Chuvas e Trovoadas - VISIONVOX

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Para Donna, Camille, Hugo e Andrew

Esta é uma obra de ficção. Todos os nomes e personagens foram inventados, ou utilizados de forma fictícia. Oseventos descritos são puramente imaginários, embora as descrições de um boom turístico relacionado ao furacão,infestação de macacos e visita presidencial se baseiem em fatos reais.

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No dia 23 de agosto, véspera do furacão, Max e Bonnie Lamb acordaram, fizeram amor duasvezes e pegaram o ônibus para a Disney World. À noite, voltaram para o Peabody Hotel,tomaram cada um uma ducha, ligaram a TV a cabo no noticiário e ficaram sabendo que atempestade estava vindo direto para o sudeste da Flórida. O meteorologista da TV advertiu queseria a mais violenta em muitos anos.

Max Lamb sentou-se ao pé da cama e olhou fixamente para a imagem colorida do radar —uma esfera dentada flamejante, girando na direção contrária à dos ponteiros do relógio, rumo aolitoral. “Meu Deus, olhe isso!”, exclamou.

Um furacão, Bonnie Lamb pensou, e na nossa lua de mel! Enfiou-se debaixo dos lençóis eouviu a chuva batendo nos carros lá fora, no estacionamento. “Isso faz parte da coisa?”, elaperguntou. “Esse tempo ruim?”

Seu marido balançou a cabeça afirmativamente. “Faz, mas estamos só começando.”Max Lamb parecia excitado de uma forma que Bonnie achava perturbadora. Ela sabia que

não adiantava nada sugerir uma mudança sensata de planos, como tomar um avião de volta parao aeroporto La Guardia, Nova York. Seu novo marido não era do tipo que desistia fácil. Asreservas haviam sido feitas para cinco noites e seis dias, e, meu Deus, era esse o período em queeles ficariam lá. Tratava-se de um pacote de tarifa especial, sem direito a reembolso.

Ela comentou: “Provavelmente vão fechar o parque”.“A Disney?”, Max Lamb sorriu. “A Disney nunca fecha. Nem com epidemias, fome ou

furacões.” Levantou-se para ajustar o volume da televisão. “Além disso, a maldita coisa está aquase quinhentos quilômetros de nós. Aqui, no máximo teremos mais chuva.”

Bonnie Lamb detectou, no tom de voz do marido, certo desapontamento. Com as mãos nosquadris, nu, ele estava em pé de frente para a televisão. Suas costas e nádegas estavam marcadasde vermelho, por causa do dia passado nos brinquedos aquáticos. Max não era exatamente umatleta, mas se saíra muito bem nos escorregadores. Bonnie se perguntou se aquilo lhe subira àcabeça, pois nessa noite ele estava com os ombros bem erguidos, com uma postura de atletauniversitário. Ela viu Max a olhar-se no espelho, flexionando os bíceps duros e admirando aprópria nudez. Talvez fosse só uma coisa de lua de mel.

O noticiário exibia um vídeo filmado no local, com residentes idosos sendo evacuados decondomínios e edifícios em Miami Beach. Muitos carregavam gatos ou poodles nos braços.

“Então”, perguntou Bonnie, “ainda vamos ao Epcot amanhã?”Seu marido não respondeu.“Querido”, disse ela. “E o Epcot?”Max estava prestando atenção nas notícias sobre o furacão. “Ah, claro”, ele disse, distraído.“Você se lembrou dos guarda-chuvas?”“Lembrei, Bonnie, estão no carro.”Ela lhe pediu que desligasse a televisão e fosse para a cama. Quando ele entrou debaixo das

cobertas, Bonnie se aproximou, mordiscou os lóbulos das orelhas dele, brincou com o tufosedoso de pelos no seu peito ossudo.

“Adivinhe o que que eu não estou usando?”, ela sussurrou.“Ssshhh”, disse Max Lamb. “Ouça o barulho da chuva.”

Edie Marsh saiu de Palm Beach — onde havia passado seis meses tentando ir para a camacom um Kennedy — rumo ao condado de Dade. Ela fizera um plano detalhado para seduzir umjovem Kennedy e depois ameaçaria contar à polícia uma história escabrosa de perversão, estuproe tortura. O plano fora traçado enquanto assistia, na televisão, ao julgamento de WilliamKennedy Smith e observara o imenso alívio com que o clã recebera a notícia da absolvição,todos eles com aqueles dentes fantásticos, sorrindo radiantes para as câmeras com uma expressãoque Edie já vira mais de uma vez nos seus vinte e nove anos bem vividos — o olhar de quem játinha escapado de raspão. Eles não aguentariam outro escândalo, não logo em seguida. Seacontecesse de novo, haveria uma corrida louca para o talão de cheques da família e o problemaseria eliminado. Edie tinha calculado tudo.

Ela limpara a conta bancária do namorado e tomara o trem Amtrak para West Palm, ondeencontrara um apartamento dúplex barato. Passara os dias dormindo, roubando vestidoselegantes e pintando as unhas. Toda noite atravessava a ponte para a ilha dos ricos, ondeassiduamente jogava tempo fora no Au Bar e em outros clubes da moda. Dava gorjetas altas agarçons e garçonetes, no entendimento de que eles a avisariam assim que um Kennedy, qualquerKennedy, chegasse. Desse modo, logo conhecera dois Shrivers e um Lawford remoto, mas, paraEdie, essas teriam sido apenas trepadas limítrofes. Estava guardando seus encantos para umherdeiro direto, alguém que pudesse ser um canal para o filão da mãe de Joe Kennedy. Um dosjornais semanais havia publicado um diagrama representando a árvore genealógica dos Kennedy,que Edie Marsh pregara na parede da cozinha, ao lado de um calendário. Logo de início, haviaexcluído a possibilidade de dormir com alguém que tivesse se tornado Kennedy pela via docasamento; o dinheiro quente acompanhava as linhas diretas da genealogia, bem como oscaçadores de escândalo. Em termos estatísticos, aparentemente seu melhor alvo seria um dosfilhos de Ethel e Bob, uma vez que eram tantos. Edie não se teria recusado a rastejar nua sobrecacos de vidro por uma oportunidade de dar um bote em John Jr., mas era praticamenteimpossível ele entrar desacompanhado num simples bar de Palm Beach.

Além disso, Edie Marsh era extremamente realista. John Kennedy Jr. costumava namorarestrelas de cinema, e ela não era nenhuma estrela de cinema. Bonita, claro. Sexy também, novestido decotado Versace. Mas John-John nem a olharia duas vezes. Alguns de seus primos,porém, os filhos de Bob — Edie tinha certeza de que nesse caso poderia produzir algum estrago.Enganá-los até o fim e depois telefonar para os advogados...

Infelizmente, seis meses exaustivos passados em bares produziram apenas dois encontroscom Kennedy de verdade. Nenhum deles tentou dormir com Edie. Ela não podia acreditar. Umdos jovens até a convidara para sair, mas ao deixá-la em casa nem mesmo tentara apalpar seuspeitos. Dera-lhe apenas um beijinho de boa-noite, agradecendo a boa companhia. O malditoperfeito cavalheiro, ela pensara.

Droga de sorte! Edie tentara bravamente fazê-lo mudar de ideia. Praticamente o imobilizarade encontro ao capô, beijando-o, acariciando-o e agarrando-o. Nada! Profundamente humilhante,sem dúvida! Depois que o jovem Kennedy partira, Edie fora ao banheiro e se examinaradetidamente no espelho. Talvez houvesse cera em seus ouvidos ou espinafre em seus dentes,alguma coisa grosseira que tivesse desestimulado o cara. Mas qual o quê, ela estava ótima.Furiosa, tirara o vestido roubado, avaliara o próprio corpo e pensara: Será que aquele estúpidopensa que é bom demais para tudo isto? Que piada, o tal charme dos Kennedy. O garoto tinha

tanto carisma quanto um prato de mingau. Ela já estava cheia dele bem antes de servirem aentrada de lagosta. Sentira vontade de pular em cima da mesa e gritar com toda a força de seuspulmões: Quem está ligando para o analfabetismo no sul de Boston? Conte-me alguma coisasobre Jackie e o milionário grego, isso sim!

Acontece que aquela funesta noite fora a última oportunidade de Edie. O verão se encerraraem Palm Beach, e todos os Kennedy transáveis foram para Hyannis. Edie estava dura demaispara ir atrás.

O furacão no radar da televisão lhe dera outra ideia. A tempestade estava a mil e trezentosquilômetros dali, agitando violentamente o Caribe, quando ela telefonou para um homemchamado Snapper, que justamente saía de uma curta temporada na prisão por homicídio nãopremeditado. Snapper recebera esse apelido por ter um maxilar torto, decorrência da ação de umguarda-florestal e da má cicatrização. Edie Marsh combinou encontrar-se com ele num bar dapraia. Snapper ouviu o plano de Edie e disse que era a coisa mais sórdida que já ouvira, porque:(a) o furacão provavelmente não atingiria aquela parte do globo; e (b) alguém poderia ir para acadeia por muito tempo.

Três dias depois, com o furacão chegando a Miami, Snapper telefonara para Edie Marsh edissera: “Que diabo, vamos dar uma olhada. Conheço um cara que entende dessas coisas”.

O nome do cara era Avila, e ele havia trabalhado como inspetor de obras para o condado deDade. Snapper e Edie o encontraram numa loja de conveniências, na rodovia para Dixie, na partesul de Miami. A chuva caía fina, enganadora, dada a proximidade do furacão, mas as nuvenspareciam agourentamente baixas e uma neblina amarela e sinistra cobria tudo.

Foram no carro de Avila, com Snapper sentado ao lado dele, na frente, e Edie sozinha atrás.Seguiram para uma localidade chamada Sugar Palm Hammocks: cento e sessenta e quatromoradias individuais aglomeradas sadicamente em apenas dezesseis hectares de terra. Sem fazercomentários, Avila dirigia vagarosamente pelas ruas. Muitos residentes estavam do lado de fora,pregando tábuas, de modo frenético, nas janelas de suas casas.

“Não há quintais nas casas”, Snapper observou.“É o que chamamos lotes sem divisórias”, Avila disse.“Que aconchegante!”, Edie Marsh exclamou, do banco de trás. “O que precisamos é de uma

casa que desmorone com o furacão.”Avila balançou a cabeça afirmativamente, confiante. “Pode escolher. Todas elas vão

desmoronar.”“Sem sacanagem?”“É, querida, sem sacanagem.”Snapper virou-se para Edie e disse: “Avila deve saber. Ele é que inspecionou as malditas

casas”.“Perfeito”, disse Edie, e abaixou o vidro do carro. “Então vamos tentar achar alguma coisa

legal.”

Atendendo às instruções das autoridades, milhares de turistas deixavam Florida Keys. Otráfego na direção norte da rodovia US-1 se arrastava de modo infame, com luzes de freiospiscando até onde os olhos podiam alcançar. A cerveja de Jack Flemming e Webo Drake acabarana altura de Big Pine. Agora, estavam empacados atrás de um ônibus Greyhound, no meio daponte Seven Mile. O ônibus havia enguiçado com problemas no câmbio. Jack Flemming e WeboDrake saíram do carro — que pertencia ao pai de Jack — e começaram a jogar latas de cervejaCoors ponte abaixo. Os dois jovens estavam levemente baleados depois de uma noite no bar

Turtle Kraals, em Key West, onde a ideia de ficarem encalhados no meio de um furacão dequatro graus na escala Richter se afigurara uma grande aventura. Uma bonita história para contarà galera quando voltassem para a casa da fraternidade universitária Kappa Alpha. O problema éque ao acordar Jack e Webo tinham se dado conta de que não tinham mais dinheiro nem cerveja,e de que o pai de Jack contava com a devolução de seu sedã luxo Lexus quase novo... bem,estava esperando desde ontem.

Assim, ali estavam eles, presos numa das pontes mais compridas do mundo, com um ciclonetropical monstruoso a apenas algumas horas de distância. O vento soprava por sobre o Atlântico,produzindo um barulho que nem Jack Flemming nem Webo Drake haviam ouvido antes; aquelevento os jogou em pé, quando saíram do carro. Webo arremessou uma lata vazia de Coors nadireção da mureta de concreto, mas o vento a devolveu numa chicotada, como numa jogada debeisebol. Naturalmente, isso ensejou uma competição entre os dois jovens para ver quem fazia omelhor lançamento. No secundário, Jack Flemming fora um arremessador de beisebol deprimeira linha, principalmente jogando bolas paralelas ao corpo, de forma que seus lançamentosnão eram tão afetados pelas rajadas de vento quanto os de Webo, que fora apenas quarterbackreserva num time júnior de futebol americano. Jack estava ganhando, por oito latas a seis jogadaspor cima da amurada, quando uma mão — uma enorme mão marrom — surgiu, dando um tapamolhado no topo da mureta.

Webo Drake deu uma olhada preocupada em direção ao companheiro. Jack Flemmingperguntou: “E agora?”.

Um homem barbado saiu de debaixo da ponte. Era alto, e seus cabelos prateados e ásperoscaíam-lhe como uma massa emaranhada até os ombros. Seu peito nu tinha pequenas escoriaçõesrosadas. O homem carregava vários rolos de corda suja embaixo de um dos braços. Usava calçasde camuflagem e velhas botas militares marrons, sem cadarço. Na mão direita segurava uma lataamassada de Coors e um esquilo morto.

Jack Flemming perguntou: “Você é cubano?”.Webo Drake ficou horrorizado.Baixando a voz, Jack disse: “Sem brincadeira. Aposto que ele fugiu numa jangada”.Fazia sentido. Eles estavam na região onde os refugiados normalmente desembarcavam, em

Keys. Jack falou em voz alta para o homem: “Usted cubano?”.O homem sacudiu a lata de cerveja e disse: “Usted babaca?”.Tinha uma voz estrondosa que combinava com seu tamanho. “De onde vocês saíram, seus

merdas”, disse, sobrepondo-se ao vento, “jogando seu maldito lixo na água?” Em seguida deuum passo à frente e um pontapé na janela traseira do Lexus do pai de Jack, quebrando-a. Jogou alata de cerveja vazia e o esquilo morto no banco de trás. Depois, agarrou Webo Drake pelo cintodo jeans. “Suas calças estão secas?”, perguntou.

Os passageiros do ônibus para Greyhound pressionaram os rostos contra os vidros para vermelhor o que estava acontecendo. Atrás do Lexus, uma família num minifurgão alugado podiaser vista fechando as portas do veículo. Certamente, um rápido exercício que haviam ensaiadoantes de deixar o aeroporto de Miami.

Webo Drake respondeu que sim, que seus jeans estavam secos. O estranho falou: “Então,segure meu olho”. Com o dedo indicador, removeu calmamente uma órbita de vidro do olhoesquerdo e colocou-a cuidadosamente num dos bolsos da calça de Webo. “Ficou frouxo, comtodos esses borrifos de água.”

Sem perceber a gravidade da situação, Jack Flemming apontou para a janela quebrada dosedã de luxo do pai e perguntou: “Por que diabos você fez isso?”.

Webo interrompeu, trêmulo: “Jack, está tudo bem”.O homem caolho virou-se para Jack Flemming e disse: “Contei treze malditas latas de

cerveja na água e só uma janela quebrada no seu carro. Acho que vocês tiveram moleza”.“Esqueça isso”, sugeriu Webo.O estranho disse: “Estou dando uma chance para vocês porque vocês são jovens e

bobalhões”.À frente deles, o ônibus para Greyhound ofegou, deu uma guinada e finalmente começou a

avançar, lento, em direção ao norte. O homem com a corda abriu a porta traseira do Lexus,empurrando para fora os cacos de vidro que estavam em cima do banco. “Preciso de umacarona.”

Jack Flemming e Webo Drake responderam: “É claro, moço. Nenhum problema”. Levaramquarenta e cinco minutos na rodovia até arranjarem coragem suficiente para perguntar ao caolhoo que ele estava fazendo debaixo da ponte Seven Mile.

“Esperando”, o homem respondeu.“O quê?”, perguntou Webo.“Ligue o rádio”, o homem disse, “se não for incômodo.”Todas as estações estavam noticiando o furacão. A última previsão dizia que estava indo para

o leste, pelas Bahamas, em direção a um aterro entre Key Largo e Miami Beach.“Exatamente como pensei”, disse o homem. “Eu estava muito ao sul. Pelo céu, dava para

perceber.”O homem havia coberto a cabeça com uma touca de banho estampada. Jack Flemming

observou-o pelo retrovisor, mas achou melhor não fazer comentários. O jovem estava maispreocupado com o que diria a seu pai sobre a janela quebrada e também sobre a mancha feia queo esquilo morto deixara no estofamento de couro.

Webo Drake perguntou ao caolho: “Para que a corda?”.“Boa pergunta”, ele falou, mas não deu nenhuma explicação.Uma hora mais tarde, o trecho da rodovia em que se encontravam passou a ter quatro pistas e

o tráfego começou a fluir com maior velocidade. Não havia quase nenhum carro indo para o sul.A rodovia se bifurcava na altura de North Key Largo. O estranho instruiu Jack Flemming atomar a via County Road 905, à direita.

“Está escrito que é preciso pagar pedágio”, disse Jack.“Ah, é?”“Olhe, nosso dinheiro acabou.”Uma nota de dez dólares, empapada, caiu no banco da frente, entre Jack Flemming e Webo

Drake. De novo eles ouviram a voz estrondosa do homem: “Pare quando chegarmos à ponte”.Vinte minutos depois, eles chegaram à ponte Card Sound, que vai de North Key Largo até o

continente. Jack Flemming pisou nos freios e manobrou para o acostamento. “Não aqui”, disse ohomem, “só lá em cima.”

“Em cima da ponte?”“Você é surdo, jovem?”Jack Flemming fez o carro subir a encosta cuidadosamente. O vento era impiedoso,

chocando-se de encontro ao carro. No topo do aclive, Jack encostou no meio-fio. O máximo quepôde. O caolho pegou de volta seu olho de vidro e saiu do carro. Arrancou a touca de plástico dacabeça e enfiou-a no cinto da calça.

“Venham cá”, disse aos dois jovens. “Me amarrem.” Colocou o olho de vidro no lugar,limpou-o e poliu-o com a ponta de um grande lenço colorido. Depois escalou a amurada e inseriu

as pernas numa abertura, de tal forma que ficou ajoelhado, de frente para o precipício.Outras pessoas que fugiam do furacão diminuíram a velocidade dos carros para observar a

cena, mas ninguém ousou parar. O homem que estava sendo amarrado à ponte pareciasuficientemente louco para merecê-lo. Jack Flemming e Webo Drake trabalharam tão rápidoquanto possível, considerando a força das rajadas do vento e a rapidez com que a ressaca,adquirida em Key West, aumentava. O estranho deu instruções explícitas sobre como deveria seramarrado, e os dois rapazes fizeram o que lhes foi dito. Prenderam uma ponta da corda em tornodos grossos tornozelos do homem e puxaram a outra ponta por cima do muro de concreto.Depois de quatro voltas com a corda em torno de seu peito, apertaram-na tão forte que ele soltougrunhidos. Aí enfiaram a corda por baixo da amurada e a passaram novamente em torno de seustornozelos, para em seguida dar o nó final.

O resultado foi um arreio firme que permitia ao homem mover somente os braços. WeboDrake testou os nós e achou que estavam firmes. “Podemos ir, agora?”, perguntou ao caolho.

“Sem dúvida.”“E o esquilo morto, moço?”“É todo seu”, disse o estranho. “Bom proveito.”Jack Flemming desceu a encosta com o motor desligado. Ao pé da ponte, deu uma guinada

para o lado para desviar do tráfego. Webo Drake achou um trilho de cortina enferrujado numapilha de lixo. Jack utilizou-o para remover a carcaça do esquilo do Lexus de seu pai. Webo ficouem pé, um pouco atrás, tentando acender um cigarro.

No alto da ponte, sob um céu terrivelmente escuro, o estranho, ajoelhado, levantou os braçosna direção das nuvens cinza. Lufadas de vento quente eriçavam seus cabelos, formando umaauréola de chispas prateadas em torno de sua cabeça.

“Maldito maluco”, Jack Flemming comentou, irritado. Deu um passo por cima do esquilomorto e jogou o trilho de cortina no mangue. “Você acha que ele estava armado? É isso que voudizer ao velho: um maluco com um revólver deu um pontapé na janela do carro.”

Webo Drake apontou com o cigarro e disse: “Jack, você sabe o que ele está esperando? Oidiota maluco está esperando o furacão”.

Embora os jovens estivessem distantes do homem, podiam vê-lo sorrindo como um louco,atingido pelo vento, que ficava cada vez mais violento. Seu sorriso resplandecia.

“Companheiro”, Jack disse a Webo, “vamos dar o fora daqui.” Não havia funcionários nacabine do pedágio. Os dois passaram chispando a oitenta por hora e entraram, derrapando, noestacionamento do Alabama Jack’s. Lá, usaram a nota de dez dólares do caolho para comprarquatro latas bem geladas de Cherry Coke e as beberam no percurso pela rodovia Card Sound.Quando acabaram, não jogaram as latas para fora do carro.

Um barulho acordou Bonnie Lamb. Era um estalido da mala que Max estava abrindo. Elaperguntou o que ele estava fazendo, afinal, completamente vestido, colocando suas roupas namala, às quatro da madrugada. Ele respondeu que queria fazer uma surpresa.

“Você está me abandonando? Depois de duas noites?”Max Lamb sorriu e aproximou-se da cama. “Estou fazendo as malas para nós dois.”Tentou acariciar a face de Bonnie, mas ela escondeu o rosto no travesseiro para proteger-se

da luz. A chuva estava caindo mais forte agora, batendo horizontalmente contra as janelas do altoprédio do hotel. Ela estava feliz porque o marido recuperara a razão. Poderiam visitar o Epcot emoutra ocasião.

Tirou o rosto do travesseiro e perguntou: “Querido, o aeroporto está aberto?”.

“Sinceramente, não sei.”“Não é melhor telefonar antes?”“Para quê?” Max Lamb deu umas palmadinhas no lençol, que se curvava, acompanhando o

formato dos quadris da mulher.“Vamos tomar o avião para casa, não é?” Bonnie Lamb sentou na cama. “É por isso que você

está fazendo as malas?”O marido retrucou: “Não, não estamos tomando o avião para casa. Estamos partindo para

uma aventura”.“Ah, entendo. E para onde, Max?”“Miami.”“É essa a surpresa?”“É.” Ele puxou as cobertas dela. “Vamos, temos um longo caminho pela frente.”Bonnie Lamb não se mexeu. “Você está falando sério?”“E tenho que ensinar você a usar a filmadora.”Ela disse: “Tenho uma ideia melhor. Por que não ficamos aqui e fazemos amor nos próximos

três dias? De manhã até de noite, o que você acha? Você pode destruir o quarto. Estou falandosério. Não é aventura o que você quer?”.

Max Lamb levantou-se outra vez e recomeçou a fazer as malas. “Você não entende. É umaoportunidade única na vida.”

“Certo”, disse Bonnie, “oportunidade de nos afogarmos em nossa lua de mel. Eu prefeririaficar aqui, que está quente e seco. Até prometo assistir Emannuelle VI, na TV a cabo, como vocêqueria ontem à noite.” Para ela, era uma grande concessão.

“Quando chegarmos a Miami”, disse Max, “o perigo já terá passado. Na verdade, acho atéque já terminou.”

“Então, para que ir até lá?”“Você vai ver.”“Max, não quero ir. Por favor!”Ele a abraçou paternalmente. Bonnie sabia que o marido estava falando com ela como se ela

tivesse seis anos de idade. “Querida”, disse Max Lamb à esposa, “minha linda Bonniezinha,agora escute. Podemos visitar a Disney a qualquer hora que quisermos. Mas e um furacão,quando é que a gente encontra? Você ouviu o homem da previsão do tempo, querida. Ele disseque ia ser a tempestade do século. Quantas vezes uma pessoa tem a oportunidade de ver umacoisa dessas?”

Bonnie Lamb não conseguia suportar o tom do marido. Faria qualquer coisa para que elecalasse a boca.

“Está bem, Max. Me dê meu roupão.”Ele estalou-lhe um beijo na testa e disse: “Isso é que é garota!”.

2

Snapper e Edie Marsh tomaram dois quartos no Hotel Best Western, em Pembroke Pines,quarenta e oito quilômetros ao norte do ponto onde a tempestade estava prevista para cair.Snapper disse ao funcionário do hotel que um quarto seria suficiente, mas Edie argumentou quede jeito nenhum. A relação entre os dois sempre fora estritamente de negócios. Snapper era umreceptador ocasional de roupas femininas roubadas, e Edie, uma ladra ocasional desse tipo deroupas. A nova aventura dos dois seria uma associação empresarial, mais ambiciosa, mas nãomais íntima. De saída, Edie advertiu Snapper de que não lhe passava nem pela cabeça fazer sexocom ele, mesmo que por uma só vez. O aviso pareceu não tê-lo abalado.

Edie foi para a cama. Tapou os ouvidos, tentando abafar os gemidos infernais da tempestade.Era mais do que ela podia aguentar sozinha. Num breve momento em que a tormenta se acalmouum pouco, bateu à porta de Snapper, apavorada. Ele a convidou a entrar.

Em meio à tempestade, ele havia encontrado uma prostituta. Edie ficou impressionada. Amulher segurava entre os seios uma garrafa cheia até a metade de Barbancourt. Snapper bebiavodca. Usava um boné da equipe dos Marlins e cuecas vermelhas tipo jóquei, vestidas peloavesso. Velas iluminavam discretamente o quarto de hotel. A luz havia sido cortada duas horasantes.

Edie Marsh se apresentou à prostituta, que Snapper conseguira através de um serviçotelefônico de garotas de programa. Tratava-se de uma funcionária dedicada, pensou Edie.

A tempestade atingiu seu auge com um rugido tão forte que os três se jogaram no chão,encolhendo-se assustados. As velas oscilavam loucamente com o vento que soprava pelasjanelas. Edie teve a impressão de que as paredes estavam respirando, e a ideia lhe pareceu muitodesagradável! Um quadro grande de um pelicano caiu nos tornozelos da prostituta. Ela deu umgritinho e mordeu as unhas artificiais. Snapper continuou tomando vodca. De vez em quando,sua mão livre arrastava-se como uma aranha pela coxa de Edie. Ela lhe dava um tapa, mas eleapenas suspirava.

Ao alvorecer, a tempestade havia cruzado a ilha e o aguaceiro caía com força. Edie Marshescolheu um vestido azul discreto, meias de náilon escuras e prendeu o cabelo num coque.Snapper vestiu o único terno que possuía, listrado, cor de ardósia. Comprara-o dois anos antespara o enterro de um ex-colega de penitenciária. A bainha das calças quase tocava as pontas deseus sapatos. Edie riu e disse que estava perfeito.

Deixaram a prostituta num restaurante da cadeia Denny’s e tomaram a rodovia em direção aosul, para ver os estragos que o furacão tinha feito. Havia um enorme engarrafamento, com carrosde bombeiros, de polícia e ambulâncias por toda parte. A rádio anunciou que Homestead haviasido varrida do mapa. O governador estava enviando a Guarda Nacional.

Snapper dobrou na rua 152, em direção ao leste, e ficou totalmente desorientado. Todas asplacas de trânsito e com os nomes das ruas haviam caído. Não conseguiu achar Sugar PalmHammocks. Edie Marsh ficou nervosa e começou a repetir o endereço em voz alta: 14 275Noriega Parkway. Um, quatro, dois, sete, cinco. Casa escura, venezianas marrons, piscina,garagem para dois carros. Avila havia estimado a casa em 185 mil dólares.

“Se não corrermos”, disse Edie, “se não chegarmos logo...”Snapper ordenou-lhe que calasse a maldita boca.“Não tinha uma fábrica de laticínios?”, Edie continuou. “Lembro que ele fez a curva na altura

de uma fábrica de laticínios, ou algo parecido.”Snapper retrucou: “A fábrica dançou. Tudo o que havia neste maldito lugar dançou, caso

você ainda não tenha notado. Estamos numa viagem cega”.Edie nunca tinha visto tamanha destruição. Parecia que Fidel Castro desencadeara um ataque

nuclear sobre a região. Casas sem telhados, sem paredes, sem janelas. Trailers e carrosamassados como folhas de papel. Árvores inteiras caídas nas piscinas. Gente chorando, e emtoda parte batidas de martelos e ronco de serras elétricas.

Snapper sugeriu que escolhessem outra casa. “Tem simplesmente umas dez mil para a genteescolher.”

“É, acho que sim.”“O que há de tão especial, afinal, no número 14 275?”“A casa tinha personalidade”, disse Edie.Snapper tamborilou com os dedos no volante. “Elas parecem todas iguais. Todos esses

lugares são exatamente iguais.”O revólver dele estava no banco entre os dois.“Está bem”, disse Edie, aborrecida com a mudança de planos, com o caos e a chuva

ininterrupta que caía do céu. “Está bem, vamos achar outra casa.”

Max e Bonnie Lamb chegaram ao condado de Dade logo após o alvorecer. As estradasestavam escorregadias e os cruzamentos engarrafados. O céu cinza trepidava com o barulho doshelicópteros das estações de televisão. O rádio anunciou que duzentas mil casas haviam sidoseriamente danificadas ou destruídas. A Cruz Vermelha pedia donativos de alimentos, água eroupas.

Os Lamb saíram da rodovia na altura de Quail Roost Drive. Bonnie ficou chocada com adestruição. Max estava excitado. Mantinha a filmadora no colo enquanto dirigia. A cada dois outrês blocos, diminuía a velocidade para filmar os escombros. Uma loja de ferragens achatada nochão. Os restos da churrascaria Sizzler. Um ônibus escolar atravessado por um pinheiro de dozemetros.

“Eu não lhe disse?”, falava Max Lamb. “Não é incrível?”Bonnie Lamb estremeceu. Sugeriu que parassem no abrigo mais próximo e se oferecessem

para ajudar.Max não lhe deu a menor atenção. Estacionou em frente a uma casa de dois andares que

havia explodido. O furacão jogara uma lancha dentro da sala de estar. A família — um homemlatino de meia-idade, sua mulher e duas garotinhas — estava em pé na calçada, perplexa. Todostrajavam impermeáveis amarelos parecidos.

Max saiu do carro e perguntou: “Tudo bem se a gente filmar um pouco?”.O homem consentiu, apático. Max filmou a casa devastada, de diversos ângulos. Depois,

passando por cima do material calcinado, da mobília quebrada e dos brinquedos retorcidos,entrou sem cerimônia na casa. Bonnie não conseguia acreditar no que seus olhos viam: elepassou direto pelo buraco que antes fora a porta de entrada!

Bonnie pediu desculpas à família, mas o homem disse que não se importava. De todo modoia precisar de fotografias para mostrar à companhia de seguros. As meninas começaram a chorar

e tremer. Bonnie Lamb se ajoelhou para confortá-las. Por cima do ombro, viu o marido filmandoa cena por uma janela quebrada.

Mais tarde, já de volta ao carro, ela disse: “Nunca vi coisa mais horrível”.“É, é muito triste.”“Estou falando do seu comportamento”, retrucou Bonnie irritada.“O quê?”“Max, quero voltar para casa.”“Aposto que vamos conseguir vender este filme.”“Não ouse tentar.”“Aposto que podemos vendê-lo para a C-Span. Pagaria a nossa lua de mel.”Bonnie fechou os olhos. O que havia feito? Será que a mãe tinha razão? Aquele homem era

um babaca — como ela lhe sussurrara ao ouvido no dia do casamento? Será que tinha razão?

Ao anoitecer, Edie Marsh tomou dois comprimidos de Darvon e repassou o plano comSnapper, que estava começando a ter dúvidas a respeito e parecia perturbado com a ideia deesperar semanas pelo resultado. Edie disse que não havia muita escolha, pois era assim que ascompanhias de seguros trabalhavam. Snapper deixou claro que desejava manter suas opções emaberto. Edie achou que com isso ele estava querendo dizer que poderia cair fora do esquema aqualquer momento.

Haviam escolhido uma casa numa região devastada chamada Turtle Meadow, onde o furacãohavia destelhado todas as casas. Snapper comentou que se tratava provavelmente de uma dasregiões inspecionadas anteriormente por Avila. Ele se gabava de já ter inspecionado oitentanovas casas por dia sem sair do caminhão. “Cotas de rodízio”, era assim que chamava essasinspeções. Snapper achava que Avila não era um inspetor muito bom no que dizia respeito atelhados, uma vez que morria de medo de altura e se recusava a subir em uma escada para fazerinspeção. Consequentemente, a inspeção era feita de maneira superficial, de olho, de um veículoandando a uma velocidade superior a cinquenta quilômetros por hora. Snapper contou que arapidez e a confiança de Avila haviam feito dele o preferido entre os construtores, especialmentena época do Natal.

Examinando os escombros, Edie Marsh disse que Avila tinha sorte de não estar na cadeia.Por isso havia parado suas atividades, explicou Snapper. Os esqueletos haviam lhe dito queestava na hora. Eles e um júri.

“Os esqueletos?”, perguntou Edie.“Juro que essa história não vai interessar a você”, disse Snapper.Estavam andando pela calçada, do outro lado da rua onde se situava a casa que tinham

escolhido pela manhã. Àquela hora, o lugar estava quase completamente no escuro. Só se viamalgumas luzes esparsas de lanternas e fogueiras. Muitas famílias haviam trocado suas casasdestruídas por hotéis próximos. Alguns homens haviam permanecido no local para defendê-locontra eventuais saqueadores. Estavam tensos e portavam armas. Snapper se deu conta de queera bom ser branco e vestir terno.

A casa que haviam escolhido não estava no escuro nem vazia. Uma lâmpada fora penduradanos fios elétricos que restaram no teto, e as luzes azuladas da imagem de uma televisão serefletiam na parede. Esses luxos se explicavam pela existência de um gerador portátil queroncava continuamente. Edie e Snapper haviam visto um homem gordo alimentar o gerador comóleo diesel.

A rua se chamava Turtle Meadow Lane ou Calusa Drive, não sabiam bem. A placa queindicava corretamente o lugar havia caído. O número 15 600 estava pintado em vermelho numaparede externa da casa, bem como o nome da companhia de seguros responsável: “MidwestCasualty”.

Companhia grande, Edie comentou. Vira os comerciais na televisão. O símbolo da empresaera um texugo.

“Um texugo?”, perguntou Snapper, sério. “Que diabos um texugo tem a ver com seguros?”“Não sei.” Edie sentia a boca seca. Estava com sono. “O que um puma tem a ver com

automóveis? O que interessa é a publicidade.”Snapper comentou: “A única coisa que sei sobre texugos é que eles são teimosos. E a última

coisa de que precisamos é de uma companhia de seguros teimosa”.Edie respondeu: “Pelo amor de Deus”.“Vamos procurar outra casa”, sugeriu Snapper.“Não!” Edie deu algumas voltas e atravessou a rua em direção ao número 15 600.Edie virou na entrada para automóveis da casa. “Vamos fazer agora o que temos que fazer,

enquanto está tudo calmo.”Snapper hesitou, mexendo o maxilar.“Vamos!” Edie soltou o coque e amassou os cabelos, formando um ninho por cima do rosto.

Depois, puxou o vestido e passou as unhas pelas meias de náilon, fazendo correr o fio.Snapper deu uma olhada em volta para ver se algum dos vizinhos patrulheiros estava

observando a cena. Edie escolheu um lugar na entrada para carros e se deitou de rosto para ochão. Usando duas treliças quebradas do teto, Snapper fez um ótimo trabalho arranjando a cena.Ela ficou presa.

Por debaixo dos escombros, Edie disse: “Um pouco de sangue ia ajudar”.Snapper chutou uma unha de sua mão esquerda. Edie Marsh prendeu a respiração e se

arranhou do ombro ao joelho com a ponta da unha. Doeu muito. Passou o braço pelo rosto paraespalhar o sangue e produzir um efeito mais dramático. No momento certo, Snapper começou agritar por socorro. Edie ficou impressionada com seus gritos, que pareciam muito realistas.

Max Lamb se felicitou por ter comprado um estoque de fitas de vídeo antes de viajar paraOrlando. Outros turistas não tinham sido tão prevenidos e podiam ser vistos revirando as malas àprocura de fitas virgens e baterias. Max parava apenas para recarregar a bateria, acumulandometros e mais metros de filme sobre o desastre natural de proporções históricas. Mesmo que a C-Span não demonstrasse interesse, seus amigos em Nova York teriam. Max era um jovemexecutivo de uma firma de publicidade de tamanho médio, e havia muitas pessoas lá que elequeria impressionar. Sabia manipular bem a filmadora Sony, mas não faria mal pedir ajuda a umprofissional. Conhecia um lugar na rua 50, ao leste, que editava vídeos caseiros e, por umpequeno pagamento a mais, colocava títulos e créditos. Seria perfeito! Quando Bonnie seacalmasse, iria pedir-lhe que promovesse um coquetel para mostrar aos clientes e colegas defirma os vídeos do furacão.

Max andava a passos rápidos de uma casa devastada para outra, dotado de uma energiapredatória, com a câmera zumbindo na mão. Estava tão preocupado em registrar a tragédia quese esquecera da mulher. Ela parara de segui-lo três quarteirões antes. Max quis ensinar a Bonniecomo usar a filmadora para poder posar em meio aos escombros do furacão, mas ela lhe disseraque preferia tomar um barril de purgante a fazer a vontade dele.

Para fins editoriais, Max guardava de memória suas melhores tomadas. Registrara muitascenas dos escombros, mas queria temperar o choque visual com cenas tocantes, que captassem osofrimento humano, tanto espiritual como físico.

Uma bicicleta estraçalhada chamara-lhe a atenção. O furacão fizera a bicicleta abraçar-se aotronco de um coqueiro. Ela se encaixara tão perfeitamente como uma aliança ao redor de umdedo. Um menino de cerca de oito anos tentava retirá-la. Max caiu de joelhos e deu um close norosto do menino enquanto ele manejava pesaroso os guidãos retorcidos. Sua expressão era deapatia e frieza. Tinha os lábios firmemente apertados, por causa do esforço para concentrar-se.

Max pensou: Ele está em estado de choque. Nem percebeu minha presença.O menino parecia não ligar para o fato de que sua bicicleta estivesse destruída a ponto de não

ter mais conserto. Simplesmente queria que a árvore a devolvesse. Puxava com toda a força. Seuolhar vazio não demonstrava frustração.

Incrível, Max pensava enquanto observava através do visor da câmera. Simplesmenteincrível.

Alguma coisa esbarrou no seu braço direito, e a imagem do garoto tremeu no visor. Uma mãopuxou a manga de Max. Xingando, ele levantou os olhos.

Era um macaco.Max girou sobre os calcanhares e posicionou a câmera na direção do animal esquálido.

Através do visor, percebeu que sobrevivera à tempestade, mas estava em péssimo estado. Seuspelos castanho-avermelhados estavam emaranhados e ásperos. Uma contusão do tamanho de umrabanete aparecia em seu focinho aveludado. Os olhos semicerrados estavam circundados poruma remela leitosa.

Balançando sobre as patas traseiras, o macaco deu um bocejo babado, mostrando asgengivas. Depois, inquieto, começou a mexer no rabo.

“Vejam o que temos aqui — um macaco selvagem!”, Max narrava para os futurosexpectadores. “Vejam só essa pobre criatura...”

Por detrás dele veio uma voz monótona: “Melhor tomar cuidado, senhor”. Era o garoto com abicicleta estraçalhada.

Max, sem tirar o olho da câmera, indagou: “Qual é o problema, garoto?”.“Melhor tomar cuidado com esse bicho. Papai teve que atirar num ontem à noite.”“Ah, é?”, Max sorriu consigo mesmo. Por que alguém ia atirar num macaco?“Eles estão muito doentes. Foi o que papai me disse.”“Bem, eu certamente tomarei cuidado”, disse Max Lamb. Ele ouviu os passos do garoto a

afastar-se correndo.Através do visor da câmera, Max observou que o macaco movimentava estranhamente o

cenho. Inesperadamente, o animal pulou. Max abaixou a câmera no exato momento em que eleatacou seu rosto, derrubando-o para trás. Dedos minúsculos, com textura de borracha, enfiaram-se em seus olhos e em seu nariz. Max gritou de medo. Os pelos molhados do macaco tinham umcheiro horrível.

Max Lamb começou a rolar na terra como se estivesse pegando fogo. Guinchando, o animalo soltou. Max sentou-se, esfregando o rosto arranhado com as mangas da camisa. Iria precisarprimeiro de uma injeção antitetânica, depois de algo mais potente para combater os vírustransmitidos pelo animal.

Ao levantar-se, ouviu um ruído atrás das palmeiras. Estava prestes a correr quando viu omacaco correndo na direção oposta, arrastando alguma coisa por uma correia.

Max Lamb ficou furioso. O maldito bicho estava roubando sua filmadora. Sem pensar,começou a perseguir o animal.

Uma hora mais tarde, quando Bonnie Lamb procurou pelo marido, ele havia sumido.

Dois patrulheiros da polícia rodoviária estavam em pé na chuva, no alto da ponte. Um era umnegro, alto, de porte atlético. O outro era uma mulher de pele macia e leitosa, de estatura média,cabelos marrom-avermelhados presos num coque. Juntos, apoiavam-se à amurada de concreto,olhando atentamente para uma corda partida, de grande extensão, balançando com a brisa sobreas águas escuras e inquietas.

Cinco motoristas haviam telefonado de seus celulares para a polícia rodoviária para avisarque um homem louco estava amarrado à ponte de Card Sound. Isso havia acontecido somentecinco horas antes de começar o furacão, quando todos os policiais, num perímetro de oitentaquilômetros, estavam ocupados em evacuar a população. Ninguém tinha tempo para suicidaspotenciais e ninguém foi verificar a ponte.

O patrulheiro negro havia sido mandado do longínquo condado de Liberty, na parte norte daFlórida, para Miami, a fim de ajudar a desafogar o tráfego para a passagem dos comboios desalvamento. Na chefatura de polícia, havia lido de passagem a ocorrência registrada no livro —“Homem branco, entre quarenta e cinquenta anos, pesando entre oitenta e cinco e cem quilos,cabelo e barba grisalhos, possivelmente um caso psiquiátrico” — e decidira dar um pulo a NorthKey Largo para ver do que se tratava. Tecnicamente, era responsável por Homestead, mas nocaos que se seguira ao furacão, era fácil afastar-se sem ser notado. Solicitara à policial femininaque fosse com ele. Ela concordara, mesmo estando de folga.

Naquele momento, motoristas curiosos que atravessavam a ponte íngreme paravam ao ver osdois patrulheiros no alto da ponte. O que eles estão olhando, mamãe? Tem algum cadáver naágua?

Gotas de chuva escorriam pela aba do chapéu do patrulheiro negro enquanto ele olhava aespumosa e imponente baía de Biscayne. Debruçado sobre a amurada, recolheu a cordaencharcada. Depois de examinar a extremidade da corda, mostrou-a a sua colega e disse,desanimado: “Lá se foi o homem”.

A corda não se partira com a força do furacão. Fora, isto sim, cortada com uma faca.

3

Tony Torres estava sentado no que restara de sua sala de estar, tomando o que restara de seuuísque Chivas. Achou engraçado que seu Prêmio de Vendedor do Ano sobrevivera intacto aofuracão. Era tudo o que restara pendurado nas paredes encharcadas de água. Recordava-se dafesta, há dois meses, quando havia recebido a placa laminada. Era seu prêmio por ter conseguidovender setenta e sete trailers tipo moradia, tamanho extragrande, dezoito a mais do que qualqueroutro vendedor na história da companhia PreFab Luxury, Inc. A empresa tivera outros nomesantes: A-Plus Affordable Homes, e, depois, Tropic Trailers. No implacável mundo das vendas decasas móveis, ele havia se tornado uma estrela de primeira grandeza. Seu chefe lhe havia dadoum Chivas e uma bonificação de mil dólares, junto com a placa laminada. Os colegas haviamcontratado uma garota para dançar sobre a mesa, com os seios à mostra, e cantar “Ele é um bomcompanheiro”.

“Pois bem, a vida é uma merda de uma roda-gigante”, Tony Torres pensou. Alisou a coronhado revólver no seu colo rotundo e lembrou de coisas que quisera não ter feito, como, porexemplo, aquela história que usara em suas vendas sobre regulamentação governamental emmatéria de segurança...

A família Steen havia lhe feito muitas perguntas sobre furacões. Também os Ramirez e oschatos dos Stichler. E também Beatrice Jackson, a viúva, e seu filho sem pescoço. Tony Torressempre respondera aquilo que havia sido treinado para dizer. A companhia PreFab Luxuryconstruía casas com altas tecnologias, capazes de suportar vendavais. O governo é queestabelecia as especificações. Era só verificar que tudo estava explicado no folheto.

Então os fregueses de Tony Torres liquidaram suas hipotecas e compraram as casas móveis,tamanho extragrande. O furacão derrubou todas. Todos os setenta e sete trailers vendidos porTony. Eles implodiram, explodiram, soltaram-se dos arrebites e voaram como pratos dealumínio. Nenhum escapou ileso da tempestade. Num momento, tinham sido moradiasagradáveis de classe média, com videocassetes, sofás-camas e berços... Um minuto depois,tornaram-se estilhaços. Tony Torres havia ido até o local onde os trailers ficavam estacionadospara ver tudo com os próprios olhos. O lugar parecia uma zona de guerra. Estava quase saindo docarro, quando alguém o reconheceu — o velho Stichler, que começou a falar como louco e ajogar pedaços de entulho em Tony. Ele saiu em alta velocidade. Mais tarde, soube que a viúvaJackson havia sido encontrada morta entre os destroços do parque.

Tony Torres não estava acostumado a sentir remorso, mas mesmo assim varou-lhe umapontada de tristeza. O Chivas ajudou-o a enfrentar isso. Como é que eu poderia saber?, pensou.Sou um vendedor, e não um maldito engenheiro.

Quanto mais bebia, menos simpatia sentia por seus clientes. Bem que eles sabiam. Estavamconscientes de que compravam latas de estanho, em vez de casas de verdade. Conheciam osriscos, uma vez que viviam numa área passível de sofrer furacões. Eram todos adultos e fizeramsua escolha.

Mesmo assim, ele previa problemas. Infelizmente, para achá-lo, bastaria olhar na listatelefônica do condado de Dade. Ser um vendedor significava estar disponível para toda a

humanidade.Então que viessem!, pensou Tony. Se alguém se queixasse de problemas com seu trailer,

bastaria mostrar o que o furacão havia feito com sua casa de verdade. Se a coisa ficar preta, soucapaz de usar o revólver.

Gritos fizeram com que Tony Torres largasse de seu BarcaLounger. Pegou o revólver e umalanterna e caminhou em direção à parte da frente da casa. Em pé, na entrada para carros, estavaum homem com um terrível terno listrado e com uma cara que parecia ter sido amassada por umgolpe de pé de cabra.

“Minha irmã”, exclamou o homem, apontando para uma pilha de madeira serrada queexplodira.

Tony Torres percebeu a forma de uma mulher, deitada com o rosto voltado para baixo,embaixo de madeira. Seus olhos estavam semicerrados e um fio de sangue fresco descia pelo seurosto. A mulher gemeu. O homem disse a Tony que chamasse a emergência imediatamente.

“Primeiro conte-me o que aconteceu”, disse o vendedor.“Basta olhar. Uma parte do maldito telhado de sua casa desabou sobre ela.”“Hmmm”, murmurou Tony Torres.“Pelo amor de Deus, não fique aí parado.”“Sua irmã, hein?” Tony caminhou até a mulher e colocou a luz da lanterna em seus olhos. A

mulher franziu os olhos e levantou ambas as mãos para proteger-se da luz.Tony Torres disse: “Acho que você não está paralisada, querida”.Colocou a lanterna debaixo do braço e apontou o revólver para o homem. “A situação é a

seguinte, cara. Os telefones estão todos quebrados e, por isso, não vamos poder chamar aemergência. A não ser que você tenha um celular nas suas calças, mas tenho a impressão de quevocê tem é um revólver. Segundo, mesmo que pudéssemos entrar em contato com a emergência,teríamos que esperar até o dia das bruxas. Todas as ambulâncias, daqui até Key West, estãoocupadas por causa da tempestade. Sua irmã deveria ter pensado nisso antes do acidente.”

“Que diabos você está fazendo?”Tony Torres retirou a pistola da cintura do homem. “Terceiro, meu maldito telhado não

desabou sobre ninguém. Essa madeira explodida veio da casa do vizinho. O senhor LeonelVarga, ao lado. Meu telhado virou pedaços e está espalhado por Everglades.”

Por baixo da madeira, a mulher disse: “Merda, Snapper”. Ele deu uma olhada para ela edepois desviou a vista.

Tony Torres continuou: “Minha profissão faz com que eu descubra como são as pessoasrapidamente. Isso é o que um bom vendedor tem que saber fazer. E se ela é sua irmã, cara, entãoeu sou gêmeo do Mel Gibson”.

O homem com o maxilar torto encolheu os ombros.“O problema é que ela não está realmente ferida e você não é irmão dela de verdade. E

qualquer que fosse seu plano para tirar vantagem de mim, ele agora está oficialmentedesmantelado.”

Snapper franziu o cenho e falou com amargura: “A ideia foi dela”.Tony ordenou-lhe que retirasse as treliças de cima de sua parceira. Quando a mulher se

levantou, o vendedor observou que ela era atraente e tinha um olhar inteligente. Ele gesticuloucom o revólver.

“Entrem, vocês dois. Diabos, lá dentro está quase como aqui fora, por causa desse malditofuracão. Mas entrem, de qualquer forma. Adoraria ouvir sua história. Estou precisando rir umpouco.”

A mulher alisou o vestido. “Cometemos um grave erro. Deixe-nos ir embora, ok?”Tony Torres sorriu. “Isso é engraçado, querida.” Então, virou o revólver em direção à casa e

puxou o gatilho. O tiro fez um furo do tamanho de uma bola de futebol na porta da garagem.“Ei”, disse o vendedor bêbado, colocando uma mão ao redor da orelha. “Vocês ouviram isso?

Maldito silêncio mortal. Você dá um disparo com um calibre doze e ninguém liga. Sabem porquê? Por causa do furacão. Este lugar virou um hospício!”

O homem com o maxilar torto perguntou, mais por curiosidade do que por preocupação: “Oque você quer conosco?”.

“Não decidi ainda”, disse Tony Torres. “Vamos tomar um drinque.”

Uma semana antes do furacão, Felix Mojack morreu picado por uma serpente no tornozelo.Seu pequeno negócio de importação de animais selvagens passou para seu sobrinho, Augustine.Na manhã chuvosa em que recebeu a notícia da morte de seu tio, ele estava em casa praticandomalabarismo. Todas as janelas estavam abertas e o conjunto Black Crowes tocava no estéreo.Estava descalço e vestia só um short de ginástica azul-real. No meio da sala de estar, fazia seumalabarismo ao ritmo da música. Os objetos que utilizava eram crânios humanos. Conseguiamanipular cinco deles de uma só vez. Quanto mais rápido ele equilibrava os crânios no ar, maisfeliz ficava.

Na mesa da cozinha, havia um envelope da companhia Paine Webber, contendo um chequeno valor de US$ 21 344,55. Augustine não tinha nem necessidade nem interesse no dinheiro.Tinha quase trinta e dois anos de idade e sua vida era simples e vazia ao extremo. Às vezes, eledepositava os dividendos remetidos pela Paine Webber. Outras, enviava-os a obras de caridade, acandidatos políticos renegados ou a antigas namoradas. Augustine não mandava um centavo paraos advogados de defesa de seu pai. Isso era dívida do velho e ele poderia saldá-la quando saísseda cadeia.

O malabarismo, para Augustine, era uma diversão particular. Os crânios eram artefatosmédicos que ele havia adquirido por intermédio de amigos. Quando os equilibrava no ar — três,quatro, cinco crânios saltando de uma mão para outra — Augustine podia sentir a energia de suasvidas longínquas. Era inexplicável e talvez até engraçado, mas de uma forma pouco saudável.Augustine não sabia os nomes dos donos dos crânios, nem como viveram ou morreram, mas, aotocá-los, captava sua energia.

No seu tempo livre, Augustine lia, assistia à televisão e dava passeios nas poucas regiõesainda selvagens que restavam na Flórida. Mesmo antes de se tornar rico — quando trabalhava nobarco de pesca de seu pai ou na escola de direito — Augustine tinha uns acessos de raiva que nãopodia nem queria explicar. Quando tinha esses acessos, sentia vontade, por um momento, deincendiar ou explodir alguma coisa — um prédio, ou uma rodovia interestadual, ou coisa assim.

Agora que Augustine tinha tempo e dinheiro, ele não sabia lidar com esses acessos nem tinhaum conhecimento confiável sobre como manejar explosivos. Por puro sentimento de culpa, eledoava largas somas a causas respeitáveis, como o Sierra Club e a Conservação da Natureza. Seudesejo de violência continuava sendo uma fantasia inofensiva. Enquanto isso, ele balançava naturbulência da vida como uma madeira lançada no rio.

A experiência pela qual Augustine havia passado e que o havia tornado tão rico não o levaraa encontrar um destino cósmico ou um objetivo mais elevado na vida. Ele se lembrava apenasvagamente do maldito avião caindo. Certamente, não vira nenhuma luz branca ofuscante no fimde um túnel, nem ouvira parentes já mortos chamando-o lá do céu. Tudo que lembrava do comaque se seguira ao acidente era a sede insaciável que sentira.

Após recobrar-se de seus ferimentos, Augustine não voltou à árdua rotina da escola dedireito. O pagamento da companhia de seguros passou a financiar uma vida confortável e semobjetivos, que muitos jovens teriam achado atraente. Apesar disso, Augustine era profundamenteinfeliz. Uma noite, numa crise de depressão, tirou das prateleiras das estantes todos os livros quefalavam de gênios que haviam morrido jovens demais. A limpeza incluiu o seu idolatrado JackLondon.

Como todo mundo, Augustine estava esperando por uma mulher que aparecesse para mudarsua vida. Até o momento, isso não havia acontecido.

Uma vez, uma dançarina com quem ele estava saindo surpreendeu-o fazendo malabarismosno quarto com suas caveiras. Pensou que fosse um truque premeditado para provocar umareação. Disse-lhe que, em vez de engraçado, era pervertido. Depois mudou-se para Nova York.Mais ou menos um ano depois, Augustine mandou-lhe um dos cheques de dividendos enviadopela Paine Webber. Ela gastou o dinheiro na compra de um Toyota Super e mandou-lhe umafotografia, na qual aparecia como motorista, sorrindo e acenando. Augustine perguntou a simesmo quem teria tirado a foto e o que teria achado do carro novo.

Augustine não tinha irmãos nem irmãs. Sua mãe morava em Nevada e o pai estava na cadeia.Seu parente mais próximo era o tio Felix Mojack, o importador de animais selvagens. Quandomenino, Augustine sempre ia ao bagunçado sítio de seu tio, situado no meio do mato. Era maisdivertido do que ir ao zoológico, porque Felix deixava o menino ajudar a cuidar dos animais. Emparticular, Felix encorajava seu sobrinho a se familiarizar com cobras, uma vez que ele própriotinha fobia (e, como se verificou depois, era totalmente incompetente) no que dizia respeito aotrato com répteis.

Depois que Augustine cresceu, passou a ver seu ocupado tio com muito menos frequência. Oprogresso conspirava contra Felix. A demarcação de áreas forçou-o a mudar o lugar de suasoperações várias vezes. Parecia que ninguém queria construir escolas ou shopping centers pertode gatos selvagens enjaulados e serpentes venenosas. Na última vez em que Felix foi forçado amudar com seus animais, Augustine deu-lhe dez mil dólares de ajuda.

Na época em que Felix faleceu, constavam do inventário do sítio um leão africano macho,três pumas, um búfalo da cidade do Cabo castrado, dois ursos de Kodiak, noventa e setepapagaios e araras, oito crocodilos do Nilo, quarenta e duas tartarugas, setecentos lagartos,noventa e três cobras (venenosas e não venenosas) e oitenta e oito macacos.

Os animais eram mantidos num espaço perto da avenida Krome, próximo à prisão federal.Um dia após o enterro de Felix, Augustine foi de carro, sozinho, até o local. Ele desconfiava deque seu tio não tinha muito cuidado com os animais, e um passeio pela propriedade confirmouessa impressão. A cerca estava enferrujada e empenada, as jaulas necessitavam de novasdobradiças e os poços de concreto dos répteis não eram limpos há meses. No galpão que Felixusara como escritório, Augustine encontrara documentação que confirmava a displicência de seutio com relação aos regulamentos da Alfândega dos EUA.

Não surpreendeu Augustine o fato de que Felix tinha sido um contrabandista. Para falar averdade, ele ficou aliviado em saber que a escolha de contrabando de seu tio havia recaído sobrepássaros exóticos e serpentes, em vez de outras coisas. Animais selvagens, contudo,apresentavam seus riscos. Enquanto sacos de maconha não necessitavam de alimentação, ursos epumas sim. Dizer que os animais estavam magros e famintos era insuficiente para descrever oestado deles. Augustine ficara chocado com a condição de alguns animais e presumira que issose devia às recentes dificuldades financeiras de seu tio. Felizmente, os dois jovens mexicanosque trabalhavam para seu tio concordaram em continuar trabalhando por mais algum tempo após

sua morte. Eles fizeram um estoque de carne crua para os animais carnívoros, compraram caixasde ração para os papagaios e completaram o estoque de camundongos e insetos para os répteis.

Enquanto isso, Augustine se empenhava em encontrar um comprador para os animais. Teriaque ser alguém qualificado para cuidar bem deles. Augustine estava tão preocupado com oproblema que não prestou muita atenção nas previsões de tempo que anunciavam umatempestade proveniente do Caribe. Mesmo quando a tempestade se tornou um furacão, eAugustine viu a previsão do tempo na televisão, presumiu que o furacão faria o que todas astempestades faziam no fim do verão: virar para o norte.

Quando ficou claro que o furacão atingiria a parte sul do condado de Dade, Augustine tevemuito pouco tempo para agir. Ele tinha plena consciência do que ventos a cento e sessentaquilômetros por hora poderiam fazer com o sítio de seu tio. Passou a manhã e a tarde ao telefone,tentando achar um lugar seguro para os animais. O interesse em recebê-los diminuíainvariavelmente quando ele mencionava um búfalo da cidade do Cabo. Ao anoitecer, Augustinefoi até o sítio para tentar melhorar as condições de segurança das jaulas e dos poços. Sentindo aproximidade da tempestade, os ursos e as onças caminhavam de um lado para outro, agitados,rugindo. Os papagaios entraram em pânico. Seu trinado histérico atraiu vários gaviões para ospinheiros próximos ao local. Augustine permaneceu duas horas lá e chegou à conclusão de quenão havia mais nada a fazer. Mandou os funcionários mexicanos embora e foi para um abrigo daCruz Vermelha esperar a tempestade.

Quando voltou, ao alvorecer, o lugar tinha sido destruído. A cerca estava espalhada pelapropriedade. O telhado da casa havia sido levantado como a tampa de uma lata de sardinha. Comexceção de algumas tartarugas, os animais haviam escapado para o cerrado e o pântano e,inevitavelmente, para os subúrbios de Miami. Assim que os serviços telefônicos foramrecuperados, Augustine comunicou à polícia o que havia acontecido. O oficial de plantão disseque seriam necessários cinco ou seis dias para ele poder colocar um policial no caso, uma vezque todos estavam ocupados com as consequências do furacão. Quando Augustine perguntouque distância uma serpente do Gabão poderia percorrer por cinco ou seis dias, o oficial disse quetentaria achar um policial para cuidar do caso mais cedo.

Augustine não poderia ficar sentado esperando pela polícia. O rádio notificou que um grupode macacos atingidos pela tempestade havia invadido um bairro residencial perto da Qual RoostDrive, a uns poucos quilômetros do sítio. Ele imediatamente subiu no caminhão, levando o riflede seu tio, duas cordas para armadilhas, um revólver calibre 38 e um saco de ração para macacos.

Augustine não sabia mais o que poderia fazer.

Percorrendo o bairro à procura do marido, Bonnie Lamb encontrou o garoto de olhar apáticocom sua bicicleta estraçalhada. A descrição que fez do turista babaca com a câmera de vídeoencaixava-se bem demais com Max.

“Ele correu atrás do macaco”, disse o garoto.Bonnie Lamb perguntou: “Que macaco?”.O garoto explicou. Bonnie avaliou a informação com calma. “Em que direção eles foram?” O

garoto apontou. Ela agradeceu-lhe a informação e se ofereceu para ajudar a retirar a bicicleta daárvore. Como o garoto virou-se de costas, continuou sua caminhada.

Bonnie ficou intrigada com a história do macaco, mas a maioria das perguntas que lhevinham à mente diziam respeito ao caráter de Max. Como podia um homem sair por aí eesquecer-se de sua nova esposa? Por que estaria tão fascinado pelas ruínas de um furacão? Comopodia imiscuir-se tão cruelmente no sofrimento dos moradores locais?

Durante dois anos de namoro, Max nunca havia lhe parecido insensível. Às vezes, podia serimaturo e egocêntrico, mas Bonnie não conhecia um só homem que não o fosse. De um modogeral, era uma pessoa responsável e atenciosa. Mais do que simplesmente um trabalhador quedava duro, ele parecia ser alguém que conseguia realizar as coisas. Bonnie admirava essa suaqualidade, em especial porque seus dois namorados anteriores não tinham grandes preocupaçõesno que dizia respeito a trabalho. Max a havia impressionado com sua seriedade e determinaçãopara obter sucesso profissional e segurança financeira. Aos trinta anos, Bonnie encontrava-senuma altura da vida em que dava valor a segurança. Estava cansada de se preocupar comdinheiro e com homens que nada tinham. Além disso, ela realmente achava Max Lamb atraente.Não que ele fosse excepcionalmente bonito ou romântico, mas era sincero — infantil, completa eincansavelmente sincero. Sua dedicação, até mesmo na cama, era cativante. Era um homem noqual Bonnie achava que poderia confiar.

Até aquele dia, quando ele havia começado a agir como um cretino.A viagem até Miami, em plena madrugada, parecera a Bonnie uma travessura de lua de mel

— um modo de Max mostrar à mulher que poderia ser tão impulsivo e selvagem como seus ex-namorados. Contrariamente a sua vontade, Bonnie concordara com a travessura. Estava certa deque Max, ao ver a terrível destruição causada pelo furacão, abandonaria sua ideia de fazer umdocumentário, largaria a filmadora e se juntaria aos mutirões de voluntários que estavamchegando aos montes.

Mas não foi o que aconteceu. Ele continuou a filmar, cada vez mais entusiasmado, a tal pontoque Bonnie não pôde mais aguentar. Quando ele lhe pediu para operar a câmera, a fim de quepudesse posar em cima de um furgão virado, ela quase lhe dera um soco. Parou de andar atrás deMax porque não queria ser vista ao lado dele. Seu próprio marido.

Numa casa devastada, ela viu uma mulher mais velha, da idade de sua mãe, caminhandoentre a mobília estilhaçada do quarto. A mulher estava chamando pelo seu gatinho de estimação,que havia desaparecido na tempestade. Bonnie Lamb se ofereceu para ajudar. O gatinho nãoreapareceu, mas, em compensação, ela achou o álbum de casamento da velha embaixo de umespelho despedaçado. Bonnie afastou os vidros quebrados e recuperou o álbum, molhado masnão inutilizado. Abriu-o numa página na qual havia uma data: 11 de dezembro de 1949. Quandoa mulher viu o álbum, começou a chorar nos braços de Bonnie. Com uma pontada de vergonha,ela olhou em volta para assegurar-se de que Max não estava filmando a cena secretamente.Depois, começou a chorar também.

Mais tarde, resolvida a enfrentar o marido, Bonnie se pôs a procurá-lo. Se ele se recusasse aparar de usar aquela câmera estúpida, ela lhe pediria as chaves do carro. Parecia-lhe que esseseria o primeiro teste de verdade do novo casamento.

Duas horas se passaram, e nem sinal de Max. A raiva de Bonnie começou a se transformarem preocupação. A história contada pelo garoto da bicicleta estraçalhada teria sido cômica, emcircunstâncias normais, mas Bonnie interpretou-a como mais uma prova da obsessão sem sentidode Max. Ele tinha medo de animais, até mesmo de hamsters, por causa de um trauma de infância.Perseguir corajosamente um macaco estava definitivamente em desacordo com ele. Por outrolado, Max adorava a maldita câmera. Mais de uma vez, ele havia lembrado a Bonnie que afilmadora custara setecentos dólares e que fora encomendada de Hong Kong pelo correio. Elapodia facilmente entender que ele perseguisse pelas ruas um investimento de setecentos dólares.Podia até mesmo imaginá-lo estrangulando o macaco por causa da câmera, se fosse necessário.

Ao ouvir outro grito, Bonnie resmungou baixinho. Não havia muita coisa em pé que pudesseservir de abrigo. Sentiu um arrepio quando gotas de chuva começaram a escorrer-lhe pelo

pescoço e decidiu voltar para o carro e esperar lá pelo marido. O problema é que não conseguiamais lembrar exatamente onde o carro estava estacionado. Não havia sinalização nas ruas, nemcaixas de correio, e todas as quadras da região destruída pareciam iguais. Bonnie Lamb estavaperdida.

Ela via os helicópteros manobrando no ar, ouvia o coro das sirenes à distância, mas nas ruasdo bairro não havia um só policial ou soldado. Não havia autoridades a quem apelar por causa dodesaparecimento de seu marido. Exausta, Bonnie sentou-se numa esquina. Para manter-se seca,tentou equilibrar uma tábua quadrada grande sobre a cabeça. Uma rajada de vento bateu comforça contra a madeira, empurrando Bonnie para trás. Ao cair, a madeira bateu forte contra suatesta.

Ela ficou lá chocada por vários minutos, olhando para o céu lamacento e piscando pararemover os pingos de chuva dos olhos. Um homem apareceu e debruçou-se sobre ela. Ele tinhaum pequeno rifle pendurado no ombro.

“Deixe-me ajudá-la”, ele disse.Bonnie Lamb deixou que ele a levantasse da grama molhada. Ao perceber que sua blusa

estava encharcada, timidamente cruzou os braços em volta do peito. O homem recolheu a tábua eajeitou-a em cima de um poste de concreto. Ali, ele e Bonnie se abrigaram contra a chuva quecaía pesadamente.

O homem, de ombros largos e braços fortes e bronzeados, tinha uns trinta anos. Seus cabeloseram castanhos e curtos, seu queixo pronunciado e seus olhos azuis e amigáveis. Usava sapatosde caminhada da marca Rockport, o que de certo modo aliviou Bonnie. Ela não podia imaginarum psicopata que matasse por motivos sexuais usando sapatos Rockport.

“Você mora por aqui?”, perguntou ao homem.Ele abanou a cabeça e respondeu: “Coral Gables”.“O rifle está carregado?”“Sim”, disse o homem, sem mais explicações.“Meu nome é Bonnie.”“O meu é Augustine.”“O que você está fazendo por aqui?”“Acredite se quiser, mas estou procurando os meus macacos.”Bonnie Lamb sorriu. “Que coincidência!”

Max Lamb acordou com uma dor de cabeça terrível. Deu-se conta de que estava só de cuecase amarrado a um pinheiro. O homem alto com um olho de vidro, que o havia tirado da rua comose ele fosse um bebê, movia-se com força, estirado no chão, numa clareira perto da fogueira doacampamento. Quando o ataque terminou, o sequestrador sentou-se. Max Lamb observou umacoleira preta e grossa ao redor de seu pescoço. Numa das mãos, ele segurava um cilindrobrilhante que, para Max, parecia o controle remoto de um carrinho de brinquedo. O cilindro tinhauma antena de borracha curta e três botões coloridos.

O homem caolho resmungava: “Suco demais, demais...”. Ele usava uma touca de banho deplástico na cabeça. Max teria presumido que se tratava de um mendigo, não fosse pelaimpressionante perfeição de seus dentes.

Ele parecia não notar que seu prisioneiro estava observando-o. Deliberadamente, o homemesticou as pernas para apoiar-se melhor no chão, inspirou duas vezes profundamente e apertou obotão vermelho do controle remoto. Imediatamente, seu corpo começou a sacudir-se como umaenorme marionete quebrada. Max Lamb observava, sem poder fazer nada, enquanto o homem se

aproximava, com movimentos rápidos, da fogueira. Suas botas já estavam dentro do fogo quandoo ataque terminou. Então o homem levantou-se com uma rapidez surpreendente, batendo os pésno chão para que as solas esfriassem.

Colocando uma mão no pescoço, ele exclamou: “Meu Deus, assim está melhor”.Max Lamb concluiu que se tratava de um pesadelo e fechou os olhos. Quando tornou a abri-

los, bem mais tarde, reparou que a fogueira havia sido recentemente atiçada. O sequestradorcaolho estava agachado ali perto. Seu pescoço não tinha mais a coleira preta. Ele estava dandobiscoitos para o macaco ladrão, que parecia estar recuperando a saúde. Max estava mais certo doque nunca de que o que havia visto antes fora um pesadelo. Estava agora pronto para tentargarantir seus direitos.

“Onde está minha câmera?”, perguntou.O sequestrador levantou-se e riu por entre as barbas selvagens. “Perfeito”, disse. “Onde está

minha câmera? Isso está perfeito.”Num tom perigosamente condescendente, Max Lamb disse: “Deixe-me ir, parceiro, você com

certeza não quer ir para a cadeia, não é?”.“Ha”, o estranho exclamou, e pegou o cilindro brilhante.Um raio atingiu o pescoço de Max. Ele tremeu violentamente e sufocou-se. Sentiu na língua

um gosto de cobre quente. Lanças vermelhas perfuraram a noite. Max gritou com medo.“Trata-se de uma coleira de choque”, o sequestrador explicou. “O Tritônico 200. Três níveis

de estimulação. Distância de uma milha. Baterias recarregáveis de cádmio-níquel. Garantia detrês anos.”

Só então Max sentiu a coleira, um couro duro contra sua garganta. “Você é caçador depássaros?”, perguntou o estranho.

Max conseguiu balbuciar a palavra “não”.“Bem, confie em mim. Os treinadores garantem que essa engenhoca funciona. Os cães

entendem a mensagem bem rapidamente. Até mesmo os carneiros.” O estranho rodopiou ocontrole remoto como se fosse um bastão. “Já eu não poderia usar isso num animal. Na verdade,nem consegui usá-lo em você sem testá-lo antes em mim. Viu que grandalhão molengo eu sou?”

O sequestrador coçou o alto da cabeça do macaco. O animal pulou para trás, mostrando osdentes pequeninos, pontilhados de migalhas pretas de biscoitos. O sequestrador riu.

Max Lamb disse, trêmulo: “Mantenha esse bicho longe de mim”.“Não gosta de animais, hein?”“O que você quer exatamente?”O estranho virou-se de costas, em direção ao fogo.Max disse: “É dinheiro? Pode pegar o que tenho”.“Meu Deus, você não entende.” Apertou o botão vermelho. Max Lamb debateu-se

violentamente em suas cordas. O macaco fugiu para mais longe, fora do alcance da luminosidadedo fogo.

Max olhou para cima e viu o psicopata filmando-o. “Sorria”, disse o estranho, direcionando acâmera com seu olho bom.

Max Lamb sentiu vergonha. Ele se sentia magro e pálido em suas cuecas.O homem disse: “Talvez eu mande o filme para Rodale & Burns. O que você acha? Para a

festa de Natal do escritório? ‘Como passei minhas férias na Flórida’, estrelando Max Leo Lamb”.Max sentiu-se fraquejar. Rodale & Burns era o nome da firma de publicidade na qual

trabalhava. O lunático havia vasculhado sua carteira.

“Chamam-me de Skink”, o sequestrador disse. Desligou a filmadora e recolocou a tampa nalente. “Mas prefiro ser chamado de capitão.”

“Capitão o quê?”“Obviamente, o furacão o impressionou.” O estranho enrolou a câmera numa lona. “Quanto a

mim, fiquei desapontado. Espera algo mais... bem, mais bíblico.”Max Lamb disse, tão respeitosamente quanto possível: “Pareceu-me bastante violento”.“Você está com fome?” O sequestrador trouxe um saco de aniagem até a árvore onde o

prisioneiro estava amarrado.“Meu Deus!”, exclamou Max, olhando dentro do saco. “Você não pode estar falando sério!”

4

Carregando seu revólver, Tony convidou Edie e Snapper a contarem detalhes de seu planofracassado. Diante de uma pistola carregada, eles tiveram que concordar.

Snapper fez um gesto irritado para que Edie tomasse a palavra. Ela disse: “Muito simples. Eusimulo uma queda na entrada para carros de sua garagem. Meu ‘irmão’ aqui ameaça processá-lo.Você fica com medo e nos oferece dinheiro”.

“Isso porque vocês estão sabendo que eu vou receber uma bolada da companhia de segurospor causa do furacão.”

“Exatamente”, disse Edie. “Sua casa foi destruída. A última coisa que você está querendo éser processado. Pensamos então que, logo que o dinheiro do seguro fosse pago, você reservariauma parte para nós, e estaríamos quites.”

Tony Torres sorriu, divertido. “E qual seria o tamanho da parte, querida?”“O que pudéssemos tirar de você.”“Ah”, disse Tony.“Nós calculamos que você estaria disposto a nos incluir na sua requisição de seguro, isto é,

aumentar suas perdas um pouco para incluir a nossa parte. Quem poderia saber?”“Maravilhoso!”“Ah, sim. Um plano de gênios. Olhe só como deu certo”, disse Snapper.Snapper e Edie estavam sentados de costas para a parede da sala de estar, ele com as pernas

longas encolhidas, ela com as pernas esticadas e os joelhos juntos. Um quadro de perfeitainocência, pensou Tony Torres. Os fios puxados nas meias de náilon de Edie eram um toqueespecial.

O carpete estava encharcado pela tempestade, mas Edie não se queixou. Snapper sentia aumidade penetrando pelos fundilhos de suas calças. O incômodo era tanto que ele podia matarTony, se surgisse uma oportunidade.

Absorto em seus pensamentos, o vendedor pegou uma lata de cerveja importada. Ele haviaoferecido aos prisioneiros um pouco de Gatorade morno, mas eles haviam recusado, sem fazercomentários. Uma brisa úmida penetrou pelas brechas das paredes e fez balançar a lâmpada. Edieinclinou a cabeça e viu estrelas através do buraco que havia no telhado da casa. O barulho dogerador portátil estava fazendo com que Snapper sentisse dor de cabeça.

Finalmente, Tony Torres disse: “Vocês estão sabendo que não há mais leis. O mundo está depernas para o ar, por enquanto”.

“Você poderia nos matar sem que lhe acontecesse nada. É isso que você quer dizer?”,perguntou Snapper.

Edie olhou para ele. “Você está dando uma tremenda ajuda, sabia?”Tony acenou que preferiria não matá-los. “Mas vou dizer o que estou pensando”, disse.

“Amanhã, talvez depois de amanhã, o pessoal da Midwest Casualty virá aqui para verificar osdanos causados à casa. Estou esperando que eles digam que a perda foi total, a não ser que sejamcegos como morcegos. Agora a boa notícia: sou proprietário do lugar e não tenho nenhuma

dívida. Acabei de pagar tudo em março.” Tony parou um pouco para segurar um arroto. “Estavafazendo um bom trabalho na companhia. Paguei a hipoteca e a casa é minha.”

Edie Marsh disse: “Vendedor do Ano”. Ela tinha notado a placa.“Senhor”, interrompeu Snapper, “teria alguma coisa para colocar embaixo do meu traseiro?

O tapete está completamente molhado. Um jornal, talvez?”“Oh, acho que você vai conseguir sobreviver”, disse o vendedor. “De qualquer forma, uma

vez que o banco não tem nenhum direito sobre a casa, o dinheiro do seguro é todo meu. Como eudisse, esta é a boa notícia. A má notícia é que metade pertence à minha mulher. Seu nome constana escritura.”

Snapper perguntou-lhe onde ela se encontrava. Tony Torres contou que ela fugira, três mesesatrás, com um professor de parapsicologia da universidade. Os dois começaram a praticar curacom cristais e haviam se mudado para Eugene, Oregon.

“Fugiram num furgão Volkswagen”, falou o vendedor com desdém. “Mas ela voltará parapegar a sua parte do dinheiro. Quanto a isso, não há dúvida. Neria vai voltar. Vocês estãoentendendo aonde quero chegar?”

“Estamos”, disse Snapper. “O senhor quer que a gente mate a sua mulher.”“Credo, você só pensa nisso. Não, não quero que vocês matem minha mulher.” O vendedor

dirigiu-se para Edie. “Você está entendendo, não está? Antes de a companhia de seguros fazer ocheque, eles vão precisar de nossas assinaturas, a minha e a da minha mulher. Também acho queo mediador vai querer conversar conosco cara a cara. Qual o seu nome mesmo?”

“Edie.”“Ok, Edie, se você quer ser atriz, esta é a sua oportunidade. Quando o homem da Midwest

Casualty aparecer, você vai ser Neria Torres, minha amada esposa.” Tony sorriu maldosamentecom a ideia. “Então?”

Edie Marsh perguntou o que ganharia com isso. Tony respondeu que seriam dez mil dólares.Edie disse que precisaria pensar no assunto, mas levou apenas um milésimo de segundo parafazê-lo. Ela precisava de dinheiro.

“E eu?”, perguntou Snapper.Tony respondeu: “Sempre quis um guarda-costas”.Snapper resmungou, desconfiado: “Quanto?”.“Dez mil para você também. É mais do que justo.”Snapper concordou. “Por que”, perguntou em tom zombeteiro, “o senhor acha que precisa de

um guarda-costas?”“Alguns clientes estão furiosos comigo. É uma história longa e chata.”Edie Marsh indagou: “Muito furiosos?”.“Não pretendo esperar para ver o que vai acontecer”, disse Tony Torres. “Logo que receber o

cheque, vou dar o fora daqui.”“Para onde?”“Não é absolutamente da sua conta.”Tony tencionava ir para a região central dos EUA. Uma casa simpática de dois andares, com

varanda e lareira, num terreno nos arredores de Tulsa. O que o atraía na região central do país erao fato de que lá não havia furacões. Existiam muitos tornados, mas ninguém esperava quequalquer estrutura feita pelo homem (muito menos trailers) resistisse a tornados. Ninguémculparia uma pessoa se habitações sobre rodas, vendidas, se desmantelassem. A natureza dofenômeno absolvia o homem de suas falhas. Tony Torres achava que estaria a salvo de clientesdescontentes em Tulsa.

Snapper disse: “Se vou ser seu guarda-costas, preciso de meu revólver”.Tony sorriu. “Não, você não precisa. Sua cara é suficiente para assustar pra valer a maioria

dos mortais. O que é ótimo, uma vez que as pessoas que estão furiosas comigo não precisam serbaleadas. Precisam só ser assustadas. Tá entendendo aonde quero chegar?”

Então pegou um pedaço de cano do banheiro e esmigalhou a pistola de Snapper.Edie Marsh disse: “Eu também tenho uma pergunta”.“À vontade.”“O que vai acontecer se sua mulher aparecer?”“Temos um prazo de mais ou menos uns seis ou sete dias. O tempo que leva para dirigir um

furgão velho de Oregon até aqui. Neria não vai pegar um avião. Ela tem pavor de voar.”Snapper observou que o dinheiro poderia fazer uma pessoa dirigir mais rápido do que de

costume ou até mesmo superar o medo de avião. Tony disse não estar preocupado. “O rádionoticiou que as seguradoras State Farm e Allstate já estão fazendo acordos. A Midwest não vaificar para trás — nenhuma companhia quer parecer mesquinha por ocasião de uma calamidadenacional.”

Edie perguntou a Tony Torres se pretendia fazê-los prisioneiros. Ele deu uma gargalhada erespondeu que poderiam dar o fora quando quisessem. Edie levantou-se e avisou que voltariapara o hotel. Snapper também se pôs de pé, desconfiado, sem desviar o olhar do revólver deTony.

“Por que está fazendo isso, deixando a gente ir embora?”, perguntou-lhe.“Porque vocês vão voltar. Com certeza. Posso ver em seus olhos que vão voltar.”“Mesmo?”, disse Edie.“Mesmo, querida. Meu ganha-pão depende de saber interpretar as pessoas.” Levantando-se,

comentou: “Preciso dar uma mijada. Tenho certeza de que vocês encontrarão a saída”.Já no carro, no lento percurso de volta para Pembroke Pines, Edie e Snapper consideraram as

possibilidades. Ambos estavam duros. Ambos achavam que a confusão criada pelo furacão erauma oportunidade de ouro para fazer dinheiro. Ambos concordavam que dez mil dólares paracada um correspondia ao trabalho de uma semana.

“O problema é que não confio naquele babaca”, disse Edie. “O que é que ele vende?”“Trailers.”“Cruzes!”“Então vamos dar o fora e tentar o golpe do tombo em outra pessoa.”Edie olhou detidamente para o corte feio no braço. Ficar debaixo de uma pilha de madeira

havia sido mais difícil do que imaginara. Não estava nem um pouco com vontade deexperimentar de novo.

“Vou ficar com esse cretino um ou dois dias”, disse a Snapper. “Você pode fazer o quequiser.”

Snapper, com seu maxilar torto, deu um esgar que se assemelhava de longe a um sorriso.“Sei bem o que você está pensando. Não sou vendedor, mas também ‘saco’ as pessoas. Você estápensando que pode levar mais do que dez mil dólares nessa história, se jogar direito. Isto é, senós jogarmos direito.”

“E por que não?”, respondeu Edie, pressionando a face contra o vidro frio da janela do carro.“Já é hora de minha sorte mudar.”

“Nossa sorte”, disse Snapper, com as mãos apertadas na direção.

Augustine ajudou Bonnie a procurar por seu marido até o crepúsculo. Não conseguiramencontrar Max, mas no caminho acharam um macaco macho que havia fugido. Estava no alto deuma árvore, jogando grapefruits verdes em quem passava. Augustine acertou-o com um dardo detranquilizante, e ele caiu como uma marionete, mas ficou desorientado ao descobrir uma marcaem uma de suas orelhas, identificando-o como propriedade da Universidade de Miami.

Havia capturado um macaco alheio.“O que vamos fazer agora?”, perguntou Bonnie, preocupada. Chegou a esticar a mão para

acariciar o animal atordoado, mas mudou de ideia. O macaco olhou para ela com os olhosdopados e semicerrados.

“Você tem boa pontaria”, disse a Augustine.Ele não escutou o que ela disse. “Isto não está certo”, murmurou ele. Depois, devolveu o

macaco inerte para a árvore e equilibrou-o, com cuidado, entre dois galhos. A seguir, levouBonnie de volta para sua caminhonete. “Vai ficar escuro em breve e esqueci de trazer umalanterna”, disse ele.

Dirigiram pelo bairro por uns quinze minutos, até que Bonnie viu o carro. Max não estavadentro dele. O porta-malas havia sido arrombado e toda a bagagem roubada, inclusive a bolsa deBonnie.

“Malditos garotos”, comentou Augustine. Bonnie estava cansada demais para chorar. Maxtinha ficado com as chaves do carro, os cartões de crédito, o dinheiro e as passagens aéreas.“Preciso achar um telefone”, disse ela. Seus pais certamente concordariam em lhe mandar algumdinheiro.

Augustine dirigiu até um posto de controle da polícia, onde Bonnie registrou queixa dodesaparecimento de seu marido. Ele era apenas um entre muitos desaparecidos e certamente nãodariam prioridade ao caso. Milhares de pessoas que haviam sido forçadas a deixar suas casas,durante o furacão, estavam sendo procuradas por parentes preocupados. Para as equipes deresgate, reunir famílias que viviam no local era a prioridade, e não procurar por turistascaprichosos.

Uma cabine com seis telefones havia sido instalada perto do posto de controle da polícia, masas filas estavam enormes. Bonnie procurou a mais curta e preparou o espírito para esperar.Agradeceu a Augustine pela ajuda.

“O que você vai fazer hoje à noite?”“Vou ficar bem, pode deixar.”Bonnie levou um susto ao ouvi-lo retrucar: “Não, não vai”.Ele pegou-a pela mão e levou-a de volta à caminhonete. Bonnie deu-se conta de que deveria

estar com medo, mas, por algum motivo que não sabia qual era, sentia-se extremamente seguracom esse estranho. Talvez seja por causa do cansaço, pensou.

Augustine dirigiu de volta até o carro saqueado. Escreveu um bilhete e colocou-o sob um doslimpadores de para-brisa. “O número do meu telefone”, disse a Bonnie. “Caso seu maridoapareça mais tarde, saberá onde encontrá-la.”

“Estamos indo para a sua casa?”“Sim.”No escuro, ela não conseguia ver a expressão de Augustine. “Isto aqui está uma loucura”,

comentou ele. “Esses idiotas estão atirando em qualquer coisa que se mexa.”Bonnie abanou a cabeça, afirmativamente. Ela tinha ouvido tiros ao longe, vindos de todas as

direções. O condado de Dade se transformara num campo de batalha. Essas foram as palavras

do agente de viagens que tinham consultado. Excursões para quem tem desejo de morte, o agentehavia dito. Só um idiota poria os pés no sul de Orlando.

O louco do Max, Bonnie pensou. O que teria dado nele para agir assim?“Você sabe por que meu marido veio para cá? Sabe o que estava fazendo quando se perdeu?

Filmando casas destruídas. E filmando as pessoas também.”“Para quê?”, perguntou Augustine.“Para mostrar os vídeos aos amigos, quando voltássemos para o norte.”“Nossa, isso é...”“Doentio”, completou Bonnie. “Doentio é a palavra exata.”Augustine não disse mais nada. Devagarinho, ele ia conseguindo se aproximar da rodovia.

Era evidente que seria inútil caçar seus macacos. Augustine deu-se conta de que a maioria dosanimais selvagens de seu falecido tio era irrecuperável. Os mamíferos maiores, inevitavelmente,não passariam despercebidos — o búfalo, os ursos, os pumas —, com resultados certamentelamentáveis. Enquanto isso, as serpentes e os crocodilos com certeza estavam comemorando sualiberdade, copulando felizes nos Everglades. Dessa forma, garantiriam para suas espécies umaposição confortável num novo hábitat tropical. Augustine achava que qualquer interferência seriacondenável, do ponto de vista moral. Afinal, uma serpente que fugira tinha tanto direito a viverna Flórida quanto qualquer trabalhador aposentado da indústria têxtil. A seleção natural dasespécies seguiria seu curso. Ela provavelmente também se encarregaria de Max Lamb. MasAugustine tinha pena de sua mulher e continuaria a ajudá-la a procurar por ele.

Augustine dirigia com os faróis altos, porque não havia mais iluminação nas ruas. Asestradas estavam atulhadas de árvores e postes caídos, pilhas de madeiras e de metais retorcidos.Utensílios quebrados e sofás abertos. Depararam-se com uma casa de boneca Barbie, uma camacom dossel, um armário de louça antigo, uma cadeira de rodas para criança, uma máquina deescrever, uma pilha de tacos de golfe e um banheiro de cedro, tudo partido ao meio como cascasde coco. Bonnie comentou que era como se uma grande mão sobrenatural tivesse apanhado cemmil vidas e espalhado seus pertences por todo o mundo.

Augustine achava que a situação parecia mais uma invasão militar súbita, como numa guerra.“Esta é sua primeira experiência com um furacão?”, perguntou Bonnie.“Tecnicamente, não.” Freou para desviar o carro de uma vaca morta, caída na pista central.

“Fui concebido durante o Donna — pelo menos é o que minha mãe contava. Donna foi umfuracão bebê, em 1960. Já do Betsy quase não me lembro, porque só tinha cinco anos. Perdemosalgumas limeiras, mas a casa aguentou bem.”

Bonnie comentou: “É meio romântico ser concebido durante um furacão”.“Minha mãe disse que dava para entender, considerando como saí.”“E como você saiu?”“Os relatos diferem.”Augustine direcionou a caminhonete para uma fila de carros que subiam a rampa norte em

direção à rodovia. Um Ford enferrujado, com uma placa torta da Georgia, cortou-lhe a frente.Estava cheio de trabalhadores que pareciam estar na estrada há vários dias, bebendo o tempotodo. O motorista, um louro desgrenhado, com dentes esverdeados, olhou de soslaio para Bonniee gritou-lhe uma obscenidade. Com uma mão, Augustine alcançou o rifle atrás do banco e atirouum dardo de tranquilizante na barriga do motorista. O rapaz soltou um grito e caiu no colo de umde seus companheiros.

“Tenham modos”, disse Augustine. Depois, com a caminhonete, empurrou o Ford para forado asfalto.

Bonnie Lamb pensou: Meu Deus, o que estou fazendo aqui?

Max Lamb, o macaco e o homem que se denominava Skink levantaram acampamento àmeia-noite. Max ficou grato ao homem por lhe ter permitido colocar os sapatos, pois elescaminharam horas a fio, na mais completa escuridão, por pântanos fundos e moitas espinhosas.As pernas desnudas de Max ardiam com os arranhões e coçavam com as picadas de insetos.Estava extremamente faminto mas não se queixava, uma vez que o homem tinha guardado paraele o traseiro de um racoon morto que havia fervido para o jantar. Max se recusaraterminantemente a comer.

Chegaram a um canal. Skink desamarrou as mãos de Max, desafivelou a coleira de choque eordenou-lhe que nadasse. Ele já estava na metade do canal quando viu um jacaré deslizando paraa água. Skink disse que parasse de reclamar e continuasse nadando. Ele próprio continuounadando vigorosamente, com o macaco empoleirado em sua cabeça. Com uma das mãos,segurava bem acima da água a filmadora Sony de Max e o controle remoto para a coleira dechoque.

Quando chegou à margem, Max perguntou: “Podemos descansar, capitão?”.“Você já viu uma sanguessuga antes? Tem uma na sua bochecha.”Max esfregou a face para retirar a sanguessuga. Skink tornou a amarrar-lhe os pulsos e

recolocou-lhe a coleira de cachorro. Depois, borrifou-o com repelente de insetos.Max balbuciou um obrigado e indagou: “Onde estamos?”.“Nos Everglades”, Skink respondeu. “Mais ou menos.”“Você prometeu que me deixaria telefonar para minha mulher.”“Logo, logo.”Continuaram caminhando em direção ao oeste, em meio a palmeiras e pinheiros

despedaçados pela tempestade. O macaco ia na frente, pulando e colhendo bagas e frutos tenros.Max perguntou: “Você vai me matar?”.Skink parou de caminhar. “Toda vez que você fizer essa pergunta idiota, vai levar um

choque.” Posicionou o controle remoto no nível mais fraco. “Está pronto?”Max Lamb apertou os lábios, Skink aplicou-lhe um choque leve. Max sacudiu-se todo. Um

pouco depois, chegaram a uma aldeia Miccosukee que não estava tão destruída quanto esperava.Como os índios estivessem acordados, cozinhando alimentos, presumiu que faltava pouco para oalvorecer. Nas portas abertas das cabanas, as crianças estavam reunidas para observar os doisestranhos brancos que se aproximavam: Skink com seus cabelos espinhosos, o olho mal colocadoe o macaco ranhento, e Max Lamb com suas cuecas sujas e uma coleira de cachorro.

Skink parou numa cabana de madeira e conversou com um índio mais velho, que trouxe parafora um telefone celular. Desamarrou as mãos de Max, advertindo-o: “Um telefonema é tudo oque você tem direito. O índio avisou que a bateria está fraca”.

Max deu-se conta de que não sabia onde encontrar sua mulher. Não tinha a menor ideia deonde estaria, naquela altura dos acontecimentos. Então, ligou para o número da casa deles emNova York e falou com a secretária eletrônica: “Querida, fui sequestrado”.

“Raptado!”, corrigiu Skink. “Sequestro implica pagamento de resgate, Max. Não seengrandeça.”

“Ok, ‘raptado’. Querida, fui raptado. Não posso dizer. Não tenho muito o que dizer, excetoque, considerando as circunstâncias, estou bem. Por favor, avise meus pais. E também telefonepara Pete na Rodale sobre o projeto de cartaz da Bronco. Diga a ele que o carro de corrida deveser vermelho, e não azul. O arquivo está em cima da minha escrivaninha... Bonnie, não tenho

certeza sobre quem me raptou ou por quê, mas acho que vou descobrir logo. Meu Deus, esperoque você receba esta mensagem.”

Skink tomou-lhe o telefone. “Te amo, Bonnie”, disse ele. “Max esqueceu de lhe dizer isso,então digo eu. Agora, tchau.”

Comeram com os Miccosukees, que não aceitaram o racoon fervido oferecido por Skink, mascompartilharam generosamente com eles suas porções de peixe frito, inhame, pãezinhos de milhoe sucos cítricos. Max Lamb comeu vorazmente, mas, com medo da coleira de choque, faloupouco. Depois da refeição, Skink amarrou-o a um cipreste e desapareceu com vários homens datribo. Quando retornou, avisou-lhe que era hora de partirem.

Max perguntou-lhe: “Onde estão minhas coisas?”.“Bem aqui”, disse Skink, apontando para sua mochila.“E minha filmadora Sony?”“Dei ao índio velho. Ele tem sete netos e vai se divertir muito.”“E os vídeos?”Skink riu. “Ele os adorou. O ataque do macaco foi algo especial. Max, levante os braços.”

Então, borrifou-o com mais repelente de insetos.Max Lamb disse, taciturno: “Aquela câmera de vídeo podia ser vendida por uns novecentos

dólares”.“Eu não a dei, propriamente. Fiz uma troca com ela.”“E trocou-a pelo quê?”Skink deu-lhe um tapinha no ombro. “Aposto que você nunca andou de hidroavião.”“Oh, não. Por favor.”“Ei, você não queria ver a Flórida?”

Não era fácil ser um patrulheiro rodoviário negro na Flórida. E era ainda mais difícil quandose estava envolvido com uma patrulheira branca, como era o caso de Jim Tile e Brenda Rourke.

Eles haviam se conhecido num seminário sobre os mais recentes dispositivos paracronometrar excesso de velocidade com motoristas. Na sala de aula, sentaram-se um ao lado dooutro. Jim Tile gostou de Brenda Rourke de imediato. Ela tinha uma visão saudável do trabalho eo fazia rir. Contaram histórias um ao outro sobre pitorescas interrupções do trânsito, saláriosbaixos e a burocracia da polícia rodoviária. Por ser negro em meio a uma maioria de policiaisbrancos, Jim Tile não se sentia confortável numa sala cheia de patrulheiros brancos, mas sentia-se bem ao lado de Brenda, em parte porque ela pertencia a uma minoria também: a políciarodoviária empregava ainda menos mulheres do que negros ou latinos.

Durante uma aula, um policial interiorano lançou-lhe um olhar maldoso, como a lembrar-lheque a patrulheira Rourke era branca e isso ainda significava muito em certas partes da Flórida.Jim Tile não se levantou nem trocou de lugar. Manteve-se ao lado de Brenda. O policial ficouencarando-os por mais umas duas horas.

Na hora do almoço, Jim Tile e Brenda Rourke foram a uma lanchonete da cadeia Arby’s. Elaestava preocupada com sua iminente transferência para o sul da Flórida. Jim Tile não encontroumuita coisa a dizer para ajudá-la a ter menos medo. Ela contou-lhe que estava estudandoespanhol para se preparar para o trabalho nas rodovias de Miami. A primeira frase que aprenderaera: “Sale del carro con las manos arriba”, ou seja, saia do carro com as mãos para cima.

Naquela época, Jim Tile não tivera nenhuma intenção a mais. Brenda Rourke era uma pessoasimpática, só isso. Nem mesmo lhe perguntara se tinha namorado. Alguns meses depois, fora aocondado de Dade para prestar depoimento num julgamento e reencontrara Brenda na sede da

polícia rodoviária. Mais tarde, foram jantar juntos e seguiram para o apartamento de Brenda,onde ficaram conversando sobre todas as coisas imagináveis até as três da manhã — primeiropor nervosismo e depois por sentirem verdadeira intimidade. O julgamento durou seis dias, etodas as noites Jim foi para o apartamento de Brenda. Pela manhã, invariavelmente, acordavamna mesma posição em que haviam adormecido — a cabeça dela recostada no ombro de Jim eseus pés pendurados para fora da pequena cama. Jim nunca havia sentido tanta paz em sua vida.Terminado o julgamento e após ele retornar para o norte da Flórida, os dois começaram a viajar,alternadamente, para passar os fins de semana juntos.

Jim não era de muita conversa, mas Brenda tinha o dom de fazê-lo falar. Ela gostavaespecialmente de ouvir sobre a época em que fora designado para proteger o governador daFlórida — não qualquer governador, mas um que se demitira, desaparecera e se tornara umlegendário recluso. Brenda frequentava a escola secundária, na época, mas se lembrava dofamoso caso. Todos os jornais e canais de televisão haviam noticiado o episódio. Sua professorade moral e cívica havia dito que o governador fugitivo era um “desequilibrado mental”.

Ao saber do comentário, Jim rira muito. Brenda costumava ficar sentada no tapete, de pernascruzadas, ouvindo concentrada as histórias sobre o homem que era conhecido como Skink. Porlealdade e prudência, Jim não lhe contara que havia continuado amigo íntimo de Skink.

“Gostaria de tê-lo conhecido”, disse Brenda, como se o homem estivesse morto. Isso seexplicava pelo fato de que Jim, talvez inconscientemente, tivesse dado a impressão de que elemorrera.

Agora, dois anos depois, possivelmente o difícil desejo de Brenda pudesse ser realizado. Oex-governador havia reaparecido na região atingida pelo furacão.

No percurso de volta de Card Sound, Brenda perguntou: “Por que ele se amarraria a umaponte durante uma tempestade?”. Era a pergunta lógica a fazer.

Jim Tile respondeu: “Ele vem esperando há tempos por um furacão realmente furioso”.“Para quê?”“Brenda, não posso explicar. Só faria sentido se você conhecesse Skink.”Ela não disse mais nada durante algum tempo e então perguntou: “Por que você não me

contou que ainda tinha contato com ele?”.“Porque nós nos falamos raramente.”“Você não confia em mim?”“Claro que sim”, disse ele, puxando-a para junto de si para roubar-lhe um beijo.Ela afastou-se com um brilho nos olhos azuis-pálidos. “Você vai tentar achá-lo, não vai?

Vamos, Jim, fale a verdade.”“Receio que ele tenha um parafuso frouxo.”“Não é a primeira vez que ele faz isso, não é?”“Não, não é a primeira vez”, respondeu Jim.Brenda trouxe a mão dele para perto dos lábios e beijou a junta de seus dedos de leve. “Está

bem, meu grandalhão. Eu entendo de amizade.”

5

Quando chegaram à casa de Augustine, Bonnie Lamb telefonou para sua secretária eletrônicaem Nova York. Ouviu duas vezes a mensagem de Max e depois tocou-a de novo para Augustine.

“O que você acha?”, perguntou-lhe.“Nada bom. Seu marido vale muito dinheiro?”“Até que ganha bem, mas não é nenhum milionário.”“E a família dele?”Bonnie explicou que o pai de Max era bastante rico. “Mas tenho certeza de que Max não

seria idiota de contar isso aos sequestradores.”Augustine também achava isso. Esquentou sopa de tomate para Bonnie e colocou lençóis

limpos na cama do quarto de hóspedes. Depois foi para o escritório e telefonou para um amigodo FBI. Quando terminou de falar ao telefone, Bonnie havia adormecido no sofá da sala de estar.Carregou-a para o quarto de hóspedes e ajeitou-a sob as cobertas. Depois foi até a cozinha epreparou duas costelas grandes e uma batata assada. Acompanhou a refeição com uma lata decerveja Amstel.

Mais tarde, tomou uma ducha quente e demorada e pensou o quanto tinha sido bom terBonnie Lamb — quente, molhada de chuva e suada — nos seus braços. Fazia bem ter umamulher dentro de casa novamente, ainda que por uma noite. Enrolou-se numa toalha e deitou-seno chão de tábua corrida em frente à televisão. Passou de um noticiário local para outro, torcendopara não ver nenhum dos animais de seu tio investindo furiosamente contra tudo ou o marido deBonnie sendo carregado para dentro de um furgão de médico legista.

À meia-noite, Augustine ouviu um grito vindo do quarto de hóspedes. Presumiu, e acertou,que Bonnie havia descoberto sua coleção de crânios. Encontrou-a sentada na cama, com ascobertas puxadas até o queixo, olhando fixamente para a parede.

“Pensei que tivesse sido um pesadelo.”“Não há nada a temer.”“São verdadeiros?”“Presentes de amigos”, disse Augustine, “na sua maioria do exterior. Um foi presente de

Natal de um amigo da Islamorada.” Não tinha certeza do que Bonnie estava achando de seuhobby, por isso desculpou-se pelo susto que lhe dera. “Algumas pessoas colecionam moedas. Jáeu gosto de artefatos da medicina forense.”

“Partes do corpo humano?”“Não partes recém-extraídas, mas artefatos. Acredite se quiser, um crânio é difícil de achar.”Essa era a parte da sua explicação em que normalmente as mulheres saiam correndo porta

afora. Mas Bonnie não se mexeu.“Posso dar uma olhada?”Augustine retirou um crânio da prateleira. Ela examinou-o como se fosse um melão.

Augustine sorriu. Estava gostando dessa moça.“Homem ou mulher?”, perguntou ela, girando o crânio nas mãos.

“Homem de vinte ou trinta anos. Guianense, de cerca de 1940. Veio de uma escola demedicina do Texas.”

Bonnie indagou por que estava faltando o maxilar inferior. Augustine explicou-lhe que caíracom o apodrecimento dos músculos faciais. A maioria dos crânios antigos não tinha a mandíbulainferior.

Segurando o crânio pelas cavidades dos olhos, Bonnie recolocou a relíquia amedrontadora naestante.

“Quantos você tem?”“Dezenove.”Ela deu um assobio. “E quantos são crânios de mulheres?”“Nenhum”, disse Augustine. “São todos de homens jovens. Por isso, não há motivo para

preocupações nessa linda cabecinha.”Ela revirou os olhos e perguntou: “Por que são todos de homens?”.“Para me fazerem lembrar de minha própria condição de mortal.”Bonnie suspirou. “Você poderia ser um deles.”“Às vezes, quando começo a achar que minha vida é um inferno, penso no que aconteceu

com esses pobres-diabos. É o suficiente para melhorar minha visão da vida consideravelmente.”“Bem, isso faz tanto sentido quanto tudo mais que tenho visto ultimamente. Posso tomar uma

ducha?”Mais tarde, tomando café, Augustine contou-lhe o que seu amigo do FBI lhe havia dito. “Eles

tratarão o desaparecimento de seu marido como um caso de sequestro quando houver um pedidoconcreto de resgate. E meu amigo enfatizou a palavra concreto.”

“Mas e a mensagem na secretária eletrônica? A voz do outro homem que o interrompeu?”“Claro que eles vão escutar a mensagem. Mas tenho que alertá-la para o fato de que estão

com pouquíssimos agentes no momento. Muitos deles foram seriamente prejudicados pelofuracão e tiraram licença para tratar de seus problemas.”

Bonnie estava irritada com a falta de interesse pelo sofrimento de Max. Augustine ponderouque, muitas vezes, maridos insatisfeitos se valiam de um desastre natural para abandonar suasesposas. Recursos humanos e financeiros preciosos eram desperdiçados nesses casos. No final,descobria-se que os maridos estavam em apartamentos, condomínios ou barcos de suas amantes.Em consequência, hoje em dia relatos de maridos desaparecidos eram recebidos pelo FBI commuito ceticismo.

Bonnie disse: “Pelo amor de Deus, nós somos recém-casados. Ele não daria um golpedesses”.

Augustine deu de ombros. “As pessoas às vezes se acovardam.”Ela se debruçou sobre a mesa da cozinha para dar-lhe um soco. Augustine aparou o golpe

com o antebraço e disse a Bonnie que se acalmasse. Sua face estava vermelha e seus olhosbrilhavam.

Augustine esclareceu: “Eu quis dizer que não podemos descartar nenhuma possibilidade”.“Mas você ouviu aquele homem na fita.”“É, ouvi. E me intriga a razão pela qual um sequestrador sério seria metido a engraçadinho.

‘Não se engrandeça, Max. Te amo, Bonnie.’ Só para chatear seu marido, não acha? Parahumilhá-lo.” Augustine serviu mais café para ambos e comentou: “Tem algo muito estranho emtudo isso. É só o que estou querendo dizer”.

Bonnie teve que concordar. “Deixar sua voz gravada numa fita é muito estranho.”“Exatamente, ou o cara é muito idiota ou tem muito colhão.”

“Ou então não está ligando para nada.”“Ah, você percebeu isso também?”“É. Dá medo.”Augustine disse: “Não tenho tanta certeza”.“Não comece com acusações de novo. Tenho certeza de que Max não está fingindo.”“Aquele negócio de lhe pedir para telefonar para a agência de publicidade — ele estava

falando em código ou o quê? Porque, se algum maluco me sequestrar, a última coisa com quevou me preocupar é com minhas contas de publicidade. O que me preocuparia, sim, seria salvarminha pele.”

Bonnie desviou o olhar. “Você não conhece Max. Ele é viciado em trabalho.”Augustine afastou-se da mesa. Normalmente, não gostava muito de mulheres que faziam

cavalo de batalha de qualquer coisinha.“O que faremos agora? Você ouviu o tom da voz do homem.” Ela segurava a xícara com

ambas as mãos, tremendo um pouco.“É, ouvi.”“Tá bem, concordamos que o homem não é um sequestrador comum. Então, o que ele é?”Augustine balançou a cabeça. “E como é que eu vou saber, senhora Lamb?”“Chame-me de Bonnie.” Levantou-se, já totalmente calma, apertando o cinto do roupão que

ele lhe emprestara. “Talvez juntos possamos entender esse homem.”Augustine esvaziou sua xícara de café na pia. “Acho que precisamos dormir um pouco.”

No caminho de volta para a casa de Tony Torres, Edie Marsh perguntou a Snapper se eletinha um cronômetro.

“Para quê?”“Quero cronometrar esse cretino, ver quanto tempo ele leva para tentar me comer.”Snapper, que já havia fantasiado fazer a mesma coisa, disse: “Acho que ele vai levar uns dois

dias para tentar alguma coisa”.“Acho que vai levar duas horas.”“E o que você vai fazer? Dez mil dólares são dez mil dólares.”Edie disse: “Você deve estar brincando. Prefiro andar sobre cacos de vidro a deixar esse

porco tocar em mim”. Na sua concepção, seria uma grande decadência sair com um jovemKennedy e depois dormir com um vendedor de trailers.

“E se ele insistir muito?”, perguntou Snapper.“Então, caio fora.”“Sim, mas...”“Ei”, disse Edie, “se você quer tanto o dinheiro, durma você com ele, ok? Acho que vocês

dois fariam um belo par.”Snapper não insistiu no assunto. Já tinha um outro plano, caso o negócio com Torres desse

errado. Avila estava de ótimo humor quando lhe telefonara no hotel. Aparentemente, os santoslhe haviam dito que ficaria muito rico se iniciasse seu próprio negócio de telhados. Tinham lhedado a dica de que o furacão havia deixado duzentas mil pessoas sem abrigo e que muitas dessaspessoas pobres estavam tão desesperadas para reconstruir suas casas que não fariam questão dever uma licença de construtor, coisa que Avila não tinha, é claro.

“Mas você tem medo de altura”, Snapper havia lembrado a Avila.“É aí que você entra. Eu sou o patrão e você é o mestre de obras. Tudo que precisamos é de

uma equipe.”

“O que significa que você não vai subir nos telhados conosco na hora de aplicar o piche nosol quente, não é?”

“Meu Deus, Snap, alguém tem que cuidar dos papéis, fazer os contratos.”Snapper perguntara-lhe sobre a divisão dos lucros. Avila disse que conhecia caras que

estavam cobrando quinze mil dólares por telhado e pedindo um terço desse valor de entrada.Afirmou que alguns proprietários estavam oferecendo dinheiro vivo para apressar o trabalho eque havia negócios suficientes para mantê-los ocupados por uns dois anos.

“Graças a você”, disse Snapper.Avila não percebeu a ironia na insinuação de Snapper de que suas inspeções malfeitas é que

eram a principal causa de tantos tetos desabados e tantas oportunidades de negócios dereconstrução.

“Vocês planejaram tudo isso?”, perguntou Snapper.“Planejamos o quê?”Snapper não tinha a menor confiança em Avila, mas o negócio seria uma boa alternativa,

caso as coisas não funcionassem bem com Torres.O vendedor de trailers também estava de ótimo humor quando Edie e Snapper chegaram.

Estava esticado, sem camisa, numa cadeira reclinável no gramado da frente. Usava bermuda emeias com monograma puxadas até em cima de suas canelas cabeludas. O cano da espingardapodia ser visto embaixo de uma pilha de jornais no seu colo. Quando Edie e Snapper saíram docarro, Tony bateu palmas e disse: “Sabia que vocês iam voltar”.

“Um perfeito Nostradamus”, disse Edie. “A luz já voltou? Trouxemos algumas coisas parabotar no refrigerador.”

Tony respondeu que a luz ainda não tinha voltado e que acabara a gasolina do geradorportátil durante a noite. Estava colocando os alimentos em duas caixas térmicas cheias de gelo. Aboa notícia é que o telefone tinha sido ligado outra vez.

“E telefonei imediatamente para a Midwest Casualty”, acrescentou Tony. “Estão mandandoum funcionário hoje ou amanhã.”

Edie pensou: É bom demais para ser verdade. “Então esperamos?”“Sim. E lembre-se, seu nome é Neria. N-e-r-i-a. O que vocês compraram?”“Sanduíches de atum”, respondeu Snapper. “Queijo, ovos, sorvete, Sprite Diet e cerveja

choca Lorna Doones. Não tinha muita coisa pra escolher.” Ele colocou as compras na caixa comgelo, pegou uma cadeira e sentou-se contra o vento, para não sentir o cheiro de suor de TonyTorres. O céu havia clareado e o sol estava forte. Nem adiantava tentar achar uma sombra. Nãohavia nenhuma. Todas as árvores de Turtle Meadow tinham sido derrubadas.

Tony elogiou Edie por ela ter se vestido como uma verdadeira dona de casa — jeans, tênisbrancos e blusa folgada, com as mangas enroladas. Sua única crítica era com relação ao longolenço de seda verde-claro em seus cabelos. “Seda é um pouco demais, considerando ascircunstâncias.”

“Por que não combina com essa sua bermuda maravilhosa?”, perguntou Edie fixando o olharem Tony como se ele fosse uma mosca num bolo de casamento. Não queria tirar o lenço que,aliás, era um de seus preferidos. Tinha-o roubado de uma loja Lord & Taylor’s em Palm Beach.

“Como você quiser”, disse Tony. “O problema é que os detalhes são tremendamenteimportantes. São eles que as pessoas notam.”

“Vou tentar não me esquecer disso.”Snapper interrompeu: “Ei, Senhor Vendedor do Ano, podemos tentar ligar a televisão no

gerador?”.

Tony disse que sim, desde que arranjassem gasolina.Snapper bateu no relógio e disse: “Vai passar Sally Jessy em vinte minutos. É sobre homens

que seduzem as sogras de suas noras”.“Sem sacanagem? Poderíamos tirar gasolina do seu carro.” E, apontando para os escombros

da garagem, acrescentou: “Tem uma mangueira lá, em algum lugar”.Snapper foi procurá-la. Edie comentou que não seria boa ideia tirar gasolina do carro, uma

vez que talvez precisassem sair de lá às pressas. Ele piscou o olho e disse que não se preocupasseDepois, começou a descer a rua a passos largos, com a mangueira enrolada no ombro esquerdo.

Edie apossou-se de sua cadeira. Tony Torres empertigou-se e disse: “Chegue mais perto,querida”.

“Maravilha”, murmurou ela.O vendedor se abanou com as páginas de esporte do Miami Herald e disse: “Só agora é que

me dei conta. Homens que roubam as sogras de suas noras. É bem engraçado. Seu parceiro nãotem jeito de comediante, mas essa é muito boa”.

“Ah, ele é cheio de surpresas.” Edie reclinou-se na cadeira e fechou os olhos. A sensação dosraios de sol em seu rosto era agradável.

O furacão transformara o estacionamento para trailers em uma enorme sucata de alumínio.Ira Jackson encontrou o lote 17 por causa do adesivo amarelo e brilhante que a polícia colocaraem volta do que restara do trailer extragrande onde sua mãe, Beatrice, morrera. Depois deidentificar seu corpo no necrotério, Ira Jackson fora direto para o Suncoast Leisure Village, paraver os estragos com seus próprios olhos.

Nenhum trailer sequer resistira à tempestade.Ira Jackson conseguiu retirar debaixo dos escombros a cama dobrável de sua mãe. O colchão

estava enrolado como uma concha gigante. Deitou-se dentro dele.Lembrava-se como se fosse ontem do dia em que ele e sua mãe encontraram-se com o

vendedor para fechar negócio. O nome do homem era Tony. Ele era gordo, fanfarrão, estavacomeçando a ficar careca, mas demonstrava extrema autoconfiança. Beatrice Jackson ficaraimpressionada com sua eloquência.

“O senhor Torres está dizendo que o trailer foi projetado de tal forma que resiste afuracões.”

“Acho difícil acreditar nisso, mamãe.”“Ah, sim, senhor Jackson, sua mãe tem razão. Nossas casas móveis pré-fabricadas são

construídas para resistir a ventos de mais de cento e noventa quilômetros por hora. Sãorequisitos do governo. Se não os observássemos, não poderíamos vendê-las.”

Ira Jackson estava em Chicago procurando por alguns furadores de greve para a Teamsterlocal, quando ouviu a notícia de que o furacão estava se encaminhando para o sul da Flórida.Telefonou para sua mãe e pediu-lhe que se dirigisse para um abrigo da Cruz Vermelha. Elarecusou-se a fazê-lo.

“Não posso abandonar Donald e Maria”, disse ao filho.Donald e Maria eram seus adorados cachorrinhos basset tamanho zero. O abrigo contra

furacões não aceitava animais.Assim, a mãe de Ira tinha ficado em casa, em parte por lealdade a seus cachorros, em parte

pela confiança que depositava nas promessas do vendedor Tony. Donald e Maria, espremidosembaixo de um aparador de carvalho e dividindo um brinquedo de couro cru para morder

durante a longa noite, sobreviveram ao furacão. Um vizinho os havia recolhido pela manhã e oslevara para o veterinário.

Beatrice Jackson não tivera tanta sorte. Minutos após a destruição da parede frontal do trailer,ela fora atingida por uma churrasqueira, pertencente a um vizinho, que voara em sua direção,carregada pelo vento. A marca da grelha ainda podia ser vista em seu rosto calmo, quando jaziamorta no necrotério.

A morte de Beatrice não tivera nenhum efeito sobre seus cachorros basset, mas deixara seufilho inconsolável. Ira Jackson sentia raiva de si mesmo por ter deixado a mãe comprar o trailer.A mudança para a Flórida tinha sido ideia sua — mas isso era o que os caras de sua profissãofaziam com mães viúvas: tiravam-nas do frio e colocavam-nas no sol da Flórida.

Que Deus me ajude, pensava Ira, rolando no colchão dobrado. Deveria ter esperado mais umano, até que pudesse pagar um condomínio para ela.

Aquele escroto do Torres. Ventos de mais de cento e noventa quilômetros por hora. Que tipode marginal mentiria assim para uma viúva?

“Com licença.”Ira Jackson deu um pulo e viu um homem de cabelos grisalhos, de camiseta branca e calças

largas. Pele e ossos. Usava óculos de aro de metal que o tornavam parecido com uma garça.Embaixo de um dos braços, carregava um saco de compras marrom.

“Você por acaso viu uma urna?”“Vi o quê?”“Uma urna azul, com as cinzas de minha mulher. Parece uma garrafa.”Ira Jackson balançou a cabeça negativamente. “Não, não vi.” Levantou-se. Observou que o

velho estava tremendo.“Vou matá-lo”, disse o velho.“Vai matar quem?”“Aquele filho da puta mentiroso que me vendeu o extragrande. Eu o vi aqui, depois do

furacão, mas ele foi embora.”“Torres?”“É. Eu o mataria, juro por Deus. Se pudesse.”“Você provavelmente ganharia uma medalha pelo feito”, brincou Ira com o velho para ver se

ele se acalmava e ia embora.“Diacho. Você não está acreditando em mim.”“Claro que sim.” Ficou tentado a dizer ao velho que não se preocupasse, pois Tony Torres

iria pagar caro, mas sabia que seria burrice chamar a atenção sobre sua pessoa.O velho disse: “Meu nome é Levon Stichler. Eu morava a quatro lotes daqui. Foi sua mãe

que morreu neste trailer?”.Ira abanou a cabeça afirmativamente.“Sinto muito”, continuou o velho. “Fui eu que achei os cachorrinhos. Estão no veterinário em

Naranja.”“Obrigado. Ela teria apreciado seu gesto.” Tentou não esquecer que teria que retirar os

animais do veterinário antes que o consultório fechasse.O velho comentou: “As cinzas de minha mulher foram levadas pelo furacão”.“Sei. Se por acaso topar com uma garrafa azul...”“Que diabos eles poderiam fazer comigo?”, Levon Stichler disse com um sorriso estranho e

trêmulo. “Se eu o matasse, o que eles poderiam fazer? Tenho setenta e um anos. O quê? Prisãoperpétua? Grande coisa. Não tenho nada a perder, de qualquer forma.”

“Se eu fosse o senhor, tiraria essa ideia da cabeça. Marginais como o Torres normalmenteacabam recebendo o que merecem.”

“Não no meu mundo”, disse o velho. Mas Ira tinha conseguido tirar-lhe um pouco doentusiasmo. “Que diabos, nem sei como achar o filho da puta. Você sabe?”

“Não tenho a menor ideia”, disse Ira.Levon Stichler encolheu os ombros, resignado, e retornou aos escombros de seu trailer. Ira

ficou observando-o mexer no entulho, curvando-se aqui e ali para examinar um pedaço dealguma coisa. Em todo o estacionamento, podiam-se ver os vizinhos da falecida Beatricetentando limpar o entulho e recuperando pedaços de objetos.

Ira abriu a carteira, que continha seiscentos dólares, uma foto de sua mãe tirada em AtlanticCity, três carteiras de motorista falsas. Um cartão da Seguridade Social forjado, um cartão depassageiro da Delta Airlines roubado e inúmeros pedaços de papel com vários números detelefones com o código de área 718. A carteira também continha alguns cartões de visitaverdadeiros, inclusive um de Tony Torres, com o número de telefone (035) 555-2200.

O vendedor de trailer havia escrito no verso do cartão o número de sua residência. IraJackson vasculhou os pertences encharcados de sua mãe até encontrar uma lista telefônica daGrande Miami. O número da casa do vendedor era o mesmo que de A. C. Torres. 15 600, CalusaDrive. Ira arrancou a página do catálogo, dobrou-a e colocou-a em sua carteira.

Depois, dirigiu seu Coupe de Ville falsamente registrado até uma loja de conveniências ecomprou um mapa do condado de Dade.

6

O macaco extraviado decidiu não participar da experiência com o hidroavião. A Max não foidada escolha. O homem caolho amarrou-o ao banco de passageiros, e eles partiram a oitentaquilômetros por hora, deslizando sobre a grama, os amentilhos e as folhas grandes e flutuantesdos lírios-d’água. Por algum tempo, seguiram um canal paralelo a uma rodovia de duas pistas.Max podia ver as caras embasbacadas dos motoristas ao avistá-lo de cuecas no hidroavião. Nãolhe ocorreu fazer sinais, pedindo ajuda. A coleira de cachorro eletrificada o tinha condicionado auma passividade total.

Empoleirado no assento do piloto, o homem que se autodenominava Skink cantava com todaforça. A canção se parecia com uma música antiga dos Eagles intitulada Desperado. A melodiafamiliar se fazia ouvir acima do barulho ensurdecedor do motor. Mais do que nunca, Max achavaque tinha caído nas mãos de um alucinado.

Logo o avião afastou-se da rodovia, fazendo um sulco no pântano. O capim alto zumbia aoencostar na fuselagem. O furacão havia danificado até o pântano. Ciprestes e pinheirosderrubados podiam ser vistos boiando na água. Skink parou de cantar e começou a emitir sonsestranhos. Max não sabia se aquilo eram chamados para pássaros selvagens ou um ataque agudode sinusite. Teve medo de perguntar.

Ao meio-dia, aterrissaram perto de uma árvore seca. Os galhos copados estavam agoraesqueléticos, em decorrência da tempestade. Skink amarrou o avião às raízes enodoadas daárvore. Restos de fogueiras de acampamentos tranquilizaram Max: outros seres humanos jáhaviam estado ali. O sequestrador não se preocupou em amarrá-lo. Não havia para onde fugir.Com a permissão de Skink, Max vestiu novamente suas roupas para se proteger dos insetos.Queixou-se de sede, e Skink ofereceu-lhe seu cantil. Max deu um primeiro gole e perguntou:

“Leite de coco?”“Algo assim.”Max perguntou-lhe se ainda era necessário usar a coleira de choque. Skink pegou o controle

remoto, apertou o botão vermelho e disse: “Se você ainda pergunta, é porque é necessário”.Max sacudiu-se em silêncio no chão úmido, até que a dor passou. Skink pegou uma tartaruga

da lama e fez sopa para o almoço. Atiçando o fogo, disse: “Max, vou aceitar três perguntassuas”.

“Três?”“É, por enquanto. Vamos ver como você se sai.”Max olhou desconfiado para o controle remoto. Skink prometeu que não haveria sanções por

perguntas idiotas. “Vamos, pergunte logo.”Max fez a primeira: “Quem é você?”.“Meu nome é Tyree. Servi na guerra do Vietnã e mais tarde fui governador deste estado.

Renunciei por causa de perturbadores conflitos morais e filosóficos. Os detalhes nãosignificariam nada para você.”

Max não conseguiu disfarçar sua descrença: “Você foi governador? Corta essa”.“É essa sua segunda pergunta?”

Nervoso, Max mexeu na coleira e disse: “Não, a segunda pergunta é: por que eu?”.“Porque você se transformou num alvo excelente, com a sua filmadora, profanando o

ambiente.”Max replicou, defendendo-se: “Eu não era o único tirando fotos. Havia outros turistas lá”.“Mas você foi o primeiro que eu vi.” Skink despejou sopa quente numa caneca de lata e deu-

a a seu prisioneiro amuado. “Um furacão é uma coisa sagrada”, disse ele, “mas você o tratoucomo uma diversão. Isso me enfureceu, Max.”

Skink levantou a panela das brasas e bebeu a sopa pela borda. O vapor saiu pela boca,embaçando seu olho de vidro. Ele pôs novamente a panela no fogo e limpou o queixo. “Euestava amarrado a uma ponte, observando a tempestade no mar. Meu Deus, que espetáculo!”

Aproximou-se de Max e levantou-o pela camisa, fazendo-o derramar a sopa que nem beberaainda.

Skink levantou-o ao nível de seus olhos e disse: “Durante vinte anos, esperei por estefuracão. Estivemos tão perto. Dois ou três graus mais ao norte, e teria sido perfeito”.

Max Lamb balançava seguro no ar pelo punho de ferro do homem. O olho bom de Skinkbrilhava com uma paixão furiosa e sonhadora. “Você só tem mais uma pergunta”, disse,recolocando Max no chão.

Depois de se ajeitar um pouco, Max perguntou: “E o que vai acontecer daqui para a frente?”.A expressão de agressividade de Skink se desfez num sorriso. “O que vai acontecer daqui em

diante é que você vai viajar comigo e partilhar as lições da vida.”“Oh!” Max olhou de esguelha para o hidroavião.O governador deu uma gargalhada, espantando um bando de pássaros selvagens. Desarrumou

um pouco o cabelo de Max e disse: “Vamos seguir as ondas”.Mas um Max desesperado não conseguia encarar a perspectiva de uma grande aventura.

Agora que lhe parecia que não seria morto, voltara a se preocupar com sua situação na firma depublicidade. Se não voltar logo a Nova York, vou perder meu emprego, pensou.

Edie Marsh estava sonhando acordada com barcos a vela e belos jovens Kennedy, quandosentiu a mão pegajosa de Tony em seu seio esquerdo. Abriu um dos olhos e suspirou.

“Pare de apertar. Não é um tomate.”“Posso dar uma olhada nele?”“Absolutamente.” Mas ela ouviu o barulho da cadeira de Tony ao ser puxada para mais perto.“Não há ninguém por perto”, disse ele, mexendo nos botões de sua blusa. Ai deu uma risada.

“Quer dizer que você é minha esposa, não é?”“Meu Deus!” Edie sentiu o sol bater em seus mamilos e olhou para baixo. Lá estavam seus

seios expostos — o porco abrira sua blusa. “Você não entende minha língua?”“Entendo, querida, mas quem está com a espingarda?”“Ah, que romântico. Ameaças de morte. Não há melhor maneira de predispor uma moça para

o amor. Na verdade, estou toda molhada só de pensar nisso.” Ela empurrou a mão dele paralonge e tornou a abotoar a blusa. “Onde estão meus óculos escuros?”, murmurou.

Tony segurou a espingarda sobre o colo. O suor acumulou-se no seu umbigo. Disse: “Vocêvai pensar nisso. Todas pensam”.

“Penso no câncer também, mas não fico excitada.” Para Edie, o único atrativo de Tony eraseu relógio Cartier de ouro, que aliás deveria estar gravado com dizeres tão cafonas que seriadifícil vendê-lo.

Ele perguntou-lhe: “Você já dormiu com um cara careca?”.

“Não, e você já viu feridas de doença venérea?”O vendedor falou, zangado: “Alguém está com um humor de cão”.Edie Marsh escondeu-se atrás de seus óculos escuros. A espingarda a deixava nervosa, mas

resolveu controlar-se. Tentou ignorar o brilho do sol, o incessante barulho das serras elétricas edos caminhões de lixo e o farfalhar das páginas do jornal que Tony lia. O calor do sol fazia Edieimaginar as dunas de Vineyard ou as praias particulares de Manalapan.

Foi acordada de sua fantasia pelo barulho de passos na calçada oposta. Esperava que fosseSnapper, mas não era. Era um homem passeando com dois cachorrinhos basset.

Edie sentiu a mão de Tony na sua e ouviu-o dizer: “Querida, você passaria protetor solar nosmeus ombros?”.

Rapidamente, levantou-se da cadeira e atravessou a rua. O homem estava observando seuscachorros urinarem na haste de uma caixa de correspondência quebrada. Estava segurando asduas correntes numa só mão, frouxamente. Tinha um ar melancólico, que deveria terdesaparecido com a chegada de uma mulher bonita, mas não foi isso o que aconteceu.

Edie Marsh disse-lhe que seus cachorros eram adoráveis. Quando curvou-se para acariciá-los, os animaizinhos deitaram-se de costas e começaram a se espreguiçar.

“Como se chamam?“Donald e Maria.” O homem não era alto, mas tinha a constituirão de um touro. Usava uma

camisa de malha cor de pêssego e calças cáqui. Perguntou a Edie: “Você mora naquela casa?”.Ela viu Tony Torres observando-os da cadeira no jardim. Perguntou ao desconhecido se ele

era da companhia de seguros Midwest Casualty. Ele fez um gesto em direção aos cachorros efalou sarcasticamente: “Claro. E esses aí são meus associados da Merrill Lynch”.

Os cachorrinhos estavam já em pé, balançando os traseiros e lambendo os tornozelos nus deEdie. O homem esticou o queixo duplo em direção a Tony Torres e perguntou: “Você é parentedele? Esposa ou irmã, talvez?”.

“Por favor”, Edie respondeu com um gesto exagerado, como se somente a ideia a repugnasse.“Ok, então tenho um conselho para lhe dar. Vá dar um passeio.”O pensamento de Edie acelerou-se. Olhou para a rua, nas duas direções, mas não viu

Snapper.O homem disse: “O que você está esperando?”. E deu-lhe as duas correntes dos cachorros.

“Vá, vá, agora.”

Augustine acordou com o aroma de café e os barulhos de uma dona de casa na cozinha,preparando o desjejum. Parecia uma ocasião adequada para avaliar sua situação.

Seu pai estava na prisão, sua mãe tinha ido embora e os animais selvagens de seu falecido tiohaviam fugido para a companhia de pacatos e inocentes suburbanos. Ele, Augustine, estavatambém completamente livre, no sentido mais verdadeiro e triste da palavra. Não tinhaabsolutamente qualquer responsabilidade com nada. Como explicar sua situação para BonnieLamb?

Meu pai era pescador. Traficava drogas como bico, até que foi preso perto da ilha de Andros.Minha mãe mudou-se para Las Vegas e casou de novo. Seu atual marido toca saxofone na

orquestra de Tony Bennett.Minha última namorada era modelo de uma cadeia de lojas de lingerie. Juntou dinheiro e

comprou uma casa de dois andares em Brentwood, Califórnia, onde trepa somente comempresários de cinema circuncidados e, ocasionalmente, com diretores de cinema.

Mas e você? Como você ganha a vida?, a senhora Lamb perguntaria.

Leio meus extratos bancários.E a senhora Lamb reagirá com uma expressão de curiosidade educada, até que eu explique

sobre o acidente de avião.Aconteceu há três anos, quando voltava de Nassau, depois de ter visitado meu velho na

prisão de Fox Hill. Não tinha notado que o piloto estava bêbado, até o momento em que elemergulhou com o avião em direção à fuselagem de um helicóptero da guarda costeira,estacionado num hangar do aeroporto Opa-Locka.

Depois do acidente, dormi por três meses e dezessete dias na UTI do hospital Jackson.Quando acordei, estava rico. A companhia de seguros da empresa de fretagem de aviões haviafeito um acordo com um advogado que nunca conheci. Recebi um cheque de oitocentos mildólares e, para minha surpresa, investi o dinheiro muito bem.

E a senhora Lamb, se estou conhecendo-a bem, dirá: Mas o que é que você faz, então?Honestamente, não tenho certeza...Na realidade, a conversa durante o café da manhã não aconteceu exatamente como Augustine

previra. Quando terminou de contar sua história, Bonnie levantou os olhos da xícara de café eperguntou: “É por isso que você tem essa cicatriz? Por causa do acidente?”.

“Que cicatriz?”“Essa com a forma de Y na parte inferior de suas costas.”“Não”, disse Augustine, com reserva. “Isso é outra coisa.” Pensou que deveria tentar se

lembrar de não andar pela casa sem camisa.Mais tarde, ao limpar a mesa da cozinha, Bonnie indagou sobre o pai de Augustine.“Foi extraditado”, disse Augustine. “Mas prefere muito mais Talladega às Bahamas.”“Vocês são próximos?”“Claro”, brincou Augustine. “Estamos a apenas mil e duzentos quilômetros de distância.”“Com que frequência você vai vê-lo?”“Sempre que quero ficar zangado e deprimido.”Augustine sempre desejou que o acidente tivesse apagado de sua memória a última visita que

fizera ao pai. Mas isso não aconteceu. Eles tinham combinado conversar sobre a extradição,sobre a contratação de meia dúzia de advogados decentes, sobre a possibilidade de fazer umacordo com a promotoria, a fim de que o pai de Augustine saísse da cadeia antes da virada doséculo.

Quando chegou lá, contudo, o pai quis falar sobre algo completamente diferente. Queria queAugustine lhe fizesse um favor.

— Bollock, você se lembra dele? Ele me deve o dinheiro de um carregamento.— A resposta é não.— Vamos lá, meu filho. Tenho contas de advogados para pagar. Leve com você o Leaker e o

Ape. Eles cuidarão de Bollock, mas não do dinheiro. Quero o dinheiro em suas mãos, somente.— Papai, simplesmente não acredito no que estou ouvindo. Não acredito.— Ei, então vá até o porto de Nassau. Veja o que eles fizeram com meu barco. Arrancaram o

radar e toda a parte elétrica.— E daí? Você não sabia usar essas coisas, de qualquer maneira.— Escute, seu sabichão de merda. Eu estava sob fogo cerrado, no meio da noite.— De todo modo, não é fácil ancorar um barco de dezoito metros em meio metro de água.

Como é que você conseguiu?— Veja como fala, filho.— Um homem adulto andando com homens como Leaker e Ape. Veja onde isso o levou.

— Filho, adoraria continuar falando de lembranças, mas o guarda está dizendo que nossotempo esgotou. Então, você vai fazer o que estou lhe pedindo? Procurar Henry Bollock em BigPine? Pegar meu dinheiro e investi-lo nas ilhas Caymans? O que há de mal nisso?

— Patético.— O quê?— Disse que você é patético.— Então, sua resposta é não? Não vai me fazer esse pequeno favor?— Meu Deus!— Você me decepciona, garoto.— E eu tenho muito orgulho de você também, pai. Fico todo estufado cada vez que

mencionam seu nome.E Augustine ainda lembrava-se do que pensara, sentado no avião, na pista de decolagem do

aeroporto de Nassau: O meu velho não tem jeito. Ele não aprende. Vai sair da prisão e voltarimediatamente ao tráfico de drogas.

Um filho olha na cara do pai e o chama de patético. Qualquer outro pai teria dito umdesaforo ou dado um soco no filho. Não o meu. Meu Deus, não quando há dinheiro de drogasprecisando ser recolhido. Então, que tal, filho?

Que vá à merda, pensou Augustine. Não pelo que já tinha feito, mas porque sua ambiçãodesmesurada continuava igual. Que vá à merda. Ele não tem jeito. Ao invés de ele cuidar demim, eu é que tenho que cuidar dele.

E nesse momento o avião decolou.E depois o avião caiu.E nunca mais Augustine viu o mundo da mesma maneira. Às vezes, não tinha certeza se fora

o acidente que o transformara ou a última visita ao pai.

Na sede do FBI, Bonnie Lamb passou horas conversando com agentes gentilíssimos. Umdeles ligou para sua secretária eletrônica e gravou a estranha mensagem de Max sobre seusequestro. Insistiram para que ela notificasse o FBI tão logo recebesse um pedido de resgateconcreto. Somente então uma equipe de especialistas em sequestro assumiria o caso. Instruíram-na a verificar sua secretária eletrônica frequentemente e tomar cuidado para não apagar as fitas.Não manifestaram qualquer opinião sobre se deveria permanecer em Miami e procurar por seumarido ou voltar a Nova York e esperar.

Conduziram Bonnie a um escritório, de onde ela tentou em vão contactar os pais de Max, queestavam viajando pela Europa. Depois ligou para seus próprios pais. Sua mãe pareciasinceramente preocupada. Seu pai, como sempre, parecia não saber o que fazer. Meio acontragosto, ofereceu-se para ir até a Flórida, mas Bonnie disse não ser necessário. Tudo que elapodia fazer, de qualquer forma, era esperar uma outra chamada de Max ou do sequestrador. Amãe de Bonnie prometeu enviar o dinheiro e uma fotografia grande de Max para as autoridades.

O último telefonema de Bonnie foi para Peter Archibald, da agência de publicidade Rodale &Burns, em Manhattan. O colega de Max Lamb ficou chocado com a notícia, mas prometeuguardar segredo sobre o assunto, conforme requerido pelo FBI. Quando Bonnie relatou-lhe asinstruções de Max sobre o cartaz da companhia de cigarros, Peter Archibald comentou: “Você secasou com um verdadeiro craque, Bonnie”.

“Obrigada, Peter.”Augustine levou-a para um restaurante especializado em peixes para almoçar. Ela pediu um

gim-tônica e disse: “Quero sua opinião honesta sobre esses caras do FBI”.

“Ok. Acho que eles não gostaram muito da mensagem.”“Max não parecia suficientemente apavorado, não é?”“Pode ser. E, além disso, ele parecia preocupado demais com a conta da Marlboro.”“Não é da Marlboro, é da Bronco.” Pela careta que Bonnie fez ao tomar o gim-tônica,

Augustine deduziu que ela não estava muito acostumada a beber. “Então eles estão achando queMax me abandonou e que não há necessidade de investigação?”

“De modo algum. Eles abriram um arquivo. Eles adoram abrir arquivos. Depois, vão mandara fita para o laboratório. Provavelmente, darão alguns telefonemas. Mas você viu como o lugarestava deserto — metade dos agentes está ocupada com os danos causados pela tempestade.”

Ela comentou, irritada: “O mundo não pode parar por causa de uma tempestade”.“Não”, disse Augustine, “mas cambaleia pra burro. Vou pedir camarão. E você?”A senhora Lamb não falou mais até voltarem para a caminhonete e tomarem a direção da

zona do furacão. Então, pediu para Augustine parar no necrotério municipal.Ele pensou: Teria sido melhor se ela tivesse tido essa ideia antes do almoço.

Snapper não tinha nem a ambição nem a energia necessárias para ser um verdadeirocriminoso. Considerava-se apenas um oportunista esperto. Acreditava na sorte, porquecombinava com sua crença na lei do menor esforço.

Ouviu os jovens se aproximando muito antes de avistá-los. Tratava-se de um jipeincrementado, que tocava Snoop Doggy Dogg, num volume altíssimo, fazendo tremer os poucosvidros das janelas que não haviam quebrado. Os jovens passaram por ele uma vez, deram a voltana quadra e tornaram a passar.

Snapper sorriu para si mesmo e pensou: É o meu terno listrado. Estão achando que estoucheio do dinheiro.

Continuou caminhando. Quando o jipe se aproximou pela terceira vez, a música havia sidodesligada. Que idiotas, pensou Snapper. Deviam logo botar um cartaz: Vejam-nos assaltar essecara.

Snapper chegou mais perto do meio-fio e começou a andar mais devagar. Tirou a mangueirade Tony do ombro e começou a carregá-la enrolada, na frente do corpo. O jipe emparelhou-secom ele. Um dos jovens estava debruçado na janela dos passageiros. Fez um gesto com umapistola cromada em direção a Snapper.

“Ei, escroto”, disse o rapaz.“Bom dia”, respondeu Snapper. Agilmente, laçou a cabeça do rapaz com a mangueira,

puxando-o para fora do jipe. Ao ir para o chão, ele deixou cair a pistola. Snapper pegou-a. Pisouno peito do rapaz e, com a mão livre, começou a apertar a mangueira em volta de seu pescoço.

Os outros assaltantes saltaram do veículo com a intenção de salvar seu amigo e matar o carahorroroso de terno brilhante. Mudaram de ideia quando viram quem estava segurando a pistola ecorreram, abandonando o jipe.

Snapper esperou até que o rapaz caído estivesse quase inconsciente para afrouxar amangueira. “Estou precisando de gasolina emprestada para assistir a Sally Jessy.”

O rapaz sentou-se, devagar, esfregando o pescoço, que sangrava onde suas três correntes deouro haviam penetrado a carne. Usava uma camiseta sem mangas que mostrava a tatuagem nobíceps esquerdo — uma insígnia de gangue e o apelido “Baby Raper”.

Snapper disse: “Baby, você tem uma lata para carregar gasolina?”.“Merda, não.”“Que pena! Então vou ter que levar todo o jipe.”

“Não me importo. Não é meu.”“É, achei que não era.”“O que há de errado com a sua cara?”“Perdão?”“Perguntei o que tem de errado com a sua cara de merda.”Snapper foi até o jipe e retirou o CD do estéreo. Olhou-se no lado espelhado do CD, fingindo

admirar-se.“Minha cara me parece ótima”, disse depois de alguns segundos.O rapaz deu um sorriso malicioso e disse: “Meerda”.Snapper colocou a pistola em sua têmpora e ordenou-lhe que deitasse de barriga para baixo.

Depois, desceu-lhe as calças até os tornozelos.Um caminhão da companhia de eletricidade Florida Power and Light desceu a rua. O rapaz

gritou por socorro, mas o motorista não parou.Virando-se para olhar por sobre o ombro, o rapaz viu Snapper segurando o CD com o braço

levantado em direção ao céu, como se fosse uma hóstia de cromo.Snapper disse: “A pior merda de música que já ouvi”.“Cara, o que você vai fazer com isso?”“Adivinhe”, disse Snapper.

Ira Jackson estava em pé, de costas para o sol. Tony Torres franziu os olhos, protegendo avista com uma das mãos.

O vendedor disse: “Conheço você? Claro que me lembro de você”.“Minha mãe era Beatrice Jackson.”“Disse que me lembro de você.”“Minha mãe está morta.”“Ouvi dizer. Sinto muito.” Esticado na cadeira reclinável, Tony Torres estava se sentindo

vulnerável. Levantou os dois joelhos para criar um apoio melhor para a espingarda.Ira Jackson perguntou a Tony se ele se lembrava de mais alguma coisa, como, por exemplo,

das promessas que fizera a sua mãe com relação à segurança do trailer, dizendo-lhe que era tãoseguro como uma casa normal.

“Que é isso, cara, não disse nada disso.” Tony Torres estava louco para ficar em pé, masestava difícil. Qualquer movimento em falso, e a cadeira reclinável poderia desabar sob seu peso.“Aprovado pelo governo, foi o que eu disse. Essas foram minhas palavras exatas.”

“Minha mãe está morta. O extragrande despedaçou-se.”“Bem, foi um furacão de proporções gigantescas. A tempestade do século, disseram na

televisão.” Tony estava começando a se perguntar se aquele macaco estúpido não estava notandoa espingarda apontada para seu pau. “Estamos falando de um desastre natural descomunal, cara.Olhe como o furacão destruiu essas casas. A minha casa também. Droga, arrasou toda a baseaérea de Homestead. Não há como se proteger de uma coisa assim. Sinto muito sobre sua mãe,mas um trailer é um trailer.”

“O que aconteceu com os arrebites?”Meu Deus, pensou Tony, quem sabia o suficiente sobre os arrebites de merda? Fez um

esforço para parecer indignado. “Não tenho a menor ideia do que está falando.”“Achei dois deles pendurados num pedaço do trailer. As alças estavam podres. Os verrumões

eram curtos demais. Nenhum disco de segurança. Isso eu vi com meus próprios olhos.”

“Tenho certeza de que está enganado. Eles foram todos inspecionados. Todo trailer quevendemos foi inspecionado.” A confiança do vendedor havia desaparecido. Estava pouco àvontade, argumentando por argumentar.

“Admita. Alguém cortou os malditos verrumões para economizar dinheiro na instalação.”“Continue a falar assim, e vou processá-lo por calúnia.”Mesmo antes de se tornar uma condição específica de sua liberdade condicional, Ira Jackson

nunca havia carregado uma arma de fogo. Em seus muitos anos como capanga profissional, sabiabem que homens que brandiam armas de fogo acabavam sendo mortos por elas. Ele,particularmente, preferia os pés de cabra, os tacos de alumínio, as varas, as cordas de piano, osobjetos cortantes ou as meias cheias de chumbo. Qualquer um desses instrumentos teria servidopara acabar com Tony Torres, mas naquele momento Ira Jackson tinha só seus próprios punhos.

“O que você quer, afinal?”, perguntou Tony.“Uma explicação.”“Acabei de lhe dar uma explicação.” Os olhos de Tony estavam começando a lacrimejar de

tanto olhar em direção ao sol. Estava também começando a ficar preocupado. Edie, a donzela degelo, havia desaparecido com os cachorros de Ira Jackson. Que diabos significava tudo aquilo?Estariam os dois juntos em algum tipo de golpe? E onde estava o estranho de terno barato, seusuposto guarda-costas?

Tony disse a Ira: “Acho que está na hora de você ir embora”. Fez um gesto com a espingardaem direção à rua.

“É assim que você trata clientes insatisfeitos?”O vendedor deu uma risada nervosa. “Cara, você não está aqui para ser reembolsado, está?”“Tem razão.” Ira Jackson estava contente com o barulho da vizinhança — martelos, brocas,

serras, geradores elétricos. Todo mundo preocupado em reconstruir suas casas. O barulhoencobriria qualquer confusão com o vendedor.

Tony Torres disse: “Se você acha que não sei usar este calibre 12, está muito enganado. Olhesó aquele rombo na porta da garagem”.

Ira Jackson assobiou e respondeu, irônico: “Estou impressionado. Você deu um tiro na casa”.A expressão de Tony endureceu. “Vou contar até três.”“Minha mãe foi atingida por uma churrasqueira de merda.”“Um”, disse o vendedor. “A cada minuto que passa, você está parecendo mais com um

saqueador.”“Você prometeu-lhe que o trailer era seguro. A ela e a toda aquela gente pobre. Como você

consegue dormir à noite?”“Dois.”“Calma, seu gordo de merda. Já estou indo.” Ira Jackson virou-se e caminhou devagar em

direção à rua.Tony Torres respirou fundo. Sua língua parecia uma lixa. Baixou a Remington e repousou-a

sobre um dos joelhos. Observou Ira Jackson parar na entrada para carros e abaixar-se como seestivesse amarrando o sapato.

Esforçando-se para ver, Tony gritou: “Dá o fora, cara”.O bloco de concreto pegou-o de surpresa — primeiro, o simples peso do objeto, mais de treze

quilos de concreto sólido; segundo, o fato de que Ira pudesse arremessar objeto tão pesado comtanta pontaria.

O bloco atingiu o peito do vendedor, tirando-lhe a espingarda das mãos, a cerveja da bexiga eo ar dos pulmões. Ele emitiu um som sibilante, como se fosse uma cama de água sendo

esvaziada.O impacto do bloco de concreto foi tão grande que fez Tony Torres dobrar-se na altura da

cintura, fazendo com que a cadeira reclinável se fechasse sobre ele como uma ratoeira. Osgemidos que deu quando Ira arrastou-o até o carro eram praticamente inaudíveis com o barulhoda vizinhança.

7

O Instituto Médico Legal do condado de Dade era tranquilo, limpo e moderno — não separecia em nada com a ideia que Bonnie tinha de um necrotério de cidade grande. Ela admirou aideia do arquiteto: o projeto do edifício não fazia lembrar crimes violentos. O desenho alegre ecom um certo ar clerical fazia com que o prédio pudesse perfeitamente ser a sede de umacompanhia de seguros ou de uma firma de hipotecas, se não fossem os cadáveres na ala norte.

Uma secretária amável trouxe café para Bonnie, enquanto Augustine falava em particularcom um médico legista assistente. O jovem médico lembrava-se de Augustine, quando nasemana anterior ele fora retirar os restos de seu tio morto por picada de cobra. O médico ficouperplexo ao saber que a víbora agora estava solta. Enviou uma mensagem eletrônica para ohospital Memorial Jackson, alertando para a necessidade de requisitar mais soro. Depois retirou-se, levando consigo uma cópia do relatório de Bonnie à polícia.

Quando voltou, informou que o necrotério tinha dois corpos não identificados que poderiamser do marido de Bonnie. Augustine avisou-a.

“Você tem coragem de enfrentar essa situação?”, perguntou Augustine a Bonnie.“Se você for comigo.”Foi uma longa caminhada até a sala de autópsia, onde a temperatura era bem mais baixa.

Bonnie segurou a mão de Augustine enquanto passavam por diversas mesas com cadáveres emdiferentes estágios de dissecação. O cheiro da sala era nauseante: uma mistura de produtosquímicos com carne podre. Augustine sentiu que a palma da mão de Bonnie ficara fria.Perguntou-lhe se iria desmaiar.

“Não, é que pensei que eles fossem estar cobertos com lençóis.”“Só é assim nos filmes.”O primeiro cadáver tinha cabelos ralos e suíças desiguais. Era da mesma raça e idade que

Max, mas, afora isso, mais nenhuma semelhança. Os olhos do homem eram azuis-esverdeados,os de Max eram castanhos. Mesmo assim, Bonnie olhou fixamente para ele.

“Como foi que ele morreu?”, perguntou.Augustine indagou: “É Max?”.Ela abanou a cabeça negativamente, com vigor. “Mas diga-me como ele morreu.”Com uma caneta Bic, o jovem legista apontou para um furo do tamanho de uma pequena

moeda abaixo da axila esquerda do cadáver. “Ferimento de bala.”Augustine e Bonnie seguiram o médico até outra mesa. Nesse caso, a causa da morte não

tinha mistério. O segundo cadáver havia sofrido um acidente terrível. Fora escalpelado, e seurosto estava tão estraçalhado que era impossível reconhecê-lo. Uma linha preta de pontos deautópsia podia ser vista do seu peito até a pélvis.

Bonnie gaguejou: “Não sei, não dá para dizer”.“Examine as mãos dele”, disse o médico.“Não tem aliança”, comentou Augustine.“Não é isso. Nós removemos as joias por segurança. Quero que ela examine as mãos dele.”

Bonnie, aturdida, deu a volta na mesa. A cor azulada da pele do cadáver tornava difícilidentificar sua cor natural. Tinha a constituição de Max — ombros estreitos, peito ossudo,alguma gordura juvenil no corpo. Os braços e as pernas eram finos e tinham poucos pelos, comoMax...

“Então, senhora, o que me diz das mãos?”Bonnie forçou-se a olhá-las, e ficou contente de tê-lo feito. As mãos não eram as de seu

marido. As unhas estavam roídas e sujas. Max tinha as unhas sempre limpas e feitas pormanicure.

“Não, não é ele”, ela falou baixinho, como se tivesse medo de acordar o defunto sem rosto.O médico legista quis saber se Max tinha marcas de nascença. Bonnie disse que não havia

notado e sentiu-se culpada — como se não tivesse gasto tempo suficiente examinando detalhesno corpo e nos membros de Max. A maioria dos amantes podia contar todos os detalhes um dooutro.

“Lembro-me de um sinal”, disse ela, como quem quisesse ajudar. “Num de seus cotovelos.”“Qual cotovelo?”, perguntou o médico.“Não me lembro.”O médico verificou os cotovelos do cadáver. Não havia sinais. Bonnie deu de costas para o

cadáver e apoiou a cabeça no peito de Augustine.“Ele estava dirigindo uma moto roubada, com um micro-ondas amarrado na garupa”,

comentou o médico.Augustine suspirou, irritado. “Mais um saqueador do furacão.”“É. Bateu num caminhão a mais de 120 quilômetros por hora.”“Agora é que o senhor nos conta isso?”, disse Bonnie.Bonnie só se deu conta do alívio que sentia quando entrou na caminhonete de Augustine.

Não encontrei Max no necrotério porque ele ainda está vivo. Isso é bom. Devia sentir-me feliz,pensou ela. Então Bonnie começou a tremer imaginando seu marido exposto como um peixenuma bandeja de aço brilhante.

Quando voltaram ao lugar onde Max havia desaparecido, acharam o carro depenado. O capôdo motor estava aberto e o radiador havia sido retirado. O bilhete de Augustine continuava nopara-brisa — prova do alto grau de analfabetismo existente entre os ladrões de carros. Augustineofereceu-se para chamar o guincho.

“Mais tarde”, disse Bonnie laconicamente.“Foi o que quis dizer. Mais tarde.” Ele trancou a caminhonete e ligou o alarme. Caminharam

pelas ruas por quase duas horas, Augustine com seu 38 especial preso no cinto. Supunham que oraptor de Max pudesse ter se escondido, por isso verificaram todas as casas abandonadas. Ao irde uma quadra para outra, Bonnie puxava conversa com as pessoas que consertavam suas casas.Tinha a esperança de que alguém pudesse ter visto Max na manhã que se seguiu ao furacão.Vários moradores contaram terem visto macacos, mas ninguém se lembrava de ter visto umturista sequestrado.

Augustine levou Bonnie, na caminhonete, até o posto da polícia no metrô. Lá ela telefonoupara a agência de aluguel de carros em Orlando e para o serviço de guincho. Depois ligou paraseu apartamento em Nova York, para ouvir as mensagens. Depois de escutar por um minuto,pressionou o botão para a repetição da mensagem e passou o telefone a Augustine.

“Inacreditável”, disse ela.Era a voz de Max na linha. A estática era tão forte que parecia que ele estava telefonando do

Tibete.

“Bonnie, querida, está tudo bem. Acredito que minha vida não está em perigo, mas não seiquando ficarei livre. É complicado demais pra explicar pelo telefone. Ah, espera aí. Ele quer queeu leia uma coisa. Pronta? Aqui vai:

“‘Nada tenho a ver com a máquina rangente da humanidade — pertenço à terra. Digo issodeitado em meu travesseiro, e posso sentir os chifres brotando de minhas têmporas’.

“Bonnie, querida, parece pior do que é. Por favor, não conte nada aos meus velhos. Nãoquero papai todo preocupado por nada. E, por favor, telefone a Pete e peça-lhe que me arranjeuma licença médica, para o caso de essa situação se prolongar, sabe como é. E diga a ele paraadiar a reunião com a Bronco na semana que vem. Não esqueça, ok? Diga-lhe que de modonenhum Bill Knapp deve entrar no negócio da Bronco. A conta ainda é minha...”

Nesse ponto, a voz de Max sumia e os barulhos da estática ficavam mais altos. Augustinedesligou. Acompanhou Bonnie de volta até a caminhonete.

Ela entrou e disse: “Essa história está me deixando louca”.“Vamos telefonar de novo da minha casa e gravar a mensagem.”“Tenho certeza de que isso vai fazer o FBI entrar em ação, especialmente a poesia.”“Na verdade, acho que foi tirada de um livro.”“O que quer dizer?”Augustine debruçou-se por sobre seu colo e colocou o 38 no porta-luvas. “Quer dizer que seu

marido não está tão a salvo quanto pensa.”

Na sua grande maioria, os patrulheiros rodoviários do norte da Flórida não ficaram contentescom sua transferência temporária para o sul. Muitos teriam preferido ir para Beirute ou para aSomália. Jim Tile era uma exceção. Seu deslocamento para Miami significaria momentospreciosos com Brenda Rourke, embora as horas extras na zona do furacão os deixassem exaustose com pouca energia para cair nos braços um do outro.

Jim Tile não previra que o ex-governador entraria em ação. Mas não era uma surpresa total,uma vez que o homem idolatrava furacões. Ignorar sua presença teria sido egoísta eirresponsável. O patrulheiro prezava sua amizade com Skink e sabia a capacidade dele para secomportar de forma extremamente estranha. Jim Tile queria manter-se por perto.

Na era das coisas politicamente corretas, um homem negro e grande, num uniformeimpecavelmente passado, podia transitar à vontade pelos corredores da burocracia branca, semser questionado. Jim Tile procurou tirar vantagem disso nos dias que se seguiram ao furacão.Misturou-se, com autoridade, com os chefes do condado de Dade, com a polícia de Homestead,com os bombeiros, com os voluntários da Cruz Vermelha, com os membros da Guarda Nacional,com o comando do Exército e com os agentes secretos da Agência Federal de Gerenciamento deEmergências. Entre os turnos de seu patrulhamento, Jim Tile se servia de café e de formulários,registros de chamadas de emergência, informações do computador, relatórios sobre ocorrências— não procurava nada em particular, apenas uma pista de Skink.

Acontece que a loucura tomava conta da população nos dias que se seguiram ao furacão. JimTile examinava os documentos e pensava: Meu Deus, há gente pirando em toda a cidade.

Os equipamentos para reconstrução das casas começaram a ser crescentemente utilizadoscomo armas de violência doméstica. Milhares de vítimas da tempestade haviam corrido paracomprar serras elétricas, e agora estavam utilizando-as para dar vazão à sua raiva. Um cavalheirohavia tentado cortar um agente de seguros teimoso com uma Black & Decker. Uma velha nacidade da Flórida havia usado uma Sears leve para silenciar uma cacatua tagarela de um vizinho.

E, em Sweetwater, dois adolescentes haviam decepado o braço um do outro num espetacularduelo de Homelites.

Se as serras elétricas dominavam o dia, as armas de fogo dominavam a noite. Com medo desaqueadores, os proprietários das casas descarregavam armas ao ouvir qualquer barulho depassos, qualquer farfalhar de árvores, ou pequenos furtos na escuridão. As perdas já incluíamsete gatos, treze cachorros, dois gambás e um caminhão de lixo, mas nenhum ladrão de verdade.Residentes de uma área rural relataram que deram muitos tiros para espantar um bando demacacos saqueadores — um episódio que Jim Tile descartou como fruto de alucinação coletiva.Resolveu então limitar sua investigação aos acontecimentos do dia, sempre que possível.

Praticamente todas as pessoas dadas como desaparecidas eram residentes locais que haviamfugido de suas casas e perdido contato com parentes preocupados do Norte. A maioria erareencontrada sã e salva em abrigos ou em casas de vizinhos. Mas um caso chamou a atenção deJim Tile: o de um homem chamado Max Lamb.

De acordo com a informação prestada por sua esposa, eles haviam chegado a Miami namanhã seguinte à do furacão. A senhora Lamb contara à polícia que seu marido queria observarde perto os danos causados pelo furacão. O patrulheiro não ficara surpreso — as ruas estavamatulhadas de pessoas de fora da cidade que tratavam o furacão como uma atração turística.

O senhor Lamb saíra em seu carro alugado em busca de cenas para filmar. Pareciaimprovável para Jim Tile que alguém de Nova York pudesse se perder, a pé, nos cruzamentossimples e planos de Miami. As suspeitas do patrulheiro aumentaram com um relatório queencontrou embaixo de uma pilha de documentos.

Uma senhora de setenta e quatro anos havia telefonado para dizer que testemunhara umpossível sequestro. O evento fora resumido em dois parágrafos por um policial de plantão:

“A depoente relatou que um sujeito suspeito corria pela quadra 10 700 da Quail Roost Drive,carregando um indivíduo no ombro. O suspeito é descrito como branco, sexo masculino, altura epeso desconhecidos. O indivíduo também foi descrito como branco, sexo masculino, altura epeso desconhecidos.

“A depoente também relatou que o indivíduo parecia estar resistindo e que possivelmente seencontrava nu. O suspeito carregava um revólver com uma luz vermelha intermitente. A buscana área pelas unidades 2334 e 4511 foi infrutífera”.

Jim Tile desconhecia pistolas com luzes vermelhas intermitentes, mas sabia que a maioriadas câmeras de vídeo manuais tinham essas luzes. De uma certa distância, uma pessoa idosapoderia confundir uma coisa com a outra.

Talvez a velha senhora tivesse testemunhado o rapto de Max Lamb. Jim Tile torcia para quenão. Esperava que o ocorrido fosse apenas mais uma briga comum, e não um ato de seu amigo,morador dos pântanos e sabidamente hostil a turistas mal-educados.

O patrulheiro tirou uma cópia do relato da senhora Lamb e colocou-o em sua pasta, juntocom vários outros. Tentaria entrevistá-la quando tivesse algum tempo livre.

Tinha só vinte minutos para ir encontrar Brenda para o almoço antes que ambos tivessem quecomeçar um outro turno de patrulhamento. Poder vê-la, ainda que por alguns minutos, fazia valera pena ter que trabalhar nas ruas enlouquecidas da Flórida.

Assim, Jim Tile ficou aborrecido ao testemunhar pessoalmente o roubo de um caminhão doExército da Salvação quando se dirigia para o restaurante onde se encontraria com Brenda. Opatrulheiro foi obrigado a perseguir o caminhão e, até o incidente terminar, perdeu a hora.

Enquanto desarmava e algemava o ladrão, Jim Tile perguntou a si mesmo, em voz alta, porque alguém que não fosse completamente idiota usaria uma MAC-10 para roubar um caminhão

cheio de roupas de segunda mão. O jovem explicou que sua ideia original era pichar o caminhãocom a insígnia de sua gangue, mas que antes de terminar a tarefa o motorista havia dado partidano veículo. Ficou, assim, sem escolha, por uma questão de honra, e teve que usar suametralhadora para roubar o caminhão.

Ao fazer com o que o ladrão tagarela entrasse na parte traseira de sua radiopatrulha, Jim Tilefez uma promessa em silêncio de redobrar seus esforços para convencer Brenda a pedirtransferência desse buraco infernal chamado Miami para outro buraco infernal, mais civilizado,onde pudessem trabalhar juntos.

Snapper estava orgulhoso do modo como se apoderara do jipe, mas Edie não demonstrou omenor interesse pela sua proeza.

“Que história é essa?”, perguntou Snapper apontando para os cachorros basset.“Donald e Maria”, disse Edie contrariada. Os animais puxavam-na de um lado para outro no

jardim da casa de Tony e urinavam em todo canto. Edie se espantou com a força de suas pernas.“A propósito”, disse ela lutando com as correntes, “aquele cretino levou só três minutos para

agarrar meus peitos.”“Grande coisa! Então você ganhou a aposta.”“Segure estes malditos cachorros.”Snapper deu um passo para trás. Os inúmeros contatos com cães da raça pastor alemão da

polícia haviam-no deixado com cicatrizes, nos planos físico e psicológico. Com o passar dosanos, tinha se tornado uma pessoa que preferia gatos a cachorros.

“Solte-os.”No momento em que ela soltou as correntes, os dois cachorrinhos se enroscaram em seus pés.“Maravilha!”, disse Snapper com um grunhido. “Ei, olhe o que consegui”, e mostrou a

pistola cromada. Ao segurá-la na palma da mão, percebeu que estava vazia. Então, atirou-a napiscina suja.

Edie Marsh contou a Snapper sobre o cara durão, com sotaque nova-iorquino que vieraprocurar Tony Torres. “Você escolheu uma hora fantástica para desaparecer.”

“Cala essa boca suja.”“Bem, Tony desapareceu. Até a maldita cadeira de praia sumiu. Calcule você mesmo o que

aconteceu.”“Merda.”“Ele não vai voltar. Não inteiro, pelo menos”, disse Edie com seriedade.Um bloco de concreto podia ser visto no lugar da cadeira de praia de Tony. Snapper

amaldiçoou a hora em que tinha ido buscar gasolina. Os dez mil dólares já eram. Mesmo nahipótese improvável de que o vendedor voltasse, nunca concordaria em pagar a um guarda-costasausente na hora do perigo. Snapper havia estragado tudo. Não tinha jeito mesmo para ser guarda-costas.

Disse a Edie: “Acho que você não tem outro plano”.Uma sirene abafou a resposta de Edie, que foi acompanhada por um gesto obsceno. Uma

ambulância apareceu descendo a rua em alta velocidade. Snapper supôs que estivesse levandoBaby Raper para o hospital, para alguma cirurgia de emergência. Ele não ficaria surpreso seencontrasse algum dia um artigo falando sobre isso em alguma revista especializada emmedicina.

Snapper viu a espingarda de Tony em pedaços na entrada para carros. Pensou: Estádefinitivamente na hora de dar esta missão por encerrada. Amanhã, telefonaria a Avila para falar

sobre o negócio dos telhados.“Te dou uma carona, mas não com os malditos cachorros”, disse a Edie.“Meu Deus, não posso simplesmente abandoná-los aqui.”“Como você quiser.” Snapper pegou três cervejas Heineken, entrou no jipe e foi embora sem

sequer um aceno.Edie Marsh amarrou Donald e Maria a um aspersor no quintal dos fundos. Depois, entrou nas

ruínas da casa do vendedor para ver se achava algum objeto de valor.

Skink mandou Max tirar a roupa e subir numa árvore. Era um salgueiro sem folhas. Maxsubiu, sentou-se cuidadosamente num galho que balançava, com as pernas nuas penduradas. Láembaixo, Skink caminhava de um lado para outro, furioso. Numa mão segurava o controleremoto para a coleira.

“Vocês vêm aqui, engomadinhos de merda, sem nenhum conhecimento, nenhum cuidado,nenhum interesse pela história deste lugar, o antigo sopro da vida. Disney World, meu Deus,Max, não é a Flórida.” E apontando um dedo incriminador para Max: “Achei as entradas usadasna sua carteira, seu turista”.

Max estava perplexo. Presumira que todo mundo gostava da Disney World. “Por favor, sevocê me der um choque agora, vou cair da árvore.”

Skink tirou a touca de banho estampada da cabeça e ajoelhou-se perto das cinzas do fogo.Max Lamb estava extremamente preocupado. Mosquitos negros atacavam os dedos de seus pés,mas ele não ousava matá-los. Tinha medo de mover um músculo sequer.

Durante o dia, o humor do sequestrador parecera melhor. Até levara Max a um posto emTamiami Trail, para que ele pudesse telefonar para Bonnie. Enquanto Max esperava pelotelefonema pago, Skink havia corrido pela beira da estrada para caçar outro pequeno animal.Estivera de bom humor, quase amigável. Cantara durante todo o caminho de volta aoacampamento. Mais tarde, apenas repreendera levemente Max por não saber que Neil Younghavia tocado guitarra para Buffalo Springfield.

Max Lamb se achava abençoado com uma personalidade vitoriosa. Essa ilusão o fazia crerque o sequestrador tinha simpatizado com ele. Achava que era apenas uma questão de tempo, elogo seria libertado. Não acreditara na história de vida que Skink lhe contara. Achava-o umpobre coitado desequilibrado, mas até que inteligente. Em outras palavras, um ser confuso, quepoderia ser conquistado com uma atitude compreensiva. E não era esse o forte de um publicitário— conquistar as pessoas? Max acreditava que estava fazendo progresso nesse sentido, com umaconversa agradável, algumas anedotas inofensivas e, ocasionalmente, uma brincadeiraautodepreciativa. Skink certamente estava agindo de forma mais calma, quase serena. Três horashaviam se passado desde que acionara pela última vez a coleira de choque. Para Max, isso eraencorajador.

Agora, por razões desconhecidas, o monstro caolho estava todo nervoso de novo. Anunciou aMax: “Vamos fazer um teste rápido de conhecimentos gerais”.

“Sobre o quê, exatamente?”Skink levantou-se devagar. Enfiou o controle no bolso de trás. Com ambas as mãos, pegou o

cabelo rebelde e amarrou-o de um lado da cabeça, acima da orelha — como se fosse um rabo decavalo fora do lugar. Depois, removeu o olho de vidro e o limpou com um lenço coloridoimundo. Max ficou ainda mais preocupado.

“Quem esteve aqui primeiro, os seminoles ou os tequestas?”

“Eu, uh, não sei.” Max segurou-se com tanta força ao galho que os nós de seus dedos ficaramvermelhos.

Skink recolocou o olho de vidro e tornou a segurar o controle remoto. “Quem foi NapoleonBonaparte Broward?”

Max Lamb balançou a cabeça negativamente. Skink encolheu os ombros. “E que tal MarjoryStoneman Douglas?”

“Sim, sim, espere um minuto. Acho que ela escreveu The yearling”, Max respondeu nervoso,fazendo o galho agitar-se sob seu peso.

Alguns momentos depois, ao voltar à consciência, viu-se numa posição fetal cheio de limo nochão. Ambos os seus joelhos estavam arranhados, por causa da queda. Sua garganta e seusbraços ainda estavam ardendo do choque que levara. Ao abrir os olhos, viu a ponta das botas deSkink. Ouviu uma voz tão profunda como a de um trovão: “Deveria matá-lo”.

“Não, não faça isso.”“Sua arrogância de vir para um lugar assim e não saber...”“Sinto muito, capitão.”“Não se preocupando em aprender...”“Eu lhe disse que trabalho com publicidade.”Skink colocou a mão sob o queixo de Max e perguntou: “No que você acredita?”.“Pelo amor de Deus, é minha lua de mel.” Max estava à beira do pânico.“O que você defende? Diga-me.”Max encolheu-se de medo. “Não sei.”Skink deu uma risada amarga. “Para sua referência futura, você confundiu as Marjories.

Rawlings escreveu The yearling. Douglas escreveu River of grass. Estou com um palpite de quevocê não vai esquecer mais.”

Skink limpou o sangue dos arranhões das pernas de Max e disse-lhe que pusesse as roupas.Com a confiança destruída, Max vestiu-se vagarosamente. “Você algum dia vai me deixarpartir?”

Skink parecia não ter ouvido a pergunta. Falou, fazendo outra fogueira: “Sabe de que eurealmente gostaria? De conhecer sua mulher”.

“Isso é impossível”, disse Max, baixinho.“Oh, nada é impossível.”

Dentre os inúmeros fora da lei que acorreram para o sul nas horas febris que se seguiram aofuracão, havia um homem chamado Gil Peck. Seu plano era fazer-se passar por um pedreiroexperiente, roubar o que pudesse em depósitos adiantados e depois voltar para o Alabama. Ogolpe tinha dado certo com as vítimas do furacão Hugo na Califórnia do Sul, e Gil Peck estavaconfiante de que funcionaria também em Miami.

Ele chegou num caminhão aberto de quatro toneladas, trazendo um pequeno mas persuasivocarregamento de tijolos vermelhos que tinha roubado de um canteiro de obras em Mobile — seudestino original era uma nova ala para câncer num hospital pediátrico. Gil Peck havia assistido àinauguração do início das obras na televisão. Naquela tarde, havia recolhido os tijolos, carregadoo caminhão e se dirigido diretamente para o sul da Flórida.

Até o momento, o negócio esta indo muito bem. Gil Peck havia coletado quase dois mil eseiscentos dólares em dinheiro de meia dúzia de proprietários de casas desesperados. A todoshavia dito que retornaria no sábado com seu caminhão cheio de tijolos. Nesse dia, é claro, GilPeck já teria partido.

Durante o dia, ele trabalhava no golpe. À noite, vasculhava os escombros do furacão, embusca de objetos de valor. O grande caminhão aberto impunha certa autoridade, e ninguémquestionava sua presença nos lugares. Mesmo depois do toque de recolher, os membros daGuarda Nacional mandavam-no passar pelas barricadas luminosas.

Muitos objetos de valor sobreviveram à devastação da tempestade, e Gil Peck tornou-se umperito em garimpagem de escombros. Um inventário de seus dois dias de trabalho incluía: umatorradeira, uma esteira elétrica, um jogo de prata de chá, três rifles sem marca, um telefonecelular Panasonic, dois pares de tacos de golfe, um pacote de um quilo de haxixe, um candelabrode metal, um tanque de oxigênio de escafandro, um anel de ouro de formatura da Universidadede Miami (classe 1979), um par de algemas da polícia, uma coleção rara de pornografiafinlandesa, um fantoche imitando Michael Jackson, um vidro de Darvocets de cem miligramas,uma caixa com discos de Willie Nelson, uma vara de pescar Loomis, uma gaiola para pássaros evinte e uma calcinhas de mulher, tipo biquíni.

Ao explorar os restos de um estacionamento para trailers, Gil Peck ficou feliz. Saltitava indode uma ruína a outra, seguindo a luz de sua lanterna. Graças à Guarda Nacional, à PatrulhaRodoviária e à polícia do condado de Dade, naquela noite de verão estava sozinho e livre parasaquear à vontade.

E o que viu no meio de uma quadra para jogos fez seu coração ambicioso bater mais forte dealegria: uma enorme antena parabólica. O furacão sem dúvida havia carregado o disco de algumapropriedade milionária para o estacionamento de trailers para que Gil Peck pudesse apossar-sedele. Com a lanterna, acompanhou a curva externa e verificou que havia apenas um pequenoamassado. Afora isso, o disco de dois metros e meio estava em perfeitas condições.

Gil Peck sorriu e pensou: Cara, devo estar fazendo alguma coisa certa. Uma antena daqueletamanho valeria uns dois mil dólares, fácil. Poderia também ser colocada no seu próprio quintal,atrás do galinheiro, e ele assistiria aos canais de filmes de graça, para o resto da vida.

Deu a volta para verificar o outro lado do disco. Ficou chocado com o que a luz da lanternarevelou: dentro dele havia um homem morto, pousado ali como uma borboleta.

O cadáver estava empalado no cone do tubo receptor, mas não por obra do furacão. Suasmãos e seus pés tinham sido cuidadosamente amarrados à grade do disco, numa pose decrucificação. O homem era obeso, começava a ficar careca e não tinha a menor semelhança comJesus Cristo, de acordo com a formação batista de Gil Peck. Não obstante, a cena perturbou ofalso pedreiro de tal forma que ele começou a choramingar.

Desligou a lanterna e sentou-se na quadra a fim de acalmar-se. Agora, roubar a antena jáestava fora de questão. Gil Peck estava apenas reunindo coragem para roubar o relógio de ouroque vira no pulso esquerdo do cadáver.

Exceto quando beijara sua avó no caixão, ele nunca tocara num cadáver antes. Graças aDeus, pensou, os olhos do cara estão fechados. Agilmente, pulou na antena, que começou arodopiar com o seu peso. Segurando a lanterna na boca, direcionou a luz para o pulso do homem.

O fecho do relógio era muito difícil de abrir. O rigor mortis contribuía para a dificuldade datarefa. O cara crucificado se recusava a abrir mão do relógio. Quanto mais Gil Peck lutava com ocadáver, mais a antena rodopiava em seu eixo. Ele estava ficando tonto e zangado. No exatomomento em que conseguiu enfiar um canivete entre a pele rígida e a pulseira do relógio, ohomem morto expeliu uma flatulência, o que fez Gil Peck saltar aterrorizado do disco.

Edie Marsh pagou um garoto da vizinhança para puxar gasolina do carro abandonado deSnapper e dar manivela no gerador portátil. Deu ao garoto uma nota de cinco dólares que

encontrou escondida numa caixa de ferramentas na garagem, junto com cinco outras notas.Quantia tão ínfima certamente não merecia ser escondida. Edie tinha certeza de que deveriahaver mais dinheiro guardado na casa.

Ao anoitecer, desistiu da busca e instalou-se na espreguiçadeira de Tony Torres, com um péde cabra a seu lado. Aumentou o volume da televisão ao máximo para abafar os ruídos esussurros da noite. Sem portas, janelas ou teto, a casa de Tony era basicamente um acampamentoaberto. Lá fora estava escuro e amedrontador. As pessoas que passavam pelas ruas escuraspareciam fantasmas. Edie Marsh sentia-se nervosa por estar só. Teria fugido com prazer noChevrolet de Tony se ele não estivesse bloqueado pelo carro de Snapper, e teria se apoderado docarro de Snapper se ele não tivesse levado as chaves. Estava, assim, presa na casa de Tony até odia clarear, quando seria mais seguro para uma mulher caminhar pelas ruas com dois cachorrosbasset.

Planejava sair do condado de Dade antes que algo mais desse errado. A aventura tinha sidodesastrosa, e Edie só culpava a si mesma. Seu modesto passado criminal não a preparara para oclima ameaçador da zona do furacão. Todo mundo estava nervoso. A maldade, a violência e aparanoia grassavam na região. Edie Marsh estava se sentindo deslocada. Amanhã pegaria umacarona até West Palm e fecharia o apartamento. Depois tomaria o trem para casa, emJacksonville, onde tentaria fazer as pazes com seu namorado. Calculava que a reconciliaçãoexigiria que chupasse seu pau por pelo menos uma semana, considerando a quantia que haviaretirado de sua conta bancária. Mas, no final, ele a aceitaria de volta. Os homens sempreaceitavam as mulheres de volta.

Edie Marsh estava assistindo, entediada, a um programa de jogos e brincadeiras na televisão,quando ouviu a voz de um homem chamando na porta da frente. Pensou: É Tony. O porcovoltou.

Agarrou o pé de cabra e pulou da espreguiçadeira. O homem da porta levantou os braços edisse: “Calma, calma”.

Não era Tony. O homem era magro e louro, usava óculos de aros redondos e trazia uma pastamarrom que combinava com seus sapatos Hush Puppy. Numa das mãos, carregava um arquivode papel.

“O que você quer?”, Edie segurava o pé de cabra displicentemente, como se costumasse fazerisso sempre.

“Não queria assustá-la. Meu nome é Fred Dove. Trabalho para a companhia de segurosMidwest Casualty.”

“Oh”, Edie Marsh sentiu um formigamento agradável, como na primeira vez em queconhecera um jovem Kennedy.

Dando uma olhada no arquivo, Fred Dove disse: “Talvez esteja no endereço errado. Aqui é o15 600 da Calusa?

“Exato.”“E a senhora é a senhora Torres?”Edie sorriu. “Por favor, chame-me de Neria.”

8

Bonnie e Augustine estavam cortando uma pizza quando o amigo dele do FBI chegou parapegar a fita com a última mensagem de Max. Ele ouviu a mensagem de Max várias vezes notoca-fitas na sala de estar. Bonnie aproveitou para estudar a expressão do agente, quepermaneceu completamente neutra. Supôs que eles tivessem treinamento para isso na Academia.

Quando o agente terminou de ouvir a fita, virou-se para Augustine e disse: “Li isso em algumlugar. Essa poesia sobre a máquina rangente da humanidade”.

“Eu também. Tenho dado tratos à bola para descobrir onde.”“Meu Deus, posso ver o pessoal em Washington submetendo a poesia a uma equipe de

psiquiatras.”“Ou criptógrafos”, disse Augustine.O agente do FBI sorriu. “Exatamente.” Aceitou um pedaço de pizza para comer no caminho e

deu boa-noite.Augustine fez uma pergunta a Bonnie que provavelmente passara pela cabeça do agente:

“Seria possível que Max Lamb tivesse escrito a poesia ele próprio?”.“Nunca”, respondeu ela. Seu marido escrevia modinhas e jingles, não textos metafísicos. “E

ele não lê muito”, acrescentou. “O último livro que leu foi uma das autobiografias do Trump.”A resposta de Bonnie foi suficiente para convencer Augustine de que Max não estava

fingindo. O sequestrador tinha lhe dado a poesia para ler. Augustine não sabia a razão. Asituação era, sem dúvida, extremamente bizarra.

Bonnie tomou uma ducha. Saiu do banheiro vestindo um camisão de dormir de flanela, azul-claro, que Augustine disse pertencer a uma antiga namorada. Bonnie o havia achado penduradono armário.

“Este camisão tem alguma história?”, perguntou Bonnie.“Uma história tórrida.”“Mesmo?” Bonnie sentou-se ao lado dele no sofá, a uma distância confortável. “Deixa ver se

eu adivinho. Aeromoça?”Augustine comentou apenas que o show na televisão era uma repetição da semana anterior.Bonnie continuou. “Garçonete? Modelo? Não consigo acertar.”Augustine pegou um livro, uma biografia de Lech Walesa, e abriu-o nas páginas do meio.“Professora de aeróbica? Secretária de advogado?”“Médica residente”, disse Augustine. “Tentou extrair meus rins uma noite no chuveiro.”“É por isso que você tem essa cicatriz nas costas, essa com forma de Y?”“Por sorte ela não era urologista.” Ele fechou o livro e pegou o controle remoto da televisão.“Você a traiu.”“Não, mas ela cismou que sim. Também costumava achar que a banheira estava cheia de

centopeias, que agentes cubanos estavam tentando envenenar sua limonada e que Richard Nixontrabalhava numa fazenda à noite.”

“Ela era viciada em drogas?”

“É claro que sim.” Augustine finalmente sintonizou num jogo dos Dodgers e fingiu estarprofundamente interessado.

Bonnie Lamb pediu para ver a cicatriz de perto, mas ele recusou-se a mostrá-la, comentando:“A moça era muito incompetente”.

“Ela usou um bisturi de verdade?”“Não, um saca-rolhas.”“Minha nossa.”“Por que as mulheres se sentem tão atraídas por cicatrizes?”“Tô entendendo. Outras mulheres já te perguntaram sobre esta cicatriz antes, não é?”, disse

Bonnie.Será que ela estava flertando? Augustine não tinha certeza. Não tinha referência do passado,

em se tratando de mulheres casadas cujos maridos haviam desaparecido.“Que tal um acordo? Você me conta tudo sobre o seu marido, e eu lhe mostro a droga da

cicatriz.”“Negócio fechado”, respondeu Bonnie, puxando o camisão para baixo, de modo a encobrir os

joelhos.

Max Lamb conhecera Bonnie e se apaixonara por ela quando ela era relações públicas daCrespo Mills International, uma empresa líder no ramo de lanches e alimentos para o café damanhã. Rodale & Burns havia conquistado a lucrativa conta de publicidade da Crespo edesignaram Max Lamb para desenvolver a publicidade de um novo tipo de cereal denominadoPlum Crunchies. Bonnie viera de Chicago para consultas preliminares.

Basicamente, o Plum Crunchies era feito de flocos de milho açucarados, misturados compedaços duros como pedra de ameixas secas — em outras palavras, pedaços de passas. A palavra“passa” não deveria, contudo, jamais ser utilizada nos comerciais escritos ou falados, pordeterminação da empresa, com o que Max e Bonnie concordavam. Afinal, a faixa etária a seratingida era composta por adolescentes que gostavam de doces, e não por cidadãos idososconstipados.

No segundo encontro que tiveram, num restaurante paquistanês, Max fez o autoelogio doslogan que havia inventado para o cereal: “Plum Crunchies: é cataplum!”.

“Quer dizer, o pessoal vai mergulhar, fazer cataplum!”, ele fez questão de explicar.Embora Bonnie não tivesse gostado muito da frase, disse que tinha possibilidades. Estava

tentando não arrefecer seu entusiasmo. Além disso, ele era o perito, o talento criativo. Ela apenaselaborava comunicados de imprensa medíocres.

Num guardanapo, Max rabiscou esquematicamente um pássaro mainá vistoso e explicou queele seria o mascote do cereal. Disse, ainda, que ele seria colorido de violeta, a cor de umaameixa, e chamado de Dinah, o Mainá. Nesse ponto, Bonnie achou que devia falar o que pensavae lembrar Max que muitos outros cereais já usavam pássaros nos seus logotipos, como FrootLoops, Cocoa Puffs, Kellogg’s Corn Flakes, e assim por diante. Além disso, questionou aconveniência de chamar o pássaro de Dinah, nome de uma cantora popular da televisão emfranco processo de envelhecimento.

Bonnie: O pássaro tem que ser mulher?Max: O pássaro não tem gênero.Bonnie: E os mainás de verdade comem ameixas?Max: Você é uma gracinha, sabia?

Ele estava se enamorando dela e ela dele (embora não tão rapidamente). O que acabouacontecendo é que os chefes de Max na Rodale & Burns gostaram do slogan, mas odiaram aideia do mainá. Os executivos da Crespo foram da mesma opinião. Quando o cereal finalmentefoi posto no mercado, a caixa apresentava um desenho do lendário jogador de basquete PatrickEwing batendo rapidamente numa ameixa, como se fosse uma bola. Pesquisas revelaram, maistarde, que muitos clientes haviam pensado que a bola era uma uva ou uma passa gigante. Ocereal acabou não conseguindo atrair um número significativo de consumidores e foi retirado domercado.

O romance a distância de Max e Bonnie, no entanto, perdurou. Ela se sentia atraída por suaenergia, determinação e autoconfiança, apesar de saber que essas qualidades muitas vezes erammal utilizadas. Embora incomodasse Bonnie o fato de que Max julgava a humanidadeestritamente pela idade, sexo, raça e renda média, atribuía essa frieza à influência do trabalho empublicidade. Ela própria havia ficado cética quanto à capacidade intelectual do consumidormédio, dado o sucesso internacional de alguns produtos duvidosos da Crespo, como bolas demassa salgada, pasta de oliva batida e pipoca com sabor de camarão.

Nos primeiros meses de namoro, Max inventara uma brincadeira para impressionar Bonnie.Apostara com ela que poderia adivinhar o modelo do automóvel de uma pessoa apenas com baseem sua aparência física, seu comportamento e suas roupas. O dom era intuitivo, segundo Max.Disse a Bonnie que era esse dom que o fazia um publicitário tão sagaz. Quando saíam, ele àsvezes seguia pessoas na saída de restaurantes ou de cinemas para verificar que carro estavamdirigindo. “Ah, um Lumina... Eu não lhe disse? O cara tinha todo o jeito de quem dirigia umcarro médio.” Max ficava todo convencido quando seu palpite estava certo, o que, segundo aavaliação generosa de Bonnie, acontecia apenas em cinco por cento das vezes. Passado algumtempo, Bonnie não aguentava mais a brincadeira e pediu que ele parasse. Max não se ofendeu.Dificilmente se ofendia. Essa característica também, segundo Bonnie, era devida ao trabalho compublicidade.

Enquanto o pai de Bonnie era indiferente mas amável com Max, a mãe dela o detestavaabertamente. Achava que ele se esforçava demais para ser agradável e pressionava muito nosassuntos amorosos. Considerava que ele tentava vender sua própria imagem a Bonnie, da mesmamaneira como vendia imagens de cereais ou de cigarros. Não que a mãe de Bonnie pensasse queMax era falso. Pelo contrário, achava que ele era exatamente o que aparentava ser: totalmenteobcecado por um determinado objetivo, em todos os momentos do dia. Segundo ela, ocomportamento de Max no trabalho e em casa era exatamente o mesmo. O sucesso significavatudo para ele. Não gostava também de sua arrogância disfarçada, como se tivesse certeza de queseria vencedor em tudo. Bonnie estranhava essa última crítica, uma vez que sua mãe sempreachara todos os seus outros namorados tímidos, desmotivados e perdedores na vida. Nãoobstante, nunca havia chamado nenhum de seus outros namorados de babaca, mas se referia aMax só dessa forma. Isso incomodou Bonnie até o dia de seu casamento.

No momento, estando Max nas mãos de um sequestrador maluco, Bonnie se preocupava comoutra coisa que sua mãe havia dito a respeito dele. Uma característica tão óbvia que até Bonnienotara. Augustine também sabia do que ela estava falando.

“Seu marido acha que é mais esperto do que todo mundo, não é?”“Infelizmente, é isso.”“Eu noto pelas mensagens que ele deixa.”“Bem”, disse ela, buscando coragem, “até agora ele tem conseguido.”

“Talvez ele tenha aprendido a ficar calado nos momentos certos.” Augustine levantou-se,espreguiçando-se. “Estou cansado. Podemos deixar a cicatriz para outra hora?”

Bonnie riu e respondeu: “Claro que sim”. Esperou até ouvi-lo fechar a porta do quarto e ligoupara a casa de Peter Archibald, em Connecticut.

“Acordei você?”, perguntou.“Não. Max disse que você provavelmente telefonaria.”Bonnie perdeu a fala por um momento. “Você falou com Max?”“Por mais ou menos uma hora.”“Quando?”“Hoje à noite. Ele estava fora de si, pensando que Bill Knapp vai roubar-lhe a conta da

Bronco. Disse-lhe que não se preocupasse. Bill está muito ocupado com um show idiota derodeio.”

“Peter, deixa isso para lá. De onde Max ligou?”“Não sei, Bonnie. Presumi que ele tivesse falado com você antes.”Bonnie fez um esforço para não demonstrar que estava magoada com o silêncio de Max. “Ele

lhe contou o que aconteceu?”Do outro lado da linha, Peter pareceu ficar nervoso. “Não todos os detalhes, Bonnie. Todo

mundo, ou pelo menos todos os casais que conheço passam por problemas na cama, brigas e tal.Não a culpo por não me contar a verdade na primeira vez que você ligou.”

A voz de Bonnie saiu mais alta. “Peter, Max e eu não estamos brigados, e eu lhe contei averdade.” Contendo-se um pouco, continuou: “Pelo menos contei o que Max me contou”.

Depois de uma pausa desconfortável, Peter Archibald disse: “Bem, vê se vocês doisconseguem resolver isso. Não quero me intrometer”.

“Você tem toda razão, toda razão.” Notou que sua mão estava fortemente cerrada e quebalançava na cadeira.

“Peter, não quero abusar de sua paciência, mas talvez você possa me contar o que mais Maxdisse.”

“Coisas de trabalho, Bonnie.”“Por uma hora?”“Bem, você conhece o Max. Ele se entusiasma e não para mais. Você sabe como ele é.”Talvez não saiba, pensou Bonnie.Deu boa-noite a Peter Archibald e desligou o telefone. Depois foi ao quarto de Augustine e

bateu à porta. Como ninguém respondeu, entrou e sentou-se devagarinho na cama. Pensou queele estivesse dormindo, mas Augustine se virou e disse: “Não é uma boa noite para passar comos crânios, não é?”.

Bonnie abanou a cabeça e começou a chorar.

Edie Marsh deu tudo de si. Por algum tempo, o plano funcionou bem. O funcionário daMidwest Casualty tomou notas e mais notas enquanto a seguia de uma peça a outra. Muitos dospertences do casal Torres haviam sido tão estragados que estavam irreconhecíveis, de modo queEdie começou a valorizar os detalhes para aumentar o montante da indenização. Descreveu comcarinho os restos de um armário de porcelana como uma antiguidade que Tony herdara de suabisavó em San Juan. Parando em frente a uma parede nua, apontou para os pregos, dizendo queali estiveram penduradas duas aquarelas originais, valiosíssimas, pintadas pelo lendário Jean-Claude Jarou, um artista haitiano que havia se tornado um mártir. Tudo inventado naquele

momento. Uma cômoda estilhaçada foi descrita como um baú de mogno onde tinham sidoguardados oito suéteres de casimira, levados pelo terremoto.

“Oito suéteres? Em Miami?”, estranhou Fred Dove, levantando os olhos de suas anotações.“De casimira escocesa legítima. Você consegue imaginar? Pergunte a sua mulher se isso não

lhe partiria o coração.”Fred Dove tirou uma pequena lanterna do bolso do paletó e saiu para examinar os danos na

estrutura da casa. Alguns momentos depois, Edie ouviu latidos e palavrões. Quando chegou aoquintal, os cachorros basset estavam atacando Fred Dove. Edie ajudou-o a se livrar dos animais econduziu-o para dentro, fazendo-o sentar na espreguiçadeira de Tony. A seguir, subiu as pernasde sua calça e tratou dos sangramentos em seus tornozelos com uma solução que encontrara nacozinha.

“Ainda bem que não são rottweilers”, disse Fred, já mais calmo com os cuidados de Edie.Várias vezes ela pediu-lhe desculpas pelos cães. “Eles fizeram simplesmente o máximo do

que são capazes”, disse ela sem qualquer base.Pediu a Fred que permanecesse na espreguiçadeira, com os pés elevados, para diminuir o

sangramento. Ao recostar-se, ele viu a placa de Vendedor do Ano de Tony Torres e disse:“Impressionante, não?”.

“É. Foi um grande dia para nós”, Edie falou, resplandecente e fingindo-se de esposaorgulhosa.

“E onde está o senhor Torres esta noite?”“Fora da cidade, em uma convenção de vendedores de trailers em Dallas.” Pela segunda vez,

o rosto de Fred adquiriu uma expressão de incredulidade.“Mesmo com o furacão? Deve ser uma convenção muito importante.”“É, sim. Ele está recebendo outro prêmio.”“Ah.”“Por isso ele teve que ir. Quer dizer, ia ficar chato se ele não aparecesse, como se não

estivesse grato ou coisa assim.”“É, acho que sim. E quando ele volta para Miami?”“Não sei. Espero que logo.”O agente da companhia de seguros tentou baixar as costas da espreguiçadeira, mas a cadeira

voltava para a posição inicial. Finalmente, Edie sentou-se na parte de baixo e Fred conseguiu sairda cadeira. Ele disse que gostaria de fazer nova inspeção no quarto principal. Edie concordou.

Ela estava lavando a toalha ensanguentada na pia, quando Fred Dove chamou-a. Correu até oquarto e viu-o segurando uma fotografia emoldurada que havia retirado dos escombros. Era umafoto de Tony Torres com um peixe enorme. O peixe tinha a boca do tamanho de um balde.

“Esse é Tony, à esquerda”, brincou Edie, rindo nervosamente.“Bom peixe. Onde ele o pescou?”“No mar.” Onde mais?, pensou Edie.“E quem é esta aqui?” O agente de seguros pegou outra foto no chão. O vidro estava

quebrado e a foto enrugada pela água da tempestade. A foto era colorida e grande e a molduradourada. Tony Torres aparecia com o braço em volta da cintura de uma mulher morena, pequenae latina, com um busto farto. Ambos estavam sorrindo.

“É a irmã dele, a Maria”, falou Edie rapidamente, sentindo que o jogo estava chegando aofim.

“Ela está vestida de noiva”, disse Fred sem qualquer sarcasmo, “e o senhor Torres está decasaca.”

“É, ele foi o ajudante de honra.”“Mesmo? A mão dele está no traseiro dela.”“É, eles são muito chegados.” Sua voz foi diminuindo, como se tivesse sido derrotada.Os ombros de Fred Dove enrijeceram e seu tom de voz ficou frio. “Você por acaso tem uma

identificação? Carteira de motorista ou algo parecido? Qualquer documento com uma fotografiaatual?”

Edie Marsh não disse nada. Estava com medo de acrescentar mais um crime a sua lista.“Deixe que eu adivinhe. Todos os seus documentos foram perdidos no furacão, não é?”Edie baixou a cabeça, pensando: Isto não pode estar acontecendo de novo. Um dia desses

tenho que ter mais sorte. “Merda!”“Perdão?”“Eu disse merda. Quero dizer, desisto.” Edie não podia acreditar — uma droga de fotografia

de casamento. Tony e a bruxa traidora de quem ele queria roubar metade do dinheiro do seguro.Pena que Snapper tivesse caído fora. Isso era dez vezes melhor do que o programa de SallyJessy.

“Quem é você?”, Fred falou com um tom frio e formal.“Diga-me, o que vai acontecer agora?”“Vou lhe dizer exatamente o que vai acontecer.”Naquele momento, acabou a gasolina do gerador elétrico, que desligou produzindo uma série

de ruídos. A luz enfraqueceu e a televisão apagou. A casa de número 15 600 na rua Calusa ficou,de repente, tão quieta como uma capela. O único ruído era um farfalhar no quintal que oscachorrinhos faziam, tentando libertar-se de suas correntes.

Na escuridão, Fred Dove procurou sua lanterna. Edie Marsh impediu-lhe o movimento,segurando seu pulso. Ela decidiu que não tinha nada a perder.

“O que está fazendo?”, perguntou-lhe o agente de seguros.Edie aproximou a mão dele de sua boca e disse: “Quanto vale isto para você?”.Fred Dove continuava imóvel como uma estátua.“Vamos”, disse Edie lambendo os nós de seus dedos. “Quanto vale?”O agente respondeu num sussurro trêmulo: “Do que você está falando? Quer dizer quanto

vale eu não chamar a polícia? É isso que você quer dizer?”.Edie estava sorrindo. Fred sabia porque estava sentindo seus lábios e seus dentes em sua

mão.“Em quanto esta casa está avaliada para fins de seguro?”“Por quê?”“Cento e vinte mil? Cento e trinta?”“Cento e quarenta e um mil”, disse Fred, pensando: seu hálito é inacreditavelmente

agradável.Edie mudou seu tom de voz, e ele retornou sexy e carinhoso. O mesmo tom de voz que tinha

usado com o jovem Kennedy, mas que não tinha dado certo. “Cento e quarenta e um? Você temcerteza?”

“A estrutura, sim. Por causa da piscina.”“É claro.” Ela chegou mais perto dele, pensando que seria melhor se não estivesse usando

sutiã, mas achando que na verdade não faria muita diferença. O pobre do Fred já tinha caído nopapo. Passou as pestanas no seu pescoço e mergulhou a cabeça em seus cabelos.

Fred fez um esforço para conseguir dizer: “O que é que você quer?”.“Um parceiro”, respondeu Edie, selando o pacto com um longo beijo, de olhos fechados.

O sargento Cain Darby levava seus fins de semana com a Guarda Nacional tão a sério quantoseu trabalho regular de guarda da ala de segurança máxima na prisão. Embora tivesse preferidopermanecer na prisão de Starke com os assaltantes a mão armada e os assassinos, o deverchamou-o para o sul da Flórida no dia seguinte ao furacão. O comandante da unidade de CainDarby era um gerente de um pequeno hotel, que deu instruções rígidas no sentido de que astropas não atirassem a não ser para se defender. Pelo que Cain Darby sabia de Miami, não eraimprovável que isso ocorresse. Não obstante, sabia perfeitamente que a missão principal de ummembro da Guarda Nacional era manter a ordem nas ruas, ajudar civis necessitados e prevenirsaques.

A primeira atividade da unidade foi levantar barracas para cidadãos desabrigados edescarregar barris de água potável de um caminhão da Cruz Vermelha. Depois do jantar, CainDarby foi designado para o posto de controle do toque de recolher na Quail Roost Drive, perto darodovia da Flórida. Darby e outro guarda, chefe de produção de uma fábrica de papel,revezavam-se na tarefa de fazer parar carros e caminhões. A maioria dos motoristas apresentavaboas razões para estar na estrada após o toque de recolher — alguns procuravam parentesdesaparecidos, outros estavam a caminho do hospital, e alguns estavam perdidos e nãoconseguiam identificar o lugar. Se havia alguma dúvida quanto aos motivos alegados pelosmotoristas, o chefe de produção da fábrica de papel submetia o assunto ao sargento Darby,devido à experiência que tinha com leis. Os violadores mais comuns eram as equipes detelevisão, alguns turistas e adolescentes com intenção de roubar. Estes Cain Darby não permitiaque passassem, desviando-os para a rampa da rodovia.

À meia-noite, o chefe de produção da fábrica de papel retornou ao acampamento, deixando osargento Darby sozinho na barricada. Ele adormeceu por umas duas horas, até que foi acordadopor um ronco alto. Com a visão ainda turva pelo sono, viu a forma de um urso grande a algunsmetros de distância, na beira de uma clareira de pinheiros. Não tinha certeza se era mesmo umurso, uma vez que a silhueta não se parecia em nada com os ursos pretos e gordos que costumavacaçar na Floresta Nacional de Ocala.

Cain Darby apertou os olhos para afastar o sono. Depois, tornou a abri-los vagarosamente. Aforma gigantesca ainda estava lá, como um fantasma imóvel. O bom senso lhe dizia que deviaestar enganado — não se criam ursos de mais de quatrocentos e cinquenta quilos na Flórida, mascertamente parecia um urso. Sendo assim, chegou a levantar o rifle.

Foi quando viu com o canto dos olhos luzes de farol vindo em sua direção pela Quail RoostDrive. Virou-se para ver melhor. Alguém estava dirigindo em direção da barricada como umalucinado. A julgar pelo barulho ensurdecedor das sirenes, metade da força policial estava atrásdele.

Quando Cain Darby virou-se de novo na direção do urso ou da forma que se parecia com umurso, ela não estava mais lá. Baixou o rifle e concentrou sua atenção no maníaco que vinha emsua direção. Assumiu uma postura militar em frente da barricada — espinha ereta, pernasafastadas e rifle posicionado para atirar.

Alguns metros atrás do caminhão podiam-se ver as luzes intermitentes azuis e vermelhas doscarros de polícia. O motorista fugitivo parecia não temer nada. Com a aproximação dos faróis docaminhão, o sargento Darby pensou nas opções que teria. O cretino não tinha intenção de parar,isso estava claro. Àquela altura, o homem já tinha visto Darby (a menos que fosse cego, estivessebêbado, ou ambos) parado no seu caminho.

Mesmo assim, o caminhão não desacelerava. Na verdade, ganhava mais velocidade. CainDarby disse um palavrão ao pular, saindo do caminho do veículo. Se havia uma coisa que não

tolerava era o desrespeito por um uniforme, quer fosse do Departamento de Casas de Correçãoou da Guarda Nacional. Assim, indignado, deu alguns tiros quando o idiota bateu contra abarricada.

Ninguém ficou mais surpreso do que Cain Darby ao ver o caminhão passar por cima darampa da rodovia e cair, em alta velocidade, num canal de drenagem. Ninguém, exceto omotorista, Gil Peck. O barulho dos tiros havia destruído seus reflexos, já comprometidos, emparticular sua habilidade para localizar o pedal do freio. Não podia acreditar que aquele guardade merda estivesse atirando contra ele.

O que não surpreendeu Gil Peck, considerando sua pesada carga de tijolos roubados, foi avelocidade com que o caminhão afundou na água morna e escura do canal. Esgueirou-se pelajanela, nadou até a margem e começou a reclamar de sua incrível falta de sorte. Tudo o que eleroubara se perdera na água, exceto o pacote de haxixe, que subiu à superfície no momento exatoem que o primeiro carro de polícia chegou.

A droga, contudo, não era a preocupação mais séria de Gil Peck com relação às autoridadeslegais. Ao ser algemado, declarou: “Não fui eu quem o matou”.

“Matou quem?”, perguntou o policial.“Aquele cara, sabe? Aquele cara no estacionamento de trailers.” Gil Peck tinha presumido

que fora perseguido pela polícia por essa razão — porque tinham achado o corpo do homem noestacionamento de trailers.

Mas não era o caso. A raiva de Gil Peck aumentou. Deveria ter mantido a boca calada. Agoraera tarde demais. Calcinhas tipo biquíni, azuis e rosas, que haviam se desprendido da carga docaminhão, começaram a boiar na água do canal, como medusas pálidas.

O policial perguntou: “Que cara e em qual estacionamento?”.Gil Peck contou a ele sobre o cadáver empalado na antena parabólica. Com a chegada de

outros policiais, ele teve que repetir a história, bem como suas veementes alegações de inocência.Um dos policiais perguntou-lhe se ele os levaria até o cadáver, e Gil concordou.

Depois que os paramédicos verificaram que Gil Peck não tinha nenhuma lesão grave, ele foicolocado no camburão. O patrulheiro no volante era um negro alto e forte. A caminho doestacionamento de trailers, Gil Peck recitou mais um monólogo sobre sua inocência.

“Se não foi você, por que fugiu?”, interrompeu o policial.“Fiquei com medo, cara. O senhor nem pode imaginar a cena.”“Oh, não estou conseguindo esperar para ver.”“O senhor é cristão?”Era impressionante, pensou o patrulheiro, quão rapidamente a prisão induzia à devoção

espiritual. “Alguém leu os seus direitos?”, perguntou a Gil Peck.Ele enfiou o rosto nas grades que o separavam do patrulheiro. “Se o senhor é cristão, tem que

acreditar no que estou dizendo. Não fui eu quem crucificou o pobre coitado.”Mas Jim Tile ansiava com toda a sua cristandade que ele fosse culpado. Isto porque o outro

suspeito principal era alguém que ele não queria prender, a não ser que fosse inevitável.

9

Skink escutou à vontade a conversa de Max Lamb ao telefone. Ele fez duas chamadas. Acabine telefônica estava instalada num posto para reabastecimento de caminhões, numa árealimítrofe à região de Everglades. Caminhões abertos, carregados de madeira, painéis de vidro ealcatrão passavam, em comboio, em direção à zona atingida pelo furacão. Ninguém prestoumuita atenção no rapaz com a barba por fazer falando ao telefone, apesar de ele estar usando umacoleira de cachorro.

Quando Max desligou o telefone, Skink segurou seu braço e conduziu-o ao hidroavião,aterrissado na margem de um canal lamacento. Mandou que ele se deitasse na proa, e ali Maxpermaneceu por duas horas, com a face vibrando contra a fuselagem. O bramido do motor doavião enchia seus ouvidos. Skink não cantou mais. Max se perguntava o que havia feito parairritar Skink ainda mais.

Pararam uma vez. Skink deixou o hidroavião por alguns instantes e voltou com uma caixa depapelão grande, que colocou ao lado de Max, na proa. Depois, viajaram até o anoitecer. Quandofinalmente pararam e Max pôde se levantar, ficou surpreso de ver a aldeia indígena onde haviamestado antes. A parada não foi longa o suficiente para ele tentar negociar a devolução de suafilmadora. Desta feita, Skink tomou emprestado uma caminhonete tipo perua, colocou a caixa depapelão na carroceria e afivelou Max ao banco de passageiros. Não havia sinais do macaco, eMax ficou grato por isso.

Skink colocou a touca de banho na cabeça e deu partida no carro. Max estava precisandourinar, mas tinha medo de pedir permissão. Não tinha mais confiança de que poderia persuadirSkink a libertá-lo.

“Há algo errado?”, perguntou.Skink dirigiu-lhe um olhar frio. “Lembro-me de sua mulher no vídeo. Ela estava abraçando

duas meninas cubanas.”“É, aquela moça é Bonnie.”“Uma linda mulher. Você deu um close em seu rosto.”“Podemos parar um minuto?”, interrompeu Max, contorcendo-se de vontade de urinar.Skink manteve o olhar na estrada. “Sua mulher tem um bom coração. Dá para notar pelo

vídeo.”“É uma santa.” Max enfiou ambas as mãos entre as pernas. Preferiria oferecer a cara para

apanhar a se molhar todo em frente do governador.“Por que ela está com você? Não consigo entender. É um grande mistério”, disse Skink.

Nesse momento, deu uma freada brusca. “Aliás, por que você não telefonou para ela hoje ànoite? Você telefonou para o seu colega em Nova York. Telefonou para os seus pais em Milão,na merda da Itália. Por que não para Bonnie?”

“Não sei onde ela está. Aquela droga de secretária eletrônica...”“E aquela história sobre uma briga entre você e ela?”“Ah, não queria que Peter ficasse preocupado comigo.”

“Bem, que Deus o perdoe.” Skink parou o carro e pulou para fora. Reapareceu acocorado naestrada, iluminado pela luz dos faróis. Parecia um estranho e velho fantasma. Max esticou opescoço para ver o que ele estava fazendo.

Skink reaproximou-se do carro e jogou um gambá morto no assento ao lado de Max, quesuspirou e se encolheu para o lado oposto. Alguns quilômetros adiante, Skink recolheu umacobra atropelada e também jogou-a no carro, para compor o cardápio da refeição noturna. Maxconseguiu controlar a bexiga até acamparem num estábulo abandonado, perto de Krome.

Os cavalos haviam debandado com a tempestade. Os proprietários tinham voltado pararecuperar as selas e arreios e espalhar forragem para o caso de algum animal retornar. Max Lambficou sozinho na escuridão e urinou abundantemente. Chegou a pensar na possibilidade de fugir,mas se deu conta de que não sobreviveria uma só noite no mato. Para Max, toda a Flórida ao sulde Orlando era um imenso pântano, cheio de animais selvagens e ferozes. Alguns tinham garrase presas venenosas. Outros dirigiam hidroaviões e se alimentavam de caça. Eram todos iguais, naconcepção de Max.

Skink reapareceu a seu lado para anunciar que o jantar estava quase pronto. Max seguiu-o atéo estábulo. Perguntou se era seguro fazer uma fogueira no estábulo. Skink respondeu-lhe que eraextremamente perigoso, mas muito aconchegante.

Max Lamb ficou impressionado com o fato de o furacão não ter eliminado o forte cheiro deexcremento animal. O aspecto positivo do fato era que o cheiro de esterco neutralizava o aromade gambá cozido e de cobra frita. Depois do jantar, Skink ficou só de cuecas e fez duzentasflexões abdominais, criando uma nuvem de poeira de esterco. A seguir, foi até o carro e trouxepara dentro a caixa de papelão. Perguntou a Max se queria um cigarro.

“Não, obrigado. Não fumo.”“Você tá brincando.”“Nunca fumei.”“Mas você vende a droga do cigarro!”“Fazemos a propaganda, só isso.”“Ah, só a propaganda.” Skink levantou suas calças do chão e remexeu nos bolsos. Max

pensou que ele estivesse procurando fósforos, mas não era isso. Estava procurando o controleremoto da coleira de choque.

Quando Max recuperou os sentidos, estava deitado sobre um monte de feno moído. Seusolhos pareciam querer saltar das órbitas e seu pescoço latejava e ardia. Sentou-se e indagou: “Oque foi que eu fiz?”.

“É claro que você acredita nos produtos para os quais faz propaganda.”“Escuta, eu não fumo.”“Mas você pode aprender.” Com um canivete, Skink abriu a caixa de papelão. Estava cheia

de maços de cigarro da marca Bronco, provavelmente umas quatro dúzias de pacotes. Max nãoconseguiu esconder o pânico que sentia.

Skink perguntou-lhe como podia saber a qualidade de um produto se não o experimentasse.Tenso, Max respondeu: “Também faço propaganda de duchas aromatizadas com amorassilvestres, mas não uso o troço”.

“Tenha cuidado, ou você vai me dar novas ideias.” Abriu um maço de Bronco, tirou umcigarro e enfiou-o entre os lábios de Max. Riscou um fósforo contra a parede do estábulo eacendeu o cigarro.

“E então?”Max cuspiu o cigarro, dizendo: “Isto é ridículo”.

Skink recuperou o cigarro e tornou a colocá-lo na boca contraída de Max. “Você tem duasescolhas: ou fuma ou leva choque.”

Com relutância, Max deu uma tragada. Imediatamente, começou a tossir. Ficou pior depoisque Skink amarrou-o a um poste. “Gente como você é um mistério para mim, Max. Por que vêmpara cá? Por que agem dessa forma? Por que vivem suas vidas dessa maneira?”

“Pelo amor de Deus!”“Cala a boca agora, tá?”Skink vasculhou a mochila e retirou dela um walkman. Foi para um canto úmido do celeiro e

colocou os fones nos ouvidos. Acendeu um cigarro que parecia ser de maconha.“O que é isso?”, perguntou Max.“Sapo.” Skink deu uma baforada. Depois de alguns minutos, seu olho bom revirou-se e seu

pescoço ficou mole.Max fumava os cigarros como uma máquina. Sempre que Skink abria os olhos, batia de leve

no pescoço, lembrando-o da coleira de choque. Max estava no vigésimo terceiro cigarro, quandoSkink levantou-se.

“Toada maravilhosa.” Arrancou um cigarro da boca de Max.“Estou passando mal, capitão.”Skink desamarrou-o, dizendo-lhe que podia descansar. “Amanhã você vai deixar um recado

para sua mulher. Vai combinar um encontro conosco.”“Para quê?”“Para que eu possa observá-los juntos. A química, os olhos brilhantes, toda essa merda, ok?”Skink saiu do estábulo e arrastou-se para baixo do carro, onde se encolheu e começou a

roncar. Max continuou tossindo até adormecer no estábulo.

Bonnie Lamb acordou nos braços de Augustine. Seu sentimento de culpa diminuiu um poucoquando notou que ele estava vestido de jeans e camiseta. Não se lembrava de tê-lo visto se vestirdurante a noite, mas obviamente ele o fizera. Tinha quase certeza de que não houvera sexo entreeles. Muitas lágrimas sim, mas não sexo.

Bonnie queria desvencilhar-se de seus braços sem acordá-lo. Do contrário, poderia haver ummomento de constrangimento. Os dois deitados e abraçados. Ou talvez não. Pode ser que elesoubesse exatamente o que dizer. Estava claro que ele tinha experiência com mulheres chorando,uma vez que era excepcionalmente competente com abraços e sussurros. Quando se pegoupensando como seu cheiro era bom, decidiu que estava na hora de pular da cama.

Conforme imaginou, Augustine foi educado de forma a fingir que continuava a dormir, atéque ela estivesse na segurança da cozinha, fazendo café.

Quando ele entrou, Bonnie se sentiu ruborizar. “Sinto muito”, falou de supetão, “pela noitepassada.”

“Por quê? Você se aproveitou de mim?” Ele foi até a geladeira e retirou uma caixa de ovos.“Tenho o sono pesado. Uma presa fácil para garotas loucas por sexo.”

“Especialmente garotas recém-casadas.”“Ah, essas são as piores. Extremamente vorazes. Quer ovos mexidos ou fritos?”“Fritos.” Bonnie sentou-se à mesa. Abriu um pacote de adoçante, mas derramou-o todo fora

da xícara de café. “Por favor, acredite em mim. Normalmente, não durmo com homensestranhos.”

“Dormir não tem problema. O problema é trepar com eles.” Ele estava descascando umalaranja na pia. “Fica calma, ok? Não aconteceu nada.”

Bonnie sorriu. “Posso pelo menos lhe agradecer por ter sido um bom amigo?”“Claro. Aliás, não há de quê.” Olhou por cima do ombro e viu Bonnie sorrindo. “O que há de

tão engraçado?”“Seus jeans.”“Não me diga que estão furados.”“Não, não estão. Bem, é que você levantou no meio da noite para vesti-los. Foi muito gentil

de sua parte.”“Na verdade, foi mais precaução do que gentileza.” Os ovos chiaram quando Augustine os

jogou na frigideira com óleo quente. “Estou surpreso que você tenha notado.” Bonnie tornou aenrubescer.

O telefone tocou quando faziam a refeição. Era o médico legista — outro cadáver estavasendo levado para o necrotério municipal. O médico queria que Bonnie desse uma passada lápara examiná-lo. Augustine disse-lhe que ela lhe telefonaria de volta. Colocou o fone no ganchoe contou a conversa a Bonnie.

“Eles podem me obrigar a ir lá?”“Acho que não.”“Não é Max. Ele está ocupado falando com a Rodale & Burns.”“Disseram que se trata de um homem branco. Aparentemente assassinado.”Essa última palavra ficou no ar como um veneno. Bonnie baixou o garfo. “Não pode ser ele.”“Provavelmente não é. Não somos obrigados a ir lá.”Bonnie levantou-se e foi para o banheiro. Logo Augustine ouviu o barulho do chuveiro.

Estava lavando a louça, quando ela reapareceu. Seu cabelo molhado estava penteado para trás eusava nos lábios o batom rosa da médica residente que achara na caixa de remédios.

“Acho que tenho que ter certeza. Prefiro ir lá.”Augustine balançou a cabeça. “Você certamente vai se sentir melhor.”

O nome verdadeiro de Snapper era Lester Maddox Parsons. Sua mãe deu-lhe esse nome porcausa de um político da Georgia, conhecido por expulsar clientes negros dos restaurantesbrandindo um machado. A mãe de Snapper achava que Lester Maddox deveria ser presidente dosEUA e de todo o mundo branco. O pai de Snapper era mais favorável a James Earl Ray. Quandoele tinha apenas sete anos, seus pais o levaram à sua primeira reunião da Ku Klux Klan. Sua mãefez uma fantasia branca com fronhas de musselina para a ocasião. Ficou especialmente orgulhosado pequeno capuz pontudo. Os outros membros da organização fizeram muita festa paraSnapper, observando que ele tinha traços de branco sulista muito bonitos — os elogios osurpreenderam, uma vez que tudo o que aparecia de seu rosto eram seus olhos redondos ecastanhos. Snapper pensou: se eu fosse preto, eles nem poderiam saber.

Mesmo assim, o garoto gostava das reuniões da Ku Klux Klan, porque havia um ótimochurrasco e enormes fogueiras. Ficou decepcionado quando sua família parou de frequentar asreuniões, mas podia compreender que seus pais tiveram uma boa razão para isso. Eles referiam-se ao ocorrido como o acidente, e Snapper nunca pôde esquecer aquela noite. Seu pai, comosempre, havia bebido um pouco demais e, quando chegou o momento de atear fogo à cruz, tocoufogo no chefe do clã, o grande Kleagle. Na ausência de uma mangueira, os outros membrostiveram que apagar o fogo do corpo do chefe com latas de cerveja Schlitz. Quando conseguiramapagar o fogo, colocaram o corpo queimado de Kleagle na carroceria da caminhonete do pai deSnapper e levaram-no para o hospital. Embora ele tenha sobrevivido, perdeu seu tão prezadoanonimato para sempre. Uma equipe de um canal de televisão local estava por acaso na porta da

sala de emergência quando chegou Kleagle, sem capuz e com sua fantasia branca dilacerada emfarrapos chamuscados pelo fogo. Sua posição de chefe local do Ku Klux Klan foi anunciada comestardalhaço pela televisão, e ele teve de renunciar ao cargo de promotor público. Mudou-se parao Norte do estado. O pai de Snapper culpava-se inteiramente pelo ocorrido. Os demais membrosdo clã também o culpavam, e de forma bem mais radical. O moral do clã local caiu ainda maisquando a televisão divulgou que o médico que havia salvo a vida de Kleagle era negro,possivelmente da região de Savannah.

A família de Snapper decidiu abandonar a Ku Klux Klan enquanto ainda tinha escolha. O paide Snapper filiou-se a uma liga isolada de boliche e sua mãe dedicou-se a distribuir panfletospara o político J. B. Stoner, um racista que se candidatava a cargos públicos de tempos emtempos. Snapper não tinha o menor interesse pela política, passando a dedicar sua energiaadolescente ao crime. Abandonou a escola aos catorze anos, mas seus pais só vieram a descobriro fato dois anos depois. Nessa época, a renda do garoto proveniente do roubo de enxadas eescavadeiras já era o dobro daquela que seu pai obtinha consertando-as. Os pais de Snapperfaziam o possível para não ver o que ele estava fazendo, mesmo quando tinha problemas com apolícia. Sua mãe se preocupava, por achar que ele tinha uma tendência para o crime. Seu paicontra-argumentava que todos os garotos a têm. Dizia, que se não fosse assim, nãosobreviveriam neste mundo miserável.

Lester Maddox Parsons tinha dezessete anos quando ganhou o apelido de Snapper. Estavatentando dar partida num trator, fazendo ligação direta, num campo de amendoins, quandoapareceu um guarda-florestal. Lester saltou da cabina e deu um soco no homem, que calmamentedesfigurou seu rosto com a coronha de uma espingarda. O rapaz ficou na cadeia municipal portrês dias antes que um médico viesse examinar seu maxilar, que estava absurdamente deslocado.Seu rosto ter sarado foi considerado um milagre. Até os vinte e dois anos, ele ainda sentia dores.

O sistema carcerário da Georgia ensinou uma importante lição ao jovem: era melhor nãoexpressar opiniões sobre a miscigenação racial. Assim, quando Avila apresentou Snapper para aequipe de construção de telhados, Snapper observou (mas não comentou) que dois dos quatrotrabalhadores eram pretos como piche. Um terceiro operário era um jovem cubano musculoso,com o número 69 tatuado no lábio inferior. O quarto era um matuto branco do condado de SantaRosa que falava com um sotaque incompreensível. Embora todos os trabalhadores tivessemlongas fichas criminais, Snapper não sentiu a menor afinidade com eles.

Avila convidou os homens a sentarem para uma conversa.“Graças ao furacão, existem cerca de cento e cinquenta mil casas precisando de telhados no

condado de Dade”, disse ele, inicialmente. “Só um idiota não conseguiria tirar dinheiro dessespobres-coitados.”

O plano era conseguir o maior número possível de clientes e fazer o mínimo de trabalho.Como tinha um terno e uma gravata, Snapper foi escolhido para conversar com os clientespotenciais, fazê-los assinar um “contrato” e recolher os depósitos em dinheiro vivo.

“As pessoas estão desesperadas por novos telhados”, continuou Avila, animado. “Estãodebaixo de chuva e de sol. Estão sendo devoradas por insetos. Quanto mais rápido acharem queterão um teto, mais rápido pagarão.” E levantando as mãos para o céu: “E vocês acham que elasestão preocupadas com o preço? Claro que não. O dinheiro vai sair das companhias de seguros, enão de seus bolsos”.

Um dos operários perguntou quanto trabalho braçal seria necessário para que o golpefuncionasse. Avila esclareceu que deveriam reparar uma pequena parte de cada telhado, de formaa dar esperança às pessoas.

“O que é exatamente uma pequena parte?”, perguntou o operário.Um outro acrescentou: “Estamos na droga do verão, chefe. Conheço caras que tiveram

ataques cardíacos por causa do calor”.Avila tranquilizou-os dizendo-lhes que poderiam fazer somente alguns metros quadrados em

cada casa. “Depois, podem dar o fora. Quando os proprietários perceberem que vocês não vãovoltar, já será tarde demais.”

O matuto falou então alguma coisa sobre licenças de construtor. Avila virou-se para Snapper:“Se perguntarem sobre nossa licença, você sabe o que fazer, não é?”.

“Dou o fora?”“Exatamente!”Snapper não estava contente com sua função de ir de porta em porta, especialmente por causa

da existência de possíveis cachorros. Disse a Avila: “Me parece que terei que falar demais comestranhos. Odeio essa merda. Por que você não se encarrega dos contratos?”.

“Porque eu inspecionei um monte dessas casas quando trabalhava para o Departamento deConstrução e Mapeamento da Prefeitura.”

“Mas os proprietários não sabem disso.”Chango havia advertido Avila quanto a esse perigo. Tratava-se da sua entidade espiritual

protetora. Avila lhe havia agradecido sacrificando duas tartarugas e dois coelhos.“Não vou aparecer. O Departamento de Construção e Mapeamento tem informantes por toda

parte. Se alguém me reconhecesse, estaríamos fodidos.”Snapper não tinha certeza se Avila era paranoico ou simplesmente preguiçoso. “Então, onde

é que você vai ficar exatamente, enquanto fazemos o trabalho pesado? Talvez num escritóriocom ar-condicionado?” Pôde ouvir os risos furtivos dos companheiros e considerou isso um sinalde solidariedade.

Mas Avila rapidamente reafirmou sua autoridade. “Trabalho pesado? Quem falou emtrabalho pesado? Isso não passa de uma encenação. Vocês estão aqui porque sabem trabalharcom piche. Estão aqui porque parece que sabem.”

“E quanto a mim?”, perguntou Snapper. “Por que estou aqui?”“Porque não foi possível contratar Robert Redford.” Avila levantou-se, indicando o fim da

reunião. “Snap, por que diabos você acha que foi escolhido? Para obrigar as pessoas a pagarem.Compreende? Basta dar uma olhada em sua cara assustadora para ter certeza de que você estálevando o negócio a sério.”

Talvez um criminoso comum tivesse tomado o comentário de Avila como um elogio.Snapper, contudo, não gostou muito.

Todos os colchões na casa de Tony Torres estavam encharcados por causa da tempestade.Assim, Edie fez sexo com o agente de seguros na espreguiçadeira. Foi barulhento e difícil. FredDove estava nervoso, e Edie teve que ajudá-lo o tempo todo. Depois do sexo, ele comentou quepossivelmente torcera um disco da coluna. Edie ficou com vontade de retrucar que ele não haviase movido o suficiente para torcer nada, mas, ao contrário, disse-lhe que ele tinha o tamanho e atécnica de um perfeito garanhão. Era uma estratégia que dificilmente falhava. Fred Dove,contente, adormeceu com a cabeça em seu ombro, não sem antes prometer apresentar um pedidode indenização exorbitante e fraudulento à companhia de seguros e dividir o cheque com Edie.

Uma hora antes do alvorecer, Edie ouviu uma barulheira terrível no quintal. Não conseguiase levantar para ir ver, porque estava presa embaixo de Fred, na espreguiçadeira. A julgar pelotumulto lá fora, Donald e Maria haviam adquirido raiva. A confusão terminou com um alvoroço

de ganidos queixosos e um rugido assustador. Edie não se mexeu até o sol aparecer. Então,despertou Fred com cuidado. Ao acordar, ele entrou imediatamente em pânico, pois havia seesquecido de telefonar para a mulher em Omaha. Edie tentou acalmá-lo e disse-lhe que vestisseas calças logo.

Foi com ele até o quintal. Os únicos sinais dos cachorrinhos eram as correntes e coleirasvazias. O quintal estava uma bagunça. Algumas marcas de patas grandes e com garras podiamser vistas na terra úmida.

O pé esquerdo de Fred encaixou perfeitamente numa das marcas. “Meu Deus! Eu calçoquarenta e quatro.”

Edie perguntou-lhe que tipo de animal selvagem deixaria essas marcas. Fred Dove comentouque elas pareciam grandes o suficiente para serem de um leão ou de um urso. “Mas não sou umcaçador”, acrescentou.

Edie perguntou: “Posso ficar com você no hotel?”.“Onde? No Ramada?”“O quê? Eles não admitem mulheres?”“Edie, não devemos ser vistos juntos. Não se formos realmente dar esse golpe que

planejamos.”“Você espera que eu fique aqui sozinha?”“Escute, sinto muito pelos seus cachorros.”“As drogas dos cachorros não eram meus.”“Por favor, Edie.”Com seus óculos redondos, Fred Dove fazia Edie lembrar um jovem professor de inglês,

muito sério, que ela tivera no secundário. O rapaz usava mocassins sem meias e era fanático pelopoeta T. S. Eliot. Edie Marsh fizera sexo com ele duas vezes, na sala dos professores, masmesmo assim ele lhe dera um C no exame final. Isso porque, segundo ele, Edie não colocara naprova o essencial sobre o autor J. Alfred Prufrock. A experiência a havia deixado extremamentedesconfiada com relação a homens com aparência de intelectuais.

“O que você quer dizer com se formos realmente dar esse golpe? Fizemos um trato.”“Claro, fizemos.”Ao entrarem na sala, ela indagou: “Quanto tempo vai levar para você resolver tudo?”.“Bom, posso registrar o pedido de indenização esta semana.”“Perdas de cem por cento?”“Isso.”“Cento e quarenta e um mil dólares. Setenta e um mil para mim, setenta para você.”“Certo.” Para alguém que iria usufruir de uma fortuna inesperada, Fred Dove parecia muito

desanimado. “Minha preocupação maior é com o senhor Torres.”“Como lhe expliquei ontem à noite, Tony está metido numa grande enrascada. Duvido muito

que ele volte.”“Mas você disse também que a senhora Torres, a verdadeira senhora Torres, está voltando

para Miami.”“Por isso é que preciso andar rápido. Diga ao escritório central que se trata de uma

emergência.”O agente de seguros cerrou os lábios. “Edie, todos os casos são uma emergência. Fomos

atingidos por um furacão.”Ela ficou observando-o impassível, enquanto ele terminava de se vestir. Fred levou cinco

minutos completos tentando tirar as rugas de suas cuecas amassadas ao fazerem sexo. Pediu a

Edie um ferro de passar e ela lembrou-lhe que não havia luz.“Que tal levar-me para tomar café da manhã?”“Já estou atrasado para um compromisso em Cutler Ridge. Um pobre velho está com um

Pontiac no telhado de sua casa.” Fred beijou Edie na testa e deu-lhe aquele abraço obrigatórioapós uma noite de amor. “Volto à noite. Nove horas está bem?”

“Ótimo.” À noite, pensou ela, ele certamente traria camisinhas de vênus — tratava-se de maisum palhaço a caminho da paixão. Não deveria esquecer de colocar um dos colchões para secarao sol. Mais uma sessão extenuante na espreguiçadeira, e o pobre Fred ficaria um trapo.

“Traga os formulários para requisição. Quero ver tudo.”Ele fez um lembrete em seu bloco de anotações e colocou-o na pasta.“Ah, também preciso de uns galões de gasolina do seu carro.”Fred Dove pareceu intrigado.“É para o gerador. Uma ducha quente seria legal... uma vez que você não me deixa usar a sua

no Ramada.”“Oh, Edie.”“Ah, e uns trocados também para as compras.”Ela amoleceu um pouco quando Fred tirou a carteira do bolso. “Isso é que é, meu garoto.”

Beijou-o no pescoço e deu-lhe uma mordidinha, só para provocá-lo.“Estou apavorado”, disse ele.“Que nada. Vai ser uma barbada.” Pegou duas notas de vinte dólares de sua carteira e disse-

lhe que podia ir.

10

A caminho do necrotério, Augustine e Bonnie ouviram no rádio a notícia de que uma jiboiade quatro metros havia aparecido perto do bufê de saladas de um restaurante em Perrine.

“Será uma das suas?”, perguntou Bonnie.“Estou me perguntando isso também.” Era impossível saber se a jiboia tinha pertencido ao

tio falecido de Augustine. O inventário manuscrito de Felix Mojack não tinha muitos detalhes.“Ele tinha umas duas bem grandes”, disse Augustine, “mas nunca tirei as medidas delas.”“Espero que não a tenham matado.”“Eu também.” A preocupação dela com o bem-estar de um réptil causou-lhe boa impressão.

Nem todas as mulheres teriam esse tipo de preocupação.“Ela poderia ser mandada para um zoológico”, ponderou Bonnie.“Ou então ser solta na Prefeitura.”“Você está sendo maldoso.”“Eu sei.” Como curador legal da coleção de animais selvagens, Augustine sentia uma

pontada de remorso pelo apuro em que se metera Max Lamb. Se não tivesse perseguido ummacaco, provavelmente não teria sido raptado. Talvez o macaco culpado fosse um do tio Felix,talvez não.

Sem qualquer tom de reprovação, Bonnie perguntou-lhe o que ele faria se alguma das ferasmatasse uma pessoa.

“Rezaria para que fosse alguém que merecesse a morte.”Bonnie ficou chocada. Augustine comentou: “Não sei mais o que posso fazer. A não ser que

promova um safári. Você sabe como Everglades é grande”.Por um tempo, ficaram em silêncio. Então Bonnie disse: “Você tem razão. Os animais estão

livres, e é assim que deve ser”.“Não sei nada sobre como as coisas devem ser, mas sei como elas são. Droga, aqueles pumas

poderiam estar em Key Largo a esta altura.”Bonnie Lamb sorriu com tristeza. “Gostaria de estar lá eu mesma.”Antes de entrar no frio do necrotério, ela colocou um suéter largo de esquiar que Augustine

trouxera para a ocasião. Dessa vez, não houve preliminares para o exame do corpo. O mesmojovem médico legista conduziu-os até a sala de autópsia, onde o corpo do recém-morto seencontrava. O cadáver estava cercado por detetives, policiais uniformizados e um contingentedesanimado de alunos de medicina da Universidade de Miami. Todos deram lugar a Augustine eBonnie para que pudessem se aproximar.

Um homem corado, de cabelos grisalhos, estava em pé na cabeceira da mesa de aço. Acenoucom a cabeça, cordialmente, e deu um passo para trás. Segurando a respiração, Bonnie baixou osolhos em direção ao cadáver. O homem era barrigudo e quase careca. Sua pele cor de azeitonatinha muitos pelos pretos, dos ombros aos dedos dos pés. No meio de seu peito havia uma feridacor de amora. Sua garganta apresentava muitos hematomas de cor violeta, que pareciam marcasde dedos.

“Não é meu marido”, declarou Bonnie.

Augustine começou a conduzi-la para longe da mesa. Um policial alto e negro seguiu-os.“Senhora Lamb?”Bonnie, que parecia ligada a um piloto automático, continuou caminhando.“Senhora Lamb, preciso falar-lhe.”Ela virou-se. O policial era muito musculoso e caminhava mancando da perna direita. Usava

um uniforme de patrulheiro rodoviário e carregava um chapéu tipo caubói nas mãos. Parecia tãoaliviado por sair da sala de autópsia quanto Augustine e Bonnie.

Augustine perguntou-lhe qual era o problema. O patrulheiro sugeriu que fossem a algumlugar para conversar.

“Conversar sobre o quê?”, indagou Bonnie.“Sobre o desaparecimento de seu marido. Estou seguindo algumas pistas. Só isso.” A

maneira do patrulheiro era extremamente informal para um policial uniformizado. Eleacrescentou: “Quero só lhes fazer algumas perguntas. É só isso. Prometo”.

Augustine não conseguia compreender por que um patrulheiro rodoviário estaria interessadono caso de uma pessoa desaparecida. Disse: “Ela já falou com o FBI”.

“Mas não vai demorar nada”, retrucou o policial.Bonnie interveio: “Se o senhor tiver alguma novidade, qualquer novidade, estou interessada”.“Conheço uma ótima cantina italiana onde podemos ir”, disse o policial.Augustine se deu conta de que Bonnie já havia se decidido a ir. “Vai ser negócio oficial?”,

perguntou ao policial.“Absolutamente.” Jim Tile colocou seu chapéu. “Vamos comer.”

Em meados dos anos 70, um homem chamado Clinton Tyree candidatou-se a governador daFlórida. No papel, parecia o candidato perfeito, uma voz corajosa e nova em meio ao cinismogeral. Nascera ali mesmo e era bonito e robusto. Uma ex-sensação do futebol universitário e umveterano condecorado da guerra do Vietnã. Durante a campanha eleitoral, ele falava bonito erebuscado na luxuosa região de Palm Beach, e de forma simples no interior. A imprensa ficoumaravilhada com sua eloquência e espontaneidade, que dispensava tomar notas escritas. Além domais, no seu passado não havia sinal de negócios suspeitos, que não pudessem ser facilmentecompreendidos por repórteres e eleitores potenciais.

O único ponto fraco da carreira profissional de Clinton Tyree era uma passagem de cincoanos pela Universidade da Flórida, como professor de literatura. Esse trabalho lhe dera areputação de ser educado e ponderado demais para ocupar um cargo público. Mas, numareviravolta surpreendente, o eleitorado perdoou o excesso de educação de Clinton Tyree eelegeu-o governador da Flórida.

Ingenuamente, a Câmara dos Deputados congratulou-se com a eleição do novo chefe doExecutivo. Os camelôs, proxenetas e charlatões que controlavam o Poder Legislativopresumiram que, como a maioria de seus predecessores, Clinton aceitaria suas falcatruas. Afinal,ele era natural da Flórida. Certamente, entenderia como as coisas funcionavam ali.

Mas por trás do sorriso de estrela de cinema do governador havia o fervor incendiário de umterrorista. Trouxe consigo para a capital uma paixão profunda, incompreensível para os demaispolíticos. Rapidamente a classe política decidiu que Clinton era insano. Em sua primeiraentrevista após a eleição, disse ao The New York Times que a Flórida estava sendo destruída porum crescimento desenfreado, excesso de construções e poluição, e que a causa cancerosa dessesmales era a ambição. Para fins de ilustração, acusou o porta-voz da Câmara dos Deputados de ter“o senso ético de uma bactéria intestinal”, somente porque o homem tinha aceito uma viagem a

Bangkok financiada por uma construtora de arranha-céus de Miami Beach. Algum tempo depois,em cadeia de rádio, Clinton Tyree incitou visitantes e residentes potenciais a não se dirigirempara o estado ensolarado da Flórida, “a fim de que possamos recuperar a razão”. Anunciou oobjetivo de crescimento populacional negativo e propôs generosos incentivos tributários para oscondados que reduzissem significativamente a densidade populacional. Clinton Tyree causoumais alvoroço e revolta do que se tivesse pregado satanismo para crianças do jardim de infância.

A opinião de que o governador era mentalmente instável fortaleceu-se quando veio a públicoque ele não aceitava qualquer tipo de suborno. O que era ainda mais chocante era que elecomunicava as ofertas ilícitas ao FBI. Por esse motivo, um dos proprietários de construtoras maisrico e politicamente bem relacionado teve seus negócios fechados e foi indiciado e condenadopor corrupção. Era claro que Clinton Tyree era uma ameaça para todos.

Nenhum governador anterior havia ousado interromper o grande negócio que era construir easfaltar a Flórida. Por setenta gloriosos anos, o estado vinha murchando na mão daqueles queeram mais eficientes em saquear as riquezas naturais. De repente, um jovem pretensioso einsensato começava a incitar a população como um maldito comunista. Salvem os rios. Salvemas praias. Salvem os ciprestes. Aonde esse tipo de coisa iria levar? Após algum tempo, ClintonTyree foi capa da revista Time e chamado de o novo populista por David Brinkley. A SociedadeNacional de Audubon deu-lhe uma medalha.

Uma noite, num compartimento acortinado de um restaurante chamado Silver Slipper, umpacto foi firmado entre os políticos para destruir o maluco do governador. Seu heroísmo noVietnã tornava-o imune às práticas tradicionais de difamação. Assim, a única alternativa seguraseria neutralizá-lo politicamente. O plano era simples e direto: o que quer que o governadorpleiteasse seria obstruído pela Câmara dos Deputados e pelos secretários de Estado. Essa posturaseria assegurada por generosas contribuições de banqueiros, construtores, corretores imobiliários,proprietários de hotéis, fazendeiros e outros grupos com interesses específicos que estavam tendodiferenças filosóficas com Clinton Tyree.

A estratégia foi bem-sucedida. Até os correligionários de Clinton do Partido Democrata lhefizeram oposição, sem remorso. Quando se deu conta de que estava completamente obstruído,Clinton começou a desmoronar moral e psicologicamente. Cada derrota na Câmara dosDeputados era um golpe fatal para Clinton. Suas aparições públicas começaram a se caracterizarpor uma oratória raivosa ou resmungos pessimistas. Emagreceu e deixou o cabelo crescer.Durante uma conferência de imprensa, recusou-se a usar camisa. Passou a escrever cartasagressivas no papel timbrado e a citar profusamente Carl Jung, Henry Thoreau e David Crosby.Uma noite, o policial designado para protegê-lo encontrou-o rastejando no cemitério. Clintonexplicou que sua intenção era desenterrar os ossos do ex-governador Napoleon BonaparteBroward, o primeiro homem que havia planejado drenar a região de Everglades. Seu plano eradistribuir os ossos de Broward como lembrança aos visitantes, no Palácio do Governo.

Entrementes, a devastação da Flórida continuava no mesmo ritmo, bem como a invasão denovos residentes. Milhares de caçadores de fortuna se instalavam no estado todos os dias, e nãohavia nada que Clinton Tyree pudesse fazer a respeito.

Um dia, ele renunciou e fugiu do palácio numa limusine do governo. Passou a esconder-senas regiões agrestes do estado. Na história da Flórida, nunca um governador havia renunciado.Na verdade, nenhum titular de um cargo público havia saído de forma tão abrupta e excêntrica davida pública. Jornalistas e escritores procuraram Clinton por toda a parte, mas não conseguiamencontrá-lo. Movimentava-se somente à noite e vivia da caça de pequenos animais, ao longo dasrodovias. Sua existência passou a ser tão solitária quanto a de uma cascavel nos pântanos.

Aqueles que cruzavam com ele conheciam-no pelo nome de Skink ou simplesmente capitão.Esse ritual eremita era interrompido apenas por incêndios culposos ocasionais, agressões físicasintempestivas ou tiros às escondidas ao longo das rodovias.

Clinton confiava completamente apenas num homem — o patrulheiro rodoviário que haviasido designado para protegê-lo durante a campanha eleitoral e depois, durante o seu mandato. Omesmo policial que dirigira a limusine no dia em que Clinton fugira. Somente ele sabia onde seescondia, mantinha algum contato e seguia seus movimentos. Era ele também que ajudavaClinton quando burlava a lei, o que acontecia de tempos em tempos. O policial havia estado comClinton quando ele perdera um olho depois de uma surra, quando atirara em alguns carros apósuma bebedeira e, novamente, quando pusera fogo num parque de diversões.

Alguns anos passavam com menos incidentes que outros.“Mas Clinton tem estado esperando por este furacão. Há motivo para preocupação”, disse

Jim Tile, girando um garfo cheio de espaguete.Augustine comentou: “Ouvi falar desse cara”.“Então você entende por que achei necessário falar com a senhora Lamb.”Bonnie interveio, ironicamente: “A senhora Lamb não está acreditando no que está ouvindo.

O senhor acha que esse lunático raptou Max?”.“Uma senhora idosa notificou ter visto um homem cuja descrição confere com o governador

carregando no ombro um homem cuja descrição confere com seu marido. O homem carregadoestava completamente nu.” Jim Tile fez uma pausa para permitir que Bonnie Lamb imaginasse acena. Depois, continuou: “Não posso garantir que a senhora idosa tenha boa vista, mas vale apena conferir a história. A senhora mencionou a existência de uma fita com a voz do raptor deMax”.

“Está lá em casa”, disse Augustine.“Vocês se importariam se eu a ouvisse?”Bonnie comentou: “O que o senhor está dizendo parece uma brincadeira”.“Então brinque comigo”, retrucou Jim Tile.Bonnie empurrou seu prato de lasanha, deixando-o pela metade. “Qual o seu interesse nessa

história toda?”“Clinton é meu amigo e está em apuros.”“Estou preocupada é com Max.”“Estão ambos em apuros.”Bonnie quis saber mais detalhes sobre o homem gordo no necrotério. O policial explicou-lhe

que ele havia sido estrangulado e empalado numa antena parabólica. O motivo parecia não tersido roubo.

“O seu amigo também é o responsável por essa atrocidade?”“A polícia está interrogando um marginal idiota do Alabama, mas não sei ao certo.”Para Bonnie, tudo aquilo era inacreditável. “O senhor falou ‘empalado’?”“Sim, senhora.” Jim Tile não mencionou a crucificação. A senhora Lamb já estava

suficientemente chocada.Com os dentes cerrados, ela disse: “Este lugar é um hospício”.Jim Tile concordava plenamente. Disse, um pouco cansado, a Augustine: “Só estou seguindo

algumas pistas”.“Venha conosco até em casa. Vamos tocar a fita para o senhor.”

A intenção de Ira Jackson fora matar Tony Torres e depois voltar a Nova York paraprovidenciar o funeral de sua mãe. O assassinato do vendedor de trailers, porém, deixou-oinquieto e insatisfeito. Dirigindo pela área devastada pelo furacão, Ira Jackson deu-se conta dequão insignificante tinha sido Tony Torres. Existiam centenas de caras no sul da Flórida muitocontentes em vender armadilhas mortíferas para pobres viúvas. Havia evidência disso por todaparte: Ira Jackson sabia reconhecer construções precárias e inseguras quando as via. E ele viaesse tipo de construção por toda parte. As casas de um bairro sobreviveram ao furacão semsequer uma telha fora do lugar. Em outro bairro, construções igualmente caras haviam sidototalmente destruídas.

Uma completa desgraça, pensou Ira Jackson. Isso tudo só podia ser resultado de corrupçãoem larga escala. Lembrou-se da declaração insolente de Tony Torres: todas as casas móveis quevendemos foram inspecionadas.

Sem dúvida, deveria ser verdade. Os inspetores do condado de Dade eram tão responsáveispela destruição das residências quanto vendedorezinhos cretinos como Tony Torres. Aos olhosexperientes de Ira, as construções de baixa qualidade eram tão comuns que não se poderiaatribuir isso a mera incompetência. Mesmo um cego teria percebido a fragilidade de algumasdaquelas construções. Certamente, inspetores tinham sido subornados com dinheiro, bebida,drogas, garotas, ou todas essas coisas. Isso acontecia no Brooklyn também, mas lá não haviafuracões.

Ira lembrou-se, com raiva, dos arrebites que deveriam ter prendido o trailer de sua mãe.Alguém da municipalidade deveria ter percebido as correias podres e os verrumes cortados. IraJackson queria descobrir quem era essa pessoa e quanto tinha recebido para fechar os olhos.

Dirigiu-se para o Departamento de Construção e Mapeamento para averiguar.

Snapper suava dentro de seu terno barato. O senhor Nathaniel Lewis estava dificultando ascoisas quanto ao depósito. No caminhão, estacionado em frente à casa, seus companheirosbebiam cerveja quente e discutiam as notícias sobre esportes.

“Uma entrada de quatro mil dólares é totalmente descabida”, Nathaniel Lewis estavadizendo.

“Tudo depende da rapidez com que o senhor quer o telhado. Calculo que esteja com pressa.”“Claro que tenho pressa. Veja minha casa como ficou.”Snapper concordou que a casa estava quase demolida. O senhor Lewis havia prendido sacos

de plástico para lixo nas vigas para proteger-se da chuva. “Escute”, disse Snapper, “todo mundoestá sem telhado. Nosso telefone não para de tocar. Quatro mil dólares de entrada o colocarão notopo da lista. Prioridade número um.”

Mas Nathaniel Lewis era mais esperto do que Snapper imaginara. “Se o seu telefone não parade tocar, por que você veio bater na minha porta para arranjar trabalho? E como você explica asua equipe sentada no caminhão, se há tanto trabalho para fazer?”

“Ah, é só um intervalo”, mentiu Snapper. “Estamos trabalhando naquele dúplex, a duasquadras daqui. Economizamos gasolina se aproveitamos para pegar mais uns trabalhos nocaminho.”

Lewis retrucou: “Ofereço-lhe três mil de entrada e só na condição de vocês começaremimediatamente”.

“Pode deixar conosco.”A equipe subiu no esqueleto de telhado da casa. Snapper não teve de lhes dizer para irem

devagar. Isso era natural. Avila os havia alertado para a necessidade de fazerem bastante barulho,

como se fossem operários de verdade. Assim, os caras negros começaram a fazer um concursode marteladas, com o cara hispano atuando como juiz. O matuto branco ficou cortando madeiracompensada para os acabamentos.

Snapper ficou esperando na cabine do caminhão, que cheirava a cerveja e maconha. Porsorte, o céu escureceu depois de cerca de uma hora, e uma tempestade desabou. Enquanto osfalsos operários se empurravam para subir no caminhão, Snapper disse ao senhor Lewis quevoltariam à primeira hora da manhã seguinte. Ele deu-lhe um cheque de três mil dólares. Ocheque foi feito em nome da empresa Fortress Roofing (Telhados de Fortaleza), o nome falsoque Avila dera ao empreendimento e que Snapper achou muito divertido.

Snapper entrou em seu jipe roubado e dirigiu-se para o sul. A equipe seguiu-o no caminhão.Avila o havia advertido para não permanecer numa só região. Uma estratégia inteligente, pensouSnapper. Foram para Cutler Ridge, onde a tempestade ainda não chegara. Snapper localizou umamoradia luxuosa, tipo casa de fazenda, rodeada por dois acres de pinheiros. Metade do telhadohavia sido arrancado pelo furacão. Um Land Rover e um Infiniti preto estavam estacionados naentrada para carros, pavimentada de lajotas.

Tirei a sorte grande, pensou Snapper.A dona de casa abriu-lhe a porta. Seu nome era Whitmark e ela estava desesperada por um

novo telhado. Havia estado espreitando as nuvens negras no horizonte, e a possibilidade de maisinundação em sua sala de estar deixara-a desesperada. O falso chefe de produção dos operáriosescutou com atenção a história angustiante da senhora Whitmark:

Os tapetes e o aparelho de som já tinham sido destruídos. Havia fungos nas cortinas, na roupade cama e em metade de seu guarda-roupa de inverno. O sofá de couro italiano e o aparador decerejeira haviam sido transportados para a ala oeste, mas...

“Podemos começar esta tarde mesmo, mas precisamos receber um depósito adiantado comoentrada”, interrompeu Snapper.

A senhora Whitmark perguntou-lhe o valor da entrada e Snapper inventou uma quantiaqualquer: sete mil dólares.

“O senhor aceita dinheiro vivo, presumo.”“Claro”, respondeu Snapper, tentando falar naturalmente, como se estivesse acostumado a

que seus clientes dispusessem dessa quantia tão prontamente.A senhora Whitmark deixou Snapper sozinho na sala, enquanto foi buscar o dinheiro. Ele

levantou os olhos em direção ao imenso buraco no teto. Naquele exato momento, o sol saiu,inundando a casa de uma luz dourada.

Snapper franziu os olhos. Seria um aviso?A senhora Whitmark retornou, ladeada por dois pastores alemães pretos e prateados.Snapper ficou duro de medo. “Minha nossa!”“Meus nenéns”, disse a senhora Whitmark com carinho. “Não temos problemas aqui com

saqueadores. Temos, meus queridos?” Começou a acariciar o cachorro maior debaixo dofocinho. Ao seu comando, os dois animais sentaram-se a seus pés, com as cabeças levementeviradas e olhando com intensidade para Snapper, que sentiu um espasmo.

Suas mãos tremiam tanto que mal conseguia escrever no contrato. A senhora Whitmarkperguntou o que havia acontecido com seu maxilar. “Você caiu de algum telhado?”

“Não, foi um acidente grave”, respondeu ele secamente.A senhora Whitmark deu-lhe o dinheiro num envelope rosa, aromatizado, e perguntou-lhe

quando poderiam começar.

Snapper prometeu-lhe que sua equipe retornaria em meia-hora. “Temos que arranjar maismadeira. O trabalho aqui é grande, como a senhora sabe.”

A senhora Whitmark e seus cães de guarda acompanharam Snapper até a porta da frente. Elemanteve ambas as mãos nos bolsos das calças, como precaução, caso os animais atacassem. Mas,é claro que, se fossem treinados como os cães de polícia, não se importariam com suas mãos.Avançariam diretamente no seu saco.

“Volte logo”, disse a senhora Whitmark, esquadrinhando o céu com as pupilas dilatadas.“Não estou gostando nada da aparência do céu.”

Snapper voltou ao caminhão e deu as más notícias à equipe. “Ela não topou. Disse que omarido já havia contratado um operário de uma companhia em Palm Beach.”

“Graças a Deus”, comentou um dos caras negros. “Já estou morto. Vamos encerrar ostrabalhos por hoje?”

“Não tenho nada contra”, respondeu Snapper.

Jim Tile voltou a fita e tocou-a novamente.“Querida, fui sequestrado...“Raptado. Sequestro implica pedido de resgate, Max. Não se lisonjeie...”Bonnie Lamb indagou: “E aí?”.“É ele”, disse o patrulheiro.“O senhor tem certeza?”“Te amo, Bonnie. Max esqueceu de lhe dizer, por isso digo eu. Tchau.”“Tenho certeza absoluta”, confirmou Jim Tile retirando o cassete do toca-fitas.Bonnie pediu a Augustine que avisasse seu amigo do FBI, mas ele não achou que fosse uma

boa ideia.O patrulheiro concordou. “Eles nunca vão encontrá-lo. Não sabem onde procurá-lo. Não

sabem como.”“Mas, e o senhor, sabe?”“O que provavelmente vai acontecer é que o governador vai ficar com seu marido até cansar-

se dele”, acrescentou o patrulheiro.“E aí, o que acontece? Ele o mata?”, perguntou Bonnie.“Não. A não ser que seu marido tente alguma bobagem”, respondeu o policial.Augustine pensou: Então talvez tenhamos problemas.Jim Tile recomendou a Bonnie que não entrasse em pânico. O governador não era um ser

irracional. Havia modos de encontrá-lo, fazer contato, tentar um diálogo.Bonnie pediu licença e foi tomar uma aspirina. Augustine acompanhou o policial até a saída.

“O FBI não vai se ocupar do caso”, disse Jim Tile. “Não há pedido de resgate, nem viagensinterestaduais. É difícil para ela compreender o ponto de vista deles.”

Augustine observou que Max não andava ajudando em nada telefonando para Nova Yorkpara acompanhar suas contas de publicidade. “Ele não é exatamente uma vítima comum”,acrescentou.

Jim Tile entrou no carro e colocou o chapéu no assento de trás. “Volto a falar com vocês embreve. Enquanto isso, cuide bem da moça.”

“O senhor não acha que o governador é maluco, acha?”O policial riu. “Filho, você ouviu a fita.”“É, também não acho que ele seja louco.”

“Diferente é a palavra. Muito diferente é o que ele é.” Jim Tile ligou o rádio do carro paraouvir as últimas loucuras da zona do furacão. O policial de plantão estava convocando várioscarros para interceptar a rodovia US-1 com Kendall Drive, onde um caminhão carregado de gelohavia capotado. Distúrbios haviam ocorrido no lugar e as ambulâncias estavam seguindo para lá.

“Meu Deus”, Jim Tile disse. “As pessoas estão se matando por causa de cubos de gelo...”Depois, deu partida no carro, sem se despedir.

De volta a casa, Augustine ficou surpreso ao encontrar Bonnie sentada ao lado do telefone dacozinha. Perto de seu cotovelo, viu um bloco onde ela havia escrito várias frases. Ficou surpresotambém com a elegância de sua letra. Uma vez, havia saído com uma moça que fazia os pingosdos is como esferas perfeitas. Às vezes, desenhava carinhas sorridentes dentro das esferas e,outras vezes, rostos carrancudos. A moça havia feito parte da torcida do time de futebol de suauniversidade e ficara condicionada.

A letra de Bonnie nada tinha a ver, contudo, com a da tal moça. “Instruções sobre o caminhoa tomar”, disse Bonnie, sacudindo o bloco.

“Caminho para onde?”“Caminho para ver Max e o tal do Skink. Eles deixaram instruções na secretária eletrônica.”Ela estava entusiasmada. Augustine sentou-se ao seu lado. “O que mais disseram?”“Para não levar a polícia, nem o FBI. Max enfatizou muito esse ponto.”“E que mais?”“Para levar quatro pilhas tipo A e uma fita com Exile on main Street. A fita tem que ser de

cromo e Dolby, o que quer que isso queira dizer. Também querem um vidro de azeitonas verdesfuradas, sem pimenta.”

“Será que essa é a lista de compras do governador?”“Deve ser. Max odeia azeitonas verdes.” Colocando a mão no braço de Augustine,

acrescentou: “O que vamos fazer? Você quer ouvir a mensagem?”.“Vamos conversar com eles, se é isso que desejam.”“Você traz o revólver, ok? Estou falando sério.” Seus olhos brilhavam. “Podemos raptar Max

de seu raptor. Por que não?”“Acalme-se, por favor. Para quando está marcado o encontro?”“Para amanhã, à meia-noite.”“Onde?”Quando ela lhe contou, ele ficou desanimado. “Eles nunca irão lá. Não lá.”“Você está enganado. Cadê o seu revólver?”Augustine foi para a sala de estar e ligou a televisão. Ficou trocando de canal, até encontrar a

repetição de um show de Monty Python. Um clássico, John Cleese comprando um papagaiomorto. Essa parte sempre fazia Augustine rir.

Bonnie sentou-se ao seu lado no sofá. Quando o show terminou, Augustine lhe disse: “Vocênão sabe absolutamente nada sobre armas de fogo”.

11

Max Lamb acordou ouvindo esta frase: “Você tem que deixar um legado”.Ele e Skink haviam conseguido uma carona na carroceria de um caminhão. Estavam sendo

sacudidos na rodovia US-1, no meio de duas mil latas de sopa de brócolis e queijo da marcaCampbell, as quais seriam doadas para as vítimas do furacão por uma igreja batista dePascagoula, Mississippi. O que faltava em variedade na doação, sobrava em manifestações deboa vontade e fraternidade.

“Isso”, disse Skink apontando para as latas de sopa, “é o que as pessoas fazem umas pelasoutras quando ocorre uma catástrofe. Elas se ajudam. Você, ao contrário...”

“Já disse que sinto muito.”“Você, Max, chegou com uma filmadora.”Max acendeu um cigarro. O governador tinha estado num humor de cão durante todo o dia.

Primeiro, sua fita favorita dos Rolling Stones tinha rebentado. Depois, as pilhas de seu walkmanacabaram.

Skink continuou: “As pessoas que estão doando essa sopa foram vítimas do Camille. Esperoque você saiba o que foi o Camille”.

“Um outro furacão?”“Um furacão fantástico, devastador. Max, acho que você está melhorando.”Max tragou o cigarro, preocupado, e disse: “Você estava falando em arranjar um barco”.Skink fingiu não escutar. “Todo mundo deveria deixar um legado na vida, algo para ser

lembrado. Vamos ouvir alguns de seus slogans.”“Não, agora.”“Não assisto mais à televisão, mas lembro-me de alguns comerciais.” Skink apontou para as

latas de sopa Campbell e comentou: “Aquele que dizia ‘nham, nham, isto é bom’. Foi umclássico”.

Sem modéstia, Max perguntou: “Você já ouviu o slogan do Plum Crunchies? Era um cereal”.“Um cereal”, repetiu Skink.“Plum Crunchies: é cataplum.”Skink franziu o cenho. Retirou do bolso das calças uma caixinha de feltro para joias. Abriu-a

e tirou de dentro um escorpião, colocando-o no pulso. O escorpião levantou as patas, apertando oar, confuso. Max olhava estupefato. Começou a suar no pescoço, por baixo da coleira de choque.Preparou-se para pular do caminhão caso Skink lhe jogasse a horrível criatura em cima.

“Este pobre-diabo”, disse Skink, “é do Sudoeste asiático. Eu o reconheci de imediato.” Comum dedo, mexeu no escorpião até ele arquear seu ferrão.

Max perguntou-lhe como um escorpião vietnamita viera parar na Flórida. Skink explicou queprovavelmente fora contrabandeado por importadores. “Então, com o furacão, o bicho ganhou aliberdade. Achei-o naquele estábulo. Você se lembra do slogan dos cigarros Larks? ‘Mostre-meseus Larks!’”

“Muito mal.” Max era criança na época desse comercial.

Skink disse: “É isso que quero dizer com um legado. Alguém se lembra quem inventou ocomercial da Larks? Mas, e o homem da Marlboro? Essa foi a campanha publicitária mais bem-sucedida da história”.

Era verdade. E Max se perguntou como Skink sabia disso. Observou que o escorpião havia seenrolado no pelo louro-grisalho do braço de Skink.

“O que você vai fazer com isso?”, perguntou Max.Nenhuma resposta. Tentou outra estratégia. “Bonnie tem horror a insetos.”Skink pôs o escorpião na palma da mão. “Isto não é um inseto. É um aracnídeo.”“Quero dizer, de qualquer tipo de bicho. Ela morre de medo de qualquer bicho, tipo besouro

ou escorpião.” Max estava, na verdade, falando de si próprio. Sentia agulhadas de medo nosbraços e nas pernas. Para se distrair, tentou, em vão, descobrir qual a relação entre a simpatia deSkink pelo escorpião e sua admiração pelo homem da Marlboro. O que aquele psicopata estariatentando lhe dizer?

“Ela sabe nadar, a sua Bonnie? Se sabe, ficará bem.” O governador colocou o escorpião naboca e deu a impressão de engoli-lo.

“Oh, meu Deus!”, exclamou Max.Depois de alguns instantes, Skink abriu a boca. O escorpião estava placidamente pousado em

sua língua, com sua torquês em posição de descanso.Max Lamb apagou um cigarro e acendeu outro. Apoiou a cabeça contra um engradado de

latas de sopa e fez uma prece silenciosa: meu Deus, fazei com que Bonnie não diga nada quecontrarie este cara.

A carreira de Avila como inspetor de obras da municipalidade não fora digna de nota, excetodurante os seis meses em que foi alvo de uma investigação policial. A polícia havia infiltrado oDepartamento de Construção e Mapeamento com um policial disfarçado de supervisor. Eledescobriu, dentre uma série de irregularidades, que Avila inspecionava novos telhados com avelocidade sobre-humana de cerca de sessenta por dia, sem utilizar sequer uma escada. Umaequipe policial foi destacada para vigiar Avila e observou que ele nunca se preocupava em subirnos telhados que supostamente inspecionava. Com efeito, nunca saía de seu carro, a não ser parao almoço de duas horas num clube de nudistas em Hialeah. Foi também observado que Avilapassava pelos canteiros de obras a uma tal velocidade que os construtores eram obrigados acorrer atrás de seu carro para pagar-lhe subornos. As transações ilícitas foram registradas emvídeo.

Quando a investigação policial foi tornada pública, um júri foi convocado para decidir se oindiciaria criminalmente ou não. A fim de aparentar preocupação, o Departamento de Construçãoe Mapeamento transferiu Avila e vários de seus colegas corruptos para tarefas mais baixas, o quepodia ser comprovado pela insignificância dos subornos pagos por elas. Avila foi relegado àinspeção de trailers. A ideia de implementação de especificações num estacionamento de trailersera inexistente. Avila sabia que nenhum deles sobreviveria a um furacão. Para que então perdertempo verificando a segurança de arrebites?

Mas Avila continuava mantendo as aparências, fazendo suas inspeções fantasmas erecebendo pequenos subornos dos vendedores de trailers — cinquenta dólares aqui, uma garrafade uísque acolá, ou mesmo filmes pornográficos ou cocaína. Avila não se preocupava com umaeventual vigilância da polícia com relação à sua nova tarefa. As autoridades estavampreocupadas em proteger a classe média alta, e não os pobres-diabos que moravam em trailers.

A única exceção era Ira Jackson, cuja mãe morrera vitimada pela insegurança de um trailer.

O Departamento de Construção e Mapeamento do condado de Dade era um dos maisdesorganizados que Ira Jackson já encontrara. Levou uns noventa minutos para encontrar umfuncionário que falasse inglês fluentemente e cerca de uma hora para encontrar os documentosrelativos ao estacionamento de trailers onde sua mãe residira. Nas circunstâncias, Ira ficou atésurpreso ao saber que o arquivo ainda existia. Pelo que pôde observar, diversos documentos jáhaviam desaparecido após o furacão. Cientes de que a tempestade traria escândalos, osconstrutores, corretores e inspetores estavam dando sumiço nos arquivos a fim de esconder seuscrimes. Ao caminhar até uma cadeira, Ira Jackson observou que lá se misturavam pessoasrealmente prejudicadas e pessoas culpadas, que caminhavam com o cenho cerrado e os olhosfurtivos e nervosos. Tratava-se de homens que temiam agora os escândalos, os processosgeneralizados e até mesmo a prisão.

Se ao menos isso fosse possível, pensou Ira Jackson. Mas a experiência lhe ensinara outracoisa. Marginais que assaltam lojas de bebidas vão para a cadeia, mas não caras ricos, burocratasou funcionários públicos.

Ira Jackson folheou os documentos até encontrar o nome da pessoa que fingira inspecionar oestacionamento de trailers de sua mãe. Aproximou-se do balcão, abrindo caminho entre amultidão, e foi informado por um funcionário aflito que o senhor Avila não era mais empregadoda Prefeitura de Dade.

“Por que não?”, perguntou Ira.Porque se demitira, começara seu próprio negócio, explicou o funcionário. Uma vez que Ira

já estava nervoso, o funcionário não quis esclarecer que a renúncia de Avila fora parte de umacordo com a promotoria. Tratava-se de um assunto particular, que o senhor Avila poderiadiscutir com o senhor Jackson, se assim o desejasse.

Ira Jackson perguntou se ele possuía o endereço atual do senhor Avila.O funcionário esclareceu que não tinha autorização para divulgar o endereço particular de ex-

funcionários. Ira Jackson debruçou-se no balcão e colocou sua mão no ombro do funcionário.“Escute-me, Paco. Vou até sua casa e extermino a sua família, tá entendendo? Até seus animaisde estimação posso eliminar.”

O funcionário balançou a cabeça, em sinal afirmativo, e disse que voltaria logo com oendereço.

Snapper ficou mais aborrecido do que com medo quando viu as luzes azuis da políciapiscando em seu retrovisor. Calculara que o jipe roubado dos assaltantes já deveria estar fichado.Mas não pensara que a polícia procuraria por ele tão cedo. Não com todas as chamadas deemergência, depois do furacão.

Ao estacionar o jipe no acostamento, perguntou-se se Baby Raper teria dado com a línguanos dentes no hospital. Com efeito, o jovem tinha ficado possesso quando Snapper enfiara-lhe oCD no ânus, como um enorme supositório brilhante.

Mas por que a polícia se preocuparia com isso?, pensou Snapper. Talvez a situação atual nãotivesse nada a ver com o assaltante ou com o jipe roubado. Talvez fosse só uma questão deexcesso de velocidade.

O policial que o fez parar era uma mulher da Patrulha Rodoviária. Tinha feições delicadas eolhos azuis-pálidos que lembravam a Snapper os de uma garota que tentara namorar em Atlanta.Uma garota católica. Os cabelos da patrulheira estavam presos sob o chapéu. Usava uma aliançade ouro que estava pedindo para ser roubada. O coldre parecia grande demais e fora do lugar,

pousado em seu quadril. Ela direcionou a luz da lanterna para o jipe e pediu para ver a carteira demotorista de Snapper.

“Deixei minha carteira em casa.”“Não tem nenhuma identificação?”Batendo nos bolsos, ele respondeu: “Não, não tenho”.“Qual é o seu nome?”“Boris”, disse Snapper. Adorava os nomes Boris e Natasha, utilizados num desenho animado

antigo da televisão.“Boris do quê?”Snapper não sabia soletrar o sobrenome do Boris do desenho animado. Por isso, disse:

“Smith. Boris J. Smith”.Os olhos pálidos da patrulheira pareceram escurecer e seu tom de voz ficou mais frio. “O

senhor estava dirigindo a cento e vinte quilômetros por hora numa área onde o limite develocidade é oitenta.”

“Sem brincadeira?”, Snapper sentiu-se aliviado. Era só uma questão de excesso develocidade. Talvez até nem recebesse a multa.

A patrulheira disse: “É contra a lei dirigir sem carteira de motorista. O senhor sabe disso, nãoé?”.

Está bem, pensou Snapper, receberia duas multas. Grande coisa. Mas observou que ela não oestava chamando de senhor Smith.

“O senhor também sabe que é proibido dar informações falsas à policia?”“Claro.” Snapper percebeu que ela não havia acreditado em seu nome falso e xingou

mentalmente.“Fique no carro, por favor.”Pelo espelho, Snapper viu a lanterna sacudir-se, enquanto a policial retornava à

radiopatrulha. Sem dúvida, ela tinha intenção de notificar o número da placa do jipe. Snappersentiu seus ombros se contraírem. Não teria a menor chance se tivesse que dar explicações sobreo jipe e os sete mil dólares em seu bolso.

Tinha duas alternativas. A primeira seria fugir, o que acarretaria uma perseguição da polícia,possivelmente um acidente, e prisão por vários crimes inafiançáveis.

A segunda seria deter a policial antes que ela utilizasse o rádio. Escolheu a segunda.Alguns criminosos não bateriam numa mulher, mas Snapper não se importava com isso. Um

policial era um policial. A patrulheira percebeu que ele se aproximava, mas, atrapalhada porcausa do volante, não conseguiu tirar a arma do coldre. Quando finalmente o abriu, já tinha sidoatingida por Snapper.

Snapper pegou a lanterna, o revólver e a aliança e abandonou a policial inconsciente noacostamento. Ao acelerar, reparou numa mancha colorida nas juntas de seus dedos. Parecia serproduzida por maquilagem. Não sentiu vergonha, remorso ou qualquer coisa parecida.

Edie Marsh estava começando a sentir o verdadeiro sofrimento de uma vítima do furacão.Choveu três vezes durante o dia, fazendo surgir várias poças de água na casa de Tony Torres. Ostapetes estavam encharcados, sapos verdes pulavam pela casa e mosquitos se acumulavam nasbanheiras e nas pias. Mesmo depois que a chuva parara, as vigas expostas continuaram pingandopor horas a fio. Tudo isso, somado ao barulho ensurdecedor das serras elétricas e marteladas davizinhança, estava deixando Edie quase louca. Foi até o quintal e chamou os cachorrinhos meio a

contragosto. Ao ver uma cobra marrom e grande, voltou para dentro. Os gritos de Edie atraíramum vizinho, que espantou a cobra com uma vassoura. Ele perguntou por Tony e Neria.

Edie disse-lhe que tinham viajado e que lhe pediram para cuidar da casa.“E a senhora é...?”“Uma prima”, respondeu Edie, mesmo sabendo que não tinha qualquer traço latino.Logo que o vizinho foi embora, Edie acomodou-se na espreguiçadeira de Tony. Ligou o

rádio e colocou o pé de cabra ao alcance da mão. Quando a noite veio, as marteladas e o barulhodas serras pararam, sendo substituídos por choros de bebês, rádios mal sintonizados e portasbatendo. Edie começou a se preocupar com saqueadores e estupradores e com o animal predadordesconhecido que atacara Donald e Maria. Quando Fred Dove chegou, ela estava uma pilha denervos.

Fred trouxe um buquê de gardênias, como se a estivesse levando a um baile de formatura.Edie comentou: “Você deve estar brincando”.“O que há de errado? Não consegui achar rosas.”“Fred, não posso mais ficar nesta casa. Por favor, me arranje um quarto no hotel.”“Tudo vai dar certo. Olhe, trouxe vinho.”“Fred?”“E velas aromatizadas.”“Fred.”“O que foi?”Edie conduziu-o até um sofá úmido e fê-lo sentar-se. “Fred, isto é um negócio, não um

romance.”Ele pareceu ofender-se.“Querido”, disse ela, “fizemos sexo somente uma vez. Não se preocupe. Tudo indica que

faremos de novo. Mas não se trata de amor nem de paixão. Temos apenas uma associação comfins lucrativos.”

Fred retrucou: “Mas você me seduziu”.“Claro que sim. E você foi fantástico.”Com o ego massageado, a atitude de Fred melhorou.“Mas não traga mais vinho, nem flores. Simplesmente, arranje-me um quarto na droga do

hotel Ramada.”Fred concordou solenemente. “Amanhã cedo, sem falta, farei isso.”“Olhe para esta casa. Não tem teto, nem vidros nas janelas. Não é mais uma casa, é uma

maldita cabana.”“Você tem razão, Edie. Não pode mais ficar aqui. Vou colocar sua hospedagem na conta de

despesas da companhia.”Ela revirou os olhos. “Fred, não seja mesquinho. Vamos dar um golpe na sua companhia no

valor de cento e quarenta e um mil dólares e você está se preocupando com um quarto desessenta dólares. Pense nisso.”

“Por favor, não se zangue.”“Você trouxe o formulário do pedido de indenização?”“Está aqui.”Depois de examinar os números, Edie sentiu-se melhor. Pegou as gardênias e colocou-as

num bule de café que estava cheio de água morna da chuva. Abriu a garrafa de Chablis e fizeramum brinde a um negócio bem-sucedido. Após quatro taças de vinho, Edie sentiu-se à vontadepara perguntar o que Fred tencionava fazer com sua parte do dinheiro.

“Vou comprar um barco e velejar até Bimini.”“E a sua mulher?”“Quem?”, brincou Fred, e os dois riram juntos. Então ele perguntou a Edie o que faria com a

sua parte.“Porto de Hyannis”, respondeu ela, sem explicações.Mais tarde, quando o vinho acabou, Edie arrastou um colchão seco para a sala, apagou a

única lâmpada e acendeu uma das velas de Fred, que cheirava a leite maltado. Ao tirar as roupas,ouviu Fred mexendo na pasta à procura de uma camisa de vênus. Ele abriu o pacote com osdentes e colocou a camisinha na mão dela.

Mesmo quando estava sóbria, camisas de vênus faziam Edie rir. Quando bêbada, achava-ashilariantes, o contraceptivo mais ridículo do mundo. Fred tinha escolhido uma vermelha, e Edienão conseguiu colocá-la nele. Nem Fred, aliás. Os risos sem parar de Edie haviam destruído oclima construído pelo vinho.

Deitado de costas, Fred virou o rosto para o outro lado. Edie abriu as pernas dele e ajoelhou-se para acariciar seu pênis com a língua. “Não desista, querido. Concentre-se.” Com firmeza,colocou o pênis em sua boca.

“Você poderia...”“Não.” Ela controlou-se para não rir. Fred ficaria terrivelmente magoado. “Concentre-se”,

disse ela. “Pense no quanto foi bom ontem à noite.”Edie tinha conseguido fazer com que o pênis de Fred ficasse parcialmente ereto, quando

ouviu o gerador parar de funcionar. Acabou o combustível, pensou ela. Isso poderia esperar. Fredestava dando sinais de vida.

Ela ouviu um clique e, de repente, o pênis de Fred apareceu brilhando dentro da camisa devênus vermelha. Fred, de olhos fechados, disse: “Não pare agora”.

Na porta da frente, Edie viu um homem segurando uma potente lanterna.“Velas”, disse ele. “Muito aconchegante.”O peito de Fred parou de arfar e ele começou a procurar seus óculos. Edie sentou-se e cruzou

os braços, protegendo os seios nus. Disse: “Obrigada por bater, seu escroto”.“Voltei para pegar meu carro”, disse Snapper, fazendo a luz da lanterna passear pelo corpo de

Edie.“Está na entrada para carros, onde você o deixou.”“E qual é a pressa?”, respondeu Snapper, entrando na casa.

Bonnie Lamb foi para o quarto de Augustine, à uma e meia da madrugada. Entrou debaixodos lençóis, sem roçar o corpo dele. Não foi uma tarefa fácil, numa cama pequena.

Sussurrou: “Você está dormindo?”.“Como uma pedra.”“Desculpe.”Ele virou-se para olhar para ela. “Você quer um travesseiro?”“Não. Preciso é de um abraço.”“Não é uma boa ideia.”“Por quê?”“Estou pelado. Não estava esperando companhia.”“Desculpa número dois.”“Feche os olhos.” Augustine se levantou e colocou umas calças largas. Bonnie observou que

ele não vestira a camisa. Entrou debaixo das cobertas e abraçou-a. A pele dele estava morna e

macia e, quando Augustine se mexeu, ela sentiu seu músculo enrijecido. A topografia física deMax era completamente diferente, mas Bonnie tentou afastar o pensamento. Não era justocomparar os dois. Não agora.

Ela perguntou a Augustine se já tinha sido casado. Ele respondeu que não.“Noivo?”“Sim. Três vezes.”Bonnie levantou a cabeça. “Você está brincando.”“Infelizmente não.” Augustine percebeu que ela estava sorrindo. “Isso a diverte?”“Me intriga. Três vezes?”“Todas recuperaram a razão em tempo.”“Estamos falando de três mulheres diferentes?”“Exatamente”, disse Augustine.“Tenho que perguntar o que aconteceu. Você não é obrigado a responder, mas tenho que

perguntar.”“Bem, a primeira casou com um advogado bem-sucedido, especializado em indenizações por

danos físicos — ele está trabalhando com litígios relativos a implantes de seios. A segunda abriuuma firma de arquitetura e é agora amante de um ministro de Estado da Venezuela. E a terceiraestá estrelando uma novela cubana muito conhecida — ela faz a Miriam, uma esquizofrênicaciumenta. Eu diria que cada uma delas foi sábia ao terminar nosso noivado.”

“Aposto que você deixou que elas ficassem com o anel de noivado.”“Claro, é só dinheiro.”“E você ainda assiste a novela cubana, não é?”“Ela é muito boa atriz. Muito convincente.”“Você é fora do comum, sabia?”“Você está se sentindo melhor? Meus problemas pessoais sempre parecem alegrar as

pessoas.”Ela baixou a cabeça. “Estou preocupada com o dia de amanhã, com a possibilidade de ver

Max de novo.”Augustine disse-lhe que era normal sentir-se nervosa. “Estou um pouco ansioso também.”“Você vai levar o revólver?”“Não sei ainda. Vamos ver.” Ele tinha sérias dúvidas se o governador ia ao encontro

realmente e se levaria Max.“Você está com medo?” Quando ela falou, Augustine sentiu seu cheiro cálido em seu peito.“Com medo não, inquieto.”“Ei.”“Ei o quê?”, disse ele.“Você está ficando excitado?”Augustine virou-se, embaraçado. O que ela esperava? Disse: “Minha vez de pedir

desculpas”.Mas Bonnie não se mexeu. Augustine respirou fundo e tentou pensar em outra coisa para se

distrair. Os macacos fugitivos de seu tio Felix. Quão longe teriam ido? Como estavam sesentindo em liberdade?

O devaneio proposital de Augustine foi interrompido por Bonnie. “E se Max estiver diferenteagora? Talvez tenha lhe acontecido alguma coisa.”

Augustine pensou: Claro que lhe aconteceu alguma coisa. Você pode ter certeza.Mas o que disse a Bonnie foi: “Seu marido está se saindo bem. Espere e verá”.

12

Skink perguntou: “Você quer um pouco de sapo?”.A coleira de choque dominara Max completamente. Ele estava totalmente condicionado. Se o

capitão quisesse que ele fumasse sapo, ele fumaria sapo.“É um oferecimento, não uma ordem”, esclareceu Skink.“Então não, obrigado.”Max Lamb olhou de soslaio a escuridão da noite. Em algum lugar lá fora, Bonnie estava

procurando-os. Max não estava nem tão ansioso, nem tão esperançoso quanto deveria e seperguntou qual seria o motivo. Sua reação a quase todas as situações era de apatia, como se seuscomandos mentais tivessem sido destruídos pelo sofrimento do sequestro. Por exemplo, nãotinha conseguido fazer a mais leve das objeções no campo de golfe, onde haviam parado parasoltar o escorpião asiático. Skink depositara o inseto venenoso no décimo oitavo buraco docampo. “É o percurso favorito do prefeito. Sou um otimista”, explicou ele. Max ficou olhando,estupefato.

Agora, estavam numa casa sustentada por palafitas, no meio da baía. Skink, sentado na doca,balançava suas longas pernas. A doca estava torta e curva, em consequência do furacão. Amaioria das casas haviam desabado, exceto esta, que conseguira reagir à força do vento, emboratendo sofrido muitos danos. A casa tremia e rangia à mais leve brisa. Max Lamb suspeitava queela estava afundando com a maré. Skink dissera que a casa pertencia a um homem aposentadopor invalidez da promotoria estadual. O homem casara-se, recentemente, com uma guitarristabelíssima e se mudara para a ilha de Exuma.

Sob a luz de uma lanterna que tremulava, Skink acendeu outro cigarro de cheiro exótico.Maconha com sopa de cebolas, pensou Max. Algo forte e repugnante.

“Os sapos em si são tão tóxicos”, Skink explicou. “Bufo marinus. Essa espécie foi importadada América do Sul e reproduziu-se mais que as espécies locais. Você sabia disso?” Deu umatragada longa no cigarro. “As glândulas do Bufo perspiram uma seiva leitosa que pode matar umdoberman em seis minutos.”

Para Max, aquilo não parecia ser uma substância que pudesse ser tragada, como Skink estavafazendo.

“Mas há um processo especial de extração”, continuou Skink, dando uma longa tragada nocigarro.

“Qual o efeito dessa seiva no sapo?”, perguntou Max.“Nada. Tudo. Faz o que todas as drogas fazem, acho eu. Uma roleta neuropsicológica.” O

queixo de Skink caiu sobre seu peito. Seu olho bom piscou e se fechou. Sua respiração ficou bemalta e ofegante. Ao expirar, produzia um ruído que parecia os freios de um metrô. Durante quinzeminutos, Max não ousou se mexer. A ideia de fugir nunca lhe ocorreu, tal era a força docondicionamento pavloviano da coleira de choque.

Durante o tempo em que ficou paralisado, o pensamento de Max desviou-se para osproblemas na Rodale. Aquela víbora ardilosa estava sem dúvida de olho no escritório de Max,com sua vista para a avenida Madison, ainda que parcial. Cada dia passado com Skink era mais

um dia para o avanço de Bill, o traidor. Max estava louco para voltar para a agência, só paraesmagar as ambições do sacana. Seria necessária uma humilhação brutal, e Max esperava sercapaz disso. Deleitou-se imaginando Bill sem emprego, sem mulher, sem casa, sem dentes,encolhido numa viela fria e escura e bebendo veneno de sapo.

Quando Skink voltou a si, tossiu forte e jogou a bagana nas águas limosas da baía. Não muitolonge da casa, podia-se ver o mastro quebrado de um barco a vela submerso pelas águas. Skinkapontou para a cena fantasmagórica, mas não disse nada. Seu dedo ficou no ar por um tempoexcepcionalmente longo.

“Conte-me sobre o lugar mais fantástico que você já conheceu”, disse ele a Max.“O Parque Yellowstone. Fizemos um tour de ônibus.”“Meu Deus!”“E daí? O que tem isso?”“Nos arredores do Parque Yellowstone, há um parque só de ursos pardos. Você o visitou? É

uma coisa muito triste. Tiraram as garras e os testículos dos animais. Eles são tão selvagensquanto cobaias de laboratório, mas os turistas fazem fila para ver os pobres ursos castrados.”

Rapidamente, Skink balançou a cabeça de um lado para o outro, como se estivesse tentandoextrair uma abelha do ouvido. Max não sabia bem como a conversa havia ido naquela direção.Não compartilhava a compaixão do maluco pelos ursos pardos. A remoção das garras lhe pareciaum procedimento inteiramente razoável, considerando os ferimentos que poderiam causar aosvisitantes. Mas Max sabia que não adiantava discutir. Continuou calado, enquanto Skink seenfiou sob uma pilha de madeiras na doca. Ele estava tremendo, suspirando e gritando por nomesdesconhecidos para Max. Após uma meia hora, e já mais calmo, tornou a levantar-se e começoua espreitar o céu bordado de estrelas.

“Você está bem?”, perguntou-lhe Max.Skink balançou a cabeça, já sóbrio. “É, o sapo tem uns efeitos colaterais muito ruins. Peço

desculpas.”“Você tem certeza de que Bonnie vai conseguir nos encontrar aqui?”“Por que, pelo amor de Deus, você se casaria com uma mulher que não sabe seguir as

instruções mais simples?”“Mas está tão escuro...”A viagem até Stiltsville havia assustado Max, mais do que qualquer outra coisa —

velocidade máxima, faróis desligados, águas encapeladas — e, tudo isso num barco a remo.Muito mais assustador que o hidroavião, do ponto de vista de Max. O furacão tinha transformadoa baía num cemitério de iates, traineiras e lanchas furadas. Quando estavam de partida, Skinktirara o olho de vidro e o confiara a Max, que o guardara na mão como se fosse o mais preciosodiamante.

“Sua mulher certamente virá com alguém que conhece o caminho.”“Gostaria de fumar um cigarro, por favor, capitão.”Skink vasculhou o bolso até encontrar um pacote novo. Jogou-o para Max, com um isqueiro.Max estava com um pouco de vergonha por ter se viciado nos cigarros Bronco, muito fortes.

Na agência, o pessoal os apelidara de Bronquite, pelos grandes danos que causavam à saúde,segundo os fanáticos antitabagismo. Max atribuiu o novo hábito ao grande stress que sofria, enão a uma fraqueza de caráter. No negócio publicitário, era essencial manter-se imune aosapetites básicos que tiranizavam o consumidor comum.

Skink disse: “O que mais você tem a seu favor?”.“Não estou entendendo.”

“Slogans, garoto. Além daquele do Plum Crispies.”“Plum Crunchies”, corrigiu Max, tenso.A doca rangeu quando Skink se levantou. Max se agarrou a uma viga meio podre. Não havia

nenhum lugar para se refugiar. O velho que os havia conduzido até o meio da baía pegara oscinquenta dólares de pagamento e voltara imediatamente com o barco para terra firme.

Skink começou a dar voltas com a lanterna em torno da cabeça. Max disse: “Certo, capitão,aqui vai outro slogan que eu fiz: ‘Aquela sensação de frescura da manhã fica com você o diainteiro’”.

“E o nome do produto, qual é?”“Intimate Mist.”“Não.” A lanterna sibilou quando Skink colocou-a no chão.Max falou, tentando não aparentar estar na defensiva. “É um artigo para higiene feminina.

Muito popular.”“Aquele negócio para enxaguar as partes íntimas com aroma de framboesa? Meu Deus, você

deve estar brincando. Quer dizer que isso é tudo que você tem como realização na vida? Umslogan para uma ducha íntima?”

“Não”, reagiu Max de forma ríspida. “Tenho slogans para refrigerantes, aditivos paragasolina, copiadoras a laser — trabalhei com muitas contas de publicidade.” Enquanto falava,perguntava a si mesmo o que o tinha feito falar sobre a ducha íntima. Seria masoquismo, para serhumilhado, ou falta de cuidado devido ao cansaço?

Skink sentou-se pesadamente no alpendre que estava inclinado, em direção à baía, numaposição de risco. “Estou ouvindo o motor de um barco.”

Max olhou com curiosidade ao longe. Não ouviu nada a não ser o bater das ondas e os piosdas gaivotas. Perguntou: “O que vai acontecer agora?”.

Não houve resposta. Max percebeu, à luz da lanterna, um sorriso no rosto de Skink.“Você tem certeza de que não quer pedir um resgate?”“Não disse isso. Disse apenas que não queria dinheiro”, respondeu Skink.“Então o que você quer?” Max jogou o toco de cigarro na água. “Diga-me do que se trata.

Estou farto deste jogo, realmente farto.”Skink achou o acesso de raiva de Max divertido. Talvez houvesse esperança para esse

cretino. “O que quero é passar algum tempo com sua mulher. Ela me intriga.”“De que forma ela lhe intriga?”“Clinicamente. Antropologicamente. Que diabos ela viu em você? Como é que vocês se

dão?” Skink deu uma piscada de olho e continuou a falar. “Gosto muito de mistérios.”“Se você tocar nela...”“Ah, mas que jovem garanhão corajoso!”Max Lamb deu dois passos em direção ao governador, mas parou quando ele levantou a mão

e colocou-a no pescoço. A coleira de choque! Max sentiu um arrepio quente na espinha. Numsegundo, imaginou a si próprio se contorcendo com os choques. Mesmo que soubesse que abateria do controle remoto havia acabado há seis horas, não teria tido reação diferente. Era umescravo de seu subconsciente. Entendera que a antecipação da dor era mais imobilizante que aprópria dor real — e esse conhecimento não o ajudava em nada.

Quando Max se acalmou, Skink assegurou-lhe que não tinha interesse carnal em sua mulher.“Meu Deus, não estou interessado em sexo com ela. Estou apenas tentando descobrir o caminhoda evolução da humanidade.” Fez um gesto com o braço, acompanhando a linha do horizonte.

“A charada do século é o que você é, senhor turista. Há cinco mil anos vivíamos nas cavernas.Hoje, fazemos slogans para duchas íntimas.”

“É apenas um trabalho.”Skink deu um grande bocejo, como se fosse uma hiena empanzinada. “Está vindo aí um

motor potentíssimo. Espero que sua Bonnie não tenha sido idiota de chamar a polícia.”“Avisei a ela para não fazer isso.”Skink continuou. “Minha opinião sobre sua mulher será formada a partir de seu

comportamento nesta situação, quem ela vai trazer consigo, sua atitude, sua eventualserenidade.”

Max perguntou a Skink se tinha um revólver. Skink apenas estalou a língua, sem responder, edisse: “Está vendo os faróis do barco?”.

“Não.”“Em direção a Key Biscayne. Lá, ao longe.”“Ah, sim, agora vejo.”“Acho que são dois motores, pelo barulho.”Alguém a bordo do barco estava com uma lanterna potentíssima. A luz da lanterna percorria

a fachada dos prédios de Stiltsville. Com a aproximação do barco, a luz focalizou o alpendre dacasa sobre palafitas. Skink não parecia preocupado.

Começou, então, a tirar sapos dos bolsos. Sapos cinza, com papada, carrancudos e cheios deprotuberâncias, alguns tão grandes como batatas gigantes. Max contou onze sapos. Skinkalinhou-os, lado a lado, a seus pés. Max não tinha nada para colocar no cenário. Talvez tudo nãopassasse de um pesadelo, a começar pelo macaco que roubara sua filmadora. Logo acordaria eestaria deitado em sua cama com Bonnie.

Os sapos atarracados começaram a se contorcer, a coaxar e a urinar. Skink repreendeu-oscom murmúrios. Quando a luz dos faróis do barco os atingiu, eles piscaram os olhos úmidos esaltaram em direção a ela. Um por um, pularam da doca e caíram nas águas da baía. Skink gritou:“Para o sul, garotos. Para Havana, San Juan, para o maldito lugar de onde vieram”.

Max observou os sapos desaparecendo. Alguns mergulharam imediatamente, outros ficarampulando nas ondas espumosas. Max não sabia dizer o que iria lhes acontecer, nem estavapreocupado. Eram apenas sapos horrorosos e, por ele, poderiam ser devorados pelas barracudas.Seu único interesse era extrair alguma lição do episódio que pudesse ajudá-lo a, no futuro,manipular um raptor ciclópico.

Mas Skink parecia já ter esquecido os sapos. Mais uma vez, começara a falar sobre o furacão.“Olhe para o Cabo da Flórida. Todas as árvores derrubadas em trinta minutos.”

“O barco...”“O que que tem?”“Está piscando os faróis para nós.”“Aquela fúria gloriosa da tempestade. E você com sua filmadora.” Skink suspirou,

desapontado. “O pecado se inscreve na face de um homem. Oscar Wilde. Claro que você nãoleu.”

O silêncio de Max confirmou que não lera.“Bem, tenho esperado ver o pecado inscrito em seu rosto. O pecado.”“O que fiz foi inofensivo, tá bom? Talvez um pouco insensível, mas inofensivo. Você já

disse o que pensa sobre mim. Agora, deixe-me ir.”O barco havia se aproximado o suficiente para que se percebesse que era azul-metálico, com

uma listra branca representando um raio no casco. Podiam-se ver também duas pessoas em pé na

proa.“Lá está ela”, disse Max.“E não há policiais.” Skink fez sinais para que o barco encostasse na doca.Uma das pessoas deu uns passos à frente e lançou uma corda. Skink pegou-a, amarrando-a à

doca. Tão logo a corda firmou-se, os motores foram desligados. A corrente fez o barco encostarainda mais na estacaria, sendo encoberto pela penumbra.

Max reconheceu Bonnie na proa. Quando a chamou, ela desceu na doca e abraçou-o, como sefosse uma enfermeira, consolando-o como um garotinho que houvesse esfolado o joelho. Maxrecebeu o afago com uma atitude reservada, de homem adulto. Tinha consciência de que estavasendo observado não só por seu raptor, mas pela companhia masculina de Bonnie.

Skink sorriu com a cena do reencontro e voltou para dentro da casa. O homem no barco nãofez o menor movimento para desembarcar. Era jovem, de ombros largos, e sabia navegar. Usavaum suéter azul-claro, short e estava descalço. Parecia não estar abalado por navegar numa baíacompletamente escura, cheia de escombros de barcos e madeiras boiando.

Do escuro da casa, Skink perguntou o nome do navegador.“Augustine.”“Você tem o resgate?”“Certamente.”Bonnie disse: “Não se preocupe. Ele não é da polícia”.“Já sabia disso”, disse Skink.Augustine aproximou-se da amurada do barco e passou um saco de papel a Bonnie, que o

deu a Max, que, por sua vez, passou-o a Skink.Max disse: “Bonnie, querida, o capitão quer falar com você. Depois disso, ele vai me deixar

ir”.“Estou ainda pensando sobre isso”, explicou Skink.“Quer falar comigo sobre o quê?”, perguntou Bonnie.Augustine pegou uma lata de cerveja, deu um gole e apoiou-se no leme.Bonnie perguntou a seu marido: “O que é isso no seu pescoço?”. Parecia um instrumento

terrível destinado a submeter alguém. Ela já tinha visto coleiras similares em lojas de artigos decouro no Greenwich Village.

Skink reapareceu na luz da lanterna. “É um equipamento para treinamento. Deite-se, Max.”Bonnie examinou o desconhecido, alto e descabelado. Ele era tão forte ou mais do que o

patrulheiro havia dito. Seu tamanho fazia pensar que era capaz de qualquer coisa. Mesmo assim,Bonnie não se sentiu ameaçada.

“Agora, Max, deite-se”, disse Skink.Obedientemente, Max deitou-se no chão. Quando Skink disse-lhe para rolar como um

cachorro, ele o fez.Bonnie ficou com vergonha do comportamento de seu marido. Skink notou e pediu

desculpas. Disse a Max que se levantasse.O saco de papel continha tudo que Skink havia pedido. Ele inseriu as pilhas no walkman e

colocou a música Tumbling Dice. Abriu o vidro de azeitonas e despejou-o em sua enorme boca.Bonnie perguntou a Max o que estava acontecendo.“Mais tarde lhe explico”, sussurrou ele.“Explique-me agora.”“Ela merece uma explicação”, interveio Skink, derramando o caldo das azeitonas. “Ela está

arriscando a vida, aqui, com um desequilibrado como eu.”

Bonnie havia se vestido para andar de barco — um impermeável azul, jeans e sapatosconfortáveis. Trajes bons, mas confortáveis. Nada daquele aparato tirado de catálogos daCalifórnia, notou Skink. Ele retirou os fones dos ouvidos e cumprimentou Bonnie por seu bomgosto e senso prático. Depois, disse a Max que tirasse a coleira e a jogasse ao mar.

As mãos de Max começaram a tremer quando tocaram a coleira. Skink insistiu que a tirasse.Os lábios de Max se cerraram, determinados, mas ele não conseguia levar adiante a tarefa. Porfim, foi sua esposa que se aproximou dele e retirou a coleira, examinando-a à luz da lanterna.

“Você é um doente”, disse ela, depositando a coleira no solo.Do bolso do casaco, Skink retirou uma fita de vídeo. Jogou-a para Bonnie, que a pegou com

ambas as mãos. “É a fita que seu amado fez do furacão. Quem é que é doente aqui?”Bonnie virou-se e jogou a fita na baía.A garota era corajosa. Skink já estava gostando dela. Nervoso, Max acendeu um cigarro.Sua mulher não poderia ter ficado mais chocada do que se ele tivesse se aplicado uma injeção

de heroína. “Desde quando você fuma?”, perguntou-lhe.“Se você colocar-lhe a coleira de volta, posso ensiná-lo a parar de fumar”, interveio Skink.Max disse a Skink que fosse conversar com Bonnie. “Você disse que era isso que queria

fazer. Então, vamos, converse com ela.”“Não, eu disse que queria passar algum tempo com ela.”“Onde você quer passar um tempo comigo? E fazendo o quê?”, perguntou Bonnie.“Não é o que você está pensando”, explicou Max.Skink colocou a touca de banho na cabeça. “O furacão me colocou num novo ritmo. Posso

senti-lo.”Pôs as mãos nos ombros de Bonnie e delicadamente aproximou-a de Max. Ela sentiu a força

de seu olhar. Skink estava estudando os dois como se fossem dois ratos de laboratório. Então,ouviu-o murmurar: “Ainda não entendo como é possível”.

Tensa, Bonnie falou: “Diga-nos o que você quer”.“Cuidado. Ele está drogado”, advertiu Max.Skink olhou para o outro lado, em direção ao oceano. “Sem querer ofendê-la, senhora Lamb,

mas seu marido me deu uma impressão muito ruim da raça humana. Uma contrapartida femininapoderia ajudar.”

Bonnie ficou surpresa de sentir um arrepio agradável na nuca. A voz de Skink eratranquilizadora e hipnótica. Ela poderia ouvi-lo toda a noite. Claro que ele era louco,decididamente demente. Mas sua história a fascinava. Segundo o patrulheiro, ele tinha sidogovernador da Flórida. Bonnie queria saber mais sobre ele.

Contudo, ali estava seu marido, exausto, queimado do sol, emocionalmente fragilizado.Tinha obrigação de cuidar dele. O pobre Max tinha comido o pão que o diabo amassou.

“Só quero conversar com a senhora”, disse Skink.“Certo”, assentiu Bonnie, “mas só por alguns momentos.”Com a mão em concha na boca, Skink gritou: “Você, Augustine, leve Max para um lugar

seguro. Ele precisa de uma ducha, de fazer a barba e também talvez de um remédio para osintestinos. Volte ao amanhecer para buscar sua mulher”.

Skink agarrou Max pelos braços e colocou-o no barco. Depois, cortou a corda com umcanivete e empurrou o barco para longe da doca. Abraçou Bonnie com um braço e com o outroacenou para o barco. Quando o barco estava fora do raio de luz da lanterna, Skink viu umaterceira pessoa levantar-se na popa — onde teria ela se escondido? Então o jovem no leme mirouem sua direção com um rifle.

“Droga”, exclamou Skink, afastando Bonnie da linha de fogo.Algo o atingiu em cheio, fazendo com que girasse e começasse a cair. Continuava a girar

quando caiu na água. Começou a se perguntar por que suas pernas e seus braços recusavam-se ase mover, já que não ouvira tiro nem vira luzes. Pensou até que talvez já estivesse morto e nãosoubesse.

13

Na noite de 27 de agosto, com uma brisa morna nas costas e nove cervejas Budweisergeladas no estômago, Keith Higstrom resolveu ir caçar. Seus amigos se recusaram a ir com ele.Isso porque ele não só era um bêbado, como um atirador ruim, no qual não se podia ter a menorconfiança.

Na verdade, não havia muito para caçar no sul da Flórida. Os animais selvagens haviamdesaparecido há muito tempo. Contudo, o furacão havia feito aparecer um outro tipo de caça,bastante exótica: animais domésticos das fazendas próximas. Milhares de hectares de terrashaviam sido atingidos pelo furacão, liberando rebanhos de gado e manadas de cavalos paraexplorarem outras áreas fora de suas pastagens inundadas e sujas. Motivados mais pela fome doque por curiosidade, os animais das fazendas começaram a aparecer em lugares onde nuncatinham sido vistos antes. Um desses lugares era o bairro de Keith Higstrom, um lugarejo comcasas iguais, de cor clara e alguns shopping centers quase falidos.

Fora neste bairro que Keith passara sua infância. A família de seu pai havia se mudado paraMiami no início dos anos 40, trazendo consigo uma grande afinidade com armas de fogo e muitoapetite pela prática da caça. Keith, muito impressionável, ouvira histórias de caça durante toda avida. As histórias eram sobre lobos e ursos pretos nas florestas do Norte, e veados de caudasbrancas e perus selvagens nos matos da Flórida. Na sala de jantar da família Higstrom estavapendurada a cabeça de um enorme carneiro. O couro fulvo de uma pantera podia ser visto naparede do escritório. Aos cinco anos, Keith começou a colecionar, em capas de couro, as revistassobre caça Outdoor Life, Field & Stream e Sports Afield. Mas o que tinha de mais valor era umafotografia de Joe Foss, ao lado de um urso pardo. Aos seis anos, Keith ganhou uma espingardade ar comprimido, aos nove uma pistola Bonnie, aos onze um rifle e aos treze, seu primeirorevólver calibre 22.

Apesar de tudo isso, ao praticar com alvos de latas de cerveja na pedreira local, o garotodemonstrava uma completa falta de aptidão para o esporte. O jovem Keith era um perigo comuma arma na mão. Os treinamentos não o faziam melhorar, nem as experiências com diferentesarmas. Nada ajudava: nem diferentes alvos, nem tripés, nem almofadas para aparar o ricochetedas armas. Até mesmo exercícios respiratórios foram tentados, sem sucesso.

Com frequência, esses exercícios com seu pai terminavam em cenas de choro e de frustração.No final, o velho Higstrom deixava o filho dar umas rajadas com um Mossberg, calibre 12, paraque tivesse a satisfação de acertar em alguma coisa. Estava evidente que a tradição familiar degrandes atiradores chegara ao fim com o jovem Keith. Seu pai retornava dos treinamentos pálidoe aborrecido, mas não dizia nada à mãe de Keith.

Felizmente, quando Keith já estava suficientemente crescido para ir à caça, não havia maisnada para caçar em Miami, exceto ratos e gaivotas. Todos os outonos, ele implorava ao pai que olevasse para o pântano ou para campos de caça privados onde se perseguiam veados e se atiravaneles bem de perto. O velho Higstrom detestava essas excursões. Não considerava isso umesporte. Mas seu filho só ficaria mais feliz se pudesse jogar granadas em gazelas aleijadas.

Foi numa dessas ocasiões que o pai de Keith baniu a caça de sua vida. Eles estavam numbuggy, perseguindo um lince esquelético e meio velho. De repente, Keith começou a atirardesvairadamente em algo que voava alto no céu — tratava-se de uma águia de uma espécie emextinção que estava protegida pelo governo federal. O jovem acabou por não infringir a leidevido à sua péssima mira, mas, na excitação do momento, acabou por acertar o ouvido esquerdode seu pai.

Ensurdecido, coberto de sangue, e debatendo-se no chão de calcário, o pai de Keithexperimentou uma estranha transformação, um inesperado engrandecimento da alma, como seum lençol branco e frio tivesse sido estendido sobre sua cabeça. Sim, o ferimento era terrível e odano ao seu ouvido provavelmente lhe custaria o emprego de controlador de tráfego aéreo. Poroutro lado, ninguém mais poderia forçá-lo a ir caçar com seu filho incompetente e desvairado.

Keith jamais conseguiu livrar-se da responsabilidade ou da culpa pelo incidente. Seu pairecuperou-se do ferimento, mas mencionava o acontecimento cerca de duas vezes por dia. Empouco tempo, o remorso de Keith foi substituído por um ressentimento silencioso. Percebeu logoque seu pai passara a usar o acidente como desculpa para não mais caçar com ele. Um cirurgiãoplástico colocara uma orelha de plástico em seu pai. Um aparelho de surdez altamente sofisticadofizera com que ele recuperasse oitenta e um por cento da audição. Mesmo assim, ele se recusavaa tocar numa arma de fogo. Alegava ordens médicas inexistentes.

Para Keith, ficara cada vez mais difícil conseguir companhia para caçar. Seus amigospareciam ter sempre outros compromissos quando ele os convidava para uma expedição.Frustrado e inquieto, ele passava os fins de semana limpando as armas e assistindo a episódios dasérie American Sportsman. Quando não aguentava mais de vontade de caçar, ia para TamiamiTrail e estacionava à margem do canal. Quando a noite caía, ele carregava a espingarda de canoduplo, amarrava uma lanterna na testa e escondia-se no mato. Seus alvos habituais eramtartarugas e gambás. Qualquer animal mais rápido ou mais esperto conseguiria escapar-lhe.

Logo depois do furacão, Keith notou quatro vacas leiteiras e uma égua pastando no gramadoem frente à casa de seu vizinho. Todo mundo que morava naquela quadra estava rindo nacalçada, rindo e tirando fotos. Um raro momento de descontração nos dias terríveis que seseguiram ao furacão. Naquela noite, bebendo com os amigos num bar irlandês, Keith perguntou-lhes: “Quanto pesa uma vaca?”.

Um de seus amigos disse: “Desisto, Keith. Quanto pesa uma vaca?”.“Não estou brincando. Pesa mais que um alce? É porque há vacas pastando no meu bairro.”Um dos rapazes falou: “Deve ser por causa do furacão”.“É. Mas quanto ela pesa?” Keith terminou a cerveja e levantou-se. “Vamos caçar, rapazes.”“Senta aí, Keith.”“Vocês não vêm mesmo, seus frescos?”“Tome outra cerveja.”Com um arroto, Keith saiu porta afora. Dirigiu até sua casa, foi ao escritório e pegou o velho

rifle de seu pai. Deixou cair uma caixa de balas e riu, bêbado, porque ninguém acordara. Colocouas botas, um macacão e a lanterna na testa e saiu à procura de uma vaca para matar.

As vacas não estavam mais pastando no jardim da frente de seu vizinho. Keith começou aespreitar os outros jardins, deslocando-se, agachado, pela rua. Sentia-se ágil como uma gazela eletal como uma cobra. O rifle reluzia em suas mãos. Seu plano era amarrar a vaca capturada nopara-lama da frente do carro e voltar ao bar irlandês onde seus amigos covardes bebiam. Keithsorriu, imaginando a cena.

Keith comportava-se de forma exagerada e ridícula, como um verdadeiro caçador na selva,escondendo-se atrás de montes de escombros. A rua estava vazia e escura. A luz ainda não tinhasido reinstalada. Ao passar pela residência dos Ullman, Keith ouviu algo vindo do quintal dosfundos — um ronco estridente. Pensou que poderia ser uma égua. Sua lanterna permitiu-lhe verum enorme par de olhos azuis-escuros.

“Meu Deus”, exclamou.Um animal enorme estava parado ao lado da piscina quase vazia. Obviamente não era uma

vaca. Para começo de conversa, o animal era tão grande quanto um trator. Seus chifres afiadoscurvavam-se para baixo, ao contrário dos de um touro americano.

Keith Higstrom sabia exatamente que animal era aquele. Afinal, havia assistido ao episódiode The American Sportsman no qual Jimmy Dean e Curt Gowdy matavam um. Mas isso foi naÁfrica, não em Miami, Flórida.

Ocorreu a Keith que poderia estar tendo uma alucinação em consequência do excesso debebida alcoólica. Mas o animal bufou de novo, expelindo um pouco de ranho pelas narinasenormes. Depois baixou a cabeça e com cascos do tamanho de ferros de passar abriu uma vala nagrama recém-plantada dos Ullman.

“Merda. É sem dúvida um búfalo do Cabo.”Abriu fogo e errou. Tentou duas vezes.Os tiros acordaram o senhor Ullman, um banqueiro recém-chegado de Copenhague. Ele

olhou pela janela do quarto e viu o enorme animal galopando com um jovem enfiado nos chifres.O senhor Ullman telefonou imediatamente para a polícia e informou, da maneira como seulimitado inglês o permitia, que “um caubói sem sorte está sendo seriamente perfurado”. Depoisde algum tempo, o policial conseguiu entender o que o senhor Ullman estava tentando dizer.

Duas horas depois, o policial de plantão telefonou para a casa de Augustine, deixando umamensagem. O búfalo do Cabo de seu falecido tio havia aparecido na ala de verduras de umsupermercado devastado pelo furacão. Infelizmente, o animal havia causado outros problemas. Opolicial pediu que Augustine telefonasse para o Departamento de Controle de Animais tão logoquanto possível.

Mas Augustine ainda iria demorar muitas horas para receber a mensagem, uma vez queestava na baía de Biscayne com Bonnie.

Eles haviam conseguido a lancha emprestada de um piloto comercial, amigo de Augustine. Opiloto devia um favor a Augustine, por causa de seu divórcio, há muito tempo. Naquela ocasião,Augustine permitira que enterrasse moedas de ouro no valor de quarenta e cinco mil dólares atrásde sua garagem, a fim de escondê-las do detetive particular de sua futura ex-mulher. No final dodivórcio litigioso, o piloto ficara somente com as moedas escondidas. Imediatamente, gastoutudo com uma modelo que, depois, abandonou-o num hotel de cinco estrelas no Marrocos.Mesmo depois de vários anos, o piloto não esquecera o ato de amizade de Augustine nummomento crítico de sua vida.

A lancha ficara guardada num trailer em um cais de North Miami Beach, não tendo sidodanificada pelo furacão. Augustine e Bonnie encontraram-se com Jim Tile lá. Ele falava rouco eseus olhos estavam vermelhos. Contou-lhes que uma amiga muito próxima havia sidobrutalmente espancada por um ladrão de automóveis e que preferiria estar na estrada procurandoo filho da puta.

Embora preocupado com seus problemas pessoais, Jim estava visivelmente ansioso com aviagem de lancha. Mesmo no escuro, podia-se perceber que as águas da baía estavam agitadas e

perigosas. Estranhamente, Bonnie não estava preocupada. Talvez por causa do comportamentoseguro de Augustine no leme. Ele dirigia calmamente, apenas com dois dedos. Com a outra mão,manejava a lanterna. Habilmente, ele desviava de pedaços de madeira e de barcos naufragados. Aperigosa viagem tirou a imagem de Brenda numa maca do pensamento de Jim Tile, ainda quetemporariamente.

Bonnie estava antecipando seu primeiro encontro com o homem chamado Skink. Ela nãoconseguia parar de pensar no cadáver empalado na antena parabólica sobre o qual Jim Tilefalara. Teria sido Skink o assassino? Segundo Jim, o ex-governador não era um malucocompleto, do tipo que tinha que ser internado num hospício. Era mais um homem com umamissão. Uma missão temerária e condenada, violentamente fora da lei, mas uma missão. Ela nãotinha medo de Skink, não com o patrulheiro e Augustine ao seu lado. Estranhamente, estavaansiosa para conhecer Skink, tão ansiosa quanto com a possibilidade de reencontrar seu marido.

Agora, Jim Tile e Augustine estavam lutando para puxar o homem inconsciente por sobre aamurada do barco. Suas roupas estavam encharcadas, fazendo com que pesasse ainda mais.Bonnie tentou ajudar. Augustine acabou segurando os cabelos prateados do homem. Jim puxavaseu cinto. E Bonnie pressionou as mãos contra suas botas. Finalmente, conseguiram colocarSkink no convés. Ele vomitava muito.

Da proa, veio um lamento desgostoso. Era Max, com o rosto apreensivo, fumando um cigarroBronco. Bonnie virou-se para Skink, que estava semi-inconsciente, por força da injeção detranquilizante. Jim ajoelhou-se ao seu lado. Com um lenço, limpou o rosto de Skink. O olho devidro precisaria de cuidados especiais.

Augustine disse: “Ele está respirando”.Depois de um acesso monumental de tosse, Skink disse, levantando a cabeça: “Vi lagostas

enormes”.Jim Tile ordenou-lhe que ficasse quieto.“E meu walkman?”“Vamos arranjar-lhe outro. Agora, fique quieto.”Skink deixou a cabeça cair, com um barulho seco. Cantarolando com os lábios cerrados,

fechou os olhos.Bonnie perguntou: “O que vamos fazer com ele?”.Max deu uma risada amarga e disse: “Ele vai para a cadeia, é claro”.Bonnie olhou para Augustine, que interveio: “Jim é que vai decidir. Afinal, ele representa a

lei”.O patrulheiro estava tentando despejar um pouco de café quente na boca do amigo,

completamente grogue. Bonnie apoiou a cabeça de Skink para ajudá-lo a beber o café. Augustinedeu partida na lancha. Gritando para sobrepor a voz ao barulho dos motores, Bonnie perguntou aJim se deveria sentar-se ao lado de Skink para ajudá-lo caso ele começasse a vomitar de novo.Jim aproximou-se e falou baixinho: “Ele está bem agora. Vá ver como está seu marido”.

“Ok”, concordou Bonnie, contente por estar no escuro, pois assim ninguém notaria que tinhaenrubescido.

A conversa entre Gar Whitmark e sua mulher não foi uma conversa amorosa. Que ela tivessedado sete mil dólares a um bando de operários impostores era sem dúvida espantoso; que tivesseesquecido de perguntar o nome do homem que recebeu o dinheiro era imperdoável. A única pistapara chegar aos bandidos era o pedaço de papel amarelo que o falso chefe de produção lhe havia

dado, à guisa de recibo e orçamento, e que ela imediatamente colocara em algum lugarmisterioso.

A raiva de Gar Whitmark tinha também outro motivo. Ele era construtor e conhecia,portanto, todos os pedreiros honestos do condado de Dade. A lista não era grande, mas dela Garpretendia selecionar os operários que reconstruiriam o telhado de sua casa devastada. Tinhadeixado recados numa meia dúzia de firmas e explicara várias vezes à esposa que levaria algumtempo para arranjar alguém. O furacão havia desencadeado uma corrida à procura de pedreiros, eos melhores estavam contratados por meses a fio. Enquanto isso, operários de fora da cidadeestavam chegando aos montes. Alguns eram capazes e experientes, outros ineptos, e muitos eramimpostores. Todos chegavam à procura de oportunidades ilimitadas.

A vítima típica do furacão era forçada a confiar em sua intuição ao escolher um pedreiro.Infelizmente, com frequência, essa intuição deixava a desejar. Gar Whitmark, contudo, tinha adupla vantagem de conhecer a maioria dos operários e de poder pressioná-los para atender àssuas necessidades urgentes. Sem muito problema, conseguira localizar um ótimo pedreiro, queconcordara em colocar a casa de Gar na frente de todos os outros contratos (Gar era um prósperoconstrutor e um dos maiores empregadores de pedreiros no sul da Flórida). Contudo, o pedreirotinha que fazer dois trabalhos antes de cuidar do telhado da casa de Gar: reconstruir o seu própriotelhado e o de sua sogra.

Gar Whitmark deu ao homem o prazo de sete dias para cuidar dos telhados de sua família.Essa demora foi insuportável para a senhora Whitmark. Sua ansiedade quanto à possibilidade deter seus tapetes novamente encharcados não tinha limite. As doses habituais de sedativos,relaxantes musculares, tranquilizantes e reguladores do humor não estavam ajudando em nada.Para ela, o aparecimento inesperado de pedreiros à sua porta era um presente divino. Pensou queseu marido ficaria contente com sua iniciativa — seria um problema a menos para ele sepreocupar. Ele já estava bastante ocupado com as ameaças de processos de clientes que tiveramsuas casas destruídas pelo temporal.

Em pé no meio da sala, com a chuva caindo sobre sua testa cheia de veias, Gar Whitmarkmandou que a esposa fosse procurar o maldito recibo, orçamento ou o que quer que fosseimediatamente. Depois de uma hora de procura, o pedaço de papel amarelo foi encontrado dentrodo livro de recordações do curso secundário da senhora Whitmark. Gar não conseguia entenderpor que sua mulher o havia colocado lá. Nem ela podia explicar — sua mente estava confusademais por causa do furacão.

O recibo trazia o nome Fortress Roofing, o que fez com que Gar sorrisse sarcasticamente.Pelo menos os patifes tinham senso de humor, telefonou para o número impresso e foi atendidopor uma secretária eletrônica. Desligou e telefonou para o diretor do Departamento deConstrução e Mapeamento, que devia seu emprego a sete vereadores, os quais deviam seuscargos às generosas contribuições de Gar para as campanhas eleitorais. Como imaginara, odiretor ficou chocado com a notícia da fraude e prometeu uma investigação criminal rígida.

Não, nunca ouvira falar de Fortress Roofing, mas certamente descobriria quem estava portrás daquela farsa.

Quanto mais cedo melhor, disse Gar enxugando a água da chuva de seu couro cabeludo comuma toalha. Seus poucos fios de cabelo, recém-implantados, estavam eriçados.

Quinze minutos mais tarde, o diretor ligou de volta para informar, com pesar, que FortressRoofing nunca obtivera uma licença para construir e que, portanto, era uma firma ilegal edesconhecida.

Furioso, Gar Whitmark começou a telefonar para pedreiros conhecidos — alguns honestos,outros não. O nome Fortress Roofing era conhecido de alguns, que disseram ter perdidooperários para a nova firma. O proprietário filho da puta era um tal de Avila, ex-inspetor doDepartamento de Construção e Mapeamento. Esse Avila é um patife, advertiram.

Gar Whitmark conhecia Avila muito bem, uma vez que o subornara por muitos anos. Osfuncionários de Gar haviam dado muitas recompensas e presentes ao cretino ambicioso.Dinheiro, bebidas, material pornográfico — Avila apreciava a pornografia mais baixa: sexo entremulheres, se Gar lembrava corretamente.

Chamou sua secretária, que acessou rapidamente uma lista no computador com os nomes dosfuncionários públicos corruptos ou corruptíveis nos condados de Dade, Broward, Palm Beach,Lee e Monroe. Era uma lista enorme, organizada por ordem alfabética, para facilitar a utilização.O nome e o telefone de Avila apareceram no final da primeira página.

Gar Whitmark esperou até as três da madrugada para lhe telefonar.“Aqui fala seu amigo Gar Whitmark. Sua equipe de impostores deu um golpe de sete mil

dólares na minha mulher. Ela não está bem, Avila. Se eu não recuperar esse dinheiro amanhã demanhã, você estará na cadeia à noite. E vou providenciar para que você fique numa cela comPaul Pick-Percy.”

A ameaça fez com que Avila acordasse completamente. Paul Pick-Percy era um notóriocanibal. Atualmente, estava esperando julgamento por acusação de ter assassinado e comido seusenhorio, que teria se recusado a consertar um vazamento na privada. Recentemente, havia sidocondenado por matar e comer um funcionário da TV a cabo que chegara atrasado para umconserto e um atendente de um posto de pedágio que fora rude com ele.

Avila disse, nervoso: “Sete mil dólares? Juro por Deus que não sei nada a respeito”.“Como você quiser...”“Não, espere.” Avila sentou-se na cama. “Conte-me o que supostamente aconteceu, ok?”“Não se trata de nada suposto, meu caro.” Gar narrou-lhe a história do golpe.“E o caminhão era nosso? O senhor tem certeza?”“Estou com o recibo. Diz que é da firma Fortress Roofing.”Avila fez uma careta. “Quem assinou o recibo?”Gar explicou que a assinatura estava ilegível. “Minha mulher disse que o cara tinha o queixo

torto como uma moreia. Além disso, usava um terno de mau gosto e barato.”“Merda”, disse Avila. Exatamente o que temia.“Lembrou-se de alguma coisa importante?”, disse Gar cheio de sarcasmo.Avila apoiou-se na cabeceira da cama. “O senhor vai receber o dinheiro de volta à primeira

hora de amanhã.”“Certo. E um novo teto também.”“O quê?”“Você me ouviu, seu babaca. Além dos sete mil que seu pessoal roubou, você vai pagar a

conta pela reconstrução do meu telhado, que vai ser feita por pedreiros de verdade.”O estômago de Avila apertou-se. Gar Whitmark vivia provavelmente numa mansão ao sul,

como todos os outros milionários. Avila calculou que seu novo telhado custaria uns vinte mildólares. Falou: “Isso não é justo”.

“Você prefere jantar com Pick-Percy?“Oh, meu Deus, senhor Whitmark.”“Achei que não ia preferir isso.”

Avila levantou-se e foi ao quintal para pegar dois galos. Levou-os para a garagem a fim dedegolá-los. Esperava que o sacrifício surtisse bons resultados. Depois de alguma luta, conseguiutorcer o pescoço das aves. Despejou o sangue quente num balde de plástico cheio de moedas,ossos de gato descorados e cascos de tartaruga. Colocou o balde ao pé da estátua de cerâmica deChango, o espírito protetor dos raios e do fogo. A estátua, do tamanho de uma criança, tinha umaveste, contas coloridas e uma coroa banhada a ouro. Ajoelhando-se, em atitude de súplica, pediua Chango que destruísse Snapper com um raio fulminante.

Avila não tinha certeza se o ritual surtiria os efeitos desejados. Pouco sabia sobre a arte dafeitiçaria do vodu, pois não havia estudado o assunto muito profundamente, como era seu hábito.Começara a dedicar-se ao vodu quando soubera que estava sendo investigado por corrupção.Vários traficantes de cocaína, conhecidos seus, juraram que o vodu é que os mantinha fora dacadeia. Avila achou que não perderia nada se tentasse. Em Hialeah, ele conversara com umfeiticeiro legítimo que se oferecera para ensinar-lhe a religião, originária de tradições afro-cubanas. A história do vodu era muito complicada e mística, e logo Avila cansou-se das aulas.Explicou ao feiticeiro que tudo que queria era aprender a fazer o mal a seus inimigos. Em outraspalavras, poder matá-los.

O feiticeiro lamentou muito e mandou-o embora. Mas Avila foi para casa convencido de quejá ouvira o suficiente para realizar os rituais do vodu. Como seu espírito protetor, escolheuChango, porque gostara do nome de macho. Como primeira vítima, escolheu o promotor públicoque comandava a investigação contra inspetores corruptos.

Moedas e velhos ossos de animais eram fáceis de conseguir. A avó de Avila morava a quatroquadras de um cemitério de animais em Medley. Obter sangue fresco é que era o mais difícilpara Avila, que não gostava de sacrificar seres vivos. Nas primeiras vezes, tentou agradarChango borrifando as moedas com caldo de carne. Nenhum resultado. Era óbvio que os espíritossó gostavam de sangue fresco.

Assim, numa noite de domingo chuvosa, Avila comprou uma galinha viva. Sua mulherestava preparando um grande almoço para os primos e expulsou-o da cozinha. Ele surrupiou umfacão e levou sua vítima para a garagem. Assim que começou a espalhar jornais pelo chão, agalinha pressentiu o perigo. Avila ficou surpreso com o barulho e a resistência de uma avezinhatão franzina. O sacrifício finalmente foi realizado, mas Avila ficou arranhado, bicado emanchado de sangue. Assim também ficou o Buick Electra de sua mulher. A bronca que ela lhedeu fez com que os primos dispensassem a sobremesa e fossem mais cedo para casa.

Dois dias depois, aconteceu a mágica. O promotor alvo da feitiçaria de Avila sofreu umaqueda no chuveiro e deslocou o ombro. Na ocasião, estava acompanhado por uma prostitutaatlética, chamada Kandi, que não só telefonou para o serviço de emergência, como também deuinúmeras entrevistas à imprensa. Dado o escândalo, o Ministério Público sugeriu que o promotortirasse uma licença sem prazo de retorno.

A investigação não foi cancelada, mas simplesmente transferida para outro promotor. Mesmoassim, Avila ficou convencido de que a prática do vodu funcionava. Outras tentativas nãotiveram qualquer resultado, além de fazerem muita sujeira na garagem, mas Avila atribuía isso àsua falta de experiência e de um local apropriado. Talvez, durante os rituais, estivesse cantandoas palavras erradas, ou cantando as palavras certas na ordem errada. Ou talvez os rituaisestivessem sendo realizados em horas inconvenientes para o mercurial Chango. Ou talvez, ainda,as galinhas fossem de qualidade inferior.

Embora Avila tenha terminado por fazer um acordo com a promotoria, sua fé nos rituais comossos e sangue do vodu permaneceu inabalada. Decidiu que a transgressão de Snapper tinha sido

suficientemente hedionda para merecer o sacrifício de duas aves, em vez de uma. Se ainda assimnão funcionasse, usaria um bode.

Os galos não se deixaram degolar sem resistência. A barulheira acordou a mulher, a tia e amãe de Avila. As mulheres adentraram a garagem correndo e encontraram Avila falandopalavras sem sentido, ajoelhado diante da estátua de Chango. A mulher de Avila percebeu deimediato manchas de sangue e arranhões de bicos no para-lama frontal de seu carro e começou abater em Avila com um ancinho.

Do outro lado da cidade, Snapper dormia placidamente na espreguiçadeira de Tony Torres.Não sentiu nada que pudesse ser provocado pelos poderes sobrenaturais de Chango. Sequerpercebia o olhar furioso de Edie Marsh, esticada no tapete úmido e amarrada ao agente deseguros, completamente nu.

14

Com o derreter das velas, a sombra de Snapper começou a bruxulear na parede nua, atédesaparecer. Seu perfil lembrava a Edie Marsh um tiranossauro.

Só para se divertir, ele não permitiu que Fred Dove tirasse a camisa de vênus vermelha.“Você está sendo malvado”, disse Edie Marsh.“Claro que sou um patife malvado. Você não sabia? Neste momento, uma policial está no

hospital por minha causa. Você deveria ver para crer.”Quando bocejou, seu maxilar torto balançou, como se fosse se despregar do rosto. Parecia

uma cobra tentando engolir um ovo.Edie perguntou: “O que você quer?”.“Claro que você sabe perfeitamente o que eu quero.” Snapper direcionou a luz da lanterna

para o pênis amolecido de Fred Dove. “Onde você encontrou uma camisinha vermelha?”,perguntou-lhe. “Pediu pelo correio, aposto. Parece um chapéu de Papai Noel.”

No chão, Fred gemeu desconsolado. Edie apoiou a cabeça nas suas costas. Snapper os haviaamarrado, um de costas para o outro, com as bundas se tocando. Na pasta de Fred, Snapperencontrou seus cartões de visita e o formulário com o pedido de indenização. Daí foi fácildescobrir o resto. Edie de joelhos e tal. Snapper achou incrível a sorte de ter chegado naquelemomento.

“Vamos fazer justiça. Dividiremos a grana entre os três.”“Mas você deu o fora”, objetou Edie. “Você me abandonou aqui com aquele babaca do

Tony.”Snapper deu de ombros. “Mudei de ideia. Isso pode acontecer. Então, de quanto dinheiro

estamos falando?”“Vá à merda”, disse Edie.Sem sair da espreguiçadeira, Snapper levantou uma perna e deu um chute na cabeça dela. O

barulho do golpe foi assustador. Edie gemeu de dor, mas não chorou.“Pelo amor de Deus”, falou Fred com a voz partida, como se fosse ele que tivesse sido

atingido.Snapper continuou: “Então, diga-me qual a quantia envolvida”.“Não ouse”, interveio Edie, tonta, enfiando os cotovelos nas costas de Fred.“Estou esperando”, disse Snapper.Edie sentiu que o corpo de Fred se enrijecia contra as cordas. Então, ouviu-o dizer: “Cento e

quarenta e um mil dólares”.“Idiota”, xingou Edie.“Mas você não pode levar um tostão sem mim e Edie.”“Ah, é?”“É.”“Nem um centavo”, concordou Edie. “Porque quem está recebendo o cheque é a senhora

Neria Torres. Em outras palavras, eu.”

Snapper colocou a luz da lanterna no rosto de Edie, que estava inchado e marcado devermelho por causa do pontapé que levara. “Querida, vai ser difícil assinar o recibo se vocêestiver engessada, sabia?”

Ela virou o rosto para se esquivar da luz e lamentou sua escolha ter recaído em um ex-presidiário.

Fred Dove disse: “Você deveria nos desamarrar”.“Escutem o Papai Noel falando”, arremedou Snapper.As têmporas de Edie estavam latejando. “Sabe o que é, Fred? Snapper está com ciúmes. Não

é por causa do dinheiro do seguro. É porque eu ia fazer sexo com você...”“Ei”, disse Snapper.“... e ele sabe”, continuou Edie, “que eu não daria para ele nem por todo o dinheiro do

mundo.”Snapper deu uma risada. Cutucando Fred com o pé, disse: “Não se deixe levar por essa

conversa mole, meu caro. Ela dormiria com um porco-espinho sifilítico se houvesse um dólar aganhar”.

“Ah, que graça”, disse Edie. Nossa, sua cabeça estava explodindo.Fred Dove estava se controlando para permanecer calmo. Estava estupefato por ter se metido

numa situação tão complicada, horrível e perigosa. Há algumas horas o golpe parecera seguro eaté excitante: um pedido de indenização relativamente fraudulento, uma mulher bonita edesinibida como parceira, um caso animado numa casa abandonada.

Uma camisinha vermelha e brilhante lhe parecera adequada.Então, sabe Deus onde, aparecera esse cara chamado Snapper. Um sujeito mal-educado, um

verdadeiro criminoso, a julgar pelo que Fred tinha visto e ouvido até o momento. Não queria essacriatura violenta como um terceiro parceiro. Por outro lado, não desejava morrer ou ser ferido detal forma que tivesse que ser hospitalizado. Seu plano de saúde, Blue Cross, ia querer saber, omotivo, bem como sua mulher.

Por isso, ofereceu a Snapper quarenta e sete mil dólares. “É o que dá se o dinheiro fordividido entre os três.”

Snapper colocou a luz da lanterna no rosto de Fred e disse: “Você calculou de cabeça? Nãoprecisou de um lápis nem de papel? Isso é muito bom”.

É, pensou Edie. Obrigada, doutor Einstein.Fred Dove perguntou a Snapper: “Negócio fechado?”.“Parece justo.” Snapper levantou-se da espreguiçadeira e foi até a garagem. Em alguns

minutos, o gerador começou a funcionar. Voltou para a sala e acendeu a única lâmpada.Ajoelhou-se ao lado de Fred e de Edie e cortou os cordões de cortina que os prendiam pelospulsos.

“Vamos comer. Estou morrendo de fome.”Fred levantou-se, tremendo e colocando as mãos em frente do pênis. “Vou tirar esta coisa”,

disse.“A camisinha?” Snapper fez um sinal de positivo com o polegar. “Faça isso.” Então olhou

para Edie, que não fez qualquer menção de cobrir seus seios e seu corpo nus. Apenas encarou-ocom raiva.

Ele disse: “É assim que você pretende ir ao Denny’s? Tudo bem. Talvez ganhemos umasobremesa de graça”.

Sem uma palavra, Edie foi para trás da espreguiçadeira, pegou o pé de cabra que deixara lá egolpeou Snapper com todas as suas forças. Ele caiu no chão, dando um grito agudo de dor.

Ainda com a arma na mão, Edie montou sobre seu corpo. Seus cabelos úmidos eembaraçados encobriam o ferimento de seu rosto. Para Fred Dove, ela parecia selvagem,deslumbrante e alarmantemente capaz de cometer um homicídio. Tinha medo de ter quetestemunhar seu primeiro assassinato.

Edie inseriu a parte afiada do pé de cabra entre os maxilares de Snapper, prendendo sualíngua contra seus dentes.

“Dê-me outro pontapé e coloco suas bolas para bater num liquidificador”, gritou Edie.Fred Dove agarrou suas calças e sua pasta e fugiu.

Eles devolveram a lancha emprestada ao cais e voltaram para Coral Gables. Com grandeesforço, carregaram Skink para dentro da casa de Augustine.

Max Lamb ficou nervoso quando viu a estante cheia de crânios sorridentes ao se dirigir parao banheiro, mas não disse nada. Augustine foi para o telefone para descobrir o que aconteceracom o búfalo de seu tio. Bonnie fez um bule de café e levou-o para o quarto de hóspedes, onde oex-governador se recuperava do dardo cheio de tranquilizantes para animais. Ele e Jim Tileestavam conversando quando Bonnie entrou. Ela teve vontade de ficar para ouvir o que omisterioso estranho estava dizendo, mas sentiu que poderia estar se intrometendo. A conversa eraséria, em tom baixo. Ouviu Skink dizer:

“Brenda é forte. Vai sair dessa”.Jim comentou: “Já rezei todas as preces que conheço”.Ao sair do quarto, encontrou Max, que fumava um cigarro, saindo do banheiro. Resolveu ser

indulgente com o novo e odioso hábito de seu marido. Ele o atribuía ao stress que sofrera com orapto.

Seguiu-o até a sala de estar e sentou-se no sofá, ao seu lado. Ali, ele descreveu comsensacionalismo as torturas que sofrera nas mãos do monstro caolho.

“Uma coleira de choque”, falou Bonnie.“É isso mesmo. Veja meu pescoço.” Max abriu os botões superiores da camisa que tomara

emprestado de Augustine. “Está vendo as queimaduras? Está vendo?”Bonnie não viu nenhuma marca, mas abanou a cabeça em sinal de anuência. “Então você

quer mesmo processá-lo?”“Claro que sim.” Max Lamb detectou uma certa dúvida no tom de voz da esposa. “Pelo amor

de Deus, Bonnie, ele poderia ter me matado.”Ela apertou sua mão. “Ainda não entendo por que ele fez isso.”“Ninguém pode saber os motivos de um maluco desses.” Propositadamente, Max omitiu o

desgosto e a raiva de Skink em relação ao seu vídeo sobre o furacão. Lembrava-se de que Bonniepartilhava esse sentimento.

“Acho que ele precisa de ajuda profissional.”“Não, querida, ele precisa é de uma cadeia profissional.” Max levantou o queixo e soprou a

fumaça em direção ao teto.“Querido, vamos refletir mais sobre tudo isso...”Mas ele deu um pulo em direção ao telefone que Augustine acabara de desligar. “Tenho que

ligar urgente para Peter Archibald e informar todo mundo na Rodale que estou bem.”Bonnie levantou-se e foi para o quarto de hóspedes. Skink encontrava-se sentado na cama,

mas seus olhos estavam semicerrados. Ainda usava a touca de banho estampada. Sua barbafechada estava recoberta por uma camada de sal do mar. Jim Tile, com seu chapéu sob o braço,estava em pé, perto da janela.

Bonnie serviu-lhes mais café. “Como ele está?”, perguntou a Jim em voz baixa.“Melhor”, disse Skink, entreabrindo o olho bom.Bonnie colocou o bule de café na mesinha de cabeceira. “O dardo continha tranquilizante

para macacos”, explicou.“Isso nunca deveria ser combinado com drogas psicotrópicas, especialmente com seiva de

sapo”, disse Skink.Bonnie olhou para Jim Tile, que disse: “Perguntei a ele”.“Perguntou a mim sobre o quê?”, grunhiu Skink.“Sobre o cara empalado na antena parabólica”, disse o policial. Virando-se para Bonnie,

falou: “Não foi ele”.“Embora eu admire o estilo”, comentou Skink.Bonnie Lamb não conseguiu esconder suas dúvidas. Skink olhou para ela com expressão

séria. “Não fui eu, senhora Lamb. Mas certamente não lhe contaria se tivesse sido.”“Acredito no senhor. Sinceramente.”O ex-governador terminou o café e pediu outro. Disse a Bonnie que era o melhor café que já

tomara. “E eu gosto do seu namorado”, disse apontando para a parede cheia de caveiras. “Gostoda decoração deste lugar.”

Bonnie retrucou: “Ele não é meu namorado. É só um amigo”.Skink abanou a cabeça. “Todos precisamos de um amigo assim.” Com dificuldade, saiu da

cama e começou a tirar suas roupas encharcadas. Jim Tile conduziu-o ao chuveiro e abriu a água.Quando o patrulheiro voltou, segurando a touca de banho de Skink, perguntou a Bonnie o queseu marido tencionava fazer.

“Ele quer processá-lo.” Ela sentou-se à beira da cama, ouvindo a água do chuveiro correr.Augustine entrou no quarto e perguntou: “E então?”.“Posso prendê-lo hoje à noite”, Jim falou a Bonnie, “desde que seu marido vá à delegacia e

registre a queixa. O que acontecerá depois fica a cargo do promotor público.”“O senhor faria isso, prender seu próprio amigo?”“Melhor que seja eu do que um estranho”, respondeu o patrulheiro. “Não se sinta mal por

causa disso, senhora Lamb. Seu marido tem todo o direito.”“É, eu sei.” Processar o ex-governador era a coisa certa a fazer — não se podia permitir que

uma pessoa raptasse turistas, não importava quão hediondo fosse o comportamento dessesturistas. Mesmo assim, a ideia de que Skink iria para a cadeia entristecia Bonnie. Estava sendoingênua, sabia, mas era isso que sentia.

Jim Tile estava fazendo perguntas a Augustine sobre os crânios na parede. “Vodu cubano?”“Não, nada disso.”“Estou contando dezenove. Não vou perguntar de onde vieram. São limpos demais para

serem fruto de homicídios.”Bonnie explicou: “São espécimes médicos”.“Não interessa o que são”, disse Jim. Após vinte anos presenciando acidentes graves, o

patrulheiro tinha aversão a partes do corpo humano.Augustine retirou cinco crânios da estante e alinhou-os a seus pés, no chão de tábua corrida.

Depois, pegou três e começou a fazer malabarismo com eles.O patrulheiro disse: “Macacos me mordam”.Ao fazer o malabarismo, Augustine pensou no pobre jovem bêbado que tentara atirar no

búfalo de seu falecido tio. Que maneira triste e estúpida de morrer! Agilmente, pegou um quartocrânio e colocou-o a girar no ar junto com os outros. Depois, pôs o quinto também em rotação.

Bonnie Lamb começou a sorrir com o espetáculo, apesar de sua morbidez. O ex-governadorsaiu do banheiro envolto em uma nuvem de vapor, completamente nu. Só tinha uma toalhaenrolada ao redor do pescoço. Seu cabelo prateado molhado deixava cair pingos no seu peito.Com a ponta da toalha, enxugou o olho de vidro. Deu um sorriso resplandecente quando viu oshow de Augustine.

Jim Tile sentiu-se um pouco tonto observando os crânios girarem no ar. Max Lamb apareceuna porta. Sua expressão mudou instantaneamente de curiosidade para repulsa. Bonnie sabia o queele ia dizer antes que abrisse a boca. “Vocês acham isso engraçado?”

Augustine continuou equilibrando os crânios no ar. Não ficou claro se era seu espetáculo ou anudez do ex-governador que causaram a desaprovação de Max.

O patrulheiro comentou: “É, foi uma longa noite”.“Bonnie, nós vamos embora”, disse Max num tom ao mesmo tempo condescendente e

ríspido. “Você me ouviu? Chega de brincadeira.”Ela ficou furiosa pelo modo como seu marido se dirigiu a ela e saiu chispando do quarto.“Max?” chamou Skink com um sorriso cínico, tocando com o dedo sua própria garganta. O

pescoço de Max imediatamente começou a latejar. Também por reflexo, deu um pulo para trás,chocando-se contra a porta.

Skink retirou de sua mochila a carteira de Max e as chaves do carro alugado. Colocou osobjetos na mão dele. Max gaguejou algo parecido com “obrigado” e saiu rapidamente para falarcom Bonnie.

Augustine afinal parou o malabarismo com os crânios, retirando-os de rotação, um por um.Depois, colocou-os de volta na estante.

O ex-governador começou a secar as pernas e os braços com a toalha. “Gosto dessa moça. Evocê?”, perguntou a Augustine.

“Por que não gostaria?”“Você tem uma importante decisão a tomar.”“Imagine só. Ela é casada.”“Basta um beijo para o amor chegar. É o que diz a música.” De modo brincalhão, Skink

segurou Jim Tile pelos ombros e perguntou-lhe: “Então? Estou preso ou não?”.“Isso vai depender de Max Lamb.”“Preciso saber.”“Eles estão conversando sobre isso”, acrescentou Jim.“Porque, se eu não estou indo para a cadeia, adoraria procurar o patife que bateu em Brenda.”Por um instante, o patrulheiro pareceu sucumbir sob o peso de seu sofrimento. Seus olhos

encheram-se de lágrimas, mas ele conseguiu conter o choro.Skink falou de novo: “Jim, por favor, eu vivo à espera de oportunidades como essa”.“Você já teve emoções suficientes. Nós todos, aliás.”“E você, meu filho?”, perguntou Skink a Augustine. “Você já teve emoções demais?”“Bem, eles acabaram de matar um búfalo meu num supermercado...”“Mesmo?”“Mas ficaria honrado se pudesse ajudar a encontrar o agressor da policial.” O malabarismo

com os crânios havia feito Augustine se sentir cheio de energia e pronto para qualquer coisa.Estava a fim de começar algo novo, agora que o marido de Bonnie estava a salvo.

Skink disse a Jim: “Pense no que lhe falei. Enquanto isso, estou morrendo de fome. Evocês?”.

Dirigiu-se em direção à porta, mas Jim Tile postou-se à sua frente, dizendo: “Ponha as calças,capitão”.

Ninguém foi reclamar o corpo não identificado de Tony Torres no necrotério. Todas asmanhãs, Ira Jackson conferia nos jornais, mas não havia nenhuma notícia sobre o assassinato deum vendedor de trailers. Ele interpretou o silêncio da imprensa como prova da insignificância eda falta de valor de sua vítima. Sua morte não produzira um só parágrafo nos jornais.

Ira Jackson concentrou, então, suas intenções de vingança em Avila, o inspetor corrupto quehavia dado licença para que Beatrice habitasse o trailer que terminaria por matá-la. Na opinião deIra, Avila era tão culpado quanto Tony Torres pela morte de sua ingênua mãe.

No dia 28 de agosto, de manhã cedo, Ira dirigiu-se para o endereço que havia obtido dofuncionário do Departamento de Construção e Mapeamento. Uma mulher com um forte sotaquehispânico atendeu a porta. Ira pediu para falar com o senhor Avila.

“Ele está muito ocupado na garagem.”“Diga-lhe que é importante.”“Tá bem, mas ele está muito ocupado.”“Eu espero aqui.”Avila estava esfregando o carro de sua mulher, tentando limpar as manchas de sangue

deixadas pelos galos, quando sua mãe veio avisá-lo que tinha visita. Ele disse um palavrão echutou o balde de água. Devia ser Gar Whitmark exigindo os sete mil dólares. O que eleesperava que Avila fizesse — roubasse um banco?

Mas o homem que estava à sua porta não era Gar Whitmark. Era um estranho forte, de meia-idade e com o cabelo cortado muito curto. Tinha uma corrente de ouro no pescoço e uma manchade pó branco no lábio superior. Avila identificou o pó branco como sendo polvilho. O homemcertamente acabara de comer um sonho. Avila ficou desconfiado de que ele fosse da polícia.

“Meu nome é Rick”, disse Ira Jackson, estendendo uma mão atarracada e cheia de cicatrizes.“Rick Reynolds.” Quando sorriu, apareceu uma mancha de geleia em seus dentes inferiores.

Avila disse: “Estou um tanto ocupado no momento”.“Eu estava passando de carro, quando vi o caminhão da Fortress Roofing. É seu, não é?”Avila não respondeu logo. Seus olhos desviaram-se para o caminhão e para o Cadillac

estacionado logo atrás. O homem não era da polícia, não com aquele carro espalhafatoso.“A tempestade levou meu telhado. Preciso de um telhado novo urgente.”Avila falou: “Temos muitos compromissos já assumidos. Sinto muito”.Ele não gostava de dispensar um cliente voluntário, mas seria loucura aplicar o golpe em

alguém que sabia seu endereço, especialmente alguém com braços tão poderosos.Avila pensou que teria que mudar o lugar de estacionar seu caminhão.Ira Jackson lambeu o polvilho do lábio. “Posso fazer seu trabalho valer a pena.”“Ah, gostaria de poder ajudá-lo.”“Que tal dez mil dólares? Além do seu preço habitual.”Embora tentasse, Avila não conseguiu esconder seu interesse. O cara tinha sotaque de Nova

York. O pessoal de lá tinha dinheiro.“Seriam dez mil em dinheiro vivo”, acrescentou Ira. “É por causa de minha avó, sabe? Ela

mora conosco. Tem noventa anos e agora está chovendo pacas em sua cabeça. O telhado desaboutotalmente.”

Avila fingiu compaixão. “Noventa anos? Que Deus a abençoe.” Saiu de casa, fechando aporta atrás de si. “O problema é que já tenho uma dúzia de trabalhos contratados.”

“Quinze mil dólares se você me puser no topo da lista.”Avila esfregou o queixo com a barba ainda por fazer e olhou para o desconhecido. Com que

frequência uma oferta de quinze mil dólares bate à porta de alguém? Aplicar o golpe eraimpossível, mas havia outra opção. Radical, claro, mas possível. Avila podia mandar fazer umtelhado de verdade para o homem e usar o dinheiro para acertar as contas com Whitmark. É claroque a equipe ia reclamar e gemer muito, aqueles preguiçosos. Instalar um telhado novo era umtrabalho difícil e exaustivo. Talvez em tempos de desespero o trabalho honesto se justificasse.

“Vejo que sua casa saiu praticamente intacta do furacão”, comentou Ira.“Ah, é porque o olho do furacão passou longe daqui.”“Graças a Deus.”“Onde exatamente o senhor mora, senhor Reynolds? Talvez eu possa dar um jeito e fazer seu

telhado.”“Fantástico.”“Vou mandar um homem para fazer o orçamento”, disse Avila. Então lembrou-se de que não

poderia mandar ninguém. O ladrão do Snapper tinha dado o fora.Ira Jackson retrucou: “Preferia que o senhor fosse pessoalmente”.“Claro. Que tal amanhã, logo cedo?”“Que tal agora? Podemos ir no meu carro.”Avila não conseguiu pensar numa só razão para não ir. Ao contrário, tinha muitas razões para

aceitar o convite.

Quando Max Lamb desligou o telefone, seu rosto estava pálido e sua boca caída. Parecia quetinha recebido um diagnóstico e sofria de uma doença incurável. Para ele e para a Rodale &Burns, o problema tinha a mesma gravidade. Do outro lado da linha, o cordial Peter Archibaldparecera pesaroso e derrotado. As notícias de Nova York eram realmente péssimas.

O Instituto Nacional de Saúde convocara uma conferência de imprensa para divulgar osdanos que o fumo causava à saúde. Em circunstâncias normais, o mundo da publicidade nemligaria para isso, uma vez que essas manifestações lúgubres por parte do INS eram quaserotineiras. Ainda que as revelações fossem aflitivas, as vendas de cigarros não sofriam nenhumabaixa. Dessa feita, contudo, o governo tinha se valido de uma sofisticada tecnologia para testaralgumas marcas de cigarros quanto a seu teor de alcatrão, nicotina e outros elementoscancerígenos. Os cigarros Bronco acusaram os mais altos graus de concentração. Os Broncomentolados ficaram em segundo lugar e os femininos, em terceiro. Na verdade, os produtosBronco foram classificados como os mais letais em toda a história da indústria tabagista. Fumarum cigarro Bronco era, nas palavras de um cientista, “somente um pouco mais seguro do queaspirar um cano de descarga de um Chevrolet Suburban”.

Os detalhes das revelações do INS chegaram logo ao conhecimento da Durham Gas Meat &Tobacco, fabricantes dos cigarros Bronco. A reação da companhia foi ameaçar cancelar todos osseus anúncios em revistas ou jornais que divulgassem as revelações do INS. Essa ameaçabombástica ia logo virar notícia de primeira página nos jornais, caso não fosse repensada. Maxtinha que voltar a Nova York tão logo quanto possível.

Quando disse isso à esposa, ela perguntou: “Agora?”, como se não entendesse a gravidade dacrise.

“No meu trabalho isso é uma bomba.”“Mas é verdade o que dizem sobre os cigarros Bronco?”

“Provavelmente. Mas isso não é o problema. Eles não podem começar a retirar os anúncios.Há muito dinheiro envolvido. Milhões de dólares.”

“Max.”“O quê?”“Por favor, jogue fora esse maldito cigarro.”“Meu Deus, Bonnie, não me amole.”Eles estavam sentados em cadeiras de bambu na varanda de Augustine. Eram quatro ou cinco

horas da madrugada. Dentro da casa, podia-se ouvir um disco de Neil Young no estéreo. Atravésdas portas de vidro corrediças, Bonnie viu Augustine na cozinha. Ele notou que ela estavaolhando e deu-lhe um sorriso tímido. O patrulheiro negro e o ex-governador estavam em pé,perto do fogão. O cheiro que sentia era de ovos fritos e presunto.

Max disse: “Vamos pegar o primeiro avião”. Apagou o cigarro e jogou o toco fora.“E quanto a ele?”, Bonnie apontou para Skink, que estava quebrando ovos na pia. “Você

queria registrar queixa, não queria? Colocá-lo na cadeia.”“Querida, agora não há tempo para isso. Depois que eu resolver o problema do INS, voltamos

aqui para cuidar desse maníaco. Não se preocupe.”Bonnie Lamb disse: “Se ele ficar livre agora...”. E terminou a frase apenas mentalmente.Se ele ficar livre agora, nunca mais ninguém o achará. Ele desaparecerá como um fantasma

no pântano.Bonnie surpreendeu-se com seu sentimento. O que há de errado comigo? O homem raptou e

maltratou meu marido. Por que não quero que seja punido?“Você tem razão. Deve voltar a Nova York o mais cedo possível.”Franzindo o cenho, ele matou um mosquito no braço dela com delicadeza. “O que você quer

dizer? Não vem comigo?”“Max, não estou a fim de entrar num avião hoje. Estou com dor de estômago.”“Tome algum remédio.”“Já tomei, mas não adiantou. Talvez seja efeito da viagem de lancha.”“Você vai melhorar mais tarde.”“Tenho certeza que sim.”Max disse-lhe que lhe arranjaria um quarto num hotel perto do aeroporto. “Você pode dormir

bastante e viajar amanhã à noite.”“Parece boa ideia.”Pobre Max, ela pensou. Não tem a menor ideia do que está se passando comigo.

15

O pai de Bonnie trabalhava no departamento de circulação do jornal Chicago Tribune e suamãe era compradora da cadeia de lojas Sears. Tinham um apartamento na cidade e uma cabanade veraneio nos lagos de Minnesota. Bonnie, filha única, guardava memórias contraditórias sobreas férias da família. O pai não gostava de aventuras e a natureza não apresentava atrativos paraele. Como não sabia nadar e era alérgico a moscas, evitava os lagos. Costumava permanecer nacabana, montando modelos de aviões. Os modelos clássicos, tipo German Fokkers, eram os seuspreferidos. Esse hobby tedioso tornava-se particularmente difícil para seu pai, porque ele eramuito desajeitado. Qualquer pequeno trabalho com cola transformava-se num verdadeiro drama.Bonnie e sua mãe procuravam manter-se longe para não serem acusadas de perturbar suaconcentração.

Enquanto o pai se distraía com os modelos de aviões, a mãe a levava a passear de canoapelos lagos. Bonnie lembrava-se dessas manhãs felizes — os dedos na água fria, o calor do solno pescoço. Sua mãe não era das remadoras mais ágeis, mas elas conseguiam apreciar bastanteos animais selvagens — veados, esquilos, castores e até mesmo alguns alces. Bonnie lembrava-se de ter se perguntado mais de uma vez por que seus pais haviam comprado aquela cabana, jáque o pai era tão avesso à vida ao ar livre. A mãe lhe dera uma única explicação: seria aqui ouem Wisconsin.

Bonnie Brooks frequentou a Universidade em Northwestern e, para surpresa do pai, formou-se em jornalismo. Logo teve seu primeiro romance sério, com um professor assistente divorciadoque dizia ter ganho prêmios com suas reportagens sobre a guerra do Vietnã. O fato de não havernenhuma placa ou prêmio em seu escritório Bonnie atribuía ingenuamente à sua grandemodéstia. Como presente de Natal, ela resolveu fazer-lhe uma surpresa. Emolduraria uma desuas reportagens de primeira página para que ele a colocasse nas paredes nuas. Contudo, quandoprocurou nos arquivos de microfilmes do jornal San Francisco Chronicle, onde supostamente elepublicara as reportagens, não encontrou nenhuma. Ela contactou o Departamento de Pessoal dojornal e descobriu que o namorado nunca estivera no Vietnã nem publicara qualquer reportagema respeito.

Bonnie agiu com decisão. Primeiro, terminou o namoro. Depois, conseguiu que ele fossedemitido da universidade. Seus namorados seguintes foram mais leais e acessíveis, mas o quelhes faltava em desonestidade, sobrava em indolência. A mãe de Bonnie cansou-se de preparar-lhes refeições e depois ter que lavar os pratos sozinha. Estava ansiosa para que sua filha seformasse e achasse finalmente um homem maduro.

Oportunidades como jornalista foram, contudo, difíceis de encontrar. Como muitas de suascolegas, Bonnie terminou escrevendo simples comunicados de imprensa. Primeiro, trabalhou noDepartamento de Parques da cidade de Chicago e, depois, para uma empresa que fabricavacomida para bebês, que acabou sendo comprada pela Crespo Mills Internationale. Já com aCrespo Bonnie foi promovida ao cargo de relações públicas assistente, passando a receber umsalário que não teria conseguido com dez anos em salas de redação de jornais. O que fazia eescrevia deixava-a, contudo, muito frustrada. Além de cereais, a Crespo Mills fabricava também

pastas de condimentos batidas, manteiga de amendoim, barras de granola, biscoitos, pipoca dediversos sabores, vários tipos de pães e pedacinhos de pão torrado para sopa. Em um curtoespaço de tempo, Bonnie já não tinha mais adjetivos para despertar o apetite dos consumidores.Tentativas de lirismo eram desencorajadas por seus supervisores. Num período especialmentesem inspiração, teve que usar a palavra “saboroso” em catorze comunicados consecutivos.Quando Max a pediu em casamento e a convidou a se mudar para Nova York, ela não hesitou empedir demissão da Crespo.

Max só teria alguns dias de licença. Por isso, decidiram passar a lua de mel na Disney. Aescolha era ruim, mas Bonnie achou que qualquer coisa seria melhor do que as cataratas doNiagara. Sabia que uma cachoeira, não importava quão imponente fosse, não prenderia ointeresse de Max. Aliás, Mickey também não conseguiu mantê-lo interessado. Depois de doisdias no reino mágico, ele já estava nervoso e inquieto.

Então veio o furacão, e ele simplesmente resolveu ir ver a coisa de perto...Bonnie teria preferido ficar em Orlando, abraçada a ele debaixo dos lençóis limpos, fazendo

amor enquanto a chuva tamborilava nas janelas. Por que isso não fora suficiente para Max?Quase que ela lhe fez a pergunta quando estavam sentados na varanda de Augustine, depois

da aventura em Stiltsville. E mais tarde, a caminho do aeroporto. E de novo, no portão da Delta,quando ele a abraçou distraidamente, com o cabelo e a camisa cheirando a cigarro.

Mas Bonnie não lhe fizera a pergunta. Os momentos não foram adequados. Ele era umhomem com objetivos. Um homem maduro, como sua mãe queria. Só que sua mãe o achava umbabaca. Seu pai o considerava um rapaz ótimo. Aliás, ele sempre achara os namorados de Bonnieótimos rapazes.

Perguntou-se o que seu pai pensaria dele agora, a caminho de um hospital, sentada numacaminhonete entre um raptor caolho que se drogava e um sobrevivente de um desastre de aviãoque fazia malabarismo com crânios humanos.

A cabeça de Brenda Rourke estava fraturada em três lugares diferentes e uma das maçãs deseu rosto precisava de reconstrução cirúrgica. Uma hemorragia embaixo do osso temporal haviasido estancada. Um talho profundo na testa havia sido costurado junto à raiz dos cabelos.

Bonnie Lamb nunca vira ferimentos tão graves. Até o ex-governador pareceu ficar abalado.Augustine firmou os olhos na ponta dos sapatos — o cheiro e os sons do hospital lhe eramfamiliares demais. Sentia-se arrasado.

Jim Tile segurou as duas mãos de Brenda entre as suas. Os olhos dela estavam abertos, masnão se focalizavam em nada. Parecia não perceber mais ninguém no quarto além de Jim. Tentavafalar, apesar das drogas e da dor. Ele debruçou-se sobre ela para poder entender.

Após alguns instantes, ele se levantou e falou: “O patife roubou-lhe a aliança. A aliança decasamento de sua mãe”.

Augustine saiu da sala tão silenciosamente que Bonnie e Jim não perceberam. Não haviasinal dele do lado de fora da porta, mas um movimento de uniformes azuis e brancos o atraiupara o fim do corredor. O ex-governador estava no berçário, caminhando entre os recém-nascidos. Segurava um bebê em cada braço. As crianças estavam dormindo, e ele as examinavacom extrema tristeza. Para Bonnie, ele parecia inofensivo, apesar da barba rebelde, das calças decombate e das botas militares. Três robustos assistentes hospitalares estavam confabulando pertodo bebedouro. Aparentemente, já haviam tentado um entendimento com Skink, sem resultadossatisfatórios. Calmamente, Jim entrou no berçário e recolocou as crianças nos berços.

Ninguém interveio quando Jim conduziu Skink para fora do hospital. A cena parecia umaprisão de rotina. Um outro maluco das ruas arrastado para a cadeia. Jim Tile, com o braço emvolta dos ombros de Skink, conduzia-o pelo labirinto de corredores e passagens. Os doispareciam estar conversando animadamente. Bonnie e Augustine, desviando-se de cadeiras derodas e macas, tentavam segui-los.

Quando chegaram ao estacionamento, Jim disse que tinha que ir trabalhar. “O presidente estáchegando, e adivinhem quem tem que desobstruir o trânsito?”

Colocou um pedaço de papel na mão de Skink e entrou na radiopatrulha. Sem uma palavra,Skink deitou-se na carroceria da caminhonete de Augustine. De braços cruzados, examinava asnuvens com o olho bom.

Augustine perguntou a Jim: “O que devemos fazer com ele?”.“Ah, isso fica a critério de vocês.” O patrulheiro parecia exausto.Bonnie perguntou se Brenda ficaria boa. Jim disse que era isso que os médicos tinham dito.“E o cara que fez isso com ela?”“A polícia não o achou, nem vai achar.” O patrulheiro colocou o cinto de segurança, fechou a

porta e arrumou os óculos escuros. “Este lugar era algo especial há muito, muito tempo”, dissedistraído.

Um rugido feroz veio da carroceria da caminhonete. Jim Tile piscou por sobre os óculosescuros. “Foi um prazer conhecê-la senhora Lamb. A senhora e seu marido façam o que acharemcerto. O capitão entenderá.”

Depois, Jim Tile deu partida no carro.A caminho do hotel perto do aeroporto, onde Max havia reservado um quarto, Bonnie

escorregou no banco e deitou a cabeça no ombro de Augustine. Ele estava apavorado com o queos esperava: dizer adeus. Seria mais fácil se houvesse malas se fechando, portas sendo batidas etáxis saindo. Verificou o relógio do painel — faltavam menos de três horas para o voo dela.

Pela janela de trás da caminhonete, Bonnie observou que Skink recolocara a touca de banhona cabeça e se enroscara numa posição quase fetal.

“Gostaria de saber o que está escrito naquele pedaço de papel”, disse ela.“Meu palpite é que é um nome ou um endereço”, respondeu Augustine.“Do quê?”“É só um palpite.”Naquela noite, ele não teve que dizer adeus, porque Bonnie não embarcou para Nova York.

Cancelou o voo e voltou para a casa de Augustine. Suas mensagens telefônicas só foramrespondidas depois da meia-noite, quando ela já estava dormindo no quarto de hóspedes, com oscrânios.

No dia 28 de agosto, um pouco depois do meio-dia, o telefone de Tony Torres começou atocar na cozinha.

Snapper disse a Edie que fosse atender.“Vá você”, respondeu ela.“Ah, que engraçadinha.”Snapper não podia caminhar. O golpe de pé de cabra danificara sua perna direita. Estava

deitado na espreguiçadeira, com o joelho encoberto por três pacotes de gelo que Edie tinhacomprado de um bandido num caminhão de peixe, por cinquenta dólares, dinheiro que Snapperobtivera dos Whitmark. Não contou a Edie quanto dinheiro ainda tinha. Também não mencionouo revólver da policial no jipe, porque ela podia ter um ataque de novo e querer usá-lo.

O telefone continuou a tocar. “Responda. Pode ser o palhaço do seu namorado.”Edie pegou o telefone. Uma voz de mulher falou: “Alô!”.Edie desligou. “Não era Fred.”“Que merda era, então?”“Não perguntei, Snapper. Não devíamos estar aqui, lembra?” Edie disse que parecia ser uma

ligação interurbana.“E se for da companhia de seguros? Talvez o cheque esteja pronto.”Edie retrucou. “Não. Fred me avisaria.”Snapper abafou uma risada. “Seu namorado deu o fora, idiota. Você o assustou.”“Quanto você quer apostar que ele volta?”“Certo, ele não vai conseguir ficar longe dessa sua bunda tão linda.”“Você nem pode imaginar quão linda”, falou Edie mostrando a língua. Talvez não fosse boa

o suficiente para um Kennedy, mas para Fred Dove era sem dúvida a melhor coisa que lheacontecera em toda a vida. Além disso, ele não poderia sair do esquema agora. Já tinhaapresentado o pedido de indenização fraudulento.

O telefone tocou de novo. Edie exclamou: “Merda!”.“Pelo amor de Deus, me dê uma mão.” Snapper remexeu-se irritado na espreguiçadeira.

“Vamos.”Com o braço apoiado no ombro de Edie, ele foi mancando até a cozinha. Edie passou-lhe o

telefone.“Alô?”, falou Snapper.“Alô?”, disse uma mulher. “Tony, é você?”“Hummm”, respondeu Snapper, cautelosamente.“Sou eu, Neria.”Quem? Gotas geladas escorriam pela perna machucada de Snapper. Sua rótula, arroxeada,

parecia querer explodir. Edie chegou mais perto, tentando ouvir o que a mulher estava dizendo.“Tony, estou tentando falar com você há vários dias. O que aconteceu com a casa?”Então Snapper lembrou-se. Era a mulher de Tony. Ele dissera que seu nome era Miriam ou

Neria, um nome cubano. Também dissera que ela viria para receber sua parte do seguro.“Não dá para entender nada”, gaguejou Snapper.“O que está acontecendo? Telefonei para o vizinho, o senhor Varga, e ele disse que o furacão

destruiu nossa casa e que agora há estranhos morando aí. Uma mulher, Tony. Você está meescutando? Ele também disse que você deu um tiro de espingarda na parede da garagem. O queafinal está acontecendo aí?”

Snapper segurava o telefone longe do ouvido, como se fosse uma banana de dinamite. Seumaxilar inferior se deslocava de um lado para outro. Suas juntas estalavam de uma forma queassustava Edie.

“Tony?”, repetiu a voz de mulher no telefone.Edie pegou o telefone da mão de Snapper e disse: “Sinto muito. A senhora ligou para o

número errado”. E desligou o telefone.Primeiro, tudo que Snapper disse foi: “Droga!”.“Era a mulher de Tony?”“Era. Droga!”Edie Marsh ajudou-o a pular até a espreguiçadeira. Ao sentar-se, esmagou o pacote de gelo.

“Onde mora o palhaço do seu namorado?”“Num hotel da cadeia Ramada.”

“Droga. Isso não é muito como informação.”“Onde está a senhora Torres? Ela está aqui em Miami?”“Sei lá. Ajude-me a chegar até o carro.”“Tenho outra notícia ruim. Os cachorros voltaram esta manhã.”“Os basset?”“É. Não podemos deixá-los aqui. Temos que alimentá-los.”Com ambas as mãos, Snapper apertou a perna machucada e latejante e disse: “Nunca mais.

Juro por Deus”.“Ah, é? E você pensa que isto está sendo um piquenique para mim? Vamos, dê-me seu

braço.”

O cliente de Avila pegou a rodovia em direção ao sul. Em pouco tempo, o Cadillac estavapreso no trânsito — caminhões de construção, comboios do Exército, ambulâncias, ônibus deturismo, carros da Guarda Nacional e centenas de agentes de seguros nauseados, todo mundoindo para a zona do furacão.

“Parece uma área de bombardeio”, falou o homem, que disse se chamar Rick Reynolds.“É, parece. Onde fica sua casa?”“Tá longe ainda.” Enquanto o carro se arrastava na rodovia, o homem ligou o rádio: Rush

Limbaugh estava fazendo piadinhas sobre a mulher de um candidato. Avila não as achou muitoengraçadas, mas o homem ria bastante. No fim do programa, o noticiário anunciou que opresidente dos EUA estava indo para Miami para ver os danos causados pelo furacão de perto.

“Maravilha”, disse Avila. “Se o trânsito está ruim agora, espere para ver quando o presidentechegar.”

“É, uma vez fiquei preso atrás da comitiva do Reagan no túnel Holland. Foi terrível. Duashoras respirando fumaça de carburadores.”

Avila perguntou-lhe há quanto tempo estava em Miami. O homem informou que residia naregião há alguns meses e tinha vindo de Nova York.

“Eu nunca tinha visto algo assim.”“Nem eu”, concordou Avila.“Não consigo entender. Algumas casas caíram como peças de dominó, e outras não perderam

sequer uma telha. Como se explica isso?”, perguntou o homem.Avila olhou para o relógio. Perguntou-se se o homem estava com os quinze mil dólares ou se

o dinheiro estava no porta-malas. Olhou para o banco de trás. Viu um mapa rodoviário amassadoe caixas de sonhos.

O homem continuou: “Meu palpite é que alguém recebeu dinheiro para não inspecionar ascasas. Não há outra explicação”.

Avila manteve os olhos na estrada. “Aqui não é como em Nova York.” Finalmente, o trânsitocomeçou a andar.

O homem comentou que um estacionamento de trailers perto de sua vizinhança havia sidocompletamente devastado. “Minha velha morreu na tragédia.”

“É. Isso é muito duro.”“Minha velha era maravilhosa. Mas todos os trailers foram destruídos. Não sobrou um.”Avila disse: “É. Foi a tempestade do século”.“Mas não foi só por isso. Os arrebites desses trailers estavam podres. Os verrumões foram

cortados. Os discos de ancoragem não foram instalados. Agora me diga se não é o caso de sepensar que algum inspetor foi pago para não ver isso.”

Avila remexeu-se no banco, nervoso. “Arrebites apodrecem com o tempo. Quanto falta parachegar à sua casa?”

“Não muito.”O homem tomou a avenida Krome, em direção à rua 168. Depois virou para o leste e dirigiu

até um bairro chamado Fox Hollow, que tinha sido tão atingido pelo furacão que até asfundações das construções estavam expostas. O homem estacionou em frente a um arcabouçoesquelético do que fora uma pequena casa.

Avila saiu do carro e exclamou: “Meu Deus, o senhor não estava brincando mesmo”.O teto da casa tinha sido despedaçado pelo vento: vigas, armações, tudo. Avila ficou

perplexo com o fato de o senhor Reynolds permitir que sua família permanecesse naquelaestrutura precária. Entrou com o homem na casa, pulando por sobre as portas caídas. O lugarparecia completamente abandonado. Somente na cozinha havia alguns cachorros vira-latasbrigando por pedaços de hambúrguer saídos do refrigerador caído. O cliente de Avila pegou umtaco de alumínio de beisebol e expulsou os animais.

Espreitando pelas portas dos quartos inundados, Avila não viu qualquer sinal da família docliente. Imediatamente, ficou apreensivo. Só para confirmar, perguntou: “Então, onde está a suaavó de noventa anos?”.

“Morta e enterrada”, respondeu Ira Jackson, batendo com o taco na palma da mão, “numcemitério lindo em Staten Island.”

Enquanto o homem de Nova York se preparava para pregá-lo num pinheiro, Avila deduziupor que Snapper o tinha contratado. Obviamente, o plano de Snapper era matá-lo e assumir ocontrole do negócio dos telhados. Onde estaria o poder vingativo de Chango? Será que osacrifício dos dois galos fora insuficiente?

Então o homem de Nova York explicou a situação para Avila — quem era ele realmente, oque acontecera com sua mãe e o motivo pelo qual Avila deveria morrer de uma morte terrível eprolongada. Num primeiro momento, ele alegou inocência, fingindo-se ultrajado com a morte deBeatrice Jackson. Logo se deu conta de que as habilidades para a sobrevivência, tão essenciaispara um burocrata — acusar outras pessoas, esquivar-se da responsabilidade e esconder papéis— eram inúteis naquela situação.

Avila percebeu que seria melhor contar a verdade a se deixar torturar. Assim, por puro medo,confessou tudo a Ira Jackson.

Sim, ele que tinha sido designado para inspecionar os trailers do estacionamento chamadoSuncoast Leisure Village, mas não fizera seu trabalho. E — sim, sim, que Deus o perdoasse —recebera suborno para desconsiderar as violações do código de segurança.

“Você sabia que os arrebites estavam podres?”, perguntou Ira enquanto construía umcrucifixo de vigas caídas.

“Não”, respondeu Avila.“Os verrumões?”“Não, juro.”“Nem verificou?” Ira enfiava pregos na cruz, com marteladas poderosas.“Não vi nada, porque nunca fui ao estacionamento”, confessou Avila, vagarosamente.O martelo que Ira segurava ficou suspenso no ar. Avila, que estava amarrado a uma cômoda

no banheiro, baixou os olhos, fingindo arrependimento. Foi nesse momento que viu que aprivada estava cheia de sapos verdes e cobras marrons.

Estremecendo, falou: “Nunca fui ao estacionamento. O cara me mandou o dinheiro...”.

“Quanto?”“Cinquenta dólares por trailer. Recebi no escritório e pensei: para que desperdiçar gasolina?

Em vez de dirigir até lá, eu...” Nesse momento, Avila se conteve. Achou desnecessário confessarque jogara golfe na tarde em que deveria ter inspecionado o Suncoast Leisure Village.

“... eu não fui.”“Você está de sacanagem.”“Não. Mas sinto muito, muito mesmo.”A expressão que viu no rosto de Ira fê-lo pensar que talvez não devesse ter sido tão franco.

Era evidente que o homem tinha intenção de torturá-lo, mesmo após a confissão. Ira debruçou-sesobre o crucifixo e continuou a trabalhar.

Levantando a voz para sobrepô-la ao barulho das marteladas, Avila disse: “Por Deus, sesoubesse o que ele estava fazendo com aqueles trailers, nunca lhe teria dado as licenças. Osenhor tem que acreditar em mim. Nenhum dinheiro do mundo me faria aceitar verrumõescortados”.

“Cale a boca.” Ira Jackson levou a cruz para o quintal e prendeu-a a um pinheiro. A árvorefora alta e pujante, mas o furacão havia levado sua enorme copa. Agora, havia apenas um troncocurto.

A cada martelada, Avila se desesperava mais. Fez uma prece para Chango. Depois tentou aAve-Maria, na remota esperança de que os rituais da Igreja católica fossem mais poderosos paraevitar uma crucificação.

Quando o homem arrastou-o para a árvore, ele gritou: “Por favor, farei o que quiser”.“Ok”, disse Ira. “Quero que morra.”Colocou Avila em pé na cruz e prendeu seus pulsos e tornozelos com fita isolante, para

impedir seus movimentos. Avila fechou os olhos quando viu o homem posicionar um prego e omartelo. No momento em que o prego entrou na palma de sua mão, deu um ganido e desmaiou.

Quando acordou, percebeu que Chango havia atendido a suas preces.

16

No dia 31 de agosto, às nove horas da manhã, uma morena atraente, carregando doiscachorrinhos basset, entrou na agência de Hialeah do Banco Barnett e abriu uma conta com onome de Neria G. Torres.

À guisa de identificação, a moça apresentou um registro de automóvel expirado e umpunhado de cartas encharcadas. O funcionário do banco gentilmente solicitou uma carteira demotorista ou um passaporte, qualquer coisa que tivesse uma fotografia recente. A moça explicouque todos os seus documentos haviam sido destruídos pelo furacão. Quando o funcionárioinsistiu, a moça ficou nervosa. Seus cachorrinhos começaram a correr em círculos no saguão dobanco, lambendo as pernas de outros clientes. Para acalmar a situação, o funcionário concordouem aceitar o registro de automóvel da moça como identificação. Sua própria tia havia perdido ospapéis de imigração na tempestade, por isso as desculpas da senhora Torres pareciam-lheplausíveis. Para abrir a conta, ela lhe deu cem dólares em dinheiro vivo, informando que voltariadentro de alguns dias para depositar uma quantia vultosa, proveniente de uma indenização doseguro.

“A senhora tem sorte de estar sendo indenizada tão cedo. Minha tia está ainda brigando coma companhia de seguros”, comentou o bancário.

A moça respondeu que sua companhia era a Midwest Casualty e que tinha um ótimo agentelá.

Mais tarde, quando Edie Marsh contou a história a Fred Dove, ele deu um sorriso irônico.Considerando as circunstâncias aflitivas em que estavam, Edie achou um bom sinal.

Edie, Snapper e os dois cachorrinhos basset haviam se mudado para o quarto de Fred Dove,no hotel Ramada. Não havia mais vagas em hotéis nos arredores. Todos os quartos estavamocupados com famílias desabrigadas, voluntários de equipes de resgate, jornalistas, operários efuncionários de companhias de seguros. Fred Dove sentia-se como se tivesse caído numaarmadilha. Ao seu medo de ser preso por fraude somava-se agora o receio de que sua mulhertelefonasse para o quarto. Se Snapper ou Edie atendessem o telefone ou se os cachorroscomeçassem a latir, teria que inventar uma desculpa que provavelmente nenhuma mulher sensataaceitaria.

“Anime-se”, disse Edie. “O negócio do banco já está resolvido.”“Ótimo”, falou ele secamente.O fim de semana longo e tenso havia desgastado os nervos de Fred. Snapper não ficara

quieto, dando voltas e mais voltas no pequeno quarto, bebendo vodca sem parar e ameaçandomatar os cachorros com um revólver preto que dizia ter roubado de uma policial.

Não é de surpreender que meus nervos estejam em frangalhos, pensou Fred.Para completar, o fato de estar dividindo o quarto com Snapper e os cachorros não permitia

que tivesse qualquer intimidade com Edie. Não que quisesse fazer sexo, propriamente. O efeitodesestimulante da interrupção do último coito permanecia em sua mente, pois Snappercontinuava a fazer piadinhas a respeito da camisa de vênus vermelha que usara.

Também permanecia em sua mente a aptidão para a violência que descobrira em Edie. Avisão de Edie com o pé de cabra não lhe saía da cabeça. Preocupava-se com a possibilidade deque ela e Snapper tentassem matar um ao outro a qualquer momento.

Edie deitou-se ao lado dele na cama. “Você parece péssimo.”“É, estou”, respondeu Fred.Com a perna ferida levantada, Snapper assistia à televisão numa poltrona. A todo momento,

golpeava Donald e Maria e mandava-os ficarem quietos.“É o programa Sally Jessy”, sussurrou Edie. Fred suspirou.Na televisão, uma mulher com uma peruca loura horrorosa acusava seu marido desdentado

de ter dormido com a irmã dela. Ao invés de negar, o marido admitiu o fato, dizendo que fora amelhor trepada que já dera. A irmã, também desdentada, apareceu para declarar que não estavasatisfeita e queria mais. Sally Jessy suspirou, desgostosa, e o público começou a vaiar. Snapperdeu um grito de guerra que enervou os cachorros ainda mais.

“Se o telefone tocar, por favor, não responda”, pediu Fred.Edie não achou necessário perguntar por quê.“Você tem filhos?”Fred respondeu que tinha dois, um garoto e uma garota. Pensou que Edie fosse perguntar as

idades, que notas tinham no colégio e tal. Mas ela não demonstrou o menor interesse em maioresdetalhes sobre as crianças.

“Anime-se, tá? Pense em sua viagem para Bimini.”“Escute, estive pensando...”Snapper rosnou: “Vocês dois, querem falar baixo? Estou vendo este show de merda”.Edie fez sinal para que Fred a acompanhasse até o banheiro. Imediatamente, ele recobrou um

pouco o ânimo, pensando que ela tivesse intenção de chupar seu pênis ou algo parecido.Mas Edie só queria um lugar mais tranquilo para conversar. Sentaram-se na borda da

banheira. Ela acariciou a mão dele, dizendo: “Fale-me, querido. No que está pensando?”.“Tá, a companhia me manda o cheque...”“É.”“Eu te dou o cheque e você o deposita no banco.”“Certo.”“E depois?”Edie Marsh começou uma explicação enfadonha, como se fosse uma professora falando para

um aluno muito burro. “Depois, Fred, eu vou ao banco dentro de alguns dias e faço três chequesno valor de quarenta e sete mil dólares cada um. Como combinamos.”

Indiferente ao tom superior de Edie, ele disse: “Não se esqueça dos cem dólares que lhe deipara abrir a conta”.

Edie empurrou a mão dele como se fosse uma barata. Meu Deus, que sujeito mesquinho.“Sim, Fred, vou fazer questão que seu cheque seja emitido no valor de quarenta e sete mil e cemdólares. Está se sentindo melhor agora?”

Fred deu um grunhido e disse: “Não me sentirei melhor até que este negócio todo acabe”.Edie não contou a Fred sobre o telefonema de Neria Torres. Não queria assustá-lo ainda

mais.“A melhor parte deste negócio”, disse ela, “é que ninguém tem condições de roubar o outro.

Eu sei coisas que o incriminariam, você sabe sobre mim, e nós dois sabemos muitas coisas sobreSnapper. É por isso que o negócio está indo tão bem.”

Fred Dove falou: “Aquele revólver dele me apavora”.

“Não há muito que possamos fazer a respeito. O babaca gosta de revólveres.”Do lado de fora, Donald e Maria começaram a arranhar a porta furiosamente.“Vamos lá para fora, antes que o Snapper tenha um ataque com os cachorros”, sugeriu Edie.“Isto aqui está uma loucura.”Edie, mecanicamente, puxou a cabeça de Fred para seu peito. “Não se preocupe com nada.”

E ele se sentiu de repente transportado para um vale macio e cheiroso, onde nada de mal poderiaacontecer-lhe.

Nesse momento, do lado de fora, um revólver disparou. Os cachorros começaram a latircomo loucos e Snapper gritou palavrões.

Avila pensou: ou estou morto ou estou sonhando.Isso porque a dor de estar pregado a uma cruz deveria ser muito maior. Mesmo que fosse só

uma mão, deveria doer muito mais. Deveria estar dando uivos, em vez de estar aqui pendurado,com uma dor meio amortecida, pendurado como um saco e vendo...

Deve ser um sonho.Porque não há leões na Flórida. E isso é o que esse monstro é, um leão africano adulto. Rei

das malditas selvas. Tão real que dá para ver as manchas vermelhas de sangue no seu focinho.Tão real que posso sentir o cheiro de sua urina. Tão real que posso ouvir a espinha de Ira Jacksonsendo esmigalhada por suas presas.

O leão estava comendo Ira Jackson, o homem que tentara matá-lo.Avila não conseguia fazer qualquer movimento, como se fosse um espantalho crucificado.

Tinha medo de piscar. Entre uma e outra mordida, o leão olhava para cima, bocejava, lambia aspatas e meneava a juba para afastar os mosquitos. Avila observou uma etiqueta azul pregada emuma de suas orelhas, mas não achou que fosse importante.

O que era importante era que definitivamente não estava sonhando. O leão era de verdade.Era claro que tinha sido mandado para salvar sua vida.

E não pelos santos católicos — entidades católicas não tinham a menor tradição em fazeraparecer bestas endemoniadas. Não, aquilo era trabalho de Chango.

Gracias, Chango. Muchas gracias.Quando chegar em casa, Avila prometeu a seu espírito protetor, vou fazer uma oferenda

digna de um rei. Galinhas, coelhos, talvez até mesmo um bode.Por enquanto, por favor, faça o leão ir embora para que eu possa tirar este prego de merda de

minha mão.O leão continuava a jantar calmamente, a alguns metros do pinheiro. O martelo de Ira estava

caído aos pés de Avila. Pelas marcas no chão, parecia que ele fora atacado por trás, mortoinstantaneamente e carregado para o terreno onde agora o leão comia seu corpo estripado. Acorrente de ouro de Ira balançava na boca do leão como um fio de espaguete. Num segundo,desapareceu com uma lambida do animal.

O conhecimento de Avila sobre os hábitos alimentares dos leões era precário, mas não podiaacreditar que o animal ainda estivesse faminto depois de devorar o substancial senhor Jackson.Apesar do recrudescimento da dor em sua mão, Avila permaneceu completamente imóvel,pendurado na cruz, até que o leão parou de mastigar e adormeceu.

Devagarinho, virou a cabeça para ver a perfuração em sua mão. A pele estava toda manchadade sangue endurecido. O prego penetrara a parte carnosa entre o segundo e terceiro dedo.Movimentou levemente os dedos. Uma espécie de vitória moral — Ira Jackson não conseguiraquebrar-lhe nenhum osso.

Observando o animal adormecido atentamente e se movimentando com muita cautela, Avilaarrancou a fita isolante da mão não machucada. Devagar, começou a retirar o prego da outra. Ador não era tão grande quanto imaginara. Talvez Chango o tivesse anestesiado também.

Por sorte, a madeira da cruz era macia. Em menos de um minuto, conseguiu tirar o prego.Um pequeno jato de sangue fresco saiu de sua mão. Apertou-a entre as pernas para sufocar umgrito de dor. O leão não se mexeu.

Enquanto a fera dormia, Avila retirou a fita isolante dos tornozelos. Ao caminharvagarosamente para longe do pinheiro, avistou um pedaço de osso parcialmente mastigado —um pequeno resquício de Ira, mas um poderoso talismã em futuros rituais de vodu.

Avila pegou o osso e foi embora rápida e silenciosamente.

Skink decidiu passar a noite na carroceria da caminhonete. Um pouco depois das dez danoite, Augustine levou à caminhonete um sanduíche quente e duas garrafas de cerveja. Skinkpiscou satisfeito e sentou-se. Deu cabo do sanduíche com quatro mordidas gigantescas. Bebeu acerveja e disse: “Então ela ficou”.

“É, mas não sei por quê.”“Porque nunca o viu antes.”“Nem a você.”“E também porque seu marido teve um comportamento deplorável”, acrescentou Skink.Augustine apoiou-se no para-lama da caminhonete. “Ela ficou, e estou contente. Mas isso me

faz um modelo de amoralidade — uma mulher em lua de mel. Pelo amor de Deus!”Skink arqueou uma sobrancelha: “Você acha inapropriado?”.“Ah, claro.”“Foi decisão dela, filho. Não se atormente com isso.”O que afligia Augustine era mais ansiedade do que culpa. Do jeito que as coisas iam, logo se

apaixonaria por Bonnie Lamb. Quantos outros abraços na calada da noite poderia aguentar? EBonnie o abraçava ardentemente, ainda que de maneira platônica. Augustine estava atormentado.Não tinha como se manter indiferente em relação a ela, não com seus cabelos cheirando a flores,não com a curva aveludada de seu pescoço, não com aqueles olhos azuis escuros. Não conseguialembrar-se de outra mulher que se encaixasse tão bem em seus braços. Até mesmo o ronco dela oacalmava — tal era a paixão que começava a sentir por ela.

Falta apenas um beijo para o amor chegar. Como dizia a canção.Uma mulher recém-casada. Brilhante.Inconscientemente, os olhos de Augustine se dirigiram para a janela do quarto de hóspedes.

Logo viu a sombra de Bonnie atrás das cortinas. Depois, as luzes se apagaram.Skink deu-lhe uma cutucada. “Acalme-se. Nada acontecerá a não ser que ela queira.” Depois

começou a fazer uma série de exercícios, acompanhados de alguns grunhidos asmáticos. Osexercícios duraram vinte minutos. Augustine apenas o observava, sob a luz das estrelas. Aoterminar, Skink sentou-se novamente, fazendo balançar a carroceria da caminhonete.

Apontando para a cerveja que sobrara, perguntou: “Você vai beber essa?”.“Não, não. Pode tomar.”“Você é um jovem paciente.”“Tempo é o que me sobra na vida.”Skink inclinou a cabeça para trás e virou a cerveja garganta abaixo, até esvaziar a garrafa.

Pensativo, disse: “Nunca se sabe como esse tipo de coisa vai acabar”.“Não tem importância, capitão. Quero participar.”

“Ok, então olhe isto. Deu a Augustine o pedaço de papel que recebera de Jim Tile nohospital. No papel estava escrito: jipe preto Cherokee, placa BZQ-42F.

Augustine ficou impressionado com o fato de Brenda Rourke lembrar-se da placa e de outrosdetalhes do carro depois da surra que levara.

Skink esclareceu: “A placa é roubada. Até aí, nada de novo”.“O motorista?”“Branco, homem, uns trinta e tantos anos. Tem o maxilar torto de acordo com Brenda. Além

disso, usava um terno listrado de mau gosto.”Skink deitou-se novamente na carroceria do carro, cruzando os braços sob a cabeça.Augustine debruçou-se no carro e perguntou: “Por onde começamos? O motorista pode estar

longe agora”.“Tenho umas ideias”, disse Skink.Augustine pareceu em dúvida. “Provavelmente os policiais vão achá-lo primeiro.”“Não, estão todos ocupados com os danos e as vítimas do furacão, trabalhando em turnos

dobrados. Até detetives estão ajudando com o trânsito.” Skink deu uma risada. “Não é uma máocasião para ser fugitivo da polícia.”

Augustine sentiu algo esbarrar na sua perna — o gato cor de laranja do vizinho. Quando seabaixou para acariciá-lo, o animal escondeu-se debaixo da caminhonete.

O ex-governador explicou-lhe: “Vou fazer isso por Jim. Ele nunca me pediu nada antes”.“Mas o senhor tem outras razões, não é?”Skink balançou a cabeça, afirmativamente. “É, tenho. Não gosto de patifes que batem em

mulheres. E o furacão me deixou, bem, frustrado...”A tempestade não fora o cataclisma que profetizara. Um furacão deveria expulsar pessoas, e

não atraí-las. A quantidade de gente que estava vindo para o sul da Flórida era incalculável, e opior é que se tratava de pessoas da pior espécie — ladrões, caçadores de fortuna, oportunistas,para não mencionar gângsteres e assassinos. Precisamente o tipo de gente que esmagaria o rostode uma mulher.

“Não espere que eu me controle”, advertiu Skink.“Nem pensar”, disse Augustine.

A luz do quarto de hóspedes se acendeu. Augustine encontrou Bonnie sentada na cama. Elaestava usando uma camiseta branca e longa que encontrara numa gaveta como roupa de dormir.A camiseta tinha a inscrição: “Tom Petty e os Heartbreakers”. Augustine a tinha comprado emuma apresentação do conjunto. A mulher que o acompanhara ao show, a médica psicótica quetentara operá-lo no chuveiro, comprara uma camiseta preta para combinar com suas botas demotociclista. Na ocasião, Augustine achara a combinação atraente.

“Max já telefonou?”, perguntou Bonnie.Augustine foi verificar a secretária. Não havia recados. Voltou ao quarto.“Estou casada há uma semana e um dia. O que que há comigo? Deveria estar em casa.”Exatamente, pensou Augustine. Tem toda a razão.“Você acha que meu marido é um cretino?”“Absolutamente”, mentiu Augustine, por educação.“Então por que não me telefonou?” Não estava fazendo uma pergunta de verdade. Disse:

“Vem cá”.Bonnie abriu espaço debaixo dos lençóis, mas Augustine ficou na beira da cama.“Você deve achar que eu sou louca.”

“Não.”“Meu coração está de cabeça para baixo. É a única maneira que tenho para descrever o que

está acontecendo.”“Você pode ficar aqui quanto tempo quiser.”“Quero ir com você e com... ele, o raptor.”“Por quê?”“Não sei. Talvez tenha algo a ver com Max, com meu pai e seus modelos de aviões, com

uma infância infeliz, embora minhas recordações sejam bastante boas. Mas devo ter algumproblema. Garotas felizes e normais não abandonam seus maridos.” Bonnie apagou a luz. “Querdeitar aqui comigo?”

“Melhor não.”No escuro, a mão de Bonnie encontrou o rosto de Augustine. “Escute. Acho que deveríamos

dormir juntos.”“Mas nós temos dormido juntos, senhora Lamb.” Disse isso com o coração acelerado.

Augustine se cumprimentou em silêncio — um pouco de humor para quebrar a tensão era bom.“Vamos. Você sabe do que estou falando.”“Fazer amor?”“Ah, você pega as coisas rápido.” Segurou seus ombros e puxou-o para baixo. A cabeça dele

pousou no travesseiro. Antes que Augustine pudesse se levantar, Bonnie estava montada emcima dele, prendendo seus braços. Apoiou o queixo no seu peito. Pela luz que vinha da janela,Augustine pôde ver que ela estava sorrindo e seus olhos brilhavam. Atrás dela, estavam oscrânios alinhados contra a parede.

Bonnie disse: “Se fizesse amor com você, talvez as coisas ficassem mais claras para mim”.“Uma terapia de choque teria o mesmo efeito.”“Estou falando sério.”“Mas você é muito casada.”“É, mas apesar disso, você está tendo uma ereção.”“Obrigado pelo boletim médico.”Ela soltou seus braços, segurando seu rosto com as duas mãos. Seu sorriso desapareceu e seu

rosto adquiriu uma expressão de tristeza. “Pare de fazer gozação de tudo”, sussurrou. “Você nãovê que não sei mais o que fazer? Tentei chorar, mas não resolve.”

“Desculpe...”“Sinto-me mais próxima de você do que jamais me senti de Max. Isso não é um bom sinal.”“Não, não é.”“Especialmente depois de uma semana apenas de casamento. Meu próprio marido — e já me

sinto velha e insensível quando estou perto dele.” Segurando a camisa de Augustine, disse: “MeuDeus, sabe o que mais? Esqueça tudo o que eu disse”.

“Tá certo.”“Então você pensou em fazer amor comigo também?”“Sempre”, respondeu Augustine. E então, num ataque de virtude, acrescentou: “Mas seria

errado”.Os seios de Bonnie estavam pressionados contra as costelas dele. Quando ela respirava,

podia senti-los subindo e descendo levemente. A amizade, pensou Augustine, pode ser dolorosa.Bonnie perguntou: “E agora?”.“Oh, a ereção vai passar e, então, podemos ir dormir.”

Ela baixou os olhos. Enrubesceu? No escuro, era difícil dizer. “Não, quis dizer com relaçãoao ex-governador. O que vocês dois estão planejando?”

“Suspense de arrepiar os cabelos e grandes aventuras.”Bonnie aconchegou-se mais no peito de Augustine e preparou-se para dormir. Ele sentiu

muita vontade de acariciar seus cabelos, beijar sua cabeça, passar o dedo na curva aveludada deseu pescoço. Mas, tolhido por um excesso de pudor, não fez nada disso.

Bonnie dormiu muito antes dele. Um pouco depois da meia-noite, o telefone começou a tocarna cozinha. Augustine não se levantou para atender, porque não queria acordar sua amiga.Provavelmente, poderia tê-la afastado gentilmente, mas nem tentou.

Ela dormia tão profundamente, e ele estava tão feliz.

17

Bonnie Lamb rolou para o lado às três da madrugada, deixando Augustine livre para selevantar e atender o telefone, que tocava sem parar há horas.

Naturalmente, era o marido de Bonnie ligando de Nova York. Augustine temia uma conversaacalorada.

“O que está acontecendo?”, perguntou Max.“Bonnie está ótima. Está dormindo.”“Responda à minha pergunta.”“Ela deixou vários recados para você. Não estava se sentindo bem para pegar o avião...”“Acorde-a, por favor. Diga-lhe que é importante.”Enquanto esperava, Max pensava no dia longo e terrível que tivera. A conferência de

imprensa do INS sobre os males à saúde causados pelos cigarros Bronco fora transmitida pelaCNN, MTV e todas as maiores cadeias de televisão. Foi também amplamente comentada nosprogramas de entrevistas de Leno e de Letterman. A cobertura da MTV fora particularmenteperniciosa, porque se concentrara na saúde das moças fumantes, uma faixa do mercado essencialpara as vendas de Bronco. Amanhã, sairiam reportagens de primeira página nos jornais Times,Wall Street Journal e Washington Post. A palavra “desastre” era inadequada para descrever acrise. O presidente rabugento da Durham Gas Meat & Tobacco (DGM & T) insistia num embargototal à publicidade em todos os meios de comunicação que transmitiram as notícias do INS contrao Bronco — o que equivalia a dizer todas as revistas e jornais dos EUA. A atmosfera na Rodale &Burns era sepulcral. A agência perderia muitos milhões de dólares se seus anúncios fossemretirados de circulação. Max havia passado boa parte da tarde tentando contactar o presidente daDGM & T em Guadalajara. O homem estava recebendo injeções diárias de sêmen de carneirohomogeneizado como tratamento para um tumor maligno no pulmão. Os funcionários da clínicainformavam que o presidente não estava atendendo a nenhum telefonema e se recusavam atransferir as ligações para o quarto.

E como se isso tudo não bastasse, Max agora tinha que lidar com uma esposa teimosa efugitiva na Flórida.

“Querido?”, falou Bonnie, com a voz enrouquecida pelo sono.Max segurou o aparelho como se fosse o pescoço de uma cobra. “O que exatamente está

acontecendo aí?”“Sinto muito. Preciso de mais alguns dias.”“Por que você não está no hotel?”“É que ficou tarde e adormeci aqui.”“No quarto dos crânios? Meu Deus, Bonnie.”Quando Max ficava muito nervoso, sua voz tornava-se aguda. Seus colegas atribuíam o

fenômeno à asma ou ao uso de anfetaminas. Bonnie entendia que seu marido ficasse aborrecidopor ela estar com Augustine. Tentar explicar não adiantaria, pois ela própria não entendia bem oque estava acontecendo. Sua tentativa de seduzir Augustine ela entendia muito bem, é claro. Mas

a vontade premente de sair estrada afora com o ex-governador, a falta de interesse em voltar paracasa para começar seu casamento... eram positivamente emoções muito confusas.

“Ainda não estou me sentindo muito bem, Max. Talvez seja o cansaço.”“Você pode dormir no avião, ou num hotel, ora bolas.”“Tá certo, querido. Vou reservar um quarto.”“Ele tentou alguma coisa com você?”“Claro que não. Ele é um perfeito cavalheiro.” E pensou: É comigo com quem você tem que

se preocupar, meu caro.“Não confio nele.” A voz vibrante de Max voltara ao normal, o que indicava uma queda

benéfica na sua pressão arterial.Bonnie decidiu dizer que, se não fosse por Augustine, ele provavelmente continuaria em

poder de seu raptor.A observação provocou um silêncio zangado do outro lado da linha. Depois, Max disse:

“Mas há algo errado com ele”.“Ah, é? E você por acaso é perfeitamente normal? Um homem que dirige centenas de

quilômetros para filmar casas destruídas e crianças chorando.”Bonnie deu-se conta de que Augustine entrara na cozinha. Com um sorriso maroto, ele

começou a fazer malabarismo com três enormes grapefruits e a dançar descalço no chão. Bonnietapou a boca para não rir ao telefone.

Ouviu Max dizendo: “Estou indo para o México amanhã. Quando voltar, espero que vocêesteja aqui”.

Os olhos de Bonnie acompanhavam o movimento giratório dos grapefruits.“Claro que estarei aí.” A promessa foi feita tão sem convicção que ela duvidou que Max

tivesse acreditado nela. Bonnie sentiu uma onda de tristeza. Max não era burro. Certamente,sabia que algo não ia bem. Inspirou fundo. Augustine saiu sorrateiramente da cozinha, deixando-a sozinha.

“Bonnie?”“Sim, querido.”“Você não quer saber por que estou indo para o México?”“México”, disse ela, enquanto pensava: ele está indo para o México. “Você vai ficar muito

tempo por lá?”Ao fazer a pergunta, pensou: Meu Deus, quem é essa mulher estranha e estouvada que

invadiu meu corpo?

Avila não contou à mulher que quase morrera crucificado. Ela teria interpretado o episódiocomo uma parábola divina e espalhado a história por toda a vizinhança. Uma vez, a mulher deAvila vira ou pensara ver o rosto da Virgem Maria numa panqueca e telefonara para todas asestações de televisão em Miami. Pode-se imaginar o que ela faria com uma história decrucificação envolvendo um leão africano.

Avila trancou-se no banheiro, fez um curativo na mão latejante e esperou que a mulher saíssepara ir ao armazém. Depois, pegou uma pá na garagem, foi até o quintal dos fundos e começou aescavar para desenterrar uma caixa ao pé de uma mangueira. Na caixa havia uma pequenafortuna pertencente ao irmão de sua mulher, resultante de uma incursão no mundo do tráfico demaconha. O cunhado residia atualmente na penitenciária estadual, condenado por vários crimesnão relacionados com o tráfico. Avila e sua mulher haviam prometido guardar o dinheiro até queele obtivesse sua liberdade condicional, que sairia provavelmente na virada do século. Ele não se

sentia bem roubando as economias do cunhado, mas se tratava de uma emergência. Se GarWhitmark não recebesse seus sete mil dólares imediatamente, telefonaria às autoridades, e Avilairia parar numa cela com um tarado voraz. Para ele, Whitmark era extremamente poderoso.

Avila escavou energicamente, ignorando a dor na ferida do prego. Era estimulado pelo cheirode podre das mangas e pela possibilidade de que, a qualquer momento, aparecesse um de seusoutros cunhados. Ele queria manter em absoluto sigilo o fato de que havia sido roubado por umde seus próprios operários falsos. Desenterrou a caixa sem muita dificuldade e forçou afechadura. Retirou setenta notas úmidas de cem dólares e colocou-as no bolso. Mas algo estavaerrado. Parecia estar faltando dinheiro na pilha. Sua suspeita confirmou-se após contarapressadamente as notas. Estavam faltando quatro mil dólares.

“Cadelas estúpidas”, Avila bufou. Elas tinham perdido no bingo novamente. Sua mulher esua sogra eram viciadas no jogo.

Confrontar as mulheres teria dado grande prazer a Avila, mas também equivaleria a confessarque ele próprio assaltara a pequena fortuna. Já cheio de remorso, tornou a enterrar a caixa.Cobriu a terra remexida com algumas folhas e torrões de grama.

A seguir, dirigiu até o prédio de escritórios de Whitmark, onde o fizeram esperar por noventaminutos, como se fosse um operário qualquer.

Quando uma secretária finalmente o introduziu no escritório particular de Whitmark, Avilaestragou qualquer possibilidade de uma conversa cordial, perguntando, de saída, o que havia deerrado com o couro cabeludo do empresário — fungos ou o quê? Avila nunca tinha vistoimplantes de cabelo antes, e sua intenção não era ser rude. Mas Whitmark reagiu de formaexplosiva. Derrubou Avila no chão, arrancou o dinheiro de sua mão, colocou o joelho sobre seupeito e disse-lhe uma série de desaforos e palavrões. Whitmark não era grande nem forte, masestava em forma, pois passava muitas tardes jogando tênis. Avila decidiu não reagir — se fosseatacado fisicamente, ele o processaria. Os olhos de Whitmark saltavam fora das órbitas, tal suafúria, mas ele não agrediu Avila fisicamente uma só vez. Em vez disso, levantou-se, ajeitou alapela do terno italiano, arrumou a gravata e apresentou-lhe um orçamento detalhado da firmaKillebrew Co. no valor astronômico de vinte e três mil dólares.

Avila ficou arrasado, mas não propriamente surpreso. Whitmark escolhera os melhores emais caros construtores de telhados de todo o sul da Flórida. Também os mais honestos. Avilalembrava-se de que, quando ainda era inspetor corrupto, havia tentado extrair suborno dasequipes de construção da Killebrew e fora expulso do canteiro de obras como um gambáescorraçado. A Killebrew, assim como Whitmark, tinha contatos importantes no governo.

Avila fingiu examinar o orçamento, enquanto pensava numa proposta diplomática.Whitmark falou: “Eles começarão a trabalhar na semana que vem. Trate de se arranjar

financeiramente”.“Minha nossa. Não tenho todo este dinheiro.” Pronto, tinha dito o que queria.“Ah, você vai me comover desse jeito”, disse Whitmark rangendo os dentes.Com a mão enfaixada, Avila sacudiu o papel da Killebrew e disse, meio indignado: “Eu

poderia fazer esse trabalho pela metade do preço”.Whitmark retrucou, furioso: “Não deixaria que você colocasse o telhado na casa do meu

cachorro”. Deu a Avila uma cópia de um recorte de jornal. “Ou você arranja o dinheiro ou vaipara a cadeia. Comprende, señor bosta?”

O artigo de jornal dizia que o procurador-geral do condado de Dade estava designando umgrupo de promotores públicos para investigar construtores desonestos que tiravam partido devítimas do furacão.

“Com um telefonema apenas, ponho você na penitenciária.”Avila baixou a cabeça. Ao ver suas unhas sujas, lembrou-se da caixa enterrada no quintal.

Droga, restavam lá apenas uns doze mil dólares, talvez treze mil. Estava perdido.“Minha mulher transformou-se num feixe de nervos depois do que vocês fizeram com ela. A

conta com remédios está exorbitante.” Ao dizer isso, Whitmark apontou para a porta e mandouque Avila saísse. “Manteremos contato”, acrescentou de forma ríspida.

A caminho de casa, Avila, abatido, considerou suas opções. Com que frequência poderiarecorrer a Chango sem ofendê-lo ou dar a impressão de egoísmo? O feiticeiro que o haviatreinado não tinha mencionado um limite para os pedidos. Hoje à noite, decidiu Avila, vousacrificar um bode — não, dois bodes. E amanhã vou atrás daquele patife do Snapper.

A Igreja da Alta Meditação Pentecostal, sediada em Chicoryville, Flórida, se ocupava daspopulações atingidas por desastres naturais no hemisfério ocidental. Terremotos, enchentes efuracões constituíam ótimas oportunidades para o recrutamento de pecadores. Menos de trinta eseis horas após o furacão ter atingido o condado de Dade, um grupo de missionários foidespachado para a área, num minifurgão Dodge. Como era difícil encontrar acomodação noshotéis, eles partilhavam um quarto num hotel Ramada, perto de uma rodovia. Nenhum delesreclamava.

Todas as manhãs, os missionários pregavam, consolavam e distribuíam panfletos sobre aIgreja Pentecostal. Depois entravam na fila de almoço gratuito distribuído pelo Exército numacampamento para vítimas do furacão e retornavam ao hotel para duas horas de meditação e dejogo de cartas. O Ramada tinha televisão a cabo. Assim, os missionários podiam assistir a váriosprogramas de pregações de diferentes religiões, a qualquer hora do dia. Uma tarde, na falta deum programa pentecostal, sintonizaram na pregação de Pat Robertson. Não concordavam com avisão de mundo paranoica dele, mas admiravam seu estilo radical de coleta de contribuições eesperavam poder aprender alguma coisa nesse aspecto.

No final do programa, o reverendo Robertson fechou os olhos e começou a rezar. Osmissionários se deram as mãos — o que não foi fácil, pois havia quatro deles numa cama e trêsna outra. A oração, para eles, não tinha sido tirada das Escrituras. Evidentemente, o reverendoRobertson tinha inventado a prece, pois havia diversas referências à sua caixa postal em Virgínia.Apesar de tudo, era uma oração muito boa, proferida de forma passional. Os missionáriosestavam gostando.

Assim que o reverendo Robertson disse “amém”, o quarto foi sacudido por uma explosão e oaparelho de televisão foi para os ares diante dos olhos estupefatos dos missionários. O rosto doreverendo sumiu numa nuvem de fumaça azul e suas súplicas queixosas desapareceram em meioa cacos de vidro. Os missionários saltaram das camas, ajoelharam-se e começaram a cantar ohino Nearer My God To Thee. Foi assim que o gerente do hotel os encontrou, quinze minutosdepois, quando foi pedir-lhes desculpas.

“Um babaca no quarto de baixo disparou um revólver calibre 357”, informou o gerente.A cantoria parou imediatamente. O gerente afastou o aparelho de televisão da parede e

mostrou um furo no carpete. “É da bala. Não se preocupem. Expulsei o cara do hotel.”“Um revólver?”, gritou um missionário mais velho, levantando-se do chão.“É. E essa não é a pior parte. Havia cachorros no quarto também. Vocês podem acreditar

nisso? Cachorros estragando as colchas e sabe Deus o que mais.” O gerente prometeu trazer-lhesum outro aparelho de televisão e advertiu-os de que deveriam manter a cantoria de hinos em tombaixo, para não incomodar os outros hóspedes.

“Todo mundo está nervoso neste hotel”, acrescentou o gerente.Quando ele saiu, os missionários trancaram a porta e fizeram uma reunião solene. Chegaram

à conclusão de que já tinham feito tudo o que podiam pela população do sul da Flórida erapidamente arrumaram as malas.

“Bem, podemos dizer que você foi brilhante.”Snapper disse a Edie que calasse a boca e parasse de recriminá-lo. O que está feito, está feito.“Mas, realmente. Fazer com que sejamos expulsos do único quarto de hotel disponível no

lugar. Você é um gênio.”Snapper bufou e deitou-se na espreguiçadeira. Ela tinha mesmo muita coragem de ficar

reclamando dele, depois de esmagar sua perna com um pé de cabra. Quem não ficaria de mauhumor com o joelho todo inchado e dolorido?

“A culpa é sua. Sua e daqueles malditos cachorros. Me dá uma cerveja, vai”, pediu Snapper.No caminho de volta para a casa de Tony Torres, pararam num posto e compraram gasolina,

gelo e mantimentos. Fred Dove comprara Tylenol e pastilhas de hortelã e partira para umaaborrecida tarde de orçamentos de seguros.

Entrara no carro com o olhar assustado de um homem cuja vida fora arruinada.Edie Marsh pegou uma cerveja e atirou-a para Snapper. “Tivemos sorte de não ir para a

cadeia”, disse ela pela quinta vez.“Aqueles cachorros não paravam de latir.”“E então você dá um tiro no teto.”“Exato.” Snapper ajeitou o maxilar para beber melhor a cerveja. Para Edie, ele parecia o

Popeye do desenho animado.“Vou acabar com eles hoje à noite, quando você estiver dormindo. Ainda ficarei com três

balas. Então, trate de não tentar nada diferente comigo.”“Mas olhe que gênio da matemática. Além de todos os seus outros talentos”, ironizou Edie.“Você não está acreditando em mim?”“Os cachorros estão amarrados lá fora. Não estão incomodando ninguém.”Ao terminar a cerveja, Snapper amassou a lata e jogou-a no tapete. Depois, pegou a pistola e

começou a girá-la no ar. Certamente, aprendera o truque nos filmes de televisão. Edie Marshignorou-o. Foi até a garagem para colocar mais gasolina no gerador — precisariam deeletricidade para fazer a televisão funcionar. Sem isso, Snapper ficaria insuportável.

Estava certa, pois quando voltou à sala de estar Snapper já estava acampado em frente àtelevisão, assistindo Oprah.

“É sobre prostitutas”, disse ele, absorto com o programa.“Ah, você está com sorte.”Edie estava se sentindo melada de suor. O furacão destruíra o sistema de ar-condicionado da

casa. Ainda que estivesse funcionando, ela não tinha nem portas, nem janelas, nem teto paramanter o ar refrigerado. Edie foi ao quarto e trocou o vestido que usara para ir ao banco porshorts de linho branco e um suéter bege, de mangas curtas, pertencentes à senhora Torres. Teriaficado muito chateada se as roupas servissem nela, mas graças a Deus eram três tamanhosmaiores. Roupas largas a ajudariam a manter-se mais fresca, além de fazerem com que ficassemais atraente.

Edie estava se admirando no espelho quando o telefone começou a tocar. Snapper gritou-lheque atendesse o maldito aparelho.

Embora não fosse dada a premonições, Edie teve uma que acabou acertando. Quandoatendeu o telefone, a telefonista perguntou-lhe se aceitaria uma chamada a cobrar de uma tal deNeria, de Memphis.

Memphis! A bruxa estava a caminho da Flórida!“Não conheço ninguém chamado Neria”, respondeu Edie, tentando manter-se calma.“O número daí é 305-443-1676?”“Não tenho certeza. Não moro aqui, sabe? Estava passando em frente à casa quando ouvi o

telefone tocar...”“Senhora, por favor...”“Telefonista, caso não saiba, tivemos um furacão terrível aqui.”Nesse momento, Neria interrompeu: “Quero falar com meu marido. Pergunte-lhe se o Tony

está”.Edie Marsh disse: “Escute, a casa está vazia. Estava passando pela frente quando ouvi o

telefone e achei que poderia ser um parente de alguém. Uma emergência, talvez. O homem quemorava aqui foi embora. Carregou suas coisas num caminhão e se mudou na sexta-feira. Foi paraNova York. Foi o que ele disse”.

“Obrigada”, disse a telefonista.“O quê? Qual o seu nome?”, interrompeu Neria.“Obrigada”, repetiu a telefonista, tentando terminar a conversa.Mas Edie estava inspirada. “O homem e uma moça foram embora num caminhão alugado.

Talvez fosse a mulher dele. Ela parecia ter uns vinte e três anos. Cabelos louros, longos.”Neria não se conteve: “Eu sou a mulher dele e essa é a minha casa”.Claro, pensou Edie. Agora que o dinheiro do seguro está para chegar, ela deixa o professor e

volta correndo para o gorducho do Tony.“Brooklyn”, Edie inventou. “Acho que disseram que iam para o Brooklyn.”“Filho da puta”, exclamou Neria.Asperamente, a telefonista perguntou à senhora Torres se desejaria tentar um outro número.

Não houve resposta. Ela tinha desligado. Edie Marsh também desligou.Seu coração estava disparado. Inconscientemente, esfregou as mãos no short de linho branco

de Neria Torres. Depois, correu para a garagem para pegar um alicate.Da sala de estar, Snapper gritou: “Quem era, afinal? A mulher dele de novo?”. Quando ouviu

o barulho da porta da garagem, disse: “Ei, tô falando com você”.Mas Edie não o ouviu. Já estava entrando sorrateiramente na casa do vizinho para cortar os

fios de seu telefone. Dessa forma, Neria não poderia telefonar para o senhor Varga e verificar averacidade da história fantasiosa que lhe contara sobre Tony e a jovem loura.

A placa do jipe preto Cherokee fora roubada de um Camaro, na manhã seguinte ao furacão,num bairro chamado Turtle Meadow. Augustine estava dirigindo a caminhonete em direção aobairro quando Skink pediu-lhe que parasse num acampamento que a Guarda Nacional erguerapara os desabrigados do furacão.

Skink pulou da caminhonete e começou a andar por entre as barracas abertas. Bonnie eAugustine o seguiram, observando o cenário sombrio. Homens e mulheres podiam ser vistosestendidos em camas de lona. Adolescentes aborrecidos pulavam por cima de poças de água.Crianças se agarravam a bonecas distribuídas pela Cruz Vermelha.

“Todas essas almas”, exclamou Skink, agitando os braços.

Os soldados não lhe prestaram atenção. Acharam que se tratava de mais uma vítima dofuracão, chocada com a desgraça.

Havia uma fila enorme de desabrigados esperando para receber água mineral distribuída pelaGuarda Nacional. Um garotinho com fraldas sujas de terra passou correndo na frente de Skink.Com uma só mão, ele levantou-o à altura dos olhos.

Bonnie cutucou Augustine: “O que faremos?”.Quando se aproximaram de Skink, ouviram-no cantar num tom surpreendentemente alto e

carinhoso:

É só uma caixa com chuva,Não sei quem a colocou aqui.Acredite se quiser,Ou deixe estar.

O garotinho — de menos de dois anos de idade, segundo o palpite de Bonnie — tinhabochechas gorduchas, cabelos castanhos encaracolados e um arranhão na sobrancelha. Usavauma camiseta sem mangas com a figura do Batman. Sorriu com a canção e puxou a barba deSkink. Uma neblina leve continuava a cair.

Augustine segurou o ombro de Skink: “Capitão?”.Skink continuou prestando atenção na criança: “Qual é o seu nome?”.O garoto apenas deu um sorriso tímido. Skink olhou profundamente para ele. “Você não vai

esquecer, vai? Um furacão é um aviso de despejo mandado por Deus. Vá contar ao seu pessoal.”E continuou a cantar, agora num tom anasalado, pois o garotinho estava apertando suas

narinas.

E é só uma caixa com chuva,ou uma fita no seu cabelo.Tanto tempo passarei fora,Mas ficarei tão pouco tempo lá.

O garotinho bateu palmas. Skink deu-lhe um beijo na testa e disse: “Você é uma boacompanhia, filhinho. Que tal seu espírito de aventura?”.

“Não”, disse Bonnie dando um passo à frente. “Não vamos levá-lo conosco. Nem pensenisso.”

“Mas ele se divertiria muito.”“Capitão, por favor”, interveio Augustine, pegando o garoto e passando-o a Bonnie. Ela

correu à procura dos pais da criança, antes que Skink mudasse de ideia.O céu cor de estanho encheu-se com barulho do ronco de motores. As pessoas na fila da água

apontaram para os helicópteros que se aproximavam, voando baixo. Os helicópteros começarama dar voltas, fazendo as barracas tremerem. Em seguida, uma procissão de carros de polícia.Sedans oficiais, Chevrolets pretos e caminhonetes de estações de televisão entraram noacampamento.

Skink comentou: “Ah, o comandante-chefe chegou”.Cinco agentes secretos saíram rapidamente de um Chevrolet preto, seguidos pelo presidente

dos EUA. Sobre a camisa e a gravata ele usava um impermeável azul-escuro, com um emblemano peito. Acenou para as câmeras de televisão e depois, compulsivamente, começou a apertar amão de todos os soldados e membros da Guarda Nacional que o circundavam. Esse

comportamento peculiar poderia ter se prolongado até o anoitecer, se um de seus inúmerosassessores (também de impermeável azul) não tivesse cochichado ao seu ouvido. Naquelemomento, uma família de autênticos desabrigados, cuidadosamente selecionada, foi trazida paraser fotografada e filmada com o presidente. Na família havia, é claro, aquelas crianças bonitas,obrigatórias em cenas políticas. O presidente desmanchou-se em agrados e afagos para com ascrianças. As fotos duraram menos de três minutos. Depois disso, o presidente voltou acumprimentar todas as pessoas uniformizadas que via. Seus cumprimentos foram prestadostambém a um membro do Exército da Salvação. O presidente abraçou-o e perguntou: “Queuniforme é esse que você está usando?”.

Augustine estava observando tudo, de braços cruzados a uma certa distância. “Patético”,disse ele.

Skink concordou. “Repare nos seus olhos vítreos. Não há nada pior do que um republicano.”Assim que Bonnie voltou, eles partiram para Turtle Meadow.

18

Skink tinha conseguido com Jim Tile o endereço do proprietário do Camaro cuja placa haviasido roubada. As caixas de correspondência e placas de ruas estavam caídas, de modo quelevaram um certo tempo para localizar o endereço. Como tinha aparência cuidada e respeitável,Augustine foi escolhido para interrogar o proprietário. Skink ficou esperando na carroceria dacaminhonete, cantando o coro da música Ventilator blues. Bonnie Lamb não conhecia a canção,mas gostou da voz de baixo de Skink. Ela estava em pé ao lado do carro, vigiando-o.

Quem abriu a porta para Augustine foi uma mulher de aparência cansada, usando um vestidocaseiro cor-de-rosa. Ela disse: “O patrulheiro mencionou que você viria”. Seu tom de voz era tãodesanimado quanto seu olhar. Sem dúvida, sua vida fora fustigada pelo furacão.

“Já faz uns três dias que eu chamei a polícia.”“É, estamos sobrecarregados de trabalho”, comentou Augustine.A família inteira da mulher — o marido, quatro filhos e dois gatos — estava amontoada no

quarto principal, sob o único pedaço do teto que sobrara. O marido usava uma camiseta semmangas, shorts largos, chinelos e um boné da equipe dos Cleveland Indians. Podia-se ver suabarba grisalha ainda por fazer. Cozinhava num pequeno fogareiro colocado em cima de umacômoda. Seis latas de feijão com carne de porco estavam alinhadas sobre a cômoda, com astampas removidas. As crianças brincavam com jogos Nintendo, movidos a pilha.

“A eletricidade ainda não foi reinstalada”, explicou a mulher. Virando-se para o marido,esclareceu que Augustine era o homem que a polícia rodoviária havia enviado para tratar daplaca roubada. O marido indagou por que Augustine não estava usando uniforme.

“Porque sou detetive. Uso roupas civis”, respondeu Augustine.“Ah.”“Contem-me o que aconteceu.”“Quatro rapazes estacionaram ao lado do meu Camaro e tiraram a placa. Eu estava no quintal

dos fundos, enterrando os peixes — quando a luz caiu, o aquário parou de funcionar e os peixesmorreram”, contou o marido.

“Tive que enterrá-los antes que começassem a empestear a casa toda. Foi quando o jipeapareceu, com quatro caras pretos dentro tocando uma música a todo volume no estéreo.Pegaram uma chave de fenda e começaram a desatarraxar a placa. E eu lá parado, vendo tudo.”

A mulher interveio: “Sabia que alguma coisa estava errada e trouxe as crianças para dentroimediatamente”.

O marido despejou duas latas de feijão com carne de porco numa pequena panela e colocou-ano fogo. “Aí eu corri com uma pá e perguntei o que eles estavam fazendo. Um dos rapazes meapontou um revólver e me mandou para aquele lugar, você sabe onde. Não discuti. Volteiimediatamente para o quintal. Levar um tiro por causa de uma placa não estava nos meusplanos.”

Augustine perguntou: “E aí, o que aconteceu?”.“Eles colocaram a placa no jipe e deram o fora. Dava para ouvir a música altíssima, a oito

quilômetros daqui.”

A mulher acrescentou: “David tem uma pistola e sabe usá-la, mas...”.“Não entraria num tiroteio por causa de uma droga de uma placa que custa trinta dólares”,

justificou-se o marido.Augustine cumprimentou David por seu bom senso. “Deixem-me verificar de novo o número

da placa.” Tirou do bolso o pedaço de papel que Jim Tile dera a Skink e leu em voz alta: “BZQ-42F”.

“É isso mesmo”, disse David, “mas ela não está mais no jipe.”“Como é que você sabe?”“Vi o jipe, outro dia, descendo a rua Calusa.”“Mas era o mesmo jipe?”“Claro. Um jipe preto Cherokee, com janelas sombreadas. Aposto minha vida que era o

mesmo jipe. Dava para ver pelos protetores de lama.”A mulher sugeriu: “Fale a ele sobre os protetores de lama”.“É, o jipe tem protetores de lama como aqueles que as jamantas usam. Você sabe, com

mulheres nuas pintadas.”“E cromados”, acrescentou a mulher. “Por isso soubemos que era o mesmo jipe...”Augustine perguntou: “Onde fica a rua Calusa?”.“... só que quem tava dirigindo o jipe era um cara branco.”“Como é que ele era?”“Não parecia nada amigável.”A mulher interrompeu-o: “Cuide do feijão, David. E conte a ele sobre a música”.“Ah, isso é outra coisa”, disse David enquanto mexia a panela. “O cara branco também

estava com o estéreo ligado a todo volume, igual aos rapazes pretos. Só que não tocava rap, esim Travis Tritt. Achei muito estranho o cara de terno, ouvindo uma música a todo volume, numjipe todo incrementado, como o crioléu gosta.”

“David!” A mulher ficou vermelha, verdadeiramente ofendida com a maneira como o maridose referira aos negros. Augustine gostou dela. Parecia ser a parte forte do casal.

O marido, como que se desculpando pelo modo como falara, disse: “Vocês sabem o quequero dizer. Todas aquelas partes cromadas, vidros sombreados e tal, o cara brancosimplesmente não combinava com aquilo tudo”.

Augustine se recordava da descrição que Brenda Rourke dera de seu agressor. “Você temcerteza de que ele estava de terno?”

“Absoluta.”A mulher disse: “Achamos que talvez ele fosse o chefe da gangue. Pode ser que os rapazes

negros trabalhem para ele”.“É possível.” Augustine estava se divertindo, bancando o policial e tentando extrair mais

detalhes das testemunhas.“Você disse que ele parecia pouco amigável. O que você quis dizer com isso, exatamente?”David colocou um pouco de feijão em vários pratos de cerâmica. “Era a cara dele. Uma cara

que não dá para esquecer.”A mulher acrescentou: “Nós estávamos a caminho de uma loja de conveniências para

comprar gelo. Primeiro, pensei que ele estivesse usando uma máscara, tipo daquelas que se usano dia das bruxas. Imagine como ele é feio e estranho”. E virando-se para o filho menor queavançava no prato: “Jeremy, cuidado, o feijão ainda está muito quente”.

Augustine agradeceu-lhes pela cooperação em nome da polícia do condado de Dade.Prometeu fazer o possível para recuperar a placa roubada. “Só tenho uma última pergunta.”

“Onde fica a rua Calusa”, adiantou David, sorrindo.“Exatamente.”“Margo pode fazer um mapa para você num dos guardanapos.”

A mulher de Avila encontrou-o contorcendo-se no chão da garagem, perto do Buick. Estavasangrando, tinha um grande, ferimento na virilha. Um dos bodes destinados ao sacrifício o haviachifrado.

“Onde estão eles?”, perguntou a mulher em espanhol.Avila confessou que os dois bodes haviam fugido.“Eu te disse, eu te disse”, gritou a mulher, agora falando em inglês. Então, virou Avila de

barriga para cima e abriu-lhe as calças para examinar o ferimento. “Você vai precisar de umainjeção contra tétano.”

“Me leve para o médico, vamos.”“Não no meu carro. Não quero sangue no estofamento.”“Então me ajude a chegar até o maldito caminhão.”“Você está imundo de sangue.”“Você quer que eu morra aqui no chão? É isso que você quer?”Avila comprara os bodes do sobrinho de um feiticeiro em Sweetwater. O rapaz tinha uma

pequena granja onde criava galos de briga e animais de fazenda para sacrifícios religiosos. Osdois bodes haviam custado trezentos dólares. Os animais brigavam muito. Na viagem para casa,eles se chifraram e se escoicearam o tempo todo. A muito custo, Avila conseguiu empurrá-lospara dentro da garagem, mas antes que pudesse colocar-lhes correntes e trancar a porta, osanimais se agitaram mais ainda. Avila perguntou a si mesmo se haviam sentido a presençasobrenatural de Chango ou se era por causa do cheiro de sangue e de entranhas dos outrosanimais sacrificados ali. De qualquer modo, os bodes ficaram furiosos, destruindo uma ceifadoraem perfeito estado, além de outros itens. O bode maior deu uma chifrada poderosa em Avila eescapou porta afora. O outro foi atrás dele.

A mulher de Avila recriminou-o durante todo o percurso até o hospital. “Trezentos dólares.Você é um maluco de merda.” Para xingar, ela preferia o inglês ao espanhol, pela maiorvariedade de palavrões que havia na língua.

Avila retrucou, rispidamente: “Não venha me falar de dinheiro. Você e sua mãe andamperdendo as calças no bingo. Então não venha me chamar de maluco”.

Verificou o ferimento na virilha. Havia um buraco do tamanho de uma moeda grande. Osangue havia estancado, mas a dor era terrível. Sentia-se pegajoso.

Oh, Chango, o que fiz para desagradá-lo?, pensou Avila.Na sala de emergência do hospital, uma enfermeira com ar profissional deitou-o numa cama

de rodas e ligou a sua veia em um frasco de soro, através do qual Avila passou a receberanalgésico. Ele disse para o médico que havia caído num aspersor de jardim enferrujado. Omédico observou que ele tivera sorte de não ter cortado uma artéria. Perguntou-lhe sobre ocurativo sujo em sua mão esquerda. Avila explicou que era uma bolha grande por causa do golfe.Nada para se preocupar.

Com o aborrecimento da dor, Avila começou a devanear sob o efeito do medicamento. Acara torta de Snapper apareceu-lhe envolta por uma nuvem.

Vou encontrá-lo, seu corno, jurou Avila.Mas como?

No devaneio, recordou-se da noite em que conhecera Snapper. Fora num bar na estradaLeJeune. Snapper estava com duas mulheres de um serviço de acompanhantes. Elas usavammuita maquilagem e tinham os cabelos eriçados. Avila juntou-se ao grupo, fazendo amizade.Estava com dinheiro no bolso. Momentos antes recebera um suborno de um vendedor de vigasde fibra de vidro, de durabilidade duvidosa. As prostitutas contaram a Avila que o nome do seuserviço de acompanhantes era A Escolha dos Cavalheiros, e que funcionava sete dias porsemana. Disseram que Snapper era um cliente habitual, um dos melhores. Contaram ainda queele estava celebrando com elas porque iria passar de três a cinco anos na prisão e lá não tinhaxoxota de jeito nenhum. Snapper, por sua vez, explicou a Avila que matara um babaca, traficantede drogas, para quem ninguém dava bola. Fora condenado por homicídio não premeditado e,com alguma sorte, sairia da cadeia em vinte meses. Avila não acreditou em nada do que elecontou. Achou que a história era para impressionar as mulheres. Pagou várias rodadas de bebidapara ele e para as garotas, na esperança de que Snapper resolvesse partilhá-las com ele. E foiexatamente o que aconteceu. Quando Avila voltou do banheiro, a garota com quem simpatizara,uma tal de Morganna, sussurrou-lhe que Snapper concordava que ficasse com Avila, desde queeste pagasse sua parte. Então foram todos para uma espelunca em West Flagler e se divertirammuito. Morganna era cheia de energia e imaginação. Valera a pena gastar com ela o dinheiro dasvigas de fibra de vidro.

Essas imagens, provocadas pelo narcótico, fizeram com que Avila não pensasse nos pontosque estava recebendo na virilha. De repente, veio-lhe à mente um modo de encontrar o escrotodo Snapper e recuperar seus sete mil dólares.

Uma pista, assim que a polícia chamaria.Não uma pista fantástica, mas era melhor do que nada.

Um outro vizinho curioso entrou na casa, perguntando por Tony Torres. Edie Marsh contou amesma história de que era uma prima distante de Torres que estava guardando a casa. Não sepreocupou em explicar quem era o homem dormindo na espreguiçadeira com um revólver nocolo.

Fred Dove chegou alguns minutos depois, quando Edie estava passeando com Donald eMaria no jardim da frente. Fred parecia mais desanimado e pálido do que nunca. Pelo modocomo puxou a pasta do banco do carro, Edie percebeu que ele estava nervoso por causa de algumfato novo.

“Meu supervisor quer inspecionar a casa”, anunciou Fred.“Ele está desconfiado de alguma coisa?”“Não. Será uma inspeção de rotina, no caso de pedidos de indenização.”“Então qual é o problema, Fred? Você simplesmente mostra a casa para ele.”Fred deu uma risada amarga e entrou na casa. Edie amarrou os sapatos e fez o mesmo.“O problema é que o senhor Reedy vai querer conversar com o senhor e a senhora Torres”,

disse Fred, largando a pasta no balcão da cozinha. O barulho acordou Snapper.Edie disse: “Não entre em pânico. Nós daremos um jeito”.“Não entre em pânico? A companhia quer saber por que fui expulso do hotel. Minha mulher

quer saber onde estou hospedado e com quem. Dennis Reedy vai estar aqui amanhã paraentrevistar duas pessoas que não existem. Pessoalmente, acho que tenho todos os motivos paraentrar em pânico.”

“Ei, palhaço. Você já tem o cheque do seguro?”, gritou Snapper da sala de estar.Edie Marsh foi até lá e disse: “Ainda não”.

“Então, manda ele calar a boca.”Fred Dove falou mais baixo. “Não posso permanecer aqui com esse maníaco. É impossível.”“É que a perna dele está doendo.” Edie dera a Snapper sua última drágea de analgésico e

obviamente o efeito sedativo já passara. “Escute, eu também não estou satisfeita de ficar aqui.Mas é melhor do que acampar no mato.”

Fred tirou os óculos e apertou as têmporas. Um mosquito pousou numa de suas pálpebras.Ele começou a balançar a cabeça como se fosse um cachorro, para espantar o mosquito. “Nãovamos poder continuar com o plano”, falou, pesaroso.

“Claro que vamos, querido. Eu representarei a senhora Torres e Snapper fará o senhorTorres.”

Fred Dove pareceu ainda mais desanimado. “Vocês não parecem cubanos. Nenhum de vocês,pelo amor de Deus.” Deu um soco na porta de um armário e gritou: “Em que situação fui memeter”.

Snapper gritou que Fred estava correndo risco de vida, a não ser que calasse a boca. Edieconduziu Fred para o vestiário do quarto de dormir de Tony Torres. Trancou a porta e começou abeijá-lo carinhosamente. Ao mesmo tempo, abriu o zíper de suas calças. Fred pulou com o toquequente e inesperado. Edie apertou seu pênis até que ele se acalmasse.

“Esse Dennis Reedy”, sussurrou Edie, “como é que ele é?”Fred contorceu-se de prazer.Edie insistiu: “É um cara durão? Exigente? Qual é a dele?”.“Ele parece legal.” Fred tinha trabalhado com Reedy apenas uma vez, durante uma enchente

em Dallas. Reedy era grosseiro mas justo. Havia aprovado a maioria dos orçamentos de Fred,com pequenas modificações.

Com a mão livre, Edie abaixou as calças de Fred e disse: “Hoje à noite, vamos rever o pedidode indenização, para estarmos preparados para as perguntas dele”.

“E Snapper?”“Eu cuido dele. Vamos fazer um ensaio.”“O que você está fazendo?”, perguntou Fred, quase caindo.“O que lhe parece, Fred? O senhor Reedy trará nosso cheque?”Em estado de êxtase, Fred olhava para o topo da cabeça de Edie. Dedos estavam explorando

seu cabelo sedoso. Seus dedos, a julgar pela aliança e pelo anel de formatura da Universidade deNebraska. Fred tentou recuperar a lucidez. Não era hora para experiências paranormais. Naquelemomento tão esperado, ele queria sensualidade e um controle muscular perfeito.

Fred tentava não pensar nas suas preocupações e na culpa, a fim de melhor aproveitar aquelemomento de prazer físico. Inspirou profundamente. O vestiário cheirava a gardênias velhas e amofo. As roupas estavam úmidas e cheias de fungos. Fred Dove sentiu um certo abafamento,mas não em seu órgão.

Sem usar as mãos, Edie apoiou Fred contra a parede. Ele largou seu cabelo e segurou notrinco. Seu rosto roçou no vestido de casamento da senhora Torres.

De repente, começou a lembrar o que acontecera da última vez em que fizeram sexo, quandoSnapper os interrompera e os amarrara. Para evitar que isso acontecesse, Fred segurou firme notrinco.

Lá de baixo, Edie tornou a perguntar: “O senhor Reedy vai trazer o cheque?”.“Nã, não. O cheque vem diretamente de Omaha.”“Merda.”

Fred Dove não tinha certeza se ouvira Edie dizer o palavrão ou se sentira seus lábios no seuórgão. O importante é que ela não parara de chupá-lo.

Quando Augustine chegou na caminhonete, Bonnie e Skink não estavam lá. Encontrou-os aalgumas quadras dali, atrás de uma casa destruída pelo furacão. Skink estava debruçado sobre apiscina, retirando sapos marrons da água rançosa e colocando-os nos bolsos. Bonnie procuravamanter os mosquitos longe do rosto.

Augustine contou-lhes sobre a entrevista com a família proprietária da ex-placa do jipeCherokee. Skink indagou: “E onde é a rua Calusa?”.

“Eles fizeram um mapa para nós.”“Vamos agora?”, perguntou Bonnie.“Amanhã”, sugeriu Skink. “Precisamos da luz do dia.”Augustine e Skink decidiram passar a noite nos arredores. Encontraram um terreno baldio e

fizeram uma fogueira, aproveitando o entulho. Perto dali, já havia outra fogueira, pertencente atrabalhadores provenientes de Ohio. Dois deles se aproximaram, querendo crack. Augustinemandou-os embora com um leve aceno com o revólver. Skink desapareceu com os sapos atrás deumas palmeiras.

Bonnie disse: “O que é DMT?”.“É uma droga usada por banqueiros e financistas. Era usada antigamente.”“Skink explicou que seca a seiva do sapo e fuma. Disse que é um produto químico da

qualidade do DMT.”“Ah, prefiro continuar na cerveja.” Augustine pegou dois sacos de dormir da cabine da

caminhonete. Sacudiu-os e esticou-os perto da fogueira.Bonnie disse: “Sinto muito por ontem à noite”.“Pare de dizer isso.” Como se fosse o pior erro da vida dela.“Não sei o que há de errado comigo.”Augustine jogou alguns galhos secos no fogo. “Não há nada de errado com você, Bonnie.

Você é tão normal que assusta.” Ao dizer isso, sentou-se com as pernas cruzadas num saco dedormir.

“Vem cá”, chamou ele. Quando colocou o braço em volta de seus ombros, ela sentiu-secompletamente calma e segura. Ele sugeriu: “Posso levá-la ao aeroporto”.

“Não.”“Porque, depois de hoje à noite, você vai estar muito mais envolvida com essa história toda.”“Mas é o que desejo. Max teve sua aventura, quero ter a minha.”Ouviram, então, um uivo agudo, vindo das palmeiras. O grito foi seguido de uma risada

assustadora.Loucura causada pela seiva do sapo, pensou Augustine. Bonnie aninhou-se em seus braços,

falando em tom firme: “Não quero deixar vocês agora. De jeito nenhum”.Augustine segurou seu queixo. “Esse homem não é uma pessoa comum. Ele colocou uma

coleira de choque em seu marido e se droga com seiva de sapo. Ele já fez coisas queprovavelmente fariam você ficar arrepiada. Talvez até tenha matado pessoas.”

“Pelo menos ele acredita em alguma coisa.”“Meu Deus, Bonnie.”“Então por que você está com ele? Se ele é tão perigoso e tão maluco...”“Quem disse que ele é maluco?”“Responda à pergunta, senhor Herrera.”

Augustine piscou o olho, dizendo: “Bem, não sou tão normal, tampouco. Acho que isso éóbvio”.

Bonnie Lamb aconchegou-se mais a ele. Perguntou-se por que gostava tanto que esses doishomens fossem tão imprevisíveis e impulsivos — justamente o contrário de seu marido. Max eraextremamente confiável, mas não era nem profundo nem enigmático. Cinco minutos com Max, evocê já o conhecia inteiramente.

“Suponho que esteja me revoltando. Contra o quê, não sei. É minha primeira vez.”Augustine insinuou que ela estava encantada com o malabarismo dos crânios. “Que mulher

conseguiria resistir a algo tão charmoso?”, brincou. Bonnie riu.“Falando sério, há uma grande diferença entre a sua situação e a minha. Você tem um marido

e uma vida. Eu não tenho nada mais para fazer e nada para perder.”“E os animais de seu tio?”“Ah, já devem estar longe. Mas estou um pouco chateado por causa do búfalo.”Bonnie ponderou que não fazia sentido tentarem analisar suas motivações. Afinal, eram

ambos adultos inteligentes, racionais e maduros. Certamente, sabiam o que estavam fazendo,ainda que não soubessem exatamente o porquê.

Ouviram outro grito vindo das palmeiras.Bonnie olhou naquela direção e comentou: “Acho que tanto ele pode ficar conosco como

partir sem dizer adeus”.“Exatamente.” Augustine tomou coragem e perguntou-lhe, à queima-roupa, se amava

verdadeiramente seu marido.Ela hesitou e respondeu: “Não sei”.Sem aviso prévio, Skink chegou correndo, sem camisa. Estava febril e coberto de suor. Seu

olho bom brilhava. O olho de vidro estava torto, deixando entrever parte da cavidade ocular.Bonnie aproximou-se dele.

“Maldito sapo. A seiva era de má qualidade.”Augustine tinha dúvidas sobre a técnica de Skink para remover a seiva e fumá-la. A julgar

pelo estado em que se encontrava, era provável que tivesse feito algo errado, em termos defarmacologia.

“Sente-se aqui ao pé do fogo”, convidou Bonnie.Skink estendeu as mãos. Estavam cheias de ovos, com a casca áspera e manchada. Augustine

contou doze.“Temos jantar”, falou Skink, exultante.“O que são?”“Ovos, meu filho.”“Isso eu sei. Mas ovos de que tipo de ave?”“Ah, não tenho a menor ideia.” Skink foi até o acampamento dos trabalhadores e voltou com

uma frigideira e um vidro de ketchup.Apesar de sua origem desconhecida, os ovos mexidos tinham ótimo sabor. Augustine ficou

impressionado com a voracidade de Bonnie.Quando terminaram de comer, Skink sugeriu que era hora de dormir. “Temos muito o que

fazer amanhã. Vocês ficam nos sacos de dormir e eu vou para a clareira.”Augustine devolveu a frigideira aos trabalhadores, que estavam bêbados, mas eram

inofensivos. Bonnie e ele ficaram observando o fogo, sentados um ao lado do outro, sem nadadizer. Quando o primeiro enxame de mosquitos atacou, eles entraram num dos sacos de dormir,

fechando o zíper sobre suas cabeças. Bonnie comentou que estavam parecendo duas tartarugaspartilhando o mesmo casco.

Abraçaram-se na escuridão, rindo como crianças. Quando Bonnie se recuperou do ataque deriso, disse: “Meu Deus, está tão quente aqui”.

“Estamos em agosto na Flórida.”“Bem, eu vou tirar a roupa então.”“Não, não vai.”“Vou sim. E você vai me ajudar.”“Bonnie, nós deveríamos dormir. Teremos um dia comprido amanhã.”“Preciso de uma noite também comprida pra não pensar no dia de amanhã.” Ela se enroscou

toda ao tentar tirar a blusa. “Me dê uma mãozinha, cavalheiro.”Augustine ajudou-a. Eles eram, afinal, dois adultos racionais, maduros e inteligentes.

19

Não é que a morte de Tony Torres não tivesse chamado a atenção dos detetives doDepartamento de Homicídios. Afinal, crucificações eram raras, mesmo em Miami. O problema éque a maioria das investigações criminais havia sido suspensa no período de loucura que seseguiu ao furacão. Com o caos nas estradas, a maior parte dos policiais estava ocupada com otrânsito, perseguindo saqueadores ou escoltando comboios de equipes de resgate. No caso docadáver número 92-312 (era assim que Tony Torres fora estranhamente catalogado), nenhumamigo ou parente aparecera para identificá-lo, daí a falta de urgência nas investigações. O fatoindicava que ninguém estivera procurando por ele e que ninguém se importara muito com suamorte.

Dois dias depois de sua morte, um técnico em impressões digitais passara um fax aonecrotério, informando que já poderiam dar um nome ao cadáver: Antonio Rodrigo Guevara-Torres, quarenta e cinco anos. As impressões digitais do cadáver estavam no arquivo porque, nopassado, ele havia passado trinta e sete cheques sem fundo. Fora processado porque um doscheques fora preenchido em nome da Associação de Benevolência da Polícia. Para evitar aprisão, Tony Torres se confessara culpado e prometera reembolsar todos os beneficiários doscheques. A promessa fora esquecida quando começou a trabalhar como vendedor assistentenuma empresa de trailers chamada A-Plus Affordable Homes.

Como o arquivo era muito antigo, o endereço e o telefone de Tony Torres não estavamatualizados. As páginas amarelas não registravam o telefone da empresa de trailers. O detetiveencarregado do caso desistiu depois de três telefonemas frustrados. O tenente mandou quedeixasse a investigação de lado e fosse ajudar com o trânsito em Cutler Ridge. Lá, ele estacionouo carro no cruzamento da Eureka Drive e da avenida 117, a fim de bloquear o tráfego para que acomitiva presidencial pudesse passar.

O jovem detetive não pensou mais no caso do estelionatário vendedor de trailers até querecebeu o telefonema de uma mulher dizendo-se sua esposa.

Avila telefonou para o serviço de acompanhantes de nome A Escolha dos Cavalheiros epediu para falar com Morganna. Ela atendeu o telefone, dizendo: “Não uso esse nome há seismeses. Meu nome de guerra agora é Jasmine”.

“Ok, Jasmine.”“Eu te conheço, querido?”Avila relembrou-lhe a tórrida noite no motel na rua West Flagler.“Puxa, você poderia ser um dos noventa caras com quem estive naquele motel.”“Você estava com uma amiga. Daphne, Diane ou algo assim. Ela tinha cabelos vermelhos e

uma tatuagem no seio esquerdo.”Jasmine perguntou: “Que tipo de tatuagem?”.“Acho que era um balão ou algo parecido.”“Não dá para saber quem era, não.”

Avila continuou tentando. “Você certamente se lembrará do cara com quem estava. Um tipofeio, amedrontador, com o maxilar torto.”

“Ah, talvez o Pepe, que tem aquelas queimaduras na cara.”“Não, não era o Pepe. O nome dele é Snapper. Tem um maxilar completamente fora do lugar.

Você deve se lembrar dele. Era uma festa antes que ele fosse para a cadeia.”“Não, não consigo me lembrar de nada. O que você vai fazer hoje à noite, meu chuchu? Está

precisando de companhia?”Que mundo frio e miserável, pensou Avila. Não se podia mais contar com favores de amigos.

Todo mundo só estava interessado no dinheiro.“Me encontre no Cisco’s”, falou laconicamente. “Às nove horas, no bar.”“Ah, isso é que é garoto.”“Você ainda é loura?”“Se você quiser.”Avila chegou uns vinte minutos atrasado. Tomara um longo banho quente, depois de outra

incursão à caixa do tesouro enterrada no quintal. Os pontos úmidos na sua virilha ainda oincomodavam quando chegou.

Jasmine estava sentada no bar, tomando uma garrafa de Perrier. Usava uma minissaiaescarlate e uma peruca exagerada. Seu perfume tinha cheiro de frutas. Avila sentou-se comcuidado e pediu uma cerveja. Colocou uma nota de cem dólares na palma da mão de Jasmine.

Sorrindo, ela disse: “É claro que me lembro de você”.“E do Snapper?”“Você guincha.”“Como?”“Você guincha quando faz sexo. Parece um ratinho feliz.”Avila enrubesceu e mergulhou no copo de cerveja.“Não precisa ficar com vergonha.” Jasmine segurou seu pulso esquerdo, examinando as

contas de sua pulseira de vodu. “Lembro-me disto também. É um negócio de feitiçaria, não é?”Avila puxou o braço. “Daphne tem tido contato com Snapper ultimamente?”“Ela não se chama mais Daphne. É Bridget, agora.” Jasmine tirou um maço de Marlboro da

bolsa. “Para dizer a verdade, ela passou a noite do furacão com ele, num motel em Broward. Eleestava bêbado feito um gambá.”

Avila não se ofereceu para acender o cigarro. Perguntou apenas: “Quando foi a última vezque ela o viu?”.

“Ontem mesmo.”“Ontem?”Era bom demais para ser verdade. Obrigado, Chango, todo-poderoso. Avila estava mais uma

vez impressionado com o poder de seu espírito protetor.Jasmine continuou falando. “Esse Snapper liga o tempo todo, desde que saiu da cadeia. Ela

realmente conseguiu segurá-lo. Por falar nisso, a tatuagem dela não é um balão, é um pirulito.Mas você tinha razão quanto a ser no seio esquerdo.”

“Então, onde está Snapper?”“Querido, como é que vou saber? Ele é propriedade de Daphne.”“Você quer dizer Bridget.”Jasmine fez uma reverência. “Touché”, disse sorrindo.Avila tirou outra nota de cem dólares do bolso, colocando-a embaixo da garrafa de Perrier.

“Ele está num motel?”

“Numa casa, acho.”“Qual o endereço?”“Tenho que perguntar a ela.”“Precisa de uma ficha para o telefone?”“Não, ela está fora hoje à noite. Deixe-me seu telefone que entro em contato amanhã.”Avila escreveu seu número na nota de cem dólares. Jasmine colocou-a na bolsa.“Estou com fome”, disse ela.“Eu não estou.”“Qual é o problema?” Deu-lhe uma apertadela no joelho. “Ah, já sei por que está chateado.”“Você não sabe merda nenhuma.”“Sei sim. Ficou zangado porque comentei sobre seus guinchos na cama.”Avila levantou-se rapidamente e pediu a conta. Jasmine puxou-o de volta para o banco.

Pressionando os seios contra o braço dele, sussurrou: “Ei, tudo bem. Achei os guinchos umagracinha”.

“Eu não guincho.”“Tem razão, tem toda a razão. Vamos lá. Vamos comer um filé.”

Edie Marsh e Snapper tinham tido uma discussão acalorada sobre a garota de programa. Ediedissera que não era hora de trepar e sim de ensaiar a encenação de marido e mulher para o chefede Fred Dove. Snapper dissera-lhe para parar de encher ou então calar a boca. Depois de assistira um quadro sobre prostitutas provocantes no programa Oprah, Snapper começara a pensar emlamber a tatuagem no seio de Daphne.

Daphne ficou encantada com o telefonema de Snapper. O negócio de acompanhantes andavameio fraco depois do furacão. Pegou um táxi para a casa de Tony Torres, mas demorou bastante,pois o trânsito estava confuso e o motorista se perdera na escuridão.

Não havia porta, de forma que Bridget entrou sem se anunciar. Edie e Snapper estavam seolhando, tensos, à luz de velas.

“Olá, novamente”, disse Bridget para Edie, que apenas abanou a cabeça, irritada.Bridget correu até a espreguiçadeira, sentando-se no colo de Snapper. Começou a beijar-lhe o

pescoço (beijos na boca eram difíceis devido ao maxilar torto de Snapper).Snapper falou: “Você está sentada em cima do meu revólver”.Bridget rebolou um pouco para que ele pudesse retirar a arma. “O que aconteceu com sua

perna?”“Pergunte à senhorita Putinha Psicótica.”Bridget olhou para Edie, que explicou, sem qualquer remorso: “Ele me bateu, então bati

nele”.“Com um maldito pé de cabra.”“Nossa”, exclamou a prostituta.Snapper mandou que Edie fosse passear com os cachorros por umas duas horas.Bridget interveio, animada: “Você tem cachorros? Onde? Adoro cachorros”.“Vamos, tire a roupa”, interrompeu Snapper. “Cadê a vodca que eu pedi?”“Todas as lojas de bebidas estavam fechadas.”“Maldição.”Edie Marsh disse: “Escute, Bridget, não tenho nada pessoal contra você, mas temos um

encontro muito importante amanhã...”.

“Espere um momento”, disse Snapper virando-se para Bridget. “Você disse que não temvodca? Ouvi direito?”

“Querido, o furacão, lembra? Todas as lojas foram destruídas ou fechadas.”“Lorota sua. Você nem tentou.”“Acalme-se. Não precisamos de bebida para nos divertirmos.”Edie Marsh tentou fazê-la compreender a situação mais uma vez. “Tudo que estou pedindo é

que você parta pela manhã, ok? Um homem importante vem aqui e não entenderia sua presença.”“Não há problema, querida.”“Nada pessoal, viu?”Bridget riu: “Não que eu estivesse querendo muito ficar nesta espelunca”.Edie comentou: “Você deveria ver os banheiros. Há enxames de mosquitos sobre as

privadas”.Bridget fez uma careta de nojo. Snapper disse: “Edie, vou contar até dez. Mexa essa bunda e

vá caminhar”.Donald e Maria começaram a ganir no quintal.“São seus cachorrinhos?” Bridget saiu do colo de Snapper e foi até o buraco onde antes havia

portas corrediças de vidro. “Eles parecem adoráveis. De que raça são?”, perguntou, tentando vê-los na escuridão.

Snapper aproximou-se. “São de uma raça boa para fazer adubo.”“Adubo?”“Quando eu acabar com eles, só vão servir para adubo.” Snapper levantou a pistola e deu

dois tiros em direção aos ganidos. Bridget deu um gritinho, colocando as mãos nos ouvidos. EdieMarsh veio por trás e deu um chute na perna machucada de Snapper. Ele caiu, soltando umganido de dor.

Lá fora, o barulho dos cachorros aumentou ainda mais. Donald e Maria estavam histéricos demedo. Edie correu para desemaranhar suas correntes antes que se enforcassem acidentalmente.Bridget ajoelhou-se ao lado de Snapper e o recriminou por ser tão malvado.

Na visão de Levon Stichler, ele não tinha nada a perder. O furacão levara praticamente todasas suas coisas, inclusive a urna contendo as cinzas de sua recém-falecida mulher. A vida na qualinvestira todas as suas economias de militar aposentado fora reduzida a vidros partidos, metaisretorcidos e algumas bugigangas. Horas de procura haviam rendido apenas uma caixa comalguns pertences encharcados. Os vizinhos de Levon Stichler estavam na mesma situação. Emvinte e quatro horas, o choque e o desespero haviam se transformado numa raiva profunda.Alguém teria que pagar. E é claro que esse alguém era o gordo filho da puta que vendera ostrailers para todas aquelas pessoas de boa-fé, assegurando-lhes que eram certificados pelogoverno e que resistiriam a qualquer tipo de vento.

Levon Stichler vira Tony Torres no estacionamento, na manhã seguinte ao furacão. Mas elefugira. Levon, encolerizado, continuara procurando seus pertences por entre os escombros dofuracão, até que, depois de alguns dias, operários da Prefeitura apareceram com máquinas paralimpar o lugar. O velho chegou a pensar em voltar para Saint Paul, onde morava sua única filha,mas a lembrança dos longos invernos e a perspectiva de partilhar acomodações com seis criançashiperativas acabaram por minar sua disposição.

Não iria para o norte. Levon Stichler concluiu que sua vida estava oficialmente arruinada eque havia um único culpado pela tragédia. Não teria paz enquanto Tony Torres não estivessemorto. Matar o patife talvez até o transformasse em herói, pelo menos na visão de seus vizinhos.

Chegou a imaginar a simpatia do público e as manchetes nos jornais. Depois, a cadeia não seriaum lugar tão terrível. De qualquer modo, seria mais segura que o maldito trailer. Mas LevonStichler não contou seus planos a ninguém. O furacão não o enlouquecera, mas ele pensou emalegar insanidade em sua defesa. Outra possibilidade seria a doença de Alzheimer. Mas, paraisso, teria que planejar um homicídio bastante excêntrico.

Tão logo traçou seu plano, telefonou para a PreFab Luxury, Inc. O telefone tocou váriasvezes seguidas, fazendo o velho pensar que talvez o furacão tivesse levado a empresa à falência.Na verdade, PreFab estava tendo uma semana de trabalho intensivo, devido às grandes comprasda Agência Federal de Gerenciamento de Emergências. O governo americano estava distribuindotrailers para os desabrigados do furacão. Muitas das vítimas que haviam vivido em trailers antesvoltariam a fazê-lo. Nem a PreFab nem o governo americano acharam necessário informar apopulação sobre a ironia da situação.

Finalmente, uma telefonista atendeu à chamada. Informou Levon que estavam todos muitoocupados. Levon pediu para falar com o senhor Torres. A mulher disse que Tony Torres estavade licença e que ninguém sabia quando retornaria. Levon percebeu que não era o primeiro clienteinsatisfeito a tentar contactar Tony Torres. A recepcionista recusou-se a informar o número dotelefone residencial do vendedor.

Levon arrancou a página de sua lista telefônica encharcada com os nomes e endereços detodos os Antonio Torres, na grande Miami. Depois entrou no carro, colocou gasolina e deu inícioà caça.

No primeiro dia, Levon já eliminou, dentre os Antonio Torres, três mecânicos, um instrutorde pesca submarina, um cirurgião de tórax, um quiromante, dois advogados e um professoruniversitário. Nenhum era o salafrário que procurava.

No segundo dia, Levon continuou a procura: um corretor, um ajudante de creche, umpescador de camarões, um policial, dois eletricistas, um optometrista e um verdureiro. Um dosAntonio Torres tentou vender-lhe um par de canos de botas. Outro ameaçou decapitá-lo comuma enxada.

No terceiro dia de busca, Levon finalmente foi parar na rua Calusa, número 15 600. A essaaltura, já tinha visto devastação suficiente para não se impressionar com o estado da casa. Pelomenos tinha paredes, o que era melhor do que o estado do seu trailer.

Uma moça bonita, com traços de norte-americana, recebeu-o na soleira da porta. Usava jeansfolgados e uma camiseta comprida. Levon notou que ela estava descalça e — a não ser que seusolhos de setenta e um anos de idade estivessem enganados — não usava sutiã. As unhas dos pésestavam pintadas de vermelho.

Levon perguntou: “Aqui é a residência do senhor Antonio Torres?”.A moça disse que sim.“Antonio Torres, o vendedor?”“É isso mesmo.” A mulher estendeu-lhe a mão. “Sou a senhora Torres. Vamos entrar.

Estávamos esperando o senhor.”Levon disse, sobressaltado: “O quê?”.Acompanhou a mulher descalça e sem sutiã para dentro da casa, que estava em pedaços.“Onde está seu marido?”“No quarto. O senhor Dove está a caminho?”“Não sei”, respondeu Levon, pensando: Quem diabos é esse senhor Dove?“Escute, senhora Torres...”

“Por favor, chame-me de Neria.” A mulher então pediu licença para ir ver o gerador queestava na garagem. Ao voltar à cozinha, ligou a cafeteira elétrica, fazendo três xícaras de café.

Levon agradeceu-lhe, tenso, e tomou um gole. Essa mulher seria um problema. Precisavaencontrar Tony Torres sozinho.

A mulher colocou duas colheres de açúcar em seu café. “Esta é sua primeira visita do dia?”“Ah, é claro”, respondeu Levon, profundamente intrigado. Como nunca assassinara ninguém

antes, sentia-se muito nervoso. Olhou tantas vezes para o relógio que a mulher notou e disse:“Tony está no banho, mas vai sair logo”.

“Está bem.”“O café está bom? Desculpe, mas não temos leite.”Levon apenas disse: “Está ótimo”.Ela parecia ser uma pessoa bastante simpática. O que estava fazendo com um patife como

Tony Torres?Levon ouviu barulhos abafados vindos do outro quarto e duas vozes: uma risada gutural de

homem e risadinhas agudas de uma mulher. Colocou a mão no bolso direito, devagar. A mãocontraiu-se ao redor do cano da arma.

“Querido?”, a mulher descalça gritou. “O senhor Reedy está esperando.”Reedy? A determinação férrea de Levon começou a virar confusão mental. Algo estava

errado com esse Tony Torres. Não obstante, havia visto a placa dourada com letras em alto-relevo de Vendedor do Ano na parede. Tinha que ser o mesmo patife.

Levon sabia que, se não agisse rápido, perderia para sempre a oportunidade de vingar-se.Retirou a arma do bolso e levantou-a, ameaçadoramente, para que a mulher a visse.

“É melhor você sair”, ele disse.Calmamente, ela colocou a xícara de café no balcão. Franziu o cenho mais intrigada do que

apreensiva. “O que é isso?”, perguntou, apontando para o objeto que Levon empunhava.“O que lhe parece?”“Parece um parafuso gigante.”“É um verrumão, senhora Torres. Um verrumão que deveria ter feito o meu trailer manter-se

em pé durante o furacão.”Levon havia imaginado o crime mais de cem vezes, mais recentemente enquanto afiava a

ponta do verrumão. A cara gorda de Tony seria um alvo fácil. Qualquer uma de suas narinascavernosas e cabeludas poderia receber a ponta de aço da arma, a qual (segundo o cálculo deLevon) perfuraria a cavidade nasal, atingindo o cérebro.

A mulher descalça disse: “Desculpe-me, mas o senhor é completamente maluco”.Antes que Levon Stichler pudesse responder, um homem alto apareceu na soleira da porta da

cozinha. Levon empunhou o verrumão como uma lança e atacou. A mulher deu um grito deadvertência e o homem atirou-se no chão de lajes. O verrumão perfurou a porta do armário eficou preso. Com ambas as mãos, Levon não conseguiu retirá-lo. Histérico, olhou para o homemno chão.

“Oh, merda. Você não é ele.” Afrouxou suas mãos do verrumão. “Você não é o cara que mevendeu o trailer.”

Uma outra mulher — seminua e meio selvagem — saiu do quarto. Ela e a mulher descalçaajudaram Snapper a se levantar.

Num tom acusatório, Levon disse: “Você não é Tony Torres”.“Claro que não”, respondeu Snapper.

Edie Marsh colocou-se entre os dois homens. “Querido, o senhor Reedy aqui écompletamente maluco.”

“Pior que maluco”, acrescentou Bridget.“Meu nome não é Reedy”, disse Levon.Edie aproximou-se dele. “Espere um segundo. O senhor não trabalha para a Midwest

Casualty?”Levon Stichler, que naquela altura havia percebido os olhos bestiais de Snapper e seu maxilar

deformado, sentiu seus ossos se transformarem em pó. “Onde está o senhor Torres?”, perguntoucom bem menos coragem.

Edie deu um suspiro de enfado. “Incrível! Ele não é o Reedy. Você pode acreditar nisso?”Snapper aproximou-se do homem até ficar bem perto de seu nariz. “Você não é da

companhia de seguros? Não é o chefe de Dove?”Avaliando mal a situação, Levon balançou a cabeça negativa e enfaticamente. Edie Marsh

saiu do caminho para que Snapper pudesse nocauteá-lo.

Eles sentaram-se nos sacos de dormir já enrolados e esperaram que o ex-governadoracordasse.

Augustine presumiu, como os homens fazem depois de terem uma relação sexual gloriosa,que deveria pedir desculpas.

Bonnie disse: “Desculpas pelo quê? A ideia foi minha”.“Não, não. Você deveria dizer que foi um grande engano. Que você se deixou levar. Que não

sabe o que lhe deu. Que agora se sente barata, suja e usada e quer correr de volta para seumarido.”

“Para falar a verdade, estou me sentindo maravilhosa.”“Eu também.” Augustine beijou-a. “Desculpe-me, mas recebi educação católica. Não posso

achar que me diverti sem sentir culpa depois.”“Ah, você está falando de culpa. Claro que sinto culpa também. Aliás, você também tem

culpa, uma vez que se deixou seduzir por uma mulher recém-casada.” Levantou-se e abriu osbraços. “No entanto, senhor Herrera, existe uma grande diferença entre culpa e remorso. Nãosinto remorso.”

Augustine disse: “Nem eu. E me sinto culpado por não sentir”.Bonnie simulou um grito de guerra e subiu nas costas dele. Caíram no chão, com os corpos

entrelaçados.Skink saiu da clareira sorrindo e gritou: “Animais. Não passam de animais no cio e em

público”.Bonnie e Augustine se levantaram e se limparam das folhas e da grama. O ex-governador

estava uma figura. Ramos e folhas estavam grudados em seus cabelos emaranhados. Fios de teiade aranha flutuavam em sua barba.

Ele marchou, melodramaticamente, em direção à fogueira. “Fornicadores. Deveriam seenvergonhar.”

Augustine piscou o olho para Bonnie. “Não havia pensado nisso: vergonha.”“É, essa é de matar.”O ex-governador anunciou que tinha uma saborosa surpresa para o café da manhã. “Suas

brincadeiras carnais me acordaram, ontem à noite. Então, fui caçar na estrada.”Estendeu as mãos, mostrando dois pequenos animais cujas peles haviam sido há pouco

removidas. “Quem quer coelho e quem quer esquilo?”

Depois do desjejum, apagaram o fogo e colocaram seus pertences na caminhonete. Valendo-se do mapa que a prestativa Margo fizera, não tiveram qualquer dificuldade para achar a ruaCalusa. O jipe preto Cherokee estava estacionado em frente a uma casa quase totalmentedestruída. Tinha chamativos protetores de lama. Skink disse a Augustine que continuassedirigindo. Deixaram o carro bem longe e voltaram a pé.

Bonnie Lamb observou, com apreensão, que Augustine não trouxera nem a pistola nem orifle de dardos com tranquilizantes. “Trata-se apenas de um estudo de terreno”, explicou ele.

Em vez de entrarem na rua Calusa, enveredaram por uma rua paralela. Quando seaproximaram da casa onde estava o jipe, atravessaram um quintal e entraram numa casaabandonada, situada bem em frente à casa de número 15 600. De uma janela sem vidros de umquarto da frente tinham uma visão perfeita do que se passava na casa em frente e na garagem.Além do jipe Cherokee, havia mais dois carros estacionados na entrada.

Margo e David estavam certos. A placa roubada havia sido retirada do jipe. Skink comentou:“Acho que o que aconteceu foi o seguinte: depois que o cara deu a surra em Brenda, ele tirou aplaca do jipe e a jogou fora. Provavelmente, colocou a placa daquele Chevrolet ali no jipe”.

O carro estacionado mais perto da garagem era um modelo antigo de Chevrolet Caprice eestava sem placa. O outro carro era um Oldsmobile velho e enferrujado, com a capota de vinilrasgada e sem calotas. Augustine sugeriu que seria útil saber quantas pessoas estavam na casa.Skink concordou.

Bonnie tentou adivinhar qual seria o próximo passo na aventura. Chamar a polícia certamentenão fazia parte dos planos de Skink. Olhando ao redor, sentiu uma certa melancolia. O quartoonde estavam fora ocupado por um bebê. Alguns brinquedos coloridos ainda estavam espalhadospelo chão. Um ursinho de pelúcia molhado jazia numa poça de água. Nas paredes, havia quadrosdos personagens mais populares de Walt Disney: Mickey, o pato Donald, a Branca de Neve.Estranhamente, o ambiente a fez pensar em sua lua de mel com Max. A primeira coisa que elecomprara na Disney fora um boné do Mickey.

Deveria ter percebido logo no início. Mas Deus o abençoe, talvez ele não possa mesmo serdiferente do que é.

Levantou-se para examinar o berço do bebê. Havia um móbile de borboletas quebrado, presoà grade. O colchão tinha manchas de mofo esverdeadas. Uma fileira de formigas vermelhascaminhava pelo cobertor rosa. Bonnie se perguntou o que teria acontecido ao bebê e a seus pais.Certamente, haviam escapado antes que o teto desabasse.

Augustine chamou-a de volta para a janela. Com o coração acelerado, ela ajoelhou-se entreos dois homens. O que estou fazendo? Onde esse negócio vai dar?, pensou ela.

Um outro carro, branco, estacionou em frente à casa de número 15 600.Um homem desceu. Era ossudo e tinha um ar clerical. Os cabelos eram grisalhos. Usava uma

jaqueta impermeável marrom e calças escuras, largas. Parecia-se com o senhorio de Bonnie emChicago. Qual era mesmo o nome dele? Sua mulher dava aulas de piano. Mas que diabo de nometinha?, pensou Bonnie.

Parado ao lado do carro, o homem colocou óculos para ler. Olhou um pedaço de papel edepois o número inscrito na parede da casa. Balançou a cabeça. Tirou os óculos e colocou-os nobolso da jaqueta. Apalpou o bolso direito, como se estivesse verificando alguma coisa.

Bonnie pensou que estava terrivelmente quente para se usar casaco. É verão em Miami.Como alguém pode estar com frio?

“Quem será esse homem?”, perguntou Augustine.“Construtor. Operário. Alguma coisa do gênero”, especulou Skink.

Augustine disse: “Acho que vi uma mulher lá dentro”.“É, eu também.” Skink coçou a barba, pensativo.Creedlow. Era esse o nome do senhorio, pensou Bonnie. James Creedlow. E o nome de sua

mulher, a professora de piano, era Regina. Afinal, não fazia tanto tempo assim que morara emChicago. Tinha que acabar se lembrando. James e Regina Creedlow, é claro.

Augustine perguntou: “E agora, capitão, o que faremos?”.Skink apoiou o queixo no peitoril da janela. “Vamos esperar.”Duas horas depois, o homem que chegara no carro branco não havia ainda saído da casa.

Bonnie estava começando a se preocupar.Então chegou outro carro.

20

Neria Torres não estava com a menor vontade de dirigir até o Brooklyn, em Nova York, atrásde seu marido ladrão.

“Por que você não vai de avião?”, sugeriu Celeste, a estudante de pós-graduação que estavadividindo as despesas de viagem com Neria e seu amante, o professor.

O nome do professor era Charles Gabler. Sua área de especialização era a parapsicologia.“Neria não anda de avião. Morre de medo”, ele disse.

“Ah, é?”, observou Celeste, enquanto cozinhava num fogão portátil instalado na partetraseira do furgão no qual viajavam. Suas receitas eram todas macrobióticas.

Neria interveio: “O problema não é só o avião. É o Brooklyn. Como poderia encontrar Tonynum lugar enorme como o Brooklyn?”.

“Eu sei como. Contrate um vidente”, disse Celeste.“Mas que ideia fantástica. Vamos chamar Kreskin”, ironizou Neria.O professor tentou acalmar os ânimos. “Não há necessidade de ser sarcástica, Neria.”“Há, sim.”Ela e o dr. Gabler estavam muito mal de finanças. Assim, quando estavam se preparando

para ir para Miami, ele sugeriu que Celeste os acompanhasse na viagem para dividir as despesas.Celeste desfrutava de um vultoso depósito em custódia, tinha um coração generoso e seios quedesafiavam a gravidade. Neria não tinha ilusões quanto às segundas intenções de Gabler, mastentou não pensar nisso. Afinal, Celeste tinha uma infinidade de cartões de crédito na bolsa.Perto de Salinas, no Kansas, Neria sentiu necessidade de informar a Gabler que ele estavaprestando demasiada atenção em Celeste. Seu comportamento era tão rude e descortês que nãopodia ser tolerado. Insinuou também que ter que pedir carona naquele calor seria bastantedesagradável. O professor pareceu levar a sério a advertência.

Na verdade, Neria estava se cansando do professor e de seus cristais azuis e vermelhos. Curamística merda nenhuma, pensou. Qualquer coisa fica mística se você está com a cuca cheia demaconha. E era esse o caso do professor, que passava o dia inteiro se drogando e nem sequerpartilhava a direção do furgão com Neria e Celeste.

“Eu preferiria ir para Miami”, disse Celeste medindo duas xícaras de arroz macrobiótico.“Gostaria de trabalhar num desses acampamentos de emergência. Cozinhar para os desabrigados,se necessário.”

O professor olhou para Neria com os olhos avermelhados e dilatados pela droga. “Querida,você é quem decide. Iremos para onde você quiser.”

“Puxa vida”, exclamou Neria, ironicamente. Celeste não percebeu a ironia, pois estavaimersa na receita. Neria informou que iria dar uma caminhada e saiu do furgão.

Haviam estacionado nos arredores de Atlanta, perto da rodovia 20, para discutir que caminhoseguir — Nova York ou Miami, norte ou sul. Neria Torres relembrou a desagradável conversatelefônica que tivera com a desconhecida que respondera ao telefone de Tony Torres. Quantomais pensava na conversa, mais dúvidas tinha. Não que o porco do seu marido não pudesse seapaixonar por uma loura de vinte e quatro anos. A questão é que era muito improvável que uma

moça dessa idade se interessasse por ele. E a alegada ida para o Brooklyn? Não era de formaalguma, um lugar propício para a venda de trailers. A história da desconhecida era, na verdade,pouco plausível.

Neria Torres tentara confirmar os detalhes da história com o vizinho xereta, Varga, mas seutelefone não estava funcionando. Ela tinha certeza de duas coisas: tinha direito à metade daindenização do seguro pela casa em Miami e seu marido estava tentando privá-la desse direito.

Em Nova York, seria muito difícil encontrá-lo. Pelo menos em Miami haveria pistas. Neriadecidiu que deveriam ir para lá, conforme haviam planejado.

Pensou num modo de aumentar as chances de encontrá-lo. Por que não fazer com que apolícia procurasse por ele também? Afinal de contas, eles eram os profissionais em buscas adesaparecidos. Contente com a ideia, Neria foi procurar uma cabine telefônica para contactar apolícia de Miami e registrar o desaparecimento de seu marido.

O policial de plantão registrou a informação e pediu-lhe que aguardasse na linha. Ela esperouvários minutos. Começou a ficar impaciente. Uma garoa fina começou a cair. Neria estavaficando irada com a espera. Pensou em Gabler com Celeste sozinhos no furgão. Perguntou-se seo professor estaria demonstrando pessoalmente seus poderes paranormais a Celeste, com osquais a havia conquistado.

No pescoço, Neria ainda trazia um colar de quartzo rosa que Gabler lhe dera para ajudar aatrair torrentes de amor incondicional. Idiota, pensou Neria. Naquele exato momento, talvezestivesse harmonizando os chacras de Celeste. Até conhecer o professor, Neria nunca tinhaouvido falar no termo oriental chacra. Celeste certamente sabia do que se tratava. Ela e Gablerpareciam ter o mesmo tipo de ondas mentais.

De repente, a garoa transformou-se em chuva forte. Sob os pés de Neria, o chão argilosovirou lama. Um homem com um jornal sobre a cabeça postou-se atrás dela. Estavadesconfortavelmente perto e começou a respirar, fazendo barulho, para mostrar que tinhaurgência em usar o telefone. Neria disse um palavrão e bateu o telefone.

Do outro lado da linha, o policial de plantão em Miami verificava, ainda, detalhadamente, alista de mortos não reclamados no necrotério para ver se encontrava o nome de Antonio Torres.Ficou surpreso ao descobrir que havia um morto com o mesmo nome, a mesma data denascimento e com uma marca estranha de relógio de pulso.

O policial imediatamente transferiu a ligação de Neria para a divisão de homicídios. Quandoo detetive atendeu o telefone, não havia mais ninguém do outro lado.

Max Lamb tomou um avião de Nova York para Guadalajara, com escala em San Diego. Aochegar, dormiu onze horas a fio. Acordou e telefonou para o hotel do aeroporto de Miami.Bonnie não estava registrada lá. Max acendeu um cigarro e caiu novamente no travesseiro.

Começou a imaginar que sua mulher estivesse traindo-o com um dos dois dementes queconhecera ou, o que era pior, com ambos. Não podia crer no que estava pensando. A BonnieBrooks que conhecera não era do tipo liberal — essa era uma de suas qualidades, do seu pontode vista. Estável e previsível — assim era Bonnie. Até onde sabia, o ato mais excêntrico quecometera fora atirar uma pizza velha da janela do apartamento em Manhattan. Em se tratando desexo, era quase antiquada. Não dormira com ele, por um bom tempo, enquanto eram namorados.

Ao pensar em todos esses aspectos, abandonou a ideia de que ela o estaria traindo. Ahabilidade que Max tinha para se iludir em assuntos do gênero era consequência direta de seuego inflado. O resultado era que Max não podia acreditar que Bonnie pudesse desejar outrohomem. Especialmente em se tratando daquele tipo de homens: um fora da lei e um maluco.

Impossível. Riu em silêncio ao relembrar o que pudera pensar. Provavelmente, ela queria apenaspuni-lo por seu comportamento na zona do furacão.

Já no chuveiro, Max Lamb concentrou-se, novamente, na tarefa que tinha pela frente:enfrentar o desregrado e moribundo Clyde Nottage Jr., presidente da Durham Gas Meat &Tobacco. As ordens de Max eram no sentido de procurar incutir um pouco de bom senso novelho. Tinha que fazê-lo ver as desastrosas consequências de sua decisão de retirar todos osanúncios dos jornais e revistas que noticiaram o relatório do INS. Antes de sair de Nova York,quatro vice-presidentes da Rodale & Burns haviam falado com ele sobre a importância de suamissão em Guadalajara. Se tivesse sucesso, Max sabia, sua carreira estaria garantida na Rodale &Burns. Seria um verdadeiro gol de placa se conseguisse fazer o velho mudar de ideia. Mas ClydeNottage era um velho rabugento e obstinado.

Um táxi levou Max até a Clínica Aragon, instalada num prédio de cimento recém-pintado emmeio a jardins suntuosos, num bairro residencial. O hall de entrada fora recentemente renovado,mas não havia sistema de ar-condicionado. Max afrouxou a gravata e sentou-se. Na mesinha devidro à sua frente, havia uma pilha de brochuras informativas em espanhol. Por curiosidade, Maxpegou uma. Na primeira página, via-se o desenho de um carneiro, com uma seta apontando parao meio de suas pernas traseiras.

Max recolocou a brochura na mesa. Estava com vontade de fumar, mas havia um aviso de“proibido fumar”. Uma gota de suor escorreu por sua face. Max enxugou-a com um lenço.

Um americano, de olhos azuis pálidos e com seus sessenta anos, usando um avental brancode médico, apareceu à porta. Apresentou-se como doutor Caulk, o médico do senhor Nottage.

“Quando poderei vê-lo?”, perguntou Max.“Dentro de alguns minutos. Ele está terminando o tratamento.”“Como está ele?”“De um modo geral, está melhor”, disse o médico, de maneira pouco esclarecedora.A conversa desviou-se para a clínica e para o câncer em geral. O médico perguntou se Max

era fumante.“Sou. Mas comecei faz pouco tempo.”“Começou?” O médico pareceu perplexo.“É uma longa história.”“O senhor Nottage fuma quatro maços por dia.”“Ouvi dizer que são seis maços.”“Ah, nós o fizemos diminuiu para quatro.” O médico deu a impressão de que havia um duelo

de vontades entre a clínica e o paciente.Max indagou sobre a natureza incomum do tratamento utilizado na clínica. O doutor Caulk

assumiu todo o mérito.“Realmente, descobrimos algo novo. Os resultados, até agora, têm sido surpreendentes.”“O que o fez pensar em utilizar... o senhor sabe...”“Sêmen de carneiro?” O doutor Caulk deu um sorriso. “Na verdade, é uma história bem

interessante.”Enquanto ouvia a história, Max se perguntava se a consternação que sentia era visível em seu

rosto. A terapia de Caulk era inteiramente baseada na mera observação de que os carneirostinham uma menor incidência de câncer no pulmão...

“Mas comparado com o quê?”, perguntou Max.O médico balançou o dedo para Max. “Essa pergunta parece daquelas que a Administração

de Drogas e Alimentos costuma fazer.” Entrelaçando as mãos e debruçando-se sobre Max,

acrescentou: “Suponho que você está curioso para saber como coletamos o sêmen”.“Não, não, absolutamente”, respondeu Max.Uma enfermeira gorda e alta apareceu, dizendo que o tratamento do senhor Nottage havia

acabado. O doutor Caulk conduziu Max ao quarto do velho.Ainda fora do quarto, o médico disse: “Vou deixá-los a sós. Ultimamente, ele tem andado

irritado comigo”.Max Lamb encontrara Clyde Nottage Jr. apenas uma vez, num campo de golfe em Raleigh. O

homem esquálido, de olhos fundos e inválido, deitado na cama, não se parecia em nada com apessoa robusta e impetuosa que conhecera.

“Que diabos você está fazendo aí, parado na porta?”, gritou o velho.Max entrou e puxou uma cadeira para perto da cama. Sentou-se, colocando a pasta sobre as

pernas.“Me dê um cigarro”, ordenou Nottage.Enquanto inseria o cigarro por entre os lábios descoloridos do velho, Max perguntou: “O

médico lhe avisou que eu viria? Como o senhor está se sentindo?”.Nottage ignorou-o. Segurou o cigarro e olhou para ele, cheio de pesar. “O que eles dizem é

tudo verdade. Sobre esse negócio do cigarro dar câncer. Sei que é a pura verdade. O malditogoverno também sabe.”

Max ficou sem graça. “Mas é uma escolha que as pessoas fazem”, disse.Nottage deu um riso obstruído pelo catarro tuberculoso. Com a mão trêmula, recolocou o

cigarro na boca. Max acendeu-o.O velho disse: “É, eles treinaram bem você. Olhe para mim, garoto. Você ouviu falar da

porra de carneiro?”.“Sim, ouvi.”“Tenho um tumor do tamanho de uma manga em meu pulmão e estou reduzido a tratamento

com porra de carneiro. É minha última esperança.”“O médico disse...”“Ah, que se foda o médico.” Nottage fez uma pausa para tragar o cigarro, de forma

desafiadora. “Você está aqui por causa dos anúncios, não é? A Rodale mandou você para tentarme fazer mudar de ideia.”

“Seu Nottage, o relatório do INS foi uma má notícia. Sem dúvida, muito má. Mas os jornais erevistas tinham que fazer seu trabalho e divulgar o relatório. Afinal, ele já tinha sido noticiadoem todas as estações de televisão.”

Clyde Nottage riu tanto que seu nariz começou a escorrer. Limpou-o com o braço branco edescarnado. “Meu Deus, você não entendeu nada. Ninguém entendeu.”

O tom jocoso do velho deu a Max uma falsa esperança.“Retirei os anúncios porque fiquei puto. Isso é verdade. Mas não foi porque publicaram o

relatório que fiquei zangado.”“Então por que foi?”Um pouco de cinza de cigarro do velho caiu nos lençóis. Ele tentou soprá-la, mas o riso o

havia exaurido. Seus pulmões chiaram com o esforço. Depois de recuperar o fôlego, disse:“Fiquei puto porque eles não passam de uns hipócritas. Contam ao mundo inteiro que vendemosveneno. Põem a notícia na primeira página. Mas ficam muito felizes em pegar nosso dinheiro epublicar anúncios sobre esse veneno. Não passam de uns hipócritas ambiciosos, e pode contar aeles que eu disse isso”.

Max deu-se conta de que a conversa estava enveredando para um terreno perigoso.Comentou, calmo: “São só negócios”.

“Pois é. São negócios que estou abandonando. Agora mesmo. Antes de deixar este mundomiserável.”

Max tentou pensar numa frase de efeito. Não lhe ocorreu nada para dizer. Seus intestinoscomeçaram a dar voltas.

Clyde Nottage apagou o cigarro num copo de plástico com suco de laranja. “A partir destamanhã, Durham Gas Meat & Tobacco não produz mais cigarros.”

“Não é possível”, exclamou Max. “Espere um pouco antes de tomar uma decisão tãoimportante. O senhor não está se sentindo bem para isso.”

“Estou morrendo, seu idiota. Três vezes ao dia, uma enfermeira parecida com o Pancho Villainjeta porra de carneiro na minha barriga. Claro que não posso estar me sentindo bem. Passe-meos lenços de papel.”

Max passou-lhe a caixa de lenços. Nottage puxou um e tossiu com força dentro dele.“Seu Nottage, peço-lhe, encarecidamente, que não faça nada agora.”“Mas que diabos. Já fiz. Dei o telefonema hoje de manhã.” Nottage cuspiu de novo. Abrindo

o lenço, examinou o conteúdo com olho clínico. “Da última vez que verifiquei, ainda tinha 51%das ações da companhia. Você desperdiçou sua viagem, rapaz. A decisão está tomada.”

Max, desesperado, começou a protestar. Nottage curvou-se para a frente, com as palmas dasmãos sobre a boca, e começou a tossir novamente, de forma violenta e espasmódica.

Max deu um pulo. “Devo chamar o doutor Caulk?”O velho olhou para as mãos, exclamando: “Que merda!”.“O senhor está bem?”, perguntou Max.“Considerando que estou segurando um pedaço do meu próprio pulmão...”“Meu Deus”, disse Max, virando-se para o outro lado.“Quem sabe esse pedaço terá algum valor no futuro”, brincou o velho. “Talvez vá parar no

museu Smithsonian.” E esticando o braço frágil, lançou o lenço sujo contra a parede. O pequenoembrulho gosmento grudou-se ao cimento.

Max saiu correndo do quarto. Alguns momentos depois, Clyde Nottage colocou a cabeça notravesseiro e morreu com a respiração ofegante. A expressão em seu rosto era de completotriunfo.

Dennis Reedy possuía um radar interno que detectava problemas iminentes. Seus instintoslegendários haviam economizado milhões de dólares para a Midwest Casualty. Em razão disso,seus serviços como supervisor de pedidos de indenização eram muito valorizados pela direção daempresa em Omaha. É claro que Reedy foi escolhido para liderar a equipe que trataria dasindenizações na zona do furacão. O sul da Flórida era conhecido pela abundância de tentativas degolpes para lesar companhias de seguros, e Reedy conhecia o território como a palma da mão.

Ao chegar na casa de número 15 600, na rua Calusa, seu radar interno disparou. O defeito domaxilar do homem era antigo. Mas havia um outro problema.

“Seu Torres”, disse Reedy, “como o senhor machucou sua perna?”Aborrecido com a pergunta, Snapper respondeu apenas: “Foi o furacão”.Reedy, tenso, virou-se para Fred Dove: “Você não mencionou esse problema”.“Não, porque eles não estão pedindo indenização por danos físicos causados pelo furacão.”Reedy teve que conter sua vontade de dar uma gargalhada na cara do jovem Fred Dove.

Antonio Torres era obviamente um aproveitador de companhias de seguros. Era deformado,

moroso e insociável — precisamente o tipo insatisfeito e revoltado que não teria qualquerescrúpulo em fraudar uma companhia de seguro. A ideia de pedir indenização pelo dano causadoa sua perna talvez não lhe tivesse ocorrido ainda, mas poderia vir a médio prazo.

Dennis Reedy perguntou-lhe como o acidente ocorrera. O senhor Torres olhou em direção àsenhora Torres, que estava em pé, ao lado de Fred Dove. Reedy detectou uma animosidadenervosa na expressão do marido.

O senhor Torres fez menção de falar, mas sua mulher interrompeu-o. “Tony foi atingido poruma viga de telhado.”

“Ah.”“Quando levava os cachorros para passear. Lá no final da rua.”Fred Dove deu um sorriso de alívio. Puxa, ela era esperta. E rápida.Reedy comentou: “Então o acidente não aconteceu aqui nesta casa?”.“Não”, respondeu Edie Marsh, “mas quisera eu que tivesse acontecido aqui. Então

saberíamos quem processar.”Todos riram, menos Snapper. Apenas olhou com desprezo para o emblema de um texugo

rosnando, bordado no blazer de Dennis Reedy.“Espero que o senhor não tenha se incomodado com minha pergunta sobre o acidente com

sua perna, mas é importante para nós conhecer todas as circunstâncias, para que não haja mal-entendidos mais tarde”, disse Reedy.

Edie Marsh abanou a cabeça, em sinal de entendimento e desejo de cooperar. “Pois é,conforme já contei ao seu Dove, na noite do furacão, pedi a Tony que não levasse os cachorrospara passear. Não vamos morrer se eles mijarem no tapete. Mas ele não quis me ouvir. Oscachorros são como filhos para ele. Donald e Maria são os nomes que ele lhes deu. São muitomimados. Não temos filhos, sabe?”

Edie sorriu para Snapper — um sorriso de esposa triste — e continuou tagarelando. “Tonyesperou que o olho do furacão passasse e os ventos diminuíssem e saiu com os cachorros. Depoisde algum tempo, os ventos recuperaram a força. E antes que Tony pudesse voltar, foi atingidopor uma viga de algum telhado. Estraçalhou o joelho.”

Reedy abanou a cabeça. “Senhor Torres, onde aconteceu o acidente?”“Lá no final da rua, como ela já disse.” Snapper falou num tom aborrecido. Detestava

responder a perguntas de burocratas como Reedy.“A senhora se lembra do endereço onde aconteceu o acidente?”“Ah, não. Com a chuva, era impossível saber bem de onde veio a viga.”“O senhor já foi a um médico?”“Não precisa. Estou bem.”“Acho que o senhor deveria consultar um médico”, insistiu Reedy.Fred Dove comentou: “Já sugeri a mesma coisa”.“Ah, mas o Tony é muito teimoso. Vamos ver o resto da casa?”, sugeriu Edie, pegando

Reedy pelo braço.Reedy gastou uma hora examinando a casa. Fred Dove estava uma pilha de nervos, mas Edie

manteve-se calma. Flertar com Reedy estava fora de questão. Obviamente, ele era umprofissional sério. Procurou mantê-lo longe do armário embutido, onde o maluco que atacaraSnapper com o verrumão encontrava-se amarrado e amordaçado.

Snapper, mal-humorado, continuou acampado em frente à televisão. Edie avisou-o de que agasolina do gerador estava quase acabando, mas ele não prestou a menor atenção. Donahue

estava mostrando uma reportagem sobre casamentos inter-raciais de lésbicas, e sua atençãoestava fixa no programa. Garotas brancas comendo garotas negras. Que horror, pensou ele.

Depois de inspecionar a casa, Dennis Reedy instalou-se na cozinha para fazer os cálculosfinais. Seus dedos moviam-se rapidamente na calculadora. Fred Dove e Edie se entreolharam,tentando antecipar o resultado. Reedy escreveu vários números num formulário e colocou-o nobalcão da cozinha. Edie deu uma olhada. Era um formulário detalhado que nunca tinha vistoantes.

Reedy disse: “Dove estimou a perda de conteúdo em sessenta e cinco mil dólares. Aestimativa está um pouco alta. Estou recomendando sessenta mil”. E apontando com a caneta,completou: “Isso faz com que a indenização total seja de duzentos e um mil dólares”.

Edie Marsh estava perplexa. “Conteúdo?” E então, compreendendo, disse: “Ah, claro”.Sentiu-se uma idiota completa. Presumira que a indenização pela casa incluía os pertences dosTorres. Fred Dove piscou o olho para ela, disfarçadamente.

“Cento e quarenta e um mil dólares pela casa e sessenta mil pelos pertences”, explicouDennis Reedy.

Edie comentou apenas: “Bom, acho que teremos que aceitar essa avaliação”. Saiu-se bem,fingindo-se desapontada.

“E gostaríamos que seu marido assinasse uma declaração desistindo de pedir indenizaçãopelo dano físico sofrido na perna. Do contrário, o processo pode ficar muito complicado. Nascircunstâncias, acho que os senhores não vão querer que o pagamento da indenização se atrasepor causa disso, não é?”

“Tony vai assinar a declaração”, disse Edie. “Me dê aqui o papel.”Foi até a sala e ajoelhou-se ao lado da espreguiçadeira de Snapper. “Está tudo arranjado”,

murmurou, colocando os papéis — o formulário de indenização e a declaração sobre o danofísico — no braço da cadeira. “Lembre-se de assinar Torres com S.”

Snapper mal tirou os olhos da televisão enquanto assinava os papéis. “Você acredita queexiste gente tão pervertida?”, comentou, apontando para a tela. “Me traz uma cerveja, ok?”

De volta à cozinha, Edie agradeceu a Dennis Reedy pelo tempo e empenho em resolver oassunto. “Quanto tempo leva para a gente receber o dinheiro?”

“Ah, uns dois dias. Vocês são os primeiros da lista.”“Isso é maravilhoso, seu Reedy.”Fred Dove acrescentou: “A senhora deve ter visto nossos comerciais. Somos a companhia de

seguros mais rápida quanto ao pagamento de indenizações”.Meu Deus, pensou Edie, Fred está exagerando no seu papel de funcionário dedicado. Mas, na

verdade, lembrava-se de ter ficado impressionada com um comercial da Midwest Casualty emque aparecia um funcionário entregando cheques a vítimas de uma enchente, de canoa.

“Tenho um computador no hotel e transmitimos os pedidos eletronicamente, para Omaha,todas as noites.”

Edie comentou: “Que incrível!”. Dentro de uns dois dias teria o cheque. Mas e os sessentamil extras?, pensou.

Tão logo Reedy saiu, Dove abraçou-a. Quando tentou beijá-la, ela o empurrou, dizendo:“Você sabia sobre os sessenta mil”.

“Mas queria lhe fazer uma surpresa.”“Ah, é?”“Juro por Deus. Sessenta mil extras para serem divididos entre você e eu.”“Fred, não se faça de bobo.”

“Você acha que eu tinha intenção de me apossar dos sessenta mil? Como, se o cheque vai serfeito em nome do senhor e da senhora Torres?”

Irritada, ela começou a dar passadas pela cozinha. “Sou tão estúpida.”Claro que a mobília e os pertences teriam que ser indenizados separado da casa, pensou ela,

recriminando-se por sua ingenuidade. Fred Dove acrescentou: “Você nunca tinha pedido umaindenização grande antes. Por isso não sabia desse detalhe”.

“Casa e conteúdo, separadamente.”“Exato.”Parou de caminhar e falou, baixando a voz: “Snapper nem olhou para os números no

formulário”.Fred Dove fez um sinal de positivo com o polegar. “Essa era a minha próxima pergunta.”“Fiquei com a mão em cima do formulário para que ele não visse.”“Fez muito bem.”“Será que podemos receber dois cheques, em vez de um só?”“Acho que sim, Edie. Claro.”“Um pela casa, outro pelos pertences.”“É essa a ideia. Os sessenta extras ficam só para nós. Não diga uma palavra a ninguém sobre

isso, ok?”“Claro que não, Sherlock. Snapper ainda tem três balas no revólver, lembra?” Dizendo isso,

deu um beijo superficial nos lábios de Fred e empurrou-o para a porta dos fundos.

21

Skink e Bonnie continuaram vigiando a casa na rua Calusa, enquanto Augustine voltou paraa caminhonete para pegar as armas. Ele não estava se sentindo inclinado a atirar em ninguém,mesmo que fosse com dardos de tranquilizantes para macacos. O sexo com Bonnie deixara-otemerariamente sereno e sonolento. Resolveu livrar-se dessas sensações o mais rápido possível.

Para tanto, começou a se recriminar. A moça era casada, recém-casada. Estava confusa,solitária, vulnerável — Augustine pensou, tentando se fazer sentir um aproveitador desprezível.Acontece que estava feliz demais. Bonnie o havia enfeitiçado com sua coragem. Augustinenunca estivera com uma moça que se alimentasse de caça e não se queixasse dos mosquitos.Além disso, parecia entender que seu malabarismo lhe trazia benefícios psicoterapêuticos. “Vocêestá tocando a morte ou talvez brincando com ela”, dissera Bonnie.

Depois de uma noite de amor, os murmúrios sonolentos do parceiro podem ser confundidoscom rasgos de sabedoria. Augustine sabia que deveria se precaver de acreditar demais naquelesmomentos ternos depois do sexo. Apesar disso, seu coração estava em êxtase e ele caminhavacomo se estivesse suspenso em molas.

Embora desejasse muito a companhia de Bonnie, estava bastante apreensivo com a suaparticipação naquela aventura. Achava que ficaria distraído com ela. Precisava de toda atenção ereflexos para enfrentar o bandido. Aliás, enquanto Skink estivesse no comando, era certo quehaveria problemas. Mas, apesar de tudo, finalmente estava começando a criar um propósito e umsentido para sua vida tão vazia.

Bonnie era, com efeito, uma complicação. Uma semana atrás, Augustine não tinhaliteralmente nada a perder na vida. Mas agora tinha. Tudo. O amor seguramente não acontece nashoras mais apropriadas, pensou.

Movimentos imperceptíveis seriam mais fáceis se estivesse só com Skink. Mas Bonnie faziaquestão de participar. Queria ser a Etta de Butch e Sundance. O ex-governador parecia não seimportar. Mas é claro que vivia num mundo completamente diferente. “A felicidade jamais ésublime”, sussurrara para Augustine. “Aldous Huxley. Estar contente não é tão bom quanto umaboa batalha contra a adversidade. Pense sobre isso”, dissera-lhe Skink.

Quando chegou à caminhonete, desmontou o rifle para dardos e escondeu-o numa sacola. Orevólver 38 foi escondido na cintura, embaixo da camisa. Jogou a sacola no ombro e iniciou suacaminhada de volta para a rua Calusa, perguntando-se se Huxley teria razão.

Tão logo Dennis Reedy e Fred Dove saíram, Edie puxou Levon Stichler para fora doarmário. Snapper não a ajudou muito. Alegou estar poupando suas energias.

Edie cutucou o velho com o pé descalço. “Então, o que vamos fazer com ele?” A perguntaera de extremo interesse para Levon Stichler também. Seus olhos se arregalaram, temendo aresposta de Snapper, que foi:

“Vamos matá-lo e jogá-lo em algum lugar.”“Onde?”

“Bem longe. O escroto tentou me matar.”“Mas foi uma tentativa desprezível, você tem que admitir.”“E daí? A intenção é que vale.”“Olhe para ele, Snapper. Não vale a pena desperdiçar uma bala com ele.”Levon Stichler não ficou ofendido com a observação. Edie tirou-lhe a mordaça, fazendo com

que o velho cuspisse várias vezes no chão. A mordaça era um pano de limpeza com gosto de cerapara móveis.

“Obrigado”, falou o velho, ofegante.“Cala a boca, babaca”, gritou Snapper.Edie Marsh perguntou: “Qual o seu nome, vovô?”.Levon disse seu nome e explicou por que tencionara matar o vendedor de trailers.“Bem, alguém chegou antes de você.” Edie descreveu a visita do homem corpulento,

acompanhado de dois cachorrinhos basset. “Ele levou o merda do Tony embora. Tenho certezade que ele não volta nunca mais.”

“Então, quem são vocês?”, perguntou o velho.Snapper olhou irritado para Edie. “Não lhe disse? Temos que matá-lo.”O velho imediatamente se desculpou por ser tão xereta. Snapper disse que não tinha

importância, pois iam livrar-se dele, de todo modo.Levon disse: “Mas isso realmente não é necessário”. Quando começou a implorar por sua

vida, Snapper amordaçou-o de novo. O velho começou a tossir e a gritar que sofria do coração.“Ótimo”, disse Snapper. Mandou Edie buscar o verrumão. Levon entendeu a intenção de

Snapper e calou-se.“Ponha uma venda nele também”, ordenou Snapper.Edie usou um lenço de chiffon para tapar os olhos do velho. Encontrara o lenço na gaveta de

roupas íntimas de Neria. Ficou uma venda bem chique.“Está apertada demais?”, perguntou ao velho.Levon abanou a cabeça negativamente.“E agora?”, perguntou a Snapper.Ele encolheu os ombros. “Você tem mais algum comprimido de analgésico? Minha perna

está me matando.”“Querido, não tenho...”“Merda.” Com a perna boa, deu um chute nas costelas do velho, sem nenhuma razão

aparente. Edie puxou-o e disse-lhe que se controlasse.“Está tudo indo bem para nós. Reedy aprovou a indenização. Temos só que esperar pelo

dinheiro. Se você matar esse pateta, pode estragar tudo.”Snapper balançou o maxilar torto. Seus olhos estavam saltados por causa da dor e da ressaca.

“Bem, não vejo alternativa.”Edie sugeriu: “Podemos colocá-lo no carro e levá-lo para bem longe daqui. Então dizemos a

ele que demore bastante para voltar, ou então encontraremos seus netos e... sei lá”.“Tiramos a pele deles como se fossem porcos.”“Isso. Qualquer coisa que o amedronte bastante. Tenho certeza de que ele nos deixará em

paz. O que ele quer é viver.”“Minha perna está estourando de dor.”“Vá assistir televisão. Vou procurar uns comprimidos.”Edie vasculhou no armarinho do banheiro para ver se havia algum analgésico. A única coisa

que achou foi um medicamento à base de codeína. Colocou cinco drágeas em sua mão e deu a

Snapper. Ele engoliu-as com um pouco de cerveja morna.Edie perguntou: “Tem gasolina no jipe?”.“Tem. Depois do programa da Sally Jessy, a gente vai.”Edie saiu para levar Donald e Maria para passear.

Depois de passar dias num estado de estupor provocado pela morfina, a patrulheira BrendaRourke finalmente sentia-se melhor. O cirurgião plástico prometera-lhe que a operaria no finalda semana.

Envolta em curativos, conversava com Jim Tile. “Você parece exausto, meu grandão.”“É, estamos ainda fazendo turnos dobrados. Lá fora está uma loucura.”Brenda perguntou-lhe as últimas notícias sobre o seu caso. “Uma loja de penhor em Kendall

— o sacana tentou penhorar a aliança de minha mãe.”“O mesmo cara?”“Parece que sim. O balconista ficou impressionado com a cara torta dele.”Jim Tile disse: “Bom, é um começo”.Mas a notícia o deixou preocupado. Havia induzido Skink a sair à procura do bandido,

achando que seria mais rápido que a polícia. Mas o incidente na loja de penhor colocaria apolícia numa boa pista. Agora, a busca de Skink poderia fazer com que ele se desentendesse comos detetives. A situação podia se agravar.

“Devo estar com uma cara horrível, pois nunca vi você tão pra baixo assim”, disse Brenda.É claro que aquilo tudo o havia afetado. Brenda pálida e quebrada no hospital. Em sua vida

profissional, Jim Tile vira muita dor, sangue e sofrimento, mas nunca sentira tanta raiva comonaquele primeiro dia em que vira Brenda no hospital. Confiar no sistema policial e judiciáriopara cuidar do caso lhe parecera ingênuo e inútil. O cara que atacara Brenda era um monstromuito especial. Ele odiava mulheres, policiais, ou ambas as categorias. De qualquer forma, eraum sujeito muito perigoso. Tinha que ser preso.

Agora, pensando melhor, achava que devia ter deixado passar a raiva antes de tomar qualquerdecisão. Quando Brenda lhe deu a placa do jipe, deveria ter passado o número para asautoridades competentes, ter respeitado as regras. Colocar o ex-governador na história fora umimpulso precipitado e infantil. Uma loucura. Brenda se recuperaria da surra, mas seu amigoSkink continuava em perigo. Seria impossível fazê-lo desistir.

“Preciso lhe fazer uma pergunta”, disse Brenda.“Claro.”“Um detetive da Delegacia de Furtos esteve aqui hoje. Também uma mulher da Promotoria

Estadual. Eles não tinham a menor ideia sobre a placa do jipe preto.”“Hummm.”“O número da placa. Pensei que você tivesse passado para eles.”“Cometi um erro, Brenda.”“Você esqueceu?”“Não, não esqueci. Mas cometi um erro.”Jim Tile sentou na beirada da cama e contou-lhe o que fizera. Ela ficou quieta. Começou a

falar sobre coisas banais quando a enfermeira entrou para trocar-lhe os curativos.Mais tarde, quando ficaram novamente a sós, ela comentou: “Então, você encontrou seu

amigo maluco. Como?”.“Não importa.”“E ele esteve aqui neste quarto e você não me apresentou.”

Jim Tile riu. “Você estava semi-inconsciente, querida.”Brenda acariciou sua mão. Ele percebeu que ela ainda estava pensando no assunto.

Finalmente, ela falou: “Você deve realmente me amar para fazer o que fez”.“É, mas errei. Desculpe.”“Chega. Tenho mais uma pergunta.”“Ok.”“Quais são as chances de que seu amigo consiga encontrar o sacana que tentou penhorar a

aliança de minha mãe?”“As chances são bastante boas.”Brenda balançou a cabeça e fechou os olhos. Jim Tile esperou até que sua respiração se

tornasse forte e regular. Esperou até ter certeza de que ela estava dormindo e com saúde, e nãomorta. Antes de sair, beijou-lhe o rosto entre os curativos. Gostou de sentir o calor de sua pele.Teve quase certeza de ter visto um pequeno sorriso em seus lábios.

Skink apoiara a testa no peitoril da janela. Não se mexera, nem fizera qualquer ruído duranteuma hora. Nada dissera quando Augustine saíra para pegar as armas. Bonnie não sabia ao certose ele estava dormindo ou apenas ignorando-a propositadamente.

“Este era o quarto de um neném. Você notou?”, perguntou Bonnie.Nenhuma resposta.“Você está acordado?”Ainda nenhuma resposta.Uma borboleta amarela entrou pela janela sem vidros e pousou na cabeleira de Skink. Bonnie

espantou-a. Do outro lado da rua, na casa de número 15 600, cachorros começaram a latir.Finalmente, o ex-governador falou, sem levantar a cabeça do peitoril da janela: “Eles vão

voltar”.“Quem?”“Os pais do neném.”“Como é que você sabe?”Silêncio novamente.“Talvez o furacão os tenha assustado.”“Você está sendo otimista.”Olhando de novo para o ursinho encharcado no chão, Bonnie pensou que não era justo uma

família ter sua vida destruída daquela forma. O ex-governador parecia estar lendo seuspensamentos.

“Sinto muito que isso tenha acontecido com essa gente. Na verdade, sinto muito por elesterem vindo para cá.”

“É. E acho que você vai sentir mais ainda se eles voltarem.”Skink levantou a cabeça, piscando por causa da luz. “Estamos numa zona de furacões.”Bonnie achou que ele deveria ouvir a opinião de uma pessoa de fora, como ela. “As pessoas

vêm para cá porque acham que é melhor do que o lugar onde estão. Acreditam no que os cartões-postais mostram. E sabe o que mais? Para muitos deles, aqui é bem melhor do que os lugares deonde vieram. A vida é mais alegre e com mais sol por aqui. Estão dispostos a correr os riscos.Até mesmo de furacões.”

Skink deu uma olhada ao redor do quarto com seu olho bom. “Maltrate a natureza, e ela omaltratará também.”

“As pessoas têm sonhos. Como os pioneiros do velho Oeste.”

“Mas, minha filha...”“O quê?”“Diga-me, o que existe ainda na Flórida para ser desbravado?” Skink baixou a cabeça

novamente.Bonnie puxou a manga de sua camisa. “Quero que me mostre o que mostrou a Max. As

regiões agrestes da Flórida.”Skink retrucou. “Por quê? Seu marido certamente não ficou impressionado.”“Mas eu não sou como Max.”“Espero sinceramente que não seja.”“Por favor, você me mostra o lado selvagem da Flórida?”Mais uma vez, não obteve resposta. Bonnie desejou que Augustine voltasse logo. Voltou sua

atenção para a casa do outro lado da rua, pensando no que haviam visto durante aquela longa eabafada manhã.

Uma meia hora depois que o velho chegara, um táxi parara na frente da casa. Uma mulher decabelos vermelhos, com um vestido apertado e curto e saltos muito altos, saiu da casa apressada.Augustine e Bonnie concordaram que ela parecia uma prostituta. Quando entrou no táxi, Skinkobservou que suas meias rendadas dariam uma ótima rede de pesca.

Pouco depois, um Taurus azul estacionou na entrada para carros. Skink achou que era umcarro alugado. Dois homens saíram do Taurus. Nenhum tinha o maxilar torto. O mais jovem eralouro, de aparência cuidada, usava óculos e carregava uma pasta. O mais velho era maiscorpulento, tinha os cabelos cortados rente ao couro cabeludo e carregava um bloco deanotações. Tinha um ar de autoridade — provavelmente, um ex-militar, segundo Skink. Os doishomens permaneceram na casa por um longo tempo. Finalmente, o mais velho saiu lá de dentrosozinho. Logo apareceu o rapaz louro com a pasta. Ele saiu pela porta dos fundos e entrou nocarro.

Os visitantes não tinham aparência de criminosos. Skink observou que nunca se podia tercerteza, em se tratando de Miami. Augustine entendeu a observação e resolveu ir buscar as armasna caminhonete.

Agora, Skink estava apoiado na janela e começara a cantarolar com os lábios cerrados.Bonnie perguntou-lhe o nome da música.

“Sonho número nove”, respondeu ele.“Nunca ouvi antes.”Ela queria tanto saber mais sobre a vida dele, queria que ele se abrisse com ela e lhe contasse

histórias sensacionais e chocantes.“Cante essa canção para mim.”“Outra hora.” Skink apontou para a casa do outro lado da rua. Um homem e uma mulher

estavam saindo da casa.Bonnie também olhou. “O que eles estão fazendo?”“Vamos, filha, vamos.”

Depois que o show de Sally Jessy terminou, Snapper deu alguns telefonemas para combinaralguma coisa. Exatamente o quê, Edie não sabia. Evidentemente, ele havia tido alguma ideiasobre o que fazer com o velho que não fosse matá-lo.

“Me dá uma ajuda aqui”, disse Snapper, começando a arrancar as cortinas dos trilhos. Otecido rosa estava encharcado. Esticaram o pano no meio do chão. Colocaram Levon Stichlerdentro e o enrolaram.

Edie achou que ele estava parecendo um enorme pastel de morango e disse: “Espero que elepossa respirar”.

Snapper deu um soco no velho embrulhado, dizendo: “Ei, panaca. Você pode respirar?”.O velho amordaçado deu um grunhido afirmativo. Snapper falou: “Ele está bem. Vamos

puxá-lo para o jipe”.Levon Stichler não era fácil de carregar. Snapper levantou a ponta mais pesada, mas a cada

passo sua perna doía muito. Deixaram o embrulho cair várias vezes antes de chegarem ao jipe. Acada vez que isso acontecia, Snapper dizia palavrões e dava pulos numa perna só. Edie abriu aporta traseira do jipe e, com dificuldade, conseguiram empurrar o velho para dentro.

Snapper estava apoiado no para-choque dianteiro, esperando a dor de sua perna arrefecer,quando notou o desconhecido alto e forte vindo em sua direção. O homem usava roupas verdes,do tipo militar. Tinha cabelos brancos, longos e em desalinho. Primeiro, Snapper pensou quefosse um mendigo, desses que vivem debaixo de pontes. Mas o homem caminhava de modoimponente e rápido. Movia-se como se estivesse bem alimentado, tivesse bons músculos e umpropósito em mente. Não, não poderia ser um mendigo. Um pouco atrás, tentando acompanharseu passo, vinha uma moça de ar respeitável.

Edie Marsh disse: “Merda”, e fechou rapidamente a porta traseira do jipe. Advertiu Snapperpara que não desse uma palavra. Ela conduziria a conversa.

Quando o desconhecido chegou mais perto, Snapper ficou em pé nas duas pernas. A dorlancinante que sentiu fez com que ele rangesse os dentes. Enfiou uma mão dentro do paletó.

“Com licença”, disse o desconhecido. A moça, nervosa, ficou atrás dele.Edie perguntou, num tom amigável: “Vocês estão perdidos?”.O homem deu um sorriso resplandecente — seus dentes pareciam os de um ator de cinema.

Snapper ficou tenso. Positivamente, não se tratava de um mendigo.“Que pergunta fantástica”, retrucou o homem. Virando-se para Snapper, observou: “O senhor

e eu temos algo em comum”.Snapper fechou a cara. “De que diabos você está falando?”“Olhe para isso.” O desconhecido, calmamente, retirou um de seus olhos, segurando-o na

palma da mão como se fosse uma pedra preciosa. Snapper sentiu-se a ponto de desmaiar eapoiou-se no jipe. A visão da cavidade ocular encolhida era mais repugnante do que o olho devidro na palma da mão do homem.

“É de vidro”, explicou o homem. “Um pequeno defeito, como seu maxilar torto. Nós doistemos problemas com os espelhos, não é?”

“Não tenho nenhuma dificuldade nesse sentido”, disse Snapper sem olhar para o homem. “Oque você é, afinal? Um pregador?”

Edie Marsh interrompeu-o. “Senhor, não quero ser rude, mas temos que ir. Temos umcompromisso no centro da cidade.”

O desconhecido tinha um charme que Edie não conseguia explicar. Parecia possuir umainteligência perigosa e desorganizada que a deixava nervosa. Parecia estar ansioso por algumtipo de confrontação física. A moça jovem, de traços delicados, não tinha nada em comum comele. Edie perguntou-se se ele a teria raptado.

O homem jogou a cabeça para trás e recolocou o olho de vidro. Depois, piscando um poucopara recuperar o foco, sugeriu: “Ok, garotos. Vamos dar uma olhada nesse jipe”.

Snapper sacou o revólver e apontou-o para o peito do homem. “Entre no jipe”, rosnou.Novamente, o homem sorriu. “Ah, pensei que você não iria me convidar.”A jovem agarrou-se ao braço do homem, tentando controlar o tremor de seu corpo.

Augustine viu um garoto de cabeça grande sentado rigidamente numa cadeira no jardim dafrente de uma casa destruída. Como quase todo o telhado tivesse sido arrancado, pedaços deplástico azul tinham sido amarrados às vigas para proporcionar algum abrigo contra o sol e achuva. Eles balançavam com a brisa.

O garoto teria apenas uns dez ou onze anos. Segurava um rifle Ruger Mini-14, que levantouquando Augustine passou na calçada. Com uma vozinha fina, o garoto disse: “Os saqueadoreslevam bala”.

A advertência era a mesma de uma placa pregada na parede da casa.Augustine virou-se para o garoto. “Não sou saqueador. Onde está seu pai?”“Foi buscar madeira. Me disse para guardar a casa.”“Você está se saindo muito bem.” Augustine olhou para o potente rifle. Um ladrão de banco

usara o mesmo modelo para matar cinco agentes do FBI em Suniland, há alguns anos.O garoto explicou: “Nossa casa foi saqueada na noite seguinte ao furacão. Nós estávamos na

casa do tio Rick. Ele mora num lugar chamado Dania. Eles assaltaram a casa enquantoestávamos fora”.

Augustine aproximou-se devagar. A arma estava engatilhada. O garoto manteve-se sério eimpassível, franzindo os olhos como se Augustine estivesse longe. Remexeu-se na frágil cadeirade jardim. Um lado de sua boca caía para baixo. Augustine quase achou que ele tocaria banjocomo no filme A grande aventura.

O garoto continuou a falar. “Levaram nosso som e nossa televisão. A caixa de ferramentas domeu pai também.”

“Você já usou esse rifle antes?”“Muitas vezes.” Piscou os olhos azuis acinzentados ao mentir. O rifle era pesado. Seus

bracinhos estavam cansados de segurá-lo. “É melhor você ir agora”, disse ele.Augustine balançou a cabeça e afastou-se um pouco. “Tenha cuidado, ok? Você não vai

querer atirar na pessoa errada.”“Meu pai disse que vai colocar armadilhas por toda parte. Na próxima vez, eles vão se dar

mal. Ele foi à loja de ferragens. Minha mãe e Debbie ainda estão na casa do tio Rick. Debbie éminha meia-irmã. Ela tem sete anos...”

“Prometa que você vai ter cuidado com esse rifle.”“Debbie pisou num prego enferrujado e ficou com o pé infeccionado.”“Vamos, prometa.”“Ok.” Uma gota de suor escorreu por sua face corada. Embora o incomodasse, ele não tirou

as mãos do rifle.Augustine acenou para ele e continuou seu caminho. Quando chegou à casa abandonada, não

encontrou nem Bonnie nem Skink. O jipe preto não estava mais estacionado do outro lado darua.

22

Augustine correu a toda velocidade para o outro lado da rua. Puxou o revólver ao chegar àentrada da casa. Chamou por Bonnie, mas não obteve resposta. Com muita cautela, entrou nacasa. O ar cheirava mal. Sentia-se sobretudo cheiro de mofo e de suor, exceto num quarto, ondeo ar recendia a perfume e a sexo. A porta de um armário estava aberta, não revelando nada deexcepcional. Uma placa na parede indicava que a casa pertencia a um vendedor chamadoAntonio Torres. O furacão fizera grandes estragos no lugar. No quintal, Augustine viu doiscachorrinhos basset acorrentados a um irrigador de jardim. Latiram muito ao perceber suapresença.

Augustine sentou-se numa espreguiçadeira, tentando imaginar o que teria acontecido duranteos vinte minutos em que estivera ausente. Obviamente, algo havia levado o ex-governador a agir.Certamente, ordenara a Bonnie que permanecesse na casa abandonada, mas ela decidiraacompanhá-lo. Concluiu que os dois deveriam estar no jipe preto, com o sujeito da cara torta,seguindo em direção a um destino desconhecido.

Resolveu percorrer a casa mais uma vez, em busca de alguma pista. Nos escombros doquarto que cheirava a sexo encontrou um álbum de fotografias manchadas pela água: o vendedor,sua esposa e uma multidão de parentes bem alimentados. Brenda Rourke não descrevera seuassaltante como um hispano gordo e, além disso, as fotografias de Antonio Torres nãomostravam nenhuma deformação facial. Augustine concluiu que não se tratava do mesmohomem. Foi para a cozinha.

Encontrou uma bolsa de couro de mulher escondida numa frigideira grande, no armário sobrea pia. Dentro havia uma carteira de motorista de alguém chamado Edith Deborah Marsh. Umamulher branca, nascida em 5 de julho de 63. O endereço era o de um apartamento em PalmBeach. A fotografia mostrava uma moça jovem e bonita, com olhos grandes. Dois acordos deseguro estavam dobrados dentro da carteira. Um no valor de sessenta mil dólares e outro no valorde cento e quarenta e um mil dólares. Os acordos diziam respeito a indenizações por danossofridos pela casa de número 15 600, à rua Calusa, e traziam as assinaturas de Antonio Torres ede Neria Torres. Os papéis estavam datados daquele mesmo dia. Augustine ficou intrigado com ofato de aqueles papéis estarem na carteira de Edith Marsh e colocou-os em seu bolso.

Ficou satisfeito com a descoberta, mas não acreditava que ela pudesse ajudá-lo a descobrir oparadeiro de Skink e de Bonnie. A chave de todo o mistério era o bandido da cara torta. Ele é queestaria com o revólver de Brenda Rourke. Ele é que estaria dirigindo o jipe preto. Mas, apesardisso, não havia qualquer pista dele na casa.

À medida que o tempo passava, o bandido estaria cada vez mais longe. Augustine sentiu umaonda de pavor só de pensar no que poderia estar acontecendo. Não podia imaginar que Skinktivesse ficado passivo ao ser raptado. O espírito de resistência corria nas veias do homem.Mesmo com um revólver apontado para sua testa, não deixaria de reagir. Se pusesse tudo aperder, Bonnie também estaria perdida.

Augustine começou a sentir um pavor imenso. Seu impulso era pegar a caminhonete ecomeçar a dirigir a esmo, na esperança de encontrar o jipe. O cretino saíra apenas um pouco

antes, mas tinha a vantagem de saber para onde estava indo.Então, Augustine lembrou-se de Jim Tile, o patrulheiro rodoviário. Bastaria um alerta dele, e

todas as radiopatrulhas do estado passariam a procurar o jipe preto Cherokee. Augustinememorizara a nova placa do jipe: PPZ-350.

Levantou o telefone para discar para o patrulheiro. Foi quando viu o botão de rediscagemautomática. Aprendera o truque na época em que vivia com a cirurgiã maluca, aquela que tentaraoperá-lo no chuveiro.

Sempre que ela saía, Augustine costumava usar o botão de rediscagem para descobrir se elatelefonara para traficantes de drogas ou para lojas de penhores para tentar penhorar algum objetoroubado de sua casa. Em pouco tempo, já conseguia identificar as diferentes vozes e saber paraquem ela telefonara.

Ao lembrar-se de tudo isso, apertou o botão de rediscagem automática, na esperança dedescobrir o paradeiro do bandido, de Skink e de Bonnie. Após três sinais, uma voz de mulher,afável, atendeu:

“Paradise Palms. Em que posso ajudá-lo?”Augustine hesitou. Conhecia apenas um lugar chamado Paradise Palms. Um hotel à beira-

mar, em Islamorada. Decidiu tentar algo. “Meu irmão telefonou há pouco de Miami.”“Ah, sim. Um amigo do senhor Horn.”“Como?”“O proprietário. O senhor Horn. O nome de seu irmão é Lester?”“É”, confirmou Augustine, sem saber ao certo.“Ele foi o único a fazer uma reserva de Miami hoje. Ele quer cancelar?”“Não, não. Só queria confirmar que a reserva está acertada. É que ele faz aniversário amanhã

e queremos lhe fazer uma surpresa. Vamos levá-lo para fazer pesca submarina.”A mulher informou que os golfinhos estavam a pouca distância da praia e que seria melhor

fretar um barco. “Quer que eu faça isso para o senhor?”“Não, não é necessário. Obrigado.”“O senhor Horn está sabendo?”“Sabendo o quê?”, perguntou Augustine.“Que Lester faz aniversário. Ele vai ficar triste de perder o aniversário dele, mas viajou para

Tampa a negócios.”“Ah, que pena. A que horas meu irmão está chegando aí? É para podermos providenciar a

festa surpresa.”“Ah, claro. Ele disse que chegaria hoje à tardinha.”“Ótimo.”“E não se preocupe. Não lhe direi uma palavra sobre a surpresa.”“Não sei como posso lhe agradecer.”

Depois de um dia de bebedeira e de autopiedade, Max Lamb pegou um avião de Guadalajarapara Miami. Lá, pretendia parar de fumar, recuperar sua esposa e recomeçar sua vida. Uma outralua de mel seria indispensável. Mas, desta vez, em algum lugar longe da Flórida.

No Havaí. Talvez até mesmo na Austrália.Sua cabeça parecia um bloco de cimento. A ressaca de tequila fez com que tivesse pesadelos

no avião. Uma hora acordou segurando o pescoço com a sensação de que ainda estava com acoleira de choque. No pesadelo, era Bonnie que operava o controle remoto. Uma hora depois,teve outro pesadelo. De novo com sua mulher. Desta feita, estavam fazendo amor no convés do

hidroavião, voando sobre Everglades. O céu estava azul. Bonnie, deitada sobre ele, era fustigadapelo capim alto. Agarrado a seu ombro havia um macaco — o mesmo que ele filmara depois dofuracão. No sonho, não podia ver o rosto do piloto, mas achava que era o jovem que faziamalabarismo com crânios. Quando Bonnie arremeteu os quadris, o macaco agarrou-se mais a seuombro, como se fosse um caubói. De repente, ficou em pé nas patas traseiras, mostrando seupequeno pênis ereto e rosa. Max deu um grito e acordou. Já estava mais calmo quando o aviãoaterrissou.

No aeroporto de Miami, as ideias ruins provocadas pela tequila retornaram ao ler umamanchete de jornal:

Restos mortais de mafioso encontrados em Fox Hollow:Estraçalhado e devorado por um animal selvagem.

Max comprou o jornal e leu a história, horrorizado. Um gângster de nome Ira Jackson foraengolido por um leão foragido de uma fazenda de animais selvagens. Os detalhes mórbidosfizeram com que Max tivesse mais pressa de encontrar Bonnie.

Chegou à casa de Augustine com um discurso preparado e, se necessário, uma ameaça. Asluzes estavam apagadas. Ninguém veio atender a porta. Max tomou coragem para entrar pelaporta dos fundos.

A porta corrediça de vidro estava destrancada. Dentro de casa, o ar era abafado e quente.Max ligou o ar-condicionado e acendeu todas as luzes. Queria que soubessem que chegara. Nãoqueria ser encontrado caminhando furtivamente no escuro, como um assaltante.

Entusiasmado com a própria audácia, Max começou a vasculhar o lugar, procurandovestígios de sua mulher. No armário encontrou o vestido que ela usara no dia em que foraraptado. Como suas malas tinham sido roubadas, Max calculou que ela estaria usando roupasemprestadas ou que seus pais lhe tivessem mandado dinheiro, ou, pior, que possivelmenteAugustine lhe comprara um guarda-roupa novo em folha. Não era isso que os ladrões demulheres faziam?

Max obrigou-se a entrar no quarto de hóspedes. Evitou olhar para a estante cheia de crânios.Ficou feliz ao ver que os lençóis estavam amarfanhados apenas do lado esquerdo — o ladopreferido de Bonnie. Uma depressão no travesseiro parecia corresponder ao formato da cabeçade uma mulher. A cama não tinha nenhum sinal de que Bonnie tivera companhia masculina.

Um armário de carvalho estava cheio de roupas femininas — de sutiãs a jeans — de todos ostamanhos. Max concluiu que eram roupas de antigas namoradas de Augustine. Uma delas deviater mais de dois metros, a julgar pelo tamanho de suas roupas. Havia alguns artigos de tamanhopequeno que poderiam servir para Bonnie. Começou a se sentir melhor. Pelo menos, tudoindicava que ela estava usando roupas emprestadas.

Resolveu inspecionar o quarto de Augustine.A cama parecia ter sido atingida por uma granada. Max pensou: ou ele está tendo sexo

violento ou pesadelos terríveis. Os lençóis estavam em tão completa desordem que eraimpossível determinar se uma ou duas pessoas haviam dormido na cama. Pelo estado das roupasde cama, uma multidão poderia ter dormido lá.

A desconfiança tomou conta de Max. Teve uma ideia — de mau gosto, mais eficaz.Começou a cheirar os lençóis para ver se detectava o perfume de Bonnie. Embora não lembrasseo nome do perfume, guardava na memória seu cheiro de orquídeas.

Foi cheirando quadrados imaginários, começando da cabeceira até o pé da cama. Ao sentir ocheiro de Paco Rabanne para homens, espirrou. Max reconheceu o perfume, pois ele próprio o

usava — a despeito de sua forte alergia — todas as segundas-feiras, para a reunião de diretoriana Rodale.

Paco Rabanne e cheiro de água sanitária, foi tudo o que Max descobriu na cama deAugustine.

Havia, contudo, mais um lugar para inspecionar. O cesto de roupas sujas no banheiro.Deprimido, Max foi tirando as peças de roupas. Graças a Deus, não achou nenhuma camisa devênus usada.

Mais tarde, esticado no sofá de Augustine, Max pensou que o assunto mais urgente não era afidelidade de Bonnie, mas sua sanidade mental. De algum modo, aqueles dois dementes ahaviam influenciado. Pareciam pertencer a alguma estranha seita — um se alimentava de caçanas rodovias e o outro fazia malabarismo com crânios.

Como uma garota inteligente como Bonnie se deixara levar pelos dois desequilibrados?Max resolveu tomar uma atitude corajosa. Escreveu um texto e o ensaiou várias vezes antes

de pegar o telefone. Depois discou para o apartamento em Nova York, deixando uma mensagempara sua mulher desaparecida. Um ultimato.

Mais tarde, ligou de novo só para ouvir como estava a mensagem na secretária eletrônica.Sua voz estava tão dura que ele mal a reconheceu.

Excelente, pensou. É exatamente o que Bonnie precisa ouvir. Espero que ela ligue para lá.

A mulher de Avila anunciou com alarde que seus bodes, destinados ao ritual de vodu,estavam aos cuidados do Departamento de Controle de Animais. Um fora capturado pastandoperto da rodovia Don Shula, enquanto o outro fora encontrado numa lavadora de carros, batendocom os chifres contra a porta de um Jaguar alugado. A mulher de Avila disse que a cenaapareceu no noticiário do canal 7.

“E aí? O que você quer que eu faça?”“Ah, esqueça. Afinal, são só trezentos dólares.”“Você quer que eu roube os bodes de volta? Ok, hoje à noite vou lá pular a cerca e trazer os

bodes de volta. Isso a faria feliz? Aproveito e trago uns gatinhos também. Talvez um porquinho-da-índia para sua mãe.”

“Odeio você. Odeio.”Avila balançou a cabeça. “Lá vamos nós de novo.”“Odeio você e Chango, aquele seu orixá bicha.”“Grite mais, vamos. Talvez consiga acordar seus parentes mortos em Havana.”O telefone tocou. Virando-se de costas para sua mulher, ele atendeu. Ela atirou-lhe uma lata

de feijão preto e saiu furiosa da cozinha, dizendo vários palavrões em inglês.Quem estava ligando era Jasmine. Ela perguntou: “Que barulheira é essa?”.“Isto é o casamento.”“Bem, querido, estou sentada aqui com Bridget. Adivinhe onde estamos indo hoje à noite?”“Chupar o pau de alguém?”“Meu Deus, você está num humor de cão.”“Desculpe, Jasmine. Tive um dia de cão.”“Estamos indo para Keys.”“Ah, é?”“Vamos encontrar seu amigo.”“Sem sacanagem? Onde?”“Num hotel à beira-mar. Você acredita que ele vai nos pagar para pajear um velho?”

“Pajear quem?” Avila não podia imaginar qual seria o novo golpe de Snapper.“Um velho qualquer. Não sei. Teremos que mantê-lo ocupado por uns dias. Tirar umas fotos

comprometedoras. Quinhentos paus para cada uma é o pagamento.”“Nossa, isto não está me cheirando nada bem.”“Os negócios estão devagar, querido. O furacão transformou todos os nossos clientes

regulares em maridos dedicados e tementes a Deus.”Avila ouviu os risinhos de Bridget ao fundo. Jasmine continuou falando. “Diante disso,

quinhentos paus me parecem muito tentadores agora, qualquer que seja o trabalho.”“Você pode receber em dobro se me der o nome do hotel.”“E por que você acha que liguei? Não está orgulhoso de mim?”Avila disse: “Você é a melhor”.“Mas, escute, querido, precisamos saber...”“Deixe-me falar com Bridget.”“Não. Precisamos saber o que você está planejando. Porque nós duas estamos em liberdade

condicional, como sempre...”“Não se preocupe.”“... e não queremos mais problemas, entende?”“Vamos, relaxe.”“Você não vai matar o cara, vai?”“Que cara? Snapper? Claro que não. Ele me deve dinheiro. Isso é tudo. A que horas vocês

vão se encontrar com ele?”“Por volta das oito.”Avila olhou para o relógio. “Vocês não vão conseguir chegar a Key West por volta das oito,

a não ser que tenham um carro voador.”“Não é Key West, querido. É Islamorada.”Islamorada ficava um pouco mais perto. Mesmo assim, achava difícil chegar lá por volta das

oito. Primeiro, tinha que fazer uma oferta; uma viagem momentosa como aquela era impensávelsem uma oferta.

“Jasmine, qual é o nome do hotel?”“Não digo até você prometer que eu e Bridget não teremos problemas.”“Meu Deus, já lhe disse que não haverá problemas.”“O negócio é o seguinte. Você tem que esperar até que recebamos o dinheiro do seu amigo

Snapper. Depois, tem que prometer que não vai matar ninguém na frente da gente, ok?”“Juro sobre o futuro túmulo de minha mulher.”“Você tem também que nos pagar o que prometeu. Quinhentos paus para cada uma.”“Prometo.”“Além disso, dois jantares de caranguejos. Isto é ideia de Bridget.”“Nenhum problema.” Informar as prostitutas de que não era época de caranguejos apenas

dificultaria as negociações.“Vamos, diga-me o nome do hotel.”Jasmine falou. “Paradise Palms. Nunca estive lá antes. Bridget também não. Mas Snapper

disse que é muito legal.”“Comparado com a prisão, tenho certeza de que é um luxo só. Qual o número do quarto?”Jasmine perguntou a Bridget, que também não sabia.“Não faz mal”, disse Avila. “Descubro vocês.”“Não esqueça o que prometeu.”

“Tá, vou tentar. Já se passaram uns sete segundos.”“Bom, querido, é melhor a gente começar a viagem.”Avila estava quase desligando o telefone, quando se lembrou de algo. “Ei, Jasmine, espere.”“O que foi?”“Você contou a Bridget sobre mim?”“Bridget? Não contei nada.” Jasmine parecia intrigada. “O que poderia ter contado?”“Nada.”“Ah... você quer dizer sobre...”“Não diga a palavra.”“Querido, jamais diria nada. Essa história fica entre mim e você. Juro por Deus.”“Na outra noite, você disse que eu estava melhor.” Avila tentara não emitir nenhum som

enquanto faziam sexo. Os poucos sons que soltara não se pareciam nada com guinchos.“Na outra noite, você esteve fantástico”, disse Jasmine. “Fantástico. Melhor do que me

lembrava.”Avila disse: “Posso dizer o mesmo de você”.Mais tarde, dirigindo para Sweetwater para comprar umas galinhas, não podia parar de

pensar no elogio da prostituta. Se ela dissera a verdade ou não, não vinha ao caso. A sinceridadeera uma qualidade tão estranha a Avila que ele não ousava julgar Jasmine. Estava feliz tambémporque ela parara de usar o nome Morganna. Era um nome muito difícil para lembrar no calor dapaixão.

O efeito combinado de maconha e pílulas sobre o doutor Charles Gabler era positivamentepouco salutar. Isso ficou evidente na noite de 1º de setembro, num hotel à beira da estrada.Possuído pelo desejo, o professor deixou a cama dupla que dividia com Neria Torres e foi para acama de Celeste, a jovem estudante de pós-graduação. Ao agarrar-se a um dos seios de Celeste, odoutor Gabler sentiu-se apaziguado por forças físicas e metafísicas. O momento para cometer taltemeridade não poderia ter sido pior.

Neria Torres estivera reavaliando sua relação com o doutor Gabler desde que pararam noacostamento da rodovia que leva a Jackson, Mississippi, para que ele pudesse urinar. Sentada nolugar do motorista, observando o doutor Gabler tentando acertar algumas azaleias, ela pensou:não acho mais graça nisso.

Quando o professor voltou cambaleando para o furgão, a luz dos faróis iluminou os cristaisvermelhos que pendiam de um colar em volta de seu pescoço. “Oh, que beleza”, exclamouCeleste encantada.

Naquele momento, Neria analisou seu futuro e decidiu que o professor não deveria maispartilhá-lo. Especialmente a indenização que receberia da companhia de seguros pela casa emMiami. Neria imaginou o professor persuadindo-a a lhe dar uma parte do dinheiro e depoisfugindo com Celeste para bem longe, no meio da noite. Afinal, fora isso que fizera com sua ex-amante, uma vendedora de macramé, quando conhecera Neria.

Mesmo que o professor não estivesse pretendendo ficar com uma parte de seu dinheiro, porrazões práticas, Neria achava que deveria deixá-lo. Sua chegada a Miami complicaria asnegociações com seu marido sobre o seguro. Considerando as condições de sua partida, Neriaduvidava que Tony estivesse pronto a perdoar e esquecer. Seus esforços vãos para contactá-loapós o furacão tornavam claras as intenções dele de privá-la de sua metade na indenização. Se olitígio chegasse à justiça, a presença do doutor Gabler só a prejudicaria.

Era nisso que estava pensando quando foi dormir no hotel em Bonifay. Se tivesse um sonomais pesado ou se o ar-condicionado fizesse um barulho mais forte, talvez não tivesse acordadocom a noite de amor do doutor Gabler e de Celeste. Mas acordou.

Primeiro, Neria abriu os olhos e não moveu um só músculo. Ficou deitada, perplexa,tentando reorganizar suas emoções. Por um lado, sentia alívio por ter agora uma razão palpávelpara abandonar o professor. Por outro, estava furiosa com a rudeza e a desconsideração docretino. Durante os anos em que vivera com Tony Torres, certamente ele a traíra, mas nãoenquanto dormiam no mesmo quarto.

No final, foram os risinhos despudorados de Celeste que a irritaram ao extremo. Pulou dacama, acendeu as luzes, agarrou um saco de veludo cheio de cristais especiais para cura ecomeçou a arremetê-lo com toda a força contra os lençóis da cama em que estavam Celeste eGabler. O saco era pesado e as pedras pontiagudas, ferindo a carne pouco firme do professor.Com um gritinho efeminado, ele saiu correndo para o banheiro, trancando a porta. Enquanto isso,Celeste se encolheu, nua, por entre os lençóis. A barba hirsuta do professor deixara marcasróseas na pele de Celeste, do pescoço ao umbigo. Neria observou que embaixo de seus gloriososseios havia cicatrizes. Ah, ela fizera implantes de silicone, a cretina.

Celeste repetia, histérica: “Por favor, Neria, sinto muito. Não me mate, por favor”.Neria jogou o saco com cristais no chão. “Celeste, sabe o que lhe desejo? Que aquele maricas

escondido no banheiro seja o ponto mais alto de sua vida medíocre. Agora, me dê as chaves dofurgão.”

Horas depois, numa parada para caminhões em Gainesville, Neria tentou chamar novamenteo senhor Varga, seu antigo vizinho em Miami. Dessa vez, o telefone estava funcionando. Vargarespondeu ao terceiro sinal. Foi categórico ao afirmar que não vira o senhor Torres fugindo comuma jovem loura.

“Na verdade, não tenho visto Tony desde uns dois dias depois do furacão.”“Há desconhecidos na casa?”“Todo o tempo. Pessoas entrando e saindo. Mas nenhuma loura.”“Quem são eles, Leon?”“Não sei. Amigos e primos de Tony, provavelmente. Eles têm dois cachorros que latem a

noite toda. Acho que o Tony pediu que eles cuidassem da casa.”Varga desenvolveu ainda mais sua teoria. Tony devia estar escondido, devido à má fama da

indústria de trailers, depois do furacão. “Todos os trailers se despedaçaram. Morreu gente. Osjornais e televisões só falam nisso. Parece que vai haver uma investigação. Provavelmente, o FBIvai entrar no meio”, relatou Varga.

“Ah, imagine.”“Esses são os boatos. Tony não é nenhum idiota. Acho que se escondeu até as coisas se

acalmarem. Não é culpa dele que os trailers não tenham resistido ao furacão. Foi a vontade deDeus. Deus está nos testando, assim como fez com Noé.”

“Só que Noé não tinha seguro”, ironizou Neria.O senhor Varga tinha razão sobre um ponto. Tony não ficaria por ali enquanto a situação

apresentasse risco. Seu estilo seria se esconder num hotel confortável e esperar os problemaspassarem. Enquanto isso, seus parentes inúteis ou colegas vendedores ficariam na casa,acompanhados de prostitutas. Mas Tony não devia estar longe. De jeito nenhum sairia da cidadesem receber o dinheiro do seguro.

Neria sentiu-se encorajada. Obviamente, a história de fuga de Tony com uma loura para oBrooklyn fora inventada. Algum truque dele para despistá-la. Mal sabia Tony que ela estava a

caminho. A conversa com o senhor Varga apenas corroborara sua decisão de ir para Miami.“Você está mesmo voltando”, perguntou o senhor Varga. “Vai tentar de novo com Tony?”“Coisas mais estranhas aconteceram.” Neria fez Varga jurar sobre várias bíblias que não diria

nada a ninguém. Disse que tudo seria mais difícil se Tony descobrisse que estava a caminho.

23

Snapper mandou que Edie tomasse a rodovia e cuidasse para não se exceder na velocidade.Estava sentado com as costas voltadas para a porta de passageiros, com a pistola apontada para opeito do desconhecido caolho. A moça não constituía uma ameaça, no momento.

O desconhecido piscou e perguntou: “Quanto você conseguiu pela aliança?”.Snapper franziu o cenho. O cretino sabia sobre isso. Mas como?Edie, sem tirar os olhos da estrada, indagou: “Que aliança? Do que ele está falando?”.Snapper mexeu o maxilar torto e rosnou: “Calem a boca, todo mundo”.Debruçando-se para a frente, o desconhecido disse para Edie: “Seu namorado durão deu uma

surra numa policial. Roubou o revólver e a aliança dela. Ele não lhe contou?”.Edie estremeceu. Talvez fosse a respiração do homem na sua nuca, ou o tom grave de sua

voz, ou ainda o que ele estava dizendo. Nesse momento, Snapper sacudiu o revólver e gritoupara que todos se calassem, senão morreriam.

Colocou um CD no estéreo do painel. Noventa e cinco decibéis de música country sobre dorde cotovelo. Em poucos minutos, sua fúria passou, devido à voz da cantora Reba ou talvez aoefeito das cinco pílulas que Edie lhe dera antes de sair de casa.

Ok, cara, agora pense.O plano original era atocaiar o velho maluco que o atacara com as prostitutas. Isso não traria

nenhum problema. Um cara que Snapper conhecia, Johnny Horn, tinha um motel em Keys. Umlugar ideal para Levon Stichler tirar umas férias. A ideia de Snapper era dar uma máquinafotográfica barata a cada uma das prostitutas para que elas tirassem fotos incriminadoras. O tipode fotos que um velho respeitável não desejaria mostrar a seus netos. Depois de dois ou três dias,amarrado nu numa cama de hotel, o velho ia desejar esquecer que algum dia estivera no número15 600 da rua Calusa. Se ele prometesse se comportar, as fotos seriam jogadas fora. O velhopoderia voltar a Miami. Provavelmente com a pele irritada e o pênis dolorido.

O melhor da história era que Snapper não teria que pagar pelo quarto de hotel, pois JohnnyHorn lhe devia um favor. Dois anos antes, Snapper roubara um Corvette do namorado de umaex-mulher dele. Snapper levara o Corvette até o porto de Miami e, em plena luz do dia, odespachara num Container para Cartagena. Foi um negócio arriscado, e Johnny lhe dissera paratelefonar para o Paradise Palms sempre que precisasse de um lugar para ficar, para se esconderou para levar alguma garota.

Snapper traçara os planos para o velho Stichler sozinho, sem a ajuda de Edie. Não queriamodificar o plano, mas estava sem saber como incluir o desconhecido caolho e a moça. Pareciamais fácil matar o homem e sua companheira — e, uma vez que estava com tanta coragem, porque não o velho Stichler também? Dessa forma, não teria que pagar nada às prostitutas. Talvezsó um jantar de frutos do mar.

O lado negativo da questão seria como se livrar dos cadáveres. Os detalhes logísticos eramassustadores. Sua mente embotada pelas pílulas não estava conseguindo dar conta do recado.Matar demandava energia, e Snapper de repente sentiu vontade de dormir por três semanas a fio.

Começou a se dar um sermão, mentalmente. Lembrou-se do que um companheiro de prisãolhe dissera. Livrar-se de corpos é como comprar imóveis. O importante é o local. Snapperpensou. Você tem as ilhas do mangue, tem Everglades e tem o oceano Atlântico. O que maisvocê quer? Um tiro certeiro na cabeça e os jacarés, tubarões ou caranguejos farão o resto. Nãoseria tão difícil assim.

Mas, por Deus, o que estava em risco era sua vida. Se cometesse o menor erro, iria de voltapara a prisão pelo resto da vida. Provavelmente fechado numa cela com um levantador de pesospreto e bicha. Comeria meu cu até que eu passasse a andar como Julia Roberts.

E, além disso, atirar em pessoas era extremamente barulhento. Edie não concordaria. Snappertinha certeza. Faria uma cena e tanto. E matar Edie, juntamente com os outros, seria impossívelporque, primeiro, o revólver não tinha balas suficientes e, segundo, não poderia receber odinheiro do seguro sem Edie. Maldição.

“No que você está pensando?”, gritou Edie tentando sobrepor a voz à música.Snapper cerrou os lábios e pensou: Estou tão cansado. Se ao menos pudesse dormir, talvez

me ocorresse algo novo.O desconhecido caolho começou a cantar junto com o estéreo. Snapper lançou-lhe um olhar

frio. Como será que sabia sobre a patrulheira? As mãos de Snapper tremeram. Seus lábiosestavam secos. E se a policial tivesse morrido? E se tivesse contado sobre o jipe e sobre ele antesde morrer? E se toda a polícia da Flórida já estivesse atrás dele?

Snapper disse a si mesmo para parar de especular e pensar positivo. Pela primeira vez, depoisde dias, seu joelho não estava doendo tanto. Isso deveria ser motivo para se alegrar.

A moça, no banco de trás, começou a cantar junto com o caolho. Estava um poucoatrapalhada com a letra, mas não fazia mal. Sua voz era bonita.

Edie bateu no volante, demonstrando sua irritação com o coro amador. Após uns trêsminutos, desligou o estéreo. O cantor silenciou. E o coro também.

Snapper anunciou que a próxima música seria de Travis Tritt.“Poupe-me”, disse Edie.“Que diabo você tem?”A moça falou: “Meu nome é Bonnie. Meu companheiro é um ex-governador, mas prefere ser

chamado de capitão”.“Podem me chamar de Skink também”, acrescentou o homem caolho. “E adoraria ouvir

Allman Brothers.”Snapper pediu que contassem o que queriam, o que foram fazer na casa dos Torres. Skink

respondeu: “Estávamos procurando você”.“Como assim?”“É um favor para um amigo. Você não o conhece.”Edie Marsh interrompeu: “Isso não está fazendo o menor sentido”.No espaço atrás do banco, algo se deslocou e ouviu-se um gemido.Bonnie perguntou: “Como vocês se chamam?”.Ela viu no retrovisor Edie revirando os olhos, irritada com a pergunta banal.Snapper apenas disse: “Os dois são uns idiotas”.“Só quis saber como devemos chamá-los”, tentou explicar Bonnie.“Eu sou Farrah Fawcett e ele é Ryan O’Neal.”Desanimada, Bonnie virou-se para a janela, dizendo: “Esqueçam”.Uma mão quente segurou o ombro de Edie. “Quem quer que sejam, vocês fazem um casal

adorável”, ironizou Skink.

“Vai à merda”, retrucou Edie.Snapper debruçou-se para trás, colocando o revólver no rosto de Skink. “Você pensa que não

tenho culhões para atirar, é?”Skink, displicentemente, empurrou o revólver para longe. Recostou-se no assento, cruzando

os braços. A atitude corajosa dele fez Edie distrair-se por um momento. Snapper ordenou-lhe quesaísse da estrada, pois precisava ir ao banheiro.

Como nunca tinha sido raptada antes, sob a mira de um revólver, Bonnie não se sentia tãoapavorada como imaginara que ficaria numa situação dessas. Achava que estava relativamentecalma, em parte devido a seu desejo de aventura, em parte pela atitude impassível de Skink.Tinha uma fé cega em Skink. Não achava possível que ele deixasse um mero ladrão de carrosferi-los. A maneira displicente como Snapper segurava o revólver amedrontava um pouco. Apresença de uma mulher no carro, porém, tranquilizava-a, de certa forma. Bonnie sentia que elanão era burra. Era, na verdade, bastante inteligente e não tinha o menor medo do homem com orevólver. Bonnie intuía que ninguém seria morto naquela aventura.

Perguntou-se o que Max pensaria se a visse naquela situação. Provavelmente, era melhor quenão soubesse de nada. Sentia-se mal por estar magoando seu marido, mas será que sentia algumafalta dele? Não, não sentia falta alguma. Talvez lhe estivesse até fazendo um favor. Mas sentia,para usar o jargão da psicoterapia barata, que tinha “questões conflitantes” dentro de si. Afinal,uma semana após seu casamento, cometera adultério com um estranho. O pobre Max fora, comefeito, vítima de um engano. Pensara estar se casando com uma mulher que era, na verdade,outra, completamente diferente. Bonnie sentia-se culpada por isso. Resolveu não se deprimir eparar de analisar sua atração súbita por Augustine. Desejava que ele estivesse com ela e seperguntava como ele faria para descobrir seu paradeiro. Ela própria não tinha a menor ideia paraonde estavam indo.

“Estamos indo para o sul. E o sul é bom”, declarou Skink.O homem com a pistola rosnou: “Cala a boca, idiota”.De repente, Bonnie começou a pensar no crânio daquele homem deformado e grosseiro na

estante do quarto de hóspedes de Augustine. A mandíbula quebrada fazia com que o crânioficasse meio torto na prateleira. O crânio parecia estar dando um sorriso sinistro de pirata.Depois, visualizou Augustine fazendo malabarismo com o crânio deformado.

Skink tirou um sapo do bolso. O animal imediatamente urinou nele. O homem com orevólver deu um sorriso de escárnio.

A mulher olhou por cima do ombro, perguntando: “O que está acontecendo agora?”.“Se você fumar a seiva deste sapo, verá mastodontes”, retrucou Skink.“Tire essa coisa fedorenta daqui”, ordenou o homem.“Você sabia que já houve mastodontes na Flórida? Eras antes de seus ancestrais começarem a

copular. Os mastodontes eram tão grandes quanto caminhões de cimento.” Skink jogou o sapopela janela com delicadeza. Depois, limpou a urina do sapo no terno listrado do homem.

“Seu cretino”, gritou Snapper, mirando o revólver em direção ao olho bom de Skink.A mulher no volante disse-lhe que ficasse quieto, pois estava chamando a atenção dos outros

motoristas. Tirou o carro da estrada na próxima saída e estacionou em frente a um posto degasolina abandonado. O furacão havia derrubado as bombas, como se fossem pedras de dominó.Saqueadores tinham esvaziado a garagem. Havia um Mazda Miata virado com os pneus paracima, como um besouro.

O homem saiu do carro para urinar atrás do prédio. A mulher ficou segurando o revólver.Parecia tão pouco à vontade que Bonnie ficou com pena dela. A pobre mulher mal conseguiasoerguer a arma. Certamente, aquele era o momento para Skink tentar alguma coisa.

Mas ele não fez nada. Em vez disso, sorriu para a mulher e disse: “Você é realmente umagraça. E sabe disso, é claro. A força motora de sua vida, imagino, tem sido sua beleza física”.

A mulher enrubesceu e depois recompôs-se.“Onde você estava no dia do furacão?”, perguntou Skink.“Num motel com o Mel Gibson ali”, disse a mulher apontando para o homem da cara torta.“Eu estava amarrado a uma ponte. Você deveria tentar a mesma coisa, da próxima vez.”“Ah, claro.”Bonnie acrescentou: “É verdade. Ele não está brincando”.A mulher passou o revólver para a outra mão, dizendo: “O que vocês dois estavam fazendo

na rua Cal usa? Quem mandou vocês? A mulher de Tony?”. Virou para trás, apoiando o revólvernas costas do assento. “Bonnie querida, realmente gostaria de obter algumas respostas.”

“Você acreditaria se lhe dissesse que estou na minha lua de mel?”“Você está brincando”, disse a mulher, olhando com dúvida para Skink.Bonnie explicou: “Não, meu marido não é ele. Meu marido está no México”.

A tempestade havia derrubado o semáforo de Florida City, ou melhor, daquilo que restara deFlorida City. Um policial de ar cansado, com um impermeável amarelo, orientava o trânsito nocruzamento das ruas. Edie Marsh ficou tensa com a presença do policial. Disse a Snapper queescondesse o revólver. Ao passarem pelo policial, Bonnie achou que seria um bom momentopara colocar a cabeça para fora da janela e gritar por socorro, mas não recebeu nenhum sinalnesse sentido de Skink. Ele parecia ter adormecido, com o queixo enterrado no peito.

A maioria das placas ainda estavam caídas, mas Bonnie viu uma anunciando que estavamentrando em Florida Keys. Snapper tinha receio de que houvesse barreiras policiais na rodoviaUS-1, por isso instruiu Edie a pegar a estrada Card Sound.

“Tem pedágio”, ela observou.“E daí?”, retrucou Snapper.“Deixei minha bolsa em casa.”“Mas eu tenho dinheiro.”“É, aposto que tem.” Edie não podia parar de pensar no que o homem caolho contara.

Snapper atacara uma mulher e lhe roubara a aliança de sua mãe.“Quanto você conseguiu por isso?”“Pelo quê?”, perguntou Snapper.“Pela aliança.” Ela olhava para a frente. A estrada seguia, quase interminável, em direção ao

leste.Snapper disse um palavrão. Vasculhou o bolso retirando a aliança. Segurou-a bem perto do

rosto de Edie.“Está feliz agora?”, perguntou ele.Ao ver a joia roubada, Edie teve uma reação inesperada. Sentiu repulsa e depois tristeza.

Tentou imaginar a policial, se era casada, se teria filhos. Pensou na surra horrorosa que Snapperprovavelmente lhe tinha dado.

Meu Deus, pensou Edie. Que vida medíocre e triste tenho levado. Queria acreditar que teriasido diferente se tivesse convencido o jovem Kennedy a dormir com ela. Mas não tinha muitacerteza disso.

“Não consegui penhorar o troço”, Snapper estava dizendo. “A maldita aliança está gravada,ninguém ia querer.”

“O que diz a gravação?”, perguntou Edie. “Na aliança?”“Quem tá ligando para isso?”“Vamos. O que diz?”Bonnie ficou curiosa também sobre a gravação e debruçou-se sobre o assento da frente.

Snapper leu em voz alta: “Para minha Cynthia. Com amor, para sempre”. Deu uma risada deescárnio, colocando o braço para fora da janela, como se fosse atirar a aliança.

“Não faça isso”, disse Edie tirando o pé do acelerador.“Por que não? Se não posso penhorar ou vender esta droga de anel, vou livrar-me dele. Aliás,

isso é altamente recomendável no caso de sermos parados pela polícia.”Edie retrucou: “Não faça isso”.“Tarde demais. Já joguei”, disse Snapper arremessando o anel o mais longe possível. A joia

caiu num canal, fazendo círculos egocêntricos na água.Edie assistiu à cena pelo canto do olho. “Seu cretino”, disse ela. Sua voz saiu dura. Bonnie

sentiu o jipe ganhar velocidade.Desafiador, Snapper sacudiu o revólver preto. “Talvez você nunca tenha ouvido falar em

posse de propriedade roubada — é um crime, caso não saiba. E aqui vai outro crime: violação deliberdade condicional. Em outras palavras, vou direto para a cadeia se for pego. Então, tôcagando pra aliança daquela policial.”

Edie não fez nenhum comentário. Tentou concentrar-se totalmente na estrada estreita, deduas pistas apenas. A toda hora, apareciam troncos de pinheiros, folhagens de palmeiras outábuas no caminho. Edie verificou o velocímetro: cento e cinquenta quilômetros por hora. Nadamal para uma garota da cidade.

Snapper, sem disfarçar o nervosismo, ordenou-lhe que diminuísse a velocidade. Edie fingiunão ouvir.

O homem que se denominava Skink não se mexeu de seu cochilo, transe ou coma, o que querque fosse. Enquanto isso, a jovem recém-casada cuidadosamente retirou a aliança do dedo. Edieobservou tudo pelo retrovisor.

A cabine de pedágio estava vazia e o portão levantado. Edie nem sequer diminuiu avelocidade. Bonnie prendeu a respiração.

Quando passaram chispando pelo portão, Snapper exclamou: “Santo Deus!”.Quando o jipe começou a subir a ponte íngreme, Skink levantou a cabeça. “É este o lugar.”“Onde você passou o dia do furacão?”Skink abanou a cabeça afirmativamente. “Uma glória!”Abaixo da ponte, a luz do sol pintava a baía de Biscayne de faixas cor de cobre e de ardósia.

Mais à frente, um grupo de nuvens carregadas deixava cair uma chuva fina sobre o mangue deNorth Key Largo. Quando o jipe alcançou o alto da ponte, Skink apontou para um bando degolfinhos que nadavam paralelamente a um barco. Lá do alto, onde estavam, os dorsos dosanimais pareciam feitos de cerâmica. Cintilavam à luz do sol, enquanto as ondas os encobriam edescobriam.

“Olhem”, disse Bonnie. Skink tinha razão. A vista era espetacular daquele ponto.Até mesmo Edie Marsh ficou impressionada. Desligou o motor, deixando que o jipe

deslizasse encosta abaixo, devagar. Enquanto isso, tentava continuar observando os golfinhos.

Snapper ficou impaciente. “Que merda é esta?” Cutucando Edie com a pistola, disse: “Ei,continue dirigindo”.

“Calma, calma.”“Disse para dirigir, merda.”“E eu disse para ficar calmo, merda.”Edie estava lívida. A última vez que Snapper vira seu olhar tão cheio de ódio fora momentos

antes de ela atingi-lo com o pé de cabra. Levantou o revólver e disse: “Sua putinha”.Edie falou, com uma sobrancelha levantada: “O que você disse?”.Bonnie receou que Edie perdesse a cabeça e se lançasse à garganta do homem da cara

deformada. Nesse caso, certamente seria morta. Snapper apertou o revólver contra seu seiodireito.

O ex-governador não estava vendo nada do que se passava dentro do carro. Com o dorso parafora da janela, continuava observando os golfinhos e aproveitando um pouco o frescor da chuvafina que caía. Bonnie tentou puxar sua mão, mas era grande demais. Contentou-se em apertardois de seus dedos. Aos poucos, Skink voltou para dentro do jipe, passando a observar o queestava acontecendo.

“Você me escutou”, disse Snapper.“Então foi você que me chamou de putinha?”Com violência, Snapper arrastou o revólver contra seu seio, rasgando-lhe a blusa e ferindo

sua carne. Meu Deus, pensou Bonnie, isso deve ter doído muito.Edie continuou impassível.“Dirija”, ordenou-lhe Snapper novamente.“Quando terminar de assistir ao show dos golfinhos.”“Que se danem os golfinhos.” Snapper levantou o revólver e deu um tiro no teto do jipe.Bonnie gritou, tapando os ouvidos com as mãos. Edie agarrou-se ao volante. A dor no seu

seio esquerdo fez que se perguntasse se fora atingida pelo tiro. Mas não o fora.Snapper, desanimado, olhou para o furo da bala no teto. O cheiro da pólvora fez com que

espirrasse. “Que Deus me abençoe”, disse rindo sarcasticamente.Skink abriu a porta e saiu do jipe para esticar as pernas. “Vocês não amam este lugar?”

Esticou seus braços longos em direção às nuvens. “Ele não faz vocês se sentirem um pouco maisanimais?”

É realmente uma glória, concordou Bonnie mentalmente. Essa é a expressão certa paradefini-lo.

“Volte já para o carro”, gritou Snapper.Skink obedeceu, sacudindo a cabeça como um cachorro para tirar a água da chuva. Sem uma

palavra, Edie ligou novamente o motor e começou a dirigir.

24

“Você quer dizer que não tem galos?”O proprietário da granja desculpou-se. As aves tinham tido muita saída naquela semana.

Ofereceu a Avila um bode para sacrifícios.Avila respondeu que não queria bodes, de modo algum. Sua virilha suturada ainda doía e

coçava muito. “Nunca ouvi falar de falta de galos. Que outro tipo de animal você tem?”“Tartarugas.”“Não tenho tempo para lidar com tartarugas.” Remover o casco era trabalho duro. “Você tem

pombos?”“Não, desculpe.”“Carneiros?”“Só amanhã pela manhã.”“E gatos?”“A venda de gatos para fins de sacrifícios não é permitida.”“Ah, e desde quando você se tornou respeitador das leis?” Avila olhou para o relógio de

pulso. Tinha que se apressar. Fazer o ritual e depois partir para Keys. “Tá bem, o que você tem,então?”

O proprietário conduziu-o a um pequeno depósito e apontou para um engradado de madeira.Dentro, Avila viu um pequeno animal peludo. Seus olhos pareciam duas contas negras e seu raboera malhado de preto.

“O que é isso? Algum tipo de guaxinim?”“É um quati da América do Sul.”O animal arrepiou-se e enfiou o focinho pelas grades de madeira. Era um dos animais mais

estranhos que Avila já vira.“Preciso fazer um sacrifício para Chango”, disse Avila.“Ah, Chango vai adorá-lo.” O proprietário achava que Avila era um amador que não sabia

nada sobre o vodu.“Ele morde?”“Não, amigo. Veja.” O proprietário acariciou o focinho do animal como se ele fosse um

cachorrinho de estimação.“Ok. Quanto custa?”“Setenta e cinco dólares.”“Pago só sessenta, cara. Ajude-me a levá-lo para o carro.”Ao chegar em casa, viu o Buick de sua mulher saindo da garagem. Ela e sua mãe estavam

certamente indo para o bingo. Avila acenou e elas acenaram.Ficou exultante. O momento era perfeito. Teria a garagem toda só para ele. Rapidamente

puxou o engradado de madeira para dentro, fechando o portão eletrônico. O quati protestou,dando sinais de nervosismo. De um baú de junco Avila retirou os objetos para o sacrifício —moedas manchadas, cascas de coco, costelas de gato descoradas, cascos de tartaruga polidos euma velha taça de estanho. De um cofre de ferro Avila pegou seu mais recente e poderoso

artefato — o pedaço de osso mordido pelo leão que pertencera ao homem que tentara crucificá-lo. Com reverência, colocou o osso na taça de estanho, que logo estaria cheia de sangue animal.

Para alimentar-se, Chango gostava de vinho seco e de balas. Como não tivera tempo paraprovidenciar essas iguarias, Avila arranjou uma jarra de sangria e um tubo de pastilhas velhaspara perfumar o hálito. Acendeu três velas grandes e colocou-as formando um triângulo no chãoda garagem. Dentro do triângulo, começou a arrumar o altar. O quati se aquietara. Avila podiasentir seu olhar penetrante de dentro do engradado. Será que o animal sabia que seriasacrificado? Afastou rapidamente o pensamento lúgubre.

O último item que retirou do baú de junco era o mais importante. Uma faca de caça, comcabo esculpido de cornos de alce genuínos. A faca era uma antiguidade feita em Wyoming. Avilaa recebera como suborno, na época em que era inspetor de obras. Fora um presente de Natal deum construtor não licenciado, desejoso de que ele não reparasse num suporte de vigas defeituoso.Avila concordara em ignorar o suporte, em troca do presente.

Afiou a faca numa pedra, com força. O quati começou a caminhar de um lado para o outro ea bufar. Avila escondeu a lâmina reluzente da faca da vista do animal condenado à morte. Depoisentrou no meio do triângulo de velas e improvisou uma oração curta a Chango. Avila esperavaque Chango entendesse que estava com pressa.

Depois, munido de um pé de cabra, começou a desmontar o engradado de madeira. O quatificou profundamente agitado. Avila tentou acalmá-lo com palavras suaves, mas o animal não sedeixou enganar. Saiu chispando do engradado, correndo em círculos pela garagem. Espalhou osossos de gato e derrubou duas velas do ritual. Avila tentou acertá-lo com o pé de cabra, mas oanimal era rápido e ágil demais. Como se fosse um macaco, subiu em uma prateleira de metal ede lá pulou para o trilho no teto por onde deslizava o portão eletrônico. Empoleirou-se ali,usando o rabo para se equilibrar. Dava guinchos agudos e mostrava os dentes amarelos e afiados.Enquanto isso, uma das velas rolou para baixo do cortador de grama, incendiando o tanque degasolina da máquina. Proferindo palavrões, Avila correu para a cozinha para pegar o extintor deincêndio. Quando voltou à garagem, deu-se conta de que um desastre maior ocorrera.

O portão eletrônico encontrava-se aberto. O Buick de sua mulher estava estacionado emfrente à garagem. Por que ela resolvera voltar, Avila não sabia. Talvez tivesse decidido assaltar acaixa enterrada no quintal para ter mais dinheiro para o bingo. Mas isso não importava, naverdade.

Aparentemente, sua sogra saíra do carro primeiro. A cena que Avila observava era tãosurpreendente que ele temporariamente esqueceu o incêndio. Por razões que estavam além dacompreensão humana, o quati extenuado pulara do trilho do portão, saíra da garagem e seencarapitara na sogra de Avila. Estava agora agarrado aos cabelos da mulher, os quais pareciamuma torre de cimento cor de laranja. Avila sempre acreditara que sua sogra usasse peruca, masagora dera-se conta de que seu estranho penteado era feito de cabelos de verdade. Ela secontorcia e corria, tentando livrar-se do animal. O quati grudava-se em seus cabelos com suasquatro patas. Nenhuma peruca teria resistido a tal ataque.

Sua mulher gritava para que fizesse alguma coisa, em vez de ficar parado olhando a cenainacreditável. Utilizar o pé de cabra estava fora de questão. Se errasse o golpe, mataria sua sogra.Assim, Avila apelou para o extintor de incêndio. Descarregou o extintor no quati, encharcando oanimal de bicarbonato de sódio. O quati rosnou e agitou-se, mas não largou os cabelos da velha.Na confusão, é claro que o conteúdo do extintor também atingiu sua sogra que, com a visãoturva, começou a correr sem rumo. Avila foi atrás dela por três quadras, acionando o extintor devez em quando, mas a velha corria a uma velocidade inacreditável.

Avila acabou desistindo. Voltou para casa para apagar o fogo. Depois, arrastou o cortador degrama carbonizado para o quintal. Sua mulher continuava estirada sobre o capô do carro,gritando: “Mamãe, mamãe. Veja o que você fez à mamãe”.

Sobrepujando seus gritos, podia-se ouvir o barulho das sirenes dos bombeiros — algum dosvizinhos certamente os chamaram. Avila pensou: Por que as pessoas não cuidam de suas própriasvidas? Quando entrou em seu carro, estava furioso.

No momento em que virou a chave do carro, a janela de passageiros estraçalhou-se. Avilaquase se urinou de susto. Lá estava sua mulher, possessa, com o pé de cabra na mão.

“Seu cretino, miserável”, gritou.Avila pressionou o acelerador e partiu.“Oh, Chango, Chango”, murmurava, limpando os cacos de vidro do colo. “Sei que pus tudo a

perder novamente. Mas não me abandone. Não esta noite, por favor.”

Uma interessante peculiaridade desse furacão, pensou Jim Tile, enquanto dirigia pela costade North Key Largo, era a área que atingira. O olho da tempestade caíra em terra firme,devastando tudo num estreito corredor, mas deixando intactas as áreas ao sul e ao norte da trilha.Os ventos destruíram grande parte do mangue. Não obstante, a poucos quilômetros da costa,restaram regiões inteiras que não foram atingidas, onde a vegetação do mangue permaneciaviçosa e luxuriante. Um estacionamento de trailers velhos, nas redondezas, permanecia intacto.Não se via uma só janela quebrada ou uma árvore caída.

Incrível, pensou Jim Tile.Acelerou o carro, atingindo cento e cinquenta quilômetros por hora. As luzes azuis

intermitentes estavam ligadas, mas não a sirene.Paradise Palms era uma boa pista, mas não totalmente segura. Augustine fizera o que pudera

numa situação difícil. O truque com o botão de rediscagem do telefone fora esperto. Talvez ocara que surrara Brenda estivesse no jipe preto Cherokee. Augustine não sabia ao certo. Talvezestivesse indo para Keys, talvez não. Talvez ficasse com o jipe, talvez o trocasse por outro carro.

A única coisa certa era que ele levara consigo Skink e a namorada de Augustine. Ascircunstâncias do rapto ou as razões dele permaneciam um mistério. Augustine prometera quenão faria nada em Paradise Palms antes de sua chegada. O patrulheiro lhe dissera que era umaexcelente ideia. Salvamentos efetuados por um só homem apenas eram bem-sucedidos nosfilmes.

A velha estrada oriunda de Ocean Reef se unia à rodovia US-1, abaixo de Jewfish Creek. Apartir desse ponto, a pista passava a ter quatro vias. O tráfico ficou mais calmo, e Jim teve quediminuir a velocidade para cento e vinte quilômetros por hora, desviando-se de carros alugados,mais vagarosos. Era hora do crepúsculo, mas o sol ainda incomodava os motoristas menosexperientes. Por sobre a baía da Flórida podiam-se ver nuvens escuras e alguns raios. Jim Tilenão gostou nada da perspectiva de chuva forte. Uma perseguição de carro já era suficientementedifícil com bom tempo, quanto mais com chuva.

Na altura de Plantation Key, a rodovia se estreitou, passando apenas a ter duas mãos. JimTile avistou o jipe preto Cherokee um pouco à frente. Rapidamente, desligou as luzes da viatura.Tinha que ser o jipe do bandido. Os protetores de lama eram tão cafonas e espalhafatosos comoAugustine os descrevera.

Quatro veículos separavam Jim Tile do jipe — três carros de passageiros e uma caminhoneterebocando um barco de pesca num trailer sacolejante. O barco era grande e maciço o suficiente

para impedir que os passageiros do jipe percebessem a viatura policial de Jim. A chuva jácomeçara a cair. O céu escuro prenunciava um verdadeiro dilúvio.

A caminhonete, à frente de Jim, começou a diminuir a velocidade de forma repentina, masprevisível. A placa de Michigan indicava que o motorista não tinha familiaridade com a Flórida.O motorista e uma mulher estavam discutindo acaloradamente, numa clara demonstração dedesavença conjugal. Um terceiro passageiro desdobrou um mapa tão grande quanto uma toalhade mesa.

Estão definitivamente perdidos, pensou Jim. Perdidos em Florida Keys, onde havia só umaentrada e uma saída. Simplesmente inacreditável.

O mapa foi passado ao casal no banco da frente. A caminhonete começou a oscilar de umlado para outro, seguida pelo barco. De um outro carro, alguém jogou duas embalagens deMcDonald’s. Batatas fritas e ketchup se espalharam pela beira da estrada.

“Porcos”, Jim Tile exclamou em voz alta. Olhou para o velocímetro: cinquenta quilômetrospor hora. Se tentasse ultrapassar a caminhonete, o cara do jipe o veria. Jim estava possesso. Achuva apertou, e ele ligou os faróis e os limpadores de para-brisa.

A caminhonete vagarosa continuou à sua frente por todo o percurso de Plantation Key.Depois parou.

Jim teve que parar também, pensando: Positivamente, hoje não é meu dia.Mais à frente, podia-se ver a ponte levadiça Snake Creek. O jipe preto e três veículos

passaram por ela com facilidade, antes que os portões baixassem. O idiota da caminhonete teriapassado também, se usasse o acelerador.

Agora, o patrulheiro estava empacado na estrada. O jipe passara para o outro lado da ponte eestava fora de sua visão. Jim saiu do carro, batendo a porta. Com a chuva escorrendo pelo seuchapéu, aproximou-se do motorista da caminhonete e pediu para ver sua carteira de motorista eos documentos do carro. Nos sete minutos que se passaram, antes que a ponte levadiça baixassenovamente, o patrulheiro deu sete diferentes multas ao perplexo motorista da caminhonete. Trêsdelas requereriam inconvenientes audiências no Tribunal.

A caminho da casa de Tony Torres, Fred Dove parou para comprar flores e vinho branco.Queria que Edie soubesse que estava orgulhoso de seu desempenho como Neria, a devotadaesposa de Tony.

Quando estacionou no número 15 600 da rua Calusa, observou que o jipe não estava lá. Seucoração acelerou diante da possibilidade de que Snapper tivesse ido embora, deixando-o a sóscom Edie. Ela não dava a mínima para privacidade, mas Fred sim. Não conseguia sair-se bemsexualmente com aquele maníaco assistindo à televisão no cômodo ao lado. A presençabarulhenta e truculenta de Snapper o intimidava.

Ninguém respondeu quando bateu na viga da porta. Entrou e começou a chamar por Edie. Aúnica resposta foram os latidos dos cachorros no quintal. Pareciam cansados e roucos.

A espreguiçadeira na sala estava desocupada e a televisão desligada. Fred se animou.Positivamente, Snapper partira. A casa estava quase às escuras. Quando apertou o interruptor,nada aconteceu. O gerador não estava funcionando. Faltava gasolina, provavelmente. Fredencontrou a lanterna de Snapper e começou a percorrer os aposentos, na esperança de achar Ediecochilando num colchão. Mas não a encontrou.

Fred viu a bolsa dela no balcão da cozinha. Sua carteira estava aberta em cima da bolsa.Dentro havia vinte e dois dólares e um cartão de crédito Visa. Fred ficou aliviado. Pelo menos, a

casa não fora assaltada. Segurou a carteira de motorista de Edie sob a luz da lanterna. Aexpressão dela na fotografia assustou-o. Seus olhos não inspiravam confiança.

Ora bolas, muitas garotas não saem bem nas fotografias de suas carteiras de motoristas.Fred voltou à sala de estar, acendeu uma vela e sentou na espreguiçadeira. Perguntou-se onde

Edie fora e por que deixara a bolsa na casa, quando sabia que as ruas estavam cheias desaqueadores. Parecia que partira apressada, provavelmente com Snapper, no jipe.

Fred resolveu esperar. A vela exalava um cheiro de baunilha. O ambiente aconchegante, à luzda vela, fê-lo lembrar da noite em que quase fizeram amor no chão, antes de serem interrompidospor Snapper. A humilhação daquele momento ainda o perseguia. Snapper passara a ter umestranho poder sobre ele. Esse estranho poder era ainda maior devido ao revólver que carregavapor toda parte. Fred estava ansioso para pagá-lo e livrar-se dele. Então, ele e Edie estariam livrespara se amar.

De vez em quando, Fred ligava a lanterna e examinava outra vez a fotografia de Edie nacarteira de motorista. Seu olhar de abutre não se modificava. Fred pensou que talvez fossejustamente o lado desonesto dela que o excitava tanto. A ideia o perturbou de tal forma queresolveu se distrair com coisas mais leves. Não sabia antes, por exemplo, que seu nome do meioera Deborah. Era um nome do qual gostava. Comum e confiável. Poderia apostar que em todasas prisões femininas da América não havia meia dúzia de Deborahs. Talvez o nome fosse dealguma avó de Edie ou de uma tia especial. De qualquer modo, achava que esse bom nome eraalgo em favor de Edie.

Pensou também em seu endereço em West Palm. Que tipo de quadros Edie teria penduradonas paredes? Qual a cor das toalhas nos banheiros? Que tipo de ímãs coloridos teria colocado naporta do refrigerador? Linus ou Snoopy? Talvez Garfield, o gato? Pensou também na cama deEdie. Esperava que fosse de tamanho maior que o comum, feita de metal ou de madeira pesada— qualquer coisa, menos uma cama de água, pois esse tipo de cama era péssimo para seudesempenho sexual. Esperava também que os lençóis fossem de seda importada e que um dia elao convidasse para deitar neles.

Fred ficou na espreguiçadeira por mais de duas horas. As serras e martelos dos vizinhos jáhaviam silenciado, e ele continuava sentado ali. Finalmente, levantou-se e foi para a janela noexato momento em que passava um grupo de adolescentes que poderia tentar roubar seu carro.Felizmente, os rapazes ignoraram seu Sedan desprovido de acessórios. Alguns minutos depois,contudo, ouviu um espocar que tanto poderia ser o barulho de um cano de descarga como detiros. No quintal, Donald e Maria começaram a latir freneticamente, acompanhados por maismeia dúzia de cachorros da vizinhança. Os nervos de Fred estavam se desgastando rapidamente.Recolocou a carteira de motorista de Edie em sua bolsa. Com pressa, arrumou as flores num vasoe colocou ao lado da garrafa de vinho na mesa da sala de jantar. Apagou a vela e foi ao quintalver os cachorros.

Emaranhados nas correntes, os animais choramingavam de fome, solidão e ansiedade. Emsuas frágeis memórias, ainda guardavam o encontro quase fatal com um urso. No momento emque Fred os libertou, subiram em seu colo e começaram a lambê-lo. Fred resolveu levá-los a umpasseio rápido.

Divertindo-se com a alegria dos animaizinhos, Fred ficou preocupado com a possibilidade depassarem a noite sozinhos. Escreveu um bilhete para Edie e colocou em cima de sua bolsa.Depois, pôs os dois cachorros no Sedan e foi para o hotel. Conseguiu levá-los para dentro,escondidos num saco de lavanderia. A companhia deles seria um pouco melhor do que assistir afilmes sozinho na TV a cabo.

Os hotéis em Upper Keys estavam ficando lotados com agentes de companhias de seguros. Ofuncionário do Paradise Palms disse que se sentia culpado pelo fato de o hotel estar tento lucrosextras por causa do furacão.

“Mas, enfim, um cliente é sempre um cliente. Qual o seu nome?”Augustine apresentou-se como o irmão de Lester. “Telefonei um pouco mais cedo. Qual o

número do quarto dele?”“Ele não chegou ainda.” O funcionário debruçou-se sobre o balcão e sussurrou: “Mas suas

irmãs chegaram há uns vinte minutos. Estão no quarto 255. Quero dizer, acho que são suasirmãs, pois se registraram sob o nome de Parsons”.

“Ah, claro”, disse Augustine, fingindo satisfação. Irmãs? Não podia imaginar quem seriam.Pagou pelo quarto com dinheiro vivo. “Suas irmãs certamente sabem como se vestir para

uma festa”, comentou o funcionário.“Ah, meu Deus. O que elas fizeram?”“Não, não se incomode com nada. Deixe que se divirtam.” O funcionário lhe deu a chave do

quarto. “O senhor está no 240. Tentei colocá-lo no quarto ao lado de suas irmãs, mas umespertinho da Prudential se recusou a trocar de quarto.”

“Não tem importância, está tudo bem.”Ao entrar no quarto, Augustine colocou o 38 na escrivaninha, ao lado da porta. Estava

surpreso por ter chegado antes do jipe a Islamorada. Nem sequer havia passado por ele nocaminho. Teria o jipe tomada a estrada de Card Sound ou parado em algum lugar? Nesse caso,por que razão? Seu grande medo era que o bandido da cara deformada já tivesse matado Bonniee Skink. Havia centenas de lugares convenientes para esconder cadáveres entre Homestead e KeyLargo. Poderia levar anos para encontrar os corpos. Mas tentava de todo modo afastar essepensamento funesto.

Bem, de qualquer forma, ele ficaria sabendo. Se o bandido aparecesse sem Skink e Bonnie,então teria certeza.

Aliás, sequer tinha certeza de que o bandido viria para aquele hotel. Não sabia ao certo se otal “Lester Parsons” era com efeito o bandido da cara torta.

Colocou o rifle para dardos de tranquilizante no armário e a pistola na cintura, embaixo dacamisa. Ao dar o primeiro passo para fora da porta, a chuva molhou seu rosto. Protegeu os olhoscom a mão e correu para o quarto número 255. Bateu sete vezes, de forma cadenciada, para dar aimpressão de que se tratava de alguém conhecido.

A porta foi aberta por uma mulher perfumada, de cabelos vermelhos e saltos altos, numbiquíni verde brilhante. Augustine a reconheceu como a prostituta que saíra da rua Calusa,número 15 600.

Em seu peito esquerdo cheio de sardas, via-se a tatuagem de um pirulito cor de laranja.Estava segurando um coquetel de rum.

“Droga, pensei que fosse Snapper”, disse ela.“Ah, devo estar no quarto errado. Desculpe.”“Não precisa se desculpar.”Uma outra moça saiu do banheiro dizendo: “Maldita chuva. Queria ir à piscina”. Usava um

maiô prateado, uma peruca loura chamativa e brincos de argolas. Quando viu Augustine à porta,perguntou: “Quem é você?”.

“Pensei que este fosse o quarto de minha irmã, mas devo estar no hotel errado.”A moça de cabelos vermelhos se apressou como Bridget. “Você quer entrar para se enxugar

um pouco?”

“Não se for deixar Snapper zangado.” Augustine pensou: Snapper — que diabo de nome seráesse?

A ruiva riu e disse: “É, ele é o tipo do maníaco ciumento. Mas pode entrar, de qualquermodo”.

A loura acrescentou: “Meu Deus, Bridget, eles vão chegar a qualquer momento...”.Mas Augustine já entrara. Inspecionava o quarto sem ser incomodado: uma mala, dois

estojos de cosméticos, um vestido de festa pendurado num cabide. Bridget jogou-lhe uma toalha.Informou-lhe que o nome de sua amiga era Jasmine. Ambas tinham vindo de Miami.

“Meu nome é George. Sou da Califórnia”, disse Augustine, apertando a mão de Bridget.Ela continuou segurando sua mão, examinando seu dedo anular. “Não é casado?”“Não”, respondeu Augustine, retirando a mão.Jasmine aconselhou Bridget a não se envolver com Augustine. Não havia tempo suficiente

para isso. Bridget retrucou que não precisaria de muito tempo.“George parece ser o tipo rápido”, disse Bridget, piscando o olho mecanicamente para

Augustine. “Quer se divertir um pouco até a chuva parar?”“Obrigado, mas realmente não posso ficar.”“São só cem dólares. Pode ter nós duas por esse preço.”Jasmine vestiu uma camiseta branca e comprida sobre o biquíni. “Ei, não tenho o direito a

opinar? Cem dólares pelo quê, exatamente?”Bridget abraçou Augustine pela cintura, puxando-o para perto de si. Ele sentiu seus seios

duros de silicone contra suas costelas. “Faço por setenta e cinco. E deixo você chupar o pirulitono meu peito.”

“Não posso. Sou diabético”, brincou Augustine.Jasmine deu uma gargalhada sarcástica. “Vocês estão me dando pena. Bridget, deixa o

George ir procurar suas irmãs, vamos.” Sentou-se de pernas cruzadas na cama e começou aaplicar cola numa unha artificial que se quebrara. “Cara, esse tempo tá uma merda”, disse, semse dirigir a alguém em particular.

Bridget afrouxou o abraço, afastando-se de Augustine. “Nosso George tem um revólver”,anunciou, meio alarmada. “Eu senti quando o abracei.”

Jasmine soprou a cola e olhou para cima. “Merda, Bridget. Eu sabia. Está satisfeita, agora?Estamos presas.”

“Não, não estão.” Augustine retirou a pistola da cintura, mostrando-a de forma amigável.“Não sou policial, juro.”

Os olhos de Jasmine se estreitaram. “Merda, agora tô sabendo. O amante guinchadormandou-o vir aqui.”

“Quem?”“Avila.”“Nunca ouvi falar nele.”Bridget sentou-se ao lado de Jasmine na cama. Nervosa, cruzou os braços sobre os seios.

“Então quem é você afinal, George? O que você quer?”“Informação.”“Ah, claro.”“É verdade. Quero que vocês me falem sobre esse tal de Snapper. E também quero saber se

vocês duas podem guardar um segredo.”

25

O furgão de Neria ficou sem gasolina perto de um posto em Fort Drum. Neria postou-se noacostamento da rodovia e sinalizou para uma caminhonete. Era uma pick-up Chevrolet bastantevelha. Havia três homens na cabine e quatro outros deitados na carroceria. Estavam vindo doTennessee. Neria ficou um tanto quanto apreensiva.

“Estamos procurando trabalho”, explicou o motorista. Ele era magro, estava com a barba porfazer e tinha tatuagens de figuras bíblicas em ambos os braços. Disse que seu primeiro nome eraMateus e o segundo Lucas.

Neria continuava nervosa. Os homens olhavam para ela com voracidade. “Vocês trabalhamcom quê?”, perguntou ela.

“Construção. Estamos aqui por causa do furacão.” Mateus tinha uma lata para carregargasolina. Colocou quatro galões no tanque do furgão. Neria agradeceu-lhe e esclareceu que tinhasó três dólares.

“Tudo bem”, disse Mateus.“Que tipo de construção vocês fazem?”“Qualquer coisa.” Os outros homens riram. “Também serramos árvores. Temos experiência”,

acrescentou Mateus.Neria nem perguntou se o grupo tinha licença para trabalhar em construção na Flórida. Sabia

a resposta. Os homens desceram da caminhonete para esticar as pernas e urinar. Um deles tevemodos suficientes para virar-se de costas enquanto abria o zíper.

Neria decidiu que era hora de ir embora. Mateus postou-se entre ela e o furgão. “Não ouviseu nome.”

“Neria.”“É cubano, não é?”“É.”“Mas você não tem sotaque.”“Claro, nasci em Miami.”Mateus pareceu gostar da informação. “Então você está voltando para casa, não é? Perdeu

muita coisa com o furacão?”“Não vou saber até chegar lá.”“Trabalhamos em residências também.”“É mesmo?”“Madeira ou cimento, não importa. Também fazemos telhados. Temos um cara que trabalha

muito bem com piche. Aquele cara lá, mijando nos arbustos. Ele trabalhou na nova loja Walt-Mart em Chat’nooga. É primo de minha mulher.”

Neria comentou: “Pelo que vejo, vocês não vão ter o menor problema em achar trabalho nocondado de Dade”.

“E que tal a sua casa?”“Não sei. Não vi minha casa ainda.”“Pode ser que esteja totalmente destruída.”

Devagar, Neria abriu a porta do furgão. Só quando a porta bateu nele Mateus saiu docaminho.

Neria ajeitou-se ao volante e ligou o motor. “Vamos combinar uma coisa. Se meu telhadoestiver ruim, telefono para vocês. Onde estarão hospedados?”

Os outros homens riram de novo. “No Hilton”, ironizou Mateus. “Veja bem, não temosdinheiro para pagar um hotel. Estamos acampando aqui e ali.”

Neria procurou um lápis e um pedaço de papel na bolsa e escreveu um número de telefonefalso. “Tá bem. Então vocês me telefonam, tá?”

Mateus nem olhou para o papel. “Tenho uma ideia melhor. Uma vez que nenhum de nósconhece Miami...”

Não, oh não, pensou Neria.“... Bem, vamos segui-la. Assim, teremos certeza de que não vamos nos perder. E se sua casa

estiver precisando de conserto, poderemos começar imediatamente.”O plano de Mateus mereceu o apoio dos outros homens. Neria disse, sem muita esperança:

“Não acho que seja uma boa ideia”.“Temos referências”, acrescentou Mateus.Neria estava examinando a caminhonete para ver se o furgão poderia ir mais rápido do que

ela.“Fizemos bastante trabalho em Charleston, depois do furacão Hugo”, continuou Mateus.“Está ficando tarde.”“Pode ir. Vamos estar bem atrás de você.”E assim foi, por todo o percurso da rodovia.O farol alto e solitário da caminhonete, atrás de Neria, iluminava o interior do furgão como

se fosse um estúdio de televisão. Neria estava tensa, sabendo que sete pares de olhos masculinosa observavam intensamente. Dirigia bem devagar, na esperança de que os matutos se cansasseme desistissem de segui-la. Mas eles não desistiram.

Tudo que poderia fazer era tentar tirar partido da situação. Mesmo que os neandertais nãosoubessem nada de construção, talvez pudessem ser úteis na caça ao seu marido fugitivo eladrão.

Max Lamb entreabriu a porta, colocando a cabeça para fora. Nunca conhecera um agente doFBI antes. Este usava uma polo verde, sapatos Dockers e uma calça de couro Bass Weejuns.Segurava uma sacola comprada na loja de ferragens Ace.

Max conhecia as marcas de quase todos os artigos de consumo. Considerava parte de seutrabalho saber quem comprava o que nos EUA.

O agente perguntou: “Augustine está?”.“Não, não está.”“E quem é você?”“Posso ver sua identificação?”, pediu Max.O agente mostrou-lhe um distintivo inserido numa carteira. Max disse-lhe que entrasse.

Sentaram na sala de estar. Max perguntou o que havia na sacola, e o agente explicou que era umabroca. “O furacão fez despencar os armários de minha cozinha”, disse o agente.

“É uma Black and Decker?”“Não, uma Makita.”“Ah, é uma ferramenta de primeira classe.”O agente, com muita paciência, perguntou-lhe se era amigo de Augustine.

“Mais ou menos. Meu nome é Max Lamb.”“Ah, sim? Fico feliz de saber que você está bem.”Os olhos de Max saltaram.“Você tinha sido raptado, não tinha?”, comentou o agente.“Ah, é verdade.” Max ficou exuberante. Bonnie provavelmente ficara tão preocupada que

avisara o FBI. Era uma prova de sua dedicação e amor.O agente prosseguiu: “Ela tocou a fita para mim. A fita com a mensagem que você deixou na

secretária eletrônica”.“Ah, então você também ouviu a voz dele. Do cara que me raptou.” Max pegou uma cerveja

do refrigerador. O agente do FBI aceitou uma Sprite.“Onde está sua mulher?”, perguntou o agente.“Não sei.”Excitado, Max contou a história toda, desde seu rapto na rua Calusa, passando pelo

salvamento em Stiltsville, até o desaparecimento de Bonnie com Augustine e o ex-governadordemente. O agente do FBI ouviu tudo com genuíno interesse, mas não tomou qualquer nota. Maxpensou se por acaso eles seriam especialmente treinados para guardar na memória tudo o queouviam.

“Esses homens que estão com ela são perigosos”, disse Max.“Sua mulher foi levada contra a vontade dela?”“Não, senhor. E é por isso que eles são tão perigosos.”“Você está me dizendo que ele colocou uma coleira no seu pescoço?”“Uma coleira de choque. Do tipo que se usa para treinar cachorros de raça.”O agente do FBI perguntou se o ex-governador fizera a mesma coisa com Bonnie. Max disse

achar que não. “Ela é muito ingênua e impressionável. Eles se aproveitaram disso.”“E qual o papel de Augustine nisso?”“Acho que o ex-governador fez uma lavagem cerebral nele também.” Abriu mais uma

cerveja e um pacote de salgadinhos.O agente comentou: “Não vai ser fácil processar o ex-governador. Será a sua palavra contra a

dele”.“Mas o senhor acredita em mim, não?”“Veja, não importa muito no que eu acredito ou não. Coloque-se no lugar dos jurados. Essa

história é muito estranha...”Max levantou-se de repente, com a boca cheia de salgadinhos. “Pelo amor de Deus, minha

mulher está desaparecida.”“Eu entendo. Também estaria preocupado.” O agente era enlouquecedoramente paciente e

educado. “E não estou tentando lhe dizer o que fazer. Mas precisa saber as dificuldades que vaiencontrar.”

Max sentou-se novamente, furioso.O agente explicou que o FBI só se envolvia com raptos se fossem exigidos resgates. “Não

houve pedido de resgate no seu caso, nem no de sua esposa.”“Mas eu acho que a vida dela corre perigo e que vocês vão estar em maus lençóis se alguma

coisa acontecer com ela.”“Acredite em mim. Entendo sua situação.”Não, não entende, pensou Max. Se entendesse, não falaria comigo como se eu tivesse dez

anos de idade.O agente perguntou: “Já contatou a polícia?”.

Max mencionou o patrulheiro negro que era conhecido do ex-governador. “Ele disse que eupoderia processá-lo. Disse que me levaria até a delegacia.”

O agente balançou a cabeça. “Esse seria o melhor procedimento, se é que já se decidiu arespeito.”

Max disse ao agente que havia algo que ele precisava ver. Levou-o até o quarto de hóspedes,mostrando-lhe a estante cheia de crânios. “Diga-me, honestamente”, disse ele ao agente, “osenhor não ficaria preocupado? Ele faz malabarismo com essas coisas.”

“Augustine? É, eu sei.”“Então o senhor sabe?”“Ele não vai machucar sua mulher, pode ter certeza.”“Ah, sinto-me tão melhor com suas palavras...”, ironizou Max.O agente parecia imune ao sarcasmo. “Sua mulher vai fazer contato, mais cedo ou mais tarde.

É o que eu acho. Se não acontecer, pode me telefonar. Ou melhor, telefone mesmo que ela entreem contato.” Deu seu cartão a Max, que o examinou, cheio de ceticismo amargurado. Maxdirigiu-se para a cozinha e o agente o seguiu.

“Estive pensando...”, disse o homem do FBI. “Augustine lhe deu uma chave da casa?”“Não. Mas a porta corrediça estava aberta.”“Então você entrou. Ele não sabe que você está aqui?”“Bem...” Não havia ocorrido a Max que infringira a lei. Por um momento, pensou que fosse

ser preso pelo homem do FBI.Mas o agente apenas disse: “É uma ótima maneira de levar uma bala na cabeça — entrar na

casa de alguém sem que ninguém saiba. Especialmente aqui em Miami”.Max, rangendo os dentes, percebeu a ironia da situação. Estivera gastando seu latim. Um

patrulheiro era amigo do ex-governador, e um agente do FBI era amigo do colecionador decrânios.

“Quer saber o que realmente desejo?”, disse Max, terminando a cerveja e colocando a garrafano galpão. “Tudo o que desejo é encontrar minha mulher, colocá-la num avião e voltar paraNova York. Esquecer este lugar maldito, esquecer o furacão.”

O agente apenas comentou: “Parece-me um ótimo plano”.

26

Snapper forçou Edie a parar numa loja de bebidas em Islamorada.“Agora não”, disse ela.“Estou precisando, porra.”“Mas estamos quase chegando.”Ouviu-se uma voz estrondosa vinda do banco de trás: “Deixe o homem tomar um drinque”.Edie parou atrás da loja, fora da estrada. Jim Tile não pôde ver o jipe Cherokee quando

passou na estrada. Tampouco Avila quando passou dez minutos depois.Não havia jeito de convencer Snapper a não beber, e Edie estava preocupada. Sabia muito

bem a loucura que era misturar álcool com analgésico. Snapper poderia ficar hibernando por ummês.

A moça que se chamava Bonnie pediu uma Coca-Cola gelada. “Estou morrendo de calor.”“Bem-vinda à Flórida”, disse Edie sarcasticamente.Snapper jogou três notas de dez dólares no colo de Edie. “Traga-me um Johnnie Walker,

rótulo vermelho.”“É uma má ideia para quem tá cheio de codeína.”“Merda. Já tomei coisa muito pior. E, depois, não sei se foi codeína que tomei.”“Seu joelho estava doendo, lembra? No vidro de comprimidos que lhe dei estava escrito

codeína.”Snapper passou o revólver para a mão esquerda. Com a mão direita, puxou um tufo de cabelo

de Edie com toda força, como se estivesse arrancando uma erva daninha. Quando ela gritou dedor, ele disse: “Estou cagando para o que dizia no vidro. Mesmo que fosse aguarrás, quero meuuísque, entendeu?”.

Edie conseguiu soltar-se, pulando para fora do jipe. Ao entrar na loja de bebidas, fez umgesto obsceno com o dedo para Snapper. Ele disse apenas: “Eta, cadela teimosa”.

Skink concordou.Bonnie sentia como se sua pele fosse rachar de calor. Pensou que seria maravilhoso poder

mergulhar na neve. “Palavra de honra. Está tão quente que tô com vontade de tirar a roupa.”Não pôde acreditar que dissera aquilo em voz alta.Snapper ficou tão perplexo e confuso que sequer sentiu desejo. “Meu Deus, qual é o

problema de vocês?”Bonnie disse: “Estou sufocando de calor”.Os olhos de Snapper fixaram-se nos seios de Bonnie. Nada como um par de seios nus para

reverter o equilíbrio do poder. Sabia que, se ela desnudasse os seios, sua posição ficariaenfraquecida e sua autoridade instantaneamente diminuída. Estaria em tal situação dedesvantagem que nem o revólver o ajudaria.

“Não tire a maldita blusa”, disse-lhe ele.“Não se preocupe”, respondeu Bonnie, abanando-se nervosamente. No cargueiro do jipe,

Levon Stichler gemeu dentro da cortina. Skink calculou que o velho ouvira a conversa e estavacurioso para ver o que se passava.

Edie Marsh voltou da loja. Seu cabelo brilhava com as gotas de chuva. Deu a Bonnie umagarrafa de refrigerante Dr. Pepper. “As Cocas não estavam geladas”, explicou. Jogando um sacode papel marrom no colo de Snapper, disse-lhe rudemente: “Toma, panaca”. Ele retirou de dentroa garrafa de Johnnie Walker, abrindo-a com uma só mão. Jogando a cabeça para trás, tomouvários goles, como se fosse água de cantil.

“Vá com calma”, advertiu Edie.Ele apenas limpou os lábios com desprezo. “Aposto que você ficaria bem completamente

careca. Você poderia ficar parecendo gêmea daquele cara do Star Trek, o Gene Luke.”Edie rosnou: “Toque no meu cabelo de novo para ver uma coisa. Experimente”.Ele sacudiu o revólver, colocando o cano encostado no nariz de Edie. “Vamos. Alguém tente

me convencer a não acabar com esta cadela.”Bonnie pensou: Oh, meu Deus, não deixe que isso aconteça. Ela tremia e suava a um só

tempo.Snapper, displicentemente, tomou outro gole de uísque. Skink lembrou-lhe que sua munição

era escassa. “Se você atirar nela, vai ficar só com uma bala para todos nós.”“É, mas há outras maneiras de matar pessoas.”Skink deu uma gargalhada. “Meu filho, sou imune a objetos cortantes ou contundentes.”Edie tentou chantagear Snapper. “Se você puxar o gatilho, adeus dinheiro do seguro. Você

vai estar jogando fora quarenta e sete mil dólares ao esmigalhar meu cérebro.”Snapper começou a movimentar o maxilar torto. Skink esperava que fosse um sinal de que

estivesse raciocinando. O paspalho estava tentando decidir entre o prazer de longo prazo dereceber o dinheiro e o de curto prazo de acabar com a moça. Aparentemente, não se tratava deuma escolha fácil.

Skink sugeriu: “Considere isso como um teste de QI, companheiro”.Movida por um impulso, Bonnie abriu o refrigerante e despejou-o no peito, sob a blusa. O

líquido escorreu de seu pescoço até o abdômen.“Pare com isso”, gritou Snapper. “Pare já com essa maluquice.”“Estou sufocando de calor...”“Caguei. Não tô nem aí.”Bonnie estava tão perturbada pelo calor que não se impressionou com a fúria de Snapper.

“Desculpe. Desculpe realmente, mas tá fazendo uns quarenta graus dentro deste maldito jipe.”O refrigerante encharcara sua blusa, de modo que Snapper podia ver o contorno de seu sutiã

e de sua barriga. Skink pediu a Edie que ligasse o ar-condicionado.“Já tentei, mas tá quebrado.” A voz de Edie parecia vazia e sem expressão.“Nem pense em ficar nua”, Snapper advertiu Bonnie, “ou mato você.” Snapper estava

realmente nervoso. “Vocês não estão acreditando que eu mate todos vocês? Olhem só o malditofuro que fiz no teto deste jipe.”

É, pensou Edie, combina com sua cabeça oca.“Podemos continuar? Está muito abafado, realmente”, pediu Bonnie.

Ao se sentir um pouco mais refrescada, Bonnie começou a pedir desculpas sem parar. Masera ridículo se sentir envergonhada. Afinal, por que deveria se importar com o que doiscriminosos comuns pensavam dela?

Mesmo assim, importava-se. Não podia evitar. Era resultado da maneira como fora criada:uma moça educada não se encharcava de soda na frente de estranhos, mesmo que fossemdelinquentes.

“Tá tudo bem”, disse Skink. “Você está assustada. É só isso.”“É, acho que é isso.”Snapper ouviu o comentário e riu vulgarmente. “Ótimo. Apavorada é como quero que você

fique.” Podia-se notar que ele já estava meio bêbado.Edie ficara nervosa e passara a dirigir mais devagar. O homem era um miserável. Como seu

plano poderia dar certo? Começou a imaginar. Se Snapper desmaiasse de bêbado, ela oempurraria para fora do carro. Depois, diria ao casal excêntrico que raptaram que estava muito,muito arrependida. Que tudo não passara de um grande mal-entendido. Prometeria a eles a partede Snapper na fraude do seguro, se eles concordassem em esquecer o terrível incidente. Ela oslevaria de volta a Miami e (para provar que era uma pessoa honesta) se ofereceria para indenizara perda da aliança da patrulheira. Snapper seria provavelmente esmagado por um caminhão quepassasse na estrada, deixando de constituir uma ameaça à sociedade e a seus planos pessoais.

Infelizmente, Snapper não estava sequer cochilando. A garrafa de Johnnie Walker estavafechada sobre o painel do carro. Ele se distraía girando o tambor do revólver e cantarolandosinistramente.

Edie Marsh pediu-lhe para parar. Snapper mudou de assunto. “Você está tão acalorada esuada, Edie. Devia fazer o que a moça ali quase fez. Tirar a roupa.”

“Ah, você gostaria disso, não é?”“Adoraria. E vocês também, não é?”, disse ele sacudindo o revólver em direção a Skink e

Bonnie. “Ei, vocês não adorariam ver os peitos de Edie? São uma beleza.”Bonnie sentiu-se culpada de ter, de certa forma, provocado aquelas ideias em Snapper.Skink disse: “Posso falar só por mim. Certamente, adoraria, mas numa outra ocasião”.Edie sentiu-se ruborizar. Ninguém mais falou. Snapper começou a cantarolar novamente,

acompanhado pelo barulho rítmico dos limpadores de para-brisa. Mais à frente, do lado daestrada onde se via o oceano, Edie avistou o painel eletrônico azul com o nome do hotel ParadisePalms.

Skink sacudiu a cortina, derrubando Levon Stichler no terraço, como se fosse um saco defarinha. Alguém arrancou-lhe a mordaça e a venda.

Os olhos do velho se encheram de lágrimas com a súbita claridade.Ouviu-se uma voz de mulher, dizendo: “Você de novo, hein?”.Levon piscou até conseguir colocar a imagem em foco — a mulher ruiva que estava na casa

destruída pelo furacão em Turtle Meadow. O lenço de chiffon que lhe servira de vendabalançava, pendurado nas longas unhas pintadas da mulher. Ao lado dela, viu outra mulher,loura, que lhe perguntou: “Como você se chama, querido?”.

A ruiva usava um bustiê preto e transparente, meias rendadas e saltos muito altos. A louravestia um maiô prateado. O ar parecia adocicado de tanto perfume. O que era maravilhoso,considerando as horas que passara enrolado numa cortina mofada e bolorenta. Quando LevonStichler sentou-se, percebeu que estava no meio de um círculo de pessoas que o observavamatentamente. As duas prostitutas, o valentão de terno listrado, a moça bonita de cabeloscastanhos compridos, uma outra moça de pele clara e feições delicadas e de um homem grande ebarbudo, usando uma touca de banho estampada na cabeça. Este último estava polindo um olhode vidro na manga do casaco. Encontravam-se num pequeno quarto de hotel.

Levon Stichler perguntou: “O que tudo isto significa?”.As prostitutas se apresentaram: Bridget e Jasmine.

Snapper agachou-se no chão, beliscando a nuca do homem: “Você tentou me matar, estálembrado?”.

“Mas foi por engano. Eu lhe expliquei.”“O negócio é o seguinte: você vai ficar aqui uns dois ou três dias com essas garotas. Elas vão

trepar com você e chupar seu pau até que você não consiga mais andar. Além disso, vão tirarumas fotos dessas sessões.”

Levon pareceu não acreditar muito. O valentão estava meio bêbado e falava enrolado.“Por que não acaba logo comigo e termina essa história?”“Não vamos matar ninguém. Verdade. Desde que você se comporte”, disse a moça bonita de

cabelos castanhos.Snapper continuou: “Talvez você esteja velho demais para trepar, ou talvez prefira rapazes.

Tô cagando pra isso. A questão é que você vai ficar aqui com essas garotas até que eu avise quepode sair. Então você vai voltar bem devagar para Miami. Com isso quero dizer que você vaipedir carona na estrada, entendeu?”.

Levon começou a gaguejar e a piscar. Snapper deu-lhe dois tapas na cara.Edie Marsh falou: “Acho que o senhor Stichler não entendeu bem qual seria a alternativa. A

alternativa é que iríamos à polícia e diríamos que você tentou assassinar Snapper e me estuprarcom aquele verrumão de trailer. Sua família vai pensar que você ficou gagá. E as fotografias nãovão ajudar muito — você trepando com duas garotas”.

Levon olhou para Bridget e Jasmine. Elas eram grandes e assustadoras. Dava para ver que jáhaviam trabalhado juntas antes.

“Pense na situação como se fosse em umas férias. Divirta-se”, disse Edie.“Gostaria de poder.”“Ei, o problema é a próstata?”, perguntou Bridget, ajoelhada ao seu lado.O velho abanou a cabeça, sombrio. “É. Tirei a próstata o ano passado.”Jasmine disse-lhe que se animasse. Elas pensariam em alguma coisa.Skink, recolocando o olho de vidro, aconselhou Levon a fazer o que estavam mandando.

Afinal, era melhor do que levar um tiro.Bridget falou, ironicamente: “Muito obrigada”.Snapper pagou as prostitutas, retirando o dinheiro de um maço de notas roubadas do negócio

dos telhados. Elas contaram as notas, dividiram-nas e guardaram. Deram as costas para Snapper,para ele não perceber que suas carteiras estavam cheias com o dinheiro que receberam de Avila,dez minutos antes, e do rapaz bonitão com o revólver, ainda um pouco antes.

“Tem gelo no balde?”, perguntou Bonnie. Jasmine disse-lhe que sim e que poderia se servir.Bonnie encheu as duas mãos de gelo e pressionou-as contra o rosto.

Skink ajudou as prostitutas a porem o velho Levon de pé. Snapper cutucou o pomo de adãode Levon com o cano do revólver. “Não tente fugir, viu. Essas duas garotas são tão fortes quepodem quebrar cocos entre as pernas. Matar um velho caquético e esquelético como você nãolhes daria nenhum trabalho.”

Levon Stichler não tinha a menor dúvida quanto a isso. “Não se preocupe. Não sou nenhumherói.”

A ruiva beliscou seu traseiro, dizendo: “Ah, isso nós vamos ver mais tarde”.

Augustine estava escondido atrás de um latão de lixo quando o jipe Cherokee chegou aohotel Paradise Palms. Seu moral logo subiu quando viu Bonnie descer do carro, seguida porSkink. A motorista tinha cabelos castanhos e usava uma blusa cor de alfazema. Tratava-se,

provavelmente, da moça cuja carteira de motorista encontrara na rua Calusa. Edie DeborahMarsh, vinte e nove anos. Ela foi a próxima a sair do jipe. Do banco de passageiros da frentedesceu um homem magro, vestindo um terno amassado e sem gravata. Carregava um revólver euma garrafa de bebida e parecia estar meio desequilibrado. A iluminação da rua permitia que sevisse perfeitamente o defeito de seu maxilar. Augustine não teve mais dúvida. Era ele. O homemque atacara Brenda Rourke e sobre o qual as prostitutas lhe haviam falado. Snapper para osconhecidos e Lester Parsons no registro do hotel.

Snapper abriu o bagageiro do jipe, gritando algo para Skink. Este retirou um enorme tapeteenrolado, cheio de protuberâncias, e o jogou sobre o ombro. Quando todos haviam entrado nohotel, Augustine correu até o jipe, entrou no bagageiro e fechou a porta. Esticou-se no chão,colocando o revólver ao seu lado. Segurava o rifle de dardos de tranquilizante com ambas asmãos.

Seu pai merecia ouvir aquela história. Certamente, as veias de suas têmporas saltariam.Seu pai nem sonharia em arriscar a vida, a não ser que grandes somas de dinheiro estivessem

em jogo. Amor, lealdade ou honra não faziam parte de suas crenças. Augustine podia imaginá-lodizendo, incrédulo: Filho, por que diabos você faria uma loucura dessas?

Sua resposta seria: Porque o homem merecia. Deu uma surra numa mulher e roubou-lhe aaliança. Trata-se de um patife.

Seu pai retrucaria: Não seja idiota. Você poderia ter sido morto.Além disso, ele raptou a mulher que amo.Ah, meu Deus, criei um imbecil.Não, não criou. Você não criou ninguém.Sempre que Augustine escrevia para seu pai, fazia questão de mencionar quanto dinheiro

doara a ex-namoradas, caridades obscuras e causas políticas ultraliberais. Imaginava seu pai,lívido de horror.

Você me decepciona, Augustine — é o que diria.E isso vindo de um idiota que fora perseguido por toda a Força de Defesa das Bahamas por

carregar trinta e três quilos de drogas no porão do navio.“Você me decepciona.”Augustine devaneava e ao mesmo tempo ouvia a chuva que caía no teto do jipe. O barulho

estava deixando-o sonolento.Como não esperava ver seu pai ao acordar do coma, não ficara decepcionado. Seu sentimento

foi de alegria por ainda estar vivo. A pessoa que vira primeiro fora uma enfermeira haitiana, demeia-idade, chamada Lucy. Ela lhe contara sobre o acidente com o avião e sobre os meses quepassara em coma. Mostrou-lhe uma carta de seu pai, enviada da prisão em Talladega. Tinha lidoa carta em voz alta para Augustine, durante o período de coma. Ofereceu-se para lê-la de novo.

“Filho, espero que você esteja vivo para ler estas palavras. Sinto muito pelo modo como ascoisas aconteceram.” Seu pai deveria ter parado nesse ponto, mas a elegância e a decência nãoeram seu ponto forte.

“Tudo que fiz foi por você. Todos os meus atos, certos ou errados.”Mas que besteira, que mentira desnecessária. O fato entristeceu Augustine, mas não chegou a

amargurá-lo. Tornara-se insensível a sentimentos de amargura. O acidente transformara-oemocionalmente. Nada conseguia afetá-lo mais como antes. Pensou que todo mundo sebeneficiaria de um período de coma. Era uma boa limpeza das mágoas passadas.

E daí levara anos para conseguir dar um novo sentido à sua vida. Agora sua vida estava cheiade sentido. Bonnie estava presente.

Seu pai não aprovaria. Felizmente, seu pai não era importante.Augustine ouviu o barulho de uma porta se fechando, de passos pisando em poças de água e

de vozes se aproximando. Inspirou profundamente três vezes. Verificou o rifle de dardos detranquilizante.

Sentiu-se feliz com a neblina que embaçava os vidros do jipe, tornando-o invisível para quemestivesse do lado de fora. As vozes ficaram mais claras — dois homens discutiam. Augustine nãoos reconheceu. Talvez fosse Snapper e outro homem. Mas quem?

As vozes se sobrepunham ao ruído da chuva. Os homens gritavam. Augustine resolveu nãose envolver, a não ser que Bonnie estivesse em perigo. A briga estava agora mais perto.Ouviram-se ruídos de luta corporal e uma garrafa se espatifando no chão.

Um dos homens gritou: “Segure esta droga de revólver enquanto eu estrangulo o cretino”.

A preocupação de Snapper por ter só duas balas no revólver se justificava. Sua mira deixaramuito a desejar.

Um relatório da polícia, datado de 7 de julho de 1989, registrava que um Lester MaddoxParsons fora preso por atirar em Theodore “Sunny” Shea, em Dania, Flórida. A vítima não erasimplesmente um traficante de drogas, como alegara Snapper após o incidente. Na verdade,Sunny Shea era seu sócio há muito tempo. Seus negócios abrangiam não só drogas, mas roubo dearmas, joias, vestuário, móveis de pátio, estéreos e até mesmo um carregamento de comida parabebês, numa ocasião. No final, Sunny Shea desconfiou de que Snapper estava roubando-o noslucros. Confrontou-o numa noite úmida de verão, diante de dezesseis testemunhas oculares.

A resposta indignada de Snapper foi sacar um revólver Glock (roubado do porta-luvas deuma viatura policial) e tentar esvaziá-lo em Sunny Shea. Ao todo, Snapper atirou onze vezes, deuma distância de dois metros e meio. Só seis balas atingiram Sunny Shea, e nenhuma num órgãovital — uma façanha difícil, considerando que ele pesava apenas cinquenta e nove quilos e nãotinha nada de gordura em seu corpo. O desempenho lamentável de Snapper foi ainda maisnotável, considerando que ele estava sóbrio.

Sunny Shea não perdeu a consciência em nenhum momento e foi extremamente cooperativoquando a polícia o interrogou sobre a identidade de seu agressor. Os dois detetives que levaramSnapper para a cadeia do condado de Broward o ridicularizaram o tempo todo por sua pobremira.

Na manhã seguinte, quando vieram lhe dizer que a acusação de tentativa de homicídio emprimeiro grau tinha passado para homicídio em primeiro grau, Snapper considerou-se vingado.Depois, soube que seu esquelético e insuportável sócio não morrera com um de seus tiros —algum idiota na emergência do hospital lhe injetara um antibiótico ao qual ele era profunda eletalmente alérgico.

Snapper alegou na justiça homicídio não premeditado e pegou tempo relativamente curto decadeia. Sua confiança em armas de fogo, contudo, fora arruinada para sempre. Diante disso, duasbalas num revólver era quase tão ruim quanto não ter munição.

Por isso, não desejava desperdiçá-las em Avila, o choramingão. Avila era, na verdade, aúltima pessoa que Snapper esperara encontrar em Paradise Palms. Ele se materializara como umfantasma saído da tempestade, reclamando e xingando por causa do desfalque que Snapper dera,sozinho, na senhora Whitmark.

“Você sabe quem ela é? Sabe com quem ela é casada?”, gritava Avila. Skink e as duas moçasse abrigaram da chuva, embaixo da marquise do hotel, enquanto Avila perseguia Snapper pelo

estacionamento como um terrier. A conversa era difícil de acompanhar, mas Edie captou suaessência: Snapper dera um golpe de sete mil dólares, deixando Avila de fora.

Curioso como ele esquecera de contar-lhe sobre isso. Da mesma forma, esquecera de contar-lhe sobre a aliança da policial.

A pistola que Snapper tinha preocupava Avila, mas não era suficiente para detê-lo. Durante opercurso, ele viera rezando para que Chango o protegesse e sentia-se relativamente confiante.Snapper lhe parecia esgotado e trêmulo, possivelmente influenciado por espíritos do mal.

Avila disse: “Me dê o dinheiro”.“Vai à merda”, respondeu Snapper.Quando Snapper virou-se, Avila subiu nas suas costas. Snapper livrou-se dele com algumas

sacudidelas. Avila atacou de novo, rasgando seu terno e derrubando a garrafa de Johnnie Walkerque Snapper segurava. Os dois homens se atracaram, rolando sob a neblina. No final, Snapperbateu Avila contra o tronco de uma palmeira. Avila deu um guincho de verdade ao cair no chão.

Snapper, ofegante, acenou para Edie: “Segure essa droga de revólver, enquanto eu estranguloo cretino”.

A contragosto, ela segurou a pistola e mirou-a em direção a Skink e Bonnie. Snapper atirou-se sobre Avila, dando-lhe socos e pontapés. Avila surpreendeu-se com a intensidade da dor.Quando seu nariz explodiu sob o punho de Snapper, deu-se conta de que tinha sido ingênuo emconfiar na intervenção espiritual de Chango. Evidentemente, ele não o havia perdoado pelofracassado sacrifício do quati.

Quando as unhas sujas de Snapper se fecharam ao redor de seu pescoço, Avila inventariousuas múltiplas fontes de agonia: o nariz quebrado, um caco da garrafa de uísque quebradaenfiado em sua coxa direita, o furo da tentativa de crucificação ainda não cicatrizado em sua mãoesquerda, a ferida dos chifres do bode na virilha e, em breve, a laringe esfacelada.

Pensou: Está na hora de esquecer os sete mil dólares. Que se dane Gar Whitmark. Está nahora de fugir.

Avila deu um pontapé forte nos testículos de Snapper, que pestanejou, sem afrouxar suasmãos da garganta de Avila. Deu-lhe mais duas joelhadas, finalmente conseguindo o resultadoalmejado. Snapper gemeu, deixando cair as mãos e rolando para o lado. Avila levantou-se comdificuldade. Deu três passos e escorregou. Quando tornou a levantar-se, ouviu o barulho deSnapper levantando-se também atrás dele. Histérico, saiu correndo em direção à estrada.

A chuva tornava difícil discernir os detalhes dos dois homens correndo ao longo da rodoviaUS-1. Nenhum deles era grande o suficiente para ser Skink, nem em forma o suficiente para serAugustine. Da distância onde Jim Tile estava estacionado, era impossível distinguir se o homemalto tinha o maxilar torto. Poderia ser qualquer bêbado com um terno listrado encharcado.

O jipe preto ainda estava estacionado em frente ao hotel Paradise Palms. O patrulheiroresolveu esperar quieto.

Avila conseguiu correr oitocentos metros até ficar sem fôlego. Parou na ponte Tea-Table edobrou-se, tentando recuperar o ar. Fez sinais para os motoristas, mas nenhum teve coragem deparar vendo uma figura ensanguentada e esfarrapada. Avila ficou ainda mais humilhado ao veruma adolescente passar num carro e tirar uma foto dele.

Que mundo miserável, pensou, onde um homem ferido vira atração turística.Enquanto isso, sob o véu da chuva, apareceu o vulto de Snapper. Estava trêmulo e

cambaleante como um zumbi. Trazia um eixo de rodas enferrujado de um trailer abandonado nasmãos como arma.

Avila levantou ambos os braços, suplicando: “Vamos esquecer tudo isso, ok?”.“Não se mexa.” Snapper segurou o eixo com ambas as mãos por uma ponta, levantando-o

sobre a cabeça, como uma marreta.Após uma espreitadela furtiva por sobre a ponte, Avila atirou-se na água. A queda foi

pequena, mas, considerando o medo que tinha de altura, equivaleu a catorze andares de umprédio. Avila ficou surpreso de ter sobrevivido ao impacto.

A água estava morna e a maré forte. Ele deixou-se carregar para fora do canal, em direção aooceano, por não ter forças suficientes para nadar contra a correnteza. Quando o peso de suasroupas molhadas começou a puxá-lo para baixo, desvencilhou-se dos sapatos e das calças e tiroutambém a camisa. Logo as luzes da rodovia Overseas não podiam mais ser vistas, devido àescuridão e ao mau tempo. Avila não conseguia mais ver nada, a não ser alguns relâmpagosocasionais. Quando um pequeno objeto roçou sobre sua nuca, teve certeza de que se tratava dofocinho de um enorme tubarão branco e de que sua morte era iminente.

Mas tratava-se apenas de uma pequena tábua. Avila agarrou-se a ela com todas as suasforças. Pensou numa incrível ironia — e se a tábua fosse proveniente de algum dos telhados quedeixara de inspecionar devido a subornos? Talvez fosse mais uma brincadeira de Chango.

Durante toda a noite, deixando-se levar pela correnteza, agarrado à tábua, Avila amaldiçoouo furacão por lhe ter causado tantas aflições: o homem que tentara crucificá-lo, as ameaças deWhitmark e, é claro, os abusos de Snapper. A chuva parou ao alvorecer, mas o sol não apareceu.Ao gritar por socorro, reparou num barco de pesca, grande e branco, a pouca distância. Acenou.O capitão e os passageiros, em trajes tropicais, abanaram para ele.

“Aguente aí, amigo”, gritou o capitão, enquanto afastava o barco.Vinte minutos mais tarde, uma lancha da guarda costeira chegou para socorrer Avila. A

tripulação deu-lhe roupas secas, café quente e sopa. Ele comeu em silêncio, apreciando oconforto. Depois, foi conduzido ao convés inferior da lancha para ser interrogado por um oficialdo Serviço de Imigração e Naturalização dos EUA.

Num espanhol arrevesado, o oficial perguntou-lhe de qual porto cubano havia fugido. Avilariu, explicando que havia nascido em Miami.

“Então o que o senhor está fazendo aqui todo molhado e de cuecas?”Avila explicou-lhe que um assaltante o perseguira e que fora obrigado a pular da ponte em

Islamorada.“Fale a verdade”, aconselhou o oficial. “É óbvio que você fugiu de Cuba numa canoa ou

coisa parecida. Então, de onde você veio? Havana? Mariel?”Avila estava quase argumentando o contrário, quando se deu conta de que ali estava uma

oportunidade para livrar-se de seus problemas. O que tinha afinal a perder a não ser uma mulhervingativa, uma sogra traumatizada, a falência financeira, a ira de Gar Whitmark e um eventualprocesso por atos criminosos?

Assim, perguntou ao oficial: “O que acontecerá comigo se confessar que fugi de Cuba?”.“Nada. Será processado em Krome e provavelmente solto.”“Mesmo se for um refugiado político?”“É. É esse o procedimento normal.”“Sí”, disse Avila em espanhol. “Yo soy balsero.”O oficial pareceu tão aliviado com a confissão que Avila — também um burocrata —

percebeu haver poupado ao homem uma montanha de papéis.“Su nombre, por favor?”“Juan”, respondeu Avila, “Juan Gómez. De Havana.”

“E sua profissão em Cuba?”“Era inspetor de obras.”

27

Eles esperavam no jipe. Edie Marsh na frente, com o revólver. Bonnie Lamb atrás, apertadacontra Skink.

Foi Bonnie quem perguntou: “E se ele não voltar?”.Edie estava pensando a mesma coisa. Rezando para que isso acontecesse, aliás. O problema

era que Snapper estava com as chaves do jipe. Perguntou a Skink: “Você saberia fazer umaligação direta neste jipe?”.

“Isto seria ilegal.”O sorriso cinematográfico que acompanhou a resposta surpreendeu-a. Então perguntou: “Por

que você não está com medo?”.“Medo de quê?”, retrucou Skink.“Do revólver. De morrer. De qualquer coisa.”Bonnie esclareceu estar com medo suficiente pelos dois. A chuva amainou. Nenhum sinal de

Snapper ou de Avila. Edie tinha dificuldades em desviar o olho de Skink.“O que há?”, perguntou ele. “É a touca que estou usando que a faz olhar tanto?”Edie levantou o revólver. “Você poderia tirar isto de mim quando quisesse. Você sabe disso.”“É. Talvez eu não queira.”Era isso que a assustava. De que valia apontar um revólver para uma pessoa assim?Skink acrescentou com outro sorriso maravilhoso: “Não vou machucá-la”.Edie Marsh adorou as linhas de expressão que se formaram ao redor de seus olhos e disse a

Bonnie: “Acho que sei o que você vê nesse cara”.“Somos só amigos.”“É mesmo? Então talvez possa me dizer quais são os planos dele.”“Para falar a verdade, não sei. Gostaria de saber.”Edie estava com suas emoções extremamente conturbadas. No quarto do hotel, enquanto

colocavam o velho Stichler com as duas prostitutas, vira uma notícia na televisão que a fizerasonhar acordada. Imagens do presidente dos EUA visitando as áreas danificadas pelo furacão. Aoseu lado estava um jovem alto e bem-apessoado, de seus trinta anos, que foi identificado comosendo o filho do presidente. Quando noticiaram que ele residia em Miami, Edie começara adevanear. E daí que ele não fosse um Kennedy? Mas talvez ele fosse um bom membro do PartidoRepublicano, que jamais se envolveria com uma garota num bar. Ou talvez estivesse esperandotoda a vida por uma oportunidade como essa para se libertar de toda a repressão familiar. Mas oque importava era que ele era o filho do presidente. Ali estava uma oportunidade para considerarno futuro. Especialmente se o golpe do furacão continuasse a se desenrolar daquela formaconturbada.

Colocou o revólver de Snapper no assento. “Vocês dois podem dar o fora”, disse a Skink e aBonnie. “Podem ir. Direi a ele que vocês me empurraram e fugiram.”

Bonnie olhou para Skink, que sugeriu: “Esta é a sua oportunidade, garota”.“Mas, e você?”Skink sacudiu a cabeça. “Fiz uma promessa a Jim Tile.”

“Quem é Jim Tile?”, perguntou Edie.Bonnie apenas respondeu: “Então acho que vamos ficar”.Skink tentou encorajá-la a partir. “Vá chamar Augustine. Mostre a ele que você está bem.”“Não.”“E avise seu marido também.”“Não. Não até que tudo isto termine.”Edie ficou exasperada. Seus nervos estavam em frangalhos. Snapper tinha razão. Eram dois

malucos. “Ótimo”, disse ela, “vocês dois birutas podem ficar, mas eu vou dar o fora.”Skink comentou sarcasticamente: “Excelente decisão”.“Digam a ele que fui ao banheiro.”“Tudo bem”, disse Bonnie.“Digam que estou menstruada ou algo assim.”“Ok.”Skink debruçou-se sobre o banco da frente. “Você pode nos deixar o revólver?”“E por que não?”, respondeu Edie. Talvez conseguissem matar Snapper, e isso seria ótimo.Estava passando o revólver para Skink quando ele disse: “Pensando bem...”.Edie virou-se e levou um susto ao ver a cara molhada de Snapper apertada contra o vidro da

janela. O nariz achatado pela vidraça e o maxilar torto faziam-no parecer uma figura muitoestranha.

“Sentiu minha falta, querida?”, disse ele com os lábios roçando a janela.

Jim Tile estava tentando pedir reforço policial, mas isso significaria o fim da reclusão deSkink.

Muito tempo antes haviam feito um pacto: a cavalaria não seria chamada, a não ser que vidasinocentes estivessem em perigo. O patrulheiro estava pensando em Bonnie como uma vidainocente em perigo. Ela e Skink já poderiam estar mortos.

Um pouco deprimido, Jim Tile observava a chuva cair sobre os carros que passavam narodovia US-1. Novamente se condenava por ter sido levado pela emoção no caso do assalto aBrenda. Ela estava bem. Deveria ter deixado a polícia perseguir o assaltante, e não Skink.

Mas não o fizera. E Skink, na verdade, conseguira com relativa facilidade obter dele onúmero da placa do carro.

“Controle de peste.” Era o que lhe dissera Skink ao sair do hospital.“Quem quer que tenha feito isso a Brenda, não é um representante decente da espécie

humana. Não é bem-vindo para doar seus genes. Até Darwin concordaria.”E Jim dissera apenas: “Tome cuidado”.“Jim, a Flórida está infestada desses patifes mutantes. Olhe no que transformaram o lugar.”Jim apenas comentara: “A placa deve ter sido roubada de outro carro. Talvez não lhe sirva

para nada”.Skink, desvencilhando-se da mão do amigo, dissera: “Eles estão transformando este lugar

numa fossa de lixo. Alguns com revólveres, outros com pastas de executivos — é tudo a mesmacriminalidade”.

“Controle de peste.”“A gente faz o que pode.”“Tome cuidado, capitão.”Então, Skink dera aquele sorriso cinematográfico que o elegera para governador. Jim afastou-

se, deixando-o partir em busca do homem que dirigia o jipe preto Cherokee.

O jipe estava agora estacionado em frente ao Paradise Palms. O patrulheiro contou trêspessoas dentro do carro. Esperava que duas delas fossem Skink e Bonnie.

Uma sombra escura perto da estrada chamou sua atenção. Um homem alto, de terno, estavacorrendo no cascalho, ao longo da estrada. Andava como se estivesse um pouco embriagado.Tinha dificuldade em correr em linha reta e manter-se longe dos carros que passavam. Contorceuo rosto quando os faróis altos de um caminhão atingiram seus olhos.

Jim Tile pôde ver bem seu maxilar fora do lugar.Observou o homem passando embaixo dos painéis de néon do hotel. Viu-o dirigir-se até o

jipe e apoiar-se contra a vidraça. Depois, correu para o assento do motorista, abriu a porta eentrou.

Jim Tile deu partida no motor.

Snapper estava dando ré no jipe, gritando sobre o que acontecera com Avila. “O imbecilsaltou direto da ponte dentro da água. Vocês tinham que ver. Ei, ei, que diabos estáacontecendo?”

Luzes brilhantes e intermitentes começaram a iluminar tudo: as poças de água, as paredes corde coral do hotel, a copa das palmeiras.

Snapper gritou: “São os malditos tiras”, e colocou uma primeira.“Não pode ser”, gritou Edie. Mas sabia que ele tinha razão.Um vulto de cinza estava se aproximando do jipe. Snapper baixou o vidro da janela. Era um

patrulheiro rodoviário. Um preto grande e forte. Ele estacionara sua viatura de forma a bloqueara passagem do jipe.

Os pensamentos de Snapper aceleraram-se. Ele estava meio bêbado, meio alerta: meu Deus,papai e mamãe teriam um ataque se viessem a saber que fui preso por um policial crioulo.Especialmente mamãe.

De repente, Snapper percebeu o que provavelmente teria acontecido. A policial que atacaraou estava viva ou sobrevivera tempo suficiente depois da surra para fornecer à polícia umadescrição do jipe ou até mesmo dele próprio.

E ali estava o destacamento policial, composto de um só homem, numa única viatura.Snapper tinha consciência de que deveria ter se livrado do jipe depois do ataque à policial.

Claro, deveria tê-lo afundado no canal mais próximo, e pronto. Mas, meu Deus, como elegostava do estéreo. Reba, Garth, Hank Jr. nunca haviam soado tão bem. Durante toda a sua vida,Snapper desejara um carro com alto-falantes de boa qualidade. Assim, ficara com o jipe porcausa do som, e agora estava enfrentando as consequências de sua atitude impensada.

Um tira preto e grande estava se aproximando, já fazendo menção de sacar o revólver.Skink deu um tapinha no seu ombro e disse: “Vamos dar o fora, chefe”.“Quê?”“É isso que eu faria.”“Não”, murmurou Edie, “não temos mais chance de escapar.”Snapper disse-lhe que se calasse. Pegou o revólver, segurou-o fora da janela e de algum

modo conseguiu acertar um tiro no peito do patrulheiro. O homem caiu de costas na lama.“Boa noite, crioulo”, disse Snapper.Skink ficou rijo. Bonnie e Edie gritaram. Snapper deu partida no jipe e avançou a toda

velocidade.“Vocês viram? Um tiro só, e consegui matar o tira crioulo. Só com uma bala.”

No bagageiro do jipe, Augustine apoiou-se num joelho. O rifle de dardos de tranquilizanteestava em posição para ser acionado, direcionado para a nuca de Snapper. Levou um sustoquando Skink virou-se, empurrando-o rapidamente para o chão do carro.

Foi nesse momento que a janela traseira do jipe estilhaçou-se.A explosão surpreendeu Snapper, que estava concentrado, tentando manobrar em volta da

viatura policial que bloqueava seu caminho.Snapper abaixou-se, mantendo o olhar no espelho retrovisor. Viu o patrulheiro negro, deitado

numa poça de lama, balançando o revólver na mão, sem mirar em nada especificamente. Aseguir, seu corpo deu a impressão de ter amolecido, e Snapper soltou uma gargalhada.

O jipe entrou na rodovia, derrapando no asfalto molhado. Edie Marsh estava curvada nobanco como uma freira idosa e soluçava. Skink havia sentado Bonnie em seu colo, para protegê-la da linha de fogo. Encolhido no bagageiro, Augustine retirava estilhaços de vidro de suasroupas.

Snapper estava muito alto, devido não só à ingestão de pílulas e uísque, como também à altadescarga de adrenalina. “Vocês viram o crioulão cair como um saco de batatas?”, gritou ele.“Vocês viram?”

Christophe Michel passou a noite do furacão na atmosfera alegre e segura de Key West. Aomeio-dia da manhã seguinte, viu na televisão os destroços do conjunto residencial chamadoGables-on-the-Bay. O conjunto fora construído por uma empresa denominada Zenith CustomHomes, que não só empregava Michel como engenheiro civil mas também anunciava suaintegridade e alta qualificação profissional. Michel fora recrutado de uma das firmas deengenharia civil mais antigas da França. A companhia não protestara muito quando ele sedemitira. Um dos campos em que Michel não tinha muita experiência era o de construçõesresistentes a furacões. Os novos empregadores de Michel lhe disseram que não haviacomplicações e lhe enviaram uma cópia do pesado Código de Construções do Sul da Flórida.Michel o examinara superficialmente durante o voo de Orly para Miami.

Dera-se muito bem na Zenith depois que entendera que a contenção de custos era maisimportante que a segurança das estruturas. Para justificar seus preços inflacionados, a Zenithanunciara Gables-on-the-Bay como “o primeiro conjunto residencial da Flórida à prova defuracões”. Mais tarde, Michel se lembrara de que, da mesma forma, o Titanic havia sidoanunciado como impossível de naufragar.

Durante toda a semana, as notícias sobre o município de Dade pioraram. Um jornal contratousua própria equipe de engenheiros civis para inspecionar os escombros. A equipe descobriutantas falhas no projeto que a lista delas teve que ser impressa no menor tipo possível.Comentários sarcásticos sobre o conjunto residencial que Michel construíra saíram na primeirapágina dos jornais.

Com a chegada dos proprietários das casas, ameaçando processar a Zenith, Michel resolveuprudentemente deixar os EUA. Fechou suas contas bancárias e seu apartamento em Key West,colocou as malas em seu Seville e tomou o caminho do continente.

A chuva não contribuía em nada para aumentar a confiança de Michel no trânsito dos EUA.Toda curva ou subida na rodovia era um teste para seus reflexos. Michel consumiu seu últimocigarro cruzando a ponte Bahia Honda e, ao chegar em Islamorada, havia roído as unhascompletamente, estragando sua manicure de quarenta dólares. Quando a chuva amainou, parounum supermercado para comprar uma carteira de Bronco, uma marca norte-americana à qual sehabituara.

Quando voltou ao carro, quatro desconhecidos surgiram das sombras. Um deles colocou umrevólver em sua barriga.

“Passe-me as chaves de seu carro imediatamente”, disse o homem.“Claro.”“Não olhe para mim desse jeito.”“Desculpe.” Os olhos treinados do engenheiro calcularam o desvio do maxilar de Snapper

como sendo de trinta e cinco graus.“Ainda tenho uma bala sobrando.”“Acredito no senhor”, disse Michel.O homem da cara torta disse-lhe para voltar ao supermercado e contar devagar até cem.Michel perguntou: “Posso ficar com minha mala?”.“Claro que não, merda.”“Entendo.”Michel voltou ao supermercado contando em voz alta. Um funcionário perguntou-lhe se

estava com algum problema. Michel abanou a cabeça, enquanto tentava, nervosamente, acenderum cigarro.

“Acabo de perder as economias de toda a minha vida”, disse ele. “Posso usar o telefone?”

Bonnie Lamb achou que Skink explodiria numa fúria homicida ao ver seu amigo baleado.Mas isso não aconteceu. Bonnie preocupou-se ao ver seus ombros encurvados e a fraqueza deseus movimentos. Seu olhar estava vago, como se estivesse sob efeito de sedativos. Bonnie ficoumuito triste ao ver Skink completamente deprimido.

Enquanto isso, Snapper bufava e xingava ao verificar que o Seville não tinha um sistema desom completo, só um toca-fitas barato. Dera-se ao trabalho de retirar todos os CDs do jipe naesperança de ouvi-los no Seville. Abandonara o jipe atrás do supermercado.

Bonnie apertou o braço de Skink, perguntando-lhe se ele estava bem. Ele apenasmovimentou os pés, esbarrando, sem querer, em algo metálico. Segurou o objeto, perguntando:“O que é isto?”.

Era um instrumento comprido de metal, com duas alças e uma fechadura, como se fosse umcadeado alongado.

Snapper olhou para trás e disse: “É uma tranca”.“Uma tranca?”Bonnie interveio: “Você sabe. Eles anunciam isso o tempo todo na televisão”.“Não vejo televisão”, retrucou Skink.Snapper falou com pouco caso: “É uma tranca, caramba. Você prende na direção e no

acelerador para que seu carro não seja roubado”.“É mesmo?”“É. Mas não serviu de nada para aquele idiota.” A risada de Snapper tinha algo de triunfal.Edie Marsh estava tentando se recuperar do choque da troca de tiros com o patrulheiro.

Mesmo no escuro, Bonnie podia ver as lágrimas escorrendo de seus olhos.“Eu tive um namorado”, disse Edie com dificuldade. “Ele colocou uma tranca dessas no seu

carro novo. Um Firebird. Levaram o carro do mesmo jeito. Roubaram o carro em frente àgaragem, em plena luz do dia. Quebraram a fechadura com um martelo.”

Snapper comentou: “Sem brincadeira?”.“É.” Edie não conseguia se conformar com o que acontecera no hotel. Era tão errado e

estúpido. Nunca escapariam da cadeia depois do episódio. Nunca. Imagine matar um policial.

Como seu golpe numa simples companhia de seguros havia se transformado em algo tãocomplicado?

Skink ficou muito impressionado com a engenhosidade da tranca. As alças ajustáveispermitiam que o instrumento fosse colocado em qualquer carro, sem dificuldades.

“Você tá vendo?”, explicava Snapper. “Isso serve para impedir que roubem seu sofisticadoCadillac Seville. A não ser que ponham um revólver na sua barriga. Não aceite imitações.”

Skink colocou a tranca no chão.“Não aceite imitações”, ironizou Snapper novamente, balançando o revólver.O olhar de Skink perdeu-se, mais uma vez, no horizonte. Bonnie brincou com ele: “Não

posso acreditar que você nunca tenha visto uma tranca dessas”.Ele sorriu tristemente. “Tenho vivido uma vida reclusa.”Edie Marsh pensou que Snapper não poderia ter escolhido um lugar pior para balear um

policial — ilhas ligadas umas às outras, com apenas uma saída. A toda hora olhava para trás,esperando ver as luzes azuis intermitentes das viaturas policiais.

Snapper ordenou-lhe que parasse. Sua atitude estava acabando com os nervos de todomundo. “Mais uma meia hora, e estaremos seguros”, disse ele. “Estaremos de volta aocontinente. Então, trocaremos de carro.”

“Vai querer um carro com estéreo e CD player, aposto.”“Acertou na mosca.”O Seville ficou bloqueado atrás de um caminhão de cerveja. Tiveram que parar num

semáforo na altura de Key Largo. De novo, Edie olhou para trás, levando um susto.“O que foi? É a polícia?”, perguntou Snapper, também assustado.“Não. É o nosso jipe.”“Você tá maluca. Não é possível.”“Está bem atrás de nós”, disse Edie.Bonnie começou a virar-se para trás, mas Skink segurou seu ombro. O semáforo ficou verde.

Snapper manobrou, passando entre o caminhão de cerveja e um Toyota. Disse: “Você tá maluca.Há cerca de um milhão de malditos jipes pretos iguais ao nosso rodando nas estradas”.

“É. Mas com furos de bala no teto?” Ela podia ver o metal protuberante acima do banco depassageiros.

“Meu Deus! Você tem certeza?”, perguntou Snapper ajeitando o retrovisor com o cabo dorevólver.

O jipe preto estava bem atrás do para-choque traseiro do Seville. Bonnie notou que Skinkestava sorrindo discretamente. Edie reparou também e disse: “O que está havendo? Quem é queestá no jipe atrás de nós?”.

Skink deu de ombros. Snapper disse: “E daí? Não tô nem aí pra quem tá no jipe. Ele é umhomem morto. Ainda tenho uma bala”.

Num átimo de segundo, Skink arrancou o revólver da mão de Snapper, descarregando-o nopainel do carro.

Depois, largou a arma no colo de Snapper, dizendo: “Agora você não tem merda nenhuma”.Snapper esforçou-se para evitar que o carro batesse num poste. Os ouvidos de Edie estavam

zunindo com o estrondo do tiro, mas ela não estava surpresa com o que acontecera. Tinha sido sóuma questão de tempo. O caolho rira deles o tempo todo.

Bonnie apenas pensava: E agora? O que Skink fará agora?Snapper, tentando não parecer amedrontado, gritou para Skink: “Tente mais alguma coisa, e

você vai ver. Juro que vamos todos despencar de uma ponte. Tá entendendo? Vamos morrer

todos neste carro”.“Mantenha os olhos na estrada, chefe.”“Não encoste em mim, seu maldito”, gritou Snapper.Skink colocou o queixo no encosto do assento de Snapper, a apenas alguns centímetros de

seu ouvido direito. Disse apenas: “Aquele tira que você baleou era meu amigo”.O queixo de Edie caiu: “Ele era o tal do Jim?”.“Era.”“É claro”, disse ela, suspirando desconsolada.“E daí? Como se eu tivesse que saber disso. O maldito tira era um tira, e pronto.”Para Bonnie, o que acontecia dentro do Seville roubado era surrealista. Pela lógica, o rapto

deveria ter acabado quando o revólver de Snapper ficou sem balas. E, no entanto, ali estava ele,no carro, como se nada tivesse acontecido. Parecia que eram dois casais de amigos passeando.Daqui a pouco, eram capazes de parar pra uma pizza e refrigerantes.

“Posso perguntar uma coisa? Para onde estamos indo? Quem está no comando agora?”,indagou Bonnie.

Snapper respondeu: “Eu estou no comando, merda. Enquanto estiver dirigindo, estou nocomando”.

Snapper sentiu o dedo de Edie cutucando sua costela. “O jipe”, ela falou. “Olhe, está bem aonosso lado.”

O jipe estava na pista da esquerda, emparelhado com o Cadillac Seville. Snapper acelerou,mas o jipe acompanhou a velocidade.

“Com mil demônios”, exclamou Snapper. Edie tinha razão. Era o mesmo jipe que haviamabandonado há dez minutos. Snapper estava perplexo. Quem poderia ser?

Notaram que a janela do lado do passageiro do jipe fora abaixada. O motorista fantasmaestava manobrando apenas com a mão esquerda. Com a luz dos faróis dos automóveis quevinham na direção contrária, Snapper viu o rosto dele, mas não o reconheceu. Observou,contudo, que o homem não vestia uniforme de policial. Sentiu um estranho alívio.

Bonnie reconheceu o motorista do jipe imediatamente. Acenou-lhe disfarçadamente. Skinkfez o mesmo.

“O que está acontecendo?” Edie Marsh estava de joelhos e histérica. “Quem é o filho daputa?”

Ficou mais abatida do que propriamente surpresa quando o motorista do jipe levantou umrifle em direção ao Seville com uma só mão. Quando Snapper percebeu a arma, o tiro já haviasido disparado, como se fosse um tiro de uma espingarda de ar comprimido de uma criança.

Então Snapper sentiu uma picada dolorida abaixo do ouvido. Um calor líquido correu pelosseus braços, seu peito e suas pernas. Seu corpo amoleceu de repente, e ele apenas teve forçaspara murmurar: “Que merda é esta? Que merda...”.

Skink sugeriu que Edie assumisse a direção. “Vá com cuidado. Temos que parar.”Debruçando-se sobre o corpo de Snapper, Edie guiou o carro para o acostamento. O jipe

preto parou na frente deles.Edie mordeu o lábio: “Não posso acreditar nisto. Simplesmente não posso”.“Nem eu”, disse Bonnie, saindo do Seville antes que ele estivesse completamente

estacionado e correndo em direção a Augustine.

28

Jim Tile jogara futebol americano no seu tempo de estudante na Universidade da Flórida.Naquela época, na partida final, no seu primeiro ano de faculdade, chocou-se contra outrojogador, levando um duro golpe de capacete no esterno. Jim Tile continuou jogando futebol, masse esqueceu completamente como se respira corretamente.

Era como se sentia naquele momento. Como se tivesse levado um golpe de capacete. Sabiaque estava caído numa poça de lama e que olhava para o rosto preocupado de uma prostituta decabelos pintados de louro. O impacto do tiro abalara seus pulmões de tal forma que ele sentiagrande dificuldade para respirar. As luzes de emergência da viatura policial piscavam azuis,brancas, azuis, refletindo-se nos olhos da prostituta.

Jim Tile entendeu que não poderia estar morrendo. Mas sentia-se como se estivesse. A balanão penetrara em nenhum tecido bronquial vital. Estava apenas alojada numa bendita camada docolete à prova de balas da marca Dupont Kevlar. Como a maioria dos policiais, Jim detestava ocolete, em especial em dias de verão — ele era quente, volumoso e provocava coceiras. Masmesmo assim o usava, pois prometera a sua mãe, a suas irmãs, a seu tio e, é claro, a Brenda quetambém usaria um. O trabalho na Polícia Rodoviária era, estatisticamente, um dos maisperigosos que existiam e, naturalmente, era também um dos mais mal remunerados. Somenteapós a morte de inúmeros patrulheiros por causa de tiros a Polícia Rodoviária havia requisitadocoletes à prova de balas. O orçamento da corporação era tão minguado que foi preciso solicitardoações externas para a compra dos coletes.

Muito antes disso, os parentes de Jim resolveram que ele não deveria esperar pela proteçãode sua corporação. O colete à prova de balas de Jim fora um presente de Natal da família. Nãoera sempre que Jim o usava para patrulhar regiões rurais de Panhandle, mas, em Miami, não ia àigreja sem ele. Estava feliz por estar com ele naquele momento.

Se ao menos pudesse lembrar-se de como respirar.“Fique calmo, rapaz. Fique calmo. Já telefonamos para o serviço de socorro de emergência”,

repetia a prostituta.Ao sentar-se, Jim emitiu um som que fez a prostituta lembrar de um ralo sendo desentupido.

Quando ela deu um tapa em suas costas, para ajudá-lo a respirar, um pedaço de chumboamassado do tamanho de uma pequena moeda caiu na poça de água. Jim pegou-o. Era a bala dorevólver que o atingira.

Jim perguntou: “Para onde eles foram?”. Sua voz estava fraca e trêmula. Com dificuldade,recolocou o revólver no coldre.

“Não se mexa”, recomendou-lhe a mulher.“Eu consegui atingi-lo?”“Fique sentado, quieto.”“Senhora, ajude-me a levantar, por favor.”Ele já estava se arrastando até a viatura, quando chegou a ambulância. Os paramédicos

fizeram com que ele se deitasse e retiraram o colete e sua camisa. Disseram-lhe que teria umhematoma sério. Falaram-lhe também que era um homem de muita sorte.

Quando os paramédicos terminaram seu trabalho, o estacionamento do Paradise Palm jáestava atulhado de curiosos, turistas e hóspedes do hotel. Chegaram também equipes de duasestações de televisão e três viaturas policiais dirigidas por superiores hierárquicos de Jim. Ospoliciais se reuniram embaixo de guarda-chuvas pretos para preencher a ocorrência.

Enquanto isso, o criminoso estava fugindo pela rodovia US-1, levando Skink e Bonnie comoprisioneiros.

Um tenente disse a Jim que não se preocupasse, pois eles jamais conseguiriam escapar deKeys.

“Senhor, gostaria de fazer parte do esquadrão de perseguição. Sinto-me ótimo.”“Você não vai a parte alguma.” O tenente amenizou a ordem com uma risada. “Que diabos,

Jim, só estamos começando.”E deu a Jim uma pilha de formulários e uma caneta.

O corpo de Tony Torres inevitavelmente chamou a atenção de um repórter que estavacobrindo as vítimas do furacão. No relatório da autópsia não aparecia o termo “crucificação”,mas o diagrama mostrando a localização dos ferimentos deixava bem claro que o homem foracrucificado. Para evitar publicidade negativa, a polícia fez um súbito esforço para retomar ainvestigação do caso, que estava suspensa desde a ligação misteriosa da mulher que se disseraesposa do defunto. Em um dia, um detetive veterano do Departamento de Homicídios conseguiudescobrir um endereço recente do cadáver. Isso foi possível graças ao relógio Cartier de Tony. Ojoalheiro guardara o recibo de venda, temendo queixas futuras do cretino orgulhoso que adquirirao relógio. O joalheiro não ficou nem um pouco pesaroso com a notícia da morte do homem e,gentilmente, deu ao detetive o endereço que ele estava procurando. Enquanto a Divisão deRelações Públicas do Departamento de Homicídios continha o repórter, Brickhouse dirigiu-separa a residência do morto em Turtle Meadow.

Ao chegar ao endereço, o detetive deparou-se com uma casa destruída pelo furacão eaparentemente abandonada, com um Chevrolet antigo e um Oldsmobile estacionados na entradapara carros. A placa do Chevrolet havia sido retirada, mas pelo número do chassi sabia que ocarro pertencera a Antonio Rodrigo Guevara-Torres, a vítima. A placa do Oldsmobile estavaregistrada em nome de um Lester Maddox Parsons. Brickhouse solicitou eventuais antecedentescriminais de Parsons, os quais poderiam ou não estar disponíveis na manhã seguinte, quandoretornasse ao escritório. O furacão afetara também o sistema de informática da polícia.

O primeiro impulso do detetive foi entrar na casa, o que seria fácil, já que não havia portas. Oproblema maior não era que Brickhouse não tivesse um mandado, mas o velho da casa ao lado,que o observava cheio de curiosidade, em pé na porta. Ele se constituiria, certamente, naprincipal testemunha de defesa se a polícia fosse processada por invadir a casa sem autorizaçãojudicial.

De modo que Brickhouse ficou no quintal, espreitando através de janelas quebradas epassagens sem portas. Reparou num gerador movido a gasolina na garagem, vinho e flores nasala de jantar, uma bolsa de mulher, velas semiderretidas, uma caixa térmica perto de umaespreguiçadeira — tudo indicava que a casa fora habitada após o furacão, apesar da imensaquantidade de entulho. Brickhouse não viu nenhuma mancha de sangue, o que corroborava suateoria original de que o vendedor de trailers fora crucificado em outro local.

O detetive dirigiu-se devagar para a casa do vizinho abelhudo, cujo nome era Leonel Varga.Ele contou uma história confusa sobre visitantes de aparência sinistra, mulheres misteriosas ecachorros que latiam sem parar. Brickhouse anotou tudo cortesmente. Varga informou-lhe que o

senhor e a senhora Torres eram separados, embora ela tivesse telefonado recentemente,informando que estava voltando para casa.

“Mas trata-se de um segredo”, acrescentou.“Certamente”, comentou Brickhouse. Antes de retirar-se, colocou seu cartão no batente da

porta da casa de Antonio Torres.Neria Torres encontrou-o ao alvorecer.

A caminhonete de Mateus seguira-a por todo o caminho, desde Fort Drum até a casa emTurtle Cove. Os sete homens do Tennessee invadiram a casa, maravilhados com a oportunidadede trabalho que Deus lhes enviara. Mateus anunciou, em tom grave, que deveriam começar atrabalhar imediatamente.

Neria disse: “Não, ainda não. Primeiro vocês me ajudam a achar meu marido, depois eudeixo vocês consertarem a casa”.

“É, pode ser. Onde está ele?”“Não sei. Preciso dar alguns telefonemas primeiro.”“Claro. Enquanto isso, a gente podia ir olhando os estragos.” Pediu permissão a Neria para

pegar algumas ferramentas na garagem.“Espere um pouco.”Mas os homens já estavam subindo no telhado. Pareciam um bando de chimpanzés sem pelo.

Neria resolveu não se opor. O estado da casa teve um efeito mais forte sobre ela do que esperara.Vira as cenas da destruição na CNN, mas estar no meio dos escombros era completamentediferente. Devastador, mesmo, era o fato de os escombros serem provenientes do que fora a suacasa. Ao ver as fotos mofadas de seu casamento, sentiu um certo abalo emocional. Isso passoulogo que viu a garrafa de vinho e as flores na sala de jantar. Neria presumiu que Tony compraraaquilo para alguma prostituta.

Apalpou o cartão do detetive. Esperava que seu marido estivesse na cadeia, assim estarialivre para reclamar sua metade do seguro, ou talvez mais.

Ouviu um som de motor vindo da garagem. Os hábeis operários haviam providenciadocombustível para o gerador. Uma lâmpada acendeu e apagou na sala de estar.

Leonel Varga, ainda de roupão, veio até a porta para dar-lhe as boas-vindas. Assegurou-lheque o detetive era uma pessoa agradável.

“O que ele queria? Tem a ver com Tony?”, perguntou Neria.“Acho que sim. Mas ele não disse a que veio.” O senhor Varga fixou o olhar nos

trabalhadores ocupados no telhado, iluminados pela luz do sol nascente. “Já encontrou operáriospara consertar o telhado?” Ela retrucou: “Tenho sérias dúvidas a esse respeito”.

Neria telefonou para o número particular que o detetive escrevera a lápis nas costas docartão. Brickhouse respondeu de imediato, como se estivesse acostumado a ser acordado aqualquer momento. Falou: “Estou contente que a senhora tenha ligado”.

“O senhor quer falar sobre Tony?”“É, receio que sim.”“Não me diga que ele está na cadeia?”, falou Neria, esperando que o detetive dissesse

exatamente aquilo.“Não, não está. Senhora Torres, o seu marido está morto.”“Oh, meu Deus. Oh, meu Deus.” Os pensamentos corriam rápido na cabeça de Neria como

uma pedra levada pela correnteza de um rio.“Sinto muito...”

“O senhor tem certeza? Tem certeza de que é Antonio?”“Na verdade, temos que ir ao necrotério. A senhora está em casa agora?”“Sim, acabei de chegar.”“Tenho que estar no tribunal hoje de manhã. Que tal se eu passar aí por volta do meio-dia?

Iremos juntos. Assim, teremos tempo para conversar um pouco.”“Sobre o quê?”“Parece que Antonio foi assassinado.”“Como? Assassinado?”“Falaremos mais tarde, senhora Torres. Agora, deve descansar um pouco.”Neria não sabia ao certo o que estava sentindo ou o que deveria sentir. O cadáver no

necrotério era do homem com quem casara. Um patife corpulento, sem dúvida, mas ainda assimo marido que um dia acreditara amar. Era natural que estivesse chocada. E curiosa. Com umpouco de medo. Talvez até de tristeza. Tony tinha seu lado detestável, mas mesmo assim...

Seu olhar pousou pela primeira vez na bolsa. Uma bolsa de mulher aberta sobre o balcão dacozinha. Sobre a bolsa havia um bilhete, em letras de imprensa, assinado com as iniciais F. D.Segundo o bilhete, F. D. estava com os cachorros no hotel. O bilhete começava com “Minhaquerida e sexy...” e terminava com “seu amor para sempre”.

Cachorros?, pensou Neria.Pensou também se Tony teria assinado a nota como F. D. e, nesse caso, que apelido estranho

as iniciais representariam. Fodido desgraçado?Movida pela curiosidade, olhou o que havia dentro da bolsa. Uma carteira de motorista de

uma tal de Edith Deborah Marsh. Neria notou a data de nascimento, calculando, mentalmente, aidade da moça. Vinte e nove anos.

Tony, seu velho tarado.Neria analisou o retrato da jovem. Ficou satisfeita ao ver que a moça era morena, de olhar

duro, e não uma loura amalucada.Atrás de si, sentiu uma respiração ofegante. Quando se virou, deu de cara com Mateus.“Meu Deus!”“Não queria assustá-la.”“O que há? O que você quer?”“Começou a chover.”“É, eu reparei.”“Parece que está na hora de fazer um intervalo. Estamos indo comprar pregos, papel e

madeira — coisas assim.”“Você quer dizer tábuas. Madeira de construção a gente chama tábua.”“Claro.” Mateus coçou suas tatuagens bíblicas.“Então, podem ir.”“É, mas precisamos de dinheiro para as tábuas.”“Mateus, há algo que tenho de lhe contar.”“Claro.”“Meu marido foi assassinado e um detetive está vindo para cá daqui a pouco.”Mateus deu um passo para trás, dizendo: “Minha nossa, sinto muito”. Começou a fazer uma

prece improvisada, mas Neria interrompeu-o.“Você e sua equipe têm licença para construir no condado de Dade, não é? Não haverá

nenhum problema se o detetive quiser fazer algumas perguntas...?”

Os operários juntaram tudo o que era seu e partiram em quinze minutos. Neria achou asolidão relaxante: o tamborilar da chuva, o zumbido ocasional de um mosquito. Pensou emTony. Quem teria ficado tão zangado com ele a ponto de matá-lo? Talvez a jovem Edith. Pensoutambém no professor e na sua musa e em como estariam se virando sem o furgão.

Também pensou nas inúmeras coisas que não queria fazer, como voltar a morar naquelaruína no número 15 600 da rua Calusa. Ou ser entrevistada por um detetive do Departamento deHomicídios. Ou ainda ir ao necrotério reconhecer o corpo de seu marido.

Seu problema imediato era o dinheiro. Pensou que talvez o descuidado do Tony tivessedeixado o nome dela em alguma das contas no banco e se haveria sobrado alguma coisa. O itemde mais valor na casa era seu carro, que não fora danificado pelo furacão. Neria conseguiulocalizar a chave extra na garagem, mas não pôde dar partida no motor.

“Está precisando de ajuda?”Era a voz de um jovem de boa aparência, usando uniforme da Federal Express. Tinha um

envelope para Neria Torres. Ela assinou o recibo e colocou o envelope no assento da frente dovelho Chevrolet de Tony.

O jovem disse: “Posso resolver seu problema”.“Ah, então, por favor.”Conseguiram ligar o carro. Neria deixou o motor ligado para recarregar a bateria. O jovem

disse que o barulho do motor estava bom. A meio caminho do furgão da Federal Express, ojovem parou, dizendo: “Alguém roubou a sua placa”.

“Droga.” Neria saiu do carro para verificar. O jovem comentou que provavelmente fora umsaqueador.

“Todo mundo por aqui está sendo roubado”, disse ele.“Ah, não tinha notado. Obrigada.”Tão logo ele foi embora, Neria abriu o envelope da Federal Express. Seu grito estridente de

alegria atraiu o senhor Varga para o alpendre de sua casa. Estava sem camisa, com a escova dedentes enfiada na boca.

O envelope continha dois cheques em nome de Antonio e Neria Torres. Os cheques foramemitidos pela Midwest Life and Casualty Company, de Omaha, Nebraska. O total era deduzentos e um mil dólares por indenização devido a perdas causadas pelo furacão.

Um pouco depois do meio-dia, quando o detetive Brickhouse chegou ao número 15 600 darua Calusa, encontrou a casa vazia novamente. O Chevrolet não estava mais lá, nem a viúva deAntonio Torres. Um envelope rasgado da Federal Express fora largado na entrada para carros dagaragem, ao lado do velho e enferrujado Oldsmobile. O senhor Varga informou-lhe que Neriapartira apressada, sem se despedir dele.

Brickhouse estava indo embora, quando chegou um carro de aluguel. Um jovem louro, deóculos de aros redondos, saiu do carro. Brickhouse observou que o homem carregava uma caixade chocolates Whitman. Do assento traseiro do carro alugado ouviam-se latidos agudos.

O detetive interpelou-o: “O senhor está procurando a senhora Torres?”.O homem hesitou. Brickhouse se identificou como detetive. O homem piscou várias vezes,

como se as lentes de seus óculos estivessem embaçadas.“Não conheço ninguém com o nome de Torres. Acho que estou no endereço errado.” E,

apressado, voltou para o carro.Brickhouse apoiou-se na janela, perguntando: “E para quem são os bombons?”.“Para minha mãe”, respondeu o homem, sobrepondo a voz aos latidos.

O detetive ficou observando o jovem confuso e nervoso ir embora. Perguntou-se por que elementira. Até os maiores birutas sabem como encontrar a casa de suas mães. Pensou em segui-lo,descartando logo a ideia. Seria perda de tempo. O jovem não tinha a menor pinta de tercrucificado Tony Torres. Tinha certeza disso.

Augustine estacionou perto de uma cabine telefônica, atrás de um posto de gasolina. Skinkqueria dar um telefonema. Voltou ao carro, assobiando uma canção dos Beatles.

“Jim está vivo”, ele disse.Edie Marsh, curvando-se para a frente, perguntou: “Seu amigo? Como você sabe disso?”.“Temos um número para deixarmos recados.”Bonnie perguntou se ele fora gravemente ferido.“Não. A bala ficou entranhada no colete à prova de balas.”Augustine sacudiu o pulso, contente. O humor de todo mundo melhorou, até mesmo o de

Edie. Skink disse a Bonnie que poderia telefonar para sua mãe, desde que fosse rápida. Aconversa de Bonnie com sua mãe foi assim:

“Mamãe, aconteceu uma coisa.”“Ah, isso eu já tinha adivinhado.”“Entre mim e Max.”“Ah, não é possível.” A mãe de Bonnie estava se esforçando para parecer horrorizada,

quando Bonnie sabia perfeitamente o que realmente sentia.“O que foi que ele fez, querida?”“Nada, mamãe. Fui eu que fiz.”“Vocês brigaram?”“Não, não. Escute. Conheci dois homens maravilhosos. Acho que me apaixonei por um

deles.”“Durante sua lua de mel, Bonnie?”“É, receio que sim.”“O que ele faz na vida?”“Ele não tem certeza.”“Esses homens que você conheceu são perigosos?”“Não para mim. Eles são totalmente diferentes de todas as pessoas que já conheci. Têm uma

espécie de carisma.”“Bem, não vamos contar isso a seu pai, não é?”Depois, Bonnie ligou para seu apartamento em Nova York. Quando voltou ao Seville, disse a

Skink que poderia seguir viagem sem ela.“Max deixou um recado na secretária eletrônica.” Não olhou para Augustine ao dizer isso.

Não conseguiu olhar para ele.Bonnie repetiu o recado de Max. “Ele disse que está tudo acabado entre nós se eu não for me

encontrar com ele.”“Mas já está tudo acabado, de qualquer maneira”, observou Skink.“Por favor.”“Chame de novo e deixe seu recado.” Skink deu-lhe os detalhes — o lugar, a hora e quem

iria ao encontro.Depois que Bonnie saiu do telefone, Skink fez outra chamada. Quando voltaram ao carro,

Augustine pisou fundo no acelerador, imprimindo alta velocidade ao Seville. Bonnie colocou amão em seu braço. Ele deu um sorriso triste e tenso.

Chegaram à saída da rodovia 905 em um curto espaço de tempo. O trânsito em direção aonorte já estava congestionado a partir de Lake Surprise. Skink conjeturou que a polícia subira aponte levadiça de Jewfish Creek para fazer uma barricada. Previu que haveria outra barricada emCard Sound assim que outras viaturas chegassem do continente.

Edie perguntou: “Então para onde vamos?”.“Paciência.”Os dois estavam sentados juntos no banco de trás. Skink levava no colo uma mala Bill Blass

que fora tirada do porta-malas, a fim de dar espaço para Snapper, desacordado pelostranquilizantes.

Skink pediu a Augustine que acendesse a luz do veículo.Augustine apertou vários botões até acertar o botão da luz. Skink forçou as fechaduras da

mala e abriu-a.“Vejam o que temos aqui”, disse, surpreso.

Os patrulheiros esperaram toda a noite em Jewfish Creek. Como Jim Tile previra, o jipe pretoCherokee nunca aparecera, nem o Cadillac prateado roubado de um cliente de um supermercadoem Key Largo. A vítima, de nacionalidade francesa, descrevera o ladrão como tendo o maxilardeformado.

Ao raiar do dia, os policiais desfizeram a barricada e se espalharam por Upper Keys.Levaram três dias para encontrar o Seville, abandonado à beira da rodovia 905, a apenas algunsquilômetros do refinado clube de Ocean Reef. A polícia esperou mais quarenta e oito horas, atéanunciar a descoberta do veículo. Omitiram o fato de ter sido dado um tiro no painel do carro,com receio de alarmar indevidamente os residentes e convidados de Ocean Reef, entre os quaisse encontravam contribuintes dos mais influentes e proeminentes da costa leste dos EUA. Muitosjá estavam irritados com os danos causados pelo furacão às suas residências de veraneio.Notícias de que um criminoso pudesse estar emboscado no mangue provocaria comunicações dealto nível com Tallahassee e Washington. A turma de Ocean Reef não brincava em serviço.

E, de todo modo, posteriormente verificou-se que não houvera riscos para a população.

A maioria dos homens recém-casados, se fossem abandonados pela esposa, teriam ficadohistéricos de dor, ciúme e raiva. Max Lamb, contudo, fora abençoado com uma preocupaçãoextrema e doentia com sua carreira profissional.

Um pensamento que o desesperava vinha toda hora à sua mente, e não tinha nada a ver comsua esposa desaparecida. Tratava-se de algo que o sequestrador desequilibrado lhe dissera: Vocêprecisa deixar um legado.

Eles estavam na carroceria de um caminhão, falando sobre slogans inesquecíveis. Max nãotinha nada muito importante de que pudesse se gabar, a não ser o curto comercial dos cereaisPlum Crunchies. Desde o fracasso da campanha, a direção da companhia passara a colocá-lo emprojetos gráficos ou de elaboração de cartazes, em vez de confiar-lhe a criação de slogans.

Tal fato o magoou, pois Max achava que tinha talento para lidar com palavras. Consideravaestar ao seu alcance criar um slogan que se eternizasse. Um daqueles clássicos que osequestrador mencionara, um legado de verdade.

Agora que não haveria mais propaganda dos cigarros Bronco, Max começou a rever opotencial de suas outras contas. A soda servida no voo fê-lo lembrar a cerveja não alcoólica OldFaithful. A popularidade da cerveja havia alcançado seu pico no verão de 1962, mas, desde

então, sua participação no mercado mundial de refrigerantes havia se tornado ínfima. A missãoda Rodale era reavivar a cerveja na memória do consumidor e, para a consecução desse objetivo,a família Mormon, proprietária da Old Faithful, estava disposta a despender uma polpuda soma.

Na Rodale & Burns, a conta da Old Faithful era considerada lucrativa, mas sem chance desucesso. Ninguém gostava da bebida, pois a ingestão de uma garrafa pequena podia provocararrotos por vários dias. Numa festa, Pete Archibald, já meio bêbado, inventara um slogan jocoso:“A cerveja não alcoólica que você jamais esquecerá, porque ela não permitirá”.

Deitado na sala de estar de Augustine, Max sonhava em reavivar, sozinho, a popularidade dacerveja. Seria o tipo de coisa que poderia torná-lo uma lenda na avenida Madison. Para seinspirar, sintonizou a televisão no canal de vendas em domicílio. Pela madrugada adentro,pensou com obstinação em aliterações, alusões, trocadilhos, versos e metáforas relacionados abebidas.

Finalmente, Max encontrou algo que poderia ser interessante. Algo que soasse como umabrincadeira para as crianças e que fosse, ao mesmo tempo, fascinante para adolescentes e adultos.

“Cerveja não alcoólica Old Faithful — faz você formigar em lugares que você nunca pensouque existissem.”

Max ficou tão excitado que não conseguiu mais dormir. Tentou mais uma vez o número doapartamento em Nova York. Não encontrou Bonnie, mas a secretária eletrônica deu sinal de quehavia um recado.

Bonnie havia recebido seu recado e deixara outro. O recado de Bonnie fez com queesquecesse temporariamente a publicidade da cerveja. Sua pele, embaixo do colarinho, começoua coçar e a transpirar.

Não ficou surpreso com os sintomas. O lado negativo de reencontrar sua mulher seria ter derever o sequestrador maníaco. Só um idiota não ficaria assustado.

29

Snapper recuperou a consciência com a vaga impressão de estar num lugar onde não pisavahá vinte e dois anos — o consultório de um dentista. Sentia a presença do dentista e duas mãosenormes e ágeis mexendo em sua boca. A última vez que obturara um dente, morderainadvertidamente a falange superior do dedo do dentista. Desta vez, estava mais calmo, devidoao efeito do tranquilizante.

“Lester Maddox Parsons.” Era o dentista chamando, na tentativa de acordá-lo.Snapper abriu os olhos, sentindo-se como se estivesse no meio de um nevoeiro, e um homem

de barbas grisalhas sorria para ele. Seria um dentista usando uma touca de banho sobre oscabelos? Snapper contorceu-se.

“O que é?”, perguntou ele.“Fique calmo, chefe.”A risada de barítono do dentista pareceu-lhe um trem de carga ressonando dentro de seu

crânio. Seus maxilares estavam bem abertos, como se estivessem esperando o motor do dentista.Vamos, termine logo com isso, pensou ele.

Ouviu um zumbido. Ótimo.Mas o zumbido não vinha de dentro de sua boca. Estava em seus ouvidos. Insetos. Malditos

insetos voando ao redor de sua cabeça.Snapper sacudiu a cabeça com força. Sentiu dor. De repente, seu rosto foi encharcado com

água salgada. O que não segurou na boca formou uma poça morna em sua mandíbula inferiorprotuberante, que funcionava como uma cisterna natural.

Agora, estava completamente acordado. Começou a lembrar-se de tudo. O nevoeiro dissipou-se de sua cabeça. Viu uma fogueira de acampamento. Viu Edie, suada e descalça. E a jovemBonnie, com os braços em volta do cretino que lhe dera um tiro.

“Ei, Lester.” Era a voz do gigante caolho e amalucado, segurando um balde vazio. Não haviadentista nenhum.

Mas sentia, não havia dúvida, um objeto de aço frio mantendo seus maxilares separados umdo outro. Era algo tão pesado que fazia sua cabeça pender para a frente. Uma barra de algumtipo.

Droga.Gemeu de dor ao tentar levantar-se. Suas pernas estavam bambas. Com os braços

entorpecidos, tentou em vão retirar a barra de aço da boca.Skink segurava uma pequena chave cromada. “Não aceite imitações, lembra-se?”“Não é possível! Você colocou a tranca para carros em minha boca?”“Você atirou no meu amigo. Chamou-o de crioulo nojento.” Skink deu de ombros, resignado,

e continuou. “Deu uma surra numa policial e roubou-lhe a aliança. Abandonou-a na estrada, emestado de coma. Você não me deu escolha, não é?”

Segurando Snapper pelos cabelos, arrastou-o até a beira do riacho de águas esverdeadas.“Simplesmente não me deu escolha.”“Ui! Ui!”

“Claro. Agora está arrependido.”Edie, Bonnie e Augustine apareceram na ribanceira. Skink agachou-se na lama, ao lado de

Snapper.“O negócio é o seguinte. Se você pertencesse a qualquer outra espécie animal, já estaria

morto. Já ouviu falar de Charles Darwin?”Os mosquitos faziam coçar as pálpebras de Snapper. Ele balançou a cabeça afirmativamente.“Ótimo. Então você vai entender o que vai acontecer agora.” Virando-se para os

companheiros, disse: “Alguém conte ao senhor Lester Maddox Parsons onde estamos”.Augustine disse: “No lago dos crocodilos”.“Exatamente.” Skink levantou-se. Mais uma vez, mostrou a chave cromada, a única coisa

que poderia abrir a tranca colocada nos maxilares de Snapper.Skink jogou-a na água, dizendo: “‘Refúgio da Vida Selvagem dos Lagos dos Crocodilos’.

Adivinhe por que esse nome”.Pesaroso, Snapper ficou olhando os círculos concêntricos deixados pela chave na água.

Eles tinham parado uma vez na estrada 905 para que Skink pudesse recolher uma cascavelmorta do asfalto.

“Não me diga que isto tem o mesmo gosto de galinha”, ironizara Edie.O ex-governador, com a cobra enrolada a seus pés, fingira-se de ofendido. Dissera a Edie que

ela era bonita demais para ser tão cínica. Arrancara o guizo da cascavel e dera a Edie de presente.“Exatamente o que sempre desejei”, dissera ela, colocando o guizo no cinzeiro do carro.Depois de abandonar o jipe numa vala, Skink fizera uma tocha com um pedaço de tronco de

pinheiro. Por aproximadamente duas horas, conduzira os outros por um bosque escuro deplátanos, arbustos venenosos, figueiras e mognos. Pendurara Snapper sobre o ombro como umsaco de aveia. Na mão direita, carregava a tocha. Na mão esquerda, a mala Bill Blass. EdieMarsh seguira atrás dele, por um caminho estreito demais até para um coelho. Bonnie era apróxima, com Augustine logo atrás. Este, seguindo as instruções de Skink, trouxera o rifle detranquilizante e uma tranca para automóveis. A pistola 38 estava presa em seu cinto.

Finalmente, chegaram a uma pequena clareira. No centro, havia um círculo de pedras cheiasde fuligem. Era sinal de que tinham feito uma fogueira ali. A poucos metros do lugar,encontrava-se um furgão enferrujado, com uma lista cor de laranja na lateral. No teto, havia umabarra com lâmpadas vermelhas. Bonnie e Augustine se aproximaram — era, na verdade, umavelha ambulância do condado de Monroe, apoiada em blocos de cimento. Augustine abrira aporta traseira e assobiara, surpreso. A ambulância estava cheia de livros antigos.

O ex-governador colocara Snapper no chão, apoiado em um tronco de árvore. Fora até umlugar, do outro lado da clareira, afastando com o pé alguns galhos e folhas. Embaixo havia umatábua encobrindo uma lona impermeável, cor de oliva. De dentro da lona extraiu uma lata commigalhas de pão, um vidro de óleo vegetal, uma jarra de cinco galões de água fresca e umrepelente de insetos. Passou o repelente para os outros.

Quando ele estava recolhendo galhos secos para o fogo, Edie aproximara-se por trás eperguntara: “Onde estamos?”.

“No meio de lugar nenhum.”“Por quê?”“Porque não há lugar melhor para se estar.”Todos se reuniram para observar Skink tirar a pele da cascavel. Edie estava impressionada

com suas mãos enormes e com a agilidade com que lidava com a faca.

Quando o fogo pegou, Augustine puxou Bonnie para perto dele, afundando o rosto em seuscabelos sedosos. Sentia-se relaxado com o estalar do fogo, os pios das corujas, os racoonstrinando e se movimentando, o barulho dos gaviões caçando insetos no topo das árvores. A únicacoisa dissonante naquele cenário de paz era o ronco de Snapper.

O ar estava fresco. A chuva parara por um tempo. Augustine não teria trocado de lugar comninguém no mundo. Os Lagos dos Crocodilos numa noite quente de setembro lhe parecia o lugarideal. Beijou Bonnie levemente. Não tinha qualquer plano para o futuro imediato. Fazia questãode não pensar em Max Lamb, que estaria vindo no dia seguinte, numa missão para recuperar amulher.

Skink começou a distribuir pedaços de cobra frita. Edie, em tom de brincadeira, disse queseria descortês não guardar um pouco para Snapper. Skink declarou, em tom solene, que nãodesonraria a memória de um réptil morto dessa forma.

Fora nesse momento que pedira a tranca de carros para Augustine.Virara-se de costas para os outros, enquanto a colocava nos maxilares de Snapper. Bonnie

pensou que aquilo só era possível devido à protuberância das mandíbulas do homem. Depois,ninguém mais dissera uma palavra, até que Snapper murmurou algo.

Skink se curvou sobre ele: “Lester”.“Lester Maddox Parsons.”As pálpebras de Snapper bateram. Skink pedira a Augustine que trouxesse um balde de água

do riacho para acordar o filho da puta. Uma vez acordado, Skink jogara a chave da tranca naágua.

O laranja róseo do amanhecer não conseguiu levantar o moral de Edie. Sentia-se pegajosa,arranhada, quente, queimada pelo sol, suja, enfim, tão infeliz como jamais se sentira. Tinhavontade de chorar, de puxar os cabelos e gritar. Queria fazer uma cena. Acima de tudo, queriafugir, mas era impossível. Estava numa armadilha armada pela natureza. Correspondia, naverdade, a um muro altíssimo de arame farpado. Seus pés e mãos não estavam acorrentados.Skink não apontara um revólver para sua cabeça. Nada a impedia de correr e fugir, exceto a cruelcerteza de que nunca encontraria o caminho para a cidade, de que se perderia nos bosques emorreria de fome, de que seu corpo emagrecido seria despedaçado e devorado por crocodilos,cascavéis e formigas tropicais vorazes. A perspectiva de uma morte anônima nos pântanosofendia a dignidade de Edie. Não desejava que seus ossos descorados fossem encontrados porcaçadores, pescadores ou observadores de pássaros e depois reconstruídos por médicos legistas.A identificação teria que ser feita por seu ortodontista de infância.

Aproximou-se do ex-governador: “Preciso falar com você”.“Se for sobre a mala que achamos no Seville, esqueça.”“Não, não é sobre isso.”“Tá bem. Logo que eu termine meu papo aqui com Lester.”“Não, tem que ser agora.”Skink segurou seu queixo numa de suas enormes e ásperas mãos. Edie sentiu que ele poderia

quebrar seu pescoço tão facilmente como desatarraxaria uma tampa de cerveja. Ele disse: “Vocêtem péssimas maneiras. Vá sentar-se com os outros”.

Bonnie e Augustine estavam ajoelhados atrás da ambulância, dando uma olhada nos livros deSkink. Edie não entendia como eles pareciam tão despreocupados.

“Precisamos fazer alguma coisa”, disse ela. A frase soou como um comando.

Augustine estava mostrando a Bonnie uma primeira edição de Absalom, Absalom. Olhoupara Edie e disse: “É um passeio. Quando acabar, acabou”.

“Mas quem é ele?”, perguntou Edie apontando para Skink. E então, segurando Bonnie pelosombros: “Você não tem medo? Meu Deus, sou a única aqui com cérebro suficiente desenvolvidopara ter medo”.

“A noite passada tive medo. Agora não.”Augustine disse a Edie para se acalmar. “Vai terminar quando ele disser que terminou.

Enquanto isso, esforce-se para não irritá-lo.”Edie ficou chocada com a aspereza da voz de Augustine. Ele apontou o polegar para

Snapper, boquiaberto perto da fogueira. “E o que você andava fazendo com aquele patife, hein?”Bonnie interrompeu: “Vamos mudar de assunto, ok?”.“Não, tudo bem. Eu quero explicar. Eram só negócios. Estávamos trabalhando num plano

juntos.”“Um golpe, você quer dizer.”“É, dinheiro do seguro. Uma indenização por danos causados pelo furacão.” Reparou que

Bonnie estava olhando espantada para ela. “Bem-vinda à realidade, princesa.”“E então? Quando vai receber essa indenização?”Edie riu com pesar. “O agente da companhia disse que o dinheiro seria enviado qualquer dia

desses. Falou que viria pela Federal Express. E aqui estou eu, perdida no meio de Everglades.”“Não estamos em Everglades. Na verdade, isto aqui está mais para Saint Tropez, se

comparado com Everglades. Mas posso entender por que você está tão zangada. Afinal, não étodo dia que se perde duzentos mil dólares.”

Edie ficou estupefata. Bonnie disse: “Você tá brincando. Duzentos mil dólares?”.“Duzentos e um mil dólares.” Augustine admoestou Edie com uma piscadela.Edie murmurou, de forma quase inaudível: “Como é que você sabe disso?”.“Você deixou uns papéis na casa da rua Calusa.”“Oh, droga.”Ele desdobrou as cópias de carbono cor-de-rosa da Midwest Casualty. Edie reconheceu o

texugo numa ponta do papel. Augustine rasgou as cópia, dizendo: “Se eu fosse você, já iriapensando numa boa desculpa para explicar por que sua carteira está na cozinha daquela casa. Apolícia vai ter grande curiosidade em saber”.

“Droga.”“O que estou querendo dizer é que você não devia estar com tanta pressa de voltar para a

civilização.” Virou-se e continuou a mexer nos livros da ambulância.Edie mordeu o lábio inferior. Meu Deus, às vezes é difícil manter a calma. Sentiu-se à beira

de um ataque de nervos novamente. “Afinal, o que isto significa? Algum tipo de brincadeira?”“Acho que não”, disse Bonnie.“Meu Deus.”“Aproveite a aventura. Aguente até terminar.”Não eu, pensou Edie. De jeito nenhum.

A tranca aumentava ainda mais a deformação de Snapper, já de proporções exageradas.Formava pregas na parte superior de sua cara, fazendo com que se assemelhasse a um cachorro.Os olhos pareciam dois pequenos riscos úmidos. O nariz achatara-se perto das sobrancelhas. Osmaxilares ficaram mais protuberantes ainda.

“Um autêntico respirador pela boca”, comentou Skink, enquanto o examinava como se fosseuma peça de museu.

“Creeetiiino”, retrucou Snapper com dificuldade. Seus cotovelos estavam ardendo por causados arranhões que sofrera quando Skink o arrastara até o riacho.

Skink disse-lhe: “Puxa, eu odeio a palavra crioulo. Lá no hotel, pensei em matar você quandovocê usou essa palavra. Espalhar sua pobre e escassa massa cinzenta por todo o jipe. Mesmo quevocê não tivesse atirado no meu amigo, ainda assim a ideia teria me ocorrido”.

Snapper parou de gemer, procurando conter a saliva que escorria de sua boca aberta.Mosquitos voavam para dentro e para fora de sua boca.

“Não podemos fazer nada quanto a isso.” Skink bateu de leve nos insetos para afastá-los. Jáespalhara uma boa camada de repelente nos braços e no pescoço de seu prisioneiro. “Não deveser ingerido. Está escrito aqui no tubo.”

Snapper apenas abanou a cabeça, submisso.“Lester Maddox Parsons é o nome que consta de sua carteira de motorista. Não é preciso ser

muito sabido para adivinhar que seu nome foi tirado daquele fanático da Georgia com cérebro depinto. Tenho razão?”

Snapper abanou a cabeça de forma ainda mais débil.“Então você já começou mal, não é? É uma pena, Lester, mas acho que mesmo que seus pais

tivessem lhe chamado Gandhi você se tornaria um marginal de primeira classe. Vou mostrar-lheuma coisa.”

Skink puxou a mala Bill Blass para debaixo de suas nádegas. Colocou-a em frente a Snappere abriu-a com um floreio respeitoso.

Snapper levantou-se um pouco, apoiando-se nos quadris. A mala estava abarrotada dedinheiro: maços e maços de notas de vinte dólares.

“Tem noventa e quatro mil dólares aí”, informou Skink. Havia também camisas diversas,meias e roupas de baixo. Dois pacotes de camisa de vênus francesas, um par de abotoaduras deouro, um tubo de lubrificante — e que mais? Ah, sim, documentos.”

Esquadrinhou o conteúdo da mala e continuou: “Extratos de bancos, recortes de jornais sobrep furacão. E isso...”.

Mostrou um prospecto de cores brilhantes sobre um projeto imobiliário chamado Gables-on-the-Bay. Skink sentou-se ao lado de Snapper e abriu o prospecto.

“Aqui está o nosso homem. Christophe Michel. Engenheiro civil de renome internacional.Está vendo a foto dele aqui?”

Snapper reconheceu-o como o otário de quem roubara o carro em frente ao supermercado.“O que você faria”, brincou Skink, “se tivesse projetado essas casas absurdamente caras e

elas desmoronassem com o primeiro vento? Acho que uma pessoa esperta iria pegar todo o seudinheiro e fugir antes que os processos começassem a surgir. Acho que esse era o plano dosenhor Michel.”

Snapper estava cagando para o engenheiro francês. Estava sim estupefato vendo tantodinheiro. Teria ficado boquiaberto, se sua boca já não estivesse aberta pela tranca. Lembrou-sede um programa de Sally Jessy, ou talvez fosse de Donahue, mostrando uma criada de hotel queachara quarenta e quatro mil dólares embaixo de uma cama. A criada, ao invés de ficar com odinheiro, entregara-o ao gerente. Por isso aparecera no programa de Sally Jessy. O tema doprograma era “gente honesta”. Snapper lembrou-se de que gritara para a televisão: Que tipinhamais burra! Mostraram uma imagem do dinheiro, e ele quase tivera um orgasmo nas calças.

E ali estava ele, olhando para o dobro daquela quantia. Ao vivo.

“Queeem? O queeê?”“Boa pergunta, Lester.”Sem aviso prévio, o maluco caolho levantou-se, desabotoou as calças militares, tirou o pênis

para fora e — para mortificação de Snapper — urinou abundantemente no dinheiro da mala.Angustiado, Snapper balançou-se nos calcanhares. Sentia-se nauseado. Skink tornou a

abotoar as calças e foi buscar o rifle com tranquilizante. Abriu a câmara da arma e espiou dentro.Depois, reaproximou-se de Snapper, virou-o de barriga para baixo e deu um tiro de tranquilizantenuma de suas nádegas. Imediatamente, Snapper sentiu-se no meio de um nevoeiro e ficousonolento. A última coisa que ouviu foi a voz de Skink.

“Quem quer ir nadar comigo?”

Bonnie e Augustine ficaram na ambulância para continuar examinando os livros, enquantoSkink levou Edie para o riacho. Ela queria conversar. Skink queria banhar-se. Começou a tirar aroupa, inclusive a touca de banho.

Quando ele entrou na água, ela perguntou: “E os crocodilos?”.“Não vão nos incomodar. Não restaram muitos para incomodar alguém. Desejaria que

houvesse mais deles.”Serenamente, ele afundou, voltando à superfície logo a seguir. Ao sacudir a barba molhada,

soltou esguichos e bolhas. Seu corpo era bastante bronzeado e tão grande que parecia ocupar oriacho de uma margem à outra. Edie ficou surpresa ao ver o corpo dele, seus braços musculosose seu peito largo. O pescoço era tão largo quanto o tronco de um cipreste. As roupas largas doExército que usava habitualmente não deixavam perceber a beleza daquele corpo.

“Você vai entrar também?”“Só se pudermos conversar”, disse ela.“E o que mais poderíamos fazer?”Edie pensou: Lá vem aquele sorriso cinematográfico de novo. Pediu-lhe que virasse de costas

enquanto tirava as roupas.Ele ouviu-a entrar no riacho. Depois, sentiu seus braços e pernas longilíneos. Ela se agarrara

às suas costas. Quando ele foi entrando em águas mais profundas, ela enroscou suas pernas emvolta das pernas dele.

“Estou com um pouco de medo.”“Que nada. Você e eu somos os animais mais assustadores de toda esta floresta.”Edie encostou a boca no ouvido dele e sussurrou: “Quero voltar para Miami”.“Então, volte.”“Mas não sei como sair daqui.”Skink estava andando contra uma forte correnteza. A água se abria à força para dar passagem

às duas cabeças.A respiração de Edie acelerou-se pela emoção de estar atravessando águas correntes. “No

momento em que você e Pollyanna apareceram na casa da rua Calusa, eu sabia que era o fim. Orevólver de Snapper não queria dizer nada. Nós não raptamos você. Você é que nos raptou.”

“A hierarquia faz parte da natureza”, comentou Skink.Edie sussurrou, tensa: “Por favor, mostre-me como sair daqui”.“E eu que tinha tanta certeza de que você estava interessada naquela mala.”“De jeito nenhum.” Embora por um momento o pensamento tivesse lhe ocorrido... Mas, ao

invés disso, decidiu procurar sair viva de Keys.

Um pequeno peixe prateado saltou para fora da água. De brincadeira, Skink tentou apanhá-lo.“Edie, sua opinião sobre os homens não é boa. Nesse ponto, estamos de acordo. Meu Deus,imagine o que seria a Flórida hoje se as mulheres tivessem assumido o comando. Imagine umapraia ou outra sem aqueles arranha-céus horrorosos. Imagine o gramado à beira de um lago, semcampos de golfe.” Ele bateu palmas, fazendo a água espirrar.

“Você está errado.”“Querida, deixe-me sonhar.” Sentiu os lábios dela roçarem seu pescoço, depois sua língua e,

a seguir, seu mamilo. “O que significa isto?”“O que você acha?”Quando ela o beijou de novo, afundaram dentro da água. A água salgada fez seus olhos

arderem, mas ela os manteve abertos. Ele estava rindo para ela. Bolhas saíam de sua boca. Elesvieram à tona juntos e começaram a rir. Cuidadosamente, ela tornou a agarrar-se ao seu corpocomo se ele fosse uma árvore. Enroscou-se em seus quadris e pendurou-se em seus braçosmusculosos. Percebeu que ele se dirigia para uma parte mais rasa do riacho, para que pudesseficar em pé enquanto a segurava.

Agora, estavam cara a cara, com água verde espumando entre eles. Edie disse: “E aí?”.“Você não estava preocupada com os crocodilos?”“Ele teria que comer nós dois, não teria?”“Nesse momento, sim.”“Isso quer dizer que ele teria que ser enorme e estar muito faminto.”“Vamos ficar quietos, por via das dúvidas. Certo tipo de barulho realmente os atrai.” Ele

parecia estar falando sério.“Quão quietos teremos que ficar?”, perguntou ela, roçando os mamilos contra as costas dele.“Muito quietos. Nem um pio, por favor.”“Mas isso é impossível.” Ela sentiu as mãos dele na curva de suas nádegas. Ele estava

levantando-a, mantendo-a gentilmente suspensa no ar. E então ele penetrou-a. Assim, semqualquer aviso prévio.

“Pssiu.”“Não consigo.”“Consegue sim, Edie.”Fizeram amor tão devagar que dava a impressão de não estarem movendo um só músculo.

Toda a sensação de toque e movimento provinha das ondas mornas que se moviam ao redor eentre eles. No mangue, uma garça, aparentemente ultrajada com aquele ato, grasnou. Outrospeixes prateados saltaram na água. Uma longa cobra preta passou por eles, indiferente, deixando-se levar pela correnteza.

Edie Marsh saiu-se bem. Quase não emitiu nenhum som. Por alguns momentos, ela atéesqueceu o propósito daquela sedução.

Depois de fazerem amor, Edie quis se enxugar e tirar um cochilo junto com ele. Mas Skinkdisse que não havia tempo para isso. Ela vestiu-se apressada. Sem uma palavra, ele conduziu-apela mata fechada. Edie não conseguiu distinguir nenhuma trilha especial. Às vezes, parecia queestavam caminhando em círculos. Quando chegaram a uma estrada asfaltada, ele segurou o braçodela. Caminharam mais um pouco, até um cruzamento onde havia um semáforo. Uma placa diziaque uma estrada seguia para Miami e outra para Key West.

Skink disse-lhe para esperar ali.“Para quê?”

“Uma pessoa vai lhe dar uma carona para o continente. Logo estará chegando.”Edie ficou perplexa. “Quem é?”“Acalme-se.”“Mas eu queria que você me levasse.”“Sinto muito. Não irei além daqui.”“Vai começar a chover de novo.”“É.”“Ouvi relâmpagos.”“Então, não empine nenhuma pipa.”“Quando você planejou isso? Me deixar aqui...” Ela estava zangada agora. Tinha-se dado

conta de que ele sempre pensara em deixá-la ir embora. Isso significava que o sexo no riachotinha sido desnecessário.

Não é que não tivesse gostado. Pelo contrário. Adoraria fazer de novo. Mas sentia que foraenganada.

“Por que você não me disse nada sobre isso ontem à noite?”Skink deu aquele sorriso cinematográfico novamente. “Me esqueci.”“Cretino.” Ela retirou uma folha de seu cabelo molhado e, irritada, jogou-a ao vento.

Esmagou uma mosca no tornozelo. Cruzou os braços e olhou a distância.Ele curvou-se e beijou sua testa. “Olhe para o lado positivo da coisa, garota. Você superou

seu medo de crocodilos.”

30

Ao meio-dia e meia, uma viatura policial parou no cruzamento da estrada Card Sound com aCounty 905. Um homem negro, de ombros largos e roupas civis esportivas, buzinou duas vezespara Edie Marsh. Quando ele fez um gesto para que entrasse no carro, ela o reconheceu como opolicial que fora baleado por Snapper no hotel Paradise Palms.

“O senhor pode não acreditar, mas estou muito feliz de vê-lo bem.”“Obrigado pelo interesse.” Disse aquilo num tom tão neutro, que ela quase não percebeu seu

sarcasmo. Ele usava óculos escuros e tinha um palito no canto da boca. Quando se debruçou paraabrir a porta, Edie percebeu um curativo branco na altura dos botões centrais de sua camisa.

“O senhor é Jim, não é? Eu sou Edie.”“Já tinha sacado.”Ele pegou a estrada em direção a Miami. Edie presumiu que estivesse sendo presa. “Não sei

se vale a pena dizer, mas não pensei que ele fosse atirar no senhor.”“É curioso como os retardados mentais se comportam quando estão armados.”“Escute, eu sei onde ele está. Posso mostrar-lhe o caminho.”“Eu também sei onde ele está.”Então ela entendeu. O patrulheiro não tinha a menor intenção de tentar encontrar Snapper.

Estava tudo acabado para Snapper.“E quanto a mim?”, perguntou ela, especulando em silêncio sobre os inúmeros crimes pelos

quais poderia ser processada. Tentativa de assassinato. Abandono do local do crime. Cúmplice einstigadora. Roubo de automóvel. Sem mencionar a fraude do seguro, sobre a qual o patrulheiropodia ou não saber, dependendo do que Skink lhe contara.

“Então, o que vai acontecer comigo?”“Na noite passada, recebi um recado dizendo que uma moça precisava de uma carona de

volta ao continente.”“E o senhor não tinha nada melhor para fazer?”“É que a chamada foi feita por um velho amigo.”Edie Marsh continuou a se fingir de durona. Não era fácil. Não havia outros carros próximos.

O cara poderia estuprá-la, matá-la e jogar seu corpo no pântano. Quem ficaria sabendo? E alémdisso ele era um policial.

“O senhor não respondeu à minha pergunta.”O palito balançou na boca do policial. “A resposta é: nada. Nada vai lhe acontecer. Meu

velho amigo disse coisas boas a seu respeito.”“Ah, é?”“Cadeia não vai impressionar essa moça. Não perca tempo. Foi exatamente o que ele disse.”Edie ficou vermelha. “É isso que você chama de coisas boas a meu respeito?”“É por isso que estou lhe dando uma carona para a Flórida. Isso é tudo.”Depois de atravessar a ponte de Card Sound, o patrulheiro parou no restaurante Alabama

Jack’s. Perguntou a Edie se ela queria um sanduíche de peixe ou um hambúrguer.“Estou descalça.”

Finalmente, ele sorriu. “Não acho que façam exigências quanto ao traje.”Durante o almoço, Edie tentou de novo. “Fiquei nauseada quando Snapper puxou o gatilho lá

no hotel, juro. Era a última coisa que eu queria.”Jim Tile disse que não estava preocupado com aquilo. Para se fazer de amigável, Edie

perguntou-lhe há quanto tempo estava em Miami.“Dez dias.”“Então o senhor veio por causa do furacão?”“É, exatamente como você”, disse ele para que soubesse o quanto sabia sobre ela.Ao sair do restaurante, Jim comprou-lhe uma porção de batatas fritas e uma Coca-Cola para a

viagem. No carro, Edie tentou continuar a conversa. Sentia-se mais segura quando ele estavafalando, e não apenas olhando para a frente como uma esfinge e mastigando aquele malditopalito.

Perguntou-lhe se poderia dar uma olhada no colete à prova de balas. Ele explicou que tiveraque devolvê-lo à corporação como prova do atentado. Perguntou-lhe se a bala fizera um furo, eele respondeu que não, apenas uma reentrância.

“Aposto que o senhor não pensou que trabalhar na zona de um furacão fosse tão difícil.”Jim Tile mexeu no rádio da viatura.Edie perguntou-lhe: “Qual foi a coisa mais louca que o senhor já viu até agora?”.“Sem contar o tiro que levei do seu parceiro?”“É, sem contar isso.”“O presidente dos EUA tentando martelar um prego numa tábua. Teve que tentar umas nove

vezes.”Edie ficou animada. “O senhor viu o presidente!”“Vi. Fiz parte da comitiva de batedores.”Pensativa, ela mastigou uma batata. “O senhor viu o filho dele também?”“Eles estavam na mesma limusine.”“Não sabia que ele vivia em Miami. O filho do presidente.”“É, sorte dele.”Edie Marsh continuou, bebendo sua Coca-Cola e tentando não ser muito óbvia. “Queria saber

onde fica sua residência. Quero dizer, onde moraria alguém tão importante. Em Key Biscayne,provavelmente, ou talvez em Gables. Às vezes fico pensando nas pessoas famosas. Querestaurantes frequentam. Onde lavam seus carros. Quem é o dentista delas. Quero dizer. Pensonisso. O filho do presidente. Mesmo assim, ele deve precisar de uma limpeza dentária de vez emquando. O senhor nunca pensa em coisas desse tipo?”

“Nunca.” A chuva escorria forte pelo para-brisa. Mesmo assim, o patrulheiro não tirou osóculos escuros.

Edie não desistiu da conversa. “O senhor tem namorada?”“Tenho.”Finalmente consegui um assunto pelo qual ele vai se interessar, pensou Edie. “Onde ela

está?”“No hospital. Seu parceiro deu uma surra nela.”“Oh, meu Deus, não...”Jim reparou que ela derramara a Coca e que nem tinha notado, de tão nervosa.“Meu Deus. Sinto muito. Juro que não sabia... Ela vai ficar boa?”Jim ofereceu-lhe alguns lenços de papel. Edie tentou enxugar o refrigerante derramado em

seu colo. Suas mãos estavam trêmulas.

“Eu não sabia”, disse mais uma vez. Lembrou-se da gravação na aliança roubada. Cynthiaera o nome inscrito. O nome da mãe da namorada de Jim.

Agora, Edie sentia-se próxima do crime. Sentia-se com náuseas.Jim Tile observou: “Os médicos me disseram que ela vai ficar boa”.A reação de Edie foi abanar a cabeça. O patrulheiro aumentou o volume do rádio policial.

Quando chegaram ao continente, ele parou o carro num McDonald’s coberto de tábuas. Ofuracão destruíra as portas e janelas do lugar.

Um carro azul estava estacionado embaixo de uma palmeira. Um homem vestindo uma capade chuva tipo poncho, verde, estava sentado no capô do veículo. A julgar pelas marcas do ferrode passar, o poncho era novo em folha. O homem levantou-se quando viu a viatura policial.

“Quem é?”, perguntou Edie.“Cuidado com os cacos de vidro no chão”, disse Jim Tile.“O senhor vai me deixar aqui?”“Sim, vou.”Quando Edie saiu da viatura, o homem do poncho entrou. O patrulheiro disse-lhe que

fechasse a porta e afivelasse o cinto de segurança. Edie não se afastou do carro. Ficou parada, debraços cruzados e amuada. A chuva a fazia piscar e franzir o cenho, o vento a descabelava.

Ela gritou para Jim: “O que devo fazer agora?”.“Agradecer pelas bênçãos que recebeu.” Jim deu meia-volta com o carro e tomou a direção

de Key Largo.

Bonnie deu um beijo rápido e nervoso em Augustine ao sair do acampamento com Skink.Seu marido estava chegando. Deveriam se encontrar na estrada.

Sozinho e encolhido dentro da ambulância por causa da chuva, Augustine tentou continuarlendo. Mas não conseguia se concentrar. Sua mente desviava-se para o possível diálogo entreMax e Bonnie. Na sua cabeça, havia duas versões possíveis para o script: numa delas, eles sediriam adeus; e na outra, trocariam promessas de recomeçar.

Uma parte dele temia não ver mais Bonnie. Ela mudaria de ideia e voltaria para Nova Yorkcom o marido. Ele estava acostumado a ser abandonado pelas namoradas.

Por outro lado, nenhuma de suas ex-namoradas teria passado tanto tempo no bosque semfazer uma cena ou ter um ataque de nervos. Bonnie Lamb era muito diferente das outras.Augustine desejava ardentemente que ela fosse suficientemente diferente para não abandoná-lo.

Apesar de sua angústia, Augustine continuava montando guarda ao lado do prisioneiro.Snapper dormia a sono solto, sob o efeito do tranquilizante. Dentro de pouco tempo, o patifeacordaria e começaria a tagarelar. Com exceção do terno listrado barato, ele se parecia com osidiotas que seu pai costumava contratar para comporem a tripulação de seu barco.

O mau tempo também fazia com que Augustine se lembrasse de seu pai. Recordou uma tardecinza de setembro, quando seu pai jogara seis fardos de maconha na água. Pensara que um barcoque se aproximava pertencia à guarda costeira, mas não passava de um barco de passeio, cheiode cirurgiões em férias, a caminho de Cat Cay. Os fardos de droga vieram à tona numa saliênciado Gulf Stream. O pai de Augustine, numa atividade frenética, recrutou amigos, vizinhos, primose estivadores e o próprio filho para tentar recuperar a droga. Valendo-se de ganchos e arpões,eles conseguiram recolher dois fardos. Os outros quatro tinham sido roubados pela tripulação deum barco grego. Mais tarde, à noite, quando a droga estava segura num depósito, seu pai deuuma festa para todas aquelas pessoas que o ajudaram. Todo mundo fumou maconha, exceto

Augustine, que tinha só doze anos. Naquela época, já sabia que não tinha vocação para ajudarnos negócios do pai.

Augustine saiu da ambulância e espreguiçou-se. Um falcão de rabo vermelho dava voltassobre o acampamento, à procura de caça. Foi dar uma olhada em Snapper. A mala com dinheiroestava ali aberta e exalando um cheiro forte de urina. Augustine cutucou Snapper com a ponta dosapato. Nenhuma reação. Segurou a tranca e balançou a cabeça de Snapper de um lado para ooutro. Ele estava inerte como uma boneca de pano. Seus olhos permaneceram fechados.Augustine levantou uma das mãos de Snapper, beliscando-lhe a ponta do dedo com toda força.Snapper nem sequer piscou.

Está nas nuvens, pensou Augustine. Não há necessidade de amarrá-lo.Ter que ficar perto de Snapper era muito deprimente, em especial diante da possibilidade de

Bonnie não voltar mais. Dividir o acampamento com aquele criminoso era terrível. O cheiro daterra molhada pela chuva, o falcão sobrevoando o acampamento, o abraço fresco e verde dasárvores — tudo perdia a graça com Snapper por perto.

Augustine não poderia ficar esperando mais naquele lugar. Era pior do que estar sozinho.

Jim Tile perguntou: “Onde está nosso jovem amigo?”.“Na biblioteca”, respondeu Skink.Eles estavam na viatura policial, perto da trilha pela qual Skink levara Bonnie até a estrada.

Ela e o marido estavam sentados numa das amuradas de metal que delimitavam a área dos Lagosdos Crocodilos. A viatura estava estacionada próxima dali. A situação era a melhor que Jim eSkink podiam oferecer, embora a privacidade do casal não fosse total. Mesmo daquela distância,podiam ver Max Lamb em seu poncho verde.

“O pai do nosso amigo está na cadeia.” Skink ainda estava falando de Augustine. “Você vaiadorar esta. Ele diz que foi concebido durante um furacão.”

“Qual deles?”“Donna.”Jim sorriu. “Impressionante.”“Trinta e dois anos depois, outro furacão, outro começo. A vida do rapaz está marcada pelo

destino, não acha?”O patrulheiro deu uma risada. “Muita imaginação sua”, observou em tom afetuoso. “Qual é a

história do pai dele?”“Traficante de drogas. E não muito talentoso.”Jim Tile pensou um pouco. “Bem, eu gosto do rapaz. Ele é legal.”“É, sim.”Jim ligou os limpadores de para-brisa. Podiam notar — pelo movimento do poncho — que

Max Lamb estava caminhando de um lado para o outro.“Aquele ali, eu não invejo”, comentou Jim.Skink deu de ombros. Não havia perdoado Max completamente por ter trazido sua câmera de

vídeo para a zona do furacão. “Deixe-me ver onde você foi baleado.”O patrulheiro desabotoou a camisa, retirando o curativo. Mesmo com a proteção do colete, a

bala tinha deixado um hematoma roxo no peito de Jim. Skink assobiou e disse: “Você e Brendaprecisam de umas férias”.

“Os médicos estão dizendo que ela vai sair do hospital dentro de uns dez dias.”“Leve-a até as ilhas.”“Ela nunca esteve no Oeste. Adora cavalos.”

“Então para as montanhas. Wyoming.”Jim observou: “É, ela gostaria disso”.“O importante é que vocês vão para algum lugar longe daqui.”“É, acho que sim”, disse Jim, desligando os limpadores de para-brisa. A chuva acumulou-se

nos vidros rapidamente. Os dois não tocaram no nome de Snapper.

“De qual dos dois você gosta?”, perguntou Max Lamb.Esperava que fosse do sequestrador maluco. Esse fato fortaleceria sua teoria de que sua

mulher perdera a sanidade mental. Seria mais fácil de aceitar e de explicar para parentes eamigos. Bonnie fora hipnotizada por um ermitão viciado em drogas. Era a história de Manson, sóque sem a família.

“Max, o problema sou eu.”Bonnie mentiu. Sabia que o problema não era ela, unicamente. Havia observado Max quando

ele descera da viatura policial, pulando de susto ao ver um coelho como se fosse um lobo.“Bonnie, você sofreu uma lavagem cerebral.”“Ninguém...”“Você dormiu com ele?”“Com quem?”“Com qualquer um deles.”“Claro que não.” Para encobrir a mentira, Bonnie assumiu um tom indignado.“Mas você tem vontade.”Max levantou-se. A chuva escorria pelo seu poncho de plástico. “Você está me dizendo que

prefere isto” — e fez um gesto de desprezo com o braço — “prefere isto à cidade?”Ela suspirou. “Disse apenas que gostaria de ver um filhote de crocodilo. Foi tudo o que eu

disse.” Ela tinha consciência do quanto dizer isso deveria ser ultrajante para Max.“Ele está fazendo você fumar aquela droga, não está?”“Por favor.”Max continuava caminhando de um lado para o outro. “Não posso acreditar que isto esteja

acontecendo.”“Nem eu. Sinto muito, Max.”Ele descobriu os ombros e pôs-se a caminhar, a passos rápidos, em direção aos lagos. Estava

zangado demais para chorar e ofendido demais para implorar. Além do mais, percebera quetalvez Bonnie tivesse razão. Max não a conhecia muito bem. Se ela mudasse de ideia e voltassepara Nova York, ele viveria constantemente preocupado com a possibilidade de que pirasse denovo. Nem saberia o que poderia provocar sua mudança de estado de espírito. O que aconteceradestruíra a relação deles, talvez para sempre.

Virando-se para encará-la e com a voz denotando decepção, Max disse: “Pensei que vocêfosse mais... equilibrada”.

“Eu também.” Discutir apenas prolongaria a situação. Bonnie decidira ser cordata edesculpar-se. Não importava o que ele dissesse. Tinha que deixá-lo com alguma coisa para seapoiar — se não fosse o seu orgulho, pelo menos uma sensação de superioridade masculina.Parecia-lhe um preço pequeno a pagar, considerando que essa atitude poderia ajudá-lo a superarsua dor.

“Sua última chance.” Max apalpou os bolsos sob o poncho, puxando para fora duaspassagens de avião para Nova York.

“Sinto muito”, disse Bonnie, abanando a cabeça.

“Você me ama ou não?”“Não sei, Max.”Ele guardou os bilhetes. “Isto é simplesmente inacreditável.”Ela levantou-se e deu-lhe um beijo de despedida. Seus olhos estavam cheios de lágrimas,

embora Max não tenha notado, devido à chuva que também escorria por sua pele.“Telefone quando você conseguir se entender”, disse ele, cheio de amargura.Voltou sozinho à viatura policial. O sequestrador abriu-lhe a porta.Max permaneceu calado durante a viagem de volta. Um silêncio acusador. O patrulheiro era

amigo do maníaco que o raptara e fizera lavagem cerebral em sua mulher. O patrulheiro tinha aobrigação moral e legal de impedir aquela sedução, ou pelo menos tentar. Essa era a opinião deMax.

Quando chegaram ao McDonald’s coberto de tábuas, Max disse ao patrulheiro: “É melhorvocê ter certeza de que esse maluco caolho vai cuidar bem dela”.

Isso foi dito em tom de ameaça, e, normalmente, Jim teria achado graça. Nas circunstâncias,contudo, estava com pena do rapaz pela notícia que ia lhe dar.

“Ela nunca mais vai ver Skink depois de hoje.”“Mas, então...”“Acho que você confundiu as coisas. Ela gosta é do rapaz que faz malabarismo com os

crânios.”“Meu Deus!” Max parecia enojado.Ao partir com o carro, Jim pôde ver Max pelo retrovisor. Ele dava chutes nas poças de água e

balançava o poncho como se fosse um morcego batendo as asas.

Eles estavam a alguns metros da estrada quando Augustine apareceu na trilha. Bonnie correupara ele. Estavam ainda abraçados quando Skink anunciou que estava voltando para oacampamento.

Augustine levou Bonnie ao riacho. Afastou as folhas de um trecho seco na ribanceira. Bonnienotou que ele trouxera um livro da ambulância.

“Ah, você vai ler sonetos para mim.” Bonnie juntou as mãos, fingindo que ia desmaiar desatisfação.

“Pare de se fazer de espertinha”, disse Augustine amassando o cabelo dela. “Lembra-se daprimeira vez que seu marido telefonou, depois do sequestro? Lembra-se da mensagem que eledeixou na secretária eletrônica?”

Bonnie não achava mais que se tratara de um rapto ou sequestro, mas talvez tecnicamente ofosse.

“Skink fez com que ele lesse uma passagem de um livro ao telefone. Achei o livro de ondeele tirou o trecho.” Apontou o nome do livro na lombada: Trópico de Câncer, de Henry Miller.

“Ouça”, disse Augustine.“Uma vez pensei que ser humano era o mais elevado objetivo que um homem pudesse ter,

mas vejo agora que me levaria à destruição. Hoje, tenho orgulho de dizer que sou inumano, quenão pertenço nem aos homens nem aos governos, que nada tenho a ver com credos ou princípios.Nada tenho a ver com a máquina rangente da humanidade — pertenço à terra. Digo isto deitadono meu travesseiro, e sinto os chifres brotando de minhas têmporas.”

Ele deu o livro a Bonnie. Ela reparou que Skink sublinhara a passagem com caneta vermelha.“É isso mesmo. Ele é bem assim.”“Ou eu, num certo dia.”

O céu estava ficando cor de púrpura. A distância, ouvia-se o estrondo de um trovão.Augustine perguntou a Bonnie o que acontecera com Max.

“Ele vai voltar sozinho para Nova York. Me ocorreu que eu posso estar tendo uma crise deloucura.” Ela retirou a aliança do dedo. Augustine achou que ela iria recolocá-la ou então atirá-lano riacho.

“Não faça isso”, disse ele, evitando que ela fizesse uma coisa ou outra.“Vou mandá-la de volta para Max. Não sei o que mais posso fazer, nas circunstâncias.” Sua

voz estava fraca e triste. Apressadamente, guardou a aliança.“O que você quer fazer?”“Ficar com você por um tempo. Tudo bem?”“Perfeito.”Animando-se, Bonnie disse: “E você, o que quer, senhor viva-o-dia-de-hoje?”.“Você vai ficar feliz de saber que eu tenho um plano.”“Ah, isso é difícil de acreditar.”“Mas é verdade. Vou vender a granja do tio Felix, ou pelo menos o que sobrou dela. E minha

casa também. Depois, quero achar um lugar igual a este aqui e começar tudo de novo. Algumlugar longe da civilização. Ainda está interessada?”

“Não sei. Vai ter televisão a cabo?”“Absolutamente.”“Cascavéis?”“Possivelmente.”“Cara, é realmente longe da civilização.” Bonnie fingiu estar pensando no assunto.“Você já ouviu falar das Dez Mil Ilhas?”“Alguém contou todas elas?”“Não, querida. Levaria uma vida inteira para contá-las.”“É para onde você pretende ir?”Augustine conhecia as dificuldades envolvidas na escolha de um parceiro. Ela provavelmente

estava decidindo se queria uma âncora ou uma vela. “Há uma cidade chamada Chokoloskee.Pode ser que você a deteste.”

“Que nada. Fique aqui por um momento, por favor.” Bonnie levantou-se.“Onde é que você está indo?”“Vou buscar umas poesias no acampamento.”“Senta aqui. Ainda não terminei.”Ela afastou seu braço. “Você leu para mim. Agora eu vou ler para você.”O que Bonnie tencionava trazer era o livro de poesias de Whitman. Em algum lugar na

ambulância, havia um volume com “Song of Myself”, um poema que ela amara desde aadolescência. Um verso em particular: “Em vão o mastodonte tentou afastar-se de seus própriosossos esfacelados”. O verso fazia-a pensar em Skink.

Ao entrar no acampamento, viu-o caído no chão, inerte. Snapper estava de pé sobre ele,rosnando como um cão raivoso. Parecia estar se recuperando de uma fúria animal. Numa mãosegurava um pedaço de madeira queimada que Bonnie reconheceu ser a tocha de Skink.

Ficou rígida, com os punhos cerrados. Snapper tinha uma expressão contorcida, que pareciaainda mais maligna devido à distorção que a tranca provocava em seus maxilares. Não notaraainda a presença de Bonnie perto das árvores. Largou a tocha, pegou a mala com dinheiro ecomeçou a correr.

Sem refletir, ela se pôs a correr atrás dele.

31

Snapper acordara com a garoa fria. O acampamento estava quieto. O lunático caolho dormia,em suas roupas de Exército, debaixo de uma árvore. Não havia sinal de Edie Marsh, nem doatirador de dardos de tranquilizante, nem da garota estranha que se encharcara de soda no jipe.

Devagarinho, Snapper se sentara. Seus olhos estavam remelentos e sua boca completamenteseca. Um bocado de terra preta estava grudada na sua sobrancelha. Pela milésima vez, tentaratirar a tranca de seus maxilares. A dor foi medonha, como se os ossos de suas mandíbulas fossemestourar. Achava bom o fato de não poder se ver. Deveria estar parecendo um aleijão de circo. Ohomem da Boca de Balde. Os garotos fariam fila para atirar bolas em sua goela.

Meu Deus, em breve terei que tirar teias de aranha de minha própria boca.No chão estava a mala cheia de dinheiro, onde Skink a deixara. O cheiro nauseante lembrava

Snapper de que não fora um pesadelo: o cretino efetivamente urinara nos noventa e quatro mildólares.

Snapper testara suas pernas: esquerda, direita, juntas. Depois flexionara as mãos e os braços.Tudo parecera em ordem. Finalmente, o efeito do segundo dardo de tranquilizante passara.

Levantara-se. Devagar, aproximara-se da mala. A barra de ferro em seus maxilares era tãoincômoda que ele quase caíra de bruços. Tentara segurar a respiração enquanto trancava a mala,mas o cheiro era inevitável. Achara a moringa de água e a esvaziara garganta abaixo. O barulhonão acordara o lunático.

Snapper vira então uma boa arma à mão. Um pedaço de tronco com uma das pontasqueimadas. O gigante deve tê-lo ouvido se aproximar, pois tentara esquivar-se para o ladoquando ele dera o primeiro golpe com a madeira. O golpe pegara o ombro do maluco, em vez desua cabeça, mas Snapper ouvira o barulho dos ossos se quebrando. Sabia que a dor deveria serhorrenda.

Continuara golpeando e golpeando, até que o cretino parara de se mover, ficando inerte comoum pneu furado.

Bonnie sempre fora valente para seu tamanho. No secundário perseguira um garoto queousara levantar sua saia na lanchonete da escola. O nome do garoto era Eric Schultz. Tinha quasedois metros de altura, dizia palavrões e era pretensioso e convencido. Uma estrela do time debasquete. Pesava quarenta quilos a mais do que Bonnie. Quando tentara fugir, ela engalfinhou-secom ele, segurou-o no chão e deu-lhe um pontapé nos testículos. Eric Schultz perdeu ospróximos dois jogos de basquete. Bonnie Brooks foi suspensa das aulas por três dias. Seu paidissera que valera a pena. Sentira-se orgulhoso. Sua mãe achara que ela exagerara em sua reaçãoem relação ao gesto do garoto. Dissera que ele fizera aquilo por ignorância. “Bem, agora eleaprendeu”, retrucou Bonnie. Ela concordava com seu pai: a estupidez era uma desculpa gastademais.

Com seu joelho contundido, Snapper era um alvo fácil de pegar. Correr para ele era aindamais difícil por causa da tranca que se prendia aos galhos das árvores. Ele caiu da mesma forma

como Schultz — com as pernas abertas e o nariz no chão. Logo Snapper percebeu que era umamulher que estava segurando seu ombro, e não um homem forte. A maneira fácil como se livroudela fez Bonnie perceber que seus socos fracos não haviam surtido qualquer efeito.Diferentemente do jovem Schultz, Snapper estivera na prisão e aprendera muito sobre briga derua. Não iria permitir que uma garota de menos de cinquenta quilos desse um pontapé em seusbagos.

Com ambos os braços, ele arremessou a mala contra Bonnie, derrubando-a contra o tronco deuma árvore. Ela caiu de costas, mas continuou a dar socos, freneticamente. A barra de aço norosto de Snapper bloqueava a maioria de seus golpes. Rapidamente, imobilizou-a pelos pulsos,mas ela só parou de dar socos quando Snapper deu uma joelhada devastadora em sua púbis.

Embaixo do enorme peso de seu torso, Bonnie não podia mais ver quase nada, exceto suagoela escancarada pela tranca. Tinha a impressão de que Snapper estava gritandopermanentemente. Ele estava ofegante devido ao esforço. Bonnie sentiu vontade de vomitar.Sentiu também algo úmido e morno em seu queixo.

Um lábio.Ela agarrou-o entre os dentes, mordendo-o com toda a força. Snapper deu um grito e recuou.

Meio segundo depois, Bonnie recebeu um golpe fortíssimo na têmpora. A tranca. O patife estavagolpeando-a com a tranca, arremessando sua própria cabeça. Bonnie, aturdida e sentindo doreslancinantes, não podia se defender. Snapper não soltara seus braços porque não precisava usar asmãos para atacá-la. A tranca estava fazendo todo o trabalho. Bonnie ficou entorpecida por outrogolpe ainda mais forte. Fechou os olhos para não ter de ver sua goela imensa e úmida. Buscou ainconsciência para fugir da dor.

Snapper estava se imaginando como um touro selvagem na arena, dando chifradas à vontade.A cadela estava inerte embaixo dele, completamente sem defesa. Parou um pouco para recuperaro fôlego, cuspiu sangue e se congratulou por ter transformado uma desvantagem num recursomarcial. O tira do comercial na televisão tinha razão. A tranca para automóveis era indestrutível.Apesar da dor no lábio, da ardência no joelho contundido e do latejamento nas juntas de seusmaxilares, Snapper não estava se sentindo tão mal. Seu orgulho superava toda dor. Seguramente,ele merecia ficar com o dinheiro do francês.

Foi nesse momento que sentiu o movimento de uma mão entre suas pernas. Leve como umpardal num galho.

“AAAiiiiiii.”A cadela agarrara seus testículos. Snapper uivou de dor. Impulsionou-a cabeça, tentando

golpeá-la com a tranca. Nesse momento, deu-se conta de que não podia ser a garota que estavaapertando seus bagos, uma vez que suas mãos estavam presas no chão. Além disso, ela estavainerte já há algum tempo. Tinha que ser outra pessoa.

Então, a distância, ouviu um grito: “Não, não faça isso”.Tentou ficar quieto, esforçando-se para respirar sem gemer. Procurou virar-se bem devagar

para ver quem era o maldito que apertava seus testículos.De novo ouviu a voz, desta vez mais perto: “Não. Não faça isso”.Era o caolho maluco que gritava.Com quem ele está falando?, pensou Snapper. Não faça o quê?Então o revólver disparou em sua cabeça, e ele soube.

Max Lamb ficou surpreso ao encontrar uma moça dormindo no banco da frente de seu carroalugado. Reconheceu-a como a moça que o patrulheiro havia deixado no estacionamento do

McDonald’s naquela tarde.Ela sentou-se, afastando os longos cabelos castanhos dos olhos. “Estava chovendo. Não tinha

para onde ir.” Não parecia nem um pouco constrangida.“Está certo”, disse Max, tirando o poncho e jogando-o no banco de trás.“Meu nome é Edie”, disse ela, estendendo a mão.Ele segurou sua mão, tenso. Ela apertou a mão dele com força.“Meu nome é Max.” Então ele se ouviu dizer: “Você quer uma carona até Miami?”.Edie Marsh abanou a cabeça afirmativamente. Era o que ela estava esperando. De um modo

ou de outro, todos os carros alugados sempre voltavam para Miami.“Poderia ter tentado pegar carona na estrada, mas estava relampejando.”“É, eu também vi os relâmpagos.”De alguma forma, Max não conseguiu pegar a entrada para a rodovia. Não era fácil errar,

mas ele errou o retorno. Edie não se queixou. Uma carona era uma carona. Todas as estradas alevariam para Miami, de todo modo.

“De onde você é, Max?” Ele parecia totalmente inofensivo, mas, mesmo assim, ela queriafazê-lo falar. O silêncio a deixava nervosa.

“Nova York. Trabalho com publicidade.”“É mesmo?”Ele continuou falando. Durante a próxima hora, Edie aprendeu muito sobre propaganda e as

agências da avenida Madison. Max ficou exultante ao saber que ela fora fã do cereal PlumCrunchies. E ela se lembrava de seu slogan, palavra por palavra.

“Que outros slogans você inventou?”, perguntou ela, animadamente.Max ficou tentado a contar-lhe o slogan da ducha íntima. Depois, pensou melhor. Nem todo

mundo sentia-se à vontade para falar de duchas íntimas.“Fiz o slogan dos cigarros Bronco.”“Mesmo?”“Falando nisso, você se importa se eu fumar?”“Claro que não.”Ele ofereceu-lhe uma bala mentolada. Ela recusou, educadamente. Quando a fumaça

começou a encher o carro, Edie abriu a janela, tentando tossir. “Quando você vai voltar paraNova York?”

“Amanhã”, respondeu Max. E ficou em silêncio novamente.“Se você me contar, eu conto para você.”Max olhou para ela, perplexo.“Você sabe do que estou falando. O que você estava fazendo com o patrulheiro? Eu

chegando e você saindo com ele?”“Ah.” E depois de uma pausa. “Não estou metido em nenhuma encrenca, se é isso que você

quer saber.”“É. Meu palpite é que você não é nenhum bandido.”Que olhos ela tem!, pensou Max. Que mulher interessante! Achou também que ela tinha

consciência do impacto que causava nos homens.“E que tal assim: se você não me contar, eu não lhe conto. O que acabou, acabou.”“É, gostei do enfoque.”“Vamos apenas concordar que tivemos um mau dia.”“E que dia!”

Em South Dade, o tráfico estava lento e congestionado. O furacão derrubara tudo na praia.Edie Marsh vira a destruição um dia após o furacão, mas agora a situação parecia pior. Ficousurpresa de ter que conter as lágrimas.

Assim, de repente, Max disse: “Ei, aposta que posso adivinhar que tipo de carro você tem”.Aparentemente, ele estava tentando desviar a atenção dela do cenário deprimente. Dois homenscom a barba por fazer brigavam numa esquina por uma moringa de água fresca. Suas mulheres efilhos assistiam à cena angustiados.

“Tô falando sério. É um talento que tenho. Adivinho os carros que as pessoas têm.”“Baseado em quê?”“Intuição, acho eu.”“Então, tente. Vamos ver.”Max olhou-a de alto a baixo, como se estivesse tentando avaliar seu peso: “Nissan 300”.“Não.”“Um 280Z.”“Que tal um Acclaim?”Ele piscou. “Ah, estava achando que você tinha um carro esporte, importado.”“Sinto-me lisonjeada”, disse Edie, rindo.Havia uma lição a ser aprendida no jogo bobo de Max. Jovens Kennedy ou filhos de

presidentes não se interessariam por uma moça que dirigisse um Acclaim, ano 1987.Mais tarde, depois que Max achou a entrada para a rodovia, já em Miami, ele perguntou:

“Para onde devo levá-la?”.“Deixe-me pensar um pouco”, disse Edie.

“Capitão, você tem um espelho?”“Não.”“Ótimo”, disse Bonnie.Ela estava sentindo um galo crescendo em sua testa e outro no seu rosto. Augustine

assegurou-lhe que sua aparência não estava tão ruim quanto imaginava. “Mas seria bom aplicarum pouco de gelo.”

“Depois.” Ela estava observando Skink. “Conheço alguém que precisa ir para um hospital.”“Não”, disse Skink.“Augustine me disse que sua clavícula está quebrada.”“Acho que ele tem razão.”“E várias costelas.”“Daqui a pouco, vou chamá-la de enfermeira Nightingale.”“Por que você é tão teimoso?”“Conheço um médico em Tavernier.”“E como você tenciona chegar até lá?”“Andando com minhas próprias pernas. Aliás, uma das poucas características louváveis de

nossa espécie.”Bonnie disse-lhe que parasse de se comportar como uma criança. “Posso ver que você está

morrendo de dor.”“O mundo inteiro está morrendo de dor, garota.”Ela lançou um olhar suplicante para Augustine. “Fale com ele, por favor.”“Ele é um homem adulto, Bonnie. Agora, fique quieta.”

Ele estava limpando seu rosto com uma bucha úmida, improvisada com a camisa. Skinkempoleirou-se num tronco de árvore, com os braços cruzados. Alguns momentos antes, eletomara uma dúzia de aspirinas tiradas da lona debaixo da tábua. Bonnie também tomara três.

Nenhuma aspirina foi oferecida a Snapper. Ele estava amarrado com uma corrente no troncode uma árvore. Sua pele estava coberta de folhas úmidas, matéria vegetal decomposta e sangueseco. Seu terno barato estava imundo e rasgado. Durante a luta, Augustine forçara-o a cavar umapequena trincheira com a mandíbula, de forma que sua boca estava cheia de pedras e terra. Alémdisso, faltava-lhe um lóbulo da orelha, onde o tiro de Augustine o atingira. Snapper não podiaaceitar que a dor de um ferimento tão ridículo fosse tão intensa.

Skink disse a Augustine: “Tive certeza de que você iria matá-lo”.“Fiquei tentado.”“Meu jeito é melhor.”“Depois do que ele fez com a namorada de Jim?”“É. Mesmo assim.” Skink enterrou o queixo no peito. Sentia muita dor. Augustine estava

esgotado. Não tinha mais vontade de matar Snapper. Tinha até dúvidas se realmente seria capazdisso. Toda a sua adrenalina se diluíra. Uma hora atrás, sim. Agora, não. Provavelmente, estavana hora de partir.

Bonnie analisou sua expressão enquanto ele limpava seus ferimentos. “Você está bem?”“Não sei. A maneira como ele a machucou...”“Ei, fui eu que provoquei.”“Mas você não estaria aqui, se não fosse por minha causa.”Com um jeito brincalhão, ela colocou o dedo em sua costela. “O que o faz ter tanta certeza?

Talvez eu esteja aqui por causa de Skink.”Skink sorriu, sem levantar a cabeça. Augustine riu também. Ambos estamos aqui por causa

dele, pensou.“Seria muita falta de educação perguntar”, disse Bonnie dirigindo-se a Skink, “o que você

pretende fazer com o dinheiro da mala?”Skink levantou o queixo do peito. “Ah, isso.” Sorrindo, ficou em pé. “Ei, Lester? Você está

acordado?”“Siiim.”Com os pés, Skink empurrou a mala até a árvore e abriu-a. Snapper olhou para os maços de

dinheiro com um misto de cobiça e suspeita. Estava também curioso sobre o que o caolhopretendia aprontar agora.

Só as notas de cima ainda estavam molhadas. Skink afastou-as com as mãos. Bonnie eAugustine se aproximaram.

Skink perguntou: “Vocês querem este dinheiro?”. Ambos abanaram a cabeça negativamente.“Nem eu”, murmurou ele. “É só mais uma merda para arrastar por aí.” Dirigindo-se a

Snapper, disse: “Chefe, tenho certeza de que em algum ponto de sua vida esse dinheiro todo teriasido providencial. Mas agora você não vai mais precisar de dinheiro. Essa época acabou paravocê”.

Skink tirou uma caixa de fósforos do bolso. Pediu a Bonnie e a Augustine que fizessem agentileza de atear o fogo. Snapper cuspiu terra e contorceu-se, desesperado, na corrente.

O dinheiro exalou um cheiro forte, e até agradável, ao queimar.

Mais tarde, Skink desatou a corrente que prendia Snapper à árvore. Suplicante, Snapperapontou para a tranca em sua boca. Skink fez sinal de que não a retiraria.

“O negócio é o seguinte, Lester. Trate de não estar mais aqui quando eu voltar. Não mexa noacampamento nem em meus livros. Vai chover pra caramba daqui a pouco. Aproveite e bebatoda a água que você puder. Você vai precisar dela.”

Snapper não disse uma só palavra. Augustine aproximou-se. Tirou o 38 da cintura e falou:“Tente nos seguir que eu estouro seus miolos”.

Bonnie estremeceu. Skink começou a retirar alguns itens da lona colocando-os na mochila.Depois, acendeu a tocha e conduziu Augustine e Bonnie para fora do acampamento.

Snapper não tinha a menor intenção de segui-los. Estava, na verdade, contente que os patifestivessem ido embora. O vento atingiu uma labareda, espalhando cinzas aos seus pés e em seucolo. Ele apalpou as cinzas, colocando um punhado perto do nariz. Nem cheiro de dinheiro ascinzas tinham mais.

Mais tarde, acordou com o farfalhar das folhas das árvores. A chuva caía forte. Seguindo oconselho de Skink, deitou-se no chão, sorvendo o máximo de água possível.

Ao alvorecer, deu início à sua marcha forçada.

Eles abriram uma trilha nova através do bosque. Bonnie manifestou preocupação com apossibilidade de Snapper utilizá-la para sair da mata. “Não com o lago pela frente”, disse Skink.

Bonnie enganchou os dedos no cinto de Augustine enquanto nadavam. Skink colocou atocha, as botas e a mochila sobre a cabeça para evitar que ficassem molhadas. Augustine ficouespantado com o fato de Skink conseguir nadar tão bem com a clavícula quebrada. A travessiado lago levou menos de quinze minutos, embora tenha parecido uma eternidade para Bonnie.Não conseguia acreditar que os crocodilos os evitariam só por causa do fogo.

Mais tarde, descansaram à margem do lago. Skink falou, enquanto calçava as botas: “Se eleconseguir sair daqui, então merece viver”.

Augustine comentou: “Mas ele não conseguirá”.“Não, não conseguirá. Ele vai tomar a direção errada. A natureza dele é assim. Sempre toma

o rumo errado.”Skink levantou-se e começou a caminhada novamente. A chama alaranjada da tocha

iluminava o caminho. Bonnie tinha que apressar o passo para manter-se próxima. “Então ele vaiser atacado por algum animal? Talvez panteras?”

Augustine disse: “Não, nada tão exótico, Bonnie”.“Então, o que é que vai acontecer com ele?”“O tempo. O tempo vai acabar com ele.”“Exatamente”, disse Skink entusiasmado. “É o curso da vida. Nós apenas apressamos o curso

da vida para Lester. Hoje à noite, somos verdadeiros duendes de Darwin.”Bonnie apressou o passo. Sentia-se feliz de estar com eles, no meio do nada. Mais à frente,

na trilha, Skink cantava baixinho. Sentindo os chifres brotarem de suas têmporas, supôs Bonnie.

Duas horas mais tarde, tinham saído do bosque. Uma rajada de vento atingiu-os.“Oh, meu irmão. A chuva deve chegar a qualquer momento.”Com um sorriso, Skink retirou a mochila das costas. “Isto é para a caminhada de vocês.”“Mas não teremos que caminhar tanto assim.”“Mas levem isto, por via das dúvidas.”Pequenas sementes tinham ocupado a cavidade murcha do olho de Skink. O olho de vidro

não estava mais lá. Skink apalpou a cavidade. “Droga. Perdi meu olho de vidro.”

Bonnie mal conseguia olhar para ele.“Tá tudo bem. Tenho uma caixa de olhos extras.”Ela disse: “Não seja bobo. Venha para o continente conosco”.“Não.”A chuva cinza começou a cair forte na estrada. Bonnie tremeu quando sentiu a água. Skink

falou ao pé do ouvido de Augustine: “Dê pelo menos uns dois meses”.“Pode crer.”“Dois meses pra quê?”, perguntou Bonnie.“Para tentar achar este lugar de novo.”“E por que você voltaria?”“Pela ciência.”“Por nostalgia”, acrescentou Skink.A água da chuva ensopou a tocha. Skink jogou-a no mangue vermelho. Enfiou a touca de

banho na cabeça e disse adeus. Bonnie deu-lhe um beijo no queixo e pediu-lhe que se cuidasse.Augustine abraçou-o afetuosamente.

Por alguns momentos, eles ainda puderam ver seu vulto afastando-se, iluminado pelosrelâmpagos. Depois, sumiu. A tempestade o encobriu completamente.

Augustine e Bonnie seguiram na direção oposta. Ele caminhando rápido no asfalto, com amochila balançando em seus ombros nus.

“Ei, parece que sua cicatriz melhorou”, disse Bonnie.“Você ainda gosta dela?“É uma beleza.” Podia vê-la nitidamente sempre que o céu se iluminava com os relâmpagos.

“Um saca-rolhas no chuveiro? Você não estava brincando?”“Meu Deus, quisera eu que fosse brincadeira.”Ouviram um barulho de carro atrás deles. Quando o veículo se aproximou, suas sombras se

alongaram no asfalto. Augustine perguntou a Bonnie se ela queria tentar pegar uma carona. Elarespondeu que não. Deslocaram-se para o acostamento, para que o carro pudesse passar.

Logo chegaram à enorme ponte de Card Sound. Augustine disse que era hora de descansar.Abriu a mochila para ver o que Skink colocara dentro: um rolo de corda, duas facas, quatrolenços grandes, um tubo de antisséptico, uma caixa de fósforos à prova d’água, uma garrafa deágua fresca, algumas laranjas, repelente contra insetos, quatro latas de sopa de lentilha e uma latade carne seca.

Augustine e Bonnie dividiram a água e começaram a subir a ponte.Bonnie sentia pontadas em suas feridas ao escalar a ponte íngreme. Sentia o gosto do mar

trazido pelo vento. Não teve vergonha de agarrar-se ao braço direito de Augustine — as rajadasde vento eram tão fortes que quase a levantavam do chão.

“Talvez seja um outro furacão.”“De jeito nenhum.”Pararam no alto da ponte. Augustine arremessou sua pistola ao mar, tão longe quanto

possível. Bonnie debruçou-se sobre a amurada de concreto para ver o impacto da arma na água.Augustine colocou as mãos em volta de sua cintura, para mantê-la segura. Ela gostou dasensação de confiança.

Lá embaixo, a baía estava espumosa e turbulenta. Um lugar traiçoeiro, bem diferente daqueleque vira pela primeira vez. Era certo que não se veriam golfinhos naquela noite.

Ela puxou Augustine para perto de si e deu-lhe um longo beijo. Depois, virou-o de costas ecomeçou a remexer na mochila.

“O que você está fazendo?”, gritou Augustine para sobrepujar o barulho da chuva.“Pssiuu.”Quando ele se virou de frente, os olhos dela estavam brilhando. Segurava o rolo de corda nas

mãos.“Amarre-me à ponte”, disse ela.

EPÍLOGO

O casamento de BONNIE BROOKS e MAX LAMB foi discretamente anulado por um juiz,companheiro de esqui do pai do noivo. Max voltou para a agência Rodale & Burns, passando adedicar todas as suas energias a uma nova campanha de publicidade para a cerveja não alcoólicaOld Faithful. Impulsionada pelo slogan simplista de Max, a empresa registrou um aumento devinte e quatro por cento em suas vendas domésticas. Max foi promovido para a diretoria,passando a ocupar um escritório no sexto andar. Foi designado para dirigir uma campanhapublicitária no valor de dezoito milhões de dólares para uma bebida de malte de baixas calorias,chamada Steed.

No final do ano, Max e EDIE MARSH estavam noivos. Alugaram um apartamento no UpperWest Side de Manhattan. Edie tornou-se ativa em círculos de caridade. Dois anos depois dofuracão, quando assistia a um concerto em benefício das vítimas de um desabamento naColômbia, reencontrou o jovem Kennedy que tentara seduzir tanto tempo atrás. Ficourelativamente surpresa quando, ao cumprimentá-la, ele enfiou a língua no seu ouvido. Max disseque o episódio tinha sido fruto de sua imaginação.

BRENDA ROURKE recuperou-se completamente de seus ferimentos e voltou ao patrulhamentorodoviário. Requereu e conseguiu uma transferência para o nordeste da Flórida, onde ela e JIMTILE compraram uma casinha à beira do rio Ochlockonee. No Natal, ele deu-lhe uma réplica daaliança de ouro que pertencera à mãe dela e dois cachorros de Stuttgart.

Depois de ser salvo no oceano, perto de Islamorada, AVILA foi levado para o Centro deDetenção de Krome, em Miami, e processado como Juan Gómez Duran, identificado como umcanoeiro que fugira da opressão política em Cuba. Lá ficou preso por nove dias, até que umaestação de rádio de língua espanhola patrocinou sua libertação. Em agradecimento, o senhorGómez concordou em narrar sua aventura no mar aos ouvintes, que ficaram muito comovidoscom sua história, mas também intrigados com seu desconhecimento sobre a geografia de Cuba.Depois, Avila fez as malas e mudou-se para Fort Myers, na costa oeste da Flórida, onde foiimediatamente contratado como inspetor de construções no Departamento de Construções eMapeamento. Durante suas primeiras quatro semanas de trabalho, Avila aprovou duzentas e dozenovas casas — um recorde que não foi quebrado até os dias de hoje. Dezenove meses após dofuracão, ao preparar um sacrifício para Chango no pátio de sua luxuosa casa, à beira da água,Avila foi mordido na coxa por um coelho hidrófobo. Envergonhado demais para consultar ummédico, morreu vinte e dois dias depois na banheira. Em homenagem à sua curta mas produtivacarreira como inspetor de construções, a Associação dos Construtores do condado de Leecriaram a Fundação Juan Gómez para a concessão de bolsas de estudo.

Um dia depois que o patrulheiro estadual foi baleado no estacionamento do hotel ParadisePalms, em Flórida Keys, os paramédicos foram chamados novamente. Desta vez, um hóspededenominado LEVON STICHLER sofrera um enfarto do miocárdio. A caminho do hospital, o velho,delirante, insistia que fora mantido preso no hotel por duas prostitutas autoritárias. Os médicosdo Hospital Mariners avisaram a filha de Levon Stichler em Saint Paul, que ficou alarmada comas alucinações de seu pai. Após desligar o telefone, informou aos filhos que o avô iria ficar comeles por um tempo.

Os restos mastigados de IRA JACKSON, identificados por meio de raios X, foram cremados eenterrados. Houve uma pequena cerimônia particular em Staten Island. Vários chefões daTeamster mandaram flores. Três semanas após o furacão, o leão africano que atacara Ira Jacksonfoi capturado quando pilhava uma caçamba de lixo atrás de uma loja da cadeia Pizza Hut, emPerrine. O animal, sob o efeito de tranquilizantes, foi banhado, vacinado, limpo dos vermes eapelidado de “Peperoni”. Vive agora numa reserva de animais selvagens em West Palm Beach.

O assassinato de TONY TORRES nunca foi elucidado, embora a polícia suspeite de que suaesposa tenha sido a mandante do crime, a fim de se apoderar da indenização do seguro. Detetivesque tentaram interrogar NERIA TORRES descobriram que ela se mudara para Belize. Lá alugarauma mansão onde vivia com um americano expatriado que trabalhava como guia de pescadores.A polícia também descobriu que ela, antes de sair dos EUA, possuía duzentos e um mil dólaresnuma conta bancária. A casa do número 15 600 na rua Calusa nunca foi consertada, tendo ficadoabandonada por vinte e dois meses, até que finalmente foi condenada e destruída.

Cinco semanas após o furacão, FRED DOVE retornou à sua casa, tendo presenteado sua mulhercom dois cachorrinhos basset que haviam ficado sem dono. Ele, DENIS REEDY e oito outrosagentes da Midwest Casualty foram premiados por seu trabalho heroico na zona do furacão. Afim de obter publicidade sobre a ação rápida e caridosa da companhia, foi feito um comercialcom eles. O comercial foi ao ar durante o programa especial de Bob Hope para o Natal. FredDove esperava que EDIE MARSH entrasse em contato com ele depois que visse o comercial, masela nunca o fez. Os dois nunca mais se viram.

Processado por cento e oitenta e seis clientes cujas casas desmoronaram durante o furacão, oconstrutor GAR WHITMARK pediu falência. Reabriu sua firma de construção com outro nome. Foimorto dezoito meses depois num estranho acidente ocorrido numa construção. Durante umatempestade tropical, fortes ventos derrubaram um balde de piche quente de um telhado. O baldecaiu no para-brisa de seu carro. Ele morreu imediatamente. Sua esposa, perturbada, parou detomar remédios e afiliou-se a uma igreja para a qual doou todos os bens de seu marido.

O corpo de CLYDE NOTTAGE JR. foi transportado de avião de Guadalajara para Durham, naCarolina do Norte, onde, a pedido de sua família, o Centro Médico da Universidade de Duke fezuma autópsia. Quatro dias depois, as autoridades mexicanas prenderam o doutor ALAN CAULK,confiscaram seu laboratório e o deportaram para as Bahamas. Estranhamente, nenhum carneirofoi encontrado na Clínica Aragon.

Não obstante declarações contraditórias de dois proeminentes psiquiatras, os advogados daDurham Gas Meat & Tobacco persuadiram um juiz a decretar a insanidade mental de ClydeNottage Jr. A certificação póstuma de insanidade foi baseada em evidência médica fornecida porfuncionários do México. Sessenta dias após a morte de Nottage, sua empresa passou a produziros cigarros Bronco novamente. O contrato de publicidade com a Rodale & Burns nunca foirenovado.

Onze meses após o furacão, um biólogo do Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos EUA fezuma descoberta repulsiva numa área remota dos Lagos dos Crocodilos, em North Key Largo: ummaxilar deformado. Preso ao maxilar havia uma tranca para automóveis. Raios X dentáriosidentificaram o maxilar como pertencente a LESTER MADDOX PARSONS, um delinquente decarreira, preso por assassinatos e procurado por agredir dois patrulheiros rodoviários. De acordocom o médico legista do condado de Monroe, havia indícios de que Parsons tinha morrido deinanição. Uma busca mais aprofundada na área permitiu que fosse encontrado o restante doesqueleto de Parsons, exceto seu crânio.

AUGUSTINE HERRERA vendeu a granja de animais selvagens de seu tio e se mudou, com BONNIEBROOKS, para Chokoloskee, uma aldeia de pescadores perto das Dez Mil Ilhas da Flórida. Lácomprou um barco para pesca de caranguejos e construiu uma casa de madeira com espaço parauma ampla biblioteca. Uma parede foi reservada para sua coleção de crânios, que agora contavacom vinte unidades.

BONNIE BROOKS passou a fazer aquarelas, ciclismo e fotografias da natureza. Sua fotoexcepcional de um par de águias fazendo o ninho num cipreste apareceu na capa de revistaAudubon.

A maioria dos animais selvagens que fugira da granja de FELIX MOJACK durante o furacão foirecapturada ou, infelizmente, exterminada por proprietários de casas. As exceções foram umaonça parda fêmea, quarenta e quatro pássaros raros, mais de trezentos lagartos exóticos, trinta eoito cobras (venenosas e não venenosas) e vinte e nove macacos adultos, que se organizaram emvários bandos. Eles perambulam até hoje pelo condado de Dade.

AGRADECIMENTOS

Por serem especialistas nos assuntos mais esotéricos, sou profundamente grato a meus bonsamigos John Kipp (aspectos mais delicados de colecionar crânios), Tim Chapman (efeitos decoleiras elétricas caninas em voluntários humanos) e Bob Branham (cuidado e manuseio dequatis sul-americanos não domesticados). É imensa, ainda, minha dívida para com meustalentosos colegas do Miami Herald, cujo estupendo jornalismo relativo às sequelas do furacãoAndrew ofereceu um material riquíssimo para este romance.

CARL HIAASEN, ex-repórter investigativo, assina uma coluna regular no Miami Herald.Nasceu e reside na Flórida, cenário da maioria de seus livros, traduzidos para dezesseteidiomas. No Brasil, a Companhia das Letras publicou, de sua autoria, Caça aos turistas,Dupla armação e Strip-tease. A partir deste último foi escrito o roteiro do filme demesmo nome, estrelado por Demi Moore.

Copyright © 1995 by Carl HiaasenTodos os direitos reservados

Título original:Stormy weather

Design de capa:Andy Newman

Ilustração de capa:Ross McDonald

Preparação:Marcos Luiz Fernandes

Revisão:Ana Maria BarbosaBeatriz MoreiraCarmen S. da Costa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Hiaasen, CarlChuvas e trovoadas / Carl Hiaasen ; tradução Thaïs Rego. — São Paulo : Companhia das Letras, 1997.

Título original: Stormy weather.ISBN 85-7164-709-7

1. Romance norte-americano I. Título.

97-4462 CDD-813.5

Índices para catálogo sistemático:1. Romances : Século 20 : Literatura norte-americana 813.52. Século 20 : Romances : Literatura norte-americana 813.5

[1997]

Todos os direitos desta edição reservados àEDITORA SCHWARCZ LTDA.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 7204532-002 — São Paulo — SPTelefone: (011) 866-0801Fax: (011) 866-0814e-mail: [email protected]