Os Cadernos de Don Rigoberto - VISIONVOX

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Dedicatória

Ohomem,umdeusquandosonha,eapenasummendigoquandopensa.

HÖLDERLIN,Hipérion

Nãopossomanterumregistrodeminhavidaporminhasações;oacasoassituoudemasiadobaixo:mantenho-oporminhasfantasias.

MONTAIGNE

I.

O retorno de FonchitoI - O retorno de Fonchito

Chamaramàporta,donaLucreciafoiabrireviuemolduradanovão,sobreofundo

dasárvoresretorcidasegrisalhasdoOlivardeSanIsidro,acabeçadecachosdourados

eosolhosazuisdeFonchito.Tudocomeçouagirar.

—Estavacommuitasaudade,madrasta—entoouavozqueelarecordavatão

bem.—Continuaaborrecidacomigo?Vimpedirperdão.Meperdoa?

—Você,você?—Agarradaàmaçaneta,donaLucreciabuscavaapoionaparede.

—Nãotemvergonhadeseapresentaraqui?

— Escapuli da academia — insistiu o menino, mostrando seu caderno de

desenhoeseuslápisdecor.—Estavacommuitasaudade,sério.Porquevocê cou

tãopálida?

— Meu Deus, meu Deus — cambaleou dona Lucrecia, deixando-se cair no

banco imitação de colonial, contíguo à porta. Cobria os olhos, branca como um

papel.

—Nãomorra!—gritouomenino,assustado.

E dona Lucrecia, sentindo-se desfalecer, viu a gurinha infantil transpor o

umbral,fecharaporta,cairdejoelhosaosseuspés,pegarsuasmãosemassageá-las,

comexpressãoaturdida:“Nãomorra,nãodesmaie,porfavor.”Fezumesforçopara

sedominarerecuperarocontrole.Respiroufundo,antesde falar.Eo fezdevagar,

sentindoqueaqualquermomentosuavozseembargaria:

—Nãofoinada,jáestoubem.Vervocêaquieraaúltimacoisaqueeuesperava.

Comoseatreve?Nãotemremorso?

Sempredejoelhos,Fonchitotentavalhebeijaramão.

—Digaquemeperdoa,madrasta—implorou.—Diga,diga.Acasanãoémais

amesmadesdequevocêfoiembora.Vimespiá-laummontedevezes,nasaídada

aula.Queriatocar,masnãomeatrevia.Nuncavaimeperdoar?

—Nunca—respondeuela,com rmeza.—Nuncaperdoareioquevocê fez,

malvado.

Mas,contradizendoasprópriaspalavras,seusgrandesolhosescurosreconheciam

com curiosidade e certa complacência, talvez até com ternura, a encaracolada

desordem daquela cabeleira, as veiazinhas azuis do pescoço, as bordas das orelhas

assomandoentreasmechaslouras,ocorpinhogracioso,embutidonopaletóazule

na calça cinza do uniforme. Suas narinas aspiravam aquele odor adolescente de

partidas de futebol, de caramelos frutados e sorvetes d’Onofrio, e seus ouvidos

reconheciamaquelesguinchosagudoseasmudançasdevoz,queressoavamtambém

na suamemória.AsmãosdedonaLucrecia se resignaram aosmolhados beijos de

passarinhodaquelaboquinha:

—Gostomuitodevocê,madrasta—disseFonchito, fazendobeicinho.—E,

mesmoquevocênãoacredite,opapaitambém.

Nisto apareceu Justiniana, ágil silhueta cor de canela envolta em um avental

orido, lenço na cabeça e espanador na mão. Ficou petri cada no corredor que

levavaàcozinha.

—MeninoAlfonso—murmurou,incrédula.—Fonchito!Nãopossoacreditar!

—Imagine,imagine!—exclamoudonaLucrecia,empenhadaemmostraruma

indignação superior à que sentia.—Atreve-se a vir a esta casa.Depoisde arruinar

minha vida, de dar aquela punhalada em Rigoberto. Pedindo que eu o perdoe,

derramandolágrimasdecrocodilo.Jáviudesfaçatezigual,Justiniana?

Mas nem sequer agora arrebatou a Fonchito os a lados dedos que ele,

estremecidopelossoluços,continuavabeijando.

—O senhor tem de ir embora, menino Alfonso— disse a empregada, tão

confusa que, sem perceber,mudou o tratamento habitual:—Você não vê como

deixouapatroaamofinada?Saia,vá,Fonchito.

—Euvouseeladisserquemeperdoa—rogouomenino,entresuspiros,acara

nas mãos de dona Lucrecia. — Nem sequer me cumprimenta e já começa me

insultando, Justita?Oque eu lhe z?Pois se eu tambémgostomuitodevocê, se

choreianoiteinteiranodiaemquevocêfoiemboraládecasa!

—Caleaboca,mentiroso,nãoacreditonemumtiquinho.—Justinianaalisava

oscabelosdedonaLucrecia.—Tragoumlencinhocomálcool,patroa?

— Pre ro um copo d’água. Não se preocupe, já estou melhor. Ver este

melequentoaquimetranstornoutoda.

E por m, sem brusquidão, retirou suas mãos das de Fonchito. O menino

continuava aos seus pés, já sem chorar, contendo a duras penas novos beicinhos.

Tinhaosolhosvermelhos e as lágrimas lhehaviammarcado sulcosnasbochechas.

Umfiodesalivapendiadesuaboca.Atravésdaneblinaquelhevelavaosolhos,dona

Lucreciaespiouonarizdelinhas nas,oslábiosbemdesenhados,oqueixinhoaltivo

e sua covinha, os dentes tão brancos. Teve vontade de esbofetear, de agadanhar

aquelacarinhadeMeninoJesus.Hipócrita!Judas!Eatédemordê-lonopescoçoede

lhechuparosangue,comoumvampiro.

—Seupaisabequevocêveioaqui?

— Que ideia, madrasta — respondeu no ato o menino, em um tonzinho

con dencial.—Sabe láoqueeleme faria?Nunca faladevocê,maseu seimuito

bemquetemsaudade.Nãopensaemoutracoisa,diaenoite,juro.Vimescondido,

escapulidaacademia.Voutrêsvezesporsemana,depoisdocolégio.Querqueeulhe

mostremeusdesenhos?Digaquemeperdoa,madrasta.

—Nãodiga,emandeessegarotoembora,patroa.—Justinianaretornavacom

umcopod’água;donaLucreciabebeuváriosgoles.—Nãosedeixeenrolarporessa

carabonita.EleéLúciferempessoa,asenhorasabe.Vailhefazeroutramaldade,pior

doqueaprimeira.

—Nãodigaisso,Justita.—Fonchitopareceuprestesacairdenovonochoro.

—Juroqueestouarrependido,madrasta.Nãomedeicontadoquefazia,portodos

ossantos.Nãoquisqueacontecessenada.Euiaquererquevocêsaísseládecasa?Que

eueopapaificássemossozinhos?

—Eunãosaídecasa—repreendeu-odonaLucrecia,entredentes.—Rigoberto

meexpulsoucomoseeufosseumaputa.Porculpasua!

—Nãodiganomefeio,madrasta.—Omeninoergueuasmãos,escandalizado.

—Nãodiga,nãolheficabem.

Apesardadoredaraiva,donaLucreciaesteveapontodesorrir.Nãolhe cava

bem dizer palavrões! Garotinho perspicaz, sensível? Justiniana tinha razão: uma

víboracomcaradeanjo,umBelzebu.

Omeninoteveumaexplosãodejúbilo:

—Estárindo,madrasta?Então,meperdoou?Digaquesim,diga,madrasta.

Batia palmas, e em seus olhos azuis a tristeza se dissipara e relampeava uma

luzinhaselvagem.DonaLucrecianotouquenosdedosdelehaviamanchasdetinta,e

seemocionouacontragosto.Iriadesmaiardenovo?Quecoisa.Viu-senoespelhoda

entrada:haviacompostosuaexpressão,umleveruborlhecoloriaasfaces,seupeito

agitado subia e descia. Em um movimento maquinal, fechou o decote do robe.

ComopodiaFonchitosertãodescarado,tãocínico,tãoretorcido,sendotãocriança?

Justiniana lia seuspensamentos.Olhavapara ela como sedissesse: “Não seja fraca,

patroa,nãováperdoarestemoleque.Nãosejatãoboba!”Disfarçandoseuembaraço,

donaLucreciabebeumaisunsgolinhosdeágua;estavafriaelhefezbem.Omenino

seapressouapegaramãodelaqueestavalivreeabeijá-ladenovo,loquaz:

—Obrigado,madrasta.Vocêémuitoboa,eujásabia,porissomeatreviatocar.

Quero lhe mostrar meus desenhos. E conversar sobre Egon Schiele, a vida e as

pinturas dele. Contar o que vou ser quando crescer, e mil coisas. Já adivinhou?

Pintor,madrasta!Éoqueeuqueroser.

Justinianabalançavaacabeça,alarmada.Lá fora,motoresebuzinasaturdiamo

entardecerdeSanIsidro.Atravésdascortininhas xadasàsvidraçasdasaladejantar,

donaLucreciadivisavaos ramosdesnudos eos troncosnodososdasoliveiras,uma

presençaquesetornaraamiga.Jáchegavadedebilidades,erahoradereagir.

— Bom, Fonchito— disse, com uma severidade que seu coração já não lhe

exigia.—Agora,façaoqueestoupedindo.Váembora,porfavor.

—Sim,madrasta.—Omeninosaltoudepé.—Oquevocêmandar.Sempre

voufazersuavontade,semprevoulheobedeceremtudo.Vocêvaiversócomovou

mecomportarbem.

Tinhaavoz e a expressãodequemse livroudeumpeso e fez aspazes coma

própriaconsciência.Umamechadeourolhevarriaatesta,eseusolhosfaiscavamde

alegria.DonaLucreciaoviumeteramãonobolsotraseiro,puxarumlenço,assoaro

nariz;e,depois,recolherdochãoamochila,apastadedesenhoseoestojodelápis.

Comtudoissoàscostas,elerecuousorridenteatéaporta,semtirarosolhosdedona

LucreciaeJustiniana.

—Assimquepuder, fujodenovoparavirvisitá-la,madrasta—trinou, jádo

umbral.—Evocêtambém,Justita,claro.

Quando a porta da rua se fechou, as duas permaneceram imóveis e sem falar.

Daliapouco,dobraramaolongeossinosdaVirgendelPilar.Umcachorrolatiu.

— É incrível — murmurou dona Lucrecia. — Ele ter tido a audácia de se

apresentarnestacasa.

—Incrívelésuabondade—retrucouaempregada,indignada.—Jáoperdoou,

nãofoi?Depoisdatramoiaqueelelhepreparouparaarmaraquelasuabrigacomo

patrão.Asenhoravaidiretoparaocéu,patroa!

—Nemsequerécertoquetenhasidoumatramoia,queaquelacabecinhatenha

planejadooqueaconteceu.

Iaandandoparaobanheiro,falandosozinha,masouviuqueJustinianaacorrigia:

—Claro que ele planejou tudo. Fonchito é capaz das piores coisas, a senhora

aindanãosedeuconta?

“Podeser”,pensoudonaLucrecia.Maseraummenino,ummenino.Nãoera?

Sim,pelomenosdissonãohaviadúvida.Nobanheiro,molhouatestacomáguafria

eseexaminouaoespelho.Aperturbaçãolhea laraonariz,quepalpitavaansioso,e

umasolheirasazuladasrodeavamseusolhos.Pelabocaentreaberta,viaapontinhada

lixaemquesetransformarasualíngua.RecordouaslagartixaseosiguanasdePiúra;

tinhamsemprea língua ressecada, igual àdela agora.OaparecimentodeFonchito

em sua casa a levara a se sentir petri cada e antiga como essas reminiscências pré-

históricasdosdesertosdoNorte.Sempensar,emumatomecânico,desatouocinto

e,ajudando-secomummovimentodosombros,livrou-sedorobe;asedadeslizou

peloseucorpoatéochão,emumacaríciasibilante.Achatadoeredondo,otecidolhe

cobriaopeitodospés,comoumaflorgigante.Semqueelasoubesseoquefazianem

oqueiafazer,respirandoansiosa,seuspéstranspuseramafronteiraderoupaqueos

circundavaealevaramaobidê,ondesesentou,depoisdebaixaracalcinhaderenda.

Oqueestavafazendo?Oqueiafazer,Lucrecia?Nãosorria.Tentavainspirareexpelir

o ar commais calma, enquanto suas mãos, independentes, abriam as torneiras, a

quente,afria,easmediam,misturavam,graduavam,subiamoubaixavamorepuxo

morno, ardente, frio, fresco, débil, impetuoso, saltitante. A parte inferior do seu

corpo se adiantava, retrocedia, inclinava-se à direita, à esquerda, até encontrar a

posição devida. Aí. Um estremecimento percorreu sua espinha dorsal. “Talvez ele

nempercebesse,talvez zesseaquilosemmotivo”,repetiuasimesma,compadecida

daquelemeninoaquemtantomaldisseranosúltimosseismeses.Talvezelenãofosse

mau, talvez não. Travesso, malicioso, metido, irresponsável, mil coisas mais.

Malvado, porém, não. “Talvez não.” Os pensamentos rebentavam em sua cabeça

como as borbulhas de uma panela fervente. Recordou o dia em que conhecera

Rigoberto,oviúvodegrandesorelhasbudistasenarizdesavergonhadocomquemse

casariapoucodepois;aprimeiravezemqueviraseuenteado,querubimvestidode

marinheirinho—conjuntoazul,botõesdourados,gorrinhocomâncora—;ascoisas

queforadescobrindoeaprendendo,avidainesperada,imaginativa,noturna,intensa,

nacasinhadeBarrancoqueRigobertomandaraconstruirparainiciaremnelasuavida

juntos; asbrigas entreoarquitetoe seumaridobalizandoaedi caçãodaqueleque

seriaseular.Tantascoisastinhamacontecido!Asimagensiamevinham,sediluíam,

se alteravam, se entremeavam, se sucediam, e era como se a carícia líquidado ágil

repuxolhechegasseàalma.

Instruções para o arquiteto

Nossomal-entendidoédecaráterconceitual.Osenhor fezestebonitodesenhode

minha casa e de minha biblioteca partindo da suposição — muito difundida,

lamentavelmente— de que em um lar o importante são as pessoas, em vez dos

objetos.Nãoocriticoporfazerseuessecritério, indispensávelparaumhomemde

suapro ssãoquenãoseresigneaprescindirdosclientes.Masminhaconcepçãode

meufuturolaréaoposta.Asaber:nessepequenoespaçoconstruídoquechamareide

meumundoequemeuscaprichosgovernarão,aprioridadebásicacaberáaosmeus

livros, quadros e gravuras; nós, as pessoas, seremos cidadãos de segunda. São esses

quatromilharesdevolumeseacentenadetelaseestampasquedevemconstituira

razão primordial do desenho que lhe encomendei. O senhor subordinará a

comodidade,asegurançaeaconveniênciadoshumanosàsdaquelesobjetos.

É imprescindível o detalheda lareira, quedevepoder transformar-se em forno

crematóriodelivrosegravurasexcedentes,ameucritério.Porisso,elaterádesituar-

sebempertodas estantes e ao alcancedomeu assento, pois eu gostodebancar o

inquisidordecalamidadesliteráriaseartísticassentado,enãodepé.Explico-me.Os

quatromil volumes e as cemgravurasquepossuo sãonúmeros in exíveis.Nunca

tereimais,paraevitarasuperabundânciaeadesordem,masnuncaserãoosmesmos,

poisirãoserenovandosemcessar,atéminhamorte.Issosigni caque,paracadalivro

que acrescento à minha biblioteca, elimino outro, e cada imagem — litogra a,

madeira, xilogra a, desenho, ponta-seca,mixogra a, óleo, aquarela etc.—que se

incorpora à minha coleção desloca a menos favorecida entre as demais. Não lhe

escondoqueescolheravítimaéárduoe,àsvezes,lancinante,umdilemahamletiano

queme angustiadurantedias, semanas, e quedepoismeuspesadelos reconstroem.

Noinício,eudoavaabibliotecasemuseuspúblicososlivrosegravurassacri cados.

Agoraosqueimo,daíaimportânciadalareira.Opteiporessafórmuladrástica,que

eliminaodesassossegode terde escolherumavítimacoma espinhosa sensaçãode

estarcometendoumsacrilégiocultural,umatransgressãoética,nodia,oumelhor,na

noiteemque,tendodecididosubstituirporumformosoSzyszloinspiradonomar

de Paracas uma reprodução da multicolorida lata de sopa Campbell’s de Andy

Warhol,compreendiqueeraumaestupidezin igiraoutrosolhosumaobraqueeu

passara a considerar indigna dos meus. Então, joguei-a no fogo. Ao ver aquela

cartolinavirartorresmo,experimenteiumvagoremorso,admito.Agora,issojánão

me acontece. Enviei às chamas dezenas de poetas românticos e indigenistas, assim

comooutrostantosartistasplásticosconceituais,abstratos,informalistas,paisagistas,

retratistasesacros,paraconservaronumerusclaususdeminhabibliotecaepinacoteca,

semdor,eatémesmocomaestimulantesensaçãodeestarexercendoacríticaliterária

e de arte como deveria ser feita: de maneira radical, irreversível e combustível.

Acrescento, para encerrar este aparte, que tal passatempo me diverte, mas não

funcionaemabsolutocomoafrodisíaco,eporissootenhocomolimitadoemenor,

meramenteespiritual,semrepercussõessobreocorpo.

Con oemqueosenhornãotomeoqueacabadeler—apreponderânciaque

concedoaquadroselivrossobrebípedesdecarneeosso—portiradadehumorou

pose de cínico. Não é isso, mas sim uma convicção arraigada, consequência de

experiênciasdifíceis,mas,também,muitoprazerosas.Nãomefoifácilchegarauma

posturaquecontradiziavelhastradições—vamoschamá-lashumanísticas,comum

sorriso nos lábios — de loso as e religiões antropocêntricas, para as quais é

inconcebível que o ser humano real, estrutura de carne e ossos perecíveis, seja

considerado menos digno de interesse e de respeito do que o inventado, o que

aparece (se lhe for mais cômodo, digamos re etido) nas imagens da arte e na

literatura.Poupo-odosdetalhesdestahistóriaeotrans roàconclusãoaquecheguei

e que agora proclamo sem rubor. O mundo de velhacos semoventes do qual o

senhoreeufazemospartenãoéoquemeinteressa,oquemedáprazeresofrimento,

massimessamiríadedeseresanimadospelaimaginação,pelosdesejosepeladestreza

artística,presentesnessesquadros, livros enessas gravurasque consegui reunir com

paciênciaeamordemuitosanos.AcasaquevouconstruiremBarranco,aquelaque

osenhordeverádesenharrefazendooprojetodoprincípioao m,éparaeles,mais

do que paramim ou paraminha novíssima esposa, oumeu lhinho. A trindade

formadapelaminhafamília,digo-osemblasfêmia,estáaserviçodessesobjetoseo

senhortambémdeveráestar,quando,depoisde lerestas linhas,sedebruçarsobrea

pranchetaafimderetificaraquiloquefeztãomal.

Oqueacabodeescreveréumaverdadeliteral,enãoumaenigmáticametáfora.

Construoestacasaparapadeceremedivertircomeles,poreleseparaeles.Façaumesforçopormeimitarduranteolimitadoperíodoemquetrabalharáparamim.

Agora,desenhe.

A noite dos gatos

Fiel ao encontromarcado, Lucrecia entrou com as sombras, falandode gatos. Ela

mesmapareciaumalindagataangorásoborumorosoarminhoquelhechegavaaos

pésedissimulavaseusmovimentos.Estavanuadentrodeseuinvólucroprateado?

—Gatos,vocêdisse?

—Gatinhos,maisexatamente—miouela,dandounspassosresolutosaoredor

de don Rigoberto, que pensou em um hastado adentrando a arena e medindo o

toureiro.—Nenéns,filhotes,bichaninhos.Umadúzia,talvezmais.

Rebolavam sobre a colcha de veludo vermelho. Encolhiam e esticavam as

patinhassoboconedeluzcruaque,poeiradeestrelas,partiadoforroinvisívelecaía

sobre o leito.Um cheiro de almíscar banhava a atmosfera, e amúsica barroca, de

bruscosdiapasões,vinhadomesmocantodeondesaiuavozdominanteeseca:

—Tirearoupa.

—De jeitonenhum—protestoudonaLucrecia.—Eu aí, comesses bichos?

Nemmorta,tenhoódiodeles.

— Queria que você zesse amor com ele no meio dos gatinhos? — Don

RigobertonãoperdiaumasódasevoluçõesdedonaLucreciapelotapetemacio.Seu

coraçãocomeçavaadespertareanoitebarranquina,asairdanévoaeaviver.

—Imagine—murmurouela,detendo-seumsegundoeretomandoseupasseio

circular.—Queriamevernuanomeiodaquelesgatos.Comonojoquemedão!

Ficotodaarrepiadasódemelembrar.

DonRigobertocomeçouaperceberassilhuetasfelinas,eseusouvidosaescutar

os débeismiados damiúda gataria. Secretadas pelas sombras, elas iam assomando,

corpori cando-se,enacolchaincendiada,sobachuvadeluz,osbrilhos,osre exos,

aspardascontorçõesodeixaramtonto.Intuiuquenolimitedaquelasextremidades

movediçasseinsinuavam,aquosas,curvas,recém-saídas,asgarrinhas.

—Venha,venhacá—ordenouohomemládocanto,suavemente.Aomesmo

tempo, deve ter aumentado o volume, porque clavicórdios e violinos cresceram,

golpeandoseusouvidos.Pergolesi!, reconheceudonRigoberto.Entendeuaescolha

dasonata;oséculoXVIIInãoerasomenteododisfarceedaconfusãodesexos;era

também,porexcelência,odosgatos.Ea nalVenezanãotinhasido,desdesempre,

umarepúblicagateira?

— Você já estava nua? — Escutando-se, compreendeu que a ansiedade se

apoderavarapidamentedoseucorpo.

—Aindanão.Elemedespiu,comosempre.Porquevocêpergunta, se já sabe

queédissoqueelemaisgosta?

—Evocêtambém?—interrompeu-a,meloso.

DonaLucreciariu,comumarisadinhaforçada.

—Ésemprecômodoterumcriadodequarto—sussurrou, inventando-seum

risonhorecato.—Embora,destavez,fossediferente.

—Pelosgatinhos?

—E por quemmais?Me deixavam nervosíssima.Virei uma pilha de nervos,

Rigoberto.

Noentanto,haviaobedecidoàordemdoamanteescondidonocanto.Depéao

ladodele,dócil,curiosaeansiosa,esperava,semesquecerporumsegundoopunhado

de felinos que se exibiam, embolados, dengosos, entre revoluteios e lambidas, no

obscenocírculoamareloqueosaprisionavanocentrodacolcha amejante.Quando

elasentiuasduasmãosemseustornozelos,descendo-lheatéospésedescalçando-os,

seusseiossetensionaramcomodoisarcos.Osmamilosendureceram.Meticuloso,o

homemagoralhetiravaasmeias,beijandosempressa,comminúcia,cadapedacinho

de pele descoberta. Murmurava coisas que dona Lucrecia, no princípio, havia

entendidocomopalavrasternasouvulgaresditadaspelaexcitação.

—Masnão,nãoeraumadeclaraçãodeamor,nãoeramasporcariasqueàsvezes

ocorrema ele—riu-sedenovo, comamesma risadinha incrédula,detendo-se ao

alcancedasmãosdedonRigoberto.Estenãoprocuroutocá-la.

—Oquê,então?—balbuciou,lutandocontraaresistênciadesualíngua.

—Explicações, todaumaconferência felina—voltouelaa rir, entregritinhos

sufocados.—Sabiaqueomeléacoisaqueosbichanosmaisapreciamnomundo?E

queelestêmnotraseiroumabolsadaqualseextraiumperfume?

DonRigobertofarejouanoitecomsuasnarinasdilatadas.

—Éesseoseucheiro?Nãoéalmíscar,então?

—Éalgália.Perfumedegato.Estouimpregnada.Issooincomoda?

Ahistória lheescapava,deixava-oextraviado,eleacreditavaestardentroesevia

fora.Nãosabiaoquepensar.

—Elevouosfrascosdemelparaquê?—perguntou,temendoumjogo,uma

brincadeira,queviessemsubtrairformalidadeàquelacerimônia.

—Parauntarvocê—disseohomem,parandodebeijá-la.Continuouadespi-la;

haviaterminadocomasmeias,ocasaco,ablusa.Agora,desabotoavasuasaia.—Eu

o trouxe daGrécia, de abelhas domonteHimeto.Omel de que falaAristóteles.

Guardei-oparavocê,pensandonestanoite.

“Eleaama”,pensoudonRigoberto,enciumadoeenternecido.

—Dejeitonenhum—protestoudonaLucrecia.—Nãoenão.Porcarianãoé

comigo.

Falava sem autoridade, com as defesas abaladas pela contagiosa vontade do

amante,notomdequemsesabevencida.Seucorpohaviacomeçadoadistraí-lados

guinchos da cama, a vibrar, a concentrá-la, àmedida que o homem a livrava das

últimaspeças e,prostradoaos seuspés, continuavaaacariciá-la.Elaodeixavaagir,

procurando abandonar-se ao prazer assim provocado. Os lábios e mãos dele

espalhavam chamas por onde passavam. Os gatinhos continuavam ali, pardos e

verdosos,letárgicosouanimados,franzindoacolcha.Miavam,brincando.Pergolesi

haviaamainado,eraumabrisalongínqua,umdesmaiosonoro.

—Untar seu corpo commel de abelhas domonteHimeto?— repetiu don

Rigoberto,escandindocadapalavra.

— Para os gatos me lamberem, já pensou? Com o asco que essas coisas me

provocam,comminhaalergiaagatos, comonojoquemedá ser lambuzadacom

algo pegajoso (“Nuncamascou um chiclete”, pensou don Rigoberto, agradecido),

mesmoquesejaapontadeumdedo.Jápensou?

—Eraumgrandesacrifício,vocêsóofaziaporque...

—Porqueamovocê—interrompeu-odonaLucrecia.—Evocê tambémme

ama,nãoé?

“Com toda a alma”, pensou don Rigoberto.Tinha os olhos fechados. Havia

alcançado, en m, o estado de lucidez plena que buscava. Podia se orientar sem

di culdade naquele labirinto de sombras densas. Muito claramente, com uma

pontinhadeinveja,percebiaadestrezadohomemque,semseapressarnemperdero

controle dos dedos, desembaraçava Lucrecia da anágua, do sutiã, da calcinha,

enquanto seus lábios lhe beijavam com delicadeza a carne acetinada, sentindo a

granulação — causada por frio, incerteza, apreensão, asco ou desejo? — que a

enervava e as cálidas exalações que, ao apelo das carícias, escapavam dessas formas

pressentidas.Quandosentiuna língua,nosdentesenopaladardoamanteacrespa

matadepelos eo aromapicantedos seus sumos lhe subiu ao cérebro, começoua

tremer. Ele teria começado a untá-la? Sim.Com uma pequena brocha de pintor?

Não.Comumpano?Não.Comsuasprópriasmãos?Sim.Oumelhor,comcada

umdosseusdedoscompridoseossudoseasabedoriadeummassagista.Espargiam

sobreapelea substânciacristalina—oodor açucarado subia pelas narinas dedon

Rigoberto,deixando-oenjoado—everi cavamaconsistênciadecoxas,ombros e

seios,beliscavamaquelesquadris,percorriamaquelasnádegas,submergiamnaquelas

profundezas franzidas, separando-as. A música de Pergolesi voltava, caprichosa.

Ressoava,abafandoosquietosprotestosdedonaLucreciaeaexcitaçãodosgatinhos,

quefarejavamomele,adivinhandooqueiaacontecer,haviamcomeçadoabrincare

aguinchar.Corriampelacolcha,asfaucesabertas,impacientes.

—Melhordizendo,famintos—corrigiu-odonaLucrecia.

—Vocêjáestavaexcitada?—ofegoudonRigoberto.—Eleestavanu?Também

espalhavamelpelocorpo?

—Também,também,também—salmodioudonaLucrecia.—Meuntou,se

untou,mefezuntarsuascostas,ondesuamãonãochegava.Muitoexcitantesesses

joguinhos,semdúvida.Nemeleéumpedaçodemadeiranemvocêgostariaqueeu

fosse,nãoé?

—Claroquenão—confirmoudonRigoberto.—Meuamor.

—Nosbeijamos,nostocamos,nosacariciamos,evidentemente—detalhousua

esposa. Havia retomado a caminhada circular e os ouvidos de don Rigoberto

percebiam o roçagar do arminho a cada passo. Estava in amada, recordando?—

Querodizer,semnosmoverdocanto.Umbomtempo.Atéqueelemecarregou,e

assim,todamelada,melevouparaacama.

Avisãoeratãonítida,eade niçãodaimagem,tãoexplícita,quedonRigoberto

temeu: “Posso car cego.” Como aqueles hippies que nos anos psicodélicos,

estimuladospelassinestesiasdoácidolisérgico,desa avamosoldaCalifórniaatéque

osraios lhescarbonizavamaretinaeoscondenavamaveravidacomoouvido,o

tatoeaimaginação.Aliestavam,azeitados,porejantesdemelehumores,helênicos

emsuanudezepostura,avançandoemdireçãoàalgaraviafelina.Eleeraumlanceiro

medieval armado para a batalha e ela uma ninfa do bosque, uma sabina raptada.

Moviaosáureospéseprotestava“nãoquero,nãogosto”,masseusbraçosenlaçavam

amorosamenteopescoçodoseuraptor,sualínguapugnavaporlheinvadirabocae,

comfruição,sorvia-lheasaliva.“Espere,espere”,pediudonRigoberto.Docilmente,

dona Lucrecia se deteve e foi como se desaparecesse naquelas sombras cúmplices,

enquantoàmemóriadoseumaridovoltavaalânguidajovemdeBalthus(Nuavecchat)que,sentadaemumacadeira,acabeçavoluptuosamentejogadaparatrás,uma

pernaesticada,outraencolhida,ocalcanharzinhonabeiradoassento,alongaobraço

para acariciar um gato deitado no alto de uma cômoda e que, com os olhos

semicerrados, aguarda calmamente seu prazer. Remexendo, rebuscando, também

recordou haver visto, sem prestar muita atenção, seria no livro do animalista

holandêsMidasDekkers?,aRosalbadeBotero (1968), óleonoqual, agachado emuma cama nupcial, um pequeno felino negro se apresta a compartilhar lençóis e

colchão coma exuberante prostituta de crespa cabeleira que termina seu cigarro, e

alguma madeira de Félix Valloton ( Languor, c. 1896?) em que uma jovem de

nádegas espevitadas, entre almofadões oridos e um edredom geométrico, coça o

erógenopescoçodeumgatoempé.Aforaessasincertasaproximações,noarsenalde

sua memória nenhuma imagem coincidia com aquilo. Sentia-se infantilmente

intrigado.Aexcitaçãohaviare uído,semdesaparecer;assomavanohorizontedeseu

corpo como um desses sóis frios do outono europeu, a época preferida de suas

viagens.

—Edepois?—perguntou,voltandoàrealidadedosonhointerrompido.

OhomemdepositaraLucreciasoboconedeluze,desprendendo-secom rmeza

daquelesbraçosquequeriamatalhá-lo, sematenderàs suas súplicas,deraumpasso

paratrás.ComodonRigoberto,contemplava-atambémdaescuridão.Oespetáculo

era insólitoe,passadoodesconcerto inicial, incomparavelmentebelo.Depoisdese

afastarem,assustados,paralheabrirespaçoeobservá-la,agachados,indecisos,sempre

alertas — centelhas verdes, amarelas, bigodinhos retesados —, farejando-a, os

bichinhos se lançaram ao assalto daquela doce presa. Escalavam, assediavam,

ocupavam o corpo lambuzado, guinchando de felicidade. Sua gritaria abafou os

protestos entrecortados, os apagados meios-risos e exclamações de dona Lucrecia.

Braçoscruzadossobreorostoparaprotegeraboca,osolhoseonarizdasafanosas

lambidas, ela estava àmercê deles.Os olhos de donRigoberto acompanhavam as

irisadascriaturasávidas,deslizavamcomelaspelosseiosequadrisdedonaLucrecia,

resvalavamemseusjoelhos,aderiamaoscotovelos,ascendiamporsuascoxase,como

aquelas linguinhas, também se regalavam com a doçura líquida empoçada na lua

bojuda que o ventre dela parecia.O brilho domel condimentado pela saliva dos

gatos dava às formas brancas uma aparência semilíquida, e osmiúdos sobressaltos

que as correrias e reviravoltas dos animaizinhos provocavam nela tinham algo da

brandamobilidadedoscorposnaágua.DonaLucrecia utuava,eraumbaixelvivo

singrando águas invisíveis. “Como é bonita!”, pensou. Seu corpo de seios duros e

quadris generosos, de nádegas e coxas bem-de nidas, cava naquele limite que ele

admirava acima de todas as coisas em uma silhueta feminina: a abundância que

sugere,esquivando-a,aindesejávelobesidade.

—Abraaspernas,meuamor—pediuohomemsemrosto.

—Abra,abra—suplicoudonRigoberto.

—Sãopequenininhos,nãomordem,nãolhefarãonada—insistiuohomem.

—Vocêjáestavagozando?—perguntoudonRigoberto.

—Não,não—respondeudonaLucrecia,quehaviarecomeçadoohipnotizante

passeio.Orumordoarminhoressuscitouassuspeitasdele:elaestarianua,embaixo

docasaco?Sim,estava.—Ascócegasmedeixavamlouca.

Masacabaraconsentindo,edoisoutrêsfelinosseprecipitaramansiosamentepara

lamberodorsoocultodesuascoxas,asgotinhasdemelquecintilavamnossedosose

negrospelosdomontedeVênus.OcorodaslambidaspareceuadonRigobertouma

música celestial. Pergolesi retornava, agora sem força, com suavidade, gemendo

baixinho.Osólidocorpobesuntadoestavaquieto,emprofundorepouso.Masdona

Lucrecianãodormia,poisaosouvidosdedonRigobertochegavaadiscretamodorra

que,semqueelaopercebesse,escapavadesuasprofundezas.

—Seunojotinhapassado?—inquiriu.

—Claroquenão—retrucouela.E,depoisdeumapausa,comhumor:—Mas

jánãomeimportavatanto.

Riue,destavez,comorisoabertoquereservavaparaelenasnoitesdeintimidade

compartilhada,defantasiasemfreio,queosfaziaditosos.DonRigobertoadesejou

comtodasasbocasdoseucorpo.

—Tire o casaco— implorou.—Venha, venha para osmeus braços,minha

rainha,minhadeusa.

Masfoidistraídopeloespetáculoquenesseprecisoinstantesehaviaduplicado.O

homem invisível jánãoo era.Em silêncio, seu longo corpooleoso se in ltrouna

imagem.Agora,tambémeleestavaali.Deitando-senacolchavermelha,estreitava-se

a dona Lucrecia. A gritaria dos gatos espremidos entre os amantes, lutando para

escapar, exorbitados, fauces abertas, línguas pendentes, feriu os tímpanos de don

Rigoberto.Mesmotapandoosouvidos,elecontinuouaescutá-la.E,apesardefechar

osolhos,viuohomemencarapitadosobredonaLucrecia.Pareciaafundarnaqueles

robustosquadrisbrancosqueorecebiamcomregozijo.Eleabeijavacomamesma

avidez com que os gatinhos a tinham lambido e se movia sobre ela, com ela,

aprisionadoporseusbraços.AsmãosdedonaLucrecia lheoprimiamodorso,eas

pernas, levantadas, caíam sobre asdele, enquantoos altivospéspousavam sobre as

panturrilhas, o lugar que excitava donRigoberto. Este suspirou, contendo a duras

penas a necessidade de chorar que o esmagava. Conseguiu ver que dona Lucrecia

deslizavaemdireçãoàporta.

—Vocêvoltaamanhã?—perguntou,ansioso.

—Enodiaseguinte,enooutro—respondeuamudasilhuetaqueseperdia.—

Poracasoeufuiembora?

Os gatinhos, recuperados da surpresa, voltavam à carga e acabavam com as

últimasgotasdemel,indiferentesàbatalhadocasal.

O fetichismo dos nomes

Tenhoofetichismodosnomeseoteumeempolgaemeenlouquece.Rigoberto!É

viril,éelegante,ébrônzeo,éitaliano.Quandoopronuncio,emvozbaixa,demim

paramim,umacobrinhamepercorreascostasesemegelamoscalcanharesrosados

que Deus me deu (ou se preferires, descrente, a Natureza). Rigoberto! Risonha

cascatadeáguastransparentes.Rigoberto!Amarelaalegriadepintassilgocelebrandoo

sol.Ondeestiveres,estoueu.Quietinhaeapaixonada,bemali.Assinasumaletrade

câmbio,umacontaapagar,comteunometetrassílabo?Eusouopontinhoemcima

do i, o rabinho do g e o chifrinho do t. Amanchinha de tinta que ca no teu

polegar.Tealiviasdocalorcomumcopinhodeáguamineral?Eu,abolhinhaquete

refresca o paladar e o cubinho de gelo que arrepia tua linguinha de víbora. Eu,

Rigoberto,souocordãodosteussapatoseapastilhadeextratodeameixaquetomas

a cada noite contra a constipação. Como sei esse detalhe de tua vida

gastrenterológica?Quemamasabe,etemporsabedoriatudooqueconcerneaoseu

amor,sacralizandoodetalhemaistrivialdessapessoa.Diantedeteuretrato,eume

persignoerezo.Paraconhecertuavidatenhoteunome,anumerologiadoscabalistas

e as artes divinatórias de Nostradamus. Quem sou? Alguém que te ama como a

espumaàondaeanuvemaorosicler.Procura,procuraeencontra-me,amado.

Tua,tua,tua

Afetichistadosnomes

II.

As coisinhas de Egon Schiele

II - As coisinhas de Egon Schiele

—PorqueEgonSchielelheinteressatanto?—perguntoudonaLucrecia.

— Me dá pena que morresse tão jovem e que o metessem na cadeia —

respondeuFonchito.—Temunsquadroslindíssimos.Ficohorasolhandoparaeles,

noslivrosdopapai.Evocê?Nãogosta,madrasta?

— Não os recordo muito bem. Exceto as posturas. Uns corpos forçados,

desconjuntados,não?

—EeugostodeSchieletambémporque,porque...—interrompeu-aomenino,

comosefosserevelarumsegredo.—Nãomeatrevoalhedizer,madrasta.

—Vocêsabemuitobemdizerascoisasquandoquer,nãobanqueotolinho.

—Porquesintoquemepareçocomele.Quevouterumavidatrágica,comoa

dele.

DonaLucrecia deu uma risada.Mas uma inquietação a invadiu.De onde este

menino tirava semelhantecoisa?Alfonsitocontinuavaolhando-a,muito sério.Um

tempinho depois, fez um esforço e lhe sorriu. Estava sentado no chão da sala de

jantar, com as pernas cruzadas; conservava o paletó azul e a gravata cinza do

uniforme,mashaviatiradoobonezinhocomviseira,que jaziaaoseu lado,entrea

mochila, a pasta e a caixa de lápis da academia. Nisso, Justiniana entrou com a

bandejadochá.Fonchitoarecebeualvoroçado.

—Chancays1tostadoscommanteigaegeleia—aplaudiu,subitamentelivreda

preocupação.—Oqueeumaisadoronomundo.Vocêselembrou,Justita!

—Não zparavocê, zparaapatroa—mentiuJustiniana, ngindoseveridade.

—Paravocê,nemfarelo.

Ia servindo o chá e dispondo as xícaras na mesinha da sala. No Olivar, uns

garotos jogavam futebol, e através das cortininhas avistavam-se suas ardorosas

silhuetas;alidentro,emsurdina,chegavampalavrões,chutesretumbantesegritosde

triunfo.Daliapouco,escureceria.

—Nãovaimeperdoarnunca,Justita?—entristeceu-seomenino.—Aprenda

comminhamadrasta;elaesqueceuoquehouveeagoranosdamostãobemcomo

antes.

“Comoantes,não”,pensoudonaLucrecia.Umaondaquentealambiadesdeo

peitodospésatéapontadoscabelos.Disfarçou,bebendogolinhosdechá.

—Deveserporqueapatroaémuitoboaeeu,muitomá—zombavaJustiniana.

—Então,somosparecidos,Justita.Porque,emsuaopinião,eusoumuitomau,

não?

—Vocêmeganhadegoleada—despediu-seaempregada,sumindonocorredor

dacozinha.

Dona Lucrecia e o menino permaneceram em silêncio, enquanto comiam os

pãezinhosetomavamochá.

—Justitameodeiadabocaparafora—a rmouFonchito,quandoterminoude

mastigar.—Nofundo,pensoquetambémmeperdoou.Nãoacha,madrasta?

—Talveznão.Elanãosedeixatapearporsuasmaneirasdemeninobonzinho.

Não quer me ver passar de novo pelo que passei. Porque, embora não goste de

recordarisso,eusofrimuitoporsuaculpa,Fonchito.

—Eporacasoeunãosei,madrasta?—empalideceuomenino.—Porisso,vou

fazertudo,tudo,pararepararomalquelhecausei.

Estariafalandosério?Ourepresentandoumafarsa,utilizandoessevocabuláriode

velho precoce? Impossível averiguar, naquela carinha em que olhos, boca, nariz,

pômulos, orelhas e até a desordem dos cabelos pareciam a obra de um esteta

perfeccionista.Erabonito comoumarcanjo,umdeusinhopagão.Opior, opior,

pensava donaLucrecia, era que ele parecia a encarnação da pureza, ummodelo de

inocênciaevirtude.“AmesmaauréoladelimpezaquehaviaemModesto”,disseasi

mesma, recordandooengenheiroafeiçoadoàscançõesbregasque lhe zeraacorte

antesdeelasecasarcomRigoberto,eaquemhaviadesdenhado,talvezpornãosaber

apreciarsu cientementesuacorreçãoesuabondade.Ou,quemsabe,teriarechaçado

o pobre Pluto, como o chamavam, precisamente porque ele era bom? Por serem

aqueles fundos turvos, nos quais Rigobertomergulhava, o que atraía seu coração?

Comele,nãohaviavaciladoumsegundo.NobonachãodoPluto,aexpressãolimpa

refletiasuaalma;nestediabinhodoAlfonso,eraumaestratégiadesedução,umcanto

daquelassereiasquechamamdosabismos.

—VocêgostamuitodeJustita,madrasta?

—Sim,muito.Paramim, ela émais doqueuma empregada.Não sei oque

teria feito sem Justiniana todos estesmeses, enquantome acostumava outra vez a

viver sozinha. Foi uma amiga, uma aliada. Assim a considero. Não tenho os

preconceitosestúpidosdagentedeLimacomasdomésticas.

QuasecontouaFonchitoocasodarespeitabilíssimadonaFelíciadeGallagher,a

qualsegabavaemseuschás-canastradeterproibidoseumotorista,robustonegrode

uniforme azul-marinho, de beber água durante o trabalho para que não tivesse

vontadedeurinareprecisasseestacionarocarroembuscadeumbanheiro,deixando

a patroa sozinha naquelas ruas cheias de ladrões.Mas não o fez, pressentindo que

umaalusão,mesmo indireta,aumafunçãoorgânicadiantedomeninoseriacomo

revolveraságuasmefíticasdeumpântano.

— Posso lhe servir mais chá? Os chancays estão uma delícia — adulou-a

Fonchito.—Quandopossoescapulirdaacademiaevenho,mesintofeliz,madrasta.

—Vocênãodeveperdertantastardes.Serealmentequerserpintor,essasaulas

lheserãomuitoúteis.

Porque,quandolhefalavacomoaummenino,oqueelerealmenteera,via-se

dominadapelasensaçãodepisaremfalso,dementir?Mas,seotratassecomoaum

homenzinho,tinhaidênticaaflição,omesmosentimentodefalsidade.

—AchaJustinianabonita,madrasta?

—Acho,sim.Elatemumtipomuitoperuano,comsuapelecordecanelaesua

carinhaespevitada.Deveterpartidoalgunscoraçõesporaí.

—AlgumavezopapailhedissequeachavaJustinianabonita?

—Não,nãocreioqueeletenhadito.Masporquetantasperguntas?

—Pornada.MasvocêémaislindadoqueJustitaedoquetodas,madrasta!—

exclamouomenino.Porém,assustado,desculpou-sedeimediato.—Fizmalemlhe

dizerisso?Vocênãovaiseaborrecer,nãoé?

A senhoraLucrecia tentava evitarqueo lhodeRigobertonotasse seu sufoco.

Lúcifer estaria voltando a fazer das suas? Ela deveria pegá-lo por uma orelha e

expulsá-lo,ordenando-lhequenãovoltasse?MasFonchitojápareciateresquecidoo

que acabava de dizer e remexia na pasta em busca de alguma coisa. Finalmente,

encontrou.

— Veja, madrasta — estendeu-lhe o pequeno recorte. — Schiele, quando

pequeno.Nãosouparecido?

Dona Lucrecia examinou o mirrado adolescente de cabelos curtos e feições

delicadas,apertadoemumtrajeescurodoiníciodoséculo,comumarosanalapela,

eaquemacamisadecolarinhoduroeagravata-borboletapareciamestrangular.

—Nemumpouco—disse.—Vocênãoseparecenadacomele.

—Essasqueestãoaoladosãosuasirmãs.GertrudeeMelanie.Amenor,aloura,

éafamosaGerti.

—Porquefamosa?—perguntoudonaLucrecia,incomodada.Sabiamuitobem

queestavaentrandoemumcampominado.

—Comoporquê?—surpreendeu-seacarinharubicunda;asmãos zeramum

trejeitoteatral.—Nãosabia?Elafoiamodelodosnusmaisconhecidosdele.

—Ah, é?—OdesconfortodedonaLucrecia se acentuou.—Pelo que vejo,

vocêconhecemuitobemavidadeEgonSchiele.

—Litudooqueexistearespeitonabibliotecadopapai.Mulheresaosmontes

posaramnuas para ele.Garotas de colégio,mulheres da rua, sua amanteWally. E

tambémsuaesposaEdithesuacunhadaAdele.

—Bem,bem—donaLucreciaconsultouseurelógio.—Está candotardepara

você,Fonchito.

—TambémnãosabiaqueelefezEditheAdeleposaremjuntas?—prosseguiuo

menino, entusiasmado, como se não a tivesse escutado.—E, quando vivia com

Wally, na aldeiazinha de Krumau, mesma coisa. Nua, junto com meninas do

colégio.Porissosearmouumescândalo.

— Não é de estranhar, se eram meninas de colégio— comentou a senhora

Lucrecia.—Masveja,estáescurecendo,émelhorirembora.SeRigobertoligarpara

aacademia,vaidescobrirquevocêmataaula.

—Mas esse escândalo foi uma injustiça— continuou omenino, tomado de

grandeexcitação.—Schieleeraumartista,precisavaseinspirar.Nãopintouobras-

primas?Quemaldadehavianissodefazê-lassedespir?

—Voulevarestasxícarasparaacozinha.—AsenhoraLucreciaselevantou.—

Meajudecomospratoseacestinha,Fonchito.

Omeninoseapressouarecolhercomasmãosasmigalhasdechancayespalhadaspelamesa de centro. Seguiu amadrasta, docilmente.Mas a senhora Lucrecia não

haviaconseguidodesviá-lodoassunto.

—Bom, é verdade que, com algumas das que posaramnuas, ele também fez

umas coisinhas— ia dizendo Fonchito, enquanto percorriam o corredor.— Por

exemplo, fez com sua cunhadaAdele.Mas, com sua irmãGerti, não faria, não é,

madrasta?

Nas mãos da senhora Lucrecia as xícaras haviam começado a balançar. O

malandrinho tinha o endemoniado costumede, comoquemnão quer nada, levar

sempreaconversaparatemasescabrosos.

—Claroquenão fez— retrucou ela, sentindoque sua língua se enrolava.—

Evidentementenão,queideia.

Tinham entrado na pequena cozinha, de ladrilhos que pareciam espelhos.

Tambémasparedesreluziam.Justinianaosobservou, intrigada.Umaborboletinha

revoluteavaemseusolhos,animandoseurostomoreno.

—ComGerti,talveznão,mascomacunhada,sim—insistiuomenino.—A

própriaAdeleconfessou,quandoEgonSchiele já tinhamorrido.Os livroscontam

isso,madrasta.Ouseja,elefezcoisinhascomasduasirmãs.Vaiverqueeradaíque

lhevinhaainspiração.

— Quem era esse safado? — perguntou a empregada. Sua expressão era

vivíssima. Ela recebia xícaras e pratos e colocava-os embaixo da torneira aberta;

depois,afundava-osnapia,cheiaatéabordadeáguaespumosaeazulada.Ocheiro

dedetergenteimpregnavaacozinha.

—EgonSchiele—sussurroudonaLucrecia.—Umpintoraustríaco.

—Morreuaosvinteeoitoanos,Justita—especificouomenino.

—Certamente,detantofazercoisinhas.—Justinianafalavaeenxaguavapratose

xícaras, secando-os depois com um pano de losangos coloridos. — Portanto,

comporte-se,Foncho,cuidadoparanãolheaconteceromesmo.

—Nãomorreudefazercoisinhas,masdegripeespanhola—replicouomenino,

impermeávelaohumor.—Suaesposatambém,trêsdiasantesdele.Oqueégripe

espanhola,madrasta?

—Umagripemaligna, imagino.Deve ter chegado aViena vindadaEspanha,

seguramente.Bom,agoraváembora,estátarde.

— Já sei por que você quer ser pintor, seu bandido— interveio Justiniana,

irreprimível.—Porque,pelovisto,ospintorestêmumvidãocomsuasmodelos.

—Nãofaçaessesgracejos—repreendeu-adonaLucrecia.—Eleéummenino.

—Bemmetidinho,patroa—replicouaoutra,abrindoabocadeparempare

mostrandoseusdentesbranquíssimos.

— Antes de pintá-las, brincava com elas— retomou Fonchito o o de seu

pensamento,semprestaratençãoaodiálogoentrepatroaeempregada.—Faziacom

que elasposassemdemaneirasdiferentes, experimentando.Vestidas, peladas,meio

vestidas. O que mais lhe agradava era que trocassem as meias. Coloridas, verdes,

pretas,de todasascores.Equese jogassemnochão.Juntas, separadas,emboladas.

Que ngissemestarbrigando.Ficavahorasolhandoparaelas.Brincavacomasduas

irmãscomosefossemsuasbonecas.Atéquelhevinhaainspiração.Entãoaspintava.

— Que brincadeirinha... — provocou-o Justiniana. — Como aquela de ir

tirandoaspeçasderoupa,masparaadultos.

—Ponto nal! Chega!—Dona Lucrecia elevou tanto a voz que Fonchito e

Justiniana caram boquiabertos. Elamoderou o tom:—Não quero que seu pai

comecealhefazerperguntas.Vocêtemdeirembora.

—Estácerto,madrasta—tartamudeouomenino.

EstavabrancodesustoedonaLucreciasearrependeudehavergritado.Masnão

podia permitir que ele continuasse falando das intimidades de Egon Schiele com

aquelefogotodo,seucoraçãolhediziaquehaviaaliumaarmadilha,umriscoqueera

indispensávelevitar.QuebichohaviapicadoJustiniana,paraatiçá-lodaquele jeito?

Omeninosaiudacozinha.Elaoescutourecolhendoamochila,apastaeoslápisna

saladejantar.Quandovoltou,haviaajeitadoagravata,en adoobonéeabotoadoo

paletó.Plantadonoumbral,fitando-anosolhos,perguntoucomnaturalidade:

—Possolhedarumbeijodedespedida,madrasta?

OcoraçãodedonaLucrecia,quehaviacomeçadoaserenar,acelerou-sedenovo;

oquemaisaperturbou,porém,foiosorrisinhodeJustiniana.Oquedeviafazer?Era

ridículosenegar.Assentiu, inclinandoacabeça.Uminstantedepois, sentiuna face

umbiquinhodepassarinho.

—Eemvocê,tambémposso,Justita?

—Cuidadoparanãosernaboca—gargalhouamoça.

Destavezomeninofestejouogracejo,soltandoumarisada,enquantoseesticava

parabeijarJustiniananaface.Eraumabobagem,claro,masasenhoraLucrecianãose

atreviaa taraempregadanosolhosnemconseguiarepreendê-laporseexcedercom

piadasdemaugosto.

—Voumatarvocê—dissepor m,meiodebrincadeira,meioasério,quando

sentiu a porta da rua se fechar. — Enlouqueceu, para fazer essas gracinhas com

Fonchito?

—Équeessemeninotemnãoseioquê—desculpou-seJustiniana,encolhendo

osombros.—Fazagenteencheracabeçadepecados.

—Seja láoque for—dissedonaLucrecia—,comeleomelhorénãobotar

lenhanafogueira.

—Fogueiraéoqueasenhoratemnacara,patroa—retrucouJustiniana,com

suadesenvolturahabitual.—Masnãosepreocupe,essacorlheficaótima.

Clorofila e bosta

Sinto ter de decepcioná-lo. Suas apaixonadas arengas em favor da preservação da

Naturezaedomeioambientenãomecomovem.Nasci,viviemorrereinacidade(na

feiacidadedeLima,seforocasodebuscaragravantes),eafastar-medaurbe,mesmo

que por um m de semana, é uma servidão à qual me submeto às vezes por

obrigaçãofamiliarourazãodetrabalho,massempredemávontade.Nãomeinclua

entreessesmesocratascujaaspiraçãomaisacalentadaécomprarumacasinhaemuma

praiadoSulparaalipassarverõese nsdesemanaemobscenapromiscuidadecoma

areia,aáguasalgadaeasbarrigascervejeirasdeoutrosmesocratasidênticosaeles.Esse

espetáculo domingueiro de famílias confraternizando em um exibicionismo bien-pensantà beira-mar é paramimumdosmais deprimentes entre os oferecidos, no

ignóbilescalãodogregário,porestepaíspré-individualista.

Constatoque,parapessoascomoo senhor,umapaisagemenfeitadacomvacas

pastandoemmeioaolorosaservas,oucabritasfariscandoalgarobeiras,alvoroça-lhes

o coração e leva-as a experimentar o êxtase do jovenzinho que pela primeira vez

contempla uma mulher nua. No que me concerne, o destino natural do touro

macho é a arena— em outras palavras, viver para enfrentar a capa, a muleta, a

garrocha,abandarilhaeoestoque—,easestúpidasbovinaseusógostariadevê-las

esquartejadas e assadas na grelha, temperadas com especiarias ardentes e sangrando

diante de mim, rodeadas por batatas crocantes e saladas frescas, e as cabritas,

trituradas,des adas, fritasoucurtidas, segundoasreceitasdoseco nortista, umdos

meusfavoritosentreospratosqueabrutalgastronomiacrioulaoferece.Seiqueofendosuascrençasmaiscaras,poisnãoignoroqueosenhoreosseus—

outra conspiração coletivista!— estão convencidos, ou prestes a estar, de que os

animais têm direitos e, quem sabe, alma, todos eles, sem excluir o mosquito

palúdico, a hiena carniceira, a sibilante cobra e a piranha voraz. Eu confesso

paladinamentequeparamimosanimaistêmuminteressecomestível,decorativoe

talvezesportivo(emboradevaesclarecer-lhequeoamoraoscavalosmeproduztanto

desagrado quanto o vegetarianismo, e que considero os ginetes de testículos

ananicados pela fricção da montaria como um tipo particularmente lúgubre do

castradohumano).Emborarespeite,adistância,osquelhesatribuemfuncionalidade

erótica,amim,pessoalmente,nãomeseduz(oumelhor,faz-mefarejarmausodores

epresumirvariadasincomodidadesfísicas)aideiadecopularcomumagalinha,uma

pata,umamacaca,umaéguaouqualquervarianteanimalcomorifícios,eabrigoa

enervantesuspeitadequequemsegrati cacomtaisginásticassão,noíntimo—não

otomecomoalgopessoal—,ecologistasemestadoselvagem,conservacionistasque

seignoram,muitocapazes,nofuturo,deirenturmar-secomBrigitteBardot(que,

deresto,tambémameiquandojovem)paraatuaremproldasobrevivênciadasfocas.

Embora, vez por outra, tenha tido fantasias inquietantes com a imagem de uma

formosamulhernuabalançandoemumleitosalpicadodebichanos,saberquenos

EstadosUnidoshásessentaetrêsmilhõesdegatosecinquentaequatromilhõesde

cãesdomésticosmealarmamaisdoqueoenxamedearmasatômicasarmazenadas

emmeiadúziadepaísesdaex-UniãoSoviética.

Se assim penso desses quadrúpedes e passarolos, o senhor já pode imaginar os

humores que em mim despertam seus espessos bosques, sussurrantes árvores,

deleitosasfrondes,rioscantores,des ladeirosprofundos,cumescristalinos,similares

e anexos. Todas essas matérias-primas têm para mim sentido e justi cação se

passarem pelo crivo da civilização urbana, isto é, se forem manufaturadas e

transmutadas — não me importa que digamos “irrealizadas”, mas preferiria a

desprestigiada fórmula “humanizadas” — pelo livro, o quadro, o cinema ou a

televisão.Entendamo-nos:eudariaminhavida(algoquenãodevesertomadoaopé

daletra,poiséumdizerobviamentehiperbólico)parasalvarosálamosqueempinam

suaaltacopanoPolifemoeasamendoeirasqueencanecemasSoledadesdeGóngora,os salgueiros-chorõesdas éclogasdeGarcilasoouosgirassóis e trigaisquedestilam

seu mel áureo nos Van Gogh, mas não derramaria uma lágrima em louvor dos

pinheiraisdevastadospelosincêndiosdaestaçãoestivalenãometremeriaamãoao

assinar o decreto de anistia em favor dos incendiários que carbonizam bosques

andinos,siberianosoualpinos.ANaturezanãopassadapelaarteoupelaliteratura,a

Natureza ao natural, cheia de moscas, pernilongos, lama, ratazanas e baratas, é

incompatível com prazeres re nados, como a higiene corporal e a elegância

indumentária.

Para serbreve, resumireimeupensamento—minhas fobias, em todocaso—

explicando-lhe que, se isso que o senhor chama de “peste urbana” avançasse

incontrolável e engolisse todas as pradarias do mundo, e o globo terrestre se

recobrissedeumaerupçãodearranha-céus,pontesmetálicas,ruasasfaltadas, lagose

parques arti ciais, praças cimentadas e estacionamentos subterrâneos, e o planeta

inteiro se encasquetasse de concreto armado e vigas de aço e fosse uma só cidade

esféricaeinterminável(repleta,istosim,delivrarias,galerias,bibliotecas,restaurantes,

museus e cafés), o subscritor, homo urbanus até a consumação dos seus ossos,

aprovariaamedida.

Pelasrazõessupracitadas,nãocontribuireicomumsócentavoparaosfundosda

AssociaçãoCloro laeBostaqueosenhorpreside,efareitudooqueestiveraomeu

alcance(muitopouco,tranquilize-se)paraqueseus nsnãosecumpramequesua

bucólica loso a seja atropelada por este objeto emblemático da cultura que o

senhorodeiaeeuvenero:ocaminhão.

O sonho de Pluto

Nasolidãodeseuescritório,espertadopelofrioamanhecer,donRigobertoserepetiu

dememóriaafrasedeBorgescomaqualacabavadetopar:“Doadultériocostumam

participaraternuraeaabnegação.”Poucaspáginasdepoisdacitaçãoborgiana,acarta

apareceudiantedele,indeneaosanoscorrosivos:

QueridaLucrecia:Ao ler estas linhas você teráa surpresade suavida e, quem sabe,medesprezará.

Mas não importa. Mesmo que houvesse uma só possibilidade de que você aceitasseminhapropostacontraummilhãodequearecusasse,eumergulhariafundo.Resumireio que exigiria horas de conversa, acompanhada de in exões de voz e gesticulaçõespersuasivas.

Desdeque (depois dobilhete azul que vocêmedeu)deixei oPeru, trabalheinosEstadosUnidos,combastantesucesso.Emdezanoschegueiagerenteesóciominoritáriodestafábricadecondutoreselétricos,bemimplantadanoestadodeMassachusetts.Comoengenheiroeempresário,conseguiabrircaminhonestaminhasegundapátria,jáqueháquatroanossoucidadãoamericano.

Pois bem, saiba que acabo de renunciar a essa gerência e estou vendendominhas

açõesnafábrica,peloqueesperoobterumlucrodeseiscentosmildólaresou,comsorte,um pouco mais. Faço isso porque me ofereceram a reitoria do TIM (TechnologicalInstituteofMississippi), o collegeonde estudei e comoqual sempremantive contato.Um terço do estudantado é agora hispanic(latino-americano). Meu salário será ametadedoqueganhoaqui.Nãoimporta.Dedicar-meàformaçãodessesjovensdasduasAméricasqueconstruirãooséculoXXIéalgoquemeempolga.SempresonheientregarminhavidaàUniversidadeeéoquefariasetivesse cadonoPeru,istoé,sevocêtivessesecasadocomigo.

“Aquevemtudoisso?”,vocêdeveestarseperguntando.“PorqueModestoressuscita,depois de dez anos, para me contar semelhante história?” Já chego lá, queridíssimaLucrecia.

Decidigastar emuma semanade férias, entreminhapartidadeBostoneminhachegadaaOxford,Mississippi,cemmildosseiscentosmildólarespoupados.Férias,diga-sedepassagem,eununcatireinemtirareinofuturo,porque,comovocêcertamenteselembra,oquesempremeagradoufoitrabalhar.Meu jobcontinuasendomeumelhorlazer.Mas, semeusplanos saíremcomo espero, essa semana seráalgo forado comum.NãoasconvencionaisfériasdecruzeironoCaribeoupraiascomcoqueirosesur stasnoHavaí.Algomuitopessoaleirrepetível:amaterializaçãodeumsonhoantigo.Éaíquevocêentranahistória,pelaportaprincipal.Bemseiqueestácasadacomumhonradocavalheirolimenho,viúvoegerentedeumacompanhiadeseguros.Eutambémestou,comumagringuinhadeBoston,médicadepro ssão,esoufeliz,namodestamedidaemqueomatrimôniopermitesê-lo.Nãolheproponhoquevocêsedivorcieemudedevida,nadadisso.Somentequecompartilhe comigoessa semana ideal,acariciadaemminhamente ao longo de muitos anos, e que agora as circunstâncias me permitem tornarrealidade.Vocênãosearrependerádevivercomigoessessetediasdeilusãoeselembrarádelescomsaudadepelorestodesuavida.Issoeulheprometo.

Nosso encontro será no sábado 17 no aeroporto Kennedy, em Nova York, vocêprocedentedeLimanovoodaLufthansa,eeudeBoston.Umalimusine nos levaráàsuíte do Plaza Hotel, já reservada, inclusive com a indicação das ores que devemperfumá-la.Você terá tempo para descansar, ir ao cabeleireiro, tomar uma sauna oufazercomprasnaQuintaAvenida,literalmenteaosseuspés.NessanoitetemoslugaresnoMetropolitanparaveraToscadePuccini,comLucianoPavarottinopapeldeMarioCavaradossi e a Orquestra Sinfônica do Metropolitan regida pelo maestro EdouardoMuller.JantaremosnoLeCirque,onde,comsorte,vocêpoderá carpertinhodeMickJagger, Henry Kissinger ou Sharon Stone. Terminaremos a noitada no bulício doRegine’s.

O Concorde rumo a Paris sai no domingo ao meio-dia, não será necessáriomadrugar.Como o voo dura só três horas emeia— inadvertidas, acredito, graças àsdelíciasdoalmoçoassinadoporPaulBocuse—,chegaremosàCidade-Luzaindadedia.

Assim que nos instalarmos no Ritz (vista garantida para a PlaceVendôme), haverátempoparaumpasseiopelaspontesdoSena,aproveitandoastépidasnoitesdoiníciodooutono, asmelhores segundo os entendidos, desde que não chova. (Fracassei emmeusesforçosporaveriguarasperspectivasdeprecipitaçãopluvialparisiensenessedomingo enessa segunda-feira, pois a NASA, vale dizer, a ciência meteorológica, só prevê oscaprichosdocéucomquatrodiasdeantecedência.)NuncaestiveemPariseesperoquevocê também não, de modo que, nessa caminhada vespertina do Ritz até Saint-Germain,descobriremosjuntosaquiloque,pelovisto,éumitineráriosurpreendente.Namargem esquerda (oMira ores parisiense, digamos assim) nos aguardam o inconclusoRéquiemdeMozart,naabadiadeSaint-Germain-des-Prés, eum jantarChezLipp,brasseriealsacianaondeéobrigatórioochucrute(nãoseioqueé,mas,senãotiveralho,vou gostar). Imaginei que, terminado o jantar, você vai querer descansar paraempreender, fresquinha,a intensa jornadada segunda-feira,demodoquenessanoitenãosobrecarregamoprogramadiscoteca,bar,boateneminferninho.

Na manhã seguinte passaremos pelo Louvre para apresentar nossos respeitos àGiocondae almoçaremos rapidamente em La Closerie des Lilas ou em La Coupole(reverenciadosrestaurantesesnobesdeMontparnasse).Àtardetomaremosumbanhodevanguarda no Centre Pompidou e daremos uma olhada no Marais, famoso por seuspalácios do século XVIII e seus veados contemporâneos. Tomaremos um chá em LaMarquisedeSévigné,naPlacedeLaMadeleine,antesderecuperarmosas forçascomumaduchanohotel.Oprogramadanoiteé francamente frívolo:aperitivonobardoRitz,jantarnocenáriomodernistadoMaxim’se mdefestanacatedraldostriptease:oCrazy Horse Saloon, que estreia sua nova revista “Que calor!”. (Os ingressos estãoadquiridos, as mesas reservadas, e maîtrese porteiros subornados para garantir osmelhoreslugares,mesaseatendimento.)

Uma limusine,menos espetacularporémmais re nadaqueadeNovaYork, comchofereguia,noslevaránamanhãdaterça-feiraaVersalhes,paraconheceropalácioeosjardinsdoReiSol.Comeremosalgotípico(bifecombatatasfritas,temo)emumbistrôdo caminho, e,antesdaÓpera (Otelo, deVerdi, comPlácidoDomingo, claro), vocêterá tempo para compras no Faubourg Saint-Honoré, vizinho do hotel. Faremos umsimulacrodejantar,porrazõesmeramentevisuaisesociológicas,nopróprioRitz,onde—especialistasdixit—asuntuosidadedoambienteeore namentodoserviçocompensamafaltadeimaginaçãodocardápio.Overdadeirojantarnósteremosdepoisdaópera,emLaTourd’Argent,de cujas janelasnosdespediremosdas torresdeNotre-DameedasluzesdaspontesrefletidasnaságuasfugidiasdoSena.

O Orient-Express paraVeneza sai na quarta-feira ao meio-dia, da Gare Saint-Lazare. Viajando e descansando, passaremos nele esse dia e a noite seguinte, mas,segundoosqueprotagonizaramtalaventuraferroviária,percorrernessescamarotesbelleépoquea geogra a de França, Alemanha, Áustria, Suíça e Itália é relaxante e

preliminar,excitasemfatigar,entusiasmasemenlouquecerediverteatéporrazõesdearqueologia, em virtude do gosto com que foi ressuscitada a elegância dos camarotes,toaletes,bareserestaurantesdessemíticotrem,cenáriodetantosromancese lmesdoentreguerras.LevareicomigooromancedeAgathaChristie AssassinatonoExpressodoOriente,emversõesinglesaeespanhola,casolheapeteçadarumaolhadanoscenáriosdaação.Segundooprospecto,paraojantarauxchandellesdessanoite,aetiquetaeoslongosdecotessãoobrigatórios.

AsuítedoHotelCipriani,nailhadaGiudecca,temvistaparaoGrandeCanal,aPraçadeSãoMarcos easbizantinas e elaboradas torresde sua igreja.Contrateiumagôndola,assimcomooguiaqueaagênciaconsideraomaispreparado(eoúnicoamável)dacidade lacustre,paraquenamanhãenatardedaquinta-feiraelenos familiarizecom igrejas, praças, conventos, pontes e museus, com um curto intervalo ao meio-diapara beliscarmos alguma coisa — uma pizza, por exemplo — rodeados de pombos eturistas, no terraço do Florian.Tomaremos o aperitivo—uma beberagem inevitávelchamadaBellini—noHotelDanieli e jantaremosnoHarry’sBar, imortalizado porum péssimo romance deHemingway.Na sexta-feira continuaremos amaratona comumavisitaàpraiadoLidoeumaexcursãoaMurano,ondeaindasemodelaovidroasopros humanos (técnica que resgata a tradição e robustece os pulmões dos nativos).Haverá tempo para comprar suvenires e dar uma olhada furtiva em uma villa dePalladio.Ànoite,concertonailhotadeSanGiorgio—IMusiciVeneti—compeçasdedicadasabarrocosvenezianos,claro:Vivaldi,CimarosaeAlbinoni.OjantarseránoterraçodoDanieli,divisando, seanoite for semnuvens,como“mantodevagalumes”(estouresumindoosguias),osfaróisdeVeneza.Seocorpoopermitir,queridaLucre,nosdespediremosdacidadeedoVelhoContinenterodeadosdemodernidade,nadiscotecaIlGattoNero,queatraivelhos,madurose jovensa cionadosdo jazz(eununca fui evocêtampouco,masumdosrequisitosdessasemanaidealéfazeroquenunca zemos,submetidosàsservidõesdomundanismo).

Namanhã seguinte— sétimodia, a palavra m jánohorizonte —será precisomadrugar.OaviãorumoaParissaiàsdez,atempodealcançaroConcordeparaNovaYork.SobreoAtlântico,cotejaremosasimagensesensaçõesarmazenadasnamemóriaafimdeescolherasmaisdignasdeperdurar.

VamosnosdespedirnoKennedyAirport(seuvooparaLimaeomeuparaBostonsãoquasesimultâneos)para,certamente,nãonosvermosmais.Duvidoquenossosdestinosvoltemasecruzar.EunãoretornareiaoPeruenãocreioquevocêapareçaalgumdianoperdidorincãodoDeepSouth,que,apartirdeoutubro,poderásevangloriardeteroúnicoreitor hispanicdestepaís(osdoismilequinhentosrestantessãogringos,africanosouasiáticos).

Você vem? Sua passagem está à espera na agência limenha da Lufthansa. Nãoprecisameresponder.Dequalquermodo,nosábado17euestareinolugardoencontro.

Sua presença ou ausência será a resposta. Se você não vier, cumprirei o programado,sozinho, fantasiandoque você está comigo, tornando real esse capricho comoqualmeconsolei nestes anos, pensando em umamulher que, apesar do passa-fora quemudouminhaexistência,continuarásendosempreocoraçãodaminhamemória.

Precisoesclarecerqueesteéumconviteaquevocêmehonrecomsuacompanhia,equenãoimplicaoutraobrigaçãoaforaademeacompanhar?Denenhummodolhepeçoque,nessesdiasdaviagem—nãoseidequaleufemismomevalerparadizeristo—,compartilhemeu leito.Queridíssima Lucrecia: só aspiro a que você compartilhemeusonho.As suítesreservadas emNovaYork,Paris eVeneza têmquartos separados comchaves e ferrolhos, aos quais, se seus escrúpulos exigirem, posso acrescentar punhais,machados,revólvereseatéguarda-costas.Masvocêsabequenadadissoseránecessárioeque,nessasemana,obomModesto,omansoPluto,comomeapelidavamnobairro,serátãorespeitosocomvocêcomoanosatrás,emLima,quandotentavaconvencê-laasecasarcomigoemalmeatreviaatocarsuamãonoescurinhodoscinemas.

AtéoaeroportoKennedyouaténunca,Lucre,Modesto(Pluto)

DonRigoberto se sentiu atacado pela febre e pela tremedeira da terçã.O que

Lucreciaresponderia?Rechaçaria,indignada,acartadaqueleressuscitado?Sucumbiria

àfrívolatentação?Namadrugadaleitosa,pareceu-lhequeseuscadernosesperavamo

desenlacecomamesmaimpaciênciadeseuespíritoatormentado.

Imperativos do sedento viajante

Estaéumaordemdoteuescravo,amada.

Diantedoespelho,sobreumacamaouumsofáengalanadocomsedasdaÍndia

pintadas à mão ou batique indonésio de olhos circulares, te reclinarás de costas,

despida,eteuslongoscabelosnegrossoltarás.

Levantarásapernaesquerda recolhidaaté formarumângulo.Apoiarásacabeça

emteuombrodireito,entreabrirásoslábiose,amassandocomadestraumaponta

dolençol,baixarásaspálpebras,simulandodormir.Fantasiarásqueumrioamarelo

deasasdeborboletaeestrelasempódescedocéusobretietefende.

Quemés?

ADânae deGustavKlimt, naturalmente.Não importa quemo inspiroupara

pintaresseóleo(1907-1908),omestreteantecipou,teadivinhou,teviu,talcomo

viriasaomundoeserias,dooutro ladodooceano,meioséculodepois.Acreditava

recriarcomseuspincéisumadamadamitologiahelênicaeerastuqueeleprecriava,

belezafutura,esposaamante,madrastasensual.

Só tu, entre todas as mulheres, como nessa fantasia plástica, reúnes a pulcra

perfeição do anjo, sua inocência e sua pureza, a um corpo atrevidamente terreno.

Hoje,prescindoda rmezadeteusseiosedabeligerânciadeteusquadrisparaprestar

umahomenagemexclusivaàconsistênciadetuascoxas,templodecolunasondeeu

quiseraseratadoeaçoitadopormecomportarmal.

Tuinteiracelebrasmeussentidos.

Pele de veludo, saliva de aloé, delicada dama de cotovelos e joelhos

incorruptíveis, desperta, olha-te no espelho, diz a ti mesma: “Sou reverenciada e

admirada como nenhuma outra, sou lembrada com saudade e desejada como as

miragenslíquidasdosdesertospelosedentoviajante.”

Lucrecia-Dânae,Dânae-Lucrecia.

Estaéumasúplicadoteuamo,escrava.

A semana ideal

—MinhasecretárialigouparaaLufthansae,defato,suapassagemestálá,paga—

dissedonRigoberto.—Idaevolta.Naprimeiraclasse,éclaro.

— Fiz bem em lhe mostrar esta carta, amor? — exclamou dona Lucrecia,

assustadíssima.—Vocênãoseaborreceu,nãoé?Comoprometemosnãoesconder

nadaumdooutro,acheiquedevialhemostrar.

—Fezmuitobem,minha rainha—disse donRigoberto, beijando amãoda

esposa.—Queroquevocêvá.

—Querqueeuvá?—DonaLucreciasorriu,fezumaexpressãograveevoltoua

sorrir.—Sério?

—Imploro—insistiuele,oslábiosnosdedosdesuamulher.—Anãoserquea

ideianãolheagrade.Masporquenãoagradaria?Emborasejaumprogramadenovo-

rico e um tanto vulgar, está elaborado com espírito brincalhão e uma ironia

incomumentreengenheiros.Vocêvaisedivertir,meuamor.

—Nãoseioquedizer,Rigoberto—balbucioudonaLucrecia,lutandocontrao

rubor.—Éumagenerosidadedasuaparte,mas...

—Épormotivosegoístasqueeulhepeçoqueaceite—esclareceuseumarido.

—Você sabe,emminha loso aoegoísmoéumavirtude.Suaviagemseráuma

grandeexperiênciaparamim.

Pelos olhos e pela expressão de don Rigoberto, dona Lucrecia soube que ele

falavasério.Fez,portanto,aviagem,enooitavodiaretornouaLima.Noaeroporto

foiesperadapelomaridoeporFonchito,estecomumbuquêde oresenvoltasem

papel celofane e um cartão: “Bem-vinda à terrinha,madrasta.”Receberam-na com

muitas demonstrações de carinho e don Rigoberto, para ajudá-la a ocultar sua

perturbação, cobriu-a de perguntas sobre o tempo, as alfândegas, os horários

alterados, ojetlageocansaço,evitandotodaalusãoaoassuntonevrálgico.Rumoa

Barranco,deu-lheprecisacontadotrabalho,docolégiodeFonchito,dosdesjejuns,

almoços e jantares, durante a ausência dela.A casa brilhava comordem e limpeza

exageradas. Justiniana havia mandado lavar as cortininhas e renovar o adubo do

jardim,tarefasquesóeramrealizadasnofimdomês.

DonaLucrecia passou a tarde abrindomalas, conversando comos empregados

sobreassuntospráticoseatendendoatelefonemasdeamigasefamiliaresquequeriam

sabercomotinhasidosuaviagemdecomprasnatalinasaMiami(aversãoo cialde

sua escapadela). Não houve o menor mal-estar no ambiente quando tirou os

presentesparaomarido,oenteadoeJustiniana.DonRigobertoaprovouasgravatas

francesas,ascamisasitalianaseopulôvernova-iorquino,eemFonchitoassentaram

como luvas os jeans, a jaqueta de couro e o conjunto esportivo. Justiniana soltou

umaexclamaçãodeentusiasmoaoexperimentar,sobreoavental,ovestidoamarelo-

patinhoquelhecoube.

Depoisdo jantar, donRigoberto se fechounobanheiro edemoroumenosdo

quehabitualmente com suas abluções.Devolta, encontrouodormitório emuma

penumbrarasgadaporumtalhodeluzindiretaquesóiluminavaasduasgravurasde

Utamaro:acoplamentosincompatíveismasortodoxosdeumsócasal,eledotadode

uma verga em saca-rolhas e ela de um sexo liliputiano, entre quimonos in ados

comonuvensdetormenta,lanternasdepapel,esteiras,mesinhascomaporcelanado

chá e, ao longe, pontes sobre um rio sinuoso.Dona Lucrecia estava embaixo dos

lençóis, não despida, comprovou, ao deslizar para junto dela,mas comumanova

camisola— adquirida e usada durante a viagem?— que deixava às mãos dele a

liberdadenecessáriaparaalcançarseuscantinhosíntimos.Elaseajeitoudeladoeele

pôde lhepassar obraço embaixodosombros e senti-la dospés à cabeça.Beijou-a

semsufocá-la, commuita ternura,nosolhos,nas faces,demorando-seatéchegarà

boca.

—Nãome conte nada que não queira—mentiu-lhe no ouvido, com uma

coqueteriainfantilqueatiçavasuaimpaciência,enquantoseuslábioslhepercorriama

curvadaorelha.—Comoacharmelhor.Ou,sepreferir,nada.

—Voucontartudo—cochichoudonaLucrecia,buscando-lheaboca.—Não

foiparaissoquevocêmemandou?

—Também—assentiudonRigoberto,beijando-anopescoço,noscabelos,na

testa, insistindononariz,nas faces enoqueixo.—Você sedivertiu?Correu tudo

bem?

—Correubemou correumal, vaidependerdoque acontecer agora entrenós

dois—disseasenhoraLucreciadeumsófôlego,edonRigobertosentiuque,por

umsegundo,suamulher cavatensa.—Mediverti,sim.Desfrutei,sim.Mastive

medootempotodo.

—Dequeeumeaborrecesse?—DonRigobertobeijavaagoraosseios rmes,

milímetroamilímetro,eapontadesualínguabrincavacomosmamilos,sentindo

comoseendureciam.—Dequeeulhefizesseumacenadeciúme?

—Dequevocêsofresse—sussurroudonaLucrecia,abraçando-o.

“Começa a transpirar”, comprovou don Rigoberto. Sentia-se feliz acariciando

aquelecorpoacadainstantemaisativoeprecisourecorreràlucidezparacontrolara

vertigem que ameaçava dominá-lo. No ouvido de sua mulher, murmurou que a

amava,mais,muitomaisdoqueantesdaviagem.

Elacomeçouafalar,comintervalos,buscandoaspalavras—silênciosqueeram

álibis para sua confusão—,mas, pouco a pouco, estimulada pelas carícias e pelas

amorosas interrupções, foi ganhando con ança. Por m, don Rigoberto percebeu

que ela havia recuperado a desenvoltura e relatava tomando uma ngida distância

daquiloquecontava.Aderidaaocorpodele,apoiavaacabeçanoseuombro.Asmãos

respectivassemoviamdevezemquando,paratomarposseouaveriguaraexistência

deummembro,músculooupedaçodepeledoparceiro.

—Elehaviamudadomuito?

Tinhaseagringalhadonamaneiradevestiredefalar,poiscontinuamentedeixava

escaparemexpressõeseminglês.Mas,mesmogrisalhoemaisgordo,mantinhaaquela

caradePluto,compridaetristonha,atimidezeasinibiçõesdajuventude.

—Devetervistovocêchegarcomoquecaídadocéu.

—Ficou tão pálido! Parecia que ia desmaiar.Me esperava comumbuquê de

oresmaiordoque ele.A limusine eraumadaquelasprateadas, dos gângsteresde

filme.Combar,televisão,somestéreoe,aguenteesta,assentosempeledeleopardo.

—Pobresecologistas—entusiasmou-sedonRigoberto.

—Seiqueéumacafonice—desculpou-seModesto,enquantoochofer,afegão

altíssimouniformizadodegrená,arrumavaabagagemnoporta-malas.—Maseraa

maiscara.

—Écapazdezombardesimesmo—sentencioudonRigoberto.—Simpático.

—NaviagematéoPlaza,meelogiouumasduasvezes,coradoatéasorelhas—

prosseguiudonaLucrecia.—Queeucontinuavamuitobem,queestavaaindamais

bonitadoquequandoelequissecasarcomigo.

—E está— interrompeu donRigoberto, bebendo-lhe o alento.—Cada dia

mais,cadahoramais.

—Nemumasópalavrademaugosto,nemumasóinsinuaçãochocante—disse

ela.—Meagradeceutantoporeuter idoquemesenticomoaboasamaritanada

Bíblia.

—Sabeoqueeleiapensando,enquantolhefaziaessesgalanteios?

—Oquê?—donaLucreciaenroscouumapernanasdoseumarido.

—Seaverianuanessamesmatarde,noPlaza,ouseteriadeesperaratéanoite,

ouatéParis—ilustrou-adonRigoberto.

—Nãomeviunuanemnessa tardenemnessanoite.Anãoserquetenhame

espiadopelafechadura,enquantoeutomavabanhoemevestiaparaoMetropolitan.

Aquilodequartosseparadoseraverdade.OmeutinhavistaparaoCentralPark.

—Mas, pelomenos, deve ter segurado suamão na ópera, no restaurante—

queixou-se ele, decepcionado. — Com a ajudinha do champanhe, certamente

dançouderostocoladocomvocênoRegine’s.Ebeijouseupescoço,aorelhinha.

Nada disso.Não tentara segurar amão dela nem beijá-la naquela longa noite

durante a qual, no entanto, não economizara os oreios verbais, sempre a uma

respeitosa distância. Mostrara-se simpático, na verdade, zombando da própria

inexperiência(“Morrodevergonha,Lucre,mas,emseisanosdecasado,nãoenganei

minhamulhernemumasóvez”),econfessandoqueaquelaeraaprimeiraveznavida

emqueassistia aumarepresentaçãodeóperaoubotavaospésnoLeCirqueeno

Régine’s.

—AúnicacoisaqueseiéquedevopedirchampanheDonPérignon,cheirara

taçadevinhocomnarizdealérgicoepedirpratosescritosemfrancês.

Olhava-acomgratidãoincomensurável,canina.

— Para falar a verdade, eu vim de vaidosa,Modesto. Além da curiosidade, é

claro. Será possível que nesses dez anos, sem nos vermos, sem saber nada um do

outro,vocêtenhacontinuadoapaixonadopormim?

—Apaixonadonãoéapalavracerta—esclareceuele.—Apaixonadoeuestoué

porDorothy, a gringuinha com quemme casei, que émuito compreensiva eme

deixacantarnacama.

—Paraele,vocêeraalgomaissutil—explicoudonRigoberto.—Airrealidade,

ailusão,amulherdesuamemóriaeseusdesejos.Euqueroamá-laassim,comoele.

Espere,espere.

Despojou-adacamisolaminúsculaevoltouaacomodá-lademodoqueaspeles

de ambos tivessemmais pontos de contato. Refreando seu desejo, pediu-lhe que

continuasse.

—Retornamosaohotelassimquemeveiooprimeirobocejo.Medeuboa-noite

longedomeuquarto.Queeu sonhassecomosanjinhos.Comportou-se tãobem,

foitãocavalheiro,quenamanhãseguinteeulhefizumapequenacoqueteria.

Ela se apresentara para tomar o desjejum, no aposento intermediário entre os

dormitórios, descalça e com um robe de verão, muito curto, que deixava a

descobertosuaspernasecoxas.Modestoaesperavabarbeado,banhadoevestido.Sua

bocaseabriudeparempar.

—Dormiubem?—articulou,dequeixocaído,ajudando-aasesentardiantedos

sucosdefrutas,dastorradasegeleiasdodesjejum.—Possolhedizerquevocêestá

linda?

—Alto lá— atalhou donRigoberto.—Deixe que eume ajoelhe e beije as

pernasquedeslumbraramocachorroPluto.

Rumoaoaeroportoe,depois,noConcordedaAirFrance,enquantoalmoçavam,

Modestovoltouaadotaraatitudedeatentaadoraçãodoprimeirodia.Recordoua

Lucrecia,semmelodrama,comohaviadecididorenunciaràfaculdadedeengenharia,

quandoseconvenceudequeelanãosecasariacomele,epartirparaBoston,entregue

à própria sorte. O difícil começo naquela cidade de invernos frios e vitorianas

mansões grená, onde demorou três meses para conseguir seu primeiro trabalho

estável. Partiu o coração, mas não o lamentava. Havia obtido a indispensável

segurança, uma esposa com quem se entendia e, agora que ia iniciar outra etapa

voltandoàuniversidade,algodequesempresentirafalta,estavaconcretizandouma

fantasia, o jogo adulto no qual se refugiara durante todos aqueles anos: a semana

ideal, brincandode ser rico, emNovaYork, Paris eVeneza, comLucre. Já podia

morrertranquilo.

—Vocêvaimesmogastaraquartapartedesuapoupançanestaviagem?

—Eugastariaostrezentosmilquemecabem,poisosoutrossãodeDorothy—

assentiuele, tando-anosolhos.—Nãopela semanatoda.Sópor terpodidover

você,nahoradodesjejum,comessaspernas,essesbraçoseombrosàvista.Acoisa

maislindadomundo,Lucre.

—Imagineoqueelediria,sealémdissotivessevistoseuspeitoseorabinho—

beijou-adonRigoberto.—Euamovocê,amo.

—Nessemomento,decidi que, emParis, ele veria o resto.—DonaLucrecia

meioqueescapoudosbeijosdomarido.—Decidiquandoopilotoanunciouque

havíamosrompidoabarreiradosom.

—Eraomínimoquevocêpodia fazerporumsenhortãocorreto—aprovou

donRigoberto.

Mal se instalaram em seus respectivos dormitórios — a vista, das janelas de

Lucrecia, abrangia a escura coluna da PlaceVendôme perdendo-se nas alturas e as

rutilantesvitrinesdas joalheriaspróximas—,saíramparacaminhar.Modestohavia

memorizadoatrajetóriaecalculadootempo.PercorreramasTulherias,atravessaram

oSena edesceramatéSaint-Germainpelos cais damargemesquerda.Chegaramà

abadiameiahoraantesdoconcerto.Erauma tardepálidaemornadeumoutono

quejámatizaraoscastanheirose,devezemquando,oengenheirosedetinha,guiae

mapa nas mãos, para dar a Lucrecia uma indicação histórica, urbanística,

arquitetônica ou estética. Nas desconfortáveis cadeirinhas da igreja lotada para o

concerto, precisaram se sentar muito juntos. Lucrecia desfrutou da lúgubre

magni cência doRéquiem de Mozart. Depois, instalados em uma mesinha do

primeiropisodaLipp,felicitouModesto:

—NãopossoacreditarqueestasejasuaprimeiraviagemaParis.Vocêconhece

ruas,monumentoseendereçoscomosemorasseaqui.

—Meprepareiparaestaviagemcomoparaumexamede mdecurso,Lucre.

Consulteilivros,mapas,agências,interrogueiviajantes.Eunãocolecionoselos,nem

criocães,nemjogogolfe.Háanos,meuúnicohobbyéprepararestasemana.

—Eusempreestivenela?

—Maisumpassonocaminhodascoqueterias—observoudonRigoberto.—Semprevocêesóvocê—ruborizou-sePluto.—NovaYork,Paris,Veneza,

asóperas,osrestauranteseorestoeramosetting.Oimportante,ocentral,vocêeeu,

sozinhosnocenário.

Retornaram ao Ritz de táxi, fatigados e ligeiramente tocados pela taça de

champanhe, o vinho de Bourgogne e o conhaque com que haviam esperado,

acompanhado e digerido o chucrute. Ao se darem boa-noite, de pé na saleta que

separavaosdormitórios,semomenortitubeiodonaLucreciaanunciouaModesto:

—Vocêestátãobem-comportadoqueeutambémquerojogar.Voulhedarum

presente.

—Ah,é?—atrapalhou-sePluto.—Qual,Lucre?

—Meu corpo inteiro— cantarolou ela.—Quando eu chamar, entre. Para

olhar,esó.

NãoouviuoqueModestorespondia,mastevecertezadeque,napenumbrado

recinto, enquanto sua cara emudecida assentia, ele transbordava de felicidade. Sem

saber como faria aquilo, despiu-se, pendurou a roupa e, no banheiro, soltou os

cabelos (“Do jeitoqueeugosto,meuamor?”“Igualzinho,Rigoberto”).Voltouao

quarto,apagoutodasasluzes,excetoadecabeceira,emoveualâmpadaa mdeque

aluz,atenuadaporumacúpuladecetim,iluminasseoslençóisqueacamareirahavia

dispostoparaanoite.Deitou-sedecostas,curvou-se ligeiramente,emumapostura

lânguida,desinibida,eacomodouacabeçanotravesseiro.

—Quandoquiser.

“Fechouosolhosparanãooverentrar”,pensoudonRigoberto,enternecidocom

essedetalhepudico.Natonalidadeazulada,viamuitonitidamente,sobaperspectiva

dasilhuetadubitativaeansiantedoengenheiroqueacabavadetransporoumbral,o

corpodeformasque,semchegaraexcessosrubensianos,emulavamasabundâncias

virginaisdeMurillo,estendidodecostas,umjoelhoadiantado,cobrindoopúbis,o

outrooferecendo-se,assalientescurvasdosquadrisestabilizandoovolumedecarne

douradanocentrodacama.Emborao tivessecontemplado,estudado,acariciadoe

desfrutadotantasvezes,comessesolhosalheiosviu-opelaprimeiravez.Duranteum

bom tempo — a respiração alterada, o falo ereto —, admirou-o. Lendo seus

pensamentosesemqueumapalavrarompesseosilêncio,donaLucreciadevezem

quando se movia em câmera lenta, com o abandono de quem se crê a salvo de

miradas indiscretas, e mostrava ao respeitosoModesto, plantado a dois passos da

cama, seus ancos e seu dorso, seu traseiro e seus seios, as axilas depiladas e o

bosquezinhodopúbis.Por m,foiabrindoaspernas,revelandoointeriordascoxas

e ameia-luado sexo. “Napostura damodelo anônimadeL’origine dumonde , deGustaveCourbet(1866)”,buscoueencontroudonRigoberto,transidodeemoção

aocomprovarquealouçaniadoventre,arobustezdascoxaseomontedeVênusde

sua mulher coincidiammilimetricamente com a decapitada mulher daquele óleo,

príncipedesuapinacotecaprivada.Então,aeternidadeseevaporou:

—Estoucomsonoecreioquevocêtambém,Pluto.Éhoradedormir.

—Boanoite—respondeude imediatoaquelavoz,noaugedaventuraouda

agonia.Modestorecuou,tropeçando;segundosdepois,aportasefechou.

—Foicapazdeseconter,nãosejogouemcimadevocêcomoumaferafaminta

— exclamou don Rigoberto, encantado. — Você o manejava com o dedo

mindinho.

—Eu não conseguia acreditar— riu-se Lucrecia.—Mas essa docilidade dele

tambémerapartedojogo.

Namanhãseguinte,ummensageirolhetrouxeàcamaumbuquêderosascom

umcartão:“Olhosqueveem,coraçãoquesente,memóriaquerecordaeumcãode

desenhoanimadoquelheagradececomtodaaalma.”

—Eudesejo vocêdemais—desculpou-sedonRigoberto, tapando-lhe aboca

comamão.—Precisofazeramor.

—Imagine,então,anoitezinhaqueopobrePlutodeveterpassado.

—Opobre?—refletiudonRigoberto,depoisdoamor,enquantoconvalesciam,

fatigadoseditosos.—Pobreporquê?

—Ohomemmais feliz domundo, Lucre— a rmouModesto, nessa noite,

entre duas sessões destriptease, no aperto do Crazy Horse Saloon, rodeados de

japonesesealemães,depoisdebeberemagarrafadechampanhe.—Nemmesmoo

tremelétricoquePapaiNoelmetrouxequando zdezanossecomparacomoseu

presente.

Duranteodia, enquantopercorriamoLouvre, almoçavamemLaCloseriedes

Lilas,visitavamoCentrePompidououseperdiamnasruelasrestauradasdoMarais,

elenãofezamenoralusãoànoiteanterior.Continuavaagindocomocompanheiro

deviageminformado,devotadoeserviçal.

—Comcadacoisaquevocêmeconta,eupensomelhordele—comentoudon

Rigoberto.

—Omesmomeacontecia—reconheceudonaLucrecia.—Porisso,nessedia,

deimaisumpassinho,parapremiá-lo.NoMaxim’s,ele sentiumeu joelhonoseu

durante todo o jantar. E, quando dançamos, meus peitos. E, no Crazy Horse,

minhaspernas.

—Quesorteeletem!—exclamoudonRigoberto.—Irconhecendovocêcomo

numanovela,porepisódios,pedacinhoapedacinho.Ogatoeorato,emsuma.Um

jogoquenãodeixavadeserperigoso.

—Não,seagentejogacomcavalheiroscomovocê—coqueteoudonaLucrecia.

—Estoucontenteporteraceitadoseuconvite,Pluto.

TinhamvoltadoaoRitz,alegresesonolentos.Nasaletadasuíte,despediam-se.

— Espere, Modesto — improvisou ela, pestanejando. — Surpresa, surpresa.

Fecheosolhinhos.

Pluto obedeceu no ato, transformado pela expectativa. Dona Lucrecia se

aproximou,grudou-seaeleeobeijou,primeirosuper cialmente,notandoqueele

demorava em responder à boca que lhe roçava os lábios, e em replicar logo às

solicitaçõesdesualíngua.Quandoeleofez,elasentiuquenessebeijooengenheiroia

lhe entregando seu velho amor, sua adoração, sua fantasia, sua saúde e (se é que a

tinha)suaalma.Quandoeleenlaçousuacintura,comcautela,dispostoasoltá-laao

menorrechaço,donaLucrecialhepermitiuqueaabraçasse.

—Possoabrirosolhos?

—Pode.

“E então ele a tou, não com a mirada fria do perfeito libertino, de Sade”,

pensoudonRigoberto,“mascomopuro,ferventeeapaixonadoolhardomísticono

momentodaascensãoedavisão”.

—Estavamuitoexcitado?—deixouescapar,esearrependeu.—Quepergunta

boba.Desculpe,Lucrecia.

—Emboraestivesse,nãotentoumereter.Àprimeiraindicação,afastou-se.

—Você devia ter ido para a cama com ele nessa noite— admoestou-a don

Rigoberto.— Estava abusando. Ou, talvez, não.Talvez tenha feito o que devia.

Sim,sim,claro.Olento,oformal,oritual,oteatral,issoéoerótico.Eraumaespera

sábia.Aprecipitação, ao contrário,nos aproximado animal.Sabiaqueoburro,o

macaco,oporcoeocoelhoejaculamemdozesegundos,nomáximo?

—Masosapopodecopularquarentadiasequarentanoites,semparar.Liisso

emumlivrodeJeanRostand:Damoscaaohomem.—Que inveja— admirou-se don Rigoberto.— Você é cheia de sabedoria,

Lucrecia.

— São as palavras de Modesto — desconcertou-o sua mulher, fazendo-o

retrocederaumOrient-Expressqueperfuravaanoiteeuropeia,rumoaVeneza.—

Nodiaseguinte,emnossocamarotebelleépoque.EraoquediziatambémobuquêqueaesperavanoHotelCipriani,naensolarada

Giudecca:“ParaLucrecia,belanavidaesábianoamor.”

—Espere,espere—devolveu-aaostrilhosdonRigoberto.—Compartilharam

essecamarote,notrem?

—Umcomduascamas.Eunoaltoeeleembaixo.

—Ouseja,vocês...

—Tivemosdenosdespirumacimadooutro, literalmente—completouela.

—Nosvimosemtrajesmenores,emboranapenumbra,poisapagueitodasasluzes,

excetoadecabeceira.

— Trajes menores é um conceito geral e abstrato — abespinhou-se don

Rigoberto.—Querodetalhes.

Dona Lucrecia os deu. Na hora de se despir— o anacrônico Orient-Express

cruzava uns bosques alemães ou austríacos e, de vez em quando, uma aldeia—,

Modesto lhe perguntou se queria que ele saísse. “Não é preciso, nesta penumbra

parecemos sombras”, respondeu dona Lucrecia. O engenheiro se sentou no leito

inferior,encolhendo-seomáximopossívelparalhedeixarmaisespaço.Elasedespiu

semforçarseusmovimentosnemestilizá-los,girandonolugaraosedespojardecada

peça: o vestido, a anágua, o sutiã, as meias, a calcinha. O resplendor da luz de

cabeceira, uma luminariazinha em forma de cogumelo com desenhos lanceolados,

acariciouseupescoço,ombro,seios,ventre,nádegas,coxas,joelhos,pés.Erguendoos

braços,elapassoupelacabeçaumacamisoladesedachinesa,comdragões.

—Voume sentar com as pernas penduradas, enquanto escovo os cabelos—

informou,fazendooquedizia.—Podebeijá-las,selhedervontade.Atéosjoelhos.

Era o suplício de Tântalo? Era o jardim das delícias? Don Rigoberto havia

deslizadoparaopédacama,e,adivinhando-o,donaLucreciasesentounabordapara

que, como Pluto no Orient-Express, seu marido lhe beijasse o peito dos pés,

aspirasse a fragrância de cremes e colônias que lhe refrescavam os tornozelos,

mordiscasseosdedosdosseuspéselambesseostépidosvãosqueosseparavam.

—Euamoeadmirovocê—dissedonRigoberto.

—Euamoeadmirovocê—dissePluto.

—E,agora,dormir—ordenoudonaLucrecia.

Chegaram a Veneza em uma manhã impressionista, sol poderoso e céu azul-

marinho, e, enquanto a lancha os levava ao Cipriani entre crespas ondinhas,

Modesto,Michelinnamão,deuaLucreciaexplicaçõessumáriassobreospaláciose

igrejasdoGrandeCanal.

—Estoucomciúme,meuamor—interrompeu-adonRigoberto.

—Seforasério,agenteapagatudo,coração—propôsdonaLucrecia.

—Demaneiranenhuma—recuouele.—Osvalentesmorremdebotas,como

JohnWayne.

Da sacada doCipriani, acima das árvores do jardim, divisavam-se, de fato, as

torresdeSãoMarcoseospaláciosdamargem.Saíram,comagôndolaeoguiaque

os esperavam. Foi uma vertigem de canais e pontes, águas verdosas e bandos de

gaivotasque levantavamvoo à suapassagem, e escuras igrejasnasquais erapreciso

forçar avistaparaperceberos atributosdasdivindades e santidades alipenduradas.

ViramTizianoseVeroneses,BelliniseDelPiombos,oscavalosdeSãoMarcos,os

mosaicosdacatedral,ederamraquíticosgrãozinhosdemilhoaosgordospombosda

praça. Ao meio-dia, tiraram a inevitável fotogra a em uma mesa do Florian,

enquantodegustavamapizzettadepraxe.Àtarde,continuaramopercurso,ouvindo

nomes,datasehistóriasquemalescutavam,entretidospelaarrulhantevozdoguiada

agência.Às sete emeia,banhados e trocados, tomaramoBellinino salãode arcos

mouriscos e almofadas árabes doDanieli, e, à hora exata—nove—, estavamno

Harry’sBar.Ali,viramchegaràmesacontígua(pareciapartedoprograma)adivina

CatherineDeneuve.Plutodisseoquedeviadizer:“Achovocêmaisbonita,Lucre.”

—Edepois?—apressou-adonRigoberto.

AntesdetomarovaporzinhoparaaGiudecca,deramumpasseio,donaLucrecia

debraçodadocomModesto,porruelassemidesertas.Chegaramaohoteljádepois

dameia-noite.DonaLucreciabocejava.

—Edepois?—impacientou-sedonRigoberto.

—Quandoestouassimtãoesgotadapelopasseioeascoisasbonitasquevi,não

consigo pregar o olho— lamentou-se dona Lucrecia. — Felizmente, tenho um

remédioquenuncafalha.

—Qual?—perguntouModesto.

—Queremédio?—ecooudonRigoberto.

—Uma jacuzzi, alternando a água fria e a quente— explicou donaLucrecia,

dirigindo-separasuaalcova.Antesdedesaparecerládentro,apontouaoengenheiroo

banheiroenormeeluminoso,deladrilhosbrancoseparedesazulejadas.—Vocême

encheriaajacuzzi,enquantoeuvistooroupão?

DonRigobertoseremexeunolugarcomaansiedadedeuminsone:edepois?Ela

foiatéseuquarto,despiu-sesempressa,dobrandoaroupapeçaporpeça,comose

dispusesse da eternidade. Envolta em um roupão felpudo e uma toalhinha como

turbante,retornou.Abanheiracircularcrepitavacomosespasmosdajacuzzi.

—Jogueiunssais—sondouModesto,timidamente.—Fizbemoumal?

—Estáperfeita—disseela,experimentandoaáguacomapontadopé.

Deixou cair o roupãode felpo amarelo aos seuspés e,mantendo a toalhaque

servia de turbante, entrou e se deitou na jacuzzi. Apoiou a cabeça em um

travesseirinhoqueoengenheiroseapressoualheestender.Suspirou,agradecida.

—Devofazeralgomais?—donRigobertoouviuModestoperguntar,comum

fiodevoz.—Irembora?Ficar?

—Está uma delícia, que delícia estasmassagens de água fresquinha.—Dona

Lucreciaestiravapernasebraços,deleitando-se.—Daquiapouco,acrescentoamais

quente.Edepois,paraacama,novinhaemfolha.

— Você o cozinhava em fogo brando— aprovou don Rigoberto, com um

rugido.

—Fique,sequiser,Pluto—disseelapor m,comaexpressãoconcentradade

quemestádesfrutandoin nitamenteascaríciasdaáguaindoevindopeloseucorpo.

—Abanheiraéenorme,temlugardesobra.Porquenãotomabanhocomigo?

OsouvidosdedonRigobertoregistraramoestranhograsnidodemocho?uivo

de lobo? pio de pássaro? que respondeu ao convite de sua mulher. E, segundos

depois,eleviuoengenheironu,submergindonabanheira.Ocorpodele,àbeirados

cinquenta, de obesidade freada a tempo pelosaerobics e ojogging praticados até olimiardoinfarto,mantinha-seamilímetrosdodesuamulher.

—Oquemaisposso fazer?—ouviu-operguntar, e sentiuque sua admiração

porelecresciaaoritmodoseuciúme.—Nãoquerofazernadaquevocênãoqueira.

Nãotomareinenhumainiciativa.Tomevocê,todas.Nestemomento,souosermais

felizeomaisdesgraçadodaCriação,Lucre.

—Podemetocar—sussurrouela,semabrirosolhos,emritmodebolero.—

Meacariciar,mebeijar,ocorpo,orosto.Oscabelos,não,porque,sesemolharem,

amanhã você vai se envergonhar do meu penteado, Pluto. Não vê que, em seu

programa,vocênãodeixounemumtempinhovagoparaocabeleireiro?

— Eu também sou o homem mais feliz do mundo — murmurou don

Rigoberto.—Eomaisdesgraçado.

DonaLucreciaabriuosolhos:

—Não queassimtãoassustado.Nãopodemospermanecermuito tempona

água.

Paravê-losmelhor,donRigobertoentrecerrouaspálpebras.Ouviaomonótono

chapinhardajacuzziesentiaascócegas,osgolpesdaágua,achuvadegotinhasque

salpicava os ladrilhos, e via Pluto, extremando as precauções para não se mostrar

rude,enquantosededicavaàquelecorpomacioquesedeixavalevar,tocar,acariciar,

facilitando com seusmovimentos o acesso dasmãos e dos lábios dele a todos os

cantinhos,massemresponderacaríciasnemabeijos,emestadodepassivodeleite.

Sentiaafebrequeimandoapeledoengenheiro.

—Nãovaibeijá-lo,Lucrecia?Nãovaiabraçá-lo,nemsequerumavez?

— Ainda não— retrucou suamulher.— Eu também tinhameu programa,

muitobemestudado.Afinal,elenãoestavafeliz?

—Nunca o estive tanto— disseModesto, a cabeça emergindo do fundo da

banheira,entreaspernasdeLucrecia,antesdemergulhardenovo.—Queriacantar

aosgritos,Lucre.

— Ele diz exatamente tudo o que eu sinto — interveio don Rigoberto,

permitindo-se um gracejo: — Não havia perigo de uma pneumonia, com esses

esforçostalassoeróticos?

Riu, e na mesma hora se arrependeu, recordando que o humor e o prazer se

repeliamcomoáguaeóleo.“Perdãoporlhecortarapalavra”,desculpou-se.Masera

tarde. Dona Lucrecia havia começado a bocejar de tal maneira que o atarefado

engenheiro,fazendodastripascoração, couquieto.Dejoelhos,todopingando,os

cabelosemcoroadefrade,simulavaresignação.

—Vocêjáestácomsono,Lucre.

—Mebateuocansaçododiainteiro.Nãoaguentomais.

Comumsaltoligeiro,saiudabanheira,embrulhando-senoroupão.Daportado

seuquarto,deuboa-noitecomumafrasequefezpularocoraçãodoseumarido:

—Amanhãseráoutrodia,Pluto.

—Oúltimo,Lucre.

—E,também,aúltimanoite—frisouela,jogando-lheumbeijo.

Começaramamanhãdosábadocommeiahoradeatraso,masarecuperaramna

visita aMurano, onde, sobumcalor infernal, artesãos emcamisetasdepresidiário

sopravamovidrosegundoocostumetradicionaletorneavamobjetosdecorativosou

deusodoméstico.Oengenheiro insistiuemqueLucrecia,queresistiaa fazermais

compras, aceitasse três bichinhos transparentes: um esquilo, uma cegonha e um

hipopótamo.DevoltaaVeneza,oguiaosilustrousobreduasvillasdePalladio.Emvezdealmoçar,tomaramchácombiscoitosnoQuadri,desfrutandoumsangrento

crepúsculoquefazia amejaremtelhados,pontes,águasecampanários,echegarama

SanGiorgio,paraoconcertobarroco,atempodepercorrerailhotaecontemplara

lagunaeacidadesobperspectivasdiferentes.

—Oúltimodiaésempretriste—comentoudonaLucrecia.—Istoterminará

amanhã,parasempre.

—Estavamdemãosdadas?—quissaberdonRigoberto.

—Tambémestivemosdurantetodooconcerto—confessousuamulher.

—Oengenheirocaiunachoradeira?

—Estavaabatido.Meapertavaamãoeseusolhinhosbrilhavam.

“Degratidãoedeesperança”,pensoudonRigoberto.Odiminutivo“olhinhos”

repercutiu em suas terminações nervosas. Decidiu que, a partir desse momento,

calaria.EnquantodonaLucreciaePlutojantavamnoDanieli,contemplandoasluzes

deVeneza,respeitouamelancoliadeles,nãointerrompeuseudiálogoconvencional,e

sofreu estoicamente ao perceber, no decorrer do jantar, que agora não apenas

Modestomultiplicavaasatenções.Lucrecialheofereciatorradinhasdepoisdeuntá-

las com manteiga, dava-lhe para provar em seu próprio garfo bocados dos seus

rigatonie,comprazida,relaxavasuamãoquandoelealevavaàbocaparaalipousaros

lábios,umaveznapalma,outranodorso,outranosdedoseemcadaumadasunhas.

Comocoraçãoapertadoeumaincipienteereção,donRigobertoesperavaaquiloque

detodomodoteriadeocorrer.

E, de fato,mal entraram na suíte doCipriani, dona Lucrecia pegouModesto

pelo braço, fez comque ele a enlaçasse, aproximouos lábios e, boca contra boca,

línguacontralíngua,murmurou:

—Comodespedida,passaremosanoitejuntos.Sereicomvocêtãocomplacente,

tãoterna,tãoamorosacomosófuicommeumarido.

—Vocêdisseisso?—engoliuestricninaemeldonRigoberto.

—Fizmal?—alarmou-sesuamulher.—Deviatermentidoparaele?

—Fezbem—latiudonRigoberto.—Meuamor.

Em um estado ambíguo, no qual a excitação desmentia o ciúme e ambos se

retroalimentavam, viu-os despir-se, admirou a desenvoltura com que sua esposa o

faziaecurtiuabisonhicedaqueleditosomortalembaraçadopelafelicidadeque,nessa

últimanoite,recompensavasuatimidezesuaobediência.Elaiasersua,eleiaamá-la:

as mãos não acertavam em desabotoar a camisa, travava-se o fecho da calça, ele

tropeçouaotirarossapatos,equando,exorbitado,iaencarapitar-sesobreacamaem

penumbra, onde o esperava, em lânguida postura— “Amaja desnuda deGoya”,

pensou don Rigoberto, “só que com as coxas mais abertas” —, aquele corpo

magní co,bateuotornozelonabordadoleitoegritou“Aiaiai!”.DonRigobertose

divertiuaoescutarahilaridadequeoacidenteprovocouemLucrecia.Modesto ria

também,ajoelhadonacama:“Aemoção,Lucre,aemoção.”

Asbrasasdoseuprazerseapagaramquando,sufocadooriso,eleviusuamulher

abandonaraindiferençadeestátuacomquenodiaanteriorhaviarecebidoascarícias

do engenheiro e tomar a iniciativa. Abraçava-o, obrigava-o a deitar-se junto dela,

sobre ela, embaixodela, enredava suaspernasnasdele,buscava-lhe aboca,metia a

língua ali, e — “ai, ai”, rebelou-se don Rigoberto — agachava-se com amorosa

disposição, pescava entre seus a lados dedos o sobressaltadomembro e depois de

passá-lo no anco e na testa levava-o aos lábios e o beijava antes de fazê-lo

desaparecer em suaboca.Então, a plenos pulmões, ricocheteandona cama fofa, o

engenheirocomeçouacantar—arugir,auivar—TornaaSurriento.— Começou a cantarTorna a Surriento?— endireitou-se violentamente don

Rigoberto.—Nesseinstante?

—Istomesmo—DonaLucreciavoltouasoltarumagargalhada,aconter-seea

pedir perdão. — Você me deixa pasma, Pluto. Canta porque está gostando ou

porquenãoestá?

—Cantoparagostar—explicouele,trêmuloecarmesim,entrefífiasearpejos.

—Querqueeupare?

—Quero que continue, Lucre— implorouModesto, eufórico.— Ria, não

importa.Paraqueminha felicidade seja completa, eu canto.Tampeosouvidos se

issoadistraiouafazrir.Mas,peloquevocêmaisama,nãopare.

— E continuou cantando? — exclamou, ébrio, louco de satisfação, don

Rigoberto.

— Sem parar um segundo — a rmou dona Lucrecia, entre espasmos. —

Enquantoeuobeijava,mesentavaemcimadeleeeleemcimademim,enquanto

fazíamosoamorortodoxoeoheterodoxo.Cantava,tinhadecantar.Porque,senão

cantasse,fiasco.

—SempreTornaaSurriento?—regozijou-sedonRigoberto,nodoceprazerda

vingança.

—Qualquer canção daminha juventude— trauteou o engenheiro, saltando,

comtodaaforçadosseuspulmões,daItáliaaoMéxico.—Voyacantarlesuncorridomuymentadooo...2

—Umpot-pourridecafonicesdosanoscinquenta—especi coudonaLucrecia.

—Osolemio,Caminito,JuanCharrasqueado,Alláenelranchogrande,eatéMadrid,deAgustínLara.Ai,queengraçado!

—E,semessaspieguicesmusicais, asco?—pediacon rmaçãodonRigoberto,

hóspededosétimocéu.—Éomelhordanoite,meuamor.

—Omelhorvocêaindanãoouviu,omelhorfoio nal,omáximodoridículo

— limpava as lágrimas dona Lucrecia. — Os vizinhos começaram a bater nas

paredes, ligaram da recepção, que baixássemos a tevê, o toca-discos, ninguém

conseguiadormirnohotel.

— Ou seja, nem você nem ele devem ter chegado a... — insinuou don

Rigoberto,comdébilesperança.

—Eu,duasvezes—devolveu-oàrealidadedonaLucrecia.—Eele,pelomenos

uma, tenho certeza. Quando estava bem colocado para a segunda, armou-se o

alvoroço e sua inspiração sumiu.Tudo acabou em risos. Que noitezinha...Tipo

“Acreditesequiser”.

— Agora, você já sabe meu segredo também— disseModesto, depois que,

acalmadososvizinhosearecepção,extintasasrisadas,aplacadososímpetos,osdois

passaramaconversar,envoltosnosbrancosroupõesdebanhodoCipriani.—Você

se importa senão falarmosdisto?Comodeve imaginar,medávergonha...En m,

querolhedizer,maisumavez,quenuncaesquecereiestasemaninha,Lucre.

—Eutambémnão,Pluto.Vourecordá-lasempre.Enãosópeloconcerto,juro.

Dormiramcomomarmotas,comaconsciênciadodevercumprido,echegaram

ao embarcadouro a tempo de tomar o vaporzinho para o aeroporto. A Alitália

tambémseesmeroue saíramsematraso,demodoquealcançaramoConcordede

ParisparaNovaYork.Alisedespediram,conscientesdequenãovoltariamasever.

— Me diga que foi uma semana horrível, que você a odiou — gemeu,

pressuroso, don Rigoberto, segurando sua mulher pela cintura e encarapitando-a

sobreele.—Não,não,Lucrecia?

—Porquevocênãoexperimentacantaralgumacoisa,aosberros?—sugeriuela,

comavozaveludadadosmelhoresencontrosnoturnos.—Algomeloso,amor.Laordelacanela,Fumandoespero,Brasil,terradomeucoração.Sóparaagenteveroqueacontece,Rigoberto.

1Pãozinhodoceefofo,espéciedesonho,típicododistritohomônimo.(N.daT.)

2“Voucantar-lhesumcorridomuitofamosooo...”.Éoprimeiroversodacanção JuanCharrasqueado(“JuanNavalhado”,“JuandaCicatriznoRosto”),mencionadaadiante.(N.daT.)

III.

O jogo dos quadrosIII - O jogo dos quadros

—Que engraçado, madrasta— disse Fonchito.— Suas meias verde-escuras são

iguaizinhasàsdeumamodelodeEgonSchiele.

AsenhoraLucreciaolhouasgrossasmeiasdelãqueagasalhavamsuaspernasaté

acimadosjoelhos.

—SãoótimasparaaumidadedeLima—disse,apalpando-as.—Graçasaelas,

mantenhoospésquentinhos.

—Nureclinadocommeiasverdes—recordouomenino.—Umdosquadros

maisfamososdele.Querver?

—Bom,podemostrar.

EnquantoFonchito se apressava a abrir suamochila, que, como sempre, havia

atiradono tapeteda salade jantar, a senhoraLucrecia sentiuodifusodesassossego

que o menino costumava lhe transmitir com aqueles rompantes que sempre

pareciamocultar,sobumaaparênciainofensiva,algumperigo.

— Que coincidência, madrasta — dizia Fonchito, folheando o livro de

reproduçõesdeSchielequeacabavadetirardamochila.—Eumepareçocomelee

vocêseparececomsuasmodelos.Emmuitascoisas.

—Emquê,porexemplo?

— Nessas meias verdes, pretas ou marrons que usa. E também na manta

quadriculadadesuacama.

—Caramba,queobservador.

—E,porúltimo,namajestade—acrescentouFonchito, sem levantar a vista,

concentradonabuscadoNureclinadocommeiasverdes.DonaLucrecianãosoubese

devia riroucaçoar.Ele sedavacontado rebuscadogalanteio,oueste lhe saírapor

acaso?—Opapainãodiziaquevocêtemumagrandemajestade?Que,façaoque

fizer,nadaemvocêévulgar?EusóentendioqueissoqueriadizergraçasaSchiele.As

modelos dele levantam as saias, mostram tudo, se apresentam em posturas

estranhíssimas,masnuncaparecemvulgares.Sempre,umasrainhas.Porquê?Porque

têmmajestade.Comovocê,madrasta.

Confusa, lisonjeada, irritada,alarmada,donaLucreciaqueriaenãoqueriabotar

umpontofinalnessaexplicação.Maisumavez,sentia-seinsegura.

—Vocêdizcadacoisa,Fonchito...

—Achei!—exclamouomenino,estendendo-lheolivro.—Vêoqueeudigo?

Não é umapose que, emqualquer outra, pareceria feia?Masnela, não,madrasta.

Poisentão?Termajestadeéisso.

—Deixe ver.—A senhoraLucrecia pegou o livro e, depois de examinar um

bom tempooNureclinadocommeiasverdes, assentiu:—Certo,acoréamesma

destasqueestouusando.

—Nãooachalindo?

—Sim,émuitobonito.—Fechouolivroeodevolveucompresteza.Denovo,

agoniou-aaideiadequeperdiaainiciativa,dequeomeninocomeçavaaderrotá-la.

Mas quebatalha era aquela?Encontrouos olhos deAlfonso: brilhavam comuma

luzinhaequívoca,eemsuacaramarotaseesboçavaumsorriso.

—Possolhepedirumfavorenorme?Omaiordomundo?Vocêfaria?

“Vaipedirqueeutirearoupa”,imaginouela,aterrorizada.“Dou-lheumtabefee

nãoovejomais.”OdiouFonchitoeseodiou.

—Quefavor?—murmurou,tentandoevitarqueseusorrisofossemacabro.

— Fique como esta senhora doNu reclinado com meias verdes — entoou a

vozinhamelíflua.—Sóumtempinho,madrasta!

—Comoassim?

—Claroquesemsedespir—tranquilizou-aomenino,movendoolhos,mãos,

empinandoonariz.—Nestapose.Morrodevontade.Mefariaestegrande,grande

favor?Nãosejamá,madrasta.

—Nãosefaçatantoderogada,asenhorasabedesobraquevaigostar—disse

Justiniana,aparecendoeexibindoseuexcelentehumordecadadia.—Amanhãéo

aniversáriodeFonchito,entãoquesejaopresentedele.

— Bravo, Justita! — bateu palmas o menino. — Nós dois juntos vamos

convencê-la.Medáessepresente,madrasta?Masossapatos,temquetirar,sim.

—Confessequequerverospésdapatroaporquesabequesãomuitobonitos—

atiçou-oJustiniana,maistemeráriadoqueemoutrastardes,enquantodispunhana

mesinhaaCoca-Colaeocopodeáguamineralquelhehaviampedido.

— Ela tem tudo bonito — a rmou o menino, com candura. — Vamos,

madrasta, não tenha vergonha da gente. Se quiser, para não se sentir mal, depois

JustitaeeupodemosbrincardeimitaroutroquadrodeEgonSchiele.

Semsaberoquereplicar,quegracejofazer,comosimularumaborrecimentoque

nãosentia,asenhoraLucreciaseviu,derepente,sorrindo,assentindo,murmurando

“Seráseupresentedeaniversário,seucaprichosinho”,descalçando-se,inclinando-see

estendendo-senocompridosofá.ProcurouimitarareproduçãoqueFonchitohavia

exibidoe lheapontava,comoumdiretor teatral instruindoaestreladoespetáculo.

Na presença de Justiniana, sentia-se protegida, ainda que agora tivesse dado nesta

loucaavenetade cardoladodeFonchito.Aomesmotempo,ofatodeelaestarali,

como testemunha, acrescentava certo tempero à insólita situação.Tentou levar na

chacota o que fazia, “É assim?” “Não, o ombromais para cima, o pescoço como

galinhinha,acabeçabemretinha”,enquantoseapoiavanoscotovelos,alongavauma

pernae exionavaaoutra,decalcandoaposedamodelo.OsolhosdeJustinianaede

Fonchito passavam dela à estampa, da estampa a ela, sorridentes os da moça,

profundamenteconcentradososdomenino.“Esteéojogomaissériodomundo”,

ocorreuadonaLucrecia.

—Estáigualzinha,patroa.

—Aindanão—cortouFonchito.—Precisasubirmaisojoelho,madrasta.Eu

ajudo.

Antesqueelativessetempodenegarapermissão,omeninoentregouo livroa

Justiniana, aproximou-se do sofá e colocou-lhe as duasmãos embaixo do joelho,

onde terminavaameiaverde-escura edespontavaa coxa.Comsuavidade, atentoà

reprodução,ergueu-lheapernaeamoveu.Ocontatodosdelgadosdedinhosemsua

curvadesnudaperturboudonaLucrecia.Ametadeinferiordoseucorpocomeçoua

tremer. Sentia umapalpitação, uma vertigem, algo avassalador que a fazia sofrer e

gozar. E, nisto, descobriu o olhar de Justiniana. As pupilas acesas daquela carinha

morenaeramloquazes.“Elasabecomoeuestou”,pensou,envergonhada.Ogritodo

meninoveiosalvá-la:

—Agora sim,madrasta!Não está exata, Justita? Fique assimum segundinho,

porfavor.

Do tapete, sentado com as pernas cruzadas como um oriental, ele a tava

arrebatado,abocaentreaberta,osolhosumpardeluascheias,emêxtase.Asenhora

Lucrecia deixou passarem cinco, dez, quinze segundos, quietinha, contagiada pela

solenidade com que o menino encarava o jogo. Algo acontecia. A suspensão do

tempo?Opressentimentodoabsoluto?Osegredodaperfeiçãoartística?Assaltou-a

umasuspeita:“ÉigualzinhoaRigoberto.Herdousuafantasiatortuosa,suasmanias,

seupoderdesedução.Mas,porsorte,nãosuacaradebarnabé,nemsuasorelhasde

Dumbo,nemseunarizdecenoura.”Custou-lhetrabalhoromperosortilégio:

—Acabou.Agoraéavezdevocês.

Adesilusãoseapoderoudoarcanjo.Mas,deimediato,elereagiu:

—Temrazão.Jáchega.

—Mãosàobra—instigou-osdonaLucrecia.—Quequadrovãorepresentar?

Euescolho.Medêolivro,Justiniana.

—Aí só temdois quadrospara Justita e paramim—preveniuFonchito.—

Mãe e lho e oNude homem emulher reclinados, pés com cabeça.Os outros são

homens sozinhos, mulheres sozinhas ou casais de mulheres. O que você preferir,

madrasta.

—Eta,sabe-tudo!—exclamouJustiniana,estupefata.

DonaLucreciainspecionouasimagense,defato,asmencionadasporAlfonsito

eram as únicas imitáveis. Descartou a última: que verossimilhança podia ter um

meninoimberbe ngindoseraquelebarbudoruivo,identi cadopeloautordolivro

comooartistaFélixAlbrechtHarta,queaobservava,dafotodoóleo,comexpressão

boba, indiferente ao nu sem rosto, de meias vermelhas, a rastejar como serpente

amorosa sob sua perna exionada? EmMãe e lho havia pelo menos uma

desproporçãodeidadesemelhanteàdeAlfonsoeJustiniana.

— Danada de pose, a desta mamãe e deste lhinho — ngiu se alarmar a

empregada.—Suponhoque vocênão vaimepedir para tirar o vestido, seu sem-

vergonha.

—Pelomenos,ponhaumasmeiaspretas—retrucouomenino,sembrincar.—

Eusóvoutirarossapatoseacamisa.

Nãohaviamaldadeemsuavoz,nemsombrademalícia.DonaLucreciaaguçava

oouvido,perscrutavacomdescon ançaacarinhaprecoce:não,nemsombra.Eraum

ator consumado.Ouummeninopuro e elauma idiota, umavelha assanhada?O

que Justiniana tinha?Na convivência de tantos anos, não recordava tê-la visto tão

agitada.

—Quemeiaspretaseuvoucalçar?Poracasotenhoalguma?

—Minhamadrastalheempresta.

Emvezdeinterromperabrincadeira,comoarazãoaconselhava,donaLucreciase

ouviudizer:“Claro.”Foiaoseuquartoevoltoucomasmeiaspretasdelãqueusava

nasnoitesmaisfrias.Omeninoestavadespindoacamisa.Eradelgado,harmonioso,

entrebrancoedourado.DonaLucreciaviu-lheotorso,osbraçosesbeltos,osombros

de ossinhos salientes, e recordou.Tudo aquilo havia acontecido, então? Justiniana

tinhaparadoderireevitavaolhá-la.Talveztambémestivesseembrasas.

—Calce,Justita—apressou-aomenino.—Querqueeuajude?

—Não,muitoobrigada.

Também a moça havia perdido a naturalidade e a con ança que raramente a

abandonavam. Com dedos atrapalhados, calçou as meias torcidas. Enquanto as

alisavaepuxava,dobrava-se,tentandoocultaraspernas.Ficoucabisbaixa,notapete,

juntoaomenino,movendoasmãosàtoa.

— Vamos começar — disse Alfonso. — Você de bruços, a cabeça sobre os

braços, cruzados como um travesseiro. Eu tenho queme grudar à sua direita.Os

joelhosemsuaperna,minhacabeçanoseuflanco.Sóque,comosoumaiorqueodo

quadro,chegoaoseuombro.Estamosumpoucoparecidos,madrasta?

Comolivronamão,tomadaporumescrúpulodeperfeição,donaLucreciase

inclinousobreeles.Amãozinhaesquerdadeviaaparecerabaixodoombrodireitode

Justiniana,acarinhamaisparacá.“Apoieamãoesquerdanascostasdela,Foncho,

descansandoali.Sim,agoraseparecembastante.”

Sentou-seno sofá e os contemplou, semvê-los, absorta em seuspensamentos,

assombrada com o que se passava. Fonchito era Rigoberto. Revisto e ampliado.

Ampliado e revisto. Sentiu-se ausente, mudada. Eles permaneciam quietos,

brincando com toda a seriedade. Ninguém sorria. O olho único que a postura

deixava a Justiniana já não refulgia com picardia, empoçara-se nele umamodorra

lânguida.Estariaexcitada,também?Sim,sim,igualaela,maisqueela.SóFonchito

—osolhosfechadosparaseassemelharmaiscomomeninosemrostodeSchiele—

parecia jogar o jogo sem reservas nem exageros. A atmosfera estava adensada, os

ruídos do Olivar extintos, o tempo escoado, e a casinha, San Isidro, o mundo,

evaporados.

—Temos tempo para mais um— disse Fonchito a nal, levantando-se. —

Agora, vocês duas. O que acham? Só pode ser, vire a página, madrasta, este,

exatamente.Duas jovens jazendo entrelaçadas,pés comcabeça.Não saiadaí, Justita.

Apenasvire-sedefrente,esó.Deite-seaolado,madrasta,comascostassobreJustita.

Amãoassim,embaixodosquadrisdela.Vocêéadovestidoamarelo,Justita.Imite-

a. Este braço ca aqui, e o direito, passe embaixo das pernas daminhamadrasta.

Quantoavocê,madrasta,dobre-seumpouquinho,paraseu joelhotocaroombro

dela.Justita,levanteestamão,coloquenapernadaminhamadrasta,abraosdedos.

Assim,assim.Perfeito!

Elascalavameobedeciam,dobrando-se,desdobrando-se,torcendo-se,alongando

ou encolhendo pernas, braços, pescoços. Dóceis? Encantadas? Enfeitiçadas?

“Derrotadas”,admitiudonaLucrecia.Suacabeçarepousavasobreascoxasdamoçae

suamãodireitaaseguravapelacintura.Devezemquandoapressionava,parasentira

umidadeeacalidezqueemanavamdela;e,respondendoaessapressão,emsuacoxa

direitaosdedosdeJustiniana tambémafundavame faziam-na sentirqueaoutraa

sentia.Estavaviva.Claroqueestava;esseodorintenso,denso,perturbador,queela

aspirava, de onde podia vir, senão do corpo de Justiniana?Ou viria delamesma?

Como haviam chegado a tais extremos? O que teria acontecido para que, sem

perceber—oupercebendo—,estemenininhoasinduzisseaestabrincadeira?Agora,

isso já não lhe importava. Sentia-se muito a gosto dentro do quadro. Consigo

mesma, com seu corpo, com Justiniana, com a circunstância que vivia. Ouviu

Fonchitoseafastar:

—Quepena,precisoir.Estavatãobonito...Mas,vocês,continuembrincando.

Obrigadopelopresente,madrasta.

Dona Lucrecia o sentiu abrir a porta, depois fechá-la. Ele havia partido,

deixando-assozinhas,deitadas,entrelaçadas,abandonadas,perdidasemumafantasia

doseupintorfavorito.

A rebelião dos clitóris

Entendo, madame, que a variante feminista representada pela senhora declarou a

guerradossexos,equea loso adeseumovimentoseapoianaconvicçãosegundoa

qualoclitórisémoral,física,culturaleeroticamentesuperioraopênis,eosovários,

demaisnobreidiossincrasiadoqueostestículos.

Admitoquesuastesessãodefensáveis.Nãopretendoopor-lhesamenorobjeção.

Minhas simpatias pelo feminismo são profundas, embora subordinadas ao meu

amorpela liberdadeindividualepelosdireitoshumanos,oqueasenquadradentro

de limites que devo esclarecer, a m de queminhas próximas a rmações tenham

sentido. Generalizando, e para começar pelo mais óbvio, a rmarei que sou pela

eliminação de todo obstáculo legal a que a mulher tenha acesso às mesmas

responsabilidades do varão e a favor do combate intelectual e moral contra os

preconceitosemqueseapoiaalimitaçãodosdireitosdasmulheres,dentrodosquais,

apresso-meaacrescentar,parece-meomaisimportante,assimcomonoqueconcerne

aos varões, não o direito ao trabalho, à educação, à saúde etc., mas o direito ao

prazer,pontoemque,tenhocerteza,surgenossaprimeiradiscrepância.

Masaprincipale,temo,irreversível,aquelaquecavaumabismointransponível

entre a senhora e eu — ou, para nos movermos no domínio da neutralidade

cientí ca,entremeufaloesuavagina—,baseia-seemque,sobmeupontodevista,

ofeminismoéumacategoriaconceitualcoletivista,istoé,umso sma,poispretende

encerrar, dentro de um conceito genérico homogêneo, uma vasta coletividade de

individualidadesheterogêneas,nasquaisdiferençasedisparidadessãopelomenostão

importantes(seguramentemais)quantoodenominadorcomumclitorídeoeovárico.

Quero dizer, sem amenor pirueta cínica, que estar dotado de falo ou de clitóris

(artefatos de fronteira duvidosa, como lhe provarei a seguir) me parece menos

importante, para diferenciar um ser de outro, do que todo o resto dos atributos

(vícios, virtudes ou taras) especí cos de cada indivíduo. Esquecer isso levou as

ideologiasacriaremformasdeopressãoigualadorageralmentepioresdoqueaqueles

despotismos contra os quais pretendiam se insurgir.Temo que o feminismo, na

variante que a senhora patrocina, vá por esse caminho no caso de triunfarem suas

teses,oque,sobopontodevistadacondiçãodamulher,signi cariasimplesmente,

emlinguagemcoloquial,trocarseispormeiadúzia.

Estas são,paramim,consideraçõesdeprincípiomoral e estéticoquea senhora

não temporquecompartilhar.Felizmente, tenho tambémaciênciadomeu lado.

Poderácomprová-losederumaolhada,porexemplo,nostrabalhosdaprofessorade

genéticaeciênciamédicadaUniversidadedeBrown,doutoraAnneFausto-Sterling,

aqual,háváriosanos,seesganiçaparademonstrar,anteamultidãoidiotizadapelas

convençõesepelosmitos,ecegadiantedaverdade,queossexoshumanosnãosãoos

doisquefomosinduzidosacrer—femininoemasculino—,maspelomenoscinco,

outalvezmais.Embora,porrazões fonéticas, tenhaobjeçõesaosnomesescolhidos

pela doutora Fausto-Sterling (herms, merms eferms) para as três variedadesintermediáriasentreomasculinoeofemininodetectadaspelabiologia,pelagenética

e pela sexologia, saúdo as pesquisas dela e as de cientistas a ns, como poderosos

aliados daqueles que, tal qual este covarde escriba, acreditam que a divisão

maniqueísta da humanidade em homens e mulheres é uma ilusão coletivista,

cumuladadeconspiraçõescontraasoberaniaindividual—donde,contraaliberdade

—,eumafalsidadecientí caentronizadapelotradicionalempenhodosEstados,das

religiões edos sistemas legais emmanter esse sistemadualista, emoposiçãoauma

Naturezaqueodesmenteacadapasso.

A imaginação da libérrimamitologia helênica sabia dissomuito bem, quando

patenteou aquela feitura combinada de Hermes e Afrodite, o Hermafrodita

adolescente, que, ao enamorar-se de uma ninfa, fundiu seu corpo com o dela,

tornando-se desde então homem-mulher ou mulher-homem (cada uma dessas

fórmulas,adoutoraFausto-Sterlingdixit,representaummatizdistintodecoligação,

emumsóindivíduo,degônadas,hormônios,composiçãodecromossomos,e,por

issomesmo,origina sexosdiferentesdosqueconhecemosporhomememulher,a

saber, os cacofônicos e confusosherms,merms eferms).O importante é saber que

isso não é mitologia, mas realidade retumbante, pois, antes e depois do

Hermafroditagrego,nasceramessesseresintermediários(nemvarõesnemfêmeasna

concepção usual do termo), condenados, por estupidez, ignorância, fanatismo e

preconceitos, a viver sob disfarce, ou, se fossem descobertos, a ser queimados,

enforcados, exorcizados como engendrações do demônio, e, na eramoderna, a ser

“normalizados”desdeoberçomedianteacirurgiaeamanipulaçãogenéticaporparte

de uma ciência a serviço dessa falaz nomenclatura que só aceita o masculino e o

femininoelançaforadanormalidade,aosinfernosdaanomalia,damonstruosidade

ou da extravagância física, esses delicados heróis intersexuais — toda a minha

simpatia está com eles— dotados de testículos e ovários, clitóris como pênis ou

pêniscomoclitóris,uretrasevaginas,eque,àsvezes,disparamespermatozoideseao

mesmo tempo menstruam. Para seu conhecimento, esses casos raros não são tão

rarosassim;odoutorJohnMoney,daUniversidadedeJohnsHopkins,estimaque

os intersexuais constituam quatro por cento dos hominídeos que nascem (some e

veráque,sozinhos,elespovoariamumcontinente).

A existência dessa populosa humanidade cienti camente estabelecida (sobre a

qual me inteirei lendo esses trabalhos que, para mim, têm interesse sobretudo

erótico),àmargemdanormalidadeeporcujaliberação,reconhecimentoeaceitação

luto também à minha fútil maneira (quero dizer, do meu solitário cantinho de

libertáriohedonista,amantedaarteedosprazeresdocorpo,encarceradonoanódino

ganha-pão de gerente de uma companhia de seguros), fulmina os que, como a

senhora,seempenhamemsepararahumanidadeemcompartimentosestanquesem

razãodosexo:falosaqui,clitórisdooutrolado,vaginasàdireita,escrotosàesquerda.

Esseesquematismogregárionãocorrespondeàverdade.Tambémnoqueserefereao

sexo, nós humanos representamos um leque de variantes, famílias, exceções,

originalidades e matizes. Para apreender a realidade última e intransferível do

humano,nestedomínio,comoemtodososoutros,háquerenunciaraorebanho,à

visãotumultuária,erecolher-seaoindividual.

Resumindo,direiàsenhoraquetodomovimentoquepretendatranscender(ou

relegar a segundo plano) o combate pela soberania individual, antepondo-lhe os

interessesdeumcoletivo—classe, raça,gênero,nação, sexo,etnia, igreja,vícioou

pro ssão —, parece-me uma conspiração para enredar ainda mais a maltratada

liberdadehumana.Essaliberdadesóalcançaseuplenosentidonaesferadoindivíduo,

pátriacálidaeindivisívelqueencarnamos,asenhoracomseuclitórisbeligeranteeeu

commeufaloencoberto (conservooprepúcioe tambémoconservameu lhinho

Alfonso,e soucontraacircuncisãoreligiosadosrecém-nascidos—nãoaescolhida

porserescomusodarazão—pelosmesmosmotivoscomquecondenoaablaçãodo

clitóris e dos lábios superiores vaginais praticada pormuitos islamitas africanos), e

deveríamos defendê-la, antes de tudo, contra a pretensão dos que quiseram nos

dissolver nesses conglomerados amorfos e castradores,manipulados pelos famintos

de poder.Tudo parece indicar que a senhora e suas seguidoras fazem parte desse

rebanho e, portanto, é meu dever participar-lhe meu antagonismo e minha

hostilidadeatravésdestacarta,que,ademais,tampoucopensoemcolocarnocorreio.

Parasuprimirumpoucoaseriedadefunéreademinhamissivaeterminá-lacom

um sorriso, animo-me a relatar-lhe o caso do pragmático andrógino Emma (eu

deveria, talvez, dizer andrógina?), relatado pelo urologista Hugh H. Young

(igualmenteda JohnsHopkins)queo/a tratou.Emma foi educadacomomenina,

apesardeterumclitórisdotamanhodeumpênis,eumavaginahospitaleira,oque

lhe permitia celebrar intercâmbios sexuais com mulheres e homens. Em solteira,

teve-os sobretudo commoças, atuando como homem.Depois, casou-se com um

varão e fez amor como mulher, sem que, contudo, esse papel a deleitasse tanto

quantoooutro;porisso,teveamantesmulheres,asquaisperfuravaalegrementecom

seu virilizado clitóris. Consultado por ela, o doutor Young explicou-lhe que seria

muitofácilsubmetê-laaumaintervençãocirúrgicaetransformá-lasóemhomem,já

que essa parecia ser sua preferência. A resposta de Emma vale bibliotecas sobre a

estreitezadouniversohumano: “Osenhor teriademe tirar a vagina,não,doutor?

Nãocreioquemeconvenha,poiselamedáde-comer.Semeoperar,euteriademe

separar domeumarido e procurar trabalho.Diante disso, pre ro continuar como

estou.”QuemcitaahistóriaéadoutoraAnneFausto-SterlingemMythsofGender:BiologicalTheoriesaboutWomenandMen,livroquelherecomendo.

Boasorteeboastrepadas,amiga.

Carraspana e carambola

No sossego da noite barranquina, don Rigoberto se endireitou na cama com a

ligeireza de uma serpente convocada pelo encantador. Ali estava dona Lucrecia,

belíssima em seudecotado vestidopretode tule, ombros ebraçosnus, sorridente,

atendendoàdúziadeconvidados.Davaordensaomordomoqueserviaasbebidasea

Justiniana,que,deuniformeazulcomaventalbrancoengomado,passavaasbandejas

de tira-gostos — fatias de aipim com molho huancaíno, palitinhos de queijo,

casquinhas àparmegiana,azeitonasrecheadas—comdesenvolturadedonadecasa.

MasocoraçãodedonRigobertodeuumsalto:oquelutavaparaocupartodaacena

emsualembrançaindiretadaqueleevento(eletinhasidoograndeausentedafesta,

queconheciaatravésdeLucreciaedesuaprópriaimaginação)eraavozestrambótica

deFitoCebolla.Jábêbado?Acaminhode car,poisosuísquessesucediamemsuas

mãoscomocontasderosárionasdeumadevota.

— Se você precisava viajar — aninhou-se em seus braços dona Lucrecia —,

devíamostercanceladoocoquetel.Eulhedisseisso.

—Porquê?—perguntoudonRigoberto,ajustandoseucorpoaodaesposa.—

Aconteceualgo?

—Muitascoisas—riu-sedonaLucrecia,abocacontraopeitodele.—Nãovou

lhecontar.Nempensenisso.

—Alguémsecomportoumal?—animou-sedonRigoberto.—FitoCebolla

passoudoslimites,porexemplo?

—Equemmais?—concedeusuamulher.—Ele,claro.

“Fito,FitoCebolla”,pensou.Gostavadeleouoodiava?Nãoerafácilsaber,pois

Fitolhedespertavaumdaquelessentimentosdifusosecontraditóriosqueeramsua

especialidade.Tinha-oconhecidoquando, emuma reuniãodediretoria,decidiram

nomeá-lo relações-públicasda companhia.Fitomantinha amigos em todaparte e,

emborativesseentradoemfrancadecadênciaeenveredadopelacompulsãoalcoólica

maisbabosa,sabiafazerbemoquesuaribombantenomeaçãosugeria:relacionar-see

aparecerempúblico.

—Quebarbaridadeelefez?—perguntou,ansioso.

— Comigo, me passar a mão — respondeu dona Lucrecia, encabulada,

esquivando-seereaproximando-sedomarido.—ComJustiniana,porpouconãoa

estuprou.

DonRigobertoconheciadeouvidoareputaçãodeFitoetevecertezadequeo

detestaria,malovisseaparecernotrabalhoparatomarpossedafunção.Queoutra

coisapodiaserele,alémdeumcanalha inapresentável,umsujeitodevidabalizada

por atividades esportivas— seu nome se associava, nas vagas lembranças de don

Rigoberto,aosurfe,aotênis,aogolfe,ades lesdemodaouconcursosdebelezanos

quais costumava ser jurado, e às páginas frívolas, nas quais frequentemente

irrompiam sua dentadura carniceira e sua pele bronzeada pelas praias do planeta,

metido em trajes a rigor, esportivo, havaiano, noturno, vespertino, matinal ou

crepuscular,umataçanamãoeemolduradopormulhereslindíssimas.Imaginava-o

de uma imbecilidade integral, em sua variante alta sociedade limenha.Teve uma

surpresa enorme ao descobrir que Fito Cebolla, sendo exatamente tudo o que se

podiaesperardele—frívolo,cafetãodeluxo,cínico,penetra,parasita,ex-desportista

e ex-rei dos coquetéis—, era também um original, um imprevisível e, até que o

porreoderrubasse,uma guradivertidíssima.Tinha lidoumas coisas algumdia e

tiravaproveitodessas leituras,citandoFernandoCasós—“NoPeruéadmirávelo

quenãoacontece”—e,entregargalhadasrepreensivas,PaulGroussac:“Florençaéa

cidade-artista, Liverpool a cidade-mercadora e Lima a cidade-mulher.” (Para

comprovar estatisticamente sua assertiva, andava com uma caderneta na qual ia

anotandoasmulheresfeiaseasbonitascomquemcruzavaemseucaminho.)Pouco

depois de se conhecerem, enquanto tomavam um traguinho com dois colegas de

trabalho noClub de laUnión, tinham feito uma aposta entre os quatro para ver

quempronunciavaafrasemaispedante.AdeFitoCebolla(“Semprequepassopor

PortDouglas,naAustrália,traçoumabistecadecrocodiloecomoumaaborígine”)

ganhouporunanimidade.

Na solidão escura, donRigoberto foi tomado por um arroubo de ciúme que

alterouseupulso.Suafantasiatrabalhavacomoumadatilógrafa.Aliestavaoutravez

donaLucrecia.Esplêndida,ombrosluzidiosebraçosroçagantes,equilibradasobreos

altíssimos saltos-agulha e as torneadas pernas depiladas, conversava com os

convidados,explicando,casalporcasal,aurgentepartidadeRigobertoparaoRiode

Janeiro,naquelatarde,porassuntosdacompanhia.

—Eoquenosimporta?—gracejou,galante,FitoCebolla,beijandoamãoda

donadacasadepoisdeterfeitoomesmoemsuaface.—Oquepoderiasermelhor?

Era ácido,apesardasproezasesportivasdajuventude,alto,bamboleante,olhos

debatráquioeumabocamovediçaqueensopavade luxúriaaspalavrasqueemitia.

Evidentemente,haviaseapresentadonocoquetelsemsuamulher: jásabiaquedon

Rigoberto sobrevoava as selvas amazônicas?Tinhadilapidado asmodestas fortunas

das trêsprimeiras esposas legítimas, dasquais fora sedivorciando àmedidaque as

espremiapasseando-aspelosmelhoresbalneáriosdo vastomundo.Chegada ahora

dorepouso,resignava-seàsuaquartae,semdúvida,últimaconsorte,cujoreduzido

patrimônio lhe assegurava, já não luxos nem excessos de cunho turístico,

indumentário ou culinário, mas apenas uma boa casa em La Planicie, uma bem-

servidadespensaeescocêssu cienteparacevaracirroseatéo mdosseusdias,desde

quenãopassassedossetenta.Elaerafrágil,miúda,eleganteecomoquepasmadade

admiraçãoretrospectivapeloAdônisqueFitoCebollahaviasidooutrora.

Agora, era um intumescido sessentão e seguia pela vida armado de um

caderninho e um binóculo com os quais, em suas andanças pelo centro e na luz

vermelha dos semáforos quando dirigia seu antiquado Cadillac cor de borra de

vinho, via e anotava, além da estatística geral (feias ou bonitas), uma mais

especializada: os bumbuns empinados, os peitos encabritados, as pernas mais

torneadas,ospescoçosdecisne,asbocasmaissensuaiseosolhosmaisfeiticeirosque

o tráfego lhe apresentava. Sua pesquisa, rigorosa e arbitrária a mais não poder,

dedicavaàsvezesumdia, e atéuma semana, aumapartedas anatomias femininas

transeuntes, com um método não muito diferente daquele que don Rigoberto

estabelecia para o asseio dos seus órgãos: segunda, traseiros; terça, seios; quarta,

pernas;quinta,braços;sexta,pescoços;sábado,bocas;edomingo,olhos.Amédiadas

qualificações,dezeroavinte,eratiradaacadafimdemês.

Desde que Fito Cebolla lhe permitira folhear suas estatísticas, don Rigoberto

havia começado a pressentir, no insondável oceano dos caprichos e manias, uma

inquietante semelhança com ele e a admitir uma incontível simpatia por um

espécimecapazdereivindicarsuasextravagânciascomtantainsolência.(Nãoeraoseu

caso, pois as suas eram dissimuladas e matrimoniais.) Em certo sentido, mesmo

descontandosuacovardiaesuatimidez,dasquaisFitoCebollacarecia,intuiuqueele

eraseuigual.Fechandoosolhos—emvão,porqueassombrasdodormitórioeram

totais—eacalentadopelovizinhorumordomaraopédaescarpa,donRigoberto

divisouamãocompelosnosnósdosdedos,decoradacomaliançadecasamentoe

aneldeouronomindinho,aboletando-seà traiçãonotraseirodesuamulher.Um

queixumeanimalqueteriapodidodespertarFonchitorasgousuagarganta:“Filhoda

puta!”

— Não foi assim — disse dona Lucrecia, esfregando-se contra ele. —

Conversávamosemumgrupodetrêsouquatro,entreosquaisFito,jácommuitos

uísquesentornados.Justinianapassouabandejaeentãoele, semmaisnemmenos,

começouagalanteá-la.

—Queserventemaisbonita!—exclamou,olhosinjetados,lábiosbabandoum

ozinhode saliva,vozengrolada.—Pedaçodemaucaminho,essacabrocha.Que

corpinho!

—Serventeéumapalavrafeia,depreciativaeumpoucoracista—reagiudona

Lucrecia.—Justinianaéumaempregada,Fito.Comovocê.Rigoberto,Alfonsitoe

eugostamosmuitodela.

—Empregada, braçodireito, amiga, protegidaou lá oque seja,não falei para

ofender—continuouFitoCebolla,seguindocomosolhos,imantado,ajovemque

seafastava.—Bemqueeuqueriateremcasaumacaboclinhaassim.

E, nesse momento, dona Lucrecia sentiu, inequívoca, poderosa, ligeiramente

úmida equente,umamãomasculinanaparte inferiorde suanádega esquerda,no

sensívellugarondeestadesciaempronunciadacurvaaoencontrodacoxa.Poralguns

segundos, não atinou com reagir, retirá-la, afastar-se nem se aborrecer. Ele se

aproveitaradoviçosocrótonjuntoaoqualconversavamparaexecutaraoperaçãosem

queosoutrosnotassem.DonRigobertodistraiu-secomumaexpressãofrancesa:lamainbaladeuse.Comosetraduziria?Amãoperegrina?Amãotransumante?Amão

ambulante?Amãoresvaladiça?Amãopassageira?Semresolverodilemalinguístico,

indignou-sedenovo.UmimpávidoFitoolhavaLucreciacomumsorrisosugestivo,

enquanto seus dedos começavam a se mover, plissando o tule do vestido. Dona

Lucreciaseafastoucombrusquidão.

— Tonta de raiva, fui tomar um copo d’água na copa — explicou a don

Rigoberto.

—Oqueasenhoratem,patroa?—perguntouJustiniana.

—Aquelenojentomebotouamãoaqui.Nãoseicomonãolhedeiumtapa.

—Deviadar, quebrarumcachepôna cabeçadele,meter-lhe asunhas, botá-lo

paraforadacasa—enfureceu-sedonRigoberto.

—Eu dei, quebrei, arranhei e o botei para fora.—Dona Lucrecia roçou seu

narizesquimónodomarido.—Massódepois.Antes,aconteceramcoisas.

“Anoiteélonga”,pensoudonRigoberto.TinhapassadoaseinteressarporFito

Cebollacomoumentomologistaporuminsetoraríssimo,decoleção.Invejavaessa

crassa humanidade que exibia impudicamente os próprios tiques e fantasias, tudo

aquiloque, segundoumcânonemoralquenãoeraoseu,aspessoaschamavamde

vícios, taras, degenerações. Por excesso de egoísmo, sem saber, o imbecil do Fito

Cebolla havia conquistadomais liberdade do que ele, que sabia tudomas era um

hipócrita, e, ainda por cima, um securitário (“Como o foram Kafka e o poeta

WallaceStevens”,desculpou-seante simesmo,emvão).Divertido,donRigoberto

recordouaquelaconversanobardoCésar’s,registradaemseuscadernos,naqualFito

Cebolla lhe confessara que amaior excitação de sua vida não fora provocada pelo

corpo escultural de alguma de suas incontáveis amantes, nem pelas dançarinas do

Folies Bergère de Paris, mas por um episódio na austera Luisiana, na casta

UniversidadedeBatonRouge, onde seu iludidopai omatricularana esperançade

queelesegraduassecomoquímicoindustrial.Ali,noparapeitodoseudormitory,emuma tarde primaveril, coubera-lhe assistir aomais formidável agarrão sexual desde

queosdinossaurosfornicavam.

—Deduasaranhas?—AsnarinasdedonRigobertoseabriramecontinuaram

palpitando,ferozes.SuasorelhonasdeDumboadejavamtambém,superexcitadas.

—Destetamanho—imitouacenaFitoCebolla,elevando,encolhendoosdez

dedos e aproximando-os comobscenidade.—Viram-se,desejaram-se e avançaram

umaparaaoutra,dispostasa seamarouamorrer.Melhordizendo:a seamaraté

morrer.Quandoumasaltousobreaoutra,houveumestremecimentodeterremoto.

Ajanela,odormitory,tudoseencheudeodorseminal.

—Comovocêsabequeelasestavamcopulando?—espetou-odonRigoberto.

—Porquenãobrigando?

— Estavam brigando e fornicando ao mesmo tempo, como deve ser, como

deveria ser sempre — sacudiu-se no assento Fito Cebolla; suas mãos tinham se

entrecruzado eosdezdedos se esfregavamcomestalidosósseos.—Sodomizavam

umaàoutracomtodasassuaspatas,todososseusanéis,peloseolhos,comtudoo

quetinhamnocorpo.Nuncaviserestãofelizes.Nuncavinadatãoexcitante, juro

pelaminhasantamãequeestánocéu,Rigo.

A excitação resultante do coito aracnídeo havia resistido, segundo ele, a uma

ejaculação aérea e a várias duchas de água fria. Ao cabo de quatro décadas e uma

in nidadedeaventuras,amemóriadaspeludasbestiolasatracadassoboinclemente

céuazuldeBatonRougevinhaàsvezesperturbá-lo,emesmoagora,quandoaidade

lhe aconselhavamoderação, aquela remota imagem, ao emergir de repente em sua

consciência,deixava-omaisempoleiradodoqueofariaumatalagadadeioimbina.

—Conte o que fazia no FoliesBergère, Fito—pediuTetêBarriga, sabendo

perfeitamentedoriscoaqueseexpunha.—Emborasejamentira,étãoengraçado!

—Issofoidarcordanele,botaramãonofogo—observouasenhoraLucrecia,

retardandoanarrativa.—MasTetêadorasechamuscar.

FitoCebollaseremexeunoassentoondejaziasemiderrubadopelouísque:

—Mentira, nada! Foi o único trabalho agradável daminha vida.Emborame

tratassemtãomalquantoseumaridometratanoemprego,Lucre.Venha,sente-se

aqui,fiqueconosco.

Tinha os olhos vidrados e a voz rouca.Os convidados começavam a olhar os

relógios.DonaLucrecia,fazendodastripascoração,foisesentar juntodosBarriga.

FitoCebollapassouaevocaraqueleverão.Havia cadoencrencadoemParis, sem

umcentavo,egraçasaumaamigaconseguiraumempregodebiqueirono“histórico

teatrodarueRicher”.

— Biqueiro, de bico do peito, e não no sentido de quem come pouco —

explicou,mostrandoumalibidinosapontinhadelínguaavermelhadaeentrefechando

osolhosdissolutoscomoqueparavermelhoroquevia(“eoqueeleviaeraomeu

decote,amor”.AsolidãodedonRigobertocomeçavaapovoar-seeaenfebrecer).—

Emboraeufosseoúltimodosajudanteseoquemenosganhava,demimdependiao

sucessodoshow.Umaresponsabilidadedocaralho!

—Qual,qual?—urgiu-oTetêBarriga.

—Deixarascoristascomosmamilostesos,poucoantesdeentrarememcena.

Para isso, em seu cantinho dos bastidores, dispunha de um balde de gelo. As

moças, engalanadas com penachos, adornos de ores, penteados exóticos, longas

pestanas,unhaspostiças,malhasinvisíveisecaudasdepavão,bundasepeitosaoléu,

inclinavam-se diante de FitoCebolla, que esfregava um cubinho de gelo em cada

mamilo e na corola circundante. Então, dando um gritinho, elas saltavam para o

palco,ospeitoscomoespadas.

—Funciona,funciona?—insistiaTetêBarriga,dandoumaolhadanospróprios

seioscaídos,enquantoseumaridobocejava.—Esfregandogelo,elesficam...?

— Tesos, duros, retos, empinados, airosos, erguidos, soberbos, eriçados,

encolerizados — prodigalizava Fito Cebolla seus conhecimentos em matéria de

sinônimos.—Permanecemassimquinzeminutos,cronometrados.

“Sim, funciona”, repetiu-se don Rigoberto. Pelas persianas se insinuava um

raiozinho pálido. Outro amanhecer longe de Lucrecia. Já seria hora de despertar

Fonchitoparaocolégio?Aindanão.Maselanãoestavaaqui?Comoquandohaviam

veri cadonosseusformososseiosareceitadoFoliesBergère.Elehaviavistoaqueles

escurosmamilos se aprumaremnas aréolasdouradas e se oferecerem, frios eduros

como pedras, aos seus lábios. Aquela veri cação tinha custado a Lucrecia um

resfriado,queaindaporcimaocontagiara.

—Ondeéobanheiro?—perguntouFitoCebolla.—Paralavarminhasmãos,

nãofaçammaujuízo.

Lucreciaoconduziuatéocorredor,guardandoumadistânciaprudente.Temia

sentirdenovo,aqualquermomento,aquelaventosamanual.

—Gosteidasuacaboclinha,sério—iabalbuciandoFito,aostropeções.—Sou

democrático,quevenhamnegras,brancasouamarelas, se forembemgostosas.Me

dáamoçadepresente?Ou,sepreferir,meceda.Possolhepagarumaboagrana.

—Obanheiro é aqui—conteve-odonaLucrecia.—Lave tambéma língua,

Fito.

—Seusdesejossãoordens—babouele,e,antesdequeelapudesseseafastar,a

malditamãofoidiretamenteaosseuspeitos.Fitoaretiroudeimediatoeentrouno

banheiro:—Perdão,perdão,erreideporta.

Dona Lucrecia voltou à sala.Os convidados começavam a sair. Ela tremia de

raiva.Destavez,iriaexpulsá-lodacasa.Trocavaasúltimasbanalidadesesedespedia

das pessoas no jardim. “É o cúmulo, é o cúmulo.”Osminutos passavam e Fito

Cebollanãoaparecia.

—Vocêquerdizerqueeletinhaidoembora?

— Foi o que eu imaginei. Que, ao sair do banheiro, ele teria escapulido,

discretamente,pelaportadeserviço.Masnão,não.Omalditoficou.

Foram-se as visitas, o garçom contratado, e, depois de ajudarem Justiniana a

recolhercoposepratos,fecharjanelas,apagaras luzesdojardimeligaroalarme,o

mordomoeacozinheiraderamboa-noiteaLucreciaeseretiraramparaseusafastados

dormitórios, em umpavilhão à parte, atrás da piscina. Justiniana, que dormia no

segundoandar, juntoaoescritóriodedonRigoberto,estavanacozinha,botandoa

louçanalavadora.

—FitoCebollaficoudentro,escondido?

—Noquartinhodasauna,talvez,ouentreasplantasdojardim.Esperandoque

osoutrosse fossem,queacozinheiraeomordomosedeitassem,parasemeterna

cozinha.Comoumladrão!

DonaLucreciaestavaemumsofádasala,cansada,aindanãorecuperadadomau

momento.Odelinquente doFitoCebolla não voltaria a pôr os pés naquela casa.

Perguntava-se se contaria aRigoberto o ocorrido, quando soou o grito.Vinha da

cozinha. Ela se levantou e correu.Na porta da alva copa— as paredes azulejadas

cintilando sob a luz farmacêutica —, o espetáculo a paralisou. Don Rigoberto

pestanejou várias vezes antes de xar a vista no raiozinho pálido da persiana que

anunciavaodia.Via-os: Justiniana, caídade costasnamesadepinho àqualhavia

sido arrastada, forcejando com mãos e pernas contra a fofa corpulência que a

esmagava e a beijocava, gargarejando uns ruídos que eram, que só podiam ser

grosserias. No umbral, des gurada, exorbitada, dona Lucrecia. Sua paralisia não

duroumuito.Aliestavaela—ocoraçãodedonRigobertobateuimpetuoso,cheio

deadmiraçãopelabelezadelacroixianadessafúriaqueagarravaaprimeiracoisaque

encontrava, o rolo de amassar, e arremetia contra Fito Cebolla, insultando-o.

“Abusado,maldito, imundo, crápula.”Golpeava-o semmisericórdia,ondecaísseo

rolo,nascostas,nopescoçogorducho,nacabeçadefrade,nasnádegas,atéobrigá-loa

soltar sua presa para se defender. Don Rigoberto podia ouvir as bordoadas que

espancavam ossos e músculos do interrompido estuprador, o qual, nalmente,

vencido pela surra e pelo pileque que estorvava seusmovimentos, girou, asmãos

voltadasparasuaagressora,cambaleou,escorregoueseestatelounochãocomouma

gelatina.

— Bata, bata você também, vingue-se — gritava dona Lucrecia, descendo o

incansávelrolodeamassarsobreovultodesujoternoazulque,tentandoselevantar,

erguiaosbraçosparaamortecerosgolpes.

—Justinianaarrebentouotamboretenacabeçadele?—perguntouoregozijado

donRigoberto.

Espatifou-o, e voaram cavacos até o teto. Ergueu-o com as duas mãos e o

descarregouemcimadeFitocomtodoopesodoseucorpo.DonRigobertoviua

silhuetaespigada,ouniformeazul,oaventalbranco,empinando-separadesfecharo

bólido. O estentóreo “Aiiii!” do escarrapachado Fito Cebolla lhe sacudiu os

tímpanos.(Masnãoosdacozinheira,nemosdomordomo,nemosdeFonchito?)

Fitocobriaacara,emsuasmãoshaviamanchasdesangue.Ficoudesmaiadoalguns

segundos.Voltouasi,talvez,comosgritosdasduasmulheres,quecontinuavama

insultá-lo:“Degenerado,bêbado,abusado,veado.”

—Comoédoce a vingança— riu-sedonaLucrecia.—Abrimos aportados

fundoseeleescapuliu,searrastando.Dequatropatas,juroavocê.Choramingando:

“Ai,minhacabecinha,ai,estáquebrada.”

Nisto,oalarmedisparou.Quesusto!MasnemassimFonchito,omordomoou

a cozinheira acordaram. Era verossímil? Não. Mas muito conveniente, isto sim,

pensoudonRigoberto.

—Nãoseicomoodesligamos,entramosdevolta,fechamosaportaeligamos

denovooalarme—ria-sedonaLucrecia,desbragada.—Atéque,poucoapouco,

fomosnosacalmando.

Então,elapôdesedarcontadoqueaquelebrutohaviafeitoàpobreJustiniana.

Tinha lhe destroçado a roupa. A moça, ainda aterrorizada, caiu no choro.

Pobrezinha.SedonaLucreciativessesubidoantesparaodormitório,nãoouviriaseu

grito, já quenemomordomonema cozinheira enemomenino tinhamouvido

nada.Ocanalhaaestuprariatranquilamente.Consolou-a,abraçou-a:“Jápassou,ele

jáfoi,nãochore.”Contraoseu,ocorpodamoça—pareciamaisjovenzinhaassim,

tãopróxima—tremiadospésàcabeça.Sentiaocoraçãodelaeviaseusesforçospara

conterossoluços.

—Medeuumapena...—sussurroudonaLucrecia.—Alémdelhedestruiro

uniforme,tinhabatidonela.

—Teveoquemerecia—gesticuloudonRigoberto.—Foiemborahumilhado

esangrando.Muitobenfeito!

“Vejasócomoeledeixouvocê,odesgraçado.”DonaLucreciaafastouJustiniana.

Examinouseuuniformeemfrangalhos,acariciou-anorosto,agorasemvestígiosdo

bomhumorexuberantequeamoçasempreexibia;grossaslágrimaslhecorriampelas

faces,umríctuslhecrispavaoslábios.Seuolhartinhaseapagado.

—Aconteceualgumacoisanessahora?—insinuou,commuitadiscrição,don

Rigoberto.

—Aindanão—retrucou, igualmentediscreta,donaLucrecia.—Pelomenos,

nãomedeiconta.

Nãosedavaconta.Achavaqueaqueledesassossego,nervosismo,exaltação,eram

obra do susto e, sem dúvida, também o eram; sentia-se transbordada por um

sentimentodecarinhoecompaixão,ansiosaporfazeralgo,qualquercoisa,paratirar

Justinianadoestadoemqueavia.Pegou-apelamão, levou-aatéaescada:“Venha

tirarestaroupa,émelhorchamarummédico.”Aosairdacozinha,apagoualuzdo

térreo.Subiramàsescuras,demãosdadas,degraupordegrau,aescadinhaemcaracol

paraoescritórioeoquarto.Nomeiodaescada,asenhoraLucreciapassouooutro

braçopelacinturadamoça.“Quesustovocêteve.”“Acheiqueiamorrer,masjáestá

passando.” Não era verdade: sua mão estreitava a da patroa e seus dentes

chacoalhavam, como que de frio. Segurando-se uma à outra pelas mãos e pela

cintura, contornaram as estantes carregadas de livros de arte e, no dormitório,

receberam-nas,descortinadosatravésdojanelão,as luzesdeMira ores,osfaróisdo

calçadãolitorâneoeascristasbrancasdasondasavançandoemdireçãoaopenhasco.

DonaLucreciaacendeua lumináriadepé,queclareouaampla chaise longue grenácompésdefalcãoeamesinhacomrevistas,asporcelanaschinesas,asalmofadaseos

pufes espalhados sobre o tapete. A ampla cama, os criados-mudos, as paredes

consteladasdegravuraspersas,tântricasejaponesascontinuaramnapenumbra.Dona

LucreciafoiatéoquartodevestireestendeuumrobeaJustiniana,quepermanecia

depé,cobrindo-secomosbraços,meioparalisada.

—Estaroupatemqueserjogadanolixo,queimada.Sim,émelhorqueimá-la,

comofazRigobertocomoslivrosegravurasdequejánãogosta.Ponhaisto,vouver

oquepossolhedar.

Nobanheiro,enquantomolhavaumatoalhinhacomágua-de-colônia,viu-seno

espelho(“Belíssima”,premiou-adonRigoberto).Tambémhavialevadoumsustoe

tanto.Estavapálidaecomolheiras;amaquilagemhaviaescorridoe,semqueelase

desseconta,ofechoeclerdeseuvestidotinhaserompido.

—Eutambémsouumaferidadeguerra,Justiniana—disseatravésdaporta.—

PorculpadoasquerosodoFito,minharoupaserasgou.Vouvestirumrobe.Venha,

aquitemmaisluz.

QuandoJustinianaentrounobanheiro,donaLucrecia,queestavaselivrandodo

vestidopelospés—nãousavasutiã,sóumacalcinhatriangulardesedapreta—,viu-

anoespelhodapiae, repetida,nodabanheira.Embrulhadanorobebrancoquea

cobriaatéascoxas,a jovempareciamaisdelgadaemaismorena.Comonão tinha

cinto, segurava o robe com as mãos. Dona Lucrecia despendurou seu quimono

chinês—“odesedavermelha,comdoisdragõesamarelosnascostas,unidospelas

caudas”,exigiudonRigoberto—,vestiu-oeachamou:

—Chegueumpoucomaisperto.Temalgumferimento?

—Não,achoquenão,duascoisinhasdenada.—Justinianaestendeuumaperna

porentreasdobrasdorobe.—Estasmanchasroxas,demedebatercontraamesa.

DonaLucreciaseinclinou,apoiouumadasmãosnacoxalisinhaedelicadamente

friccionouapelevioláceacomatoalhinhaembebidaemágua-de-colônia.

—Nãoénada,vaisumirlogo.Eaoutra?

No ombro e parte do antebraço. Abrindo o robe, Justiniana lhe mostrou a

contusãoquecomeçavaainchar.DonaLucrecianotouqueamoçatampoucousava

sutiã.Tinhaoseiodelamuitopróximodeseusolhos.Viaapontadomamilo.Era

umseiojovememiúdo,bemdesenhado,comumatênuegranulaçãonaaréola.

—Istoestámaisfeio—murmurou.—Eaqui,dói?

—Umpouquinho—disse Justiniana, sem retirar o braçoquedonaLucrecia

esfregava com cuidado, agora mais atenta à sua própria perturbação do que ao

hematomadaempregada.

—Ouseja—insistiu,imploroudonRigoberto—,aíaconteceualgo.

— Aí, sim— concedeu desta vez sua mulher.—Não sei o que, mas algo.

Estávamosmuitojuntas,derobe.Eununcatinhatidoessasintimidadescomela.Ou

talvezsim,resolvendoassuntosdecozinha.Oulápeloquefosse.Derepente,eujá

nãoeraeu.Eardiadospésàcabeça.

—Eela?

—Nãosei,quemsabe?Achoquenão—complicou-sedonaLucrecia.—Tudo

haviamudado,istosim.Percebe,Rigoberto?Depoisdesemelhantesusto.Eimagine

oqueestavameacontecendo.

— Essa é a vida — murmurou don Rigoberto, em voz alta, ouvindo suas

palavras ressoarem na solidão do dormitório já iluminado pelo dia. — Esse é o

amplo, o imprevisível, o maravilhoso, o terrível mundo do desejo. Minha

mulherzinha,quepertoatenho,agoraquevocêestátãolonge!

—Sabe de uma coisa?—disse donaLucrecia a Justiniana.—Para aplacar as

emoçõesdanoite,oquenósduasnecessitamosédeumdrinque.

—Paranãoterpesadeloscomaquelemão-boba—riuaempregada,seguindo-a

até o quarto. Sua expressão tinha se animado. — É mesmo, acho que só me

embebedandovoumelivrardesonharcomeleestanoite.

—Vamosnosembebedar,então.—DonaLucreciasedirigiuatéobarzinhodo

escritório.—Querumuísque?Vocêgostadeuísque?

—Oquefor,oqueasenhoratomar.Deixe,deixe,eutrago.

—Fiqueaqui—atalhoudonaLucrecia,jádoescritório.—Estanoite,sirvoeu.

Riu, e amoça a imitou, divertida.No bar, sentindo que não controlava suas

mãos e sem querer pensar, dona Lucrecia encheu dois copos grandes commuito

uísque, um jatinho de águamineral e dois cubos de gelo. Voltou, esgueirando-se

comoumfelinoentreosalmofadõesespalhadospelochão.Justinianasereclinarano

espaldardachaiselongue,semsubiraspernas.Fezmençãodeselevantar.

—Fiqueaímesmo—voltouaatalharapatroa.—Chegueparalá,cabemosas

duas.

Amoçahesitou,pelaprimeiravezdesconcertada;masserecompôsdeimediato.

Tirouossapatos,subiuaspernaseescorregouparajuntodajanelaa mdelheabrir

espaço.DonaLucreciaseacomodouaoseu lado.Ajeitouasalmofadasembaixoda

cabeça.Cabiam,mas seus corpos se roçavam.Ombros,braços,pernas equadris se

pressentiame,pormomentos,setocavam.

—Aquevamosbrindar?—dissedonaLucrecia.—Àsurranaqueleanimal?

—Àcadeiradaqueeudei—respondeuJustiniana,recuperandoseuhumor.—

Comaraivaqueeutinha,poderiatermatadoaquelesujeito,estoulhedizendo.Será

quequebreiacabeçadele?

Bebeumaisumgoleecaiunarisada.DonaLucreciacomeçouarirtambém,com

umarisadinhameiohistérica.“Quebrou,sim,eeu,comorolodeamassar,quebrei

outras coisas nele.” Passaram assim um bom tempo, como duas amigas que

compartilham uma con dência jovial e algo escabrosa, estremecidas pelas

gargalhadas.“EulhegarantoqueFitoCebollatemmaismanchasroxasdoquevocê,

Justiniana”, “E que pretextos ele vai dar agora à mulher, para esses galos e

ferimentos?”, “Que foi assaltado e chutado por ladrões.” Em um contraponto de

chacotas,acabaramoscoposdeuísque.Acalmaram-se.Poucoapouco,recuperaram

ofôlego.

—Vouservirmaisdois—dissedonaLucrecia.

—Euvou,deixe,juroqueseipreparar.

—Bom,válá,enquantoissoeuponhomúsica.

Mas,emvezdese levantardachaiselongueparaqueamoçapassasse,asenhora

Lucreciasegurou-apelacinturacomasduasmãoseajudou-aadeslizarporcimadela,

semretê-lamasdemorando-a,emummovimentoque,poruminstante,manteveos

corpos das duas — a patroa embaixo, a empregada em cima — enlaçados. Na

semipenumbra,enquantosentiaorostodeJustinianasobreoseu—arespiraçãoda

jovemlheesquentavaorostoelheentravapelaboca—,donaLucreciaviuassomar

nosolhosdelaumbrilhoalarmado.

— E, nessa hora, você notou o quê? — pressionou-a um embargado don

Rigoberto,sentindodonaLucreciasemoveremseusbraçoscomapreguiçaanimal

emqueocorpodelasoçobravaquandofaziamamor.

—Nãoseescandalizou;sóseassustouumpouquinho,talvez.Emboranãopor

muito tempo—disse ela,meio sufocada.—Por eu ter tomado essas liberdades,

fazendo-apassarporcimademimsegurando-apelacintura.Talveztenhapercebido.

Nãosei,eunãosabianada,nãomeimportavanada.Euvoava.Masdisto,sim,me

dei conta: ela não se aborreceu.Via aquilo comgraça, com amalícia quepõe em

tudo.Fitotinharazão,elaéatraente.E,meionua,maisainda.Seucorpocafécom

leite,contrastandocomabrancuradaseda...

—Eudaria um anode vida para vê-las nessemomento.—EdonRigoberto

encontroua referênciaquebuscavahavia tempo:Preguiçae luxúriaouO sonho, deGustaveCourbet.

—Masnãoestánosvendo?—brincoudonaLucrecia.

Comtotalnitidez,apesardeque,àdiferençade seudiurnodormitório,aquele

era noturno, e essa parte do aposento estava em penumbra, fora do alcance da

luminária de pé. A atmosfera se adensara. Aquele perfume penetrante, que

entontecia, intoxicou don Rigoberto. Suas narinas o aspiravam, expeliam,

reabsorviam. Ao fundo, ouvia-se o rumor do mar e, no escritório, Justiniana

preparandoosdrinques.Meioocultapelaplantadefolhaslanceoladas,donaLucrecia

se estirou e, como que se espreguiçando, acionou o toca-discos; uma música de

harpas paraguaias com um coro guarani utuou no aposento, enquanto dona

Lucreciavoltavaàsuaposturanachaiselonguee,comaspálpebrascerradas,esperava

JustinianacomumaintensidadequedonRigobertofarejoueescutou.Oquimono

chinêsdeixavaversuacoxabrancaeseusbraçosnus.Oscabelosestavamdesalinhados

eosolhosespreitavamportrásdaspestanassedosas.“Umajaguatiricatocaiandosua

presa”,pensoudonRigoberto. Justiniana,quandoapareceucomosdois coposnas

mãos, vinha risonha, movendo-se com desenvoltura, já acostumada a essa

cumplicidade,anãoguardarcomsuapatroaadevidadistância.

—Gostadestamúsicaparaguaia?Nãoseicomosechama—murmuroudona

Lucrecia.

—Muito, é bonita, mas não dá para dançar, não? — comentou Justiniana,

sentando-senabeiradachaiselongueeestendendo-lheocopo.—Assimestábom,

ouprecisademaiságua?

NãoseatreviaapassarporcimadedonaLucrecia,que sechegouparaocanto

antes ocupado pela moça. Animou-a com um gesto a se instalar no seu lugar.

Justiniana fez isso e, ao se reclinar junto dela, seu robe escorregou, deixando sua

pernadireitatambémdescoberta,amilímetrosdapernadesnudadapatroa.

—Tintim,Justiniana—disseesta,batendoocoponodela.

—Tintim,patroa.

Beberam.Assimqueafastaramoscopos,donaLucreciagracejou:

—QuantonãodariaFitoCebollaparanosterasduascomoestamosagora!

Riu, e Justiniana também riu.O riso de ambas cresceu, decresceu. Amoça se

atreveuafazertambémumgracejo:

—Seaomenoselefossejovemebonitão...Mas,comsemelhantesapoeainda

porcimabêbado,quemiadeixar?

—Pelomenos, tembomgosto.—Amão livrededonaLucrecia remexeuos

cabelosdeJustiniana.—Verdade,vocêémuitobonita.Nãoédeestranharqueleve

oshomensafazerloucuras.SóFito?Vocêdevetercausadoestragos,poraí.

Semprelhealisandooscabelos,aproximouapernaatétocaradeJustiniana.Esta

não afastou a sua. Ficou quieta, meio sorriso xado no rosto. Depois de alguns

segundos, a senhora Lucrecia, com um baque no coração, notou que o pé de

Justinianaseadiantavadevagarinhoatéfazercontatocomodela.Unsdedostímidos

semoviamsobreosseus,numimperceptívelarranhão.

—Gostomuitodevocê,Justita—disse,chamando-apelaprimeiravezcomo

Fonchito fazia.— Percebi esta noite. Quando vi o que aquele balofo estava lhe

fazendo.Sentiumaraiva...!Comosevocêfosseminhairmã.

— Eu também gosto muito da senhora, patroa — murmurou Justiniana,

encostando-seumpoucomais,demodoqueagora,alémdepésecoxas,tocavam-se

osquadris,braçoseombros.—Ficosemgraçadedizer,masainvejotanto...Porser

comoé,porsertãoelegante.Amelhorquejáconheci.

—Mepermitequeabeije?—AsenhoraLucreciainclinouacabeçaatéroçarade

Justiniana.Oscabelosdasduassemisturaram.Elaviaosolhosprofundosdamoça,

muito abertos, observando-a sem pestanejar, sem medo, embora com alguma

ansiedade.—Possolhedarumbeijo?Podemos?Comoamigas?

Sentiu-se incomodada, arrependida,duranteos segundos—dois, três, dez?—

que Justiniana levoupara responder.Ea alma lhevoltouao corpo—seucoração

batia tão depressa que elamal respirava— quando, nalmente, a carinha que via

embaixo da sua assentiu e se adiantou, oferecendo-lhe os lábios. Enquanto se

beijavam,comímpeto,enredandoaslínguas,separando-seejuntando-se,seuscorpos

seentrelaçando,donRigobertolevitava.Estavaorgulhosodesuaesposa?Claro.Mais

apaixonadoporeladoquenunca?Naturalmente.Voltouavê-laseouvi-las.

—Precisolhedizerumacoisa,patroa—escutouJustinianasussurrarnoouvido

deLucrecia.—Hámuito,eutenhoumsonho.Eleserepete,mevematéquando

estou acordada.Eradenoite, fazia frio.Opatrão estava viajando.A senhora tinha

medodosladrõesemepediuqueviesselhefazercompanhia.Euqueriadormirnesta

poltronaeasenhora“não,não,venhaparacá,venha”.Emefaziadeitaraoseulado.

Sonhando isso, sonhando, digo ou não digo?, eu cava toda molhada. Que

vergonha!

—Vamosfazeressesonho.—AsenhoraLucreciaselevantou,levandoatrásdesi

Justiniana.—Vamos dormir juntas,mas na cama, émaismacia do que a chaiselongue.Venha,Justita.

Antesdeentraremembaixodoslençóis,despiramosrobes,que caramaopédo

leito de casal, coberto por uma colcha. Às harpas, seguira-se uma valsa de outros

tempos, comunsviolinoscujos compassos sintonizavamcomsuas carícias.Oque

importava se elashaviamapagadoa luz enquantobrincavame se amavam,ocultas

embaixodos lençóis, e a atarefadacolcha se encrespava, se enrugavaebamboleava?

DonRigobertonãoperdiaumdetalhedosseusgestosesboçadosedasarremetidas;

enredava-seedesenredava-secomelas,estavajuntodamãoqueenvolviaumseio,em

cadadedoqueroçavaumanádega,noslábiosque,depoisdeváriasescaramuças,por

mseatreviamaafundarnaquelasombraescondida,buscandoacrateradoprazer,a

cavidademorna, a boca latejante, omusculozinho vibrátil. Via tudo, sentia tudo,

ouviatudo.Suasnarinasseembriagavamcomoperfumedaquelaspeleseseuslábios

sorviamossumosquemanavamdograciosocasal.

—Elanuncahaviafeitoisso?

— E eu também não— con rmou dona Lucrecia. — Nenhuma das duas,

nunca.Umpardenovatas.Aprendemos alimesmo.Gozei, gozamos.Não senti a

menorfaltadevocênessanoite,meuamor.Nãoseimportaqueeulhediga?

—Gostoquevocêdiga—abraçou-aseuesposo.—Eela,nãoseconstrangeu

depois?

Em absoluto. Havia mostrado uma naturalidade e uma discrição que

impressionaram dona Lucrecia. Exceto pela manhã seguinte, quando chegaram os

buquês de ores (o da patroa dizia: “Do meio de suas bandagens, Fito Cebolla

agradecedetodoocoraçãoamerecidaliçãoquerecebeudesuaqueridaeadmirada

amigaLucrecia”,eodaempregada:“FitoCebollasaúdaepederespeitosasdesculpas

à Flor de Canela”) que elas mostraram uma à outra, o assunto não voltou a ser

mencionado.Arelaçãonãomudou,nemasmaneiras,nemotratamento,paraquem

as observava de fora. É verdade que, de vez em quando, dona Lucrecia tinha

pequenas delicadezas com Justiniana, presenteando-lhe uns sapatos novos, um

vestido, ou levando-a de companhia em suas saídas,mas isso, embora provocasse

ciúmesnomordomoenacozinheira,nãosurpreendianinguém,poistodosnacasa,

dochoferaFonchitoedonRigoberto, tinhamnotadohavia tempoque, comsua

vivacidadeeseusmimos,Justinianatinhaapatroanobolso.

Amor às orelhas voadoras

Olhosparaver,narizparacheirar,dedosparatocareorelhascomocornucópiaspara

seremesfregadascomasgemas,assimcomoagentepassaamãonacorcovinhada

corcundaounabarriguinhadoBuda—quetrazemsorte—,e,depois,lambidase

beijadas.

Gostodeti,Rigoberto,detiedeti,mas,acimadetodasastuasoutrascoisas,

gostodetuasorelhasvoadoras.Quiserapodermeajoelhareespiaressesburaquinhos

quelimpasacadamanhã(meumindinhomecontou)comumcotoneteedeonde

arrancasospelinhoscomumapinça—pelinhoaiporpelinhoaijuntodoespelhoai

— nos dias em que lhes cabe a puri cação. O que eu veria por esses fundos

oquinhos?Umprecipício.E, assim,descobriria teus segredos.Qual, por exemplo?

Que,semsaber,jámeamas,Rigoberto.Veriaalgumaoutracoisa?Doiselefantinhos

comsuastrombinhaslevantadas.Dumbo,Dumbinho,comoteamo!

O que seria do azul, se todos gostassem do amarelo?Tu, paramim, embora

alguns digam que com teu nariz e tuas orelhas ganharias o concursoOHomem-

Elefante do Peru, és o ser mais atraente, o mais bonito que já existiu. Vejamos,

Rigoberto,adivinha,semedessemaescolhaentretieRobertRedford,quemseriao

eleito do meu coração? Sim, meu orelhãozinho, sim, narigãozinho, sim, meu

Pinoquinho:tu,tu.

Oquemais eu veria, semedebruçassepara espiarpor teus abismos auditivos?

Um campode trevos, todos de quatro folhas. E ramos de rosas cujas pétalas têm

retratada,emsuapelugembranca,umacarinhaamorosa.Qual?Aminha.

Quemsou,Rigoberto?Queméaandinistaqueteamaeteidolatra,ealgumdia

não longínquo escalará tuas orelhas como outros escalam o Himalaia ou o

Huascarán?

Tua,tua,tua,

Alouquinhadetuasorelhas

IV.

Fonchito em lágrimasIV - Fonchito em lágrimas

Fonchito se mostrara cabisbaixo e pálido desde que havia chegado à casa de San

Isidro,edonaLucreciaestavacertadequesuasolheirase seuolhar fugidiotinham

algo a ver com Egon Schiele, tema infalível de cada tarde. Ele mal abriu a boca

enquanto tomavam o chá e, pela primeira vez naquelas semanas, esqueceu-se de

elogiar oschancays tostados de Justiniana. Notas baixas no colégio? Rigobertodescobriraqueele faltavaàacademiaparavirvisitá-la?Encerradoemummutismo

tristonho,mordia os nós dos dedos.Emalgummomentohaviamurmurado algo

terrívelsobreAdolfeMarie,paisouparentesdoseureverenciadopintor.

—Quandoalgoróiagentepordentro,omelhorécompartilhar—ofereceu-se

donaLucrecia.—Nãocon aemmim?Meconteoquevocêtem,talvezeupossa

ajudá-lo.

Omeninoa tounosolhos,sobressaltado.Pestanejavaepareciaprestesacairno

choro. Suas têmporas latejavamedonaLucreciadivisou as veiazinhas azuisdo seu

pescoço.

—É que... estive pensando— disse ele, por m.Desviou a vista e se calou,

arrependidodoqueiadizer.

—Emquê,Fonchito?Vamos,meconte.Porqueessecasalopreocupatanto?

QuemsãoAdolfeMarie?

—OspaisdeEgonSchiele—disseomenino,comosefalassedeumcolegade

classe.—MasnãoéosenhorAdolfquemepreocupa,esimopapai.

—Rigoberto?

—Nãoqueroqueacabecomoele.—Acarinhaseensombreceuaindamaisea

mãofezumgestoestranho,comoqueafugentandoumfantasma.—Medámedoe

não sei o que fazer. Não queria preocupá-la. Você ainda ama o papai, não é,

madrasta?

—Claro que sim— assentiu ela, desconcertada.—Vocême deixa boiando,

Fonchito.OqueRigobertotemavercomopaideumpintorquemorreudooutro

ladodomundo,meioséculoatrás?

No princípio, parecera-lhe divertido, muito próprio dele, esse jogo inusitado,

deslumbrar-se com as telas e a vida de Egon Schiele, estudá-las, apreendê-las,

identi car-se com o pintor até acreditar, ou dizer acreditar, que era Egon Schiele

redivivoequemorreria também,apósumacarreira fulgurante,demaneira trágica,

aosvinteeoitoanos.Masessejogocomeçavaaseturvar.

— O destino do pai dele está se repetindo também no meu — balbuciou

Fonchito, engolindo em seco.—Não quero que o papai que louco e si lítico

comoosenhorAdolf,madrasta.

—Masquebobagem—ela tentou acalmá-lo.—Vamos e venhamos, a vida

nãoseherdanemserepete.Deondelheocorreuumdisparatedestes?

Incapazdeseconter,omeninocontraiuorostoemumbeicinhoecomeçoua

chorar, com soluços que faziam estremecer sua guramirrada.A senhoraLucrecia

pulou da poltrona, sentou-se junto dele no tapete da sala de jantar, abraçou-o,

beijou-onoscabelosenatesta,secou-lheaslágrimascomseulencinho,assoou-lheo

nariz.Fonchitoseapertoucontraela.Fundossuspiroslevantavamseupeitoedona

Lucreciasentiaocoraçãodeleaossaltos.

—Calma,jápassou,nãochore,quedespropósito,issonãotempénemcabeça.

—Alisava-lheoscabelos,beijava-os.—Rigobertoéohomemmais saudável ede

cabeçamaisequilibradaquejáseviu.

O pai de Egon Schiele era si lítico e morreu louco? Com a curiosidade

espicaçadapelascontínuasalusõesdeFonchito,donaLucreciatinhaprocuradoalgo

sobre Schiele na livraria La Casa Verde, a dois passos de sua residência, mas não

encontrou nenhuma monogra a, só mesmo uma história do expressionismo que

dedicavaaeleapenaspartedeumcapítulo.Nãorecordavaqueotextomencionasse

em algummomento sua família. Omenino assentiu, a boca crispada e os olhos

semicerrados.Devezemquando,umcalafrioopercorria.Masfoisossegandoe,sem

seafastardela, encolhido,parecendo felizporestarprotegidopelosbraçosdedona

Lucrecia,começouafalar.ElanãoconheciaahistóriadosenhorAdolfSchiele?Não,

nãoa conhecia;nãoconseguira encontrarumabiogra adessepintor.Fonchito, ao

contrário, tinha lido várias na biblioteca do pai e consultado a enciclopédia.Uma

históriaterrível,madrasta.Diziamque,semoqueaconteceuaosenhorAdolfSchiele

eàsenhoraMarieSoukup,nãosepodiaentenderEgon.Porqueessahistóriaescondia

osegredodesuapintura.

—Bem,bem.—DonaLucreciatentoudespersonalizaroassunto.—Equalé,

afinal,osegredodesuapintura?

—A sí lisdopai—retrucouomenino, semvacilar.—A loucuradopobre

senhorAdolfSchiele.

Mordendo o lábio, dona Lucrecia conteve o riso, para não ferir o menino.

Pareceu-lhe estar ouvindo o doutor Rubio, um psicanalista conhecido de don

Rigoberto, muito popular entre suas amigas desde que, citando o exemplo de

Wilhelm Reich, passara a se despir durante as sessões para melhor interpretar os

sonhosdesuaspacientes,equecostumavasoltarcoisasdogêneronoscoquetéis,com

amesmaconvicção.

—Mas,Fonchito—disse,soprando-lheatesta,brilhantedesuor—,poracaso

vocêsabeoqueésífilis?

—Umadoençavenérea,quevemdeVênus,umadeusaquenãoseiquemfoi—

confessouomenino,comsinceridadedesarmante.—Nãoencontreinodicionário.

MasseiondeosenhorAdolfsecontagiou.Querqueeucontecomofoi?

—Desde que você se acalme. E que não volte a se atormentar com fantasias

descabeladas.Nem você é Egon Schiele nemRigoberto tem nada a ver com esse

cavalheiro,seubobão.

Omeninonãoprometeunada,mastampoucoreplicou.Ficouumtempinhoem

silêncio,aninhadonosbraçosprotetores,acabeçanoombrodamadrasta.Quando

começou a contar, fez isso com o luxo de datas e detalhes de uma testemunha

daquiloquecontava.Ouprotagonista,poispassavaaemoçãodequemviveuacoisa

naprópriapele.Comose,emvezdenasceremLimano naldoséculoXX,fosse

EgonSchiele,umrapazoladaúltimageraçãodesúditosaustro-húngaros,aqueveria

desapareceremnahecatombedaPrimeiraGuerraMundialachamadaBelleÉpoquee

o império, aquela sociedade rutilante, cosmopolita, literária,musical eplásticaque

RigobertoamavatantoesobreaqualderaadonaLucreciatãopacientesaulas,nos

primeiros anos de casados. (Agora, Fonchito continuava dando-as.) A época de

Mahler,Schoenberg,Freud,Klimt,Schiele.Nosobressaltadorelato,descontando-se

anacronismos e puerilidades, uma história foi se per lando. Uma aldeia chamada

Tulln, às margens do Danúbio, nos arredores de Viena (a 25 quilômetros, dizia

Fonchito),eocasamento,naquelesúltimosanosdoséculo,entreofuncionáriodas

ferrovias imperiais Adolf Eugen Schiele, protestante, de origem alemã, 26 anos

recém-completados,eaadolescentecatólicadeorigemtcheca,de17,MarieSoukup.

Umauniãoarriscada,contraacorrente,dadaaoposiçãodafamíliadanoiva.(“Asua

seopôsaquevocêsecasassecomopapai?”“Pelocontrário, caramencantadoscom

Rigoberto.”) Essa época era puritana e cheia de preconceitos, não,madrasta? Sim,

semdúvida,porquê?PorqueMarieSoukupnãosabianadadavida;nãotinhamlhe

ensinadonemcomosefaziamosbebês,apobrezinhaachavaqueeleseramtrazidos

deParispelascegonhas.(Amadrastanãoseriaigualmenteinocentequandosecasou?

Não,donaLucreciajásabiatudooqueprecisavasaber.)TãoinocenteeraMarieque

sequersedeucontadeterengravidadoeachouqueseumal-estareraculpadasmaçãs,

que adorava. Mas isso era adiantar a história. Convinha retroceder à viagem de

núpcias.Alitinhacomeçadotudo.

—Oqueaconteceunessaluademel?

—Nada—disseomenino,endireitando-separaassoaronariz.Tinhaosolhos

inchados,masapalidezdesaparecera.Estavaenvolvidodecorpoealmanorelato.—

Marietevemedo.Nostrêsprimeirosdias,nãodeixouqueosenhorAdolfatocasse.

Ocasamentonãoseconsumou.Doquevocêestárindo,madrasta?

—Deouvi-lofalarcomoumvelho,sendoopedacinhodehomemqueaindaé.

Não se aborreça, a história me interessa muito. Bom, nos três primeiros dias de

casados,AdolfeMarie,nadadenada.

—Nãoépararir—condoeu-seFonchito.—Émaisparachorar.Aluademel

foi em Trieste. Para recordar essa viagem dos pais, Egon Schiele e Gerti, sua

irmãzinhapredileta,fizeramumaviagemidêntica,em1906.

EmTrieste,duranteafrustrada luademel,começouatragédia.Porque,como

suaesposanãosedeixavatocar—chorava,esperneava,arranhava-o,faziaumgrande

escândalocadavezqueeleseaproximavaparabeijá-la—,osenhorAdolf iaparaa

rua.Paraonde?Consolar-secommulheresdavida.E,emumdesseslugares,Vênuso

contagiou com a sí lis. Essa enfermidade começou a matá-lo aos poucos, desde

então.Fezcomqueeleenlouquecesseedesgraçoutodaafamília.Apartirdaí,caiu

umamaldiçãosobreosSchiele.Adolf,semsaber,contagiousuaesposa,quandopôde

a nal consumar o matrimônio, no quarto dia. Por isso, Marie abortou nas três

primeiras gravidezes; por isso, morreu Elvira, a lhinha que viveu apenas dez

aninhos.E,porisso,Egonfoitãofragilzinhoepropensoadoenças.Tantoque,em

sua infância, achavam que ele morreria, pois vivia consultando médicos. Dona

Lucrecia acabou por vê-lo: uma criança solitária, mexendo com trenzinhos de

brinquedo,desenhando,desenhandootempotodo,emseuscadernosdecolégio,nas

margensdaBíblia,eatéempapéisquecatavanolixo.

—Como vê, você não se parece com ele emnada. SegundoRigoberto, foi a

criançamaissaudáveldomundo.Egostavadebrincarcomaviões,nãocomtrens.

Fonchitoresistiaagracejar.

—Medeixaterminarahistória,ouestáentediada?

Não a entediava, mas sim a entretinha; porém, mais que as peripécias e os

nissecularespersonagens austro-húngaros, apaixãocomqueFonchitoos evocava:

vibrando,movendoolhos emãos, com in exõesmelodramáticas.O terrível dessa

doençaeraquevinhadevagarinhoeàtraição;equedesonravasuasvítimas.Foiessaa

razãopelaqualosenhorAdolfnuncaadmitiuqueapadecia.Quandoseusparenteso

aconselhavam a procurar o médico, protestava: “Estoumais são do que qualquer

um.”Estavanada.Arazãohaviacomeçadoalhefalhar.Egongostavadele,davam-se

muito bem, sofria quando ele piorava.O senhor Adolf se punha a jogar baralho

como se seus amigos tivessem vindo, mas estava sozinho. Distribuía as cartas,

conversava com eles, oferecia-lhes cigarros, e à mesa da casa deTulln não havia

ninguém.Marie,MélanieeGertiqueriamfazê-loverarealidade,“Mas,papai,não

há com quem falar, com quem jogar, não percebe?”. Egon as desmentia: “Não é

verdade, pai, não lhes dê ouvidos, estão aqui o chefe da guarda, o diretor dos

correios, o mestre-escola. Seus amigos estão com você, pai. Eu também os vejo,

comovocê.”Nãoqueriaaceitarqueseupaitinhavisões.Derepente,osenhorAdolf

envergava seu uniformede gala, boné de viseira brilhante, botas reluzentes, e ia se

plantarnaplataforma,emposiçãodesentido.“Oqueestáfazendoaqui,pai?”“Vou

receber o Imperador e a Imperatriz, lho.” Já estava louco. Não pôde continuar

trabalhandonaferrovia,tevedeseaposentar.Devergonha,osSchielesemudaramde

Tulln para um lugar onde ninguém os conhecia: Klosterneuburg. Em alemão

signi ca “A aldeia nova do convento”.O senhorAdolf piorou, já não sabia falar.

Passavaosdiasnoquarto, semabriraboca.Viu?Viu?Subitamente,umaagitação

angustiosaseapoderoudeFonchito:

—Igualzinhoaopapai,poisentão—explodiu,comumguinchodesa nado.—

Eletambémvoltadotrabalhoenãoquerfalarcomninguém.Nemcomigo.Aténos

sábadosedomingos,amesmacoisa: trancadonoescritório,odia inteiro.Quando

puxoconversa,“Sim”,“Não”,“Bom”.Nãosaidisso.

Teria sí lis? Estaria enlouquecendo? Talvez tivesse contraído a doença pela

mesmarazãoqueosenhorAdolf.Porque cousozinho,quandoasenhoraLucrecia

odeixou.FoiaalgumacasasuspeitaeVênusocontagiou.Nãoqueriaqueopapai

morresse,madrasta!

Caiunochorodenovo,destavez semruído,paradentro, cobrindoo rosto, e

acalmá-lo deu mais trabalho a dona Lucrecia do que antes. Ela o consolou, que

delíriosabsurdos,acarinhou-o,Rigobertonãotinhanenhumaenfermidade,ninou-o,

estava mais lúcido do que ela e Fonchito, sentindo as lágrimas daquela cabeça

rubicundamolharemopeitilhodoseuvestido.Depoisdemuitosmimos,conseguiu

serená-lo.Rigobertogostavade se trancarcomsuasgravuras, comseus livros, com

seus cadernos, para ler, ouvir música, escrever suas citações e re exões. Por acaso

Fonchitonãooconhecia?Elenãotinhasidosempreassim?

—Não,nemsempre—negouomenino,com rmeza.—Antes,mecontavaas

vidasdospintores,meexplicavaosquadros,meensinavacoisas.Emeliaalgodeseus

cadernos.Comvocê,eleria,saía,eranormal.Desdequevocêfoiembora,mudou.

Ficou triste. Agora, nem sequer se interessa pelas notas que eu tiro; assinaminha

cadernetasemolhar.Aúnicacoisaquelheimportaéseuescritório.Sóquersetrancar

ali,horasehoras.Vaificarlouco,comoosenhorAdolf.Quemsabeatéjáficou.

Omeninohaviajogadoosbraçosaopescoçodamadrastaereclinavaacabeçano

seuombro.NoOlivar, ouviam-se gritinhos e correrias de crianças, como todas as

tardes,quando,àsaídadoscolégios,osestudantesdavizinhançaa uíamaoparque

vindosdasincontáveisesquinasparafumarumcigarroàsescondidasdospais,bater

bolaenamorarasmeninasdobairro.PorqueFonchitonuncafaziaessascoisas?

—Você ainda gosta do papai, madrasta?— A pergunta voltava carregada de

apreensão,comosedarespostadependesseumavidaouumamorte.

—Eujálhedisse,Fonchito.Nuncadeixeidegostardele.Porqueisso,agora?

—Ele está assim porque tem saudade. Porque ama você, madrasta, e não se

conformacomquevocênãomoremaisconosco.

—Ascoisasaconteceramcomoaconteceram—donaLucrecialutavacontraum

mal-estarcrescente.

— Não está pensando em se casar outra vez, está, madrasta? — insinuou

timidamenteomenino.

—Éaúltimacoisaqueeufarianavida,mecasardenovo.Nuncadenúncaras.

Alémdisso,Rigobertoeeunemestamosdivorciados,sóseparados.

—Então,podemfazeraspazes!—exclamouFonchito,comalívio:—Quem

briga pode fazer as pazes. Eu brigo e co de bem todos os dias, com colegas do

colégio.Vocêvoltariaparanossacasa,eJustitatambém.Seriatudocomoantes.

“Ecuraríamosopapaizinhoda loucura”,pensoudonaLucrecia.Estava irritada.

Tinha parado de achar graça nas fantasias de Fonchito. Cólera surda, amargura,

rancor a invadiam, àmedida que suamemória desempoeirava asmás lembranças.

Segurouomeninopelos ombros e o afastouumpoucode si.Observou-o, cara a

cara, indignada com que aqueles olhinhos azuis, inchados e vermelhos, resistissem

com tanta limpidez à suamirada carregada de reprimendas. Seria possível que ele

fosse tão cínico?Aindanãohavianemchegado à adolescência.Deque jeitopodia

falardarupturaentreelaeRigobertocomodealgoalheio,comosenãotivessesido

eleacausadoacontecido?Nãotinhaarmado,a nal,paraqueRigobertodescobrisse

todooenredo?Orostinhoarrasadopelaslágrimas,ostraçosdesenhadosapincel,os

lábios rosados, as pestanas recurvadas, o queixinho rme encaravam-na com

inocênciavirginal.

— Você sabe melhor do que ninguém o que aconteceu — disse a senhora

Lucrecia, entre dentes, tentando evitar que sua indignação transbordasse em uma

explosão.—Sabemuitobemporqueeueelenosseparamos.Nãomevenhabancar

omeninobonzinho, a igidopor essa separação.Você teve tanta culpaquanto eu,

talvezatémaisdoqueeu.

—Porissomesmo,madrasta—cortou-lheapalavraFonchito.—Eu zvocês

brigarem,eporissomecabeareconciliação.Masvocêtemquemeajudar.Vaifazer

isso,nãoé?Digaquesim,madrasta.

DonaLucrecianãosabiaoqueresponder;queriaesbofeteá-loebeijá-lo.Sentiaas

faces acaloradas. Para culminar, o sem-vergonha do Fonchito, em nova mudança

bruscadeânimo,agorapareciacontente.Subitamente,soltouumagargalhada.

—Vocêcorou—disse,jogando-lheoutravezosbraçosaopescoço.—Então,a

respostaésim.Gostomuitodevocê,madrasta!

—Primeiro lágrimas,eagora riso—disse Justiniana,aparecendonocorredor.

—Pode-sesaberoqueestáacontecendoaqui?

—Temosumagrandenotícia—acolheu-aomenino.—Vamoscontaraela,

madrasta?

—Não é Rigoberto, mas você, quem está de parafuso frouxo— disse dona

Lucrecia,dissimulandoosufoco.

—VaiverqueVênustambémmecontagioucomsí lis—gracejouFonchito,

virandoosolhos.E,nomesmotom,àempregada:—Opapaieamadrastavãofazer

aspazes,Justita!Oqueachadanovidade?

Diatribe contra o desportista

ConstatoqueosenhorsurfanasondasencrespadasdoPací coduranteoverão,no

invernodeslizadeesquinaspistaschilenasdePortilloenasargentinasdeBariloche

(jáqueosAndesperuanosnãopermitemessasveadagens),transpiratodasasmanhãs

noginásio fazendoaeróbica,oucorrendoempistasdeatletismo,ouemparquese

ruas, metido nummacacão térmico que lhe franze o cu e a barriga tal como os

corpetes de antanho as xiavam nossas avós, e não perde uma partida da seleção

nacional, nem o clássico Alianza Lima versus Universitario de Deportes, nem

campeonatodeboxepelo título sul-americano, latino-americano,norte-americano,

europeu ou mundial, ocasiões em que, pregado diante da tela do televisor e

amenizandooespetáculocomgolesdecerveja,cuba-libreouuísqueontherocks, seesganiça,secongestiona,uiva,gesticulaousedeprimecomasvitóriasouderrotasdos

seusídolos,comocabeaotorcedordecarteirinha.Razõesdesobra,cavalheiro,para

queeucon rmeminhaspioressuspeitassobreomundoemquevivemoseconsidere

osenhorumdescerebrado,umcretino,umsubnormal.(Usooprimeiroeoterceiro

termoscomometáforas;odomeio,emsentidoliteral.)

Sim,efetivamente,emseuatro adointelectofez-sealuz:consideroapráticados

esportes emgeral eo culto àpráticade esportes emparticular formas extremasda

imbecilidade,queaproximamoserhumanodocarneiro,dosgansoseda formiga,

três instâncias agravadasdogregarismoanimal.Acalme suas ânsiasdepraticantede

lutalivrepormetriturareescute,falaremosdosgregosedohipócritamens sana incorporesanodaquiapouco.Antes,devodizer-lhequeosúnicosesportesqueeuliberodopelourinho sãoosdemesa (excluídoopingue-pongue) eosde cama (incluída,

claro,amasturbação).Quantoaosoutros,aculturacontemporâneaostransformou

emobstáculosparaodesenvolvimentodoespírito,dasensibilidadeedaimaginação

(e, portanto, doprazer).Mas, sobretudo, da consciência e da liberdade individual.

Nada contribuiu tanto nestes tempos,mais ainda do que as ideologias e religiões,

parapromoverodesprezívelhomem-massa, esse robôde re exoscondicionados, e

paraaressurreiçãodaculturadoprimatadetatuagemetapa-sexo,emboscadoatrás

da fachada da modernidade, quanto a divinização dos exercícios e jogos físicos

operadapelasociedadedosnossosdias.

Agora,podemosfalardosgregos,paraqueosenhornãomeenchamaisosaco

com Platão e Aristóteles. Mas, previno-o, o espetáculo dos efebos atenienses

lambuzando-secomunguentosnoGymnasiumantesdemedirsuadestrezafísica,ou

lançandoodiscoeodardosobopuríssimoazuldocéugrego,nãoviráajudá-lo,e

simafundá-loaindamaisnaignomínia,prezadobobalhãodemúsculosendurecidos

às custas de seu caudal de testosterona e do desabamento do seuQI. Somente os

chutesdo futebolouos socosdoboxe,ouaindaas rodasautistasdociclismo,ea

prematura demência senil (além do de nhamento sexual, da incontinência e da

impotência)queeles costumamprovocar, explicamapretensãodeestabeleceruma

linhadecontinuidadeentreosentunicadosfedrosdePlatãountando-secomresinas,

depois de suas sensuais e losó cas demonstrações físicas, e as hordas ébrias que

rugemnasarquibancadasdosestádiosmodernos (antesde incendiá-las)porocasião

das partidas de futebol contemporâneas, nas quais vinte e dois palhaços

desindividualizadosporuniformesdecoresespalhafatosas,agitando-senoretângulo

de grama atrás de uma bola, servem de pretexto para exibicionismos de

irracionalidadecoletiva.

O esporte,na épocadePlatão, eraummeio,nãoum m, comovoltou a ser

nestestemposmunicipalizadosdavida.Serviaparaenriqueceroprazerdoshumanos

(omasculino,poisasmulheresnãoopraticavam),estimulando-oeprolongando-o

com a representação de um corpo formoso, tenso, esguio, proporcionado e

harmonioso,eincitando-ocomacalisteniapré-eróticadeunsmovimentos,posturas,

roçadelas,exibiçõescorporais,exercícios,danças,toques,quein amavamosdesejos

atécatapultarparticipanteseespectadoresaoacoplamento.Queessesdesejosfossem

eminentementehomossexuaisnãoacrescentanemsuprimeumasóvírgulaàminha

argumentação, como tampouco que, no domínio do sexo, o subscritor seja

tediosamente ortodoxo e só ame asmulheres— de resto,uma únicamulher—,

totalmente inapetente para a pederastia ativa ou passiva. Entenda-me, não tenho

nenhumaobjeçãoaoquefazemosgays.Celebroqueestejambemeosapoioemsuas

campanhascontraasleisqueosdiscriminam.Nãopossoacompanhá-losmaisalém,

porumaquestãoprática.Nadarelativoaoquevedesco“olhodocu”mediverte.A

Natureza, ouDeus, se existe eperde seu tempo comessas coisas, fezdesse secreto

anilhooorifíciomaissensíveldetodososquemeperfuram.Osupositórioofereea

cânula do clister o ensanguenta (uma vez me foi introduzida, em período de

constipaçãopertinaz,efoiterrível),demodoqueaideiadeexistirembípedesquese

entretêm com alojar ali um cilindro viril me produz uma apavorada admiração.

Tenho certeza de que, no meu caso, além dos gritos, eu experimentaria um

verdadeirocataclismopsicossomáticocomainserção,nodelicadocondutoempauta,

deumavergaviva,mesmosendoestadepigmeu.Oúnicosocoquedeinaminha

vidarecebeu-oummédicoque,semprevenir-meesobopretextodeaveriguarseeu

tinha apendicite, tentou sobre minha pessoa uma tortura camu ada pela etiqueta

cientí ca de “toque retal”. Apesar disso, sou teoricamente favorável a que os seres

humanos façam amor pelo direito ou pelo avesso, sozinhos ou em duplas ou em

promíscuos contubérnios coletivos (eca!), a que homens copulem com homens,

mulheres commulheres e ambos com patos, cachorros, melancias, bananeiras ou

melões,emsuma,souteoricamentefavorávelatodasasasquerosidadesimagináveis,

sepraticadasdecomumacordoeembuscadoprazer,nãodareprodução,acidente

dosexoaoqualconvémresignar-secomoaummalmenor,masquedenenhuma

maneira se deve santi car como justi cação da festa carnal (esta imbecilidade da

Igreja me exaspera tanto quanto uma partida de basquete). Voltando à vaca-fria,

comove-me aquela imagem dos velhotes helênicos, sábios lósofos, augustos

legisladores, aguerridos generais ou sumos sacerdotes indo aos ginásios para

desintumescer sua libido com a visão dos jovens lançadores de disco, lutadores,

maratonistas ou arremessadores de dardos. Esse gênero de esporte, alcoviteiro do

desejo,euoindultoenãovacilariaempraticá-lo,seminhasaúde,minhaidade,meu

sensodoridículoeminhadisponibilidadedetempoopermitissem.

Háoutrocaso,maisremotoaindaparanossoâmbitocultural (nãoseiporque

incluoosenhornestaconfraria, jáque,à forçadechutesecabeçadas futebolísticas,

suores ciclísticos ou rasteiras de carateca, excluiu-se dela), no qual o esporte tem

também certa desculpa. Quando, praticando-o, o ser humano transcende sua

condiçãoanimal,a oraosagradoeseelevaaumplanodeintensaespiritualidade.Se

zerquestãodequeusemosaarriscadapalavra“mística”,queseja.Obviamente,esses

casos,jámuitoraros,dosquaiséexóticareminiscênciaosacri cadolutadordesumô

japonês,cevadodesdecriancinhacomumaferozsopavegetarianaqueoelefantizaeo

condenaamorrer comocoraçãoarrebentadoantesdosquarenta, e apassar a vida

tentando não ser expulso por outra montanha de carne como ele para fora do

pequeno círculomágicoonde está con nada sua vida, são inassimiláveis aosdesses

ídolosdepacotilhaquea sociedadepós-industrialdenomina“mártiresdoesporte”.

Ondeestáoheroísmoemvirarcanjicaaovolantedeumbólidocommotoresque

fazem o trabalho em vez do homem, ou em retroceder de ser pensante a débil

mental,commiolosetestículosencolhidospelapráticadeatalharoufazergolspor

empreitada,paraquemultidõesinsanassedessexualizemcomejaculaçõesdeegolatria

coletivista a cada tentomarcado?Asatividades e aptidões físicas chamadas esportes

nãoaproximamohomematualdosagradoedoreligioso,afastam-nodoespíritoeo

embrutecem,saciandoseusinstintosmaisignóbeis:avocaçãotribal,omachismo,a

vontadededomínio,adissoluçãodoeuindividualnoamorfogregário.

Não conheço mentira mais abjeta do que a expressão com que se aliciam as

crianças: “Mente sã em corpo são.” Quem disse que umamente sã é um ideal

desejável? “Sã” quer dizer, neste caso, tola, convencional, sem imaginação e sem

malícia, arrebanhada pelos estereótipos da moral estabelecida e da religião o cial.

Mente “sã”, isso? Mente conformista, de beata, de tabelião, de securitário, de

coroinha,devirgemedeescoteiro.Issonãoésaúde,étara.Umavidamentalricae

própriaexigecuriosidade,malícia,fantasiaedesejosinsatisfeitos,istoé,umamente

“suja”,maus pensamentos, oração de imagens proibidas, apetites que induzam a

explorar o desconhecido e a renovar o conhecido, desacatos sistemáticos às ideias

herdadas,aosconhecimentosmanipuladoseaosvaloresemvoga.

Dito isso, tampouco é certo que a prática dos esportes em nossa época crie

mentes sãs no sentido banal do termo. Ocorre o contrário, e, melhor do que

ninguém, disso sabes tu, que, para vencer os cem metros rasos do domingo,

colocarias arsênico e cianureto na sopa do teu competidor e tragarias todos os

estupefacientes vegetais, químicos ou mágicos que te garantissem a vitória, e

corromperiasosárbitrosouoschantagearias,urdiriasconspiraçõesmédicasoulegais

quedesquali cassemteusadversários,equevivesneurotizadopela xaçãonavitória,

norecorde,namedalha,nopódio,algoquefezdeti,desportistapro ssional,uma

bestamidiática,umantissocial,umneurótico,umhistérico,umpsicopata,nopolo

opostodessesersociável,generoso,altruísta,“são”,aquempretendealudiroimbecil

queaindaseatreveaempregaraexpressão“espíritoesportivo”nosentidodenobre

atletacheiodevirtudescivis,quandooqueseacaçapaatrásdelaéumassassinoem

potencialdispostoaexterminarárbitros,atransformaremtorresmoosfanáticosda

outra equipe, a devastar os estádios e cidades que os albergam e a provocar o

apocalíptico nal,semsequeroelevadopropósitoartísticoquepresidiuoincêndio

deRomapelopoetaNero,mas sóparaque seu clube empunheuma taçade falsa

prataouparaverseusonzeídolosencarapitadosemumpódio, amantesderidículo

em seus calções e camisetas listradas, as mãos no peito e os olhos encandeados,

entoandoumhinonacional!

Os irmãos corsos

Natardemodorrentadaqueledomingodeinverno,emseuescritóriodiantedocéu

nublado e domar opaco, don Rigoberto folheou ansiosamente seus cadernos em

buscadeideiasqueatiçassemsuaimaginação.Aprimeiracomquetopou,Sexistoogoodto sharewithanyoneelse,dopoetaPhilipLarkin,recordou-lhemuitasversões

plásticas do jovem Narciso, deleitando-se com sua imagem re etida na água do

poço,eohermafroditaadormecidodoLouvre.Mas,inexplicavelmente,odeprimiu.

Havia topado outras vezes com essa loso a que depositava exclusivamente sobre

seusombrosaresponsabilidadedoseuprazer.Seriacorreta?Teriasidoalgumdia?Na

verdade, mesmo em seus momentos mais puros, sua solidão tinha sido um

desdobramento,umencontroaoqualLucrecianuncafaltara.Umdébildespertardo

ânimo fez renascer a esperança: ela tampouco faltaria desta vez. A tese de Larkin

convinha,comoanelaodedo,aosanto(outrapáginadocaderno)dequemLytton

Strachey falava emEminentVictorians,SãoCuthbert,oqualdescon ava tantodas

mulheres que, quando conversava com elas, inclusive com a futura Santa Ebba,

passava “em oração as seguintes horas de sombra, submergido em água até o

pescoço”.Quantosresfriadosepneumoniasporumaféquecondenavaocrenteao

larkinianoprazersolitário!

Passou como sobre brasas por uma página em que Azorín recordava que

“capricho vem de cabra”. Fascinado, deteve-se na descrição, feita pelo diplomata

AlfonsodelaSerna,daSinfoniadosadeusesdeHaydn,“naqualcadamúsico,quando

acaba suapartitura,apagaavelaque ilumina seuatril e sevai, atéque resta sóum

violino,tocandosuasolitáriamelodia nal”.Nãoeraumacoincidência?Nãocasava

de maneira misteriosa, como que se dobrando a uma ordem secreta, o violino

monologantedeHaydncomoegoístaprazenteiro,PhilipLarkin,paraquemosexo

eraimportantedemaisparasercompartilhado?

Ele, contudo, embora situasse o sexo no mais alto posto, sempre o

compartilhara,mesmoemseuperíododemais ácida solidão: este.Amemória lhe

trouxe àmente, sem rima nem razão, o atorDouglas Fairbanks, duplicado numa

película que inquietara sua infância:Os irmãos corsos. Claro, nunca havia

compartilhadoosexocomninguémdemaneiratãoessencialquantocomLucrecia.

Tinha-o compartilhado também, quando criança, adolescente e adulto, com seu

próprioirmãocorso,Narciso?,comquemsempreseentendera,emborafossemtão

diferentesemespírito.Masessesjogosebrincadeiraspicantes,tramadosedesfrutados

pelos irmãos, não correspondiam ao sentido irônico em que o poeta-bibliotecário

utilizava o verbo compartilhar. Folheando, folheando, caiu emO mercador deVeneza:

ThemanthathathnomusicinhimselfNorisnotmovedwithconcordofsweetsounds,Isfitfortreasons,stratagems,andspoils.

(AtoV,cenaI)

“O homem que não traz música em si mesmo/ Nem se emociona com o

encadeamento de doces sons/ É propenso à intriga, à fraude e à traição”, traduziu

livremente.Narcisonãotraziaemsinenhumamúsica,erafechadodecorpoealma

aosfeitiçosdeMelpômene,incapazdedistinguiraSinfoniadosadeusesdeHaydndo

Mambonúmero5dePérezPrado.TeriarazãoShakespeare,quandolegislavaqueessasurdezparaamaisabstratadasartesfaziadeleumpotencialenredador,trapaceiroe

fraudulentobípede?Bom,talvezfosseverdade.OsimpáticoNarcisonãotinhasido

ummodelo de virtudes cívicas, privadas ou teologais, e chegara à idade provecta

jactando-se,comoobispoHaroldo(dequemeraacitação?Areferênciahaviasido

devoradapelasibilinaumidade limenhaoupelasofreguidãodeumatraça),emseu

leitodemorte,deterpraticadotodososvícioscapitaistãoassiduamentequantoseu

pulso latejava e os sinos do seu bispado repicavam. Se não fosse de tal disposição

moral, jamais teria ousado propor, naquela noite, ao seu irmão corso — don

Rigoberto sentiu que em seu foro íntimodespertava aquelamúsica shakespeariana

queele,sim,acreditavatrazerconsigo—,otemeráriointercâmbio.Anteseusolhos

desenharam-se,sentadasumajuntoàoutra,naquelasalinhamonumentoaokitsch eblasfemaprovocaçãoàs sociedadesprotetorasdeanimais, eriçadade tigres,búfalos,

ursos, rinocerontesecervosembalsamadosdacasadeLaPlanicie,Lucreciae Ilse,a

louraesposadeNarciso,nanoitedaaventura.OBardotinharazão:asurdezparaa

músicaera sintoma(causa,quemsabe?)devilezadaalma.Não, issonãopodia ser

generalizado; porque, assim, seria preciso concluir que Jorge Luis Borges e André

Breton,porsuainsensibilidademusical,foramJudaseCaim,quandoerasabidoque

amboshaviamsido,paraescritores,boníssimaspessoas.

Seu irmão Narciso não era um demônio; aventureiro, e só. Dotado de uma

endiabradahabilidadeparatirardesuavocaçãotransumanteedesuacuriosidadepelo

proibido, o secreto e o exótico, um grande partido crematístico. Mas, como era

mitômano,nãoerafácildistinguirentreverdadeefantasianasperipéciascomqueele

costumavamanterenfeitiçadoseuauditório,nahora(sinistra)dojantardegala,da

festadecasamentooudocoquetel,cenáriosdesuasgrandesperformancesnarrativas.

Porexemplo,donRigobertonuncaacreditaradetodoqueeletivesseamealhadoboa

parte de sua fortuna contrabandeando, para os países prósperos daÁsia, chifres de

rinoceronte, testículos de tigre e pênis de morsas e focas (os dois primeiros

procedentesdaÁfrica,osdoisúltimosdoAlasca,daGroenlândiaedoCanadá).Esses

revestimentoserampagosapreçodeouroemlugarescomoTailândia,HongKong,

Taiwan, Coreia, Cingapura, Japão, Malásia e até na China comunista, pois os

conhecedores os tinham por poderosos afrodisíacos e remédios infalíveis contra a

impotência. Justamente, naquela noite, enquanto os irmãos corsos e as duas

cunhadas,IlseeLucrecia,tomavamoaperitivo,antesdojantar,naquelerestaurante

da Costa Verde, Narciso os entretivera contando uma disparatada história de

afrodisíacos da qual tinha sido herói e vítima, na Arábia Saudita, onde jurava—

detalhesgeográ cos e irreteníveisnomes árabes cheiosde jotas comocomprovação

—terestadoprestesaserdecapitadonapraçapúblicadeRiad,quandosedescobrira

que ele contrabandeava uma maleta de comprimidos de Captagon (fenicilina

hidroclorídrica) para manter a potência sexual do luxurioso xeque Abdelaziz Abu

Amid, a quem as quatro esposas legítimas e as oitenta e duas concubinas do seu

harémmantinhamumtantofatigado.Oxequelhepagavaemouroocarregamento

deanfetaminas.

— E ayobimbina? — perguntou Ilse, interrompendo a narrativa do marido,

justamentenomomentoemqueelecompareciaanteumtribunaldeenturbantados

ulemás.—Produzmesmoesseefeitoquedizem,emtodasaspessoas?

Semperdadetempo,seubem-apessoadoirmão—semumpingodeinveja,don

Rigoberto rememorou como, após terem sido indiferenciáveis quando crianças e

jovens,aidadeadultaosforadistinguindo,e,agora,asorelhasdeNarcisopareciam

normais secomparadascomosespetacularesabanosqueoadornavam,eonariz se

mostrava reto e modesto quando cotejado com o saca-rolhas ou a tromba de

tamanduá comque ele olfateava a vida— lançou-se auma erudita arenga sobre a

ioimbina (chamadayobimbina no Peru por causa da preguiçosa tendência fonéticadosnativos, aquemoagáaspiradodeyohimbinadavamais trabalhobucaldoque

umbê).OdiscursodeNarcisodurouoaperitivo—piscosour para os cavalheiros,vinhobranco geladopara as damas—,o arroz commariscos e as panquecas com

manjar-brancodojantar,eteve,noqueaeleconcernia,oefeitodeumacomichante

ansiedadepré-sexual.Nessemomento,caprichosdoacaso,ocadernolhedeparoua

indicaçãoshakespearianadequeaspedrasturquesasmudamdecorparaalertarquem

asusasobreumperigoiminente(OmercadordeVeneza ,outravez).Narciso falavasério,sabiaouinventavaessaciência,comaintençãodecriaroambientepsicológico

e a amoralidadepropícios à sugestãoque fariamais tarde?Não lheperguntara isso

nemofaria,pois,aestaaltura,oqueimportava?

DonRigobertocomeçouarir,eagrisalhadatardeamainou.OMonsieurTeste,

de Valéry, jactava-se ao pé dessa página: “A estupidez não combina comigo” ( Labêtise n’est pasmon fort). Sorte dele; donRigoberto, na companhia de seguros, já

havia passadoumquartode século rodeado, submergido, as xiadopela estupidez,

até transformar-se emum especialista. SeriaNarciso ummero imbecil?Mais um,

naquele protoplasma limenho autodenominado gente decente? Sim.O que não o

impedia de ser ameno, quando a isso se propunha.Nessanoite, por exemplo.Ali

estavaograndemaçante,rostobemrasuradoetezbronzeadapeloócio,explicandoo

alcaloide de um arbusto, “iobimbina”, também chamado ioimbina, de ilustre

progênienatradiçãoherboristaenamedicinanatural.Aumentavaavasodilataçãoe

estimulava os gânglios que controlam o tecido erétil, e inibia a serotonina, cujo

excessobloqueiaoapetitesexual.Suacálidavozdesedutorveteranoeseusademanes

combinavam com o blazer azul, a camisa cinza e o lencinho de seda escuro, de

bolinhas brancas, enrolado no pescoço. Sua exposição, intercalada de sorrisos,

mantinha-se no astuto limite entre a informação e a insinuação, a anedota e a

fantasia, a sabedoria e a trivialidade, a diversão e a excitação. Don Rigoberto

percebeu, de repente, que os olhos verde-marinhode Ilse e os escuros topázios de

Lucrecia cintilavam. Teria, seu sabichão irmão corso, perturbado as senhoras? A

julgar pelos risinhos delas, por seus chistes e perguntas, seu cruzar e descruzar de

pernas,pelaalegriacomqueesvaziavamoscoposdevinhochilenoConchayToro,

tinha,sim.Porqueasduasnãoexperimentariamomesmodeslizedeânimoqueele?

Narcisojáteria,aessaalturadanoite,seuplanoarmado?Comcerteza,decretoudon

Rigoberto.

Por isso, destramente, não lhes dava respiro nem permitia que a conversa se

afastassedomaquiavélico rumo traçadopor ele.Da ioimbinapassou adescrevero

fugu japonês, uidotesticulardeumpeixinhoque,alémdeserumtônicoseminal

poderosíssimo, pode produzir uma morte atroz, por envenenamento — assim

perecemacadaanocentenasdelibidinososjaponeses—,eareferirosuorfriocom

queoprovou,naquelanoiteirisadadeKyoto,dasmãosdeumagueixaemquimono

volátil,semsaberseaotérminodaquelesbocadosanódinosoesperavamosestertores

eorigormortisoucemexplosõesdeprazer(foiasegundahipótese,reduzidaemum

zero).Ilse,louraescultural,ex-aeromoçadaLufthansa,acriouladavalquíria,aplaudia

seumaridosemciúmeretrospectivo.Foielaquempropôs(cúmplice,talvez?),depois

dafarinhentasobremesa,queterminassemanoitetomandoumdrinqueemsuacasa

deLaPlanicie.DonRigobertodisse“boaideia”,semavaliaraproposta,contagiado

peloentusiasmovisualcomqueLucreciaaacolheu.

Meia hora depois, viram-se instalados nas confortáveis poltronas do pavoroso

salãokitschdeNarcisoeIlse—cafoniceperuanaeordemprussiana—,rodeadosde

bichosdissecadosqueobservavam,impávidos,comgeladosolhosdevidro,osquatro

bebendo uísque, banhados por uma luz indireta, ouvindomelodias de Nat King

Cole e Frank Sinatra e contemplando, pela vidraça que dava para o jardim, os

azulejos da piscina iluminada.Narciso continuava exibindo sua cultura afrodisíaca

comafacilidadecomqueoGranRichardi—donRigobertosuspirou,recordandoo

circo da infância — puxava lencinhos de sua cartola. Mesclando onisciência e

exotismo, assegurou que no sul da Itália cada varão consumia uma tonelada de

manjericão ao longo da vida, pois a tradição assegura que dessa erva aromática

depende, além do bom sabor dos talharins, o tamanho do pênis, e que na Índia

vendia-se nos mercados um unguento — ele o presenteava aos amigos que

completavamcinquentaanos—àbasedealhoeremelademacacoque,esfregadono

lugarcabível,provocavaereçõesemsérie,comoespirrosdealérgico.Assoberbando-

os,ponderouasvirtudesdasostras,doaipo,docoreanoginseng,dasalsaparrilha,do

alcaçuz,dopólen,dastrufasedocaviar, levandodonRigobertoasuspeitar,depois

deescutá-lopormaisdetrêshoras,dequeprovavelmentetodososprodutosanimais

e vegetais domundo estavam concebidos para favorecer esse entrevero dos corpos

chamado amor físico, cópula, pecado, ao qual os humanos (ele não se excluía)

concediamtantaimportância.

Nessemomento,Narciso o afastou das damas, tomando-o pelo braço, sob o

pretexto de lhemostrar a últimapeça de sua coleção de bengalas (que outra coisa

poderia colecionar, além de feras embalsamadas, essa besta priápica, esse falo

ambulante,senãobengalas?).Opiscosour,ovinhoeoconhaquehaviamobtidoseu

efeito.Emvezdecaminhar,donRigobertonavegouatéoescritóriodeNarciso,em

cujas estantes, claro, montavam guarda, não abertos, os encadernados volumes da

EncyclopædiaBritannica, asTradiciones peruanas de Ricardo Palma e aHistória dacivilização do casal Durant, além de um romance de bolso de Stephen King. De

chofre, baixando a voz,Narciso lhe perguntou ao ouvido se ele recordava aquelas

longínquaspicardiascomasmoças,naplateiadocinemaLeuro.Quais?Mas,antes

queseuirmãorespondesse,lembrou-se.Ostroca-trocas!Oadvogadodacompanhia

iria de ni-los: usurpação de identidade.Aproveitando a semelhança e reforçando-a

comidênticostrajesepenteados,faziam-sepassarumpelooutro.Assim,beijavame

acariciavam—“tirarsarro”,dizia-seentão—anamoradaalheia,enquantoduravao

filme.

—Quetempos,irmão—sorriudonRigoberto,entregueànostalgia.

—Você achava que elas não se davam conta e nos confundiam— recordou

Narciso.—Nuncaoconvencidequetopavam,sim,porqueojoguinhoasdivertia.

—Não, não se davam conta— a rmou Rigoberto.—Nunca deixariam. A

moral da época não o permitia. Lucerito e Chinchilla?Tão formaizinhas, tão de

missaecomunhão,nunca!Iriamnosdenunciaraosseuspais.

—Vocêtemumconceitoexcessivamenteangelicaldasmulheres—admoestou-

oNarciso.

—Éoquelheparece.Aquestãoéqueeusoudiscreto,enãocomovocê.Mas

cadaminutoquenãodedico àsobrigaçõesquemedãode-comer, euo invistono

prazer.

(Nessemomento,ocadernolhepresenteouumacitaçãopropícia,deBorges:“O

deverdetodasascoisaséserumafelicidade;senãoforemumafelicidade,sãoinúteis

ouprejudiciais.”AdonRigobertoocorreuumaanotaçãomachista:“Ese,emvezde

coisas,puséssemosmulheres,comoficaríamos?”)

—Vidasóexisteuma,irmão.Vocênãoteráumasegundaoportunidade.

—Depoisdessasmatinês,íamosàzonaemHuatica,aoquarteirãodasfrancesas

— devaneou don Rigoberto. — Tempos sem aids, de inofensivos piolhos-das-

virilhaseumaououtrasimpáticagonorreia.

— Não acabaram. Continuam presentes — a rmou Narciso. — Nós não

morremosnemvamosmorrer.Éumadecisãoirrevogável.

Seusolhoschamejavam, suavozerapastosa.DonRigobertocompreendeuque

nadadoqueouviaeraimprovisado;que,portrásdessasastutasevocações,haviauma

conspiração.

—Quermedizeroqueestátramando?—perguntou,curioso.

—Vocêsabedesobra,irmãozinhocorso—disseoloboferoz,aproximandoa

boca da orelha adejante de don Rigoberto. E, sem mais delongas, formulou sua

proposta: — O troca-troca. Mais uma vez. Hoje mesmo, agora mesmo, aqui

mesmo. Ilse não lhe agrada? Lucre, a mim, muitíssimo. Como com Lucerito e

Chinchilla. Por acaso poderia haver ciúme, entre nós dois? Vamos rejuvenescer,

irmão!

Nasolidãodominical,ocoraçãodedonRigobertoseacelerou.Desurpresa,de

emoção,decuriosidade,deexcitação?E,comonaquelanoite,elesentiuaurgênciade

matarNarciso.

— Já estamos velhos e somosmuito diferentes para que nossasmulheres nos

confundam—articulou,bêbadoeatordoado.

—Nãoénecessárioquenosconfundam—retrucouNarciso,muitosegurode

si. — São mulheres modernas, não precisam de pretextos. Eu cuido de tudo,

malandro.

“Nuncadenúncaraseuvoubrincardetroca-trocanaminhaidade”,pensoudon

Rigoberto, sem abrir a boca. A assomante carraspana de pouco antes se dissipara.

Caramba! Narciso, sim, é que era resoluto. Já o agarrava pelo braço e o trazia

rapidamente de volta ao salão das feras empalhadas, onde, em cordialíssima

fofocagem, Ilse e Lucrecia despedaçavam uma amiga comum a quem um recente

liftingdeixaracomosolhosabertosatéaeternidade(ou,pelomenos,atéacovaoua

cremação). E já estava anunciando que chegara o momento de abrir um Don

Pérignonreservaespecial,guardadoparaocasiõesextraordinárias.

Minutosdepois,ouviamoestouroespumanteejábrindavamosquatrocomessa

pálidaambrosia.Asbolhasquelhedesciampeloesôfagoprecipitavamnoespíritode

donRigobertoumaassociaçãocomotemaquehaviamonopolizadoseuirmãocorso

portodaanoite:Narcisoteria incrementadooalegrechampanhequebebiamcom

um daqueles inumeráveis afrodisíacos dos quais se dizia contrabandista e perito?

Porque os risos e a desenvoltura de Lucrecia e Ilse aumentavam, propiciando

audácias, e ele mesmo, que cinco minutos antes se sentia paralisado, confuso,

assustado e revoltado comaproposta—contudo,não se atrevera a rechaçá-la—,

agora a encarava commenos indignação, comoumadaquelas irresistíveis tentações

que o incitavam, em sua juventude católica, a cometer os pecadilhos que, depois,

descreviacontritonapenumbradoconfessionário.Entrenuvenzinhasdefumaça—

eraseuirmãocorsoquemfumava?—,viu,cruzadas,entreosferoscolmilhosdeum

felinoamazônicoedestacando-sesobreotapetetigradodasala-zoológico-funerária,

aslongas,brancasedepiladaspernasdesuacunhada.Aexcitaçãosemanifestoucom

umadiscretacomichãonabocadoventre.Via-lhe tambémos joelhos, redondose

acetinados, daqueles que a galanteria francesa chamava de polis, anunciando umas

profundidadesmaciças,semdúvidaúmidas,sobaquelasaiaplissadadecorcastanho-

avermelhada.O desejo o percorreu de alto a baixo. Assombrado consigomesmo,

pensou: “A nal, por que não?” Narciso havia tirado Lucrecia para dançar e,

enlaçados, os dois começavam a menear-se, devagarinho, junto à parede artilhada

comgalhadurasdecervosecabeçasdeursos.Ociúmeacudiuparatemperarcomum

sabor agridoce (não para substituir nem destruir) seus maus pensamentos. Sem

vacilar,eleseinclinou,pegoueretirouataçaqueIlsesegurava,eatraiu-a:“Querser

meupar,cunhadinha?”Seuirmão,éclaro,haviapostoumasucessãodebolerosque

induziamadançaragarradinho.

Sentiuumapontadanocoraçãoquando,porentreoscabelosdavalquíria,notou

queseuirmãocorsoeLucreciaevoluíamfacecontraface.Elelheenvolviaacinturae

ela,opescoçodele.Desdequando,essascon anças?Emdezanosdecasamento,não

recordava nada parecido. Sim, o malé co do Narciso devia ter incrementado as

bebidas.Enquantoseperdiaemconjeturas,comobraçodireito foraaproximando

doseuocorpodacunhada.Estanãoresistia.Quandosentiuemsuascoxasoroçar

das dela e os ventres se tocaram, don Rigoberto disse a si mesmo, não sem

inquietude,quejánadanemninguémpoderiaevitaraereçãoquelhevinha.Eveio,

de fato,nomesmomomentoemque sentiuna suaabochechade Ilse.O mda

músicalheprovocouoefeitodogongoemumaimpiedosalutadeboxe.“Obrigado,

belíssimaBrunegilda”,disse,beijandoamãodacunhada.E,tropeçandoemcabeças

carniceiras recheadas de estuque oupapier mâché, avançou até onde estavam se

desenlaçando—comrepulsa,cominapetência?—LucreciaeNarciso.Tomounos

braçossuamulher,murmurando,ácido:“Meconcedeestadança,esposa?”Levou-a

atéocantomaisescurodasala.ViupelorabodoolhoqueNarcisoeIlsetambémse

enlaçavameque,emummovimentoharmonizado,começavamasebeijar.

Estreitandocomforçaocorposuspeitamentelânguidodesuamulher,percebeu

quesuaereçãorenascia;agora,elesegrudavasemmelindresaessaformaconhecida.

Lábioscontralábios,sussurrou:

—SabeoqueNarcisomepropôs?

— Posso imaginar — retrucou Lucrecia, com uma naturalidade que

desconcertoudonRigoberto,aindamaisporqueemseguidaelausouumverboque

nenhumdosdoishaviajamaisproferidonaintimidadeconjugal:—Quevocêtrepe

comIlse,enquantoeletrepacomigo?

Teve ímpetos demachucá-la; mas, em vez disso, beijou-a, assaltado por uma

daquelasapaixonadasefusõesàsquaiscostumavaserender.Dilacerado,sentindoque

podiacomeçarachorar, sussurrouqueaamava,queadesejava,quenuncapoderia

agradecer a felicidade que lhe devia. “Sim, sim, eu amo você”, disse em voz alta.

“Com todos os meus sonhos, Lucrecia.” A grisalha do domingo barranquino se

atenuou, a solidão do escritório se amorteceu. Don Rigoberto notou que uma

lágrima se desprendera de sua face e manchara uma citação oportuníssima do

valeryano (valeriana e Valéry, que casamento feliz!) Monsieur Teste, que assim

de niasuaprópriarelaçãocomoamor:Toutcequim’étaitfacilem’étaitindifférentetpresqueennemi.

Antesqueatristezaseapoderassedeleeocálidosentimentodeuminstanteatrás

naufragasse de todo na corrosiva melancolia, fez um esforço e, entrecerrando os

olhos,forçandosuaatenção,voltouàquelasaladasferas,àquelanoiteadensadapela

fumaça—quemfumavaeraNarciso,Ilse?—,àsperigosasmisturas,aochampanhe,

ao conhaque, ao uísque, à música e ao relaxado clima que os envolvia, já não

divididos emdois casais estáveis, precisos, comono iníciodanoite, antes de irem

jantar no restaurante da Costa Verde, mas embaralhados, casais precários que se

desfaziamerefaziamcomumaligeirezaquecorrespondiaàquelaatmosferaamorfa,

cambiante como gura de caleidoscópio. Tinham apagado a luz? Fazia tempo.

Narciso,quemmais?Asaladasferasmortasestavatenuementeiluminadapelaluzda

piscina,quedeixavadivisarapenassombras,silhuetas,contornossemidentidade.Seu

irmão corso preparava bem as emboscadas. Corpo e espírito de don Rigoberto

haviam acabado por dissociar-se; enquanto este divagava, tentando averiguar se

chegaria às últimas consequências no jogo proposto porNarciso, aquele já jogava

comdesembaraço, emancipado de escrúpulos.A quem acariciava agora, enquanto,

simulandodançar,permaneciamexendo-seno lugar,comavaga sensaçãodequea

músicasilenciavaeserenovavaacadamomento?LucreciaouIlse?Nãoqueriasaber.

Que sensação prazerosa, esta forma feminina soldada a ele, cujos peitos sentia

deliciosamenteatravésdacamisa, eestepescoço tersoque seus lábiosmordiscavam

devagarinho,avançandoparaumaorelhacujacavidadeoápicedesualínguaexplorou

comavidez.Não,esteossinhooucartilagemnãoeradeLucrecia.Levantouacabeçae

tentou perfurar a semiescuridão do canto onde recordava ter visto, ummomento

antes,Narcisodançando.

—Faztempoquesubiram.—AvozdeIlseressoouemseuouvidoimprecisae

aborrecida.Eleatépôdedetectarumtomzombeteiro.

—Paraonde?—perguntouestupidamente, envergonhando-senamesmahora

desuaestupidez.

—Paraondevocêacha?—retrucouIlse,comumrisinhomalvadoeumhumor

alemão.—Veralua?Fazerxixi?Paraondevocêimagina,cunhadinho?

— Em Lima nunca se vê a lua— balbuciou don Rigoberto, soltando Ilse e

afastando-se.—Eosol,apenasnoverão.Porcausadamalditaneblina.

—Fazmuito tempo queNarciso deseja Lucre—disse Ilse, devolvendo-o ao

cavaletedossuplícios,semlhedarrespiro;falavacomoseoassuntonãofossecom

ela.—Nãomedigaquenãopercebeu,vocênãoétãolerdoassim.

A embriaguez se dissipou, e também a excitação. Ele começou a transpirar.

Mudo,atoleimado,perguntava-secomoerapossívelqueLucreciativesseconsentido

com tanta facilidade na maquinação do seu irmão corso, quando, outra vez, a

insidiosavozinhadeIlseosacudiu:

—Issolhedáumpouquinhodeciúme,Rigo?

—Bem, sim— reconheceu. E, commais franqueza:—Na realidade,muito

ciúme.

—Amimtambémdava,nocomeço—disseela,comoumabanalidadeamais,

nahoradobridge.—Masvocêseacostuma,eécomosevissechover.

—Bem,bem—disseele,desconcertado.—Ouseja,vocêeNarcisobrincam

muitodetroca-troca?

—Acadatrêsmeses—retrucouIlse,comprecisãoprussiana.—Nãoémuito.

Narciso diz que essas aventuras, para não perderem a graça, devem ser feitas de

quandoemquando.Semprecomgenteselecionada.Dizque,seforemtrivializadas,

jánãohádiversão.

“Ele já deve tê-la despido”, pensou don Rigoberto. “Talvez já a tenha nos

braços.” Lucrecia estaria beijando e acariciando seu irmão corso com a mesma

concupiscênciaqueestedemonstrava?DonRigobertotremiacomoumpossessoda

dançadesãoguidoquandorecebeu,comodescargaelétrica,umanovaperguntade

Ilse:

—Gostariadeverosdois?

Para lhefalar,elahaviaaproximadoorosto.Os lourosecompridoscabelosde

suacunhadametiam-seemsuabocaenosolhos.

—Sério?—murmurou,atônito.

—Gostaria?—insistiuela,roçando-lheaorelhacomoslábios.

—Sim,sim—assentiu,sentindo-sedesossadoeevaporado.

Ilse o tomou pela mão direita. “Devagarinho, caladinho”, instruía. Levou-o

utuando até a escada de volutas de ferro que conduzia aos dormitórios. Estava

escura,assimcomoocorredorcentral,emboraatéestechegassea luzdosre etores

do jardim. O carpete absorvia suas pisadas; avançavam nas pontas dos pés. Don

Rigobertosentiaseucoraçãoacelerado.Oqueoesperava?Oqueiaver?Suacunhada

sedeteveelhedeuoutraordemaoouvido,“Tireossapatos”,aomesmotempoem

queseinclinavaparasedescalçar.DonRigobertoobedeceu.Sentiu-seridículo,como

umladrão,semsapatosedemeias,naquelecorredorsombrio,conduzidopelamão

comose fosseFonchito.“Não faça ruído,arruinaria tudo”,disseela,baixinho.Ele

assentiu,comoumautômato.Ilseavançouumpoucomais,abriuumaportaeofez

adiantar-se. Estavam no dormitório, separados do leito por uma meia-parede de

tijolos, que, por seus interstícios em forma de losango, deixava ver a cama; era

larguíssimaeteatral.Naluzcônicaquedesciadeumalâmpadaembutidanoforro,

don Rigoberto viu seu irmão corso e Lucrecia, fundidos, movendo-se

compassadamente.Chegouatéeleosuaveedialoganteofegardosdois.

—Podesesentar—indicouIlse.—Aqui,napoltrona.

Elesedeixoulevar.Retrocedeuumpassoedeixou-secairjuntoàcunhadanoque

deviaserumcompridosofácheiodealmofadas,instaladodetalmodoqueapessoa

alisentadanãoperdesseumsódetalhedoespetáculo.Oquesigni cavaaquilo?Don

Rigobertodeixouescaparumrisinho:“Meu irmãocorsoémais rococódoqueeu

imaginei.”Suabocaestavaseca.

Pela superposição precisa e pelo encaixe perfeito, aquele casal parecia ter feito

amoravidainteira.Oscorposnuncasedesajustavam;emcadanovapostura,aperna,

ocotovelo,oombro,oquadrilcoincidiamaindamelhore,atodomomento,cada

umpareciaexprimirmaisreconditamenteseuprazerdooutro.Aliestavamasbelas

formas cheias, a ondulada cabeleira cor de azeviche de sua amada, as empinadas

nádegasquelembravamumgalhardopromontóriodesa andooassaltodeummar

bravio. “Não”, disse a simesmo.Assemelhavam-semais ao esplêndido traseiro da

belíssima fotogra aLaprière,deManRay(1930).Buscouemseuscadernose,em

poucosminutos,contemplavaaimagem.Sentiuumapertonocoração,aorecordar

asvezesemqueLucreciahaviaposadoassimparaelenaintimidadenoturna,sentada

sobre os calcanhares, as duas mãos sustentando as semiesferas das nádegas. A

comparaçãotambémnãodestoavadaoutraimagemdeManRayqueocadernolhe

ofereceu,contíguaàanterior,poisodorsomusicaldeKikideMontparnasse (1925)era,nemmaisnemmenos,oqueLucreciamostravanessemomento,aoinclinar-see

retorcer-se. As in exões profundas dos seus quadris o deixaram suspenso, ausente,

poralgunssegundos.Masosbraçospeludosquecercavamessecorpo,aspernasque

morti caramessascoxaseasafastavamnãoeramassuas,nemtampoucoacara—

elenãoconseguiadistinguirasfeiçõesdeNarciso—que,agora,percorriaodorsode

Lucrecia,perscrutando-omilímetro amilímetro, aboca entreaberta, indecisa sobre

ondepousar,oquebeijar.PelaaturdidacabeçadedonRigobertopassouaimagem

docasaldetrapezistasdocirco“Aságuiashumanas”,quevoavameseencontravam

no ar—executavam seunúmero sem rede—depois de fazerem acrobacias a dez

metros do solo. Igualmente destros, perfeitos, adequados um ao outro, eram

LucreciaeNarciso.Invadiu-oumsentimentotripartido(admiração,invejaeciúme),

e lágrimas sentimentais lhe rolaramdenovopelas faces.Notouque amãode Ilse

exploravaprofissionalmentesuabraguilha.

—Puxa,nadaexcitavocê—ouviu-asentenciar,sembaixaravoz.

DonRigobertopercebeuummovimentode surpresa, lána cama.Eles tinham

ouvido,semdúvida;jánãopoderiamcontinuarfingindoquenãosesabiamespiados.

Ficaramimóveis;oper ldedonaLucreciavirou-separaameia-paredevazadaqueos

resguardava,masNarcisovoltouabeijá-laeaenvolvê-lanalutaamorosa.

—Desculpe,Ilse—sussurrou.—Estoufrustrandovocê,quepena.Équeeu...

comodirei?,eusoumonógamo.Sópossofazeramorcomminhamulher.

—Claroqueé—riuIlse,comafeto,etãoaltoque,agorasim,lá,naluz,acara

despenteadadedonaLucreciaescapouaoabraçodoirmãocorsoedonRigobertoviu

osolhosdelamuitoabertos,dirigindo-seassustadosparaondeseencontravamelee

Ilse.—Igualao seu irmãozinhocorso,poisentão.Narciso sógostade fazeramor

comigo.Masprecisadepetiscos,aperitivos,preliminares.Elenãoétãosimplescomo

você.

ElariudenovoedonRigobertosentiu-aseafastar,fazendonosraloscabelosdele

umdaquelescarinhosqueasprofessorasconcedemàscriançasque seportambem.

Não acreditava nos próprios olhos: em quemomento Ilse se despira?Ali estavam

suas roupas sobre o sofá, e ali, ela, ginasta, nua dos pés à cabeça, fendendo a

penumbra em direção à cama, tal como suas remotas ancestrais, as valquírias,

fendiamosbosques, comcascosbipartidos,àcaçadourso,do tigreedohomem.

Nesseprecisoinstante,NarcisoseseparoudeLucrecia,deslizouparaocentroa m

de deixar um espaço— seu rosto denotava um contentamento indescritível— e

abriu os braços para receber Ilse, com um rugido bestial de aprovação. E ali se

encontravaagoraadesdenhada,aretraídaLucrecia,encolhendo-senooutroextremo

dacama,complenaconsciênciadeque,apartirdessemomento,estavasobrando,e

olhandoàdireitaeàesquerda, embuscadealguémque lheexplicasseoquedevia

fazer.DonRigobertosentiupena.Semdizerpalavra,chamou-a.Viu-alevantar-seda

camanaspontasdospés,a mdenãoperturbarosalegresesposos;buscarnochão

suas roupas; cobrir-semais oumenos e avançar até onde omarido a esperava, de

braçosabertos.Depoisseaninhounopeitodele,palpitante.

—Entendeualgumacoisa,Rigoberto?—ouviu-adizer.

— Só que amo você— respondeu ele, acolhendo-a.—Nunca a vi tão bela.

Venha,venha.

—Eta,irmãozinhoscorsos!—ouviuavalquíriarir,lálonge,sobreumfundode

bufidosselvagensdejavalietrombetaswagnerianas.

Harpia leonina e alada

Ondeestás?NoSalãodosGrotescosdoMuseuAustríacodeArteBarroca,noBaixo

BelvederedeViena.

O que fazes aí? Estudas cuidadosamente uma das criaturas fêmeas de Jonas

Drentwettquedãofantasiaeglóriaaessasparedes.

Qualdelas?Aquealongaoaltíssimopescoçoa mdedescobrirmelhoropeitoe

mostrarabelíssima,pungentetetadebotãovermelho,quetodososseresanimados

viriamexperimentar senãoo tivesses reservado.Paraquem?Para teuenamoradoà

distância,o reconstrutorde tua identidade,opintorque tedesfaze te refazao seu

capricho,teudespertosonhador.

Oquedevesfazer?Aprenderessacriaturadememóriaeemulá-lanadiscriçãodo

teudormitório,àesperadanoiteemquevirei.Nãotedesalentesporsaberquenão

tenscauda,nemgarrasdeavede rapina,nemhábitodeandaremquatropatas.Se

deveras me amas, terás cauda, garras, em quatro patas andarás e, pouco a pouco,

mercê da constância e rmeza que as façanhas do amor exigem, deixarás de ser

Lucrecia, a doOlivar, e serás a LucreciaMitológica, Lucrecia aHarpia Leonina e

Alada, a Lucrecia que chegou aomeu coração e aomeudesejo vinda dosmitos e

lendasdaGrécia(comumaescalanosafrescosromanos,deondeJonasDrentwettte

copiou).

Jáestássemelhanteaela?Garuparetraída,peitoalteado,cabeçaerguida?Sentesjá

queassomaacauda felinaequetecrescemasas lanceoladas,cordearrebol?Oque

aindatefalta,odiademaparaafronte,ocolardetopázio,afaixadeouroepedras

preciosas onde descansará teu tenro busto, estes, como prenda de adoração e

reverência,receberásdequemteamaacimadetodasascoisasreaisouinexistentes.

Ocaprichosodasharpias.

V.

Fonchito e as meninasV - Fonchito e as meninas

AsenhoraLucreciaenxugoumaisumavezosolhosrisonhos,ganhandotempo.Não

seatreviaaperguntaraFonchitoseeraverdadeoqueTetêBarrigalhecontara.Por

duasvezesesteveprestesafazê-lo,masnasduasseacovardou.

— De que está rindo assim, madrasta? — quis saber o menino, intrigado.

Porque,desdequeelechegaraàcasinhadoOlivardeSanIsidro,asenhoraLucrecia

não fazia outra coisa além de soltar aquelas gargalhadas intempestivas, comendo-o

comosolhos.

—Deumacoisaqueumaamigamecontou—ruborizou-sedonaLucrecia.—

Morro de vergonha de lhe perguntar. Mas, também, de vontade de saber se é

verdade.

—Algumafofocasobreopapai,certamente.

—Voulhedizer,emborasejabastantevulgar—decidiuasenhoraLucrecia.—

Minhacuriosidadeémaisfortedoqueminhaboaeducação.

SegundoTetê,cujomaridoestiverapresentenatalocasiãoehaviarelatadoofato

entre divertido e furioso, era uma reunião daquelas que a cada dois ou trêsmeses

acontecianoescritóriodomésticodedonRigoberto.Homenssozinhos,cincoouseis

amigos de juventude, colegas de colégio, universidade ou bairro,mantinham esses

encontrospor simples rotina, já sementusiasmo,masnão se atreviamaquebraro

rito, talvezpelo supersticioso temordeque, se alguém faltasse aocompromisso,o

azarviesseacairsobreodesertoroutodoogrupo.Econtinuavamsevendo,embora,

sem dúvida, também eles, assim como Rigoberto, já não achassem graça nessa

reuniãobimestraloutrimestral,emquebebiamconhaque,comiamempadinhasde

queijo e passavam em revista os mortos e a atualidade política. Dona Lucrecia

recordavaque,depois,donRigobertosentiadordecabeça,detantotédio,eprecisava

tomarumasgotinhasdevaleriana.Acoisahaviaacontecidonoúltimoencontro,na

semana anterior. Os amigos — cinquentões ou sessentões, alguns no limiar da

aposentadoria—viramchegarFonchito,osclaroscabelosalvoroçados.Osgrandes

olhosazuisdomeninosesurpreenderamporvê-losali.Adesordemdouniformedo

colégioacrescentavaumtoquedeliberdadeàsuabelapessoinha.Oscavalheiroslhe

sorriram,boatardeFonchito,comoestágrande,comocresceu.

—Nãovaicumprimentar?—admoestou-odonRigoberto,pigarreando.

—Sim, claro— respondeu a voz cristalina domenino.—Mas, painho, por

favor,queseusamigos,semefizeremcarinhos,nãofaçamnomeupopô.

AsenhoraLucreciaexplodiunaquintagargalhadadatarde.

—Vocêdisseessabarbaridadeaeles,Fonchito?

—Éque,comopretextodemefazercarinhos,sempreestãometocandonesse

lugar—retrucouele,encolhendoosombros,semdarmaiorimportânciaaoassunto.

—Nãogostoquemetoquemassimnemdebrincadeira,depoismedácomichão.E,

quandomevemqualquerprurido,eumecoçoatétirarpedaço.

—Entãoeraverdade,vocêdissemesmo.—AsenhoraLucreciapassavadoriso

aoassombroe,denovo,aoriso.—Claro,Tetênãopodiainventarumacoisadessas.

ERigoberto?Comoreagiu?

—Mefulminoucomosolhosememandoufazerosdeveresnomeuquarto—

disseFonchito.—Depois,quandoeles foramembora,medeuamaiorbronca.E

metirouasemanadadodomingo.

— Esses velhos mãos-bobas! — explodiu a senhora Lucrecia, subitamente

indignada.—Quefaltadevergonha!Seeuostivessevistoalgumavez,botavatodos

noolhodarua.Eseupai counaquelacalmatoda,quandosoube?Mas,antes,jure,

era verdade?Tocavam seubumbum?Não é umadessas coisas retorcidas que você

inventa?

—Claroquemetocavam.Aqui—mostrouomenino,dandoumapalmadanas

nádegas.—Igualzinhoaospadresdocolégio.Porquê,madrasta?Oqueeutenhono

popôquetodosquerempassaramãonele?

AsenhoraLucreciaoperscrutava,tentandoadivinharseelenãoestavamentindo.

—Seforverdade,sãounssem-vergonhas,unsabusados—exclamoupor m,

aindaduvidando.—Nocolégiotambém?EvocênãocontouaRigoberto,paraele

fazerumescândalo?

Omeninoexibiuumaexpressãoseráfica:

—Nãoquerodarmaispreocupaçõesaopapai.Eagoraqueeleandatãotriste,

menosainda.

DonaLucreciabaixouacabeça,confusa.Essegarotinhoeraummestreemdizer

coisas que a desnorteavam. Bom, se era verdade, benfeito, aqueles safados tinham

passadoumvexame.OmaridodeTetêBarrigahaviacontadoqueeleeseusamigos

caram sem graça, sem se atreverem a encarar Rigoberto, por um bom tempo.

Depois,emboraencabulados, zerampiadinhas.Jáchegavadesseassunto,emtodo

caso. Dona Lucrecia passou a outra coisa. Perguntou a Fonchito como ia ele no

colégio, se não se prejudicavana academia saindo antes de terminarem as aulas, se

haviaidoaocinema,aofutebol,aalgumafesta.MasJustiniana,queentroutrazendo

ochácompãezinhos,voltouaotema.Tinhaouvidotudoecomeçouaopinar,de

línguasolta.Estavaseguradequeomeninomentia:“Nãoacredite,patroa.Foioutra

diabruradestebandido,paraaquelessenhores caremcomcaradetachonafrentede

don Rigoberto. A senhora não o conhece?” “Se seuschancays não estivessem tão

gostosos, eu ia me aborrecer com você, Justita.” Dona Lucrecia sentiu que havia

cometidouma imprudência; deixando-se vencer pela curiosidademórbida—com

Fonchito, nunca se sabia —, talvez tivesse despertado a fera. De fato, quando

Justinianarecolhiaxícarasepratos,aperguntacaiusobreelacomoumaestocada:

—Porqueseráqueaspessoasmaisvelhasgostamtantodecrianças,madrasta?

Justiniana escapuliu fazendo com a garganta ou o estômago um ruído que só

podia ser um riso censurado. Dona Lucrecia buscou os olhos de Fonchito.

Investigou-os com calma, em busca de uma centelha de maldade, de intenções

escusas.Não.Sómesmoaluminosidadedeumcéudiáfano.

—Todomundogostade crianças—disse,hipócrita.—Énormal alguémse

enternecercomelas.Sãopequeninas,frágeis,àsvezesmuitolindas.

Sentiu-se estúpida, impaciente por escapar aos olhões quietos e límpidos,

pousadosnela.

—EgonSchielegostavamuito—disseFonchito,assentindo.—EmViena,no

início do século, havia muitas meninas abandonadas, vivendo nas ruas. Pediam

esmolanasigrejas,noscafés.

—ComoemLima—disseela,semsaberoquedizia.Outravezera invadida

pelasensaçãodeserumamosquinhaatraída,apesardosseusesforços,paraasfauces

daaranha.

—E ele ia ao Parque Schönbrunn, onde haviamontes demeninas. Levava-as

paraoateliê.Davacomidaedinheiroaelas—prosseguiuFonchito,inexorável.—

O senhor Paris vonGüterlash, um amigo que Schiele pintou, daqui a pouco lhe

mostrooretrato,dizquesempreencontravaláduasoutrêsmeninasderua.Ficavam

ali,porvontadeprópria.Dormiamoubrincavam, enquantoSchielepintava.Você

achaquehaviaalgummalnisso?

—Seeledavacomidaaelaseasajudava,quemalhaveria?

—Maséqueasmandavatirararoupaeaspintavafazendoposes—acrescentou

omenino.DonaLucreciapensou: “Jánão tenho escapatória.”Era ruimqueEgon

Schielefizesseisso?

—Bem,achoquenão—engoliuemsecoamadrasta.—Umartistaprecisade

modelos. Por que vamos botarmalícia em tudo?Degas não gostava de pintar as

ratinhas, aspequenasbailarinasdaÓperadeParis?Bom,EgonSchiele também se

inspiravanasmeninas.

—Mas,então,porqueoencarceraram,sobaacusaçãodetersequestradouma

menor? Por que o condenaram à prisão por difundir pinturas imorais? Por que o

obrigaram a queimar um desenho sob o pretexto de que as crianças viam coisas

escabrosasnoateliê?

—Nãoseiporquê—acalmou-oela,aoverqueomeninoia candoalterado.

—Eu não sei nada de Schiele, Fonchito. Você é quem sabe tudo a respeito.Os

artistassãopessoascomplicadas,seupaipodeexplicar.Nãotêmqueserunssantos.

Nãosedeveidealizá-losnemsatanizá-los.Oimportantesãoasobras,enãoasvidas.

Oque coudeSchieleécomoelepintouessasmeninas,enãooquefaziacomelas

noateliê.

— Mandava que calçassem aquelas meias coloridas de que gostava tanto —

rematouFonchito.—Quesedeitassemnosofáounochão.Sozinhasouemduplas.

Então, subia emumaescadaparaolhá-lasde cima.Encarapitado ali,no alto, fazia

umesboço,emunscadernosqueforampublicados.Opapaitemolivro.Masem

alemão.Sópudeverosdesenhos,masnãoler.

—Encarapitadoemumaescada?Eraassimqueaspintava?

Aíestávocê,Lucrecia,enroladanateiadearanha.Elesempreconseguia,aquele

pirralho.Agora,elajánãotentavaafastá-lodoassunto;seguia-o,aprisionada.Apura

verdade,madrasta.Schielediziaque seu sonhoera serumaavede rapina.Pintaro

mundoapartirdecima,vê-locomoumcondorouumabutreoveria.E,pensando

bem, era a pura verdade. Iria demonstrá-lo agoramesmo. Saltou para remexer na

pastadaacademiae,ummomentodepois,acocorava-seaosseuspés—elaestavano

sofá,comosempre,eelenochão—,passandoaspáginasdeumnovoevolumoso

livrodereproduçõesdeEgonSchiele,queapoiousobreosjoelhosdamadrasta.Sabia

realmentetodasessascoisassobreopintor?Quantaseramcertas?Eporquelheviera

essamania por Schiele?Coisas que ouvia deRigoberto? Seria esse pintor a última

obsessãodoseuex-marido?Emtodocaso,nãofaltavarazãoaomenino.Estasmoças

deitadas,estesamantesenlaçados,estascidades fantasmais, sempessoas,animaisou

carros, de casas amontoadas e como que congeladas às margens de rios desertos,

pareciamdivisadosdoalto,porumaave rampante,queplanava sobre tudoaquilo

comumolharenvolventeeimpiedoso.Sim,aperspectivadeumaavederapina.A

carinhadeanjo lhesorriu:“Eunãodisse,madrasta?”Elaassentiu,desagradada.Por

trás de seus traços de querubim, de sua inocência de quadromilagreiro, Fonchito

aninhava uma inteligência sutil, precocemente amadurecida, uma psicologia tão

arrevesada quanto a de Rigoberto. E, nesse momento, dona Lucrecia tomou

consciênciadaquiloqueapáginaexibia.Incendiou-secomoumatocha.Omenino

haviadeixadoo livro aberto emumaaquarelade tons vermelhos e espaços creme,

com uma franjamalva, à qual só agora ela prestava atenção: o próprio artista de

espigada silhueta, sentado, e, entre suas pernas abertas, uma moça, despida e de

costas, sustentando no alto, como o mastro de uma bandeira, a gigantesca

extremidadevirildele.

—Estecasaltambémfoipintadodecima—alertou-aavozcristalina.—Mas

comoteráfeitooesboço?Daescada,nãopodia,porquequemestásentadonochãoé

elemesmo.Vocêpercebe,não,madrasta?

—Perceboqueéumautorretratomuitoobsceno—dissedonaLucrecia.—É

melhorcontinuarpassandoaspáginas,Foncho.

—Poiseuoachotriste—discordouomenino,commuitaconvicção.—Vejaa

caradeSchiele.Estácaída,comoseelenãoaguentassemaisadorquesente.Parece

que vai chorar. Tinha apenas vinte e um anos, madrasta. Por que será, em sua

opinião,queeleintitulouestequadroAhóstiavermelha?—Melhor não averiguar, seu sabidinho— começou a se aborrecer a senhora

Lucrecia.—Éesseonome?Então,alémdeobsceno,ésacrílego.Vireapágina,senão

euarasgo.

—Mas,madrasta—recriminou-aFonchito—,vocênãovai sercomoaquele

juizquecondenouEgonSchieleadestruirumquadro.Nãopodesertãoinjustanem

tãopreconceituosa.

Sua indignação parecia genuína. As pupilas brilhavam, as nas aletas do nariz

vibravameatéasorelhasseadelgaçavam.DonaLucrecialamentouoqueacabavade

dizer.

—Bom,temrazão,comapintura,comaarte,éprecisosermaisindulgente.—

Esfregouasmãos,nervosa.—Équevocêmetiradosério,Fonchito.Nuncaseise

fazoque faz, edizoquediz,demaneira espontâneaoucom segundas intenções.

Nunca sei se estou com um menino ou com um velho vicioso e pervertido,

escondidoatrásdeumacarinhadeMeninoJesus.

O garoto a tava desconcertado; a surpresa parecia lhe brotar lá do fundo.

Pestanejava, sem compreender. Seria ela que, com sua descon ança, estava

escandalizandoestacriança?Claroquenão.Mas,aoverosolhosagoramarejadosde

Fonchito,sentiu-seculpada.

—Nemseioqueestoudizendo—murmurou.—Esqueça,eunãodissenada.

Venhacá,medêumbeijo,vamosfazeraspazes.

Ele se levantou e lhe jogou os braços ao pescoço. Dona Lucrecia sentiu,

palpitando, a frágil estrutura,osossinhos,o corpinhona fronteirada adolescência,

essaidadeemqueosmeninosaindaseconfundemcomasmeninas.

—Nãoseaborreçacomigo,madrasta—ouviu-odizer,noseuouvido.—Me

corrijaseeu zeralgoerrado,meaconselhe.Querosercomovocêquerqueeuseja.

Masnãoseaborreça.

—Tudobem,jápassou—disseela.—Vamosesquecer.

Fonchitoamantinhaencarceradapelopescoçocomseusbracinhos,e lhefalava

tãobaixoedevagarqueelanãoentendeuoqueeledizia.Masregistroucomtodosos

seusnervosapontinhadalínguadomeninoquando,comoumdelicadoestilete,esta

entrounacavidadedesuaorelhaeaumedeceu.Resistiuaoimpulsodeafastá-lo.Um

momento depois, sentiu que os lábios ninhos percorriam o lóbulo, com beijos

espaçados,miúdos.Agora, sim, afastou-ocomsuavidade—por todoocorpo lhe

corriamcobrinhas—edeucomaquelacaratravessa.

—Eu lhe z cosquinha?—Fonchitoparecia se vangloriardeumaproeza.—

Vocêestátremendotodinha.Sentiuumchoqueelétrico,madrasta?

DonaLucrecianãosoubeoquedizer.Sorriuparaele,forçada.

—Jáiameesquecendodecontar—tirou-aFonchitodoapuro,retornandoao

seu lugar costumeiro, ao pé do sofá.— Comecei a fazer aquele trabalho com o

papai.

—Quetrabalho?

—As pazes entre vocês, ora— explicou ele, gesticulando.—Sabe o que z?

DissequetinhavistovocêsaindodaVirgendelPilar,elegantíssima,debraçoscom

umsenhor.Quepareciamumcasalzinhoemluademel.

—Eporquementiudessejeito?

—Paraprovocarciúmenele.Econsegui.Ficounervosíssimo,madrasta!

Riu,comumarisadaqueproclamavaumaesplêndidaalegriadeviver.Seupapai

tinha cadopálido, de olhos esbugalhados, embora, noprincípio, não comentasse

nada. Mas estava roído de curiosidade e morrendo de vontade de saber mais.

Remexia-setodo.Paralhefacilitaracoisa,Fonchitoabriufogo:

—Achaqueminhamadrastapretendesecasardenovo,painho?

DonRigobertofezumaexpressãoazeda,umacaradespencada,cavalar,antesde

responder:

—Não sei. É a ela que você devia perguntar.—E, depois de uma vacilação,

tentandoparecernatural:—Seilá.Essesenhorlhepareceumaisqueumamigo?

—Bem,nãosei—teriahesitadoFonchito,movendoacabeçacomoumcuco

derelógio.—Estavamdebraçodado.Ohomemolhavaparaelacomonosfilmes.E

elatambémlhelançavaumasolhadinhasmuitocoquetes.

—Voumatarvocê, seubandido, seumentiroso.—AsenhoraLucreciaatirou

emFonchitoumadasalmofadas,queelerecebeunacabeçacomgrandeassombro.

—Vocêéumfarsante.NãodissenadaaRigoberto,estácaçoandodemim,bemao

seujeito.

— Juro pelo que há de mais sagrado, madrasta — ria-se o menino, às

gargalhadas,beijandoosdedosemcruz.

—Éopiorcínicoquejáconheci—disparouelaoutraalmofada,rindotambém.

— Imagine como será quando crescer. Deus proteja a pobre inocente que se

apaixonarporvocê.

Fonchito cou sério, em uma daquelas bruscas mudanças de humor que

desconcertavam dona Lucrecia.Tinha cruzado os braços sobre o peito e, sentado

comoumBuda,examinava-acomcertomedo.

—Estádebrincadeira,nãoé,madrasta?Ourealmenteachaqueeusoumau?

Elaestendeuamãoelheacariciouoscabelos.

—Não,mau, não—disse.—Você é imprevisível.Metido a esperto e com

imaginaçãodemais,istosim.

— Quero que vocês quem de bem — interrompeu Fonchito, com gesto

enérgico.—Porissoinventeiessahistóriaparaopapai.Játenhoumplano.

—Comosoueuainteressada,pelomenosdeixequeeulhedêminhaaprovação.

—Éque...—Fonchitoretorceuasmãos.—Aindamefaltacompletaroplano.

Con eemmim,madrasta.Precisosaberumascoisassobrevocêsdois.Porexemplo,

comoseconheceram.Ecomofoiquesecasaram.

Uma cascata de imagensmelancólicas atualizou namemória de dona Lucrecia

aqueledia—onzeanosjá—emque,duranteumatumultuadaetediosafestapara

comemorar as bodasdepratadeuns tios, havia sido apresentada àquele senhorde

caraça lúgubre, grandes orelhas e nariz beligerante, a caminho da calvície. Um

cinquentãosobreoqualumaamigaalcoviteira,empenhadaemcasartodomundo,

deuasinformações:“Viúvorecente,um lho,gerentedaSeguradoraLaPerricholi,

meioesquisitãomasdefamíliadecenteecomgrana.”Noprincípio,elasóretevede

Rigobertooaspectofunéreo,suaatitudearredia,oquantoerafeio.Mas,desdeessa

mesma noite, algo a atraiu naquele homem sem encantos físicos, algo que ela

adivinhoudecomplicadoemisteriosonavidadele.E,desdemenina,donaLucrecia

sentira fascinação por debruçar-se sobre os abismos do alto dos penhascos, por

equilibrar-senabalaustradadaspontes.Essaatraçãosecon rmouquandoelaaceitou

tomar um chá com ele na Tiendecita Blanca, assistir em sua companhia a um

concertodaFilarmônicanoColégioSantaÚrsulae,sobretudo,quandoentrouem

suacasapelaprimeiravez.Rigobertolhemostrousuasgravuras,seuslivrosdeartee

oscadernosondeestavamseussegredos,e lheexplicoucomorenovavasuacoleção,

penalizando com as chamas os livros e imagens que ia substituindo. Ficara

impressionadaouvindo-o,observandoa correção comquea tratava, a formalidade

maníaca comque se comportava.Para assombroda família e das amigas (“Oque

você está esperando para se casar, Lucre?Um príncipe encantado?Não pode car

rejeitando todosos seus admiradores!”), aceitou imediatamente,quandoRigoberto

lhepropôscasamento(“Semsequertermedadoumbeijo”).Nuncasearrependera.

Nemumsódia,nemumsóminuto.Haviasidodivertido,excitante,maravilhoso,ir

descobrindoomundodemanias,rituaisefantasiasdomarido,compartilhá-locom

ele, ir construindo ao seu lado aquela vida reservada, ao longo de dez anos.Até a

absurda,louca,estúpidahistóriacomoenteado,àqualsedeixaraarrastar.Comum

fedelhoqueagoranempareciaselembrardoacontecido.Logoela, logoela!Aque

todos achavam tão judiciosa, tão precavida, tão organizada, a que sempre havia

calculadotodosospassoscomtantasensatez.Comopuderaterumaaventuracom

um garotinho de colégio? Seu próprio enteado! Rigoberto até que se portara de

maneira muito decente, evitando o escândalo, limitando-se a pedir a separação e

dandooapoioeconômicoqueagoralhepermitiamorarsozinha.Outroiriamatá-la,

expulsá-la com uma mão na frente e outra atrás, sem um centavo, exibi-la no

pelourinho social como corruptora de menores. Que bobagem, pensar que

Rigoberto e ela podiam se reconciliar. Ele continuariamortalmente ofendido pelo

queacontecera;jamaisaperdoaria.DonaLucreciasentiuosbracinhosseenroscarem

outraveznoseupescoço.

—Porquevocêficoutriste?—consolou-aFonchito.—Fizalgoerrado?

—De repenteme lembrei deumas coisas, e, como souuma sentimental... Já

passou.

—Quandoavificandoassim,medeuumsusto!

Omeninovoltouabeijá-lanaorelha,comosmesmosbeijinhosdiminutos,ea

remataroscarinhosumedecendo-lheoutravezopavilhãodaorelhacomapontada

língua. Dona Lucrecia se sentia tão deprimida que nem sequer teve ânimo para

afastá-lo.Daliapouco,ouviuqueeledizia,emtomdiferente:

—Vocêtambém,madrasta?

—Eutambémoquê?

— Estáme tocando o popô, ora, igual aos amigos do papai e aos padres do

colégio. Caramba, por que todo mundo agora cismou de passar a mão no meu

bumbum?

Carta ao rotariano

Sei que você se ofendeu, amigo, comminha negativa de aderir ao Rotary Club,

instituição da qual é dirigente e promotor. E descon o que cou receoso, nada

convencidodequeminharecusaaserrotarianodenenhummodosigni caqueeuvá

meinscrevernoClubedosLeõesounorecém-surgidoKiwanisdoPeru,associações

com as quais a sua compete implacavelmente para levar a palma da bene cência

pública,doespíritocívico,dasolidariedadehumana,daassistênciasocialecoisasdo

gênero.Tranquilize-se: não pertenço nem pertencerei a nenhum desses clubes ou

associações,nemanadaparecido(osEscoteiros,osEx-alunosJesuítas,aMaçonaria,

oOpusDeietc.).Minhahostilidadeaogêneroassociativoétãoradicalqueatédesisti

desermembrodoTouringAutomóvelClube,semfalardessassupostasagremiações

sociais que medem a categoria étnica e o patrimônio econômico dos limenhos.

DesdemeusanosjálongínquosdemilitâncianaAçãoCatólica,eporcausadela—

poisfoiessaaexperiênciaquemeabriuosolhossobreailusãodetodautopiasociale

mecatapultouàdefesadohedonismoedoindivíduo—,contraíumarepugnância

moral,psicológica e ideológica contra toda formade servidãogregária, a talponto

que—falosério—atéa ladocinemamedáasensaçãodeestarsendoatropeladoe

diminuídoemminhaliberdade(àsvezes,nãotenhooutroremédioanãoserentrar

nela,claro),retrocedidoàcondiçãodehomem-massa.Aúnicaconcessãoquerecordo

haver feitodeveu-se aumaameaçade sobrepeso (souumconvencido, comoCyril

Connoly,deque“aobesidadeéumadoençamental”)quemelevouamatricular-me

emumaacademia,ondeumtarzandesprovidodemiolosnosfaziatranspirar,quinze

idiotas,porumahoradiária,aocompassodosseusrugidos,exercitandocontrações

simiescas a que ele chamavaaerobics.O suplício ginástico veio con rmar todos os

meuspreconceitoscontraohomem-rebanho.

Permita-me, apropósito, transcrever-lheumadas citaçõesqueabarrotammeus

cadernos,poissintetizamaravilhosamenteoquepenso.Oautoréumasturianovira-

mundoacantonadonaGuatemala,FranciscoPérezdeAntón:“Umrebanho,como

se sabe, compõe-sedegentedesprovidadapalavra e comesfínctermaisoumenos

débil.Éfatocomprovado,ademais,que,emtemposdeconfusão,orebanhoprefere

aservidãoàdesordem.Donde,osqueatuamcomocabrasnãotêmlíderes,masuns

sem-vergonhas.Ealgodessaespéciedeve ter-noscontagiado,vistoquenorebanho

humano émuito comum aquele dirigente capaz de conduzir asmassas à beira do

penhasco e, uma vez ali, fazê-las saltar para a água. Isto, se não lhe ocorrer assolar

umacivilização,oqueéalgotambémbastantefrequente.”Vocêdiráqueéparanoia

issodedivisar,portrásdebenignosvarõesquesereúnemparaalmoçarumavezpor

semana e discutir em que novo distrito devem levantar aquelas estelas de calcário

comaplacademetal“ORotaryClublhesdáasboas-vindas”,cujaconstruçãoeles

pagamemcotas-partes,umaominosadepreciação,naescalahumana,de indivíduo

soberanoaindivíduo-massa.Talvezeuestejaexagerando.Masnãopossodescuidar-

me. Como o mundo avança aceleradamente para a desindividualização completa,

paraaextinçãodesseacidentehistórico,oreinadodoindivíduolivreesoberano,que

umasériedeacasosecircunstânciashaviapossibilitado(paraumnúmeroreduzidode

pessoas,éclaro,eemumnúmeroaindamaisreduzidodepaíses),estoumobilizado

paraocombate,commeuscincosentidoseduranteasvinteequatrohorasdodia,a

m de retardar o máximo que puder, no que a mim concerne, essa derrota

existencial.Abatalhaédevidaoumorteetotalizadora;tudoetodosparticipamdela.

Essasassociaçõesdeprofissionaispançudos,executivoseburocratasdealtonível,que,

uma vez por semana, comparecem para consumir um cardápio regimentar

(compostoporumabatatarecheada,umabistequinhacomarrozeumaspanquecas

commanjar-branco, tudo isso irrigadocomumvinhozinho tintoTacamaReserva

Especial?), constituem uma batalha ganha a favor da robotização de nitiva e do

obscurantismo, um avanço da plani cação, da organização, da obrigatoriedade, da

rotina, da coletivização, e um encolhimento ainda maior da espontaneidade, da

inspiração, da criatividade e da originalidade, que só são concebíveis na esfera do

indivíduo.

Peloque leuatéaqui,você receiaque, sobminhaaparência incolordeburguês

cinquentão, esteja emboscado um hirsuto antissocial meio anarquista? Bingo!

Acertou,meuchapa.(Fizumgracejoemedeimal:apalavrinhachapajámesugerea

inevitável palmadanoombroque a acompanha e a asquerosa visãodedois varões

embarrigados de cerveja e de imoderada ingestão de petiscos, coletivizando-se,

formandoumasociedade,renunciandoaosseusfantasmasendovenososeaoseueu.)É verdade: sou um antissocial namedida dasminhas forças, que por desgraça são

fraquíssimas, e resisto à gregarização em tudo aquilo que não ameaça minha

sobrevivência nemmeus excelentes níveis de vida.Tal como você está lendo. Ser

individualistaéseregoísta(AynRand,evirtueofsel shness),masnãoimbecil.De

resto,aimbecilidademeparecerespeitávelseforgenética,herdada,nãoresultantede

umaescolha,deumadeliberadatomadadeposição.Temoqueserrotariano,assim

como leão,kiwani,maçom,escoteiroouopus, seja (desculpe-me)umaacovardada

apostaafavordaestupidez.

Convémlheexplicaresse insulto:assimoatenuoe,napróximavezemqueos

negóciosdenossasseguradorasnosreunirem,vocênãomearrebentarácomumsoco

(oucomumchutenacanela,agressãomaisapropriadaparapessoasdanossaidade).

Nãoseidequemaneiramaisjustapossode nirainstitucionalizaçãodasvirtudese

dos bons sentimentos representada por essas associações, a não ser como uma

abdicação da responsabilidade pessoal e uma maneira barata de adquirir boa

consciência“social” (usoessapalavraentreaspaspara sublinharodesagradoqueela

mecausa).Emtermospráticos,oquevocêe seus colegas fazemnãocontribui, ao

meu juízo,para reduziromal (ou, sepreferir,paraaumentarobem)emnenhum

sentido apreciável. Os principais bene ciários dessa generosidade coletivizada são

vocês mesmos, começando por seus estômagos, deglutidores desses cardápios

semanais,e suasmentesporcas,que,nessasnoitadasdeconfraternização(horroroso

conceito!), arrotam de prazer intercambiando mexericos, piadas grosseiras e

difamando impiedosamenteoausente.Não soucontraesses entretenimentosnem,

em princípio, contra nada que produza prazer; sou contra a hipocrisia de não

reivindicar esse direito às claras, de buscar o prazer dissimulando-o sob o álibi

profiláticodaaçãocívica.Nãofoivocêmesmoquemmedisse,comolhosdesátiroe

dando-meumpiparotepornográ co,queoutravantagemdeserrotarianoeraquea

instituiçãoforneciaumpretextosemanaldeprimeiraordemparaestarlongedecasa

sem alarmar a mulher? Aqui, acrescento outra objeção. É por regulamento ou

simplesmenteporcostumequenãohámulheresemsuas leiras?Nosalmoçosque

vocême in igiu, nunca vi uma saia.Tenho certeza de que nem todos vocês são

veados, única razão tibiamente aceitável para justi car o pantalonismo rotariano

(leão, kiwani, escoteiro etc.). Esta éminha tese: ser rotariano é um pretexto para

passar bonsmomentosmasculinos, a salvo da vigilância, servidão ou formalidade

impostas, segundo vocês, pela coabitação com a mulher. Isso me parece tão

anticivilizadoquantoaparanoiadasrecalcitrantesfeministasquedeclararamaguerra

dossexos.Minha loso aéque,noscasosinevitáveisderesignaçãoaogregarismo—

escolas,empregos,diversões—,amisturadegêneros(ederaças,línguas,costumese

crenças)constituiumamaneiradeamenizaracretinizaçãoqueocorriolismoimplica

e de introduzir nas relações humanas um elemento picante, malicioso (maus

pensamentos,dosquais souresolutopraticante),algoque,nomeupontodevista,

elevaessasrelaçõesestéticaemoralmente.Nãolhedigoqueambasascoisassão,para

mim,umasóporquevocênãoentenderia.

Todaatividadehumanaquenãocontribua,aindaquedamaneiramaisindireta,

paraaebuliçãotesticulareovárica,paraoencontrodeespermatozoideseóvulos,é

desprezível. Por exemplo, a venda de apólices de seguros à qual você e eu nos

dedicamoshátrintaanos,ouosalmoçosmisóginosdosrotarianos.Assimétudoo

que distrai do objetivo verdadeiramente essencial da vida humana, que consiste, a

meujuízo,nasatisfaçãodosdesejos.Nãovejoparaqualoutracoisapodemosestar

aqui,girandocomolentospiõesnogratuitouniverso.Apessoapodevenderseguros,

como você e eu zemos — e com bastante sucesso, pois alcançamos posições

invejáveis emnossas respectivas companhias—, porque é preciso comer, vestir-se,

abrigar-sesobumtetoealcançarrendasquepermitamtereaplacardesejos.Nãohá

nenhuma outra razão válida para vender apólices de seguros, nem tampouco para

construirrepresas,castrargatosousertaquígrafo.Atéjáoescuto:ese,àdiferençade

você, desequilibrado Rigoberto, um homem se realiza e tem prazer vendendo

apólicesdeseguroscontraincêndios,roubosouenfermidades?Ese,comparecendoa

almoçosrotarianosecontribuindocomesmolaspecuniáriasparalevantarcartazesnas

estradas com o lema “Devagar se vai ao longe”, elematerializa seusmais ardentes

desejos e é feliz, nem mais nem menos que você quando folheia sua coleção de

gravuras e livros imprópriospara senhoritas ouquando se entrega a essaspunhetas

mentaisquesãoossolilóquiosdosseuscadernos?Cadaumnãotemdireitoaosseus

desejos?Sim,éverdade.Porém,seosdesejos(apalavramaisbeladodicionário)mais

acalentadosporumserhumanoconsistememvendersegurosea liar-seaoRotary

Club (ou a ns), esse bípede é um cretino. Caso de noventa por cento da

humanidade,concordo.Vejoquevocêcomeçaacompreender,securitário.

Vaisebenzerportãopouco?Seusinaldacruzmeinstaapassaraoutroassunto,

que é omesmo.Que papel a religião ocupa nesta diatribe? Ela também recebe as

bofetadas deste renegado da Ação Católica, ex-leitor febril de Santo Agostinho,

cardealNewmann,SãoJoãodaCruzeJeanGuitton?Simenão.Sealgumacoisaeu

sounessamatéria,souagnóstico.Descon adodoateuedodescrente,afavordeque

as pessoas creiam e pratiquem uma fé, pois, de outro modo, não teriam vida

espiritual alguma e o selvagismo semultiplicaria. A cultura— a arte, a loso a,

todasasatividadesintelectuaiseartísticaslaicas—nãosubstituiovazioespiritualque

resulta da morte de Deus, do eclipse da vida transcendente, exceto em uma

reduzidíssima minoria (da qual faço parte). Esse vazio torna as pessoas mais

destruidorasebestiaisdoquenormalmenteosão.Aomesmotempoquesouafavor

dafé,asreligiõesemgeralmeincitamataparonariz,porquetodaselasimplicamo

rebanhismo processionário e a abdicação da independência espiritual. Todas elas

restringemaliberdadehumanaepretendemenredarosdesejos.Reconheçoque,sob

opontodevista estético, as religiões—acatólica talvezmaisquequalqueroutra,

comsuasformosascatedrais,seusritos,liturgias,atavios,representações,iconogra as,

músicas — costumam ser soberbas fontes de prazer que deleitam o olhar, a

sensibilidade, atiçam a imaginação e nos incendeiam commaus pensamentos. Em

todas, porém, sempre se emboscam um censor, um comissário, um fanático, as

grelhas e tenazes da inquisição. Também é certo que, sem suas proibições, seus

pecados,suasfulminaçõesmorais,osdesejos—osexual,sobretudo—nãoteriam

alcançadoore namentoquetiveramemcertasépocas.Pois,eistonãoéteoria,mas

prática,graçasaumamodestapesquisapessoaldelimitadohorizonte,a rmoquese

fazmuitomelhoroamornospaísesreligiososdoquenossecularizados(melhorna

IrlandadoquenaInglaterra,naPolôniadoquenaDinamarca),enoscatólicosdo

quenos protestantes (naEspanhaouna Itáliamelhor doquenaAlemanhaouna

Suécia),equesãomilvezesmais imaginativas,audazesedelicadasasmulheresque

passaramporcolégiosdefreirasdoqueasqueestudaramemcolégioslaicos(Roger

VaillandteorizouarespeitoemLeregardfroid).LucrecianãoseriaaLucreciaqueme

cumulou de uma inestimável felicidade, noite e dia (mas, sobretudo, à noite), ao

longo de dez anos, se sua infância e juventude não tivessem estado a cargo das

rigorosíssimas freiras do SagradoCoração, entre cujos ensinamentos gurava o de

que,paraumamenina,sentar-secomosjoelhosabertoserapecado.Essassacri cadas

escravas do Senhor, com suas exacerbadas suscetibilidade e casuística em matéria

amorosa,foramformando,aolongodahistória,verdadeirasdinastiasdeMessalinas.

Benditassejam!

Eentão?Emque camos?Eunãoseiemque carávocê,carocolega(parausar

outra expressão vomitável).Eu co emminha contradição, que é também, a nal,

umafontedeprazerparaumespíritodissidenteeinclassi cávelcomoomeu.Contra

ainstitucionalizaçãodossentimentosedafé,masafavordossentimentosedafé.À

margem das igrejas,mas curioso e invejoso delas, e diligente aproveitador do que

possam emprestar-mepara enriquecer omundodosmeus fantasmas.Ressalto que

sou um indisfarçado admirador daqueles príncipes da Igreja que foram capazes de

conciliar no mais alto grau a púrpura e o esperma. Consulto meus cadernos e

encontro, como exemplo, aquele cardeal sobre quem o virtuoso Azorín escreveu:

“Céticore nado,riasozinhodafarsaemquesemoviasuapessoa,eassombrava-seàs

vezescomquenãoseacabasseaestupidezhumanaquemantinhacomseudinheiro

aquela estupenda comédia.” Não é, quase, um medalhão do famoso cardeal de

Bernis, embaixador setecentista da França na Itália, que compartilhou emVeneza

duas freiras lésbicas com Giacomo Casanova (vide suasMemórias) e, em Roma,

recebeuomarquêsdeSadesemsaberdequemse tratava,quandoeste, fugitivoda

Françaporseusexcessoslibertinos,percorriaaItáliaemboscadosobafalsaidentidade

decondedeMazan?

Masjávejoquevocêboceja,porqueessesnomescomqueobombardeei—Ayn

Rand, Vailland, Azorín, Casanova, Sade, Bernis— soam aos seus ouvidos como

ruídos incompreensíveis, demodo queme interrompo e coloco ponto nal nesta

missiva(que,tranquilize-se,tampoucoenviarei).

Muitosalmoçoseplacas,rotariano.

O odor das viúvas

Na noite úmida, sobressaltada pela agitação do mar, don Rigoberto acordou de

repente,banhadoemsuor:asincontáveisratazanasdotemplodeKarniji,convocadas

pelasalegrescampainhasdosbrâmanes,acudiamaorepastovespertino.Osenormes

tachos, as travessas de metal, os cochos de madeira tinham sido enchidos com

pedacinhos de carne ou com o leitoso xarope, seumanjar preferido.De todos os

buracosdasparedesdemármore,perfuradosparaelaseequipadoscompunhadosde

palha para seu conforto pelos piedosos monges, milhares de roedores cinzentos

saíam, ávidos, de seus ninhos. Atropelando-se, uns por cima dos outros,

precipitavam-se para os recipientes. Mergulhavam neles para lamber a calda,

mordiscar os pedaços de carne, e, os mais requintados, para arrancar, com seus

brancos incisivos, bocadinhos de calos e durezas dos pés desnudos. Os sacerdotes

deixavamagirosanimais,lisonjeadosporcontribuircomessassobrasdesuapelepara

oprazerdasratazanas,encarnaçõesdehomensemulheresdesaparecidos.

O templo havia sido construído para elas, fazia quinhentos anos, nesse rincão

nortistadoRajastãohindu,emhomenagemaLakhan, lhodadeusaKarniki,bem-

apessoadomanceboquesetransformaranumaratazanagorda.Desdeentão,atrásda

imponente construção de portas prateadas, pisos marmóreos, paredes e cúpulas

majestosas, o espetáculo acontecia duas vezes ao dia. Ali estava agora o brâmane-

chefe,Chotu-Dan,ocultosobasdezenasdeanimaiscinzentosquesubiamaosseus

ombros,braços,pernas, costas, rumoaograndecochodecaldaàbeiradoqual ele

estavasentado.MasoquerevolviaoestômagodedonRigobertoeodeixavaprestes

avomitareraoodor.Denso,envolvente,maispenetrantedoqueabostadabestade

carga,obafodomonturoouacarniçaputrefata,ofedordessamultidãopardaestava

agoradentrodele.Percorriaoavessodeseucorpoesuasveias,atranspiraçãodesuas

glândulas,empoçava-senosresquíciosdesuascartilagensenotutanodosseusossos.

Seu corpo se transformara no templo de Karniji. “Estou impregnado de odor de

ratazanas”,assustou-se.

Saltoudacamadepijama,semcolocaroroupão,sóoschinelos,ecorreuaoseu

escritório, para ver se folheando algum livro, perscrutando uma gravura, ouvindo

música ou garatujando seus cadernos, outras imagens vinham exorcizar as

sobreviventesdopesadelo.

Teve sorte.No primeiro caderno que abriu, uma citação cientí ca explicava a

variedade demosquitos cuja característicamais saliente é perceber o odor de suas

fêmeas a distâncias incríveis. “Sou um deles”, pensou, dilatando as narinas e

farejando. “Posso agoramesmo, se a issome dispuser, sentir o cheiro de Lucrecia

adormecida noOlivar de San Isidro, e diferenciar nitidamente as secreções de seu

couro cabeludo, de suas axilas e de seu púbis.” Mas topou com outro odor —

benigno, literário, prazeroso, fantasioso —, que começou a dissipar, como faz à

neblina noturna o vento do amanhecer, os fedores da rataria do sonho.Umodor

santo, teológico, elegantíssimo, exaladopelaIntroduçãoàvidadevota, deFranciscode Sales, na tradução espanhola de Quevedo: “Las lámparas que tienen el olioaromáticodespidende síunmás suaveolor cuando lesapagan la luz.Así, lasviudas,cuyo amor ha sido puro en su casamiento, derraman un precioso y aromático olor devirtuddecastidad,cuandosuluz,estoes,sumarido,esapagadaporlamuerte.”3Essearoma de viúvas castas, impalpável melancolia de seus corpos condenados ao

solilóquio físico, exalação nostálgica de seus desejos insatisfeitos, inquietou-o. As

aletasdoseunarizlatejaramafanosamente,tentandoreconstituir,detectar,extrairdo

ambientealgumrastrodapresençadele.Ameraideiadesseodordeviúvadeixou-o

em suspenso. Evaporou os restos do pesadelo, tirou-lhe o sono, devolveu ao seu

espíritoumacon ançasaudável.Eolevouapensar—porquê?—naquelasdamasa

utuarementreriosdeestrelas,deKlimt,mulheresolorosas,defacestravessas—ali

estavamGoldfish, fêmea-peixinho colorido, eDânae, simulandodormireexibindo

comsimplicidadeumacurvilíneabundadeviolão.Nenhumartistasouberapintaro

odor femininocomoobizantinovienense; suasmulheres aéreas e vergadas sempre

lhe haviam entrado na memória, simultaneamente, pelos olhos e pelo nariz. (A

propósito,nãoseriahorade inquietar-secomodesmesurado interessequeooutro

vienense,EgonSchiele,despertavaemFonchito?Talvez,masnãonestemomento.)

O corpo de Lucrecia exalava esse santo odor salesiano desde que estavam

separados?Seassimfosse,elaaindaoamava.Poisesseodor,segundosãoFrancisco

deSales,testemunhavauma delidadeamorosaquetranscendiaotúmulo.Então,ela

não o tinha substituído. Sim, continuava “viúva”. Os rumores, incon dências,

acusações que chegavam até ele— incluído omexerico de Fonchito— sobre os

recentes amantesdeLucrecia eramcalúnias.Seucoração se regozijou, enquantoele

fariscavaencarniçadamenteoentorno.Estavaali?Tinha-odetectado?Eraoodorde

Lucrecia?Não.Eraodanoite,daumidade,doslivros,dosóleos,dasmadeiras,das

telasedoscourosdoseuescritório.

Tentou resgatardopassadoedovazio, fechandoosolhos,osodoresnoturnos

queaspiraranaquelesdezanos,aromasquetantootinhamfeitogozar,perfumesque

ohaviamdefendidocontraapestilênciaeafeiurareinantes.Adepressãoseapoderou

dele. Vieram consolá-lo uns versos de Neruda, quando virou uma página desse

mesmocaderno:

Eparaver-teurinar,naescuridão,nofundodacasa,comosevertessesummeldelgado,trêmulo,argênteo,obstinado,quantasvezeseudariaestecorodesombrasquepossuo,eoruídodeespadasinúteisqueseouveemminhaalma...

Nãoeraextraordinárioqueopoemadessesversos sechamasseTango do viúvo?Sem transição, divisou Lucrecia, sentada no vaso sanitário, e escutou o alegre

chapinhardeseupipinofundodorecipiente,queorecebiacascateandoagradecido.

Claro que, silencioso, agachado no canto, absorto, misticamente concentrado,

escutando e cheirando, ali estava também o feliz bene ciário daquela emissão,

daquele concerto líquido: Manuel das Próteses! Mas nisto apareceu Gulliver,

salvando a imperatriz de Lilliput de seu palácio em chamas com uma espumosa

mijada. Don Rigoberto pensou em Jonathan Swift, que viveu obsedado com o

contraste entre a beleza do corpo e as horríveis funções corporais. O caderno

recordava como, em seumais famosopoema,umamante explicaporquedecidiu

abandonaraamada,comestesversos:

NorwonderhowIlostmywits;Oh!Celia,Celia,Celiashits.

“Que idiota”, sentenciou.Lucrecia tambémshited e isso, emvezdedegradá-la,

realçava-aaosolhoseàsnarinasdele.Poralgunssegundos,comoprimeirosorrisoda

noite desenhado no rosto, aspirou com a memória os vapores remanescentes da

passagemde sua ex-mulher pelo banheiro.Ainda que, agora, ali se intrometesse o

sexólogo Havelock Ellis, cuja mais recôndita felicidade era, segundo o caderno,

escutarsuaamadaverter,tendoproclamadoemsuacorrespondênciaqueodiamais

felizdesuavidahaviasidoaqueleemquesuacomplacentemulher,protegidapelas

rodadas saias vitorianas que a enroupavam, urinou para ele entre inadvertidos

transeuntes, irreverentemente, aos pés do almirante Nelson, observada pelos

monumentaisleõesdepedradeTrafalgarSquare.

Manuel, porém, não tinha sido um poeta como Neruda, nem ummoralista

como Swift, nem um sexólogo como Ellis. Apenas um castrado. Ou, melhor

dizendo,umeunuco?Diferençaabismal,entreessesdoisnegadosparaafecundação.

Umaindatinhafaloeereção,aopassoqueooutrohaviaperdidooadminículoea

função reprodutora, e exibia um púbis liso, curvo e feminil. O que eraManuel?

Eunuco. Como pudera Lucrecia conceder-lhe aquilo? Generosidade, curiosidade,

compaixão?Ouvícioemorbidez?Outodasessascoisascombinadas?Elaoconhecera

antes do célebre acidente, quando Manuel ganhava campeonatos motociclísticos

empacotado emumcapacete rutilante e ummacacão sintético, encarapitado sobre

umequinomecânicodetubos,guidomerodas,denomesemprejaponês(Honda,

Kawasaki, Suzuki ouYamaha), catapultando-se campos afora com ruído de peido

ensurdecedor — chamavam aquilo demotocross —, embora também costumasse

participar de tropelias comoTrail eEnduro, prova, esta última, de suspeitas

reminiscências albigenses — a duzentos ou trezentos quilômetros por hora.

Sobrevoando valas, escalando cerros, desmanchando areais e saltando rochedos ou

abismos, Manuel ganhava troféus e aparecia retratado nos jornais destampando

garrafasdechampanheeacompanhadodemodelosquebeijocavamsuasbochechas.

Atéque,emumadessasexibiçõesdeacrisoladaestupidez,vooupelosares,depoisde

galgarcomobólidoumacolinaenganosa,atrásdaqualoesperava,nãoumsedante

tobogã de amortecedoras areias, como ele, incauto, acreditava,mas um precipício

espetadode rochas.Precipitou-se ali, gritandoumpalavrão arcaico—Cachaporra!

—, quando voavamontado em seu corcel demetal rumo às profundezas, a cujo

fundo,segundosdepois,chegousonoramente,emumestrondodeossoseferrosque

setrituravam,serompiameseestilhaçavam.Milagre!Suacabeça couintacta;seus

dentes, completos; sua visão e sua audição, sem dano algum; o uso de suas

extremidades, apenas ressentido por causa dos ossos quebrados e dos músculos

rasgadosesovados.Compensatoriamente,opassivoseconcentrouemsuagenitália,

quemonopolizou as avarias. Porcas, cravos e ponteiras perfuraram seus testículos,

apesardoelásticosuspensorqueosguarnecia,transformando-osemumasubstância

híbrida,entreomingauearatatouille,aomesmotempoemqueopecíolodesua

virilidadeeracerceadonaraizporalgummaterialcortante,quetalvez—ironiasda

vida—nãofosseprovenientedamotodosseusamoresetriunfos.Oqueocastrou,

então?Ograndecruci xodepontasaguçadasqueeleusavaparaconvocaraproteção

divina,quandoperpetravasuasproezasmotociclísticas.

OscompetentescirurgiõesdeMiami lhesoldaramosossos,esticaramoquese

havia encolhido e encolheram o que se havia esticado, cerziram o rasgado e lhe

construíram, dissimulando-a com pedaços de carne arrancados dos glúteos, uma

genitália arti cial. O negócio andava sempre teso, mas era pura fachada, uma

armaçãodepelesobreumaprótesedeplástico.“Muitamassaepoucorecheio,ou,

parasermatemático,recheionenhum”,al netoudonRigoberto.Sólheserviapara

urinar,masnemsequersegundoavontade,esimacadavezqueeletomavaalgum

líquido, e, como não tinha o menor controle para evitar que esse constante

escorrimentoensopasseseusfundilhos,opobreManueltraziapendurada,amodode

capuz ou acessório, uma bolsinha de plástico que recolhia suas águas. Salvo essa

inconveniência,oeunucolevavaumavidamuitonormale—cadadoidocomsua

mania—aindasubjugadaàsmotocicletas.

—Vaivisitá-looutravez?—perguntoudonRigoberto,meioapoquentado.

—Elemeconvidouparatomarocháe,vocêsabe,éumbomamigo,dequem

tenhomuitapena—explicoudonaLucrecia.—Mas, se isso incomodavocê,não

vou.

—Vá,vá—desculpou-seele.—Depoismeconte.

Tinhamseconhecidoaindacrianças.Moravamnomesmobairroehaviamsido

namoradosnos temposdo colégio, quandonamorar consistia empasseardemãos

dadasaosdomingos,depoisdamissadasonze,noParqueCentraldeMira ores,e

no Parquinho Salazar, após umamatinê sincopada de beijos e alguma bolinagem

tímida e gentil na plateia. Chegaram até a ser noivos, na época em queManuel

cometia suas façanhas rodantes, saía retratado nas páginas esportivas e as meninas

bonitasmorriamdeamoresporele.SeuborboletearsentimentalfartouLucrecia,que

rompeuonoivado.Nãosevirammais,atéoacidente.Elafoivisitá-lonohospital,

levando-lhe uma caixa de chocolates Cadbury. Reataram uma relação, agora só

amistosa—assimacreditaradonRigoberto,atédescobrirapuraesimplesverdade

—,quecontinuoudepoisdocasamentodedonaLucrecia.

DonRigobertoodivisaravezporoutra,por trásdasvitrinasdeseu orescente

negóciodecompraevendademotosimportadasdosEstadosUnidosedoJapão(às

hieroglí cas marcas nipônicas, Manuel havia acrescentado as americanas Harley-

Davidson eTryumph, além da alemã BMW), à margem da via expressa, quase

chegando à JavierPrado.Nãovoltou aparticiparde campeonatos como corredor,

mas,comóbviosadomasoquismo,continuouvinculadoaoesportecomopromotor

epatrocinadordessesmassacresecarni cinasvicárias.DonRigobertooviaaparecer

nosnoticiáriosdetelevisãobaixandoumaridículabandeiraquadriculada,comarde

estar dando o arranque à Primeira Guerra Mundial, nas linhas de partida ou de

chegadadascorridas,ouentregandouma taçabanhadaemfalsaprataaovencedor.

Esse deslocamento de participante a auspiciador de eventos aplacava — segundo

Lucrecia—aviciosaatraçãodocastradopelasaparatosasmotocicletas.

E o resto? A outra ausência?Também a aplacava um pouco? Nas periódicas

tardes em que costumavam conversar, tomando chá com pasteizinhos, Manuel

mantinhaumanotáveldiscriçãosobreoassunto,queLucrecia,evidentemente,não

cometia a imprudência de mencionar. As conversas dos dois eram triviais,

reminiscênciasdeumainfânciamira orinaeumajuventudesanisidrina,dosantigos

vizinhosdebairroque se casavam,descasavam, recasavam, adoeciam, geravame às

vezesmorriam,entremeadasporcomentáriosdeatualidadesobreoúltimo lme,o

últimodisco,obailedamoda,ocasamentoouafalênciacatastró ca,aestafarecém-

descobertaouoúltimoescândalodedrogas,chifresouaids.Atéqueumdia—as

mãosdedonRigobertopassavamàspressasasfolhasdocaderno,embuscadeuma

anotaçãoque correspondesse à sequênciade imagens já claramente emmovimento

emsuamente—donaLucreciadescobriraseusegredo.Tinha-odescoberto,defato?

OuManuelderaumjeitoparaqueelapensasseassim,quando,naverdade,nãofazia

maisdoquemeteropénaarmadilhaqueelemantinhapreparada?Ofatoéqueum

dia,tomandoochánacasadeleemLaPlanicie,rodeadosdeeucaliptoseloureiros,

ManuellevouLucreciaàsuaalcova.Opretexto?Mostrar-lheumafotogra adeuma

partidadevôleinoColégioSanAntonio,muitosanosantes.Ali,elativeraagrande

surpresa.Umaestanteinteiradelivrosdedicadosaoarrepianteassuntodacastraçãoe

dos eunucos! Uma biblioteca especializada! Em todas as línguas e, sobretudo,

naquelasnãocompreendidasporManuel,quedominavaunicamenteoespanholem

suavarianteperuanaou,maisprecisamente,mira orino-sanisidrina.Eumacoleção

dediscoseCDscomaproximaçõesousimulaçõesdavozdoscastrati!—Virouumespecialistanotema—contouelaadonRigoberto,excitadíssima

comadescoberta.

—Porrazõesóbvias—deduziuele.

TeriasidopartedaestratégiadeManuel?AcabeçorradedonRigobertoassentiu,

no pequeno círculo do quebra-luz. Naturalmente. Para criar uma intimidade

escabrosa, uma cumplicidade no proibido que lhe permitisse, depois, implorar o

temeráriofavor.Elehaviaconfessado—simulandoacanhamento,comvacilaçõesde

tímido?,também—que,desdeabrutalcirurgia,otemafora candoobsessivo,até

se tornar a preocupação central de sua existência.Transformara-se em um grande

conhecedor,capazdediscorrerhorassobreoassunto,abordando-oemseusaspectos

históricos,religiosos,físicos,clínicos,psicanalíticos.(Oex-motociclistateriaouvido

falardovienensedodivã?Antes,não;depois,sim,eatéhavialidoalgumacoisadele,

embora sem entender umapalavra.)Em conversas nas quais os doismergulhavam

em um companheirismo cada vez mais íntimo, no curso dessas reuniões

aparentemente inocentes na hora do chá, Manuel explicou a Lucrecia a diferença

entreoeunuco,varianteprincipalmentesarracenapraticadadesdeaIdadeMédianos

guardiãesdosharéns,osquaisaablaçãoimpiedosadefaloetestículostornavacastos,

e o castrado, versão ocidental, católica, apostólica e romana, que consistia em

despojar somente das bolas — deixando o resto em seu lugar — a vítima da

operação, a quem não se queria privar da cópula mas, simplesmente, impedir a

transformaçãodavozdemenino,aqual,noiníciodaadolescência,baixaumaoitava.

Manuel contou a Lucrecia a historieta, que ambos haviam festejado, do castratoCortona, que escreveu ao pontí ce InocêncioXI pedindo permissão para se casar.

Suasantidade,quenãotinhanadadeinocente,escreveudepunhoeletra,àmargem

da solicitação: “Pois queo castremmelhor.” (“Esses é que erampapas”, alegrou-se

donRigoberto.)

Ele, elemesmo,Manuel, o ás dasmotos, em seus convites para tomar chá e

posandodehomemmodernoquecriticavaaIgreja,haviaexplicadoaLucreciaquea

castração semânimobelicoso,comobjetivosartísticos, começoua serpraticadana

Itália no século XVII, por causa da proibição eclesiástica de que houvesse vozes

femininas nas cerimônias religiosas. Essa censura criou a necessidade do híbrido, o

varão de voz efeminada (“voz caprina” ou “falsete”, “entre vibrante e tremulante”,

explicava no caderno o expert Carlos Gómez Amat), algo possível de fabricar,

medianteumacirurgiaqueManueldescreveuedocumentou,entrexícarasdecháe

alfajores. Havia a maneira primitiva, submergir os meninos de boa voz em água

gelada,paracontrolarahemorragia,e triturar-lhesosbagoscompedrasdeamassar

(“Ui!ui!”,gritoudonRigoberto,esquecidodasratazanasedivertindo-seàgrande),e

aso sticada.Asaber:ocirurgião-barbeiroanestesiavaogarotocomláudano,abria-

lheavirilhacomsuanavalharecém-amoladaetiravadaliastenrasalfaias.Queefeitos

produziaaoperaçãonosmeninoscantoresquesobreviviam?Obesidade,alargamento

torácicoeumapoderosavozaguda,assimcomoumsostenutoinusual;algunscastrati,comoFarinelli, emitiam árias pormais deumminuto sem respirar.Na sossegada

escuridão do escritório, rumormarinho ao fundo, donRigoberto chegou a ouvir,

maisentretidoecuriosodoque satisfeito,avibraçãodaquelascordasvocaisque se

prolongava inde nidamente, em um agudo níssimo, como uma longa ferida na

noitebarranquina.Agora,sim,sentiuocheirodeLucrecia.

“ManueldasPróteses,envenenadopelamorte”,pensoupoucodepois,contente

comseuachado.Mas,imediatamente,recordouqueestavacitando.Envenenadopela

morte? Enquanto suas mãos procuravam no caderno, sua memória reconstituía a

fumacenta e apertadapeña criolla4 para onde Lucrecia o arrastara naquela noiteinsólita.Haviasidoumadesuaspoucasememoráveisimersõesnomundonoturno

da diversão, no estranho país ao qual ele vendia apólices de seguros,

administrativamente o seu, contra o qual construíra este enclave e sobre o qual, à

força de discretos mas monumentais esforços, conseguira saber muito pouco. Ali

estavamosversosdavalsaDesdén:

Desdeñoso,semejantealosdiosesyoseguiréluchandopormisuertesinescucharlasespantadasvocesdelosenvenenadosporlamuerte.

Sem o violão, o cajón e a sincopada voz do cantor, perdia-se algo da audácialúgubre e narcisista do bardo compositor. Porém, mesmo sem a música,

preservavam-seagenialvulgaridadeeamisteriosa loso a.Quemhaviacomposto

essa valsa crioula “clássica”, como a quali cara Lucrecia quandoprocurou saber?E

soube: o autor era chiclayano e se chamavaMiguelPaz.DonRigoberto imaginou

umcaboclinho arisco enotívago,de cachecolnopescoço e violãonoombro, que

faziaserenataseamanhecianosantrosdofolcloreentrecavacosevômitos,agarganta

rasgadadetantocantaranoite inteira.Emtodocaso,excelente.NemVallejonem

Nerudacombinadoshaviamproduzidonadacomparávelaessesversos,que,ademais,

eram dançáveis. Sobreveio-lhe uma risadinha e ele voltou a capturar Manuel das

Próteses,queestavalheescapando.

Tinha sido depois de muitas conversas vespertinas regadas a chá, depois de

entornar sobre donaLucrecia sua enciclopédica informação sobre eunucos turcos e

egípcios e castrati napolitanos e romanos, que o ex-motociclista (“Manuel das

Próteses, Pipi Perpétuo, o Úmido, o Gotejante, o do Capuz, o Bolso Líquido”,

improvisoudonRigoberto,comumhumorquemelhoravaacadasegundo)derao

grandepasso.

—Equalfoisuareação,quandoelelhecontouisso?

Acabavamdever,natelevisãodoquarto,Seduçãodacarne,umbelomelodrama

stendhalianodeVisconti,edonRigobertomantinhaaesposasobreseusjoelhos,ela

decamisolaeeledepijama.

—Fiqueiembasbacada—respondeudonaLucrecia.—Vocêachapossível?

—Seelelhecontoutorcendoasmãosechorando,deveser.Porquementiria?

—Claro,nãohavianenhuma razão— ronronou ela, toda enrodilhada.—Se

vocêcontinuarmebeijandoassimnopescoço,eugrito.Oquenãoentendoépor

queelemecontariaisso.

—Eraoprimeiropasso.—AbocadedonRigoberto foi escalandoomorno

pescoçoatéchegaràorelha,quetambémbeijou.—Oseguinteserápedirquevocêo

deixevê-laou,pelomenos,ouvi-la.

—Contouporquelhefezbemcompartilharseusegredo—tratoudeafastá-lo

donaLucrecia,eopulsodeseumaridosedestrambelhou.—Sabendoqueeusei,ele

devetersesentidomenossó.

—Querapostarcomo,nopróximochá,elevailhefazeressaproposta?—Don

Rigobertoinsistiaembeijardevagarinhoaorelhadela.

—Eu iria emborada casadelebatendo aporta—remexeu-se em seusbraços

donaLucrecia,decidindobeijá-lotambém.—Enãovoltariamais.

Não zeranenhumadessascoisas.ManueldasPrótesestinhapedidocomtanta

humildadeservileprantodevítima,comtantasdesculpaseatenuantes,queelanão

teve coragem (nem vontade?) de se ofender. Por acaso havia respondido: “Não

esqueçaqueeusouumasenhoradecenteecasada”?Não.Ou:“Vocêestáabusando

da nossa amizade e destruindo o bom conceito em que eu o tinha”?Tampouco.

Limitara-seatranquilizarManuel,que,pálido,envergonhado,imploravaqueelanão

o interpretassemal,não se aborrecesse,nãooprivassede sua amizade tãoquerida.

Uma operação de alta estratégia e bem-sucedida, pois, apiedada com tanto

psicodrama,Lucreciavoltouatomarchácomele—donRigobertosentiuagulhas

de acupunturista nas têmporas — e acabou por satisfazê-lo. O envenenado pela

morte ouviu aquela música argêntea e foi embriagado pelo líquido arpejo. Só

ouvindo?Nãoteriasido,também,vendo?

— Juro que não—protestou dona Lucrecia, abrigando-se contra omarido e

falandocomopeitodele.—Noescuromaisabsoluto.Foiminhacondição.Eelea

cumpriu.Nãoviunada.Ouviu.

Namesmaposição, tinhamassistidoaumvídeodeCarminaBurananaÓpera

deBerlim,dirigidaporSeikiOzawa,comoscorosdePequim.

—Épossível— replicoudonRigoberto, a imaginação atiçadapelos vibrantes

latins dos coros (haveriacastrati entreaquelescoristasdeolhos rasgados?).—Mas,

também, pode ser que Manuel tenha desenvolvido sua visão de maneira

extraordinária.Eque,mesmovocênãoovendo,ele,sim,tenhavistovocê.

—Se formos entrar emconjeturas, tudo épossível—discutiu ainda, embora

semmuitaconvicção,donaLucrecia.—Mas,seeleviu,foimuitopouco,nada.

O odor estava ali e não havia dúvida possível: corporal, íntimo, ligeiramente

marinhoecomreminiscênciasfrutais.Fechandoosolhos,donRigobertooaspirou

comavidez,asnarinasmuitoabertas.“EstoucheirandoaalmadeLucrecia”,pensou,

enternecido.O alegre chape-chape do jorro no vaso não dominava aquele aroma,

limitava-seamatizarcomumtoque siológicooqueeraumaexalaçãoderecônditos

humores glandulares, transpirações cartilaginosas, secreções de músculos, que se

adensavam e se confundiam em um e úvio espesso, valente, doméstico. Isso

lembrou a don Rigoberto os momentos mais remotos de sua meninice — um

mundodefraldasetalcos,vômitoseexcrementos,colôniaseesponjasembebidasem

águamorninha,uma tetapródiga—e asnoites enlaçadas comLucrecia.Ah, sim,

compreendiamuito bem omotociclista amputado.Mas não era indispensável ser

rivaldeFarinellinemterpassadopelotrâmitedapróteseparaassimilaressacultura,

converter-se a essa religião, e, como o envenenado Manuel, como o viúvo de

Neruda, como tantos anônimos extraordinários do ouvido, do olfato, da fantasia

(pensou no primeiro-ministro da Índia, o nonagenário Rarji Desai, que lia seus

discursoscompausasparabebergolinhosdoseuprópriopipi:“ah,setivessesidoo

de sua esposa!”), sentir-se transportado ao céu, ao ver e ouvir o ente querido,

agachado ou sentado, interpretando essa cerimônia, aparentemente anódina,

funcional,deesvaziarumabexiga,sublimadaemespetáculo,emdançaamorosa,em

prolegômenooupós-escrito(paraodecapitadoManuel,sucedâneo)doatodoamor.

Don Rigoberto sentiu seus olhos se encherem de lágrimas. Redescobriu o terso

silêncio da noite barranquina e a solidão emque se achava, entre gravuras e livros

autistas.

—Lucreciaquerida,peloquevocêmaisama—rogou, implorou,beijandoos

cabelossoltosdesuaamada.—Urineparamimtambém.

—Primeiro,precisocomprovarque,fechandoportasejanelas,obanheiro que

totalmente às escuras — disse dona Lucrecia, com pragmatismo de executor

testamentário.—Quando chegar omomento, eu o chamo. Você vai entrar sem

ruído,paranãomeinterromper.Esesentarnocantinho.Nãosemoveránemdirá

palavra.A essa altura, os quatro copos d’água começarão a fazer efeito.Nenhuma

exclamação,nenhumsuspiro,nemomínimomovimento,Manuel.Docontrário,eu

vouemboraenãobotomaisospésnestacasa.Pode carnoseucantinhoenquanto

eumeenxugoeajeitoovestido.Nahoradesair,aproxime-se,arrastando-se,e,em

agradecimento,beijemeuspés.

Ele tinha feito isso? Seguramente. Devia ter se arrastado até ela pelo piso

ladrilhadoeaproximadoabocadosseussapatoscomgratidãocanina.Depois,devia

terlavadomãoserostoe,comosolhosmolhados,idoaoencontrodeLucreciana

sala,dizendo-lhe,untuoso,quelhefaltavamaspalavras,oqueelahaviafeitoporele,

a incomensurável felicidade.E, cobrindo-ade louvores, contadoque, na realidade,

era assim desde criança, e não só desde seu salto no precipício. O acidente lhe

permitira assumir como sua única fonte de prazer aquilo que, antes, lhe produzia

umavergonhatãograndequeeleoescondiadosoutrosedesimesmo.Tudohavia

começadoemsuaprimeirainfância,quandodormianoquartodairmãzinhaeababá

selevantavaàmeia-noiteparaverteroslíquidos.Nãosedavaotrabalhodefechara

porta; ele ouvia claríssimo o jorrinho sussurrante, cristalino, saltitante, que o

acalentavaeofaziasentir-seumanjinhonocéu.Eraamaisbela,maismusical,mais

terna recordação de sua meninice. Ela o compreendia, não? Amagní ca Lucrecia

compreendia tudo.Nadaa espantavana labirínticameadados caprichoshumanos.

Manuelo sabia;por isso a admirava, epor isso se atrevera apedir.Sema tragédia

motociclista,nuncaoteriafeito.Porque,atéovoodamotoemdireçãoaoabismo

rochoso,suavidatinhasido,noqueserefereaoamoreaosexo,umpesadelo.Oque

deverasoacendiaeraalgoqueelenuncaousarapediràsmoçasdecentes;limitava-sea

negociarcomprostitutas.E,mesmopagando,quantashumilhaçõestinhasuportado,

risadas, zombarias, olhadelas depreciativas ou irônicas que o coibiam e o faziam

sentir-seumlixo.

Essaeraarazãopelaqualhaviarompidocomtantasnamoradas.Atodasfaltou

lhe dar esse prêmio extraordinário que dona Lucrecia acabava de lhe conceder: o

jorrinhodexixi.UmagargalhadacomiserativasacudiudonRigoberto.Pobreinfeliz!

Quemteria imaginado, entre as esculturaisbelezasque saíam, riame se envolviam

com o astro esportivo, que o luminar domotocross, o ginete de aço, não queriaacariciá-las, despi-las, beijá-las nem penetrá-las: apenas ouvi-las no mictório! E a

nobre,amagnânimaLucreciahaviamijadoparaodani cadoManuel!Essamicção

cariagravadaemsuamemóriacomoasgestasheroicasnoslivrosdehistória,como

osmilagresnasbiogra asdesantos.Lucreciaquerida!Lucreciacondescendentecom

as debilidades humanas! Lucrecia, nome romano que signi cava afortunada!

Lucrecia?AsmãosdedonRigobertopassavamrapidamenteaspáginasdocaderno,e

areferêncianãodemorouaaparecer:

“Lucrecia,damaromana,célebreporsuaformosuraesuavirtude.Foivioladapor

SextoTarquínio, lhodoreiTarquínio,oSoberbo.Depoisdecontaroultrajeao

pai e ao esposo ede incitá-los a vingá-la,matou-senapresençadeles, cravandono

peitoumpunhal.OsuicídiodeLucreciadesencadeouaexpulsãodosReisdeRomae

a instauração da República, no ano 509 antes de Cristo. A gura de Lucrecia se

transformouemsímbolodopudor,dahonestidadee,sobretudo,daesposahonesta.”

“É ela, é ela”, pensou don Rigoberto. Suamulher podia provocar cataclismos

históricos e perenizar-se como símbolo. Da esposa honesta? Entendendo-se a

honestidadeemumsentidonãocristão,claro.Queesposacompartilhariacomtanta

devoçãoasfabulaçõesdomarido,comohaviafeitoela?Nenhuma.Eahistóriacom

Fonchito? Bom,melhor contornar essas areias movediças. A nal, tudo não havia

permanecidoemfamília?Ela fariaomesmoqueamatronaromana,aoserviolada

porSextoTarquínio?UmgeloatravessouocoraçãodedonRigoberto.Comuma

caretade susto,ele seesforçouporafastara imagemdeLucreciaestendidano solo

com o coração atravessado por um punhal. Para conjurá-la, retrocedeu ao

motociclista deslumbrado pela destilação das bexigas fêmeas. Só fêmeas? Ou

tambémmachos?Oespetáculodeumcavalheiroesguichanteosoerguiaporigual?

— Nunca — revelou Manuel de imediato, em tom tão sincero que dona

Lucreciaacreditou.

Bom, tampouco era certo que sua vida tivesse sido só umpesadelo por culpa

dessa necessidade (como chamá-la, para não dizer vício?). Colorindo o desértico

panorama de insatisfações e frustrações, tinha havido momentos balsâmicos,

efervescentes, surgidos quase sempre por acaso, modestas compensações à sua

angústia.Porexemplo,aquelalavadeiracujorostoManuelrecordavacomomesmo

afetocomqueagenterecordaaquelastias,avósoumadrinhasmaisligadasàcalidez

da infância. Vinha lavar a roupa, duas vezes por semana. Devia sofrer de cistite

porque,acadamomento,corriadotanqueoudatábuadeengomaraobanheirode

serviço,juntoàcopa.EaliestavaomeninoManuel,semprealerta,encarapitadono

desvão, a cara amassada contra o solo, aguçando o ouvido. Vinha o concerto, a

cascata rumorosa e farta, uma verdadeira inundação. Essa mulher era uma bexiga

futebolística, uma represa viva, dados o ímpeto, a abundância, a frequência e a

sonoridadedesuasmicções.Umavez—donaLucreciaviudilatarem-segulosamente

aspupilasdomotociclistadaprótese—,Manuelatinhavisto.Sim,visto.Bom,não

inteira. Em um ato de audácia, içou-se pela treliça do jardim até a claraboia do

banheirinhodeserviçoe,porunsgloriosossegundos,sustentando-senoar,divisoua

matade cabelos, osombros, aspernas commeiasde lã eos sapatos sem salto,da

mulhersentadanovaso,desaguando-secombuliçosaindiferença.Ai,quealegria!

Tinhahavido,também,aquelaamericana,loura,bronzeada,ligeiramentevaronil,

sempredebotasechapéudecaubói,queveioparticipardeLaVueltadelosAndes.

Eraumamotociclista tãoousadaquequasevenceua competição.Manuel,porém,

não recordava tanto sua destreza com amáquina (Harley-Davidson, claro) quanto

suasmaneiras desenvoltas, sua ausência demelindres, que lhe permitia, nas etapas,

compartilharosquartosdedormircomospilotosetomarbanhodiantedelessenão

houvessemaisdeumbanheiro,eatéentrarnotoaleteefazersuasnecessidadessemse

incomodar quando, no mesmo cubículo, separados por um tabique, havia vários

motociclistas.Quetempos!Manuelviveraumacrepitaçãocrônica,umaprolongada

ereçãodoórgãodesaparecido,escutandoosdesafogoslíquidosdaemancipadaSandy

Canal,quetransformaramaquelacompetição,paraele,emfesta interminável.Mas

nemalavadeiranemSandynemnenhumadasexperiênciascasuaisoumercenáriasde

suamitologia podiam ser comparadas com essa de agora, superlativa graça, maná

liquefeito,comquedonaLucreciaofizerasentir-seumdeus.

DonRigobertosorriu,satisfeito.Nãohavianenhumaratazanapelascercanias.O

templo deKarniji, seus brâmanes, exércitos de roedores e tachos de calda estavam

alémdosoceanos,continentese selvas.Ele,aqui, sozinho,nanoiteque terminava,

em seu refúgiodegravuras e cadernos.Havia indíciosde amanhecernohorizonte.

Hoje tambémestariabocejandono trabalho.Cheirava a alguma coisa?Oodorde

viúva se havia dissipado. Ouvia alguma coisa? As ondas, e, perdido entre elas, o

chapinhardeumadamafazendoxixi.

“Eu”—pensou, sorridente—“souumhomemque lava asmãosnãodepois,

masantesdeurinar.”

Menu diminutivo

Sei que gostas de comida pouquinha e simplesinha, mas gostosinha, e estou

preparadinhaparateagradartambémnamesinha.

Demanhã cedinho irei aomercado e comprarei o leitinhomais fresquinho, o

pãozinho bem quentinho e a laranjinha mais coradinha. E te despertarei com a

bandejinhadodesjejum,uma orzinhacheirosaeumabeijoquinha.“Aquiestãoteu

suquinhosemcarocinho,tuatorradinhacomgeleiademoranguinhoeteucafécom

leitesemaçuquinha,patrãozinho.”

Parateualmocinho,sóumasaladinhaeumiogurtinho,comogostas.Lavareias

alfacinhas até que brilhem e cortarei os tomatinhos com arte, me inspirando nos

quadrinhosdetuabiblioteca.Omolhinhodasaladaserácomazeitinho,vinagrinho,

gotinhasdaminhasalivinhae,emvezdesal,minhaslagriminhas.

Nojantarzinho,acadadiaumadetuaspreferências(tenhocardapinhosparaum

aninho, sem repetir nem uma vezinha). Batatinha com charquinho, papinha de

feijão,guisadinhodeperu,bolodebatatinhacomfranguinho,dobradinha,sequinho

de lombinho ou carneirinho, bistequinha à chorrillana, cevichinho de corvina,

camarãozinhoensopadoouà limenha, arrozinhocompatinho, arrozinho recheado

de forninho, lezinho com pirãozinho de arroz e feijãozinho, pimentãozinho

recheado, galinhita des ada comparmesãozinho.Tudo comalgumapimentinha e

muitos outros temperinhos. E, claro, teu copinho de vinhinho tinto ou uma

cervejinhabemgeladinha,aescolher.Masémelhoreupararporaqui,paranãotedar

fominha.

Como sobremesa, gogóda vovozinha, suspirinho à limenha, panquequinhade

mel, crepinho com chocolatinho, sonhinho recheado, barriguinha de freira,

maçapãozinho, rosquinha, pudinzinho de queijo com canelinha, caramelinho de

coco, torrãozinho de dona Pepa, creminho de milho roxo com frutinhas secas,

pasteizinhosdefigocomrequeijãozinho.

Me aceitas como tua cozinheirinha? Sou limpinha, tomo um banhozinho ao

menosduasvezespordia.Nãomascochicletinho,nemfumocigarrinho,nemtenho

pelinhos nas axilas, minhas mãozinhas e meus pezinhos são tão perfeitos como

minhas tetinhas emeu bumbum.Trabalharei todas as horas que for preciso para

manter bem contentinhos teu paladar e tua barriguinha. Se preciso, também te

vestirei,desvestirei,ensaboarei,barbearei,cortareituasunhinhasetelimpareiquando

zeresonúmerodois.Nahorinhadenanar,teenvolvereicommeucorpinhopara

que na caminha não sintas friozinho. Além de fazer tuas comidinhas, serei tua

camareirinha, teu aquecedorzinho, teu aparelhinho de barba, tua tesourinha e teu

papelzinhohigiênico.

Meaceitas,patrãozinho?

Tuinha,tuinha,tuinha,

Acozinheirinhasemjoanetes

3“Aslamparinasquecontêmoóleoaromáticodesprendemumodormaissuavequandolhesapagamachama.

Deigualmodoasviúvas,cujoamorfoipuronocasamento,exalamumpreciosoearomáticoodordevirtude

decastidade,quandosuachama,istoé,seumarido,éapagadapelamorte.”(N.daT.)

4Literalmente,“rodacrioula”,“grupocrioulo”,nomequesedá,noPeru,aoslocaisnoturnosondesefazem

apresentações demúsica típica.Adiante: “Desdenhoso, semelhante aos deuses,/ seguirei lutando porminha

sorte,/ sem escutar as assustadas vozes/ dos envenenados pelamorte.”O cajón,mencionado a seguir, é um

instrumento de percussão, hoje tipicamente peruanomas de origem africana, constituído de uma caixa de

madeira.(N.daT.)

VI.

A carta anônimaVI - A carta anônima

Em vez de aborrecida como na noite anterior, quando fora se deitar levando no

punhoopapelamassado,a senhoraLucreciadespertoudebomhumore satisfeita.

Tinhaumasensaçãolevementevoluptuosa.Estendeuamãoepegouacartarabiscada

emletrasdeimprensa,emumpapelgranuladoazul-pálido,agradávelaotato.

“Diantedoespelho,sobreumacamaouumsofá...”Dispunhadeumacama,mas

não de sedas indianas nem de batique indonésio; portanto, não cumpriria essa

exigênciadoamosemrosto.Ooutropedido, istosim,podiasatisfazê-lo:deitar-se

decostas,nua,cabelossoltos,encolheraperna,alojaracabeçanojoelho,pensarque

eraaDânaedeKlimt(emboranãoacreditasse)esimularquedormia.E,claro,podia

severnoespelhodizendo-se:“Souobjetodegozoeadmiração,desonhoedeamor.”

Comumsorrisinhodivertidoeolhoscujobrilhodevagalumeserepetianoespelho

dotoucador,afastouoslençóisebrincoudeseguirasinstruções.Mas,comosóviaa

metadedeseucorpo,nãosoubeseconseguiraimitarcomalgumaverossimilhançaa

posturadoquadrodeKlimtqueocorrespondente-fantasmalheenviara,numatosca

reproduçãodecartão-postal.

Quandofaziaodesjejum,conversandodistraidamentecomJustiniana,edepois,

embaixodochuveiroeenquantosevestia,sopesoumaisumavezasrazõesparadar

umnomeeumrostoaoautordacarta.DonRigoberto?Fonchito?Esefossealgo

tramado por ambos? Que absurdo! Não, não tinha pé nem cabeça. A lógica a

inclinavaapensaremRigoberto.Ummododefazê-lasaberque,apesardoocorrido

edaseparação,eleamantinhasemprepresenteemseusdelírios.Ummododesondar

a possibilidade de reconciliação. Não. Aquilo tinha sido duro demais para ele.

Rigobertonuncaseriacapazdefazeraspazescomamulherqueoenganaracomo

lhodele, e emsuacasa.Aquelevermezinhorançoso,oamor-próprio,o impedia.

Então, se a carta anônima não tinha sido enviada pelo ex-marido, o autor era

Fonchito.Omeninonãotinhaamesmafascinaçãodopaipelapintura?Omesmo

bomoumaucostumedeentremearavidadosquadroscomaverdadeira?Sim,tinha

sidoele.Alémdomais,opróprioFonchitosedelatara,aludindoaKlimt.Elaofaria

saberquesabiadissoeodeixariaenvergonhado.Nessamesmatarde.

As horas de espera foram longuíssimas para dona Lucrecia. Sentada na sala de

jantar, ela olhava o relógio, temerosa de que, precisamente hoje, Fonchito não

aparecesse. “MeuDeus, patroa, até parece que a senhora está esperando a primeira

visitadeumnamorado”,brincouJustiniana.Elacorou,emvezderir.Assimqueele

apareceu,comsuabelacarinhaeodelicadocorpinhometidonasbagunçadaspeças

douniformedecolégio,jogouamochilasobreotapeteeacumprimentoubeijando-

anaface,donaLucreciafezestaadvertência:

—Vocêeeuprecisamosconversarsobreumacoisamuitofeia,mocinho.

Viuaexpressãointrigadaeosolhosazuisquesearregalavam,inquietos.Eletinha

se sentadodiante dela, com as pernas cruzadas.DonaLucrecia notouqueumdos

cadarçosdosseussapatosestavadesatado.

—Sobreoquê,madrasta?

—Umacoisamuitofeia—repetiu,mostrando-lheacartaeopostal.—Amais

covardeesujaqueexiste:mandarcartasanônimas.

Omeninonãoempalideceu,nemenrubesceu,nempiscou.Continuouolhando-

a, curioso, semomenordesconcerto.Ela lheestendeuacartaeopostal enão lhe

tirouos olhos de cima, enquantoFonchito,muito sério, umapontinhada língua

aparecendo entre os dentes, lia a correspondência anônima, como que soletrando.

Seusolhinhosespertosvoltavamsobreaslinhas,váriasvezes.

—Temduaspalavrasquenãoentendo—dissepor m,banhando-acomsua

miradatransparente.—Helenaebatique.UmamoçanaacademiasechamaHelena.

Mas,aqui,onomeapareceemoutrosentido,não?Enuncaouvifalardebatique.O

quesignificam,madrasta?

—Não se façade idiota— irritou-sedonaLucrecia.—Porqueme escreveu

isto?Achouqueeunãoiaperceberqueeravocê?

Sentiu-se meio incomodada pelo desconcerto, agora sim muito explícito, de

Fonchito,que,depoisdebalançaracabeçaduasvezes,perplexo,voltouaexaminara

cartaanônimaealê-la,movendooslábiosemsilêncio.E coutotalmentesurpresa

quando viu que o menino, ao levantar a cabeça, sorria de orelha a orelha. Com

alegriatransbordante,eleergueuosbraços,saltousobreelaeabraçou-a,soltandoum

gritinhodetriunfo:

—Ganhamos,madrasta!Nãopercebeu?

—Oqueeudeviaperceber,seugeniozinho?—perguntouela,afastando-o.

—Mas,madrasta—Fonchitoaencaravacomternura,compadecido—,nosso

plano,poisentão.Estádandocerto.Eunãodissequedevíamosdeixá-loenciumado?

Alegre-se,estamosindomuitobem.Vocênãoquerfazeraspazescomopapai?

—Não tenhonenhumacertezadeque esta carta sejadeRigoberto—hesitou

donaLucrecia.—Desconfiomaisédevocê,suamosca-morta.

Calou-se,porqueomeninoria,olhando-acomabenevolênciacarinhosaqueum

pobredeespíritomerece.

—SabiaqueKlimtfoiomestredeEgonSchiele?—exclamouelederepente,

antecipandoumaperguntaqueelatrazianoslábios.—Schieleoadmiravaeopintou

no leitodemorte.Umcarvãomuitobonito,Agonia,de1912.Nessemesmoano,

pintoutambémOseremitas,emqueeleeKlimtaparecemcomhábitosdemonges.

—Tenhocertezadequefoivocêquemescreveuisto,seuvelhotesabe-tudo—

aborreceu-sedenovodonaLucrecia.Sentia-sedivididaporconjecturascontraditórias

eirritadapelacaradespreocupadadeFonchito,quefalavacomtantasegurança.

—Mas,madrasta,emvezdefazermaujuízo,vocêdeviasealegrar.Estacartinha

quem lhemandou foi o papai, para lhemostrar que já a perdoou e quer fazer as

pazes.Comoéquevocênãopercebe?

—Bobagem.Éumacartaanônimainsolenteemeiocalhorda,sóisso.

—Não seja tão injusta!—protestouomenino, veemente.—Ele a compara

com um quadro de Klimt, diz que, quando o artista pintou essa moça, estava

adivinhandocomovocê seria.Ondeestá a calhordice?Éumelogiomuitobonito.

Umamaneiraqueopapaiprocuroupararestabelecerocontato.Vocêvairesponder?

—Não posso responder, nãome consta que tenha sido ele.— Agora, dona

Lucreciaduvidavamenos.Queriarealmentesereconciliar?

—Viu?Deixá-loenciumadofuncionouàsmilmaravilhas—repetiuomenino,

feliz.—Desde que eu disse que vi você de braço dado com um senhor, ele está

imaginando coisas. Ficou tão assustado que lhe escreveu esta carta.Não sou bom

detetive,madrasta?

DonaLucreciacruzouosbraços,pensativa.Nuncalevaraasérioaideiadefazeras

pazescomRigoberto.TinhadadocordaemFonchito sóparapassaro tempo.De

repente,pelaprimeiravez,areconciliaçãonãolhepareciaumaremotaquimera,mas

algo que podia acontecer. Era o que desejava? Voltar para a casa de Barranco,

recomeçaravidadeantes?

—Quemmais,alémdopapai,podiacompará-lacomumapinturadeKlimt?—

insistiuomenino.—Nãovê?Ele está lhe recordandoos joguinhos comquadros

quevocêsdoisfaziamànoite.

AsenhoraLucreciasentiuqueoarlhefaltava.

—Doquevocêestáfalando?—balbuciou,semforçasparadesmenti-lo.

—Mas,madrasta—respondeuomenino,gesticulando.—Daquelesjogos,ora.

Quandoeledizia:hojevocêéCleópatra,hojeVênus,hojeAfrodite.Evocêimitava

aspinturasparaagradá-lo.

— Mas, mas... — No auge do vexame, dona Lucrecia não conseguia se

encolerizar e sentia que tudo o que dizia acabava por delatá-la aindamais.—De

ondesaiuisso?Vocêtemumaimaginaçãomuitoretorcidaemuito,muito...

— Você mesma me contou— liquidou-a o menino.— Que cabeça a sua,

madrasta.Jáesqueceu?

DonaLucrecia coumuda.Elamesmahaviacontado?Investigousuamemória,

emvão.NãoselembravadehavertocadonesseassuntocomFonchito,nemsequer

damaneiramaisindireta.Nunca,jamais,claroquenão.Maseentão?Rigobertoteria

feitocon dênciasao lho?Impossível.Rigobertonãofalavacomninguémdesuas

fantasiasedesejos.Nemcomela,duranteodia.Essahaviasidoumaregrarespeitada

aolongodosdezanosdecasamento:nuncaaludirduranteodia,nemdebrincadeira

nem a sério, ao que eles diziam e faziam à noite, no segredo da alcova. Para não

trivializar o amor e conservar-lhe a aura mágica, sagrada, dizia Rigoberto. Dona

Lucrecia recordou os primeiros tempos de casada, quando começava a descobrir o

outroladodavidadoseumarido,aquelaconversasobreolivrodeJohanHuizinga,

Homoludens,umdosprimeirosqueelelhehaviaimploradoquelesse,assegurando

que na ideia da vida como jogo e do espaço sagrado estava a chave da felicidade

futura dos dois. “O espaço sagrado acabou sendo a cama”, pensou.Tinham sido

felizes com aquelas brincadeiras noturnas, que, no princípio, apenas a intrigavam,

masqueaospoucosatinhamconquistado,apimentandosuavida—suasnoites—

comficçõessemprerenovadas.Atéaloucuracomaquelepirralho.

—Quemrisozinhodesuasmaldadesselembra.—AvozjovialdeJustiniana,

quetraziaabandejadochá,tirou-adesuasdivagações.—Oi,Fonchito.

—Opapai escreveuumacarta àmadrasta e logo, logo, elesvão se reconciliar.

Talcomoeulhedisse,Justita.Fezmeuschancays?—Bemtostadinhos,commanteigaegeleiademorango.—Justinianasevoltou

paradonaLucrecia,arregalandoosolhos.—Vaifazeraspazescomopatrão?Quer

dizerquevamosnosmudardevoltaparaBarranco?

—Bobagem—disseasenhoraLucrecia.—Nãoconheceestemoleque?

— Veremos se é bobagem — protestou Fonchito, atacando os pãezinhos

enquantodonaLucrecia lhe servia o chá.—Quer apostar?Oque vocêmedá, se

fizeraspazescomopapai?

—Umbeliscão—disseasenhoraLucrecia,abrandada.—Evocê,oquemedá

seperder?

—Umbeijo—riuomenino,piscando-lheoolho.

Justinianasoltouumagargalhada.

—Émelhoreuirsaindo,paradeixarsozinhososdoispombinhos.

—Cale aboca, suamaluca— repreendeu-adonaLucrecia, quando amoça já

nãopodiaouvi-la.

Tomaram o chá em silêncio. Dona Lucrecia continuava impregnada de

reminiscências de sua vida com Rigoberto, pesarosa pelo que acontecera. Aquela

ruptura não tinha remédio. Havia sido muito séria, não permitia retorno. Seria

possível retomar a vida a três, juntos de novo na mesma casa? Nesse momento,

ocorreu-lhe que Jesus Cristo, aos doze anos, havia assombrado os doutores do

templodiscutindocomeles,deigualparaigual,sobrematériasteológicas.Sim,mas

Fonchitonão eraummenino-prodígio como JesusCristo.Era-o comoLúcifer, o

Príncipe dasTrevas.Não fora ela,mas ele, ele, o supostomenino, quem tivera a

culpadetodaaquelahistória.

— Sabe em que outra coisa eu me pareço com Egon Schiele, madrasta? —

perguntou Fonchito, arrancando-a de seu devaneio. — É que eu e ele somos

esquizofrênicos.

Elanãopôdeconterumagargalhada.Masinterrompeuorisoderepente,porque,

comoemoutrasvezes, intuiuqueporbaixodoquepareciaumacriancicepodiase

esconderalgotenebroso.

—Eporacasovocêsabeoqueéumesquizofrênico?

—Équando,sendosóumapessoa,vocêseachaduasoumais,ediferentes.—

Fonchitorecitavaumalição,exagerando.—Opapaimeexplicouontemànoite.

—Bom,entãovocêpoderia ser—murmuroudonaLucrecia.—Porque, em

você,háumvelhoeummenino.Umanjinhoeumdemônio.Oqueissotemaver

comEgonSchiele?

De novo, Fonchito distendeu a cara em um sorriso satisfeito. E, depois de

murmurar um rápido “Espere aí, madrasta”, remexeu a mochila em busca do

indefectível livrode reproduções.Oumelhor,os livros,pois a senhoraLucrecia se

lembrava de ter visto pelo menos três. Ele andava sempre com um na mochila?

Estavapassandodo limite,comsuamaniade se identi caremtudoea todahora

com esse pintor. Se ela tivesse comunicação com Rigoberto, sugeriria que ele o

levasse a um psicólogo.Mas, no ato, riu de si mesma. Que ideia descabida, dar

conselhos ao ex-marido sobre a educação do pirralho que causara a ruptura do

casamento.Estavavirandoumaidiota,ultimamente.

—Veja,madrasta.Oqueacha?

DonaLucreciapegouo livronapáginaqueFonchito lheapontavaeofolheou

porumbomtempo,tentandoconcentrar-senaquelasimagensquentes,contrastadas,

naquelas guras masculinas que se exibiam diante dela, em duplas ou em trios,

olhando-acom impavidez,vestidas,metidas em túnicas,nuas, seminuas e, vezpor

outra,tapandoosexooumostrando-o,eretoeenorme,comtotalimpudor.

—Bem,sãoautorretratos—dissepor m,sóparadizeralgumacoisa.—Uns

bons,outrosnemtanto.

—Elepintoumaisdecem—ilustrou-aomenino.—DepoisdeRembrandt,

Schielefoiopintorquemaisretratouasimesmo.

—Issonãoquerdizerquefosseesquizofrênico.Nomáximo,umNarciso.Você

tambéméisso,Fonchito?

—Vocênãoprestouatençãodireito.—Omeninoabriuoutrapágina,emais

outra, instruindo-a, enquanto apontava:—Não percebeu? Ele se duplica e até se

triplica. Este, por exemplo.Os videntes de si mesmos, de 1911. Quem são essas

guras?Elemesmo,repetido.EProfetas(Autorretratoduplo),de1911.Olhebem.

Éelemesmo,nuevestido.Autorretratotriplo,de1913.Ele,trêsvezes.Emaistrêsaí,

àdireita,emtamanhopequeno.Via-seassim,comoseexistissemváriosEgonSchiele

dentrodele.Issonãoéseresquizofrênico?

ComoFonchitoseatropelavaaofalareseusolhosrelampeavam,donaLucrecia

tentouacalmá-lo.

— Bom, talvez tivesse tendência à esquizofrenia, como muitos artistas —

admitiu.—Ospintores,ospoetas,osmúsicos.Elestêmmuitascoisasdentro,tantas

que, às vezes, não cabemnumapessoa só.Mas você é omeninomais normal do

mundo.

—Nãomefalecomoseeufosseumtarado,madrasta—aborreceu-seAlfonso.

—Eu sou como ele era e você sabemuito bem, porque acaba deme dizer.Um

velhoeummenino.Umanjinhoeumdemônio.Ouseja,esquizofrênico.

Ela lhe acariciou os cabelos. As alvoroçadas e suavesmechas louras deslizaram

entreseusdedosedonaLucreciaresistiuàtentaçãodetomá-lonosbraços,sentá-lo

nocoloeacalentá-lo.

— Você tem saudade de sua mãe? — deixou escapar. Mas logo tentou se

recompor:—Querodizer,pensamuitonela?

—Quase nunca— disse Fonchito, muito tranquilo.—Mal me lembro do

rostodela, sómesmopelas fotos.Eutenhosaudadeédevocê,madrasta.Por isso,

queroquefaçaaspazescomopapaideumavezportodas.

—Nãovai ser tão fácil.Nãopercebe?Existem feridasdifíceis de cicatrizar.O

queaconteceucomRigobertoéumadelas.Elesesentiumuitoofendido,ecomtoda

arazão.Eucometiumaloucuraquenãotemdesculpa.Nãosei,nuncasabereioque

me aconteceu. Quanto mais penso, mais inacreditável me parece. Como se não

tivessesidoeu,comoseoutrativesseagidodentrodemim,mesuplantando.

—Então,vocêtambéméumpoucoesquizofrênica,madrasta—riuomenino,

fazendooutravezaexpressãodetê-laapanhadoemfalta.

—Umpouco, não.Bastante—assentiu ela.—Mas vamosparar de falar de

coisastristes.Mecontealgoaseurespeito.Oudoseupai.

— Ele também sente saudade de você.— Fonchito fez uma expressão séria,

quasesolene.—Porissolheescreveuestacarta.Aferidajáfechoueelequerfazeras

pazes.

Dona Lucrecia não teve disposição para discutir. Agora, sentia-se vencida pela

melancoliaeumpoucotriste.

—ComoestáRigoberto?Levandosuavidadesempre?

—Do trabalhopara casa edecasaparao trabalho, todo santodia—assentiu

Fonchito.—Metido no escritório, ouvindomúsica, contemplando suas gravuras.

Masissoéumpretexto.Elenãosetrancaaliparaler,verpinturasouescutardiscos.

Éparapensaremvocê.

—Comoéquevocêsabe?

—Porqueelelhefala—afirmouomenino,baixandoavozedandoumaolhada

parao interiordacasa,a mdeveri carseJustiniananãoestavaporperto.—Eu

ouvi.Me aproximo devagarinho e grudo a orelha na porta.Nunca falha. Ele está

falandosozinho.Edizseunomeatodahora.Juro.

—Nãoacredito,seumentiroso.

—Vocêsabequeeunãoinventariaumacoisadessas,madrasta.Estávendooque

lhedigo?Elequerquevocêvolte.

Falavacomtantasegurançaqueeradifícilnãosesentirarrastadaparaomundo

dele, tão sedutor e tão falso, de inocência, bondade e maldade, pureza e sujeira,

espontaneidade e cálculo. “Desdeque essahistória aconteceu,nuncamaisme senti

angustiadapornãoter tidoum lho”,pensoudonaLucrecia.Tevea impressãode

entender por quê. Agachado, com o livro de reproduções aberto aos seus pés, o

meninoaesquadrinhava.

—Sabedeumacoisa,Fonchito?—disseela,quasesemrefletir.—Gostomuito

devocê.

—Eutambém,devocê,madrasta.

—Nãome interrompa.E,como lhe tenhoafeto, sintopenaporvocênão ser

comoosoutrosmeninos.Sendotãoprecoce,perdealgoquesósevivenessasuafase.

Acoisamaismaravilhosaquepodeaconteceraumapessoaéterasuaidade.Evocê

estádesperdiçandoisso.

—Nãoentendo,madrasta—disseFonchito, impaciente.—Comoassim, se

agoramesmo você disse que eu sou omeninomais normal domundo? Fiz algo

errado?

—Não,não—respondeuela,tranquilizando-o.—Querodizer:eugostariade

vê-lo jogarfutebol, iraoestádio,saircomoscompanheirosdebairroedecolégio.

Teramigosdesuaidade.Organizarfestas,dançar,namorarascoleguinhas.Nãotem

vontadedefazernadadisso?

Fonchitodeudeombros,desdenhoso.

—Que coisas mais sem graça...—murmurou, sem dar importância ao que

ouvia.—Eu jogo futebol no recreio, e pronto.Às vezes saio comos vizinhosde

bairro.Masmechateiocomasbesteirasdequeelesgostam.Easmeninassãomais

tolasainda.AchaqueeupoderialhesfalardeEgonSchiele?Quandoestoucommeus

amigos,parecequepercomeutempo.Comvocê,não,euganho.Pre romilvezes

carconversandoaquidoquefumandocomosgarotosnocalçadãodeBarranco.E

paraqueprecisodasmeninas,setenhovocê,madrasta?

DonaLucrecianãosoubeoquedizer.Osorrisoqueesboçounãopodiasermais

falso.TinhacertezadequeFonchitoestavaconscientedoembaraçoqueela sentia.

Com sua carinha estendida para diante, os traços alterados pela euforia, os olhos

devorando-acomumaluzvaronil,elepareciaquererselançarparabeijá-lanaboca.

E,nessemomento,notou,aliviada,asilhuetadeJustiniana.Maslogopercebeuque

seu alívio não duraria muito: ao ver o pequeno envelope branco nas mãos da

empregada,adivinhou.

—Meteramistoaquiporbaixodaporta,patroa.

—Apostoqueéoutracartaanônimadopapai—aplaudiuFonchito.

Exaltação e defesa das fobias

Deste afastado cantinho do planeta, amigo Peter Simplon— se é que esse é seu

sobrenome e não foi maldosamente alterado por algum ofídio do serpentário

jornalístico, para evocar “simplório” e caricaturá-lo aindamais—, faço-lhe chegar

minhasolidariedade,acompanhadadeadmiração.Desdeestamanhã,quando,rumo

ao trabalho, ouvi no noticiário da Rádio América que um tribunal de Syracusa,

estado de Nova York, condenou o senhor a três meses de prisão por ter-se

encarapitado várias vezes no telhado de sua vizinha, a m de espiá-la quando ela

tomavabanho,conteiosminutospara, terminadaa jornada,voltaràminhacasae

rabiscar-lheestas linhas.Apresso-mea lhedizerqueestesefusivos sentimentospara

comsuapessoaexplodiramemmeupeito (nãoémetáfora, tivea sensaçãodeque

uma granada de amizade estourava entre minhas costelas), não quando conheci a

sentença, mas ao inteirar-me de sua resposta ao juiz (resposta que o desgraçado

considerouumagravante):“Fizissoporqueaatraçãodaquelasmatasaveludadasnas

axilasdaminhavizinhameera irresistível.”(Aolerestapartedanotícia,o locutor,

umacascavel,fezumamelí uavozdetroça,paradeixarclaroaosseusouvintesque

eraaindamaisimbecildoquesuaprofissãonosobrigaasupor.)

Amigo fetichista: eununca estive emSyracusa, cidadeda qual nada sei, exceto

queno inverno é assoladapor tempestadesdeneve eporum friopolar,mas algo

especialessaterradeveteremsuasentranhasparaprocriaralguémdesuasensibilidade

e sua fantasia, sem falar da coragem que o senhor demonstrou, afrontando o

descréditoe,imagino,seuganha-pãoeazombariadeamigoseconhecidos,emdefesa

de sua pequena excentricidade (digo pequena para signi car inofensiva, benigna,

muitosalutarebené ca,claroestá,poisosenhoreeusabemosquenãohámaniaou

fobia que careça de grandeza, já que elas constituem a originalidade de um ser

humano,amelhorexpressãodesuasoberania).

Dito isso, sinto-me obrigado, para evitar mal-entendidos, a fazê-lo saber que

aquiloque,paraosenhor,émanjar,paramiméxepa,eque,noriquíssimouniverso

dosdesejosedossonhos,essas oraçõesdevelosnasaxilasfemininas,cujavisão(e,

suponho,cujossabor,toqueeodor)oenchedefelicidade,amimmedesmoralizam,

me enojam e me reduzem à inapetência sexual. (A contemplação de A mulherbarbudadeRiberameproduziuumaimpotênciadetrêssemanas.)Porisso,minha

amadaLucreciasempresearranjouparaqueemsuastépidasaxilasnuncaassomasse

sequer a premonição de um velo e sua pele parecesse sempre, aos meus olhos, à

minha línguaeaosmeus lábios, a lisabundinhadeumquerubim.Emmatériade

velofeminino,somenteopúbicomeédeleitoso,desdequeestejabemtosquiadoe

nãoseexcedaemdensostufos,maranhasoumechas laníferasquedi cultemoato

doamoretornemocunnilingusumempreendimentocomriscodeasfixiaeengasgo.

Como todeemulá-loemmatériadecon ssãodaintimidade,acrescentoque

não só as axilas enegrecidas de velo (pelo é uma palavra que envilece a realidade,

adicionando-lhe uma matéria seborreica e casposa) me provocam esse terror

antissexual,sócomparávelaoproduzidoemmimpelorepulsivoespetáculodeuma

mulherquemascachicletesouexibebuço,oupelodeumbípededequalquersexo

que futuca a dentadura em busca de excrescências com esse ignóbil objeto

denominadopalito,ouróiasunhas,ouchupa,aosolhoseàvistadomundo,sem

escrúpulosnemvergonha,umamanga,umalaranja,ummaracujá,umpêssego,uvas,

mandarinas,ouqualquer frutadotadadessasdurezashorríveiscuja simplesmenção

(não digo visão) me deixa arrepiado e infecta minha alma de furores e urgências

homicidas: gomos, bras, caroços, cascas, folhelos ou películas. Em nada exagero,

companheiro no orgulho de nossos fantasmas, se lhe digo que jamais consigo

observar alguém comendo uma fruta e tirando da boca ou cuspindo excrescências

incomestíveis semme sentir invadido por náuseas e até desejos de que o culpado

morra.Poroutrolado,sempreconsidereiqualquercomensalquelevantaocotovelo

simultaneamenteàmão,nahoradelevarogarfoàboca,umcanibal.

Assimsomos,nãonosenvergonhamos,enadaadmirotantoquantoquealguém

sejacapazdeirparaaprisãoedeexpor-seàinfâmiaemrazãodesuasmanias.Eunão

soudesses.Organizeiminhavida secretamenteeemfamília,peloquenãochegoà

estaturamoral que o senhor alcançou empúblico.Emmeu caso, tudo é levado a

cabonadiscriçãoenorecato,semânimomissionárionemexibicionista,demaneira

sinuosa,paranãoprovocaraomeuredor,entreaspessoascomquemsouobrigadoa

conviverpormotivosdetrabalho,deparentescooudeservidãosocial,asironiasea

hostilidade.Seosenhorestápensandoqueháemmimmuitacovardia—sobretudo

emcomparaçãocomsuadesenvolturaparaapresentar-seaomundotalcomoé—,

acertou emcheio.Agora, soumenos covardedoquequando jovemem relação às

minhas fobiasemanias—nãomeagradanenhumdesses termos,consideradassua

carga pejorativa e suas associações a psicólogos ou divãs psicanalíticos, mas como

chamá-las sem apequená-las: excentricidades?, desejos privados? Por enquanto,

digamos que a última expressão é a menos ruim. Naquele tempo, eu era muito

católico,militanteedepoisdirigentedaAçãoCatólica,in uenciadoporpensadores

como JacquesMaritain; isto é, um cultor de utopias sociais, convencido de que,

mediante um enérgico apostolado inspirado na palavra evangélica, era possível

arrebataraoespíritodomal—nósochamávamospecado—odomíniodahistória

humana, e construir uma sociedadehomogênea, alicerçadanos valores do espírito.

Para tornar realidade aRepúblicaCristã, essa utopia espiritual coletivista, trabalhei

nos melhores anos de minha juventude, resistindo, com zelo de convertido, aos

brutaisdesmentidosquenoseramin igidos,amimeaosmeuscompanheiros,por

uma realidadehumana avessa aosdesvariosque são todosos empenhosorientados

para arquitetar, de maneira coerente e igualitária, esse vórtice de especi cidades

incompatíveis que é o conglomerado humano. Foi durante aqueles anos, amigo

PeterSimplon,deSyracusa,quedescobri,deiníciocomcertasimpatia,depoiscom

ruborevergonha,asmaniasquemediferenciavamdosdemaisefaziamdemimum

espécime.(Foinecessáriosucederem-seváriosanoseincontáveisexperiênciasparaque

euchegasseacompreenderquetodosossereshumanossomoscasosàparteequeisso

nos torna criativos edá sentido ànossa liberdade.)Quanta estranheza eu sentia ao

notar quemebastava ver alguém, conquanto até entãome fosse umbomamigo,

descascandoumalaranjacomasmãosemetendonabocaospedaçosdepolpa,sem

importar-se com que os repelentes apos dos gomos lhe pendessem dos lábios, e

cuspindoàdireitaeàesquerdaosesbranquiçadoscaroços incomestíveis,paraquea

simpatiasetornasseinvencíveldesagradoequepoucodepois,aqualquerpretexto,eu

rompesseaquelaamizade.

Meuconfessor,opadreDorante,umbonachãoinacianodavelhaescola,encarava

sem inquietude meus alarmes e escrúpulos, considerando que essas “pequenas

manias” eram pecadilhos veniais, caprichos inevitáveis em todo lho de família

abastada, excessivamente mimado pelos pais. “Por que você seria um fenômeno,

Rigoberto?”,riaele.“Excetoporsuasorelhasmonumentaiseseunarizdetamanduá,

nuncaseviuninguémmaisnormaldoquevocê.Portanto,quandoviralguémcomer

frutacombagosoucaroços,olheparaooutro ladoedurmaempaz.”Eu,porém,

não dormia em paz, mas sobressaltado e inquieto. Sobretudo depois de haver

rompido,medianteumpretextofútil,comOtília,aOtíliadastranças,dospatinse

donarizinhoarrebitado,porquemestavamuitoapaixonadoeaquemtantoassediei

paraquemedessebola.Porquebrigueicomela?QuecrimecometeualindaOtília,

emseuuniformebrancodoColégioVillaMaría?Comeruvasdiantedemim.Metia

nabocaumaporuma,commanifestaçõesdedeleite,virandoosolhosesuspirando

para zombar mais ao seu gosto de minhas caretas de horror— pois eu a zera

partícipedeminhafobia.Abriaabocaecompletavaaasquerosidadetirandocomas

mãososrepulsivoscaroçoseosimundosfolhelos,quelançavanojardimdesuacasa

—aliestávamos,sentadosnagrade—comexpressãodedesa o.Euadetestei!Eua

odiei!Meulongoamorsederreteucomoboladesorveteexpostaaosol,e,durante

muitos dias, desejei-lhe atropelamentos de carro, trancos de ondas revoltas e

escarlatina. “Issonão épecado, rapaz”, acreditava tranquilizar-meopadreDorante.

“Isso é loucura furiosa.Vocênãoprecisa deum confessor,mas deummédicode

doidos.”

Mas, amigo e rival de Syracusa, tudo issome levava a sentir-me um anormal.

Essa ideiameangustiavaentão,pois,comotantoshominídeosainda—amaioria,

temo—, eu não associava a ideia de ser diferente a uma reivindicação deminha

independência, mas só à sanção social que sempre recai sobre a ovelha negra do

rebanho.Serumempestado,aexceçãoànorma,parecia-meapiordascalamidades.

Atédescobrirque,nissodasmanias,nemtodaseramfobias;algumaseram,também,

misteriosasfontesdegozo.Osjoelhoseoscotovelosdasmoças,porexemplo.Meus

companheirosgostavamdeolhosbonitos,decorpoespigadooucheinho,decintura

na,eosmaisaudazes,debundinhaempinadaoudepernascurvilíneas.Sóamim

ocorriaprivilegiaressasjunturasósseas,que,agoraconfessosemrubornaintimidade

tumulardemeuscadernos,valiammaisdoquetodoorestodosatributosfísicosde

uma moça. Isso eu lhe digo e a rmo. Uns joelhos bem acolchoados, sem

protuberâncias, curvos, acetinados, e uns cotovelos polidos, não sulcados, não

amotinados, lisos, suaves ao toque, dotados da qualidade esponjosa do bolinho,

deixam-medesassossegadoeencabritado.Soufelizvendo-osetocando-os;beijando-

os, ascendo ao sétimo céu. O senhor não terá oportunidade de fazê-lo, mas, se

solicitasse o testemunho de Lucrecia, minha amada lhe diria as muitas horas que

passei — tantas quantas, em criança, ao pé do cruci xo — contemplando, em

extasiadaprece,aperfeiçãodeseusgeométricosjoelhosedeseusgentiscotovelosde

lisura sem par, beijando-os,mordiscando-os como um cachorrinho brincalhão faz

comseuosso,mergulhadonaembriaguez,atéquesemeadormeciaalínguaouque

umacãibralabialmedevolviaàpedestrerealidade.QueridaLucrecia!Entretodasas

graças que a enfeitam, nenhuma eu agradeço tanto quanto sua compreensão de

minhasdebilidades,suasabedoriaemajudar-meaaplacarminhasfantasias.

Foi emrazãodessamaniaquemeviobrigadoaumexamedeconsciência.Ao

perceberoquemaismeatraíanasmoças—joelhosecotovelos—,umcompanheiro

de Ação Católica, queme conheciamuito bem, preveniu-me de que algo iamal

dentrodemim.Eraumadeptodapsicologia,oquepiorouascoisas,pois,ortodoxo,

queria que as condutas e motivações humanas sintonizassem com a moral e os

ensinamentos da Igreja. Falou de desvios e pronunciou as palavras fetichismo e

fetichista.Agora,elasmeparecemduasdasmaisaceitáveisdodicionário(issoéoque

somos,osenhor,euetodososseressensíveis),mas,naquelaépoca,soaram-mecomo

sinônimosdedepravação,devícionefando.

O senhor e eu sabemos, amigo siracuso, que o fetichismo não é o “culto dos

fetiches”comodizmesquinhamenteodicionáriodaAcademia,massimumaforma

privilegiadadeexpressãodaparticularidadehumana,umaviadequeohomemea

mulherdispõemparatraçarseuespaço,marcarsuadiferençaemrelaçãoaosoutros,

exercitarsuaimaginaçãoeseuespíritoantirrebanho,serlivres.Eugostariadecontar-

lhe,sentadososdoisemalgumacasinhadecamponosarredoresdesuacidade,que

imaginocheiadelagos,pinheiraisecolinasbranqueadaspelaneve,bebendoumcopo

deuísqueeouvindoalenhacrepitarnalareira,comoadescobertadopapelcentraldo

fetichismo na vida do indivíduo foi decisiva emmeu desencanto com as utopias

sociais—aideiadequeerapossível,coletivamente,construirafelicidade,obem,ou

encarnar qualquer valor ético ou estético —, em minha passagem da fé ao

agnosticismo,enaconvicçãoqueagorameanima,segundoaqual,jáqueohomem

eamulhernãopodemviversemutopias,aúnicamaneirarealistadematerializá-lasé

transferi-las do social para o individual. Um coletivo não pode organizar-se para

alcançarnenhumaformadeperfeiçãosemdestruiraliberdadedemuitos,semlevar

de roldão as belas diferenças individuais em nome dos pavorosos denominadores

comuns. Em contraposição, o indivíduo solitário pode — em função de seus

apetites,manias,fetichismos,fobiasougostos—erigir-seummundopróprioquese

aproxime (ou chegue a encarná-lo, como acontece aos santos e aos campeões

olímpicos) desse ideal supremo no qual o vivido e o desejado coincidem.

Naturalmente,emalgunscasosprivilegiados,umacoincidênciafeliz—aquelaentre

oespermatozoideeoóvulo,queproduzafecundação,porexemplo—permiteque

duas pessoas realizem complementarmente seu sonho.É o caso (acabo de lê-lo na

biogra a escrita pela compreensiva viúva) do jornalista, comediógrafo, crítico,

animador e frívolo pro ssional KennethTynan, masoquista encoberto a quem o

acasofezconhecerumajovemquecasualmenteerasádica,tambémenvergonhada,o

que lhes permitiu ser felizes, duas ou três vezes por semana, em um porão de

Kensington,elerecebendochicotadaseelaministrando-as,emumjogoequimosado

queostransportavaaoscéus.Respeito,masnãopratico,esses jogosquetêmcomo

corolárioomercurocromoeaarnica.

Jáqueenveredeipelashistorietas—nestedomínio,elasexistememproporções

oceânicas—,nãoresistoarelatar-lheafantasiaqueincitaatéàdançadesãoguidoa

libido de Cachito Arnilla, um ás na verbosa pro ssão de vender seguros, e que

consiste—elemefezacon ssãoduranteumdessesabomináveiscoquetéisdefestas

cívicas ou natalinas aos quais não posso furtar-me a comparecer— em ver uma

mulherdespidamascalçadacomsapatosdesalto-agulha,fumandoejogandobilhar.

Essa imagem,queeleacreditahavervistoquandocriançaemalgumarevista,esteve

associadaàssuasprimeirasereçõese,desdeentão,temsidoonortedesuavidasexual.

Simpático Cachito! Quando se casou, com uma espevitada moreninha da

contabilidade,capaz,tenhocerteza,desecundá-lo,cometiatraquinagemdeoferecer-

lhe, emnome da companhia de seguros La Perricholi— sou seu gerente—, um

jogodebilharregulamentar,queumcaminhãodemudançasdescarregouemsuacasa

no dia das núpcias. A todos, o presente pareceu disparatado; mas, pelo olhar de

Cachito e pela salivinha antecipatória com queme agradeceu, eu soube que havia

acertadoemcheio.

CaríssimoamigodeSyracusa,amantedasescovasaxilares:aexaltaçãodasmanias

efobiasnãopodeserilimitada.Convémreconhecer-lherestriçõessemasquaisiriam

desatar-seocrimeeo retornoàbestialidade selvática.Porém,nodomínioprivado

queéodestes fantasmas, tudodeveserpermitidoentreadultosqueconsentemno

jogoenasregrasdojogo,parasuamútuadiversão.Que,amim,muitosdessesjogos

produzamumarepugnânciadesmesurada(porexemplo,aspastilhinhasdeprovocar

traquesàsquaiseratãoafeiçoadooséculogalantefrancêse,emparticular,omarquês

de Sade, que, não contente em maltratar as mulheres, exigia-lhes que o

entontecessem com descargas artilheiras de ventosidades) é tão certo quanto que,

nesse universo, todas as diferenças merecem consideração e respeito, pois nada

representamelhoracomplexidadeinapreensíveldapessoahumana.

Estaria o senhor infringindo os direitos humanos e a liberdade de sua hirsuta

vizinhaaoescalar-lheotelhadoparaprestaradmirativahomenagemaoscarrapichos

desuasaxilas?Semdúvida.Mereceriaserpunidoemnomedacoexistênciasocial?Ai,

ai,claroquesim.Mas,disso,osenhorsabiaemesmoassimsearriscou,dispostoa

pagaropreçoporespiarasaxilascabeludasdavizinhança.Eujádissequenãoposso

imitá-lo nesses extremos heroicos. Meu senso do ridículo e meu desprezo pelo

heroísmosãodemasiadograndes,semfalardeminhacanhestricefísica,paraqueeu

meatrevaaescalarumtelhadoalheio,a mdedivisar,emumcorposemvéus,os

joelhos mais redondos e os cotovelos mais esféricos da espécie feminina. Minha

covardianatural,quetalveznãopassedeenfermiçoinstintodelegalidade,induz-mea

encontrarparameusfetichismos,maniasefobiasumnichopropício,dentrodoque

é comumente conhecido como lícito. Issome priva de um suculento tesouro de

lubricidades? Semdúvida.Mas o que tenho é bastante, desde que eu consiga tirar

deleoproveitodevido,algoquemeesforçoporfazer.

Queostrêsmeseslhesejamlevesequesuasnoitesatrásdasgradessejamaliviadas

porsonhoscombosquesdevelos,avenidasdepelossedosos,negros,louros,ruivos,

entreosquaisosenhorgalopa,nada,corre,frenéticodefelicidade.

Adeus,congênere.

A calcinha da professora

DonRigobertoabriuosolhos:ali,derramadaentreoterceiroeoquartodegrausda

escada, azulínea, brilhante, debruada de renda, provocadora e poética, estava a

calcinhadaprofessora.Tremeu comoumpossesso.Nãodormia, embora estivesse

haviabomtempoàsescuras,nacama,ouvindoomurmúriodomar,submergidoem

escorregadiçasfantasias.Atéque,derepente,aqueletelefonevoltaraatocar,naquela

noite,arrancando-oviolentamenteaosonho.

—Alô,alô?

—Rigoberto?Évocê?

Reconheceu a voz do velho professor, embora este falasse muito baixinho,

tapando o fone com a mão para abafar o som. Onde estavam? Em uma cidade

universitáriaderenome.Dequepaís?DosEstadosUnidos.Emqualestado?Oda

Virgínia.Qualuniversidade?Aestadual,abelauniversidadedeestiloneoclássico,de

brancascolunatas,desenhadaporThomasJefferson.

—Éosenhor,professor?

—Sim,soueu,Rigoberto.Masfalebaixo.Peçodesculpasporacordá-lo.

—Nãosepreocupe,professor.ComofoiseujantarcomaprofessoraLucrecia?

Játerminou?

A voz do venerável jurista e lósofo Nepomuceno Riga se quebrou em

hieroglí co tartamudeio. Rigoberto compreendeu que algo sério acontecia ao seu

antigomestrede loso adodireitonaUniversidadeCatólicadeLima,oqualviera

assistiraumsimpósionaUniversidadedaVirgínia,ondeelefaziasuapós-graduação

(em legislação e seguros) e onde tiveraoportunidadede servir-lhede cicerone ede

motorista: levara-o a Monticello, para visitar a casa-museu de Jefferson, e aos

monumentoshistóricosdabatalhadeManassas.

—Éque,Rigoberto,perdoemeuabuso,masvocêéaúnicapessoa,aqui,com

quemtenhocertaintimidade.Comofoimeualuno,euconheçosuafamília,enestes

diasmefeztantasgentilezas...

—Nãofaçacerimônia,donNepomuceno—animou-oojovemRigoberto.—

Aconteceualgumacoisa?

Don Rigoberto se sentou na cama, sacudido por uma risadinha tendenciosa.

Pareceu-lhequeaqualquermomentoaportadobanheiroseabririae,desenhadano

umbral, surgiria a silhueta de dona Lucrecia, surpreendendo-o com uma daquelas

primorosaseimaginativascalcinhas,pretas,brancas,combordados,orifícios, osde

seda,pespontadasoulisas,quemalenvolviam,apenaspararessaltá-lo,seuempinado

montedeVênus,eporcujasbordasassomavamparatentá-lo—indóceis,coquetes

—algunspelinhosdopúbis.Eraumacalcinhacomoessas,aquejaziainsolitamente,

qualumdessesobjetosprovocadoresdosquadrossurrealistasdocatalãoJoanPonç

oudoromenoVictorBrauner,naescadaporondeteriadesubiraoseudormitório

essa boa alma, esse espírito inocente, don Nepomuceno Riga, que em suas aulas

memoráveis,asúnicasdignasderecordaçãoporpartededonRigobertonosseussete

anosdeáridosestudosjurídicos,costumavaapagaroquadrocomaprópriagravata.

—Équeeunãoseioquefazer,Rigoberto.Estouemapuros.Apesardaminha

idade,nãotenhoamenorexperiêncianessaslides.

—Quelides,professor?Fale,nãoseenvergonhe.

Por que, em vez de alojá-lo no Holiday Inn ou no Hilton, como os outros

participantesdosimpósio,tinhaminstaladodonNepomucenonacasadaprofessora

dedireitointernacional,cursoII?Umadeferênciaaoprestígiodele,semdúvida.Ou

teriasidoporqueosuniaumaamizadesurgidaquandoseencontravamporacasonas

faculdadesdedireitodovastomundo,emcongressos,conferências,mesas-redondas,

etambém,talvez,porhaveremengendradoaquatromãosumaeruditacomunicação,

abundante de latinórios e publicada com profusão de notas e uma sufocante

bibliogra aemumarevistaespecializadadeBuenosAires,TübingenouHelsinque?

OfatoéqueoilustredonNepomuceno,emvezdehospedar-senoimpessoalcubo

comjanelasdoHolidayInn,passavaasnoitesnaconfortávelcasinha,entrerústicae

moderna,daprofessoraLucrecia,queRigobertoconheciamuitobem,porqueneste

semestre fazia comelao semináriodedireito internacional, curso II, e várias vezes

bateraàquelaporta,paralevarseuspapersoudevolverosdensostratadosqueamestra

lheemprestavaamavelmente.DonRigobertofechouosolhoseficoutodoarrepiado,

aodivisar,maisumavez,osquadrismusicaisdabem-proporcionadaemarcial gura

dajuristaquandoseafastava.

—Osenhorestábem,professor?

— Sim, sim, Rigoberto.Na realidade, trata-se de uma tolice. Você vai rir de

mim.Mas, repito, não tenhonenhuma experiência.Estouperplexo e abobalhado,

rapaz.

Nemprecisavadizer;suavoztremiacomoseelefosse carmudo,easpalavras

lhe saíam a fórceps. Devia estar suando gelo. Ousaria contar o que lhe havia

acontecido?

—Bom, preste atenção. Agora há pouco, ao voltarmos daquele coquetel que

zeramemnossahomenagem,adoutoraLucreciapreparouaqui,emsuacasa,uma

ceiazinha. Sóparanósdois, uma nezade suaparte.Um jantarmuito simpático,

durante o qual tomamos uma garra nha de vinho. Eu não estou habituado ao

álcool,demodoque,possivelmente,todaaminhaconfusãovemdessesvaporesque

mesubiramàcabeça.UmvinhozinhodaCalifórnia,creio.Bom,emborameioforte.

—Deixedetantosrodeios,professor,edigaoqueaconteceu.

—Espere, espere. Imagine que, depois dessa ceia e dessa garra nha, a doutora

aindainsistiuemquebebêssemosumataçadeconhaque.Nãopudemenegar,claro,

poreducação.Masviestrelas,rapaz.Aquiloerafogolíquido.Comeceiatossireaté

pensei que podia car cego. Em vez disso, me aconteceu algo ridículo. Caí

adormecido, meu lho. Sim, sim, ali, na poltrona, na salinha que também é

biblioteca.Equandoacordei,nãoseiquantotempodepois,dez,quinzeminutos,a

doutoranão estava.Certamente se retirouparadormir, pensei.Entãomedispus a

fazer o mesmo. Quando, quando, imagine que ao subir a escada, catapum!,

despenqueidebruçosemcima...vocênãosabedequê.Umacalcinha!Bemnomeu

caminho,istomesmo.Nãoria,rapaz,porque,emboraacoisasejaengraçada,estou

transtornadíssimo.Nãoseioquefazer,jálhedisse.

—Maséclaroqueeunãoestourindo,donNepomuceno.Nãoachaqueessa

peçaíntima,nesselugar,sejapuracasualidade?

—Quecasualidade,quenada, rapaz.Possonão ter experiência,masaindanão

queigagá.Adoutoraadeixounaescadaexprofesso, paraque eu topasse comela.

Embaixodeste tetonãohá outra pessoa, afora a donada casa e eu.Ela colocou a

calcinhaali.

—Masentão,professor,estálheacontecendoomelhorquepodeaconteceraum

hóspede.Osenhorrecebeuumconvitedesuaanfitriã.Éclaríssimo.

Avozdoprofessorsequebroutrêsvezesantesdeelearticularalgointeligível.

— Acha mesmo, Rigoberto? Bom, foi o que eu imaginei, quando consegui

pensar, depois de semelhante surpresa. Parece um convite, não é? Não pode ser

casual,estacasinhaéaordempersoni cada,comoadoutora.Apeçafoicolocadaali

intencionalmente.Alémdisso,amaneiracomofoidispostanaescadanãoécasual,

porqueaexibeearealça,juroavocê.

— Foi colocada ali com perfídia, se me permite uma brincadeirinha, don

Nepomuceno.

— Sim, também estou rindo por dentro, Rigoberto. No meio da minha

perplexidade,querodizer.Porisso,precisodoseuconselho.Oqueeudeveriafazer?

Nuncasonheimeveremsemelhantecircunstância.

—Oqueosenhortemdefazerestáclaríssimo,professor.Nãogostadadoutora

Lucrecia?Elaéumamulhermuitoatraente; euacho,emeuscolegas também.Éa

catedráticamaisbonitadaVirgínia.

—Semdúvida,quempoderianegar?Éumadamamuitobela.

—Então,nãopercatempo.Váebataàportadoquarto.Nãovêqueelaestáà

suaespera?Válogo,antesqueelaadormeça.

—Possomepermitirisso?Bateràportadela,semmaisnemmenos?

—Ondeosenhorestáagora?

—Eondepoderiaser?Aqui,nasalinha,aopédaescada.Porquevocêachaque

euestoufalandotãobaixinho?Vouebatocomosnósdosdedos?Semmaisaquela?

—Nãopercaumminuto.Elalhedeixouumsinal,osenhornãopodesefazerde

desentendido. Principalmente, se ela o agrada. Porque a doutora o agrada, não,

professor?

—Claroquesim.Éoquedevofazer,sim,vocêtemrazão.Masmesintomeio

coibido.Obrigado, rapaz.Não preciso lhe recomendar amáxima discrição, certo?

Pormime,sobretudo,pelareputaçãodadoutora.

— Serei um túmulo, professor. Não hesite mais. Suba essa escada, recolha a

calcinhae leveparaela.Bataàportaecomecefazendoumgracejosobreasurpresa

queencontrouemseucaminho.Tudo sairáàsmilmaravilhas,o senhorverá.Esta

noiteficaráparasemprenasualembrança,donNepomuceno.

Antesdeouvirocliquedofoneencerrandoaconversa,donRigobertochegoua

perceberumruídoestomacal,umaangustiadaeructaçãoqueoprovecto juristanão

pôdereprimir.Comodeviaestarnervosoesôfrego,noescurodaquelasalinhacheia

de livros de direito, na pujante noite primaveril virginiana, dividido entre a ilusão

dessaaventura—aprimeira,emumavidadecoitosmatrimonaisereprodutores?—

esuacovardiamascaradaportrásdorigordeprincípioséticos,convicçõesreligiosase

preconceitos sociais! Qual das forças que batalhavam em seu espírito venceria: o

desejoouomedo?

Quase sem se dar conta, submergido naquela imagem já totêmica, a calcinha

abandonadanaescadadaprofessora,donRigobertosaiudacamaesetransferiupara

oescritório,semacendera luz.Seucorpoevitavaosobstáculos—obanquinho,a

esculturanúbia, as almofadas, o televisor—comumadesenvoltura adquiridapor

umapráticaassídua,pois,desdeapartidadesuamulher,nãohavianoiteemquea

vigília não o impelisse a se levantar aindano escuro, para buscar entre os papéis e

garatujasdesuaescrivaninhaumbálsamoparaasaudadeeasolidão.Comacabeça

ainda obsedada pela silhueta do venerável jurista arremessado pelas circunstâncias

(encarnadasemumaperfumadaevoluptuosacalcinhademulheratravessadaemseu

caminhoentredoisdegrausdeumaescadajurisprudente)aumaincertezahamletiana,

mas já sentado ante a comprida mesa de madeira do escritório e folheando seus

cadernos, donRigobertodeuum salto quandoo conedouradodoquebra-luz lhe

revelouoprovérbioalemãoqueencabeçavaessapágina:WerdieWahlhat,hatdieQual(“Quemtemescolhatemtormento”).Extraordinário!Esseprovérbio,copiado

sabe Deus de onde, não retratava o estado de ânimo do pobre e ditoso don

NepomucenoRiga,tentadopelaabundantecatedrática,adoutoralLucrecia?

Suasmãos,quepassavamaleatoriamenteasfolhasdeoutrocaderno,paraverse

pelasegundavezoacasoacertavaouestabeleciaumarelaçãoentreoencontradoeo

sonhadoqueservissedecombustívelàsuafantasia,detiveram-sederepente(“como

asdocrupiêquelançaabolinhasobrearoletaemmovimento”)eelesedebruçou,

ávido. Uma re exão sobreO diário de Edith, de Patricia Highsmith, rabiscava a

página.

DonRigobertolevantouacabeça,desconcertado.Ouviuasenfurecidasondasdo

mar, aopédaescarpa.PatriciaHighsmith?Não se interessavanemumpoucopor

essaromancistadetediososcrimes,cometidospeloapáticoeimotivadoMr.Ripley.

Sempre responderacombocejos (comparáveisaosqueopopularLivro tibetanodosvivos e dos mortos lhe havia produzido) à moda dessa criminalista que ( lmes de

Alfred Hitchcock de permeio), alguns anos antes, havia empolgado a centena de

leitores que constituíam o público limenho.O que fazia essa escrevinhadora para

ciné losintrometidaemseuscadernos?Elenemsequerrecordavaquandoeporque

havia escrito aquele comentário sobreOdiáriodeEdith, livrodeque tampoucose

lembrava:

“Excelente romance,para saberque a cção éuma fugaparao imaginárioque

reti ca a vida. As frustrações familiares, políticas e pessoais de Edith não são

gratuitas;enraízam-senaquela realidadequemaisa faz sofrer: seu lhoCliffie.Em

vezdeprojetar-senodiáriotalcomoé—umjovemfrouxoefracassado,quenãofoi

admitidonauniversidade equenão sabe trabalhar—,Cliffie,naspáginasque sua

mãeescreve,desdobra-sedooriginaleaparecevivendoavidaqueEdithdesejavapara

ele: jornalistadedestaque, casado comumamoçadeboa família, com lhos,um

bomemprego,rebentoqueenchesuaprogenitoradesatisfação.

“Masa cçãoé sóumremédiomomentâneo,pois, embora sirvade consolo a

Edith e a distraia dos reveses, vai inibindo-a na luta pela vida, isolando-a em um

mundomental.Asrelaçõescomseusamigossedebilitameseesgarçam;elaperdeseu

trabalhoe terminadesamparada.Embora suamorte sejaumexagero,dopontode

vistasimbólicoécoerente;Edithpassa, sicamente,aolugarparaondejásemudara

emvida:airrealidade.

“Oromanceéconstruídocomsimplicidadeenganosa,sobaqualseper lamum

contexto dramático, de luta sem quartel entre as irmãs inimigas, a realidade e o

desejo,easintransponíveisdistânciasqueasseparam,excetonorecintomilagrosodo

espíritohumano.”

Don Rigoberto sentiu que seus dentes castanholavam e que suas mãos

transpiravam.Agora recordava esse romancepassageiro e oporquêde sua re exão.

TerminariacomoEdith,deslizandoemdireçãoàruínaporabusardafantasia?Mas,

apesardisso,mesmosobessalúgubrehipótese,acalcinha,fragranterosa,continuava

nocoraçãode suaconsciência.Oqueestaria acontecendocomdonNepomuceno?

Quais eram seusmovimentos, seus dilemas, depois da conversa telefônica com o

jovemRigoberto?Teriaseguidooconselhodoaluno?

Havia começado a subir a escadanaspontasdospés, em relativa escuridão,na

qualdistinguiaasprateleirasde livroseasquinasdosmóveis.Nosegundodegrau,

parou, inclinou-se, agarrou o precioso objeto—de seda? de algodão?— com os

dedosdormentes,levou-oaorostoeofarejou,comoumanimalzinhoaveriguando

seesseobjetodesconhecidoécomestível.Entrefechandoosolhos,beijou-o,sentindo

um começo de vertigem que o fez cambalear e segurar-se ao corrimão. Estava

decidido:fariaaquilo.Continuousubindoaescada,comacalcinhanamão,sempre

na ponta dos pés, temendo ser surpreendido, ou como se o ruído— os degraus

estalavam levemente—pudesse quebrar o feitiço. Seu coraçãobatia tão forte que

pela mente lhe passou a ideia de como seria inoportuno, além de estúpido, cair

fulminado por um ataque cardíaco neste preciso momento. Não, não era uma

síncope;oqueatropelavadaquelemodoosangueemsuasveiaseramacuriosidadee

a sensação (inédita em sua vida) de estar degustando um fruto proibido. Havia

chegadoaocorredor,estavadiantedaportadajurista.Apertouamandíbulacomas

duasmãos,porqueessegrotescoestralejardosdentescausariapéssimaimpressãoem

suaan triã.Armando-sedecoragem(“fazendodastripascoração”,murmuroudon

Rigoberto,que suavaembicase tremia igualmente),bateucomosnósdosdedos,

muitodeleve.Aporta,sóencostada,abriu-secomumrangidohospitaleiro.

Oqueovenerávelmestrede loso adodireito viudaquele limiar acarpetado

mudousuasideiassobreomundo,ohomem—seguramente,tambémodireito—

earrancouadonRigobertoumgemidodeprazerdesesperado.Umaluzouroeazul-

anil (VanGogh?Botticelli?Algumexpressionista tipoEmilNolde?),queuma lua

redondaeamarelaenviavadoestreladocéudaVirgínia,caíaemcheio,dispostapor

umexigentecenógrafooudestroiluminador,sobreacama,comaúnicaintençãode

ressaltarocorponudadoutora.Quemimaginariaqueaquelasseverasroupasqueela

exibiadoaltode suacátedra, aquelestailleurscomqueexpunhaseusargumentose

moçõesnoscongressos,aquelascapasdechuvacomquecostumavaenvolver-senos

invernos,ocultavamformasquePraxíteleseRenoirdisputariamentresi,oprimeiro

pela harmonia e o segundo, pelamodelagem carnuda? Estava de bruços, a cabeça

apoiada sobre os braços cruzados, demodo que a postura a alongava,mas o que

imantouoolhardoaturdidodonNepomucenonãoforamseusombros,nemseus

mórbidosbraços (“mórbidos,no sentido italiano”, especi coudonRigoberto,que

não tinha nenhuma atração pelomacabro, mas pelo lânguido e macio), nem seu

dorsoondulado.Nem sequer as amplas e leitosas coxas ouospezinhosdeplantas

rosadas.Eram,istosim,essasesferasmaciçasquecomalegreimpudorseempinavam

e sobressaíam como os cumes de uma montanha bicéfala (“Aqueles vértices das

cordilheiras enroscadas por nuvenzinhas nas gravuras japonesas do períodoMeiji”,

associou, satisfeito, don Rigoberto). Mas também Rubens, Ticiano, Courbet e

Ingres, Úrculo e mais meia dúzia de mestres forjadores de traseiros femininos

pareciamter confabuladoparadar realidade, consistência, abundânciae, aomesmo

tempo,delicadeza,suavidade,espíritoevibraçãosensualaessetraseirocujabrancura

fosforescianapenumbra.Incapazdeseconter,semsaberoquefazia,odeslumbrado

(“corrompidoparasempre?”)donNepomucenodeudoispassose,aochegarjuntoà

cama,caiudejoelhos.Asidosasmadeirasdopisoemitiramumqueixume.

—Desculpe, doutora,mas encontrei na escadauma coisa que lhe pertence—

balbuciou,sentindoquelhecorriamriosdesalivapelascomissurasdoslábios.

Falava tãobaixinhoquenemelemesmo seouvia, ou talvezmovesseos lábios

sememitirsomalgum.Nemsuavoznemsuapresençahaviamdespertadoajurista.

Elarespiravasossegada,simetricamente,eminocentesono.Masessapostura,ofato

de estar nua, de ter deixado apenas encostada a porta da alcova, de ter soltado os

cabelos—pretos, lisos,compridos—queagoralhevarriamosombroseodorso,

contrastando seu azulado negror com a brancura da pele, tudo isso podia ser

inocente? “Não, não”, sentenciou don Rigoberto. “Não, não”, ecoou o transido

professor,passeandooolharporessasuperfícieondulanteque,nos ancos,afundava

esubiacomoumbraviomardecarnefeminina,exaltadapelaclaridadedalua(“ou

melhor, pela oleosa luz em penumbra dos corpos de Ticiano”, reti cou don

Rigoberto),apoucoscentímetrosdesuafaceembasbacada:“Nãoéinocente,nadao

é.Estouaquiporqueelaquisetramouisso.”

Noentanto,dessaconclusãoteóricanãoextraíaforçassu cientesparafazeroque

osinstintosressurgidoslheexigiamardentemente:passarapontadosdedossobrea

peleacetinada,pousarseuslábiosmatrimoniaissobreessascolinaseprofundezasque

eleantecipavamornas,olorosas,edeumsaboremqueodoceeosalgadocoexistiam

sem semisturar.Mas, petri cado pela felicidade, não conseguia fazer nada, exceto

olhar, olhar. Depois de ir e vir muitas vezes da cabeça aos pés desse milagre, de

percorrê-lo repetidamente, seus olhos se imobilizaram, como o requintado

conhecedordevinhosquenãoprecisacontinuardegustando,poisidenti couononplus ultra da adega, no espetáculo que o esférico traseiro por si só constituía.Destacava-sedorestodocorpocomoumimperadoranteseusvassalos,Zeusanteos

pequenos deuses do Olimpo. (“Feliz aliança entre o oitocentista Courbet e o

modernoÚrculo”, enobreceu-o com referências donRigoberto.)O nobremestre,

exorbitado,observavaeadoravaemsilêncioesseprodígio.Oquediziaasimesmo?

RepetiaumamáximadeKeats (“Beauty is truth, truth isbeauty”).Oquepensava?

“Comqueentão,essascoisasexistem.Nãosónosmauspensamentos,naarteounas

fantasias dos poetas; também na vida real. Com que então, uma bunda assim é

possívelnarealidadedecarneeosso,nasmulheresquepovoamomundodosvivos.”

Já teria ejaculado?Estariaprestes amanchar sua cueca?Aindanão, embora, ali,no

baixo-ventre, o jurista percebesse alvissareiros sintomas, um despertar, uma lagarta

espreguiçante, recém-saída do sono. Pensava algo mais? Isto: “E nada menos que

entreaspernaseotorsodeminhaantigaerespeitadacolega,destaboaamigacom

quemtantomecorrespondisobreabstrusasmatérias losó co-jurídicas,ético-legais,

histórico-metodológicas?”Comoerapossívelquenunca,atéessanoite,emnenhum

dos fóruns, conferências, simpósios, seminários, em que haviam coincidido,

conversado,discutido,trocadoideias,elesequertivessedescon adoque,sobaqueles

trajes sóbrios, casacos felpudos, capas forradas, impermeáveis cor de formiga, se

escondia tamanho esplendor? Quem teria podido imaginar que aquela mente tão

lúcida, aquela inteligência justiniana, aquela enciclopédia jurídica, possuía também

umcorpotãodeslumbranteemsuaorganizaçãoemagni cência?Imaginouporum

instante— viu, talvez?—que, indiferentes à sua presença, livres em seumór co

abandono,asquietasmontanhasdecarnesoltavamumalegre,abafadoventinhoque

rebentoudiantede suasnarinas,enchendo-asdeumaromaacre. Issonãoo fez rir,

não o incomodou (“Tampouco o excitou”, pensou don Rigoberto). Sentiu-se

reconhecido,comose,dealgummodoeporumarazãointricadaedifícildeexplicar

(“como as teorias de Kelsen, que ele nos explicava tão bem”, comparou), esse

punzinhofosseumaespéciedeaquiescênciaqueessesoberbocorpolheparticipava,

exibindodiantedele sua intimidade tão íntima,osgases inúteisexpelidosporuma

serpe intestinal de cavidades que imaginou róseas, úmidas, limpas de escórias, tão

delicadasemodelarescomoasnádegasemancipadasqueapareciamamilímetrosde

seunariz.

Eentão,apavorado,soubequedonaLucreciaestavadesperta,pois,aindaqueela

nãotivessesemexido,escutou-a:

—Osenhoraqui,professor?

Nãopareciaaborrecida,emuitomenosassustada.Erasuavoz,semdúvida,mas

cheia de uma calidez suplementar. Havia nela algo demorado, insinuante, uma

sensualidademusical.Emseuembaraço,o juristaconseguiu seperguntarcomoera

possível que, nesta noite, sua velha colega experimentasse tantas transformações

mágicas.

—Desculpe,desculpe,doutora.Nãointerpretemalminhapresençaaqui,eulhe

suplico.Possoexplicar.

—Ojantarlhecaiumal?—tranquilizou-oela.Falavasemamínimaalteração.

—Umcopinhod’águacombicarbonato?

Tinha voltado ligeiramente a cabeça e, com a face abandonada sobre o braço

como sobre um travesseiro, seus grandes olhos o observavam, brilhando entre as

madeixasnegrasdesuacabeleira.

—Encontreina escadaumacoisaque lhepertence,doutora, e vim trazê-la—

murmurouoprofessor.Continuavaajoelhadoe,agora,percebiaumadorvivíssima

nosossosdosjoelhos.—Bati,masasenhoranãorespondeu.E,comoaportaestava

sóencostada,meatreviaentrar.Nãoqueriaacordá-la.Rogo-lhequenãomelevea

mal.

Ela moveu a cabeça, assentindo, desculpando-o, displicente, compadecida do

atordoamentodele.

—Porqueestáchorando,meubomamigo?Oquehouve?

Semdefesascontraessaafetuosadeferência,aacariciantecadênciadessaspalavras,

ocarinhodesseolharquecintilavanoescuro,donNepomucenodesabou.Oqueaté

então haviam sido apenas mudas e grossas lágrimas descendo por suas faces

transformou-seemsoluços ressoantes, suspiros rasgados, cascatasdebabas emucos

que ele tentava conter com as duas mãos — em sua desordem mental, não

encontrava o lenço, nem o bolso onde estava o lenço—, enquanto se espraiava,

afogado,nestaconfissão:

—Ai,Lucrecia,Lucrecia,meperdoe,nãopossomeconter.Nãovejanistouma

ofensa, é totalmente o contrário. Eu nunca havia imaginado nada assim, tão

formoso, quero dizer, tão perfeito como seu corpo. A senhora sabe o quanto a

respeito e admiro. Intelectual, acadêmica, juridicamente.Mas estanoite, isto, vê-la

assim,éamelhorcoisaquejámeaconteceunavida.Juro,Lucrecia.Poresteinstante,

eu jogariano lixo todososmeus títulos,osdoutoradoshonoriscausa comqueme

honraram, as condecorações, os diplomas. (“Se não tivesse a idade que tenho, euqueimariatodososmeuslivroseiriamesentarcomoummendigoàportadetuacasa”—leudonRigoberto,emseucaderno,essesversosdopoetaEnriquePeña.—“Sim,minhacriança,ouvebem:comoummendigo,àportadetuacasa.”)Nuncasentiuma

felicidade tão grande, Lucrecia. Tê-la visto assim, sem roupa, como Ulisses viu

Nausícaa, é o prêmio máximo, uma glória que não creio merecer. Isso me

emocionou,metrespassou.Estouchorandodetãocomovido,detãoagradecidoque

lheestou.Nãomedespreze,Lucrecia.

Em vez de desafogá-lo, o discurso fora comovendo o professor aindamais, e

agoraos soluçoso engasgavam.Ele apoioua cabeçanabeirada camae continuou

chorando, sempre ajoelhado, suspirando, sentindo-se triste e alegre, a ito editoso.

“Me perdoe, me perdoe”, balbuciava. Até que, segundos ou horas depois— seu

corposeeriçoucomoodeumgato—,sentiuamãodeLucreciaemsuacabeça.Os

dedosdelarevolveramseuscabelosgrisalhos,consolando-o,acompanhando-o.Avoz

tambémveioaliviarcomumacaríciafrescaachagavivadesuaalma:

—Acalme-se,Rigoberto.Nãochoremais,meuamor,minhaalma.Pronto, já

passou, nadamudou.Você não fez o que queria? Entrou,me viu, aproximou-se,

chorou, eu o perdoei. E então? Vou me aborrecer com você por causa disso?

Enxugueaslágrimas,assoeonariz,durma.Nana,neném,nana,neném.

O mar batia lá embaixo, contra os penhascos de Barranco e Mira ores, e a

espessacamadadenuvensnãodeixavaverasestrelasnemaluanocéudeLima.Mas

anoiteestavaacabando.Aqualquermomento,amanheceria.Umdiaamenos.Um

diaamais.

Proibições à beleza

NuncaverásumquadrodeAndyWarholnemdeFridaKahlo,nemaplaudirásum

discursopolítico,nemdeixarásqueseracheapeledosteuscotovelosejoelhos,nem

queseendureçamasplantasdosteuspés.

NuncaescutarásumacomposiçãodeLuigiNononemumacançãodeprotesto

deMercedesSosanemverásum lmedeOliverStonenemcomerásdiretamentedas

folhasdaalcachofra.

Nuncaarranharásos joelhosnemcortarásoscabelosnemterásespinhas, cáries,

conjuntivitenem(muitomenos)hemorroidas.

Nuncaandarásdescalçasobreoasfalto,apedra,ocascalho,alaje,oencerado,a

calamina, a ardósia e ometal, nem te ajoelharás em uma superfície que não ceda

comoamigalhadochancay(antesdesertostado).Nuncausarásemteuvocabulárioaspalavrastelúrico,miscigenado,conscientizar,

visualizar,estatalista,caroços,folhelosousocietal.

Nuncapossuirásumhamsternemfarásgargarejosnemterásperucasnemjogarás

bridgenemusaráschapéu,boinaourodilha.

Nuncaarmazenarásgasesnemdiráspalavrõesnemdançarásrock-’n’-roll.

Nuncamorrerás.

VII.

O polegar de Egon SchieleVII - O polegar de Egon Schiele

—Todas asmoças deEgonSchiele são franzinas e ossudas, emeparecemmuito

bonitas—disseFonchito.—Jávocê é cheinha, eno entanto tambémmeparece

muitobonita.Comoexplicaressacontradição,madrasta?

—Estámechamandodegorda?—reagiudonaLucrecia,lívida.

Tinha estado distraída, ouvindo a voz domenino como um ruído de fundo,

concentradanascartasanônimas—sete,emmenosdedezdias—enaqueescrevera

aRigobertonanoiteanteriorequeagoratrazianobolsodorobe.Sórecordavaque

Fonchito havia começado a falar e falar, de Egon Schiele como sempre, até que

aquilode“cheinha”adeixaradeorelhaempé.

— Gorda, não. Eu disse cheinha, madrasta. — Fonchito se desculpava,

gesticulando.

—Aculpaporeuserassimédoseupai—queixou-seela,examinando-se.—

Eueramagrinhaquandonoscasamos.MasRigobertometeunacabeçaqueamoda

liformedestróiocorpofeminino,queagrandetradiçãodabelezaéaubérrima.Era

istomesmoqueeledizia:“aformaubérrima.”Paraagradá-lo,engordei.Enãovoltei

aemagrecer.

— Mas você está ótima assim, juro, madrasta — continuava Fonchito a se

desculpar.—EudisseaquilodasmagrinhasdeEgonSchieleporquenãolheparece

estranhoquemeagradem,evocêtambém,sendopelomenosodobrodelas?

Não,nãopodiasereleoautordascartasanônimas.Porqueestaselogiavamseu

corpo, e emuma, inclusive, intitulada “Brasãodo corpoda amada”, cadaumdos

seusmembros—cabeça, ombros, cintura, seios, ventre, coxas, pernas, tornozelos,

pés — vinha acompanhado de uma referência a um poema ou a um quadro

emblemático. O invisível enamorado de suas formas ubérrimas só podia ser

Rigoberto.(“Essehomemestáégamadopelasenhora”,proclamouJustiniana,depois

deleroBrasão.“Puxa,comoeleconheceseucorpo!TemqueserdonRigoberto.De

onde Fonchito ia tirar essas palavras, por mais sabidinho que seja? Embora ele

tambémconheçaasenhoratodinha,não?”)

—Porquevocê cacaladaotempotodo,semfalarcomigo,meolhandocomo

senãomevisse?Vocêhojeestámuitoesquisita,madrasta.

—Éporcausadessacorrespondênciaanônima.Nãoconsigotirarissodacabeça,

Fonchito.Assimcomovocê tem suaobsessãoporEgonSchiele, eu agora tenho a

minhaporessasmalditascartas.Passoodiaesperandoporelas,lendoerecapitulando

cadauma.

—Mas,madrasta,malditasporquê?Poracasoainsultamoudizemcoisasfeias?

—Porquevêmsemassinatura.Eporque,àsvezes,parecemter sidomandadas

porumfantasma,enãopeloseupai.

—Vocêsabemuitobemquesãodele.Tudoestádandomuitocerto,madrasta.

Nãoseatormente.Logo,logo,vocêsvãoficardebem,nãotenhadúvida.

A reconciliação de dona Lucrecia e donRigoberto se transformara na segunda

obsessãodeFonchito.Omeninofalavadissocomtantasegurançaqueamadrastajá

não tinha forçaspara contestá-lo edizer que tudonãopassavadepura fantasiado

fantasiadorempedernidoqueelesetornara.Teriafeitobemaolhemostrarascartas

anônimas?Algumaseramtãoousadasnasreferênciasàsuaintimidadeque,depoisde

lê-las,elaseprometia:“Esta,não,estaeunãomostro.”Esempreacabavaporfazê-lo,

espiando a reação dele, para ver se algum gesto o traía.Mas nada. A cada vez, o

menino reagia com a mesma atitude, surpresa e excitada, e chegava à mesma

conclusão:eraseupai,eraoutraprovadequeestejánãoguardavarancor.Notou-o

agoratambémausente,distantedasaladejantaredobosquedoOlivar,absortoem

alguma lembrança.Examinavaasprópriasmãos,aproximando-asmuitodosolhos,

juntando-asealongando-as,abrindoosdedos,escondendoopolegar,cruzando-ase

descruzando-as, em estranhas poses, como as de quem projeta silhuetas na parede

com a sombra das mãos. Mas Fonchito não estava tentando fabricar sombras

chinesas na tarde primaveril; perscrutava seus dedos como um entomologista

examinasobalupaumaespéciedesconhecida.

—Pode-sesaberoquevocêestáfazendo?

Ele não se alterou e continuou com seus trejeitos, ao mesmo tempo que

respondiacomoutrapergunta:

—Achaqueeutenhomãosdeformadas,madrasta?

Oqueestediabinhoiainventarhoje?

—Nãosei,deixever—disseela,bancandoomédicoespecialista.—Coloque-as

aqui.

Fonchitonãoestavabrincando.Muitosério,levantou-se,aproximou-seeapoiou

asduasmãossobreaspalmasqueelalheoferecia.Aocontatodessasuavidadelisae

dadelicadezadosossinhosdessesdedos,donaLucrecia sentiuumestremecimento.

Ele tinhamãos frágeis, dedinhos a lados, unhas ligeiramente cor-de-rosa, aparadas

com esmero.Mas nas gemas havia manchinhas de tinta ou de carvão. Ela ngiu

submetê-lasaumexameclínico,enquantoasacariciava.

—Não têmnada de deformadas— concluiu.—Embora umpouquinhode

águaesabãonãolhesfizessemal.

—Quepena—disseomenino,semvestígiodehumor,retirandosuasmãosdas

dedonaLucrecia.—Porque,então,nissoeunãomepareçonadacomele.

“Pronto.Vaicomeçardenovo.”Ojogodetodasastardes.

—Explique-semelhor.

Fonchitoseapressouafazê-lo.Elanãotinhanotadoqueasmãoseramamania

deEgonSchiele?Asdeleetambémasdasmoçasedosrapazesquepintava.Senão

tinha, que notasse agora. Em segundos, dona Lucrecia recebeu em seus joelhos o

livrodereproduções.ViaarepulsaqueEgonSchielesempretiveraaopolegar?

—Aopolegar?—riudonaLucrecia.

—Presteatençãonosretratos.OdeArthurRoessler,porexemplo—insistiuo

menino,compaixão.—Oueste:Duploretrato:oinspetor-geralHeinrichBenescheseu lhoOtto;odeEnrichLederer;eseusautorretratos.Elesómostraquatrodedos.

Semprefazdesapareceropolegar.

Porqueseria?Porqueoocultava?Porqueopolegaréodedomaisfeiodamão?

Porque gostava dos números pares e achava que os ímpares davam azar?Tinha o

polegardes guradoeseenvergonhavadele?Algumproblemaeletinhacomasmãos,

pois, do contrário, por que se deixava fotografar escondendo-as nos bolsos, ou

fazendo com elas umas poses tão ridículas, torcendo os dedos como uma bruxa,

metendo-asnafrentedacâmeraoucolocando-asacimadacabeça,comosequisesse

quelheescapassem,voando?Asmãosdelemesmo,asdoshomens,asdasmoças.A

madrastanãotinhapercebido?Essasmeninasnuas,decorpotãobemformadinho,

não era incompreensível que tivessem esses dedosmasculinos, de juntas ossudas e

grosseiras?Por exemplo,nesta gravurade1910,Moçanuade cabelosnegros, de pé,nãodestoavamessasmãosdemachona,comunhasquadradas,idênticasàsqueEgon

pintavaemseusautorretratos?Eelenãotinhafeitoissotambémcomquasetodasas

mulheresquepintou?Porexemplo,oNu,depé,de1913.Fonchitorespiroufundo:— Ou seja, era um Narciso, como você disse. Pintava sempre suas próprias

mãos,mesmoquandoopersonagemdoquadroeraoutro,homemoumulher.

— Foi você quem descobriu isso? Ou terá lido em algum lugar? — Dona

Lucrecia estava desconcertada. Folheava o livro, e as imagens davam razão a

Fonchito.

—Qualquerpessoaqueobservemuitoosquadrosdelevainotar.—Omenino

encolheuosombros,semdarimportânciaaoassunto.—Opapainãodizqueum

artista,senãofortemático,nãochegaasergenial?Porisso,eusempreprestoatenção

às manias dos pintores re etidas em seus quadros. Egon Schiele tinha três: uma,

botarasmesmasmãosdesproporcionadasemtodasassuas guras,suprimindodelas

opolegar;duas,asmulhereseoshomensmostraremsuascoisinhas,levantandoasaia

ou abrindo as pernas; e três, retratar a simesmo, colocando asmãos em posturas

forçadas,quechamamaatenção.

—Bom,bom,sevocêqueriamedeixarembasbacada,conseguiu.Sabedeuma

coisa, Fonchito? Você, sim, é que é um grande temático. Se a teoria do seu pai

estivercerta,vocêjátemumdosrequisitosparasergenial.

— Só me falta pintar os quadros— riu ele, sentando-se de novo. Voltou a

examinar as próprias mãos, mexendo-as, exibindo-as e imitando as poses

extravagantes dos quadros e fotos de Schiele. Dona Lucrecia, divertida, observava

aquelapantomima.E,derepente,decidiu:“Voulerminhacartaparaele,vamosver

oquediz.”Alémdisso,lendo-aemvozalta,saberiaseoquehaviaescritoestavabom

e decidiria se convinha enviá-la aRigoberto ou rasgá-la.Mas, quando ia começar,

acovardou-seepreferiudizer:

—Mepreocupa issodevocê sópensar emSchiele,dia enoite.—Omenino

parou de brincar com asmãos.— Falo com todo o carinho que lhe tenho.No

começo, me parecia bonito que você gostasse tanto de suas pinturas, que se

identi casse tantocomele.Mas,de tantoquerer separecer comele emtudo, está

deixandodeservocêmesmo.

— É que eu sou ele, madrasta. Embora você me leve na brincadeira, é isto

mesmo.Sintoquesouele.

Sorriu, para tranquilizá-la. “Espere um instantinho”, murmurou. Levantou-se,

pegou o livro de reproduções, folheou-o e o colocou de volta, aberto, sobre os

joelhos dela. Dona Lucrecia viu uma lâmina em cores: sobre um fundo ocre,

estendia-seumamulher sinuosametidanuma fantasia carnavalesca, com leirasde

listras verdes, vermelhas, amarelas e negras, dispostas em ziguezague. Trazia os

cabelosocultossobumarodilhaaturbantada,estavadescalça,exprimiaumatristeza

lânguidanosgrandesolhosescurosetinhaasmãoserguidasacimadacabeça,comose

fossetocarcastanholas.

—Quandoviestequadro,percebi—ouviuFonchitodizer,comtotalseriedade.

—Queeueraele.

Elatentourir,masnãoconseguiu.Oqueessemenininhopretendia?Assustá-la?

“Brincacomigocomoumgatinhocomumaratazanagrande”,pensou.

— Ah, é? E o que lhe revelou, neste quadro, que você é Egon Schiele

reencarnado?

— Você não se deu conta, madrasta — riu Fonchito. — Olhe de novo,

pedacinhoporpedacinho.Everáque,emboraSchieleotenhapintadoemViena,em

1914,emseuateliê,nestamulherapareceoPeru.Repetidocincovezes.

AsenhoraLucreciavoltouaexaminaraimagem.Decimaparabaixo.Debaixo

paracima.Por m,reparouque,nocoloridovestidodepalhaçodamodelodescalça,

havia cinco gurinhasminúsculas, na altura dos braços, no anco direito, sobre a

pernaenarodadasaia.Aproximouolivrodosolhoseobservou-ascomcalma.Era

mesmo! Pareciam indiazinhas,mestiças. Estavam vestidas como as camponesas de

Cusco.

— É o que elas são, indiazinhas dos Andes — disse Fonchito, lendo-lhe o

pensamento.—Viu?OPeruestápresentenosquadrosdeEgonSchiele.Foiporisso

quepercebi.Paramim,foiumamensagem.

Continuoufalando,gabando-sedessaprodigiosainformaçãosobreavidaeaobra

dopintorquedavaadonaLucreciaa impressãodeonisciênciaeasuspeitadeuma

conspiração,deumaemboscadafebril.Aquilotinhaexplicação,madrasta.Asenhora

doretratosechamavaFrederikeMariaBeer.Eraaúnicapessoaretratadapelosdois

maiorespintoresdaVienadoseutempo:EgoneKlimt.Filhadeumsenhormuito

rico,proprietáriodecabarés,tinhasidoumagrandedama;ajudavaosartistaselhes

arrumava compradores. Pouco antes de ser pintada por Schiele, havia feito uma

viagem à Bolívia e ao Peru, e daqui tinha levado essas indiazinhas de pano, que

certamentecomprouemalgumafeiradeCuscooudeLaPaz.EEgonSchieletevea

ideia de pintá-las no vestido da dama. Ou seja, não havia nenhum milagre na

presençadecincomestiçasnessequadro.Mas,mas...

—Masoquê?—animou-odonaLucrecia,absorvidapelorelatodeFonchito,

esperandoumagranderevelação.

—Mas nada— acrescentou o menino, com um gesto de cansaço.— Essas

indiazinhas foram colocadas aí para que eu as encontrasse algum dia. Cinco

peruaninhasemumquadrodeSchiele.Nãopercebe?

—Elasfalaramcomvocê?Disseramquevocêaspintou,oitentaanosatrás?Que

vocêéumreencarnado?

—Bom,seéparabrincar,prefiroconversarsobreoutracoisa,madrasta.

—Nãomeagradaouvi-lodizerbobagens—respondeuela.—Nemquepense

bobagens, nem que acredite em bobagens. Você é você e Egon Schiele era Egon

Schiele. Você vive aqui, em Lima, e ele viveu em Viena no início do século. A

reencarnaçãonãoexiste.Portanto,parededizerdisparates,senãoquiserqueeume

aborreça.Deacordo?

Omeninoassentiu,demávontade,comumacarinhacompungida.Masnãose

atreveu a replicar, porque ela havia falado com uma severidade incomum. Dona

Lucreciatratoudefazeraspazes.

—Querolerparavocêumacoisaqueescrevi—murmurou,tirandodobolsoo

rascunhodacarta.

— Respondeu ao papai? — alegrou-se Fonchito, sentando-se no chão e

avançandoacabeça.

Sim, ontem à noite. Ainda não sabia se a enviaria.Não aguentavamais. Sete,

erammuitascartasanônimas.EoautoreraRigoberto.Quemmaispodiaser?Que

outropoderialhefalardessamaneiratãofamiliareexaltada?Quemaconheceriatão

detalhadamente?Haviadecididoacabarcomesseteatro.OqueFonchitoachava?

— Leia de uma vez, madrasta— impacientou-se o menino.Tinha os olhos

brilhanteseseurostinhodelatavaumaenormecuriosidade;etambémumpoucode,

um pouco de, dona Lucrecia buscava a palavra, de regozijo malicioso; e até de

maldade.Pigarreandoantesdecomeçar,esemerguerosolhosatéofinal,elaleu:

Meuquerido,Resisti à tentação de te escrever desde que soube seres tu o autor dessas missivas

ardentes que, há duas semanas, vêm enchendo esta casa de chamas, de alegria, desaudadeedeesperança,emeucoraçãoeminhasentranhas,dodocefogoqueabrasasemqueimar,odoamoredodesejounidosemcasamentofeliz.

Porqueassinariasumascartasquesópoderiamtersaídodetuasmãos?Quemmeestudou, me formou, me inventou, como zeste? Quem podia falar dos pontinhosvermelhosdasminhasaxilas,dasrosadasnervurasdascavidadesocultasentreosdedosdosmeuspés,desta“franzidaboquinharodeadaporumaminicircunferênciadealegresruguinhasdecarneviva,entreazuladaeplúmbea,àqualsechegaescalandoaslisasemarmóreascolunasdetuaspernas”?Sótu,meuamor.

Desdeasprimeiraslinhasdaprimeiracarta,eusoubequeerastu.Porisso,antesdeterminar a leitura, obedeci às tuas instruções. Despi-me e posei para ti, diante doespelho,imitandoaDânaedeKlimt.Erecomecei,comoemtantasnoitesdequetenhosaudade em minha atual solidão, a voar contigo por aqueles reinos da fantasia queexploramosjuntos,aolongodaquelesanoscompartilhadosqueagorasão,paramim,umafontedeconsoloedevidanaqualvoltoabebercomamemória,parasuportararotinaeovazioquevieramsubstituiraquiloque,aoteulado,foiaventuraeplenitude.

Namedidademinhasforças,seguiaopédaletraasexigências—não,assugestõeseospedidos—detuassetecartas.Eumevestiemedespi,medisfarceiememascarei,me deitei, me dobrei, me desdobrei e me agachei, encarnando — com meu corpo eminhaalma—todososteuscaprichos,poisexistiriaprazermaior,paramim,doquetesatisfazer?Paratieporti,fuiMessalinaeLeda,MadalenaeSalomé,Dianacomseuarco e suas echas, a Maja Desnuda, a Casta Susana surpreendida pelos velhosluxuriosose,nobanhoturco,aodaliscadeIngres.FizamorcomMarte,Nabucodonosor,Sardanapalo, Napoleão, cisnes, sátiros, escravos e escravas, emergi do mar como umasereia,aplaqueieaticeiosamoresdeUlisses.FuiumamarquesinhadeWatteau,umaninfadeTiciano,umaVirgemdeMurillo,umaMadonadePierodellaFrancesca,umagueixadeFujitaeumarameiradeToulouse-Lautrec.Deutrabalhoequilibrar-menaspontasdospéscomoabailarinadeDegase,acredita,paranãotedecepcionar,atétenteimetransformar,àcustadecãibras,naquiloquedenominasovoluptuosocubocubistadeJuanGris.

Jogardenovocontigo,emboraadistância,mefezbememefezmal.Senti,denovo,queeratuaetuerasmeu.Quandoojogoterminava,minhasolidãoaumentavaeeu

meentristeciaaindamais.Estáperdido,parasempre,operdido?Desde que recebi a primeira carta, vivi esperando a seguinte, devorada pelas

dúvidas, tentando adivinhar tuas intenções. Querias que eu te respondesse?, meperguntava.Ouofatodeenviá-lassemassinaturaindicaquenãoqueresentabularumdiálogo, mas só que eu escute teu monólogo? Esta noite, porém, depois de ter sido,docilmente, a laboriosa senhora burguesa deVermeer, decidi te responder.Do fundoobscurodeminhapessoa,noqual só tumergulhaste, algome ordenoupegar caneta epapel.Fizbem?Nãoterei infringidoaquela leinãoescritaqueproíbeà guradeumretratosairdoquadroparafalarcomseupintor?

Tu,meuamado,sabesaresposta.Diz-mequalé.

—Caramba,quecarta—disseFonchito.Seuentusiasmopareciamuitosincero.

—Madrasta,vocêamamuitoopapai!

Estavaruborizadoeradiante,edonaLucreciaonotoutambém—pelaprimeira

vez—atéconfuso.

—Nuncadeixeideamá-lo.Nemmesmoquandoaconteceuoqueaconteceu.

Fonchitoexibiudeimediatoamiradabranca,amnésica,queesvaziavaseusolhos

semprequedonaLucreciaaludiadealgummodoàquelaaventura.Elanotou,porém,

queorubordesapareciadasfacesdomenino,substituídoporumapalideznacarada.

— Porque, embora preferíssemos, você e eu, que isso não tivesse existido, e

embora nunca falemos do assunto, o que aconteceu, aconteceu. Não pode ser

apagado— disse dona Lucrecia, buscando-lhe os olhos.—E, emborame encare

comosenãosoubessedoqueestoufalando,vocêselembradetudotantoquantoeu.

Ecertamenteolamentatantoquantoeu,ouatémais.

Não pôde continuar. Fonchito havia recomeçado a olhar as próprias mãos,

enquanto as movia, imitando os trejeitos dos personagens de Egon Schiele:

estendidas e paralelas à altura do seu ombro, com o polegar oculto e como que

truncado, ou sobre sua cabeça, adiantadas como se ele acabasse de arremessar uma

lança.DonaLucreciaacaboucaindonarisada:

—Vocênãoéumdiabinho,masumpalhaço—exclamou.—Deviasededicar

aoteatro,depreferência.

Omeninoriutambém,distendido,fazendocaretasesemprebrincandocomas

mãos. E, sem abandonar as macaquices, surpreendeu dona Lucrecia com este

comentário:

—Foidepropósitoquevocêescreveuessacartaemestilopiegas?Tambémacha,

comoopapai,queapieguiceéinseparáveldoamor?

—Escreviimitandooestilodeseupai—dissedonaLucrecia.—Exagerando,

procurandosersolene,rebuscadaedramática.Elegostaassim.Achaque coumuito

melosa?

—Ele vai adorar— assegurouFonchito, assentindo várias vezes.—Vai ler e

reler sua cartamuitas vezes, trancado no escritório. Você não vai assiná-la, não é,

madrasta?

Naverdade,elanãotinhapensadonisso.

—Eudeveriamandá-laanônima?

—Claro,madrasta—a rmouomenino,enfático.—Temqueentrarnojogo

dele,ora.

Talvez tivesse razão. Se Rigoberto enviava as dele sem assinatura, por que ela

assinariaasua?

—Vocêsabedascoisas,garoto—murmurou.—Sim,éumaboa ideia.Vou

mandarsemassinar.Afinal,elesaberámuitobemquemaescreveu.

Fonchito fezumgestodeaplauso.Tinha cadodepée sepreparavapara sair.

Hojenão tinhahavidochancays tostados,porqueJustinianaestavade folga.Como

sempre,recolheuolivrodereproduçõeseoguardounamochila,abotoouacamisa

cinzaeajeitouagravatinhadouniforme,observadoporumaLucreciaquesedivertia

emvê-lorepetiracadatardeosmesmosgestos,aochegareaopartir.Masdestavez,à

diferençadeoutras emque se limitavaadizer “Tchau,madrasta”, ele se sentouao

ladodelanapoltrona,muitoperto.

— Queria lhe perguntar uma coisa antes de ir. Só que tenho um pouco de

vergonha.

Fazia a vozinha na, doce e tímida que usava quando queria despertar a

benevolênciaouapiedadedamadrasta.Esempreobtinhaumaououtra,emboraa

suspeitadequetudoaquiloerapurafarsanuncaabandonassedonaLucrecia.

—Vocênãotemvergonhadenada,portantonãomevenhacomhistóriasnem

sefaçadeinocente—disseela,desmentindoadurezadesuaspalavrascomacarícia

quefazia,puxando-lheaorelha.—Pergunte,vamos.

Omeninovirou-sedeladoejogou-lheosbraçosaopescoço.Afundouacarinha

emseuombro.

— Se eu olhar para você, não me atrevo — sussurrou, baixando a voz até

transformá-laemummurmúrioquase inaudível.—Aboquinhafranzida, rodeada

deruguinhas,dequevocêfalaemsuacarta,nãoéesta,nãoé,madrasta?

DonaLucreciasentiuqueafacecoladaàsuasemovia,quedoislábiosdelgados

desciam pelo seu rosto e aderiam aos seus. Frios no princípio, logo se animaram.

Sentiu que faziam pressão e a beijavam. Fechou os olhos e abriu a boca: uma

cobrinhaúmidaavisitou,passeouporsuasgengivas,seupalato,eenrodilhou-seem

sua língua. Ficou ausente por um instante, cega, transformada em sensação,

aniquilada, feliz, sem fazer nada nem pensar em nada. Mas, quando levantou os

braços para estreitar Fonchito, o menino, em uma daquelas súbitas mudanças de

humor que eram seu traço distintivo, soltou-se e se afastou. Agora, estava se

distanciando,dando-lheadeus.Exibiaumaexpressãomuitonatural.

—Se quiser, passe a limpo sua carta anônima e coloque emum envelope—

disse ele, já da porta. — Amanhã você me entrega e eu a coloco na caixa de

correspondêncialádecasa,semqueopapaiveja.Tchau,madrasta.

Nem caballito de totoranem tourinho de pucará

Seiqueoespetáculodabandeiraondulandoaoventolheproduzpalpitações,assim

comoamúsicaeaspalavrasdohinonacional lheprovocamascócegasnasveias,a

retraçãoeoeriçamentodepelosaquedãoonomedeemoção.Àpalavrapátria(que

gente do seu tipo escreve sempre com maiúscula), vossa senhoria não associa os

versosirreverentesdojovemPabloNeruda

Pátria,palavratriste,comotermômetroouelevador

nem a mortífera sentença do doutor Johnson (Patriotism is the last refuge of ascoundrel), mas cargas heroicas de cavalaria, espadas incrustadas em peitos de

uniformes inimigos, toques de clarim, disparos e estampidos que não são os das

garrafas de champanhe. Vossa Senhoria pertence, segundo todas as aparências, ao

conglomeradodemachosefêmeasqueolhamcomrespeitoessasestátuasdepróceres

comquesãoadornadasaspraçaspúblicasedeploramqueospomboscaguemnelas,e

écapazdemadrugareesperarhorasparanãoperderumbom lugarnoCampode

Marte durante o des le dos soldados nos dias de efemérides, espetáculo que lhe

suscita apreciações nas quais crepitam as palavras marcial, patriótico e viril. Meu

senhor, minha senhora: em sua pessoa existe, emboscada, uma fera raivosa que

constituiumperigoparaahumanidade.

Vossasenhoriaéolastrovivoqueacivilizaçãoarrastadesdeostemposdocanibal

tatuado, perfurado e de estojo fálico, do feiticeiro pré-racional que sapateava para

atrair a chuva e ingeria o coração do adversário a m de roubar-lhe a força. Na

verdade, por trás de suas arengas e bandeiras em exaltação a este pedacinho de

geogra a salpicado de balizas e demarcações arbitrárias, onde vossa senhoria vê

personi cada uma forma superior da história e dametafísica social, não há outra

coisasenãooastutoaggiornamentodoantiquíssimomedoprimitivodeemancipar-se

datribo,dedeixarde sermassa,parte,para transformar-seemindivíduo;nostalgia

daqueleantecessorparaquemomundocomeçavaeterminavadentrodoslimitesdo

conhecido, a clareiradobosque, a caverna escura,oplanalto elevado,opequenino

enclave onde o compartilhamento da língua, da magia, da confusão, dos usos, e

sobretudodaignorânciaedostemoresdogrupo,dava-lhecoragemeofaziasentir-se

protegidocontraotrovão,oraio,aferaeasoutrastribosdoplaneta.Embora,desde

aqueles tempos remotos, hajam transcorrido séculos e sua ilustre pessoa se creia,

porque enverga paletó e gravata ou veste saia-tubo e fazliftings emMiami,muito

superioraoancestralprotegidopor tapa-sexo feitocomcascadeárvoreeenfeitado

com botoques pendurados no lábio e no nariz, vossa senhoria é ele, e ele é vossa

senhoria.O cordão umbilical que os enlaça através dos séculos chama-se pavor ao

desconhecido, ódio ao diferente, rechaço à aventura, pânico à liberdade e à

responsabilidade de inventar-se a cada dia, vocação de servidão à rotina, ao

gregarismo, recusa a descoletivizar-se para não ter de enfrentar o desa o cotidiano

que é a soberania individual. Naqueles tempos, o indefeso comedor de carne

humana,mergulhadoemumaignorânciametafísicaefísicaanteoqueaconteciaao

seu redor, tinha certa justi cação para negar-se a ser independente, criativo e livre;

mashoje,quandojásesabetudooqueconvémsaberemaisalgumacoisa,nãoexiste

razãoválidaparaempenhar-seemser escravoe irracional.Este juízo talvezvenhaa

parecer-lhesevero,extremado,diantedaquiloque,paravossa senhoria,nãoé senão

um virtuoso e idealista sentimento de solidariedade e amor ao torrão natal e às

recordações(“aterraeosmortos”,segundooantropoidefrancêsMauriceBarrès),à

moldura de referências ambientais e culturais sem a qual um ser humano se sente

vazio.Asseguro-lhequeessaéumadasfacesdamoedapatriótica;aoutra,oreverso

da exaltação do próprio, é o denigrescimento do alheio, a vontade de humilhar e

derrotarosdemais,osquesãodiferentesdevossasenhoriaporquetêmoutracorde

pele,outralíngua,outrodeuseatéoutraindumentáriaeoutradieta.

O patriotismo, que, na realidade, parece uma forma benevolente do

nacionalismo—poisa“pátria”parecesermaisantiga,congênitaerespeitáveldoque

a “nação”, ridícula engenhoca político-administrativa manufaturada por estadistas

ávidosdepodere intelectuais embuscadeumamo, istoé,demecenas, istoé,de

tetas prebendeiras a sugar—, é umperigosomas efetivo álibi para as guerras que

dizimaram o planeta não sei quantas vezes, para as pulsões despóticas que

consagraramodomíniodofortesobreofraco,eumacortinadefumaçaigualitarista

cujasnuvensdeletériasindiferenciamossereshumanoseosclonam,impondo-lhes,

comoessencialeirremediável,omaisacidentaldosdenominadorescomuns:olugar

denascimento.Portrásdopatriotismoedonacionalismo amejasempreamaligna

cçãocoletivistadaidentidade,aramefarpadoontológicoquepretendeaglutinar,em

fraternidadeirremíveleinconfundível,os“peruanos”,os“espanhóis”,os“franceses”,

os“chineses”etc.Vossasenhoriaeeusabemosqueessascategoriassãooutrastantas

mentiras abjetas, que lançam um manto de esquecimento sobre diversidades e

incompatibilidades múltiplas e pretendem abolir séculos de história para fazer a

civilizaçãorecuaràquelesbárbarostemposanterioresàcriaçãodaindividualidade,isto

é,daracionalidadeedaliberdade:trêscoisasinseparáveis,saibadisso.

Por tal razão, quando alguém diz, ao meu redor, “o chinês”, “o negro”, “os

peruanos”, “os franceses”, “asmulheres” ou qualquer expressão equivalente, com a

pretensãodede nirumserhumanopor seupertencimentoaumacoletividadede

qualquerordem,oquenãopassadeumacircunstânciasecundária,tenhoímpetosde

sacaro revólver e—pum,pum!—atirar. (Trata-se aqui, éóbvio,deuma gura

poética; nunca tive uma arma de fogo nasmãos nem a terei, e tampouco efetuei

outrosdisparosaforaosseminais,que,estessim,reivindicocomorgulhopatriótico.)

Meu individualismonãome leva, claro está, a fazer o elogio do solilóquio sexual

comoamaisperfeitaformadoprazer;nestecampo,inclino-meaosdiálogosadois

ou, no máximo, a três, e, evidentemente, declaro-me encarniçado inimigo da

promíscuapartouze, vulgarmente chamada suruba, que é, no espaço da cama e da

fornicação,oequivalentedocoletivismopolíticoesocial.Amenosqueomonólogo

sexual sejapraticadoemcompanhia—casonoqualpassaa serumbarroquíssimo

diálogo—, como se ilustra na pequena aquarela comnanquimdePicasso (1902-

1903),quevossasenhoriapodeadmirarnoMuseuPicassodeBarcelona,naqualo

sr.D.ÁngelFernándezdeSoto,vestidoefumandocachimbo,esuadistintaesposa,

nuamasdemeiasesapatos,bebendoumataçadechampanheesentadanosjoelhos

do cônjuge,masturbam-se reciprocamente, quadro que, diga-se de passagem, sem

quererofenderninguém(emenosaindaPicasso),considerosuperioraGuernicaeàsDemoisellesd’Avignon.

(Selheparecerqueestacartacomeçaadarmostrasdeincoerência,lembre-sedo

MonsieurTeste, de Valéry: “A incoerência de um discurso depende de quem o

escuta. O espírito me parece concebido de um modo tal que o impede de ser

incoerenteparasimesmo.”)

Quer saberdeondevemtodaahepáticadescargaantipatrióticadestacarta?De

umaarengadopresidentedaRepública,resumidaestamanhãpelaimprensa,segundo

a qual, inaugurando a Feira deArtesanato, ele a rmou que nós peruanos temos a

obrigação patriótica de admirar o trabalho dos anônimos artesãos que, há séculos,

modelaram oshuacos5 de Chavín, urdiram e pintaram os tecidos de Paracas,

entremearamosmantosdepenasdeNascaeesculpiramosqueroscusquenhos,ouodos contemporâneos confeccionadores de retábulos ayacuchanos, tourinhos de

Pucará, meninosManuelitos, tapetesdeSanPedrodeCajas,caballitosde totoradolagoTiticacaeespelhinhosdeCajamarca,porque—citooprimeiromandatário—

“oartesanatoéaartepopularporantonomásia,aexposiçãosupremadacriatividadee

dadestrezaartísticadeumpovo,umdosgrandessímbolosemanifestaçõesdaPátria,

ecadaumdosseusobjetosnãoexibeaassinaturaindividualdoseuartesãoforjador

porquetodoselestrazemaassinaturadacoletividade,danacionalidade”.

Se vossa senhoria é homem oumulher de bom gosto— ou seja, amante da

precisão —, terá sorrido ante esta diarreia artesano-patriótica de nosso chefe de

Estado.Noqueamimconcerne,alémdeparecer-me,comoavossasenhoria,ocae

empolada, elame iluminou.Agora já sei por que detesto todos os artesanatos do

mundoemgeral, eode“meupaís” (usoaexpressãoparaquepossamosentender-

nos)emparticular.Agora já seiporqueemminhacasa jamaisentrounementrará

umhuacoperuano,etampoucoumamáscaraveneziana,umamatriochkarussa,uma

bonequinha holandesa de tranças e tamancos, um toureirinho de madeira, uma

ciganinha dançandoflamenco, um boneco articulado indonésio, um samurai de

brinquedo,umretábuloayacuchanoouumdiabloboliviano,assimcomonenhuma

gura ou objeto de barro, madeira, porcelana, pedra, tecido ou miolo de pão

manufaturadoemsérie,genéricaeanonimamente,queusurpe,aindaquesejacoma

hipócritamodéstia de autointitular-se arte popular, a natureza do objeto artístico,

algoqueéprivilégioabsolutodaesferaprivada,expressãodeacérrimaindividualidade

e,portanto,refutaçãoerechaçodoabstratoedogenérico,detudooque,diretaou

indiretamente,aspirea justi car-seemnomedeumapretensaestirpe“social”.Não

existearteimpessoal,senhorousenhorapatriota(enãovenhamefalar,porfavor,das

catedraisgóticas).Oartesanatoéumamanifestaçãoprimitiva,amorfaefetaldaquilo

quealgumdia—quandoparticularesindivíduosdesagregadosdotodocomeçarema

imprimir um selo pessoal a esses objetos, nos quais expressarão uma intimidade

intransferível— poderá talvez ascender à categoria artística. Que ele se destaque,

prospere e reine emuma “nação” não deveria orgulhar ninguém,muitomenos os

pretensos patriotas. Porque a prosperidade do artesanato— essa manifestação do

genérico—ésinaldeatrasoouregressão,vontadeinconscientedenãoavançarnesse

torvelinho demolidor de fronteiras, de costumes pitorescos, de cor local, de

diferençasprovincianaseespíritoparoquial,queéacivilização.Sei,senhorapatriota,

senhorpatriota,quevossasenhoriaodeia,senãoapalavra,oconteúdodessapalavra

demolidora.Éumdireito seu.Tambémémeudireito amá-la e defendê-la contra

ventosemarés,mesmosabendoqueocombateédifícilequepossodescobrir-me—

os indícios sãomuitos—no campodosderrotados.Não importa.Essa é aúnica

formadeheroísmoquenosépermitida,anósosinimigosdoheroísmoobrigatório:

morrerassinandocomnomeesobrenomepróprios,terumamortepessoal.

Saibadeumavezpor todasehorrorize-se: aúnicapátriaqueeu reverencioéa

camapisadaporminhaesposa,Lucrecia(Quetualuz,altasenhora,/Vençaestacegaetristenoiteminha,freiLuísdeLeóndixit),eseucorposoberbo,aúnicabandeiraou

insígniapátriacapazdearrastar-meaosmaistemerárioscombates;eoúnicohinoque

mecomoveatéochoroconvulsosãoosruídosqueessacarneamadaemite,suavoz,

seuriso,seupranto,seussuspirose,claro(tampeosouvidoseonariz),seussoluços,

arrotos, peidos e espirros. Posso ou não posso ser considerado um verdadeiro

patriota,àminhamaneira?

Maldito Onetti! Bendito Onetti!

Don Rigoberto acordou chorando (isso lhe acontecia com bastante frequência

ultimamente).Tinha já passado do sono à vigília; sua consciência reconhecia nas

sombrasosobjetosdeseudormitório;seusouvidos,omonótonomar;suasnarinase

osporosdoseucorpo,aumidadecorrosiva.Masaimagemhorrívelcontinuavaali,

sobrenadandoemsuaimaginação,saídadealgumesconderijoremoto,angustiando-o

comoalgunsminutosantes,na inconsciênciadopesadelo.“Paredechorar, idiota.”

Masas lágrimascorriamporsuas faceseele soluçava, tomadodepavor.Ese fosse

telepatia? Se tivesse recebido uma mensagem? Se, de fato, ontem, esta tarde,

vermezinho no coração da maçã, tivessem descoberto no seio dela o volume

anunciador da catástrofe e Lucrecia tivesse imediatamente pensado nele, con ado

nele, recorrido a ele para compartilhar seu pesar, seu desalento? Havia sido um

chamadoin extremis. O dia da operação estava decidido. “Ainda temos tempo”,

sentenciou o doutor, “desde que extirpermos este seio, talvez os dois seios, de

imediato.Possoquase,quase,botaramãonofogo:aindanãohouvemetástase.Se

operarmos dentro de poucas horas, ela se salvará”.Omiserável tinha começado a

amolar o bisturi, com brilhos de prazer sádico nos olhos. Então, nesse instante,

Lucreciapensounele, desejou ardentemente falar comele, contar-lhe, ser escutada,

consolada,acompanhadaporele.“MeuDeus,ireimearrastaraospésdelacomoum

vermeelhepedirperdão”,estremeceudonRigoberto.

A imagem de Lucrecia, deitada em uma mesa cirúrgica, submetida a essa

monstruosamutilação,provocou-lheumanovavergastadadeangústia.Fechandoos

olhos, prendendo a respiração, recordou os peitos rmes de sua amada, robustos,

idênticos,asaréolasescuraseapelegranulada,osbicosque,arrulhadoseumedecidos

por seus lábios, seeriçavamcomgalhardia,desa antes,nahoradoamor.Quantos

minutos, horas, havia passado contemplando, sopesando, beijando, lambendo,

acariciando aqueles seios, brincando com eles, imaginando-se transformado em

cidadãodeLiliputqueescalavaessascolinascor-de-rosaembuscadoaltotorreãodo

cume,ouemrecém-nascidoque,mal saídodoclaustromaterno,mamandodali a

branca seiva da vida, recebia deles suas primeiras lições de prazer?Recordou como

costumava, certos domingos, sentar-se no banquinho demadeira para contemplar

Lucrecianabanheira,emolduradadeespuma.Elaenvolviaacabeçaemumatoalha,à

maneira de turbante, e prosseguia sua toalete, muito conscienciosa, de vez em

quandoconcedendo-lheumsorrisobenevolente,enquantoesfregavaocorpocomas

grandesesponjasamarelasembebidasemáguaespumosa,passando-aspelosombros,

pelas costas ou pelas belas pernas que, para isso, tirava por alguns segundos das

profundezascremosas.Nessesmomentos,oquemais imantavaaatenção,o fervor

religiosodedonRigoberto,eramosseios.Assomavamà ord’água,suataçabranca

eseusmamilosazuladosbrilhandoentreasbolhasdeespuma,edevezemquando,

para adular e premiar o marido (“carícia distraída que a dona faz no dócil cão

estendido aos seus pés”, pensou ele, mais calmo), Lucrecia segurava-os e, sob o

pretextodeensaboá-loseenxaguá-losumpoucomais,acariciava-oscomaesponja.

Eram lindos, eram perfeitos.Tinham a redondez, a consistência e a temperatura

ideaisparasatisfazerosdesejosdeumdeusluxurioso.“Agora,mepasseatoalha,seja

meu camareiro”, dizia ela, levantando-se, enquanto se enxaguava com a ducha de

mão.“Sevocê secomportarbem, talvezeu lhepermita secarminhascostas.”Seus

peitosestavamali,luzindonaescuridãodoquartoecomoqueiluminandoasolidão

dele. Seria possível que o iníquo câncer se encarniçasse contra essas criaturas que

enalteciam a condição feminina, que justi cavam a divinização trovadoresca da

mulher,ocultomariano?DonRigobertosentiuqueaodesesperodeummomento

antesseseguiaacólera,umsentimentoselvagemderebeldiacontraadoença.

E, então, recordou. “MalditoOnetti!”Começoua rir às gargalhadas. “Maldito

romance! Maldita Santa María! Maldita Gertrudis!” (Era este o nome da

personagem? Gertrudis? Sim, este.) Daí lhe viera o pesadelo, nada de telepatia.

Continuava rindo, liberado, superexcitado, feliz. Decidiu, por uns momentos,

acreditaremDeus(emalgumdeseuscadernoshaviatranscritoa frasedeQuevedo

emOgatuno:“EleeradessesquecreememDeusporcortesia”)parapoderagradecer

a alguém que os amados seios de Lucrecia estivessem intactos, indenes ante as

armadilhasdocâncer,equeessepesadelotivessesidoapenasareminiscênciadaquele

romance cujo terrível início o sobressaltara de horror, nos primeirosmeses de seu

casamentocomLucrecia,inoculando-lheaapreensãodeque,umdia,osdeliciosos,

docesseiosdesuanovaesposapudessemservítimasdeumaafrontacirúrgica(afrase

compareceu à memória dele com sua obscena eufonia: “Ablação de mama”)

semelhante à que era descrita, ou melhor, inventada, nas primeiras páginas, por

Brausen,onarradordesseromanceinquietantedomalditoOnetti.“Obrigado,meu

Deus,porissonãoserverdade,porestareminteirasastetasdela”,rezou.E,semcalçar

oschinelosnemvestiroroupão,foiàsescuras,tropeçando,reveroscadernosemseu

escritório.Tinha certeza de haver deixado testemunho dessa leitura perturbadora,

que,porquê?,haviaafloradoestanoitedeseusubconscienteparalhearruinarosono.

OmalditoOnetti!Uruguaio?Argentino?Rio-platense,emtodocaso.Quemau

momentoo zerapassar!Curiosopercurso,odamemória,curvascaprichosas,zigue-

zagues barrocos, hiatos incompreensíveis. Por que, agora, esta noite, essa cção

reapareciaemsuaconsciência,apósdezanosemqueprovavelmentenemumsódia,

nemumasóvez,eletinhapensadonela?Àluzdouradadoabajur,projetadasobrea

escrivaninha,reviaapressadamenteapilhadecadernosque,calculou,correspondiaà

época emquehavia lidoAvidabreve.Aomesmo tempo, continuava vendo, cada

vez mais nítidos, níveos, eretos, cálidos, na cama noturna, na banheira matutina,

assomando entre as dobras da camisola ou do robe de seda ou pela abertura do

decote,osseiosdeLucrecia.Evoltava,retornavaàlembrançadatremendaimpressão

causada pela imagem inicial, pela história contada emAvida breve, com crescente

lucidez,comoseaquelaleiturafossefresca,recentíssima.PorqueAvidabreve?Porqueestanoite?

Finalmente, encontrou. No alto da página e sublinhado: A vida breve. E, aseguir: “Soberba arquitetura, delicadíssima e astuta construção: uma prosa e uma

técnicamuitosuperioresaosseuspobrespersonagensehistóriasanódinas.”Nãoera

umafrasemuitoentusiástica.Porque,então,essacomoçãoaorecordá-la?Sóporque

seu subconscientehavia associado aquele seiodaGertrudisdo romance, amputado

pelo bisturi, com os saudosos seios de Lucrecia?Tinha claríssima a cena inicial, a

imagem que o chocara novamente. O medíocre empregadinho de uma agência

publicitáriadeBuenosAires,JuanMaríaBrausen,narradordahistória,tortura-seem

seusórdidoapartamentocomaideiadamutilaçãodemamaaquefoisubmetidana

véspera ou esta manhã sua mulher, Gertrudis, enquanto ouve, do outro lado do

tabique,atagarelagemestúpidadeumanovavizinha,umaex-ouaindaputa,Queca,

evagamenteimaginaumargumentode lme,queseuamigoechefeJulioSteinlhe

pediu. Ali estavam as transcrições assustadoras: “... pensei na tarefa de olhar sem

repulsa anovacicatrizqueGertrudis iria ternopeito, redondae complicada, com

nervurasdeumvermelhoouumrosaqueo tempotalvezviessea transformarem

umaconfusãopálida,dacordaoutra, naesemrelevo,ágilcomoumaassinatura,

queGertrudistrazianoventreequeeuhaviareconhecidotantasvezescomaponta

dalíngua.”Eesta,aindamaisdilacerante,emqueBrausen,agarrandootouropelos

chifres,antecipaaúnicamaneirarealquelhepermitiriaconvencersuamulherdeque

aquelamama cerceadanão importava: “Porque a única prova convincente, a única

fontequelheproporcionaráfelicidadeecon ança,seráerguerebaixaremplenaluz,

sobreopeitomutilado,umrostotrans guradopelaluxúria,beijareenlouquecer-me

ali.”

“Quemescrevefrasesassim,quedezanosdepoiscontinuamarrepiandooleitor,

enchendoseucorpodeestalactites,éumcriador”,pensoudonRigoberto.Imaginou-

se nu com suamulher, na cama, contemplando a cicatriz quase invisível no lugar

ondehaviaimperadoaquelataçadecarnetépida,aquelacurvaturasedosa,beijando-a

comavidezexagerada,aparentandoumaexcitação,umfrenesiqueelenãosentianem

voltariaasentir,ereconheceuemseuscabelosamão—agradecida,compadecida?—

desuaamada,fazendo-osaberquejábastava.Nãoeranecessário ngir.Porqueeles,

que haviam vivido em cada noite a verdade de seus desejos e seus sonhos até a

medula, iriammentiragora,dizendo-sequenão importava,quandoambossabiam

que importava muitíssimo, que aquele seio ausente continuaria gravitando sobre

todasasnoitesrestantes?MalditoOnetti!

—Você teria amaior surpresa de sua vida— riu donaLucrecia, fazendo um

trinadodecantoradeóperaquesepreparaparaentraremcena.—Comoeu,quando

elamecontou.E,maisainda,quandoosvi.Amaiorsurpresadesuavida!

— Os peitos soberbos da embaixadora da Argélia? — surpreendeu-se don

Rigoberto.—Reconstituídos?

— Da embaixatriz, a esposa do embaixador da Argélia — especi cou dona

Lucrecia.—Não se faça de bobo, você sabemuito bemde quem se trata. Ficou

olhandoparaelesanoiteinteira,duranteojantarnaembaixadadaFrança.

—Éverdade,eramlindíssimos—admitiudonRigoberto,enrubescendo.E,ao

mesmo tempo em que acariciava, beijava e olhava com devoção os seios de dona

Lucrecia,matizouseuentusiasmocomumgalanteio:—Masnãotantoquantoos

seus.

—Ora,nãomeimporta—disseela,despenteando-o.—Sãomelhoresdoque

osmeus,oquepossofazer?Menores,porémmaisperfeitos.Emaisduros.

—Maisduros?—DonRigobertohaviacomeçadoaengolirsaliva.—Sósevocê

ativessevistonua.Ousetocasseneles.

Houve um silêncio auspicioso, que, no entanto, coexistia como estrondo das

ondasquebrandonaescarpa,láembaixo,aopédoescritório.

—Euavinuaeostoquei—soletrousuamulher,demorando-senaspalavras.

—Vocênãoseimporta,nãoé?Masaquestãonãoéessa,équesãoreconstituídos.

Deverdade.

Agora, don Rigoberto recordou que as mulheres deA vida breve — Queca,

Gertrudis,ElenaSala—usavamcintasde sedapor cimada calcinha,para a nar a

cinturaemanterasilhueta.DequedataseriaaqueleromancedeOnetti?Jánenhuma

mulher usava cintas. Ele nunca tinha visto Lucrecia com uma cinta de seda. E

tampoucovestidadepirata,nemdefreira,nemdejoqueta,nemdepalhaço,nemde

borboleta,nemde or.Masdecigana,sim,comlençonacabeça,grandesargolasnas

orelhas,blusadebabados,umasaiadeamplarodaemuitascores,e,nopescoçoenos

braços,colaresepulseirasdemiçangas.Recordouqueestavasozinho,namadrugada

úmida de Barranco, separado de Lucrecia havia cerca de um ano, e o atroz

pessimismoromanescodeJuanMaríaBrausenoimpregnou.Sentiu,também,oque

lianocaderno:“acertezainolvidáveldequenãoháemnenhumlugarumamulher,

umamigo,umacasa,umlivro,nemsequerumvício,quepossammefazer feliz.”

Era essa solidão atroz, e não a cena do peito canceroso de Gertrudis, que havia

desenterradodeseusubconscienteaqueleromance;eleestavaagoramergulhadoem

umasolidãotãoácidaeumpessimismotãonegroquantoosdeBrausen.

— Reconstruídos, como assim? — atreveu-se a perguntar, após um longo

parêntesededesconcerto.

—Elatevecâncereosseiosforamremovidos—informoudonaLucrecia,com

brutalidadecirúrgica.—Depois,aospoucos,foramsendoreconstruídos,naClínica

Mayo de Nova York. Seis intervenções. Já pensou? Uma. Duas. Três. Quatro.

Cinco. Seis. Ao longo de três anos.Mas carammais perfeitos do que antes.Os

médicosatére zeramosmamilos,comruguinhasetudo.Idênticos.Possoa rmar,

porqueosvi.Porqueostoquei.Vocênãoseimporta,nãoé,meuamor?

— Evidente que não — apressou-se a responder don Rigoberto. Mas sua

urgênciaotraiu,assimcomoamudançadecoloratura,asressonânciaseimplicações

desuavoz.—Podemedizerquando?Onde?

—Quandoos vi?—atalhou-odonaLucrecia, com sabedoriapro ssional.—

Ondeostoquei?

—Sim,sim—implorouele,jásemcerimônia.—Sevocêquiser.Esóoque

acharquepodemecontar,éclaro.

“É claro!”, saltou don Rigoberto. Agora entendia. O que havia provocado a

súbitaressurreição,oregressodeZorro,Tarzanoud’Artagnan,dezanosdepois,não

tinhasidoaquelepeitoemblemáticonemonegroressencialdonarradordeAvidabreve,esimaastutamaneiraqueJuanMaríaBrausentinhaencontradoparasesalvar.

Claro! Bendito Onetti! Sorriu, aliviado, quase contente. A lembrança não havia

aparecido para derrubá-lo, mas para ajudá-lo ou, como a rmava Brausen ao

quali car sua imaginação febril, para salvá-lo. Não era o que dizia, quando se

transpunhadaBuenosAiresrealparaaSantaMaríainventada,travestidodemédico

corrupto,DíazGrey, que por dinheiro injetavamor na namisteriosa Elena Sala?

Não dizia que essa transposição, essa mutação, essa elucubração, esse recurso ao

fictícioosalvava?Aquiestava,anotadonocaderno:“Umacaixachinesa.Na cçãode

Onetti, seu personagem inventado, Brausen, inventa uma cção na qual há um

médicocalcadonele,DíazGrey,eumamulhercalcadaemGertrudis(emboraainda

comosseiosnolugar),ElenaSala,eessa cçãoémaisdoqueoargumentode lme

queJulioSteinlhepediu:ésuamaneiradedefender-sedarealidadeconfrontando-lhe

osonho,deaniquilarahorrívelverdadedavidacomabelamentiradaficção.”Estava

feliz e exaltado por sua descoberta. Sentia-se Brausen, sentia-se redimido, a salvo,

quandoopreocupououtracitaçãodeseucaderno,embaixodasdeAvidabreve.EraumversodeIf,opoemadeKipling:

Ifyoucandream—andnotmakedreamsyourmaster

Uma advertência oportuna. Continuava dono dos seus sonhos, ou já era

governadoporeles,detantoabusardesserecursoapóssuaseparaçãodeLucrecia?

— Ficamos amigas desde aquele jantar na embaixada francesa— contava sua

mulher.— Ela me convidou para tomar um banho de vapor em sua casa. Um

costumebastantedifundidonospaísesárabes,parece.Osbanhosdevapor.Nãosãoa

mesmacoisaqueasauna,queébanhoseco.Elesmandaramconstruirumhammannofundodojardim,naresidênciadeOrrantia.

Don Rigoberto continuava folheando, abobalhado, as páginas de seu caderno,

mas não estava totalmente ali; já se via, também, naquele cerrado jardim de

trombetas-cheirosas, espirradeiras brancas e cor-de-rosa e um intenso perfume da

madressilva enredada nas colunas que sustentavam o telhado de um terraço.

Deslumbrado, espiava as duas mulheres — Lucrecia, com um orido vestido

primaverileumassandáliasquedeixavamdescobertosseusalvospés,eaembaixatriz

daArgéliaemumatúnicadesedadecoresdelicadas,queamanhãluminosairisava

—avançarememmeioatouceirasdegerâniosvermelhos,crótonsverdeseamarelos

e uma grama cuidadosamente aparada, em direção à construção de madeira

semiencobertapelosramosfrondososdeumfícus.“Ohammam,obanhodevapor”,

disse a si mesmo, sentindo o próprio coração. Via as duas mulheres de costas e

admirava a semelhançade suas formas, as largas edesenvoltasnádegasmovendo-se

compassadamente, os dorsos elegantes, a curva dos quadris desenhando pregas em

seusvestidos. Iamdebraçodado,amigascordialíssimas, levando toalhasnasmãos.

“Estou ali, me salvando, e estou no meu escritório”, pensou, “como JuanMaría

Brausen em seu cubículo de Buenos Aires, desdobrando-se no cafetão Arce, que

exploraavizinhaQueca,equeporsuavezsesalvadesdobrando-senodoutorDíaz

Grey,dainexistenteSantaMaría”.Masdistraiu-sedasduasmulheresporque,aovirar

uma página do caderno, topou com outra citação extraída deA vida breve: “Asenhoranomeouplenipotenciáriososseuspeitos.”

“Esta é anoitedospeitos”, enterneceu-se. “Seremos,Brausen e eu, apenasdois

esquizofrênicos?”Mas isso não lhe importava nem um pouco. Havia fechado os

olhoseviaasduasamigas sedespiremsemmelindres, comdesenvoltura, comose

tivessemcelebradomuitasvezesesseritual,napequenaantessalarevestidademadeira

dohammam.Penduravamasroupasemganchoseseenvolviamnasamplastoalhas,

conversandoanimadamentesobrealgoquedonRigobertonãoentendianemqueria

entender.Agora,empurrandoumaportinhademadeirasemfechadura,passavamao

pequenocompartimentosaturadodenuvenzinhasdevapor.Elesentiunorostouma

lufadadecalorúmidoquelhemolhavaopijamaesegrudavaaoseucorponodorso,

nopeitoenaspernas.Ovaporlheentravapelasnarinas,pelaboca,pelosolhos,com

umperfumesemelhanteaopinho,aosândalo,àmenta.Tremia,commedodeque

asamigasodescobrissem.Elas,porém,nãolheprestavamamenoratenção,comose

elenãoestivessealioufosseinvisível.

—Nãopensequeusaramnadaarti cial,siliconeoualgumadessasporcarias—

esclareceudonaLucrecia.—Nadadisso.Reconstruíramosseioscompeleecarnedo

próprio corpo dela.Tirandoumpedacinhode barriga, outro de nádega, outro de

coxa.Semdeixaramenormarcadenada.Ficouexcelente,excelente,juroavocê.

Era verdade, ele agora comprovava. Elas haviam tirado as toalhas e se sentado

muito juntas por falta de espaço, emum estradode ripas demadeira encostado à

parede.DonRigobertocontemplouosdoiscorposdespidosatravésdosmovimentos

ondulantesdasnuvenzinhasquentesdevapor.EramelhordoqueObanhoturcodeIngres, pois, nesse quadro, o amontoado de nus desconcentrava a atenção — “a

maldição coletivista”, praguejou —, ao passo que, aqui, sua percepção podia se

focalizar,abrangercomumolharasduasamigas,perscrutá-lassemperderomenor

dosseusgestos,possuí-lasemumavisãointegral.Alémdisso,emObanhoturco,oscorposestavamsecos,eaqui,empoucossegundos,donaLucreciaeaembaixatrizjá

mostravam suas peles cobertas de gotinhas brilhantes de transpiração. “Como são

bonitas!”, pensou, emocionado. “Juntas, mais ainda, como se a beleza de uma

potencializasseadaoutra.”

—Nãodeixaramnemsombradecicatriz—insistiadonaLucrecia.—Nemno

ventre, nem na nádega nem na coxa. Emuitomenos nos peitos que fabricaram.

Incrível,amor.

DonRigobertoacreditavadepés juntos.Comonão,seestavavendoessasduas

perfeições tão de perto que, se estendesse a mão, conseguiria tocá-las? (“Ai, ai”,

conformou-se).O corpo de suamulher eramais branco e o da embaixatriz,mais

moreno, como que crescido e formado ao ar livre; a cabeleira de Lucrecia, lisa e

negra,eadesuaamiga,crespaearruivada,mas,apesardessasdiferenças,asduasse

pareciamemseudesprezoàmodacontemporâneadamagrezaeaoestiloesguio,em

suasuntuosidaderenascentista,emsuaesplêndidaabundânciadetetas,coxas,nádegas

ebraços,nessasmagní casredondezesque—nãoprecisavaacariciá-lasparasaber—

eram rmes, duras e rijas, comprimidas como se fossemmodeladas por invisíveis

corseletes,cintas,ligas,sutiãs.“Omodeloclássico,agrandetradição”,celebrou.

—Sofreumuito com tanta operação, com tanta convalescença— apiedava-se

donaLucrecia.—Masfoiajudadaporseucoquetismo,suavontadedenãosedeixar

vencer, de derrotar aNatureza, de continuar bonita. E, por m, ganhou a guerra.

Nãoachaqueelaélinda?

—Vocêtambémé—oroudonRigoberto.

As duas tinham cado agitadas pelo calor e pela transpiração. Respiravam

fortemente,comlentoseprofundosmovimentosqueerguiamebaixavamseusseios

comoondulaçõesdomar.DonRigobertoestavaemtranse.Oque sediziam?Por

que haviam surgido esses brilhos maliciosos nos dois pares de olhos? Aguçou os

ouvidoseescutou.

— Não consigo acreditar — dizia dona Lucrecia, olhando os peitos da

embaixatriz e exagerando seu assombro. — Qualquer um caria louco. Não

poderiamsermaisnaturais!

—Éoquedizmeumarido—riuaembaixatriz,commalícia,empinandoum

pouco o torso a m de exibir mais os seios. Falava fazendo um biquinho, com

sotaquefrancês,masseusjotasguturaiseerreseramárabes.(“OpainasceuemOrãe

jogou futebol com Albert Camus”, decidiu don Rigoberto.)—Garante que eles

caram melhores do que antes, que agora gosta mais deles. Não pense que as

operaçõesosdeixaraminsensíveis.Dejeitonenhum.

Riudenovo,simulandorubor,edonaLucreciariutambém,dando-lhenacoxa

umalevepalmadinhaquesobressaltoudonRigoberto.

— Espero que você não leve a mal nem que pensando coisas— disse, um

momentodepois.—Eupoderiatocá-los?Vocêseimportaria?Morrodevontadede

saber se, ao toque, são tão autênticos quanto parecem.Devo estar parecendouma

loucaporlhepedirisso.Masvocêseimportaria?

—Claroquenão,Lucrecia—respondeuaembaixatriz,comfamiliaridade.Seu

trejeito sehavia acentuado e agora ela sorria comumaboca abertadepar empar,

exibindocomlegítimoorgulhoseusdentesbranquíssimos.—Vocêtocaosmeus,e

euosseus.Vamoscomparar.Nãohánadaerradoemqueduasamigasseacariciem.

—Éverdade,éverdade!—exclamoudonaLucrecia,entusiasmada.Edeuuma

olhadeladesoslaionadireçãodedonRigoberto.(“Desdeocomeçoelasoubequeeu

estavaaqui”,suspirouele.)—Nãoseiquantoaoseumarido,masomeuadoraisso.

Vamosbrincar,vamosbrincar.

Tinhamcomeçadoasetocar,deiníciocommuitaprudênciaetimidez;depois,

com mais atrevimento; agora, já se acariciavam os mamilos, sem dissimulação.

Haviamseaproximadoaospoucos.Abraçavam-se,asduascabeleirasseconfundiam.

DonRigobertomalasdivisava.Asgotasdesuor—ou,quemsabe,aslágrimas—

irritavamdetalmodosuaspupilasqueeleprecisavapiscarsemdescansoefecharos

olhos. “Estou feliz, estou entristecido”,pensava, conscienteda incongruência. Seria

possível?Porquenão?EracomoestaremBuenosAireseemSantaMaría,ouneste

amanhecer,sozinho,rodeadodecadernosegravurasnoescritóriodesolado,enaquele

jardimprimaveril,entrenuvensdevapor,suandoembicas.

— Começou como uma brincadeira — explicou-lhe dona Lucrecia. — Para

passarotempo,enquantoeliminávamosastoxinas.Imediatamente,penseiemvocê.

Sevocêaprovaria.Seissooexcitaria.Seoincomodaria.Sevocêmefariaumacena

quandoeulhecontasse.

Ele, el à promessa de dedicar toda a noite a homenagear os seios

plenipotenciáriosdesuamulher,haviaseajoelhadonochão,entreaspernasseparadas

deLucrecia,sentadanabeiradacama.Comamorosasolicitude,sustentavacadaum

dosseiosdelaemumamão,exagerandooscuidados,comoseelesfossemdefrágil

cristal e pudessem se quebrar. Beijava-os com a or dos lábios, milímetro a

milímetro,cultivadorconscienciosoquenãodeixanenhumaelevaçãodoterrenosem

lavrar.

—Ou seja,me deu vontade de tocá-la para saber se, ao tato, seus peitos não

pareceriampostiços.Eelafezomesmoporcortesia,paranãoficarquieta,comouma

lesma.Mas,claro,erabrincarcomfogo.

— Claro — assentiu don Rigoberto, incansável em sua busca da simetria,

saltando,equitativo,deumseioaoutro.—Porquevocêsforamseexcitando?Por

que,detocá-los,passaramabeijá-los?Achupá-los?

Arrependeu-se no ato.Tinha violado aquele rigoroso código que estabelecia a

incompatibilidade entre o prazer e o uso de palavras vulgares, sobretudo verbos

(chupar,mamar),queferiammortalmentequalquerilusão.

— Eu não disse chupá-los — desculpou-se, tentando retroagir ao passado e

corrigi-lo.—Fiquemoscombeijá-los.Qualdasduascomeçou?Você,minhavida?

Ouviu a suavíssima voz de Lucrecia, mas não conseguiu vê-la, porque ela se

desvaneciamuitodepressa, comoobafejono espelho, quando este é esfregadoou

recebeumalufadadearfresco:“Sim,eu,nãofoioquevocêmemandoufazer,oque

vocêqueria?”“Não”,pensoudonRigoberto.“Oqueeuqueroétê-laaqui,emcarne

eosso,enãocomofantasma.Porqueeuamovocê.”Atristezahaviacaídosobreele

comoumaguaceiro,cujas trombasd’água impetuosas levaramderoldãoo jardim,

aquelaresidência,oaromadesândalo,depinho,dementaedemadressilva,obanho

devaporeasduasamigascarinhosas.Tambémocalormolhadodeummomento

antes e seu sonho.O frio damadrugada lhe trespassava os ossos.O isócronomar

golpeavacomfúriaospenhascos.

E então recordou que, no romance—malditoOnetti! benditoOnetti!—, a

Queca e aGorda se beijavam e se acariciavam às escondidas de Brausen, do falso

Arce,equeaputa,ouex-puta,avizinha,aQueca,aquelaquematavam,achavaque

seu apartamento estava cheio de monstros, de gnomos, de endríagos, invisíveis

bestiolasmetafísicasquevinhampersegui-la.“AQuecaeaGorda”,pensou,“Lucrecia

e a embaixatriz”. Esquizofrênico, igual a Brausen. Nem os fantasmas o salvavam

mais, anteso sepultavama cadadia emuma solidãomaisprofunda,deixando seu

escritório semeado de alimárias ferozes, como o apartamento da Queca. Deveria

incendiarestacasa?ComeleeFonchitodentro?

Nocaderno,lampejouumsonhoeróticodeJuanMaríaBrausen(“tiradodeuns

quadros de PaulDelvaux queOnetti não podia conhecer quando escreveuA vidabreve, porqueo surrealistabelganem sequeros tinhapintado”,diziaumanotinha

entre parênteses): “Abandono-me contra o espaldar da cadeira, contra o ombro da

moça, e imagino estar afastando-medeumapequena cidade formadapor casasde

encontros;deumaaldeiasecretaondecasaisdespidosdeambulamporjardinzinhos,

pavimentos musgosos, protegendo-se os rostos com as mãos abertas quando se

acendemluzes,quandodeparamcomcriadospederastas...”AcabariacomoBrausen?

Já seria Brausen? Um medíocre frustrado que fracassou como idealista católico,

reformador social evangélico e também, a seguir, como irredento libertário

individualista e agnóstico hedonista, como fabricante de enclaves privados de alta

fantasia e bom gosto artístico, que vê tudo desmoronar ao seu redor, amulher a

quemama,o lhoqueprocriou,ossonhosquedesejouincrustarnarealidade,eque

declina a cada dia, a cada noite, por trás da repelentemáscara de gerente de uma

próspera companhia de seguros, transformado naquele “desesperado puro” de que

falavaoromancedeOnetti,emumarremedodomasoquistapessimistadeAvidabreve. Brausen, pelomenos, no nal se arranjava para escapar deBuenosAires, e,

tomando trens, automóveis, barcos ou ônibus, conseguia chegar a SantaMaría, a

colônia rio-platense de sua invenção. Don Rigoberto ainda estava su cientemente

lúcido para saber que não podia se contrabandear para as cções, saltar dentro do

sonho.Aindanão eraBrausen.Havia tempopara reagir, fazer algo.Mas o quê, o

quê?

Brincadeiras invisíveis

Entro em tua casa pela chaminé da lareira, embora não seja Papai Noel. Vou

utuando até teu dormitório e, grudadinha ao teu rosto, imito o zumbido do

mosquito. Entre sonhos, começas a dar tapas na escuridão contra um pobre

pernilonguinhoquenãoexiste.

Quando me canso de brincar de mosquito, descubro teus pés e sopro uma

correntedearfrioqueteenregelaosossos.Começasatremer,teencolhes,puxaso

cobertor,batesosdentes,teescondessobotravesseiroeatétevêmunsespirrosque

nãosãoosdetuaalergia.

Então,metransformoemumcalorzinhopiurano,amazônico,queteencharcade

suordospésàcabeça.Parecesumfranguinhomolhado,chutandooslençóisparao

chão, arrancando o paletó e a calça do pijama. Até que cas peladinho, suando,

suandoearquejandocomoumfole.

Depois,metransformoemumapenaetefaçocosquinhas,naplantadospés,na

orelha, nas axilas. Ih-ih!, ah-ah!, oh-oh!, ris sem despertar, fazendo caretas

desesperadas e movendo-te, à direita, à esquerda, para que desapareçam as

cãibrazinhasda gargalhada.Atéque,por m, acordas, assustado, semmever,mas

sentindoquealguémrondaporalinoescuro.

Quandotelevantasevaisaoteuescritório,paratedistraírescomtuasgravuras,

apronto armadilhas pelo caminho. Removo cadeiras, enfeites e mesas dos seus

lugares, para que tropeces e grites “Aiaiaiii!”, esfregando as canelas. Às vezes te

escondo o roupão, os chinelos. Às vezes, derramo o copo d’água que colocas no

criado-mudoparabebê-loaoacordar.Comoteaborreces,quandoabresosolhose

tateiasprocurando-o,edescobresqueeleestánomeiodeumapoça,nochão!

Assimnosdivertimoscomnossosamores,nósoutras.

Tua,tua,tua,

Afantasminhaapaixonada

5 Ouguacos, recipientes de argila encontrados nasguacas, sepulturas indígenas, nos quais se depositavamcomidaouobjetosdevalor.Adiante:queros,vasoscoloridosdemadeirausadospelosincasemsuascerimônias;

Manuelitos,imagensdoMeninoJesusvestidoàmaneiraindígena;caballitos(cavalinhos),canoasfeitasdesdeostempospré-incaicoscomfeixesdetotora,espéciedejunco.(N.daT.)

VIII.

Fera no espelhoVIII - Fera no espelho

“Estanoiteeufui”,deixouescapardonaLucrecia.Antesdesedarcontadoquehavia

falado,escutouFonchito:“Paraonde,madrasta?”Enrubesceuatéaraizdoscabelos,

roídapelavergonha.

—Nãoconseguipregarolho, foioqueeuquisdizer—mentiu,porque fazia

tempo que não tinha um sono tão profundo, embora, isto sim, agitado pelas

turbulênciasdodesejoepelosfantasmasdoamor.—Detãocansada,nemseimaiso

quedigo.

Omeninovoltaraaseconcentrarnaquelapáginadolivrosobreopintordosseus

amores,naqualseviaumafotogra adeEgonSchieleolhando-senograndeespelho

deseuateliê.A imagemoreproduziadecorpo inteiro,mãosnosbolsos,oscurtos

cabelosdespenteados,aesbeltasilhuetajuvenilembutidaemumacamisabrancade

colarinhopostiço,degravatamassempaletó,easmãos,claro,escondidasnosbolsos

de uma calça que parecia arregaçada para atravessar um rio. Desde que chegara,

Fonchito não tinha feitomais do que falar daquele espelho, tentando várias vezes

entabularconversasobreatalfoto;masdonaLucrecia,absortaemseuspensamentos,

ainda invadida pela exaltação confusa, pelas dúvidas e esperanças em que o

surpreendente desenvolvimento de sua correspondência anônima a mantinha

mergulhada desde a véspera, não lhe havia prestado atenção. Olhou a cabeça de

cachinhosdouradosdeFonchito edivisou seuper l, o sisudo escrutínio aque ele

submetiaa foto,comosequisessearrancardalialgumsegredo.“Nãosedeuconta,

nãoentendeu.”Embora,comele,nuncasesoubesse.Talveztivesseentendidomuito

bemmasdissimulasse,paranãoaumentaroembaraçodela.

Ou,paraomenino,“ir”nãoqueriadizeramesmacoisa?Recordouque,tempos

atrás,elaeRigoberto tinhamtidoumadaquelasconversasescabrosasqueocódigo

secreto que governava suas vidas só permitia à noite e na cama, nas preliminares,

duranteoamoroudepoisdele.Seumaridohavialheasseguradoqueanovageração

já não dizia “ir”, mas “chegar”, o que ilustrava, também no delicado território

venusiano,ain uênciadoinglês,poisosgringoseasgringas,quandofaziamamor,

“chegavam” ( to come), e não iam, como os latinos, a nenhum lugar. Fosse como

fosse,donaLucreciatinhaido,chegadoouterminado(esteeraoverboqueelaedon

Rigoberto haviam adotado nos dez anos de casamento, depois de combinar que

jamaisserefeririamaessebelo naldocorpoacorpoeróticopelogrosseiroeclínico

“orgasmo” emenos ainda pela pluviosa e agressiva “ejaculação”) na noite anterior,

gozando intensamente, com um prazer extremado, quase doloroso — acordara

banhada em suor, os dentes se entrechocando, as mãos e os pés convulsos —,

sonhando que havia comparecido ao misterioso encontro da carta anônima,

cumprindo todas as extravagantes instruções, e por m, depois de deslocamentos

rocambolescospelasruasescurasdocentroepelossubúrbiosdeLima,tinhasido—

comosolhosvendados, evidentemente—introduzidaemumacasacujoodorela

reconheceu, levada por uma escada até um segundo andar — desde o primeiro

momento,tevecertezadequesetratavadacasadeBarranco—,despidaederrubada

emumacamaqueelaidentificouigualmentecomoasuadesempre,atéquesesentiu

envolvida, abraçada, invadida e preenchida por um corpo que, claro, era o de

Rigoberto.Tinham terminado— ido ou chegado— juntos, algo que não lhes

acontecia com frequência. Ambos haviam achado isso um bom sinal, um feliz

augúrioparaanovaetapaqueseabriadepoisdaabracadabrantereconciliação.Então,

acordou,úmida,lânguida,confusa,eprecisoulutarumbomtempoparaaceitarque

aquelafelicidadeintensahaviasidoapenasumsonho.

—Schieleganhoudesuamãeesseespelho.—AvozdeFonchitoadevolveuà

suacasa,àgrisalhadeSanIsidro,aosgritosdosgarotosquebatiambolanoOlivar;o

menino tinha o rosto voltadopara ela.—Pediumuitas emuitas vezes que ela o

presenteasse.Algunsdizemqueeleo roubou.Quemorriadevontadede tê-lo,até

que,umdia,foiàcasadamãeeolevouescondido.Equeelaseresignoueacabou

deixando-onoateliê.Foioprimeiroqueeleteve,eoconservousempre,semudou

comesseespelhoparatodososseusateliês,atésuamorte.

—Porqueesseespelhoétãoimportante?—DonaLucreciafezumesforçopara

seinteressar.—EleeraumNarciso,dissojásabemos.Essafotoomostracomotal.

Contemplando-se, enamorado de si mesmo, fazendo cara de vítima. Para que o

mundooamasseeoadmirasse,tantoquantoeleseamavaeseadmirava.

Fonchitodeuumagargalhada.

—Que imaginação, madrasta!— exclamou.— Por isso é que eu gosto das

nossasconversas;vocêtemumasideias,comoeu.Detudo,tiraumahistória.Somos

parecidos,nãoé?Comvocê,eunãomeentedionunca.

—Eeutampouco,emsuacompanhia—disseela,jogando-lheumbeijo.—Já

lhedeiminhaopinião,agoramedêasua.Porqueoespelholheinteressatanto?

— Eu sonho com ele — confessou Fonchito. E, com um sorrisinho

me stofélico,acrescentou:—ParaEgon,eraimportantíssimo.Comovocêachaque

elepintousuacentenadeautorretratos?Graçasaesseespelho,quetambémlheserviu

parapintarsuasmodelos,refletidas.Nãoeraumcapricho.Eraque,eraque...

Fezumacareta,buscando,masdonaLucreciaadivinhouquenãoerampalavraso

que faltava a ele, mas uma ideia ainda imprecisa, inconcreta, ainda em gestação

naquela cabecinha precoce. A paixão do menino por esse pintor, agora ela estava

segura,erapatológica.Mas,porissomesmo,talvezpudessetambémdeterminarpara

Fonchito um futuro excepcional, de criador excêntrico, de artista extravagante. Se

comparecesseaoencontroe zesseaspazescomRigoberto,comentaria isso.“Você

gostadaideiadeterum lhogenialeneurótico?”Elheperguntariasenãohaviaum

riscoparaasaúdepsíquicadomeninonofatodeeleseidenti caratalpontocom

umpintordeinclinaçõestãoretorcidascomoEgonSchiele.Mas,então,Rigoberto

responderia: “Como assim? Você tem visto Fonchito? Enquanto estávamos

separados? Enquanto eu lhe escrevia cartas de amor, esquecendo o acontecido,

perdoando o acontecido, você o recebia às escondidas? O menininho que você

corrompeu, levando-o para sua cama?” “Meu Deus, meu Deus, virei uma idiota

completa”, pensoudonaLucrecia. Se fosse àquele encontro, a única coisa quenão

podiafazereramencionarumasóvezonomedeAlfonso.

—Oi,Justita—disseomeninocumprimentandoaempregada,queentravana

sala de jantar vestida com esmero, avental engomado, com a bandeja do chá e os

indefectíveischancaystostadoscommanteigaegeleia.—Nãováembora,querolhe

mostrarumacoisa.Oquevocêvêaqui?

—Eoquepoderiaser,alémdasporcariasdequevocêgostatanto?—Justiniana

pousouosolhosirrequietossobreolivroporumbomtempo.—Umdescaradoque

deitaerola,vendoduasmoçaspeladas,demeiasechapéu,seexibindoparaele.

—Éoqueparece,certo?—exclamouFonchito,comardetriunfo.Estendeuo

livroadonaLucreciaparaqueelaexaminasseareproduçãoempáginainteira.—Mas

nãosãoduasmodelos,éumasó.Porqueagentevêduas,umadefrenteeoutrade

costas?Porcausadoespelho!Entendeu,madrasta?Otítuloexplicatudo.

Schiele desenhando uma modelo nua diante do espelho (1910, Graphische

Sammlung Albertina, Viena), leu dona Lucrecia. Enquanto examinava a imagem,

intrigadaporalgoqueelanãosabiaoqueera,excetoquenãoestavapropriamenteno

quadro,umapresença,ouantesumaausência,malouviaFonchito, já tomadopor

aqueleestadodeexcitaçãoprogressivaemquesempreentravaaofalardeSchiele.O

meninoexplicavaaJustinianaqueoespelho“estáondenósestamos,nósquevemos

oquadro”.Equeamodelovistadefrentenãoeraadecarneeosso,masaimagem

doespelho,aopassoqueeramreais,enãore exos,opintoreamesmamodelovista

decostas.Oquesigni cavaqueEgonSchielehaviacomeçadoapintarMoaestando

ela de costas para o espelho, mas depois, atraído pela parte dela que ele não via

diretamente, e simprojetada, decidiupintá-la tambémassim.Com isso, graças ao

espelho,pintouduasMoasque,naverdade,eramuma:aMoacompleta,aMoacom

suasduasmetades,umaMoaqueninguémpoderiaolharnarealidadeporque“nóssó

vemosoquetemosànossafrente,enãoapartedetrásdessafrente”.Compreendia

porqueesseespelhoeratãoimportanteparaEgonSchiele?

—Asenhoranãoachaqueeleestácomumparafusofrouxo,patroa?—exagerou

Justiniana,tocandoatêmpora.

— Há muito tempo — assentiu dona Lucrecia. Depois, virando-se para

Fonchito,encadeou:—QuemeraessaMoa?

Uma taitiana. Chegou a Viena e foimorar com um pintor, que era também

mímicoelouco:ErwinDominikOse.Omeninoseapressouapassaraspáginasea

mostraradonaLucreciaeJustinianaváriasreproduçõesdataitianaMoa,dançando,

envolta em túnicas multicores por cujas dobras assomavam seus miúdos seios de

mamilosemristee,comoduasaranhasescondidassobseusbraços,ostu nhosdas

axilas. Dançava nos cabarés, era musa de poetas e pintores e, além de posar para

Egon,tambémtinhasidosuaamante.

—Issoeuadivinheidesdeoprincípio—comentouJustiniana.—Obandido

sempresedeitavacomsuasmodelosdepoisdepintá-las,jásabemos.

— Às vezes, antes, e às vezes, enquanto as pintava — assegurou Fonchito,

tranquilo,aprovando.—Masnãocomtodas.Emsuaagendade1918,seuúltimo

ano,aparecem117visitasdemodelosaoseuateliê.Elepodiasedeitarcomtantas,

emtãopoucotempo?

—Sóseficoutuberculoso—galhofouJustiniana.—Morreudospulmões?

—Morreudegripeespanhola,aos28anos—informouFonchito.—Eéassim

queeuvoumorrertambém,casovocênãosaiba.

—Nãodigaissonembrincando,quedáazar—repreendeu-oaempregada.

—Masaquiháumacoisaquenãobate—interrompeu-osdonaLucrecia.

Tinha arrancado aomeninoo livrode reproduções e voltava a examinar, com

atenção, aqueledesenho sobre fundo sépia,de linhasprecisas edelgadas,dopintor

comamodeloduplicada(“oumelhor,cindida?”)peloespelho,enoqual,aosolhos

concentrados, quase hostis, de Schiele, parecia responder o melancólico, sedoso e

cintilante olhar deMoa, dançarina de cílios azulados.DonaLucrecia se inquietava

comalgoqueacabavadeidenti car.Ah,sim,ochapéuentrevistodecostas.Exceto

por essedetalhe, em todoo resto asduaspartesdadelicada, requebrante e sensual

silhueta da taitiana, com pelos como aranhas no púbis e embaixo dos braços,

coincidiamàperfeição;umavezpercebidaapresençadoespelho,reconheciam-seas

duasmetadesdamesmapessoanasduas gurasqueoartistaobservava.Nochapéu,

porém,não.Ade costas traziana cabeçaumobjetoque, sob essaperspectiva,não

pareciaumchapéu,masalgo incerto, inquietante,umaespéciedecapuz,eaté,até,

umacabeçadefera.Isto,umaespéciedetigre.Nada,emtodocaso,queseparecesse

comocoquetechapeuzinhofeminino,gracioso,queenfeitavaacarinhadeMoavista

defrente.

— Que curioso — insistiu a madrasta. — Visto de costas, este chapéu se

transformaemumamáscara.Acabeçadeumafera.

— Como aquela que o papai pede que você coloque diante do espelho,

madrasta?

OsorrisodedonaLucreciasecongelou.Derepente,elacompreendeuarazãodo

difuso mal-estar que a invadira desde que o menino lhe havia mostradoSchieledesenhandoumamodelonuadiantedoespelho.

—Oque a senhora tem, patroa?—preocupou-se Justiniana.—Está branca,

branca!

—Então,évocê—balbuciouela,olhandoincrédulaparaFonchito.—Ascartas

anônimasquemmemandaévocê,pedaçodefarsante.

Era ele, claro que sim. Aquilo constava da penúltima ou antepenúltima carta.

Nãoeranecessárioirbuscá-la,afrasereviviacomtodosospontosevírgulasemsua

memória: “Te despirás diante do espelho, conservando asmeias, e esconderás tua

formosacabeçasobamáscaradeumaferabravia,depreferênciaumatigresaouuma

leoa.Quebrarásoquadrildireito, exionarásapernaesquerda,apoiarástuamãono

quadriloposto,naposemaisprovocante.Euestareiolhando,sentadinhoemminha

cadeira, com a reverência habitual.” Não era o que ela estava vendo? O maldito

fedelhobrincavacomelaaseugosto!Pegouolivrodereproduçõese,cegaderaiva,

lançou-ocontraFonchito.Omeninonãoconseguiuseesquivar.Recebeuolivroem

plenacara,comumgrito,aoqualseseguiuoutro,daassustadaJustiniana.Como

impacto,elecaiudecostas sobreo tapete,comasmãosnorosto,e couolhando

para a madrasta, exorbitado. Dona Lucrecia não pensou que havia agido mal,

deixando-sevencerpelacólera.Estaadominavademaisparaqueelasearrependesse.

EnquantoaempregadaajudavaFonchitoase levantar,continuougritando,forade

si:

—Mentiroso,hipócrita,mosca-morta!Achaquetemodireitodebrincarassim

comigo,sendoeuumavelhaevocêummelequentoqueaindanãosaiudasfraldas?

—Oquevocêtem,oqueeulhe z?—balbuciavaFonchito,tentandosesafar

dosbraçosdeJustita.

—Calma,patroa,asenhoramachucouomenino,veja,eleestásangrandopelo

nariz—diziaJustiniana.—Evocê,fiquequieto,Foncho,medeixever.

—Oquevocêmefez?!Comoassim,seu ngido?—vociferavadonaLucrecia,

ainda mais furiosa. — Acha pouco? Me escrever cartas anônimas? Inventar a

palhaçadadequeeramdoseupai?

—Mas eu não lhemandei nenhuma carta anônima— protestava omenino,

enquanto a empregada, de joelhos, limpava-lhe o sangue do nariz com um

guardanapodepapel.“Nãosemexa,nãosemexa,assimvaisemanchartodo.”

— Seumaldito espelho o delatou, seumaldito Egon Schiele— gritou ainda

donaLucrecia.—Você se achavamuito esperto,hem?Masnão é, seupaspalhão.

Comosabequeelemepediaisso,queeubotasseumamáscaradefera?

—Foivocêquemmecontou,madrasta—começoua tartamudearFonchito,

mascalou-seaoverquedonaLucrecia cavadepé.Protegeuo rostocomasduas

mãos,comoseelafosseestapeá-lo.

—Eununcalhefaleidessamáscara,mentiroso—explodiuamadrasta,iracunda.

—Voubuscar a carta, vou ler para você.E você vai engoli-la emepedir perdão.

Nuncamaiseuodeixobotarospésnestacasa.Ouviu?Nuncamais.

Indignadíssima,passoucomoumfuracãodiantedeJustinianaeFonchito.Mas,

antesde iratéapenteadeiraondeguardavaascartasanônimas,entrounobanheiro

para jogar água fria no rosto e esfregar as têmporas com água-de-colônia. Não

conseguia se acalmar. Estemoleque, estemoleque. Brincando com ela, o gatinho

comuma ratazana grande.Mandando-lhe cartas atrevidas e rebuscadas para fazê-la

acreditarqueeramdeRigoberto,alimentandonelaaesperançadeumareconciliação.

O que ele queria?Que intriga tramava? Por que essa farsa?Divertir-se, divertir-se

dispondodasemoçõesdela,desuavida?Fonchitoeraperverso,sádico.Tinhaprazer

emiludi-laevê-ladesmoronardepois,desapontada.

Voltouaoseuquarto,semseacalmartotalmente,enãoprecisouprocurarmuito

na gaveta da penteadeira para encontrar a carta. Era a sétima anônima. Ali estava,

maisoumenoscomoemsualembrança,afrasequeadeixaracomapulgaatrásda

orelha: “... esconderás tua formosa cabeça sob a máscara de uma fera bravia, de

preferência a tigresa no cio do Rubén Darío de Azul..., ou uma leoa sudanesa.

Quebrarás o quadril...” etc. etc.A taitianaMoanodesenhode Schiele, nemmais

nemmenos.Oenredeiroprecoce,ointrigantezinho.Tiveraadesfaçatezdelhefazer

todoumteatrocomoespelhodeSchieleeatédelhemostraroquadroqueohavia

delatado. Ela não lamentava ter jogado o livro em cima dele,mesmo lhe tirando

sangue do nariz. Muito benfeito! Não tinha destroçado sua vida, esse pequeno

demônio? Porque não tinha sido ela a corruptora, embora a diferença de idade a

condenasse;tinhasidoele,elemesmo,ocorruptor.Comseuspoucosaninhos,com

suacarinhadequerubim,eraumMe stófeles,Lúciferempessoa.Mas,agora, isso

tinhaacabado.Elaofariaengolirestacartaanônima,sim,eoexpulsariadacasa.Para

elenãovoltarnuncamais,nãoseintrometeremsuavidanuncamais.

Mas,nasaladejantar,sóencontrouJustiniana.Esta,compungida,lhemostrouo

guardanapodepapelcommanchinhasdesangue.

— Foi embora chorando, patroa. Não pela pancada no nariz, mas porque a

senhora, quando o agrediu, rasgou o livro desse pintor que ele tanto ama. Ficou

muitomagoado,issoficou.

—Nãomedigaqueagoraestácompenadocoitadinho!—AsenhoraLucrecia

despencounapoltrona,exausta.—Nãopercebeoqueessemeninomefez?Foiele,

elemesmo,quemmemandouascartasanônimas.

—Elemegarantiuquenão,patroa.Juroupeloquehádemaissagrado,disseque

éopatrãoquemestámandando.

—Mentira.—DonaLucreciasentiaumcansaçodeséculos.Iriadesmaiar?Que

vontade de ir para a cama, de dormir uma semana seguida! — Ele mesmo se

entregou,comaquelaconversamolesobreamáscaraeoespelho.

Justinianaseaproximouelhefalouquaseemsegredo.

—Asenhoratemcertezadequenãoleuessacartaparaele?Dequenãocontoua

históriadamáscara?Fonchitoéumserelepe,detãosabido,patroa.Achaqueeleiase

deixarapanhartãofacilmente?

—Eununca li essacartaparaele,nunca lhe faleidamáscara—a rmoudona

Lucrecia.Mas,nomesmoinstante,duvidou.

Não o teria feito mesmo? Ontem, anteontem? Andava com a cabeça muito

atrapalhadanessesdias;desdeaquelacascatadecartasanônimas,viviaperdidaemum

bosquedeconjecturas,divagações,suspeitas,fantasias.Nãoerapossível,a nal?Que

ela houvesse contado, mencionado, até lido para ele, a estranha instrução de que

posasse nua, commeias e umamáscara de fera, diante de um espelho? Se tivesse

faladoisso,entãohaviacometidoumagrandeinjustiça,insultando-oegolpeando-o.

—Estoufartadessahistóriatoda—murmurou,fazendoesforçosparaconteras

lágrimas.—Farta,Justita,farta.Podeserqueeutenhacontadoedepoisesquecido.

Nãoseimaisondetenhoacabeça.Talvez.Euqueria iremboradestacidade,deste

país.Paraumlugarondeninguémmeconheça.LongedeRigobertoedeFonchito.

Porculpadessadupla,caíemumpoçoenuncamaispodereisairaoarlivre.

—Não quetriste,patroa.—Justinianalhepôsamãonoombro,acariciou-lhe

a testa. — Não se amargure. E também não se preocupe. Existe uma maneira

facílimadesabersequemlheescreveessasbesteiraséFonchitooudonRigoberto.

DonaLucreciaergueuavista.Osolhosdaempregadafaiscavam.

—Claro,patroa,poisentão—continuavaela,falandocomasmãos,osolhos,

os lábios,osdentes.—Elenãomarcao tal encontro,naúltima? Istomesmo.Vá

aondeelediz,façaoqueelepede.

—E você acha que eu vou fazer essas palhaçadas de dramalhãomexicano?—

fingiuseescandalizardonaLucrecia.

—Porque,assim,saberáqueméoautordascartas—concluiuJustiniana.—Eu

vou junto, se a senhora quiser, para não se sentir só. E também porque estou

morrendodecuriosidade,patroa.Ofilhinhoouopainho?Qualserá?

Riu, comodescaramento e a graçahabituais, edonaLucrecia acabou sorrindo

também. A nal, talvez esta maluca tivesse razão. Se comparecesse ao indecoroso

encontro,tirariaadúvidadeumavezportodas.

— Ele não se apresentará, vai me deixar chupando dedo mais uma vez —

argumentou,semmuitaforça,sabendointimamentequejáestavadecidida.Iria,faria

todasaspalhaçadasqueopainhoouo lhinholhepedia.Continuariaentrandono

jogoaoqual,querendoounão,elatambémvinhaaderindohaviamuitotempo.

—Querqueeulheprepareumbanhinhodeáguamorna,comsais,parapassara

raiva?—Justinianaestavaanimadíssima.

DonaLucreciaaceitou.Quedroga,agorasuasensaçãoeraadeterseprecipitado,

detercometidoumatremendainjustiçacontraopobreFonchito.

Carta ao leitor de Playboyou tratado mínimo de estética

Sendo o erotismo a humanização inteligente e sensível do amor físico, e a

pornogra a,seubarateamentoesuadegradação,euacusoosenhor,leitordePlayboyoudePenthouse,frequentadordeantrosqueexibem lmesporno-hardedesexshopsonde se adquiremvibradores elétricos, consoladores de borracha e camisinhas com

cristas de galo oumitras arcebispais, de contribuir para o veloz retrocesso, àmera

cópula animal, do mais e caz atributo concedido ao homem e à mulher para se

assemelharem aos deuses (os pagãos, é claro, que não eram castos nem cheios de

melindresemquestõessexuaiscomoaquelequesabemos).

Osenhorcometeabertamenteumcrime,acadamês,porrenunciaraexercersua

própria imaginação,atiçadapelofogodeseusdesejos,porcederàmedíocretarade

permitir que suas pulsões mais sutis, as do apetite carnal, sejam embridadas por

produtosmanufaturadosàmaneiradeclones,que,aparentandosatisfazerasurgências

sexuais, na verdade as subjugam, aguando-as, serializando-as e constringindo-as

dentro de caricaturas que vulgarizam o sexo, despojam-no de originalidade, de

mistério e de beleza, para transformá-lo em mascarada, quando não em ignóbil

afronta ao bom gosto. Para que perceba com quem está lidando, talvez o senhor

apreenda melhor meu pensamento ao saber que (monógamo como sou, embora

benevolentecomoadultério)tenhoporfontesmaisapetecíveisdecobiçaseróticasa

defuntaerespeitabilíssimaestadistadeIsraeldonaGoldaMeirouaausterasenhora

MargaretatcherdoReinoUnido,dequemnuncasemoveuumsó odecabelo

enquantofoiprimeira-ministra,doquequalquerumadessasbonecascanforadas,de

tetas in adaspelo silicone,púbis cardados e tingidosqueparecem intercambiáveis,

uma mesma impostura multiplicada por uma fôrma única, as quais, para que o

ridículocomplementeaestupidez,aparecemnessainimigadeErosqueéaPlayboy,empáginadesdobrável e comorelhas e rabodepelúcia, ostentandoo cetrode “A

coelhinhadomês”.

Meuódio àPlayboy, àPenthouseecongêneresnãoégratuito.Esseespécimede

revistaéumsímbolodoacanalhamentodosexo,dodesaparecimentodosbelostabus

que costumavam rodeá-lo e graças aos quais o espírito humano podia rebelar-se,

exercendoaliberdadeindividual,a rmandoapersonalidadesingulardecadaum,eo

indivíduosoberanocriar-sepoucoapouconaelaboração,secretaediscreta,derituais,

condutas, imagens, cultos, fantasias e cerimônias que, enobrecendo eticamente e

conferindocategoriaestéticaaoatodoamor,desanimalizaram-noprogressivamente

atétransformá-loematocriativo.Umatograçasaoqual,nareservadaintimidadedas

alcovas, um homem e umamulher (cito a fórmula ortodoxa,mas, claro, poderia

tratar-se de um cavalheiro e uma palmípede, de duas mulheres, de dois ou três

homens,edetodasascombinaçõesimagináveissemprequeoelenconãoultrapasseo

trio ou, concessão máxima, os dois pares) podiam, por algumas horas, emular

Homero,Fídias,BotticelliouBeethoven.Seiqueosenhornãomeentende,masnão

importa;semeentendesse,nãoseriatãoimbecilapontodesincronizarsuasereçõese

seusorgasmoscomorelógio(deouromaciçoeàprovad’água,seguramente?)deum

sujeitochamadoHughHeffner.

O problema é mais estético do que ético, losó co, sexual, psicológico ou

político, embora, para mim, desnecessário dizer, essa separação não seja aceitável,

porquetudo o que importa é, a curto ou a longo prazo, estético. A pornogra a

despojaoerotismodoconteúdoartístico,privilegiaoorgânicosobreoespiritualeo

mental,comoseodesejoeoprazertivessemporprotagonistasfalosevulvaseesses

adminículosnão fossemmeros servosdos fantasmasquegovernamnossasalmas,e

segregaoamorfísicodorestodasexperiênciashumanas.Oerotismo,aocontrário,

integra-ocomtudooquesomosetemos.Enquanto,paraosenhor,pornógrafo,a

únicacoisaquecontanahoradefazeramoré,comoparaumcão,ummacacoou

um cavalo, ejacular, Lucrecia e eu, inveje-nos, fazemos amortambém tomando o

desjejum,vestindo-nos,ouvindoMahler,conversandocomamigosecontemplando

asnuvensouomar.

Quandodigoestético,talvezosenhorpossapensar—seéqueapornogra aeo

pensamentosãocompatíveis—que,poresseatalho,caionaarmadilhadogregárioe

que,comoosvaloresgeralmentesãocompartilhados,nessedomínioeusoumenos

eueumpoucomaiseles,istoé,umapartedatribo.Reconheçoqueoperigoexiste;

mas o combato sem trégua, dia e noite, defendendominha independência contra

ventosemarésmedianteousoconstantedeminhaliberdade.

Aprenda, ou pelomenos julgue, por esta pequena amostra demeu tratado de

estética particular (que espero não compartilhar commuita gente e que é exível,

desfaz-seeserefazcomoaargilanasmãosdeumdestroceramista).

Tudo o que brilha é feio.Há cidades brilhantes, comoViena,BuenosAires e

Paris; escritores brilhantes, comoUmbertoEco,CarlosFuentes,MilanKundera e

JohnUpdike, epintoresbrilhantes, comoAndyWarhol,Matta eTàpies.Embora

tudo isso cintile, para mim é prescindível. Sem exceção, todos os arquitetos

modernossãobrilhantes,peloqueaarquiteturamarginalizou-sedaarteetornou-se

um ramoda publicidade e das relações públicas; portanto, é conveniente descartar

todos eles em bloco e recorrer unicamente a pedreiros, a mestres de obras e à

inspiração dos profanos. Não existem músicos brilhantes, embora compositores

comoMauriceRaveleErikSatietenhamlutadoporsê-loequaseoconseguiram.O

cinema,tãodivertidoquantoojudôoualutalivre,épós-artísticoenãomereceser

incluídoemconsideraçõessobreestética,apesardealgumasanomaliasocidentais(esta

noite eu salvaria Visconti, OrsonWelles, Buñuel, Berlanga e John Ford) e uma

japonesa(Kurosawa).

Toda pessoa que escreve “nuclear-se”, “colocação”, “conscientizar”, “visualizar”,

“societal”esobretudo“telúrico”éum lho(ou lha)daputa.Tambémosãoosque

usampalitoempúblico,in igindoaopróximoesserepelenteespetáculoqueenfeia

aspaisagens.Igualmente,essesasquerososquetiramomiolodopão,amassam-noe

o deixam sobre amesa, transformado embolinhas.Nãome pergunte por que os

autoresdessasbarbaridadessãouns lhos(ou lhas)daputa;sóainspiraçãointuie

assimila taisconhecimentos;eles são infusos,nãopodemseraprendidos.Amesma

norma vale, evidentemente, para o mortal de qualquer sexo que, pretendendo

castelhanizar as bebidas, escrevegüisqui, yinyerel oujaibol.6 Estes últimos, estas

últimas,deveriaminclusivemorrer,poissuspeitoquesuasvidassãosupérfluas.

Aobrigaçãodeum lmeedeumlivroéentreter-me.Se,vendo-ooulendo-o,

eumedistraio,cabeceioouadormeço,elesfaltaramaoseudeveresãoummaulivro,

ummau lme.Exemplosconspícuos:Ohomemsemqualidades,deMusil,e todos

osfilmesdessesembusteschamadosOliverStoneouQuentinTarantino.

No que se refere à pintura e à escultura, meu critério de avaliação artística é

muitosimples:tudooqueeupoderiafazeremmatériapictóricaouesculturaléuma

merda. Só se quali cam, portanto, os artistas cujas obras estão fora do alcance de

minhamediocridadecriativa,aquelesqueeunãopoderiareproduzir.Essecritériome

permitiudeterminar,aoprimeirogolpedevista,quetodaaobrade“artistas”como

AndyWarholouFridaKahloéumaembromação,e,aocontrário,queatéomais

elementardesenhodeGeorgGrosz,deChillidaoudeBalthuségenial.Alémdessa

regrageral,aobrigaçãodeumquadrotambéméademeexcitar(expressãoquenão

me agrada,masuso-aporque a alegoria crioula “deixar-me empontodebala”me

agradaaindamenos,jáqueintroduzumelementorisívelemalgoqueéseriíssimo).

Seme agrada, masme deixa frio, sem a imaginação invadida por desejos teatral-

copulatóriosesemaquelasrumorosascócegasnostestículosqueprecedemasternas

ereções,éumquadroseminteresse,mesmoquesetratedaMonaLisa, doHomemcom a mão no peito, deGuernica ou daRonda noturna. Assim, o senhor cará

surpresoaosaberquedeGoya,outromonstrosagrado,sómeaprazemossapatinhos

de velasdouradas, saltosempontaeadornosdecetim,acompanhadospormeias

brancasderenda,comosquaisemseusóleoselecalçavasuasmarquesas,equenos

quadrosdeRenoireusóolhocombenevolência(prazer,àsvezes)osrosadostraseiros

de suas camponesas e evito o resto do corpo, sobretudo aquelas carinhas

embonecadaseosolhosdevagalume,queantecipam—vaderetro!—ascoelhinhas

daPlayboy.DeCourbet,interessam-measlésbicaseaquelegigantescotraseiroquefez

ruborizar-seasuscetívelimperatrizEugênia.

Aobrigaçãodamúsicaparacomigoémergulhar-meemumavertigemdepuras

sensações, que me faça esquecer a parte mais tediosa de mim mesmo, a civil e

municipal,quemelivredepreocupações,meisoleemumenclavesemcontatocom

asórdida realidadecircundante, e,dessemodo,mepermitapensarcomclarezanas

fantasias(geralmenteeróticas,esemprecomminhaesposanopapelestelar)queme

tornam suportável a existência.Ergo, se amúsica se faz excessivamente presente e,

porquecomeçaameagradaremdemasiaouporquefazmuitoruído,medistraide

meus próprios pensamentos, reclama minha atenção e a consegue — citarei

sucintamenteGardel,PérezPrado,Mahler,todososmerenguesequatroquintosdas

óperas—,émúsicaruime cabanidadomeuescritório.Esseprincípio,claroestá,

faz-megostardeWagner, apesardas trombetas edasmolestas trompas, e respeitar

Schoenberg.

Esperoqueessesrápidosexemplos,osquais,evidentemente,nãoaspiroaqueo

senhorcompartilhecomigo(edesejomenosainda), ilustrem-nosobreoquequero

dizerquandoa rmoqueoerotismoéumjogo(naaltaacepçãoqueograndeJohan

Huizinga dava à palavra) privado, do qual só o eu, os fantasmas e os jogadores

podem participar, e cujo êxito depende de seu caráter secreto, impermeável à

curiosidadepública,poisdestaúltimasópodemderivar-sesuaregulamentaçãoesua

manipulaçãodesnaturalizadoraporagentesinfensosaofolguedoerótico.Emborame

repugnem as peludas axilas femininas, respeito oamateur que persuade seucompanheiro ou sua companheira a regá-las e cultivá-las para folgazar nelas com

lábios edentes, até chegar ao êxtase comuivos emdómaior.Masnãoposso, em

absoluto,teromesmorespeito,esimcomiseração,pelopobreidiotaquebastardeia

esse seu capricho fantasmático adquirindo— por exemplo, nas lojas de artefatos

pornô com os quais a ex-aviadora Beate Uhse semeou a Alemanha — aquelas

cerradasmatasdeaxilas epúbisarti ciais (de“pelonatural”,vangloriam-seasmais

careiras)quealisãovendidassobdiferentesformatos,tamanhos,saboresecores.A legalização e o reconhecimento público do erotismo o municipalizam,

cancelam e acanalham, tornando-o pornogra a, triste ocupação que de no como

erotismoparapobresdebolsoedeespírito.Apornogra aépassivaecoletivista;o

erotismo,criadore individual,mesmoquandoexercidoadoisouatrês(repito-lhe

quesoucontrárioaelevaronúmerodeparticipantes,a mdequeessasfunçõesnão

percamseucunhodefestasindividualistas,exercíciosdesoberania,enãosemanchem

comaaparênciadecomícios,esportesoucircos).Porisso,merecem-megargalhadas

de hiena os argumentos do poetabeatnik Allen Ginsberg (veja-se sua entrevista aAllen Young emCônsules de Sodoma) em defesa dos acoplamentos coletivos na

escuridãodaspiscinas,comaconversa adadequeessapromiscuidadeédemocrática

ejusticeira,pois,graçasàtrevaigualitária,permitequeafeiaeabonita,amagraea

gorda,ajovemeavelhatenhamasmesmasoportunidadesdeprazer.Queraciocínio

absurdo,de comissário construtivista!Ademocracia só tema ver comadimensão

civil da pessoa, ao passo que o amor—o desejo e o prazer—pertence, como a

religião, ao âmbito privado, no qual importam sobretudo as diferenças, e não as

coincidências com os demais. O sexo não pode ser democrático; ele é elitista e

aristocrático, e uma certa dose de despotismo (reciprocamente pactuado) costuma

ser-lhe indipensável.Os ajuntamentos coletivos embanhos às escuras,queopoeta

beatnik recomenda como modelos eróticos, parecem-se demais com os

acasalamentos de potros e éguas nos pastos ou com os pisões indiscriminados de

galos emgalinhasnos alvoroçadospoleiros, para seremconfundidos comessabela

criaçãode cçõesanimadas,defantasiascarnais,dequeparticipamporigualocorpo

e o espírito, a imaginação e os hormônios, a sublimidade e a abjeçãoda condição

humana,que éo erotismopara estemodesto epicurista e anarquista escondidono

corpocidadãodeumsecuritáriodebens.

OsexopraticadoàmaneiradaPlayboy(voltoevoltareiaessetemaatéqueminha

morteouasuameimpeçadefazê-lo)eliminadoisingredientesessenciaisaEros,em

minhaopinião:oriscoeopudor.Entendamo-nos.Oaterrorizadohomenzinhoque,

noônibus,vencendosuavergonhaeseumedo,abreacapae,porquatrosegundos,

oferece o espetáculo de sua verga em riste à despreocupada matrona levada pelo

destino a viajar diante dele é um impudico temerário. Faz o que faz com pleno

conhecimento de que o preço de seu capricho fugaz pode ser uma surra, um

linchamento,ocalabouçoeumescândaloquedivulgariaanteaopiniãopúblicaum

segredo,queeledepreferência levariaparaotúmulo,eocondenariaàcondiçãode

réprobo, psicopata e perigo social.Mas arrisca-se a isso porque o prazer que esse

mínimo exibicionismo lhe produz é inseparável do medo e da transgressão desse

pudor. Que distância sideral — a distância que existe entre o erotismo e a

pornogra a,precisamente—, aqueo separado executivoborrifado comcolônias

francesasedepulsoalgemadoporumRolex(queoutropoderiaser?),que,emum

bardamodaamericanizadoporumfundomusicaldeblues,abreoúltimonúmero

daPlayboy, exibe-se com ele e o exibe, convencidode que está exibindo sua verga

diante do mundo, mostrando-se homem mundano, sem preconceitos, moderno,

folgazão,in!Pobreimbecil!Nemdesconfiaqueaquiloqueexibeéoemblemadesua

servidão ao lugar-comum, à publicidade, à moda desindividualizadora, o sinal da

abdicaçãodesualiberdade,desuarenúnciaaemancipar-se,graçasaosseusfantasmas

pessoais,daescravidãoatávicadaserialização.

Porisso,euacusoosenhor,anotóriarevistaea ns,assimcomotodososquea

leem — ou simplesmente a folheiam — e, com esse miserável sustento pré-

fabricado, alimentam— quero dizer,matam— sua libido, de serem a ponta de

lança dessa grande operação dessacralizadora e banalizadora do sexo em que se

manifesta a barbárie contemporânea. A civilização esconde e sutiliza o sexo para

melhor aproveitá-lo, rodeando-ode rituais e códigosqueo enriquecematé limites

insuspeitadosparaohomemeamulherpré-eróticos,copuladores,engendradoresde

rebentos.Depoisdetermospercorridoumlonguíssimocaminho,doqual,decerto

modo,aprogressivadepuraçãodojogoeróticofoiaespinhadorsal,retornamos,por

insólita via— a sociedade permissiva, a cultura tolerante—, ao ponto de partida

ancestral:fazeramorvoltouaserumaginásticacorporalesemipública,exercitadaa

esmo,aocompassodeestímulosfabricados,nãopeloinconscienteepelaalma,mas

pelos analistas domercado, estímulos tão estúpidos quanto aquela falsa vagina de

vacaque secostumapassarnosestábulosdiantedos focinhosdos touros,a mde

fazê-los ejacular e de poder, desse modo, armazenar o sêmen utilizado na

inseminaçãoartificial.

Vá, compre e leia sua mais recentePlayboy, suicida vivo, e coloque mais um

grãozinhodeareianacriaçãodessemundodeeunucoseeunucasejaculantes,doqual

terãodesaparecidoa imaginaçãoeosfantasmassecretoscomopilaresdoamor.Eu,

deminhaparte,vouagoramesmofazeramorcomarainhadeSabáecomCleópatra,

juntas,emumarepresentaçãocujoroteironãopretendocompartilharcomninguém

e,menosdoquecomninguém,comosenhor.

Um pezinho

“Sãoquatrodamadrugada,Lucreciaquerida”,pensoudonRigoberto.Comoquase

todososdias,havia acordadona turvaumidadedo amanhecerpara celebraro rito

querepetiacacofonicamentedesdequedonaLucreciaforamorarnoOlivardeSan

Isidro: sonharacordado,criare recriar suamulherpor invocaçãodaquelescadernos

onde hibernavam seus fantasmas. “E onde, desde o dia em que te conheci, tu és

rainhaesenhora.”

Contudo,àdiferençadeoutrasmadrugadasdesoladasouardentes,hojenãolhe

bastava imaginá-la e desejá-la, conversar com sua ausência, amá-la com a própria

fantasiaecomoprópriocoração,deondeelanuncasehaviaafastado;hoje,precisava

de um contato mais material, mais certo, mais tangível. “Hoje, eu poderia me

suicidar”,pensou, semangústia.E se lhe escrevesse?E se nalmente respondesse às

suasapimentadascartasanônimas?Acanetalhecaiudasmãos,assimqueeleapegou.

Nãoconseguiria,e,emtodocaso,tampoucopoderialheenviaracarta.

No primeiro caderno que abriu, uma frase oportuníssima saltou e omordeu:

“Meusferozesdespertaresaoamanhecertêmsemprecomoânimo,meuamor,uma

imagemtua,realouinventada,quein amameudesejo,enlouqueceminhasaudade,

deixa-me em suspenso eme arrasta a esta escrivaninha parame defender contra o

aniquilamento, amparando-me no antídoto de meus cadernos, gravuras e livros.

Somenteissomecura.”Certo.Mas,hoje,oremédiocostumeironãoteriaoefeito

bené co de outras madrugadas. Sentia-se confuso e atormentado. Tinha sido

despertado por umamescla de sensações nas quais se embaralhavam uma rebeldia

generosa, semelhante àquela que o levara aos dezoito anos para a AçãoCatólica e

enchera seu espírito com impulsosmissionários, renovadoresdomundopela arma

dos Evangelhos, a enternecedora nostalgia de um pezinho de mulher asiática

entrevisto de passagem, por cima do ombro de um pedestre detido ao seu lado

durantealguns segundospelosinalvermelhoemumaruadocentro,eo retornoà

suamemóriadeumjornalistafrancêssemméritosdoséculoXVIIIchamadoNicolas

EdmeRestifdelaBretonne,dequempossuíaemsuabibliotecaumsólivro—iria

procurá-lo e encontrá-lo antes do início da manhã —, uma primeira edição

compradafaziamuitosanosemumantiquáriodeParisequelhecustaraosolhosda

cara.“Quemistura!”

Emaparência,nadadissotinhaaverdiretamentecomLucrecia.Porque,então,

essaurgênciadecomunicaraela,delhereferirdevivavoz,comriquezadedetalhes,

todaaefervescênciadesuamente?“Minto,meuamor”,pensou.“Claroquetema

vercontigo.”Tudooqueelefazia,inclusiveasestúpidasoperaçõesgerenciaisquede

segunda a sexta-feira omanietavam oito horas em uma companhia de seguros do

centrodeLima,tinhaprofundamenteavercomLucreciaecommaisninguém.Mas,

sobretudo,edemaneiraaindamaisescravizada,suasnoiteseasexaltações, cçõese

paixõesqueaspovoavameramdedicadasaelacomfidelidadecavalheiresca.Aliestava

aprova, íntima, incontestável,dolorosíssima, emcadapáginados cadernosqueele

agorafolheava.

Por que havia pensado em rebeldias? Em vez disso, o quemomentos antes o

despertara tinham sido,multiplicadas, a indignação, a consternação que sentira na

manhãanterioraolernojornalanotícia,queLucreciatambémdeviaterlido,eque

ele passou a transcrever, com letra hesitante, na primeira página em branco que

encontrou:

Wellington (Reuters).UmaprofessoradaNovaZelândia,de24anos, recebeudeumjuizdestacidadeapenadequatroanosdeprisãoporviolaçãosexual,depoisdeser

comprovadoque elamantinha relações carnais comummeninodedezanos, amigo ecolegadecolégiodeseu lho.Segundoesclareceuojuiz,asentençaeraamesmaqueeleimporiaaumhomemquetivesseestupradoumameninadessaidade.

“Meu amor, Lucrecia queridíssima, não vejas nisto nem a sombra de uma

reprovação ao que aconteceu conosco”, pensou. “Nemuma alusão demau gosto,

nadaquepossaparecerum rancor retrospectivo emesquinho.”Não.Eladevia ver

exatamente o contrário. Porque, quando as poucas linhas desse telegrama se

delinearamsobseusolhos,naquelamanhã,enquantoelesorviaosprimeirosgolesdo

amargocafédodesjejum(nãoporqueo tomasse semaçúcar,masporqueLucrecia

nãoestavaao seu ladopara trocaremcomentários sobreasnotíciasdo jornal),don

Rigoberto não experimentou angústia nem dor, e muito menos gratidão e

entusiasmo pela decisão do juiz. Sentiu antes uma solidariedade impetuosa,

sobressaltada, de adolescente de passeata, por essa pobre mestra neozelandesa tão

brutalmente castigada por ter revelado as delícias do céu maometano (em seu

entender, o mais carnal dos que são oferecidos no mercado das religiões) a esse

meninoafortunado.

“Sim, sim, amadíssima Lucrecia.” Ele não posava, nãomentia, não exagerava.

Durante todoodia,havia carregadoamesma indignaçãodamanhãpela estupidez

desse juiz, mal in uenciado pelo mecanicismo simétrico de certas doutrinas

feministas.Podia-secolocarnomesmoplanooestupro,porumhomemadulto,de

umameninaimpúberededezanos,crimepunível,eadescoberta,intermediadapor

uma senhora de vinte e quatro, da felicidade corporal e dosmilagres do sexo por

parte de um garoto de dez, já capaz de tímidos endurecimentos e discretas

transpirações seminais? Se, no primeiro caso, a presunção de violência do infrator

contraavítimaeraobrigatória(amenina,mesmoquetivessesu cienteusodarazão

paradarseuconsentimento,seriavítimadeumaagressãofísicacontraseuhímen),no

segundo isso era simplesmente inconcebível, pois, se tinha havido cópula, esta só

poderia acontecer, por parte do menino, com aquiescência e entusiasmo, sem os

quaisoatocarnalnãoseteriaconsumado.DonRigobertopegouacanetaeescreveu,

com raiva febril: “Embora eu odeie as utopias e as saiba cataclísmicas para a vida

humana,acaricio,agora,esta:quetodososmeninosdacidadesejamdesvirginadosao

completaremdezanosporsenhorascasadastrintonas,depreferênciatias,mestrasou

madrinhas.”Respirou,algoaliviado.

DuranteodiainteiroforaatormentadopelasortedessaprofessoradeWellington

e se compadecerado escárniopúblico aque ela certamentehavia sido exposta,das

humilhações e zombarias que ela sofreria, alémdeperder seu emprego e de se ver

tratada como corruptora de menores, como degenerada, por essa imundície

cacográ ca, eletrônica e agora digital, a imprensa, a chamada mídia. Não estava

mentindo a si mesmo nem perpetrando uma farsa masoquista. “Não, Lucrecia

querida, juro que não.” No decorrer do dia e da noite, o rosto dessa professora,

encarnadonodesuaex-mulher,tinhalheaparecidomuitasvezes.Eagora,agora,ele

sentiaanecessidadeimperiosadefazê-lasaber(“detefazersaber,meuamor”)deseu

arrependimento e sua vergonha. Por ter sido tão insensível, tão obtuso, tão

desumano e tão cruel quanto aquelemagistrado deWellington, cidade que ele só

pisariaparacobrirdefragrantesrosasvermelhasospésdaquelaadmiradaeadmirável

professoraquepagavaporsuagenerosidade,porsuagrandeza,trancadaentre licidas,

ladras,vigaristasepunguistas(anglófilasemaoris).

Comoseriamospésdessaprofessoraneozelandesa?“Seeubotasseamãoemuma

fotogra a dessamoça, não hesitaria em lhe acender velas e lhe queimar incenso”,

pensou. Esperou e desejou que fossem tão belos e delicados quanto os de dona

Lucrecia e quanto o que ele tinha visto, aomeio-dia, no papel acetinado de uma

páginadarevistaTime,porsobreoombrodeumpedestre,detidoporumsinalna

esquinadeLaColmena,quandoseencaminhavaparaosalãoMiguelGrau,doClub

Nacional, onde tinha encontromarcado comumdesses imbecis engravatados que

marcamencontrosnoClubNacionaledosquaisviviamosimbeciscujoganha-pão

eram os seguros de bens móveis e imóveis, como ele. Foi uma visão de poucos

segundos,mas tão iluminadorae rutilante, tãoconvulsivae frontalcomodevia ter

sido,paraaquela jovemdaGalileia,adoaladoGabrielanunciando-lheanovaque

iriatrazeràhumanidadetantasdesavenças.

Eraumsópezinhodeper l,decalcanharsemicircularegraciosopeito,erguido

orgulhosamente sobre uma planta de níssimo contorno, que culminava em uns

dedinhosdesenhadoscomprimor,umpéfemininonãoenfeiadoporcalos,durezas,

bolhasoujoaneteshorrendos,noqualnadapareciadestoarnemlimitaraperfeição

do todo e da parte, um pezinho levantado e, aparentemente, surpreendido pelo

atentofotógrafomomentosantesdepousarsobreumtapetefofo.Porqueasiático?

Talvezporqueoanúncioqueeleadornavaeradeumacompanhiaaéreadessaregião

domundo—SingapureAirlines—ou,quemsabe,porquedonRigoberto,emsua

circunscritaexperiência,acreditavapodera rmarqueasmulheresdaÁsiatinhamos

pésmaisbonitosdoplaneta.Comoveu-se,recordandoasvezesemque,beijando-as,

tinha chamado de “patinhas lipinas”, “calcanhares malaios” ou “arqueaduras

japonesas”asdeleitáveisextremidadesdesuaamada.

O fato era que o dia inteiro, junto com sua fúria pela desventura dessa nova

amiga, a mestra de Wellington, o pezinho feminino do anúncio daTime haviaperturbadosuaconsciênciae,maistarde,desassossegadoseusono,desenterrando,do

fundodesuamemória,nadamenosquealembrançadeCinderela,umahistóriaque

ao lhesercontada,na infância,precisamentenodetalhedoemblemáticosapatinho

que só omiúdo pezinho da heroína podia calçar, tinha despertado suas primeiras

fantasias eróticas (“umidades com meia ereção, se for preciso dar especi cações

técnicas”,disseemvozalta,noprimeiroimpulsodebomhumordessamadrugada).

Teriacomentadoalgumavez,comLucrecia,suatesedequeaamávelCinderelasem

dúvidacontribuiu,maisdoquetodooinfectobandodepornogra aantieróticado

séculoXX,paracriarlegiõesdevarõesfetichistas?Nãoselembrava.Umalacunaem

sua relação matrimonial que seria preciso preencher, algum dia. Seu estado havia

melhoradobastantedesdequeeledespertara,exasperadoesaudoso,mortodecólera,

de solidão, de pesar. Desde alguns segundos antes, até se autorizava — era sua

maneiradenãosucumbiraodesesperodecadadia—certasfantasiasquetinhama

ver, hoje, não com os olhos, nem com os cabelos, nem com os seios, coxas ou

quadrisdeLucrecia,masexclusivamentecomospésdesuaamada.Tinhajáaoseu

lado— fora difícil encontrá-la na prateleira onde estavametida— aquela edição

princeps,emtrêstomos,doromancedeNicolasEdmeRestifdelaBretonne(anotara

depunhoeletraemuma cha:1734-1806),oúnicodasdezenasedezenasqueesse

incontinente polígrafo havia cacografado:Le pied de Franchette ou l’orphelinefrançaise.Histoireintéressanteetmorale(Paris,HumblotQuillau,1769,2partesem

3 volumes, 160-148-192 p.). Pensou: “Agora, eu o folheio. Agora, tu apareces,

Lucrecia,descalçaoucalçada,emcadacapítulo,página,palavra.”

Sóhaviaumacoisanesseescrevinhadorin acionário,RestifdelaBretonne,que

merecia sua simpatia e o fazia associá-lo,nestamadrugada garoenta, aLucrecia, ao

passo que outras mil (bem, talvez um pouco menos) o tornavam esquecível,

transitórioeatéantipático.Algumaveztinhafaladodelecomela?Essenomesurgira

alguma vez em suas noturnas festas conjugais? Don Rigoberto não se lembrava.

“Mas,aindaque seja tarde,caríssima,euoapresentoa ti,ofereço-oeocolocoaos

teuspés(impossíveldizermelhor).”ObonachãodoNicolasEdmenasceraevivera

emuma época de grandes convulsões, o séculoXVIII francês,mas provavelmente

não tinha percebido que omundo inteiro se desfazia e se refazia ao seu redor em

razãodosvaivénsrevolucionários,obsedadocomoestavacomsuaprópriarevolução,

nãoadasociedade,aeconômica,adoregimepolítico—“asqueemgeraltêmboa

fama”—,masaquelheconcerniapessoalmente:adodesejocarnal.Issootornava

simpático, isso levara don Rigoberto a comprar a ediçãoprinceps deLe pied deFranchette, romance de coincidências assombrosas e iniquidades cômicas, enredos

absurdos e diálogos estúpidos, que qualquer crítico literário estimável ou leitor de

bomgostoacharia execrável,masque,paradonRigoberto, tinhaoaltoméritode

exaltar até extremos deicidas o direito do ser humano a se insurgir contra o

estabelecido em razão de seus desejos, demudar omundo valendo-se da fantasia,

aindaquepeloefêmeroperíododeumaleituraoudeumsonho.

ReleuemvozaltaoquehaviaanotadonocadernosobreRestif,depoisdeterlido

Le pied de Franchette : “Não creio que este provinciano, lho de camponeses,

autodidata apesar de ter passado por um seminário jansenista, que ensinou a si

mesmo línguas e doutrinas, todas mal, e que ganhou a vida como tipógrafo e

fabricante de livros (nos dois sentidos da expressão, pois os escrevia e os

manufaturava, embora zesse a segunda coisa commais arte do que a primeira),

tenhajamaissuspeitadodaimportânciatranscendentalqueseusescritosviriamater

(importância simbólica e moral, não estética), quando, entre suas explorações

incessantes pelos bairros operários e artesãos de Paris, que o fascinavam, ou pela

Françaaldeãeruralqueeledocumentoucomosociólogo,roubandotempoaosseus

enredosamorosos—adúlteros,incestuososoumercenários,massempreortodoxos,

poisohomossexualismolheproduziaumhorrorcarmelita—,escrevia-osàspressas,

guiando-se,horrordoshorrores,pelainspiração,semcorrigi-los,emumaprosaque

lhesaíafrondosaevulgar,carreadoradetodososdetritosdalínguafrancesa,confusa,

repetitiva,labiríntica,convencional,rasa,desobrigadadeideias,insensívele,emuma

palavraqueadefinemelhordoquequalqueroutra:subdesenvolvida.”

Por que, a nal, depois de tão severo veredicto, perdia este amanhecer

rememorando uma imperfeição estética, um cacógrafo chucro que, para culminar,

chegaraaexercerofeioofíciodealcaguete?Ocadernoerapródigoemdadossobre

ele.Haviaproduzidocercadeduzentoslivros,todosliterariamenteilegíveis.Porque,

então,empenhar-seemaproximá-lodedonaLucrecia,suaantípoda,aperfeiçãoem

formademulher? Porque, respondeudonRigoberto a simesmo, ninguém como

este silvestre intelectual poderia compreender sua emoçãodomeio-dia aoperceber

fugazmente,noanúnciodeumarevista,aquelepezinhoaladodemoçaasiática,que

esta noite lhe trouxera a recordação, o desejo dos pés de rainha deLucrecia.Não,

ninguém como Restif, a cionado, conhecedor supremo desse culto que a

abominávelraçadepsicólogosepsicanalistaspreferiachamardefetichismo,poderia

entendê-lo, acompanhá-lo e assessorá-lonestahomenageme açãodegraças àqueles

adoradospés.“Obrigado,minhaLucrecia”—rezou,piedosamente—,“pelashoras

de prazer que eu devo a eles, desde aquela vez em que os descobri, na praia de

Pucusana,eosbeijei,sobaáguaeasondas”.Transido,donRigobertovoltouasentir

oságeisdedinhossalobrosmovendo-senagrutadesuabocaeosengulhoscausados

pelaáguamarinhaengolida.

Sim,essaeraapredileçãodosenhorNicolasEdmeRestifde laBretonne:opé

feminino. E, por extensão esimpatia, como diria um alquimista, aquilo que os

abrigaecircunda:ameia,osapato,asandália,abotina.Comaespontaneidadeea

inocência daquilo que era, um rústico transmigrado para a cidade, ele praticou e

proclamou sua predileção por essa delicada extremidade e seus invólucros sem o

menor rubor, e, com o fanatismo dos convertidos, substituiu em seus

incomensuráveis escritos omundo real por um ctício, tãomonótono, previsível,

caótico e estúpido comoaquele, sóque,no amontadode suaprosa ruim, em sua

singularidade monotemática, o que ali brilhava, se destacava e desencadeava as

paixõesdoshomensnãoeramosgraciososrostosdasdamas,ascabeleirasemcascata,

asgráceiscinturas,ospescoçosalvose lisosouosbustosarrogantes,mas, sempree

exclusivamente, a beleza dos pés. (Se o amigoRestif ainda existisse, pensou, ele o

levaria à casinha de Lucrecia no Olivar, com o consentimento desta, claro, e,

ocultando-lheorestodocorpodaamada,irialhemostrarospésdela,encerradosem

preciosas botinas estilo vovó, e até lhe permitiria que a descalçasse.Como reagiria

aquele ancestral? Caindo em êxtase?Tremendo, uivando? Precipitando-se, sabujo

feliz,línguadefora,narinasdilatadas,paraaspirar,paralamberomanjar?)

Nãoerarespeitável,emboraescrevessetãomal,quemassimprestavavassalagem

aoprazeredefendiaseufantasmacomtantaconvicçãoecoerência?Nãoeraobom

Restif,apesardesuaprosaindigesta,“umdosnossos”?Claroquesim.Porissoselhe

apresentara estanoiteduranteo sono, atraídoporaquele furtivopezinhobirmanês

oucingapurense,para lhe fazer companhianestamadrugada.Umbruscodesalento

morti coudonRigoberto.Ofriopenetrouseusossos.Comoqueria,nesteinstante,

queLucreciasoubessedetodooarrependimentoedadorqueoatormentavam,pela

estupidezoupela incompreensão cabeçudaqueo tinham impelido a agir comela,

umanoantes,comoacabavadefazer,naultramarinaWellington,oignóbiljuizque

condenaraaquatroanosdecárcereessaprofessora,essaamiga(“Outradasnossas”),

porqueela levaraaqueladitosacriatura,aqueleFonchitoneozelandês,aentrever—

não,habitar—océu!“Emvezdesofreredetecensurarporisso,eudeveriaterte

agradecido, adorável babá.” E o fazia agora, nestamadrugada de ondas ruidosas e

espumantes e de chuvinha na e corrosiva, secundado pelo serviçal Restif, cujo

romancezinho, deliciosamente intituladoLe pied de Franchette e estupidamente

subtituladooul’orphélinefrançaise.Histoireintéressanteetmorale(a nal,haviarazão,

sim,paraquali cá-lademoral), elemantinha sobreos joelhos e acariciava comas

duasmãos,comoumparzinhodelindospés.

Keats, quando escreveuBeauty is truth, truth is beauty (a citação reapareciaincessantemente em cada cadernoque ele abria), estaria pensandonos pés dedona

Lucrecia? Sim, embora o infeliz não o soubesse. ERestif de la Bretonne, quando

escreveueimprimiu(comamesmavelocidade,semdúvida)LepieddeFranchette ,aostrintaecincoanos,tambémo zerasobainspiração,vindadofuturo,deuma

mulher que chegaria aomundo cerca de dois séculosmais tarde, em um bárbaro

rincãodaAmérica chamada (a sério?)Latina.Graças às anotaçõesdo caderno,don

Rigoberto ia recordando o enredo do romancezinho. Convencional e previsível a

maisnãopoder,escritocomospés(não,issoelenãodeviapensarnemdizer),ofato

deseuverdadeiroprotagonistanãoserabelaórfãadolescente,FranchetteFlorangis,

mas sim os pezinhos enlouquecedores de Franchette Florangis, valorizava-o e o

singularizava, dotando-o de vivências e da capacidade persuasiva próprias de uma

obra de arte. Eram inimagináveis os transtornos que os nacarados pezinhos de

Franchette causavam, as paixões que acendiam ao redor. Deixavam a tal ponto

in amado oMonsieurApatéon, tutor da jovem, que se deleitava comprando-lhes

primorososcalçadoseaproveitavaqualquerpretextoparaacariciá-los,queovelhote

chegavaa tentarviolar suapupila, lhadeumamigocaríssimo.Transformavamo

pintorDolsans,umbomrapazqueseencantavacomelesassimqueosvia,metidos

emsapatinhosverdeseornadosdeuma ordourada,emloucodespeitado,cheiode

projetos criminosos que o levariam a perder a vida. Outro a cionado, o rico e

afortunado jovem Lussanville, antes de ter em seus braços e em sua boca a bela

mocinha dos seus sonhos, comprazia-se com um dos sapatinhos dela, que havia

roubado.Todo usuário de calça que os via — nancistas, mercadores, rentistas,

marqueses,plebeus—sucumbiaatalfeitiço,atingidoporuma echadeamorcarnal

edispostoaqualquercoisaparapossuí-los.Porisso,onarradora rmavacomjustiça

a frasequedonRigobertohavia transcrito: “Le joli pied les rendait tous criminels.”Sim,sim,aquelaspatinhastransformavamtodosemcriminosos.Chinelas,sandálias,

botinas, sapatinhos da bela Franchette, objetos mágicos, circulavam pela história,

irradiando-acomumaofuscanteluzseminal.

Embora os estúpidos falassem de perversão, ele e, claro, Lucrecia podiam

compreenderRestif, celebrar que este tivesse tido a audácia e o impudorde exibir

ante os demais seu direito a ser diferente, a refazer o mundo à sua imagem e

semelhança.Nãohaviamfeitoomesmo,eleeLucrecia,acadanoite,pordezanos?

Nãotinhamdesarrumadoerearrumadoavidaemfunçãodeseusdesejos?Voltariam

a fazê-lo, algum dia? Ou tudo isso permaneceria con nado na recordação, nas

imagensqueamemóriacolecionacomotesourosparanãosucumbiràdesesperança

doreal,doqueexistenaverdade?

Nestanoite-madrugada,donRigobertosesentiacomoumdosvarõesalucinados

pelopédeFranchette.Viviavazio,substituindoaausênciadeLucrecia,acadanoite,

acadaamanhecer,porfantasmasquenãobastavamparaconsolá-lo.Haveriaalguma

solução?Seriatardedemaisparavoltaratrásecorrigiroerro?UmaCorteSuprema,

umTribunalConstitucional,naNovaZelândia,nãopoderiamrevera sentençado

obtuso magistrado de Wellington e absolver a professora? Um governante

neozelandêssempreconceitosnãopoderiaanistiá-la,eatécondecorá-lacomoheroína

civilporsuacomprovadaabnegaçãodiantedainfância?Elemesmonãopoderiairà

casinhadoOlivardeSanIsidroparadizeraLucreciaqueaestúpidajustiçahumanase

equivocaraeacondenarasemterdireitoaisso,edevolver-lheahonraealiberdade

para...para?Paraquê?Vacilou,masseguiuadiante,comopôde.

Seriaissoumautopia?UmautopiacomoasqueofetichistaRestifdelaBretonnetambém fantasiou?Na verdade, não, porque as de don Rigoberto, quando ele às

vezes se abandonava a elas, levado pela doçura inerte da divagação, eram utopias

privadas, incapazes de se intrometer no livre-arbítrio dos outros. Por acaso essas

utopias não eram lícitas, muito diferentes das coletivas, inimigas acérrimas da

liberdade,quesempretraziamconsigoasementedeumcataclismo?

EssehaviasidooladofracoeperigosodeNicolasEdme,também;umadoença

deépocaàqual ele sucumbiu, comoboapartede seuscontemporâneos.Porqueo

apetite de utopias sociais, o grande legado do século das Luzes, junto com novos

horizontes e audazes reivindicações do direito ao prazer, havia produzido os

apocalipseshistóricos.DonRigobertonãorecordavanadadisso;seuscadernos,sim.

Aliestavamosdadosacusatórioseasfulminaçõesimplacáveis.

NodelicadoapreciadordepezinhosecalçadosfemininosquefoiRestif—“Que

Deus o abençoe por isso, se existir”—havia tambémumpensador perigoso, um

messiânico(umcretino,sesetratassedequali cá-locomcrueldade,ouumiludido,

se fosse preferível indultá-lo), um reformador de instituições, um redentor de

de ciênciassociais,que,entreasmontanhasdepapelquegaratujou,dedicouvários

montes e colinas a construir essas prisões, as utopias públicas, para regulamentar a

prostituiçãoeimporafelicidadeàsputas(ohorrendoempenhoapareciaemumlivro

deatraenteeenganosotítulo,Lepornographe),paraaperfeiçoarofuncionamentodos

teatroseoscostumesdosatores(Lemimographe),paraorganizaravidadasmulheres,

atribuindo-lhesobrigaçõese xando-lhes limites,a mdehaverharmoniaentreos

sexos(otemeráriomonstrengotambémtraziaumtítuloquepareciaaugurarprazeres

—Lesgynographes—mas,naverdade,propunhaceposegrilhõesparaaliberdade).

Muito mais ambiciosa e ameaçadora havia sido, seguramente, sua pretensão de

regulamentar — na verdade, sufocar — as condutas (L’andrographe) do gênerohumano e de introduzir uma legalidade intrusa e trans xante, agressora da

intimidade,queextinguiriaalivre-iniciativaealivre-disposiçãodosdesejosporparte

dos humanos:Le thesmographe. Diante desses excessos intervencionistas, deTorquemada laico,podia-se considerarumamalvadeza infantilo fatodeRestif ter

levado seu frenesi regulamentarista ao ponto de propor uma reforma total da

ortogra a (Le glossographe). Ele havia reunido essas utopias emum livro chamado

Idéessingulières(1794),esemdúvidaoeram,masnaacepçãosinistraecriminosada

noçãodesingularidade.

A sentença estampada no caderno era inapelável e don Rigoberto a aprovou:

“Nãohá dúvida: se este diligente impressor, documentalista e re nado amador de

terminaisfemininostivessechegadoadispordepoderpolítico,teriatransformadoa

França,etalvezaEuropa,emumcampodeconcentraçãomuitobemdisciplinado,

noqualumamalhafinadeproibiçõeseobrigaçõesvolatilizariaatéoúltimopingode

liberdade. Por sorte, ele foi demasiadamente egoísta para cobiçar o poder,

concentradocomoestavanoempreendimentodereconstruir,pela cção,arealidade

humana,recompondo-asegundosuaconveniência,detalmodoque,nela,comoem

LepieddeFranchette ,ovalorsupremo,amaioraspiraçãodobípedemasculino,não

fosse a realização de ações heroicas de conquista militar, nem a obtenção da

santidade,nemadescobertadossegredosdamatériaedavida,massimodeleitável,

odeliciosopezinhofeminino,saborosocomoaambrosiaquealimentavaosdeuses

doOlimpo.”EcomoaquelevislumbradopordonRigobertonoanúnciodaTime,quelherecordaraosdeLucreciaequeomantinhaaqui,surpreendidopelasprimeiras

luzesdamanhã,enviandoàsuaamadaestagarrafaquelançariaaomar,buscando-a,

sabendomuitobemqueamensagemnãolhechegaria,poiscomopodialhechegaro

quenãoexistia,oqueestavaforjadocomoevanescentepinceldeseussonhos?

Don Rigoberto acabava de se fazer essa desesperada pergunta, com os olhos

fechados,quando,aomurmuraremseuslábiosoamorosovocativo“Ah,Lucrecia!”,

seu braço esquerdo derrubou no chão um dos cadernos. Recolheu-o e olhou de

relance a página aberta com a queda. Deu um salto: o acaso tinha detalhes

maravilhosos, como ele e sua mulher haviam tido oportunidade de comprovar,

amiúde,emseusdevaneios.Comquesedeparou?Comduasanotações,demuitos

anos antes. A primeira, uma descartável menção a uma anônima gravurinha

nissecular,naqualMercúrioordenavaàninfaCalipsoquelibertasseUlisses—de

quemela seenamoraraeaquemmantinhaprisioneiroemsua ilha—eodeixasse

prosseguir sua viagem rumo a Penélope. E a segunda, que maravilha, uma

apaixonada re exão sobre: “Odelicado fetichismo de JohannesVermeer, que, em

Diana e suas companheiras, presta uma plástica homenagem a esse membro

desdenhadodocorpofeminino,mostrandoumaninfaentregueàamorosatarefade

lavar—melhordizendo,acariciar—,comumaesponja,opédeDiana,enquanto

outraninfa,emdoceabandono,acariciaoseupróprio.Tudoésutilecarnal,deuma

delicadasensualidade,dissimuladapelaperfeiçãodasformasepelasuavíssimabruma

que banha a cena, dotando as guras dessa qualidade irreal e mágica que tens,

Lucrecia,acadanoiteemcarneeosso,etambémteufantasma,quandovisitasmeus

sonhos.”Comoissoeracerto,atual,vigente!

Ese respondesseàs suascartasanônimas?Esede fato lheescrevesse?E se fosse

bater à sua porta, nesta mesma tarde, assim que a roda d’água de sua servidão

securitária e gerencial desse a última volta? E se, ao vê-la, caísse imediatamente de

joelhos e se humilhasse para beijar o solo que ela pisava, pedindo-lhe perdão,

chamando-a, até fazê-la rir, de “Minha babá querida”, “Minha professora

neozelandesa”,“MinhaFranchette”,“MinhaDiana”?Elariria?Eselançariaemseus

braços,oferecendo-lheoslábios,fazendo-osentirseucorpo,eofariasaberquetudo

cava para trás, que os dois podiam começar de novo a construir, sozinhos, sua

utopiasecreta?

Enfeite de tigresa

Contigo tenho amores havaianos em que bailas paramim ao som doukelele emnoites de lua cheia, com guizos nos quadris e nos tornozelos, imitandoDorothy

Lamour.

Eamoresastecas,emquetesacri coadeusesacobreadoseávidos,serpentinose

emplumados, no alto de uma pirâmide de pedras ferruginosas, em torno da qual

pululaaselvaimpenetrável.

Amoresesquimós,emfriosiglusiluminadosportochasdegorduradebaleia,e

noruegueses,emquenosamamosengatadossobreoesqui,despencando-nosacem

quilômetrosporhorapelasencostasdeumamontanhabrancajuncadadetotenscom

inscriçõesrúnicas.

Meucarinhodestanoite,amada,émodernista,carniceiroeafricano.

Tedespirásdiantedoespelho,conservandoasmeiasnegraseasligasvermelhas,e

esconderás tua formosa cabeça sob amáscara de uma fera bravia, de preferência a

tigresanociodoRubénDaríodeAzul...ouumaleoasudanesa.

Quebrarás o quadril direito, exionarás a perna esquerda, apoiarás tuamãono

quadriloposto,naposemaisselvagemeprovocante.

Sentadinho em minha cadeira, amarrado ao espaldar, estarei te olhando e te

adorando,commeuservilismocostumeiro.

Semmoverumasópestana,semgritareuestarei,enquantomecravasnosolhos

tuasgarraseteusbrancoscolmilhosrasgamminhagargantaedevorasminhacarnee

saciastuasedecommeusangueenamorado.

Agoraestoudentrodeti,agoratambémsoutu,amadaestufadademim.

6Porwhisky,gingeraleehighball.(N.daT.)

IX.

O encontro do SheratonIX - O encontro do Sheraton

— Para me atrever, para criar coragem, tomei dois uísques puros— disse dona

Lucrecia.—Antesdecomeçaramedisfarçar,querodizer.

—Deveter cadonomaiorpileque,patroa—comentouJustiniana,divertida.

—Dojeitoqueasenhoratemcabeçafracaparabebida...

—Vocêestavaaí,suadescarada—repreendeu-adonaLucrecia.—Excitadíssima

comoquepodiaacontecer.Servindoosdrinques,meajudandoacolocarodisfarcee

rindoàsgargalhadas,enquantoeumetransformavanumadaquelas.

—Umasujeitinhadaquelas—ecoouaempregada,retocando-lheoruge.

“Estaéapiorloucuraquejá znavida”,pensoudonaLucrecia.“Piordoquea

históriacomFonchito,piordoquemecasarcomomalucodoRigoberto.Seeua

zer,voumearrependeratémeuúltimodia.”Masiafazê-la.Ficouótimanaperuca

ruiva—haviaexperimentadoesseadereçonalojaonde zeraaencomenda—,cuja

altaebarrocaorogra adecachosemechasparecia amejar.Malsereconheceunessa

guraincandescente,decíliospostiçosrecurvados,argolastropicaisnasorelhas,toda

sarapintada, lábios de um vermelhão aceso, acentuado pelos sinaizinhos e olheiras

azuisdeverdadeiramulherfatal,estilofilmemexicanodosanoscinquenta.

—Caramba,caramba,ninguémdiriaqueéasenhora!—examinou-aJustiniana,

assombrada,tapandoaboca.—Nãoseicomquemseparece,patroa.

—Comumasujeitinhadaquelas,orabolas—afirmoudonaLucrecia.

O uísque já zera seu efeito. As vacilações de momentos atrás tinham se

evaporadoeagora, intrigada,divertida, elaobservava sua transformaçãonoespelho

do quarto. Justiniana, progressivamente maravilhada, ia lhe estendendo as peças

dispostas sobre a cama: aminissaia tão justaquedi cultava a respiração; as longas

meiaspretas,presasporligasvermelhascomadornosdourados;ablusaextravagante,

queexibiaos seios até apontadomamilo.Ajudou-a, também,a calçaros sapatos

prateados,desalto-agulha.Tomandodistância,depoisdepassá-laemrevistadecima

parabaixoedebaixoparacima,exclamoudenovo,estupefata:

—Nãoéasenhora,patroa,éoutra,outra.Vaisairassimmesmo?

—Claro—assentiudonaLucrecia.—Seeunãoapareceratéamanhã,aviseà

polícia.

E,semmaisdelongas,pediuumtáxinaestaçãodaVirgendelPilareordenouao

chofer, com autoridade: “Hotel Sheraton.” Anteontem, ontem e esta manhã,

enquanto searrumava, tinha tidodúvidas.Disseraa simesmaquenão iria,não se

prestariaasemelhantepalhaçada,aoqueseguramenteeraumabrincadeiracruel;mas,

jánotáxi,sentiu-semuitoseguraedecididaaviveraaventuraatéo nal.Acontecesse

oqueacontecesse.Olhouorelógio.Asinstruçõesdiziamentreonzeemeiaemeia-

noite, e aindaeramonze.Chegaria adiantada.Serena, longede simesmagraças ao

álcool, perguntou-se, enquanto o táxi avançava rumo ao centro pela via expressa

semideserta, o que faria se alguém a reconhecesse no Sheraton, apesar do disfarce.

Negaria a evidência, esganiçando a voz, fazendo a entonação amaneirada emelosa

daquelassujeitinhas:“Lucrecia?EumechamoAída.Somosparecidas?Talvezalguma

parentedistante.”Mentiriacomtotaldesfaçatez.Seumedoseevaporaratotalmente.

“Você está encantada de bancar a puta, por uma noite”, pensou, satisfeita consigo

mesma.Percebeuqueochoferdotáxierguiaavistaacadamomentoparaespiá-la

peloretrovisor.

Antes de entrar no Sheraton, colocou os óculos escuros com armação de

madrepérolaemformadetridente,quehaviacompradonessamesmatardeemuma

lojinha da rua La Paz.Tinha escolhido esses pelo engraçadomau gosto e porque,

dadootamanho,pareciamumameia-máscara.Atravessouolobbyempassosrápidos,

rumo ao bar, temendo que um dos porteiros uniformizados, que a encaravam

acintosamente,viesseperguntarquemeraela,oqueprocurava,ouentãoexpulsá-la,

semperguntas,porcausadesuaaparênciaescandalosa.Masninguémseaproximou.

Subiuaescadaatéobar,sempressa.Apenumbralhedevolveuasegurança,queela

quaseperdera sobas fortes luzesda entrada, aquele salão sobreoqual se elevavao

opressivo arranha-céu retangular e carcerário do hotel, com seus muitos andares,

paredes, passadiços, balaustradas e dormitórios.Nameia-luz, entrenuvenzinhas de

fumaça,notouquepoucasmesasestavamocupadas.Tocavamumamúsicaitaliana,

com um cantor pré-histórico— Domenico Modugno— que lhe recordou um

longínquo lmecomClaudiaCardinaleeVittorioGassman.Silhuetasimprecisasse

delineavamnobalcão,contraofundoazul-amareladodetaçase leirasdegarrafas.

Deumamesasubiamasvozesestridentesdeuminíciodebebedeira.

Denovoanimada,con anteemsuasforçasparaenfrentarqualquerimprevisto,

atravessouolocaletomoupossedeumdosaltosbanquinhosdobalcão.Oespelhoà

suafrentelhemostrouumespantalhoque,emvezderepulsaouriso,provocou-lhe

ternura.Sua surpresanão teve limitesquandoelaouviuobarman, ummestiçode

cabelosgomalinadoseespetados,metidoemumcoletegrandedemaisecomuma

gravatinha-borboleta que parecia enforcá-lo, tratá-la com grosseria, dispensando o

“senhora”:

—Vocêaí,ouconsomeousemanda.

Quasefezumescândalo,masre etiumelhore,grati cada,disseasimesmaque

essa insolência comprovava o sucesso de seu disfarce. E, estreando sua nova voz,

dengosaeaçucarada,pediu:

—Um12anoscomgelo,porfavor.

O homem a encarou, hesitante, avaliando se devia levá-la a sério.Optou por

murmurar:“Comgelo,certo”, jáseafastando.Elapensouqueodisfarceteriasido

completo se incluísse uma piteira comprida. Então, pediria cigarros mentolados

Kool,extralongos,e fumaria soltandoargolasvaporosasparaoalto,emdireçãoao

forrodeestrelinhasquelhepiscavam.

O barman trouxe o uísque com a conta, e ela tampouco protestou por essa

demonstração de descon ança; pagou, sem deixar gorjeta. Mal havia tomado o

primeiro gole, e alguém se sentou ao seu lado.Teve um leve estremecimento.O

jogocomeçavaa carsério.Masnão,nãosetratavadeumhomem,esimdeuma

mulher, bastante jovem, de calça comprida e uma polo escura de gola alta, sem

mangas.Tinhaoscabelossoltos,lisos,eorostofrescoexibiaoarzinhocanalhadas

mocinhasdeEgonSchiele.

—Oi.—Avozinhamiraflorinalhesooufamiliar.—Agenteseconhece,nãoé?

—Creioquenão—respondeudonaLucrecia.

— Eu achei, desculpe — disse a outra. — Tenho uma memória péssima,

confesso.Vocêvemmuitoporaqui?

—Devezemquando—hesitoudonaLucrecia.Co nheciaaquelamoça?

— O Sheraton não é mais tão seguro como antes— lamentou-se a jovem.

Acendeuumcigarroesoltouumabaforada,quedemorouasedesfazer.—Eusoube

que,nasexta-feira,deramumaincertaaqui.

Dona Lucrecia se imaginou empurrada aos trancos para dentro do camburão,

levadaàpolíciaefichadacomomeretriz.

—Ou consome ou cai fora—disse obarman à recém-chegada, ameaçando-a

comodedoemriste.

—Váàmerda,seucholofedorento—retrucoua jovem,semsequersevoltar

paraolhá-lo.

—Grossa como sempre, hem, Adelita?— sorriu obarman, mostrando uma

dentaduraque,donaLucreciatevecerteza,verdejavadesarro.—Tudobem, que,

sinta-seemcasa.Vocêéomeufracoesabedisso,entãoabusa.

Nesse momento, dona Lucrecia a reconheceu. Adelita, claro! A lha de

Estherzita!Ora,ora,nadamenosqueafilhadasantarronadaEsther.

—A lhadedonaEstherzita?—gargalhouJustiniana,dobrando-seaomeio.—

Adelita?AmeninaAdelita?A lhadamadrinhadeFonchito?Batalhandofregueses

no Sheraton? Não consigo engolir essa, patroa. Nem com Coca-Cola nem com

champanheeuengulo.

—Elamesma, e você nem sabe como— assegurou dona Lucrecia.—Toda

assanhada, falando palavrão, à vontade como peixe n’água, ali no bar. Parecia a

piranhamaisexperientedeLima.

—Eela?Nãoreconheceuasenhora?

— Não, felizmente. Mas você ainda não ouviu nada. Estávamos ali,

conversando, quando, não sei de onde, o sujeito nos caiu em cima. Pelo jeito,

Adelitaoconhecia.

Eraalto,forte,meiogordo,meiobêbado,emsuma,meiotudooqueépreciso

parasesentirvalenteemandão.Deternoegravatabrilhante,comlosangosezigue-

zagues, respirava como um fole. Devia ser cinquentão. Instalou-se entre as duas,

abraçando-as, e, como faria com duas amigas da vida inteira, disse, à maneira de

saudação:

—Queremviràminhasuíte?Tenhoumgoró níssimoe somethingforthenose.Emaisumachuvadedólaresparaasmeninasquefazemtudocertinho.

DonaLucrecia sentiuumavertigem.Obafodohomemiadiretoemsuacara.

Eleestavatãopertoque,comumpequenomovimento,poderiabeijá-la.

—Estásozinho,gato?—perguntouamoça,comcoqueteria.

—Eeuvouquerermaisalguémparaquê?—respondeuosujeito,chupandoos

lábios e apalpando o bolso onde devia guardar a carteira.— Cem verdinhas por

cabeça,OK?Pagoadiantado.

— Se você não tiver dólar de dez ou de cinquenta, pre ro em soles— disse

Adelita,deimediato.—Osdecemsãosemprefalsos.

—OK,OK,tenhodecinquenta—prometeuohomem.—Vamosandando,

garotas.

—Estouesperandoalguém—desculpou-sedonaLucrecia.—Lamento.

—Elenãopodeesperar?—impacientou-seohomem.

—Não,realmentenão.

— Se você quiser, subimos nós dois — interveio Adelita, pendurando-se ao

braçodele.—Voutratarvocêmuitobem,gato.

Masohomemarepeliu,decepcionado:

— Só você, não. Esta noite eu estou me dando um prêmio. Meus burricos

ganharamtrêscorridaseadupla.Possocontar?Vourealizarumcaprichoqueestáme

deixando excitado, há dias. Digo qual?—Olhou as duas alternadamente, muito

sério,afrouxandoocolarinho,eemendoucomansiedade,semesperaraprovação:—

Empalarumaenquantochupoaoutra.Vendoasduaspeloespelho,setocandoese

beijando,sentadinhasnotrono.Eessetronovousereu.

“O espelho de Egon Schiele”, pensou a senhora Lucrecia. Sentia-se menos

incomodadapelavulgaridadedohomemdoquepelobrilhodesalmadodaspupilas

dele,enquantodescreviaseucapricho.

— Você vai car zarolho de ver tanta coisa ao mesmo tempo, gato — riu

Adelita,dando-lheumsocodebrincadeira.

—Éaminha fantasia.Graças aosburricos, estanoite vou realizá-la—disseo

homem,comorgulho,àmaneiradedespedida.—Umapenaesseseucompromisso,

palhacinha, porque, apesar dessa papagaiada toda, gostei de você. Tchauzinho,

bonecas.

Quandoeleseperdeuentreasmesas—obartinhamaisgentedoqueantes,a

fumaçaestavamaisdensa,orumordasconversassemultiplicara,eamúsicadosalto-

falantes era agoraummerenguede JuanLuisGuerra—,Adelita se aproximoude

donaLucrecia,pesarosa:

—Éverdade,o seuencontro?Comessepanaca, ia sermoleza.Aquelahistória

doscavalosémentira.Eleétra cante,todomundosabe.Efuncionaacemporhora.

Ejaculaçãoprecoce,dizem.Tãorápido,tãorápido,quemuitasvezesnemconsegue

começar.Iaserumamãonaroda.

DonaLucreciatentouesboçarumsorrisodeentendida,quenãolhesaiu.Como

uma lhadeEstherpodiadizersemelhantescoisas?Aquelasenhoratãoposuda,tão

rica,tãopresumida,tãoelegante,tãocatólica.Estherzita,amadrinhadeFonchito.A

moça continuava com seus comentários desenvoltos, quemantinham boquiaberta

donaLucrecia:

—Tremendovacilo,agenteperderestaoportunidadedefaturarcemdólaresem

meiahora,emquinzeminutos—queixava-se.—Subircomvocêparatrabalharmos

nessepata-chocaiaserbacana.Iaseromáximo,erapidinho.Vocêeunãosei,mas,

comigo, o que me incomoda são os casais. O maridão olhando, enquanto você

esquenta amulherzinha dele.Odeio isso, gata! Porque a babaca sempremorre de

vergonha.Fica cheia de frescuras, solta umas risadinhas sonsas, temquebeber um

trago,etomedesiririca.Puxavida,atémedáengulho.Principalmentequandoelas

começam a chorar e se arrepender.Tenho vontade dematar, digo a você. E aí o

tempo vai passando,meia hora, uma hora, com essas retardadas, um pé no saco.

Querem, não querem, e fazem você perder ummonte de grana.Não tenhomais

paciência,gata.Nuncalheaconteceu?

— Imagine!— sentiu-se obrigada a dizer dona Lucrecia, forcejando para que

cadasílabaaceitassesairdesuaboca.—Algumasvezes.

—Sebemquepioraindasãoosdoisamigos,oscupinchas,unhaecarne,sabe

como?—suspirouAdelita.SuavozmudouedonaLucreciapensouquedevia ter

acontecidoaelaalgoterrível,comsádicos,loucosoumonstros.—Comosesentem

machosquando estão emdupla!E começamapedir tudoquanto é sacanagem.A

cornetinha, o sanduichinho, o nenenzinho. Por que não vai pedir àmamãezinha,

querido?Nãoseivocê,gata,mas,comigo,onenenzinho,nemapau.Nãogosto.Me

dánojo.Etambémdói.Nãofaçonemporduzentosdólares.Evocê?

—Eu tambémnão— articulou donaLucrecia.—Nojo e dor, igual a você.

Nenenzinho,nemporduzentos,nempormil.

—Bem,pormil,quemsabe?—riuamoça.—Viu?Agenteseparece.Bom,

chegouseuparceiro,euacho.Vamosverse,napróxima,agentefazotrabalhono

idiotadosburricos.Tchau,divirta-se.

Adelitaseafastou,deixandoseulugarparaadelgadasilhuetaqueseaproximava.

Naclaridademedíocredorecinto,donaLucreciaviuqueeleerajovem,meiolouro,

feições ameninadas, e uma vaga semelhança com quem? Com Fonchito! Um

Fonchitocomdezanosamais,deolharendurecido,corpomaisaltoeafilado.Estava

vestidoemumeleganteternoazuletrazianobolsodopaletóumlencinhorosa,a

mesmacordagravata.

—OinventordapalavraindividualismofoiAlexisdeTocqueville—disseele,a

mododesaudação,comumavozinhaestridente.—Certoouerrado?

— Certo. — Dona Lucrecia começou a suar frio: o que aconteceria agora?

Decidida a ir até o nal, acrescentou:—Eu souAldonza, a andaluza deRoma.

7

Puta,estreleiraealcofeira,àssuasordens.

—Aúnicapalavraqueeuentendoéputa—comentouJustiniana,tontacomo

que ouvia.— E a senhora falava sério?Não cou com vontade de rir?Desculpe

interromper,patroa.

—Siga-me—disseorecém-chegado,semumpingodehumor.Movia-secomo

umrobô.

DonaLucreciadesceudobanquinhoe adivinhouoolharmal-intencionadodo

barmanaovê-lapartir.Seguiuojovemlouro,queavançavadepressaentreasmesas

lotadas,fendendoaatmosferaenfumaçada,rumoàsaídadobar.Depois,atravessou

ocorredoremdireçãoaoselevadores.DonaLucreciaoviuapertarobotãodo24º.Sentiuseucoraçãosaltareseuventresecontrair,comavelocidadedasubida.Uma

portaseabriu,assimquesaíramparaocorredor.Estavamnovestíbulodeumasuíte

enorme: através do janelão envidraçado, estendia-se aos seus pés ummar de luzes,

commanchasescurasebancosdeneblina.

— Pode tirar a peruca e a roupa no banheiro.— O rapaz lhe apontou um

aposento, ao lado da saleta. Mas dona Lucrecia não conseguiu dar um passo,

fascinadaporaquela face juvenil,deolhardeaçoecabelosalvoroçadosna testa—

achara que eram louros, mas eram castanho-claros, puxando para o escuro —,

modeladospeloconedeluz.Comoerapossível?Pareciaele,empessoa.

— Como assim, Egon Schiele? — atalhou-a Justiniana. — O pintor que

enlouqueceFonchito?Omalandroquepintavasuasmodelosfazendosacanagem?

—Porquevocêachaqueeufiqueipasmada?Elemesmo.

—Seiquesomosparecidos—explicouorapaz,nomesmotomsério,funcional

edesumanizadocomquesedirigiraaeladesdeoprimeiromomento.—Éporisso

quevocêestátãodesconcertada?Bom,eumepareçocomele.Edaí?Ouvocêestá

achandoquesouEgonSchieleressuscitado?Nãoétãobobaassim,não?

— É que a semelhança me deixou muda — reconheceu dona Lucrecia,

examinando-o. — Não é só o rosto.Também o corpo alongado, raquítico. As

mãos, tão grandes. E amaneira como você brinca com seus dedos, escondendo o

polegar.Igualzinho,idênticoatodasasfotosdeEgonSchiele.Comoépossível?

—Nãovamosperdertempo—disseorapaz,comfriezaeumgestodetédio.

— Tire essa peruca asquerosa, esses brincos e colares horríveis. Espero você no

quarto.Venhanua.

Seu rosto tinha algo de desa ador e vulnerável. Ele parecia, pensou dona

Lucrecia, um garotinho malcriado e genial, a quem, apesar de todas as suas

travessuras e insolências, audácias e temeridades, a mãe fazia muita falta. Estava

pensandoemEgonSchieleouemFonchito?DonaLucrecianãotevedúvidasdeque

orapazprefiguravaoqueofilhodeRigobertoviriaaserdentrodealgunsanos.

“Apartirdestemomento,começaomaisdifícil”,disseasimesma.Tinhacerteza

dequeo rapazparecido comFonchito eEgonSchielehavia fechado aporta com

duasvoltasnachave,edeque,mesmoquequisesse,jánãopoderiaescapardasuíte.

Seriaobrigadaapermaneceraliorestodanoite.Juntocomomedoqueseapoderara

dela, a curiosidade a devorava, e até umapontinhade excitação.Entregar-se a esse

esbelto jovem de expressão fria e algo cruel seria como fazer amor com um

Fonchito-jovem-quase-homem,oucomumRigobertoremoçadoeembelezado,um

Rigoberto-jovem-quase-menino.Acomparaçãoafezsorrir.Oespelhodobanheiro

lhemostrou sua expressão relaxada, quase alegre.Teve trabalhopara tirar a roupa.

Sentiaasmãosdormentes,comoseastivesseexpostoàneve.Semaabsurdaperuca,

livredaminissaiaqueaespremia,respirou.Manteveacalcinhaeominúsculosutiã

derendapreta,e,antesdesair,soltoueajeitouoscabelos—tinha-osprendidonuma

redinha—,detendo-seuminstanteàporta.Outravez,opânico.“Possoaténãosair

vivadaqui.”Masnemsequeressetemorfezcomquesearrependessedetervindoe

de estar interpretando esta farsa extravagante, para agradar a Rigoberto (ou a

Fonchito?).Aoentrarnovestíbulo,comprovouqueorapazhaviaapagadotodasas

luzes do quarto, exceto a de um abajur, em um cantinho afastado. Pelo enorme

janelão, lá embaixo cintilavammilhares de vagalumes de um céu invertido. Lima

pareciadisfarçadadecidadegrande;aescuridãoapagavaseusandrajos,suaimundície

e até seumau cheiro.Umamúsica suave, de harpas, trinados, violinos, banhava a

penumbra. Enquanto avançava, sempre apreensiva, rumo à porta que o rapaz lhe

apontara, sentiuumanovaondadeexcitação,crispando-lheosbicosdos seios (“O

quetantoagradaaRigoberto”).Deslizousilenciosamentepelocarpete.Bateucomos

nósdosdedos.Aportaestavaencostadaeseabriu,semumrangido.

—Eestavamali,osdeantes?—exclamouJustiniana,maisincrédulaainda.—E

agora,comovaiser?Osdoisdeantes?Adelita,afilhadasenhoraEsther?

—E o sujeito dos cavalos, o tra cante ou lá o que fosse— con rmoudona

Lucrecia.—Sim,ali.Osdois.Nacama.

—Epelados,claro—gargalhouJustiniana,levandoumamãoàbocaerevirando

osolhoscomdescaramento.—Esperandopelasenhora.

Oquartopareciamaior doque ohabitual emumhotel, atémesmo emuma

suíte de luxo, mas dona Lucrecia não pôde perceber exatamente suas dimensões,

porque só estava acesa a lâmpada de um dos criados-mudos, e sua luz circular,

avermelhadapelagrandecúpulacordevinho,sóclareavaporinteiroocasaldeitadoe

entrelaçadosobreabetuminosacolcha,commanchasamarelo-escuras,quecobriaa

camadecasal.Orestodoaposentoestavanapenumbra.

— Entre, amorzinho— acolheu-a o homem, agitando a mão, sem parar de

beijocar Adelita, sobre a qual estavameiomontado.—Tome umdrinque.Tem

champanheemcimadamesa.Epó,nessatabaqueiradeprata.

AsurpresadeencontrarAdelitaeohomemdoscavalosalinãoafezesquecero

jovemmagrodebocacruel.Eletinhadesaparecido?Espiava,ocultonasombra?

—Oi,gata—acaratravessadeAdelitasurgiuporsobreoombrodosujeito.—

Quebomquevocê se livroudo tal encontro.Venha, venha logo.Não sente frio?

Aquiestáquentinho.

Omedodesapareceupor completo.Ela foi até amesa e se serviuuma taçade

champanhe de uma garrafa metida em um balde de gelo. E se cheirasse uma

carreirinha,também?Enquantobebia,empequenosgoles,napenumbra,pensou:“É

magiaoubruxaria.Milagre,nãopodeser.”Ohomemeramaisgordodoqueparecia

vestido;seucorpo,branqueloecomsinais,tinharolosdebanhanabarriga,nádegas

sem pelos e pernas muito curtas, com tu nhos de pelos escuros. Adelita, ao

contrário, era aindamaismagra do que ela havia acreditado; um corpo alongado,

moreninho,umacinturamuito naemquesedestacavamosossinhosdosquadris.

Deixava-sebeijareabraçaretambémabraçavaotra cantetur sta,mas,emboraseus

gestos simulassem entusiasmo, dona Lucrecia notou que ela não o beijava, e até

evitavasuaboca.

—Venha,venha,quasenãoaguentomais—implorouohomem,de repente,

comveemência.—Meucapricho,meucapricho.Éagoraoununca,meninas!

Emboraaexcitaçãodeummomentoatrás tivessedesaparecido, substituídapor

umcertonojo,donaLucreciaobedeceu,depoisdeterminarataça.Aosedirigirpara

acama,viudenovopelojanelão,láembaixo,etambémacima,nasmontanhasonde

começavaalongínquacordilheira,oarquipélagodeluzes.Sentou-seemumcantoda

cama, semmedo, embora confusa e cada vezmais nauseada.Umamão a segurou

pelobraço,puxou-aeaobrigouasedeitarembaixodeumcorpopequenoefofo.

Elarelaxou,deixou-selevar,aniquilada,desmoralizada,decepcionada.Repetiaparasi

mesma,comoumautômato:“Nãováchorar,Lucrecia,nãováchorar.”Ohomem

enlaçou-acomobraçoesquerdoeAdelitacomodireito.Suacabeçagiravadeuma

para outra, beijando-as no pescoço, nas orelhas, e buscando-lhes a boca. Dona

Lucrecia via muito próxima a cara de Adelita, despenteada, congestionada, e, nos

olhos, um sinal de cumplicidade, zombeteiro e cínico, animando-a. Os lábios e

dentesdohomemseapertaramcontraos seus, forçando-aaabriraboca.A língua

deleentrounela,comoumaserpente.

—Você,euqueroempalar—ouviu-o implorar, enquantoamordiscavae lhe

acariciavaosseios.—Monte,monteemmim.Rápido,quejáestouindo.

Vendo que ela hesitava, Adelita ajudou-a a subir nele e também se agachou,

passandoumadaspernas sobreohomeme ajeitando-se a mdeque ele tivesse a

bocaaoalcancedoseusexodepilado,noqualdonaLucreciamalpercebeuuma na

linha de pilosidade. Então, sentiu como se levasse uma chifrada. Aquela coisinha

miúda,meiobrocha,quesegundosantesseesfregavaemsuaspernas, teriacrescido

tantoaoentrarnela?Agoraeraumesporão,umaríetequea levantava,perfuravae

feriacomforçacataclísmica.

—Beijem-se,beijem-se—gemiao sujeitodosburricos.—Nãoestouvendo

vocêsmuitobem,quemerda!Faltouumespelho!

Molhada de suor da cabeça aos pés, tonta, dolorida, sem abrir os olhos, dona

LucreciaestendeuosbraçosebuscouorostodeAdelita,mas,quandoencontrouos

noslábiosdamoça,esta,mesmoapertando-oscontraosdela,manteve-osfechados.

Nãoosabriuquandoelaospressionoucomalíngua.Nisto,porentreoscílioseas

gotinhas de suor que lhe pingavam da testa, viu o jovem desaparecido de olhos

acerados, lá em cima, perto do teto, equilibrando-se no alto de uma escada.

Semioculto pelo que parecia um biombo laqueado, com caracteres chineses, as

orelhinhasmeiolevantadas,osolhosincendiados,aboquinhacruelfranzida,orapaz

a desenhava, desenhava os três, furiosamente, comum carvão comprido, emuma

cartolina branquíssima. De fato, parecia uma ave de rapina, agachado no alto da

escada em tesoura, observando-os, medindo-os, retocando-os com traços longos,

enérgicos,ecomaquelesolhosferozes,vivíssimos,quesaltavamdacartolinaparaa

cama,dacamaparaacartolina,semprestaratençãoamaisnada,indiferentesàsluzes

deLima,esparramadasaopédajanela,eàsuaprópriaverga,queabriracaminhopara

foradacalça,fazendosaltaremosbotões,eseestiravaecresciacomoumbalãoque

vaiseenchendodear.Ofídiovoador,agorasebalançavaacimadela,contemplando-a

com seu olho de grande ciclope. Ela não se surpreendeu nem se importou.

Cavalgava,satisfeita,ébria,agradecida,entorpecida,pensandooraemFonchito,ora

emRigoberto.

—Porquevocê continua saltitando,nãovêque eu já fui?—choramingouo

homemdoscavalos.Nasemiescuridão,suacarapareciadecinza.Elefaziabiquinhos

de menino malcriado. — Maldito azar, isto sempre me acontece. Quando está

candobom,eujáfui.Nãoconsigosegurar.Nãotemjeito,nãotem.Procureium

especialista, eleme receitoubanhosde lama.Umamerda.Aquilomedavadorde

estômagoevômitos.Massagens.Outramerda.FuiaumcurandeirodaVictoriaeele

memeteuemumatinacomervas,cheirandoacocô.Dequemeserviu?Denada.

Agora,terminoatémaisrápidodoqueantes.Porqueessasorteinfeliz,malditaseja?

Soltouumgemidoesoluçou.

—Não chore, cara, por acaso você não realizou seu capricho?— consolou-o

Adelita,voltandoapassarapernaporcimadacabeçadochorãoedeitando-seaolado

dele.

Pelojeito,nenhumdosdoisviaEgonSchiele,ouseuduplo,equilibrando-seum

metro acima, no alto da escada, e ajudando-se a não cair, a manter o centro de

gravidade, graças àquela imensa verga que balançava suavemente sobre a cama,

exibindona escassa luz suas delicadas dobras rosadas e as alegres veiazinhas da face

posterior. E, sem dúvida, tampouco o escutavam. Dona Lucrecia, sim, e muito

claramente.Esganiçadoebeligerante,elerepetiaentreosdentes,comoummantra:

“Souomaistímidodostímidos.Soudivino.”

—Descanse,gata,oqueestáfazendoaí?Afunçãojáterminou—disseAdelita,

comcarinho.

—Nãoasdeixeir,dêumasurranelas.Nãoasdeixeir.Bata,batacomforçanas

duas!

Era Fonchito, naturalmente.Não, não o pintor concentrado em sua tarefa de

esboçá-los.Eraomenino,seuenteado,o lhodeRigoberto.Estavaali,eletambém?

Sim.Onde? Em alguma parte, secretado pelas sombras do quarto dasmaravilhas.

Quieta, encolhida, desexcitada, aterrorizada, cobrindo os seios com asmãos, dona

Lucreciaolhouàdireita,procurouàesquerda.Epor mosencontrou,re etidosem

umgrande espelhono qual também se viu, repetida comoumamodelo deEgon

Schiele.Ameia-luznãoosdissolvia;antes,davaaopaieao lho,sentadosumjunto

aooutro—aquele,observando-oscombenevolênciaafetuosa,eeste,superexcitado,

acarinhaangelicalcongestionadadetantogritar,“Batanelas,batanelas”—,emuma

poltronaquepareciaumcamaroteencarapitadoacimadoproscêniodacama.

—Ouseja,tambémapareceramopatrãoeFonchito?—comentouJustiniana,

em tom desenxabido e francamente decepcionado. — Isso é que não dá para

acreditar.

— Bem sentadinhos, os dois, e nos olhando — assentiu dona Lucrecia. —

Rigoberto,muitoformal,compreensivoetolerante.Eomenininho,derédeasolta,

fazendoasdiabrurasdecostume.

—Nãoseiasenhora,patroa—disseJustianaderepente,cortandodechofreo

relatoelevantando-se—,maseuprecisoagoramesmodeumaduchacomáguabem

fria.Paranãopassaroutranoitesemdormir,nomaiorsufoco.Essasconversascoma

senhora,euadoro.Masmedeixammeioabestalhadaecarregadadeeletricidade.Se

nãoacredita,boteamãoaqui.Vaitomarumchoque!

A baba da lesma

Emboraeusaibadesobraqueosenhoréummalnecessário,semoqualavidaem

comunidadenão seria vivível,devodizer-lheque suapessoa representa tudooque

detesto,nasociedadeeemmimmesmo.Poishápelomenosumquartodeséculo,

desegundaasexta-feiraedasoitodamanhãàsseisdatarde,comalgumasatividades

ancilares(coquetéis,seminários, inaugurações,congressos),àsquaismeéimpossível

subtrair-me semameaçarminha sobrevivência, tenho sido tambémumaespéciede

burocrata, aindaquenão trabalheno setor público, e simnoprivado.Mas, assim

como o senhor e por sua culpa, minha energia, meu tempo e meu talento (tive

algum)foramemgrandeparteengolidos,nessesvinteecincoanos,pelos trâmites,

gestões, requerimentos, instâncias e procedimentos inventados pelo senhor para

justi caro salárioque recebeea escrivaninhadiantedaqual engorda suasnádegas,

deixando-meapenasumasmigalhasdeliberdadeparatomariniciativaselevaracabo

um trabalho que mereça chamar-se criativo. Sei que os seguros (meu ramo

pro ssional)eacriatividadeencontram-setãoafastadosquantoosplanetasSaturnoe

Plutãonouniverso sideral,masessadistâncianãoseria tãovertiginosa seo senhor,

hidra regulamentarista, lagarta tramitadora, rei do papel timbrado, não a tivesse

tornadoabissal.Porque,mesmonoáridodesertodasseguradoraseresseguradoras,a

imaginaçãodo serhumanopoderia expandir-se edali extrair estímulo intelectual e

até prazer, se o senhor, encarceradonessa densamalha de regulações as xiantes—

destinadasadarcaráterdenecessidadeàobesaburocraciaqueinchouatéestouraras

repartições públicas e criou uma miríade de pretextos e justi cativas para suas

chantagens,seussubornos,trá coseroubos—,nãotivessetransformadoatarefade

uma companhia de seguros em uma embrutecedora rotina, semelhante àquelas

complicadas ediligentesmáquinasde JeanTinguely, as quais,movendo correntes,

polias, trilhos, pás, colheres e êmbolos, acabam parindo uma bolinha de pingue-

pongue. (Seique ignoraqueméTinguely e tampouco lhe convémdescobrir;mas

tenhocertezadeque,seoacasocolocasseemseucaminhoasobrasdesseescultor,um

dos poucos artistas contemporâneos queme entendem, o senhor já teria tomado

todasasprecauçõesparanãocompreender,banalizando-os,ossarcasmosferozesque

elasdisparam.)

Seeulhecontarqueentreinestacompanhiarecém-formadoemdireito,comum

posto insigni cante no departamento jurídico, e que nestes cinco lustros escalei a

hierarquiaatéocuparagerência,sermembrodadiretoriaedonodeumbompacote

deaçõesdaempresa,osenhormediráque,emtaiscondições,nãotenhodequeme

queixar e peco por ingratidão. A nal, não vivo bem? Não faço parte do

microscópico fragmento da sociedade peruana que tem casa própria, automóvel, a

possibilidade de viajar de férias, umaouduas vezes por ano, para aEuropa ou os

EstadosUnidos,dedesfrutardecertosconfortosedeumasegurançaimpensáveise

inacessíveis para quatro quintos dos nossos compatriotas? Tudo isso é verdade.

Tambémo éque, graças a esse sucessopro ssional (assimo chamamos senhores,

não?), consegui encher meu escritório de livros, gravuras e quadros, que me

amuralhamcontraaestupidezeavulgaridadereinantes(ouseja,contratudooqueo

senhor representa), e criar um enclave de liberdade e fantasia onde a cada dia, ou

melhor,acadanoite,pudedesintoxicar-medaespessacrostadeconvencionalismos

embrutecedores, rotinas desprezíveis, atividades castradoras e gregarizadas que o

senhorfabricaedasquaissenutre,eviver,viverdeverdade,sereumesmo,abrindo

aos anjos e demônios queme habitam as portas gradeadas atrás das quais— por

culpasua,sósua—sãoobrigadosaesconder-senorestododia.

Osenhormedirá,também:“Seodeiatantooshoráriosdetrabalho,ascartaseas

apólices, os relatórios legais e os protocolos, as reclamações, as autorizações e os

pareceres, por que não teve a coragem de jogar fora tudo isso e viver a vida

verdadeira,adesuafantasiaeseusdesejos,nãosóànoite,mastambémdemanhã,ao

meio-diaeàtarde?Porquecedeumaisdametadedesuavidaaoanimalburocrático

que,juntocomseusanjosedemônios,tambémoescraviza?”Aperguntaépertinente

—muitasvezesformulei-aparamimmesmo—,mastambémoéminharesposta:

“Porqueomundodefantasia,deprazer,dedesejosemliberdade,minhaúnicapátria

querida,nãosobreviveria indeneàescassez,àestreiteza,àsangústiaseconômicas,ao

peso das dívidas e à pobreza. Os sonhos e os desejos são incomestíveis. Minha

existência seempobreceria, transformando-seemcaricaturade simesma.”Nãosou

um herói, não sou um grande artista, careço de gênio, de modo que não me

consolariaaesperançadeuma“obra”quetalvezsobrevivesseamim.Minhaaspiração

eminhasaptidõesnãovãoalémdesaberdiferenciar—nissosousuperioraosenhor,

cujosensoéticoeestéticodediscriminação,porsuacondiçãoadventícia,reduziu-sea

nada—,dentrodoemaranhadodepossibilidadesquemerodeiam,oqueamoeo

quedetesto,oqueembelezaminhavidaeoqueaenfeiaelambuzadeestupidez,o

quemeexaltaeoquemedeprime,oquemefazgozareoquemefazsofrer.Para

estar simplesmente em condições de discernir constantemente entre essas opções

contraditórias,precisodatranquilidadeeconômicaquemeéproporcionadaporesta

atividadepro ssionalmaculadapelaculturadotrâmite,estemiasmadeletérioqueo

senhorgeracomoalesmaexpeleababaequepassouaseroarrespiradopelomundo

inteiro. As fantasias e os desejos — pelo menos, os meus — requerem, para

manifestar-se, um mínimo de tranquilidade e segurança. Do contrário,

enfraqueceriamemorreriam.Sequiserdeduzirdaíquemeusanjosedemôniossão

inabalavelmenteburgueses,digo-lhequeéamaisestritaverdade.

Mencioneiantesapalavraparasitaeosenhordeveter-seperguntadoseeu,sendoumadvogadoquehávinteecincoanosaplicaaciênciajurídica—omaisnutritivo

alimentoda burocracia e a primeira engendradorade burocratas—à especialidade

dosseguros,tenhoodireitodeusá-ladepreciativamentecontraquemquerqueseja.

Sim,tenho,massóporquetambémaempregocontramimmesmo,contraminha

metadeburocrática.Defato,eparacúmulodosmales,oparasitismolegalfoiminha

primeiraespecialização,achavequemeabriuasportasdeLaPerricholi—sim,esteé

oridículonomequeacrioulaacompanhia—emeobteveasprimeiraspromoções.

Comonãoviria a seromais engenhoso enredadoroudestrinçadorde argumentos

jurídicos, aquelequedescobriu,desde suaprimeira auladedireito, que a chamada

legalidade é, em grandemedida, uma selva intricada onde os técnicos em tramas,

intrigas,formalismosecasuísmossemprefarãobomnegócio?Queessapro ssãonão

tem nada a ver com a verdade e a justiça, mas, exclusivamente, com so smas e

imbróglios impossíveis de desemaranhar? É verdade, trata-se de uma atividade

essencialmenteparasitária,queleveiacabocomadevidae ciênciaparachegaratéo

topo,massemnuncameenganar,conscientedeserumfurúnculoquesenutreda

faltadedefesa,davulnerabilidadeedaimpotênciadosoutros.Àdiferençadosenhor,

eunãopretendoserum“pilardasociedade”(inútilremetê-loaoquadrohomônimo

deGeorgesGrosz: o senhor não conhece esse artista ou, pior ainda, só o conhece

pelasesplêndidasbundasexpressionistasqueelepintou,enãopelasletaiscaricaturas

dos colegas do senhor na Alemanha deWeimar): sei o que sou e o que faço, e

desprezoessapartedemimmesmotantoquantoadesprezoemsuapessoa,ouaté

mais.Meusucessocomoadvogadoderivoudestaconstatação—dequeodireitoé

uma técnica amoral, vantajosaparao cínicoque adominamelhor—edeminha

descoberta,igualmenteprecoce,dequeemnossopaís(emtodosospaíses?)osistema

legal é uma teia de aranha de contradições, na qual, a cada lei ou disposição com

forçadelei,épossíveloporoutraououtrasqueareti cameanulam.Porisso,aqui

estamostodossempreviolandoalgumaleiedelinquindodealgummodocontraa

ordem (na realidade, o caos) legal.Graças a esse dédalo, o senhor se subdivide, se

multiplica, se reproduz e se reengendra, vertiginosamente. E graças a isso vivemos

nós,osadvogados,ealguns—meaculpa—prosperamos.

Pois bem, embora minha vida tenha sido um suplício deTântalo, uma luta

diáriaemoralentreolastroburocráticodeminhaexistênciaeosanjosedemônios

secretosdemeuser,osenhornãomevenceu.Sempreconseguimanter,anteaquilo

que fazia de segunda a sexta e de oito às seis da tarde, a ironia su ciente para

desprezar esse ofício e desprezar-mepor exercê-lo, demodo que as horas restantes

puderammedesagravar eme redimir,me compensar emehumanizar (o que, no

meu caso, sempre signi ca separar-me do rebanho ou da manada). Imagino a

comichãoqueopercorre,essacuriosidadebiliosacomqueosenhorsepergunta:“Eo

quefaznessasnoitesapontodeimunizar-secontramim,oqueosalvadeseroque

eusou?”Quersaber?Agoraqueestousozinho—separadodeminhamulher,quero

dizer—, leio, contemplominhas gravuras, releio e alimentomeus cadernos com

cartascomoesta,mas, sobretudo, fantasio, sonho,construoumarealidademelhor,

depuradadetodasasescóriaseexcrescências—osenhoresuababa—quetornama

existênciasinistraesórdidaobastanteparainduzir-nosadesejarumadiferente.(Falo

nopluralemearrependo;nãoserepetirá.)Nessaoutrarealidade,osenhornãoexiste.

Sóexistemamulherqueamoeamareisempre—aausenteLucrecia—,meu lho

Alfonsoealguns gurantesmóveisetransitórios,queaparecemcomofogos-fátuos,

pelotempodemeseremúteis.Sóquandoestounessemundo,nessacompanhia,é

queexisto,poisgozoesoufeliz.

Isto posto, essas migalhas de felicidade não seriam possíveis sem a imensa

frustração, o árido tédio e a acabrunhante rotina de minha vida real. Em outras

palavras,semumavidadesumanizadapelosenhoresemaquiloqueosenhortecee

destececontramim,apartirdetodasasengrenagensdopoderquedetém.Entende,

agora, por que o chamei, no princípio, de ummalnecessário? O senhor, o mais

perfeitoexemplodoestereótipoedolugar-comum,acreditavaqueeuoquali quei

assimporpensarqueumasociedadedevefuncionar,dispordeumaordem,deuma

legalidade,deserviços,deumaautoridade,paranãonaufragarnabalbúrdia.Eachava

que esse regulador, esse nó górdio, esse mecanismo salvador e organizador do

formigueiro, era o senhor, onecessário. Não, horrível amigo. Sem o senhor, a

sociedade funcionaria bem melhor do que agora. Mas, sem sua presença aqui,

emputecendo, envenenando e limitando a liberdade humana, esta não seria tão

apreciadapormim,nemminhaimaginaçãovoariatãoalto,nemmeusdesejosseriam

tãopujantes,poistudoissonascecomorebeldiacontraosenhor,comoreaçãodeum

serlivreesensívelcontraaquelequeéanegaçãodasensibilidadeedolivre-arbítrio.

Assim,vejasóporonde,atravésdequemeandros,conclui-seque,semosenhor,eu

seriamenoslivreesensível,meusdesejos,maispedestreseminhavida,maisoca.

Sei que tampouco entenderá isso, mas não importa, porque sobre esta carta

jamaispousarãoseusintumescidosolhosdebatráquio.

Euoamaldiçooelheagradeço,burocrata.

O sonho é vida

Banhadoemsuor,aindasemsairtotalmentedadelgadafronteiraemqueosonhoea

vigília semisturavam,donRigoberto continuoua verRosaura, vestidadepaletó e

gravata,cumprir suas instruções:ela seaproximoudobalcãoe se inclinousobreos

ombros nus da vistosa mulata que estivera procurando atraí-lo desde que os vira

entrarnessaboatedetransas.

EstavamnaCidadedoMéxico,não?Sim,depoisdeumasemanaemAcapulco,

fazendo uma escala em seu retorno a Lima, ao término dessas curtas férias. Don

Rigoberto tivera o capricho de disfarçar dona Lucrecia de homem e ir com ela,

vestidaassim,aumcabarédeputas.Rosaura-Lucreciacochichoualgocomamoça,

entresorrisos—donRigobertoviu-aapertarcomautoridadeobraçonudamulata,

que a tava comolhos espertos emaliciosos—, e nalmente a tirouparadançar.

Estavam tocandoummambodePérezPrado, claro—El ruletero—, e, na pista

estreita,fumacenta,lotada,desombrasfendidasemrajadasporumre etorcolorido,

donRigoberto aprovou:Rosaura-Lucrecia interpretavamuito bem seu papel.Não

parecia uma impostoranaquelas roupasmasculinas, nemdiferente como corte de

cabeloà lagarçonne, nemembaraçada ao conduzir suaparceiranosmomentos em

que,cansadasdefazer rulas,asduasseenlaçavam.Emcrescenteestadofebril,don

Rigoberto,cheiodeadmiraçãoegratidãoporsuamulher,tinhadesearriscaraum

torcicoloparanãoasperderdevista,emmeioatantascabeçaseombrosinterpostos.

Quandoaorquestra,desa nadamascontida,passoudomamboaobolero—Dosalmas,quelherecordouLeoMarini—,elesentiuqueosdeusesoacompanhavam.

ViuqueRosaura, interpretandoseudesejosecreto,estreitavade imediatoamulata,

passando-lhe os dois braços pela cintura e obrigando-a a apoiar os dela sobre seus

ombros.Embora,nameia-luz,nãopudesseenxergarcommuitaprecisão,tevecerteza

dequesuamulherzinhaadorada,ofalsovarão,haviacomeçadoabeijaremordiscar

deleveopescoçodamulata,esfregando-secontraoventreeosseiosdestacomoum

verdadeirocavaleiroesporeadopelaexcitação.

Jáestavadesperto,semamenordúvida,mas,apesardetertodososseussentidos

em alerta, percebeu que a mulata e Lucrecia-Rosaura continuavam ali, em meio

àquela noturna humanidade prostibular, naquele local estridente e truculento, de

mulheressarapintadascomoperiquitos,deancastropicais,eumaclientelamasculina

desujeitosbochechudos,bigodesescorridoseolharesdrogados:dispostosasacaras

pistolase semataremmutuamenteaomenordescuido?“Porestaexcursãoaosbas-fonds da noitemexicana, Rosaura e eu podemos perder a vida”, pensou, com um

calafrio feliz. E viu antecipadamente os títulos da imprensa marrom: “Duplo

assassinato: homem de negócios e sua esposa travestida degolados em casa de

encontrosmexicana”,“Oanzolfoiumamulata”,“Destruídospelovício”,“México:

casaldasociedadelimenhaédegoladoemzonademeretrício”,“Brancosdepravados

pagamcomsangueseusexcessos”.Regurgitouumarisadinha,comoumarroto:“Se

nosmataram,oqueimportaoescândaloaosnossosvermes?”

Voltouaolocalemquestão,ondecontinuavamdançandoamulataeRosaura,o

falso homem. Agora, para sua alegria, as duas se manuseavam descaradamente e

também se beijavam na boca. Mas como? As pro ssionais não se recusavam a

ofereceroslábiosaosseusclientes?Sim,masporacasohaviaobstáculoqueRosaura-

Lucrecianãopudessevencer?Comoconseguiraqueamulatonaabrisseabocarrade

grossos lábios rubros e recebesse a visita sutil de sua língua serpentina?Teria lhe

oferecidodinheiro?Teriaconseguidoexcitá-la?Nãoimportavacomo,oimportante

era que sua língua doce e branda, quase líquida, estava ali, na boca da mulata,

ensalivando-aeabsorvendoasaliva—queeleimaginouespessaeolorosa—daquela

mulherexuberante.

E,então,foidistraídopelapergunta:porqueRosaura?Rosauraeratambémum

nomedemulher.Se aquestão era camu á-lapor completo, comoelehavia feito,

cobrindoocorpodelacomroupasdehomem,seriapreferívelchamá-laCarlos,Juan,

Pedro, Nicanor. Por que Rosaura? Quase inconscientemente, don Rigoberto se

levantaradacama,en araroupãoechinelosesetransferiraparaseuescritório.Não

precisava consultar o relógio para saber que logo surgiriam nas trevas, como que

saindodomar,asluzinhasdoamanhecer.ConheciaalgumaRosauradecarneeosso?

Buscouefoicategórico:nenhuma.Era,portanto,umaRosauraimaginária,essaque,

emseusonho,vierasesuperporaLucreciaesefundircomela,estanoite,saídada

página esquecida de um romance ou de algum desenho, óleo, gravura, que ele

tampouco recordou. Em todo caso, o nome postiço continuava ali, colado a

Lucrecia,assimcomoaqueletrajemasculinocompradonessamesmatardeemuma

lojadaZonaRosa,entrerisosecochichos,depoisqueeleperguntouaLucreciaseela

concordariaemmaterializar sua fantasiaeela—“comosempre,comosempre”—

dissesim.Agora,Rosauraeraumnometãorealcomoessecasalzinhoque,debraço

dado—amulataeLucreciaeramquasedamesmaaltura—,haviaparadodedançar

eseaproximavadamesa.Levantou-separarecebê-lase,cerimonioso,estendeuamão

àmulata.

—Oi,oi,muitoprazer,sente-se.

—Estoumorrendodesede—disseamulata,abanando-secomasduasmãos.

—Vamospediralgumacoisa?

— O que você quiser, amorzinho — respondeu na mesma hora Rosaura-

Lucrecia,acariciando-lheoqueixoeacenandoparaumgarçom.—Peça,podepedir.

—Umagarrafadechampanhe—ordenouamulata,comumsorrisodetriunfo.

—VocêsechamamesmoRigoberto?Ouéseunomedeguerra?

—Écomoeumechamo.Nomezinhoesquisito,não?

— Esquisitíssimo— assentiu a mulata, tando-o como se em vez de olhos

tivesse dois tições chamejantes na cara redonda.— Bom, pelo menos é original.

Vocêtambémébastanteoriginal,verdade.Sabedeumacoisa?Eununcaviorelhas

nemnarizcomoosseus.NossaSenhora,sãoenormes!Possotocá-los?Deixa?

O pedido damulata— alta, ondulante, olhos incandescentes, pescoço longo,

ombros forteseumapelereluzentequesedestacavanovestidoamarelo-canáriode

amplodecote—deixoudonRigobertomudo,semânimoatépararespondercom

umgracejoaoquepareciaumpedidomuitosério.Lucrecia-Rosauraveiosocorrê-lo:

—Aindanão,amorzinho—disseàmulata,beliscando-lheaorelha.—Quando

estivermossozinhos,noquarto,vocêotocaráondequiser.

—Vamos car os três sozinhos em um quarto?— riu amulata, virando os

olhosdesedososcíliospostiços.—Obrigadapormeinformar.Eoqueeuvoufazer

sozinha comvocês,meus anjinhos?Não gostodenúmeros ímpares. Sintomuito.

Posso chamarumaamiga, e assim seremosdois casais.Eu sozinha comdois,nem

morta.

Mas,quandoogarçomtrouxeagarrafadoqueelechamavachampanhemasnão

passavadeumespumanteadocicadocomreminiscênciasdeterebintinaecânfora,a

mulata(chamava-seEstrella,disse)pareceuseanimarcomaideiadepassarorestoda

noite com aquela dupla desigual e fez gracejos, deu risadas e distribuiu amáveis

tapinhasentredonRigobertoeRosaura-Lucrecia.Devezemquando,comoquem

repeteumestribilho,voltavaamencionarzombeteiramente“asorelhaseonarizdo

moço”,olhando-oscomumafascinaçãoimpregnadademisteriosacobiça.

— Com orelhas assim, certamente se pode escutar mais do que as pessoas

normais—dizia.—E,comumnarizdesses,cheiraroqueocomumdoshomens

nãocheira.

“Provavelmente”, pensou don Rigoberto. E se fosse verdade? Se ele, graças à

magni cênciadessesórgãos,ouvisseefarejassemelhordoqueseuscongêneres?Não

lhe agradava o viés cômico que a história ia tomando — seu desejo, avivado

momento antes, decaía, e ele não conseguia reanimá-lo, pois, por culpa das

brincadeirasdeEstrella,suaatençãoseafastavadeLucrecia-Rosauraedamulatapara

seconcentraremseusdesproporcionaisapêndicesauditivoenasal.Tentouqueimar

etapas, passando por alto a negociação com Estrella que durou o tempo daquela

garrafadesupostochampanhe,ostrâmitesparaqueamulatasaíssedaboate—teve

depagarcinquentadólaresporuma cha—,otáxiapertadoesacolejante,oregistro

no hediondo motel —Cielito lindo, dizia na fachada o letreiro luminoso em

vermelhoeazul—eanegociaçãocomorecepcionistavesgo,quecutucavaonariz,

para que os deixasse ocupar um só quarto. Aplacar os temores do rapaz de que a

políciadesseumaincertaemultasseoestabelecimentoporalugarumdormitórioa

umtriocustouadonRigobertooutroscinquentadólares.

No exatomomento emque transpuseram a soleira e, sob a luz fraca daúnica

lâmpada,apareceuacamadecasalcobertacomumacolchaazuladaejuntodaqual

haviaumlavatório,umabaciacomágua,umatoalha,umrolodepapelhigiênicoe

umpenicodesbeiçado—ovesgoacabavadesair,entregando-lhesachaveefechando

aporta atrásde si—,donRigoberto recordou:Claro!Rosaura!Estrella!Aliviado,

deu um tapa na testa. Naturalmente! Esses nomes vinham daquela apresentação

madrilenhadeAvidaésonho,deCalderóndelaBarca.Emaisumavezsentiubrotar

nofundodocoração,comoumjatodeáguaclara,umternosentimentodegratidão

por essas profundezas da memória das quais inesgotavelmente estavam uindo

surpresas,imagens,fantasmas,sugestões,paradarcorpo,cenárioeenredoaossonhos

comqueelesedefendiadasolidão,daausênciadeLucrecia.

—Vamosnosdespir,Estrella—diziaRosaura, levantando-se, sentando-se.—

Vocêteráagrandesurpresadesuavida,portantoprepare-se.

—Sótiroaroupase,antes,tocaronarizeasorelhasdoseuamigo—retrucou

Estrella,agoramuitoséria.—Nãoseiporquê,masavontadedetocá-losestáme

comendoviva.

Destavez,donRigobertonãoseencolerizoueatésesentiulisonjeado.

Tratava-se de uma função a que dona Lucrecia e ele haviam assistido em um

teatrodeMadri,emsuaprimeiraviagemàEuropa,compoucosmesesdecasados,

uma montagem tão antiquada de A vida é sonho que até risos escancarados seouviramna escuridão da plateia, durante a peça.O atormagricela e espigado que

encarnava o príncipe Segismundo era tão ruim, tinha uma voz tão empolada e

parecia tão esmagado pelo papel que o espectador — “bom, este espectador”,matizou don Rigoberto— se sentia inclinado à benevolência para com o cruel e

supersticioso pai dele, o reiBasílio, por tê-lomantido acorrentado durante toda a

infânciaejuventude,comoanimalferoz,naquelatorresolitária,temerosodequese

cumprissemcomesse lho, se subisse ao trono,os cataclismosqueos astros e sua

ciênciamatemáticahaviamprevisto.Tudotinhasidopobre,pavorosoedesajeitado

naquela função. E, no entanto, don Rigoberto recordoumuito claramente que o

aparecimentodajovemRosaura,vestidadehomem,naprimeiracena,e,maistarde,

comespadaàcintura,prontaparaentrarembatalha,ocuparasuaalma.Agora,sim,

estavacertodehaversidovisitadodesdeentão,váriasvezes,pelatentaçãodeumdia

verLucreciaataviadacombotas,chapéuemplumado,casacadeguerreiro,nahorado

amor.Avidaésonho!Emboraaquelaapresentaçãotivessesidohorrível,seudiretor,

execrável,eosatores,pioresainda,aquelaatrizinhahavianãosóperduradoemsua

memória, como in amadomuitas vezes seus sentidos.Alémdisso, algonaobrao

intrigara,porque—alembrançaerainequívoca—oinduziualê-la,algumtempo

depois.Deviamterrestadoalgumasanotaçõessobreessaleitura.Engatinhandopelo

tapete do escritório, don Rigoberto consultou e descartou um caderno atrás do

outro.Estenão,estenão.Tinhadesereste.Esteeraoano.

—Jáestounua,benzinho—disseamulataEstrella.—Medeixepegardeuma

veznassuasorelhasenonariz.Nãosefaçaderogado.Nãomefaçasofrer,nãoseja

malvado.Nãovêqueestoumorrendodevontade?Medêessegosto,amorzinho,e

fareivocêfeliz.

Tinhaumcorpocheioeabundante,bemformado,emboraumtanto ácidono

ventre, seios esplêndidos, só um pouquinho caídos, e, nos quadris, rolinhos

renascentistas. Nem sequer parecia perceber que Rosaura-Lucrecia, que também

acabava de se despir e de se deitar na cama, não era um homem, mas uma bela

mulherdecontornosdelineados.Amulatasótinhaolhosparaele,oumelhor,para

suasorelhas e seunariz,que, agora—donRigoberto tinha se sentadonabeirada

camapara lhe facilitaraoperação—,acariciavacomavidez,comfúria.Seusdedos

ardentes massageavam, apertavam e beliscavam com desespero as orelhas dele,

primeiro,edepoisonariz.Ele fechouosolhos,angustiado,porqueadivinhouque

esses dedos em seu nariz não demorariam a lhe provocar um daqueles acessos de

alergiaquenãosedetinhamantesde—luxuriosacifra—sessentaenoveespirros.

Aquela aventuramexicana, inspirada emCalderónde laBarca, terminaria emuma

grotescasessãodedescontrolenasal.

Sim, ali estava—donRigobertoaproximouocadernoda luzdoabajur:uma

páginadecitaçõeseanotações,feitasàmedidaqueeleialendo,sobotítulo:Avidaésonho(1638).

Asduasprimeiras citações, tiradasdemonólogosdeSegismundo,provocaram-

lheoefeitodeduaschicotadas:“Nadameparecejusto/emsendocontrameugosto.”Eaoutra:“Eseiquesou/umcompostodehomemefera.”Haveriaumarelaçãodecausae

efeito entre asduas citaçõesque transcreveranaquelaocasião?Elemesmo seriaum

composto de homem e fera, porque nada que fosse contra seu gosto lhe parecia

justo?Talvez.Mas,quandoleraessaobra,depoisdaquelaviagem,nãoeraohomem

velho, cansado, solitário e abatido, a buscar desesperadamente refúgionas fantasias

para não enlouquecer ou suicidar-se, em que se transformara; era um cinquentão

afortunado, exuberante de vida, que, nos braços de sua segunda e esplendorosa

mulher,estavadescobrindoqueafelicidadeexistia,queerapossívelconstruir,juntoà

amada, uma cidadela singular, amuralhada contra a estupidez, a feiura, a

mediocridadeearotinadaquelaondepassavaorestododia.Porquehaviasentidoa

necessidadedetomaressasnotasaolerumaobraque,naquelaépoca,nãotinhanada

avercomsuasituaçãopessoal?Outinha?

—Eu,comumhomemarmadodeorelhasenarizassim,perderiaacabeçaeme

transformariaemsuaescrava—exclamouamulata,parandopararespirar.—Faria

todososseuscaprichos.Varreriaochãocomminhalíngua,paraele.

Estavasentadasobreoscalcanharesetinhaacaracongestionada,suarenta,como

seativessemantidoinclinadasobreumasopaemebulição.Todaelapareciavibrar.

Falavapassandogulosamentealínguapeloslábiosúmidoscomosquaisacabavade

beijocar,mordiscar e lamber interminavelmente os órgãos auditivos e olfativos de

donRigoberto.Este,aproveitandoapausa,tomouare,puxandoseulenço,enxugou

asorelhas.Depois,fazendomuitoruído,assoouonariz.

—Estehomemémeu,esóoemprestoavocêporestanoite—disseRosaura-

Lucrecia,comfirmeza.

—Masvocêéoproprietáriodestasmaravilhas?—perguntouEstrella,semdara

mínimaimportânciaaodiálogo.Suasmãosseapoderaramdorostojáalarmadode

donRigobertoesuagrossabocaavançoudenovo,resoluta,emdireçãoàssuaspresas.

— Você nem sequer percebeu? Eu não sou homem, sou uma mulher —

protestouRosaura-Lucrecia,exasperada.—Pelomenos,olheparamim.

Masamulataadesdenhou,comumlevemovimentodeombros,eprosseguiu

fogosamente sua tarefa.Tinha dentro da bocarra quente a orelha esquerda de don

Rigoberto,eeste,incapazdeseconter,soltouumagargalhadahistérica.Naverdade,

estavamuitonervoso.Pressentiaque,aqualquermomento,Estrellapassariadoamor

aoódioelhearrancariaaorelhacomumadentada.“Desorelhado,Lucreciajánãome

amará”, entristeceu-se. Deu um suspiro profundo, cavernoso, tétrico, semelhante

àqueles que o príncipe Segismundo, barbudo e acorrentado, dava em sua torre

secreta, enquanto perguntava aos céus, com gritos desatinados, que delito havia

cometidocontravósporternascido.“Essa pergunta é estúpida”, disse a si mesmo don Rigoberto. Sempre havia

desprezadoo esporte sul-americanoda autocompaixão e, sob tal pontode vista, o

príncipechoraminguentodeCalderóndelaBarca(umjesuíta,aindaporcima),que

se apresentava aopúblico gemendo “Aimísero demim, ai infeliz”, não tinha nadaparaatraí-lonemparafazê-loseidenti carcomele.Porqueentão,nosonho,seus

fantasmas haviam estruturado essa história tomando de empréstimo os nomes de

Rosaura e de Estrella, assim como o disfarcemasculino daquela personagem deAvidaésonho?Talvezporquesuavidasetransformaraempurosonho,desdeapartida

deLucrecia.Poracasoviviaaquelashorassombrias,opacas,quepassavanotrabalho

discutindobalanços,apólices,resseguros,avaliações,investimentos?Oúnicorecanto

devidasólheeratrazidopelanoite,quandoadormeciaeemsuaconsciênciaaporta

dossonhosseabria,comodeviatambémaconteceraSegismundoemsuadesolada

torredepedra,naquelebosquedistante.Eletambémhaviadescobertoaliqueavida

verdadeira,arica,aesplêndidavidaquesesubmetiaeseamoldavaaosseuscaprichos,

eraavidadementira,aquelaquesuamenteeseusdesejossecretavam—despertoou

adormecido—,paraarrancá-lodacelaefazê-loescaparàasfixiantemonotoniadeseu

con namento. A nal, o inesperado sonho não era gratuito: havia um parentesco,

umaafinidadeentreosdoismiseráveissonhadores.

Don Rigoberto recordou um chiste em diminutivos que, de tão bobo, zera

Lucreciaeeleriremcomoduascrianças:“Umelefantinhoseaproximoudamargem

deum laguinhoparabeberaguinhaeumcrocodilinhoomordeue lhearrancoua

trombinha. Choramingando, o elefantinho de nariz chatinho protestava: ‘Seu

engraçadinhodemerdinha.’”

—Soltemeunariz e eu lhedouoquevocêquiser— implorou, aterrorizado,

com voz fanhosa, tipoCantin as, porque os dentinhos carniceiros de Estrella lhe

obturavamarespiração.—Odinheiroquevocêpedir.Mesolte,porfavor!

—Caleaboca,queeuestougozando—balbuciouamulata,soltandoonarizde

donRigoberto por um segundo e voltando a capturá-lo com sua dupla leira de

dentesvorazes.

Hipogrifo violento, ela gozava e voava como o vento, estremecendo-se toda,

enquanto don Rigoberto, invadido pelo pânico, via pelo rabinho do olho que

Rosaura-Lucrecia, a ita, desconcertada, meio soerguida na cama, havia segurado a

mulata pela cintura e tentava afastá-la com suavidade, sem forçar, sem dúvida

temendoque,seapuxasse,Estrella,emrepresália,arrancassecomosdentesonariz

do seu esposo. Assim caram um bom tempo, dóceis, enganchados, enquanto a

mulata se encabritava e gemia, lambendo desenfreada o apêndice nasal de don

Rigoberto e este, emmeio a névoas angustiosas, recordava o monstro de Bacon,

Cabeçadehomem,óleoapavorantequedurantemuito tempoodeixaraobsedado,

agorasabiaporquê:assimodeixariamasfaucesdeEstrella,depoisdamordida.O

queoaterrorizavanãoerasuafacemutilada,masumapergunta:Lucreciacontinuaria

amandoummaridodesorelhadoedesnarigado?Ouoabandonaria?

DonRigobertoleuemseucadernoestefragmento:

oquefoiissoqueàminhafantasiaocorreuquandoeudormiaemetrouxeatéaqui?

Segismundoo recitava aodespertardo sonho arti cial emque (medianteuma

misturadeópio,dormideiraemeimendro)forasubmergidopeloreiBasílioepelo

velho Clotaldo, os quais lhe montavam uma farsa ignóbil, trasladando-o de sua

torre-prisãoaté a corte,para fazê-lo reinarporumbreve lapso, fazendo-o também

crer que essa transição era igualmente um sonho. “Oque aconteceu à sua fantasia

enquantovocêdormia,pobrepríncipe”,pensou,“équeoadormecerameomataram

comdrogas.Devolveram-noporumtempinhoàsuaverdadeiracondição,fazendo-o

acreditarquesonhava.Então,vocêtomouas liberdadesqueapessoatomaquando

gozada impunidadedos sonhos.Deu rédea solta aos seus desejos, arremessouum

homemdobalcão,quasematouovelhoClotaldoeopróprioreiBasílio.Assim,eles

tiveramopretextonecessário—vocêeraviolento,erairascível,eraindigno—para

devolvê-loàscorrenteseàsolidãodesuaprisão.”Apesardisso,invejouSegismundo.

Tambémele,comoodesditosopríncipecondenadopelamatemáticaepelasestrelas

aviver sonhandoparanãomorrerdecon namentoe solidão,eraaquiloquehavia

anotadonocaderno:“umesqueletovivo”,“umanimadomorto”.Mas,àdiferença

daquelepríncipe,nenhumreiBasílio,nenhumnobreClotaldoviriamtirá-lodeseu

abandono e de sua solidão, para, depois de adormecê-lo com ópio, dormideira e

meimendro, despertá-lo nos braços de Lucrecia. “Lucrecia, minha Lucrecia”,

suspirou, percebendo que estava chorando. Como se tornara chorão neste último

ano!

Estrella também lacrimejava,mas de alegria e felicidade.Após o estertor nal,

duranteoqualdonRigobertosentiuumasacudidelasimultâneaemtodososfeixes

denervosdeseucorpo,abriuaboca, soltouonarizdelee sedeixoucairdecostas

sobreacamaforradadeazul,comumadesarmanteebeataexclamação:“Gozeique

foi uma delícia, Virgem santa!” E, agradecida, benzeu-se sem o menor ânimo

sacrílego.

—Você pode ter achado uma delícia, certo,masme deixou semnariz e sem

orelhas,suadelinquente—reclamoudonRigoberto.

TinhaabsolutacertezadequeascaríciasdeEstrellahaviamdeixadosuacaraigual

àdaquelepersonagemvegetaldeArcimboldoqueexibia comonarizuma tuberosa

cenoura.Comumcrescente sentimentodehumilhação,notou,porentreosdedos

comosquaisesfregavaseunarizmachucado,queRosaura-Lucrecia, semumpingo

de compaixão nem preocupação por ele, tava a mulata (que se espreguiçava,

aplacada, sobre a cama) comcuriosidade,um sorrisinho comprazido utuandono

rosto.

—Eédissoquevocêgostanoshomens,Estrella?—perguntouela.

Amulataassentiu.

— A única coisa de que eu gosto— especi cou, suspirando e soltando um

bafejodenso,vegetal.—Oresto,podembotarondeosolnãoilumina.Geralmente

eume contenho e escondo isso, por causa do que vão dizer.Mas, esta noite,me

soltei.Porquenuncaviumasorelhaseumnarizcomoosdoseuhomem.Vocêsme

deixaramconfiante,franguinha.

ExaminouLucreciadealtoabaixocomolhardeconhecedoraepareceuaprová-

la.Estendeuumadasmãos,colocouo indicadornomamiloesquerdodeRosaura-

Lucrecia—donRigobertoacreditouverqueobotãozinhofendidodesuamulherse

endurecia—edisse,comumarisadinha:

—Descobriquevocêémulherquandoestávamosdançando,naboate.Sentiseus

peitinhosemedeicontadequevocênãosabiaconduzirsuaparceira.Fuieuquea

conduzi,enãoocontrário.

—Poisdissimuloumuitobem,euacheiquehaviaenganadovocê—felicitou-a

donaLucrecia.

Sempre esfregando o nariz acariciado e as orelhas ressentidas, don Rigoberto

sentiuumanovaondadeadmiraçãoporsuamulher.Comoelapodiaserversátile

adaptável!EraaprimeiravezemsuavidaqueLucreciafaziacoisasassim—vestir-se

dehomem,iraumrelescabarédeputasemumpaísestrangeiro,meter-seemum

hotel vagabundo com uma dessas sujeitinhas —, e, no entanto, não denotava o

menor incômodo, desassossego ou aborrecimento. Ali estava, conversando

descontraída com a mulata otorrinolaringologista, como se fosse igual a ela, dos

mesmos ambiente e pro ssão. Pareciam duas boas colegas, trocando experiências

duranteummomentodefolgaemsuaatarefadajornada.Ecomoerabela,comolhe

pareciadesejável!ParasaborearesseespetáculodesuamulhernuajuntodeEstrella,

nessetoscoenxergãodecolchaazulada,nameia-luzoleosa,donRigobertofechouos

olhos. Ela estava reclinada de lado, o rosto apoiado na mão esquerda, em um

abandono que realçava a deliciosa espontaneidade de sua postura. Sua pele parecia

muito mais branca nessa luz pobre, seus cabelos curtos, muito mais negros, e o

tu nhodopúbis,azuladodetãoretinto.Enquanto,apaixonadamente,acompanhava

ossuavesmeandrosdascoxasedodorsodesuaamada,elheescalavaasnádegas,os

seios e os ombros, donRigoberto foi esquecendo suas orelhas doloridas, seunariz

maltratado,etambémEstrella,ohotelzinhoordinárioondesehaviamrefugiadoea

CidadedoMéxico:ocorpodeLucreciafoicolonizandosuaconsciência,deslocando,

eliminandoqualqueroutraimagem,consideraçãooupreocupação.

NemRosaura-Lucrecia nemEstrella pareciamnotar—ou, talvez, não dessem

importânciaao fato—queele,maquinalmente, fora tirandoagravata,opaletó,a

camisa,ossapatos,asmeias,acalçaeacueca,lançandocadapeçaaoavariadochãode

linóleoesverdeado.Nãolheprestaramatençãonemsequerquando,dejoelhosaopé

dacama,elecomeçouaacariciarcomasmãoseabeijarrespeitosamenteaspernasde

suamulher. Continuaram absorvidas em suas con dências e fofocas, indiferentes,

comosenãoovissem,comoseofantasmafosseele.

“Esou”,re etiu,abrindoosolhos.Aexcitaçãocontinuavaali,golpeando-lheas

pernas, já semmuita convicção, comoumbadalo enferrujadoquegolpeiaovelho

sinodesa nadopelotempoepelarotinadeumaigrejinhasemparoquianos,sema

menoralegrianemdecisão.

E, então, amemória lhe devolveu o profundo desagrado— o gosto ruim na

boca,naverdade—deixadonelepelo nalcortesão,abjetamenteservilaoprincípio

de autoridade e à imoral razão de Estado, daquela obra de Calderón de la Barca,

quando,aosoldadoqueinicioucontraoreiBasílioarebeliãograçasàqualopríncipe

Segismundo consegue ocupar o trono da Polônia, o novo rei, mal-agradecido e

canalha, impõe a pena de apodrecer pelo resto da vida na torre onde ele mesmo

padecera, sob o argumento— o caderno reproduzia os versos pavorosos— “do

traidornãohánecessidade/sendoatraiçãopassada”.“Filosofiahorrenda,moralrepugnante”,refletiu,esquecendotransitoriamentesua

bela mulher despida, a quem, no entanto, continuava a acariciar de maneira

maquinal. “Por ser conveniente defender acima de tudo a obediência à autoridade

constituída,condenaroprincípioeaprópriaideiaderebeldiacontraorei,opríncipe

perdoaBasílioeClotaldo,seusopressoresetorturadores,ecastigaovalentesoldado

anônimoque insu oua tropacontrao injustomonarca, tirouSegismundode sua

masmorraeocolocounotrono.Quenojo!”

Por acaso uma obra envenenada por essa doutrina desumana, inimiga da

liberdade, merecia ocupar e alimentar seus sonhos, preencher seus desejos? No

entanto,tinhadeexistiralgumarazãoparaque,nessanoite,seusfantasmastomassem

posse tão completa e exclusiva de seu sonho.Voltou a examinar os cadernos, em

buscadeumaexplicação.

O velho Clotaldo chamava a pistola de “serpente de metal”, e a disfarçada

Rosauraseperguntava“seavistanãopadeceenganos/criadospelafantasia,/àmedrosaluzqueainda temodia”.DonRigoberto olhounadireçãodomar.Ao longe, na

linhadohorizonte,umamedrosa luzanunciavaonovodia,aquela luzque,acada

manhã,destruíaviolentamenteseupequenomundodeilusãoesombrasondeeleera

feliz(feliz?Não:ondeeraapenasumpoucomenosdesditoso)eodevolviaàrotina

carceráriadecincodiasporsemana(chuveiro,desjejum,trabalho,almoço,trabalho,

jantar), em quemal lhe restava uma brecha para ltrar suas invenções.Havia uns

versinhosanotados,comumaindicaçãoàmargemquedizia“Lucrecia”eumasetinha

assinalando-os: “...mesclando,/ aos trajes custosos deDiana, os arneses/ de Palas.” Acaçadora e a guerreira, confundidas em sua amada Lucrecia. Por que não? Mas,

evidentemente, não era isso o que havia incrustado a história do príncipe

Segismundonofundodeseusubconsciente,nemoqueatinhaatualizadoemsuas

fantasiasdestanoite.Oquê,então?

“Nãoépossívelquecaibam/emumsonhotantascoisas”,assombrava-seopríncipe.

“Vocêéumidiota”,replicou-lhedonRigoberto.“Emumúnicosonhocabetodaa

vida.”Emocionou-secomarespostadeSegismundo,aosertransferido,soboefeito

da droga, de seu cárcere ao palácio, quando lhe perguntavam o que mais o

impressionara ao retornar ao mundo: “Nada me fez enlevado/ pois tudo eu tinhaantecipado; mas se para admirar-me houvesse porventura/ algo no mundo, seria aformosura/damulher.”“EissosemnuncatervistoLucrecia”,pensou.Eleaviaagora,

esplêndida,sobrenatural,derramadanaquelacolchaazul,ronronandodelicadamente

com as cócegas que seu amorosomarido lhe fazia ao beijá-la nas axilas. A amável

Estrellahavia se levantado,cedendoadonRigobertoo lugarqueocupavanacama

juntodeRosaura-Lucrecia,eforasesentarnocantoondedonRigobertoestavaantes,

quandoelaseafanavacomasorelhaseonarizdele.Mantinha-sediscretaeimóvel,

semquererdistraí-losneminterrompê-los,eosobservavacomcuriosidadesimpática,

enquantoosdoisseabraçavam,seentrelaçavamecomeçavamaseamar.

Oqueéavida?Umfrenesi.Oqueéavida?Umailusão,umasombra,umaficção,eomaiorbemébisonho;poistodaavidaéumsonho,eossonhos,sonhossão.

“Mentira”,disseeleemvozalta,golpeandoamesadoescritório.Avidanãoera

umsonho,ossonhoseramumamentiradébil,umembustefugazquesóserviapara

escapar transitoriamente das frustrações e da solidão, e paramelhor apreciar, com

amarguramaisdolorosa,comoerabelaesubstancialavidaverdadeira,aquelaemque

secomia,setocavaesebebia,tãosuperioreplenaquandocomparadaaosimulacro

que,conjurados,osdesejoseafantasiamimetizavam.Abatidopelaangústia—jáera

dia, a luz do amanhecer revelava as escarpas cinzentas, omar plúmbeo, as nuvens

pançudas,amuretaarruinadaeocalçamentoleproso—,agarrou-seaocorponude

Lucrecia-Rosaura,comdesespero,paraaproveitaressesúltimossegundos,embusca

de um prazer impossível, com o pressentimento grotesco de que a qualquer

momento,talveznodoêxtase,sentiriaaterrissaremsobresuasorelhasassúbitasmãos

damulata.

A víbora e a lampreia

Pensandoemti,liAperfeitacasada,defreiLuisdeLeón,eentendiporque,dadaaideiadematrimônioquepregava,aquelere nadopoetapreferiu,aoleitonupcial,a

abstinência e os hábitos agostinianos. Contudo, nessas páginas de boa prosa, e

exuberantes de comicidade involuntária, encontrei esta citação do bem-aventurado

São Basílio que se encaixa como uma luva, adivinha em que mão marfínea de

mulherexcepcional,esposamodeloeamantesaudosíssima?:

Avíbora,animalferocíssimoentreasserpentes,vaidiligentecasar-secomalampreiamarinha;aochegar,silva,comoseavisassequeestáali,paradestamaneiraatraí-ladomar e fazê-la abraçar-se maritalmente com ela. A lampreia obedece e junta-se semmedoàpeçonhentafera.Oquedigocomisto?Oquê?Que,pormaisásperoedemaisferascondiçõesqueomaridoseja,énecessárioqueamulherosuporte,eemnenhuma

ocasião consinta em romper a paz.Oh!Ele é um verdugo?Mas é teumarido!É umbêbado?Masolaçomatrimonialfê-loumcontigo.Umáspero,umdesaprazível!Masjámembroteu,emembroomaisprincipal.E,paraqueomaridoouçaoquetambémlheconvém:avíboraentão,porrespeitoaoajuntamentoquefaz,apartadesisuapeçonha,etunãodeixarásacruezadesumanadeteunatural,porhonradomatrimônio?IstoédeBasílio.

FreiLuisdeLeón,

Aperfeitacasada,cap.III.

Abraça-temaritalmentecomestavíbora,lampreiaamadíssima.

7AlusãoàobradoespanholFranciscoDelicadoRetratode la lozanaandaluza(1528),nãomuitoconhecida,

masconsideradaprecursoradoromancepicaresco.(N.daT.)

Epílogo

Uma família felizEpílogo - Uma família feliz

—A nal,essepiqueniquenãofoitãodesastrosoassim—dissedonRigoberto,com

umsorrisoamplo.—Serviuparaaprendermosumalição:emcasa,fica-semelhordo

queemqualquerlugar.E,sobretudo,melhordoquenocampo.

DonaLucreciaeFonchitocelebraramocomentário,eatéJustiniana,quenesse

momentotraziaossanduíchesdefrango,abacate,ovoetomateaque carareduzido

oalmoçoporculpadopiqueniquefrustrado,tambémcomeçouarir.

— Agora sei o que signi ca pensar positivo, maridinho — felicitou-o dona

Lucrecia.—Eteratitudesconstrutivasdiantedaadversidade.

—Fazerdolimãoumalimonada—reforçouFonchito.—Istomesmo,papai!

—Éque,hoje,nadanemninguémpodeofuscarminha felicidade—assentiu

don Rigoberto, dando uma olhada nos sanduíches.—Não digo um piquenique

miserável.Nemmesmoumabombaatômicameafetaria.Bem,saúde!

Bebeu um gole de cerveja fria com visível satisfação e deu uma mordida no

sanduíchede frango.OsoldeChaclacayo lhequeimaraa testa, a cara eosbraços,

avermelhadospela insolação.De fato,mostrava-semuitocontente,desfrutandodo

almoçoimprovisado.Deletinhavindoaideia,nanoiteanterior,deumpiquenique

em Chaclacayo, nesse domingo, para fugir da neblina e da umidade de Lima e

desfrutardobomtempoemcontatocomanatureza, àbeirado rio e em família.

DonaLucreciaestranhoubastanteessaproposta,poisrecordavaosantohorrorqueo

universo campestre sempre despertara em seumarido,mas aceitou de bomgrado.

Não estavam estreando uma segunda lua de mel? Estreariam, também, novos

hábitos.Partiramdemanhã,nahoraprevista—nove—,equipadoscomumaboa

provisãodebebidaseumalmoçocompleto,preparadopelacozinheira,que incluía

alfajorescommanjar-branco,asobremesapreferidadedonRigoberto.

Aprimeiracoisaquedeuerradofoiarodoviadocentro,lotadaatalpontoqueo

avançoeralentíssimo,eissoquandoavançavam,entrecaminhões,ônibusetodotipo

deveículosdesconjuntadosque,alémdeengarrafaraestradaedeparalisarotráfego

por longos intervalos, soltavampelo escapamentoabertouma fumaça enegrecida e

umfedordegasolinaqueimadaqueestonteavam.ChegaramaChaclacayodepoisdo

meio-dia,exaustosecongestionados.

Encontrar um lugar adequado, junto ao rio, revelou-se mais árduo do que

haviam imaginado. Antes de tomar o atalho que os aproximaria da margem do

Rímac—quenessaalturanãoeracomoemLima,pareciaumriodeverdade,largo,

cheio de água, decorado de espuma e ondinhas saltitantes nos pontos onde batia

contraaspedraseosrochedos—,tiveramdedarvoltasemaisvoltasquesempreos

devolviamàmaldita estrada.Quando, graças à ajudadeummorador compassivo,

descobriramumdesvioqueos levouaté amargem, emvezdemelhorar, as coisas

pioraram. Nesse lugar, o Rímac servia de lixão à vizinhança (assim como de

mijadouro e cagatório), a qual havia lançado ali todos os refugos imagináveis—

desde papéis, latas e garrafas vazias, até restos de comida, excrementos e animais

mortos—, demodo que, alémda vista deprimente, uma insuportável hediondez

maculavaaárea.Nuvensdemoscasagressivasosobrigaramataparasbocascomas

mãos. Nada disso parecia combinar com a bucólica expedição esperada por don

Rigoberto. Este, no entanto, armado de uma paciência indestrutível e de um

otimismodecruzadoquemaravilhavamsuamulhereseu lho,persuadiuafamíliaa

nãosedeixarabalarpelascasuaiscircunstâncias.Continuaramprocurando.

Quando, um bom tempo depois, pareceu que chegavam a um lugar mais

hospitaleiro—ouseja,desprovidodefedoresmefíticosedemonturo—,oespaço

jáestavatomadoporincontáveisgruposfamiliaresque,algunsembaixodebarracas

de praia, comiam talharins lambuzados comummolho avermelhado e escutavam

música tropical, a todo o volume, em rádios e toca- tas portáteis. O erro que

cometeramnessahora foide exclusiva responsabilidadededonRigoberto, embora

inspirado nomais legítimo dos desejos: embusca de ummínimo de privacidade,

afastar-seumpoucodamultidãodecomedoresdemassa,paraosquais,pelovisto,

era inconcebível sair da cidade por algumas horas sem levar consigo esse produto

urbanoporantonomásiaqueéoruído.DonRigobertoacreditouterencontradoa

solução.Comoumescoteiro,propôsque,tirandoossapatosearregaçandoacalça,

atravessassemum trecho de rio em direção ao que parecia umaminúscula ilha de

areia,cascalhoeesboçosdemato,aqual,miraculosamente,nãoestavaocupadapela

numerosacoletividadedomingueira.Assim zeram.Oumelhor,começaramafazer,

carregandoassacolasdecomidaebebidapreparadaspelacozinheiraparaaexcursão

campestre. A poucosmetros da idílica ilhota, don Rigoberto escorregou em uma

formacartilaginosa.CaiusentadonasfrescaságuasdorioRímac,oque,emsi,não

teriaimportância,considerando-seocalorquefaziaeotantoqueelesuava,se,junto

comsuapessoa,nãotivessetambémnaufragadoacestadopiquenique,aqual,para

acrescentarumtoquedecomicidadeaoacidente,antesdeirrepousarnoleitodorio

esparramou-setoda,espalhandoàdireitaeàesquerdadasturbulentaságuas,quejáos

arrastavamemdireçãoaLimaeaooceanoPací co,opicanteceviche,oarrozcom

pato e os alfajores com manjar-branco, assim como a primorosa toalha e os

guardanapos quadriculadinhos em vermelho e branco que dona Lucrecia havia

escolhidoparaopiquenique.

—Podemrir,semproblema,nãoprecisamsesegurar,eunãovoumeaborrecer

—diziadonRigobertoàesposaeao lho,osquais,ajudando-oaselevantar,faziam

umas caretas grotescas e tentavam sofrear as gargalhadas. As pessoas da margem

tambémriam,aovê-loencharcadodospésàcabeça.

Dispostoaoheroísmo(pelaprimeiravezemsuavida?),donRigoberto sugeriu

perseverare car,alegandoqueosoldeChaclacayoosecariaemtrêstempos.Dona

Lucreciafoitaxativa.Dejeitonenhum,elepodiapegarumapneumonia,tinhamde

retornaraLima.Eo zeram,derrotados,embora semcederaodesespero.E rindo

carinhosamentedopobredonRigoberto,quehaviatiradoacalçaedirigiadecueca.

ChegaramàcasadeBarrancoporvoltadascincodatarde.EnquantodonRigoberto

tomavabanhoetrocavaderoupa,donaLucrecia,ajudadaporJustiniana,queacabava

devoltardesuafolgasemanal—omordomoeacozinheirasóretornariamànoite

—, preparou os sanduíches de frango com abacate, tomate e ovo desse tardio e

acidentadoalmoço.

—Desdequefezaspazescomminhamadrasta,vocêficoumuitobom,papai.

DonRigobertoafastouabocadosanduíchemeiocomido.Pensouumpouco.

—Estáfalandosério?

—Muitosério—replicouomenino,virando-separadonaLucrecia.—Nãoé

verdade,madrasta?Fazdoisdiasqueelenãoresmunganemsequeixadenada,estáde

bomhumoredizendocoisasbonitasotempotodo.Issonãoéserbom?

—Sóestamosreconciliadoshádoisdias—riudonaLucrecia.Mas, candoséria

e tando seu marido com ternura, acrescentou: — Na realidade, ele sempre foi

boníssimo.Vocêdemorouumpoucoaperceber,Fonchito.

—Não sei seme agrada queme chamem de bom— reagiu nalmente don

Rigoberto, adotando uma expressão descon ada. — Todas as pessoas boas que

conheci eram um pouco imbecis. Como se tivessem cado boas por falta de

imaginação e de apetites. Espero que, por me sentir contente, eu não esteja me

tornandomaisimbecildoquesou.

—Nãoháperigo.—AsenhoraLucreciaaproximouorostododeseumaridoe

obeijounatesta.—Vocêétudonomundo,menosisso.

Estavamuitobonita,comasfacesarrebatadaspelosoldeChaclacayo,ombrose

braçosnus,naquelelevevestido orido,depercal,quelhedavaumaaparênciafresca

esaudável.“Comoestábonita,rejuvenescida”,pensoudonRigoberto,deleitando-se

comoespigadopescoçodesuamulherecomagraciosacurvadeumadasorelhas,na

qualseenroscavaumamechasoltadoscabelos,presosnanucaporuma taamarela,

amesmadas sapatilhasdopasseio.Onze anos tinham sepassado e ela estavamais

jovemeatraentedoquenodiaemqueeleaconhecera.Eondesere etiammaisessa

saúdeeessabeleza físicaquedesa avamacronologia?“Nosolhos”, respondeua si

mesmo.Essesolhosquemudavamdecor,deumcastanho-claroaumverde-escuro,

a um suave negro. Agora, pareciam muito claros sob os longos cílios escuros, e

animadosporumaluzalegre,quasecintilante.Semperceberacontemplaçãodeque

eraobjeto,suamulherdavacontacomapetitedosegundosanduíchedeabacatecom

tomateeovo,edevezemquandobebiaunsgolinhosdecervejafriaquedeixavam

úmidos os seus lábios. Era a felicidade, esta sensação que o embargava? Esta

admiração,estagratidão,estedesejoquesentiaporLucrecia?Sim.Comtodasassuas

forças,donRigobertodesejouquevoassemashorasquefaltavamparaoanoitecer.

Mais uma vez, estariam sozinhos e ele teria nos braços sua adorávelmulherzinha,

finalmenteaqui,emcarneeosso.

—AúnicacoisaemqueàsvezesnãomesintotãoparecidocomEgonSchieleé

queelegostavamuitodocampoeeu,nada—disseFonchito,prosseguindoemvoz

altaumare exão iniciadaemsilênciohavia tempo.—Nisso,puxei avocê,papai.

Tambémnãogostonemumpoucodeficaradmirandoárvoresevaquinhas.

—Porissoopiqueniquedeucomosburrosn’água— losofoudonRigoberto.

—Uma vingança da natureza contra dois inimigos.O que você dissemesmo de

EgonSchiele?

—Queaúnicacoisaemquenãomepareçocomeleénessacoisadocampo,ele

gostava e eu não— explicou Fonchito.— Pagou caro por seu amor à natureza.

Chegouaserpresoepassouummêsnacadeia,ondequaseenlouqueceu.Setivesse

ficadoemViena,issonuncateriaacontecido.

—ComovocêestábeminformadosobreavidadeEgonSchiele,Fonchito!—

surpreendeu-sedonRigoberto.

—Você nem imagina quanto— interrompeu dona Lucrecia.—Sabe de cor

tudooque ele fez,disse, escreveu, tudooque lhe aconteceu em seus vinte eoito

anosdevida.Conhecetodososquadros,desenhosegravuras,comtítulosedatas.E

atéseacreditaumEgonSchielereencarnado.Euchegoameassustar,juro.

Don Rigoberto não riu. Limitou-se a assentir, como que ponderando essa

informação com o maior cuidado, mas, na verdade, dissimulando o súbito

aparecimento em suamentedeumaminhoquinha,uma estúpida curiosidade, essa

mãe de todos os vícios. Como Lucrecia havia tomado conhecimento de que

Fonchito sabia tantas coisas sobre Egon Schiele? “Schiele!”, pensou. “Variante

extraviada do expressionismo, a quem Oscar Kokoschka chamava, com toda a

justiça,depornógrafo.”Descobriu-sepossuídoporumódiovisceral,ácido,bilioso,

contraEgonSchiele.Benditaagripeespanholaqueolevou!DeondeLucreciasabia

que Fonchito se acreditava aquele rabiscador abortado pelos últimos vagidos do

impérioaustro-húngaro,sobreoqual,tambémemboahora,oalçapãosefechara?O

pioreraque,inconscientedeestarafundandonaságuaspútridasdaautodelação,dona

Lucreciacontinuavaatorturá-lo:

—Estou contente por tocarmos neste assunto, Rigoberto. Faz tempo que eu

queria lhe falar disso, até pensei em lhe escrever. Andomuito preocupada com a

maniadestemeninoporessepintor.Sim,Fonchito.Porquenãoconversamos,os

três?Quemmelhordoqueseupaiparalhedarconselhos?Eujálhedisseváriasvezes.

NãoéquemepareçaruimessasuapaixãoporEgonSchiele.Masvocêestá cando

obsessivo.Nãoseimportasenóstrêstrocarmosumasideias,nãoé?

—Achoqueopapainãoestásesentindobem,madrasta—limitou-seFonchito

a dizer, com uma candura que don Rigoberto entendeu como uma afronta

suplementar.

—MeuDeus,comovocêestápálido.Viu?Euavisei,aquelaencharcadanorio

lhefezmal.

—Nãoénada,nãoénada—dissedonRigoberto, comumavozinhadifusa,

para tranquilizar sua mulher. — Um pedaço grande demais, e engasguei. Um

ossinho,acho.Pronto,jáengoli.Estoubem,nãosepreocupe.

—Masestátodotrêmulo—alarmou-sedonaLucrecia,tocandoatestadele.—

Vocêseresfriou,claro.Umchazinhodecapim-limãoeduasaspirinas,agoramesmo.

Voupreparar.Não,nãoproteste.Edepois,cama,semchiar.

NemsequerapalavracamareanimouumpoucodonRigoberto,que,empoucos

minutos, havia passado da alegria e do entusiasmo vitais a umdesânimo confuso.

Viu que dona Lucrecia se afastava às pressas rumo à cozinha. Como o olhar

transparentedeFonchitooincomodava,disse,paraquebrarosilêncio:

—Schieleestevepresoporteridoaocampo?

—Porteridoaocampo,não,queideia—respondeuseu lho,comumarisada.

— Foi acusado de imoralidade e sedução. Em uma aldeiazinha chamada

Neulengbach.IssonuncateriaacontecidoseeleficasseemViena.

— Ah, é? Me conte— convidou don Rigoberto, consciente de que tentava

ganhar tempo, embora não soubesse para quê. Em vez do glorioso e ensolarado

esplendor dos últimos dois dias, seu estado de espírito, nestemomento, era uma

calamidade com aguaceiros, raios e trovões. Apelando para um recurso que havia

funcionado outras vezes, tentou se acalmar enumerando mentalmente guras

mitológicas.Ciclopes,sereias,lestrigões,lotófagos,circes,calipsos.Aíficou.Tinhaacontecidonaprimaverade1912;nomêsdeabril,exatamente,explicava

omeninocomloquacidade.EgonesuaamanteWally(umapelido,elasechamava

ValeriaNeuzil) estavam empleno campo, emuma casinha alugada, nos arredores

dessaaldeiadifícildepronunciar.Neulengbach.Egoncostumavapintaraoar livre,

aproveitando o tempo bom. E, uma tarde, apareceu por ali uma mocinha,

procurando conversa. Conversaram e não aconteceu nada. A garota voltou várias

vezes.Atéque,emumanoitedetemporal,chegouensopadaeanunciouaWallye

Egon que havia fugido da casa dos pais. Eles tentaram convencê-la, você fezmal,

volte para casa, e ela, não, não,medeixempelomenos passar a noite com vocês.

Concordaram.AgarotadormiucomWally;EgonSchiele,emoutroquarto.Nodia

seguinte... mas o retorno de dona Lucrecia, trazendo uma infusão fumegante de

capim-limão eduas aspirinas, interrompeu anarraçãodeFonchito, que, aliás, don

Rigobertomalescutava.

—Beba todinho, assim,bemquente—mimou-odonaLucrecia.—Comas

duas aspirinas. E depois, cama, para nanar. Não quero que você se resfrie, meu

velhinho.

DonRigobertosentiu—suasgrandesnarinasaspiravamafragrânciajardineirado

capim-limão—queoslábiosdesuaesposapousavamalgunssegundossobreosralos

cabelosdeseucrânio.

—EstoucontandoaeleaprisãodeEgon,madrasta—esclareceuFonchito.—

Jálheconteitantasvezesquevocênãovaiaguentarouvirdenovo.

—Não, não, tudo bem, continue— animou-o ela.—Mas é verdade, já sei

tudodecor.

—Quandovocêcontouestahistóriaàsuamadrasta?—deixouescaparentreos

dentesdonRigoberto,enquantosopravaochádecapim-limão.—Seelasóestáaqui

emcasahádoisdias,eeuamonopolizeiotempotodo?

—Quando ia visitá-la na casinha doOlivar— retrucou omenino, com sua

cristalinafranquezahabitual.—Elanãolhecontou?

DonRigobertosentiuqueoardasaladejantarseeletrizava.Paranãoterdefalar

nemdeolharparasuaesposa,tomouumgoleheroicodoardentecapim-limão,que

lhequeimouagargantaeoesôfago.Oinfernoseinstalouemsuasentranhas.

—Aindanãotivetempo—ouviudonaLucreciamurmurar.Olhou-ae—ai,ai!

—elaestavalívida.—Maséclaroqueiacontar.Poracasoessasvisitastinhamalgo

deerrado?

—Oqueiriamterdeerrado?—dissedonRigoberto,engolindooutrosorvodo

inferno líquido e perfumado. — Acho muito bom que você tenha ido ver sua

madrasta para lhe dar notícias minhas, Fonchito. E essa história de Schiele e sua

amante?Vocêparounomeio,eeuquerosabercomotermina.

—Possocontinuar?—alegrou-seomenino.

DonRigobertosentiasuagargantacomoumaverdadeirachagaeadivinhavaque

suaesposa,mudaepetri cadaaoseulado,tinhaocoraçãosaindopelaboca.Iguala

ele.

Bom, então...No dia seguinte, Egon eWally levaram a garota, de trem, para

Viena,onde a avódelamorava.Agarotahaviaprometidoque caria lá, comessa

senhora.Mas,nacidade,searrependeueacaboupassandoanoitecomWally,emum

hotel. Egon e sua amante, na manhã seguinte, retornaram com a mocinha a

Neulengbach, onde ela permaneceu mais dois dias. No terceiro, apareceu o pai.

EnfrentouEgondoladodefora,ondeeleestavapintando.Muitoalterado,opaida

mocinha avisou que havia denunciado o pintor à polícia, acusando-o de sedução,

porquesua lhaeramenor.EnquantoSchieletentavaacalmá-lo,explicandoquenão

tinha acontecido nada, dentro da casa, a garota, ao descobrir o pai, pegou uma

tesouraetentoucortarospulsos.MasWally,Egoneopaiconseguiramimpedi-lae

ajudá-la.Elaeopaiconversarame zeramaspazes.Partiramjuntos,eWallyeEgon

acharamqueestavatudoresolvido.Masclaroquenãofoiassim.Poucosdiasdepois,

apolíciaapareceuparaprendê-lo.

Escutavamseurelato?Aparentemente,sim,poistantodonRigobertocomodona

Lucrecia estavam imóveis e pareciam ter perdido não só os movimentos, mas

tambémarespiração.Tinhamosolhoscravadosnomenino,eaolongodahistória,

feitasemvacilações,compausaseênfasesdebomnarrador,nenhumdosdoissequer

pestanejou. Mas e a palidez que exibiam? E as miradas concentradas e absortas?

Estariam tão comovidos assim por aquele antigo episódio com aquele pintor

longínquo? Essas eram as perguntas que don Rigoberto acreditava ler nos grandes

olhos vivazesdeFonchito, que agora examinavamumeoutro, comcalma, como

que esperando um comentário. O menino estaria rindo deles? Rindo dele? Don

Rigoberto tou os olhos claros e translúcidos de seu lho, procurando o brilho

malévolo,apiscadelaouin exãodeluminosidadequedelatasseomaquiavelismo,a

estratégia,adubiedade.Nãodescobriunada:sómesmoamiradasã,límpida,pulcra,

deumaconsciênciainocente.

—Continuo,ouvocêjásecansou,papai?

Don Rigoberto negou com a cabeça e, fazendo um grande esforço — sua

gargantaestavasecaeásperacomoumalixa—,murmurou:“Eoqueaconteceucom

elenaprisão?”

Tinha sidomantido vinte e quatrodias atrás das grades, acusadode sedução e

imoralidade. Sedução, pelo episódio da garota, e imoralidade, por uns quadros e

desenhosdenusqueapolíciaencontrounacasa.Como coudemonstradoqueele

não tinha tocadonamocinha, foi absolvido da primeira acusação.Mas não da de

imoralidade.Ojuizconsiderouque,comoacasaeravisitadapormenores,garotase

garotosquepodiamtervistoosnus,Schielemereciaumcastigo.Qual?Queimaro

maisimoraldosseusdesenhos.

Naprisão, sofreuo indizível.Nos autorretratosquepintou em seu calabouço,

apareciamuitomagro,barbado,olhos fundos, expressão cadavérica.Mantevenesse

períodoumdiárionoqualescreveu(“Espere,espere,euseiafrasedecor”):“Eu,que

sou,pornatureza,umdosseresmaislivres,vejo-meatadoporumaleiquenãoéa

dasmassas.”Pintoutrezeaquarelas,eissoosalvoudeenlouqueceroudesematar:o

catre, a porta, a janela e uma luminosa maçã, uma das que Wally lhe levava

diariamente.Acadamanhã,elaseplantavaemumpontoestratégico,nosarredores

daprisão,eEgonpodiavê-laatravésdasbarrasdesuacela.PorqueWallyoamava

muitoesecomportoumaravilhosamentecomele,nessemêsterrível,dando-lhetodo

o seu apoio. Egon, ao contrário, não devia amá-la tanto assim. Ele a pintava, é

verdade;usava-acomomodelo,éverdade;masnãofaziaissosócomela,faziacom

muitasoutras,sobretudocomaquelasmenininhasquerecolhianasruasemantinha

por perto, meio despidas, enquanto as pintava em todas as poses imagináveis,

encarapitado em sua escada. As menininhas e os menininhos eram sua obsessão.

Morriadeamoresporelese,bom,parecequenão sóparapintá-los,mas também

queosamavadeverdade,nobomenomausentidosdapalavra.Eraoquediziam

seusbiógrafos.Que, juntocomsuacondiçãodeartista,eleeratambémumpouco

pervertido,poistinhapredileçãopormeninosemeninas...

— Bem, bem, acho queme resfriei um pouco, de fato— interrompeu don

Rigoberto,levantando-setãobruscamentequederrubounochãooguardanapoque

mantinhasobreaspernas.—Émelhorseguirseuconselho,Lucrecia,voumedeitar.

Nãoqueropegarumadaquelasgripescavalaresquemeatacam.

Falousemencararsuamulher,sóseu lho,oqual,quandooviudepé,secalou

e adotou uma expressão alarmada, como se estivesse ansioso por ajudar. Don

RigobertotampoucoolhouparaLucreciaaopassaraoseuladorumoàescada,apesar

dacuriosidadequeodevoravaporsaberseelaaindaestavalívida,ouantesrubra,de

indignação,desurpresa,de incerteza,dedesassossego,perguntando-se,comoele, se

aquiloqueomeninohaviaditoefeitoobedeciaaumamaquinaçãooueraobrado

acaso intrigante, rocambolesco, frustrante e mesquinho, inimigo da felicidade.

Percebeuquearrastavaospés,comoumanciãodecrépito,eseempertigou.Subiuos

degrausemumritmovivo,comoqueparademonstrar(aquem?)queaindaeraum

homemenérgicoeemplenaforma.

Depoisdetirarapenasossapatos,deitou-sedecostasnacamaefechouosolhos.

Seu corpo ardia, febril. Viu uma sinfonia de pontos azuis na escuridão de suas

pálpebras e teve a impressão de ouvir o beligerante zumbido das vespas que havia

escutadonaquelamanhã,duranteopiqueniquefrustrado.Poucodepois,comoque

soboefeitodeumfortesonífero,caiunosono.Oudesmaiou?Sonhouqueestava

comcaxumbaequeFonchitooadvertia, comvozdeadultoearesdeespecialista:

“Cuidado,papai!Trata-sedeumvírus ltrávele,sedesceratéosbagos,elesvãovirar

duasbolasdetênis,eseráprecisoarrancá-los.Comoosdentesdosiso,dojuízo,mas

o nal!”Despertouofegante,banhadoemsuor—donaLucrecialhejogaraemcima

uma coberta—, e notou que a noite havia caído. Estava escuro, o céu não tinha

estrelas,aneblinaapagavaasluzesdocalçadãodeMira ores.Aportadobanheirose

abriue,nomeiodojorrodeluzqueentrounoquartopenumbroso,apareceudona

Lucrecia,derobe,prontaparasedeitar.

—Eleéummonstro?—perguntou-lhedonRigoberto,angustiado.—Seráque

se dá conta do que faz, do que diz? Faz conscientemente o que faz, medindo as

consequências?Ou será que não?Que é simplesmente ummenino travesso, cujas

travessurasresultammonstruosas,semqueelequeira?

Suamulhersedeixoucairnopédacama.

— Eume pergunto isso todos os dias, muitas vezes por dia— disse, muito

abatida, suspirando.—Creioquenemele sabe.Você estámelhor?Dormiuumas

duas horas. Fiz uma limonada bem quente, está aí na garrafa térmica. Quer um

copinho?Apropósito,escute.EununcapenseiemlheesconderqueFonchitoiame

visitarnoOlivar.Masfuideixandopassar,nessesdoisdiastãoatarefados.

— Claro— atrapalhou-se don Rigoberto, gesticulando.— Não vamos falar

disso,porfavor.

Ficoudepée,murmurando“Éaprimeiravezqueadormeçoforadehora”,foi

atéseuquartodevestir.Despiu-se;deroupãoechinelos,trancou-senobanheiropara

asminuciosasabluçõesquecostumavafazerantesdedormir.Sentia-seacabrunhado,

confuso,comumzumbidonacabeçaquepareciapressagiarumagripeforte.Abriua

torneira de água quente da banheira e espalhou por cima meio frasco de sais.

Enquanto a banheira se enchia, passou o dental, escovou os dentes e, com uma

pinça na, depurou suas orelhas dos pelinhos recentes. Havia quanto tempo

abandonara o costumede dedicar umdia da semana, alémdo banho cotidiano, à

higieneespecialdecadaumdosseusórgãos?DesdequesesepararadeLucrecia.Um

ano,maisoumenos.Restabeleceriaaquelasaudávelrotinasemanal:segunda,orelhas;

terça,nariz;quarta,pés;quinta,mãos;sexta,bocaedentes.Etcetera. Submersona

banheira, sentiu-se menos desanimado.Tentou adivinhar se Lucrecia já se metera

embaixodos lençóis,quecamisola ela estavausando, estarianua?, e conseguiuque

poralgunsmomentosapresençaagourentaseeclipsassedesuacabeça:acasinhado

Olivar de San Isidro, uma gurinha infantil de pé junto à porta, um dedinho

tocandoa campainha.Deumavezpor todas,devia tomarumadecisãoquantoao

menino. Mas qual? Todas pareciam ineptas ou impossíveis. Depois de sair da

banheira e de se enxugar, friccionou-se com água-de-colônia da loja Floris, de

Londres, de onde um colega e amigo do Lloyd’s lhe fazia remessas periódicas de

sabonetes,cremesdebarbear,desodorantes,talcoseperfumes.Vestiuumpijamade

sedalimpoedeixouoroupãopenduradonoquartodevestir.

DonaLucreciajáestavanacama.Tinhaapagadoasluzesdodormitório,excetoa

desuamesadecabeceira.Láfora,omarbatiaviolentamentecontraosrochedosde

Barranco e o vento soltava lamentos lúgubres. Ele sentia seu coração latejar com

força, enquantodeslizava sobos lençóis, juntoàesposa.Umsuavearomadeervas

frescas, de ores úmidas de orvalho, de primavera, penetrou-lhe as narinas e lhe

chegou até o cérebro.Quase levitando, de tão tenso que estava, podia perceber, a

milímetrosdesuapernaesquerda,acoxadesuamulher.Naluzescassaeindireta,viu

que Lucrecia usava uma camisola de seda cor-de-rosa, presa nos ombros por duas

alcinhas nas,comumaorladerendapelaqualeledivisavaosseiosdela.Suspirou,

transformado. O desejo, impetuoso, liberador, agora preenchia seu corpo,

transbordava pelos seus poros. Sentia-se tonto e embriagado pelo perfume de sua

mulher.

Nisso, adivinhando-o, Lucrecia estendeu amão, apagou a luz do abajur e, no

mesmomovimento, virou-se para ele e o abraçou.DonRigoberto deixou escapar

um gemido ao sentir o corpo de suamulher, que ele abraçou ansioso e apertou,

estreitando-o com braços e pernas. Ao mesmo tempo, beijava-a no pescoço, nos

cabelos,murmurandopalavrasdeamor.Mas,quandohaviacomeçadoasedespirea

despojá-la da camisola, dona Lucrecia deslizou em seu ouvido uma frase que lhe

provocouoefeitodeumaduchagelada:

—Elefoimeverháseismeses.Apareceuumatarde,derepente,nacasinhado

Olivar. E, desde então, me visitou sem parar, ao sair do colégio, escapulindo da

academia de pintura.Três e até quatro vezes por semana.Tomava o chá comigo,

cava uma hora, duas.Não sei por que não lhe contei ontem, anteontem. Eu ia

contar.Juroqueia.

—Eu lhe suplico,Lucrecia—imploroudonRigoberto.—Nãotemqueme

contarnada.Peçopeloquelheformaiscaro.Euamovocê.

—Querocontar.Agora,agora.

Continuava abraçada aomarido, e, quando ele lhe buscou a boca, abriu-a e o

beijoutambém,avidamente.Ajudou-oatiraropijamaeadespi-ladacamisola.Mas

depois, enquanto donRigoberto a acariciava com asmãos e lhe passava os lábios

peloscabelos,asorelhas,orostoeopescoço,continuoufalando:

—Nãomedeiteicomele.

—Nãoquerosabernada,meuamor.Temosquefalardisso,logoagora?

—Sim,agora.Nãomedeiteicomele,mas,espere.Nãoporméritomeu.Por

culpadele. SeFonchito tivesse pedido, se tivesse feito amenor insinuação, eume

deitariacomele.Ecommilamores,Rigoberto.Muitastardesmesentidoente,por

nãoterfeitoisso.Vocênãovaimeodiar?Precisolhedizeraverdade.

—Eunãovouodiá-lanunca.Euamovocê.Minhavida,minhamulherzinha.

Ela,porém,voltouaatalhá-lo,comoutraconfissão:

— A verdade é que, se Fonchito não sair desta casa, se continuar morando

conosco,issovaiacontecerdenovo.Lamento,Rigoberto.Émelhorquevocêsaiba.

Não tenho defesas contra essemenino.Não quero que aconteça, não quero fazer

vocêsofrer,comodaoutravez.Seiquevocêsofreu,meuamor.Masvoulhementir

paraquê?Eletempoderes,temalgumacoisa,seilá.Seelemeterissonacabeçaoutra

vez,euvourepetir.Nãovouconseguirimpedi-lo.Mesmoquedestruaocasamento,

desta vez para sempre. Lamento, lamento, mas é a verdade, Rigoberto. A crua

verdade.

Dona Lucrecia havia começado a chorar. Ele sentiu se eclipsarem os últimos

resíduosdeexcitaçãoquelherestavam.Abraçou-a,consternado:

— Tudo o que você está me dizendo, eu sei de sobra — murmurou,

acarinhando-a. — O que posso fazer? A nal, não é meu lho? Para onde vou

mandá-lo?Para car comquem?Ele ainda émuitomenino.Achaquenãopensei

muitonisso?Quandoeleformaior,claro.Masque,pelomenos,termineocolégio.

Não diz que quer ser pintor? Pois muito bem. Que vá estudar belas-artes. Nos

Estados Unidos. Na Europa. Que vá para Viena. Não gosta tanto do

expressionismo?Quevápara a academiaondeSchiele estudou,para a cidadeonde

Schieleviveuemorreu.Mascomopossotirá-lodecasaagora,naidadeemqueele

está?

Dona Lucrecia se apertou a ele, entrelaçou suas pernas com as dele, procurou

apoiarseuspéssobreosdomarido.

—Nãoqueroquevocêotiredecasa—sussurrou.—Seimuitobemqueéum

menino.Nuncapudeadivinharsesabeoquantoéperigoso,ascatástrofesquepode

provocar, com aquela beleza que tem, com aquela inteligência manhosa, meio

terrível.Só lhedigo istoporqueéverdade: comele, sempreviveremos emperigo,

Rigoberto. Se você não quiser que tudo aconteça de novo,me vigie,me espreite,

quenomeupé.Nãoqueromedeitarnuncamaiscomninguém,sócomvocê,meu

maridinhoquerido.Euoamotanto,Rigoberto!Vocênãosabeafaltaquemefez,a

saudadequesenti.

—Eusei,eusei,meuamor.

DonRigoberto afastou-a umpouco, deitou-a de costas e se colocou em cima

dela.DonaLucreciatambémpareciatomadapelodesejo—jánãohavialágrimasem

sua face, seucorpoestavaaquecidoe sua respiração,agitada—e,malo sentiuem

cima, abriu as pernas e se deixou penetrar. Don Rigoberto a beijou, longa e

profundamente,comosolhosfechados,imersoemumaentregatotal,felizdenovo.

Perfeitamente encaixados umno outro, tocando-se e roçando-se dos pés à cabeça,

contagiando-se seus suores, mexiam-se devagar, compassadamente, prolongando o

prazer.

—Naverdade,vocêsedeitoucommuitaspessoas,esteanotodo—disseele.

— Ah, é? — ronronou ela, como se falasse pelo ventre, a partir de alguma

glândulasecreta.—Quantas?Quem?Onde?

—Umamantezoológico,queadeitavacomgatos.—“Quenojo,quenojo”,

protestou ela, debilmente.—Umamorde juventude,umcientistaque a levou a

PariseaVenezaequegozavacantando...

—Osdetalhes—ofegoudonaLucrecia,falandocomdificuldade.—Todos,até

osmenorzinhos.Oqueeufiz,oquecomi,oquemefizeram.

—ObabacadoFitoCebollaquaseestuprouvocêetambémJustiniana.Vocêa

salvoudafúrialibidinosadele.Eacaboufazendoamorcomela,nestamesmacama.

— Com Justiniana? Nesta mesma cama? — Dona Lucrecia soltou uma

risadinha.—Vejacomosãoascoisas.Porque,porculpadeFonchito,euquase z

amor com Justiniana, uma tarde, no Olivar. Foi a única vez que meu corpo o

enganou,Rigoberto.Minha imaginação, ao contrário, ummontede vezes.Como

vocêcomigo.

—Minhaimaginaçãonãoaenganoununca.Masmeconte,meconte—pediuo

marido,acelerandoosmovimentos,obamboleio.

—Eudepois,vocêprimeiro.Comquemmais?Como,onde?

—Comumirmãogêmeoqueinventei,umirmãocorso,emumaorgia.Com

um motociclista castrado. Você foi uma professora de direito, na Virgínia, e

corrompeuumsantojurista.FezamorcomaembaixatrizdaArgélia,tomandoum

banhodevapor.SeuspésenlouqueceramumfetichistafrancêsdoséculoXVIII.Na

vésperadenossareconciliação,estivemosemumprostíbulodaCidadedoMéxico,

comumamulataquemearrancouumaorelhacomumadentada.

—Nãomefaçarir,seubobo,nãoagora—protestoudonaLucrecia.—Euo

mato,matomesmo,sevocêmecortar.

—Eutambémestouquaselá.Vamosjuntos,amor.

Momentosdepois,jásossegados,eledecostas,elaaninhadaaoseuladoecoma

cabeçaemseuombro,retomaramaconversa.Lá fora, juntocomoruídodomar,

rompiam a noite os possantes miados de gatos brigando ou no cio e, espaçados,

buzinaserugidosdemotores.

—Souohomemmaisfelizdomundo—dissedonRigoberto.

Elaseesfregoucontraele,comportada.

—Vaidurar?Vamosfazê-ladurar,estafelicidade?

—Nãopodedurar—disseele,suavemente.—Todafelicidadeéfugaz.Uma

exceção, um contraste. Mas temos que reavivá-la, de tempos em tempos, não

permitirqueseapague.Soprando,soprandoachamazinha.

—Começoaexercitarmeuspulmõesdesde já—exclamoudonaLucrecia.—

Vão carcomofoles.E,quandoelaameaçarseapagar,eusoltoumaventaniaquea

levante,queainfle.Fffffuuu!Fffffuuu!

Permaneceram em silêncio, abraçados. Pela quietude de sua mulher, don

Rigobertoachouqueelahaviaadormecido.Masnão:tinhaosolhosabertos.

— Eu sempre soube que íamos nos reconciliar— disse, ao ouvido dela.—

Queria,buscavaisso,hámeses.Masnãosabiaporondecomeçar.Então,começaram

amechegarsuascartas.Vocêadivinhoumeupensamento,meuamor.Émelhordo

queeu.

Ocorpodesuamulherseendureceu.Mas,imediatamente,relaxoudenovo.

—Uma ideia genial, essadas cartas—continuou ele.—As anônimas, quero

dizer. Uma carambola barroca, um estratagema brilhante. Inventar que eu lhe

mandava cartas anônimas para ter um pretexto e, assim, poderme escrever. Você

sempre vai me surpreender, Lucrecia. Achei que a conhecia, mas não. Eu nunca

imaginariasuacabecinhamaquinandoessascarambolas,essasartimanhas.Quebom

resultadoelesderam,hem?Emboahora,paramim.

Houve outro longo silêncio, durante o qual don Rigoberto contou os

batimentos do coração de sua mulher, que faziam contraponto e às vezes se

misturavamaosseus.

—Eugostariaque zéssemosumaviagem—divagou,poucodepois,sentindo

que o sono começava a vencê-lo.— Para algum lugar bem distante, totalmente

exótico. Onde não conhecêssemos ninguém e ninguém nos conhecesse. Por

exemplo,aIslândia.Talvez,no mdoano.Possotirarumasemana,dezdias.Você

gostaria?

—EuprefeririairaViena—disseela,comumalínguaumpoucotravada,pelo

sono?, pela preguiça em que o amor sempre a deixava?.— Ver a obra de Egon

Schiele,visitaros lugaresondeele trabalhou.Ao longodosúltimosmeses,não z

outra coisa a não ser ouvir falar da vida dele, de seus quadros e desenhos. Acabei

espicaçadapela curiosidade.Vocênão se surpreende com a fascinaçãodeFonchito

poressepintor?Queeusaiba,Schielenuncalheagradoumuito.Deondeelepuxou

isso,então?

Don Rigoberto deu de ombros. Não fazia a menor ideia sobre a origem da

fixaçãodeseufilho.

—Bom,entãoiremosaVienaemdezembro—disse.—ParaverosSchielese

escutarMozart.Dequemeujamaisgostei,éverdade;masagora,quemsabe,posso

começaragostar.Sevocêgosta,eutambémvougostar.Nãoseideondepodeter

nascido esse entusiasmodeFonchito.Você está dormindo?E eu aqui semdeixar,

puxandoconversa.Boanoite,amor.

Ela murmurou “boa noite”. Fez meia-volta e grudou o dorso ao peito do

marido, que também se virara de lado e exionara as pernas, para que ela casse

comoquesentadaemseusjoelhos.Assimtinhamdormido,nosdezanosanterioresà

separação.Eassimfaziam,também,desdeaantevéspera.DonRigobertopassouum

braçosobreoombrodeLucreciaedeixouamãodescansaremumdos seiosdela,

enquantoaenvolviapelacinturacomaoutra.

Os gatos pararam de brigar ou de se amar na vizinhança.Os últimos sons de

buzinasouroncosdemotoreshaviamdesaparecidofaziaumbomtempo.Tépidoe

aquecido pela proximidade dessas formas amadas, coladas às suas, don Rigoberto

tinha a sensação de navegar, de deslizar,movido por uma afável inércia, em águas

tranquilas e delgadas, ou, talvez, pelo espaço sideral, despovoado, rumo às gélidas

estrelas. Quantos dias, horas, ainda duraria, sem se quebrantar, esta sensação de

plenitude,decalmaharmoniosa,de sintoniacomavida?Comoemrespostaà sua

mudainterrogação,escutoudonaLucrecia:

—Quantascartasanônimasminhasvocêrecebeu,Rigoberto?

— Dez — respondeu ele, com um sobressalto. — Achei que você estava

dormindo.Porquepergunta?

—Eutambémrecebidezsuas—replicouela,semsemover.—Issosechama

amoràsimetria,suponho.

Agorafoielequemseenrijeceu.

—Dezcartasanônimasminhas?Eununcalheescrevinenhuma.Nemanônimas

nemassinadas.

—Eusei—disseela,suspirandofundo.—Vocêéaquelequenãosabe.Aquele

que anda na lua. Está entendendo? Eu também não lhe enviei nada anônimo.

Mandeisóumacarta.Masapostoqueessa,aúnicaautêntica,nuncalhechegou.

Passaram dois, três, cinco segundos, sem falar nem se mexer. Embora só se

ouvisseoruídodomar,donRigobertoteveasensaçãodequeanoiteseencherade

gatosenfurecidosegatasnocio.

—Vocênãoestábrincando,não?—murmuroupor m,sabendomuitobem

quedonaLucreciahaviafaladosério.

Elanãorespondeu.Permaneceutãoquietaesilenciosaquantoele,maisumbom

tempo. Como tinha durado pouco, como tinha sido curta, aquela acabrunhante

felicidade!Aliestava,denovo,crueledura,Rigoberto,avidareal.

—Se você perdeu o sono, como eu—propôs, a nal—, talvez pudéssemos,

assimcomooutroscontamcarneirinhosparaconseguiradormecer, tentaresclarecer

tudo.Melhoragora,deumavez.Sevocêacharquesim,sequiser.Porque,sepreferir

queagenteesqueça,agenteesquece.Enãosefalamaisdessascartasanônimas.

— Você sabe muito bem que nunca poderemos esquecê-las, Rigoberto —

a rmousuaesposa,comumapontinhadecansaço.—Então,façamosdeumavezo

quevocêeeubemsabemosquevamosacabarfazendo,detodomodo.

—Vamos,então—disseele,levantando-se.—Vamoslê-las.

O tempohavia esfriado e, antesdepassaremao escritório, osdois vestiramos

roupões.DonaLucrecialevouconsigoagarrafatérmicacomalimonadaquentepara

o suposto resfriado do marido. Antes de mostrarem um ao outro as respectivas

cartas,tomaramunsgolinhosdelimonadamorna,domesmocopo.DonRigoberto

mantinha as dele guardadas no último de seus cadernos, ainda com páginas sem

anotações nem acréscimos; dona Lucrecia deixara as dela em uma bolsa de mão,

atadas comuma tinha lilás.Comprovaramque os envelopes eram idênticos, e o

papeltambém;unsenvelopesepapéisdessesquesevendemporqualquertostãonas

lojinhasdoschineses.Masaletraeradiferente.E,claro,acartadedonaLucrecia,a

únicaverdadeira,nãoestavaentreasoutras.

—Éaminhaletra—murmuroudonRigoberto,superandooqueeleacreditava

serolimitedesuacapacidadedeassombro,eassombrando-seaindaumpouquinho

mais.Tinharelidoaprimeiracartacommuitocuidado,quasesematentarparaoque

eladizia,concentrando-sesomentenacaligra a.—Bom,éverdade,minhaletraéa

maisconvencionalqueexiste.Qualquerumpodeimitá-la.

— Sobretudo um jovenzinho afeiçoado à pintura, um menino-artista —

concluiudonaLucrecia,brandindoascartassupostamenteescritasporela,depoisde

folheá-las.—Masesta,aocontrário,nãoéaminhaletra.Porissoelenãoentregoua

únicacartaquelheescrevi.Paravocênãoacompararcomestasedescobrirafraude.

—Éumpoucoparecida—corrigiu-adonRigoberto,quehavialançadomãode

uma lupa e examinava a carta, como um latelista observa um selo raro.— Seja

comofor,éumaletraredonda,muitodesenhada.Umaletrademulherqueestudou

emcolégiodefreiras,provavelmentenoSophianum.

—Evocênãoconheciaminhaletra?

— Não, não conhecia— admitiu ele. Era a terceira surpresa, nesta noite de

grandes surpresas.—Agoraconstatoquenão.Queeume lembre,vocênuncame

escreveuumacarta.

—Eestasaí,tambémnãofuieuqueescrevi.

Depois,duranteumaboameiahora, caramemsilêncio,lendosuasrespectivas

cartas, ou melhor, cada um percorrendo a outra metade desconhecida dessa

correspondência. Tinham se sentado juntos, no grande sofá de couro, com

almofadas,embaixodaaltalumináriadepécujacúpulatinhadesenhosdeumatribo

australiana.O amplo círculo de luz abrangia os dois.De vez emquando, bebiam

golinhosdelimonadamorna.Devezemquando,umdosdoissoltavaumrisinho,

masooutronãosevoltavaparaperguntarnada;devezemquando,aexpressãode

um se alterava, por pasmo, cólera ou por uma debilidade sentimental, ternura,

indulgência, vaga tristeza.Terminaram a leitura aomesmo tempo.Olharam-se de

esguelha,exaustos,perplexos,indecisos.Porondecomeçar?

—Eleandoufuxicandoporaqui—dissea naldonRigoberto,apontandosua

escrivaninha, suas estantes.— Remexeu, leu minhas coisas. A coisa mais sagrada,

mais secreta que eu tenho, estes cadernos.Quenem sequer você conhece.Minhas

supostascartasparavocê,naverdade, sãominhas.Emboraeunãoas tenhaescrito.

Porque,tenhocerteza,todasasfrases,eleastranscreveudemeuscadernos.Fazendo

uma salada russa. Misturando pensamentos, citações, gracejos, jogos, re exões

própriasealheias.

—Foiporissoqueessesjogos,essasordensmepareceramvirdevocê—disse

donaLucrecia.—Emcontraposição,estascartas,nãoseicomovocêpôdeacharque

eramminhas.

—Euestavaloucoparasaberdevocê,parareceberalgumsinalseu—desculpou-

sedonRigoberto.—Osnáufragos se agarramaoque lhes aparecerna frente, sem

pensar.

—Mas e essas frasesmelosas, essas cafonices?Não parecemmais as coisas de

CorínTellado?

— São de Corín Tellado, algumas — disse don Rigoberto, recordando,

associando.—Semanasatrás,começaramaaparecerpelacasaosromancinhosdela.

Acheiquepertenciamàempregada,àcozinheira.Agoraseidequemerameparaque

serviam.

—Voumatar essemenininho—exclamoudonaLucrecia.—CorínTellado!

Juroquematoessemenino.

— Está rindo? — espantou-se ele. — Acha engraçado? Devemos festejá-lo,

premiá-lo?

Agoraelariuparavaler,maisdemoradamente,commaisfranquezadoqueantes.

—Naverdade,nãoseioqueachar,Rigoberto.Certamente,nãoépararir.Épara

chorar?Paraseaborrecer?Bom,entãovamosnosaborrecer,seéissooquedevemos

fazer.Éoquevocêfaráamanhãcomele?Repreendê-lo?Castigá-lo?

DonRigobertoencolheuosombros.Tinhavontadederirtambém.Esesentia

estúpido.

—Eununcaocastiguei,emuitomenoslhedeialgumtapaquefosse,nãosaberia

comofazer isso—confessou,meioencabulado.—Épor issoqueeledeunoque

deu.OfatoéquenãoseioquefazercomFonchito.Descon oque,nãoimportao

queeufaça,elesemprevaiganhar.

—Bom,nestecaso,nóstambémganhamosalgumacoisa.—DonaLucreciase

encostouaomarido,quelhepassouobraçopelosombros.—Fizemosaspazes,não?

Vocênuncaseatreveriaametelefonar,ameconvidarparatomarchánaTiendecita

Blanca, sem essas cartas anônimas prévias. Não é? E eu tampouco teria ido ao

encontro se não as tivesse recebido. Certamente, não. Essas cartas prepararam o

caminho.Nãopodemosnosqueixar;elenosajudou,nos reconciliou.Vocênãose

arrependeportermosfeitoaspazes,nãoé,Rigoberto?

Ele acabou rindo também. Esfregou o nariz contra a cabeça de sua mulher,

sentindoqueoscabelosdelalhefaziamcócegasnosolhos.

—Não,dissoeununcavoumearrepender—disse.—Bem,depoisdetantas

emoções,ganhamosodireitoaosono.Estátudomuitobem,masamanhãeupreciso

irtrabalhar,mulher.

Retornaramaoquartonoescuro,demãosdadas.Elaaindaseatreveuafazeruma

brincadeirinha:

—VamoslevarFonchitoaViena,emdezembro?

Erabrincadeiramesmo?DonRigobertoafastoudeimediatoomaupensamento,

proclamandoemvozalta:

—Apesardetudo,formamosumafamíliafeliz,nãoé,Lucrecia?

Londres,19deoutubrode1996

Sobre o Autor

Jornalista,dramaturgo,ensaístaecríticoliterário,MarioVargasLlosaéumdosmais

importantesescritoresdaatualidade.NascidoemArequipa,noPeru,em1936,viveu

emParisnadécadade1960elecionouemdiversasuniversidadesnorte-americanase

europeiasaolongodosanos.Numaincursãoaomundodapolítica,candidatou-seà

presidênciadoPeruem1990,perdendoaeleiçãoparaAlbertoFujimori.

Autor de uma extensa obra literária, foi vencedor dos prestigiosos prêmios

Cervantes,PríncipedeAstúrias,PEN/NabokoveGrinzaneCavour.Oautordivide

seu tempo atualmente entre Londres, Paris, Madri e Lima. Entre seus livros

publicados, destacam-sePantaleão e as visitadoras,Tia Julia e o escrevinhador, Aguerradofimdomundo,ElogiodamadrastaeTravessurasdameninamá.