As Bruxas de Eastwick - VISIONVOX

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l. O sabá

Era um homem grande e preto feito uma rocha, muito frio.

ISOBEL GROWDIE, em 1662

Então, depois de terminadas as suas admoestações,o diabo desceu do púlpito e fez todos os presentes se

aproximarem para lhe beijar as orelhas,que todos disseram serem frias como gelo;

aqueles que nele tocaram acharamseu corpo áspero como um fio grosseiro.

AGNES SAMPSON, em 1590

“E, AH, SIM”, disse Jane Smart com seu jeito ao mesmo tempoafobado e decidido; cada esse parecia a pontinha negra de um fósfororecém-apagado mantida rente à pele em uma brincadeira de queimar,como fazem as crianças. “Sukie disse que um homem comprou amansão Lenox.”

“Um homem?”, perguntou Alexandra Spofford, sentindo-se forade prumo, com a aura tranquila da manhã desequilibrada por aquelapalavra assertiva.

“De Nova York”, continuou Jane, apressada, quase ladrando aúltima sílaba, engolindo o erre com sua pronúncia à moda de

Massachusetts. “Parece que não tem mulher nem família.”“Ah. Um daqueles.” Ao ouvir a voz setentrional de Jane lhe trazer

esse boato de um homossexual vindo de Manhattan para invadi-las,Alexandra sentiu-se dividida ali onde estava, naquele misterioso eirritadiço estado de Rhode Island. Havia nascido no Oeste, ondemontanhas brancas e roxas se erguem tentando alcançar as altas edelicadas nuvens, e arbustos arrancados pelo vento rolam tentandoalcançar o horizonte.

“Sukie não tinha tanta certeza”, disse Jane depressa, moderando osesses. “Ele tem um aspecto bem másculo. Ela ficou impressionadacom a quantidade de pelos nas costas das mãos dele. Lá na imobiliáriaPerley, ele disse que precisava daquele espaço todo porque é inventore tem um laboratório. E ele tem vários pianos.”

Alexandra deu uma risadinha; o ruído, que pouco havia mudadodesde sua infância no Colorado, parecia vir não de sua garganta, e simde um espírito semelhante a um pássaro encarapitado em seu ombro.Na verdade, o telefone estava deixando sua orelha dolorida. E seuantebraço formigava, quase dormente.

“Para que tantos pianos?”Isso pareceu deixar Jane ofendida. Sua voz se eriçou feito o pelo de

um gato preto, iridescente. Em tom defensivo, ela prosseguiu:“Bom, Sukie só está repetindo o que Marge Perley contou a ela na

reunião de ontem à noite do Comitê do Bebedouro.” Esse comitêsupervisionava o plantio e, após atos de vandalismo, o replantio deum grande bebedouro de mármore azul para cavalos que era ummarco histórico do centro de Eastwick, no cruzamento de duas ruasprincipais; a cidade tinha o formato de um L, encaixada em volta deum trecho acidentado do litoral da baía de Narrangansett. A DockStreet era a rua comercial da cidade, enquanto a Oak Street,perpendicular, abrigava lindas residências antigas. Marge Perley,cujas horrorosas placas amarelo-canário de “Vende-se” apareciam edesapareciam de árvores e cercas conforme a maré da economia e da

moda (durante muitas décadas, Eastwick havia enfrentado umasemirrecessão e um semiostracismo, as pessoas chegavam e saíam dacidade), era uma mulher muito maquiada, de temperamento decidido,que, se de fato fosse uma delas, era uma bruxa inteiramente diferentede Jane, Alexandra e Sukie. Marge tinha marido, um minúsculo enervoso Homer Perley, sempre a podar sua sebe de forsítias até deixá-la bem rente, e isso fazia diferença. “Os documentos foram assinadosem Providence”, explicou Jane, enfatizando o nce com força nosouvidos de Alexandra.

“E com as costas das mãos peludas”, ponderou Alexandra em vozalta. Junto a seu rosto pairava a superfície levemente riscada,descascada e várias vezes repintada de uma porta de armário decozinha feita de madeira; Alexandra teve consciência da fúria atômicaque rodopiava e escorregava sob aquela superfície, qual umredemoinho causado pela vista cansada. Como em uma bola decristal, viu que iria conhecer e se apaixonar por esse homem, e quenada de bom viria disso. “Ele não tem nome?”, perguntou.

“Isso é o mais idiota de tudo”, disse Jane Smart. “Marge contoupara Sukie e Sukie me contou, mas alguma coisa afugentou o nome daminha cabeça. É um desses sobrenomes com partícula: ‘van’... ‘von’...‘de’...”

“Que maravilha”, comentou Alexandra já se dilatando, já seexpandindo para ser invadida. Um europeu alto e moreno, expulso deseu antigo passado heráldico, viajando sob o peso de uma maldição...“Quando é que ele vai se mudar?”

“Ela disse que ele disse que seria em breve. Vai ver já está lá!” Avoz de Jane soava alarmada. Alexandra imaginou as sobrancelhas daoutra, um pouco fartas demais (em comparação com o resto de seurosto contraído), erguendo-se para formar semicírculos acima de seusolhos ressentidos, cujo castanho era sempre um_tom mais claro doque a lembrança que se tinha deles. Se Alexandra era a bruxagrandalhona, de estilo exuberante, tentando sempre ser discreta para

passar outra impressão e se misturar à paisagem, no fundo um tantopreguiçosa e fundamentalmente fria, Jane era quente, baixinha,concentrada como a ponta de um lápis, enquanto Sukie Rougemont,ocupada o dia inteiro no centro da cidade coletando notícias esorrindo ao dar bom-dia, tinha uma essência volátil. Foi isso queAlexandra pensou ao desligar. As coisas vêm em trios. E a magiaocorre à nossa volta o tempo todo conforme a natureza procura eencontra as formas inevitáveis, e as coisas cristalinas e orgânicas vãose organizando em ângulos de sessenta graus, uma vez que otriângulo equilátero é a mãe de todas as estruturas.

Alexandra voltou então ao preparo de vidros de molho paraespaguete, molho para mais espaguete do que ela e os filhos seriamcapazes de consumir mesmo que tivessem sido enfeitiçados econdenados a passar cem anos dentro de um conto de fadas italiano,vidros e mais vidros retirados, fumegantes, do panelão azulsarapintado de branco em cima da grelha de metal redonda trêmula esibilante. Percebeu vagamente que isso era uma espécie de ridículotributo ao seu atual amante, um encanador de origem italiana. Areceita de Alexandra levava cebola, dois dentes de alho picados esalteados por três minutos em azeite quente (nem mais, nem menos;era essa a magia), bastante açúcar para contrabalançar a acidez, umaúnica cenoura ralada, mais pimenta do que sal; mas a colher de chá demanjericão picado era o que dava ao molho a sua virilidade, e a pitadade beladona proporcionava a libertação sem a qual a virilidade nãopassa de uma congestão assassina. Tudo isso devia ser acrescentadoaos seus próprios tomates, colhidos e guardados em cada peitoril dejanela durante as últimas semanas e agora cortados e levados aoliquidificador — desde que, dois verões antes, Joe Marino haviacomeçado a frequentar sua cama, uma absurda fecundidade tomaraconta dos pés de tomate plantados no jardim lateral onde o sol dosudoeste batia enviesado por entre as fileiras de salgueiros durante aslongas tardes. Os pequenos galhos retorcidos dos tomates, suculentos

e descorados como se feitos de um papel verde barato, se quebravamcom o peso de tantos frutos; havia algo de frenético em tamanhafertilidade, uma histeria parecida com a de crianças ansiosas paraagradar. Dentre todas as plantas, os tomates pareciam as maishumanas, ansiosas e frágeis, vulneráveis à deterioração. Ao colher aspolpudas esferas vermelho-alaranjadas, Alexandra tinha a impressãode estar segurando na mão os testículos de um gigantesco amante.Enquanto se atarefava na cozinha, reconhecia o quê de tristementemenstruai em tudo aquilo, o molho parecido com sangue a serdespejado sobre o branco espaguete. As grossas tiras brancas iriam setransformar em sua própria gordura branca. Sua luta feminina contrao próprio peso: aos trinta e oito anos, ela achava isso cada vez menosnatural. Será que para atrair o amor ela precisava negar o própriocorpo, como uma santa neurótica de antigamente? A natureza é oindicador e o contexto de toda saúde e, se temos um apetite, ele está lápara ser saciado, satisfazendo assim a ordem cósmica. Mas apesardisso ela às vezes desprezava a si mesma por ser preguiçosa, por terarrumado um amante de uma ascendência tão reputadamentetolerante em relação à corpulência.

Nos poucos anos desde o seu divórcio, os amantes de Alexandratendiam a ser maridos esparsos cujas esposas, suas donas, lhespermitiam passear de vez em quando. Seu próprio ex-marido, OswaldSpofford, repousava dentro de um vidro com a tampa de rosca bemfechada em uma prateleira alta da cozinha, reduzido a um pómulticolorido. Era a isso que ela o havia reduzido quando seuspoderes se revelaram após a mudança de Norwich, Connecticut, paraEastwick. Especialista em cromo, Ozzie fora transferido de umafábrica de metais naquela cidadezinha montanhosa, com seu excessode igrejas brancas descascadas, para uma empresa concorrente em umcomplexo industrial de cimento de quase um quilômetro decomprimento ao sul de Providence, em meio à estranha vastidãoindustrial daquele pequeno estado. Fazia sete anos que haviam se

mudado para lá. Ali, em Rhode Island, seus poderes tinham seexpandido como um gás em ambiente a vácuo, e, enquanto o caroOzzie fazia o trajeto diário de ida e volta do trabalho pela rodovia 4,ela primeiro o reduzira ao tamanho de um mero homem, despindo deseu corpo a armadura de protetor patriarcal graças à maresiacorrosiva da beleza maternal de Eastwick, e depois ao tamanho deuma criança, à medida que as suas carências crônicas e a suaigualmente crônica aceitação das soluções por ela propostas o faziamparecer fraco e manipulável. Ele literalmente perdera o contato com ouniverso em expansão dentro dela. Havia se deixado envolverexcessivamente pelas atividades de seus filhos na Liga Juvenil debeisebol e do time de boliche da fábrica de metais. A medida queAlexandra arrumou primeiro um amante, e depois vários, seu maridocorno foi reduzido à dimensão e à secura de uma boneca, deitado aoseu lado durante a noite na ampla e receptiva cama como um troncode árvore pintado adquirido em alguma barraca de beira de estrada,ou um jacaré bebê empalhado. Quando eles de fato se divorciaram,seu antigo mestre e senhor se transformara em pó — matéria no lugarerrado, como definira de forma sucinta a mãe de Alexandra temposantes —, uma espécie de pó multicolorido que ela havia varrido eguardado de lembrança dentro de um vidro.

As outras bruxas haviam passado por transformações semelhantesem seus casamentos; o ex-marido de Jane Smart, Sam, estavapendurado no porão da casa de fazenda dela, em meio às ervas secas epoções, sendo ocasionalmente salpicado em algum filtro, umapitadinha por vez, para dar um sabor picante; e Sukie Rougemonthavia plastificado o seu e o usava como jogo americano. Esse últimoacontecimento havia sido bem recente; Alexandra ainda podia verMonty em pé nas festas, vestido com seu paletó de madras e sua calçaverde vivo, gabando-se dos detalhes da partida de golfe do dia ecriticando o vagaroso quarteto feminino que os havia atrasado o diainteiro sem nunca os convidar a passar na sua frente. Ele detestava

mulheres arrogantes — governadoras, histéricas que protestavamcontra a guerra, médicas, a primeira-dama, Lady Bird Johnson, e atésuas duas filhas, Lynda Bird e Luci Baines. Achava todas elas umasmachonas. Quando bostejava, Monty exibia uns dentes incríveis,compridos e muito certinhos mas não falsos, e sem roupa exibiapernas um tanto comoventes, magras e azuladas, bem menosmusculosas do que os antebraços bronzeados de golfista. E ele tinhaaquelas nádegas franzidas e flácidas que muitas vezes se via no corpoamolecido de mulheres de meia-idade. Monty fora um dos primeirosamantes de Alexandra. Agora, era estranho e estranhamenteagradável pousar uma caneca do forte café de Sukie sobre o lustrosojogo americano estampado de madras, deixando nele um círculomarcado.

O ar de Eastwick dava poder às mulheres. Alexandra nunca haviaprovado nada parecido, exceto talvez em um canto de Wyoming, queatravessara de carro com os pais quando tinha mais ou menos onzeanos. Eles a haviam deixado descer do carro para fazer xixi ao lado deum arbusto de sálvia e ela pensara, ao ver a terra seca de altitudemomentaneamente umedecida pela mancha escura: Não temimportância. Vai evaporar. A natureza absorve tudo. Essa atitude demenina a acompanhara desde então, junto com o aroma doce de sálviadaquele instante à beira da estrada. Eastwick, por sua vez, era beijadapelo mar a cada instante. A Dock Street, com suas elegantes lojas develas perfumadas e arremates para cordinhas de persiana feitos devidro artesanal oferecidos aos turistas de verão, seu restauranteantiquado com balcão de alumínio ao lado da padaria, o barbeirocontíguo a uma casa de molduras, a pequena e movimentada redaçãode jornal e a comprida loja de ferragens administrada por armênios,era indissociável da água salgada que escorria, deslizava e escoavapelas canaletas e entre as estacas sobre as quais a rua havia sidoparcialmente construída, de modo que um brilho sinuoso de mar,estriado e cor de água-marinha, cintilava e tremulava nos rostos das

matronas da cidade enquanto elas carregavam suco de laranja e leitedesnatado, carne para o almoço, pão integral e cigarros com filtrocomprados na mercearia Bay Superette. O verdadeiro supermercado,onde se fazia as compras semanais, ficava mais distante do mar, notrecho de Eastwick outrora ocupado por terras agrícolas; ali, no séculoXVIII, latifundiários aristocratas, donos de grande quantidade deescravos e gado, visitavam uns aos outros a cavalo, com um escravo agalope na frente para abrir sucessivos portões. Agora, nos hectaresasfaltados do estacionamento do shopping, a fumaça dos canos dedescarga tingia com vapores de chumbo o ar da lembrança oxigenadopor campos de repolhos e batatas. Lá onde o milho, esse notávelartefato agrícola dos índios, havia brotado durante gerações, pequenasempresas sem janelas chamadas Dataprobe ou Computech fabricavammistérios, componentes tão pequenos que os operários usavam gorrosde plástico para evitar que a caspa caísse dentro das minúsculas peçaseletromecânicas.

Embora conhecido por ser o menor dos cinquenta estados dafederação, Rhode Island ainda assim abriga uma estranha vastidãonorte-americana, trechos quase inexplorados em meio a regiõesindustriais, casas abandonadas e mansões desertas, terrenos vaziosatravessados apressadamente por estradas pretas e retas, áreasalagadas que parecem pântanos e praias desertas de ambos os ladosda baía, essa imensa cunha de água cravada qual uma estaca até ocoração do estado e sua capital de nome religioso, Providence. “Osconfins da criação”, “o esgoto da Nova Inglaterra”: era assim queCotton Mather1 se referia a essa região. Jamais prevista para ser umaentidade independente, povoada por marginais como a herege econdenada Anne Hutchinson, esse território contém uma infinidadede meandros e vincos. Sua placa rodoviária preferida mostra um parde flechas apontando cada qual para um lado. Pobre e pantanosa emalguns trechos, em outros se transformou no parque de diversões dos

extremamente ricos. Refúgio de quacres e antinomianos, últimosestágios do puritanismo, é administrada por católicos, cujaschamativas igrejas vitorianas parecem navios de carga em meio a ummar de arquitetura desinteressante. Lá se pode ver uma espécie demancha metálica verde, entranhada bem fundo nas telhas que datamda época da Grande Depressão, que não existe em nenhum outrolugar. Uma vez atravessada a fronteira do estado, seja em Pawtucketou Westerly, ocorre uma sutil mudança, um alegre desequilíbrio, umdesprezo pelas aparências, uma quimérica falta de interesse. Para ládos barracos de ripas de madeira abrem-se descampados lunares ondeapenas uma venda de beira de estrada oferecendo os fantasmas dospepinos em conserva do último verão trai a presença ansiosa eperturbadora do homem.

Era esse trecho deserto que Alexandra agora percorria de carropara dar uma olhada na velha mansão Lenox. Dentro de suacaminhonete Subaru cor de abóbora, levava consigo seu labradorpreto, Carvão. Ela havia deixado os últimos vidros esterilizados demolho esfriando na bancada da cozinha e, usando um ímã do Snoopy,prendera na porta da geladeira um recado para os quatro filhos:

LEITE NA GELADEIRA, NEGRESCO NA CAIXA DE PÃO, VOLTO DAQUI A UMAHORA, BEIJOS.

Na época em que Roger Williams, fundador de Rhode Island,ainda era vivo, a família Lenox tinha roubado dos chefes da triboNarrangansett terra suficiente para constituir uma baronia europeia, e,embora um certo major Lenox tivesse morrido heroicamente naGrande Batalha do Pântano durante a Guerra do Rei Felipe, e seutataraneto Emory tivesse defendido com eloquência a separação entreNova Inglaterra e os outros estados da União na Convenção deHartford em 1815, a família de modo geral tivera uma trajetóriadescendente. Quando Alexandra chegara em Eastwick, já não havia

mais nenhum Lenox em South County, com exceção de uma viúvaidosa, Abigail, que vivia no estagnado e esquisito vilarejo de OldWick; ela percorria as ruelas resmungando e se esquivando daspedrinhas lançadas por crianças, que, chamadas pelo chefe de polícialocal para se explicar, alegavam estar se defendendo do mau-olhado.As vastas terras do clã haviam sido desmembradas muito tempoantes. O último homem capaz da família mandara construir em umailha que os Lenox ainda possuíam, no trecho de pântano salgado atrásda praia de East Beach, uma mansão de tijolos que era uma imitaçãoacanhada mas localmente impactante dos palacianos “chalés” deverão edificados em Newport durante essa época de ouro. Emborauma passarela tivesse sido construída e sua altura repetidamenteaumentada por novas importações de cascalho, a mansão sempresofria com a desvantagem de ficar isolada quando a maré subia, e foraocupada durante breves períodos desde a década de 1920 por umasucessão de proprietários que a haviam deixado mergulhar em umestado de decadência. As grandes telhas, algumas avermelhadas,outras de um cinza azulado, despencavam sem que ninguém vissedurante as tempestades de inverno e, no verão, despontavam comolápides sem nome em meio à grama alta que ninguém vinha cortar; asmodernas e astuciosas calhas e proteções para o pé das portas, todasfeitas de cobre, haviam ficado esverdeadas e apodrecido; o intrincadodomo octogonal com vista para todas as direções entortara para o ladoleste; as imensas chaminés nas duas extremidades da casa, articuladascomo feixes de tubos de um órgão ou pescoços muito musculosos,precisavam de cimento novo e estavam perdendo tijolos. Porém, vistade longe, na opinião de Alexandra a silhueta da grande mansão aindatinha uma grandiosidade bastante impressionante. Ela havia parado ocarro no acostamento da rua da praia para admirá-la da outra pontado quase meio quilômetro de pântano.

Era setembro, estação das grandes marés; nessa tarde, o pântanoentre aquele ponto e a ilha parecia um lençol d’água tingido de azul-

celeste e salpicado pelas extremidades dos juncos já ficando douradas.Faltavam uma ou duas horas para a passarela se tornar intransitável.Agora passava das quatro da tarde; o céu que ocultava o sol estavaimóvel e pesado feito um pano. Antigamente, a mansão estariaescondida por uma aleia de olmos que subia prolongando a passarelaaté a porta da frente, mas as árvores tinham morrido da doençaholandesa que costuma acometer a espécie e tudo que restava eramcotos altos privados de seus amplos galhos, parecendo homensenvoltos em sudários, curvados como aquela estátua de Balzac sembraço esculpida por Rodin. A casa tinha uma fachada austera,simétrica, com muitas janelas que pareciam um pouco pequenas —sobretudo na fileira do segundo andar que margeava toda a extensãologo abaixo do telhado sem variação: o andar dos criados. Alexandrajá havia entrado na casa, anos antes, quando, ainda tentando fazer ascoisas que se esperava de uma esposa, acompanhara Ozzie a umconcerto beneficente realizado no salão de baile. Lembrava-se depouca coisa além de uma sequência de cômodos parcamentemobiliados cheirando a maresia, mofo e prazeres esquecidos. Otelhado malcuidado tinha o mesmo tom escuro que se espalhava pelocéu vindo do norte — não, o que perturbava o ambiente era mais doque nuvens. Uma fumaça esgarçada e branca subia da chaminé daesquerda. Havia alguém dentro da casa.

O homem com pelos nas costas das mãos.O futuro amante de Alexandra.Mais provavelmente, pensou ela, um operário ou vigia contratado

por ele. Seus olhos ardiam de tanto se esforçar para ver ao longe, detanto se concentrar. Assim como o céu, suas entranhas haviam seadensado para formar uma certa escuridão, uma sensação de que elaera uma espectadora patética. Agora o desejo feminino ocupava aspáginas de todos os jornais e revistas; a equação sexual havia seinvertido à medida que moças de boa família se jogavam em cima deroqueiros abrutalhados, e guitarristas rudes e barbados saídos dos

barracos de Liverpool ou de Memphis eram de alguma formaimbuídos de um poder indecente, como sóis negros transformandoem bacantes suicidas essas filhas criadas com tanto resguardo.Alexandra pensou em seus tomates, no sumo da violência sob a peleretesada e complacente. Pensou na filha mais velha, sozinha em seuquarto com aqueles tais The Monkees e The Beatles... mas uma coisaera Marcy, outra totalmente diferente era sua mãe estar assimdesejosa, apertando os olhos no esforço de ver.

Alexandra cerrou os olhos com força, tentando sair do transe.Tornou a entrar no carro junto com Carvão e percorreu o quase umquilômetro de estrada preta e reta até a praia.

Depois da temporada, se não houvesse ninguém por perto, erapossível andar com um cachorro sem guia. Mas o dia estava quente, evelhos carros e kombis com cortinas nas janelas e listras psicodélicascoalhavam o exíguo estacionamento; além das cabanas para banhistase da barraquinha de pizza, várias pessoas trajando roupa de banhoestavam deitadas de costas com seus rádios, como se o verão e ajuventude nunca fossem terminar. Em respeito ao regulamento dapraia, Alexandra havia trazido um pedaço de varal no chão do bancode trás. Carvão se remexeu de contrariedade quando ela passou acorda por sua coleira cheia de tachinhas. Todo músculos e ansiedade,o cão a foi puxando pela areia que dificultava os passos. Ela paroupara tirar as alpargatas bege, e o cachorro engasgou; ela largou ossapatos atrás de um tufo de grama de praia junto ao final do deque demadeira. Os segmentos de um metro e oitenta do deque haviam sidoespalhados por uma recente maré alta, que também deixara em cimada areia plana junto ao mar uma coleção de garrafas de água sanitária,invólucros de absorventes internos e latinhas de cerveja que haviampassado tanto tempo boiando que seus rótulos coloridos tinham sedesintegrado; essas latinhas sem rótulo tinham um aspecto assustador— neutras como as bombas que os terroristas fabricam e depoisdeixam em lugares públicos para derrubar o sistema e assim pôr fim à

guerra. Carvão seguiu puxando, e os dois passaram por uma pilha derochas quadradas incrustadas de cracas que antes faziam parte de umquebra-mar construído quando aquela praia era um parque dediversões para ricos e não um parquinho público explorado além desua capacidade. As rochas eram de um granito claro sarapintado depreto, e em uma das maiores estava chumbada uma prateleira que osanos haviam carcomido até lhe conferir a mesma fragilidade de umaescultura de Giacometti. O barulho dos rádios dos jovens, um tipomais aéreo de rocha, flutuava à sua volta enquanto ela caminhava,consciente do próprio peso, do aspecto de bruxa que devia ter comseus pés descalços, seu jeans largo e sua surrada jaqueta de brocadoverde, uma jaqueta argelina que ela e Ozzie tinham comprado emParis na lua de mel, dezessete anos antes. Embora no verão sua peleadquirisse o tom moreno dos ciganos, Alexandra tinha sanguenórdico; seu nome de solteira era Sorensen. Sua mãe havia lhe faladomuitas vezes sobre a superstição em relação a trocar a inicial dosobrenome depois de casada, mas Alexandra na época não ligava paramagia e estava louca para ter filhos. Marcy fora concebida em Paris,sobre uma cama de ferro.

Alexandra usava os cabelos em uma única trança grossa que desciapelas costas; às vezes prendia a trança na nuca como uma espécie decoluna vertebral. Seus cabelos nunca tinham ostentado o verdadeirolouro platinado de um viking, mas uma cor clara indistinta agora maisembaçada ainda pelos fios grisalhos. A maior parte dos cabelosbrancos tinha nascido na frente; os da nuca ainda eram tão finosquanto os das garotas que pegavam sol ali na praia. As pernas lisas ejovens pelas quais ela passava tinham a mesma cor de caramelo,cobertas de penugem clara, e estavam todas alinhadas como em umaatitude de solidariedade. A parte de baixo do biquíni de uma dasmeninas reluzia sob a luz chapada, esticada e simples como umtambor.

Carvão seguia adiante, fuçando, imaginando algum cheiro, algum

relento de animal fugidio em meio ao odor de algas da praia. Apopulação de banhistas foi diminuindo. Um jovem casal estavaabraçado em um espaço que haviam cavado na areia coalhada defurinhos; o rapaz murmurava na base do pescoço da moça comoquem fala em um microfone. Um trio de homens excessivamentemusculosos, com os longos cabelos a esvoaçar enquanto pulavam esoltavam grunhidos, jogava frisbee, e somente quando Alexandradeixou de propósito o forte labrador preto puxá-la bem para o meiodo grande triângulo do jogo foi que eles cessaram seus golpes e gritosinsolentes. Ela pensou ter escutado um “megera” ou “canhão” atrásde si depois de passar, mas talvez tivesse sido uma ilusão auditiva,uma palavra equivocada emitida pelas ondas do mar. Estava seaproximando de onde um muro de concreto erodido encimado poruma hélice de arame farpado enferrujado marcava o fim da praiapública; ali também ainda havia grupos de jovens e de pessoas quebuscavam a juventude, e ela não se sentiu à vontade para soltar opobre Carvão, embora este não parasse de engasgar tentando selibertar da coleira. O seu desejo de correr fazia a corda arder na mãode Alexandra. O mar parecia estranhamente parado — petrificado,marcado apenas por listras leitosas bem lá longe, onde uma pequena esolitária lancha fazia zumbir a caixa de ressonância de sua superfícielisa. Do outro lado de Alexandra, mais perto, ervilhas do mar ekudsonias peludas desciam rastejando das dunas; a praia ali seestreitava e tornava-se íntima, como se podia constatar pelosmontinhos de latas, garrafas e madeira queimada, pelos pedaços decaixas de isopor e pelas camisinhas parecendo pequenos cadáveres deágua-viva ressequidos. O muro de cimento havia sido pichado comnomes entrelaçados. Por toda parte, a conspurcação havia deixado suamarca, e apenas os passos eram apagados pelo oceano.

Em determinado ponto, as dunas ficavam baixas o suficiente paradeixar entrever a mansão Lenox, de um ângulo diferente e bem maisdistante; as duas chaminés laterais despontavam qual as asas

arqueadas de um gavião de cada lado do domo. Alexandra se sentiuirritada e vingativa. Teve a sensação de que as entranhas lhe doíam;sentia-se incomodada pelo entreouvido xingamento de “megera” epelo xingamento mais amplo e generalizado de toda aquela juventudedespreocupada proibindo-a de soltar seu cachorro para que ele, seuamigo e espírito que a acompanhava, pudesse correr livremente. Eladecidiu limpar a praia para si e para Carvão invocando umatempestade. O tempo interno de cada um sempre tinha relação com otempo externo; era apenas uma questão de reverter a correnteza, algoque acontecia com relativa facilidade uma vez que o poder tivessesido atribuído ao polo principal, ou seja, ao seu eu feminino. Muitosdos notáveis poderes de Alexandra advinham dessa simplesreapropriação do eu que lhe fora atribuído, só alcançada já quase nameia-idade. Somente depois de um pouco mais velha ela passara aacreditar sinceramente que tinha o direito de existir, que as forças danatureza a haviam criado não como um mero acessório e companheira— uma costela torta, como dizia o tristemente célebre Malleusmaleficarum —, mas como o esteio principal da Criação ainda emmovimento, como filha de outra filha e mulher cujas filhas, por suavez, dariam à luz outras filhas. Enquanto Carvão estremecia e ganiade medo, Alexandra fechou os olhos e invocou essa imensa parteinterior de si mesma — esse continuum que remontava a muitasgerações da humanidade até os ancestrais primatas e, antes deles, oslagartos, peixes e algas que geraram em suas tépidas e microscópicasentranhas o primeiro DNA do planeta recém-nascido, um continuumque, na outra direção, estendia-se até o final de toda vida, assumindodiferentes formas, pulsando, sangrando, adaptando-se ao frio, aosraios ultravioleta, ao sol inchado e cada vez mais fraco —, e ordenou aessas profundezas tão prenhes de si própria que escurecessem, que secondensassem, que gerassem uma interface de relâmpagos entre asaltas paredes de ar. E o céu do norte de fato trovejou, um trovejar tãodébil que apenas Carvão escutou. As orelhas do cão se retesaram e

giraram como se as raízes pregadas ao crânio tivessem criado vida.Mertalia, Musalia, Dophalia: em altas sílabas mudas, ela começou ainvocar os nomes proibidos. Onemalia, Zitanseia, Goldaphaira,Dedulsaira. De maneira invisível, Alexandra foi ficando imensa, e emuma espécie de fúria maternal começou a atrair para si todos osmontinhos de vegetação daquela calmaria de setembro, e seus olhosse abriram como se dessem uma ordem. Uma rajada de ar frio soproudo norte, a aproximação de uma frente de ar que arrancou dosmastros as insignificantes bandeirolas das distantes cabanas debanhistas. Naquela ponta da praia, onde a multidão de jovens nus eramais densa, um suspiro coletivo de surpresa se fez ouvir, seguido porgritinhos de animação à medida que o vento se intensificava, e o céupara os lados de Providence se revelou possuidor da mesmadensidade de uma rocha translúcida e arroxeada. Gheminaiea,Gegropheira, Cedani, Gilthar; Godieb. Na base dessa colina atmosférica,cúmulos-nimbos que segundos antes pareciam inócuos como flores aflutuar em um lago haviam começado a ferver, e suas bordasbrilhavam feito mármore em contraste com o ar cada vez mais escuro.A própria visão foi alterada, de modo que a vegetação da praia e assalicórnias rasteiras junto aos pés descalços de Alexandra, cheios decalos e deformados por anos calçando sapatos concebidos pelosdesejos dos homens e por noções cruéis de beleza, pareciamdesenhados em negativo sobre a areia cuja superfície marcada e cheiade furinhos, subitamente colorida de lilás, parecia se erguer como apele de uma bolha a inflar com a pressão da mudança atmosférica. Osjovens malcriados tinham visto seu frisbee lhes sair voando das mãoscomo uma pipa, e corriam para recolher os rádios portáteis e packs decerveja, os tênis, jeans e camisetas tie-dye. A moça do casal que haviacavado um buraco na areia para se deitar estava inconsolável; elasoluçava enquanto o rapaz, com uma pressa atabalhoada, tentavaprender novamente as alças soltas da parte de cima de seu biquíni.Carvão latia para nada, em uma direção e depois na outra, à medida

que a queda da pressão atmosférica ia enlouquecendo seus ouvidos.Então o imenso e impenetrável oceano, pouco tempo antes

tranquilo até Block Island, sentiu a mudança. Sua superfície seencrespou e se franziu nos pontos em que foi tocada pelas sombrasdas ondas — e esses pedaços quase encolheram, como algo que seincendeia. O motor da lancha zumbiu mais alto. As velas ao marhaviam desaparecido, e o ar vibrava com a mistura de ruídos dosmotores auxiliares resfolegando rumo ao porto. Um breve silêncioentalou na garganta do vento, e então a chuva começou a cair, grandesgotas geladas que feriam como granizo. Os amantes cor de melpassaram por Alexandra, correndo em direção aos carros parados naoutra ponta do estacionamento, junto às cabanas de banhistas. Otrovão rugiu no alto da colina de ar escuro, diante da qual passavamdepressa pequenos pontinhos de cinza mais claro parecendo gansos,oradores gesticulantes, novelos se desenrolando. As grandes gotasque machucavam se transformaram em uma chuva mais fina, maisapertada, que embranqueceu em listras como se o vento as tocassecomo as cordas de uma harpa. Alexandra ficou parada enquanto aágua fria a cobria; bem lá no fundo de si, continuava a recitar: Ezoill,Musil, Puri, Tamen. A seus pés, Carvão gania; ele havia feito o varaldar várias voltas em torno das pernas da dona. Seu corpo, com ospelos bem grudados aos músculos, reluzia e tremia. Através dos véusde chuva, ela viu que a praia estava deserta. Desamarrou a guia decorda e soltou o cachorro.

Mas Carvão continuou encolhido junto a seus tornozelos,alarmado ao ver um raio brilhar uma vez e depois outra: um raioduplo. Alexandra contou os segundos até o barulho do trovão: cinco.Por um cálculo aproximado, isso significava que a tempestade por elaconjurada atingia uma área de pouco mais de três quilômetros dediâmetro, considerando que aqueles raios estavam no centro. O trovãorugia e praguejava de forma desconexa. Pequeníssimos caranguejosde areia sarapintados começaram a emergir de suas tocas às dezenas,

e a correr de lado em direção ao mar cheio de espuma. A cor de suascarapaças era tão semelhante à da areia que eles pareciamtransparentes. Alexandra tomou coragem e esmagou um deles com asola do pé descalço. Sacrifício. Sempre é preciso haver sacrifício. Essaera uma das regras da natureza. Ela começou a pular de caranguejoem caranguejo, esmagando-os. Da linha dos cabelos até o queixo, seurosto estava banhado de chuva, e por causa da agitação de sua auraesse filme líquido continha todas as cores do arco-íris. O relâmpagonão parava de tirar seu retrato. Alexandra tinha uma covinha noqueixo e outra menor, quase imperceptível, na ponta do nariz; suabeleza austera vinha do candor das sobrancelhas fartas sob as asas depontas cinzentas dos cabelos afastados simetricamente do rosto paraformar a trança, e da cor clara dos olhos levemente protuberantes,cujas íris de um cinza metálico eram empurradas para as bordas comose cada pupila muito preta fosse um ímã ao contrário. Seus lábiostinham uma carnosidade sisuda e cantos bem marcados que lhesdavam a aparência de um sorriso. Aos catorze anos, ela já media ummetro e setenta e três, e aos vinte pesava cinquenta e quatro quilos emeio; agora seu peso girava em torno de setenta e três quilos. Um dosaspectos libertadores de se tornar uma bruxa fora que ela haviaparado de se pesar o tempo todo.

Assim como os caranguejos eram transparentes sobre a areiasarapintada, Alexandra, encharcada até os ossos, teve a sensação deser transparente para a chuva, de estar em comunhão com a chuva, deque a temperatura da água e a do seu sangue haviam se equiparado.O céu acima do mar agora se organizara em listras horizontaisembaçadas; o trovão diminuiu para se transformar em murmúrio, e achuva se tornou um chuvisco morno. Aquele toró nunca iria entrarnos registros meteorológicos. O primeiro caranguejo que ela haviaesmagado ainda agitava as patas, como minúsculas penas descoradasagitadas por uma brisa. Carvão, que finalmente havia superado omedo, corria em círculos cada vez maiores, somando suas pegadas de

quadrúpede aos desenhos triangulares dos pés das gaivotas, aosarranhões mais delicados dos maçaricos, e às linhas pontilhadasdeixadas pelos passos dos caranguejos. Essas pistas que apontavampara outras formas de ser — ser um caranguejo, mover-sediagonalmente nas pontas dos pés com os olhos na ponta de hastes!Ser uma craca, e viver de cabeça para baixo dentro de um pequenobalde dobrável jogando comida em direção à boca! — haviam sidofuradas pelas gotas de chuva. A areia encharcada tinha a mesma cordo cimento. As roupas que ela vestia, e até mesmo a sua roupa debaixo, estavam agora grudadas à pele, dando-lhe a sensação de seruma estátua de Segai, imaculadamente branca, com todos os seussinuosos tubos e todos os seus ossos lambidos por uma espécie debruma. Alexandra andou até o final da praia pública agora deserta, foiaté o muro encimado pelo arame farpado e voltou. Chegou aoestacionamento e recolheu as alpargatas ensopadas onde as haviadeixado, atrás de um arbusto de Ammophila breviligulata. As compridasfolhas parecidas com lanças da planta reluziam, depois de teremrelaxado as extremidades na chuva.

Ela abriu a porta do Subaru e virou-se para gritar por Carvão, quehavia sumido nas dunas. “Aqui, Carvão!”, cantarolou aquela mulherimponente e roliça. “Aqui, meu filhote! Aqui, meu anjo!” Aos olhosdos jovens encolhidos dentro das cabanas de banhistas cobertas portelhas cinzentas e debaixo do toldo da barraquinha de pizza (listradanas cores de tomate e de queijo), com suas toalhas encharcadas echeias de areia e sua pele vergonhosamente arrepiada, Alexandrapareceu milagrosamente seca, sem sequer um fio da volumosa trançafora do lugar, sem sequer um pedacinho úmido da jaqueta de brocadoverde. Foi esse tipo de impressão impossível de ser confirmada queespalhou entre nós, em Eastwick, o boato de bruxaria.

Alexandra era artista. Usando poucas ferramentas além de palitosde dente e uma faca rombuda de aço inox, ela beliscava e apertava obarro para dar forma a pequenas esculturas deitadas ou sentadas,sempre mulheres, usando roupas chamativas pintadas sobre ocontorno dos corpos nus; as esculturas eram vendidas por quinze ouvinte dólares em duas lojas da cidade chamadas Yapping Fox eHungry Sheep. Alexandra não fazia ideia de quem as comprava, nempor quê, nem do motivo exato pelo qual as fazia, nem quem lhedirigia a mão. O dom da escultura havia surgido junto com seusoutros poderes, na época em que Ozzie se transformara em poeiracolorida. O impulso a acometera certo dia de manhã quando elaestava sentada à mesa da cozinha, com as crianças na escola e a louçajá lavada. Nessa primeira manhã, ela havia usado a massa de modelarde um dos filhos, mas depois, em termos de matéria-prima, passou adepender de um caulim de extraordinária pureza que ia buscar emuma pequena barreira perto de Coventry, uma superfície escorregadiade terra branca untuosa no quintal dos fundos da casa de uma viúvaidosa, atrás dos escombros cheios de limo de um velho barracão e dochassi de um Buick do pré-guerra igualzinho, por uma assustadoracoincidência, ao que outrora o pai de Alexandra dirigia até Salt LakeCity, Denver, Albuquerque e as cidades desertas situadas entre elas.Seu pai vendia uniformes profissionais, macacões e calças jeans antesde estas entrarem na moda — antes de se tornarem a roupa domundo, o uniforme que apaga o passado. Você levava o seu própriosaco de aniagem até Coventry e pagava à viúva doze dólares por sacode caulim. Se os sacos ficassem pesados demais, ela ajudava a

carregar; assim como Alexandra, era uma mulher forte. Emborativesse pelo menos sessenta e cinco anos, tingia os cabelos de uma corde bronze reluzente e usava terninhos de calça azul-turquesa ou corde carmim tão justos que a carne sob seu cinto ficava espremida,formando rolos parecidos com linguiças. Isso era agradável.Alexandra lia nisso uma mensagem para si mesma: envelhecer podeser algo alegre, contanto que se continue forte. A viúva tinha umarisada sonora e usava grandes argolas de ouro nas orelhas, mantendosempre afastados os cabelos cor de cobre para exibir os brincos. Umou dois galos perambulavam com seu passo hesitante e altivo pelagrama alta do quintal mal cuidado; a parte dos fundos da estreita casade madeira da mulher havia descascado até expor a madeira cinzenta,embora a parte da frente estivesse pintada de branco. Alexandra, coma traseira do Subaru vergada sob o peso da argila da viúva, semprevoltava dessas visitas reconfortada e animada, acreditando que umaconspiração de mulheres era o que sustentava o mundo.

Suas esculturas eram de certa forma primitivas. Sukie, ou talvezJane, as havia apelidado de “peitudas” — roliços corpos de mulhercom dez ou doze centímetros de altura, muitas vezes sem rosto nempés, encolhidas ou curvadas em poses reclinadas, e mais pesadas doque se esperava quando pegas na mão. As pessoas pareciam achá-lasreconfortantes e as levavam embora das lojas em um fluxo regular eoscilante que se intensificava no verão, mas perdurava até mesmo emjaneiro. Alexandra esculpia suas formas desnudas, espetando nelasum palito de dentes para fazer o furo do umbigo e nunca seesquecendo de marcar com um discreto traço a fenda da vulva, emprotesto contra a falsa lisura daquele pedaço das bonecas com as quaisbrincara quando criança; depois pintava as roupas, às vezes roupas debanho em tons pastel, outras vezes vestidos incrivelmente justosestampados com bolinhas, asteriscos ou listras onduladas de um marde história em quadrinhos. Não havia duas esculturas iguais, emboratodas fossem irmãs. Esse procedimento era ditado pela sensação de

que, assim como roupas eram vestidas a cada manhã para cobrirnossa nudez, da mesma forma elas deveriam ser pintadas, e nãoesculpidas, naqueles corpos primevos de argila macia e arredondada.Ela assava duas dúzias de esculturas de cada vez em um pequenoforno de cerâmica elétrico sueco em um quartinho contíguo à cozinha,um quartinho inacabado mas com piso de madeira, ao contrário docômodo seguinte, um depósito com chão de terra batida onde eramguardados velhos vasos de plantas, ancinhos, enxadas, galochas epodões. Autodidata, Alexandra praticava a escultura havia cinco anos— desde antes do divórcio, para o qual, assim como a maioria dasmanifestações do florescer de seu eu interior, esse ofício haviacontribuído. Seus filhos, sobretudo Marcy, mas também Ben e opequeno Eric, detestavam as peitudas, que consideravam indecentes,e certa vez, em uma agonia movida pela vergonha, haviamesmigalhado uma fornada que estava esfriando; mas agora elesestavam conformados, como se as esculturas fossem irmãosdefeituosos. Crianças são feitas de um barro que, até certo ponto,permanece maleável, embora esgares irremediáveis surjam em suasbocas e um verniz de distância endureça seus olhares.

Jane Smart também tinha inclinações artísticas — era musicista.Dava aulas de piano para fechar as contas no fim do mês, e às vezessubstituía o regente do coral nas igrejas das redondezas, mas suapaixão era o violoncelo; seus sons vibrantes e melancólicos, prenhescom a tristeza do grão da madeira e com a sombra generosa dasárvores, emanava em horas tardias e enluaradas das noites quentespela tela das janelas de sua antiga casa de fazenda que se amontoava,entre muitas outras, nas ruas sinuosas do empreendimento residencialdos anos 1950 chamado Cove Homes. Seus vizinhos nos outrosterrenos de mil metros quadrados, marido e mulher, criança ecachorro, andavam de um lado para o outro, despertados pela música,e ponderavam se deveriam ou não chamar a polícia. Raramente ofaziam, desanimados e talvez intimidados por algo nu, por um

esplendor e uma tristeza contidos na música de Jane. Parecia maisfácil voltar a dormir, ninados pelas escalas simultâneas, primeiro emterças, depois em sextas, dos études de Popper, ou então, vezes semconta, pelos quatro compassos de semicolcheias ligadas (em que ovioloncelo fala quase sozinho) do segundo andante do “Quarteto decordas nº 15 em lá menor”, de Beethoven. Jane não tinha jeito parajardinagem, e o abandonado emaranhado de rododendros, hortênsias,tuias, bérberis e buxinhos em volta dos alicerces da casa ajudava aabafar o som que saía pelas janelas. Vivia-se uma época de muitosdireitos alardeados e de músicas tocadas em público sem nenhumacanhamento, em que até o supermercado tocava sua versão muzak deSatisfaction e I got you, babe, e sempre que dois ou três adolescentes sereuniam o espírito de Woodstock era celebrado. Não era o volume dapaixão de Jane que incomodava, e sim seu timbre, em que as notasmuitas vezes hesitavam mas acabavam soando no mesmo tom grave erigoroso. Alexandra associava essas notas sombrias às escurassobrancelhas de Jane, e à insistência arrebatada em sua voz para obteruma resposta, para escutar uma fórmula capaz de encaixar a vida noseixos e capturar-lhe o segredo, em vez de seguir vagando, como faziaAlexandra, na crença de que o segredo era onipresente, um elementosem cheiro que pairava no ar e servia de alimento aos pássaros e àsplantas que o vento fazia dançar.

Sukie não tinha nada que se atrevesse a chamar de talento artístico,mas adorava a existência social, e havia sido forçada pelascircunstâncias que acompanham o divórcio a escrever para osemanário de Eastwick, chamado Word. Enquanto subia e descia aDock Street com seu passo célere e cadenciado, os ouvidos atentos afofocas e refletindo sobre a prosperidade das lojas, as chamativasesculturas de Alexandra na vitrine da Yapping Fox ou um cartaz naloja de ferragens dos armênios, anunciando um concerto de música decâmara que iria acontecer na igreja unitarista e contava com aparticipação de Jane Smart, violoncelo, lhe causavam a mesma

emoção que o cintilar de um vidro do mar no meio da areia da praiaou uma moeda de vinte e cinco cents encontrada reluzindo na calçadasuja — um pequeno código soterrado na bagunça da existênciacotidiana, um lampejo de comunicação entre o mundo interior e oexterior. Ela adorava as duas amigas, e esse sentimento era recíproco.Nesse dia, depois de datilografar seu relatório sobre as reuniões davéspera do Comitê Fiscal (uma chatice: as mesmas velhas viúvas semterras implorando por descontos) e do Comitê de Planejamento (semquorum: Herbie Prinz estava nas Bermudas) na prefeitura, Sukieestava ansiosa por receber Alexandra e Jane em casa para um drinque.As três geralmente se encontravam às quintas-feiras, na casa de umadelas. Sukie morava no centro da cidade, o que era prático para otrabalho, embora sua casinha quadrada de dois andares da década de1760 praticamente em miniatura, localizada em uma espécie debequinho em curva que saía da Oak Street e se chamava HemlockLane, sequer se comparasse à espaçosa casa de fazenda — seisdormitórios, doze hectares, uma caminhonete, um carro esporte, umjipe, quatro cachorros — em que havia morado com Monty. Mas asamigas faziam isso parecer engraçado, uma espécie de farsa ouinterlúdio mágico; em geral, para seus encontros, as três vestiamalguma fantasia estranha e colorida. Usando um xale parse bordado afio de ouro, Alexandra entrou, abaixando a cabeça, pela porta lateralda cozinha; nas mãos, como dois pesos de ginástica ou indíciosmanchados de sangue, trazia dois vidros de seu molho de tomateapimentado com manjericão.

As bruxas se cumprimentaram com dois beijos no rosto.“Tome, querida; sei que você prefere sabores mais secos e

acastanhados, mas...”, disse Alexandra naquela voz de contraltoanimada que saía bem lá do fundo da garganta como uma russadizendo byelo. Sukie pegou os dois presentes gêmeos com as própriasmãos, mais esguias, cujas costas frágeis eram cobertas de sardasclaras. “Este ano, por algum motivo, os tomates brotaram

loucamente”, prosseguiu Alexandra. “Enchi uns cem vidros dessemolho, e então, outro dia, saí para o jardim e gritei: ‘Fodam-se, o restode vocês pode apodrecer!’.”

“Eu me lembro do ano das abobrinhas”, disse Sukie, pousando osvidros obedientemente em uma prateleira do armário da qual jamaisos tiraria. Como tinha dito Alexandra, Sukie adorava coisas secas desabor acastanhado: aipo, castanha de caju, pilaf, palitinhos salgadoscobertos de sal grosso, pequenos petiscos do mesmo tipo dos quefaziam seus ancestrais macacos sobreviverem nas árvores. Quandoestava sozinha, ela nunca se sentava para comer, simplesmente ficavaem pé mergulhando biscoitos salgados em um pouco de iogurte juntoà pia.da cozinha, ou então levava um pacote de salgadinhos de cebolade setenta e nove cents para o quartinho de televisão junto com umadose caubói de bourbon.

“Eu fiz de tudo”, disse ela a Alexandra, saboreando aquele exagerocom as mãos irrequietas a se agitar na periferia do próprio campo devisão. “Pão de abobrinha, sopa de abobrinha, salada, fritada,abobrinha ao forno recheada com carne moída, abobrinha fatiada efrita, abobrinha cortada em palitos para passar no molho, foi umaloucura. Cheguei até a jogar algumas dentro do liquidificador e dizeràs crianças para passar no pão em vez de manteiga de amendoim.Monty ficou desesperado; disse que até o cocô dele estava com cheirode abobrinha.”

Embora essa lembrança fosse uma referência implícita e prazerosaa seus dias de casada e de fartura, mencionar um ex-marido era umaleve quebra de protocolo, e acabou com a vontade de rir deAlexandra. Sukie era a mais recentemente divorciada e a mais jovemdas três. Era ruiva e magra, com os cabelos soltos nas costas e cortadosretos, e os braços compridos cheios de sardas da mesma cor de cedrodas lascas de um lápis recém-apontado. Usava pulseiras de cobre eum pentagrama pendurado em uma correntinha fina e barata emvolta do pescoço. O que Alexandra, com seus traços pesados,

helênicos, de covinhas duplas, mais adorava na aparência da amigaera seu alegre maxilar protuberante de primata: os dentes grandes deSukie projetavam seu perfil para a frente abaixo do nariz pequenino,criando uma curva, uma saliência sobretudo do lábio superior, queera mais comprido e tinha um formato mais complexo do que oinferior, com um volume de ambos os lados que fazia até mesmo seussilêncios parecerem travessos, como se ela estivesse se divertindo otempo todo. Seus olhos eram cor de avelã, redondos e bem próximosum do outro. Sukie se movia com desenvoltura em sua cozinhaapertada, cheia de objetos abarrotados e com uma pia manchada eminúscula, e por baixo de tudo um cheiro de pobreza remanescentede todas as gerações de Eastwick que tinham morado ali e imposto àcasa suas reformas improvisadas nos séculos em que antigasresidências rústicas como aquela não eram consideradas charmosas.Com uma das mãos, Sukie pegou em uma prateleira do armário umalata de amendoim coberto de açúcar, perversamente doce, e com aoutra retirou do escorredor forrado de borracha da pia uma tigelinhaestampada com ramos de salsa e com uma borda de cobre para servi-los. Com um ruído de caixas sendo abertas, dispôs um punhado debiscoitos salgados sobre uma travessa em volta de uma fatia de queijogouda com casca vermelha e de um pouco de patê comprado nosupermercado e ainda dentro da latinha baixa com o rótulo de umganso sorridente. A travessa era feita de uma cerâmica grosseira,amarelo-alaranjada, e havia sido gravada e vitrificada com umdesenho semelhante a um caranguejo. O signo de Câncer. Alexandratemia o câncer, e via seu emblema por toda parte na natureza — nosarbustos de mirtilo dos locais malcuidados junto às rochas e brejos,nas frutinhas que amadureciam na tuia caída e decomposta do lado defora das janelas de sua cozinha, nas formigas que carregavam grãosparecidos com colinas cônicas nas rachaduras do asfalto de suaentrada de garagem, em todo tipo de multiplicação cega e irresistível.

“O de sempre?”, perguntou Sukie com certa ternura, pois

Alexandra, como se fosse mais velha do que na realidade era, haviadeixado o corpo cair com um suspiro, sem tirar o xale, na únicaconcavidade convidativa da cozinha: uma antiga poltrona azul dereclinar feia demais para ser posta em qualquer outro lugar; oenchimento vazava pelas costuras, e nos cantos dos braços o atrito demuitos pulsos havia deixado uma mancha cinzenta e brilhante.

“Acho que ainda está na hora de beber água tônica”, decidiuAlexandra, pois a tranquilidade que viera junto com sua tempestadede poucos dias antes ainda a acompanhava. “Como anda seu estoquede vodca?”

Alguém certa vez lhe dissera que a vodca não só engordava menoscomo era menos irritante para a parede do estômago do que o gim. Airritação, tanto psíquica quanto física, estava na origem do câncer.Têm câncer aqueles que se permitem estar abertos à ideia do câncer;basta uma única célula enlouquecer. A natureza está sempre noaguardo, esperando você perder a fé para poder desferir o golpe fatal.

Sukie abriu ainda mais o sorriso.“Eu sabia que você viria.” Ela exibiu uma garrafa novinha em

folha de vodca Gordon’s, com a cabeça cortada de javali a encará-lasdo rótulo com seu olho cor de laranja e a língua vermelha presa entreos dentes e uma presa curva.

Alexandra sorriu ao ver aquele monstro simpático.“Bastante tônica, por favooor. Quantas calorias!”A garrafa de água tônica borbulhou nas mãos de Sukie como em

uma reprimenda. Talvez as células cancerosas fossem mais parecidascom bolhas de gás e se infiltrassem na corrente sanguínea, pensouAlexandra. Ela precisava parar de pensar naquilo.

“Onde está Jane?”, perguntou.“Ela disse que iria chegar meio tarde. Está ensaiando para aquele

concerto na igreja unitarista.”“Com aquele Neff horroroso”, comentou Alexandra.“Com aquele Neff horroroso”, repetiu Sukie, lambendo a água

tônica dos dedos e procurando um limão dentro da geladeira vazia.Raymond Neff, homem gordote e efeminado que ainda assim

havia conseguido fazer cinco filhos na esposa alemã desleixada, pálidae de óculos, lecionava música na escola de ensino médio. Como amaioria dos bons professores, era um tirano, melífluo e insistente; comseus modos sebosos, queria ir para a cama com todo mundo.Atualmente, quem estava dormindo com ele era Jane. Alexandrahavia sucumbido algumas vezes no passado, mas o acontecimentotivera tão pouco impacto sobre ela que talvez Sukie sequer se desseconta de suas vibrações, de sua lembrança. A própria Sukie pareciacasta em relação a Neff, mas, afinal de contas, ela estava disponívelhavia menos tempo. Ser mulher e divorciada em uma cidade pequenaera mais ou menos como jogar Banco Imobiliário; depois de algumtempo, você acaba caindo em todas as casas. As duas amigas queriamresgatar Jane que, em uma espécie de pressa indignada, não parava dese vender barato. Quem lhes desagradava era a detestável esposa, comseus cabelos curtos que pareciam ter sido cortados com um podão dejardim, suas expressões erradas pronunciadas com esmero e seu jeitoconcentrado e de olhos arregalados de escutar cada palavra do que osoutros diziam. Quando você vai para a cama com um homem casado,em certo sentido dorme com a mulher dele também, então esta nãodeveria ser de todo constrangedora.

“Jane tem possibilidades tão maravilhosas”, disse Sukie demaneira um tanto automática, enquanto, com movimentos furiososdignos de um macaco, lutava com a máquina de gelo da geladeiratentando produzir mais alguns cubos. Uma bruxa é capaz de congelarágua só com o olhar, mas às vezes o problema é descongelar. Dosquatro cachorros que ela e Monty criavam nos dias de fartura, doiseram esguios weimaraners de pelo marrom-prateado, dos quais elahavia ficado com um, chamado Hank; este agora estava encostado emsua perna na esperança de que ela estivesse se digladiando com ageladeira por sua causa.

“Mas ela se desperdiça”, disse Alexandra, completando a frase. “Sedesperdiça no sentido antiquado da palavra”, acrescentou, pois essediálogo estava ocorrendo durante a Guerra do Vietnã e a guerra tinhadado à palavra um novo e estranho significado. “Se ela leva mesmo amúsica a sério, deveria ir tocar em algum lugar sério, em algumacidade. Que desperdício, uma pessoa que estudou no conservatóriotocar para um bando de peruas velhas e surdas em uma igreja caindoaos pedaços.”

“Ela se sente segura aqui”, disse Sukie, como se o mesmo não seaplicasse a elas duas.

“Aquela mulher sequer toma banho, já reparou no cheiro que elatem?”, indagou Alexandra, referindo-se agora não a Jane, mas a GretaNeff, graças a uma sucessão de associações que Sukie não achou difícilacompanhar, pois seus dois corações estavam totalmente alinhados namesma frequência.

“E aqueles óculos de vovó!”, concordou Sukie. “Parece o JohnLennon.” Ela fez uma espécie de careta de John Lennon, com um arsolene, olhos tristes e lábios finos. “Atcho que podemos beberr nossas— sprechen Sie wass? — bebidaz agorra.” A boca de Greta Neffproduzia um horrível ditongo nada norte-americano, uma espécie dedistorção da vogal contra seu palato.

Tagarelando, as duas levaram as bebidas para o “quartinho”, umpequeno cômodo forrado de papel de parede descascado com umaestampa chamativa e desbotada de trepadeiras e cestos de frutas, ecom um teto de gesso abaulado que exibia uma estranha inclinaçãoporque o quartinho ficava meio encaixado debaixo da escada quesubia para uma espécie de sótão no primeiro andar. A única janela docômodo, alta demais para uma mulher conseguir olhar para fora semestar trepada em um banquinho, tinha vidraças em forma de losangomontadas em uma armação de chumbo, feitas de um vidro grossocheio de bolhas e deformado como fundos de garrafa.

“Um cheiro de repolho”, especificou Alexandra, deixando-se cair

com seu copo alto e prateado de bebida sobre um pequeno sofáforrado com um tecido bordado de berrantes arabescos puídos, comtrepadeiras estilizadas se desfazendo. “Ele tem esse cheiro na roupa”,disse ela, pensando ao mesmo tempo que isso lembrava um poucoMonty e as abobrinhas, e que ela obviamente estava compartilhandocom Sukie esse detalhe íntimo para dar a entender que tinha ido paraa cama com Neff. Por quê? Não era motivo nenhum para sevangloriar. Mas, pensando bem, era, sim. Como ele tinha suado! Aliás,ela fora para a cama com Monty, também, e nunca sentira cheiro deabobrinha. Um dos aspectos fascinantes de se dormir com o maridoalheio era a visão que este proporcionava da própria mulher: ele a viade um jeito que ninguém mais via. Neff via a pobre e feiosa Gretacomo uma espécie de Heidi esquisita e cheia de fitas, um adorávelgalhinho de edelvais que ele havia resgatado de um lugarperigosamente alto e romântico (os dois haviam se conhecido em umacervejaria de Frankfurt quando ele estava servindo na AlemanhaOcidental em vez de ir combater na Coreia), e Monty...

Alexandra fitou Sukie com os olhos apertados, tentando se lembrardo que Monty tinha dito a seu respeito. Ele pouco dissera, projeto decavalheiro que era. Mas certa vez havia deixado escapar, depois dechegar à cama de Alexandra vindo de algum tipo de encontrodesagradável no banco, e ainda preocupado, as seguintes palavras:

“Ela é uma garota encantadora, mas de certa forma não dá sorte.Não dá sorte para os outros, quer dizer. Acho que para si mesma elaaté que dá bastante sorte.” E era verdade: Monty havia perdido boaparte do dinheiro de sua família enquanto estivera casado com Sukie,o que todos haviam atribuído simplesmente à sua própria e pacataestupidez. Ele nunca havia suado a camisa. Sofria daquela deficiênciahormonal dos bem-nascidos: uma incapacidade de se relacionar com aperspectiva de um trabalho árduo. Seu corpo era quase imberbe, comas nádegas macias de uma mulher.

“Greta deve ser ótima de cama”, ia dizendo Sukie. “Todos aqueles

Kinder. Fünf até agora.”Neff havia revelado a Alexandra que Greta era ardente mas

exaustiva, que demorava muito para gozar mas estava sempredecidida a fazê-lo. Ela daria uma péssima bruxa: aqueles alemãesassassinos.

“Precisamos ser simpáticas com ela”, disse Alexandra, voltando aoassunto de Jane. “Quando falamos no telefone ontem, fiqueiimpressionada ao ver como ela estava brava. Essa mulher está emchamas.”

Sukie relanceou os olhos para a amiga, pois o comentário haviasoado ligeiramente em falso. Alguma outra história havia começadopara Alexandra, algum outro homem. Na fração de segundo quedurou o olhar de Sukie, Hank usou a língua pendente de weimaranercinza para varrer dois biscoitos salgados da travessa de caranguejo,que ela havia posto sobre um baú de pinho muito marcadotransformado em mesa de centro por um antiquário. Sukie adoravasuas coisas velhas e gastas; havia nelas uma espécie de viço, comouma fantasia de farrapos vestida pela soprano no segundo ato daópera. A língua de Elank estava voltando pela segunda vez paraarrebanhar o queijo quando Sukie viu o movimento com o canto doolho e deu-lhe um tapa no focinho; o nariz do cão era borrachudo,uma borracha dura como pneus de automóvel, de modo que o tapamachucou seus dedos.

“Ah, seu sem-vergonha”, disse ela ao cachorro, e então se dirigiu àamiga. “Mais brava do que as outras?”

As outras eram elas duas. Sukie deu um gole no bourbon puro. Elabebia uísque no verão e no inverno, e o motivo, do qual já havia seesquecido, era que um namorado em Cornell certa vez lhe dissera quea cor da bebida realçava os pontinhos dourados de seus olhos verdes.Pelo mesmo motivo fútil, ela tendia a usar roupas em tons de marrome feitas de camurça, por causa de seu brilho animal.

“Ah, sim. Nós duas estamos ótimas”, respondeu a mulher mais

corpulenta e mais velha, com a mente a divagar dessa ironia nadireção do assunto de sua conversa com Jane: o recém-chegado àcidade que havia se mudado para a mansão Lenox. No entanto,mesmo ao divagar, sua mente, qual um passageiro dentro de umavião que, em meio à sensação de perigo de vida provocada peladecolagem, olha para baixo e fica maravilhado com a precisão e aglória reluzentes da Terra (as casas com telhados e chaminés tãodefinidos, tão benfeitos, e os lagos parecendo verdadeiros espelhoscomo nos jardins de Natal que nossos pais haviam arrumadoenquanto dormíamos; era tudo verdade, e até os mapas são verdade!),reparou em como Sukie era bonita, com má sorte e tudo, com seucabelo chamativo todo despenteado e até mesmo os cílios parecendoum pouco desgrenhados depois de um dia inteiro datilografando eprocurando a palavra certa sob as luzes ofuscantes, e o corpo tão eretoe esguio vestido com o suéter verde-claro e a saia escura de camurça, abarriga lisa, os seios empinados e altos, as nádegas firmes, e no rostoinsolente aquela boca de lábios carnudos tão travessa, generosa,atrevida.

“Ah, eu ouvi falar no tal homem!”, exclamou ela depois de ler ospensamentos de Alexandra. “Tenho milhares de coisas para contar,mas queria esperar Jane chegar.”

“Eu posso esperar”, disse Alexandra subitamente ressentida, comose de repente uma corrente de ar frio a houvesse atingido, ar friorepresentado por aquele homem e pelo lugar que ele ocupava em suamente. “Essa saia é nova?”

Ela teve vontade de tocar o pano, de acariciá-lo, de sentir suatextura macia e a coxa firme e esbelta que ele cobria.

“Ressuscitei do armário para o outono”, respondeu Sukie. “Naverdade ela é comprida demais, do jeito que as saias estão hoje emdia.”

A campainha da cozinha tocou: um som engasgado, entrecortado.“Essa fiação qualquer dia ainda vai pôr fogo na casa”, profetizou

Sukie enquanto saía correndo do quartinho. Jane já havia entrado.Estava pálida, e seu rosto contraído de olhos acesos estavasobrecarregado por uma volumosa boina molenga cujo quadriculadoberrante combinava com o do cachecol. Ela também estava usandomeias caneladas até os joelhos. Jane não era fisicamente radiante comoSukie, e seu corpo todo apresentava pequenas assimetrias, masmesmo assim ela irradiava uma atração comparável à luz emitida porum filamento retorcido. Seus cabelos eram escuros e sua boca,pequenina, formal, decidida. Ela vinha de Boston, e isso lhe dava umacaracterística que era impossível não notar.

“Aquele Neff é mesmo um cretino”, começou ela depois depigarrear. “Ele nos fez tocar o Haydn mil vezes. Disse que a minhaentonação estava afetada. Afetada. Eu comecei a chorar e o chamei demachista nojento.” Ela escutou as próprias palavras e não conseguiuresistir ao impulso de fazer uma brincadeira. “Devia ter chamado demacho sem jeito, isso sim.”

“Eles não conseguem evitar”, disse Sukie em tom casual. “E só suaforma de pedir mais amor. Lexa está tomando seu drinque dietéticode sempre, vodca com tônica. Eu estou mergulhada cada vez maisfundo no bourbon.”

“Eu não deveria fazer isso, mas estou tão magoada que vou seruma menina má só desta vez e pedir um martíni.”

“Ah, meu bem. Acho que estou sem vermute em casa.”“Não tem problema, meu anjo. Basta me servir um gim com gelo

em um copo de vinho. Você por acaso não teria um pouquinho deraspas de limão?”

A geladeira de Sukie, repleta de gelo, iogurte e aipo, não tinhamuita coisa além disso. Ela sempre almoçava na lanchonete Nemo’sno centro da cidade, a três portas da redação do jornal, depois da lojade molduras, do barbeiro e da sala de leitura da Ciência Cristã, e haviaadquirido o hábito de fazer ali também sua refeição da noite por causadas fofocas que escutava no burburinho da vida de Eastwick que a

cercava na Nemo’s. O pessoal das antigas da cidade se reunia ali,policiais e funcionários da rodovia, pescadores fora de temporada ehomens de negócios momentaneamente falidos.

“Parece que também não tenho nenhuma laranja”, disse ela,abrindo as duas gavetas de verduras de metal verde grudento. “Mascomprei uns pêssegos na barraquinha da beira da rodovia 4.”

“Terei eu a coragem de um pêssego provar?”, entoou Jane, citando T. S.Eliot. “Vestirei uma calça de flanela branca e irei à praia caminhar.” Sukiefez uma careta enquanto observava as mãos agitadas da outra mulher,uma comprida e com tendões salientes de tanto dedilhar as cordas, aoutra meio quadrada e frouxa de tanto segurar o arco, usarem umralador de cenoura cego para cavoucar a casca rosada na parte maismadura do suculento pêssego amarelo. Jane deixou cair dentro docopo a raspa cor-de-rosa; um silêncio sagrado, segredo de qualquerreceita, amplificou o pequeno plof. “Não posso começar a tomar gimpuro tão cedo na vida”, anunciou Jane com uma satisfação puritana,parecendo mesmo assim agitada e impaciente. Pôs-se a caminhar emdireção ao quartinho com aquele seu andar veloz e rígido.

Sentindo-se culpada, Alexandra estendeu a mão para desligar aTV, na qual o presidente dos Estados Unidos, homem lúgubre demaxilar cinzento e olhar contrito e desonesto, estava no meio de umpronunciamento de grande importância para a nação.

“Oi, coisa mais linda”, entoou Jane com uma voz um pouco altapara o pequeno espaço de teto oblíquo. “Não precisa se levantar,estou vendo que já está toda acomodada. Mas me diga uma coisa...aquela tempestade outro dia foi sua?”

A casca de pêssego dentro do cone invertido que continha suabebida parecia um pedacinho brilhante de carne doente conservadoem álcool.

“Depois de conversar com você, eu fui à praia”, confessouAlexandra. “Queria ver se aquele tal homem já estava na casa dosLenox.”

“Eu achei mesmo que tinha deixado você perturbada,pobrezinha”, disse Jane. “E ele estava?”

“Tinha fumaça saindo pela chaminé. Não cheguei a me aproximarcom o carro.”

“Pois deveria, e deveria ter dito que era da Comissão dosCharcos”, interveio Sukie. “O boato que anda correndo pela cidade éque ele quer construir um cais e aterrar um trecho grande o bastanteda parte de trás da ilha para construir uma quadra de tênis.”

“Isso nunca vai ser aprovado”, disse Alexandra a Sukie com umavoz preguiçosa. “E lá que as garças-brancas fazem seus ninhos.”

“Não tenha tanta certeza”, foi a resposta. “Aquele imóvel não paganenhum imposto à prefeitura há muitos anos. Se alguém saldar adívida, os representantes são capazes de expulsar várias garças.”

“Ah, mas que delícia de encontro!”, exclamou Jane, um tantodesesperada, sentindo-se ignorada. Os quatro olhos das amigas sefixaram nela, e ela teve de improvisar. “Greta chegou à igreja logodepois que ele chamou meu Haydn de afetado, e riu”, disse.

Sukie imitou uma risada alemã.“Ho, ho, ho.”“Será que eles ainda trepam?”, perguntou-se Alexandra em voz

alta, sentindo-se à vontade entre as amigas e deixando a mentedivagar e coletar imagens da natureza. “Como será que ele aguenta?Deve ser igual a um chucrute com tesão.”

“Não”, retrucou Jane, firme. “Deve ser igual a... como é mesmoaquele troço branco de que eles tanto gostam? Sauerbraten.”

“E marinado”, disse Alexandra. “Marinado em vinagre com alho,cebola e louro. E pimenta em grão, acho.”

“E sobre esse tipo de coisa que ele conversa com você?”,perguntou Sukie a Jane, irônica.

“Nós nunca falamos sobre isso, nem nos momentos mais íntimos”,disse Jane com afetação. “A única coisa que ele jamais meconfidenciou sobre o assunto foi que ela precisa trepar uma vez por

semana, senão começa a jogar coisas.”“Um poltergeist”, comentou Sukie, encantada. “Uma polterfrau.”“Sério, vocês têm razão”, disse Jane, sem conseguir ver graça

nenhuma na piada. “Aquela mulher é mesmo um horror. Tãopedante; tão arrogante; tão nazista. Coitado do Ray, ele é o único anão ver isso.”

“Fico me perguntando o quanto ela sabe”, ponderou Alexandra.“Ela não quer saber”, disse Jane, enfatizando a afirmação de modo

que o erre da última palavra se arrastou. “Se soubesse, talvez tivesseque tomar alguma atitude a respeito.”

“Como, por exemplo, libertá-lo”, contribuiu Sukie.“Aí nós todas teríamos de lidar com ele”, disse Alexandra,

imaginando aquele homem gordote e moreno como um tornado, umvoraz reservatório natural de desejo. O desejo vinha em recipientestotalmente fora de proporção.

“Aguente firme, Greta!”, intrometeu-se Jane, finalmenteentendendo a graça da conversa.

As três deram risada.A porta lateral bateu com um barulho solene, e passos lentos

subiram a escada. Não era um poltergeist, e sim um dos filhos deSukie chegando em casa da escola depois de ter ficado retido poralguma atividade extracurricular. A televisão do andar de cimaganhou vida com seu reconfortante zumbido de robô.

Gulosa, Sukie havia enfiado um punhado excessivamente grandede castanhas salgadas na boca; pressionou a mão espalmada contra oqueixo para evitar que caíssem pedaços. Ainda rindo, cuspiu algumasmigalhas.

“Ninguém quer ouvir sobre o tal homem novo?”“Não especialmente”, disse Alexandra. “Os homens não são a

resposta, não foi isso que concluímos?”Sukie já havia percebido muitas vezes que, na presença de Jane, o

jeito de Alexandra mudava e ela se tornava um pouco difícil. Quando

estava sozinha com Sukie, ela não tentara disfarçar o interesse poraquele homem novo. As duas tinham em comum uma certa satisfaçãocom o próprio corpo, que com frequência fora chamado de bonito, eAlexandra era suficientemente mais velha (seis anos) para se colocar,quando estavam juntas, em um papel de certa maneira maternal:Sukie espevitada e tagarela, Lexa preguiçosa e sibilina. Quando as trêsse juntavam, Alexandra tinha tendência a dominar, mostrando-se umpouco emburrada e inerte, obrigando as outras duas a irem até ela.

“Eles não são a resposta”, disse Jane Smart. “Mas talvez sejam apergunta.” Só restava um terço do gim dentro de seu copo. O pedaçode casca de pêssego era um bebê esperando para ser lançado seco parao mundo. Do outro lado dos losangos embaçados, melros encerravamruidosamente o dia, preparando o crepúsculo.

Sukie se levantou para fazer um pronunciamento.“Ele é rico”, disse, “e tem quarenta e dois anos. Nunca se casou e é

de Nova York, de uma das antigas famílias holandesas. Obviamentefoi uma criança-prodígio no piano, e além disso é inventor. Todo ogrande salão da ala leste, onde ainda fica a mesa de bilhar, e a área delavanderia abaixo do salão vão ser o laboratório dele, com váriasdaquelas pias de aço inox, tubos de ensaio e coisas assim, e na alaoeste, onde os Lenox tinham aquela espécie de estufa, um jardim deinverno, ele quer mandar pôr uma enorme banheira rebaixada nopiso, com um sistema de som embutido nas paredes.” Seus olhosredondos, bem verdes à luz do fim do dia, brilhavam com ainsanidade de tudo aquilo. “Joe Marino foi contratado para fazer oserviço de encanador e estava falando sobre isso ontem à noite depoisque a reunião ficou sem quorum porque Herbie Prinz viajou para asBermudas sem avisar ninguém. Joe estava uma pilha de nervos:orçamento sem limites, só material da melhor qualidade, que se daneo custo. Uma banheira de teca com dois metros e meio de diâmetro, eo cara não gosta de pisar em cerâmica, então o piso inteiro vai ser feitocom uma ardósia lisa especial que é preciso mandar vir do

Tennessee.”“Ele parece esnobe”, disse Jane.“E esse esbanjador tem nome?”, perguntou Alexandra, pensando

em como Sukie, além de ser colunista de fofocas, também eraromântica, e pensando se uma segunda vodca com água tônica iriadeixá-la com dor de cabeça depois, quando estivesse sozinha em suaimensa e antiga casa de fazenda e a única companhia para seu espíritototalmente desperto fosse a respiração regular dos filhos adormecidos,o coçar incansável de Carvão e a visão pesarosa da lua. No Oeste, umcoiote uivaria nos confins da paisagem lilás e, mais longe ainda, umtrem transcontinental passaria puxando seus quilômetros rastejantesde vagões, e esses ruídos guiariam seu espírito janela afora edissolveriam sua insônia na noite delicada e coalhada de estrelas. Ali,no acidentado e encharcado Leste, tudo era muito próximo; osbarulhos da noite cercavam sua casa feito um arbusto cheio deespinhos. Até mesmo aquelas mulheres, ali na aconchegante pequenatoca de Sukie, estavam muito juntas, de modo que cada pelo preto doleve buço de Jane e a penugem arrepiada cor de âmbar, sensível àeletricidade estática, dos compridos antebraços de Sukie faziam osolhos de Alexandra coçarem. Ela sentia inveja daquele homem, invejado fato de que sua simples sombra bastasse para deixar suas amigastão empolgadas, amigas que em outras quintas-feiras ficavamempolgadas apenas com ela, com seus poderes preguiçosos de rainhaque se espalhavam feito o poder de um felino de parar de ronronar epartir para a matança. Nessas quintas-feiras, as três amigasconjuravam os fantasmas das vidinhas de Eastwick e os faziamzumbir e rodopiar pelo ar cada vez mais escuro. Se estivessem com adisposição adequada e já no terceiro drinque, eram capazes de criaracima de si um vórtice de poder que era como uma tenda que seerguia até o firmamento, e saber bem no fundo de seus corpos quemestava doente, quem estava se afundando em dívidas, quem eraamado, quem estava desesperado, quem estava ardendo de desejo,

quem estava dormindo para se refugiar da má sorte da vida; mas issonão iria acontecer nesse dia. Algo as estava perturbando.

“O nome, que engraçado...”, dizia Sukie, erguendo os olhos para aluz que se esvaía pela janela de armação de metal.

Não conseguia ver através dos altos losangos de vidro embaçado,mas podia visualizar nitidamente a única árvore de seu quintal dosfundos, uma pereira jovem e esguia saturada de peras, formaspesadas e amarelas suspensas como joias cenográficas penduradas emuma criança. Todos os dias agora recendiam a feno e fruta madura, eas pequenas e pálidas flores tardias dos ásteres reluziam noacostamento da estrada feito lixo. “Estava todo mundo dizendo onome dele ontem à noite, e eu já tinha escutado Marge Perley medizer, está na ponta da língua...”

“Da minha também”, disse Jane. “Droga. O nome tem umadaquelas palavrinhas no meio.”

“De, da, do”, sugeriu Alexandra, sem resultado.As três bruxas se calaram ao perceber que, de língua amarrada,

estavam elas próprias sob o feitiço de alguém mais poderoso.

Darryl van Horne compareceu ao concerto de música de câmara naigreja unitarista domingo à noite, um homem grande e moreno, comcabelos cacheados oleosos que lhe escondiam as orelhas quase porinteiro e se embolavam na parte de trás, deixando sua cabeça, vista deperfil, parecida com uma caneca de cerveja dotada de uma alçamonstruosamente grossa. Ele usava uma calça de flanela cinza, meiofrouxa atrás dos joelhos, e um paletó de tweed Harris comcotoveleiras e um curioso e intrincado desenho verde e preto. Uma

camisa de oxford de botões cor-de-rosa, do tipo que se usava nos anos1950, e sapatos fechados estranhamente pequenos e pontudoscompletavam o traje. Ele estava disposto a marcar presença.

“Então é você a escultora da cidade”, disse ele a Alexandra nosalão de festas da igreja, durante o coquetel oferecido após o concertopara os músicos e seus amigos, organizado em volta de um ponchesem álcool de uma cor verde artificial. A igreja era uma pequenaconstrução razoavelmente atraente em estilo greek revival, com umavaranda estreita margeada por colunas dóricas e uma torre baixaoctogonal, situada em Cocumscussoc Way, saindo da Elm e atrás daOak, erguida pelos congregacionalistas em 1823, mas que, umageração mais tarde, havia sucumbido à maré unitarista da década de1840. Mesmo nesses nossos tempos enevoados e tardios de declíniodoutrinário, o interior continuava decorado aqui e ali com algumascruzes, e o salão de festas exibia em uma das paredes uma grandeflâmula de feltro, confeccionada pelos alunos da escola dominical,com a cruz egípcia tau, hieróglifo que significa “vida”, cercada pelosquatro símbolos alquímicos triangulares dos elementos. A categoria“músicos e amigos” incluía todo mundo menos Van Horne, quemesmo assim adentrou o salão. As pessoas sabiam quem ele era; issoaumentava a animação. Quando ele falava, sua voz ressoava de umjeito que não combinava muito com os movimentos da boca e domaxilar, e essa impressão de um elemento artificial em algum pontode seu aparelho fonador era reforçada pelo estranho deslizamento,pela impressão de remendo transmitida por seus traços e pelo excessode saliva que ele produzia ao falar, o que o obrigava a parar de vez emquando para esfregar com violência os cantos da boca com a mangado paletó. No entanto, ele tinha a segurança dos cultos e abastados, ese abaixou bastante para tornar a conversa com Alexandra maisíntima.

“São só umas coisinhas de nada”, disse Alexandra, sentindo-sesubitamente mignon e recatada ao lado daquele gigante moreno de ar

intimidador. Era a fase do mês em que ela estava particularmentesensível à aura dos outros. A daquele fascinante desconhecido tinha omesmo lustro preto amarronzado da pelagem molhada de um castor eerguia-se, tesa, atrás de sua cabeça. “Minhas amigas as chamam deminhas peitudas”, disse ela, esforçando-se para não corar. O esforço afez se sentir um pouco tonta no meio de toda aquela gente. Não estavaacostumada com multidões nem com homens novos.

“Umas coisinhas de nada”, repetiu Van Horne. “Mas tãopoderosas”, disse ele, enxugando os lábios. “Tão cheias de seivapsíquica, sabe, quando você segura uma delas na mão.

Fiquei até sem fôlego. Comprei todas que estavam à vendanaquela loja... como é mesmo o nome? ‘Noisy Sheep’, alguma coisaassim...”

“Yapping Fox”, disse ela, corrigindo o nome da loja. “Ou pode tersido também na Hungry Sheep, a duas portas do lado oposto dabarbearia, se algum dia o senhor quiser cortar o cabelo.”

“Nunca, se puder evitar. Cortar o cabelo tira minha força. Minhamãe costumava me chamar de Sansão. Mas, sim, foi em uma dessasduas lojas. Comprei todas as que eles tinham para mostrar para umamigo meu, um cara incrível, muito tranquilo, que tem uma galeria dearte em Nova York, bem na rua 57. Não cabe a mim prometer o quequer que seja para você, Alexandra... tudo bem se eu a chamar assim?Mas, se você puder começar a criar em uma escala maior, aposto queeu seria capaz de conseguir uma exposição dos seus trabalhos. Talvezvocê nunca chegue a ser nenhuma Marisol, mas poderia muito bemser outra Niki de Saint-Phalle. Sabe, aquela das ‘Nanas’. Essas sim têmescala. Quer dizer, ela se soltou mesmo, não está só de brincadeira.”

Com algum alívio, Alexandra concluiu que aquele homem lhedespertava razoável antipatia. Era insistente, indelicado e boquirroto.O fato de ele ter comprado todas as suas esculturas na Flungry Sheeplhe dava a mesma sensação de um estupro, e ela agora teria de assaruma nova fornada antes do que havia planejado. A pressão causada

por aquela personalidade fizera piorar a cólica que ela já sentia pelamanhã ao acordar, dias antes da data marcada; esse era um dossintomas do câncer: ciclo menstruai irregular. Além disso, ela trouxeraconsigo do Leste um lamentável resquício do preconceito regionalcontra índios e chicanos e, aos seus olhos, Darryl van Horne nãoparecia limpo. Era quase possível distinguir pontinhos pretos em suapele, como se ele fosse uma reprodução em meio-tom. Ele enxugou oslábios com as costas peludas de uma das mãos, e estes estremeceramde impaciência enquanto ela procurava dentro de si uma resposta aomesmo tempo sincera e educada.

Lidar com homens dava trabalho, trabalho que agora lhe causavapreguiça.

“Eu não quero ser outra Niki de Saint-Phalle”, disse ela. “Queroser eu mesma. A potência, como você diz, vem do fato de elas serempequenas o suficiente para caber na mão.” Seu sangue corriaapressado, fazendo arder os capilares do rosto; ela sorriu para simesma por estar alterada, quando intelectualmente já havia concluídoque aquele homem era uma fraude, um personagem irreal. A não serpelo dinheiro; o dinheiro com certeza era real.

Os olhos dele eram miúdos e lacrimejantes, e pareciam ter sidoesfregados.

“Certo, Alexandra, mas o quê você é, afinal? Se pensar pequeno,vai acabar sendo pequena. Não está dando uma chance a si mesmacom essa mentalidade de lojinha de suvenir. Eu nem conseguiacreditar no preço que eles estavam cobrando, de tão baixo... só umasmiseráveis vinte pratas, quando o seu objetivo deveria ser um preçode cinco dígitos.”

Ele tinha a vulgaridade dos nova-iorquinos, percebeu ela e sentiupena dele, recém-aterrissado naquela província sutil. Lembrou-se dasvolutas de fumaça, de como elas haviam parecido frágeis e corajosas.Em tom de quem perdoa, perguntou-lhe:

“O que está achando da sua casa nova? Está bem instalado?”

Entusiasmado, ele respondeu:“E um inferno. Fico trabalhando até tarde, só tenho ideias durante

a noite, e todo dia de manhã por volta das sete e quinze aqueles putosdaqueles caras da obra aparecem para trabalhar! Com aquelas porrasdaqueles rádios! Desculpe o palavreado.”

Ele parecia consciente de precisar ser perdoado; essa necessidade orodeava e irradiava de cada gesto atabalhoado, excessivamenteansioso.

“Você tem que ir me visitar”, disse ele. “Eu preciso de conselhospara tudo. Passei a vida inteira morando em apartamentos ondeoutras pessoas sempre decidem por você, e o cara que contratei é umimbecil.”

“Joe?”“Você conhece?”“Todo mundo conhece o Joe”, disse Alexandra; alguém deveria

avisar àquele forasteiro que ofender os habitantes da cidade não era omelhor jeito de fazer amigos em Eastwick.

Mas a sua língua solta e a sua boca grande prosseguiram, sem amenor vergonha.

“Aquele que vive usando um chapeuzinho gozado?”Ela teve de assentir, mas talvez não precisasse ter sorrido. Às vezes

tinha visões de Joe ainda de chapéu enquanto transava com ela.“Ele não tem nada na cabeça”, disse Van Horne. “O único assunto

sobre o qual quer conversar é como os lançadores do Red Sox estãouma porcaria de novo e como o Pats continua sem defesa. Não que ovelho que está colocando o piso seja nenhum gênio; uma ardósiacaríssima, praticamente um mármore, que tive de mandar vir lá doTennessee, e ele instala metade com o lado áspero virado para cima,onde dá para ver as marcas da serra da pedreira. Esses carniceiros quevocês aqui chamam de peões de obra não iriam durar sequer um diaem um serviço sindicalizado lá em Nova York. Sem querer ofender,posso ver que você está pensando: ‘Mas que esnobe esse cara’, e

imagino que os caipiras não tenham muito como treinar construindogalinheiros; mas não é de espantar que o estado tenha um aspecto tãoestranho. Ei, Alexandra, cá entre nós: eu adoro essa expressão alheadae gélida que você estampa no rosto quando fica na defensiva semsaber o que dizer. E a ponta do seu nariz é uma graça.”Espantosamente, ele estendeu a mão para tocá-la, a ponta do narizcom a covinha que lhe causava tanto embaraço, um toque tão rápido eimpróprio que ela não teria acreditado que de fato acontecera nãofosse pela sensação de frio que ficou em seu rastro.

O que ela sentia por aquele homem não era apenas antipatia: eraódio; no entanto, ela continuou ali sorrindo, sentindo-se encurralada etonta, e perguntando-se o que as suas entranhas embaralhadasestavam tentando lhe dizer.

Jane Smart se aproximou. Para a apresentação, tivera de abrir aspernas, então era a única mulher do recinto a usar um vestido longo,uma mistura cintilante de seda verde-água e detalhes de renda quetalvez lembrasse um pouco demais um vestido de noiva.

“Ah, Partiste”, exclamou Van Horne, e agarrou a mão de Jane nãoem um cumprimento, mas feito uma manicure que a inspecionasse,segurando-a dentro de sua palma larga e soltando-a em seguida, poisera a esquerda que ele queria, a mão de tendões salientes, a mão quededilhava, com seus calos grossos nos pontos em que ela pressionavaas cordas. O homem a transformou em um sanduíche macio no meiodas suas duas mãos cabeludas. “Que entonação”, disse ele. “Quevibrato, que alcance. Sério. Vocês acham que eu sou um loucodesagradável, mas de música eu entendo. E a única coisa que metorna humilde.”

Os olhos escuros de Jane se acenderam; na verdade, brilharam.“Então o senhor não me achou afetada”, disse ela. “O nosso

maestro vive dizendo que a minha entonação é afetada.”“Que idiota”, sentenciou Van Horne, enxugando a saliva dos

cantos da boca. “Você tem precisão, mas isso não é necessariamente

afetação; a precisão é onde começa a paixão. Sem precisão, beaucoup derien, não é mesmo? Até mesmo seu polegar, a posição do seu polegar:você mantém mesmo a pressão, ao passo que vários homens desistemporque dói demais.” Ele levou a mão esquerda de Jane até mais pertodo rosto e acariciou a lateral de seu polegar. “Está vendo isso?”, dissepara Alexandra, brandindo a mão de Jane como se ela fosse uma coisaavulsa, uma coisa morta a ser admirada. “Isso, sim, é um lindo calo.”

Jane puxou a mão de volta, sentindo olhos se virarem em suadireção. O pastor da igreja unitarista, Ed Parsley, já estava reparandona cena. Talvez Van Horne gostasse de uma plateia, pois soltou a mãoesquerda de Jane com um gesto teatral e agarrou a direita, que pendiaao lado do corpo sem proteção, para sacudi-la junto ao seu rostoatônito.

“E esta mão aqui”, disse ele, quase gritando. “É esta mão aqui quefaz tudo desandar. O jeito como você maneja o arco. Meu Deus! O seuspiccato parece um marcato, o seu legato parece um détaché. Querida,você precisa unir essas frases, não está tocando apenas notas umadepois da outra, tra-lá-lá-lá-lá, está tocando frases, está tocando gritoshumanos!”

Como em um protesto silencioso, a boca formal e fina de Jane seescancarou e Alexandra viu lágrimas formarem segundas lentes sobreseus olhos, cujo castanho tinha sempre um tom um pouco mais clarodo que na lembrança de quem os via, uma cor de casco de tartaruga.

O reverendo Parsley veio se juntar a eles. Era um homemrazoavelmente jovem, cercado por uma escorregadia aura demaldição; seu rosto era como um rosto bonito distorcido em umespelho levemente torto — comprido demais da costeleta à narina,como se estivesse sendo eternamente puxado para a frente, e com oslábios excessivamente carnudos e expressivos sempre imobilizados noincansável sorriso de alguém que sabe estar no lugar errado, naplataforma errada da rodoviária em um país onde não se falanenhuma língua conhecida. Embora tivesse apenas trinta e poucos

anos, era velho demais para ser um soldado do Movimento contra aguerra do tipo que quebra vidraças e vive tomando LSD, e issoaumentava a sua sensação de alheamento e inadequação, embora elenão parasse de organizar passeatas, vigílias e leituras de protesto pelapaz e de propor à sua paróquia de almas obedientes e chatas quedeixassem sua bela igreja antiga ser transformada em santuário, comcamas de campanha, réchauds e banheiros químicos para as hordasque tentavam escapar do alistamento. Em vez disso, o local, cujaacústica por sinal era estupenda, abrigava eventos culturais de bomgosto; talvez aqueles antigos peões de obra tivessem lá seus segredos.Mas Alexandra, que fora criada na árida paisagem escavada para milfilmes de faroeste, tinha tendência a achar que o passado muitas vezesé romantizado, e que quando era o presente ele apresentava o mesmocurioso vazio que todos sentimos agora.

Ed ergueu os olhos — não era um homem alto; essa era mais umade suas decepções — para Darryl Van Horne com um ar intrigado.Então dirigiu-se a Jane Smart com um tom incisivo de quem tira ooutro da conversa:

“Foi lindo, Jane. Vocês quatro fizeram um lindo trabalho. Como euestava dizendo a Clyde Gabriel agora mesmo, queria que tivéssemosconseguido divulgar melhor, chamar mais pessoas de Newport paravir até aqui, embora eu saiba que o jornal dele fez o melhor possível,ele achou que eu estivesse criticando; parece bem nervosoultimamente.” Alexandra sabia que Sukie estava transando com Ed, etalvez Jane já tivesse transado com ele no passado. Quando você jáhavia transado com eles, mesmo que muitos anos antes, os homenstinham uma certa entonação de voz: essa qualidade sempre aflorava,como o grão da madeira sem pintura depois de passar algum tempoao ar livre. A aura de Ed — pois Alexandra não conseguia parar dever auras — era um coadjuvante inevitável das cólicas menstruais,emanava em enjoativas ondas verde-ácidas de ansiedade e narcisismode seus cabelos, penteados para um lado e outro de um repartido bem

marcado, e que de certa forma não tinham cor sem chegarem a sergrisalhos. Jane ainda estava tentando segurar o choro e, noconstrangimento daquela situação, Alexandra havia se transformadona apresentadora, na patrocinadora daquele estanho forasteiro.

“Reverendo Parsley...”“Por favor, Alexandra. Nós somos mais amigos do que isso. Me

chame de Ed, por favor." Sukie devia falar um pouco sobre eladurante as transas com o pastor, por isso ele sentia aquelafamiliaridade. Para onde quer que você se vire, as pessoas conhecemvocê melhor do que você as conhece; a espionagem humana não temlimites. Alexandra não conseguiu se forçar a dizer “Ed”, tamanha arepulsa que lhe causava aquela aura amaldiçoada.

“... este é o senhor Van Horne, ele acabou de se mudar para amansão Lenox, você provavelmente já ficou sabendo.”

“Fiquei sabendo, sim, que surpresa agradável ter o senhor aqui.Ninguém me disse que gostava de música.”

“Gosto, mas não entendo grande coisa. Muito prazer, reverendo.”Os dois apertaram as mãos, e o pastor fez uma careta. “Sem essa

de ‘reverendo’, por favor. Todo mundo, seja amigo ou inimigo, mechama de Ed.”

“Ed, que bacana este prédio antigo que você tem aqui. O segurocontra incêndio deve custar uma nota.”

“O Senhor nos protege”, brincou Ed Parsley, e sua aura adoentadase expandiu de prazer com essa blasfêmia. “Falando sério: éimpossível reformar uma planta destas, e os mais velhos reclamampor causa dos muitos degraus. Já teve gente que abandonou o coralporque não conseguia subir até a galeria. Além disso, na minhaopinião, uma construção opulenta como esta, com todas as suasassociações tradicionais, atrapalha a mensagem que os unitaristas-universalistas modernos estão tentando transmitir. O que eu gostariaé que abríssemos um templo moderno bem ali na Dock Street; é lá queos jovens se reúnem, é lá que os negócios e o comércio fazem seu

trabalho sujo.”“O que o trabalho deles tem de sujo?”“Desculpe, esqueci seu primeiro nome.”“Darryl.”“Darryl, estou vendo que você gosta de provocar os outros. Você é

um homem sofisticado, e sabe tão bem quanto eu que o vínculo entreas atrocidades cometidas hoje no Sudeste Asiático e aquela novaagenciazinha drive-through que o banco Old Stone abriu ao lado damercearia é direta e imediata; eu nem preciso insistir nesse assunto.”

“Tem razão, meu chapa, não precisa mesmo”, disse Van Horne.“Quando Mamon fala, Tio Sam bate continência.”“Amém”, disse Van Horne.Que agradável, pensou Alexandra, ver dois homens conversando.

Toda aquela agressividade: parecia um embate de camisas. Enquantoescutava a conversa, ela sentiu a mesma emoção de quando, aocaminhar pela floresta de Cove, encontrava em algum trecho de areiamarcas de garras e uma ou duas penas, indícios de um encontroassassino. Ed Parsley tinha avaliado Van Horne como uma espécie debanqueiro, um implementador do Sistema, e estava combatendo odesdém nos olhos do homem mais alto que o classificavam como umliberal estridente e ineficaz, o inofensivo agente de um Deus que nãoexiste. Ed queria ser agente de um outro Sistema, igualmenteselvagem e absurdo. Como para atormentar a si mesmo, ele usava umcolarinho de sacerdote dentro do qual seu pescoço parecia ao mesmotempo infantil e raquítico; na sua religião, um colarinho assim era raroa ponto de ser, à sua maneira, um protesto.

“Você estava criticando mesmo a forma como Jane toca violoncelo,ou eu me enganei?”, perguntou ele então, com a voz rouca em suasonoridade insinuante.

“Só a forma como ela maneja o arco”, disse Van Horne,subitamente constrangido e sem graça, com o queixo caído e babando.“Eu disse que o resto foi incrível, mas que o jeito como ela maneja o

arco me pareceu um pouco entrecortado. Meu Deus, é preciso tomarcuidado por aqui para não pisar nos calos de todo mundo. Comenteicom a minha doce Alexandra aqui presente que o meu encanador nãoé lá muito inteligente, e ele por acaso é o melhor amigo dela.”

“Melhor amigo, não, só amigo”, disse Alexandra, sentindo-seobrigada a intervir. Mesmo com todas as confusões daquele encontro,ela viu que aquele homem tinha o dom bruto de fazer uma mulher seexpor, de fazê-la dizer mais do que ela pretendia. Ele havia ofendidoJane, mas mesmo assim ela estava ali de olhos erguidos e marejadosde lágrimas, com o mesmo fascínio mudo de um cão que acabou deapanhar.

“O Beethoven foi particularmente esplêndido, não concorda?”Parsley ainda estava tentando encurralar Van Horne, extrair delealguma concessão, o prenúncio de um pacto, uma base que pudessemusar no seu próximo encontro.

“Beethoven”, repetiu o homem alto com uma autoridadeentediada, “vendeu a alma para escrever esses últimos quartetos; jáestava surdo feito uma porta. Todos aqueles caras do século XIXvenderam a alma. Liszt. Paganini. O que eles fizeram não foihumano.”

Jane por fim conseguiu falar.“Eu ensaiei até meus dedos sangrarem”, disse ela, erguendo os

olhos em cheio para os lábios de Van Horne, que ele acabara deenxugar com a manga do paletó. “Todas aquelas terríveissemicolcheias no segundo andante?

“Continue ensaiando, pequena Jane. Cinco sextos são memóriamuscular, como você sabe. Quando a memória muscular assume ocomando, o coração pode começar a cantar sua canção. Antes disso,você não deslancha. Só executa os movimentos. Escute aqui. Por quevocê não passa um dia na minha casa para brincarmos um pouco comas peças para piano e violoncelo do velho Ludwig? Aquela sonata emlá maior é absolutamente deliciosa, contanto que você não entre em

pânico no legato. Ou então aquela em mi menor de Brahms: fabulosa.Quel schmaltz! Acho que estes velhos dedos ainda conseguem selembrar.” Ele remexeu os dedos na cara de todos os presentes. Suasmãos tinham a pele debaixo dos pelos estranhamente branca, comoluvas cirúrgicas bem justas.

Ed Parsley domou o próprio desconforto virando-se paraAlexandra e dizendo, em um tom untuoso e conspiratório:

“O seu amigo parece saber do que está falando.”“Não olhe para mim, eu acabei de conhecer o cavalheiro”, disse

Alexandra.“Ele foi uma criança-prodígio”, contou-lhes Jane Smart, agora um

pouco zangada e na defensiva. Sua aura, em geral de um lilás umtanto sem graça, havia desabrochado em listras de cor púrpura, umsinal de excitação sexual, embora não estivesse claro qual dos doishomens a havia provocado. Aos olhos de Alexandra, o salão de festasinteiro estava tomado por uma névoa de auras fundidas e pulsantes,enjoativa como fumaça de cigarro. Ela estava tonta e desanimada;ansiava por estar em casa ao lado de Carvão e de seu forno decerâmica que contava os segundos bem baixinho, e da maleabilidadefria da argila que a aguardava dentro dos sacos de aniagem trazidosde Coventry. Fechou os olhos e desejou que aquela rede específica àsua volta, feita de excitação, antipatia, insegurança radical e um desejosinistro de dominar que não emanava apenas do desconhecido alto, sedissolvesse.

Vários membros mais velhos da paróquia avançavam lentamentepara vir cobrar seu quinhão de atenção do reverendo Parsley, e este sevirou para atendê-los. Dentro das cavernas dos cachos dospermanentes, os cabelos brancos das mulheres reluziam comdelicados tons de dourado e azul. Raymond Neff, suando em bicas eradiante com o sucesso da apresentação, aproximou-se do grupo e,suportando na surdez da celebridade seus elogios simultâneos, levoualegremente consigo Jane, sua amante e companheira de batalhas

musicais. Ela também fora afetada, nos ombros e no pescoço, peloesforço da apresentação. Alexandra percebeu isso e ficou tocada. Oque Jane via em Raymond Neff? Falando nisso, o que Sukie via em EdParsley? O cheiro dos dois homens quando próximos parecera rançoàs narinas de Alexandra — enquanto a pele de Joe Marino tinha umcerto aroma agridoce, como o cheiro de leite azedo que emana dacabeça de um bebê quando você encosta a bochecha naquele calorossudo coberto de penugem. De repente, ela se viu novamentesozinha com Van Horne, e temeu novamente ter de suportar nopróprio peito o peso rudimentar e suplicante de sua conversa; masSukie, que nada temia, toda ruiva, empertigada e radiante em seupapel de repórter, esquivou-se por entre a multidão e veio fazer umaentrevista.

“O que o trouxe a este concerto, senhor Van Horne?”, perguntouela depois das tímidas apresentações de Alexandra.

“A minha televisão pifou”, foi a resposta mal-humorada.Alexandra viu que ele preferia tomar a iniciativa; mas não havia comoresistir a Sukie quando ela encarnava a jornalista, com o rostinhoprotuberante e atrevido a reluzir feito uma moeda nova.

“E o que o trouxe a esta região?”, foi a pergunta seguinte.“Parecia estar na hora de sair de Nova York”, disse ele. “Assaltos

demais, aluguéis estratosféricos. O preço aqui me pareceu bom. Essaentrevista vai sair em algum jornal?”

Sukie lambeu os lábios e admitiu:“Talvez eu ponha uma nota em uma coluna que escrevo para o

Word chamada ‘Olhos e Ouvidos de Eastwick’.”“Meu Deus, não faça isso”, disse o homem alto com seu paletó

largo de tweed. “Eu vim para cá para evitar publicidade.”“Que tipo de publicidade o senhor estava tendo, se me permite

perguntar?”“Se eu dissesse, seria mais publicidade ainda, não é?”“Talvez.”

Alexandra estava maravilhada com a amiga, tão jovialmenteatrevida. A ousada aura ocre de Sukie se misturava ao brilho de seuscabelos. Quando Van Horne fez menção de se virar para o outro lado,ela perguntou:

“Estão dizendo por aí que o senhor é inventor. Que tipo de coisasinventa?”

“Meu benzinho, mesmo se eu tirasse a noite inteira para explicar,você não iria entender. Tem basicamente a ver com substânciasquímicas.”

“Pode tentar”, insistiu Sukie. “Veja se eu entendo.”“Se isso sair na sua coluna, será como mandar uma circular para a

concorrência.”“Ninguém fora de Eastwick lê o Word, eu juro. Mesmo aqui na

cidade ninguém lê, as pessoas só fazem olhar os anúncios e procurar opróprio nome.”

“Escute aqui, senhorita...”“Rougemont. Senhora. Eu já fui casada.”“E o seu marido era o que, franco-canadense?”“Monty sempre dizia que os antepassados dele eram suíços. Ele se

comportava como suíço. Não dizem que os suíços têm cabeçaquadrada?”

“Sei lá. Pensei que fossem os manchurianos. Os crânios delesparecem blocos de cimento, é por isso que Gêngis Khan conseguiaempilhá-los tão direitinho.”

“O senhor não acha que já nos afastamos bastante do tema?”“Escute, em relação às invenções, não posso dizer nada. Estou

sendo vigiado.”“Que emocionante! Para todos nós”, disse Sukie, e deixou que o

sorriso pressionasse seu lábio superior e o franzisse de um jeitodelicioso, tanto que seu nariz se encheu de rugas e um pedaço degengiva saudável apareceu. “E se for só para os meus olhos eouvidos? E os de Lexa? Ela não é linda?”

Com um movimento rígido, Van Horne virou a cabeçorra como sequisesse verificar; Alexandra viu a si mesma através daqueles olhosavermelhados e piscantes como se estivesse na outra ponta de umtelescópio invertido, uma forma assustadoramente pequena, comcovinhas aqui e ali e fios grisalhos soltos. Ele decidiu responder àpergunta anterior de Sukie:

“Ultimamente, eu tenho trabalhado bastante com vernizesprotetores: um acabamento para pisos que, depois de endurecido, éimpossível de riscar mesmo com uma faca de cozinha, umrevestimento que se pode pulverizar sobre o aço incandescenteenquanto ele está esfriando e que se funde às moléculas de carbono;assim, o chassi do seu carro vai acabar por causa do desgaste metálico,mas não vai enferrujar nunca. Polímeros sintéticos: é esse o nome doseu admirável mundo novo, minha linda, e ele está apenascomeçando. A baquelita foi inventada em 1907, a borracha sintéticaem 1910, o náilon por volta de 1930. Se for usar isso, é melhor verificaras datas. A questão é que este século é apenas a infância; os polímerossintéticos vão nos acompanhar até o ano um milhão ou atéexplodirmos a nós mesmos, o que vier primeiro, e o mais lindo detudo é que vai ser possível cultivar as matérias-primas e, quando nãosobrarem mais terras, vai ser possível cultivá-las no oceano. Cheguepara lá, Mãe Natureza, a sua hora já passou. Também estoutrabalhando com a Grande Interface.”

“Que interface é essa?”, Sukie não teve vergonha de perguntar.Alexandra teria simplesmente meneado a cabeça como se soubesse;ela ainda tinha muito a aprender em relação a superar a recessividadefeminina imposta pela cultura.

“A interface entre energia solar e energia elétrica”, respondeu VanHorne para Sukie. “Essa interface tem que existir, e quandoencontrarmos a combinação vai ser possível alimentar qualqueraparelho elétrico da sua casa direto a partir do telhado, e ainda vaisobrar energia suficiente para recarregar o seu carro elétrico durante a

noite. Energia limpa, abundante e gratuita. Ela está chegando, meubenzinho, está chegando!”

“Esses painéis são muito feios”, comentou Sukie. “Tem um hippieaqui na cidade que reformou uma velha garagem para poder aquecera própria água, não consigo imaginar por que, ele nunca toma banho.”

“Não estou falando de coletores”, disse Van Horne. “Isso é coisada idade da pedra.” Ele olhou em volta; sua cabeça parecia um barrilsendo rolado pela borda. “Estou falando de uma tinta”.

“Uma tinta?”, repetiu Alexandra, sentindo que deveria contribuircom alguma coisa. Pelo menos aquele homem estava lhe dando algonovo para pensar além de molho de tomate.

“Uma tinta”, garantiu-lhe ele, solene. “Uma simples tinta que vocêaplica com um pincel e que transforma toda a epiderme da sua lindacasa em uma imensa célula de baixa voltagem.”

“Só existe uma palavra para descrever isso”, disse Sukie.“Ah, é? Qual?”“Eletrizante.”Van Horne fingiu estar ofendido.“Porra, se eu soubesse que é esse o tipo de observação provocante

e cabeça de vento que você gosta de fazer, não teria perdido meutempo explicando tudo. Você joga tênis?”

Sukie esticou um pouco mais as costas. Alexandra sentiu vontadede afagar aquela comprida área lisa dos seios da outra mulher atédebaixo da sua cintura, como se tem vontade de estender a mão eacariciar a barriga que um gato estica quando se espreguiça, com osdedos das patas traseiras a tremer em um instante de êxtase muscular.Sukie era simplesmente tão benfeita.

“Um pouco”, respondeu ela, com a língua espiando pelo meio dosorriso e grudando-se por um instante no lábio superior.

“Então você tem que ir me visitar daqui a uma ou duas semanas,eu vou mandar construir uma quadra.”

Alexandra interrompeu: “Você não pode aterrar os charcos”.

O desconhecido alto enxugou os lábios e fitou-a com um olharrepulsivo.

“Depois de aterrados, não são mais charcos”, disse ele com aquelavoz de sincronia imperfeita, levemente arrastada.

“As garças-brancas gostam de fazer seus ninhos ali, nos olmosmortos atrás da casa.”

“D-U-R-E-Z-A”, disse Van Horne. “Que dureza.”Pelo súbito brilho em seus olhos, ela se perguntou se ele estaria

usando lentes de contato. Seu jeito de conversar de fato pareciaprejudicado por um esforço constante e desleixado para manter acompostura.

“Ah”, disse Alexandra, e o que percebeu então, ela que já estavaligeiramente tonta, deu-lhe a sensação de olhar para o fundo de umburaco sem fim. A aura dele tinha desaparecido. Acima da cabeça decabelos oleosos, ele não tinha absolutamente aura nenhuma, como umdefunto ou um ídolo de madeira.

Sukie riu, e sua risada reverberou; sua graciosa barriga redondapressionou o cós da saia de camurça junto com seu diafragma.

“Adorei! Posso citar isso, senhor Van Horne? Charcos aterrados nãosão mais charcos, declara intrigante novo morador.”

Enojada com aquela dança de acasalamento, Alexandra virou ascostas. As auras de todas as outras pessoas da festa agora estavamofuscantes, como as luzes periféricas de uma rodovia quando gotas dechuva se adensam no para-brisa. E, muito estupidamente, ela sentiudentro de si a umidade escurecedora de uma atração indesejadatomando forma. Aquele homem alto era um poço de carência; era umabismo que sugava o coração dela para fora do peito.

A velha sra. Lovecraft, cuja aura tinha o mesmo tom magentaordinário das pessoas satisfeitas com a própria vida e certas de queirão para o Céu, aproximou-se de Alexandra dizendo em tom delamúria:

“Sandy, querida, estamos sentindo tanto a sua falta no clube de

jardinagem... Você não pode ficar tão sumida assim.”“Eu, sumida? Estou é ocupada. Tenho plantado tomates, é incrível

como estão dando neste outono.”“Eu sei que você tem trabalhado no jardim; Horace e eu

admiramos sua casa sempre que passamos pela Orchard Road: quecanteirinho mais interessante aquele que você plantou perto da porta,todo cheio de crisântemos. Eu disse a ele várias vezes: ‘Vamos fazeruma visitinha a ela’, mas depois sempre penso: não, ela deve estarfazendo as coisinhas dela, e não vamos querer atrapalhar suainspiração.”

Fazendo suas coisinhas ou então fazendo amor com Joe Marino,pensou Alexandra: era isso que Franny Lovecraft estava sugerindo.Em uma cidade como Eastwick não existiam segredos, apenas áreas aserem evitadas. Quando ela e Oz ainda estavam casados e eramrecém-chegados à cidade, tinham passado algumas noites nacompanhia de velhinhos adoráveis e chatos como o casal Lovecraft;agora Alexandra se sentia irremediavelmente alheia ao mundo dediversões decentes e sem graça que eles representavam.

“Nesse inverno irei a algumas reuniões, quando não houver maisnada para fazer”, disse Alexandra, cedendo. “Quando estiver comsaudades da natureza”, acrescentou, embora soubesse que nunca iria,que já deixara para trás havia muito tempo aqueles deleites contidos.“Gosto das sessões de slides sobre jardins ingleses; vocês estãoorganizando alguma?”

“Você tem que ir na quinta que vem”, insistiu Franny Lovecraft,usando as mãos exageradamente como fazem as pessoas de poucamonta, vice-presidentes de bancos de poupança, netas de capitães declíperes. “O filho de Daisy Robeson, Warwick, acabou de voltar detrês anos no Irã, onde ele e aquela sua pequena e adorável família sedivertiram muito, ele trabalhava como consultor lá, de certa formatudo tem a ver com petróleo, segundo ele o xá está fazendo milagres,toda aquela esplêndida arquitetura moderna bem ali na capital... ah,

qual é mesmo o nome da cidade?, eu ia dizer Nova Délhi...”Embora conhecesse o nome Teerã, Alexandra não ofereceu ajuda; o

diabo a estava dominando.“Enfim, Wicky vai fazer uma sessão de slides sobre tapetes

orientais. Sabe, Sandy querida, na mentalidade árabe um tapete é umjardim, é um jardim interior dentro daquelas tendas e palácios queeles têm no meio de todo aquele deserto, e no desenho dos tapetes hátodo tipo de flores de verdade, mesmo que a um olhar desatento elaspareçam muito abstratas. Não é mesmo fascinante?”

“É, sim”, respondeu Alexandra. A sra. Lovecraft havia adornado opescoço enrugado, desmoronado sobre si mesmo em dobras e sulcoscomo os de um acostamento de estrada erodido, com uma fieira depérolas artificiais cuja peça central era um antiquíssimo ovo demadrepérola, no qual uma diminuta cruz de ouro havia sidolaboriosamente incrustada. Com um esforço psíquico irritado,Alexandra se concentrou para fazer aquele objeto velho e frágil sequebrar; as pérolas falsas escorregaram pelo peito encovado da velhasenhora e cascatearam em uma chuva pelo chão.

O piso do salão de festas da igreja era revestido com um carpeteindustrial que tinha a mesma cor verde opaca de cocô de ganso; esteabafou o tamborilar das pérolas. Os presentes demoraram a repararno desastre, e no início somente os mais próximos se abaixaram pararecolhê-las. A sra. Lovecraft, com o rosto pálido de choque sob ascamadas de ruge, era artrítica e frágil demais para se abaixar.Enquanto estava ajoelhada junto aos pés inchados da velha senhora,Alexandra maldosamente se concentrou para fazer as finas alçasesticadas de seus sapatos de couro de lagarto outrora elegantes sesoltarem. A maldade era como a comida: depois de começar, eradifícil parar; suas entranhas se expandiam para absorver mais e mais.Alexandra se levantou e depositou meia dúzia de pérolas resgatadasna mão trêmula, com nós dos dedos azuis e cobiçosamente estendidade sua vítima. Então se afastou em meio ao círculo cada vez mais

amplo de pessoas agachadas à procura de outras pérolas. Aquelescorpos agachados pareciam grotescos repolhos gigantes de músculos,avidez e pano; suas auras estavam todas misturadas, como tintas deaquarela escorrendo umas para cima das outras para criar o cinza. Seucaminho até a porta estava impedido pelo reverendo Parsley, cujorosto bonito e inexpressivo tinha aquele quê de maldição à la PeerGynt. Como muitos dos homens que se barbeiam de manhã, à noiteele exibia uma visível barba por fazer.

“Alexandra", começou ele, com a voz deliberadamente forçada emseu registro mais intimista, mais grave. “Eu estava torcendo tantopara encontrar você aqui.” Ele a desejava. Estava cansado de treparcom Sukie. No nervosismo da abordagem, ele ergueu a mão paracoçar os cabelos penteados de forma antiquada, e sua vítima empotencial aproveitou a oportunidade para arrebentar a pulseiraextensível barata de seu chamativo relógio folheado a ouro, umOmega. Ele sentiu a pulseira se partir e segurou o caro acessório, queficou preso na manga de sua camisa antes de cair no chão. Isso deu aAlexandra um segundo para passar em frente ao borrão de suaexpressão espantada — um borrão patético, como ela iria se lembrarcheia de culpa; como se, caso tivesse transado com ele, pudesse tê-losalvo — e sair do salão para a acolhedora escuridão lá fora.

A noite estava sem lua. Os grilos entoavam sua nota interminável,monótona e pungente. Faróis de carros passavam por CocumscussocWay, e os arbustos junto à porta da igreja, quase sem folhas, surgiambem nítidos sob a luz feito complicadas mandíbulas, antenasarticuladas e pernas de insetos ampliadas. O ar recendia levemente amaçãs que viravam sidra sozinhas dentro da própria casca, maçãscaídas que ninguém recolhia e que apodreciam nos pomaresesquecidos que davam de fundos para o terreno da igreja, terrenosbaldios à espera de empreendedores. As formas protetoras earredondadas de automóveis aguardavam no estacionamento decascalho. Seu próprio pequeno Subaru surgiu na mente de Alexandra

como um túnel cor de abóbora no final do qual reluzia o silêncio desua cozinha rústica, as batidas do rabo de Carvão para recebê-la, arespiração dos filhos adormecidos ou que fingiam dormir em seusquartos após desligar a TV no mesmo instante em que os faróis docarro da mãe iluminavam as janelas. Ela iria dar uma olhada nosfilhos, cada corpinho em sua respectiva cama e quarto, e depois tirariavinte peitudas, astuciosamente dispostas de modo a nenhumaencostar na outra e grudar, do forno sueco de cerâmica que aindaestaria contando os segundos, esfriando, conversando com ela como alhe relatar os acontecimentos da casa durante o tempo em que estiveraausente — pois o tempo passava por toda parte, não apenas no riachodo delta em que estivéramos boiando à deriva. Então, depois decuidar das peitudas, da própria bexiga e dos próprios dentes, elaadentraria o espaçoso reino de sua cama, um reino sem rei, todinhoseu. Alexandra estava lendo um romance interminável escrito poruma autora com três sobrenomes e uma fotografia retocada de siprópria na sobrecapa lustrosa; toda noite, algumas páginas daquelasaventuras vagas e infinitas em meio a colinas e castelos agiam parafacilitar a travessia da fronteira rumo à inconsciência. Em seus sonhos,viajava para muito longe, acima dos telhados das casas, e visitavaquartos criados confusamente a partir da barafunda de seu passado,mas que pareciam sólidos quando seu eu onírico pisava cada umdeles, um fantasma que transbordava com um luto obscuro quandoela recolhia um alfinete com a cabeça em forma de maçã da cesta decostura da mãe ou então, olhando para as montanhas encimadas deneve do outro lado da janela, esperava o telefonema de algumcompanheiro de brincadeiras há muito já falecido. Em seus sonhos, osmaus presságios saltitavam à sua volta como anúncios de papelmachê guiando inocentes para lá e para cá em um parque dediversões. Mas nós nunca ansiamos por sonhos, assim comotampouco ansiamos pelas fabulosas aventuras que sucedem à morte.

________________1 Pastor que acusou supostos praticantes de feitiçaria nos famosos

julgamentos das “bruxas de Salém”, vilarejo da Nova Inglaterra, em1692, que resultaram na condenação de dezenove pessoas à forca. (N.T.)

O cascalho estalou atrás dela. Um homem moreno tocou a pelemacia acima de seu cotovelo; seu toque foi gelado, ou talvez elaestivesse febril. Sobressaltou-se, assustada. Ele estava rindo baixinho.

“Acabou de acontecer uma coisa muito estranha lá dentro. A velhasenhora cujas pérolas se soltaram um minuto atrás tropeçou nospróprios sapatos de tão afoita, e agora está todo mundo com medoque ela tenha quebrado a bacia.”

“Que triste”, disse Alexandra, com sinceridade mas distraída, semconseguir concentrar o espírito, com o coração ainda acelerado porcausa do susto que ele lhe dera.

Darryl van Horne chegou mais perto e projetou palavras paradentro de seu ouvido.

“Não esqueça, meu bem. Pense grande. Vou me informar sobre atal galeria. Nos falamos. Boa noite.”

“Você foi mesmo?", perguntou Alexandra para Jane ao telefonecom um trinado de prazer sem viço.

“Por que não teria ido?”, rebateu Jane com firmeza. “Ele tinhamesmo a partitura da ‘Sonata em mi menor’ de Brahms, e tocadivinamente. Parece Liberace, só que sem aqueles sorrisos todos. Nãodaria para desconfiar; não sei por quê, mas as mãos dele parecemincapazes de fazer qualquer coisa.”

“Estavam só vocês dois? Não paro de pensar naquele comercial deperfume — aquele que mostrava um jovem violinista seduzindo aacompanhante de vestido decotado.”

“Alexandra, deixe de ser vulgar. Ele me parece quase assexuado. E

a casa está cheia de operários, incluindo seu amigo Joe Marino, todoarrumado com aquele chapéu quadriculado com uma pena espetada.E um barulho infernal das escavadeiras retirando pedras paraconstruir a quadra de tênis. Parece que tiveram de dinamitar váriasvezes.”

“Como é que deixam ele fazer isso? Aquilo lá é um charco.”“Não sei, meu amor, mas ele pregou o alvará de construção em

uma árvore.”“Coitadas das garças.”“Ah, Lexa, elas têm todo o resto de Rhode Island para fazer seus

ninhos. De que serve a natureza se ela não souber se adaptar?”“Ela se adapta até certo ponto. Depois disso, fica magoada.”O ouro amarrotado de outubro pairava à janela de sua cozinha; as

grandes folhas serrilhadas de sua videira escureciam a partir dasbordas. Á esquerda, em direção a seu brejo, uma rajada de vento fezum pequeno grupo de bétulas soltar um punhado de agulhasparecendo brilhantes pontas de lança, que retiniram ao cair sobre agrama.

“Quanto tempo você passou lá?”“Ah”, respondeu Jane com a voz arrastada, mentindo. “Mais ou

menos uma hora. Talvez uma hora e meia. Ele tem mesmosensibilidade para música, e quando se está a sós com ele seucomportamento não é tão destrambelhado quanto pode ter parecidona noite do concerto. Ele disse que entrar em uma igreja, mesmo umaigreja unitarista, o deixa todo arrepiado. Acho que por trás de todoaquele blefe ele na verdade é bem tímido.”

“Querida. Você nunca desiste, não é mesmo?”Alexandra sentiu os lábios de Jane Smart se afastarem alguns

centímetros do fone com indignação. Segundo aquele homem, abaquelita tinha sido o primeiro dos polímeros sintéticos. Com umavoz sibilante, Jane estava dizendo:

“Não considero isso uma questão de desistir ou não, é uma

questão de fazer o que se gosta. Você gosta de passar o dia fuçando nojardim usando uma calça de homem e depois cozinhando as suasbonequinhas, mas para fazer música precisa-se de pessoas. Outraspessoas.”

“Elas não são bonequinhas, e eu não passo o dia fuçando.”E Jane seguia falando:“Você e Sukie vivem zombando de mim porque eu saio com Ray

Neff, mas, até esse outro homem aparecer, ele era a única pessoa comquem eu conseguia tocar na cidade.”

E Alexandra seguia falando:“São esculturas, só porque elas não são em grande escala como

Calder ou Moore você está sendo tão vulgar quanto aquele Fulano,insinuando que eu deveria fazer algo maior para não sei que galeriacara de Nova York poder ficar com cinquenta por cento, isso se eleschegassem a vender, coisa de que duvido muito. Tudo agora é tãoestiloso e violento.”

“Foi isso que ele disse? Então ele também propôs alguma coisapara você.”

“Eu não diria que foi uma proposta, só uma intromissãotipicamente nova-iorquina, enfiando o nariz onde não foi chamado.Eles todos sempre precisam fazer parte da ação, de qualquer ação.”

“Ele está fascinado conosco”, afirmou Jane Smart. “Em entenderpor que nós todas vivemos aqui desperdiçando nossa graça no ar dodeserto.”

“Diga a ele que a baía de Narragasett sempre aceitou gentediferente. E o que é que ele próprio está fazendo aqui?”

“Também não sei.” Com sua dicção chapada típica da baía deMassachusetts, Jane comia os finais das palavras. “Ele quase dá aimpressão de que a vida ficou perigosa demais para ele onde estavaantes. E ele adora aquele espaço todo da casa. Tem três pianos, sério,embora um deles seja de armário, fica na biblioteca; e tem uma porçãode livros antigos bonitos, com encadernação de couro e títulos em

latim.”“Ele ofereceu alguma coisa para você beber?”“Só chá. Um criado que ele tem e com quem fala em espanhol

trouxe o chá em uma bandeja enorme com vários licores dentro degarrafinhas engraçadas com jeito de terem saído de uma adega cheiade teias de aranha, sabe?”

“Pensei que você tivesse dito que só bebeu chá.”“Bom, Lexa, talvez eu tenha tomado um golinho de licor de amora

ou de alguma coisa que Fidel elogiou muito chamada mescal; se eusoubesse que teria de fazer um relatório tão completo, teria anotado onome. Você é pior do que a CIA.”

“Desculpe, Jane. Estou muito enciumada, eu acho. E a minhamenstruação... já está durando cinco dias, desde o dia do concerto, e oovário do lado esquerdo está doendo. Você acha que pode ser amenopausa?”

“Aos trinta e oito anos? Meu bem, por favor.”“Bom, então deve ser câncer.”“Não pode ser câncer.”“Por que não?”“Porque você é você. Você tem magia demais para ter câncer.”“Tem dias em que eu acho que não tenho magia nenhuma. E,

afinal de contas, outras pessoas também têm magia.” Ela estavapensando em Gina, mulher de Joe. Gina devia odiá-la. Bruxa emitaliano era strega. Joe havia lhe contado que, por toda a Sicília, aspessoas viviam pondo mau-olhado umas nas outras. “Tem dias emque as minhas entranhas parecem que deram um nó.”

“Marque uma consulta com o doutor Pat se estiver mesmopreocupada”, disse Jane, não sem alguma empatia. O dr. HenryPaterson, homem roliço e cor-de-rosa da mesma idade que elas, comolhos tristes grandes e úmidos e um toque lindo, delicado e firmesempre que apalpava. A mulher o havia deixado anos antes. Elejamais entendera por que e tampouco tornara a se casar.

“Ele me dá uma sensação estranha”, disse Alexandra. “Aquelejeito como ele enrola você em um lençol e faz tudo lá embaixo.”

“Coitado, como é que ele deveria fazer?”“Ser menos dissimulado. Eu tenho um corpo. Ele sabe disso. Eu sei

disso. Por que todo esse fingimento com o tal lençol?”“Porque eles são todos processados se não houver uma enfermeira

no consultório”, disse Jane. Sua voz estava duplicada, como um sinalde TV quando um caminhão passa na rua. Não era para falar dissoque ela havia telefonado. Ela estava pensando em outra coisa.

“O que mais você descobriu na casa do Van Horne?”, perguntouAlexandra.

“Bom... jura que não vai contar para ninguém?”“Nem para Sukie?”“Principalmente para Sukie. E sobre ela. Darryl na verdade é um

homem notável, ele percebe tudo. Ficou lá na recepção até mais tardedo que nós, eu saí para tomar uma cerveja com o pessoal do quartetono Bronze Barrei...”

“Greta também?”“Ai, meu Deus, também. Ela ficou falando sobre Hitler, sobre

como os pais dela não conseguiam suportá-lo porque o alemão deleera muito grosseiro. Parece que, no rádio, ele nem sempre terminavaas frases com o verbo.”

“Que péssimo para eles.”"... e eu imagino que você tenha sumido na noite depois de fazer

aquela brincadeira cruel com as pérolas da coitadinha da FrannyLovecraft...”

“Que pérolas?”“Não banque a sonsa, Lexa. Você foi malvada. Eu conheço o seu

estilo. E depois os sapatos, ela está de cama desde então, mas acho quenão quebrou nada; eles ficaram preocupados com o quadril. Sabia queos ossos de uma mulher encolhem quase até a metade quando elaenvelhece? É por isso que tudo se parte. Ela teve sorte: foram só

contusões.”“Sei lá, olhar para ela me fez pensar se, quando eu tiver a mesma

idade, vou ser tão adorável, tão chata e tão insistente, se é que vouchegar a essa idade, coisa de que duvido. Foi como olhar para umespelho e ver o meu próprio futuro sombrio e, desculpe, isso medeixou louca?

“Está bem, meu amor; não é da minha conta. O que eu estavatentando dizer é que Darryl ficou até mais tarde para ajudar a arrumartudo e, quando Brenda Parsley estava na cozinha da igreja jogandofora os copos de plástico e os pratos de papel, percebeu que Ed e Sukietinham desaparecido! Deixaram a coitada da Brenda fazendo opossível para disfarçar... mas imagine só que humilhação!”

“Eles deveriam mesmo ser mais discretos.”Jane fez uma pausa, esperando Alexandra dizer mais alguma

coisa; havia um ponto da conversa em que ela deveria tomar as rédease dar sua opinião, mas sua mente estava distraída, imaginandoimagens de câncer a se espalhar dentro dela como as nuvens dasgaláxias rodopiando suavemente rumo à escuridão, depositando aquie ali uma estrela mortal...

“Ele é mesmo um pamonha”, foi o comentário pífio que Jane porfim fez sobre Ed. “E por que ela está sempre nos dando a entenderque desistiu dele?”

A mente de Alexandra pôs-se então a perseguir os dois amantespela noite afora, o corpo esguio de Sukie parecendo um graveto semcasca, mas cheio de protuberâncias maleáveis e musculosas; ela erauma daquelas mulheres de aparência muito parecida com a de umrapaz, com a de um homem, só que vibrante, bem perto do limite,com a feminilidade de alguma forma embebida naquela energia semculpa que os homens têm, com suas vidas certeiras feito flechas,voando em longilíneas tempestades na direção do inimigo, ensinadosa morrer desde sua cruel infância. Por que ninguém ensina isso àsmulheres? Porque não é verdade que, se você tiver filhas, não vai

morrer nunca.“Quem sabe uma clínica”, disse ela em voz alta depois de rejeitar o

dr. Pat, “onde ninguém me conhece.”“Bom, acho melhor alguma coisa do que continuar se

atormentando”, disse Jane. “E sendo bem chata, devo dizer.”“Acho que parte do que faz Sukie se sentir atraída por Ed”, disse

Alexandra, tentando voltar para a mesma frequência de Jane, “talvezseja a necessidade profissional que ela tem de estar por dentro do queacontece na cidade. De todo modo, o interessante nem é tanto elacontinuar saindo com ele, mas esse tal de Van Horne se dar aotrabalho de reparar nisso com tamanha avidez quando acabou dechegar a Eastwick. Acho que ele quer que nós tomemos isso como umelogio.”

“Alexandra, minha querida, sob determinados aspectos vocêcontinua terrivelmente não liberada. Um homem também pode serapenas uma pessoa, sabe?”

“Sei que essa é a teoria, mas nunca conheci nenhum homem quepensasse assim. Todos eles acabam se revelando homens, até os gays.”

“Você se lembra de nós três pensando se ele seria gay? E agora eleestá atrás de nós todas!”

“Pensei que ele não estivesse atrás de você, e que vocês estivessemos dois atrás de Brahms.”

“E estávamos mesmo. Estamos. Sério, Alexandra. Relaxe. Vocêparece mesmo estar com muita, cólica.”

“Eu estou um lixo. Amanhã vou estar melhor. E minha vez dereceber vocês, lembra?”

“Ai, meu Deus, é isso. Quase me esqueci. Era esse o outro assuntosobre o qual eu liguei para falar. Eu não vou poder ir.”

“Vai cancelar uma quinta-feira? O que está acontecendo?”“Bom, você não vai gostar. Mas é Darryl de novo. Ele tem umas

encantadoras bagatelas de Webern que quer que eu toque, e quandosugeri sexta-feira ele disse que uns investidores japoneses estavam de

passagem para dar uma olhada naquela tal tinta dele. Eu estavapensando em dar uma passada na Orchard Road hoje à tarde se vocêquiser, um dos meninos queria que eu fosse assistir a um jogo defutebol dele depois da escola, mas eu poderia só aparecer durante umminuto na lateral do campo...”

“Não, querida, obrigada”, disse Alexandra. “Vou ter visita.”“Ah.”A voz de Jane saiu gelada, um gelo escuro cheio de cinzas como

aquele que congela em frente às casas durante o inverno.“Talvez”, disse Alexandra para aliviar a tensão. “A visita não deu

certeza.”“Querida, eu entendo. Não precisa dizer mais nada.”Isso deixou Alexandra com raiva: ser posta na defensiva quando

quem estava sendo desdenhada era ela. Então disse à amiga: “Penseique as quintas-feiras fossem sagradas”.

“E em geral são”, começou Jane.“Mas acho que, em um mundo onde nada mais é sagrado, as

quintas-feiras não têm por que ser.” Por que ela estava tão magoada?Seu ritmo semanal dependia daquele triângulo inquebrável, dovórtice de poder. Mas ela não podia deixar sua voz se arrastar e traí-ladaquela forma.

Jane estava se desculpando.“E só desta vez...”“Tudo bem, meu amor. Assim sobram mais ovos recheados para

mim.” Jane Smart adorava ovos recheados, quebradiços eapimentados, feitos com páprica e uma pitada de mostarda em pó,salpicados com cebolinha picada ou com uma anchova parecendo alíngua de um sapo por cima de cada clara recheada.

“Você ia mesmo se dar ao trabalho de fazer ovos recheados?”,perguntou ela em tom de lamento.

“E claro que não, querida”, respondeu Alexandra. “Só os mesmosvelhos biscoitos salgados moles e o mesmo queijo passado de sempre.

Tenho que desligar.”Uma hora mais tarde, olhando distraída para o outro lado do

ombro nu e peludo de Joe Marino (com seu comovente cheiroagridoce como o da cabeça de um bebê) enquanto ele, com mais rigordo que inspiração, a penetrava, enquanto sua cama gemia e oscilavacom o peso duplo pouco habitual, Alexandra teve uma visão. Na suaimaginação, viu a mansão Lenox, nítida feito uma pintura decalendário, com a solitária voluta de fumaça que ela havia observadonaquele dia, e esse patético filete de vapor se confundiu com oenternecimento provocado pelo fato de Jane ter descrito Van Hornecomo tímido, e portanto destrambelhado. Na impressão de Alexandra,ele estava mais para desorientado: como um homem que espia portrás de uma máscara, ou que escuta com os ouvidos cheios dealgodão.

“Concentre-se, porra”, rosnou Joe em seu próprio ouvido, e entãoele gozou, sem conseguir se conter, excitado pela própria raiva, e seucorpo nu e peludo, cujos músculos enrijecidos pelo trabalho estavamagora um pouco moles devido à prosperidade, teve um espasmo,depois outro, e na terceira vez encerrou com um pequenoestremecimento como um carro com acúmulo de carbonoestremecendo depois que a ignição é desligada. Ela tentouacompanhá-lo, mas já não havia mais contato.

“Desculpe”, grunhiu ele. “Pensei que estivéssemos indo bem, masvocê se distraiu.” Ele também havia sido generoso ao lhe perdoar ofinalzinho de sua menstruação, embora quase não houvesse nenhumsangue.

“A culpa foi minha”, disse Alexandra. “Toda minha. Você foi umdoce. Eu fui um horror.” Ele toca divinamente, tinha dito Jane.

No rastro de sua visão, o teto adquiriu uma súbita clareza, como seestivesse sendo visto pela primeira vez: sua extensão quadrada mortae impassível, determinados pequenos defeitos na superfície que malse distinguiam dos pontinhos no corpo vítreo de seus olhos, a não ser

pelo fato de, quando ela mudava o foco, estes se deslocavam feitominúsculos animais em um lago, feito células cancerosas em nossalinfa. O ombro arredondado de Joe e a lateral de seu pescoço eram tãoindiferentes e pálidos quanto o teto, e atravessados com a mesmaregularidade por aquelas impurezas ópticas, que em geral não faziamparte de seu universo mas que, quando nele se imiscuíam, eramdifíceis de expulsar, difíceis de não ver. Um sinal de velhice. Nósacumulamos sujeira como bolas de neve rolando morro abaixo.

Ela sentiu a frente do corpo, os seios e a barriga, molhada com osuor de Joe, e por esse caminho tortuoso sua mente recomeçou asaborear o corpo dele, sua textura esponjosa, seu peso, seureconfortante aroma de macho e o fato deveras milagroso, em ummundo de pequenos milagres, de ele estar ali. Em geral não estava.Em geral estava com Gina. Ele rolou de cima de Alexandra com umsuspiro magoado. Ela havia ferido sua vaidade mediterrânea. Eletinha o couro cabeludo bronzeado e careca, com o crânio reluzente umpouco ondulado, como as páginas de um livro deixado ao relento, eparte de sua vaidade consistia em recolocar imediatamente o chapéu.Ele dizia que ficava com frio sem chapéu. De chapéu, seu perfil erajovem, com o nariz muito aquilino que se vê nos retratos de Bellini efundas olheiras arroxeadas sob os olhos. Ela havia sido atraída poraquele aspecto depravado um pouco preguiçoso, por aquela ligeirasemelhança com um barone, doge ou mafioso de olhos duros quedecide sobre a vida e a morte com um estalar desdenhoso da línguanos dentes. Mas Joe, que ela havia seduzido quando ele vieraconsertar uma privada que passava a noite inteira emitindo umchiado, mostrou-se inofensivo nesse sentido, um burguês carola até aúltima arruela de latão, pai amoroso de cinco filhos com menos deonze anos de idade, e parente de metade do estado. A família de Ginahavia se espalhado por todo aquele litoral, de New Bedford aBridgeport. Joe era ávido por lealdades; seu coração pertencia a maistimes esportivos — Celtics, Bruins, Whalers, Red Sox, Pawtucket Sox,

Pats, Teamen, Lobsters, Minutemen — do que ela sonhava existir.Uma vez por semana, ele aparecia para penetrá-la mais ou menos coma mesma lealdade. Para ele, o adultério havia sido um passo rumo àdanação, e ele estava cumprindo mais uma obrigação, dessa vezsatânica. Além do mais, aquilo era de certa forma uma medidaanticoncepcional; ele havia começado a se assustar com a própriafertilidade e, quanto mais de seu sêmen Alexandra, que usava DIU,absorvesse, menos sobraria para Gina. O caso dos dois já estava emseu terceiro verão, e Alexandra deveria terminar, mas gostava dosabor de Joe — ao mesmo tempo salgado e doce, feito um torrone — eda forma como o ar cintilava mais ou menos uns três centímetrosacima das suaves ondulações de seu crânio. A aura dele não tinhaqualquer malícia ou cor ruim; seus pensamentos, assim como suasmãos de encanador, estavam sempre buscando um certo encaixe. Odestino a havia transferido de um homem que fabricava metaiscromados para aquele que os instalava.

Para ver a mansão Lenox como esta havia aparecido em sua visão,nítida com seus tijolos, seus peitoris e quinas de granito e suas janelasnumerosas como os olhos de Argos, para vê-la assim tão de frente,teria sido preciso estar suspenso no ar acima do charco, voando. Avisão rapidamente havia diminuído de tamanho, como se recuasse noespaço, chamando-a. Tornara-se do tamanho de um selo postal e, casoela não houvesse fechado os olhos, teria desaparecido feito umaervilha no ralo da pia. Fora quando ela estava de olhos fechados queele havia gozado.

Ela agora se sentia atordoada, entregue, como se o orgasmo emparte tivesse sido seu.

“Talvez eu devesse terminar tudo com Gina e começar de novo emalgum outro lugar com você”, estava dizendo Joe.

“Deixe de ser bobo. Você não quer fazer nada disso”, disse-lheAlexandra. Bem altos e invisíveis no dia ventoso acima de seu telhado,gansos voavam para o sul em uma formação em V, grasnando para

reconfortar uns aos outros: Eu estou aqui, você está aqui. “Você é umbom católico com cinco bambini e um negócio que está dando certo.”

“E, então o que é que eu estou fazendo aqui?”“Você está enfeitiçado. E fácil. Eu peguei uma foto sua que saiu no

Word de Eastwick quando você participou de um Comitê dePlanejamento e espalhei o sangue da minha menstruação por cima.”

“Meu Deus, você às vezes é mesmo nojenta.”“Você gosta disso, não é? Gina nunca é nojenta. Gina é adorável

como Nossa Senhora. Se você fosse mesmo um cavalheiro, me fariagozar com a língua. Não tem muito sangue, já está no finalzinho.”

Joe fez uma careta.“Que tal eu deixar isso para outro dia?”, disse ele, e olhou em volta

à procura das roupas para vestir abaixo do chapéu. Embora estivesseficando gorducho, seu corpo era bem desenhado; ele havia sido atletana escola, com jeito para qualquer esporte com bola, embora nãotivesse altura para ser uma estrela. Suas nádegas eram firmes, mesmoque a barriga agora tivesse um pouco de sobra. Suas costasostentavam uma grande borboleta formada por finos pelos pretos,com as pontas superiores das asas acompanhando a linha dos ombrose os pés plantados nas covinhas que ladeavam a parte inferior dacoluna. “Tenho que ir dar uma olhada naquela obra do Van Horne”,disse ele, ajeitando um pedaço rosado de testículo que havia saído poruma das pernas da cueca de elástico. A cueca tinha o mesmo modelode um biquíni e era roxa, uma coisa nova, para combinar com a novamoda da androginia. Uma das lealdades de Joe era relacionada àevolução da moda masculina. Ele fora um dos primeiros homens deEastwick a usar um terno de brim e a pressentir que chapéus estavamvoltando a ficar na moda.

“Como vai essa obra, aliás?”, perguntou Alexandrapreguiçosamente, sem querer que ele fosse embora. Uma desolaçãovinda do teto havia se abatido sobre ela.

“Ainda estamos esperando um jogo de torneiras folheadas de

prata que teve de ser encomendado na Alemanha Ocidental, e tive demandar buscar em Cranston uma folha de cobre grande o suficientepara caber debaixo da banheira sem precisar de remendo. Vou ficarfeliz quando essa obra terminar. Tem alguma coisa não muito certanaquela situação. O cara geralmente só acorda depois do meio-dia, eàs vezes você aparece e não tem ninguém em casa, só um gato de pelocomprido se esfregando pelos cantos. Eu odeio gatos.”

“Gatos são nojentos”, disse Alexandra. “Feito eu.”“Não, escute aqui, Al. Você é mia vacca. Mia vacca bianca. Você é

meu balde de sorvete. O que mais um pobre homem pode dizer?Sempre que eu tento falar sério, você desconversa.”

“A seriedade me dá medo”, disse ela, séria. “De todo modo, no seucaso eu sei que é só provocação.”

Mas foi ela quem o provocou, fazendo os cadarços de seus sapatos,sapatos fechados bordô iguais àqueles usados por quem frequenta auniversidade, se soltarem com a mesma rapidez com que ele osamarrava em laços; finalmente, Joe teve de ir embora arrastando ospés com os cadarços soltos, derrotado em sua vaidade e elegância. Obarulho de seus passos na escada foi diminuindo, um engolido pelooutro, cada vez menores, e a batida da porta foi como a bonequinhasólida, um simples pedacinho de madeira pintada, escondida bem ládentro de um conjunto de bonecas russas. O canto dos estorninhosroçava as vidraças na direção do quintal; as amoras selvagens osatraíam às centenas para o brejo. Abandonada e insatisfeita no meiode uma cama subitamente imensa outra vez, Alexandra tentoureproduzir, encarando o teto branco, aquela visão estranhamentenítida e arquitetônica da mansão Lenox; mas tudo que conseguiuobter foi uma sombra fantasmagórica, um retângulo de palidez aindamais evidente, como o de um envelope guardado por tanto tempo nosótão que o selo havia se desgrudado sem ninguém tocar.

Inventor, Músico, Amante da Arte

Ocupado com a Reforma da Antiga Mansão Lenoxpor Suzanne Rougemont

Refinado, dono de uma voz grave e atraente de um modo casual,abrutalhado, o sr. Darryl Van Horne, ex-morador de Manhattan e agoraorgulhoso cidadão de Eastwick, recebeu esta repórter na sua ilha.

Sim, na sua ilha, pois a famosa “mansão Lenox” comprada por esserecém-chegado fica cercada por charcos e, na maré alta, por cintilantesespelhos d’água!

O novo proprietário pretende adaptar sua aquisição — erguida porvolta de 1895 em estilo inglês, toda de tijolos, com uma fachadasimétrica e enormes chaminés nas duas extremidades — a múltiplasfinalidades: um laboratório para seus fabulosos experimentos comquímica e energia solar, uma sala de concerto contendo nada menos doque três pianos (que ele toca muito bem, podem acreditar), e uma grandegaleria cheia de obras notáveis de mestres contemporâneos como RobertRauschenberg, Claes Oldenburg, Bob Indiana e James van Dine.

Ainda estão sendo construídas uma exuberante mistura de soláriocom estufa, uma banheira japonesa que irá proporcionar uma luxuriantevisão de canos de cobre aparentes e teca encerada, e uma quadra de tênisde piso sintético, e a ilha particular está tomada pelo barulho de martelose serras enquanto as lindas garças-brancas que costumam fazer seusninhos na propriedade buscam refúgio temporário em outro lugar.

O progresso tem seu preço!Embora seja um anfitrião agradável, Van Horne é modesto em

relação a seus empreendimentos e espera poder gozar de isolamento eocasiões para meditar em sua nova residência.

“O que me atraiu em Rhode Island”, disse ele a nossa curiosarepórter, “foi o tipo de espaço e beleza que o lugar proporciona, coisa rarana costa leste nesta nossa época turbulenta e superpopulosa. Já me sintoem casa aqui.”

“Este lugar é muito especial!”, acrescentou ele com um toque de

informalidade, em pé ao lado de nossa repórter junto às ruínas do velhopíer dos Lenox admirando a vista do charco, do banco de aluvião, docanal e da vegetação baixa, bem como do distante horizonte do oceanoque se pode ver do primeiro andar.

A casa, com suas vastas superfícies de piso de taco de bordo e seuspés-direitos altos com rosetas de gesso no centro e sancas nas laterais,estava fria no dia de nossa visita outonal, pois a maior parte dosequipamentos e da mobília do novo “senhor” ainda está dentro dasresistentes caixas da mudança, mas ele garantiu a nossa repórter que oinverno já próximo não representava nenhum perigo para nossoanfitrião tão cheio de recursos.

Van Horne planeja instalar várias placas captadoras de energia solarsobre as telhas do grande telhado, e além disso confia na futura perfeiçãode um processo atentamente monitorado que irá tornar o consumo decombustíveis fósseis inútil em um futuro próximo. Que esse dia cheguelogo!

Quanto ao jardim, hoje abandonado a sumagres, ailantos, cerejeirassilvestres e outras árvores daninhas, o dono da casa o imagina como umparaíso semitropical transbordante de plantas exóticas que, durante oinverno, serão protegidas no exuberante solário-estufa da mansão Lenox.Quanto às estátuas de época que enfeitam a aleia do jardim outroradigno de Versalhes, agora infelizmente tão desgastadas por anos deintempéries que muitas delas já não têm narizes ou mãos, seu orgulhosodono pretende transferi-las para dentro de casa, substituindo-as naimponente aleia (de cujos tempos de glória os moradores mais antigos daregião se lembram bem) por réplicas de fibra de vidro da mesma formaque se fez com as famosas cariátides do Partenon de Atenas, na Grécia.

A passarela, disse Van Horne com seu gesto amplo tão típico, poderiaser melhorada com o acréscimo de pontões de alumínio ancorados naspartes mais baixas.

“Seria bem divertido ter um píer”, disse ele, talvez de brincadeira.“Seria possível ir de Hovercraft até Newport ou mesmo Providence.”

Van Horne compartilha essa enorme residência apenas com ummisto de assistente e mordomo, o sr. Fidel Malaguer, e com um adorávelfilhote de gato angorá batizada com o fantasioso nome de Thumbkin,“polegarzinha”, porque o bicho tem polegares a mais nas patas.

Confiante de estar falando em nome de muitos vizinhos, esta repórterdeu as boas-vindas a esse recém-chegado de impressionante visão esimpatia nesta nossa célebre região de South County.

A mansão Lenox tornou-se novamente um lugar digno de atenção!

“Você foi lá!”, disse Alexandra enciumada ao telefone, acusandoSukie, depois de ler o artigo no Word.

“Fui apurar uma matéria, meu bem.”“E quem teve a ideia de fazer essa matéria?”“Eu”, admitiu Sukie. “Clyde não sabia muito bem se isso era

notícia. E algumas vezes, em casos assim, quando você escreve sobrecomo uma casa é linda etc., a pessoa é assaltada na semana seguinte eprocessa o jornal.” Clyde Gabriel, homem magrelo de ar cansadocasado com uma desagradável mulher com inclinações para abeneficência, era o editor do Word. “O que você achou da matéria?”,perguntou Sukie em tom de quem pede desculpas.

“Bom, querida, o texto tem estilo, mas às vezes você exagera umpouco, e sinceramente... não se ofenda... você precisa prestar atençãonos particípios. Eles estão sobrando por toda parte.”

“Se a matéria tiver menos de cinco parágrafos, o seu nome nãoaparece. E ele me embebedou. Primeiro foi rum misturado no chá,depois rum sem chá. Aquele cucaracho sinistro não parava de trazermais bebidas em uma enorme bandeja de prata. Nunca vi uma

bandeja tão grande; parecia um tampo de mesa, toda gravada,bisotada ou sei lá o quê.”

“Mas e ele? Como ele se comportou? Darryl van Horne.”“Bom, ele falou à beça, devo dizer. E passou metade do tempo me

dando um banho de saliva. Foi difícil saber se eu deveria levar a sérioalgumas das coisas que ele disse — por exemplo, quando mencionouos pontões flutuantes. Ele disse que os cilindros, se é isso que são,poderiam ser pintados de verde, e que iriam se misturar perfeitamenteà vegetação do pântano. A quadra de tênis vai ser verde, e as cercastambém. Está tudo quase pronto, e ele quer convidar nós todas parajogar enquanto o tempo ainda não está muito ruim.”

“Nós todas quem?”“Nós todas, você, eu e Jane. Ele pareceu muito interessado, e eu

contei algumas coisas para ele, só a parte que todo mundo sabe, sobreos nossos divórcios e sobre nós termos nos encontrado, essas coisas. Esobre o reconforto que foi ter encontrado você, sobretudo. Não tenhoachado Jane muito reconfortante ultimamente, acho que ela estáprocurando um marido escondida de nós duas. E não estou mereferindo àquele Neff horroroso. Ele não tem como escapar de Gretacom todos aqueles filhos. Meu Deus, como filhos atrapalham, não é?Eu vivo tendo brigas terríveis com os meus. Eles dizem que eu nuncaestou em casa e eu fico tentando explicar para os merdinhas que estouganhando a vida.”

Alexandra não se deixou distrair do encontro que estava querendovisualizar, o encontro entre Sukie e aquele tal Van Horne.

“Você contou a ele os nossos podres?”“E nós lá temos algum podre? Sinceramente, eu não me deixo

abalar por fofocas, Lexa. Mantenha a cabeça erguida e não pare depensar: fodam-se-, é assim que eu desço a Dock Street todos os dias.Não, é claro que eu não contei nenhum podre. Fui muito discreta,como sempre. Mas ele pareceu bem curioso. Acho que talvez seja porvocê que está apaixonado.”

“Bom, eu não estou apaixonada por ele. Detesto homens tãomorenos assim. E não suporto aquela arrogância nova-iorquina. E orosto dele não combina com a boca, ou com a voz, ou sei lá com oquê.”

“Eu achei isso bem atraente”, disse Sukie. “A falta de jeito dele.”“O que ele fez de sem jeito? Derramou rum no seu colo?”“E depois lambeu? Não. Foi só o jeito como ele passava depressa

de um assunto para o outro, me mostrando aqueles quadros malucos— deve ter uma fortuna naquelas paredes — e depois o laboratório, etocando um pouco de piano, Mood indigo, acho que foi, tocado emritmo de valsa como uma espécie de brincadeira. Depois ele correupara fora da casa e uma das retroescavadeiras quase o derruboudentro de uma vala, e ele quis saber se eu queria ver a vista lá do altoda cúpula.”

“Você não subiu até a cúpula com ele! Não no primeiro encontro.”“Meu anjo, por que você fica me obrigando a repetir? Não foi um

encontro, eu estava apurando uma matéria. Não. Eu pensei que játinha visto o suficiente e sabia que estava bêbada e tinha um prazopara entregar o texto.” Ela fez uma pausa. Na noite anterior haviaventado muito, e nessa manhã Alexandra viu pela janela da cozinhaque as bétulas e a videira tinham perdido tantas folhas que um novotipo de luz enchia o ar, aquela luz crua, cinzenta e breve do invernoque nos mostra o verdadeiro aspecto da paisagem e como as casas dosvizinhos na verdade são próximas. “Mas ele de fato me pareceu...”,estava dizendo Sukie. “Sei lá, é quase como se ele estivesseexcessivamente ávido por publicidade. Quer dizer, é só umjornalzinho local. E como se...”

“Continue”, disse Alexandra, tocando a vidraça fria com a testacomo para deixar o cérebro sedento beber aquela luz fresca e ampla.

“Só fico pensando: será que esse tal negócio dele está mesmo indotão bem, ou é só excesso de confiança? Se ele estiver mesmofabricando essas coisas, não deveria haver uma fábrica?”

“Boas perguntas. Que tipo de pergunta ele fez sobre nós? Oumelhor, que tipo de coisa você optou por contar para ele?”

“Não sei por que você está fazendo tanto drama.”“Eu também não. Quer dizer, não sei mesmo.”“Sério, eu não sou obrigada a contar tudo isso para você.”“Tem razão. Estou sendo desagradável. Por favor, não pare.”Alexandra não queria que seu mau humor lhe fechasse a janela

para o mundo lá fora que as fofocas de Sukie lhe proporcionavam.“Ah”, respondeu Sukie, fazendo doce. “Como nós éramos

próximas. Como tínhamos descoberto que preferimos mulheres ahomens, e assim por diante.”

“Ele ficou ofendido?”“Não, ele disse que também preferia mulheres a homens. Que

eram de longe o mecanismo superior.”“Ele disse ‘mecanismo’.”“Alguma palavra desse tipo. Escute, meu anjo, tenho que sair

correndo, sério. Marquei de entrevistar os chefes do comitê para falarsobre o Festival da Colheita.”

“Em que igreja?”Na pausa que se seguiu, Alexandra fechou os olhos e viu um

zigue-zague iridescente, como se um diamante seguro pela mãoinvisível de alguém estivesse pintando a escuridão, em um paraleloelétrico com os pensamentos irrequietos de Sukie.

“Na unitarista, você sabe. Todas as outras acham issoexcessivamente pagão.”

“Posso perguntar como você anda se sentindo em relação a EdParsley ultimamente?”

“Ah, do mesmo jeito de sempre. Simpática, mas distante. Brenda émesmo uma puritana insuportável.”

“E ela está sendo insuportavelmente puritana em relação a quê,segundo ele?”

Uma certa reserva em relação aos detalhes sexuais reinava entre as

bruxas, mas Sukie, para se redimir, violou esses limites e começouuma confissão:

“Ela não quer fazer nada com ele, Lexa. E, antes de entrar para oseminário, ele rodou bastante por aí, então sabe o que está perdendo.Ele vive querendo fugir para ir se juntar ao Movimento.”

“Ele passou da idade. Tem mais de trinta. O Movimento não quernada com ele.”

“Ele sabe disso. Ele despreza a si mesmo. Eu não posso dizer nãotodas as vezes, ele é patético demais”, exclamou Sukie em tom deprotesto.

Curar fazia parte da natureza das três e, embora o mundo asacusasse de interferir na relação entre os homens e suas esposas, deatar o vínculo perturbador, de amarrar a aiguillette que fazia surgir ofantasma da impotência ou da frieza emocional nas entranhas de umcasamento aparentemente seguro em sua casa de iluminação reduzidacoberta por um telhado protetor, e embora o mundo não apenas asacusasse mas as queimasse vivas nas línguas da opinião indignada,esse era o preço que elas tinham de pagar. Querer curar erafundamental e instintivo, era feminino — querer aplicar o emplastroda carne aquiescente ao ferimento do desejo de um homem, quererdar a seu espírito preso a exaltação de ver uma bruxa despir as roupase entrar nua em pelo no quarto cheio de mobília barata de um hotel debeira de estrada. Alexandra poupou Sukie de algo mais do que umasugestão de reprimenda pelo fato de a mulher mais jovem seguirprodigalizando seus favores a Ed Parsley.

No silêncio da casa, sem filhos por mais duas horas, Alexandra seesforçou para afastar a depressão, movendo-se sob

seu peso qual um peixe vagaroso e deformado no fundo do mar.Sentia-se sufocada pela própria inutilidade e pela inutilidade daquelacasa que a rodeava, uma casa de fazenda de meados do século XIXcom cômodos pequenos e bolorentos e na qual reinava um cheiro delinóleo. Pensou em comer para se animar. Todos os seres se

alimentam, até mesmo gigantescas lesmas do mar; alimentar-se é suaessência, e dentes, cascos e asas se desenvolveram graças a milhões deanos de pequenas lutas sangrentas. Ela preparou um sanduíche depeito de peru fatiado e alface com pão integral dietético, tudocomprado na mercearia Bay Superette naquela manhã junto comdesinfetante em pó, um produto para combater o calcário da água e aedição semanal do Word. As muitas e trabalhosas etapas dapreparação do almoço quase a sobrecarregaram — retirar a carne dageladeira e abrir o papel de açougueiro que a embrulhava, encontrar amaionese na prateleira em que estava escondida entre vidros de geleiae azeite para salada, remover do pé de salada a pele colada do finofilme transparente que o protegia, arrumar esses ingredientes sobre abancada junto com um prato, pegar uma faca na gaveta para espalhara maionese, encontrar um garfo para pescar um picles compridodentro do vidro baixo no qual sementes formavam uma nuvem dentrodo sumo ralo e verde, e em seguida fazer um café para levar embora ogosto de peru e picles. Sempre que ela tornava a guardar na gaveta opequeno medidor de plástico que separava a quantidade de grãos decafé a serem postos na máquina, mais alguns se acumulavam ládentro, nas frestas, fora de alcance: se ela vivesse para sempre, aquelesgrãos iriam se transformar em uma montanha, uma cordilheira deAlpes marrons. A toda a sua volta naquela casa acumulava-se umainexorável camada de sujeira: debaixo das camas, atrás dos livros,entre as colunas dos aquecedores. Ela guardou todos os ingredientes eimplementos solicitados por sua fome. Realizou algumas tarefasautomáticas de manutenção doméstica. Por que não havia outro lugarpara se dormir a não ser camas que precisavam ser refeitas, nem nadaem que se comer a não ser pratos que precisavam ser lavados? Era tãoruim quanto na época das mulheres incas. Ela era mesmo, como tinhadito Van Horne, um mecanismo, um robô cruelmente consciente decada movimento crônico.

Alexandra havia sido uma filha amada naquela alta cidade do

Oeste, com sua rua principal parecendo um campo de futebol amplo eempoeirado, a farmácia e loja de arreios, e a Woolworth’s e abarbearia espalhadas como arbustos de chaparral a envenenar a terraem volta. Havia sido a menina dos olhos de sua família, um assombrode graça e diversão ladeada por irmãos sem graça, meninosencangalhados à carroça mambembe da masculinidade, cujas vidasconsistiam em uma sequência de times. Seu pai, ao voltar das viagensem que vendia calças Levi’s, observava Alexandra crescer como se elafosse uma planta que cresce aos sobressaltos, exibindo pétalas e brotosnovos a cada encontro. A medida que ia crescendo, a pequena Sandyroubava saúde e poder da mãe cada vez mais debilitada, do mesmojeito que outrora havia sugado o leite de seus seios. Rompeu o hímenmontando a cavalo. Aprendeu a andar sobre os compridos bancos emforma de sela das motocicletas, agarrando-se com tanta força que suabochecha ficava impressa com a marca das tachinhas nas costas dasjaquetas dos meninos. Sua mãe morreu, e seu pai a mandou estudarno Leste; sua orientadora vocacional do ensino médio havia escolhidouma instituição com o nome tranquilizador de Faculdade paraMulheres de Connecticut. Lá, em New London, como capitã do timede hóquei e estudante de belas-artes, ela presenciou as muitaspaisagens intensas das quatro bem marcadas estações do Leste e, emjunho do terceiro ano, viu-se um dia toda vestida de branco, e no anoseguinte se deparou com um armário alinhado com os muitosuniformes inertes de esposa. Havia conhecido Oz em Long Islanddurante uma regata organizada por outras pessoas; enquantomantinha equilibrada uma sucessão de bebidas dentro de um frágilcopo de plástico, ele não havia aparentado nem enjoo nem medo,enquanto ela sentia as duas coisas, e isso a deixara impressionada.Ozzie também ficara encantado com ela — com seu corpo generoso ecom seu andar masculinizado, típico do Oeste. O vento mudou, a velaestufou, o barco deu uma guinada, o sorriso dele cintilou de formareconfortante em meio ao cor-de-rosa queimado de sol e corado de

gim de seu rosto; ele tinha um sorriso enviesado meio tímido, umpouco parecido com o do pai dela. Ela caiu em seus braços, mas comessas quedas entendeu vagamente que a vida alçava voo,fortalecendo-a. Suportou a maternidade, o clube de jardinagem, asrifas de carro e festas. Tomava café de manhã com a faxineira econhaque à meia-noite com o marido, confundindo luxúriaembriagada com reconciliação. A sua volta, o mundo ia crescendo —uma sucessão de filhos lhe brotou por entre as pernas, elesconstruíram um puxado na casa, os aumentos que Oz recebiaacompanharam o ritmo da inflação —, e de alguma forma ela estavaalimentando o mundo, mas não sentia mais que este a alimentava.Suas depressões pioraram. Seu médico receitou Tofranil, seupsicoterapeuta análise, e o sacerdote de sua igreja um livro deKierkegaard. Na época, ela e Oz viviam em Norwich, onde se podiaouvir os sinos das igrejas e onde, conforme as tardes de invernoescureciam e antes de a escola lhe devolver os filhos, Alexandra ficavadeitada na cama sentindo-se achatada por cada badalada, sentindo-sedisforme e fedorenta como uma galocha velha ou a pelagem de umesquilo morto muitos dias antes na rodovia. Quando menina, elacostumava ficar deitada na cama em sua inocente cidade de montanhatoda empolgada com o próprio corpo, uma espécie de visitante queviera do nada para lhe arrebatar o espírito; estudara-se no espelho,vira a covinha do queixo e a curiosa depressão na ponta do nariz,afastara-se para admirar os ombros largos e inclinados, os seios fartose a barriga que parecia uma tigela vazia virada a reluzir acima docasto triângulo de pelos e das sólidas coxas ovaladas, e decidira seramiga do próprio corpo; poderia ter tido sorte bem pior. Deitada nacama, maravilhava-se com o próprio tornozelo, virando-o à luz dajanela — o brilho teso dos ossos e tendões, as veias de um azul muitoclaro com seu tráfego mágico de oxigênio —, ou então acariciava ospróprios antebraços roliços, bem desenhados e cobertos de penugem.

Então, na metade do tempo do casamento, seu próprio corpo

passou a lhe causar repulsa, e as tentativas de Ozzie de fazer amorcom aquele corpo pareciam uma provocação maldosa. Era ao corpo láfora, do outro lado das janelas, à carne acesa de luz, encharcada deágua e frondosa de folhas daquele outro eu, o mundo, que a belezaainda se prendia; quando veio o divórcio, era como se ela tivesse saídovoando por aquela janela. Na manhã seguinte à audiência, elaacordou às quatro da manhã para arrancar velhos pés de ervilha ecantar sob o luar, cantar sob a luz daquela dura pedra branca com seurosto inclinado, triste e unissex — uma presença celestial, e a auroraao leste com a mesma cor cinza de um gato. Aquele outro corpotambém tinha um espírito.

Agora o mundo se derramava através dela, desperdiçado,esvaindo-se pelo ralo. Uma mulher é um buraco, lera Alexandra certavez no livro de memórias de uma prostituta. Na verdade, ela se sentiamenos um buraco e mais uma esponja, uma coisa pesada e molengaem cima daquela cama absorvendo no ar toda a futilidade e a tristezaque existiam: guerras que ninguém ganhava, doenças curadas paraque todos pudéssemos morrer de câncer. Seus filhos chegariam emcasa com alarde, todos desengonçados e carentes, puxando,agarrando-se, solicitando-a em busca de carinho, e encontrariamnão.uma mãe, mas apenas uma criança gorda, assustada e já não tãobela, já não maravilhosa para um pai cujas cinzas haviam sidolançadas dois anos antes de um avião agrícola sobre sua campina demontanha preferida, onde a família costumava ir colher floressilvestres — flox alpinas e sky pilots com suas folhas de cheiro ruim,acônitos, shooting stars e pequenos lírios que brotam nos lugaresúmidos surgidos quando a neve recua. Seu pai levava consigo umguia de flores; a pequena Sandra lhe trazia oferendas recém-colhidaspara ele identificar, delicados botões com tímidas pétalas de cor clarae caules gelados, pensava a menina, por terem passado a noite inteiraexpostos ao frio da montanha.

As cortinas de chintz que Alexandra e Mavis Jessup, a decoradora

divorciada dona da Yapping Fox, tinham pendurado nas janelas doquarto de dormir eram estampadas com um desenho grande eespalhafatoso de peônias cor-de-rosa e brancas. As dobras do tecidopendurado transformavam essa estampa em um nítido rosto depalhaço, um cruel rosto de palhaço cor-de-rosa e branco com umapequena fenda no lugar da boca: quanto mais Alexandra olhava, maisrostos sinistros de palhaço apareciam, um coro inteiro de palhaços emmeio às peônias sobrepostas. Ela pensou nas suas pequenas peitudasesperando para serem fabricadas a partir do barro, e elas eram iguaisa ela própria — encharcadas, amorfas. Um drinque ou um remédiopoderiam animá-la e disfarçar sua angústia, mas ela sabia o preço:duas horas depois, estaria se sentindo ainda pior. Seus pensamentosconfusos foram atraídos, como pelo movimento glamouroso e obarulho sincopado de máquinas, na direção da antiga casa dos Lenoxe de seu residente, aquele príncipe escuro que havia recebido suasduas irmãs como em um insulto calculado a ela. Mesmo nesse insultoe nessa vileza havia algo contra o que resistir, algo para exercitar seuespírito. Ela ansiava por chuva, pelo alívio de sua agitação além dabrancura do teto, mas, quando virou os olhos para a janela, o tempocruelmente claro do lado de fora não havia mudado. O bordo ao ladode sua janela cobria as vidraças de ouro, o último suspiro de folhasque já tinham excedido seu tempo de vida. Alexandra continuoudeitada na cama, incapaz, soterrada por toda a incessante inutilidadeque existe no mundo.

O bom Carvão veio até ela, sentindo o cheiro de seu pesar. Seucorpo comprido e lustroso, cintilando dentro do saco frouxo de pelede cachorro, caminhou com passos largos por cima do tapete oval deretalhos trançados e pulou sem esforço para cima de sua camabalouçante. Preocupado, ele lambeu seu rosto, depois suas mãos, eaninhou-se no ponto onde, para ficar mais à vontade, ela haviasoltado o cós da calça Levi’s endurecida de sujeira. Ela levantou ablusa para expor mais um pedaço da barriga branca como leite, e ele

encontrou ali o mamilo sobressalente, a mais ou menos um palmo doumbigo, um pequenino botão borrachudo e rosado que haviaaparecido alguns anos antes e que o dr. Pat lhe garantira ser benigno enão canceroso. Ele havia sugerido retirá-lo, mas ela tinha medo dobisturi. Não tinha sensibilidade nenhuma ali, mas a pele em volta seeriçou quando Carvão se esfregou e lambeu como se aquilo fosse umateta. O corpo do cão irradiava calor e um leve aroma de carniça. ATerra contém em si vários estágios de decomposição e excremento, eAlexandra não os considerava repulsivos, e sim belos de certa forma, acomplexa trama do apodrecimento.

De repente, Carvão se cansou de tanto mamar. Ele desabou dentrodo buraco que o corpo cheio de pesar de Alexandra havia cavado nacama. Adormecido, o grande cão roncava com um barulho queparecia líquido dentro de um canudo. Alexandra ficou olhando para oteto, esperando alguma coisa acontecer. A pele úmida de seus olhosestava quente, e seca como a pele de um cacto. Suas pupilas eram doisespinhos pretos virados para dentro.

Sukie foi entregar sua matéria sobre o Festival da Colheita (“Bazare Brincadeiras / Fazem Parte dos Planos Unitaristas”) a Clyde Gabrielem sua sala estreita e, para seu desconcerto, encontrou-o envergadosobre a mesa com a cabeça apoiada nos braços. Ele ouviu o farfalhardas páginas da matéria dela dentro de seu cesto de metal e ergueu acabeça. Seus olhos tinham as bordas vermelhas, mas ela não saberiadizer se aquilo se devia ao choro, ao sono, à ressaca, ou ao fato de elenão ter dormido na noite anterior. Já tinha escutado boatos de que nãosomente ele bebia, mas que também tinha um telescópio e às vezes

passava horas sentado na varanda dos fundos de sua casa,examinando as estrelas. Seus cabelos castanho-claros, ralos no alto dacabeça, estavam despenteados; ele tinha olheiras azuis inchadas sob osolhos, e o resto de seu rosto era levemente acinzentado, como umjornal.

“Desculpe”, disse ela. “Pensei que você fosse querer incluir estamatéria.”

Sem erguer muito a cabeça da mesa, ele apertou os olhos para leras páginas que ela havia escrito.

“Que incluir o que”, disse ele, constrangido por ela tê-losurpreendido prostrado. “Esse assunto não merece nem um título deduas linhas. Que tal Pastor Pacifista Planeja Quermesse?”

“Eu não falei com Ed; falei com os membros do comitê.”“Ih, desculpe. Esqueci que você considera Parsley um grande

homem.”“Não é exatamente isso que eu penso”, disse Sukie, empertigando-

se o máximo possível. Aqueles homens infelizes ou sem sorte pelosquais ela estava fadada a se sentir atraída não hesitavam em puxarvocê para baixo junto com eles se você deixasse e não se mantivessefirme. Aquele desagradável viés sardônico de Clyde, que faziaalgumas outras pessoas da redação torcerem o nariz e havia arruinadosua reputação na cidade, era considerado por Sukie um pedido dedesculpas disfarçado, uma súplica às avessas. Em determinado pontode seu passado, ele devia ter sido um homem rico em promessas, massua beleza — testa alta e quadrada, boca larga que poderia ter sidoarrebatada, e olhos do mais delicado matiz de azul-gelo emolduradospor longos cílios — estava ruindo; ele estava adquirindo aqueleaspecto ressequido e faminto dos beberrões contumazes.

Clyde tinha pouco mais de cinquenta anos. No mural atrás de suamesa, junto com um gabarito de tamanhos de títulos e alguns elogiosemoldurados obtidos pelo Word sob direções anteriores, ele haviapendurado fotografias da filha e do filho, mas nenhuma da mulher,

embora não fosse divorciado. A filha, bonita de um jeito inocente ecom o rosto bem redondo, era solteira e trabalhava como operadorade raio X no hospital Michael Reese de Chicago, quem sabe a caminhode se tornar o que Monty teria chamado com galhofa de “donamédica”. Já o filho do casal Gabriel, que havia abandonado os estudosuniversitários e se interessava por teatro, passara o verão gravitandoao redor de festivais de teatro em Connecticut, e tinha os olhos clarosdo pai e a beleza afetada de uma estátua grega arcaica.

Felicia Gabriel, a mulher deixada de fora do mural, devia ter sidouma garota espevitada e inteligente no passado, mas havia setransformado em uma mulherzinha de traços incisivos que nãoconseguia parar de falar. Nesta época em que vivemos, ela semostrava indignada com tudo: com o governo e com as pessoas queprotestavam, com a guerra, com as drogas, com as canções indecentesque tocavam no rádio, com o fato de a Playboy ser vendidaabertamente nas lojas da região, com a letargia do governo municipale seu bando de preguiçosos, com os veranistas escandalosos tanto nostrajes quanto nos atos, com o fato de nada ser exatamente como seriacaso ela estivesse no comando.

“Felicia acabou de ligar”, informou Clyde, um pedido dissimuladode desculpas pela lamentável pose em que Sukie o havia encontrado,“furiosa porque aquele tal Van Horne violou o regulamento doscharcos. Além disso, ela disse que a sua matéria sobre ele foiexcessivamente elogiosa; disse que ouviu boatos bem indigestos sobreo passado dele em Nova York.”

“De quem ela ouviu esses boatos?”“Ela não quis dizer. Está protegendo suas fontes. Vai ver quem

contou a ela essas coisas horríveis foi o próprio diretor do FBI, J. EdgarHoover.” Essa ironia anticonjugal pouco contribuiu para animar seusemblante, pois ele já havia sido irônico às custas de Felicia muitasvezes na vida. Alguma coisa havia morrido por trás daqueles olhos delongos cílios. Sukie muitas vezes pensara que os dois filhos adultos

nas fotos do mural tinham o mesmo ar fantasmagórico do pai: ostraços arredondados da filha pareciam um contorno vazio de tãoperfeitos, e o menino também exibia uma passividade sinistra, comseus lábios carnudos, cabelos encaracolados e o rosto comprido ebrilhante. No caso de Clyde, essa falta de cor era maculada pelosaromas acastanhados do uísque matinal e do tabaco, e também porum esquisito relento cáustico que emanava de sua nuca. Sukie nuncatinha ido para a cama com Clyde. Mas tinha uma sensação maternalde que seria capaz de lhe restituir a saúde. Ele parecia estarafundando, agarrado à mesa de metal como se esta fosse um bote aremo virado de cabeça para baixo.

“Você parece exausto”, ela conseguiu ser direta o suficiente paradizer.

“E estou. Estou mesmo, Suzanne. Felicia passa todas as noites aotelefone com alguma de suas causas e me deixa sozinho, então bebodemais. Antes eu ficava no telescópio, mas realmente preciso de umalente mais potente, a que tenho mal dá para ver os anéis de Saturno.”

“Leve-a ao cinema”, sugeriu Sukie.“Já levei, para ver um filme totalmente inofensivo com Barbra

Streisand — meu Deus, que voz aquela mulher tem, a voz delaatravessa a gente feito uma faca! E ela ficou tão zangada com aviolência de um dos trailers que saiu da sala e passou metade do filmereclamando com o gerente. Depois voltou para assistir à segundametade e ficou zangada porque achou que mostravam demais ospeitos da Barbra Streisand quando ela se abaixava usando umdaqueles vestidos da virada do século. Sério, o filme nem era proibidopara menores de catorze anos, era censura livre! Só um bando degente cantando dentro de bondes velhos!” Clyde tentou rir, mas seuslábios haviam perdido o hábito de fazer isso, e o buraco enrugado queapareceu em seu rosto era lamentável de se ver. Sukie teve umimpulso de despir o suéter de lã cor de chocolate, soltar o sutiã eoferecer os seios empertigados para aquele homem moribundo

chupar; mas ela já tinha Ed Parsley em sua vida, e um sofredoresquisito e inteligente por vez era suficiente. A cada noite, ela fazia EdParsley encolher mais um pouco em sua mente, para que quando otelefonema chegasse ela pudesse atravessar suficientemente leve ocharco inundado até a ilha de Darryl van Horne. Era lá que as coisasinteressantes aconteciam, não ali na cidade, onde a água suja de óleodo porto lambia as estacas e refletia uma luz estremecida nos rostosabatidos dos moradores de Eastwick enquanto estes penavam paracumprir seus deveres cívicos e cristãos.

Mesmo assim, os mamilos de Sukie tinham endurecido por baixodo suéter, conscientes de seu poder de cura, do fato de ela poder serpara qualquer homem um jardim cheio de antídotos e paliativos. Suasaréolas formigaram, como quando antigamente bebês queriam seuleite ou como quando ela, Jane e Lexa criavam o vórtice de poder e umcalafrio de emoção, uma espécie de alarme disparado, percorria seusossos, até mesmo os ossos de seus dedos das mãos e dos pés, como seestes fossem pequenos canos transportando correntes de água gelada.Clyde Gabriel inclinou a cabeça sobre um texto que estava editando;de forma enternecedora, seu couro cabeludo descorado apareceu entreos longos fios soltos de cabelos castanho-claros, em um ângulo que elenunca via.

Sukie saiu da redação do Word para a Dock Street e foi a pé até alanchonete Nemo’s almoçar; a perspectiva das calçadas e vitrinesiluminadas por um brilho ofuscante se adensou em torno de suafigura ereta como um cadarço apertando com força a boca de um saco.Os mastros dos veleiros ancorados além das estacas do portopareciam uma floresta esparsa de finas árvores envernizadas. Naextremidade sul da rua, em Landing Square, as imensas e velhas faiasem volta do pequeno monumento de granito em homenagem aosmortos na guerra formavam um alto muro frágil todo amarelo, queperdia as folhas com qualquer brisa. A água, conforme avançavarumo ao frio do inverno, adquiria um azul mais próximo do aço, em

contraste com o qual as ripas brancas das casas do lado da rua quedava para a baía pareciam adquirir um ofuscante tom de giz, quedestacava cada furo de prego. Quanta beleza!, pensou Sukie, e sentiumedo pelo fato de que sua própria beleza e vitalidade nem semprefariam parte daquilo, medo de que algum dia iria sumir como umapeça perdida de formato esquisito faltando no meio de um quebra-cabeça.

Jane Smart estava ensaiando a “Suíte nº 2 em ré menor” paravioloncelo solo de Bach, cujas pequeninas semicolcheias pretas doprelúdio subiam e desciam, depois tornavam a subir com ossustenidos e bemóis como um homem que ergue ligeiramente a vozdurante uma conversa enquanto o velho Bach punha em marcha maisuma vez sua infalível máquina de suspense tonal, e de repente aquilocomeçou a incomodar Jane, aquelas notas tão pretas, exatas,masculinas, o dedilhar que ia ficando mais difícil a cada transposiçãodo tema em glissando e o fato de ele sequer se importar, aquele velholuterano defunto de rosto quadrado com sua peruca, seu Deus, suagenialidade e suas duas mulheres e dezessete filhos, de ele sequer seimportar com a dor que ela sentia na ponta dos dedos, ou com a formacomo seu espírito obediente era empurrado para a frente e para trás,para cima e para baixo por aquelas notas militares apenas para lhe daruma voz após a morte, a imortalidade de um bruto; de repente ela serebelou, baixou o arco, serviu-se uma dose de vermute seco e foi até otelefone. A essa altura, Sukie já devia ter chegado do trabalho e jogadoum pouco de manteiga de amendoim com geleia para os coitados dosfilhos antes de sair para a ridícula reunião cívica da noite.

“Nós temos que fazer alguma coisa para Alexandra ser convidadaa ir à casa de Darryl”, foi o teor da ligação de Jane. “Eu passei láquarta-feira no final do dia, mesmo ela tendo me dito para não passarporque parecia muito magoada com o fato de termos cancelado nossoencontro de quinta, ela se tornou dependente demais dessas quintas-feiras, e eu a achei terrivelmente deprimida, doente de ciúmes,primeiro eu com o Brahms e depois a sua matéria, devo dizer que asua prosa de certa forma passou sal na ferida, e eu não conseguiarrancar nada dela sobre o assunto e não me atrevi a abordar eumesma o motivo de ela não ter sido convidada.”

“Mas, querida, ela foi convidada, tanto quanto eu e você. Quandoele estava me mostrando as obras de arte da casa para a matéria,chegou até a pegar o catálogo de aspecto bem caro da exposição queuma tal Niki não sei das quantas tinha feito em Paris, e disse queestava guardando o catálogo para Lexa ver.”

“Bom, ela não vai antes de ter sido formalmente convidada, eposso ver que isso está corroendo a pobrezinha. Pensei que talvezvocê pudesse dizer alguma coisa.”

“Por que eu, querida? Quem o conhece melhor é você, você agoravive lá, com essa história toda de música.”

“Eu estive lá duas vezes”, disse Jane, fazendo a última palavrasibilar de forma distinta. “E que você tem jeito para isso, e conseguedizer certas coisas a um homem. Eu, de certa forma, sou precisademais; a coisa toda iria adquirir uma importância exagerada.”

“Mas eu nem sei se ele gostou da matéria”, defendeu-se Sukie.“Ele não me ligou para falar sobre isso.”

“Por que não teria gostado? A matéria estava ótima, e ele ficouparecendo bem romântico, ousado e admirável. Marge Perley pregoua matéria no quadro de avisos da imobiliária e agora diz a todos osclientes em potencial que aquela venda foi dela.”

Uma menina aos prantos chegou perto de Sukie do seu lado dalinha; entre soluços, e enquanto a voz de Jane seguia chiando como

uma interferência estática, a criança conseguiu explicar que seu irmãomais velho não queria deixá-la assistir a um especial educativo sobre oacasalamento dos leões em vez da reprise de Hogan’s Heroes em umcanal UHF que ele queria assistir. Os lábios da menina estavam sujosaqui e ali de pedaços de manteiga de amendoim e geleia; seus cabelosdelicados eram um ninho de rato emaranhado. Sukie teve vontade dedar um tapa no rosto sujo da criança e fazer aqueles olhos vidrados detanta TV caírem um pouco em si. Cobiça: era só isso que a televisãoensinava, transformando nossas mentes em mingau. Darryl vanHorne havia lhe explicado como a TV era responsável por todas asrebeliões e por toda a resistência à guerra; as interrupções comerciais ea constante mudança de canais haviam destruído na mente dos jovensas sinapses responsáveis pelas conexões lógicas, de modo que o FaçaAmor, Não Faça a Guerra lhes parecia uma ideia real.

“Vou pensar no caso”, prometeu a Jane, apressada, e entãodesligou. Tinha de sair para uma reunião de emergência doDepartamento Rodoviário; no último mês de fevereiro, nevascasinesperadas haviam consumido todo o orçamento anual de remoçãode neve e despejo de sal nas estradas, e o chefe do departamento, IkeArsenault, estava ameaçando se exonerar.

Sukie esperava conseguir sair cedo da reunião para encontrar EdParsley em Point Judith. Mas primeiro precisava resolver a briga nasala de TV. As crianças tinham sua própria TV no andar de cima, mas,por perversidade, preferiam usar a sua; o barulho enchia a pequenacasa, e seus copos de leite com achocolatado deixavam marcas no baúconvertido em mesa de centro, e depois ela encontrava migalhas depão esverdeando entre as almofadas do sofá. Furiosa, foi até lá eordenou ao pirralho mais malcriado que pusesse a louça do jantar nalava-louças.

“E não se esqueça de enxaguar a faca da manteiga de amendoim,enxaguar e secar; se você puser a faca suja dentro da lava-louçasquente, o calor assa a manteiga de amendoim e ela nunca mais sai.”

Antes de sair da cozinha, Sukie despedaçou uma lata de carne decavalo cor de sangue para cães da marca Aipo e pôs a comida no chãodentro da tigela de plástico, na qual uma criança havia escrito com ummarcador fosforescente o nome HANK, para o weimaraner esfomeadodevorar. Então enfiou na própria boca um punhado de amendoinsespanhóis salgados; pedaços de casca vermelha grudaram em seuslábios suntuosos.

Ela subiu até o andar de cima. Para chegar ao quarto de Sukie, erapreciso subir a escada estreita e dobrar à esquerda em um corredorestreito e oblíquo com paredes de madeira sem ornamento, e emseguida à direita, passando por uma autêntica porta do século XVIIIcoberta de tachinhas quadradas formando o desenho de um duplo X.Ela fechou essa porta e, com um trinco de ferro forjado em forma degarra, trancou-se dentro do quarto. As paredes eram revestidas comum velho papel de parede estampado com trepadeiras que cresciampara cima como pés de feijão em estacas, e o teto era cheio de teias dearanha e abaulado como a parte de baixo de uma rede. Grandesarruelas afixadas às piores rachaduras impediam o gesso de ruir. Umsolitário gerânio definhava na soleira da única janelinha. Sukie dormiaem uma cama de casal de dossel curvo coberta por uma colcha dealgodão de bolinhas. Havia se lembrado de que tinha um exemplar doWord na mesinha de cabeceira; com uma tesourinha de unha,recortou cuidadosamente a matéria que havia escrito intitulada“Inventor, Músico, Amante da Arte”, exalando sobre o papel seuhálito morno enquanto os olhos míopes tentavam não incluir norecorte nenhuma letra de qualquer outra matéria que não estivesserelacionada a Darryl van Horne. Isso feito, enrolou a matéria com olado da frente virado para dentro em volta de uma peituda de ancaslargas e pés pequeninos que Alexandra lhe dera de presente em seutrigésimo aniversário, dois anos antes, mas que, para fins de magia,iria representar sua própria criadora. Usando um barbante especialque guardava em um armário estreito ao lado da lareira, uma juta

verde cheia de fiapos do mesmo tipo usado por jardineiros paraamarrar plantas e cujas propriedades incluíam, portanto, a deincentivar o crescimento, amarrou bem apertado o embrulho aténenhum pedaço do papel impresso ficar mais visível. Arrematou oconjunto com um laço, depois um segundo e um terceiro, em nome damagia. O amuleto tinha um peso agradável em sua mão, um objetoalongado e fálico com a mesma textura de um cesto de trama fechada.Sem ter certeza de qual seria o feitiço apropriado, encostou-o de levena testa, nos dois seios, no umbigo que era só um elo na infinitacorrente de mulheres e, erguendo a saia mas sem tirar a calcinha, naspartes íntimas. Para garantir, beijou o amuleto.

“Divirtam-se, vocês dois”, disse, e, recordando uma palavra dolatim que havia estudado na escola, entoou em um sussurro. “Copula,copula, copula.” Então se ajoelhou e pôs aquele amuleto peludo everde sob a cama, onde descobriu cerca de uma dezena de montinhosde poeira e uma meia-calça perdida que ela estava apressada demaispara recuperar. Seus mamilos já haviam se retesado ao imaginar EdParsley, seu carro escuro estacionado, o facho de luz acusador do farolde Point Judith, o quarto de hotel barato e úmido pelo qual ele já teriapago dezoito dólares, e os rompantes de culpa dele que ela teria desuportar depois de ele ter se saciado sexualmente.

Nessa tarde de céu baixo, prateado e frio, Alexandra pensou que apraia de East Beach pudesse estar exposta demais ao vento, entãoparou o Subaru em um acostamento da rua à beira-mar, não muitolonge da passarela da mansão Lenox. Ali havia um grande trecho decharco, de vegetação agora descolorida e amassada em alguns trechospela ação das marés, onde Carvão poderia dar uma corrida. Entre asrochas sarapintadas que constituíam os imensos ossos da passarela, omar depositava gaivotas mortas e carapaças vazias de caranguejos queo cachorro adorava farejar e fuçar. Ali havia também os resquícios deum portão de entrada: duas colunas de tijolo encimadas por tigelas defrutas feitas de cimento e equipadas com as dobradiças enferrujadas

de um portão de ferro desaparecido. Enquanto estava parada olhandona direção da casa simétrica de luzes acesas, seu dono chegou por trásdela em silêncio ao volante de seu Mercedes. O carro tinha uma corquase branca que parecia encardida; um dos para-lamas dianteiroshavia sido amassado, e o outro, consertado e pintado com um tom demarfim não exatamente igual ao restante do carro. Como estavausando uma bandana vermelha para proteger os cabelos do vento,Alexahdra, ao se virar, viu o próprio rosto refletido nos olhos risonhosdo homem moreno em um formato oval espantado, emoldurado devermelho em contraste com as listras prateadas acima do mar, com oscabelos cobertos como os de uma freira.

A janela do carro dele havia se abaixado suavemente, acionada porum motor.

“Finalmente você veio”, disse ele, nem tanto com o tom curioso edesajeitado da recepção após o concerto, mas na simples declaraçãofactual de um homem ocupado. Seu rosto marcado sorria. A seu lado,no banco do carona, via-se uma forma sombreada e cônica — um cãocolhe, mas em cuja pelagem tricolor o preto era particularmentedominante. A criatura pôs-se a ladrar sem piedade quando o fielCarvão se afastou da investigação de carniças distantes e se postou aolado de sua dona.

Ela segurou a coleira do animal para contê-lo enquanto seu pelo seeriçava e ele engasgava, e levantou a voz para se fazer ouvir acima daalgazarra dos cachorros.

“Eu só estava estacionando aqui, não vim...” Sua voz saiu maisfrágil e mais jovem do que o normal; ela havia sido pega em flagrante.

“Eu sei, eu sei”, disse Van Horne, impaciente. “Mas venha mesmoassim tomar um drinque lá em casa. Você ainda não fez o seu tour.”

“Tenho que voltar logo. As crianças vão chegar da escola.” Noentanto, ao mesmo tempo que dizia isso, Alexandra já estavaarrastando o desconfiado e resistente Carvão em direção ao carro.Meu passeio ainda não acabou, queria dizer o animal.

“E melhor você vir comigo no meu calhambeque”, gritou ohomem. “A maré está subindo e você não vai querer ficar ilhada.”

Afio?, pensou ela, obedecendo como um robô e traindo seu melhoramigo ao trancar Carvão dentro do Subaru. O animal esperava que elatambém fosse entrar no carro e o levasse para casa. Ela abriu uns doiscentímetros da janela do motorista para deixar o ar entrar e abaixou ospinos das portas. A cara preta do cão se franziu de incredulidade.Suas orelhas estavam empinadas para longe do crânio na maiordistância que suas intrincadas dobras internas eram capazes desuportar. Aquelas mesmas dobras aveludadas e cor-de-rosa que elatantas vezes havia acariciado junto à lareira, em busca de carrapatos.

“Só um minutinho mesmo”, gaguejou ela para Van Horne,dividida, canhestra, a pose e o poder perdidos junto com os anos.

O collie, que não havia sido mencionado na matéria de Sukie,perdeu toda a ferocidade e saltou graciosamente para o banco de trásquando ela abriu a porta do Mercedes. O interior do carro era decouro vermelho; os bancos da frente haviam sido forrados com pelede ovelha, com o lado da lã virado para cima. Com um ruído caro esuave, a porta se fechou ao seu lado.

“Diga oi, Needlenose”, disse Van Horne virando a cabeçorra emdireção ao banco de trás qual um capacete mal ajustado.

O cão de fato tinha um nariz muito pontudo, daí seu nome, “narizde agulha”, que pressionou a palma da mão de Alexandra quando elaa estendeu. Pontudo, úmido e frio: a ponta de um pingente de gelo.Ela retirou a mão depressa.

“A maré só vai subir daqui a muitas horas”, disse ela, tentandofazer a voz retornar a seu registro de adulta. A passarela estava seca etoda esburacada. A reforma dele ainda não tinha chegado ali.

“Essa danada às vezes engana”, disse ele. “Mas como você tempassado? Parece deprimida.”

“É mesmo? Como é que você sabe?”“Dá para perceber. Algumas pessoas acham o outono deprimente,

outras detestam a primavera. Eu nunca gostei da primavera. Todoaquele crescimento, dá para sentir a Natureza grunhindo feito umavelha resmungona; ela não quer fazer isso, não de novo, não, tudomenos isso, mas tem que fazer. Parece um instrumento de tortura,tudo brotando e crescendo, a seiva subindo pelo tronco das árvores, aservas daninhas e insetos se preparando para lutar outra vez pelaprópria sobrevivência, as sementes tentando se lembrar de comofunciona mesmo o DNA, toda aquela competição por um pouquinhode nitrogênio; meu Deus, quanta crueldade. Talvez eu seja sensíveldemais. Aposto que você adora a primavera. As mulheres não são tãosensíveis a esse tipo de coisa.”

Ela assentiu, hipnotizada pela estrada esburacada que diminuía àsua frente e crescia às suas costas. Colunas de tijolo gêmeas das que seerguiam no outro extremo marcavam a entrada da ilha, e estas aindaconservavam seu portão, cujas duas bandas de ferro estavam abertashavia muitos anos e cujos arabescos enferrujados haviam setransformado em suporte para trepadeiras selvagens e hera venenosa,e sido até atravessados por árvores jovens, bordos cujas folhinhasadquiriam um delicado tom de vermelho, quase como rosas. Uma dascolunas havia perdido seu arremate de frutas falsas.

“As mulheres suportam bem a dor”, ia dizendo Van Horne. “Eunão consigo suportar. Sequer consigo me forçar a matar uma mosca. Acoitadinha vai mesmo morrer daqui a poucos dias.”

Alexandra teve um calafrio, lembrando-se de moscas que haviampousado em seus lábios enquanto ela dormia, de suas pequeninaspatas cobertas de pelos, do contato elétrico de sua energia, como tocarum fio desencapado ao passar roupa.

“Eu gosto do mês de maio”, reconheceu ela, sem saber mais o quedizer. “Mas a cada ano, como você diz, tudo parece mais difícil. Pelomenos para os jardineiros.”

Para seu alívio, a caminhonete verde de Joe Marino não estavaparada em nenhum lugar em frente à mansão. O serviço mais pesado

na quadra de tênis parecia já haver terminado; em vez dasescavadeiras douradas descritas por Sukie, alguns rapazes sem camisaprendiam com delicados barulhos de batidas grandes trechos de umacerca revestida de plástico verde a estacas de metal verticais em voltado que, de longe, da curva da entrada de carros na qual ela estava,onde as garças-brancas costumavam fazer seus ninhos nos olmosmortos, parecia uma gigantesca carta de baralho com duas coreschapadas imitando grama e terra; o desenho de linhas brancas parecianítido e cheio de significado, tão compulsivamente preciso quanto umdiagrama wicca. Van Horne havia parado o carro para que ela pudesseadmirar.

“Eu pesquisei aquelas quadras de saibro, mas, mesmo sem contar adespesa inicial, a manutenção desse tipo de quadra é uma dor decabeça. Com essa quadra sintética, tudo que você precisa fazer évarrer as folhas de vez em quando e, com sorte, dá para jogar atédezembro. Daqui a alguns dias a quadra vai estar pronta para serbatizada; eu estava pensando que poderíamos jogar uma partida deduplas com as suas duas amigas.”

“Meu Deus, será que nós fazemos jus a tamanha honra? Eurealmente não estou em forma...”, começou ela, referindo-se ao seutênis. Durante algum tempo, ela e Ozzie haviam jogado váriaspartidas de duplas contra outros casais, mas, desde então, emborauma ou duas vezes a cada verão Sukie a levasse para algumaspartidas de solteiros aos sábados nas surradas quadras públicas paraos lados de Southwick, ela na verdade quase não jogava.

“Então entre em forma”, disse Van Horne, entendendo errado oque ela dizia e cuspindo de tão empolgado. “Mexa-se, livre-se dessaspelancas. Ora, trinta e oito é jovem!”

Ele sabe a minha idade, pensou Alexandra, mais aliviada do queofendida. Era agradável ser conhecida por um homem; a parteconstrangedora era o fazer-se conhecer: toda aquela verbalizaçãoencabulada regada por uma quantidade excessiva de drinques, e

depois os corpos revelados com suas marcas e pelancas escondidascomo presentes de Natal decepcionantes. Mas quanto do amor,pensando bem, não era pelo outro e sim por você próprio nu diantedos olhos do outro: quanto do amor não se devia a essa emoção, a essapequena fuga, ao ato de despir as roupas e ser finalmente vocêmesmo. Com aquele homem desconhecido e dominador, ela já sesentia conhecida até a essência. O fato de ele ser desagradável atéajudava.

Ele pôs o Mercedes em movimento, fez a curva pela entrada decarros circular fazendo chocalhar o cascalho do chão, e parou emfrente à porta principal. Dois degraus conduziam a uma varanda decimento cercada por colunas nas quais um mosaico de mármore verdeexibia a inicial L. A porta em si, recém-pintada de preto, era tãoimensa que Alexandra teve medo de ver suas dobradiças se soltaremquando o dono a abrisse. Dentro do hall, um cheiro químico deenxofre a acolheu; Van Horne não pareceu notar, pois aquele era seuelemento. Conduziu-a para dentro, passando em frente a um pé deelefante empalhado oco cheio de bengalas com cabos rotundos ecurvos e um guarda-chuva. Ele nesse dia não estava usando o tweedfrouxo, e sim um terno escuro com colete, como se tivesse ido aalguma reunião de negócios. Não parava de gesticular para a direita epara a esquerda com braços rígidos e animados que retornavam àslaterais de seu corpo como alavancas caídas.

“O laboratório fica por ali, depois dos pianos, onde antes havia umsalão de baile; não tem nada lá dentro a não ser uma tonelada deequipamento, metade ainda dentro de caixotes, nós ainda nãocomeçamos os trabalhos, mas, quando começarmos, pode apostar,vamos fazer dinamite parecer fogos de artifício. Aqui do outro lado,vamos chamar de escritório, metade dos meus livros ainda está dentrode caixas no porão, não quero expor à luz algumas das minhascoleções antigas antes de instalar um sistema de controle de umidade,você sabe, aquelas velhas encadernações, até os fios que as prendem

se desintegram feito múmias quando você ergue a tampa... mas é umcômodo bonito, não acha? As galhadas ficavam aqui, e as cabeças. Eupróprio não caço, levantar às quatro da manhã para ir explodir comuma espingarda a cara de uma corça de olhos redondos que nunca fezmal a ninguém nesse mundo, acho isso uma loucura. As pessoas sãoloucas. Elas são mesmo malvadas, é preciso acreditar nisso. Aqui ficaa sala de jantar. A mesa é de mogno e tem seis partes se eu quiser darum banquete, mas eu particularmente prefiro jantares mais íntimos,quatro, seis pessoas, assim todo mundo tem oportunidade de brilhar,de mostrar seu melhor lado. Se você convida uma multidão, apsicologia passa a dominar tudo, uns poucos líderes e um monte deovelhas. Tenho alguns candelabros de jantar ainda embalados, doséculo XVIII, um especialista conhecido meu disse que com certezavieram do ateliê de Robert Joseph Auguste embora não tenham o selo,os franceses nunca foram muito chegados a selos como os ingleses,mas você não iria acreditar nos detalhes desses candelabros, imitaçõesde trepadeiras até a mais diminuta pontinha dos brotos, dá até paraver um inseto ou dois, dá até para ver os lugares onde os insetoscomeram as folhas, tudo em escala dois terços; detesto trazê-los paracá, onde todo mundo pode ver antes de mandar instalar um alarmecontra roubo, embora os ladrões em geral não gostem de um lugarcomo este, com apenas uma entrada e uma saída, eles gostam de teruma alternativa de fuga. Não que isso seja alguma garantia, os ladrõesestão ficando mais ousados, as drogas deixam os safadosdesesperados, as drogas e a falta de respeito geral por qualquerporcaria; já ouvi falar em gente que saiu de casa por apenas meia horae perdeu tudo, eles acompanham a sua rotina, cada movimento seu,você é observado, essa é uma coisa da qual pode estar certa na nossasociedade, docinho: você está sendo observada".

Alexandra sequer teve consciência das respostas que deu a esselongo discurso: ruídos educados, sem dúvida, enquanto se mantinhaafastada a uma distância segura atrás dele por medo de levar um

golpe acidental quando o homem alto gesticulasse ou se virasse. Alémde sua forma escura e animada, enquanto ele se gabava comexuberância, ela reparou que uma certa nudez reinava no ambiente:um desleixo de cantos vazios e pisos arranhados sem tapete, tetoscujas rachaduras e trechos ondulados haviam passado muitas décadassem ser tocados, lambris cuja tinta outrora branca havia amarelado edescascado, e elegantes papéis de parede panorâmicos pintados à mãose soltando nos cantos e ao longo das emendas ressequidas; quadros eespelhos ausentes eram lembrados por fantasmas retangulares e ovaisde cor mais clara. Apesar de toda aquela conversa sobre glórias aindapor desembalar, os cômodos estavam extremamente mal mobiliados;Van Horne tinha os instintos robustos de um criador, masaparentemente apenas a metade da matéria-prima necessária.Alexandra ficou comovida com isso, e viu nele algo de si mesma, desuas estátuas monumentais que cabiam na palma da mão.

“E aqui”, anunciou ele com uma voz potente, como para afogaresses pensamentos na cabeça dela, “está o cômodo que eu queriamostrar a você. La chambre de résistance." Tratava-se de umacomprida sala de estar com uma portentosa lareira ladeada porcolunas como a fachada de um templo: colunas jônicas decoradas comfolhas, esculpidas para sustentar um peitoril acima do qual umenorme espelho bisotado devolvia ao cômodo uma versão manchadade seu espaço imponente. Ela olhou para o próprio reflexo, tirou abandana e sacudiu os cabelos, nesse dia não presos em uma trança,mas conservando ainda uma leve ondulação. Assim como sua vozhavia saído mais jovem de sua boca surpresa, ela também pareciamais jovem no espelho antigo e complacente. O espelho estavaligeiramente torto; ela ergueu os olhos para ele, satisfeita pelo fato desua papada não estar aparecendo. No espelho do banheiro de casa elaficava horrorosa: uma bruxa velha de lábios rachados, com um furono nariz e veias aparentes no septo; e quando, ao volante do Subaru,ela às vezes dava uma espiadela no próprio reflexo no espelho

retrovisor, tinha um aspecto ainda pior: sua tez parecia a de umcadáver, com os olhos esgazeados e um único cílio caído pousadocomo a pata de um besouro sobre uma pálpebra inferior. Quando eramenina, Alexandra imaginava que por trás de cada espelho houvesseuma pessoa diferente, uma alma diferente esperando para olhar devolta para você. Assim como muito daquilo que tememos quandocrianças, isso se revelou de certa forma verdadeiro.

Van Horne havia instalado ao redor da lareira algumas poltronasmodernas em formato quadrado e um sofá curvo de quatro lugares,resquícios evidentes de um apartamento nova-iorquino e já bastantesurrados; mas a sala estava mobiliada sobretudo com obras de arte,incluindo várias que ocupavam partes do piso. Um gigantescohambúrguer de vinil de cor forte, semi-inflado. Uma mulher de gessobranco em frente a uma tábua de passar de verdade, com um gatoempalhado de verdade se esfregando em sua perna. Uma pilhavertical de caixas de palha de aço que, ao ser examinada com maisatenção, se revelava composta não de papelão impresso vazio, mas defolhas meticulosamente impressas em silkscreen montadas sobregrandes cubos de algo sólido e impossível de mover. Um arco-íris denéon, fora da tomada e precisando ser espanado.

O homem deu um tapa em uma montagem especialmente feia:uma mulher nua de costas com as pernas abertas; a mulher havia sidoconstruída com arame fino, latas de cerveja amassadas, um velhopenico de porcelana que fazia as vezes de barriga, pedaços de umpara-choque de automóvel cromado, peças de roupa íntimaendurecidas com laca e cola. O rosto, virado para cima em direção aocéu ou ao teto, era o de uma boneca de biscuit como aquelas com queAlexandra costumava brincar, com olhos de um azul de porcelana ebochechas rosadas de querubim, cortado e preso a um bloco demadeira que havia sido pintado com lápis de cera para representar ocabelo.

“Esta aqui é melhor obra da minha coleção, e a mais cara que pude

comprar”, disse Van Horne, enxugando os cantos da boca com umgesto de dois dedos semelhante a um beliscão. “Kienholz. UmaMarisol, só que com mais colhão. A tatilidade, sabe? Não tem nada demonótona ou preordenada. E esse o tipo de coisa que você deveria terem mente como objetivo. A riqueza, a Vielfältigkeit, a... você sabe... aambiguidade. Sem querer ofender, minha amiga Lexa, mas comaquelas suas bonequinhas você está tocando uma música de uma notasó.”

“Elas não são bonequinhas, e essa estátua é grosseira, uma piadacontra as mulheres”, disse ela em tom lânguido, sentindo-se exposta efora de foco, bem condizente com aquele momento: uma sensação deestar escorregando, de o mundo estar passando através dela ou elamovendo o mundo, uma confusão cósmica como quando o trem seafasta silenciosamente da estação e a plataforma parece estardeslizando para trás. “As minhas peitudas não são uma piada, suaintenção é afetuosa.” No entanto, ela havia estendido a mão para tocara peça e encontrado ali a resistência lustrosa mas resistente da vida.Nas paredes daquela sala comprida, quem sabe outrora adornada comretratos de membros da família Lenox da Newport setecentista,estavam agora pendurados, espetados ou equilibrados espalhafatosostravestis da normalidade: gigantescos orelhões feitos de tela murcha,bandeiras norte-americanas duplicadas em empastamento, notas dedólar em tamanho muito maior do que o natural reproduzidas comespantosa fidelidade, óculos de gesso atrás de cujas lentes não haviaolhos, e sim lábios entreabertos, incansáveis ampliações de históriasem quadrinhos e reclames publicitários norte-americanos, de estrelasde cinema e tampas de garrafa, de balas, jornais e placas de trânsito.Tudo que desejamos usar e descartar sem pensar duas vezes estava aliexposto, ampliado e brilhante: lixo plastificado. Enquanto conduziaAlexandra por sua coleção, Van Horne se vangloriava, soltava o arpelas ventas e não parava de enxugar a boca, margeando primeirouma parede e voltando pela outra; e na verdade ela viu que ele havia

comprado espécimes de qualidade daquela arte zombeteira. Ele tinhadinheiro, e precisava de uma mulher para ajudá-lo a gastar essedinheiro. Da frente de seu paletó escuro pendia a corrente de ouro deum relógio antigo; ele era um herdeiro, embora não se sentisse àvontade com sua herança. Uma esposa poderia lhe dar essatranquilidade.

O chá com rum veio em seguida, mas constituiu uma cerimôniamais calma do que ela havia imaginado pela descrição de Sukie. Fidelse materializou com aquele silêncio ideal que têm os criados, com umacicatriz bem limpinha localizada de maneira tão atraente sob um dosmalares que parecia um aplique em sua pele cor de café com leite, umpequeno adorno deliberado para seus pequenos traços oblíquos. Agata de pelo longo chamada Thumbkin, com as patas deformadas jácitadas no Word, pulou no colo de Alexandra bem na hora em que elaestava erguendo a xícara para tomar um gole; o líquido mal se agitou.O horizonte do mar visível pelas janelas paladianas do lugar onde elaestava sentada também permaneceu reto: o mundo era em parte umbaralho de líquidos horizontais suavemente embaralhados, ocorreu-lhe, ao pensar na camada fria e densa do mar em que apenasgigantescas lesmas sem olhos se moviam sob a pressão, e depois nabruma lambendo a superfície outonal de um lago de floresta, e nasesferas de gás cada vez mais rarefeito que nossos astronautaspenetram sem perfurar, de modo que o azul do céu não vaze. Sentiuuma paz inesperada naquele lugar, naqueles cômodos praticamentevazios a não ser por sua exagerada coleção de arte sardônica, cômodosque expunham de forma eloquente as carências de um homemsolteiro. Seu anfitrião também lhe pareceu mais agradável. Ocomportamento de um homem que deseja levar uma mulher para acama é incisivo e agressivo, como um teste, uma prévia da raiva queele acabará sentindo caso consiga, e parecia haver pouco disso nocomportamento de Van Horne nesse dia. Ele parecia cansado,afundado no quadrado esfarrapado da poltrona forrada com um

veludo cotelê cor de cogumelo. Ela imaginou que a reunião denegócios para a qual ele havia envergado aquele solene terno comcolete tivesse sido um desapontamento, talvez um pedido deempréstimo negado no banco. Com uma carência evidente, eledespejou dentro da própria xícara de chá mais rum da garrafa deMount Gay que o mordomo havia posicionado junto a seu cotovelo,sobre uma mesinha em estilo Queen Anne com pés curvos.

“Como foi que você juntou uma coleção tão grande emaravilhosa?”, perguntou-lhe Alexandra.

“Meu conselheiro de investimentos”, foi a decepcionante resposta.“A coisa mais esperta que você pode fazer do ponto de vistafinanceiro, tirando achar petróleo no seu quintal, é comprar um artistade renome antes de ele ter renome. Pense naqueles dois russos quecompraram bem baratinhos em Paris, logo antes da guerra, todos osquadros de Picasso e Matisse agora pendurados lá em Leningrado,sem ninguém poder ver. Pense nos bobos sortudos que compraramum dos primeiros quadros de Pollock pelo preço de uma garrafa deuísque escocês. Mesmo comprando de forma aleatória, na média vocêganha mais do que no mercado de ações. Um Jasper Jones compensauma porção de porcarias. Mas, de todo modo, eu adoro porcarias.”

“Estou vendo que adora mesmo”, disse Alexandra, tentandoajudá-lo. Como é que ela iria conseguir fazer aquele homem pesado edisperso se apaixonar por ela? Ele parecia uma casa com um númeroexcessivo de quartos, e os quartos com um número excessivo deportas.

Ele projetou o corpo para a frente na cadeira, derramando umpouco de chá. Já tinha feito isso tantas vezes, obviamente, que porreflexo abriu as pernas e o líquido marrom se despejou entre elas ecaiu em cima do tapete.

“Essa é a melhor coisa nos tapetes orientais”, comentou ele. “Elesnão deixam aparecer os seus pecados.” Com a sola de um dospequenos sapatos pretos pontudos, pois seus pés eram quase

monstruosamente pequenos para sua estatura, ele esfregou a manchade chá para fazê-la penetrar no tapete. “Eu odiava”, comentou,“aqueles negócios abstratos que eles tentavam nos vender nos anos1950; meu Deus, tudo aquilo me fazia pensar em Eisenhower, ummonte de papo-furado. Eu quero que a arte me mostre alguma coisa,quero que ela me diga onde estou, mesmo que seja no Inferno, certo?”

“Acho que sim. Eu na verdade sou bem amadora”, disseAlexandra, menos à vontade agora que ele parecia estar se animando.Que roupa de baixo estava usando? Quando fora a última vez em quehavia tomado um banho?

“Então, quando chegou essa onda pop, pensei: meu Deus, é dissoque eu preciso. Porra, é tão alegre... sabe? Afundar, mas afundarsorrindo. Como os romanos, de certa forma. Você já leu Petrônio?Hilário. Hilário, nossa, dá para ficar olhando para aquele bode queRauschenberg pôs dentro do pneu e rir até o dia terminar. Eu visitei agaleria dele anos atrás, na rua 57 — é lá que eu gostaria de ver vocêexpondo, acho que já disse isso tantas vezes que estou ficando chato—, e o dono, um veado chamado Mischa, que o pessoal costumavachamar de Mischa Xoxota, mas que sabia coisa pra caramba, memostrou umas duas latinhas de cerveja de Jasper Johns, na verdadeeram de Ballantine ale, duas latinhas feitas de bronze, mas pintadas deum jeito tão bonito, daquele jeito muito exato mas levemente livre queJohns tem, uma delas com um triângulo na parte de cima onde oabridor de latas tinha sido usado e a outra virgem, ainda fechada. EMischa me disse: ‘Pegue essa daí’. ‘Qual delas?’, perguntei. ‘Qualqueruma’, ele respondeu. Eu peguei a latinha virgem. Era pesada. ‘Pegue aoutra’, ele disse. ‘Sério?’, perguntei. ‘Pegue, vamos’, insistiu ele. Entãopeguei. A lata era mais leve! A cerveja tinha sido bebida! Quer dizer,em termos artísticos. Quase gozei nas calças de tão excitado que fiqueiquando entendi.”

Ele havia percebido que Alexandra não se importava com o fato deele dizer grosserias. Na verdade, ela até gostava; aquilo tinha uma

doçura secreta, como o cheiro de carniça no pelo de Carvão. Elaprecisava ir embora. O grande coração de seu cachorro iria se partirdentro daquele pequeno carro trancado.

“Perguntei a ele qual era o preço daquelas latinhas de cerveja,Mischa me disse e eu falei: ‘Sem chance’. Tudo tem um limite. Quantodinheiro você é capaz de pagar por duas imitações de latas de cerveja?Sem brincadeira, Alexandra, se eu tivesse tido coragem, a esta alturateria quintuplicado meu investimento, e nem faz tanto tempo assim.Aquelas latinhas valem mais do que seu peso em ouro puro. Euacredito sinceramente que, quando as gerações futuras pensarem emnós, quando você e eu não passarmos de dois esqueletos deitadosdentro daquelas caixas caras idiotas que eles nos obrigam a comprar,com nossos cabelos, nossos ossos e nossas unhas acomodados em todoaquele cetim ridículo que aqueles agentes funerários gordos e ricosnos fazem comprar a preços exorbitantes, meu Deus, estou perdendoas estribeiras, eles podem simplesmente pegar meu corpus e jogar nolixo, por mim tudo bem, mas o que eu quero dizer é que, quando vocêe eu estivermos mortos, essas latinhas de cerveja, essas latinhas de aleeu deveria estar dizendo, vão ser a nossa Mona Lisa. Estávamosfalando sobre Kienholz; você sabia que ele fez um Dodge inteiroserrado ao meio com um casal fodendo lá dentro? O carro está paradoem cima de um pedaço de grama artificial, e um pouco mais longe elepôs um outro pedaço dessa mesma grama, mais ou menos dotamanho de um tabuleiro de xadrez, com uma garrafa vazia de cervejaem cima! Para mostrar que o casal tinha bebido e jogado a garrafafora. Para criar um clima de corrida de submarinos. Isso é coisa degênio. Aquele pedacinho a mais de grama, o fato de estar separado doresto. Outra pessoa teria simplesmente posto a garrafa de cerveja emcima do pedaço maior de grama. Mas o fato de a garrafa estar em umpedaço separado é o que torna a peça uma obra de arte. Talvez essaseja a nossa Mona Lisa, essa garrafa vazia de Kienholz. Sério, quandoeu estava lá em Los Angeles olhando para aquele Dodge maluco

serrado ao meio, meus olhos se encheram de lágrimas. Não estou desacanagem com você, Sandy. Lágrimas.” E ele estendeu em frente aosolhos as mãos particularmente brancas, que pareciam feitas de cera,como se quisesse arrancar do próprio crânio aquelas órbitas úmidas eavermelhadas.

“Você viaja bastante”, comentou ela.“Menos do que antigamente. Melhor assim. Você pode ir a mil

lugares, mas é sempre você mesmo que desfaz as malas. E sempre amesma mala, e é sempre o mesmo você. Vocês, meninas, é quetiveram a melhor ideia de todas. Achar uma cidade da qual ninguémnunca ouviu falar e fazer dela o seu espaço. De todo modo, aporcariada toda vem atrás de você, com a TV, a aldeia global e tudo omais.” Com as palavras por fim esgotadas, ele se afundou na poltronacor de cogumelo. Needlenose chegou trotando na sala e se deitouenroscado aos pés do dono, enfiando o nariz comprido debaixo dorabo.

“Falando em viajar”, disse Alexandra, “preciso sair correndo.Tranquei o coitado do meu cachorro no carro, e meus filhos já devemter chegado da escola.” Ela pousou a xícara de chá, que ostentavaestranhamente o monograma N em vez das iniciais de Van Horne,sobre a mesa de vidro Mies van der Rohe riscada e lascada, e pôs-sede pé. Estava usando sua jaqueta de brocado argelina por cima de umsuéter de gola rulê cinza-prata, e sua calça de sarja verde-escura. Umaonda de alívio na cintura quando ela se levantou lembrou-lhe comoaquela calça tinha ficado desconfortável de tão apertada. Ela haviajurado emagrecer; mas o inverno era o pior período para isso: vocênão parava de beliscar comidinhas para se aquecer, para manterafastada a noite que caía cedo, e de qualquer modo ela não lia nosolhos daquele homem grandalhão, virados para cima de modo aadmirar o volume de seus seios, nenhuma exigência para que elamudasse de corpo. Na intimidade, Joe a chamava de sua vaca, de suamulher e meia. Ozzie costumava dizer que, à noite, ela era melhor do

que dois cobertores a mais. Sukie e Jane a chamavam de linda. Elalimpou da sarja muito esticada que lhe cobria a pélvis vários peloslongos e brancos que Thumbkin havia deixado ali. Tornou a pegar abandana do braço do sofá curvo, formando um rápido borrãovermelho no ar.

“Mas você ainda não viu o laboratório!”, protestou Van Horne.“Nem o quarto da banheira, finalmente conseguimos terminar a ditacuja, faltam só algumas conexões periféricas. Nem o andar de cima.Todas as minhas litografias grandes de Rauschenberg estão lá emcima.”

“Quem sabe outro dia”, disse Alexandra, com a voz agora bemmodulada em seu contralto de adulta. Ela estava gostando de irembora. Vê-lo assim, frenético, lhe dava novamente consciência dospróprios poderes.

“Pelo menos você tem que ver o meu quarto”, implorou VanHorne, levantando-se com um pulo e batendo com a canela em umcanto da mesa de vidro, o que fez a dor azedar seus traços. “É todopreto, inclusive os lençóis”, disse ele, “mas é muito difícil achar bonslençóis pretos, o que eles chamam de preto na verdade é azul-marinho. E para o corredor acabei de comprar uns óleos bematrevidos de um pintor meio novato chamado John Wesley, nenhumparentesco com aquele metodista maluco, ele faz umas coisas queparecem ilustrações de livros de bichos para crianças até vocêperceber o que estão mostrando. Esquilos trepando, essas coisas.”

“Parece divertido”, disse Alexandra, movendo-se depressa em umgrande arco, uma velha manobra de jogadora de hóquei, de modo quea cadeira o impediu de avançar por alguns instantes e tudo que elepôde fazer foi segui-la a passos ruidosos quando ela saía daquela salacheia de suas feias obras de arte, atravessava a biblioteca, atravessavaa sala de música e chegava ao hall de entrada com a pata de elefante,onde o cheiro de ovo podre era mais intenso, mas onde também sepodia sentir o ar entrando lá de fora. Do lado de dentro, a porta preta

havia sido deixada ao natural e exibia os dois tons de marrom docarvalho.

Fidel havia surgido do nada para se posicionar com uma das mãostocando o grande trinco de latão. Alexandra teve a impressão de queele estava olhando através dela na direção do patrão; os dois iriamprendê-la ali dentro. Em sua fantasia, ela iria contar até cinco ecomeçar a gritar; mas deve ter havido algum meneio de cabeça,porque o trinco fez um clique quando a contagem ainda estava emtrês.

Atrás dela, Van Horne disse: “Eu ofereceria uma carona para levarvocê de volta até a estrada, mas acho que a maré talvez já tenhasubido demais”. Ele soava ofegante; um enfisema devido ao excessode cigarros, ou então por ter inalado toda aquela fumaça dos ônibusde Nova York. Precisava mesmo da atenção de uma esposa.

“Mas você prometeu que isso não iria acontecer!”“Escute, como é que eu podia saber? Sou mais forasteiro aqui do

que você. Vamos andar até lá e dar uma olhada.”Enquanto a entrada de carros fazia uma curva, a aleia de grama,

margeada por estátuas de calcário às quais intempéries e vândaloshaviam roubado mãos e narizes, conduzia diretamente ao ponto emque a passarela encostava na borda da ilha. Uma maré suja de plantas— varas-de-ouro do litoral, carrapichos com suas imensas folhassoltas — de cascalho e de um amontoado de asfalto velho se estendiaatrás do portão coalhado de trepadeiras. As ervas tremiam ao ventofrio que vinha do charco inundado. O céu havia baixado suas listrascinzentas que pareciam toucinho; a coisa mais luminosa que se podiaver era uma grande garça, que não era uma garça-branca, caminhandovagarosamente em direção à rua da praia, com o bico amarelo quaseda mesma cor do Subaru abandonado de Alexandra. Entre ondeestavam e o carro, um brilho de água encardida havia recoberto apassarela. Uma ardência provocada pelas lágrimas brotou da gargantade Alexandra.

“Como é que isso pode ter acontecido, nós não demoramos nemuma hora!”

“Quando está divertido...”, murmurou ele.“Não estava tão divertido assim! Agora não vou conseguir voltar!”“Escute”, disse Van Horne junto ao seu ouvido, fechando os dedos

sem força em volta de seu braço de modo que ela pôde sentir o toquemuito de leve através do tecido. “Vamos voltar, telefonar para os seusfilhos e mandar Fidel preparar um jantar leve. Ele faz um chiliincrível.”

“Não são as crianças, é o cachorro”, disse ela em tom choroso.“Carvão deve estar histérico. Qual é a profundidade da água?”

“Não sei. Uns trinta centímetros, talvez meio metro mais para omeio. Eu poderia tentar passar com o carro, mas ficar preso na águasignificaria dar adeus a várias peças alemãs antigas e frágeis. Depoisque entra água salgada nos freios e no diferencial, um carro nuncamais é o mesmo. E como perder a virgindade.”

“Eu vou andando pela água”, disse Alexandra, desvencilhando obraço dos seus dedos, mas não sem antes, como se tivesse lido seuspensamentos, ele lhe dar um beliscão forte e rápido.

“Sua calça vai ficar ensopada. Essa água é brutal nesta época doano.”

“Eu tiro a calça”, disse ela, apoiando-se nele para tirar os tênis e asmeias. O ponto onde ele a havia beliscado ardia, mas ela se recusava areconhecer aquele ferimento presunçoso. Não depois de ele ter semostrado tão infantil e canhestro, derramando chá na própria roupa elhe confidenciando seu amor pela arte. Na verdade, ele era ummonstro. Ela sentiu a textura áspera do cascalho sob os pés. Se iamesmo fazer aquilo, não podia hesitar. “Aqui vai”, disse ela. “Nãoolhe.”

Ela abriu o zíper lateral da calça e empurrou o cós para baixo, e obrilho de suas coxas veio se juntar ao da garça naquela cena deferrugem e cinza. Com medo de tropeçar nas pedras irregulares, ela se

curvou e empurrou a sarja verde lustrosa para fazê-la passar pelostornozelos rosados e pelos pés cheios de veias azuis, e livrou-se dacalça. Um ar frio lambeu suas pernas nuas. Ela formou um bolo comos tênis e a calça e afastou-se de Van Horne pela passarela. Não olhoupara trás, mas sentiu seus olhos pregados nela, em suas coxas pesadas,em seus vulneráveis sulcos e tremores. Ele sem dúvida a haviaobservado com aqueles olhos abrasadores e cansados quando ela securvara. Alexandra havia se esquecido da calcinha que vestira naquelamanhã e, ao olhar para baixo, ficou aliviada ao descobrir que era umabege lisa, não algo ridiculamente florido nem indecentemente cavadocomo a maioria das calcinhas que ela era obrigada a comprar nas lojasultimamente, desenhadas para hippies ou groupies jovens e magras,que deixavam metade da sua bunda para fora e a parte da frentearroxada feito um espartilho. O vento, que se erguia por toda parte,batia frio em sua pele. Ela em geral gostava da própria nudez,sobretudo ao ar livre, e gostava de tomar banho de sol deitada em umcobertor no quintal dos fundos durante os primeiros dias de calor deabril e maio, antes de os insetos chegarem. E gostava de sair nua sob alua cheia para colher ervas.

Como era muito pouco usada desde que a família Lenox tinha semudado, a passarela havia ficado coberta de grama; descalça, elapisava a linha de grama do centro como se esta fosse o alto de umalarga muralha macia. A cor das hastes de grama da espécie Spartinapatens que brotavam ali havia se esvaído, e os trechos de charco decada lado haviam secado. No ponto em que a água começara a subirpela superfície da estrada, a grama amassada se balançavasuavemente em meio aos centímetros transparentes. Atrás dela,Darryl Van Horne gritou alguma coisa, palavras de incentivo, talvez,ou de alerta ou de desculpas, mas Alexandra estava concentradademais no choque da primeira imersão dos dedos dos pés para ouvi-lo. Como o frio daquela água era sério, como era duro! Um outroelemento, ao qual seu sangue era estrangeiro. Seixos marrons a

fitavam do chão, refletidos na água e nítidos em sua insignificânciacomo as letras de um alfabeto desconhecido. A grama do charco haviase transformado em algas marinhas, indolentes e à deriva, inclinadaspara a esquerda na direção em que a água subia. Seus próprios péspareciam pequenos, refletidos na água como os seixos. Ela precisavaatravessar depressa, enquanto ainda estivesse anestesiada. A maréagora lhe chegava aos tornozelos, e a distância até a estrada seca eragrande, maior do que ela teria conseguido abarcar atirando um seixo.Mais uns dez passos atônitos e a água chegou aos seus joelhos, e elapôde sentir a puxada lateral de sua correnteza incessante. O mais friodaquela puxada era o fato de ela existir independentemente deAlexandra. Havia existido antes de Alexandra nascer e continuaria aexistir depois que ela morresse. Ela não pensou que a água fossederrubá-la, mas sentiu-se fazendo força na direção contrária. E seustornozelos haviam começado a protestar, dominados pela dormência,uma dor insuportável a não ser pelo fato de que precisava sersuportada.

Alexandra não conseguia mais ver os próprios pés, e as pontasbalouçantes de grama do charco já não lhe faziam companhia.Começou a tentar correr, chapinhando na água; o chapinhar abafou obarulho de seu anfitrião ainda a gritar coisas ininteligíveis atrás dela.A intensidade de seu olhar tornava o Subaru maior. Ela podia ver asilhueta esperançosa de Carvão sobre o banco do motorista, com asorelhas erguidas o mais alto possível ao sentir que o resgate seaproximava. A pressão gelada agora subia bem alto por suas coxas, esua calcinha estava ficando molhada. Que besteira, que enormebesteira, quanta vaidade e jovialidade fingida, ela merecia aquilo porabandonar seu único amigo, seu amigo verdadeiro e descomplicado.Os cães se equilibravam na fronteira da compreensão, com os olhosbrilhantes acesos pela ânsia de compreender; para eles, uma hora nãoera pior do que um minuto, pois eles vivem em um mundo semtempo, sem acusação, sem aceitação, uma vez que nada nunca é

previsto. A força da água subiu até seu púbis; sua garganta se viuforçada a emitir um ruído. Ela estava próxima o suficiente paraassustar a garça, que, com um movimento sincopado e hesitante,como o de um velho que estende a mão de forma imprecisa para sesegurar nos braços da cadeira, bateu no ar os Ws invertidos das asas elevantou voo, arrastando atrás de si as patas pretas e grudentas. Seriamacho? Ou fêmea? Virando a própria cabeça de cabelos revoltos,Alexandra viu na direção oposta, para os lados das dunas de areiacinzenta da praia, outro buraco branco no cinza do dia, outra grandegarça, companheira daquela ali, embora muitos quilômetros asseparassem sob aquele céu sujo e listrado.

Quando a primeira ave levantou voo, a pressão fortíssima dooceano já havia começado a diminuir um pouco ao redor de suaspernas, descendo à medida que ela avançava, ofegante, chorando como choque e a hilaridade da situação, rumo ao trecho seco de passarelaque conduzia ao seu carro. No ponto mais fundo da maré, ela haviaexperimentado uma espécie de exaltação, e esta agora se dissipava.Alexandra estremeceu feito um cão e riu da própria temeridade ao iratrás do amor, ao se permitir ficar ilhada. O espírito precisa detemeridade da mesma forma que o corpo precisa de comida; aquilo afez se sentir mais saudável. Visões de si mesma afogada, esverdeada eimobilizada, rígida, no esgar da derradeira agonia como as duasmulheres abraçadas daquele quadro incrível de Winslow Homerchamado Undertow, “ressaca”, não haviam se materializado. Aosecar, seus pés doeram como se estivessem sendo picados porcentenas de vespas.

Em respeito às boas maneiras, ela se virou e acenou, em um flertedesdenhoso e triunfal, na direção de Van Horne. Ele, um pequenino Ypreto entre as colunas de tijolo de seu portão em ruínas, acenou devolta com os dois braços esticados. Estava aplaudindo, batendopalmas e produzindo um barulho que atravessava o espelho d’águaentre os dois com um atraso de uma fração de segundo. Ele gritou

alguma coisa da qual ela só ouviu as seguintes palavras: “Você voa!”.Ela secou as pernas molhadas e arrepiadas com a bandana e vestiu acalça enquanto Carvão latia e batia com o rabo no banco de vinildentro do Subaru. A alegria do cachorro era contagiosa. Ela sorriupara si mesma, perguntando-se para quem deveria ligar primeiro paracontar aquilo, se para Sukie ou para Jane. Por fim, ela também haviasido iniciada. No lugar em que ele a havia beliscado, seu braço aindaardia.

As árvores menores, os jovens bordos e as mudas de carvalhovermelho mais rentes ao chão, eram as primeiras a mudar de cor,como se o verde fosse um feito de força e as mais fracas esmorecessemprimeiro. No início de outubro, a hera americana havia tingidosubitamente de vermelho o muro de pedra dos fundos de seu quintal,no ponto em que o brejo começava; as adagas paralelas e caídas dosumagre exibiam um tom de vermelho permeado de laranja. Como oruído lento de um grande gongo, o amarelo ia cobrindo as matas, doamarelo alaranjado das faias e freixos aos pontinhos dourados dasnogueiras e à cor chapada de manteiga das folhas em forma de luvasdos sassafrás, luvas que podiam ter um só polegar, ou dois, ounenhum. Alexandra já havia reparado várias vezes em como árvoresadjacentes da mesma espécie, nascidas de duas sementes caídas nochão juntas no mesmo dia de vento, tinham no entanto folhascalibradas em ritmos distintos, e enquanto uma mudava de cor comose houvesse sido descolorida quimicamente, ficando cada vez maisescura, a outra parecia ter tido cada folha pintada à mão por umfauvista em blocos contrastantes de vermelho e verde. Rente ao chão,

as samambaias que também iam perdendo a cor exibiam umaextravagante variedade de formas. Cada uma delas parecia clamar: eusou, eu fui. Assim, no outono, a identidade renascia da frondosidademultifacetada do verão. A duração desse acontecimento, dos arbustose pés de frutinhas que cresciam à beira do canal de Block Island Soundaos sicômoros e castanheiros-da-índia que margeavam as veneráveisruas (batizadas de Benefit ou Benevolent) da colina de College Hill emProvidence, produziam dentro de Alexandra algo difuso, delicado,uma sensação de fusão, uma capacidade passiva de contemplar umaárvore e se sentir um tronco rijo com muitos braços cheios de seiva atéas pontas, de se transformar na nuvem oblonga estranhamentesozinha no céu ou no sapo que pulava do caminho do cortador parauma grama mais alta e mais úmida — uma bolha flácida sobre duaspatas compridas e duras, com uma centelha de medo por trás de umatesta larga e cheia de verrugas. Ela era esse sapo, e era também ascruéis lâminas escuras e enferrujadas conectadas às explosõesvenenosas do motor. A maré de clorofila dos charcos e colinas doestado conhecido como Ocean State erguia Alexandra feito umafumaça, feito um olho acima de um mapa. Até mesmo as importaçõesexóticas dos ricos de Newport — a nogueira inglesa, o bordo japonêscujo nome científico era Acer japonicum — eram arrebatadas poraquele movimento de rendição em massa.

Um princípio natural estava sendo demonstrado: o princípio dodesnudamento. Para sobreviver, precisamos ficar mais leves. Nãopodemos nos prender. A segurança está na diminuição, está emtornar-se aleatório e fino o bastante para o novo poder entrar. Apenasa temeridade se atreve a dar os saltos que criam a vida. Aquelehomem escuro em sua ilha representava a possibilidade. Representavao novo, o magnético, e ela rememorou cada instante do chá formalque eles haviam tomado juntos, como um geólogo pulverizandoamorosamente uma rocha.

Alguns bordos jovens e bem formados, iluminados por trás pelo

sol, se transformaram em tochas, um esqueleto de sombra dentro deum halo incandescente. O cinza dos galhos nus tingia cada vez maisas matas junto às estradas. Taciturnos, os pinheiros cônicos aindaverdes dominavam o espaço onde outras substâncias haviam sedissolvido. Outubro seguiu realizando dia após dia sua tarefa dedesfazer e chegou ao seu último dia ainda com tempo bom, bom osuficiente para um jogo de tênis ao ar livre.

Com seu uniforme branco imaculado, Jane Smart lançou a bola detênis para cima. No ar, esta se transformou em um morcego, com asasas no início presas à pequena circunferência e então, no instanteseguinte, abrindo-se de repente como um guarda-chuva enquanto acriatura saía voando para longe com seu rosto cego e cor-de-rosa. Janesoltou um grito, deixou cair a raquete e gritou para o outro lado darede:

“Não teve graça.” As outras bruxas riram, e Van Horne, o quartojogador, também riu com um pouco de atraso e sem muita convicção.Suas raquetadas eram potentes, educadas, mas ele parecia terdificuldade para ver a bola sob a luz enviesada do fim de tarde, cujosraios eram filtrados pela fileira de alerces que protegiam a parte dosfundos de sua ilha; os alerces soltavam folhas pontiagudas queprecisavam ser varridas da quadra. Os olhos de Jane, por sua vez,eram excelentes, de uma precisão sobrenatural. Caras de morcego lhepareciam versões achatadas em miniatura de crianças com o narizamassado na vitrine de uma loja de doces, e Van Horne, que jogavatrajando uma roupa incongruente, tênis de basquete, camisetaestampada com a imagem de Malcolm X e calça de um velho ternoescuro, tinha no semblante espantado de olhos vítreos um poucodaquela mesma ânsia infantil. Segundo Jane, ele cobiçava seus úteros.Ela se preparou para tornar a lançar a bola e sacar, mas, quandoestava sopesando a bola na mão, esta adquiriu um peso líquido e umatextura cheia de verrugas, irrequieta. Uma nova transformação haviasido provocada. Com um suspiro teatral de paciência, ela pôs o sapono piso vermelho-sangue da quadra sintética junto à cerca verdebrilhante e o viu ir embora se espremendo por entre as grades. Ocollie bobo e de pescoço fino de Van Horne, Needlenose, deu a voltacorrendo por fora da cerca para ir inspecionar; mas perdeu o sapo noemaranhado de terra e pedras pulverizadas que as escavadeiras

haviam deixado ali.“Se você fizer isso de novo eu paro de jogar”, disse Jane para o

outro lado da rede. Ela e Alexandra estavam jogando contra Sukie e odono da casa. “Vocês três podem jogar dois contra um”, ameaçou. Dequalquer maneira, contando o rosto de óculos que gesticulava nacamiseta de Van Horne, já parecia haver cinco pessoas presentes. Abola de tênis seguinte que ela segurou passou por algumas mudançasrápidas de textura, primeiro escorregadia como um lagarto, depoispontiaguda como um ouriço-do-mar, mas ela resistiu e se recusou aolhar para a bola, a lhe conceder aquela realidade, e quando o objetosurgiu destacado contra o céu azul acima de sua cabeça era uma bolaWilson de feltro amarelo que, conforme as instruções dos livros queela havia lido, Jane visualizou como o mostrador de um relógio queela precisava atingir na marca das duas horas. Ela golpeou essefantasma de forma decidida com as cordas da raquete, e sentiu juntocom a onda provocada pela conclusão do movimento que aquelesaque seria bom. A bola quicou em direção ao pescoço de Sukie, e estadefendeu desajeitadamente os próprios seios segurando a raquete emposição de backhand.

Como se as cordas da raquete houvessem se transformado emespaguete, a bola caiu a seus pés e rolou até a linha lateral.

“Ótimo”, murmurou Alexandra para Jane. Jane sabia que, em umdiapasão erótico diferente, sua parceira de jogo amava ambos os seusoponentes, e a escolha das duplas, decidida por Sukie no início dapartida com um giro suspeito da raquete, devia ter provocado emAlexandra uma pontada de ciúmes. Os outros dois formavam umaequipe irresistível, Sukie com os cabelos cor de cobre presos em umrabo de cavalo balouçante, e Van Horne com sua agilidade semelhanteà de uma máquina, animado por uma espécie de demônio comoquando tocava piano. Sua eficácia só era diminuída por momentos devisão deficiente e descoordenação em que ele errava a bola porcompleto. Além disso, seu demônio tinha tendência a jogar sempre em

um registro forte que fazia algumas de suas jogadas, quando umaraquetada sutil em um espaço vazio teria bastado para obter o ponto,saírem pela linha de fundo.

No momento em que Jane estava se preparando para sacar paraele, Sukie disse alegremente: “Pisou na linha!”. Jane baixou os olhos eviu não a ponta do seu tênis em cima da linha, mas a linha em si,embora fosse pintada, atravessando a frente do calçado e segurando-ocomo uma armadilha para ursos. Tentou não prestar atenção naquelavisão e sacou para Darryl Van Horne, que devolveu a bola com umforehand certeiro que Alexandra, alerta, rebateu, direcionando a bolapara os pés de Sukie; Sukie conseguiu interceptá-la por pouco com umlob que Jane, que se aproximara da rede depois da bola hábil eagressiva de sua parceira, alcançou bem a tempo de transformá-lo emoutro lob que Van Horne, com os olhos chispando fogo, preparou-separa matar com um smash acompanhado de um grunhido, e que teriamatado caso uma pequena tempestade mágica de centelhas, que emmuitos lugares as pessoas chamam de poeira do diabo, não tivesse seerguido e o feito levar a mão direita aos olhos para protegê-los aomesmo tempo que soltava um palavrão. Ele era canhoto e usava lentesde contato. A bola permaneceu suspensa na altura de sua cinturaenquanto ele piscava para fazer os olhos pararem de doer; então ele agolpeou com um forehand tão firme que a cor da bola mudou deamarelo para um verde de camaleão que Jane mal conseguiudistinguir contra o fundo verde da quadra e da cerca. Ela bateu ondesentiu que a bola deveria estar, e o contato foi agradável; Sukie teve decorrer para efetuar uma rebatida débil, à qual Alexandra respondeucom um voleio em direção à quadra dos adversários com tamanhaveemência que a bola quicou e subiu até uma altura inacreditável,mais alta do que o sol poente. Mas Van Horne correu para trás maisdepressa do que um caranguejo e lançou a raquete de metal emdireção à estratosfera, fazendo-a girar lentamente, prateada. A raquetesem dono rebateu a bola sem força, mas dentro das linhas da quadra,

e o ponto continuou, com os quatro jogadores a se entrelaçarem,dando voltas e mais voltas, ora na direção dos ponteiros do relógio,ora na direção contrária, e Jane pensou que a sonoridade daquilo erafascinante: o contraponto de seus quatro corpos, oito olhos e dezesseismembros esticados delineados na partitura agora quase horizontaldos raios vermelhos do sol que entrava por entre os alerces, cujasfolhas em forma de agulha farfalhavam ao cair como aplausosdistantes. Quando a rápida sequência de jogadas, e com ela a partida,finalmente terminou, Sukie reclamou: “Minha raquete parecia umacoisa inerte”.

“Você deveria usar tripas de gato em vez de náilon”, sugeriuAlexandra, bem-intencionada; ela e Jane tinham ganho a partida.

“Ela parecia feita de chumbo; o simples fato de tentar levantá-lame dava dores lancinantes no antebraço. Qual de vocês, suas duaspilantras, estava fazendo isso? Não é justo, não mesmo.”

Van Horne também interveio tentando justificar a derrota.“Porcaria de lentes de contato”, disse. “Basta entrar uma

poeirinha, e parece uma navalha.”“Ótima partida”, afirmou Jane em tom decidido. Parecia-lhe que

muitas vezes ela precisava desempenhar aquele papel de adultotranquilizador, de tia solteirona sem paixão, quando na verdadeestava em brasa.

O horário de verão havia terminando, e a noite caiu depressaenquanto eles subiam o caminho em direção às muitas janelasiluminadas da casa. Lá dentro, as três se sentaram uma ao lado daoutra no sofá curvo da sala de estar de Van Horne, comprida e cheiade obras de arte, mas de certa forma nua, e puseram-se a beber aspoções que ele lhes trouxe. Seu anfitrião era um mestre em bebidasexóticas, bebidas preparadas segundo princípios alquímicos usandotequila e granadina, creme de cassis e Triple Sec, água com gás e sucode cranberry, conhaque de maçã e outros aditivos ainda maismisteriosos, todos guardados dentro de um alto armário holandês do

século XVII encimado pelas cabeças espantadas de dois anjos com osrostos rachados, bem no meio das órbitas vazias, pela idade damadeira. Visto através daquelas amplas janelas, o mar estavaadquirindo uma cor de vinho, das folhas de corniso logo antes decaírem. Entre as colunas jônicas de sua lareira, debaixo do peitorilimponente, estendia-se uma frisa de cerâmica retratando faunos eninfas, figuras nuas em branco sobre azul. Fidel trouxe tira-gostos,patês e pastinhas de criaturas marinhas esmagadas, empanadillas,calamares en su tinta que foram consumidos com ganidos de repulsapor dedos que adquiriram a mesma cor sépia enlameada do sanguedaqueles suculentos filhotes de lula. De vez em quando, uma dasbruxas exclamava que tinha de fazer alguma coisa em relação aosfilhos, fosse ir para casa preparar o jantar ou pelo menos telefonarpara casa para dizer oficialmente à filha mais velha para assumir asituação. A noite já estava perturbada: era noite de Halloween, ealgumas das crianças estariam em festinhas e outras na rua pedindodoces pelas ruas escuras e sinuosas do centro de Eastwick. Correndoruidosos entre as cercas e sebes haveria grupos de pequenos piratas eCinderelas usando máscaras com esgares petrificados e olhos úmidose vivos relanceando dentro de buracos de papel; haveria fantasmas defronha de travesseiro carregando sacolas de supermercado achocalhar cheias de M&M’s e chocolatinhos Hershey’s. Campainhasnão parariam de tocar. Alguns dias antes, Alexandra tinha ido àscompras com a filha mais nova, a pequena Linda, na Woolworth’s doshopping, e as luzes daquele lugar cafona brilhavam ofuscantes emcontraste com a escuridão do lado de fora, e os atendentes idosos eacima do peso se mostravam cansados no final do dia em meio a todasas suas bugigangas feitas para atrair as crianças, e por um instanteAlexandra havia sentido a antiga magia, visto através dos olhos dacriança de nove anos a simbólica majestade dos fantasmas empromoção, a autenticidade do kit diabo: máscara, fantasia e sacolaplástica para balas, tudo por 3,98 dólares. Os Estados Unidos ensinam

a seus filhos que toda paixão pode ser transformada em uma ocasiãopara comprar alguma coisa. Em um instante de empatia, Alexandra setransformou na própria filha, e perambulou por corredores cujasmaravilhas à venda estavam todas expostas no mesmo nível de seusolhos, cada qual com seu cheiro potente e característico de tinta,borracha ou massa doce. Mas esses instantes maternais lhe ocorriamcada vez mais raramente à medida que ela ia adquirindo controlesobre si própria, uma semideusa maior e mais austera do quequalquer dos usos que os outros pudessem ter para ela. Ao seu ladono sofá, Sukie arqueou as costas para dentro, espreguiçando-se novestido curto cor de pêssego e deixando entrever a calcinha branca derendinha, e disse com um bocejo: “Eu preciso mesmo ir para casa.Coitadinhos. Aquela casa bem no centro da cidade deve estartotalmente sitiada”.

Van Horne estava sentado em frente a ela na poltrona de veludocotelê; ele reluzia de suor, e tinha vestido por cima do desenhogesticulante de um Malcolm X dentuço um suéter de tricô irlandêsfeito de lã natural que ainda exalava o cheiro gorduroso das ovelhas.

“Não vá, minha amiga”, disse ele. “Fique para tomar um banho debanheira. E isso que eu vou fazer. Estou fedendo.”

“Banho de banheira?”, disse Sukie. “Isso eu posso fazer em casa.”“Mas não dentro de uma banheira de teca com dois metros e meio

de diâmetro”, contrapôs ele, girando a cabeçorra com umarrebatamento tão violento que a peluda Thumbkin, alarmada, puloudo seu colo. “Enquanto nós todos tomamos um banho demorado,Fidel pode preparar uma paella, ou uns tamales, ou alguma outracoisa.”

“Tamales, tamales, tamales”, repetiu Jane Smart compulsivamente.Ela estava sentada na pontinha do sofá, depois de Sukie, e seu perfiltinha uma precisão zangada, pensou Alexandra. Fisicamente a menordas três, era Jane quem ficava mais embriagada tentando acompanharas amigas. Pressentiu que a outra estava pensando nela e seu olhar

ardente se prendeu ao de Alexandra. “E você, Lexa? O que acha?”“Bom”, foi a resposta evasiva, “eu estou mesmo me sentindo suja,

e estou toda dolorida. Três sets é demais para esta velha senhora.”“Você vai ser sentir ótima depois do banho de banheira”, garantiu-

lhe Van Horne. “Por que não faz o seguinte?”, disse ele para Sukie.“Vá correndo até em casa, veja se os moleques estão bem, depois volteassim que puder.”

“Será que você daria uma passadinha na minha casa para vercomo estão os meus, querida?”, cantarolou Jane Smart.

“Bom, vou ver se consigo”, disse Sukie, tornando a se espreguiçar.Suas pernas compridas e sardentas exibiam na ponta delicados pésdescalços envoltos por meias curtas com uma bolinha na borda,parecendo amuletos de pé de coelho. “Talvez eu nem volte. Clydeestava querendo que eu escrevesse uma pequena matéria sobre oHalloween... que fosse até o centro entrevistar uma ou duas criançasna Oak Street, perguntar na delegacia se alguma propriedade foidanificada, quem sabe pedir para algum cliente das antigas lá daNemo’s falar sobre antigamente, quando o costume era pintar asjanelas com sabonete e pôr bombinhas no telhado, essas coisas.”

Van Horne explodiu.“Por que você está sempre bancando a mãe daquele pobre coitado

do Clyde Gabriel? Ele me dá medo. O cara é um doente.”“É justamente por isso”, respondeu Sukie bem depressa.Alexandra percebeu que Sukie e Ed Parsley estavam finalmente

terminando seu caso.Van Horne também pressentiu isso.“Talvez eu devesse convidá-lo para vir aqui um dia desses.”Sukie se levantou e afastou os cabelos do rosto com um gesto

altivo.“Não precisa fazer isso por mim, eu o vejo todos os dias no

trabalho”, disse ela. Pela forma como pegou a raquete e jogou o suéteramarelo-claro por cima do ombro, não havia como saber se ela iria

voltar ou não. Todos ouviram seu carro, um conversível Corvair cinzaclaro, cujo motor também ficava estranhamente na traseira e com aplaca fantasia do marido que dizia ROUGE ainda pendurada atrás, dara partida, fazer a manobra e sair fazendo estalar o cascalho do chão. Amaré nessa noite estava baixa, baixa sob uma lua cheia, tão baixa queantigas âncoras e estruturas apodrecidas de botes emergiam para a luzdas estrelas nos pontos em que a água salgada as cobria o tempointeiro a não ser durante algumas poucas horas por mês.

A partida de Sukie deixou os três mais à vontade na companhiauns dos outros, descontraídos dentro de suas peles relativamenteimperfeitas. Ainda vestidos com as roupas suadas de tênis, com osdedos manchados pela tinta das lulas, gargantas e estômagosrevigorados pelos molhos apimentados dos tamales e enchiladas deFidel, eles se encaminharam, empunhando novas doses de bebida, atéa sala de música, onde os dois músicos mostraram a Alexandraquanto haviam avançado com a “Sonata em mi menor” de Brahms.Como os dez dedos daquele homem trovejavam sobre as teclasindefesas! Como se ele estivesse tocando com mãos que eram mais doque humanas, mais fortes, e largas como os ancinhos usados parajuntar feno, e sempre certeiras, misturando ao ritmo os trinados earpeggios, engolindo-os inteiros. Somente seus trechos mais suavescareciam de expressividade, como se não houvesse em seu sistema umregistro brando o suficiente para o toque delicado necessário ali. Aquerida e baixinha Jane, com o cenho franzido, esforçava-se paraacompanhá-lo, e seu rosto ia ficando cada vez mais pálido à medidaque a concentração lhe roubava a cor, com a dor evidente no braçoque segurava o arco, e a outra mão a se agitar para cima e para baixo,pressionando as cordas como se estivessem tão quentes que o gestonão podia se demorar. Uma vez encerrada a tensa e atormentadaapresentação, foi o dever maternal de Alexandra aplaudir.

“Este não é o meu violoncelo, é claro”, explicou Jane, desgrudandofios pretos da testa.

“E só um velho Stradivarius que estava dando sopa por aqui”,brincou Van Horne, e então, vendo que Alexandra seria capaz deacreditar nele — pois, no seu estado de fascínio amoroso, já nãorestava mais quase nada que ela acreditasse estar além dos poderes ecapacidades dele —, consertou a frase. “Na verdade é um Ceruti. Eletambém trabalhou em Cremona, mas depois. Mesmo assim, é um bominstrumento. Pergunte a quem tiver um.” De repente, ele deu um gritotão alto quanto havia feito soar as cordas do piano, tão alto que aspequenas vidraças pretas em suas molduras de massa corrida rachadavibraram de empatia. “Fidel!”, gritou para o vazio da casa imensa.“Margaritas! Três! Lá na banheira! Tráigalas al baño! Rapidamente!”

Assim, era chegada a hora de se despir. Para dar coragem a Jane,Alexandra se levantou na hora e foi atrás de Van Horne; mas talvezJane não precisasse de coragem depois de suas sessões de músicaparticulares naquela casa. Na essência ambígua do relacionamento deAlexandra com Jane e Sukie, ela era a líder, a mais profunda das trêsbruxas, mas também a mais vagarosa, um pouco distraída, umpouco... sim... inocente. As outras duas eram mais jovens, e portantoligeiramente mais modernas e menos presas à natureza com suaenorme paciência, seu infinito cuidado e sua imperiosa crueldade, suaimplicação ancestral de um poder vagaroso e antropocêntrico.

A procissão formada pelos três atravessou o longo cômodo de artemoderna empoeirada, e em seguida um outro menor, abarrotadodesordenadamente com pilhas de móveis para jardim e caixas depapelão ainda fechadas. Novas portas duplas, com a parte de dentroforrada com um revestimento de vinil preto, evitavam que o calorsaísse dos cômodos que Van Horne havia construído onde antesficava o jardim de inverno de telhado de cobre. O espaço ocupadopela banheira tinha piso de ardósia do Tennessee e era iluminado porluzes embutidas no teto, este feito de placas de uma fibra escura.

“Dimmer”, explicou Van Horne com sua voz oca, rascante. Girouum botão luminoso ao lado das portas duplas, fazendo os recipientes

estriados virados de cabeça para baixo emitir uma luz forte osuficiente para se poder tirar fotografias, e depois voltarem àpenumbra de um laboratório fotográfico. Essas luzes estavamembutidas no teto não em fileiras, mas espalhadas aleatoriamente,como estrelas. Ele deixou a luz fraca, talvez em respeito a suas dobrase defeitos e aos sinais de nascença típicos das bruxas. Depois dessapenumbra, atrás de uma parede de vidro, uma vegetação erailuminada por baixo com luz verde por lâmpadas enterradas, e decima por uma luz violeta contínua vindas de lâmpadas que criavamformas pontudas e exóticas: plantas de outro mundo, escolhidas ecultivadas por seus venenos. Uma fileira de vestiários e dois boxes dechuveiros, todos pretos como as caixas de uma escultura de Nevelson,ocupavam outra parede do recinto, dominado por um animal imenso,brumoso e adormecido que era a banheira em si, um círculo de águacom uma borda de teca encerada, o elemento oposto àquela marégelada que Alexandra havia enfrentado algumas semanas antes: aágua ali estava tão quente que o próprio ar do recinto fez o suor brotarem seu rosto. Ela imaginou que o pequeno console baixo com olhosvermelhos acesos junto à borda mais próxima da banheira contivesseos controles.

“Pode tomar uma chuveirada primeiro se estiver se sentindo suja”,disse-lhe Van Horne, mas ele próprio não esboçou qualquermovimento nessa direção. Em vez disso, foi até um armário em outraparede, uma parede que parecia um Mondrian, só que sem cor,recortada em portas e painéis que deviam todos esconder algumsegredo, e retirou uma caixinha branca, não uma caixa e sim umcrânio branco comprido, talvez de cabra ou cervo, com uma tampa deprata acionada por uma dobradiça. Dali retirou alguma coisa empedaços e um maço de papéis para cigarro antiquados que começou amanusear desajeitadamente como um urso mexendo em um pedaçode colmeia. •

Os olhos de Alexandra estavam se adaptando à penumbra. Ela

entrou em um dos cubículos, tirou as roupas sujas, enrolou-se em umatoalha roxa que encontrou dobrada ali e entrou no chuveiro. O suordo tênis, a culpa em relação aos filhos, uma timidez de noiva fora decontexto — tudo isso escorreu de seu corpo. Ela manteve o rostoerguido em direção ao jato como para se lavar dele, daquele rosto quevocê recebia ao nascer como uma impressão digital ou um número deidentidade. A medida que seus cabelos se molharam, ela sentiu acabeça ir ficando agradavelmente mais pesada. Seu coração pareceuleve como um pequeno motor a deslizar por um trilho de alumínio emdireção à inevitável conexão com seu rude e estranho anfitrião.Enquanto se secava, ela reparou que o monograma bordado na toalhaparecia um M, mas talvez fosse um V e um H interligados. Tornou aentrar no quarto escuro com a toalha enrolada em volta do corpo. Aardósia sob as solas de seus pés tinha a aspereza delicada de umréptil. A pungência cáustica da maconha roçou seu nariz como o pelode um animal amigo. Van Horne e Jane Smart, ambos com os ombrosreluzentes, já estavam dentro da banheira dividindo o baseado.Alexandra foi até a borda da banheira, viu que a água tinha cerca deum metro e meio de profundidade, deixou cair a toalha e entrou.Quente. Escaldante. Antigamente, antes de queimá-la por inteiro nafogueira, as pessoas arrancavam pedaços da carne de uma bruxausando pinças em brasa; aquilo era um vislumbre disso, dessafornalha de sofrimento.

“Está quente demais?”, perguntou Van Horne com a voz aindamais oca, mais ainda um arremedo de masculinidade, em meio àquelaacústica isolada e vaporosa.

“Vou me acostumar”, respondeu ela em tom severo, vendo queJane já o tinha feito. Jane parecia furiosa com o simples fato deAlexandra estar ali, formando ondas, embora ela tivesse entrado comsuavidade na água agonizante de tão quente. Alexandra sentiu osseios serem impelidos para cima e começarem a boiar. Haviamergulhado até o pescoço, portanto não tinha mão seca com a qual

aceitar o baseado; Van Horne o posicionou entre seus lábios. Elatragou fundo e prendeu a fumaça. Sua traqueia submersa ardeu. Atemperatura da água estava se tornando a mesma da sua pele e,baixando os olhos, ela viu como eles todos haviam minguado: o corpode Jane estava distorcido, com as pernas ondulantes parecendo duascunhas, e o pênis de Van Horne flutuava como um torpedo pálido,não circuncidado e curiosamente liso, como um daqueles vibradoresde plástico de cor creme que apareciam de vez em quando nas vitrinesdas drogarias da cidade grande, agora que a revolução haviacomeçado e que o céu era o limite.

Alexandra levantou a mão e ergueu-a até atrás de si para a toalhaque deixara cair, secando as mãos e os pulsos o suficiente para poderaceitar, quando chegou sua vez, o pequeno baseado, frágil como umacrisálida, que os três passavam de mão em mão. Não era a primeiravez que ela fumava maconha; seu filho mais velho, Ben, na verdadeplantava a erva em seu quintal dos fundos, em um trecho de terraatrás dos pés de tomate, com os quais a planta tinha uma vagasemelhança. Mas aquilo nunca havia feito parte de suas quintas-feiras:álcool, comidas ricas em calorias e fofocas eram transgressõessuficientes. Depois de várias tragadas fundas em meio ao vapor,Alexandra imaginou que estava se sentindo mudar, ficar sem pesodentro da água e dentro da banheira de seu crânio. Como uma meiaque vira do avesso durante a lavagem e na qual é preciso enfiar a mãobem fundo e puxar, o mesmo acontecia com o universo; ela antes oestivera vendo como se ele fosse o verso de uma tapeçaria. Aquelecômodo escuro, com suas costuras e fios quase invisíveis, era o outrolado da tapeçaria, o verso reconfortante da onda ensolarada eescorchante da natureza. Ela se sentia livre de qualquer preocupação.O semblante de Jane ainda expressava preocupação, mas seu cenhomasculino e aquele viés de insistência em sua voz já não intimidavamAlexandra, que podia ver sua origem no denso tufo pubiano pretoque, debaixo d’água, parecia se balançar para a frente e para trás

quase como um pênis.“Meu Deus”, anunciou Van Horne em voz alta, “como eu adoraria

ser mulher.”“Pelo amor de Deus, por quê?”, perguntou Jane, sensata.“Pensem só no que um corpo de mulher é capaz de fazer... fabricar

um bebê e depois fabricar leite para alimentá-lo.”“Bom, pense no seu próprio corpo”, disse Jane, “e em como ele é

capaz de transformar comida em merda.”“Jane”, repreendeu Alexandra, chocada com essa analogia que lhe

pareceu inútil, embora, pensando bem, a merda também fosse um tipode milagre. Para Van Horne, ela confirmou. “E maravilhoso mesmo.Na hora do parto não sobra nadinha do seu ego, você é apenas umcanal para um esforço que vem de mais além.”

“Deve ser uma onda incrível”, disse ele, dando uma tragada.“Você está tão drogada que nem percebe”, disse Jane, azeda.“Não é verdade, Jane. Não foi assim comigo. Ozzie e eu fizemos

aquele negócio de parto natural, com ele dentro da sala me dandopedras de gelo para chupar — eu fiquei muito desidratada —, e meajudando a respirar. Para os últimos dois bebês nós não tivemos nemmédico, só uma parteira.”

“Vocês sabiam”, começou Van Horne, apertando os olhos daquelejeito pedante e ponderador que Lexa amava por instinto, umvislumbre do menino tímido e desajeitado que ele deveria ter sido,“que todo aquele pânico em relação à bruxaria foi uma tentativa —bem-sucedida, aliás, como ficou provado depois — da parte daprofissão médica, em ascensão desde o século XIII e dominada peloshomens, de tirar o ofício dos nascimentos das mãos das parteiras? Epor isso que várias das mulheres que morreram queimadas eramjustamente... parteiras. Elas tinham ergotamina, atropina, eprovavelmente vários instintos corretos, mesmo sem a teoria dosgermes. Depois que os médicos assumiram seu lugar, elestrabalhavam às cegas, com um lençol em volta do pescoço, e traziam

consigo todas as doenças de seus outros pacientes. As pobresmulheres morreram aos montes.”

“Típico”, disse Jane em tom abrasivo. Ela obviamente haviadecidido que ser desagradável a manteria no foco principal da atençãode Van Horne. “Se existe uma coisa que me enfurece mais do quehomens machistas”, disse-lhe ela então, “são os idiotas que adotam ofeminismo só para conseguir tirar a calcinha das mulheres.”

Mas Alexandra achou que a voz da amiga estava ficando maislenta, mais suave, à medida que a água agia sobre elas pelo lado defora e a maconha pelo de dentro.

“Mas, meu amor, você não está nem de calcinha”, comentouAlexandra. O comentário pareceu ter algum mérito. O recinto foificando mais claro sem que ninguém sequer encostasse em uminterruptor.

“Eu não estou brincando”, continuou Van Horne, ainda trazendodentro de si o mesmo menininho míope em idade escolar secontorcendo de tanta vontade de entender. Seu rosto estava pousadosobre a superfície da água como em cima de uma bandeja; seuscabelos eram compridos como os de são João Batista, e se misturavamaos cachos lambidos sobre os ombros. “O que estou dizendo vem docoração, vocês não entendem? Eu amo as mulheres. Minha mãe erauma fortaleza, meu Deus, inteligente e bonita. Eu a via trabalhar feitouma escrava dentro de casa o dia inteiro, e por volta das seis e meiaaparecia um sujeitinho de terno e eu pensava: ‘O que é que esseimprestável está fazendo aqui?’. Meu pai, o imprestável trabalhador.Me digam, sinceramente, qual é a sensação quando o leite sai dopeito?”

“Qual é a sensação quando você goza?”, perguntou Jane, irritada.“Por favor, sem grosseria.”Alexandra percebeu um alarme genuíno no rosto pesado e

marcado do homem; por algum motivo, gozar era um assuntodelicado em sua mente.

“Não vejo que grosseria há nisso”, ia dizendo Jane. “Se você querconversar sobre fisiologia, só estou citando uma sensação física que asmulheres não podem ter. Quer dizer, nós não gozamos desse jeito.Não exatamente. Vocês não adoram aquela expressão que eles têmpara se referir ao clitóris, ‘órgão homólogo’?”

Em relação ao aleitamento, Alexandra arriscou: “A sensação é amesma de quando você precisa fazer xixi e não consegue, aí derepente consegue”.

“E isso que eu adoro nas mulheres”, disse Van Horne. “Ascomparações singelas. No vocabulário delas não existe ‘grosseria’. Oshomens, meu Deus, como são sensíveis em relação a tudo — sangue,aranhas, boquetes. Vocês sabiam que em muitas espécies a cadela, aporca ou sei lá o quê come a placenta?”

“Acho que você não percebe”, disse Jane, esforçando-se paramanter um tom seco, “como esse comentário é machista.” Mas suasecura sofreu uma estranha transformação quando ela ficou na pontados pés dentro da banheira, fazendo os seios se erguerem acima dasuperfície da água, prateados; um deles era um pouco mais alto emenor do que o outro. Ela os segurou com as duas mãos e explicoupara um ponto no espaço entre o homem e a outra mulher, como paraa testemunha invisível de sua vida, uma testemunha que todoscarregamos conosco e a quem raramente nos dirigimos em voz alta.“Eu sempre quis que os meus seios fossem maiores. Como os de Lexa.Ela tem uns lindos peitos grandes. Mostre a ele, meu bem.”

“Jan e, por favor. Você está me deixando vermelha. Acho que oshomens não se importam tanto com o tamanho, mas sim com ocaimento, e com a forma como eles combinam com o resto do corpo. Ecom o que você própria pensa deles. Se eles agradam a você, vãoagradar aos outros. Estou certa ou errada?”, perguntou ela a VanHorne.

Mas ele não quis assumir o papel de porta-voz dos homens. Eletambém se levantou na água e segurou com as mãos de costas

cabeludas os pequeninos mamilos masculinos, minúsculas verrugascercadas por cobras escuras e molhadas. “Pensem só na evoluçãodisso tudo”, pediu. “Pensem na máquina, em todo o encanamento docorpo de um dos sexos para produzir comida, uma comida maisexatamente adaptada ao bebê do que qualquer fórmula que se possacriar em laboratório. Pensem na evolução do prazer sexual. As lulaspor acaso sentem prazer? E os plânctons? Essas criaturas não precisampensar, mas nós pensamos. Para que nós continuássemos no jogo, elestiveram de jogar uma isca e tanto! Essa construção toda é maiscomplexa do que um daqueles aviões de reconhecimento malucos quecustam um zilhão de dólares para os contribuintes antes de seremabatidos em pleno voo. Imaginem se tivessem deixado de fora oprazer: ninguém treparia com ninguém, e a espécie iria se extinguircom todo mundo admirando o pôr do sol e o teorema de Pitágoras.”

Alexandra gostava do jeito como a mente dele funcionava; nãotinha dificuldade nenhuma para acompanhá-la. “Adorei esta sala”,anunciou, sonhadora. “No início pensei que não fosse gostar. Todoesse preto, a não ser pelos bonitos canos de cobre que Joe instalou. Joepode ser um doce quando tira o chapéu.”

“Quem é Joe?”, perguntou Van Horne.“Esta conversa”, disse Jane, insistindo nos esses das palavras,

“parece ter descido a um nível bastante primitivo.”“Eu poderia pôr um pouco de música”, disse Van Horne,

comoventemente ansioso para que elas não ficassem entediadas. “Foitudo instalado para um sistema de som estéreo de quatro canais.”

“Shh”, disse Jane. “Ouvi um carro chegando.”“Devem ser crianças pedindo balas”, sugeriu Van Horne. “Fidel

vai dar a elas umas maçãs recheadas com giletes que nóspreparamos.”

“Talvez Sukie tenha voltado”, disse Alexandra. “Eu amo você,Jane; seus ouvidos são ótimos.”

“Não são?”, concordou a outra. “Eu tenho mesmo orelhas bonitas,

até meu pai sempre disse isso. Olhe só.” Ela afastou os cabelos deuma, e depois, virando a cabeça, da outra. “O único problema é queuma é mais alta do que a outra, então os óculos que eu uso ficamtortos na minha cara.”

“Elas são bem quadradas”, disse Alexandra.Interpretando isso como um elogio, Jane acrescentou: “E benfeitas

e coladas ao crânio. As de Sukie são de abano, feito as de um macaco,você já reparou?”.

“Muitas vezes.”“Ela tem os olhos juntos demais, também, e aqueles dentes

projetados para a frente deveriam ter sido corrigidos quando ela erajovem. E o nariz dela na verdade não passa de uma batatinha.Sinceramente, não sei como ela consegue um resultado geral tãobom.”

“Não acho que Sukie vá voltar”, disse Van Horne. “Ela estácomprometida demais com aqueles esquisitões neuróticos quemandam nesta cidade.”

“Sim e não”, disse alguém; Alexandra pensou que devia ter sidoJane, mas a voz se parecia com a sua própria. “Como isto aqui estáconfortável e gostoso, não é?”, comentou ela para testar a própria voz.Esta saiu grave, uma voz de homem.

“Nossa segunda casa”, disse Jane, com sarcasmo, supôs Alexandra.Realmente não era nada fácil alcançar a harmonia celestial com Jane.

O barulho que Jane havia escutado não era de Sukie chegando, eraFidel, que trazia mais margaritas na imensa bandeja de prata gravadasobre a qual Sukie havia comentado com Alexandra em tom deadmiração, e cada larga taça de vinho com seu pé delicado tinha aborda salpicada de sal grosso. Alexandra, de tão à vontade que estavacom a própria nudez, achou estranho Fidel também não estar nu, masusando um uniforme semelhante a um pijama da mesma cor dasroupas militares.

“Olhem só para isso, senhoras”, disse Van Horne, juvenil em sua

gabolice e também no aspecto de seu traseiro branco, pois havia saídoda água e estava manuseando alguns botões na parede preta maisafastada. Ouviu-se um ronco lubrificado e, acima de suas cabeças, oteto, que nesse trecho não era perfurado, mas feito de um metalcorrugado como aquele usado em barracões de ferramentas, se abriupara revelar um céu de tinta coalhado com estrelas esparsas.Alexandra reconheceu a teia pegajosa das Plêiades e a gigantesca evermelha Aldebarã. Esses corpos celestes incrivelmente distantes, o arde outono um pouco mais quente do que o normal mas ainda assimfresco, as complexidades dignas de Nevelson das paredes pretas e asformas surreais dignas de Arp de seu próprio corpo bulboso, tudo issose encaixava de forma precisa em torno de seu eu sensorial, tangívelcomo a banheira fumegante e o frio pé de vidro do copo que as pontasde seus dedos seguravam, de modo que era como se ela estivesseentrelaçada a uma multiplicidade de corpos etéreos. Aquelas estrelasse condensaram feito lágrimas e envolveram seus olhos cálidos.Preguiçosamente, ela transformou o pé da taça que segurava no caulede uma polpuda rosa amarela e sorveu seu aroma. Sentiu cheiro desuco de limão. Seus lábios voltaram cheios de cristais de sal gordoscomo gotas de orvalho. Um espinho no caule havia espetado um deseus dedos, e ela ficou olhando uma única gota de sangue se acumularno centro da espiral de sua impressão digital. Darryl van Horne estavacurvado mexendo em mais alguns de seus controles, e sua bundabranca reluzente parecia a única parte de seu corpo que não eracabeluda nem estava envolta de forma repulsiva em uma espécie deexoesqueleto, mas que era autenticamente sua, assim como na maioriadas pessoas consideramos que a cabeça é seu verdadeiro eu. Ela sentiuvontade de beijá-la, aquela bunda lustrosa, inocente e desatenta. Janelhe passou alguma coisa acesa que ela, obediente, levou à boca. Aqueimação dentro da traqueia de Alexandra se misturou à expressãoquente e zangada do olhar de Jane enquanto debaixo d’água, como sefosse um peixe, a mão da amiga tateava e deslizava por sua barriga,

em volta daqueles seios boiando que ela dissera cobiçar.“Ei, não me deixem de fora”, suplicou Van Horne, e tornou a

entrar na água, estragando o clima, pois a mãozinha de Jane, com aspontas dos dedos cheias de calos parecendo os dentes de um peixe,boiou para longe. Os três recomeçaram a conversar, mas as palavrasflutuavam sem sentido, e a conversa era como uma carícia, e o tempofoi passando em curvas preguiçosas pelos buracos da consciênciaacariciada de Alexandra até Sukie de fato voltar, trazendo o tempo devolta consigo.

Ela entrou apressada, trazendo o outono na saia de camurça comseus cadarços de couro na frente e na jaqueta de tweed ajustada nacintura e com duas pregas atrás como um traje de caçadora, depois deter deixado o vestido de tênis cor de pêssego em casa dentro de umcesto de roupa suja.

“Seus filhos estão bem”, informou ela a Jane Smart, e não pareceuconstrangida ao encontrá-los todos na banheira, como se já conhecesseaquele recinto com seu piso de ardósia, suas brilhantes serpentes decobre, o pedaço de selva irregular iluminada mais atrás, e o teto comseu frio retângulo de céu e estrelas. Com sua maravilhosa rapidezprática, tendo primeiro largado uma bolsa de couro grande feito umembornal em cima de uma cadeira na qual Alexandra não haviareparado antes — havia móveis naquela sala, cadeiras e colchões,pretos para se misturarem às paredes —, Sukie tirou a roupa, primeirodescalçando os sapatos de bico quadrado e salto baixo, depois tirandoa jaqueta de caça, depois empurrando a saia de camurça desamarradapara baixo pelos quadris, depois desabotoando a blusa de seda de umbege bem claro, da cor de um convite de casamento, e empurrandopara baixo a anágua do mesmo rosa acastanhado de uma rosa-chá, ejunto com ela a calcinha branca, e por fim soltando o sutiã einclinando-se para a frente com os braços estendidos de modo que osdois bojos vazios escorregaram pelos braços e caíram em suas mãoscom leveza; esse movimento fez seus seios nus balançarem para a

frente. Os seios de Sukie eram pequenos o suficiente para semanterem empinados mesmo sem sutiã, dois cones arredondadoscujas pontas haviam sido mergulhadas em um cor-de-rosa maisescuro sem qualquer protuberância agressiva de um mamilosemelhante a um botão. Seu corpo parecia uma chama, uma chama deum fogo branco suave aos olhos de Alexandra, que ficou olhandoenquanto a amiga se abaixava calmamente para recolher as roupasíntimas do chão e as deixava cair na cadeira que parecia uma sombramaterializada, e então, muito casual, vasculhava dentro da grandebolsa molenga à procura de alguns grampos para prender os cabelosdaquele tom claro, mas vivo, que as pessoas chamam de ruivo, masque na verdade está entre a cor do damasco e da parte mais rosada nocentro de um tronco de teixo. Todos os pelos de seu corpo tinham essacor, e o gesto de prender os cabelos fez surgir os dois tufos das axilas,de formato espelhado qual duas mariposas pousadas de lado. Aquiloera um avanço da parte de Sukie; Alexandra e Jane ainda não haviamrompido com a ordem patriarcal de raspar as axilas que lhes fora dadaquando elas eram jovens e estavam aprendendo a ser mulheres. Nodeserto bíblico, as mulheres eram obrigadas a raspar as axilas comsílex; os pelos femininos desafiavam os homens, e Sukie, a mais jovemdas bruxas, era a que menos se sentia obrigada a aparar e domar suaexuberância natural. Seu corpo esguio, crivado de sardas nosantebraços e canelas, era ao mesmo tempo generoso o suficiente paraque seu contorno ondulasse quando ela caminhou em sua direção,para dentro das luzes amareladas vindas do chão que marcavam aborda da banheira, vinda do fundo preto daquele lugar, de suaescuridão artificial monótona como a de um estúdio de gravação; ocontorno do vulto de sua beleza nua ondulou como quando, em umfilme, uma série de imagens estáticas são mostradas em rápidasucessão ao espectador para criar o efeito de um movimentoentrecortado, perturbador e espectral, silencioso. Então Sukie chegoumais perto deles e tornou a adquirir três dimensões, e a lateral tão

linda e comprida de seu corpo estava adoravelmente maculada poruma verruga cor-de-rosa e por um hematoma vivido (Ed Parsley emum acesso de culpa radical?), e não apenas seus membros eramcobertos de sardas, mas sua testa também, e uma faixa sobre o nariz, eaté mesmo uma nítida constelação no queixo, um pequenino queixotriangular franzido de determinação quando ela se sentou na borda dabanheira e, respirando fundo, com as costas arqueadas e as nádegascontraídas, entrou na água fumegante e restauradora.

“Nossa Senhora”, disse Sukie.“Você vai se acostumar”, garantiu-lhe Alexandra. “Depois que se

acostuma, é uma delícia.”“Estão achando isso quente, meninas?”, gabou-se Darryl van

Horne, nervoso. “Quando estou sozinho, ponho o termostato vintegraus mais quente. E ótimo para curar ressaca. Todos os venenoscozinham e saem do seu corpo.”

“O que eles estavam fazendo?”, perguntou Jane Smart.Depois de ter olhado por tanto tempo e com tamanha admiração

para Sukie, Alexandra achou sua cabeça e seu pescoço enrugados.“Ah”, respondeu Sukie, “o de sempre. Assistindo a filmes antigos

no canal 56 e comendo todas as balas que conseguiram juntar atépassarem mal.”

“Você por acaso não passou na minha casa?”, perguntouAlexandra, sentindo-se tímida: Sukie era tão linda, e agora estava aoseu lado dentro d’água; as ondas que ela fazia banhavam a pele deAlexandra.

“Marcy tem dezessete anos, querida”, disse Sukie. “E uma meninacrescida. Ela sabe se virar. Acorde.” E ela tocou Alexandra no ombro,dando-lhe um empurrão de brincadeira. Quando ela estendeu o braçopara dar o empurrão, um dos seus seios de pontas rosadas saiu dedentro d’água; Alexandra teve vontade de chupá-lo, mais vontadeainda do que tivera de beijar a bunda de Van Horne. Teve uma visãoanterior à experiência: seu rosto deitado de lado sobre a água, seus

cabelos se soltando e flutuando até os lábios enquanto estes formavamseu O receptivo. Ela sentiu a bochecha esquerda quente, e o olharverde de Sukie mostrou que ela estava lendo os pensamentos deAlexandra. As auras das três bruxas, respectivamente cor-de-rosa,roxa e amarela, se fundiram sob a claraboia com aquela coisadesmoronada, rígida e marrom acima da cabeça de Van Horne queparecia um canhestro halo de madeira acima da cabeça de um santoem alguma igreja mexicana empobrecida.

A menina que Sukie havia mencionado, Marcy, tinha nascidoquando Alexandra tinha apenas vinte e um anos, depois de eladesistir da faculdade diante da insistência de Ozzie para que secasasse com ele, e ela então se lembrou de seus quatro bebês, de como,quando eles foram chegando um a um, eram as meninas que, aomamar, mais lhe afetavam as entranhas, pois os meninos já eram umpouco parecidos com homens, aquele vácuo agressivo, a dor da súbitasucção, os crânios oblongos e azuis protuberantes e intimidadoresacima dos feixes de músculos franzidos no lugar em que um dia iriambrotar suas viris sobrancelhas. As meninas eram mais delicadas,mesmo nos primeiros dias, docinhos tão cheios de esperança,sedentos, encantadores, carentes, destinados a se transformar embeldades e em escravas. Bebês: suas encantadoras perninhas tortas,como se ao dormir estivessem montando pequenos cavalos, oadorável baixo-ventre inchado por causa das fraldas, seus pezinhosroxos flexíveis, sua pele do corpo todo tão fina quanto a de um pênis,seus graves olhares azul-escuros e suas boquinhas curvas tãoexplicitamente babonas. O jeito como eles cavalgam seu quadrilesquerdo, prendendo-se com a mesma suavidade com que umatrepadeira se prende a um muro à lateral de seu corpo, a lateral docoração. O cheiro de amônia das fraldas. Alexandra começou a chorarpensando em seus bebês perdidos, bebês engolidos pelas crianças emque haviam se transformado, bebês cortados em pedacinhos edevorados pelos dias, pelos anos. As lágrimas brotaram, mornas, e

então, em contraste com seu rosto quente, escorreram frias pela lateraldo nariz, encontraram as rugas escondidas nas asas das narinas,deixaram um gosto de sal nos cantos da boca e escorreram peloqueixo, transformando a covinha ali em um riacho. Em meio a todosesses pensamentos, a mão de Jane jamais a havia largado; Janeintensificou as carícias, passando a massagear a nuca de Alexandra,depois seu trapézio, e então os deltoides e os peitorais, ah, como issoaliviava a tristeza, a mão forte de Jane, aquela pressão ora acima, oraabaixo da água, abaixo até da cintura, com os olhinhos vermelhos doscontroles da temperatura a vigiar da borda, a margarita e a maconha amisturar seus venenos absolvedores no reino sensível, faminto e negrosob sua pele, seus pobres filhos abandonados, sacrificados para elapoder ter seus poderes, seus bobos poderes, e somente Jane entendia,Jane e Sukie, Sukie flexível e jovem ao seu lado, tocando-a, sendotocada, seu corpo feito não de músculos doloridos mas sim de umaespécie de vime, maleável e delicadamente sardento, e a nuca abaixodos cabelos presos de uma brancura que nunca via o sol, um pedaçode alabastro flexível sob os cachos cor de âmbar. Alexandra começou afazer com Sukie o mesmo que Jane estava fazendo com Alexandra:começou a acariciá-la. Sob suas mãos, o corpo de Sukie parecia feitode seda, parecia uma fruta pesada e suculenta, e Alexandra estava atal ponto dissolvida em sentimentos melancólicos, triunfais eafetuosos que não havia como diferenciar as carícias dadas dasrecebidas; com os ombros, braços e seios fora d’água, as três mulheresforam tomando forma, como graças em uma gravura, foram formandoum nó, enquanto seu anfitrião moreno e cabeludo, fora d’água,vasculhava seus armários pretos. Com uma estranha voz prática, queAlexandra ouviu como se chegasse de muito longe àquele estúdio degravação, Sukie conversou com aquele tal de Van Horne sobre quemúsica pôr para tocar em seu sistema de som caro e resistente aovapor. Ele estava nu, e seu sexo balouçante, eloquente e pálido tinha omesmo aspecto encantador do rabo de um cachorro curvado bem

rente ao botão inofensivo de seu ânus.Nossa cidade de Eastwick iria fofocar muito durante aquele

inverno — pois ali, assim como em Washington e Saigon, tambémhavia vazamento de informações; Fidel fez amizade com uma mulherna cidade, garçonete da Nemo’s, uma negra sonsa de Antíguachamada Rebecca — sobre os malévolos acontecimentos na velhamansão Lenox, mas o que chamou a atenção de Alexandra nessaprimeira noite e para sempre depois foi o afável constrangimentohumano de tudo aquilo, por mais que fosse controlado pela falta dejeito de seu anfitrião ansioso e de corpo sutilmente malfeito, que nãoapenas as alimentava e lhes proporcionava abrigo, música e móveisadequadamente escuros, mas também lhes oferecia a bênção sem aqual a coragem do nosso tipo contemporâneo fracassa e escorre paradentro de valas cavadas por outros, aqueles velhos pastores emexeriqueiros e defensores de uma heroica constipação queobrigaram a linda Anne Hutchinson, uma mulher que servia àsmulheres, a fugir para o meio da selva onde foi escalpelada por peles-vermelhas tão fanáticos e implacáveis quanto os clérigos puritanos.Assim como todos os homens, Van Horne exigia que as mulheres ochamassem de rei, mas pelo menos seu sistema de cobrança lidavacom bens — o corpo, a vivacidade pessoal — que elas possuíam, e nãocom bens espirituais inventados em algum Paraíso inexistente. Agentileza de Van Horne foi transformar o amor que elas tinham umaspelas outras em um tipo de amor por ele. Havia algo um poucoabstrato no amor que ele sentia por elas, e portanto algo formal emeramente cortês na obediência e nos favores que elas lheprodigalizavam — vestir as fantasias que ele fornecia, as luvas de pelede gato e as cintas-ligas de couro verde, ou então amarrá-lo com ocingulum, uma corda de lã vermelha trançada com quase três metrosde comprimento. Muitas vezes, como naquela primeira noite, eleficava acima e longe delas, ajustando seu equipamento complexo e(apesar de todas as suas orgulhosas afirmações em contrário) sensível

à umidade.Ele apertou um botão, e o teto corrugado roncou novamente ao

encobrir o pedaço de céu noturno. Pôs discos para tocar — primeiroJanis Joplin, que gritou e se esgoelou em Piece of my heart e Get it whileyou can, Summertime e Down on me, a voz personificada do alegredesespero feminino, e depois Tiny Tim, passeando pé ante pé porentre as tulipas com um chilreio andrógino emocionante do qual VanHorne nunca se fartava, tornando a pousar a agulha nos sulcos iniciaisdo disco vezes sem conta, até as bruxas, com algazarra, lhe pedirempara tornar a pôr Janis Joplin. No sistema acústico dele a música osrodeava, erguendo-se dos quatro cantos do aposento; eles dançavam,os quatro vestidos apenas com suas auras e seus cabelos, commovimentos tímidos, mínimos, mantendo-se dentro da música,muitas vezes virando as costas, deixando as presenças titânicas efantasmagóricas dos intérpretes inundarem cada vez mais seu corpo.Enquanto Joplin grasnava Summertime naquela cadência entrecortada,lembrando-se das palavras com espasmos arrebatados, como seestivesse se levantando repetidamente da lona em alguma luta internamovida pelas drogas, Sukie e Alexandra dançavam abraçadas semmexer os pés, os cabelos soltos molhados e embaraçados comlágrimas, os seios se tocando, se roçando, movendo-se em um sutil edelicado embate lubrificado por gotas de suor ostentadas no peitocomo os grandes colares de contas do antigo Egito. E quando Joplin,com aquela abertura de voz falsamente suave, se lançava rumo aoredemoinho de Me and Bobby McGee, Van Horne, com o pênisarroxeado monstruosamente ereto depois de um serviço que Janehavia lhe prestado de joelhos, imitava com suas estranhas mãos —que pareciam envoltas em luvas brancas de borracha com perucas depelos, e largas nas pontas como os dedos de um sapo ou de umlêmure — na escuridão acima de sua cabeça balouçante o soloatormentado tocado pelo inspirado pianista da banda Full Tilt Boogie.

Sobre os colchões de veludo preto que Van Horne havia

providenciado, as três mulheres brincaram juntas e com ele, usando aspartes de seu corpo como um vocabulário para se comunicar; eledemonstrou um controle sobrenatural e, quando finalmente gozou,todas concordaram depois que seu sêmen era maravilhosamente frio.Quando se vestiu depois da meia-noite, na primeira hora denovembro, Alexandra teve a sensação de estar preenchendo as roupas— ela jogava tênis de calça, para esconder um pouco as pernas grossas— com um gás sem peso, de tão rarefeita que sua pele havia ficadodepois daquela longa imersão e dos venenos assimilados. Quandovoltou para casa ao volante de seu Subaru, cujo interior cheirava acachorro, viu a lua cheia com seu semblante pesaroso e indistinto noalto do para-brisa escurecido e pensou por um segundo, de formairracional, que os astronautas haviam aterrissado lá e, em um ato deatrocidade imperialista, pintado a vasta e árida superfície com umColor Jet verde.

2. Maleficia

Não serei outra senão quem sou; minha condição me proporcionacontentamento demais; estou sempre sendo acariciada.

JOVEM BRUXA FRANCESA, c. 1660

“FOI MESMO?”, perguntou Alexandra ao telefone. Do lado de fora dasjanelas de sua cozinha, as cores puritanas do mês de novembrodominavam, o caramanchão era um emaranhado de videirasdescascadas, e o comedouro de pássaros estava pendurado e cheioagora que as primeiras geadas haviam feito murchar as frutinhas damata e do brejo.

“Foi o que Sukie falou”, disse Jane, insistindo nos efes. “Ela dizque já previa isso há muito tempo, mas que não quis dizer nada paranão traí-lo. Não que contar somente para nós significasse trair alguém,se quiser saber a minha opinião.”

“Mas há quanto tempo Ed conhece essa menina?” Uma fileira dasxícaras de chá de Alexandra, penduradas em ganchos de latão sobuma das prateleiras da despensa, oscilou como se a mão invisível dealguém as houvesse acariciado como faria um harpista.

“Alguns meses. Sukie achou que ele parecia diferente com ela.Praticamente só queria conversar, usá-la como teste. Ela achou ótimo:pense só em todas as doenças venéreas que ela poderia ter pegado.Você sabe que esses hippies todos no mínimo têm chato.”

A história era que o reverendo Ed Parsley tinha fugido com uma

adolescente da cidade.“Eu já vi essa menina?”, perguntou Alexandra.“Ah, com certeza já”, respondeu Jane. “Ela estava sempre naquele

bando que fica em frente à mercearia depois das oito da noite,esperando um traficante, imagino. Um rosto pálido e encardido, decerta forma mais largo do que alto, e cabelos lisos sujos e lambidoslargados de qualquer maneira, e roupas que pareciam as de umalenhadora.”

“E miçangas, não?”Jane respondeu a sério.“Bom, ela devia ter lá as suas, para usar quando quisesse ir a

alguma festa de debutante. Não se lembra da cara dela? Ela estava nogrupo que fez um piquete em março passado durante a reunião doConselho Municipal e derramou sangue de ovelha que tinhaarrumado no matadouro em cima do monumento aos mortos naguerra.”

“Não me lembro, meu bem, mas deve ser porque não quero.Aquela garotada em frente à mercearia sempre me dá medo, eu sópasso entre eles rapidamente, sem olhar nem para a direita nem para aesquerda.”

“Você não deveria ficar assustada, eles não estão nem vendo você.Para eles você só faz parte da paisagem, como uma árvore.”

“Coitado do Ed. Ele parecia tão perturbado ultimamente. Quandoeu o vi no concerto, ele pareceu até querer se agarrar a mim. Penseique isso fosse uma traição com Sukie, então o dispensei.”

“Nem de Eastwick essa tal menina era, ela estava sempre por aquimas morava em Coddington Junction, com alguma famíliarecomposta horrível em um trailer para aqueles lados, e morava com oamante da mãe porque esta vivia viajando, fazendo alguma coisa emuma feira itinerante, acho que eles chamam de acrobacia.”

Jane soava tão puritana que quem a ouvisse a tomaria por umasolteirona virgem se não a houvesse visto em ação com Darryl van

Horne.“O nome dela é Dawn Polanski”, ela estava dizendo. “Não sei se

os pais a batizaram de Dawn1 ou se ela mesma adotou esse nome; aspessoas hoje em dia gostam de dar nomes a si mesmas, nomes comoBotão de Lótus e Avatar Sagrado, essas coisas.”

Suas mãozinhas cheias de calos haviam se mostrado incrivelmenteatarefadas e, quando o sêmen frio tinha jorrado, fora Jane quem ficaracom a maior parte. Os estilos sexuais de outras mulheres são algo quevocê praticamente só consegue adivinhar, e talvez isso seja uma coisasábia, pois eles podem ser fascinantes demais. Alexandra piscou osolhos para tentar espantar as imagens da mente e perguntou: “Mas oque eles vão fazer?”.

“Imagino que não tenham a menor ideia, quer dizer, não depois deirem para algum hotel de beira de estrada e treparem até cansar. Sério,é patético.” Fora Jane quem a havia acariciado primeiro, não Sukie.Pensar em Sukie, na suave chama branca que era seu corpo naquelanoite, posando em cima da ardósia, abriu um pequeno rombo nabarriga de Alexandra, junto ao ovário esquerdo. Suas pobresentranhas: ela estava certa de que um dia teria de ser operada, e deque eles a abririam tarde demais e ela estaria pululando de célulasnegras cancerosas. Só que provavelmente elas não eram negras, e simde um vermelho mais vivo, e brilhantes, como uma espécie de couve-flor sanguinolenta. “Mas, pensando bem”, ia dizendo Jane, “acho queeles vão tomar o rumo de alguma cidade grande e tentar se juntar aoMovimento. Acho que Ed pensa que é como entrar para o Exército:basta encontrar um centro de recrutamento, passar por um examemédico e, se você for aprovado, está dentro.”

“Parece uma ilusão tão grande, você não acha? Ele é velho demaispara isso. Enquanto estava aqui, parecia bastante jovem e atraente, oupelo menos interessante, e tinha a sua igreja, isso dava a ele umaespécie de fórum...”

“Ele detestava ser respeitável”, interrompeu Jane, incisiva.“Considerava que isso era se vender.”

“Ah, em que mundo nós vivemos”, comentou Alexandra com umsuspiro, vendo um esquilo cinzento avançar com seu andarentrecortado pelo muro de pedra coberto de caules secos dos fundosde seu quintal. Uma leva de suas peitudas estava assando no fornoque marcava os segundos no aposento contíguo à cozinha; ela haviatentado fazê-las maiores, mas nesse caso a rusticidade de sua técnicade autodidata, sua ignorância em matéria de anatomia, parecia termais importância. “E Brenda, como ela está aguentando isso?”

“Mais ou menos como seria de esperar. Com histeria. Elapraticamente consentia às claras no fato de Ed ter amantes, mas nuncapensou que ele fosse deixá-la. Isso vai ser um problema para a igreja,também. A paróquia é tudo que ela e as crianças têm, mas é claro quenão lhes pertence. Eles vão ter que ser expulsos algum dia.” O estalocalmo da malícia na voz de Jane surpreendeu um pouco Alexandra.“Ela vai ter que arrumar um emprego. Vai aprender o que é ficarsozinha.”

“Talvez nós...” devêssemos ficar amigas dela, foi o pensamentoinacabado.

“Nunca'”, respondeu Jane, a telepata. “Porra, ela era simplesmentearrogante demais na minha opinião, sempre ali bancando a esposa dopastor, sentada feito uma aristocrata atrás da cafeteira, se enturmandocom todas as velhas senhoras, você precisava ver ela entrando esaindo daquela igreja durante os nossos ensaios. Eu sei”, continuouela, “que não deveria ficar tão satisfeita assim com o fato de outramulher ter tido o que merecia, mas a verdade é que fico. Você achaque eu estou errada. Você me acha má.”

“Ah, não”, replicou Alexandra sem sinceridade. Mas quem podedizer o que é ser mau? A pobre Franny Lovecraft poderia terquebrado o quadril naquela noite e precisar de um andador até o diade sua morte. Alexandra fora atender ao telefone segurando uma

colher de pau, e distraidamente, enquanto esperava Jane ordenhartoda a maldade que tinha dentro de si, dobrou a colher com as ondasde sua mente fazendo o cabo se curvar para trás como o rabo de umcachorro e ir encostar na frente côncava da colher. Então deslizoulentamente esse anel de madeira parecido com uma serpente braçoacima. A carícia abrasiva da madeira lhe causou uma sensaçãodesagradável nos dentes. “E Sukie?”, perguntou Alexandra. “Elatambém não foi abandonada, de certa forma?”

“Ela está radiante. Disse que foi ela quem o incentivou a tentarencontrar a felicidade com a tal de Dawn. Acho que já tinha secansado da história com Ed.”

“Mas será que isso quer dizer que ela agora vai sair atrás deDarryl?” A colher agora havia se enroscado em volta de seu pescoço, ea parte côncava tocava seus lábios. A madeira tinha gosto de azeite.Ela esticou a língua para tocá-la e teve a sensação de que sua línguaera muito leve, bifurcada. Carvão estava aninhado junto a suaspernas, preocupado, sentindo cheiro de magia, um leve cheiro dequeimado semelhante ao de um bico de gás na hora em que é aberto.

“Eu me atreveria a dizer que os planos dela são outros”, estavadizendo Jane. “Ela não sente tanta atração por Darryl quanto você. Ouquanto eu, aliás. Sukie gosta de homens deprimidos. Fique de olho emClyde Gabriel, é esse o meu conselho.”

“Ah, aquela mulher horrorosa”, exclamou Alexandra. “Alguémdeveria matá-la e acabar logo com esse sofrimento.” Ela mal estavaprestando atenção no que dizia, pois, para provocar Carvão, haviaposto a colher dobrada no chão, e os pelos do lombo do cão haviam seeriçado; a colher levantou a cabeça e os beiços de Carvão se afastaramdos dentes, e seus olhos se acenderam em preparação para o ataque.

“Vamos fazer isso”, foi a resposta rápida de Jane Smart.Distraída por essa nova e afiada maldade em Jane, e um pouco

assustada também, Alexandra deixou a colher se desdobrar; estaabaixou a cabeça e caiu sobre o linóleo com um baque seco.

“Ah, não acho que isso seja da nossa alçada”, protestou eladebilmente.

“Eu sempre o desprezei, e não estou nem um pouco surpresa”,afirmou Felicia Gabriel com seu tom casual e seguro de si, como seestivesse se dirigindo a um pequeno grupo de amigos que aconsiderasse maravilhosa por unanimidade, embora na verdadeestivesse falando com o marido, Clyde. Em meio à névoa deembriaguez após o jantar, ele vinha tentando entender um artigo daScientific American sobre as mais recentes anomalias astronômicas.Ela estava em pé, tomada por uma tensão insistente e ansiosa,encostada no batente da porta do cômodo cheio de estantes que eletentava usar como escritório, agora que Jenny e Chris não moravammais ali para poluí-lo com ruídos eletrônicos, com Joan Baez e osBeach Boys.

Felicia nunca tinha superado a atitude presunçosa de uma bonita eespevitada estudante do ensino médio. Ela e Clyde haviam cursadojuntos as escolas públicas de Warwick e, na época, ela era cheia deenergia e muito atraente: participava de todas as atividadesextracurriculares, do conselho estudantil ao vôlei feminino, e alémdisso só tirava dez em tudo, sem contar que tinha sido a primeiracapitã mulher da equipe de debates. Tinha uma voz estridente, que seerguia acima de todas as outras no trecho impossivelmente agudo dohino nacional norte-americano: essa voz o varava de um lado a outrofeito uma faca. Felicia tivera dezenas de namorados; era mesmo umpartido e tanto. Ele não parava de lembrar isso a si mesmo. A noite,quando ela adormecia ao seu lado com aquela rapidez deprimente dosvirtuosos e hiperativos, deixando-o sozinho para enfrentar durantehoras os demônios da insônia que uma noite inteira de bebedeirahavia despertado dentro de si, ele examinava seus traços imóveis à luzdo luar, e sua observação do encaixe escuro de suas pálpebrasfechadas sobre as órbitas e dos lábios cerrados para conter algumcomentário não dito em um debate onírico revelavam uma antiga

perfeição de ossos agradavelmente esculpidos. Quando estavainconsciente, Felicia parecia frágil. Apoiado em um dos cotovelos, eleficava deitado olhando para ela, e conseguia trazer de volta a formada adolescente cheia de vida que havia amado, com seus suéteresfelpudos em tons pastel e suas compridas saias plissadas a ondularpelos corredores margeados de escaninhos altos de metal verde, etambém uma sensação de ser novamente o adolescente alto, magro e“inteligente” que fora antigamente; uma gigantesca coluna incorpóreade perda e tempo perdido se erguia das paredes do quarto, fazendo-osparecer deitados feito dois cadáveres embolados no fundo de um dutode ventilação. Mas agora ela estava em pé na sua frente, impossível deignorar, vestida com a saia preta e o suéter branco com os quais haviapresidido a reunião da noite do Comitê de Vigilância dos Charcos,onde Mavis Jessup lhe dera a notícia sobre Ed Parsley.

“Ele era fraco”, afirmou ela, “um homem fraco a quem alguém umdia disse que ele era bonito. Eu nunca o achei bonito, com aquele narizpseudoaristocrático e aquele olhar fugidio. Ele nunca deveria tervirado pastor, não tinha a menor vocação para isso, pensava quepodia conquistar Deus da mesma forma que conquistava as velhassenhoras para elas não perceberem o homem vazio que ele era. Paramim — Clyde, olhe para mim quando eu estiver falando — ele nãoconseguia projetar as qualidades de um homem de Deus.”

“Não tenho certeza de que os unitaristas se importem tanto assimcom Deus”, respondeu ele brandamente, ainda torcendo paraconseguir ler. Quasares, pulsares, estrelas que emitiam a cadamilissegundo jatos de uma quantidade de matéria maior do queaquela contida em todos os planetas: talvez, naquela loucura cósmica,ele próprio estivesse procurando o antiquado Deus celestial. Na épocade inocência em que era “inteligente”, para ganhar pontos extras embiologia ele havia escrito um longo ensaio intitulado “O supostoconflito entre ciência e religião”, e concluíra que tal conflito nãoexistia. Embora trinta e cinco anos antes o ensaio tivesse tirado a nota

máxima dada pelo sr. Thurmann, efeminado e de rosto redondo,Clyde agora percebia que havia mentido. O conflito era aberto eimplacável, e a ciência estava vencendo.

“Não sei com o que eles se importam, mas com certeza não é comficar jovem para sempre, que foi o que fez Ed Parsley ir parar nosbraços daquela vadiazinha patética”, afirmou Felicia. “Um belo dia eledeve ter dado uma boa olhada naquela deplorável Sukie Rougemontde quem você tanto gosta e percebido que ela tem mais de trinta anose que era melhor ele arrumar uma amante mais jovem, senão seriaobrigado a virar adulto. Aquela santa da Brenda Parsley, não façoideia de por que ela aguentou tudo isso.”

“Por quê? Por que não? Qual era a outra opção dela?” Clydedetestava ouvir a mulher reclamar, mas não conseguia resistir àtentação de responder de vez em quando.

“Bom, ela vai matá-lo. Essa menina nova com certeza vai matá-lo.Daqui a um ano ele vai estar morto em algum antro para o qual ela vaitê-lo arrastado, com os braços cheios de picadas de agulha, e EdParsley não vai ter nenhuma empatia da minha parte. Eu vou cuspirno túmulo dele. Clyde, você precisa parar de ler essa revista. O que foique eu acabei de dizer?”

“Que vai cuchpir no túmulo dele.”De forma semiconsciente, ele havia imitado algo levemente

estranho na pronúncia dela. Ergueu o rosto a tempo de vê-la retirarum fiapo colorido preso entre os lábios. Com dedos rápidos enervosos, ela enrolou o fiapo para formar uma bolinha apertada nalateral do corpo enquanto continuava a falar. “Brenda Parsley estavadizendo a Marge Perley que talvez a sua amiga Sukie tenha dado umempurrãozinho nele, para poder dedicar toda a sua atenção àquele talde Van Horne, embora pelo que eu venho escutando na cidade aatenção dele também esteja dividida... por três... toda quinta-feira ànoite.”

A hesitação pouco característica em sua frase o fez erguer os olhos

dos gráficos irregulares de disparos de pulsares; ela havia retiradooutra coisa da boca e estava fazendo outra bolinha, olhando para elefixamente como se o desafiasse a prestar atenção. Na época do ensinomédio, Felicia tinha olhos brilhantes e redondos, mas agora seu rosto,mesmo sem que ela houvesse engordado, a cada ano pressionava maisaqueles espelhos de sua alma; eles haviam se tornado parecidos comos olhos de um porco, com o mesmo brilho vingativo do olhar de umporco.

“Sukie não é minha amiga”, disse ele com a voz branda, decidido anão brigar. Sem brigas, só desta vez, rezou para Deus nenhum. “Ela éminha funcionária. Nós não temos nenhum amigo.”

“Então é melhor você dizer a ela que ela é sua funcionária, porquedo jeito que ela se comporta lá na redação é como se fosse a rainha dolugar. Vive subindo e descendo a Dock Street como se a rua fosse dela,rebolando os quadris e usando todas aquelas joias falsas, fazendo todomundo rir pelas suas costas. Deixar essa mulher foi a coisa maisesperta que Monty já fez, talvez a única coisa esperta que ele jamaistenha feito, não sei por que essas mulheres se dão ao trabalho decontinuar vivendo, são umas putas que vão para a cama com metadeda cidade e sequer são pagas por isso. E aqueles coitados daquelesfilhos delas, todos abandonados, é mesmo um crime.”

Em determinado ponto, que ela perseguia invariavelmente atéalcançar, ele não conseguia aguentar mais: o efeito anestésicotranquilizador do uísque era abruptamente canalizado em raiva.

“E o motivo pelo qual nós não temos amigos”, vociferou ele,deixando cair sobre o tapete a revista com suas monstruosas notíciascelestiais, “é que você fala demais.”

“Umas putas, umas neuróticas, uma desgraça para a nossacomunidade. E você, quando o Word deveria dar alguma voz àcomunidade e às preocupações legítimas da comunidade, não, em vezde fazer isso você dá emprego a essa... a essa pessoa que não conseguesequer escrever uma frase em inglês decente, e dá a ela espaço para

despejar o seu ridículo veneno nos ouvidos de todo mundo, e a deixater esse controle todo sobre os moradores da cidade, sobre as poucaspessoas boas que sobraram, todas assustadas e encolhidas nos cantoscom toda essa depravação e essa falta de vergonha por toda parte.”

“Mulheres divorciadas precisam trabalhar”, disse Clyde com umsuspiro, reduzindo o ritmo da respiração, esforçando-se parapermanecer sensato, embora não houvesse como segurar Feliciadepois que sua indignação começava a fluir, ela parecia umasubstância química, uma espécie de reação química. Seus olhosencolhiam até virarem dois pontinhos, parecendo diamantes, seurosto se congelava, cada vez mais pálido, e a sua plateia invisívelficava mais numerosa, obrigando-a a levantar a voz. “Mulherescasadas”, explicou ele, “não precisam fazer nada e podem ficar sedivertindo defendendo causas liberais.”

Ela não pareceu escutá-lo.“Aquele homem detestável”, declarou ela às multidões, “construiu

uma quadra de tênis bem no meio do charco, e dizem”, ela engoliu emseco, “dizem que ele usa a ilha para contrabandear drogas, que elestrazem a droga em em barquinhoch a remo quando a maré echtáalta...”

Dessa vez não houve como esconder; ela puxou de dentro da bocauma pequena pena, listrada de azul como a de um gaio, erapidamente cerrou o punho à sua volta na lateral do corpo.

Clyde se levantou, agora com outra atitude. A raiva e a sensaçãode estar encurralado o abandonaram; o antigo apelido com quecostumava chamá-la surgiu em sua língua.

“Lishy, o que é que...?” Ele estava duvidando dos próprios olhos;saturada de estranheza galáctica, talvez sua visão lhe estivessepregando peças. Forçou o punho da mulher, que não resistiu.Dobrada dentro de sua palma havia uma pena.

A palidez tensa de Felicia relaxou, transformando-se em rubor. Elaestava encabulada.

“Isso tem acontecido ultimamente”, disse ela. “Não faço ideia porquê. Sinto um gosto ruim, e depois saem essas coisas. Em algumasmanhãs tenho a sensação de estar sufocando, e pedaços parecidos compalha, palha suja, saem da minha boca quando estou escovando osdentes. Mas eu sei que não comi nada. Meu hálito está horrível. Clyde!Não sei o que está acontecendo comigo!”

Na hora em que esse grito lhe escapou, o corpo de Felicia sofreuuma torção ansiosa, parecendo prestes a sair voando para algumlugar, o que fez Clyde pensar em Sukie: ambas tinham a pele clara eseca, e uma estrutura ectomórfica. No ensino médio, Felicia tinhamuitas sardas, e sua “energia” era um pouco parecida com o portelépido, despudorado de sua repórter preferida. No entanto, uma delasera o céu, e a outra o inferno. Ele tomou a mulher nos braços. Elasoluçava. Era verdade; seu hálito tinha o mesmo cheiro do chão de umgalinheiro.

“Talvez nós devêssemos levar você ao médico”, sugeriu ele. Esselampejo de emoção conjugal, com o qual ele envolveu a almaamedrontada da esposa em um manto de preocupação, fez evaporargrande parte do álcool que lhe enevoava a mente.

Mas, logo depois desse instante de entrega matrimonial, Felicia seretesou e se desvencilhou dele.

“Não. Eles vão inventar que eu sou maluca e obrigar você a meinternar. Não pense que eu não sei o que você está pensando. Vocêqueria que eu estivesse morta. Queria sim, seu filho da mãe. Você éigualzinho a Ed Parsley. Vocês são todos uns filhos da mãe.Lamentáveis, corruptos... só ligam para essach mulheres horríveis...”Ela se soltou dos braços do marido; com o canto do olho, ele a viulevar a mão à boca. Ela tentou esconder a mão atrás do corpo, mas,furioso sobretudo com a forma como a verdade, em nome da qualhomens perdem a vida, estava misturada com a frenética e irrelevanteautossatisfação de Felicia, ele agarrou seu pulso e a forçou a abrir osdedos fechados. Sua pele tinha uma textura fria, úmida. Dentro da

palma aberta havia uma pequenina pena úmida, como a de umpintinho, mas um pintinho fantasiado para a Páscoa, pois aquela penamacia havia sido tingida de lilás.

“Ele fica me mandando cartas”, disse Sukie a Darryl van Horne,“sem endereço do remetente, dizendo que entrou para o submundo.Ele e Dawn agora fazem parte de um grupo que está aprendendo afabricar bombas com despertadores e cordite. O Sistema não tem amenor chance.” Ela deu um sorriso atrevido.

“Como você se sente com isso?”, perguntou o homem alto comuma voz suave, cavernosa como a de um psiquiatra. Os dois estavamalmoçando em um restaurante de Newport onde era pouco provávelque algum outro morador de Eastwick aparecesse. Garçonetes idosasde minissaia marrom engomada e avental de tafetá amarrado nascostas com um laço grande que fazia pensar no rabo das coelhinhas daPlayboy lhes trouxeram grandes cardápios impressos em letrasmarrons sobre fundo bege, cheios de ingredientes pouco engordativosservidos sobre pão tostado. O peso não era uma das preocupações deSukie: aquela sua abundante energia irrequieta queimava tudo.

Ela apertou os olhos e fitou ao longe, tentando ser honesta, poissentia que aquele homem estava lhe dando uma chance de ser elamesma. Nada seria capaz de chocá-lo ou magoá-lo.

“Aliviada”, respondeu. “Pelo fato de não ter mais de lidar com ele.Quer dizer, o que ele queria não era algo que uma mulher pudessedar. Ele queria poder. Uma mulher pode dar a um homem podersobre ela própria, mas não pode pôr esse homem no Pentágono. O queempolgava Ed em relação ao Movimento, conforme ele o imaginava,

era que o Movimento iria substituir o Pentágono com um exércitoindependente e ter o mesmo tipo de coisa, sabe — uniformes,discursos e salas de reunião com mapas grandes, tudo isso. A minhaexcitação ia para o espaço quando ele começava a falar nessas coisas,ia mesmo. Eu gosto de homens delicados. Meu pai era delicado, eraveterinário em uma cidadezinha na região de Finger Lakes e adoravaler. Nós tínhamos em casa primeiras edições de Thornton Wilder eCarl van Vechten, todas embaladas em plástico para proteger assobrecapas. Monty também era bastante delicado, a não ser quandotirava a espingarda da parede e saía com os amigos para explodirtodos aqueles pobres pássaros e coisinhas peludas. Ele trazia para casauns coelhos que tinha acertado na bunda, porque é claro que os bichostinham tentado fugir. Quem não tentaria? Mas isso só acontecia umavez por ano — por volta desta época agora, na verdade, é isso quedeve ter me feito pensar no assunto. O ar está com aquele cheiro decaça. Temporada de pequenos animais.” O sorriso dela estavamaculado pela maçaroca de biscoito salgado com patê de feijão queaparecia entre seus dentes em pontos pretos; a garçonete trouxera essetira-gosto de cortesia, e Sukie o havia devorado.

“E Clyde Gabriel? Ele é delicado o suficiente para você?” Quandoestava explorando a vida secreta de uma mulher, Van Hornecostumava abaixar a cabeçorra cabeluda. Seus olhos tinham a mesmaexpressão acesa, semiescondida e agitada de crianças com máscarasde Halloween.

“Talvez ele já tenha sido assim um dia, mas agora está bem longedisso. Felicia fez coisas ruins com ele. Às vezes, no jornal, sei lá,quando alguma moça responsável pela diagramação que estácomeçando a trabalhar na redação põe um anunciante importante nocanto inferior esquerdo da página, ele enlouquece, enlouquecemesmo. A moça não pode fazer nada a não ser cair em prantos. Váriasjá se demitiram.”

“Mas você, não.”

“Por algum motivo, ele pega leve comigo.” Sukie baixou os olhos;foi uma visão muito bonita, aquelas duas sobrancelhas ruivasarqueadas e as pálpebras pintadas com uma levíssima sombra lilás, eos cabelos lustrosos cor de damasco comportadamente penteados paratrás e presos dos dois lados por fivelas cujas superfícies cor de cobrecombinavam com um colar rente ao pescoço feito de meias-luas decobre interligadas que ela usava.

Seus olhos se ergueram e cintilaram, verdes. “Mas eu também souuma boa repórter. Sou mesmo. Aqueles velhos verborrágicos daprefeitura que tomam as decisões — Herbie Prinz, Ike Arsenault —,eles todos gostam mesmo de mim e sempre me contam o que estáacontecendo.”

Enquanto Sukie comia os biscoitos com patê de feijão, Van Hornetragava um cigarro, e fazia isso de forma desajeitada, à modaeuropeia, com a ponta acesa protegida junto à palma.

“O que é que você vê nesses caras casados?”“Bom, a vantagem de haver uma esposa é que ela poupa você de

ter que tomar qualquer decisão. Era isso que estava começando a meassustar em Brenda Parsley: ela realmente havia deixado de terqualquer controle sobre Ed, o casal que eles formavam estava mesmono fim da linha. Nós passávamos noites inteiras juntos em pulgueiroshorríveis. E, depois da primeira meia hora, nem transávamos mais; elenão parava de falar sobre a maldade da estrutura de podercorporativa que mandava os nossos meninos para o Vietnã só parasatisfazer aos acionistas, não que eu algum dia tenha entendido emque isso os beneficiava exatamente, nem tenha tido a impressão deque Ed realmente se preocupava com esses meninos, no que diziarespeito a ele os soldados de verdade não passavam de pretos ebrancos de baixa extração...” Seus olhos haviam baixado e tornado ase erguer; Van Horne sentiu um impulso de orgulho possessivo diantede sua beleza, de seu espírito cheio de energia. Ela era sua. Seubrinquedo. Era lindo quando ela parava para pensar e seu lábio

superior dominava o inferior. “Aí eu...”, continuou ela, “tinha de melevantar e ir para casa fazer o café da manhã das crianças, queestavam apavoradas porque eu tinha passado a noite fora, e depoistinha de seguir cambaleando direto para o jornal — ele podia dormir odia inteiro. Ninguém sabe o que um pastor faz durante o dia, ele sóprecisa fazer aquele sermão bobo aos domingos, na verdade é tudouma roubalheira.”

“As pessoas não ligam muito para isso”, disse Darryl, sensato,“para o fato de serem roubadas; isso foi uma coisa que eu descobricom os anos.”

Com as varizes à mostra até o meio das coxas, a garçonete serviu aVan Horne rabos de camarão descascado sobre triângulos de miolo depão, e a Sukie um frango à la king, cubinhos de carne branca comcogumelos fatiados banhados em creme sobre uma crosta de massafina soltando migalhas, e trouxe também para ele um Bloody Mary epara ela um Chablis com soda mais claro do que limonada, porqueSukie tinha de voltar e escrever sobre as últimas novidades relativasaos constrangimentos orçamentários do Departamento Rodoviário deEastwick à medida que o inverno e suas nevascas se aproximavamcada vez mais. No verão anterior, a Dock Street tinha sido castigadapor um fluxo maior do que o normal de turistas e caminhões de oitoeixos, de modo que as placas de concreto reforçado com metal sobreas canaletas perto da mercearia estavam se desintegrando; pelosburacos, era possível ver o regato que se formava com a maré cheia.“Então você acha que Felicia é uma mulher má”, disse Van Horne,continuando a falar sobre esposas.

“Eu não diria exatamente má... ou melhor, diria, sim. Ela é mámesmo. De certa forma ela é parecida com Ed, toda cheia de causas,mas sem nenhum respeito pelas pessoas em volta. O pobre Clyde aliafundando, bem na sua frente, e ela falando ao telefone sobre algumabaixo-assinado para reintroduzir regras de vestuário no ensinomédio. Paletó e gravata para os meninos, e apenas saia para as

meninas, nada de jeans ou calça justa. Hoje em dia as pessoas falammuito sobre fascistas, mas ela é fascista de verdade. Conseguiu fazer abanca de jornais pôr a Playboy debaixo do balcão, depois teve umataque porque algum anuário de fotografia mostrava um pouco depeito e de xoxota, umas modelos em uma praia do Caribe, sabe, com osol cintilando em cima delas através de um filtro Polaroid. Ela chega aquerer que o coitado do Gus Stevens seja preso por expor na suabanca essa tal revista que os fornecedores simplesmente puseram ali,não foi ele quem pediu. Ela quer que você seja preso, aliás, poraterramento irregular. Ela quer que todo mundo seja preso, e a pessoaque ela realmente conseguiu pôr na cadeia foi o próprio marido.”

“Bom”, disse Van Horne sorrindo, os lábios vermelhos ainda maisvermelhos por causa do suco de tomate do Bloody Mary. “E você querdar a ele liberdade condicional.”

“Não é só isso; eu sinto atração por ele”, confessou Sukie,subitamente à beira das lágrimas, pois toda aquela história de atraçãonão tinha o menor sentido, era uma bobagem. “Ele fica tão agradecidosimplesmente com... com o mínimo.”

“Vindo de você, o mínimo é o máximo”, disse Van Horne, galante.“Você é um estouro, boneca.”

“Não sou nada”, protestou Sukie. “As pessoas têm fantasias sobreas ruivas, acho que a ideia é que somos todas umas gostosas, feitoaquelas balas de canela em forma de coração, mas na verdade nóssomos apenas pessoas, e, embora eu faça bastante esforço e tente,sabe, ser elegante, ao menos pelos padrões de Eastwick, não acho queeu tenha de fato o verdadeiro sei lá o quê — poder, mistério,feminilidade — que Alexandra tem, ou mesmo Jane a seu modo umpouco agressivo, entende o que eu quero dizer?” Sukie já haviareparado que, na companhia de outros homens, também tinha aquelaânsia de falar sobre as duas outras bruxas, de buscar um reconforto naconversa ao evocar as três juntas, pois aquele corpo trino sob seuvórtice de poder era a coisa mais próxima que ela jamais tivera de

uma mãe; a verdadeira mãe de Sukie — uma mulher mignon agitadaque, pensando bem, era fisicamente parecida com Felicia Gabriel, eassim como ela tinha fascínio por fazer o bem — estava sempre longede casa ou ao telefone com algum de seus grupos, comitês ouconselhos da igreja; vivia acolhendo órfãos ou refugiados, criançascoreanas perdidas eram a última moda na época, para depoisabandoná-los junto com Sukie e os irmãos na grande casa de tijoloscom seu quintal dos fundos que descia em declive na direção do lago.Sukie tinha a sensação de que outros homens ficavam incomodadosquando seus pensamentos e sua língua começavam a se aproximar dosabá, de seu reconforto e de sua maldade, mas não Van Horne; aquilode certa forma era o seu ambiente, ele parecia uma mulher com suagentileza constante, embora sua forma, é claro, fosse terrivelmentemasculina: trepar com ele doía.

“As pessoas são umas idiotas”, disse ele então, com simplicidade.“Elas não têm os seus peitos esplendorosos.”

“Estou errada?”, indagou ela, com a sensação de que podia dizertudo a Van Horne, atirar qualquer pedaço de si dentro do escurocaldeirão daquele homem fervilhante e sorridente. “Em relação aClyde. Quer dizer, eu sei que todos os livros dizem que você nãodeveria nunca, não com seu chefe, porque depois perderia o emprego,e a infelicidade de Clyde está tão desesperadora que, seja como for, asituação tem um quê de perigosa. A parte branca dos olhos dele estáamarela; isso é sinal de quê?”

“A parte branca dos olhos dele já estava na salmoura quando vocêainda brincava de Barbie”, garantiu-lhe Van Horne. “Vá fundo,garota. Pegue leve com a culpa. Nós aqui embaixo não distribuímos obaralho, só jogamos com as cartas que caem na nossa mão.”

Pensando que, se continuassem a falar nesse assunto, seu caso comClyde pertenceria tanto a Darryl quanto a ela própria, Sukiedirecionou a conversa para longe de si mesma; durante o resto doalmoço, Van Horne falou de si, de sua esperança de encontrar uma

brecha na segunda lei da termodinâmica.“Tem que haver uma brecha”, disse ele, começando a transpirar e

a enxugar a boca de tão animado, “e é a mesma porra de brecha poronde tudo que não existia passou a existir. É a singularidade que deuorigem ao Big Bang. E, e o que tem a gravidade? Esses cientistasarrogantes que todo mundo considera tão sagrados falam como se nóstodos tivéssemos entendido a lei da gravidade desde que Newtoninventou aquelas fórmulas, mas a verdade é que ela é um putamistério; segundo Einstein, é como uma porcaria de um gráfico quenão para de se deformar, mas Sukie, meu bem, não se deixe enganar,ela é uma força. Ela ergue as marés; se você pisar para fora de umavião, vai sugar você para baixo, e que tipo de força é essa que operainstantaneamente pelo espaço e não tem nada a ver com o campoeletromagnético?” Ele estava se esquecendo de comer; perdigotos iamsurgindo sobre a superfície laqueada da mesa. “Existe uma fórmulaem algum lugar, tem de existir, e ela vai ser tão elegante quanto avelha e boa E = mc2. A espada saída da pedra, sabe como é?” Suasmãos grandes, perturbadoras como as folhas daquelas plantas deinterior tropicais que parecem de plástico apesar de sabermos que sãonaturais, imitaram o gesto decisivo de quem saca uma espada. Então,usando o saleiro, o pimenteiro e um cinzeiro de cerâmica com umaimagem puritana e cor-de-rosa da Velha Casa Colonial de Newport,Van Horne tentou ilustrar as partículas subatômicas e sua certeza deque era possível encontrar uma combinação capaz de gerareletricidade sem um novo aporte de energia. “E igual ao jiu-jítsu: vocêlança o cara por cima do seu ombro com mais força do que ele veiopara cima de você. Uma alavanca. E preciso agitar esses elétrons.”Suas mãos repulsivas então se aquietaram. “Se você pensar nisso deum ponto de vista puramente mecânico ou químico, está frito; a velhasegunda lei vai ganhar sempre. Você sabe o que são pares de Cooper?Não?

Está de brincadeira. Você é jornalista ou não? A notícia não seresume só a quem está comendo quem, sabia? Pares de Cooper sãopares de elétrons fracamente interligados que formam o núcleo dossupercondutores. Você sabe alguma coisa sobre supercondutores?Não? Tudo bem, a resistência deles é zero. Não estou querendo dizerque é muito pequena, estou dizendo que é zero. Bom, vamos imaginarque fosse possível encontrar trios de Cooper. Nesse caso teríamos umaresistência menor do que zero. Tem que haver algum elemento, comoo selênio no processo da cópia xerox. Aqueles imbecis lá de Rochesternão tinham nada até encontrarem o selênio, do nada, simplesmenteesbarraram com ele. Bom, quando nós acharmos o nosso equivalentedo selênio, ninguém mais vai nos segurar, Sukie, minha linda. Seconseguirmos descobrir o que está por baixo da pele desses elementosquímicos, todos os telhados do mundo poderão se transformar emgeradores com uma simples demão de tinta. Essa célula fotovoltaicaque eles usam nos satélites na verdade não passa de um sanduíche. Oque você precisa não é de presunto, queijo e alface — leia-se silício,arsênico e boro —, o que você precisa é de salada de presunto, algoem que a organização macro não tenha importância. Tudo que eupreciso fazer é descobrir a composição da porra da maionese.”

Sukie riu e, ainda com fome, pegou um palitinho salgado dedentro de uma miniatura de caldeirão em cima da mesa, abriu oinvólucro e começou a mordiscá-lo. Para ela, tudo aquilo estavaparecendo uma fantástica presunção. Todos aqueles homens lá emRochester e Schenectady, ela havia crescido com aquele tipo de gente,cientistas graduados com suas boquinhas retas e suas testas cada vezmais largas, e com aqueles forros de plástico nos bolsos das camisaspara o caso de as canetas vazarem, todos aqueles homens quetrabalhavam sistematicamente naquele tipo de problema, compesquisas bancadas pelo governo e esposinhas perfeitas e filhinhos aesperá-los em casa à noite. Mas ela então identificou esse pensamentocomo um puro preconceito remanescente de sua antiga vida, antes de

a poderosa feminilidade explodir dentro dela e de ela perceber que omundo que os homens sistematicamente construíam era todo feito deum veneno deprimente, que na verdade não servia para nada a nãoser campos de batalha e aterros sanitários. Por que um homemdesregrado como Darryl não poderia descobrir por acaso um dossegredos do universo? Pensem em Thomas Edison, surdo por ter sidoerguido para dentro de uma carroça pelas orelhas quando era menino.Pensem naquele escocês, qual era mesmo o nome dele, que viu ovapor erguer a tampa da chaleira e depois inventou a ferrovia. Elaestava quase contando para Van Horne, estava na ponta da língua,como por diversão ela e Jane Smart vinham enfeitiçando a detestávelmulher de Clyde; usando um Livro de Oração Comum que Jane haviaroubado da igreja episcopaliana, onde às vezes fazia bicos comoregente do coral, elas haviam batizado solenemente um pote debiscoitos de Felicia e ficavam jogando coisas lá dentro — penas,alfinetes, o pó varrido da casinha incrivelmente antiga de Sukie emHemlock Lane.

Nessa mesma casa, menos de dez horas depois de almoçar comDarryl van Horne, ela recebeu Clyde Gabriel. Seus filhos estavamdormindo. Felicia tinha partido em uma caravana de ônibus commoradores de Boston, Worcester, Hartford e Providence para ir fazeralgum protesto em Washington: eles iriam se prender com correntesàs colunas do Capitólio e emperrar o funcionamento de tudo, umasujeira humana nas engrenagens do governo. Clyde podia dormir nasua casa, caso conseguisse acordar antes do primeiro filho. Ele era umquase-marido comovente, com seus óculos de lentes bifocais, seuspijamas de flanela, e uma pequena ponte dentária que enroloudiscretamente em um lenço de papel e enfiou dentro de um dos bolsosdo paletó quando achou que Sukie não estava olhando.

Mas ela estava olhando, sim, porque a porta do banheiro nãofechava direito devido à estrutura antiga da casa que havia assentadocom os séculos, e ela precisava passar alguns minutos sentada na

privada esperando o xixi chegar. Os homens conseguiam provocar oxixi em segundos, esse era um dos seus poderes, o jato estrondoso quesaía enquanto eles ficavam em pé diante do vaso, altivos. Tudo nelesera mais direto, suas entranhas não eram o mesmo labirinto dasentranhas femininas em que o xixi precisava encontrar seu caminho.Enquanto esperava, Sukie espiou lá para fora; Clyde, com umainclinação de cabeça semelhante à de um velho e aquele calombo naparte de trás do crânio típico dos homens estudiosos, atravessou afenda vertical do quarto que ela conseguia ver. Pelo ângulo dos seusbraços, ela viu que ele estava retirando alguma coisa da boca. Viu umlampejo rosado de gengiva falsa, e então o viu enfiar o pequenoembrulho de lenço de papel no bolso lateral do paletó, onde não iriaesquecê-lo quando saísse às cegas do quarto dela antes de o dia raiar.Sukie continuou sentada, com os belos joelhos ovais bem juntos e arespiração presa: desde menina gostava de espionar os homens,aquela outra raça entrelaçada à sua, tão cheia de bravatas e conversasobscenas e duronas, mas na verdade uns bebezões, comodemonstravam sempre que você lhes dava o peito para chupar ouabria as pernas para que eles a lambessem, o jeito como eles seenfiavam ali e queriam rastejar de volta para dentro. Ela gostava deficar sentada exatamente como estava, só que em uma cadeira, e abriras pernas de modo que seu tufo ficasse bem grande e os cachosreluzentes, e simplesmente deixar que eles lambessem, beijassem echupassem. Torta de cabelo, como dizia um rapaz do estado de NovaYork que ela conhecera.

O xixi veio, enfim. Ela apagou a luz do banheiro e entrou noquarto, onde a única iluminação vinha do poste de rua na esquina daHemlock Lane com a Oak Street. Era a primeira vez que ela e Clydepassavam a noite juntos, embora ultimamente tivessem adquirido ohábito de pegar o carro na hora do almoço e ir até a floresta de Cove(ela percorria a Dock Street a pé até o monumento em homenagem aosmortos na guerra, e ele a pegava ali com seu Volvo); no outro dia, ela

havia ficado entediada de tanto beijar o rosto seco e triste dele, comseus pelos compridos nas narinas e seu hálito de tabaco, e, paradivertir a si mesma e a ele, havia aberto sua braguilha e, com gestosrápidos e delicados (na sua opinião), o havia masturbado até ele gozarenquanto observava tranquilamente. Aqueles jatos cômicos deesperma, parecendo os gritos de um filhote de animal nas garras deum gavião. Ele ficara abismado com aquele seu truque de bruxa;quando riu, seus lábios se arreganharam de um jeito estranho,expondo as fileiras traseiras de dentes irregulares com obturações deprata escurecida. Isso tinha sido um pouco assustador, a corrosão, ador e o tempo, tudo exposto. Agora ela se sentia novamente tímida aoentrar às cegas no próprio quarto com aquele homem lá dentro, comos olhos ainda não acostumados à penumbra depois da claridade dobanheiro. No canto em que Clyde estava sentado, seu pijama reluziacomo uma lâmpada fluorescente que alguém acabara de apagar. Umaponta vermelha de cigarro brilhava junto à sua cabeça. Ela pôde ver asi mesma, as laterais brancas do corpo e as listras nervosas dascostelas, com mais clareza do que o viu, porque nas suas paredeshavia vários espelhos pendurados — espelhos antigos com moldurasdouradas, herdados de uma tia de Ithaca. Esses espelhos exibiammanchas de idade; as paredes úmidas de gesso de velhas casas depedra haviam devorado o mercúrio de suas superfícies traseiras.Sukie preferia espelhos assim a espelhos perfeitos; eles lhe devolviamsua beleza com menos subterfúgios. A voz de Clyde rosnou:

“Não tenho certeza se tenho coragem para isso.”“Se você não tiver, quem vai ter?”, perguntou Sukie das sombras.“Ah, eu consigo pensar em várias pessoas”, disse ele, levantando-

se mesmo assim e começando a desabotoar a camisa do pijama. Ocigarro aceso havia sido transferido para sua boca, e a ponta vermelhase balançava quando ele falava.

Sukie sentiu um calafrio. Esperava que ele a tomasse nos braçosimediatamente e lhe desse beijos longos e ávidos cheios de mau hálito

como havia feito no carro. Sua nudez imediata a punha emdesvantagem; ela havia desvalorizado a si mesma. Ah, as assustadorasflutuações que uma mulher é obrigada a suportar no mercado deações das mentes dos homens, subindo e caindo de valor em questãode minutos ao som dos gritos dos ids e superegos masculinos. Elaquase deu as costas e tornou a se fechar no banheiro bem iluminado, eele que se danasse. Ele não havia se mexido. Seu rosto outrora bonito,desidratado e com as bochechas esticadas, estava franzido ao estilo deum mafioso ao redor do cigarro, com um dos olhos fechado por causada fumaça. Era assim que ele ficava sentado editando os textos dojornal, com o lápis macio a deslizar e riscar, os olhos amareladosprotegidos por uma viseira verde, a fumaça do cigarro a soltar formasgalácticas flutuantes no cone de sua luminária de mesa, seu própriovórtice de poder. Clyde adorava cortar texto, encontrar um parágrafointeiro supérfluo que pudesse ser eliminado por completo; masultimamente havia ficado mais complacente com a prosa de Sukie,corrigindo apenas os erros de ortografia.

“Várias quantas?”, perguntou ela. Ele a considerava uma puta.Felicia devia viver repetindo isso para ele. O calafrio que Sukiesentira: seria o frio do quarto, ou a embriagante visão de sua própriacarne branca a assombrar simultaneamente os três espelhos?

Clyde apagou o cigarro e terminou de tirar o pijama. Agoratambém estava nu. A quantidade de palidez nos espelhos multiplicou-se por dois. Seu pênis era impressionante, fino como ele, penduradodaquela maneira frágil e pesada típica dos pênis, esse mais precário detodos os pedaços de carne. Sua pele deslizou nervosamente contra adela quando ele finalmente tentou abraçá-la; ele era ossudo, massurpreendentemente morno.

“Não muitas”, respondeu ele. “Só o suficiente para me deixarenciumado. Meu Deus, como você é bonita. Eu seria até capaz dechorar.”

Ela o conduziu até a cama, tentando reprimir qualquer movimento

que pudesse acordar as crianças. Sob as cobertas, a cabeça dele, comseus ângulos pontiagudos e suas suíças ásperas, repousoupesadamente sobre seu seio; seu malar roçou-lhe a clavícula.

“Isso não deveria fazer você chorar”, disse ela em tomtranquilizador, afastando osso de osso. “Deveria ser uma coisa feliz.”Quando Sukie disse isso, o rosto largo de Alexandra surgiu em suamente: largo, um pouco bronzeado mesmo no inverno por causa dascaminhadas ao ar livre, com aquelas covinhas delicadas no queixo ena ponta do nariz que lhe davam a estranheza impassível de umadeusa, o caráter indecifrável de quem se prende a um credo:Alexandra acreditava que a natureza, o mundo físico, fosse uma coisafeliz. Aquele homem encolhido, aquela pele frouxa recheada de ossoscálidos, não acreditava nisso. Para ele, o mundo havia ficado insossocomo papel, composto como era por acontecimentos inconsequentes edesordenados que passavam chispando por sua escrivaninha antes deirem virar bolor no arquivo morto. Tudo para ele havia se tornadosecundário e azedo. Sukie pensou na própria força e se perguntou porquanto tempo conseguiria segurar contra o peito aqueles homenstristes e cheios de dúvidas sem ser contaminada.

“Se eu pudesse ter você todas as noites, talvez fosse uma coisafeliz”, admitiu Clyde Gabriel.

“Então”, disse Sukie em tom maternal, encarando assustada o tetoe tentando mergulhar na entrega consentida, naquela fuga em direçãoao sexo que seu corpo prometia aos outros. O corpo daquele homem,com seu meio século de vida, exalava um complexo odor masculinoque incluía o cheiro apodrecido de uísque, travo que ela muitas vezeshavia sentido ao se curvar junto a ele diante da escrivaninha enquantoseu lápis de editor castigava-lhe os textos datilografados. Aquelecheiro fazia parte dele, estava entranhado. Ela acariciou-lhe os cabelosda cabeça com seu comprido calombo de inteligência. Estavamrareando: como eram finos! Como se cada fio houvesse de fato sidonumerado. Sua língua começou a lamber de leve o mamilo dela,

rosado e ereto. Ela acariciou o outro, fazendo-o rolar entre o polegar eo indicador, para excitar a si mesma. A tristeza de Clyde a haviapenetrado, e ela não conseguia se desvencilhar por completo. Oorgasmo dele, embora ele tenha demorado a gozar daquele jeitodelicioso que têm os homens mais velhos, deixou insatisfeito odemônio dentro dela. Ela precisava que ele lhe desse mais, emboraagora ele precisasse dormir. Sukie perguntou:

“Você se sente culpado em relação a Felicia por estar aqui comigoassim?” Era algo indigno, coquete de se dizer, mas às vezes, depois detrepar, ela experimentava um desmoronamento desesperado, umadesvalorização acentuada demais.

A única janela do quarto exibia um luar pétreo. O calvo novembroreinava lá fora. As cadeiras do gramado haviam sido postas paradentro, os gramados estavam mortos e amassados como pisos deinterior, e as matas, tão vazias quanto uma casa recém-visitada porum caminhão de mudança. A pequena pereira enfeitada de frutashavia se transformado em um monte de gravetos. Um vaso no peitorilda janela continha um gerânio morto. O armário estreito ao lado dalareira fria guardava um barbante verde. Um amuleto dormia debaixoda cama. Clyde foi buscar a resposta dentro de profundezas próximasdo sonho.

“Eu não sinto culpa”, respondeu. “Só sinto raiva. Aquela piranhame seduziu e arruinou a minha vida com toda aquela tagarelice. Eugeralmente vivo anestesiado. O fato de você ser tão bonita me fazacordar um pouco, e isso não é bom. Isso me mostra o que eu perdi, oque aquela piranha chata e dona da verdade me fez perder.”

“Eu acho”, disse Sukie, ainda em tom de flerte, “que o meu papel éser um pequeno extra, a ideia não é eu deixar você com raivar O quetambém significava que não caberia a ela assumir a responsabilidadepor ele e resgatá-lo, ele já estava triste e envenenado demais; emboraela na verdade ainda sentisse impulsos de esposa e conseguissevisualizar aqueles homens em seu cotidiano: a curva de seus ombros

quando eles se levantavam de uma cadeira, a forma desavergonhada ecanhestra com que vestiam e despiam as calças, a docilidade com quetodos os dias raspavam as suíças do rosto e saíam de casa em busca dedinheiro.

“O que você me mostra me deixa tonto”, disse Clyde, afagando deleve seus seios firmes, sua barriga comprida e lisa. “Você parece umacolina. Eu quero pular.”

“Por favor, não pule”, disse Sukie. Escutou uma criança, seu filhomais novo, se revirar na cama. A casa era tão pequena que durante ànoite eles todos dormiam abraçados através das paredes de formatoesquisito forradas de papel.

Clyde adormeceu com a mão sobre sua barriga, obrigando-a aerguer-lhe o braço pesado — o leve arranhar de seu ronco parou,depois recomeçou — para deslizar para fora da cama de dossel curvo.Tentou novamente fazer xixi e não conseguiu, pegou a camisola e oroupão atrás da porta do banheiro e foi dar uma olhada na criança desono agitado, cujas cobertas haviam sido todas chutadas para o chãona agitação causada por algum pesadelo. De volta à cama, Sukieninou a si mesma fazendo a mente voar até a antiga mansão Lenox —as partidas de tênis que poderiam jogar durante todo o inverno agoraque Darryl havia instalado uma extravagante bolha de lonasustentada por ar quente, e as bebidas que Fidel lhes serviria depoiscom seus toques coloridos de limão, cereja, hortelã e pimenta, e aforma como seus olhos, suas risadas e suas fofocas se entrelaçavamcomo as marcas circulares deixadas por seus copos sobre a mesa devidro no grande salão de Darryl, onde as obras de pop art juntavampoeira. Ali as mulheres eram livres, ali elas tiravam férias da vida decheiro rançoso que roncava ao lado delas. Quando Sukie dormiu, foicom outra mulher que sonhou: Felicia Gabriel, com seu rosto tenso etriangular, falando, falando, cada vez mais zangada, com o rosto a seaproximar, a ponta da língua do tamanho de um pedacinho depimenta, agitando-se com uma indignação incansável e constante por

trás dos dentes, depois agitando-se por entre os dentes e tocandoSukie aqui e ah, talvez nós não devêssemos fazer isso, mas a sensaçãoé: quem pode dizer o que é natural, tudo que existe tem que sernatural, e de qualquer forma ninguém está vendo, ninguém, ah, quepontinha vermelha mais dura e certeira, que pontinha mais atenciosa,que gostoso. Sukie acordou por um breve instante e percebeu que aaparição de Felicia tentara lhe proporcionar o orgasmo que Clyde nãohavia lhe dado. Deu cabo da tarefa com a própria mão esquerda, emum ritmo desencontrado dos roncos de Clyde. A pequenina sombrahesitante de um morcego passou em frente à lua, e Sukie tambémconsiderou isso um consolo: pensar que havia alguma coisa acordadaalém da sua mente, como quando um bonde noturno rangia ao fazeruma curva distante e invisível no meio da noite quando ela eramenina no estado de Nova York, naquela cidadezinha de tijolo queparecia uma unha na ponta de um lago comprido e gelado.

Estar apaixonado por Sukie fez Clyde beber mais ainda; bêbado,ele podia se deixar afundar mais relaxado na areia movediça dodesejo. Agora havia dentro dele um animal que o devorava, mas quelhe fazia companhia, que tinha com ele uma espécie de conversa. Ofato de ele um dia ter desejado Felicia dessa forma fazia a situaçãoparecer ainda mais impossível de resolver satisfatoriamente. Seuinfortúnio era a capacidade de compreender todas as coisas. Desde ossete anos ele não acreditava mais em Deus, desde os dez nãoacreditava mais no patriotismo, e desde os catorze, quando percebeuque jamais seria um Beethoven, um Picasso ou um Shakespeare, nãoacreditava mais na arte. Seus escritores preferidos eram os grandes

desvendadores de mistérios: Nietzsche, Hume, Gibbon, menteslúcidas implacáveis e jubilosas. Cada vez mais, ele apagava em algumponto entre o terceiro e o quarto uísque, e na manhã seguinte eraincapaz de se lembrar do livro que havia segurado no colo, dasreuniões das quais Felicia tinha voltado, da hora em que tinha idopara a cama, de como havia percorrido os cômodos da casa queparecia uma casca imensa e vazia agora que Jennifer e Christophernão moravam mais ali. O tráfego avançava trêmulo pela LodowickStreet do lado de fora da mesma forma que o bombear sem sentido docoração e do sangue de Clyde. Em seu torpor solitário de álcool edesejo, ele havia retirado de uma prateleira alta e empoeirada oLucrécio que lia na faculdade, todo anotado com as traduções de seueu universitário estudioso e cheio de esperança. Nil igitur mors est adnos neque pertinet hilum, quandoquidem natura animi mortalis habetur. Elefolheou o delicado livrinho, sua lombada azul gasta e embranquecidanos pontos em que suas mãos úmidas de rapaz o haviam seguradovezes sem conta. Procurou em vão o trecho que descrevia a guinadados átomos, aquela guinada acidental e indeterminada graças à qual amatéria se torna complexa, e todas as coisas são criadas assim, pormeio de um acúmulo de colisões, inclusive os homens com suamilagrosa liberdade; pois sem essa guinada todos os átomos iriamdespencar para sempre rumo ao inane profundum feito gotas de chuva.

Por muitos anos, ele tivera o hábito de sair para o relativo silênciodo quintal dos fundos antes de ir para a cama e passar alguns minutosadmirando a improvável disposição das estrelas; sabia que fora umaínfima probabilidade que permitira àqueles corpos flamejantes estarno céu, pois, se a bola de fogo primeva tivesse sido um pouquinhomais homogênea, as galáxias teriam se consumido bilhões de anosantes em uma heterogeneidade excessivamente pronunciada. Ficavaem pé ao lado da churrasqueira portátil enferrujada, nunca usadaagora que as crianças haviam saído de casa, e lembrava a si mesmo delevá-la para dentro da garagem agora que o inverno havia chegado,

mas acabava nunca conseguindo fazer isso, noite após noite, e ficavaali com o rosto sedento erguido na direção daquele milagreenigmático que se estendia acima dele. A luz que entrava em seusolhos havia iniciado seu caminho quando os homens das cavernasvagavam pelo vasto mundo em pequenos bandos como formigassobre uma mesa de bilhar. A constelação do Cisne, com sua cruzinacabada, e Andrômeda com seu V voador e, pendurada junto àsegunda estrela, o trecho embaçado que — como seu negligenciadotelescópio havia mostrado tantas vezes — representava uma galáxiaem espiral além da Via Láctea. Noite após noite, o céu permaneciaigual; Clyde parecia uma placa fotográfica exposta vezes sem conta; asestrelas o haviam penetrado como buracos de bala em um telhado dezinco.

Nessa noite, seu velho De rerum natura da época da faculdadefechou suas páginas anotadas na juventude e escorregou entre seusjoelhos. Ele estava pensando em sair para seu ritual de admirar asestrelas quando Felicia entrou de supetão em seu escritório. Embora, éclaro, esse não fosse seu escritório, mas o escritório dos dois, assimcomo todos os cômodos da casa pertenciam aos dois, cada tábuaesfarelada e cada pedaço de material isolante estragado na antigafiação de cobre de um só fio pertencia aos dois, assim como achurrasqueira enferrujada e, acima da porta de entrada, a águia demadeira pintada com seu vermelho, branco e azul desgastados pelachuva de átomos até se transformarem em cor-de-rosa, amarelo epreto.

Felicia desenrolou os cachecóis de lã listrada que usava ao redor dacabeça e do pescoço e bateu no chão com os pés calçados de botas,indignada.

“Esta cidade é mesmo governada por uma gente idiota-, vocêacredita que eles votaram a favor de mudar o nome da praça deLanding Square para Kazmierczak Square, em homenagem àquelegaroto imbecil que foi lutar no Vietnã e morreu?”

Ela tirou as botas.“Bem”, disse Clyde, decidido a ter tato. Desde que a pele, os pelos

e o cheiro de Sukie haviam inundado as células de seu cérebroreservadas para uma companheira, Felicia parecia diáfana, umaimagem de mulher pintada em um lenço de papel que poderia aqualquer momento sair voando. “Há oitenta anos que nenhum barcoatraca mais naquela praça, então o nome Landing, ‘atracadouro’, jánão faz mais sentido. O trecho ficou todo aluviado na nevasca de 88.”Ele sentiu um orgulho inocente da própria precisão; na época em quesua mente era alerta, além da astronomia, Clyde se interessavatambém por desastres terrestres: a erupção do Krakatoa, que haviacoberto a Terra de poeira, a enchente chinesa de 1931, que mataraquase quatro milhões de pessoas, o terremoto de Lisboa de 1755,ocorrido enquanto todos os fiéis estavam na igreja.

“Mas lá era tão agradável”, disse Felicia, com aquele sorriso rápidoe irrelevante que mostrava que considerava as próprias palavrasindiscutíveis, “ali no final da Dock Street, com os bancos para os maisvelhos e aquele velho obelisco de granito que não se parecia em nadacom um monumento em homenagem aos mortos na guerra.”

“Talvez continue agradável”, sugeriu ele, imaginando se maisalguns centímetros de uísque teriam a misericórdia de fazê-lo apagar.

“Não vai continuar, não”, disse Felicia em tom decidido. Eladespiu o sobretudo. Estava usando uma larga pulseira de cobre queClyde nunca tinha visto antes. A pulseira o fez pensar em Sukie, queàs vezes ficava com as joias, tirava todo o resto, e entrava com suanudez reluzente na penumbra dos quartos onde os dois faziam amor.“Daqui a pouco eles vão querer mudar o nome da Dock Street, depoiso da Oak Street, e depois o da própria Eastwick para homenagearalgum fracassado de baixa extração que não conseguiu pensar emnada melhor para fazer a não ser ir lá encher aldeias de napalm.”

“Na verdade Kazmierczak era um bom garoto. Você se lembra deque, alguns anos atrás, ele era quarterback do time, e também um dos

melhores alunos? Foi por isso que as pessoas sentiram tanto quandoele foi morto no verão passado.”

“Bom, eu não senti”, disse Felicia, sorrindo como se o que ela diziativesse acabado de se confirmar. Chegou perto do fogo que ele haviaacendido na lareira, para aquecer as mãos agora que havia tirado asluvas. Virou parcialmente as costas e ficou mexendo a boca como seestivesse descolando um fio de cabelo dos lábios. Clyde não sabia porque esse gesto agora já conhecido o deixava com raiva, uma vez que,dentre todas as características pouco atraentes que a esposa haviapassado a exibir depois de mais velha, aquela ali não podia serinterpretada como sendo culpa dela. Pela manhã, ele via penas, palha,moedas ainda reluzentes de saliva presas ao travesseiro dela, e tinhavontade de acordá-la com um safanão enquanto escutava a própriacabeça trovejar. “Afchinal”, insistiu ela, “ele sequer nasceu ou foicriado em Eastwick. A família dele se mudou para cá uns cinco anosatrás, e o pai se recucha a arrumar um emprefo, só trabalha naferrovia por tempo suficiente para fazer jus a mais seis meses deseguro-desemprego. Ele estava na reunião de hoje, usando umsmoking todo manchado de ovo. E a pobre senhora K bem que tentouse vestir para não parecer uma vagabunda, mas infelizmente nãoconseguiu.”

De um ponto de vista abstrato, Felicia tinha um amor considerávelpelos desfavorecidos, mas quando surgiam casos concretos suatendência era tampar o nariz. Felicia era dotada de uma energiafascinante, e Clyde nem sempre conseguia resistir a dar umempurrãozinho para fazê-la prosseguir.

“Não acho que Kazmierczak Square soe tão mal assim”, disse ele.Os olhinhos miúdos e furiosos de Felicia chisparam.“Não, não imaginei mesmo que fosse achar. Você também não iria

achar que soaria mal se eles decidissem batizar o lugar de praça doCagatório. Você não liga a mínima para o mundo que vamos deixarpara os nossos filhos, nem para as guerras que infligimos aos

inocentes, nem para o fato de morrermos ou não envenenados, vocêmesmo está se envenenando agorinha, então por que iria ligar, porvocê tanto faz arrastar o mundo inteiro junto com vochê.” A dicção deseu discurso havia se tornado arrastada, e ela retirou cuidadosamenteda língua um pequeno alfinete reto e o que parecia parte de umaborracha de apagar.

“Os nossos filhos”, desdenhou ele. “Não estou vendo eles por aquipara receber o mundo, qualquer que seja o estado em que nós vamosdeixá-lo.” Ele secou o copo de uísque: um sabor de fumaça e urze emmeio aos cubos de água fluorada. O gelo encostou em seu lábiosuperior; ele pensou nos lábios de Sukie, em sua expressão acolchoadade prazer mesmo quando ela via que ele estava tentando ser solene etriste. Ele a deixava triste, essa era uma de suas aflições. Seu batomtinha um sabor muito leve de cereja, e às vezes deixava um risco emseus dois dentes da frente. Ele se levantou para tornar a encher o copo,e cambaleou. Pedacinhos de Sukie passaram flutuando por ele,hesitantes: seus dedos dos pés rechonchudos e paralelos com as unhaspintadas de vermelho, seu colar de meias-luas de cobre, os tufos claroscor de laranja em suas axilas. A garrafa morava em uma prateleirabaixa sob uma comprida coleção encadernada de Balzac que pareciauma série de caixões marrons em miniatura.

“Sim, isso é outra coisa que você não consegue suportar, o jeitocomo Jenny e Chris foram embora, como se fosse possível manter osfilhos em casa para sempre, como se o mundo não devesse mudar ecrescer. Acorde, Clyde. Você pensou que a vida fosse sersimplesmente igual àqueles livros infantis que mamãe e papai ficavamempilhando em cima da sua cama toda vez que você adoecia? Todosaqueles Pequenos Astrônomos, Clássicos para Crianças e livros decolorir com contornos bem definidos e belos lápis de cera apontadosdentro das suas caixinhas, quando a verdade é que ele é umorganismo, Clyde. O mundo é um organismo, ele é vital, sensível, eleestá em movimento, Clyde, enquanto você fica lá sentado brincando

com aquele seu jornalzinho bobo como se ainda fosse o filhinho damamãe adoentado na cama. A sua suposta repórter Sukie Rougemontestava lá na reunião hoje, com aquele narizinho batatudo todoempinado, olhando para mim com aquela cara de eu-sei-uma-coisa-que-você-não-sabe.”

________________1 Em inglês, aurora. (N. T.)

Talvez a linguagem fosse mesmo a maldição que nos haviaexpulsado do Paraíso, pensou ele. E aqui estamos nós, tentandoensiná-la aos pobres chimpanzés obedientes e golfinhos sorridentes. Agarrafa de Johnnie Walker gorgolejou agradavelmente em seu gargalovirado.

“Não pense você, aah", continuava Felicia, levantando a voz àmedida que era tomada pelo turbilhão da fúria, “não pense você queeu não sei sobre você e aquela sirigaita, eu sei ler você como se fosseum livro aberto, não se esqueça, sei que gostaria de trepar com ela setivesse colhão para isso, mas você não tem, não tem.”

A imagem de Sukie como ela era, embaçada, delicada, com umaespécie de expressão de espanto calmo no rosto abaixo dele quandoele a estava comendo, surgiu em sua mente, e seu mel potenteparalisou-lhe a língua que havia querido protestar: Tenho, sim.

“Você fica sentado aí”, prosseguia Felicia, com uma maldadequímica que havia se tornado independente de seu corpo, algo que ahavia possuído e agora controlava sua boca, seus olhos, “fica sentadoaí se lamentando por causa de Jenny e Chris, que pelo menos tiveramcolhão e tino para dar adeus para sempre a este fim de mundo e tentarconstruir uma carreira em um lugar onde as coisas estão acontecendo,fica sentado aí se lamentando, mas sabe o que eles costumavam medizer a seu respeito? Eles diziam: ‘Mãe, não seria ótimo se papai nosdeixasse? Mas você sabe’, eles sempre precisavam acrescentar, ‘que elesimplesmente não tem colhão para isso’.” Ela pronunciou as palavrascom desdém, como se estas ainda estivessem ecoando na voz dosfilhos: “‘Ele simplesmente... não tem... colhão... para isso’.”

O verniz, pensou Clyde, era o verniz da retórica dela que a tornavarealmente insuportável: as pausas e repetições calculadas, a formacomo ela pegava a palavra “colhão” e a transformava em um temamusical, a forma como estava tentando demonstrar sonoramente o

que dizia diante de uma imensa plateia mental extasiada até o últimodegrau das arquibancadas. Durante o clímax de sua peroração, umaprofusão de tachinhas havia sido expelida de suas entranhas, masnem isso conseguira detê-la. Felicia as cuspiu depressa na mão ejogou-as no fogo que ele havia acendido na lareira. As tachinhaschiaram de leve; suas cabeças coloridas enegreceram.

“Colhão nenhum, chero”, disse ela, extraindo uma última tachinhae lançando-a pelo vão entre os tijolos e a tela protetora da lareira,“mas mesmo assim ele quer transformar a cidade inteira em ummonumento em homenagem a essa guerra horrorosa. Tudo deve seencaixar, tudo deve ser, como é que eles dizem mesmo, umasíndrome. Um fracote bêbado quer ver o mundo inteiro afundar juntocom ele. Sabe em quem você me faz pensar, Clyde? Em Elitler. Outrohomem fraco a quem o mundo não soube resistir. Bom, desta vez nãovai acontecer a mesma coisa.” Então a multidão imaginária foi sepostar atrás dela: eram tropas que ela conduzia. “E o mal que nósestamos enfrentando”, ela bradou com os olhos focados acima e alémda cabeça dele.

E manteve-se em pé com as pernas firmes, como se ele fosse tentarderrubá-la. Mas ele tinha dado um passo na sua direção porque o fogoda lareira, depois de receber um punhado de tachinhas molhadas,parecia estar morrendo. Retirou a tela de proteção e cutucou ospedaços de lenha espalhados com o atiçador de cabo de bronze. Ospedaços de madeira se juntaram mais um pouco, soltando faíscas.Clyde pensou nele próprio e em Sukie: uma curiosa bênção associadaao fato de transar com Sukie era como a proximidade com ela odeixava sonolento; bastava o contato escorregadio de sua pele parauma languidez abençoada tomar conta dele depois de uma vidainteira de insônia. Antes e depois do sexo, o corpo nu dela era tão levea seu lado que ele parecia finalmente ter encontrado seu lugar noespaço. O simples fato de pensar nessa paz que a divorciada ruiva lheproporcionava fazia seu cérebro mergulhar em um vazio

misericordioso.Minutos se passaram, talvez. Felicia falava com veemência. O

vigoroso desprezo que os filhos sentiam por ele estava agoramisturado à sua disposição criminosa para ficar sentado em umacadeira enquanto guerras injustas, governos fascistas e exploradoresgananciosos com sede de lucro devastavam o mundo. O pesoagradável do atiçador continuava em sua mão. Tomado por umaindignação química, o rosto dela havia ficado branco feito umacaveira; seus olhos ardiam como as minúsculas chamas de velasvotivas queimando lá no fundo dos invólucros lambuzados de ceraque elas mesmas escavavam. Seus cabelos eriçados pareciam formarum halo revolto e esparso. O mais horrível de tudo era que nãoparavam de sair coisas de sua boca — penas de papagaio, vespasmortas, pedaços de casca de ovo, tudo misturado em um mingau raloimpossível de conter que ela não parava de enxugar do queixo com ogesto ritmado de quem arma uma pistola. Ele interpretou taisextrusões como um sinal; aquela mulher estava possuída, não tinhanenhuma relação com a mulher que ele, em sã consciência, haviadesposado.

“Ora, vamos, Lishy”, suplicou Clyde, “vamos nos acalmar. Vamosencerrar esse assunto.” A ação química e mecânica que haviasubstituído a alma dela prosseguiu; em seu transe de indignação, elajá não via nem ouvia mais nada. Sua voz iria acordar os vizinhos.Estava ficando mais alta, alimentada incessantemente do interior.Clyde estava segurando a bebida na mão esquerda; com a direita,ergueu o atiçador e golpeou a cabeça dela, apenas para interromper ofluxo de energia por um instante, para deter o escoamento excessivodaquele buraco. O osso do crânio dela emitiu um ruídosurpreendentemente agudo, como se dois pedaços de madeirahouvessem sido arremessados de brincadeira um contra o outro. Asórbitas de seus olhos se reviraram para cima, expondo a parte branca,e seus lábios se entreabriram involuntariamente, expondo sobre sua

língua uma pequena pena muito azul. Ele sabia que estava cometendoum erro, mas aquele silêncio lhe pareceu um presente dos céus. Suaspróprias substâncias químicas assumiram o controle; ele golpeou acabeça dela com o atiçador várias vezes, acompanhando-a em sualenta queda até o chão, até o som que os golpes produziam se tornarmais líquido do que aquele produzido pelo contato de dois pedaçosde madeira. Ele havia tapado para sempre aquele buraco na pazcósmica.

Um imenso véu de alívio subiu flutuando de Clyde Gabriel, umfilme que escorregou de seu corpo coberto de suor como umaembalagem de polietileno que se retira de um terno recém-chegado datinturaria. Ele tomou um gole do uísque e evitou olhar para o chão.Pensou nas estrelas do lado de fora e no desenho imutável quedeviam estar formando naquela noite de sua vida, igual ao de todas asoutras noites nas muitas eras desde que a galáxia havia seconsolidado. Embora ainda tivesse muitas coisas a fazer, algumasdelas bem difíceis, uma perspectiva milagrosamente renovadaemprestava a cada uma de suas ações uma clareza definida, como seele de fato houvesse voltado ao mundo daqueles livros infantisilustrados que Felicia mencionara com tamanho desdém. Que curiosoela ter feito isso: ela estava certa, ele adorava mesmo aqueles dias emque, adoentado, podia faltar à escola. Ela o conhecia demasiado bem.O casamento é como duas pessoas trancadas em um quarto com umasó lição para ler, para ler até cansar, até as palavras se transformaremem loucura. Ele pensou tê-la ouvido gemer no chão, mas concluiu quefora apenas o fogo consumindo um pequeno veio de seiva.

Quando criança, meticuloso e ordeiro, Clyde adorava os desenhosarquitetônicos — aqueles que mostravam cada sanca, cada lintel ecada parapeito, e que tornavam aparentes as reduções triangularescausadas pela perspectiva. Com sua régua e seu lápis azul, elecostumava prolongar as linhas de perspectiva dos desenhos dasrevistas e histórias em quadrinhos até o ponto de fuga, mesmo

quando esse ponto ficava muito fora da página. O fato de tal pontoexistir era um conceito que lhe agradava, e talvez seu primeirovislumbre da fraudulência humana tenha sido a descoberta de que,em muitos desenhos de aspecto vistoso, os artistas tinham trapaceado:não havia um ponto de fuga exato. Agora o próprio Clyde haviachegado a esse lugar da derradeira perspectiva, e tudo à sua voltatinha uma lucidez e uma nitidez ideais. Grandes áreas problemáticas— a edição do Word da quarta-feira seguinte, a combinação de seupróximo encontro com Sukie, aquela luta eterna dos amantes paraencontrar privacidade e uma cama que não parecesse ordinária, a dorrecorrente de tornar a vestir a própria roupa de baixo e se despedirdela, a necessidade de consultar Joe Marino em relação à decrepitudeagora impossível de ignorar do velho aquecedor daquela casa e deseus canos e radiadores estragados, a condição não muito diferente deseu fígado e parede estomacal, os exames de sangue e consultasperiódicas com o dr. Pat e todas as resoluções insinceras justificadaspor sua deplorável condição, e agora uma complicação sem fim com apolícia e os tribunais — foram varridas para longe, deixando apenasos contornos daquele cômodo, com suas linhas de marcenaria nítidascomo raios laser.

Ele virou o que sobrava da bebida. O líquido arranhou suasentranhas. Felicia estava errada ao dizer que ele não tinha colhão. Aopousar o copo sobre o parapeito da lareira, ele não pôde evitar a visãoperiférica dos pés dela cobertos pela meia, caídos estranhamenteafastados um do outro como se estivessem no meio de um passo dedança complexo. Na verdade, quando estava no ensino médio emWarwick High, ela dançava muito bem o jitterbug. Ao sommaravilhoso digno de uma big band, sincopado e cheio de wah-wah,que até mesmo as bandinhas locais eram capazes de fazer naquelaépoca. A ponta de sua língua de mocinha aparecia entre os dentesquando ela se preparava para ser girada. Ele se abaixou, recolheu oLucrécio do chão e devolveu-o ao seu lugar na prateleira. Desceu até o

porão para procurar uma corda. O maldito aquecedor velhomastigava seu combustível com um ronco dificultoso; sua carapaçafrágil e enferrujada deixava vazar tanto calor que o porão era ocômodo mais aconchegante da casa. Havia ali uma velha lavanderiaonde os antigos moradores da casa haviam deixado uma antiquíssimalavadora Bendix com torcedores de roupa e um cheiro antiquado denaftalina, e até mesmo um cesto de pregadores sobre a tampa redondade zinco do tambor. Ele costumava brincar com pregadores de roupa,pintando-os com lápis de cera até transformá-los em homenzinhos deperna comprida usando chapéus redondos um pouco parecidos comboinas de marinheiro. Varais, ninguém mais usa varais hoje em dia.Mas havia um rolo de corda bem arrumadinho e guardado atrás davelha lavadora, em meio a uma profusão de teias de aranha. Clydepercebeu de repente que a mão invisível da Providência o estavaguiando. Com suas próprias mãos, opacas — cheias de veias e nódoas,horríveis, parecendo as mãos de um velho —, deu um forte puxão novaral e inspecionou dois metros, dois metros e meio de sua extensãoem busca de pontos esgarçados que pudessem ceder. Um podão demetal enferrujado estava por perto, e ele o usou para cortar o pedaçonecessário.

Como ao escalar uma montanha, dê um passo de cada vez e nãoolhe muito para a frente do caminho: essa disciplina lhe permitiusubir a escada sem percalços segurando a corda empoeirada. Ele virouà esquerda na cozinha e ergueu os olhos.

O teto ali havia sido rebaixado em uma reforma, e apresentavauma superfície frágil de celulose texturizada sustentada por umaestrutura de alumínio. Nos outros cômodos do andar de baixo, a casatinha tetos de gesso com quase três metros de pé-direito; osintrincados suportes dos lustres, nenhum dos quais sustentava maislustre algum, talvez não aguentassem seu peso mesmo que ele subisseem uma escada desmontável e encontrasse uma protuberância na qualamarrar o varal.

Ele voltou ao escritório para se servir mais uma bebida. O fogoardia com menos intensidade e estava precisando de mais lenha; masesse tipo de cuidado fazia parte da longa lista de preocupações que jánão tinha mais relevância, que não lhe pertencia mais. Era necessáriose acostumar à ideia de quantas coisas já não tinham importância. Eletomou um gole da bebida e sentiu o líquido cor de âmbar com saborde fumaça descer rumo a uma digestão que também já estava além darealidade, no escuro, e que jamais viria a ocorrer. Pensou no porãoaconchegante e imaginou se, caso prometesse viver apenas ali, dentrode um dos velhos latões de carvão, sem nunca sair à rua, tudo poderiaser perdoado e esquecido. Mas esse pensamento relutante poluiu apureza que ele havia criado em sua mente minutos antes. Isso não erapossível.

Talvez o problema fosse a corda. Fazia trinta anos que ele erajornalista, e conhecia a rica variedade de métodos que as pessoasusam para tirar a própria vida. O suicídio usando um automóvel erana verdade um dos mais comuns; suicidas de automóveis eramenterrados todos os dias por padres satisfeitos e familiares semindignação. Mas esse método era arriscado, público, e causava muitaperturbação, e naquele ponto de fuga todos os preconceitos estéticosque Clyde havia reprimido durante a vida pareciam estar aflorandojuntamente com imagens da sua infância. Algumas pessoas, ao ver ofogo aceso na lareira, os terríveis vestígios no chão e a casa toda feitade madeira, talvez tivessem acendido uma pira para si mesmas. Masisso deixaria Jenny e Chris sem herança nenhuma, e Clyde não erauma daquelas pessoas iguais a Hitler que desejavam levar o mundoconsigo; Felicia tinha sido louca ao fazer essa comparação. Além domais, como ele poderia ter certeza de que não iria salvar a própria pelee fugir para o gramado? Ele não era nenhum monge budista, treinadopara disciplinar a fera faminta que era o corpo e capaz de ficarsentado em um protesto imóvel até a carne queimada desmoronar.Diziam que o gás era indolor, mas ele também não era nenhum

mecânico capaz de encontrar a fita adesiva e a massa corrida paravedar as muitas janelas da cozinha cujo espaço e claridade haviamsido um dos fatores na decisão, sua e de Felicia, de comprar a casatreze anos antes naquele mesmo mês de dezembro. Todo aqueleúltimo dezembro, ocorreu-lhe com uma alegria culpada, dezembrocom seus dias curtos cintilantes, suas hediondas multidões fazendocompras e suas homenagens de madeira a uma religião morta (ascanções natalinas das máquinas nas lojas, o patético presépio deLanding Square — não, Kazmierczak Square —, a árvore de Natalmontada na outra ponta da Dock Street dentro daquela grande urnaredonda de mármore chamada de Bebedouro para Cavalos), o mêsinteiro de dezembro estava entre as muitas coisas agora riscadas docalendário maravilhosamente simplificado de Clyde. Tampouco eleteria de pagar a conta de gasolina do mês seguinte. Nem a de gás. Masele desdenhava a terrível espera que o gás iria exigir, e não queria quea sua última visão da realidade fosse o interior de um forno enquantoficava de quatro com a cabeça lá dentro na postura servil de umcachorro que espera comida. Rejeitava também a bagunça produzidapor facas, giletes e banheiras. Comprimidos eram indolores e nãofaziam bagunça, mas uma das causas defendidas por Felicia tinha sidouma militância passageira contra as empresas farmacêuticas e o queela chamava de sua tentativa de produzir um país sedado, uma naçãode zumbis dependentes de remédios. Clyde sorriu, e o fundo vincoem sua bochecha se destacou com um pulo. Algumas das coisas queaquela mulher dizia faziam sentido. Não era tudo baboseira. Mas elenão achava que ela tinha razão em relação a Jennifer e Chris; ele nuncahavia esperado nem desejado que eles continuassem em casa parasempre, e estava ofendido apenas pelo fato de Chris ter escolhido umaprofissão tão sem consistência quanto a de ator e de Jenny se mudarpara tão longe, Chicago, vejam só, e se deixar bombardear por raios X,expondo os ovários a ponto de talvez nunca poder lhe dar nenhumneto. Isso também estava fora de cogitação: netos. Ter filhos é algo que

nos consideramos obrigados a fazer porque nossos pais tambémfizeram, mas, uma vez feitos, filhos são apenas outros membros daraça humana, algo bastante decepcionante. Jenny e Chris tinham sidocrianças boazinhas e comportadas, e nisso também houvera uma certadecepção; sendo boazinhas, elas haviam evitado Felicia, que quandomais jovem e não tão inclinada ao altruísmo tinha um temperamentohorrível (sem dúvida originado pela frustração sexual, mas como épossível um marido manter a esposa ao mesmo tempo protegida eexcitada?), e ao fazerem isso o tinham evitado também. Quando tinhamais ou menos nove anos, Jenny costumava se preocupar com amorte, e certa vez perguntou ao pai por que ele não rezava junto comela como os outros pais, e, embora Clyde não tivesse conseguido lheresponder muito bem, isso era o mais próximo que os dois jamaishaviam chegado um do outro. Ele vivia tentando ler, e o fato de a filhavir procurá-lo constituía uma interrupção. Com pais melhores, talvezJenny tivesse virado uma santa, com seus olhos tão claros e límpidos,seu rosto liso como uma fotografia depois de retocada. Antes de teruma filha, Clyde nunca tinha realmente visto os órgãos genitais deuma mulher, tão delicados e inchados como um par de brioches clarossobre uma assadeira.

A cidade havia ficado muito silenciosa ao seu redor, em volta dele:nenhum carro passava pela Lodowick Street. Seu estômago estavadoendo. Geralmente doía àquela hora da noite: uma úlcera incipiente.O dr. Pat tinha lhe dito: se você precisa mesmo continuar bebendo,pelo menos coma alguma coisa. Um dos efeitos colateraisdesafortunados de seu caso com Sukie era pular o almoço para irtrepar. Ela às vezes levava um pote de castanhas de caju, mas ele nãogostava mais tanto assim de castanhas; as migalhas entravam debaixoda ponte e cortavam suas gengivas.

Mulheres são incríveis, e é incrível como o amor nunca aspreenche. Se você dá conta do recado, elas querem mais no minutoseguinte, é pior do que pôr um jornal na rua. Até Felicia, por mais que

dissesse que o detestava. Naquela hora da noite, ele estaria tomandomais uma bebida junto à lareira quase apagada, dando a ela tempo deentrar na cama e pegar no sono sem esperar por ele. Exausta de tantofalar, bastava-lhe um minuto para mergulhar no esquecimento dosjustos. Ele agora se perguntava se a mulher por acaso tinhahipoglicemia: de manhã ela acordava com a mente desanuviada, e aplateia fantasmagórica para quem fazia seus discursos haviadesaparecido. Ela nunca parecia entender quanto o enfurecia. Haviamanhãs, aos sábados ou domingos, em que ela ficava de baby-doll sópara provocá-lo, como uma forma de fazer as pazes. Seria de se pensarque um homem e uma mulher que passavam tantas horas de suasvidas juntos conseguiriam encontrar algum momento para fazer aspazes. Oportunidades perdidas. Se nessa noite ele simplesmentetivesse aguentado firme e a deixado subir em segurança para o andarde cima... Mas essa possibilidade, assim como seus netos, e a cura deseu estômago perfurado pela bebida e de seus problemas com a pontedentária, também estava fora do mapa.

Clyde tinha a sensação de que havia vários dele, como imagensmultiplicadas em uma TV. A essa hora da noite, em um desfile dessasimagens fantasmagóricas, ele estaria subindo a escada. A escada. Opedaço inerte de corda velha e ressequida continuava pendurado emsua mão. Suas teias de aranha haviam se agarrado à calça de veludocotelê que ele estava usando. Deus, dai-me forças.

A escada era uma construção vitoriana bastante imponente, quefazia uma curva fechada depois de um patamar intermediário comvista para o quintal dos fundos e seu jardim outrora frondoso, masabandonado nos anos recentes. Uma corda amarrada à base de umdos balaústres do andar de cima deveria proporcionar umcomprimento adequado de corda até os degraus mais abaixo, quepoderiam funcionar como uma espécie de cadafalso. Ele subiu osdegraus e levou a corda até o patamar do andar de cima. Executougestos rápidos, temendo que o álcool fosse subjugá-lo e fazê-lo perder

os sentidos. Um nó quadrado era direita sobre esquerda, depoisesquerda sobre direita. Seria isso mesmo? Sua primeira tentativaproduziu um nó comum. Era difícil mover as mãos pelos espaçosestreitos entre as bases quadradas dos balaústres; ele esfolou os nósdos dedos. Suas mãos pareciam muito distantes dos olhos, e pareciamter se tornado luminosas, como se estivessem mergulhadas em umaágua etérea. Foram necessários prodígios de cálculo para descobrironde deveria ficar o laço da corda (não mais de quinze ou vintecentímetros abaixo da estreita face vertical do patamar com seurevestimento vitoriano de elegância comovente, ou seus pés poderiamtocar os degraus e aquele animal cego, seu corpo, iria lutar parapermanecer em vida), e que tamanho o laço deveria ter para ele poderpassar a cabeça. Se o laço ficasse grande demais, ele iria cair; se ficasseapertado demais, ele poderia simplesmente sufocar. Era a arte doenforcado: o pescoço precisava se partir, ele já lera isso mais de umavez, graças a uma súbita e intensa pressão nas vértebras cervicais.Prisioneiros na cadeia usavam os próprios cintos, e o resultado eraque o rosto ficava todo azul. Chris tinha sido escoteiro, mas isso jáfazia muitos anos, e houvera um escândalo com o monitor que fizera ogrupo se dispersar. Clyde finalmente conseguiu produzir uma espéciede nó corrediço malfeito, e deixou-o pender pela lateral. Vista de cima,de onde ele estava debruçado por cima do corrimão, a imagem erarepulsiva; a corda oscilou de leve e continuou oscilando, transformadaem um pêndulo por alguma corrente de ar que percorria a casa malvedada sem ter sido convidada.

Clyde já não tinha mais muita convicção do que estava fazendo,mas, com a mesma determinação metódica que já havia produzidodez mil jornais, foi até o porão quente (onde o velho aquecedorcontinuava mastigando, mastigando o combustível) e pegou a escadadobrável de alumínio. Esta lhe pareceu leve feito uma pluma; eleagora tinha a mesma força dos anjos. Pegou também algumas lascasde madeira e, com elas, posicionou a escada nos degraus acarpetados

de modo que, com um par de pés de plástico repousando três degrausabaixo do outro sobre os pedaços de madeira, a estrutura traseira semdegraus ficasse na vertical e toda a escada inclinada em forma de Adespencasse com um simples empurrãozinho. A última coisa que eleveria, imaginou, seria a porta da frente e o leque de vitral que aencimava, com seu formato simétrico vagamente semelhante ao deum sol nascente iluminado pelo brilho de sódio de um poste de ruadistante. Pela luz mais próxima, os arranhões na escada de alumíniopareciam vestígios deixados pela trajetória curva de átomos em umacâmara de bolhas. Tudo estava tocado pela transparência; as muitaslinhas afuniladas e entrelaçadas da escada apareciam como oarquiteto as havia sonhado; em um êxtase, ocorreu a Clyde Gabrielque não havia nada a temer, claro que nossos espíritos atravessavam amatéria como as faíscas de divindade que eram, claro que havia umavida após a morte cheia de oportunidades infinitas, uma vida na qualele poderia consertar as coisas com Felicia e ter Sukie também, nãoapenas uma e sim uma infinidade de vezes, igualzinho ao queNietzsche havia conjecturado. A névoa de uma vida inteira estava sedissipando; estava tudo claro como tipos retificados, e o significadoque as estrelas haviam cantado para ele, candida sidera, tingiam de luzseu espírito embotado afundado em sua lama de orgulho.

Quando ele apoiou nela seu peso, a escada de alumínio estremeceuum pouco, como um garanhão jovem e nervoso. Ele subiu um degrau,dois, depois o terceiro. A corda se aninhou, seca, em volta do seupescoço; a escada tremeu quando ele estendeu a mão para cima e paratrás para apertar o nó bem junto do que parecia ser o ponto certo.Então a escada começou a se balançar violentamente de um lado parao outro; o sangue agitado de seu jóquei a precipitava em direção aoobstáculo, onde ela se ergueu, como ele previa, com o mais leve dosMitoques, e despencou. Clyde ouviu os estalos e o baque. O que nãoesperava era a ardência, como se uma lixa quente estivesse sendopuxada através de seu esôfago, e a forma como os cantos da madeira,

do tapete e do papel de parede se puseram a girar, girar tanto que porum segundo ele teve a impressão de que haviam brotado olhos naparte de trás de sua cabeça. Então a vermelhidão em seu crânioestufado foi seguida por um breu e deu lugar, em uma fração desegundo, ao vazio.

“Ah, meu bem, mas que coisa horrível para você”, disse JaneSmart para Sukie ao telefone.

“Bom, não é como se eu tivesse tido que assistir com os meuspróprios olhos. Mas os caras da delegacia descreveram com riquezade detalhes. Parece que ela não tinha mais rosto.” Sukie não estavachorando, mas sua voz tinha a mesma característica enrugada de umpapel que foi molhado e que, embora seco, nunca mais vai ficar liso.

“Bom, ela era mesmo uma mulher vil”, disse Jane com firmeza,reconfortante, embora sua mente, com seus olhos e ouvidos, aindaestivesse concentrada nas suítes para violoncelo solo de Bach,sobretudo na 4\ em mi bemol maior, animada, emocionante e umtantinho malevolente. “Tão chata, tão dona da verdade”, sibilou ela.Seus olhos estavam pousados no piso nu de sua sala de estar,maltratado pelo contato repetido e insensível do espigão de açopontudo de seu instrumento.

A voz de Sukie ia e vinha, como se ela estivesse deixando o fonecair do queixo.

“Eu nunca conheci um homem mais delicado do que Clyde”, disseela com a voz um pouco rouca.

“Homens são violentos”, disse Jane, começando a perder apaciência. “Até os mais gentis. E biológico. Eles são cheios de raiva

porque são apenas acessórios para a reprodução.”“Ele detestava até mesmo repreender qualquer pessoa no

trabalho”, prosseguiu Sukie enquanto a música sublime, com seusritmos diabólicos e as exigências maravilhosamente cruéis que fazia àsua destreza, esvaía-se aos poucos da mente de Jane, assim como a dorna lateral de seu polegar esquerdo, no ponto onde ela havia apertadocom força as cordas. “Embora de vez em quando explodisse comalgum revisor que tivesse deixado passar vários pastéis.”

“Bom, querida, é óbvio. Foi por isso. Ele estava guardando tudo ládentro. Quando atacou Felicia, foram trinta anos de raiva reprimida,não é de espantar que ele tenha arrancado a cabeça dela.”

“Não é justo dizer que ele arrancou a cabeça dela”, disse Sukie.“Ele só... qual é a expressão que todo mundo usa hoje em dia?...destruiu.”

“E depois destruiu a si mesmo”, completou Jane, esperando comesse resumo eficiente apressar a conversa para poder voltar à suamúsica; gostava de ensaiar por duas horas pela manhã, das dez aomeio-dia, e depois fazer um almoço frugal com queijo cottage ousalada de atum servidos dentro de uma folha grande e curva dealface. Nessa tarde, havia combinado uma matinê com Darryl vanHorne à uma e meia. Passariam uma hora ensaiando uma das duassuítes de Brahms, ou então uma divertida peça de Kodály que Darryltinha desencavado em uma loja de música escondida no subsolo deum edifício de granito na Weybosset Street logo depois do fliperama,e a seguir, como era o hábito dos dois, beberiam um espumante deAsti ou um pouco da batida com tequila que Fidel preparava noliquidificador, e tomariam um banho. Jane ainda estava dolorida, deambos os lados do períneo, por causa do último encontro. Mas amaioria das coisas boas que acontecem a uma mulher vem pela dor, eela ficara lisonjeada com o fato de ele a ter desejado sem plateia, amenos que se contasse Fidel e Rebecca entrando e saindo combandejas e toalhas; havia algo precário na luxúria de Darryl, que

ficava lisonjeado e tranquilizado quando as três estavam ali juntas, eque precisava dos mais extravagantes incentivos quando Jane estavacom ele sozinha. Com um tom irritado, ela concluiu o que estavadizendo a Sukie. “O que eu acho surpreendente é ele ter tido clarezasuficiente para ir até o fim.”

Sukie defendeu Clyde.“O álcool nunca o deixava mais confuso do que o normal, na

verdade ele bebia como uma espécie de remédio. Acho que grandeparte da depressão dele talvez fosse metabólica; ele certa vez me disseque a sua pressão arterial era dez por sete, o que para um homem dasua idade era realmente uma maravilha.”

Jane perdeu a paciência.“Tenho certeza de que várias coisas nele eram uma maravilha para

um homem da sua idade. Eu com certeza o preferia àquele lamentávelEd Parsley.”

“Ah, Jane, eu sei que você está louca para desligar, mas falando emEd...”

“Ssim?”“Você reparou como Brenda tem se aproximado dos Neff?”“Para ser sincera, não tenho nem pensado nos Neff.”“Sei que não, e isso é muito bom”, disse Sukie. “Lexa e eu sempre

achamos que ele tratava você mal, e que você tinha talento demaispara aquele grupinho; na verdade, quando ele dizia que o seu jeito demanejar o arco ou sei lá o que era afetado, era só inveja.”

“Obrigada, minha linda.”“Enfim, parece que agora eles dois e Brenda estão muito próximos,

que vivem indo comer no Bronze Barrei ou naquele novo restaurantefrancês perto de Pettaquamscutt, e é claro que Ray e Greta aincentivaram a se candidatar ao cargo de Ed na igreja e se tornar anova pastora unitarista. Parece que os Lovecraft também são a favor, ecomo você sabe Horace faz parte do conselho da igreja.”

“Mas ela não foi ordenada. Não é preciso ser ordenada? Os

episcopalianos lá onde trabalho como substituta são muito rígidoscom esse tipo de coisa; não se pode sequer entrar para a igreja se umbispo não tiver posto as mãos em algum lugar, na cabeça, acho.”

“Não, mas ela já mora na casa da paróquia com aqueles molequeslá deles — totalmente indisciplinados, nem Ed nem Brenda nuncaacreditaram em dizer não — e torná-la a nova pastora seria maisdiplomático do que obrigá-la a sair. Talvez exista um curso ou algoassim que se possa fazer por correspondência.”

“Mas ela sabe fazer sermões? Isso é obrigatório.”“Ah, eu não acho que isso seria um problema. Brenda tem uma

postura excelente. Ela estava estudando para ser bailarina de dançamoderna quando conheceu Ed em um comício do Adiai Stevenson;ela fazia parte de um dos espetáculos de abertura, e ele estava lá paraabençoar o comício. Ele me contou essa história mais de uma vez, eupensava se no final das contas ainda estaria apaixonado por ela.”

“Ela é uma mulher ridícula e sem graça”, disse Jane.“Ah, Jane, não.”“Não o quê?”“Não fale assim. Era assim que costumávamos falar sobre Felicia, e

olhe só o que aconteceu.”Sukie havia se tornado muito pequena e encolhida do seu lado da

linha, como uma folha de alface murcha.“Você está pondo a culpa em nós?”, perguntou-lhe Jane depressa.

“Acho que deveria pôr a culpa naquele lamentável marido bêbadodela, isso sim.”

“Na superfície, sim, mas nós afinal fizemos aquele feitiço, epusemos aquelas coisas dentro do pote de biscoitos quando bebemosdemais, e ficavam saindo coisas da boca dela. Clyde certa vezcomentou sobre isso comigo com muita inocência, ele tentou fazê-la irao médico, mas ela disse que a medicina neste país deveria sertotalmente estatizada, do mesmo jeito que na Inglaterra e na Suécia.Ela também detestava as empresas farmacêuticas.”

“Querida, ela era uma mulher cheia de ódio. Foi o ódio saído dasua boca que causou seu fim, não um punhado de penas e tachinhasinofensivas. Ela havia perdido o contato com a própria feminilidade.Precisava de dor para fazê-la lembrar que era mulher. Precisava ficarde joelhos e beber o delicioso gozo frio de algum homem horrível. Elaprecisava apanhar, nisso Clyde estava certo, só que ele exagerou nadose.”

“Jane, por favor. Você me dá medo quando fala assim, quando dizessas coisas.”

“Por que não dizer essas coisas? Sério, Sukie, você parece criança.”Sukie era uma irmã fraca, pensou Jane. Elas a aguentavam por causadas fofocas que ela contava e por causa do brilho de irmã caçula queela costumava dar às suas quintas-feiras, mas na verdade ela nãopassava de uma garota metida e imatura, era incapaz de dar a VanHorne o mesmo prazer que Jane lhe dava, aquele ardente esticamento;até mesmo Greta Neff, por mais que fosse uma velha acabada comseus óculos de vovó e seu sotaque pedante e patético, era mais mulhernesse sentido, uma mulher capaz de encerrar dentro de si muitosreinos noturnos e ardentes. “Palavras são só palavras”, acrescentou.

“Não são, não: elas fazem coisas acontecer!”, gemeu Sukie, cujavoz havia encolhido até se transformar em uma súplica patética.“Agora duas pessoas estão mortas e duas crianças ficaram órfãs pornossa causa!”

“Acho que depois de uma certa idade não se fica mais órfão”, disseJane. “Pare de falar besteira.” Seus esses sibilavam como saliva naboca de um fogão. “As pessoas têm o que merecem.”

“Se eu não tivesse ido para a cama com Clyde, ele não teriaenlouquecido tanto, tenho certeza. Ele me amava tanto, Jane.Costumava simplesmente segurar meu pé com as duas mãos e mebeijar entre cada dedo.”

“E claro que ele fazia isso. E esse o tipo de coisa que os homensdevem fazer. Eles devem nos adorar. Os homens são uns merdas,

tente se lembrar disso. Os homens são uns merdas completos, mas nofinal nós levamos a melhor porque sabemos sofrer melhor. Quando aquestão é sofrimento, uma mulher sempre consegue superar umhomem.” Jane se sentia imensa em sua impaciência; as semínimas queela havia engolido naquela manhã se eriçavam dentro dela. Quemteria imaginado que o velho luterano tivesse tamanha energia?“Sempre haverá homens para você, meu bem”, disse ela a Sukie. “Nãofique se torturando por causa de Clyde. Você lhe deu o que ele estavapedindo, não é culpa sua se ele não soube lidar com isso. Escute, sério.Preciso correr”, mentiu Jane Smart. “Tenho um aluno que vai chegaràs onze.”

Na verdade, seu aluno só iria chegar às quatro. Ela voltariacorrendo da velha mansão Lenox toda dolorida e purificada pelovapor, e a visão daquelas mãozinhas sujas sobre as teclas de marfimimaculadas de seu piano assassinando alguma lindíssima melodiasimplificada de Mozart ou Mendelssohn lhe daria vontade de pegar ometrônomo e, usando a base pesada, esmagar aqueles dedinhosrechonchudos como se estivesse amassando feijões em um pilão.Desde que Van Horne havia entrado em sua vida, Jane estava maisapaixonada do que nunca pela música, essa saída requintada eesplendorosa deste nosso abismo de dor e degradação.

“Ela me pareceu tão dura, tão estranha”, disse Sukie ao telefonepara Alexandra alguns dias depois. “E como se achasse que conseguiupenetrar na intimidade de Darryl e estivesse lutando para protegerisso.”

“Esse é um dos talentos diabólicos dele, dar essa impressão a cada

uma de nós três. Na verdade eu tenho quase certeza de que quem eleama sou eu”, disse Alexandra, rindo com uma desesperança alegre.“Ele agora está me incentivando a fazer umas esculturas maiores,aquela tal de Saint-Phalle usa papel machê pintado com tinta plástica,não sei como ela consegue, a cola gruda nos dedos, nos cabelos, eca.Consigo dar forma a um dos lados da escultura, daí o outro ficatotalmente sem forma, só um monte de cantos e calombosinacabados.”

“É, ele estava me dizendo que, quando eu perder o emprego noWord, deveria tentar escrever um romance. Não consigo imaginarficar sentada dia após dia escrevendo a mesma história. E os nomesdas pessoas — as pessoas simplesmente não existem sem os seusnomes de verdade.”

“Bom”, disse Alexandra com um suspiro, “ele está nos desafiando.Ele está nos testando.”

Ao telefone, ela soava tensa — mais difusa e mais distante a cadasegundo que passava, afundando em uma areia movediça translúcidade afastamento. Depois do funeral dos Gabriel, Sukie tinha voltadopara casa, e nenhum de seus filhos havia chegado da escola ainda,mas mesmo assim a velha casa suspirava e murmurava sozinha, cheiade lembranças e de camundongos. Não havia castanhas nem tira-gostos na cozinha e, como uma alternativa para se consolar, ela haviarecorrido ao telefone.

“Estou sentindo falta das nossas quintas-feiras”, confessou elaabruptamente, como uma criança.

“Eu sei, querida, mas nós agora temos as nossas partidas de tênis.E os nossos banhos.”

“Eles às vezes me assustam. Não ficamos tão à vontade quantoantes, quando éramos só as três.”

“Você vai perder o emprego? Como está a situação?”“Ah, não sei, são tantos boatos. Eles disseram que, em vez de

arrumar outro editor, o dono vai vender o jornal para uma cadeia de

semanários de cidades pequenas que a máfia administra lá deProvidence. São todos impressos em Pawtucket, e as únicas notíciaslocais são aquelas que uma correspondente transmite de casa pelotelefone, todo o resto são matérias em nível estadual e outras que elescompram de um sindicato, e eles distribuem o jornal como se fosse umencarte de supermercado.”

“Não estamos mais tão à vontade como antes com nada, não é?”“E”, deixou escapar Sukie, mas sem chegar a conseguir chorar

como faria uma criança.Houve então uma pausa, quando nos velhos tempos elas mal

conseguiam parar de falar. Agora, cada uma das três tinha sua própriaparcela, seu próprio terço de Van Horne que precisava manter emsegredo, suas visitas solitárias e secretas à ilha, que, à luz cinza suavee chapada de dezembro, havia se tornado mais bela do que nunca; ohorizonte tingido de prata do oceano agora era visível das muitasjanelas do andar de cima atrás das quais ficava o quarto de dormircom paredes pretas de Van Horne, visível através das faias ecarvalhos sem folhas e dos alerces balançando ao redor da gigantescabolha de lona que protegia a quadra de tênis, onde as garças-brancascostumavam fazer seus ninhos.

“Como foi o funeral?”, perguntou Alexandra por fim.“Bom, você sabe como são essas coisas. Ao mesmo tempo tristes e

constrangedoras. Eles foram cremados, e eu achei muito estranhoenterrarem aquelas pequenas caixas arredondadas parecendo caixasde isopor, só que marrons, e menores. Foi Brenda Parsley quemencomendou os corpos, porque eles ainda não encontraram umsubstituto para Ed e os Gabriel na verdade não tinham religião,embora Felicia estivesse sempre criticando a falta de fé em Deus detodas as outras pessoas. Mas acho que a filha queria algum tipo detoque religioso. Na verdade, muito poucas pessoas compareceram,levando em conta toda a publicidade. A maioria era de funcionáriosdo Word dando as caras na esperança de conseguir manter o

emprego, e algumas pessoas que haviam participado de comitês juntocom Felicia, mas como você sabe ela havia brigado com quase todomundo. Os membros do Conselho Municipal estão encantados porterem se livrado dela, todos a chamavam de bruxa.”

“Você falou com Brenda?”“Só um pouco, no cemitério. Éramos tão poucos.”“Como ela agiu com você?”“Ah, muito comportada e calma. Ela me deve uma, e sabe disso.

Estava usando um terninho azul-marinho com uma blusa de seda debabados que parecia mesmo totalmente adequada a uma pastora. Eestava com os cabelos penteados de um jeito diferente, presos paratrás com um ar um tanto severo e sem aquela franja tipo Peter, Pauland Mary que dava a ela um ar de, você sabe, de filhote de cachorro.Melhorou muito, na verdade. Era Ed quem a obrigava a usar aquelasminissaias para poder se sentir mais hippie, o que era bem humilhantepara quem tem pernas finas como Brenda. Ela falou bastante bem,principalmente ao lado do túmulo. Uma voz linda, melodiosa,flutuando acima das lápides. Falou sobre como os dois falecidos sededicavam ao serviço comunitário, e tentou fazer alguma ligaçãoentre a morte deles e a Guerra do Vietnã, a confusão moral da nossaépoca, não entendi muito bem.”

“Você perguntou se ela tem notícias de Ed?”“Ah, eu não me atreveria a perguntar isso. Em todo caso, duvido,

já que eu mesma não tenho mais. Mas ela falou nele. Depois doenterro, quando os homens estavam ajeitando a grama artificial emvolta do túmulo, ela me olhou bem nos olhos e disse que o fato de eleter ido embora era a melhor coisa que já tinha acontecido com ela.”

“Bom, o que mais ela pode dizer? O que mais qualquer uma de nóspode dizer?”

“Lexa, meu anjo, como assim? Você parece estar fraquejando.”“Bom, a gente às vezes se cansa. De carregar tudo sozinha. A cama

fica tão fria nesta época do ano.”

“Você deveria comprar um cobertor elétrico.”“Já tenho um. Mas não gosto da sensação da eletricidade em cima

de mim. Imagine se o fantasma da Felicia aparecer e despejar umbalde de água fria em cima da cama. Eu morreria eletrocutada.”

“Alexandra, pare com isso. Não me assuste soando assim tãodeprimida. Nós todas dependemos de você para sei lá o quê. Você éuma força-mãe.”

“Sou, e isso também é deprimente.”“Você não acredita mais em nada disso?”Na liberdade, na bruxaria. Em seus poderes, em seu êxtase. “E

claro que acredito, meu anjo. Os filhos deles estavam lá? Como elessão?”

“Bom”, respondeu Sukie, recuperando a animação da voz aocomeçar a relatar as notícias, “eles são impressionantes, para falar averdade. Os dois parecem estátuas gregas de certa forma, muitoimponentes, pálidos, perfeitos. E são próximos como gêmeos, emboraa menina seja bem mais velha. Jennifer, é esse nome dela, tem quasetrinta anos, e o menino tem idade para estar na faculdade, embora nãoesteja; ele quer ser alguma coisa no meio artístico e vive indo e vindoentre Los Angeles e Nova York. Foi contrarregra em um teatro deverão em Connecticut, e a menina pegou um avião de Chicago, ondetirou licença do emprego como operadora de raio X. Segundo MargePerley, eles vão passar um tempinho aqui na casa para resolver ascoisas do inventário; eu estava pensando que talvez devêssemos fazeralgo com eles. Parecem dois bebês perdidos no mundo, e detestopensar que podem cair nas garras de Brenda.”

“Meu amor, eles com certeza sabem sobre você e Clyde e a culpampor tudo o que aconteceu.”

“Será? Como eles poderiam pensar isso? Tudo que eu fiz foi sergentil.”

“Você perturbou o equilíbrio interno dele. A ecologia dele.”“Não gosto de me sentir culpada”, confessou Sukie.

“Quem gosta? Como você acha que eu me sinto? Aquele pobre,querido e muito inadequado Joe vive me propondo abandonar Gina eaquele bando de filhos gordos para ficar comigo.”

“Mas ele nunca vai fazer isso. E mediterrâneo demais. Os católicosnunca vivem tantos conflitos quanto nós, pobres protestantes caídosem pecado.”

“Caídos em pecado”, disse Alexandra. “E assim que você se vê?Não tenho certeza de que eu algum dia tive de onde cair.”

Na mente de Sukie então surgiu, transmitida pela de Alexandra, aimagem de uma igreja de madeira do Oeste com um campanáriobaixo e desgastado pelo tempo, bem no alto das montanhas, deserta.

“Monty era muito religioso”, disse Sukie. “Vivia falando nosantepassados.” E, na mesma frequência, a imagem das nádegas caídase brancas feito leite de Monty surgiu em sua mente, e ela finalmenteteve certeza de que ele e Alexandra tinham tido um caso. Bocejou etornou a falar. “Acho que vou até a casa de Darryl relaxar um pouco.Fidel está desenvolvendo uma poção nova maravilhosa que batizoude Rum Mystique.”

“Tem certeza de que hoje não é o dia de Jane?”“Acho que o dia dela foi quando nos falamos. A voz dela estava

realmente muito animada.”“A voz dela queima.”“Exato. Ah, Lexa, você deveria realmente ver Jennifer Gabriel, ela é

deliciosa. Ao lado dela, eu pareço uma megera cansada. Um rostopálido e redondo, e olhos azuis muito claros iguais aos de Clyde, e umqueixo pontudo como o de Felicia e um narizinho muito delicado,bem reto e fino, como algo que se poderia esculpir com uma faca, masum pouco afundado no rosto, como o de um gato, se é que vocêconsegue visualizar. E que pele!”

“Deliciosa”, repetiu Alexandra, distraída. Sukie sabia queAlexandra a havia amado. Naquela primeira noite na casa de Darryl,dançando ao som de Joplin, as duas haviam se abraçado e chorado

por causa da maldição da heterossexualidade que as mantinhaseparadas, como se cada qual fosse uma rosa dentro de um tubo deplástico. Agora havia um distanciamento na voz de Alexandra. Sukierecordou o amuleto que tinha feito, com seu nó triplo mágico, elembrou a si mesma de tirá-lo de baixo da cama. Amuletos estragam eperdem a eficácia em mais ou menos um mês se não houver sanguehumano envolvido.

E, alguns dias depois, Sukie encontrou a filha órfã dos Gabrielandando sem o irmão pela Dock Street: naquela calçada invernal,ligeiramente torta, com metade das lojas fechada para o inverno e asoutras vendendo velas aromáticas coloridas e enfeites de Natal emestilo austríaco importados da Coreia, essas duas estrelas brilharamuma para a outra de longe e, tensas, deixaram a força da gravidade asaproximar diante do olhar fixo das vitrines da agência de viagens e damercearia, da Yapping Fox com seus suéteres de lã tricotada e suasrecatadas saias quadriculadas e da Hungry Sheep com suas roupasligeiramente mais estilosas, da imobiliária Perley com seus retratosdesbotados de casas em estilo Cape-and-a-half e suntuosas residênciasvitorianas na Oak Street à espera de algum casal jovem e motivadoque as comprasse e transformasse o segundo andar em apartamentos,da padaria, da barbearia e da sala de leitura da Ciência Cristã. Aagência de Eastwick do banco Old Stone havia aberto, depois demuita objeção cívica, um guichê drive through, e Sukie e Jennifertiveram de esperar como em margens opostas de um riacho enquantovários carros entravam e saíam dos acessos oblíquos cavados nacalçada. Como os opositores liderados pela falecida Felicia Gabriel

haviam assinalado em vão, o centro da cidade era abarrotado ehistórico demais para mais essa complicação no tráfego.

Por fim, Sukie chegou ao lado da mulher mais jovem, depois dedar a volta pelas gigantescas barbatanas de um Cadillac vermelhoconduzido com cautela pelo meticuloso e míope Horace Lovecraft.Jennifer estava usando uma velha parca bege cujo recheio haviaperdido o volume e um dos cachecóis de Felicia, frouxo e de cor roxa,enrolado várias vezes em volta do pescoço e do queixo. Várioscentímetros mais baixa do que Sukie, ela parecia uma criançaabandonada, com os olhos lacrimejantes e as narinas rosadas. Nessedia, a temperatura estava próxima de zero grau.

“Como vão as coisas?”, perguntou Sukie com uma animaçãoforçada.

Em altura e idade, aquela moça estava para Sukie assim comoSukie estava para Alexandra; apesar disso, Jennifer teve consciênciade que precisava se curvar a poderes superiores.

“Não tão ruins”, respondeu, com uma voz pequenina diminuída.ainda mais pelo frio. Em Chicago, seu sotaque havia adquirido umpouco da dicção anasalada do Meio-Oeste. Ela estudou o rosto deSukie e arriscou uma pequena iniciativa, prosseguindo em tomconfiante. “Há tanta coisa para fazer; Chris e eu estamosassoberbados. Estávamos vivendo os dois feito ciganos, e mamãe epapai guardaram tudo: desenhos que fizemos no jardim de infância,nossos boletins da escola, caixas \ e mais caixas de velhasfotografias...”

“Deve ser triste.”“Bom, é triste, sim, e frustrante. Eles deveriam ter tomado algumas

dessas decisões sozinhos. E dá para ver como as coisas foramnegligenciadas nesses últimos anos; a senhora Perley disse queestaríamos causando prejuízo a nós mesmos se não esperássemos paravender a casa até depois de mandarmos pintá-la na primavera. Issocustaria uns dois mil dólares e aumentaria em dez mil o valor da

venda.”“Olhe só. Você parece congelada.” A própria Sukie estava toda

aconchegada e parecendo uma rainha com um comprido casaco depele de carneiro e um chapéu de raposa vermelha que realçava oreflexo acobreado de seus próprios cabelos. “Vamos até a Nemo’s, eupago um café para você.”

“Bem...”, hesitou a moça, procurando uma saída, mas tentada pelaideia do calor.

Sukie insistiu na ofensiva.“Talvez você me odeie por causa das coisas que ouviu. Se for

assim, talvez seja bom para você conversar a respeito.”“Senhora Rougemont, por que eu iria odiá-la? E só que Chris está

no mecânico com o carro, o Volvo — até o carro que eles nos deixaramestava com a revisão vencida há muito tempo.”

“Qualquer que seja o problema do carro, vai levar mais tempopara consertar do que eles disseram”, disse Sukie, como quementendia do assunto, “e tenho certeza de que Chris está feliz. Homensadoram mecânicos. Todas aquelas ferramentas batendo. Nós podemossentar em uma das mesas da frente para você poder vê-lo passar, seele passar. Por favor. Quero dizer quanto sinto pela morte dos seuspais. Ele era um bom chefe e, agora que ele morreu, eu também estoucom problemas.”

Um Chevrolet 1959 muito enferrujado, com o porta-malas emformato de asas de gaivota, quase esbarrou nelas com suasprotuberâncias cromadas ao subir pesadamente no meio-fio emdireção ao guichê drive through meio verde, meio marrom; Sukie tocouo braço da moça para protegê-la. Então, sem querer soltá-la, foiguiando-a até a Nemo’s, do outro lado da rua.

Com a intensificação do tráfego de automóveis no século XX, aDock Street já tinha sido alargada mais de uma vez; havia algunstrechos em que as calçadas tortas tinham sido reduzidas até a largurade um único pedestre, e alguns dos prédios mais antigos se

projetavam em ângulos estranhos. A lanchonete Nemo’s era umacomprida caixa de alumínio com os cantos arredondados e uma largalistra vermelha na lateral. Como era o meio da manhã, os únicosclientes eram os do balcão — homens com subempregos, ou entãodesempregados, dos quais vários, com um aceno ou um meneio decabeça casual, cumprimentaram Sukie, mas com menos disposição,lhe pareceu, do que antes de Clyde Gabriel trazer o horror para acidade.

As pequenas mesas da frente estavam vazias, e a janela ampla equadrada que dava para a rua suava e escorria com água dacondensação. Quando Jennifer apertou os olhos para protegê-los daluminosidade, pequenos vincos surgiram nos cantos de suas órbitasde um azul frio como gelo, e Sukie viu que ela não era tão jovemquanto parecera na rua, envolta em trapos. Com uma certa cerimônia,ela largou na cadeira ao seu lado a parca suja, remendada comretângulos adesivos de vinil amarelo do tipo que se cola com o ferrode passar, e sobre ela deixou cair o longo cachecol roxo. Por baixo,usava uma saia cinza simples e um suéter de lã branco. Tinha umcorpo caprichado e roliço; e havia nela uma rotundidade que pareciasimples demais — seus olhos, seios, bochechas e pescoço, tudodefinido pelos mesmos traços circulares bem marcados.

Rebecca, a antiguana desmazelada de quem se sabia que Fidel erapróximo, apareceu com seus quadris tortos e seus grossos lábioscinzentos retorcidos de viés e fechados sobre tudo o que sabia.

“O que as senhoras vão querer?”“Dois cafés”, pediu Sukie e, por impulso, pediu também umas

panquequinhas. Tinha um fraco por aquelas panquecas; elas sedesmanchavam tanto, eram tão amanteigadas, e nesse dia iriamaquecê-la por dentro.

“Por que a senhora disse que eu poderia odiá-la?”, perguntou aoutra mulher com uma objetividade surpreendente, mas usando umavoz calma e leve.

“Porque sim.” Sukie decidiu acabar logo com aquilo. “Eu e o seupai... enfim. Sabe. Nós éramos amantes. Mas não por muito.tempo, sódesde o verão. Eu não queria atrapalhar a vida de ninguém, só queriadar a ele alguma coisa, e tudo que tenho sou eu mesma. E ele eramesmo adorável, como você sabe.”

A moça não demonstrou nenhuma surpresa, mas tornou-se maispensativa e abaixou os olhos.

“Eu sei que era”, disse ela. “Mas acho que não muito,recentemente. Mesmo quando éramos pequenos, ele parecia distraídoe triste. E à noite ficava com um cheiro estranho. Uma vez eu derrubeium livro grande qualquer do colo dele tentando fazer um carinho eele começou a me bater e parecia que não conseguia mais parar.” Osolhos dela se ergueram ao mesmo tempo que sua boca se fechou paraconter novas confissões; havia uma curiosa vaidade, a vaidade dossubmissos, na forma como seus lábios bem desenhados e sem batomse lacravam tão bem um contra o outro. Seu lábio superior se ergueuum pouco, com um quê de repulsa. “Me fale a senhora sobre ele.Sobre o meu pai.”

“Falar o quê?”“Como ele era.”Sukie deu de ombros.“Carinhoso. Grato. Tímido. Ele bebia demais, mas quando sabia

que ia me ver tentava não beber tanto para não ficar... bobo. Sabe.Lento.”

“Ele tinha muitas namoradas?”“Ah, não. Acho que não.” Sukie estava ofendida. “Na minha

convencida impressão, só eu. Ele amava a sua mãe, sabe? Pelo menosantes de ela ficar tão... obcecada.”

“Obcecada com o quê?”“Tenho certeza de que você sabe melhor do que eu. Com tornar o

mundo um lugar perfeito.”“E bem agradável, não, o fato de ela querer isso?”

“Acho que sim.” Sukie nunca havia pensado nas ralhaçõespúblicas de Felicia como agradáveis: pensava nelas mais como umaego trip amargurada, com mais do que uma pitada de histeria. Sukienão gostou de ser posta na defensiva por aquela donzelazinha de gelosem graça que, pelo som da voz, parecia estar ficando gripada.“Sabe”, sugeriu ela, “quando se está solteira em uma cidade comoesta, é preciso pegar mais ou menos o que aparece.”

“Não, eu não sei disso”, disse Jennifer, mas com suavidade. “Mas,pensando bem, acho que não sei muita coisa sobre esses assuntos deforma geral.”

O que será que isso queria dizer? Que ela era virgem? Era difícilsaber se a moça era vazia, ou se sua estranha imobilidade manifestavaum controle interior excepcional.

“Me fale sobre você”, pediu Sukie. “Você vai virar médica? Clydesentia tanto orgulho disso.”

“Ah, mas é só enganação. Vivo ficando sem dinheiro e sendoreprovada em anatomia. A matéria de que eu gostava mesmo eraquímica. O emprego de operadora de raio X na verdade é tudo que euvou conseguir. Estou emperrada.”

“Você deveria conhecer Darryl van Horne”, disse Sukie. “Ele estátentando desemperrar todas nós.”

Inesperadamente, Jennifer sorriu, e seu narizinho achatadoembranqueceu com a tensão. Seus dentes da frente eram redondoscomo os de uma criança.

“Que nome mais grandioso”, disse ela. “Parece inventado. Quem éele?”

Mas ela já devia ter ouvido tudo sobre os nossos sabás, pensouSukie. A moça era difícil de ler; placas de uma inocência nada natural,como se a vida houvesse passado por ela sem se deter, bloqueavam atelepatia da mesma forma que o chumbo bloqueia os raios X.

“Ah, ele é uma espécie de homem de meia-idade ainda um poucojovem e excêntrico que comprou a velha casa dos Lenox. Sabe, a

grande mansão de tijolo perto da praia.”“Nós chamávamos aquilo lá de latifúndio assombrado. Eu tinha

quinze anos quando meus pais se mudaram para cá, e na verdadenunca cheguei a conhecer a região muito bem. Aquela propriedade éenorme, embora no mapa não pareça grande coisa.”

A insolente e tropical Rebecca trouxe seus cafés nas pesadascanecas brancas da Nemo’s e suas panquequinhas; junto com opronunciado aroma cálido destas, fez flutuar acima da mesaesmaltada um cheiro apimentado e azedo que Sukie associou àprópria garçonete, a seus quadris largos e a seus seios pesados cor decafé, quando ela se curvou para pousar as canecas e os pratos.

“As senhoras vão querer mais alguma coisa?”, indagou agarçonete, baixando os olhos lá de cima das grandes encostas de simesma na direção das duas mulheres sentadas. Acima da massa desua carne, sua cabeça parecia um tanto pequena e magra, com oscabelos pretos penteados em fileiras de tranças apertadas.

“Tem creme, Becca?”, perguntou Sukie.“Vou pegar.” Ao pousar sobre a mesa a jarrinha de alumínio, ela

arrematou. “Vocês podem dizer ‘creme’ o quanto quiserem, mas o queo chefe põe aí dentro todo dia de manhã é leite.”

“Obrigada, querida, eu quis dizer mesmo leite.” Porém, debrincadeira, Sukie recitou rapidamente para si mesma o inofensivoencantamento Sator arepo tenet opera rotas, e o leite saiu grosso eamarelo, como creme. Pedacinhos talhados flutuaram na superfíciecircular do seu café. A panquequinha se transformou em fragmentosamanteigados dentro de sua boca. Fantasmas indígenas de farinha demilho atravessaram a floresta de suas papilas gustativas. Ela engoliu edisse, referindo-se a Van Horne: “Ele é legal. Você iria gostar, depoisde se acostumar com os modos dele”.

“O que há de errado com os modos dele?”Sukie limpou migalhas dos lábios sorridentes.“Ele parece durão, mas na verdade é tudo fachada. Na verdade ele

não constitui ameaça nenhuma, qualquer um pode lidar com Darryl.Umas amigas minhas e eu jogamos tênis com ele dentro de umafantástica e imensa bolha de lona que ele mandou instalar. Vocêjoga?”

Os ombros roliços de Jennifer se ergueram.“Um pouco. Joguei principalmente na colônia de férias. E às vezes

eu ia com um grupo de amigos jogar nas quadras da Universidade deChicago.”

“Até quando você vai ficar aqui antes de voltar para Chicago?”Jennifer estava olhando os pedacinhos de creme talhado dançarem

dentro do seu café.“Vou ficar algum tempo. Talvez nós só consigamos vender a casa

no verão, e Chris na verdade não tem muita coisa para fazer e nós doisconvivemos bem; sempre foi assim. Talvez eu nem volte. Como eudisse, as coisas não estavam indo lá muito bem lá no Michael Reese.”

“Você estava tendo problemas com homens?”“Ah, não'' Seus olhos se ergueram, expondo debaixo das íris

pálidas arcos de puro branco juvenil. “Os homens não parecem nadainteressados em mim.”

“Mas por que não? Se me permite dizer, eu a acho encantadora.”A moça baixou os olhos.“Este leite não está esquisito? Tão grosso e doce. Será que

estragou?”“Não, acho que está bem fresco. Você não comeu sua

panquequinha.”“Dei uma mordida. Nunca gostei muito dessas panquequinhas,

são só massa frita.”“E por isso que nós gostamos delas aqui em Rhode Island. Elas

assumem o que são. Posso terminar a sua se não quiser mais.”“Eu devo fazer alguma coisa errada que os homens sentem.

Costumava conversar sobre isso com minhas amigas de vez emquando.”

“Uma mulher precisa de amigas mulheres”, disse Sukie,complacente.

“Eu também não tinha muitas amigas. Chicago é uma cidadedifícil. Cheia daquelas mulherzinhas exóticas parecendo passarinhos,que estudam a noite inteira e sempre sabem todas as respostas. Mas,se você faz a elas qualquer pergunta pessoal, como por exemplo o queestá fazendo de errado com esses tais homens que precisa encontrar,elas fecham a boca.”

“Na verdade, é difícil acertar com os homens”, disse Sukie. “Elessentem muita raiva de nós porque nós podemos ter bebês e eles, não.Sentem muita inveja, coitadinhos: quem nos disse isso foi Darryl. Euna verdade não sei se devo acreditar nele; como eu disse, muita coisanele é pura fachada. Outro dia, no almoço, ele ficou tentandodescrever as teorias dele para mim, todas relacionadas a algumasubstância química cujo nome começa com ‘sela’.”

“Selênio. E um elemento mágico. É o segredo daquelas portas deaeroporto que abrem sozinhas na nossa frente. Ele também tira dovidro aquela cor verde que o ferro dá. O ácido selênico é capaz dedissolver ouro.”

“Ora, minha nossa, você sabe mesmo algumas coisas. Se gostatanto assim de química, talvez possa ser assistente de Darryl.”

“Chris vive dizendo que eu deveria simplesmente ficar na casacom ele um pouco, pelo menos até a vendermos. Ele está farto deNova York, a cidade é mesmo dura demais. Segundo ele, os gayscontrolam todas as áreas nas quais ele está interessado — vitrinismo,cenografia.”

“Eu acho que você deveria.”“Deveria o quê?”“Ficar por aqui. Eastwick é divertida.” Com uma certa

impaciência, pois a manhã estava passando, Sukie limpou todas asmigalhas de panquequinha da frente do suéter. “Esta cidade aqui nãoé dura. E uma cidade facílima” Ela engoliu as migalhas que lhe

restavam na boca com um último gole de café e se levantou.“Eu sinto isso”, disse a outra, entendendo o sinal e começando a

recolher o cachecol e a lamentável parca cheia de remendos. Vestida ede pé, Jenny executou uma ação surpreendente e incrivelmentemasculina: segurou a mão de Sukie e apertou-a com firmeza.“Obrigada”, disse ela, “por ter conversado comigo. A única pessoaque demonstrou qualquer interesse por nós, com exceção dosadvogados, é claro, foi aquela simpática pastora da igreja, BrendaParsley.”

“Ela é esposa do pastor, não pastora, e também não tenho tantacerteza de que seja simpática.”

“O marido se comportou de forma horrível com ela, é o que todomundo me diz.”

“Ou ela com ele.”“Eu sabia que a senhora ia dizer alguma coisa assim”, disse

Jennifer, e sorriu, não de modo desagradável; mas aquele sorriso fezSukie se sentir nua, sentir que podia ser vista até o âmago, sem coletede chumbo de inocência para protegê-la. Sua vida era vivida às vistasde toda a cidade; até mesmo aquela forasteirazinha sabia umacoisinha ou outra.

Antes de Jennifer pôr o cachecol, Sukie reparou que em volta deseu pescoço havia uma fina corrente de ouro do tipo que, paraalgumas pessoas, sustenta uma cruz. Mas na base do pescoço esguio,macio e branco da moça estava pendurado um tau egípcio, com o laçona parte de cima parecendo a cabeça de um homem de lata: um ankh,símbolo tanto de vida quanto de morte, antigo emblema dos mistériosque recentemente havia voltado à moda.

Ao ver os olhos de Sukie se demorarem ali, Jennifer olhou por suavez para o colar de luas de cobre da outra e disse:

“Minha mãe estava usando cobre. Uma pulseira simples que eununca tinha visto antes. Como se...”

“Como se o que, querida?”

“Como se estivesse tentando se proteger de alguma coisa.”“Não estamos todos tentando fazer isso?”, disse Sukie, jovial. “Eu

a procuro para combinarmos o jogo de tênis.”O espaço dentro da grande bolha de Van Horne era acústica e

atmosfericamente estranho: ao mesmo tempo que ecoavam, osbarulhos de gritos e bolas sendo batidas pareciam abafados, e umaleve sensação de ardência e pressão pesava sobre a testa e osantebraços sardentos de Sukie. Os pelos cor de âmbar dessesantebraços estavam eriçados como se estivessem eletrificados. Porbaixo do alto firmamento de lona parda, tudo parecia um pouco emcâmera lenta; os jogadores se movimentavam em meio a uma aura decompressão, embora na verdade o domo imóvel permanecesse infladoporque o ar que continha, bombeado por um incansável ventiladoratravés de uma boca de plástico quadrada lacrada com silver tapelocalizada rente ao chão em um dos cantos, era mais quente do que oar de inverno do lado de fora. Era o dia mais curto do ano. Uma terradura feito ferro estava presa sob um céu cujas nuvens manchadascuspiam neve como cinzas sugadas por uma chaminé e depoisdispersadas junto com a fumaça. Pequenas linhas de pó brancoapareciam junto às bordas dos tijolos e às raízes expostas das árvores,mas se derretiam sob o sol fraco do meio-dia; não havia acúmulo,embora todas as lojas e bancos, com seus guizos típicos da estação eseus arremedos de algodão, esperassem um inverno com neve.Enquanto a noite prematura engolfava os passantes encapotados, aDock Street parecia cansada, e suas luzes de gala eram um prenunciodo sono, uma tentativa desesperada e exausta de fazer jus a algumapromessa no frio ar negro. Ali, jogando tênis de meia-calça, polaina,jaqueta de esqui e dois pares de meias enfiados nos tênis, as jovensmães divorciadas de Eastwick estavam tirando férias das férias.

Culpada, Sukie temia talvez ter estragado o jogo das outras aotrazer Jennifer Gabriel consigo. Não que, ao telefone, Darryl vanHorne houvesse feito qualquer objeção à sua sugestão; fazia parte do

seu temperamento acolher novas recrutas, e talvez seu pequenocírculo de quatro estivesse ficando apertado para ele. Assim como amaioria dos homens, sobretudo os homens ricos, sobretudo oshomens ricos de Nova York, ele se entediava com facilidade. MasJennifer havia tomado a liberdade de levar consigo o irmão, e Darrylcom certeza devia estar consternado por receber em sua casa aquelerapaz que, conforme a mais recente moda entre os jovens, eradesarticulado e carrancudo, tinha os olhos baços, um maxilar flácidocoberto por uma barba rala, e cabelos encaracolados embaraçados etão sujos que mal podiam ser chamados de louros. Em vez de sapatospróprios para jogar tênis, ele calçava tênis de corrida surrados comsolado de borracha que, mesmo na vastidão espaçosa da bolha,exalavam um cheiro rançoso e desagradável de suor masculino. Sukiese perguntou como a imaculada Jennifer conseguia suportar vivercom alguém tão desleixado. Apesar de todos os seus defeitos, Montyera um homem meticuloso, que vivia tomando banhos de chuveiro eenxaguando as xícaras de café que ela havia abandonado sobre a mesalateral depois de alguma conversa ao telefone. O rapaz havia pegadouma raquete emprestada e não demonstrara nenhuma habilidade paralançar a bola por cima da rede, e tampouco nenhuma vergonha de suafalta de habilidade, apenas uma petulância preguiçosa. Anfitriãocortês e aparente cavalheiro como sempre, Darryl, embora todoparamentado para jogar, com uma calça de jogging entre o marrom e overmelho e um colete roxo forrado de plumas feito um edredom que ofaziam parecer uma arara, havia sugerido que as quatro mulheresjogassem uma partida de duplas femininas enquanto ele levavaChristopher para fazer um tour pela biblioteca, pelo laboratório e pelapequena estufa de plantas tropicais venenosas. O rapaz o seguiu comlânguida ingratidão enquanto Darryl gesticulava e cuspia palavras;através das paredes da bolha, elas puderam ouvi-lo exclamar por todoo caminho até a casa. Sukie se sentiu realmente culpada.

Ela escolheu Jenny como dupla para o caso de a moça se revelar

uma jogadora inepta, embora no aquecimento ela houvessedemonstrado golpes firmes de ambos os lados; durante o jogo,mostrou-se uma jogadora bastante razoável, cheia de energia, emborasem muito raio de ação — o que pode ter sido em parte umadeferência ao estilo pernalta e de grande 'alcance de Sukie. Quandotinha mais ou menos onze anos, Sukie, que havia aprendido a jogarem uma velha quadra de asfalto cercada de rododendros que umamigo da família tinha em sua propriedade à beira do lago, foraelogiada pelo pai por ter uma “pegada” de grande envergadura,espetacular; e depois disso ela sempre tinha sido uma jogadora comum estilo de “ir buscar a bola”, chegando a se demorar em um doscantos da quadra e depois no outro para fazer suas devoluçõesparecerem espetaculares. Era a bola que chegava bem em suas mãosque Sukie às vezes não conseguia rebater. Ela e Jenny ganharamrapidamente quatro games contra um ganho por Alexandra e Jane, eentão começaram os truques. Embora o objeto que se aproximava doforehand de Sukie fosse, do ponto de vista óptico, uma bola Wilsonamarela, o que ela tocou com a raquete — joelhos dobrados, cabeçaabaixada, e projetando a força para a frente e para cima de modo adevolver a bola com um topspin — foi uma bolinha de massa corrida;o peso lhe deu a sensação de que algo havia se soltado em seucotovelo. O que avançou até a rede entre os pés de Jennifer era denovo, indiscutivelmente, uma bola de tênis. No ponto seguinte, osaque chegou em seu backhand e, preparada para outra bola de massacorrida, ela sentiu algo mais leve do que um pardal sair voando dascordas de sua raquete; o objeto desapareceu no espaço escuro dodomo, depois do anel de buracos de plástico transparente quedeixavam a luz entrar, e foi cair bem fora da quadra na forma de umabola Wilson amarela.

“Joguem direito, suas diabinhas”, gritou Sukie por cima da rede.Jane Smart gritou de volta com a voz melodiosa feito uma flauta:

“Fique de olho na bola, amoreco, e nada de ruim vai acontecer”.

“Não foi isso que aconteceu, sua chata. Meus golpes foramperfeitos nas duas bolas.” Sukie estava brava porque aquilo não erajusto, não quando sua parceira era uma inocente. Jennifer, que estavaem pé sobre a linha do meio da quadra, tinha visto apenas o desfechodessas duas jogadas, e então se virou para olhar Sukie com perdão eincentivo estampados no rosto em forma de coração e tingido de umcor-de-rosa vivo. Na jogada seguinte, a moça correu até a rede depoisde uma devolução fraca de Jane, e Sukie se concentrou para fazerAlexandra congelar; o forte voleio de Jenny bateu no corpoimobilizado da mulher alta. Liberada do feitiço com uma piscadela,Alexandra esfregou o ponto dolorido na coxa.

Em tom de reprimenda, ela disse a Sukie: “Isso teria doído deverdade se eu não estivesse usando meias de lã por baixo da meia-calça”.

Mas mesmo assim a pele ficaria marcada e, com uma voz de quempede desculpas, Sukie implorou: “Sério, vamos jogar tênis de verdadee pronto”.

Mas agora as duas oponentes estavam doloridas. Uma dorlancinante tomou conta das juntas de Sukie quando ela se esticou paradar um voleio em uma bola fácil que chegou pelo meio da rede;incapaz de completar o movimento, ela ficou olhando impotenteenquanto a bola embaçada quicava na listra central da quadra. Masentão ouviu as batidas dos pés de Jenny atrás dela, e viu a bola,milagrosamente rebatida, cair entre Jane e Alexandra, que jáconsideravam aquele ponto ganho. Isso tornou a empatar o game, eSukie, ainda trôpega por causa daquela súbita dor injetada em suasjuntas, mas determinada a proteger sua parceira de jogo de todaaquela maleficia, pronunciou depressa para si mesma três vezes asblasfemas palavras ao contrário Retson Retap e criou uma bolha de ar,uma falha no cristal do espaço, acima da parte dianteira da quadra dasadversárias, fazendo Jane cometer duas duplas faltas, pois a boladespencava no meio da trajetória como se caísse pela borda de uma

mesa.O game agora estava cinco contra um, e era a vez de Jenny sacar.

Quando ela lançou a bola para cima, esta se transformou em um ovo,espatifando-se sobre seu rosto erguido e escorrendo por entre ascordas da raquete. Revoltada, Sukie jogou sua raquete no chão e estase transformou em uma cobra, que então não teve para onde rastejar,já que a grande bolha era lacrada em todas as extremidades; frenética,a criatura, amaldiçoada logo no início da criação, ficou se arrastandocom seus esses e zês de um lado para o outro do piso sintético cor desangue que margeava a quadra verde, além de suas linhas e limites.

“Tudo bem”, anunciou Sukie. “Chega. O jogo acabou.” Usando umlenço feminino inadequado, a pequena Jenny tentava limpar dos olhosa clara aguada e viscosa e a gema com seu pontinho de sangue. O ovotinha sido fertilizado. Sukie tirou o lenço de sua mão e pôs-se aenxugar-lhe o rosto. “Eu sinto muito, sinto muito mesmo”, disse ela.“Essas duas simplesmente não suportam perder, são mulhereshorríveis.”

“Pelo menos não foi um ovo podre”, disse Alexandra em tom dedesculpas do outro lado da rede.

“Não tem problema”, disse Jennifer um pouco ofegante, mas coma voz ainda firme. “Eu sabia que vocês tinham esses poderes. BrendaParsley me contou.”

“Aquela língua de trapo imbecil”, disse Jane Smart. As duas outrasbruxas tinham dado a volta na rede para ajudar a limpar o rosto deJennifer. “Nós não temos nenhum poder que ela não tenha, agora queo marido a abandonou.”

“E isso que acontece quando você é abandonada?”, perguntouJenny.

“Ou quando é você que abandona”, disse Alexandra. “O maisestranho é que não faz diferença nenhuma. Seria de esperar quefizesse. De qualquer forma, me desculpe por essa do ovo. Mas minhacoxa vai ficar toda roxa amanhã porque Sukie não deixou eu me

mexer; não foi justo.”“Tão justo quanto o que você estava fazendo comigo”, disse Sukie.“Você errou aquelas duas bolas, só isso”, disse Jane Smart de mais

longe; ela havia se afastado até a borda da quadra para procuraralguma coisa.

“Eu também achei”, disse Jennifer baixinho, tentando agradar àsoutras, “que você levantou a cabeça, pelo menos no back-hand.”

“Você não estava olhando.”“Estava, sim. E você tem tendência a esticar os joelhos com o

impacto.”“Não tenho, não. Você deveria ser a minha dupla. Deveria me

incentivar.”“Você foi maravilhosa”, disse a moça, obediente.Jane voltou segurando nas mãos em concha um montinho de areia

preta que tinha raspado com as unhas na lateral da quadra.“Feche os olhos”, ordenou ela a Jennifer, e jogou a areia bem no

seu rosto. Por magia, os resquícios viscosos de ovo desapareceram,deixando, porém, a areia, que deu ao rosto liso e erguido umaexpressão bárbara, como se ela estivesse usando uma máscarasarapintada.

“Talvez esteja na hora do banho”, observou Alexandra, lançandoum olhar maternal para o rosto sujo de Jennifer.

Sukie se perguntou como elas poderiam tomar seu banho habitualcom aqueles dois forasteiros ali, e culpou a si mesma por ter sidoexpansiva demais ao convidá-los. Aquilo era culpa de sua mãe; nacasa onde ela morava, no estado de Nova York, sempre haviaconvidados à mesa do jantar, pessoas da rua, possíveis anjosdisfarçados na opinião de sua mãe.

“Mas Darryl ainda não jogou!”, protestou Sukie em voz alta. “NemChristopher”, acrescentou, embora o rapaz houvesse se mostradoapático e de uma inépcia arrogante.

“Não parece que eles vão voltar”, observou Jane Smart.

“Bom, é melhor nós irmos fazer alguma coisa, ou vamos todaspegar um resfriado”, disse Alexandra. Ela havia pego emprestado olenço úmido de Jenny (marcado com o monograma J) e, com um doscantos intrincadamente dobrado, removia grão a grão a areia do rostodócil e redondo da moça, erguido em direção a esse cuidado comouma flor cor-de-rosa virada para o sol.

Sukie sentiu uma pontada de ciúmes. Abriu os braços e disse:“Vamos entrar em casa”, embora seus músculos ainda fossem capazesde jogar bastante. “A menos que alguém tope uma partida simples.”

“Talvez Darryl”, disse Jane.“Ah, ele é maravilhoso demais, iria me destruir.”“Acho que não”, disse Jenny baixinho, pois havia observado seu

anfitrião se aquecer e ainda não pudera admirar por completo o seuassombro. “Você está em muito melhor forma. Ele é bem desregrado,não?”

“Darryl van Horne é a pessoa mais civilizada que eu conheço”,disse Jane Smart com frieza. “E a mais tolerante.” Irritada, elaprosseguiu: “Lexa querida, pare de insistir tanto com isso. Vai sair nobanho”.

“Eu não trouxe roupa de banho”, disse Jennifer com os olhosarregalados, olhando intrigada de um rosto para outro.

“E bem escuro lá dentro, ninguém consegue ver nada”, disse-lheSukie. “Ou, se preferir, você pode ir para casa.”

“Ah, não. Aquilo lá é muito deprimente. Não paro de imaginar ocorpo de papai pendurado no ar, e isso me deixa assustada demaispara subir e começar a arrumar as coisas do sótão.”

E então ocorreu a Sukie que, enquanto todas elas três tinhamcrianças de quem deveriam estar cuidando, Jennifer e Christophereram crianças, e estavam cuidando de si mesmas. Ela teve uma visãotriste do pau de Clyde, um pau de pai, que poderia ter sido o pau doseu próprio pai e na verdade parecia mesmo uma espécie de relíquia,com uma cor meio amarelada na parte de baixo quando ereto e pelos

cinzentos incrivelmente compridos, como os cabelos da cabeça deuma velha, descendo dos testículos. Não era de espantar que elehouvesse reagido com exagero quando ela abriu as pernas. Sukieconduziu as outras mulheres para fora da bolha de tênis, cuja portaoval se abria graças a dois zíperes laterais e tinha de ser fechadadepressa para evitar que o ar escapasse.

O dia de dezembro, já quase no fim, fustigou seus rostos e seus péscalçados com tênis. Carvão, o detestável labrador de Alexandra, e ocollie colorido e nervoso de Darryl, Needlenose, que juntos haviamencurralado e estraçalhado alguma criatura peluda no pequenobosque da ilha, vieram se agitar à volta delas, com os narizes pretossujos de sangue. A terra do gramado outrora delicadamente côncavoque conduzia à casa havia sido arrancada por escavadeiras paraconstruir a quadra no outono anterior, e os pedaços de terra e argila,duros e congelados, formavam uma paisagem lunar traiçoeira de seatravessar. Lágrimas de frio nos olhos de Sukie davam às auras desuas companheiras uma cor de arco-íris, e falar fazia doer suasbochechas. Ao pisar o chão firme da entrada de carros, ela começou acorrer; atrás dela, as outras a seguiram pelo cascalho como um sóanimal desajeitado. A grande porta de carvalho cedeu à sua pressãocomo se houvesse sentido seu toque, e no saguão de mármore comseu pé oco de elefante um sulfuroso travesseiro de calor a atingiu norosto. Fidel não estava por perto. Seguindo um murmúrio de vozes, asmulheres encontraram Darryl e Christopher sentados um de cada ladoda mesa redonda de tampo de couro na biblioteca. Velhas revistas emquadrinhos e uma bandeja de chá estavam dispostos sobre a mesaentre eles. Acima deles pendiam as melancólicas cabeças empalhadasde alces e cervos deixadas pelos caçadores da família Lenox: tristesolhos de vidro que, embora carregados de poeira, não piscavam.

“Quem ganhou?”, perguntou Van Horne. “As boas ou as más?” .“Quem é a bruxa é boa e quem é a má?”, perguntou Jane Smart,

deixando-se cair sobre um pufe vermelho debaixo de uma colina de

mistérios encadernados, gigantescos volumes de lombada claraidentificados por miúdas letras em latim. “O sangue fresco ganhou”,respondeu ela, “como geralmente acontece.” A felpuda Thumbkin,com suas patas malformadas, estava em pé, imóvel feito umaestatueta, sobre as lajotas da lareira, tão perto do fogo que as pontasde seus bigodes pareciam faiscar; então, com muita dignidade, elacaminhou até os tornozelos de Jane e, como se suas meias esportivasbrancas fossem postes feitos para arranhar, enterrou os arcos dasunhas bem fundo ali, ao mesmo tempo que erguia o rabo bem retocomo se estivesse urinando tomada de prazer. Jane soltou um grito e,com a ponta de um dos tênis, arremessou o animal bem alto no ar.Thumbkin se virou como um grande floco de neve antes de aterrissarsem ruído sobre as quatro patas perto de onde o atiçador, o pegador ea pá de cinzas com cabo de bronze reluziam em seu suporte.

Os olhos da gata ofendida piscaram, depois imitaram o brilho debronze do metal; as pupilas verticais se estreitaram nas íris amarelas,contemplando o grupo reunido.

“Elas começaram a usar truques sujos”, revelou Sukie. “Eu mesenti trapaceada.”

“E assim que se distingue uma mulher de verdade”, brincouDarryl van Horne com sua voz rouca e distante. “Ela sempre se sentetrapaceada.”

“Darryl, não seja enfadonho e epigramático”, disse Alexandra.“Chris, esse chá está tão bom quanto parece?”

“Está ok”, conseguiu responder o rapaz com um sorriso derrisório,sem encarar ninguém nos olhos.

Fidel havia se materializado. Seu paletó cáqui parecia maisamarfanhado do que de costume. Será que ele estava com Rebecca nacozinha?

“Té para las señoras y la señorita, por favor”, disse-lhe Darryl. O inglêsde Fidel era excelente e cada vez mais coloquial, mas o fato de os doisfalarem espanhol fazia parte de sua relação patrão-empregado,

contanto que Van Horne conhecesse as palavras.“Si, señor.”“Rapidamente”, ordenou Van Horne.“Sí, sí.”E ele saiu.“Ah, que aconchegante isto aqui!”, exclamou Jane Smart, mas na

verdade alguma coisa na situação estava deixando Sukie insatisfeita etriste; a casa inteira parecia um cenário de teatro, deslumbrantequando vista por um determinado ângulo, mas, quando vista poroutros, cheia de falhas e bagunçada. Aquilo era a imitação de umacasa de verdade em algum outro lugar.

“Eu não joguei o quanto queria”, disse Sukie, fazendo biquinho.“Darryl, venha jogar uma partida simples comigo. Só até escurecer.Você está todo vestido para jogar.”

“E o jovem Chris, aqui?”, respondeu ele, grave. “Ele também nãojogou.”

“Tenho certeza de que ele não quer”, interveio Jennifer com umavoz de irmã.

“Eu jogo muito mal”, concordou o rapaz. Ele era mesmo semgraça, pensou Sukie. Uma moça na mesma idade seria tão divertida,tão alerta e socialmente sensível, reunindo impressões,transformando-as em flerte e empatia, fazendo do seu quarto sua teia,seu ninho, seu teatro. Sukie, por sua vez, estava se sentindo um tantofrenética, em pé jogando os cabelos de um lado para o outro, beirandoa grosseria e o exibicionismo, e não sabia muito bem a que atribuirisso a não ser ao próprio constrangimento de ter levado os Gabriel atélá, coisa que não faria nunca mais, e de não ter transado com umhomem desde que Clyde cometera suicídio duas semanas antes.Ultimamente, ela havia se pegado pensando em Ed à noite,perguntando-se o que ele estaria fazendo em sua vida clandestina comaquela sujinha e reles Dawn Polanski.

Darryl, intuitivo e gentil apesar de seus modos brutos, levantou-se

com sua calça de jogging vermelha e tornou a vestir o colete roxoforrado, e também um gorro cor de laranja do tipo que brilha noescuro com uma viseira e protetores de orelha que ele às vezes usavade brincadeira, e pegou sua raquete, uma Head de alumínio.

“Um set rápido”, avisou ele, “com um tie-break de sete pontos sechegar em seis a seis. Na primeira bola que virar um sapo, a partidaestá anulada. Alguém quer vir assistir?” Ninguém quis, estavam todosesperando o té. Assim, solitários como um casal casado, os doissaíram para a tarde cinza cada vez mais escura, com seus bosquessilenciosos, seus arbustos lilases, seu céu ao leste de um verdeesmaltado, e foram para o domo fechado e silencioso como umtúmulo.

O tênis foi ótimo; não apenas Darryl jogou feito um robô,aparentemente desengonçado mas infalível, como também conseguiufazer Sukie dar golpes incríveis, transformar bolas impossíveis depegar em rebatidas espetaculares, e miniaturizar as larguras ecomprimentos segmentados da quadra com sua velocidade e destrezasobrenaturais. Quando ela corria para pegar a bola, esta ficavadependurada no céu feito uma lua; seu corpo se tornou uminstrumento de raciocínio, presente onde quer que ela desejasse. Elachegou até a dar alguns backhands por cima da cabeça de Darryl.Sentia o corpo se esticar na hora de sacar como um arco soltando umaflecha. Ela era Diana, Ísis, Astarte. Era a graça e a força femininasliberadas, naquele instante de luz, de seu áspero traje de servidão. Aescuridão se adensava nos cantos da bolha pardacenta; os buracos decéu boiavam lá em cima como uma imensa coroa de águas-marinhas;seus olhos não conseguiam mais ver o adversário escuro correndo,pisando e ofegando do outro lado da rede. A bola não parava devoltar, e veloz, surgindo diante de seu rosto qual um predadorrenascido repetidamente do asfalto pintado. Ela rebateu, rebateu, nãoparou de rebater, e a bola foi ficando cada vez menor — do tamanhode uma bola de golfe, do tamanho de uma ervilha dourada, e por fimnão houve mais repiques do outro lado distante e escuro da rede,apenas um som duro de algo sendo engolido, e a partida terminou.

“Foi incrível”, anunciou Sukie para quem quer que estivesse lá.A voz de Van Horne ecoou, rascante, dizendo: “Eu fui legal com

você, que tal ser legal comigo?”.“Tudo bem”, disse Sukie. “O que você quer que eu faça?”“Beije a minha bunda”, disse ele, rouco. E apresentou-lhe as

nádegas por cima da rede. Estas eram cabeludas, ou cobertas depenugem, dependendo de qual fosse seu sentimento em relação aoshomens. A esquerda, a direita...

“E no meio”, ordenou ele.O cheiro foi como um recado que ele precisava transmitir, uma

palavra trazida de longe, não de todo desagradável, uma lufada deessência de camelo entrando pelas dobras das tendas de seda doacampamento do Trono do Dragão no deserto de Gobi.

“Obrigado”, agradeceu Van Horne, subindo a calça. No escuro, elesoava como um taxista nova-iorquino, áspero. “Parece uma bobagempara você, eu sei, mas me dá uma energia tremenda.”

Os dois subiram juntos o aclive, e o suor de Sukie endurecia sobresua pele. Ela se perguntou como eles iriam conseguir entrar nabanheira quente com Jennifer Gabriel ali e sem dar o menor sinal dequerer ir embora. Dentro da casa, o irmão apalermado estava sozinhona biblioteca, lendo um grande livro azul que Sukie, ao espiar porcima do seu ombro, descobriu serem histórias em quadrinhosencadernadas. Um homem de capa com um capuz azul de orelhaspontudas: Batman.

“A coleção completa, porra”, vangloriou-se Van Horne. “Algunsdos números antigos me custaram uma nota e remontam até a épocada guerra, se eu tivesse tido a inteligência de guardá-los quando eracriança poderia ter ganho uma fortuna. Meu Deus, eu passei minhainfância inteira esperando o número do mês seguinte. Amava oCoringa. Amava o Pinguim. Amava o Batmóvel com sua garagemsubterrânea. Vocês dois são jovens demais, não pegaram essadoença.”

O garoto articulou uma frase completa. “Essas histórias passavamna TV.”

“E, mas era tudo exagerado. Eles não precisavam fazer isso.Fizeram tudo parecer uma brincadeira, foi de muito mau gosto, isso.Nas velhas revistas existia um mal de verdade. Esse rosto brancocostumava assombrar meus sonhos, não estou brincando. O que vocêacha do Capitão Marvel?” Van Horne sacou da prateleira um volumede outra coleção, encadernado em vermelho em vez de azul, e, com

um fervor cômico, bradou “Shazam!” Para espanto de Sukie, foi seacomodar em uma poltrona e começou a folhear o livro, com o rostogrande aceso de prazer.

Sukie foi seguindo o som débil de vozes femininas pela salacomprida cheia de obras bolorentas de pop art, pelo pequeno cômodode caixas ainda fechadas e pelas portas duplas que conduziam àbanheira revestida de ardósia. Dentro de seus recônditos circularesestriados, as luzes haviam sido ajustadas em baixa intensidade. O olhovermelho do sistema de som vigiava as delicadas sequências de umasonata de Schubert. Três cabeças de cabelos presos estavam dispostassobre a superfície fumegante da água. As vozes continuaram amurmurar, e nenhuma delas se virou para ver Sukie tirar a roupa. Eladespiu as muitas camadas enrijecidas das roupas de tênis, atravessounua o ar úmido, sentou-se na borda de pedra e arqueou as costas parase entregar à água, no início demasiado quente para ela conseguirsuportar, mas logo depois não mais. Ah. Devagar, foi setransformando em uma nova mulher. Assim como o sono, a águasuga e leva embora o nosso peso natural. Os corpos conhecidos deAlexandra e Jane boiavam à sua volta; as ondas deles e as suas sefundiam em uma agitação tranquilizadora. A cabeça redonda e osombros redondos de Jennifer Gabriel repousavam no centro de seucampo de visão; os seios redondos da moça flutuavam logo abaixo dasuperfície da água preta transparente e, mais no fundo, seus quadris epés estavam reduzidos como os de um feto deformado.

“Não é uma delícia?”, perguntou-lhe Sukie.“É, sim.”“Ele tem uma porção de controles”, explicou Sukie.“Ele vai entrar aqui conosco?”, perguntou Jennifer, assustada.“Acho que, desta vez, não”, disse Jane Smart.“Por respeito a você, querida”, acrescentou Alexandra.“Eu me sinto tão segura. Será que deveria me sentir assim?”“Por que não?”, perguntou uma das bruxas.

“Sinta-se segura enquanto pode”, aconselhou outra.“As luzes parecem estrelas, não é? Digo, são aleatórias.”“Olhe isso.” Elas todas agora sabiam manejar os controles. Um

dedo apertou um deles, e o teto se abriu. Os primeiros pontinhospálidos, planetas e gigantes vermelhas, faziam o domo maternal eturquesa do céu de início de noite parecer uma ilusão, um nada.Havia esferas além de esferas, cada qual transparente ou opaca àmedida que o dia e o ano avançavam.

“Nossa. E o lado de fora.”“Ssim.”“Mas não estou com frio.”“O calor sobe.”“Quanto dinheiro vocês acham que ele gastou com isso tudo?”“Milhares de dólares.”“Mas por quê? Com que finalidade?”“Para nós.”“Ele nos ama.”“Só nós?”“Não sabemos ao certo.”“Não é uma pergunta útil.”“Você não está satisfeita?”“Estou.”“Ssim.”“Mas estou pensando que Chris e eu deveríamos voltar para casa.

Precisamos dar comida aos bichos.”“Que bichos?”“Felicia Gabriel costumava dizer que não se deve gastar proteínas

com bichos de estimação quando todo o povo da Asia está passandofome.”

“Eu não sabia que Clyde e Felicia tinham bichos.”“E não tinham. Mas, em uma noite pouco depois de chegarmos

aqui, alguém pôs um filhote de cachorro dentro do Volvo. E pouco

depois disso um gato apareceu na porta da casa.”“Pense em nós. Nós temos filhos.”“Pobrezinhos dos nossos filhos, abandonados e sujos”, disse Jane

Smart em um tom zombeteiro que indicava que ela estava imitandooutra voz, uma voz “lá fora” erguida em fofocas hostis a seu respeito.

“Bom, eu tive uma criação muito resguardada”, disse Sukie, “e issochegou a ser opressivo. Pensando bem agora, acho que meus pais nãoestavam me fazendo nenhum favor, estavam só resolvendo os seuspróprios problemas.”

“Não se pode viver a vida dos outros em seu lugar”, disseAlexandra, distraída.

“As mulheres precisam parar de servir a todo mundo e depoisficar tentando se vingar psicologicamente. Essa tem sido a nossapolítica até agora.”

“Ah. Isso é mesmo uma delícia”, disse Jenny.“E uma terapia.”“Feche o teto de novo. Quero me sentir aconchegada.”“E desligue a porra do Schubert.”“Imagine se Darryl aparecer.”“Com aquele menino horrível.”“Christopher.”“Eles que venham.”“Hmm. Como você é forte.”“É a minha arte, ela me dá músculos até debaixo das unhas.”“Lexa. Quanta tequila tinha no seu chá?”“Até que horas fica aberto o supermercado perto de Old Wick?”“Não faço ideia, parei completamente de ir lá. Não comemos nada

que não tenha para vender na mercearia do centro.”“Mas eles quase não têm legumes ou verduras frescos, nem carne

que não seja congelada.”“Ninguém liga para isso. Tudo que eles querem é comer aqueles

congelados no jantar para não precisar sentar à mesa e interromper a

TV, congelados e sanduíches. Quanta cebola eles põem nossanduíches! Acho que foi isso que me fez parar de dar beijos de boa-noite nos pirralhos.”

“É incrível, o meu mais velho só come batata chips e biscoitosdoces de noz pecã desde os doze anos, e mesmo assim tem um metroe oitenta de altura e nenhuma cárie. O dentista diz que nunca viu umaboca tão bonita.”

“É o flúor.”“Eu gosto de Schubert. Ele não fica perseguindo você o tempo todo

como Beethoven.”“Ou Mahler.”“Ah, meu Deus, Mahler.”“Ele é mesmo monstruosamente excessivo.”“Minha vez.”“Minha vez.”“Aah, que delícia. Você achou o ponto exato.”“O que significa quando o seu pescoço vive doendo, e aqui em

cima perto das axilas?”“Isso é o nodo linfático. E câncer.”“Por favor, nem brinque com isso.”“Ou então é a menopausa.”“Com isso eu não me importaria.”“Eu espero a minha ansiosamente.”“As vezes eu me pergunto se as pessoas não dão uma importância

exagerada à fertilidade.”“Hoje em dia se ouve coisas horríveis sobre os DlUs.”“Os melhores sanduíches, curiosamente, são os daquela lojinha de

pizza supercafona em East Beach. Mas eles fecham de outubro aagosto. Ouvi dizer que o dono e a mulher vão para a Flórida vivercom os milionários de Fort Lauderdale, de tanto dinheiro queganham.”

“Aquele homem caolho que cozinha usando uma camiseta tie-

dye?”“Nunca tive certeza se ele é caolho mesmo ou se vive piscando o

olho.”“Quem faz as pizzas é a mulher. Eu gostaria de saber como ela

consegue fazer a massa não ficar ensopada.”“Eu tenho um monte de molho de tomate lá em casa, e meus filhos

fizeram greve contra o espaguete.”“Dê para Joe levar para casa.”“Ele já leva coisa suficiente para casa.”“Bom, ele também deixa alguma coisa em você.”“Não seja vulgar.”“O que ele leva para casa?”“Cheiros.”“Lembranças.”“Ah. Minha nossa.”“Deixe-se flutuar, assim.”“Estamos todas aqui.”“Estamos bem aqui ao seu lado.”“Estou sentindo”, disse Jenny, com a voz ainda mais baixa e mais

suave do que seu tom habitual.“Como você é encantadora.”“Não seria divertido ser jovem assim de novo?”“Eu não consigo acreditar que algum dia já fui. Deve ter sido outra

pessoa.”“Feche os olhos. Tem um último pedacinho safado de areia bem

aqui no canto. Pronto.”“Nesta época do ano o maior problema são os cabelos molhados.”“Outro dia meu hálito congelou e fez o cachecol grudar bem na

minha cara.”“Estou pensando em repicar o cabelo. Dizem que o novo barbeiro

do outro lado de Landing Square, naquele prediozinho compridoonde eles costumavam afiar serras, corta maravilhosamente bem.”

“Cabelo de mulher?”“Tem de ser de mulheres, os homens pararam de cortar o cabelo.

Mas os preços aumentaram. Sete e cinquenta, isso sem lavar, enrolarnem nada.”

“A última coisa que eu fiz para o meu pai foi levá-lo de cadeira derodas para cortar o cabelo no barbeiro. E ele sabia que era a últimavez. Anunciou isso para todo mundo, para todos aqueles homenssentados na barbearia: ‘Esta aqui é minha filha, que está me trazendopara o último corte de cabelo da minha vida’.”

“Kazmierczak Square. Vocês já viram a placa nova?”“Horrível. Não posso acreditar que isso vai durar.”“As pessoas esquecem. Para as crianças que estão na escola agora,

a Segunda Guerra Mundial não passa de um mito.”“Você não queria ter a pele assim ainda? Nenhuma cicatriz,

nenhuma verruga.”“Na verdade, tem uma coisinha cor-de-rosa em que reparei outro

dia, aqui em cima. Mais em cima.”“Ah, ssim. Dói?”“Não.”“Ótimo.”“Vocês já perceberam que, quando começamos a procurar

calombos em nós mesmas como dizem que devemos fazer, elesparecem estar por toda parte? O corpo é mesmo terrivelmentecomplicado.”

“Por favor, nem me faça pensar nisso.”“No novo dicionário que compraram lá no jornal tem umas

transparências encartadas nas páginas normais no verbete ‘Homem’,só que o corpo da mulher também está lá. Veias, músculos, ossos,cada um em uma folha separada, é incrível. Como tudo se encaixa.”

“Eu não acho tão complicado assim, só parece complicado quandopensamos no assunto. Como muitas outras coisas.”

“Como são maravilhosamente redondos. Semicírculos perfeitos.”

“Hemisférios.”“Isso soa tão político.”“Hemisférios de influência.”“Essa é uma das não alegrias. O desmoronamento das zonas

erógenas. Olhei para minha bunda no espelho outro dia e vi umasdobras bem nítidas, inegáveis. Talvez seja por isso que estou comtorcicolo.”

“Na Nemo’s tem um sanduíche de linguiça bem bom.”“Pimenta demais. Fidel está influenciando Rebecca. Ele a está

deixando com mais sabor.”“De que cor você acha que os filhos deles seriam?”“Bege.”“Café com leite.”“Assim está invasivo demais?”“Não exatamente.”“Ah, como ela fala bonito!”“Ah, meu Deus: o problema quando se é jovem e bonita é que

ninguém ajuda você a apreciar isso de verdade. Quando eu tinha vintee dois anos e estava no auge, acho que tudo que me importava eraagradar à minha sogra e ser tão boa de cama quanto aquelas putas queMonty tinha conhecido na faculdade.”

“E como ser rico. Você sabe que tem uma coisa, e fica tensapensando que todo mundo vai querer tirar vantagem de você.”

“Darryl não parece se preocupar com isso.”“Mas, afinal de contas, quanto dinheiro ele tem?”“Sei que ele ainda não pagou a conta do Joe.”“Os ricos são assim. Eles seguram o dinheiro e recolhem os juros.”“Preste atenção, meu amor.”“Como eu poderia não prestar?”“As pontas dos meus dedos estão todas enrugadas.”“Talvez esteja na hora de vermos se os anfíbios conseguem pôr

seus ovos em terra.”

“Está bem.”“Vamos lá.”Jogando água para todos os lados, elas emergiram da banheira,

pesadas: prata nascida do chumbo em meio a um tumulto químico.Tatearam em busca de toalhas.

“Mas onde ele está?”“Dormindo, talvez? Devo dizer que deixei ele bastante cansado no

jogo.”“Dizem que, se você não passar óleo depois, a água não faz bem

para a pele depois de uma certa idade.”“Nós temos cremes.”“Temos baldes de cremes.”“Deite-se, pronto. Ainda está relaxada?”“Ah, sim. Estou mesmo.”“Aqui tem outra, bem debaixo do seu peitinho bonito. Parece um

focinhozinho cor-de-rosa.” Embora estivesse muito escuro ali, nãoparecia estranho elas conseguirem ver isso, pois as pupilas das quatrohaviam se expandido como se quisessem transbordar das íriscinzentas, cor de avelã, castanhas e azuis.

Uma das bruxas beliscou a verruga de Jennifer e perguntou: “Vocêsente alguma coisa?”

“Não.”“Ótimo.”“Está sentindo alguma vergonha?”, perguntou outra. “Não.”“Que bom”, afirmou a terceira.“Ela não é ótima?”“É, sim.”“Pense só em uma palavra: ‘Flutuar’.”“Tenho a sensação de estar voando.”“Nós também.”“O tempo todo.”“Estamos bem aqui com você.”

“Está incrível.”“Eu na verdade adoro ser mulher”, disse Sukie.“E melhor adorar, mesmo”, disse Jane Smart, seca.“Quer dizer, não é só propaganda”, insistiu Sukie.“Meu bebê”, dizia Alexandra.“Ah”, deixaram escapar os lábios de Jenny. “Devagar. Mais

devagar.”“É o paraíso.”

Depois que Sukie desligou, Alexandra pensou que estavamsurgindo rachaduras em algo que durante algum tempo pareceraperfeito. Deu-se conta de que estava desatualizada. Ela queria que ascoisas nunca mudassem, ou melhor, que sempre se repetissem damesma forma, como na natureza. O mesmo emaranhado de heravenenosa e americana no muro desmoronado nos fundos do brejo, amesma cintilante mistura de minerais nos seixos da estrada. Comoeles são magníficos e abissais, os seixos! Eles existem a toda a nossavolta e têm bilhões de anos de idade, e não apenas ficaramarredondados e lisos depois de serem remexidos pelas ondas duranteséculos, mas sua própria matéria foi misturada e modificada pelosoerguimento das montanhas e por sua contínua erosão, não apenasuma vez, mas várias vezes ao longo da vasta sucessão de eras que vãose acumulando, montanhas encimadas de neve surgidas onde RhodeIsland e Nova Jersey hoje têm seus charcos, enquanto os oceanosproduziram diátomos onde hoje se erguem as Montanhas Rochosas,cheias de fósseis de trilobitos encastrados em suas encostas. QuandoAlexandra era menina, ficava fascinada com os museus e suas

exposições de minerais, prismas cristalinos entrelaçados cujas coresseriam vulgares caso não houvessem saído diretamente da natureza,lepidolita, crisoberilo, turmalina, cada qual com seu nome de realeza,todos liberados pelo movimento da terra como gigantescas faíscascongeladas, mostrando como eram fluidos os afloramentos de granitoà nossa volta, e como os continentes boiavam em basalto. As vezes elaficava tonta, presa a todo esse vasto movimento incrementai, e suaconsciência parecia uma lasca de mica. Tinha a persistente sensação deque não estava apenas viajando pelo universo, mas que era suaparceira, ela própria imensa por dentro, capaz de extrair remédios daebulição de ervas daninhas e de projetar tempestades com opensamento. Ela e a ebulição eram uma coisa só.

No inverno, quando as folhas caíam, lagos esquecidos seaproximavam pela floresta, congelados e brilhantes, e as luzesvestidas de verão da cidade brilhavam acolhedoras, criando toda umanova população de sombras e retângulos luminosos sobre o papel deparede dos cômodos que sua insônia inclemente a fazia percorrer. Eraà noite que seus poderes mais a afligiam. Os rostos de palhaçoscriados pela sobreposição das peônias de suas cortinas de chintzpovoavam as sombras e afugentavam-na do quarto de dormir. Obarulho da respiração das crianças pulsava pela casa, assim como osgrunhidos do aquecedor. A luz do luar, com um gesto brusco e segurodas mãos rechonchudas que mal começavam a exibir nas costas asmanchas da velhice, ela ordenava ao aparador de bordo (que haviapertencido à avó de Ozzie) que se movesse dez centímetros para aesquerda; ou então fazia uma luminária com a base semelhante a umvaso chinês — cujo fio se retorcia e acenava pelo ar atrás dela como aabsurda plumagem da cauda de uma ave-lira — trocar de lugar comum candelabro de bronze do outro lado da sala de estar. Certa noite,os latidos de um cachorro no quintal de um dos vizinhos atrás dafileira de salgueiros nos fundos do seu quintal a deixaramespecialmente irritada; sem pensar direito, ela desejou que ele

morresse. O cachorro era um filhote, ainda não acostumado a ficaramarrado, e ela pensou tarde demais que teria sido igualmente fácildesamarrar a coleira invisível, pois as bruxas são acima de tudoadeptas do nó, da aiguillette, com que promovem enamoramentos ealianças, infertilidade em mulheres ou no gado, impotência noshomens e descontentamento nos matrimônios. Com os nós, elasatormentam os inocentes e embaralham o futuro. Seus filhosconheciam o filhote de cachorro, e na manhã seguinte a mais nova,Linda, chegou em casa aos prantos. Os donos ficaram suficientementezangados para pedir ao veterinário que fizesse uma autópsia. Este nãoencontrou nenhum veneno ou sinal de doença. Foi um mistério.

O inverno passou. No escuro laboratório das noites de nevasca, oscartões-postais da Nova Inglaterra iam se revelando; o sol da manhãos expunha em todas as suas cores. As calçadas não totalmente retasda Dock Street, das quais a neve havia sido removida em algunstrechos com o auxílio de pás, exibiam desenhos de pegadascomprimidas de botas, como biscoitos brancos encardidos cheios demarcas. Uma profusão serrilhada de placas de gelo esverdeadasflutuava para lá e para cá com as marés, arremetendo contra ascolunas barbadas repletas de cracas debaixo da mercearia BaySuperette. O jovem novo editor do Word, Toby Bergman, escorregouem um pedaço de gelo em frente à barbearia e quebrou a perna. Umacúmulo de gelo durante as férias de inverno dos donos da YappingFox na ilha de Sea Island, Geórgia, fez litros e litros d’água brotarempor capilaridade por entre as tábuas das paredes da loja e escorrerempelo interior da parede da frente, estragando uma fortuna de bonecas

Raggedy Ann e recortes de papel feitos por deficientes físicos.No inverno, sem os turistas, a cidade se acomodava de maneira

mais compacta, como um pedaço de lenha queimando na lareira atétarde da noite. Em frente à mercearia, um grupo reduzido deadolescentes aguardava o Volkswagen pintado com desenhospsicodélicos do traficante de drogas do sul de Providence. Nos diasmais frios, eles se refugiavam lá dentro e, até serem expulsos pelogerente irado (que fazia bicos como contador e só dormia quatro horaspor noite), amontoavam-se para se manter aquecidos junto a uma daslaterais do aquecedor elétrico, ao lado da máquina de chiclete e deoutra que, por um cent, liberava um punhado de pistaches molengascujas cascas haviam sido pintadas com um cor-de-rosa psicodélico.Aquelas crianças eram mártires, de certa forma, assim como o bêbadoda cidade com seus tênis de basquete e seu sobretudo sem botões,bebendo conhaque de amora de um saco de papel sentado no bancoda praça em Kazmierczak Square e se arriscando todas as noites amorrer congelado; mártires de certa forma eram também os homens emulheres que andavam apressados rumo a encontros adúlteros,arriscando-se à desgraça e ao divórcio em troca de sua dose de amorem hotéis baratos — todos eles sacrificavam o mundo exterior em proldo interior, proclamando com essa prioridade que tudo deaparentemente sólido e concreto que há no mundo é na verdade umsonho, e vale menos do que uma misericordiosa onda de sensações.

Com o avanço do inverno, os clientes da Nemo’s — o policial deplantão, o carteiro na hora do descanso, os três ou quatro homenscorpulentos que viviam do seguro-desemprego antes do renascimentoprimaveril da construção civil e da pesca — tornavam-se tãoconhecidos uns pelos outros e pelas garçonetes que até mesmo oscomentários casuais sobre o tempo e a guerra se esgotavam, e Rebeccatrazia os seus pedidos sem perguntar, já sabendo o que todosqueriam. Sukie Rougemont, que já não precisava mais de fofocas paraabastecer sua coluna “Olhos e Ouvidos de Eastwick” no Word,

preferia levar seus clientes e compradores em potencial para aatmosfera mais refinada e feminina do café Bakery Coffee Nook,algumas portas mais adiante, entre a loja de molduras de doishomossexuais originários de Stonington e a loja de ferragensadministrada por uma família de armênios aparentementeinterminável; a cada vez que você lá entrava, era atendido por umarmênio diferente, de altura diferente, mas todos com olhos brilhantese inteligentes e cabelos encaracolados que reluziam sobre a testa emfranjas compridas. Alma Sifton, dona do Bakery Coffee Nook, haviacomeçado no que antes era um velho restaurante de frutos do mar,com apenas uma cafeteira e duas mesas onde os clientes que nãoqueriam enfrentar a chuva de olhares da Nemo’s podiam comer umdoce e descansar os pés; depois novas mesas foram acrescentadas,assim como uma linha de sanduíches fáceis de preparar, em suamaioria patês (de ovos, de presunto, de frango). No segundo verão,Alma teve de construir no café um anexo duas vezes maior do que ooriginal e instalar uma grelha e um forno de micro-ondas; a comidagordurosa do tipo da que se servia na Nemo’s estava virando coisa dopassado.

Sukie estava adorando o emprego novo: entrar na casa dos outros,mesmo nos sótãos, porões, lavanderias e corredores dos fundos, eracomo ir para a cama com homens: uma sucessão de saboressutilmente diversos. Não havia duas casas que tivessem exatamente omesmo estilo ou cheiro. A enérgica agitação de entrar e sair pelasportas, subir e descer escadas, passar o tempo inteiro dizendo bom-dia e até logo a pessoas que estavam elas próprias de mudança, assimcomo o risco inerente ao trabalho agradavam à aventureira que existiadentro dela, e eram um desafio para seu charme. Não era saudávelpassar o dia inteiro sentada, curvada em cima de uma máquina deescrever, respirando a fumaça do cigarro dos outros. Ela fez um cursonoturno em Wesley, passou na prova, e em março já tinha sua licençade corretora de imóveis.

Jane Smart continuava a dar aulas, a tocar órgão como substitutaem igrejas de South County, e ensaiar com seu violoncelo. Algumasdas suítes para violoncelo solo de Bach — a 3ª, com sua linda bourrée, ea 4ª, com aquela primeira página de oitavas e terças descendentes quese transforma em um lamento rodopiante, inconsolável, e até mesmo aquase impossível 6ª, composta para um instrumento de cinco cordas— em que ela se sentia, durante vários compassos, inteiramente emcomunhão com Bach, e sentia que a mente do compositor e a sua eramuma coisa só, e a paixão já ausente do alemão, menor até do que apoeira dispersada pelo vento, esticava-lhe os dedos e inundava oslobos de seu cérebro com triunfo, e o insistente questionamento daharmonia na composição era uma operação da sua própria almaperigosa. Então era aquela a imortalidade que havia levado os homensa construir suas pirâmides e fazer seus sacrifícios de sangue, aquelerenascimento de um carrancudo Kapellmeister luterano acostumado atrepar com a velha esposa no sistema nervoso de uma mulher solteirado final do século XX que já havia passado do seu auge. Que parcoreconforto isso devia proporcionar aos ossos dele. Mas a música defato falava, com sua sintaxe de variações e reexposições, reexposiçõese variações; os procedimentos mecânicos se acumulavam para formarum espírito, um hálito que criava ondulações na rápida matemáticadaquilo tudo como os passos que o vento deixa em uma água paradae negra. Aquilo era comunhão. Jane já não frequentava muito os Neffagora que estes faziam parte do círculo que Brenda Parsley reunira aoseu redor, e teria vivido em total solidão não fosse pelosfrequentadores da casa de Darryl van Horne.

Onde antes houvera três e depois quatro, agora havia seis, e àsvezes oito, quando Fidel e Rebecca eram convocados a participar dadiversão — uma partida de futebol americano simplificado, porexemplo, que eles jogavam com um pufe no espaço cheio de ecos dagrande sala de estar, com o imenso hambúrguer de vinil e as caixas depalha de aço impressas em silkscreen empurradas para o lado e

amontoadas abaixo dos quadros como quinquilharias em um sótão.Um certo desprezo pelo mundo físico, um apetite voraz por almasimateriais, impedia Van Horne de cuidar direito dos objetos quepossuía. O chão de tacos da sala de música, que ele havia mandadolixar e impermeabilizar a um custo considerável, já tinha váriosburacos abertos pelo espigão do violoncelo de Jane Smart. O sistemade som na sala da banheira havia suportado tanto vapor que todos osdiscos tocados emitiam estalos e chiados. Mas o mais espetacular detudo era que um furo havia misteriosamente esvaziado o domo daquadra de tênis em uma noite gelada, e a lona cinzenta jaziaesparramada em meio ao frio e à neve como a pele de umbrontossauro sacrificado, esperando a primavera, já que Darryl nãovia razão para cuidar do assunto antes de a quadra poder sernovamente usada como uma quadra aberta. Durante as partidas defutebol americano simplificado, ele era sempre um dos quarterbacks, eseus olhos míopes avermelhados rolavam nas órbitas quando ele davameia-volta para fazer um passe, com os cantos da boca salpicados comuma espuma de concentração. Ele não parava de gritar: “A zona depasse! A zona de passe!” — implorando para ser protegido, querendoque Sukie e Alexandra, por exemplo, bloqueassem Rebecca e Jenny,que se aproximavam para interceptá-lo, enquanto Fidel rodeava ogrupo aguardando o passe longo e Jane Smart se virava para receberum eventual passe de última hora. As mulheres riam do jogo e semostravam desengonçadas, sem conseguir levar aquilo a sério. ChrisGabriel efetuava os movimentos de forma robótica, lânguida, qual umanjo descrente perdido no meio de toda aquela bobagem adulta. Masele em geral aparecia, pois não tinha feito amigos da sua idade; ascidades pequenas dos Estados Unidos geralmente não têm pessoas dasua idade, elas estão todas na faculdade, ou então nas ForçasArmadas, ou ainda começando as carreiras em meio às tentações edificuldades de uma cidade grande. Jennifer passava muitas tardestrabalhando com Van Horne no laboratório, medindo gramas e

decilitros de pós e líquidos coloridos, desdobrando grandes folhas decobre revestidas com este ou aquele componente turbinado sob fileirasde luzes de teto enquanto fios pequeninos conduziam a medidoresque monitoravam a corrente elétrica. Bastava um pulinho da agulha,conforme explicaram para Alexandra, para uma riqueza maior do quetodos os tesouros do Oriente se derramar sobre Van Horne; enquantoisso, reinava um relento acre e triste de produtos químicos que pareciavir das catacumbas do universo, e uma bagunça de pias de alumínioprecisando ser escovadas, de substâncias derramadas e espalhadas, desifões de plástico embaçados e derretidos como por uma combustãosulfúrica, e de bécheres e alambiques de vidro com sedimentos pretosendurecidos grudados nos fundos e nas laterais. Jenny Gabriel, comum jaleco branco manchado e os óculos de sol grandes e feiosos queela e Van Horne usavam para se proteger da forte e contínua luz azul,movia-se em meio a esse caos esperançoso com curiosa autoridade,precisa e discretamente decidida. Ali, como nas orgias deles, a menina— mais do que uma menina, é claro; de fato, ela era apenas dez anosmais nova do que Alexandra — movia-se de um jeito impossível decontaminar e de certa forma intocada, mas mesmo assim estava entreeles, vendo, entregando-se, achando graça, sem julgar, como se nadafosse realmente novo para ela, muito embora sua vida pregressaparecesse ter sido de excepcional inocência, protegida em Chicagodentro da sua cidadela pela própria barbaridade dos tempos atuais.Sukie havia contado às outras como a moça praticamente lheconfessara, na Nemo’s, ainda ser virgem. No entanto, durante osbanhos e as danças, a moça lhes exibia seu corpo com uma certasimplicidade desavergonhada, e entregava-se às suas carícias demodo nada insensível e sem deixar de retribuir. O contato de suasmãos, que não era nem brusco e forte como as pontas calejadas dosdedos de Jane nem lépido e insinuante como no caso de Sukie, tinhaseu próprio estilo de penetração, demorando-se suavemente como emum adeus, um toque compreensivo, escorregadio e curioso, cada vez

menos hesitante, que conseguia penetrar até os ossos. Alexandraadorava quando Jennifer passava óleo em seu corpo enquanto elaficava deitada sobre as almofadas pretas ou sobre várias camadas detoalhas espalhadas por cima da ardósia, com a umidade da banheirarodeada e realçada por essências de babosa, coco e amêndoas, delactato de sódio e extrato de valeriana, capuz-de-frade e Cannabisindica. Nos espelhos embaçados que Van Horne havia mandadoinstalar em frente às portas dos chuveiros, dobras e ondas de carnereluziam, e a mulher mais nova, pálida e perfeita como uma bonecade porcelana, podia ser vista ajoelhada naqueles confins oblíquos queos espelhos criam. As mulheres inventaram uma brincadeira chamadaSirva-me, uma espécie de adivinhação, embora nada parecida com asadivinhações que Van Horne tentava organizar em sua sala de estarquando estavam todos bêbados, mas que desmoronavam diante dasdetonações de telepatia mental das bruxas e do fervor desengonçadode suas próprias mímicas, que desdenhavam representações ao pé daletra e tentavam, em vez disso, concentrar em uma única ferozexpressão facial títulos compridos como Declínio e queda do ImpérioRomano, Os infortúnios do jovem Werther ou A origem das espécies.Sirva-me, clamavam as peles e espíritos sedentos, e com infinitapaciência Jennifer passava óleo em cada bruxa, fazendo os líquidostransformadores penetrarem as dobras franzidas, por cima das pintas,ao redor das protuberâncias, esfregando o tempo a contrapeloenquanto deixava escapar pequenos arrulhos de passarinho paraexpressar empatia e elogio.

“Seu pescoço é lindo.”“Sempre achei curto demais. Atarracado. Sempre odiei meu

pescoço.”“Ah, mas não deveria. Pescoços compridos são grotescos, a não ser

em pessoas negras.”“Brenda Parsley tem gogó.”“Não vamos ser cruéis. Vamos cultivar pensamentos serenos.”

“Faça em mim. Faça em mim depois, Jenny”, provocou Sukie comuma voz melodiosa de criança; era impressionante como ela ficavainfantil e, quando fumava maconha, chegava a chupar o dedo.

Alexandra gemeu.“Que felicidade indecente. Estou me sentindo como uma porca

rolando no chão.”“Graças a Deus não está com o mesmo cheiro”, disse Jane Smart.

“Ou está, Jenny?”“Ela está com um cheiro delicioso e limpo”, disse Jenny,

comportada. De dentro daquele sino transparente de inocência oudesconhecimento, sua voz levemente anasalada saía como que vindade muito longe, embora soasse nítida; nos espelhos, ajoelhada, elaexibia o mesmo formato, tamanho e brilho de um daqueles pássarosde porcelana ocos, com furos nas duas extremidades, que as criançasusam para produzir algumas notas assobiadas.

“Jenny, a parte de trás das minhas coxas”, implorou Sukie.“Esfregue a parte de trás devagar, muito devagar. E use as unhas. Nãotenha medo da parte interna das coxas. Atrás dos joelhos émaravilhoso. Maravilhoso. Ai, meu Deus.” Ela levou o polegar à boca.

“Nós vamos exaurir Jenny”, alertou Alexandra com uma vozatenciosa, flutuante, indiferente.

“Não, eu gosto”, disse a moça. “Vocês todas ficam tãoagradecidas.”

“Nós fazemos em você”, prometeu Alexandra. “Assim quesairmos desse estado entorpecido.”

“Eu na verdade não gosto tanto assim de ser massageada”,confessou Jenny. “Prefiro fazer massagens a ter alguém fazendo emmim, não é perverso?”

“Funciona muito bem para nós”, disse Jane, sibilando a últimapalavra.

“Funciona, sim”, concordou Jenny com educação.Van Horne, talvez por respeito pela frágil iniciada, raramente

tomava banho com elas agora, ou quando o fazia saía da salarapidamente, com o corpo peludo enrolado em uma toalha da cinturaaté os joelhos, para distrair Chris com uma partida de xadrez ougamão na biblioteca. Depois, no entanto, vinha lhes fazer companhiavestindo roupas cada vez mais ridículas — um roupão de seda comestampa indiana cor de morango, por exemplo, com uma calça bocade sino com finas listras verdes horizontais aparecendo por baixo, eum cachecol lilás enrolado em volta do pescoço — e afetando um arcada vez mais exibido de benevolência professoral ao presidir o chá,os drinques, ou um jantar rápido de sancocho dominicano, pollo picadocon tocino mexicano ou soufflé de sesos colombiano. Van Horneobservava suas convidadas devorarem esses requintados pratosapimentados com um ar um tanto desanimado, dando baforadas emcigarros coloridos espetados em uma piteira de chifre curiosamenteretorcida que vinha exibindo ultimamente; ele próprio havia perdidopeso e parecia febril com suas esperanças de encontrar uma soluçãobaseada em selênio para o problema da energia. Afora esse tópico,muitas vezes caía em um silêncio apático, e às vezes saía da salaabruptamente. Em retrospecto, Alexandra, Sukie e Jane Smartpoderiam ter concluído que o estavam deixando entediado; mas elaspróprias estavam tão longe de estar entediadas com ele que o tédiosequer adentrava sua imaginação. A espaçosa casa, que elas haviamapelidado de Salão do Sapo, expandia suas residências humildes; noreino de Van Horne, elas abandonavam os filhos e se tornavam, elaspróprias, crianças.

Jane comparecia religiosamente a suas sessões de Hindemith,Brahms e, tentativa mais recente, o rodopiante, atordoante “Concertopara Violoncelo em Si Menor”, de Dvórak. A medida que o invernoderretia devagar, Sukie começou a ir e vir levando anotações ediagramas para seu romance, que ela e seu mentor acreditavam poderser pré-planejado e construído, uma simples máquina verbal paradespertar e em seguida aliviar a tensão. E Alexandra, tímida,

convidou Van Horne para ir ver as grandes, leves e envernizadasestátuas de mulheres flutuantes que havia fabricado com as mãoscheias de cola, espátulas de pedreiro e colheres de pau para salada.Recebeu-o encabulada em sua casa, que precisava de outra demão detinta em todos os cômodos do andar de baixo e de um linóleo novo nopiso da cozinha; e entre as paredes de sua casa ele de fato lhe pareceudiminuído e envelhecido, com o queixo azul e o colarinho puído nacamisa de Oxford de botões, como se a pobreza fosse algo infeccioso.Estava usando aquele mesmo paletó largo de tweed verde e preto comcotoveleiras de couro da primeira vez em que ela o vira, e se pareciatanto com um professor universitário desempregado, ou com umdaqueles homens tristonhos que, eternos alunos da pós-graduação,assombram qualquer cidade universitária, que ela se perguntou comohavia sido capaz de algum dia ver nele tanta magia e poder. Mas eleelogiou seu trabalho: “Meu amor, acho que você encontrou o seudom). Aquele mesmo aspecto meio piegas de Lindner, mas no seucaso sem a mesma dureza metálica, mais no espírito de um Mirò, esexy... sexy mesmo, nossa!”. Com uma rapidez e uma falta de jeitoalarmantes, ele enfiou três de suas esculturas de papel machê nobanco de trás do Mercedes, onde Alexandra achou que elas ficaramparecendo três pequenos caronas de cores berrantes, com os membrosrígidos e brilhantes embolados e os arames que as suspenderiam doteto todos emaranhados. “Vou de carro a Nova York depois deamanhã mais ou menos, e quero mostrar essas peças para o meuconhecido na rua 57. Aposto o meu último centavo que ele vai mordera isca; você realmente captou alguma coisa da tendência cultural deagora, uma espécie de clima de fim de festa. Uma irrealidade. Até osfilmetes sobre a guerra na TV parecem irreais, nós já vimos filmes deguerra demais na vida.”

Fora da casa, ao lado do carro, usando um casaco de pele decarneiro com os punhos e cotovelos encardidos e um chapéu de pelede carneiro combinando que não cabia direito na sua cabeça de

cabelos revoltos, ele pareceu a Alexandra estar além do seu alcance,uma causa perdida; no entanto, com um movimento imprevisível, elecedeu à inclinação de sua mente, tornou a entrar na casa junto com elae, com a respiração chiada, subiu até seu quarto de dormir e até acama que ela ultimamente vinha negando a Joe Marino. Gina estavagrávida de novo, e isso tornava as coisas simplesmente pesadasdemais. A potência de Darryl tinha um certo quê de infalível e deinsensível, e seu pênis frio a feria como se estivesse coberto porpequeninas escamas; mas, nesse dia, o fato de ele levar suas pobrescriações tão prontamente consigo para vender, assim como seuaspecto remendado, levemente murcho, e o grotesco chapéu de pelede carneiro encarapitado sobre sua cabeça, tudo isso havia derretido ocoração dela e tornado sua vulva super-receptiva. Pensando em setornar a próxima Niki de Saint-Phalle, ela poderia ter copulado comum elefante.

Em seus encontros no centro, na Dock Street, ou quando falavamao telefone, as três mulheres compartilhavam em silêncio a confrariade dor que acompanhava o fato de serem amantes daquele homemescuro. A aura de Jenny não revelava se ela carregava ou não essamesma dor. Quando descoberta na mansão por algum visitantevespertino, ela estava sempre vestida com seu jaleco e demonstravauma eficiência direta e formal. Van Horne a usava, entre outras coisas,por ela ser opaca, com os modos levemente frágeis e deferentes, poraquele seu jeito de deixar determinadas vibrações e insinuaçõesatravessarem-na por completo, e pela rotundidade algo esquemáticade seu corpo. Em qualquer grupo, cada membro se encaixa dentro deuma função específica, e a de Jenny era ser alvo de condescendência,ser “levada”, ser protegida como uma versão mais jovem de cada umadas três mulheres maduras, divorciadas, desiludidas e poderosas,embora nenhuma delas tivesse sido exatamente igual a Jenny, outivesse morado sozinha com o irmão caçula em uma casa na qual ospais tivessem tido mortes violentas. Elas a amavam segundo seus

próprios padrões e, para falar francamente, ela mesma nunca indicouque padrões teria preferido. O aspecto mais doloroso da imagem quea moça deixou depois de partir, pelo menos na opinião de Alexandra,foi a impressão de ter confiado nelas, de ter lhes feito confidências damesma forma que uma mulher em geral primeiro faz confidências aum homem, correndo o risco de ser destruída em sua determinação desaber. Ela havia se ajoelhado entre elas como uma dócil escrava edeixado seu corpo redondo e branco lançar as luzes de sua perfeiçãosobre suas formas escurecidas e imperfeitas molhadas e esparramadassobre almofadas negras, sob um teto que nunca mais se abrira depoisque, em uma noite gelada, Van Horne havia apertado o botão e umclarão criara uma luva de fogo azul em volta de sua mão cabeluda.

Na medida em que eram bruxas, as três eram fantasmas naimaginação da comunidade. Os moradores sorriam ao cumprimentaro rosto empertigado e sorridente de Sukie quando a viam passardepressa pela calçada torta; saudavam uma certa altivez emAlexandra quando, calçada com suas botas claras de montaria eusando a velha jaqueta de brocado, ela conversava em pé em frente àYapping Fox com a dona da loja — Mavis Jessup, ela tambémdivorciada e com a pele toda estragada, e os cabelos tingidos de ruivosoltos em cachos parecendo os da Medusa. Quando Jane Smartentrava em seu velho Plymouth verde-musgo com sua maçaneta gastae batia a porta, os moradores creditavam a seu semblante escuro ezangado uma certa distinção, uma ebulição interna do mesmo tipo daque, em outras cidades isoladas, havia produzido os versos de EmilyDickinson e o inspirado romance de Emily Brontè. As mulheresretribuíam cumprimentos, pagavam contas e, na loja de ferragens dosarmênios, tentavam, como todo mundo, descrever rabiscando o arcom os dedos a ferramenta necessária para consertar uma casa caindoaos pedaços, para combater a entropia; mas todos nós sabíamos quehavia alguma outra coisa naquelas mulheres, algo tão monstruoso eobsceno quanto o que ocorria no quarto de dormir até mesmo do

diretor-assistente da escola de ensino médio e sua esposa, ambossempre a piscar os olhos e parecendo tão dóceis quando sentados nasarquibancadas a supervisionar um baile de alunos com seuinsuportável latejar.

Todos nós sonhamos, e todos nós paramos, horrorizados, naentrada das cavernas de nossa morte; e essa é a nossa porta de acesso.Para o outro mundo. Antes da água encanada, nas antigas latrinas,durante o inverno, a merda acumulada da família se erguia formandouma estalagmite pontuda congelada, e fenômenos assim nos ajudam aacreditar que há mais coisas na vida do que os anúncios retocados emcapas de revistas, do que as formas platônicas dos frascos de perfume,do que camisolas de náilon e para-choques de Rolls-Royce. Talvez,nos corredores de nossos sonhos, nós nos encontremos com maisfrequência do que nos damos conta: um rosto branco iluminado poruma lamparina, espantado com a visão de outro. Com certeza aexistência da bruxaria pesava na consciência de Eastwick; umcalombo, uma densidade turva gerada por milhares de sobreposiçõestranslúcidas, uma espécie de corpo celeste, ela raramente eramencionada e, embora terrível, oferecia o consolo da completude, deaparar as arestas da imagem, como os dutos de gás sob a Oak Street eas antenas de televisão captando lá do céu episódios de Kojak ecomerciais da Pepsi. Ela possuía o contorno indefinido de algo vistoatravés da porta de um box de chuveiro e, viscosa, demorava aevaporar: por muitos anos após os acontecimentos aqui relatados comhesitação ou mesmo relutância, boatos de bruxaria macularam estaponta de Rhode Island, fazendo com que um arrepio deconstrangimento e inquietação adentrasse a atmosfera diante da maisinocente menção a Eastwick.

“Bom, eu achei”, disse Jane Smart ao telefone com ênfase, como setivesse certeza de que iriam contradizê-la, “que ela foi um poucoagradável demais. Recatada demais, Alice-no-país-das-maravilhasdemais. Acho que ela está tramando alguma coisa.”

“Mas o que poderia ser? Nós somos todas pobres feito Jó, e alémdisso somos o escândalo da cidade.” Os pensamentos de Alexandraainda estavam presos a seu ateliê, junto com a estruturasemipreenchida de duas mulheres flutuantes, levemente interligadas,perguntando-se, enquanto pregava aqui e ali punhados de papelpicado misturado com cola, por que não conseguia obter a segurançaque costumava imprimir às suas pequenas estatuetas de argila, às suaspequenas e pesadas peitudas criadas para repousar de forma tãosegura sobre mesas laterais e parapeitos de quartos de brincar.

“Pense na situação”, instruiu Jane. “De repente ela fica órfã. Eóbvio que as coisas não estavam andando bem lá em Chicago. A casaé grande demais para aquecer e os impostos são caros. Mas ela nãotem mais para onde ir.”

Ultimamente, Jane parecia decidida a ver maldade em tudo. Dolado de fora da janela, os galhos do mesmo marrom das penas dospardais de um inverno ainda sem neve se agitavam na brisa fria, e ocomedouro de pássaros balouçante precisava ser enchido. As criançasda família Spofford estavam passando as férias de Natal em casa, mastinham ido patinar no gelo, dando a Alexandra uma hora paratrabalhar; essa hora não devia ser desperdiçada.

“Eu achei Jennifer um bom acréscimo”, disse ela a Jane. “Nãodevemos ficar interiorizadas demais.”

“Também nunca devemos ir embora de Eastwick”, foi asurpreendente resposta de Jane. “Não é horrível o que aconteceu comEd Parsley?”

“O que houve? Ele voltou para Brenda?”“Vai voltar é em pedaços, isso sim”, foi a resposta cruel. “Ele e

Dawn Polanski voaram pelos ares em uma casa de Nova Jerseytentando fabricar bombas.” Alexandra se lembrou do rosto espectralde Ed na noite do concerto, a última vez que o vira, lembrou-se de suaaura tingida de um verde doentio e da ponta de seu nariz comprido evaidoso que parecia estar sendo puxada, de modo que seu rosto

escorregava de lado feito uma máscara de borracha. Ela poderia terdito nesse dia que ele estava condenado. A imagem dura de Jane aodizer que ele voltaria em pedaços partiu a própria Alexandra em dois,fazendo seu braço dobrado e sua mão saírem flutuando, com otelefone e a voz de Jane lá dentro, enquanto seus olhos e seu corpodeixavam os caixilhos da janela transpassá-los como as peçasmetálicas paralelas de um fatiador de ovo. “Ele foi identificado pelasimpressões digitais de uma mão encontrada nos escombros”, estavadizendo Jane. “Só a mão, sozinha. Passou na TV hoje de manhã, estousurpresa que Sukie não tenha ligado para você.”

“Sukie tem estado um pouco chateada comigo, talvez ela tenha sesentido ofuscada por Jennifer na outra noite. Coitado do Ed”, disseAlexandra, sentindo-se flutuar para longe em uma lenta explosão.“Ela deve estar arrasada.”

“Não a ponto de isso transparecer quando conversei com ela meiahora atrás. Ela pareceu preocupada sobretudo com o tamanho damatéria que a nova diretoria do Word iria querer; agora um rapazmais novo do que nós está trabalhando lá no escritório de Clyde, elefoi mandado pelos donos do jornal, que todo mundo acha que sãolaranjas da máfia, você sabe, aquela máfia que opera lá em FederalHill. Ele acabou de se formar na Brown e não sabe nada sobre otrabalho de editor.”

“Ela está se culpando?”“Não, por que iria se culpar? Ela nunca incentivou Ed a abandonar

Brenda e fugir com aquela piranhazinha ridícula, estava fazendo oque podia para manter o casamento dele. Sukie me disse que faloupara ele ficar com Brenda e com o cargo de pastor pelo menos até terpesquisado um pouco sobre relações públicas. E isso que essespastores e padres que saem da igreja vão fazer, relações públicas.”

“Não sei, ela poderia estar se culpando por estar envolvida nasituação de modo geral”, disse Alexandra com uma voz débil. “Elesencontraram as mãos de Dawn também?”

“Não sei que parte de Dawn eles encontraram, mas não vejo comoela poderia ter escapado a não ser...”

A não ser que fosse uma bruxa, foi o pensamento que ela calou.“Mesmo isso não iria adiantar muito contra a cordite, ou sei lá

como chamam isso. Darryl saberia.”“Darryl acha que eu estou pronta para tocar Elindemith.”“Querida, que maravilha. Eu gostaria que ele me dissesse que

estou pronta para voltar para minhas peitudas. Sinto falta do dinheiro,para começo de conversa.”

“Alexandra S. Spofford”, ralhou Jane Smart. “Darryl está tentandofazer algo maravilhoso por você. Aqueles galeristas de Nova Yorkconseguem dez mil dólares por um simples badulaque.”

“Não os meus badulaques”, disse ela, e desligou deprimida. Nãoqueria ser um mero ingrediente no caldeirão de veneno de Jane, partedo guisado local diário, queria olhar pela janela e ver quilômetros equilômetros de terra vazia e dourada, salpicada de sálvia, com oscumes das montanhas distantes tingidas de um branco tão vaporosoquanto o das nuvens, só que mais pontudas.

Sukie deve ter perdoado Alexandra por ter ficado tão encantadacom Jenny, pois ligou depois da cerimônia fúnebre em homenagem aEd para fazer um relato. Nesse meio-tempo, havia nevado: as pessoasse esquecem desse prodígio anual, da imponência que ele tem, decomo o ar ganha presença, das marcas diagonais dos flocos caídos acobrir tudo como as hachuras de uma água-forte, da grande boinatorta com a qual a piscina de passarinhos amanhece no dia seguinte,das cores mais escuras das folhas de carvalho secas e marrons que

resistiram à nevasca e das coníferas chamadas cicutas com seuspesados galhos verde escuros, do azul límpido do céu parecendo umatigela esvaziada com decisão, da animação que reverbera das paredesinteriores da casa, da vida subitamente intensa do papel de parede, daintimidade misteriosamente urgente da amarílis no vaso do peitoril dajanela com sua clara sombra fálica.

“Brenda fez o discurso”, contou Sukie. “E um homem gordosinistro da Revolução, de barba e rabo de cavalo. Ele disse que Ed eDawn eram mártires da tirania chauvinista, ou algo assim. Ficoumuito exaltado, e estava acompanhado por uma gangue vestida comumas roupas de Fidel Castro que eu tive medo de começar a nosespancar caso alguém murmurasse alguma coisa ou saísse da linha dealguma forma. Mas Brenda na verdade foi muito corajosa. Ela ficoumaravilhosa.”

“Ficou mesmo?” Um brilho, era assim que Alexandra se lembravade Brenda: uma cabeleira loura lustrosa presa em um coque apertado,virando-se na festa após o concerto em meio à confusão multicoloridadas auras. De outros encontros, sua memória conseguiu pescar umrosto comprido, um tanto pálido, com lábios complacentes pintadosde uma cor mais viva do que se poderia esperar, com o lustreveemente de uma rosa prestes a soltar as pétalas.

“Ela agora se veste de uma forma impecável: ternos escuros comombreiras e uma gravata de seda tão larga na frente que parece umguardanapo que ela esqueceu de tirar depois de comer lagosta. Faloudurante uns dez minutos, disse que pastor atencioso Ed tinha sido, tãointeressado em Eastwick e sua ecologia delicada, em seus jovensatormentados e tudo isso, até a sua consciência — e nessa parte, napalavra ‘consciência’, Brenda fez a voz ratear, você teria adorado, eenxugou os olhos com o lenço, só uma lágrima em cada olho, bemexato — até a sua consciência, disse ela, exigir que ele levasse suasenergias para fora dos limites desta cidade onde elas eram tãoapreciadas...” O dom para a imitação de Sukie estava agora a todo

vapor; Alexandra pôde ver seu lábio superior se franzir e se projetarde forma cômica. "... e dedicar essas energias, essas energiasmaravilhosas, a tentar corrigir o terrível, querida, o terrível mal-estarque está envenenando o sangue da nossa nação. Ela disse que a nossanação está lutando contra um feitiço maligno, e me encarou bem nosolhos.”

“O que você fez?”“Sorri. Não fui eu quem levou ele lá para Nova Jersey com o

esquadrão das bombas, foi Dawn. Falou-se muito pouco nela, aliás,depois que o gordo terminou. Na verdade não se falou nada. Pareceque nunca encontraram nenhum pedaço dela, só peças de roupa quepoderiam ter saído de um armário. Aquela pilantrinha talvez tenhasaído voando pelo telhado. Mas os Polanski apareceram, ou sei lácomo eles se chamam, o padrasto e a mãe, vestidos como quem saiude um filme da década de 1930. Acho que eles não saem muito dotrailer. Eu não parei de olhar para a mãe, me perguntando sobre astais acrobacias que ela faz para o circo, devo dizer que ela manteveum belo corpo; mas que rosto... Assustador. Tão áspero que haviacoisas brotando por toda a superfície como acontece no calcanharquando usamos algum sapato que machuca. Ninguém soube o quedizer a eles, já que a menina era só a namoradinha do Ed e nem estavaoficialmente morta. Nem mesmo Brenda soube muito bem como secomportar na porta da igreja, já que aquela família de certa formaestava na origem dos seus problemas, mas devo dizer que ela foimagnífica: muito cortês, muito grande dame, e deu a eles os pêsamescom os olhos marejados. Brenda não é do nosso tipo, eu sei, mas eurealmente admiro a forma como ela se reaprumou e deu umareviravolta na sua situação. Falando em situações...”

“Sim?”, perguntou Alexandra, na deixa. A pausa tinha sido umteste para ver se ela ainda estava prestando atenção. Alexandra,distraída, traçava pontinhos com a ponta dos dedos nos trechosembaçados das vidraças de baixo da janela da cozinha: reproduções

semiconscientes de neve, ou das sardas de Sukie, ou dos furinhos nobocal do telefone, ou dos pingos de tinta com os quais Niki de Saint-Phalle decorava suas “Nanas” de sucesso internacional. Alexandraestava feliz por Sukie estar novamente falando com ela; às vezes temiaque, se não fosse por Sukie, perderia todo o contato com o mundo dosacontecimentos cotidianos e sairia velejando rumo à estratosfera damesma forma que Dawn havia explodido naquela casa em NovaJersey.

“Eu fui demitida”, disse Sukie.“Querida! Não! Como eles puderam fazer uma coisa dessas, você

agora é a única coisa que não é lúgubre lá naquele jornal.”“Bom, talvez se possa dizer que eu me demiti. O menino que

entrou no lugar do Clyde, que tem algum nome judeu do qual nãoconsigo me lembrar, Bernstein, Birnbaum, eu nem quero me lembrar,cortou o obituário que escrevi sobre Ed de uma coluna e meia paradois paragrafozinhos idiotas; disse que estavam com um problema deespaço esta semana porque outro pobre morador da região foi mortono Vietnã, mas eu sei que é porque todo mundo contou para ele queEd era meu amante, e ele tem medo de que eu passe dos limites notexto e as pessoas comecem a comentar. Muito tempo atrás, Ed medeu uns poemas que ele tinha escrito ao estilo de Bob Dylan e eu defato tinha incluído um ou dois, mas não teria me importado se elestivessem vindo me procurar e me pedido para cortar; mas eles tiraramaté a parte onde eu dizia que Ed tinha fundado o Grupo para aHabitação Justa e ele tinha terminado no primeiro terço da classe naEscola de Teologia de Harvard. Eu disse ao menino: ‘Você acabou dechegar em Eastwick, e acho que não percebe a figura amada que era oreverendo Parsley’, e aquele moleque da Brown sorriu e falou: ‘Euouvi dizer que a amada dele era você’, e eu falei: ‘Eu me demito. Douduro para escrever meus textos e o senhor Gabriel quase nuncacortava nenhuma palavra’. Isso fez aquele pirralho insuportável sorrirmais ainda, e não tive outra alternativa senão sair pela porta. Na

verdade, antes de sair, eu tirei o lápis da mão dele e o quebrei bem nasua frente.”

Alexandra riu, grata por ter uma amiga tão impetuosa, uma amigade três dimensões, ao contrário daqueles malvados rostos de palhaçoem seu quarto de dormir.

“Ah, Sukie, você fez isso mesmo?”“Fiz, e até disse: ‘Vá se danar’, e joguei os dois pedaços do lápis em

cima da mesa dele. Que judeuzinho mais arrogante. Mas e agora, oque eu faço? Só tenho uns setecentos dólares no banco.”

“Quem sabe Darryl...” Os pensamentos de Alexandra de fatovoavam para Darryl van Horne a toda hora: seu rosto ansioso demaischeio de gotinhas de saliva, e determinados cantos empoeirados desua casa à espera de um toque feminino, e instantes como aquele,imóvel, depois de ele dar sua risada que parecia um latido áspero equebradiço, quando seu maxilar se fechava com um estalo e o mundoparecia precisar se libertar de um feitiço momentâneo. Essas imagensnão visitavam a mente de Alexandra mediante um convite ou comalgum objetivo, mas do mesmo jeito que uma estação de rádiointerfere em outra quando se viaja por uma estrada sinuosa. EnquantoSukie e Jane pareciam ter tirado de seus ritos na ilha uma força eveemência renovadas, Alexandra sentia que a substância de suaexistência independente tinha passado de argila a papel, e que os laçosque a prendiam à natureza haviam afrouxado. Ela deixara suas rosasentrarem no inverno sem cobrir suas raízes; não fizera compostagemcom as folhas como em outros novembros; vivia se esquecendo deencher o comedouro de pássaros e não se dava mais ao trabalho debater na janela para afugentar os ávidos esquilos cinzentos. Arrastava-se para lá e para cá com uma lassidão que até Joe Marino percebeu, eque o deixou desanimado. Com uma esposa, o tédio faz parte docontrato social, mas o tédio com uma amante mina a vida de umhomem. Tudo que Alexandra queria era deixar os ossos de molhodentro da banheira quente de teca e recostar a cabeça no peito

cabeludo de Van Horne enquanto o sistema de som irradiava a voz deTiny Tim: “Vamos viver a vida ao sol, vamos amar ao luar, vamos nosdivertir a valer!”.

“Darryl está cheio de problemas”, contou-lhe Sukie. “A prefeituraestá prestes a cortar o fornecimento de água da mansão porque elenão pagou a conta e ele, por sugestão minha, eu acho, contratou JennyGabriel para ser sua assistente no laboratório.”

“Por sugestão sua?”“Bom, ela afinal tinha um trabalho de técnica de laboratório lá em

Chicago, e agora aqui passa praticamente o tempo todo sozinha...”“Sukie, minha querida culpada. Como você é dissimulada!”“Eu achei que devia uma coisinha qualquer a ela, e ela fica mesmo

muito bonitinha e séria com aquele jaleco branco lá no laboratório.Nós fomos lá ontem, todo um grupo.”

“Teve uma festa lá ontem e ninguém me falou?”“Não foi uma festa de verdade. Ninguém tirou a roupa.”Alexandra disse a si mesma que precisava se controlar. Precisava

encontrar um novo centro para sua vida.“Durou menos de uma hora, meu amor, eu juro. Simplesmente

aconteceu. O cara do Departamento Municipal de Águas estava látambém, com um mandado judicial ou sei lá o que eles precisamlevar. Aí ele não conseguiu achar o registro e aceitou um drinque, etodos experimentamos o capacete dele. Você sabe que a preferida deDarryl é você.”

“Não sou, nada. Eu não sou tão bonita quanto você nem faço todasas coisas que Jane faz para ele.”

“Mas você tem o mesmo tipo físico que ele”, garantiu-lhe Sukie.“Vocês formam um belo casal. Sério, querida, eu preciso correr. Ouvidizer que a imobiliária Perley talvez contrate uma nova estagiária empreparação para o movimento da primavera.”

“Você vai vender imóveis?”“Talvez eu tenha que fazer isso. Preciso fazer alguma coisa, estou

gastando milhões em tratamentos ortodônticos, e nem consigoentender por quê; os dentes de Monty eram lindos e os meus não sãoruins, sou só um pouco dentuça.”

“Mas Marge é — o que foi que você disse sobre Brenda — ela é donosso tipo?”

“Se me der um emprego, sim.”“Pensei que Darryl quisesse que você escrevesse um romance.”“Darryl quer, Darryl quer”, disse Sukie. “Se Darryl pagar minhas

contas, aí sim poderá ter o que quer.”

3. Culpa

Lembrem-se dos famosos julgamentos de bruxaria:nem os mais perspicazes e clementes juízes tinham

qualquer dúvida quanto à culpa das acusadas;as próprias “bruxas” não duvidavam disso

— no entanto, não havia culpa.

FRIEDRICH NIETZSCHE, 1887

“FOI MESMO?”, perguntou Alexandra para Sukie ao telefone. Corria omês de abril; a primavera fazia Alexandra se sentir entorpecida eúmida, demorando para entender até mesmo o mais simples dos fatosem meio à onipresente névoa de seiva que havia recomeçado a fluir,de filamentos orgânicos que novamente se aqueciam para rachar aterra mineral e fazê-la produzir ainda mais vida. Ela haviacompletado trinta e nove anos em março, e isso também tinha seupeso. Mas Sukie soava mais animada do que nunca, ofegante detriunfo. Ela havia conseguido vender a casa dos Gabriel.

“Foi um casal adorável, sério e um pouco mais velho, chamadoHallybread. Ele leciona física na universidade em Kingston, e ela, achoeu, orienta pessoas, ou pelo menos não parava de me perguntar o queeu pensava, coisa que eu acho que faz parte da técnica que elesaprendem. Eles tiveram uma casa em Kingston por vinte anos, mas,agora que está aposentado e tem um veleiro, ele quer morar maisperto do mar. Eles nem se importam que a casa ainda não tenha sido

pintada, e têm netos e netos postiços que vão visitá-los, então vãopoder usar aqueles cômodos meio tristonhos do segundo andar ondeClyde guardava todas as suas revistas velhas, é um espanto que opeso não tenha quebrado as vigas.”

“E as emanações, eles vão se incomodar com isso?” Pois algunsdos outros interessados que haviam visitado a casa durante o invernotinham lido sobre o assassinato e o suicídio e se assustado. Mesmocom toda a ciência moderna, as pessoas continuam supersticiosas.

“Ah, sim, eles leram a respeito quando aconteceu. A notícia saiucom destaque em todos os jornais do estado, com exceção do Word.Eles ficaram pasmos quando alguém, que não fui eu, lhes disse queaquela era a casa. O professor Hallybread olhou para a escada e disseque Clyde devia ter sido um homem inteligente para cortar a corda nocomprimento exato para seus pés não tocarem os degraus. Eurespondi que o senhor Gabriel tinha sido um homem muitointeligente, sim, que vivia lendo em latim e sobre uns assuntosastrológicos obscuros, e acho que pensar em Clyde me fez começar aficar com os olhos marejados, porque a senhora Hallybread pôs obraço em volta do meu ombro e começou a agir, você sabe, comoorientadora. Acho que isso na verdade talvez tenha ajudado a vendera casa, pois nos colocou em uma situação na qual eles praticamentenão podiam dizer não.”

“Como eles se chamam? Os nomes de batismo?”, perguntouAlexandra, pensando se a lata de sopa de mariscos que estavaesquentando no fogão iria ferver e derramar. Pelo fio do telefone, avoz de Sukie tentava dolorosamente lhe transmitir uma vitalidadeprimaveril. Alexandra tentou reagir e mostrar interesse por aquelaspessoas que nunca havia encontrado, mas as células do seu cérebro jáestavam muito embotadas com as pessoas que havia encontrado epassado a conhecer e que a haviam empolgado, ou mesmo que elahavia amado e depois esquecido. Aquele cruzeiro para a Europa abordo do Coronia vinte anos antes com Oz tinha por si só gerado

conhecidos suficientes para povoar uma vida inteira — seuscompanheiros à mesa cuja borda se erguia quando o tempo piorava,as pessoas deitadas sob cobertores ao seu lado no convés tomandocaldo no meio da manhã, os casais encontrados no bar à meia-noite, oscamareiros de bordo, o capitão com sua barba ruiva cortada emformato quadrado, todos tão interessantes e simpáticos porque eleseram jovens, jovens: a juventude é uma espécie de dinheiro, deixa aspessoas obsequiosas. Mais todos aqueles com quem ela haviaestudado no colégio e na faculdade em Connecticut. Os rapazes comsuas motocicletas, os pseudocaubóis. Mais um milhão de rostos pelasruas das cidades, homens bigodudos carregando guarda-chuvas,mulheres curvilíneas parando para ajeitar uma meia diante de umaloja de sapatos, carros parecendo caixas cheias de rostos como ovos apassar o tempo inteiro — todas pessoas reais, com nomes, com almascomo se costumava dizer, agora compactadas em sua mente como umcoral cinza e morto.

“Uns nomes bem bonitinhos”, estava dizendo Sukie. “Arthur eRose. Não sei se você iria gostar deles ou não, eles me parecerampráticos mais do que artísticos.”

Um dos motivos da depressão de Alexandra era que, algumassemanas antes, Darryl tinha voltado de Nova York com a notícia deque o galerista da rua 57 achara suas esculturas parecidas demais comas de Niki de Saint-Phalle. Além disso, duas das três tinham voltadodanificadas; Van Horne levara Chris Gabriel consigo para ajudá-lo adirigir (Darryl ficava histérico na autoestrada de Connecticut:caminhões colando em sua traseira, chiando e sacolejando por todosos lados, e aqueles repulsivos motoristas obesos olhando irados paraseu Mercedes das cabines altas e sujas), então no caminho de voltaeles tinham dado carona a um sujeito no Bronx, de modo que aspseudonanas do banco de trás tinham sido empurradas para abrirespaço. Quando Alexandra comentou com Van Horne sobre osmembros tortos, as partes amassadas do frágil papel machê e um dos

polegares totalmente arrancado, o rosto dele adquiriu aquela suaexpressão remendada, com os olhos e a boca díspares demais paraentrarem em foco, o vítreo olho esquerdo virado para fora em direçãoà orelha e a saliva a brotar dos cantos da boca.

“Nossa, bom”, dissera ele, “o pobre rapaz estava lá em pé na viaexpressa Deegan, a poucos quarteirões da pior favela da porra dopaís, e poderia ter sido assaltado e morto se não tivéssemos lhe dadocarona.” Ele pensava como um taxista, percebeu Alexandra. Maistarde, ele lhe perguntou: “Por que você pelo menos não tentatrabalhar com madeira? Acha que Michelangelo algum dia perdeutempo com jornais velhos cheios de cola?”.

“Mas para onde Chris e Jenny vão?”, ela conseguiu reunir forçaspara perguntar. Outro pensamento desconfortável em sua mente eraJoe Marino, que, mesmo tendo admitido que Gina estava esperandooutro filho, vinha se mostrando cada vez mais carinhoso e atenciosoem relação à sua ex-amante, aparecendo em horários inusitados paraatirar gravetos em suas janelas e conversar muito a sério em suacozinha (ela não o deixava mais entrar no quarto) sobre deixar Gina ese mudar junto com Alexandra e os quatro filhos dela para uma casaem algum lugar ali perto mas fora de Eastwick, quem sabe emCoddington Junction. Ele era um homem tímido e decente, e não tinhaintenção de arrumar outra amante; isso teria sido desleal para com otime que havia formado. Alexandra não parava de reprimir opensamento de que preferia ser solteira a casada com um encanador;já bastava Oz e seus metais cromados. Mas o simples fato de pensaralgo tão esnobe e cruel a deixava culpada o suficiente para ceder esubir com Joe até a cama. Ela havia engordado três quilos durante oinverno, e essa camada extra de gordura talvez estivesse dificultandoseus orgasmos; o corpo nu de Joe parecia um espírito mau e, quandoela abria os olhos, tinha a impressão de que ele ainda estava com ochapéu na cabeça, aquele chapéu de lã absurdo com sua borda estreitae sua peninha marrom iridescente.

Ou talvez, em algum lugar, alguém tivesse amarrado umaaiguillette relacionada à sexualidade de Alexandra.

“Sabe-se lá”, respondeu Sukie. “Acho que nem eles sabem. Elesnão querem voltar para o lugar de onde saíram, isso eu sei. Jenny temtanta certeza de que Darryl está próximo de uma descoberta nolaboratório que quer pôr toda a sua parte do dinheiro da casa noprojeto dele.”

Isso deixou Alexandra chocada e a fez prestar muita atenção, fosseporque qualquer assunto relacionado a dinheiro é mágico, ou entãoporque não havia lhe ocorrido que Darryl van Horne precisasse dedinheiro. Que elas todas precisavam de dinheiro — os cheques dapensão alimentícia demoravam cada vez mais para chegar, osdividendos estavam baixos por causa da guerra e da economiasuperaquecida, e os pais resistiam a qualquer aumento, fosse ele deapenas um dólar no preço de meia hora de aula de piano dada porJane Smart, e as novas esculturas de Alexandra valiam menos do queos jornais rasgados para fabricá-las, e Sukie tinha de esticar seu sorrisopor semanas entre uma e outra comissão — era um fato, e isso davaum toque de miséria galante a suas pequenas festividades, àextravagância de uma garrafa nova de Wild Turkey ou de uma latinhade castanhas de caju inteiras ou anchovas. E naquela época de revoltasnacionais, com toda uma geração entregue ao marketing e aoconsumo de drogas, era cada vez mais raro ver uma esposa furtivabater na porta dos fundos atrás de um grama de orquídeas secas paramisturar em um caldo afrodisíaco para o marido impotente, ou umaviúva amante dos pássaros querendo meimendro negro paraenvenenar o gato do vizinho, ou um tímido adolescente esperandoconseguir trinta gramas de erva da lua ou giesta para impor suavontade a um mundo ainda rico em possibilidades e cheio como umacolmeia de tesouros intocados. Nuas e risonhas, nos dias de inocênciaem que ainda estavam recém-liberadas das amarras do trabalhodoméstico, as bruxas costumavam sair de casa sob a lua crescente para

ir colher as ervas escondidas na rara e delicada fronteira estrelada desolo adequado, umidade e sombra. O mercado para toda a sua magiaestava desaparecendo, tão comum e multiforme se tornara a bruxaria;mas, se elas eram pobres, Van Horne era rico, e sua riqueza era delaspara usufruir durante as horas escuras de férias de seus melancólicosdias ensolarados. O fato de Jenny Gabriel talvez lhe dar um dinheiroque era seu, e de ele aceitar, era uma transação que Alexandra jamaishavia cogitado.

“Você conversou com ela sobre isso?”“Eu disse a ela que seria uma loucura fazer isso. Arthur

Hallybread leciona física e, segundo ele, não existe base nenhuma narealidade eletromagnética para o que Darryl está tentando fazer.”

“Isso não é o tipo de coisa que os professores universitáriossempre dizem para quem tem alguma ideia?”

“Não fique tão na defensiva, querida. Não pensei que você ligassetanto para isso.”

“Na verdade, não me importa o que Jenny faz com o dinheirodela”, disse Alexandra. “Mas ela é outra mulher. Como reagiu quandovocê disse isso a ela?”

“Ah, sabe, ela arregalou os olhos e me encarou sem piscar, e oqueixo dela ficou um pouco mais pontudo, e foi como se ela nãotivesse me escutado. Por baixo daquela docilidade toda ela na verdadeé teimosa. E boa demais para este mundo.”

“E, acho que é essa a mensagem que ela transmite”, disseAlexandra devagar, triste ao sentir que elas estavam se virando contraJenny, sua própria e linda criatura, sua ingénue.

Mais ou menos uma semana depois, Jane Smart ligou furiosa.“Você não poderia ter adivinhado? Alexandra, você anda mesmo

distraída ultimamente.” Seus esses causavam dor, ardidos comocabeças de fósforo. “Ela vai se mudar para lá! Ele convidou ela eaquele seu irmãozinho horrível para se mudarem para lá!”

“Para o Salão do Sapo?”“Para a velha mansão Lenox”, disse Jane, descartando o apelido

que elas certa vez tinham dado à casa como se Alexandra estivessefalando besteira. “Era essa a intenção dela o tempo todo, se ao menosnós tivéssemos aberto os nossos olhos bobos. Nós fomos tão gentiscom aquela menina sem graça, nós a acolhemos, fizemos o quesabemos fazer, embora ela de fato sempre tenha se contido como se naverdade estivesse acima de tudo aquilo e o tempo fosse revelar averdade, como alguma Cinderelazinha arrogante agachada no meiodas cinzas sabendo que o seu futuro contém um sapato de cristal...Ah, o que me enfurece agora é a afetação dela, passeando para lá epara cá com aquele jaleco branco bonitinho e recebendo por isso,quando ele deve dinheiro a todo mundo na cidade, e o banco estápensando em executar a hipoteca, só que não quer ficar preso com oimóvel, a manutenção daquilo lá é um pesadelo. Sabe quanto custariaum telhado novo para aquela casa?”

“Meu amor”, disse Alexandra, “você está soando tão financeira.Onde foi que ficou sabendo disso tudo?”

Os gordos brotos amarelos dos lilases haviam liberado seusprimeiros rebentos de folhas em forma de coração, e os caulesarqueados das forsítias, já depois da floração, haviam se tornadoverde-claros como salgueiros em miniatura. Os esquilos cinzentostinham parado de frequentar o comedouro de pássaros, ocupadosdemais se acasalando para comer, e as videiras, que durante o invernotodo haviam parecido tão mortas, voltavam a cobrir o caramanchão.Nessa semana, à medida que a lama da primavera secava e ia ficandoverde, Alexandra estava se sentindo menos deprimida; tinha voltado a

fabricar suas pequenas peitudas de argila, preparando-se para omovimento do verão, e elas agora eram um pouco maiores, comanatomias mais sutis e uma intensidade propositadamente pop emsuas cores: a desventura artística de Alexandra havia lhe ensinadoalguma coisa durante o inverno. Portanto, com essa disposiçãorejuvenescida, ela achou difícil compartilhar a indignação de Jane; ador causada pelo fato de os irmãos Gabriel se mudarem para umacasa que parecia um pouco sua demorou a se materializar. Ela semprehavia se agarrado à fantasia convencida de que, apesar da beleza evivacidade superiores de Sukie e da maior intensidade e compromissocom a bruxaria de Jane, ela, Alexandra, era a preferida de Darryl —devido ao tamanho, e também a uma certa amplitude psíquica maiscomparável à sua, e que estava destinada, de alguma forma, a reinarjunto com ele. Fora uma suposição preguiçosa.

“Bob Osgood me contou”, Jane estava dizendo. Ele era opresidente do banco Old Stone no centro da cidade: atarracado, com omesmo tipo físico de Raymond Neff, mas sem a suavidade de umprofessor e aquela atitude transpirante e agressiva que os professoresdesenvolvem; devido à sua associação com o dinheiro, Bob Osgoodera, isso sim, sólido e confiante, e totalmente, lindamente careca, como crânio brilhante como se houvesse acabado de ser encerado e umrosa delicado a colorir suas orelhas, pálpebras, nariz, e até mesmoseus dedos rápidos e compridos, como se ele houvesse acabado de sairde uma sauna a vapor.

“Você está saindo com Bob Osgood?”Jane marcou uma pausa, registrando seu desagrado com aquela

pergunta direta, bem como uma hesitação quanto a como responder.“Deborah, filha dele, é minha última aula às terças, e ele ficou aqui

para tomar uma cerveja uma ou duas vezes quando veio buscá-la.Você sabe como Harriet Osgood é insuportavelmente chata; o coitadodo Bob não consegue dar conta do recado de voltar para casa e encará-la.”

“Dar conta do recado” era uma daquelas expressões que os jovenshaviam tornado corriqueiras; na boca de Jane, soava um pouco falsa edura. Mas Jane era mesmo dura, como tendem a ser as pessoas deMassachusetts. O puritanismo havia atingido em cheio aquela regiãoe, depois de recuperar as forças às custas dos índios de coração mole,havia espalhado por Connecticut seus campanários e muros de pedra,abandonando Rhode Island aos quacres, judeus, antinomistas emulheres.

“O que houve com você e aquele simpático casal Neff?”,perguntou Alexandra com malícia.

Jane deu uma risada áspera, como se houvesse expectorado nofone.

“Ele ultimamente não tem conseguido dar conta do recado; Gretachegou a um ponto em que está contando isso para qualquer pessoada cidade que queira escutar, e praticamente pediu ao rapaz do caixana mercearia para ir com ela até em casa dar uma trepada.”

A aiguillette havia sido amarrada; mas quem a teria amarrado?Uma vez surgida no seio de uma comunidade, a bruxaria costumavadesembestar, fugir ao controle de quem a havia conjurado, tornar-setão desgovernada a ponto de confundir vítima e carrasco.

“Coitada da Greta”, Alexandra ouviu-se murmurar. Pequenosdiabinhos mordiscavam seu estômago; ela estava ansiosa, queriavoltar para suas peitudas e, uma vez que estivessem seguras dentrodo forno sueco, ir varrer com o ancinho os gravetos de inverno caídossobre o gramado e atacar as folhas mortas com um garfo de jardim.

Mas Jane estava determinada em seu próprio ataque.“Não me venha com essa pena de merda de mãe natureza”, foi seu

chocante comentário. “O que nós vamos fazer em relação à mudançade Jenny?”

“Mas, meu amor, o que é que nós podemos fazer? Mostrar quantoestamos magoadas e deixar todo mundo rir de nós? Você não achaque a cidade já vai achar graça suficiente nessa história toda? Joe me

conta algumas das coisas que as pessoas comentam. Gina nos chamade streghe e tem medo de que transformemos o bebê dentro da suabarriga em um porquinho, em um deficiente por talidomida ou algoassim.”

“Isso, é esse o espírito”, disse Jane Smart.Alexandra leu seus pensamentos. “Algum tipo de feitiço. Mas que

diferença faria? Você disse que Jenny está lá. Ela tem a proteção dele.”“Ah, vai fazer diferença sim, pode acreditar”, pontificou Jane

Smart em um longo pronunciamento tremulante de alerta, como umafrase musical trêmula produzida com um único movimento de seuarco.

“O que Sukie acha?”“Sukie acha exatamente a mesma coisa que eu. Que isso é um

absurdo. Que nós fomos traídas. Que nós alimentamos uma víbora,querida, em nosso seio. Uma víbora de verdade.

Essa alusão deixou Alexandra saudosa das noites, que na verdadehaviam se tornado cada vez mais raras com o passar do inverno, emque elas ficavam todas escutando, nuas, imersas e lânguidas demaconha e Chablis californiano, às muitas vozes de Tiny Tim a rodeá-las na escuridão estereofônica, gorjeando, ecoando, massageando suasentranhas; as vibrações estereofônicas realçavam seus corações,pulmões e fígados, presenças gordurosas e escorregadias dentrodaquele espaço interno roxo do qual a obscura sala da banheira, comsuas almofadas assimétricas, era uma espécie de ampliação.

“Eu acho que as coisas vão continuar mais ou menos do mesmojeito”, garantiu ela a Jane. “Afinal de contas, ele nos ama. E Jenny nãofaz por ele metade das coisas que nós fazemos; éramos nós que elegostava de entreter. Do jeito que aquele primeiro andar é grande, elesnão vão dividir aposentos nem nada disso.”

“Ah, Lexa”, suspirou Jane em desespero. “Na verdade a inocente évocê.”

Depois de desligar, Alexandra começou a não se sentir mais tão

reconfortada. A esperança de que o forasteiro escuro algum dia fosselhe pedir para ficar com ele se encolheu em um canto de suaimaginação; será que sua paciência de rainha não teria outrarecompensa que não ser usada e descartada? O dia de outubro em queele a havia conduzido de carro até a porta da mansão como se aquilofosse algo que eles possuíssem mutuamente, e quando ela tivera deatravessar a maré alta para ir embora como se os próprios elementoslhe estivessem suplicando para ficar: será que todos esses preciosospresságios eram vazios? Como é curta a vida, e com que rapidez seexaure o significado de seus sinais. Ela acariciou a parte inferior doseio esquerdo, e pareceu detectar ali um pequeno calombo.Contrariada, assustada, cruzou o olhar brilhante e miúdo de umesquilo cinzento que havia entrado no comedouro de pássaros paravasculhar as cascas de sementes de girassol. Era um pequenocavalheiro rechonchudo vestido com um terno cinza e uma camisabranca no peito, que havia aparecido para jantar todo animado. Queousadia, que ganância. Suas mãozinhas cinzentas, estabanadas e secascomo pés de passarinhos, pararam a meio caminho do peito quandoele subitamente percebeu que ela o estava olhando, quando percebeua forte influência de sua psique; os olhos do esquilo eramposicionados de forma oblíqua no crânio oval, de modo que suaconvexidade os fazia parecer pequenas torres opacas, enviesadas ereluzentes. A centelha de vida dentro daquele crânio pequenino quisfugir, sair correndo para algum lugar seguro, mas o súbito foco deAlexandra congelou a centelha mesmo através do vidro. Umespiritozinho apagado, programado para se alimentar, fugir e copularsazonalmente, estava diante de um espírito maior. Morte, morte,morte, recitou Alexandra mentalmente com firmeza, e o esquilodesabou na hora, qual um saco vazio. Um último espasmo de seusmembros derrubou algumas cascas de girassol pela borda de plásticodo comedouro de pássaros, e a luxuriante pluma branca do rabo aindase agitou de um lado para o outro por mais alguns segundos; então o

animal ficou imóvel, e seu peso morto fez o comedouro com seutelhado verde cônico se balançar no arame amarrado entre dois postesde um caramanchão. A programação acabara de ser cancelada.

Alexandra não sentiu remorso; o poder que tinha era delicioso.Mas agora teria de calçar as galochas, sair para o jardim e, com aspróprias mãos, erguer o corpo do animal nocivo pelo rabo, ir até o fimdo quintal e jogá-lo nos arbustos por cima do muro de pedra, ondecomeçava o brejo. Na vida havia tanta sujeira, tantos farelos deborracha, tantos grãos de café perdidos e tantas vespas mortas presasdentro das janelas reforçadas, que parecia que todo o tempo de umapessoa — ou pelo menos todo o tempo de uma mulher — era gastoem realocação, em tirar coisas de um lugar para colocá-las em outro, jáque a sujeira, como dizia sua mãe, não passava de matéria no lugarerrado.

Nessa mesma noite, para seu reconforto, enquanto as criançaszanzavam em volta de Alexandra pedindo, conforme a idade, o carro,ajuda com o dever de casa ou um beijo de boa-noite, Van Horne lhetelefonou, o que era incomum, já que os sabás dele em geral seorganizavam como se fossem espontâneos, sem a honra de um convitepessoal, mas por meio de uma fusão telepática, ou telefônica, dosdesejos de suas devotas. Quando viam, elas já estavam na sua casasem saber muito bem como tinham ido parar lá. Seus carros — oSubaru cor de abóbora de Alexandra, o Corvair cinza de Sukie, e oValiant verde-musgo de Jane — as levavam, atraídos por uma maréde forças psíquicas.

“Venha aqui em casa no domingo à noite”, rosnou Darryl com

aquela sua voz rascante de taxista nova-iorquino. “Domingo é um diadeprimente pra caramba, e tenho uma coisa para dizer à nossagangue.”

“Não é fácil arrumar uma babá no domingo à noite”, disseAlexandra. “As babás precisam acordar na segunda de manhã para irestudar e querem todas ficar em casa assistindo ao seriado Tudo emfamília” Naquela sua resistência sem precedentes ela ouviuressentimento, uma raiva que Jane Smart havia plantado mas cujocrescimento era agora alimentado por suas próprias veias.

“Ah, por favor. Esses seus filhos já estão velhos, como é que aindaprecisam de babá?”

“Não posso deixar Marcy com os três menores, eles não lheobedecem. E talvez ela também queira ir visitar alguém, e não queroimpedi-la de fazer isso; não é justo sobrecarregar uma criança com asnossas próprias responsabilidades.”

“De que sexo é essa pessoa que ela vai visitar?”“Não é da sua conta. Feminino, no caso.”“Meu Deus, não descarregue em mim, não fui eu que a obriguei a

ter esses bostinhas.”“Eles não são bostinhas, Darryl. E eu cuido muito mal deles.”De forma interessante, ele não pareceu se importar com o fato de

Alexandra refutá-lo, coisa que ela nunca havia feito antes: talvez essefosse o caminho para o seu coração.

“Quem pode saber o que é cuidar mal?”, respondeu ele, suave. “Sea minha mãe tivesse cuidado um pouco menos bem de mim, eu talvezfosse um cara melhor.”

“Você é um cara razoável.” Isso saiu forçado de sua boca, mas elagostou do fato de ele ter se dado ao trabalho de buscar confirmação.

“Porra, obrigado mesmo”, respondeu ele com surpreendenteaspereza. “Nos vemos aqui então.”

“Não seja suscetível.”“Quem está sendo suscetível? E pegar ou largar. Domingo lá pelas

sete. Traje informal.”Ela se perguntou por que o domingo seguinte seria deprimente

para ele. Olhou para o calendário da cozinha. Os números estavamentremeados com lírios.

A noite de Páscoa acabou sendo uma noite quente de primavera,com um vento sul que empurrava a lua para trás através de nuvensrevoltas e iluminadas. A maré havia deixado poças prateadas napassarela. A grama do charco recomeçava a brotar nos espaços entreas pedras; os faróis de Alexandra lançaram sombras sobre as rochas eo portão entrelaçado com plantas. A entrada de carros que conduziaaté a casa fazia uma curva, passando por onde as garças costumavamfazer seus ninhos, e onde agora a bolha de tênis desmoronada jaziaenrugada e endurecida feito a lava de um vulcão; então seu carrosubiu, rodeando a aleia margeada por estátuas sem nariz. Quando aimponente silhueta da casa assomou, com suas fileiras de janelastodas acesas, seu coração se deixou levar pelo arrebatamento dasférias; sempre que ia até ali, fosse noite ou fosse dia, ela esperavaencontrar a importante pessoa que, como percebia, era ela mesma, elamesma sem adornos ou entraves, perdoada e nua, ereta e com umpeso perfeito, e aberta a qualquer proposta cortês: a lindadesconhecida, seu eu secreto. Nem mesmo todo o cansaço do diaseguinte era capaz de curá-la da exaltada expectativa provocada pelamansão Lenox. Todas as preocupações se evaporavam no hall deentrada, onde os aromas sulfurosos acolhiam quem entrava, e o queparecia um porta-guarda-chuvas feito com o pé de um elefantecontendo um conjunto de maçanetas e cabos de aspecto antiquado serevelava, quando examinado com atenção, um molde único pintado,até a cordinha e o fecho de pressão que mantinham o guarda-chuvafechado — outra obra de arte zombeteira.

Fidel pegou seu casaco, um quebra-vento masculino com zíper nafrente. Alexandra cada vez mais achava as roupas masculinasconfortáveis; primeiro começou a comprar sapatos e luvas de homem,

depois calças de veludo cotelê e de lona que não fossem tão ajustadasna cintura quanto os modelos femininos, e ultimamente os agradáveis,espaçosos e eficientes casacos que os homens usam para caçar etrabalhar. Por que eles deveriam ficar com todo o conforto enquantonós nos martirizamos com saltos agulha e todas as outras modasescravizantes que veados sádicos inventam para nós?

“Buenas noches, señora”, disse Fidel. “Es muy agradable tenerlanuevamente en esta casa!”

“O patrão planejou uma festa bem alegre”, disse Rebecca atrásdele. “Ah, grandes mudanças em vista.”

Jane e Sukie já estavam na sala de música, onde haviam sidodispostas algumas cadeiras de encosto oval com um acabamentoprateado lascado; afundado em um canto, Chris Gabriel lia a RollingStone ao lado de uma luminária. O resto da sala estava à luz de velas;velas de todas as cores, parecendo jujubas, haviam sido dispostas nosnichos cheios de teias de aranha abertos na parede, e cada uma daspequeninas chamas atormentadas pela corrente de ar se duplicava emum espelho de latão. A aura das chamas tinha uma cor cáusticacomplementar: o verde devorava o brilho alaranjado ao mesmo tempoque era constantemente repelido, lembrando o embate viscoso desubstâncias químicas incapazes de se misturar. Darryl, vestido comum antiquado smoking de paletó jaquetão, de uma cor preta baça feitofuligem a não ser nas largas lapelas, se aproximou dela para lhe darseu beijo frio. Até mesmo a saliva que entrou em contato com suabochecha estava fria. A aura de Jane estava levemente turva de raiva,e a de Sukie, como sempre, rosada e bem-humorada. Todas elas, comseus suéteres e macacões, obviamente estavam vestidas aquém do quepedia a ocasião.

O smoking de fato dava a Darryl um aspecto menos remendado emal-ajambrado do que de costume. Ele pigarreou para limpar agarganta de sapo e anunciou:

“Que tal um pequeno concerto? Tenho trabalhado em algumas

ideias e queria a opinião de vocês, meninas. O primeiro número sechama...” Ele se imobilizou no meio do gesto, com os pequenos dentesafiados e esverdeados a brilhar, e os óculos que usava à noite tãopequenos que a armação de plástico parecia ter prendido seus olhosem uma armadilha. “... ‘O boogie do rouxinol que cantava emBerkeley Square’.”

Uma profusão de notas ecoou como se mais de duas mãosestivessem tocando, a esquerda marcando um ritmo cadenciado gravee enevoado, ao mesmo tempo leve e escuro como uma nuvem detempestade a se aproximar das copas das árvores, e então a direitaganhou velocidade em frases entrecortadas e hesitantes fazendo amúsica emergir gradualmente, o arco-íris da melodia. Dava para vertudo perfeitamente: o parque inglês brumoso, o céu londrinoperolado, os pares dançando colados, e ao mesmo tempo sentir oribombar norte-americano, o velho e bom tilintar de um puteirosujinho que só aquele continente poderia ter gerado nos bordéischeios de cortinas com franjas de uma cidade ribeirinha do Sul. Amelodia foi se aproximando do baixo, o baixo subiu e engoliu orouxinol, e uma confusão maravilhosamente complexa se seguiuenquanto o suor pingava do rosto pálido e irregular de Van Hornesobre as teclas e seus grunhidos de esforço permeavam a música;Alexandra imaginou suas mãos brancas feito máquinas de cera, comas falanges e tendões flexores a puxar e se esticar, diretamenteconectados aos martelos, feltros e cordas do piano, e aquela vozimensa e plangente parecendo uma unha superdesenvolvida. Ostemas se afastaram, o arco-íris tornou a aparecer, a nuvem detempestade se desmanchou em ar inofensivo, a melodia foireafirmada em uma estranha nota menor aguda alcançada por meiode uma série desordenada de seis acordes descendentes, cada vezmais fracos, tocados simultaneamente às síncopes que iam morrendo.

Silêncio, a não ser pelo zumbido das cordas retesadas do piano.“Fantástico”, comentou Jane, seca.

“Sério, querido”, reiterou Sukie para seu anfitrião, vulnerável eatordoado agora que seu esforço chegara ao fim. “Nunca ouvi nadaigual.”

“Eu seria capaz de chorar”, disse Alexandra com sinceridade, poisele havia despertado muitas lembranças dentro dela, e muitas alusõessobre seu futuro; com sua lamparina pulsante, a música ilumina acaverna do nosso ser.

Darryl pareceu desconcertado com os elogios, como se pudesse sedissolver neles. Sacudiu a cabeça desgrenhada como um cão que seseca, e então pareceu tornar a empurrar a mandíbula para o lugar comos mesmos dois dedos que usou para enxugar os cantos da boca.

“Essa mistura ficou bem boa”, admitiu ele. “Tudo bem, vamosagora tentar esta aqui. Chama-se ‘Marcha da lua bem alta’.” Dessa veza mistura não ficou tão boa, embora tenha se operado a mesma magia.Magia, pensou Alexandra, de roubo e transformação, sem nenhumpingo de engenharia criativa sincera, apenas a ousadia de umacombinação monstruosa. A terceira música foi a suave Yesterday dosBeatles, recortada nos ritmos gaguejantes de um samba; isso fez todaselas rirem, o que não havia sido o efeito da primeira música e talveztampouco fosse a intenção. “Então”, disse Van Horne, levantando-sedo banquinho. “E essa a ideia. Se eu conseguisse compor mais oumenos umas dez como essas, um amigo meu de Nova York disse quetem uma entrada com o executivo de uma gravadora e que talvez sejapossível arrecadar algum dinheiro para manter isto aqui funcionando.O que vocês acham?”

“Talvez seja um pouco... especial”, opinou Sukie, fechando ocarnudo lábio superior sobre o inferior de um jeito solene que pareceumesmo assim estar achando aquilo divertido.

“O que significa especial?”, perguntou Van Horne com uma doraparente, o rosto prestes a se despedaçar. “Tiny Tim era especial.Liberace era especial. Lee Harvey Oswald era especial. Para chamaralguma atenção hoje em dia, é preciso ser bem diferente.”

“Este lugar está precisando de dinheiro?”, perguntou Jane Smart,incisiva.

“Foi o que me disseram, bebê.”“Mas quem disse isso, querido?”, quis saber Sukie.“Ah”, respondeu ele, encabulado, apertando os olhos sob a luz das

velas como se não conseguisse ver nada além de reflexos, “um montede gente. Banqueiros. Sócios em potencial.” Abruptamente, talvezpara combinar com o velho smoking, ele se encolheu para imitar ostrejeitos de um filme de terror, sacudindo-se dentro do traje pretocomo se estivesse aleijado, com as pernas a se dobrar para o ladoerrado. “Mas chega de falar de negócios”, disse. “Vamos para a salade estar. Vamos nos divertir.

Alguma coisa estava acontecendo. Alexandra sentiu algo começara deslizar dentro dela; uma imensa encosta escorregadia de depressãosurgiu como quando a porta automática de uma garagem é aberta,porta esta acionada por uma espécie de olho elétrico de seu própriopressentimento interno, e que conduzia a uma larga rampasubterrânea cuja tendência descendente era impossível de serrevertida, nem por remédios, nem pela luz do sol, nem por uma boanoite de sono. Sua vida havia sido construída sobre areia, e elapercebeu que tudo que veria nessa noite iria lhe parecer triste.

As feias e empoeiradas obras de pop art na sala de estar eramtristes, assim como o fato de vários dos tubos fluorescentes dailuminação do teto estarem apagados ou piscarem com um zumbido.O grande cômodo comprido precisava de mais pessoas para preenchê-lo com a alegria para a qual havia sido criado; Alexandra pensou derepente que ele se parecia com uma igreja pouco frequentada, comoaquelas que os pioneiros do Colorado haviam construído junto àsestradas de montanha e que ninguém mais visitava, uma diminuiçãomais do que uma renúncia, pois estavam todos ocupados demaistrocando as velas de suas picapes ou se recuperando do sábado ànoite, e as vagas de estacionamento ao lado dessas igrejas estavam

tomadas pela grama, e em seus bancos ainda se podia ver oscompartimentos recheados de hinários.

“Onde está Jenny?”, perguntou ela em voz alta.“A senhora ainda está se arrumando no laboratório”, respondeu

Rebecca. “Ela trabalha tanto, fico preocupada que adoeça.”“Como vão as coisas?”, perguntou Sukie a Darryl. “Quando é que

eu vou poder pintar meu telhado com quilowatts? As pessoas aindame param na rua para perguntar sobre isso por causa da matéria queescrevi sobre você.”

“E”, rosnou ele como um ventríloquo, fazendo a voz emergir bemde trás de sua cabeça, “e aqueles velhos caretas para quem vocêvendeu a casa dos Gabriel andam falando mal da ideia por aí, ouvidizer. Fodam-se eles. As pessoas riram de Leonardo da Vinci. Riramde Leibniz. Riram do cara que inventou o zíper, qual é mesmo o nomedele, droga? Um dos grandes inventores esquecidos. Na verdade,venho me perguntando se os micro-organismos não seriam asolução... usar um mecanismo já implantado e que se autorreplica.Tecnologia de biogás: sabem quem está na frente nessa área? Oschineses, dá para acreditar?”

“Não poderíamos simplesmente usar menos eletricidade?”,perguntou Sukie, entrevistando por hábito. “E usar mais os nossoscorpos? Ninguém precisa de uma faca elétrica.”

“Você precisa de uma se o seu vizinho tiver uma”, disse VanHorne. “E depois precisa de outra para substituir a que comprou. E deoutra. E de mais outra. Fidel! Deseo beber!”

O criado, com seu pijama cáqui abjetamente sem forma que tinhaapesar disso um certo quê de ameaça militar, trouxe bebidas e umabandeja de huevos picantes e palmitos. Surpreendentemente, sem apresença de Jenny a conversa se arrastou; as três haviam seacostumado com ela como alguém para quem se exibir, alguém paradivertir, chocar e instruir. Seu silêncio de olhos arregalados fazia falta.Torcendo para que a arte, qualquer arte, pudesse estancar a

hemorragia interna de sua melancolia, Alexandra pôs-se a andar entreos hambúrgueres gigantes e alvos de dardos feitos de cerâmica comose nunca os tivesse visto antes; e, de fato, não tinha mesmo vistoalguns deles antes. Sobre um pedestal de compensado de um metro evinte de altura pintado de preto, debaixo de uma redoma de plásticodo tipo que se usa para bolos, havia uma réplica ironicamente realista— um Wayne Thiebaud tridimensional — de um bolo de casamentoconfeitado de branco. No entanto, em vez dos habituais noivo e noiva,no último andar havia dois bonequinhos nus em pé, a mulher rosada,loura e arredondada, e o homem de cabelos pretos pintado de um cor-de-rosa mais escuro a não ser pelo centímetro muito branco do pênissemiereto. Alexandra se perguntou de que material era feito aqueleobjeto: o bolo não tinha as marcas do bronze fundido nem o brilho dacerâmica esmaltada. Imaginou que fosse feito de acrílico. Ao ver queninguém a estava observando a não ser Rebecca, que fazia circularuma bandeja de caranguejos pequeninos recheados com patê dechuchu, Alexandra ergueu a redoma e tocou a borda do objetoparecida com glacê. Um pedacinho mole se soltou em seu dedo. Elalevou o dedo à boca. Açúcar. Era glacê de verdade, um bolo deverdade, e estava fresquinho.

Darryl, com gestos amplos e estabanados, explicava a Sukie e Janeuma abordagem diferente da energia.

“Com a energia geotérmica, depois que você cava o duto... e porque não cavar? Eles constroem túneis com mais de trinta quilômetrosde extensão nos Alpes todos os dias. O único problema é impedir quea energia queime o conversor. O metal derrete feito soldadinhos dechumbo em Vênus. Sabem qual é a solução? E inacreditavelmentesimples. Pedra. E preciso fabricar todas as máquinas, todo oequipamento e todas as turbinas com pedra. E eles sabem fazer isso!Agora já sabem esculpir granito tão fino quanto placas de aço. Sabemfazer molas com cimento moldado, dá para acreditar? O segredo é otamanho das partículas. Metal faz parte do passado, igualzinho ao

sílex quando começou a Idade do Bronze.”Outra obra de arte em que Alexandra nunca havia reparado era

um lustroso nu feminino, um manequim sem a pele opaca e osmembros articulados habituais, um Kienholz no impacto, mas liso eextremamente detalhado à moda de um Tom Wesselmann, agachadocomo quem vai ser penetrada por trás, com o semblante vazio einexpressivo e as costas retas o bastante para servirem de tampo parauma mesa. A linha de sua coluna era reta como a canaleta no bloco deum açougueiro por onde escorre o sangue. As nádegas sugeriam doiscapacetes brancos de motocicleta, um ao lado do outro. A estátuaincomodou Alexandra com aquela simplificação blasfema de suaprópria forma feminina. Ela pegou outra margarita da bandeja deFidel, saboreou o sal (o mito de que bruxas detestam sal é uma calúniaabsurda; o que elas não suportam é salitre e óleo de fígado debacalhau, ambos associados à virtude cristã) e caminhou saltitante atéjunto de seu anfitrião.

“Estou me sentindo sensual e triste”, disse ela. “Quero tomar meubanho, fumar meu baseado e ir para casa. Jurei à babá que estaria emcasa às dez e meia; ela foi a quinta garota que tentei, e pude ouvir amãe gritando com ela ao fundo. Os pais não querem que as filhascheguem perto de nós.”

“Você está partindo meu coração”, disse Van Horne, parecendosuado e confuso depois de descrever a fornalha geotérmica. “Nãoapresse as coisas. Ainda não estou me divertindo. Nós aqui temos umcronograma. Jenny já vai descer.”

Alexandra viu uma luz nova nos olhos vítreos e avermelhados deVan Horne; ele parecia assustado. Mas o que poderia meter medonele?

Os passos de Jenny não fizeram barulho na escadaria principalacarpetada e curva; ela adentrou o cômodo comprido com os cabelospresos para trás como os de Eva Perón e vestindo um roupão debanho azul-bebê que se arrastava pelo chão. Acima de cada um de

seus seios, o roupão exibia três recortes bordados como grandes casasde botão que fizeram Alexandra pensar em divisas militares. O rostode Jenny, sua testa larga e redonda e seu queixo firme e triangular,reluzia de tão limpo e não exibia maquiagem nenhuma; tampoucoestava enfeitado com um sorriso.

“Darryl, não fique bêbado”, disse ela. “Quando você bebe, o quediz faz menos sentido ainda do que quando está sóbrio.”

“Mas ele fica inspirado”, disse Sukie com sua insolência bemensaiada, abordando com cautela aquela nova mulher, residentedaquela casa e de certa forma sua dona.

Jenny a ignorou e olhou em volta, para atrás de suas cabeças.“Onde está o querido Chris?”Do canto, Rebecca respondeu: “O rapaz está na biblioteca lendo

suas revistas”.Jenny deu dois passos à frente e disse: “Alexandra. Olhe aqui”. Ela

desatou o cinto de tecido e abriu bem os panos do roupão, revelando ocorpo branco com sua rotundidade, suas dobras de gordura infantil,sua nuvem de pelos macios menor do que a mão de um homem.Pediu para Alexandra examinar a verruga translúcida sob seu seio.“Você acha que ela está aumentando ou estou imaginando coisas? Eaqui”, disse ela, guiando os dedos da outra até sua axila. “Estásentindo um pequeno calombo?”

“E difícil dizer”, disse Alexandra, atrapalhada, pois aqueles toquesocorriam na escuridão vaporosa da sala da banheira, mas não sob aluz crua e fluorescente daquela sala. “Nós todas somos naturalmentecheias de pequenos calombos. Não estou sentindo nada.”

“Você não está se concentrando”, disse Jenny, e, com um gesto queem outro contexto teria parecido amoroso, segurou o pulso deAlexandra e guiou sua mão direita até a outra axila. “Tem uma coisameio parecida aqui também. Por favor, Lexa. Concentre-se.”

Uma leve aspereza de pelos raspados. Uma suavidade de talco.Mais embaixo, calombos, veias, glândulas, nódulos. Nada na natureza

é totalmente homogêneo; o universo foi pintado à mão livre.“Dói?”, perguntou ela.“Não tenho certeza. Eu sinto alguma coisa.”“Não acho que seja nada”, afirmou Alexandra.“Será que poderia de alguma forma ter a ver com isso?” Jenny

ergueu o seio cônico firme para mostrar melhor a verrugatransparente, uma pequenina couve-flor, ou o focinho enrugado deum cão pug feito de carne cor-de-rosa e deformada.

“Acho que não. Nós todas temos essas coisas.”Subitamente impaciente, Jenny fechou o roupão e apertou o cinto.

Virou-se para Van Horne. “Já contou para elas?”“Querida, querida”, disse ele, enxugando os cantos da boca

sorridente com um polegar e um indicador trêmulos. “Nósprecisamos fazer disso uma cerimônia.”

“Hoje os vapores me deram dor de cabeça, e acho que já tivemoscerimônias suficientes. Fidel, só me traga um copo de água com gás,aqua gaseosa, o horchata, por favor. Pronto, gradas.”

“O bolo de casamento!”, exclamou Alexandra com um trinadogelado de premonição.

“Agora você está chegando perto, minha pequena Sandy”, disseVan Horne. “Isso mesmo. Eu vi você furar o bolo e lamber o dedo”,provocou ele.

“Não foi tanto isso, foi mais o comportamento de Jenny. Mesmoassim não consigo acreditar. Eu sei, mas não consigo acreditar.”

“E melhor acreditarem, senhoras. Esta garota aqui e eu noscasamos ontem às três e meia da tarde. Com um juiz de paz maluco láem Apponaug. Ele era gago. Eu nunca pensei que se pudesse ser gagoe mesmo assim conseguir a licença. D-d-d-d-d-arryl, você a-ce-ce-ce...”

“Ah, Darryl, você não fez isso!”, exclamou Sukie, com os lábios tãoarreganhados em um sorriso sem alegria que o alto de suas gengivassuperiores apareceram.

Ao lado de Alexandra, Jane Smart sibilou.

“Como pôde fazer isso conosco?”, perguntou Sukie.A palavra “conosco” surpreendeu Alexandra, que sentiu aquela

notícia como um ponto subitamente dolorido bem na sua barriga.“Quanta dissimulação”, continuou Sukie, com a atitude alegre de

festa levemente congelada no rosto. “Nós pelo menos teríamos feitoum chá de casamento para ela.”

“Ou dado algumas panelas de presente”, disse Alexandra,corajosa.

“Ela conseguiu”, disse Jane aparentemente para si mesma, mas éclaro que também para Alexandra e os outros escutarem. “Elarealmente conseguiu.”

Jenny se defendeu; estava com as faces muito coradas. “Não foimuito planejado, acabou parecendo natural comigo, já que eu estavaaqui o tempo todo, e naturalmente...”

“Naturalmente a natureza seguiu seu obsceno caminho natural”,cuspiu Jane.

“Darryl, o que você ganha com isso?”, perguntou-lhe Sukie comsua voz franca e masculina de repórter.

“Ah, você sabe”, disse ele, encabulado. “O de sempre.Estabilidade. Segurança. Olhem só para ela. Ela é linda.”

“Que papo-furado”, disse Jane Smart devagar, fazendo as palavrasfervilhar.

“Com todo o respeito, Darryl, e olhe que eu gosto da sua pequenaJenny”, disse Sukie, “mas ela é meio sem-sal.”

“Ora, parem com isso, que reação é essa?”, disse o homem altocom um ar de impotência enquanto a noiva de roupão ao seu ladosequer se mexia, abrigando-se como sempre fizera atrás do frágilescudo da inocência, do esnobismo da ignorância. Não que seucérebro fosse menos eficiente do que o das outras três, dentro de seuspróprios limites ele na verdade era mais eficiente; mas era como oteclado de uma calculadora, por oposição ao das máquinas deescrever. Van Horne estava tentando recuperar a dignidade. “Escutem

aqui, suas vacas”, disse ele. “Que atitude é essa, como se eu devessealguma coisa para vocês? Eu as acolhi, dei a vocês comida e um poucode alívio das suas porcarias de vidas...”

“Quem foi que tornou nossas vidas uma porcaria?”, perguntouJane Smart na mesma hora.

“Eu é que não fui. Eu sou novo na cidade.”Fidel trouxe uma bandeja de taças de champanhe com pés

compridos. Alexandra pegou um deles e jogou a bebida na cara deVan Horne; o líquido rarefeito não atingiu o alvo, molhando apenas aárea de sua braguilha e uma das pernas da calça. Tudo que ela haviaconseguido fora dar a impressão de que a vítima era ele, não ela. Comveemência, atirou a taça em cima da escultura de para-choques decarro entrelaçados; dessa vez sua mira foi melhor, mas no meio datrajetória a taça se transformou em uma andorinha e saiu voando.Thumbkin, que estava se lambendo sobre o sofá de cetim, insistindocom a língua ávida na pequena falha cor-de-rosa de seu traje delongos pelos brancos, empertigou-se e saiu atrás do passarinho; comaquela solenidade intensa e cômica dos gatos, e os olhos verdesachatados na parte superior, a gata deu a volta depressa por trás dosofá curvo de quatro lugares e golpeou o ar com frustração quandochegou à ponta. O pássaro se abrigou indo se empoleirar em umanuvem de isopor de Marjorie Strider pendurada no teto.

“Ei, não foi nada disso que eu imaginei”, reclamou Van Horne.“O que foi que você imaginou, Darryl?”, indagou Sukie. “Uma

festa de arromba. Nós achamos que vocês fossem ficar contentes pracaramba. Foram vocês que nos aproximaram. Como cupidos. E comose vocês fossem as damas de honra.”

“Eu nunca achei que elas fossem ficar contentes”, corrigiu Jenny.“Só não pensei que elas fossem se comportar tão mal.”

“Mas por que elas não ficariam contentes?”Van Horne ergueu as estranhas mãos borrachudas abertas em um

gesto de súplica, argumentando com Jenny, e os dois pareceram um

típico casal casado.“Nós ficaríamos felizes por elas”, disse ele “se algum imbecil

aparecesse e as tirasse do mercado. Quer dizer, que história é essa deciúmes, quando o mundo inteiro está queimando com napalm? Quementalidade burguesa é essa, porra?”

Sukie foi a primeira a transigir. Talvez quisesse apenas comeralguma coisa.

“Tudo bem”, disse ela. “Vamos comer o bolo. E bom que tenhahaxixe na massa.”

“Da melhor qualidade. Bege do Orinoco.”Alexandra não pôde deixar de rir: Darryl era tão engraçado,

esperançoso, confuso.“Isso não existe.”“E claro que existe, basta conhecer as pessoas certas. Rebecca

conhece os caras que dirigem aquela Kombi maluca pintada lá do sulde Providence. La creme de la crooks, sério. Você vai sair daqui voando.Como será que está a maré?”

Então ele se lembrava: o dia em que ela havia enfrentado a marégelada, e ele em pé na outra margem gritando: “Você voa!”.

O bolo foi servido sobre as costas retas como uma mesa do nuagachado. Os bonequinhos de marzipã foram retirados, partidos epassados de mão em mão pela roda para que todos comessem.Alexandra ficou com o pau — uma espécie de homenagem. Enquantofazia a distribuição, Darryl balbuciava: “Hoc est enim corpus meum”. Aoservir o champanhe, entoou: “Hic est einim calix sanguinis mei”.

Em frente a Alexandra, o rosto de Jenny havia adquirido um tomrosa vivo; ela estava deixando sua felicidade transparecer, estavainteiramente embebida com o sangue da vitória. Alexandra sentiupena dela como de um eu mais jovem. Todos deram de comer uns aosoutros com os dedos; logo os cilindros sobrepostos do bolo pareceramdesventrados por chacais. Então todos uniram as mãos sujas e, decostas para a estátua agachada sobre cuja nádega esquerda Sukie,

usando glacê e batom, havia pintado um rosto com um sorriso dedentes tortos, dançaram em roda entoando à moda antiga: “Emenhatan, Emen betan”. E: “Mar, har, diable, diable, saute ici, saute là, joue ici,joue là!”.

Jane, a essa altura a mais embriagada de todos, tentou cantar todasas estrofes daquele cântico dos cânticos jacobino indizível, “TinkletumTankletum”, até o riso e o álcool derrotarem sua memória. Van Hornefez malabarismos primeiro com três, depois quatro, depois cincotangerinas, e suas mãos viraram um borrão frenético. ChristopherGabriel pôs a cabeça para fora da biblioteca para ver de que todosestavam rindo tanto.

Fidel começou a servir uns testículos de capivara marinados queestava guardando. A noite estava se transformando em um sucesso;porém, quando Sukie sugeriu que fossem todos tomar um banho,Jenny anunciou com certa firmeza: “A banheira foi esvaziada. Tinhaficado toda suja, e estamos esperando um limpador de piscinas deNarragansett vir passar fungicida na madeira”.

Então Alexandra chegou em casa antes do previsto e flagrou ababá enlaçada com o namorado no sofá do andar de baixo. Recuou etornou a entrar na sala dez minutos depois para pagar a constrangidababá. A menina era da família Arsenault e morava no centro dacidade; o namorado a levaria para casa, falou. A atitude seguinte deAlexandra foi subir até o andar de cima e entrar pé ante pé no quartode Marcy para ver se a filha, que tinha dezessete anos e o tamanho deuma mulher feita, estava dormindo seu sono virginal. No entanto, pormuitas horas dessa noite, a imagem do pálido interior das coxas dafilha dos Arsenault abraçando as nádegas cabeludas do rapaz semnome, cuja calça jeans estava arriada apenas o suficiente para libertarseus genitais enquanto ela estava completamente nua, queimou aretina de Alexandra como a lua que navegava de costas em meio anuvens esgarçadas e revoltas.

Encontraram-se as três, de certa maneira como nos velhos tempos,na casa de Jane Smart, a casa de fazenda no loteamento de Cove quena verdade havia sido uma derrocada e tanto para Jane depois dalinda residência vitoriana de treze cômodos, cheia de corredores deserviço, ornamentos rebuscados e candelabros de vidro da Tiffany’s,em que ela e Sam, nos áureos tempos, haviam morado na Vane Street,a um quarteirão da Oak, do lado oposto ao da água. Ela agora moravaem uma casa de dois pavimentos no meio do terreno padrão de milmetros quadrados, com as partes feitas de ripas de madeira pintadasem um tom ácido de azul. O antigo proprietário, um engenheiromecânico subempregado que finalmente tinha ido para o Texas atrásde trabalho, havia passado seu extenso tempo livre “antiguizando” acasinha, montando armários de pinho e falsas vigas no teto,revestindo as paredes com painéis de madeira irregular cheia decicatrizes feitas a cinzel, e chegando a instalar interruptores de luz emforma de bombas d’água manuais e um vaso sanitário embutido emaduelas de barril feitas de carvalho. Em algumas paredes estavampenduradas antigas ferramentas de carpintaria, plainas, serras e facasde tanoeiro; e uma pequena roca havia sido astuciosamenteincorporada ao corrimão no patamar que separava os dois pavimentosda casa. Jane havia herdado essa camada espalhafatosa de artefatospuritanos sem protestos evidentes; mas seu desprezo e o dos filhosforam erodindo lentamente o efeito precioso. Interruptores de luzesculpidos eram partidos com a pressa. Depois de uma das aduelasser quebrada com um chute, todas as outras desabaram em volta daprivada. O porta-papel higiênico quadrado bonitinho também havia

desmoronado. Jane dava as aulas de piano no fundo da comprida salade estar aberta, seis degraus acima do nível onde ficavam a cozinha, acopa e o quartinho, e o piso sem carpete da sala exibia as marcas deuma fúria aparentemente maligna; o espigão de seu violoncelo haviacavado buracos em todos os lugares nos quais ela decidira posicionarsua estante para as partituras e sua cadeira. E ela havia percorridobem o espaço, em vez de tocar sempre no mesmo lugar. Tampoucoeram esses os únicos sinais de dano; por toda parte da casinharelativamente nova, feita de pinho verde e materiais baratos em umpadrão definido como uma série de danças efetuadas pelas equipes deconstrução, havia marcas de sua fragilidade: cicatrizes na tinta,buracos no gesso, ladrilhos faltando no piso da cozinha. O terríveldobermann pinscher de Jane, Randolph, havia devorado o través dacadeira e arranhado as portas até abrir sulcos na madeira. Janerealmente vivia em um mundo nada sólido, feito em parte de música,em parte de rancor, disse Alexandra para si mesma, extenuada.

“Então, o que nós vamos fazer a respeito?”, perguntou Jane umavez distribuídas as bebidas e dispersada a primeira leva de fofocas,pois só poderia haver um tema de conversa nesse dia: o assombroso, oinsultuoso casamento de Darryl van Horne.

“Como ela estava arrogante e ‘à vontade’ com aquele granderoupão azul”, disse Sukie. “Eu a odeio. E pensar que fui eu quem alevei para jogar tênis daquela vez. Eu me odeio.” Ela encheu a bocacom um punhado de sementes de abóbora salgadas.

“E ela foi bem competitiva, lembram?”, disse Alexandra. “Aquelehematoma na minha coxa demorou semanas para sair.”

“Isso deveria nos ter deixado com a pulga atrás da orelha”, disseSukie, removendo uma casca verde do lábio inferior. “De que ela nãoera a bonequinha inofensiva que parecia. Mas é que eu estava tãoculpada em relação a Clyde e Felicia...”

“Ah, pare com isso”, insistiu Jane. “Você não estava nada culpada,como poderia estar culpada? Não foi o fato de trepar com Clyde que

apodreceu o cérebro dele, não foi você quem transformou Felicia emuma mulher tão horrorosa.”

“Eles tinham uma simbiose”, disse Alexandra, pensativa. “O fatode Sukie ser tão encantadora com Clyde perturbou isso. Eu tenho omesmo problema com Joe, só que estou me afastando. Para desarmara situação. As pessoas...”, ponderou ela. “As pessoas são mesmoexplosivas.”

“Você simplesmente não a odeia?”, perguntou Sukie a Alexandra.“Quer dizer, todas nós entendíamos que, de nós três, era seu que eledeveria ser se fosse para ser de alguém, depois que a novidade e tudoo mais perdesse a força. Não é, Jane?” “Não é, não”, foi a respostaclara. “Tanto Darryl quanto eu somos pessoas musicais. E ambossomos safados.”

“Quem disse que Lexa e eu não somos safadas?”, protestou Sukie.“Vocês bem que tentam”, disse Jane. “Mas têm outras tendências

também. Vocês duas têm um lado bonzinho. Não se comprometeramdo mesmo jeito que eu. Para mim não existe ninguém a não serDarryl.”

“Pensei que você tivesse dito que estava saindo com Bob Osgood”,disse Alexandra.

“Eu disse que estava dando aulas de piano para a filha dele,Deborah”, reagiu Jane.

Sukie riu. “Você deveria ver a sua cara de presunção quando dizisso. Igualzinha à de Jenny quando nos chamou de mal-educadas.”

“E como ela ficou dando ordens a ele, com aquele seu jeito frio”,comentou Alexandra. “Eu soube que eles estavam casadossimplesmente pelo jeito como ela entrou na sala depois de todomundo. E ele estava diferente. Menos atrevido, mais hesitante. Foitriste.”

“Nós estamos comprometidas, querida”, disse Sukie a Jane. “Mas oque é que podemos fazer a não ser esnobar os dois e voltar à nossavidinha confortável de antes? Acho que agora talvez seja melhor.

Estou me sentindo próxima de vocês duas como há muitos meses nãome sentia. E todos aqueles tira-gostos quentes que Fidel nos fez comerestavam me deixando com problemas de estômago.”

“O que nós podemos fazer?”, perguntou Jane, retórica. Seus cabelospretos, partidos ao meio e penteados para trás formando duas abasseveras, caíram para a frente escondendo-lhe o rosto e foramrapidamente afastados. “E óbvio. Podemos jogar um feitiço nela.”

Como uma estrela cadente que risca subitamente o céu, a palavracausou um silêncio.

“Você pode enfeitiçá-la sozinha se estiver se sentindo tão veementeassim”, disse Alexandra. “Não precisa de nós.”

“Preciso, sim. Precisamos fazer isso as três. Não pode ser umfeitiçozinho qualquer, do tipo que só vai deixá-la com dor de cabeçadurante uma semana.”

Depois de uma pausa, Sukie perguntou: “Então o feitiço vai fazer oque com ela?”.

Os lábios finos de Jane se fecharam para não deixar escapar umapalavra agourenta, a mesma que designa “caranguejo” em latim.

“Acho que, a tirar pela outra noite, é óbvio quais são aspreocupações dela. Quando uma pessoa tem um medo assim, basta omais insignificante empurrãozinho psicocinético para transformá-loem realidade.”

“Ah, pobrezinha da menina”, exclamou Alexandrainvoluntariamente, uma vez que ela própria tinha o mesmo medo.

“Ela não tem nada de menina nem de pobrezinha”, disse Jane. “Elaé a senhora Darryl van Horne.” Ao dizer isso, seu rosto magro ficouainda mais altivo.

Depois de outra pausa, Sukie perguntou: “Como funcionaria essefeitiço?”.

“De forma totalmente direta. Alexandra fabrica uma boneca decera na forma dela, e nós a espetamos com alfinetes debaixo do nossovórtice de poder.”

“Por que é que sou eu que devo fabricar a boneca?”“É simples, querida. Porque você é escultora e nós, não. E você

ainda está em contato com as forças maiores. Ultimamente, os meussortilégios têm errado por um ângulo de quarenta e cinco graus. Háuns seis meses, quando ainda estava saindo com Ray, eu tentei mataro gato de estimação de Greta Neff, e pelo que ele deu a entender tudoque consegui foi matar todos os roedores da casa. As paredespassaram semanas fedendo, mas o gato continuou repulsivamentesaudável.”

“Jane, você nunca fica com medo?”, perguntou Alexandra. “Não,desde que me aceitei como sou. Uma violoncelista razoável, uma mãehorrorosa, e uma transa chata.”

Galantes, as duas outras protestaram em relação ao terceiro item,mas Jane foi firme: “Eu sei chupar bastante bem, mas quando ohomem está em cima de mim, me penetrando, uma espécie deressentimento me domina”.

“Só tente imaginar que é a sua própria mão”, sugeriu Sukie. “Eisso que eu faço às vezes.”

“Ou pense que é você quem está comendo ele", disse Alexandra.“Que ele não passa de um brinquedo seu.”

“E tarde demais para isso tudo. Agora eu já gosto do que sou. Seeu fosse mais feliz, seria menos eficaz. Olhem só o que eu já fiz paracomeçar. Quando Darryl estava passando os bonecos de marzipã, euarranquei com os dentes a cabeça do que representava Jenny, mas nãoa engoli, e cuspi no meu lenço disfarçadamente. Aqui está.” Ela foi atéa banqueta do piano, ergueu a tampa, e retirou lá de dentro um lençoamarfanhado; com um ar de triunfo, desdobrou o lenço diante dosolhos das três.

A cabecinha lisa feita de doce, tornada ainda mais lisa pelossegundos que havia passado derretendo na boca de Jane, tinha de fatouma semelhança com o rosto redondo de Jenny — olhos azuisdescorados com um olhar firme, cabelos louros tão finos que aderiam

ao crânio como se fossem uma tinta, um certo vazio na expressão quecontinha algo de levemente arrogante, desafiador, e, sim, descarado.

“Ótimo”, disse Alexandra, “mas é preciso algo mais íntimo. Omelhor de tudo é sangue. As velhas receitas costumavam pedir o sangdes menstruës. E cabelo, é claro. Aparas de unha.”

“Sujeirinha de umbigo”, interveio Sukie com uma voz melodiosa,alegrinha depois de ter tomado dois bourbons.

“Fezes”, prosseguiu Alexandra com solenidade, “embora não seestando na África nem na China isso seja difícil de conseguir.”

“Esperem aí. Não vão embora”, disse Jane, e saiu da sala.Sukie riu. “Eu deveria escrever um artigo para o Journal-Bulletin de

Providence: ‘A Descarga Sanitária e o Declínio da Bruxaria’. Elesdisseram que eu poderia propor matérias como freelancer se quisessevoltar a escrever.”

Ela havia tirado os sapatos e encolhido as pernas debaixo do corpoenquanto se recostava em um dos braços do sofá verde-limão de Jane.Hoje em dia, até as mulheres de meia-idade usam minissaia, e aposição de Sukie, enroscada feito um filhote de gato, deixava à mostrasuas coxas quase inteiras e também os joelhos sardentos e reluzentes,perfeitos como ovos. Ela usava um vestido de lã pouco mais compridodo que um suéter, de cor laranja forte; com o verde vil do sofá, essacor produzia o contraste gritante que se vê em todas as paisagens deCézanne e que seria feio se não tivesse uma beleza tão estranha eousada. O rosto de Sukie exibia a expressão levemente embriagada epastosa que Alexandra achava sexy: olhos excessivamente úmidos ecintilantes, boca já sem batom exceto pelas bordas de tanto sorrir econversar. Ela achava sexy até mesmo o traço menos bonito de Sukie:seu nariz curto, batatudo e quase nada desenhado. Não restavadúvida, pensou Alexandra consigo mesma com imparcialidade, quedesde o casamento de Van Horne seu coração havia se soltado de suasamarras e que, longe da infelicidade compartilhada daquelas duasamigas, pouco restava a não ser desolação. Ela não conseguia prestar

atenção nos filhos; via suas bocas se moverem, mas os sons que saíamdelas eram uma algaravia em uma língua desconhecida.

“Você não continua trabalhando como corretora?”, perguntou ela aSukie.

“Ah, querida, continuo. Mas o dinheiro é tão pouquinho. Hácentenas de outras divorciadas chapinhando pela lama por aímostrando casas para vender.”

“Você vendeu aquela para os Hallybread.”“Vendi, eu sei, mas isso praticamente só serviu para saldar minhas

dívidas. Agora eu estou entrando no vermelho de novo, e estouficando desesperada.” Sukie deu um sorriso largo, e seus lábios seespalharam como almofadas com alguém sentado em cima. Ela deualguns tapinhas no lugar vazio ao seu lado. “Minha linda, venhasentar aqui do meu lado. Tenho a impressão de que estou gritando.Que acústica a desta casinha miserável, não sei como ela aguentaescutar a si mesma.”

Jane havia subido o pequeno meio lance de escada até ondeficavam os quartos de dormir naquela casa de dois pavimentos, eentão voltou trazendo uma toalha de mão de linho dobrada paraproteger algum tesouro delicado. Sua aura tinha o roxo incandescenteda íris siberiana, e pulsava de animação.

“Ontem à noite”, disse ela, “fiquei tão chateada e com raiva dissotudo que não consegui dormir, e acabei acordando e me esfregandointeira com capuz-de-fradinho e creme para as mãos Noxema, comum tiquinho só daquela cinza fina que fica depois de colocar o fornona função de limpeza automática, e saí voando até a mansão Lenox.Foi maravilhoso! Os sapos da primavera estão todos cantando, e poralgum motivo quanto mais alto você sobe melhor dá para ouvi-los. Nacasa de Darryl, apesar de já passar da meia-noite, todo mundo aindaestava no andar de baixo. Do som saía uma espécie de músicacaribenha que eles tocam usando barris de petróleo, e havia algunscarros em frente à casa que não reconheci. Encontrei a janela de um

dos quartos de dormir aberta alguns centímetros e a levantei commuito cuidado...”

“Jane, que incrível!”, exclamou Sukie. “Imagine se Needlenosetivesse sentido o seu cheiro! Ou Thumbkin!”

Pois Van Horne havia lhes garantido solenemente que Thumbkin,por baixo de sua forma felpuda, era a alma reencarnada de umadvogado setecentista de Newport que havia desviado dinheiro deseu escritório para financiar um vício em ópio (ele se viciara duranteas terríveis crises de dor de dente e abcesso tão frequentes nas épocasanteriores à nossa) e que, para salvar a si mesmo da prisão e a famíliada desgraça, vendera seu espírito após a morte para os poderes dastrevas. A pequena gata era capaz de assumir a forma de uma pantera,de um furão ou de um hipogrifo.

“Descobri que umas gotinhas de detergente Ivory na misturaacabam com o cheiro”, disse Jane, descontente com a interrupção.

“Continue, continue”, implorou Sukie. “Você abriu a janela... achaque eles dormem na mesma cama? Como é que ela aguenta? Aquelecorpo tão frio e úmido debaixo dos pelos... Ele era como abrir a portada geladeira com alguma coisa apodrecendo lá dentro.”

“Deixe Jane contar a história dela”, disse Alexandra, que era comomãe das duas. Da última vez em que havia tentado voar, seu corpoastral saíra voando e seu corpo material ficara para trás na cama,parecendo tão pequeno e tão patético que ela sentira uma tremendaonda de vergonha lá em cima e tornara a voar depressa para dentrode sua pesada concha.

“Eu podia ouvir a festa no andar de baixo”, disse Jane. “Acho queescutei a voz de Ray Neff tentando reger alguma canção. Encontreium banheiro, o banheiro que ela usa.”

“Como você pôde ter certeza?”, quis saber Sukie.“Eu agora já conheço o estilo dela. Recatada por fora, bagunçada

por dentro. Lenços de papel sujos de batom por toda parte, umadaquelas carteias de papelão para guardar a pílula anticoncepcional e

não esquecer o dia certo jogado e com vários comprimidos faltando,pentes cheios de fios de cabelo compridos. A propósito, ela pinta ocabelo. Havia um frasco inteiro de Clairol louro-claro bem em cima dapia. E base de maquiagem e blush, coisas que eu morreria antes de usar.Eu sou uma velha megera e sei disso, e quero ter o aspecto de umavelha megera.”

“Meu bem, você é linda”, disse-lhe Sukie. “Tem cabelos negrosbrilhantes. E olhos naturalmente da cor de um casco de tartaruga. E asua pele fica bronzeada. Quem dera a minha também ficasse. Poralgum motivo, ninguém consegue levar muito a sério uma pessoasardenta. As pessoas acham que eu estou fazendo graça mesmoquando me sinto um lixo.”

“O que foi que você trouxe de lá dentro dessa toalhinha tão bemdobrada?”, Alexandra perguntou.

“Esta toalha é dele. Eu roubei”, disse-lhes Jane. No entanto, odelicado monograma parecia um P ou um Q. “Olhem. Eu revirei ocesto debaixo da pia do banheiro.” Com cuidado, ela desdobrou atoalha cor-de-rosa e revelou uma delicada barafunda de objetosíntimos descartados: longos cabelos retirados de um pente em tênuesemaranhados, um lenço de papel com uma mancha amarronzada nocentro amarfanhado, um quadradinho de papel higiênico com aimagem vulvar de lábios recém-pintados dos quais havia sido retiradoo excesso de batom, uma bola de algodão de um frasco decomprimidos, a proteção vermelha descartada de um Band-Aid,pedaços de fio dental usado. “E o melhor de tudo”, disse Jane, “estespontinhos, estão vendo? Estavam dentro da banheira, no fundo epresos na borda... ela sequer tem a decência de lavar a banheira depoisde usar. Eu umedeci a toalha e os catei. São pelos das pernas. Elaraspou as pernas na banheira.”

“Ah, que ótimo”, disse Sukie. “Jane, você chega a dar medo. Agorame ensinou a sempre lavar a banheira.”

“Você acha que isso basta?”, perguntou Jane a Alexandra. Os olhos

que Sukie dissera terem a cor do casco de uma tartaruga na verdadepareciam mais claros, com o brilho inconstante de brasas.

“Basta para quê?” Mas Alexandra já sabia, tinha lido a mente deJane; o fato de saber irritou aquele ponto dolorido em sua barriga, oponto que havia começado a doer na outra noite, com demasiadarealidade para digerir.

“Para fazer o amuleto”, respondeu Jane.“Por que está perguntando isso para mim? Faça você mesma o

amuleto e veja o que acontece.”“Ah, não, queridinha. Eu já disse. Nós não temos o mesmo... como

posso chamar? O mesmo acesso que você. As correntezas profundas.Sukie e eu somos como alfinetes e agulhas, capazes de espetar earranhar, mas praticamente só isso.”

Alexandra se virou para Sukie. “O que você acha disso tudo?”Embriagada de uísque como estava, Sukie tentou imprimir aos

lábios uma expressão pensativa; seu lábio superior se franziu de umjeito adorável acima dos dentes ligeiramente protuberantes. “Jane e eujá conversamos um pouco a respeito pelo telefone. Nós queremosmesmo que você faça isso conosco. Queremos, sim. Deveria ser umacoisa unânime, como uma votação. No outono passado eu fiz umfeitiçozinho só meu para juntar você e Darryl, sabe, e ele funcionouaté certo ponto. Mas só até certo ponto. Para ser sincera, querida, achoque os meus poderes estão diminuindo mais a cada dia que passa.Tudo parece insípido. Na outra noite, eu olhei para Darryl e ele mepareceu de certa forma todo remendado... acho que está ficando commedo.”

“Então por que não deixamos Jenny ficar com ele?”“Não”, intrometeu-se Jane. “Ela não pode ficar com ele. Ela o

roubou. Ela nos fez de bobas.” Seus esses se alongavam como umcheiro de fumaça na sala comprida, feia e marcada. Depois., dospequenos lances de escada que desciam para a área da cozinha esubiam para os quartos, um barulho distante, chiado e murmurante

revelava que os filhos de Jane estavam entretidos com a televisão.Houvera mais um assassinato em algum lugar. O presidente estavafazendo seus discursos apenas em recintos militares. A contagem decorpos havia aumentado, mas o mesmo acontecera com a infiltraçãojunto ao inimigo.

Alexandra mesmo assim se virou para Sukie, esperando serpoupada daquela necessidade que a assombrava.

“Você fez um feitiço para Darryl e eu ficarmos juntos naquele diada maré alta? Ele não ficou atraído por mim espontaneamente?”

“Ah, tenho certeza que sim, meu amor”, disse Sukie, mas comcerta relutância. “Enfim, quem pode saber? Eu usei aquele barbanteverde de jardineiro para amarrar vocês dois juntos, e olhei debaixo dacama no outro dia e o amuleto tinha sido roído por ratos ou algoassim, talvez por causa do sal que minhas mãos soltaram.”

“Não foi muito legal da sua parte”, disse Jane para Sukie, “vocêsabia que eu o queria para mim.”

Esse era o momento de Sukie dizer a Jane que gostava mais deAlexandra; em vez disso, ela falou: “Nós todas o queríamos, mas eupensei que você seria capaz de conseguir o que queria sozinha. E defato conseguiu. Você vivia enfurnada lá, dedilhando, se é assim quequer chamar o que fazia.”

A vaidade de Alexandra tinha sido ferida. Ela disse: “Ah, quedroga. Vamos fazer, então”. Aquilo parecia mais simples, uma formade limpar mais um pedacinho da interminável sujeira do mundo.

Tomando cuidado para não tocar em nada com as mãos, de modoa não correr o risco de incluir na mistura suas próprias essências — osal e a gordura de sua pele, suas numerosas bactérias pessoais —, astrês sacudiram os lenços de papel, os longos fios de cabelo louros, opapel vermelho do Band-Aid e, mais importante de tudo, os pequenospontinhos dos pelos das pernas, que saltaram da trama da toalhacomo ácaros vivos, para dentro de um cinzeiro de cerâmica que Janetinha roubado do Bronze Barrei na época em que frequentava o bar

depois dos ensaios com os Neff. Ela acrescentou a cabeça de açúcarque tinha recuperado da boca e acendeu a pequena pira com umfósforo de papel. Os lenços de papel pegaram fogo tornando-sealaranjados, os fios de cabelo crepitaram azuis e emitiram um fedor dequeimado, o marzipã se reduziu a um coágulo preto borbulhante. Afumaça subiu até o teto e ficou pendurada qual uma teia de aranha nasuperfície artificial, umas placas de papelão com gesso cobertas comuma áspera camada de tinta misturada com areia para imitar o gessode verdade.

“Agora”, disse Alexandra para Jane Smart. “Você tem algum tocode vela? Ou velinhas de aniversário guardadas em alguma gaveta? Ascinzas precisam ser moídas e misturadas com mais ou menos meiaxícara de cera derretida. Use uma frigideira bem untada, no fundo enas laterais: se a cera grudar, o feitiço sai com defeito.”

Enquanto Jane executava essa ordem na cozinha, Sukie tocou oantebraço da outra mulher com a mão. “Meu bem, eu sei que você nãoquer fazer isso”, disse.

Acariciando os delicados tendões da mão esticada, Alexandrapercebeu como as sardas, abundantes nas costas e nas primeirasfalanges, iam ficando mais esparsas em direção às unhas, como seaquela mistura não tivesse sido suficientemente mexida.

“Ah, mas eu quero, sim”, replicou ela. “Isso me dá grande prazer.E uma arte. E eu adoro a forma como vocês duas acreditam tanto emmim.” E, sem pensar, ela se curvou e beijou Sukie sobre as complexasalmofadas dos lábios.

Sukie a encarou. Suas pupilas se contraíram enquanto a sombra dacabeça de Alexandra se afastava de suas íris verdes. “Mas vocêgostava de Jenny.”

“Somente do corpo dela. Da mesma forma que gostava do corpodos meus filhos. Você se lembra do cheiro que eles tinham quandoeram bebês?”

“Ah, Lexa: você acha que alguma de nós algum dia ainda vai ter

mais filhos?”Foi a vez de Alexandra dar de ombros. A pergunta parecia piegas,

sem utilidade. “Sabe o que as bruxas usavam para fazer velas?”,perguntou ela a Sukie. “Gordura de bebê!” Ela pôs-se de pé, nãototalmente equilibrada. Tinha bebido vodca, que não deixa o hálitocarregado nem contém muitas calorias, mas que tampouco atravessa oseu sistema sem qualquer efeito como uma corrente de neutrinos.“Temos que ir ajudar Jane na cozinha.”

No fundo de uma gaveta, Jane havia encontrado uma velha caixade velas de aniversário sortidas, cor-de-rosa e azuis. Derretida nafrigideira untada junto com as cinzas de sua pequena pira e misturadacom um batedor de ovo, a cera adquiriu um tom perolado entre o liláse o cinza, salpicado de pontinhos.

“O que você tem por aí que poderia servir de fôrma?”, indagouAlexandra. Elas começaram a procurar forminhas de biscoito,rejeitaram uma forma de patê excessivamente grande, cogitaram usarxicrinhas de café e copos de licor, e acabaram escolhendo a parte debaixo de um espremedor de laranja antiquado feito de vidro grosso,daqueles que têm o formato de um sombreiro com um bico na borda.Alexandra virou o espremedor de cabeça para baixo e derramou amistura com habilidade; a cera quente chiou dentro do cone estriado,mas o vidro não rachou. Ela molhou o lado de cima com água fria datorneira e bateu com o espremedor na borda da pia até o cone convexode cera, ainda morno, se soltar em sua mão. Apertou-o para lhe darum formato alongado. A forma humana incipiente a fitou de suapalma, com quatro depressões causadas por seus dedos. “Que droga”,disse ela. “Deveríamos ter guardado alguns fios de cabelo dela.”

“Vou ver se ainda tem algum grudado na toalha”, disse Jane.“E você por acaso tem algum pauzinho de laranjeira?”, perguntou-

lhe Alexandra. “Ou uma lixa de unhas comprida? E para esculpir. Atéum alfinete serve.” E lá se foi Jane. Ela estava acostumada a receberordens: de Bach, de Popper, de um bando de defuntos. Na sua

ausência, Alexandra deu uma explicação para Sukie. “O truque é nãotirar mais do que o necessário. Agora cada partícula tem a sua magia.”

Dentre as facas presas a uma barra magnética na parede, elaescolheu uma pequena e rombuda, cujas muitas passagens pela lava-louças haviam deixado o cabo de madeira descorado e mole.Manejou-a para desenhar um pescoço, uma cintura. As lascas caíramem cima de uma folha de papel-toalha estendida sobre a bancada defórmica. Equilibrando as lascas na ponta da faca enquanto seguravasob esta um fósforo aceso com a outra mão, ela tornou a derreter acera sobre a boneca em construção para formar os seios. Alexandrausou a mesma técnica para formar as curvas mais sutis da barriga edas coxas. Moldou as pernas até uns pés pequeninos ao estilo dosseus. As lascas que sobraram dessa operação, depois de aquecidas,pingadas e alisadas, se transformaram nas nádegas. Durante todo otempo, ela procurou reter na mente a forma da moça, como ela haviabrilhado durante seus banhos. Os braços não eram importantes, eforam esculpidos em um relevo baixo nas laterais. Quanto ao sexo, elao indicou com firmeza com a ponta da faca virada de cabeça parabaixo e na vertical. Os outros vincos e contornos foram refinados coma ponta oval enviesada do pauzinho de laranjeira produzido por Jane.Jane havia encontrado mais um fio de cabelo preso aos fios da toalha.Segurou-o contra a luz da janela e, embora um único fio de cabeloquase não tenha cor, aquele filamento não lhe pareceu nem preto nemruivo, e pareceu-lhe mais claro, mais fino, mais puro do que um fiosaído da cabeça de Alexandra.

“Tenho quase certeza de que é de Jenny”, disse ela.“É melhor que seja, mesmo”, disse Alexandra, com a voz rouca de

concentração na figura que estava esculpindo. Com a ponta do maciopauzinho de madeira usado para empurrar cutículas, ela inseriuaquele único fio no couro cabeludo lilás e maleável.

“Ela tem cabeça, mas não tem rosto”, reclamou Jane por cima doombro da amiga. Sua voz perturbou a atmosfera sagrada de

concentração.“O rosto quem faz somos nós”, foi a resposta sussurrada de

Alexandra. “Nós sabemos quem é e projetamos o rosto.”“Já estou com a sensação de que essa daí é Jenny”, disse Sukie,

depois de observar com tamanha atenção a feitura da boneca queAlexandra pudera sentir seu hálito sobre as mãos.

“Mais liso”, entoou Alexandra para si mesma, usando o ladoconvexo de uma colher. “Jenny é liiiisa.”

“Isso não vai ficar em pé”, tornou a criticar Jane.“As mulherzinhas dela nunca ficam”, interveio Sukie.“Shh”, ordenou Alexandra, preservando o tom encantatório. “Ela

tem que estar deitada. E assim que nós, as senhoras, sempre fazemos.Sempre tomamos nosso remédio deitadas.” Usando a faca mágica, oatame, ela escavou sulcos para imitar na cabeça do pequeno simulacroo recatado penteado novo de Jenny ao estilo de Eva Perón. Areclamação de Jane sobre o rosto a havia perturbado, então, com oauxílio do pauzinho de laranjeira, ela tentou reproduzir as depressõescurvas de duas órbitas oculares. O efeito foi alarmante: parecia queaquele montinho cinza de repente era capaz de enxergar. O vazio noestômago de Alexandra virou chumbo. Ao tentar criar, nós aceitamoso fardo de culpa da criação, seu fardo de assassinato eirreversibilidade. Com o dente de um garfo, ela escavou um umbigona barriga lustrosa da boneca: nascida, não feita; ligada ' à mãe Evacomo todos nós.

“Chega”, anunciou Alexandra, largando as ferramentas na pia comalarde. “Rápido, enquanto a cera ainda está meio morna. Sukie. Vocêacredita que esta aqui é Jenny?”

“Ora... é claro, Alexandra, se você diz que é.”“E importante você acreditar. Segure-a. Com as duas mãos.” Sukie

obedeceu. Suas mãos magras e sardentas tremiam. “Diga para ela...sem rir... diga para ela: ‘Você é Jenny. Você tem que morrer’.”

“Você é Jenny. Você tem que morrer.”

“Você também, Jane. Vamos. Diga.”As mãos de Jane eram diferentes tanto das de Sukie quanto uma

da outra: a mão que manejava o arco era grossa e macia, e a mão quededilhava era superdesenvolvida e exibia calos dourados e opacos naspontas cruelmente castigadas.

Jane pronunciou as palavras, mas em um tom tão neutro edeterminado, como se estivesse apenas lendo as notas, que Alexandraalertou:

“Você tem que acreditar nas palavras. Esta é Jenny.”Alexandra não ficou surpresa com o fato de, apesar de todo o seu

desdém, Jane ser a irmã mais fraca na hora de lançar o feitiço; pois amagia é movida por amor, não por ódio: o ódio só maneja a tesoura, eé incapaz de tecer os fios da empatia com os quais a mente e o espíritode fato influenciam a matéria.

Jane repetiu as palavras, ali na cozinha de sua casa de fazenda,com sua grande janela quadrada salpicada de excrementos de pássaroendurecidos, com vista para um quintal desleixado que, apesar disso,estava enfeitado nessa época do ano com a glória de dois arbustos decorniso floridos. Os últimos raios de sol do dia cintilavam como umfundo de metal precioso lavrado em finas folhas entre os arabescostrêmulos dos galhos escuros e os tufos de botões de quatro pétalas emsuas pontas. Uma piscina infantil de plástico amarelo, exposta àsintempéries durante todo o inverno e já demasiado pequena para osfilhos de Jane, repousava meio torta sob uma das árvores contendouma meia-lua de água imunda que um dia havia sido neve. Ogramado estava marrom e cheio de calombos, mas entremeado deverde novo. A terra continuava viva.

As vozes das outras duas chamaram Alexandra de volta a si.“Você também, querida”, disse-lhe Jane com rispidez, tornando a

lhe entregar sua peituda. “Pode dizer as palavras.”Eram palavras de ódio, mas eram também factuais; Alexandra as

pronunciou com calma convicção, apressando então o feitiço rumo à

conclusão.“Alfinetes”, disse ela a Jane. “Agulhas. Tachinhas, até — tem

alguma tachinha no quarto dos seus filhos?”“Eu detesto entrar lá, eles vão começar a gritar pedindo comida.”“Diga a eles que o jantar vai sair daqui a cinco minutos”, falou

Alexandra. “Temos que terminar senão...”“Senão o quê?”, perguntou Sukie, assustada.“Senão o tiro poderia sair pela culatra. Ainda pode sair. Como a

bomba de Ed. Aquelas tachinhas de cabeça redonda que se usa paramarcar mapas seriam ótimas. Ou até clipes de papel, se conseguirmosendireitá-los. Mas uma agulha de bom tamanho é fundamental.” Elanão explicou: Para perfurar o coração. “E, Jane, um espelho também.”Pois a magia não se dava nas três dimensões da matéria, mas simdentro da matéria-imagem gerada no interior de um espelho, naidentidade astral das coisas simples e mudas, uma existência somadaà existência.

“Sam deixou um espelho de barbear que eu às vezes uso paramaquiar os olhos.”

“Perfeito. Depressa. Tenho que me manter no clima, ou oselementos vão se dissipar.”

E lá se foi Jane novamente; Sukie, ao lado de Alexandra, provocoua amiga: “Que tal mais uma dose? Eu vou tomar só mais um bourbonfraquinho antes de encarar a realidade”.

“Sinto dizer, mas isto aqui é a realidade. Uma meia dose para mim,querida. Uma medida de vodca, e pode encher o resto com águatônica, refrigerante ou água da torneira, qualquer coisa. Pobrezinha daJenny.” Enquanto subia os seis degraus da cozinha até a sala levandoa boneca de cera, as imperfeições e assimetrias de sua obra lhesaltaram aos olhos: uma perna menor do que a outra, a anatomia noponto em que quadris, coxas e barriga se juntavam não de todocompreendida, os seios de cera pesados demais. Quem a fizera pensarque ela era uma escultora? Darryl: que maldade a dele.

O medonho dobermann de Jane, libertado por alguma porta queela havia aberto no corredor do andar de cima, entrou correndo nasala de estar, e as unhas de suas patas arranharam a madeira nua. Suapelagem era negra, untuosa, cortada rente e ondulante, enfeitadacomo um uniforme militar com botas alaranjadas e manchas damesma cor no peito e no focinho, bem como em duas rodelas acimados olhos. Babando, ele ergueu os olhos para as mãos em concha deAlexandra, pensando que estas poderiam conter algo comestível. Atémesmo as narinas de Randolph pingavam, tamanho o seu apetite, e asdobras internas de suas orelhas eretas a alertas pareciam extensões deintestinos famintos.

“Não é para você”, disse-lhe Alexandra com firmeza, e, de tanto seesforçarem para compreender, os olhos pretos vítreos do cachorropareciam polidos.

Sukie logo chegou com as bebidas; Jane entrou depressa trazendoum espelho de barbear de dupla face com uma armação de metal, umcinzeiro cheio de tachinhas multicoloridas e uma almofada dealfinetes feita de tecido no formato de uma pequena maçã. Faltavampoucos minutos para as sete; às sete, a programação da TV mudava eas crianças iriam pedir o jantar. As três puseram o espelho sobre amesa de centro de Jane, uma imitação de banco de sapateiroabandonada pelo engenheiro mecânico ao se mudar para o Texas.Dentro do círculo prateado do espelho, tudo ficou ampliado, esticadoe fora de foco nas bordas, e vivido e imenso no centro. Uma de cadavez, as mulheres seguraram a boneca diante do espelho como se estefosse a boca ávida e redonda de um outro mundo, e começaram aespetar nela alfinetes e tachinhas.

“Aurai, Hanlii, Thamcii, Tilinos, Athamas, Zianor, Auonail”, recitouAlexandra.

“Tzabaoth, Messiach, Emanuel, Elchim, Eibor, Yod, He, Vou, He!”,entoou Jane com um tom de sacrilégio distinto.

“Astachoth, Adonai, Agia, On, El, Tretragrammaton, Shema”, disse

Sukie, “Ariston, Anaphaxeton, e me esqueci o que vem depois.”Seios e cabeça, quadris e barriga, as pontas foram espetando.

Batidas e gritos distantes e indistintos flutuavam por seus ouvidosadentro enquanto a violência dos programas de TV alcançava o ápice.O simulacro havia adquirido um aspecto festivo e incrustado: eriçadofeito o mapa de uma campanha militar, dotado do espalhafato mortalde uma granada em estilo pop art, tomado por um brilho de vodu.Um reflexo multicolorido dançava no espelho de barbear. Jane ergueua agulha comprida, de um tamanho adequado para costurar camurçacom uma linha grossa.

“Quem quer espetar o coração?”“Pode espetar você”, disse Alexandra, prestando atenção para

espetar uma tachinha de cabeça amarela simetricamente a outra, comose aquilo fosse arte abstrata. Embora o pescoço e as faces tivessem sidoespetados, ninguém se atrevera a enfiar um alfinete nos olhos, quefitavam com um ar inexpressivo ou infeliz, dependendo da posiçãodas sombras.

“Ah, não, não joguem isso para cima de mim”, disse Jane Smart.“Temos que fazer isso juntas, todas as três têm que participar.”

Com as mãos esquerdas entrelaçadas qual um ninho de cobras,elas espetaram a agulha. A cera resistiu, como se seu centro contivesseum caroço de substância mais grossa.

“Morra”, disse uma boca vermelha.“Tome isso!”, disse outra, antes de todas caírem na risada.A agulha penetrou. O indicador de Alexandra exibia um pontinho

azul prestes a sangrar. “Nós deveríamos ter usado um dedal”, disse.“E agora, Lexa?”, perguntou Sukie. Ela estava levemente ofegante.Um fraco sibilo emanou de Jane quando ela contemplou a estranha

obra das três.“Agora nós precisamos lacrar a maldade”, disse Alexandra. “Jane,

você tem filme plástico?”As outras duas tornaram a rir. Elas estavam com medo, percebeu

Alexandra. Por quê? A natureza está sempre matando, e nós achamamos de bela. Alexandra sentia-se drogada, imobilizada, imensacomo uma formiga ou abelha rainha; as coisas do mundo sederramavam através dela e tornavam a emergir tingidas com seuespírito, com sua vontade.

Jane foi buscar uma folha de papel-alumínio excessivamentegrande, rasgada de forma irregular devido ao pânico. O alumíniofarfalhou e luziu com a velocidade de seu andar. Passos de criançasoaram no corredor.

“Cuspam todas”, ordenou Alexandra depressa depois de deitarJenny sobre o alumínio trêmulo. “Cuspam para a semente da mortepoder crescer”, insistiu, e cuspiu primeiro.

Quando Jane cuspiu, foi como o espirro de um gato; Sukieexpectorou quase como um homem. Alexandra dobrou o alumíniocom o lado brilhante para dentro, dando voltas e mais voltas em tornodo amuleto, sem apertar, para não retirar os alfinetes nem se espetar.O resultado ficou parecido com uma batata prestes a ir ao forno.

Dois dos filhos de Jane, um menino obeso e uma menina magra derosto sujo, aproximaram-se, curiosos.

“O que é isso?”, quis saber a menina. Seu nariz se franziu ao sentiro cheiro do mal. Tanto seus dentes superiores quanto os inferioresestavam envoltos no emaranhado reluzente de um aparelho. Ela haviacomido algo doce e esverdeado.

“E um projeto da senhora Spofford que ela estava nos mostrando”,respondeu-lhe Jane. “E muito delicado, e ela não quer desembrulharde novo, então por favor não peça.”

“Estou morrendo de fome”, disse o menino. “E nós não queremoshambúrgueres da Nemo’s de novo, queremos uma refeição caseiracomo as outras crianças.”

A menina estudava Jane com atenção. Tinha o mesmo perfilmarcado da mãe, só que em versão embrionária.

“Mãe, você está bêbada?”

Com uma rapidez mágica, Jane deu um tapa na menina, como seas duas, mãe e filha, fizessem parte de um mesmo brinquedo demadeira que repetisse esse mesmo gesto vezes sem conta. Sukie eAlexandra, cujos próprios filhos famintos uivavam lá fora no escuro,aproveitaram a deixa para ir embora. Pararam no caminho de tijolosdo lado de fora da casa, de cujas amplas janelas iluminadas emanavao tumulto espiralado de uma briga familiar.

“Quer ficar com isso?”, perguntou Alexandra a Sukie.O peso envolto em alumínio dentro de sua mão estava morno.A bela mão esguia e ágil de Sukie já estava pousada na maçaneta

da porta de seu Corvair.“Eu bem que ficaria, querida, mas lá em casa tem uns ratos ou

camundongos ou sei lá o quê que roeram o outro amuleto. Elesadoram cera de vela, não é?”

De volta à sua própria casa, mais protegida do barulho do tráfegona Orchard Road, agora que sua sebe de lilases estava recuperando asfolhas, Alexandra, querendo esquecer aquele objeto, guardou-o emuma prateleira alta da cozinha, junto com algumas peitudasdefeituosas que não tivera coragem de jogar fora e com o vidrolacrado contendo o pó multicolorido que outrora havia sido o bom evelho bem-intencionado Ozzie.

“Ele vai a toda parte com ela”, disse Sukie para Jane ao telefone.“Sociedade Histórica, reuniões de conservação. Eles chegam a serridículos de tanto que tentam ser respeitáveis. Ele chegou a entrarpara o coral da igreja unitarista.”

“Darryl? Mas ele não tem voz nenhuma”, disse Jane, ríspida.

“Bom, alguma coisa ele tem, uma espécie de barítono. A voz dele éigualzinha ao som de um órgão.”

“Quem contou tudo isso para você?”“Rose Hallybread. Eles também entraram para a igreja de Brenda.

Parece que Darryl convidou os Hallybread para jantar, e Arthuracabou dizendo que Darryl não era tão maluco quanto ele haviapensado no início. Isso foi por volta das duas da manhã, depois detodos passarem horas no laboratório e deixarem Rose morta de tédio.Até onde entendi, a nova ideia de Darryl é criar uma espécie demicróbio dentro de algum grande reservatório d’água como o lago deGreat Salt Lake, quanto mais salgada a água melhor, é claro, e essemicrobiozinho, pelo simples fato de se reproduzir, de alguma formavai transformar o lago inteiro em uma imensa bateria. Eles poriamuma cerca em volta, é claro.”

“É claro, meu bem. A segurança vem em primeiro lugar.”Houve uma pausa, enquanto Sukie tentava adivinhar se o

comentário havia sido sarcástico e, caso sim, por quê. Ela só estavatransmitindo as notícias. Agora que as três não mais se reuniam nacasa de Darryl, encontravam-se com menos frequência. Não haviamabandonado oficialmente suas quintas-feiras, mas, desde o feitiçolançado sobre Jenny um mês antes, uma das três sempre tinha umadesculpa para faltar.

“Mas como você está?”, perguntou Sukie.“Tenho me mantido ocupada”, respondeu Jane.“Não paro de encontrar Bob Osgood no centro.”Jane não mordeu a isca. “Na verdade”, disse ela, “eu ando infeliz.

Estava em pé lá no quintal dos fundos quando uma onda negra mesubmergiu e eu percebi que tinha alguma coisa a ver com o verão,com todo esse verde e todas essas flores brotando, e então percebi oque odeio no verão: as crianças vão passar o dia inteiro em casa.”

“Como você é malvada!”, comentou Sukie. “Eu gosto bastante dosmeus filhos, agora que eles têm idade suficiente para conversar como

adultos. Como eles vivem assistindo à TV, são muito mais beminformados sobre o que está acontecendo no mundo do que eu jamaisfui; eles querem se mudar para a França. Dizem que o nossosobrenome é francês e que eles consideram a França um paíscivilizado que nunca trava guerras e onde ninguém mata ninguém.”

“Conte a eles sobre Gilles de Rays”, disse Jane.“Não cheguei a pensar nele; mas eu disse às crianças que foram os

franceses que armaram aquela confusão no Vietnã para começo deconversa, confusão que nós estávamos tentando consertar. Eles nãoacreditaram. Disseram que nós só estávamos tentando criar maismercado para a Coca-Cola.”

Houve outra pausa.“Bom”, disse Jane. “Você a viu?”“Quem?”“Ela. Joana d’Arc. Madame Curie. Como ela está?”“Jane, você é incrível. Como foi que soube? Que eu a vi no centro

da cidade?”“Querida, dá para saber pela sua voz. E por que outro motivo você

teria me ligado? Como estava a belezinha?”“Ela na verdade foi muito agradável. Foi um tanto constrangedor.

Disse que ela e Darryl estavam com muitas saudades nossas, e que elagostaria que aparecêssemos algum dia de um jeito informal, eles nãogostam de pensar que precisam fazer um convite formal, mas elaprometeu que vão fazer um convite formal logo, logo; mas é que elesandam muito ocupados ultimamente, com vários progressospromissores no laboratório e alguns assuntos jurídicos que têmobrigado Darryl a viajar para Nova York. Aí ela começou a dizer oquanto gosta de Nova York em comparação com Chicago, que é umacidade ventosa e dura e onde ela nunca se sentia segura, nem mesmodentro do hospital. Enquanto Nova York é só um conjunto dealdeiazinhas aconchegantes, todas empilhadas umas por cima dasoutras. Et cetera, et cetera.”

“Eu nunca mais vou pôr os pé naquela casa”, jurou Jane Smart deforma veemente e desnecessária.

“Ela pareceu mesmo não perceber”, prosseguiu Sukie, “que nóspoderíamos ter ficado ofendidas com o fato de ela roubar Darryl bemdebaixo dos nossos narizes como fez.”

“Quando você se convence de que é inocente”, disse Jane, “podesair incólume de qualquer situação. Como estava a aparência dela?”

Dessa vez foi Sukie quem fez a pausa. Antigamente, suasconversas borbulhavam, as frases se trançavam e fluíam umas porcima das outras, cada qual antecipando o que a outra iria dizer edeleitando-se mesmo assim, como se aquilo fosse a confirmação deuma identidade em comum.

“Não estava lá muito boa”, afirmou Sukie por fim. “A pele delaparecia... sei lá, transparente.”

“Ela sempre foi pálida”, disse Jane.“Mas não era só palidez. Afinal de contas, querida, nós estamos

em maio. Todo mundo a esta altura já deveria ter pego alguma cor.Nós fomos a Moonstone no domingo passado e ficamos lá tostandonas dunas. Meu nariz está parecendo um morango; Toby vive fazendograça com isso.”

“Toby?”“Toby Bergman, você sabe: ele assumiu a redação do Word depois

do pobre Clyde e quebrou a perna no gelo no inverno passado. Aperna já ficou boa, embora esteja mais curta do que a outra. Ele nuncafaz aqueles exercícios com sapatos de chumbo que eles mandamfazer.”

“Pensei que você o detestasse.”“Isso foi antes de eu o conhecer, quando ainda estava toda

histérica por causa de Clyde. Na verdade, Toby é bem divertido. Eleme faz rir.”

“Ele não é bem mais... jovem?”“Nós conversamos sobre isso. Em junho agora vai fazer dois anos

que ele saiu da Brown. Segundo ele, eu sou a pessoa mais jovem decoração que ele já conheceu, e ele implica comigo porque vivocomendo junk food e querendo fazer maluquices do tipo passar a noiteinteira acordada assistindo a talk shows. Acho que ele é bem típico dasua geração, eles não têm todas essas travas em relação à idade, à raça,essas coisas todas com que nós fomos criadas. Pode acreditar, querida,sob vários aspectos ele é uma evolução clara em comparação com Ed eClyde, inclusive sob alguns que não vou citar. Não é complicado, nósnos divertimos e pronto.”

“Que ótimo”, disse Jane com desdém, engolindo o final da palavra.“O... espírito dela pareceu igual?”

“Ela me pareceu um pouco menos tímida”, disse Sukie, pensativa.“Sabe, mulher casada, essas coisas. Pálida, como eu disse, mas talveztenha sido o horário. Nós tomamos um café na Nemo’s, só que elatomou chocolate porque não tem dormido bem e está tentando cortara cafeína. Rebecca não parou de lhe dar atenção, insistindo paraprovarmos aqueles muffins de mirtilo que fazem parte da campanhada Nemo’s para trazer de volta do café Bakery um pouco da clienteladecente da hora do almoço. A mim ela mal dirigiu a palavra. Rebecca,digo. Ela deu só uma mordida — Jenny, digo — e perguntou se eupodia terminar o muffin para ela, porque não queria magoar Rebecca.Na verdade eu comi de bom grado, tenho andado esfomeada, nãoconsigo imaginar o que pode ser, não posso estar grávida, posso?Esses judeus são realmente potentes. Ela disse que não sabia por que,mas que ultimamente andava meio sem apetite. Jenny. Pensei se elaestaria jogando algum verde para ver se eu por acaso sabia por quê.Talvez bem lá no fundo ela saiba sobre o... sobre aquilo que nósfizemos, sei lá. Fiquei com pena dela, do jeito como ela pareceu sedesculpar pela falta de apetite.”

“Então é verdade mesmo, não é?”, observou Jane. “Nós pagamostodos os nossos pecados.”

Havia tantos pecados no mundo que Sukie levou alguns segundos

para entender que Jane estava se referindo ao pecado de Jenny de terse casado com Darryl.

Joe tinha ido visitá-la naquela manhã, e os dois tinham tido suapior briga até então. Gina agora estava de quatro meses, e a gravidezestava começando a aparecer; a cidade inteira podia ver. E os filhos deAlexandra estavam prestes a serem liberados da escola, e tornariamimpossíveis aqueles encontros durante a semana em sua casa. O que,para ela, era um alívio; seria um tremendo alívio, para falarfrancamente, não ter mais de ouvir aquelas conversas irresponsáveis ena verdade um tanto presunçosas de Joe sobre abandonar Gina. Elaestava farta de ouvi-las, elas não significavam nada, e ela não queriaque significassem nada, a ideia toda a incomodava e insultava. Ele eraseu amante, será que isso não bastava? Havia sido seu amante, atéentão. As coisas terminam. Começam, depois terminam. Todas aspessoas adultas sabiam disso, por que não ele? Assim repreendido,com tamanha severidade, girado na ponta de sua língua como em umespeto, Joe se zangou, bateu algumas vezes no ombro dela com umpunho frouxo o suficiente para não machucar e saiu correndo peladopelo quarto, o corpo atarracado e branco e aqueles dois redemoinhosde pelos escuros nas costas que, aos olhos dela, lembravam as asas deuma borboleta (a coluna dele seria o corpo do inseto) ou então o brilhode duas finas placas de mármore dispostas de modo que o desenhoderretido no interior da pedra formasse um padrão simétrico. Haviaalgo delicado e orgânico nos pelos do corpo de Joe, enquanto os deDarryl eram ásperos como um capacho. Joe chorou; tirou o chapéupara bater com a cabeça no batente de uma porta: foi ao mesmo tempo

uma paródia e um pesar verdadeiro, uma perda de verdade. O quarto,o verde de sua madeira velha e as grandes peônias de suas cortinascom seus rostos de palhaço camuflados, o teto rachado que haviaassistido em muda conspiração a seus acasalamentos nus, tudo issofazia parte de sua tristeza, pois há poucas coisas mais preciosas paraum homem que está tendo um caso do que ser acolhido em uma casaque ele nada fez para sustentar, nem mais emocionante para a mulherdo que recebê-lo, do que exibir essa generosidade proposital,tornando dele a sua casa, dele pela simples força de seu pau, de seupau e de sua companhia, do cheiro, da diversão e do peso que eleproporcionava — sem precisar comprá-la com prestações da hipoteca,sem a chantagem dos filhos em comum, mas sendo simplesmenteacolhido dentro das paredes de outro ser, uma acolhida dignificadapela liberdade e pela igualdade. Joe não conseguia parar de pensar emtimes e em casamento; queria que suas próprias entidadesabençoassem aquele relacionamento. Ele havia conspurcado ogracioso presente de Alexandra com as suas “boas” intenções. Em suaangústia, surpreendeu-a ao ficar novamente ereto e, como agora seutempo era curto, já que haviam desperdiçado a manhã com palavras,ela deixou que ele a penetrasse em sua posição preferida, por trás,com ela de joelhos. Que força da natureza eram as suas estocadas!Como ele se convulsionava ao gozar! A coisa toda a deixou com asensação de ter sido sacudida e purificada, como uma toalha retiradada secadora e que precisava ser dobrada e guardada em algumaprateleira arejada de sua casa ensolarada e vazia.

A casa também parecia mais feliz com a visita dele, naqueleintervalo antes de a eternidade de sua separação se tornar real. Asvigas e tábuas daquela época ventosa e úmida do ano tagarelavamentre si, rangendo, e quando ela estava de costas o caixilho de algumajanela emitia um ruído veloz como o súbito grito de um pássaro.

Ela almoçou uma salada preparada na noite anterior, com a alfacemurcha dentro de sua poça de azeite gelado. Precisava emagrecer, ou

então passaria o verão inteiro sem poder usar biquíni. Outro defeitode Joe era o fato de ele perdoar sua gordura — como aqueles homensprimitivos que transformam as esposas em prisioneiras da obesidade,montanhas de carne preta à sua espera em cabanas com telhado desapê. Aliviada do peso de seu amante, Alexandra já se sentia maismagra. Sua intuição lhe avisou que o telefone iria tocar. E tocoumesmo. Devia ser Jane ou Sukie, animadas e maliciosas. Porém, a vozque emanou dos furinhos pressionados contra seu ouvido foi uma vozmais jovem e mais leve, com uma certa tensão de timidez, um bolsãode medo sobre o qual pulsava uma membrana parecida com o papode um sapo.

“Alexandra, você está me evitando.” Era a voz no mundo queAlexandra menos queria escutar.

“Bem, Jenny, nós queríamos dar um pouco de privacidade a você eDarryl. Também ficamos sabendo que vocês agora têm outrosamigos.”

“Temos, sim. Darryl adora o que chama de novas contribuições.Mas não é como... como nós, antes.”

“Nada nunca é a mesma coisa”, disse-lhe Alexandra. “O rio corre;o passarinho amadurece e rompe a casca. Enfim. Você está bem.”

“Mas não estou, não, Lexa. Tem alguma coisa muito errada.”Na mente da mulher mais velha, a voz da outra se ergueu na sua

direção como um rosto que se inclina para ser esfregado, com as facescobertas por uma camada suja de rouquidão.

“O que há de muito errado?” Sua própria voz parecia um oleadoou uma lona grande que, ao ser estendida no chão de terra, prendeum pouco de ar sob seu peso e forma uma bolha, uma suave onda devazio.

“Eu vivo cansada”, disse Jenny, “e sem muito apetite.Subconscientemente, sinto tanta fome que não paro de sonhar comcomida, mas quando me sento de verdade não consigo me forçar acomer. E tem outras coisas também. Dores que vêm e vão durante a

noite. Meu nariz não para de escorrer. E constrangedor; Darryl dizque eu passo a noite roncando, coisa que nunca fiz antes na vida. Vocêse lembra daqueles caroços que eu tentei lhe mostrar e você nãoconseguiu encontrar?”

“Sim. Vagamente.” As sensações daquele exame casualpenetraram horrivelmente seus dedos.

“Bom, agora apareceram outros. Na... na virilha, e debaixo dasorelhas. Não é aí que ficam os nodos linfáticos?”

Jenny nunca tinha furado as orelhas, e vivia perdendo pequenosbrincos infantis com fecho de pressão na sala da banheira, sobre aardósia preta, entre as almofadas.

“Realmente não sei, meu anjo. Você deveria procurar um médicose está preocupada.”

“Ah, já procurei. O doutor Pat. Ele me mandou fazer uns examesno Hospital de Westwick.”

“E os exames acusaram alguma coisa?”“Segundo eles, na verdade não; mas eles querem que eu faça

outros. São todos muito ansiosos, muito sérios, e falam todos com amesma voz esquisita, como se eu fosse uma menina travessa quepudesse fazer xixi no seu sapato se eles não me mantiverem àdistância. Eles têm medo de mim. O simples fato de eu estar doenteparece lhes causar vergonha, não sei bem por quê. Dizem coisas dotipo a minha contagem de glóbulos brancos está ‘só um pouco fora dopadrão’. Todos sabem que eu trabalhei em um hospital de cidadegrande, e isso os deixa na defensiva, mas eu não sei nada sobredoenças sistêmicas, praticamente só via fraturas e pedras na vesícula.Tudo isso poderia ser uma bobagem, mas à noite, quanto me deito,posso sentir que alguma coisa não está certa, que alguma coisa estáacontecendo dentro de mim. Eles vivem me perguntando se fuiexposta a muita radiação. Bom, é claro que trabalhei com radiação noMichael Reese, mas eles tomam muito cuidado, enrolam você emchumbo e mandam você ficar dentro de uma cabine de vidro grosso

na hora de acionar o botão, então tudo em que consegui pensar foique, quando eu era adolescente, antes de nos mudarmos paraEastwick e quando ainda morávamos em Warwick, eu fiz váriasradiografias dentárias quando estavam consertando meus dentes;quando era menina, minha boca era um caos.”

“Seus dentes agora são lindos.”“Obrigada. Eles custaram a papai um dinheiro que ele na verdade

não tinha, mas ele fazia questão de me deixar bonita. Ele me amava,Lexa.”

“Tenho certeza que sim, querida”, disse Alexandra, tentandoconter a própria voz; o ar preso sob o oleado estava aumentando, sedebatendo qual um animal selvagem feito de vento.

“Ele me amava tanto”, dizia Jenny sem conseguir se conter. “Comopôde fazer isso comigo, se enforcar? Como pôde nos deixar tãosozinhos, eu e Chris? Mesmo que ele estivesse preso por assassinato,seria melhor do que como está agora. Eles não teriam dado uma penamuito grande para ele, o jeito horrível como ele agiu não poderia tersido premeditado.”

“Você tem Darryl.”“Tenho e não tenho. Você sabe como ele é. Você o conhece melhor

do que eu; eu deveria ter conversado com você antes de me decidir.Talvez você tivesse sido melhor para ele, não sei. Ele é cortês,atencioso e tudo o mais, mas de certa forma não está disponível paramim. A mente dele está sempre em outro lugar, com aqueles seusprojetos, imagino. Alexandra, por favor, me deixe ir visitá-la. Não vouficar muito tempo, não mesmo. Eu só preciso ser... tocada”, concluiuela, e sua voz se retraiu, encolhendo-se de maneira quase sardônica aoarticular essa última súplica explícita.

“Querida, eu não sei o que você quer de mim”, mentiu Alexandradeslavadamente, precisando achatar tudo aquilo, apagar o rostomanchado que surgia em sua mente, chegando tão perto que ela podiaver os pedacinhos de sujeira. “Mas eu não tenho o que você precisa.

Sério. Você tomou a sua decisão, e eu não fiz parte dela. Tudo bem.Não havia motivo para eu fazer parte dela. Mas agora eu não possofazer parte da sua vida. Simplesmente não posso. Não tenho forçaspara isso.”

“Sukie e Jane não iriam gostar se você me encontrasse”, sugeriuJenny, tentando imprimir alguma racionalidade à dureza deAlexandra.

“Estou falando por mim. Eu não quero voltar a me envolver comvocê e Darryl agora. Desejo o bem de vocês dois, mas, para o meupróprio bem, não quero encontrá-los. Para falar francamente, seriadoloroso demais. Quanto a essa doença, me parece que você está sedeixando atormentar pela sua imaginação. Seja como for, está nasmãos dos médicos, que podem fazer mais por você do que eu.”

“Ah.” A voz distante havia encolhido até o tamanho de umpontinho, algo mecânico como um tom de discagem. “Não tenhocerteza disso.”

Quando ela desligou, as mãos de Alexandra tremiam. Todos osângulos e móveis conhecidos de sua casa lhe pareciam tortos, comodeslocados pela disparidade entre sua distância moral — eramobjetos, imunes ao pecado — e sua proximidade física em relação aela. Ela foi até o ateliê e pegou uma das cadeiras que havia lá, umavelha Windsor de espaldar reto com o assento sujo de tinta, gesso secoe cola, e levou-a até a cozinha. Posicionou-a debaixo da prateleira alta,subiu em cima e esticou o braço para pegar o objeto envolto em papel-alumínio que havia escondido ali depois de voltar da casa de Jane nomês de abril anterior. O objeto a surpreendeu pelo calor que liberouentre seus dedos: o ar quente se acumula junto ao teto, pensou ela àguisa de vaga explicação. Ao ouvi-la remexendo nas coisas, Carvãoveio andando do canto onde costumava cochilar, e ela precisoutrancá-lo na cozinha atrás de si para impedir que o cão a seguisse até olado de fora e achasse que o que ela estava prestes a fazer era umabrincadeira de lançar e apanhar.

Atravessando o ateliê, Alexandra rodeou uma presunçosaarmadura feita com tábuas de pinho grandes e pequenas, cabidesretorcidos e tela de arame, pois ela havia decidido tentar umaescultura gigante, grande o suficiente para um espaço público comoKazmierczak Square. Depois do ateliê, na planta espaçosa daquelacasa ocupada por oito gerações sucessivas de agricultores, havia umaárea de transição com piso de terra batida usada outrora para abrigarplantas e por Alexandra como depósito, com as paredes repletas decabos de pás, enxadas e ancinhos, e na qual o espaço de manobra eraatravancado por pilhas tombadas de velhos vasos de cerâmica e sacosabertos de turfa e farinha de osso, e cujas prateleiras improvisadasestavam repletas de pás de pedreiro enferrujadas e frascos marrons depesticida vencido. Ela destrancou a porta rústica — duas tábuas desarrafos unidas por um Z de madeira — e saiu para o lado de fora;levou o pequeno embrulho cintilante e morno até o outro lado dogramado.

O frenesi de crescimento do mês de junho era visível por todaparte: a grama precisava ser aparada, os canteiros de crisântemosestavam cheios de ervas daninhas, os pés de tomate e peôniasprecisavam de poda. Insetos mascavam o silêncio; a luz do solpressionava o rosto de Alexandra, e ela podia sentir os cabelos de suaúnica trança grossa se aquecerem como uma resistência elétrica. Obrejo nos fundos de seu terreno, depois do muro de pedradesmoronado revestido de hera venenosa e hera americana, noinverno era um bosque marrom transparente cujo chão, entre tufos degrama emaranhada, exibia placas de gelo azulado; no verão,transformava-se em um emaranhado sólido de folhas verdes e caulespretos, samambaias, bardana e morangos silvestres, que o olho nãoconseguia penetrar mais de uns poucos metros, e no qual ninguémnunca podia pisar por causa dos espinhos e da umidade no chão.Quando criança, até aquela idade por volta da quinta série em que osmeninos começam a ficar incomodados pelo fato de uma menina

brincar com eles, ela havia sido uma boa jogadora de softball —, entãorecuou e atirou o amuleto — feito apenas de alfinetes e cera, tão leveque saiu voando como se ela houvesse atirado uma pedra na lua — omais para dentro possível daquela opacidade opulenta. Talvez oamuleto encontrasse um trecho de água lodosa e afundasse. Ou talvezmelros de asas vermelhas fossem estraçalhar o alumínio a bicadaspara adornar seus ninhos. Alexandra se concentrou para fazer aqueleobjeto desaparecer, para fazê-lo ser engolido, dissolvido e perdoadopela ebulição da natureza.

As três finalmente combinaram uma quinta-feira em quenovamente foram capazes de encarar umas às outras, e seencontraram na pequena casa de Sukie em Hemlock Lane.

“Que aconchegante!”, exclamou Jane Smart depois de chegaratrasada vestindo quase nada: sandálias de plástico e um minivestidode fazenda lustrosa com as alças amarradas na nuca para nãoatrapalhar seu bronzeado. Quando pegava sol, ela adquiria uma corlisa de café com leite, mas a pele envelhecida sob seus olhoscontinuava frágil e branca, e sua perna esquerda exibia uma teia lívidade varizes e uma sucessão de calombos semissubmersos, comoaquelas fotografias borradas que as pessoas usam para tentar provar aexistência do monstro do lago Ness. Apesar disso, Jane estava cheia deenergia, uma velha megera de pele grossa à vontade em seu elemento.“Meu Deus, como ela está horrível!”, cacarejou enquanto seacomodava em uma das poltronas vagabundas de Sukie com ummartíni na mão. O martíni tinha a cor escorregadia do mercúrio, e aazeitona verde boiava lá dentro como o olho de íris vermelha de umréptil.

“Quem?”, indagou Alexandra, sabendo muito bem de quem setratava.

“A querida senhora Van Horne, é claro”, respondeu Jane. “Mesmosob o sol a pino ela parece estar dentro de casa, bem na Dock Streetem pleno mês de julho. Ela teve o topete de vir falar comigo, emboraeu tenha tentado me refugiar discretamente na Yapping Fox.”

“Coitadinha”, disse Sukie, enfiando na boca algumas metades denozes pecã salgadas e mastigando-as com um sorriso. Durante overão, ela usava um tom mais claro de batom, e o osso de seu pequenonariz amorfo exibia o descascado de uma antiga queimadura de sol.

“Acho que os cabelos dela caíram por causa da quimioterapia,então ela agora usa um lenço”, disse Jane. “Na verdade fica bemvistoso.”

“O que ela disse a você?”, quis saber Alexandra.“Ah, ficou dizendo mas-que-alegria e Darryl-e-eu-nunca-mais-

vemos-você e venha-nos-fazer-uma-visita-nós-agora-estamos-nadando-no-charco-salgado. Eu devolvi na mesma moeda. Sério. Quehipocrisia. Ela nos odeia, tem que nos odiar.”

“Ela falou sobre a doença?”, perguntou Alexandra.“Não disse uma palavra sequer. Foi toda sorrisos. ‘Que tempo

lindo!’ ‘Você soube que Arthur Hallybread comprou um lindoveleirozinho Herreshoff?’ E assim que ela decidiu jogar conosco.”

Alexandra pensou em lhes contar sobre o telefonema de Jenny nomês anterior, mas hesitou em expor a súplica da moça à zombaria dasoutras. Mas a seguir achou que sua verdadeira lealdade era com suasirmãs, com o sabá.

“Ela me ligou um mês atrás”, disse, “reclamando de gângliosinchados que estava imaginando pelo corpo todo. Queria ir me visitar.Como se eu fosse capaz de curá-la.”

“Que estranho”, comentou Jane. “O que você respondeu?” “Quenão. Eu não queria mesmo me encontrar com ela, seria muitoconflituoso. O que eu fiz, porém, confesso, foi pegar o maldito

amuleto e jogá-lo dentro daquele brejo selvagem atrás da minha casa.”Sukie se retesou, quase derrubando a tigela de nozes pecã do braço

da cadeira, mas segurando-a com agilidade antes de ela cair.“Ora, meu bem, mas que coisa mais extraordinária de se fazer,

depois de tanto esforço com a cera e tudo! Você está perdendo seutemperamento de bruxa!”

“Não sei. Será? Jogar fora o amuleto não parece ter feito diferençanenhuma, não se ela começou uma quimioterapia.”

“Bob Osgood”, disse Jane com ar de superioridade, “é muitoamigo do doutor Pat, e segundo o doutor Pat ela está totalmentetomada pela doença: fígado, pâncreas, medula óssea, os lóbulos dasorelhas, tudinho. Entre nous e tal, Bob disse que o doutor Pat disseque, se ela viver mais dois meses, vai ser um milagre. E ela sabe disso.A quimioterapia é só para agradar a Darryl; ele, é lógico, estádescontrolado.”

Agora que Jane se tornara amante daquele banqueirozinho carecachamado Bob Osgood, os dois vincos verticais entre suas sobrancelhashaviam se atenuado um pouco, e suas palavras tinham uma energiaalegre, como se ela as estivesse tocando com um arco nas próprias evibrantes cordas vocais. Alexandra nunca havia conhecido a mãe deJane Brahmin, mas imaginava que fosse assim que as vozes seprojetavam no ar acima das xícaras de chá de Back Bay.

“Existem remissões”, protestou Alexandra sem convicção; suaforça havia se esvaído, e agora estava difusa na natureza e movia-senas correntezas astrais além daquela sala.

“Mas que docinho de coco você é”, disse Jane Smart, inclinando-sena sua direção e fazendo a linha onde terminava o bronzeado de seusseios aparecer no decote do tecido frouxo. “O que deu em você,Alexandra? Se não fosse essa criatura, quem estaria lá agora seriavocê; você seria a patroa do Salão do Sapo. Ele veio para Eastwickprocurar uma esposa, e deveria ter sido você.”

“Nós queríamos que fosse você”, emendou Sukie.

“Que nada”, disse Alexandra. “Acho que qualquer uma de vocêsduas teria agarrado a chance. Principalmente você, Jane. Você chupoumuito pau por uma ou outra causa nobre.”

“Queridas, não vamos brigar”, pediu Sukie. “Vamos aproveitarnosso encontro aconchegante. Falando em encontrar pessoas nocentro, vocês nunca vão adivinhar quem eu vi ontem à noite fazendohora em frente à mercearia!”

“Andy Warhol”, chutou Alexandra, distraída.“Dawn Polanski!”“A piranhazinha do Ed?”, indagou Jane. “Mas ela morreu naquela

explosão em Nova Jersey.”“Ninguém nunca encontrou nenhuma parte dela, só umas

roupas”, lembrou Sukie às outras. “Ela obviamente já tinha semudado do apartamento que todos eles dividiam em Hoboken paraManhattan, onde ficava a célula de verdade. Os revolucionários nuncaconfiaram realmente em Ed, ele era velho e careta demais, e foi porisso que o fizeram participar dessa história da bomba, para testar suasinceridade.”

Jane deu uma risada má, mas dessa vez seu cacarejo exibiu aquelevibrato estiloso. “Essa foi a única qualidade de que eu nunca duvideiem Ed. Ele era sinceramente um idiota.”

O lábio superior de Sukie se franziu com uma reprovação muda;ela prosseguiu. “Parece que no caso de Dawn não houve problemasde sinceridade, e ela foi acolhida pelos chefões e passeava toda noitepelo East Village enquanto Ed se explodia em Hoboken. Ela acha queas mãos dele tremeram na hora de conectar dois fios; a dieta e oshorários estranhos na clandestinidade o estavam deixando nervoso.Imagino que ela também percebeu que ele não era tão bom de camaassim.”

“Ela viu a luz”, disse Jane. “A aurora raiou”, completou ela emreferência ao nome da moça.

“Quem lhe contou tudo isso?”, perguntou Alexandra para Sukie,

irritada com o comportamento de Jane. “Você foi lá falar com amenina em frente à mercearia?”

“Ah, não, aquele grupo me dá medo, tem até alguns pretos agora,não sei de onde eles vêm, do gueto do sul de Providence, imagino. Emgeral eu ando pelo outro lado da rua. Quem me contou foram osHallybread. A menina voltou para a cidade e não quer mais morarcom o padrasto no trailer em Coddington Junction, então estámorando em cima da loja de ferragens dos armênios e fazendo faxinaem troca de cigarros ou algum trocado, e os Hallybread a contrataramduas vezes por semana. Acho que ela transformou Rose em sua madreconfessora. Rose tem problemas de coluna terríveis e não conseguesequer segurar uma vassoura sem querer gritar.”

“Como é que você sabe tanta coisa sobre os Hallybread?”,perguntou Alexandra.

“Ah”, disse Sukie, erguendo os olhos para o teto, que tilintava ezumbia com ruídos abafados da televisão. “Eu passo lá de vez emquando para fazer uma visitinha desde que Toby e eu terminamos. OsHallybread são bem divertidos quando ela não está de mau humor.”

“O que aconteceu com você e Toby?”, quis saber Jane. “Vocêparecia tão... satisfeita.”

“Ele foi demitido. O sindicato de Providence que controla o Wordachou que o jornal não estava sexy o suficiente com ele chefiando aredação. E devo dizer que ele de fato fez um serviço bem sem graça;essas mães judias realmente estragam os filhos. Estou pensando emme candidatar à vaga de editora. Se gente como Brenda Parsley podeassumir esses empregos de homem, não vejo por que eu não posso.”

“Os seus namorados não têm muita sorte”, observou Alexandra.“Eu não chamaria Arthur de namorado”, disse Sukie. “Para mim,

estar com ele é como ler um livro, ele sabe tanta coisa.”“Eu não estava pensando em Arthur. Ele é seu namorado?”“Ele está tendo má sorte?”, perguntou Jane.Os olhos de Sukie arredondaram; ela imaginava que todos

soubessem.“Ah, nada, só umas fibrilações. O doutor Pat disse a ele que as

pessoas podem viver anos e anos com isso, se tiverem sempre adigitalina à mão. Mas ele detesta as fibrilações; diz que são como umpassarinho preso dentro do peito.”

Suas duas amigas, gabando-se veladamente dos novos amantes,pareciam aos olhos de Alexandra retratos de saúde — esbeltas ebronzeadas, fortalecendo-se com a morte de Jenny, sugando forçadisso como do corpo de um homem. Jane, esguia e morena com suassandálias e vestido curto, e Sukie também exibindo aquele brilhoestivai típico das mulheres de Eastwick: um short atoalhado quedeixava seu traseiro empinado e rechonchudo, e uma blusa comestampa africana colorida e brilhante dentro da qual seus seiosbalançavam de um jeito que indicava a ausência de sutiã. Imaginemsó ter a idade de Sukie, trinta e três anos, e ousar sair sem sutiã! Desdeos seus treze anos Alexandra havia invejado aquelas meninas de peitoempinado magras por natureza, que comiam sem parar alegrementeenquanto o seu próprio espírito era obrigado a carregar o fardo depilhas de carne prestes a se transformar em gordura toda vez que elarepetia o prato. Lágrimas de inveja subiram fazendo arder os sínus desua face. Por que ela se sentia tão atolada na vida, quando uma bruxadeveria, isso sim, era dançar, saltitar?

“Nós não podemos continuar com isso”, ela deixou escapar porentre a vodca enquanto esta deformava os ângulos da pequena salaalongada. “Nós temos que desfazer o feitiço.”

“Mas como, querida?”, perguntou Jane, batendo a cinza de umcigarro de filtro vermelho dentro de uma tigelinha com estampaindiana da qual Sukie havia comido todas as nozes pecã e depois(Jane) dando um suspiro enfumaçado e impaciente, pelo nariz, comose houvesse lido a mente de Alexandra e antecipado aquele cansativodesabafo.

“Nós não podemos simplesmente matá-la desse jeito”, continuou

Alexandra, agora gostando bastante da impressão que devia estarpassando: a de uma irmã mais velha gorda e chata.

“Por que não?”, rebateu Jane, seca. “Nós matamos pessoas nanossa mente o tempo todo. Apagamos erros. Corrigimos prioridades.”

“Talvez não tenha nada a ver com o nosso feitiço”, sugeriu Sukie.“Talvez nós estejamos sendo presunçosas. Afinal de contas, ela estánas mãos dos hospitais e dos médicos, e eles têm todos aquelesinstrumentos e medidores e essas coisas que não mentem.”

“Mentem, sim", disse Alexandra. “Todas essas coisas científicasmentem. Tem que haver um jeito de podermos desfazer o quefizemos”, implorou ela. “Se nós três nos concentrarmos"...

“Não contem comigo”, disse Jane. “Cheguei à conclusão de que amagia cerimonial é um tremendo tédio. Parece coisa de jardim deinfância. Meu batedor de ovo ainda está todo sujo daquela cera. Emeus filhos não param de me perguntar o que era aquele negócioenrolado em papel-alumínio; eles perceberam tudo e estou com medode estarem comentando com os amigos. Não se esqueçam, vocês duas,de que eu ainda espero conseguir trabalho fixo numa igreja, e fofocasdemais não causam boa impressão nas pessoas respeitáveis quecontratam regentes de coral.”

“Como é que você pode ser tão insensível?”, exclamou Alexandra,sentindo com deleite as próprias emoções se chocarem contra aselegantes antiguidades de Sukie: a mesa oval de tampo móvel, acadeira de três pernas com assento de junco, como uma ondacarregando destroços até a praia. “Vocês não entendem como éhorrível? Tudo que ela fez foi dizer sim quando ele pediu, o que maisela poderia dizer?”

“Eu acho bastante divertido”, disse Jane, esculpindo a cinza docigarro em um formato pontudo na borda de latão da tigelinhaindiana. “‘Jenny morreu outro dia’”, disse ela, como quem faz umacitação.

“Meu bem”, disse Sukie para Alexandra, “infelizmente eu acho

que não podemos fazer nada.”“‘Nenhuma outra mulher como ela fodia’”, prosseguiu Jane.“Você não fez nada, no máximo serviu de canal. Nós três

servimos.”‘“Jovens e donzelas, comecemos a rezaria”’, citou Jane em óbvia

conclusão.“Nós estávamos apenas sendo usadas pelo universo.”Um certo orgulho de seu ofício tomou conta de Alexandra. “Vocês

duas não poderiam ter feito nada sem mim; eu estava tão energizada,organizei tudo tão bem! E me senti maravilhosa administrando aqueleterrível poder!” A sensação agora era incrível: sua tristeza a se chocarcontra aquelas paredes, rostos e coisas, o baú, o banquinho de pésfinos, as grossas janelas em forma de losango, como se fosse umgigantesco travesseiro, as nuvens de sua agitação e de seu remorso.

“Sério, Alexandra”, disse Jane. “Nem parece você.”“Eu sei que não. Estou me sentindo péssima há dias. Não sei o que

é. Quase sempre que fico menstruada meu ovário esquerdo dói muito.E à noite sinto tanta dor na base das costas que acordo e preciso medeitar de lado, toda encolhida.”

“Ah, coitadinha de você, sua coisinha triste e deliciosa”, disseSukie, levantando-se e dando um passo que fez os bicos dos seus seiossacudirem a blusa cintilante. “Você precisa de uma massagem nascostas.”

“Preciso mesmo”, concordou Alexandra com um biquinho.“Venha aqui. Estique-se no sofá. Jane, chegue para lá.”“Estou com tanto medo.” As fungadas enfatizavam as palavras de

Alexandra, fazendo arder o alto de suas narinas. “Por que seria só umovário, a menos que...”

“Você precisa de um novo amante”, disse-lhe Jane, engolindo ofinal da palavra ao seu estilo ríspido.

Como é que ela sabia? Alexandra tinha dito a Joe que não queriamais vê-lo, mas dessa vez ele não tornara a ligar, e seus dias de

silêncio haviam se transformado em semanas.“Levante essa sua blusa bonita”, disse Sukie, embora não fosse

uma blusa bonita e sim uma das velhas camisas de Oz, cujas pontasdos colarinhos teimavam em se levantar porque as barbatanas deplástico tinham sido perdidas, e que ostentava uma mancha indelévelde comida perto do segundo botão. Sukie abaixou a alça do sutiã,soltou o fecho, e uma onda de expansão invadiu a cavidade torácicade Alexandra. Os dedos estreitos de Sukie começaram a se mover emcírculos. A áspera almofada na qual o nariz de Alexandra estavaencostado tinha um cheiro reconfortante de cachorro molhado. Elafechou os olhos.

“E talvez uma bela massagem nas coxas”, declarou a voz de Jane.Tilintares e um farfalhar indicaram quando ela pousou o copo eapagou o cigarro. “A nossa tensão lombar sobe pela parte de trás denossas coxas e precisa ser liberada.” Com as pontas calosas, seusdedos tentaram aliviar a tensão, beliscando, acariciando, passando asunhas de um lado para o outro para obter um efeito pianissimo.

“Jenny...”, começou Alexandra, lembrando-se das sedosasmassagens da moça.

“Nós não estamos fazendo mal a Jenny”, entoou Sukie.“Quem está fazendo mal a Jenny é o DNA”, disse Jane. “O d-n-

adinho do DNA.”Em poucos minutos, Alexandra foi tomada por um transe próximo

ao sono. O feio weimaraner de Sukie, Hank, entrou trotando na salacom a língua lilás pendendo da boca, e elas começaram a seguintebrincadeira: Jane dispôs uma fileira de bolachas sobre a parte de trásdas pernas de Alexandra, e Hank as lambeu. Elas então puseramalgumas bolachas sobre as costas de Alexandra, no ponto em que acamisa havia sido levantada. A língua do animal era áspera, úmida equente, e levemente pegajosa, como o pé de um imenso caramujo; epara lá e para cá ela corria sobre a mesa repetidamente posta da pelede Alexandra. Assim como sua dona, o cachorro adorava petiscos

feitos com farinha, mas, finalmente saciado, olhou para as trêsmulheres com um ar intrigado e, com os olhos — bolas de topáziocom uma nuvem roxa em cada centro —, implorou a elas queparassem.

Embora a frequência das outras igrejas de Eastwick caíssemarcadamente durante o renascimento estivai da adoração ao sol, osserviços religiosos unitaristas, nunca muito cheios, mantinham-seiguais; na verdade, a frequência aumentava devido aos turistas dasmetrópoles, liberais religiosos confortavelmente paramentados comcalças vermelhas e paletós de linho, vestidos soltos de algodão comestampas vistosas e chapéus de jardim ornados com fitas. Essesturistas, assim como os frequentadores regulares — os Neff, o casalRichard Smith, Herbie Prinz, Alma Sifton, Homer e Franny Lovecraft,a jovem sra. Van Horne e uma relativa novata na cidade, RoseHallybread, sem o marido agnóstico mas acompanhada de suaprotegida, Dawn Polanski —, ficaram surpresos, depois de entoadomelancolicamente o hino “Em meio à noite de dúvida e tristeza” (como barítono de Darryl van Horne contribuindo com sua harmoniarascante da galeria do coral), ao ouvir a palavra “mal” sair da boca deBrenda Parsley. Não era uma palavra ouvida com frequência naquelacasta nave.

Brenda estava esplêndida, com suas vestes abertas na frentedeixando à mostra o jabô plissado e a gravata de seda branca, e oscabelos clareados pelo sol bem puxados para trás acima da testa alta ereluzente.

“Há mal no mundo, e há mal nesta cidade”, afirmou ela com a voz

retumbante, diminuindo-a então para um registro mais baixo econfidencial que ainda assim alcançou todos os recantos do velhosantuário neoclássico. Malvas-rosa ondulavam atrás das vidraças maisbaixas das altas janelas transparentes; nas mais altas, um dia de julhosem nuvens convocava as pessoas confinadas nos bancos quadrados ebrancos da igreja a saírem lá para fora, pegarem seus barcos, irempara a praia, campos de golfe e quadras de tênis, tomarem um BloodyMary no deque novo de sequoia de algum conhecido, com vista para abaía e para a ilha de Conanicut. A baía estaria faiscando sob o sol, e ailha teria o mesmo aspecto puro e verdejante de quando os índiosNarragansett ali viviam. “Essa não é uma palavra que gostamos deusar”, explicou Brenda com o tom reservado de uma psiquiatra que,após anos de escuta silenciosa, finalmente começa a tomar as rédeas.“Preferimos dizer ‘infeliz’, ‘insuficiente’, ‘mal direcionado’ ou‘desafortunado’. Preferimos pensar no mal como a ausência do bem,um eclipse momentâneo de sua luz, uma sombra, uma fraqueza. Poiso mundo é bom: Emerson e Whitman, Buda e Jesus nos ensinaramisso. Nossa querida e corajosa Anne Hutchinson acreditava em umapromessa da graça, por oposição a uma promessa das obras, e essamãe de quinze filhos e bondosa parteira de muitas irmãs conhecidas edesconhecidas desafiou o clero sexista e rancoroso de Boston em nomede sua fé, uma fé pela qual acabaria morrendo.”

Pela última vez, pensou Jenny Van Horne, o azul exato de um diade julho como o de hoje entra pelos meus olhos. Minhas pálpebras seerguem, minhas córneas deixam a luz entrar, meus cristalinos afocalizam, minhas retinas e meu nervo óptico a transmitem para océrebro. Amanhã, os polos da Terra irão se mover mais um dia emdireção ao mês de agosto e ao outono, e uma nuança ligeiramentediferente de luz e vapor será destilada. Sem perceber, ela haviapassado o ano inteiro se despedindo de cada estação, de cadasubestação e de cada mudança do tempo, de cada instante graduadodas cores de fogo e das folhas caídas do outono, do frio do inverno, da

luz do dia que aos poucos vai vencendo o gelo duro, e daqueleinstante de primavera em que os galantos e crócus, aquecidos, brotamda grama marrom e pisada naquele espaço íntimo do lado virado parao sol dos muros de pedra, como amantes que exalam seu hálito no vãodo pescoço do ser amado; vinha se despedindo, pois as estações nãotornariam a se suceder para ela. Os dias que passamos sem prestaratenção, apressados e aflitos, dias de insegurança adolescente e doalegre tédio da infância, esses dias realmente têm um fim, e o céu sefecha como o diafragma de uma imensa câmera. Esses pensamentosdeixaram Jenny tonta no lugar em que ela estava sentada; Greta Neff,intuindo o que ela estava pensando, estendeu a mão até seu colo paraapertar a sua.

“Quando nos viramos para fora, para o mal do mundo como umtodo”, dizia Brenda de forma esplêndida, erguendo os olhos para agaleria posterior com seu órgão abandonado e seu pequenino coral,“quando dirigimos nossa indignação para o mal perpetrado no sul daAsia por políticos fascistas e por um capitalismo opressivo que buscagarantir e expandir seus mercados para luxos antiecológicos, quandofizemos isso nós nos tornamos culpados: sim, culpados, pois a culpadiz respeito tanto a omissões quanto a ações; nós nos tornamosculpados de não ver o mal que estava sendo gerado nas próprias casasde Eastwick, em nossas casas tranquilas e de aspecto sólido. Odescontentamento e a frustração pessoais geraram a maldade a partirde superstições que nossos ancestrais julgaram hediondas, e que defato”, a voz de Brenda diminuiu de volume lindamente e setransformou em uma espécie de suave e calma surpresa, como umprofessor que tranquiliza os pais de um aluno sem negar os resultadosde um boletim horrível, ou uma especialista em eficiência que ameaçaem tom de desculpas demitir um executivo arrogante, sãohediondas.”

Mas atrás desse diafragma deve haver um olho, o olho de um Sergrandioso, e, com uma premonição não muito diferente da de seu pai

alguns meses antes, Jenny passara a ter fé na proteção daquele Ser aomesmo tempo que seus novos amigos, bem como aquelas máquinashumanoides do Hospital de Westwick, lutavam por sua vida. Comoela própria havia passado muitos anos trabalhando em um hospital,Jenny sabia o quão lamentavelmente estatísticos eram em últimainstância os resultados obtidos por aqueles que, com tantaamabilidade e a um custo tão alto, prodigalizavam a misericórdia. Oque mais a incomodava eram os enjoos, os enjoos causados pelosremédios e agora pela radiação que ela recebia duas vezes por semanaenquanto ficava deitada, amarrada e enrolada em panos, sobre aquelagigantesca mesa giratória feita de cromo e aço frio, que a erguia paralá e para cá até deixá-la mareada. Era impossível apagar de seusouvidos a contagem dos segundos de seu zumbido radioativo, e estaprosseguia até durante o sono.

“Há um tipo de mal”, dizia Brenda “contra o qual nós precisamoslutar. Ele não deve ser tolerado, não deve ser explicado, não deve serdesculpado. Sociologia, psicologia, antropologia: nesse caso único,todas essas criações da mente moderna devem ter suas ponderaçõesnegadas.”

Nunca mais verei pingentes de gelo pingando nos beirais, pensouJenny, nem um bordo com as folhas flamejantes. Nem aquele instanteno final do inverno em que a neve fica toda suja e carcomida pelodegelo criando formas apodrecidas, corroídas. Essas percepções eramcomo o dedo de uma criança a desenhar um buraco em uma vidraçaembaçada acima de um radiador em um dia muito frio; por essecírculo transparente, Jenny encarava um nunca sem fundo.

Com os cabelos cintilando na altura dos ombros — será que seuscabelos já estavam assim no começo do culto, ou haviam se soltado noafã do sermão? —, Brenda invocava forças invisíveis.

“Pois essas mulheres — e não vamos negar, devido ao amor quesentimos por nosso sexo e ao orgulho que temos do nosso sexo, queelas são mulheres —, essas mulheres há muito tempo exercem uma

influência maligna nesta comunidade. Elas foram promíscuas.Negligenciaram, no melhor dos casos, e no pior dos casos maltrataramos próprios filhos, cultivando neles a blasfêmia. Com seus atosimundos e amuletos indizíveis, elas levaram alguns homens a atos deloucura. Levaram alguns homens, e acredito nisso com fervor,levaram alguns homens à morte. E agora o seu demônio despertou...seu veneno foi liberado... sua fúria...” Como da corola de uma malva-rosa, uma abelha emergiu sonolenta por entre os lábios carnudos epintados de Brenda, e prosseguiu sua jornada curiosa por cima dascabeças dos fiéis.

Jenny abafou um riso discreto. A mão de Greta tornou a apertar asua. Do seu outro lado, Ray Neff deu um muxoxo. Ambos os Neffusavam óculos: uma armação de metal ovalada de vovó no caso deGreta, e lentes quadradas sem armação no de Ray. Cada um dos Neffparecia uma única lente grande, e eu estou sentada entre os dois,pensou Jenny, feito um nariz. Um silêncio chocado se concentrou emBrenda, muito ereta em seu púlpito. Acima de sua cabeça pendia nãoa cruz de bronze sem brilho que passara anos ali pendurada em umsimbolismo irrelevante, mas um sólido círculo de bronze novo,símbolo de união e paz perfeitas. O círculo fora ideia de Brenda. Elarespirou uma vez, uma respiração curta, e tentou falar através dealguma outra coisa que se acumulava em sua garganta.

“A ira delas maculou o próprio ar que nós respiramos”,proclamou, e uma mariposa azul-clara emergiu de sua boca, seguidapor sua irmã amarela; a segunda foi projetada em direção ao atril noqual repousava o microfone e emitiu um baque amplificado, depoisassumiu o controle das próprias asas e saiu voando rumo ao céu presobem lá em cima atrás das janelas altas.

“A infeja delas enfenenou todoch noch...” Brenda curvou a cabeça,e sua boca deu à luz uma borboleta-monarca particularmente vivida,peluda e de gosto desagradável, de asas cor de laranja debruadas comuma grossa borda preta, que saiu voando trêmula, casual e indolente

para debaixo das vigas pintadas de branco.Jenny sentiu uma tensão inchar dentro de seu pobre corpo doente,

como se este fosse uma crisálida.“Socorro”, deixou escapar Brenda com uma voz entrecortada em

direção ao atril, onde as páginas imaculadas do seu sermão haviamsido salpicadas de saliva e gosma de inseto. Ela parecia estarengasgada. Seus compridos cabelos platinados balançavam, e o O debronze reluzia sob os fachos de luz. Os fiéis romperam seu silêncioatônito; vozes se ergueram. Franny Lovecraft, com a voz alta dossurdos, sugeriu que chamassem a polícia. Raymond Neff assumiu atarefa de se levantar com um pulo e sacudir o punho fechado no ariluminado pelo sol; suas bochechas tremiam. Jenny começou a rir; ahilaridade que crescia dentro dela não pôde mais ser contida. De certaforma, o mais engraçado era a animação de tudo aquilo, como oirrefreável gato do desenho animado que, depois de esmagado, tornaa se levantar para continuar a perseguição. Ela explodiu em umagargalhada — uma gargalhada aguda e pura, uma espécie deborboleta — e arrancou a mão de dentro do aperto compassivo e fortede Greta. Perguntou-se quem estaria fazendo aquilo: Sukie, todossabiam, devia estar na cama com aquele sonso Arthur Hallybreadenquanto a mulher dele estava na igreja; o sonso e elegante Arthurhavia passado trinta anos trepando com suas alunas de física emKingston. Jane Smart tinha ido a Warwick tocar o órgão Hammondpara um grupo de fiéis do reverendo Moon que estavam abrindo umsantuário em uma antiga sala de reuniões quacre; a atmosfera(segundo Jane havia comentado com Mavis Jessup, que contara paraRose Hallybread, que por sua vez contara para Jenny) era deprimente:um monte de jovens de classe média alta completamentelobotomizados com penteados iguais aos de fuzileiros navais, mas ocachê era bom. Alexandra devia estar fazendo suas esculturas outirando ervas daninhas de seus canteiros de crisântemos. Talveznenhuma das três estivesse causando aquilo, e fosse algo que elas

houvessem liberado no ar, como aqueles cientistas nucleares quehaviam fabricado a bomba atômica para derrotar Hitler e Tojo e agoraviviam cheios de remorso, como Eisenhower se recusando a assinar apaz com Ho Chi Minh que teria posto fim a todos os problemas, comoas flores silvestres do final do verão, varas-de-ouro e flores de cenourasilvestre, agora liberadas de suas sementes adormecidas nos camposdesgrenhados e sem lavoura onde outrora escravos negros abriamportões para nobres a galope usando fraques e cartolas de pele decastor e feltro. De qualquer maneira, era tudo muito engraçado.Herbie Prinz, com o rosto bochechudo, ávido e de pele fina vermelhode agitação, passou empurrando Alma Sifton e desceu depressa anave da igreja, quase derrubando a sra. Hallybread, que, como asoutras mulheres, cobria instintivamente a boca enquanto, com ascostas rígidas, se levantava para fugir.

“Orem!”, clamou Brenda ao ver que havia perdido o controle dosfiéis. Alguma coisa se derramava por seu lábio inferior e fazia luzirseu queixo. “Orem!”, gritou ela com uma voz cavernosa de homem,como se fosse o boneco de um ventríloquo.

Jenny, rindo histericamente, teve de ser conduzida até o lado defora, onde sua aparição cambaleante entre os dois Neff de óculosdeixou perplexos os cidadãos tementes a Deus que nessa horalavavam seus carros em Cocumscussoc Way.

Jane Smart se recolhia ao mesmo tempo que os filhos, e em geral iadireto para a cama depois de pôr os dois mais novos para dormir epegava no sono enquanto os dois mais velhos assistiam a meia horailícita de Mannix ou algum outro seriado de perseguição de

automóveis ambientado no sul da Califórnia. Por volta das duas, duase meia, acordava de forma tão abrupta quanto se o telefone houvessetocado uma vez e depois silenciado, ou quanto se um intrusohouvesse tentado abrir a porta da frente ou quebrado cuidadosamenteuma vidraça e estivesse prendendo a respiração. Jane apurava oouvido, depois sorria no escuro, lembrando-se de que aquela era ahora de seu encontro. Levantava-se vestida com um diáfano baby-dollde náilon, cobria os ombros com seu casaquinho de dormir de cetimmatelassê e acendia o fogão para esquentar leite para um chocolatequente.

Randolph, seu jovem e guloso dobermann, chegava arrastando asunhas pelo piso da cozinha, e ela lhe dava um biscoito duríssimo emforma de osso para mastigar; o cão levava o suborno até seu canto ecom ele se punha a produzir uma música maligna usando os dentescompridos e os lábios roxos serrilhados. O leite fervia, ela subia os seisdegraus até o pavimento da sala levando a bebida e tirava do estojo ovioloncelo cuja madeira vermelha era lustrosa e viva, como umaespécie superior de pele. “Bom menino”, dizia Jane às vezes em vozalta, já que o silêncio no terreno plano das residências à sua volta —nenhum tráfego, nenhum choro de criança; o loteamento de CoveHomes acordava e ia dormir quase em sincronia — era tão absolutoque chegava a ser assustador. Ela vasculhava o chão cheio de farpasem busca de um buraco onde apoiar seu espigão e, depois de arrastaraté lá a estante para partituras, a luminária de chão de três pés e acadeira de espaldar reto, punha-se a tocar. Nessa noite, iria enfrentar a2ª suíte de Bach para violoncelo solo. Era uma das suas preferidas;com certeza ela gostava mais dessa do que da um tanto sisuda Ia e daterrivelmente difícil 6ª, cheia de semifusas e impossível de tão aguda,já que havia sido escrita para um instrumento de cinco cordas.Contudo, mesmo no ritmo de mudanças mais regrado de Bach,sempre havia algo a descobrir, algo a escutar,; um instante em que

uma voz soltava um grito em meio ao giro das engrenagens. Bachhavia sido feliz em Köthen exceto pela morte súbita da mulher, Maria,e pelo casamento do tão simpático e musicalmente sensível príncipeLeopoldo com a jovem prima Henrietta de Anhalt; Bach chamava ajovem noiva de amusa, ou seja, uma antimusa. Henrietta costumavabocejar durante os concertos da corte, e suas demandas desviavam aatenção do príncipe de seu Kapellmeister, distração essa que levouBach a tentar o cargo de chantre em Leipzig. Ele assumiu o novo cargomuito embora a princesa pouco atenciosa tenha surpreendentementemorrido antes de Bach sair de Köthen. Na 2ª suíte havia um tema —uma sucessão melódica de terças ascendentes e uma descida em tonsinteiros —, anunciado no prelúdio, que depois, na alemanda, sofriauma surpreendente modificação, uma reversão momentânea (umaterça mais acima) da descida; assim, a melodia acelerada (emmoderato) ganhava uma pungência que voltava a aparecer inúmerasvezes, e o tema atingia um ápice de dissonância no acorde em forteRé3#-Lá3, entre um Si natural trinado e uma sucessão de fusas empiano de fazer arderem os dedos. O tema daquela suíte, percebeu JaneSmart à medida que seguia tocando e o chocolate quente setransformava em uma espuma tépida, era a morte — a mortepranteada de Maria e a morte desejada da princesa Henrietta, que defato iria ocorrer. Era a morte o espaço que abriam aquelas notasrevoltas, tumultuadas, um sublime e reluzente espaço interno que iaficando cada vez maior. O último compasso tinha a indicação poco apoco ritardando e continha intervalos — o maior deles um Ré2-Ré4 —que faziam seus dedos deslizarem com um chiado abafado para cimae para baixo do braço do instrumento. A alemanda terminava deforma solene naquela mesma tônica grave: a nota desejava engolir omundo.

Jane trapaceou; a partitura pedia uma repetição (ela havia repetidoa primeira metade), mas, como um viajante que, à luz de uma lua

recém-surgida no céu, finalmente acredita estar rumando para algumlugar, ela agora queria seguir em frente. Seus dedos estavaminspirados. Ela estava debruçada acima da música; esta era umcaldeirão no qual borbulhava uma refeição preparada apenas paraJane; ela não podia errar. A corrente evoluiu depressa, tocando a simesma, doze semicolcheias para cada compasso, e hesitando apenasduas vezes em cada seção com um acorde de semínimas, depoisprosseguindo seu ritmo tumultuoso, com o pequeno tema a essaaltura já quase perdido. Esse tema, sentiu Jane, era feminino; masoutra voz se fortalecia dentro da música, a voz masculina da morte,argumentando com sílabas lentas e decididas. Apesar de toda arapidez, a corrente diminuía o ritmo para seis notas pontuadas,enfatizadas por terças para realçar sua descida, depois por umaquarta, e finalmente por uma quinta acentuada para chegar à mesmanota final, a inelutável tônica. A sarabanda, em largo, era magnífica,indiscutível, com seu lento saltitar marcado por muitos trinados, e umfantasma daquele tema delicado reaparecia depois de uma imensa eincompleta nona dominante se abater sobre a música, esmagando-a.Jane tocou esse trecho inúmeras vezes — um grave Dó2#-Si2b-Sol3 —,deliciando-se com sua força aniquiladora, admirando como a sétimareduzida de suas duas notas mais graves ecoava sardonicamente osalto de uma sétima reduzida (Dó2#-Si3b na linha anterior. Depois dese deliciar com isso, quando avançou para o primeiro minueto, Janeouviu de forma bem distinta — não foi uma questão de ouvir, elapersonificou — a guerra entre os acordes e a única linha que tentavacontinuamente escapar deles sem conseguir. Seu arco esculpia formasdentro de uma substância, de um vazio, de um silêncio. O exterior dascoisas era luz, dispersão; o interior de tudo era a morte. Maria, aprincesa, Jenny: uma procissão. O interior invisível do violoncelovibrava, a ponta de seu arco recortava círculos e elipses em uma fatiade ar, sons se derramavam de seus movimentos como se fossem

raspas de madeira. Jenny tentou escapar do caixão que Jane estavaesculpindo; o segundo minueto passou para o acorde de Ré Maior, e amulher presa dentro da música correu em passos deslizantes de notasligadas, mas depois foi obrigada a voltar, Menuetto I da capo, e foiengolida por suas cores mais escuras e pelo feroz quarteto de acordesexplicitamente marcados para execução: Fá3-Lá3 aufstrich, Si2b-Fá3-Ré3 abstrich, Sol2-Sol3-Mi3 aufstrich; Lá2-Mi3-Dó3#. Era precisomanejar o arco de forma incisiva: para cima, para baixo, para cima, eenfim para baixo para o coup de grâce de três tempos em que o espíritoagitado era transpassado de forma definitiva.

Antes de tentar tocar a giga, Jane tomou um gole do chocolate: ocírculo de nata fria se prendeu a seu lábio superior encimado por umleve buço. Randolph, que havia terminado de comer seu biscoito,havia se aproximado e se deitado no chão cheio de marcas perto deseus pés descalços que marcavam o ritmo. Mas o cachorro não estavadormindo: seus olhos de cornalina a encaravam de frente com umaespécie de espanto; uma expressão faminta franzia de leve seu focinhoe empinava suas orelhas de dobras tão rosadas quanto o interior debúzios. Esses animais de estimação, pensou Jane, jamais alcançam acompreensão — são pedaços de matéria bruta. O cão sabe que estátestemunhando algo importante, mas não sabe o que é; ele é surdopara a música e cego para os arabescos e ligaduras do espírito. Janetornou a empunhar o arco. Este lhe pareceu milagrosamente leve,como uma varinha de condão. A giga tinha a indicação allegro.Começava com algumas frases marcadas — tã-tã (Lá3-Ré3), tã-tã (Si3b-Dó3#), tã tatatata tã tã, tã... E ela seguiu tocando. Em geral achavadifíceis essas sucessões de sustenidos e bemóis cheias de intervalos,mas nessa noite as executou voando, subindo, descendo, subindo,spiccato, legato. As duas vozes se entrechocavam no último suspirodaquela agitação, daquele tema cada vez mais débil, recorrente, queainda precisava ser contido. Então era sobre isso que os homens

vinham murmurando, era isso que vinham monopolizando por todosaqueles séculos: a morte; não era de espantar que houvessemguardado isso para si, não era de espantar que o tivessem escondidodas mulheres, deixando-as ocupadas com sua amamentação e seuspartos, com a perpetuação de uma coisa ruim, enquanto eles, eles, oshomens, repartiam entre si o verdadeiro tesouro, o ônix, o ébano e oouro puro, a essência da glória e da libertação. Até então, a morte deJenny tinha sido apenas uma coisa apagada na mente de Jane, umnada; agora tinha sua própria estrutura tátil, uma complexidade cheiade galhos, suntuosa, um abraço sensual que a puxava para baixo, maissedutor do que o puxão nos tornozelos dado pelas ondas da praia aorecuar em meio aos seixos que rolam, do que aquele maravilhososuspiro cansado que o mar solta a cada onda. Era como se o pobrecorpo envenenado de Jenny houvesse se entrelaçado, veia com veia,tendão com tendão, ao corpo da própria Jane, como o cadáver de umamulher afogada se entrelaça com as algas, e ambas estivessemsubindo para que uma no final fosse descartada pela outra, mas porenquanto as duas estavam entrelaçadas, ligadas uma à outra naquelasprofundezas revoltas e luminescentes. A giga prosseguiu, arrepiada eáspera sob seus dedos; as terças de colcheias subjacentes à progressãodas semicolcheias foram se tornando portentosas; houve umredemoinho impossível de conter, uma puxada para baixo, umaagitação assustadora em fortíssimo, uma última progressãodescendente e por fim uma subida saltitante pela escala até o grito quefinalizava o crescendo, o grito fraco e curto daquele derradeiro Ré3.

Jane executou as duas repetições sem cometer quase nenhum erro,nem sequer naquela traiçoeira seção intermediária em que se deviafazer a dinâmica em constante mutação atravessar uma floresta denotas pontuadas e ligaturas; quem foi que disse que o seu legatoparecia um détaché?

O loteamento de Cove se esparramava do outro lado das janelasnegras, puro como uma extensão de gelo antártico. As vezes um

vizinho telefonava para reclamar, mas nessa noite até o telefone estavaenfeitiçado. Apenas Randolph mantinha um dos olhos aberto;enquanto sua pesada cabeça continuava apoiada no chão, um olhoopaco, com pontinhos de sangue a flutuar em sua escuridão, encaravao objeto oco cor de carne entre as pernas de sua dona, estridente rivalna competição pelo seu afeto. A própria Jane, de tão exaltada, de tãoenlevada, prosseguiu sem intervalo e tocou o primeiro movimento daparte do violoncelo da “Sinfonia em mi menor”, de Brahms, todasaquelas mínimas românticas e langorosas enquanto se ouvia um pianoimaginário. Como Brahms tinha o coração mole, apesar de todos osseus floreios: uma mulher de barba e com um cigarro na boca!

Jane se levantou da cadeira. Sentia uma dor lancinante entre asomoplatas, e tinha o rosto banhado em lágrimas. Eram quatro e vinteda manhã. Os primeiros sinais cinzentos do dia desenhavam formasindistintas no gramado do lado de fora de sua ampla janela quadrada,depois dos arbustos emaranhados que ela nunca podava e que seespalhavam e se misturavam como as diferentes cores dos líquenssobre um túmulo, como colônias de bactérias em uma cultura. Ascrianças começavam a fazer barulho bem cedo pela manhã, e BobOsgood, que prometera encontrá-la para “almoçar” em um horrorosohotel de beira de estrada — uma sequência curva de chalés decompensado escondida no meio da floresta — perto de Old Wick,ligaria do banco para confirmar; então, mesmo que as crianças nãofizessem barulho, não podia tirar o telefone do gancho e dormir. Janese sentiu subitamente tão exausta que foi para a cama sem tornar aguardar o violoncelo na caixa, deixando-o apoiado na cadeira como sefosse a instrumentista de uma orquestra sinfônica dispensada dopalco durante o intervalo.

Alexandra olhava pela janela da cozinha, perguntando-se comoesta havia ficado tão riscada e manchada de poeira — será que achuva em si podia ser suja? —, então viu Sukie estacionar e subir ocaminho de tijolos por baixo do caramanchão de videiras, abaixando aesguia cabeça ruiva para evitar o comedouro de pássaros vazio e osgalhos pendentes da trepadeira com seus cachos de uvas verdes cadavez mais maduras. Aquele agosto tinha sido chuvoso até então, e o diaparecia prometer mais chuva. Elas se cumprimentaram com um beijodo lado de dentro da porta de tela.

“Que gentileza a sua, vir até aqui”, disse Alexandra. “Não sei porque estou com medo de procurar sozinha. No meu próprio brejo.”

“E de dar medo mesmo, meu bem”, disse Sukie. “Porque foi muitoeficaz. Ela está no hospital de novo.”

“E claro que nós não temos certeza se foi mesmo por causadaquilo.”

“Mas nós temos, sim”, disse Sukie sem sorrir e, portanto, dandoaos lábios um aspecto estranho, socado. “Nós sabemos, sim. Foiaquilo.” Ela parecia tímida, novamente uma repórter novata vestidacom sua capa de chuva. Havia sido novamente contratada pelo Word.Vender imóveis, segundo dissera a Alexandra mais de uma vez aotelefone, era simplesmente arriscado demais e dava úlceras ter queesperar os negócios se concluírem, ficar pensando se poderia ter ditoalguma coisa subliminarmente mais persuasiva naquele instantecrucial em que os clientes veem a casa pela primeira vez, ou quandoeles estão em pé no porão com o marido tentando parecer entendidoem matéria de canos e a mulher morrendo de medo dos ratos. E

depois, quando um negócio era fechado, em geral a comissão tinha deser dividida em três ou quatro partes. O trabalho de fato a estavadeixando com uma úlcera: uma dorzinha seca logo abaixo dascostelas, mais alto do que se poderia imaginar, e que piorava durantea noite.

“Quer beber alguma coisa?”“Depois. E cedo. Arthur diz que eu não deveria beber nada até

meu estômago se recuperar. Você já tentou tomar antiácido? MeuDeus, toda vez que você solta um arroto sobe um gosto de giz.Enfim...” Ela sorriu, um lampejo de sua antiga persona, com o lábiosuperior carnudo esticado de modo que o lado de dentro, sem batom,aparecia acima dos dentes brilhantes e grandes, projetados para afrente. “Eu me sentiria culpada tomando um drinque sem Jane aquitambém.”

“Coitada da Jane.”Sukie entendeu a que a amiga estava se referindo, embora

houvesse acontecido na semana anterior. Aquele horrível dobermanntinha roído e estraçalhado o violoncelo de Jane na noite em que elanão o guardara na caixa.

“Eles acham que dessa vez é para valer?”, perguntou Alexandra.Sukie intuiu que Alexandra estava se referindo à estada de Jenny

no hospital.“Ah, você sabe como essa gente é, eles nunca dirão isso. Mais

exames, é tudo o que dizem. Como andam as suas reclamações?”“Estou tentando parar de reclamar. Elas vêm e vão. Talvez seja a

pré-menopausa. Ou a síndrome pós-Joe. Você ficou sabendo sobreJoe? Ele desistiu de mim mesmo?

Sukie aquiesceu, deixando o sorriso afundar lentamente por cimados dentes.

“Jane diz que a culpa é delas. A culpa de todas as nossas mazelas edores. Ela as culpa até pela tragédia do violoncelo. Seria de esperarque ela fosse culpar a si mesma por isso.”

A simples menção à palavra delas distraiu Alexandramomentaneamente da dor de culpa que ela às vezes sentia no ovárioesquerdo, às vezes na base da coluna, e ultimamente nas axilas, ondeJenny certa vez lhe pedira para procurar calombos. Quando a doençaatinge os gânglios linfáticos, segundo alguma coisa que Alexandra selembrava de ter lido ou visto na TV, já é tarde demais.

“Em qual delas ela põe a culpa especificamente?”“Bom, por algum motivo ela escolheu Dawn, aquela porcalhona.

Eu própria não acho que uma menina daquelas já tenha cacife paraisso. Greta é bem poderosa, e Brenda também seria, se deixasse de sertão arrogante. Pelo que Arthur deixa escapar, aliás, Rose também nãoé sopa: ele a considera um osso bem duro de roer, senão acho que játeria se divorciado dela há muito tempo. Ela não quer.”

“Só espero que ele não a ataque com um atiçador de lareira.”“Escute, querida. Essa nunca foi a minha ideia de como resolver o

problema da esposa. Eu mesma já fui esposa, sabe?” “E quem não foi?Eu não estava pensando em você, coração, era na casa que eu poria aculpa se tudo acontecesse de novo. Existem sulcos espirituais que seentranham em alguns lugares, você não acha?”

“Não sei. A minha casa precisa de pintura.”“A minha também.”“Talvez nós devêssemos ir procurar a tal coisa antes que comece a

chover.”“Que gentileza a sua, ter vindo me ajudar.”“Bem, eu também estou me sentindo mal. De certa maneira. Até

certo ponto. E, seja como for, passo o dia inteiro andando de um ladopara o outro no Corvair atrás de alguma história improvável. Vivoderrapando e perdendo o controle, fico pensando se o problema é como carro ou comigo. Ralph Nader detesta esse modelo.” As duasatravessaram a cozinha até o ateliê de Alexandra. “Que diabo é isso?”

“Quem me dera eu soubesse. Começou como uma coisa enormepara uma praça pública, influências de Calder e Moore, imagino.

Pensei que, se o resultado ficasse maravilhoso, eu poderia mandarmoldar em bronze; depois de todo aquele papel machê, queria fazeralguma coisa mais permanente. E a marcenaria e a bateção são boaspara contrabalançar a privação sexual. Mas os braços não sesustentam. Pedaços não param de cair durante a noite.

“Elas enfeitiçaram a escultura.”“Pode ser. Eu com certeza me cortei bastante mexendo com o

arame; não é de dar ódio o jeito como o arame enrola e se torce? Entãoagora estou tentando fazer alguma coisa de um tamanho maispróximo do real. Não faça essa cara de cética. Talvez dê certo. Nãoestou totalmente desanimada.”

“E aquelas suas beldades de cerâmica de maiô, as suas peitudas?”“Não consigo mais fazê-las depois daquilo. Fico fisicamente

enjoada quando penso no rosto dela derretendo, na cera e nastachinhas.”

“Você deveria experimentar uma úlcera qualquer dia desses. Euantes sequer sabia onde ficava o duodeno.”

“Sim, mas as peitudas eram o meu ganha-pão. Pensei que umpouco de argila fresca poderia me inspirar, então fui até Coventry nasemana passada e a casa onde eu costumava comprar meu lindocaulim estava toda revestida com placas de alumínio cafonas. Verdevômito. A viúva dona da casa tinha morrido durante o inverno, deataque cardíaco, carregando lenha segundo a mulher da família queagora mora na casa, e o marido dela não quer ter o trabalho de venderargila; ele quer uma piscina e um pátio no quintal dos fundos. Entãoessa história acabou.”

“Mas você está ótima. Acho que está emagrecendo.”“Esse não é outro sintoma?”As duas passaram pelo antigo quartinho de plantas e saíram para

o quintal dos fundos, cujo gramado precisava de corte. Primeiro osdentes de leão haviam fugido ao controle, e agora era a vez da grama.Fungos — bolhas marrons abarrotadas pela natureza com remédios,

venenos e paliativos — haviam se materializado nos pontos baixos eúmidos do gramado negligenciado durante aquele verão chuvoso.Mesmo agora, o manto de nuvens ao longe exibia aquelas caudasdescendentes, volutas agitadas que significam que está chovendo emalgum lugar. A área selvagem depois do muro de pedra desmoronadoera ela própria uma parede de ervas daninhas e caules de amorasilvestre. Alexandra sabia que haveria urzes e vestira um grosso jeansmasculino; mas Sukie, por baixo da capa de chuva, usava uma saia dealgodão listrado cor de ferrugem e uma blusa marrom de babados, ecalçava sapatos peep toe vermelhos de salto.

“Você está bonita demais”, disse Alexandra. “Volte até o quartinhode plantas e calce aquelas galochas enlameadas que estão em algumlugar lá dentro, perto do garfo de jardim. Assim pelo menos vaiproteger os sapatos e os tornozelos. E traga o podão de cabocomprido, aquele que abre bastante. Na verdade, por que não pega opodão e fica aqui no quintal? Você nunca gostou muito de natureza, ea sua linda saia de algodão vai rasgar.”

“Não, não”, disse Sukie, leal. “Agora estou curiosa. Parece queestamos caçando um ovo de Páscoa.”

Quando Sukie voltou, Alexandra postou-se exatamente no mesmoponto do gramado, até onde conseguia se lembrar, e demonstroucomo havia lançado o amuleto malévolo de modo a livrar-se dele parasempre. As duas amigas então entraram no brejo, manejando o podãoe se retraindo enquanto avançavam, até a pequena mata onde umacentena de espécies de plantas competia por luz e água, dióxido decarbono e nitrogênio. Visto do quintal, o espaço parecia limitado ehomogêneo — um borrão verde —, mas, uma vez imersas lá dentro,transformou-se em uma selva multifacetada, um embate febril deestilos de folha e caule, uma decomposição implacável de cadeias deproteínas à medida que a natureza tentava não apenas se projetar paraa frente com raízes, bagas e brotos, mas também atrair insetos epássaros para seus pólens e sementes. Alguns passos afundavam na

lama; outros tropeçavam em protuberâncias que a grama, com otempo, havia formado com a acumulação das próprias raízes.Espinhos ameaçavam olhos e mãos; uma cobertura de folhas e galhosmortos escondia a terra. Quando chegaram ao ponto onde Alexandraachava que a boneca enrolada em papel-alumínio havia aterrissado,ela e Sukie se agacharam para junto de um estranho calor vegetal. Oespaço rente ao chão estava tomado por uma aspereza, uma atmosferade congestão criada pelos gravetos e brotos que vasculhavam assombras em busca de migalhas de sol e espaço.

Sukie soltou um grito com o prazer da descoberta; mas o que elaretirou do lugar em que o objeto passara muito tempo entranhado naterra foi uma velha bola de golfe com um desenho quadriculado jáfora de moda. Alguma substância química absorvida pela bola haviacolorido sua metade inferior com um tom de ferrugem.

“Merda”, disse Sukie. “Como será que esta bola veio parar aqui?Estamos a quilômetros de qualquer campo de golfe.” MontyRougemont, é claro, havia sido um golfista dedicado, que se ressentiada presença feminina, com suas risadas espontâneas e seus trajes emtons pastel, fosse no campo à sua frente ou de fato em qualquer outroponto de seu paraíso do golfe; era como se, ao encontrar aquela bola,Sukie tivesse se deparado com um pequeno pedaço do ex-marido, umrecado do outro mundo. Ela guardou a lembrança em um dos bolsosda capa de chuva.

“Talvez ela tenha caído de um avião”, sugeriu Alexandra.Os insetos as haviam descoberto, e se chocavam e tentavam picar

contra seus rostos. Sukie agitou uma das mãos de um lado para ooutro em frente à boca e protestou: “Mesmo que encontremos, meubem, por que você acha que podemos desfazer alguma coisa?”.

“Deve haver um jeito. Eu tenho lido algumas coisas. Basta fazertudo ao contrário. Nós retiramos os alfinetes, tornamos a derreter acera, e transformamos Jenny de novo em uma vela. Depois tentamosnos lembrar do que dissemos naquela noite e tornamos a dizer de trás

para a frente.”“Todos aqueles nomes sagrados? Impossível. Não me lembro nem

de metade do que dissemos.”“Na hora crucial, Jane disse: ‘Morra’, e você disse ‘Tome isso’ e deu

uma risadinha.”“Foi mesmo? Devemos ter nos exaltado.”Agora agachadas e protegendo os olhos, elas exploraram o

emaranhado passo a passo, em busca do brilho do papel-alumínio. Aspernas de Sukie acima das galochas estavam cheias de arranhões, suabela capa de chuva London Fog nova estava sendo repuxada, e osfinos fios à prova d’água começavam a se rasgar: “Aposto que estápreso lá no meio de uma daquelas porras de arbustos cheios deespinhos”.

Quanto mais irritada Sukie soava, mais maternal Alexandra setornava.

“Pode ser”, disse ela. “Parecia muito leve quando eu joguei. Saiuvoando.”

“Mas, afinal, por que você o jogou aqui? Que coisa mais histéricade se fazer.”

“Eu já disse, tinha acabado de ter aquela conversa com Jenny aotelefone, em que ela me pediu para salvá-la. Fiquei me sentindoculpada. Fiquei com medo.”

“Com medo de quê, meu bem?”“Você sabe. Da morte.”“Mas não é a sua morte.”“Qualquer morte é a nossa morte, de certa forma. Nessas últimas

semanas, eu tenho tido os mesmos sintomas de Jenny.”“Você sempre sentiu isso em relação ao câncer.” Exasperada, Sukie

usou o podão de cabo comprido para golpear os galhos cheios deespinhos e folhas redondas que a importunavam, puxavam fios de suacapa de chuva e arranhavam seus pulsos. “Porra. Aqui tem umesquilo morto, todo encarquilhado. Isto aqui é mesmo uma lixeira.

Você não poderia ter encontrado a porcaria do amuleto com algumtipo de visão mágica? Não poderia tê-lo feito, como é mesmo que sediz, levitar?”

“Eu tentei, mas não consegui captar nenhum sinal. Talvez o papel-alumínio esteja retendo as emanações.”

“Talvez os seus poderes não sejam mais o que eram.”“Pode ser. Ultimamente eu tentei várias vezes fazer o sol sair,

estava me sentindo toda mole por causa da umidade; mas mesmoassim continuou a chover.”

Os gestos de Sukie foram ficando cada vez mais irritados. “Janelevitou inteira.”

“Jane é assim. Ela está ficando muito forte. Mas você ouviu o queela disse: ela não quer participar da reversão desse feitiço, para ela ojeito como as coisas estão acontecendo está bom.”

“Talvez você tenha superestimado o alcance do seu lançamento.Monty vivia reclamando dos golfistas que procuravam suas bolas, decomo eles sempre andavam quilômetros além do lugar onde elaspoderiam ter caído.”

“Eu estou achando é que nós subestimamos a distância. Como eudisse, o negócio saiu voando.”

“Então vá você por ali, e eu vou voltar um pouco. Meu Deus, essasporras de arbustos com espinhos. Que horror. Para que é que elesservem, afinal?”

“Para alimentar os pássaros. E os roedores, e os gambás.”“Ah, que ótimo.”“Eu estava reparando que alguns não são arbustos de amora, mas

sim rosas selvagens. Quando Ozzie e eu nos mudamos para Eastwick,eu sempre fazia geleia com as frutinhas das roseiras.”

“Você e Oz eram mesmo uma gracinha.”“Era patético. Eu era tão dona de casa. Você é uma santa por estar

fazendo isso”, disse ela a Sukie. “Sei que está achando um tédio. Podedesistir quando quiser.”

“Na verdade eu não sou tão santa assim. Talvez também estejacom medo. Mas, enfim, aqui está, achei.”

Ela não parecia nem de longe tão animada quanto ao encontrar abola de golfe quinze minutos antes. Alexandra, arranhada eatravancada por alguma rudeza essencial e incontrolável do universo(era essa a sensação que tinha), avançou até onde a outra estava. Sukienão havia tocado no amuleto. Este jazia em um espaço relativamenteaberto, um trecho de água salobra margeado nas bordas por erva-leiteira; algumas frágeis flores brancas exibiam seus atrativos entre assombras da floresta. Ao se agachar para tocar o papel-alumínioamarrotado, não enferrujado mas opaco devido aos meses passadosao relento, Alexandra percebeu que a terra preta e úmida ao seu redorestava coalhada de insetos de algum tipo, pontinhos avermelhadosreunidos como aparas de metal em volta de um ímã, agitando-se emseu mundo minúsculo muitos níveis abaixo do seu na escala da vida.Obrigou-se a tocar o amuleto malévolo, aquela batata assada infernal.Quando o pegou na mão, não sentiu quase peso nenhum, e ouviu umchacoalhar: eram os alfinetes lá dentro. Com delicadeza,desembrulhou-o. Os alfinetes haviam enferrujado. A substância decera da pequena réplica de Jenny havia desaparecido quase porcompleto.

“Gordura animal”, disse Sukie por fim, depois de esperarAlexandra falar primeiro. “Alguma criaturinha por aí achou gostoso ecomeu tudo, ou então deu para os filhotes comerem. Olhe: elesdeixaram o cabelo. Você se lembra daqueles cabelinhos? Eu teriaapostado que eles iriam apodrecer ou algo assim. E por isso quecabelos entopem ralos: são indestrutíveis. Iguais a frascos de águasanitária. Algum dia, meu bem, não vai sobrar mais nada no mundo anão ser cabelos e frascos de água sanitária.”

Nada. A substituta de cera de Jenny havia se transformado em umnada.

Agora que as duas estavam em pé no meio da vegetação, gotas de

chuva começaram a tocar-lhes o rosto, parecendo alfinetes. Aquelasprimeiras gotas secas e microscópicas anunciavam uma chuva deverdade, um toró. O céu exibia um cinza sólido com exceção de umafina faixa azul acima do horizonte baixo a oeste, tão distante quetalvez aquele céu azul sequer estivesse em Rhode Island.

“A natureza é uma coisa faminta”, disse Alexandra, tornando adeixar o papel-alumínio e os alfinetes caírem no meio das plantas.

“E sedenta”, completou Sukie. “Você não tinha me prometido umabebida?”

Sukie havia percebido o terror abjeto da amiga e tentava semostrar consoladora e descontraída, e de fato estava com um aspectodeveras impressionante, os cabelos ruivos e os lábios atrevidos,mergulhada em galhos até a altura dos seios vestida com sua capa dechuva elegante. Mas Alexandra tinha uma desolada sensação dedistanciamento, como se sua querida amiga, ao mesmo tempoatraente e sem viço, fosse ela também uma imagem cada vez maisdistante, como um anúncio, digamos, na traseira de um caminhão quese afasta em um cruzamento.

Uma das muitas inovações de Brenda foi fazer os membros daigreja darem seus próprios sermões de vez em quando; nesse dia,quem estava no púlpito era Darryl van Horne. O grande livro já bemgasto que ele abriu sobre o atril não foi a Bíblia, mas sim umdicionário Webster's Collegiate com sobrecapa vermelha.

‘“Lacraia”’, leu ele com aquela sua voz estranhamente ressonante,como se estivesse pré-amplificada. ‘“Designação comum aosartrópodes predadores da classe dos quilópodes, vermiformes, comcada segmentação do corpo dotada de um par de pernas, dos quais odianteiro foi modificado para se transformar em ferrões venenosos.’”

Darryl ergueu os olhos; estava usando uns óculos de leitura emforma de meia-lua, e eles acentuavam o aspecto remendado de seurosto, a impressão de que este era formado por diversas peças cujascosturas não eram de todo bem-acabadas.

“Vocês não sabiam sobre os ferrões venenosos, sabiam? Nuncativeram de encarar uma lacraia nos olhos, tiveram? Hein, seussortudos!” Com aquela voz tonitruante, ele se dirigia talvez a umadúzia de pessoas espalhadas pelos bancos da igreja naquele dia úmidode final de agosto em que o céu, nas altas janelas, exibia a mesma nãocor sem graça do papel reciclado. “Pensem só”, incitou Darryl,“pensem só na evolução desses ferrões ao longo das eras, daeternidade... Vocês não odeiam essa palavra, ‘eternidade’? E como senos sentíssemos obrigados a cair de joelhos sempre que algum pobreidiota a pronuncia, ‘eternidade’, e acho que o fato de eu a pronunciarfaz de mim outro pobre idiota, mas, que diabos, o que mais eu poderiadizer? Pensem só em todos os pequenos embates ferrenhos atrás dapia, no porão e na selva, que culminaram na boca desse artrópodepredador... Que expressão mais linda, não é? Na boca desse artrópodepredador, boca essa que em nada se parece com nossos lábios cor derubi, isso eu lhes garanto, antes de essas duas patas dianteiras dealguma forma terem a ideia de se tornarem venenosas e das confiáveisantigas cadeias de DNA aceitarem a sugestão, e de as lacraiascontinuarem transando para produzir mais lacraias, e de finalmenteessas patas se transformarem em presas. Presas venenosas. Ah,rapaz.” Ele enxugou os lábios com o indicador e o polegar de uma dasmãos. “E pensar que as pessoas chamam essa tortura bagunçada deCriação.” O título do sermão, estampado em letras móveis no muralexterno da igreja, era “Que Criação terrível a nossa”.

As cabeças esparsas que o escutavam continuaram em silêncio.Nem mesmo a marcenaria da velha estrutura emitia sequer umrangido. A própria Brenda estava sentada muda, de perfil, ao lado doatril, semiescondida por um imenso tufo de gladíolos e samambaiasdentro de um vaso de gesso ofertado nesse domingo em homenagema um filho natimorto que Franny Lovecraft tivera cinquenta anosantes. Brenda estava pálida e abatida; tivera várias fases deindisposição ao longo de boa parte do verão. O verão em Eastwick

tinha sido úmido e insalubre.“Sabem o que eles faziam com as bruxas na Alemanha?”,

perguntou Darryl em voz alta do púlpito, mas como se a perguntahouvesse acabado de lhe ocorrer, o que provavelmente era o caso.“Obrigavam-nas a se sentar em uma cadeira de ferro e tocar fogoembaixo. Rasgavam sua pele com pinças em brasa. Torniquetes.Ecúleos. Botas de tortura. Estrapada. A lista é grande, fazia-se de tudo.Geralmente com velhas senhoras meio tontas.” Franny Lovecraft seinclinou para junto de Rose Hallybread e sussurrou alguma coisa comum grasnado alto, mas ininteligível. Van Horne sentiu a perturbaçãoe, a seu modo vulnerável e estabanado, pôs-se na defensiva. “Muitobem”, gritou ele em direção à congregação. “E daí? Bom, dirão vocês,é essa a natureza humana. E essa a história do homem. O que isso tema ver com a Criação? O que é que esse maluco está tentando dizer?Nós poderíamos ficar aqui falando até o cair da noite sobre as torturasque os seres humanos já usaram uns contra os outros sob a bandeirasagrada de uma fé qualquer. Os chineses costumavam arrancar a peledo corpo aos poucos, na Idade Média desventravam o sujeito bem nasua frente, depois cortavam o pau dele e o punham na sua boca sópara arrematar. Desculpe ser assim tão direto, mas é que eu meanimo. A questão é que tudo isso posto lado a lado e multiplicado porum zilhão não significa nem um punhado de feijão podre secomparado à crueldade que a natural, orgânica e simpática Criaçãoinfligiu a suas criaturas desde que os primeiros pobres aminoácidosatarantados conseguiram sair com muito esforço da sopa química.Mulheres nunca acusadas de bruxaria, belas bonecas louras que nuncajogaram mau-olhado sequer sobre uma lacraia, morrem todos os diasem meio a uma dor provavelmente tão intensa e com certeza maisprolongada do que qualquer uma infligida pela velha e boaHexenstuhl. Essa cadeira era coberta com grandes pregos rombudos,não sei muito bem qual era o princípio termodinâmico. Não queromais pensar nisso, e aposto que vocês também não. Mas estão

entendendo o espírito da coisa. Era terrível, terrível; meu Deus, comoera terrível.” Os óculos escorregaram para a frente pelo seu nariz e, aoajeitá-los, ele pareceu tornar a encaixar todo o próprio rosto no lugar.Alguns presentes acharam que ele tinha as faces molhadas.

Jenny não estava presente; estava novamente no hospital com umahemorragia interna incontrolável. Era essa a corrente subjacentedaquele sermão. Ray Neff tampouco estava ali nesse dia — ele haviaaceitado um convite do professor Hallybread para ir velejar atéMelville no recém-comprado veleiro Herreshoff de quatro pésequipado com arpão de Arthur. Mas Greta estava ali, sentada sozinha.Era difícil interpretar Greta — o que ela pensava, o que ela queria. Ofato de ser alemã, embora seu sotaque nunca fosse tão carregadoquanto as pessoas que zombavam dele poderiam querer fazer parecer,cobria sua alma com uma espécie de grade quando se tentava espiar ládentro. Cabelos escorridos de um louro opaco, cortados bem curtos, eincríveis olhos do mesmo azul da água suja em que se lavou a louçapor trás dos óculos de vovó. Ela não faltava um só domingo, mastalvez isso se devesse apenas à meticulosidade natural de sua raça, araça alemã, essa máquina admirável sempre à espera de um demônioromântico para assumir os controles.

Van Horne havia passado algum tempo em silêncio, manuseandoo dicionário de forma desajeitada, como se suas mãos fossem luvas.Pôde-se então ouvir a velha sra. Lovecraft quando ela se inclinou parajunto da sra. Hallybread e indagou com uma voz nítida: “Por que éque ele está usando essas palavras sujas?”.

Rose Hallybread parecia estar achando tudo muito divertido; erauma mulher alta, com uma cabeça miúda envolta por um ninho decabelos crespos grisalhos e pretos bem volumosos. Seu rosto muitopequeno tinha a mesma cor de uma noz, vincado e revincado pordécadas de adoração ao sol; o que ela sussurrou de volta foi inaudível.Do outro lado dela estava sentada Dawn Polanski; a moça tinhamalares fascinantes e largos como os de uma mongol, uma pele de

aspecto encardido, e aquela calma plácida e inabalável de quem nãoobedece a nenhuma lei. Ela e Rose juntas tinham dentro de si uma boaquantidade de poder psíquico.

Van Horne ouviu o burburinho difuso, ergueu os olhos, piscou-os,empurrou os óculos mais para cima do nariz e, em tom de quem pededesculpas, anunciou:

“Sei que isso está levando um tempão, mas aqui acabei de medeparar com as palavras solitária e tarântula. ‘Tarântula: designaçãocomum a diversas aranhas grandes e peludas tipicamente bastantevagarosas que, embora capazes de uma picada dolorida, não sãosignificativamente venenosas para o homem.’ Muito agradecido pelainformação. E aqui está sua amiguinha molenga: ‘Designação comumaos numerosos vermes da classe dos cestoides (como os do gêneroTaenia) que, quando adultos, parasitam os intestinos do homem e deoutros vertebrados’. Numerosos, vejam bem, não se trata apenas deum ou dois gatos pingados escondidos em um canto qualquer daCriação, qualquer um pode cometer um erro, mas sim de vários, devários tipos, que ideia incrível, alguém deve ter pensado. Não seiquanto ao resto de vocês aqui presentes, todos provavelmentetorcendo para eu calar a boca e ir me sentar, mas sempre fui fascinadopor parasitas. Digo, fascinado de uma forma negativa. Para começar,eles existem em muitos tamanhos diferentes, de vírus e bactérias comosuas simpáticas espiroquetas causadoras da sífilis até solitárias comdez metros de comprimento tão grandes e gordas que são capazes deobstruir o intestino grosso de uma pessoa. De modo geral, é nosintestinos que esses parasitas são mais felizes. Ficar lá sentado novisgo aguado dentro das entranhas de outro ser — é esse o seu lugarde honra. E, como é você quem faz toda a digestão por eles, elessequer precisam ter estômagos, só bocas e cus, com o perdão dotermo. Mas, rapaz, quanta engenhosidade o nosso velho GrandeCriador dedicou com a Sua mão generosa a esses humildesdemoniozinhos. Olhem aqui, eu fiz algumas anotações copiadas da

en-ci-clo-pé-dia, como costumava dizer Jiminy Cricket, mas não estouconseguindo ler direito com essa luz péssima aqui de cima; Brenda,não sei como você consegue; semana vem, semana vai. Se eu fossevocê, entraria em greve. Muito bem. Chega de rodeios.

“O típico verme intestinal, mais ou menos do tamanho de umlápis, põe seus ovos nas fezes do hospedeiro; essa parte é bemsimples. Aí, não me perguntem como — existem muitas condiçõesruins de saneamento pelo mundo quando se sai de Eastwick —, essesovos acabam indo parar na sua boca, e você, mesmo sem querer, osengole. Eles então eclodem no seu duodeno, as pequenas larvasnadam até a parede do intestino, entram dentro de um vasosanguíneo e migram para os seus pulmões. Mas vocês não acham queé aí que elas vão se aposentar e viver de pensão, acham? Não,senhores, meus caros amigos, essa mãe-verme morde a parede doaconchegante capilar lá do pulmão, sai, entra em uma bolha de ar esobe o que se chama de árvore brônquica até a epiglote, onde você aengole de novo! Dá para acreditar que podemos ser tão burros? Edepois dessa segunda viagem para baixo que o verme de fato seacomoda e se transforma em um verme-padrão maduro que ganha avida com seu trabalho.

“Ou então pensem só — esperem um pouco, minhas anotaçõesestão confusas —, pensem no bichinho simpático chamado verme dopulmão. Os ovos desses vermes são expelidos para o mundo quandoas pessoas escarram.” Para demonstrar, Van Horne puxou um escarroda garganta. “Quando os ovos rebentam em alguma água doceempoçada nesses lugares sujos meio terceiro-mundistas, esses vermes,agora em forma de larvas, migram para dentro de determinadoscaramujos de sua predileção, está dando para acompanhar? Quandose fartam de viver dentro de caramujos, eles saem nadando e entramnos tecidos moles de camarões e caranguejos. E quando os japonesesou sei lá quem mais come os camarões ou caranguejos crus oumalcozidos daquele jeito que gostam de comer, é aí que esses

abomináveis vermes entram e mastigam os intestinos e o diafragmapara entrar no bom e velho pulmão e começar novamente o mesmoprocesso da saliva. No caso de outro bichinho aquático do mesmotipo, o Diphyllobothrium latum, se é que estou conseguindo ler direito,os pequenos embriões nadadores primeiro são comidos por pulgasd’água, depois os peixes comem as pulgas d’água, e peixes maiorescomem esses peixes, e por fim o homem morde a isca, e durante essetempo todo esses minúsculos monstros, em vez de serem digeridos,escapam perfurando as diversas paredes do estômago e prosperam.Ah, rapaz. Existem mil histórias como essa, mas não quero aporrinharninguém nem quero, sabem, exagerar na explicação. Mas esperem.Isto aqui vocês precisam escutar. Estou citando. ‘O Echinococcusgranulosus é um dos poucos vermes parasitas do homem cujoindivíduo adulto também habita o intestino do cão, enquanto ohomem é um dos vários hospedeiros do estágio larvar. Além disso, overme adulto é muito pequeno, medindo apenas de três a seiscentímetros. A larva, por sua vez, conhecida como cisto hidático, podechegar ao tamanho de uma bola de futebol. O homem adquire ainfecção’ — ouçam só isso — ‘pelo contato com as fezes de cãesinfectados.’

“Então, vejam vocês, do ponto de vista do Echinococcus, tirando ummonte de fezes e escarro, o Homem, supostamente criado à imagemde Deus, é apenas uma parada intermediária no caminho até osintestinos de um cão. Mas vocês não devem pensar que os parasitasnão se gostam entre si; eles se gostam, sim. Existe uma gracinhachamada Trichosomoides crassicauda, sobre quem podemos ler, e eucito: ‘A fêmea dessa espécie vive como parasita na bexiga do rato,enquanto o macho degenerado vive dentro do útero da fêmea’. E tãodegenerado que até a enciclopédia acha degenerado. E, olhem, que talisto aqui? ‘O que se pode chamar de forésia sexual pode ser observadoem vermes sanguíneos do tipo Schistosoma haematobium, cujas fêmeasmenores são carregadas dentro de um sulco ventral da parede do

abdome do macho, o canal ginecefórico.’ Tinha um desenho no livroque eu gostaria de mostrar a vocês, com uma boca na ponta de umtroço que parecia um dedo e um grande sugador abdominal, a coisatoda parecia uma banana com o zíper aberto. Podem acreditar:horrível.”

E para aqueles que agora se remexiam na cadeira (pois o céu nasvidraças superiores das janelas estava se abrindo como se umalanterna houvesse sido acesa por trás do papel, e os topos das malvasrosas ondulavam soprados por uma brisa vigorosa, brisa essa quequase fez o barco de Arthur e Ray virar em East Passage perto da ilhachamada Dyer Island: Arthur não estava acostumado a manejar opequeno e enérgico veleiro; seu coração começou a fibrilar; umpássaro bateu as asas dentro de seu peito, e seu cérebro pôs-se aentoar depressa Ainda não, meu Deus, ainda não) pareceu que o rostode Van Horne, que avançava e recuava entre as anotações rabiscadas eum olhar meio cego dirigido à congregação, estava se dissolvendo,derretendo-se para se transformar em nada. Ele tentou organizar ospensamentos para o doloroso esforço da conclusão. Sua voz soouforçada, vinda bem lá debaixo da terra.

“Então, para concluir isso tudo, não se trata somente do ataqueágil e limpo de um tigre ou de um simpático leão desgrenhado,entendem? É isso que eles tentam nos vender com todos aquelesbichos de pelúcia. Mais verossímil seria pôr as crianças na cama comuma fascíola hepática de pelúcia ou com uma tarântula peluda. Todosvocês comem. A emoção que sentem diante do pôr do sol de um lindodia de verão, quando o primeiro gim-tônica, cuba-libre ou BloodyMary começa a funcionar para amolecer as sinapses, e com um beloqueijo suave com bolachas arrumado feito uma mão de pôquer sobreuma travessa na mesa de vidro do deque ou ao lado da piscina, juropor Deus, meus bons amigos, é assim que os vermes se sentemquando uma bola toda gosmenta de filé ou de comida oriental maldigerida chega chapinhando lá onde ele está. Ele é uma criatura de

verdade, assim como eu e você. Do ponto de vista do projeto, é umacriatura igualmente nobre... ela foi realmente projetada com amor. Epreciso imaginar aquele Grande Rosto inclinado e sorridente em meioà barba enquanto os fabulosos Dedos com Sua manicure angelicaldavam os últimos retoques na ventosa ventral do velho e bomSchistosoma: Criação é isso. Agora eu pergunto a vocês: não é terrível?Não daria para ter feito algo melhor, considerando os recursos? Eucom certeza poderia. Então, da próxima vez, votem em mim, certo?Amém.”

Em toda congregação é preciso haver um elemento estranho. Aúnica pessoa não convidada nesse dia era Sukie Rougemont, sentadasolitária nos fundos da igreja, usando um chapéu de palha de abalarga para esconder os lindos cabelos ruivo-claros e grandes óculosredondos de modo a ver suficientemente bem para ler o hinário etomar notas na margem de seu programa mimeografado. Sua colunavulgar “Olhos e Ouvidos de Eastwick” havia sido reintroduzida paratornar o Word mais “sexy”. Ela ficara sabendo sobre o sermão secularde Darryl, e fora até lá cobri-lo. Brenda e Darryl, devido à sua posiçãono tablado do altar, deviam tê-la visto entrar de fininho durante oprimeiro hino, mas nem Greta, nem Dawn, nem Rose Hallybreadhaviam se dado conta da sua presença e, como ela saiu discretamentedurante a primeira estrofe de “O Pai que ao homem tudo provê”, nãohouve confronto entre as facções de bruxas. Greta havia começado abocejar incontrolavelmente, e os olhos sem brilho de Dawn de repentese puseram a coçar muito, e as fivelas dos sapatos de Franny Lovecrafthaviam se soltado; mas todas essas coisas podiam ser atribuídas acausas naturais, assim como a descoberta de Sukie, na vez seguinteem que se olhou no espelho, de oito ou dez novos fios de cabelobranco.

“Bem, ela morreu”, contou Sukie para Alexandra ao telefone. “Porvolta das quatro horas desta madrugada. Só Chris estava com ela, eele havia pego no sono. Foi a enfermeira da noite quem entrou noquarto e percebeu que ela estava sem pulso.”

“E Darryl, onde estava?”“Tinha ido para casa dormir um pouco. Coitado, ele realmente

vinha tentando ser um marido fiel, noite após noite. A coisa já estavapara acontecer há muitas semanas, e os médicos ficaram surpresos porela ter aguentado tanto tempo. Ela era mais forte do que qualquer umdesconfiava.”

“Era, sim”, disse Alexandra em um elogio simples. Carregando seufardo de culpa, seu próprio coração havia seguido em frente e agorademonstrava uma disposição outonal, uma abdicação calma. Oferiado da primeira segunda-feira de setembro já havia passado, e portoda a extensão das bordas do seu quintal os finos ásteres silvestrescompetiam com as varas-de-ouro e com os cardos pesados e de folhasescuras. As uvas roxas de seu caramanchão finalmente haviamamadurecido, e as que as gralhas não comiam caíam sobre os tijolos ese desmanchavam; na verdade, eram azedas demais para se comer, enesse ano Alexandra estava sem vontade de fazer geleia: todo aquelevapor, todo aquele esforço, os pequenos vidros quentes demais paraserem tocados. Enquanto pensava no que dizer para Sukie a seguir,Alexandra foi visitada por uma sensação cada vez mais frequente:sentiu-se externa ao próprio corpo, vendo-o de não muito longe, comsua patética especificidade, seu comprimento e sua largura mortais.Mais um mês de março e ela faria quarenta anos. Misteriosas dores e

pruridos continuavam a visitá-la durante a noite, embora o dr.Paterson não houvesse encontrado nada para diagnosticar. Ele era umhomem gordote e careca cujas mãos pareciam inchadas de tão largas emacias, de tão rosadas e limpas.

“Estou me sentindo péssima”, anunciou ela.“Ah, não precisa”, disse Sukie com um suspiro, ela própria soando

cansada. “As pessoas morrem o tempo todo.”“Só queria que alguém me desse um abraço”, foi o surpreendente

comentário de Alexandra.“E quem não quer isso, meu amor?”“Era tudo o que ela queria, também.”“E foi o que ela conseguiu.”“De Darryl, você quer dizer.”“Sim. E o pior é que...”“Tem alguma coisa ainda pior?”“Eu na verdade não deveria estar contando isso nem para você,

fiquei sabendo por Jane em sigilo absoluto; você sabe que ela estásaindo com Bob Osgood, que ficou sabendo pelo doutor Pat...”

“Ela estava grávida”, disse-lhe Alexandra.“Como é que você soube?”“O que mais poderia ser a pior coisa de todas? Quanta tristeza”,

comentou ela.“Ah, sei lá. Eu odiaria ter sido essa criança. Não sei por quê, mas

não acho que Darryl tenha estofo para a paternidade.”“O que ele vai fazer da vida?” Na imaginação de Alexandra, o feto

boiava, repulsivo: um peixe de cabeça rombuda, enroscado como umaaldraba ornamental.

“Ah, acho que mais ou menos a mesma coisa que fazia antes. Eleagora tem lá aqueles novos amigos. Eu contei a você sobre a igreja.”

“Eu li a sua sátira na ‘Olhos e Ouvidos’. Você fez parecer que eledeu uma palestra de biologia.”

“E deu, mesmo. Foi uma brincadeira maravilhosa. O tipo de coisa

que ele adora fazer. Você se lembra do ‘Boogie do rouxinol quecantava em Berkeley Square’? Não consegui incluir nada no textosobre Rose, Dawn ou Greta, mas, sinceramente, quando elas unem ascabeças o vórtice de poder que se forma é absolutamente elétrico,parece a aurora boreal.”

“Como será que elas ficam peladas?”, perguntou Alexandra.Quando tinha aquela visão imediata e separada do próprio corpo, estesempre estava vestido, embora nem sempre vestido com as roupasque ela estava usando na ocasião.

“Horríveis”, opinou Sukie. “Greta deve ficar parecida com umadaquelas gravuras enrugadas e cheias de calombos daquele alemão,você sabe qual...”

“Dürer.”“Isso. E Rose deve ser magra feito um varapau, e Dawn deve ser só

uma criança abandonada encardida com uma barriga saliente de bebêtoda lisinha e sem peito nenhum. Mas Brenda... Brenda até poderiaser”, confessou Sukie. “Fico pensando se Ed foi só o meu jeito de mecomunicar com Brenda.”

“Eu voltei lá”, confessou Alexandra por sua vez, “catei todos osalfinetes enferrujados e os espetei em mim mesma em vários lugares.Mesmo assim não adiantou. O doutor Pat disse que não consegueencontrar sequer um tumor benigno.”

“Ah, meu amor”, exclamou Sukie, e Alexandra percebeu que haviaassustado a amiga, que a outra queria desligar. “Você está mesmoficando esquisita, não é?”

Alguns dias depois, Jane Smart disse ao telefone, com a vozesganiçada de indignação:

“Não acredito que você ainda não soube!”Cada vez mais, Alexandra tinha a sensação de que Jane e Sukie

conversavam, depois uma ou então a outra ligava para ela porobrigação, no dia seguinte ou mais tarde. Talvez elas tirassem cara oucoroa para decidir quem iria se incumbir da tarefa.

“Nem Joe Marino contou para você?”, prosseguiu Jane. “Ele é umdos principais credores.”

“Joe e eu não estamos mais nos vendo. Sério.”“Que pena”, comentou Jane. “Ele era uma graça. Para quem gosta

de duendes italianos.”“Ele me amava”, disse Alexandra, impotente, sabendo o quão

estúpida a amiga a estava achando. “Mas eu não podia deixá-lo largarGina por minha causa.”

“Bom”, disse Jane, “essa é uma interpretação bem lisonjeira paravocê.”

“Pode até ser, sua chata. Mas enfim. Conte-me a sua novidade.”“Não é só a minha novidade, é a novidade da cidade inteira. Ele

foi embora. Fugiu, meu anjo. II est disparu.” Seus esses machucavam,mas pareciam estar causando dor naquele outro corpo, o corpo noqual Alexandra só conseguia entrar quando estava dormindo.

Pelo tom pessoal e irado da pergunta de Jane, Alexandra sóconseguiu pensar em uma coisa: “Bob Osgood?”.

“Darryl, querida. Por favor, acorde. Nosso querido Darryl. Nossolíder. Aquele que nos salvou do ennui de Eastwick. E ele levou ChrisGabriel consigo.”

“Chris?”“Você tinha razão desde o início. Ele era um daqueles.”“Mas ele...”“Alguns conseguem. Mas para eles não é real. Eles não associam

ao fato as mesmas ilusões que os homens normais.” Har, har, diable,diable, saute ici, saute là. Ela estivera lá, lembrou-se Alexandra,espiando a mansão de longe, depois preocupada pensando se suascoxas estariam gordas e brancas demais quando teve de atravessar aágua.

“Bem”, disse ela então. “Que bobas nós fomos, não é?”“‘Ingênuas’ é o termo que eu usaria. Como é que poderíamos não

ser, morando em um fim de mundo ridículo como este? Por que nós

estamos aqui, você algum dia já pensou nisso? Porque os nossosmaridos nos plantaram aqui, e nós, feito umas margaridas idiotas,simplesmente ficamos”

“Então você acha que o pequeno Chris...”“O tempo todo. E claro. Ele só se casou com Jenny para apertar o

cerco. Sinceramente, eu seria capaz de matar os dois.”“Ah, Jane, nem diga isso.”“E por causa do dinheiro dela, é claro. Ele precisava daquele

dinheirinho ridículo que ela ganhou com a casa para manter afastadosos credores. E agora tem todas as contas do hospital. Bob disse queestá tudo uma confusão, e que todo mundo está ligando para o bancoporque eles são os responsáveis pela hipoteca da mansão. Mas elereconheceu que talvez haja liquidez suficiente se eles conseguiremencontrar os empreendedores certos; o lugar seria ideal para umcondomínio de casas, se o Comitê de Planejamento aprovar. SegundoBob, Herbie Prinz talvez se deixe convencer; ele costuma tirar aquelasférias caras durante o inverno.”

“Mas ele deixou o laboratório? A tinta capaz de produzir energiasolar...”

“Lexa, será que você não está entendendo? Nunca houve nada ali.Nós o imaginamos”

“Mas e os pianos? E as obras de arte?”“Não temos a menor ideia do quanto daquilo tinha sido pago. E

óbvio que existem alguns bens. Mas com certeza muitas daquelasobras de arte se desvalorizaram muitíssimo; sério, pense bem:pinguins empalhados borrifados com tinta automotiva...”

“Ele adorava tudo isso”, disse Alexandra, ainda leal. “Essa partetenho certeza de que ele não fingiu. Ele era um artista, e queriaproporcionar a todas nós uma experiência artística. E conseguiu. Vejasó a sua música, todos aqueles Brahms que você tocava com ele atéaquele seu dobermann detestável devorar seu violoncelo e vocêcomeçar a falar igualzinho a um banqueiro seboso.”

“Você está sendo muito idiota”, disse Jane, ríspida, e desligou. Foimelhor assim, pois as palavras haviam começado a entalar nagarganta de Alexandra, junto com a rouquidão de lágrimas querendorolar.

Sukie lhe telefonou dali a menos de uma hora, o último suspiro daantiga solidariedade entre as três. Mas tudo que ela parecia conseguirdizer foi: “Ah, meu Deus. Chris, aquele pirralhozinho. Eu nunca o viarticular duas palavras”.

“Acho que ele queria nos amar”, disse Alexandra, que sóconseguia falar em Darryl van Horne, “mas simplesmente não tinhaessa capacidade.”

“Você acha que ele queria amar Jenny?”“Pode ser, porque ela era muito parecida com Chris.”“Ele era um marido exemplar.”“Isso pode ter sido uma espécie de ironia.”“Estive pensando, Lexa, que ele devia saber o que estávamos

fazendo com Jenny, é possível...”“Vamos. Diga.”“Que nós estivéssemos fazendo a vontade dele, sabe...”“Ao matar Jenny”, completou Alexandra.“Sim”, disse Sukie. “Porque ele a queria fora do caminho uma vez

casado no papel, quando tudo ficou diferente.”Alexandra tentou pensar; fazia muito tempo que não sentia a

própria mente se esticar, uma sensação luxuriante, quase muscular,para tatear aqueles túneis impalpáveis do possível e do provável.

“Eu realmente duvido”, concluiu ela, “que Darryl algum dia tenhatido esse nível de organização. Ele precisava improvisar com situaçõescriadas por outras pessoas, e não podia olhar muito para a frente.”Enquanto falava, Alexandra passava a vê-lo cada vez com maisclareza: podia senti-lo por dentro, podia sentir suas cavernas, costuras,lugares ermos. Ela havia projetado o próprio espírito até um lugardesolado e cheio de ecos. “Ele não conseguia criar, não tinha poderes

próprios desse tipo, tudo que podia fazer era liberar o que já existianos outros. Até nós: nós já tínhamos o sabá antes de ele chegar àcidade, e já tínhamos os nossos poderes. Eu acho que ele queria sermulher, como ele mesmo disse, mas não era sequer isso.”

“Sequer isso”, repetiu Sukie em tom crítico.“Bem, ser mulher é mesmo triste durante boa parte do tempo.

Sinceramente, é, sim.” Novamente aquelas palavras presas em suagarganta, o limiar das lágrimas. Mas essa sensação, assim como asensação resistente de tentar pensar outra vez, era de certa forma umaesperança, um rígido início. Ela estava parando de flutuar.

“Talvez isso faça você se sentir um pouco melhor”, disse Sukie.“Há uma boa chance de Jenny não ter ficado tão triste assim emmorrer. Rebecca tem feito muita fofoca na Nemo’s, agora que Fidelfugiu junto com os outros dois, e segundo ela algumas das coisas queaconteceram naquela casa depois que nós paramos de ir lá eramrealmente de arrepiar os cabelos. Parece que Jenny sabia muito bem oque Chris e Darryl estavam aprontando, pelo menos depois que secasou.”

“Pobrezinha”, disse Alexandra. “Acho que ela era uma daquelaspessoas totalmente adoráveis para as quais o mundo, por algummotivo, nunca encontra nenhuma finalidade.” A natureza, em suasabedoria, as sacrifica.

“Segundo Rebecca, até Fidel ficou ofendido”, continuou Sukie,“mas quando ela implorou para ele ficar e morar com ela, ele disseque não queria ser pescador de lagostas nem faxineiro na Dataprobe, enão havia mais nenhum outro trabalho que as pessoas daquideixariam um cucaracho como ele fazer. Rebecca está arrasada.”

“Homens”, disse Alexandra com eloquência.“Não é?”“O que foi que gente como os Hallybread achou disso tudo?”“Eles acharam péssimo. Rose está quase histérica com o fato de

Arthur estar envolvido financeiramente nessa confusão toda. Parece

que ele se interessou bastante pelas teorias de Darryl sobre o selênio, echegou até a assinar algum tipo de acordo segundo o qual se tornavasócio em troca de sua experiência; esse era um dos talentos de Darryl,fazer as pessoas assinarem pactos. Obviamente as costas dela agoraestão doendo tanto que ela dorme em uma esteira no chão, e obrigaArthur a passar o dia inteiro lendo uns romances históricosvagabundos para ela em voz alta. Ele não consegue mais nem sair decasa.”

“Sério, mas que mulher horrível e maçante”, disse Alexandra.“Um horror”, concordou Sukie. “Jane disse que a cabeça dela

parece uma maçã seca enrolada em palha de aço.”“Mas como está Jane? Sério. Acho que ela ficou bem impaciente

comigo hoje de manhã.”“Bom, segundo ela Bob Osgood conhece um homem maravilhoso

em Providence, na Hope Street, acho que foi isso que ela disse, quepode trocar todo o tampo do Ceruti dela sem mudar o timbre, ele éum daqueles Ph.D.s hippies que foram trabalhar em um ofício manualpara irritar o próprio pai, protestar contra o Sistema ou algo assim.Mas ela já remendou o instrumento com fita crepe e está tocandomesmo com ele todo mastigado, e disse que está gostando, o somparece mais humano. Eu acho que ela não vai nada bem. Está muitoneurótica e paranoica. Pedi para ela me encontrar no centro paracomermos um sanduíche no café Bakery ou até mesmo na Nemo’s,agora que Rebecca não nos culpa mais por tudo, mas ela recusou,disse que tinha medo de ser vista por aquelas outras. Brenda, Dawn eGreta, imagino. Eu as vejo o tempo todo na Dock Street. Sorrio, elassorriem de volta. Não há mais nenhum motivo para briga. A cor dela”— ela voltou a falar de Jane — “está assustadora. Branca feito umpunho fechado, e não estamos nem em outubro ainda.”

“Estamos quase”, disse Alexandra. “Os tordos sumiram, e durantea noite dá para ouvir os gansos. Este ano estou deixando meustomates apodrecerem no pé; sempre que desço até o porão, todos

aqueles vidros de molho do ano passado ralham comigo. Os meushorríveis filhos se rebelaram totalmente contra espaguete, e devodizer que espaguete engorda mesmo, e não é bem disso que eupreciso.”

“Deixe de ser boba. Você emagreceu mesmo. Vi você saindo damercearia outro dia — eu estava fazendo hora extra no Word,entrevistando um novo capitão do porto incrivelmente imaturo epomposo, não passa de um garoto com os cabelos na altura dosombros, mais jovem até do que Toby, e por acaso olhei pela janela — epensei cá comigo: “Lexa está mesmo um es touro". Você estava com oscabelos presos naquele rabo de cavalo grande, e estava usando aquelajaqueta de brocado iraniana...”

“Argelina.”“... argelina que sempre usa no outono, e segurando Carvão pela

guia, uma corda comprida.”“Eu tinha ido passear na praia”, contou Alexandra. “Foi

maravilhoso. Nem um tiquinho de vento.” Embora as duas aindatenham conversado por mais alguns minutos, tentando recuperar oantigo aconchego, aquela união que estava relacionada à maciez e àvulnerabilidade de seus corpos, Alexandra, e Sukie também — comolhe informou de forma súbita e inconfundível sua intuição — tiverama anestesiante sensação de que tudo já havia sido dito antes.

Chega uma hora abençoada do ano em que sabemos que estamoscortando a grama pela última vez. O filho mais velho de Alexandra,Ben, supostamente deveria fazer jus à mesada trabalhando no jardim,mas agora ele havia recomeçado o ensino médio e estava tentando

bancar o craque nos treinos de futebol americano depois das aulas —corria, ofegava, pulava para sentir aquela deliciosa batida do couronos dedos esticados a três metros do chão. Marcy trabalhava em meioexpediente como garçonete no Bakery Coffee Nook, que agora serviacomida também à noite, e lamentavelmente havia se envolvido comum daqueles sinistros rapazes desgrenhados que costumavam sereunir em frente à mercearia. Os dois mais novos, Linda e Eric,haviam entrado respectivamente na quarta e sexta séries, e Alexandrahavia encontrado guimbas de cigarro dentro de um copo de papelcheio d’água debaixo da cama de Eric. Ela então empurrou mais umavez o cortador de grama ruidoso e fumegante, cujo óleo não haviasido trocado desde a época da manutenção caseira de Oz, para lá epara cá pelo gramado malcuidado, coalhado de compridas folhasamarelas de salgueiro parecendo penas e todo cheio de calombos porcausa dos buracos escavados pelas toupeiras para o inverno. Deixou ocortador ligado até o combustível terminar, para evitar que ocarburador entupisse na primavera seguinte. Pensou em esvaziar ovelho óleo sujo, mas isso lhe pareceu excessivamente cuidadoso emasculino. No caminho de volta do barracão de ferramentas de jardimpara a cozinha, passou pelo ateliê e finalmente viu a armadurainacabada como o que realmente era: um marido. As pranchas demadeira pequenas e grandes desajeitadamente pregadas e presas comarame tinham a mesma magreza que ela admirava e que Ozziepossuía antes de o fato de ser um marido lhe desgastar as arestas.Lembrou-se de como os joelhos e cotovelos dele a espetavam na camanaqueles primeiros anos, quando os pesadelos o faziam se remexerdurante o sono; ela o havia amado bastante por esses pesadelos queeram uma confissão de seu medo da vida, com toda a sua extensão eresponsabilidade, a ameaçar sua jovem masculinidade. Por volta dofinal de seu casamento, ele já dormia como um objeto imóvel eafundado, suando e emitindo pequenos ressonares distraídos. Elatirou da prateleira o pó multicolorido de Ozzie e salpicou um

punhado sobre o pedaço de tábua de pinho cheio de calombos queformava os ombros da armadura. Estava menos preocupada com acabeça e o rosto do que com os pés; o que mais lhe importava em umhomem, percebeu ela, eram as extremidades. O que quer queacontecesse no meio, seu homem ideal precisava ter nos pés uma certamagreza delicada — como os pés de Cristo sobrepostos e pregadosnos crucifixos, cheios de tendões, com dedos longos e flácidos como seele estivesse voando —, e nas mãos algo duro e alargado pelo esforço;as mãos borrachudas de Darryl eram a mais repulsiva de suascaracterísticas. Ela esboçou essas ideias em argila, no último pedaçode caulim puro retirado do quintal dos fundos da viúva em Coventry.Bastava apenas um pé e uma mão, e não fazia mal ser apenas umesboço; o importante não era o produto acabado, mas a mensageminscrita no ar e enviada aos poderes capazes de formar mãos e dedosaté as mais pequeninas falanges e fáscias, aqueles poderes que davamorigem a todas as maravilhosas anatomias da cornucópia ensandecidae exata da Criação. Para a cabeça, ela escolheu uma abóbora detamanho modesto comprada em uma barraquinha de beira de estradana rodovia 4 que, durante dez meses por ano, tem um aspectoirrecuperavelmente dilapidado, mas que ganha vida na época dacolheita. Esvaziou a abóbora e despejou lá dentro um pouco do pó deOzzie, mas não demais, porque só queria que ele fosse reproduzidoem sua essência de marido. Um ingrediente crucial era quaseimpossível de encontrar em Rhode Island: solo do Oeste, um punhadode terra seca e arenosa onde a sálvia pudesse crescer. A terra úmidado Leste não iria servir. Certo dia ela viu, estacionada na Oak Street,uma caminhonete com placa do Colorado, com aqueles númerosbrancos sobre uma silhueta verde de montanhas. Levou a mão até aparte de dentro do para-choque traseiro e raspou um pouco de lamaamarelada e seca, que levou para casa e juntou ao pó de Ozzie.Também precisava de um chapéu de caubói para a abóbora, e teve depegar o Subaru e ir até Providence para encontrar uma loja de

fantasias frequentada por alunos da Brown com suas peças de teatro,festas de Carnaval e passeatas de protesto. Enquanto estava lá, teve aideia de se inscrever como aluna em meio período na Escola deDesign de Rhode Island; já havia ido o mais longe possível comoescultora sendo apenas primitiva. Os outros alunos eram pouco maisvelhos do que seus filhos, mas um dos professores, um ceramista deTaos queimado de sol e meio manco de quase cinquenta anos,castigado pelos trancos da vida, chamou sua atenção, e ela a dele, comsua voluptuosidade corpulenta um pouco semelhante à do gado (queJoe Marino havia acertado na mosca ao chamá-la, durante o sexo, desua vacca). Depois de vários semestres e idas e vindas, os dois secasaram, e Jim levou Alexandra e os enteados de volta para o Oeste,onde o ar era deliciosamente rarefeito e toda a bruxaria pertencia aosxamãs hopis e navajos.

“Meu Deus”, disse-lhe Sukie ao telefone antes de ela ir embora.“Qual foi o seu segredo?”

“O meu segredo não é para ser publicado”, respondeu Alexandra,severa. Sukie era agora editora do Word e, para acompanhar o tomdesavergonhadamente pessoal da incipiente era do pós-guerra,precisava publicar um escândalo ou uma confissão por semana, esátiras diárias de boatos triviais que Clyde Gabriel teria riscado comfastio.

“Você tem que imaginar a sua vida”, confidenciou Alexandra paraa mulher mais jovem. “Aí ela acontece.”

Sukie transmitiu esse conselho mágico para Jane, e a querida eirada Jane, que corria o risco de se tornar uma velha solteironaamargurada e irritadiça, levando seus alunos de piano a associar opreto e o branco das teclas a ossos e à escuridão dos infernos, tudomorto, rígido e ameaçador, sibilou sua descrença; havia muito tempoque já descartara Alexandra como uma irmã pouco digna de suaconfiança.

No entanto, sem dizer nada nem mesmo para Sukie, ela havia

pego algumas farpas do tampo do violoncelo consertado pelodedicado restaurador hippie da Hope Street, enrolado-as no velhosmoking cor de fuligem do pai, e posto dentro de um dos bolsosalgumas migalhas da erva seca em que Sam Smart havia setransformado e que vivia pendurada no porão de sua casa de fazenda,e no outro bolso pusera os pedacinhos de uma nota de vinte dólarespicada — pois estava cansada, muito cansada de ser pobre —, depoissalpicara as ainda brilhantes e largas lapelas do smoking com seuperfume, sua urina e o sangue da sua menstruação, e pusera oamuleto de cheiro esquisito dentro de um saco plástico de tinturariaque guardava entre o colchão e o estrado da cama. Era por cima dessaprotuberância sutil e amassada que ela passava suas noites. Em umfim de semana terrivelmente frio de janeiro, estava visitando a mãeem Back Bay quando um homenzinho perfeitamente adequado,usando um smoking e um par de sapatos de verniz lustrosos comopiche fervente, apareceu para o chá; ele vivia com os pais em ChestnutHill e estava a caminho de uma festa de gala no Tavern Club. Tinhaolhos protuberantes de pálpebras pesadas com o mesmo azul claro einquisitivo de um gato siamês; sua visita não foi tão breve a ponto deele não reparar — ele, que nunca havia se casado e fora descartadopor aquelas que poderia ter cortejado como irrecuperavelmenteafetado, assexuado demais para sequer ser taxado de gay — em algoescuro, incisivo e safado em Jane que talvez ainda pudesse despertar ohá muito adormecido lado amoroso de seu ser. Cada um tem seupróprio momento para despertar, e as flores mais garridas são aquelasque florescem no frio. O olhar dele também detectou em Jane umaeficiente e formidável administradora em potencial para suasantiguidades Chippendale e Duncan Phyfe, para os imensos armáriosde laca chinesa, para os bem guardados caixotes de vinho de safra,para as ações e a prataria que ele um dia iria herdar dos pais, emboraambos ainda estivessem vivos, assim como aliás suas duas avós —mulheres vetustas e eretas, imutáveis como cristal em seus recantos de

Milton e Salem. Essa grandeza familiar, bem como as demandas dosclientes investidores cujo dinheiro ele administrava com ousadia, alémdas exigências de sua delicada constituição alérgica (leite, açúcar,álcool e sódio eram algumas das substâncias que ele precisava evitar),tudo isso fazia pensar em uma administradora; ele telefonou para Janena manhã seguinte, antes de ela ter tempo de sair voando em seuValiant surrado, e convidou-a para um drinque naquela noite no barde Copley. Ela recusou o convite; e então uma nevasca de almanaquedesabou sobre a casa de tijolos e impediu sua partida. O telefonemadele nessa noite sugeriu um almoço no andar de cima do Ritz, ilhadopela neve. Jane resistiu muito, brandindo sua língua assassina paraarranhar e queimar; mas seu sotaque agradou a ele, que finalmente fezdela sua prisioneira em uma casa cheia de torres e louça branca emBrookline que parecia saída de um livro de histórias, projetada porum discípulo de H. H. Richardson.

Sukie salpicou noz-moscada em pó sobre a superfície circular deseu espelho de mão até nada restar de seu reflexo a não ser os olhosverdes com pontinhos dourados ou, quando ela mexia de leve acabeça, os lábios provocantes e pintados com uma quantidadeexagerada de batom. Com esses mesmos lábios, recitou sete vezes comum sussurro solene a prece obscena e secreta a Cernunnos. Então tiroude cima da mesa da cozinha os já velhos e gastos jogos americanos deplástico quadriculado e jogou-os no lixo para serem recolhidos naterça-feira. No dia seguinte mesmo, um homem vivaz de cabeloscastanho-claros de Connecticut apareceu na redação do Word parapôr um anúncio: queria um weimaraner com pedigree para cruzarcom sua cadela. Ele estava alugando um chalé em Southwick com osfilhos pequenos (era recém-divorciado; havia ajudado a mulher acursar uma universidade de direito já tarde na vida, e a primeira açãodela fora processá-lo por crueldade mental), e o pobre animalresolvera entrar no cio; a cadela estava sofrendo um verdadeirosuplício. Esse homem tinha um nariz meio fora do prumo, como Ed

Parsley; uma aura de inteligência pesarosa, como Clyde Gabriel; e umpouco da formalidade profissional de Arthur Hallybread. Com seuterno quadriculado, parecia excessivamente alerta, como umvendedor afetado do norte do estado de Nova York ou um cantor-dançarino prestes a cruzar o palco na diagonal dedilhando um banjo.Como Sukie, ele tentava ser divertido. Na verdade vinha de Stamford,onde trabalhava em uma indústria nascente: venda e assistênciatécnica de computadores glamorizados chamados processadores detexto. Hoje, no seu próprio computador, ela digita velozmenteromances de capa mole, e com umas poucas batidas dos dedos mudaparágrafos de lugar, troca o nome dos personagens, e cria umglossário listando paixões e crises para uso futuro.

Sukie foi a última a ir embora de Eastwick; a lembrança dela, comsua saia de camurça envelhecida e seus cabelos ruivos, balançando aspernas e braços compridos diante das vitrines reluzentes das lojas,perdurou na Dock Street como o fantasma colorido que o olho retémdepois de olhar para algum objeto brilhante. Isso já faz muitos anos. Ojovem capitão do porto com quem ela teve seu último caso agora temuma pança e três filhos; mas ainda se lembra de como ela costumavamorder-lhe o ombro e dizer que adorava sentir o gosto de sal da brisamarinha condensada em sua pele. A Dock Street foi recalçada ealargada para comportar mais tráfego e, do velho bebedouro decavalos até Landing Square, como a praça tende a ser chamada, todosos leves zigue-zagues na linha do meio-fio foram endireitados.Pessoas diferentes se mudam para a cidade; algumas vão morar navelha mansão Lenox, de fato transformada em condomínio. A quadrade tênis foi mantida, embora o perigoso experimento com a coberturade lona inflada não tenha se repetido. Uma parte do terreno foidragada para construir um cais e uma pequena marina, como atrativopara os inquilinos. As garças fazem seus ninhos em outro lugar. Apassarela foi elevada, com bueiros a cada cinquenta metros, de modoque não alaga mais — ou só alagou uma vez até agora, durante a

grande nevasca de fevereiro de 78. O clima de forma geral pareceandar mais brando ultimamente; as tempestades de raios são raras.

Jenny Gabriel descansa junto aos pais sob uma lápide baixa degranito polido em meio à grama aparada da nova ala do cemitério deCocumscussoc. Chris, irmão dela e filho dos mesmos pais, com seurosto angelical e seu amor pelas revistas em quadrinhos, foi tragadopela Sodoma de Nova York. Os advogados hoje acham que Darryl vanHorne era um nome falso. Existem, contudo, várias patentesregistradas nesse nome. Os moradores do condomínio relataram terouvido misteriosos estalos vindos de alguns dos peitoris pintados dasjanelas, e visto vespas morrerem de susto. Os fatos relativos aoimbróglio financeiro jazem enterrados em cofres e gavetas na formade uma papelada antiga, já esquecida apesar do pouco tempotranscorrido e sem grande interesse. O que tem interesse, isso sim, éaquilo que nossa mente guarda, aquilo que nossas vidas deixaram noar. As bruxas sumiram, desapareceram; nós fomos apenas umintervalo em suas vidas, e elas na nossa. Porém, enquanto o fantasmaazul-esverdeado de Sukie continua a assombrar a calçada banhada desol, e a forma negra de Jane continua a passar voando em frente à lua,do mesmo modo os boatos sobre a época em que elas, de carne e osso,viviam entre nós, lindas e praticando o mal, tornaram o nome dacidade saboroso na boca de outras pessoas, e, para aqueles que aindavivem aqui, deixaram para trás algo alongado, invisível eemocionante que não conseguimos compreender. Nós o encontramosao dobrar a esquina no cruzamento da Hemlock com a Oak; está láquando vamos passear pela praia fora da temporada e o Atlântico,com seu negror, espelha o denso e pesado cinza das nuvens: umescândalo — a vida, feito uma fumaça, subindo em espiral pelo céupara se transformar em lenda.

O Autor

John Updike nasceu em 1932, na Pensilvânia. Formou-se emHarvard em 1954 e, de 1955 a 1957, fez parte da equipe da revista NewYorker, para a qual contribuiu com poemas, contos, ensaios e resenhasaté sua morte, em 2009. Autor de ensaios literários, poesia e ficção,Updike recebeu inúmeros prêmios ao longo da vida, entre eles oPulitzer e o National Book Award. De sua autoria, a Companhia dasLetras publicou Consciência à flor da pele, Bem perto da costa, Coelho corre,Coelho em crise, Coelho cresce, Coelho cai, Brazil, Uma outra vida, Na belezados lírios, Bech no beco, Gertrudes e Claudio, Coelho se cala, Busca o meurosto, Terrorista, Cidadezinhas e As viúvas de Eastwick.

Esta obra foi composta pela Verba Editorialem Janson Text e impressa pela Prol Editora Gráfica

em ofsete sobre papel Pólen Softda Suzano Papel e Celulose

Digitalização: Elias Jr.