pensou em Henri, emFlorence, em Sarah, confessando toda a verdade, cheia de coragem , para uma desconhecida em um dia chuvoso.

— Mac — disse, sem tirar os olhos da foto. — Preciso contar um a coisa paravocê. Preciso contar m esm o que acabe sendo a coisa m ais idiota e m aishum ilhante que j á fiz na vida. — Ela respirou fundo. — Eu am o você. Sempre am ei, e, m esm o que sej a tarde dem ais para nós dois, preciso que vocêsaiba que sinto m uito. Preciso que saiba que deixar você partir será para sempre o m aior erro da m inha vida. — A voz dela tinha com eçado a falhar, tomada pela falta de ar. Natasha segurou a foto nas m ãos trêm ulas. — Então,agora você sabe. E, se não m e am a, tudo bem . Porque eu contei a verdade.Saberei que fiz tudo que podia, e, se você não m e am a, não há absolutamente nada que possa m udar isso.

— Então ela concluiu, apressada: — Na verdade, não estará tudo bem . Naverdade, vai m e m atar um pouquinho. Mas, m esm o assim , eu precisavacontar para você.

O habitual charm e descontraído dele o abandonara.

— E Conor? — questionou, quase bruscam ente.

— Acabou. Nunca foi…

— Caralho — disse. Então se levantou. — Caralho.

— Por que você…? — Ela se levantou, chocada com a explosão dele, oxingam ento que não era de seu feitio. — O que você…

— Tash — disse ele, pisando nas fotografias, que deslizaram pelo chãoencerado.

Mac estava a centím etros dela. Natasha prendeu a respiração. Estava tãopróxim o que dava para sentir o calor de sua pele. Não diga que não, ordenouela em silêncio. Não faça alguma piada horrível nem encontre uma razãodiplomática para ir embora. Não vou conseguir fazer isso pela segunda vez.

— Tash. — Ele pegou o rosto dela com am bas as m ãos. Sua voz era grave,falhada. — Minha m ulher.

— Quer dizer…

— Não m e afaste de novo. — As palavras dele eram quase raivosas. — Nãom e afaste.

Natasha tinha com eçado a pedir desculpas, m as as palavras se perderam nosbeij os, nas lágrim as. Mac a pegou no colo e ela se enganchou nele com aspernas, sua pele contra a dele, o rosto enterrado em seu pescoço.

— O cam inho de volta será longo — observou Natasha, m uito m ais tarde,quando subiram a escada para o quarto, com ela segurando dois dedos dele.—

Você realm ente acha que podem os…

— Um passo de cada vez, Tash. — Mac levantou a cabeça na direção da menina que dorm ia acim a deles. — Mas pelo m enos sabem os que é possível.

EPÍLOGO

“Um cavalo é uma beleza. (…) Ninguém se cansa de olhar para ele enquantose exibe em seu esplendor.”

XENOFONTE, SOBRE EQUITAÇÃO

O traj eto da casa que Mac construíra na ruazinha atrás de Gray ’s Inn Roaddem orava quarenta e cinco m inutos durante o dia, m ais trinta m inutos se

fosse a hora do rush. Natasha olhou para o relógio, calculando que só tinhaalguns m inutos para term inar com a papelada até a hora de sair.

— Vai conseguir fugir do trânsito?

Linda chegou com um a pilha de docum entos que precisavam ser assinados.

— Provavelm ente, não — respondeu Natasha. — Não em um a sexta-feira.

— Bem , tenha um bom fim de sem ana, de todo m odo. E não se esqueça doadvogado novo que chega na segunda, às nove. O especialista em im igração.

Natasha se levantara e ia colocando as coisas na bolsa.

— Eu não esqueci. Não fique até m uito tarde, ok?

— Vou ficar m ais um pouco. Quero organizar as pastas. Aquele tem poráriobagunçou todo o m eu arquivo na sem ana passada.

O escritório Macauley e Associados enfrentara um início difícil, m as, depoisde quase um ano e m eio, Natasha com eçava a achar que a decisão de abrir opróprio escritório tinha sido acertada. Não havia m uito sentido em ficar noDavison Briscoe; não era só pelo fato de Conor ter recebido tão m al a notícia—

talvez ele acreditasse que Natasha e Mac estavam j untos m uito antes devoltarem —, m as porque as feridas do caso Persey ficaram visíveis na maneira com o Richard não a tratava m ais com o possível sócia. Na verdade,desde que Natasha voltara, ele m al parecia vê-la com o um a adição valiosapara o escritório. Quando descobriu que Richard convidava Ben para almoçar com m ais frequência do que falava com ela, Natasha percebeu queestava na hora de cair fora.

Graças a Deus por Linda. Ter sua assistente de confiança abandonando obarco com ela para adm inistrar seu escritório a m anteve de pé, não apenasdo ponto de vista profissional, m as tam bém em ocional. Natasha suspeitavade que Davison Briscoe quase sentira m ais falta de Linda Bly th-Sm ith doque dela.

— Bom fim de sem ana, Lin.

Natasha pendurou o casaco no braço, pronta para descer a escada apressada.

— Você tam bém . Espero que tudo corra bem .

O trânsito da Gray ’s Inn Road j á estava pesado, com as filas serpenteandoaté

o West End. Ela levou alguns m inutos para vê-lo, encostando do outro ladoda estrada. Olhou para os dois lados da estrada e então correu entre os carrosque se m oviam devagar, segurando o m onte de papel no peito.

— Bem na hora — disse Mac quando ela se inclinou para beij á-lo. — O

serviço está bom para você?

— Você é m aravilhoso. — Natasha largou os papéis no piso dos bancostraseiros. — E você — disse ela, virando-se para o bebê radiante nacadeirinha no banco de trás — suj ou todo o casaco do seu pai de banana.

— Está de brincadeira — disse Mac, olhando para trás. — Com o pôde fazerisso, cara?

— Ela vai ficar m uito orgulhosa de nós.

Natasha riu ao colocar o cinto de segurança e olhar ao redor, para a lata delixo am bulante que era o carro de Mac.

A presença de Mac e Natasha em tais eventos tinha se tornado piada. Os doisinvariavelm ente chegavam no carro cada vez m ais com balido de Mac, comresquícios de golfadas nas roupas ou com o leve cheiro do que tivesseexplodido na fralda no cam inho. Rodeados pelos quatro por quatroreluzentes e pelos enorm es Mercedes dos outros pais, os dois perceberamque pareciam alunos travessos. No dia que haviam levado Cowboy John junto para visitar (nada de m aconha, nem um pouquinho, fizeram -no prometer), Mac se deliciara especialm ente em apresentá-lo à m ulher do diretorcom o “o antigo professor de Sarah”.

— Ensinam m uitas acrobacias de circo aqui? — perguntara Cowboy John,inocente. E então, quando a m ulher olhou para ele sem entender nada, completou: — Moça, gostaria de com prar algum as bandej as de abacates bemgostosos?

John m orava a um a hora da escola de Sarah, em um chalé de tábuas brancascom seus dois cavalos idosos em um cam po próxim o, e continuavavendendo frutas e legum es de procedência incerta aos passantes. QuandoSarah voltou da França, ele pedira desculpas a ela, estranham enteconstrangido, dizendo que a havia decepcionado. Havia decepcionado oCapitão. Ainda não entendia m uito bem o que Sam Hill Sal aprontara; Johnpagara a dívida do Capitão e Sal sabia disso. Sarah olhara para Natasha.

— Eu devia ter contado para você — disse, baixinho. — Eu devia ter contadopara alguém .

Em um acordo tácito, nunca m ais voltaram a falar do estábulo deSparepenny Lane.

— Então, o que é m esm o que vam os fazer? — perguntou Mac.

O trânsito percorria lentam ente Westway, despej ando o trânsito de Londrespara os subúrbios verdej antes e além .

— É um a… — Natasha pegou a carta na bolsa — …com em oração de fimde

ano para os alunos m ais talentosos. Vam os ouvir alguns tocando instrumentos, um a leitura de poesia… — Mac suspirou — …e Sarah cantando. Não,é sério —

afirm ou quando ele virou a cabeça. — Sarah…

— …vai fazer o que Sarah faz. Nem vai reparar na nossa existência —

interrom peu Mac, entrando na fila de carros. — Quando chega perto de Boo,a cabeça daquela m enina vai para algum lugar nas nuvens.

* * *

Todo m undo conhecia a fala das m ães que trabalham fora sobre a impossibilidade de equilibrar a criação das crianças e o trabalho, pensouNatasha enquanto atravessavam a cidade devagar. Mas era im possível assimilar a agitação do m alabarism o enlouquecedor até se estar nessa situação. Nocaso de Natasha, ela acolhera duas crianças e um cavalo no período de novem eses. A grande ironia foi, depois de todos aqueles anos de conselhos sobrereduzir os níveis de estresse, beber m enos, pensar em coisas positivas e fazersexo em horários propícios, ela ter engravidado durante os três dias m aisatribulados e cheios de bebida de sua vida.

Mas os dois concordaram , ali deitados, um de cada lado dele, olhando paraas pernocas gorduchas, as bochechas, o cabelo igual ao de Mac, que essa eraa beleza daquilo. Ele foi gerado porque tinha de ser.

O chalé de Kent havia m uito tem po não era m ais usado, substituído por umnovo chalé alugado; a casa de Londres não fora vendida. Mac, Natasha e obebê passavam os dias úteis lá enquanto Sarah estava em um internatoexclusivo logo depois da extrem idade noroeste da estrada M25, um dospoucos no país que, além de aceitar cavalos, tam bém ofereciam treinam entono nível de que Sarah precisava. O preço era absurdo, m esm o com a bolsade estudos dela.

— Mas, ei — dizia Mac quando a conta do sem estre chegava e elesdesabafavam um pouco à m esa da cozinha —, ninguém disse que ter um afam ília saía barato.

Eles não se im portavam de gastar dinheiro. No internato, Sarah tinhadesabrochado, era igual a todo m undo em m eio aos outros adolescentes cujas fam ílias estavam ausentes por diversos m otivos. E, apesar de nunca ter sedestacado academ icam ente, ela havia se esforçado, feito am igos e, o m aisim portante, adquirido um leve brilho de felicidade.

Nos fins de sem ana, quando iam para o chalé alugado a seis quilôm etros daescola, e Sarah ficava com eles, as conversas eram dom inadas não apenaspelos relatos sobre o com portam ento de Boo na arena, suas váriasconquistas ou pequenas decepções, m as tam bém cada vez m ais pelasatividades dos am igos dela. Sarah nunca seria um a m enina das m ais

gregárias, porém levara algum as am igas para conhecê-los. Adolescentesbacanas, educados, focados, j á pensando

na vida depois da escola.

Da m esm a m aneira, Sarah nunca seria a pessoa m ais aberta ou afetuosa:havia um a distância natural, um m uro que logo se erguia quando ela sesentia infeliz ou insegura. Mas, à vontade com eles no chalé, ela falava semparar de David, Helen e Sophie, e do cavalo de alguém que se recusou aentrar no trailer quando eles foram ao evento em Evesham , e Natasha e Mactrocavam um olhar de satisfação à m esa da cozinha. Tinham percorrido umlongo cam inho. Cada um deles.

* * *

O terreno da escola estava cheio de carros, com a pintura brilhante criandoum a colcha de retalhos reluzente de um dos lados do cam po de críquete.Pais e m ães cam inhavam pelo gram ado, as m ulheres de salto alto riam ,agarrando-se aos m aridos enquanto afundavam no solo. Sarah os vira antesm esm o que o guardador apontasse um a vaga para o carro de Mac. Correuna direção deles com a calça de m ontaria e a cam isa branca im aculadabrilhando.

— Vocês vieram — disse quando Natasha saiu do carro, sentindo a saia colarna parte de trás das pernas.

— Não perderíam os por nada — disse Mac, beij ando-a na bochecha. —

Com o você está, querida?

Mas Sarah j á estava abrindo a porta traseira do carro.

— Oi, Henry, m eu soldadinho! Olhe só para você! — Soltou o cinto desegurança dele e então o pegou no colo. Segurou-o à sua frente e sorriuquando ele tentou pegar seu cabelo. — Ele cresceu de novo!

— Sua cam isa vai ficar toda suj a de banana. Oi, querida. — Natasha deu umbeij o nela, percebendo que o bebê não era o único que tinha crescido. A cada

sem ana que a viam , Sarah ia se transform ando em m ulher. Havia pouco dam enina m agrinha que haviam conhecido. Estava m ais alta do que Natasha,tão sólida e reluzente quanto seu cavalo. — Então, estão preparados?

— Estam os. Boo está indo m uito bem . Aah, senti tanta saudade de você.Senti, sim .

Sarah abraçava Henry, causando a m esm a reação de alegria que sem predespertava nele.

Henry aglutinara a nova fam ília deles, pensou Natasha, com o sem pre fazia.

Quando tinham revelado a gravidez de Natasha a Sarah, várias sem anasdepois de terem se recuperado do choque, as assistentes sociais ficarampreocupadas de que ela pudesse se sentir excluída, que talvez aquiloagravasse a sensação dela de instabilidade. Mas Natasha e Mac achavam queaconteceria o contrário, e tinham razão. Tudo fora m uito m ais fácil comaquela pessoazinha que ela podia am ar incondicionalm ente.

Foram até a arena, onde os assentos j á estavam sendo ocupados. Um m eninode uniform e lhes entregou um program a com os eventos da noite. Ainterpretação de Sarah de Le Carrousel ganhou destaque, notou Natasha, comorgulho.

— Querem que eu cuide dele no fim de sem ana? — Sarah ia dizendo,soltando habilm ente os dedos de Henry de seu cabelo. — Eu não m e incomodo. Não tenho planos para este fim de sem ana.

— Achei que você tinha um a festa. — Natasha rem exia a bolsa em busca deum lenço um edecido. As m anchas de banana j á iam se form ando nos ombros cobertos de branco de Sarah. — Você não ia a algum lugar com as meninas da escola?

Foi um olhar m uito discreto, m as Mac o captou.

— Ops. O que foi?

— Com o assim ? Não posso m e oferecer para ficar de babá?

O tom de Mac era severo, m as tinha um tom de brincadeira.

— O que você está aprontando, m ocinha?

— Reservei lugares ótim os para vocês. Olhem , não guardei nenhum paraHenry, m as achei que vocês ficariam com ele no colo. Daqui, vão conseguirver tudo.

Mac hesitou.

— Vam os lá. O que foi?

Ele sem pre fora m elhor do que Natasha em decifrá-la. Sarah tentou pareceracanhada, m as estava radiante.

— Fui aceita no curso.

— Que curso?

— Em Saum ur. O curso de verão. Seis sem anas com Monsieur Varj us.Recebi um a carta hoj e de m anhã.

— Sarah, isso é incrível. — Natasha a abraçou. — Que bela conquista. Evocê achava que não tinha chance.

— Os professores daqui m andaram um CD com vídeos nossos e um a cartade recom endação. Monsieur Varj us disse na carta dele que viu sinais clarosde progresso. Ele, na verdade, escreveu pessoalm ente para m im .

— Bem , isso é m aravilhoso.

— Eu sei. — Sarah hesitou. — Mas é m uito caro. — Ela sussurrou a quantia.

Mac assobiou.

— Isso é um m onte de horas trabalhando com o babá.

— Mas tenho que fazer esse curso. Se m e sair bem , terei vantagem quandom e candidatar. Por favor! Eu faço qualquer coisa.

Natasha im aginou a m inivan que ela e Mac tinham analisado naconcessionária na sem ana anterior e então a viu desaparecer.

— Nós vam os dar um j eito, não se preocupe. Quem sabe sobrou um poucodo

dinheiro do seu avô…

— Mesm o? Mesmo?

Alguém a cham ava, com a voz se sobrepondo ao barulho da m ultidão. Saraholhou para trás, depois para o relógio e xingou baixinho.

— É m elhor você ir.

A orquestra estava afinando os instrum entos. Sarah entregou Henry paraNatasha, desculpou-se baixinho e saiu correndo na direção do estábulo.

— Obrigada! — berrou, acenando por cim a do público. — Nem sei com oagradecer! Eu pago de volta algum dia. De verdade!

Natasha deu um abraço bem apertado no filho enquanto a observava seafastar.

— Você j á pagou — disse, baixinho.

* * *

Sarah aj ustou a cintura, aprum ou o corpo e passou a m ão de leve nastrancinhas que passara a m anhã toda fazendo na crina de Boo. Daqueleespaço, atrás das telas im provisadas, dava para ver a plateia se aj eitando, eSarah flagrou Natasha entregando Henry a Mac e depois rem exendo nabolsa. Um a câm era. Viu quando Mac a pegou dela e sacudiu a cabeça numgesto carinhoso.

Sarah adorava as fotos de Mac: as paredes do seu quarto no internato estavamtom adas dessas fotos. Depois da m orte de Vô, Mac pegara todas as fotosantigas que encontraram no apartam ento de Sandown — fotos dela com aavó, antigas im agens em tom de sépia de Vô m ontado em Gerontius — e

fizera cópias, usando algum recurso digital para torná-las m ais nítidas, maiores, deixando o rosto de Vô m ais visível. No dia do enterro, ele e Natashahaviam em oldurado algum as e colocado no quarto dela para que asencontrasse quando voltassem para casa.

— Sabem os que não som os a sua fam ília original — tinham dito a elanaquela noite. — Mas gostaríam os de ser a segunda.

Sarah nunca perguntara por que haviam colocado o nom e do bebê de Henry,m as desconfiava que sabia o m otivo. Ele unia os dois lados da vida dela. Àsvezes ela até achava que via um pouco de Vô nele. Mesm o que não fizessesentido.

Ainda via Vô em toda parte: nas coisas que Boo aprendera; ouvia a voz deleem sua cabeça sem pre que m ontava. Olhe só, Vô, dizia a ele em silêncio.

O ar da noite estava im pregnado do cheiro forte da gram a recém -cortada,com um leve toque de m orango da tenda de chá arm ada atrás da arena.Houve um breve silêncio, então a orquestra com eçou a tocar, a m úsica deviolino com a qual tinham passado horas ensaiando. Sarah viu as orelhas deBoo se eriçarem ao reconhecer o som , sentiu o anim al aj ustar o peso embaixo dela enquanto se preparava para a tarefa que tinha pela frente.

Naquela noite, eles provavelm ente pediriam com ida fora para o j antar nochalé do outro lado do vilarej o. Mac brincaria com ela sobre m eninos eNatasha pediria aj uda para dar banho em Henry. Ela sem pre pedia com o seSarah estivesse fazendo um enorm e favor, apesar de as duas saberem que elaadorava dar banho no bebê. Em dois m eses, ela estaria na França.

Sarah de repente experim entou um a sensação de estar… se não no lugaronde deveria, então no lugar a que pertencia. Não poderia querer m ais.

Olhou para o Sr. Warburton, seu instrutor de m ontaria, que m urm urava asbatidas da m úsica enquanto segurava a rédea de Boo.

— Está pronta? — perguntou, olhando para ela. — Lem bre-se do que eudisse.

Calm a, em frente, direto e leve.

Sarah se sentou um pouco m ais ereta, pressionou as pernas no cavalo e saiucavalgando.

AGRADECIMENTOS

Este livro não teria sido possível sem a aj uda técnica e o apoio de váriaspessoas.

Gostaria de agradecer especialm ente a Nicola McCahill e ao advogado JohnBolch. Qualquer erro sobre o m undo j urídico é de m inha totalresponsabilidade ou foi fruto de algum aj uste necessário para o enredo.

Tam bém agradeço a Yolaine e Thierry Auger, do Château de Verrières emSaum ur, aos fotógrafos Mark Molloy e Andrew Buurm an, a Sheila Crowley,da Curtis Brown, a Caroly n May s, Auriol Bishop, Eleni Fostiropolous, LucyHale, da Hachette UK, a Linda Shaughnessy e Rob Kraitt, da AP Watt.

Sou grata tam bém a Annabel Robinson, da FMCM, a Hazel Orm e eFrancesca Best. A Cathy Runcim an pela tradução do francês, por servirvinho e pela am izade infinita, e a Hannah May s, Chris Luckley e Sony aPenney, pelas valiosas inform ações durante a prim eira viagem ao Le CadreNoir.

Estendo m eus agradecim entos a Drew Hazell, Cathy Scotland e JeannieBrice, além de a Barbara Ralph e John Alexander.

Aos diversos integrantes do Writersblock; vocês sabem quem são.

Tam bém agradeço a Sim on e Charlotte Kelvin, cuj a generosa doaçãobeneficente significa que vão aparecer de algum a form a no m eu próxim olivro.

À m inha fam ília, Lizzie, Brian Sanders e Jim Moy es, e m ais do que tudo aCharles, Saskia, Harry e Lockie. Cavalgar é pesquisar. De verdade.

* * *

Em 2007, li um a m atéria na revista Philadelphia Weekly, do j ornalistaSteve Volk, sobre um a m enina de quatorze anos cham ada Mecca Harris.Ela passava todo o tem po em que não estava na escola em um estábulourbano na Filadélfia, aprendendo o am or pelos cavalos e a habilidade de montar com a Philadelphia Black Cowboy s, instituição que oferece às criançasdos bairros m ais carentes da cidade a chance, por m eio dos cavalos, debuscar outro m odo de vida.

Ela tinha um a habilidade nata e determ inação, e foi escolhida para j ogarpolo contra Yale, com o tim e Work to Ride, form ado exclusivam ente pornegros. No segundo sem estre de 2003, ela recebeu a ficha de inscrição paraum a escola de polo de grande prestígio na Califórnia, m as nunca chegou apreenchê-la.

No dia 15 de outubro de 2003 Mecca Harris, a m ãe dela e o nam orado da mãe foram encontrados m ortos em casa, um crim e supostam ente ligado adrogas.

Essa história ficou na m inha cabeça não por causa das im agens com oventesde Mecca, um a j óquei pequenina e m agrinha, com as tranças visíveis sob ocapacete de m ontaria. Mas porque, apesar de a m inha vida não ter sido tãocheia

de privações quanto a dela, eu poderia ter sido aquela m enina. Passei m inhaadolescência em estábulos urbanos espalhados pelas ruas vicinais de Londres;m inhas arenas eram os parques locais. Os cavalos m e m antinham longe deconfusão (por m ais que os m eus pais discordassem ) e criaram um a paixãoque dura trinta anos.

Atualm ente m oro em um sítio. Tenho um cavalo nos cam pos verdej antes enão sob um arco de ferrovia. Mecca Harris tam bém deveria ter seus cam posverdej antes. Este livro é dedicado a ela e a crianças com o ela, para quem oscavalos podem ser um a saída.

SOBRE A AUTORA

© Stine Heilm ann

JOJO MOYES nasceu em 1969 e cresceu em Londres. Trabalhou com o jornalista por dez anos, nove deles no j ornal The Independent, de onde saiuem 2002 para se dedicar integralm ente à carreira de escritora. É autora de Aúltima carta de amor, Como eu era antes de você, A garota que você deixoupara trás, Um mais um, Baía da Esperança, O navio das noivas e Depois devocê, publicados pela Intrínseca. Como eu era antes de você, seu rom ance dem aior sucesso, ocupou o topo da lista de m ais vendidos em nove países e foiadaptado para o cinem a. Com m ais de 20 m ilhões de exem plares vendidosem todo o m undo, Joj o Moy es é um a das poucas escritoras a ter emplacado três livros ao m esm o tem po na lista de best-sellers do The New

York Times. A autora m ora em Essex, na Inglaterra, com o m arido e os trêsfilhos.

CONHEÇA OS OUTROS TÍTULOS DA AUTORA

A última carta de amor

Como eu era antes de você

A garota que você deixou para trás

Um mais um

Depois de você

LEIA TAMBÉM

Escola de equitação para moças

Anton Disclafani

Document OutlineFolha de rostoCréditosDedicatóriaEpígrafePrólogo1234567891011121314151617181920212223242526EpílogoAgradecimentos

Sobre a autoraConheça os outros títulos da autoraLeia também