Swing Time - VISIONVOX

275

Transcript of Swing Time - VISIONVOX

Ficha Técnica

Título original: SWING TIME Autor: Zadie Smith

Tradução de Francisco Agarez

Edição: Cecília Andrade Revisão: Clara Boléo

Design de capa: gray318 Fotografia da autora: © Pedro Loureiro

ISBN: 9789722062633

Publicações Dom Quixote uma editora do grupo Leya

Rua Cidade de Córdova, n.º 2 2610-038 Alfragide – Portugal

Tel. (+351) 21 427 22 00 Fax. (+351) 21 427 22 01

© Zadie Smith, 2016

© Publicações Dom Quixote, 2017 Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor

www.dquixote.leya.com www.leya.pt

Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990.

Para a minha mãe, Yvonne

Quando muda a música, muda a dança. – Provérbio haúça

PRÓLOGO

Foi o primeiro dia da minha humilhação. Metida num avião, recambiada para o meu país, aInglaterra, instalada temporariamente em St. John’s Wood. O apartamento era no oitavo andar, asjanelas davam para o estádio de críquete. Tinha sido escolhido, penso, por causa do porteiro, quebarrava todas as perguntas. Não saía de casa. O telefone de parede da cozinha tocava sem parar,mas eu estava avisada de que não devia atender e nem ter o meu telemóvel ligado. Assistia aocríquete, jogo que não compreendo, não me distraía verdadeiramente, mas sempre era melhor doque olhar para o interior daquele apartamento, num condomínio de luxo, em que tudo havia sidoconcebido para ser perfeitamente neutro, com todos os cantos significativos boleados, como umiPhone. Quando o críquete acabava olhava absorta para a lustrosa máquina de café encastrada naparede, e para duas fotografias do Buda – um Buda de latão, o outro de madeira – e para umafotografia de um elefante ajoelhado diante de um rapazinho indiano, também ele ajoelhado. Oscompartimentos eram elegantes e cinzentos, ligados por um impecável corredor de veludocanelado creme. Olhava absorta para os sulcos do veludo.

Assim se passaram dois dias. Ao terceiro dia, o porteiro ligou-me pelo intercomunicador adizer que o átrio estava livre. Olhei para o meu telemóvel, pousado em cima do balcão em modode avião. Estivera setenta e duas horas desligado e lembro-me de ter sentido que isto devia terlugar entre os grandes exemplos de estoicismo pessoal e resistência moral do nosso tempo. Vestio casaco e desci. No átrio encontrei o porteiro. Ele aproveitou a oportunidade para se queixaramargamente («Não faz ideia do que isto foi nos últimos dias – parecia o maldito PiccadillyCircus!») embora fosse evidente que ao mesmo tempo estava confuso, para não dizer desiludido:para ele era uma pena que a confusão se tivesse desvanecido – durante quarenta e oito horassentira-se muito importante. Contou-me orgulhoso que havia dito a este e àquele que «tivessemjuízo», e avisado alguns de que se pensavam que iam conseguir passar por ele «nem sabiam emque se iam meter». Eu estava encostada à secretária dele a ouvi-lo falar. Tinha passado tantotempo fora de Inglaterra que agora havia muitas expressões britânicas coloquiais e simples queme soavam exóticas, quase absurdas. Perguntei-lhe se achava que à noite ia aparecer mais gentee ele disse que achava que não, que desde o dia anterior não aparecia ninguém. Perguntei depoisse era seguro receber uma visita noturna. «Não vejo problema nenhum», disse ele, num tom queme fez sentir que tinha feito uma pergunta ridícula. «Há sempre a porta de serviço.» Suspirou, enesse preciso momento parou uma mulher para lhe perguntar se podia receber a roupa dalavandaria na sua ausência. Tinha uns modos bruscos e impacientes, e em vez de olhar para eleenquanto falava tinha os olhos fixos num calendário que ele tinha em cima da secretária, umbloco cinzento com um ecrã digital, que informava quem o tinha em frente do momento exatoem que estava, ao segundo. Era o dia vinte e cinco de outubro, do ano dois mil e oito, e era meiodia, trinta e cinco minutos e vinte e três segundos. Eu virei-me para sair; o porteiro despachou amulher e contornou apressadamente a secretária para me abrir a porta da rua. Perguntou-me

aonde ia; respondi que não sabia. Saí a pé para o centro da cidade. Estava uma tarde outonalperfeita em Londres, fria mas luminosa, debaixo de certas árvores havia folhas douradas caídas.Passei pelo estádio de críquete e pela mesquita, pelo Madame Tussauds, subi Goodge Street edesci Tottenham Court Road, atravessei Trafalgar Square e cheguei finalmente a Embankment,onde atravessei a ponte. Pensei – como penso muitas vezes quando atravesso aquela ponte – emdois jovens, estudantes, que uma noite iam a passar por ali, a altas horas, quando foram atacadose atirados por cima do parapeito ao Tamisa. Um viveu e o outro morreu. Nunca percebi como umdeles conseguiu sobreviver, na escuridão, num frio absoluto, com o choque terrível e os sapatoscalçados. Pensando nele, fui sempre pelo lado direito da ponte, junto à linha de comboio, e eviteiolhar para a água. Quando cheguei a South Bank, a primeira coisa que vi foi um cartaz aanunciar uma sessão de «conversa» com um realizador de cinema austríaco, que começava daí avinte minutos no Royal Festival Hall. Resolvi por impulso tentar arranjar um bilhete. Fui até lá econsegui um lugar na galeria, na última fila de todas. Não ia com grandes expectativas, só queriadistrair-me por algum tempo dos meus problemas, sentar-me no escuro e ouvir uma conversasobre filmes que nunca tinha visto, mas a meio do programa o realizador pediu à pessoa queestava a entrevistá-lo que passasse um clipe da fita Swing Time, filme que eu conhecia muitobem, vira-o vezes sem conta quando era pequena. Endireitei-me na cadeira. No ecrã enorme quetinha diante de mim, Fred Astaire dançava com três figuras em silhueta. Estas não conseguemacompanhá-lo, começam a perder o ritmo. Acabam por deitar a toalha ao chão, fazendo aquelegesto muito americano de «que se dane» com as três mãos esquerdas e saindo de cena. Astairecontinua a dançar, sozinho. Percebi que as três sombras também eram Fred Astaire. Já teriapercebido isso quando era pequena? Mais ninguém esgravata o ar como ele, nenhum outrobailarino flete os joelhos daquela maneira. Entretanto o realizador falou de uma teoria que tinhasobre o «cinema puro», que começou por definir como a «interação entre a luz e a escuridão,expressa como uma espécie de ritmo, ao longo do tempo», mas eu achei o raciocínio enfadonho edifícil de acompanhar. Nas costas dele voltou a passar, por qualquer razão, o mesmo clipe, e osmeus pés, em sintonia com a música, sapatearam nas costas da cadeira à minha frente. Sentia nocorpo uma leveza extraordinária, uma felicidade absurda, que pareciam vindas de lado nenhum.Tinha perdido o emprego, uma certa versão da vida, a privacidade, e no entanto tudo isso meparecia insignificante e mesquinho ao pé do júbilo que sentia ao ver a dança e ao acompanhar nomeu corpo os seus ritmos precisos. Tinha a sensação de que estava a perder o contacto com aminha localização física, a evolar-me do meu corpo, vendo a minha vida de um ponto muitodistante, flutuando sobre ela. Fazia-me lembrar a descrição que as pessoas faziam dasexperiências com drogas alucinogénias. Vi todos os meus anos de uma só vez, mas nãoempilhados uns nos outros, experiência sobre experiência, aglomerados em algo de substancial –pelo contrário. Estava a ter a revelação de uma verdade: que sempre me havia ligado à luz deoutras pessoas, que nunca tivera luz própria. Sentia-me uma espécie de sombra.

Quando o evento acabou regressei ao apartamento a pé, telefonei a Lamin, que estava à esperanum café próximo, e disse-lhe que a costa estava livre. Também ele tinha sido despedido, maseu, em vez de o deixar regressar ao seu Senegal, seu país de origem, tinha-o trazido paraLondres. Apareceu às onze horas, com um blusão de capuz, não fosse encontrar fotógrafos. Oátrio estava vazio. De capuz ainda parecia mais novo e mais belo, e para mim era uma espécie deescândalo não sentir nada por ele. Depois, deitámo-nos lado a lado na cama com os nossosportáteis e eu, para não ver as mensagens, pus-me a fazer pesquisas no Google, primeiro à toa,depois com um objetivo: encontrar aquele clipe do Swing Time. Queria mostrá-lo a Lamin, tinha

curiosidade em saber o que ele achava, agora que também era dançarino, mas ele disse que nuncatinha visto Astaire nem ouvido falar dele, e enquanto o clipe passava soergueu-se na cama efranziu o cenho. Não percebi bem o que estávamos a ver: Fred Astaire com a cara pintada depreto. No Royal Festival Hall tinha estado sentada na galeria, sem óculos, e a cena abre com FredAstaire em plano afastado. Mas nada disto explicava verdadeiramente como havia conseguidosuprimir da minha memória a imagem de infância: o revirar dos olhos, as luvas brancas, o sorrisoaberto de Bojangles. Senti-me muito estúpida, fechei o portátil e esperei pelo sono. Na manhãseguinte acordei cedo, deixando Lamin na cama, corri para a cozinha e liguei o telemóvel.Esperava ter centenas de mensagens. Milhares. Tinha à volta de trinta. Era Aimee queantigamente me enviava centenas de mensagens por dia, e agora percebia finalmente que Aimeenunca mais me enviaria nenhuma. Não sei por que razão demorei tanto a perceber uma coisa tãoóbvia. Percorri uma lista deprimente – uma prima afastada, alguns amigos, vários jornalistas.Chamou-me a atenção um título: PUTA. Tinha um endereço absurdo de algarismos e letras e umvídeo anexo que se recusava a abrir. O corpo da mensagem era só uma frase: Agora toda a gentesabe quem tu és realmente. Era o tipo de recado que se podia esperar de uma rapariga de seteanos despeitada com uma ideia fixa de justiça. E era exatamente disso que se tratava – seconseguirmos abstrair da passagem do tempo.

Primeira parte

PRIMEIROS TEMPOS

1

Se é possível pensar em todos os sábados de 1982 como um só dia, conheci Tracey às dez damanhã desse sábado, quando atravessávamos o areão de um adro de igreja, cada qual pela mãoda sua mãe. Estavam presentes muitas outras raparigas, mas por razões óbvias reparámos uma naoutra, nas semelhanças e nas diferenças, como fazem as raparigas. O nosso tom de castanho eraexatamente o mesmo – como se tivessem cortado da mesma peça de tecido cor de canela paranos fazerem a ambas – e as nossas sardas concentravam-se nos mesmos sítios, éramos da mesmaaltura. Mas a minha cara era inexpressiva e melancólica, com um nariz comprido e sério, e osolhos descaídos, tal como os cantos da boca. Tracey tinha uma cara alegre e redonda, pareciauma Shirley Temple mais escura, só que o nariz era tão problemático quanto o meu, percebi issoimediatamente, um nariz ridículo – empinado como o de um leitãozinho. Gira, mas tambémobscena: tinha as narinas permanentemente à vista. Em narizes podia dizer-se que estávamosempatadas. Em cabelo ela ganhava por larga margem. Tinha caracóis em espiral, que lhechegavam às costas e eram apanhados em duas tranças compridas, a que um óleo qualquer davabrilho, atadas nas pontas por laços amarelos de cetim. Laços amarelos de cetim eram umfenómeno que a minha mãe desconhecia. Apanhava-me a grande gaforina atrás numa únicanuvem, presa por um elástico preto. A minha mãe era feminista. Usava o cabelo num corte afrode meia polegada, tinha um crânio de forma perfeita, nunca se maquilhava e vestia-se, e a mim,do modo mais simples possível. O cabelo não é essencial em quem se parece com Nefertiti. Nãoprecisava de maquilhagem nem de produtos nem de joias nem de roupas caras, e por isso a suasituação financeira, a sua política e a sua estética harmonizavam-se na perfeição – e comvantagem. Os acessórios só lhe atrapalhavam o estilo, incluindo neles, ou pelo menos era asensação que eu tinha na altura, a miúda com sete anos e cara de cavalo que tinha ao lado.Olhando para Tracey, diagnostiquei o problema oposto: a mãe dela era branca, obesa, causticadapela acne. Usava o cabelo louro e fino firmemente apanhado atrás naquilo que eu sabia que aminha mãe designaria por uma «plástica de Kilburn». Mas o encanto pessoal de Tracey era asolução: era ela o acessório mais espetacular da mãe. O visual de família, que não fazia o géneroda minha mãe, para mim era cativante: logótipos, pulseiras e brincos de fantasia, tudo muitoreluzente, ténis caros daqueles que a minha mãe se recusava a aceitar como uma realidade nomundo em que vivemos – «Aquilo não são sapatos.» Ainda assim, e apesar das aparências, nãohavia muitas diferenças entre as nossas duas famílias. Ambas vivíamos em bairros sociais,nenhuma recebia subsídios. (Motivo de orgulho para a minha mãe, de escândalo para a deTracey: muitas vezes já havia tentado, sem êxito, «conseguir o de incapacidade».) Na perspetivada minha mãe eram exatamente estas semelhanças superficiais que conferiam tanto peso àsquestões do gosto. Vestia-se para um futuro que ainda era só isso, mas que esperava que

chegasse. Era isso que queriam dizer as calças lisas de linho branco, a T-shirt «bretã» às riscasazuis e brancas, as alpercatas esfiapadas, a severa e bela cabeça africana – tudo tão simples, tãodespretensioso, completamente contrastante com o espírito do tempo, e com o lugar. Um diahavíamos de «nos ir embora dali», ela completaria os estudos, adotaria um estilo chiqueverdadeiramente radical, talvez até falassem dela a par de Angela Davis e Gloria Steinem... Ossapatos de corda faziam parte integrante desta visão ousada, apontavam subtilmente paraconceitos mais altos. Eu só era um acessório na medida em que na minha simplicidadeexemplificava a admirável contenção materna, sendo que era considerado de mau gosto – noscírculos a que a minha mãe aspirava – vestir a filha como uma putazinha.

Mas Tracey era desassombradamente a aspiração e o avatar da mãe, a sua única alegria,naqueles fascinantes laços amarelos, saia rumorejante de muitas pregas e top exíguo que deixavaà mostra polegadas de barriga infantil castanho-escura, e quando chocámos com elas nesteengarrafamento de mães e filhas que entravam na igreja observei com interesse o modo como amãe de Tracey a empurrava à sua frente – e à nossa frente – usando o seu próprio corpo comomeio de obstrução, balouçando a gordura dos braços enquanto nos ultrapassava, até chegar à aulade dança de Miss Isabel, com uma expressão de grande orgulho e impaciência no rosto, pronta adeixar a sua carga preciosa ao cuidado temporário de terceiros. A atitude da minha mãe, pelocontrário, era de sujeição enfastiada, meio irónica, achava ridícula a aula de dança, tinha coisasmelhores para fazer, e ao fim de mais alguns sábados – em que se afundava numa das cadeiras deplástico alinhadas na parede da esquerda, contendo com dificuldade o desprezo que sentia portodo aquele exercício – houve uma alteração e passou a ir o meu pai no lugar dela. Fiquei àespera de que o pai de Tracey tomasse o lugar da mãe, mas isso nunca aconteceu. Pelos vistos –tal como a minha mãe tinha adivinhado imediatamente – não havia nenhum «pai de Tracey»,pelo menos no sentido convencional, conjugal. Era mais um exemplo de mau gosto.

2

Quero agora descrever a igreja, e Miss Isabel. Um edifício despretensioso do século XIX comgrandes pedras de arenito na fachada, a lembrar o revestimento barato que se via nas casas maisreles, embora não pudesse ter sido uma delas – e um agradável campanário pontiagudo a coroarum interior simples, que lembrava um celeiro. Chamava-se Igreja de São Cristóvão. Pareciamesmo a igreja que desenhávamos com os dedos enquanto cantávamos:

Isto é a igreja Isto é a torre Abrem-se as portas E o povo acorre.

O vitral contava a história de São Cristóvão a atravessar um rio com o Menino Jesus aos

ombros. Era mal feito: o santo parecia mutilado, maneta. As janelas originais tinham-seestilhaçado durante a guerra. Em frente da igreja de São Cristóvão erguia-se uma torre dehabitação social de má fama, e era aí que Tracey vivia. (Eu vivia num complexo de edifíciosmais bonitos, horizontais, na rua a seguir.) Construído nos anos sessenta, veio substituir umafiada de casas vitorianas destruídas pelo mesmo bombardeamento que havia danificado a igreja,mas acabava aqui a relação entre os dois edifícios. Incapaz de atrair para Deus os residentes dooutro lado da estrada, a igreja tinha tomado a decisão pragmática de se abrir a novas áreas deatuação: um jardim de infância, inglês para estrangeiros, escola de condução. Eram áreaspopulares e consolidadas, mas as aulas de dança aos sábados de manhã eram uma iniciativarecente e ninguém sabia ao certo o que pensar delas. A aula propriamente dita custava duas librase meia, mas corria entre as mães um rumor sobre o preço das sapatilhas de balé, uma tinhaouvido dizer três libras, outra sete, fulana de tal jurava que o único sítio onde era possívelcomprá-las era a Freed, em Covent Garden, onde em menos de um fósforo sacavam dez libras auma pessoa – então os de «sapateado», e os de «moderna»? As sapatilhas de balé davam para amoderna? O que era a moderna? Não havia ninguém a quem se pudesse perguntar, ninguém quejá a tivesse praticado, era o impasse. Raras eram as mães com curiosidade suficiente paratelefonarem para o número escrito nos folhetos artesanais agrafados às árvores do bairro. Muitasraparigas que talvez tivessem dado excelentes dançarinas nunca chegaram a atravessar a estrada,com medo de um folheto artesanal.

A minha mãe era uma raridade: os folhetos artesanais não lhe metiam medo. Tinha um instintoapuradíssimo para as convenções da classe média. Sabia, por exemplo, que era numa venda debagageira – pese embora o nome pouco promissor – que se encontravam as pessoas de melhor

qualidade, com os seus velhos livros Penguin de capa mole, às vezes de Orwell, as suas caixasantigas de porcelana para comprimidos, as suas peças estaladas de cerâmica da Cornualha, assuas rodas de oleiro caídas em desuso. A nossa casa estava cheia de coisas destas. Para nós nãohavia flores de plástico, refulgentes de falso orvalho, nem estatuetas de cristal. Tudo isto faziaparte do plano. Até as coisas que eu detestava – como as alpercatas da minha mãe – costumavamacabar por ser atraentes aos olhos das pessoas que estávamos a tentar atrair, e aprendi a nãocontestar os métodos dela, mesmo quando me cobriam de vergonha. Uma semana antes da dataem que as aulas deviam começar, ouvi-lhe a entoação afetada na cozinha estreita, mas quandodesligou o telefone tinha todas as respostas: cinco libras pelas sapatilhas de balé – se fossem aocentro comercial em vez de irem ao centro da cidade – e os sapatos de sapateado podiam esperarpara depois. As sapatilhas de balé serviam para a moderna. O que era a moderna? Não tinhaperguntado. Para o papel de progenitora zelosa estava disponível, mas nunca, jamais, para o deignorante.

O meu pai foi encarregado de ir comprar as sapatilhas. O tom rosa da carneira saiu mais clarodo que eu estava à espera, parecia a barriga de um gatinho, e a sola era de um tom cinzento-sujocomo a língua de um gato, e não tinha as compridas fitas de cetim cor-de-rosa para entrelaçarsobre os tornozelos, não, apenas uma triste tira de elástico que o meu pai tinha cosidopessoalmente. Fiquei extremamente zangada. Mas talvez, como as alpercatas, as sapatilhasfossem intencionalmente «simples», de bom gosto. Consegui agarrar-me a esta ideia até aomomento em que, já dentro da sala, nos mandaram vestir o fato de dança junto às cadeiras deplástico e ir para a outra parede, onde ficava a barra. Quase todas tinham os sapatos de carneiracor-de-rosa, não de carneira rosa-pálido, cor de pele de leitão, a que eu estava condenada, ealgumas – raparigas que, segundo sabia, viviam de subsídios, ou não tinham pai, ou as duascoisas – tinham os sapatos com fitas de cetim compridas entrelaçadas em volta dos tornozelos.Tracey, que estava de pé perto de mim, com o pé esquerdo na mão da mãe, tinha as duas coisas –o cetim rosa-escuro e o entrelaçado – e também um tutu completo, que não tinha passado pelacabeça de mais ninguém, como não passaria pela cabeça de ninguém aparecer numa primeiraaula de natação em fato de mergulho. Miss Isabel, entretanto, tinha uma cara simpática e eraafável, mas velha, qualquer coisa como quarenta e cinco anos. Era dececionante. De constituiçãorobusta, mais parecia a mulher de um agricultor do que uma bailarina e era toda ela cor-de-rosa eamarelo, cor-de-rosa e amarelo. O cabelo era amarelo, não loiro, amarelo como um canário. Apele era muito rosada, de um rosa-vivo, agora que penso nisso talvez sofresse de rosácea. O fatode dança era cor-de-rosa, as calças do fato de treino eram cor-de-rosa, o casaco de malha porcima do fato de balé era angorá e cor-de-rosa – mas as sapatilhas eram de seda e amarelas, notom do cabelo. Foi outra coisa que me deixou zangada. Ninguém tinha falado no amarelo! Ao pédela, no canto, estava um homem branco muito velho, de chapéu de feltro na cabeça, sentado aum piano vertical a tocar «Night and Day», canção que eu adorava e me orgulhava dereconhecer. Aprendi as canções antigas com o meu pai, por sua vez filho de um competentecantor de bares, o tipo de homem – ou assim pensava o meu pai – cuja pequena criminalidaderepresentava, pelo menos em parte, um certo instinto criativo coartado. O pianista chamava-seSenhor Booth. Cantarolei em voz alta enquanto ele tocava, na esperança de me fazer ouvir,pondo muito vibrato no meu cantarolar. Era melhor cantora do que dançarina – dançar não eracomigo – se bem que me orgulhasse exageradamente dos meus dotes de cantora, de uma formaque sabia que a minha mãe achava censurável. Cantar era natural em mim, mas as coisas queeram naturais nas mulheres não impressionavam a minha mãe, de maneira nenhuma. Na opinião

dela, era o mesmo que nos orgulharmos de respirar ou dar à luz. As nossas mães serviam-nos de equilíbrio, de estribos. Pousávamos uma das mãos num dos

ombros delas, pousávamos um pé nos joelhos fletidos delas. O meu corpo ficava aliás nas mãosda minha mãe – que me içava do chão e me cingia, me apertava e endireitava, me escovava –mas a minha mente estava em Tracey, e nas solas das suas sapatilhas de balé, em que agora lia amarca «Freed» claramente estampada na pele. Os seus arcos naturais eram dois colibris em voo,curvados sobre si mesmos. Os meus pés, pelo contrário, eram quadrados e chatos, parecia querangiam nas mudanças de posição. Sentia-me como um bebé titubeante a colocar blocos demadeira formando uma série de ângulos retos. Esvoaça, esvoaça, esvoaça, dizia Isabel, issomesmo, essa é a adorável Tracey. Os elogios faziam Tracey atirar a cabeça para trás e distenderhorrivelmente o nariz de leitão. Tirando isso, era perfeita, eu ficava enfeitiçada. A mãe delaparecia igualmente deslumbrada, com um empenhamento naquelas aulas que era o único sinalconsistente daquilo a que hoje chamaríamos «a sua parentalidade». Comparecia nas aulas commaior assiduidade que qualquer outra mãe, e enquanto lá estava raramente a sua atenção sedesviava dos pés da filha. Já a atenção da minha mãe estava sempre fora dali. Não era capaz deficar simplesmente sentada à espera de que o tempo passasse, tinha de estar a aprender algumacoisa. Era capaz de chegar no princípio da aula com, por exemplo, The Black Jacobins na mão, equando eu ia ter com ela para trocar as sapatilhas de balé pelos sapatos de sapateado já tinha lidocem páginas. Mais tarde, quando passou a ir no lugar dela, o meu pai dormia ou «ia dar umpasseio», eufemismo parental que significava ir fumar para o adro.

Nesta fase inicial eu e Tracey não éramos amigas nem inimigas, nem sequer conhecidas:praticamente não nos falávamos. Mas sempre existiu esta consciência mútua, um elásticoinvisível estendido entre nós, a ligar-nos e a impedir-nos de nos relacionarmos muitoprofundamente com outras. Tecnicamente, eu falava mais com Lily Bingham – que andava naminha escola – e a segunda opção de Tracey era a pobre Danika Babic, com os seus colãs rotos eo seu sotaque cerrado, que vivia no mesmo corredor que Tracey. Mas embora durante as aulastrocássemos risadinhas e piadas com estas raparigas brancas, e embora elas tivessem todo odireito de supor que eram os alvos da nossa atenção, da nossa preocupação – que éramos, paraelas, as boas amigas que aparentávamos ser –, mal chegava o intervalo e o sumo e as bolachas eue Tracey púnhamo-nos lado a lado, sempre, era quase inconsciente, dois arquivadores metálicosatraídos por um íman.

Dava-se o caso de Tracey ter tanta curiosidade acerca da minha família como eu acerca dafamília dela, afirmando, com uma certa autoridade, que tínhamos as coisas «ao contrário». Ouvia teoria dela um dia durante o intervalo, enquanto molhava ansiosamente uma bolacha no meusumo de laranja. «No caso de todas as outras é o pai», disse ela, e como eu sabia que estaafirmação era mais ou menos exata não me ocorreu acrescentar nada. «Quando o teu pai é brancosignifica…», continuou, mas nesse momento Lily Bingham aproximou-se e parou ao pé de nós eeu fiquei sem saber o que significava quando se tinha um pai branco. Lily era desengonçada,tinha mais um palmo de altura do que todas as outras. Tinha o cabelo loiro, perfeitamente liso,maçãs do rosto rosadas e um feitio aberto e feliz que nos parecia, tanto a Tracey como a mim, sera consequência direta do n.º 29 da Exeter Road, uma vivenda, para onde eu tinha sidorecentemente convidada, fazendo depois o relato entusiasmado a Tracey – que nunca lá tinhaestado –, um jardim privativo, um enorme frasco de compota cheio de «trocos» e um relógioSwatch do tamanho de um homem pendurado na parede de um quarto. Por isso havia coisas deque não podíamos falar diante de Lily Bingham, e nessa altura Tracey calou-se, empinou o nariz

e atravessou a sala para ir pedir à mãe as sapatilhas de balé.

3

Que queremos das nossas mães quando somos crianças? Completa submissão. Oh, é muito bonito e racional e respeitável dizer que uma mulher tem todo o direito à sua vida,

às suas ambições, às suas necessidades, e por aí fora – é aquilo que eu sempre exigi – mas emcriança, não, a verdade é que é uma guerra de atrito, a racionalidade não entra nas contas, nemum bocadinho, tudo o que queremos da nossa mãe é que reconheça de uma vez por todas que énossa mãe e só nossa mãe, e que a sua batalha com o resto da vida acabou. Tem de depor asarmas e dedicar-se a nós. E se não o fizer, então sim, é uma guerra de verdade, e entre a minhamãe e eu foi uma guerra. Só na idade adulta aprendi a admirá-la realmente – em especial nosúltimos e dolorosos anos da sua vida – por tudo o que tinha feito para conquistar algum espaçopara si neste mundo. Quando eu era jovem, a recusa dela em submeter-se a mim deixava-meconfusa e magoada, principalmente porque achava que nenhuma das habituais razões de recusase aplicava ao meu caso. Era a sua única filha e ela não tinha emprego – na altura – epraticamente não falava com ninguém da família. Na minha perspetiva, a única coisa que elatinha era tempo. E nem assim conseguia que se submetesse completamente a mim! A imagemmais antiga que tive dela foi a de uma mulher que congemina uma fuga, de mim, do própriopapel de mãe. Tinha pena do meu pai. Ainda era um homem bastante jovem, amava-a, queriamais filhos – era tema de discussão diária entre eles – mas nesta questão, como em todas, aminha mãe recusava-se a ceder um milímetro que fosse. A mãe dela tinha dado à luz sete filhos,a avó onze. Não ia seguir-lhes o exemplo. Estava convencida de que o meu pai queria mais filhospara a armadilhar e no fundo tinha razão, se bem que neste caso armadilha fosse apenas maisuma palavra para dizer amor. Amava-a muito! Mais do que ela sabia ou queria saber, era umamulher que vivia no seu mundo imaginário, que presumia que toda a gente à sua volta estavasempre a sentir o mesmo que ela. E por isso quando começou, primeiro lentamente e depois auma velocidade cada vez maior, a ultrapassar o meu pai, intelectual e pessoalmente, a suaexpectativa natural era que ele passasse pelo mesmo processo ao mesmo tempo. Mas elecontinuava igual ao que sempre fora. Tomando conta de mim, amando-me, tentando manter-seatualizado, lendo o Manifesto Comunista ao seu ritmo lento e diligente. «Há quem ande com abíblia. A minha bíblia é esta.» Era uma afirmação que impressionava – a ideia era impressionar aminha mãe – mas eu já tinha reparado que ele parecia estar sempre a ler este livro e pouco mais,levava-o para todas as aulas de dança, mas nem assim conseguia passar das primeiras vintepáginas. No contexto do casamento era um gesto romântico: tinham-se conhecido numa reuniãodo SWP1, em Dollis Hill. Mas até isso foi uma espécie de mal-entendido, porque o meu pai tinhaido para conhecer raparigas de esquerda bonitas, de saia curta e sem religião, ao passo que aminha mãe estava lá por causa de Karl Marx. A minha infância passou-se durante o aprofundar

do fosso. Vi a minha mãe autodidata ultrapassar rápida e facilmente o meu pai. As estantes danossa sala de estar – que ele construiu – encheram-se de livros em segunda mão, livros de estudoda Universidade Aberta, livros políticos, livros de história, livros sobre raça, livros sobre género,«todos os “ismos”», como o meu pai costumava chamar-lhes, sempre que algum vizinho ia lá acasa e reparava na estranha acumulação.

Sábado era o «dia de folga» dela. Dia de folga de quê? De nós. Precisava de estudar os seusismos. Depois da aula de dança, aonde o meu pai me levava, tínhamos de nos entreter dequalquer maneira, arranjar qualquer coisa para fazer, para não voltarmos para casa antes da horade jantar. Passou a ser um ritual tomarmos uma série de autocarros que iam para sul, muito parasul do rio, para visitar o meu tio Lambert, irmão da minha mãe e confidente do meu pai. Era oirmão mais velho da minha mãe e a única pessoa desse lado da família que conheci. Tinha criadoa minha mãe e os outros irmãos e irmãs, na ilha onde viviam, quando a mãe veio para Inglaterratrabalhar na limpeza de um lar de idosos. Sabia o que o meu pai tinha de aturar.

«Dou um passo para me aproximar dela», ouvi o meu pai queixar-se um dia, em pleno verão,«e ela dá um passo atrás!»

«Com aquela não há nada a fazer. Sempre foi assim.» Eu andava no quintal, no meio dos tomateiros. Na verdade, era uma horta, nada era decorativo

nem para ser simplesmente admirado, tudo era para comer e crescia em fiadas direitas ecompridas, atado a varas de bambu. No fim havia um barracão, aliás o último que vi emInglaterra. O tio Lambert e o meu pai sentavam-se em espreguiçadeiras junto à porta dastraseiras, a fumar marijuana. Eram amigos de longa data – Lambert era a única pessoa, além dosnoivos, na fotografia do casamento dos meus pais – e colegas de trabalho: Lambert era carteiro eo meu pai diretor de uma central de distribuição do Royal Mail. Tinham em comum o sentido dehumor cortante e a falta de ambição, que a minha mãe reprovava, em ambos os casos. Enquantofumavam e se queixavam das coisas que não se podiam fazer com a minha mãe, eu passava osbraços por entre os tomateiros, deixando que as gavinhas se me enleassem em volta dos pulsos.Achava ameaçadoras quase todas as plantas de Lambert, tinham o dobro da minha altura e tudoquanto ele plantava crescia desordenadamente: um matagal de trepadeiras e erva alta e abóboras-cabaças obscenamente intumescidas. No Sul de Londres a terra é de melhor qualidade – no Nortede Londres é muito barrenta – mas na altura eu não sabia isso e as minhas ideias baralhavam-se:pensava que quando visitava Lambert estava a visitar a Jamaica, para mim o quintal de Lambertera a Jamaica, cheirava à Jamaica, e comia-se gelo de coco, e ainda hoje, na minha memória, estásempre calor no quintal de Lambert, e tenho sede e medo dos insetos. O quintal era comprido eestreito e estava virado a sul, o barracão estava encostado à vedação do lado direito e por issovia-se descer o Sol por trás dele, encrespando o ar no seu caminho. Eu tinha muita vontade de irao quarto de banho, mas decidia apertar-me até voltarmos ao Norte de Londres – aquele barracãometia-me medo. O chão era de tábuas e cresciam coisas pelo meio delas, ervas, cardos e dentes-de-leão que me empoeiravam os joelhos quando me empoleirava no assento. Havia teias dearanha estendidas de canto a canto. Era um quintal de abundância e decadência: os tomates eramdemasiado maduros, a marijuana demasiado forte, debaixo de tudo escondiam-se bichos-de-conta. Lambert vivia lá sozinho, e aquilo a mim parecia-me um lugar para morrer. Já naquelaidade achava estranho que o meu pai fizesse uma viagem de oito milhas para ir a casa deLambert em busca de conforto, quando Lambert dava a impressão de já ter sofrido o tipo deabandono que o meu pai tanto receava.

Cansada de percorrer as fiadas de plantas comestíveis, voltava para trás e via os dois homens

esconderem os cigarros, desajeitadamente, na mão fechada. «Estás chateada?», perguntava Lambert. Eu confessava que sim. «Antigamente isto aqui estava cheio de catraiada», disse Lambert, «mas agora os filhos já têm

filhos.» A imagem que eu tinha na cabeça era de crianças da minha idade com bebés ao colo: era um

destino que identificava com o Sul de Londres. Sabia que a minha mãe tinha saído de casa paraescapar a tudo aquilo, para que nenhuma filha sua fosse jamais uma criança com uma criança,porque filha sua tinha de fazer mais do que sobreviver – como a minha mãe tinha feito –, tinhade vencer na vida, aprendendo coisas desnecessárias, tais como sapateado. O meu pai estendia-me os braços e eu trepava-lhe para o colo, cobrindo-lhe com a mão a calva cada vez maior etateando os fios finos de cabelo molhado que ele penteava a atravessá-la.

«Ela é acanhada, não é? Não te acanhas com o tio Lambert, pois não?» Lambert tinha os olhos injetados e sardas como as minhas, mas em relevo; a cara era redonda e

afável, com uns olhos castanho-claros que supostamente confirmavam a existência de sanguechinês na árvore genealógica. Mas eu acanhava-me na presença dele. A minha mãe – que nuncavisitava Lambert a não ser no Natal – insistia estranhamente com o meu pai para que o visitasse eme levasse, mas sempre com a condição de nos mantermos atentos e não nos deixarmos«arrastar». Arrastar para quê? Eu dava a volta ao corpo do meu pai até ficar atrás dele e ver otufo de cabelo que ele deixava crescer na nuca e estava decidido a manter. Apesar de ainda estarna casa dos trinta, nunca o tinha visto com uma cabeleira farta, nunca o havia conhecido loiro, enunca iria vê-lo grisalho. Só conhecia aquele castanho-escuro falso, que ficava agarrado aosdedos de quem lhe tocasse, e que tinha visto na sua verdadeira origem, uma lata redonda e baixaque estava pousada, aberta, na borda da banheira, com um círculo oleoso de cor castanha à voltado rebordo, já com uma clareira no meio, como a cabeça do meu pai.

«Ela precisa de companhia», resmungou ele. «Um livro não é suficiente, pois não? Um filmenão é suficiente. Uma pessoa precisa da coisa concreta.»

«Com aquela não há nada a fazer. Percebi isso quando ela era pequena. Tem uma vontade deferro.»

Era verdade. Não havia nada a fazer com ela. Quando chegámos a casa, ela estava a assistir auma aula da Universidade Aberta, de bloco e lápis na mão, linda, serena, enroscada no sofá comos pés debaixo do rabo, mas quando se virou percebi que estava zangada, tínhamos voltado paracasa cedo de mais, queria ter mais tempo, mais paz, mais sossego, para poder estudar. Nóséramos os vândalos que invadiam o templo. Estudava Sociologia e Política. Não sabíamosporquê.

1 Socialist Workers Party (Partido dos Trabalhadores Socialistas). (N. do T.)

4

Se o Fred Astaire representava a aristocracia, eu representava o proletariado, dizia Gene Kelly,e por esta lógica Bill «Bojangles» Robinson devia de facto ter sido o meu dançarino, porqueBojangles dançava para o janota de Harlem, para o miúdo dos guetos, para o rendeiro – paratodos os descendentes de escravos. Mas para mim um dançarino era um homem de nenhures,sem pais nem irmãos, sem pátria nem povo, sem obrigações de nenhuma espécie, e esta eraexatamente a qualidade que eu adorava. O resto, o pormenor, era secundário. Ignorava os guiõesridículos daqueles filmes: as entradas e saídas operáticas, as reviravoltas da sorte, osinsuportáveis encontros românticos e as coincidências, os menestréis, criadas e mordomos. Paramim não passavam de caminhos que conduziam à dança. A história era o preço a pagar peloritmo. «Pardon me, boy, is that the Chattanooga choo choo?»2 A cada sílaba correspondia ummovimento das pernas, da barriga, das costas, dos pés. Na aula de balé, pelo contrário,dançávamos ao som de gravações clássicas – «música branca» como Tracey lhe chamava semrodeios – que Miss Isabel gravava da rádio para uma série de cassetes. Mas a mim custava-meconsiderar aquilo música, não tinha nenhum compasso que eu identificasse, e apesar de MissIsabel tentar ajudar-nos, berrando as cadências de cada batida, não conseguia de maneiranenhuma relacionar estes números com o mar de melodia que brotava dos violinos ou com ocaudal avassalador de um naipe de metais. Ainda assim, sabia mais do que Tracey: sabia quehavia qualquer coisa de errado nas suas ideias inflexíveis – música negra, música branca – quetinha de existir algures um mundo onde as duas se conjugavam. Em filmes e fotografias tinhavisto homens brancos sentados ao piano com raparigas negras de pé ao seu lado, a cantar. Oh,como eu queria ser como aquelas raparigas!

Às onze e um quarto, depois da aula de balé, a meio do nosso primeiro intervalo, entrava oSenhor Booth na sala com uma grande mala preta, daquelas que os médicos usavam antigamente,e nessa mala trazia as pautas para a aula. Se eu estava livre – ou seja, se conseguia ver-me livrede Tracey – corria ao encontro dele, seguindo-o enquanto se aproximava lentamente do piano, eentão punha-me na posição em que vira as raparigas nos filmes, pedia-lhe que tocasse «All ofMe» ou «Autumn in New York» ou «42nd Street». Na aula de sapateado ele tinha de tocar vezessem conta a mesma meia dúzia de canções e eu tinha de dançar ao som delas, mas antes da aula –enquanto o resto das pessoas que estavam na sala conversava, comia e bebida – tínhamos estetempo só para nós e eu convencia-o a ensaiar comigo uma canção, que eu cantava mais baixo doque o piano se me sentia acanhada, mais alto se não sentia. Às vezes, quando cantava, os paisque estavam lá fora a fumar debaixo das cerejeiras entravam para me ouvir, e as raparigas queestavam ocupadas com os preparativos para as suas danças – puxando colãs para cima, apertandoatacadores – interrompiam estas ações e viravam-se para me ver cantar. Comecei a tomar

consciência de que a minha voz – desde que não cantasse deliberadamente abaixo do volume dopiano – tinha um certo carisma, que atraía as pessoas. Não era um dom técnico: a minha extensãovocal era diminuta. Era do foro da emoção. Tudo aquilo que sentia conseguia exprimi-lo commuita clareza, «transmiti-lo». Tornava as canções tristes muito tristes, as alegres jubilosas.Quando chegou a altura dos nossos «exames de aptidão» aprendi a usar a voz como uma formade distração, da mesma forma que os ilusionistas nos obrigam a olhar-lhes para a boca quandodevíamos estar com atenção às mãos. Mas não conseguia enganar Tracey. Via-a descer do palcoe ficar de pé nos bastidores, braços cruzados sobre o peito e nariz no ar. Apesar de levar semprea melhor sobre toda a gente e o quadro de cortiça da cozinha da mãe transbordar de medalhas deouro, nunca ficava satisfeita, queria ouro também na «minha» categoria – canto e dança – apesarde mal conseguir cantar uma nota. Custava-me a compreender. Pela minha parte, sentia que, sesoubesse dançar como Tracey, não queria mais nada neste mundo. Havia outras raparigas quetinham ritmo nos membros, algumas tinham-no nas ancas ou nos traseiros pequenos, mas elatinha ritmo em todos os ligamentos, provavelmente em todas as células. Cada movimento era tãorigoroso e preciso quanto seria de esperar de uma criança, o seu corpo era capaz de se sintonizarcom qualquer andamento, por muito intricado que fosse. Talvez se pudesse dizer que por vezesera excessivamente precisa, não especialmente criativa, ou vazia de sentimento. Mas ninguém noseu perfeito juízo podia pôr em causa a sua técnica. Eu era – sou – uma admiradora incondicionalda técnica de Tracey. Sabia qual era o tempo certo para fazer cada coisa.

2 «Desculpa, rapaz, é aquele o comboio para Chattanooga?» (N. do T.)

5

Um domingo de fim de verão. Eu estava na varanda, a ver um grupo de raparigas do nossoandar que saltavam à corda lá em baixo, ao pé dos contentores do lixo. Ouvi a minha mãechamar-me. Olhei e vi-a entrar no complexo, de mão dada com Miss Isabel. Acenei-lhe e elaolhou para cima, sorriu e exclamou: «Não saias daí!» Nunca tinha visto a minha mãe e MissIsabel juntas fora da aula, e apesar da distância percebi que ela vinha a impingir alguma coisa aMiss Isabel. Tentei conferenciar com o meu pai, que estava a pintar uma parede da sala, massabia que a minha mãe, tão amável com estranhos, tinha mau feitio para a família, e aquele «Nãosaias daí!» significava exatamente isso. Fiquei a ver aquele par insólito atravessar o complexo eentrar na caixa da escada, refratado pelos tijolos de vidro como um polvilhado de amarelo e rosae castanho-mogno. Entretanto as raparigas ao pé dos contentores mudavam de posição nas cordasde saltar, uma nova saltadora corria afoitamente para dentro do impiedoso lacete balouçante eencetava uma nova cantilena, aquela do macaco que se engasgou.

Por fim a minha mãe chegou ao pé de mim, mirou-me de alto a baixo – tinha uma expressãocontrita no rosto – e a primeira coisa que me disse foi: «Descalça os sapatos.»

«Bem, não é preciso fazer isto já», murmurou Miss Isabel, mas a minha mãe disse «É melhorsaber agora do que mais tarde» e desapareceu no interior do apartamento, reaparecendo umminuto depois com um grande saco de farinha para bolos, com que se pôs a polvilhar a varandatoda até ficar um tapete fino como o de um primeiro nevão. Mandou-me caminhar descalça emcima dele. Pensei em Tracey. Não sabia se Miss Isabel ia a casa de todas as miúdas. Que grandedesperdício de farinha! Miss Isabel pôs-se de cócoras para observar. A minha mãe encostou-se àvaranda com os cotovelos apoiados no parapeito, fumando um cigarro. Estava de lado em relaçãoà varanda, e tinha o cigarro de lado na boca, e trazia uma boina, como se usar boina fosse a coisamais natural do mundo. Estava de lado para mim, numa diagonal irónica. Eu cheguei à outraponta da varanda e virei-me a olhar para as minhas pegadas.

«Pois é, cá está», disse Miss Isabel. Mas lá estava o quê? A terra dos pés chatos. A minhaprofessora descalçou um sapato e pisou a farinha para comparação: na pegada dela só se viam osdedos, o antepé e o calcanhar, na minha o contorno completo e plano de uma pisada humana.Este resultado interessava muito à minha mãe, mas Miss Isabel, ao ver a minha cara, disse umacoisa simpática: «É verdade que uma dançarina de balé precisa de ter um arco, mas podes fazersapateado com os pés chatos, é claro que podes.» Eu não acreditava, mas a ideia agradava-me eagarrei-me a ela para continuar a frequentar a aula, e assim continuar a conviver com Tracey, oque era, concluí mais tarde, exatamente aquilo a que a minha mãe tentara pôr cobro. Pensavaque, dado que Tracey e eu frequentávamos escolas diferentes, em bairros diferentes, só nosencontrávamos na aula de dança, mas quando começou o verão e acabaram as aulas de dança não

fez diferença nenhuma, ainda nos tornámos mais íntimas, e em agosto encontrámo-nos quasetodos os dias. Da minha varanda via-se o complexo onde ela vivia, e vice-versa, nãoprecisávamos de nos telefonar, nem de combinar nada, e embora as nossas mães quase nãotrocassem um aceno de cabeça na rua as entradas e saídas do edifício uma da outra passaram aser para nós uma coisa natural.

6

Tínhamos modos diferentes de estar numa casa e na outra. Na de Tracey brincávamos eexperimentávamos brinquedos novos, que ela tinha em quantidades aparentemente inesgotáveis.O catálogo Argos, de cujas páginas eu estava autorizada a escolher três artigos baratos peloNatal, e um pelos meus anos, era para Tracey uma bíblia de consulta diária, lia-a religiosamente,traçando um círculo a vermelho em volta das suas escolhas, muitas vezes na minha presença,com uma esferográfica pequena que tinha para o efeito. O quarto dela era uma revelação. Deitavapor terra a minha ilusão de que estávamos as duas na mesma situação. A cama tinha a forma deum carro desportivo cor-de-rosa da Barbie, as cortinas eram frisadas, os armários eram todosbrancos e brilhantes, e no centro do quarto parecia que alguém tinha pura e simplesmentedespejado o trenó do Pai Natal na alcatifa. Tínhamos de abrir caminho pelo meio dos brinquedos.Os estragados formavam uma espécie de alicerce, sobre o qual era descarregada cada novacarrada de compras, em camadas arqueológicas, correspondendo aproximadamente aos anúnciosa brinquedos que na altura estavam a passar na televisão. Aquele verão era o verão da bonecamijona. Dava-se-lhe água e ela mijava-se toda. Tracey tinha várias versões desta maravilha datecnologia, das quais conseguia extrair toda a espécie de efeitos dramáticos. Umas vezes batia-lhe por ter mijado, outras vezes sentava-a a um canto, envergonhada e nua, com as pernas deplástico fletidas em ângulo reto com o rabinho gorducho. Nós as duas fazíamos de pai e mãe dapobre criança incontinente, e nas falas que Tracey me atribuía eu ouvia às vezes ecos estranhos einquietantes da sua vida familiar, ou talvez das muitas telenovelas que via.

«É a tua vez. Diz: “Sua galdéria – ela nem sequer é minha filha! Que culpa tenho eu se ela semija?” Vai lá tu, é a tua vez.»

«Sua galdéria – ela nem sequer é minha filha! Que culpa tenho eu se ela se mija?» «“Ouve lá, meu, pega nela ao colo! Pega nela e deixa-te de lérias!” Agora tu dizes: “Tá-se

mesmo a ver, princesa.”» Um domingo, muito a medo, falei à minha mãe na existência das bonecas mijonas, tendo o

cuidado de dizer que «faziam chichi» em vez de «mijavam». Ela estava a estudar. Levantou osolhos do livro com um misto de incredulidade e nojo.

«A Tracey tem uma dessas?» «A Tracey tem quatro.» «Vem cá.» Abriu os braços e eu senti a minha cara encostada à pele do peito dela, lisa e tépida,

absolutamente viva, como se houvesse dentro da minha mãe uma segunda mulher, jovem erequintada, ansiosa por saltar cá para fora. Andava a deixar crescer o cabelo, que tinha sidorecentemente «arranjado», apanhado atrás numa imponente trança enrolada em concha, como

uma escultura. «Sabes o que estou a ler neste preciso momento?» «Não.» «Um texto sobre o sankofa. Sabes o que é?» «Não.» «É um pássaro que vira a cabeça toda para trás, assim.» Rodou a bela cabeça o máximo que

podia. «É africano. Olha para trás, para o passado, e aprende com o que se passou antes. Hápessoas que nunca aprendem.»

O meu pai estava na minúscula cozinha do corredor, cozinhando em silêncio – era o cozinheirolá de casa – e esta conversa era-lhe na verdade dirigida, era ele que devia ouvi-la. Tinhamcomeçado a discutir tanto que normalmente eu era o único canal por onde passava acomunicação, umas vezes agressiva – «Explica à tua mãe», ou «Podes dizer ao teu pai da minhaparte», outras vezes com uma ironia delicada, quase bela.

«Ah», disse eu. Não via a relação com as bonecas mijonas. Sabia que a minha mãe estava emvias de se tornar, ou de tentar tornar-se, «uma intelectual», porque era frequente o meu pai atirar-lhe este termo à cara, como forma de insulto, durante as discussões entre os dois. Mas não sabiabem o que isso queria dizer, só sabia que um intelectual era alguém que estudava naUniversidade Aberta, gostava de andar de boina, usava muitas vezes a frase «O Anjo daHistória», suspirava quando o resto da família queria ver televisão ao domingo à noite e naKilburn High Road parava para discutir com os trotskistas quando toda a gente atravessava a ruapara os evitar. Mas a principal consequência da sua transformação, para mim, era este novo edesconcertante recurso a indiretas nas conversas. Parecia que estava sempre a dizer piadas paraadultos na minha presença, para se divertir ou para irritar o meu pai.

«Quando estás com aquela rapariga», explicou a minha mãe, «é simpático que brinques comela, mas ela foi criada de uma certa maneira, e para ela só existe o presente. Tu foste criada deoutra maneira – não te esqueças disso. Para ela, aquela estúpida aula de dança é o mundo inteiro.A culpa não é dela – foi educada assim. Mas tu és inteligente. Não importa que tenhas os péschatos, não importa, porque és inteligente e sabes de onde vens e para onde vais.»

Eu fiz que sim com a cabeça. Ouvia o meu pai chocalhar os tachos com exuberância. «Não te esqueces do que eu te disse, pois não?» Prometi que não me esqueceria. Em minha casa não havia bonecas absolutamente nenhumas e por isso, quando cá vinha,

Tracey tinha de se adaptar a hábitos diferentes. Aqui escrevíamos, um tanto freneticamente,numa série de blocos A4 pautados, amarelos, que o meu pai trazia do emprego. Era um projetoem colaboração. Tracey, que tinha dislexia – embora na altura não soubéssemos que nome daràquilo – preferia ditar, enquanto eu fazia os possíveis por acompanhar os seus ziguezaguesmentais, naturalmente melodramáticos. Quase todas as nossas histórias giravam em volta de umaelegante e cruel prima ballerina de «Oxford Street» que à última hora partia uma perna, o quedava à nossa destemida heroína – muitas vezes uma modesta costureira ou uma humilde mulherda limpeza dos sanitários do teatro – a oportunidade de entrar em cena e resolver o problema.Reparei que estas corajosas raparigas eram sempre loiras, de cabelos «como seda» e olhos azuis.Uma vez tentei escrever «olhos castanhos» e Tracey tirou-me a esferográfica da mão e riscou.Escrevíamos deitadas de barriga no chão do meu quarto, e se por acaso a minha mãe passava enos via assim era o único momento em que olhava para Tracey com uma expressão vagamenteparecida com afeto. Eu aproveitava esses momentos para tentar obter mais concessões para a

minha amiga – A Tracey pode ficar para o lanche? A Tracey pode dormir cá? – se bem que, se aminha mãe parasse mesmo e lesse aquilo que escrevíamos nos blocos amarelos, Tracey nuncamais teria autorização para entrar em nossa casa. Em várias histórias havia homens «acoitadosnas sombras» com barras de ferro para partir os joelhos de dançarinas inocentes; numa delas, aprima tinha um segredo terrível: era «de casta mista», expressão que me fez tremer quando aescrevi, pois sabia por experiência própria que ela punha a minha mãe completamente em fúria.Mas se sentia algum desconforto com estes pormenores, era uma sensação pouco importante emcomparação com o prazer da nossa colaboração. Ficava completamente fascinada com ashistórias de Tracey, enfeitiçada com o prolongado efeito de prazer narrativo queproporcionavam, o que talvez fosse, mais uma vez, fruto das telenovelas que via ou das duraslições que a vida lhe ensinava. Porque, quando se poderia pensar que tinha chegadoo final feliz, Tracey descobria outra forma nova e maravilhosa de o destruir ou desviar docaminho, pelo que o momento da consumação – que para ambas, penso, significavasimplesmente uma plateia, de pé, a aplaudir – parecia nunca mais chegar. Tenho pena de não terguardado aqueles blocos. Dos milhares de palavras que escrevemos sobre bailarinas em váriasformas de perigo físico, só retive na memória uma frase: Tiffany saltou para beijar o seupríncipe e ficou em pontas, oh, tinha um ar tão sensual, mas foi então que a bala lhe perfurou acoxa.

7

No outono, Tracey foi para a escola feminina de Neasden, onde quase todas as raparigas eramindianas ou paquistanesas: eu costumava ver as mais velhas na paragem do autocarro, deuniforme alterado – blusa desapertada e saia arregaçada – berrando obscenidades aos rapazes quepassavam. Uma escola complicada, com muita violência. A minha, em Willesden, era maispacífica, mais misturada: metade eram negras, um quarto brancas, um quarto sul-asiáticas. Dametade negra, pelo menos um terço eram «de casta mista», uma nação minoritária dentro de umanação, mas a verdade é que me irritava reparar nelas. Queria acreditar que Tracey e eu éramosirmãs e almas gémeas, sozinhas no mundo e a necessitar especialmente uma da outra, mas agoranão podia deixar de ver diante de mim todos os muitos tipos de raparigas com quem a minha mãetinha passado o verão a tentar incentivar-me a que me relacionasse, raparigas com passadossemelhantes, mas com aquilo a que a minha mãe chamava «horizontes mais largos». Havia umachamada Tasha, metade guianesa, metade tâmil, filha de um tigre tâmil a sério, coisa queimpressionava fortemente a minha mãe e por isso mesmo cimentava em mim o desejo de nuncater absolutamente nada que ver com ela. Havia uma com uma grande dentuça, chamada Irie,sempre a melhor da turma, filha de pais como os meus, mas ao contrário, mas tinha-se mudadodo bairro social e agora vivia em Willesden Green numa casinha catita. Havia uma chamadaAnoushka, filha de pai de Santa Lucia e mãe russa, e sobrinha do «mais importante poetarevolucionário das Caraíbas», segundo a minha mãe, mas praticamente todas as palavras dessetítulo de recomendação escapavam ao meu entendimento. No recreio eu espetava pioneses nassolas dos sapatos e chegava a passar a meia hora de intervalo inteira a dançar, sem amigas, masconformada com isso. E quando chegávamos a casa – antes da minha mãe, portanto fora dajurisdição dela – eu largava a mochila, deixava o meu pai a fazer o jantar e disparava para casade Tracey, para fazermos o sapateado juntas na varanda, seguido de uma tigela de uma taça paracada uma de Angel Delight, que para a minha mãe «não era comida», mas para mim continuavaa ser uma delícia. Quando chegava a casa estava em pleno curso uma discussão, as duas partes jánão chegavam a acordo. A preocupação do meu pai era uma questão qualquer do foro doméstico:quem tinha aspirado o quê e quando, quem tinha ido, quem devia ter ido, à lavandariaautomática. Enquanto a minha mãe, em resposta, divagava para assuntos completamentediferentes: a importância de se ter consciência revolucionária, ou a insignificância relativa doamor sexual em comparação com as lutas do povo, ou a herança da escravatura nos corações enas mentes dos jovens, e por aí adiante. Tinha entretanto feito o exame de aptidão, estavamatriculada no Middlesex Poly, em Hendon, e nós, mais do que nunca, éramos incapazes de aacompanhar, éramos uma desilusão, tinha de estar sempre a explicar os termos que usava.

Em casa de Tracey, as únicas vozes mais altas vinham da televisão. Eu sabia que se esperava

de mim que tivesse pena de Tracey por não ter pai – fatalidade que batia a porta sim, porta nãodas casas do nosso corredor – e me sentisse grata por ter dois progenitores casados, mas quandome sentava no seu grande sofá branco de pele a comer o seu Angel Delight e a ver Desfile dePáscoa ou Os Sapatos Vermelhos – a mãe de Tracey só suportava musicais em tecnicolor – eraimpossível não reparar na placidez de uma pequena família só de mulheres. Em casa de Tracey,o desencanto com o homem pertencia ao passado: na verdade nunca haviam depositado nenhumaesperança nele, já que quase nunca estava em casa. Ninguém ficava surpreendido com aincapacidade do pai de Tracey para fomentar a revolução ou fazer qualquer outra coisa. Mesmoassim, Tracey era firme na sua lealdade à memória do pai ausente, muito mais suscetível de odefender do que eu de falar com simpatia do meu, inexcedivelmente carinhoso. Sempre que amãe falava mal dele, Tracey tratava de me levar para o quarto, ou para outro sítio privado, erapidamente integrar o que a mãe tinha dito na sua própria história oficial, segundo a qual o painão a tinha abandonado, não, nada disso, só que andava muito ocupado porque fazia parte docorpo de dançarinos de apoio de Michael Jackson. Poucas pessoas conseguiam acompanharMichael Jackson a dançar – aliás, quase ninguém conseguia, talvez só houvesse vinte no mundointeiro que estavam à altura. O pai de Tracey era uma dessas pessoas. Nem tinha precisado dechegar ao fim da sua audição – era tão bom que eles tinham percebido logo. Era por isso quequase nunca estava em casa: andava numa interminável digressão mundial. A próxima vez queestaria na cidade era provavelmente no Natal, quando Michael ia atuar em Wembley. Num dialimpo víamos este estádio da varanda de Tracey. Agora é-me difícil dizer que grau decredibilidade atribuía a esta história – havia certamente uma parte de mim que sabia que MichaelJackson, finalmente livre da família, dançava agora sozinho – mas, tal como Tracey, nuncaaventei o assunto na presença da mãe dela. Como facto, aquilo era, na minha ideia, aomesmíssimo tempo absolutamente verdadeiro e absolutamente falso, e talvez só as criançassejam capazes de absorver factos de dupla face como estes.

8

Estava em casa de Tracey, a ver o Top of the Pops, quando passou o vídeo Thriller, era aprimeira vez que qualquer de nós o via. A mãe de Tracey ficou muito excitada: sem se pôrpropriamente de pé, dançou freneticamente, saltando para cima e para baixo nas dobras docadeirão reclinável. «Vamos lá, meninas, quero vê-las a dançar! Toca a mexer – vamos!» Nóslevantámo-nos do sofá e começámos a deslizar de um lado para o outro da carpete, eudesajeitadamente, Tracey com uma boa dose de perícia. Rodopiávamos, levantávamos a pernadireita, deixando o pé a balançar como se fosse de uma marioneta, sacudíamos o corpo comozombies. Havia tanta informação nova: as calças vermelhas de cabedal, o casaco vermelho decabedal, o que em tempos fora um cabelo afro estava agora transformado em algo ainda maisespetacular do que os caracóis de Tracey! E, claro, aquela bonita rapariga negra vestida de azul, apotencial vítima. Também seria «de casta mista»?

Devido às minhas fortes convicções pessoais, quero salientar que este filme não apoia demaneira nenhuma a crença no oculto.

Assim se lia no ecrã, no princípio, eram palavras do próprio Michael, mas que queriam dizer?Só percebíamos a gravidade desta palavra «filme». O que estávamos a ver não era um vídeomusical, nada disso, era uma obra de arte que merecia ser vista num cinema, era de facto umacontecimento mundial, um toque a rebate. Éramos modernas! Aquilo era a vida moderna!Geralmente eu sentia-me distante da vida moderna e da música que a acompanhava – a minhamãe tinha feito de mim um pássaro sankofa – mas acontecia que o meu pai me tinha contadouma história segundo a qual, um dia, Fred Astaire tinha ido a casa de Michael Jackson como umaespécie de discípulo e implorado a Michael que o ensinasse o moonwalk, e isto para mim fazsentido, ainda hoje, porque um grande bailarino é intemporal, não pertence a uma geração,move-se eternamente pelo mundo, pelo que qualquer dançarino de qualquer época podereconhecê-lo. Picasso seria incompreensível para Rembrandt, mas Nijinski compreenderiaMichael Jackson. «Não parem agora, meninas – levantem-se», berrou a mãe de Tracey quandofizemos uma pausa momentânea para descansar, encostadas ao sofá dela. «Só param quandotiverem aprendido! Mexam-se!» A canção parecia muito comprida. Mais comprida que a vida.Parecia-me que nunca mais ia acabar, que estávamos aprisionadas num laço temporal, e queíamos ter de dançar para sempre naquele registo demoníaco, como a pobre Moira Shearer em OsSapatos Vermelhos: «O tempo passa a correr, o amor passa a correr, a vida passa a correr, mas ossapatos vermelhos continuam a dançar.» Mas acabou mesmo. «Foi um espetáculo do caraças»,suspirou a mãe de Tracey, perdendo a compostura, e nós fizemos uma vénia e corremos para oquarto de Tracey.

«Adora vê-lo na televisão», confessou Tracey quando estávamos sozinhas. «Reforça o amor

que há entre eles. Vê-o e sabe que ele ainda a ama.» «Qual deles era?», perguntei. «Segunda fila, o da ponta direita», respondeu Tracey, sem se desmanchar. Não tentei – era impossível – articular estes «factos» sobre o pai de Tracey com as poucas

vezes em que o vi realmente, a primeira das quais foi a mais terrível, foi no princípio denovembro, pouco depois de termos visto Thriller. Estávamos as três na cozinha, a tentar fazerbatatas recheadas com queijo e toucinho fumado, íamos embrulhá-las em papel de alumínio elevá-las para o Roundwood Park, onde assistiríamos ao fogo de artifício. As cozinhas dosapartamentos do complexo onde Tracey vivia ainda eram mais pequenas do que as do nosso;quando se abria, a porta do forno quase roçava na parede em frente. Para caberem três pessoas aomesmo tempo, uma delas – neste caso Tracey – tinha de se sentar no balcão. Cabia-lhe a tarefade raspar a batata da casca, após o que eu, de pé ao seu lado, misturava a batata com queijoralado e tirinhas de toucinho fumado cortadas com uma tesoura, e depois a mãe de Traceyvoltava a pôr tudo dentro da casca e a metê-la no forno para aloirar. Apesar de a minha mãe estarsempre a insinuar que a mãe de Tracey era desleixada, que atraía o caos, achei a cozinha delamuito mais limpa e arrumada que a nossa. A comida nunca era saudável, mas nem por issodeixava de ser preparada com seriedade e cuidado, ao passo que a minha mãe, que tinha aaspiração da comida saudável, não era capaz de passar quinze minutos numa cozinha sem ficarreduzida a uma espécie de autocomiseração maníaca, e muitas vezes toda a equívoca experiência(fazer lasanha vegetariana, fazer «qualquer coisa» com quiabo) resultava tão tortuosa para toda agente que ela armava uma discussão e saía porta fora aos berros. Acabávamos a comer outra vezFindus Crispy Pancakes. Em casa de Tracey as coisas eram mais simples: começava-se com afirme intenção de fazer Findus Crispy Pancakes ou piza (do congelador) ou salsichas e batatasfritas e era tudo delicioso e ninguém desatava aos berros. Estas batatas eram uma iguariaespecial, uma tradição da Noite dos Fogos de Artifício. Lá fora estava escuro, apesar de só seremcinco da tarde, e em todo o complexo sentia-se o cheiro a pólvora. Cada apartamento tinha o seuarsenal particular, e os rebentamentos esparsos e as pequenas conflagrações localizadas haviamcomeçado duas semanas antes, quando as confeitarias começaram a vender foguetes. Ninguémesperava por acontecimentos especiais. Os gatos eram as vítimas mais frequentes destapiromania generalizada, mas de vez em quando havia um miúdo que ia parar às urgências. Nomeio de tantos estrondos – e apesar de estarmos habituadas a eles – a princípio ninguém seapercebeu de que estavam a bater à porta da casa de Tracey, mas depois ouvimos alguém ora aberrar ora a sussurrar, e reconhecemos o pânico e a cautela em confronto. Era uma voz dehomem, que dizia: «Deixa-me entrar. Deixa-me entrar! Ouve, mulher, abre a porta!»

Tracey e eu olhámos para a mãe dela, que ficou parada a olhar para nós, com um tabuleiro decremosas batatas perfeitamente recheadas na mão. Sem reparar no que estava a fazer, tentoupousá-lo em cima do balcão, calculou mal, deixou-o cair.

«Louie?», disse. Agarrou-nos, desceu Tracey do balcão, pisámos batatas. Arrastou-nos pelo corredor e

empurrou-nos para dentro do quarto de Tracey. Recomendou-nos que não mexêssemos ummúsculo. Fechou a porta e deixou-nos sozinhas. Tracey foi direita para a cama, meteu-se nela epôs-se a jogar Pac-Man. Não queria olhar para mim. Era evidente que não podia perguntar-lhenada, nem sequer se Louie era o nome do pai. Fiquei quieta onde a mãe dela me tinha deixado e

esperei. Nunca tinha assistido a tamanha agitação em casa de Tracey. Quem quer que Louiefosse, já lhe tinham aberto a porta – ou tinha forçado a entrada – e uma em cada duas palavrasera foda-se, e ouviram-se grandes estrondos e colisões enquanto ele derrubava a mobília, e umlancinante choro feminino, parecia uma raposa a uivar. Eu estava de pé junto à porta e olhavapara Tracey, que continuava encolhida na cama da Barbie, mas não me parecia que estivesse aouvir-me ou sequer se lembrasse de que eu estava ali: não tirava os olhos do Pac-Man. Dezminutos depois tudo tinha acabado: ouvimos bater a porta da rua. Tracey deixou-se ficar na camae eu no sítio onde me tinham posto, incapaz de fazer o mais pequeno movimento. Ao fim dealgum tempo ouvimos bater ao de leve na porta do quarto e a mãe de Tracey entrou, ruborizadapelo choro, com um tabuleiro de Angel Delight, da cor da sua cara. Sentámo-nos a comer emsilêncio e, mais tarde, fomos ver o fogo de artifício.

9

Uma espécie de negligência caracterizava as mães que conhecíamos, ou era isso que pareciaaos estranhos, mas nós conhecíamo-la por outro nome. Aos professores da escola é provável quedesse a impressão de que nem sequer se davam ao trabalho de aparecer na reunião de pais, onde,em mesa atrás de mesa, os professores se sentavam, a olhar para o vazio, esperandopacientemente por estas mães que nunca vinham. E eu percebo que as nossas mães parecessemum pouco negligentes quando, informadas por um professor de algum ato de indisciplina norecreio, desatavam a berrar com o professor, em vez de repreenderem a filha ou o filho. Mascompreendíamos um pouco melhor as nossas mães. Sabíamos que, quando tinham a nossa idade,haviam temido a escola, como nós a temíamos agora, temiam as regras arbitrárias, sentiam-seenvergonhadas por causa delas, por causa dos uniformes novos que não podiam comprar, daincompreensível obsessão com o silêncio, da constante correção do seu patoá ou cockney deorigem, da sensação de que, de qualquer maneira, nunca seriam capazes de fazer nada direito.Uma angústia profunda perante a possibilidade de serem repreendidas – por serem quem eram,por aquilo que haviam ou não haviam feito, e agora pelos atos dos seus filhos –, este temor nuncadeixou verdadeiramente em paz as nossas mães, muitas das quais se tinham tornado nossas mãesquando elas próprias eram pouco mais do que crianças. Por isso «reunião de pais» não andava,na ideia delas, muito longe de «castigo». Continuava a ser um lugar onde corriam o risco de serhumilhadas. A diferença era que agora eram crescidas e ninguém podia obrigá-las acomparecer.

Digo «as nossas mães», mas é claro que a minha era diferente: tinha a revolta, mas não avergonha. Ia sempre à reunião de pais. Naquele ano, não se sabe porquê, calhou no Dia de SãoValentim: a sala estava toscamente decorada com corações de papel cor-de-rosa agrafados àsparedes, e cada mesa exibia uma rosa murcha de papel absorvente amarrotado na ponta de umlimpador de cachimbo verde. Eu ia atrás, agarrada às saias dela, enquanto ela andava pela sala,invetivando os professores, ignorando todas as tentativas de discutir o meu aproveitamento,dando em vez disso uma série de lições improvisadas sobre a incompetência da administração daescola, a cegueira e estupidez da autarquia local, a urgente necessidade de «professores de cor» –a primeira vez, que me lembre, que ouvi o novo eufemismo «de cor». Aqueles pobresprofessores agarravam-se desesperadamente aos rebordos das mesas. A certa altura, para reforçaruma afirmação, deu um murro numa mesa, espalhando pelo chão uma rosa de papel e muitoslápis: «Estas crianças merecem mais!» Não eu em particular – «estas crianças». Que bem melembro de ela ter feito aquilo, e que bonita que ela estava, parecia uma rainha! Senti orgulho emser sua filha, a filha da única mulher do bairro que não tinha vergonha. De rompante saímos asduas da sala, a minha mãe triunfante, eu em êxtase, nenhuma de nós mais esclarecida quanto ao

meu aproveitamento escolar. Lembro-me, porém, de uma ocasião de vergonha, dias antes do Natal, num fim de tarde de

sábado, depois da aula de dança, depois da visita ao tio Lambert, estava eu a ver um número deFred e Ginger, «Pick Yourself Up», na minha casa, com Tracey, vezes sem conta. Tracey tinha aambição de, um dia, recriar aquele número completo – o que hoje me parece mais ou menos omesmo que alguém olhar para a Capela Sistina e ter a esperança de a recriar no teto do quarto –apesar de até então só ter treinado a parte masculina, nunca passou pela cabeça de nenhuma denós aprender a parte de Ginger em coisa nenhuma. Tracey estava de pé na soleira da porta quedava para a sala de estar, a sapatear – na minha casa não havia tapetes – e eu estava de joelhos aopé do VHS, rebobinando e fazendo pausa conforme necessário. A minha mãe estava na cozinhasentada num banco alto, a estudar. O meu pai – coisa rara – tinha «saído», sem explicações,simplesmente «saído», por volta das quatro da tarde, sem propósito declarado nem missão quefosse do meu conhecimento. A dada altura arrisquei entrar na cozinha para ir buscar dois coposde Ribena. Em vez de ir encontrar a minha mãe debruçada sobre os livros, de tampões enfiadosnas orelhas, dei com ela a olhar fixamente para a janela, com a cara coberta de lágrimas. Quandome viu teve um ligeiro sobressalto, como se eu fosse um fantasma.

«Estão a chegar», disse, quase para dentro. Olhei para onde ela estava a olhar e vi o meu paiatravessar o complexo com dois jovens brancos atrás, um rapaz dos seus vinte anos e umarapariga que devia ter quinze ou dezasseis.

«Quem é que está a chegar?» «Umas pessoas que o teu pai quer que tu conheças.» E a vergonha que sentia, suponho eu, era a vergonha da impotência: não podia dominar esta

situação nem proteger-me dela porque, por uma vez, não tinha grande coisa que ver com ela. Oque fez foi ir a correr para a sala de estar e mandar Tracey embora, mas Tracey demoroupropositadamente a recolher as suas coisas: queria vê-los bem. Eram dignos de se ver. Ao perto,o rapaz tinha cabelo loiro desgrenhado e barba, vestia roupas sujas, feias e antiquadas, os jeanseram remendados e tinha montes de emblemas de bandas de rock presas por alfinetes à mochilade lona esfiapada: parecia propalar desassombradamente a sua pobreza. A rapariga eraigualmente exótica, mas mais limpa, verdadeiramente «branca como a neve», como num contode fadas, com uma severa cabeleira preta cortada a direito na testa e em diagonal por cima dasorelhas. Vestia toda de preto, calçava um par de grandes Dr. Martens pretas e era franzina, defeições delicadas – tirando um busto grande e indecente que parecia tentar disfarçar com todoaquele preto. Tracey e eu olhámos fixamente para eles. «Está na hora de ires para casa», disse omeu pai para Tracey, e eu, ao vê-la afastar-se, percebi até que ponto era minha aliada, apesar detudo, porque sem ela, naquele momento, sentia-me completamente indefesa. Os adolescentesbrancos entraram para a nossa sala de estar. O meu pai disse-lhes que se sentassem, mas só arapariga se sentou. Assustou-me ver a minha mãe, que me habituara a ver como uma pessoaabsolutamente não-neurótica, numa grande agitação, a tropeçar nas palavras. O rapaz – chamava-se John – não queria sentar-se. Quando a minha mãe insistiu com ele para que se sentasse, elenão olhou para ela nem lhe respondeu, e nessa altura o meu pai disse qualquer coisasurpreendentemente ríspida e ficámos todos a ver John sair de casa a toque de caixa. Eu corripara a varanda e vi-o lá em baixo no relvado comum, sem sair do sítio – tinha de esperar pelarapariga – dando passos num pequeno círculo, calcando a geada debaixo dos pés. Restava arapariga. Chamava-se Emma. Quando voltei para dentro a minha mãe quis que eu fosse sentar-me ao pé dela. «Apresento-te a tua irmã», disse o meu pai, e foi fazer chá. A minha mãe estava

de pé junto à árvore de Natal, fingindo fazer qualquer coisa de útil com a iluminação. A raparigavirou-se para mim e olhámo-nos francamente nos olhos. Tanto quanto me era dado ver nãoéramos nada parecidas, tudo aquilo era ridículo, e percebi que aquela criatura chamada Emmapensava exatamente o mesmo de mim. Além do facto evidentemente cómico de eu ser negra eela branca, eu tinha os ossos largos e ela estreitos, eu era alta para a minha idade e ela era baixapara a sua, os meus olhos eram grandes e castanhos e os dela eram estreitos e verdes. Mas então,no mesmo momento, senti que ambas tínhamos identificado os pontos comuns: a boca descaídanos cantos, os olhos tristes. Não me lembro de ter pensado com lógica, não me perguntei, porexemplo, quem era a mãe de Emma e quando teria conhecido o meu pai. A minha cabeça não iatão longe. Só pensei: ele fez uma como eu e uma como ela. Como podem duas criaturas tãodiferentes brotar da mesma fonte? O meu pai regressou à sala com uma bandeja de chá.

«Bom, isto é tudo uma surpresa e tanto, não é?», disse, passando uma caneca a Emma. «Paratodos. Há muito tempo que não vejo... Mas sabes, a tua mãe resolveu de repente... Mas ela é umamulher de repentes, não é verdade?» A minha irmã olhou para o meu pai com indiferença, e eledesistiu logo do que estava a querer dizer e passou à conversa de circunstância. «Parece que aEmma faz balé. Aí está uma coisa que as duas têm em comum. Esteve uns tempos no RoyalBallet – com uma bolsa de estudos integral – mas teve de desistir.»

Dançar no palco, queria ele dizer? Em Covent Garden? No corpo principal? Ou no «cadáver»,como Tracey lhe chamava? Mas não – «bolsa de estudos» soava a coisa de escola. Haveria entãouma «Escola do Royal Ballet»? Mas, se tal coisa existia, porque é que não me mandaram para lá?E se tinham mandado para lá esta Emma, quem pagava? Porque é que teve de desistir? Por ter opeito assim grande? Ou será que uma bala lhe perfurou a coxa?

«Pode ser que um dia dancem juntas!», disse a minha mãe para quebrar o silêncio, género deinanidade maternal em que muito raramente caía. Emma olhou para a minha mãe a medo – era aprimeira vez que ousava olhá-la nos olhos – e o que quer que tenha visto neles teve o condão dea horrorizar inesperadamente: rompeu em lágrimas. A minha mãe saiu da sala. O meu pai disse-me: «Vai um bocadinho até lá fora. Vai. Veste o casaco.»

Levantei-me do sofá, tirei o anoraque do cabide e saí. Percorri o passadiço a tentar juntar opouco que sabia do passado do meu pai com esta nova realidade. Era de Whitechapel, de umafamília numerosa de East End, não tão numerosa como a da minha mãe mas andava lá perto, e opai dele tinha-se dedicado à pequena criminalidade, não sei de que tipo, sempre dentro e fora daprisão, e era por isso, explicou-me a minha mãe um dia, que o meu pai se esforçava tanto pelaminha infância: cozinhando, levando-me à escola e às aulas de dança, preparando-me a lancheirae outras coisas mais, tudo atividades invulgares para um pai, naquela época. Eu era acompensação – a desforra – pela infância dele. Também sabia que ele, a certa altura, «nãoprestava». Um dia estávamos a ver televisão quando veio à baila qualquer coisa sobre os gémeosKray e o meu pai disse tranquilamente: «Ora, ora, toda a gente os conhecia, era impossível nãoos conhecer, naquela época.» Os muitos irmãos dele «não prestavam», o East End em geral «nãoprestava», e tudo isto contribuiu para consolidar a ideia que eu tinha do nosso canto de Londrescomo um pequeno pico de ar puro que se erguia acima do pântano geral, para o qual podíamosser arrastados de várias direções, de regresso à verdadeira pobreza e ao crime. Mas nuncaninguém tinha falado de um filho nem de uma filha.

Desci as escadas para o pátio comum e encostei-me a um pilar de betão, a ver o meu «irmão»pontapear pequenos torrões de relva semigelada. Com o cabelo comprido, a barba e a caracomprida, parecia-me o Jesus adulto, que só conhecia de uma cruz que havia na parede da sala

de aulas de dança de Miss Isabel. Ao contrário da minha reação à rapariga – de que estavasimplesmente em presença de algum tipo de fraude –, ao olhar para o rapaz achei inegável quetinha uma autenticidade essencial. Era autêntico que era filho do meu pai, quem olhasse para elevia que isso fazia todo o sentido. Quem não fazia sentido era eu. Senti-me invadida por umasensação de fria objetividade: o mesmo instinto que me permitia separar a voz da garganta comoobjeto de análise, de estudo, vinha agora ao de cima, levando-me a olhar para o rapaz e pensar:sim, ele está certo e eu estou errada, não é interessante? Talvez pudesse ter pensado que eu era afilha verdadeira e o rapaz a falsificação, mas não pensei.

Ele virou-se e deu pela minha presença. Houve alguma coisa na expressão dele que me disseque estava com pena de mim, e fiquei sensibilizada quando, com uma amabilidade natural,iniciou um jogo das escondidas à volta dos pilares de betão. De cada vez que a cabeça loiradesgrenhada saía de trás de um bloco, eu tinha aquela sensação extracorpórea: aqui está o filhodo meu pai, parecendo exatamente o filho do meu pai, não é interessante? Enquanto brincávamosouvimos vozes exaltadas que vinham lá de cima. Eu tentei ignorá-las, mas o meu novo parceirode brincadeiras parou e pôs-se debaixo da varanda à escuta. A certa altura a raiva voltou achispar-lhe nos olhos e disse-me: «Vou-te dizer uma coisa: ele não quer saber de ninguém. Não éo que parece. É marado da cabeça. Casar com aquela maldita preta!»

E nessa altura vinha a rapariga a descer as escadas. Não vinha ninguém a correr atrás dela, nemo meu pai nem a minha mãe. Ainda vinha a chorar e correu para o rapaz e abraçaram-se e, aindaabraçados, atravessaram o relvado e abandonaram o complexo. Nevava levemente. Fiquei a vê-los partir. Não voltei a vê-los até o meu pai morrer e nunca se falou deles durante a minhainfância. Durante muito tempo pensei que tudo não passava de uma alucinação, ou de algumacoisa que tinha retido de um mau filme. Quando Tracey me fez perguntas sobre o assunto contei-lhe a verdade, embora com alguns acrescentos: garanti que um edifício por onde passávamostodos os dias, em Willesden Lane, aquele que tinha o toldo azul desbotado, era a Escola do RoyalBallet, e que a minha rica e cruel irmã branca andava naquela escola, e era bailarina, masrecusava-se a fazer-me o mais pequeno aceno da janela, acreditas numa coisa destas? Elaescutava e eu via-lhe na cara que estava a fazer um grande esforço para acreditar, o que se notavaprincipalmente nas narinas. O mais provável, naturalmente, era que a própria Tracey já tivesseestado naquele edifício, e soubesse perfeitamente o que ele era: um degradado salão de festasonde se realizavam muitos casamentos modestos de gente local, e às vezes se jogava o bingo.Semanas depois, estava eu sentada no banco de trás do ridículo carro da minha mãe – umpequeno 2CV branco, ostensivamente francês, com um autocolante da CND3 ao lado do selo doimposto de circulação – quando vi uma noiva de rosto fechado, meio submersa em tule ecaracóis, à porta do meu Royal Ballet, fumando uma passa, mas não permiti que esta visãoinvadisse a minha fantasia. Na altura tinha conseguido comungar da insusceptibilidade da minhaamiga à realidade. E agora, como se estivéssemos a tentar subir as duas ao mesmo tempo paraum baloiço sobe-e-desce – nenhuma de nós fazia demasiada força e conseguíamos manter umequilíbrio instável. Eu podia continuar a ter a minha bailarina má se ela pudesse continuar a ter oseu dançarino de apoio. Talvez nunca tenha perdido este hábito de colaboração. Passados vinteanos revisitei a história dos meus irmãos fantasmagóricos num almoço difícil com a minha mãe,que suspirou, acendeu um cigarro e disse: «Lá estás tu com as tuas fantasias melodramáticas.»

3 Campaign for Nuclear Disarmament – Campanha pelo Desarmamento Nuclear. (N. do T.)

10

Muito antes de fazer disso carreira, a minha mãe já tinha um espírito político: estava-lhe namassa do sangue pensar nas pessoas coletivamente. Mesmo na infância isso era evidente paramim, e sentia que havia qualquer coisa de gélido e insensível na sua capacidade de analisar comgrande precisão quem a rodeava: os amigos, a comunidade, até a família. Éramos todos pessoasque ela conhecia e amava e ao mesmo tempo objetos de estudo, representações vivas de tudoaquilo que aparentemente andava a aprender no Middlesex Poly. Mantinha-se à parte, sempre.Nunca se submetia, por exemplo, ao culto da «impecabilidade» reinante no bairro – a paixão dosfatos de treino reluzentes, das coruscantes joias falsas, dos dias inteiros passados no cabeleireiro,dos filhos com ténis de cinquenta libras, dos sofás pagos a prestações ao longo de vários anos –se bem que também não condenasse completamente nenhuma destas coisas. As pessoas não sãopobres por terem tomado opções erradas, gostava de dizer a minha mãe, tomam opções erradasporque são pobres. Mas apesar de tratar estes assuntos de forma serena e antropológica nos seustrabalhos da faculdade – ou nas preleções que nos dava, ao meu pai e a mim, à mesa de jantar –eu sabia que na vida real se exasperava muitas vezes. Já não ia buscar-me à escola – agora era omeu pai que ia – porque isso a irritava imenso, em particular a forma como, todas as tardes, otempo se comprimia e todas aquelas mães voltavam a ser crianças, crianças que iam buscar assuas crianças, e todas aquelas crianças viravam costas à escola com alívio, finalmente livres defalarem à vontade umas com as outras, e rirem e dizerem piadas e comerem gelado da carrinhados gelados que as esperava, e de fazerem a quantidade de barulho que para elas era natural.

De vez em quando era apanhada na armadilha, normalmente por algum erro de cálculo, e via-se enredada numa conversa com uma das mães, quase sempre a de Tracey, em Willesden Lane.Nessas alturas chegava a ser sobranceira, fazendo questão de referir todas as minhas novasfaçanhas escolares – ou inventando umas quantas – apesar de saber que a mãe de Tracey só tinhapara a troca mais elogios de Miss Isabel, o que para a minha mãe era mercadoria de nenhumvalor. A minha mãe orgulhava-se de se esforçar mais do que a mãe de Tracey, mais do que todasas mães, de ter conseguido que eu frequentasse uma escola pública razoavelmente decente emvez de uma das várias escolas péssimas. Estava numa competição de amor maternal, mas as suasadversárias, como a mãe de Tracey, estavam tão mal preparadas em comparação com ela que abatalha era fatalmente desigual. Muitas vezes me perguntava: será alguma espécie de troca? Asoutras terão de perder para nós podermos ganhar?

Certa manhã, no início da primavera, o meu pai e eu encontrámos Tracey no pátio do nosso

complexo, junto às garagens. Parecia nervosa, e, apesar de ter dito que só estava a atalhar

caminho pelo nosso complexo para chegar ao seu, tive a certeza de que estava à minha espera.Parecia ter frio: duvidei de que tivesse sequer ido à escola. Sabia que às vezes fazia gazeta, como beneplácito da mãe. (A minha mãe tinha ficado escandalizada ao vê-las, numa tarde de aulas,sair da What She Wants, na rua das lojas, rindo e transportando um monte de sacos de compras.)Reparei que o meu pai cumprimentou Tracey calorosamente. Ao contrário da minha mãe, nãotinha nada contra ela, achava a firme dedicação dela à dança enternecedora e também, penso eu,digna de admiração – calava fundo na sua própria ética de trabalho – e era visível que Traceyadorava o meu pai, estava mesmo um pouco apaixonada por ele. Sentia-se dolorosamente gratapor ele falar com ela como um pai, se bem que houvesse alturas em que ele exagerava, semperceber que aquilo que vinha depois de ter um pai emprestado durante alguns minutos era a dorde ter de o devolver.

«Os exames estão à porta, não estão?», perguntou-lhe ele. «E como estão a correr as coisas?» A Tracey empinou orgulhosamente o nariz no ar: «Vou concorrer às seis categorias.» «Claro que vais.» «Mas na moderna tenho um par, não vou sozinha. O balé é o meu forte, depois o sapateado,

depois a moderna, depois o canto e dança. Vou tentar conquistar três medalhas de ouro, pelomenos, mas se fossem duas de ouro e quatro de prata já me dava por satisfeita.»

«E com razão.» Pôs as mãozinhas nas ancas. «Vai assistir, ou quê?» «Claro que vou! Com muito gosto! Para apoiar as minhas meninas.» Tracey adorava gabar-se ao meu pai, desabrochava na presença dele, às vezes até corava, e as

respostas monossilábicas de sim e não que por norma dava a todos os outros adultos, incluindo aminha mãe, desapareciam, sendo substituídas por esta algaraviada ininterrupta, como se receasseque qualquer pausa na torrente a fizesse correr o risco de perder definitivamente a atenção domeu pai.

«Tenho novidades», deixou cair, virando-se para mim, e então percebi por que razão atínhamos encontrado inesperadamente. «A minha mãe resolveu o assunto.»

«Qual assunto?» «Vou deixar a minha escola», disse ela. «Vou para a tua.» Mais tarde, em casa, dei a notícia à minha mãe, que também ficou surpreendida e, tal como eu

suspeitava, um tanto desagradada, com esta prova de empenhamento da mãe de Tracey para bemda filha, mais do que com qualquer outra coisa. Sibilou entre dentes: «Não a julgava capazdisto.»

11

Foi preciso Tracey vir para a minha turma para eu perceber o que a minha turma era realmente.Até aí pensava que era uma sala cheia de crianças. Afinal era uma experiência sociológica. Afilha da funcionária da cantina partilhava uma carteira com o filho de um crítico de arte, umrapaz que tinha o pai na prisão partilhava uma carteira com o filho de um polícia. A filha de umfuncionário dos correios partilhava uma carteira com a filha de um dançarino do grupo de apoiode Michael Jackson. Um dos primeiros atos de Tracey como minha companheira de carteira foiarticular estas diferenças subtis com base numa analogia simples, mas convincente: os CabbagePatch Kids4 e os Garbage Pail Kids5. Cada criança era classificada numa das categorias, e Traceydeixava bem claro que quaisquer amizades que eu tivesse feito antes de ela chegar eram agora –por muito que se tivessem esforçado por saltar a vala – nulas e de nenhum efeito, inválidas,porque a verdade era que nunca tinham sequer existido. Não podia haver verdadeira amizadeentre Cabbage Patch e Garbage Pail, pelo menos agora, pelo menos em Inglaterra. Esvaziou anossa carteira comum da minha querida coleção de cromos dos Cabbage Patch Kids e substituiu-os pelos seus cromos dos Garbage Pail Kids, os quais – como quase tudo aquilo que Tracey fezna escola – se transformaram imediatamente na nova moda. Até crianças que eram, aos olhos deTracey, do tipo Cabbage Patch os colecionavam, a própria Lily Bingham colecionava-os, e todoscompetíamos uns com os outros pela posse dos cromos mais repelentes: o Garbage Pail Kid comranhos a correr-lhe pela cara, ou aquele sentado na sanita. Outra inovação notável que Traceytrouxe consigo foi a recusa em sentar-se. Só aceitava ficar de pé diante da carteira, curvando-separa trabalhar. O nosso professor – um sujeito enérgico chamado Sherman – deu-lhe luta duranteuma semana, mas a vontade de Tracey, tal como a da mãe, era de ferro, e acabou por ficar de pé,como queria. Não creio que Tracey tivesse uma predileção especial por estar de pé, era umaquestão de princípio. O princípio, para dizer a verdade, podia ser um qualquer, mas a questão eraque tinha de sair vencedora. Era evidente que o Senhor Sherman, uma vez perdida a disputa,tinha de ser impiedoso noutro aspeto qualquer e certa manhã, quando estávamos todos em grandeexcitação a trocar Garbage Pail Kids em vez de ouvirmos o que ele estava a dizer, de repenteperdeu completamente as estribeiras, desatoua berrar como um louco, andando de carteira em carteira a recolher os cromos, umas vezes dedebaixo dos tampos das carteiras e outras das nossas mãos, até que ficou com um enorme montedeles em cima da secretária que depois juntou numa pilha e empurrou para dentro de uma gaveta,que fechou ostensivamente com uma chavinha. Tracey não disse nada, mas as suas narinas deleitão enfunaram-se e eu pensei: ai, ai, será que o Senhor Sherman não percebe que ela nuncamais lhe perdoa?

Nessa mesma tarde, depois das aulas, regressámos a casa juntas. Ela não me falava, continuava

furiosa, mas quando eu fiz menção de virar para o meu complexo agarrou-me pelo pulso, e fez-me atravessar a estrada para o dela. Subimos no elevador em silêncio. Parecia que algo de graveestava para acontecer. Sentia-lhe a raiva como se fosse uma aura à sua volta, quase vibrava.Quando chegámos à porta da casa dela reparei que o batente – um leão de Judá de latão com aboca aberta, comprado na rua principal numa das tendas que vendiam objetos africanos – estavadanificado e pendia agora de um único prego, e perguntei-me se o pai dela não teria voltado aaparecer. Segui Tracey até ao quarto. Depois de fechar a porta ela virou-se para mim, de olhosarregalados, como se eu fosse o Senhor Sherman, e perguntou-me em tom agressivo o que queriafazer, agora que ali estávamos. Eu não tinha ideia nenhuma: nunca me tinha dado a escolher oque queria fazer, era ela que tinha as ideias todas, nunca até hoje eu tinha feito planos.

«Então para que é que vieste comigo, se não fazes porra de ideia?» Atirou-se para cima da cama, pegou no Pac-Man e pôs-se a jogar. Eu senti um rubor na cara.

Humildemente, sugeri que treinássemos os passos ternários, mas Tracey rosnou-me. «Não preciso. Agora ando a treinar wings.» «Mas eu ainda não sei fazer wings!» «Escuta», disse ela, sem levantar os olhos do ecrã, «ninguém chega à prata sem fazer wings,

muito menos ao ouro. Então para que é que o teu pai há de ir assistir se vais fazer merda? Nãovale a pena, pois não?»

Olhei para os meus estúpidos pés, que não sabiam fazer wings. Sentei-me e comecei a chorarbaixinho. Não serviu de nada, e passado um minuto dei comigo infeliz e bloqueada. Resolvientreter-me a organizar o guarda-roupa da Barbie. Todas as indumentárias dela tinham sidoatafulhadas no descapotável do Ken. A minha ideia era tirá-las dali, alisá-las, pendurá-las noscabides pequeninos e voltar a metê-las no guarda-vestidos, que era o tipo de brincadeira quenunca me era permitido em casa devido aos seus ecos de repressão doméstica. Estava a meiodesta minuciosa operação quando, misteriosamente, Tracey se compadeceu de mim: deslizou dacama e veio sentar-se ao meu lado no chão, de pernas cruzadas. Juntas, pusemos em ordem avida daquela minúscula mulher branca.

4 Coleção de bonecos simpáticos e bonzinhos, feitos de material maleável. (N. do T.)

5 Coleção de cromos que parodiam os Cabbage Patch Kids. (N. do T.)

12

Tínhamos um vídeo preferido, estava etiquetado «Desenhos Animados de Sábado e ChapéuAlto» e passava semanalmente da minha casa para a de Tracey e vice-versa, tantas vezes tocadoque agora a busca comia a imagem, em cima e em baixo. Por causa disso não podíamos correr orisco de o acelerar enquanto passava – ainda piorava mais a busca – e portanto avançávamos «àscegas», tentando calcular a duração pela quantidade de fita preta que passava de uma bobina paraa outra. Tracey era perita em avançar a fita, parecia saber por instinto quando tínhamos deixadopara trás os desenhos animados sem interesse e quando devia carregar no stop para chegar, porexemplo, à canção «Cheek to Cheek». Espanta-me como hoje, quando quero ver este mesmovídeo – como fiz há minutos, antes de escrever isto – não preciso de nenhum esforço, tudo é feitonum momento, digito o meu pedido na janela e ele aparece. Naquele tempo era preciso terhabilidade. Fomos a primeira geração a ter em casa os meios com que se podia fazer a realidadeandar para trás e para a frente: até as crianças mais pequenas conseguiam carregar com os dedosnaqueles botões rechonchudos e viam aquilo que foi transformar-se no que é ou no que será.Quando Tracey se entregava a esta tarefa entrava em concentração absoluta, não premia o botãoplay enquanto não tivesse posto Fred e Ginger exatamente onde os queria, na varanda, entre abuganvília e as colunas dóricas. Nessa altura começava a ler a dança, como eu nunca fui capaz defazer, via tudo, as penas de avestruz que roçavam pelo chão, os músculos fracos das costas deGinger, o que Fred tinha de fazer para a levantar de qualquer posição supina, quebrando o ritmo,estragando o número. Reparava na coisa mais importante de todas, que é a aula de dança contidana execução. Com Fred e Ginger podemos ver sempre a aula de dança. Em certo sentido a aulade dança é a execução. Ele não está a olhar para ela com amor, nem sequer amor fingido decinema. Está a olhar para ela como Miss Isabel olhava para nós: não te esqueças de x, por favortem atenção a y, levanta o braço agora, baixa a perna, gira, flete, vénia.

«Olha para ela», dizia Tracey com um sorriso estranho, pondo um dedo em cima da cara deGinger no ecrã. «Está borrada de medo.»

Foi durante um destes visionamentos que fiquei a saber uma coisa nova e importante acerca deLouie. Na altura não estava mais ninguém em casa, e como a mãe de Tracey se chateava quandovíamos o mesmo clipe muitas vezes seguidas, nessa tarde tirámos a barriga de misérias. Nomomento em que acabou de dançar e se encostou à balaustrada, Tracey foi de gatas e carregououtra vez no botão, e lá fomos nós de volta ao que já foi. Devemos ter visto o mesmo clipe umadúzia de vezes. Até que de repente achámos que já bastava: Tracey pôs-se de pé e disse-me que aacompanhasse. Cá fora estava escuro. Eu não sabia quando a mãe dela chegaria a casa. Passámospela cozinha e entrámos no quarto de banho. Era exatamente igual ao meu. O mesmo chão decortiça, as mesmas louças cor de abacate. Ela pôs-se de joelhos e empurrou o painel lateral da

banheira: caiu facilmente. Numa caixa de sapatos Clarks, mesmo ao pé dos canos, estava umapequena pistola. Tracey pegou na caixa e mostrou-ma. Disse-me que era do pai, que ele a tinhadeixado ali, e quando Michael viesse a Wembley pelo Natal Louie seria seu segurança além deum dos seus dançarinos, tinha de ser assim para despistar as pessoas, era tudo supersecreto. Secontas a alguém, disse-me, morres. Voltou a pôr o painel no sítio e foi para a cozinha fazer chá.Eu fui para casa. Lembro-me de ter sentido grande inveja da sofisticação da vida familiar deTracey em comparação com a minha, do segredo e emoção que a rodeavam, e no caminho paracasa tentei pensar nalguma revelação equivalente para oferecer a Tracey na próxima vez em queestivesse com ela, uma doença terrível ou um novo bebé, mas não tinha nada, nada, nada!

13

Estávamos as duas de pé na varanda. Tracey empunhava um cigarro, roubado ao meu pai, e eupreparava-me para lho acender. Não cheguei a acendê-lo, porque ela cuspiu-o da boca e atirou-opara trás das costas ao mesmo tempo que apontava para a minha mãe que, afinal, estava mesmopor baixo de nós no relvado do complexo, a sorrir cá para cima. Era uma quente e luminosamanhã de domingo, em meados de maio. A minha mãe brandia uma pá enorme, parecia umagricultor soviético, e vestia uma roupa fantástica: calças de peitilho de sarja azul, top curtocastanho-claro, em combinação perfeita com o tom da pele, sandálias Birkenstock e lençoquadrado amarelo dobrado em triângulo a prender-lhe o cabelo. O lenço estava atado na nucacom um nó elegante. Estava a tratar, explicou, de escavar o relvado comunitário, um retângulo dedoze palmos por quatro, com a ideia de fazer uma horta para usufruto de toda a gente. Tracey eeu ficámos a observá-la. Cavou durante algum tempo, parando a espaços para pousar o pé norebordo da pá e berrar cá para cima informações sobre alfaces, as várias qualidades de alface, aaltura certa para as plantar, informações que não nos interessavam nem um bocadinho, mas tudoquanto ela dizia parecia mais persuasivo por força daquela indumentária. Vimos várias pessoasque saíam dos seus apartamentos para manifestarem a sua apreensão ou questionarem o direitoque ela tinha de fazer o que estava a fazer, mas não tinham argumentos para ela, e nós registámose admirámos a forma como ela despachava os pais em poucos minutos – basicamente olhando-osnos olhos – ao passo que das mães enfrentava resistência, sim, com as mães tinha de se esforçarum pouco mais, afogando-as em linguagem até compreenderem que estavam a pisar terrenomovediço e com uma corrente franzina de objeções que era completamente engolida pelascorrentes torrenciais da conversa da minha mãe. Tudo quanto dizia soava extremamenteconvincente, impossível de contraditar. Quem não gostava de rosas? Quem era tão tacanho quenegasse a uma criança do interior da cidade o prazer de plantar uma semente? Não éramos todosde origem africana? Não éramos gente da terra?

Começou a chover. A minha mãe, que não estava vestida para a chuva, voltou para dentro decasa. Na manhã seguinte, antes de irmos para a escola, foi com entusiasmo que presenciámos oseguinte espetáculo: a minha mãe, com ar de Pam Grier, abrindo uma cova grande, ilegal, semautorização da câmara. Mas a pá jazia no sítio exato onde ela a tinha deixado e a cova estavacheia de água e a cova parecia uma sepultura semiaberta. No dia seguinte voltou a chover e aescavação não avançou. Ao terceiro dia começou a jorrar uma lama cinzenta que se espalhoupela relva.

«É barro», disse o meu pai, espetando um dedo naquilo. «Agora é que ela tem um problema.» Mas estava enganado: quem tinha o problema era ele. Alguém tinha dito à minha mãe que o

barro é apenas uma camada da Terra e bastava escavar o suficiente para o atravessar, e nessa

altura bastava ir ao horto comprar um bocado de adubo e deitá-lo para dentro do buraco grande,ilegal... Espreitámos para dentro do buraco que o meu pai estava agora a escavar: por baixo dobarro havia mais barro. A minha mãe veio cá abaixo e espreitou também lá para dentro, edeclarou-se «muito entusiasmada» por ter aparecido barro. Nunca mais falou nas hortaliças, e semais alguém as referia adotava sem hesitação a nova posição oficial, segundo a qual o buraconunca fora pensado para hortaliças, o buraco sempre tivera a finalidade de procurar barro. Coisaque finalmente havia acontecido. Aliás, tinha duas rodas de oleiro à espera lá em casa. Quematerial maravilhoso para as crianças trabalharem!

As rodas eram pequenas e muito pesadas, tinha-as comprado porque «gostava do aspetodelas», numa gélida manhã de fevereiro em que as portas do elevador estavam avariadas: o meupai fez força nos joelhos, firmou os braços e carregou as malditas rodas por três lanços deescadas acima. Eram muito rudimentares, de certo modo brutais, ferramentas de camponês, enunca lhes tinha sido dado outro uso no nosso apartamento que não fosse o de manter a porta dasala aberta. Agora íamos usá-las, tínhamos de as usar: se não as usássemos, a minha mãe teriaaberto um buraco enorme no jardim comunitário sem razão nenhuma. Tracey e eu fomosencarregadas de reunir crianças. Só conseguimos convencer três miúdos do complexo: para fazernúmero acrescentámos Lily Bingham. À pazada, o meu pai encheu de barro uns sacos desupermercado e acartou-os para o apartamento. A minha mãe pôs uma mesa de cavalete navaranda e despejou um grande pedaço de barro diante de cada um de nós. Era um processo sujo,provavelmente teria sido melhor fazer aquilo no quarto de banho ou na cozinha, mas a varandaacrescentava um elemento de exposição: ali toda a gente podia ver o novo conceito deparentalidade da minha mãe. No fundo, estava a fazer uma pergunta a todo o complexo. E se nãoplantássemos todos os dias os nossos filhos diante da televisão, a ver os desenhos animados e astelenovelas? E se em vez disso lhes déssemos um pedaço de barro, e lhe deitássemos água porcima, e os ensinássemos a andar com ele à volta até adquirir uma forma entre as mãos? Queespécie de sociedade seria a nossa? Presenciámos o barro a girar entre as palmas das mãos dela.Parecia um pénis – um pénis castanho, comprido – mas só quando Tracey me soprou a ideia aoouvido é que me permiti admitir o pensamento que já estava a ter. «É uma jarra», declarou aminha mãe, e depois acrescentou, à laia de esclarecimento: «Para uma flor só.» Eu estavaimpressionada. Olhei em volta para as outras crianças. Alguma vez as mães delas teriam pensadoem tirar da terra uma jarra? Ou em cultivar uma flor só, para lá pôr dentro? Mas Tracey nãoestava a levar nada daquilo a sério, ainda estava embalada na ideia de um pénis de barro, e agoraestava a contagiar-me, e a minha mãe fez-nos cara feia e, voltando a atenção para Lily Bingham,perguntou-lhe o que gostava de fazer, uma jarra ou uma caneca. Entre dentes, Tracey sugeriu,outra vez, a obscena terceira opção.

Estava a rir-se da minha mãe – era libertador. Nunca me tinha passado pela cabeça que aminha mãe pudesse ou devesse ser objeto de troça, mas Tracey achava que tudo nela era ridículo:a forma como nos falava com respeito, como se fôssemos adultas, dando-nos hipóteses deescolha em coisas que Tracey achava que não tínhamos nada que escolher, e a liberdade que nosconcedia em geral, permitindo-nos fazer toda esta porcaria desnecessária na varanda – quandotoda a gente sabia que uma verdadeira mãe detestava porcaria – e ainda por cima tinha a lata delhe chamar «arte», a lata de lhe chamar «artesanato». Quando chegou a vez de Tracey e a minhamãe lhe perguntou o que gostava de fazer na roda, uma jarra ou uma caneca, Tracey parou de rire fez uma careta.

«Estou a ver», disse a minha mãe. «Então o que é que gostavas de fazer?»

Tracey encolheu os ombros. «Não tem de ser útil», insistiu a minha mãe. «Arte significa não ter de ser útil! Na África

Ocidental, por exemplo, há cem anos, havia umas aldeãs, estavam a fazer uns vasos muitoestranhos, e os antropólogos não percebiam o que elas estavam a fazer, mas isso era porque eles,os cientistas, estavam à espera de que um povo «primitivo», entre aspas, só fizesse coisas úteis,quando afinal estavam a fazer os vasos só pela beleza deles – exatamente como um escultor –não para irem à água, não para guardarem cereais, só porque eram belos, e para dizerem:estivemos aqui, neste momento específico, e isto é o que fizemos. Portanto, tu podes fazer amesma coisa, não podes? Podes fazer uma peça ornamental. É a tua liberdade! Agarra-a! Quemsabe? Talvez sejas a próxima Augusta Savage!»

Eu já estava habituada aos discursos da minha mãe – normalmente desligava sempre que ela osfazia – e também estava familiarizada com a forma como ela intercalava numa conversa normalaquilo que por acaso estivesse a estudar nessa semana, mas tenho a certeza de que Tracey nuncana vida tinha ouvido uma coisa assim. Não sabia o que era um antropólogo, nem o que fazia umescultor, nem quem era Augusta Savage, nem tão-pouco o que queria dizer a palavra«ornamental». Pensava que a minha mãe estava a gozar com ela. Como podia saber que a minhamãe achava impossível falar naturalmente com as crianças?

14

Diariamente, quando Tracey chegava a casa depois das aulas, o apartamento estava quasesempre vazio. Quem sabia onde estava a mãe? «Na rua das lojas», dizia a minha mãe – o quequeria dizer «a beber» – mas eu passava todos os dias em frente do Sir Colin Campbell e nunca avi lá. Quando a via estava normalmente na rua a azucrinar o ouvido de alguém, muitas vezes achorar ou a limpar os olhos com um lenço, ou então sentada na paragem de autocarro do ladooposto ao muro do complexo, a fumar, a olhar para o vazio. Tudo menos ficar sentada naqueleapartamento minúsculo – e eu não a censurava. Tracey, pelo contrário, gostava muito de estar emcasa, nunca queria ir para o parque infantil nem passear na rua. Tinha uma chave na caixa doslápis, entrava, ia direita ao sofá e punha-se a ver as novelas australianas até começarem asbritânicas, processo que começava às quatro da tarde e acabava quando passava o genérico finalde Coronation Street. Algures pelo meio ia fazer o lanche, ou a mãe chegava com lanchecomprado e sentava-se ao pé dela no sofá. Eu sonhava com uma liberdade como a dela. Quandochegava a casa, a minha mãe ou o meu pai queriam saber «o que aconteceu hoje na escola»,faziam muita questão disso, não me deixavam em paz enquanto não dissesse alguma coisa e porisso, naturalmente, comecei a mentir-lhes. Naquela altura pensava neles como duas crianças,mais inocentes do que eu, que era minha responsabilidade proteger do género de factosdesconfortáveis que os deixariam a pensar excessivamente (a minha mãe) ou a sentirexcessivamente (o meu pai). Naquele verão o problema agudizou-se porque a respostaverdadeira ao «Como foi hoje a escola?» era «No recreio anda a mania de apertar vaginas.» Trêsrapazes do prédio de Tracey tinham iniciado o jogo, mas agora toda a gente participava, osmiúdos irlandeses, os miúdos gregos, até o Paul Barron, filho completamente anglo-saxónico deum polícia. Era parecido com a apanhada, mas as raparigas nunca chegavam ao «coito», só osrapazes chegavam ao «coito», nós, as raparigas, simplesmente corríamos e corríamos até nosvermos acuadas num recanto sossegado, longe dos olhares das empregadas da cantina e dosmonitores do recreio, altura em que as nossas cuecas eram afastadas para o lado e uma mãopequena se enfiava na nossa vagina, éramos tosca e freneticamente esfregadas e então o rapazfugia, e repetia-se tudo desde o princípio. Media-se a popularidade de uma rapariga pelo tempo eesforço postos na sua perseguição. Tracey, com as suas risadinhas histéricas – e a intencionallentidão da fuga – era, como sempre, a primeira. Eu, querendo ser popular, às vezes tambémcorria devagar, e a verdade embaraçosa é que queria ser apanhada – gostava da eletricidade queme percorria da vagina ao ouvido quando ainda esperava pela mãozinha quente – mas também éverdade que, quando a mão aparecia realmente, havia em mim um reflexo, uma ideia arreigadade autopreservação que herdei da minha mãe, apertava sempre as pernas e tentava repelir a mão,o que acabava sempre por ser impossível. A única coisa que conseguia era tornar-me ainda mais

popular por dar aqueles primeiros momentos de luta. Quanto a querermos que este ou aquele rapaz nos perseguisse, não, ninguém se preocupava

com isso. Não existia nenhuma hierarquia de desejo porque o desejo era um elemento muitofraco, praticamente inexistente, do jogo. O importante era que nos achassem o tipo de raparigaque valia a pena perseguir. Não era um jogo de sexo, mas sim de estatuto – de poder. Nãodesejávamos ou temíamos os rapazes em si mesmos, só desejávamos ou temíamos que eles nosquisessem ou não quisessem. Uma exceção à regra era o rapaz com um eczema horrível, quetodas nós verdadeira e sinceramente temíamos, Tracey tanto como as outras, porque nos deixavanas cuecas pequenas partículas de pele cinzenta morta. Quando o nosso jogo sofreu a mutação debrincadeira de recreio para risco de sala de aula, o rapaz do eczema tornou-se o meu pesadelodiário. Agora o jogo passava-se assim: um rapaz deixava cair um lápis ao chão, sempre nummomento em que o Senhor Sherman estava de costas para nós e olhos no quadro. O rapazgatinhava para debaixo da carteira para apanhar o lápis, aproximava-se da genitália de umarapariga, puxava-lhe as cuecas para o lado e enfiava os dedos, deixando-os lá dentro durantetanto tempo quanto pensasse que não ia ser apanhado. Tinha desaparecido o elemento aleatório:só os três rapazes iniciais jogavam e só visitavam as raparigas que não só estavam perto dacarteira deles, mas também que se supunha que não iam queixar-se. Tracey era uma dessasraparigas, eu era outra, e outra era uma vizinha minha no complexo chamada Sasha Richards. Asraparigas brancas – que geralmente tinham sido incluídas na nova moda do recreio – agora,misteriosamente, já não eram incluídas: era como se nunca tivessem chegado a entrar no jogo. Orapaz do eczema estava a uma carteira de distância de mim. Eu detestava aqueles dedosescamudos, metiam-me nojo e horrorizavam-me, mas, ao mesmo tempo, não conseguia deixar deter prazer naquela eletricidade deliciosa e incontrolável que me percorria das cuecas ao ouvido.Como é evidente, não podia descrever estas coisas aos meus pais. Aliás, esta é a primeira vez queas apresento de alguma forma a alguém – incluindo a mim própria.

É estranho pensar agora que na altura todos nós tínhamos só nove anos. Mas ainda recordoaquele período com uma certa dose de gratidão por aquilo que viria a considerar a minha relativasorte. Foi a época do sexo, sim, mas decorreu, em todos os aspetos vitais, sem o sexopropriamente dito – não é uma definição útil de uma infância feliz? Só aprendi a dar valor a estafaceta da minha sorte quando já era adulta e comecei a descobrir, com maior frequência do queimaginaria, que entre as minhas amigas, independentemente do respetivo contexto, as suasépocas de sexo infantil tinham sido exploradas e destruídas pelas maldades de tios e pais, primos,amigos, estranhos. Penso em Aimee: maltratada aos sete anos, violada aos dezassete. E além dasorte pessoal há a sorte geográfica e histórica. Que aconteceu às raparigas nas plantações – ounos asilos vitorianos? O mais perto que estive de uma coisa parecida foi na arrecadação domaterial de música e não foi nada que se parecesse, e tenho a agradecer isso a uma sortemonumental, sem dúvida, mas também a Tracey, pois foi ela que me salvou, ao seu jeitopeculiar. Era uma sexta-feira ao fim da tarde, pouco antes de terminar o ano escolar tinha ido àarrecadação do material de música buscar uma partitura, era a da canção «We All Laughed», queAstaire cantava com tanta simplicidade e tão bem, e a minha intenção era dá-la ao Senhor Boothno sábado de manhã, para nos ajudar a cantá-la em dueto. Outra fatia da minha sorte foi que oSenhor Sherman, meu professor, era também professor de música da escola, e gostava tanto dascanções antigas quanto eu: tinha um arquivador cheio de partituras de Gershwin, e de partiturasde Porter, e outros assim, guardado na arrecadação de música, e estava autorizada a tirar de lá oque quisesse às sextas-feiras, desde que devolvesse tudo na segunda-feira. O espaço era típico

daquelas escolas naquela época: caótico, exíguo, sem janelas, com falta de vários painéis no teto.Havia estojos velhos de violino e violoncelo empilhados contra uma parede, e bacias de plásticocom flautas, cheias de saliva e com as embocaduras mordidas como brinquedos de cão. Haviadois pianos, um deles partido e coberto com um pano, o outro muito desafinado, e muitosconjuntos de percussão africanos, porque eram muito baratos e qualquer pessoa sabia tocá-los. Aluz do teto não acendia. Tínhamos de localizar o que procurávamos enquanto a porta aindaestava aberta, fixar o sítio e depois, se aquilo que queríamos não estava ao alcance do braço,deixar que a porta se fechasse e continuar na escuridão. O Senhor Sherman havia-me dito quetinha deixado a pasta de que eu precisava em cima do arquivador cinzento no canto esquerdomais afastado, e eu vi o arquivador e retive a porta para que fechasse devagar. A escuridão eratotal. Peguei na pasta, de costas para a porta. Uma estreita nesga de luz rasgou o compartimentopor breves momentos e desapareceu. Virei-me – senti mãos em cima de mim. Um par de mãosreconheci-o imediatamente – do rapaz do eczema –, o outro, depressa percebi que pertencia aomelhor amigo dele, um miúdo magricela e desajeitado que se chamava Jordan e era atrasadomental, influenciável e por vezes perigosamente impulsivo, um conjunto de sintomas para osquais não havia diagnóstico na altura, ou, se havia, nunca ele nem a mãe souberam qual era.Jordan era da minha turma, mas eu nunca o tratava por Jordan, tratava-o por Spaz, toda a gente otratava assim, mas, se a intenção era insultá-lo, havia muito que ele tinha neutralizado o insultorespondendo alegremente como se fosse esse o seu nome. Tinha um estatuto muito particular nanossa turma: apesar da doença, qualquer que ela fosse, era alto e bonito. Enquanto nós tínhamosar de crianças, ele parecia um adolescente, tinha músculos nos braços e um cabelo forte, fazia abarba numa barbearia a sério. Não era bom aluno, não tinha amigos sinceros, mas era umparceiro útil para rapazes com planos perversos, e era frequentemente alvo da atenção dosprofessores, a menor interrupção da sua parte tinha um efeito desproporcionado, e isso erainteressante para o resto da turma. Tracey podia – e fazia-o – mandar «foder» um professor semque sequer a despachassem de plantão para o corredor, mas Jordan passava a maior parte dotempo no dito corredor, por aquilo que, aos olhos dos colegas, não passava de pequenas infrações– repontar, ou não tirar um boné de basebol da cabeça – e ao fim de algum tempo começámos aperceber que os professores, em particular as mulheres brancas, tinham medo dele. Nósrespeitávamos isso: parecia-nos uma coisa especial, uma façanha, fazer uma mulher adulta termedo dele, apesar de só ter nove anos e ser atrasado mental. Eu, pessoalmente, dava-me bemcom ele; tinha-me enfiado algumas vezes os dedos nas cuecas, mas estava convencida de que elenão sabia por que razão fazia aquilo, e no caminho de regresso a casa, se calhava sairmos aomesmo tempo, às vezes cantava para ele – o tema do «Manda-chuva», série de desenhosanimados que ele adorava – e isso acalmava-o e deixava-o feliz. Caminhava ao meu lado, cabeçainclinada para mim, emitindo um som baixo e gorgolejado como o de um bebé feliz. Eu não vianele um agressor, porém ali estava ele na arrecadação da música, apalpando-me toda, dandorisadinhas de excitação, acompanhando e imitando as gargalhadas mais cínicas do rapaz doeczema, e era evidente que não se tratava do jogo do recreio nem do jogo da sala de aula, tratava-se de uma escalada nova e porventura perigosa. O rapaz do eczema ria-se e queria que eutambém me risse, como se tudo fosse uma espécie de piada, mas de cada vez que eu tentavapuxar uma peça de roupa para cima eles puxavam-na para baixo e queriam que eu me rissetambém daquilo. Até que as gargalhadas pararam e deram lugar a uma ação urgente, eles agiramem silêncio e eu também me calei. Foi então que a estreita nesga de luz reapareceu. Era Traceyque estava na soleira da porta: vi-a em silhueta, emoldurada pela luz. Entrou e fechou a porta. A

princípio não disse nada. Juntou-se simplesmente a nós na escuridão, calada, sem fazer nada. Asmãos dos rapazes afrouxaram: era a versão infantil do absurdo sexual – que os adultos tão bemconhecem – quando uma coisa que momentos antes parecia tão urgente e monopolizadora derepente se torna (normalmente em conjugação com uma lâmpada que se acende) pequena einsignificante, para não dizer trágica. Olhei na direção de Tracey, ainda recortada a fogo naminha retina, em relevo: vi a silhueta, o nariz arrebitado, as tranças perfeitamente simétricas comos seus laços de cetim. Por fim ela deu um passo atrás, escancarou a porta e manteve-a aberta.

«O Paul Barron está à tua espera no portão», disse. Eu olhei para ela incrédula e ela repetiu,desta vez em tom irritado, como se eu estivesse a fazê-la perder tempo. Puxei a saia para baixo epassei por ela a correr. Ambas sabíamos que era impossível que Paul Barron estivesse à minhaespera no portão, a mãe vinha buscá-lo todos os dias num Volkswagen, o pai era polícia, tinha olábio superior sempre a tremer e uns olhos azuis grandes e húmidos como um cachorro. Nãotinha trocado duas palavras com Paul Barron em toda a minha vida. Tracey garantia que ele lhetinha metido os dedos nas cuecas, mas eu tinha-o visto correr sem destino à volta do recreio, àprocura de uma árvore para se esconder. Tinha fortes suspeitas de que ele não queria apanharninguém. Mas era o nome certo no momento certo. Comigo podiam meter-se porque era vistacomo pertencente àquela parte da escola que não esperava nem merecia melhor sorte, mas PaulBarron fazia parte do outro mundo, com ele ninguém podia meter-se, e esta associaçãoimaginária a ele, ainda que momentânea, funcionava como uma espécie de proteção. Desci aencosta a correr em direção ao portão e encontrei o meu pai à minha espera. Comprámos geladosna carrinha e fomos juntos para casa. Nos semáforos ouvi muito barulho e olhei para o outro ladoda rua e vi Tracey e o rapaz do eczema e o outro que se chamava Spaz a rir e a bulhar e ameterem-se uns com os outros, dizendo palavrões e parecendo gostar das manifestações públicasde desagrado e censura que, entretanto, se tinha erguido e os envolvia como uma nuvem demelgas, vinda da fila de gente à espera do autocarro, dos comerciantes à porta das respetivaslojas, de mães, de pais. Até o meu pai, míope, olhou para o outro lado da rua, na direção doalvoroço: «Aquela não é a Tracey, pois não?»

Segunda parte

CEDO E TARDE

1

Era ainda criança quando o meu caminho se cruzou pela primeira vez com o de Aimee – mascomo posso chamar-lhe destino? Os caminhos de toda a gente cruzaram-se com o dela no mesmoinstante, quando apareceu não havia espaço nem tempo que a contivessem, não tinha umcaminho só com que se cruzar, mas todos os caminhos – todos lhe pertenciam, qual rainha emAlice no País das Maravilhas, todos os caminhos eram o seu caminho – e, naturalmente, milhõesde pessoas sentiam o mesmo que eu. Sempre que escutavam os seus discos sentiam que estavama encontrar-se com ela – continuam a sentir. O seu primeiro single saiu na semana em que eu fizdez anos. Ela tinha então vinte e dois. Por altura do fim desse mesmo ano, contou-me uma vez, jánão podia andar na rua, fosse em Melbourne, Paris, Nova Iorque, Londres ou Tóquio. Um dia,quando as duas sobrevoávamos Londres a caminho de Roma, conversando despreocupadamentesobre Londres como cidade, suas virtudes e defeitos, admitiu que nunca tinha andado no metro,nem uma vez, e não conseguia imaginar o que isso seria como experiência. Eu sugeri que ossistemas de metropolitano são basicamente iguais em todo o mundo, mas ela disse que a últimavez que havia entrado em algum tipo de comboio fora quando tinha deixado a Austrália acaminho de Nova Iorque, vinte anos antes. Na altura tinha abandonado a sua modorrenta terranatal havia apenas seis meses, muito rapidamente ganhou o estatuto de estrela underground emMelbourne e só precisou de mais seis meses em Nova Iorque para deixar cair o qualificativo.Estrela incontestável desde então, facto que para ela não acarreta nenhum resquício de neuroseou autocomiseração, e esta é uma das facetas extraordinárias de Aimee: não tem um lado trágico.Aceita como destino tudo aquilo que lhe aconteceu, tão pouco surpreendida ou perplexa por serquem é como imagino que Cleópatra fosse por ser Cleópatra.

Comprei aquele single de estreia como presente para Lily Bingham, para a festa do seu décimoaniversário, que por acaso teve lugar uns dias antes do meu. Tracey e eu fomos convidadas paraa festa, foi Lily quem nos entregou pessoalmente os pequenos convites de papel feitos em casa,um sábado de manhã na aula de dança, bastante inesperadamente. Eu fiquei muito contente, masTracey, talvez por desconfiar que tinha sido convidada por uma questão de educação, recebeu oconvite com uma expressão trombuda e passou-o imediatamente à mãe, que ficou tão ansiosaque, dias depois, interpelou a minha mãe na rua e crivou-a de perguntas. Era o tipo de coisa ondese pudesse deixar uma filha à porta? Ou seria de esperar que a mãe fosse convidada a entrar? Oconvite falava numa ida ao cinema – mas quem pagava o bilhete? A convidada ou a convidante?Tinham de levar prenda? Que tipo de prenda íamos nós levar? A minha mãe fazia o favor de noslevar às duas? Até parecia que a festa ia realizar-se num lugar estranho e difícil de encontrar, enão a três minutos de caminho a pé, numa casa do outro lado do parque. Com a maior bonomia, aminha mãe disse que levava as duas e ficava à nossa espera, se fosse preciso. Quanto à prenda,

sugeriu um disco, um single de música pop, podia ser presente das duas, barato mas de agradocerto: levar-nos-ia à rua das lojas para procurarmos no Woolworths um disco que correspondesseao desejado. Mas nós já estávamos preparadas. Sabíamos exatamente que disco queríamoscomprar, o nome da canção e da cantora, e sabíamos que a minha mãe – que nunca lia tabloides esó ouvia estações de rádio reggae – ignoraria a fama de Aimee. A nossa única preocupação era acapa: ainda não a tínhamos visto, não sabíamos que esperar. Atendendo à letra – e à interpretaçãoa que tínhamos assistido, boquiabertas, no Top of the Pops – achávamos que tudo era possível.Ela podia aparecer completamente nua na capa do single, podia estar em cima de um homem –ou de uma mulher – fazendo sexo, podia estar com o dedo médio espetado, como ainda no fim desemana anterior fizera, por momentos, num programa infantil de TV transmitido em direto.Podia ser uma foto de Aimee a executar um dos seus espantosos e provocadores movimentos dedança, por amor dos quais tínhamos abandonado Fred Astaire, agora só queríamos dançar comoAimee, e imitávamo-la sempre que tínhamos privacidade e oportunidade, treinando o suavebalançar do seu abdómen – como uma onda de desejo que atravessava o corpo – e a forma comomeneava as estreitas ancas de rapaz e projetava do tronco os seios pequenos, uma subtilmanipulação de músculos que nós ainda não tínhamos, por baixo de seios que ainda não nostinham crescido. Quando chegámos ao Woolworth corremos à frente da minha mãe e fomosdireitas às prateleiras dos discos. Onde estava ela? Procurámos o cabelo louro-platinado de corteà rapaz, os olhos espantosos, de um azul tão claro que parecem cinzentos, e o rosto pequeno,andrógino, com o seu queixinho arrebitado, entre Peter Pan e Alice. Mas não encontrámosnenhuma imagem de Aimee, nua ou vestida: só o nome e o título de uma canção ao alto no ladoesquerdo da capa, enquanto o resto do espaço era ocupado pela enigmática – para nós –ilustração de uma pirâmide com um olho a flutuar, olho esse que era contido pelo vértice dotriângulo. A capa era de cor verde-sujo, e escritas por cima e por baixo da pirâmide estavamalgumas palavras numa língua que não sabíamos ler. Confusas, aliviadas, levámos o disco àminha mãe, que o aproximou da cara – também era ligeiramente míope, mas demasiado vaidosapara usar óculos –, franziu a testa e perguntou se era «uma canção sobre o dinheiro». Eu fuimuito cautelosa na resposta. Sabia que a minha mãe era muito mais puritana em questões dedinheiro do que em questões de sexo.

«Não é sobre nada. É só uma canção.» «Achas que a tua amiga vai gostar?» «Vai gostar, vai», disse Tracey. «Toda a gente adora. Podemos comprar um para nós?» Ainda de testa franzida, a minha mãe suspirou, foi buscar à prateleira mais um exemplar,

dirigiu-se à caixa e pagou os dois. A festa era daquelas em que os pais se vinham embora – a minha mãe, sempre desejosa de

espreitar os interiores da classe média, ficou desiludida – mas não me pareceu que fosseorganizada como as festas que conhecíamos, não se dançava nem havia jogos, e a mãe de Lilynão estava minimamente arranjada, quase parecia uma sem-abrigo, com o cabelo mal penteado.Deixámos a minha mãe à porta depois de uma receção embaraçosa – «Mas que elegantes quevocês vêm!», exclamou a mãe de Lily ao ver-nos chegar –, após o que fomos acrescentadas aomonte de crianças que já estavam na sala, todas raparigas, nenhuma no estilo frufru rosa-e-lantejoulas em que Tracey ia vestida, mas também nenhuma de vestidinho em estilo falso-vitoriano, de veludo preto com a gola branca, como aquele que a minha mãe tinha «descoberto»

para mim na loja social do bairro. As outras raparigas estavam de calças de peitilho e ténisjanotas, ou saia de alças em cores alegres, e quando entrámos na sala todas suspenderam o queestavam a fazer e viraram-se a olhar para nós. «Não estão lindas?», repetiu a mãe de Lily epassou adiante, deixando-nos entregues a nós mesmas. Éramos as únicas raparigas negras e,tirando Lily, não conhecíamos ali ninguém. Tracey ficou logo abespinhada. No caminhotínhamos discutido qual de nós ia entregar a Lily o presente que era de ambas – obviamenteTracey tinha levado a melhor – mas agora largou o single embrulhado para oferta em cima dosofá sem dizer nada, e quando soube que filme íamos ver – O Livro da Selva – denunciou-ocomo «pueril» e «um simples desenho animado» cheio de «animaizinhos estúpidos», num tomde voz que de repente me pareceu muito alto, muito característico, com muitas letras comidas. Amãe de Lily reapareceu. Encafuou-nos num carro azul comprido, com várias fiadas de assentos,como um pequeno autocarro, e, uma vez preenchidos estes lugares, a Tracey, a mim e a maisduas raparigas mandou-nos sentar lá atrás, no porta-bagagens, que estava forrado com umamanta aos quadrados imunda e cheia de pelos de cão. A minha mãe dera-me uma nota de cincolibras para o caso de termos de pagar alguma coisa, e eu tinha muito medo de a perder: estavaconstantemente a tirá-la do bolso do casaco, alisava-a sobre o joelho e voltava a dobrá-la emquatro. Enquanto isto, Tracey entretinha as outras duas mostrando-lhes o que costumávamosfazer quando nos sentávamos nos últimos lugares do autocarro que, uma vez por semana, noslevava ao parque de Paddington para a aula de educação física: punha-se de joelhos – tantoquanto o espaço permitia – encostava dois dedos em V a cada canto da boca e deitava a língua defora ao escandalizado condutor do carro que vinha atrás. Quando parámos, cinco minutos depois,em Willesden Lane, fiquei aliviada por a viagem ter chegado ao fim, mas desalentada com odestino. Pensava que íamos a um daqueles cinemas bonitos do centro, mas estacionámos à portado pequeno Odeon do bairro, perto da estação de Kilburn High Road. Tracey gostou: estava noseu território. Enquanto a mãe de Lily estava distraída na bilheteira, ensinou as outras a roubargomas sortidas sem pagar, e depois, já dentro da sala às escuras, a sentar-se encavalitadas numacadeira com o assento dobrado para que quem estava atrás não visse o ecrã, a dar pontapés nacadeira da frente até obrigar o ocupante a virar-se para trás. «Já chega», dizia a mãe de Lily acada passo, mas não conseguia fazer valer a sua autoridade, de tão envergonhada que estava. Nãoqueria que fizéssemos barulho, mas ao mesmo tempo não era capaz de fazer o barulho necessáriopara nos mandar parar de fazer barulho, e mal Tracey se apercebeu disto – e se apercebeu,também, de que a mãe de Lily não tinha a menor intenção de lhe bater ou de ralhar com ela ou delhe pegar por uma orelha e arrastá-la para fora do cinema, como as nossas mães teriam feito –bem, nessa altura sentiu-se livre de fazer tudo. Continuou com os comentários ao filme,ridicularizando o enredo e as canções e descrevendo os muitos aspetos em que a narrativa seafastaria violentamente da visão de Kipling e de Disney se estivesse no lugar de uma ou todas aspersonagens. «Se eu fosse aquela serpente abria as mandíbulas e comia aquele palerma de umavez só!» ou «Se eu fosse aquele macaco matava aquele rapaz mal ele me aparecesse à frente!»As outras participantes na festa estavam delirantes com estas intervenções, e eu era quem dava asgargalhadas mais altas.

Depois, já no carro, a mãe de Lily tentou encetar uma conversa civilizada acerca dos méritosdo filme. Algumas raparigas disseram coisas simpáticas, até que Tracey, outra vez sentada láatrás – eu tinha-a atraiçoado e mudado para a segunda fila – tomou a palavra.

«Aquele... como era o nome dele? Mowgli? É parecido com o Kurshed, não é? Da nossaturma. Não é?»

«Pois é», disse eu. «Parece mesmo aquele rapaz Kurshed da nossa turma.» A mãe de Lily mostrou um interesse exagerado, virou-se para trás no momento em que

parávamos num semáforo. «Talvez os pais sejam indianos.» «Nãã», disse Tracey tranquilamente, olhando lá para fora pela janela. «O Kurshed é paqui.» Regressámos a casa em silêncio. Havia bolo, apesar de ser toscamente decorado e caseiro, e cantámos os «Parabéns a você»,

mas ainda ficámos com meia hora até os pais nos irem buscar e a mãe de Lily, que não estava acontar com isto, pareceu preocupada e perguntou o que gostávamos de fazer. Pelas portas dacozinha eu vi um espaço verde comprido, coberto de vinha virgem e arbustos, e apetecia-me irpara lá, mas não era possível: estava muito frio. «Porque não vão todas lá para cima explorar –ter uma aventura?» Reparei na surpresa de Tracey perante a sugestão. Os adultos costumavamdizer-nos que «não nos metêssemos em sarilhos» e «procurássemos alguma coisa para fazer» ou«fizéssemos alguma coisa de útil», mas não estávamos habituadas a que nos sugerissem –mandassem! – que fôssemos ter uma aventura. Era uma frase de um mundo diferente. Lily –sempre graciosa, sempre afável, sempre simpática – levou-nos a todas para o seu quarto emostrou-nos os seus brinquedos, velhos e novos, o que nós quiséssemos, sem sinal decontrariedade ou possessividade. Até eu, que só tinha ido uma vez lá a casa, conseguia sentir-memais possessiva em relação às coisas de Lily do que a própria Lily. Andei a mostrar a Tracey osmuitos motivos de interesse do quarto de Lily como se fossem meus, determinando quantotempo ela podia pegar neste ou naquele objeto, explicando-lhe a proveniência das coisas quehavia nas paredes. Mostrei-lhe o relógio Swatch gigante – e disse-lhe que não devia tocar nele –e chamei-lhe a atenção para um cartaz de publicidade a uma tourada, comprado durante umasférias recentes dos Binghams em Espanha; por baixo do retrato do toureiro, em vez do nomedele, estava impresso, em enormes e rebuscadas letras vermelhas, Lily Bingham. Queria queTracey ficasse tão espantada com isto como eu havia ficado na primeira vez que o vi, mas elalimitou-se a encolher os ombros, virou-me as costas e disse a Lily: «Tens um gravador? Vamosmontar um espetáculo.»

Tracey era excelente em brincadeiras criativas, melhor do que eu, e a brincadeira que preferia atodas as outras era «Montar um espetáculo». Fazíamo-la muitas vezes, sempre só nós as duas,mas agora ela preparava-se para recrutar aquela meia dúzia de raparigas para a «nossa»brincadeira: mandou uma ao rés do chão buscar o single embrulhado para oferta que seria anossa banda sonora, pôs outras a fazer bilhetes para o espetáculo que aí vinha, e a seguir umcartaz a anunciá-lo, outras a juntar travesseiros e almofadas dos vários quartos para servirem deassentos, e Tracey indicou-lhes onde haviam de deixar um espaço para o «palco». O espetáculoteria lugar no quarto do irmão adolescente de Lily, onde estava o gravador. Ele não estava emcasa e nós servimo-nos do quarto como se tivéssemos um direito natural sobre ele. Mas quandoestava quase tudo preparado Tracey informou abruptamente as colaboradoras de que afinal oespetáculo seria feito apenas por ela e por mim – todas as outras fariam parte do público. Quandoalgumas ousaram questionar esta política, Tracey, por sua vez, questionou-as com agressividade.Tinham aulas de dança? Tinham medalhas de ouro? Tantas como ela? Algumas desataram achorar. Tracey mudou ligeiramente de registo: fulana de tal podia tratar da «iluminação», sicranado guarda-roupa e adereços ou apresentar o espetáculo, e Lily Bingham podia filmar tudo com a

máquina do pai. Tracey falou-lhes como se fossem bebés e eu fiquei espantada com a rapidezcom que elas amoleceram. Assumiram as suas tolas funções fictícias e pareceram felizes. Depoisfoi toda a gente enxotada para o quarto da Lily enquanto nós «ensaiávamos». Foi então que elame mostrou os «fatos» – duas combinações de renda saídas da gaveta da roupa interior daSenhora Bingham. Quando tentei abrir a boca já Tracey estava a tirar-me o vestido pela cabeça.

«Tu ficas com a vermelha», disse. Ligámos o gravador e ensaiámos. Eu sabia que havia alguma coisa que não batia certo, que

aquilo era diferente de todas as danças que havíamos executado até então, mas percebi que nãopodia fazer nada. Tracey era, como sempre, a coreógrafa: a minha única função era dançar omelhor que sabia. Quando ela decidiu que estávamos prontas, o público foi convidado a regressarao quarto do irmão de Lily e sentar-se no chão. Lily ficou atrás, de pé, com a pesada máquinasobre o ombro rosado e estreito, os olhos azul-claros cheios de confusão – mesmo antes decomeçarmos a dançar – ao ver duas raparigas vestidas com aquelas provocantes peças de roupada mãe, que provavelmente nunca na vida tinha visto. Premiu o botão que dizia «Gravar» e comisso pôs em movimento uma cadeia de causa e efeito que, mais de um quarto de século depois,acabou por assumir a forma de destino, seria praticamente impossível não considerar que era odestino, mas que – independentemente do que se pense do destino – se pode dizer com segurançae de modo racional que teve uma consequência prática: agora não preciso de descrever a dançapropriamente dita. Mas nem tudo ficou registado pela máquina de filmar. Quando chegámos aocoro final – o momento em que eu estou escarranchada em cima de Tracey, naquela cadeira – foitambém o momento em que a mãe de Lily, que tinha subido para nos dizer que a mãe de fulanatinha chegado, abriu a porta do quarto do filho e viu-nos. É por isso que a filmagem acaba tãoabruptamente. Ficou especada na soleira da porta, imóvel como a mulher de Lot. Depoisexplodiu. Zurziu-nos, despiu-nos as indumentárias, mandou o público voltar para o quarto deLily e ficou a vigiar-nos em silêncio enquanto voltávamos a vestir os nossos estúpidos vestidos.Eu não parava de pedir desculpa. Tracey, que normalmente respondia com remoques aos adultosem fúria, não disse uma palavra, mas destilava desprezo em cada gesto, até os colãs conseguiuvestir com sarcasmo. A campainha da porta voltou a tocar. A mãe de Lily foi ver quem era. Nósnão sabíamos se havíamos de ir atrás dela ou não. Durante os quinze minutos seguintes,enquanto a campainha tocava diversas vezes, ficámos quietas. Eu não fiz nada, limitei-me a ficarali, mas Tracey, com a imaginação que a caracterizava, fez três coisas. Tirou a fita VHS damáquina de filmar, voltou a meter o single na capa e guardou as duas coisas na bolsa de seda cor-de-rosa com atilho que a mãe achara apropriada para lhe pendurar ao ombro.

A minha mãe, sempre atrasada, para tudo, foi a última a chegar. Foi conduzida à nossa

presença no primeiro andar, qual advogada que vem conferenciar com as suas clientes atravésdas grades de uma cela prisional, enquanto a mãe de Lily fazia um relato muito circunstanciadodas nossas atividades, no qual se incluía a pergunta retórica: «Não lhe faz espécie onde é quecrianças desta idade vão buscar semelhantes ideias?» A minha mãe passou à defesa: disse umimpropério e as duas tiveram uma breve discussão. Eu fiquei espantada. Naquele momento, aminha mãe comportou-se como qualquer mãe que se vê confrontada com o mau comportamentode um filho na escola – até voltou a usar algumas palavras do patoá – e eu não estava habituada avê-la perder a compostura. Agarrou-nos pelas costas dos vestidos e voámos as três pela escadaabaixo, mas a mãe de Lily veio atrás de nós e no corredor repetiu aquilo que Tracey havia dito

sobre o Kurshed. Era o seu ás de trunfo. Tudo o resto a minha mãe podia menosprezar como«típica moralidade burguesa», mas não podia ignorar o «paqui». Naquela altura nós éramos«negros e asiáticos», assinalávamos o quadrado Negro e Asiático nos formulários médicos,aderíamos aos grupos de apoio às famílias negras e asiáticas e confinávamo-nos à secção paranegros e asiáticos da biblioteca: considerava-se que era uma questão de solidariedade. Mesmoassim, a minha mãe defendeu Tracey, dizendo «É uma criança, só está a repetir aquilo queouviu», ao que a mãe de Lily respondeu, em voz baixa, «Não há dúvida.» A minha mãe abriu aporta da rua e puxou-nos para o exterior batendo a porta com estrondo. Uma vez cá fora, porém,toda a sua fúria se virou contra nós, só contra nós, levou-nos como se fôssemos dois sacos delixo pela rua fora, aos berros. «Pensam que são iguais a elas? É isso que pensam?» Lembro-meexatamente da sensação de ser arrastada, deixando a marca dos calcanhares no chão, e de comofiquei totalmente perplexa com as lágrimas nos olhos da minha mãe, a distorção que lhe desfeavaa cara bonita. Lembro-me de tudo o que se passou na festa do décimo aniversário da Lily e nãotenho memória absolutamente nenhuma do que se passou no meu.

Quando chegámos à rua que passa entre o nosso complexo e o de Tracey, a minha mãe largoua mão dela e deu-nos um sermão curto, mas devastador, sobre a história dos epítetos raciais. Eudeixei tombar a cabeça e chorei em plena rua. Tracey ficou impassível. Empinou o queixo e onarizinho de leitão, esperou que o sermão acabasse e fitou a minha mãe.

«É só uma palavra», disse.

2

No dia em que soubemos que Aimee viria brevemente aos nossos escritórios de Camden, emHawley Lane, toda a gente foi afetada pela notícia, ninguém ficou imune. Um pequeno grito deentusiasmo perpassou pela sala de reuniões, e até os colaboradores mais experientes da YTVlevaram os copos de café aos lábios, lançaram o olhar pelo canal fétido e sorriram ao lembrarem-se de uma versão anterior de si mesmos, dançando ao som dos primeiros temas brejeiros demúsica disco de Aimee – em crianças, nas suas salas de estar – ou rompendo com uma namoradade faculdade ao som de uma das suas baladas sentimentais dos anos noventa. Naquelesescritórios respeitava-se uma verdadeira estrela pop, independentemente das preferênciasmusicais de cada um, e por Aimee havia um respeito especial: o seu destino e o da estaçãoestavam ligados desde o início. Era uma artista do vídeo até à medula. Era possível ouvir ascanções de Michael Jackson sem recordar as imagens que as acompanhavam (o que talvezsignifique apenas que a música dele tinha uma vida real), mas a música de Aimee estava contidanos seus vídeos e às vezes parecia só existir nesse mundo, e quando ouvíamos aquelas canções –numa loja, num táxi, mesmo que fossem apenas as batidas reverberadas através dos auricularesde um miúdo que passava – éramos remetidos acima de tudo para uma memória visual, para omovimento da sua mão ou pernas ou caixa torácica ou genitália, a cor de cabelo da altura, asroupas, aqueles olhos frios. Por esta razão, Aimee – e todos os seus imitadores – eram, para obem e para o mal, os alicerces do nosso modelo de negócio. Sabíamos que a YTV americanatinha sido construída, em parte, em torno da lenda de Aimee, como um sacrário erigido para umadivindade mítica, e o facto de ela se dignar entrar no nosso local de culto, britânico e muito maismodesto, foi considerado um golpe de génio e fez-nos entrar a todos na nossa versão de alertamáximo. A minha chefe de secção, Zoe, convocou uma reunião separada só para a nossa equipa,porque em certo sentido Aimee vinha ter connosco, Departamento de Relações com Talentos eArtistas, para gravar o discurso de aceitação de um prémio que não ia poder receberpessoalmente em Zurique no mês seguinte. E haveria certamente muitas mensagens a gravar paravários mercados emergentes («Eu sou a Aimee e você está a ver a YTV Japão!») e talvez, seconseguíssemos convencê-la, uma entrevista para a ITV News, ou até uma atuação ao vivo,gravada na cave, para os Dance Time Charts. A minha função era reunir todos os pedidos àmedida que iam chegando – dos nossos escritórios europeus em Espanha, França e Alemanha enos países nórdicos, da Austrália, de todos os outros pontos do mundo – e apresentá-los numúnico documento a ser enviado por fax para a equipa de Aimee em Nova Iorque, antes da vindadela, que só aconteceria daí a quatro semanas. E então, no decorrer da reunião, aconteceu umacoisa maravilhosa: Zoe deixou-se deslizar da mesa em que estava sentada, de calças de cabedal etop sem alças – por baixo do qual se tinha um vislumbre de um abdómen escuro e musculado e

de um piercing com um brilhante no umbigo –, sacudiu a juba de leão de caracóissemicaribenhos, virou-se para mim descontraidamente como se nada tivesse acontecido e disse:«Nesse dia vais ter de a receber à porta e levá-la para o estúdio B12, andar com ela, tratar de tudoo que ela precisar.»

Saí da sala de reuniões como a Audrey Hepburn a flutuar pelas escadas acima em My FairLady, no meio de uma nuvem de música em crescendo, pronta para percorrer todo o espaçoaberto do nosso escritório a dançar, rodopiar, rodopiar, rodopiar pela porta fora e todo o caminhoaté casa. Tinha vinte e dois anos. Mas nem por isso fiquei particularmente surpreendida: eracomo se tudo quanto tinha visto e experimentado no último ano apontasse nesse sentido.Respirava-se um entusiasmo desmedido na YTV naqueles dias finais dos anos noventa, umambiente de sucesso imparável construído sobre alicerces instáveis, de certo modo simbolizadopelo edifício que ocupávamos: três andares e a cave dos antigos estúdios do programa «WAKEUP BRITAIN» em Camden (ainda tínhamos um enorme sol nascente, amarelo-ovo e agoracompletamente anacrónico, incrustado na fachada). A VH1 estava acantonada no andar por cimade nós. As condutas exteriores do nosso sistema de aquecimento, pintadas de cores primárias,faziam lembrar um Pompidou dos pobres. Por dentro era tudo elegante e moderno, iluminaçãosuave e mobiliário escuro, antro de uma némesis de James Bond. Naquele sítio começara porexistir um salão de vendas de automóveis em segunda mão – antes mesmo da TV de música ouda TV de pequeno-almoço – e a escuridão interior parecia calculada para disfarçar a construçãotosca. As condutas de ventilação eram tão mal-acabadas que as ratazanas subiam do Regent’sCanal e vinham fazer ninho dentro delas, deixando lá as fezes. No verão – quando a ventilaçãoestava ligada – andares inteiros apanhavam gripes de verão. Quando rodávamos os sofisticadosreguladores de luminosidade, era frequente ficarmos com o botão na mão.

Era uma empresa que apostava muito nas aparências. Vinte e tal rececionistas passaram aassistentes de produção, simplesmente porque pareciam «divertidos» ou «à altura». A minhachefe de trinta e um anos tinha passado de estagiária de produção a Chefe do Departamento deTalentos em apenas quatro anos e meio. Eu própria, nos oito meses que lá trabalhei, fuipromovida duas vezes. Às vezes pergunto a mim mesma o que teria acontecido se lá tivesseficado – se o digital não tivesse matado as estrelas de vídeo. Na altura senti-me com sorte: nãotinha grandes planos de carreira, mas mesmo assim a minha carreira avançava. A bebidacontribuiu para isso. Em Hawley Lane era obrigatório beber: sair para ir beber uns copos,aguentar bem o álcool, beber mais do que os outros, nunca recusar uma bebida, mesmo queestivesse a antibióticos, mesmo que estivesse doente. Desejosa, naquela fase da minha vida, deevitar serões a sós com o meu pai, ia a todos os encontros de copos e festas da empresa, eaguentava bem o álcool, vinha aperfeiçoando esse talento muito britânico desde os treze anos deidade. A grande diferença na YTV era que as bebidas eram de graça. O dinheiro corria a jorrospela empresa. «Brindes» e «bar aberto»: dois dos substantivos que mais se ouviam no escritório.Em comparação com os empregos que tivera antes – até em comparação com a faculdade – asensação era de um prolongado período de recreio, em que estávamos sempre à espera de quechegassem os adultos, que nunca apareciam.

Uma das minhas primeiras tarefas foi organizar as listas de convidados para as festas dodepartamento, aproximadamente uma por mês. Realizavam-se normalmente em sítios caros docentro da cidade, e havia sempre montanhas de brindes: T-shirts, sapatos de ténis, leitoresMiniDisc, pilhas de CD. Oficialmente patrocinadas por uma ou outra marca de vodca eextraoficialmente pelos cartéis de droga colombianos. Passávamos a noite a correr em magotes

para os quartos de banho. Na manhã seguinte, expressões de embaraço, narizes a sangrar, sapatosaltos na mão. Também me competia registar os recibos de mini-cabs da empresa. As pessoaschamavam mini-cabs para regressar de encontros noturnos ou para os aeroportos quando iam deférias. Eu chamei uma vez um mini-cab para ir a casa do tio Lambert. Houve um executivo queficou famoso em toda a empresa por ter ido de mini-cab para Manchester, porque acordou tarde eperdeu o comboio. Já depois de ter saído da empresa, ouvi dizer que tinham adotado medidas derestrição, mas naquele ano a despesa com transportes ultrapassou as cem mil libras. Um diaperguntei a Zoe qual era a explicação para tudo aquilo e ela disse-me que a fita VHS – que osempregados transportavam frequentemente consigo – podia ficar «corrompida» se fossem demetro. Mas quase nenhum dos nossos colaboradores sabia que esse era o seu álibi oficial, viajarde graça era para eles um dado adquirido, uma espécie de direito de quem trabalhava «nosmedia», e que consideravam mais do que merecido. Certamente em comparação com aquilo queantigos colegas de faculdade – que tinham enveredado pela banca ou pela advocacia –encontravam todos os anos pelo Natal nos envelopes dos seus prémios.

Ao menos os quadros bancários e os advogados trabalhavam horas a fio. A nós sobrava-nostempo. No meu caso, as chamadas ficavam despachadas por volta das onze e meia –considerando que chegava ao meu posto de trabalho por volta das dez. Como o tempo eradiferente! Quando tirava a minha hora e meia para almoço era só isso que fazia com ela:almoçar. No escritório não havia emails, ainda, e eu não tinha telemóvel. Saía pelo cais de carga,diretamente para o canal, e caminhava pela margem, de sanduíche tipicamente britânica,embrulhada em plástico, na mão, absorvendo o dia, as transações de droga a céu aberto e osgordos patos-bravos que grasnavam a pedir as migalhas dos turistas, as casas-barco decoradas, eos jovens e tristes góticos sentados na ponte com as pernas penduradas em vez de estarem naescola, sombras daquilo que eu fora dez anos antes. Havia dias em que ia até ao jardimzoológico. Aí sentava-me na margem relvada e olhava para o aviário de Snowdon, à volta doqual voava um bando de aves africanas, brancas com bicos vermelho-sangue. Só viria a sabercomo se chamavam quando os vi no seu continente, onde, de resto, tinham um nome diferente.Depois do almoço regressava descontraidamente a pé, às vezes com um livro, sem pressanenhuma, e o que hoje me espanta é que não achava que nada disto fosse invulgar ou umprivilégio especial. Também eu considerava que o tempo livre era um direito divino. Sim, emcomparação com os excessos dos meus colegas considerava-me trabalhadora, séria, com umsentido das proporções que eles não tinham, fruto da forma como fora educada. Demasiadorecente para participar em qualquer das suas múltiplas viagens de «reforço das relaçõesinterpessoais» – era eu que lhes reservava os voos – para Viena, para Budapeste, para NovaIorque – e entre mim e mim espantava-me com o preço de um lugar em classe executiva, com aprópria existência de uma classe executiva, sempre incapaz de decidir, quando registava estas«despesas», se este tipo de coisa sempre havia acontecido, à minha volta, durante a minhainfância (mas sempre invisível aos meus olhos, a um nível acima da minha consciência), ou setinha chegado à idade adulta num momento especialmente exaltante da história de Inglaterra, umperíodo em que o dinheiro tinha um novo significado e novos usos e o «brinde» se tinhatransformado numa forma de princípio social, desconhecido no meu bairro mas normal fora dele.«Brindismo»: a prática de oferecer coisas gratuitas às pessoas que não precisam delas para nada.Pensei em todos os miúdos da escola que podiam facilmente ter feito aquilo que eu fazia agora –que sabiam muito mais de música do que eu, que eram genuinamente cool, verdadeiramente«street», como as pessoas pensavam que eu era, mas não era – mas para quem era tão natural

aparecerem nestes escritórios como irem à Lua. E perguntava-me: porquê eu? Nas grandes pilhas de revistas lustrosas, também elas brindes, espalhadas por todo o escritório,

líamos agora que a Britânia era cool – ou alguma versão daquela que até a mim me parecia tudomenos cool – e ao fim de algum tempo começámos a perceber que devia ser precisamente estaonda de otimismo que a empresa estava a cavalgar. Otimismo matizado de nostalgia: os rapazesdo nosso escritório pareciam mods recauchutados – com cortes de cabelo a imitar os Kinks, detrinta anos antes – e as raparigas eram loiras artificiais tipo Julie Christie, de saia curta e olhosnegros esborratados. Toda a gente ia para o escritório de Vespa, todos os cubículos pareciam teruma foto de Michael Caine em Como Conquistar as Mulheres ou Um Golpe à Italiana. Aconteceque era a nostalgia de um tempo e de uma cultura que para mim não tinham nenhum significado,e talvez por isso os meus colegas me achassem cool, por virtude de não ser como eles. Em cimada minha secretária apareciam novidades do hip-hop americano que eram lá postas porexecutivos de meia-idade que partiam do princípio de que eu devia ter opiniões informadas sobreele e, na verdade, o pouco que sabia parecia muito naquele contexto. A própria missão deciceronear Aimee naquele dia foi-me atribuída, tenho a certeza, porque me consideravamdemasiado cool para me importar com isso. A minha opinião negativa sobre a maioria dasquestões já era dada como garantida: «Oh, não, nem vale a pena perguntar-lhe, não ia gostar.»Dito de forma irónica, como tudo naquele tempo, mas com um laivo frio de orgulho defensivo.

O meu trunfo mais inesperado era a minha chefe, Zoe. Também ela tinha começado comoestagiária, mas sem bens de fortuna pessoal nem pais endinheirados, como todos os colegas, nemsequer a poupança que era viver em casa dos pais, como eu. Tinha vivido num tugúrio imundoda zona de Chalk Farm, tinha trabalhado mais de um ano sem receber ordenado, e mesmo assimcomparecia todas as manhãs às nove – na YTV a pontualidade era considerada uma virtudequase inconcebível – onde «se matava a trabalhar». Inicialmente entregue a famílias deacolhimento, saltando de casa em casa em Westminster, já tinha ouvido falar dela a outrosmiúdos que conhecia e haviam passado pelo mesmo. Tinha a mesma avidez desenfreada por tudoa que pudesse deitar a mão, e uma personalidade distante, profundamente maníaca – traços queàs vezes se encontram em repórteres de guerra, ou nos próprios combatentes. Teria todas asrazões para ter medo da vida. Mas era temerariamente audaciosa. O oposto de mim. Apesardisso, no escritório, Zoe e eu éramos vistas como intermutáveis. As suas opções políticas, talcomo as minhas, não levantavam dúvidas a ninguém, se bem que no caso dela o escritórioestivesse muito enganado: era uma thatcheriana acérrima, daquelas que achavam que, por ela tersubido na vida a pulso, o melhor que toda a gente podia fazer era seguir-lhe o exemplo. Porqualquer razão estranha, «revia-se em mim». Eu admirava-lhe a tenacidade, mas não me revianela. Afinal de contas, tinha andado na universidade e ela não; ela era viciada em cocaína, eu nãoera; ela vestia-se como a Spice Girl com quem se parecia, e não como a executiva que de factoera; contava anedotas de sexo que não tinham piada, dormia com os estagiários mais novos, maisjanotas, de cabelos mais soltos, mais brancos e mais independentes; eu era pudicamente crítica.Apesar de tudo, ela gostava de mim. Quando estava embriagada ou pedrada, fazia questão de melembrar que éramos irmãs, duas raparigas mestiças em dívida uma para com a outra. Perto doNatal enviou-me aos nossos European Music Awards, em Salzburgo, onde uma das minhasmissões era acompanhar Whitney Houston a um teste de som. Não me lembro da canção que elacantou – nunca, de resto, gostei das canções dela – mas naquela sala de concerto vazia, ouvindo-a cantar sem acompanhamento, sem nenhum tipo de apoio, descobri que a extrema beleza davoz, a monumental dose de soul que continha, a dor nela implícita, desmentia todas as minhas

opiniões conscientes, ou o que quer que as pessoas queiram dizer quando falam do seu próprio«bom gosto», e entrava-me diretamente na medula, onde percutia um músculo e me desarmava.Lá atrás, junto ao sinal de SAÍDA, rompi em lágrimas. Quando voltei a Hawley Lane já ahistória lá tinha chegado, mas isso não me prejudicou em nada, antes pelo contrário – foiinterpretado como um sinal de que eu era uma verdadeira crente.

3

Agora parece divertido, quase patético – e talvez só a tecnologia consiga operar esta vingançacómica sobre as nossas memórias – mas, quando estávamos para receber um artista e tínhamosde elaborar um dossiê sobre ele, para dar aos entrevistadores e aos publicitários e a outraspessoas, íamos para uma pequena biblioteca que havia na cave e tirávamos da prateleira umaenciclopédia em quatro volumes intitulada The Biography of Rock. Todos os dados da entradasobre Aimee, mais e menos importantes, já eram do meu conhecimento – nascida em Bendigo,alérgica a nozes – exceto num pormenor: a sua cor preferida era o verde. Tomei as minhas notas,à mão, reuni todos os pedidos relevantes, fui para a sala de cópias, pus-me ao pé de uma ruidosamáquina de fax e fui enfiando lentamente os documentos lá para dentro, a pensar na pessoa queem Nova Iorque – para mim uma cidade de sonho – estaria junto a uma máquina parecida àespera de que o documento chegasse, exatamente ao mesmo tempo que eu o enviava, o quetornava a operação profundamente moderna, uma vitória sobre a distância e o tempo. E depois, éclaro, para recebê-la ia precisar de roupas novas, talvez um penteado novo, uma forma diferentede falar e andar, uma atitude perante a vida completamente nova. Que vestir? O único sítio ondeentão fazia compras era o Mercado de Camden, com grande satisfação descobri no meio daquelelabirinto de Doc Martens e xailes hippies um enorme par de calças militares feitas de um tecidosedoso de paraquedas, um top verde sem alças, justinho – que tinha como bónus a capa do álbumThe Low End Theory6 em reluzente relevo preto, verde e vermelho – e um par de Air Jordansespaciais, também verdes. Rematei com uma falsa argola de nariz. Nostálgica e futurista, hip-hope indie, riot girl e violent femme. As mulheres costumam convencer-se de que a roupa resolveum problema, de uma forma ou de outra, mas na terça-feira anterior à chegada de Aimee euapercebi-me de que nada daquilo que vestia iria ajudar-me. Sentei-me diante do meu gigantescomonitor cinzento a ouvir a vibração do modem, a pensar em quinta-feira e, distraidamente, adigitar o nome completo de Tracey na pequena caixa branca, vezes sem conta. Era o que fazia notrabalho quando estava aborrecida ou tensa, embora de facto nunca me aliviasse uma coisa nemoutra. Já tinha feito aquilo muitas vezes, quando abria o Netscape, esperava que se estabelecessea ligação interminavelmente lenta e encontrava sempre as mesmas três pequenas ilhas deinformação: o currículo profissional de Tracey, a sua página pessoal na Internet e uma sala deconversação que ela frequentava, sob o pseudónimo Truthteller_LeGon. O currículo era estático,nunca mudava. Referia a sua participação como corista no musical Garotos e Garotas no anoanterior, mas nunca eram acrescentados novos espetáculos, não apareciam novidades. A páginapessoal estava sempre a mudar. Havia dias em que a visitava duas vezes e descobria que acanção era diferente ou que o grafismo com girândolas de fogo de artifício tinha sido substituídopor arcos-íris em forma de coração, que acendiam e apagavam. Era nesta página que, um mês

antes, ela havia feito referência à sala de conversação, com uma nota em hiperligação – Às vezesa verdade custa a ouvir!!! – e esta simples referência foi quanto me bastou: a porta estava abertae comecei a passar por lá várias vezes por semana. Não creio que ninguém que seguisse aquelaligação – a não ser eu – tivesse descoberto que quem «dizia a verdade» naquela conversa bizarraera Tracey em pessoa. Mas também ninguém lia a página, que eu soubesse. Havia nisto umapureza austera e triste: ninguém ouvia as canções que ela escolhia, nunca ninguém, a não ser eu,lia as palavras que escrevia – quase sempre aforismos banais («O Arco do Universo Moral éComprido, mas Curva-se na Direção da Justiça»). Só naquela sala de conversação parecia estarno mundo, embora fosse um mundo bizarro, cheio de vozes ecoantes de pessoas queaparentemente já se tinham posto de acordo. Pelo que me era dado perceber, Tracey passava umaassustadora quantidade de tempo naquela sala, principalmente a altas horas da noite, e entretantoeu já tinha pesquisado todos os seus comentários, atuais e arquivados, até conseguir descobrir alógica de tudo aquilo – talvez seja melhor dizer que deixei de ficar escandalizada – e identificar eapreciar a lógica de argumentação subjacente. Passei a ter menos vontade de contar histórias aosmeus colegas sobre a minha ex-amiga maluca, Tracey, as suas aventuras surreais na sala deconversação, as suas obsessões apocalíticas. Não lhe tinha perdoado – nem a tinha esquecido –mas tornou-se desagradável usá-la daquela maneira.

Um dos aspetos mais estranhos da situação era que o homem sob cuja influência ela pareciaestar, o seu guru, fora em tempos jornalista num programa de televisão matinal, trabalhara noedifício onde eu agora trabalhava, e lembro-me de, quando éramos pequenas, o termos vistomuitas vezes na televisão, as duas sentadas com as tigelas de cereais nos joelhos, à espera de queo seu enfadonho programa para adultos terminasse e começassem os nossos desenhos animadosde sábado de manhã. Uma vez, durante as minhas primeiras férias de inverno da faculdade, fuicomprar uns manuais a uma livraria de Finchley Road, que fazia parte de uma cadeia, e,enquanto deambulava pela secção de filmes, vi-o em carne e osso, a apresentar um dos seuslivros num canto recuado da gigantesca livraria. Estava sentado a uma mesa branca e simples,todo vestido de branco, com o cabelo prematuramente embranquecido, diante de uma plateiarazoável. Duas empregadas da livraria pararam ao pé de mim e de trás das estantes ficaram aobservar aquele ajuntamento peculiar. Estavam a rir-se dele. Mas a mim, mais do que aquilo queele estava a dizer, impressionava-me a estranha composição da plateia. Havia algumas mulheresbrancas de meia-idade, nos seus confortáveis fatos de treino decorados com motivos natalícios,que em nada diferiam das donas de casa que dez anos antes teriam gostado dele, mas a maiorparte da multidão ouvinte era, de longe, constituída por homens negros e jovens, mais ou menosda minha idade, com exemplares muito usados dos livros dele em cima dos joelhos e escutandocom uma absoluta concentração e determinação uma rebuscada teoria da conspiração. Que omundo era governado por lagartos com a forma de homens: os Rockefellers eram lagartos, e osKennedys, e quase toda a gente da Goldman Sachs, e William Hearst tinha sido um lagarto, eRonald Reagan e Napoleão – era uma conspiração universal de lagartos. As empregadasacabaram por se cansar da galhofa e afastaram-se. Eu fiquei até ao fim, profundamenteperturbada com aquilo a que tinha assistido, sem saber o que pensar. Só mais tarde, quandocomecei a ler os comentários de Tracey – que eram, se conseguíssemos abstrair da disparatadapremissa inicial, notáveis no pormenor e na erudição perversa, estabelecendo ligações entremuitos e diferentes períodos e ideias e factos históricos, conjugando-os a todos numa espécie deteoria de tudo que, mesmo sendo comicamente errada, pressupunha uma certa profundidade deestudo e uma atenção persistente – sim, só então senti que compreendia melhor a razão pela qual

todos aqueles jovens de ar compenetrado se tinham reunido na livraria naquele dia. Passei a sercapaz de ler nas entrelinhas. Afinal de contas, não era tudo uma forma de explicar o poder? Opoder que sem dúvida existe no mundo? Que está na mão de poucos e do qual a maioria nunca seaproxima? Um poder de que a minha ex-amiga deve ter sentido, naquela altura da sua vida,imensa falta?

«Ei, que raio é isso?» Virei-me na cadeira giratória e vi que tinha Zoe atrás de mim, a olhar atentamente para uma

imagem intermitente de um lagarto que tinha, no alto da sua cabeça de lagarto, as Joias da Coroa.Minimizei a página.

«Maquetas de álbuns. Más.» «Escuta, na quinta-feira de manhã – entras em ação, já está confirmado. Estás preparada? Tens

tudo o que precisas?» «Não te preocupes. Vai correr bem.» «Eu sei que vai. Mas se precisares de um empurrãozinho», disse Zoe, batendo na asa do nariz,

«é só dizeres.» Não chegou a esse ponto. É difícil recordar exatamente a que ponto chegou. A memória que

guardo disso e aquela que guardo de Aimee nunca se sobrepuseram muito. Ouvia-a dizer que metinha contratado porque naquele dia sentira que «havia entre nós uma comunicação imediata» ou,outras vezes, porque as minhas capacidades a tinham impressionado. Eu acho que foi por ter sidoinvoluntariamente indelicada com ela, coisa que poucas pessoas eram naquela fase da sua vida, ena minha indelicadeza devo ter-me alojado no seu cérebro. Quinze dias depois, quando derepente se viu na necessidade de uma nova assistente, jovem, lá estava eu, alojada na sua cabeça.Saiu de um automóvel com os vidros escurecidos a meio de uma discussão com a sua assistentede então, Melanie Wu. Dois passos atrás de ambas vinha a empresária, Judy Ryan, aos berrospara dentro de um telemóvel. A primeira coisa de todas as que ouvi Aimee dizer foi umraspanete: «Tudo quanto neste momento sai da tua boca é-me completamente inútil.» Repareique já não tinha sotaque australiano, mas também não era bem americano nem bem britânico, eraglobal: era Nova Iorque e Paris e Moscovo e LA e Londres, tudo junto. É claro que hoje em diahá muita gente a falar assim, mas a versão de Aimee foi a primeira que ouvi. «És o contrário deútil», disse então, ao que Melanie respondeu: «Não tenho dúvida nenhuma.» Momentos depois apobre rapariga estava diante de mim, baixando os olhos para o meu peito à procura de uma placade identificação, e quando voltou a levantá-los vi que estava destroçada, fazendo um esforço paranão chorar. «Portanto estamos dentro do horário», disse, com a firmeza possível, «e era ótimo seassim pudéssemos continuar, não era?»

Íamos as quatro no elevador, em silêncio. Eu estava decidida a falar, mas antes queconseguisse fazê-lo Aimee virou-se para mim e fez beicinho ao reparar no meu top, como umadolescente bonito que faz uma birra.

«Escolha interessante», disse, para Judy. «Usar a camisa de outro artista quando vem receberuma artista? Profissional.»

Eu baixei os olhos e corei. «Não! De maneira nenhuma, Miss – quer dizer, Senhora – Aimee. Não quis fazer

nenhuma...» Judy soltou uma gargalhada sonora e única, como um balido de foca. Eu tentei dizer mais

qualquer coisa, mas as portas do elevador abriram-se e Aimee saiu. Para chegarmos aos locais dos nossos vários compromissos tivemos de percorrer os

corredores, e nestes havia filas de pessoas, parecia o Mall no dia do funeral de Diana. Pelosvistos, ninguém estava a trabalhar. Sempre que parávamos num estúdio, toda a gente perdiaimediatamente a serenidade, independentemente da respetiva posição na hierarquia. Vi umdiretor-geral contar a Aimee que uma das baladas dela tinha sido a primeira dança no seucasamento. Ouvi, cheia de vergonha, Zoe lançar-se num longo relato da ressonância pessoal que«Move with Me» teve nela, de como a tinha ajudado a fazer-se mulher, e a compreender o poderdas mulheres, e a não ter medo de ser mulher, e por aí fora. Quando finalmente nos fomosembora dali, por outro corredor e outro elevador, a caminho da cave – onde Aimee tinha, paragáudio de Zoe, acedido a gravar uma curta entrevista – ganhei coragem para dizer, no jeitoenfastiado com a vida próprio de uma rapariga de vinte anos, quão aborrecido imaginava quefosse para ela ouvir as pessoas dizerem-lhe aquele género de coisas, dia e noite, noite e dia.

«Fique sabendo, Pequena Miss Deusa Verde, que adoro isso.» «Ah sim? Bem, eu só pensei que...» «A menina só pensou que eu desprezava a minha gente.» «Não! Só que... eu...» «Sabe, lá porque não faz parte da minha gente não quer dizer que não seja gente boa. Cada

qual tem a sua tribo. Afinal a que tribo pertence a menina?» Mirou-me de alto a baixo umasegunda vez, lentamente. «Pronto, está bem. Já sabemos.»

«Quer dizer – musicalmente?», perguntei, e cometi o erro de olhar de relance para MelanieWu, por cuja expressão percebi que a conversa devia ter terminado muitos minutos antes, nemsequer devia ter começado.

Aimee suspirou: «É claro.» «Bem... muitas coisas... Acho que gosto muito da música mais antiga, tipo Billie Holiday. Ou

Sarah Vaughan. Bessie Smith. Nina. Cantoras a sério. Quer dizer... não aquela... quer dizer, sintoque...»

«Mm, corrijam-me se eu estiver errada», disse Judy, com um forte sotaque australiano que asdécadas entretanto decorridas haviam deixado intacto. «A entrevista não vai decorrer nesteelevador, pois não? Obrigada.»

Saímos na cave. Eu sentia-me envergonhada e tentei sair antes de toda a gente, mas Aimeepassou à frente de Judy e enfiou-me o braço. Senti o coração subir-me à garganta, como ascanções antigas dizem que pode acontecer. Baixei os olhos – ela só mede um metro e cinquenta ecinco – e pela primeira vez vi aquela cara de perto, dir-se-ia que ao mesmo tempo masculina efeminina, os olhos de uma beleza gélida, cinzenta, felina, deixados assim para o resto do mundoos colorir. A australiana mais pálida que jamais vi. Às vezes, sem maquilhagem, até parecia quenão tinha nascido num planeta quente, e tomava precauções para se manter assim, protegendo-seconstantemente do sol. Tinha qualquer coisa de exótico, de alguém que pertence a uma tribo deuma pessoa só. Quase sem dar por isso, sorri. Ela retribuiu o sorriso.

«Estava a dizer que?», disse ela. «Oh! Eu... sinto que as vozes são como... são assim como...» Ela voltou a suspirar, fingindo olhar para um relógio inexistente. «Penso que as vozes são como as roupas», disse eu com convicção, como se fosse uma ideia

em que andava a pensar há anos e não uma coisa que me tinha ocorrido de repente. «Portanto, sevirmos uma foto de 1968 sabemos que é 68 pela forma como as pessoas estão vestidas, se

ouvirmos a Janis cantar sabemos que é 68. A voz dela é um sinal dos tempos. É assim como ahistória ou... coisa parecida.»

Aimee levantou uma sobrancelha devastadora. «Estou a ver.» Largou-me o braço. «Mas aminha voz», disse, com igual convicção, «a minha voz é o tempo presente. Se a si lhe soa comoum computador, bem, lamento, mas isso é porque está no tempo certo. Pode não gostar, podeestar a viver no passado, mas eu estou a cantar a porra deste tempo, neste momento exato.»

«Mas eu gosto da sua música!» Ela voltou a fazer o engraçado beicinho de adolescente. «Mas não tanto como gosta dos Tribe. Ou da merda dos Lady Day.» Judy veio a correr atrás de nós: «Desculpem, sabem para que estúdio vamos, ou querem que

eu...» «Hey, Jude! Estou a conversar com esta jovem!» Tínhamos chegado ao estúdio. Abri a porta para elas entrarem. «Ouça, só queria dizer que entrei de facto com o pé... de facto, Miss... quer dizer... Aimee... eu

tinha dez anos quando saiu o seu primeiro single – comprei-o. Para mim é uma loucura estar aquiconsigo. Faço parte da sua gente!»

Ela voltou a sorrir-me: havia uma espécie de sedução na forma como falava comigo, na formacomo falava com toda a gente. Pegou-me suavemente no queixo.

«Não acredito», disse, tirou-me a argola falsa do nariz com um movimento rápido e entregou-ma.

6 Álbum da banda A Tribe Called Quest. (N. do T.)

4

Agora ali está Aimee, na parede de Tracey – evidentemente. Dividiu o espaço com Michael eJanet Jackson, Prince, Madonna, James Brown. Ao longo do verão transformou o quarto numaespécie de santuário dedicado a estas pessoas, os seus dançarinos favoritos, decorado com muitose lustrosos cartazes deles, todos captados em pleno movimento, pelo que as paredes tinham oaspeto de hieróglifos, para mim indecifráveis, mas nem por isso deixavam de ser alguma formade mensagem, feita de gestos, cotovelos e pernas fletidos, dedos estendidos, projeções pélvicas.Como não gostava de poses publicitárias, escolhia fotogramas de concertos a que não tínhamoshipótese de assistir, daqueles em que até se via o suor no rosto de um dançarino. Estes, alegava,eram «autênticos». O meu quarto também era um santuário, mas eu era refém da fantasia, ia àbiblioteca e trazia de lá velhas biografias dos anos setenta dos grandes ídolos da MGM e daRKO, arrancava os seus retratos melodramáticos e colava-os na parede com fita adesiva. Foiassim que descobri os Nicholas Brothers, Fayard e Harold: uma foto deles no ar, fazendoespargatas, assinalava a entrada no meu quarto, saltando por cima do aro da porta. Fiquei a saberque eram autodidatas, e apesar de dançarem divinalmente não tinham nenhuma espécie deeducação formal. Sentia por eles uma espécie de orgulho possessivo, como se fossem meusirmãos, como se fossem da família. Tentava de todas as maneiras interessar Tracey – com qualdos irmãos gostava de se casar? qual deles gostava de beijar? – mas ela já não aguentava nem omais pequeno clipe de filme a preto e branco, tudo o que fosse a preto e branco aborrecia-a. Nãoera «autêntico» – faltavam ali muitas coisas, havia ali muitas partes artificiais. Queria ver umdançarino em palco, a transpirar, autêntico, não aperaltado, de cartola e asas de grilo. Mas a mima elegância seduzia-me. Gostava da forma como ela escondia a dor.

Uma noite sonhei com o Cotton Club: Cab Calloway estava lá, e Harold e Fayard, e eu estavanum pódio com um lírio atrás da orelha. No meu sonho éramos todos elegantes e ninguém sentiador, nunca tínhamos ilustrado as páginas tristes dos livros de história que a minha mãe mecomprava, nunca ninguém nos tinha chamado feios ou estúpidos, nunca tínhamos entrado nosteatros pela porta dos fundos, bebido por bebedouros separados ou tomado assento nos bancos detrás de nenhum autocarro. Nenhum dos nossos tinha alguma vez sido pendurado pelo pescoçonuma árvore, nem atirado de repente borda fora, algemado, para a água escura – não, no meusonho éramos de ouro! Não havia ninguém mais belo e elegante do que nós, éramos um povoabençoado, onde quer que nos encontrassem, em Nairobi, Paris, Berlim, Londres ou, esta noite,no Harlem. Mas quando a orquestra começava a tocar, e o meu público se sentava às mesinhascom bebidas nas mãos, felizes consigo mesmos, à espera de que eu, sua irmã, cantasse, abria aboca e não saía nenhum som. Acordei e descobri que tinha urinado na cama. Tinha onze anos.

A minha mãe tentou ajudar, à sua maneira. Olha bem para o Cotton Club, disse, está aí a

Renascença do Harlem. Repara: estão lá o Langston Hughes e o Paul Robeson. Olha bem para ETudo o Vento Levou: está lá a NAACP7. Mas na altura as ideias políticas e literárias da minhamãe interessavam-me menos do que os braços e as pernas, o ritmo e a canção, a seda vermelhado saiote de Mammy ou o timbre indomável da voz de Prissy. O tipo de informação queprocurava, que achava que me era necessária para me escorar, fui antes buscá-la a um livroantigo, roubado na biblioteca – The History of Dance. Fiquei a conhecer passos que foramtransmitidos de século em século, ao longo de gerações. Uma história diferente daquela que aminha mãe me contava, a história que quase não está escrita – que é sentida. E parecia-me muitoimportante, naquela altura, que Tracey sentisse tudo aquilo que eu estava a sentir, e ao mesmotempo que eu o sentia, mesmo que tivesse deixado de lhe interessar. Fui a correr até casa dela,irrompi-lhe pelo quarto e disse, sabes, quando fazes a espargata (era a única aluna de dança deMiss Isabel que sabia fazê-la), sabes que a espargata que fazes e dizias que o teu pai tambémsabe fazê-la, e recebeste isso dele, e ele recebeu-o do Michael Jackson, e o Jackson do Prince etalvez do James Brown, pois bem, todos o receberam dos Nicholas Brothers, os NicholasBrothers são os originais, são os primeiros dos primeiros, e portanto, mesmo que não saibas oudigas que não queres saber, continuas a receber isso deles. Ela estava a fumar um cigarro da mãeà janela do quarto. Ao fazê-lo parecia muito mais velha do que eu, mais parecia ter quarenta ecinco anos do que onze, até expelia o fumo por aquelas narinas enfunadas, e enquanto euproclamava esta coisa supostamente importantíssima que tinha ido dizer-lhe sentia as palavrasdesfazerem-se em cinza na boca. Aliás, nem sequer sabia o que estava a dizer ou o que queriadizer com aquilo. Para evitar que o fumo invadisse o quarto, ela mantinha-se de costas para mim,mas quando acabei de marcar a minha posição, se era disso que se tratava, virou-se para mim edisse, com grande frieza, como se fôssemos duas completas desconhecidas, «Nunca mais voltes afalar do meu pai.»

7 National Association for the Advancement of Colored People (Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor). (N.do T.)

5

«Isto não está a resultar.» Ainda só tinha passado cerca de um mês desde que eu começara a trabalhar com ela – com

Aimee – e mal ouvi isto dito em voz alta percebi que ela tinha razão, não estava a resultar, e oproblema era eu. Era jovem e inexperiente, e não parecia capaz de encontrar o caminho deregresso àquela impressão que tivera, no dia em que nos conhecemos, de que talvez ela fosse umser humano como qualquer outro. Mas à minha reação instintiva tinham-se sobreposto as reaçõesde outras pessoas – ex-colegas, antigos companheiros de escola, os meus pais – e cada uma tinhao seu efeito, cada manifestação de espanto ou gargalhada de incredulidade, de tal maneira queagora, todas as manhãs, quando chegava à casa de Aimee em Knightsbridge ou ao seu escritórioem Chelsea, tinha de me debater com uma fortíssima sensação de surrealidade. Que estava ali afazer? Com frequência gaguejava ao falar, ou esquecia coisas importantes que ela me tinha dito.Perdia o fio à meada durante teleconferências, demasiado distraída por uma voz interior que nãoparava de dizer: isto não é real, nada disto é real, é tudo fruto da tua imaginação pueril. Era paramim uma surpresa ao fim de um dia fechar a pesada porta daquela casa georgiana e verificar queafinal não estava numa cidade imaginária, mas sim em Londres e a poucos passos do metro dePiccadilly. Sentava-me ao lado das outras pessoas que regressavam a casa e liam o jornalgratuito, de que às vezes também pegava num exemplar, mas que davam a sensação de que jávinham a viajar de mais longe: não só do centro para os subúrbios, mas de regresso de outromundo ao seu, o mundo que a mim, que tinha vinte e dois anos, me parecia existir no centro docentro – aquele sobre o qual iam a ler com tanta atenção.

«Não está a resultar porque tu não te sentes confortável», informou-me Aimee, sentada numgrande sofá cinzento, de frente para outro igual onde eu estava sentada. «Precisas de te sentirconfortável contigo mesma para poderes trabalhar comigo. E isso não está a acontecer.»

Eu fechei o bloco no colo, baixei a cabeça e senti-me quase aliviada: podia voltar para o meuverdadeiro emprego – se ainda me aceitassem – e para a realidade. Mas, em vez de me despedir,Aimee atirou-me prazenteiramente uma almofada à cabeça: «E então, que fazemos?»

Tentei rir-me e confessei que não sabia. Ela rodou a cabeça para a janela. Vi-lhe no rostoaquela expressão de constante insatisfação, de impaciência, a que mais tarde iria habituar-me, osavanços e recuos da sua impaciência passaram a moldar os meus dias de trabalho. Mas naquelesprimeiros tempos tudo era ainda novo para mim, e interpretava aquilo apenas como tédio,concretamente tédio e desilusão com a minha pessoa, e, sem saber o que havia de fazer, percorriacom os olhos todas as jarras que havia no grande salão – ela enchia todos os espaços de flores – ea beleza lá de fora, o Sol a refletir-se nos telhados de ardósia de Knightsbridge, e tentava pensarnalguma coisa interessante para dizer. Ainda não percebia que a beleza fazia parte do tédio. Nas

paredes ela tinha muitos óleos vitorianos escuros, retratos da aristocracia diante das suas casasimponentes, mas nada do seu século, e nada que fosse reconhecivelmente australiano, nada quefosse pessoal. Aquela devia ser a casa de Aimee em Londres, mas não tinha nada a condizer comela. Os móveis eram em geral luxuosos e de bom gosto, como os de qualquer hotel europeu decategoria superior. O único verdadeiro sinal de que Aimee ali vivia era um bronze junto aopeitoril da janela, mais ou menos do tamanho de um prato e com a mesma forma, no centro doqual se viam as pétalas e folhas de qualquer coisa que à primeira vista parecia um nenúfar sobrea sua folha, mas era afinal a reprodução perfeita de uma vagina: vulva, lábios, clítoris – tudo.Não me atrevi a perguntar de quem.

«Mas onde é que te sentes mais confortável?», perguntou ela, voltando-se de novo para mim.Vi que tinha uma ideia nova pintada na cara, como batom acabado de aplicar.

«Referes-te a um lugar?» «Nesta cidade. Um lugar.» «Nunca pensei nisso.» Ela pôs-se de pé: «Pois então pensa e vamos lá as duas.» O primeiro lugar que me veio à cabeça foi o Heath. Mas a Londres de Aimee, como aqueles

mapas pequenos que recolhemos no aeroporto, era uma cidade centrada em volta de St James’s,limitada a norte pelo Regent’s Park, estendendo-se para oeste até Kensington – com uma ououtra surtida às paragens inóspitas de Ladbroke Grove – e para leste só até à zona do Barbican.Sabia tão pouco sobre o que podia existir no extremo sul da ponte de Hungerford como na pontade um arco-íris.

«É um parque grande», expliquei. «Perto do sítio onde cresci.» «OK! Então vamos lá.» Atravessámos a cidade de bicicleta, contornando autocarros e competindo com um ou outro

estafeta, numa fila de três: o segurança dela à frente – chamava-se Granger –, depois Aimee,depois eu. A ideia de ter Aimee a andar de bicicleta pela cidade enfurecia Judy, mas Aimeeadorava, chamava-lhe a sua liberdade na cidade, e talvez num semáforo em cada vinte o condutorao nosso lado se debruçasse sobre o volante, baixasse o vidro, por ter pensado que aqueles olhosfelinos, cinzento-azulados, aquele pequeno queixo triangular, lhe diziam alguma coisa... Masentretanto o semáforo mudava de cor e nós desaparecíamos. De qualquer forma, quando andavade bicicleta, ia camuflada – sutiã de desporto preto, colete preto e calções de ciclismo velhos,gastos entre as pernas – e só Granger parecia poder atrair a atenção de alguém: um negro comum metro e noventa de altura e cento e treze quilos de peso, bamboleando-se em cima de umabicicleta de competição com quadro de titânio, que de vez em quando parava para tirar do bolsoum guia A-Z e estudava-o furiosamente. Era originário do Harlem – «onde as ruas são emquadrícula» – e a incapacidade que os londrinos mostravam de também numerarem as suas ruasera coisa que não podia perdoar. Por causa disso tinha riscado a cidade do seu mapa. Para ele,Londres era um labirinto de má comida e mau tempo onde a sua única missão – garantir asegurança de Aimee – era dificultada sem necessidade. Ao passar em Swiss Cottage fez-nos umsinal encaminhando-nos para uma ilha de trânsito, onde despiu o blusão revelando um par debíceps possantes.

«É altura de dizer que não faço ideia de onde estamos», disse, batendo com o mapa no guiador.«Vou a meio de uma ruazinha de merda – Christchurch Close, Hingleberry Corner – e esta porradiz-me: ir para a página 53. Eu vou em cima de uma bicicleta, filho da puta.»

«Coragem, Granger», disse Aimee, num péssimo sotaque britânico, e puxou-lhe por momentos

a cabeçorra para o seu ombro, apertando-a carinhosamente. Granger soltou-se e olhou furiosopara o Sol: «Desde quando está este calor?»

«Bem, estamos no verão. Às vezes em Inglaterra o verão é quente. Devias ter trazidocalções.»

«Eu não uso calções.» «Não creio que esta conversa nos leve a lado nenhum. Estamos numa ilha de trânsito.» «Para mim chega. Vamos voltar para trás», disse Granger, parecia irredutível, e eu fiquei

espantada por ver alguém falar com Aimee daquela maneira. «Não vamos voltar para trás coisa nenhuma.» «Então é melhor ficares tu com isto», disse Granger, lançando o A-Z para o cesto do guiador

da bicicleta de Aimee, «porque eu não sei usá-lo.» «Eu sei o caminho daqui para a frente», disse eu, envergonhada por ser a causa do problema.

«Estamos quase a chegar.» «Precisamos de um veículo», insistiu Granger, sem olhar para mim. Quase nunca olhávamos

um para o outro. Às vezes eu pensava em nós como dois agentes adormecidos, designados porengano para vigiar o mesmo alvo, que evitam o contacto visual, não vá um denunciar o disfarcedo outro.

«Ouvi dizer que há lá uns rapazes giros», disse Aimee com uma entoação cantada – a ideia eraimitar Granger – «estão es-con-di-dos nas ár-vo-res.» Pôs o pé no pedal, arrancou e guinou parao meio do trânsito.

«Não misturo prazer com trabalho», disse Granger com sobranceria, voltando a montar comaprumo na sofisticada bicicleta. «Sou um profissional.»

Arrancámos encosta acima, monstruosamente íngreme, resfolegando penosamente atrás dasgargalhadas de Aimee.

Consigo sempre ir dar ao Heath – toda a vida segui caminhos que me levavam, quer quisesse

quer não, de regresso ao Heath – mas nunca procurei e encontrei Kenwood de forma consciente.Só vou lá ter por acaso. Assim aconteceu desta vez: ia à frente de Aimee e Granger subindo asveredas, passando os lagos, vencendo uma encosta, pensando onde seria o sítio mais bonito, maiscalmo e ao mesmo tempo mais interessante para parar com uma superstar que se entediava comfacilidade, quando vi o pequeno portão de ferro forjado e, atrás das árvores, as chaminésbrancas.

«Proibidas bicicletas», disse Aimee, lendo uma placa, e Granger, adivinhando o que lá vinha,recomeçou a protestar, mas foi desarmado.

«Vamos demorar, tipo, uma hora», disse ela, desmontando da bicicleta e passando-lha para asmãos. «Talvez duas. Eu ligo-te. Tens aquela coisa?»

Granger cruzou os braços sobre o peito imponente. «Tenho, mas não ta vou dar. Se não for contigo. Nem pensar. Esquece.» Quando desmontei da bicicleta, porém, vi Aimee estender a mãozinha insistente para receber

uma coisa pequena embrulhada em papel celofane e fechá-la à volta dela, coisa essa que eraafinal um charro – para mim. De formato longo e americano, sem tabaco nenhum. Instalámo-nosdebaixo de uma magnólia, mesmo em frente de Kenwood House, e eu encostei-me ao tronco afumar enquanto Aimee se estendia na relva com o boné de basebol preto puxado para cima dosolhos, a cara virada para mim.

«Sentes-te melhor?» «Mas... tu não vais fumar?» «Eu não fumo. Como é evidente.» Estava a transpirar como transpirava no palco, e agora agarrava o blusão e abanava-o para criar

um túnel de ar, dando-me a oportunidade de vislumbrar aquela pálida faixa de diafragma que emtempos tanto hipnotizou o mundo.

«Queres uma Coca-Cola fresca que tenho no saco?» «Não bebo essa merda e tu também não devias beber.» Soergueu-se apoiada nos cotovelos para me observar melhor. «Não pareces lá muito confortável.» Suspirou e virou-se de barriga para baixo a observar as multidões de veraneantes que desciam

em direção às antigas cavalariças em busca de scones e chá ou ao interior da casa grande embusca de arte e história.

«Tenho uma pergunta», disse eu, sabendo que estava pedrada e ela não, mas sentindodificuldade em não me esquecer da segunda parte da proposição. «Fazes isto com todas as tuasassistentes?»

Ficou a pensar: «Não, não faço exatamente isto. As pessoas são diferentes. Faço semprealguma coisa. Não posso ter na minha frente vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana,uma pessoa que se sente desconfortável comigo. Não tenho tempo para isso. E não posso dar-meao luxo de conhecer cada uma de forma lenta, delicada, ser educadamente inglesa, dizendo porfavor e obrigada sempre que quero que alguém faça alguma coisa – se trabalhas comigo, tenssimplesmente de ser rápida. Já faço isto há algum tempo, e cheguei à conclusão de que meiadúzia de horas intensas ao princípio poupam uma data de tempo e mal-entendidos e parvoícesmais tarde. Tu estás a entrar facilmente na coisa, fica sabendo. Com a Melanie tomei um banhode imersão.»

Ensaiei uma piada idiota e comprida, na esperança de a pôr a rir outra vez, mas em vez dissoela olhou-me de viés.

«Outra coisa que tens de compreender é que não se trata de eu não perceber a tua ironiabritânica, mas sim de não gostar dela. Acho-a adolescente. Noventa e nove por cento do tempoque passo com pessoas britânicas que não conhecia, a sensação que tenho é: cresce!» Regressoua Melanie naquele banho. «Queria saber se tinha os mamilos compridos de mais. Paranoica.»

«Tinha?» «Tinha o quê, quem?» «Os mamilos. Compridos.» «Compridos? Os estupores pareciam dedos.» Cuspi parte da minha Coca-Cola para a relva. «Tens graça.» «Pertenço a uma longa linhagem de pessoas com graça. Só Deus sabe por que razão os

britânicos pensam que são os únicos autorizados a ter graça neste mundo.» «Eu não sou assim tão britânica.» «Ora, menina, mais britânica não podias ser.» Tirou o telemóvel do bolso e pôs-se a ver as mensagens. Muito antes de se ter tornado um

hábito generalizado já Aimee vivia no telemóvel. Foi pioneira nisso, como em tantas outrascoisas.

«Granger, Granger, Granger, Granger. Não sabe o que há de fazer quando não tem nada para

fazer. É como eu. Temos a mesma mania. Lembra-me até que ponto posso ser cansativa. Para osoutros.» Hesitava-lhe o polegar sobre o teclado do BlackBerry novinho em folha. «De ti espero:frieza, calma, autodomínio. Faz-me falta por estas bandas. Santo Deus, já me enviou algumasquinze mensagens. Tudo o que tem a fazer é tomar conta das bicicletas. Diz que está ao pé do –que raio é o “lago dos homens”?»

Expliquei-lhe, em pormenor. Fez uma cara cética. «Se bem conheço o Granger, não há a mínima hipótese de ele nadar em água em estado

natural, nem em Miami nada. Tem uma grande fé no cloro. Não. Ele que se limite a tomar contadas bicicletas.» Espetou-me um dedo na barriga. «Estamos prontas? Fuma outro, se precisares. Éuma vez sem exemplo. Aproveita. Uma vez por assistente. No resto do tempo tu trabalhas e eutrabalho. E isso quer dizer sempre.»

«Neste momento sinto-me completamente relaxada.» «Ótimo! Mas há mais alguma coisa para se fazer neste sítio?» Foi assim que acabámos a deambular pelo interior de Kenwood House, seguidas, durante

algum tempo, por uma rapariguinha de seis anos e olhar arguto, cuja mãe distraída se recusava adar ouvidos ao seu palpite certeiro. De olhos injetados, eu arrastava os pés atrás da minha novapatroa, reparando pela primeira vez no modo muito especial como ela olhava para os quadros,como, por exemplo, ignorava todos os homens, não os pintores, mas os temas, passando semparar diante de um autorretrato de Rembrandt, ignorando todos os condes e duques, emenosprezando, com uma simples frase – «Vai cortar o cabelo!» – um marinheiro mercante quetinha os olhos risonhos do meu pai. As paisagens também não lhe diziam nada. Adorava cães,animais, fruta, tecidos, e em particular flores. Com o passar dos anos aprendi a esperar que oramo de anémonas que acabávamos de ver no Prado ou as peónias da National Galleryreaparecessem, mais ou menos uma semana depois, em jarras espalhadas por toda a casa ou hotelonde por acaso estivéssemos na altura. Havia também muitos cães pequenos, pintados, quesaltavam das telas para a vida dela. Kenwood era a origem de Colette, uma spaniel incontinentede Joshua Reynolds que comprou em Paris meses depois, e que durante um ano eu tive de levar apassear duas vezes por dia. Mas ainda mais do que destes gostava dos retratos de mulheres: osseus rostos, os seus adornos, os seus penteados, os seus espartilhos, os seus sapatinhos bicudos.

«Oh, meu Deus, é a Judy!» Aimee estava no outro extremo da sala de damasco vermelho, diante de um retrato, em

tamanho real, e ria-se. Eu aproximei-me por trás e observei atentamente o Van Dyck em questão.Não havia dúvida: ali estava Judy Ryan, em toda a sua horrível pompa, mas há cem anos,vestindo um balandrau preto e branco de renda e cetim que não a favorecia, e com a mão direita– entre o maternal e o ameaçador – pousada no ombro de um jovem pajem, anónimo. Os olhosde sabujo, a franja horrível, a cara comprida e sem queixo – estava lá tudo. Rimo-nos tanto queeu tive a sensação de que alguma coisa havia mudado entre nós, alguma cerimónia ou receiohavia desaparecido, de tal maneira que, minutos depois, quando Aimee se declarou encantadacom um quadro intitulado The Infant Academy, senti-me livre de, pelo menos, discordar.

«É um bocadinho sentimental, não achas? E estranho...» «Eu gosto. Gosto da estranheza. Criancinhas nuas retratando-se umas às outras. Ultimamente

fico toda derretida quando vejo um bebé.» Olhou enlevada para um rapazinho de sorriso tímidonum rosto de querubim. «Faz-me lembrar o meu filhinho. De certeza que não gostas?»

Naquela altura não sabia que Aimee estava grávida pela segunda vez, de Kara. Provavelmentenem ela sabia. Para mim era evidente que o quadro era todo ele ridículo, e as criancinhas de cara

rosada particularmente repulsivas, mas quando olhei para a cara dela vi que estava a falar a sério.E que são as crianças, lembro-me de ter pensado, para fazerem isto às mulheres? Têm o poder dereprogramar as mães? De fazer das mães o tipo de mulheres que elas próprias, quando maisjovens, nem sequer reconheceriam? A ideia apavorou-me. Limitei-me a elogiar-lhe a beleza dofilho Jay em comparação com aqueles querubins, em termos não muito convincentes oucoerentes, efeito do charro, e Aimee olhou para mim de cenho franzido.

«Não queres ter filhos, é isso? Ou pensas que não queres.» «Não, sei que não quero.» Ela deu-me uma palmadinha no alto da cabeça, como se não houvesse doze anos a separar-nos,

mas sim quarenta. «Que idade tens? Vinte e três? As coisas mudam. Eu era exatamente igual a ti.» «Não, eu sempre soube. Desde pequena. Não sou do tipo maternal. Nunca os quis, nunca os

quererei. Vi o que isso fez à minha mãe.» «Que foi que isso lhe fez?» A pergunta, de tão direta, obrigou-me a ponderar a resposta. «Foi mãe muito jovem, e mãe solteira. Havia coisas que queria ser e não podia, pelo menos na

altura – estava manietada. Tinha de lutar para ter algum tempo para si.» Aimee pôs as mãos nas ancas e assumiu um ar pedante. «Pois bem, eu sou mãe solteira. E posso garantir-te que o meu filho não me impede de fazer o

que quer que seja. Neste momento é a minha grande inspiração, se queres mesmo saber. Nãotenhas dúvidas de que é um fator de equilíbrio, mas é preciso querê-lo muito.»

Pensei na ama jamaicana, Estelle, que todas as manhãs me abria a porta e desaparecia noquarto das crianças. Não devia ocorrer a Aimee que talvez houvesse uma divergência práticaentre a situação da minha mãe e a sua, e foi essa uma das primeiras lições que aprendi sobre aforma como ela via as diferenças entre as pessoas, que nunca eram estruturais ou económicas,mas sempre, no essencial, diferenças de personalidade. Olhei para o rubor nas faces dela e para aposição em que eu tinha as mãos – estendidas à minha frente, como um político a defender umponto de vista – e tomei consciência de que a nossa discussão se tinha tornado rápida eestranhamente acalorada, sem que nenhuma de nós o desejasse, como se a palavra «bebé» tivesseuma espécie de efeito acelerador. Recolhi as mãos para os lados do corpo e sorri.

«Não é para mim, pronto.» Percorremos as galerias à procura da saída, acertando o passo com o de um guia turístico, que

estava a contar uma história que eu conhecia desde a infância, de uma menina mestiça – filha deum escravo caribenho e da sua patroa britânica – que foi trazida para Inglaterra e criada nestagrande casa por parentes abastados, um dos quais era, por acaso, o Presidente do SupremoTribunal de Justiça. Uma das histórias preferidas da minha mãe. Só que a minha mãe não acontava como o guia turístico, não acreditava que a compaixão de um tio-avô pela sua sobrinha-neta mestiça tivesse o poder de acabar com a escravatura em Inglaterra. Peguei num folheto deuma pilha que havia numa mesa de apoio e li que o pai e a mãe da menina se tinham conhecido«nas Caraíbas», como se andassem os dois a passear numa estância balnear à hora dos aperitivos.Divertida, virei-me para mostrar o folheto a Aimee, mas ela já estava na sala seguinte, a ouviratentamente o guia, deambulando pelas bordas do grupo como se fizesse parte dele. Comovia-sesempre com histórias que provassem «o poder do amor» – e que diferença é que isso me fazia?Mas não resisti, comecei a imitar a minha mãe, fazendo comentários irónicos ao que o homemdizia, até que ele se irritou e encaminhou o seu grupo para o exterior. Quando as duas saímos,

assumi o papel de guia de Aimee, conduzindo-a por um túnel baixo de hera que formava umalatada e descrevendo o Zong como se o grande navio estivesse fundeado ali mesmo, no lago,diante dos nossos olhos. Era uma imagem que rememorava com facilidade, conhecia-aintimamente, tinha perpassado muitas vezes pelos meus pesadelos de infância. A caminho daJamaica, mas muito afastado da rota devido a um erro de navegação, com pouca água potável,carregado de escravos sequiosos («Sim?», disse Aimee, arrancando um botão de rosa de umarbusto) e capitaneado por um homem que, receando que os escravos não sobrevivessem ao quefaltava de caminho – mas não querendo ter prejuízo logo na sua viagem inaugural – reuniu centoe trinta e três homens, mulheres e crianças e atirou-os pela borda fora, acorrentados uns aosoutros: carga perdida pela qual podia mais tarde reclamar o seguro. O tio-avô famoso pela suacompaixão presidiu ao julgamento do recurso do caso – contei a Aimee, como a minha mãe mehavia contado – e condenou o capitão, mas só com base em que o capitão tinha cometido umerro. Ele, e não a seguradora, tinha de arcar com o prejuízo. Aqueles que dilaceravam corpostambém eram carga, podia continuar a alijar carga para proteger o resto da carga. Só que nãoseria reembolsado por ela. Aimee fez que sim com a cabeça, entalou a rosa entre a orelhaesquerda e o boné de basebol e de repente pôs-se de joelhos para fazer festas a uma matilha decachorros que iam a passar, arrastando atrás de si uma única pessoa.

«O que não mata engorda», ouvi-a dizer a um cachorro salsicha, enquanto se endireitava evoltava a olhar para mim. «Se o meu pai não tivesse morrido novo? Eu não estava aqui demaneira nenhuma. É a dor. Judeus, gays, mulheres, negros – os malditos irlandeses. É esse osegredo da nossa força, porra.» Eu pensei na minha mãe– que não tinha paciência para leituras românticas da história – e encolhi-me toda. Deixámos oscães e seguimos adiante. O céu estava limpo, o Heath cheio de flores e folhagem, os lagos eramcharcos de luz dourada, mas eu não conseguia libertar-me desta sensação de desconforto edesequilíbrio, e quando procurei localizar-lhe a origem dei comigo diante daquele pajemanónimo da galeria, com um pequeno brinco de ouro na orelha, que erguia uns olhos súplicespara a sósia de Judy enquanto nós nos ríamos dela. Ela não lhe retribuía o olhar, não podia, tinhasido pintada de uma forma que tornava isso impossível. Mas não tinha também eu evitado oolhar dele? Agora via aquele pequeno mouro com toda a clareza. Era como se estivesse paradono caminho, diante de mim.

Aimee quis a toda a força que acabássemos aquela tarde especial com um banho no lago das

mulheres. Granger ficou outra vez à espera no portão, com três bicicletas aos pés, virandofuriosamente as páginas do seu Maquiavel de bolso, em edição da Penguin. Uma neblina depólen pairava sobre a água, parecia aprisionada no ar denso, sonolento, apesar de a água estargelada. Entrei encolhida, em cuecas e T-shirt, descendo a escada lentamente, enquanto duasinglesas de sorriso largo, Speedos robustos e toucas vinham à superfície ali perto, oferecendoespontaneamente encorajamento a todas quantas estavam em vias de se lhes juntar. («Depois dese entrar está muito agradável.» «Bata as pernas até começar a senti-las.» «Se a Woolf nadouaqui, você também pode nadar!») Mulheres à minha direita e à minha esquerda, talvez com otriplo da minha idade, deslizavam da plataforma para a água, mas eu não consegui entrar atémais do que a cintura e, para ganhar tempo, virei-me de costas e fingi que estava a admirar acena: senhoras de cabelos brancos que se moviam num círculo majestoso por entre os limosmalcheirosos. Uma bonita libelinha vestida no tom de verde favorito de Aimee rodopiava ali

perto. Vi-a pousar na plataforma, mesmo ao lado da minha mão, e fechar as asas iridescentes.Onde estava Aimee. Tive um momento de paranoia paralisante, infligida pela erva: teria entradona água antes de mim, enquanto eu me preocupava com a minha roupa interior? Já se teriaafogado? Daria comigo amanhã numa investigação, a explicar ao mundo por que razão tinhadeixado uma australiana universalmente amada, além de coberta por um seguro elevadíssimo,nadar sozinha num lago gelado do Norte de Londres? Um grito de banshee rasgou a cenacivilizada: virei-me e vi Aimee, nua, saindo do balneário em direção a mim, formando ummergulho por cima da minha cabeça e da escada, braços estendidos, costas desenhando um arcoperfeito, como se sustentada no ar por um primeiro-bailarino invisível, antes de fazer umaentrada perfeita na água.

6

Não sabia que o pai de Tracey tinha sido preso. Foi a minha mãe que me disse, meses depoisda ocorrência: «Pelos vistos, foi preso outra vez.» Não precisou de mais palavras, nem de medizer que passasse menos tempo com Tracey, isso já estava a acontecer naturalmente. Umarrefecimento: uma daquelas coisas que acontecem entre raparigas. A princípio fiqueidesesperada, pensando que era para sempre, mas afinal era só um hiato, um de muitos queiríamos ter, com a duração de dois ou três meses, às vezes mais, mas que acabavam sempre – nãopor coincidência – quando o pai dela voltava a sair, ou então regressava da Jamaica – para ondetinha de fugir com frequência quando as coisas no bairro aqueciam para o seu lado. Era como se,quando o pai estava «dentro» ou longe, Tracey entrasse em modo de espera, pondo-se em pausacomo um leitor de vídeo. Embora na aula já não partilhássemos a mesma carteira (tinham-nosseparado depois da festa de Lily, a minha mãe foi à escola exigir que o fizessem), todos os dias avia perfeitamente, e quando havia «problemas em casa» detetava isso imediatamente, revelava-seem tudo o que fazia, ou não fazia. Tornava a vida do nosso professor tão difícil quanto podia,não com mau comportamento explícito como nós, não com palavrões ou brigas, mas com umabsoluto apagamento da sua presença. O corpo estava presente, nada mais. Não respondia aperguntas nem as fazia, não participava em nenhuma atividade nem tomava apontamentos denada, nem sequer abria o caderno de exercícios, e nessas alturas eu percebia que para Tracey otempo havia parado. Se o Senhor Sherman desatava aos berros, ficava impassivelmente sentadana carteira, de olhos fixos num ponto acima da cabeça dele, nariz empinado, e nada que eledissesse – nenhuma ameaça ou aumento de volume – produzia o mínimo efeito. Tal como euprevira, nunca tinha esquecido os cromos dos Garbage Pail Kids. E ser mandada ao gabinete dadiretora não lhe metia medo nenhum. Levantava-se, com o casaco que de resto não chegara adespir, e saía da sala como se lhe fosse indiferente aonde ia ou o que lhe acontecia. Quando seencontrava neste estado de espírito eu aproveitava a oportunidade para fazer aquilo que, quandoestava com Tracey, me sentia inibida de fazer. Passava mais tempo com Lily Bingham, porexemplo, deliciando-me com o seu bom-humor e feitio amável: Lily ainda brincava combonecas, não sabia nada de sexo, adorava desenhar e fazer coisas com cartolina e cola. Por outraspalavras, ainda era uma criança, como eu às vezes desejava poder ser. Nas suas brincadeirasninguém morria nem tinha medo de ser descoberto por fraude, e não havia absolutamentenenhum negro nem branco, porque, como um dia me explicou solenemente enquantobrincávamos, era «daltónica» e só via o que se passava no coração de uma pessoa. Tinha umteatrinho de cartão do Balé Russo, comprado em Covent Garden, e para ela uma tarde perfeitaera passada a manobrar o príncipe de cartão pelo palco, para se encontrar com uma princesa decartão e apaixonar-se por ela, enquanto um disco riscado do Lago dos Cisnes, do pai, tocava em

fundo. Adorava balé, embora dançasse mal, tinha as pernas demasiado arqueadas para poderalimentar verdadeiras esperanças, e sabia as palavras francesas para tudo, além das históriastrágicas de Diaghilev e Pavlova. O sapateado não lhe interessava. Quando lhe mostrei a minhacópia muito gasta de Stormy Weather8 reagiu de uma forma que eu não previa, ficou ofendida –para não dizer magoada. Porque é que toda a gente era negra. Era indelicado, disse, fazer umfilme só com pessoas negras, não era justo. Talvez na América se pudesse fazer isso, mas nãoaqui, em Inglaterra, onde aliás todos eram iguais e não havia necessidade de «repisar a tecla». Enós não íamos gostar, dizia, que nos dissessem que só os negros podiam frequentar as aulas dedança de Miss Isabel, não era justo para nós, pois não? Ficávamos tristes. Ou que só os negrospodiam andar na nossa escola. Nós não íamos gostar disso, pois não? Eu fiquei calada. Meti oStormy Weather na mochila e fui para casa, com um pôr do sol de Willesden, de cores depetróleo e nuvens rápidas, dando voltas na minha cabeça àquela curiosa lição, perguntando-me oque ela quereria dizer com a palavra «nós».

8 Canção de 1933, da autoria de Harold Arlen e Ted Koehler, mais tarde celebrizada pela interpretação de Etta James. (N. do T.)

7

Quando as coisas entre mim e Tracey estavam geladas, achava os sábados difíceis de passar erecorria ao Senhor Booth para conversar e pedir conselhos. Levava-lhe informações novas – querecolhia na biblioteca – e ele acrescentava elementos àquilo que eu levava, ou explicava as coisasque eu não compreendia. O Senhor Booth não sabia, por exemplo, que não era «Fred Astaire»,mas sim «Frederick Austerlitz», mas sabia o significado de «Austerlitz», explicou-me que eraum nome que não devia ser de origem americana, mas sim europeia, provavelmente daAlemanha ou da Áustria», possivelmente judeu. Para mim, Astaire era a América – não teriaficado espantada se o visse figurar na bandeira – mas agora ficava a saber que afinal tinhapassado muito tempo em Londres e que tinha ficado famoso aqui, a dançar com a irmã, e se eutivesse nascido sessenta anos antes podia ter ido vê-lo em pessoa ao Shaftesbury Theatre. E haviaoutra coisa, disse o Senhor Booth, a irmã era muito melhor bailarina do que ele, toda a gente odizia, era a estrela e ele a figura secundária, não sabe cantar, não sabe representar, está a ficarcareca, sabe dançar, um bocadinho, ha ha ha, mas ele mostrou-lhe quem sabia, não mostrou? Aoouvir o Senhor Booth, perguntei-me se também eu poderia ser uma daquelas pessoas que serevelavam mais tarde na vida, muito mais tarde, para que um dia – daqui a muito tempo – fosseTracey a sentar-se na primeira fila do Shaftesbury Theatre a ver-me dançar, as nossas posiçõescompletamente invertidas, a minha superioridade finalmente reconhecida pelo mundo. Epassados tantos anos, disse o Senhor Booth, tirando-me das mãos o livro da biblioteca e lendo-o,passados tantos anos a sua rotina diária pouco tinha mudado em relação à vida que semprelevara. Acordava às cinco da manhã e tomava o pequeno-almoço, um simples ovo cozido que lhemantinha um peso constante, sessenta quilos e setecentos. Viciado em séries de televisão comoThe Guiding Light e As the World Turns, telefonava à empregada se não podia ver as telenovelas,para saber o que tinha acontecido. O Senhor Booth fechou o livro, sorriu e disse: «Que tipo tãoestranho!»

Quando me queixei ao Senhor Booth da única imperfeição de Astaire – na minha opinião nãosabia cantar – fui apanhada de surpresa pela veemência da sua discordância, normalmenteestávamos de acordo em tudo, e era uma risada constante quando estávamos juntos, mas destavez ele dedilhou as notas de «All of Me» de forma um tanto minimalista ao piano e disse: «Mascantar não é só deitar cá para fora, pois não? Não é só ver quem aguenta mais tempo sem respirarou quem dá a nota mais alta, não, é uma questão de fraseado, e de delicadeza, e de tirar osentimento certo de uma canção, a alma que existe dentro dela, de modo que aconteça uma coisareal quando uma pessoa abre a boca para cantar, e não queres sentir uma coisa real em vez deficares com os pobres ouvidos a zunir?»

Calou-se e tocou «All of Me» até ao fim, e eu cantei com ele, fazendo um esforço deliberado

para recortar as frases como Astaire faz em Meias de Seda – abreviando alguns versos, mais oumenos recitando outros – ainda que aquilo não me saísse com naturalidade. Ambos pensámos emcomo seria amar o leste, oeste, norte e sul de uma pessoa, ter um domínio completo sobre ela,mesmo que ela, em contrapartida, só amasse uma pequena percentagem de nós. Normalmente eucantava com uma das mãos apoiada no piano, a olhar lá para fora, porque era o que faziam asatrizes nos filmes, e dessa forma podia estar de olho no relógio por cima da porta da igreja esaber quando acabava de entrar a fila de crianças e, portanto, quando era altura de parar, masdessa vez o desejo de tentar cantar em harmonia com aquela delicada melodia – de estar à alturada forma como o Senhor Booth a tocava, não simplesmente «deitar cá para fora» mas criar umsentimento verdadeiro – fez com que instintivamente me virasse para dentro, a meio do verso, equando o fiz reparei que o Senhor Booth estava a chorar, muito baixinho, mas sem dúvida achorar. Parei de cantar. «E ele está a tentar fazê-la dançar», disse ele. «Fred quer que Cyd dance,mas ela não quer, pois não? É aquilo a que se chamaria uma intelectual, nascida na Rússia, e nãoquer dançar, e diz-lhe: “O problema da dança é que Uma pessoa anda, anda, anda, mas nãochega a lado nenhum!” E Fred responde: “A quem o dizes!” Lindo! Lindo! Mas agora, minhaquerida, está na hora da aula. É melhor ires calçar os sapatos.»

Enquanto apertávamos os sapatos para voltar à fila, Tracey disse à mãe, de modo que euouvisse: «Vês, ela adora todas aquelas canções antigas e esquisitas.» A frase tinha o tom de umaacusação. Eu sabia que Tracey adorava a música pop, mas achava que as melodias não eram tãobonitas, e tentei dizer-lho. Tracey encolheu os ombros, frustrando-me os intentos. Os seusencolheres de ombros tinham poder sobre mim. Punham termo a qualquer assunto. Voltou-separa a mãe e disse: «E gosta de homens velhos.»

A reação da mãe revoltou-me: olhou em frente e fez um sorrisinho cínico. Nesse momento omeu pai estava lá fora, no adro da igreja, no sítio do costume, debaixo das cerejeiras; via-o com abolsa do tabaco numa das mãos e o livro de mortalhas na outra, já nem se dava ao incómodo deesconder estas coisas de mim. Mas estava fora de questão que eu pudesse fazer um comentáriocruel sobre outra criança e visse o meu pai – ou mãe – sorrir cinicamente, ou de algum modopôr-se do meu lado. Espantava-me que Tracey e a mãe estivessem do mesmo lado, e achava quehavia nisso qualquer coisa que não era natural e que elas deviam sabê-lo, porque em certoscontextos escondiam-no. Tinha a certeza de que, se o meu pai estivesse presente, a mãe deTracey não teria ousado sorrir cinicamente.

«O melhor é ficar longe dos velhos estranhos», disse ela, apontando para mim. Mas quando euripostei que o Senhor Booth não era um estranho para nós, era o nosso querido pianista há muitotempo e nós gostávamos muito dele, a mãe de Tracey mostrou-se entediada enquanto eu falava,cruzou os braços sobre o peito enorme e olhou fixamente em frente.

«A minha mãe acha que ele é pedófilo», explicou Tracey. Saí daquela aula agarrada à mão do meu pai, mas não lhe contei o que tinha acontecido. Não

pensava em pedir ajuda em nada a nenhum dos meus pais, quando muito pensava em protegê-los. Ia buscar orientação a outro sítio. Os livros tinham começado a entrar na minha vida. Nãolivros bons, isso ainda não, só aquelas velhas biografias de gente do espetáculo que lia na falta detextos sagrados, como se elas fossem textos sagrados, colhendo delas alguma espécie deconforto, mesmo sabendo que se tratava de obras de encomenda, escritas para ganhar dinheirofácil, em que certamente os autores nunca mais pensavam, mas que para mim eram importantes.

Dobrava os cantos de certas páginas e lia algumas linhas vezes sem conta, como uma senhoravitoriana lendo os seus salmos. Ele não está a fazer aquilo bem – era uma das mais importantes.Era o que Fred Astaire dizia pensar quando se via no ecrã, e chamou-me a atenção aquelepronome na terceira pessoa. Era isto que eu achava que ele queria dizer: que para Astaire apessoa do filme não estava especialmente ligada a ele. E tomava isto a peito, ou melhor, davavoz a uma sensação que já tinha, a de que era importante a pessoa tratar-se como uma espécie deestranha, para manter a distância e a objetividade em relação a si mesma. Pensava que eranecessário pensar assim para alcançar alguma coisa neste mundo. Sim, eu achava que era umaatitude muito elegante. E também fiquei fascinada com a famosa teoria de Katharine Hepburnsobre Fred e Ginger: Ele dá-lhe classe, ela dá-lhe sexo. Seria uma regra geral? Todas asamizades – todas as relações – implicavam esta discreta e misteriosa transação de qualidades?Era extensiva a povos e nações, ou era uma coisa que só acontecia entre pessoas individuais? Oque é que o meu pai dava à minha mãe – e vice-versa? O que é que eu e o Senhor Boothdávamos um ao outro? O que é que eu dava a Tracey? O que é que Tracey me dava?

Terceira parte

INTERVALO

1

Os governos são inúteis, não se pode confiar neles, explicou-me Aimee, e as organizaçõeshumanitárias têm agendas próprias, as igrejas preocupam-se mais com as almas do que com oscorpos.E, portanto, se quisermos que este mundo mude realmente, prosseguiu, enquanto ajustava ainclinação da sua passadeira até eu, que caminhava noutra ao lado, ter a sensação de estar a vê-lagalgar a encosta do Kilimanjaro, bem, teremos de ser nós a fazê-la, sim, teremos de ser nós amudança que queremos ver acontecer. Por «eu» entendia pessoas como ela, com meiosfinanceiros e notoriedade global, que por acaso amam a liberdade e a igualdade, querem ajustiça, sentem a obrigação de fazer algo de bom com a sua boa sorte pessoal. Era uma categoriamoral, mas também económica. E, se seguíssemos esta lógica até ao fim do tapete rolante, ao fimde poucas milhas chegávamos a uma nova ideia, a de que riqueza e moralidade sãoessencialmente a mesma coisa, porque quanto mais dinheiro uma pessoa tinha mais bondade –ou potencial de bondade – possuía. Limpei o suor ao colete e olhei de relance para os ecrãs quetínhamos diante de nós: sete milhas para Aimee, uma e meia para mim. Finalmente ela tinhaacabado, desligámos as máquinas, passei-lhe uma toalha, fomos juntas para a sala de montagem.Ela queria ver uma primeira montagem de uma promoção que estávamos a filmar para potenciaisdoadores, ainda sem música nem som. Sentámo-nos atrás do realizador e editor e vimos umaversão de Aimee, uma versão muda, começar a cavar o terreno do projeto escolar, de grande pána mão, e lançava a primeira pedra com a ajuda de um ancião da aldeia. Vimo-la dançar com afilha de seis anos, Kara, e um grupo de alunas lindas, nos seus uniformes verdes e cinzentos, aosom de música que não ouvíamos, cada batida dos seus pés levantando grandes nuvens de poeiravermelha. Lembrei-me de que tinha visto acontecer todas estas coisas meses antes, na realidade,no preciso momento em que aconteceram, e pensei em como agora eram diferentes, nesteformato, enquanto o editor mudava planos de sítio com a facilidade que a informática lhepermitia, intercalando Aimee na América com Aimee na Europa e Aimee em África, dando novaordem a acontecimentos conhecidos. E é assim que se fazem as coisas, anunciou, passadosquinze minutos, satisfeita, levantando-se, despenteando o cabelo do jovem realizador e saindopara ir tomar duche. Eu fiquei a ajudar a acabar a montagem. Tinha sido instalada uma câmaraultralenta no estaleiro, em fevereiro, e por isso agora era possível ver a escola erguer-se empoucos minutos, enquanto operários como formigas, em movimentos tão rápidos que eraimpossível distingui-los, a cobriam como um enxame, numa demonstração surrealista daquiloque era possível quando pessoas de boa vontade e meios de fortuna decidiam fazer acontecercoisas. Pessoas capazes de construir uma escola feminina, numa aldeia rural da África Ocidental,em poucos meses, simplesmente porque foi isso que decidiram fazer.

Uma coisa que dava prazer à minha mãe era chamar «ingénua» à forma como Aimee fazia as

coisas. Mas Aimee sentia que já tinha tentado a via da minha mãe, a via política. Tinha apoiadocandidatos presidenciais, nos anos oitenta e noventa, organizando jantares, dando contribuiçõespara as campanhas, arengando para multidões do alto dos palcos montados em estádios. Quandoeu entrei em cena já ela tinha acabado com isso, como a geração que outrora tentara empurrarpara a cabine de voto, a minha geração, também acabara. Agora estava empenhada em «fazeracontecer a mudança no terreno», só queria «trabalhar com comunidades a nível comunitário», eeu respeitava sinceramente o seu empenhamento, e só esporadicamente – quando alguma daspessoas de meios como ela vinha à casa de Hudson Valley, para almoçar ou nadar na piscina, epara falar desta ou daquela iniciativa – se tornava muito difícil evitar ver as coisas que a minhamãe via. Nessas alturas sentia verdadeiramente a minha mãe por cima do ombro, umaconsciência invisível, ou um comentário irónico, destilando-me veneno no ouvido de umadistância de milhares de milhas, enquanto tentava ouvir todas aquelas pessoas bondosas e demeios – famosas por tocarem guitarra ou cantarem ou desenharem roupas ou fingindo seremoutras pessoas – tagarelando de copo na mão sobre os seus planos de erradicar a malária doSenegal ou abrir poços de água potável no Sudão, e coisas assim. Mas sabia que Aimee,pessoalmente, não tinha nenhum interesse abstrato no poder. Era motivada por outra coisa –impaciência. Para Aimee, a pobreza era um dos erros negligentes do mundo, um entre muitos,que podia ser facilmente corrigido se as pessoas dessem ao problema a atenção que davam atudo. Detestava reuniões e longas discussões, não gostava de abordar uma questão de muitosângulos diferentes. Nada a maçava mais do que o «por outro lado isto» ou «por outro ladoaquilo». Antes depositava toda a sua fé no poder das suas próprias decisões, e estas tomava-ascom o «coração». Muitas vezes estas decisões eram súbitas, e uma vez tomadas nunca eramalteradas ou revogadas, porque acreditava no seu sentido do tempo certo, no tempo propriamentedito, como uma força mística, uma forma de destino, que opera tanto a nível global e cósmicoquanto a nível pessoal. Aliás, na cabeça de Aimee estes três níveis estavam interligados. Foi otempo certo do destino, tal como ela o via, que fez arder por completo a sede britânica da YTVno dia 20 de Junho de 1998, seis dias depois de ela nos ter visitado, com uma avaria elétricaqualquer que aconteceu a meio da noite e desencadeou um incêndio que engoliu todo o edifício,destruindo as milhas e milhas de VHS que até então haviam sido preservadas da influênciadeletéria do metro de Londres. Disseram-nos que daí a nove meses os escritórios voltariam aestar habitáveis. Entretanto fomos todos transferidos para um edifício de escritórios, feio eincaracterístico, em King’s Cross. Para mim tudo aquilo acabou no momento em que Zoe pôs umfax em cima da minha secretária, dirigido a mim, com um número de telefone para onde devialigar, sem mais explicações. Da outra ponta da linha chegou a voz de Judy Ryan, empresária deAimee. Disse-me que Aimee em pessoa tinha requerido a presença da rapariga negra vestida deverde no seu escritório de Chelsea para ser entrevistada com vista a um possível emprego. Fiqueisiderada. Andei meia hora de um lado para o outro antes de entrar, a tremer enquanto subia noelevador e percorria o corredor, mas quando entrei na sala vi a decisão já tomada, ali mesmo, nacara dela. Para Aimee não havia nenhuma apreensão, nem nenhuma dúvida: nada disto, na suamaneira de ver, era coincidência ou sorte ou mesmo feliz acaso. Era «Destino». «O GrandeIncêndio» – como os empregados o batizaram – era apenas parte de um esforço consciente, emnome do universo, para nos juntar às duas, Aimee e eu, um universo que no mesmo momento se

recusava a intervir em tantas outras questões.

2

Aimee tinha uma atitude invulgar em relação ao tempo, mas a forma como o abordava eramuito pura e eu habituei-me a admirá-la por isso. Não era como o resto da tribo a que pertencia.Não precisava de cirurgiões, não vivia no passado, não fugia às datas nem recorria a nenhumadas formas habituais de distração ou distorção. Com ela era realmente uma questão de vontade.Ao longo de dez anos vi até que ponto essa vontade era indomável, o que conseguia fazeracontecer. E todo o esforço que punha nisso – todo o exercício físico, toda a cegueira deliberada,a inocência cultivada, as epifanias espirituais que, sem se saber como, era capaz de experimentarespontaneamente, as mil e uma formas de se apaixonar e desapaixonar, qual adolescente – tudoisto acabou efetivamente por se apresentar aos meus olhos como uma forma de energia em simesma, uma força capaz de criar uma dilação no tempo, como se de facto se deslocasse àvelocidade da luz, longe de todos nós – amarrados à Terra e a envelhecer mais depressa do queela – enquanto olhava cá para baixo e se perguntava porquê.

O efeito foi ainda mais flagrante quando recebia a visita de uma das suas irmãs de Bendigo, ouquando estava com Judy, que conhecia desde a escola secundária. O que é que estas pessoas demeia-idade ou mais, com as suas famílias destroçadas e rugas e desilusões e casamentos difíceise padecimentos físicos – o que é que qualquer delas tinha que ver com Aimee? Como podiaalguma destas pessoas ter crescido com ela, ou dormido um dia com os mesmos rapazes ou sidocapazes de correr de igual maneira à mesma velocidade pela mesma rua abaixo no mesmo ano?Não era só porque Aimee parecia muito nova – embora de facto parecesse – mas porque umajovialidade quase inacreditável lhe percorria o corpo todo. Chegava-lhe aos ossos, influenciandoa forma como se sentava, se mexia, pensava, falava, tudo. Havia quem, como Marco, o seutemperamental cozinheiro italiano, fosse cínico e agressivo em relação a isso, diziam que erafruto do dinheiro, que era tudo um efeito secundário do dinheiro e não do trabalho, nunca detrabalho digno desse nome. Mas nas nossas viagens com Aimee conhecíamos imensas pessoascom muito dinheiro que não faziam nada, muito menos do que Aimee – que, à sua maneira,trabalhava duramente – e muitas delas pareciam velhas como Matusalém. E, portanto, erarazoável supor, como tanta gente supunha, que eram os amantes jovens que mantinham Aimeejovem, argumento que afinal de contas foi o seu durante anos – isso e o facto de não ter filhos.Mas esta teoria não sobreviveu ao ano em que cancelou as digressões sul-americana e europeia, eao nascimento do filho, Jay, e, dois anos depois, da pequena Kara, e à rápida dispensa de um paie namorado de meia-idade, e à conquista e subsequente dispensa, ainda mais expedita que aanterior, de um segundo pai e marido, que era, verdade seja dita, pouco mais do que umrapazinho. Certamente, pensavam as pessoas, certamente que toda esta experiência, acumuladaem tão poucos anos, vai deixar marcas, ou não deixará? Mas enquanto os elementos da equipa

saíam daquele turbilhão exaustos, completamente espremidos, prontos para dez anos de sono,Aimee, essa, continuava praticamente intacta, mais ou menos a mesma que sempre tinha sido,carregada de uma energia assustadora. Depois do nascimento de Kara voltou diretamente para oestúdio, para o ginásio, para a estrada, contratavam-se mais amas, apareciam os tutores, e elaemergia de tudo aquilo, escassos meses depois, com o ar de uma mulher madura de vinte e seisanos de idade. Estava quase a fazer quarenta e dois. Eu ainda estava quase a fazer trinta, era umdaqueles factos a meu respeito que Aimee tinha decidido obcecadamente não esquecer, e duranteas duas semanas anteriores insistiu constantemente em que havíamos de fazer uma «noite demulheres», só nós as duas, telefones desligados, concentração total, atenção, coquetéis, tudocoisas que eu não esperava nem tinha pedido, mas ela não desistia, e depois, claro, chegou o diae nem uma palavra sobre o meu aniversário, passámos o dia a falar com jornalistas noruegueses,após o que ela jantou com os filhos, enquanto eu, sozinha no meu quarto, tentava ler. Às dez danoite ela ainda estava no estúdio de dança e eu fui interrompida por Judy, que enfiou a cabeça naporta, sempre com o mesmo cabelo espigado, resquícios da sua juventude em Bendigo, para medizer, sem tirar os olhos do telefone, que tinha de lembrar a Aimee que íamos voar para Berlimna manhã seguinte. Passou-se isto em Nova Iorque. O estúdio de dança de Aimee era maior doque um salão de baile, uma caixa de espelhos com uma barra de nogueira a toda a volta. Tinhasido escavado na cave da moradia. Quando entrei, ela estava sentada em posição de espargata,completamente imóvel, como se estivesse morta, a cabeça atirada para a frente, uma franjacomprida – ruiva na altura – a cobrir-lhe a cara. Ouvia-se música. Esperei a ver se ela se viravapara mim. Em vez disso levantou-se de um salto e começou a executar um número, sempre defrente para os espelhos que a refletiam. Havia algum tempo que não a via dançar. Já era rarointegrar-me na multidão para assistir aos concertos: esse aspeto da vida dela era-me muitodistante, a atuação artificial de uma pessoa que agora conhecia muito bem, a um nível maisprofundo, granular. Uma pessoa para quem agendava abortos, contratava pessoas para lhepassear os cães, encomendava flores, escrevia cartões do Dia da Mãe, a quem aplicava cremes,administrava injeções, espremia pontos negros, limpava muito raros acessos de choro, e assimpor diante. Na maior parte dos dias nem diria que trabalhava para uma artista de palco. O meutrabalho com e para Aimee acontecia essencialmente em carros, ou em sofás, em aviões eescritórios, em muitos tipos de ecrãs e em milhares de emails.

Mas ali estava ela, a dançar. Ao som de uma canção que não reconheci – agora até ao estúdioera raro ir – mas os passos propriamente ditos eram-me familiares, não tinham mudado muito aolongo dos anos. A maior parte do número sempre consistiu principalmente numa forma decaminhada estridente: uma passada vigorosa que marca os limites do espaço em que se encontra,como um grande felino que ronda metodicamente o perímetro da sua jaula. O que agora mesurpreendia era a força erótica que aquele número mantinha intacta. Normalmente, quandoelogiamos uma bailarina dizemos: até parece fácil. Não é o caso com Aimee. Parte do seusegredo, senti enquanto a observava, é a forma como consegue extrair alegria do esforço, porquenenhum dos seus movimentos fluía instintiva ou naturalmente do anterior, cada «passo» eranitidamente visível, coreografado, e no entanto, enquanto se desfazia em suor na execução, opróprio esforço transmitia erotismo, era como ver uma mulher cortar a meta no fim de umamaratona, ou aplicar-se na obtenção de um orgasmo. A mesma revelação extasiante da força devontade de uma mulher.

«Deixa-me acabar» bradou, para a sua imagem no espelho. Eu fui para o canto mais distante, deixei-me deslizar pela parede espelhada, sentei-me no chão

e reabri o livro que levava. Tinha decidido instituir uma nova regra para mim própria: ler meiahora por noite, acontecesse o que acontecesse. O livro que tinha escolhido não era grande, masainda não tinha avançado muito nele. Ler era praticamente impossível para quem trabalhava comAimee, a restante equipa achava que era profundamente impraticável e penso que em certosentido essencialmente desleal. Mesmo em voos de longo curso – mesmo que estivéssemos aregressar à Austrália – ou estávamos a responder a emails relacionados com Aimee ou a folhearum monte de revistas, coisa que sempre podia passar por trabalho, porque Aimee vinha narevista que tínhamos na mão ou viria muito em breve. Aimee também lia livros, às vezes livrosdecentes, recomendados por mim, com mais frequência disparates de autoajuda ou dietas queJudy ou Granger lhe punham à frente, mas as leituras eram uma coisa à parte, afinal de contas eraAimee e podia fazer o que quisesse. Às vezes aproveitava ideias dos livros que eu lhe dava –uma época ou uma personagem ou uma ideia política – que mais tarde acabariam, em versãodeformada e vulgar, num ou noutro vídeo ou canção. Mas isto não alterava a opinião de Judysobre a leitura em geral, para ela era uma espécie de vício porque nos roubava tempo valioso quede outra forma podíamos passar a trabalhar para Aimee. Ainda assim, às vezes era necessário, atépara Judy, ler um livro – porque estava em vias de dar origem a um filme com a participação deAimee, ou era de alguma forma necessário para um projeto – e nestas situações aproveitava osvoos de longo curso para ler um terço do livro, de pés levantados e ar enjoado. Nunca lia mais doque um terço – «apanho o essencial da ideia» – e quando acabava proferia uma de quatrosentenças possíveis. «Vivo» – o que era bom; «Importante», o que era muito bom;«Controverso» – o que podia ser bom ou mau, nunca se sabia; ou «Liderário», o que erapronunciado com um suspiro e um revirar de olhos e era muito mau. Se eu tentava contestar oque quer que fosse, Judy encolhia os ombros e dizia: «Que sei eu? Não passo de umarapariguinha ignorante de Bendigo», e isto, dito ao alcance do ouvido de Aimee, matavaqualquer projeto sem apelo nem agravo. Aimee nunca subestimava a importância da terra natal.Apesar de, para ela, Bendigo pertencer ao passado – já não se parecia com os seus conterrâneos,sempre cantara com um sotaque a imitar o americano e referia-se muitas vezes à sua infânciacomo uma forma de morte em vida – continuava a considerar a sua terra natal um símbolopoderoso, quase uma espécie de ascendente. A sua teoria era que uma estrela tem Nova Iorque eLA no bolso, uma estrela pode conquistar Paris e Londres e Tóquio – mas só uma superestrelaconquista Cleveland e Hyderabad e Bendigo. Uma superestrela conquista toda a gente em toda aparte.

«Que estás a ler?» Eu mostrei-lhe o livro. Ela voltou a juntar as pernas – da posição em que tinham aterrado com

a espargata – e torceu o nariz à capa. «Nunca ouvi falar.» «Cabaret? Basicamente é isso.» «Um livro sobre o filme?» «Um livro que é anterior ao filme. Pensei que podia ser útil, já que vamos para Berlim. A Judy

mandou-me cá para te meter na ordem.» Aimee fez uma careta ao espelho. «Eu quero que a Judy se lixe. Ultimamente anda a dar-me cabo do juízo. Achas que será a

menopausa?» «Acho que é por tu seres uma chata.» «Ha ha.»

Estendeu-se no chão e levantou a perna direita na vertical e esperou. Eu aproximei-me eajoelhei-me junto dela e dobrei-lhe o joelho até tocar no peito. Era fisicamente muito mais fortedo que ela – mais larga, mais alta, mais pesada – e, por isso, quando lhe fazia estesalongamentos, sentia que precisava de ter cuidado, que ela era muito frágil e podia parti-la,apesar de ter músculos que eu nem sequer imaginava ter, e de já a ter visto levantar jovensdançarinos quase à altura da cabeça.

«Os noruegueses eram uns chatos, não eram?», disse entre dentes, e então teve uma ideia,como se nenhuma das nossas conversas das últimas três semanas tivesse existido. «Porque é quenão vamos sair? Tipo agora mesmo. A Judy não precisa de saber. Saímos pelas traseiras. ’Borabeber uns copos? Apetece-me. Não precisamos de nenhum pretexto.»

Eu sorri-lhe, pensei no que deve ser a vida neste mundo de factos inconstantes, que mudam oudesaparecem, dependendo do estado de espírito da pessoa.

«Qual é a graça?» «Nenhuma. Vamos a isso.» Ela tomou um duche e vestiu-se à civil: calças de ganga pretas, colete preto e boné de basebol

enterrado na cabeça, o que tinha como resultado que as orelhas lhe despontavam por entre ocabelo, dando-lhe um ar inesperadamente ridículo. As pessoas não acreditam em mim quandolhes digo que ela gosta de sair para dançar, e é verdade que não fazíamos isso muitas vezes, masacontecia e nunca levantava grandes ondas, provavelmente porque íamos tarde e a sítios gays, equando os rapazes a identificavam já estavam pedrados e felizes e imbuídos de um tipoexpansivo de boa vontade: queriam protegê-la. Anos antes tinha sido deles, antes de ser de maisninguém, e tomar conta dela agora era uma forma de demonstrarem que ainda lhes pertencia.Ninguém pedia autógrafos, nem a obrigava a posar para fotografias, ninguém avisava a imprensa– dançávamos, simplesmente. O meu único papel era demonstrar que não tinha pedalada paraela, e nem precisava de fingir, porque não tinha mesmo. Quando eu começava a sentir ardor nabarriga das pernas e a ficar encharcada em suor como se estivesse debaixo de uma mangueira, elacontinuava a dançar e eu tinha de me sentar à espera dela. Estava a fazer exatamente isso, nazona circunscrita por cordas, quando senti uma grande pancada num ombro e uma coisa molhadana cara. Levantei os olhos. Aimee estava de pé, debruçada sobre mim, a rir-se e a olhar parabaixo, com o suor a pingar da sua cara para a minha.

«De pé, soldado. Vamos zarpar.» Era uma da manhã. Não propriamente muito tarde, mas eu queria ir para casa. Em vez disso,

quando nos aproximávamos da Village, ela baixou o separador e disse a Errol que não parasseem casa e seguisse pela Sétima e pela Grove, e quando Errol tentou protestar pôs a língua de forae subiu o separador. Parámos à porta de um piano-bar minúsculo e de mau aspeto. Eu já ouviauma voz masculina a cantar num arranhado vibrato da Broadway um número do musical ChorusLine. Errol baixou o vidro e olhou alarmado para a porta aberta. Depois olhou para mimsuplicante, em solidariedade comigo, como duas pessoas que estão no mesmo barco – aos olhosde Judy seríamos os dois responsabilizados na manhã seguinte – mas quando Aimee tomava umadecisão eu não conseguia fazer nada. Abriu a porta e puxou-me para fora do carro. Estávamosambas embriagadas: Aimee superexcitada, com as baterias perigosamente recarregadas, euexausta, piegas. Sentámo-nos num canto escuro – tudo ali eram cantos escuros – cada uma com oseu vodca martini, trazidos por um empregado com a idade de Aimee, tão emocionado por estara servi-la que não era claro como ia levar a cabo a tarefa prática de pôr as bebidas à nossa frenteantes de desmaiar. Eu tirei-lhe os copos das mãos trémulas e tive de ouvir Aimee contar a

história de Stonewall, tintim por tintim, Stonewall isto, Stonewall aquilo, como se nunca tivesseestado em Nova Iorque e não soubesse nada daquilo. Ao piano, um grupo de mulheres brancasque participavam numa despedida de solteira cantava um excerto qualquer de O Rei Leão;tinham umas vozes horríveis, esganiçadas, e estavam constantemente a esquecer-se da letra.Apesar de saber que era uma infantilidade, eu estava absolutamente furiosa por causa do meuaniversário, a fúria era a única coisa que me mantinha acordada, alimentava-me dela daquelaforma moralista a que só podemos recorrer se nunca revelarmos o mal de que somos vítimas.Engoli o martini e ouvi sem comentários, enquanto Aimee mudava de assunto, de Stonewall paraos seus primeiros tempos como bailarina eventual, em Alphabet City, em finais dos anos setenta,quando todos os seus amigos eram «aqueles rapazes negros loucos, homossexuais, divas; jámorreram todos», histórias que tinha ouvido tantas vezes que quase conseguia repeti-las, etentava a todo o custo descobrir uma forma de a fazer calar quando ela anunciou que «ia àcasinha», com uma entoação que só usava quando estava muito embriagada. Sabia que aexperiência dela com sanitários públicos era limitada, mas quando consegui pôr-me de pé já elaia alguns vinte metros à minha frente. Quando tentava passar pelas convidadas bêbedas dadespedida de solteira o pianista levantou os olhos para mim e, cheio de esperança, agarrou-mepor um pulso: «Ei, miúda. Cantas?» Nesse momento Aimee descia rapidamente as escadas para acave e desaparecia-me da vista.

«Que tal esta?» Apontou com a cabeça para a partitura e passou uma mão cansada pela lustrosacareca cor de ébano. «Já não posso ouvir estas tipas. Conheces? Do Gipsy?»

Tinha os dedos elegantes no teclado, e eu cantava os acordes de abertura, o famoso preâmbulo,em que só os mortos ficam em casa, enquanto pessoas como Mama, oh, essas são diferentes, nãoficam de braços cruzados, têm sonhos e ganas, não vão ficar a apodrecer, lutam sempre para selevantarem – e se libertarem!

Pousei a mão no piano, virei-me para ele, fechei os olhos, e lembro-me de ter pensado que aomenos estava a começar baixinho, era isso que conscientemente tencionava fazer – começarbaixinho e assim me manter – cantando mais baixo do que a música para não dar nas vistas, ounão dar demasiado nas vistas, por causa da timidez de sempre. Mas também por deferência paracom Aimee, que não era uma cantora nata, embora entre nós esse assunto fosse tabu. Que erauma cantora tão pouco natural como as raparigas da festa que estavam diante de mim a beber maitais por palhinhas nos bancos altos do bar. Mas eu era uma cantora nata, não era? Apesar de tudoera, não era? Mas agora estava a descobrir que não podia continuar baixinho, os meus olhoscontinuavam fechados, mas a minha voz crescia, e continuava a crescer, cantava cada vez maisalto, sentia que não dependia propriamente da minha vontade, era uma coisa que tinha soltado eagora subia, subia e escapava do meu alcance. As minhas mãos estavam no ar, os meus saltosbatiam no chão. Sentia que tinha na mão toda a gente que estava na sala. Cheguei a ter uma visãosentimental de mim como elemento de uma longa linhagem de extrovertidos irmãos e irmãs,compositores, cantores, músicos, dançarinos, pois não tinha eu também o dom tantas vezesatribuído ao meu povo? Sabia transformar tempo em frases musicais, em ritmos e notas,atrasando-o e acelerando-o, gerindo o tempo da minha vida, por fim, até que enfim, aqui, emcima de um palco, ainda que só aqui. Pensei em Nina Simone, na forma como separava cada notada seguinte, com o rigor, a precisão, que Bach, o seu herói, lhe tinha ensinado a fazer, e penseino nome que ela lhe dava «Música Clássica Negra» – detestava a palavra jazz, que consideravauma palavra de brancos para os negros, rejeitava-a totalmente – e pensei na voz dela, em comoera capaz de prolongar uma nota para lá do ponto de tolerabilidade e obrigava o público a

obedecer-lhe, à sua forma de ver a canção, em como tinha uma completa falta de compaixão paracom o público e era absolutamente implacável na busca da sua liberdade! Mas estava tão absortanestes pensamentos acerca de Nina que não me apercebi de que estava a chegar ao fim, pensavaque ainda faltava um verso, cantei para além do acorde final, quando este chegou, e continuei pormais algum tempo até que percebi, sim, sim, tens de parar, já acabou. Se tinha havido algumaexplosão de palmas não as ouvia, já deviam ter acabado. Só senti o pianista a dar-me duaspalmadinhas nas costas, que estavam peganhentas e frias com o suor seco do clube anterior. Abrios olhos. Sim, a excitação no bar tinha acabado, ou talvez nunca tivesse começado, tudo pareciacomo dantes, o pianista já conversava com a cantora seguinte, as raparigas da festa bebiam econversavam animadamente como se absolutamente nada tivesse acontecido. Eram duas e meiada manhã. Aimee não estava no seu lugar. Também não estava no bar. Percorri por duas vezes,aos tropeções, aquele espaço acanhado e superlotado, abri a pontapé todas as cabines dossanitários sórdidos, de telemóvel encostado ao ouvido, ligando e voltando a ligar e indo parar aoatendedor. Atravessei o bar aos empurrões, subi as escadas e saí para a rua. Produzia ganidos depânico. Estava a chover, e o meu cabelo, que tinha alisado com o secador, começou outra vez aencaracolar-se, a uma velocidade impressionante, cada pingo de chuva que me caía em cimadisparava um caracol, e eu meti-lhe os dedos e parecia lã de cordeiro, molhado e elástico,espesso e vivo. Um carro buzinou. Levantei os olhos e vi Errol estacionado no sítio onde otínhamos deixado. O vidro da janela de trás desceu e Aimee debruçou-se para fora dela, batendopalmas lentas.

«Oh, bravo.» Corri para ela, pedindo desculpa. Ela abriu a porta. «Entra.» Sentei-me ao lado dela, ainda a pedir desculpa. Ela inclinou-se para a frente para falar com

Errol. «Vai até à baixa e volta.» Errol tirou os óculos e apertou a cana do nariz. «São quase três horas», disse eu, mas o separador subiu e arrancámos. Durante uns bons dez

quarteirões, Aimee não disse absolutamente nada e eu também não. Quando íamos a passar porUnion Square, virou-se para mim: «És feliz?»

«O quê?» «Responde à pergunta.» «Não percebo a razão da pergunta.» Ela humedeceu o polegar com saliva e limpou um fio de máscara que lhe escorria pela cara e

em que eu não tinha reparado. «Estás comigo há quanto tempo? Cinco anos?» «Quase sete.» «OK. Portanto já tens obrigação de saber que não quero que as pessoas que trabalham

comigo», explicou pausadamente, como se estivesse a falar com uma idiota, «sejam infelizes atrabalhar comigo. Acho que não faz sentido.»

«Mas eu não sou infeliz.» «Então és o quê?» «Feliz!» Ela tirou o boné da cabeça e pô-lo na minha. «Nesta vida», disse, recostando-se no estofo de pele, «tens de saber o que queres. Tens de o

visualizar, e depois tens de o agarrar. Mas já conversámos sobre isto muitas vezes. Muitas

vezes.» Eu anuí com a cabeça e sorri, tão bêbeda que pouco mais conseguia fazer. Tinha a cara

entalada entre a moldura de nogueira e o vidro, e daqui tinha uma perspetiva nova da cidade, decima para baixo. Tinha visto o jardim da cobertura de um recuado antes de ver as pessoas,poucas e dispersas, que ainda andavam na rua àquela hora, chapinhando pelos passeiosencharcados, e desta perspetiva continuava a descobrir alinhamentos paranoicos, impensáveis.Uma chinesa idosa, apanhadora de latas, com um antiquado chapéu cónico, arrastando a carga –centenas, talvez milhares de latas, reunidas num enorme lençol de plástico – debaixo das janelasde um edifício onde eu sabia que morava um multimilionário chinês, amigo de Aimee, comquem um dia discutira a possibilidade de abrirem uma cadeia de hotéis.

«E nesta cidade tens mesmo de saber o que queres», dizia Aimee, «mas parece-me que aindanão sabes. OK, és esperta, isso já sabemos. Pensas que aquilo que estou a dizer não se aplica a ti,mas aplica-se. O cérebro está ligado ao coração e aos olhos – é tudo visualização, tudo. Queres,vês, agarras. Sem desculpas. Eu nunca peço desculpa por aquilo que quero! Mas vejo-te – e vejoque passas a vida a pedir desculpa! É como se sofresses da culpa do sobrevivente, ou coisaparecida! Mas já não estamos em Bendigo. Deixaste Bendigo – verdade? Como Baldwin deixouHarlem. Como Dylan deixou... A porra do lugar onde nasceu! Há alturas em que tens de virar ascostas a Bendigo! Graças a deus, nós as duas virámo-las. Há muito tempo. Bendigo pertence aopassado. Percebes o que eu estou a dizer, não percebes?»

Acenei sucessivas vezes que sim, apesar de não fazer ideia nenhuma do que ela estava a dizer,tirando a forte sensação que normalmente tinha com Aimee de que ela achava a sua históriapessoal aplicável universalmente, mais ainda quando estava embriagada, de que nessesmomentos todos nós vínhamos de Bendigo, e todos nós tínhamos pais que haviam morridoquando éramos novos, e todos tínhamos visualizado a nossa sorte e a tínhamos agarrado. Afronteira entre Aimee e todas as outras pessoas tornava-se obscura, difícil de definir comexatidão.

Sentia-me agoniada. Deixei cair a cabeça, como um cão, em plena noite de Nova Iorque. «Ouve, tu não vais passar a vida inteira a fazer isto», ouvi-a dizer, pouco depois, quando íamos

a entrar em Times Square, passando por um modelo somali com vinte e quatro metros de altura esessenta centímetros de cabelo afro que dançava animadamente na parede lateral de um edifíciovestindo umas normalíssimas calças Gap. «Isso não podia ser mais óbvio. Portanto, a questãopassa a ser: que vais fazer, depois disto? Que vais fazer da tua vida?»

Eu sabia que a resposta certa a esta pergunta devia ser «ter um negócio meu» disto ou daquilo,ou algo difusamente criativo como «escrever um livro» ou «abrir um retiro de ioga», porqueAimee achava que para fazer este género de coisas uma pessoa só tinha de, digamos, entrar nosescritórios de uma editora e anunciar a sua intenção. Tinha sido essa a sua experiência. Quepodia saber das vagas de tempo que simplesmente atingem uma pessoa, uma a seguir à outra?Que podia saber da vida como sobrevivência temporária, sempre parcial, desse processo? Fixei oolhar no modelo somali dançante.

«Eu estou bem! Sou feliz!» «Pois eu acho que tens demasiadas coisas dentro da cabeça», disse, batendo na sua. «Talvez

precises de foder mais... É que a impressão que dás é que não fodes nada. Será culpa minha? Eutento ajudar, não tento? Estou sempre a tentar. Nunca me dizes como corre.»

O carro encheu-se de luz. Vinha de um gigantesco anúncio digital a uma coisa qualquer, masdentro do carro parecia uma luz delicada e natural, como o nascer do dia. Aimee esfregou os

olhos. «Bem, tenho projetos para ti», disse, «se queres projetos. Toda a gente sabe que tens

capacidades para fazer mais do que aquilo que estás a fazer. Por outro lado, se queres saltar dobarco, agora é capaz de ser boa altura. Eu estou a levar muito a sério este projeto em África –não, não me revires os olhos; precisamos de limar algumas arestas, é claro que sei isso, não soulouca – mas vai acontecer. A Judy tem andado a conversar com a tua mãe. Sei que também nãoqueres ouvir falar disso, mas tem, e a tua mãe não é tão desmiolada como tu pensas. A Judy achaque a zona... Bem, neste momento estou com uma touca tão grande que nem me lembro bemonde é, um país muito pequeno... na costa ocidental? Mas ela acha que para nós pode ser umaescolha muito interessante, tem potencial. É o que diz a Judy. E acontece que a tua mãe, ilustredeputada, sabe muito sobre isso. É o que diz a Judy. A questão é que vou precisar da colaboraçãode toda a gente, e gente que queira estar aqui», disse, apontando para o coração. «Não gente quecontinua a perguntar-se por que razão cá está.»

«Eu quero estar aí», disse eu, olhando para o ponto, embora sob a influência da vodca os seiospequenos dela se duplicassem, depois se cruzassem, depois se fundissem.

«Inverto a marcha agora?», perguntou Errol cheio de esperança, através de um microfone. Aimee suspirou. «Inverte agora. Bem», disse, virando-se de novo para mim, «nos últimos

meses tens andado esquisita. Desde que viemos de Londres. É muita energia negativa. É o tipode energia negativa que tem mesmo de ser enterrada, caso contrário percorre o circuito inteiro eafeta toda a gente.»

Então fez uma série de gestos com as mãos que sugeriam uma qualquer lei da física até aídesconhecida.

«Passou-se alguma coisa em Londres?»

3

Quando acabei de lhe responder tínhamos invertido a marcha e estávamos a chegar a UnionSquare, onde levantei os olhos e vi o número naquele enorme painel pulsante avançarvelozmente, expelindo fumo pelo dantesco furo vermelho que tem no meio. Deu-me umasensação de asfixia. Muitas coisas que aconteceram durante aqueles meses em Londres tinham-me deixado sem fôlego: desistira finalmente do meu apartamento, por não lhe dar uso, e passaraa noite de pé num palanque cheio de gente para ver um homem de gravata azul subir ao palco ereconhecer a vitória da minha mãe vestida de vermelho. Tinha visto um panfleto a anunciar umanoite de hip-hop dos anos noventa, no Jazz Café, e desejado desesperadamente ir, mas nãoconsegui lembrar-me de um único amigo que pudesse convidar, apenas porque nos últimos anostinha viajado de mais, não aparecia nos sítios habituais, não acompanhava a pedalada dasmensagens no email pessoal, por um lado por falta de tempo e por outro porque Aimee torcia onariz a que «socializássemos» na Net, com medo das conversas descuidadas e das fugas deinformação. Sem sequer dar por isso, tinha negligenciado as minhas amizades. Por isso fuisozinha, embebedei-me e acabei na cama com um dos porteiros, um americano enorme, deFiladélfia, que garantia ter sido em tempos basquetebolista profissional. Como quase todos osseus colegas de profissão – caso de Granger – tinha sido contratado pela altura e pela cor da pele,pela ameaça que se considerava implícita na conjugação das duas coisas. Dois minutos a fumarum cigarro com ele haviam revelado um tipo amável, de bem com o universo, desajustado nopapel que desempenhava. Eu levava um saquinho de cocaína, que o cozinheiro de Aimee metinha dado, e quando chegou o intervalo do meu porteiro fomos para as cabines dos sanitários econsumimos uma grande quantidade, de uma prateleira brilhante atrás das sanitas que pareciaconcebida expressamente para aquele fim. Ele contou-me que odiava aquele emprego, aagressividade, tinha pavor de deitar as mãos a quem quer que fosse. Quando acabou o turno delesaímos juntos, às risadinhas no táxi, com ele a massajar-me os pés. Quando chegámos ao meuapartamento, onde tinha tudo empacotado em caixas, prontas para irem para os enormesarmazéns de Aimee em Marylebone, ele agarrou-se à barra de elevações que eu, cheia de boasintenções, tinha mandado pôr por cima da cama e nunca tinha utilizado, tentou fazer umaelevação e arrancou aquela porcaria da parede, e com ela parte do estuque. Na cama, porém,quase não o senti dentro de mim – talvez ressequida pela cocaína. Não me pareceu que ele seimportasse. Adormeceu alegremente em cima de mim como um grande urso e depois, com igualalegria, por volta das cinco da manhã, despediu-se de mim e foi-se embora. Eu acordei de manhãcom o nariz a sangrar e com a sensação nítida de que a minha juventude, ou pelo menos estaversão dela, havia chegado ao fim. Seis semanas depois, num domingo de manhã, enquanto Judye Aimee me enviavam frenéticas mensagens de texto sobre o arquivamento, em Milão, de uma

parte do guarda-roupa de palco de Aimee, anos 92-98, estava, sem elas saberem, sentada nocentro de colheitas do Royal Free Hospital, à espera dos resultados de um teste de DST e SIDA,ouvindo várias pessoas, muito menos afortunadas do que eu viria a verificar que era, seremlevadas para pequenos gabinetes onde pudessem chorar. Mas não falei em nada disto comAimee. Falei-lhe, isso sim, de Tracey. De Tracey, imagine-se. Toda a nossa história, minha edela, cuja cronologia oscilava confusamente para trás e para a frente no tempo e na vodca, todosos ressentimentos empolados, os prazeres diminuídos ou destruídos, e quanto mais falava maisnitidamente via e compreendia – como se a verdade fosse uma coisa enterrada que brotasse deum poço de vodca para vir ao meu encontro – que em Londres só tinha acontecido realmenteuma coisa: tinha visto Tracey. Depois de tantos anos sem ver Tracey, tinha-a visto. Nada maistinha importância. Era como se nada, no período entre a última vez que a vi e esta, tivesseacontecido.

«Espera, espera», disse Aimee, também ela demasiado embriagada para disfarçar aimpaciência com o monólogo de outra pessoa. «Essa é a tua amiga mais antiga, não é? É, sim, eusei que é. Eu conheço-a?»

«Não.» «E é dançarina?» «É.» «São as melhores pessoas que há! O corpo diz-lhes o que devem fazer!» Eu ia sentada na borda do assento, mas entretanto tinha-me deixado cair para trás e encostado a

cabeça à fria almofada de canto feita de vidro escuro, nogueira e cabedal. «Pois é, não podemos fazer velhos amigos»9, proclamou Aimee, de uma forma que se poderia

pensar que a frase era de sua autoria. «Que faria eu sem a minha querida e velha Jude? Desde osnossos quinze anos! Foi para a cama com o tipo que eu levei ao baile do liceu. Mas mete-me noseixos, oh se mete. Mais ninguém faz isso...»

Eu já estava habituada a que Aimee transformasse histórias a meu respeito em histórias a seurespeito, mas o álcool dava-me a ousadia de acreditar que, naquele momento, as nossas vidaseram realmente de igual importância, igualmente dignas de se falar delas, igualmentemerecedoras de tempo para isso.

«Foi depois daquele almoço com a minha mãe», expliquei, devagar. «Na noite em que saí comaquele tipo Daniel? Em Londres. O encontro do desastre.»

Aimee franziu a testa: «O Daniel Kramer? Fui eu que arranjei esse encontro. O financeiro?Estás a ver, não me contaste nada disso!»

«Bem, foi um desastre – fomos a um espetáculo. E ela entrava na merda do espetáculo.» «Falaste-lhe.» «Não! Já não falo com ela há oito anos. Acabei de te dizer isso. Não estás a ouvir o que eu te

digo?» Aimee pousou os dedos nas fontes. «A cronologia é confusa», murmurou. «Ainda por cima dói-me a cabeça. Ouve... Quer dizer,

não sei... talvez devesses telefonar-lhe! Parece que é isso que queres. Telefona-lhe agora – foda-se, eu falo com ela.

«Não!» Ela arrancou-me o telefone da mão – a rir-se, percorreu a minha lista de contactos, e quando

tentei tirar-lho pô-lo fora da janela do seu lado. «Dá cá isso!»

«Ora, vá lá – ela vai adorar.» Consegui trepar por cima dela, agarrar o telefone e entalá-lo entre as coxas. «Tu não percebes. Ela fez-me uma coisa horrível. Tínhamos vinte e dois anos. Uma coisa

horrível.» Aimee levantou uma das suas famosas sobrancelhas geométricas e subiu o separador que Errol

– que queria saber para qual das entradas da casa íamos – tinha acabado de descer. «Bom, agora estou sinceramente interessada...» Virámos para Washington Square Park. As casas à volta da praça erguiam-se vermelhas e

nobres, as fachadas banhadas por uma luz quente, mas dentro do parque tudo era escuro egotejante, vazio de gente, tirando meia dúzia de sem-abrigo negros, no canto direito maisdistante, sentados nas mesas de xadrez, os corpos embrulhados em sacos de lixo com buracospara os braços e as pernas. Encostei a cara ao vidro, fechei os olhos, senti as pingas da chuva econtei a história como me lembrava dela, a ficção e a realidade, numa pressa dolorosa,sincopada, como se corresse em cima de estilhaços de vidro, mas quando abri os olhos foi aosom de Aimee outra vez a rir-se.

«Não tem porra de graça nenhuma!» «Espera – estás a falar a sério?» Tentou puxar o lábio superior para dentro da boca e mordê-lo. «Será que estou enganada», perguntou, «ou tu estás a fazer uma tempestade num copo de

água?» «O quê?» «Para ser franca, a única pessoa de quem tenho pena nesse cenário – se for verdadeiro – é do

teu pai. Pobre homem! Completamente só, a tentar bater uma…» «Para com isso!» «Não é nenhum Jeffrey Dahmer.» «Mas não é normal. Achas que é normal o que ele fez?» «Normal? Não percebes que todos os homens deste mundo com acesso a um computador,

incluindo o Presidente, está neste preciso momento a olhar para vaginas ou acabou de olhar paravaginas…»

«Não é a mesma coisa…» «É exatamente a mesma coisa. Com a diferença de que o teu pai nem computador tinha. Achas

que se o George W. Bush vir «Dez Ratinhas Asiáticas»… é o quê? Um perigoso assassino emsérie?

«Bem...» «Bom argumento – mau exemplo.» Eu ri-me, contra a minha vontade. «Desculpa. Se calhar estou a ser estúpida. Não percebo. Porque é que estás zangada,

exatamente? Por ela te ter contado? Acabaste de dizer que achavas que era uma parvoíce!» Era desconcertante, depois de tantos anos da minha lógica retorcida, ouvir o problema

reduzido à linha reta que Aimee preferia. A clareza perturbou-me. «Ela estava sempre a mentir. Tinha a mania de que o meu pai era perfeito, e queria destruir a

imagem que eu tinha dele, queria que detestasse o meu pai como ela odeia o seu. A partir daínunca mais consegui olhá-lo nos olhos. E foi assim até ele morrer.»

Aimee suspirou: «É a coisa mais estúpida que ouvi na puta da vida. Transformaste-te numapessoa triste sem razão absolutamente nenhuma.»

Fez menção de me tocar no ombro, mas eu virei-lhe as costas e limpei do olho uma lágrimatraiçoeira.

«Sou mesmo estúpida.» «Não. Todas nós temos as nossas merdas. Mas devias telefonar à tua amiga.» Fez uma pequena almofada com o casaco e encostou a cabeça à janela, e quando atravessámos

a Sexta Avenida já ia a dormir. Era a rainha das sestas curtas e revigorantes, tinha de ser, paraviver como vivia.

9 «You can’t make old friends» é um verso de uma canção de Kenny Rogers. (N. do T.)

4

Meses antes, em Londres – poucos dias antes das eleições – tinha almoçado com a minha mãe.Estava um dia cinzento e húmido, as pessoas atravessavam a ponte sem alegria, fustigadas pelachuva miúda, e até os monumentos mais imponentes, até o Parlamento, me pareciam soturnostristes e deprimentes. Tudo me fazia desejar que já estivéssemos em Nova Iorque. Queria todaaquela altura e vidro batido pelo sol, e depois de Nova Iorque Miami, e depois cinco paragens naAmérica do Sul e finalmente a digressão europeia, podia passar-se um ano inteiro. Era o que eugostava. As outras pessoas tinham de atravessar as estações, tinham de se arrastar ao longo decada ano. No mundo de Aimee não vivíamos assim. Nem podíamos, ainda que quiséssemos:nunca estávamos o tempo suficiente em nenhum lugar. Se não gostávamos do inverno voávamospara o verão. Quando estávamos cansados das cidades íamos para a praia – e vice-versa. Estou aexagerar ligeiramente, não muito. Os meus últimos anos antes dos trinta tinham passado numestranho estado de intemporalidade, e agora penso que nem toda a gente podia ter-se encaixadonuma vida assim, que de alguma forma devia estar preparada para ela. Mais tarde dei comigo apensar se não seríamos escolhidos exatamente por esta razão, exatamente porque de um modogeral éramos pessoas com poucas ligações ao mundo exterior, sem consortes nem filhos, com omínimo possível de família. A forma como vivíamos contribuía sem dúvida para que assimcontinuássemos. Das quatro assistentes de Aimee, só uma teve um filho, e só quando ia a meioda casa dos quarenta, muito depois de se ter demitido. Para se subir a bordo daquele Learjet erapreciso ser-se livre de todas as peias. De outra maneira não resultava. Eu, agora, só tinha umacorda – a minha mãe – e estava, à semelhança de Aimee, no seu apogeu, se bem que, aocontrário de Aimee, a minha mãe precisasse muito pouco de mim. Estava eufórica, a poucos diasde se tornar Membro do Parlamento pelo círculo de Brent West, e quando virei à esquerda, acaminho da Oxo Tower, deixando para trás o Parlamento, senti, como de costume, a minhapequenez em comparação com ela, com o nível que havia atingido, a trivialidade daquilo quefazia em comparação com o que ela fazia, apesar de todas as suas tentativas de me orientar paraoutro caminho. Parecia-me mais digna de admiração do que nunca. Atravessei a ponte sempreagarrada à vedação, até me ver do outro lado.

Estava muito húmido para ficar na esplanada. Levei alguns minutos até dar com o restaurante,mas depois localizei a minha mãe, que afinal estava cá fora, debaixo de um guarda-sol, protegidada morrinha, e com Miriam, embora na nossa conversa telefónica não se tivesse falado deMiriam. Eu não desgostava de Miriam. Ou melhor, não sentia nada por ela, era difícil sentiralguma coisa por ela: era demasiado pequena e calada e séria. Todas as suas feiçõesdesinteressantes estavam concentradas no meio da cara miúda, e tinha o cabelo natural apanhadoem rastas finas, que começavam a embranquecer elegantemente nas pontas. Tinha uns óculos

pequenos, de lentes redondas com armação dourada, que nunca tirava e lhe faziam os olhos aindamais pequenos do que eram. Vestia blusa de malha castanha, simples, e calças pretas lisas,independentemente da ocasião. Uma moldura fotográfica humana, com o único objetivo derealçar a minha mãe. Tudo o que a minha mãe dizia sempre de Miriam era: «A Miriam faz-memuito feliz.» Miriam nunca falava de si – só falava da minha mãe. Tive de a pesquisar no Googlepara descobrir que era afro-cubana, nascida em Lewisham, que em tempos tinha trabalhado emajuda internacional mas agora lecionava na Queen Mary – numa posição de adjunta muitosubalterna – e andava a escrever um livro «sobre a diáspora» desde antes de eu a conhecer, o quesignificava quatro anos. Foi apresentada aos eleitores da minha mãe com o mínimo de alaridonum acontecimento qualquer numa escola local, fotografada, encostada à minha mãe, um tímidoratinho ao lado da sua leoa, e os jornalistas do Willesden and Brent Times ouviram exatamente omesmo que eu: «A Miriam faz-me muito feliz.» Ninguém parecia particularmente interessado,nem mesmo os jamaicanos idosos e os evangélicos africanos. Fiquei com a sensação de que oseleitores da minha mãe não viam realmente a minha mãe e Miriam como namoradas, eramsimplesmente aquelas duas senhoras simpáticas de Willesden, que tinham salvado a velha sala decinema e lutado pela ampliação do centro de lazer e instituído o Mês de História dos Negros emtodas as bibliotecas locais. Em campanha, formavam um par eficaz: quem achava a minha mãedemasiado afirmativa podia procurar conforto na discreta passividade de Miriam, enquanto aspessoas que achavam Miriam uma chata apreciavam a animação que a minha mãe criava ondequer que fosse. Ao ver agora Miriam acenar rapidamente, recetivamente, enquanto a minha mãeperorava, percebi que também eu estava feliz com a sua existência: era um bom amortecedor.Avancei e pousei a mão no ombro da minha mãe. Ela não levantou os olhos nem interrompeu oque estava a dizer, mas acusou o meu toque e levantou uma das mãos para pousá-la sobre aminha, recebendo de bom grado o beijo que lhe dei na face. Puxei uma cadeira e sentei-me.

«Como estás, mamã?» «Nervosa!» «A tua mãe está muito nervosa», confirmou Miriam, e começou a enunciar em voz baixa as

muitas causas da tensão da minha mãe: os sobrescritos que ainda era preciso encher com ospanfletos e enviar pelo correio, a margem estreita da última sondagem, as táticas desonestas daoposição, e a alegada duplicidade da única outra mulher negra no Parlamento, deputada há vinteanos, que a minha mãe considerava, sem razão plausível, sua rival acérrima. Eu anuí nosmomentos certos e passei os olhos pela ementa e consegui pedir vinho a um empregado que ia apassar, tudo isto sem interromper o curso da conversa de Miriam, os seus números epercentagens, a minuciosa regurgitação das várias coisas «brilhantes» que tinha dito adeterminada pessoa neste ou naquele momento decisivo e como a referida pessoa tinharespondido, deficientemente, à coisa brilhante que a minha mãe tinha dito.

«Mas tu vais ganhar», disse eu, com uma entoação que percebi, demasiado tarde, que ficavadesajeitadamente entre a afirmação e a pergunta.

A minha mãe fez um ar severo, desdobrou o guardanapo e pousou-o no regaço, como umarainha a quem alguém tivesse perguntado, impertinentemente, se o seu povo ainda a amava.

«Se houver justiça», disse. A nossa refeição chegou, a minha mãe tinha escolhido por mim. Miriam tratou de comer a sua

– fez-me lembrar um pequeno mamífero que espera hibernar em breve – mas a minha mãe

deixou ficar a faca e o garfo no sítio e em vez de comer debruçou-se para a cadeira vazia ao seulado e tirou de lá um exemplar do Evening Standard, já aberto numa grande foto de Aimee, empalco, justaposta com uma foto de arquivo de um grupo de crianças africanas pobres, não percebiexatamente de onde. Não tinha visto a peça e estava demasiado longe para ler o texto, masadivinhei a fonte: um comunicado de imprensa recente, a anunciar o empenhamento de Aimee na«redução da fome à escala mundial». A minha mãe tamborilou com um dedo no abdómen deAimee.

«Está mesmo empenhada nisso?» Eu pensei na pergunta: «Está apaixonadamente empenhada nisso.» A minha mãe franziu a testa e pegou no talher. «“Combate à pobreza”. Pois, muito bem, mas com que medidas políticas, concretamente?» «Ela não é política, mamã. Não tem medidas políticas. Tem uma fundação.» «Está bem, mas o que é que ela quer fazer?» Eu servi a minha mãe de vinho e obriguei-a a fazer uma pausa e brindar comigo. «Acho que quer construir uma escola. Uma escola feminina.» «Porque se está mesmo empenhada», disse a minha mãe, sobrepondo-se à minha resposta,

«devias aconselhá-la a falar connosco, trabalhar em parceria com o governo, de uma forma ou deoutra... É certo que tem os meios financeiros e a atenção do público – isso é tudo muito bom –mas se não compreender a mecânica é um monte de boas intenções que não dão em nada. Precisade se reunir com as autoridades competentes.»

Eu sorri ao ouvir a minha mãe já falar de si como «governo». O que disse a seguir irritou-a tanto que se virou e deu a resposta a Miriam, e não a mim. «Ora, por favor – gostava muito de que não te comportasses como se eu estivesse a pedir um

grande favor. Não tenho NENHUM interesse em encontrar-me com essa mulher, absolutamentenenhum. Nunca tive. Estava a oferecer alguns conselhos. Pensava que seriam…»

«E são bem recebidos, mamã, muito obrigada. Eu só…» «É que, francamente, seria de esperar que essa mulher quisesse falar connosco. Afinal de

contas, demos-lhe um passaporte britânico. Mas pronto, deixa lá. O que acontece é que, a avaliarpor isto» – voltou a acenar com o jornal – «parecia que as intenções dela eram sérias, mas talveznão seja assim, talvez só queira passar por uma vergonha. Isso não sei. «Mulher branca salvaÁfrica.» É essa a ideia? Já é muito velha. Bem, é o vosso mundo, não o meu, graças a Deus. Masela devia ao menos falar com a Miriam, que tem uma série de contactos úteis, contactos rurais,contactos educacionais – não te diz porque é muito modesta. Tem dez anos de Oxfam, caramba.A pobreza não é um simples título de jornal, meu amor, é uma realidade vivida, no terreno – e aeducação está no cerne dessa realidade.»

«Eu sei o que é a pobreza, mamã.» A minha mãe fez um sorriso triste e meteu uma garfada à boca. «Não, querida, não sabes.» O meu telemóvel, para o qual estava a tentar, com todas as forças de que dispunha, não olhar,

voltou a vibrar – já tinha vibrado uma dúzia de vezes desde que me tinha sentado – e desta veztirei-o da carteira e tentei ver rapidamente as mensagens, comendo com ele numa das mãos.Miriam falou à minha mãe numa questão administrativa qualquer, o que fazia muitas vezesquando se via apanhada numa das nossas discussões, mas a meio da conversa a minha mãe

perdeu visivelmente o interesse. «Estás viciada nesse telefone, sabias?» Eu não parei de digitar, mas fiz a expressão mais calma possível. «É trabalho, mamã. Agora as pessoas trabalham assim.» «Como escravas, queres tu dizer?» Partiu uma fatia de pão e deu a parte mais pequena a Miriam, coisa que já antes lhe vira fazer,

era a sua ideia de dieta. «Não, como escravas não. Eu tenho uma boa vida, mamã!» Ela pensou nisto com a boca cheia. Abanou a cabeça. «Não, isso não é verdade – tu não tens uma vida. Ela sim, tem uma vida. Tem os seus homens,

os seus filhos, a sua carreira – ela tem a vida. Vem nos jornais. Tu dás assistência à vida dela. Éuma gigantesca sugadora, suga-te a juventude, rouba-te toda a tua…»

Para a obrigar a calar-se empurrei a cadeira para trás e fui aos lavabos, demorando-me aoespelho mais tempo do que precisava, enviando mais emails, mas quando voltei a conversaprosseguia sem interrupção, como se não tivesse passado tempo nenhum. A minha mãecontinuava a queixar-se, mas para Miriam: «… o tempo todo. Distorce tudo. É por causa delaque não vou ter netos.»

«Mamã, a minha situação reprodutiva não tem nada…» «Tu estás muito perto, não vês. Ela tornou-te desconfiada de toda a gente.» Eu neguei, mas a seta atingiu o alvo. Não era desconfiada – sempre de pé atrás? Atenta a

qualquer sinal daquilo que Aimee e eu designávamos, entre nós, por «clientes»? Cliente: alguémque pensávamos que estava a servir-se de mim na esperança de se aproximar dela. Às vezes, nosprimeiros anos, se um dos meus relacionamentos conseguia – apesar de todos os obstáculos detempo e geografia – arrastar-se por alguns meses, ganhava um bocadinho de confiança ecoragem, e apresentava a pessoa em questão a Aimee, isso era normalmente uma má ideia. Malele ia aos lavabos ou saía para fumar um cigarro, eu fazia a pergunta a Aimee: cliente? E aresposta era: Oh, querida, lamento, sem dúvida um cliente.

«Repara na maneira como tratas velhas amigas. A Tracey. Eram praticamente irmãs, cresceramjuntas – agora nem sequer lhe falas!»

«Mamã, tu sempre odiaste a Tracey.» «A questão não é essa. As pessoas vêm de algures, têm raízes – tu permitiste que esta mulher

arrancasse as tuas. Não vives em sítio nenhum, não tens nada teu, passas o tempo num avião.Quanto tempo vais conseguir viver assim? Não me parece que ela queira que sejas feliz. Porquenessa altura eras capaz de a deixar. E então que seria dela?

Eu ri-me, mas o som que emiti era feio, mesmo para mim. «Não lhe acontecia nada! É Aimee! Eu sou apenas a primeira assistente, sabes – há mais

três!» «Estou a perceber. Portanto ela pode ter quantas pessoas quiser na sua vida, mas tu só podes

tê-la a ela.» «Não, não estás a perceber.» Levantei os olhos do telefone. «A verdade é que hoje à noite vou

sair com uma pessoa. Que a Aimee me apresentou, portanto...» «Ah, isso é bom», disse Miriam. Nada lhe agradava mais na vida do que ver um conflito

resolvido, qualquer conflito, e a minha mãe dava-lhe muitas oportunidades para isso: aonde querque fosse arranjava um conflito, que Miriam tinha de resolver.

A minha mãe arrebitou a orelha: «Quem é ele?»

«Não o conheces. É de Nova Iorque.» «Não posso saber como se chama? É segredo de Estado?» «Daniel Kramer. Chama-se Daniel Kramer.» «Ah», disse a minha mãe, sorrindo enigmaticamente para Miriam. Trocaram um irritante olhar

de cumplicidade. «Mais um judeu simpático.» Na altura em que o empregado veio levantar os nossos pratos surgiu o Sol no céu de chumbo.

Arcos-íris atravessavam os copos do vinho e passavam pelos talheres molhados, pelas costas dascadeiras de acrílico, irradiando do anel de noivado de Miriam para um guardanapo de linhoestendido entre nós as três. Eu não quis sobremesa, disse que tinha de ir andando, mas quando fizmenção de levantar a gabardina das costas da cadeira a minha mãe fez um sinal a Miriam eMiriam entregou-me uma pasta de cartolina, de aspeto oficial, presa por elásticos, com capítulose fotografias, listas de contactos, sugestões de arquitetura, uma breve história da educação naregião, uma análise do previsível «impacto nos media», planos de parcerias com o governo, etc.:um «estudo de viabilidade». O Sol atravessava o cinzento, uma neblina mental dissipou-se,percebi que todo aquele almoço tivera este propósito, e só este, e eu era apenas um canal atravésdo qual se pretendia fazer chegar a informação a Aimee. Também a minha mãe era uma cliente.

Agradeci-lhe a pasta e fiquei a olhar-lhe para a capa, fechada em cima dos joelhos. «E como é que te sentes», perguntou Miriam, piscando ansiosamente por trás dos óculos, «em

relação ao teu pai? O aniversário é na terça-feira, não é?» Era tão invulgar ouvir uma pergunta pessoal durante um almoço com a minha mãe – e mais

ainda que me lembrassem uma data importante para mim – que a princípio não tive a certeza deque me fosse dirigida. A minha mãe também pareceu alarmada. Era doloroso para ambaslembrarem-nos que a última vez que nos víramos tinha sido num funeral, já lá ia um ano. Tardebizarra: o caixão ia ao encontro das chamas, eu estava sentada ao lado dos filhos do meu pai –agora adultos, com trinta e muitos e quarenta e muitos anos – e experimentei uma repetição daúnica outra vez em que tinha estado com eles; a filha a chorar, o filho recostado na cadeira comos braços cruzados sobre o peito, cético em relação à morte. E eu, que não conseguia chorar,voltei a achar que ambos eram filhos do meu pai muito mais convincentes do que eu alguma vezfora. E no entanto, na nossa família, nunca quiséramos admitir esta improbabilidade, semprerechaçáramos aquilo que considerávamos ser a curiosidade banal e lúbrica dos estranhos – «Masisso não a confundirá no seu crescimento?», «Como é que ela escolherá entre as vossasculturas?» –a ponto de haver alturas em que sentia que o objetivo único da minha infância era demonstrar aosmenos esclarecidos que não estava confusa e não tinha nenhuma dificuldade em escolher. «Avida é confusa!» – era o remoque definitivo da minha mãe. Mas não existe também umaexpectativa arreigada de semelhança entre pais e filhos? Eu era estranha para a minha mãe e parao meu pai, uma criança trocada à nascença que não pertencia a nenhum deles, e embora istoacabe por ser verdade em relação a todos os filhos – não somos os nossos pais nem eles são nós –os filhos do meu pai iriam descobrir isto com uma certa lentidão, ao longo de anos, talvez sóestivessem a descobri-lo totalmente neste momento, enquanto as chamas consumiam a madeirade pinho, enquanto o sabia desde que nasci, sempre o soube, é uma verdade estampada a toda alargura da minha cara. Mas esse era o meu drama pessoal: depois, na receção, apercebi-me deque alguma coisa maior do que o meu desgosto tinha acontecido durante toda a cerimónia, para

onde me deslocasse naquele crematório ouvia-o, um murmúrio ambiente, Aimee, Aimee, Aimee,mais alto do que o nome do meu pai e mais frequente, enquanto as pessoas tentavam perceber seela estava de facto presente, e então, mais tarde – quando decidiram que já devia ter entrado esaído – ouviu-se outra vez, num eco lamentoso, Aimee, Aimee, Aimee... Até ouvi a minha irmãperguntar ao meu irmão se a tinha visto. Sempre ali esteve, escondida à vista de todos. Umamulher discreta, surpreendentemente pequena, sem maquilhagem, de uma palidez quasetranslúcida, vestindo um discreto fato de tweed com veias azuis que lhe corriam pelas pernasacima, e com o seu cabelo natural, castanho e liso.

«Acho que vou pôr umas flores», disse eu, apontando vagamente para a outra margem do rio,na direção do Norte de Londres. «Obrigada por teres perguntado.»

«Um dia de dispensa!», disse a minha mãe, virando-se para trás, apanhando o trem da conversanuma paragem anterior. «O dia do funeral dele. Um dia!»

«Mamã, eu só pedi um dia.» A minha mãe afivelou uma expressão de mãe ferida. «Eras tão chegada ao teu pai! Eu sei que sempre encorajei isso em ti. Não consigo perceber o

que aconteceu.» Por um momento tive vontade de lhe dizer. Em vez disso fiquei a ver um barco de recreio a

subir o Tamisa. Levava algumas pessoas a pontuar as filas de assentos vazios, olhando para aságuas cinzentas. Voltei ao meu email.

«Aqueles pobres rapazes», ouvi a minha mãe dizer, e quando levantei a cabeça do telefone vi-aapontar para a ponte de Hungerford quando o barco ia a passar por baixo dela. De imediato aimagem que sabia que ela tinha na cabeça pairou na minha: dois jovens, atirados à água por cimado parapeito. O que sobreviveu e o que morreu. Tive um arrepio e cobri melhor o peito com ocasaco de malha.

«E também havia uma rapariga», acrescentou a minha mãe, deitando um quarto cubo de açúcarnum cappuccino espumoso. Acho que nem dezasseis anos tinha. Praticamente crianças, todoseles. Uma tragédia. Ainda devem estar presos.»

«É claro que ainda estão presos – mataram um homem.» Tirei um gressino de uma taça deporcelana fina e parti-o em quatro. «Ele também ainda está morto. Também é uma tragédia.»

«Isso sei eu», retorquiu a minha mãe. «Não sei se te lembras, mas passei os dias quase todos nagaleria do público a assistir ao julgamento.»

Lembrava-me. Tinha saído de casa pouco tempo antes e a minha mãe tinha o hábito de metelefonar todas as noites quando regressava do High Court a contar-me as histórias – embora eunão lhe pedisse – cada qual com a sua tristeza grotesca, mas todas basicamente iguais: filhosabandonados por mães ou pais ou ambos, criados por avós, ou não criados por ninguém,infâncias inteiras passadas a cuidar de familiares doentes, em complexos de habitação socialcomo prisões, a cair de podres, todos na margem sul do rio, adolescentes expulsos da escola, oude casa, ou de ambas, toxicodependência, abusos sexuais, furtos, dormindo ao relento – as mil euma formas de uma vida mergulhar no infortúnio antes mesmo de ter começado. Lembro-me deque um deles tinha abandonado a faculdade, outro tinha uma filha de cinco anos, morta no diaanterior num acidente de automóvel. Já todos eram pequenos criminosos. E a minha mãe estavafascinada com eles, tinha uma vaga ideia de escrever sobre o caso, para o que era, na altura, o seudoutoramento. Nunca chegou a escrever.

«Aborreci-te?», perguntou, pondo a mão sobre a minha. «Dois rapazes inocentes a atravessar a merda de uma ponte!»

Enquanto falava bati com o punho livre no tampo da mesa, sem intenção – um velho hábito daminha mãe. Ela olhou para mim com ar preocupado e endireitou o saleiro tombado.

«Mas, querida, quem está a pôr isso em causa?» «Não podemos ser todos inocentes.» Pelo canto do olho vi um empregado de mesa, que tinha

vindo cá fora trazer a conta, retirar-se discretamente. «Alguém tem de ser culpado!» «De acordo», murmurou Miriam, torcendo nervosamente um guardanapo nas mãos. «Acho que

ninguém discorda, pois não?» «Não tiveram uma oportunidade», disse a minha mãe com calma, mas também com firmeza, e

só mais tarde, ao atravessar a ponte para a outra margem, quando o mau-humor me tinhapassado, vi que era uma frase que apontava em duas direções.

Quarta parte

RITUAL DE PASSAGEM

1

O maior dançarino que vi na minha vida foi o kankurang. Mas na altura não sabia quem era, ouo quê: uma forma alaranjada que se agitava freneticamente, da altura de um homem, mas semcara de homem, coberta com muitas folhas sobrepostas, sibilantes. Como uma árvore ao solbrilhante de um outono nova-iorquino que se arranca sozinha do chão e agora dança pela ruaabaixo. Um numeroso bando de rapazes corria atrás dele pela terra vermelha, e uma falange demulheres, empunhando folhas de palma – as mães dos rapazes, presumi. As mulheres cantavam ebatucavam fortemente com os pés, brandindo o ar com as palmas, andando e dançando. Eu iaespremida dentro de um táxi, um Mercedes todo amolgado, amarelo com uma faixa verde aomeio. Lamin ia ao meu lado, no banco traseiro, juntamente com o avô de alguém, uma mulherque amamentava uma criança estridente, duas adolescentes em uniforme escolar, e um dosprofessores corânicos da escola. Era uma cena de caos que Lamin enfrentava calmamente,sempre consciente do seu estatuto de professor estagiário, as mãos dobradas sobre os joelhoscomo um padre, com o mesmo ar de sempre – com o seu nariz comprido e achatado, narinaslargas e olhos tristes, ligeiramente amarelecidos – como um grande felino em repouso. O rádiodo carro tocava reggae da ilha da minha mãe, em altos berros. Mas o que vinha na nossa direçãoera uma dança marcada por ritmos de que o reggae nem sequer se aproxima. Cadências tãorápidas, tão complexas, que tínhamos de pensar nelas – ou vê-las interpretadas pelo corpo de umdançarino – para compreendermos o que estávamos a ouvir. Caso contrário, podíamos pensarque se tratava do troar de uma nota grave. Podíamos pensar que era o som de um trovão no céu.

Quem estava a tocar tambor? Olhei pela janela do meu lado e descortinei três homens, com osinstrumentos entalados entre os joelhos, caminhando como caranguejos, e quando estacaram àfrente do nosso carro todo o cortejo dançante suspendeu o seu avanço e estacou também, nomeio da estrada, obrigando-nos a parar. Era uma variante em relação aos postos de controlo, aossoldados façanhudos com cara de menino, de metralhadora negligentemente apoiada na anca.Quando parávamos por ordem dos soldados – chegava a acontecer doze vezes no mesmo dia –remetíamo-nos ao silêncio. Mas desta vez o táxi explodiu em conversas e assobios e gargalhadase as estudantes penduraram-se das janelas e forçaram o puxador avariado até que a porta se abriue toda a gente menos a mulher amamentadora saiu em tropel.

«Que é isto? O que é que está a acontecer?» A minha pergunta era para Lamin, que supostamente era o meu guia, mas ele deu a impressão

de quase não se lembrar da minha existência, e muito menos de que o objetivo era irmos apanharo ferry e atravessar o rio para a cidade, e daí para o aeroporto, a receber Aimee. Agora nada dissointeressava. Só o momento presente existia, só a dança. E Lamin, afinal, era dançarino. Percebiisso nesse dia, antes mesmo de Aimee o conhecer, muito antes de ela detetar o dançarino que

havia dentro dele. Percebi pelos movimentos das ancas, pelos meneios da cabeça. Mas tinhadeixado de ver a aparição cor de laranja, a multidão entre mim e ela era tão grande que sóconseguia ouvi-la: o que devia ser o bater dos seus pés no chão, e o chocalhar áspero de metalcontra metal, e um guincho penetrante, sobrenatural, a que as mulheres respondiam cantandoenquanto também elas dançavam. Até eu estava a dançar sem querer, empurrada contra tantoscorpos em movimento. Continuava a perguntar: «Que é isto? O que é que está a acontecer?» –mas o inglês, a «língua oficial», aquele casaco formal e pesado que as pessoas só vestiam naminha presença, e mesmo nessa altura com evidente contrariedade e dificuldade, tinha sidoatirado ao chão, toda a gente dançava em cima dele, e eu pensei, e não a primeira vez naquelaprimeira semana, na adaptação que Aimee ia ter de fazer quando finalmente chegasse edescobrisse, como eu já havia descoberto, o fosso que existia entre o «estudo de viabilidade» e avida tal como se apresenta diante de nós na estrada e no ferry, na aldeia e na cidade, entre o povoe em meia dúzia de línguas, na comida e nas caras e no mar e na Lua e nas estrelas.

Havia gente que trepava para cima do carro para ver melhor. Procurei Lamin e descobri-o atentar subir também para o capô. A multidão estava a dispersar-se – rindo, gritando, correndo – eeu cheguei a pensar que tinha rebentado algum petardo. Um grupo de mulheres fugia para o ladoesquerdo, e agora percebia porquê: o kankurang brandia duas catanas, compridas como braços.«Vem para aqui!», gritou Lamin, estendendo-me um braço, e eu icei-me para junto dele,agarrando-me à sua camisa branca enquanto ele dançava, tentando não perder o equilíbrio. Olheipara o frenesi que reinava lá em baixo. Pensei: cá está a alegria que toda a vida procurei.

Mesmo por cima da minha cabeça estava uma mulher idosa decorosamente sentada notejadilho a comer amendoins de um saco, parecendo uma senhora jamaicana no Lord’s, depois deum dia de críquete. Viu-me e acenou-me: «Bom dia, como está a ser o seu dia?» O mesmocumprimento automático, delicado que me seguia por toda a aldeia – independentemente decomo fosse vestida, independentemente de quem me acompanhasse – e que entretanto aprenderaa identificar como uma forma de assinalar a minha condição de estrangeira, que era óbvia paraqualquer pessoa em qualquer lugar. A mulher sorria amavelmente para as manobras das catanas,para os rapazes que não paravam de se espicaçar mutuamente para se aproximarem da árvoredançante e lhe acompanharem os movimentos frenéticos – mantendo-se fora do alcance doscírculos que ela fazia com as facas – imitando nos seus corpos franzinos as convulsivas batidasno chão e guinadas e agachamentos e pontapés no ar e a euforia rítmica generalizada queirradiava da figura para todos os pontos do horizonte, através das mulheres, através de Lamin,através de mim, através de toda a gente ao alcance da minha vista, enquanto debaixo de nós ocarro tremia e balançava. Apontou para o kankurang. «É um dançarino», explicou.

Um dançarino que vem buscar os rapazes. Levando-os para o mato, onde são circuncidados,iniciados na sua cultura, informados sobre as regras e limites, as tradições sagradas do mundo emque irão viver, os nomes das plantas que os ajudarão nesta ou naquela doença e o modo de asusar. Que desempenha o papel de limiar, entre a juventude e a maturidade, afasta os mausespíritos e é o garante da ordem e da justiça e da continuidade entre as gerações do seu povo edentro delas. É um guia que conduz os jovens pelo seu difícil ritual de passagem, da infânciapara a adolescência, e é também, simplesmente, um jovem, anónimo, escolhido em grandesegredo pelos anciãos, coberto com folhas de árvore pata-de-camelo e pintado com pigmentosvegetais. Mas aprendi tudo isto ao telefone, de regresso a Nova Iorque. Bem tentei fazerperguntas sobre aquilo ao meu guia, qual o significado, em que medida se enquadrava na práticaislâmica local ou dela divergia, mas ele não conseguia ouvir-me por causa da música. Ou então

não queria ouvir-me. Voltei a tentar, um pouco mais tarde, depois de o kankurang se tertransferido para outro sítio e quando todos tínhamos voltado a ensardinhar-nos no banco traseirodo carro, agora com dois dos rapazes dançarinos, estendidos ao comprido em cima dos nossosjoelhos, pegajosos de suor do esforço despendido. Mas percebi que as minhas perguntas estavama incomodar toda a gente e entretanto a euforia já tinha passado. A deprimente formalidade deLamin, que punha em todos os contactos comigo, havia regressado. «Uma tradição mandinga»,disse e virou-se outra vez para o condutor e os outros passageiros, para rir e discutir e conversarsobre coisas de que eu não fazia ideia, numa língua que desconhecia. Seguimos viagem. Penseinas raparigas. Quem vem buscar as raparigas? Se não o kankurang, quem? As mães? As avós?Alguma amiga?

2

Quando chegou a altura de Tracey não houve ninguém que a guiasse na travessia do limiar,que a aconselhasse ou pelo menos lhe dissesse que estava a transpor um limiar. Mas o seu corpoestava a desenvolver-se mais depressa do que o de qualquer outra e por isso teve de improvisar,de tratar de tudo sozinha. A primeira ideia que teve foi vestir-se espalhafatosamente. As culpaseram atribuídas à mãe – as mães já estão habituadas – mas tenho a certeza de que a mãe não vianem sabia metade. Ainda estava a dormir quando Tracey saía para a escola e não estava em casaquando ela voltava. Tinha finalmente arranjado trabalho, penso que fazia a limpeza algures numedifício de escritórios, mas a minha mãe e as outras mães criticavam-na por ter emprego, quasetanto quanto a tinham criticado por estar desempregada. Antes fora uma «má influência», agora«nunca estava em casa». A sua presença e a sua ausência eram igualmente más, e a maneiracomo começaram a falar de Tracey assumiu uma dimensão trágica, pois não é verdade que só osheróis de tragédia não têm hipóteses de escolha, caminhos alternativos, apenas destinosinevitáveis? Dentro de poucos anos Tracey engravidaria, na opinião da minha mãe, e por issoabandonaria a escola, e o «ciclo de pobreza» completar-se-ia, terminando, com toda aprobabilidade, na prisão. A prisão era recorrente na família dela. Claro que a prisão também erarecorrente na minha, mas, por qualquer razão, eu estava ligada a uma estrela diferente. Não serianem faria nenhuma destas coisas. A certeza da minha mãe sobre tudo isto preocupava-me. Setivesse razão, isso significava que o seu domínio sobre as vidas das outras pessoas ultrapassavatudo quanto eu até agora havia imaginado. E no entanto, se havia alguém que podia desafiar odestino – apresentado sob a forma da minha mãe – esse alguém seria Tracey, não?

Mas os sinais eram maus. Agora, quando na aula lhe mandavam despir o casaco, já não serecusava, antes o fazia com enorme prazer, correndo o fecho devagar e de modo que os seusseios se apresentassem aos olhos de todos com o maior impacto possível, dificilmente contidospor um top que revelava abundância onde nós ainda só tínhamos mamilos e ossos. Toda a gente«sabia» que «tocar nas mamas da Tracey» custava meia libra. Eu não fazia ideia se era verdadeou não, mas todas nós, negras, brancas e mestiças, éramos unânimes em evitá-la. Éramos boasmeninas. Não permitíamos que nos tocassem nas mamas inexistentes, já não éramos asestouvadas que tínhamos sido no terceiro ano. Agora tínhamos «namorados», que outrasescolhiam por nós, em bilhetinhos passados de carteira em carteira, ou em longas e tortuosasconversas telefónicas («Queres saber quem gosta de ti e disse a toda a gente que gostava de ti?»),e uma vez nomeados oficialmente estes namorados passávamos a estar solenemente com eles norecreio, ao ténue sol de inverno, de mãos dadas – muitas vezes um bom palmo mais altas do queeles – até chegar o momento inevitável em que nos zangávamos (momento que também eradecidido pelas nossas amigas) e a ronda de bilhetinhos e telefonemas recomeçava. Não podia

participar neste processo quem não pertencesse a um grupinho de raparigas recetivas à ideia eTracey já não tinha nenhuma amiga, só eu, e mesmo assim só quando se dispunha a seramigável. Adquiriu o hábito de passar os intervalos das aulas no recinto vedado onde os rapazesjogavam futebol, por vezes insultando-os, indo ao ponto de pegar na bola e parar o jogo, masmais frequentemente portando-se como cúmplice deles, rindo-se com eles quando nosprovocavam, sem nunca se prender a nenhum em particular, o que não impedia que, naimaginação da escola, todos fizessem dela o que queriam. Se me via através das grades, a brincarcom Lily ou a saltar à corda com as outras raparigas negras e mestiças, virava-meostensivamente as costas e conversava com o seu círculo de rapazes amigos, cochichando comeles, rindo, como se também ela tivesse opinião sobre se sim ou não usávamos sutiã ouestávamos no período. Um dia em que eu ia a passar pelo recinto de futebol muito compenetrada,de mão dada com o meu novo «namorado» – Paul Barron, filho do polícia – ela interrompeu oque estava a fazer, agarrou-se às grades da vedação e sorriu-me. Não um sorriso simpático, masum sorriso profundamente sarcástico, como quem diz: então é isso que agora finges ser?

3

Quando finalmente conseguimos escapar ao kankurang e passar por todos os postos decontrolo espalhados pelo caminho, e depois de o nosso táxi ter conseguido furar pelas ruasengarrafadas e esburacadas da povoação para chegar ao cais do ferry, já era tarde, estávamos semtempo, descemos a prancha a correr, mas ficámos em terra com mais cem pessoas, pelo menos, aver a proa enorme e ferrugenta fazer-se à água. O rio dividia aquela faixa de terra ao meio a todoo comprimento, e o aeroporto ficava do outro lado. Olhei para os três níveis de carga caótica:mães com filhos de colo, crianças de escola, agricultores e operários, animais, automóveis,camionetas, sacos de cereais, bugigangas para turistas, tambores de óleo, malas, móveis. Ascrianças acenavam-me. Ninguém parecia saber ao certo se aquele era o último ferry. Esperámos.O tempo passou, o céu fez-se rosado. Pensei em Aimee, no aeroporto, a ter de falar debanalidades com o ministro da Educação – e em Judy, furiosa, agarrada ao telemóvel, a tentarvezes seguidas ligar para mim, sem resultado –, mas estes pensamentos não produziram o efeitodesejado. Sentia-me perfeitamente calma enquanto esperava, resignada, na companhia de todasestas outras pessoas que também pareciam não deixar transparecer nenhuma impaciência, oupelo menos não exprimiam impaciência de nenhum modo que eu identificasse. Não tinha rede,não podia fazer nada. Estava completamente incontactável, pela primeira vez em vários anos.Dava-me uma sensação inesperada mas não desagradável de quietude, de estar fora do tempo;não sei porquê, trazia-me à memória a infância. Esperei, encostada ao capô do carro. Outraspessoas sentavam-se na bagagem, trepavam para as tampas dos tambores de óleo. Um velhodescansava encostado a metade de uma enorme cabeceira de cama. Duas rapariguinhassentavam-se em cima de uma gaiola de frangos. Periodicamente, camiões articulados desciamlentamente o passadiço, obrigando toda a gente a engolir fumo negro de gasóleo, buzinando paraalertar quem pudesse estar sentado ou deitado no seu caminho, mas, como não tinham para ondeir nem o que fazer, depressa se juntavam a nós nesta espera que não parecia ter princípio nemfim: sempre estivéramos de olhos na outra margem à procura do ferry e sempre estaríamos. Aopôr do sol, o nosso condutor desistiu: inverteu a marcha do táxi, furou por entre a multidão edesapareceu. Para evitar que uma mulher determinada me vendesse um relógio, eu fui para abeira da água e sentei-me. Mas Lamin estava preocupado comigo, estava sempre preocupadocomigo, uma pessoa como eu devia estar na sala de espera, que custava duas daquelas notassebentas e amarrotadas que tinha enfiado no bolso, e por essa razão ele não me acompanharia,mas mesmo assim insistia para que eu fosse, sim, a sala de espera era sem dúvida o lugar parauma pessoa como eu.

«Mas porque é que não havemos de esperar aqui?» Ele fez-me um sorriso preocupado, o único que tinha.

«Para mim está bem, mas para ti?» Ainda estavam quarenta graus cá fora: a ideia de estar metida numa sala era nauseante. Em vez

disso obriguei-o a sentar-se ao meu lado, com os pés a balançar sobre a água, os calcanhares abater contra a camada de ostras mortas agarradas às escoras do cais. Todos os outros rapazes daaldeia tinham música nos telemóveis, precisamente para ouvir em alturas como esta, mas Lamin,um jovem introvertido, preferia o World Service, e foi assim que, cada um com o seu auricular,ouvimos uma peça sobre as propinas universitárias no Gana. Abaixo de nós, na praia, em tronconu, rapazes corpulentos transportavam aos ombros viajantes destemidos, atravessando aondulação dos baixios, até umas chatas de aspeto perigoso e cores garridas. Apontei para umamulher muito gorda com um bebé enfaixado às costas que era içada para os ombros de um deles.As coxas dela esmagavam a cabeça suada do rapaz.

«E se fizéssemos o mesmo? Em vinte minutos estávamos na outra margem.» «Para mim está bem», sussurrou Lamin. Era como se todas as conversas que tínhamos lhe

causassem alguma vergonha e não devessem ser ouvidas por mais ninguém – «para ti não.Devias ir para a sala de espera. Vamos ter de esperar muito tempo.»

Fiquei a observar o rapaz na praia, agora com água por altura das coxas, a arriar a passageirano seu lugar. Parecia transportar esta carga mais facilmente do que Lamin tinha uma simplesconversa comigo.

Quando começou a escurecer, Lamin embrenhou-se na multidão para fazer perguntas,

transformando-se num Lamin completamente diferente, não o emissor de monossílabossussurrados que era comigo, mas aquele que devia ser o verdadeiro Lamin, sério e respeitado portodos, divertido e loquaz, dando a impressão de conhecer toda a gente, saudado com afetofraternal e caloroso por gente jovem e bela aonde quer que fosse. «Gente da minha idade», comolhes chamava, o que podia significar que tinha crescido na aldeia com eles, ou que tinham sidocompanheiros de turma na escola primária, ou então que tinham sido do seu curso no instituto deformação de professores. Era um país pequeno: gente do tempo dele em todo o lado. A raparigaque nos vendeu cajus no mercado era do tempo dele, um segurança do aeroporto também. Àsvezes acontecia que um dos jovens polícias ou cadetes do exército que nos mandavam parar nospostos de controlo era da idade dele, e era uma sorte, a tensão dissipava-se, tirava as mãos daarma, debruçava-se na janela do passageiro e entregava-se descontraidamente a uma troca derecordações nostálgicas. As pessoas do tempo dele faziam-nos descontos, emitiam os bilhetesmais depressa, mandavam-nos avançar. E agora aqui estava mais uma, uma rapariga de peitovolumoso no escritório dos ferries, que usava uma confusa combinação de peças de roupa que eujá tinha visto em muitas raparigas locais e estava desejosa de mostrar a Aimee, com oconhecimento superior de quem tinha chegado uma semana antes. Calças de ganga justas, decintura baixa e aplicações, colete exíguo – a revelar os rebordos fluorescentes de um sutiã derenda – e hijab vermelho-escarlate, envolvendo-lhe pudicamente o rosto e preso com um alfinetecor-de-rosa. Vi Lamin e esta rapariga em longa conversa, numa das várias línguas locais que elefalava, e tentei imaginar como era que as respostas simples que procurávamos para as perguntas«Há mais algum ferry? Quando chega?» podiam transformar-se numa conversa tão absorventequanto aquela que os dois estavam a ter. Ouvi um som de buzina vindo do outro lado da baía e viuma forma grande e difusa sulcar a água na nossa direção. Corri para Lamin e agarrei-o pelocotovelo.

«É ele? Lamin, é ele?» A rapariga interrompeu a tagarelice, virou-se e olhou para mim. Percebeu que não era ninguém

da sua idade. Mirou a roupa utilitária e simples que eu tinha comprado para usar no seu país:calças de caqui cor de azeitona, camisa de linho engelhada e de manga comprida, sapatosConverse, velhos e gastos, de um antigo namorado, e um lenço preto com o qual me sentiaridícula e tímida e por isso me tinha deslizado da cabeça e agora usava ao pescoço.

«Aquilo é um cargueiro», disse ela, com mal disfarçada pena. «Perderam o último ferry.» Pagámos uma quantia que Lamin achou exorbitante por uma passagem de chata, apesar de

ferozes negociações, e no momento em que o meu gigante me pousou no meu lugar apareceu,não se sabe de onde, uma dúzia de outros rapazes que embarcaram também, sentaram-se emtodos os pedaços possíveis da estrutura da chata e transformaram-nos de táxi privado em naviopúbico. Mas na outra margem voltei a ter rede e ficámos a saber que Aimee tinha resolvidopernoitar num dos hotéis da praia e viajar para a aldeia de manhã. O gigante ficou encantado:pagámos-lhe outra vez e assim subsidiámos mais uma viagem a alguns rapazes locais,regressando pelo mesmo caminho. Chegados à praia, voltámos finalmente à cidade numminiautocarro em muito mau estado. A ideia de dois barcos e dois táxis no mesmo dia erainsuportável para Lamin, apesar de eu ter pagado a segunda viagem, apesar de o preço pedido –que o fez torcer-se todo – não chegar sequer para uma garrafa de água na Broadway. Sentou-seno tejadilho da viatura, com outro rapaz que não coube no interior, e enquanto os meuscompanheiros de viagem dormiam e rezavam e comiam e alimentavam os filhos e berravam aocondutor que os deixasse em sítios que me pareciam cruzamentos completamente desertos, ouvias batidas ritmadas de Lamin no tejadilho, por cima da minha cabeça, e durante duas horasaquela foi a única língua que percebi. Passava das dez horas quando chegámos à aldeia. Euestava hospedada em casa de uma família indígena, e nunca tinha estado fora da morança10 delesàquela hora, nem me tinha apercebido da escuridão total que a rodeava e que agora atravessavacom toda a confiança na companhia de Lamin, como se ela estivesse banhada de luz. Corri atrásdele pelos muitos trilhos estreitos, arenosos, cobertos de lixo que não via, passando pelas chapasde zinco que separavam os conjuntos de casas térreas feitas de adobes, até chegarmos à morançado Al Kalo11, que não era maior nem mais alta do que as outras, mas tinha um grande terreiro àfrente, no qual cem crianças, pelo menos, vestindo o uniforme da escola velha – aquela que nospropúnhamos substituir –, acocoradas debaixo da copa de uma única mangueira. Tinhamesperado seis horas para executarem a sua dança para uma mulher chamada Aimee: agora cabia aLamin a missão de explicar por que razão esta senhora não vinha hoje. Mas quando Lamin tinhaacabado de falar chegou o chefe, que quis ouvir outra vez a explicação toda. Eu fiquei à esperade que os dois homens discutissem o assunto, com animados movimentos das mãos, enquanto ascrianças iam ficando cada vez mais aborrecidas e irrequietas, até que as mulheres puseram delado os tambores que não iam tocar agora e permitiram que as crianças se levantassem edespacharam-nas em pequenos grupos a correr para as respetivas casas. Eu levantei o braço como telemóvel. Derramou uma luz artificial sobre o Al Kalo. Não era, pensei para comigo, o grandechefe africano que Aimee imaginava. Baixo, macilento, enrugado e desdentado, com umacamisola do Man U esfiapada, calças de treino e chinelos de plástico Nike presos por fitaisoladora. E que surpresa ia ter o Al Kalo quando soubesse a importância que tinha assumidopara todos nós, em Nova Iorque! Tudo havia começado com um email de Miriam – assunto:Protocolo – que enumerava aquilo que, no seu entender, qualquer pessoa que visitasse a aldeiadevia oferecer ao seu Al Kalo à chegada, em sinal de respeito. Correndo os olhos pela lista, Judy

soltou o seu balido de foca e espetou-me o telemóvel na cara: «Isto é alguma brincadeira?» Li a lista: Óculos graduados Paracetamol Aspirina Pilhas Gel de banho Pasta de dentes Creme antissético «Não me parece... A Miriam não brinca.» Judy sorriu enternecidamente para o ecrã: «Bem, acho que se consegue arranjar.» Não havia muitas coisas que encantassem Judy, mas esta encantou. Encantou Aimee ainda

mais, e durante várias semanas, sempre que alguma pessoa de boa vontade e meios de fortunanos visitava, na casa de Hudson Valley ou em Washington Square, Aimee repetia a lista em tomde fingida solenidade e no fim perguntava a todos os presentes se conseguiam imaginar umacoisa daquelas e todos confessavam que tinham dificuldade em imaginar e pareciam muitocomovidos e confortados por esta dificuldade de imaginar, que interpretavam como um sinal decandura, tanto da parte do Al Kalo como delas próprias.

«Mas é tão arriscado fazer essa transposição», comentou um jovem de Silicon Valley numadestas noites – estava inclinado sobre a mesa de jantar para um centro de mesa feito de velas e acara parecia iluminada de baixo pela sua própria observação –, «quer dizer, entre uma realidade ea outra. É como transpor a matriz.» Todas as pessoas à mesa acenaram com a cabeça econcordaram que era, e mais tarde apanhei Aimee a acrescentar tranquilamente esta tirada debanquete às recitações que fazia da lista do Al Kalo, que entretanto ficara famosa, como se fosseda sua autoria.

«Que está ele a dizer?», sussurrei ao ouvido de Lamin. Estava cansada de esperar. Baixei otelemóvel.

Lamin pousou suavemente a mão no ombro do chefe, mas o ancião continuou a fazer o seudiscurso agitado e interminável, agora dirigido à escuridão.

«O Al Kalo está a dizer», sussurrou Lamin de volta, «que aqui as coisas são muito difíceis.» Na manhã seguinte fui com Lamin à escola e carreguei o telemóvel no gabinete do diretor, na

única tomada que existia na aldeia, alimentada por um gerador de energia solar pago por umaorganização humanitária italiana alguns anos antes. Por volta do meio-dia a rede reapareceumisteriosamente. Li as cinquenta mensagens que me esperavam e concluí que tinha mais doisdias sozinha aqui antes de ter de voltar ao ferry para buscar Aimee: estava a «descansar» numhotel da cidade. A princípio fiquei entusiasmada com esta solidão inesperada, e dei comigo afazer toda a espécie de planos. Disse a Lamin que queria ir à famosa morança do escravo rebelde,a duas horas de distância, e queria ver finalmente, com os meus próprios olhos, a praia de onde onavio havia partido, transportando a sua carga de seres humanos, com destino à ilha da minhamãe, e daí para as Américas e a Grã-Bretanha, transportando o açúcar e o algodão, antes deencetar a viagem de regresso – um triângulo que havia produzido, entre as suas inúmeras

consequências, a minha existência. E no entanto, duas semanas antes, na presença da minha mãee de Miriam, eu tinha chamado a tudo isto, em tom de desprezo, «turismo da diáspora». Agoraestava a dizer a Lamin que ia sozinha num miniautocarro visitar os antigos fortes de escravosonde os meus antepassados tinham estado encarcerados. Lamin sorria e parecia estar de acordo,mas na prática interpunha-se entre mim e todos os planos deste tipo. Entre mim e todas astentativas de interação, pessoais e económicas, entre mim e a aldeia incompreensível, entre mime os velhos e entre mim e as crianças, respondendo a todas as perguntas e pedidos com o seusorriso preocupado e a sua explicação preferida, e sussurrada: «Aqui as coisas são difíceis.» Nãoqueria que eu entrasse no mato, que apanhasse os meus cajus, que ajudasse a cozinhar asrefeições ou lavasse a minha roupa. Percebi que ele me via como uma espécie de criança, alguémque devia ser tratado com todos os cuidados e a quem a realidade devia ser apresentada empequenas doses. Depois percebi que toda a aldeia me via dessa maneira. Enquanto as avós seacocoravam para comer da tigela comunitária, assentes nas suas ancas possantes, juntando comos dedos arroz e pedaços de peixe ou de beringela, para mim iam buscar uma cadeira de plástico,um garfo e uma faca, porque partiam do princípio, e bem, que não ia ter forças para me aguentarnaquela posição. Enquanto eu despejava um litro de água pela latrina para enxotar uma barataque me afligia, nenhuma das doze raparigas com quem vivia me dizia exatamente que distânciatinha percorrido naquele dia para trazer aquele litro de água. Quando, sem ninguém saber, fuisozinha ao mercado comprar um penteador vermelho e roxo para a minha mãe, Lamin fez o seusorriso preocupado, mas poupou-me ao conhecimento da percentagem do seu vencimento anualque eu tinha acabado de gastar num simples pedaço de pano.

Ao fim daquela primeira semana já tinha percebido que os preparativos para o meu jantarcomeçavam momentos depois de me terem servido o pequeno-almoço. Mas quando tentavaaproximar-me do canto do pátio onde todas aquelas mulheres e raparigas se acocoravam napoeira a descascar e cortar e esmagar e salgar, riam-se de mim e mandavam-me de volta ao meuentretém, sentar-me numa cadeira de plástico no meu quarto escuro a ler os jornais americanosque trouxera comigo – entretanto amarrotados e comicamente irrelevantes – pelo que nuncacheguei a descobrir como, exatamente, sem forno nem eletricidade preparavam os cozinhadosque eu não queria, ou as grandes tigelas de arroz mais apetitoso que faziam para elas. Cozinharnão era para mim, nem lavar roupa, nem ir à água ou arrancar cebolas ou mesmo dar de comer àscabras e às galinhas. Era, no mais estrito sentido do termo, uma inútil. Até os bebés meentregavam com ironia, e riam-se quando me viam pegar num. Sim, havia uma preocupaçãoconstante de me protegerem da realidade. Já tinham conhecido pessoas como eu. Sabiam que nãoconseguimos absorver muita realidade.

Na madrugada do dia em que tínhamos de ir buscar Aimee fui acordada muito cedo, pelo

chamamento à oração e pelos galos histéricos, e vendo que ainda não estava insuportavelmentequente vesti-me às escuras e saí da morança, sozinha, sem ninguém do pequeno exército demulheres e crianças com quem vivia – coisa que Lamin tinha insistido comigo para nunca fazer –e fui à procura de Lamin. Queria dizer-lhe que ia hoje ao antigo forte dos escravos, quer elegostasse quer não. À medida que se fazia dia, fui sendo seguida por muitas crianças curiosas,descalças – «Bom dia, como está a ser o teu dia?» –, como sombras, enquanto parava aqui e alipara dizer o nome de Lamin às dúzias de mulheres com quem me cruzava, já a caminho dotrabalho na fazenda comunitária. Acenavam e apontavam-me uma direção, pelo meio do mato,

por este caminho e por aquele, do outro lado da mesquita de betão verde-claro meio comida decada lado por montes alaranjados de térmitas com mais de três metros de altura, passando todosaqueles pátios poeirentos que eram varridos, àquela hora, por taciturnas raparigas adolescentes,parcialmente vestidas, que se apoiavam nas vassouras para me verem passar. Para onde quer queolhasse havia mulheres a trabalhar: tratando dos filhos, cavando, carregando, amamentando,limpando, arrastando, esfregando, construindo, reparando. Só vi um homem quando finalmenteencontrei a morança de Lamin, nos arredores da aldeia, antes de chegar aos campos de cultivo.Era muito escura e húmida, mesmo pelos padrões locais: sem porta, só com um lençol na cama,nenhum cadeirão de madeira, apenas uma cadeira de plástico, nada a cobrir o chão, só terra, e umbalde de folha com água, em que devia ter acabado de se lavar, porque estava de joelhos ao pédele, escorrendo água, em calções de futebol. Na parede de adobe atrás dele descortinei oemblema do Man United toscamente desenhado, esborratado de tinta vermelha. Em tronco nu,esguio, todo ele músculo, pele incandescente de juventude – perfeito. Como eu parecia pálida,quase incolor, ao pé dele! Fez-me pensar em Tracey, nas muitas vezes em que, quando éramoscrianças, ela tinha posto o braço ao lado do meu, para confirmar mais uma vez que continuava aser um pouco mais clara que eu – como orgulhosamente afirmava ser – não fosse o verão ou oinverno ter alterado este estado de coisas desde a última verificação. Eu não me atrevia a contar-lhe que me estendia na varanda sempre que o dia estava quente, tentando conseguir exatamente aqualidade que ela parecia temer: mais cor, mais escura, para todas as sardas se juntarem ecoalescerem e me deixarem do mesmo tom castanho-escuro da minha mãe. Mas Lamin, comoquase todos os habitantes da aldeia, era tantas vezes mais escuro em comparação comigo quantoa minha mãe, e olhando agora para ele achava que o contraste entre a sua beleza e o ambienteque o rodeava era, entre muitas outras coisas, surreal. Virou-se e viu-me de pé sobranceira a ele.Encheu-se-lhe o rosto de dor – eu tinha quebrado algum acordo implícito. Pediu desculpa.Escondeu-se atrás de uma cortina de trapos que teoricamente separava as duas partes do espaçosombrio. Mas eu continuava a vê-lo, vestindo a sua Calvin Klein imaculadamente branca, commonograma, as calças de sarja brancas e sandálias brancas, tudo de uma brancura mantida porum método que eu, todos os dias coberta de pó vermelho, não conseguia imaginar. Os seus pais etios usavam quase todos jilaba, os seus muitos primos e irmãos pequenos corriam por todo o ladocom as omnipresentes e andrajosas camisolas de futebol, calças de ganga, descalços, mas Laminenvergava as suas indumentárias ocidentais brancas, quase sempre que o via, e um granderelógio de pulso prateado, incrustado de pedras e com os ponteiros permanentemente parados nas10:04. No domingo, quando toda a aldeia se juntou para uma reunião, estava de fato bege comcabeção de bispo e sentou-se ao meu lado sussurrando-me ao ouvido como um delegado à ONU,traduzindo apenas o que queria traduzir daquilo que estava a ser discutido. Todos os jovensprofessores da aldeia estavam assim vestidos, de tradicionais cabeções de bispo ou de calças ecamisas bem passadas, com grandes relógios e esguias carteiras pretas, telemóveis com tampa eandroides de grandes ecrãs sempre na mão, mesmo que não funcionassem. Era uma atitude queeu recordava do meu antigo bairro, uma forma de representação, que na aldeia significava vestir-se para representar um certo papel. Sou um dos rapazes modernos e sérios. Sou o futuro do meupaís. Senti-me absurda ao pé deles. Em comparação com este sentimento de destino pessoal, eracomo se estivesse neste mundo por mero acaso, nunca tivesse pensado minimamente naquilo querepresentava, com as minhas calças de caqui enrugadas e os meus Converse encardidos, sempre aarrastar comigo uma mochila amachucada.

Lamin voltou a ajoelhar-se e retomou em voz baixa a sua primeira oração do dia – também

isso eu tinha interrompido. Ouvindo o seu árabe sussurrado, perguntei-me que forma tomariaexatamente aquela oração. Esperei. Olhei em volta a pobreza que Aimee tinha a esperança de«reduzir». Não via mais nada, e as perguntas do tipo das que as crianças fazem eram as únicasque me ocorriam. Que é isto? Que está a acontecer? A mesma atitude havia-me levado, logo nodia em que cheguei, ao gabinete do diretor da escola, onde me sentei a transpirar debaixo dotelhado de chapa ondulada, tentando freneticamente apanhar rede, se bem que pudesse,evidentemente, ter pesquisado no Google o que queria saber em Nova Iorque, muito maisdepressa, com infinitamente maior facilidade, em qualquer momento dos seis meses anteriores.Aqui, o processo era laborioso. Uma página descarregava até meio, depois parava, a energia dopainel solar subia e descia e às vezes ia abaixo por completo. Levou mais de uma hora. E quandoos dois montantes apareceram nas duas janelas adjacentes limitei-me a olhar fixamente para elasdurante muito tempo. Na comparação, como se via, Aimee ia ligeiramente à frente. E assim, semmais nem menos, o PIB de um país inteiro cabia numa única pessoa, como uma boneca russadentro de outra.

10 Conjunto murado de habitações dos membros de uma família. (N. do T.)

11 Chefe da aldeia. (N. do T.)

4

No último junho de escola primária o pai de Tracey foi libertado e encontrámo-nos pelaprimeira vez. Estava no relvado comunitário, a olhar para a varanda onde nós estávamos,sorridente. Delicado, moderno, carregado de uma espécie de alegria cinética, mas ao mesmotempo clássico, elegante, Bojangles em pessoa. Estava na posição número cinco, e vestia umcolete almofadado azul-elétrico com um dragão chinês nas costas e umas calças de gangabrancas e justas. Um bigode farto e bem aparado, e um penteado afro à moda antiga, sem zonasdesbastadas ou linhas abertas à navalha, nem tufo no alto da cabeça. A felicidade de Tracey eraintensa, debruçou-se do parapeito, como se quisesse puxar o pai para cima, pedindo-lhe aosberros que subisse, vem cá acima, papá, vem, mas ele piscou-nos o olho e disse: «Tenho umaideia melhor, vamos até à rua principal.» Descemos as duas a correr e demos-lhe a mão, uma decada lado.

A primeira coisa em que reparei foi que tinha corpo de dançarino, e caminhava como umdançarino, ritmadamente, com força mas também com leveza, pelo que não nos limitámos apercorrer os três a rua principal, flanámos. Toda a gente olhava para nós, pavoneávamo-nos aosol, e várias pessoas interrompiam o que estavam a fazer para nos saudarem – para saudaremLouie – do outro lado da rua, de uma janela modesta por cima de um salão de cabeleireiro, dasentradas dos pubs. Quando nos aproximávamos da loja de apostas, um velho cavalheirocaribenho, de boné de fazenda e colete de lã grossa apesar do calor, parou diante de nós,barrando-nos a passagem, e perguntou: «São tuas filhas?» Louie ergueu-nos os braços como sefôssemos dois pugilistas. «Não», respondeu, largando a minha mão, «só esta.» Tracey iluminou-se com a glória daquele momento. «Ouvi dizer que só estiveste dentro treze meses», disse ovelho, com uma gargalhada curta. «Que sortudo, Louie.» Espetou-lhe um dedo na cintura bemdesenhada, estava cingida por um estreito cinto dourado, como um super-herói. Mas Louiesentiu-se ofendido, deu um passo atrás para se afastar do homem – um pronunciado pliédeslizante – e sorveu ruidosamente o ar entre os dentes. Corrigiu a informação: nem sete mesescumpriu.

O velho puxou de um jornal que trazia debaixo do braço, desenrolou-o e mostrou umadeterminada página a Louie, que a leu antes de se curvar para no-la mostrar. Mandou-nos fecharos olhos e espetar um dedo onde nos apetecesse, e quando abrimos os olhos cada uma de nóstinha um cavalo debaixo do dedo, ainda me lembro do nome do meu, Theory Test, porquepassados cinco minutos Louie saiu a correr pelas portas da loja de apostas, pegou em mim eatirou-me ao ar. Cento e cinquenta libras ganhas com uma aposta de cinco. Levou-nos aoWoolworths e mandou-nos escolher o que quiséssemos. Deixei Tracey nos vídeos para a nossaidade – comédias suburbanas, filmes de ação, aventuras espaciais – e continuei, até ao «cesto das

pechinchas», escolhidas para quem tinha pouco dinheiro ou poucas alternativas. Aí havia sempreuma grande quantidade de musicais, ninguém os queria, nem mesmo as senhoras de idade, e euestava a revirar o cesto todo, com grande felicidade, quando ouvi Tracey, que não tinha arredadopé da secção dos vídeos modernos, perguntar a Louie: «Quantos é que podemos levar?» Aresposta foi quatro, mas tínhamos de nos despachar, estava com fome. Num pânico feliz, pegueiem quatro musicais:

Ali Baba Goes to Town Melodia da Broadway de 1936 Ritmo Louco (Swing Time) Dançando nas Nuvens

A única escolha de Tracey de que me lembro é Regresso ao Futuro, mais caro do que os meus

quatro juntos. Apertou-o contra o peito e só o largou por um momento na caixa e voltou a agarrá-lo, como um animal abocanha a comida.

Quando chegámos ao restaurante sentámo-nos na melhor mesa, mesmo junto à janela. Louieensinou-nos uma forma engraçada de comer um Big Mac, desmontando as camadas e pondobatatas fritas por cima e por baixo de cada hamburger e depois voltando a empilhar tudo.

«Então vens viver connosco?», perguntou Tracey. «Hmmm, isso não sei. O que é que ela diz?» Tracey espetou o nariz de leitão no ar: «Não quero saber o que ela diz.» Tinha ambas as mãozinhas cerradas em punhos. «Não desrespeites a tua mamã. A tua mamã também tem os seus problemas.» Foi ao balcão buscar batidos. Quando voltou parecia nervoso, e sem introduzir formalmente o

tema pôs-se a contar-nos coisas da prisão, como se descobria, quando se estava dentro, queaquilo não era como o bairro, não, de maneira nenhuma, era muito diferente, porque quando seestava dentro toda a gente compreendia que o melhor era cada um dar-se com os da sua laia, eassim era, «cada qual com seu igual», não havia misturas, não era como nos apartamentos docomplexo, e não eram os guardas nem ninguém que diziam que devia ser assim, era assim epronto, as tribos sempre juntas, e até vai pelo tom da pele, explicou, arregaçando a manga eapontando para o braço, portanto todos os que são escuros como eu ficam deste lado, uns com osoutros, sempre – traçou uma linha no tampo de fórmica da mesa –, e os mestiços como tu ficamdaquele lado, e os paquis noutro sítio, e os indianos noutro. Os brancos também estão separados:irlandeses, escoceses, ingleses. E dos ingleses uns são do BNP12 e outros são fixes. A questão éque cada um ande com os seus, o que é natural. Faz-nos pensar.

Sentámo-nos a sorver os nossos batidos, e a pensar. E aprendemos toda a espécie de coisas, continuou, aprendemos quem é o verdadeiro Deus do

homem negro! Não esse tal Jesus de olhos azuis e cabelos compridos – não! E agora pergunto:como é que nunca ouvi sequer falar dele nem do nome dele antes de ter estado dentro? Pensemnisso. Aprende-se lá muita coisa que não nos ensinam na escola, porque estas pessoas não nosdizem nada, nada sobre os reis africanos, nada sobre as rainhas egípcias, nada sobre Maomé,escondem tudo, escondem toda a nossa história para nos sentirmos como se não fôssemos nada,como se fôssemos a base da pirâmide, o objetivo é esse, mas a verdade é que fomos nós queconstruímos as malditas Pirâmides! Oh, são diabólicos, mas um dia, um dia, se Deus quiser, estedia branco vai chegar ao fim. Louie sentou Tracey no colo e fez-lhe cócegas como se ela fosse

muito mais pequena, e depois fê-la mexer os braços como se fosse uma marioneta, pelo queparecia estar a dançar ao som da música que saía dos altifalantes escondidos atrás da câmara desegurança. Continuas a dançar? Perguntava por perguntar, percebi que não estava muitointeressado na resposta, mas Tracey aproveitava sempre todas as oportunidades, por pequenasque fossem, e agora estava a contar ao pai, numa grande e feliz torrente de pormenores, asmedalhas de dança que tinha conquistado naquele ano, e no ano anterior, e o que Miss Isabeltinha dito sobre o seu trabalho em pontas, o que toda a gente dizia sobre o seu talento, e sobre asua próxima audição na escola de artes de palco, tema sobre o qual eu já tinha mais do que aminha conta. A minha mãe não me deixava ir para a escola de artes de palco, nem que ganhasseuma bolsa completa, daquelas em que Tracey depositava grandes esperanças. Tínhamos grandesdiscussões sobre o assunto, a minha mãe e eu, desde que ouvira dizer que Tracey ia poder prestarprovas. Pensar que tinha de ir para uma escola normal enquanto Tracey passava os dias adançar!

Agora repara, disse Louie, cansando-se de repente da conversa da filha, comigo não foi precisaa escola de dança, aliás eu dominava a pista de dança! Esta menina herdou tudo do papá.Acredita: sei fazer todos os passos! Pergunta à tua mãe! Até ganhava algum dinheiro a dançar,naquele tempo. Parece que tens dúvidas!

Para provar o que dizia, para dissipar as nossas dúvidas, deslizou do banco alto e levantou aperna, abanou a cabeça, mudou o alinhamento dos ombros, rodopiou, parou de repente eterminou em bicos de pés. Umas raparigas que estavam sentadas num reservado em frente de nósassobiaram e aplaudiram, e ao vê-lo achei que finalmente compreendia o que Tracey quiseradizer ao englobar o pai e Michael Jackson na mesma realidade, e achei que não era propriamenteum mentiroso, ou pelo menos que dentro da mentira havia uma verdade mais profunda. Foram osdois bafejados pela mesma herança. E se por acaso a dança de Louie não era tão famosa quanto ade Michael, bem, para Tracey isso era apenas uma espécie de pormenor técnico – um acaso dotempo e do lugar – e agora, que penso nele a dançar, que passo tudo a escrito, convenço-me deque ela tinha toda a razão.

No fim resolvemos subir a rua com os nossos enormes batidos, voltando a parar para falar aalguns amigos de Louie – ou talvez fossem simplesmente pessoas que sabiam dele o suficientepara o temerem – incluindo um jovem operário irlandês pendurado por uma mão do andaime dafachada do Tricycle Theatre, de cara crestada pelo muito trabalho ao sol. Esticou-se para apertara mão de Louie: «Vejam só, se não é o Playboy das Índias Ocidentais!» Estava a reconstruir otelhado do Tricycle, e Louie ficou muito impressionado, era a primeira vez que ouvia falar doterrível incêndio acontecido alguns meses antes. Perguntou ao rapaz quanto ia custar areconstrução, quanto era que ele e os outros homens de Moran estavam a ganhar à hora, quecimento estavam a usar e quem eram os fornecedores, e eu olhei para Tracey que se enchia deorgulho com este vislumbre de outro Louie possível: jovem empresário respeitável, rápido nascontas, bom com o pessoal, que levava a filha a visitar o seu local de trabalho, segurando-lhe amão com tanta firmeza. O meu desejo era que fosse sempre assim para ela.

Não me passou pela cabeça que o nosso pequeno passeio tivesse consequências, mas mesmo

antes de ter regressado a Willesden Lane já alguém tinha dito à minha mãe onde eu tinha estadoe com quem. Agarrou-me logo que transpus a porta e com uma palmada tirou-me o batido damão, foi esparramar-se na parede oposta, muito rosado e espesso – inesperadamente dramático –,

e enquanto habitámos aquela casa coexistimos com uma ténue nódoa de morango. Desatou aosberros. O que é que eu pensava que estava a fazer? Com quem pensava que tinha estado? Ignoreitodas as perguntas retóricas dela e voltei a perguntar por que razão não podia ir a uma audiçãocomo Tracey. «Só uma tola renuncia a uma educação superior», disse a minha mãe, e eu disse:«Pois então talvez eu seja tola.» Tentei passar por ela, meter-me no quarto, com o meucarregamento de vídeos atrás das costas, mas ela barrou-me o caminho e então eu disse-lhe quenão era ela, que não queria nunca ser ela, que não queria saber dos livros dela, nem das roupas,nem das ideias, nem de nada, queria dançar e viver a minha vida. O meu pai surgiu de onde querque estivesse escondido. Acenando-lhe, tentei argumentar que, se dependesse do meu pai, seriaautorizada a ir prestar provas, porque o meu pai era um homem que acreditava em mim, como opai de Tracey acreditava nela. A minha mãe suspirou. «Claro que ele te autorizava», disse. «Nãoestá preocupado – sabe que nunca serás admitida.»

«Pelo amor de Deus», disse o meu pai entre dentes, mas não foi capaz de olhar para mim e eupercebi com uma punhalada de dor que o que a minha mãe estava a dizer devia ser verdade.

«A única conta que conta neste mundo», explicou ela, «é aquilo que está escrito. Mas o queacontece com isso» – apontou para o meu corpo – «nunca contará, pelo menos nesta cultura, paraesta gente, e por isso limitas-te a jogar o jogo deles de acordo com as regras deles, e se entraresnesse jogo, garanto-te, acabas sendo uma sombra de ti própria. Tens uma carrada de filhos,nunca abandonas estas ruas, e tornas-te mais uma dessas mulheres que é como se nãoexistissem.»

«Tu é que não existes», disse eu. Agarrei-me a esta tirada como uma criança se agarra à primeira coisa que tem à mão. O efeito

que produziu na minha mãe ultrapassou tudo aquilo que eu podia esperar. A boca murchou-lhe, etoda a sua segurança e beleza se esvaíram dela. Começou a chorar. Estávamos à entrada do meuquarto, a minha mãe de cabeça caída. O meu pai tinha-se retirado, ficámos só as duas. Passou umminuto até recuperar a voz. Disse-me – num sussurro hostil – que não desse nem mais um passo.Mas ainda não tinha acabado de o dizer quando se apercebeu do erro que havia cometido: erauma admissão, aquele era o momento exato da minha vida em que podia finalmente dar umpasso para me afastar dela, muitos passos, tinha quase doze anos, já estava da altura dela – podiausar a dança para sair da sua vida – e por isso era inevitável uma alteração da sua autoridade,estava a acontecer naquele preciso momento. Não disse nada, contornei-a, entrei no quarto e baticom a porta.

12 British National Party – Partido Nacionalista Britânico. (N. do T.)

5

Ali Baba Goes to Town é um filme estranho. É uma variação de A Connecticut Yankee in KingArthur’s Court13 em que Eddie Cantor faz o papel de Al Babson, um idiota chapado que dáconsigo a fazer de figurante num filme tipo 1001 Noites, em Hollywood. Adormece durante asfilmagens e sonha que está na Arábia do século IX. Havia uma cena que me tinha impressionadomuito, quis mostrá-la a Tracey, mas tinha-se tornado difícil encontrá-la, não telefonava, e quandoeu tentava ligar-lhe para casa havia sempre uma pausa na linha antes de a mãe me dizer que tinhasaído. Sabia que tinha razões legítimas, estava a preparar-se afanosamente para as provas naescola de artes de palco – no que o Sr. Booth acedera amavelmente a ajudá-la –, ensaiavapraticamente todas as tardes da semana no salão da igreja. Mas eu não estava preparada para adeixar seguir a sua nova vida. Fiz muitas tentativas de lhe montar emboscadas: as portas daigreja estavam abertas, o sol entrava pelos vitrais, o Sr. Booth acompanhava ao piano, e se elame apanhava a espiá-la acenava-me – o cumprimento distraído e adulto de uma mulher ocupada– mas nem uma única vez veio cá fora falar comigo. Por qualquer lógica obscura de pré-adolescente, decidi que a culpa era do meu corpo. Era ainda uma criança escanzelada, de peitoliso, que espreitava à porta, ao passo que Tracey, dançando em plena luz, já era umamulherzinha. Como podia interessar-se, por pouco que fosse, pelas coisas que ainda meinteressavam a mim?

«Ná, não conheço. Diz lá o nome outra vez!» «Ainda agora te disse. Ali Baba Goes to Town.» Tinha-me enchido de coragem e entrado na igreja no fim de um dos ensaios dela. Estava

sentada numa cadeira de plástico a descalçar os sapatos de sapateado, enquanto o Sr. Boothcontinuava no seu canto, às voltas com o número «Can’t Help Loving That Man of Mine»14 –acelerando-o e desacelerando-o, tocando-o ora como jazz, ora como ragtime.

«Estou ocupada.» «Podias vir agora.» «Agora estou ocupada.» O Sr. Booth meteu as partituras na pasta e passou por nós. Tracey empinou o nariz, farejando

elogio. «Foi um espanto», disse ele. «Foi bom, a sério?» «Um espanto. É um sonho ver-te dançar.» Sorriu e deu-lhe uma palmadinha no ombro, e um rubor de felicidade inundou a cara de

Tracey. Era o tipo de elogio que eu recebia diariamente do meu pai, a propósito de tudo, mas nocaso dela devia ser muito raro, porque ouvi-lo pareceu mudar tudo, incluindo aquilo que sentiapor mim, naquele momento. Enquanto o Sr. Booth saía lentamente da igreja, sorriu, atirou o sacode dança por cima do ombro e disse: «Vamos então.»

A cena aparece no princípio do filme. Um grupo de homens sentados no chão de areia,

parecem apáticos, deprimidos. Estes, diz o sultão a Al, são os músicos, os africanos, queninguém percebe, porque falam uma língua desconhecida. Mas Al quer falar com eles eexperimenta tudo: inglês, francês, espanhol, italiano, até iídiche. Nada feito. Até que tem umaideia. Hai di hai di hai di hai! O grito de Cab Calloway, e os africanos, reconhecendo-o,levantam-se de um salto e gritam a resposta: Ho di ho di ho di ho! Entusiasmado, Cantor começaa enegrecer-se, ali mesmo, pintando a cara com um pedaço de cortiça queimada, só deixandoaqueles olhos irrequietos, a boca elástica.

«Mas o que é isto? Eu não quero ver isto!» «Não é esta parte. Espera um bocadinho, Trace, por favor. Espera.» Tirei-lhe o comando da mão e pedi-lhe que se sentasse no sofá. Agora Al estava a cantar para

os africanos, uma letra que parecia mudar o próprio tempo, avançando muito, até um momentoem que aqueles africanos deixariam de ser como eram agora, um tempo dali a mil anos em queseriam eles a marcar o ritmo a que o mundo quer dançar, num lugar chamado Harlem. Aoouvirem esta notícia, os músicos, encantados, punham-se de pé e começavam a dançar e a cantar,numa estrado erguido na praça da cidade. A sultana e seus conselheiros olham de uma varandapara baixo, os árabes olham da rua para cima. Os árabes são árabes de Hollywood, brancos, comvestes de Aladino. Os africanos são negros americanos vestidos a rigor, de tanga e penas, cocaresfantasiosos na cabeça – e tocam instrumentos musicais primitivos, numa paródia às suas futurasencarnações no Cotton Club: trombones feitos de osso verdadeiro, clarinetes de canas sem miolo,coisas assim. E Cantor, fiel às origens do seu nome, é o maestro, com um apito ao pescoço, quetoca para pôr termo a um solo ou para mandar retirar do palco um executante. A canção chegavaà parte do coro, ele dizia-lhes que o swing tinha vindo para ficar, que era inevitável, e portantotinham de escolher um parceiro – e dançar. Então Cantor tocava o apito e o momentomaravilhoso acontecia. Era uma rapariga – uma rapariga que chegava. Pedi a Tracey que seaproximasse o mais possível do ecrã, não queria que restasse a mínima dúvida. Olhei-a desoslaio: vi-a abrir a boca de surpresa, como a minha se havia aberto na primeira vez que viaquilo, e então tive a certeza de que ela via o mesmo que eu. Oh, o nariz era diferente – o destarapariga era normal e achatado – e não havia nos seus olhos nenhum sinal da crueldadecaracterística de Tracey. Mas a cara em forma de coração, as adoráveis maçãs do rosto salientes,o corpo compacto mas os membros compridos, tudo isto era Tracey. A semelhança física eramuito forte, mas esta não dançava como Tracey. Esbracejava, balançava as pernas para trás epara a frente, era uma dançarina de sapateado, não uma perfecionista obcecada. E tinha graça:andando em pontas ou parando por um segundo numa absurda atitude cómica, numa perna só,braços no ar, como o ornamento do capô de um automóvel caro. Vestia como as outras – saia deráfia, penas – mas nada conseguia diminuí-la.

Para o grande final a rapariga voltava a entrar em cena e juntava-se a todos aqueles americanosvestidos de africanos, e ao próprio Cantor, e todos se imobilizavam numa fila e faziam uma véniade quarenta e cinco graus com o chão. Era uma antecipação do futuro: um ano depois estávamos

todas a experimentar aquilo no recreio, depois de termos visto Michael Jackson fazer exatamenteo mesmo num vídeo musical. E durante semanas depois da passagem daquele vídeo na televisãoTracey e eu e muitas outras miúdas tentámos no recreio imitar aquele passo o melhor quesabíamos, mas era impossível, ninguém conseguia, caíamos todas de cara no chão. Na altura eunão sabia como aquilo se fazia. Agora sei. No vídeo, Michael usava arames e, alguns anos depois– quando quis produzir aquele efeito ao vivo em palco – usou um par de sapatos«antigravidade», com uma ranhura no tacão que encaixava num espigão que havia no palco, e elefoi um dos inventores, a patente está em seu nome.

Os africanos do Ali Baba pregavam os próprios sapatos ao chão.

13 Livro de Mark Twain, publicado em 1889. (N. do T.)

14 Canção do musical O Barco das Ilusões. (N. do T.)

6

À porta do hotel de Aimee entrámos numa série de SUV. O circo completo participava naquelaprimeira viagem: os filhos de Aimee estavam connosco, e a ama, Estelle, e Judy, evidentemente,mais as três outras assistentes pessoais, uma rapariga das relações públicas, Granger, umarquiteto francês que eu nunca tinha visto, uma mulher deslumbrada do DfID15, um jornalista eum fotógrafo da Rolling Stone, e um tipo chamado Fernando Carrapichano, nosso diretor deprojetos. Observei os transpirados bagageiros nos seus uniformes de linho branco quecarregavam as malas nos porta-bagagens e ajudavam toda a gente a instalar-se, e perguntei-me deque aldeia seriam. Estava à espera de ir no carro de Aimee para lhe relatar – se é que isso serviade alguma coisa – o reconhecimento que fizera durante a semana, mas quando Aimee viu Laminarregalou os olhos e a primeira coisa que lhe disse depois de «Olá» foi «Tu tens de vir comigo.»Eu fui mandada para o segundo carro, com Carrapichano. Ele e eu íamos passar o tempo juntos,disse-nos, «a limar as arestas».

O regresso à aldeia foi surpreendente. Todas as dificuldades que me habituara a esperardaquela viagem desapareceram, como quando num sonho o sonhador está lúcido e capaz demanipular tudo o que o rodeia. Nem postos de controlo nem estradas esburacadas que nosobrigassem a parar, e em vez do calor asfixiante, enervante, uma temperatura ambiente de vinte eum graus perfeitamente regulada pelo ar condicionado e uma garrafa de água gelada na mão. Anossa comitiva, que incluía dois jipes cheios de altos funcionários do governo e uma escolta demotos da polícia, percorreu a grande velocidade ruas que umas vezes davam a impressão de tersido artificialmente despovoadas e outras vezes artificialmente povoadas – orladas de criançasque agitavam bandeirinhas, como uma encenação – e seguiu um itinerário estranhamente longo,serpenteando pela zona turística eletrificada e depois por uma série de enclaves suburbanos decuja existência não me tinha apercebido, onde casas enormes e inacabadas, com a ferrugem daverguinha de ferro à vista, tentavam romper por trás das suas muralhas de proteção. Sob ainfluência deste estado de irrealidade, via versões da cara da minha mãe por todo o lado, emrapariguinhas que corriam pela rua abaixo, em velhas que vendiam peixe nos mercados, e umavez num rapaz pendurado do lado de fora de um miniautocarro. Quando chegámos ao ferryíamos só nós e os nossos carros. Perguntei-me que pensaria Lamin daquilo.

Quanto a Carrapichano, não o conhecia muito bem e a única vez que tínhamos falado fizera

figura de parva. Ia no avião para o Togo, seis meses antes, quando o Togo ainda estava na listados finalistas, mas Aimee tinha ofendido o minúsculo país ao sugerir, numa entrevista, que ogoverno «não fazia nada pelo povo». «Como é aquilo?», perguntara, debruçando-me sobre ele

para olhar pela janela de vigia, e querendo dizer, devo admitir, «a África.» «Nunca lá fui», disse ele friamente, sem se virar. «Mas praticamente vives cá – li o teu currículo.» «Não. Senegal, Libéria, Costa do Marfim, Sudão, Etiópia, sim – Togo, nunca.» «Ora, ora, tu sabes o que eu quero dizer.» Ele tinha-se virado para mim, vermelho, e perguntado: «Se estivéssemos a voar para a Europa

e quisesses saber como era a França, adiantava alguma coisa se eu te descrevesse a Alemanha?» Agora estava a tentar apagar a má impressão com conversa de circunstância, mas ele estava

ocupado com uma grande pilha de papéis, onde vi que havia gráficos que não compreendia,coleções de estatísticas do FMI. Senti uma certa pena dele, preso a nós e à nossa ignorância,completamente fora do seu ambiente natural. Sabia que tinha quarenta e seis anos, era doutorado,economista de formação, com experiência em desenvolvimento internacional, e que, tal comoMiriam, tinha trabalhado muitos anos para a Oxfam. Aliás, tinha sido ela quem no-lo haviarecomendado. Tinha passado quase toda a década de noventa a gerir projetos de ajuda na ÁfricaOriental e Ocidental, em aldeias remotas sem televisão, e uma consequência interessante disto –pelo menos para mim – era que de facto não tinha uma ideia muito clara de quem era Aimee,além de lhe ter fixado o nome, vagamente, como fenómeno da sua juventude. Agora tinha depassar este tempo todo com ela, e consequentemente com pessoas como Mary-Beth, a excêntricasegunda assistente de Aimee, cuja função consistia exclusivamente em enviar emails que Aimeeditava a outras pessoas e depois ler-lhe as respostas. Ou a sorumbática Laura, assistente númerotrês, que pontificava sobre as dores musculares, artigos de toilette e alimentação de Aimee, e poracaso acreditava que as alunagens tinham sido encenadas. Todas as manhãs tinha de ouvir Judyler os sinais nas estrelas e planear o seu dia em conformidade. No meio da insanidade do mundode Aimee, eu devia ser para ele a coisa mais parecida com uma aliada, mas todas as conversasque tentávamos entabular acabavam mal por uma razão ou por outra, tinha uma visão do mundotão estruturalmente diferente da minha que devia sentir-se como se ocupasse uma realidadeparalela, que eu não tinha dúvida de que era a real, mas com a qual não conseguia «comunicar»,como ele costumava dizer. Aimee, que perante um gráfico ficava tão desasada quanto eu, gostavadele porque era brasileiro e bonito, com um cabelo negro, farto e encaracolado e unsencantadores óculos de aros dourados que lhe davam o ar de um ator que desempenhava o papelde economista num filme. Mas desde o princípio foi evidente que iam ter problemas no futuro. Aforma como Aimee comunicava as suas ideias pressupunha uma base de entendimento – daprópria Aimee, da sua «lenda» – e «Fern», como ela lhe chamava, carecia de contexto para esseentendimento. Era excelente a limar as arestas: planos de arquitetura, negociações com osgovernos, contratos imobiliários – considerações práticas de toda a ordem. Mas quando chegavaa altura de falar diretamente com Aimee sobre o projeto propriamente dito – que para ela eraacima de tudo um assunto pessoal e emocional – perdia completamente o pé.

«Mas o que é que significa quando ela me diz: “Vamos fazer disto uma espécie de éticailuminada”?»

Empurrou os óculos pelo elegante nariz acima e examinou as suas muitas notas, resultado,presumi, de ter transcrito escrupulosamente todos os pequenos disparates que haviam caído daboca de Aimee durante as oito horas de voo conjunto. Levantou o papel no ar como se aquilopudesse ganhar sentido se olhasse muito tempo para ele.

«Terei percebido mal? Como é que uma escola pode ser “iluminada”?» «Não, não, é uma referência a um dos álbuns dela: Illuminated. De 97, conheces? Considera-o

um dos seus álbuns mais «positivos», e a letra é, bem, é uma coisa tipo: «Ei, meninas, corramatrás dos vossos sonhos, blablá, sejam fortes, blablá, nunca desistam. Estás a ver o estilo?Portanto o que está basicamente a dizer é: quero que esta escola dê poder às raparigas.»

Ele ficou confuso. «Então porque é que não diz simplesmente isso?» Eu dei-lhe uma palmadinha no ombro: «Fernando, não te preocupes – vai correr tudo bem.» «Achas que devia ouvir o álbum?» «Sinceramente, acho que não ia adiantar nada.» No carro que ia à nossa frente via Aimee pendurada na janela do passageiro, com o braço de

fora, absorvendo com satisfação todas as ondas ou assobiadelas ou exclamações decontentamento que lhe vinham da rua e, cá para mim, não eram reações à presença de Aimee,mas sim àquela cavalgada reluzente de SUV por zonas rurais onde nem uma em duzentaspessoas tinha automóvel. Na aldeia, por curiosidade, costumava pedir os telemóveis aosprofessores, ligar-lhes os meus auriculares e ouvir as cerca de trinta canções que eles tinham porhábito ouvir rotativamente, algumas das quais recebiam gratuitamente com os carregamentos, eoutras – as de sua especial predileção – tinham gastado crédito precioso a descarregá-las. Hip-hop, R&B, soca, reggae, ragga, grime, dub-step, hi-life – podiam ouvir-se fragmentos de toquesde toda a gloriosa diáspora musical, mas raramente um artista branco, e nunca Aimee. Agora via-a sorrir e piscar o olho aos muitos soldados, que, desobrigados da sua atividade habitual,paravam ociosos pelas bermas da estrada, de arma à ilharga, a ver-nos passar. E onde quer quehouvesse música, onde quer que houvesse jovens a dançar, Aimee batia as palmas para lhescaptar a atenção e imitava-lhes os movimentos o melhor que podia, mas sempre sentada. Esteelemento de caos rolante de beira de estrada que tanto me incomodava e perturbava, como umzootrópio planificado e preenchido por todas as formas de drama humano – mulheres aamamentar filhos, a transportá-los, a falar com eles, a beijá-los, a bater-lhes, homens a conversar,a discutir, a comer, a trabalhar, a rezar, animais vivos e mortos, cambaleando pela rua a sangrardo pescoço, rapazes a correr, a caminhar, a dançar, a mijar, a cagar, raparigas a cochichar, a rir, atorcer o nariz, sentadas, a dormir –, tudo isto fazia as delícias de Aimee, pendurava-se tanto dajanela que cheguei a recear vê-la cair pela sua amada matriz e não voltar. Mas era sempre commultidões ingovernáveis que a sua felicidade era maior. Até a companhia de seguros a proibir erafrequente sujeitar-se ao crowd surfing, e nunca a assustava, ao contrário de mim, ver-se derepente cercada por um monte de gente num aeroporto ou no átrio de um hotel. Entretanto, aúnica coisa que eu conseguia ver através do vidro escurecido da minha janela não pareciasurpreendê-la nem alarmá-la, e quando lhe falei nisso nos poucos minutos em que estivemosjuntas, de pé no prancha de acesso, a ver os nossos carros entrarem no fantasmagórico ferryvazio e os filhos dela subirem deliciados os degraus de ferro forjado para o convés superior,virou-se para mim e disparou: «Bolas, se vais ficar chocada com toda a porra de sinais depobreza que vês por aqui, vai ser uma viagem muito comprida. Estás em África!»

Foi como se tivesse perguntado por que razão havia luz lá fora e me tivessem respondido:«Porque é de dia!»

15 Department for International Development. (N. do T.)

7

A única coisa que sabíamos era o nome dela, descobrimo-lo no genérico. Jeni LeGon. Nãofazíamos ideia do que era feito dela, se estava viva ou morta, se tinha feito mais filmes alémdaquele, só tínhamos aqueles quatro minutos dela no Ali Baba – ou melhor, tinha-os eu. SeTracey queria vê-los tinha de vir a minha casa, coisa que começou a fazer de vez em quando,como Narciso debruçando-se sobre um lago. Percebi que não lhe ia ser preciso muito tempo paraaprender o número completo – tirando a inclinação impossível – mas não ia deixá-la levar ovídeo para casa, não caía daí abaixo, sabia quando tinha um trunfo na mão. E tinha começado adescobrir LeGon aqui e ali, pequenos papéis em filmes que vira muitas vezes. Lá estava elacomo criada de Ann Miller, a debater-se com um cachorro, e no papel trágico de uma mulata quemorre nos braços de Cab Calloway, e outra vez como criada, ajudando Betty Hutton a vestir-se.Estas descobertas, muito espaçadas, às vezes com muitos meses de permeio, transformaram-seem razões para telefonar a Tracey, e mesmo quando era a mãe a atender ela apareciaimediatamente, sem hesitações nem desculpas. Sentava-se a escassas polegadas do ecrã detelevisão, pronta para apontar este ou aquele momento de ação ou expressão, uma emoção queperpassava pela cara de Jeni, uma variação num ou noutro passo, e interpretando tudo quanto viacom aquela perspicácia que eu sentia que me faltava, que na altura considerava ser propriedadeexclusiva de Tracey. Um dom para ver que parecia só ter escape ou expressão aqui, na minhasala de estar, diante da minha televisão, e que nunca nenhum professor viu, nenhum exame pôdealguma vez avaliar ou sequer notar, e do qual estas memórias são talvez o único verdadeirotestemunho e registo.

Uma coisa em que ela não reparou e eu não queria dizer-lhe: os meus pais tinham-se separado.

Eu própria só soube porque a minha mãe me disse. Continuavam a viver na mesma casa e adormir no mesmo quarto. Para onde haviam de ir? Os divórcios a sério eram para quem tinhaadvogado e outro sítio para viver. Havia também a questão das competências da minha mãe.Sabíamos os três que nos divórcios era o pai que saía de casa, mas o meu pai não podia sair,estava fora de causa. Quem, na ausência dele, ia pôr-me um penso no joelho quando eu caísse,ou lembrar-se de quando tinha de me dar o remédio, ou escovar-me pacientemente o cabelo paratirar as lêndeas? Quem ia acorrer quando tivesse os meus terrores noturnos? Quem ia lavar oslençóis amarelos e malcheirosos na manhã seguinte? Não quero dizer com isto que a minha mãenão me amava, mas não era uma pessoa caseira: a vida dela passava-se toda na cabeça. Acompetência fundamental de todas as mães – a gestão do tempo – ultrapassava-a. Media o tempoem páginas. Meia hora, para ela, significava dez páginas lidas, ou catorze, dependendo do corpo

de letra, e quando se pensa no tempo nestes termos não sobra tempo para mais nada, não hátempo para ir ao parque ou para ir comer um gelado, nem tempo para deitar os filhos, nem tempopara ouvir o relato lacrimoso de um pesadelo. Não, o meu pai não podia sair.

Certa manhã, estava eu a lavar os dentes, a minha mãe entrou no quarto de banho, sentou-se naborda da banheira verde-abacate e descreveu eufemisticamente as novas regras. A princípioquase não a compreendi, parecia-me que estava a levar muito tempo até chegar àquilo que queriaefetivamente dizer, falando de teorias de psicologia infantil, e «sítios na África» onde as criançaseram criadas «por uma aldeia» e não pelos pais, e de outros assuntos que eu não entendia ou nãome interessavam, mas por fim puxou-me para si, abraçou-me com força e disse: «O teu pai e eu –vamos viver como irmão e irmã.» Lembro-me de ter pensado que esta era a coisa mais perversaque alguma vez tinha ouvido: ia continuar a ser filha única, enquanto os meus pais se tornavamirmãos. A reação inicial do meu pai deve ter sido parecida, porque durante vários dias o ambientelá em casa foi de guerra, guerra aberta, e eu tinha de dormir com duas almofadas a tapar asorelhas. Mas quando finalmente percebeu que ela não estava a brincar, que não ia mudar deopinião, caiu em depressão. Começou a passar fins de semana inteiros no sofá, a ver televisão,enquanto a mãe não saía da cozinha e do seu banco alto, ocupada com os trabalhos de casa para asua licenciatura. Eu ia sozinha para a aula de dança. Lanchava com um ou com o outro, nuncacom os dois.

Pouco depois do anúncio da minha mãe, o meu pai tomou uma decisão inesperada: voltou àdistribuição de correio. Tinha demorado dez anos a chegar a diretor de central da distribuição,mas no meio da sua tristeza leu Coming Up for Air, de George Orwell, e este romanceconvenceu-o de que era melhor para ele fazer um «trabalho honesto», como ele dizia – e ter oresto dos dias livres para «conseguir a educação que nunca teve» – do que ter um enfadonhoemprego de secretária que lhe consumia o tempo todo. Era o tipo de ação impraticável e deprincípios elevados que a minha mãe costumava apreciar, e a escolha do momento para oanúncio não me pareceu acidental. Mas, se o plano era reconquistá-la, não resultou: levantava-setodas as manhãs às três e voltava para casa à uma da tarde, muitas vezes lia ostensivamente ummanual de sociologia que surripiava das estantes da minha mãe, mas embora lhe perguntasserespeitosamente pela sua manhã de trabalho e às vezes pela sua leitura, a minha mãe não voltou aapaixonar-se por ele. Ao fim de algum tempo deixaram pura e simplesmente de se falar. O climaem casa mudou. No passado eu tivera sempre de esperar por uma brecha nas intermináveisdiscussões entre os meus pais para poder encaixar-me nela. Agora podia falar sem interrupção, sequisesse, com qualquer deles, mas já era tarde. No estilo de avanço acelerado próprio dasinfâncias urbanas, já tinham deixado de ser as pessoas mais importantes da minha vida. Não, defacto já não queria saber o que os meus pais pensavam de mim. Só a opinião da minha amiga ameu respeito contava, agora mais do que nunca, e palpitava-me que ela, sentindo isso, optava pornão a dar.

8

Alguém diria mais tarde que eu era uma má amiga para Aimee, sempre havia sido, só estava àespera do momento oportuno para a magoar, ou mesmo para a destruir. Talvez ela acredite nisso.Mas só uma boa amiga acorda uma amiga do seu sonho. A princípio pensei que não teria de sereu a acordá-la, que a aldeia se encarregaria disso, porque não parecia possível continuar a sonharnaquele lugar ou pensar em si mesma como uma exceção, fosse a que título fosse. Enganei-me.Nos arredores a norte da aldeia, à beira da estrada que ia para o Senegal, havia uma grande casacor-de-rosa de tijolo, com dois andares – a única do seu género num raio de várias milhas –abandonada, mas praticamente concluída, a que só faltavam as janelas e as portas. Tinha sidoconstruída, contou-me Lamin, com remessas enviadas por um rapaz da terra que tinha ganhadobom dinheiro como taxista em Amesterdão, até que a sua sorte virou e o dinheiro parou derepente. Agora a casa, vazia há um ano, teria nova vida como nossa «base de operações».Quando lá chegámos o Sol estava a esconder-se, e foi com satisfação que o ministro do Turismonos mostrou as lâmpadas nuas acesas no teto de todos os compartimentos. «E de cada vez que cávierem», disse-nos, «estará melhor.» A aldeia esperava a luz elétrica havia muito tempo – desdeo golpe, mais de vinte anos antes – mas em dois ou três dias Aimee tinha logrado convencer asautoridades competentes a ligarem um gerador a esta carcaça de casa, e havia tomadas paracarregar todos os nossos telemóveis e uma equipa de operários tinha instalado janelas de acrílicoe portas de contraplacado que funcionavam, camas para toda a gente e até um fogão. Os filhos deAimee ficaram encantados – era como acampar – e para ela as duas noites que tinha programadopassar ali assumiam a forma de uma aventura ética. Ouvi-a dizer ao jornalista da Rolling Stonecomo é importante estar «no mundo real, no meio do povo», e na manhã seguinte, além dosmomentos formais fotografados – lançamento da primeira pedra, dança dos alunos da escola –foram tiradas muitas fotos de Aimee neste mundo real, comendo das tigelas comunitárias,acocorando-se com à-vontade ao lado das mulheres – dando uso aos músculos desenvolvidos nabicicleta estática – ou exibindo a sua agilidade, trepando aos cajueiros com um grupo de rapazes.Depois do almoço, vestiu as calças de caqui cor de azeitona e fomos as duas dar uma volta pelaaldeia com a mulher do FfID, cuja missão era indicar-nos «áreas de particular necessidade».Vimos latrinas infestadas de parasitas intestinais, uma clínica abandonada, semiconstruída,muitos compartimentos abafados, com cobertura de chapa de zinco, onde as crianças dormiam àsdez por cama. Depois visitámos as hortas comunitárias – para testemunharmos os «limites daagricultura de subsistência» – mas na altura em que entrávamos no campo aconteceu que o Solestava a projetar sombras compridas e cativantes e as ramas das batatas estavam frondosas everdes e a vinha virgem trepava pelas árvores, formando um todo luxuriante que criava um efeitode extraordinária beleza. As mulheres, novas e velhas, tinham um aspeto utópico, nos seus panos

coloridos, arrancando ervas daninhas da terra, conversando umas com as outras enquantotrabalhavam, berrando ao longo das fiadas de ervilhas ou malaguetas, rindo-se das piadas umasdas outras. Quando viram que nos aproximávamos, endireitaram-se e limparam o suor da cara,com os lenços de cabeça, se os usavam, ou, caso contrário, com as mãos.

«Bom dia. Como está a ser o seu dia?» «Oh, já percebi o que está a acontecer aqui», disse Aimee a uma anciã que tivera a ousadia de

a abraçar pela cintura fina. «As meninas podem conversar à vontade. Não há homens por perto.Pois, faço ideia do que aqui vai.»

A mulher do DfID riu-se exageradamente. Eu apercebia-me da pouca ideia que fazia do queestava a acontecer ali. Nem mesmo as ideias mais simples que trouxera comigo pareciamfuncionar aqui quando tentava aplicá-las. Por exemplo, não estava neste momento num campocom a minha tribo alargada, com as mulheres negras como eu. Aqui não existia semelhantecategoria. Só havia as mulheres seres, as uolofes e as mandingas, as seraulis, as fulas e as jolas,e, segundo me disseram uma vez a medo, eu era parecida com estas últimas, pelo menos naestrutura facial básica: o mesmo nariz comprido, as maçãs do rosto também. Do sítio onde agoraestava ouvia o chamamento à oração vindo do minarete quadrado de betão da mesquita verde,que se erguia acima das árvores e dominava esta aldeia onde as mulheres de cabeça coberta edescoberta eram irmãs e primas e amigas umas das outras, eram mães e filhas umas das outras,ou cobriam-se de manhã e descobriam-se à tarde, simplesmente porque alguns amigos da suaidade, rapazes e raparigas, tinham vindo visitá-las, e uma delas tinha-se oferecido para lhes fazertranças. Neste lugar onde o Natal era celebrado com um fervor surpreendente, e todas aspersonagens do livro eram consideradas «irmãs, irmãos», enquanto eu, que representava oateísmo absoluto, não era inimiga de ninguém, não, apenas alguém que devia receber compaixãoe proteção – assim me explicou uma das raparigas com quem compartilhava um quarto – comose faria a uma vitela cuja mãe tivesse morrido a pari-la.

Agora observava as raparigas fazendo fila para o poço, enchendo de água os seus enormesalguidares de plástico e pondo estes alguidares à cabeça e iniciando o trajeto de regresso à aldeia.Reconheci algumas da morança onde havia vivido nesta última semana. As primas gémeas daminha anfitriã, Hawa, bem como três das suas irmãs. Disse adeus a todas, sorrindo. Elasresponderam com um aceno.

«Sim, ficamos sempre espantadas com o muito que as mulheres e raparigas daqui trabalham»,disse a mulher do DfID, em voz baixa, acompanhando o meu olhar. «Fazem o trabalhodoméstico, como veem, mas também o trabalho agrícola, e como irão ver sãopredominantemente as mulheres que gerem a escola e o mercado. Verdadeiro Poder Feminino.»

Curvou-se para apalpar o caule de uma beringela e Aimee aproveitou a oportunidade e virou-separa mim, entortou os olhos e deitou a língua de fora. A mulher do DfID levantou-se e passou osolhos pela fila cada vez mais longa de raparigas.

«É claro que muitas destas raparigas deviam estar na escola, mas infelizmente as mãesprecisam delas aqui. E agora pensem naqueles rapazes que vimos há pouco, a preguiçar numarede entre os cajus...»

«A educação é a resposta para o desenvolvimento das nossas raparigas e mulheres», interveioLamin, com o ar ligeiramente magoado e cansado, pensei, de quem já tinha suportado muitaspreleções de representantes do DfID. «Educação, educação, educação.»

Aimee fez-lhe um sorriso radioso. «É para isso que aqui estamos», disse.

Durante todas as atividades do dia Aimee manteve Lamin por perto, confundindo a tendência

que ele tinha para sussurrar com uma intimidade especial entre os dois, e ao fim de algum tempocomeçou também a sussurrar-lhe, derretendo-se como uma colegial. Perigoso, pensei, diante doomnipresente jornalista, mas não houve um único momento em que estivéssemos as duas a sóspara lho poder dizer com firmeza. Pelo contrário, via o esforço que ela fazia para conter aimpaciência sempre que o pobre Carrapichano não tinha outra hipótese senão afastá-la de Laminpara a levar a cumprir todos os compromissos públicos do dia: assinar papéis, encontrar-se comministros, discutir propinas, sustentabilidade, programas, salários dos professores. Meia dúzia devezes obrigou Aimee e comitiva a suspender a marcha para ouvirmos mais um funcionáriogovernamental proferir mais um discurso – sobre parceria e respeito mútuo, e em particular orespeito que o Presidente Vitalício queria que fosse transmitido a Aimee na sua ausência,respeito esse que era apenas a resposta correta devida pelo que Aimee «claramente tem pelonosso amado Presidente» – enquanto sofríamos todos ao sol. Cada discurso era quase igual aoanterior, como se existisse na capital um texto matricial do qual todos estes ministros tivessem defazer citações. Enquanto nos dirigíamos à escola, devagar, para não ultrapassarmos o fotógrafo –que ia à nossa frente às arrecuas –, um destes ministros agarrou mais uma vez a mão deCarrapichano, e quando ele tentou, discretamente e sem Aimee ver, dissuadir o ministro, esterecusou-se a ser dissuadido, mantendo-se firme junto do portão da escola, barrando a entrada edando início ao seu discurso, perante o que Aimee virou ostensivamente as costas.

«Escuta, Fern, não quero ser chata, mas estou a fazer um verdadeiro esforço para estar presenteneste momento. E tu estás a tornar-me isso muito difícil. Está calor, estamos todos com calor, etenho consciência de que não temos muito tempo. Por isso acho que o melhor é acabarmos comos discursos. Acho que já todos sabemos o que eles pensam, todos nos sentimos bem-vindos,todos nos sentimos mutuamente respeitados ou lá o que é. Neste momento estou aqui paramarcar presença. Acabaram os discursos por hoje – OK?»

Carrapichano olhou meio vencido para o bloco que tinha na mão e por um momento penseique ele ia perder as estribeiras. Ao seu lado, o ministro continuava impávido, sem ter percebido oque Aimee havia dito, simplesmente à espera da deixa para recomeçar.

«Está na altura de visitar a escola», disse Carrapichano sem levantar os olhos, contornando oministro e empurrando o portão.

A ama, Estelle, estava lá à nossa espera, com os filhos de Aimee, que corriam pelo gigantescorecreio de terra batida – despido, excetuando duas balizas tortas e sem rede – e trocavam gestosde dá cá mais cinco com as crianças que se aproximavam deles, encantados por andarem à soltaentre tanta gente da sua idade. Jay tinha na altura oito anos, e Kara seis, e desde sempre erameducados em casa. Enquanto passávamos revista acelerada a seis salas de aula grandes e pintadasde cores alegres, as muitas perguntas infantis deles saíam-lhes em catadupas, perguntas poucodiferentes das minhas, mas naquele caso espontâneas e livremente expressas, e que a ama iatentando, sem êxito, abafar e silenciar. A minha vontade era acrescentar algumas. Porque é que odiretor tem duas mulheres, porque é que umas raparigas usam lenço na cabeça e outras não,porque é que os livros estão todos rasgados e sujos, porque é que lhes ensinam as matérias eminglês se não falam inglês em casa, porque é que os professores escrevem as palavras no quadrocom erros de ortografia, o que é que vai acontecer aos rapazes se a nova escola é pararaparigas?

9

Quase todos os sábados, à medida que se aproximava o meu ritual de passagem, acompanhavaa minha mãe numa marcha de protesto contra isto ou aquilo, contra a África do Sul, contra ogoverno, contra as bombas nucleares, contra o racismo, contra os cortes, contra a desregulaçãodos bancos ou a favor do sindicato dos professores, do GLC16 ou do IRA. Era-me difícilcompreender o propósito de tudo isto, dada a natureza da nossa inimiga. Via-a quase todos osdias na televisão – carteira rígida, penteado rígido, impávida, inabalável – e sempre indiferenteao número de pessoas, grande ou pequeno, que a minha mãe e suas apaniguadas tinhamconseguido reunir para a marcha, na manhã do sábado anterior, passando por Trafalgar Squarepara terminar em frente da sua reluzente porta preta. Lembro-me de ter marchado a favor damanutenção do GLC um ano antes, caminhando durante horas que me pareceram dias, meiamilha atrás da minha mãe, que ia na primeira linha, numa grande conversa com Red Ken17 –empunhando um cartaz acima da cabeça, e depois, quando aquilo se tornou muito pesado,transportando-o ao ombro, como Jesus no Calvário, arrastando-o por Whitehall abaixo, até quefinalmente apanhámos o autocarro para casa, caímos espapaçadas no sofá da sala, ligámos a TVe ficámos a saber que o GLC tinha sido extinto horas antes. Ainda assim, foi-me dito que nãohavia «tempo para a dança», ou, numa variação, «o tempo não ia para danças», como se omomento histórico o proibisse. Que eu tinha «responsabilidades», que estas eram decorrentes daminha «inteligência», a qual tinha sido recentemente confirmada na escola por uma jovemprofessora de substituição que tivera a ideia de nos pedir que levássemos para a aula «o queestivéssemos a ler em casa». Era um daqueles momentos – houve muitos – em que nós, osalunos, tomávamos consciência da profunda inocência dos nossos professores. Davam-nossementes na primavera para «plantarmos nos nossos jardins», ou pediam-nos, depois das fériasgrandes, que escrevêssemos uma página sobre «onde passou as férias». Não era coisa que meafetasse: já tinha ido a Brighton, muitas vezes, e uma vez num cruzeiro de copos a França, e erauma entusiástica jardineira de floreiras. Mas a cigana que cheirava mal, tinha gretas de cieiro àvolta da boca de tanto chorar e todas as semanas aparecia com um olho negro? Ou as gémeas,demasiado crescidas para a adoção, aos baldões pelas casas de acolhimento? E o rapaz doeczema, que numa noite de verão eu e Tracey tínhamos visto através das grades do Queen’sPark, sozinho, dormindo profundamente num banco? Os professores de substituição eram osmais inocentes de todos. Lembro-me da surpresa desta perante o número nada pequeno decrianças que levaram de casa a Radio ou a TV Times.

Eu levei as minhas biografias de dançarinos, livros volumosos com retratos desfocados dosanos setenta na capa, das grandes estrelas na velhice – de robe e lenço de seda, de capa de penasde avestruz cor-de-rosa – e só com base no número de páginas foi decidido que o meu futuro

tinha de ser «discutido». A minha mãe foi chamada a uma reunião, cedo, antes das aulas, ondelhe foi dito que os livros por causa de cuja leitura às vezes me censurava eram indicativos daminha inteligência, e que existia uma prova que se podia fazer às crianças «talentosas» como eue que, se passassem, lhes permitiriam frequentar aquelas escolas boas que concedem bolsas deestudo – não, não, não – propinas não, não se preocupe, referia-me a escolas secundárias, o que écompletamente diferente, não se paga nada, não, não, por favor não se preocupe. Eu olhei delado para a minha mãe, cuja cara não deixava transparecer nada. É por causa da idade de leitura,explicou a professora, passando por cima do nosso silêncio, porque, sabe, em matéria de leituraela está muito avançada para a idade. A professora olhou fixamente para a minha mãe – de blusasem sutiã e calças, turbante de tecido kente, brincos enormes com a forma de África – eperguntou se o pai também ia participar na reunião. O pai está a trabalhar, disse a minha mãe.Ah, disse a professora, virando-se para mim, e que faz o teu pai, querida, é ele o leitor lá emcasa, ou...? O pai é carteiro, disse a minha mãe. A leitora é a mãe. Bem, normalmente, disse aprofessora, corando, consultando os seus apontamentos, normalmente não sugerimos de facto oexame de admissão às escolas particulares. Quer dizer, existem algumas bolsas de estudo, masnão faz sentido obrigarmos estas crianças a sofrerem desilusões. Mas a jovem Miss Bradwell queesteve cá recentemente achou que talvez, quer dizer, achou que, na situação da sua filha, talvezhouvesse hipótese de...

Percorremos o caminho até casa em silêncio, não havia mais nada a dizer. Já tínhamos idovisitar a secundária enorme e barulhenta que iria frequentar no outono, havia-me sido vendidacom a promessa de que tinha um «estúdio de dança» algures no labirinto de corredoresdesgastados, salas de aulas pré-fabricadas e sanitários provisórios. Todas as minhas conhecidas –excetuando Tracey – iam para lá, o que era uma consolação: a segurança dos números. Mas aminha mãe surpreendeu-me. Quando chegámos ao nosso prédio parou ao fundo das escadas edisse-me que eu ia fazer a tal prova, e trabalhar muito para passar. Nada de dança ao fim desemana, nem distrações de espécie nenhuma, ia dar-me uma oportunidade, disse, como ela nuncativera, antes tendo sido aconselhada, na idade que eu tinha agora – e pelas suas professoras –, atrabalhar para dominar quarenta palavras por minuto, como todas as outras raparigas negras.

Senti-me como se fosse num comboio, com destino ao sítio para onde as pessoas como eu

costumavam ir na adolescência, só que agora, de repente, havia alguma coisa diferente. Erainformada de que desceria numa paragem inesperada, mais adiante. Pensei no meu pai, arrancadodo comboio quando ainda mal tinha saído da estação. E em Tracey, tão expedita a saltar emandamento, exatamente porque antes queria caminhar do que lhe dissessem qual era a suaparagem ou até onde podia ir. Bem, não havia nisso uma certa nobreza? Não havia nisso umacerta luta, pelo menos – um certo desafio? E depois havia todos os revoltantes casos históricosque ouvi contar sentada nos joelhos da minha mãe, histórias das mulheres furiosamentetalentosas – e eram sempre mulheres, na versão da minha mãe –, mulheres que talvez tivessemcorrido mais do que um comboio a alta velocidade, se tivessem tido liberdade para isso, mas paraas quais, nascidas no tempo errado, no lugar errado, todas as paragens estavam fechadas, nemsequer eram autorizadas a entrar na estação. E não era eu muito mais livre do que qualquer delas– nascida em Inglaterra, nos tempos modernos – além de muito mais leve, de nariz muito maislevantado, muito menos suscetível de ser tomada como a essência da própria Negritude? Quepoderia impedir-me de continuar a viagem? Mas quando me sentei na sala da minha escola, num

dia de julho de calor abrasador, fora do horário normal das aulas – altura estranha para estar naescola – e abri aqueles enunciados da prova, para ler de ponta a ponta a oportunidade que aminha mãe desejava que agarrasse com ambas as mãos, invadiu-me uma fúria grande e súbita,descobri que não queria viajar naquele comboio, escrevi meia dúzia de palavras aqui e ali,ignorei as páginas de matemática e ciências, reprovei clamorosamente.

16 Great London Council (Conselho da Grande Londres), órgão coordenador do poder local, extinto em 1986 pelo governo deMargaret Thatcher. (N. do T.)

17 Alcunha de Ken Livingstone, à época prefeito da Grande Londres. (N. do T.)

10

Semanas depois, Tracey entrou para a sua escola de artes de palco. A mãe não teve outroremédio senão tocar à nossa porta, entrar em nossa casa e contar-nos tudo. Empurrando Tracey àsua frente como um escudo entrou para o corredor a arrastar os pés, não quis sentar-se nem tomarchá. Nunca até então tinha transposto a soleira daquela porta. «O júri disse que nunca tinha vistonada tão original como a...» – a mãe de Tracey embatucou e olhou furiosa para a filha, que entãoproferiu a palavra estranha – «coreografia dela, nem nada que se parecesse. Uma completanovidade. Nunca! Eu sempre lhe disse que tinha de ser duas vezes melhor do que qualquer outrapara chegar a algum lado», continuou, apertando a sua Tracey contra o peito gigantesco, «e agorachegou.» Trazia um vídeo da prova para nos dar, e a minha mãe recebeu-a com bastantedelicadeza. Uma noite fui descobri-lo no quarto dela debaixo de uma pilha de livros e vi-osozinha. A canção era «Swing is Here to Stay»18 e todos os movimentos, todas as piscadelas deolho, todos os meneios de cabeça eram de Jeni LeGon.

Nesse outono, no meu primeiro período na nova escola, descobri aquilo que era sem a minhaamiga: um corpo sem contorno definido. O tipo de rapariga que andava de grupo em grupo, nembem-vinda nem desprezada, tolerada, e sempre desejosa de evitar confrontos. Sentia que nãocausava nenhuma impressão. Durante algum tempo houve duas ou três raparigas do ano à frentedo meu que achavam que eu me orgulhava da minha cor forte, do meu nariz comprido, dasminhas sardas, e provocavam-me, roubavam-me dinheiro, assediavam-me no autocarro, mas osprovocadores alimentam-se de alguma espécie de resistência, mesmo que sejam só lágrimas, e eunão lhes ofereci nenhuma e depressa se cansaram e deixaram-me em paz. Não me lembro damaioria dos anos que passei naquela escola. Apesar de os ter vivido, uma obstinada parte de mimnunca a aceitou como mais do que um lugar ao qual tinha de sobreviver todos os dias até voltar aser livre. Concentrava-me mais naquilo que imaginava ser a vida de Tracey na sua escola do quena realidade da minha. Lembro-me, por exemplo, de ela me ter contado pouco depois de lá terchegado que quando Fred Astaire morreu a escola organizou uma sessão evocativa, e algunsalunos foram convidados a dançar em homenagem à memória dele. Tracey, vestida de Bojangles,de chapéu alto e fraque brancos, arrasou. Sei que nunca a vi fazer aquilo, mas ainda hoje sintoque tenho uma recordação daquele momento.

Treze anos, catorze, quinze, o difícil ritual de passagem – naqueles anos, de facto, não nosvimos muito. A nova vida dela absorvia-a por completo. Não esteve presente quando finalmenteo meu pai saiu de casa ou quando eu tive o período pela primeira vez. Não sei quando perdeu avirgindade nem se a perdeu, nem quem lhe provocou o primeiro desgosto de amor. Quando a viana rua, parecia-me que estava bem. Ia abraçada a um homem muito bonito e maduro, quasesempre alto e com o cabelo muito curto dos lados, e recordo-a nessas ocasiões mais a saltitar do

que a andar – cara fresca, cabelo apanhado num coque de bailarina, de colãs fluorescentes e topreduzido – mas também de olhos injetados, claramente pedrada. Elétrica, carismática,extremamente sensual, sempre carregada de energia estival, mesmo no gélido fevereiro. Eencontrá-la assim, como realmente era – isto é, abstraindo das ideias invejosas que tinha emrelação a ela – era sempre uma forma de choque existencial, como ver uma personagem de umlivro de histórias na vida real, e fazia tudo para que o encontro fosse o mais breve possível,chegando a atravessar a rua antes de ela chegar ao pé de mim, ou saltar para um autocarro, oualegar que ia a caminho de um compromisso urgente. Mesmo quando algum tempo depois sabia,pela minha mãe e por outras pessoas do bairro, que ela estava a passar por dificuldades, cada vezmais metida em sarilhos, não conseguia imaginar uma razão para isso, para mim tinha uma vidaperfeita, o que talvez seja um efeito indireto da inveja, esta incapacidade de imaginar. Na minhaideia, as lutas dela pertenciam ao passado. Era dançarina: tinha encontrado a sua tribo. Eu, pelocontrário, havia sido apanhada completamente desprevenida pela adolescência, continuando atrautear canções de Gershwin no fundo da sala de aula enquanto à minha volta os círculos deamizade começavam a formar-se e a consolidar-se, definidos pela cor, classe, dinheiro, códigopostal, nacionalidade, música, droga, política, desporto, aspiração, língua, sexualidade... um diadei a volta naquele enorme jogo de cadeiras musicais e verifiquei que não havia lugar para mim.Sem saber o que fazer, fiz-me gótica – era onde acabava quem não tinha mais para onde ir. Osgóticos já de si eram uma minoria, e eu aderi à fação mais estranha, um grupinho de cincomiúdos apenas. Um era romeno e tinha um pé boto, outro era japonês. Os góticos negros eramraros, mas havia precedentes: tinha visto alguns na zona de Camden e agora copiava-os o melhorque podia, maquilhando a cara de branco-fantasma e pintando os lábios de vermelho-sangue,deixando o cabelo em parte dread e pintando outras partes de roxo. Comprei um par de Dr.Martens e cobri-as de símbolos anarquistas pintados com verniz corretor. Tinha catorze anos: omundo era uma seca. Estava apaixonada pelo meu amigo japonês, que estava apaixonado pelaloira frágil do nosso grupo que tinha os braços cobertos de cicatrizes e parecia um gato doenteabandonado à chuva – não era capaz de amar ninguém. Durante quase dois anos passámos todo onosso tempo juntos. Eu odiava a música e não era permitido dançar, só balançar para cima e parabaixo sem sair do sítio, ou então chocar ebriamente uns contra os outros – mas agradava-me quea apatia política desagradasse à minha mãe e que a brutalidade da minha nova aparênciatrouxesse ao de cima o lado profundamente maternal do meu pai, que agora andavaconstantemente preocupado comigo e tentava alimentar-me porque eu, goticamente, estava aemagrecer. Faltava às aulas quase todos os dias da semana: o autocarro que ia para a escolatambém ia para a eclusa de Camden. Sentávamo-nos nos caminhos de sirga, a beber cidra e afumar, as DMs a balançar sobre o canal, a falar da falsidade de todos os nossos conhecidos,conversas sem rumo que chegavam a consumir dias inteiros. Eu denunciava violentamente aminha mãe, o antigo bairro, tudo desde a infância, principalmente Tracey. Os meus novosamigos eram obrigados a escutar todos os pormenores da nossa história mútua, toda elarecapitulada com um espírito azedo, recuando até ao dia em que nos conhecemos, quando íamosa atravessar o adro de uma igreja. Ao cabo de uma tarde daquilo voltava de autocarro, passavapela escola onde não tinha posto os pés e descia numa paragem em frente – mas exatamente emfrente – do novo apartamento de solteiro do meu pai, onde podia recuar alegremente no tempo,matar saudades da comida que ele fazia, entregar-me aos velhos prazeres secretos. Judy Garlanda fingir de zulu, dançando o cakewalk em Agora Seremos Felizes.

18 Do filme Ali Baba Goes to Hollywood. (N. do T.)

11

A nossa segunda visita teve lugar quatro meses depois, na estação das chuvas. Aterrámos denoite, depois de um voo atrasado, e quando chegámos à casa cor-de-rosa eu não conseguisuportar a estranheza daquele lugar, a sua tristeza e vazio, a sensação de que estava a invadir aambição perdida de outra pessoa. A chuva metralhava o tejadilho do táxi. Perguntei a Fernandose não se importava que eu voltasse para casa de Hawa.

«Para mim é ótimo. Tenho montes de trabalho para fazer.» «E ficas bem? Quer dizer, sozinho?» Ele riu-se: «Já estive sozinho em sítios bem piores.» Separámo-nos junto do enorme painel com a tinta a descascar que assinalava o princípio da

aldeia. Vinte metros de caminhada foram suficientes para me encharcar, empurrei a porta dealumínio da morança da família de Hawa, travada por uma lata de óleo cheia de areia até meio,mas aberta no trinco, como sempre. Quase não reconheci o interior. No pátio, onde quatro mesesantes havia terra vermelha cuidadosamente varrida e avós, primas e primos, sobrinhas esobrinhos, irmãs e muitas crianças de colo, sentados em círculo, a altas horas da noite, agora nãohavia ninguém, apenas um lamaçal revolto onde imediatamente me atolei e perdi um sapato.Quando me baixei para o procurar ouvi gargalhadas. Olhei para cima e vi que estava a serobservada do alpendre de betão. Hawa e algumas amigas, levando os pratos de lata do jantar parao sítio onde os guardavam.

«Oh, oh», exclamou Hawa, rindo-se ao ver-me, coberta de lama, e agora transportando nosbraços uma grande mala de rodas que se recusavam a rolar pelo chão barrento. «Olhem só quema chuva nos trouxe!»

Não tinha previsto voltar a ficar em casa de Hawa, não a tinha avisado, mas nem ela nem maisninguém na morança mostraram grande surpresa pela minha chegada, e apesar de na primeiravez não ter sido uma hóspede particularmente bem-sucedida ou bem-amada, fui recebida comofamília. Apertei a mão das várias avós, e eu e Hawa abraçámo-nos, e dissemo-nos que tínhamossentido muito a falta uma da outra. Expliquei que desta vez vínhamos só Fernando e eu – Aimeeestava a gravar em Nova Iorque – e que estávamos cá para observar em mais pormenor comofuncionava a escola antiga e o que podia ser aperfeiçoado na nova. Fui convidada a sentar-mecom Hawa e as suas visitas na pequena sala de estar, debilmente iluminada por painéis solaresbrancos, mais intensamente iluminada pelos ecrãs dos telemóveis de todas as raparigas. Sorrimosumas às outras, as raparigas, Hawa, eu. Perguntaram-me delicadamente pela saúde da minha mãee do meu pai – mais uma vez foi motivo de admiração eu não ter irmãos nem irmãs – e depoispela saúde de Aimee e dos filhos, e de Carrapichano e de Judy, mas pela de ninguém com tantaansiedade como pela de Granger. Era na saúde de Granger que estavam verdadeiramente

interessadas, porque Granger havia sido a verdadeira estrela da primeira visita, muito mais doque Aimee ou qualquer outro membro da comitiva. Nós éramos curiosidades – ele era amado.Granger conhecia todos os temas sentimentalões de R&B que Hawa adorava, Aimee desprezavae eu nem sabia o que eram, usava o tipo de sapatos que Hawa mais admirava, e durante uma rodade percussão comemorativa, organizada pelas mães na escola, sem hesitação tinha entrado naroda, sacudido os ombros, meneado o corpo, vogado e executado o moonwalk, enquanto eu meencolhia no meu lugar, entretida a tirar fotografias. «Aquele Granger!», dizia agora Hawa,abanando animadamente a cabeça com a extasiante recordação de Granger, comparada com adesinteressante realidade da minha presença. «Um dançarino fantástico! Os rapazes sóperguntavam: “São os passos novos?” E lembro-me de a tua Aimee dizer: “Não, estes são osvelhos!” Lembras-te? Mas desta vez não veio? É pena. Oh, o Granger é um rapaz tão simpático!»As mulheres jovens presentes na sala riram-se e abanaram a cabeça e suspiraram, e depois voltoua fazer-se silêncio, e comecei a pensar que devia ter vindo interromper uma reunião, um bompedaço de má-língua, que agora, passado um minuto de silêncio embaraçado, era retomado emuolof. Sem vontade de ir para a escuridão absoluta do quarto de dormir, recostei-me no sofá,deixando que a conversa resvalasse em mim e as roupas me secassem no corpo. Ao meu lado,Hawa era o centro das atenções, duas horas de histórias que – tanto quanto eu percebia – iam dohilariante ao pesaroso e ao moralmente ofendido, mas sem nunca chegarem ao furioso. Asrisadas e os suspiros serviam-me de guia, e também as fotos do telemóvel que ela mostrava nomeio de certos episódios e explicava laboriosamente em inglês quando eu fazia questão deperguntar. Percebi que ela tinha um problema amoroso – um jovem polícia de Banjul queraramente via – e um grande plano, que antevia com ansiedade, de ir à praia quando acabassemas chuvas e fazer uma reunião de família, para a qual o polícia seria convidado. Mostrou-me afotografia daquela que tivera lugar no ano anterior: uma panorâmica em que se viam pelo menoscem pessoas. Identifiquei-a na primeira fila e estranhei a ausência do lenço, substituído por umpenteado sedoso, de risco ao meio, que lhe chegava aos ombros.

«Cabelo diferente», disse, e Hawa riu-se, pôs as mãos no hijab e tirou-o, revelando dezcentímetros de cabelo em pequenas rastas.

«Mas cresce tão vagar, ai!» Levei algum tempo a perceber que Hawa era essa coisa relativamente rara na aldeia, uma

rapariga de classe média. Filha de dois professores universitários, nenhum dos quais cheguei aconhecer, o pai trabalhava agora em Milão como polícia de trânsito e a mãe vivia na cidade econtinuava a trabalhar na universidade. O pai tinha saído por aquilo que a população da aldeiadesignava por «dar o salto», na companhia do irmão mais velho de Hawa, atravessando o Sarapara chegar à Líbia e aí fazendo a perigosa travessia para Lampedusa. Dois anos depois, jácasado com uma italiana, mandou ir o outro irmão, mas isso foi há seis anos, e se Hawa estava àespera de ser chamada era demasiado orgulhosa para mo dizer. O dinheiro que o pai mandavahavia proporcionado alguns luxos à morança, raros na aldeia: um trator, um grande lote deterreno particular, uma retrete, embora não estivesse ligada a coisa nenhuma, e uma televisão,embora não funcionasse. A morança propriamente dita albergava as quatro mulheres do falecidoavô de Hawa e muitos dos filhos, netos e bisnetos que as suas uniões tinham produzido, emcombinações que estavam sempre a variar. Nunca era possível localizar todos os progenitoresdestas proles: só as avós se mantinham constantes, passando crianças de colo ou pouco mais

velhas de umas para as outras e para Hawa, que, apesar de muito jovem, muitas vezes me dava aimpressão de ser a chefe da família, ou pelo menos o seu coração. Era uma daquelas pessoas queatraem toda a gente. Extremamente graciosa, de rosto perfeitamente redondo, tez de um negroazulado, pestanas muito bonitas, compridas, e um adorável ar de pata no lábio superior, cheio esaliente. Quem procurasse descontração, frivolidade, ou tão-só ser alegremente provocadadurante uma ou duas horas sabia que devia ir ter com Hawa, que dava igual atenção a toda agente, queria saber todas as novidades, por muito quotidianas ou banais que parecessem («Vensdo mercado? Oh, então conta! Quem estava lá? E o peixeiro, estava lá?») Teria sido a joia dacoroa de qualquer aldeia em qualquer lugar. Ao contrário de mim, não tinha o mínimo desprezopela vida de aldeia: adorava a pequenez, o mexerico, a rotina e a união da família. Gostava queos assuntos de toda a gente fossem os seus assuntos e vice-versa. Uma vizinha, que tinha umproblema amoroso mais difícil do que o dela, visitava-nos todos os dias – tinha-se apaixonadopor um rapaz com quem os pais não a deixavam casar-se – e pegava nas mãos de Hawa enquantofalava e chorava, muitas vezes ficando até à uma da manhã, mas eu reparava que saía sempre asorrir. Tentava imaginar-me a prestar algum dia um serviço parecido a uma amiga. Queria sabermais sobre aquele problema de amor, mas Hawa não gostava de traduzir, e na sua versãoimpaciente duas horas de conversa eram facilmente reduzidas a duas ou três frases («Bem, está adizer que ele é muito bonito e bondoso e que nunca irão casar-se. Estou tão triste! Digo-te queesta noite nem vou dormir! Mas então: ainda não aprendeste nem um bocadinho de uolof?) Àsvezes, quando as visitas de Hawa chegavam e me encontravam sentada no meu canto escuro,retraíam-se e viravam costas, porque da mesma forma que Hawa era conhecida em toda a partecomo portadora de leveza, alguém cuja simples presença aliviava os desgostos, muito depressase tornou claro que a visitante de Inglaterra só trouxera consigo peso e tristeza. Todas asperguntas mórbidas que eu tinha de fazer de esferográfica em punho, sobre o combate à pobreza,ou a falta de material na escola, ou as dificuldades visíveis da vida da própria Hawa – a queagora se somavam as dificuldades próprias da estação das chuvas, os mosquitos, a ameaça damalária sem tratamento –, tudo isto repelia as nossas visitantes e punha à prova a paciência deHawa. As conversas sobre política não lhe interessavam – a menos que fossem de teorconspirativo, intensamente local, e dissessem diretamente respeito a pessoas suas conhecidas – etambém lhe desagradavam as discussões muito acaloradas sobre temas de religião ou cultura.Como toda a gente, rezava e ia à mesquita, mas não me parecia que tivesse um interesse sériopela religião. Era daquelas raparigas que só querem uma coisa desta vida: divertir-se. Lembrava-me muito bem do tipo, dos meus tempos de escola, raparigas que sempre me haviamdesconcertado – e continuam a desconcertar – e sentia que também eu desconcertava Hawa.Todas as noites me deitava no chão ao pé dela, nos nossos colchões contíguos, grata pela auraazul que emanava do Samsung enquanto ela via as mensagens e as fotos, às vezes até altas horas,rindo-se ou suspirando com fotografias que a divertiam, rompendo a escuridão e aliviando anecessidade de conversar. Mas nunca havia nada que parecesse enfurecê-la ou deprimi-laseriamente, e talvez porque eu via tantas coisas que provocavam em mim estas emoções,diariamente, sentia-me dominada por um desejo perverso de despertar nela os mesmossentimentos. Certa noite, estávamos as duas deitadas lado a lado e ela a pensar outra vez emcomo Granger era divertido, era fixe e divertido, perguntei-lhe o que achava da promessa doPresidente de decapitar pessoalmente qualquer homossexual que encontrasse no país. Ela sorveuo ar entre os dentes e continuou a correr as mensagens: «Esse homem está sempre a dizer umdisparate qualquer. De qualquer maneira, não temos cá gente dessa.» Não relacionou a minha

pergunta com Granger, mas nessa noite eu adormeci a arder de vergonha por ter tãolevianamente tentado destruir a possibilidade de Granger voltar ao país, e em nome de quê? Doprincípio? Sabia quanto Granger tinha gostado de cá estar, mais ainda do que em Paris – e muitomais do que em Londres – e que sentia isso apesar da ameaça existencial que seguramente avisita representava para ele. Tínhamos falado disso muitas vezes, o assunto surgia no meio dotédio das sessões de gravação – sentados os dois na cabine, sorrindo para Aimee através dovidro, nunca prestando atenção ao que ela estava a cantar – e eram estas as conversas maissubstanciais que alguma vez tivera com Granger, como se a aldeia tivesse revelado em nós umarelação que não sabíamos que tínhamos. O que não quer dizer que estivéssemos de acordo ouestabelecêssemos os mesmos paralelos. Onde eu via privação, injustiça, pobreza, Granger viasimplicidade, ausência de materialismo, beleza comunitária – o oposto da América em que tinhasido criado. Onde eu via poligamia, misoginia, crianças sem mãe (a infância da minha mãe nailha, só que ampliada, protegida pela tradição), ele lembrava-se de um quinto andar semelevador, um minúsculo apartamento tipo estúdio com uma mãe deprimida, a solidão, as senhasde racionamento, a ausência de sentido, a ameaça das ruas logo à saída da porta, e falava-me,com lágrimas sinceras nos olhos, de como podia ter sido mais feliz se tivesse sido criado não poruma mulher, mas por quinze.

Um dia em que se dava o caso de estarmos só as duas, Hawa e eu, no pátio, e ela estava afazer-me tranças no cabelo, tentei mais uma vez falar de assuntos difíceis, aproveitando aintimidade do momento para lhe fazer perguntas sobre um rumor que tinha ouvido, a propósitode uma mulher da aldeia desaparecida, aparentemente levada pela polícia, mãe de um rapaz quetinha participado recentemente numa tentativa de golpe. Ninguém sabia onde ela estava, nem oque lhe tinha acontecido. «No ano passado esteve cá uma rapariga, chamava-se Lindsay», disseHawa, como se eu não tivesse dito nada. Foi antes de ter vindo a Aimee e vocês todos, pertenciaao Corpo da Paz e era muito divertida! Jogávamos o Vinte e Um e o Blackjack. Tu jogas cartas?Estou-te a dizer, era muito divertida, pá!» Suspirou, riu-se e esticou-me o cabelo. Desisti. Oassunto preferido de Hawa era Chris Brown, estrela do R&B, mas eu não tinha praticamentenada a dizer sobre Chris Brown e só tinha uma canção dele no meu telemóvel («Essa canção émuito, muito, muito antiga», informou-me) ao passo que ela sabia tudo o que havia a saber sobreo homem, incluindo todos os seus passos de dança. Certa manhã, antes de ela sair para a escola,vi-a no pátio, a dançar com os auscultadores nas orelhas. Vestia o seu uniforme de professoraestagiária, tecnicamente modesto mas ainda assim intensamente sensual: blusa branca, saiacomprida de licra preta, hijab amarelo, sandálias amarelas, relógio amarelo, e colete às riscas,muito justo, que tinha o cuidado de cingir especialmente bem nas costas de modo a realçar acintura fina e o traseiro espetacular. Levantou os olhos de onde estava a admirar os passosrápidos dos seus próprios pés, viu-me e riu-se: «Ai de ti se dizes aos meus alunos!»

Todos os dias dessa visita, eu e Carrapichano íamos à escola e visitávamos as salas de aula de

Hawa e Lamin, tomando notas. Carrapichano concentrava-se em todos os aspetos dofuncionamento da escola, enquanto o meu âmbito era mais limitado: ia primeiro à sala de Lamine depois à de Hawa, à procura das «melhores e mais brilhantes», seguindo instruções de Aimee.Na aula de Lamin, que era de matemática, era fácil: só tinha de tomar nota dos nomes dasraparigas que davam as respostas certas. Porque tudo o que fosse além das somas e subtraçõesultrapassava de facto as minhas capacidades, e via os alunos de dez anos de Lamin multiplicarem

mais depressa do que eu e chegarem a resultados de divisões compridas quando eu ainda malcomeçara a tentar. Pegava na esferográfica e sentia as mãos suadas. Era como viajar no tempo.Via-me de volta à minha aula de matemática, tinha os mesmos sentimentos de vergonha econservava, como vim a verificar, o hábito infantil de me enganar a mim própria, tapando ascontas com a mão quando Lamin passava e conseguindo sempre convencer-me, pelo menos emparte, depois de a resposta aparecer no quadro, de que tinha ficado muito perto de lá chegar, maspor este ou aquele pequeno erro, o insuportável calor da sala, a minha atrapalhação irracional napresença de números...

Era com alívio que deixava Lamin e avançava para a aula de Hawa, sobre assuntos gerais.Nesta tinha decidido procurar as Traceys, ou seja, as mais brilhantes, as mais rápidas, as maisvoluntariosas, as que se chateavam de morte, as conflituosas, as raparigas cujos olhosdardejavam como lasers ao lerem as frases em inglês impostas pelo governo – frases mortas,frases destituídas de conteúdo e significado – que Hawa estava a transcrever laboriosamente agiz para o quadro antes de as traduzir de forma igualmente laboriosa para uolof e as explicarnesta língua. A minha expectativa era encontrar apenas algumas Traceys em cada aula, masdepressa se tornou evidente que naquelas salas quentes havia mais raparigas da tribo de Traceydo que de qualquer outra. Os uniformes de algumas destas raparigas estavam tão usados que jápouco passavam de trapos, outras tinham feridas abertas nos pés ou olhos a supurar, e quando,todas as manhãs, depositavam as propinas em moedas nas mãos dos professores, muitas nãotinham moedas para entregar. Mas nem por isso tinham desistido, estas muitas Traceys. Não secontentavam em cantar as suas respostas a Hawa, que por sua vez, escassos anos antes, se terásentado nestas mesmas carteiras, cantando estas mesmas respostas, então como agora agarradaao manual. Ver todo aquele fogo arder com tão pouca lenha era naturalmente motivo dedesespero. Mas sempre que a conversa se libertava das absurdas algemas inglesas e regressava àslínguas nativas eu voltava a vê-las, as chispas brilhantes de inteligência – quais chamas quelambem uma grelha que pretende refreá-las – assumirem a mesma forma que a inteligêncianatural assume em salas de aula por esse mundo fora: respostas tortas, humor, discussão. Cabia aHawa a desditosa missão de silenciar tudo isto, as naturais manifestações de curiosidade, eobrigar a turma a regressar ao manual governamental que tinha nas mãos, escrever no quadro,The pot is on the fire e The spoon is in the bowl19 com um coto de giz e mandar os alunosrepetirem, e depois escreverem, copiando tudo exatamente, incluindo os erros frequentes daprópria Hawa. Depois de assistir ao doloroso processo durante alguns dias, verifiquei que elanem uma única vez punha os alunos à prova sobre estas frases escritas sem que já tivessem aresposta diante dos olhos, ou tivessem acabado de a repetir, e numa tarde particularmente quentesenti que tinha de ser eu a resolver a questão. Pedi a Hawa que se sentasse no meu lugar, numbanco partido, fui pôr-me de frente para os alunos e mandei-os escrever nos seus cadernos: Thepot is on the fire. Elas olharam para o quadro vazio e depois, expectantes, para Hawa, à espera datradução. Eu não a deixei falar. Seguiram-se dois longos minutos em que as crianças olharamperplexas para os seus cadernos de exercícios parcialmente rasgados, com várias camadas deremendos feitos com velho papel de embrulho. Depois percorri a sala a recolher os cadernos paraos mostrar a Hawa. Uma parte de mim gostou de fazer aquilo. Três raparigas em quarenta tinhamescrito a frase corretamente em inglês. As outras tinham escrito uma palavra ou duas, quasetodos os rapazes não tinham escrito uma única letra, apenas uns vagos resquícios de vogais econsoantes inglesas, sombras de letras, mas não as próprias letras. Hawa acenou com a cabeçaperante cada caderno, sem deixar transparecer a mínima emoção, e então, quando eu acabei,

levantou-se e continuou a aula. Quando tocou a sineta para o almoço atravessei o recreio a correr à procura de Carrapichano,

que estava sentado debaixo da mangueira, tomando notas num bloco, e contei-lhe com umapressa incontida todas as ocorrências da manhã, e as implicações que previa que elas tivessem,imaginando como os meus progressos teriam sido lentos se os meus professores tivessemensinado as matérias do programa em mandarim, por exemplo, apesar de eu não falar mandarimem mais nenhum sítio, os meus pais não falarem mandarim...

Carrapichano pousou a esferográfica e olhou para mim muito sério. «Estou a ver. E o que é que achas que conseguiste?» A princípio pensei que ele não me tinha percebido e repeti tudo desde o início, mas ele

interrompeu-me, batendo um pé no chão de terra. «Pura e simplesmente humilhaste uma professora, em frente dos seus alunos.» A voz dele era calma, mas a cara estava muito vermelha. Tirou os óculos e olhou-me

fixamente, com um ar tão gravemente atraente que conferiu um certo peso à sua posição, comose as pessoas que têm razão fossem sempre mais belas.

«Mas – é que – ou seja, não estou a dizer que seja uma questão de competência, é um“problema estrutural” – é o que tu estás sempre a dizer – e eu só estou a dizer que talvezpudéssemos ter uma aula de inglês, OK, claro, mas devíamos ensiná-los na língua deles na terradeles, e depois podem – podiam, quer dizer, tu sabes, levar testes de inglês para fazerem em casa,como trabalhos de casa ou coisa assim.»

Fernando soltou uma gargalhada amarga e praguejou em português. «Trabalhos de casa! Já foste a casa deles? Vês livros nas prateleiras? Ou mesmo prateleiras?

Ou mesas?» Pôs-se de pé e desatou aos berros: «Que é que pensas que estas crianças fazemquando chegam a casa? Estudam? Pensas que têm tempo para estudar?»

Não se tinha aproximado de mim, mas eu, instintivamente, recuei até ficar encostada ao troncoda mangueira.

«Que estás aqui a fazer? Que experiência tens deste tipo de trabalho? Comportas-te como umaadolescente. Mas já não és nenhuma adolescente, pois não? Não será altura de cresceres?»

Rompi em lágrimas. Tocou algures uma sineta. Ouvi Fernando suspirar com o que me pareceuser compaixão, e por momentos tive uma esperança descontrolada de que ele estava prestes a pôro braço em volta de mim. Com a cabeça apertada entre as mãos ouvi centenas de criançasirromperem das suas salas de aula e atravessarem o pátio a correr, entre gargalhadas e berros, acaminho das aulas seguintes, ou saindo pelos portões para irem ajudar as mães no amanho doscampos, e depois ouvi Carrapichano dar um pontapé na perna da cadeira, derrubando-a eregressando à sala de aula pelo meio do pátio.

19 A panela está ao lume e A colher está na tigela. (N. do T.)

12

O fim do meu ritual de passagem chegou em pleno inverno, altura perfeita para se ser gótico:estamos em sintonia com a desolação que nos rodeia, como aquele relógio que está certo duasvezes por dia. Ia a caminho da casa do meu pai, as portas do autocarro não abriam por causa daaltura de neve que já tinham pela frente, tive de as abrir à força com as minhas luvas pretas depele e apear-me em cima de um monte dela, protegida do frio intenso por umas DMs pretas combiqueira de aço e por camadas de roupa de malha preta e ganga preta, pelo calor do cabelo afroem ninho de pássaro, com o fedor de raramente ser lavado. Tinha-me tornado um animalperfeitamente adaptado ao seu ambiente. Toquei à campainha do meu pai: veio uma jovem abrir.Devia ter vinte anos. Tinha o cabelo penteado em caracóis muito simples, uma cara amorosa emforma de lágrima e uma pele mimosa que brilhava como a pele de uma beringela. Pareciaassustada, sorriu nervosamente, virou costas e chamou pelo nome do meu pai, mas com umsotaque tão cerrado que nem parecia o nome dele. Desapareceu e no seu lugar apareceu o meupai, e não voltou a sair do quarto dele enquanto eu lá estive. Enquanto percorríamos o delapidadocorredor comum, passando pelo papel de parede encaracolado, as caixas de correio enferrujadas,a alcatifa imunda, ele foi-me explicando, como se fosse um missionário e estivesse vagamenterenitente em revelar a verdadeira extensão da sua caridade, que tinha encontrado a rapariga naestação de King’s Cross. «Estava descalça! Não tinha para onde ir, nenhum sítio para viver. É doSenegal, percebes? Chama-se Mercy. Devias ter telefonado a avisar que vinhas.»

Jantei, como de costume, vi um filme antigo – The Green Pastures – e quando chegou a alturade me ir embora, e nem ele nem eu tínhamos dito mais uma palavra sobre Mercy, reparei que eleolhava por cima do ombro para a porta do quarto, mas Mercy não voltou a aparecer, e poucodepois fui-me embora. Não contei à minha mãe nem a ninguém na escola. A única pessoa queachava que compreenderia era Tracey, e havia meses que não a via.

Já tinha reparado que havia mais gente com este dom adolescente de «entrar em espiral

descontrolada», de «sair dos carris», mas, se os outros tinham dentro de si algum mecanismo quelibertavam em tempos de tristeza ou trauma, eu não encontrei nenhum dentro de mim. Pelocontrário, conscientemente, como um atleta que se decide por um novo regime de treino, decidisair dos carris. Mas ninguém me levou a sério, muito menos a minha mãe, porque meconsiderava uma adolescente fiável. Quando outras mães do bairro lhe saíam ao caminho na rua,o que acontecia muitas vezes, a pedir-lhe conselho sobre os seus filhos e filhas transviados,escutava-as amavelmente, mas sem nenhum interesse, e havia alturas em que abreviava aconversa pousando a mão no meu ombro e dizendo qualquer coisa como: «Pois olhe, nós temos

muita sorte. Não temos problemas desses, pelo menos por enquanto.» Tinha esta narrativa de talmodo cimentada na cabeça que qualquer tentativa que eu fizesse para a contradizer era como senão existisse para ela: estava agarrada a uma sombra de mim e seguia essa sombra. E não tinharazão? De facto, eu não era como os meus novos amigos, não era particularmente autodestrutivaou despassarada. Andava sempre com montes de preservativos (desnecessários), tinha pavor deagulhas, demasiado medo de sangue em geral para admitir mutilar-me, parava sempre de beberantes de ficar verdadeiramente incapacitada, tinha um apetite muito saudável, e quando ia fazer aronda dos bares desenfiava-me do meu grupo – ou perdia-me dele de propósito – por volta dameia-noite e um quarto para ir ter com a minha mãe, que tinha a regra de, todas as noites desexta-feira, ir esperar-me exatamente à meia-noite e meia em frente da porta dos artistas doCamden Palace. Entrava no carro dela a barafustar espalhafatosamente contra este sistema, aomesmo tempo que, secretamente, me sentia grata pela sua existência. Assim foi na noite em quesalvámos Tracey, uma noite de Camden Palace. Normalmente, o meu grupinho ia lá a uma noiteindie, o que eu mais ou menos tolerava, mas dessa vez tínhamos ido a um concerto da pesada, deguitarras desenfreadas que distorciam os enormes altifalantes, um barulho infernal, e a certaaltura percebi que não ia aguentar até à meia-noite – apesar de ter batalhado com a minha mãepara obter exatamente esta concessão. Por volta das onze e meia disse que ia ao quarto de banhoe rompi aos tropeções pela velha sala, em tempos um teatro de variedades, descobri um cantonum dos reservados vazios do balcão e tratei de me embebedar com a garrafinha de vodca barataque trazia sempre no bolso da gabardina preta. Ajoelhei-me no veludo rapado de onde ascadeiras tinham sido arrancadas e olhei lá para baixo, para o mosh pit20. Senti uma espécie desatisfação triste ao pensar que naquele momento era muito provavelmente a única pessoa naquelelugar que sabia que Chaplin tinha atuado ali, e Gracie Fields, para não falar dos há muitoesquecidos números de cães, de famílias, de dançarinas de sapateado, de acrobatas, demenestréis. Olhava para todos aqueles miúdos brancos, suburbanos rebeldes, vestidos de preto,que se atiravam uns contra os outros, e imaginava no lugar deles G. H. Elliott, «O Preto Cor deChocolate», vestido de branco da cabeça aos pés, cantando loas à Lua argêntea. Ouvi correr acortina atrás de mim: entrou um rapaz no meu camarote. Era branco, muito magro, talvez daminha idade, nitidamente pedrado, com marcas profundas de acne e cabelo pintado de pretocaído sobre a testa cheia de crateras. Mas tinha uns belos olhos azuis. E pertencíamos os dois àmesma tribo de imitação: usávamos o mesmo uniforme, a ganga preta, algodão preto, malhapreta, cabedal preto. Julgo que nem sequer nos falámos. Ele avançou e eu encarei-o, já dejoelhos, e deitei-lhe a mão à braguilha. Despimo-nos o mínimo possível, deitámo-nos na alcatifaque mais parecia um cinzeiro e ficámos presos pela genitália durante um minuto, mais ou menos,enquanto o resto dos nossos corpos continuava separado, cada qual enfaixado nas suas camadasde preto. Foi a primeira vez na minha vida que o sexo aconteceu sem a respetiva sombra, sem asombra das ideias acerca do sexo ou das fantasias a ele associadas que só com o passar do tempopodem acumular-se. Naquela tribuna tudo foi ainda exploratório, experimental, e técnico nosentido de imaginar exatamente o que estava a acontecer onde. Na altura, isso ainda erapossível.

Parecia mal os góticos beijarem-se, pelo que nos mordemos suavemente no pescoço comovampiros. Depois ele soergueu-se e disse numa voz muito mais afetada do que eu esperava:«Mas não usámos nada.» Para ele também seria a primeira vez? Eu disse-lhe que não fazia mal,numa voz que provavelmente também o surpreendeu, e pedi-lhe um cigarro, que ele me deu soba forma de uma pitada de tabaco, uma Rizla e um quadrado de cartão. Combinámos descer e

beber uma snakebite21 juntos, mas a descer as escadas perdi-me dele numa avalancha que ia asubir, e de súbito desesperadamente necessitada de ar e espaço optei por sair e ir para Camden àhora das bruxas. Toda a gente andava na rua meio embriagada, saindo dos bares, nas suas gangascoçadas e o resto aos quadrados ou em tons de preto, uns sentados no chão em círculos,cantando, tocando guitarra, outros seguindo a indicação de um homem que os mandava paraoutro homem que estava mais abaixo e tinha a droga que o primeiro devia ter, mas não tinha.Sentia-me ao mesmo tempo brutalmente sóbria, sozinha, e ansiosa por que a minha mãeaparecesse. Integrei-me num círculo de desconhecidos, com ar de serem da minha tribo, e enroleio tal cigarro.

Do sítio onde me tinha sentado via a travessa que ia dar ao Jazz Café e espantou-me verificarcomo era diferente a multidão que se acumulava à porta dele, não a sair mas a entrar, e nemtodos bêbedos, porque eram gente que gostava de dançar, que não precisava de se embriagar paraconvencer o corpo a mexer-se. Nada do que vestiam era coçado, nem roto, nem desfigurado comverniz corretor, tudo absolutamente impecável, as mulheres brilhavam e encandeavam, e nãohavia ninguém sentado no chão, pelo contrário, tinham sido feitos todos os esforços no sentidode separar a clientela do chão: os sapatos dos homens tinham almofadas de duas polegadas de ar,e os sapatos das mulheres tinham saltos com o dobro desta altura. Perguntei a mim mesma paraque seria a fila. Talvez alguma mulher negra com uma flor no cabelo fosse cantar para eles.Ainda estive para ir até lá e ver com os meus próprios olhos, mas nessa altura apercebi-me de umalvoroço, à entrada da estação de metro de Mornington Crescent, um problema qualquer entreum homem e uma mulher, gritavam um com o outro, e o homem empurrava a mulher contra aparede, berrava-lhe e mantinha-a presa pela garganta. Os rapazes com quem eu estava sentadanão se mexeram nem se mostraram muito preocupados, continuaram a tocar guitarra ou então aenrolar os seus charros. Foram duas raparigas quem decidiu agir – uma careca abrutalhada e aoutra talvez a namorada dela – e eu levantei-me ao mesmo tempo, não aos berros como elas, masseguindo-lhes rapidamente os passos. Quando nos aproximávamos, porém, a situação tornou-seconfusa, deixou de ser claro se a «vítima» estava a ser agredida ou ajudada – reparámos quetinha as pernas bambas e que o homem estava de certo modo a mantê-la de pé – e todasrefreámos um pouco a nossa aproximação. A rapariga careca ficou menos agressiva, maissolícita, e no mesmo instante percebi que a mulher não era uma mulher, mas sim uma rapariga, eque a conhecia: era Tracey. Corri para ela. Ela reconheceu-me, mas não conseguia falar, limitou-se a estender a mão e sorrir com tristeza. Estava a sangrar do nariz, por ambas as narinas. Sentium cheiro horrível e olhei para baixo e vi vomitado, por toda ela e numa poça no chão. O homemlargou-a e recuou. Eu avancei, segurei-a e chamei-a pelo nome – Tracey, Tracey, Tracey – masela revirou os olhos para dentro da cabeça e senti-lhe o peso em cheio nos braços. Tratando-se deCamden, cada bêbedo e pedrado que passava tinha uma teoria: ecstasy adulterado, desidratação,excesso de álcool, provavelmente uma speedball22. O que era preciso era mantê-la direita, oudeitá-la, ou dar-lhe água, ou abrir espaço e deixá-la respirar, e eu começava a entrar em pânicoquando, rasgando aquele barulho, do outro lado da rua, vinha uma voz muito mais possante, umavoz de verdadeira autoridade, que chamava por Tracey e por mim. A minha mãe, parando à portado Palace conforme combinado, à meia-noite e trinta, no seu pequeno 2CV. Eu acenei-lhe e elavoltou a arrancar e parou ao pé de nós. Confrontada com uma adulta de ar tão decidido e capaz,toda a gente debandou, e a minha mãe nem sequer perdeu tempo a fazer as perguntas que mepareciam necessárias. Separou-nos, deitou Tracey no banco de trás, pôs-lhe a cabeça mais altacom dois dos muitos livros sérios que sempre a acompanhavam, mesmo a meio da noite, e levou-

nos diretas para o St. Mary’s. Eu queria muito contar a Tracey a minha aventura no balcão doteatro, dizer-lhe como, por uma vez, tinha sido verdadeiramente temerária. Entrámos na EdgwareRoad: ela recuperou os sentidos e endireitou-se no assento. Mas, quando a minha mãe tentoucom jeito explicar o que tinha acontecido e para onde íamos, Tracey acusou-nos de a raptarmos,de tentarmos controlá-la, nós que desde sempre tentávamos controlá-la, desde criança, quesempre pensámos que sabíamos o que era melhor para ela, o que era melhor para toda a gente,tínhamos inclusivamente tentado roubá-la à própria mãe, ao próprio pai! A sua raiva crescia naproporção da calma impassível da minha mãe, até que, quando chegámos ao parque deestacionamento da urgência, ela já ia inclinada para a frente no seu lugar, cuspindo-nos nopescoço com a fúria. A minha mãe não se deixou demover nem distrair. Mandou-me pegar naminha amiga pelo lado esquerdo enquanto ela lhe pegava pelo direito e levámos Tracey, meioarrastada e meio obrigada, para a sala de espera, onde, para nossa surpresa, se tornoucompletamente colaborante, sussurrando «speedball» ao ouvido da enfermeira, e depoisesperando com um punhado de compressas contra as narinas até ser vista por um médico. Aminha mãe entrou com ela. Mais ou menos um quarto de hora depois saiu – a minha mãe, queroeu dizer – e disse que Tracey ia ficar a passar a noite, que tinham de lhe fazer uma lavagem aoestômago, e que tinha dito – Tracey tinha dito – uma série de coisas sexualmente explícitas, nomeio do delírio, a um stressado médico indiano que fazia o turno da noite. Ainda só tinha quinzeanos. «Alguma coisa de grave aconteceu àquela rapariga!», murmurou a minha mãe, sorveu o arentre os dentes e curvou-se sobre a secretária para assinar uns papéis in loco parentis.

Neste contexto, a minha ligeira embriaguez não era motivo de preocupação. Vendo a garrafade vodca no meu casaco, a minha mãe tirou-ma, sem discussão, e deitou-a num contentorhospitalar. À saída vi-me refletida no espelho comprido da parede de um quarto de banho paradeficientes que por acaso tinha a porta escancarada naquele momento. Vi o meu desbotadouniforme preto e a minha cara absurdamente coberta de pó-de-arroz – é claro que já a tinha vistoantes, mas não sob a crua iluminação hospitalar, e agora já não era a cara de uma rapariga, erauma mulher que me devolvia o olhar. O efeito foi muito diferente de tudo quanto vira até então àluz fraca da lâmpada roxa, no meu quarto de paredes pretas. Transpus o limiar: renunciei à vidagótica.

20 Área de público junto ao palco. (N. do T.)

21 Bebida de sidra e cerveja. (N. do T.)

22 Injeção intravenosa de cocaína misturada com heroína ou uma anfetamina. (N. do T.)

Quinta parte

NOITE E DIA

1

Estavam sentados frente a frente, num ambiente de grande intimidade, se fosse possívelabstrair dos milhões de pessoas que estavam a assistir. Antes tinham vagueado juntos pelapeculiar casa dele, apreciando os seus tesouros, a sua arte berrante, a sua horrível mobíliadourada, falando disto e daquilo, e a certa altura ele cantou para ela e executou alguns dos seuspassos emblemáticos. Mas nós só queríamos saber uma coisa e finalmente ela parecia preparar-separa lha perguntar, e até a minha mãe, que andava atarefada pela casa e dizia que não estavainteressada, fez uma pausa e sentou-se ao meu lado em frente da televisão e ficou à espera de vero que acontecia. Peguei no comando e aumentei o som. OK, Michael, disse ela, passemos entãoao assunto que mais se discute a teu respeito, acho eu, que é o facto de a cor da tua pele serobviamente diferente da que tinhas quando eras mais novo, e portanto penso que isso temcausado muita especulação e controvérsia a propósito daquilo que fizeste ou fazes...

Ele baixou os olhos, iniciando a sua defesa. A minha mãe não acreditava numa única palavra, enos minutos que se seguiram não consegui ouvir nada do que qualquer deles dizia, só a minhamãe, a discutir com a televisão. Portanto sou um escravo do ritmo, disse ele, e sorriu, apesar deparecer confuso, ansioso por mudar de assunto, e Oprah deixou-o mudar de assunto e a conversacontinuou. A minha mãe abandonou a sala. Pouco depois eu fartei-me e desliguei a televisão.

Tinha dezoito anos. Desde então não voltara a viver com a minha mãe, e já começávamos a

não saber bem como havíamos de nos relacionar nas nossas novas encarnações: duas mulheresadultas que, de momento, ocupavam o mesmo espaço. Ainda éramos mãe e filha? Amigas?Irmãs? Companheiras de casa? Tínhamos horários diferentes, não nos víamos muito, maspreocupava-me a possibilidade de estar a abusar da hospitalidade dela, como um musical que seprolonga demasiado tempo em cartaz. Quase todos os dias ia à biblioteca, tentava estudar para osexames, enquanto ela trabalhava como voluntária, de manhã num centro para jovensproblemáticos e à noite num refúgio para mulheres negras e asiáticas. Não digo que não fizesseeste trabalho por convicção, e não fosse boa no que fazia, mas a verdade é que ambas estasexperiências ficam lindamente no CV de uma pessoa que por acaso é candidata a vereadora naseleições municipais. Nunca a tinha visto tão ocupada. Parecia estar em todos os pontos do bairroao mesmo tempo, envolvia-se em tudo, e toda a gente concordava que o divórcio lhe tinha feitobem, parecia mais nova do que nunca: cheguei a recear que a dada altura, dentro de poucos anos,convergíssemos as duas exatamente na mesma idade. Raramente saía à rua no círculo eleitoraldela sem que viesse alguém ter comigo para agradecer «tudo quanto a tua mãe está a fazer pornós», ou pedindo-me que lhe perguntasse se tinha alguma ideia para a criação de um centro de

ocupação de tempos livres para as crianças acabadas de chegar da Somália, ou que espaço localachava apropriado para uma aula de condução de bicicleta. Não tinha sido eleita para nada, porenquanto, mas as pessoas que nos rodeavam já a tinham coroado.

Um aspeto importante da campanha dela era a ideia de transformar a antiga arrecadação dasbicicletas do bairro num «espaço de encontro da comunidade», o que a fez entrar em conflitocom Louie e o seu bando, que usavam a arrecadação para as suas atividades. A minha mãecontou-me mais tarde que Louie mandou dois rapazes lá a casa para a intimidar, mas ela«conhecia as mães deles» e não teve medo, e eles foram-se embora sem levarem a sua avante.Não me custa a acreditar. Ajudei-a a pintar o barracão de amarelo-vivo e fui com ela dar umavolta pelas empresas locais, à procura de cadeiras empilháveis que já não usassem. O preço daentrada foi fixado em uma libra, com direito a alguns refrescos simples, a Kilburn Books vendialiteratura apropriada numa mesa de cavalete a um canto. Abriu em abril. Todas as sextas-feiras àsseis da tarde apareciam oradores, convidados pela minha mãe, toda a espécie de pessoasexcêntricas do bairro: poetas declamadores, ativistas políticos, conselheiros emtoxicodependência, um académico sem diploma que publicava livros em edições de autor sobreconspirações históricas abortadas; um presunçoso homem de negócios nigeriano que nos fez umapreleção sobre «as aspirações dos negros»; uma angelical enfermeira guianesa que nosevangelizou sobre a manteiga de carité. Foram também convidados muitos oradores irlandeses –em sinal de respeito por essa população original, em rápido desaparecimento – mas a minha mãefazia orelhas moucas às lutas de outras tribos e não hesitava em fazer apresentações pomposas(«Onde quer que se lute pela liberdade, a luta é a mesma!») de uns bandidos com mau aspeto queespetavam bandeiras tricolores na parede do fundo e no fim dos seus discursos faziam circularpela assistência baldes de recolha de donativos para o IRA. Os temas que me pareciam obscurose distantes da nossa situação – as doze tribos de Israel, a história de Kunta Kinte, tudo o quedissesse respeito ao Antigo Egito – eram os mais populares, e muitas vezes, nessas ocasiões,mandavam-me à igreja pedir cadeiras emprestadas ao diácono. Mas quando os oradores falavamdos aspetos mais prosaicos da nossa vida quotidiana – crime no bairro, droga, gravidezadolescente, insucesso escolar – podiam contar apenas com umas quantas jamaicanas idosas queapareciam qualquer que fosse o tema, na verdade apareciam pelo chá e bolachas. Mas eu é quenão podia faltar a uma sessão, tinha de as ouvir a todas, mesmo à do esquizofrénico que entrouna sala com uns grossos maços de notas – presas por elásticos e organizadas segundo um sistemaqualquer que só ele conhecia – e nos falou com grande paixão sobre a falácia racista da evoluçãoque ousava associar o Sagrado Homem Africano ao básico e rasteiro macaco, quando a verdadeera que o Sagrado Homem Africano descendia da luz pura, isto é, dos anjos, cuja existência eraprovada não sei bem como – já me esqueci – pelas pirâmides. De vez em quando falava a minhamãe: nesses dias a sala enchia. O seu tema era o orgulho, sob todas as suas formas. Queria quenos lembrássemos de que éramos belos, inteligentes, competentes, reis e rainhas, senhores de nósmesmos, e, no entanto, quanto mais ela enchia a sala com esta luz persistente, mais clara era anoção que eu tinha da forma e proporções da enorme sombra que, afinal, deve pairar sobre nós.

Um dia sugeriu que eu falasse. Talvez uma jovem chegasse mais facilmente aos jovens. Pensoque andava sinceramente confusa por ver que os seus discursos, apesar de populares, ainda nãotinham evitado que as raparigas engravidassem ou que os rapazes fumassem erva ou desistissemda escola ou fossem roubar. Deu-me uma série de tópicos possíveis, sobre nenhum dos quais eusabia nada, e quando lhe disse isto mesmo ficou furiosa comigo: «O teu problema é que nuncasoubeste o que é lutar!» Entrámos numa longa discussão. Ela atacou as matérias «fáceis» que eu

escolhera estudar, as faculdades «inferiores» a que me candidatara, a «falta de ambição» que, naopinião dela, herdara do outro lado da família. Virei-lhe as costas. Durante um bocado calcorreeia rua principal para cima e para baixo, fumando cigarros, antes de reconhecer o inevitável e irpara casa do meu pai. Mercy já se tinha ido embora havia muito tempo, desde então não houveraoutra, estava a viver outra vez sozinho e parecia-me em baixo, triste como nunca o haviaconhecido. O horário de trabalho – que ainda começava todas as manhãs antes do nascer do Sol –era um novo tipo de problema para ele: não sabia o que havia de fazer das tardes. Homem defamília por instinto, sem família sentia-se completamente perdido, e eu perguntava-me se osoutros filhos, os brancos, alguma vez vinham visitá-lo. Não lhe perguntava – acanhava-me. Omeu medo já não era a autoridade dos meus pais sobre mim, mas sim que eles deitassem cá parafora os seus próprios receios íntimos, a sua melancolia e os seus remorsos. No meu pai já via issoacontecer muito. Tinha-se transformado numa daquelas pessoas sobre as quais em temposgostara de me falar, com quem se cruzava e de quem sempre tivera pena, velhos de pantufas queviam os programas da tarde até começarem os da noite, não se davam praticamente comninguém, não faziam nada. Um dia estava em casa dele quando apareceu Lambert, mas depois deuma breve manifestação de alegria mútua mergulharam no humor sombrio e paranoico dehomens de meia-idade abandonados pelas respetivas mulheres, agravado pelo facto de Lambertnão ter trazido consigo nenhum alívio sob a forma de erva. A televisão continuava ligada e elespassaram a tarde sentados diante dela em silêncio, como dois náufragos agarrados à mesmatábua, enquanto eu dava uma arrumadela à casa.

Por vezes lembrava-me que talvez fazer queixas da minha mãe ao meu pai fosse uma forma dedistração para os dois, uma coisa que podíamos partilhar, mas nunca corria bem, porquesubestimava seriamente o muito que ele continuava a amá-la e a admirá-la. Quando lhe contei doespaço comunitário, e de ela me obrigar a falar lá, disse: «Ah, sim, deve ser um projeto muitointeressante. Uma coisa para toda a comunidade.» Pareceu-me melancólico. Como ficaria feliz,mesmo agora, a arrastar cadeiras pela rua, a afinar o microfone, a mandar calar a assistênciapreparando a entrada da minha mãe em cena!

2

Um monte de cartazes, não fotocopiados mas desenhados à mão, um por um, anunciando umapalestra sobre «A história da dança», foram espalhados pelos prédios do bairro, onde, como tudoo que era informação ao público, rapidamente foram desvirtuados de formas criativas e obscenas,com um primeiro grafito a provocar uma reação, e depois uma reação à reação. Estava eu a afixarum deles num dos acessos ao prédio de Tracey quando senti duas mãos nos ombros – umapressão curta e firme –, virei-me e era ela. Olhou para o cartaz, mas não disse nada sobre ele.Tirou-me os óculos novos, experimentou-os e riu-se da imagem refletida num pedaço distorcidode chapa espelhada que havia ao lado do painel de informações. Riu-se outra vez quando meofereceu um cigarro e eu o deixei cair, e ainda outra vez dos sapatos de corda que eu calçava,roubados do guarda-vestidos da minha mãe. Senti-me como uma espécie de diário que ela tivessedescoberto numa gaveta: uma recordação de uma época mais inocente e inconsciente da sua vida.Atravessámos o pátio e fomos sentar-nos na faixa de relva das traseiras do prédio dela, de frentepara a igreja de S. Cristóvão. Ela apontou com a cabeça para a porta e disse: «Mas aquelas nãoeram danças a sério. Agora estou num nível completamente diferente.» Não duvidei. Perguntei-lhe como ia o estudo para os exames e fiquei a saber que nas escolas como a que ela frequentavanão havia exames, tudo isso tinha acabado aos quinze anos. Enquanto eu estava acorrentada, elaestava livre! Agora tudo dependia de uma «récita de finalistas» a que «assistem quase todos osgrandes empresários», e para a qual também fui renitentemente convidada («Posso tentar pedirque te deixem entrar»), e era nessa altura que os melhores dançarinos eram escolhidos,arranjavam empresário e começavam a ir a audições para a época de outono dos musicais doWest End ou para as companhias itinerantes regionais. Gabou-se disso. Achei-a mais vaidosa emgeral, no tocante ao pai em particular. Estava a construir uma grande casa de família para ela,disse, em Kingston, e em breve iria para lá viver com ele, e de lá era um saltinho até NovaIorque, onde teria a oportunidade de atuar na Broadway, onde apreciavam realmente osdançarinos, não era como cá. Sim, trabalharia em Nova Iorque, mas viveria na Jamaica, ao solcom Louie, e finalmente ver-se-ia livre daquilo que me lembrava de a ter ouvido designar por«este desgraçado país de merda» – como se fosse por mero acaso que sempre cá tinha vivido.

Mas passados uns dias vi Louie, num contexto completamente diferente, em Kentish Town. Iade autocarro, no primeiro andar, vi-o na rua, com um braço em volta de uma mulher muitográvida, daquelas a que costumávamos chamar «uma rapariga popular», com uns grandes brincosdourados em forma de pirâmide, montes de colares e o cabelo imobilizado com fixador numpenteado de caracóis e espigões. Riam-se e trocavam piadas, e a cada passo beijavam-se. Elaempurrava um carrinho com uma criança dos seus dois anos, e levava pela mão outra, de sete ouoito. O meu primeiro pensamento não foi «Quem são estas crianças?» Foi: «Que está o Louie a

fazer em Kentish Town? Porque é que anda a passear em Kentish Town como se cá vivesse?» Omeu pensamento não conseguia ir além de uma milha de raio. Só quando deixei de os ver é quepensei em todas as ocasiões em que Tracey me tinha mentido ou feito bluff a propósito daausência dele – deixou de chorar por causa disso quando era ainda muito pequena – sem nuncaimaginar que ele estivesse sempre tão perto. Não estava no concerto da escola nem noaniversário nem na récita nem no dia do desporto, ou simplesmente em casa para jantar, porqueestava, supostamente, a tratar de uma mãe eternamente doente na zona sul de Kilburn, ou adançar com Michael Jackson ou a milhares de milhas de distância, na Jamaica, a construir a casados sonhos da filha. Mas a conversa unilateral na faixa relvada tinha-me confirmado que nãopodíamos continuar a falar de coisas íntimas. Em vez disso, quando voltei para casa contei àminha mãe o que tinha visto. Ela estava em plena tentativa de fazer o jantar, sempre ummomento stressante do dia, e zangou-se comigo, com uma rapidez e uma intensidadecompletamente desproporcionadas. Não percebi porquê, sabia que ela detestava Louie, porquêentão defendê-lo? Chocalhando panelas a esmo, falando apaixonadamente da Jamaica, e não daJamaica dos nossos dias, antes da Jamaica dos anos de 1800, 1700 e anteriores – Kentish Townda atualidade era posta de parte como uma irrelevância –, falando-me de reprodutores e bodes, defilhos arrancados aos braços das mães, de repetição e regresso, ao longo dos séculos, e dosmuitos homens ausentes da sua ascendência, entre os quais o pai, todos eles fantasmas, nuncavistos ao perto ou com clareza. Afastei-me às arrecuas enquanto ela arengava, até ficar encostadaao calor da porta do forno. Fiquei sem saber o que fazer com tanta tristeza. Cento e cinquentaanos! Fazes ideia do que são cento e cinquenta anos na família de um homem? Estalou os dedose eu pensei em Miss Isabel, a tentar que as crianças entrassem nos ritmos de uma dança. Essetempo todo, disse.

Uma semana depois, na véspera do dia em que eu ia falar, deitaram fogo à arrecadação das

bicicletas, reduzindo-a a uma caixa preta de carvão. Demos a volta com os bombeiros. Cheiravahorrivelmente a todas as cadeiras de plástico que estavam empilhadas contra as paredes, agoraderretidas e amalgamadas. Fiquei aliviada, foi como um ato divino, se bem que todos os indíciosapontassem para mais perto de casa, e os rapazes de Louie não perderam tempo a tomar posse doseu espaço. No dia seguinte ao incêndio, quando eu e a minha mãe saímos juntas, umas quantaspessoas bem-intencionadas atravessaram a rua para lhe manifestarem solidariedade ou tentarempô-la a falar do assunto, mas ela espremia os lábios e olhava para elas como se tivessem ditoalguma coisa desagradável ou pessoal. Penso que a força bruta a exasperava, porque não tinhalugar no seu amado reino da linguagem, e não tinha nada a dizer em resposta a ela. Apesar dassuas tiradas revolucionárias, não creio que a minha mãe tivesse sido muito útil numa revolução asério, quando acabassem as conversas e as reuniões para começar a violência concreta. Em certosentido não acreditava na violência, como se esta fosse, na sua perspetiva, demasiado estúpidapara ser real. Eu sabia – apenas por Lambert – que na infância dela houvera muita violência,emocional e física, mas ela raramente se lhe referia a não ser para lhe chamar «aquele disparate»,ou às vezes «aquelas pessoas ridículas», porque quando ascendeu ao mundo do espírito tudoaquilo que não era a vida do espírito deixou de existir para ela. Louie como fenómenosociológico ou sintoma político ou exemplo histórico ou simplesmente uma pessoa criada namesma pobreza rural opressiva que ela tinha conhecido – uma pessoa que reconhecia, e eu pensoque no seu íntimo compreendia –, com esse Louie, sim, a minha mãe conseguia lidar. Mas da

expressão de profundo desalento no seu rosto quando os bombeiros a levaram a um canto daarrecadação para lhe mostrar onde tinha sido ateado o fogo, por alguém que conheciapessoalmente, com quem tinha tentado argumentar, mas que, mesmo assim, tinha optado pordestruir violentamente aquilo que ela havia criado com tanto amor – dessa expressão nunca maisme esqueci. Louie nem sequer teve de fazer aquilo pessoalmente, e também não precisou deesconder que o tinha mandado fazer. Pelo contrário, fez questão de que se soubesse: era umademonstração de poder. A princípio pensei que o incêndio tinha destruído algo de essencialdentro da minha mãe. Mas poucas semanas depois tinha-se recomposto e convencido o vigário adeixá-la transferir os seus encontros comunitários para a sacristia da igreja. Até certo ponto, oincidente acabou por se revelar útil para a campanha: foi a confirmação literal, visual, do«niilismo urbano» de que tantas vezes ela tinha falado e à volta do qual construiu parte da suacampanha. Pouco depois foi eleita vereadora municipal. E começou assim o segundo ato da suavida, o ato político – que, estou certa, considerava o verdadeiro ato da sua vida.

3

A construção terminou ao mesmo tempo que a estação das chuvas, em outubro. Paracomemorar, foi planeado um evento no novo recreio, meio campo de futebol de terrenodesimpedido. Nós não participámos no planeamento – o comité de ação da aldeia tratou disso – eAimee só chegou na manhã do próprio dia. Mas eu estava no terreno havia duas semanas, e cadavez mais preocupada com a logística, o sistema de som, o tamanho da multidão, e a convicção,partilhada por toda a gente – crianças e adultos, o Al Kalo, Lamin, Hawa, todas as amigas dela –de que o Presidente em pessoa ia comparecer. A origem deste boato não era fácil de localizar.Toda a gente o tinha ouvido da boca de outra pessoa, não era possível obter mais informações, sópiscadelas de olho e sorrisos, já que se supunha que, de uma forma ou de outra, éramos nós, «osamericanos», que estávamos por trás da visita. «Perguntas-me a mim se ele vem?», disse Hawa, arir-se, «mas então tu não sabes?» O boato e a escala do evento depressa passaram a alimentar-semutuamente: primeiro iam participar no desfile três jardins infantis da região, depois cinco,depois quinze. Primeiro era o Presidente que ia estar presente, depois também os do Senegal,Togo e Benim, e por isso à roda de percussão das mães foram acrescentados meia dúzia de griôsque iriam tocar os seus corás de cabo comprido, e uma banda marcial da polícia. Começámos aouvir dizer que viriam autocarros cheios de comunidades de várias outras aldeias, e que umfamoso DJ senegalês atuaria depois dos atos formais. Correndo por baixo destes ruidosos planoshavia outra coisa, um rumor surdo de suspeita e ressentimento, de que a princípio não meapercebi, mas que Fernando detetou imediatamente. É que ninguém sabia exatamente quantodinheiro o pessoal de Aimee tinha transferido para o banco de Serrekunda, e portanto ninguémpodia ter a certeza de quanto Lamin tinha recebido pessoalmente, como ninguém sabia ao certoque parte desse dinheiro ele tinha metido no envelope que mais tarde chegou a casa do Al Kalo,nem quanto tinha deixado naquela casa com Fatu, a nossa ministra das finanças, antes de osobrante ir finalmente parar aos cofres do comité da aldeia. Ninguém acusava ninguém, pelomenos diretamente. Mas todas as conversas, independentemente da forma como começavam,pareciam acabar à volta da questão, normalmente enroscadas em construções de tipo proverbialcomo «A viagem de Serrekunda até aqui é longa» ou «Este par de mãos, depois este, depoisoutro. Tantas mãos! Quem pode manter limpo aquilo em que tantas mãos tocaram?» Fern –como eu agora também o tratava – andava revoltado com a inépcia generalizada: nunca tinhatrabalhado com idiotas tão idiotas como estes de Nova Iorque, só arranjavam problemas e nãotinham a mínima noção dos procedimentos nem das realidades locais. Também ele estavatransformado numa máquina de produção de provérbios: «Numa cheia a água chega a todo olado, não temos de nos preocupar com ela. Numa seca, se quisermos água, temos de a guiarcuidadosamente por cada polegada do seu percurso.» Mas a sua preocupação obsessiva, que

designava por «orientação para os pormenores», já não me incomodava. Todos os dias cometiatantos erros que já não duvidava de que a razão estava do lado dele. Não era possível continuar aignorar a verdadeira diferença entre nós, que ia muito para além da educação superior dele, doseu doutoramento, ou mesmo da sua experiência profissional. Tinha que ver com uma qualidadede atenção. Ele escutava e registava. Era mais aberto. Sempre que o via no meu passeio diáriopela aldeia – que fazia simplesmente pelo exercício e para escapar à claustrofobia da morança deHawa – Fern estava embrenhado em conversas intensas com homens e mulheres de todas asidades e condições, acocorando-se ao pé deles enquanto comiam, acompanhando em passadalarga carroças puxadas por burros, sentado a beber ataya23 com os velhos junto às bancas domercado, e sempre ouvindo com atenção e pedindo mais pormenores, não presumindo nadaenquanto não lhe contassem. Eu comparava tudo isto com a minha maneira de ser. Enfiadasempre que possível no meu quarto húmido, sem falar com ninguém se pudesse evitá-lo, a lerlivros sobre a região à luz de uma lanterna de cabeça e invadida por uma fúria homicida, própriade uma adolescente, contra o FMI e o Banco Mundial, os holandeses que tinham comprado osescravos, os chefes locais que os tinham vendido, e muitas outras abstrações mentais e remotascontra as quais nada podia fazer.

A minha parte preferida de cada dia passou a ser o princípio da noite, quando ia ter com Fern àcasa cor-de-rosa e jantávamos uma refeição simples, preparada para nós pelas mesmas senhorasque cozinhavam para a escola. Uma única tigela de lata, cheia de arroz, umas vezes só com umtomate verde ou uma beringela lá dentro, outras com uma variedade de legumes e um peixe commuito pouca carne mas delicioso em cima, que Fern delicadamente me deixava atacar primeiro.«Agora somos parentes», disse-me, na primeira vez que comemos assim, duas mãos na mesmatigela. «Devem ter concluído que somos da mesma família.» Desde a nossa visita anterior ogerador estava avariado, mas como éramos os únicos a usá-lo Fern considerava isso uma«prioridade baixa» – pela mesma razão que eu o considerava uma prioridade alta – e recusava-sea perder um dia inteiro para ir à cidade procurar um substituto. Por isso agora, quando o sol sepunha, atávamos as pequenas lanternas à cabeça, tendo o cuidado de as usar obliquamente paranão nos encandearmos mutuamente, e conversávamos até altas horas. Fern era boa companhia.Tinha um espírito complexo, subtil, compassivo. Tal como Hawa, não entrava em depressão,mas conseguia isto não afastando o olhar, mas antes olhando de perto, atento a cada passo lógicode cada problema específico, de modo que o problema em si ocupava todo o espaço mentaldisponível. Algumas noites antes da festa, enquanto pensávamos na chegada iminente deGranger e Judy e dos outros – e no fim de uma certa versão pacífica da nossa vida aqui – falou-me de um problema novo que havia na escola: seis crianças que nas últimas duas semanastinham deixado de ir às aulas. Não havia nenhuma relação entre elas. Mas a ausência de todastinha começado, segundo lhe dissera o diretor, no dia em que Fern e eu tínhamos regressado àaldeia.

«Desde que nós chegámos?» «Sim! E eu pensei: mas isso é estranho, porque será? Primeiro faço perguntas por aí. Toda a

gente diz: “Oh, não sabemos. Não deve ser nada. Às vezes as crianças têm de ficar em casa atrabalhar.” Volto ao diretor e peço-lhe a lista dos nomes. Depois percorro a aldeia e vou a casadelas, uma a uma. Não é fácil. Não há endereços, é preciso seguir o faro. Mas descubro as casastodas. “Oh, está doente”, ou “Oh, foi à cidade visitar o primo.” Fico com a sensação de queninguém me diz a verdade. Até que hoje estou a olhar para a lista e penso: lembro-me destesnomes. Vou procurar nos meus papéis e encontro esta lista de microcrédito – lembras-te? – esta

coisa que o Granger fez, por iniciativa própria. É um tipo muito bom, lê um livro sobremicrocrédito... Mas adiante, olho para a lista e verifico que são exatamente as mesmas seisfamílias. Todas as mães são as mulheres a quem o Granger deu os tais financiamentos de trintadólares, para as suas bancas no mercado. Exatamente as mesmas. Aí penso: qual é a relação entreos trinta dólares de financiamento e as crianças desaparecidas? E a relação é óbvia: as mães, quenão podiam pagar a dívida no prazo que o Granger tinha acordado com elas, pensam que odinheiro vai ser tirado, moeda a moeda, das propinas dos filhos, e as crianças vão ficarenvergonhadas! Veem-nos de volta à aldeia, “os americanos”, e pensam: o melhor é as criançasficarem em casa! É inteligente, faz sentido.»

«Pobre Granger. Vai ficar desiludido. A intenção era boa.» «Calma, calma... O problema resolve-se facilmente. Só que para mim é um exemplo

interessante de acompanhamento. Ou de falta de acompanhamento. O financiamento é uma boaideia, acho eu, ou não é uma má ideia. Mas podemos ter de alterar o prazo do reembolso.»

Por uma das janelas sem vidros vi um táxi rural passar ruidosamente na única estrada boa,banhada pelo luar. Trazia miúdos pendurados, apesar da hora tardia, e três rapazes deitados debarriga no tejadilho, segurando um colchão com o peso do corpo. Senti aquela onda de absurdo,de incongruência, que normalmente me invadia de madrugada, deitada sem conseguir dormir aolado de uma Hawa que dormia profundamente, enquanto os galos entravam em parafuso no muroem frente.

«Não sei... Trinta dólares aqui, trinta dólares ali...» «Sim?», disse Fern animadamente – muitas vezes não escolhia o tom certo – e quando levantei

os olhos vi-lhe na cara tanto otimismo e interesse neste problema novo e pequeno que fiqueiirritada. E quis arrumar o assunto.

«Não, quer dizer – repara, vais à cidade, às aldeias aqui em volta, vês esses jovens do Corpo daPaz, os missionários, as ONG, todos esses brancos cheios de boas intenções, preocupados commeia dúzia de árvores – como se ninguém visse a floresta!»

«Agora és tu que estás a falar por provérbios.» Levantei-me e pus-me a remexer ansiosamente nas provisões empilhadas a um canto, à procura

do fogareiro a gás Calor e da chaleira. «Vocês não aceitariam essas... soluções microscópicas nas vossas casas, nos vossos países –

porque é que nós havíamos de as aceitar aqui?» «“Nós”?» estranhou Fern, e depois sorriu. «Espera, espera.» Aproximou-se do sítio onde eu

estava às voltas com a botija de gás e curvou-se para me ajudar a ligá-la ao disco que eu, com airritação, estava a ligar mal. As nossas caras ficaram muito próximas. «“Esses brancos cheios deboas intenções.” Pensas demasiado na raça – nunca te disseram? Mas espera aí: para ti eu soubranco?» Fiquei tão espantada com a pergunta que desatei a rir. Fern afastou-se: «Bem, achointeressante. No Brasil não nos vemos como brancos, percebes? Pelo menos a minha família nãose vê assim. Mas estás a rir-te – isso quer dizer que sim, que pensas que eu sou branco?»

«Oh, Fern...» Quem tínhamos, aqui tão longe, a não ser um ao outro? Desviei a lanterna dosítio onde tinha iluminado a suave preocupação no rosto dele, que afinal não era muito maisclaro do que o meu. «Não creio que aquilo que eu penso seja importante, ou será?»

«É, é», disse ele, voltando à sua cadeira, e apesar da lâmpada sem luz que tínhamos por cimada cabeça pareceu-me vê-lo corar. Concentrei-me em procurar um pequeno e exótico par decopos de vidro marroquinos com uma pinta verde. Ele disse-me um dia que os levava sempreconsigo nas suas viagens, e esta confissão foi uma das poucas concessões ao prazer pessoal, ao

conforto, que alguma vez ouvi da boca de Fern. «Mas não fico chateado, não, acho tudo isto muito interessante», disse, recostando-se na

cadeira e esticando as pernas como um professor universitário no seu gabinete. «Que estamos afazer aqui, que resultado obtemos, que legado vamos deixar, etc. Tudo isto tem de ser pensado,evidentemente. Passo a passo. Esta casa é um bom exemplo.» Estendeu o braço esquerdo e deuuma palmada num feixe de fios à vista na parede. «Talvez tenham pagado ao dono, ou talvez elenão faça ideia de que estamos cá dentro. Quem sabe? Mas agora estamos nós cá dentro e toda aaldeia vê, e por isso toda a gente sabe que, no fundo, a casa não pertence a ninguém, ou pertencea quem o Estado, num impulso, resolver dá-la. Portanto, que irá acontecer quando nos formosembora e a escola nova estiver em pleno funcionamento e passarmos a vir cá menos vezes – oununca mais? Talvez venham para cá viver várias famílias, talvez se transforme num espaçocomunitário. Talvez. O meu palpite é que vai ser desmantelada, tijolo a tijolo.» Tirou os óculos emassajou-os com a bainha da T-shirt. «Sim, primeiro alguém leva os fios, depois o revestimento,depois as telhas, mas no fim não haverá nenhuma pedra que não seja reutilizada. É o meupalpite... posso estar enganado, vamos ter de esperar para ver. Não sou mais engenhoso do queesta gente. Não há ninguém mais engenhoso do que os pobres, onde quer que os encontremos.Quem é pobre tem de pensar bem em todos os passos. A riqueza é ao contrário. Com a riqueza,as pessoas habituam-se a ser imprudentes.»

«Não vejo nenhum engenho numa pobreza como esta. Não vejo nenhum engenho em ter dezfilhos quando nem um se pode sustentar.»

Fern voltou a pôr os óculos e sorriu-me com tristeza. «Os filhos podem ser uma espécie de riqueza», disse. Ficámos algum tempo em silêncio. Eu pensei – embora de facto não quisesse – num reluzente

carro telecomandado que tinha mandado vir de Nova Iorque para um rapazinho do aglomeradode quem gostava particularmente, mas o carro viera com o problema imprevisto das pilhas –imprevisto por mim – para as quais às vezes havia dinheiro, a maior parte das vezes não havia, epor isso o destino do carro foi uma prateleira em que tinha reparado na sala de Hawa, cheia deobjetos decorativos mas basicamente inúteis, oferecidos por visitantes inconscientes, fazendocompanhia a vários rádios sem préstimo, uma bíblia de uma biblioteca do Wisconsin e afotografia do Presidente numa moldura partida.

«Vejo a minha função desta maneira», disse Fern com firmeza, enquanto a chaleira começavaa apitar. «Não faço parte do mundo dela, isso é evidente. Mas estou aqui para, se ela sefartar…»

«Quando ela se fartar…» «A minha função é garantir que alguma coisa de útil cá fique, no terreno, aconteça o que

acontecer, vá-se ela embora quando for.» «Não sei como consegues.» «Consigo o quê?» «Tratar das gotas de água quando vês o oceano.» «Mais um provérbio! Dizias que os detestavas, mas estou a ver que apanhaste o hábito local!» «Tomamos chá ou não?» «De facto é mais fácil», disse ele, enchendo o meu copo com o líquido escuro. «Respeito quem

consegue pensar no oceano. A minha cabeça já não funciona assim. Quando era jovem como tu,talvez, agora não.»

Eu já não sabia se estávamos a falar do mundo inteiro, do continente em geral, da aldeia em

particular ou simplesmente de Aimee, em quem, por muito boas intenções que tivéssemos, pormuitos provérbios, nenhum de nós parecia capaz de pensar com muita clareza.

Acordada quase todos os dias às cinco da manhã pelos galos e pelo chamamento à oração,

habituei-me a voltar a adormecer até às dez horas ou mais, chegando à escola a tempo dasegunda aula, ou da terceira. Mas, na manhã em que Aimee chegava, senti em mim umadeterminação nova de aproveitar o tempo que me restava. Surpreendi-me a mim própria – e aHawa, Lamin e Fern – aparecendo às oito horas, à porta da mesquita, onde sabia que todas asmanhãs eles se reuniam sem mim e iam juntos a pé para a escola. A beleza da manhã foi outrasurpresa: trouxe-me à memória experiências anteriores na América. Nova Iorque foi a minhainiciação nas possibilidades da luz, entrando por frestas nas cortinas, transformando pessoas epasseios e edifícios em ícones dourados, ou em sombras negras, dependendo da sua posição emrelação à luz. Mas a luz em frente da mesquita – a luz que me envolveu enquanto era saudadacomo uma heroína local, pela simples razão de me levantar da cama três horas depois da maioriadas mulheres e crianças com quem vivia –, essa luz era completamente diferente. Zumbia eabraçava-nos no seu calor, era espessa, estuante de pólen e insetos e pássaros, e, como não havianada com mais de um piso de altura a barrar-lhe o caminho, distribuía todas as suas dádivas deuma vez só, abençoando tudo por igual, uma explosão de iluminação simultânea.

«Como se chamam aqueles pássaros?», perguntei a Lamin. «Os brancos pequeninos com obico vermelho-sangue? São lindos.»

Lamin empinou a cabeça e franziu a testa. «Aqueles ali? São só pássaros, não são nada de especial. Acha-los bonitos? No Senegal temos

pássaros muito mais bonitos do que estes.» Hawa riu-se: «Ó Lamin, começas a parecer um nigeriano! “Gostas daquele rio? Em Lagos

temos um muito mais bonito.”» A cara de Lamin franziu-se num irresistível sorriso envergonhado – «Só estou a dizer a

verdade quando digo que temos um pássaro parecido, mas maior. É mais imponente» – e Hawapôs as mãos à cintura estreita e lançou um olhar sedutor a Lamin: vi bem quanto isso o encheu deprazer. Já devia ter percebido. Era claro que Lamin estava apaixonado por ela. Quem não estaria?Agradou-me a ideia, e senti-me vingada. Fiquei ansiosa por dizer a Aimee que ela andava a baterà porta errada.

«Bem, agora pareces um americano», exclamou Hawa. Lançou o olhar pela sua aldeia. «Achoque cada lugar tem a sua quota-parte de beleza, graças a Deus. E este lugar é tão belo comoqualquer outro.» Pouco depois, porém, uma nova emoção perpassou-lhe pela cara bonita, equando olhei para onde me parecia que ela estava a olhar vi um rapaz junto do novo projeto decaptação de água da ONU, lavando os braços até ao cotovelo, e lançando-nos um olharigualmente pensativo. Era evidente que aqueles dois representavam uma espécie de provocaçãomútua. Quando nos aproximámos percebi que já tinha visto outros como ele por aqui e por ali,no ferry, caminhando pelas estradas, muitas vezes na cidade, mas raramente na aldeia. Tinhauma barba densa e um turbante molemente posto à volta da cabeça, transportava um feixe deráfia às costas e as calças tinham um corte estranho, um palmo acima do tornozelo. Hawa correuà nossa frente a cumprimentá-lo e eu perguntei a Lamin quem era.

«É o primo dela, o Musa», disse Lamin, retomando o seu habitual tom sussurrado, desta vezassociado a uma censura ácida. «É azar encontrarmo-lo aqui. Não lhe ligues. Era um vadio e

agora é mashala24, um problema para a família, e não deves ligar-lhe.» Mas, quando alcançámosHawa e o primo, Lamin cumprimentou-o com respeito e mesmo com um certo acanhamento, ereparei que a própria Hawa se sentia inibida na presença dele – como se fosse um ancião e nãopouco mais do que um rapaz – e, lembrando-se de que o lenço lhe tinha escorregado para opescoço, puxou-o para cima até cobrir o cabelo por completo. Hawa apresentou-me Musadelicadamente em inglês. Trocámos um aceno de cabeça. Ele dava a impressão de estar a tentarestabilizar uma certa expressão no rosto, de serenidade benigna, como um rei de um país maisesclarecido em visita. «Como estás, Hawa?», murmurou, e ela, que em resposta àquela perguntatinha sempre muito a dizer, excedeu-se numa descrição atropelada e nervosa: estava bem, as avósestavam bem, vários sobrinhos e sobrinhas estavam bem, os americanos estavam cá, e estavambem, porque a escola ia abrir amanhã à tarde, e ia haver uma grande celebração, o DJ Khali iaatuar – Musa lembrava-se daquele dia na praia a dançar ao som de Khali? Oh, pá, aquilo é quefoi divertido! – e vinha gente do lado nascente do rio, do Senegal, de toda a parte, porque aquiloque estava a acontecer era uma coisa maravilhosa, uma escola nova para as raparigas, porque aeducação é uma coisa muito importante, especialmente para as raparigas. Esta parte era paramim, e eu sorri em concordância. Musa anuiu com a cabeça, pareceu-me um pouco nervoso comtudo aquilo, mas, agora que finalmente Hawa se tinha calado, virou-se ligeiramente, mais paramim do que para a prima, e disse em inglês: «Infelizmente não vou estar presente. Tocar e dançaré Satã. Como tantas outras coisas por estes lados, é aadoo, tradição, não é religião. Neste paíspassamos a vida a dançar. Tudo serve de pretexto para dançar. De qualquer maneira, parto hojeem khuruj para o Senegal.» Baixou os olhos para as sandálias simples de cabedal que tinhacalçadas, como se quisesse verificar se estavam prontas para a caminhada que as esperava. «Voulá por Da’wah, para convidar e chamar.»

Perante isto Lamin riu-se, com grande sarcasmo, e o primo de Hawa respondeu-lherispidamente em uolof – ou talvez fosse em mandinga – e Lamin retorquiu a Musa, e este àquele,enquanto eu, ali parada, fazia o sorriso idiota de quem não compreende uma palavra.

«Sentimos muito a tua falta, Musa!», exclamou Hawa de repente em inglês, com verdadeirasinceridade, abraçando o magro braço esquerdo do primo como se fosse o máximo que podiaabraçar nele, e ele acenou várias vezes, mas não respondeu. Pensei que ia separar-se de nós nestaaltura – a discussão com Lamin parecera-me uma daquelas que impunham a separação imediata– mas afinal seguimos juntos até à escola. Musa pôs as mãos atrás das costas e começou a falar,numa toada baixa, calma e agradável que me pareceu um sermão, que Hawa escutavarespeitosamente mas Lamin estava sempre a interromper, com cada vez maior energia e volume,num estilo que nem parecia dele. Comigo esperava que acabasse cada frase, e deixava passarlongos intervalos de silêncio antes de responder, silêncios em que me habituei a pensar comocemitérios de comunicação, onde qualquer coisa embaraçosa ou desagradável que pudesse terdito era sepultada. Este Lamin zangado, conflituoso, era-me tão estranho que me dava a sensaçãode não querer que o visse em ação. Acelerei ligeiramente o passo, e quando já levava algunsmetros de avanço deles todos virei-me a ver o que estava a acontecer e verifiquei que tambémeles tinham parado. Musa segurava Lamin pelo pulso: estava a apontar-lhe para o grande relógioparado e a dizer qualquer coisa muito solene. Lamin retirou o braço, com cara de quemprotestava, e Musa sorriu como se tudo aquilo tivesse sido agradável, ou pelo menos necessário,apertou a mão de Lamin apesar da aparente discussão, deixou que Hawa lhe abraçasse outra vezo braço, fez-me um aceno de cabeça do outro lado da estrada e voltou para trás pelo mesmocaminho.

«Musa, Musa, Musa...», disse Hawa, abanando a cabeça enquanto se juntava a mim. «Agoracom o Musa é tudo nafs – é tudo uma tentação – nós somos uma tentação. É muito estranho,somos da mesma idade, brincámos sempre juntos, era como um irmão. Lá em casa gostávamosmuito dele, ele gostava muito de nós, mas não podia ficar. Somos muito antiquados para ele.Quer ser moderno. Quer viver na cidade: só ele, uma mulher, dois filhos e Deus. E tem razão:quando se é rapaz e se vive alegremente com a família, é difícil ser-se puro. Eu gosto de viveralegremente – oh, não consigo viver de outra maneira, mas talvez quando for mais velha», disse,olhando para o corpo como o primo tinha olhado para as sandálias, com curiosidade, como sepertencessem a outra pessoa: «Talvez quando for mais velha seja mais ajuizada. Veremos.»

Parecia relativamente divertida, a pensar na Hawa que era agora e na Hawa que podia vir a ser,mas Lamin estava agitado.

«Aquele maluco anda a dizer a toda a gente “Não rezes assim, reza assado, cruza os braçossobre o corpo, não os deixes cair!” Até às pessoas de família chama Sila keeba25 – critica aprópria avó! Mas que quer isso dizer, “velho muçulmano”, “novo muçulmano”? Somos um sópovo! Diz à avó: “Não, não se deve fazer uma grande cerimónia de batizado, faz-se umacerimónia pequena, sem música, nem dança – mas ela é do Senegal –, quando nasce uma criança,dançamos!”»

«No mês passado», começou Hawa, e eu preparei-me para o grande discurso, «a minha primaFatu teve o primeiro filho, Mamadu, e havias de ver como isto estava nesse dia, tínhamos cincomúsicos, tocando por todo o lado, a comida era tanta – Oh! Não consegui comer tudo, fiquei comdores de tanto comer, e de tanto dançar, e a minha prima Fatu estava a ver o irmão dançarcomo…»

«E agora o Musa está casado», interrompeu Lamin. «E como foi que se casou? Praticamentesem ninguém a assistir, sem comida – a tua avó chorou, passou vários dias a chorar!»

«É verdade, as nossas avós adoram cozinhar.» «“Não uses amuletos, não vás aos –”, chamamos-lhes marabus – e de facto eu não vou», disse

Lamin, mostrando-me, não sei porquê, a mão direita e virando-a. «Provavelmente em certosaspetos sou diferente do meu pai, do pai dele, mas vou dizer aos meus mais velhos o que devemfazer? E o Musa disse à própria avó que não pode ir?!»

Lamin estava a falar comigo, e eu, embora não soubesse o que era um marabu ou por querazão alguém iria a um, fingi-me indignada.

«Estão sempre a ir lá –», confidenciou-me Hawa, «as nossas avós. A minha avó trouxe-meisto.» Levantou o pulso e eu admirei uma bela pulseira de prata com um pequeno amuletopendurado.

«Alguém é capaz de me mostrar onde é que está escrito que respeitar os mais velhos épecado?», exigiu Lamin. «Ninguém consegue mostrar-me. Agora quer levar o segundo filho parao hospital “moderno” em vez de o levar para o mato. A decisão é dele. Mas porque é que o rapaznão há de ter uma cerimónia de iniciação? O Musa vai dar mais um grande desgosto à avó,acreditem. Mas eu vou consentir que um rapaz do gueto que não fala árabe me diga isto e maisaquilo? Aadoo, Satã – são as únicas palavras árabes que sabe! Andou numa escola demissionários católicos! Eu sei de cor todos os hadiths26, todos os hadiths. Não, não.»

Foi o discurso mais longo, mais consistente e mais acalorado de quantos ouvi a Lamin, e atéele me pareceu surpreendido, parando por um segundo e limpando o suor da testa a um lençobranco, dobrado, que guardava para o efeito no bolso de trás.

«O que eu digo é que sempre haverá diferenças entre as pessoas» – começou Hawa, mas

Lamin voltou a interrompê-la: «E então disse-me» – Lamin apontou para o relógio avariado –,«“Esta vida não é nada em comparação com a eternidade, a vida que estás a viver é só o meiosegundo antes da meia-noite. Eu não vivo para esse meio segundo, mas sim para o que vem aseguir.” Mas ele pensa que lá por rezar com os braços cruzados sobre o peito é melhor do queeu? Não. E disse-lho: “Eu sei árabe, Musa, e tu, também sabes?” Acreditem, o Musa é umhomem em estado de confusão.»

«Lamin...», disse Hawa, «penso que estás a ser um bocadinho injusto, o Musa só quer praticara jiade, e não há mal nenhum em…»

A minha cara deve ter feito um esgar estranho: Hawa apontou-me para o nariz e desatou a rir. «Olha para ela! Oh, pá! Pensa que o meu primo quer ir matar pessoas – oh, pá, essa tem graça

–, um mashala nem sequer uma escova de dentes tem, quanto mais uma arma – ha ha ha!» Lamin, menos divertido, apontou para o peito e retomou os sussurros: «Acaba-se o reggae,

acaba-se o convívio no gueto, acaba-se a marijuana. É isso que ela quer dizer. Antigamente, oMusa usava rastas – sabes o que é isso? OK, usava rastas compridas, até aqui! Mas agora está natal jiade interior. É isso que ela quer dizer.»

«Quem me dera ser pura como ele», declarou Hawa, suspirando docemente. «Oh, oh... é bomser puro – provavelmente!»

«Pois claro que é», disse Lamin, franzindo a testa. «Todos tentamos praticar a jiade, todos osdias, à nossa maneira, o melhor que podemos. Mas não é preciso cortar as calças e insultar a avó.O Musa veste-se como um indiano. Não precisamos cá deste imã estrangeiro – temos osnossos!»

Tínhamos chegado ao portão da escola. Hawa endireitou a saia comprida, deslocada pelocaminhar, até voltar a assentar-lhe direita nas ancas.

«Porque é que ele usa as calças assim?» «Curtas, queres tu dizer?», disse Hawa enfadada, com aquele dom que tinha para me fazer

sempre sentir que havia feito a pergunta mais óbvia do mundo. «Para não lhe arderem os pés noinferno!»

Nessa noite, debaixo de um céu estranhamente claro, ajudei Fern e uma equipa de voluntários

a instalar trezentas cadeiras e erguer toldos brancos por cima delas, a içar bandeiras em postes e apintar «BEM-VINDA AIMEE» numa parede. Aimee, Judy, Granger e a rapariga das RP estavama dormir no hotel de Banjul, exaustos da viagem, ou por não quererem vir para a casa cor-de-rosa, não se sabia. À nossa volta, o Presidente era o tema de todas as conversas. Éramosmetralhados vezes sem conta com as mesmas piadas: até que ponto sabíamos, ou afirmávamosnão saber, ou qual de nós sabia mais. Ninguém falava de Aimee. O que eu não conseguiaperceber no meio deste frenesim de rumores e contrarrumores era se uma visita do Presidente eraesperada com ansiedade ou com terror. É a mesma coisa quando ouvimos falar de umatempestade que se aproxima da cidade, explicou Fern, enquanto enterrávamos na areia as pernasmetálicas das cadeiras dobráveis. Mesmo que tenhamos medo temos curiosidade em vê-la.

23 Chá verde. (N. do T.)

24 Seguidor do movimento islâmico Tablighi Jama’at, que preconiza a missionação itinerante feita por leigos (khuruj). (N. doT.)

25 Antiquadas. (N. do T.)

26 Relatos dos episódios da vida de Maomé. (N. do T.)

4

Era manhã cedo e eu estava com o meu pai na estação de King’s Cross, numa das nossasviagens de última hora para visitar uma universidade. Acabáramos de perder o comboio, nãoporque tivéssemos chegado tarde mas porque o preço do bilhete era o dobro do que eu dissera aomeu pai que seria, e enquanto discutíamos o que fazer a seguir – vai agora um de nós, o outromais tarde, ou não vai nenhum, ou vamos os dois noutro dia, fora do horário mais caro – ocomboio tinha partido sem nós. Estávamos ainda a discutir acesamente diante do painel dechegadas e partidas quando avistámos Tracey, que subia a escada rolante do metro. Que visão!Calças de ganga impecavelmente brancas e botinhas de salto alto pelo tornozelo e casaco decabedal cingido ao corpo e com o fecho subido até ao queixo: parecia uma armadura de corpointeiro. O humor do meu pai alterou-se. Levantou os dois braços como um sinaleiro de aeroportoa orientar um avião. Vi Tracey caminhar na nossa direção de uma forma estranhamente formal,formalismo que escapou completamente ao meu pai, que a abraçou como fazia antigamente, semnotar a rigidez do corpo dela junto ao seu ou a imobilidade hirta dos braços. Soltou-a eperguntou-lhe pelos pais, e como estava a correr-lhe o verão. Tracey deu uma série de respostasfrias que, aos meus ouvidos, não continham nenhuma informação. Vi que a cara dele seensombrava. Não propriamente por aquilo que ela estava a dizer, mas pela forma como o dizia,um estilo totalmente novo que nada parecia ter que ver com a rapariga rebelde e corajosa que elejulgava ter conhecido. Um estilo que pertencia a uma rapariga completamente diferente, de umbairro diferente, um mundo diferente. «Que é que te ensinam nessa escola maluca», perguntouele, «lições de elocução?» «Sim», disse Tracey com sobranceria e empinou o nariz, e eraevidente que queria que o assunto ficasse por ali, mas o meu pai, que nunca foi muito bom acaptar sinais, não desistiu. Continuou a espicaçá-la, e Tracey, para se defender da troça dele, pôs-se a enumerar as muitas aptidões que estava a desenvolver nas suas aulas de verão de dança eesgrima, nas aulas de danças de salão e de teatro, aptidões que não eram necessárias no bairro,mas indispensáveis para quem queria atuar naquilo que então se chamava o «palco de WestEnd». Eu tive curiosidade de saber, mas não perguntei, de onde lhe vinha o dinheiro para tudo.Enquanto ela se dirigia a mim, o meu pai ficou a olhá-la fixamente e de repente interrompeu-a.«Mas estás a brincar, não estás, Trace? Deixa-te disso – só aqui estamos nós! Não precisas de tearmar em fina connosco. Nós conhecemos-te, já te conhecemos desde que eras desta altura,connosco não tens de fingir que és marquesa!» Mas Tracey ficou nervosa, pôs-se a falar cada vezmais depressa, num tom de voz novo e estranho com que terá pensado que ia impressionar o meupai em vez de o irritar, um tom que não era bem controlado e numa frase em cada duas resvalavaartificialmente para o nosso passado comum para depois avançar desajeitadamente para o seupresente misterioso, até que o meu pai perdeu completamente a compostura e desmanchou-se a

rir na cara dela, em plena estação de King’s Cross, diante de todos aqueles passageiros habituaisda hora de ponta. Não fez aquilo por mal – estava simplesmente divertido – mas eu percebi queela ficou magoada. Verdade se diga, porém, que desta vez Tracey não deu largas ao seu maufeitio. Com dezoito anos já era perita na arte de deixar fermentar a raiva que é própria dasmulheres mais velhas, guardando-a para usar mais tarde. Desculpou-se delicadamente com umaaula que ia ter.

Em julho, Miss Isabel telefonou à minha mãe para lhe perguntar se eu e Tracey queríamos ser

voluntárias na sua récita de fim de verão. Fiquei vaidosa: quando éramos pequenas, as ex-alunaseram como deusas para nós, com as suas pernas compridas e a sua independência, trocandorisadinhas e cochichos de adolescentes enquanto recebiam os nossos bilhetes, faziam girar atômbola, serviam snacks, entregavam prémios. Mas aquela manhã dolorosa em King’s Crossainda estava fresca na minha memória. Sabia que a recordação que Miss Isabel tinha da nossaamizade havia ficado paralisada no tempo, mas não suportava a ideia de destruir a imagem queela guardava. Disse que sim através da minha mãe e fiquei à espera de saber a resposta deTracey. No dia seguinte, Miss Isabel voltou a telefonar: Tracey tinha aceitado. Mas nenhuma denós telefonou à outra ou fez qualquer tentativa de contacto. Só a vi na manhã da récita, quandoresolvi demonstrar a minha superioridade e ir a casa dela. Toquei duas vezes à campainha.Depois de uma pausa estranhamente longa, foi Louie quem veio abrir. Fiquei surpreendida: pelosvistos, surpreendemo-nos mutuamente. Limpou um pouco de suor que tinha entre o bigode e onariz e perguntou-me bruscamente o que queria. Sem ter tempo de responder, ouvi Tracey, numavozinha esquisita – quase não a reconheci – gritar ao pai que me mandasse entrar, e Louieacenou e deixou-me passar, mas foi para o lado oposto, saindo de casa e seguindo pelo corredorexterior. Vi-o descer as escadas a correr, atravessar o relvado e desaparecer. Virei-me para ointerior do apartamento, mas Tracey não estava no corredor, nem na sala de estar, nem nacozinha: tive a sensação de que saía de cada compartimento um momento antes de eu lá chegar.Fui encontrá-la no quarto de banho. Ia jurar que tinha estado a chorar, mas não tinha a certeza.Disse olá. Ao mesmo tempo ela baixou rapidamente os olhos, fixando-os no sítio do corpo paraonde eu estava a olhar, esticando o top até voltar a cobrir-lhe por completo o sutiã. Saímos asduas do quarto de banho e descemos as escadas. Eu não tinha palavras, mas Tracey nunca perdiao pio, nem mesmo em situações extremas, e agora tagarelava num estilo vivo e cómico, sobre as«cabras escanzeladas» que tinha de enfrentar nas audições, os novos passos que tinha deaprender, o problema de projetar a voz para lá da ribalta. Falava depressa e sem pausas, para nãodeixar nenhuma fresta por onde eu pudesse meter uma pergunta, e com isso conseguiu quepercorrêssemos em segurança o caminho entre o bairro e a igreja, onde Miss Isabel nos esperava.Deu um par de chaves a cada uma, mostrou-nos como se fechava o cofre e onde se guardava,como se fechava e abria a igreja antes e depois, e outras pequenas coisas práticas. Enquantodávamos a volta ao espaço, Miss Isabel fez uma série de perguntas sobre a nova vida de Tracey,sobre os pequenos papéis que já estava a conseguir na escola e os grandes papéis que esperavaconseguir um dia. As perguntas tinham qualquer coisa de belo e inocente. Percebia-se queTracey queria ser a rapariga de quem Miss Isabel se lembrava, com uma vida organizada esimples, só com metas à sua frente, brilhantes e claras e sem nada a atravessar-se no caminho.Assumindo o papel desta rapariga, atravessou o espaço que conhecíamos da nossa infância,desfiando recordações, tendo o cuidado de encurtar as vogais, de mãos atrás das costas, como

uma turista deambulando por um museu, observando os testemunhos de uma história dolorosa,uma turista sem nenhum apego àquilo que está a ver. Quando chegámos às traseiras da igreja,onde as crianças faziam fila para o sumo e bolachas, todas levantaram os olhos para Tracey comindisfarçável admiração. Tinha o cabelo apanhado num coque de dançarina e um saco dosPineapple Studios ao ombro, caminhava com os pés virados para fora, era o sonho que ambastivéramos, uma década antes, quando fazíamos fila para o sumo neste mesmo sítio, miúdas comoestas. A mim ninguém me prestou grande atenção – até as crianças percebiam que já não eradançarina – e Tracey parecia feliz por se ver rodeada de todas estas pequenas admiradoras. Paraelas era bela e crescida, invejavelmente talentosa, livre. E ao olhar para ela assim até eu meconvenci facilmente de que tinha andado a imaginar coisas.

Atravessei a sala e recuei no tempo, até chegar junto do Sr. Booth. Continuava sentado no seucoçado banco de piano, um pouco mais velho, mas para mim não tinha mudado nada, e tocavaum tema intemporal: «Have Yourself a Merry Little Christmas.» E foi então que aconteceuaquela coisa espontânea que, pela sua irrealidade, leva as pessoas a detestarem os musicais, oupelo menos é o que me dizem quando digo que gosto deles: começámos a fazer música juntos,sem trocarmos impressões nem ensaiarmos. Ele sabia a música, eu sabia a letra. Falava dosamigos fiéis. Tracey virou-se para mim e sorriu, um sorriso melancólico mas afetuoso, ou talvezsó transportasse a memória do afeto. Vi a rapariga de sete, oito, nove, dez anos, adolescente,mulherzinha. Todas estas versões de Tracey vieram ter comigo através dos anos do salão daigreja para me fazerem uma pergunta: Que vais fazer? Pergunta para a qual ambas já sabíamos aresposta. Nada.

5

Mais parecia o anúncio do fim de um regime velho do que a inauguração de uma escola. Umcontingente de jovens soldados envergando uma farda azul ocupava o centro do recinto, com osseus instrumentos de metal, transpirando brutalmente. Não havia nenhuma sombra e já levavamuma hora em posição. Eu estava sentada a cerca de cem metros deles, debaixo do toldo, com afina-flor de toda a região superior do rio, alguma imprensa local e internacional, Granger e Judy,mas não o Presidente, e também não Aimee, por enquanto. Chegaria com Fern, quando tudoestivesse pronto e as pessoas nos seus lugares: um processo moroso. Lamin e Hawa, que nãopertenciam à fina-flor, haviam sido relegados para um sítio recuado, longe de nós, porque ahierarquia dos lugares era rígida. Mais ou menos de quinze em quinze minutos, Judy, ou às vezesGranger, ou às vezes eu, sugeríamos que alguém tinha de dar água àqueles pobres soldadosmúsicos, mas nenhum de nós o fez, e mais ninguém o fez. Entretanto avançaram os jardinsinfantis, cada um com o seu uniforme distintivo, bibes, camisas e calções em inesperadascombinações de cores – laranja e cinzento, ou roxo e amarelo – conduzidos por pequenos gruposde mulheres, as professoras, que não se tinham poupado a esforços em matéria de elegância. Asprofessoras do jardim infantil de Kunkujang Keitaya vestiam T-shirts vermelhas justas e calçasde ganga pretas com bolsos debruados a diamantes de imitação e cabelo penteado em laboriosastranças. As professoras do jardim infantil de Tujereng envergavam vestidos soltos e lenços decabeça de padrão vermelho-e-laranja a condizer e sandálias de plataforma brancas, todasparecidas. Cada equipa adotava um esquema diferente da equipa vizinha, mas, tal como asSupremes, mantinham uma uniformidade perfeita dentro do seu grupo. Entravam pelo portãoprincipal, atravessavam o recreio bamboleantes, com as crianças atrás, de rosto fechado – comose não ouvissem os nossos aplausos – e, quando chegavam ao local que lhes estava destinado,duas mulheres, muito sérias, desenrolavam uma faixa artesanal com o nome da escola escrito eficavam a segurá-la, mudando o peso do corpo de uma anca para a outra enquanto a esperaprosseguia. Acho que nunca vi tantas mulheres escandalosamente bonitas num sítio só. Tambémeu me tinha esmerado na indumentária – Hawa disse-me com firmeza que a roupa de caqui elinho amarrotado que usava normalmente não era adequada – vestindo uma saia branca-e-amarela e um top da minha anfitriã que, por me ficar demasiado pequeno, não conseguia apertaratrás e tive de disfarçar o que faltava com um grande lenço vermelho sobre os ombros, apesar deestarem trinta e nove graus, pelo menos.

Finalmente, quase duas horas depois de nos termos sentado, toda a gente que devia estar norecreio estava no recreio, e Aimee, rodeada de uma multidão que se acotovelava para lhe dar asboas-vindas, foi conduzida por Fern ao lugar de honra. Dispararam flashes. E a primeira coisaque perguntou, virando-se para mim, foi: «Onde está o Lamin?» Não tive hipótese de lhe

responder: soaram as trompas, era a altura do acontecimento principal e, recostando-me nacadeira, perguntei-me se não teria compreendido mal tudo aquilo que tinha tanta certeza de havercompreendido nas duas semanas anteriores. Entretanto tinha entrado em cena um desfile derapazinhos em trajes de fantasia, todos de sete ou oito anos, vestidos de chefes de estadosafricanos. Vinham vestidos com panos kente e túnicas e colares de Nehru e fatos de safari, cadaum com o seu séquito, constituído por outros rapazinhos que tinham sido fantasiados deseguranças: fato escuro e óculos escuros, falando para walkie-talkies de brincar. Muitos dospequenos chefes tinham ao seu lado pequenas esposas, que balançavam pequenas carteiras, sebem que Lady Libéria viesse sozinha e o Presidente da África do Sul com três esposas, de braçodado atrás dele. Pelas caras da multidão dir-se-ia que nunca na vida tinha visto nada maisdivertido, e Aimee, que também achava aquilo hilariante, limpou as lágrimas dos olhos antes deestender os braços para abraçar o Presidente do Senegal ou beliscar a bochecha do Presidente daCosta do Marfim. As altas personalidades desfilaram diante dos infelizes e transpirados soldados,e depois diante dos nossos lugares, onde acenaram e posaram para fotografias, mas não sorriramnem falaram. Então a banda interrompeu os toques de trombeta de boas-vindas e atacou umaestridente versão do hino nacional para instrumentos de sopro. As nossas cadeiras vibraram.Virei-me e vi entrar dois enormes veículos troantes pelo chão de terra do recreio: o primeiro eraum SUV como aquele em que tínhamos viajado quatro meses antes, e o segundo um jipe depolícia a sério, tão fortemente armado que parecia um tanque. Talvez uma centena de crianças eadolescentes corriam a par destes veículos, atrás, por vezes à frente, mas sempre perigosamenteperto das rodas, vitoriando e gritando. No primeiro, de pé irrompendo pelo teto de abrir, vinhauma versão de oito anos do Presidente, no seu imponente bubu branco e cófio também branco,empunhando o seu bastão. A semelhança tinha sido levada o mais longe possível: o rapazinhoera negro como o Presidente e tinha cara de sapo como ele. Ao seu lado ia uma espampanantemenina de oito anos, mais ou menos com o meu tom de pele, de peruca e coleante vestidovermelho, que atirava punhados de notas de Monopólio à multidão. Agarrados aos lados do carroiam mais seguranças pequenos, com óculos de sol pequenos e armas pequenas, que apontavam àscrianças, algumas das quais abriam garbosamente os braços para exporem os troncos pequenos àpontaria dos seus pares. Duas versões destes seguranças em adulto, com o mesmo aspeto massem armas, pelo menos que eu visse, corriam aos lados do carro, filmando tudo nas suas câmarasde vídeo de último modelo. No jipe da polícia que vinha atrás, os pequenos polícias com armasde brincar partilhavam o espaço com polícias de verdade e Kalashnikovs de verdade. Tanto ospolícias pequenos como os grandes traziam as armas a apontar para o ar, para gáudio dascrianças, que corriam atrás do jipe e tentavam trepar-lhe para a traseira, para chegarem aondeestava o poder. Os adultos no meio dos quais eu me sentava pareciam divididos entre os vivasjubilosos – sempre que as câmaras rodavam e os filmavam – e os gritos de terror perante aameaça permanente de colisão dos veículos com os seus filhos em corrida. «Afasta-te», ouvi umpolícia a sério gritar a um rapaz persistente ao lado da roda direita, pedinchando guloseimas. «Oupassamos-te por cima!»

Finalmente, os veículos estacionaram, o Presidente em miniatura apeou-se e dirigiu-se aopódio e pronunciou um breve discurso de que não consegui ouvir uma palavra, por causa do ecodos altifalantes. Mais ninguém ouviu, mas toda a gente se riu e aplaudiu no fim. Ocorreu-me que,se o Presidente em pessoa tivesse vindo, o efeito não teria sido muito diferente. Umademonstração de poder é uma demonstração de poder. Depois subiu Aimee ao pódio, disse umaspalavras, deu um beijo no homenzinho, tirou-lhe o bastão das mãos e brandiu-o no ar, no meio de

grandes aplausos. Estava inaugurada a escola. Mais do que passarmos desta cerimónia formal para uma festa separada, foi a cerimónia formal

que se dissolveu instantaneamente para dar lugar a uma festa. Todos quantos não haviam sidoconvidados para a cerimónia invadiram o recreio, o perfeito alinhamento colonial das cadeirasdesfez-se, cada um tratou de se instalar onde podia. As vistosas professoras encaminharam assuas turmas para zonas com sombra e distribuíram-lhes o almoço, que tiraram, quente e bemfechado em grandes panelas, daqueles enormes sacos de compras aos quadrados que também sevendem no mercado de Kilburn, símbolo internacional das pessoas poupadas e viajadas. Nocanto mais setentrional das instalações, a prometida instalação sonora começou a tocar. Estavamlá todas as crianças que conseguiam escapar aos adultos ou não tinham nenhum adulto a olharpor elas, a dançar. Achei aquilo jamaicano, uma espécie de sala de baile, e como, pelos vistos,me tinha perdido de toda a gente na transição súbita, deixei-me ficar por ali a assistir ao baile.Havia dois modelos. O dominante era uma imitação irónica das mães: dobradas sobre os joelhos,acocoradas, o traseiro espetado, atentas aos pés com que marcavam o ritmo no chão. Mas de vezem quando – principalmente se viam que eu estava a observá-las – a dança saltava para outrostempos e lugares que me eram mais familiares, até ao hip-hop e à ragga, até Atlanta e Kingston,e então via as crianças espernearem, sacudirem o corpo, arrastarem os pés, rodopiarem. Umrapaz bonito e de sorriso travesso, que não tinha mais de dez anos, sabia uns passosparticularmente obscenos e executava-os em movimentos curtos e rápidos, de modo que a cadapasso as raparigas que o rodeavam escandalizavam-se, gritavam, corriam a esconder-se atrás deuma árvore, para logo voltarem para o verem dançar mais um pouco. O rapaz estava de olho emmim. Apontava constantemente na minha direção, berrando qualquer coisa por cima da música,que eu não percebia bem: «Danças? É pena! Danças? Dança! É pena!» Aproximei-me um poucomais, sorri e disse que não com a cabeça, embora ele soubesse que eu estava a considerar essapossibilidade. «Ah, estás aqui», disse Hawa, por trás de mim, enfiou-me o braço e levou-me devolta ao nosso grupo.

Debaixo de uma árvore reuniam-se Lamin, Granger, Judy, os nossos professores e algumascrianças, todos chupando pequenas pirâmides, envoltas em papel aderente, de sumo de laranja ouágua gelada. Comprei uma de água à rapariguinha que estava a vendê-las e Hawa ensinou-me arasgar um canto com os dentes e chupar o líquido. Quando acabei olhei para o invólucroespremido que tinha na mão, como um preservativo vazio, e vi que não havia sítio para o pôr anão ser no chão, e percebi que estas bebidas em forma de pirâmide deviam ser a origem de todosaqueles plásticos retorcidos que pejavam as ruas, os ramos das árvores, infestando bairros,acumulando-se em todos os arbustos como se fossem flores. Meti a minha ao bolso para adiar oinevitável e fui sentar-me entre Granger e Judy, que estavam a meio de uma discussão.

«Eu não disse isso», sibilou Judy. «O que disse foi: “Nunca vi nada assim.”» Fez uma pausapara chupar ruidosamente a bebida gelada. «E raios me partam se não é verdade!»

«Pronto, está bem, talvez eles também nunca tenham visto algumas das palermices que nósfazemos. O Dia de São Patrício. Mas que porra é essa do Dia de São Patrício?»

«Ó Granger, eu sou australiana – e basicamente budista. Não podes atirar-me com o Dia deSão Patrício.»

«O que eu quero dizer é isto: nós amamos o nosso Presidente...» «Alto aí! Fala por ti!»

«… porque é que estas pessoas não haviam de respeitar e amar a porra dos seus líderes? Que sepassa contigo? Não podes chegar aqui sem conhecer o contexto e pores-te a fazer juízos…»

«Ninguém gosta dele», disse uma jovem de olhar vivo que estava sentada em frente deGranger com um vestido puxado para baixo até à cintura e um filho ao seio direito que entretantomudou, dando-lhe o esquerdo. Tinha uma cara bonita e inteligente e era pelo menos dez anosmais nova do que eu, mas os seus olhos tinham a mesma expressão de experiência que eucomeçara por ver em antigas colegas de escola durante tardes longas e desconfortáveis em que asvisitava e aos seus filhos desinteressantes, e aos maridos ainda mais desinteressantes. Era umacamada de ilusão juvenil que desaparecia.

«Tantas mulheres jovens», disse ela, baixando a voz, tirando uma das mãos de debaixo dacabeça do filho e abarcando a multidão com um gesto de indiferença. «Mas onde estão oshomens? Rapazes, sim – mas homens feitos? Não. Ninguém aqui gosta dele, nem do que temfeito. Quem pode vai-se embora. Dai o salto, dai o salto, dai o salto, dai o salto.» Enquantofalava apontava para alguns rapazes que dançavam perto de nós como se tivesse o poder de osfazer desaparecer. Sorveu o ar entre os dentes, como a minha mãe costumava fazer. «Acreditem,se eu pudesse também dava o salto!»

Granger, que de certeza, tal como eu, estava convencido de que esta mulher não falava inglês –ou pelo menos não conseguia acompanhar as variações dele e de Judy sobre a língua –, acenavaagora a cada palavra que ela dizia, quase antes de a dizer. Toda a gente que estava perto – Lamin,Hawa, alguns jovens professores, outras pessoas que eu não conhecia – murmuravam eassobiavam, mas sem acrescentarem mais nada. A jovem bonita endireitou-se na cadeira,reconhecendo-se como alguém que de repente era investida com o poder do grupo.

«Se gostassem dele», disse, agora sem sussurrar, mas também, segundo reparei, sem nunca onomear, «não estariam aqui, connosco, em vez de se atirarem à água ao encontro da morte?»Baixou os olhos e compôs o mamilo, e eu fiquei a pensar que «eles», naquele caso, talvez nãofosse uma abstração, mas sim alguém com um nome, uma voz, uma relação com o bebé quetinha nos braços.

«Dar o salto é loucura», sussurrou Hawa. «Cada país tem a sua luta», disse Granger – ouvi um eco invertido daquilo que Hawa me havia

dito de manhã. «Lutas sérias na América. Para nós, negros. Por isso nos faz bem à alma estarmosaqui, convosco.» Falava devagar, refletidamente, do fundo da alma, que afinal tinha bem nomeio dos peitorais. Deu a impressão de que ia chorar. Por instinto, virei-me de costas, para lhedar privacidade, mas Hawa olhou-o nos olhos e, pegando-lhe na mão, disse: «Vejam como oGranger nos sente verdadeiramente» – ele apertou-lhe a mão com força – «não só com o cérebro,mas também com o coração!» Um remoque pouco subtil dirigido a mim. A mulher jovem edeterminada assentiu com a cabeça, ficámos todos à espera de mais, parecia que só ela podia darum significado final ao episódio, mas o filho tinha acabado de mamar e o discurso dela tinhaterminado. Puxou o vestido amarelo para o sítio e levantou-se para pôr o filho a arrotar.

«É fantástico termos a nossa irmã Aimee connosco», disse uma das amigas de Hawa, umamulher jovem e expressiva chamada Esther que, como eu já tinha notado, detestava o silêncio.«O nome dela é conhecido no mundo inteiro! Mas agora é uma de nós. Vamos ter de lhe dar umnome da aldeia.»

«Sim», disse eu. Estava a observar a mulher do vestido amarelo que tinha falado.Encaminhava-se agora para o baile, de costas muito direitas. Tive vontade de ir atrás dela econversar mais um pouco.

«Ela está aqui agora? A nossa irmã Aimee?» «O quê? Oh, não... acho que teve de ir dar entrevistas, ou coisa assim.» «Oh, é espantoso. Conhece o Jay-Z, conhece a Rihanna e a Beyoncé.» «Pois conhece.» «E conhece o Michael Jackson?» «Conhece.» «Achas que ela também é dos Illuminati? Ou só tem conhecidos Illuminati?» Eu ainda via a mulher de amarelo, que se distinguia no meio de tantas outras, até que passou

por trás de uma árvore e das retretes e não voltei a vê-la. «Eu não... Sinceramente, Esther, não me parece que nada disso exista.» «Está bem», disse Esther, imperturbável, como se tivesse dito que gostava de chocolate e eu

que não gostava. «Aqui, para nós, existe, porque não há dúvida de que tem muito poder. Por cáouvimos falar muito disso.»

«Existe», confirmou Hawa, «mas nesta Internet, acreditem, não se pode confiar em tudo. Porexemplo, o meu primo mostrou-me fotografias de um branco, na América, que é do tamanho dequatro, tão gordo ele é! Eu disse: “És muito parvo, isto não é uma fotografia de verdade, pá! Nãoé possível, não pode existir ninguém assim.” Estes miúdos são tolos. Acreditam em tudo o queveem.»

Quando regressámos à morança já era noite, iluminada pelas estrelas. Dei o braço a Lamin e

Hawa e tentei espicaçá-los um bocadinho. «Não, não, apesar de eu lhe chamar Pequena Esposa», protestou Lamin, «e ela me chamar

Senhor Marido, a verdade é que somos apenas da mesma idade.» «Flirt, flirt, flirt», disse Hawa, flirtando, «e mais nada!» «E mais nada?», perguntei, abrindo a porta com um pontapé. «De certeza?» «De certeza», disse Lamin. Na morança ainda havia muitas crianças pequenas acordadas que correram para Hawa,

radiantes, tal como ela ficou radiante por as receber. Eu apertei a mão às quatro avós, o que tinhade se fazer sempre como se fosse a primeira vez, e cada uma inclinou-se para mim para tentardizer-me qualquer coisa importante – ou, para ser mais exata, diziam-me mesmo coisasimportantes, que eu, no entanto, não compreendia – e então, quando as palavras falhavam, comosempre acontecia, puxavam-me ligeiramente pelo vestido para o extremo do alpendre.

«Oh!», disse Hawa, avançando com um sobrinho nos braços, «mas está cá o meu irmão!» Na verdade, era meio-irmão e não o achei muito parecido com Hawa, não era bonito como ela

e não tinha nenhum dos seus encantos. Tinha uma cara séria e amável, redonda como a dela mascom duplo queixo, uns óculos elegantes e uma forma de vestir perfeitamente neutra que medizia, antes de ser ele a dizer-mo, que devia ter vivido na América. Estava de pé na varanda,bebendo uma grande caneca de Lipton, com um cotovelo apoiado no parapeito da parede decimento. Contornei o pilar para ir cumprimentá-lo. Apertou-me a mão calorosamente, mas com acabeça atirada para trás e um meio-sorriso, como se quisesse dar ao gesto um tom de ironia. Fez-me lembrar alguém – a minha mãe.

«E pelo que vejo estás a viver cá na morança», disse, e acenou para a azáfama tranquila quenos rodeava, para o sobrinho chorão nos braços de Hawa, que agora voltava a soltá-lo no pátio.«Mas como é que a vida da aldeia te está a tratar? Penso que para poderes apreciá-la

devidamente tens primeiro de te habituar às circunstâncias.» Em vez de lhe responder, perguntei-lhe onde tinha aprendido aquele inglês perfeito. Ele sorriu

formalmente, mas o olhar endureceu-lhe brevemente por trás das lentes. «Aqui. Somos um país anglófono.» Hawa, sem saber o que fazer nesta situação embaraçosa, abafou uma risadinha com a mão. «Estou a gostar muito», disse eu, corando. «A Hawa tem sido muito amável.» «Gostas da comida?» «É verdadeiramente deliciosa.» «É uma comida simples.» Bateu na barriga bojuda e entregou a caneca vazia a uma rapariga

que ia a passar. «Mas às vezes o que é simples é mais saboroso do que o complicado.» «É isso mesmo.» «Portanto, em conclusão, é tudo bom?» «É tudo bom.» «Uma pessoa demora algum tempo a aclimatar-se a esta vida rural de aldeia, como disse. Até

para mim, e nasci cá.» Alguém me deu para a mão uma tigela de comida, apesar de já ter comido, mas, como tinha a

sensação de que tudo o que fazia diante do irmão de Hawa estava a ser apresentado como umaespécie de teste, aceitei-a.

«Mas não podes comer assim», protestou ele, e quando fiz menção de pousar a tigela no murodisse: «Vamos sentar-nos.»

Lamin e Hawa deixaram-se ficar encostados ao muro, enquanto nós nos sentávamos em doisbancos artesanais ligeiramente instáveis. Livre dos olhares de todos os presentes no pátio, oirmão de Hawa descontraiu-se. Contou-me que tinha frequentado uma boa escola na cidade,perto da universidade onde o pai ensinava, e dessa escola tinha concorrido a um lugar numauniversidade privada quacre no Kansas que concedia dez bolsas por ano a estudantes africanos, etinha conseguido uma delas. Concorrem milhares de candidatos, mas ele entrou, gostaram dotrabalho que apresentou, embora tivesse sido há tanto tempo que já quase não se lembrava dotema. Licenciou-se e trabalhou como economista em Boston, mais tarde viveu em Mineápolis,Rochester e Boulder, tudo cidades que numa altura ou noutra eu tinha visitado com Aimee, enenhuma tinha alguma vez significado alguma coisa para mim, mas agora descobria que queriaouvir falar sobre elas, talvez porque um dia passado na aldeia me parecia um ano – ali, o tempodesacelerava drasticamente – de tal maneira que até as calças creme e a T-shirt de golfe vermelhado irmão de Hawa pareciam capazes de inspirar em mim uma ternura melancólica de exilada.Fiz-lhe uma quantidade de perguntas específicas sobre o tempo que passou naquele que não erabem o meu país, enquanto Lamin e Hawa continuavam de pé ali perto, excluídos da conversa.

«Mas porque é que tiveste de te vir embora?», perguntei-lhe, num tom mais lamentoso do quedesejaria. Ele lançou-me um olhar sagaz.

«Nada me obrigou. Podia ter lá ficado. Regressei para servir o meu país. Regressei porquequis. Trabalho no Tesouro.»

«Ah, no governo.» «Sim. Mas para ele o Tesouro é uma espécie de mealheiro pessoal... És uma rapariga

inteligente. De certeza que já ouviste falar disso.» Tirou do bolso uma tira de pastilha elástica eesteve muito tempo a desembrulhá-la. «Compreendes, quando digo “servir o meu país” querodizer todo o povo, não apenas um homem. Compreenderás também que, de momento, estamosde mãos atadas. Mas não vão ficar assim para sempre. Amo o meu país. E, quando as coisas

mudarem, ao menos estarei cá para ver.» «Agora só cá estás um dia, babu!», protestou Hawa, lançando os braços em volta do pescoço

do irmão. «E eu quero falar contigo sobre o drama que se passa neste pátio – deixa lá a cidade!» Irmão e irmã encostaram afetuosamente as cabeças. «Ó mana, não tenho dúvida de que a situação aqui é mais complicada – espera, gostava de

terminar o que estava a dizer à nossa hóspede preocupada. Sabes, a minha última paragem foiNova Iorque. És de Nova Iorque, não és?»

Eu disse que sim: era mais fácil. «Então sabes como é, como funciona o sistema de classes na América. Francamente, aquilo era

demasiado para mim. Quando cheguei a Nova Iorque já levava a minha dose. É claro que cátambém temos um sistema de classes – mas não temos o desprezo.»

«O desprezo?» «Vejamos – esta morança em que estás, por exemplo. Aqui vive a nossa família. Bem, para

dizer a verdade, uma parcela muito pequena dela, mas serve para exemplificar. Talvez aches queeles vivem muito simplesmente, vivem numa povoação rural. Mas nós somos foros, de origemnobre, pelo lado da minha avó. Algumas pessoas que vais conhecer – o diretor da escola, porexemplo, é um nyamalos, o que significa que pertence a um povo de artesãos – dedicam-se adiversas profissões, ferreiros, peleiros, etc. Outras... Lamin, a tua família é jali, não é?»

Uma expressão extremamente tensa perpassou pela cara de Lamin. Confirmou com um acenomínimo e olhou para cima e para longe, para a enorme Lua cheia que ameaçava enfiar-se pelosramos da mangueira.

«Músicos, contadores de histórias, griôs», disse o irmão de Hawa, imitando o dedilhar de uminstrumento. «Ao passo que outros são jongos. Na nossa aldeia há muitos descendentes dejongos.»

«Não sei o que isso é.» «Descendentes de escravos.» Sorriu enquanto me olhava de cima a baixo. «Mas a minha ideia

é que aqui as pessoas ainda podem dizer: “É claro que um jongo é diferente de mim, mas eu nãoo desprezo.” Aos olhos de Deus temos a nossa diferença, mas também a nossa igualdadeessencial. Em Nova Iorque vi gente da classe baixa ser tratada como nunca imaginei que fossepossível. Com total desprezo. Servem à mesa e as pessoas nem sequer estabelecem contactovisual com eles. Acredita ou não, eu próprio era às vezes tratado assim.»

«Existem muitas formas diferentes de pobreza», murmurou Hawa, num súbito assomo deinspiração. Estava a meio da tarefa de apanhar do chão um monte de espinhas de peixe.

«E de riqueza», disse eu, e o irmão de Hawa, com um ténue sorriso, concordou.

6

Na manhã a seguir à récita a campainha tocou, muito cedo, mais cedo que um carteiro. EraMiss Isabel, em lágrimas. Os cofres tinham desaparecido, com quase trezentas libras lá dentro, enão havia sinais de arrombamento. Alguém tinha lá entrado durante a noite. A minha mãe, emrobe, sentou-se na borda do sofá, a esfregar os olhos contra a luz da manhã. Eu fiquei a ouvir nocorredor, presumida inocente desde o primeiro momento. A conversa era sobre o que fazer comTracey. Pouco depois mandaram-me entrar e interrogaram-me e eu contei a verdade: fechámosas portas às onze e meia, empilhámos as cadeiras todas, e no fim eu e Tracey fomos cada umapara seu lado. Pensei que ela tinha enfiado a chave por baixo da porta, mas é claro que pode tê-lametido ao bolso. A minha mãe e Miss Isabel viraram-se para mim enquanto eu falava, masouviram sem grande interesse, impassíveis, e quando acabei viraram-se outra vez uma para aoutra e retomaram a conversa. Quanto mais ouvia, mais alarmada ia ficando. Para mim, havia nacerteza delas qualquer coisa de obscenamente complacente, tanto quanto à culpa de Tracey comoquanto à minha inocência, apesar de compreender, racionalmente, que Tracey devia estarenvolvida, de uma forma ou de outra. Ouvi as teorias delas. Miss Isabel achava que Louie deviater roubado a chave. A minha mãe tinha igual certeza de que Tracey lha tinha dado. Não acheiestranho, na altura, que nenhuma delas considerasse a possibilidade de chamar a polícia. «Comaquela família...», disse Miss Isabel, e aceitou um lenço de papel para limpar os olhos. «Quandoela aparecer no centro», prometeu-lhe a minha mãe, «vou ter uma conversa com ela.» Foi aprimeira vez que ouvi dizer que Tracey frequentava o centro de juventude, aquele em que aminha mãe fazia voluntariado, e ela olhou para mim, embaraçada. Levou uns instantes arecuperar o sangue-frio, mas sem me olhar nos olhos começou a explicar com cuidado que,«depois do incidente com a droga», tinha naturalmente tratado de conseguir aconselhamentogratuito para Tracey, e não me tinha dito nada por razões de «confidencialidade». Nem à mãe deTracey tinha dito. Agora percebo que nada disto era particularmente irrazoável, mas na alturaimaginei conspirações maternas por todo o lado, manipulações, tentativas de controlar a minhavida e a vida das minhas amigas. Fiz um escarcéu e fui enfiar-me no quarto.

Depois disso, tudo aconteceu rapidamente. Miss Isabel, na sua inocência, foi falar com a mãede Tracey e foi mais ou menos expulsa do apartamento, regressando ao nosso com ar abalado, acara mais corada que nunca. A minha mãe voltou a mandá-la sentar e foi fazer chá, masmomentos depois ouvimos o barulho da porta da rua a bater no caixilho: a mãe de Tracey,impelida pela sua fúria indomada a atravessar a estrada, subiu as escadas e irrompeu pela sala,onde permaneceu o tempo suficiente para proferir uma contra-acusação, terrível, visando o Sr.Booth. Falava tão alto que eu ouvi-a através do teto. Desci as escadas a correr e fui direita a ela,que enchia a soleira da porta, desafiadora, transpirando desprezo – por mim. «Tu e a merda da

tua mãe», disse. «Sempre pensaram que eram melhores do que nós, sempre acharam que tu erasa porra de uma menina de ouro, mas afinal não és nada disso, pois não? A minha Tracey é que é,e o que vocês as duas têm é inveja, e eu antes quero morrer do que permitir que se atravessem nocaminho dela, tem uma vida inteira pela frente e vocês não vão travá-la com mentiras, nenhumade vocês vai conseguir isso.»

Nunca nenhum adulto me tinha falado daquela maneira, como se me desprezasse. Segundo ela,eu estava a tentar destruir a vida de Tracey, e a minha mãe a mesma coisa, e o mesmo estavam afazer Miss Isabel e o Sr. Booth, e várias outras pessoas do bairro, e todas as mães ciumentas daaula de dança. A chorar, corri pelas escadas acima e ela berrou: «Chora à vontade, minhamenina!» Já do andar de cima ouvi bater a porta da rua e durante várias horas tudo ficou calmo.Antes do jantar, a minha mãe foi ao meu quarto e fez-me uma série de perguntas delicadas – aúnica vez em que o assunto do sexo foi explicitamente levantado entre nós – e eu deixei tão claroquanto possível que o Sr. Booth nunca tinha posto um dedo em mim ou em Tracey, nem ele nemninguém, tanto quanto sabia.

Não serviu de nada: ao fim da semana foi proibido de continuar a tocar piano na aula de dançade Miss Isabel. Não sei o que lhe aconteceu depois disso, se continuou a viver no bairro, oumudou de casa, ou morreu, ou ficou simplesmente destruído pelos boatos. Pensei na intuição daminha mãe – «Alguma coisa de grave aconteceu àquela rapariga!» – e senti que, como decostume, tinha razão, e que, se tivéssemos feito as perguntas certas a Tracey, no momento certo ecom maior delicadeza, talvez ela nos tivesse contado a verdade. Mas não, escolhemos mal omomento, encostámo-las à parede, a ela e à mãe, e elas reagiram como seria de prever, com umafúria que levou à frente tudo o que encontrou pelo caminho – neste caso o pobre Sr. Booth. E nósconseguimos uma coisa parecida com a verdade, muito parecida, mas não exatamente averdade.

Sexta parte

DIA E NOITE

1

Nesse outono, feitos os exames finais do secundário, entrei na universidade que era a minhasegunda escolha para estudar comunicação social, a meia milha do calmo e cinzento Canal daMancha, numa paisagem que recordava das minhas férias de infância. O mar era orlado por umapraia de seixos feita de muitas pedras castanhas e tristes, aqui e ali uma grande, azul-clara,pedaços de conchas brancas, osso de coral, fragmentos brilhantes fáceis de confundir com coisasde valor que afinal eram apenas cacos de vidro ou de louça. Levei comigo a minha atitudeprovinciana, juntamente com uma planta num vaso e vários pares de sapatos desportivos,convicta de que todas as pessoas que se cruzassem comigo na rua ficariam de boca aberta aoverem alguém como eu. Mas alguém como eu não era afinal uma visão tão rara quanto isso. DeLondres e Manchester, de Liverpool e Bristol, nas nossas calças largas e blusões de ganga, comos nossos caracolinhos ou cabeças rapadas ou coques bem apertados e a brilhar de fixador, com anossa orgulhosa coleção de bonés. Naquelas primeiras semanas gravitávamos em torno uns dosoutros, passeando juntos pela marginal num grupo defensivo, preparados para os insultos, mas oshabitantes locais nunca se mostravam tão interessados em nós como nós próprios. O ar salgadogretava-nos os lábios, não havia onde ir arranjar o cabelo, mas «Andas na faculdade?» era umapergunta delicada e sincera, nunca um ataque ao nosso direito de estar ali. E havia outrasvantagens, inesperadas. Aqui tinha uma «bolsa de subsistência», que dava para pagar aalimentação e a renda, e os fins de semana saíam baratos –não havia para onde ir nem nada para fazer. Passávamos o tempo livre juntos, no quarto uns dosoutros, fazendo perguntas sobre os nossos passados, com uma delicadeza que achávamosadequada a pessoas em cujas árvores genealógicas só se podia recuar um ramo ou dois antes dese mergulhar na obscuridade. Havia uma exceção, um rapaz, ganês: era descendente de umalonga linhagem de médicos e advogados e sofria diariamente por não estar em Oxford. Mastodos os outros, que estávamos apenas a um passo, no máximo dois, de pais mecânicos e mãesmulheres da limpeza, de avós domésticas e avôs condutores de autocarro, continuávamos a acharque tínhamos operado o milagre, que éramos os «primeiros na família a ir», e isso já nos bastava.Se a instituição era quase tão recente como nós, era mais uma vantagem. Não havia um passadoacadémico ilustre, não tínhamos de nos desbarretar diante de toda a gente. As matérias eramrelativamente novas – Estudos de Comunicação Social, Estudos de Género – como novos eramos nossos quartos, e o corpo docente jovem. Cabia-nos inventar o lugar. Eu pensava em comoTracey se refugiara cedo naquela comunidade de dançarinos, nos ciúmes que sentira, mas agora,pelo contrário, sentia alguma pena dela, o seu mundo parecia-me infantil, uma simples forma derepresentar com o corpo, ao passo que eu só tinha de ir até ao fundo do corredor para assistir auma aula com um título do género «Pensar o corpo negro: uma dialética», ou dançar alegremente

nos quartos dos meus amigos, até altas horas da noite, e não ao som dos velhos númerosmusicais, antes ao som da nova música, Gang Starr ou Nas. Agora, quando dançava, não tinha deobedecer a regras antigas de posição ou estilo: mexia-me como me apetecia, como os ritmosqueriam que me mexesse. Pobre Tracey: os ensaios madrugadores, a angústia na balança, asdores no peito dos pés, a submissão do corpo jovem ao juízo dos outros! Comparada com ela, euera muito livre. Aqui ficávamos acordados até tarde, comíamos quanto queríamos, fumávamoserva. Ouvíamos a idade de ouro do hip-hop, sem nos apercebermos na altura de que estávamos aviver uma idade de ouro. Aprendia as letras com quem sabia mais do que eu e levava tanto asério estas lições informais quanto aquilo que ouvia nas salas de aula. Era o espírito do tempo:aplicávamos alta teoria a anúncios de champô, filosofia a vídeos dos NWA27. No nosso círculorestrito, o importante era sermos «conscientes», e depois de vários anos a alisar o cabelo à forçacom o pente aquecido deixava-o agora frisar e encaracolar livremente, e passei a trazer aopescoço um pequeno mapa de África em que os países maiores eram feitos com retalhos de pelepreta e vermelha, verde e dourada. Escrevia trabalhos longos e emocionados sobre o fenómenodo «Pai Tomás».

Quando, perto do fim daquele primeiro período, a minha mãe veio passar quatro dias comigopensei que ela ia ficar muito impressionada com tudo isto. Mas tinha-me esquecido de que nãoera bem como os outros, não era de facto a «primeira da família a ir». Nesta corrida deobstáculos a minha mãe levava-me um de avanço, e tinha-me esquecido de que aquilo que paraos outros era suficiente para ela nunca era. Passeando juntas pela praia na derradeira manhã dasua estada, começou uma frase que até eu percebi que de certo modo lhe escapara, ultrapassandoem muito aquela que fora a sua intenção, mas mesmo assim disse-a, comparou o curso queacabava de completar com aquele que eu estava a iniciar, disse que a minha faculdade era um«hotel disfarçado», não era nenhuma universidade, era apenas uma ratoeira com crédito paraestudos destinada a jovens incautos, filhos de pais que não estudaram, e eu fiquei furiosa,tivemos uma discussão horrível. Disse-lhe que não se incomodasse a voltar a visitar-me, e elanão voltou.

Pensava que ia ficar inconsolável – como se tivesse cortado cerce o único cordão que me

ligava ao mundo – mas essa sensação nunca chegou. Tinha, pela primeira vez na minha vida, umnamorado, e andava tão completamente ocupada com ele que achava que podia suportar a perdade tudo o resto. Era um jovem ponderado, chamado Rakim – tinha adotado o nome do rapper – ea sua cara, comprida como a minha, tinha um tom de pele mais escuro, com dois olhos muitopenetrantes, muito negros, incrustados nela, um nariz proeminente e um lábio superiorinesperado, delicadamente feminino, que fazia lembrar Huey P. Newton. Usava rastas escorridasaté aos ombros, Converse All Stars fizesse chuva ou sol, óculos redondos pequenos à Lennon. Euachava-o o homem mais belo do mundo. Ele também se achava. Considerava-se um «cinco porcento», isto é, um verdadeiro Deus – como Deuses eram todos os filhos varões de África – e aprimeira vez que me explicou o conceito o meu pensamento inicial foi que devia ser muitoagradável uma pessoa considerar-se um Deus vivo, muito relaxante! Mas não, pelos vistos eraum fardo pesado: não era fácil carregar a verdade enquanto tanta gente vivia na ignorância,oitenta e cinco por cento das pessoas, para sermos exatos. Mas piores do que os ignorantes eramos maliciosos, os dez por cento que sabiam tudo quanto Rakim afirmava saber mas trabalhavamativamente para denegrir e subverter a verdade e com isso mais facilmente manterem na

ignorância os oitenta e cinco por cento e terem ascendente sobre eles. (Neste grupo deimpostores perversos Rakim incluía todas as igrejas, a própria Nação do Islão, a comunicaçãosocial, o «sistema».) Tinha na parede um belo cartaz antigo dos Panthers, em que o grande felinoparecia prestes a saltar sobre quem olhava para ele, e falava frequentemente da vida violenta nasgrandes cidades americanas, do sofrimento do nosso povo em Nova Iorque e Chicago, emBaltimore e LA, sítios aonde eu nunca havia ido e tinha dificuldade em imaginar como seriam.Às vezes tinha a impressão de que esta vida de gueto – apesar de ficar a três mil milhas dedistância – era mais real para ele do que a calma e agradável paisagem marítima em que de factovivíamos.

Havia alturas em que a angústia de ser um Poor Righteous Teacher28 chegava a seresmagadora. Corria as persianas do quarto, fumava erva logo ao acordar, faltava às aulas, pedia-me encarecidamente que não o deixasse sozinho, passava horas a estudar o Alfabeto Supremo e aMatemática Suprema, que aos meus olhos eram apenas cadernos e cadernos de apontamentoscheios de letras e números em combinações incompreensíveis. Noutras alturas parecia a pessoacerta para a tarefa de iluminação global. Sereno e sabedor, sentado no chão com as pernascruzadas, distribuindo chá de hibisco pelo nosso pequeno círculo, «espalhando ciência»,meneando suavemente a cabeça ao som do seu homónimo que se ouvia na aparelhagem. Nuncatinha conhecido um rapaz como ele. Os rapazes que havia conhecido não tinham paixões,paixões de verdade, não podiam dar-se a esse luxo: o importante para eles era o ato de nãoquererem saber. Estavam numa competição interminável uns com os outros – e com o mundo –exatamente para demonstrar quem se estava mais nas tintas, quem entre eles se estava borrifandomais. Era uma forma de defesa contra a perda, que para eles parecia, de qualquer maneira,inevitável. Rakim era diferente: tinha todas as paixões à flor da pele, não conseguia escondê-las,nem sequer tentava – era isso que me seduzia nele. A princípio não percebi que lhe era muitodifícil rir-se. O riso não parecia apropriado num Deus em forma humana – muito menos nanamorada de um Deus – e provavelmente eu devia ter interpretado isso como um alerta. Em vezdisso, seguia-o devotamente, até aos lugares mais estranhos. Numerologia! Era apaixonado pornumerologia. Ensinava-me a escrever o meu nome em números, e depois a manipular essesnúmeros de uma determinada forma, de acordo com a Matemática Suprema, até significarem: «Aluta para vencer a divisão interior.» Não compreendia tudo o que ele dizia – estávamos quasesempre pedrados quando tínhamos estas conversas – mas compreendia muito bem a divisão quedizia ver no meu interior, para mim não havia nada mais fácil do que apreender a ideia de quetinha nascido metade certa e metade errada, sim, desde que não pensasse no meu pai verdadeiro eno amor que lhe tinha detetava muito facilmente esta sensação dentro de mim.

Ideias como estas não tinham nada que ver com o trabalho académico de Rakim, nem tinhamcabimento nele: era licenciado em Estudos Empresariais e Hospitalidade. Mas dominavam otempo que passávamos juntos e a pouco e pouco fui-me sentindo debaixo de uma nuvem decorreção permanente. Nada que eu dissesse estava certo. Repugnava-lhe a comunicação socialque eu supostamente estava a estudar – os menestréis e as matronas dançantes, os artistas dosapateado e as coristas –, não via utilidade em nada disso, mesmo que a minha perspetiva fossecrítica, tudo isso era para ele uma coisa oca, um produto da «Hollywood judia», que incluía, porgrosso, naqueles dez por cento de embusteiros. Se tentava trocar impressões com ele sobrequalquer coisa que estava a escrever – em especial na presença dos nossos amigos – faziaquestão de menosprezar ou ridicularizar tudo o que eu dizia. Um dia em que estava demasiadopedrada e havia outras pessoas presentes, cometi o erro de tentar explicar o que achava que o

sapateado tinha de belo – a tripulação irlandesa e os escravos, marcando a cadência com os pésnos deques de madeira daqueles navios, intercambiando passos, criando uma forma híbrida –,mas Rakim, também pedrado e com um humor cruel, levantou-se, revirou os olhos, projetou oslábios, agitou as mãos como um menestrel e disse: Oh, massa, I’s so happy in this here slaveship I be dancing for joy29. Olhou-me de lado com os olhos semicerrados e voltou a sentar-se. Osnossos amigos olharam para o chão. A humilhação foi intensa: durante meses, a simpleslembrança daquele momento fez-me ruborizar. Mas na altura não o censurei por aquelecomportamento, nem senti que o amava menos por isso: o meu instinto era sempre assumir aculpa. O meu maior defeito naquele tempo, na perspetiva dele e na minha, era a minhafeminilidade, que não era aquela que devia ser. A mulher, no sistema de Rakim, estava destinadaa ser a «terra», suportava o homem, que por sua vez era a pura ideia, «espalhava ciência», e eu,no entender dele, estava longe do lugar onde devia estar, na raiz das coisas. Não cultivava nemcozinhava, nunca falava em filhos nem em assuntos domésticos, e competia com Rakim quandoe onde devia apoiá-lo. O romance estava fora do meu alcance: pressupunha uma forma demistério pessoal que não era capaz de produzir e me desagradava nos outros. Não sabia fingirque não me crescem pelos nas pernas e que o meu corpo não excreta uma grande variedade desubstâncias malcheirosas, ou que não tenho os pés chatos como panquecas. Não sabia fazer jogosde sedução nem achava que fizessem algum sentido. Não me importava de me vestir bem paraestranhos – quando ia a festas da faculdade ou a clubes em Londres – mas nos nossos quartos, nanossa intimidade, não sabia ser uma rapariga, nem a querida de ninguém, apenas uma fêmeahumana, e o sexo que compreendia era aquele que acontece entre amigos e iguais, servindo deparênteses a uma conversa, como uma prateleira de livros entre dois suportes. Rakim atribuíaestas falhas profundas ao sangue do meu pai, que me percorria como um veneno. Mas eramtambém obra minha, da minha mente, demasiado ocupada consigo mesma. Uma mente citadina,como ele lhe chamava, que não poderá nunca conhecer a paz, porque não tem nada de natural emque meditar, apenas cimento e imagens, e imagens de imagens – «simulacros», como dizíamosna altura. As cidades haviam-me corrompido, tornando-me máscula. Não sabia eu que as cidadestinham sido construídas pelos dez por cento? Que eram um instrumento deliberado de opressão?Um habitat antinatural para a alma africana? A sua fundamentação para esta teoria era por vezescomplexa – conspirações governamentais silenciadas, diagramas gatafunhados de projetosarquitetónicos, citações obscuras atribuídas a presidentes e responsáveis políticos em que mefaziam acreditar – e outras vezes simples e acusadora. Sabia os nomes das árvores? Os nomesdas flores? Não? Mas como podia uma africana viver assim? Ele, pelo contrário, sabia tudo,embora isso se devesse à circunstância – que preferia omitir – de ser filho da Inglaterra rural,criado primeiro em Yorkshire e depois em Dorset, em aldeias recônditas, e sempre o único dasua espécie na rua onde vivia, o único da sua espécie na escola, facto que eu achava mais exóticodo que todo o seu radicalismo, todo o seu misticismo. Adorava que ele soubesse os nomes dospaíses e como se ligavam entre si, os nomes dos rios e o sítio exato onde desaguavam no mar,que soubesse distinguir uma framboesa de uma amora, um bosque de uma mata. Nunca na minhavida tinha feito caminhadas sem objetivo, mas agora fazia-as, acompanhava-o nos seus passeiosa pé, pela agreste frente marítima, descendo até ancoradouros abandonados, e às vezes pelointerior da cidade, percorrendo as vielas empedradas, atravessando parques, serpenteando pelointerior de cemitérios e andando ao longo de estradas principais, até tão longe que acabávamospor chegar a campos de cultivo e deitávamo-nos neles. Nem nestes longos passeios ele esqueciaas suas preocupações. Usava-as para enquadrar aquilo que víamos, de formas que chegavam a

surpreender-me. A grandiosidade georgiana de um crescente de casas de frente para o mar, defachadas brancas como açúcar – casas que tinham sido, explicava, pagas pelo açúcar, construídaspelo proprietário de uma plantação da nossa ilha natal, a ilha que nenhum de nós alguma vezhavia visitado. E o pequeno adro onde às vezes nos juntávamos à noite, a fumar e a beberestendidos na erva, era onde Sarah Forbes Bonetta se tinha casado, história que contava semprecom tanto entusiasmo que até parecia que tinha sido ele a casar-se com ela. Eu deitava-me ao seulado na erva cheia de gravetos do cemitério e escutava-o. Uma menina africana de sete anos, desangue nobre, mas apanhada numa guerra intertribal, raptada por salteadores do Daomé.Presenciou o assassínio da família, mas mais tarde foi «resgatada» – palavra que Rakim punhaentre aspas desenhadas com os dedos – por um capitão inglês que convenceu o rei do Daomé aoferecê-la de presente à rainha Vitória. «Um presente do Rei dos Negros à Rainha dos Brancos.»Este capitão deu-lhe o sobrenome Bonetta, que era o nome do seu navio, e quando chegaram aInglaterra já se tinha apercebido de que se tratava de uma menina muito esperta, invulgarmenterápida e atenta, tão inteligente como qualquer rapariga branca, e quando a rainha a conheceupercebeu exatamente o mesmo, decidindo criar Sarah como sua afilhada, casando-a, muitos anosdepois, quando chegou à idade, com um rico comerciante ioruba. Foi nesta igreja, dizia Rakim, ocasamento aconteceu exatamente aqui, nesta igreja. Eu soergui-me na relva apoiada noscotovelos e olhei para a igreja, tão despretensiosa, com as suas ameias simples e a sua sólidaporta vermelha. «E iam oito damas de honor negras em procissão», disse ele, traçando-lhes otrajeto até à porta da igreja com a ponta acesa de um charro. «Imagina só! Oito negras e oitobrancas, e os homens africanos iam com as raparigas brancas, e os brancos com as raparigasafricanas.» Apesar da escuridão, eu conseguia ver tudo aquilo. Os doze cavalos cinzentos quepuxavam a carruagem, e a magnífica renda cor de marfim do vestido, e a grande multidão que sejuntara para assistir ao espetáculo e transbordava para o exterior da igreja, invadindo o relvado etodo o espaço até ao portão alpendrado, de pé em cima dos muros baixos de pedra e penduradosnas árvores, só para terem um vislumbre dela.

Penso em Rakim a reunir a sua informação naquela altura: nas bibliotecas públicas, nos

arquivos da universidade, lendo aplicadamente jornais antigos, examinando microfichas,seguindo notas de rodapé. E penso nele agora, na era da Internet, e em como deve estarperfeitamente feliz, ou então exausto, à beira da loucura delirante. Agora também eu possodescobrir num momento o nome daquele capitão, e com o mesmo clique ficar a saber o que elepensava da rapariga que ofereceu de presente a uma rainha. Desde que chegou ao país, tem feitoprogressos consideráveis no estudo da língua inglesa e manifesta grande talento musical e umainteligência invulgar. Tem o cabelo curto, preto e encaracolado, fortemente indicativo da suaorigem africana; enquanto as suas feições são agradáveis e bonitas, e os seus modos ecomportamento são cordatos e afáveis para todas as pessoas que a rodeiam. Sei agora que o seunome ioruba é Aina, o que significa «parto difícil», sendo o nome que é dado a uma criança quenasce com o cordão umbilical enrolado no pescoço. Estou a imaginar uma foto de Aina numespartilho vitoriano de pescoço alto, rosto fechado e corpo perfeitamente imóvel. Lembro-me deque Rakim tinha um refrão, sempre orgulhosamente declamado, com o lábio superior a descobriros dentes: «Nós também temos os nossos reis! Nós também temos as nossas rainhas!» Eu anuíacom a cabeça para preservar a paz, mas a verdade é que havia uma parte de mim que se insurgiasempre. Porque é que ele achava tão importante que eu soubesse que Beethoven dedicou uma

sonata a um violinista mulato, ou que a dama negra de Shakespeare era mesmo negra, ou que arainha Vitória se havia dignado criar uma criança de África, «tão inteligente como qualquerrapariga branca»? Não queria depender de cada facto europeu que tivesse a sua sombra africana,como se sem os andaimes do facto europeu tudo quanto era africano pudesse desfazer-se em pónas minhas mãos. Não me dava prazer nenhum ver aquela rapariga de feições doces vestidacomo um dos filhos de Vitória, imobilizada numa fotografia formal, com um novo tipo de cordãoem volta do pescoço. Sempre preferi a vida – o movimento.

Num domingo modorrento, Rakim exalou uma baforada de fumo e pôs-se a falar em ir ver um

«filme a sério». Era francês, passava nesse dia no cineclube da faculdade e durante toda a manhãtínhamos feito em pedaços um panfleto que o anunciava, usando a cartolina brilhante para fazermuitas boquilhas pequenas para os nossos cigarros de erva. Mas ainda dava para ver a cara deuma rapariga escura de lenço azul na cabeça que, afirmava agora Rakim, era parecida comigo, oueu com ela. Olhava diretamente para mim com o que lhe restava do olho direito. Atravessámospenosamente o campus em direção à sala multimédia e sentámo-nos nas desconfortáveis cadeirasde dobrar. Começou o filme. Mas com o nevoeiro que me toldava a cabeça era-me muito difícilperceber o que estava a ver, parecia feito de muitos pedaços pequenos, como um vitral, e nãosabia quais eram as partes importantes ou em que cenas Rakim achava que devia concentrar-me,se bem que talvez todos os presentes sentissem o mesmo, talvez faça parte do efeito daquelefilme que cada espectador veja nele uma coisa diferente. Não sei o que Rakim via. Eu via tribos.Muitas tribos diferentes, de todos os cantos do mundo, agindo de acordo com as regras internasdos seus grupos e depois reunidas num mosaico complexo que na altura parecia ter uma lógicamuito própria. Via raparigas japonesas em traje tradicional, dançando em formação, fazendomovimentos estranhamente hip-hop em cima dos seus altos geta. Cabo-verdianos à espera, comuma paciência intemporal e perfeita, de um barco que podia vir ou não vir. Via crianças decabelo loiro muito claro descendo uma estrada deserta na Islândia, numa terra pintada de pretopor cinzas vulcânicas. Ouvia uma voz feminina, dobrada e sem corpo, falar sobre estas imagens,estava a comparar o tempo africano com o tempo na Europa e o tempo tal como é vivido na Ásia.Dizia que há cem anos a espécie humana foi confrontada com a questão do espaço, mas que oproblema do século XX era a existência simultânea de diferentes noções de tempo. Olhei paraRakim. Estava a tomar notas no escuro, irremediavelmente pedrado. Chegou um ponto em que assimples imagens eram de mais para ele, só conseguia ouvir a voz da mulher e tomar notas, cadavez mais depressa à medida que o filme avançava, até ter escrito no bloco metade do guião.

Para mim o filme não tinha princípio nem fim, o que não era uma sensação desagradável,apenas misteriosa, como se o próprio tempo se tivesse expandido para acolher este desfileinfinito de tribos. Ia por ali fora, recusando-se a chegar ao fim, houve partes em que confesso quedormi, acordando num solavanco quando o queixo me batia no peito, altura em que levantava osolhos e deparava com uma imagem bizarra – um templo consagrado aos gatos, Jimmy Stewart acorrer atrás de Kim Novak por uma escada de caracol acima –, imagens que eram ainda maisestranhas por não ter acompanhado o que se passava antes e não ir ver o que vinha depois. E numdestes intervalos de lucidez entre acordar e adormecer ouvi mais uma vez aquela voz sem corpofalar da indestrutibilidade essencial das mulheres, e da relação dos homens com essaindestrutibilidade. Porque a missão dos homens, dizia, é impedir as mulheres de tomaremconsciência da sua indestrutibilidade, e durante tanto tempo quanto possível. Sempre que

acordava com um sobressalto sentia a impaciência de Rakim comigo, a sua necessidade de mecorrigir, e começava a recear o genérico final, imaginava a exata intensidade e extensão dadiscussão que se seguiria ao filme, naquele momento perigoso em que estivéssemos fora docinema, de regresso ao quarto dele e sem testemunhas por perto. Desejava que aquele filmenunca acabasse.

Passados uns dias cortei com Rakim, cobardemente, sob a forma de uma carta que lhe meti por

baixo da porta. Nela assumia a culpa e dizia que esperava que pudéssemos ser amigos, mas elerespondeu-me com outra, escrita a tinta vermelha lívida, dizendo-me que sabia que eu fazia partedos dez por cento, e que daí em diante iria estar de atalaia contra mim. E cumpriu a palavra.Durante o resto da minha vida na faculdade dava meia-volta se me via aproximar-me,atravessava a rua se me avistava na cidade, saía de qualquer sala de aula em que eu entrasse.Dois anos depois, na cerimónia de entrega dos diplomas, uma mulher branca atravessou o salãoem passo acelerado e agarrou a minha mãe por um braço e disse: «Bem me parecia que era asenhora – a senhora é uma inspiração para os nossos jovens, é mesmo – mas tenho tanto prazerem conhecê-la! E este é o meu filho.» A minha mãe virou-se com o rosto já marcado por umaexpressão que eu conhecia bastante bem – condescendência amável misturada com orgulho, amesma expressão que agora punha muitas vezes quando aparecia na televisão, sempre que erachamada para «falar por quem não tem voz». Estendeu a mão para cumprimentar o filho damulher branca, que a princípio não queria sair de trás da mãe e quando saiu fê-lo de olhos nochão, com as rastas finas a encobrir-lhe a cara, mas mesmo assim eu reconheci-o imediatamente,pelas Converse All Stars que espreitavam por baixo do traje académico.

27 Niggaz Wit Attitudes. (N. do T.)

28 Poor Righteous Teachers: Grupo de hip-hop que promove a consciencialização dos negros. (N. do T.)

29 «Oh, patrão, sou tão feliz neste navio de escravos que estou a dançar de alegria.» (N. do T.)

2

Na minha quinta visita fui sozinha. Atravessei o aeroporto em passo decidido, saí para o calor,com uma exaltante sensação de competência. À minha esquerda, à minha direita, estavam osperdidos e os temerosos: turistas a caminho da praia, evangelistas com enormes T-shirts e todosos compenetrados antropólogos alemães. Não havia nenhum representante para me conduzir aomeu veículo. Não estava à espera do «resto do meu grupo». Tinha as moedas preparadas para osdeficientes do parque de estacionamento, o dinheiro para o táxi já no bolso de trás das calças, aminha meia dúzia de frases. Nakam! Jamun gam? Jama rek! Os tempos do caqui e do linhoamarrotado já pertenciam a um passado distante. Calças pretas de ganga, blusa preta de seda egrandes argolas douradas a balançar nas orelhas. Estava convencida de que já dominava o tempolocal. Agora sabia quanto tempo levava a chegar ao ferry conforme a hora do dia, para quequando o meu táxi parasse no cais já centenas de pessoas tivessem feito a espera por mim e sóprecisasse de sair do carro e embarcar. O navio afastou-se da costa. No convés superior obalanço atirou-me para a frente, através de três camadas de pessoas encostadas à amurada, felizpor estar ali, como alguém que é lançado para os braços de quem ama. Olhei lá para baixo aapreciar a vida e o movimento: gente aos encontrões, frangos esganiçados, golfinhos saltando naespuma, chatas balouçando na nossa esteira, cães famintos correndo pela praia. Aqui e ali avisteiaquilo que agora sabia serem tablighi, de calças curtas a adejar em volta dos tornozelos, porquese fossem mais compridas sujavam-se, e as orações de quem anda sujo não são atendidas, e porisso acabam por lhes arder os pés no inferno. Mas além da indumentária era de facto a calma queos distinguia. No meio de toda aquela azáfama tinham um ar tranquilo, lendo os seus livros deorações ou sentados em silêncio, muitas vezes com os olhos debruados a kohl fechados e umsorriso beatífico aninhado nas barbas manchadas de hena, tão pacíficos em comparação comtodos os outros. Talvez estivessem a sonhar com a sua iman30 pura e moderna: pequenas famíliasnucleares rezando a Alá em apartamentos discretos, louvores sem magia, acesso direto a Deussem intermediários locais, circuncisões esterilizadas em hospitais, bebés nascidos sem dançascelebrativas, mulheres que não pensavam em combinar um hijab rosa-forte com uma minissaiade licra verde-lima. Pensei em como devia ser difícil manter este sonho, neste momento, nesteferry, rodeados pela fé descontrolada no dia a dia.

Sentei-me num banco. À minha esquerda estava um daqueles jovens espirituais, de olhosfechados, apertando contra o peito um tapete de oração dobrado. Do outro lado, uma raparigamuito produzida, com dois pares de sobrancelhas – um par estranhamente pintado por cima dooutro – que remexia entre as mãos um saquinho de cajus. Passei em revista todos os mesesdecorridos entre a minha primeira viagem de ferry e esta. A Illuminated Academy for Girls31 –que por conveniência, e para poupar toda a gente à vergonha de o pronunciar, abreviámos, sem

Aimee saber, para IAG – tinha sobrevivido ao seu primeiro ano. Tinha singrado, se medíssemoso êxito em colunas de jornal. Para nós tinha sido uma provação periódica, intensa sempre que asvisitas aconteciam ou uma crise trazia o contestado diretor da escola às nossas salas de reuniõesem Londres ou Nova Iorque através de atribulada videoconferência. Estranhamente distante noresto do tempo. Tive muitas razões para recordar Granger, em Heathrow, na noite do nossoprimeiro regresso, passando-me um braço pelos ombros na fila para a alfândega: «Agora nadadisto me parece real! Alguma coisa mudou. Não podemos ser os mesmos depois de termos vistoo que vimos!» Passados uns dias, porém, era exatamente a mesma pessoa, todos nós éramos:deixávamos torneiras abertas, abandonávamos garrafas de plástico ao fim de alguns goles,comprávamos um par de calças de ganga pelo valor de um ano de salário de um professorestagiário. Se Londres era irreal, se Nova Iorque era irreal, eram poderosas realizações cénicas:mal voltávamos a integrar-nos nelas não só nos pareciam reais como a única realidade possível,e as decisões relativas à aldeia tomadas nestas cidades tinham sempre uma certa aparência deplausibilidade enquanto estávamos a tomá-las, e só mais tarde, quando regressávamos ao local, eatravessávamos o rio, é que se tornava evidente o absurdo da decisão, fosse ela qual fosse. Háquatro meses, por exemplo, havia parecido importante, em Nova Iorque, ensinar a teoria daevolução a estas crianças – e respetivos professores – que na sua maioria nunca tinham ouvidosequer o nome de Darwin. Na aldeia isso parecia muito menos prioritário, quando chegávamosem plena estação das chuvas e deparávamos com um terço das crianças com malária, metade doteto de uma sala de aula caído, o contrato de instalação de sanitários por cumprir e os circuitos daeletricidade produzida pelos painéis solares enferrujados e danificados. Mas o nosso maiorproblema, tal como Fern previra, não eram propriamente as nossas ilusões pedagógicas, mas sima inconstância da atenção de Aimee. A sua nova fixação era a tecnologia. Tinha começado apassar grande parte do seu tempo livre com a gente brilhante de Silicon Valley, e fazia questãode considerar que fazia parte dessa tribo, «basicamente uma nerd». Havia-se tornado muitorecetiva à visão que eles tinham de um mundo transformado – salvo – pela tecnologia. Noprimeiro assomo desta nova fixação não abandonou a IAG nem o combate à pobreza, masenxertou a nova preocupação nas antigas, por vezes com resultados alarmantes («Vamos dar umcomputador portátil a cada uma destas pobres raparigas: isso vai ser o seu caderno de exercícios,isso é a sua biblioteca, o seu professor, o seu tudo!»). Ideia a que Fern teve de dar um simulacrode realismo. Passou «no terreno» não apenas algumas semanas, mas temporadas inteiras, emparte por afeição à aldeia e por empenhamento em cumprir bem o seu papel, mas também, sabiaeu, para evitar trabalhar de perto com Aimee, preferindo fazê-lo a quatro mil milhas de distância.Viu o que mais ninguém via. Apercebeu-se do crescente ressentimento dos rapazes, que tinhamsido deixados a estiolar na escola velha, que – apesar de algum dinheiro que esporadicamenteAimee lhe deitava para cima – agora era pouco mais do que uma vila fantasma, onde as criançasse sentavam em círculos à espera de professores há tanto tempo sem salário que tinham deixadode ir trabalhar. Parecia que o governo também tinha abandonado a aldeia: muitos outros serviçosque até então funcionavam bem, ou pelo menos razoavelmente, definhavam agora cruelmente. Aclínica não tinha sido reaberta, um enorme buraco na estrada mesmo à entrada da aldeia tinha-setransformado numa cratera funda. Relatórios de uma equipa de cientistas ambientais italianossobre níveis perigosos de pesticidas na água dos poços eram ignorados apesar dos constantesalertas de Fern junto dos ministérios competentes. Talvez estas e outras coisas tivessemacontecido de qualquer maneira. Mas era difícil não suspeitar que a aldeia tinha sido castigadapela sua ligação a Aimee, ou deliberadamente deixada ao abandono na esperança de que o

dinheiro de Aimee preenchesse as lacunas. Havia um problema que não estava escrito em nenhum dos relatórios, mas de que tanto Fern

como eu tínhamos perfeita consciência, embora o sentíssemos de posições opostas. Já nenhum denós perdia tempo a discuti-lo com Aimee. («Então e se eu o amar?» foi a única resposta delaquando os dois juntámos esforços, por teleconferência, numa tentativa de intervenção.) O quefazíamos era evitá-la, fazendo intercâmbio de informações como dois detetives privados atrabalhar no mesmo caso. Provavelmente fui eu a primeira a detetá-lo, em Londres. Estavaconstantemente a interromper trocas de meiguices, ao computador, ao telemóvel, sempre fechadoou desligado no momento em que eu entrava em qualquer sala. Depois perdeu o acanhamento.Quando ele fez o teste da SIDA que ela o mandara fazer, ficou tão contente que me falou noassunto. Habituei-me a ver a cabeça sem corpo de Lamin num canto do ecrã, sorrindo-me,falando-nos em direto, presumia eu, do único café com Internet que havia em Barra. De manhãfalava com os filhos dela enquanto tomavam o pequeno-almoço e despedia-se deles quandochegavam os tutores. Aparecia ao jantar, como se fosse mais um convidado à mesa. Começou aser incluído em reuniões, naquelas ridiculamente «criativas» («Que achas deste corpete, Lam?»),mas também nas sérias com os contabilistas, o diretor comercial, o pessoal das RP. Do lado deFern a situação era menos desconfortavelmente romântica, mais concreta: a casa de Laminrecebeu uma porta nova, depois uma retrete, depois divisórias interiores, por fim um telhadonovo. Nada disto passava despercebido. Um televisor de ecrã plano havia sido o mais recentemotivo de celeuma. «O Al Kalo convocou uma reunião na terça-feira para discutir o assunto»,informou-me Fern, quando lhe telefonei a dizer que o avião ia levantar. «O Lamin estava emDacar, de visita à família. Compareceram principalmente os jovens. Estava toda a gente muitoindignada. Resumiu-se tudo a uma longa conversa sobre como e quando o Lamin tinha aderidoaos Illuminati...»

Estava a enviar uma mensagem a Fern, para lhe dar a minha localização mais recente, quandoouvi um burburinho do outro lado da casa das máquinas, olhei para cima e vi corpos emdebandada, dirigindo-se às escadas, para fugirem a um homem magro e esvoaçante que agora eravisível, aos gritos, agitando os braços escanzelados, num estado de grande agitação. Virei-mepara o homem à minha esquerda: mantinha-se impávido, de olhos fechados. A mulher à minhadireita levantou os dois pares de sobrancelhas e disse: «Ai, um bêbedo.» Apareceram doissoldados que rapidamente lhe caíram em cima, agarraram-no pelos braços frenéticos e tentaramobrigá-lo a sentar-se num banco um pouco afastado do nosso, mas de cada vez que as suasnádegas estreitas tocavam no assento dava um salto como se a madeira estivesse a arder, e porisso o plano foi alterado, desta vez arrastaram-no até à entrada da casa das máquinas, mesmo naminha frente, e tentaram forçá-lo a entrar pela porta estreita e descer os degraus escuros paraonde mais ninguém o visse. Percebi então que era epilético, vi a espuma acumular-se-lhe aoscantos da boca – e a princípio pensei que era isso que eles não compreendiam. Enquanto lhedespiam a T-shirt à força não parei de berrar «Epilético! Ele é epilético!» Até que quatrosobrancelhas me explicaram: «Eles sabem, mana.» Sabiam, mas do seu arsenal não faziam partemovimentos delicados. Eram soldados que só tinham recebido instrução em brutalidade. Quantomais convulsões o homem tinha, quanto mais espumava, mais furiosos eles ficavam, e ao cabode uma luta breve na soleira da porta, em que de repente o homem teve uma convulsão tão forteque ficou com os membros inteiriçados como um bebé que recusa que o mudem de sítio,empurraram-no a pontapé pelas escadas abaixo, entraram e fecharam a porta. Ouvimos ruídos deluta, e gritos horríveis, séries de murros com um som cavo. Depois, silêncio. «Que é que estão a

fazer ao pobre homem?», clamou a mulher das quatro sobrancelhas ao meu lado, mas quando aporta voltou a abrir-se baixou os olhos e voltou aos seus cajus, e eu não disse nenhuma dascoisas que pensei que ia dizer, e a multidão dispersou e os soldados desceram as escadasexteriores sem problemas. Nós éramos os fracos e eles os fortes, e se existe alguma força capazde mediar entre os fracos e os fortes ela não estava presente, nem no ferry nem no país. Sóquando os soldados estavam fora do nosso campo visual é que o tablighi que ia sentado ao meulado – acompanhado por outros dois homens – entrou na casa das máquinas e trouxe o epiléticode regresso à luz. O tablighi deitou-o com cuidado em cima das suas pernas: parecia a pietà.Sangrava pelas gretas dos olhos, mas estava vivo e calmo. Libertaram uma parte do banco paraele, e durante o resto da travessia foi ali deitado, sem camisa, gemendo baixinho, até atracarmos,altura em que se pôs de pé como qualquer outro passageiro, desceu as escadas e desapareceu nomeio da multidão que ia para Barra.

Como fiquei contente por ver Hawa, sinceramente contente! Era hora de almoço quando abri a

porta com um pontapé, e também era a época do caju. Estava toda a gente disposta em círculosde cinco ou seis, acocorados em volta de grandes alguidares de castanhas enegrecidas pelo fogoque agora era preciso retirar das cascas queimadas e deitar para uma série de baldes estampadosde cores garridas. Até as crianças muito pequenas sabiam fazer aquilo, pelo que toda a genteparticipava, mesmo quem fosse incompetente, como Fern, que estava a ser alvo da chacota deHawa por ter um monte de cascas muito pequeno.

«Olha só para ti! Pareces a Beyoncé! Bem, espero que não tragas as unhas muito arranjadas,minha menina, porque vais ter de mostrar aqui ao pobre Fern como se faz. Até o Mohammed temum monte maior do que ele – e tem três anos!» Abandonei à porta a única mochila que trazia –também já tinha aprendido a fazer uma mala – e fui envolver num abraço as costas estreitas efortes de Hawa. «Ainda nada de bebés?», sussurrou-me ela ao ouvido, e eu sussurrei de volta amesma pergunta, e abraçámo-nos ainda com mais força e rimo-nos para o pescoço uma da outra.Para mim era muito surpreendente que se tivesse gerado entre nós as duas uma ligação tão forte,que atravessava continentes e culturas, mas era assim mesmo. Porque da mesma forma que, emLondres e Nova Iorque, o mundo de Aimee – e portanto o meu – havia eclodido em filhos, osdela e os das amigas dela, tratando deles e conversando sobre eles, a ponto de mais nada parecerexistir além dos partos, e não apenas no domínio privado, mas também todos os jornais, atelevisão, canções esparsas numa ou noutra rádio, me pareciam obcecadas com o tema dafertilidade em geral e da fertilidade de mulheres como eu em particular, também Hawa estavasob pressão na aldeia, à medida que o tempo passava e as pessoas se convenciam de que opolícia de Banjul era uma simples manobra de diversão, e de que Hawa era um novo tipo derapariga, talvez não circuncidada, sem dúvida solteira, sem filhos nem planos imediatos para oster. «Ainda nada de bebés?» tinha-se transformado no nosso código e refrão para tudo isto, anossa situação mútua, e sempre que trocávamos a frase entre nós parecia a coisa mais divertidado mundo, ríamos e rosnávamos por causa dela, e só de vez em quando me ocorria – e só quandoestava de regresso ao meu mundo – que tinha trinta e dois anos e Hawa era dez anos mais nova.

Fern levantou-se do seu fracasso com os cajus e limpou a cinza das mãos às calças: «Elavoltou!»

Trouxeram-nos imediatamente o almoço. Comemos a um canto do pátio, com os pratos emcima dos joelhos, ambos com tanta fome que nem reparámos que mais ninguém ia fazer um

intervalo no descasque do caju para almoçar. «Estás com muito bom aspeto», disse Fern, com um grande sorriso. «Muito feliz.» A porta de zinco das traseiras da morança estava escancarada, proporcionando uma vista das

terras da família de Hawa. Vários acres de cajueiros em tons púrpura, mato amarelo-claro emontes de cinza negra que marcavam o sítio onde Hawa e as avós queimavam, uma vez por mês,enormes piras de lixo doméstico e plásticos. Era, por assim dizer, simultaneamente luxuriante eárido, e eu via beleza nesta mistura. Concluí que Fern tinha razão: neste sítio era feliz. Com trintae dois anos e três meses, estava finalmente a ter o meu ano de folga.

«Mas o que é um “ano de folga”?» «Olha, é quando somos jovens e vamos passar um ano a um país distante, para aprender os

seus costumes, comungar com a... comunidade. Nós nunca pudemos dar-nos a esse luxo.» «Quem? A tua família?» «Sim, também, mas... estava a referir-me especificamente a mim e à minha amiga Tracey.

Costumávamos vê-los partir e quando regressavam moíamos-lhes o juízo.» Ri-me sozinha com esta recordação. «“Moer o juízo”? Que é isso?» «Olha, chamávamos-lhes “turistas da pobreza”... Sabes aqueles estudantes que voltavam do

ano de folga com aquelas estúpidas calças étnicas e estatuetas africanas “esculpidas à mão”,caríssimas, feitas numa fábrica qualquer do Quénia... Achávamo-los uns perfeitos idiotas.»

Mas talvez Fern tivesse sido um desses jovens viajantes hippies e otimistas. Suspirou elevantou a tigela do chão para assim a poupar à curiosidade de uma cabra.

«Que cínicas vocês eram... tu e a tua amiga Tracey.» O descasque do caju ia continuar pela noite fora. Para não ter de ajudar, sugeri uma caminhada

até ao poço, com a desculpa esfarrapada de ir buscar água para um duche matinal, e Fern, pornorma tão consciencioso, surpreendeu-me dizendo que me acompanhava. Pelo caminho contou-me a história de uma visita a Musa, primo de Hawa, para se inteirar da saúde de mais um filho.Quando lá chegou, a uma casa pequena, muito rudimentar, que o próprio Musa havia construídono limite da aldeia, encontrou Musa sozinho. A mulher e os filhos tinham ido visitar a mãe dela.

«Convidou-me a entrar, acho que se sentia um pouco sozinho. Reparei que tinha uma pequenaTV antiga com VHS incorporado. Fiquei admirado, ele é sempre tão frugal, como todos osmashala, mas disse-me que uma mulher do Corpo da Paz que ia regressar aos Estados Unidoslha tinha deixado. Fez questão de me dizer que nunca via filmes de Nollywood nem nenhumadas telenovelas nem nada desse tipo, isso era dantes. Agora só “filmes puros”. Queria ver um?Eu disse que sim. Sentamo-nos, e basta-me um minuto para perceber que é um daqueles vídeosde treino que vinham do Afeganistão, rapazes todos vestidos de preto dando saltos mortais àretaguarda com Kalashnikovs... E disse-lhe: “Ó Musa, tu percebes o que dizem neste vídeo?”Porque havia uma lengalenga incessante em árabe – como podes imaginar – e via-se mesmo queele não entendia uma palavra. E ele responde, com ar sonhador: “Gosto muito de os ver saltar!”Penso que para ele aquilo era como um belo vídeo de dança. Um vídeo de dança radicalislâmica! Disse-me: “A forma como se movimentam dá-me vontade de ser mais puro pordentro.” Pobre Musa. Mas pronto, achei que ias achar graça. Porque sei que te interessas pordança», acrescentou, quando viu que eu não me ria.

30 Crença nos seis artigos de fé do islamismo. (N. do T.)

31 Academia Iluminada para Raparigas. (N. do T.)

3

O primeiro email que recebi na minha vida veio da minha mãe. Enviou-mo de um laboratóriode informática na cave do University College de Londres, onde acabava de participar num debatepúblico, e eu recebi-o na biblioteca da minha universidade. O conteúdo era um único poema deLangston Hughes: obrigou-me a recitá-lo todo quando lhe telefonei nessa mesma noite, paraprovar que tinha recebido o email. When night comes on gently, Dark like me32 – O nosso cursofoi o primeiro a receber endereços eletrónicos, e a minha mãe, sempre atenta às inovações,comprou um Compaq velho e maltratado, a que ligou um modem intermitente. Entrámos juntasneste espaço novo que agora se abria às pessoas, uma ligação sem princípio nem fim definidos,que estava sempre potencialmente aberta, e a minha mãe foi uma das primeiras pessoas queconheci que compreenderam isto e aproveitarem-no em pleno. A maioria dos emails enviados emmeados dos anos noventa eram tendencialmente longos e parecidos com cartas: começavam eterminavam com fórmulas de saudação tradicionais – as mesmas que antes se usavam em papel –e faziam questão de descrever o cenário envolvente, como se o novo meio de comunicaçãotivesse feito de cada pessoa um escritor. («Estou a escrever isto junto à janela, olhando o marcinzento-azulado, onde três gaivotas estão a mergulhar na água.») Mas a minha mãe não escreviaemails assim, apanhou-lhes imediatamente o jeito, e quando eu já tinha deixado a universidadehavia algumas semanas, mas continuava à beira do mar cinzento-azulado, começou a enviar-memúltiplas mensagens de duas ou três linhas por dia, quase sem pontuação, e sempre dando asensação de uma coisa escrita a grande velocidade. Eram todas sobre o mesmo: quando estava apensar voltar? Não queria dizer ao velho bairro social, tinha-se mudado de lá no ano anterior.Agora vivia num bonito apartamento de rés do chão em Hampstead, com o homem a quem omeu pai e eu nos habituáramos a chamar «o Destacado Ativista», glosando um parêntese habitualda minha mãe («Estou a escrever um trabalho com ele, é um destacado ativista, provavelmente jáouviste falar dele, não?», «É um homem absolutamente maravilhoso, somos muito próximos, e,claro, é um destacado ativista»). O Destacado Ativista era um bonito tobaguiano, de ascendênciaindiana, com uma barbicha prussiana e uma abundante cabeleira preta penteada para trás demodo a realçar uma única madeixa branca. A minha mãe tinha-o conhecido dois anos antes numaconferência antinuclear. Tinha participado em marchas de protesto com ele, escrito trabalhosacadémicos sobre ele – e depois com ele – antes de passar a beber com ele, jantar com ele,dormir com ele e agora ir viver com ele. Eram frequentemente fotografados, de pé entre os leõesde Trafalgar Square, discursando um a seguir ao outro – como Sartre e Beauvoir, só que muitomais bonitos – e agora, quando o Destacado Ativista era chamado a falar por quem não tem voz,em manifestações ou em conferências, a minha mãe estava quase sempre ao lado dele, no seunovo papel de «autarca e ativista de base». Havia um ano que estavam juntos. Durante esse

tempo a minha mãe tinha-se tornado razoavelmente conhecida. Uma das pessoas a quem oprodutor de um programa de rádio podia telefonar pedindo-lhe que participasse num debate dependor esquerdista a realizar nesse dia. Talvez não fosse o primeiro nome da lista, mas, se opresidente da União de Estudantes, o diretor da New Left Review e o porta-voz da AliançaAntirracista estivessem todos ocupados, podiam contar com a quase permanente disponibilidadeda minha mãe e do Destacado Ativista.

Tentei sinceramente ficar feliz por ela. Sabia que era aquilo que sempre tinha desejado. Mas édifícil, a uma pessoa que está sem perspetivas, sentir-se feliz por outra, e além disso sentia-meinfeliz pelo meu pai, e mais ainda por mim mesma. A perspetiva de voltar a viver com a minhamãe parecia anular o pouco que tinha conseguido em três anos. Mas não podia sobreviver pormuito mais tempo com o meu crédito para estudos. Deprimida, enquanto desocupava o quarto,folheando os meus inúteis trabalhos escolares, olhei para o mar e senti que estava a acordar deum sonho, que isso era tudo o que a faculdade havia sido para mim, um sonho, situado a umadistância demasiado grande da realidade, ou pelo menos da minha realidade. Mal tinha acabadode devolver o traje académico alugado e já colegas que não pareciam muito diferentes de mimestavam de partida para Londres, imediatamente, alguns para o meu bairro, ou outros parecidos,de que falavam em termos arrebatados, como se fossem fronteiras bravias a conquistar. Partiamde depósito na mão, para darem como caução por andares ou mesmo moradias, aceitavamestágios não remunerados ou concorriam a empregos em que por acaso o entrevistador era umantigo colega do pai na universidade. Eu não tinha planos, nem depósito, nem ninguém quepudesse morrer e deixar-me dinheiro: os poucos parentes que tínhamos eram todos mais pobresdo que nós. Não tínhamos nós sido os de classe média, em matéria de aspirações e na prática? Etalvez para a minha mãe este sonho fosse a verdade, e pelo simples facto de o sonhar sentisse queo tinha concretizado. Mas agora eu estava acordada, e via com clareza: havia factos que eramimutáveis, inevitáveis. Por exemplo: olhasse para elas por que ângulo olhasse, as oitenta e novelibras que tinha no banco eram todo o meu dinheiro. Fazia refeições de feijão cozido sobre pãotorrado, enviava duas dúzias de cartas de candidatura, esperava.

Sozinha numa terra de onde toda a gente já se tinha ido embora, sobrava-me tempo paramatutar. Comecei a ver a minha mãe de um ângulo novo, ácido. Uma feminista que sempre tinhasido apoiada por homens – primeiro o meu pai e agora o Destacado Ativista – e que, apesar deestar sempre a dar-me sermões sobre a «nobreza do trabalho», nunca, que eu soubesse, havia tidoum emprego que a sustentasse. Trabalhava «para o povo» – não tinha salário. O meu receio eraque o mesmo se pudesse dizer, mais ou menos, do Destacado Ativista, que aparentemente tinhaescrito muitos panfletos, mas nenhum livro, e não tinha nenhum cargo oficial na universidade.Pôr todos os ovos no mesmo cesto, abrir mão do nosso apartamento – a única segurança quealguma vez conhecêramos – para ir viver com ele em Hampstead, exatamente no tipo de fantasiaburguesa que sempre censurara, era para mim um sinal de má-fé e ao mesmo tempo deirresponsabilidade extrema da parte dela. Todas as noites ia à marginal, a uma cabine telefónicadegradada que pensava que as moedas de dois pence eram de dez, e tinha muitas conversas mal-humoradas com ela sobre o assunto. Mas a única mal-humorada era eu, a minha mãe estavaapaixonada e feliz, cheia de afeto por mim, o que ainda lhe tornava mais difícil fixar-se empormenores práticos. Qualquer tentativa de discutir a situação financeira exata do DestacadoAtivista, por exemplo, valia-me respostas evasivas ou a mudança de assunto. A única coisa sobrea qual estava sempre pronta a falar era o apartamento de três quartos dele, aquele para ondequeria que eu fosse viver, comprado por vinte mil libras em 1969 com o dinheiro da herança de

um tio falecido e que agora valia «muito mais de um milhão». Era um facto que, não obstante assuas tendências marxistas, nitidamente lhe dava uma enorme sensação de prazer e bem-estar.

«Ó mãe, mas ele não vai vendê-lo, pois não? Portanto, isso é irrelevante. Com os doispombinhos lá dentro não vale nada.»

«Ouve. Porque é que não te metes no comboio e vens cá jantar? Quando o conheceres vaisadorá-lo – toda a gente adora este homem. Vão ter muito que conversar, vocês os dois. Conheceuo Malcolm X! É um destacado ativista...»

Mas ele, como tanta gente cuja vocação é mudar o mundo, pessoalmente revelou-seterrivelmente mesquinho. O nosso primeiro encontro não foi dominado por nenhuma conversapolítica ou filosófica, mas sim por uma longa diatribe contra o vizinho do lado, também elecaribenho, que, ao contrário do nosso anfitrião, era rico, tinha muitas obras publicadas, um lugarnuma universidade americana, era dono do resto do prédio e estava a construir «uma porra deuma espécie de pérgula» no extremo do jardim. Isto iria tapar ligeiramente a vista do DestacadoAtivista para o Heath, e depois do jantar, enquanto o sol de junho se punha finalmente, pegámosnuma garrafa de Wray & Nephew e, num ato de solidariedade, fomos para o jardim olhar para acoisa semiconstruída. A minha mãe e o Destacado Ativista sentaram-se à mesinha de ferroforjado, e lentamente enrolaram e fumaram um cigarro de erva mal-amanhado. Eu exagerei norum. A certa altura o ambiente tornou-se melancólico e todos olhámos para os lagos, e para alémdos lagos, para o Heath propriamente dito, enquanto os candeeiros vitorianos se acendiam e opanorama se esvaziava de tudo menos dos patos e dos homens aventureiros. A luz dos candeeirosdava à relva um tom laranja de purgatório.

«Imagina dois miúdos da ilha como nós, dois pés-descalços vindos do nada, acabarem aqui...»,murmurou a minha mãe, e deram-se as mãos e encostaram as testas e eu, olhando para eles, sentique, se eles eram absurdos, muito mais absurda era eu, uma mulher adulta, indignada com outramulher adulta que, bem vistas as coisas, havia feito tanto por mim, por si própria e sim, pelo seupovo, e tudo, como bem dizia, vinda do nada absoluto. Estaria com pena de mim própria por nãoter nenhum dote? E quando levantei os olhos do charro que estava a enrolar tive a sensação deque a minha mãe me tinha lido os pensamentos. Mas não percebes a sorte incrível que tens,disse, em estares viva, neste momento? As pessoas como nós não podem entregar-se à nostalgia.Não temos guarida no passado. A nostalgia é um luxo. Para o nosso povo, o tempo é agora!

Acendi o charro, servi-me de mais um dedo de rum e fiquei a ouvir de cabeça baixa o grasnardos patos e o discurso da minha mãe, até que ficou tarde e o namorado fez-lhe uma festa na carae eu vi que estava na hora de ir apanhar o último comboio.

Em finais de julho mudei-me outra vez para Londres, não para a casa da minha mãe, mas para

a do meu pai. Propus-me dormir na sala de estar, mas ele nem quis ouvir falar nisso, disse-meque se dormisse aí ia acordar com o barulho das suas andanças matinais, e eu aceitei rapidamenteesta lógica e deixei que fosse ele a dormir dobrado no sofá. Em compensação, achei que tinhamesmo de procurar emprego: o meu pai acreditava sinceramente na nobreza do trabalho, tinhaapostado a vida nisso, e fazia-me sentir envergonhada com a minha preguiça. Às vezes nãoconseguindo voltar a adormecer depois de o ouvir sair em bicos de pés, recostava-me na cama epensava em todo este trabalho, tanto do meu pai como da sua gente, que remontava a muitasgerações. Mão de obra sem instrução, mão de obra normalmente sem formação nemqualificação, uma parte honesta e outra desonesta, mas toda ela desembocando de uma forma ou

de outra no meu atual estado de ociosidade. Quando era muito nova, oito ou nove anos, o meupai tinha-me mostrado a certidão de nascimento do pai dele, da qual constavam as profissões dosseus avós – lavador de trapo e cortadora de trapo – e isto, queria ele fazer-me compreender, era aprova de que a sua tribo sempre fora definida pelo trabalho a que se dedicava, quisesse ou não. Aimportância do trabalho era um ponto em que insistia tanto quanto a minha mãe insistia naconvicção de que os aspetos verdadeiramente definidores eram a cultura e a cor. O nosso povo, onosso povo. Pensei na facilidade com que todos tínhamos usado a frase, semanas antes, naquelabonita noite de junho em casa do Destacado Ativista, sentados a beber rum, a admirar famílias depatos gordos, de cabeças viradas para dentro, bicos recolhidos nas penas dos seus próprioscorpos, amodorrados ao longo da margem da lagoa. O nosso povo! O nosso povo! E agora,deitada no bafio da cama do meu pai, dando voltas à frase na cabeça – à falta de coisa melhorpara fazer – ela fazia-me lembrar a sobreposição de grasnados e balbuciados que saíam dos bicosdaquelas aves e entravam diretamente nas suas penas: «Eu sou um pato! Eu sou um pato!»

32 «Quando a noite chega de mansinho, / Negra como eu». (N. do T.)

4

Ao apear-me de um táxi rural – depois de vários meses de ausência – vi Fern de pé à beira daestrada, aparentemente à minha espera, com grande pontualidade, como se existisse umaparagem de autocarro e um horário. Fiquei feliz por vê-lo. Mas ele mostrou que não estava parasaudações e cortesias, pois acertou o passo pelo meu e lançou-se imediatamente num relatórioem voz baixa, pelo que, mesmo antes de chegar à porta da casa de Hawa, também eu já sentia opeso do boato que rapidamente tomara conta da aldeia: que Aimee estava a tratar de arranjar umvisto, que em breve Lamin se mudaria definitivamente para Nova Iorque. «E então, é verdade?»Disse-lhe a verdade: não sabia nem queria saber. Tinha passado uma temporada esgotante emLondres, ajudando Aimee a atravessar um inverno difícil, pessoal e profissionalmente, e por issoestava a sentir-me particularmente reativa ao estilo de drama pessoal dela. O álbum que tinhagravado ao longo dos soturnos meses de janeiro e fevereiro tipicamente britânicos – e que deviaestar a ser lançado por aquela altura – tinha sido abandonado, consequência de um caso breve efeio com o jovem produtor, que no fim levou as canções consigo. Se fosse alguns anos antes,uma zanga como esta não teria passado de um pequeno revés para Aimee, que nem sequerjustificaria meio dia na cama a ver episódios antigos de telenovelas australianas há muitoesquecidas – The Flying Doctors, The Sullivans –, coisa que fazia em momentos devulnerabilidade extrema. Mas eu tinha notado uma alteração nela, a sua armadura pessoal já nãoera o que em tempos havia sido. Abandonar e ser abandonada eram agora operações que aafetavam muito mais profundamente, já não eram para ela coisas de somenos, ficou sinceramentemagoada, e durante quase um mês não quis ver ninguém, a não ser Judy, praticamente não saiude casa e pediu-me várias vezes para dormir no seu quarto, ao lado da sua cama, no chão, porquenão queria ficar sozinha. Durante este período de reclusão tinha-me convencido, para o bem epara o mal, de que não havia ninguém mais próximo dela do que eu. Ao ouvir Fern, o meuprimeiro sentimento foi que tinha sido traída, mas, quanto mais pensava naquilo, melhor percebiaque não era bem isso: não era traição, mas sim uma forma de separação mental. Servi-lhe deconforto e companhia num determinado momento, enquanto noutro compartimento do seucoração ela preparava afanosamente o futuro, com Lamin – e com a cumplicidade de Judy. Emvez de ficar zangada com Aimee sentia-me frustrada com Fern: estava a tentar envolver-me, maseu não queria ter nada que ver com o assunto, era inconveniente para mim, já tinha a minhaviagem toda planeada, e quanto mais Fern falava mais eu via escapar-me entre os dedos oitinerário congeminado na minha cabeça. Uma visita à ilha de Kunta Kinte, algumas tardes depraia, duas noites num dos hotéis elegantes da cidade. Aimee não me dava férias anuais, tinha deusar a imaginação, tirando dias de férias onde podia.

«Tudo bem, mas porque é que não levas o Lamin contigo? Contigo ele abre-se. Comigo fecha-

se como uma concha.» «Para o hotel? Fern – não. Péssima ideia.» «Então na excursão. De qualquer maneira não podes ir sozinha, nunca mais encontras o

sítio.» Cedi. Quando disse a Lamin ele ficou contente, não tanto por ir visitar a ilha, pareceu-me,

como pela oportunidade de fugir à sala de aula e passar uma tarde a negociar com o seu amigoLolu, taxista, o preço da viagem de ida e volta. Lolu tinha cortado o cabelo afro em estilomoicano, pintado de cor de laranja, e usava um cinto largo com uma grande fivela prateada quedizia BOY TOY. Fiquei com a impressão de que foram o caminho todo a negociar, uma viagemde duas horas recheada de gargalhadas e discussões no banco da frente, a ensurdecedora músicareggae de Lolu, muitos telefonemas. Eu ia no banco traseiro, com pouco mais conhecimentos dalíngua uolof do que tinha antes, vendo passar a mata, vislumbrando um ou outro macacoprateado e ainda mais esparsas comunidades de pessoas, nem aldeias se lhes podia chamar, duasou três cubatas juntas, e depois nada durante mais dez milhas. Lembro-me especialmente de duascrianças descalças que caminhavam à beira da estrada, de mãos dadas, pareciam grandes amigas.Acenaram-me e eu respondi. Não havia nada nem ninguém em volta delas, estavam no limiar domundo, ou do mundo que eu conhecia, e ao vê-las apercebi-me de que me era muito difícil,quase impossível, imaginar o que era para elas o tempo, naquele lugar. É claro que me lembravade quando tinha a idade delas, de mão dada com Tracey, e de como nos havíamos considerado«miúdas dos anos oitenta», mais espertas do que os nossos pais, muito mais modernas.Considerávamo-nos produtos de um momento particular, porque além dos nossos musicaisgostávamos de coisas como Os Caça-Fantasmas e Dallas e chupa-chupas em forma de flauta.Sentíamos que tínhamos o nosso lugar no tempo. Há alguém neste mundo que não sinta omesmo? Mas quando acenei àquelas duas crianças reparei que não conseguia livrar-me da ideiade que eram símbolos de juventude, ou de amizade infantil. Sabia que podia não ser o caso, masnão tinha outra forma de pensar nelas.

A estrada terminava finalmente no rio. Saímos do carro e subimos até uma estátua de betãocom mais de nove metros de altura representando um homem estilizado de pé, de frente para orio. Tinha por cabeça um planeta Terra e com os braços estilizados libertava-se dos grilhões daescravatura. Um canhão solitário do século XIX, a carcaça de tijolo de um entreposto original, umpequeno «museu da escravatura construído em 1992» e um café vazio completavam aquilo queum guia desesperado e desdentado descrevia como «o Centro de Acolhimento». Nas nossascostas, uma aldeia de barracas decrépitas, muito pior do que aquela de onde vínhamos, encaravateimosamente o velho entreposto, como se tivesse esperança de que ele reabrisse. Um bando decrianças assistiam sentadas à nossa chegada, mas quando lhes acenei o guia repreendeu-me:«Não estão autorizados a aproximar-se mais. Pedem dinheiro. Incomodam os turistas. O governoescolheu-nos como guias oficiais para que eles não os incomodem.» A cerca de uma milha, nooutro lado do rio, avistei a ilha propriamente dita, um pequeno afloramento rochoso com asruínas pitorescas de um forte militar em cima. Só queria um minuto de silêncio para pensar nosítio onde estava e naquilo que significava, se é que significava alguma coisa. Aqui e ali, dentrodo triângulo formado pelo café, o monumento aos escravos e as crianças atentas, via e ouviagrupos de turistas – uma solene família de britânicos negros, alguns entusiásticos adolescentesafro-americanos, duas mulheres brancas holandesas, as duas já em pranto abundante – todostentando fazer a mesma coisa que eu, e como eu suportando uma palestra papagueada pelos guiasoficiais nomeados pelo governo, de T-shirts azuis esfarrapadas, e assediados pelo dono do café

que lhes enfiava ementas nas mãos, ou a regatear com barqueiros desejosos de os levarem à ilhapara verem as celas prisionais dos seus antepassados. Percebi que a minha sorte era ter Lamincomigo: enquanto ele se entregava à sua atividade preferida – negociações financeiras, intensas esussurradas, com vários interlocutores ao mesmo tempo – senti-me livre de ir até ao canhão,encavalitar-me nele e contemplar a água. Tentei adotar uma atitude meditativa. Para imaginar osnavios na água, a mercadoria humana subindo pelas pranchas de embarque, os poucos corajososque arriscavam atirando-se à água, numa tentativa condenada ao fracasso de nadar para terra.Mas cada imagem tinha a pouca espessura de um cartão, e parecia tão pouco próxima darealidade quanto o mural da parede lateral do museu que representava uma pobre famíliamandinga acorrentada pelo pescoço sendo enxotada do interior do mato por um holandêsmalévolo, como se tivesse sido apanhada numa armadilha por um caçador em vez de ser vendidapelo chefe dele como se fosse cereal. Todos os caminhos voltam ao ponto de partida, como aminha mãe sempre me havia dito, mas agora que estava aqui, neste canto do continentecarregado de história, senti-o não como um lugar excecional, mas como um exemplo de umaregra geral. Aqui, o poder tinha cravado as garras na fraqueza: todos os tipos de poder – local,racial, tribal, real, nacional, global, económico – em todos os tipos de fraqueza, não se detendodiante de nada, nem mesmo da menina mais pequena. Mas o poder faz o mesmo em toda a parte.O mundo está saturado de sangue. Todas as tribos têm a sua herança empapada em sangue: aminha estava aqui. Esperei pela sensação de catarse que temos esperança de experimentar emlugares como este, mas não consegui convencer-me de que o sofrimento da minha tribo estavaconcentrado apenas aqui, neste lugar, o sofrimento estava obviamente em toda a parte, só que eraaqui que lhe tinham erguido o monumento. Desisti e fui à procura de Lamin. Estava encostado àestátua, a falar ao telemóvel novo, um moderno BlackBerry, com uma expressão ensonada norosto, um sorriso largo e apatetado, e quando viu que eu me aproximava desligou sem sedespedir.

«Quem era?» «Então, se estás pronta», sussurrou Lamin, enfiando o grande aparelho no bolso de trás, «este

homem leva-nos ao outro lado.» Partilhámos uma chata com a família britânica negra. Tentaram encetar uma conversa com o

guia sobre qual era a distância entre a ilha e o continente, e se havia alguma possibilidade de umhomem, mesmo sem as grilhetas, atravessar a nado estas correntes rápidas. O guia ouviu-os, masestava com um ar muito cansado, o branco dos olhos toldados pelo grande número de vasossanguíneos lacerados, e não parecia grandemente interessado em situações hipotéticas. Repetiu oseu mantra: «Se um homem alcançasse a costa, era-lhe concedida a liberdade.» Na ilha demos avolta à ruína e depois pusemo-nos na fila para entrar no «último recurso», um pequenocompartimento subterrâneo, quinze palmos por seis, onde «os homens mais rebeldes de todos,como Kunta, eram encarcerados». Imagina! As pessoas diziam constantemente isto umas àsoutras, e eu tentei de facto imaginar-me a ser trazida para aqui, mas sabia instintivamente quenão era uma pessoa rebelde, não era provável que pertencesse à tribo de Kunta. Poucas pessoas osão. A minha mãe sim, imaginava-a aqui, e Tracey também. E Aimee – era, à sua maneira, damesma estirpe. Mas eu não. Sem saber o que fazer, estendi um braço para chegar a uma argolade ferro na parede, à qual estes homens «mais rebeldes de todos» eram acorrentados pelopescoço. «Dá vontade de chorar, não dá?», disse a mãe da família britânica, e eu senti que davamesmo, mas quando desviei os olhos para me preparar, levantando-os para a janela minúscula, vio guia oficial deitado de barriga, com a boca de três dentes tapando praticamente toda a luz

disponível. «Agora vão sentir a dor», explicou através das grades, «e vão precisar de uns momentos

sozinhos. Encontramo-nos lá fora depois de terem sentido a dor.» De regresso, já no barco, perguntei a Lamin o que é que tinha tanto para conversar com Aimee.

Ele ia sentado no banco do remador e endireitou-se, empinando o queixo. «Ela acha que eu sou um bom dançarino.» «Ai sim?» «Tenho-lhe ensinado muitos passos que ela não sabia. Pelo computador. Demonstro os nossos

passos locais. Diz que os vai usar nas atuações dela.» «Estou a ver. E alguma vez te falou em ires para a América? Ou para a Inglaterra? «Está tudo nas mãos de Deus», disse ele, lançando um olhar ansioso pelos outros passageiros. «Pois está. E do Ministério dos Negócios Estrangeiros.» Lolu, que nos esperara pacientemente no seu táxi, avançou com ele para a beira-rio enquanto

nós nos aproximávamos e abriu a porta do carro, aparentemente com a intenção de me levardiretamente da água para o carro, mais uma viagem de duas horas, sem almoço.

«Mas Lamin, eu tenho de comer!» Reparei que durante toda a nossa visita à ilha ele não tinha largado a ementa plastificada do

café e agora mostrava-ma, a prova essencial, irrefutável, num julgamento. «É muito dinheiro por um almoço! A Hawa faz-nos o almoço quando chegarmos.» «Eu pago o almoço. Dá quanto, umas três libras por cabeça? Garanto-te, Lamin, que para mim

não é muito dinheiro.» Seguiu-se uma discussão entre Lamin e Lolu que, para minha satisfação, Lamin parecia estar a

perder. Lolu enfiou as mãos no cinto como um cowboy vitorioso, fechou a porta do carro eavançou a pé pela encosta.

«É muito», repetiu Lamin, com um grande suspiro, mas eu fui atrás de Lolu e Lamin foi atrásde mim.

Sentámo-nos a uma das mesas de piquenique e comemos peixe assado em folha de alumínio earroz. Pus-me à escuta das conversas nas mesas vizinhas, conversas estranhas, desiguais, que nãoconseguia decidir o que eram: as pesadas reflexões de visitantes a um trauma histórico ou otagarelar desprendido de pessoas em férias de praia à hora dos aperitivos. Uma mulher branca,alta e com a pele estragada pelo sol, de setenta anos pelo menos, estava sentada ao fundo,sozinha numa mesa, rodeada por montes de panos estampados e dobrados, tambores e estatuetas,T-shirts a dizer NEVER AGAIN33, outros produtos locais. Ninguém se aproximava da bancanem dava ares de querer comprar nada, e ao fim de algum tempo ela levantou-se e foi de mesaem mesa, cumprimentando os clientes, perguntando-lhes onde estavam instalados, de onde eram.A minha esperança era que acabássemos de comer antes de ela chegar à nossa mesa, mas Lamincomia penosamente devagar e a mulher apanhou-nos, e quando ouviu dizer que eu não era denenhum hotel, e que não era cooperante nem missionária, ficou especialmente interessada esentou-se à nossa mesa, demasiado perto de Lolu, que estava curvado sobre o prato e não queriaolhar para ela.

«De que aldeia disse que era?», perguntou, embora eu não tivesse dito, mas desta vez Lamin

disse-lhe sem me dar a oportunidade de uma resposta vaga. Fez-se luz. «Oh, mas está ligada à escola! É claro. Bem, eu sei que há quem diga cobras e lagartos daquela

mulher, mas eu gosto muito dela, admiro-a, sinceramente. Aliás, também sou de origemamericana», disse, e eu perguntei-me como é que ela podia pensar que alguém tivesse dúvidas aesse respeito. «Normalmente não gosto dos americanos, em geral, mas ela é daquelas que têmpassaporte, não sei se me faço entender. Acho-a de facto muito curiosa e apaixonada, e isso émuito bom para o país, toda a publicidade que lhe dá. Ah, é australiana? Pois bem, seja como for,é das minhas! Aventureira! Se bem que eu tenha vindo para cá por amor, não por caridade. Nomeu caso, a caridade veio depois.»

Levou a mão ao coração, que estava meio exposto, um vestido estampado multicolor com umdecote assustadoramente cavado. Tinha uns seios compridos, vermelhos e engelhados. Eu estavaabsolutamente decidida a não perguntar por amor de quem ela tinha vindo aqui parar, nem a queboas ações esta decisão acabara por levar, mas ela, intuindo a minha resistência, decidiu usaruma prerrogativa de mulher idosa e contar-me na mesma.

«Era como estas pessoas, estava cá em férias. Não tencionava apaixonar-me! Por um rapaz quetinha metade da minha idade.» Piscou-me o olho. «E isso passou-se há vinte anos! Mas foimuito, muito mais do que um romance de férias, como vê: juntos construímos tudo isto.» Olhouem volta com orgulho para aquele monumento ao amor: um café com cobertura de zinco, quatromesas e três pratos na ementa. «Não sou rica, aliás era uma humilde professora de ioga. Masaquele pessoal de Berkeley, só é preciso dizer-lhes: “Ouçam, a situação é esta, esta gente édesesperadamente carente”, e digo-lhe, talvez fique surpreendida, aquele pessoal deita mãos àobra, é que deita mesmo. Praticamente toda a gente quer colaborar. E quando se lhes explicaquanto um dólar vale aqui? Quando se lhes explica o muito que se pode fazer com esse dólar?Oh, nem acreditam! Ao contrário, lamentavelmente, dos meus filhos, do meu primeirocasamento, que não me deram o mesmo apoio. Sim, às vezes são os estranhos que nos apoiam.Mas eu digo sempre às pessoas daqui: “Não acreditem em tudo o que ouvem, por favor! Porquenem todos os americanos são maus, de maneira nenhuma.” Há uma grande diferença entre aspessoas de Berkeley e as de Fort Worth, não sei se está a perceber. Eu nasci no Texas, numafamília cristã, e quando era nova a América era um lugar muito duro para mim, porque era umespírito livre e não conseguia integrar-me. Mas parece-me que agora está um bocadinhomelhor.»

«Mas vive aqui, com o seu marido?», perguntou Lamin. Ela sorriu, mas não pareceu particularmente agradada com a pergunta. «No verão. Passo os invernos em Berkeley.» «E ele vai consigo?», perguntou Lamin. Tive a impressão de que estava a fazer uma inquirição

subtil. «Não, não. Fica cá. Tem muito que fazer cá, durante todo o ano. Ele é o grande homem aqui e

penso que se pode dizer que eu sou a grande mulher lá! Portanto funciona muito bem. Paranós.»

Pensei naquela camada de ilusão juvenil que todas as amigas de Aimee que eram mãesrecentes tinham aparentemente perdido, uma espécie de luz nos olhos que tinha desaparecido,apesar de se tratar de pessoas célebres e ricas, e depois olhei bem no fundo dos olhos grandes,azuis, meio loucos, desta mulher, e o que vi foi uma escavação total. Custava a acreditar quehouvesse alguém capaz de representar o seu papel apesar de lhe terem arrancado tantascamadas.

33 Nunca mais. (N. do T.)

5

Uma vez concluído o curso, da base que era a casa do meu pai, candidatei-me a todos ospossíveis empregos de entrada numa empresa de comunicação social de que me lembrei,deixando todas as noites as cartas de pedincha no balcão da cozinha para ele as pôr no correio demanhã, mas passou-se um mês e nada. Sabia que o meu pai tinha uma relação difícil com estascartas – boas notícias para mim eram más notícias para ele, significavam que eu ia sair de casa –e às vezes passava-me pela cabeça a ideia paranoica de que ele nunca as tinha enviado,simplesmente as tinha deitado no contentor do lixo ao fundo da nossa rua. Pensei no que a minhamãe sempre me havia dito sobre a falta de ambição dele – acusação de que, indignada, sempre ohavia defendido – e tive de reconhecer que percebia agora aonde ela queria chegar. Nada o faziamais feliz do que as esporádicas visitas dominicais do meu tio Lambert, em que nos estendíamosos três em espreguiçadeiras no terraço coberto de trepadeiras do vizinho de baixo do meu pai efumávamos erva, comíamos os bolinhos de peixe caseiros que eram a desculpa de Lambert parachegar duas ou três horas atrasado, ouvíamos o World Service e víamos as composições daJubilee Line irromperem, a intervalos de oito ou dez minutos, das entranhas da Terra.

«Isto é que é vida, não achas, querida? Acabou-se o faz isto, não faças aquilo. Só nós, osamigos, juntos – iguais. É ou não é, Lambert? Quando é que vais ser assim amigo do teu filho?Isto é que é vida, não achas?»

Seria? Não me lembrava de alguma vez o ter visto assumir a dinâmica de poder parental queagora afirmava estar em perda, nunca o tinha ouvido dizer «Faz isto, não faças aquilo». Amor eliberdade – foi o que me ofereceu sempre, e só isso. E qual era o resultado? Deixar de trabalhar epassar os dias pedrada como Lambert? Sem saber que outra coisa fazer, voltei para um empregopéssimo, que tivera nas primeiras férias de verão da faculdade, numa pizaria de Kensal Rise.Pertencia a um iraniano ridículo chamado Bahram, muito alto e magro, que, apesar do ambienteque o rodeava, se considerava um homem de qualidade. Chovesse ou fizesse sol, gostava de usarum sobretudo comprido e elegante, cor de camelo, que muitas vezes punha pelos ombros comoum barão italiano, e chamava à sua espelunca «restaurante», apesar de as instalações serem dotamanho do quarto de banho de uma família pequena, num terreno de gaveto entalado entre oterminal dos autocarros e a linha férrea. Nunca entrava ninguém para comer, encomendavam portelefone ou compravam e levavam para casa. Eu costumava estar ao balcão a ver os ratinhos emcorreria pelo linóleo. Havia uma única mesa à qual um cliente podia sentar-se, mas a verdade éque Bahram a ocupava o dia inteiro e metade da noite: tinha problemas em casa, mulher e trêsfilhas solteiras e difíceis, e o nosso palpite era que preferia a nossa companhia a uma famíliaassim, ou pelo menos preferia gritar connosco a discutir com elas. No trabalho não tinha um diacansativo. Passava-o a comentar tudo quanto ia vendo na televisão do canto superior esquerdo da

loja, ou então a agredir-nos a todos verbalmente, da sua posição sentada. Estava sempre furiosocom tudo. Uma fúria cómica, ostensiva, que se exteriorizava numa provocação constante eobscena de quantos o rodeavam – provocação racial, sexual, política, religiosa – e que quasetodos os dias se saldava pela perda de um cliente ou empregado ou amigo, e por isso acabava porme parecer mais pungentemente nociva para ele próprio do que ofensiva para os outros. Maspronto, era o único entretenimento que tinha. Todavia, a primeira vez que lá entrei, tinha entãodezanove anos, não fui ofendida, não, fui saudada numa língua que mais tarde compreendi queera parse, e de forma tão efusiva que tive mesmo a sensação de que percebia o que ele estava adizer. Que jovem, e bonita, e claramente inteligente eu era! Era verdade que frequentava auniversidade? Mas como a minha mãe devia estar orgulhosa! Levantou-se e pegou-me noqueixo, virando-me a cara para um lado e para o outro, sorridente. Mas quando lhe respondi eminglês franziu o cenho e observou atentamente, criticamente, o lenço vermelho que me cobria ocabelo – tinha-me parecido que seria adequado num sítio onde se produzia comida – e momentosdepois, uma vez estabelecido que apesar do meu nariz persa não era persa, nem um bocadinho,nem egípcia, nem marroquina, nem árabe de nenhuma espécie, cometi o erro de pronunciar onome da ilha da minha mãe e toda a cordialidade se dissipou: fui mandada para o balcão, onde aminha função era atender o telefone, transmitir as encomendas à cozinha e coordenar osentregadores. A minha tarefa mais importante era cuidar de um projeto que lhe era muitoquerido: a Lista dos Clientes Proscritos. Tinha-se dado ao cuidado de escrever esta lista numcomprido rolo de papel que pregou na parede atrás do meu balcão, nalguns casos com polaroidesafixadas ao lado. «Quase todos gente como tu», referiu-me de passagem, ao meu segundo dia detrabalho.

«Não pagam, ou armam zaragata, ou passadores de droga. Não me faças essa cara! Porquêofendida? Tu sabes! É verdade!» Eu não suportava que me ofendessem. Estava decidida aaguentar aqueles três meses de verão, o tempo suficiente para acrescentar alguma coisa aodepósito para poder começar a pagar uma renda logo que acabasse o curso. Mas estava a dar oténis, e isso deitou tudo por terra. Um entregador somali e eu acompanhávamos avidamente astransmissões, e Bahram, que em condições normais também as acompanharia – considerava odesporto a mais pura manifestação das suas teorias sociológicas –, naquele ano estava furiosocom o ténis, e furioso connosco por gostarmos de ver, e sempre que nos apanhava a vê-lo ficavaainda mais furioso, tudo porque o seu sentido da ordem tinha sido profundamente subvertidopelo facto de Bryan Shelton não ter sido eliminado à primeira.

«Porquê vocês veem isto? Hein? Hein? Porque é um dos vossos?» Tinha o dedo espetado no peito estreito do entregador somali, Anwar, senhor de uma grande

luminosidade de espírito, uma notável capacidade de alegria – apesar de nada na sua vida parecerconstituir justa causa para isso – e cuja reação foi bater as palmas e fazer um sorriso de orelha aorelha.

«Iá, meu! Nós por Bryan!» «Tu idiota, isso nós já saber», e virou-se para mim, que estava atrás do balcão. «Mas tu

esperta, e isto faz-te mais idiota.» Como eu não reagi, veio direito a mim e deu um murro nobalcão: «Este Shelton – não vai ganhar. Não pode.»

«Ele ganhar! Ele ganhar!», berrou Anwar. Bahram pegou no comando e desligou a televisão para se fazer ouvir até ao fundo da loja, e

chegar mesmo à congolesa que esfregava as paredes do forno das pizas. «Ténis não é desporto para negros. Ter de compreender: cada povo tem o seu desporto.»

«Qual é o seu desporto?», perguntei eu, sinceramente curiosa, e Bahram pôs-se muito direito egarboso na cadeira. «Polo.» A cozinha explodiu em gargalhadas.

«Vão-se todos foder filhos da puta!» Histeria. A verdade é que eu não via os jogos de Shelton, nunca tinha ouvido falar nele antes de Anwar

me dizer quem ele era, mas a partir daí passei a vê-lo, juntamente com Anwar era a sua fãnúmero um. Comprei bandeirinhas americanas para levar para o trabalho nos dias em que elejogava, e nesses dias tinha o cuidado de mandar para a rua todos os entregadores menos Anwar.Juntos vitoriávamos Shelton, dançávamos pela loja sempre que ele marcava um ponto, e quandovimos que ele estava a ganhar uns jogos a seguir aos outros começámos a convencer-nos de queéramos nós que, com as nossas danças e incitamentos, estávamos a empurrá-lo, e sem nós estariatramado. Havia alturas em que Bahram agia como se também acreditasse nisto, como se nósestivéssemos a executar algum ritual antigo de vudu africano. Sim, sem sabermos comoenfeitiçávamos Bahram da mesma forma que enfeitiçávamos Shelton, e à medida que os dias dotorneio passavam e Shelton se recusava a ser eliminado, eu reparava que as muitas outraspreocupações prementes de Bahram – o negócio, a mulher difícil, a busca desgastante depretendentes para as filhas –, tudo desaparecia para ficar só a preocupação de garantir que nãoapoiássemos Bryan Shelton, e que Shelton não chegasse à final de Wimbledon.

Certa manhã, ia o torneio a meio, eu estava ao balcão, chateada, quando vi Anwar na suabicicleta, subir o passeio a grande velocidade, travar de qualquer maneira, desmontar e correrpara o meu canto com a mão na boca e um sorriso que não conseguia refrear. Bateu um exemplardo Daily Mirror na minha frente, apontou para uma coluna nas páginas de desporto e disse:«Árabe!» Nem queríamos acreditar. Chamava-se Karim Alami. Era marroquino e ainda tinhauma classificação pior do que Shelton. O jogo começava às duas. Bahram chegou à uma. Pairavano ar uma sensação de grande ansiedade e expectativa, entregadores que só tinham de entrar àscinco chegaram cedo, e a mulher da limpeza congolesa desatou a trabalhar nos fundos da cozinhaa uma velocidade nunca vista, na esperança de chegar à parte da frente – e portanto à televisão –antes de o jogo começar. A partida tinha cinco jogos. Shelton entrou forte e em várias alturas doprimeiro jogo Bahram limitou-se a pôr-se de pé em cima da cadeira e gritar. Quando o jogoterminou com seis a três para Shelton, Bahram saltou da cadeira para o chão e saiu disparadoporta fora. Nós olhámos um para o outro: era a vitória? Minutos depois voltou a entrar com ummaço de Gauloises na mão, que fora buscar ao carro, e começou a fumar cigarros atrás decigarros, cabisbaixo. Mas no segundo jogo as coisas pareciam apresentar-se mais favoráveis paraKarim, e Bahram sentou-se muito direito, a seguir levantou-se e pôs-se a andar em círculos noespaço exíguo, fazendo comentários, que tanto versavam a eugenia como as pancadas deesquerda e os lobs e as duplas faltas, e quando chegámos a um desempate o seu discurso ganhoufluência, fazendo círculos com o cigarro aceso, cada vez mais confiante no seu inglês. O homemnegro, informou-nos, é instinto, é corpo em movimento, e é música, sim, claro, e é ritmo, toda agente sabe isso, e é velocidade, e é bonito, sim, talvez, mas fiquem sabendo que o ténis é umjogo da mente – da mente! O homem negro pode ser boa força, bom músculo, pode bater a bolacom força, mas o Karim é como eu: pensa um, dois passos à frente. Tem espírito árabe. Espíritoárabe é máquina complicada, delicada. Nós inventou matemática. Nós inventou astronomia.Gente subtil. Dois passos à frente. O vosso Bryan está perdido.

Mas não estava: ganhou o jogo por sete a cinco, e Anwar tirou a vassoura das mãos da mulherda limpeza congolesa – cujo nome eu desconhecia, cujo nome nunca ninguém se lembrou deperguntar – e obrigou-a a dançar com ele, ao som de uma música hi-life do transístor que levava

consigo para todo o lado. No jogo seguinte Shelton baqueou, um a seis. Bahram exultou. Emqualquer parte do mundo, disse a Anwar, vocês em últimos! Umas vezes em primeiro homembranco, judeu, árabe, chinês, Japão – depende. Mas os teus perdem sempre. Quando começou oquarto jogo já nem sequer fingíamos que éramos um restaurante de pizas. O telefone tocava eninguém atendia, o forno estava vazio, e estava toda a gente apinhada no espaço da entrada. Euestava sentada no balcão com Anwar, as pernas batendo nervosamente no contraplacado baratodos painéis da frente até os fazerem abanar. Vimos aqueles dois jogadores – na verdade quaseperfeitamente equilibrados – baterem-se num desempate prolongado e extenuante que Sheltonacabou por perder, seis a sete. Anwar rompeu em lágrimas amargas.

«Mas Anwar, amiguinho: ainda falta um jogo», explicou o amável cozinheiro bósnio, e Anwarsentiu a gratidão do homem sentado na cadeira elétrica que acabou de vislumbrar o governador acorrer pelo corredor, do outro lado do vidro sintético. O último jogo foi rápido: seis a dois. Jogo,partida, eliminatória – Shelton. Anwar abriu as goelas do rádio e de dentro de mim jorrou todo otipo de dança e esperneei, sapateei, deslizei – até fiz o shim-sham. Bahram acusou-nos a todos determos relações sexuais com as nossas mães e saiu de rompante. Voltou cerca de uma horadepois. Era a hora de maior movimento ao fim do dia, quando as mães decidem que nãoconseguem encarar a ideia de fazer o jantar e o pessoal que passou o dia na passa percebe derepente que não come nada desde o pequeno-almoço. Eu estava agarrada ao telefone, tentandocomo de costume decifrar muitos tipos de inglês macarrónico, das pessoas que telefonavam e daequipa de entregadores, quando Bahram avançou para mim e me pôs o vespertino diante da cara.Apontou para uma fotografia de Shelton, de braço levantado em preparação para um dos seuspotentes serviços, bola no ar diante de si, parada no momento do contacto. Tapei o auscultadorcom uma das mãos.

«Que é? Estou a trabalhar.» «Repara bem. Não negro. Mestiço. Como tu.» «Estou a trabalhar.» «Provavelmente é metade-metade, como tu. Portanto, está explicado.» Em vez de Shelton olhei para Bahram, fixamente. Ele sorriu. «Meio vencedor», disse. Eu pousei o telefone, tirei o avental e vim-me embora. Não sei como Tracey descobriu que eu estava outra vez a trabalhar na loja de Bahram. Não

queria que ninguém soubesse, eu própria tinha dificuldade em encarar a verdade. Provavelmenteviu-me através do vidro. Quando entrou, numa tarde abafada de finais de agosto, causousensação, com os seus colãs justos e top a roçar o umbigo. Reparei que a indumentária dela nãotinha mudado com o tempo, não tinha necessidade de mudar. Não labutava, como eu – como amaioria das mulheres que conhecia – para encontrar formas de cobrir o corpo com os símbolos,formas e signos do tempo. Era como se estivesse acima disso tudo, como se fosse intemporal.Estava sempre vestida para um ensaio de dança e ficava sempre lindamente assim. Anwar e osoutros rapazes, à espera cá fora em cima das bicicletas, tiraram-lhe um longo retrato frontal comos olhos e depois mudaram de posição para apanharem aquilo a que os italianos chamam o ladoB. Quando ela se debruçou sobre o balcão para falar comigo, vi um deles tapar os olhos com amão, como se estivesse a sentir uma dor física.

«É bom ver-te. Como estava a beira-mar?»

Fez um sorriso trocista, confirmando a suspeita que eu já tinha de que a minha vidauniversitária havia sido uma espécie de piada local, uma tentativa débil de desempenhar umpapel fora da classe a que pertencia, tentativa falhada.

«Tenho visto a tua mãe. Agora está em todo o lado.» «Pois está. Estou contente por voltar, acho. Tu estás com ótimo aspeto. Estás a trabalhar?» «Oh, faço várias coisas. Tenho grandes notícias. A que horas sais?» «Acabei de entrar.» «E que tal amanhã?» Bahram aproximou-se e, com a maior cortesia de que era capaz, perguntou a Tracey se por

acaso era persa. Encontrámo-nos ao fim do dia seguinte, num pub local que sempre tínhamos conhecido como

irlandês, mas que agora não era irlandês nem coisa nenhuma. Os reservados tinham desaparecidopara dar lugar a uma quantidade de sofás e cadeirões de orelhas, de diferentes épocas históricas,forrados com padrões contrastantes e espalhados pelo espaço, como um cenário de teatrorecentemente desmontado. Papel de parede lavrado de cor roxa cobria a parede por cima dalareira e havia animais empalhados, fixados no momento de formarem o salto ou de seagacharem, encerrados em campânulas de vidro e colocados em prateleiras altas, assistindo comos seus desalinhados olhos de vidro ao reencontro entre mim e Tracey. Interrompi acontemplação de um esquilo petrificado para falar a Tracey, que regressava do balcão com doiscopos de vinho branco nas mãos e uma expressão de forte desagrado na cara.

«Sete libras? Que merda de roubalheira é esta?» «Podíamos ir a outro sítio.» Ela torceu o nariz. «Não. Isso era o que eles queriam. Nascemos aqui. Bebe devagar.» Beber devagar não era connosco. Continuámos a beber, com o cartão de crédito de Tracey,

desfiando recordações e rindo – rindo com vontade, como não me tinha rido nos três anos defaculdade – com as recordações dos sapatos amarelos de Miss Isabel, do poço de barro da minhamãe, da História da Dança, de tudo, mesmo de coisas de que nunca pensei que seríamos capazesde nos rirmos juntas. De Louie a dançar com Michael Jackson, da minha ilusão com o RoyalBallet. Sentindo-me ousada, perguntei-lhe pelo pai.

Ela parou de rir. «Ainda lá está. Arranjou uma carrada de filhos “por fora”, segundo ouvi dizer...» A sua cara sempre expressiva fez-se pensativa para logo assumir um olhar de extrema frieza de

que me lembrava muito bem, da nossa infância. Ainda pensei em contar-lhe o que tinha visto,anos antes, em Kentish Town, mas aquela frieza travou-me a frase na boca.

«E o teu velho? Já não o vejo há muito tempo.» «Podes não acreditar, mas acho que continua apaixonado pela minha mãe.» «Que bom», disse ela, mas mantinha aquele olhar no rosto. Estava a olhar para trás de mim,

para o esquilo. «Que bom», repetiu. Percebi que tínhamos chegado ao fim das recordações, que talvez fosse altura de entrarmos na

atualidade. Não tinha dúvidas de que as novidades de Tracey excederiam facilmente aquilo queeu tinha para oferecer. E assim foi: tinha um papel num teatro de West End. Era na reposição deum dos nossos musicais preferidos, Garotos e Garotas, e fazia o papel de «Hot Box Girl NumberOne», que eu me lembrava de não ser um papel importante – no filme nem sequer tinha nome e

só dizia quatro ou cinco frases – mas mesmo assim estava muito presente em palco, cantando edançando no clube Hot Box, ou andando atrás de Adelaide, de quem era supostamente a melhoramiga. Tracey ia cantar «Take Back Your Mink» – uma canção que representávamos emcrianças, brandindo um par de boás de penas com um ar raquítico – e vestir corpetes de renda ecapas de cetim verdadeiro e ter o cabelo arranjado e encaracolado. «Estamos agora em ensaiogeral a sério. Penteiam-me todos os dias com alisadores, é um martírio.» Levou os dedos à orlado couro cabeludo e por baixo da cera que tinham usado para o manter liso vi que de facto jáestava frágil e ralo.

Tinha esgotado a fanfarronice. Sem ela, porém, pareceu-me vulnerável e defensiva, e tive asensação de que a minha reação não fora exatamente aquela que ela esperava. Talvez tivesserealmente imaginado que uma rapariga de vinte e um anos com um curso universitário ia ouvir assuas boas notícias e cair redonda no chão a chorar. Pegou no copo de vinho e esvaziou-o. Sóentão quis saber da minha vida. Eu respirei fundo e repeti o tipo de coisas que dizia à minha mãe:apenas uma solução de recurso, à espera de que aparecessem outras oportunidades, a vivertemporariamente em casa do meu pai, as rendas eram altas, nenhuma relação, mas também asrelações eram tão complicadas, não era disso que precisava nesta altura, e queria ter tempo paratrabalhar na minha…

«Certo, certo, certo, mas não podes continuar a trabalhar para o ranhoso das pizas, pois não?Precisas de ter um plano.»

Eu anuí e esperei. Senti-me invadida por um alívio que, apesar de familiar, já não sentia haviamuito tempo, e que atribuí ao facto de Tracey me levar pela mão, de deixar de tomar decisões eseguir antes a vontade dela, as suas intenções. Não é verdade que Tracey sempre tinha sabidoque jogos jogar, que histórias contar, que ritmo escolher, que passo fazer para o acompanhar?

«Ouve, eu sei que agora és uma mulher crescida», disse, em tom de confidência, recostando-sena cadeira, com os pés a apontar para o chão, criando uma bela linha vertical desde os joelhosaos dedos. «Não é da minha conta. Mas se precisares de alguma coisa, andam à procura deassistentes de palco. Podias tentar. Eu podia recomendar-te. São só quatro meses, mas sempre émelhor do que nada.»

«Eu não percebo nada de teatro. Não tenho experiência.» «Ora adeus», disse Tracey, abanando a cabeça e levantando-se para ir buscar mais uma rodada.

«Mentes!»

6

Calculei que o meu interrogatório a Lamin tivesse chegado aos ouvidos de Aimee, porque nodia da minha partida do hotel Coco Ocean telefonaram-me da receção para o quarto a dizer quetinham uma mensagem para mim, e quando abri o envelope branco encontrei este recado: Jatoindisponível. Terás de vir em voo comercial. Guarda os recibos. Judy.

Estava a ser castigada. A princípio achei engraçado que o conceito de castigo de Aimee fossevoar em avião comercial, mas quando cheguei ao aeroporto fui surpreendida pelos muitospormenores de que afinal me tinha esquecido: a espera, as filas, a sujeição a instruçõesirracionais. Todos os aspetos da situação, a presença de tanta gente, a brusquidão dosfuncionários, até o imutável horário do voo nos ecrãs da sala de espera – tudo me parecia umaafronta. Deram-me um lugar ao lado de dois camionistas de Huddersfield. Tinham sessenta e talanos e viajavam juntos. Adoravam este país, viriam «todos os anos, se pudessem». Depois doalmoço desataram a beber garrafinhas de Baileys e a falar das respetivas «miúdas». Ambosusavam aliança, parcialmente afundada nos dedos gordos e peludos. Nessa altura eu já tinhaposto os meus auriculares: deviam pensar que não os ouvia. «A minha disse-me que tinha vinteanos, mas o primo – que também é empregado de mesa no mesmo restaurante – disse-me quetinha dezassete. Mas sabe muito para a idade que tem.» Tinha gema de ovo ressequida pela T-shirt abaixo. O amigo tinha os dentes amarelos e sangrava das gengivas. Tinham sete dias deférias por ano de calendário. O dos dentes amarelos fizera duplos durante três meses para sepoder dar ao luxo deste fim de semana prolongado com a miúda em Banjul. Vieram-me à cabeçafantasias assassinas – pegar na faca de plástico serrilhada e espetar-lha nas gargantas – masquanto mais ouvia mais triste aquilo me parecia. «Eu disse-lhe, não queres vir para Inglaterra? Ebasicamente ela responde-me: “Nem pensar, querido.” Quer uma casa em Wassu, onde quer queessa merda fique. Estas miúdas não são nada parvas. Realistas. A libra vale muito mais aqui doque lá na nossa terra. É como a patroa a chingar porque quer ir a Espanha. Eu disse-lhe: “Estás aviver no passado, amor. Sabes quanto custa ir a Espanha atualmente?”» Um tipo de fraqueza aalimentar-se de outro.

Uns dias depois regressei ao trabalho. Continuava à espera de uma reunião formal ou de que

me pedissem um relatório, mas foi como se pura e simplesmente não tivesse feito a visita.Ninguém falava da minha viagem, o que em si mesmo não era muito estranho, havia muitasoutras coisas a acontecer na mesma altura – um álbum, uma nova digressão – mas, ao estilosubtil dos melhores torturadores, Judy e Aimee faziam tudo para me deixarem de fora de todas asdecisões importantes, tendo o cuidado de evitar que tudo aquilo que diziam ou faziam pudesse

ser explicitamente interpretado como castigo ou retaliação. Estávamos a preparar a nossatransição de outono para Nova Iorque – período em que Aimee e eu costumávamos andargrudadas uma à outra – mas agora mal a via, e durante duas semanas foi-me atribuído o tipo detrabalho indiferenciado mais próprio do pessoal doméstico. Fazia telefonemas para as empresasde mudanças. Catalogava sapatos. Acompanhava as crianças à aula de ioga. Num sábado demanhã interpelei Judy a este respeito. Aimee estava na cave a fazer exercício, as criançasestavam a ver a sua hora semanal de televisão. Percorri todos os cantos da casa e fui encontrarJudy sentada na biblioteca com os pés em cima da secretária de tampo verde, a pintar as unhasdos pés numa horrível cor de fúcsia, com uma cunha de esponja branca entre os dedoscompridos. Não levantou os olhos enquanto eu não acabei de falar.

«Pois é, lamento dizer-te, querida, mas a Aimee está-se perfeitamente nas tintas para aquiloque tu pensas da sua vida privada.»

«Só estou a tentar zelar pelos interesses dela. É essa a minha função como amiga.» «Não, querida, não é exato. A tua função é: assistente pessoal.» «Já cá estou há nove anos.» «E eu há vinte e nove.» Rodou os pés e pousou-os numa caixa negra que estava no chão e

irradiava uma luz roxa. «Já vi chegar e partir muitas assistentes pessoais. Mas, santo Deus,nenhuma tão convencida como tu.»

«Não é verdade? Não está a tentar arranjar-lhe um visto?» «Não vou discutir isso contigo.» «Judy, eu passei a maior parte do dia a trabalhar para o cão. Tenho um curso superior. Não me

digas que não estou a ser castigada.» Judy puxou a franja para trás com as duas mãos. «Em primeiro lugar, não precisas de ser tão melodramática. O que estás a fazer é trabalho. Ao

contrário do que possas pensar, minha menina, a tua função não é nem nunca foi a de «melhoramiga». És assistente dela. Sempre foste. Mas parece que nos últimos tempos te esqueceste disso– e está na altura de alguém te lembrar. Portanto, essa é a primeira questão. Segunda: se ela quertrazê-lo para cá, se quer casar com ele, ou dançar com ele no alto da porra do Big Ben, tu nãotens nada com isso. Estás muito fora da tua área de competência.» Judy suspirou e olhou para osdedos dos pés. «E o mais engraçado é que ela nem sequer está chateada contigo por causa dorapaz. Nem sequer é por causa do rapaz.»

«Então é porquê?» «Falaste recentemente com a tua mãe?» Esta pergunta fez-me corar violentamente. Quão recentemente? Um mês? Dois? O Parlamento

estava em sessão, ela estava ocupada, se quisesse falar comigo sabia onde me encontrar. Passeilongamente em revista na minha cabeça estas justificações até perceber de onde vinha o interessede Judy.

«Pois talvez devesses falar. Anda a complicar-nos a vida e não sei porquê. Era bom quetentasses descobrir.»

«A minha mãe?» «Quer dizer, há um milhão de problemas nesta ilha de merda a que vocês chamam país –

literalmente um milhão. E ela quer falar sobre “Ditaduras na África Ocidental”?», disse Judyfazendo aspas com os dedos. «Cumplicidade britânica com as ditaduras oeste-africanas. Vai àTV, escreve artigos de opinião, levanta-se nas Perguntas ao Primeiro-ministro à Hora do Chá, oulá que raio chamam àquilo. Não fala de outra coisa. Tudo bem. O problema não é meu – o que

faz o DfID, o que faz o FMI –, isso não é da minha conta. Mas a Aimee sim, é da minha conta –e da tua. Estamos a trabalhar em parceria com aquele maldito Presidente louco, e se foresperguntar ao teu adorado Fern ele dir-te-á que nesta matéria estamos a caminhar no arame.Acredita em mim, querida, sabes o que vai acontecer se sua alteza vitalícia o todo-poderoso reidos reis não nos quiser no seu país? Põe-nos de lá para fora enquanto o diabo esfrega um olho.Fode-se a escola, fode-se toda a gente. Outra coisa, eu sei que tens um curso superior. Tu própriamo disseste, vezes sem conta. O curso superior é de Desenvolvimento Internacional? Não, achoque não. E tenho a certeza de que a tua mãe desbocada, lá nas últimas filas do parlamento, écapaz de pensar que está a ajudar, só Deus sabe, mas sabes o que é que está de facto a fazer? Aprejudicar as pessoas que diz querer ajudar, e a denegrir quem, como nós, está a tentar fazeralguma diferença no terreno. A morder a mão. Deve ser de família.»

Eu sentei-me na chaise longue. «Caramba, não lês ao menos os jornais?», perguntou Judy. Três dias depois desta conversa voámos para Nova Iorque. Deixei recados no gravador da

minha mãe, escrevi-lhe mensagens, enviei-lhe emails, mas ela só me ligou no fim da semanaseguinte e, com o extraordinário sentido de oportunidade que é próprio das mães, escolheu asduas e meia da tarde de um domingo, no preciso momento em que o bolo de Jay saía dascozinhas e caíam serpentinas do teto do Rainbow Room, e duzentos convidados cantavam os«Parabéns a Você» acompanhados por violinistas do naipe de cordas da Filarmónica de NovaIorque.

«Que barulheira é essa? Onde estás?» Abri as portas de correr para o terraço, saí e voltei a fechá-las. «É o aniversário do Jay. Faz hoje nove anos. Estou no último andar do Rockefeller.» «Ouve, não quero ter uma discussão contigo pelo telefone», disse a minha mãe, num tom de

quem queria muito ter uma discussão pelo telefone. «Li os teus emails, compreendo a tuaposição. Mas espero que compreendas que eu não trabalho para essa mulher – nem sequer parati. Trabalho para o povo britânico, e se comecei a interessar-me por aquela região, se tenho vindoa ficar cada vez mais preocupada…»

«Sim, mamã, mas não podes ficar cada vez mais preocupada com outra coisa qualquer?» «Não te interessa quem são os vossos parceiros neste projeto? Eu conheço-te, querida, e sei

que não és nenhuma mercenária, sei que tens ideais – fui eu que te criei, bolas, portanto sei.Estudei o problema a fundo, a Miriam também, e chegámos à conclusão de que nesta altura aquestão dos direitos humanos está a ficar verdadeiramente insustentável – oxalá não estivesse,para vosso bem, mas está. Querida, não queres saber…»

«Mamã, desculpa – ligo-te mais tarde – tenho de desligar.» Fern, num fato que lhe caía mal, claramente alugado, um pouco curto nos tornozelos, vinha na

minha direção, acenando desajeitadamente, e acho que só nesse momento me apercebi do pontoa que tinha chegado o meu isolamento. Para mim ele era uma figura recortada e colada nafotografia errada, no momento errado. Sorriu, abriu as portas de correr, com a cabeça tombadapara um lado como um terrier: «Ah, mas estás lindíssima.»

«Porque é que ninguém me disse que vinhas? Porque é que tu não me disseste?» Ele passou os dedos por dentro de uns caracóis meio domados por um gel barato e fez um ar de

cordeirinho, qual rapazinho de escola apanhado numa falta de pouca importância.

«Bem, vim tratar de um assunto confidencial. É ridículo, mas a verdade é que não podia dizer-te, desculpa. Quiseram manter a coisa em sigilo.»

Olhei para onde ele estava a apontar e vi Lamin. Estava sentado na mesa principal, de fatobranco, como o noivo num casamento, com Judy de um lado e Aimee do outro.

«Jesus Cristo.» «Não, não, penso que não foi ele. A não ser que trabalhe para o Departamento de Estado.» Deu

um passo em frente e pousou as mãos no muro de proteção. «Mas que vista!» Tínhamos a cidade inteira aos pés. Eu encostei-me ao muro, preferindo observar Fern,

confirmar que era real, e depois ver Lamin receber uma fatia de bolo de um empregado quepassava. Tentei encontrar uma explicação para o pânico que sentia. Era mais do que o simplesfacto de ser mantida na ignorância, era uma rejeição da forma como ordenava a minha realidadepessoal. Porque na minha cabeça, naquela altura – como talvez aconteça com a maioria dosjovens – eu era o centro das coisas, a única pessoa no mundo com verdadeira liberdade. Andavadaqui para ali, a apreciar a vida tal como ela se me apresentava, mas todas as outras pessoas quefaziam parte destes cenários, todas as figuras secundárias, só tinham lugar nos compartimentosem que eu as havia colocado. Fern eternamente na casa cor-de-rosa, Lamin confinado aoscaminhos de terra da aldeia. Que estavam a fazer aqui, agora, na minha Nova Iorque? Não sabiacomo conversar com nenhum deles no Rainbow Room, não sabia ao certo qual devia ser arelação entre nós, ou de que é que, neste contexto, era devedora ou credora. Tentei imaginar oque Lamin estava a sentir neste preciso momento, finalmente do outro lado da matriz, e se tinhaalguém que o guiasse por este desconcertante mundo novo, alguém que lhe explicasse asobscenas quantidades de dinheiro que tinham sido esbanjadas aqui em coisas como balões dehélio e pãezinhos com tinta de choco e quatrocentas peónias. Mas quem estava ao lado dele eraAimee e não eu, e ela não tinha esse tipo de preocupações, isso via eu daqui, este era o seumundo e Lamin tinha apenas sido convidado para entrar nele como podia ter sido qualquer outrapessoa, como um privilégio e uma dádiva, da mesma forma que antigamente as rainhasofereciam a sua proteção com toda a naturalidade. Na cabeça dela tudo era destino, sempre fora,e, portanto, essencialmente simples. Era exatamente para isso que eu e Judy e Fern e todos osoutros éramos pagos: para mantermos a vida simples – para ela. Caminhávamos por entre oslimos emaranhados do fundo para que ela pudesse flutuar à superfície.

«Mas pronto, ainda bem que vim. Queria ver-te.» Fern estendeu o braço e afagou-me ao deleve o ombro direito, e na altura pensei que estava simplesmente a sacudir algum bocadinho depó, tinha a cabeça noutro lado, fixada nesta imagem de mim presa nos limos e Aimee flutuandoserenamente por cima da minha cabeça. Depois a outra mão dele pousou no meu outro ombro:continuei sem compreender. Tal como todos os outros convidados para a festa, com a possívelexceção de Fern, não conseguia tirar os olhos de Lamin e Aimee.

«Meu Deus, olha para aquilo!» Fern olhou rapidamente de relance para onde o meu dedo apontava e apanhou Lamin e Aimee

no momento de trocarem um beijo breve. Acenou com a cabeça: «Ah, quer dizer que já nemescondem!»

«Jesus Cristo. Vai casar com ele? Vai adotá-lo? «Que interessa isso? Não quero falar dela.» De repente, Fern prendeu as minhas mãos nas suas, e quando me virei descobri que estava a

fitar-me com uma intensidade cómica. «Que estás a fazer, Fern?»

«Estás a fingir que és cínica» – continuava a procurar os meus olhos com a mesma força comque eu procurava evitar os dele – «mas o que eu acho é que estás com medo.»

No sotaque dele, isto parecia uma fala de uma das telenovelas mexicanas a que costumávamosassistir com metade da aldeia, às sextas-feiras à tarde, na sala de televisão da escola. Nãoconsegui conter-me – ri-me. As sobrancelhas dele juntaram-se numa linha triste.

«Por favor não te rias de mim.» Olhou-se, e eu também o olhei: penso que era a primeira vezque o via sem ser em calções de lona. «A verdade é que não sei como hei de andar vestido emNova Iorque.»

Eu libertei as minhas mãos das mãos dele. «Fern, não sei o que pensas que isto é. A verdade é que não me conheces.» «De facto não é fácil conhecer-te bem. Mas quero conhecer-te. Estar apaixonado é isso

mesmo. Querer conhecer melhor alguém.» Pareceu-me que a situação era tão constrangedora que ele tinha simplesmente de desaparecer

naquele momento – da mesma forma que cenas deste tipo nas telenovelas são cortadas paraentrar um anúncio – porque se assim não fosse não via como íamos atravessar os dois minutosseguintes. Ele não se mexeu do sítio. Pegou em duas flutes de champanhe da bandeja de umempregado que ia a passar e bebeu a sua de um gole só.

«Não tens nada para me dizer? Estou a oferecer-te o meu coração!» «Oh meu Deus – Fern – por favor! Não digas essas coisas! Eu não quero o teu coração! Não

quero ser responsável pelo coração de mais ninguém. Por nada de mais ninguém!» Ele pareceu confuso: «Uma ideia estranha. Enquanto estás viva neste mundo és responsável.» «Por mim mesma.» Desta vez fui eu que bebi a flute inteira. «Só quero ser responsável por

mim mesma.» «Há alturas nesta vida em que temos de correr riscos por outras pessoas. Repara na Aimee.» «Reparo na Aimee?» «Não podes deixar de a admirar. Não se envergonha. Ama este rapaz. Provavelmente isto vai

criar-lhe uma data de problemas.» «Criar-nos, queres tu dizer. Vai criar-nos uma data de problemas.» «Mas não se importa com o que os outros pensam.» «Isso é porque, como de costume, não faz ideia daquilo em que se está a meter. É tudo um

absurdo.» Estavam encostados um ao outro, a ver o ilusionista, um cavalheiro elegante com um fato de

Savile Row e laço, que já tinha estado no oitavo aniversário de Jay. Estava a fazer o truque dasargolas chinesas. A luz entrava a jorros no Rainbow Room e as argolas encaixavam-se edesencaixavam-se, apesar da sua aparente solidez. Lamin estava fascinado – toda a gente estava.Eu ouvi, muito baixo, música de oração chinesa e compreendi, no abstrato, que devia fazer partedo efeito pretendido. Percebia o que toda a gente estava a sentir, mas não conseguia acompanhá-los e não sentia o mesmo.

«Estás com ciúmes?» «Gostava de conseguir iludir-me como ela. Tenho ciúmes de todas as pessoas inconscientes

como ela. Um pouco de ignorância nunca a deteve. Nada a detém.» Fern esvaziou o copo e pousou-o desajeitadamente no chão. «Não devia ter falado. Penso que interpretei mal a situação.» A linguagem amorosa dele tinha sido muito pateta, mas agora, que regressava à mais habitual

linguagem administrativa, tive pena. Virou costas e voltou para dentro. O ilusionista terminou a

atuação. Vi Aimee levantar-se e aproximar-se do palco pequeno e arredondado. Jay foi chamado,ou pelo menos juntou-se a ela, depois Kara, depois Lamin. Foram rodeados por todos ospresentes, que formavam um crescente de adoração. Pelos vistos, eu era a única pessoa quecontinuava cá fora, a olhar lá para dentro. Com um braço Aimee envolvia Jay e Kara, com ooutro erguia a mão esquerda de Lamin em pose de triunfo. Toda a gente bateu palmas e deuvivas, num rumor abafado pelo vidro duplo. Aimee manteve aquela posição, uma sala cheia demáquinas fotográficas disparou os flashes. Do sítio em que eu estava, era uma pose que fundiamuitos períodos da vida dela num só: mãe e amante, irmã mais velha, melhor amiga, superstar emulher de posses. Mas porque é que havia de apoderar-se de tudo, ter tudo, fazer tudo, ser toda agente, em todos os lugares, em todos os momentos?

7

Aquilo de que guardo a memória mais viva é do calor do corpo dela quando saía a correr dopalco para os meus braços, na coxia, onde eu já a esperava com uma saia travada para substituiro vestido de cetim, ou uma cauda preta de gato para lhe pregar no fundo das costas – depois dese ter libertado da saia travada com um meneio do corpo – e lenços de papel novos para limpar osuor que sempre lhe brotava da cana do nariz sardento. É claro que havia muito mais garotos egarotas a quem tinha de entregar pistolas ou bengalas, ou compor um alfinete de gravata,endireitar uma costura ou pôr com cuidado um alfinete de dama, mas é de Tracey que melembro, apoiada no meu cotovelo para se equilibrar com uma das mãos e entrar agilmente numascalças de meia perna verde-claras a que eu depois corria o fecho lateral, tendo o cuidado de nãolhe arrepanhar a pele, antes de me ajoelhar para lhe apertar os atacadores dos sapatos desapateado brancos com tacão laminado. Durante estas mudanças rápidas estava sempre séria ecalada. Nunca dava risadinhas nem sinais de agitação como as outras Hot Box Girls, nem semostrava insegura ou a necessitar de conforto, como depressa aprendi que era típico das coristas,mas estranho à natureza de Tracey. Enquanto eu a vestia ou despia mantinha-se atenta ao que sepassava no palco. Se podia ver o espetáculo, via. Se estava presa num camarim dos bastidores e oacompanhava pela instalação sonora, concentrava-se de tal maneira naquilo que estava a ouvirque era impossível conversar com ela. Não importava quantas vezes via o espetáculo, nunca secansava de o ver, estava sempre ansiosa por voltar a entrar em cena. Tudo o que se passava nosbastidores a aborrecia. A sua verdadeira vida era lá dentro, naquela ficção, debaixo das luzes, eisso deixava-me confusa porque sabia, melhor do que ninguém do elenco, que ela tinha umarelação secreta com uma das estrelas, um homem casado. Fazia o papel de Irmão ArvideAbernathy, o bondoso cavalheiro mais velho que toca tambor baixo na banda do Exército deSalvação. Não era necessário porem-lhe spray cinzento no cabelo, era quase do triplo da idade deTracey e já tinha muitos, um afro sal-e-pimenta que contribuía para aquilo a que os críticos deteatro gostam de chamar «distinção». Na vida real era nascido e criado no Quénia, seguido deuma passagem pela RADA34, seguida de outra pela Royal Shakespeare Company: tinha uma ricadicção shakespeariana, da qual quase toda a gente se ria nas suas costas, mas que eu gostava deouvir, principalmente em palco, era luxuriante, um autêntico veludo verbal. O caso amorosoentre os dois era vivido em pequenas bolsas de tempo, sem liberdade para se expandir. Em palcoquase não contracenavam – as suas personagens eram oriundas de dois mundos diferentes, umacasa de oração e um antro de pecado – e fora dele tudo era clandestino e atribulado. Mas eudesempenhava de bom grado o papel de intermediária, procurando camarins vazios, ficando deguarda, mentindo por eles quando era preciso – dava-me alguma coisa de concreto para fazer domeu tempo, em vez de me perguntar, como fazia quase todas as noites, que diabo estava a fazer

ali. Observar a relação deles também era interessante para mim, dada a forma curiosa como se

construía. Sempre que o pobre homem via Tracey parecia que ia morrer de amor por ela, mas elanunca era muito gentil com ele, pelo menos era o que me parecia, e muitas vezes ouvi-a chamar-lhe velho maluco, ou provocá-lo por ser casado com uma mulher branca, ou dizer piadas cruéissobre a sua líbido envelhecida. Uma vez interrompi-os por engano, entrando num camarim ondenão sabia que eles estavam, e deparei-me com uma cena singular: ele estava de joelhos no chão,completamente vestido, mas de cabeça baixa e claramente a chorar, e ela estava sentada numbanco, de costas para ele, ao espelho, a pôr batom. «Por favor não faças isso», ouvi-a dizerenquanto fechava a porta. «E levanta-te. Levanta a merda dos joelhos...» Mais tarde contou-meque ele se propunha deixar a mulher. Para mim, o mais estranho de tudo na ambivalência delaera que subvertia gravemente as hierarquias do mundo teatral em que vivia, onde cada elo daprodução tinha um valor exato e o correspondente poder, e todas as relações obedeciamrigorosamente a um determinado sistema. Em termos sociais, práticos, sexuais, uma estrelafeminina valia tanto quanto as vinte coristas juntas, por exemplo, e a Hot Box Girl Number Onevalia cerca de três coristas e todas as substitutas, enquanto um papel masculino falado, dequalquer tipo, era igual a todas as mulheres em cena juntas – exceto talvez a atriz principal – euma estrela masculina até podia cunhar moeda, quando entrava numa sala esta reordenava-se àvolta dele, quando escolhia uma corista esta submetia-se imediatamente a ele, quando sugeriauma alteração o diretor endireitava-se na cadeira e escutava-o. Este sistema era tão sólido queresistia a revoluções exteriores. Por exemplo, os diretores tinham começado a formar elencos quecruzavam e contrariavam as velhas separações de classe e de cor – havia Reis Henriques negros eRicardos III cockneys e Arvides Abernathys quenianos que falavam exatamente como LarryOlivier – mas as velhas hierarquias das categorias em cena continuavam firmes como sempre. Naminha primeira semana, perdida nos bastidores e baralhada com o sítio do armário dos adereços,intercetei uma linda rapariga indiana em corpete que passava por mim a correr e tentei pedir-lheajuda. «Não me perguntes a mim», disse sem abrandar, «eu não sou ninguém...» O caso deTracey era para mim uma forma de vingança sobre tudo aquilo: era como ver um gato domésticoapanhar um leão, domesticá-lo, tratá-lo como um cão.

Eu era a única pessoa com quem os dois amantes podiam conviver fora de horas. Não podiam

ir ao Coach and Horses com o resto do elenco, mas sentiam a mesma necessidade de umsuplemento de adrenalina com alto teor de álcool no fim do espetáculo, pelo que iam ao ColonyRoom, onde não ia mais ninguém da companhia, mas do qual ele era um membro antigo. Muitasvezes convidavam-me para ir com eles. Aqui todos o tratavam por «Chalky», e sabiam o que elebebia – uísque e ginger ale – e havia sempre um à sua espera quando entrava, às dez e quarenta ecinco em ponto. Ele adorava aquilo, e a alcunha estúpida, porque era um hábito antigo e eleganteatribuir alcunhas, e tudo quanto fosse elegante e inglês era objeto da sua devoção. Reparei queraramente falava do Quénia ou de África. Uma noite tentei fazer-lhe perguntas sobre a sua terra,mas ele irritou-se: «Oiçam, meninas, vocês, que cresceram aqui, pensam que o meu país é sócrianças com fome e Live Aid ou lá o que pensam que é. Pois bem, o meu pai era professoruniversitário de economia, a minha mãe fazia parte do governo, eu cresci num condomínio muitobonito, fiquem sabendo, com criados, cozinheira, jardineiro...» Continuou mais algum temponeste tom e depois voltou ao seu tema preferido, os dias de glória do Soho. Eu senti-me

envergonhada, mas também achei que ele me tinha interpretado mal de propósito: claro que sabiaque o mundo dele existia – mundos como aquele existem em todo o lado. Não era isso que queriasaber.

A sua verdadeira lealdade ia para o bar propriamente dito, afeição que se esforçava por traduzirpara duas raparigas que mal sabiam quem era Francis Bacon e a única coisa que viam era umasala estreita, manchada de fumo, as pálidas paredes verdes e a anarquia infrene – «merdaartística», como lhe chamava Tracey – que tomava conta de todas as superfícies. Para irritar oamante, Tracey gostava de alardear a sua ignorância, mas, embora fingisse o contrário, dava-mea sensação de que muitas vezes estava interessada nas histórias compridas, digestivas eembriagadas que ele contava, sobre artistas, atores e escritores que conhecera, suas vidas e obras,com quem tinham dormido e o que tinham bebido ou tomado e como tinham morrido. QuandoChalky ia ao quarto de banho ou saía para comprar cigarros de erva, muitas vezes a surpreendiem contemplação de um ou outro quadro próximo, acompanhando o movimento do pincel,pensava eu, olhando concentradamente, com a acutilância que punha em tudo. E quando elevoltava cambaleante e retomava o assunto, ela revirava os olhos, mas estava a ouvir, tenho acerteza. Chalky tinha conhecido Bacon superficialmente, o suficiente para beberem um copojuntos, e haviam tido um bom amigo comum, um jovem ator chamado Paul, homem de «grandebeleza, grande encanto pessoal», filho de pais ganeses, que durante algum tempo vivera emBattersea com o namorado e com Bacon num triângulo amoroso. «E o que têm de compreender»,disse Chalky (depois de um certo número de uísques havia sempre coisas que tínhamos decompreender), «o que têm de compreender é que aqui no Soho, naquele tempo, não havia negros,não havia brancos. Nada de tão banal. Não era como em Brixton, não, aqui éramos todos irmãos,na arte, no amor» – apertou o braço de Tracey – «em tudo. Depois o Paul conseguiu aquele papelem Um Gosto de Mel – viemos cá comemorar – e toda a gente falava nisso, e sentíamo-nos ocentro de tudo, da Londres dançante, da Londres boémia, da Londres literária, da Londres teatral,e este tinha passado a ser também o nosso país. Era lindo! Podem crer, se Londres começasse eacabasse em Dean Street tudo seria... felicidade.»

Tracey deslizou do colo dele para o banco alto. «És um bêbedo nojento», resmungou, e obarman, que ouviu o que ela tinha dito, riu-se e disse-lhe: «Receio bem que essa seja umacondição para se ser sócio disto, linda...» Chalky virou-se para Tracey e beijou-adesajeitadamente: «Come, come, you wasp; i’ faith, you are too angry...»35 «Vejam só o que eutenho de aturar!» exclamou Tracey, repelindo-o. Chalky tinha uma predileção por baladasshakespearianas de pendor elegíaco, que faziam Tracey trepar pelas paredes verdes, em parteporque tinha inveja da bela voz dele mas também porque quando Chalky começava a cantarcoisas que metiam salgueiros e bruxas infiéis era sinal seguro de que teriam de o levar quase aocolo pela escada íngreme e bamba, enfiá-lo num táxi e reenviá-lo para junto da mulher branca,com a corrida paga com dinheiro que Tracey lhe havia surripiado da carteira, tirandonormalmente um pouco mais do que o estritamente necessário. Mas era uma mulher pragmática,só acabava a noite quando tivesse aprendido alguma coisa. Estou convencida de que estava atentar recuperar o que tinha perdido nos últimos três anos e eu tinha ganhado: uma educaçãogratuita.

O espetáculo teve críticas muito boas e em Novembro, nos bastidores, cinco minutos antes de

subir o pano, os produtores reuniram-nos e comunicaram-nos que a temporada ia ser prolongada

para além do prazo do Natal e entrar pela primavera. Os artistas ficaram encantados e nessa noitelevaram o encantamento consigo para o palco. Eu fiquei na coxia, feliz por eles, mas com aminha novidade secreta guardada cá dentro, ainda não a tinha dado à direção nem a Tracey. Umadas minhas candidaturas tinha finalmente dado frutos: um lugar de assistente de produção, umestágio remunerado, na recém-lançada versão britânica da YTV. Tinha ido a uma entrevista nasemana anterior, o entrevistador tinha engraçado comigo e tinha-me dito, na minha opinião comalguma falta de profissionalismo, atendendo à fila de raparigas que esperavam lá fora, que olugar era meu, com entrada imediata. Eram só treze mil libras, mas se continuasse a viver emcasa do meu pai era mais do que suficiente. Estava feliz, mas hesitava em contar a Tracey, sempropriamente me perguntar qual era a origem da minha hesitação. As Hot Box Girls passarampor mim a correr, vindas diretamente da caracterização e entrando em cena vestidas de gatas,com Adelaide no centro da primeira fila e a Hot Box Girl Number One à sua esquerda. Encheramo peito de ar provocadoramente, lamberam as patas, agarraram a cauda – uma das quais eu tinhaprendido em Tracey dez minutos antes –, acocoraram-se como gatinhas prontas a atacar, ecomeçaram a cantar, sobre «papás» malvados que nos apertam com muita força e nos dãovontade de vadiar, e outros, desconhecidos mas atenciosos, que nos fazem sentir em casa... Erasempre um número exuberante, mas naquela noite foi uma verdadeira sensação. Do lugar ondeeu estava, com vista desimpedida para a primeira fila de público, via o desejo indisfarçado nosolhos dos homens, e que muitos desses olhos eram especificamente dirigidos a Tracey quandopor direito deviam ser dirigidos à mulher que fazia o papel de Adelaide. Todas as outras eramofuscadas pela agilidade das pernas de Tracey naqueles colãs, pela vitalidade pura dos seusmovimentos, verdadeiramente felinos, extraordinariamente femininos, que eu invejava e nãopodia ter esperanças de criar no meu corpo, por muitas caudas que me pregassem. Aquelenúmero era feito por treze dançarinas, mas só os movimentos de Tracey interessavamverdadeiramente, e quando ela saiu de cena a correr com as outras e eu lhe disse que tinhadançado maravilhosamente, não duvidou nem me pediu, ao contrário das outras, que repetisse oelogio, disse simplesmente «Sim, eu sei», curvou-se, despiu os colãs e entregou-mos, feitosnuma bola.

Nessa noite o elenco comemorou no Coach and Horses. Tracey e Chalky foram com os outrose eu também, mas estávamos habituados à intensidade alcoolizada e íntima do Colony Room – etambém aos nossos lugares, e a ouvir-nos falar – e ao fim de uns dez minutos em pé, guinchandoa plenos pulmões sem que nos servissem, Tracey quis vir-se embora. Pensei que se referia avoltarmos para o Colony Room, com Chalky, e fazermos o que fazíamos habitualmente, ela e oamante beberem de mais e discutirem a sua situação impossível: o desejo dele de contar àmulher, a determinação dela em que ele não fizesse isso, a complicação dos filhos dele – quetinham mais ou menos a nossa idade – e a possibilidade, temida por Chalky mas quanto a miminverosímil, de os jornais descobrirem e contarem a história, mas quando ele foi ao quarto debanho Tracey puxou-me para fora e disse «Hoje não quero fazê-lo» – lembro-me daquele «fazê-lo». «Vamos antes para tua casa e apanhamos uma cadela.»

Eram perto de onze e meia quando chegámos a Kilburn. Tracey tinha enrolado um no comboioe descemos a rua a fumá-lo, lembrando-nos dos tempos em que fazíamos a mesma coisa pelamesma rua com vinte anos, quinze, treze, doze...

No caminho contei-lhe a minha novidade. Parecia fascinante, YTV, três letras vindas de ummundo que nos tinha obcecado na adolescência, e quase senti vergonha de abordar o assunto,obscenamente feliz, como se estivesse prestes a aparecer no canal em vez de dar entrada ao

correio britânico e fazer o chá britânico. Tracey estacou e tirou-me o charro da mão. «Não me digas que te vais despedir agora. A meio de uma temporada?» Eu encolhi os ombros e confessei: «Na terça-feira. Ficaste muito chateada?» Ela não respondeu. Caminhámos um bocado em silêncio e depois disse: «Também estás a

pensar mudar de casa?» Não estava. Tinha descoberto que gostava de viver com o meu pai, e de estar perto da minha

mãe – mas não no mesmo espaço que ela. Para minha própria surpresa, não tinha pressa de me irembora. E lembro-me de o ter dito muitas vezes a Tracey que «amava» o velho bairro, querendoimpressioná-la, suponho, provar-lhe que os meus pés continuavam muito firmes no chão local,que independentemente das mudanças que a minha sorte sofresse continuava a viver com o meupai, da mesma forma que ela vivia com a sua mãe. Ouviu, fez um sorriso um tanto fechado,empinou o nariz e não deu opinião. Passados uns minutos chegámos a casa do meu pai everifiquei que não tinha a chave. Esquecia-me dela com frequência, mas não gostava de tocar àcampainha – não fosse ele já estar a dormir, sabendo que tinha de se levantar cedo – e por issodava a volta e entrava pela cozinha, que normalmente estava aberta. Mas naquele momentoestava a acabar de fumar o charro e não queria arriscar-me a que o meu pai me visse – tínhamo-nos prometido recentemente que íamos deixar de fumar. Por isso mandei Tracey. Passado umminuto ela voltou e disse que a cozinha estava fechada e o melhor era irmos para casa dela.

O dia seguinte era sábado. Tracey saiu cedo para a matiné, mas eu não trabalhava ao sábado.

Voltei para casa do meu pai e passei a tarde com ele. Não vi a carta nesse dia, embora talvez jáestivesse em cima do tapete. Encontrei-a no domingo de manhã. Tinha sido metida por baixo daporta e era-me endereçada, escrita à mão, com uma pequena nódoa de comida ao canto de umapágina, e penso nela como a última carta verdadeiramente pessoal que recebi, porque apesar deTracey não ter computador, por enquanto, a revolução estava a acontecer à nossa volta e embreve o único papel endereçado a mim viria de bancos, serviços públicos e governo, com umajanela de plástico a avisar-me do que vinha lá dentro. Esta carta não trazia nenhum aviso – haviaanos que não via a caligrafia de Tracey – e abri-a sentada à mesa do meu pai com ele sentado naminha frente. «De quem é?», perguntou, e nas primeiras linhas eu também não sabia. Doisminutos depois, a única dúvida que me restava era se era realidade ou ficção. Tinha de ser ficção:acreditar noutra coisa era tornar impossível toda a minha vida atual, além de destruir grandeparte da vida que havia levado até agora. Era permitir que Tracey pusesse uma bomba por baixode mim e me fizesse explodir em estilhaços. Reli-a, para ter a certeza de que tinha compreendido.Começava por falar do seu dever, dizendo tratar-se de um dever horrível, e de como se tinhaperguntado várias vezes («perguntado» mal escrito) o que havia de fazer e tinha concluído quenão tinha alternativa («alternativa» mal escrito). Descrevia a noite de sexta-feira como eutambém me lembrava dela: subindo a rua a caminho de casa do meu pai, fumando um charro, atéao ponto em que ela foi pelas traseiras para entrar pela cozinha, sem êxito. Mas aqui a cronologiadividia-se em duas, a realidade dela e a minha, ou a ficção dela – do meu ponto de vista – e omeu facto. Na sua versão, deu a volta à casa do meu pai, parou no pequeno pátio de gravilha, eentão, como lhe parecesse que a cozinha estava fechada à chave, deu dois passos à esquerda eencostou o nariz à janela das traseiras, a janela do quarto do meu pai, aquele onde eu dormia, pôsas mãos em concha encostadas ao vidro e espreitou. Viu o meu pai, nu, em cima de qualquercoisa, fazendo movimentos para cima e para baixo, e a princípio tinha naturalmente pensado que

era uma mulher, e se fosse uma mulher, garantia-me, nunca teria falado no assunto, não lhe diziarespeito nem a mim, mas a verdade é que não era mulher nenhuma, era uma boneca, de tamanhonatural, mas insuflada, e de cor muito escura – «como um espantalho», dizia –, com uma meia-lua de cabelo de lã sintética e um grande par de lábios vermelho-vivo, cor de sangue. «Estásbem, querida?», perguntou o meu pai, do outro lado da mesa, enquanto eu segurava aquela cartacómica, trágica, absurda, penosa, repugnante, na mão tremente. Respondi que estava bem, levei acarta de Tracey para o pátio das traseiras, peguei num isqueiro e queimei-a.

34 Royal Academy of Dramatic Art. (N. do T.)

35 «Então, então, vespa minha, pois que tanto te abespinhas...» William Shakespeare, O Amansar da Fera, II Ato, Cena 1. (N. doT.)

Sétima parte

ÚLTIMOS DIAS

1

Durante oito anos não voltei a ver Tracey. Era uma noite de maio anormalmente quente, aquelaem que saí pela primeira vez com Daniel Kramer. Vinha à cidade de três em três meses e era umdos favoritos de Aimee, no sentido em que, por ser bonito, não se confundia completamente comtodos os outros contabilistas e consultores financeiros e advogados de direitos de autor que elaconsultava regularmente, e por isso na mente dela tivera direito a coisas como um nome,qualidades como uma «boa aura» e um «sentido de humor nova-iorquino» e alguns pormenoresbiográficos que conseguira fixar. Nasceu em Queens. Frequentou Stuyvesant. Joga ténis.Tentando manter as opções tão abertas quanto possível, eu tinha sugerido que fôssemos ao Sohoe «improvisássemos», mas Aimee quis que passássemos primeiro lá por casa a tomar umabebida. Não era de modo nenhum frequente, este tipo de convite íntimo, informal, mas Kramernão me pareceu surpreendido ou alarmado quando o recebeu. Os vinte minutos a que tivemosdireito passaram-se sem que desse sinais de um comportamento de cliente. Admirou a arte – semexagerar – ouvindo delicadamente Aimee repetir tudo aquilo que o negociante que lhe vendia aarte lhe tinha dito sobre a arte quando a comprou, e rapidamente nos vimos livres de Aimee, daimponência opressiva da casa, esgueirando-nos pelas escadas abaixo, ambos ligeiramente tontosdo champanhe de qualidade, saindo para a Brompton Road e mergulhando numa noite quente,abafada, húmida, a ameaçar trovoada. Ele quis atravessar a cidade a pé – tínhamos uns vagosplanos de ir ver que filmes estavam a passar no Curzon – mas eu não era nenhuma turista eaqueles eram os meus tempos de encantamento com os saltos altos. Propunha-me procurar umtáxi quando ele, por brincadeira, desceu o passeio e fez sinal a um triciclo que ia a passar.

«Tem uma grande coleção de arte africana», disse, enquanto nos instalávamos nos assentos deleopardo – disse aquilo por dizer, mas eu, precavida contra qualquer sinal de presença de umcliente, interrompi-o: «Bem, não sei ao certo o que queres dizer com “arte africana”.»

Ele pareceu surpreendido pelo meu tom, mas conseguiu esboçar um sorriso neutro. Dependiado negócio de Aimee e eu era uma extensão de Aimee.

«Quase tudo aquilo que viste», comecei eu num tom mais próprio de uma sala de aula, «é naverdade Augusta Savage. Logo, Harlem. Foi onde ela viveu quando veio para Nova Iorque – aAimee, quero eu dizer. É claro que é uma grande apoiante das artes em geral.»

Agora Kramer parecia chateado. Eu fui chata. Não voltámos a falar até o triciclo parar àesquina da Shaftesbury Avenue com a Greek Street. Quando encostámos ao passeio fomossurpreendidos pela existência de um rapaz do Bangladesh, cuja realidade independente havíamosesquecido por completo até àquele momento, mas que inegavelmente nos tinha transportado atéali e agora se virava no assento do triciclo, a cara encharcada em suor, com dificuldade emexplicar, por entre uma respiração ofegante, quanto custava por minuto aquela forma de labuta

humana. No cinema não havia nada que quiséssemos ver. Com uma disposição ligeiramentetensa, a roupa colada ao corpo por causa do calor, continuámos até Piccadilly Circus, semsabermos a que bar havíamos de ir, ou se em vez disso devíamos comer, mas já a considerar anoite um fracasso, olhando sempre em frente e confrontados, a cada passo, com os gigantescoscartazes luminosos dos teatros. Foi em frente de um deles, um pouco mais adiante, que parei derepente. Uma reposição do musical O Barco das Ilusões, uma foto do «Coro dos negros»: lençosna cabeça, calças arregaçadas, aventais e saias de trabalho, mas tudo feito com gosto, comcuidado, com «autenticidade», sem traços de Mammy nem de Uncle Ben. E a rapariga maispróxima da objetiva, de boca bem aberta a cantar, com um braço esticado bem acima da cabeça,empunhando uma vassoura – a imagem perfeita de alegria cinética – era Tracey. Krameraproximou-se e espreitou por cima do meu ombro. Eu apontei com um dedo para o narizempinado de Tracey, como Tracey costumava apontar para a cara de um dançarino que passavanos ecrãs dos nossos televisores.

«Eu conheço-a!» «Ah sim?» «Conheço-a muito bem.» Com um piparote ele tirou um cigarro do maço, acendeu-o e mirou o teatro de cima a baixo. «Bem... queres ir ver?» «Mas tu não gostas de musicais, pois não? As pessoas sérias não gostam.» Ele encolheu os ombros. «Estou em Londres, é um musical. É isso que se faz em Londres, não

é verdade? Ir ver um musical?» Confiou-me o cigarro, empurrou as portas pesadas e dirigiu-se à bilheteira. De repente tudo me

parecia muito romântico e convergente e oportuno e vi correr-me pela cabeça uma ridículanarrativa juvenil, de um momento futuro em que explicaria a Tracey – nos bastidores de umtriste teatro de província, enquanto ela calçava um par de meias de rede velhas e cansadas – queo preciso momento em que percebi que havia encontrado o meu amor, o momento em que imergina minha verdadeira felicidade, foi o mesmo em que a descobri, por simples acaso, naquelepequeníssimo papel que ela tivera, naquele tempo, no coro de O Barco das Ilusões, tantos anosatrás...

Kramer voltou com dois bilhetes, excelentes lugares na segunda fila. Em vez de jantar compreium enorme saco de chocolates, daqueles que raramente tinha oportunidade de comer, porqueAimee considerava essas coisas não só nutricionalmente fatais mas também um sinal evidente dedebilidade moral. Kramer comprou dois grandes copos de plástico de mau vinho tinto e oprograma. Eu li-o e reli-o, mas não encontrei Tracey. Não estava onde devia estar na listaalfabética do elenco, e comecei a ter receio de estar a sofrer alguma espécie de delírio, ou de tercometido um erro embaraçoso. Folheei as páginas para a frente e para trás, com o suor a brotar-me da testa – devia estar com um ar enlouquecido. «Estás bem?», perguntou Kramer. Estavaquase a chegar ao fim de mais uma leitura do programa quando Kramer espetou um dedo numapágina para me impedir de continuar.

«Mas não é essa a tua amiga?» Vi outra vez: era. Tinha trocado o apelido bárbaro, vulgar – aquele pela qual eu sempre a havia

conhecido, pelo afrancesado e para mim absurdo Le Roy. O primeiro nome também tinha sidoadaptado: agora era Tracee. E na fotografia tinha o cabelo esticado e brilhante. Soltei umagargalhada sonora.

Kramer olhou para mim intrigado.

«E são grandes amigas?» «Conheço-a muito bem. Quer dizer, já não a vejo há perto de oito anos.» Kramer franziu a testa: «Estás a ver, no mundo dos homens chamaríamos a isso “ex-amigo”,

ou, melhor ainda: “um estranho”.» A orquestra começou a tocar. Eu estava a ler a biografia de Tracey, analisando-a furiosamente,

numa corrida contra o tempo antes que reduzissem as luzes da sala, como se as palavras visíveisescondessem outro conjunto, com um significado muito mais profundo que exigissedescodificação e revelasse alguma coisa essencial sobre Tracey e a sua vida atual:

TRACEEE LE ROY

CORISTA/DANÇARINA DO DAOMÉ Participações teatrais:

Garotos e Garotas (Wellington Theatre); Desfile de Páscoa (Digressão pelo Reino Unido); Grease (Digressão pelo Reino Unido); Fame! (Scottish National Theatre); Anita, West Side Story (workshop)

Se era esta a história da vida dela, era uma desilusão. Faltavam os êxitos ubíquos de todas as

suas outras facetas artísticas: nem TV, nem cinema, nem referência aos sítios onde se tinha«formado», o que interpretei como significando que não tinha acabado o curso. Tirando Garotose Garotas, não havia mais nenhum trabalho no West End, só aquelas obscuras «digressões».Imaginei pequenos salões paroquiais e escolas barulhentas, matinés às moscas nos palcos decinemas abandonados, festivais dramáticos de segunda ordem em pequenas cidades. Mas se umaparte de mim ficou agradada com isto, outra, não menor, ficou exasperada com a ideia de queesta biografia de Tracee Le Roy podia ser justamente comparada – por todos os presentes na salaque naquele momento o liam, ou por qualquer dos atores do elenco – com qualquer das outras.Com a desta rapariga mesmo ao lado dela no programa, a rapariga da biografia interminável,Emily Wolff-Platt, que tinha estudado na RADA e não podia conhecer, como eu conhecia, aenorme improbabilidade estatística de a minha amiga estar neste palco, ou em qualquer outro –em qualquer lugar, em qualquer contexto – e que talvez tivesse a temeridade de pensar que ela,Emily Wolff-Platt, era uma verdadeira amiga de Tracey pelo simples facto de estar com ela todasas noites, pelo simples facto de dançarem juntas, quando afinal não tinha a mínima ideia de quemera Tracey ou de onde tinha vindo, ou quanto lhe havia custado chegar até aqui. Voltei a minhaatenção para a foto da cabeça de Tracey. Bem, tinha de admitir: tinha feito bastantes progressos.O nariz já não parecia uma atrocidade, estava mais integrado no conjunto, e a crueldade que eusempre lhe havia detetado na expressão era disfarçado pelo radioso sorriso da Broadway quetinha em comum com todos os outros atores da página. A surpresa não era ser bonita, ou sexy –sempre fora senhora de tais atributos desde o princípio da adolescência. A surpresa era ter-sefeito tão elegante. As covinhas à Shirley Temple tinham desaparecido, e com elas qualquervestígio da carnalidade provocante que a caracterizava em criança. Era-me quase impossívelimaginar a sua voz, tal como a havia conhecido, tal como a recordava, a sair desta criatura denariz bem feito, cabelo liso, sardas delicadas. Baixei os olhos e sorri-lhe. Tracee Le Roy, quemandas a fingir que és agora?

«Cá vamos nós», disse Kramer, enquanto o pano subia. Pôs os cotovelos em cima dos joelhos,as mãos em punhos infantis debaixo do queixo e fez uma cara zombeteira: mal posso esperar.

À esquerda do palco, um carvalho do Sul, coberto de barba de velho, primorosamente

executado. À direita do palco, a sugestão de uma cidadezinha do Mississípi. Ao centro, umbarco-teatro ancorado, o Cotton Blossom. Tracey – com mais quatro mulheres – foi a primeira aentrar em cena, surgindo de trás do carvalho, de vassoura na mão, seguidas pelos homens com assuas várias enxadas e pás. A orquestra tocou os acordes iniciais de uma canção. Reconheci-a mala ouvi, o grande número coral, e de imediato tive uma sensação de pânico, sem saber porquê,durou um momento, até que a própria música estimulou a memória. Vi a canção inteiradistribuída pela velha pauta, e lembrei-me também do que havia sentido na primeira vez que avira. E agora a letra, que em criança me comovera, formava-se na minha boca, em consonânciaperfeita com o preâmbulo da orquestra, lembrei-me do Mississípi, onde todos os «pretos»trabalham, onde os brancos não, e agarrei o braço da cadeira e senti um impulso de me pôr de pé– parecia a cena de um sonho – com a ideia de obrigar Tracey a parar mesmo antes de começar,mas quando tive a ideia já era tarde, e na letra que pensava conhecer havia palavras que tinhamsido substituídas, mas é claro que tinham – havia anos e anos que ninguém cantava as palavrasoriginais: «Aqui todos trabalhamos... Aqui todos trabalhamos...»

Voltei a afundar-me na cadeira. Fiquei a ver Tracey manobrar habilmente a vassoura para umlado e para o outro, dando-lhe vida, de tal maneira que quase parecia mais uma presença humanaem cena, como o número que Astaire faz, com aquela chapeleira, em Núpcias Reais. Adeterminada altura ficou perfeitamente alinhada com a imagem do cartaz, vassoura no ar, braçoesticado, alegria cinética. A minha vontade era retê-la para sempre naquela posição.

Entraram em cena as verdadeiras estrelas, para iniciar a ação. Em segundo plano, Tracey varriao degrau da entrada de uns grandes armazéns. Estava à esquerda do palco em relação aosprotagonistas, Julie LaVerne e seu marido fiel, Steve, dois atores de cabaré que trabalham juntosno Cotton Blossom e estão apaixonados. Mas depressa se revela, ainda antes do intervalo, queJulie LaVerne é Julie Dozier, ou seja, não é branca, como sempre fingiu ser, mas na verdade umamulata trágica, que «passa», que convence toda a gente, incluindo o próprio marido, até ao diaem que é descoberta. Nessa altura o casal é ameaçado de prisão, porque o seu casamento é ilegalà luz das leis de miscigenação. Steve faz um corte na palma da mão de Julie e bebe um pouco doseu sangue: a «lei de uma gota» – agora são ambos negros. Sob a luz difusa, no meio destemelodrama ridículo, fui ver a biografia da atriz que fazia de Julie. Tinha um apelido grego e nãoera mais escura do que Kramer.

Durante o intervalo bebi muito, e muito depressa, e falei ininterruptamente com Kramer.Estava encostada ao balcão do bar, barrando o acesso das outras pessoas aos empregados,esbracejando e vociferando contra a injustiça da escolha do elenco, criticando a escassez depapéis para atrizes como eu e o facto de mesmo quando esses papéis existiam não estarem aonosso alcance, havia sempre alguém que dava o papel a uma branca, porque pelos vistos nemuma mulata trágica era competente para o papel de mulata trágica, mesmo nos dias que correme…

«Atrizes como tu?» «O quê?» «Disseste atrizes como eu.» «Não disse, não.» «Disseste, sim.» «O que eu quero dizer é que o papel devia ser da Tracey.» «Acabaste de dizer que ela não sabe cantar. Pelo que vi, é essencialmente um papel cantado.» «Ela canta muito bem!»

«Espera aí, porque é que estás a gritar comigo?» Passámos a segunda parte tão calados como tínhamos estado durante a primeira, mas desta vez

o silêncio tinha uma textura diferente, deprimido pela frieza gélida do desprezo mútuo. Só meapetecia ir-me embora dali. Decorreram longas passagens do espetáculo sem sinais de Tracey eportanto sem nenhum interesse para mim. O coro só reapareceu perto do fim, desta vez sob aforma de «Dançarinos do Daomé», ou seja, africanos, do Reino do Daomé, supostamente a atuarna Feira Mundial de Chicago de 1893. Vi Tracey no círculo das mulheres – os homens dançavamdo outro lado, num círculo à parte – agitando os braços, agachando-se e cantando numa línguaafricana inventada, enquanto os homens, em resposta, batucavam com os pés e batiam com aslanças no chão: gunga, hungo, bunga, guba! Não pude deixar de pensar na minha mãe, e na sériede histórias do Daomé que contava: a orgulhosa história dos reis; a forma e o toque das conchasde cauri, usadas como dinheiro, o batalhão das amazonas, formado exclusivamente por mulheres,tomando prisioneiros de guerra como escravos para o reino, ou simplesmente decapitando osinimigos e erguendo as suas cabeças nas mãos. Da mesma forma que as outras crianças ouvemcontar as histórias do Capuchinho Vermelho e da Menina das Tranças de Ouro, eu ouvia as desta«Esparta Negra», o nobre reino do Daomé, que lutou até ao fim para resistir aos franceses. Masera praticamente impossível conciliar estas memórias com a farsa a que agora assistia, no palco efora dele, porque a maioria das pessoas à minha volta não sabiam o que vinha a seguir noespetáculo e por isso, compreendi, sentiam que estavam a assistir a uma espécie de vergonhosonúmero de menestréis e desejavam que aquilo acabasse. Também no palco o «público» presentena feira mundial se afastava dos Dançarinos do Daomé, embora não por vergonha mas sim pormedo, medo de que estes dançarinos talvez fossem maus, como o resto da tribo a quepertenciam, com lanças que eram armas de verdade e não adereços. Olhei para Kramer; estava aremexer-se na cadeira. Voltei a olhar para o palco e para Tracey. Estava a divertir-se com odesconforto geral, exatamente como em criança sempre apreciara momentos como aquele.Brandia a lança e rugia, marchando com os restantes, sobre os receosos visitantes da feira, edepois ria-se com os restantes enquanto o público saía de cena a correr. Livres de fazerem o quequisessem, os Dançarinos de Daomé davam largas à imaginação: cantavam a sua alegria ecansaço, alegria por verem os brancos pelas costas e cansaço, muito cansaço, de estarem num«espetáculo do Daomé».

E agora o público – o verdadeiro público – compreendia. Compreendia que aquilo a que estavaa assistir pretendia ser divertido, irónico, que aqueles dançarinos eram americanos, não africanos– sim, finalmente percebia que lhe tinham pregado uma partida. Aquela gente não era do Daomécoisa nenhuma! Afinal eram simplesmente negros, vindos diretamente da Avenida A, na cidadede Nova Iorque! Kramer deu uma risadinha, a música mudou para ragtime e eu senti os meus pésagitarem-se, tentando reproduzir na espessa alcatifa vermelha o difícil sapateado silencioso queTracey estava a executar mesmo por cima de mim, no palco de madeira. Os passos eram-mefamiliares – sê-lo-iam, certamente, para qualquer dançarino – e a minha vontade era estar lá emcima com ela. Eu estava presa em Londres, no ano de 2005, mas Tracey estava em Chicago em1893, e o Daomé cem anos antes disso, e em todos os lugares e tempos aquele povo mexia os pésda mesma maneira. Tive tantos ciúmes que chorei.

Terminado o espetáculo, saí da longa fila para os sanitários das senhoras e localizei Kramer

antes de ele me ver: estava de pé no átrio, enfadado e zangado, com o meu casaco no braço. Lá

fora tinha começado a chover torrencialmente. «Então vou andando», disse, passando-me o casaco, com dificuldade em olhar-me nos olhos.

«Certamente queres ir cumprimentar a tua “amiga”.» Levantou a gola e saiu para aquela noite horrível, sem guarda-chuva, ainda zangado. Nada

magoa mais um homem do que ser ignorado. Mas fiquei impressionada: a aversão que sentia pormim era claramente mais forte do que qualquer receio da minha influência sobre a sua patroa.Mal ele saiu da minha vista dobrei a esquina do teatro e descobri que era exatamente como se vianos filmes antigos: a porta dizia «Porta dos artistas» e havia um razoável ajuntamento de pessoasà espera de que o elenco saísse, apesar da chuva, agarradas aos caderninhos e às esferográficas.

Sem guarda-chuva, encostei-me à parede, virada para a rua, protegida apenas por um toldoestreito. Não sabia o que ia dizer nem como ia dirigir-me a ela, mas estava a começar a pensarnisso quando parou um carro na travessa, conduzido pela mãe de Tracey. Não tinha mudadoquase nada. Pelo para-brisas raiado de chuva vi-lhe as mesmas argolas de fantasia nas orelhas, otriplo queixo, o cabelo esticado para trás, um cigarro pendente da boca. Virei-me imediatamentepara a parede e, enquanto ela estacionava, fugi dali. Desci a Shaftesbury Avenue a correr, cadavez mais encharcada, a pensar no que tinha visto no banco traseiro daquele carro: duas criançaspequenas a dormir, presas às cadeirinhas. Perguntei-me se aquilo, e mais nada, seria a verdadeirarazão para a biografia de Tracey levar tão pouco tempo a ler.

2

Uma pessoa quer acreditar que há limites para aquilo que o dinheiro pode fazer acontecer,linhas que não pode transpor. Lamin naquele fato branco no Rainbow Room parecia um exemploda lição contrária. Mas a verdade era que ainda não tinha o visto, pelo menos por enquanto.Tinha um passaporte novo e uma data de regresso. E quando chegasse a altura de se ir embora euacompanhá-lo-ia de regresso à aldeia, juntamente com Fern, e ficaria lá uma semana paraconcluir o relatório anual para a administração da fundação. Depois Fern ficaria e eu voaria paraLondres, para estar com as crianças e coordenar a sua visita trimestral aos respetivos pais. Foi oque nos comunicou Judy. Até lá, um mês juntos em Nova Iorque.

Na última década, sempre que estávamos na cidade, a minha base tinha sido o quarto da criada,no rés do chão, ao pé da cozinha, se bem que de vez em quando houvesse uma conversa poucoconvicta sobre a possibilidade de um espaço separado – um hotel, um apartamento arrendado –que nunca levava a lado nenhum e depressa caía no esquecimento. Mas desta vez tinham-mearrendado um espaço mesmo antes de eu chegar, um apartamento de dois quartos na West 10thStreet, tetos altos, fogões de sala, o primeiro andar inteiro de um belo edifício de grés vermelho.Emma Lazarus tinha em tempos vivido ali: uma placa azul por baixo da minha janela evocava assuas massas amontoadas, ciosas de liberdade. A minha vista era um abrunheiro-bravo rosa-vivoem plena floração. Erradamente, interpretei tudo isto como uma promoção. Lamin apareceu e eupercebi que tinha saído para ele poder entrar.

«Afinal que se passa contigo?», perguntou-me Judy, na manhã seguinte ao aniversário de Jay.

Sem rodeios, apenas aquele grito estridente chegando-me ao ouvido através do telefone enquantotentava dizer ao rapaz do bar caribenho que não queria maçã na salada verde. «Tiveste algumadiscussão com o Fernando? É que nesta altura não podemos hospedá-lo cá em casa – não háquarto para ele na hospedaria. A hospedaria está cheia, como deves ter reparado. Os nossospombinhos querem privacidade. A nossa ideia era que ele passasse umas semanas contigo, noapartamento, estava tudo combinado – agora, de repente, está renitente.»

«Bem, não sei nada disso. Porque ninguém me disse nada. Judy, tu nem sequer me disseste queo Fern vinha a Nova Iorque!»

Judy fez um ruído de impaciência: «Ouve, foi a Aimee que quis que eu tratasse do assunto. Eletinha de vir acompanhar o Lamin, a Aimee não queria que caísse nas bocas do mundo... Eradelicado, e eu tratei do assunto.»

«Agora também tratas de quem vive comigo?» «Oh, querida, desculpa – és tu que pagas a renda?»

Consegui desligar e telefonei a Fern. Ia de táxi, algures na West Side Highway. Ouvia-se asirene de um paquete a atracar.

«É melhor eu arranjar outro sítio. Sim, é melhor. Esta tarde procuro um sítio em...» Ouvi umtriste restolhar de papéis. «Bom, não interessa. Algures em Midtown.»

«Mas Fern, tu não conheces a cidade – e não vais querer pagar uma renda, acredita em mim.Fica com o quarto. Vou ficar a sentir-me pessimamente se não ficares. Eu vou estar dia e noiteem casa da Aimee – tem o espetáculo daqui a duas semanas, vamos ter trabalho até às orelhas.Garanto que quase não vais pôr-me a vista em cima.»

Fechou uma janela, os ventos do rio deixaram de invadir a sala. O silêncio erairremediavelmente íntimo.

«Gosto de te ver.» «Oh, Fern... Por favor fica com o quarto e pronto!» Nessa noite, o único sinal dele era a chávena de café vazia na cozinha e uma grande mochila

de lona – daquelas que um estudante leva para passar um ano fora – encostada à ombreira daporta do quarto vazio. Ao vê-lo subir a escada para o ferry com esta única peça de bagagem àscostas, a simplicidade de Fern, a sua frugalidade tinham-me parecido revestidas de uma certanobreza, tinha-o invejado por isso, mas aqui em Greenwich Village a ideia de um homem dequarenta e cinco anos com uma única mochila de seu parecia-me simplesmente triste eexcêntrica. Sabia que ele tinha atravessado a Libéria, sozinho e a pé, quando tinha apenas vinte equatro – uma espécie de homenagem a Graham Greene – mas agora só conseguia pensar numacoisa: Irmão, esta cidade vai devorar-te vivo. Escrevi uma mensagem de boas-vindas simpática eneutra, enfiei-a no cordão da mochila e fui-me deitar.

Eu tinha razão quanto a raramente nos vermos: todas as manhãs tinha de estar em casa de

Aimee às oito (ela acordava diariamente às cinco, para fazer exercício durante duas horas nacave, seguido de uma hora de meditação) e Fern estava sempre a dormir – ou fingia que estava.Na mansão de Aimee tudo era planeamento frenético, ensaio, ansiedade: o novo espetáculorealizava-se num recinto de média dimensão, ia cantar ao vivo, com uma banda ao vivo, haviaanos que isso não acontecia. Para me manter fora da linha de fogo, dos ataques de fúria, dasdiscussões, passava o máximo de tempo que podia no escritório e evitava os ensaios sempre quepossível. Mas percebia que estava em marcha algum tipo de tema oeste-africano. Foi entregue nacasa um conjunto de tambores atumpan e um corá de cabo comprido, rolos de kente e – numabela manhã de terça-feira – uma trupe de dança de doze elementos, africanos-via-Brooklyn, queforam levados para o estúdio da cave e só de lá saíram depois do jantar. Eram jovens, quasetodos senegaleses de segunda geração, e Lamin andava fascinado com eles: queria saber os seusapelidos e as aldeias dos pais, à cata de uma possível ligação de família ou naturalidade. E Aimeeandava grudada a Lamin: tinha deixado de ser possível falar com ela a sós, ele estava semprepresente. Mas de que Lamin se tratava? Aimee achava muito provocador e divertido contar-meque ele ainda rezava cinco vezes por dia, no quarto-roupeiro dela, que pelos vistos estava viradopara Meca. Eu, pessoalmente, queria acreditar nesta continuidade, nesta parte ainda fora doalcance dela, mas havia dias em que quase não o reconhecia. Uma tarde fui levar uma bandeja deáguas de coco ao estúdio e dei com ele, de camisa branca e calças brancas, a demonstrar umasequência que reconheci do kankurang, uma combinação de batimento de pés, passo deslizado eflexão de joelhos. Aimee e as outras observavam-no com atenção e repetiam os passos.

Transpiravam, vestidas de top curto e colãs rasgados, e estavam tão coladas a ele e umas àsoutras que cada movimento que ele fazia parecia uma onda única que atravessava cinco corpos.Mas o gesto verdadeiramente irreconhecível foi aquele de tirar uma garrafa de água de coco daminha bandeja, sem dizer obrigado, sem o menor reconhecimento da minha presença – atéparecia que toda a vida tinha tirado bebidas das bandejas balouçantes de serviçais. Talvez o luxoseja a matriz mais fácil de atravessar. Talvez não haja hábito mais fácil de adquirir do que odinheiro. Se bem que houvesse alturas em que detetava nele traços de um homem acossado,como se alguma coisa o atormentasse. Entrando na sala de jantar num dos últimos dias da suavisita, encontrei-o ainda à mesa do pequeno-almoço, a conversar com Granger, que estava comum ar muito enfadado, como se ali estivesse há muito tempo. Sentei-me com eles. Os olhos deLamin estavam imobilizados algures entre a cabeça rapada de Granger e a parede em frente.Estava outra vez a murmurar, um discurso monocórdico, desconcertante, que fluía como umesconjuro: «... e neste preciso momento as nossas mulheres estão a plantar cebolas nos canteirosda direita e ervilhas nos canteiros da esquerda, e se as ervilhas não forem regadas da formacorreta quando elas vierem sachar a terra, daqui a mais ou menos duas semanas, vão ter umproblema, a folha vai nascer como um caracol alaranjado, e se estiverem assim é porque temferrugem e nessa altura vão voltar a arrancar o que plantaram e replantar os canteiros, tendo ocuidado, espero, de porem uma camada da terra fértil que há na nascente do rio, quando nós, oshomens, subirmos o rio, daqui a uma semana, quando formos lá buscar a terra fértil...»

«A-hã», dizia Granger a cada passo. «A-hã, A-hã.» Fern fazia aparições esporádicas nas nossas vidas, em reuniões de administração ou quando

Aimee requeria a sua presença para tratar de problemas práticos relacionados com a escola.Parecia sempre abatido – fisicamente retraía-se quando estabelecíamos contacto visual – epatenteava a sua infelicidade onde quer que estivesse, como um homem numa banda desenhadacom uma nuvem negra por cima da cabeça. Na presença de Aimee e dos restantesadministradores fazia um ponto de situação pessimista, centrado em recentes afirmaçõesagressivas do Presidente sobre a presença estrangeira no país. Eu nunca o tinha ouvido falardaquela maneira, em termos tão fatalistas, não estava realmente na sua maneira de ser, e sabiaque eu era o verdadeiro alvo, ainda que oblíquo, da sua crítica.

Nessa tarde, no apartamento, em vez de me esconder no meu quarto como de costume,confrontei-o no corredor. Acabava de chegar de uma corrida, transpirado, curvado, com as mãosnos joelhos, respiração ofegante, olhando-me de baixo das sobrancelhas espessas. Fui muitorazoável. Ele não falou, mas deu-me a impressão de encaixar tudo. Sem os óculos os olhospareciam enormes, como um bebé dos desenhos animados. Quando acabei, endireitou-se ecurvou-se para trás, empurrando as ilhargas para a frente com as mãos.

«Bem, peço desculpa se te envergonhei. Tens razão: não foi nada profissional.» «Ouve, Fern, não podemos ser amigos?» «Claro que sim. Mas também queres que diga: “Fico feliz por sermos amigos”?» «Não quero que estejas infeliz.» «Mas isto não é um dos teus musicais. A verdade é que estou triste. Queria uma coisa – queria-

te – e não tive o que queria ou esperava ter e agora estou triste. Acho que vou ultrapassar isto,mas para já estou triste. Posso estar triste? Posso? Bem. Agora vou tomar um duche.»

Para mim era muito difícil, naquela altura, compreender uma pessoa que falava assim. Era-me

completamente estranho, como ideia – não tinha sido criada dessa maneira. Que reação podia umhomem como ele – um homem que renuncia a todo e qualquer poder – esperar de uma mulhercomo eu?

Não fui ao concerto, não me senti capaz. Não queria ver-me nas bancadas com Fern,

observando o seu ressentimento enquanto assistíamos a versões burlescas de danças que amboshavíamos visto na sua origem. Disse a Aimee que ia e tinha intenção de ir, mas quando chegaramas oito horas ainda estava em fato de treino, recostada na cama com o portátil pousado nasvirilhas, e depois eram nove, e depois eram dez. Tinha absolutamente de ir – a mente repetia-meeste facto e eu estava de acordo com ele – mas o corpo não me obedecia, estava pesado e imóvel.Sim, tinha mesmo de ir, isso era evidente, e não menos evidente era que não ia a lado nenhum.Entrei no YouTube e fui passando de dançarino em dançarino: Bojangles pela escada acima,Harold e Fayard em cima de um piano, Jenny LeGon no ruge-ruge da sua saia de ráfia, MichaelJackson em Motown 25. Costumava parar neste clip de Jackson, se bem que desta vez, ao vê-lopercorrer o palco em passos de moonwalk, aquilo que verdadeiramente me chamou a atenção nãoforam os gritos extasiados da multidão nem tão pouco a fluidez dos movimentos dele, mas sim acurteza das calças. Ainda assim, a opção de ir só me pareceu comprometida ou completamenteexcluída quando levantei os olhos do meu navegar sem rumo e vi que tinham chegado as onze equarenta e cinco, o que significava que estávamos agora no inegável pretérito: não tinha ido.Pesquisar Aimee, pesquisar local, pesquisar trupe de dança de Brooklyn, pesquisar imagens,pesquisar despachos da AP, pesquisar blogues. A princípio por um simples sentimento de culpa,mas logo depois com a consciência de que podia reconstituir – 140 carateres de cada vez,imagem a imagem, entrada de blogue a entrada de blogue – a experiência de ter lá estado, atéque, por volta da uma da manhã, não havia ninguém que pudesse ter lá estado mais do que eu.Estava muito mais lá do que qualquer das pessoas que lá haviam estado efetivamente, essasestavam circunscritas a um único lugar e uma única perspetiva – a um único fluxo de tempo – aopasso que eu estava ao mesmo tempo em todos os pontos daquele espaço, vendo tudo de todos osângulos, num poderoso ato de fusão. Podia ter ficado por ali – tinha matéria mais do quesuficiente para, de manhã, fazer a Aimee um relato circunstanciado da noite anterior – mas nãofiquei. O processo forçou-me a continuar. Observar, em tempo real, as discussões à medida quetomam corpo e coalescem, observar os consensos que se desenvolvem, os destaques ouconstrangimentos que são identificados, os significados e subtextos que são aceites ou recusados.Os insultos e as piadas, os mexericos e os boatos, os memes, o Photoshop, os filtros, e as muitasvariedades de crítica a que é dada rédea solta, longe do alcance ou do controlo de Aimee. Noprincípio da semana, enquanto assistia a uma prova de guarda-roupa – na qual Aimee, Jay e Karaestavam a ser fantasiados de forma a parecerem nobres ashanti – levantara a medo a questão daapropriação. Judy rosnou, Aimee olhou para mim e a seguir para a sua figura espectralmentepálida enfaixada em tanto tecido de cores vibrantes, e disse-me que era uma artista, e os artistastêm de ter direito a amar as coisas, tocá-las e usá-las, porque arte não é apropriação, não era esseo propósito da arte – o propósito da arte era o amor. E quando lhe perguntei se era possível amaruma coisa e ao mesmo tempo deixá-la em paz olhou-me de uma forma estranha, puxou para si osdois filhos e perguntou: Alguma vez estiveste apaixonada?

Mas agora sentia-me defendida, virtualmente cercada. Não, não me apetecia parar. Continuei afazer atualizações, à espera de que mais países acordassem e vissem as imagens e formassem

opiniões ou partilhassem opiniões já emitidas. De madrugada ouvi ranger a porta da entrada eFern entrar aos tropeções no apartamento, certamente vindo diretamente da festa depois doconcerto. Não me mexi. E deve ter sido por volta das quatro da manhã, enquanto fazia correr noecrã as opiniões mais recentes e ouvia o chilrear dos pássaros no abrunheiro-bravo, que vi otítulo «Tracey LeGon» e o subtítulo «Conta a verdade». Tinha as lentes de contacto ressequidas,doía-me pestanejar, mas não estava a imaginar coisas. Cliquei. Tinha publicado a mesma fotoque eu já vira centenas de vezes – Aimee, os dançarinos, Lamin, as crianças – todos alinhados àboca de cena, envergando os panos adinkra que eu os vira provar: um rico azul-cerúleoestampado com um padrão de triângulos pretos, e em cada um dos triângulos havia um olho.Tracey tinha pegado na imagem, tinha-a ampliado muitas vezes, aparado até só o triângulo e oolho ficarem visíveis, e por baixo desta imagem fazia a pergunta: LEMBRAS-TE DISTO?

3

Voltando a Lamin, fomos no jato, mas sem Aimee – que estava em Paris, para receber umacondecoração do governo francês – e por isso tivemos de atravessar o aeroporto principal, comotoda a gente, até a um átrio de chegadas apinhado de filhos e filhas que regressavam. Os homensvestiam jeans modernos de ganga grossa, vincada, camisas estampadas com colarinho branco,camisolas de marca com capuz, blusões de cabedal, sapatos de último modelo. E as mulherestambém faziam questão de vestir tudo o que tinham de melhor ao mesmo tempo. Muito bempenteadas, unhas acabadas de pintar. Ao contrário de nós, todos conheciam bem este átrio, erapidamente asseguraram os serviços dos bagageiros, a quem entregaram as suas malasgigantescas, com a recomendação de que tivessem cuidado – apesar de todas as peças debagagem estarem envolvidas em camadas de plástico – antes de avançarem à frente dessesjovens bagageiros acalorados e atormentados por entre a multidão, em direção à saída, olhandofrequentemente para trás para lhes berrarem instruções como alpinistas aos seus sherpas. Poraqui, por aqui! De smartphones acima da cabeça, apontando o caminho. Ao olhar para Laminneste contexto, percebi que a sua indumentária de viagem devia ser uma escolha deliberada:apesar de todas as roupas e anéis e cordões e sapatos que Aimee lhe tinha dado no último mês,estava vestido exatamente como quando tinha partido. A mesma camisa branca, calças de sarja eum simples par de sandálias de cabedal, pretas e gastas no salto. Fiquei a pensar que havia coisasnele que não tinha compreendido – muitas, porventura.

Apanhámos um táxi e eu sentei-me com Lamin no banco de trás. O carro tinha três janelaspartidas e um buraco no chassis através do qual se via passar a estrada por baixo dos nossos pés.Fern sentou-se à frente, ao lado do condutor: tinha uma nova política, que era guardar uma friadistância de mim em todas as circunstâncias. No avião leu os seus livros e diários, no aeroportolimitou-se a assuntos práticos, ir buscar aquele carro de bagagens, pôr-se naquela fila. Não foimaldoso, não disse crueldades, mas o efeito era de isolamento.

«Queres parar para comer?», perguntou-me, pelo retrovisor. «Ou podes esperar?» Eu bem gostaria de ser uma daquelas pessoas que não se importavam de passar sem almoço,

que conseguiam aguentar-se, como Fern, imitando a prática das famílias mais pobres da aldeia,que só comiam uma vez por dia, ao fim da tarde. Mas não era esse tipo de pessoa: se saltasseuma refeição ficava furiosa. Andámos quarenta minutos e parámos num café de estrada fronteiroa uma coisa chamada American College Academy. Tinha grades nas janelas e faltava-lhe metadedas letras da tabuleta. Lá dentro, a ementa exibia lustrosos pratos à americana «com batatasfritas», cujos preços Lamin leu em voz alta, abanando gravemente a cabeça, como se achasseaquilo profundamente sacrílego e ofensivo, e ao fim de uma longa conversa com a empregada demesa vieram três pratos de yassa de frango por um preço «local» negociado.

Estávamos curvados sobre os pratos, comendo em silêncio, quando ouvimos uma vozestentórea vinda dos fundos do café: «Meu irmão Lamin! Irmãozinho! Sou o Bachir! Aqui!»

Fern acenou. Lamin não se mexeu: já tinha reparado no tal Bachir e rezava para que ele não ovisse. Eu virei-me e vi um homem sozinho à última mesa junto ao balcão, na penumbra, o únicocliente no restaurante além de nós. Era largo e musculado como um jogador de râguebi e vestiafato azul-escuro às riscas brancas, gravata, alfinete de gravata, mocassins sem meias e grossapulseira dourada no braço. Os músculos retesavam-lhe o fato e escorria-lhe suor pela cara.

«Não é meu irmão. É da minha idade. É lá da aldeia.» «Mas não vais…» Bachir já estava ao pé de nós. Ao perto, vi que trazia na cabeça uns auriculares com microfone,

parecidos com os que Aimee usava em palco, e nos braços um portátil, um tablet e um telemóvelmuito grande.

«Preciso de um sítio para pousar isto tudo!» Mas sentou-se à nossa mesa com tudo abraçadocontra o peito. «Lamin! Irmãozinho! Há quanto tempo!»

Lamin acenou para o prato. Fern e eu apresentámo-nos e recebemos apertos de mão suados,firmes, dolorosos.

«Eu e ele crescemos juntos, pá! Vida de aldeia!» Bachir agarrou a cabeça de Lamin e fez-lheuma gravata com o braço transpirado. «Mas depois eu tive de ir para a cidade, querida, estás aperceber? Fui atrás do dinheiro, querida! Trabalhei nos grandes bancos. Passa para cá o dinheiro!Uma Babilónia a valer! Mas no fundo continuo a ser um rapaz da aldeia.» Deu um beijo emLamin e largou-o.

«Você parece americano», disse eu, mas esse era apenas um fio da rica tapeçaria da voz dele.Havia nela inúmeros filmes e anúncios, e muito hip-hop, Esmeralda e As the World Turns, BBCNews, CNN, Al Jazeera e um pouco do reggae que se ouvia por toda a cidade, em todos os táxis,bancas de mercado, cabeleireiros. Naquele preciso momento ouvia-se uma música antiga deYellowman, vinda dos pequenos altifalantes por cima das nossas cabeças.

«A valer, a valer...» Pousou a cabeça grande e quadrada no punho, em pose de pensador.«Bem, de facto ainda não fui aos Estados Unidos, ainda não. Muito que fazer. Está tudo aacontecer. Falar, falar, é preciso estar a par da tecnologia, é preciso não perder relevância.Repara nesta rapariga: telefona-me noite e dia, querida, dia e noite!» Mostrou-me uma imagemno tablet, de uma mulher lindíssima com um penteado lustroso e uns lábios exuberantes pintadosde roxo. Pareceu-me uma imagem comercial. «Estas raparigas da cidade grande são muitomalucas! Oh, irmãozinho, eu preciso de uma rapariga da nascente do rio, quero constituir umabela família. Mas estas raparigas já nem querem constituir família! São malucas! Mas com queidade estás tu?»

Eu disse-lhe. «E não tens filhos? Nem sequer és casada? Não? OK! OK, OK... Já percebi, mana, já percebi:

Miss Independente, não é verdade? É isso que queres, OK. Mas, para nós, uma mulher semfilhos é como uma árvore sem frutos. Como uma árvore» – soergueu da cadeira as costasmusculadas, fincou os pés no chão com os joelhos fletidos, estendeu os braços como ramos e osdedos como galhos – «sem frutos.» Voltou a sentar-se e fechou as mãos em punhos. «Semfrutos», repetiu.

Pela primeira vez em muitas semanas, Fern dirigiu-me um esboço de sorriso. «Acho que ele está a dizer que és como uma árvore…» «Sim, Fern, eu percebi, obrigada.»

Bachir reparou no meu telemóvel com tampa, o meu telefone pessoal. Pegou nele e revirou-ona mão com espanto exagerado. Tinha umas mãos tão grandes que o telefone parecia umbrinquedo de criança.

«Não me digas que isto é teu. A sério? É teu?! É isto que se usa em Londres? HA HA HA. Ohpá, nós cá estamos mais atualizados. Oh, pá! Que engraçado, que engraçado. Por esta é que eunão esperava. É a globalização, não é? Tempos estranhos, tempos estranhos!»

«Para que banco disse que trabalhava?», perguntou Fern. «Oh, trabalho em muitas coisas, pá. Imobiliário, imobiliário. Terreno aqui, terreno ali.

Construção. Mas cá trabalho para o banco, negócios, negócios. Passa para cá o dinheiro, não éverdade? Gostas da Rihanna? Conhece-la? Vale muito! Illuminati, não é verdade? Viver o sonho,querida.»

«Temos de ir apanhar o ferry», sussurrou Lamin. «Iá, acho que nos tempos que correm tenho muitos negócios em mãos – coisas complicadas – é

preciso fazer movimentos, movimentos, movimentos.» Fez a demonstração movimentando osdedos pelos três aparelhos como quem está preparado para usar qualquer deles a qualquermomento para uma operação extremamente urgente. Reparei que o ecrã do portátil estava negroe estalado em vários sítios. «Repara, uns têm de se dedicar todos os dias à agricultura, descascarervilhas, não é verdade? Mas eu tenho de fazer os meus movimentos. Esse é o novo equilíbrio dotrabalho por aqui. Sabias? Pois é, pá! É a última novidade! Mas neste país temos umamentalidade atrasada, não é verdade? Há muita gente atrasada em relação ao raio dos tempos.Vai demorar um bocado, OK? A entrar na cabeça dessa gente.» Com os dedos desenhou umretângulo no ar: «O futuro. É preciso meter isto na cabeça. Mas ouve: para ti? Quando quiseres!Gosto da tua cara, pá, é linda, tão clara e luminosa. E podia ir para Londres, podíamos falar denegócios a sério. Ai não estás nos negócios? Cooperação? ONG? Missionária. Gosto dosmissionários, pá. Tive um grande amigo, era de South Bend, Indiana – o Mikey. Passámos umadata de tempo juntos. O Mickey era fixe, pá, muito fixe, era adventista do sétimo dia, mas todossomos filhos de Deus, disso não há dúvida...»

«Estão cá a fazer trabalho educativo, com as nossas raparigas», disse Lamin, virando-se decostas para nós, tentando atrair a atenção da empregada.

«Ah, pois claro, já ouvi falar das mudanças que está a haver. Grandes tempos. Grandes tempos.Bom para a cidade, não é verdade? Progresso.»

«Esperamos que sim», disse Fern. «Mas, irmãozinho, estás a ganhar alguma coisa com isso? Vocês sabiam que aqui o irmãozinho

não quer saber do dinheiro? Só pensa na próxima vida. Eu cá não, quero esta vida! HA HA HAHA. Dinheiro, dinheiro a rolar. Não é verdade? Oh pá, oh pá...»

Lamin pôs-se de pé: «Adeus, Bachir.» «Tão sério, este rapaz. Mas gosta muito de mim. Vocês também haviam de gostar muito de

mim. Ai, ai, tu vais fazer trinta e três anos, menina! Precisamos de conversar! O tempo voa.Temos de viver a nossa vida, não é verdade? À próxima, em Londres, na Babilónia – vamosconversar!»

No regresso ao carro, ouvi Fern rir-se para dentro, animado pelo episódio. «Isto é o que se chama “uma personagem”», disse, e quando chegámos ao táxi que nos

esperava e lhe demos a volta para entrar vimos a personagem Bachir de pé na soleira da porta,com os auriculares postos, segurando todas as suas tecnologias num braçado e acenando-nos.Visto assim, de pé, o fato parecia especialmente peculiar, as calças muito curtas nos tornozelos,

como um mashala de fato às riscas. «O Bachir perdeu o emprego há três meses», disse Lamin calmamente, enquanto entrávamos

para o carro. «Passa os dias naquele café.» Sim, tudo quanto dizia respeito àquela viagem me pareceu errado desde o primeiro momento.

Em vez da minha anterior competência triunfante, não conseguia libertar-me de uma persistentesensação de erro, de ter percebido tudo mal, a começar por Hawa, que abriu a porta de casa comum novo lenço, preto, que lhe cobria a cabeça e lhe chegava a meio do tronco, e uma saiacomprida, informe, como aquelas que sempre ridicularizara quando as víamos no mercado.Abraçou-me calorosamente como sempre, a Fern apenas fez um aceno de cabeça, e pareceucontrariada com a presença dele. Ficámos todos algum tempo de pé no pátio, com Hawa, mal-humorada, a fazer conversa de ocasião – em todo o caso nunca dirigida a Fern – e euesperançada em ouvir falar em jantar, coisa que, como entretanto compreendi, não aconteceriaenquanto Fern não se fosse embora. Por fim ele percebeu a mensagem: estava cansado e ia para acasa cor-de-rosa. E mal ele saiu e a porta se fechou a Hawa de antigamente voltou, pegou-me namão, beijou-me na face e chorou: «Oh, irmã, boas notícias – vou-me casar!» Eu abracei-a, massenti o sorriso habitual aflorar-me à cara, o mesmo que fazia em Londres e Nova Iorque peranteaquele tipo de notícia, e experimentei o mesmo sentimento agudo de traição. Tinha vergonha deme sentir assim, mas nada podia fazer, uma parte do meu coração tinha-se fechado para ela.Levou-me pela mão para dentro de casa.

Tanto para contar. Chamava-se Bakary, era tablighi, amigo de Musa, e não ia mentir e dizerque era bonito, porque na verdade era exatamente o contrário, queria que eu compreendesse issodesde já, puxando do telemóvel como prova.

«Estás a ver? Parece um sapo! Para dizer a verdade, quem me dera que não usasse esta coisapreta à volta dos olhos nem pintasse a barba com hena... E às vezes até anda de sarongue! Asminhas avós acham que ele parece uma mulher maquilhada! Mas não devem ter razão porque atéo Profeta pintava os olhos, é bom para as infeções, e a verdade é que há muitas coisas que eu nãosei e tenho de aprender. Oh, as minhas avós choram dia e noite, noite e dia! Mas o Bakary ébondoso e paciente. Diz que ninguém chora para sempre – e não achas que é verdade?»

As sobrinhas gémeas de Hawa trouxeram-nos o jantar: arroz para Hawa, batatas assadas noforno para mim. Escutei numa espécie de bruma as histórias engraçadas que Hawa me contousobre a sua recente masturat36 à Mauritânia, o mais longe que alguma vez havia ido, onde muitasvezes havia adormecido nas pregações («Não vemos o homem que está a pregar, porque não estáautorizado a olhar para nós, por isso fala de trás de uma cortina, e todas nós, mulheres, estamossentadas no chão e o sermão é muito comprido, e às vezes só nos dá vontade de dormir) e tiveraa ideia de coser um bolso no interior do colete para esconder o telemóvel e sub-repticiamenteenviar mensagens ao seu Bakary durante os recitativos mais aborrecidos. Mas concluía sempreestas histórias com alguma frase de teor piedoso: «O importante é o amor que tenho às minhasnovas irmãs.» «Não me cabe a mim perguntar.» «Está nas mãos de Deus.»

«No fim», disse, enquanto duas raparigas mais novas nos traziam duas canecas de lata cheiasde Lipton, fortemente açucarado, «o que interessa é dar louvores a Deus e esquecer as coisasdunya37. Digo-te que nesta casa só se ouve falar em coisas dunya. Quem foi ao mercado, quemtem um relógio novo, quem «vai dar o salto», quem tem dinheiro, quem não tem, quero isto,quero aquilo! Mas quando andamos em viagem, levando a palavra do Profeta às pessoas, não

sobra tempo nenhum para estas coisas dunya.» Perguntei-me por que razão ela continuava a viver na morança se a vida neste lugar lhe

desagradava tanto. «Bem, o Bakary é bom homem, mas é muito pobre. Logo que pudermos, casamos e vamos

embora, mas até lá ele dorme na markaz38, perto de Deus, enquanto eu estou aqui, perto dasgalinhas e das cabras. Mas vamos poupar muito dinheiro porque o nosso casamento vai sermuito, muito pequeno, como o casamento de um rato, e só vão assistir o Musa e a mulher, e nãovai haver música nem dança nem banquete e nem sequer vou precisar de um vestido novo», dissecom uma vivacidade ensaiada, e de repente eu senti-me muito triste, pois se alguma coisa sabiade Hawa era que adorava casamentos e vestidos de noiva e banquetes e festas de casamento.

«Portanto já vês, assim poupa-se muito dinheiro, de certeza», disse, e pousou as mãos dobradasno regaço para assinalar formalmente o fim do seu pensamento, e eu não a contestei. Maspercebia que ela queria conversar, que as suas frases feitas eram como testos a dançar em cimade panelas a ferver, e só precisei de ficar pacientemente sentada à espera de que elatransbordasse. Sem que tivesse de lhe perguntar nada começou a falar, primeiro a medo e aseguir com uma energia cada vez maior, sobre o noivo. Aquilo que parecia impressioná-la maisno tal Bakary era a sua sensibilidade. Era chato e feio, mas era sensível.

«Chato como?» «Oh, não devia dizer “chato”, mas havias de os ver juntos, ele e o Musa, passam o dia inteiro a

ouvir gravações sagradas, são gravações muito sagradas, agora o Musa anda a ver se aprendemais árabe, e eu também ando a aprender a apreciá-las completamente, por enquanto acho-asmuito aborrecidas – mas o Bakary chora quando as ouve! Chora e abraça-se ao Musa! Às vezesvou ao mercado e volto e eles continuam abraçados e a chorar! Nunca vi um vadio chorar. Amenos que lhe tenham roubado a droga! Não, não, o Bakary é muito sensível. É de facto umaquestão de coração. A princípio pensei: a minha mãe é uma mulher com estudos, ensinou-memuito árabe, vou andar à frente do Bakary na minha iman, mas isso não está nada bem! Porque oque interessa não é o que lemos, é o que sentimos. E eu tenho muito caminho para andar até omeu coração ficar tão cheio de iman como o do Bakary. Um homem sensível deve dar um bommarido, não achas? E os nossos mashala – não devia chamar-lhes assim, a palavra correta établighi – são tão bondosos com as suas mulheres! Não fazia ideia. A minha avó dizia sempre:“São infantis, são malucos, não fales com esses efeminados, nem sequer têm emprego.” Só tedigo, chora todos os dias. Mas é porque não compreende, é muito antiquada. O Bakary estásempre a dizer: “Há um hadith que reza que ‘o melhor homem é aquele que ajuda a mulher e osfilhos e é caridoso com eles’.” E assim é. Por isso, se vamos nessas viagens, em masturat, então,para evitar que outros homens nos vejam no mercado, os nossos homens vão e fazem as compraspor nós, compram eles a hortaliça. Eu ria-me quando ouvia contar isto, pensava: não pode serverdade – mas é verdade! O meu avô nem sequer sabia onde ficava o mercado! É isto que tentoexplicar às minhas avós, mas elas são antiquadas. Choram todos os dias por ele ser um mashala– ou melhor, tablighi. Cá para mim, lá no fundo o que elas têm é ciúmes. Oh, a minha vontadeera ir-me embora daqui agora mesmo. Quando fui visitar as minhas irmãs senti-me tão feliz.Rezámos juntas. Passeámos juntas. Depois do almoço, uma de nós tinha de conduzir a oração,sabes, e uma das irmãs disse-me: “Vais ser tu!” E por isso naquele dia fui o imã, percebes? Masnão me acanhei. Muitas das minhas irmãs acanham-se, dizem “Não sou eu que devo falar”, masde facto eu percebi nesta viagem que não sou nada acanhada. E toda a gente me escutou – oh! Nofim até me fizeram perguntas. Acreditas?»

«Não me surpreende nada.» «Escolhi o tema dos seis artigos de fé. Também se aplicam à forma como uma pessoa deve

comer. É certo que neste momento não estou a observá-los, porque tu estás cá, mas estão semdúvida na minha cabeça para a próxima vez.»

Este pensamento culposo conduziu a outro: inclinou-se para me sussurrar qualquer coisa, como rosto irresistível imobilizado num meio sorriso.

«Ontem fui à sala de TV da escola e vimos a Esmeralda. Não devia sorrir», disse, e parouabruptamente, «mas tu, mais do que ninguém, sabes como eu adoro a Esmeralda, e de certezaconcordas que ninguém se pode libertar de todas as coisas dunya de uma assentada.» Baixou osolhos para a saia informe. «As minhas roupas também vão ter de acabar por mudar, não só a saia,tudo, da cabeça aos pés. Mas todas as minhas irmãs dizem que a princípio é difícil porque temosmuito calor e as pessoas ficam a olhar, chamam-nos ninja ou Osama na rua. Mas lembrei-me deuma coisa que me disseste na primeira vez que cá estiveste: «Que interessa o que os outrospensam?» E esse é um pensamento forte que guardo comigo, porque a minha recompensa será noCéu, onde ninguém me chamará ninja porque certamente essas pessoas estarão em chamas.Continuo a gostar muito do Chris Brown, é superior às minhas forças, e até o Bakary continua agostar muito das canções do Marley, sei porque no outro dia ouvi-o cantar uma. Mas vamosaprender juntos, somos novos. Como já te disse, quando andávamos em viagem o Bakary faziatodos os recados por mim, ia ao mercado por mim, mesmo que se rissem dele. Já disse às minhasavós: alguma vez o meu avô lavou uma meia que fosse por alguma de vocês em quarentaanos?»

«Mas Hawa, porque é que os homens não podem ver-te no mercado?» Ela fez um ar aborrecido: tinha-lhe feito outra vez a pergunta mais estúpida. «Quando os homens olham para mulheres que não são as suas esposas é esse o momento de

que Satã está à espera para se meter neles, para os encher de pecado. Satã está em toda a parte!Mas tu nem sequer isso sabes?»

Não consegui ouvir mais e inventei uma desculpa para sair dali. Mas o único sítio para ondepodia ou sabia ir na escuridão era a casa cor-de-rosa. Da estrada, ainda a uma certa distância, vique todas as luzes estavam apagadas, e quando cheguei à porta vi que estava pendurada de umadobradiça partida.

«Estás aí? Posso entrar?» «A minha porta está sempre aberta», respondeu Fern do meio das sombras, numa voz sonora, e

rimo-nos os dois ao mesmo tempo. Entrei, ele fez-me chá e regurgitei todas as novidades queHawa me havia dado.

Fern ouviu-me arengar, com a cabeça cada vez mais inclinada para trás até a lanterna decabeça iluminar o teto.

«Devo confessar que não acho isso nada estranho», disse quando eu acabei. «Trabalha comoum cão naquela morança. Praticamente não sai de lá. Deve estar desesperada, como qualquerjovem inteligente, por ter uma vida própria. Tu não quiseste sair de casa dos teus pais quandotinhas a idade dela?»

«Quando tinha a idade dela queria liberdade!» «E dirias que ela tem menos liberdade a viajar pela Mauritânia em pregação do que tem agora,

trancada em casa?» Arrastou a sandália pela camada de poeira vermelha que se havia acumuladono chão de plástico. «É interessante. É um ponto de vista interessante.»

«Ora, estás só a querer provocar-me.»

«Não, nunca foi essa a minha intenção.» Olhou para o desenho que tinha feito no chão. «Àsvezes pergunto-me se as pessoas não procuram mais significado que liberdade», disse, falandolentamente. «É isso que quero dizer. Pelo menos, tem sido essa a minha experiência.»

Se tivéssemos continuado teríamos discutido, por isso mudei de assunto e ofereci-lhe uma dasbolachas que tinha surripiado do quarto de Hawa. Lembrei-me de que tinha descarregado algunspodcasts para o meu iPod e, com um auricular cada um, sentámo-nos tranquilamente lado a lado,mordiscando as bolachas e ouvindo relatos de vidas americanas, seus pequenos dramas esatisfações, seus prazeres e irritações e epifanias tragicómicas, até chegar a hora de me irembora.

Na manhã seguinte, ao acordar, o meu primeiro pensamento foi para Hawa, a Hawa que em

breve se casaria, os filhos que seguramente se seguiriam, e senti vontade de falar com alguémque tivesse a mesma sensação de desilusão que eu. Vesti-me e fui à procura de Lamin. Fuiencontrá-lo no átrio da escola, preparando uma aula debaixo da mangueira. Mas a reação dele àsnotícias de Hawa não foi de desilusão, pelo menos não foi essa a primeira reação – foi dedesgosto profundo. Ainda não eram nove horas e eu já tinha conseguido partir o coração dealguém.

«Mas quem te disse?» «A Hawa!» Ele fez um esforço para não trair sentimentos. «Às vezes as raparigas dizem que vão casar com alguém e não casam. É frequente. Já houve

um polícia...» Não continuou. «Lamento, Lamin. Sei o que sentes por ela.» Lamin riu-se secamente e voltou à preparação da aula. «Oh, não, estás enganada, somos irmão e irmã. Sempre fomos. Disse-o à nossa amiga Aimee:

apresento-te a minha irmã mais nova. Ela deve lembrar-se de eu lho ter dito, se lhe perguntares.Não, só lamento pela família da Hawa. Devem estar muito tristes.»

Tocou a sineta da escola. Passei a manhã a visitar salas de aula e pela primeira vez apercebi-me daquilo que Fern tinha conseguido aqui, na nossa ausência, apesar da interferência de Aimee,e, de certo modo, contornando-a. A secretaria da escola tinha todos os computadores novos queela havia enviado, e Internet mais fiável, que, pelo historial das pesquisas, verifiquei que atéagora tinha sido exclusivamente usada pelos professores com dois objetivos: seguir o Facebook epesquisar no Google o nome do Presidente. Todas as salas estavam equipadas com misteriosos –para mim – quebra-cabeças de lógica em três dimensões e pequenos aparelhos portáteis em quese podia jogar xadrez. Mas não foram estas inovações que me impressionaram. Mesmo por trásdo edifício principal, Fern tinha usado o dinheiro de Aimee para criar uma horta no recreio, quenão me lembro de ele alguma vez ter mencionado nas nossas reuniões de administração, e nelaera cultivada toda a espécie de hortaliças, que pertenciam, segundo explicou, coletivamente aospais, o que – a par de muitas outras consequências – significava que quando acabava a primeiraaula não desaparecia metade da escola para ir ajudar as mães na agricultura, ficando antes a tratardas suas novidades. Fiquei a saber que Fern, por sugestão das mães da associação de pais eprofessores, tinha convidado vários professores da madraça para a nossa escola, onde lhes foidada uma sala para ensinarem árabe e estudos corânicos, a troco de uma pequena quantia pagadiretamente, e com isso se obstou a que mais um grande contingente de população escolar

desaparecesse ao meio-dia ou passasse uma parte de todas as tardes a fazer pequenas tarefasdomésticas para estes professores, como até então acontecia, como pagamento das lições. Passeiuma hora na nova sala de artes, onde as raparigas mais pequenas se sentavam às mesasmisturando cores e fazendo impressões das mãos – brincando – enquanto os computadoresportáteis que Aimee havia pensado para elas tinham desaparecido todos na viagem para a aldeia,segundo confessava agora Fern, o que não era surpresa, considerando que cada um deles valia odobro do salário anual de um professor. Bem vistas as coisas, nem tudo na Academia Iluminadaera a incubadora-do-futuro inovadora, brilhante, radicalmente nova, de que tanto ouvira falar emjantares em casa de Aimee em Nova Iorque e Londres. Era a «Academia Luminosa», como aspessoas da terra lhe chamavam, onde estavam a acontecer muitas coisas pequenas masinteressantes, todos os dias, que eram depois discutidas e debatidas ao fim de cada semana, nasreuniões de aldeia, que por sua vez davam origem a mais adaptações e mudanças, de poucas dasquais me palpita que Aimee alguma vez houvesse tido conhecimento ou ouvido falar, mas queFern acompanhava de perto, ouvindo toda a gente com aquele espírito aberto que o caracterizava,tomando as suas pilhas de apontamentos. Era uma escola que funcionava, construída com odinheiro de Aimee mas não limitada por ele, e, por muito pequeno que fosse o papel por mimdesempenhado na sua criação, sentia agora, tal como qualquer membro menor da aldeia, a minhaquota-parte de orgulho nela. Ia a saborear este cálido sentimento de realização, regressando dahorta escolar ao gabinete do diretor, quando vi Lamin e Hawa debaixo da mangueira, demasiadojuntos, a discutir.

«Não recebo lições tuas», ouvi-a dizer quando me aproximava, e quando me viu virou-se erepetiu: «Não aceito lições dele. Quer que eu seja a última pessoa a ficar nesta terra. Não.»

Perto do gabinete do diretor, a cerca de trinta metros de nós, uma roda de professores curiososque tinham acabado de almoçar estava à sombra da entrada, lavando as mãos com água de umachaleira cheia de água e assistindo à discussão.

«Não vamos falar agora», sussurrou Lamin, consciente deste público, mas quando Hawaestava lançada era difícil travá-la.

«Tu estiveste fora um mês, não foi? Sabes quantas pessoas se foram embora durante esse mês?Procura o Abdulaye. Não vais encontrá-lo. O Ahmed e o Hakim? O meu sobrinho Joseph? Temdezassete anos. Foi-se embora! O meu tio Godfrey – ninguém o viu. Agora sou eu que tomoconta dos filhos dele. Foi-se embora! Não quis ficar cá a apodrecer. Deram o salto – todoseles.»

«Dar o salto é loucura», murmurou Lamin, mas logo teve um assomo de coragem: «Osmashala também são loucos.»

Hawa deu um passo na direção dele. Ele retraiu-se. Se por um lado está apaixonado por ela,pensei, por outro lado tem um certo medo dela. E compreendia-se – eu própria tinha um certomedo dela.

«E quando for para a escola de professores em setembro», disse ela, espetando-lhe um dedo nopeito, «ainda cá estarás, Lamin? Ou tens mais para onde ir? Ainda cá estarás?» Lamin olhou naminha direção, um olhar comprometido, assustado, que Hawa interpretou como confirmação:«Não, bem me parecia que não.»

Um tom de adulação entrou no sussurro de Lamin. «Porque é que não vais ter com o teu pai? Ele arranjou o visto para o teu irmão. Também podia

arranjar um para ti, se lhe pedisses. Não é impossível.» Eu própria tivera a mesma ideia, muitas vezes, mas nunca tinha perguntado diretamente a

Hawa – nunca me parecia que ela quisesse falar do pai – e agora, ao ver-lhe a cara iluminar-se defúria moralista, sentia-me contente por nunca ter perguntado. A roda de professores desatou atagarelar como o público de um combate de boxe quando alguém desfere um soco certeiro.

«Quero que saibas que não existe amor entre mim e ele. Tem a sua nova esposa, a sua novavida. Certas pessoas vendem-se, conseguem sorrir a alguém que não amam, só para ganharemalguma vantagem. Mas eu não sou como vocês», disse ela, indo o pronome cair entre mim eLamin, enquanto virava costas e se afastava dos dois, com a saia comprida a roçar pelo chão.

Nessa tarde pedi a Lamin que fosse comigo a Barra. Ele disse que sim, mas pareceu-me

arrasado pela humilhação. Fizemos a viagem de táxi em silêncio, e a de ferry também. Euprecisava de cambiar dinheiro, mas quando chegámos aos pequenos buracos na parede – onde oshomens sentados em bancos altos atrás de postigos contavam enormes pilhas de notas ensebadaspresas por elásticos – ele deixou-me sozinha. Lamin nunca me tinha deixado sozinha em ladonenhum, nem mesmo quando eu mais quisera que o fizesse, e agora percebia o pânico que a ideiaprovocava em mim.

«Mas onde é que nos encontramos? Aonde vais?» «Tenho umas voltas a dar, mas estarei por perto, nas proximidades do ferry. Não há problema.

Basta telefonares-me. Demoro quarenta minutos.» Sem me dar tempo a argumentar, desapareceu. Não acreditei que tivesse voltas a dar: só queria

ver-se livre de mim por algum tempo. Mas cambiar dinheiro não demorou mais de dois minutos.Deambulei pelo mercado e depois, para evitar que as pessoas metessem conversa comigo, passeipelo ferry e fui até um antigo forte militar, em tempos um museu, agora abandonado, mas aindase podia subir às ameias e ver o rio e o modo revoltante como toda a cidade tinha sido construídade costas para a água, ignorando o rio, defensivamente acocorada contra ele, como se a bela vistada outra margem, do mar e dos golfinhos saltantes, fosse de algum modo ofensiva oudesnecessária, ou simplesmente transportasse consigo a memória de uma dor insuportável. Descie deixei-me ficar perto do ferry, mas ainda tinha vinte minutos e por isso fui ao café comInternet. A cena era a do costume: rapazes em fila, de auscultadores na cabeça, dizendo «Amo-te» ou «Sim, meu amorzinho», enquanto nos ecrãs mulheres brancas de certa idade acenavam esopravam beijos, quase sempre mulheres britânicas – a julgar pelos interiores das casas – eenquanto estava ao balcão, a pagar os meus vinte e cinco dalasi por quinze minutos, via-as todasao mesmo tempo a sair do duche de tijolo de vidro, ou a tomar o pequeno-almoço ao balcão dacozinha, ou a andar pelo jardim de pedras, ou estendidas numa cadeira de baloiço no alpendreenvidraçado, ou simplesmente sentadas num sofá, a ver televisão, de telemóvel ou computadorportátil na mão. Nada disto tinha nada de anormal, já o havia visto muitas vezes, mas nessa tardeem particular, no momento em que punha o dinheiro em cima do balcão, um homem tresloucado,a espumar pela boca, entrou a correr e foi pelos computadores brandindo uma bengala compridae entalhada, e o dono do café abandonou a nossa transação para ir atrás dele à volta dosterminais. O louco era incrivelmente belo e alto, como um masai, descalço, envergando umdashiki tradicional bordado a fio dourado, apesar de estar roto e sujo, e com um boné de umcampo de golfe do Minnesota empoleirado no alto da cabeleira assustadora. Bateu com a bengalanos ombros dos rapazes, uma vez em cada ombro, como um rei a armar muitos cavaleiros, atéque o dono conseguiu arrancar-lhe a bengala das mãos e desatou a espancá-lo com ela. Eenquanto era espancado ele continuava a falar, com um sotaque inglês comicamente requintado,

fez-me lembrar o de Chalky, já lá iam tantos anos. «Estimado cavalheiro, sabe quem eu sou?Algum dos palermas presentes sabe quem eu sou? Algum dos pobres palermas? Nem sequer mereconhecem?»

Deixei o dinheiro em cima do balcão e voltei cá para fora, para esperar ao sol.

36 Viagem de missionação islâmica, conforme preconizado pelo movimento Tablighi Jama’at. (N. do T.)

37 Mundanas. (N. do T.)

38 Sede local do movimento. (N. do T.)

4

De volta a Londres jantei com a minha mãe, ela tinha reservado uma mesa no AndrewEdmunds, na sala da cave – «pago eu» – mas sentia-me oprimida pelas paredes verde-escuras eperturbada pelos olhares sub-reptícios dos outros comensais, e então ela aliviou o punho em quea minha mão direita apertava um telemóvel e disse: «Olha para isto. Olha o que ela te está afazer. Unhas roídas e dedos a sangrar.» Perguntei-me desde quando a minha mãe comia no Soho,e por que razão estava tão magra, e onde estava Miriam. Talvez tivesse pensado um pouco maisprofundamente em todas estas perguntas se tivesse havido espaço para refletir seriamente sobreelas, mas nessa noite a minha mãe estava numa espiral faladora e quase toda a refeição foipassada num monólogo sobre a gentrificação de Londres – dirigido tanto às mesas vizinhasquanto a mim – começando pelas habituais queixas contemporâneas e recuando nos anos até setransformar numa aula de história improvisada. Quando chegou o prato principal já estávamosnos princípios do século XVIII. O próprio renque de casas em que agora estávamos sentadas –uma deputada sem funções governativas e uma assistente pessoal de uma estrela pop – albergaraem tempos marceneiros e vidraceiros, trolhas e carpinteiros, e todos eles haviam pagado umarenda mensal que, mesmo ajustada à inflação, hoje não daria para pagar a ostra que eu estava ameter à boca. «Operários», explicou, enquanto empurrava uma Loch Ryan pela boca abaixo. «Etambém radicais, indianos, judeus, caribenhos fugidos à escravatura, panfletários e agitadores.Robert Wedderburn! Os “Blackbirds”39. Este também era o seu poiso, mesmo debaixo do narizde Westminster... Hoje nada disso acontece por estes lados – às vezes gostava que acontecesse.Dava-nos alguma coisa com que trabalhar! Ou pela qual trabalhar! Ou mesmo contra a qual...»Estendeu o braço para a parede forrada a madeira com trezentos anos que tinha atrás da cabeça efez-lhe um afago melancólico. «A verdade é que a maioria dos meus colegas já nem se lembra doque é a verdadeira Esquerda nem, acredita no que te digo, querem lembrar-se. Oh, mas emtempos que já lá vão isto aqui era um autêntico viveiro...» Continuou a cavalgar esta onda,prolongando-a de modo um pouco excessivo, como de costume, mas numa torrente arrebatadora– os ocupantes das mesas vizinhas inclinavam-se para apanhar migalhas dela – e nada daquiloera crispado ou dirigido a mim, tinha esquecido todos os ressentimentos. As conchas vazias dasostras foram levantadas da mesa. Por hábito, eu pus-me a morder a pele à volta das unhas. Aomenos enquanto está a falar do passado, pensei, não me faz perguntas sobre o presente ou ofuturo, quando vou deixar de trabalhar com Aimee ou ter um filho, e evitar este ataque em duasfrentes tinha passado a ser a minha prioridade sempre que estava com ela. Mas não me fezperguntas sobre Aimee, não me fez perguntas sobre nada. Pensei: finalmente chegou ao centro,está «no poder». Sim, apesar de gostar de se caracterizar como um «espinho no flanco dopartido», a verdade é que está no centro das coisas, finalmente, e a diferença deve ser essa. Agora

tinha aquilo que toda a vida desejara e de que mais sentira a falta: respeito. Talvez já nem sequerlhe interessasse saber o que eu fazia da minha vida. Já não precisava de a encarar como um juízosobre a sua pessoa, ou sobre a forma como me criou. E embora tivesse reparado que agora nãobebia, levei também isso a crédito da nova imagem que formava da minha mãe: madura, sóbria,segura de si, já não de pé atrás, um sucesso à sua maneira.

Foi esta linha de pensamento que me deixou desprevenida para o que vinha a seguir. Parou deconversar, pousou a cabeça numa das mãos e disse: «Querida, tenho de pedir a tua ajuda numassunto.»

Franziu-se ao dizer isto. Eu preparei-me para alguma forma de dramatização. É horrível olharagora para trás e perceber que este esgar era mais provavelmente uma reação involuntária esincera a uma verdadeira dor física.

«E tentei resolvê-lo sozinha», disse, «não te envolver, sei que tens uma vida muito ocupada,mas não sei a quem recorrer nesta altura.»

«Sim – bem, de que se trata?» Estava muito concentrada a aparar as gorduras de uma costeleta de porco. Quando finalmente

levantei os olhos para a cara da minha mãe ela parecia cansada como nunca a tinha visto. «Trata-se da tua amiga – a Tracey.» Eu pousei o talher. «Oh, é ridículo, de facto, mas recebi um email, amigável... recebi-o no consultório. Não a via

há anos... mas pensei: Oh, Tracey! Era sobre um dos filhos, o rapaz mais velho – tinha sidoexpulso da escola, injustamente na opinião dela, e pedia-me ajuda, percebes, e por isso lherespondi, e a princípio não me pareceu muito estranho, estou sempre a receber cartas daquelas.Mas agora não sei, dou comigo a pensar: e se tudo não passasse de uma artimanha?»

«De que é que estás a falar, mamã?» «Achei que era um bocado estranho, a quantidade de emails que ela estava a enviar, mas...

bem, sabes, não trabalha, isso é evidente, e não sei se alguma vez trabalhou. E continua a vivernaquele maldito apartamento. Só isso já era suficiente para dar com uma pessoa em doida. Deveter tempo de sobra – e de repente desata a enviar emails, dois ou três por dia. A opinião dela eraque a escola expulsava injustamente os rapazes negros. Fiz algumas pesquisas, mas parece queneste caso, bem... A escola achava que tinha argumentos sólidos e eu não pude fazer mais nada.Escrevi-lhe e ela ficou muito zangada, e enviou uns emails muito zangados, e eu pensava queaquilo ia ficar por ali, mas – era só o princípio.»

Coçou nervosamente a nuca abaixo do lenço de cabeça e eu reparei que tinha a pele dopescoço irritada.

«Mas, mamã, porque é que havias de responder a uma coisa vinda da Tracey?» – disse eu,agarrada aos lados da mesa – «eu podia ter-te dito que ela não é mentalmente estável. Conheço-ahá muitos anos!»

«Bem, em primeiro lugar é minha eleitora, e eu respondo sempre aos meus eleitores. E quandopercebi que era a tua Tracey – não sei se sabes que mudou de nome – mas os emails erammuito... esquisitos, muito estranhos.»

«Há quanto tempo é que isso dura?» «Há perto de seis meses.» «Porque é que não me contaste antes!» «Querida», disse ela, e encolheu os ombros: «Quando é que teria tido oportunidade?» Tinha emagrecido tanto que a sua cabeça magnífica parecia vulnerável em cima do pescoço de

cisne, e esta nova delicadeza, esta sugestão de tempo mortal a consumi-la como consome toda agente, falaram-me mais alto do que qualquer das velhas acusações de abandono filial alguma vezhavia falado. Pousei a minha mão sobre a dela.

«Esquisitos em que sentido?» «Não quero falar sobre isso aqui. Depois mando-te alguns exemplos.» «Não sejas assim dramática, mamã. Dá-me só uma ideia.» «São muito ofensivos», disse ela, de lágrimas nos olhos, «e eu não tenho andado a sentir-me

muito bem, e tenho recebido muitos, chegam a ser doze num dia, e sei que é estúpido, mas aquiloperturba-me.»

«Porque é que não deixas a Miriam encarregar-se disso? É ela que se encarrega das tuascomunicações, não é?»

Ela retirou a mão e assumiu a expressão de deputada sem funções governativas, um sorrisobreve e triste, adequado para enfrentar perguntas sobre o serviço de saúde, mas deslocado a umamesa de jantar.

«Bom, mais cedo ou mais tarde vais saber: separámo-nos. Eu continuo a viver no apartamentode Sidmouth Road. Tenho de continuar no mesmo bairro, evidentemente, e não encontro outrasolução como aquela, pelo menos para já, por isso pedi-lhe que se mudasse. Claro que,tecnicamente, o apartamento é dela, mas foi muito compreensiva. Sabes como é a Miriam. Mas,pronto, não é o fim do mundo, não há ressentimentos, e conseguimos que não chegasse aosjornais. Portanto acabou.»

«Oh, mamã... lamento. A sério.» «Não lamentes, não lamentes. Há pessoas que não suportam ver uma mulher com uma certa

dose de poder, e é só isso. Já passei por isso antes e vou voltar a passar, tenho a certeza. Vê ocaso do Raj!», disse, e havia tanto tempo que não pensava no Destacado Ativista pelo seuverdadeiro nome que cheguei à conclusão de que o havia esquecido. «Fugir com aqueladesmiolada mal eu acabei o meu livro! É culpa minha que ele nunca tenha acabado um livro?»

Não, tranquilizei-a, não era culpa dela que Raj nunca tivesse acabado o livro dele, sobre a mãode obra «cule» nas Índias Ocidentais – apesar de andar há duas décadas a trabalhar nele –enquanto a minha mãe começou e acabou o seu, sobre Mary Seacole, em um ano e meio. Sim, oúnico culpado era o Destacado Ativista.

«Os homens são tão ridículos! Mas afinal as mulheres também são. Mas adiante, de certomodo até é bom... A certa altura achei mesmo que ela estava a interferir em termos que... Bem, aobsessão dela com as «nossas» práticas empresariais na África Ocidental, as violações dosdireitos humanos, e por aí fora – quer dizer, andava a estimular-me a fazer perguntas na Câmara–, em áreas sobre as quais não estou propriamente habilitada a falar – e bem vistas as coisaspenso que do que verdadeiramente se tratava, de um modo cómico, era de tentar criar umaquezília entre mim e ti...» Não me passava pela cabeça que Miriam tivesse uma motivação tãoinverosímil quanto esta, mas fiquei calada. «... E eu estou a envelhecer e já não tenho a energiaque tinha, e a verdade é que quero concentrar-me nas minhas preocupações locais, no meueleitorado. Sou uma representante local e é isso que quero fazer. Não tenho ambições para alémdessas. Não sorrias, querida, não tenho mesmo. Já tive. A certa altura disse à Miriam: “Ouve,todos os dias me entra pelo consultório gente da Libéria, do Senegal, da Gâmbia, da Costa doMarfim! O meu trabalho é global. O meu trabalho é aqui. Estas pessoas vêm de todo o mundopara o meu círculo eleitoral, naqueles barquinhos horríveis, chegam traumatizadas, viram morreroutras pessoas mesmo na sua frente, e vêm para aqui. Isto é o universo a tentar dizer-me alguma

coisa, sinto verdadeiramente que nasci para fazer este trabalho.” Pobre Miriam... É muito bem-intencionada, e só Deus sabe como é organizada, mas às vezes falta-lhe a perspetiva das coisas.Quer salvar toda a gente. E uma pessoa assim não é a melhor das parceiras de vida, podes crer, sebem que sempre vá considerá-la uma administradora muito eficiente.» Foi impressionante – e umpouco triste. Perguntei-me se não haveria uma epígrafe igualmente gélida para mim: Não era amelhor das filhas, mas era uma companhia perfeitamente adequada para um jantar.

«Tu achas», perguntou a minha mãe, «achas que ela está destrambelhada... mentalmentedoente ou...»

«A Miriam é uma das pessoas mais ajuizadas que alguma vez conheci.» «Não – a tua amiga Tracey.» «Preferia que deixasses de lhe chamar isso!» Mas a minha mãe não estava a ouvir-me, estava no seu próprio sonho: «Sabes, de certo modo...

bem, pesa-me na consciência. A Miriam achava que eu devia simplesmente ter ido à polícia porcausa dos emails, mas... não sei... quando envelhecemos, sem sabermos como, há coisas dopassado... que podem pesar sobre nós. Lembro-me de quando ela ia ao centro em busca deaconselhamento... É claro que não vi as notas sobre ela, mas fiquei com a sensação, ao falar coma equipa, de que havia problemas, questões de saúde mental, já nessa altura. Talvez o meuprimeiro erro tenha sido proibi-la de continuar a frequentar o centro, mas a verdade é que não foifácil arranjar vaga para ela, e lamento mas na altura achei real e sinceramente que ela tinhaabusado da minha confiança, da tua confiança, da confiança de toda a gente... É verdade queainda era uma criança, mas de qualquer forma foi um crime – e foi uma data de dinheiro –, tenhoa certeza de que foi todo para o pai – mas se te acusassem a ti, como ia ser? Na altura achei que omelhor era cortar todas as ligações. Bem, calculo que tenhas muitas opiniões críticas sobre aquiloque se passou – tens sempre muitas opiniões críticas – mas só gostava que compreendesses quenão foi fácil criar-te, a minha situação não era fácil, e ainda por cima estava concentrada em tirarum curso, adquirir qualificações, talvez demasiadamente concentrada, na tua opinião... mas tinhade garantir uma vida melhor para ti e para mim. Sabia que o teu pai não podia fazê-lo. Não erasuficientemente forte para isso. Ninguém mais ia fazê-lo. Tinha uma quantidade de bolas no arao mesmo tempo, era assim que me sentia, e…» estendeu o braço sobre a mesa e agarrou-me ocotovelo: «Devíamos ter feito mais – para a proteger!»

Eu senti o aperto dos seus dedos ossudos. «Tu tiveste a sorte de ter um pai maravilhoso. Ela não. Não sabes o que isso é porque tens

sorte, a verdade é que nasceste com sorte – mas eu sei. E ela fazia parte da nossa família,praticamente!»

Estava a implorar-me. As lágrimas que se haviam acumulado corriam-lhe agora pela cara. «Não, mamã... não, não era. Não estás a lembrar-te bem: nunca gostaste dela. Quem sabe o que

se passava naquela família ou de que é que ela precisava de ser protegida, se é que precisava deser protegida de alguma coisa? Nunca ninguém nos disse – ela, pelo menos, nunca nos disse.Todas as famílias daquela correnteza tinham segredos.» Olhei para ela e pensei: queres saberqual era o nosso?

«Tu própria acabaste de o dizer, mamã: não se pode salvar toda a gente.» Ela acenou várias vezes com a cabeça e levou um guardanapo às faces molhadas. «Isso é verdade», disse. «Uma grande verdade. Mas ao mesmo tempo, não é verdade que

podemos fazer sempre melhor?»

39 Nome pelo qual ficou conhecida esta comunidade heterogénea que no século XIX vivia no bairro do Soho. (N. do T.)

5

Na manhã seguinte tocou o meu telefone britânico, era um número que não reconheci. Não eraa minha mãe, nem Aimee, nem nenhum dos pais dos filhos dela, nem nenhuma das minhas trêscolegas de faculdade que uma ou duas vezes por ano ainda acalentavam a esperança de metentarem a ir beber um copo com elas antes da partida do meu avião. A princípio também nãoreconheci a voz: nunca tinha ouvido Miriam falar num tom de voz tão seco ou impessoal.

«Mas percebes», perguntou-me, depois de umas graças desajeitadas, «que a tua mãe estárealmente doente?»

Eu estava deitada no sofá cinzento felpudo de Aimee, a olhar para os jardins de Kensington –lajes cinzentas, céu azul, carvalhos verdes – e reparei, enquanto Miriam explicava a situação, queesta vista se fundia com outra anterior: cimento cinzento, céu azul, por cima da copa doscastanheiros-da-índia, por trás de Willesden, a caminho da linha férrea. Ouvia na sala ao lado aama, Estelle, tentando disciplinar os filhos de Aimee, naquele sotaque cantante que relacioneicom os meus primeiros momentos, com canções de embalar e banhos e histórias para adormecer,pancadas com uma colher de pau. Faróis de automóveis que passavam de noite, lambendo oteto.

«Alô? Ainda aí estás?» Fase três: tinha começado na coluna. Cirurgia parcialmente bem-sucedida, em fevereiro (onde

é que eu estava em fevereiro?). Agora estava em remissão, mas o último ciclo de químio tinhadeixado marcas. Devia ter ficado a descansar, para se recompor. Era uma loucura continuar a irao Parlamento, uma loucura sair para jantar, uma loucura eu ter concordado.

«Como é que eu podia saber? Ela não me disse nada.» Miriam reagiu sorvendo o ar entre os dentes. «Uma pessoa com um mínimo de senso só tem de olhar para a mulher para perceber que

alguma coisa se passa com ela!» Chorei. Miriam esperou pacientemente. O meu instinto foi desligar e telefonar para a minha

mãe, mas, quando tentei, Miriam implorou-me que não o fizesse. «Ela não quer que saibas. Sabe que tens de viajar, e tudo isso – não quer complicar os teus

planos. Ia ficar a saber que fui eu que te disse. Ninguém sabe a não ser eu.» Não suportava esta visão de mim própria como uma pessoa cuja mãe preferia morrer a

complicar-lhe os planos. Para evitar isso, pus-me à procura de gestos dramáticos, e, mesmo semsaber se era possível ou não, ofereci os serviços dos muitos médicos particulares de Aimee emHarley Street. Miriam deu uma risadinha triste.

«Particulares? Ainda não conheces a tua mãe? Não, se queres fazer alguma coisa por ela, eudigo-te o que seria mais importante neste momento. Sabes da tresloucada que não para de a

infernizar? Não percebo porque é que isso a obceca tanto, mas tem de parar, não pensa noutracoisa. Disse-me que te tinha contado. É verdade?»

«É. Ficou de me reenviar os emails mas ainda não reenviou.» «Eu tenho-os. Vou-tos mandar.» «Oh, OK... pensava – quer dizer, ela disse-me ao jantar que vocês as duas...» «Sim, sim, há muitos meses. Mas a tua mãe ficará para sempre na minha vida. Não é pessoa

que saia da nossa vida depois de ter entrado nela. Além disso, quando alguém de quem gostamosadoece, tudo o resto... desaparece.»

Minutos depois de ter pousado o telefone começaram a chegar os emails, vários de cada vez,

até que já tinha cinquenta ou mais. Sentei-me a lê-los no sítio onde estava, espantada com tantaraiva. A força daquilo deu-me uma sensação de impotência – como se Tracey tivesse maissentimentos pela minha mãe do que eu – mesmo que neste caso não se tratasse de uma expressãode amor, mas sim de ódio. Espantada também por ver como ela escrevia bem, nunca enfadonha,nem por um momento, a dislexia e os muitos erros de ortografia não eram obstáculos para ela:tinha o dom de ser interessante. Era impossível começar a ler um e não querer lê-lo até ao fim. Asua acusação central contra a minha mãe era negligência: em relação aos problemas do filho naescola, aos seus problemas e emails pessoais, ao seu – da minha mãe, entenda-se – dever dedefender os interesses dos seus eleitores. Para ser sincera, achei que, quanto aos primeiros, nãodeixava de ter razão, mas depois Tracey alargava o âmbito. Negligência em relação ao estado dasescolas municipais, às crianças negras dessas escolas, aos negros de Inglaterra, aos trabalhadoresnegros de Inglaterra, às mães solteiras, aos filhos de mães solteiras, e a Tracey, filha única demãe solteira, em tempos recuados. Achei curioso ela escrever «mãe solteira», como se o painunca tivesse existido. O tom tornava-se grosseiro e ofensivo. Nalguns emails pareciaembriagada ou drogada. Depressa aquilo se transformou numa comunicação de via única, numadissecação sistemática das inúmeras formas pelas quais, no entender de Tracey, a minha mãe atinha desiludido. Nunca gostou de mim, nunca me quis por perto, sempre tentou humilhar-me,para si nunca fui suficientemente boa, tinha pavor de se ver relacionada comigo, sempre semanteve à parte, fingia-se a favor da comunidade mas só defendia os seus interesses, disse a todaa gente que eu tinha roubado aquele dinheiro mas não tinha provas e nunca me defendeu. Haviauma fatia inteira de cartas que se referiam exclusivamente ao complexo onde vivia. Que nadaestava a ser feito para melhorar as condições de habitação dos moradores, as casas estavam a serdeixadas ao abandono – quase todas, agora, na torre de Tracey. Não haviam sofrido nenhumaintervenção desde o princípio dos anos oitenta. Entretanto, o complexo do outro lado da estrada –o nosso, que o município estava agora afanosamente a vender ao desbarato – tinha-se enchido dejovens casais brancos e respetivos filhos e parecia «a porra de uma estância hoteleira». E quetencionava a minha mãe fazer em relação aos rapazes que vendiam crack à esquina da TorbayRoad? Ao encerramento da piscina? Aos bordéis de Willesden Lane?

Era isto: uma mistura surrealista de vingança pessoal, memória dolorosa, astuto protestopolítico e queixas de uma residente. Reparei que as cartas se iam tornando mais longas com opassar das semanas, começando por um ou dois parágrafos e chegando a ter milhares e milharesde palavras. Na mais recente ressurgiam algumas das invenções e teorias da conspiração dasquais me lembrava de a ter ouvido falar dez anos antes, se não na letra pelo menos no espírito.Não apareciam os lagartos: agora era uma seita secreta bávara do século XVIII que tinha

sobrevivido à sua própria supressão e estava ativa em todo o mundo, contando entre os seusmembros muitos negros poderosos e famosos – em aliança com as elites brancas e os judeus – eTracey estava a investigar tudo isto com grande profundidade e cada vez mais convencida de quetalvez a minha mãe fosse um instrumento nas mãos dessas pessoas, secundário mas perigoso, quehavia conseguido escavar um túnel para chegar ao coração do governo britânico.

Pouco depois do meio-dia li o último email, vesti o casaco, desci a rua e esperei pelo autocarro

52. Desci na paragem de Brondesbury Park, percorri a pé a Christchurch Avenue, cheguei aoprédio de Tracey, subi as escadas e toquei à campainha. Já devia estar no corredor porque abriu aporta imediatamente, com um filho pequeno de quatro ou cinco meses na anca, de cara viradapara o outro lado. Atrás dela ouviam-se mais crianças, a discutir, e um televisor aos berros. Nãosei o que ia à espera de encontrar, mas o que tinha diante de mim era uma mulher de meia-idade,pesada e tensa, em calças de pijama de turco, chinelos de andar por casa e T-shirt preta com umasó palavra estampada: OBEDECE. Eu parecia muito mais nova.

«És tu», disse. Pôs a mão protetora na nuca do bebé. «Precisamos de falar, Tracey.» «MAMÃ!», gritou uma voz vinda do interior. «QUEM É?» «Iá, bem, estou a fazer o almoço.» «A minha mãe está a morrer», disse eu, recuperando espontaneamente o velho hábito de

exagerar, «e tu tens de acabar com o que andas…» Nessa altura os dois filhos mais velhos enfiaram a cabeça na porta entreaberta para verem

quem era. A menina parecia branca, de cabelo castanho ondulado e olhos verde-mar. O meninotinha a cor de Tracey e um cabelo afro encaracolado, mas não se parecia especialmente com ela:devia sair ao pai. O bebé era muito mais escuro do que todos nós, e quando se virou para mim vique era uma menina, uma cópia de Tracey e extraordinariamente bonita. Mas todos erambonitos.

«Posso entrar?» Ela não respondeu. Suspirou, acabou de abrir a porta com um pé e eu segui-a. «Quem és tu, quem és tu, quem és tu?», perguntou-me a rapariga, e antes que eu lhe

respondesse enfiou a mão na minha. Verifiquei, ao passar pela sala, que vinha interromper umvisionamento de Ao Sul do Pacífico. Este pormenor comoveu-me, e dificultou-me a tarefa de nãoesquecer a Tracey odiosa dos emails ou a Tracey que dez anos antes me tinha enfiado aquelacarta por baixo da porta. Conhecia a Tracey que perdia uma tarde a ver Ao Sul do Pacífico eadorava essa rapariga.

«Gostas?», perguntou-me a filha, e quando eu disse que sim puxou-me pelo braço até me fazersentar no sofá entre ela e o irmão mais velho, que estava a jogar num telemóvel. Tinhaatravessado Brondesbury Park cheia de fúria justiceira, mas agora achava perfeitamente possívelsentar-me neste sofá e passar a tarde a ver Ao Sul do Pacífico com a mão de uma criançaaninhada na minha. Perguntei-lhe como se chamava.

«Mariah Mimi Alicia Chantelle!» «O nome dela é Jeni», disse o rapaz, sem levantar os olhos. Pareceu-me que devia ter oito

anos, e Jeni cinco ou seis. «E tu, como te chamas?», perguntei, encolhendo-me ao ouvir a voz da minha mãe dentro de

mim, falando com todas as crianças, independentemente da idade, como se fossem quase

amorfas. «Chamo-me Bo!», disse ele, imitando a minha entoação, o que o fez rir – um riso igual ao de

Tracey. «E qual é a tua história, Miss Mulher? És assistente social?» «Não, sou... amiga da tua mamã. Crescemos juntas.» «Mmm, pode ser», disse ele, como se o passado fosse uma coisa hipotética que pudesse pegar

ou largar. Voltou a embrenhar-se no jogo que estava a jogar. «Mas nunca te tinha visto, por issotenho cá as minhas SUSPEITAS.»

«Esta é a parte da “Happy Talk!”», disse Jeni, encantada, apontando para o ecrã, e eu disse,«Pois é, mas eu preciso de conversar com a tua mamã», embora a minha vontade fosse ficar nosofá, segurando-lhe a mãozinha quente, sentindo o joelho de Bo involuntariamente encostado aomeu.

«Está bem, mas no fim da conversa voltas!» Ela estava atarefada na cozinha, com a filha mais pequena pousada na anca, e não interrompeu

o que estava a fazer quando eu entrei. «Miúdos fantásticos», dei comigo a dizer, enquanto ela empilhava pratos e reunia talheres.

«Amorosos – e espertos.» Ela abriu o forno; por pouco não raspava a parede em frente. «Que estás a fazer?» Ela voltou a fechar o forno com força e de costas para mim mudou a filha para o outro lado.

Estava tudo mal: eu era a solícita, a arrependida, ela numa posição de superioridade moral. Opróprio apartamento parecia suscitar em mim este papel de submissão. No palco da vida deTracey era o único papel que podia desempenhar.

«Preciso mesmo de falar contigo», voltei a dizer. Ela virou-se. Pôs uma cara séria, como costumávamos dizer, mas quando os nossos olhares se

encontraram sorrimos, foi involuntário, um mútuo sorriso involuntário. «Mas olha que nem sequer me estou a rir», disse ela, retomando a cara séria, «e se vieste cá

para armar uma discussão comigo o melhor é ires-te embora porque eu não estou para aívirada.»

«Vim cá para te pedir que pares de atormentar a minha mãe.» «Foi isso que ela te disse?» «Eu li os teus emails, Tracey.» Ela deitou a bebé no ombro e pôs-se a abaná-la e a dar-lhe pancadinhas nas costas. «Ouve, eu vivo neste bairro», disse, «e tu não. Vejo o que se passa. Podem apregoar o que

quiserem lá no Parlamento, mas eu estou aqui, no terreno, e supostamente a tua mãe representaestas ruas. Aparece na televisão noite sim, noite não, mas notas alguma diferença por aqui? Omeu filho tem um QI de 130 – ouviste? Fez testes. Tem DDAH40, tem o cérebro acelerado, echateia-se de morte todos os dias na merda da escola. Claro que se mete em sarilhos. Porque estáchateado. E a única coisa que aqueles professores todos sabem fazer é expulsá-lo!»

«Não sei nada disso, Tracey – mas tu não podes simplesmente…» «Ora, para de stressar. Faz alguma coisa de útil. Ajuda-me a levar estes pratos.» Depositou-mos nas mãos, pôs os talheres em cima e despachou-me para a sala de estar, onde

dei comigo a pôr a mesa redonda e pequena para a família dela, como noutros tempos pusera amesa para o chá das suas bonecas.

«Vamos para a mesa!», disse ela, naquilo que parecia ser uma imitação da minha voz. Bem-disposta, deu uma palmadinha na nuca dos mais velhos.

«Se é outra vez lasanha vou começar a chorar de joelhos», disse Bo, e Tracey disse «Élasanha», e Bo assumiu a posição e, comicamente, pôs-se a dar murros no chão.

«Levanta-te, palhaço», disse Tracey, e riram-se todos, e eu não sabia como havia de prosseguira minha missão.

Sentei-me à mesa em silêncio enquanto eles discutiam e riam por tudo e por nada, dando aimpressão de que todos falavam o mais alto que podiam, praguejando abundantemente, e a bebéno joelho de Tracey, a ser balançada para cima e para baixo enquanto ela comia com uma dasmãos e gracejava com os outros dois, e talvez os almoços deles fossem todos assim, mas eu nãoconseguia afastar a suspeita de que que aquilo também era, da parte de Tracey, uma espécie derepresentação, uma forma de dizer: Olha como eu tenho uma vida cheia. Olha como a tua évazia.

«Continuas a dançar?», perguntei de repente, interrompendo-os a todos. «Quer dizer,profissionalmente?»

Fez-se silêncio à volta da mesa e Tracey virou-se para mim. «Tenho ar de quem continua a dançar?» Olhou para si e em volta da mesa e riu-se

amargamente. «Eu sei que era a mais elegante, mas... tenta adivinhar, porra.» «Eu – eu nunca te disse, mas vi-te em O Barco das Ilusões.» Ela não se mostrou minimamente surpreendida. Levou-me a pensar que talvez me tivesse visto

na altura. «Sim, bem, isso já foi há muito tempo. A minha mãe adoeceu, não tinha quem ficasse com as

crianças... tornou-se muito difícil. Também tive uns problemas de saúde. Não foi porquequisesse.»

«E o pai deles?» «Que é que tem o pai deles?» «Porque é que não pode tomar conta deles?» Estava a falar propositadamente no singular, mas

Tracey – sempre alerta para os eufemismos e a hipocrisia – não se deixou enganar. «Bem, como vês, experimentei a baunilha, o leite e o chocolate, e sabes o que descobri? Por

dentro, os cabrões são todos iguais: homens.» A linguagem dela chocou-me, mas os filhos – com as cadeiras viradas para Ao Sul do Pacífico

– não davam sinais de terem notado ou estranhado. «Talvez o problema seja o tipo de homens que escolhes.» Tracey revirou os olhos: «Obrigada, Dr. Freud! Não tinha pensado nisso! Mais algumas

pérolas de sabedoria para me dar?» Eu calei-me e comi a minha lasanha, ainda parcialmente congelada por dentro, mas deliciosa.

Trouxe-me à memória a mãe dela e perguntei-lhe como estava. «Morreu, há dois meses. Não foi, princesa? Morreu.» «A vovó morreu. Foi para os anjinhos!» «Pois é, agora somos só nós. Mas estamos bem. As putas das assistentes sociais passam a vida

a moer-nos o juízo, mas estamos bem. Os quatro mosqueteiros.» «Queimámos a vovó num grande forno!» Bo virou-se para trás: «És mesmo idiota – não foi só queimá-la, pois não? Como se a

puséssemos em cima de uma fogueira ou coisa assim! Foi cre-ma-da. É melhor do que estarencafuada no chão, numa caixa fechada, porque odiava espaços fechados. Tinha claus-tro-fobia.

Por isso é que subia e descia sempre pelas escadas.» Tracey sorriu ternamente a Bo e tentou fazer-lhe um afago, a que ele se esquivou. «Mas ainda viu as crianças», murmurou, quase para si própria. «Até a pequenina Bella.

Portanto fiquei feliz por esse lado.» Levou Bella aos lábios e beijou-a repetidamente no nariz. Depois olhou para mim e apontou-

me para a barriga. «E tu, de que estás à espera?» Eu espetei o nariz no ar, apercebendo-me demasiado tarde de que era um gesto imitado – um

gesto que nos últimos anos usava em momentos de orgulho ou teimosia – e que pertencia pordireito à mulher que estava sentada na minha frente.

«Da situação certa», disse. «Do momento certo.» Ela sorriu, tendo no rosto a crueldade de sempre: «Oh, OK. Desejo-te boa sorte. É giro, n’é»,

disse, exagerando o sotaque para acentuar o efeito, e virando-se para a televisão, não para mim:«Gajas ricas sem filhos, gajas pobres com muitos. De certeza que a tua mãe havia de ter muito adizer sobre isso.»

As crianças acabaram de comer. Levantei os pratos e levei-os para a cozinha, onde me senteidurante um minuto no banco alto, inspirando e expirando concentradamente – como o professorde ioga de Aimee nos havia ensinado a todos – e olhando pela janela estreita para o parque deestacionamento. Havia perguntas para as quais queria respostas dela, e que remontavam a umpassado distante. Tentei pensar em como havia de regressar à sala de uma forma quereconduzisse a tarde a um caminho que me fosse favorável, mas antes de o descobrir entrouTracey e disse: «A questão é esta: o que se passa entre mim e a tua mãe é entre mim e a tua mãe.Para ser franca, nem sequer sei o que vieste cá fazer.»

«Só estou a tentar compreender porque é que tu…» «Sim, mas a questão é mesmo essa! Entre ti e mim já não pode haver nenhuma compreensão!

Tu agora fazes parte de um sistema diferente. As pessoas como tu pensam que podem controlartudo. Mas a mim não podes controlar-me!»

«As pessoas como eu? De que é que estás a falar? Ó Trace, tu agora és uma mulher adulta,tens três filhos lindos, precisas mesmo de aprender a dominar essa paranoia…»

«Podes dar-lhe os nomes difíceis que quiseres, querida: existe um sistema, e tu e a merdosa datua mãe fazem parte dele.»

Levantei-me. «Para de perseguir a minha família, Tracey», disse, e saí da cozinha em passo decidido,

perseguida por Tracey, atravessei a sala de estar e dirigi-me à porta da rua. «Se isso continuar,participamos à polícia.»

«Está bem, está bem, vai andando, vai andando», disse ela, batendo com a porta quando eusaí.

40 Distúrbio de Défice de Atenção com Hiperatividade. (N. do T.)

6

No princípio de dezembro Aimee voltou para verificar os progressos da sua academia,viajando com um grupo mais reduzido, Granger, Judy, a excêntrica procuradora desta para ascomunicações por email, Mary-Beth, Fern e eu – sem imprensa e sem agenda específica: queriapropor uma clínica de saúde sexual nos terrenos da escola. Ninguém discordava em princípio,mas também era muito difícil imaginar como seria possível falar publicamente da proposta comoclínica de saúde sexual ou como podiam ser levados ao conhecimento da aldeia os discretosrelatórios de Fern sobre a vulnerabilidade sexual das raparigas locais – elaborados com base eminformações colhidas laboriosamente, e com uma grande dose de confiança, junto de algumasprofessoras, que também haviam corrido grandes riscos falando com ele – sem provocar o caos eos melindres interpessoais e porventura o fim de todo o nosso projeto. Discutimos o assuntodurante o voo. A medo, eu tentei falar com Aimee sobre a necessidade de cautela e sobre o queconhecia do contexto local, pensando, cá para mim, em Hawa, enquanto Fern, com maioreloquência, falava das intervenções anteriores de uma ONG de médicos alemães numa aldeiamandinga da região, onde a circuncisão feminina era prática generalizada, e as enfermeirastinham descoberto que as abordagens indiretas resultavam onde as condenações diretasfracassavam. Aimee torceu o nariz a estas comparações e retomou a palavra: «Oiçam, issoaconteceu-me em Bendigo, aconteceu-me em Nova Iorque, acontece em todo o lado. Não temnada que ver com o vosso “contexto local” – acontece em todo o lado. Eu tinha uma grandefamília, primos e tios que entravam e saíam – sei bem como são as coisas. E aposto um milhãode dólares que, se entrarem numa sala de aula em qualquer canto do mundo, encontram pelomenos uma rapariga que tem um segredo que não pode contar. Eu lembro-me. Não tinha a quemrecorrer. Quero que estas raparigas tenham a quem recorrer!»

Em comparação com a paixão e o empenhamento pessoal dela, as nossas objeções epreocupações pareciam mesquinhas e tacanhas, mas convencemo-la a ceder quanto à palavraclínica e enfatizar – pelo menos nas conversas com as mães locais sobre a clínica – a saúdemenstrual, que também era uma complicação para muitas raparigas sem meios para pagar pensoshigiénicos. Mas eu, pessoalmente, achava que Aimee tinha razão: lembrava-me das minhas salasde aula, aulas de dança, recreios, grupos de jovens, festas de aniversário, despedidas de solteira,onde havia sempre uma rapariga que tinha um segredo, algo de inconfessável ou doloroso dentrode si, e ao percorrer a aldeia com Aimee, entrando em casa das pessoas, apertando-lhes a mão,aceitando delas comida e bebida, sendo abraçada pelos filhos, muitas vezes julguei vê-la outravez, àquela rapariga que vive em toda a parte e em todas as épocas da história, que varre o pátioou serve chá ou transporta na anca o filho de outra pessoa e olha para nós com um segredo quenão pode contar.

Foi um primeiro dia difícil. Estávamos felizes por termos voltado e era um prazer inesperadopassear por uma aldeia que tinha deixado de ser para nós tão estranha ou inóspita, vendo carasconhecidas – no caso de Fern, pessoas que se tinham tornado suas amigas íntimas – e ao mesmotempo sentíamos os nervos em franja porque sabíamos que Aimee, apesar de comparecer aosseus compromissos, e sorrir para as fotografias que Granger estava encarregado de tirar, tinha acabeça cheia de Lamin. A intervalos de poucos minutos olhava para Mary-Beth, que tentava ligarmais uma vez, mas ia sempre parar ao gravador. Em algumas casas ligadas a Lamin por laços desangue ou de amizade, perguntávamos por ele mas ninguém parecia saber onde estava, tinham-no visto ontem ou hoje de manhã, talvez tivesse ido a Barra ou a Banjul, talvez ao Senegal visitara família. Ao final da tarde já Aimee fazia um grande esforço para disfarçar a irritação.Estávamos ali para perguntar às pessoas o que achavam das mudanças na aldeia, e que maisqueriam ver mudado, mas Aimee olhava em alvo se as pessoas falavam com ela, por pouco quefosse, e começámos a entrar e sair das moranças com excessiva rapidez, melindrando quem lávivia. Eu queria demorar mais tempo: pensava que talvez esta fosse a nossa última visita e sentiauma certa ânsia de fixar tudo quanto via, gravar a aldeia na memória, a sua luz constante, osverdes e os amarelos, aqueles pássaros brancos de bico vermelho-vivo, e as pessoas, as minhaspessoas. Mas algures nestas ruas havia um rapaz que se escondia de Aimee, uma sensaçãohumilhante e nova para ela, que sempre fora a pessoa para quem toda a gente corria. Percebi queela, para evitar pensar nisto, estava decidida a continuar sempre em frente, e, apesar de os seuspropósitos frustrarem os meus, senti pena dela. Era doze anos mais nova do que ela, mas tambémsentia a idade que tinha no meio daquelas raparigas escandalosamente jovens que encontrávamosem todas as moranças, demasiado belas, confrontando-nos a ambas, naquela tarde quente, com aúnica coisa que nenhuma quantidade de poder ou de dinheiro pode devolver-nos depois de aperdermos.

Mesmo antes do pôr do sol chegámos ao extremo mais oriental da aldeia, no limite ondedeixava de ser aldeia e voltava a ser mato. Aí não havia moranças, apenas cabanas de chapaondulada, e foi numa dessas que encontrámos o bebé. Todos muito cansados, cheios de calor, aprincípio não nos pareceu que estivesse mais alguém no espaço exíguo além da mulher cuja mãoAimee estava a apertar naquele momento, mas quando me desviei para permitir que Grangerentrasse e se abrigasse do sol vi um bebé deitado num pano estendido no chão, com umarapariguinha dos seus nove anos ao lado, a afagar-lhe a cara. Já tínhamos visto muitos bebés,evidentemente, mas nenhum tão pequenino como este: tinha três dias e era uma menina. Amulher embrulhou-a e passou o embrulhinho a Aimee, que a recebeu nos braços e ficou a olharfixamente para ela, sem fazer nenhum dos comentários habituais que as pessoas se sentem naobrigação de fazer quando pegam num recém-nascido. Granger e eu, sentindo-nos embaraçados,aproximámo-nos e fizemos os comentários por ela: menino ou menina, que lindo, tão pequenino,os olhos, que bonitos tufos de cabelo preto. Estas coisas estavam a sair-me automaticamente – jáas tinha dito muitas vezes – até que olhei para ela. Tinha uns olhos enormes, preto-arroxeados,desfocados, com umas pestanas belíssimas. Por muito que tentasse que ela olhasse para mim nãoconsegui. Era um pequeno Deus que me recusava a graça, apesar de estar de joelhos. Aimeecingiu mais a bebé, virou-me as costas e pousou o nariz nos lábios carnudos da criança. Grangersaiu para apanhar ar. Eu voltei a aproximar-me de Aimee e pus-me em bicos de pés paraespreitar a bebé por cima do ombro dela. O tempo passava. Nós as duas, lado a lado,desagradavelmente próximas, transpirando uma para cima da outra, mas nenhuma querendocorrer o risco de sair do campo de visão da bebé. A mãe estava a falar, mas não creio que

nenhuma de nós estivesse de facto a ouvi-la. Até que Aimee, muito relutantemente, se virou e mepôs a bebé nos braços. É uma coisa química, talvez, como a dopamina que inunda osapaixonados. Para mim foi um afogamento. Nunca experimentei nada parecido, nem antes nemdepois.

«Gostas dela? Gostas dela?», disse um homem jovial, que tinha aparecido não se sabe de onde.«Leva-a para Londres! Ha ha! Gostas dela?»

Não sei como, devolvi-a à mãe. Ao mesmo tempo, num qualquer lugar de futuros alternativos,saí dali a correr com a bebé nos braços, apanhei um táxi para o aeroporto e voei para casa.

Quando o Sol se pôs e não havia mais nada a fazer em matéria de visitas, resolvemos dar o dia

por terminado e reunir na manhã seguinte para a visita à escola e uma reunião da aldeia. Aimee eo resto do grupo seguiram Fern para a casa cor-de-rosa. Eu, curiosa em saber o que tinhaacontecido desde a minha última visita, fui para casa de Hawa. Na escuridão absolutaencaminhei-me muito lentamente para aquilo que julgava ser o cruzamento principal, tateandotroncos de árvore como uma cega, e espantada a cada passo com a quantidade de adultos ecrianças que sentia cruzarem-se comigo, caminhando rápida e eficientemente, sem lanternas, acaminho do seu destino. Consegui chegar ao cruzamento e estava a poucos passos da porta deHawa quando Lamin apareceu ao meu lado. Abracei-o e disse-lhe que Aimee o tinha procuradopor toda a parte e esperava vê-lo no dia seguinte.

«Estou aqui. Não fui para lado nenhum.» «Bem, vou visitar a Hawa – vens comigo?» «Não vais encontrá-la. Partiu há dois dias para se casar. Amanhã volta cá em visita, ia gostar

de te ver.» Eu quis exprimir compaixão, mas não encontrei a frase certa. «Amanhã tens de vir connosco na visita à escola. A Aimee procurou-te o dia inteiro.» Ele deu um pontapé numa pedra do chão. «A Aimee é uma senhora muito simpática, está a ajudar-me e eu estou-lhe grato, mas…»

Travou de repente, como alguém que desiste de um salto comprido, mas de repente resolveusaltar mesmo: «Ela é velha! Eu sou novo. E um homem novo quer ter filhos!»

Parámos à porta de Hawa, olhando um para o outro. Estávamos tão próximos que lhe senti obafo no pescoço. Devo ter sabido nesse momento o que ia acontecer entre nós, nessa noite ou naseguinte, e que seria uma espécie de solidariedade oferecida com o corpo, na ausência de umasolução mais clara ou mais eloquente. Não nos beijámos, naquele momento, ele nem sequer mepegou na mão. Não era preciso. Ambos compreendemos que já estava decidido.

«Bem, entra», disse ele por fim, abrindo a porta de Hawa como se fosse da sua própria casa.«Estás aqui. É tarde. Comes cá.»

De pé no alpendre a olhar lá para fora, praticamete no mesmo sítio onde o tinha visto da últimavez, estava Babu, irmão de Hawa. Cumprimentámo-nos muito calorosamente: como toda a genteque eu encontrava, ele considerava o facto de ter decidido voltar mais uma vez uma espécie devirtude, ou pelo menos fingia considerar. A Lamin limitou-se a fazer um aceno de cabeça, nãopercebi se em sinal de familiaridade ou de frieza. Mas quando lhe perguntei por Hawa ficouinequivocamente triste.

«Fui lá ontem ao casamento, fui a única testemunha. Por mim, não quero saber se há cantoresou vestidos ou bandejas de comida – nada disso me interessa. Mas as minhas avós! Oh,

desencadeou uma guerra nesta aldeia. Vou ter de ouvir queixumes das mulheres até ao fim dosmeus dias!»

«Achas que ela está feliz?» Ele sorriu como se eu tivesse dito algum disparate. «Ah, sim – para os americanos essa é sempre a pergunta mais importante!» Trouxeram-nos o jantar, um verdadeiro banquete, e jantámos cá fora, com as avós formando

um círculo conversador na outra ponta do alpendre, olhando para nós de vez em quando, masdemasiado ocupadas com a conversa para nos prestarem grande atenção. Tínhamos um candeeirosolar no chão que nos iluminava de baixo para cima: via a minha comida e a parte inferior dacara de Lamin e do irmão de Hawa, e em fundo ouviam-se os habituais ruídos da azáfamadoméstica e de crianças que riam, choravam, gritavam, e de pessoas das várias dependências queatravessavam o pátio em todas as direções. O que não se ouvia eram vozes de homem, mas derepente ouviram-se algumas ali muito perto, e Lamin levantou-se de um salto e apontou para omuro da morança, onde, dos dois lados da entrada, havia agora meia dúzia de homens sentados,de pernas voltadas para a estrada. Lamin deu um passo na direção deles, mas o irmão de Hawaagarrou-o pelo ombro e obrigou-o a sentar-se, avançando ele, ladeado por duas das avós. Repareique um dos rapazes estava a fumar e atirou a beata com um piparote para o nosso pátio, masquando o irmão de Hawa se abeirou deles a conversa foi rápida: disse qualquer coisa, um dosrapazes riu-se, uma das avós disse qualquer coisa, ele voltou a falar, com mais firmeza, e meiadúzia de traseiros desapareceram da nossa vista. A avó que havia falado abriu a porta e ficou avê-los afastarem-se, pela estrada fora. A Lua rompeu por entre um manto de nuvens e do sítioonde eu estava vi que pelo menos um deles tinha uma arma às costas.

«Não são de cá, são do outro extremo do país», disse o irmão de Hawa, de novo junto de mim.Continuava com o seu sorriso estudadamente impassível, mas por trás dos óculos de marca vi-lhenos olhos que estava muito agitado. «Acontece cada vez mais. Ouvem dizer que o Presidentequer estar no poder um bilião de anos. Estão a perder a paciência. Começam a dar ouvidos aoutras vozes. Vozes estrangeiras. Ou à voz de Deus, para quem acredita que pode comprá-lanuma cassete Casio por vinte e cinco dalasi no mercado. Sim, estão a perder a paciência e eu nãoos censuro. Até o nosso calmo Lamin, o nosso paciente Lamin esgotou a paciência.»

Lamin serviu-se de uma fatia de pão branco mas não disse nada. «E quando é que te vais embora?», perguntou Babu a Lamin, num tom de tal modo carregado

de autoridade, de censura, que me fez pensar que estava a referir-se a dar o salto, mas ambos seriram perante o pânico que deve ter-me perpassado pelo rosto. «Não, não, não, vai ter papéisoficiais. Está tudo a ser tratado, graças a vocês, que estão cá. Já estamos a perder os nossosmelhores jovens, e agora levam mais um. É triste, mas as coisas são como são.»

«Tu também foste», disse Lamin com má cara. Tirou da boca uma espinha de peixe. «Os tempos eram diferentes. Não fazia cá falta.» «Eu não faço cá falta.» Babu não respondeu e a irmã não estava presente para preencher com tagarelice os espaços das

nossas conversas. Quando acabámos a nossa refeição silenciosa, antecipei-me às muitas criadas-meninas, reuni os pratos e encaminhei-me com eles para onde as tinha visto irem, para o últimocompartimento da casa, que afinal era um quarto de dormir. Estava parada no meio da luz ténue,sem saber o que fazer, quando uma das seis crianças que lá dormiam levantou a cabeça da camaúnica, viu o que eu tinha nos braços e apontou para uma cortina. Dei comigo no exterior, outravez no pátio, mas desta vez no pátio das traseiras, onde estavam as avós e algumas raparigas

mais velhas, acocoradas em volta de vários alguidares de água em que lavavam roupa comgrandes barras de sabão cinzento. Um círculo de lâmpadas solares iluminava o cenário. Quandocheguei ao pé delas o trabalho parou para assistirem a uma cena de teatro animal: um galo jovemque corria atrás de uma galinha, subjugando-a, fincando-lhe as unhas no pescoço, enterrando-lhea cabeça na poeira, por fim montando-a. Esta operação só levou um minuto, durante o qual agalinha se mostrou contrariada, impaciente por ir à sua vida, pelo que a brutal sensação de poderdo galo sobre ela tinha um certo ar cómico. «Grande homem! Grande homem!», clamou uma dasavós quando me viu, apontando para o galo. As mulheres riram-se, a galinha foi libertada, andouàs voltas num passo cambaleante, uma vez, duas, três vezes, aparentemente mareada, antes deregressar à capoeira e à companhia das irmãs e dos filhotes. Eu pousei os pratos onde memandaram, no chão, e quando voltei verifiquei que Lamin já se tinha ido embora. Percebi que eraum sinal. Anunciei que também tinha de ir para a cama, mas em vez disso deitei-me vestida nomeu quarto, à espera de que desaparecessem os últimos sons de atividade humana. Pouco antesda meia-noite peguei na lanterna de cabeça, atravessei o pátio sem fazer barulho, saí da morançae fui até à aldeia.

Aimee tinha pensado nesta visita como uma «viagem de recolha de informação», mas o comité

de aldeia entendia que tudo era razão para comemorar, e no dia seguinte, quando terminávamos avisita à escola e regressávamos ao recreio, encontrámos uma roda de percussão à nossa esperadebaixo da mangueira, doze mulheres a passar da meia-idade com tambores entre as coxas. NemFern tinha sido avisado, e Aimee ficou nervosa com mais este atraso no programa, mas eraimpossível evitá-lo: tinha caído numa emboscada. As crianças entraram em fila e formaram umasegunda roda, enorme, em volta das percussionistas, e nós, os «americanos», fomos convidados asentar-nos na roda interior, em cadeirinhas das salas de aula. Os professores foram buscá-las, eentre eles, vindos do outro extremo da escola, onde ficava a aula de matemática de Lamin, vi-os,a ele e a Hawa, avançarem juntos, cada um transportando quatro cadeirinhas. Mas quando o vinão me senti de maneira nenhuma desconfortável, nem envergonhada: aquilo que tinhaacontecido na noite anterior era de tal modo estranho à minha vida diurna que me parecia teracontecido a outra pessoa, a um corpo-sombra que prosseguisse objetivos diferentes dos meus enão pudesse ser obrigado a vir à luz. Acenei-lhes – não deram sinais de me terem visto.Começou o toque dos tambores. A minha voz não podia sobrepor-se a eles. Virei-me outra vezpara o círculo e sentei-me no lugar que me indicaram, ao lado de Aimee. As mulherescomeçaram a revezar-se na roda, pousando o tambor para dançarem em vibrantes explosões detrês minutos, uma espécie de anti-representação, porque apesar do brilhantismo damovimentação dos pés, do génio que brotava das ancas, não se viravam de frente para o seupúblico, antes ficando sempre viradas para as suas irmãs percussionistas, de costas para nós.Quando a segunda mulher começou a dançar, Hawa entrou na roda e sentou-se na cadeira que euestava a guardar para ela ao meu lado, mas Lamin limitou-se a fazer um aceno de cabeça aAimee antes de ir sentar-se no lado oposto da roda, tão longe de Aimee, e presumo que de mim,quanto lhe era possível. Apertei a mão de Hawa e dei-lhe os parabéns.

«Estou muito feliz. Não foi fácil para mim vir cá hoje, mas queria estar contigo.» «O Bakary também veio?» «Não! Pensa que estou em Barra a comprar peixe! Não gosta de dançar assim», disse ela, e

mexeu ligeiramente os pés ao ritmo da mulher que dançava a poucos metros de nós. «Mas é claro

que eu não vou dançar, portanto não faz mal.» Voltei a apertar-lhe a mão. Era maravilhoso estar ao pé dela, ela recortava cada situação à sua

dimensão pessoal, achava que podia adaptar tudo até ficar ao tamanho, mesmo quando aflexibilidade tinha passado de moda. Ao mesmo tempo, invadia-me um impulso paternalista – outalvez devesse dizer «maternalista»: mantive-lhe a mão agarrada, com muita força, na esperança,na esperança irracional, de que isso, como se fosse um amuleto barato comprado a um marabu,lhe desse proteção, a mantivesse a salvo dos espíritos malignos, cuja existência no mundo já nãome oferecia dúvidas. Mas, quando ela se virou e viu os sulcos na minha testa, riu-se de mim elibertou-se, batendo as palmas para assinalar a entrada de Granger na nossa roda, à qual deu avolta como se fosse uma roda de break-dancers, exibindo os seus passos pesados, para gáudiodas mães percussionistas. Ao cabo de um conveniente minuto de hesitação, Aimee entrou nadança com ele. Para evitar olhar para ela, eu observei em volta da roda todo o amor obstinado,inabalável, lamentavelmente dirigido ao alvo errado. Senti o olhar de Fern, que estava à minhadireita, pregado em mim. Vi Lamin levantar os olhos de vez em quando, sempre e só para Hawa,que tinha a cara perfeita embrulhada como um presente. Mas acabei por não conseguir evitar aimagem de Aimee, dançando por Lamin, perante Lamin, para Lamin. Como alguém que dança apedir uma chuva que não irá cair.

Oito mulheres percussionistas depois, até Mary-Beth havia experimentado uma dança e agoraera a minha vez. Duas mães levantaram-me, puxando-me cada uma por um braço. Aimee tinhaimprovisado, Granger tinha recapitulado – o moonwalk, o robô, o homem em corrida – mas euainda não tinha nenhumas noções de dança, apenas instintos. Observei-as durante um minuto, àsduas mulheres que dançavam para mim, que me desafiavam, e escutei cuidadosamente asmúltiplas batidas, e percebi que também podia fazer o mesmo que elas. Tomei posição entre elase acompanhei-as, passo por passo. A miudagem delirou. Eram tantas as vozes a berrar por mimque deixei de ouvir os tambores e a única forma de conseguir continuar era responder aosmovimentos das mulheres, que nunca perdiam o ritmo, que o ouviam apesar de todos osobstáculos. Cinco minutos depois parei, mais cansada do que se tivesse corrido seis milhas.

Deixei-me cair na cadeira ao lado de Hawa, que de uma qualquer prega do hijab novo tirou umpaninho e deu-mo para limpar uma parte do suor que me corria pela cara.

«Porque é que estão a dizer “too bad”? Dancei assim tão mal?» «Não! Dançaste lindamente! Estão a dizer Toobab, que quer dizer…» Afagou-me com a mão a

pele da cara. «Portanto o que estão a dizer é: “Apesar de seres branca, danças como se fossesnegra!” Eu confirmo: tu e a Aimee, as duas – dançam de facto como se fossem negras. É umgrande elogio, devo dizer. Nunca imaginaria isso de ti! Caramba, ainda danças melhor do que oGranger!»

Aimee ouviu e soltou uma gargalhada.

7

Uns dias antes do Natal, estava eu na casa de Londres, sentada à secretária no escritóriopessoal de Aimee, a terminar a lista para a festa de Ano Novo, quando ouvi Estelle, algures noandar de cima, dizer: «Pronto, pronto.» Era domingo, o escritório do primeiro andar estavafechado. As crianças ainda não tinham voltado do seu novo colégio interno e Judy e Aimeeestavam na Islândia, por duas noites, a fazer promoção. Não via nem ouvia Estelle desde que ascrianças se tinham ido embora e partia do princípio – se é que alguma vez pensava nela – de queos seus serviços já não eram necessários. Agora ouvia aquela toada que tão bem conhecia:«Pronto, pronto.» Subi a correr ao andar de cima e fui encontrá-la no antigo quarto de Kara, aque chamávamos o berçário. Estava em pé junto às janelas de guilhotina, a olhar para o parque,de crocs confortáveis nos pés e camisola preta bordada a fio dourado, parecendo ouropel, e umasdiscretas calças azuis plissadas. Estava de costas para mim, mas quando ouviu os meus passosdeu meia-volta, tendo nos braços um bebé enfaixado. O bebé estava tão embrulhado que pareciairreal, um adereço. Aproximei-me apressadamente, de braços estendidos. «Não podes chegaraqui de repente e tocar no bebé! Tens de lavar as mãos!» – e foi-me necessária uma grande dosede autodomínio para me afastar um passo dela e do bebé, com as mãos atrás das costas.

«De quem é o bebé, Estelle?» O bebé bocejou. Estelle olhou para ele enternecida. «Adotada há três semanas, acho eu. Não sabias? Parece-me que toda a gente sabe! Mas só cá

chega ontem à noite. Chama-se Sankofa – não me pregunta que nome é esse porque não seidizer. Como pode alguém dar um nome como este a um bebé linda como esta, devo dizer quenão sei. Eu vou chamar-lhe Sandra até que alguém me manda parar.»

O mesmo olhar arroxeado, escuro, desfocado, derrapando em mim, fascinado consigo mesmo.Percebi na voz de Estelle o prazer que a criança já lhe dava – muito maior, pareceu-me, do quealguma vez tivera com Jay e Kara, que praticamente tinha criado – e tentei concentrar-me noconto de fadas desta «menina afortunada» que ela tinha nos braços, resgatada dos «confins domundo», depositada «no colo do luxo». O melhor era não querer saber como aquilo havia sidopossível: uma adoção internacional em menos de um mês. Voltei a estender os braços. Tremiam-me as mãos.

«Se queres tanto pegar ela, vou agora dar-lhe banho: vem comigo lá acima, podes lavar asmãos.» Fomos para o quarto de banho da enorme suite de Aimee, que entretanto tinha sidodiscretamente preparado para receber um bebé: um jogo de toalhas com orelhas de coelho, pós eóleos de bebé, esponjas de bebé e sabonetes de bebé, e meia dúzia de patinhos de plástico, cadaum de sua cor, alinhados no rebordo da banheira.

«Este disparate todo!» Estelle agachou-se para observar um ridículo objeto de turco com

moldura metálica, preso à parede da banheira, que parecia uma cadeirinha de jardim para umvelho minúsculo. «Esta tralha toda! A única forma de lavar um bebé deste tamanho é nolavatório.»

Ajoelhei-me ao lado de Estelle e ajudei a desembrulhar a embalagem minúscula. Perninhas derã espernearam, estupefactas.

«É o choque», explicou Estelle, enquanto a bebé chorava. «Estava quente e amparada, agoraestá fria e solta.»

Fiquei a vê-la mergulhar Sankofa, furiosa e aos gritos, num pedaço de porcelana vitoriana queme lembrava de ter encomendado, pelo preço de sete mil libras.

«Pronto, pronto», disse Estelle, passando um pano pelos muitos refegos da criança. Um ou doisminutos depois pegou no rabinho de Sankofa com a palma da mão, beijou-a na cara aindachorosa e mandou-me dobrar a mantinha em triângulo no chão aquecido. Eu sentei-me noscalcanhares e fiquei a ver Estelle cobrir a bebé toda com óleo de coco.

«Tem filhos, Estelle?» Dezoito, dezasseis e quinze anos – mas tinha as mãos engorduradas e por isso apontou-me o

bolso de trás para eu tirar de lá o telemóvel. Passei com o dedo para a direita. Vi, por ummomento, a imagem impecável de um rapaz alto em traje de finalista do liceu, ladeado pelassorridentes irmãs mais novas. Ela disse-me como se chamavam e quais eram os talentosespeciais de cada um, alturas e temperamentos, e com que frequência cada um deles lhetelefonava, ou não, por Skype ou lhe respondia no Facebook. Não com a frequência desejada.Nos cerca de dez anos que trabalhámos com Aimee, esta foi a conversa mais longa e mais íntimaque tivemos.

«A minha mãe toma conta deles. Andam no melhor liceu de Kingston. Agora ele vai para aUniversidade das Índias Ocidentais estudar engenharia. É um rapaz fantástico. As irmãs tomam-no como modelo. É a estrela. Admiram-no muito.»

«Eu sou jamaicana», disse eu, e Estelle acenou com a cabeça e sorriu serenamente para a bebé.Já a tinha visto fazer isto muitas vezes, quando humildemente fazia as vontades das crianças, ouda própria Aimee. Corando, corrigi o que tinha dito.

«Ou melhor, a família da minha mãe é de St. Catherine.» «Ah, sim. Percebo. Já lá foste alguma vez?» «Não, ainda não.» «Bem, ainda és nova.» Voltou a embrulhar a bebé no seu casulo e encostou-a ao peito. «Tens o

tempo a teu favor.» Chegou o Natal. A bebé foi-nos apresentada, a mim e a todos, como um facto consumado, uma

adoção legal, sugerida pelos pais e acordada com eles, e ninguém pôs isso em causa, pelo menosabertamente. Ninguém perguntou que significado podia ter a palavra «acordo» numa situação tãoprofundamente desigual. Aimee estava carente do amor de um bebé, toda a gente ficou feliz porela – era o seu milagre de Natal. Quanto a mim, só tinha suspeitas e o facto de todo o processoter sido escondido de mim até estar concluído.

Alguns meses depois voltei à aldeia pela última vez, informando-me o melhor que podia.Ninguém queria falar comigo sobre o assunto, ou dizer mais do que banalidades felizes. Os paisnaturais já não viviam na aldeia, ninguém parecia saber ao certo para onde tinham ido viver. SeFernando sabia alguma coisa a este respeito não ia dizer-me, Hawa tinha-se mudado para

Serrekunda com o seu Bakary. Lamin arrastava-se pela aldeia, estava de luto por Hawa – talvezeu também estivesse. Sem ela, os serões na morança eram compridos, escuros, solitários epassados integralmente em línguas que eu não falava. Mas por muito que dissesse a mim própria,a caminho da casa de Lamin – cinco ou seis vezes ao todo, e sempre a altas horas da noite – queestávamos os dois a agir movidos por um desejo físico incontrolável, penso que ambos sabíamosperfeitamente que a paixão que pudesse existir entre nós era dirigida por intermédio do outro auma coisa diferente, a Hawa, ou à ideia de se ser amado, ou simplesmente destinava-se a provara nós mesmos que ambos éramos independentes de Aimee. Era de facto ela a pessoa quequeríamos atingir com toda a nossa fornicação sem amor, ela participava tanto no processo comose estivesse presente no quarto.

Regressando furtivamente da morança de Lamin à de Hawa, um dia de manhã muito cedo,antes das cinco, estava o Sol a nascer, ouvi o chamamento à oração e percebi que já era tardepara passar despercebida – uma mulher que puxava um burro recalcitrante, um grupo de criançasque me acenavam de uma porta – e por isso mudei de direção, para dar a ideia de que tinha saídopara dar um passeio sem destino, como toda a gente sabia que os americanos faziam às vezes.Contornando as traseiras da mesquita, deparei com Fern mesmo na minha frente, encostado àárvore mais próxima, a fumar. Era a primeira vez que o via fumar. Tentei saudá-lo com umsorriso natural, mas ele pôs-se ao meu lado e pegou-me energicamente por um braço. O seu bafocheirava a cerveja. Estava com ar de quem não tinha pregado olho.

«Que andas a fazer? Porque é que fazes isto?» «Andas a seguir-me, Fern?» Só me respondeu quando chegámos ao outro lado da mesquita, junto do enorme monte de

térmitas, onde parámos, protegidos da curiosidade por três lados. Largou-me o braço e pôs-se afalar como se estivéssemos a meio de uma longa conversa.

«E tenho uma boa notícia para te dar: graças a mim, ele vai estar muito em breve convosco,com caráter definitivo, sim, graças a mim. Aliás, vou hoje mesmo à embaixada. Tenhotrabalhado muito nos bastidores para unir os amantes jovens e não tão jovens. Os três.»

Esbocei uma negativa, mas era inútil. Era sempre muito difícil mentir a Fern. «Deve ser um sentimento muito forte esse que tens por ele, para te arriscares tanto. Tanto. Da

última vez que cá estiveste, sabes, desconfiei, e da vez anterior – mas mesmo assim é um choqueter a confirmação.»

«Mas eu não sinto nada por ele!» Desapareceu-lhe da cara toda a combatividade. «Pensas que com isso me sinto melhor?» Finalmente, a vergonha. Uma emoção suspeita, tão antiga. Estávamos sempre a aconselhar as

raparigas da academia a que não a tivessem, porque era antiquada e inútil e conduzia a práticasque reprovávamos. Mas finalmente senti-a.

«Por favor não digas nada. Por favor. Parto amanhã e acabou. Ainda agora começou e jáacabou. Por favor, Fern – tens de me ajudar.»

«Eu tentei», disse ele, e afastou-se, na direção da escola. O resto do dia foi uma tortura, e o seguinte também, e o voo foi uma tortura, a travessia do

aeroporto, o telemóvel uma granada no meu bolso. Não deflagrou. Quando entrei na casa deLondres estava tudo como antes, só que mais feliz. As crianças estavam todas em sossego – pelo

menos não se ouviam –, o último álbum foi bem-recebido. Fotografias de Aimee e Lamin juntos,ambos lindos – no dia do aniversário de Jay, no regresso do concerto – apareciam em todos ospasquins de mexericos e tinham mais sucesso, à sua maneira, do que o álbum propriamente dito.E a bebé teve o seu debute. O mundo, como veio a verificar-se, não estava particularmentecurioso acerca dos pormenores logísticos, e a imprensa achava-a um encanto. Parecia lógico paratoda a gente que Aimee pudesse adquirir um bebé com a mesma facilidade com que podiamandar vir do Japão uma carteira de série limitada. Sentada um dia na caravana de Aimeedurante a gravação de um vídeo, a almoçar com Mary-Beth, a segunda assistente pessoal, afloreio assunto na esperança de que ela se descaísse com algumas informações, mas não precisava deme ter dado a tantas cautelas: Mary-Beth deu-mas com todo o gosto, fiquei a saber a históriatoda, tinha havido um contrato elaborado por um dos advogados de espetáculos, dias depoisAimee conheceu a bebé, e Mary-Beth tinha ido assistir à assinatura. Estava encantada com estaprova da sua própria importância e com o que ela dava a entender acerca da minha posição nahierarquia. Pegou no telemóvel e mostrou-me as fotografias de Sankofa, os pais e Aimeesorridentes, e no meio delas, reparei, estava uma reprodução do contrato. Quando ela foi aoquarto de banho e deixou o telefone à minha frente, enviei a imagem do contrato para o meuemail. Um documento de duas páginas. Uma quantia astronómica, em termos locais. Gastávamospraticamente o mesmo em flores para a casa durante um ano inteiro. Quando abordei o assuntocom Granger, o meu último aliado, ele surpreendeu-me ao considerar que se tratava de um casonobre de «passagem das palavras aos atos», e falou tão enternecidamente da bebé que tudoaquilo que eu tinha a dizer iria parecer monstruoso e insensível. Concluí que não era possível teruma conversa racional. A bebé enfeitiçava-os. Granger estava tão apaixonado por Kofi, como lhechamávamos, como toda a gente que se aproximava dela, e não há dúvida de que era fácil amá-la, ninguém lhe ficava imune, nem mesmo eu. Aimee estava enfeitiçada: era capaz de passar umahora ou duas sentada com a criança ao colo, a olhar embevecida para ela, sem fazer mais nada e,conhecendo a relação de Aimee com o tempo, o valor e escassez que tinha para ela, todoscompreendíamos a grande demonstração de amor que isto representava. A bebé compensavatoda a espécie de situações enfadonhas – reuniões com os contabilistas, monótonas provas deguarda-roupa, sessões de geração de ideias para estratégias de RP –, mudava a tonalidade de umdia com a sua simples presença a um canto de qualquer sala, ao colo de Estelle ou embaladanuma alcofa em cima de um suporte, a rir, a chilrear, a chorar, impoluta, fresca e nova. Àprimeira oportunidade acotovelávamo-nos todos em volta dela. Homens e mulheres, de todas asidades e raças, mas todos com uma certa quantidade de tempo acumulada ao serviço de Aimee,desde velhos e cansados cavalos de batalha como Judy, passando por gente do meio da tabelacomo eu, até jovenzinhos acabados de sair da universidade. Todos oficiávamos no altar da bebé.A bebé estava a começar do zero, a bebé não tinha compromissos, a bebé não estava a abrircaminho à força, a bebé não precisava de imitar a assinatura de Aimee em quatro mil retratospromocionais com destino à Coreia do Sul, a bebé não tinha de gerar sentido a partir de cacosdisto e daquilo, a bebé não tinha recordações nem remorsos, não precisava de uma limpezaquímica da pele, não tinha telemóvel, não tinha a quem enviar emails, ela sim, tinha o tempo aseu favor. O que quer que acontecesse depois não era por falta de amor à bebé. A bebé estavarodeada de amor. A questão é saber o que o amor nos dá direito a fazer.

8

Naquele último mês de trabalho com Aimee – antes de ela me despedir, entenda-se – fizemosuma minidigressão europeia, começando por uma exposição em Berlim, não um concerto, umaexposição de fotografias que lhe pertenciam. Eram fotografias de fotografias, imagens usurpadase refotografadas; tinha aproveitado a ideia de Richard Prince – um velho amigo dos velhostempos – sem lhe acrescentar nada a não ser o facto de ser ela, Aimee, a pô-la em prática.Mesmo assim, uma das galerias mais respeitadas de Berlim não hesitou em acolher a sua «obra».Todas as fotos eram de dançarinos – considerava-se acima de tudo uma dançarina e identificava-se profundamente com eles – mas quem fez toda a pesquisa fui eu, e Judy tinha tirado a maiorparte das fotos, porque quando chegava a altura de ir para o estúdio refotografar as fotografiashavia sempre outra coisa para fazer: receções em Tóquio, o «design» de um novo perfume, porvezes até a gravação de uma canção. Refotografámos Barishnikov e Nureiev, Pavlova, FredAstaire, Isadora Duncan, Gregory Hines, Martha Graham, Savion Glover, Michael Jackson. Fuieu que defendi a inclusão de Jackson. Aimee não o queria, não correspondia à sua ideia deartista, mas consegui convencê-la apanhando-a num momento de muita azáfama, enquanto Judyse batia por «uma mulher de cor». Judy estava preocupada com a sub-representação, aconteciacom frequência, o que significava que na verdade estava preocupada com o que os outrospudessem interpretar como sub-representação, e sempre que tínhamos estas conversas eu ficavacom a estranha sensação de que ela me via como sendo de facto uma coisa, não uma pessoa, detodo, mas uma espécie de objeto – sem o qual uma série matemática de outros objetos não ficacompleta – ou nem sequer um objeto mas uma espécie de véu conceptual, uma folha de figueiramoral, que protege uma determinada pessoa de uma determinada crítica, e em que raramente sepensa a não ser enquanto desempenha este papel. Isso não me magoava particularmente:interessava-me a experiência, era como se fosse ficção. Pensei em Jeni LeGon.

Tive a minha oportunidade durante uma viagem de automóvel entre o Luxemburgo – ondeAimee tinha ido fazer contactos com a imprensa – e a Alemanha. Peguei no telemóvel, pesquiseino Google LeGon e Aimee olhou distraidamente para as imagens – ao mesmo tempo estava atrocar mensagens no seu próprio telemóvel – enquanto eu falava o mais depressa que podia sobreLeGon como pessoa, atriz, dançarina, símbolo, tentando captar-lhe a atenção irrequieta, e derepente ela acenou resolutamente a uma foto de LeGon e Bojangles juntos, LeGon de pé, adançar, numa pose de alegria cinética, e Bojangles ajoelhado a seus pés, apontando para ela, edisse: «Sim, essa, gosto dessa, sim, gosto da inversão, homem de joelhos, mulher em posição dedomínio.» Com aquele «sim» podia pelo menos começar a pesquisa do texto para o catálogo, euns dias depois Judy tirou a foto, ligeiramente oblíqua, deixando de fora partes doenquadramento, porque Aimee tinha dito que queria que todos fossem refotografados assim,

como se «a própria fotógrafa estivesse a dançar». O mais curioso é que esta foi a peça maisapreciada da exposição. E eu senti-me feliz por ter tido a oportunidade de redescobrir LeGon.Enquanto a pesquisava, muitas vezes sozinha, muitas vezes de madrugada, numa série de quartosde hotel europeus, apercebi-me de quanto em criança havia fantasiado acerca dela, quãoprofundamente ingénua havia sido em relação a quase todos os aspetos da sua vida. Haviaimaginado, por exemplo, uma narrativa completa de amizade e respeito entre LeGon e as pessoascom quem trabalhava, os dançarinos e os realizadores, ou quisera acreditar que a amizade e orespeito podiam ter existido, no mesmo espírito de otimismo infantil que leva uma menina aquerer acreditar que os seus pais estão profundamente apaixonados. Mas Astaire nunca dirigiu apalavra a LeGon em cena, na sua cabeça ela não era simplesmente alguém que fazia o papel decriada, na realidade pouco diferia de uma doméstica, e o mesmo se passava com quase todos osrealizadores, que na prática não a viam e raramente a contratavam a não ser para papéis decriada, e ao fim de pouco tempo até estes papéis começaram a escassear, e só quando foi paraFrança começou a «sentir-se uma pessoa». Quando eu soube disto estava em Paris, sentada aapanhar sol, em frente do teatro Odéon, tentando ler a informação no ecrã do telemóvelesbranquiçado pelo sol, bebendo um campari, vendo compulsivamente as horas. Via desapareceras doze horas que Aimee tinha destinado a Paris, minuto a minuto, quase mais depressa do queconseguia gozá-las, e em breve chegaria o táxi, e depois uma pista de descolagem desapareceriadebaixo dos meus pés, e seguiríamos para mais doze horas numa cidade bela e indecifrável –Madrid. Pensei em todos os cantores e dançarinos e trompetistas e escultores e escrevinhadoresque haviam afirmado sentir-se finalmente pessoas aqui, em Paris, já não sombras mas pessoas depleno direito, um efeito que possivelmente não se produzia em apenas doze horas, e perguntei amim mesma como é que essas pessoas conseguiam saber, com tanta precisão, o momento em quecomeçavam a sentir-se pessoas. O guarda-sol debaixo do qual estava sentada não dava sombranenhuma, o gelo da minha bebida tinha-se derretido. A minha sombra debaixo da mesa eracomprida e em forma de faca. Parecia estender-se por meia praça e apontar para a imponentecasa branca de esquina, que ocupava quase todo o quarteirão, e diante da qual, naquele momento,um guia empunhava uma bandeirinha e começava a anunciar uma série de nomes, alguns que euconhecia, outros não: Thomas Paine, E. M. Cioran, Camille Desmoulins, Sylvia Beach...

Um pequeno círculo de turistas americanos idosos rodeava o guia, acenando com a cabeça,transpirando. Eu olhei mais uma vez para o telemóvel. E portanto foi em Paris – digitei esta frasecom o polegar – que LeGon começou a sentir-se pessoa. O que significava – não escrevi estaparte – que a pessoa que Tracey tinha imitado tão perfeitamente durante tantos anos, a raparigaque tínhamos visto dançar com Eddie Cantor, projetando as pernas, abanando a cabeça – não eraafinal uma pessoa, era apenas uma sombra. Até o seu nome adorável, que ambas havíamosinvejado, até isso era irreal, na realidade era filha de Hector e Harriet Ligon, imigrados daGeórgia, descendentes de rendeiros, ao passo que a outra LeGon, aquela que julgávamosconhecer – aquela dançarina de sapateado sempre-em-festa –, era uma personagem fictícia,nascida de uma gralha tipográfica, que Louella Parsons inventou um dia quando escreveu mal«Ligon» na sua coluna de mexericos que o LA Examiner publicava.

9

A granada deflagrou finalmente no Dia do Trabalho. Estávamos em Nova Iorque, a poucosdias de partirmos para Londres, com o plano de nos encontrarmos lá com Lamin, para quem játinham conseguido um visto britânico. Estava um calor insuportável: o ar que saía dos esgotosera tão fétido que podia provocar um sorriso entre dois estranhos que se cruzassem na rua:acredita que vivemos aqui? Parecia bílis, e nessa tarde era esse o cheiro da Mulberry Street. Eulevava a mão na boca enquanto caminhava, um gesto profético: quando cheguei à esquina com aBroome já estava despedida. Foi Judy quem enviou a mensagem – e a dúzia de outras que seseguiram – todas recheadas de invetivas pessoais como teriam sido se houvesse sido Aimee aescrevê-las. Eu era uma puta e uma traidora, uma isto de merda e uma aquilo de merda. Até afúria pessoal de Aimee podia ser transmitida por procuração.

Ligeiramente tonta, confusa, continuei até à Crosby e sentei-me no degrau de entrada daHousing Works, do lado das roupas em segunda mão. Cada pergunta suscitava mais perguntas:onde vou viver e que vou fazer e onde estão os meus livros e onde está a minha roupa e em quepé está o meu visto? Mais do que zangada com Fern, estava irritada comigo mesma por não terprevisto melhor o curso dos acontecimentos. Já devia estar à espera disto: não sabia exatamente oque ele estava a sentir? Era capaz de reconstituir a sua experiência. Tratar da burocracia para ovisto de Lamin, comprar o bilhete de avião para Lamin, organizar a partida e a chegada deLamin, ir buscá-lo e levá-lo, suportar o vaivém de emails entre ele e Judy em todas as fases desteplaneamento, dedicar todo o tempo e energia à existência de outra pessoa, aos desejos enecessidades e exigências de outra pessoa. É uma vida fantasma, e acaba por nos afetar. Amas,assistentes, empresárias, secretárias, mães – as mulheres já estão habituadas. Os homens têmmenos tolerância. Fern deve ter enviado uma centena de emails sobre Lamin durante as últimassemanas. Como podia resistir a enviar aquele que ia dar cabo da minha vida?

O meu telemóvel vibrou tantas vezes que até parecia que tinha vida própria. Desisti de olharpara ele e concentrei-me antes num tipo muito alto que estava dentro da montra da HousingWorks, tinha umas hirsutas sobrancelhas arqueadas e cingia uma série de vestidos contra otronco maciço, enquanto calçava uns espaçosos sapatos de salto alto. Quando me viu sorriu,encolheu a barriga, deu uma ligeira volta e fez uma vénia. Não sei porquê nem como, mas aquelavisão galvanizou-me. Levantei-me do degrau e mandei parar um táxi. Algumas perguntas tinhamresposta rápida. Tudo o que tinha em Nova Iorque estava encafuado em caixas no passeio emfrente do apartamento da West 10th Street e os cadeados já tinham sido mudados. A validade domeu visto dependia da minha entidade patronal: tinha trinta dias para abandonar o país. Quanto aonde ficar, a resposta não era tão rápida. Na realidade, nunca tivera de pagar nada em NovaIorque: vivia por conta de Aimee, comia com Aimee, saía com Aimee, e as notícias que o

telemóvel me trazia sobre o preço de uma noite num hotel de Manhattan faziam com que mesentisse como Rip Van Winkle ao acordar do seu sono de cem anos. Sentada nos degraus daentrada da West 10th, tentei pensar em alternativas, amigos, conhecidos, contactos. Todos oselos eram fracos e, de uma forma ou de outra, iam dar a Aimee. Considerei uma impossibilidade:caminhar por esta rua em direção a leste até ir dar, numa espécie de sonho sentimental, aoextremo oeste da Sidmouth Road, onde a minha mãe me abriria a porta e me conduziria ao seuquarto interior devoluto, meio atulhado de livros. Qual era a alternativa? Que fazer a seguir? Nãotinha coordenadas. Passavam por mim táxis livres, uns atrás dos outros, e senhoras janotas comos seus cãezinhos. Tratando-se de Manhattan, ninguém abrandava o passo para observar aquiloque devia parecer uma encenação: uma mulher a chorar, sentada nuns degraus, por baixo daquelaplaca evocativa de Lazarus, rodeada de caixas, longe de casa.

Lembrei-me de James e Darryl. Tinha-os conhecido em Março, numa noite de domingo – a

minha noite de folga – em que tinha ido sozinha à alta ver os dançarinos de Alvin Ailey, e noteatro tinha metido conversa com os meus vizinhos do lado, dois cavalheiros nova-iorquinos,com perto de sessenta anos, um casal, um branco e um negro. James era inglês, alto e careca,com uma voz cava e uma risada muito jovial, ainda vestido para um agradável almoço num pubde alguma aldeola de Oxfordshire – apesar de já viver cá há muitos anos –, e Darryl eraamericano, cabelo afro grisalho em cima, olhinhos de toupeira atrás de uns óculos, e calças debainhas esfiapadas e com manchas de tinta, como um estudante de artes. Sabia tanto sobre o queestava a acontecer em palco, a história de cada peça, da dança de Nova Iorque em geral e deAlvin Ailey em particular, que a princípio pensei que era coreógrafo ou tinha sido dançarino.Afinal eram os dois escritores, divertidos e inteligentes, era agradável ouvir as opiniões quesussurravam sobre os usos e limites do «nacionalismo cultural» na dança, e eu, que não tinhaopiniões sobre a dança, apenas deslumbramento, também os divertia, batendo as palmas a cadamudança na iluminação e pondo-me de pé mal caía o pano. «É bom ver Revelations com alguémque não viu o espetáculo cinquenta vezes», comentou Darryl, e no fim convidaram-me parabeber um copo no bar do hotel ao lado, e contaram uma história comprida e dramática de umacasa que tinham comprado, em Harlem, uma ruína do tempo de Edith Wharton, que estavam areconstruir com as economias das suas vidas. Daí a tinta. Para mim era obviamente um esforçoheroico, mas um dos vizinhos, uma mulher na casa dos oitenta anos, era crítica, tanto de James eDarryl como da acelerada gentrificação do bairro: costumava berrar com eles na rua e enfiar-lhespanfletos religiosos na caixa do correio. James fez uma excelente descrição física da mulher, e euri-me exageradamente e bebi um segundo martini. Era um alívio muito grande sair com pessoasque não queriam saber de Aimee para nada e não queriam nada de mim. «E uma tarde», contouDarryl, «ia eu sozinho, o James tinha ido não sei aonde, e ela salta das sombras, agarra-me porum braço e diz: Mas eu posso ajudá-lo a livrar-se dele. Não precisa de ter dono, pode ser livre –deixe-me ajudá-lo! Podia andar de porta em porta, a fazer campanha pelo Barack, mas não: oproblema dela era que o James me escravizava. Estava a oferecer-me uma rota pessoalsubterrânea de fuga. Introduzir-me clandestinamente no Spanish Harlem!» Desde então tinha-osencontrado algumas vezes, nas noites livres de domingo que passava na cidade. Vi-os descascargesso para revelar cornijas originais, imitar pórfiro salpicando de tinta uma parede rosa-escuro.Sempre que os visitava comovia-me: como eram felizes juntos, ao fim de tantos anos! Nãoconhecia muito mais exemplos daquela ideia. Duas pessoas que criam o tempo das suas próprias

vidas, de algum modo protegidas pelo amor, não ignorantes da história, mas também nãodeformadas por ela. Gostava muito dos dois, embora na verdade não pudesse considerá-los maisdo que conhecidos. Mas pensei neles naquele momento. E quando, dos degraus do prédio daWest 10th, lhes enviei uma tímida mensagem, a resposta foi imediata, generosa como seria deesperar: à hora de jantar estava sentada à mesa deles, comendo melhor do que alguma vezcomera com Aimee. Coisas saborosas, gordurosas, cozinhadas na frigideira. Tinham-me feito acama num dos vários quartos vagos e comportaram-se como pais adoravelmente tendenciosos:independentemente da forma como lhes contasse a história do meu infortúnio, recusavam-se aaceitar que alguma parte dele fosse responsabilidade minha. Na opinião deles eu é que deviaestar furiosa, a culpa era toda de Aimee, de mim não era nenhuma, e fui para o meu belo quartorevestido de madeira com esta visão cor-de-rosa.

Só fiquei furiosa quando Judy me enviou o contrato de confidencialidade, na manhã seguinte.Olhei para o pdf de uma folha que terei assinado quando tinha vinte e três anos, embora não melembrasse de alguma vez o haver feito. Nos seus termos inflexíveis, as coisas que saíam daminha boca deixavam de me pertencer, assim como as minhas ideias e pensamentos esentimentos, e até as minhas recordações. Era tudo dela. Tudo aquilo que havia acontecido naminha vida na última década pertencia-lhe. Senti-me invadida pela raiva imediatamente: a minhavontade era pegar-lhe fogo à casa. Mas nos dias que correm tudo o que nos é preciso para pegarfogo à casa de uma pessoa já está na nossa mão. Estava tudo na minha mão. Nem precisava desair da cama. Criei uma conta anónima, escolhi o sítio de mexericos que ela mais odiava, escrevium email com tudo o que sabia sobre a pequena Sankofa, anexei a foto do «certificado deadoção», premi a tecla enviar. Satisfeita, desci para o pequeno-almoço, à espera, suponho, de serrecebida como uma heroína. Mas quando contei aos meus amigos o que tinha feito – e o quepensava que isso significava – a expressão do rosto de James fez-se tão grave quanto a esculturamedieval de S. Maurício do átrio, e Darryl tirou os óculos, sentou-se e piscou os olhos para amesa de pinho. Disse-me que esperava que compreendesse quanto, em tão pouco tempo, ele eJames se tinham afeiçoado a mim – era em nome dessa afeição que podiam dizer-me a verdade –e que a única coisa que o meu email significava era que ainda era muito jovem.

10

Acamparam à porta da casa de Aimee. Dois dias depois – para minha vergonha – estavam abater à porta de James e Darryl. Mas esta parte foi obra de Judy, uma denúncia anónima: atoilícito, «ex-funcionária vingativa»… Judy era de um tempo diferente, em que as denúnciasanónimas se mantinham anónimas e se podia abafar a história. Em poucas horas conseguiram omeu nome, e logo a seguir a minha morada, sabe Deus como. Talvez Tracey tenha razão: talvezsejamos permanentemente vigiados através dos nossos telemóveis. Fiquei na cama, enquantoJames me levava chávenas de chá ao quarto e abria e fechava a porta a algum jornalistapersistente e Darryl e eu assistíamos no meu portátil às mudanças da maré em tempo real, àmedida que iam acontecendo. Sem fazer nada de diferente, sem tomar nenhuma ação, passei demaldosa e ciumenta moça de recados de Judy a ousada informadora da The People, tudo empoucas horas. Atualizar, atualizar. Viciante. A minha mãe telefonou e sem sequer me dar tempopara lhe perguntar como estava disse: «O Alan mostrou-me no computador, e acho que foi umato verdadeiramente heroico. Sabes, sempre foste um bocadinho cobarde, cobarde não – umbocadinho tímida. A culpa é minha, protegi-te excessivamente, provavelmente, apapariquei-te. Éa primeira coisa realmente corajosa que te vejo fazer e estou muito orgulhosa!» Quem era oAlan? Achei-a com uma voz empastada que nem parecia dela, mais afetada do que nunca.Perguntei-lhe ao de leve pela saúde. Não se descoseu – tinha estado ligeiramente constipada, masjá tinha passado – e apesar de eu saber que estava a mentir foi tão perentória que até pareciaverdade. Prometi-lhe que iria visitá-la mal regressasse a Inglaterra e ela disse «Sim, sim, claroque me vens visitar» com muito menos convicção do que havia dito tudo o resto.

A chamada seguinte foi de Judy. Perguntou-me se queria ir-me embora. Já tinha um bilhetepara mim, no voo da noite. No destino haveria um apartamento que podia usar durante algumasnoites, perto do estádio de críquete do Lord’s, até acalmar o alarido. Tentei agradecer-lhe. Elariu-se com o seu balido de foca.

«Pensas que estou a fazer isto por ti? Onde é que tens a cabeça?» «OK, Judy, já disse que aceitava o bilhete.» «É muito amável da tua parte, querida. Depois do monte de merda que me arranjaste.» «E o Lamin?» «Que é que tem o Lamin?» «Estava à espera de vir para Inglaterra. Não podes só…» «Não sejas ridícula.» O telefone calou-se.

Depois de o Sol se pôr, e de o último homem se ir embora da entrada, deixei as minhas caixascom James e Darryl e apanhei um táxi na Lennox. O motorista tinha uma pele escuríssima, comoa de Hawa, e um nome parecido, e eu estava com tendência para ver sinais e símbolos em toda aparte. Inclinei-me para a frente com o entusiasmo de quem vinha de um ano de folga e traziaconsigo um saco de factos locais e perguntei-lhe de onde era. Era senegalês, mas isso não medissuadiu muito. Falei ininterruptamente enquanto atravessávamos o túnel e saíamos na JamaicaAvenue. De vez em quando ele batia no volante com o cutelo da mão direita e suspirava e ria-se.

«Então sabe como são as coisas por lá! Aquela vida de aldeia! Não é fácil, mas é dessa vidaque tenho saudades! Mas, irmã, devia ter ido visitar-nos. Até podia ir a pé pela estrada!»

«Por acaso, o amigo de que lhe falei», disse eu, levantando por momentos os olhos do ecrã dotelemóvel, «aquele que é do Senegal, lembra-se? Acabamos de combinar um encontro emLondres. Estava mesmo agora a enviar-lhe uma mensagem.» Contive a vontade de dizer àqueleestranho que tinha sido eu quem, na minha generosidade, tinha pagado o bilhete de Lamin.

«Oh, ótimo, ótimo. Londres é melhor? Mais bonito do que aqui?» «Diferente.» «Já cá estou há vinte e oito anos. Isto aqui é tudo muito stressado, uma pessoa tem de ter muita

raiva para sobreviver, alimentamo-nos da raiva... É de mais.» Tínhamos chegado a JFK, e quando eu quis dar-lhe uma gorjeta devolveu-ma. «Obrigado por ter ido ao meu país», disse, esquecendo-se de que não era verdade.

11

Agora toda a gente sabe quem tu és realmente. Na altura em que aterrei, a velha dança da nossa infância andava nas bocas do mundo. Acho

interessante que Tracey tenha optado por só ma enviar dois dias depois. Na sua maneira de ver ascoisas, os outros tinham de ficar a saber antes de mim quem eu era realmente – mas se calhar ésempre assim. Lembrei-me do que ela fazia aos nossos primeiros contos sobre bailarinas emperigo, como me corrigia e editava o que eu escrevia: «Não: essa parte aqui.» «Ficava melhor sea bailarina morresse na segunda página.» Mudar as coisas de lugar e remodelá-las para conseguiro máximo impacto. Agora tinha conseguido o mesmo efeito com a minha vida, situando o inícioda história num ponto anterior para que tudo o que viesse depois parecesse a consequênciadistorcida de uma obsessão muito antiga. Era mais convincente do que a minha versão. Suscitouas mais estranhas reações. Toda a gente queria ver as imagens, mas ninguém as viu: foramretiradas por quem as publicou logo depois de terem sido publicadas. Para algumas pessoas –talvez para si – estavam na fronteira da pornografia infantil, se não na intenção pelo menos noefeito. Outras achavam-nas uma exploração pura e simples, se bem que seja difícil dizer quemestá a explorar quem. Podem as crianças explorar-se a si próprias? É mais do que duas meninasna brincadeira, simplesmente duas meninas a dançar – duas meninas mestiças a dançar comoadultas – copiando inocentemente, mas habilmente, os movimentos das adultas, como tantasmeninas mestiças sabem fazer? E se pensas que é mais do que isso, então de quem é o problema,exatamente, das meninas do filme – ou teu? Tudo o que se disser ou pensar sobre o filme parecetransformar em cúmplice quem o vê: o melhor é não o ver, pura e simplesmente. É a únicaatitude possível. Ou isso ou esta nuvem de culpa, que não se sabe exatamente onde está, mas quese sente. Até eu, quando vi o vídeo, tive este pensamento perturbador: bem, se uma rapariga secomporta desta maneira aos dez anos, alguma vez se pode considerá-la inocente? Que coisas nãofará aos quinze, aos vinte e dois – aos trinta e três? O desejo de estar do lado da inocência émuito forte. Brotava do meu telemóvel em vagas pulsantes, em todas aquelas mensagens eataques e comentários. A bebé, essa sim, era isenta de mácula. Aimee amava a bebé, os paisnaturais da criança amavam Aimee, queriam que ela lhes criasse a filha. Judy espalhou estamensagem aos quatro ventos. Quem era qualquer um para julgar? Quem era eu?

Agora toda a gente sabe quem tu és realmente. A maré voltou a virar, ferozmente e com grande compaixão, para o lado de Aimee. Mas

continuava a haver gente à porta do apartamento arrendado de Judy, apesar de todas asprecauções por ela tomadas e das promessas do porteiro, e ao terceiro dia eu parti com Laminpara o apartamento da minha mãe na Sidmouth Road, que sabia, por todos os dados disponíveis,que estaria registado em nome de Miriam. Não estava ninguém à entrada. Toquei à campainha e

ninguém respondeu, e o telefone da minha mãe foi parar ao atendedor. Por fim uma vizinhaabriu-nos a porta da rua. Pareceu confusa – chocada – quando lhe perguntei onde estava a minhamãe. Era mais uma que ia ficar a saber quem eu era realmente: o tipo de filha que ainda não sabiaque a própria mãe estava internada numa clínica de cuidados paliativos.

O apartamento tinha o aspeto de todos os espaços em que a minha mãe tinha vivido, livros epapéis por todo o lado, exatamente como eu me lembrava, mas mais ainda: o espaço vital tinha-se reduzido. As cadeiras serviam de estantes de livros, e também todas as mesas disponíveis,quase todo o chão, os balcões da cozinha. Mas não era o caos, aquilo tinha uma lógica. Nacozinha dominava a ficção e poesia da diáspora e o quarto de banho era principalmente ocupadopor livros de história das Caraíbas. Havia uma parede de narrativas de escravos e comentáriossobre elas que ia do quarto dela, atravessava o corredor e chegava à caldeira. Encontrei oendereço da clínica na porta do frigorífico, estava escrito pelo punho de outra pessoa. Senti-metriste e culpada. A quem pediu que lha escrevesse? Quem a levou até lá? Tentei dar umaarrumadela. Lamin deu-me uma ajuda, relutante – estava habituado a que as mulheres fizessemtudo por ele e não tardou a sentar-se no sofá da minha mãe a ver televisão no aparelho velho epesado da minha infância, meio escondido por um cadeirão, para deixar claro que nunca erautilizado. Andei com pilhas de livros de um lado para o outro, sem grandes progressos, e ao fimde algum tempo desisti. Sentei-me à mesa da minha mãe de costas para Lamin, abri o portátil eregressei àquilo que passara todo o dia anterior a fazer, pesquisar-me, ler coisas sobre mim, etambém procurar Tracey nas entrelinhas. Não era difícil encontrá-la. Geralmente era o quarto ouquinto comentário, e entrava sistematicamente com os pés, sempre, sem contemplações,agressiva, conspirativa. Tinha vários pseudónimos. Alguns eram bastante subtis: pequeníssimasreferências a momentos da nossa história comum, canções de que havíamos gostado, brinquedosque havíamos tido, ou recombinações numéricas do ano em que nos conhecemos ou das nossasdatas de nascimento. Reparei que gostava de usar as palavras «sórdido» e «vergonhoso», e afrase «Onde estavam as mães delas?» Sempre que via esta frase, ou uma variante dela, sabiaquem era a autora. Encontrava-a por todo o lado, nos sítios mais inverosímeis. Em entradas deoutras pessoas, por baixo de notícias de jornal, em murais do Facebook, insultando quem nãoconcordava com os seus argumentos. Enquanto lhe seguia o rasto, os imbecis programas diurnosvinham e iam nas minhas costas. Se me virava para ver se Lamin estava bem, via-o semprequieto como uma estátua, a olhar para o televisor.

«Podes pôr um bocadinho mais baixo?» Ele tinha aumentado o som de repente, num programa sobre remodelação de casas, daqueles

que em tempos o meu pai também gostara de ver. «O homem está a falar de Edgware. Eu tenho um tio em Edgware. E um primo.» «Ai tens?», disse eu, procurando não me mostrar muito esperançada. Esperei um pouco, mas

ele voltou ao programa que estava a ver. O Sol escondeu-se. O meu estômago começou aresmungar. Não me mexi de onde estava, demasiado concentrada na minha caça a Tracey,tentando fazê-la sair da toca, e indo espreitar uma janela secundária de quinze em quinzeminutos, mais ou menos, para ver se ela tinha invadido a minha caixa do correio. Mas osmétodos que usava comigo eram claramente diferentes dos que usava com a minha mãe. Aqueleemail de uma linha só foi tudo quanto alguma vez me enviou.

Às seis começou o telejornal. Lamin ficou muito perturbado com a revelação de que os

islandeses tinham ficado subitamente, catastroficamente pobres. Como podia uma coisa daquelasacontecer? Uma colheita perdida? Um Presidente corrupto? Mas para mim também era novidade,e, como não percebia tudo o que o apresentador dizia, não podia propor uma interpretação.Talvez também tenhamos notícias da Sankofa, sugeriu Lamin, e eu ri-me, levantei-me da mesa edisse a Lamin que não davam esse tipo de disparates no telejornal da noite. Passados vinteminutos, estava a observar o interior do frigorífico cheio de produtos em putrefação quandoLamin me chamou. Era a peça de fecho do verdadeiro noticiário, o noticiário da BritishBroadcasting como ele lhe chamava, e lá estava uma foto de arquivo de Aimee no canto superiordireito. Sentámo-nos na borda do sofá. Corte para um espaço de escritório com iluminaçãofluorescente em local indefinido, com um retrato do presidente vitalício com cara de sapo de viésnuma parede, diante do qual estavam sentados os pais naturais, nas indumentárias do seu país,com um ar de calor e desconforto. Uma mulher de uma agência de adoção estava sentada àesquerda deles e traduzia. Tentei lembrar-me se a mãe era a mesma pessoa que tinha vistonaquele dia na cabana de chapa de zinco, mas não tinha a certeza. Ouvi a mulher da agênciaexplicar a situação ao correspondente estrangeiro que estava sentado diante deles todos, vestindouma versão do meu antigo uniforme enrugado de linho e caqui. Tudo tinha sido feito emconformidade com as leis, aquilo que tinha sido indevidamente publicado não era de todo ocertificado de adoção, era apenas um documento intercalar, evidentemente não destinado adivulgação, os pais estavam satisfeitos com a adoção e compreendiam aquilo que haviamassinado.

«Não temos nenhum problema», disse a mãe, num inglês hesitante, sorrindo para a câmara. Lamin pôs as duas mãos na nuca, recostou-se no sofá e propôs-me um provérbio: «O dinheiro

faz desaparecer os problemas.» Desliguei a televisão. O silêncio espalhou-se pela casa, não tínhamos absolutamente nada a

dizer um ao outro, o terceiro vértice do nosso triângulo havia desaparecido. Dois dias antessentira-me satisfeita com o meu gesto espetacular – cumprindo um dever de cautela que Aimeehavia menosprezado – mas o gesto em si tinha feito passar para segundo plano a realidade deLamin: Lamin na minha cama, Lamin nesta sala de estar, Lamin na minha vida sem fim à vista.Não tinha emprego nem dinheiro. Nenhuma das habilitações que tanto lhe haviam custado aadquirir lhe servia de nada aqui. Sempre que saía da sala – para ir fazer chá, para ir ao quarto debanho – o meu primeiro pensamento ao revê-lo era: que estás a fazer na minha casa?

Às oito encomendei comida etíope. Enquanto comíamos mostrei-lhe o Google Maps e a zonade Londres onde estávamos em relação ao resto da cidade. Mostrei-lhe Edgware. As váriasformas de chegar a Edgware.

«Amanhã vou visitar a minha mãe, mas tu podes ficar aqui, evidentemente. Ou então sais evais explorar a zona.»

Quem nos observasse naquela noite iria pensar que nos tínhamos conhecido poucas horasantes. Senti-me mais uma vez constrangida na presença dele, da sua orgulhosa contenção ecapacidade de guardar silêncio. Não fazia a mínima ideia de quem ele era. Quando se tornouevidente que eu tinha esgotado a minha conversa geográfica, levantou-se e, sem discussão, foipara o quarto interior. Eu fui para a cama da minha mãe. Fechámos as respetivas portas.

A clínica era em Hampstead, numa tranquila rua sem saída bordejada de árvores, muito perto

do hospital onde eu nasci e a poucas ruas da casa do Destacado Ativista. O outono aproximava-

se a passos largos, castanho-avermelhado e dourado sobre o fundo de toda aquela valiosapropriedade vitoriana de tijolo, e ocorreram-me fortes memórias associativas da minha mãe aatravessá-la a pé em manhãs frescas como esta, de braço dado com o Destacado Ativista,verberando os aristocratas italianos e os banqueiros americanos, os oligarcas russos e as lojas deroupas para crianças da classe alta, as caves escavadas na terra. O fim de uma certa ideia boémia,há muito perdida, daquele lugar que lhe dizia muito. Tinha então quarenta e sete anos. Agora sótinha cinquenta e sete. De todos os futuros que havia imaginado para ela nestas ruas, a realidadepresente era, não sei porquê, a mais improvável. Quando era criança, ela para mim era imortal.Não conseguia imaginá-la a abandonar este mundo sem fazer um rasgão no tecido de que ele éfeito. Em vez disso, esta rua sossegada, estes ginkgos que largam as suas folhas douradas.

Na receção disse o meu nome e depois de uma curta espera veio um jovem enfermeiro buscar-me. Antes de me conduzir ao quarto da minha mãe avisou-me de que ela estava a tomar morfinae às vezes ficava confusa. Não notei nada de especial neste enfermeiro, achei-o completamentedesinteressante, mas quando cheguei ao quarto e ele abriu a porta a minha mãe endireitou-se nacama e exclamou: «Alan Pennington! Com que então já conheces o famoso Alan Pennington!»

«Sou eu, mamã.» «Oh, eu sou o Alan», disse o enfermeiro, e eu virei-me para olhar outra vez para o jovem a

quem a minha mãe sorria de forma tão radiosa. Era baixo, de cabelo claro, olhos pequenos eazuis, uma cara ligeiramente rechonchuda e um nariz incaracterístico com umas quantas sardasespalhadas pela cana. A única coisa que o tornava invulgar aos meus olhos, no contexto de todosos enfermeiros nigerianos, polacos e paquistaneses que ouvia conversar nos corredores, era o seuaspeto tão inglês.

«O Alan Pennington é famoso por estas bandas», disse a minha mãe, acenando-lhe. «Tem umabondade lendária.»

Alan Pennington sorriu-me, revelando dois incisivos afiados, como os de um cãozinho. «Vou deixá-las a sós», disse. «Como estás, mamã? Tens muitas dores?» «O Alan Pennington», disse-me ela, depois de ele sair e fechar a porta, «só trabalha para os

outros. Sabias? Ouves falar destas pessoas, mas conhecê-las pessoalmente é outra coisa. É certoque eu também trabalhei para os outros, toda a vida – mas não assim. Aqui são todos assim.Primeiro tive uma rapariga de Angola, a Fátima, amorosa, era igual à... infelizmente teve de se irembora. Depois veio o Alan Pennington. Estás a ver: é um cuidador. Nunca tinha pensado muitoa fundo nesta palavra. O Alan Pennington cuida.»

«Mamã, porque é que continuas a chamar-lhe Alan Pennington dessa maneira?» A minha mãe olhou-me como seu eu fosse idiota. «Porque é o nome dele. O Alan Pennington é um cuidador que cuida.» «Sim, mamã, os cuidadores são pagos para cuidar.» «Não, não, não, não estás a perceber: ele cuida. O que ele faz por mim! Ninguém devia

precisar de fazer essas coisas por outro ser humano – mas ele fá-las por mim!» Cansada do assunto de Alan Pennington, convenci-a a deixar-me ler-lhe passagens de uma

pequena edição de Sonny’s Blues, e entretanto chegou o almoço na bandeja de AlanPennington.

«Mas eu não consigo comer isso», disse a minha mãe com tristeza enquanto Alan lhe pousava

a bandeja no colo. «Está bem, então e se eu deixasse isto aqui durante vinte minutos e se tivesse a certeza

absoluta de que não consegue comer tocasse a campainha para eu vir e levar tudo de volta? Queacha? Parece-lhe bem?»

Fiquei à espera de ouvir a minha mãe dar uma descasca em Alan Pennington – toda a vidatinha detestado e receado que a tratassem com paternalismo ou lhe falassem como se fosse umacriança – mas desta vez acenou compenetradamente como se a sugestão fosse muito sensata egenerosa, tomou as mãos de Alan nas suas mãos trémulas e espectrais e disse: «Obrigada, Alan.Por favor não se esqueça de voltar cá.»

«E esquecer a mulher mais bela desta casa?», disse Alan, embora claramente gay, e a minhamãe, feminista desde sempre, rompeu em risadinhas juvenis. E assim ficaram, de mãos dadas, atéAlan sorrir e a largar, para ir cuidar de outra pessoa, abandonando a minha mãe a mim e vice-versa. Ocorreu-me um pensamento perverso, que detestei: desejei que Aimee estivesse alicomigo. Tinha estado com ela à cabeceira de moribundos, em quatro ocasiões, e em todas tinhaficado impressionada e subjugada pela sua maneira de estar com eles, a sua honestidade, afeto esimplicidade, que mais ninguém presente na sala parecia capaz de conseguir, nem mesmo afamília. A morte não lhe metia medo. Olhava-a nos olhos, solidária com a pessoa moribunda nasua situação, por muito desesperada que fosse, sem nostalgia nem falso otimismo, aceita o teumedo quando estiveres com medo, e a tua dor se estiveres a senti-la. Quantas pessoas conseguemfazer estas coisas aparentemente simples? Lembro-me de uma amiga dela, uma pintora que haviaperdido décadas de vida para uma anorexia grave que acabou por matá-la, dizer a Aimee,naquele que seria o seu leito de morte: «Meu Deus, Aim – tanto tempo que eu perdi!» Ao queAimee respondeu: «Nem imaginas quanto.» Lembro-me daquela figura esguia entre os lençóis,de boca escancarada, tão chocada que desatou às gargalhadas. Mas era a verdade, ninguém maisse atrevera a dizê-la, e os moribundos, descobri, anseiam pela verdade. Não disse nenhumaverdade à minha mãe, limitei-me à costumeira conversa de ocasião, li-lhe mais umas passagensdo seu adorado Baldwin, ouvi as histórias sobre Alan Pennington, e levantei-lhe o copo de sumopara que pudesse sorvê-lo por uma palhinha. Ela sabia que eu sabia que ela estava a morrer, mas,por qualquer razão – coragem, negação ou falsa ilusão – não fez nenhuma alusão a isso na minhapresença a não ser para dizer, quando lhe perguntei onde tinha o telemóvel e por que razão nãotinha atendido: «Ouve, não quero passar o tempo que me resta com aquela coisa horrível.»

Descobri-o na gaveta da mesa de apoio, dentro de um saco de roupa do hospital, juntamentecom um saia-e-casaco, uma pasta com papéis, um guia de conduta parlamentar e o portátil.

«Não precisas de o usar», disse, ligando-o e pousando-o em cima da mesa. «Mas ao menosdeixa-o ligado para eu ter uma forma de contactar contigo.»

O avisador de mensagem disparou – o telemóvel vibrou e dançou pela mesa fora – e a minhamãe olhou para ele com uma expressão de horror.

«Não, não, não, não quero cá isso! Não o quero ligado! Porque é que fizeste isso?» Peguei nele. Vi emails por abrir, dezenas e dezenas deles, enchendo o ecrã, ofensivos logo no

assunto, todos enviados pela mesma pessoa. Comecei a lê-los, tentando resistir ao catálogo desofrimento: queixas contra o apoio infantil, rendas em atraso, desentendimentos com assistentessociais. Os mais recentes eram os mais desesperados: receava que lhe retirassem os filhos muitoem breve.

«Mamã, soubeste recentemente da Tracey?» «Onde está o Alan Pennington? Eu não vou comer isto.»

«Meu Deus, estás tão doente – não devias ter de suportar isto!» «Nem parece do Alan não ter cá vindo...» «Mamã, soubeste recentemente da Tracey?» «NÃO! Já te disse que não olho para isso!» «Não falaste com ela?» Ela suspirou profundamente. «Tenho poucas visitas, querida. A Miriam vem cá. O Lambert veio uma vez. Os meus colegas

do Parlamento não vêm. Estás cá tu. Como disse o Alan Pennington: «Ficamos a saber quem sãoos nossos amigos.» Passo a maior parte do tempo a dormir. Sonho muito. Sonho com a Jamaica,sonho com a minha avó. Recuo no tempo...» Fechou os olhos. «Sonhei uma vez com a tuaamiga, quando cá cheguei, estava com uma dose alta disto» – deitou a mão a um cateter quetinha no braço. – «Sim, a tua amiga veio visitar-me. Eu estava a dormir e acordei e vi-a de péjunto da porta, calada. Depois voltei a adormecer e ela foi-se embora.»

Quando voltei ao apartamento, emocionalmente debilitada, ainda a sentir o jet lag, rezei para

que Lamin se tivesse ido embora e tinha mesmo. Quando vi que não voltava para jantar, fiqueialiviada. Só na manhã seguinte, quando fui bater-lhe à porta, a empurrei e vi que o saco deletinha desaparecido é que percebi que se tinha ido embora. Quando lhe telefonava ia parar aoatendedor. Durante quatro dias telefonei com intervalos de poucas horas e foi a mesma coisa.Tinha andado tão concentrada na forma de lhe dar a notícia de que tinha de se ir embora, de quenão tínhamos futuro juntos, que não tinha imaginado, nem por um segundo, que todo aqueletempo ele andasse a arquitetar a forma de se ver livre de mim.

Sem ele, sem a televisão ligada, o apartamento estava num silêncio sepulcral. Éramos só eu e ocomputador, e o rádio, pelo qual me chegou por várias vezes a voz do Destacado Ativista, aindaforte, opinativa. Mas a minha história estava a esvair-se, online e em todos os outros meios, todoaquele comentário brilhantemente iluminado já consumido, reduzido a negrume e cinzas. Semsaber o que fazer, passei um dia a escrever emails a Tracey. A princípio dignos e serenos, aseguir sarcásticos, depois indignados, depois histéricos, até que percebi que ela estava a afetar-me mais com o silêncio do que eu estava a conseguir afetá-la com todas aquelas palavras. Opoder que ela tem sobre mim é o mesmo que sempre teve, o juízo moral, que ultrapassa aspalavras. Não posso negar que era a sua única testemunha, a única pessoa que sabe tudo o queela tem dentro de si, e tudo o que tem sido subestimado e desperdiçado, e mesmo assim deixei-aali, nas fileiras do anonimato, onde uma pessoa tem de gritar para se fazer ouvir. Descobri maistarde que Tracey tinha um longo historial de envio de emails deploráveis. A um encenador doTricycle que não a escolheu para o elenco, achava ela que por causa da cor. Aos professores daescola do filho. A uma enfermeira do consultório do seu médico. Mas nada disto altera a atitudede condenação. Se andava a atormentar a minha mãe quando ela estava à beira da morte, seandava a tentar dar cabo da minha vida, se estava sentada naquele apartamentozinhoclaustrofóbico a ver os meus emails que não paravam de lhe entrar pelo telemóvel esimplesmente decidia não os ler – independentemente do que estivesse a fazer, eu sabia que erauma forma de me julgar. Era irmã dela. Tinha um dever sagrado para com ela. Mesmo que só eue ela o soubéssemos e reconhecêssemos, continuava a ser verdade.

Saía algumas vezes de casa para ir à loja da esquina, comprar cigarros e embalagens de pasta,mas fora isso não via ninguém nem sabia de ninguém. À noite pegava ao acaso em livros da

pilha da minha mãe, tentava ler umas páginas, perdia o interesse e passava a outro. Achei queestava deprimida e precisava de falar com outro ser humano. Sentei-me com o meu novotelemóvel pré-pago na mão, percorrendo a curta lista de nomes e números pessoais que tinhacopiado do antigo telefone de serviço, sumariamente desligado, e tentei imaginar a forma quecada interação tomaria, se e como ia conseguir ligar à pessoa, mas todas as conversas potenciaisme pareciam uma cena de uma peça de teatro, em que eu representaria o papel da pessoa quedurante tanto tempo havia sido, que parece que está a almoçar connosco mas afinal está viradapara Aimee, a trabalhar para Aimee, a pensar em Aimee, dia e noite, noite e dia. Telefonei aFern. Ouvi um toque estranho, longo e sem interrupções, e ele respondeu com um “Hola”.Estava em Madrid.

«Em trabalho?» «Em viagem. É o meu ano de folga. Não sabias que me demiti? Mas sinto-me tão bem por ser

livre!» Perguntei-lhe porquê, à espera de ouvir um ataque pessoal dirigido a Aimee, mas a resposta

dele não teve nada de pessoal, estava preocupado com o efeito «desvirtuador» do dinheiro delasobre a aldeia, com o colapso dos serviços públicos na região e com as relações cúmplices eingénuas da fundação com o governo. Enquanto o ouvia tomei consciência e envergonhei-me deuma diferença profunda entre nós. Eu sempre me precipitara a interpretar tudo como pessoal,onde Fernando vira os problemas estruturais, mais vastos.

«Bem, é bom saber de ti, Fern.» «Não, tu não soubeste de mim. Eu é que soube de ti.» Deixou prolongar o silêncio. Quanto mais se prolongava, mais difícil era pensar no que dizer. «Porque é que estás a telefonar-me?» Fiquei sentada a ouvi-lo respirar durante mais alguns segundos até que o crédito do meu

telefone se esgotou. Perto de uma semana depois enviou-me um email a dizer que estava em Londres para uma

curta permanência. Havia vários dias que eu não falava com ninguém a não ser com a minhamãe. Encontrámo-nos no South Bank, à janela do Film Café, sentados lado a lado, de frente paraa água, e trocámos algumas recordações, mas foi embaraçoso, eu amargurava-me com grandefacilidade, todos os pensamentos me puxavam para a escuridão, para alguma coisa dolorosa.Passei o tempo todo a queixar-me, e apesar de perceber que estava a irritá-lo parecia que nãoconseguia parar.

«Bom, podemos dizer que a Aimee vive dentro da sua bolha», disse ele, interrompendo-me, «ea tua amiga faz o mesmo, e tu também, já agora. Talvez aconteça o mesmo com toda a gente. Sómuda o tamanho da bolha, mais nada. E talvez a espessura da – como se diz em inglês – casca,membrana. A camada fina de uma bolha.»

Veio o empregado, demos-lhe uma atenção ávida. Quando ele se foi embora ficámos a ver umbarco turístico descer o Tamisa.

«Ah, já sei o que te quero dizer», disse ele de repente, dando uma palmada no balcão e fazendotilintar um pires. «Tenho notícias do Lamin! Está ótimo – está em Birmingham. Pediu-me umacarta de recomendação. Espera estudar lá. Trocámos uns quantos emails. Fiquei a saber que oLamin é um fatalista. Escreveu-me isto: “Estava destinado que eu viesse para Birmingham. Porisso foi sempre para aqui que estive para vir”. Não é engraçado? Não? Bem, talvez essa não seja

a palavra certa em inglês. O que quero dizer é que para o Lamin o futuro é tão certo quanto opassado. É uma teoria da filosofia.»

«Eu acho isso um pesadelo.» Fern pareceu outra vez confuso: «Talvez não me tenha exprimido bem. Não sou filósofo. Para

mim o significado é simples, é como dizer que o futuro já aí está, à nossa espera. Porque nãoesperar, ver o que ele nos traz?»

Tinha um ar tão esperançoso que me deu vontade de rir. Recuperámos algum do velho ritmoda nossa amizade e ficámos muito tempo a conversar, e eu pensei que não era impossível haverum futuro em que pudesse interessar-me por ele. Começava a interiorizar a ideia de que não ia alado nenhum, já não tinha pressa, não ia apanhar o próximo avião. Tinha o tempo a meu favor,tanto quanto está a favor de qualquer pessoa. Tudo naquela tarde me pareceu em aberto, umaespécie de choque, não sabia o que ia acontecer nos próximos dias, ou mesmo nas próximashoras – uma sensação nova. Fiquei surpreendida quando levantei os olhos do meu segundo café evi que o dia estava a desvanecer-se e a noite não tardaria a chegar.

No fim, ele quis apanhar o metro, em Waterloo, para mim também era a melhor estação, masem vez disso separei-me dele e fui pela ponte. Ignorando as duas barreiras, caminhando pelomeio, por cima do rio, até chegar à outra margem.

EPÍLOGO

Na última vez que vi a minha mãe com vida conversámos sobre Tracey. Dito de modo maisforte: Tracey era de facto o único tema que nos fazia falar. A minha mãe estava quase sempre tãocansada que não podia falar ou ouvir falar, e pela primeira vez na sua vida os livros não aseduziam minimamente. Em vez de ler, eu cantava-lhe, e ela parecia gostar – desde que nãosaísse dos velhos clássicos da Motown. Víamos televisão juntas, coisa que nunca antes havíamosfeito, e eu conversava sobre banalidades com Alan Pennington, que aparecia com frequência paraver como estavam os violentos soluços da minha mãe e as suas fezes e a progressão das suasalucinações. Trazia o almoço, para o qual ela já não podia olhar, e muito menos podia comê-lo,mas nesse último dia que passámos juntas, quando Alan saiu do quarto, abriu os olhos e disse-menuma voz calma e autoritária, como se estivesse a comentar uma coisa que era um facto simplese objetivo – como o tempo que fazia lá fora ou o que tinha no prato – que era altura de «fazeralguma coisa» em relação à família de Tracey. A princípio pensei que estivesse perdida nopassado, era muito frequente nos últimos dias, mas rapidamente percebi que estava a falar dascrianças, dos filhos de Tracey, embora ao falar deles divagasse entre a realidade deles, tal como aimaginava, a história da nossa pequena família e uma história mais profunda: era o seu últimodiscurso. Trabalha tanto, disse a minha mãe, e os filhos não a veem, e agora querem tirar-me osmeus filhos, mas o teu pai era muito bom, muito bom, e muitas vezes penso: fui uma boa mãe?Fui? E agora querem tirar-me os meus filhos... Mas eu era só uma estudante, ando a estudar,porque temos de aprender para sobreviver, e eu era mãe e tenho de aprender, porque sabíamosque qualquer de nós que eles apanhassem a ler ou a escrever podia ir parar à cadeia ou apanharchicotadas ou coisa pior, e quem nos ensinasse a ler ou a escrever tinha a mesma sorte, cadeia ouchicotadas, era a lei naquele tempo, era muito rigorosa, e nesse sentido fomos arrancadas aonosso tempo e lugar, e depois deixámos de saber sequer qual era o nosso tempo e lugar – e isso éo pior que se pode fazer a uma pessoa. Mas não sei se a Tracey era uma boa mãe, embora eutenha a certeza de que fiz o melhor que podia para os criar a todos, mas não tenho dúvidanenhuma de que o teu pai era muito bom, muito bom...

Eu disse-lhe que ela era boa. Que o resto não interessava. Disse-lhe que toda a gente tinha feitoo melhor que podia dentro das limitações que tinha. Não sei se me ouviu.

Estava a reunir as minhas coisas quando ouvi Alan Pennington no corredor, a cantar à suamaneira monocórdica, desafinada, uma das faixas de Otis que a minha mãe preferia, sobre nascerjunto ao rio e nunca mais parar de correr. «Ouvi-a cantá-la ontem», disse-me, assomando à porta,animado como sempre. «Tem uma linda voz. A sua mãe tem muito orgulho em si, sabe, estásempre a falar de si.»

Sorriu para a minha mãe, mas ela já não estava a pensar em Alan Pennington. «É claro como água», murmurou, fechando os olhos enquanto eu me levantava para me ir

embora. «Deviam estar contigo. O melhor lugar possível para aquelas crianças é contigo.»

Durante o resto da tarde alimentei a fantasia, não convicta, acho que não, foi apenas uma

canção de sonho em Techicolor que passou na minha cabeça: uma família pronta a usar, feita derepente aqui e agora, para me preencher a vida. No dia seguinte, dei um passeio matinal à voltado perímetro inóspito de Tiverton Rec, com o vento a soprar pela vedação de rede, levando paralonge paus lançados para os cães apanharem, e dei comigo a continuar a andar, na direção opostaà de casa e passando a estação que me teria levado à clínica. A minha mãe morreu às dez horas edoze minutos, na altura em que eu virava para Willesden Lane.

Surgiu-me diante dos olhos a torre de Tracey, por cima dos castanheiros-da-índia, e com ela arealidade. Aqueles não eram meus filhos, nunca seriam meus filhos. Estive quase a dar meia-volta, como alguém que acorda de um passeio sonâmbulo, não fora uma ideia, nova para mim, deque talvez tivesse mais alguma coisa para oferecer, alguma coisa mais simples, mais honesta,entre a ideia de salvação da minha mãe e o nada absoluto. Impaciente, saí do caminho eatravessei o relvado em diagonal, em direção à passagem coberta. Ia mesmo a entrar na caixa daescada quando ouvi música, parei e olhei para cima. Ela estava mesmo por cima de mim, na suavaranda, em robe e chinelos, mãos no ar, girando, girando, os filhos à sua volta, todos a dançar.

AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus primeiros leitores: Josh Appignanesi, Daniel Kehlmann, Tamsin Shaw,Michael Shavit, Rachel Kaadzi Ghansah, Gemma Seiff, Darryl Pinckney, Ben Bailey-Smith,Yvonne Bailey-Smith e, em particular, Devorah Baum, pelo estímulo quando ele era maisnecessário.

Um agradecimento especial a Nick Laird, que fez a primeira leitura e viu o que era necessáriofazer com o tempo, mesmo a tempo.

Agradeço aos meus editores e agente: Simon Prosser, Ann Godoff e Georgia Garrett. Agradeço a Nick Parnes, Hannah Parnes e Brandy Jolliff, por me terem lembrado como era o

trabalho nos anos noventa. Agradeço a Eleanor Wachtel, por me dar a conhecer a incomparável Jeni LeGon. Agradeço a Steven Barclay, pelo pequeno espaço em Paris quando mais necessitava dele. Estou profundamente grata à Doutora Marloes Janson, autora do apaixonante, profundo e

inspirador estudo antropológico Islam, Youth and Modernity in the Gambia: The TablighiJama‘at, que foi para mim precioso, dando contexto às minhas impressões, respostas possíveis àsminhas perguntas e fornecendo muitos dos alicerces culturais desta história, além de me ajudar acriar o clima e a textura de certas cenas do romance. Uma nota sobre geografia: o Norte deLondres, nestas páginas, é um estado de espírito. Algumas ruas podem não ser bem como seveem no Google Maps.

Nick, Kit, Hal – amor e gratidão.