Os Cadernos de Don Rigoberto - VISIONVOX
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Dedicatória
Ohomem,umdeusquandosonha,eapenasummendigoquandopensa.
HÖLDERLIN,Hipérion
Nãopossomanterumregistrodeminhavidaporminhasações;oacasoassituoudemasiadobaixo:mantenho-oporminhasfantasias.
MONTAIGNE
I.
O retorno de FonchitoI - O retorno de Fonchito
Chamaramàporta,donaLucreciafoiabrireviuemolduradanovão,sobreofundo
dasárvoresretorcidasegrisalhasdoOlivardeSanIsidro,acabeçadecachosdourados
eosolhosazuisdeFonchito.Tudocomeçouagirar.
—Estavacommuitasaudade,madrasta—entoouavozqueelarecordavatão
bem.—Continuaaborrecidacomigo?Vimpedirperdão.Meperdoa?
—Você,você?—Agarradaàmaçaneta,donaLucreciabuscavaapoionaparede.
—Nãotemvergonhadeseapresentaraqui?
— Escapuli da academia — insistiu o menino, mostrando seu caderno de
desenhoeseuslápisdecor.—Estavacommuitasaudade,sério.Porquevocê cou
tãopálida?
— Meu Deus, meu Deus — cambaleou dona Lucrecia, deixando-se cair no
banco imitação de colonial, contíguo à porta. Cobria os olhos, branca como um
papel.
—Nãomorra!—gritouomenino,assustado.
E dona Lucrecia, sentindo-se desfalecer, viu a gurinha infantil transpor o
umbral,fecharaporta,cairdejoelhosaosseuspés,pegarsuasmãosemassageá-las,
comexpressãoaturdida:“Nãomorra,nãodesmaie,porfavor.”Fezumesforçopara
sedominarerecuperarocontrole.Respiroufundo,antesde falar.Eo fezdevagar,
sentindoqueaqualquermomentosuavozseembargaria:
—Nãofoinada,jáestoubem.Vervocêaquieraaúltimacoisaqueeuesperava.
Comoseatreve?Nãotemremorso?
Sempredejoelhos,Fonchitotentavalhebeijaramão.
—Digaquemeperdoa,madrasta—implorou.—Diga,diga.Acasanãoémais
amesmadesdequevocêfoiembora.Vimespiá-laummontedevezes,nasaídada
aula.Queriatocar,masnãomeatrevia.Nuncavaimeperdoar?
—Nunca—respondeuela,com rmeza.—Nuncaperdoareioquevocê fez,
malvado.
Mas,contradizendoasprópriaspalavras,seusgrandesolhosescurosreconheciam
com curiosidade e certa complacência, talvez até com ternura, a encaracolada
desordem daquela cabeleira, as veiazinhas azuis do pescoço, as bordas das orelhas
assomandoentreasmechaslouras,ocorpinhogracioso,embutidonopaletóazule
na calça cinza do uniforme. Suas narinas aspiravam aquele odor adolescente de
partidas de futebol, de caramelos frutados e sorvetes d’Onofrio, e seus ouvidos
reconheciamaquelesguinchosagudoseasmudançasdevoz,queressoavamtambém
na suamemória.AsmãosdedonaLucrecia se resignaram aosmolhados beijos de
passarinhodaquelaboquinha:
—Gostomuitodevocê,madrasta—disseFonchito, fazendobeicinho.—E,
mesmoquevocênãoacredite,opapaitambém.
Nisto apareceu Justiniana, ágil silhueta cor de canela envolta em um avental
orido, lenço na cabeça e espanador na mão. Ficou petri cada no corredor que
levavaàcozinha.
—MeninoAlfonso—murmurou,incrédula.—Fonchito!Nãopossoacreditar!
—Imagine,imagine!—exclamoudonaLucrecia,empenhadaemmostraruma
indignação superior à que sentia.—Atreve-se a vir a esta casa.Depoisde arruinar
minha vida, de dar aquela punhalada em Rigoberto. Pedindo que eu o perdoe,
derramandolágrimasdecrocodilo.Jáviudesfaçatezigual,Justiniana?
Mas nem sequer agora arrebatou a Fonchito os a lados dedos que ele,
estremecidopelossoluços,continuavabeijando.
—O senhor tem de ir embora, menino Alfonso— disse a empregada, tão
confusa que, sem perceber,mudou o tratamento habitual:—Você não vê como
deixouapatroaamofinada?Saia,vá,Fonchito.
—Euvouseeladisserquemeperdoa—rogouomenino,entresuspiros,acara
nas mãos de dona Lucrecia. — Nem sequer me cumprimenta e já começa me
insultando, Justita?Oque eu lhe z?Pois se eu tambémgostomuitodevocê, se
choreianoiteinteiranodiaemquevocêfoiemboraládecasa!
—Caleaboca,mentiroso,nãoacreditonemumtiquinho.—Justinianaalisava
oscabelosdedonaLucrecia.—Tragoumlencinhocomálcool,patroa?
— Pre ro um copo d’água. Não se preocupe, já estou melhor. Ver este
melequentoaquimetranstornoutoda.
E por m, sem brusquidão, retirou suas mãos das de Fonchito. O menino
continuava aos seus pés, já sem chorar, contendo a duras penas novos beicinhos.
Tinhaosolhosvermelhos e as lágrimas lhehaviammarcado sulcosnasbochechas.
Umfiodesalivapendiadesuaboca.Atravésdaneblinaquelhevelavaosolhos,dona
Lucreciaespiouonarizdelinhas nas,oslábiosbemdesenhados,oqueixinhoaltivo
e sua covinha, os dentes tão brancos. Teve vontade de esbofetear, de agadanhar
aquelacarinhadeMeninoJesus.Hipócrita!Judas!Eatédemordê-lonopescoçoede
lhechuparosangue,comoumvampiro.
—Seupaisabequevocêveioaqui?
— Que ideia, madrasta — respondeu no ato o menino, em um tonzinho
con dencial.—Sabe láoqueeleme faria?Nunca faladevocê,maseu seimuito
bemquetemsaudade.Nãopensaemoutracoisa,diaenoite,juro.Vimescondido,
escapulidaacademia.Voutrêsvezesporsemana,depoisdocolégio.Querqueeulhe
mostremeusdesenhos?Digaquemeperdoa,madrasta.
—Nãodiga,emandeessegarotoembora,patroa.—Justinianaretornavacom
umcopod’água;donaLucreciabebeuváriosgoles.—Nãosedeixeenrolarporessa
carabonita.EleéLúciferempessoa,asenhorasabe.Vailhefazeroutramaldade,pior
doqueaprimeira.
—Nãodigaisso,Justita.—Fonchitopareceuprestesacairdenovonochoro.
—Juroqueestouarrependido,madrasta.Nãomedeicontadoquefazia,portodos
ossantos.Nãoquisqueacontecessenada.Euiaquererquevocêsaísseládecasa?Que
eueopapaificássemossozinhos?
—Eunãosaídecasa—repreendeu-odonaLucrecia,entredentes.—Rigoberto
meexpulsoucomoseeufosseumaputa.Porculpasua!
—Nãodiganomefeio,madrasta.—Omeninoergueuasmãos,escandalizado.
—Nãodiga,nãolheficabem.
Apesardadoredaraiva,donaLucreciaesteveapontodesorrir.Nãolhe cava
bem dizer palavrões! Garotinho perspicaz, sensível? Justiniana tinha razão: uma
víboracomcaradeanjo,umBelzebu.
Omeninoteveumaexplosãodejúbilo:
—Estárindo,madrasta?Então,meperdoou?Digaquesim,diga,madrasta.
Batia palmas, e em seus olhos azuis a tristeza se dissipara e relampeava uma
luzinhaselvagem.DonaLucrecianotouquenosdedosdelehaviamanchasdetinta,e
seemocionouacontragosto.Iriadesmaiardenovo?Quecoisa.Viu-senoespelhoda
entrada:haviacompostosuaexpressão,umleveruborlhecoloriaasfaces,seupeito
agitado subia e descia. Em um movimento maquinal, fechou o decote do robe.
ComopodiaFonchitosertãodescarado,tãocínico,tãoretorcido,sendotãocriança?
Justiniana lia seuspensamentos.Olhavapara ela como sedissesse: “Não seja fraca,
patroa,nãováperdoarestemoleque.Nãosejatãoboba!”Disfarçandoseuembaraço,
donaLucreciabebeumaisunsgolinhosdeágua;estavafriaelhefezbem.Omenino
seapressouapegaramãodelaqueestavalivreeabeijá-ladenovo,loquaz:
—Obrigado,madrasta.Vocêémuitoboa,eujásabia,porissomeatreviatocar.
Quero lhe mostrar meus desenhos. E conversar sobre Egon Schiele, a vida e as
pinturas dele. Contar o que vou ser quando crescer, e mil coisas. Já adivinhou?
Pintor,madrasta!Éoqueeuqueroser.
Justinianabalançavaacabeça,alarmada.Lá fora,motoresebuzinasaturdiamo
entardecerdeSanIsidro.Atravésdascortininhas xadasàsvidraçasdasaladejantar,
donaLucreciadivisavaos ramosdesnudos eos troncosnodososdasoliveiras,uma
presençaquesetornaraamiga.Jáchegavadedebilidades,erahoradereagir.
— Bom, Fonchito— disse, com uma severidade que seu coração já não lhe
exigia.—Agora,façaoqueestoupedindo.Váembora,porfavor.
—Sim,madrasta.—Omeninosaltoudepé.—Oquevocêmandar.Sempre
voufazersuavontade,semprevoulheobedeceremtudo.Vocêvaiversócomovou
mecomportarbem.
Tinhaavoz e a expressãodequemse livroudeumpeso e fez aspazes coma
própriaconsciência.Umamechadeourolhevarriaatesta,eseusolhosfaiscavamde
alegria.DonaLucreciaoviumeteramãonobolsotraseiro,puxarumlenço,assoaro
nariz;e,depois,recolherdochãoamochila,apastadedesenhoseoestojodelápis.
Comtudoissoàscostas,elerecuousorridenteatéaporta,semtirarosolhosdedona
LucreciaeJustiniana.
—Assimquepuder, fujodenovoparavirvisitá-la,madrasta—trinou, jádo
umbral.—Evocêtambém,Justita,claro.
Quando a porta da rua se fechou, as duas permaneceram imóveis e sem falar.
Daliapouco,dobraramaolongeossinosdaVirgendelPilar.Umcachorrolatiu.
— É incrível — murmurou dona Lucrecia. — Ele ter tido a audácia de se
apresentarnestacasa.
—Incrívelésuabondade—retrucouaempregada,indignada.—Jáoperdoou,
nãofoi?Depoisdatramoiaqueelelhepreparouparaarmaraquelasuabrigacomo
patrão.Asenhoravaidiretoparaocéu,patroa!
—Nemsequerécertoquetenhasidoumatramoia,queaquelacabecinhatenha
planejadooqueaconteceu.
Iaandandoparaobanheiro,falandosozinha,masouviuqueJustinianaacorrigia:
—Claro que ele planejou tudo. Fonchito é capaz das piores coisas, a senhora
aindanãosedeuconta?
“Podeser”,pensoudonaLucrecia.Maseraummenino,ummenino.Nãoera?
Sim,pelomenosdissonãohaviadúvida.Nobanheiro,molhouatestacomáguafria
eseexaminouaoespelho.Aperturbaçãolhea laraonariz,quepalpitavaansioso,e
umasolheirasazuladasrodeavamseusolhos.Pelabocaentreaberta,viaapontinhada
lixaemquesetransformarasualíngua.RecordouaslagartixaseosiguanasdePiúra;
tinhamsemprea língua ressecada, igual àdela agora.OaparecimentodeFonchito
em sua casa a levara a se sentir petri cada e antiga como essas reminiscências pré-
históricasdosdesertosdoNorte.Sempensar,emumatomecânico,desatouocinto
e,ajudando-secomummovimentodosombros,livrou-sedorobe;asedadeslizou
peloseucorpoatéochão,emumacaríciasibilante.Achatadoeredondo,otecidolhe
cobriaopeitodospés,comoumaflorgigante.Semqueelasoubesseoquefazianem
oqueiafazer,respirandoansiosa,seuspéstranspuseramafronteiraderoupaqueos
circundavaealevaramaobidê,ondesesentou,depoisdebaixaracalcinhaderenda.
Oqueestavafazendo?Oqueiafazer,Lucrecia?Nãosorria.Tentavainspirareexpelir
o ar commais calma, enquanto suas mãos, independentes, abriam as torneiras, a
quente,afria,easmediam,misturavam,graduavam,subiamoubaixavamorepuxo
morno, ardente, frio, fresco, débil, impetuoso, saltitante. A parte inferior do seu
corpo se adiantava, retrocedia, inclinava-se à direita, à esquerda, até encontrar a
posição devida. Aí. Um estremecimento percorreu sua espinha dorsal. “Talvez ele
nempercebesse,talvez zesseaquilosemmotivo”,repetiuasimesma,compadecida
daquelemeninoaquemtantomaldisseranosúltimosseismeses.Talvezelenãofosse
mau, talvez não. Travesso, malicioso, metido, irresponsável, mil coisas mais.
Malvado, porém, não. “Talvez não.” Os pensamentos rebentavam em sua cabeça
como as borbulhas de uma panela fervente. Recordou o dia em que conhecera
Rigoberto,oviúvodegrandesorelhasbudistasenarizdesavergonhadocomquemse
casariapoucodepois;aprimeiravezemqueviraseuenteado,querubimvestidode
marinheirinho—conjuntoazul,botõesdourados,gorrinhocomâncora—;ascoisas
queforadescobrindoeaprendendo,avidainesperada,imaginativa,noturna,intensa,
nacasinhadeBarrancoqueRigobertomandaraconstruirparainiciaremnelasuavida
juntos; asbrigas entreoarquitetoe seumaridobalizandoaedi caçãodaqueleque
seriaseular.Tantascoisastinhamacontecido!Asimagensiamevinham,sediluíam,
se alteravam, se entremeavam, se sucediam, e era como se a carícia líquidado ágil
repuxolhechegasseàalma.
Instruções para o arquiteto
Nossomal-entendidoédecaráterconceitual.Osenhor fezestebonitodesenhode
minha casa e de minha biblioteca partindo da suposição — muito difundida,
lamentavelmente— de que em um lar o importante são as pessoas, em vez dos
objetos.Nãoocriticoporfazerseuessecritério, indispensávelparaumhomemde
suapro ssãoquenãoseresigneaprescindirdosclientes.Masminhaconcepçãode
meufuturolaréaoposta.Asaber:nessepequenoespaçoconstruídoquechamareide
meumundoequemeuscaprichosgovernarão,aprioridadebásicacaberáaosmeus
livros, quadros e gravuras; nós, as pessoas, seremos cidadãos de segunda. São esses
quatromilharesdevolumeseacentenadetelaseestampasquedevemconstituira
razão primordial do desenho que lhe encomendei. O senhor subordinará a
comodidade,asegurançaeaconveniênciadoshumanosàsdaquelesobjetos.
É imprescindível o detalheda lareira, quedevepoder transformar-se em forno
crematóriodelivrosegravurasexcedentes,ameucritério.Porisso,elaterádesituar-
sebempertodas estantes e ao alcancedomeu assento, pois eu gostodebancar o
inquisidordecalamidadesliteráriaseartísticassentado,enãodepé.Explico-me.Os
quatromil volumes e as cemgravurasquepossuo sãonúmeros in exíveis.Nunca
tereimais,paraevitarasuperabundânciaeadesordem,masnuncaserãoosmesmos,
poisirãoserenovandosemcessar,atéminhamorte.Issosigni caque,paracadalivro
que acrescento à minha biblioteca, elimino outro, e cada imagem — litogra a,
madeira, xilogra a, desenho, ponta-seca,mixogra a, óleo, aquarela etc.—que se
incorpora à minha coleção desloca a menos favorecida entre as demais. Não lhe
escondoqueescolheravítimaéárduoe,àsvezes,lancinante,umdilemahamletiano
queme angustiadurantedias, semanas, e quedepoismeuspesadelos reconstroem.
Noinício,eudoavaabibliotecasemuseuspúblicososlivrosegravurassacri cados.
Agoraosqueimo,daíaimportânciadalareira.Opteiporessafórmuladrástica,que
eliminaodesassossegode terde escolherumavítimacoma espinhosa sensaçãode
estarcometendoumsacrilégiocultural,umatransgressãoética,nodia,oumelhor,na
noiteemque,tendodecididosubstituirporumformosoSzyszloinspiradonomar
de Paracas uma reprodução da multicolorida lata de sopa Campbell’s de Andy
Warhol,compreendiqueeraumaestupidezin igiraoutrosolhosumaobraqueeu
passara a considerar indigna dos meus. Então, joguei-a no fogo. Ao ver aquela
cartolinavirartorresmo,experimenteiumvagoremorso,admito.Agora,issojánão
me acontece. Enviei às chamas dezenas de poetas românticos e indigenistas, assim
comooutrostantosartistasplásticosconceituais,abstratos,informalistas,paisagistas,
retratistasesacros,paraconservaronumerusclaususdeminhabibliotecaepinacoteca,
semdor,eatémesmocomaestimulantesensaçãodeestarexercendoacríticaliterária
e de arte como deveria ser feita: de maneira radical, irreversível e combustível.
Acrescento, para encerrar este aparte, que tal passatempo me diverte, mas não
funcionaemabsolutocomoafrodisíaco,eporissootenhocomolimitadoemenor,
meramenteespiritual,semrepercussõessobreocorpo.
Con oemqueosenhornãotomeoqueacabadeler—apreponderânciaque
concedoaquadroselivrossobrebípedesdecarneeosso—portiradadehumorou
pose de cínico. Não é isso, mas sim uma convicção arraigada, consequência de
experiênciasdifíceis,mas,também,muitoprazerosas.Nãomefoifácilchegarauma
posturaquecontradiziavelhastradições—vamoschamá-lashumanísticas,comum
sorriso nos lábios — de loso as e religiões antropocêntricas, para as quais é
inconcebível que o ser humano real, estrutura de carne e ossos perecíveis, seja
considerado menos digno de interesse e de respeito do que o inventado, o que
aparece (se lhe for mais cômodo, digamos re etido) nas imagens da arte e na
literatura.Poupo-odosdetalhesdestahistóriaeotrans roàconclusãoaquecheguei
e que agora proclamo sem rubor. O mundo de velhacos semoventes do qual o
senhoreeufazemospartenãoéoquemeinteressa,oquemedáprazeresofrimento,
massimessamiríadedeseresanimadospelaimaginação,pelosdesejosepeladestreza
artística,presentesnessesquadros, livros enessas gravurasque consegui reunir com
paciênciaeamordemuitosanos.AcasaquevouconstruiremBarranco,aquelaque
osenhordeverádesenharrefazendooprojetodoprincípioao m,éparaeles,mais
do que paramim ou paraminha novíssima esposa, oumeu lhinho. A trindade
formadapelaminhafamília,digo-osemblasfêmia,estáaserviçodessesobjetoseo
senhortambémdeveráestar,quando,depoisde lerestas linhas,sedebruçarsobrea
pranchetaafimderetificaraquiloquefeztãomal.
Oqueacabodeescreveréumaverdadeliteral,enãoumaenigmáticametáfora.
Construoestacasaparapadeceremedivertircomeles,poreleseparaeles.Façaumesforçopormeimitarduranteolimitadoperíodoemquetrabalharáparamim.
Agora,desenhe.
A noite dos gatos
Fiel ao encontromarcado, Lucrecia entrou com as sombras, falandode gatos. Ela
mesmapareciaumalindagataangorásoborumorosoarminhoquelhechegavaaos
pésedissimulavaseusmovimentos.Estavanuadentrodeseuinvólucroprateado?
—Gatos,vocêdisse?
—Gatinhos,maisexatamente—miouela,dandounspassosresolutosaoredor
de don Rigoberto, que pensou em um hastado adentrando a arena e medindo o
toureiro.—Nenéns,filhotes,bichaninhos.Umadúzia,talvezmais.
Rebolavam sobre a colcha de veludo vermelho. Encolhiam e esticavam as
patinhassoboconedeluzcruaque,poeiradeestrelas,partiadoforroinvisívelecaía
sobre o leito.Um cheiro de almíscar banhava a atmosfera, e amúsica barroca, de
bruscosdiapasões,vinhadomesmocantodeondesaiuavozdominanteeseca:
—Tirearoupa.
—De jeitonenhum—protestoudonaLucrecia.—Eu aí, comesses bichos?
Nemmorta,tenhoódiodeles.
— Queria que você zesse amor com ele no meio dos gatinhos? — Don
RigobertonãoperdiaumasódasevoluçõesdedonaLucreciapelotapetemacio.Seu
coraçãocomeçavaadespertareanoitebarranquina,asairdanévoaeaviver.
—Imagine—murmurouela,detendo-seumsegundoeretomandoseupasseio
circular.—Queriamevernuanomeiodaquelesgatos.Comonojoquemedão!
Ficotodaarrepiadasódemelembrar.
DonRigobertocomeçouaperceberassilhuetasfelinas,eseusouvidosaescutar
os débeismiados damiúda gataria. Secretadas pelas sombras, elas iam assomando,
corpori cando-se,enacolchaincendiada,sobachuvadeluz,osbrilhos,osre exos,
aspardascontorçõesodeixaramtonto.Intuiuquenolimitedaquelasextremidades
movediçasseinsinuavam,aquosas,curvas,recém-saídas,asgarrinhas.
—Venha,venhacá—ordenouohomemládocanto,suavemente.Aomesmo
tempo, deve ter aumentado o volume, porque clavicórdios e violinos cresceram,
golpeandoseusouvidos.Pergolesi!, reconheceudonRigoberto.Entendeuaescolha
dasonata;oséculoXVIIInãoerasomenteododisfarceedaconfusãodesexos;era
também,porexcelência,odosgatos.Ea nalVenezanãotinhasido,desdesempre,
umarepúblicagateira?
— Você já estava nua? — Escutando-se, compreendeu que a ansiedade se
apoderavarapidamentedoseucorpo.
—Aindanão.Elemedespiu,comosempre.Porquevocêpergunta, se já sabe
queédissoqueelemaisgosta?
—Evocêtambém?—interrompeu-a,meloso.
DonaLucreciariu,comumarisadinhaforçada.
—Ésemprecômodoterumcriadodequarto—sussurrou, inventando-seum
risonhorecato.—Embora,destavez,fossediferente.
—Pelosgatinhos?
—E por quemmais?Me deixavam nervosíssima.Virei uma pilha de nervos,
Rigoberto.
Noentanto,haviaobedecidoàordemdoamanteescondidonocanto.Depéao
ladodele,dócil,curiosaeansiosa,esperava,semesquecerporumsegundoopunhado
de felinos que se exibiam, embolados, dengosos, entre revoluteios e lambidas, no
obscenocírculoamareloqueosaprisionavanocentrodacolcha amejante.Quando
elasentiuasduasmãosemseustornozelos,descendo-lheatéospésedescalçando-os,
seusseiossetensionaramcomodoisarcos.Osmamilosendureceram.Meticuloso,o
homemagoralhetiravaasmeias,beijandosempressa,comminúcia,cadapedacinho
de pele descoberta. Murmurava coisas que dona Lucrecia, no princípio, havia
entendidocomopalavrasternasouvulgaresditadaspelaexcitação.
—Masnão,nãoeraumadeclaraçãodeamor,nãoeramasporcariasqueàsvezes
ocorrema ele—riu-sedenovo, comamesma risadinha incrédula,detendo-se ao
alcancedasmãosdedonRigoberto.Estenãoprocuroutocá-la.
—Oquê,então?—balbuciou,lutandocontraaresistênciadesualíngua.
—Explicações, todaumaconferência felina—voltouelaa rir, entregritinhos
sufocados.—Sabiaqueomeléacoisaqueosbichanosmaisapreciamnomundo?E
queelestêmnotraseiroumabolsadaqualseextraiumperfume?
DonRigobertofarejouanoitecomsuasnarinasdilatadas.
—Éesseoseucheiro?Nãoéalmíscar,então?
—Éalgália.Perfumedegato.Estouimpregnada.Issooincomoda?
Ahistória lheescapava,deixava-oextraviado,eleacreditavaestardentroesevia
fora.Nãosabiaoquepensar.
—Elevouosfrascosdemelparaquê?—perguntou,temendoumjogo,uma
brincadeira,queviessemsubtrairformalidadeàquelacerimônia.
—Parauntarvocê—disseohomem,parandodebeijá-la.Continuouadespi-la;
haviaterminadocomasmeias,ocasaco,ablusa.Agora,desabotoavasuasaia.—Eu
o trouxe daGrécia, de abelhas domonteHimeto.Omel de que falaAristóteles.
Guardei-oparavocê,pensandonestanoite.
“Eleaama”,pensoudonRigoberto,enciumadoeenternecido.
—Dejeitonenhum—protestoudonaLucrecia.—Nãoenão.Porcarianãoé
comigo.
Falava sem autoridade, com as defesas abaladas pela contagiosa vontade do
amante,notomdequemsesabevencida.Seucorpohaviacomeçadoadistraí-lados
guinchos da cama, a vibrar, a concentrá-la, àmedida que o homem a livrava das
últimaspeças e,prostradoaos seuspés, continuavaaacariciá-la.Elaodeixavaagir,
procurando abandonar-se ao prazer assim provocado. Os lábios e mãos dele
espalhavam chamas por onde passavam. Os gatinhos continuavam ali, pardos e
verdosos,letárgicosouanimados,franzindoacolcha.Miavam,brincando.Pergolesi
haviaamainado,eraumabrisalongínqua,umdesmaiosonoro.
—Untar seu corpo commel de abelhas domonteHimeto?— repetiu don
Rigoberto,escandindocadapalavra.
— Para os gatos me lamberem, já pensou? Com o asco que essas coisas me
provocam,comminhaalergiaagatos, comonojoquemedá ser lambuzadacom
algo pegajoso (“Nuncamascou um chiclete”, pensou don Rigoberto, agradecido),
mesmoquesejaapontadeumdedo.Jápensou?
—Eraumgrandesacrifício,vocêsóofaziaporque...
—Porqueamovocê—interrompeu-odonaLucrecia.—Evocê tambémme
ama,nãoé?
“Com toda a alma”, pensou don Rigoberto.Tinha os olhos fechados. Havia
alcançado, en m, o estado de lucidez plena que buscava. Podia se orientar sem
di culdade naquele labirinto de sombras densas. Muito claramente, com uma
pontinhadeinveja,percebiaadestrezadohomemque,semseapressarnemperdero
controle dos dedos, desembaraçava Lucrecia da anágua, do sutiã, da calcinha,
enquanto seus lábios lhe beijavam com delicadeza a carne acetinada, sentindo a
granulação — causada por frio, incerteza, apreensão, asco ou desejo? — que a
enervava e as cálidas exalações que, ao apelo das carícias, escapavam dessas formas
pressentidas.Quandosentiuna língua,nosdentesenopaladardoamanteacrespa
matadepelos eo aromapicantedos seus sumos lhe subiu ao cérebro, começoua
tremer. Ele teria começado a untá-la? Sim.Com uma pequena brocha de pintor?
Não.Comumpano?Não.Comsuasprópriasmãos?Sim.Oumelhor,comcada
umdosseusdedoscompridoseossudoseasabedoriadeummassagista.Espargiam
sobreapelea substânciacristalina—oodor açucarado subia pelas narinas dedon
Rigoberto,deixando-oenjoado—everi cavamaconsistênciadecoxas,ombros e
seios,beliscavamaquelesquadris,percorriamaquelasnádegas,submergiamnaquelas
profundezas franzidas, separando-as. A música de Pergolesi voltava, caprichosa.
Ressoava,abafandoosquietosprotestosdedonaLucreciaeaexcitaçãodosgatinhos,
quefarejavamomele,adivinhandooqueiaacontecer,haviamcomeçadoabrincare
aguinchar.Corriampelacolcha,asfaucesabertas,impacientes.
—Melhordizendo,famintos—corrigiu-odonaLucrecia.
—Vocêjáestavaexcitada?—ofegoudonRigoberto.—Eleestavanu?Também
espalhavamelpelocorpo?
—Também,também,também—salmodioudonaLucrecia.—Meuntou,se
untou,mefezuntarsuascostas,ondesuamãonãochegava.Muitoexcitantesesses
joguinhos,semdúvida.Nemeleéumpedaçodemadeiranemvocêgostariaqueeu
fosse,nãoé?
—Claroquenão—confirmoudonRigoberto.—Meuamor.
—Nosbeijamos,nostocamos,nosacariciamos,evidentemente—detalhousua
esposa. Havia retomado a caminhada circular e os ouvidos de don Rigoberto
percebiam o roçagar do arminho a cada passo. Estava in amada, recordando?—
Querodizer,semnosmoverdocanto.Umbomtempo.Atéqueelemecarregou,e
assim,todamelada,melevouparaacama.
Avisãoeratãonítida,eade niçãodaimagem,tãoexplícita,quedonRigoberto
temeu: “Posso car cego.” Como aqueles hippies que nos anos psicodélicos,
estimuladospelassinestesiasdoácidolisérgico,desa avamosoldaCalifórniaatéque
osraios lhescarbonizavamaretinaeoscondenavamaveravidacomoouvido,o
tatoeaimaginação.Aliestavam,azeitados,porejantesdemelehumores,helênicos
emsuanudezepostura,avançandoemdireçãoàalgaraviafelina.Eleeraumlanceiro
medieval armado para a batalha e ela uma ninfa do bosque, uma sabina raptada.
Moviaosáureospéseprotestava“nãoquero,nãogosto”,masseusbraçosenlaçavam
amorosamenteopescoçodoseuraptor,sualínguapugnavaporlheinvadirabocae,
comfruição,sorvia-lheasaliva.“Espere,espere”,pediudonRigoberto.Docilmente,
dona Lucrecia se deteve e foi como se desaparecesse naquelas sombras cúmplices,
enquantoàmemóriadoseumaridovoltavaalânguidajovemdeBalthus(Nuavecchat)que,sentadaemumacadeira,acabeçavoluptuosamentejogadaparatrás,uma
pernaesticada,outraencolhida,ocalcanharzinhonabeiradoassento,alongaobraço
para acariciar um gato deitado no alto de uma cômoda e que, com os olhos
semicerrados, aguarda calmamente seu prazer. Remexendo, rebuscando, também
recordou haver visto, sem prestar muita atenção, seria no livro do animalista
holandêsMidasDekkers?,aRosalbadeBotero (1968), óleonoqual, agachado emuma cama nupcial, um pequeno felino negro se apresta a compartilhar lençóis e
colchão coma exuberante prostituta de crespa cabeleira que termina seu cigarro, e
alguma madeira de Félix Valloton ( Languor, c. 1896?) em que uma jovem de
nádegas espevitadas, entre almofadões oridos e um edredom geométrico, coça o
erógenopescoçodeumgatoempé.Aforaessasincertasaproximações,noarsenalde
sua memória nenhuma imagem coincidia com aquilo. Sentia-se infantilmente
intrigado.Aexcitaçãohaviare uído,semdesaparecer;assomavanohorizontedeseu
corpo como um desses sóis frios do outono europeu, a época preferida de suas
viagens.
—Edepois?—perguntou,voltandoàrealidadedosonhointerrompido.
OhomemdepositaraLucreciasoboconedeluze,desprendendo-secom rmeza
daquelesbraçosquequeriamatalhá-lo, sematenderàs suas súplicas,deraumpasso
paratrás.ComodonRigoberto,contemplava-atambémdaescuridão.Oespetáculo
era insólitoe,passadoodesconcerto inicial, incomparavelmentebelo.Depoisdese
afastarem,assustados,paralheabrirespaçoeobservá-la,agachados,indecisos,sempre
alertas — centelhas verdes, amarelas, bigodinhos retesados —, farejando-a, os
bichinhos se lançaram ao assalto daquela doce presa. Escalavam, assediavam,
ocupavam o corpo lambuzado, guinchando de felicidade. Sua gritaria abafou os
protestos entrecortados, os apagados meios-risos e exclamações de dona Lucrecia.
Braçoscruzadossobreorostoparaprotegeraboca,osolhoseonarizdasafanosas
lambidas, ela estava àmercê deles.Os olhos de donRigoberto acompanhavam as
irisadascriaturasávidas,deslizavamcomelaspelosseiosequadrisdedonaLucrecia,
resvalavamemseusjoelhos,aderiamaoscotovelos,ascendiamporsuascoxase,como
aquelas linguinhas, também se regalavam com a doçura líquida empoçada na lua
bojuda que o ventre dela parecia.O brilho domel condimentado pela saliva dos
gatos dava às formas brancas uma aparência semilíquida, e osmiúdos sobressaltos
que as correrias e reviravoltas dos animaizinhos provocavam nela tinham algo da
brandamobilidadedoscorposnaágua.DonaLucrecia utuava,eraumbaixelvivo
singrando águas invisíveis. “Como é bonita!”, pensou. Seu corpo de seios duros e
quadris generosos, de nádegas e coxas bem-de nidas, cava naquele limite que ele
admirava acima de todas as coisas em uma silhueta feminina: a abundância que
sugere,esquivando-a,aindesejávelobesidade.
—Abraaspernas,meuamor—pediuohomemsemrosto.
—Abra,abra—suplicoudonRigoberto.
—Sãopequenininhos,nãomordem,nãolhefarãonada—insistiuohomem.
—Vocêjáestavagozando?—perguntoudonRigoberto.
—Não,não—respondeudonaLucrecia,quehaviarecomeçadoohipnotizante
passeio.Orumordoarminhoressuscitouassuspeitasdele:elaestarianua,embaixo
docasaco?Sim,estava.—Ascócegasmedeixavamlouca.
Masacabaraconsentindo,edoisoutrêsfelinosseprecipitaramansiosamentepara
lamberodorsoocultodesuascoxas,asgotinhasdemelquecintilavamnossedosose
negrospelosdomontedeVênus.OcorodaslambidaspareceuadonRigobertouma
música celestial. Pergolesi retornava, agora sem força, com suavidade, gemendo
baixinho.Osólidocorpobesuntadoestavaquieto,emprofundorepouso.Masdona
Lucrecianãodormia,poisaosouvidosdedonRigobertochegavaadiscretamodorra
que,semqueelaopercebesse,escapavadesuasprofundezas.
—Seunojotinhapassado?—inquiriu.
—Claroquenão—retrucouela.E,depoisdeumapausa,comhumor:—Mas
jánãomeimportavatanto.
Riue,destavez,comorisoabertoquereservavaparaelenasnoitesdeintimidade
compartilhada,defantasiasemfreio,queosfaziaditosos.DonRigobertoadesejou
comtodasasbocasdoseucorpo.
—Tire o casaco— implorou.—Venha, venha para osmeus braços,minha
rainha,minhadeusa.
Masfoidistraídopeloespetáculoquenesseprecisoinstantesehaviaduplicado.O
homem invisível jánãoo era.Em silêncio, seu longo corpooleoso se in ltrouna
imagem.Agora,tambémeleestavaali.Deitando-senacolchavermelha,estreitava-se
a dona Lucrecia. A gritaria dos gatos espremidos entre os amantes, lutando para
escapar, exorbitados, fauces abertas, línguas pendentes, feriu os tímpanos de don
Rigoberto.Mesmotapandoosouvidos,elecontinuouaescutá-la.E,apesardefechar
osolhos,viuohomemencarapitadosobredonaLucrecia.Pareciaafundarnaqueles
robustosquadrisbrancosqueorecebiamcomregozijo.Eleabeijavacomamesma
avidez com que os gatinhos a tinham lambido e se movia sobre ela, com ela,
aprisionadoporseusbraços.AsmãosdedonaLucrecia lheoprimiamodorso,eas
pernas, levantadas, caíam sobre asdele, enquantoos altivospéspousavam sobre as
panturrilhas, o lugar que excitava donRigoberto. Este suspirou, contendo a duras
penas a necessidade de chorar que o esmagava. Conseguiu ver que dona Lucrecia
deslizavaemdireçãoàporta.
—Vocêvoltaamanhã?—perguntou,ansioso.
—Enodiaseguinte,enooutro—respondeuamudasilhuetaqueseperdia.—
Poracasoeufuiembora?
Os gatinhos, recuperados da surpresa, voltavam à carga e acabavam com as
últimasgotasdemel,indiferentesàbatalhadocasal.
O fetichismo dos nomes
Tenhoofetichismodosnomeseoteumeempolgaemeenlouquece.Rigoberto!É
viril,éelegante,ébrônzeo,éitaliano.Quandoopronuncio,emvozbaixa,demim
paramim,umacobrinhamepercorreascostasesemegelamoscalcanharesrosados
que Deus me deu (ou se preferires, descrente, a Natureza). Rigoberto! Risonha
cascatadeáguastransparentes.Rigoberto!Amarelaalegriadepintassilgocelebrandoo
sol.Ondeestiveres,estoueu.Quietinhaeapaixonada,bemali.Assinasumaletrade
câmbio,umacontaapagar,comteunometetrassílabo?Eusouopontinhoemcima
do i, o rabinho do g e o chifrinho do t. Amanchinha de tinta que ca no teu
polegar.Tealiviasdocalorcomumcopinhodeáguamineral?Eu,abolhinhaquete
refresca o paladar e o cubinho de gelo que arrepia tua linguinha de víbora. Eu,
Rigoberto,souocordãodosteussapatoseapastilhadeextratodeameixaquetomas
a cada noite contra a constipação. Como sei esse detalhe de tua vida
gastrenterológica?Quemamasabe,etemporsabedoriatudooqueconcerneaoseu
amor,sacralizandoodetalhemaistrivialdessapessoa.Diantedeteuretrato,eume
persignoerezo.Paraconhecertuavidatenhoteunome,anumerologiadoscabalistas
e as artes divinatórias de Nostradamus. Quem sou? Alguém que te ama como a
espumaàondaeanuvemaorosicler.Procura,procuraeencontra-me,amado.
Tua,tua,tua
Afetichistadosnomes
II.
As coisinhas de Egon Schiele
II - As coisinhas de Egon Schiele
—PorqueEgonSchielelheinteressatanto?—perguntoudonaLucrecia.
— Me dá pena que morresse tão jovem e que o metessem na cadeia —
respondeuFonchito.—Temunsquadroslindíssimos.Ficohorasolhandoparaeles,
noslivrosdopapai.Evocê?Nãogosta,madrasta?
— Não os recordo muito bem. Exceto as posturas. Uns corpos forçados,
desconjuntados,não?
—EeugostodeSchieletambémporque,porque...—interrompeu-aomenino,
comosefosserevelarumsegredo.—Nãomeatrevoalhedizer,madrasta.
—Vocêsabemuitobemdizerascoisasquandoquer,nãobanqueotolinho.
—Porquesintoquemepareçocomele.Quevouterumavidatrágica,comoa
dele.
DonaLucrecia deu uma risada.Mas uma inquietação a invadiu.De onde este
menino tirava semelhantecoisa?Alfonsitocontinuavaolhando-a,muito sério.Um
tempinho depois, fez um esforço e lhe sorriu. Estava sentado no chão da sala de
jantar, com as pernas cruzadas; conservava o paletó azul e a gravata cinza do
uniforme,mashaviatiradoobonezinhocomviseira,que jaziaaoseu lado,entrea
mochila, a pasta e a caixa de lápis da academia. Nisso, Justiniana entrou com a
bandejadochá.Fonchitoarecebeualvoroçado.
—Chancays1tostadoscommanteigaegeleia—aplaudiu,subitamentelivreda
preocupação.—Oqueeumaisadoronomundo.Vocêselembrou,Justita!
—Não zparavocê, zparaapatroa—mentiuJustiniana, ngindoseveridade.
—Paravocê,nemfarelo.
Ia servindo o chá e dispondo as xícaras na mesinha da sala. No Olivar, uns
garotos jogavam futebol, e através das cortininhas avistavam-se suas ardorosas
silhuetas;alidentro,emsurdina,chegavampalavrões,chutesretumbantesegritosde
triunfo.Daliapouco,escureceria.
—Nãovaimeperdoarnunca,Justita?—entristeceu-seomenino.—Aprenda
comminhamadrasta;elaesqueceuoquehouveeagoranosdamostãobemcomo
antes.
“Comoantes,não”,pensoudonaLucrecia.Umaondaquentealambiadesdeo
peitodospésatéapontadoscabelos.Disfarçou,bebendogolinhosdechá.
—Deveserporqueapatroaémuitoboaeeu,muitomá—zombavaJustiniana.
—Então,somosparecidos,Justita.Porque,emsuaopinião,eusoumuitomau,
não?
—Vocêmeganhadegoleada—despediu-seaempregada,sumindonocorredor
dacozinha.
Dona Lucrecia e o menino permaneceram em silêncio, enquanto comiam os
pãezinhosetomavamochá.
—Justitameodeiadabocaparafora—a rmouFonchito,quandoterminoude
mastigar.—Nofundo,pensoquetambémmeperdoou.Nãoacha,madrasta?
—Talveznão.Elanãosedeixatapearporsuasmaneirasdemeninobonzinho.
Não quer me ver passar de novo pelo que passei. Porque, embora não goste de
recordarisso,eusofrimuitoporsuaculpa,Fonchito.
—Eporacasoeunãosei,madrasta?—empalideceuomenino.—Porisso,vou
fazertudo,tudo,pararepararomalquelhecausei.
Estariafalandosério?Ourepresentandoumafarsa,utilizandoessevocabuláriode
velho precoce? Impossível averiguar, naquela carinha em que olhos, boca, nariz,
pômulos, orelhas e até a desordem dos cabelos pareciam a obra de um esteta
perfeccionista.Erabonito comoumarcanjo,umdeusinhopagão.Opior, opior,
pensava donaLucrecia, era que ele parecia a encarnação da pureza, ummodelo de
inocênciaevirtude.“AmesmaauréoladelimpezaquehaviaemModesto”,disseasi
mesma, recordandooengenheiroafeiçoadoàscançõesbregasque lhe zeraacorte
antesdeelasecasarcomRigoberto,eaquemhaviadesdenhado,talvezpornãosaber
apreciarsu cientementesuacorreçãoesuabondade.Ou,quemsabe,teriarechaçado
o pobre Pluto, como o chamavam, precisamente porque ele era bom? Por serem
aqueles fundos turvos, nos quais Rigobertomergulhava, o que atraía seu coração?
Comele,nãohaviavaciladoumsegundo.NobonachãodoPluto,aexpressãolimpa
refletiasuaalma;nestediabinhodoAlfonso,eraumaestratégiadesedução,umcanto
daquelassereiasquechamamdosabismos.
—VocêgostamuitodeJustita,madrasta?
—Sim,muito.Paramim, ela émais doqueuma empregada.Não sei oque
teria feito sem Justiniana todos estesmeses, enquantome acostumava outra vez a
viver sozinha. Foi uma amiga, uma aliada. Assim a considero. Não tenho os
preconceitosestúpidosdagentedeLimacomasdomésticas.
QuasecontouaFonchitoocasodarespeitabilíssimadonaFelíciadeGallagher,a
qualsegabavaemseuschás-canastradeterproibidoseumotorista,robustonegrode
uniforme azul-marinho, de beber água durante o trabalho para que não tivesse
vontadedeurinareprecisasseestacionarocarroembuscadeumbanheiro,deixando
a patroa sozinha naquelas ruas cheias de ladrões.Mas não o fez, pressentindo que
umaalusão,mesmo indireta,aumafunçãoorgânicadiantedomeninoseriacomo
revolveraságuasmefíticasdeumpântano.
— Posso lhe servir mais chá? Os chancays estão uma delícia — adulou-a
Fonchito.—Quandopossoescapulirdaacademiaevenho,mesintofeliz,madrasta.
—Vocênãodeveperdertantastardes.Serealmentequerserpintor,essasaulas
lheserãomuitoúteis.
Porque,quandolhefalavacomoaummenino,oqueelerealmenteera,via-se
dominadapelasensaçãodepisaremfalso,dementir?Mas,seotratassecomoaum
homenzinho,tinhaidênticaaflição,omesmosentimentodefalsidade.
—AchaJustinianabonita,madrasta?
—Acho,sim.Elatemumtipomuitoperuano,comsuapelecordecanelaesua
carinhaespevitada.Deveterpartidoalgunscoraçõesporaí.
—AlgumavezopapailhedissequeachavaJustinianabonita?
—Não,nãocreioqueeletenhadito.Masporquetantasperguntas?
—Pornada.MasvocêémaislindadoqueJustitaedoquetodas,madrasta!—
exclamouomenino.Porém,assustado,desculpou-sedeimediato.—Fizmalemlhe
dizerisso?Vocênãovaiseaborrecer,nãoé?
A senhoraLucrecia tentava evitarqueo lhodeRigobertonotasse seu sufoco.
Lúcifer estaria voltando a fazer das suas? Ela deveria pegá-lo por uma orelha e
expulsá-lo,ordenando-lhequenãovoltasse?MasFonchitojápareciateresquecidoo
que acabava de dizer e remexia na pasta em busca de alguma coisa. Finalmente,
encontrou.
— Veja, madrasta — estendeu-lhe o pequeno recorte. — Schiele, quando
pequeno.Nãosouparecido?
Dona Lucrecia examinou o mirrado adolescente de cabelos curtos e feições
delicadas,apertadoemumtrajeescurodoiníciodoséculo,comumarosanalapela,
eaquemacamisadecolarinhoduroeagravata-borboletapareciamestrangular.
—Nemumpouco—disse.—Vocênãoseparecenadacomele.
—Essasqueestãoaoladosãosuasirmãs.GertrudeeMelanie.Amenor,aloura,
éafamosaGerti.
—Porquefamosa?—perguntoudonaLucrecia,incomodada.Sabiamuitobem
queestavaentrandoemumcampominado.
—Comoporquê?—surpreendeu-seacarinharubicunda;asmãos zeramum
trejeitoteatral.—Nãosabia?Elafoiamodelodosnusmaisconhecidosdele.
—Ah, é?—OdesconfortodedonaLucrecia se acentuou.—Pelo que vejo,
vocêconhecemuitobemavidadeEgonSchiele.
—Litudooqueexistearespeitonabibliotecadopapai.Mulheresaosmontes
posaramnuas para ele.Garotas de colégio,mulheres da rua, sua amanteWally. E
tambémsuaesposaEdithesuacunhadaAdele.
—Bem,bem—donaLucreciaconsultouseurelógio.—Está candotardepara
você,Fonchito.
—TambémnãosabiaqueelefezEditheAdeleposaremjuntas?—prosseguiuo
menino, entusiasmado, como se não a tivesse escutado.—E, quando vivia com
Wally, na aldeiazinha de Krumau, mesma coisa. Nua, junto com meninas do
colégio.Porissosearmouumescândalo.
— Não é de estranhar, se eram meninas de colégio— comentou a senhora
Lucrecia.—Masveja,estáescurecendo,émelhorirembora.SeRigobertoligarpara
aacademia,vaidescobrirquevocêmataaula.
—Mas esse escândalo foi uma injustiça— continuou omenino, tomado de
grandeexcitação.—Schieleeraumartista,precisavaseinspirar.Nãopintouobras-
primas?Quemaldadehavianissodefazê-lassedespir?
—Voulevarestasxícarasparaacozinha.—AsenhoraLucreciaselevantou.—
Meajudecomospratoseacestinha,Fonchito.
Omeninoseapressouarecolhercomasmãosasmigalhasdechancayespalhadaspelamesa de centro. Seguiu amadrasta, docilmente.Mas a senhora Lucrecia não
haviaconseguidodesviá-lodoassunto.
—Bom, é verdade que, com algumas das que posaramnuas, ele também fez
umas coisinhas— ia dizendo Fonchito, enquanto percorriam o corredor.— Por
exemplo, fez com sua cunhadaAdele.Mas, com sua irmãGerti, não faria, não é,
madrasta?
Nas mãos da senhora Lucrecia as xícaras haviam começado a balançar. O
malandrinho tinha o endemoniado costumede, comoquemnão quer nada, levar
sempreaconversaparatemasescabrosos.
—Claroquenão fez— retrucou ela, sentindoque sua língua se enrolava.—
Evidentementenão,queideia.
Tinham entrado na pequena cozinha, de ladrilhos que pareciam espelhos.
Tambémasparedesreluziam.Justinianaosobservou, intrigada.Umaborboletinha
revoluteavaemseusolhos,animandoseurostomoreno.
—ComGerti,talveznão,mascomacunhada,sim—insistiuomenino.—A
própriaAdeleconfessou,quandoEgonSchiele já tinhamorrido.Os livroscontam
isso,madrasta.Ouseja,elefezcoisinhascomasduasirmãs.Vaiverqueeradaíque
lhevinhaainspiração.
— Quem era esse safado? — perguntou a empregada. Sua expressão era
vivíssima. Ela recebia xícaras e pratos e colocava-os embaixo da torneira aberta;
depois,afundava-osnapia,cheiaatéabordadeáguaespumosaeazulada.Ocheiro
dedetergenteimpregnavaacozinha.
—EgonSchiele—sussurroudonaLucrecia.—Umpintoraustríaco.
—Morreuaosvinteeoitoanos,Justita—especificouomenino.
—Certamente,detantofazercoisinhas.—Justinianafalavaeenxaguavapratose
xícaras, secando-os depois com um pano de losangos coloridos. — Portanto,
comporte-se,Foncho,cuidadoparanãolheaconteceromesmo.
—Nãomorreudefazercoisinhas,masdegripeespanhola—replicouomenino,
impermeávelaohumor.—Suaesposatambém,trêsdiasantesdele.Oqueégripe
espanhola,madrasta?
—Umagripemaligna, imagino.Deve ter chegado aViena vindadaEspanha,
seguramente.Bom,agoraváembora,estátarde.
— Já sei por que você quer ser pintor, seu bandido— interveio Justiniana,
irreprimível.—Porque,pelovisto,ospintorestêmumvidãocomsuasmodelos.
—Nãofaçaessesgracejos—repreendeu-adonaLucrecia.—Eleéummenino.
—Bemmetidinho,patroa—replicouaoutra,abrindoabocadeparempare
mostrandoseusdentesbranquíssimos.
— Antes de pintá-las, brincava com elas— retomou Fonchito o o de seu
pensamento,semprestaratençãoaodiálogoentrepatroaeempregada.—Faziacom
que elasposassemdemaneirasdiferentes, experimentando.Vestidas, peladas,meio
vestidas. O que mais lhe agradava era que trocassem as meias. Coloridas, verdes,
pretas,de todasascores.Equese jogassemnochão.Juntas, separadas,emboladas.
Que ngissemestarbrigando.Ficavahorasolhandoparaelas.Brincavacomasduas
irmãscomosefossemsuasbonecas.Atéquelhevinhaainspiração.Entãoaspintava.
— Que brincadeirinha... — provocou-o Justiniana. — Como aquela de ir
tirandoaspeçasderoupa,masparaadultos.
—Ponto nal! Chega!—Dona Lucrecia elevou tanto a voz que Fonchito e
Justiniana caram boquiabertos. Elamoderou o tom:—Não quero que seu pai
comecealhefazerperguntas.Vocêtemdeirembora.
—Estácerto,madrasta—tartamudeouomenino.
EstavabrancodesustoedonaLucreciasearrependeudehavergritado.Masnão
podia permitir que ele continuasse falando das intimidades de Egon Schiele com
aquelefogotodo,seucoraçãolhediziaquehaviaaliumaarmadilha,umriscoqueera
indispensávelevitar.QuebichohaviapicadoJustiniana,paraatiçá-lodaquele jeito?
Omeninosaiudacozinha.Elaoescutourecolhendoamochila,apastaeoslápisna
saladejantar.Quandovoltou,haviaajeitadoagravata,en adoobonéeabotoadoo
paletó.Plantadonoumbral,fitando-anosolhos,perguntoucomnaturalidade:
—Possolhedarumbeijodedespedida,madrasta?
OcoraçãodedonaLucrecia,quehaviacomeçadoaserenar,acelerou-sedenovo;
oquemaisaperturbou,porém,foiosorrisinhodeJustiniana.Oquedeviafazer?Era
ridículosenegar.Assentiu, inclinandoacabeça.Uminstantedepois, sentiuna face
umbiquinhodepassarinho.
—Eemvocê,tambémposso,Justita?
—Cuidadoparanãosernaboca—gargalhouamoça.
Destavezomeninofestejouogracejo,soltandoumarisada,enquantoseesticava
parabeijarJustiniananaface.Eraumabobagem,claro,masasenhoraLucrecianãose
atreviaa taraempregadanosolhosnemconseguiarepreendê-laporseexcedercom
piadasdemaugosto.
—Voumatarvocê—dissepor m,meiodebrincadeira,meioasério,quando
sentiu a porta da rua se fechar. — Enlouqueceu, para fazer essas gracinhas com
Fonchito?
—Équeessemeninotemnãoseioquê—desculpou-seJustiniana,encolhendo
osombros.—Fazagenteencheracabeçadepecados.
—Seja láoque for—dissedonaLucrecia—,comeleomelhorénãobotar
lenhanafogueira.
—Fogueiraéoqueasenhoratemnacara,patroa—retrucouJustiniana,com
suadesenvolturahabitual.—Masnãosepreocupe,essacorlheficaótima.
Clorofila e bosta
Sinto ter de decepcioná-lo. Suas apaixonadas arengas em favor da preservação da
Naturezaedomeioambientenãomecomovem.Nasci,viviemorrereinacidade(na
feiacidadedeLima,seforocasodebuscaragravantes),eafastar-medaurbe,mesmo
que por um m de semana, é uma servidão à qual me submeto às vezes por
obrigaçãofamiliarourazãodetrabalho,massempredemávontade.Nãomeinclua
entreessesmesocratascujaaspiraçãomaisacalentadaécomprarumacasinhaemuma
praiadoSulparaalipassarverõese nsdesemanaemobscenapromiscuidadecoma
areia,aáguasalgadaeasbarrigascervejeirasdeoutrosmesocratasidênticosaeles.Esse
espetáculo domingueiro de famílias confraternizando em um exibicionismo bien-pensantà beira-mar é paramimumdosmais deprimentes entre os oferecidos, no
ignóbilescalãodogregário,porestepaíspré-individualista.
Constatoque,parapessoascomoo senhor,umapaisagemenfeitadacomvacas
pastandoemmeioaolorosaservas,oucabritasfariscandoalgarobeiras,alvoroça-lhes
o coração e leva-as a experimentar o êxtase do jovenzinho que pela primeira vez
contempla uma mulher nua. No que me concerne, o destino natural do touro
macho é a arena— em outras palavras, viver para enfrentar a capa, a muleta, a
garrocha,abandarilhaeoestoque—,easestúpidasbovinaseusógostariadevê-las
esquartejadas e assadas na grelha, temperadas com especiarias ardentes e sangrando
diante de mim, rodeadas por batatas crocantes e saladas frescas, e as cabritas,
trituradas,des adas, fritasoucurtidas, segundoasreceitasdoseco nortista, umdos
meusfavoritosentreospratosqueabrutalgastronomiacrioulaoferece.Seiqueofendosuascrençasmaiscaras,poisnãoignoroqueosenhoreosseus—
outra conspiração coletivista!— estão convencidos, ou prestes a estar, de que os
animais têm direitos e, quem sabe, alma, todos eles, sem excluir o mosquito
palúdico, a hiena carniceira, a sibilante cobra e a piranha voraz. Eu confesso
paladinamentequeparamimosanimaistêmuminteressecomestível,decorativoe
talvezesportivo(emboradevaesclarecer-lhequeoamoraoscavalosmeproduztanto
desagrado quanto o vegetarianismo, e que considero os ginetes de testículos
ananicados pela fricção da montaria como um tipo particularmente lúgubre do
castradohumano).Emborarespeite,adistância,osquelhesatribuemfuncionalidade
erótica,amim,pessoalmente,nãomeseduz(oumelhor,faz-mefarejarmausodores
epresumirvariadasincomodidadesfísicas)aideiadecopularcomumagalinha,uma
pata,umamacaca,umaéguaouqualquervarianteanimalcomorifícios,eabrigoa
enervantesuspeitadequequemsegrati cacomtaisginásticassão,noíntimo—não
otomecomoalgopessoal—,ecologistasemestadoselvagem,conservacionistasque
seignoram,muitocapazes,nofuturo,deirenturmar-secomBrigitteBardot(que,
deresto,tambémameiquandojovem)paraatuaremproldasobrevivênciadasfocas.
Embora, vez por outra, tenha tido fantasias inquietantes com a imagem de uma
formosamulhernuabalançandoemumleitosalpicadodebichanos,saberquenos
EstadosUnidoshásessentaetrêsmilhõesdegatosecinquentaequatromilhõesde
cãesdomésticosmealarmamaisdoqueoenxamedearmasatômicasarmazenadas
emmeiadúziadepaísesdaex-UniãoSoviética.
Se assim penso desses quadrúpedes e passarolos, o senhor já pode imaginar os
humores que em mim despertam seus espessos bosques, sussurrantes árvores,
deleitosasfrondes,rioscantores,des ladeirosprofundos,cumescristalinos,similares
e anexos. Todas essas matérias-primas têm para mim sentido e justi cação se
passarem pelo crivo da civilização urbana, isto é, se forem manufaturadas e
transmutadas — não me importa que digamos “irrealizadas”, mas preferiria a
desprestigiada fórmula “humanizadas” — pelo livro, o quadro, o cinema ou a
televisão.Entendamo-nos:eudariaminhavida(algoquenãodevesertomadoaopé
daletra,poiséumdizerobviamentehiperbólico)parasalvarosálamosqueempinam
suaaltacopanoPolifemoeasamendoeirasqueencanecemasSoledadesdeGóngora,os salgueiros-chorõesdas éclogasdeGarcilasoouosgirassóis e trigaisquedestilam
seu mel áureo nos Van Gogh, mas não derramaria uma lágrima em louvor dos
pinheiraisdevastadospelosincêndiosdaestaçãoestivalenãometremeriaamãoao
assinar o decreto de anistia em favor dos incendiários que carbonizam bosques
andinos,siberianosoualpinos.ANaturezanãopassadapelaarteoupelaliteratura,a
Natureza ao natural, cheia de moscas, pernilongos, lama, ratazanas e baratas, é
incompatível com prazeres re nados, como a higiene corporal e a elegância
indumentária.
Para serbreve, resumireimeupensamento—minhas fobias, em todocaso—
explicando-lhe que, se isso que o senhor chama de “peste urbana” avançasse
incontrolável e engolisse todas as pradarias do mundo, e o globo terrestre se
recobrissedeumaerupçãodearranha-céus,pontesmetálicas,ruasasfaltadas, lagose
parques arti ciais, praças cimentadas e estacionamentos subterrâneos, e o planeta
inteiro se encasquetasse de concreto armado e vigas de aço e fosse uma só cidade
esféricaeinterminável(repleta,istosim,delivrarias,galerias,bibliotecas,restaurantes,
museus e cafés), o subscritor, homo urbanus até a consumação dos seus ossos,
aprovariaamedida.
Pelasrazõessupracitadas,nãocontribuireicomumsócentavoparaosfundosda
AssociaçãoCloro laeBostaqueosenhorpreside,efareitudooqueestiveraomeu
alcance(muitopouco,tranquilize-se)paraqueseus nsnãosecumpramequesua
bucólica loso a seja atropelada por este objeto emblemático da cultura que o
senhorodeiaeeuvenero:ocaminhão.
O sonho de Pluto
Nasolidãodeseuescritório,espertadopelofrioamanhecer,donRigobertoserepetiu
dememóriaafrasedeBorgescomaqualacabavadetopar:“Doadultériocostumam
participaraternuraeaabnegação.”Poucaspáginasdepoisdacitaçãoborgiana,acarta
apareceudiantedele,indeneaosanoscorrosivos:
QueridaLucrecia:Ao ler estas linhas você teráa surpresade suavida e, quem sabe,medesprezará.
Mas não importa. Mesmo que houvesse uma só possibilidade de que você aceitasseminhapropostacontraummilhãodequearecusasse,eumergulhariafundo.Resumireio que exigiria horas de conversa, acompanhada de in exões de voz e gesticulaçõespersuasivas.
Desdeque (depois dobilhete azul que vocêmedeu)deixei oPeru, trabalheinosEstadosUnidos,combastantesucesso.Emdezanoschegueiagerenteesóciominoritáriodestafábricadecondutoreselétricos,bemimplantadanoestadodeMassachusetts.Comoengenheiroeempresário,conseguiabrircaminhonestaminhasegundapátria,jáqueháquatroanossoucidadãoamericano.
Pois bem, saiba que acabo de renunciar a essa gerência e estou vendendominhas
açõesnafábrica,peloqueesperoobterumlucrodeseiscentosmildólaresou,comsorte,um pouco mais. Faço isso porque me ofereceram a reitoria do TIM (TechnologicalInstituteofMississippi), o collegeonde estudei e comoqual sempremantive contato.Um terço do estudantado é agora hispanic(latino-americano). Meu salário será ametadedoqueganhoaqui.Nãoimporta.Dedicar-meàformaçãodessesjovensdasduasAméricasqueconstruirãooséculoXXIéalgoquemeempolga.SempresonheientregarminhavidaàUniversidadeeéoquefariasetivesse cadonoPeru,istoé,sevocêtivessesecasadocomigo.
“Aquevemtudoisso?”,vocêdeveestarseperguntando.“PorqueModestoressuscita,depois de dez anos, para me contar semelhante história?” Já chego lá, queridíssimaLucrecia.
Decidigastar emuma semanade férias, entreminhapartidadeBostoneminhachegadaaOxford,Mississippi,cemmildosseiscentosmildólarespoupados.Férias,diga-sedepassagem,eununcatireinemtirareinofuturo,porque,comovocêcertamenteselembra,oquesempremeagradoufoitrabalhar.Meu jobcontinuasendomeumelhorlazer.Mas, semeusplanos saíremcomo espero, essa semana seráalgo forado comum.NãoasconvencionaisfériasdecruzeironoCaribeoupraiascomcoqueirosesur stasnoHavaí.Algomuitopessoaleirrepetível:amaterializaçãodeumsonhoantigo.Éaíquevocêentranahistória,pelaportaprincipal.Bemseiqueestácasadacomumhonradocavalheirolimenho,viúvoegerentedeumacompanhiadeseguros.Eutambémestou,comumagringuinhadeBoston,médicadepro ssão,esoufeliz,namodestamedidaemqueomatrimôniopermitesê-lo.Nãolheproponhoquevocêsedivorcieemudedevida,nadadisso.Somentequecompartilhe comigoessa semana ideal,acariciadaemminhamente ao longo de muitos anos, e que agora as circunstâncias me permitem tornarrealidade.Vocênãosearrependerádevivercomigoessessetediasdeilusãoeselembrarádelescomsaudadepelorestodesuavida.Issoeulheprometo.
Nosso encontro será no sábado 17 no aeroporto Kennedy, em Nova York, vocêprocedentedeLimanovoodaLufthansa,eeudeBoston.Umalimusine nos levaráàsuíte do Plaza Hotel, já reservada, inclusive com a indicação das ores que devemperfumá-la.Você terá tempo para descansar, ir ao cabeleireiro, tomar uma sauna oufazercomprasnaQuintaAvenida,literalmenteaosseuspés.NessanoitetemoslugaresnoMetropolitanparaveraToscadePuccini,comLucianoPavarottinopapeldeMarioCavaradossi e a Orquestra Sinfônica do Metropolitan regida pelo maestro EdouardoMuller.JantaremosnoLeCirque,onde,comsorte,vocêpoderá carpertinhodeMickJagger, Henry Kissinger ou Sharon Stone. Terminaremos a noitada no bulício doRegine’s.
O Concorde rumo a Paris sai no domingo ao meio-dia, não será necessáriomadrugar.Como o voo dura só três horas emeia— inadvertidas, acredito, graças àsdelíciasdoalmoçoassinadoporPaulBocuse—,chegaremosàCidade-Luzaindadedia.
Assim que nos instalarmos no Ritz (vista garantida para a PlaceVendôme), haverátempoparaumpasseiopelaspontesdoSena,aproveitandoastépidasnoitesdoiníciodooutono, asmelhores segundo os entendidos, desde que não chova. (Fracassei emmeusesforçosporaveriguarasperspectivasdeprecipitaçãopluvialparisiensenessedomingo enessa segunda-feira, pois a NASA, vale dizer, a ciência meteorológica, só prevê oscaprichosdocéucomquatrodiasdeantecedência.)NuncaestiveemPariseesperoquevocê também não, de modo que, nessa caminhada vespertina do Ritz até Saint-Germain,descobriremosjuntosaquiloque,pelovisto,éumitineráriosurpreendente.Namargem esquerda (oMira ores parisiense, digamos assim) nos aguardam o inconclusoRéquiemdeMozart,naabadiadeSaint-Germain-des-Prés, eum jantarChezLipp,brasseriealsacianaondeéobrigatórioochucrute(nãoseioqueé,mas,senãotiveralho,vou gostar). Imaginei que, terminado o jantar, você vai querer descansar paraempreender, fresquinha,a intensa jornadada segunda-feira,demodoquenessanoitenãosobrecarregamoprogramadiscoteca,bar,boateneminferninho.
Na manhã seguinte passaremos pelo Louvre para apresentar nossos respeitos àGiocondae almoçaremos rapidamente em La Closerie des Lilas ou em La Coupole(reverenciadosrestaurantesesnobesdeMontparnasse).Àtardetomaremosumbanhodevanguarda no Centre Pompidou e daremos uma olhada no Marais, famoso por seuspalácios do século XVIII e seus veados contemporâneos. Tomaremos um chá em LaMarquisedeSévigné,naPlacedeLaMadeleine,antesderecuperarmosas forçascomumaduchanohotel.Oprogramadanoiteé francamente frívolo:aperitivonobardoRitz,jantarnocenáriomodernistadoMaxim’se mdefestanacatedraldostriptease:oCrazy Horse Saloon, que estreia sua nova revista “Que calor!”. (Os ingressos estãoadquiridos, as mesas reservadas, e maîtrese porteiros subornados para garantir osmelhoreslugares,mesaseatendimento.)
Uma limusine,menos espetacularporémmais re nadaqueadeNovaYork, comchofereguia,noslevaránamanhãdaterça-feiraaVersalhes,paraconheceropalácioeosjardinsdoReiSol.Comeremosalgotípico(bifecombatatasfritas,temo)emumbistrôdo caminho, e,antesdaÓpera (Otelo, deVerdi, comPlácidoDomingo, claro), vocêterá tempo para compras no Faubourg Saint-Honoré, vizinho do hotel. Faremos umsimulacrodejantar,porrazõesmeramentevisuaisesociológicas,nopróprioRitz,onde—especialistasdixit—asuntuosidadedoambienteeore namentodoserviçocompensamafaltadeimaginaçãodocardápio.Overdadeirojantarnósteremosdepoisdaópera,emLaTourd’Argent,de cujas janelasnosdespediremosdas torresdeNotre-DameedasluzesdaspontesrefletidasnaságuasfugidiasdoSena.
O Orient-Express paraVeneza sai na quarta-feira ao meio-dia, da Gare Saint-Lazare. Viajando e descansando, passaremos nele esse dia e a noite seguinte, mas,segundoosqueprotagonizaramtalaventuraferroviária,percorrernessescamarotesbelleépoquea geogra a de França, Alemanha, Áustria, Suíça e Itália é relaxante e
preliminar,excitasemfatigar,entusiasmasemenlouquecerediverteatéporrazõesdearqueologia, em virtude do gosto com que foi ressuscitada a elegância dos camarotes,toaletes,bareserestaurantesdessemíticotrem,cenáriodetantosromancese lmesdoentreguerras.LevareicomigooromancedeAgathaChristie AssassinatonoExpressodoOriente,emversõesinglesaeespanhola,casolheapeteçadarumaolhadanoscenáriosdaação.Segundooprospecto,paraojantarauxchandellesdessanoite,aetiquetaeoslongosdecotessãoobrigatórios.
AsuítedoHotelCipriani,nailhadaGiudecca,temvistaparaoGrandeCanal,aPraçadeSãoMarcos easbizantinas e elaboradas torresde sua igreja.Contrateiumagôndola,assimcomooguiaqueaagênciaconsideraomaispreparado(eoúnicoamável)dacidade lacustre,paraquenamanhãenatardedaquinta-feiraelenos familiarizecom igrejas, praças, conventos, pontes e museus, com um curto intervalo ao meio-diapara beliscarmos alguma coisa — uma pizza, por exemplo — rodeados de pombos eturistas, no terraço do Florian.Tomaremos o aperitivo—uma beberagem inevitávelchamadaBellini—noHotelDanieli e jantaremosnoHarry’sBar, imortalizado porum péssimo romance deHemingway.Na sexta-feira continuaremos amaratona comumavisitaàpraiadoLidoeumaexcursãoaMurano,ondeaindasemodelaovidroasopros humanos (técnica que resgata a tradição e robustece os pulmões dos nativos).Haverá tempo para comprar suvenires e dar uma olhada furtiva em uma villa dePalladio.Ànoite,concertonailhotadeSanGiorgio—IMusiciVeneti—compeçasdedicadasabarrocosvenezianos,claro:Vivaldi,CimarosaeAlbinoni.OjantarseránoterraçodoDanieli,divisando, seanoite for semnuvens,como“mantodevagalumes”(estouresumindoosguias),osfaróisdeVeneza.Seocorpoopermitir,queridaLucre,nosdespediremosdacidadeedoVelhoContinenterodeadosdemodernidade,nadiscotecaIlGattoNero,queatraivelhos,madurose jovensa cionadosdo jazz(eununca fui evocêtampouco,masumdosrequisitosdessasemanaidealéfazeroquenunca zemos,submetidosàsservidõesdomundanismo).
Namanhã seguinte— sétimodia, a palavra m jánohorizonte —será precisomadrugar.OaviãorumoaParissaiàsdez,atempodealcançaroConcordeparaNovaYork.SobreoAtlântico,cotejaremosasimagensesensaçõesarmazenadasnamemóriaafimdeescolherasmaisdignasdeperdurar.
VamosnosdespedirnoKennedyAirport(seuvooparaLimaeomeuparaBostonsãoquasesimultâneos)para,certamente,nãonosvermosmais.Duvidoquenossosdestinosvoltemasecruzar.EunãoretornareiaoPeruenãocreioquevocêapareçaalgumdianoperdidorincãodoDeepSouth,que,apartirdeoutubro,poderásevangloriardeteroúnicoreitor hispanicdestepaís(osdoismilequinhentosrestantessãogringos,africanosouasiáticos).
Você vem? Sua passagem está à espera na agência limenha da Lufthansa. Nãoprecisameresponder.Dequalquermodo,nosábado17euestareinolugardoencontro.
Sua presença ou ausência será a resposta. Se você não vier, cumprirei o programado,sozinho, fantasiandoque você está comigo, tornando real esse capricho comoqualmeconsolei nestes anos, pensando em umamulher que, apesar do passa-fora quemudouminhaexistência,continuarásendosempreocoraçãodaminhamemória.
Precisoesclarecerqueesteéumconviteaquevocêmehonrecomsuacompanhia,equenãoimplicaoutraobrigaçãoaforaademeacompanhar?Denenhummodolhepeçoque,nessesdiasdaviagem—nãoseidequaleufemismomevalerparadizeristo—,compartilhemeu leito.Queridíssima Lucrecia: só aspiro a que você compartilhemeusonho.As suítesreservadas emNovaYork,Paris eVeneza têmquartos separados comchaves e ferrolhos, aos quais, se seus escrúpulos exigirem, posso acrescentar punhais,machados,revólvereseatéguarda-costas.Masvocêsabequenadadissoseránecessárioeque,nessasemana,obomModesto,omansoPluto,comomeapelidavamnobairro,serátãorespeitosocomvocêcomoanosatrás,emLima,quandotentavaconvencê-laasecasarcomigoemalmeatreviaatocarsuamãonoescurinhodoscinemas.
AtéoaeroportoKennedyouaténunca,Lucre,Modesto(Pluto)
DonRigoberto se sentiu atacado pela febre e pela tremedeira da terçã.O que
Lucreciaresponderia?Rechaçaria,indignada,acartadaqueleressuscitado?Sucumbiria
àfrívolatentação?Namadrugadaleitosa,pareceu-lhequeseuscadernosesperavamo
desenlacecomamesmaimpaciênciadeseuespíritoatormentado.
Imperativos do sedento viajante
Estaéumaordemdoteuescravo,amada.
Diantedoespelho,sobreumacamaouumsofáengalanadocomsedasdaÍndia
pintadas à mão ou batique indonésio de olhos circulares, te reclinarás de costas,
despida,eteuslongoscabelosnegrossoltarás.
Levantarásapernaesquerda recolhidaaté formarumângulo.Apoiarásacabeça
emteuombrodireito,entreabrirásoslábiose,amassandocomadestraumaponta
dolençol,baixarásaspálpebras,simulandodormir.Fantasiarásqueumrioamarelo
deasasdeborboletaeestrelasempódescedocéusobretietefende.
Quemés?
ADânae deGustavKlimt, naturalmente.Não importa quemo inspiroupara
pintaresseóleo(1907-1908),omestreteantecipou,teadivinhou,teviu,talcomo
viriasaomundoeserias,dooutro ladodooceano,meioséculodepois.Acreditava
recriarcomseuspincéisumadamadamitologiahelênicaeerastuqueeleprecriava,
belezafutura,esposaamante,madrastasensual.
Só tu, entre todas as mulheres, como nessa fantasia plástica, reúnes a pulcra
perfeição do anjo, sua inocência e sua pureza, a um corpo atrevidamente terreno.
Hoje,prescindoda rmezadeteusseiosedabeligerânciadeteusquadrisparaprestar
umahomenagemexclusivaàconsistênciadetuascoxas,templodecolunasondeeu
quiseraseratadoeaçoitadopormecomportarmal.
Tuinteiracelebrasmeussentidos.
Pele de veludo, saliva de aloé, delicada dama de cotovelos e joelhos
incorruptíveis, desperta, olha-te no espelho, diz a ti mesma: “Sou reverenciada e
admirada como nenhuma outra, sou lembrada com saudade e desejada como as
miragenslíquidasdosdesertospelosedentoviajante.”
Lucrecia-Dânae,Dânae-Lucrecia.
Estaéumasúplicadoteuamo,escrava.
A semana ideal
—MinhasecretárialigouparaaLufthansae,defato,suapassagemestálá,paga—
dissedonRigoberto.—Idaevolta.Naprimeiraclasse,éclaro.
— Fiz bem em lhe mostrar esta carta, amor? — exclamou dona Lucrecia,
assustadíssima.—Vocênãoseaborreceu,nãoé?Comoprometemosnãoesconder
nadaumdooutro,acheiquedevialhemostrar.
—Fezmuitobem,minha rainha—disse donRigoberto, beijando amãoda
esposa.—Queroquevocêvá.
—Querqueeuvá?—DonaLucreciasorriu,fezumaexpressãograveevoltoua
sorrir.—Sério?
—Imploro—insistiuele,oslábiosnosdedosdesuamulher.—Anãoserquea
ideianãolheagrade.Masporquenãoagradaria?Emborasejaumprogramadenovo-
rico e um tanto vulgar, está elaborado com espírito brincalhão e uma ironia
incomumentreengenheiros.Vocêvaisedivertir,meuamor.
—Nãoseioquedizer,Rigoberto—balbucioudonaLucrecia,lutandocontrao
rubor.—Éumagenerosidadedasuaparte,mas...
—Épormotivosegoístasqueeulhepeçoqueaceite—esclareceuseumarido.
—Você sabe,emminha loso aoegoísmoéumavirtude.Suaviagemseráuma
grandeexperiênciaparamim.
Pelos olhos e pela expressão de don Rigoberto, dona Lucrecia soube que ele
falavasério.Fez,portanto,aviagem,enooitavodiaretornouaLima.Noaeroporto
foiesperadapelomaridoeporFonchito,estecomumbuquêde oresenvoltasem
papel celofane e um cartão: “Bem-vinda à terrinha,madrasta.”Receberam-na com
muitas demonstrações de carinho e don Rigoberto, para ajudá-la a ocultar sua
perturbação, cobriu-a de perguntas sobre o tempo, as alfândegas, os horários
alterados, ojetlageocansaço,evitandotodaalusãoaoassuntonevrálgico.Rumoa
Barranco,deu-lheprecisacontadotrabalho,docolégiodeFonchito,dosdesjejuns,
almoços e jantares, durante a ausência dela.A casa brilhava comordem e limpeza
exageradas. Justiniana havia mandado lavar as cortininhas e renovar o adubo do
jardim,tarefasquesóeramrealizadasnofimdomês.
DonaLucrecia passou a tarde abrindomalas, conversando comos empregados
sobreassuntospráticoseatendendoatelefonemasdeamigasefamiliaresquequeriam
sabercomotinhasidosuaviagemdecomprasnatalinasaMiami(aversãoo cialde
sua escapadela). Não houve o menor mal-estar no ambiente quando tirou os
presentesparaomarido,oenteadoeJustiniana.DonRigobertoaprovouasgravatas
francesas,ascamisasitalianaseopulôvernova-iorquino,eemFonchitoassentaram
como luvas os jeans, a jaqueta de couro e o conjunto esportivo. Justiniana soltou
umaexclamaçãodeentusiasmoaoexperimentar,sobreoavental,ovestidoamarelo-
patinhoquelhecoube.
Depoisdo jantar, donRigoberto se fechounobanheiro edemoroumenosdo
quehabitualmente com suas abluções.Devolta, encontrouodormitório emuma
penumbrarasgadaporumtalhodeluzindiretaquesóiluminavaasduasgravurasde
Utamaro:acoplamentosincompatíveismasortodoxosdeumsócasal,eledotadode
uma verga em saca-rolhas e ela de um sexo liliputiano, entre quimonos in ados
comonuvensdetormenta,lanternasdepapel,esteiras,mesinhascomaporcelanado
chá e, ao longe, pontes sobre um rio sinuoso.Dona Lucrecia estava embaixo dos
lençóis, não despida, comprovou, ao deslizar para junto dela,mas comumanova
camisola— adquirida e usada durante a viagem?— que deixava às mãos dele a
liberdadenecessáriaparaalcançarseuscantinhosíntimos.Elaseajeitoudeladoeele
pôde lhepassar obraço embaixodosombros e senti-la dospés à cabeça.Beijou-a
semsufocá-la, commuita ternura,nosolhos,nas faces,demorando-seatéchegarà
boca.
—Nãome conte nada que não queira—mentiu-lhe no ouvido, com uma
coqueteriainfantilqueatiçavasuaimpaciência,enquantoseuslábioslhepercorriama
curvadaorelha.—Comoacharmelhor.Ou,sepreferir,nada.
—Voucontartudo—cochichoudonaLucrecia,buscando-lheaboca.—Não
foiparaissoquevocêmemandou?
—Também—assentiudonRigoberto,beijando-anopescoço,noscabelos,na
testa, insistindononariz,nas faces enoqueixo.—Você sedivertiu?Correu tudo
bem?
—Correubemou correumal, vaidependerdoque acontecer agora entrenós
dois—disseasenhoraLucreciadeumsófôlego,edonRigobertosentiuque,por
umsegundo,suamulher cavatensa.—Mediverti,sim.Desfrutei,sim.Mastive
medootempotodo.
—Dequeeumeaborrecesse?—DonRigobertobeijavaagoraosseios rmes,
milímetroamilímetro,eapontadesualínguabrincavacomosmamilos,sentindo
comoseendureciam.—Dequeeulhefizesseumacenadeciúme?
—Dequevocêsofresse—sussurroudonaLucrecia,abraçando-o.
“Começa a transpirar”, comprovou don Rigoberto. Sentia-se feliz acariciando
aquelecorpoacadainstantemaisativoeprecisourecorreràlucidezparacontrolara
vertigem que ameaçava dominá-lo. No ouvido de sua mulher, murmurou que a
amava,mais,muitomaisdoqueantesdaviagem.
Elacomeçouafalar,comintervalos,buscandoaspalavras—silênciosqueeram
álibis para sua confusão—,mas, pouco a pouco, estimulada pelas carícias e pelas
amorosas interrupções, foi ganhando con ança. Por m, don Rigoberto percebeu
que ela havia recuperado a desenvoltura e relatava tomando uma ngida distância
daquiloquecontava.Aderidaaocorpodele,apoiavaacabeçanoseuombro.Asmãos
respectivassemoviamdevezemquando,paratomarposseouaveriguaraexistência
deummembro,músculooupedaçodepeledoparceiro.
—Elehaviamudadomuito?
Tinhaseagringalhadonamaneiradevestiredefalar,poiscontinuamentedeixava
escaparemexpressõeseminglês.Mas,mesmogrisalhoemaisgordo,mantinhaaquela
caradePluto,compridaetristonha,atimidezeasinibiçõesdajuventude.
—Devetervistovocêchegarcomoquecaídadocéu.
—Ficou tão pálido! Parecia que ia desmaiar.Me esperava comumbuquê de
oresmaiordoque ele.A limusine eraumadaquelasprateadas, dos gângsteresde
filme.Combar,televisão,somestéreoe,aguenteesta,assentosempeledeleopardo.
—Pobresecologistas—entusiasmou-sedonRigoberto.
—Seiqueéumacafonice—desculpou-seModesto,enquantoochofer,afegão
altíssimouniformizadodegrená,arrumavaabagagemnoporta-malas.—Maseraa
maiscara.
—Écapazdezombardesimesmo—sentencioudonRigoberto.—Simpático.
—NaviagematéoPlaza,meelogiouumasduasvezes,coradoatéasorelhas—
prosseguiudonaLucrecia.—Queeucontinuavamuitobem,queestavaaindamais
bonitadoquequandoelequissecasarcomigo.
—E está— interrompeu donRigoberto, bebendo-lhe o alento.—Cada dia
mais,cadahoramais.
—Nemumasópalavrademaugosto,nemumasóinsinuaçãochocante—disse
ela.—Meagradeceutantoporeuter idoquemesenticomoaboasamaritanada
Bíblia.
—Sabeoqueeleiapensando,enquantolhefaziaessesgalanteios?
—Oquê?—donaLucreciaenroscouumapernanasdoseumarido.
—Seaverianuanessamesmatarde,noPlaza,ouseteriadeesperaratéanoite,
ouatéParis—ilustrou-adonRigoberto.
—Nãomeviunuanemnessa tardenemnessanoite.Anãoserquetenhame
espiadopelafechadura,enquantoeutomavabanhoemevestiaparaoMetropolitan.
Aquilodequartosseparadoseraverdade.OmeutinhavistaparaoCentralPark.
—Mas, pelomenos, deve ter segurado suamão na ópera, no restaurante—
queixou-se ele, decepcionado. — Com a ajudinha do champanhe, certamente
dançouderostocoladocomvocênoRegine’s.Ebeijouseupescoço,aorelhinha.
Nada disso.Não tentara segurar amão dela nem beijá-la naquela longa noite
durante a qual, no entanto, não economizara os oreios verbais, sempre a uma
respeitosa distância. Mostrara-se simpático, na verdade, zombando da própria
inexperiência(“Morrodevergonha,Lucre,mas,emseisanosdecasado,nãoenganei
minhamulhernemumasóvez”),econfessandoqueaquelaeraaprimeiraveznavida
emqueassistia aumarepresentaçãodeóperaoubotavaospésnoLeCirqueeno
Régine’s.
—AúnicacoisaqueseiéquedevopedirchampanheDonPérignon,cheirara
taçadevinhocomnarizdealérgicoepedirpratosescritosemfrancês.
Olhava-acomgratidãoincomensurável,canina.
— Para falar a verdade, eu vim de vaidosa,Modesto. Além da curiosidade, é
claro. Será possível que nesses dez anos, sem nos vermos, sem saber nada um do
outro,vocêtenhacontinuadoapaixonadopormim?
—Apaixonadonãoéapalavracerta—esclareceuele.—Apaixonadoeuestoué
porDorothy, a gringuinha com quemme casei, que émuito compreensiva eme
deixacantarnacama.
—Paraele,vocêeraalgomaissutil—explicoudonRigoberto.—Airrealidade,
ailusão,amulherdesuamemóriaeseusdesejos.Euqueroamá-laassim,comoele.
Espere,espere.
Despojou-adacamisolaminúsculaevoltouaacomodá-lademodoqueaspeles
de ambos tivessemmais pontos de contato. Refreando seu desejo, pediu-lhe que
continuasse.
—Retornamosaohotelassimquemeveiooprimeirobocejo.Medeuboa-noite
longedomeuquarto.Queeu sonhassecomosanjinhos.Comportou-se tãobem,
foitãocavalheiro,quenamanhãseguinteeulhefizumapequenacoqueteria.
Ela se apresentara para tomar o desjejum, no aposento intermediário entre os
dormitórios, descalça e com um robe de verão, muito curto, que deixava a
descobertosuaspernasecoxas.Modestoaesperavabarbeado,banhadoevestido.Sua
bocaseabriudeparempar.
—Dormiubem?—articulou,dequeixocaído,ajudando-aasesentardiantedos
sucosdefrutas,dastorradasegeleiasdodesjejum.—Possolhedizerquevocêestá
linda?
—Alto lá— atalhou donRigoberto.—Deixe que eume ajoelhe e beije as
pernasquedeslumbraramocachorroPluto.
Rumoaoaeroportoe,depois,noConcordedaAirFrance,enquantoalmoçavam,
Modestovoltouaadotaraatitudedeatentaadoraçãodoprimeirodia.Recordoua
Lucrecia,semmelodrama,comohaviadecididorenunciaràfaculdadedeengenharia,
quandoseconvenceudequeelanãosecasariacomele,epartirparaBoston,entregue
à própria sorte. O difícil começo naquela cidade de invernos frios e vitorianas
mansões grená, onde demorou três meses para conseguir seu primeiro trabalho
estável. Partiu o coração, mas não o lamentava. Havia obtido a indispensável
segurança, uma esposa com quem se entendia e, agora que ia iniciar outra etapa
voltandoàuniversidade,algodequesempresentirafalta,estavaconcretizandouma
fantasia, o jogo adulto no qual se refugiara durante todos aqueles anos: a semana
ideal, brincandode ser rico, emNovaYork, Paris eVeneza, comLucre. Já podia
morrertranquilo.
—Vocêvaimesmogastaraquartapartedesuapoupançanestaviagem?
—Eugastariaostrezentosmilquemecabem,poisosoutrossãodeDorothy—
assentiuele, tando-anosolhos.—Nãopela semanatoda.Sópor terpodidover
você,nahoradodesjejum,comessaspernas,essesbraçoseombrosàvista.Acoisa
maislindadomundo,Lucre.
—Imagineoqueelediria,sealémdissotivessevistoseuspeitoseorabinho—
beijou-adonRigoberto.—Euamovocê,amo.
—Nessemomento,decidi que, emParis, ele veria o resto.—DonaLucrecia
meioqueescapoudosbeijosdomarido.—Decidiquandoopilotoanunciouque
havíamosrompidoabarreiradosom.
—Eraomínimoquevocêpodia fazerporumsenhortãocorreto—aprovou
donRigoberto.
Mal se instalaram em seus respectivos dormitórios — a vista, das janelas de
Lucrecia, abrangia a escura coluna da PlaceVendôme perdendo-se nas alturas e as
rutilantesvitrinesdas joalheriaspróximas—,saíramparacaminhar.Modestohavia
memorizadoatrajetóriaecalculadootempo.PercorreramasTulherias,atravessaram
oSena edesceramatéSaint-Germainpelos cais damargemesquerda.Chegaramà
abadiameiahoraantesdoconcerto.Erauma tardepálidaemornadeumoutono
quejámatizaraoscastanheirose,devezemquando,oengenheirosedetinha,guiae
mapa nas mãos, para dar a Lucrecia uma indicação histórica, urbanística,
arquitetônica ou estética. Nas desconfortáveis cadeirinhas da igreja lotada para o
concerto, precisaram se sentar muito juntos. Lucrecia desfrutou da lúgubre
magni cência doRéquiem de Mozart. Depois, instalados em uma mesinha do
primeiropisodaLipp,felicitouModesto:
—NãopossoacreditarqueestasejasuaprimeiraviagemaParis.Vocêconhece
ruas,monumentoseendereçoscomosemorasseaqui.
—Meprepareiparaestaviagemcomoparaumexamede mdecurso,Lucre.
Consulteilivros,mapas,agências,interrogueiviajantes.Eunãocolecionoselos,nem
criocães,nemjogogolfe.Háanos,meuúnicohobbyéprepararestasemana.
—Eusempreestivenela?
—Maisumpassonocaminhodascoqueterias—observoudonRigoberto.—Semprevocêesóvocê—ruborizou-sePluto.—NovaYork,Paris,Veneza,
asóperas,osrestauranteseorestoeramosetting.Oimportante,ocentral,vocêeeu,
sozinhosnocenário.
Retornaram ao Ritz de táxi, fatigados e ligeiramente tocados pela taça de
champanhe, o vinho de Bourgogne e o conhaque com que haviam esperado,
acompanhado e digerido o chucrute. Ao se darem boa-noite, de pé na saleta que
separavaosdormitórios,semomenortitubeiodonaLucreciaanunciouaModesto:
—Vocêestátãobem-comportadoqueeutambémquerojogar.Voulhedarum
presente.
—Ah,é?—atrapalhou-sePluto.—Qual,Lucre?
—Meu corpo inteiro— cantarolou ela.—Quando eu chamar, entre. Para
olhar,esó.
NãoouviuoqueModestorespondia,mastevecertezadeque,napenumbrado
recinto, enquanto sua cara emudecida assentia, ele transbordava de felicidade. Sem
saber como faria aquilo, despiu-se, pendurou a roupa e, no banheiro, soltou os
cabelos (“Do jeitoqueeugosto,meuamor?”“Igualzinho,Rigoberto”).Voltouao
quarto,apagoutodasasluzes,excetoadecabeceira,emoveualâmpadaa mdeque
aluz,atenuadaporumacúpuladecetim,iluminasseoslençóisqueacamareirahavia
dispostoparaanoite.Deitou-sedecostas,curvou-se ligeiramente,emumapostura
lânguida,desinibida,eacomodouacabeçanotravesseiro.
—Quandoquiser.
“Fechouosolhosparanãooverentrar”,pensoudonRigoberto,enternecidocom
essedetalhepudico.Natonalidadeazulada,viamuitonitidamente,sobaperspectiva
dasilhuetadubitativaeansiantedoengenheiroqueacabavadetransporoumbral,o
corpodeformasque,semchegaraexcessosrubensianos,emulavamasabundâncias
virginaisdeMurillo,estendidodecostas,umjoelhoadiantado,cobrindoopúbis,o
outrooferecendo-se,assalientescurvasdosquadrisestabilizandoovolumedecarne
douradanocentrodacama.Emborao tivessecontemplado,estudado,acariciadoe
desfrutadotantasvezes,comessesolhosalheiosviu-opelaprimeiravez.Duranteum
bom tempo — a respiração alterada, o falo ereto —, admirou-o. Lendo seus
pensamentosesemqueumapalavrarompesseosilêncio,donaLucreciadevezem
quando se movia em câmera lenta, com o abandono de quem se crê a salvo de
miradas indiscretas, e mostrava ao respeitosoModesto, plantado a dois passos da
cama, seus ancos e seu dorso, seu traseiro e seus seios, as axilas depiladas e o
bosquezinhodopúbis.Por m,foiabrindoaspernas,revelandoointeriordascoxas
e ameia-luado sexo. “Napostura damodelo anônimadeL’origine dumonde , deGustaveCourbet(1866)”,buscoueencontroudonRigoberto,transidodeemoção
aocomprovarquealouçaniadoventre,arobustezdascoxaseomontedeVênusde
sua mulher coincidiammilimetricamente com a decapitada mulher daquele óleo,
príncipedesuapinacotecaprivada.Então,aeternidadeseevaporou:
—Estoucomsonoecreioquevocêtambém,Pluto.Éhoradedormir.
—Boanoite—respondeude imediatoaquelavoz,noaugedaventuraouda
agonia.Modestorecuou,tropeçando;segundosdepois,aportasefechou.
—Foicapazdeseconter,nãosejogouemcimadevocêcomoumaferafaminta
— exclamou don Rigoberto, encantado. — Você o manejava com o dedo
mindinho.
—Eu não conseguia acreditar— riu-se Lucrecia.—Mas essa docilidade dele
tambémerapartedojogo.
Namanhãseguinte,ummensageirolhetrouxeàcamaumbuquêderosascom
umcartão:“Olhosqueveem,coraçãoquesente,memóriaquerecordaeumcãode
desenhoanimadoquelheagradececomtodaaalma.”
—Eudesejo vocêdemais—desculpou-sedonRigoberto, tapando-lhe aboca
comamão.—Precisofazeramor.
—Imagine,então,anoitezinhaqueopobrePlutodeveterpassado.
—Opobre?—refletiudonRigoberto,depoisdoamor,enquantoconvalesciam,
fatigadoseditosos.—Pobreporquê?
—Ohomemmais feliz domundo, Lucre— a rmouModesto, nessa noite,
entre duas sessões destriptease, no aperto do Crazy Horse Saloon, rodeados de
japonesesealemães,depoisdebeberemagarrafadechampanhe.—Nemmesmoo
tremelétricoquePapaiNoelmetrouxequando zdezanossecomparacomoseu
presente.
Duranteodia, enquantopercorriamoLouvre, almoçavamemLaCloseriedes
Lilas,visitavamoCentrePompidououseperdiamnasruelasrestauradasdoMarais,
elenãofezamenoralusãoànoiteanterior.Continuavaagindocomocompanheiro
deviageminformado,devotadoeserviçal.
—Comcadacoisaquevocêmeconta,eupensomelhordele—comentoudon
Rigoberto.
—Omesmomeacontecia—reconheceudonaLucrecia.—Porisso,nessedia,
deimaisumpassinho,parapremiá-lo.NoMaxim’s,ele sentiumeu joelhonoseu
durante todo o jantar. E, quando dançamos, meus peitos. E, no Crazy Horse,
minhaspernas.
—Quesorteeletem!—exclamoudonRigoberto.—Irconhecendovocêcomo
numanovela,porepisódios,pedacinhoapedacinho.Ogatoeorato,emsuma.Um
jogoquenãodeixavadeserperigoso.
—Não,seagentejogacomcavalheiroscomovocê—coqueteoudonaLucrecia.
—Estoucontenteporteraceitadoseuconvite,Pluto.
TinhamvoltadoaoRitz,alegresesonolentos.Nasaletadasuíte,despediam-se.
— Espere, Modesto — improvisou ela, pestanejando. — Surpresa, surpresa.
Fecheosolhinhos.
Pluto obedeceu no ato, transformado pela expectativa. Dona Lucrecia se
aproximou,grudou-seaeleeobeijou,primeirosuper cialmente,notandoqueele
demorava em responder à boca que lhe roçava os lábios, e em replicar logo às
solicitaçõesdesualíngua.Quandoeleofez,elasentiuquenessebeijooengenheiroia
lhe entregando seu velho amor, sua adoração, sua fantasia, sua saúde e (se é que a
tinha)suaalma.Quandoeleenlaçousuacintura,comcautela,dispostoasoltá-laao
menorrechaço,donaLucrecialhepermitiuqueaabraçasse.
—Possoabrirosolhos?
—Pode.
“E então ele a tou, não com a mirada fria do perfeito libertino, de Sade”,
pensoudonRigoberto,“mascomopuro,ferventeeapaixonadoolhardomísticono
momentodaascensãoedavisão”.
—Estavamuitoexcitado?—deixouescapar,esearrependeu.—Quepergunta
boba.Desculpe,Lucrecia.
—Emboraestivesse,nãotentoumereter.Àprimeiraindicação,afastou-se.
—Você devia ter ido para a cama com ele nessa noite— admoestou-a don
Rigoberto.— Estava abusando. Ou, talvez, não.Talvez tenha feito o que devia.
Sim,sim,claro.Olento,oformal,oritual,oteatral,issoéoerótico.Eraumaespera
sábia.Aprecipitação, ao contrário,nos aproximado animal.Sabiaqueoburro,o
macaco,oporcoeocoelhoejaculamemdozesegundos,nomáximo?
—Masosapopodecopularquarentadiasequarentanoites,semparar.Liisso
emumlivrodeJeanRostand:Damoscaaohomem.—Que inveja— admirou-se don Rigoberto.— Você é cheia de sabedoria,
Lucrecia.
— São as palavras de Modesto — desconcertou-o sua mulher, fazendo-o
retrocederaumOrient-Expressqueperfuravaanoiteeuropeia,rumoaVeneza.—
Nodiaseguinte,emnossocamarotebelleépoque.EraoquediziatambémobuquêqueaesperavanoHotelCipriani,naensolarada
Giudecca:“ParaLucrecia,belanavidaesábianoamor.”
—Espere,espere—devolveu-aaostrilhosdonRigoberto.—Compartilharam
essecamarote,notrem?
—Umcomduascamas.Eunoaltoeeleembaixo.
—Ouseja,vocês...
—Tivemosdenosdespirumacimadooutro, literalmente—completouela.
—Nosvimosemtrajesmenores,emboranapenumbra,poisapagueitodasasluzes,
excetoadecabeceira.
— Trajes menores é um conceito geral e abstrato — abespinhou-se don
Rigoberto.—Querodetalhes.
Dona Lucrecia os deu. Na hora de se despir— o anacrônico Orient-Express
cruzava uns bosques alemães ou austríacos e, de vez em quando, uma aldeia—,
Modesto lhe perguntou se queria que ele saísse. “Não é preciso, nesta penumbra
parecemos sombras”, respondeu dona Lucrecia. O engenheiro se sentou no leito
inferior,encolhendo-seomáximopossívelparalhedeixarmaisespaço.Elasedespiu
semforçarseusmovimentosnemestilizá-los,girandonolugaraosedespojardecada
peça: o vestido, a anágua, o sutiã, as meias, a calcinha. O resplendor da luz de
cabeceira, uma luminariazinha em forma de cogumelo com desenhos lanceolados,
acariciouseupescoço,ombro,seios,ventre,nádegas,coxas,joelhos,pés.Erguendoos
braços,elapassoupelacabeçaumacamisoladesedachinesa,comdragões.
—Voume sentar com as pernas penduradas, enquanto escovo os cabelos—
informou,fazendooquedizia.—Podebeijá-las,selhedervontade.Atéosjoelhos.
Era o suplício de Tântalo? Era o jardim das delícias? Don Rigoberto havia
deslizadoparaopédacama,e,adivinhando-o,donaLucreciasesentounabordapara
que, como Pluto no Orient-Express, seu marido lhe beijasse o peito dos pés,
aspirasse a fragrância de cremes e colônias que lhe refrescavam os tornozelos,
mordiscasseosdedosdosseuspéselambesseostépidosvãosqueosseparavam.
—Euamoeadmirovocê—dissedonRigoberto.
—Euamoeadmirovocê—dissePluto.
—E,agora,dormir—ordenoudonaLucrecia.
Chegaram a Veneza em uma manhã impressionista, sol poderoso e céu azul-
marinho, e, enquanto a lancha os levava ao Cipriani entre crespas ondinhas,
Modesto,Michelinnamão,deuaLucreciaexplicaçõessumáriassobreospaláciose
igrejasdoGrandeCanal.
—Estoucomciúme,meuamor—interrompeu-adonRigoberto.
—Seforasério,agenteapagatudo,coração—propôsdonaLucrecia.
—Demaneiranenhuma—recuouele.—Osvalentesmorremdebotas,como
JohnWayne.
Da sacada doCipriani, acima das árvores do jardim, divisavam-se, de fato, as
torresdeSãoMarcoseospaláciosdamargem.Saíram,comagôndolaeoguiaque
os esperavam. Foi uma vertigem de canais e pontes, águas verdosas e bandos de
gaivotasque levantavamvoo à suapassagem, e escuras igrejasnasquais erapreciso
forçar avistaparaperceberos atributosdasdivindades e santidades alipenduradas.
ViramTizianoseVeroneses,BelliniseDelPiombos,oscavalosdeSãoMarcos,os
mosaicosdacatedral,ederamraquíticosgrãozinhosdemilhoaosgordospombosda
praça. Ao meio-dia, tiraram a inevitável fotogra a em uma mesa do Florian,
enquantodegustavamapizzettadepraxe.Àtarde,continuaramopercurso,ouvindo
nomes,datasehistóriasquemalescutavam,entretidospelaarrulhantevozdoguiada
agência.Às sete emeia,banhados e trocados, tomaramoBellinino salãode arcos
mouriscos e almofadas árabes doDanieli, e, à hora exata—nove—, estavamno
Harry’sBar.Ali,viramchegaràmesacontígua(pareciapartedoprograma)adivina
CatherineDeneuve.Plutodisseoquedeviadizer:“Achovocêmaisbonita,Lucre.”
—Edepois?—apressou-adonRigoberto.
AntesdetomarovaporzinhoparaaGiudecca,deramumpasseio,donaLucrecia
debraçodadocomModesto,porruelassemidesertas.Chegaramaohoteljádepois
dameia-noite.DonaLucreciabocejava.
—Edepois?—impacientou-sedonRigoberto.
—Quandoestouassimtãoesgotadapelopasseioeascoisasbonitasquevi,não
consigo pregar o olho— lamentou-se dona Lucrecia. — Felizmente, tenho um
remédioquenuncafalha.
—Qual?—perguntouModesto.
—Queremédio?—ecooudonRigoberto.
—Uma jacuzzi, alternando a água fria e a quente— explicou donaLucrecia,
dirigindo-separasuaalcova.Antesdedesaparecerládentro,apontouaoengenheiroo
banheiroenormeeluminoso,deladrilhosbrancoseparedesazulejadas.—Vocême
encheriaajacuzzi,enquantoeuvistooroupão?
DonRigobertoseremexeunolugarcomaansiedadedeuminsone:edepois?Ela
foiatéseuquarto,despiu-sesempressa,dobrandoaroupapeçaporpeça,comose
dispusesse da eternidade. Envolta em um roupão felpudo e uma toalhinha como
turbante,retornou.Abanheiracircularcrepitavacomosespasmosdajacuzzi.
—Jogueiunssais—sondouModesto,timidamente.—Fizbemoumal?
—Estáperfeita—disseela,experimentandoaáguacomapontadopé.
Deixou cair o roupãode felpo amarelo aos seuspés e,mantendo a toalhaque
servia de turbante, entrou e se deitou na jacuzzi. Apoiou a cabeça em um
travesseirinhoqueoengenheiroseapressoualheestender.Suspirou,agradecida.
—Devofazeralgomais?—donRigobertoouviuModestoperguntar,comum
fiodevoz.—Irembora?Ficar?
—Está uma delícia, que delícia estasmassagens de água fresquinha.—Dona
Lucreciaestiravapernasebraços,deleitando-se.—Daquiapouco,acrescentoamais
quente.Edepois,paraacama,novinhaemfolha.
— Você o cozinhava em fogo brando— aprovou don Rigoberto, com um
rugido.
—Fique,sequiser,Pluto—disseelapor m,comaexpressãoconcentradade
quemestádesfrutandoin nitamenteascaríciasdaáguaindoevindopeloseucorpo.
—Abanheiraéenorme,temlugardesobra.Porquenãotomabanhocomigo?
OsouvidosdedonRigobertoregistraramoestranhograsnidodemocho?uivo
de lobo? pio de pássaro? que respondeu ao convite de sua mulher. E, segundos
depois,eleviuoengenheironu,submergindonabanheira.Ocorpodele,àbeirados
cinquenta, de obesidade freada a tempo pelosaerobics e ojogging praticados até olimiardoinfarto,mantinha-seamilímetrosdodesuamulher.
—Oquemaisposso fazer?—ouviu-operguntar, e sentiuque sua admiração
porelecresciaaoritmodoseuciúme.—Nãoquerofazernadaquevocênãoqueira.
Nãotomareinenhumainiciativa.Tomevocê,todas.Nestemomento,souosermais
felizeomaisdesgraçadodaCriação,Lucre.
—Podemetocar—sussurrouela,semabrirosolhos,emritmodebolero.—
Meacariciar,mebeijar,ocorpo,orosto.Oscabelos,não,porque,sesemolharem,
amanhã você vai se envergonhar do meu penteado, Pluto. Não vê que, em seu
programa,vocênãodeixounemumtempinhovagoparaocabeleireiro?
— Eu também sou o homem mais feliz do mundo — murmurou don
Rigoberto.—Eomaisdesgraçado.
DonaLucreciaabriuosolhos:
—Não queassimtãoassustado.Nãopodemospermanecermuito tempona
água.
Paravê-losmelhor,donRigobertoentrecerrouaspálpebras.Ouviaomonótono
chapinhardajacuzziesentiaascócegas,osgolpesdaágua,achuvadegotinhasque
salpicava os ladrilhos, e via Pluto, extremando as precauções para não se mostrar
rude,enquantosededicavaàquelecorpomacioquesedeixavalevar,tocar,acariciar,
facilitando com seusmovimentos o acesso dasmãos e dos lábios dele a todos os
cantinhos,massemresponderacaríciasnemabeijos,emestadodepassivodeleite.
Sentiaafebrequeimandoapeledoengenheiro.
—Nãovaibeijá-lo,Lucrecia?Nãovaiabraçá-lo,nemsequerumavez?
— Ainda não— retrucou suamulher.— Eu também tinhameu programa,
muitobemestudado.Afinal,elenãoestavafeliz?
—Nunca o estive tanto— disseModesto, a cabeça emergindo do fundo da
banheira,entreaspernasdeLucrecia,antesdemergulhardenovo.—Queriacantar
aosgritos,Lucre.
— Ele diz exatamente tudo o que eu sinto — interveio don Rigoberto,
permitindo-se um gracejo: — Não havia perigo de uma pneumonia, com esses
esforçostalassoeróticos?
Riu, e na mesma hora se arrependeu, recordando que o humor e o prazer se
repeliamcomoáguaeóleo.“Perdãoporlhecortarapalavra”,desculpou-se.Masera
tarde. Dona Lucrecia havia começado a bocejar de tal maneira que o atarefado
engenheiro,fazendodastripascoração, couquieto.Dejoelhos,todopingando,os
cabelosemcoroadefrade,simulavaresignação.
—Vocêjáestácomsono,Lucre.
—Mebateuocansaçododiainteiro.Nãoaguentomais.
Comumsaltoligeiro,saiudabanheira,embrulhando-senoroupão.Daportado
seuquarto,deuboa-noitecomumafrasequefezpularocoraçãodoseumarido:
—Amanhãseráoutrodia,Pluto.
—Oúltimo,Lucre.
—E,também,aúltimanoite—frisouela,jogando-lheumbeijo.
Começaramamanhãdosábadocommeiahoradeatraso,masarecuperaramna
visita aMurano, onde, sobumcalor infernal, artesãos emcamisetasdepresidiário
sopravamovidrosegundoocostumetradicionaletorneavamobjetosdecorativosou
deusodoméstico.Oengenheiro insistiuemqueLucrecia,queresistiaa fazermais
compras, aceitasse três bichinhos transparentes: um esquilo, uma cegonha e um
hipopótamo.DevoltaaVeneza,oguiaosilustrousobreduasvillasdePalladio.Emvezdealmoçar,tomaramchácombiscoitosnoQuadri,desfrutandoumsangrento
crepúsculoquefazia amejaremtelhados,pontes,águasecampanários,echegarama
SanGiorgio,paraoconcertobarroco,atempodepercorrerailhotaecontemplara
lagunaeacidadesobperspectivasdiferentes.
—Oúltimodiaésempretriste—comentoudonaLucrecia.—Istoterminará
amanhã,parasempre.
—Estavamdemãosdadas?—quissaberdonRigoberto.
—Tambémestivemosdurantetodooconcerto—confessousuamulher.
—Oengenheirocaiunachoradeira?
—Estavaabatido.Meapertavaamãoeseusolhinhosbrilhavam.
“Degratidãoedeesperança”,pensoudonRigoberto.Odiminutivo“olhinhos”
repercutiu em suas terminações nervosas. Decidiu que, a partir desse momento,
calaria.EnquantodonaLucreciaePlutojantavamnoDanieli,contemplandoasluzes
deVeneza,respeitouamelancoliadeles,nãointerrompeuseudiálogoconvencional,e
sofreu estoicamente ao perceber, no decorrer do jantar, que agora não apenas
Modestomultiplicavaasatenções.Lucrecialheofereciatorradinhasdepoisdeuntá-
las com manteiga, dava-lhe para provar em seu próprio garfo bocados dos seus
rigatonie,comprazida,relaxavasuamãoquandoelealevavaàbocaparaalipousaros
lábios,umaveznapalma,outranodorso,outranosdedoseemcadaumadasunhas.
Comocoraçãoapertadoeumaincipienteereção,donRigobertoesperavaaquiloque
detodomodoteriadeocorrer.
E, de fato,mal entraram na suíte doCipriani, dona Lucrecia pegouModesto
pelo braço, fez comque ele a enlaçasse, aproximouos lábios e, boca contra boca,
línguacontralíngua,murmurou:
—Comodespedida,passaremosanoitejuntos.Sereicomvocêtãocomplacente,
tãoterna,tãoamorosacomosófuicommeumarido.
—Vocêdisseisso?—engoliuestricninaemeldonRigoberto.
—Fizmal?—alarmou-sesuamulher.—Deviatermentidoparaele?
—Fezbem—latiudonRigoberto.—Meuamor.
Em um estado ambíguo, no qual a excitação desmentia o ciúme e ambos se
retroalimentavam, viu-os despir-se, admirou a desenvoltura com que sua esposa o
faziaecurtiuabisonhicedaqueleditosomortalembaraçadopelafelicidadeque,nessa
últimanoite,recompensavasuatimidezesuaobediência.Elaiasersua,eleiaamá-la:
as mãos não acertavam em desabotoar a camisa, travava-se o fecho da calça, ele
tropeçouaotirarossapatos,equando,exorbitado,iaencarapitar-sesobreacamaem
penumbra, onde o esperava, em lânguida postura— “Amaja desnuda deGoya”,
pensou don Rigoberto, “só que com as coxas mais abertas” —, aquele corpo
magní co,bateuotornozelonabordadoleitoegritou“Aiaiai!”.DonRigobertose
divertiuaoescutarahilaridadequeoacidenteprovocouemLucrecia.Modesto ria
também,ajoelhadonacama:“Aemoção,Lucre,aemoção.”
Asbrasasdoseuprazerseapagaramquando,sufocadooriso,eleviusuamulher
abandonaraindiferençadeestátuacomquenodiaanteriorhaviarecebidoascarícias
do engenheiro e tomar a iniciativa. Abraçava-o, obrigava-o a deitar-se junto dela,
sobre ela, embaixodela, enredava suaspernasnasdele,buscava-lhe aboca,metia a
língua ali, e — “ai, ai”, rebelou-se don Rigoberto — agachava-se com amorosa
disposição, pescava entre seus a lados dedos o sobressaltadomembro e depois de
passá-lo no anco e na testa levava-o aos lábios e o beijava antes de fazê-lo
desaparecer em suaboca.Então, a plenos pulmões, ricocheteandona cama fofa, o
engenheirocomeçouacantar—arugir,auivar—TornaaSurriento.— Começou a cantarTorna a Surriento?— endireitou-se violentamente don
Rigoberto.—Nesseinstante?
—Istomesmo—DonaLucreciavoltouasoltarumagargalhada,aconter-seea
pedir perdão. — Você me deixa pasma, Pluto. Canta porque está gostando ou
porquenãoestá?
—Cantoparagostar—explicouele,trêmuloecarmesim,entrefífiasearpejos.
—Querqueeupare?
—Quero que continue, Lucre— implorouModesto, eufórico.— Ria, não
importa.Paraqueminha felicidade seja completa, eu canto.Tampeosouvidos se
issoadistraiouafazrir.Mas,peloquevocêmaisama,nãopare.
— E continuou cantando? — exclamou, ébrio, louco de satisfação, don
Rigoberto.
— Sem parar um segundo — a rmou dona Lucrecia, entre espasmos. —
Enquantoeuobeijava,mesentavaemcimadeleeeleemcimademim,enquanto
fazíamosoamorortodoxoeoheterodoxo.Cantava,tinhadecantar.Porque,senão
cantasse,fiasco.
—SempreTornaaSurriento?—regozijou-sedonRigoberto,nodoceprazerda
vingança.
—Qualquer canção daminha juventude— trauteou o engenheiro, saltando,
comtodaaforçadosseuspulmões,daItáliaaoMéxico.—Voyacantarlesuncorridomuymentadooo...2
—Umpot-pourridecafonicesdosanoscinquenta—especi coudonaLucrecia.
—Osolemio,Caminito,JuanCharrasqueado,Alláenelranchogrande,eatéMadrid,deAgustínLara.Ai,queengraçado!
—E,semessaspieguicesmusicais, asco?—pediacon rmaçãodonRigoberto,
hóspededosétimocéu.—Éomelhordanoite,meuamor.
—Omelhorvocêaindanãoouviu,omelhorfoio nal,omáximodoridículo
— limpava as lágrimas dona Lucrecia. — Os vizinhos começaram a bater nas
paredes, ligaram da recepção, que baixássemos a tevê, o toca-discos, ninguém
conseguiadormirnohotel.
— Ou seja, nem você nem ele devem ter chegado a... — insinuou don
Rigoberto,comdébilesperança.
—Eu,duasvezes—devolveu-oàrealidadedonaLucrecia.—Eele,pelomenos
uma, tenho certeza. Quando estava bem colocado para a segunda, armou-se o
alvoroço e sua inspiração sumiu.Tudo acabou em risos. Que noitezinha...Tipo
“Acreditesequiser”.
— Agora, você já sabe meu segredo também— disseModesto, depois que,
acalmadososvizinhosearecepção,extintasasrisadas,aplacadososímpetos,osdois
passaramaconversar,envoltosnosbrancosroupõesdebanhodoCipriani.—Você
se importa senão falarmosdisto?Comodeve imaginar,medávergonha...En m,
querolhedizer,maisumavez,quenuncaesquecereiestasemaninha,Lucre.
—Eutambémnão,Pluto.Vourecordá-lasempre.Enãosópeloconcerto,juro.
Dormiramcomomarmotas,comaconsciênciadodevercumprido,echegaram
ao embarcadouro a tempo de tomar o vaporzinho para o aeroporto. A Alitália
tambémseesmeroue saíramsematraso,demodoquealcançaramoConcordede
ParisparaNovaYork.Alisedespediram,conscientesdequenãovoltariamasever.
— Me diga que foi uma semana horrível, que você a odiou — gemeu,
pressuroso, don Rigoberto, segurando sua mulher pela cintura e encarapitando-a
sobreele.—Não,não,Lucrecia?
—Porquevocênãoexperimentacantaralgumacoisa,aosberros?—sugeriuela,
comavozaveludadadosmelhoresencontrosnoturnos.—Algomeloso,amor.Laordelacanela,Fumandoespero,Brasil,terradomeucoração.Sóparaagenteveroqueacontece,Rigoberto.
1Pãozinhodoceefofo,espéciedesonho,típicododistritohomônimo.(N.daT.)
2“Voucantar-lhesumcorridomuitofamosooo...”.Éoprimeiroversodacanção JuanCharrasqueado(“JuanNavalhado”,“JuandaCicatriznoRosto”),mencionadaadiante.(N.daT.)
III.
O jogo dos quadrosIII - O jogo dos quadros
—Que engraçado, madrasta— disse Fonchito.— Suas meias verde-escuras são
iguaizinhasàsdeumamodelodeEgonSchiele.
AsenhoraLucreciaolhouasgrossasmeiasdelãqueagasalhavamsuaspernasaté
acimadosjoelhos.
—SãoótimasparaaumidadedeLima—disse,apalpando-as.—Graçasaelas,
mantenhoospésquentinhos.
—Nureclinadocommeiasverdes—recordouomenino.—Umdosquadros
maisfamososdele.Querver?
—Bom,podemostrar.
EnquantoFonchito se apressava a abrir suamochila, que, como sempre, havia
atiradono tapeteda salade jantar, a senhoraLucrecia sentiuodifusodesassossego
que o menino costumava lhe transmitir com aqueles rompantes que sempre
pareciamocultar,sobumaaparênciainofensiva,algumperigo.
— Que coincidência, madrasta — dizia Fonchito, folheando o livro de
reproduçõesdeSchielequeacabavadetirardamochila.—Eumepareçocomelee
vocêseparececomsuasmodelos.Emmuitascoisas.
—Emquê,porexemplo?
— Nessas meias verdes, pretas ou marrons que usa. E também na manta
quadriculadadesuacama.
—Caramba,queobservador.
—E,porúltimo,namajestade—acrescentouFonchito, sem levantar a vista,
concentradonabuscadoNureclinadocommeiasverdes.DonaLucrecianãosoubese
devia riroucaçoar.Ele sedavacontado rebuscadogalanteio,oueste lhe saírapor
acaso?—Opapainãodiziaquevocêtemumagrandemajestade?Que,façaoque
fizer,nadaemvocêévulgar?EusóentendioqueissoqueriadizergraçasaSchiele.As
modelos dele levantam as saias, mostram tudo, se apresentam em posturas
estranhíssimas,masnuncaparecemvulgares.Sempre,umasrainhas.Porquê?Porque
têmmajestade.Comovocê,madrasta.
Confusa, lisonjeada, irritada,alarmada,donaLucreciaqueriaenãoqueriabotar
umpontofinalnessaexplicação.Maisumavez,sentia-seinsegura.
—Vocêdizcadacoisa,Fonchito...
—Achei!—exclamouomenino,estendendo-lheolivro.—Vêoqueeudigo?
Não é umapose que, emqualquer outra, pareceria feia?Masnela, não,madrasta.
Poisentão?Termajestadeéisso.
—Deixe ver.—A senhoraLucrecia pegou o livro e, depois de examinar um
bom tempooNureclinadocommeiasverdes, assentiu:—Certo,acoréamesma
destasqueestouusando.
—Nãooachalindo?
—Sim,émuitobonito.—Fechouolivroeodevolveucompresteza.Denovo,
agoniou-aaideiadequeperdiaainiciativa,dequeomeninocomeçavaaderrotá-la.
Mas quebatalha era aquela?Encontrouos olhos deAlfonso: brilhavam comuma
luzinhaequívoca,eemsuacaramarotaseesboçavaumsorriso.
—Possolhepedirumfavorenorme?Omaiordomundo?Vocêfaria?
“Vaipedirqueeutirearoupa”,imaginouela,aterrorizada.“Dou-lheumtabefee
nãoovejomais.”OdiouFonchitoeseodiou.
—Quefavor?—murmurou,tentandoevitarqueseusorrisofossemacabro.
— Fique como esta senhora doNu reclinado com meias verdes — entoou a
vozinhamelíflua.—Sóumtempinho,madrasta!
—Comoassim?
—Claroquesemsedespir—tranquilizou-aomenino,movendoolhos,mãos,
empinandoonariz.—Nestapose.Morrodevontade.Mefariaestegrande,grande
favor?Nãosejamá,madrasta.
—Nãosefaçatantoderogada,asenhorasabedesobraquevaigostar—disse
Justiniana,aparecendoeexibindoseuexcelentehumordecadadia.—Amanhãéo
aniversáriodeFonchito,entãoquesejaopresentedele.
— Bravo, Justita! — bateu palmas o menino. — Nós dois juntos vamos
convencê-la.Medáessepresente,madrasta?Masossapatos,temquetirar,sim.
—Confessequequerverospésdapatroaporquesabequesãomuitobonitos—
atiçou-oJustiniana,maistemeráriadoqueemoutrastardes,enquantodispunhana
mesinhaaCoca-Colaeocopodeáguamineralquelhehaviampedido.
— Ela tem tudo bonito — a rmou o menino, com candura. — Vamos,
madrasta, não tenha vergonha da gente. Se quiser, para não se sentir mal, depois
JustitaeeupodemosbrincardeimitaroutroquadrodeEgonSchiele.
Semsaberoquereplicar,quegracejofazer,comosimularumaborrecimentoque
nãosentia,asenhoraLucreciaseviu,derepente,sorrindo,assentindo,murmurando
“Seráseupresentedeaniversário,seucaprichosinho”,descalçando-se,inclinando-see
estendendo-senocompridosofá.ProcurouimitarareproduçãoqueFonchitohavia
exibidoe lheapontava,comoumdiretor teatral instruindoaestreladoespetáculo.
Na presença de Justiniana, sentia-se protegida, ainda que agora tivesse dado nesta
loucaavenetade cardoladodeFonchito.Aomesmotempo,ofatodeelaestarali,
como testemunha, acrescentava certo tempero à insólita situação.Tentou levar na
chacota o que fazia, “É assim?” “Não, o ombromais para cima, o pescoço como
galinhinha,acabeçabemretinha”,enquantoseapoiavanoscotovelos,alongavauma
pernae exionavaaoutra,decalcandoaposedamodelo.OsolhosdeJustinianaede
Fonchito passavam dela à estampa, da estampa a ela, sorridentes os da moça,
profundamenteconcentradososdomenino.“Esteéojogomaissériodomundo”,
ocorreuadonaLucrecia.
—Estáigualzinha,patroa.
—Aindanão—cortouFonchito.—Precisasubirmaisojoelho,madrasta.Eu
ajudo.
Antesqueelativessetempodenegarapermissão,omeninoentregouo livroa
Justiniana, aproximou-se do sofá e colocou-lhe as duasmãos embaixo do joelho,
onde terminavaameiaverde-escura edespontavaa coxa.Comsuavidade, atentoà
reprodução,ergueu-lheapernaeamoveu.Ocontatodosdelgadosdedinhosemsua
curvadesnudaperturboudonaLucrecia.Ametadeinferiordoseucorpocomeçoua
tremer. Sentia umapalpitação, uma vertigem, algo avassalador que a fazia sofrer e
gozar. E, nisto, descobriu o olhar de Justiniana. As pupilas acesas daquela carinha
morenaeramloquazes.“Elasabecomoeuestou”,pensou,envergonhada.Ogritodo
meninoveiosalvá-la:
—Agora sim,madrasta!Não está exata, Justita? Fique assimum segundinho,
porfavor.
Do tapete, sentado com as pernas cruzadas como um oriental, ele a tava
arrebatado,abocaentreaberta,osolhosumpardeluascheias,emêxtase.Asenhora
Lucrecia deixou passarem cinco, dez, quinze segundos, quietinha, contagiada pela
solenidade com que o menino encarava o jogo. Algo acontecia. A suspensão do
tempo?Opressentimentodoabsoluto?Osegredodaperfeiçãoartística?Assaltou-a
umasuspeita:“ÉigualzinhoaRigoberto.Herdousuafantasiatortuosa,suasmanias,
seupoderdesedução.Mas,porsorte,nãosuacaradebarnabé,nemsuasorelhasde
Dumbo,nemseunarizdecenoura.”Custou-lhetrabalhoromperosortilégio:
—Acabou.Agoraéavezdevocês.
Adesilusãoseapoderoudoarcanjo.Mas,deimediato,elereagiu:
—Temrazão.Jáchega.
—Mãosàobra—instigou-osdonaLucrecia.—Quequadrovãorepresentar?
Euescolho.Medêolivro,Justiniana.
—Aí só temdois quadrospara Justita e paramim—preveniuFonchito.—
Mãe e lho e oNude homem emulher reclinados, pés com cabeça.Os outros são
homens sozinhos, mulheres sozinhas ou casais de mulheres. O que você preferir,
madrasta.
—Eta,sabe-tudo!—exclamouJustiniana,estupefata.
DonaLucreciainspecionouasimagense,defato,asmencionadasporAlfonsito
eram as únicas imitáveis. Descartou a última: que verossimilhança podia ter um
meninoimberbe ngindoseraquelebarbudoruivo,identi cadopeloautordolivro
comooartistaFélixAlbrechtHarta,queaobservava,dafotodoóleo,comexpressão
boba, indiferente ao nu sem rosto, de meias vermelhas, a rastejar como serpente
amorosa sob sua perna exionada? EmMãe e lho havia pelo menos uma
desproporçãodeidadesemelhanteàdeAlfonsoeJustiniana.
— Danada de pose, a desta mamãe e deste lhinho — ngiu se alarmar a
empregada.—Suponhoque vocênão vaimepedir para tirar o vestido, seu sem-
vergonha.
—Pelomenos,ponhaumasmeiaspretas—retrucouomenino,sembrincar.—
Eusóvoutirarossapatoseacamisa.
Nãohaviamaldadeemsuavoz,nemsombrademalícia.DonaLucreciaaguçava
oouvido,perscrutavacomdescon ançaacarinhaprecoce:não,nemsombra.Eraum
ator consumado.Ouummeninopuro e elauma idiota, umavelha assanhada?O
que Justiniana tinha?Na convivência de tantos anos, não recordava tê-la visto tão
agitada.
—Quemeiaspretaseuvoucalçar?Poracasotenhoalguma?
—Minhamadrastalheempresta.
Emvezdeinterromperabrincadeira,comoarazãoaconselhava,donaLucreciase
ouviudizer:“Claro.”Foiaoseuquartoevoltoucomasmeiaspretasdelãqueusava
nasnoitesmaisfrias.Omeninoestavadespindoacamisa.Eradelgado,harmonioso,
entrebrancoedourado.DonaLucreciaviu-lheotorso,osbraçosesbeltos,osombros
de ossinhos salientes, e recordou.Tudo aquilo havia acontecido, então? Justiniana
tinhaparadoderireevitavaolhá-la.Talveztambémestivesseembrasas.
—Calce,Justita—apressou-aomenino.—Querqueeuajude?
—Não,muitoobrigada.
Também a moça havia perdido a naturalidade e a con ança que raramente a
abandonavam. Com dedos atrapalhados, calçou as meias torcidas. Enquanto as
alisavaepuxava,dobrava-se,tentandoocultaraspernas.Ficoucabisbaixa,notapete,
juntoaomenino,movendoasmãosàtoa.
— Vamos começar — disse Alfonso. — Você de bruços, a cabeça sobre os
braços, cruzados como um travesseiro. Eu tenho queme grudar à sua direita.Os
joelhosemsuaperna,minhacabeçanoseuflanco.Sóque,comosoumaiorqueodo
quadro,chegoaoseuombro.Estamosumpoucoparecidos,madrasta?
Comolivronamão,tomadaporumescrúpulodeperfeição,donaLucreciase
inclinousobreeles.Amãozinhaesquerdadeviaaparecerabaixodoombrodireitode
Justiniana,acarinhamaisparacá.“Apoieamãoesquerdanascostasdela,Foncho,
descansandoali.Sim,agoraseparecembastante.”
Sentou-seno sofá e os contemplou, semvê-los, absorta em seuspensamentos,
assombrada com o que se passava. Fonchito era Rigoberto. Revisto e ampliado.
Ampliado e revisto. Sentiu-se ausente, mudada. Eles permaneciam quietos,
brincando com toda a seriedade. Ninguém sorria. O olho único que a postura
deixava a Justiniana já não refulgia com picardia, empoçara-se nele umamodorra
lânguida.Estariaexcitada,também?Sim,sim,igualaela,maisqueela.SóFonchito
—osolhosfechadosparaseassemelharmaiscomomeninosemrostodeSchiele—
parecia jogar o jogo sem reservas nem exageros. A atmosfera estava adensada, os
ruídos do Olivar extintos, o tempo escoado, e a casinha, San Isidro, o mundo,
evaporados.
—Temos tempo para mais um— disse Fonchito a nal, levantando-se. —
Agora, vocês duas. O que acham? Só pode ser, vire a página, madrasta, este,
exatamente.Duas jovens jazendo entrelaçadas,pés comcabeça.Não saiadaí, Justita.
Apenasvire-sedefrente,esó.Deite-seaolado,madrasta,comascostassobreJustita.
Amãoassim,embaixodosquadrisdela.Vocêéadovestidoamarelo,Justita.Imite-
a. Este braço ca aqui, e o direito, passe embaixo das pernas daminhamadrasta.
Quantoavocê,madrasta,dobre-seumpouquinho,paraseu joelhotocaroombro
dela.Justita,levanteestamão,coloquenapernadaminhamadrasta,abraosdedos.
Assim,assim.Perfeito!
Elascalavameobedeciam,dobrando-se,desdobrando-se,torcendo-se,alongando
ou encolhendo pernas, braços, pescoços. Dóceis? Encantadas? Enfeitiçadas?
“Derrotadas”,admitiudonaLucrecia.Suacabeçarepousavasobreascoxasdamoçae
suamãodireitaaseguravapelacintura.Devezemquandoapressionava,parasentira
umidadeeacalidezqueemanavamdela;e,respondendoaessapressão,emsuacoxa
direitaosdedosdeJustiniana tambémafundavame faziam-na sentirqueaoutraa
sentia.Estavaviva.Claroqueestava;esseodorintenso,denso,perturbador,queela
aspirava, de onde podia vir, senão do corpo de Justiniana?Ou viria delamesma?
Como haviam chegado a tais extremos? O que teria acontecido para que, sem
perceber—oupercebendo—,estemenininhoasinduzisseaestabrincadeira?Agora,
isso já não lhe importava. Sentia-se muito a gosto dentro do quadro. Consigo
mesma, com seu corpo, com Justiniana, com a circunstância que vivia. Ouviu
Fonchitoseafastar:
—Quepena,precisoir.Estavatãobonito...Mas,vocês,continuembrincando.
Obrigadopelopresente,madrasta.
Dona Lucrecia o sentiu abrir a porta, depois fechá-la. Ele havia partido,
deixando-assozinhas,deitadas,entrelaçadas,abandonadas,perdidasemumafantasia
doseupintorfavorito.
A rebelião dos clitóris
Entendo, madame, que a variante feminista representada pela senhora declarou a
guerradossexos,equea loso adeseumovimentoseapoianaconvicçãosegundoa
qualoclitórisémoral,física,culturaleeroticamentesuperioraopênis,eosovários,
demaisnobreidiossincrasiadoqueostestículos.
Admitoquesuastesessãodefensáveis.Nãopretendoopor-lhesamenorobjeção.
Minhas simpatias pelo feminismo são profundas, embora subordinadas ao meu
amorpela liberdadeindividualepelosdireitoshumanos,oqueasenquadradentro
de limites que devo esclarecer, a m de queminhas próximas a rmações tenham
sentido. Generalizando, e para começar pelo mais óbvio, a rmarei que sou pela
eliminação de todo obstáculo legal a que a mulher tenha acesso às mesmas
responsabilidades do varão e a favor do combate intelectual e moral contra os
preconceitosemqueseapoiaalimitaçãodosdireitosdasmulheres,dentrodosquais,
apresso-meaacrescentar,parece-meomaisimportante,assimcomonoqueconcerne
aos varões, não o direito ao trabalho, à educação, à saúde etc., mas o direito ao
prazer,pontoemque,tenhocerteza,surgenossaprimeiradiscrepância.
Masaprincipale,temo,irreversível,aquelaquecavaumabismointransponível
entre a senhora e eu — ou, para nos movermos no domínio da neutralidade
cientí ca,entremeufaloesuavagina—,baseia-seemque,sobmeupontodevista,
ofeminismoéumacategoriaconceitualcoletivista,istoé,umso sma,poispretende
encerrar, dentro de um conceito genérico homogêneo, uma vasta coletividade de
individualidadesheterogêneas,nasquaisdiferençasedisparidadessãopelomenostão
importantes(seguramentemais)quantoodenominadorcomumclitorídeoeovárico.
Quero dizer, sem amenor pirueta cínica, que estar dotado de falo ou de clitóris
(artefatos de fronteira duvidosa, como lhe provarei a seguir) me parece menos
importante, para diferenciar um ser de outro, do que todo o resto dos atributos
(vícios, virtudes ou taras) especí cos de cada indivíduo. Esquecer isso levou as
ideologiasacriaremformasdeopressãoigualadorageralmentepioresdoqueaqueles
despotismos contra os quais pretendiam se insurgir.Temo que o feminismo, na
variante que a senhora patrocina, vá por esse caminho no caso de triunfarem suas
teses,oque,sobopontodevistadacondiçãodamulher,signi cariasimplesmente,
emlinguagemcoloquial,trocarseispormeiadúzia.
Estas são,paramim,consideraçõesdeprincípiomoral e estéticoquea senhora
não temporquecompartilhar.Felizmente, tenho tambémaciênciadomeu lado.
Poderácomprová-losederumaolhada,porexemplo,nostrabalhosdaprofessorade
genéticaeciênciamédicadaUniversidadedeBrown,doutoraAnneFausto-Sterling,
aqual,háváriosanos,seesganiçaparademonstrar,anteamultidãoidiotizadapelas
convençõesepelosmitos,ecegadiantedaverdade,queossexoshumanosnãosãoos
doisquefomosinduzidosacrer—femininoemasculino—,maspelomenoscinco,
outalvezmais.Embora,porrazões fonéticas, tenhaobjeçõesaosnomesescolhidos
pela doutora Fausto-Sterling (herms, merms eferms) para as três variedadesintermediáriasentreomasculinoeofemininodetectadaspelabiologia,pelagenética
e pela sexologia, saúdo as pesquisas dela e as de cientistas a ns, como poderosos
aliados daqueles que, tal qual este covarde escriba, acreditam que a divisão
maniqueísta da humanidade em homens e mulheres é uma ilusão coletivista,
cumuladadeconspiraçõescontraasoberaniaindividual—donde,contraaliberdade
—,eumafalsidadecientí caentronizadapelotradicionalempenhodosEstados,das
religiões edos sistemas legais emmanter esse sistemadualista, emoposiçãoauma
Naturezaqueodesmenteacadapasso.
A imaginação da libérrimamitologia helênica sabia dissomuito bem, quando
patenteou aquela feitura combinada de Hermes e Afrodite, o Hermafrodita
adolescente, que, ao enamorar-se de uma ninfa, fundiu seu corpo com o dela,
tornando-se desde então homem-mulher ou mulher-homem (cada uma dessas
fórmulas,adoutoraFausto-Sterlingdixit,representaummatizdistintodecoligação,
emumsóindivíduo,degônadas,hormônios,composiçãodecromossomos,e,por
issomesmo,origina sexosdiferentesdosqueconhecemosporhomememulher,a
saber, os cacofônicos e confusosherms,merms eferms).O importante é saber que
isso não é mitologia, mas realidade retumbante, pois, antes e depois do
Hermafroditagrego,nasceramessesseresintermediários(nemvarõesnemfêmeasna
concepção usual do termo), condenados, por estupidez, ignorância, fanatismo e
preconceitos, a viver sob disfarce, ou, se fossem descobertos, a ser queimados,
enforcados, exorcizados como engendrações do demônio, e, na eramoderna, a ser
“normalizados”desdeoberçomedianteacirurgiaeamanipulaçãogenéticaporparte
de uma ciência a serviço dessa falaz nomenclatura que só aceita o masculino e o
femininoelançaforadanormalidade,aosinfernosdaanomalia,damonstruosidade
ou da extravagância física, esses delicados heróis intersexuais — toda a minha
simpatia está com eles— dotados de testículos e ovários, clitóris como pênis ou
pêniscomoclitóris,uretrasevaginas,eque,àsvezes,disparamespermatozoideseao
mesmo tempo menstruam. Para seu conhecimento, esses casos raros não são tão
rarosassim;odoutorJohnMoney,daUniversidadedeJohnsHopkins,estimaque
os intersexuais constituam quatro por cento dos hominídeos que nascem (some e
veráque,sozinhos,elespovoariamumcontinente).
A existência dessa populosa humanidade cienti camente estabelecida (sobre a
qual me inteirei lendo esses trabalhos que, para mim, têm interesse sobretudo
erótico),àmargemdanormalidadeeporcujaliberação,reconhecimentoeaceitação
luto também à minha fútil maneira (quero dizer, do meu solitário cantinho de
libertáriohedonista,amantedaarteedosprazeresdocorpo,encarceradonoanódino
ganha-pão de gerente de uma companhia de seguros), fulmina os que, como a
senhora,seempenhamemsepararahumanidadeemcompartimentosestanquesem
razãodosexo:falosaqui,clitórisdooutrolado,vaginasàdireita,escrotosàesquerda.
Esseesquematismogregárionãocorrespondeàverdade.Tambémnoqueserefereao
sexo, nós humanos representamos um leque de variantes, famílias, exceções,
originalidades e matizes. Para apreender a realidade última e intransferível do
humano,nestedomínio,comoemtodososoutros,háquerenunciaraorebanho,à
visãotumultuária,erecolher-seaoindividual.
Resumindo,direiàsenhoraquetodomovimentoquepretendatranscender(ou
relegar a segundo plano) o combate pela soberania individual, antepondo-lhe os
interessesdeumcoletivo—classe, raça,gênero,nação, sexo,etnia, igreja,vícioou
pro ssão —, parece-me uma conspiração para enredar ainda mais a maltratada
liberdadehumana.Essaliberdadesóalcançaseuplenosentidonaesferadoindivíduo,
pátriacálidaeindivisívelqueencarnamos,asenhoracomseuclitórisbeligeranteeeu
commeufaloencoberto (conservooprepúcioe tambémoconservameu lhinho
Alfonso,e soucontraacircuncisãoreligiosadosrecém-nascidos—nãoaescolhida
porserescomusodarazão—pelosmesmosmotivoscomquecondenoaablaçãodo
clitóris e dos lábios superiores vaginais praticada pormuitos islamitas africanos), e
deveríamos defendê-la, antes de tudo, contra a pretensão dos que quiseram nos
dissolver nesses conglomerados amorfos e castradores,manipulados pelos famintos
de poder.Tudo parece indicar que a senhora e suas seguidoras fazem parte desse
rebanho e, portanto, é meu dever participar-lhe meu antagonismo e minha
hostilidadeatravésdestacarta,que,ademais,tampoucopensoemcolocarnocorreio.
Parasuprimirumpoucoaseriedadefunéreademinhamissivaeterminá-lacom
um sorriso, animo-me a relatar-lhe o caso do pragmático andrógino Emma (eu
deveria, talvez, dizer andrógina?), relatado pelo urologista Hugh H. Young
(igualmenteda JohnsHopkins)queo/a tratou.Emma foi educadacomomenina,
apesardeterumclitórisdotamanhodeumpênis,eumavaginahospitaleira,oque
lhe permitia celebrar intercâmbios sexuais com mulheres e homens. Em solteira,
teve-os sobretudo commoças, atuando como homem.Depois, casou-se com um
varão e fez amor como mulher, sem que, contudo, esse papel a deleitasse tanto
quantoooutro;porisso,teveamantesmulheres,asquaisperfuravaalegrementecom
seu virilizado clitóris. Consultado por ela, o doutor Young explicou-lhe que seria
muitofácilsubmetê-laaumaintervençãocirúrgicaetransformá-lasóemhomem,já
que essa parecia ser sua preferência. A resposta de Emma vale bibliotecas sobre a
estreitezadouniversohumano: “Osenhor teriademe tirar a vagina,não,doutor?
Nãocreioquemeconvenha,poiselamedáde-comer.Semeoperar,euteriademe
separar domeumarido e procurar trabalho.Diante disso, pre ro continuar como
estou.”QuemcitaahistóriaéadoutoraAnneFausto-SterlingemMythsofGender:BiologicalTheoriesaboutWomenandMen,livroquelherecomendo.
Boasorteeboastrepadas,amiga.
Carraspana e carambola
No sossego da noite barranquina, don Rigoberto se endireitou na cama com a
ligeireza de uma serpente convocada pelo encantador. Ali estava dona Lucrecia,
belíssima em seudecotado vestidopretode tule, ombros ebraçosnus, sorridente,
atendendoàdúziadeconvidados.Davaordensaomordomoqueserviaasbebidasea
Justiniana,que,deuniformeazulcomaventalbrancoengomado,passavaasbandejas
de tira-gostos — fatias de aipim com molho huancaíno, palitinhos de queijo,
casquinhas àparmegiana,azeitonasrecheadas—comdesenvolturadedonadecasa.
MasocoraçãodedonRigobertodeuumsalto:oquelutavaparaocupartodaacena
emsualembrançaindiretadaqueleevento(eletinhasidoograndeausentedafesta,
queconheciaatravésdeLucreciaedesuaprópriaimaginação)eraavozestrambótica
deFitoCebolla.Jábêbado?Acaminhode car,poisosuísquessesucediamemsuas
mãoscomocontasderosárionasdeumadevota.
— Se você precisava viajar — aninhou-se em seus braços dona Lucrecia —,
devíamostercanceladoocoquetel.Eulhedisseisso.
—Porquê?—perguntoudonRigoberto,ajustandoseucorpoaodaesposa.—
Aconteceualgo?
—Muitascoisas—riu-sedonaLucrecia,abocacontraopeitodele.—Nãovou
lhecontar.Nempensenisso.
—Alguémsecomportoumal?—animou-sedonRigoberto.—FitoCebolla
passoudoslimites,porexemplo?
—Equemmais?—concedeusuamulher.—Ele,claro.
“Fito,FitoCebolla”,pensou.Gostavadeleouoodiava?Nãoerafácilsaber,pois
Fitolhedespertavaumdaquelessentimentosdifusosecontraditóriosqueeramsua
especialidade.Tinha-oconhecidoquando, emuma reuniãodediretoria,decidiram
nomeá-lo relações-públicasda companhia.Fitomantinha amigos em todaparte e,
emborativesseentradoemfrancadecadênciaeenveredadopelacompulsãoalcoólica
maisbabosa,sabiafazerbemoquesuaribombantenomeaçãosugeria:relacionar-see
aparecerempúblico.
—Quebarbaridadeelefez?—perguntou,ansioso.
— Comigo, me passar a mão — respondeu dona Lucrecia, encabulada,
esquivando-seereaproximando-sedomarido.—ComJustiniana,porpouconãoa
estuprou.
DonRigobertoconheciadeouvidoareputaçãodeFitoetevecertezadequeo
detestaria,malovisseaparecernotrabalhoparatomarpossedafunção.Queoutra
coisapodiaserele,alémdeumcanalha inapresentável,umsujeitodevidabalizada
por atividades esportivas— seu nome se associava, nas vagas lembranças de don
Rigoberto,aosurfe,aotênis,aogolfe,ades lesdemodaouconcursosdebelezanos
quais costumava ser jurado, e às páginas frívolas, nas quais frequentemente
irrompiam sua dentadura carniceira e sua pele bronzeada pelas praias do planeta,
metido em trajes a rigor, esportivo, havaiano, noturno, vespertino, matinal ou
crepuscular,umataçanamãoeemolduradopormulhereslindíssimas.Imaginava-o
de uma imbecilidade integral, em sua variante alta sociedade limenha.Teve uma
surpresa enorme ao descobrir que Fito Cebolla, sendo exatamente tudo o que se
podiaesperardele—frívolo,cafetãodeluxo,cínico,penetra,parasita,ex-desportista
e ex-rei dos coquetéis—, era também um original, um imprevisível e, até que o
porreoderrubasse,uma guradivertidíssima.Tinha lidoumas coisas algumdia e
tiravaproveitodessas leituras,citandoFernandoCasós—“NoPeruéadmirávelo
quenãoacontece”—e,entregargalhadasrepreensivas,PaulGroussac:“Florençaéa
cidade-artista, Liverpool a cidade-mercadora e Lima a cidade-mulher.” (Para
comprovar estatisticamente sua assertiva, andava com uma caderneta na qual ia
anotandoasmulheresfeiaseasbonitascomquemcruzavaemseucaminho.)Pouco
depois de se conhecerem, enquanto tomavam um traguinho com dois colegas de
trabalho noClub de laUnión, tinham feito uma aposta entre os quatro para ver
quempronunciavaafrasemaispedante.AdeFitoCebolla(“Semprequepassopor
PortDouglas,naAustrália,traçoumabistecadecrocodiloecomoumaaborígine”)
ganhouporunanimidade.
Na solidão escura, donRigoberto foi tomado por um arroubo de ciúme que
alterouseupulso.Suafantasiatrabalhavacomoumadatilógrafa.Aliestavaoutravez
donaLucrecia.Esplêndida,ombrosluzidiosebraçosroçagantes,equilibradasobreos
altíssimos saltos-agulha e as torneadas pernas depiladas, conversava com os
convidados,explicando,casalporcasal,aurgentepartidadeRigobertoparaoRiode
Janeiro,naquelatarde,porassuntosdacompanhia.
—Eoquenosimporta?—gracejou,galante,FitoCebolla,beijandoamãoda
donadacasadepoisdeterfeitoomesmoemsuaface.—Oquepoderiasermelhor?
Era ácido,apesardasproezasesportivasdajuventude,alto,bamboleante,olhos
debatráquioeumabocamovediçaqueensopavade luxúriaaspalavrasqueemitia.
Evidentemente,haviaseapresentadonocoquetelsemsuamulher: jásabiaquedon
Rigoberto sobrevoava as selvas amazônicas?Tinhadilapidado asmodestas fortunas
das trêsprimeiras esposas legítimas, dasquais fora sedivorciando àmedidaque as
espremiapasseando-aspelosmelhoresbalneáriosdo vastomundo.Chegada ahora
dorepouso,resignava-seàsuaquartae,semdúvida,últimaconsorte,cujoreduzido
patrimônio lhe assegurava, já não luxos nem excessos de cunho turístico,
indumentário ou culinário, mas apenas uma boa casa em La Planicie, uma bem-
servidadespensaeescocêssu cienteparacevaracirroseatéo mdosseusdias,desde
quenãopassassedossetenta.Elaerafrágil,miúda,eleganteecomoquepasmadade
admiraçãoretrospectivapeloAdônisqueFitoCebollahaviasidooutrora.
Agora, era um intumescido sessentão e seguia pela vida armado de um
caderninho e um binóculo com os quais, em suas andanças pelo centro e na luz
vermelha dos semáforos quando dirigia seu antiquado Cadillac cor de borra de
vinho, via e anotava, além da estatística geral (feias ou bonitas), uma mais
especializada: os bumbuns empinados, os peitos encabritados, as pernas mais
torneadas,ospescoçosdecisne,asbocasmaissensuaiseosolhosmaisfeiticeirosque
o tráfego lhe apresentava. Sua pesquisa, rigorosa e arbitrária a mais não poder,
dedicavaàsvezesumdia, e atéuma semana, aumapartedas anatomias femininas
transeuntes, com um método não muito diferente daquele que don Rigoberto
estabelecia para o asseio dos seus órgãos: segunda, traseiros; terça, seios; quarta,
pernas;quinta,braços;sexta,pescoços;sábado,bocas;edomingo,olhos.Amédiadas
qualificações,dezeroavinte,eratiradaacadafimdemês.
Desde que Fito Cebolla lhe permitira folhear suas estatísticas, don Rigoberto
havia começado a pressentir, no insondável oceano dos caprichos e manias, uma
inquietante semelhança com ele e a admitir uma incontível simpatia por um
espécimecapazdereivindicarsuasextravagânciascomtantainsolência.(Nãoeraoseu
caso, pois as suas eram dissimuladas e matrimoniais.) Em certo sentido, mesmo
descontandosuacovardiaesuatimidez,dasquaisFitoCebollacarecia,intuiuqueele
eraseuigual.Fechandoosolhos—emvão,porqueassombrasdodormitórioeram
totais—eacalentadopelovizinhorumordomaraopédaescarpa,donRigoberto
divisouamãocompelosnosnósdosdedos,decoradacomaliançadecasamentoe
aneldeouronomindinho,aboletando-seà traiçãonotraseirodesuamulher.Um
queixumeanimalqueteriapodidodespertarFonchitorasgousuagarganta:“Filhoda
puta!”
— Não foi assim — disse dona Lucrecia, esfregando-se contra ele. —
Conversávamosemumgrupodetrêsouquatro,entreosquaisFito,jácommuitos
uísquesentornados.Justinianapassouabandejaeentãoele, semmaisnemmenos,
começouagalanteá-la.
—Queserventemaisbonita!—exclamou,olhosinjetados,lábiosbabandoum
ozinhode saliva,vozengrolada.—Pedaçodemaucaminho,essacabrocha.Que
corpinho!
—Serventeéumapalavrafeia,depreciativaeumpoucoracista—reagiudona
Lucrecia.—Justinianaéumaempregada,Fito.Comovocê.Rigoberto,Alfonsitoe
eugostamosmuitodela.
—Empregada, braçodireito, amiga, protegidaou lá oque seja,não falei para
ofender—continuouFitoCebolla,seguindocomosolhos,imantado,ajovemque
seafastava.—Bemqueeuqueriateremcasaumacaboclinhaassim.
E, nesse momento, dona Lucrecia sentiu, inequívoca, poderosa, ligeiramente
úmida equente,umamãomasculinanaparte inferiorde suanádega esquerda,no
sensívellugarondeestadesciaempronunciadacurvaaoencontrodacoxa.Poralguns
segundos, não atinou com reagir, retirá-la, afastar-se nem se aborrecer. Ele se
aproveitaradoviçosocrótonjuntoaoqualconversavamparaexecutaraoperaçãosem
queosoutrosnotassem.DonRigobertodistraiu-secomumaexpressãofrancesa:lamainbaladeuse.Comosetraduziria?Amãoperegrina?Amãotransumante?Amão
ambulante?Amãoresvaladiça?Amãopassageira?Semresolverodilemalinguístico,
indignou-sedenovo.UmimpávidoFitoolhavaLucreciacomumsorrisosugestivo,
enquanto seus dedos começavam a se mover, plissando o tule do vestido. Dona
Lucreciaseafastoucombrusquidão.
— Tonta de raiva, fui tomar um copo d’água na copa — explicou a don
Rigoberto.
—Oqueasenhoratem,patroa?—perguntouJustiniana.
—Aquelenojentomebotouamãoaqui.Nãoseicomonãolhedeiumtapa.
—Deviadar, quebrarumcachepôna cabeçadele,meter-lhe asunhas, botá-lo
paraforadacasa—enfureceu-sedonRigoberto.
—Eu dei, quebrei, arranhei e o botei para fora.—Dona Lucrecia roçou seu
narizesquimónodomarido.—Massódepois.Antes,aconteceramcoisas.
“Anoiteélonga”,pensoudonRigoberto.TinhapassadoaseinteressarporFito
Cebollacomoumentomologistaporuminsetoraríssimo,decoleção.Invejavaessa
crassa humanidade que exibia impudicamente os próprios tiques e fantasias, tudo
aquiloque, segundoumcânonemoralquenãoeraoseu,aspessoaschamavamde
vícios, taras, degenerações. Por excesso de egoísmo, sem saber, o imbecil do Fito
Cebolla havia conquistadomais liberdade do que ele, que sabia tudomas era um
hipócrita, e, ainda por cima, um securitário (“Como o foram Kafka e o poeta
WallaceStevens”,desculpou-seante simesmo,emvão).Divertido,donRigoberto
recordouaquelaconversanobardoCésar’s,registradaemseuscadernos,naqualFito
Cebolla lhe confessara que amaior excitação de sua vida não fora provocada pelo
corpo escultural de alguma de suas incontáveis amantes, nem pelas dançarinas do
Folies Bergère de Paris, mas por um episódio na austera Luisiana, na casta
UniversidadedeBatonRouge, onde seu iludidopai omatricularana esperançade
queelesegraduassecomoquímicoindustrial.Ali,noparapeitodoseudormitory,emuma tarde primaveril, coubera-lhe assistir aomais formidável agarrão sexual desde
queosdinossaurosfornicavam.
—Deduasaranhas?—AsnarinasdedonRigobertoseabriramecontinuaram
palpitando,ferozes.SuasorelhonasdeDumboadejavamtambém,superexcitadas.
—Destetamanho—imitouacenaFitoCebolla,elevando,encolhendoosdez
dedos e aproximando-os comobscenidade.—Viram-se,desejaram-se e avançaram
umaparaaoutra,dispostasa seamarouamorrer.Melhordizendo:a seamaraté
morrer.Quandoumasaltousobreaoutra,houveumestremecimentodeterremoto.
Ajanela,odormitory,tudoseencheudeodorseminal.
—Comovocêsabequeelasestavamcopulando?—espetou-odonRigoberto.
—Porquenãobrigando?
— Estavam brigando e fornicando ao mesmo tempo, como deve ser, como
deveria ser sempre — sacudiu-se no assento Fito Cebolla; suas mãos tinham se
entrecruzado eosdezdedos se esfregavamcomestalidosósseos.—Sodomizavam
umaàoutracomtodasassuaspatas,todososseusanéis,peloseolhos,comtudoo
quetinhamnocorpo.Nuncaviserestãofelizes.Nuncavinadatãoexcitante, juro
pelaminhasantamãequeestánocéu,Rigo.
A excitação resultante do coito aracnídeo havia resistido, segundo ele, a uma
ejaculação aérea e a várias duchas de água fria. Ao cabo de quatro décadas e uma
in nidadedeaventuras,amemóriadaspeludasbestiolasatracadassoboinclemente
céuazuldeBatonRougevinhaàsvezesperturbá-lo,emesmoagora,quandoaidade
lhe aconselhavamoderação, aquela remota imagem, ao emergir de repente em sua
consciência,deixava-omaisempoleiradodoqueofariaumatalagadadeioimbina.
—Conte o que fazia no FoliesBergère, Fito—pediuTetêBarriga, sabendo
perfeitamentedoriscoaqueseexpunha.—Emborasejamentira,étãoengraçado!
—Issofoidarcordanele,botaramãonofogo—observouasenhoraLucrecia,
retardandoanarrativa.—MasTetêadorasechamuscar.
FitoCebollaseremexeunoassentoondejaziasemiderrubadopelouísque:
—Mentira, nada! Foi o único trabalho agradável daminha vida.Emborame
tratassemtãomalquantoseumaridometratanoemprego,Lucre.Venha,sente-se
aqui,fiqueconosco.
Tinha os olhos vidrados e a voz rouca.Os convidados começavam a olhar os
relógios.DonaLucrecia,fazendodastripascoração,foisesentar juntodosBarriga.
FitoCebollapassouaevocaraqueleverão.Havia cadoencrencadoemParis, sem
umcentavo,egraçasaumaamigaconseguiraumempregodebiqueirono“histórico
teatrodarueRicher”.
— Biqueiro, de bico do peito, e não no sentido de quem come pouco —
explicou,mostrandoumalibidinosapontinhadelínguaavermelhadaeentrefechando
osolhosdissolutoscomoqueparavermelhoroquevia(“eoqueeleviaeraomeu
decote,amor”.AsolidãodedonRigobertocomeçavaapovoar-seeaenfebrecer).—
Emboraeufosseoúltimodosajudanteseoquemenosganhava,demimdependiao
sucessodoshow.Umaresponsabilidadedocaralho!
—Qual,qual?—urgiu-oTetêBarriga.
—Deixarascoristascomosmamilostesos,poucoantesdeentrarememcena.
Para isso, em seu cantinho dos bastidores, dispunha de um balde de gelo. As
moças, engalanadas com penachos, adornos de ores, penteados exóticos, longas
pestanas,unhaspostiças,malhasinvisíveisecaudasdepavão,bundasepeitosaoléu,
inclinavam-se diante de FitoCebolla, que esfregava um cubinho de gelo em cada
mamilo e na corola circundante. Então, dando um gritinho, elas saltavam para o
palco,ospeitoscomoespadas.
—Funciona,funciona?—insistiaTetêBarriga,dandoumaolhadanospróprios
seioscaídos,enquantoseumaridobocejava.—Esfregandogelo,elesficam...?
— Tesos, duros, retos, empinados, airosos, erguidos, soberbos, eriçados,
encolerizados — prodigalizava Fito Cebolla seus conhecimentos em matéria de
sinônimos.—Permanecemassimquinzeminutos,cronometrados.
“Sim, funciona”, repetiu-se don Rigoberto. Pelas persianas se insinuava um
raiozinho pálido. Outro amanhecer longe de Lucrecia. Já seria hora de despertar
Fonchitoparaocolégio?Aindanão.Maselanãoestavaaqui?Comoquandohaviam
veri cadonosseusformososseiosareceitadoFoliesBergère.Elehaviavistoaqueles
escurosmamilos se aprumaremnas aréolasdouradas e se oferecerem, frios eduros
como pedras, aos seus lábios. Aquela veri cação tinha custado a Lucrecia um
resfriado,queaindaporcimaocontagiara.
—Ondeéobanheiro?—perguntouFitoCebolla.—Paralavarminhasmãos,
nãofaçammaujuízo.
Lucreciaoconduziuatéocorredor,guardandoumadistânciaprudente.Temia
sentirdenovo,aqualquermomento,aquelaventosamanual.
—Gosteidasuacaboclinha,sério—iabalbuciandoFito,aostropeções.—Sou
democrático,quevenhamnegras,brancasouamarelas, se forembemgostosas.Me
dáamoçadepresente?Ou,sepreferir,meceda.Possolhepagarumaboagrana.
—Obanheiro é aqui—conteve-odonaLucrecia.—Lave tambéma língua,
Fito.
—Seusdesejossãoordens—babouele,e,antesdequeelapudesseseafastar,a
malditamãofoidiretamenteaosseuspeitos.Fitoaretiroudeimediatoeentrouno
banheiro:—Perdão,perdão,erreideporta.
Dona Lucrecia voltou à sala.Os convidados começavam a sair. Ela tremia de
raiva.Destavez,iriaexpulsá-lodacasa.Trocavaasúltimasbanalidadesesedespedia
das pessoas no jardim. “É o cúmulo, é o cúmulo.”Osminutos passavam e Fito
Cebollanãoaparecia.
—Vocêquerdizerqueeletinhaidoembora?
— Foi o que eu imaginei. Que, ao sair do banheiro, ele teria escapulido,
discretamente,pelaportadeserviço.Masnão,não.Omalditoficou.
Foram-se as visitas, o garçom contratado, e, depois de ajudarem Justiniana a
recolhercoposepratos,fecharjanelas,apagaras luzesdojardimeligaroalarme,o
mordomoeacozinheiraderamboa-noiteaLucreciaeseretiraramparaseusafastados
dormitórios, em umpavilhão à parte, atrás da piscina. Justiniana, que dormia no
segundoandar, juntoaoescritóriodedonRigoberto,estavanacozinha,botandoa
louçanalavadora.
—FitoCebollaficoudentro,escondido?
—Noquartinhodasauna,talvez,ouentreasplantasdojardim.Esperandoque
osoutrosse fossem,queacozinheiraeomordomosedeitassem,parasemeterna
cozinha.Comoumladrão!
DonaLucreciaestavaemumsofádasala,cansada,aindanãorecuperadadomau
momento.Odelinquente doFitoCebolla não voltaria a pôr os pés naquela casa.
Perguntava-se se contaria aRigoberto o ocorrido, quando soou o grito.Vinha da
cozinha. Ela se levantou e correu.Na porta da alva copa— as paredes azulejadas
cintilando sob a luz farmacêutica —, o espetáculo a paralisou. Don Rigoberto
pestanejou várias vezes antes de xar a vista no raiozinho pálido da persiana que
anunciavaodia.Via-os: Justiniana, caídade costasnamesadepinho àqualhavia
sido arrastada, forcejando com mãos e pernas contra a fofa corpulência que a
esmagava e a beijocava, gargarejando uns ruídos que eram, que só podiam ser
grosserias. No umbral, des gurada, exorbitada, dona Lucrecia. Sua paralisia não
duroumuito.Aliestavaela—ocoraçãodedonRigobertobateuimpetuoso,cheio
deadmiraçãopelabelezadelacroixianadessafúriaqueagarravaaprimeiracoisaque
encontrava, o rolo de amassar, e arremetia contra Fito Cebolla, insultando-o.
“Abusado,maldito, imundo, crápula.”Golpeava-o semmisericórdia,ondecaísseo
rolo,nascostas,nopescoçogorducho,nacabeçadefrade,nasnádegas,atéobrigá-loa
soltar sua presa para se defender. Don Rigoberto podia ouvir as bordoadas que
espancavam ossos e músculos do interrompido estuprador, o qual, nalmente,
vencido pela surra e pelo pileque que estorvava seusmovimentos, girou, asmãos
voltadasparasuaagressora,cambaleou,escorregoueseestatelounochãocomouma
gelatina.
— Bata, bata você também, vingue-se — gritava dona Lucrecia, descendo o
incansávelrolodeamassarsobreovultodesujoternoazulque,tentandoselevantar,
erguiaosbraçosparaamortecerosgolpes.
—Justinianaarrebentouotamboretenacabeçadele?—perguntouoregozijado
donRigoberto.
Espatifou-o, e voaram cavacos até o teto. Ergueu-o com as duas mãos e o
descarregouemcimadeFitocomtodoopesodoseucorpo.DonRigobertoviua
silhuetaespigada,ouniformeazul,oaventalbranco,empinando-separadesfecharo
bólido. O estentóreo “Aiiii!” do escarrapachado Fito Cebolla lhe sacudiu os
tímpanos.(Masnãoosdacozinheira,nemosdomordomo,nemosdeFonchito?)
Fitocobriaacara,emsuasmãoshaviamanchasdesangue.Ficoudesmaiadoalguns
segundos.Voltouasi,talvez,comosgritosdasduasmulheres,quecontinuavama
insultá-lo:“Degenerado,bêbado,abusado,veado.”
—Comoédoce a vingança— riu-sedonaLucrecia.—Abrimos aportados
fundoseeleescapuliu,searrastando.Dequatropatas,juroavocê.Choramingando:
“Ai,minhacabecinha,ai,estáquebrada.”
Nisto,oalarmedisparou.Quesusto!MasnemassimFonchito,omordomoou
a cozinheira acordaram. Era verossímil? Não. Mas muito conveniente, isto sim,
pensoudonRigoberto.
—Nãoseicomoodesligamos,entramosdevolta,fechamosaportaeligamos
denovooalarme—ria-sedonaLucrecia,desbragada.—Atéque,poucoapouco,
fomosnosacalmando.
Então,elapôdesedarcontadoqueaquelebrutohaviafeitoàpobreJustiniana.
Tinha lhe destroçado a roupa. A moça, ainda aterrorizada, caiu no choro.
Pobrezinha.SedonaLucreciativessesubidoantesparaodormitório,nãoouviriaseu
grito, já quenemomordomonema cozinheira enemomenino tinhamouvido
nada.Ocanalhaaestuprariatranquilamente.Consolou-a,abraçou-a:“Jápassou,ele
jáfoi,nãochore.”Contraoseu,ocorpodamoça—pareciamaisjovenzinhaassim,
tãopróxima—tremiadospésàcabeça.Sentiaocoraçãodelaeviaseusesforçospara
conterossoluços.
—Medeuumapena...—sussurroudonaLucrecia.—Alémdelhedestruiro
uniforme,tinhabatidonela.
—Teveoquemerecia—gesticuloudonRigoberto.—Foiemborahumilhado
esangrando.Muitobenfeito!
“Vejasócomoeledeixouvocê,odesgraçado.”DonaLucreciaafastouJustiniana.
Examinouseuuniformeemfrangalhos,acariciou-anorosto,agorasemvestígiosdo
bomhumorexuberantequeamoçasempreexibia;grossaslágrimaslhecorriampelas
faces,umríctuslhecrispavaoslábios.Seuolhartinhaseapagado.
—Aconteceualgumacoisanessahora?—insinuou,commuitadiscrição,don
Rigoberto.
—Aindanão—retrucou, igualmentediscreta,donaLucrecia.—Pelomenos,
nãomedeiconta.
Nãosedavaconta.Achavaqueaqueledesassossego,nervosismo,exaltação,eram
obra do susto e, sem dúvida, também o eram; sentia-se transbordada por um
sentimentodecarinhoecompaixão,ansiosaporfazeralgo,qualquercoisa,paratirar
Justinianadoestadoemqueavia.Pegou-apelamão, levou-aatéaescada:“Venha
tirarestaroupa,émelhorchamarummédico.”Aosairdacozinha,apagoualuzdo
térreo.Subiramàsescuras,demãosdadas,degraupordegrau,aescadinhaemcaracol
paraoescritórioeoquarto.Nomeiodaescada,asenhoraLucreciapassouooutro
braçopelacinturadamoça.“Quesustovocêteve.”“Acheiqueiamorrer,masjáestá
passando.” Não era verdade: sua mão estreitava a da patroa e seus dentes
chacoalhavam, como que de frio. Segurando-se uma à outra pelas mãos e pela
cintura, contornaram as estantes carregadas de livros de arte e, no dormitório,
receberam-nas,descortinadosatravésdojanelão,as luzesdeMira ores,osfaróisdo
calçadãolitorâneoeascristasbrancasdasondasavançandoemdireçãoaopenhasco.
DonaLucreciaacendeua lumináriadepé,queclareouaampla chaise longue grenácompésdefalcãoeamesinhacomrevistas,asporcelanaschinesas,asalmofadaseos
pufes espalhados sobre o tapete. A ampla cama, os criados-mudos, as paredes
consteladasdegravuraspersas,tântricasejaponesascontinuaramnapenumbra.Dona
LucreciafoiatéoquartodevestireestendeuumrobeaJustiniana,quepermanecia
depé,cobrindo-secomosbraços,meioparalisada.
—Estaroupatemqueserjogadanolixo,queimada.Sim,émelhorqueimá-la,
comofazRigobertocomoslivrosegravurasdequejánãogosta.Ponhaisto,vouver
oquepossolhedar.
Nobanheiro,enquantomolhavaumatoalhinhacomágua-de-colônia,viu-seno
espelho(“Belíssima”,premiou-adonRigoberto).Tambémhavialevadoumsustoe
tanto.Estavapálidaecomolheiras;amaquilagemhaviaescorridoe,semqueelase
desseconta,ofechoeclerdeseuvestidotinhaserompido.
—Eutambémsouumaferidadeguerra,Justiniana—disseatravésdaporta.—
PorculpadoasquerosodoFito,minharoupaserasgou.Vouvestirumrobe.Venha,
aquitemmaisluz.
QuandoJustinianaentrounobanheiro,donaLucrecia,queestavaselivrandodo
vestidopelospés—nãousavasutiã,sóumacalcinhatriangulardesedapreta—,viu-
anoespelhodapiae, repetida,nodabanheira.Embrulhadanorobebrancoquea
cobriaatéascoxas,a jovempareciamaisdelgadaemaismorena.Comonão tinha
cinto, segurava o robe com as mãos. Dona Lucrecia despendurou seu quimono
chinês—“odesedavermelha,comdoisdragõesamarelosnascostas,unidospelas
caudas”,exigiudonRigoberto—,vestiu-oeachamou:
—Chegueumpoucomaisperto.Temalgumferimento?
—Não,achoquenão,duascoisinhasdenada.—Justinianaestendeuumaperna
porentreasdobrasdorobe.—Estasmanchasroxas,demedebatercontraamesa.
DonaLucreciaseinclinou,apoiouumadasmãosnacoxalisinhaedelicadamente
friccionouapelevioláceacomatoalhinhaembebidaemágua-de-colônia.
—Nãoénada,vaisumirlogo.Eaoutra?
No ombro e parte do antebraço. Abrindo o robe, Justiniana lhe mostrou a
contusãoquecomeçavaainchar.DonaLucrecianotouqueamoçatampoucousava
sutiã.Tinhaoseiodelamuitopróximodeseusolhos.Viaapontadomamilo.Era
umseiojovememiúdo,bemdesenhado,comumatênuegranulaçãonaaréola.
—Istoestámaisfeio—murmurou.—Eaqui,dói?
—Umpouquinho—disse Justiniana, sem retirar o braçoquedonaLucrecia
esfregava com cuidado, agora mais atenta à sua própria perturbação do que ao
hematomadaempregada.
—Ouseja—insistiu,imploroudonRigoberto—,aíaconteceualgo.
— Aí, sim— concedeu desta vez sua mulher.—Não sei o que, mas algo.
Estávamosmuitojuntas,derobe.Eununcatinhatidoessasintimidadescomela.Ou
talvezsim,resolvendoassuntosdecozinha.Oulápeloquefosse.Derepente,eujá
nãoeraeu.Eardiadospésàcabeça.
—Eela?
—Nãosei,quemsabe?Achoquenão—complicou-sedonaLucrecia.—Tudo
haviamudado,istosim.Percebe,Rigoberto?Depoisdesemelhantesusto.Eimagine
oqueestavameacontecendo.
— Essa é a vida — murmurou don Rigoberto, em voz alta, ouvindo suas
palavras ressoarem na solidão do dormitório já iluminado pelo dia. — Esse é o
amplo, o imprevisível, o maravilhoso, o terrível mundo do desejo. Minha
mulherzinha,quepertoatenho,agoraquevocêestátãolonge!
—Sabe de uma coisa?—disse donaLucrecia a Justiniana.—Para aplacar as
emoçõesdanoite,oquenósduasnecessitamosédeumdrinque.
—Paranãoterpesadeloscomaquelemão-boba—riuaempregada,seguindo-a
até o quarto. Sua expressão tinha se animado. — É mesmo, acho que só me
embebedandovoumelivrardesonharcomeleestanoite.
—Vamosnosembebedar,então.—DonaLucreciasedirigiuatéobarzinhodo
escritório.—Querumuísque?Vocêgostadeuísque?
—Oquefor,oqueasenhoratomar.Deixe,deixe,eutrago.
—Fiqueaqui—atalhoudonaLucrecia,jádoescritório.—Estanoite,sirvoeu.
Riu, e amoça a imitou, divertida.No bar, sentindo que não controlava suas
mãos e sem querer pensar, dona Lucrecia encheu dois copos grandes commuito
uísque, um jatinho de águamineral e dois cubos de gelo. Voltou, esgueirando-se
comoumfelinoentreosalmofadõesespalhadospelochão.Justinianasereclinarano
espaldardachaiselongue,semsubiraspernas.Fezmençãodeselevantar.
—Fiqueaímesmo—voltouaatalharapatroa.—Chegueparalá,cabemosas
duas.
Amoçahesitou,pelaprimeiravezdesconcertada;masserecompôsdeimediato.
Tirouossapatos,subiuaspernaseescorregouparajuntodajanelaa mdelheabrir
espaço.DonaLucreciaseacomodouaoseu lado.Ajeitouasalmofadasembaixoda
cabeça.Cabiam,mas seus corpos se roçavam.Ombros,braços,pernas equadris se
pressentiame,pormomentos,setocavam.
—Aquevamosbrindar?—dissedonaLucrecia.—Àsurranaqueleanimal?
—Àcadeiradaqueeudei—respondeuJustiniana,recuperandoseuhumor.—
Comaraivaqueeutinha,poderiatermatadoaquelesujeito,estoulhedizendo.Será
quequebreiacabeçadele?
Bebeumaisumgoleecaiunarisada.DonaLucreciacomeçouarirtambém,com
umarisadinhameiohistérica.“Quebrou,sim,eeu,comorolodeamassar,quebrei
outras coisas nele.” Passaram assim um bom tempo, como duas amigas que
compartilham uma con dência jovial e algo escabrosa, estremecidas pelas
gargalhadas.“EulhegarantoqueFitoCebollatemmaismanchasroxasdoquevocê,
Justiniana”, “E que pretextos ele vai dar agora à mulher, para esses galos e
ferimentos?”, “Que foi assaltado e chutado por ladrões.” Em um contraponto de
chacotas,acabaramoscoposdeuísque.Acalmaram-se.Poucoapouco,recuperaram
ofôlego.
—Vouservirmaisdois—dissedonaLucrecia.
—Euvou,deixe,juroqueseipreparar.
—Bom,válá,enquantoissoeuponhomúsica.
Mas,emvezdese levantardachaiselongueparaqueamoçapassasse,asenhora
Lucreciasegurou-apelacinturacomasduasmãoseajudou-aadeslizarporcimadela,
semretê-lamasdemorando-a,emummovimentoque,poruminstante,manteveos
corpos das duas — a patroa embaixo, a empregada em cima — enlaçados. Na
semipenumbra,enquantosentiaorostodeJustinianasobreoseu—arespiraçãoda
jovemlheesquentavaorostoelheentravapelaboca—,donaLucreciaviuassomar
nosolhosdelaumbrilhoalarmado.
— E, nessa hora, você notou o quê? — pressionou-a um embargado don
Rigoberto,sentindodonaLucreciasemoveremseusbraçoscomapreguiçaanimal
emqueocorpodelasoçobravaquandofaziamamor.
—Nãoseescandalizou;sóseassustouumpouquinho,talvez.Emboranãopor
muito tempo—disse ela,meio sufocada.—Por eu ter tomado essas liberdades,
fazendo-apassarporcimademimsegurando-apelacintura.Talveztenhapercebido.
Nãosei,eunãosabianada,nãomeimportavanada.Euvoava.Masdisto,sim,me
dei conta: ela não se aborreceu.Via aquilo comgraça, com amalícia quepõe em
tudo.Fitotinharazão,elaéatraente.E,meionua,maisainda.Seucorpocafécom
leite,contrastandocomabrancuradaseda...
—Eudaria um anode vida para vê-las nessemomento.—EdonRigoberto
encontroua referênciaquebuscavahavia tempo:Preguiçae luxúriaouO sonho, deGustaveCourbet.
—Masnãoestánosvendo?—brincoudonaLucrecia.
Comtotalnitidez,apesardeque,àdiferençade seudiurnodormitório,aquele
era noturno, e essa parte do aposento estava em penumbra, fora do alcance da
luminária de pé. A atmosfera se adensara. Aquele perfume penetrante, que
entontecia, intoxicou don Rigoberto. Suas narinas o aspiravam, expeliam,
reabsorviam. Ao fundo, ouvia-se o rumor do mar e, no escritório, Justiniana
preparandoosdrinques.Meioocultapelaplantadefolhaslanceoladas,donaLucrecia
se estirou e, como que se espreguiçando, acionou o toca-discos; uma música de
harpas paraguaias com um coro guarani utuou no aposento, enquanto dona
Lucreciavoltavaàsuaposturanachaiselonguee,comaspálpebrascerradas,esperava
JustinianacomumaintensidadequedonRigobertofarejoueescutou.Oquimono
chinêsdeixavaversuacoxabrancaeseusbraçosnus.Oscabelosestavamdesalinhados
eosolhosespreitavamportrásdaspestanassedosas.“Umajaguatiricatocaiandosua
presa”,pensoudonRigoberto. Justiniana,quandoapareceucomosdois coposnas
mãos, vinha risonha, movendo-se com desenvoltura, já acostumada a essa
cumplicidade,anãoguardarcomsuapatroaadevidadistância.
—Gostadestamúsicaparaguaia?Nãoseicomosechama—murmuroudona
Lucrecia.
—Muito, é bonita, mas não dá para dançar, não? — comentou Justiniana,
sentando-senabeiradachaiselongueeestendendo-lheocopo.—Assimestábom,
ouprecisademaiságua?
NãoseatreviaapassarporcimadedonaLucrecia,que sechegouparaocanto
antes ocupado pela moça. Animou-a com um gesto a se instalar no seu lugar.
Justiniana fez isso e, ao se reclinar junto dela, seu robe escorregou, deixando sua
pernadireitatambémdescoberta,amilímetrosdapernadesnudadapatroa.
—Tintim,Justiniana—disseesta,batendoocoponodela.
—Tintim,patroa.
Beberam.Assimqueafastaramoscopos,donaLucreciagracejou:
—QuantonãodariaFitoCebollaparanosterasduascomoestamosagora!
Riu, e Justiniana também riu.O riso de ambas cresceu, decresceu. Amoça se
atreveuafazertambémumgracejo:
—Seaomenoselefossejovemebonitão...Mas,comsemelhantesapoeainda
porcimabêbado,quemiadeixar?
—Pelomenos, tembomgosto.—Amão livrededonaLucrecia remexeuos
cabelosdeJustiniana.—Verdade,vocêémuitobonita.Nãoédeestranharqueleve
oshomensafazerloucuras.SóFito?Vocêdevetercausadoestragos,poraí.
Semprelhealisandooscabelos,aproximouapernaatétocaradeJustiniana.Esta
não afastou a sua. Ficou quieta, meio sorriso xado no rosto. Depois de alguns
segundos, a senhora Lucrecia, com um baque no coração, notou que o pé de
Justinianaseadiantavadevagarinhoatéfazercontatocomodela.Unsdedostímidos
semoviamsobreosseus,numimperceptívelarranhão.
—Gostomuitodevocê,Justita—disse,chamando-apelaprimeiravezcomo
Fonchito fazia.— Percebi esta noite. Quando vi o que aquele balofo estava lhe
fazendo.Sentiumaraiva...!Comosevocêfosseminhairmã.
— Eu também gosto muito da senhora, patroa — murmurou Justiniana,
encostando-seumpoucomais,demodoqueagora,alémdepésecoxas,tocavam-se
osquadris,braçoseombros.—Ficosemgraçadedizer,masainvejotanto...Porser
comoé,porsertãoelegante.Amelhorquejáconheci.
—Mepermitequeabeije?—AsenhoraLucreciainclinouacabeçaatéroçarade
Justiniana.Oscabelosdasduassemisturaram.Elaviaosolhosprofundosdamoça,
muito abertos, observando-a sem pestanejar, sem medo, embora com alguma
ansiedade.—Possolhedarumbeijo?Podemos?Comoamigas?
Sentiu-se incomodada, arrependida,duranteos segundos—dois, três, dez?—
que Justiniana levoupara responder.Ea alma lhevoltouao corpo—seucoração
batia tão depressa que elamal respirava— quando, nalmente, a carinha que via
embaixo da sua assentiu e se adiantou, oferecendo-lhe os lábios. Enquanto se
beijavam,comímpeto,enredandoaslínguas,separando-seejuntando-se,seuscorpos
seentrelaçando,donRigobertolevitava.Estavaorgulhosodesuaesposa?Claro.Mais
apaixonadoporeladoquenunca?Naturalmente.Voltouavê-laseouvi-las.
—Precisolhedizerumacoisa,patroa—escutouJustinianasussurrarnoouvido
deLucrecia.—Hámuito,eutenhoumsonho.Eleserepete,mevematéquando
estou acordada.Eradenoite, fazia frio.Opatrão estava viajando.A senhora tinha
medodosladrõesemepediuqueviesselhefazercompanhia.Euqueriadormirnesta
poltronaeasenhora“não,não,venhaparacá,venha”.Emefaziadeitaraoseulado.
Sonhando isso, sonhando, digo ou não digo?, eu cava toda molhada. Que
vergonha!
—Vamosfazeressesonho.—AsenhoraLucreciaselevantou,levandoatrásdesi
Justiniana.—Vamos dormir juntas,mas na cama, émaismacia do que a chaiselongue.Venha,Justita.
Antesdeentraremembaixodoslençóis,despiramosrobes,que caramaopédo
leito de casal, coberto por uma colcha. Às harpas, seguira-se uma valsa de outros
tempos, comunsviolinoscujos compassos sintonizavamcomsuas carícias.Oque
importava se elashaviamapagadoa luz enquantobrincavame se amavam,ocultas
embaixodos lençóis, e a atarefadacolcha se encrespava, se enrugavaebamboleava?
DonRigobertonãoperdiaumdetalhedosseusgestosesboçadosedasarremetidas;
enredava-seedesenredava-secomelas,estavajuntodamãoqueenvolviaumseio,em
cadadedoqueroçavaumanádega,noslábiosque,depoisdeváriasescaramuças,por
mseatreviamaafundarnaquelasombraescondida,buscandoacrateradoprazer,a
cavidademorna, a boca latejante, omusculozinho vibrátil. Via tudo, sentia tudo,
ouviatudo.Suasnarinasseembriagavamcomoperfumedaquelaspeleseseuslábios
sorviamossumosquemanavamdograciosocasal.
—Elanuncahaviafeitoisso?
— E eu também não— con rmou dona Lucrecia. — Nenhuma das duas,
nunca.Umpardenovatas.Aprendemos alimesmo.Gozei, gozamos.Não senti a
menorfaltadevocênessanoite,meuamor.Nãoseimportaqueeulhediga?
—Gostoquevocêdiga—abraçou-aseuesposo.—Eela,nãoseconstrangeu
depois?
Em absoluto. Havia mostrado uma naturalidade e uma discrição que
impressionaram dona Lucrecia. Exceto pela manhã seguinte, quando chegaram os
buquês de ores (o da patroa dizia: “Do meio de suas bandagens, Fito Cebolla
agradecedetodoocoraçãoamerecidaliçãoquerecebeudesuaqueridaeadmirada
amigaLucrecia”,eodaempregada:“FitoCebollasaúdaepederespeitosasdesculpas
à Flor de Canela”) que elas mostraram uma à outra, o assunto não voltou a ser
mencionado.Arelaçãonãomudou,nemasmaneiras,nemotratamento,paraquem
as observava de fora. É verdade que, de vez em quando, dona Lucrecia tinha
pequenas delicadezas com Justiniana, presenteando-lhe uns sapatos novos, um
vestido, ou levando-a de companhia em suas saídas,mas isso, embora provocasse
ciúmesnomordomoenacozinheira,nãosurpreendianinguém,poistodosnacasa,
dochoferaFonchitoedonRigoberto, tinhamnotadohavia tempoque, comsua
vivacidadeeseusmimos,Justinianatinhaapatroanobolso.
Amor às orelhas voadoras
Olhosparaver,narizparacheirar,dedosparatocareorelhascomocornucópiaspara
seremesfregadascomasgemas,assimcomoagentepassaamãonacorcovinhada
corcundaounabarriguinhadoBuda—quetrazemsorte—,e,depois,lambidase
beijadas.
Gostodeti,Rigoberto,detiedeti,mas,acimadetodasastuasoutrascoisas,
gostodetuasorelhasvoadoras.Quiserapodermeajoelhareespiaressesburaquinhos
quelimpasacadamanhã(meumindinhomecontou)comumcotoneteedeonde
arrancasospelinhoscomumapinça—pelinhoaiporpelinhoaijuntodoespelhoai
— nos dias em que lhes cabe a puri cação. O que eu veria por esses fundos
oquinhos?Umprecipício.E, assim,descobriria teus segredos.Qual, por exemplo?
Que,semsaber,jámeamas,Rigoberto.Veriaalgumaoutracoisa?Doiselefantinhos
comsuastrombinhaslevantadas.Dumbo,Dumbinho,comoteamo!
O que seria do azul, se todos gostassem do amarelo?Tu, paramim, embora
alguns digam que com teu nariz e tuas orelhas ganharias o concursoOHomem-
Elefante do Peru, és o ser mais atraente, o mais bonito que já existiu. Vejamos,
Rigoberto,adivinha,semedessemaescolhaentretieRobertRedford,quemseriao
eleito do meu coração? Sim, meu orelhãozinho, sim, narigãozinho, sim, meu
Pinoquinho:tu,tu.
Oquemais eu veria, semedebruçassepara espiarpor teus abismos auditivos?
Um campode trevos, todos de quatro folhas. E ramos de rosas cujas pétalas têm
retratada,emsuapelugembranca,umacarinhaamorosa.Qual?Aminha.
Quemsou,Rigoberto?Queméaandinistaqueteamaeteidolatra,ealgumdia
não longínquo escalará tuas orelhas como outros escalam o Himalaia ou o
Huascarán?
Tua,tua,tua,
Alouquinhadetuasorelhas
IV.
Fonchito em lágrimasIV - Fonchito em lágrimas
Fonchito se mostrara cabisbaixo e pálido desde que havia chegado à casa de San
Isidro,edonaLucreciaestavacertadequesuasolheirase seuolhar fugidiotinham
algo a ver com Egon Schiele, tema infalível de cada tarde. Ele mal abriu a boca
enquanto tomavam o chá e, pela primeira vez naquelas semanas, esqueceu-se de
elogiar oschancays tostados de Justiniana. Notas baixas no colégio? Rigobertodescobriraqueele faltavaàacademiaparavirvisitá-la?Encerradoemummutismo
tristonho,mordia os nós dos dedos.Emalgummomentohaviamurmurado algo
terrívelsobreAdolfeMarie,paisouparentesdoseureverenciadopintor.
—Quandoalgoróiagentepordentro,omelhorécompartilhar—ofereceu-se
donaLucrecia.—Nãocon aemmim?Meconteoquevocêtem,talvezeupossa
ajudá-lo.
Omeninoa tounosolhos,sobressaltado.Pestanejavaepareciaprestesacairno
choro. Suas têmporas latejavamedonaLucreciadivisou as veiazinhas azuisdo seu
pescoço.
—É que... estive pensando— disse ele, por m.Desviou a vista e se calou,
arrependidodoqueiadizer.
—Emquê,Fonchito?Vamos,meconte.Porqueessecasalopreocupatanto?
QuemsãoAdolfeMarie?
—OspaisdeEgonSchiele—disseomenino,comosefalassedeumcolegade
classe.—MasnãoéosenhorAdolfquemepreocupa,esimopapai.
—Rigoberto?
—Nãoqueroqueacabecomoele.—Acarinhaseensombreceuaindamaisea
mãofezumgestoestranho,comoqueafugentandoumfantasma.—Medámedoe
não sei o que fazer. Não queria preocupá-la. Você ainda ama o papai, não é,
madrasta?
—Claro que sim— assentiu ela, desconcertada.—Vocême deixa boiando,
Fonchito.OqueRigobertotemavercomopaideumpintorquemorreudooutro
ladodomundo,meioséculoatrás?
No princípio, parecera-lhe divertido, muito próprio dele, esse jogo inusitado,
deslumbrar-se com as telas e a vida de Egon Schiele, estudá-las, apreendê-las,
identi car-se com o pintor até acreditar, ou dizer acreditar, que era Egon Schiele
redivivoequemorreria também,apósumacarreira fulgurante,demaneira trágica,
aosvinteeoitoanos.Masessejogocomeçavaaseturvar.
— O destino do pai dele está se repetindo também no meu — balbuciou
Fonchito, engolindo em seco.—Não quero que o papai que louco e si lítico
comoosenhorAdolf,madrasta.
—Masquebobagem—ela tentou acalmá-lo.—Vamos e venhamos, a vida
nãoseherdanemserepete.Deondelheocorreuumdisparatedestes?
Incapazdeseconter,omeninocontraiuorostoemumbeicinhoecomeçoua
chorar, com soluços que faziam estremecer sua guramirrada.A senhoraLucrecia
pulou da poltrona, sentou-se junto dele no tapete da sala de jantar, abraçou-o,
beijou-onoscabelosenatesta,secou-lheaslágrimascomseulencinho,assoou-lheo
nariz.Fonchitoseapertoucontraela.Fundossuspiroslevantavamseupeitoedona
Lucreciasentiaocoraçãodeleaossaltos.
—Calma,jápassou,nãochore,quedespropósito,issonãotempénemcabeça.
—Alisava-lheoscabelos,beijava-os.—Rigobertoéohomemmais saudável ede
cabeçamaisequilibradaquejáseviu.
O pai de Egon Schiele era si lítico e morreu louco? Com a curiosidade
espicaçadapelascontínuasalusõesdeFonchito,donaLucreciatinhaprocuradoalgo
sobre Schiele na livraria La Casa Verde, a dois passos de sua residência, mas não
encontrou nenhuma monogra a, só mesmo uma história do expressionismo que
dedicavaaeleapenaspartedeumcapítulo.Nãorecordavaqueotextomencionasse
em algummomento sua família. Omenino assentiu, a boca crispada e os olhos
semicerrados.Devezemquando,umcalafrioopercorria.Masfoisossegandoe,sem
seafastardela, encolhido,parecendo felizporestarprotegidopelosbraçosdedona
Lucrecia,começouafalar.ElanãoconheciaahistóriadosenhorAdolfSchiele?Não,
nãoa conhecia;nãoconseguira encontrarumabiogra adessepintor.Fonchito, ao
contrário, tinha lido várias na biblioteca do pai e consultado a enciclopédia.Uma
históriaterrível,madrasta.Diziamque,semoqueaconteceuaosenhorAdolfSchiele
eàsenhoraMarieSoukup,nãosepodiaentenderEgon.Porqueessahistóriaescondia
osegredodesuapintura.
—Bem,bem.—DonaLucreciatentoudespersonalizaroassunto.—Equalé,
afinal,osegredodesuapintura?
—A sí lisdopai—retrucouomenino, semvacilar.—A loucuradopobre
senhorAdolfSchiele.
Mordendo o lábio, dona Lucrecia conteve o riso, para não ferir o menino.
Pareceu-lhe estar ouvindo o doutor Rubio, um psicanalista conhecido de don
Rigoberto, muito popular entre suas amigas desde que, citando o exemplo de
Wilhelm Reich, passara a se despir durante as sessões para melhor interpretar os
sonhosdesuaspacientes,equecostumavasoltarcoisasdogêneronoscoquetéis,com
amesmaconvicção.
—Mas,Fonchito—disse,soprando-lheatesta,brilhantedesuor—,poracaso
vocêsabeoqueésífilis?
—Umadoençavenérea,quevemdeVênus,umadeusaquenãoseiquemfoi—
confessouomenino,comsinceridadedesarmante.—Nãoencontreinodicionário.
MasseiondeosenhorAdolfsecontagiou.Querqueeucontecomofoi?
—Desde que você se acalme. E que não volte a se atormentar com fantasias
descabeladas.Nem você é Egon Schiele nemRigoberto tem nada a ver com esse
cavalheiro,seubobão.
Omeninonãoprometeunada,mastampoucoreplicou.Ficouumtempinhoem
silêncio,aninhadonosbraçosprotetores,acabeçanoombrodamadrasta.Quando
começou a contar, fez isso com o luxo de datas e detalhes de uma testemunha
daquiloquecontava.Ouprotagonista,poispassavaaemoçãodequemviveuacoisa
naprópriapele.Comose,emvezdenasceremLimano naldoséculoXX,fosse
EgonSchiele,umrapazoladaúltimageraçãodesúditosaustro-húngaros,aqueveria
desapareceremnahecatombedaPrimeiraGuerraMundialachamadaBelleÉpoquee
o império, aquela sociedade rutilante, cosmopolita, literária,musical eplásticaque
RigobertoamavatantoesobreaqualderaadonaLucreciatãopacientesaulas,nos
primeiros anos de casados. (Agora, Fonchito continuava dando-as.) A época de
Mahler,Schoenberg,Freud,Klimt,Schiele.Nosobressaltadorelato,descontando-se
anacronismos e puerilidades, uma história foi se per lando. Uma aldeia chamada
Tulln, às margens do Danúbio, nos arredores de Viena (a 25 quilômetros, dizia
Fonchito),eocasamento,naquelesúltimosanosdoséculo,entreofuncionáriodas
ferrovias imperiais Adolf Eugen Schiele, protestante, de origem alemã, 26 anos
recém-completados,eaadolescentecatólicadeorigemtcheca,de17,MarieSoukup.
Umauniãoarriscada,contraacorrente,dadaaoposiçãodafamíliadanoiva.(“Asua
seopôsaquevocêsecasassecomopapai?”“Pelocontrário, caramencantadoscom
Rigoberto.”) Essa época era puritana e cheia de preconceitos, não,madrasta? Sim,
semdúvida,porquê?PorqueMarieSoukupnãosabianadadavida;nãotinhamlhe
ensinadonemcomosefaziamosbebês,apobrezinhaachavaqueeleseramtrazidos
deParispelascegonhas.(Amadrastanãoseriaigualmenteinocentequandosecasou?
Não,donaLucreciajásabiatudooqueprecisavasaber.)TãoinocenteeraMarieque
sequersedeucontadeterengravidadoeachouqueseumal-estareraculpadasmaçãs,
que adorava. Mas isso era adiantar a história. Convinha retroceder à viagem de
núpcias.Alitinhacomeçadotudo.
—Oqueaconteceunessaluademel?
—Nada—disseomenino,endireitando-separaassoaronariz.Tinhaosolhos
inchados,masapalidezdesaparecera.Estavaenvolvidodecorpoealmanorelato.—
Marietevemedo.Nostrêsprimeirosdias,nãodeixouqueosenhorAdolfatocasse.
Ocasamentonãoseconsumou.Doquevocêestárindo,madrasta?
—Deouvi-lofalarcomoumvelho,sendoopedacinhodehomemqueaindaé.
Não se aborreça, a história me interessa muito. Bom, nos três primeiros dias de
casados,AdolfeMarie,nadadenada.
—Nãoépararir—condoeu-seFonchito.—Émaisparachorar.Aluademel
foi em Trieste. Para recordar essa viagem dos pais, Egon Schiele e Gerti, sua
irmãzinhapredileta,fizeramumaviagemidêntica,em1906.
EmTrieste,duranteafrustrada luademel,começouatragédia.Porque,como
suaesposanãosedeixavatocar—chorava,esperneava,arranhava-o,faziaumgrande
escândalocadavezqueeleseaproximavaparabeijá-la—,osenhorAdolf iaparaa
rua.Paraonde?Consolar-secommulheresdavida.E,emumdesseslugares,Vênuso
contagiou com a sí lis. Essa enfermidade começou a matá-lo aos poucos, desde
então.Fezcomqueeleenlouquecesseedesgraçoutodaafamília.Apartirdaí,caiu
umamaldiçãosobreosSchiele.Adolf,semsaber,contagiousuaesposa,quandopôde
a nal consumar o matrimônio, no quarto dia. Por isso, Marie abortou nas três
primeiras gravidezes; por isso, morreu Elvira, a lhinha que viveu apenas dez
aninhos.E,porisso,Egonfoitãofragilzinhoepropensoadoenças.Tantoque,em
sua infância, achavam que ele morreria, pois vivia consultando médicos. Dona
Lucrecia acabou por vê-lo: uma criança solitária, mexendo com trenzinhos de
brinquedo,desenhando,desenhandootempotodo,emseuscadernosdecolégio,nas
margensdaBíblia,eatéempapéisquecatavanolixo.
—Como vê, você não se parece com ele emnada. SegundoRigoberto, foi a
criançamaissaudáveldomundo.Egostavadebrincarcomaviões,nãocomtrens.
Fonchitoresistiaagracejar.
—Medeixaterminarahistória,ouestáentediada?
Não a entediava, mas sim a entretinha; porém, mais que as peripécias e os
nissecularespersonagens austro-húngaros, apaixãocomqueFonchitoos evocava:
vibrando,movendoolhos emãos, com in exõesmelodramáticas.O terrível dessa
doençaeraquevinhadevagarinhoeàtraição;equedesonravasuasvítimas.Foiessaa
razãopelaqualosenhorAdolfnuncaadmitiuqueapadecia.Quandoseusparenteso
aconselhavam a procurar o médico, protestava: “Estoumais são do que qualquer
um.”Estavanada.Arazãohaviacomeçadoalhefalhar.Egongostavadele,davam-se
muito bem, sofria quando ele piorava.O senhor Adolf se punha a jogar baralho
como se seus amigos tivessem vindo, mas estava sozinho. Distribuía as cartas,
conversava com eles, oferecia-lhes cigarros, e à mesa da casa deTulln não havia
ninguém.Marie,MélanieeGertiqueriamfazê-loverarealidade,“Mas,papai,não
há com quem falar, com quem jogar, não percebe?”. Egon as desmentia: “Não é
verdade, pai, não lhes dê ouvidos, estão aqui o chefe da guarda, o diretor dos
correios, o mestre-escola. Seus amigos estão com você, pai. Eu também os vejo,
comovocê.”Nãoqueriaaceitarqueseupaitinhavisões.Derepente,osenhorAdolf
envergava seu uniformede gala, boné de viseira brilhante, botas reluzentes, e ia se
plantarnaplataforma,emposiçãodesentido.“Oqueestáfazendoaqui,pai?”“Vou
receber o Imperador e a Imperatriz, lho.” Já estava louco. Não pôde continuar
trabalhandonaferrovia,tevedeseaposentar.Devergonha,osSchielesemudaramde
Tulln para um lugar onde ninguém os conhecia: Klosterneuburg. Em alemão
signi ca “A aldeia nova do convento”.O senhorAdolf piorou, já não sabia falar.
Passavaosdiasnoquarto, semabriraboca.Viu?Viu?Subitamente,umaagitação
angustiosaseapoderoudeFonchito:
—Igualzinhoaopapai,poisentão—explodiu,comumguinchodesa nado.—
Eletambémvoltadotrabalhoenãoquerfalarcomninguém.Nemcomigo.Aténos
sábadosedomingos,amesmacoisa: trancadonoescritório,odia inteiro.Quando
puxoconversa,“Sim”,“Não”,“Bom”.Nãosaidisso.
Teria sí lis? Estaria enlouquecendo? Talvez tivesse contraído a doença pela
mesmarazãoqueosenhorAdolf.Porque cousozinho,quandoasenhoraLucrecia
odeixou.FoiaalgumacasasuspeitaeVênusocontagiou.Nãoqueriaqueopapai
morresse,madrasta!
Caiunochorodenovo,destavez semruído,paradentro, cobrindoo rosto, e
acalmá-lo deu mais trabalho a dona Lucrecia do que antes. Ela o consolou, que
delíriosabsurdos,acarinhou-o,Rigobertonãotinhanenhumaenfermidade,ninou-o,
estava mais lúcido do que ela e Fonchito, sentindo as lágrimas daquela cabeça
rubicundamolharemopeitilhodoseuvestido.Depoisdemuitosmimos,conseguiu
serená-lo.Rigobertogostavade se trancarcomsuasgravuras, comseus livros, com
seus cadernos, para ler, ouvir música, escrever suas citações e re exões. Por acaso
Fonchitonãooconhecia?Elenãotinhasidosempreassim?
—Não,nemsempre—negouomenino,com rmeza.—Antes,mecontavaas
vidasdospintores,meexplicavaosquadros,meensinavacoisas.Emeliaalgodeseus
cadernos.Comvocê,eleria,saía,eranormal.Desdequevocêfoiembora,mudou.
Ficou triste. Agora, nem sequer se interessa pelas notas que eu tiro; assinaminha
cadernetasemolhar.Aúnicacoisaquelheimportaéseuescritório.Sóquersetrancar
ali,horasehoras.Vaificarlouco,comoosenhorAdolf.Quemsabeatéjáficou.
Omeninohaviajogadoosbraçosaopescoçodamadrastaereclinavaacabeçano
seuombro.NoOlivar, ouviam-se gritinhos e correrias de crianças, como todas as
tardes,quando,àsaídadoscolégios,osestudantesdavizinhançaa uíamaoparque
vindosdasincontáveisesquinasparafumarumcigarroàsescondidasdospais,bater
bolaenamorarasmeninasdobairro.PorqueFonchitonuncafaziaessascoisas?
—Você ainda gosta do papai, madrasta?— A pergunta voltava carregada de
apreensão,comosedarespostadependesseumavidaouumamorte.
—Eujálhedisse,Fonchito.Nuncadeixeidegostardele.Porqueisso,agora?
—Ele está assim porque tem saudade. Porque ama você, madrasta, e não se
conformacomquevocênãomoremaisconosco.
—Ascoisasaconteceramcomoaconteceram—donaLucrecialutavacontraum
mal-estarcrescente.
— Não está pensando em se casar outra vez, está, madrasta? — insinuou
timidamenteomenino.
—Éaúltimacoisaqueeufarianavida,mecasardenovo.Nuncadenúncaras.
Alémdisso,Rigobertoeeunemestamosdivorciados,sóseparados.
—Então,podemfazeraspazes!—exclamouFonchito,comalívio:—Quem
briga pode fazer as pazes. Eu brigo e co de bem todos os dias, com colegas do
colégio.Vocêvoltariaparanossacasa,eJustitatambém.Seriatudocomoantes.
“Ecuraríamosopapaizinhoda loucura”,pensoudonaLucrecia.Estava irritada.
Tinha parado de achar graça nas fantasias de Fonchito. Cólera surda, amargura,
rancor a invadiam, àmedida que suamemória desempoeirava asmás lembranças.
Segurouomeninopelos ombros e o afastouumpoucode si.Observou-o, cara a
cara, indignada com que aqueles olhinhos azuis, inchados e vermelhos, resistissem
com tanta limpidez à suamirada carregada de reprimendas. Seria possível que ele
fosse tão cínico?Aindanãohavianemchegado à adolescência.Deque jeitopodia
falardarupturaentreelaeRigobertocomodealgoalheio,comosenãotivessesido
eleacausadoacontecido?Nãotinhaarmado,a nal,paraqueRigobertodescobrisse
todooenredo?Orostinhoarrasadopelaslágrimas,ostraçosdesenhadosapincel,os
lábios rosados, as pestanas recurvadas, o queixinho rme encaravam-na com
inocênciavirginal.
— Você sabe melhor do que ninguém o que aconteceu — disse a senhora
Lucrecia, entre dentes, tentando evitar que sua indignação transbordasse em uma
explosão.—Sabemuitobemporqueeueelenosseparamos.Nãomevenhabancar
omeninobonzinho, a igidopor essa separação.Você teve tanta culpaquanto eu,
talvezatémaisdoqueeu.
—Porissomesmo,madrasta—cortou-lheapalavraFonchito.—Eu zvocês
brigarem,eporissomecabeareconciliação.Masvocêtemquemeajudar.Vaifazer
isso,nãoé?Digaquesim,madrasta.
DonaLucrecianãosabiaoqueresponder;queriaesbofeteá-loebeijá-lo.Sentiaas
faces acaloradas. Para culminar, o sem-vergonha do Fonchito, em nova mudança
bruscadeânimo,agorapareciacontente.Subitamente,soltouumagargalhada.
—Vocêcorou—disse,jogando-lheoutravezosbraçosaopescoço.—Então,a
respostaésim.Gostomuitodevocê,madrasta!
—Primeiro lágrimas,eagora riso—disse Justiniana,aparecendonocorredor.
—Pode-sesaberoqueestáacontecendoaqui?
—Temosumagrandenotícia—acolheu-aomenino.—Vamoscontaraela,
madrasta?
—Não é Rigoberto, mas você, quem está de parafuso frouxo— disse dona
Lucrecia,dissimulandoosufoco.
—VaiverqueVênustambémmecontagioucomsí lis—gracejouFonchito,
virandoosolhos.E,nomesmotom,àempregada:—Opapaieamadrastavãofazer
aspazes,Justita!Oqueachadanovidade?
Diatribe contra o desportista
ConstatoqueosenhorsurfanasondasencrespadasdoPací coduranteoverão,no
invernodeslizadeesquinaspistaschilenasdePortilloenasargentinasdeBariloche
(jáqueosAndesperuanosnãopermitemessasveadagens),transpiratodasasmanhãs
noginásio fazendoaeróbica,oucorrendoempistasdeatletismo,ouemparquese
ruas, metido nummacacão térmico que lhe franze o cu e a barriga tal como os
corpetes de antanho as xiavam nossas avós, e não perde uma partida da seleção
nacional, nem o clássico Alianza Lima versus Universitario de Deportes, nem
campeonatodeboxepelo título sul-americano, latino-americano,norte-americano,
europeu ou mundial, ocasiões em que, pregado diante da tela do televisor e
amenizandooespetáculocomgolesdecerveja,cuba-libreouuísqueontherocks, seesganiça,secongestiona,uiva,gesticulaousedeprimecomasvitóriasouderrotasdos
seusídolos,comocabeaotorcedordecarteirinha.Razõesdesobra,cavalheiro,para
queeucon rmeminhaspioressuspeitassobreomundoemquevivemoseconsidere
osenhorumdescerebrado,umcretino,umsubnormal.(Usooprimeiroeoterceiro
termoscomometáforas;odomeio,emsentidoliteral.)
Sim,efetivamente,emseuatro adointelectofez-sealuz:consideroapráticados
esportes emgeral eo culto àpráticade esportes emparticular formas extremasda
imbecilidade,queaproximamoserhumanodocarneiro,dosgansoseda formiga,
três instâncias agravadasdogregarismoanimal.Acalme suas ânsiasdepraticantede
lutalivrepormetriturareescute,falaremosdosgregosedohipócritamens sana incorporesanodaquiapouco.Antes,devodizer-lhequeosúnicosesportesqueeuliberodopelourinho sãoosdemesa (excluídoopingue-pongue) eosde cama (incluída,
claro,amasturbação).Quantoaosoutros,aculturacontemporâneaostransformou
emobstáculosparaodesenvolvimentodoespírito,dasensibilidadeedaimaginação
(e, portanto, doprazer).Mas, sobretudo, da consciência e da liberdade individual.
Nada contribuiu tanto nestes tempos,mais ainda do que as ideologias e religiões,
parapromoverodesprezívelhomem-massa, esse robôde re exoscondicionados, e
paraaressurreiçãodaculturadoprimatadetatuagemetapa-sexo,emboscadoatrás
da fachada da modernidade, quanto a divinização dos exercícios e jogos físicos
operadapelasociedadedosnossosdias.
Agora,podemosfalardosgregos,paraqueosenhornãomeenchamaisosaco
com Platão e Aristóteles. Mas, previno-o, o espetáculo dos efebos atenienses
lambuzando-secomunguentosnoGymnasiumantesdemedirsuadestrezafísica,ou
lançandoodiscoeodardosobopuríssimoazuldocéugrego,nãoviráajudá-lo,e
simafundá-loaindamaisnaignomínia,prezadobobalhãodemúsculosendurecidos
às custas de seu caudal de testosterona e do desabamento do seuQI. Somente os
chutesdo futebolouos socosdoboxe,ouaindaas rodasautistasdociclismo,ea
prematura demência senil (além do de nhamento sexual, da incontinência e da
impotência)queeles costumamprovocar, explicamapretensãodeestabeleceruma
linhadecontinuidadeentreosentunicadosfedrosdePlatãountando-secomresinas,
depois de suas sensuais e losó cas demonstrações físicas, e as hordas ébrias que
rugemnasarquibancadasdosestádiosmodernos (antesde incendiá-las)porocasião
das partidas de futebol contemporâneas, nas quais vinte e dois palhaços
desindividualizadosporuniformesdecoresespalhafatosas,agitando-senoretângulo
de grama atrás de uma bola, servem de pretexto para exibicionismos de
irracionalidadecoletiva.
O esporte,na épocadePlatão, eraummeio,nãoum m, comovoltou a ser
nestestemposmunicipalizadosdavida.Serviaparaenriqueceroprazerdoshumanos
(omasculino,poisasmulheresnãoopraticavam),estimulando-oeprolongando-o
com a representação de um corpo formoso, tenso, esguio, proporcionado e
harmonioso,eincitando-ocomacalisteniapré-eróticadeunsmovimentos,posturas,
roçadelas,exibiçõescorporais,exercícios,danças,toques,quein amavamosdesejos
atécatapultarparticipanteseespectadoresaoacoplamento.Queessesdesejosfossem
eminentementehomossexuaisnãoacrescentanemsuprimeumasóvírgulaàminha
argumentação, como tampouco que, no domínio do sexo, o subscritor seja
tediosamente ortodoxo e só ame asmulheres— de resto,uma únicamulher—,
totalmente inapetente para a pederastia ativa ou passiva. Entenda-me, não tenho
nenhumaobjeçãoaoquefazemosgays.Celebroqueestejambemeosapoioemsuas
campanhascontraasleisqueosdiscriminam.Nãopossoacompanhá-losmaisalém,
porumaquestãoprática.Nadarelativoaoquevedesco“olhodocu”mediverte.A
Natureza, ouDeus, se existe eperde seu tempo comessas coisas, fezdesse secreto
anilhooorifíciomaissensíveldetodososquemeperfuram.Osupositórioofereea
cânula do clister o ensanguenta (uma vez me foi introduzida, em período de
constipaçãopertinaz,efoiterrível),demodoqueaideiadeexistirembípedesquese
entretêm com alojar ali um cilindro viril me produz uma apavorada admiração.
Tenho certeza de que, no meu caso, além dos gritos, eu experimentaria um
verdadeirocataclismopsicossomáticocomainserção,nodelicadocondutoempauta,
deumavergaviva,mesmosendoestadepigmeu.Oúnicosocoquedeinaminha
vidarecebeu-oummédicoque,semprevenir-meesobopretextodeaveriguarseeu
tinha apendicite, tentou sobre minha pessoa uma tortura camu ada pela etiqueta
cientí ca de “toque retal”. Apesar disso, sou teoricamente favorável a que os seres
humanos façam amor pelo direito ou pelo avesso, sozinhos ou em duplas ou em
promíscuos contubérnios coletivos (eca!), a que homens copulem com homens,
mulheres commulheres e ambos com patos, cachorros, melancias, bananeiras ou
melões,emsuma,souteoricamentefavorávelatodasasasquerosidadesimagináveis,
sepraticadasdecomumacordoeembuscadoprazer,nãodareprodução,acidente
dosexoaoqualconvémresignar-secomoaummalmenor,masquedenenhuma
maneira se deve santi car como justi cação da festa carnal (esta imbecilidade da
Igreja me exaspera tanto quanto uma partida de basquete). Voltando à vaca-fria,
comove-me aquela imagem dos velhotes helênicos, sábios lósofos, augustos
legisladores, aguerridos generais ou sumos sacerdotes indo aos ginásios para
desintumescer sua libido com a visão dos jovens lançadores de disco, lutadores,
maratonistas ou arremessadores de dardos. Esse gênero de esporte, alcoviteiro do
desejo,euoindultoenãovacilariaempraticá-lo,seminhasaúde,minhaidade,meu
sensodoridículoeminhadisponibilidadedetempoopermitissem.
Háoutrocaso,maisremotoaindaparanossoâmbitocultural (nãoseiporque
incluoosenhornestaconfraria, jáque,à forçadechutesecabeçadas futebolísticas,
suores ciclísticos ou rasteiras de carateca, excluiu-se dela), no qual o esporte tem
também certa desculpa. Quando, praticando-o, o ser humano transcende sua
condiçãoanimal,a oraosagradoeseelevaaumplanodeintensaespiritualidade.Se
zerquestãodequeusemosaarriscadapalavra“mística”,queseja.Obviamente,esses
casos,jámuitoraros,dosquaiséexóticareminiscênciaosacri cadolutadordesumô
japonês,cevadodesdecriancinhacomumaferozsopavegetarianaqueoelefantizaeo
condenaamorrer comocoraçãoarrebentadoantesdosquarenta, e apassar a vida
tentando não ser expulso por outra montanha de carne como ele para fora do
pequeno círculomágicoonde está con nada sua vida, são inassimiláveis aosdesses
ídolosdepacotilhaquea sociedadepós-industrialdenomina“mártiresdoesporte”.
Ondeestáoheroísmoemvirarcanjicaaovolantedeumbólidocommotoresque
fazem o trabalho em vez do homem, ou em retroceder de ser pensante a débil
mental,commiolosetestículosencolhidospelapráticadeatalharoufazergolspor
empreitada,paraquemultidõesinsanassedessexualizemcomejaculaçõesdeegolatria
coletivista a cada tentomarcado?Asatividades e aptidões físicas chamadas esportes
nãoaproximamohomematualdosagradoedoreligioso,afastam-nodoespíritoeo
embrutecem,saciandoseusinstintosmaisignóbeis:avocaçãotribal,omachismo,a
vontadededomínio,adissoluçãodoeuindividualnoamorfogregário.
Não conheço mentira mais abjeta do que a expressão com que se aliciam as
crianças: “Mente sã em corpo são.” Quem disse que umamente sã é um ideal
desejável? “Sã” quer dizer, neste caso, tola, convencional, sem imaginação e sem
malícia, arrebanhada pelos estereótipos da moral estabelecida e da religião o cial.
Mente “sã”, isso? Mente conformista, de beata, de tabelião, de securitário, de
coroinha,devirgemedeescoteiro.Issonãoésaúde,étara.Umavidamentalricae
própriaexigecuriosidade,malícia,fantasiaedesejosinsatisfeitos,istoé,umamente
“suja”,maus pensamentos, oração de imagens proibidas, apetites que induzam a
explorar o desconhecido e a renovar o conhecido, desacatos sistemáticos às ideias
herdadas,aosconhecimentosmanipuladoseaosvaloresemvoga.
Dito isso, tampouco é certo que a prática dos esportes em nossa época crie
mentes sãs no sentido banal do termo. Ocorre o contrário, e, melhor do que
ninguém, disso sabes tu, que, para vencer os cem metros rasos do domingo,
colocarias arsênico e cianureto na sopa do teu competidor e tragarias todos os
estupefacientes vegetais, químicos ou mágicos que te garantissem a vitória, e
corromperiasosárbitrosouoschantagearias,urdiriasconspiraçõesmédicasoulegais
quedesquali cassemteusadversários,equevivesneurotizadopela xaçãonavitória,
norecorde,namedalha,nopódio,algoquefezdeti,desportistapro ssional,uma
bestamidiática,umantissocial,umneurótico,umhistérico,umpsicopata,nopolo
opostodessesersociável,generoso,altruísta,“são”,aquempretendealudiroimbecil
queaindaseatreveaempregaraexpressão“espíritoesportivo”nosentidodenobre
atletacheiodevirtudescivis,quandooqueseacaçapaatrásdelaéumassassinoem
potencialdispostoaexterminarárbitros,atransformaremtorresmoosfanáticosda
outra equipe, a devastar os estádios e cidades que os albergam e a provocar o
apocalíptico nal,semsequeroelevadopropósitoartísticoquepresidiuoincêndio
deRomapelopoetaNero,mas sóparaque seu clube empunheuma taçade falsa
prataouparaverseusonzeídolosencarapitadosemumpódio, amantesderidículo
em seus calções e camisetas listradas, as mãos no peito e os olhos encandeados,
entoandoumhinonacional!
Os irmãos corsos
Natardemodorrentadaqueledomingodeinverno,emseuescritóriodiantedocéu
nublado e domar opaco, don Rigoberto folheou ansiosamente seus cadernos em
buscadeideiasqueatiçassemsuaimaginação.Aprimeiracomquetopou,Sexistoogoodto sharewithanyoneelse,dopoetaPhilipLarkin,recordou-lhemuitasversões
plásticas do jovem Narciso, deleitando-se com sua imagem re etida na água do
poço,eohermafroditaadormecidodoLouvre.Mas,inexplicavelmente,odeprimiu.
Havia topado outras vezes com essa loso a que depositava exclusivamente sobre
seusombrosaresponsabilidadedoseuprazer.Seriacorreta?Teriasidoalgumdia?Na
verdade, mesmo em seus momentos mais puros, sua solidão tinha sido um
desdobramento,umencontroaoqualLucrecianuncafaltara.Umdébildespertardo
ânimo fez renascer a esperança: ela tampouco faltaria desta vez. A tese de Larkin
convinha,comoanelaodedo,aosanto(outrapáginadocaderno)dequemLytton
Strachey falava emEminentVictorians,SãoCuthbert,oqualdescon ava tantodas
mulheres que, quando conversava com elas, inclusive com a futura Santa Ebba,
passava “em oração as seguintes horas de sombra, submergido em água até o
pescoço”.Quantosresfriadosepneumoniasporumaféquecondenavaocrenteao
larkinianoprazersolitário!
Passou como sobre brasas por uma página em que Azorín recordava que
“capricho vem de cabra”. Fascinado, deteve-se na descrição, feita pelo diplomata
AlfonsodelaSerna,daSinfoniadosadeusesdeHaydn,“naqualcadamúsico,quando
acaba suapartitura,apagaavelaque ilumina seuatril e sevai, atéque resta sóum
violino,tocandosuasolitáriamelodia nal”.Nãoeraumacoincidência?Nãocasava
de maneira misteriosa, como que se dobrando a uma ordem secreta, o violino
monologantedeHaydncomoegoístaprazenteiro,PhilipLarkin,paraquemosexo
eraimportantedemaisparasercompartilhado?
Ele, contudo, embora situasse o sexo no mais alto posto, sempre o
compartilhara,mesmoemseuperíododemais ácida solidão: este.Amemória lhe
trouxe àmente, sem rima nem razão, o atorDouglas Fairbanks, duplicado numa
película que inquietara sua infância:Os irmãos corsos. Claro, nunca havia
compartilhadoosexocomninguémdemaneiratãoessencialquantocomLucrecia.
Tinha-o compartilhado também, quando criança, adolescente e adulto, com seu
próprioirmãocorso,Narciso?,comquemsempreseentendera,emborafossemtão
diferentesemespírito.Masessesjogosebrincadeiraspicantes,tramadosedesfrutados
pelos irmãos, não correspondiam ao sentido irônico em que o poeta-bibliotecário
utilizava o verbo compartilhar. Folheando, folheando, caiu emO mercador deVeneza:
ThemanthathathnomusicinhimselfNorisnotmovedwithconcordofsweetsounds,Isfitfortreasons,stratagems,andspoils.
(AtoV,cenaI)
“O homem que não traz música em si mesmo/ Nem se emociona com o
encadeamento de doces sons/ É propenso à intriga, à fraude e à traição”, traduziu
livremente.Narcisonãotraziaemsinenhumamúsica,erafechadodecorpoealma
aosfeitiçosdeMelpômene,incapazdedistinguiraSinfoniadosadeusesdeHaydndo
Mambonúmero5dePérezPrado.TeriarazãoShakespeare,quandolegislavaqueessasurdezparaamaisabstratadasartesfaziadeleumpotencialenredador,trapaceiroe
fraudulentobípede?Bom,talvezfosseverdade.OsimpáticoNarcisonãotinhasido
ummodelo de virtudes cívicas, privadas ou teologais, e chegara à idade provecta
jactando-se,comoobispoHaroldo(dequemeraacitação?Areferênciahaviasido
devoradapelasibilinaumidade limenhaoupelasofreguidãodeumatraça),emseu
leitodemorte,deterpraticadotodososvícioscapitaistãoassiduamentequantoseu
pulso latejava e os sinos do seu bispado repicavam. Se não fosse de tal disposição
moral, jamais teria ousado propor, naquela noite, ao seu irmão corso — don
Rigoberto sentiu que em seu foro íntimodespertava aquelamúsica shakespeariana
queele,sim,acreditavatrazerconsigo—,otemeráriointercâmbio.Anteseusolhos
desenharam-se,sentadasumajuntoàoutra,naquelasalinhamonumentoaokitsch eblasfemaprovocaçãoàs sociedadesprotetorasdeanimais, eriçadade tigres,búfalos,
ursos, rinocerontesecervosembalsamadosdacasadeLaPlanicie,Lucreciae Ilse,a
louraesposadeNarciso,nanoitedaaventura.OBardotinharazão:asurdezparaa
músicaera sintoma(causa,quemsabe?)devilezadaalma.Não, issonãopodia ser
generalizado; porque, assim, seria preciso concluir que Jorge Luis Borges e André
Breton,porsuainsensibilidademusical,foramJudaseCaim,quandoerasabidoque
amboshaviamsido,paraescritores,boníssimaspessoas.
Seu irmão Narciso não era um demônio; aventureiro, e só. Dotado de uma
endiabradahabilidadeparatirardesuavocaçãotransumanteedesuacuriosidadepelo
proibido, o secreto e o exótico, um grande partido crematístico. Mas, como era
mitômano,nãoerafácildistinguirentreverdadeefantasianasperipéciascomqueele
costumavamanterenfeitiçadoseuauditório,nahora(sinistra)dojantardegala,da
festadecasamentooudocoquetel,cenáriosdesuasgrandesperformancesnarrativas.
Porexemplo,donRigobertonuncaacreditaradetodoqueeletivesseamealhadoboa
parte de sua fortuna contrabandeando, para os países prósperos daÁsia, chifres de
rinoceronte, testículos de tigre e pênis de morsas e focas (os dois primeiros
procedentesdaÁfrica,osdoisúltimosdoAlasca,daGroenlândiaedoCanadá).Esses
revestimentoserampagosapreçodeouroemlugarescomoTailândia,HongKong,
Taiwan, Coreia, Cingapura, Japão, Malásia e até na China comunista, pois os
conhecedores os tinham por poderosos afrodisíacos e remédios infalíveis contra a
impotência. Justamente, naquela noite, enquanto os irmãos corsos e as duas
cunhadas,IlseeLucrecia,tomavamoaperitivo,antesdojantar,naquelerestaurante
da Costa Verde, Narciso os entretivera contando uma disparatada história de
afrodisíacos da qual tinha sido herói e vítima, na Arábia Saudita, onde jurava—
detalhesgeográ cos e irreteníveisnomes árabes cheiosde jotas comocomprovação
—terestadoprestesaserdecapitadonapraçapúblicadeRiad,quandosedescobrira
que ele contrabandeava uma maleta de comprimidos de Captagon (fenicilina
hidroclorídrica) para manter a potência sexual do luxurioso xeque Abdelaziz Abu
Amid, a quem as quatro esposas legítimas e as oitenta e duas concubinas do seu
harémmantinhamumtantofatigado.Oxequelhepagavaemouroocarregamento
deanfetaminas.
— E ayobimbina? — perguntou Ilse, interrompendo a narrativa do marido,
justamentenomomentoemqueelecompareciaanteumtribunaldeenturbantados
ulemás.—Produzmesmoesseefeitoquedizem,emtodasaspessoas?
Semperdadetempo,seubem-apessoadoirmão—semumpingodeinveja,don
Rigoberto rememorou como, após terem sido indiferenciáveis quando crianças e
jovens,aidadeadultaosforadistinguindo,e,agora,asorelhasdeNarcisopareciam
normais secomparadascomosespetacularesabanosqueoadornavam,eonariz se
mostrava reto e modesto quando cotejado com o saca-rolhas ou a tromba de
tamanduá comque ele olfateava a vida— lançou-se auma erudita arenga sobre a
ioimbina (chamadayobimbina no Peru por causa da preguiçosa tendência fonéticadosnativos, aquemoagáaspiradodeyohimbinadavamais trabalhobucaldoque
umbê).OdiscursodeNarcisodurouoaperitivo—piscosour para os cavalheiros,vinhobranco geladopara as damas—,o arroz commariscos e as panquecas com
manjar-brancodojantar,eteve,noqueaeleconcernia,oefeitodeumacomichante
ansiedadepré-sexual.Nessemomento,caprichosdoacaso,ocadernolhedeparoua
indicaçãoshakespearianadequeaspedrasturquesasmudamdecorparaalertarquem
asusasobreumperigoiminente(OmercadordeVeneza ,outravez).Narciso falavasério,sabiaouinventavaessaciência,comaintençãodecriaroambientepsicológico
e a amoralidadepropícios à sugestãoque fariamais tarde?Não lheperguntara isso
nemofaria,pois,aestaaltura,oqueimportava?
DonRigobertocomeçouarir,eagrisalhadatardeamainou.OMonsieurTeste,
de Valéry, jactava-se ao pé dessa página: “A estupidez não combina comigo” ( Labêtise n’est pasmon fort). Sorte dele; donRigoberto, na companhia de seguros, já
havia passadoumquartode século rodeado, submergido, as xiadopela estupidez,
até transformar-se emum especialista. SeriaNarciso ummero imbecil?Mais um,
naquele protoplasma limenho autodenominado gente decente? Sim.O que não o
impedia de ser ameno, quando a isso se propunha.Nessanoite, por exemplo.Ali
estavaograndemaçante,rostobemrasuradoetezbronzeadapeloócio,explicandoo
alcaloide de um arbusto, “iobimbina”, também chamado ioimbina, de ilustre
progênienatradiçãoherboristaenamedicinanatural.Aumentavaavasodilataçãoe
estimulava os gânglios que controlam o tecido erétil, e inibia a serotonina, cujo
excessobloqueiaoapetitesexual.Suacálidavozdesedutorveteranoeseusademanes
combinavam com o blazer azul, a camisa cinza e o lencinho de seda escuro, de
bolinhas brancas, enrolado no pescoço. Sua exposição, intercalada de sorrisos,
mantinha-se no astuto limite entre a informação e a insinuação, a anedota e a
fantasia, a sabedoria e a trivialidade, a diversão e a excitação. Don Rigoberto
percebeu, de repente, que os olhos verde-marinhode Ilse e os escuros topázios de
Lucrecia cintilavam. Teria, seu sabichão irmão corso, perturbado as senhoras? A
julgar pelos risinhos delas, por seus chistes e perguntas, seu cruzar e descruzar de
pernas,pelaalegriacomqueesvaziavamoscoposdevinhochilenoConchayToro,
tinha,sim.Porqueasduasnãoexperimentariamomesmodeslizedeânimoqueele?
Narcisojáteria,aessaalturadanoite,seuplanoarmado?Comcerteza,decretoudon
Rigoberto.
Por isso, destramente, não lhes dava respiro nem permitia que a conversa se
afastassedomaquiavélico rumo traçadopor ele.Da ioimbinapassou adescrevero
fugu japonês, uidotesticulardeumpeixinhoque,alémdeserumtônicoseminal
poderosíssimo, pode produzir uma morte atroz, por envenenamento — assim
perecemacadaanocentenasdelibidinososjaponeses—,eareferirosuorfriocom
queoprovou,naquelanoiteirisadadeKyoto,dasmãosdeumagueixaemquimono
volátil,semsaberseaotérminodaquelesbocadosanódinosoesperavamosestertores
eorigormortisoucemexplosõesdeprazer(foiasegundahipótese,reduzidaemum
zero).Ilse,louraescultural,ex-aeromoçadaLufthansa,acriouladavalquíria,aplaudia
seumaridosemciúmeretrospectivo.Foielaquempropôs(cúmplice,talvez?),depois
dafarinhentasobremesa,queterminassemanoitetomandoumdrinqueemsuacasa
deLaPlanicie.DonRigobertodisse“boaideia”,semavaliaraproposta,contagiado
peloentusiasmovisualcomqueLucreciaaacolheu.
Meia hora depois, viram-se instalados nas confortáveis poltronas do pavoroso
salãokitschdeNarcisoeIlse—cafoniceperuanaeordemprussiana—,rodeadosde
bichosdissecadosqueobservavam,impávidos,comgeladosolhosdevidro,osquatro
bebendo uísque, banhados por uma luz indireta, ouvindomelodias de Nat King
Cole e Frank Sinatra e contemplando, pela vidraça que dava para o jardim, os
azulejos da piscina iluminada.Narciso continuava exibindo sua cultura afrodisíaca
comafacilidadecomqueoGranRichardi—donRigobertosuspirou,recordandoo
circo da infância — puxava lencinhos de sua cartola. Mesclando onisciência e
exotismo, assegurou que no sul da Itália cada varão consumia uma tonelada de
manjericão ao longo da vida, pois a tradição assegura que dessa erva aromática
depende, além do bom sabor dos talharins, o tamanho do pênis, e que na Índia
vendia-se nos mercados um unguento — ele o presenteava aos amigos que
completavamcinquentaanos—àbasedealhoeremelademacacoque,esfregadono
lugarcabível,provocavaereçõesemsérie,comoespirrosdealérgico.Assoberbando-
os,ponderouasvirtudesdasostras,doaipo,docoreanoginseng,dasalsaparrilha,do
alcaçuz,dopólen,dastrufasedocaviar, levandodonRigobertoasuspeitar,depois
deescutá-lopormaisdetrêshoras,dequeprovavelmentetodososprodutosanimais
e vegetais domundo estavam concebidos para favorecer esse entrevero dos corpos
chamado amor físico, cópula, pecado, ao qual os humanos (ele não se excluía)
concediamtantaimportância.
Nessemomento,Narciso o afastou das damas, tomando-o pelo braço, sob o
pretexto de lhemostrar a últimapeça de sua coleção de bengalas (que outra coisa
poderia colecionar, além de feras embalsamadas, essa besta priápica, esse falo
ambulante,senãobengalas?).Opiscosour,ovinhoeoconhaquehaviamobtidoseu
efeito.Emvezdecaminhar,donRigobertonavegouatéoescritóriodeNarciso,em
cujas estantes, claro, montavam guarda, não abertos, os encadernados volumes da
EncyclopædiaBritannica, asTradiciones peruanas de Ricardo Palma e aHistória dacivilização do casal Durant, além de um romance de bolso de Stephen King. De
chofre, baixando a voz,Narciso lhe perguntou ao ouvido se ele recordava aquelas
longínquaspicardiascomasmoças,naplateiadocinemaLeuro.Quais?Mas,antes
queseuirmãorespondesse,lembrou-se.Ostroca-trocas!Oadvogadodacompanhia
iria de ni-los: usurpação de identidade.Aproveitando a semelhança e reforçando-a
comidênticostrajesepenteados,faziam-sepassarumpelooutro.Assim,beijavame
acariciavam—“tirarsarro”,dizia-seentão—anamoradaalheia,enquantoduravao
filme.
—Quetempos,irmão—sorriudonRigoberto,entregueànostalgia.
—Você achava que elas não se davam conta e nos confundiam— recordou
Narciso.—Nuncaoconvencidequetopavam,sim,porqueojoguinhoasdivertia.
—Não, não se davam conta— a rmou Rigoberto.—Nunca deixariam. A
moral da época não o permitia. Lucerito e Chinchilla?Tão formaizinhas, tão de
missaecomunhão,nunca!Iriamnosdenunciaraosseuspais.
—Vocêtemumconceitoexcessivamenteangelicaldasmulheres—admoestou-
oNarciso.
—Éoquelheparece.Aquestãoéqueeusoudiscreto,enãocomovocê.Mas
cadaminutoquenãodedico àsobrigaçõesquemedãode-comer, euo invistono
prazer.
(Nessemomento,ocadernolhepresenteouumacitaçãopropícia,deBorges:“O
deverdetodasascoisaséserumafelicidade;senãoforemumafelicidade,sãoinúteis
ouprejudiciais.”AdonRigobertoocorreuumaanotaçãomachista:“Ese,emvezde
coisas,puséssemosmulheres,comoficaríamos?”)
—Vidasóexisteuma,irmão.Vocênãoteráumasegundaoportunidade.
—Depoisdessasmatinês,íamosàzonaemHuatica,aoquarteirãodasfrancesas
— devaneou don Rigoberto. — Tempos sem aids, de inofensivos piolhos-das-
virilhaseumaououtrasimpáticagonorreia.
— Não acabaram. Continuam presentes — a rmou Narciso. — Nós não
morremosnemvamosmorrer.Éumadecisãoirrevogável.
Seusolhoschamejavam, suavozerapastosa.DonRigobertocompreendeuque
nadadoqueouviaeraimprovisado;que,portrásdessasastutasevocações,haviauma
conspiração.
—Quermedizeroqueestátramando?—perguntou,curioso.
—Vocêsabedesobra,irmãozinhocorso—disseoloboferoz,aproximandoa
boca da orelha adejante de don Rigoberto. E, sem mais delongas, formulou sua
proposta: — O troca-troca. Mais uma vez. Hoje mesmo, agora mesmo, aqui
mesmo. Ilse não lhe agrada? Lucre, a mim, muitíssimo. Como com Lucerito e
Chinchilla. Por acaso poderia haver ciúme, entre nós dois? Vamos rejuvenescer,
irmão!
Nasolidãodominical,ocoraçãodedonRigobertoseacelerou.Desurpresa,de
emoção,decuriosidade,deexcitação?E,comonaquelanoite,elesentiuaurgênciade
matarNarciso.
— Já estamos velhos e somosmuito diferentes para que nossasmulheres nos
confundam—articulou,bêbadoeatordoado.
—Nãoénecessárioquenosconfundam—retrucouNarciso,muitosegurode
si. — São mulheres modernas, não precisam de pretextos. Eu cuido de tudo,
malandro.
“Nuncadenúncaraseuvoubrincardetroca-trocanaminhaidade”,pensoudon
Rigoberto, sem abrir a boca. A assomante carraspana de pouco antes se dissipara.
Caramba! Narciso, sim, é que era resoluto. Já o agarrava pelo braço e o trazia
rapidamente de volta ao salão das feras empalhadas, onde, em cordialíssima
fofocagem, Ilse e Lucrecia despedaçavam uma amiga comum a quem um recente
liftingdeixaracomosolhosabertosatéaeternidade(ou,pelomenos,atéacovaoua
cremação). E já estava anunciando que chegara o momento de abrir um Don
Pérignonreservaespecial,guardadoparaocasiõesextraordinárias.
Minutosdepois,ouviamoestouroespumanteejábrindavamosquatrocomessa
pálidaambrosia.Asbolhasquelhedesciampeloesôfagoprecipitavamnoespíritode
donRigobertoumaassociaçãocomotemaquehaviamonopolizadoseuirmãocorso
portodaanoite:Narcisoteria incrementadooalegrechampanhequebebiamcom
um daqueles inumeráveis afrodisíacos dos quais se dizia contrabandista e perito?
Porque os risos e a desenvoltura de Lucrecia e Ilse aumentavam, propiciando
audácias, e ele mesmo, que cinco minutos antes se sentia paralisado, confuso,
assustado e revoltado comaproposta—contudo,não se atrevera a rechaçá-la—,
agora a encarava commenos indignação, comoumadaquelas irresistíveis tentações
que o incitavam, em sua juventude católica, a cometer os pecadilhos que, depois,
descreviacontritonapenumbradoconfessionário.Entrenuvenzinhasdefumaça—
eraseuirmãocorsoquemfumava?—,viu,cruzadas,entreosferoscolmilhosdeum
felinoamazônicoedestacando-sesobreotapetetigradodasala-zoológico-funerária,
aslongas,brancasedepiladaspernasdesuacunhada.Aexcitaçãosemanifestoucom
umadiscretacomichãonabocadoventre.Via-lhe tambémos joelhos, redondose
acetinados, daqueles que a galanteria francesa chamava de polis, anunciando umas
profundidadesmaciças,semdúvidaúmidas,sobaquelasaiaplissadadecorcastanho-
avermelhada.O desejo o percorreu de alto a baixo. Assombrado consigomesmo,
pensou: “A nal, por que não?” Narciso havia tirado Lucrecia para dançar e,
enlaçados, os dois começavam a menear-se, devagarinho, junto à parede artilhada
comgalhadurasdecervosecabeçasdeursos.Ociúmeacudiuparatemperarcomum
sabor agridoce (não para substituir nem destruir) seus maus pensamentos. Sem
vacilar,eleseinclinou,pegoueretirouataçaqueIlsesegurava,eatraiu-a:“Querser
meupar,cunhadinha?”Seuirmão,éclaro,haviapostoumasucessãodebolerosque
induziamadançaragarradinho.
Sentiuumapontadanocoraçãoquando,porentreoscabelosdavalquíria,notou
queseuirmãocorsoeLucreciaevoluíamfacecontraface.Elelheenvolviaacinturae
ela,opescoçodele.Desdequando,essascon anças?Emdezanosdecasamento,não
recordava nada parecido. Sim, o malé co do Narciso devia ter incrementado as
bebidas.Enquantoseperdiaemconjeturas,comobraçodireito foraaproximando
doseuocorpodacunhada.Estanãoresistia.Quandosentiuemsuascoxasoroçar
das dela e os ventres se tocaram, don Rigoberto disse a si mesmo, não sem
inquietude,quejánadanemninguémpoderiaevitaraereçãoquelhevinha.Eveio,
de fato,nomesmomomentoemque sentiuna suaabochechade Ilse.O mda
músicalheprovocouoefeitodogongoemumaimpiedosalutadeboxe.“Obrigado,
belíssimaBrunegilda”,disse,beijandoamãodacunhada.E,tropeçandoemcabeças
carniceiras recheadas de estuque oupapier mâché, avançou até onde estavam se
desenlaçando—comrepulsa,cominapetência?—LucreciaeNarciso.Tomounos
braçossuamulher,murmurando,ácido:“Meconcedeestadança,esposa?”Levou-a
atéocantomaisescurodasala.ViupelorabodoolhoqueNarcisoeIlsetambémse
enlaçavameque,emummovimentoharmonizado,começavamasebeijar.
Estreitandocomforçaocorposuspeitamentelânguidodesuamulher,percebeu
quesuaereçãorenascia;agora,elesegrudavasemmelindresaessaformaconhecida.
Lábioscontralábios,sussurrou:
—SabeoqueNarcisomepropôs?
— Posso imaginar — retrucou Lucrecia, com uma naturalidade que
desconcertoudonRigoberto,aindamaisporqueemseguidaelausouumverboque
nenhumdosdoishaviajamaisproferidonaintimidadeconjugal:—Quevocêtrepe
comIlse,enquantoeletrepacomigo?
Teve ímpetos demachucá-la; mas, em vez disso, beijou-a, assaltado por uma
daquelasapaixonadasefusõesàsquaiscostumavaserender.Dilacerado,sentindoque
podiacomeçarachorar, sussurrouqueaamava,queadesejava,quenuncapoderia
agradecer a felicidade que lhe devia. “Sim, sim, eu amo você”, disse em voz alta.
“Com todos os meus sonhos, Lucrecia.” A grisalha do domingo barranquino se
atenuou, a solidão do escritório se amorteceu. Don Rigoberto notou que uma
lágrima se desprendera de sua face e manchara uma citação oportuníssima do
valeryano (valeriana e Valéry, que casamento feliz!) Monsieur Teste, que assim
de niasuaprópriarelaçãocomoamor:Toutcequim’étaitfacilem’étaitindifférentetpresqueennemi.
Antesqueatristezaseapoderassedeleeocálidosentimentodeuminstanteatrás
naufragasse de todo na corrosiva melancolia, fez um esforço e, entrecerrando os
olhos,forçandosuaatenção,voltouàquelasaladasferas,àquelanoiteadensadapela
fumaça—quemfumavaeraNarciso,Ilse?—,àsperigosasmisturas,aochampanhe,
ao conhaque, ao uísque, à música e ao relaxado clima que os envolvia, já não
divididos emdois casais estáveis, precisos, comono iníciodanoite, antes de irem
jantar no restaurante da Costa Verde, mas embaralhados, casais precários que se
desfaziamerefaziamcomumaligeirezaquecorrespondiaàquelaatmosferaamorfa,
cambiante como gura de caleidoscópio. Tinham apagado a luz? Fazia tempo.
Narciso,quemmais?Asaladasferasmortasestavatenuementeiluminadapelaluzda
piscina,quedeixavadivisarapenassombras,silhuetas,contornossemidentidade.Seu
irmão corso preparava bem as emboscadas. Corpo e espírito de don Rigoberto
haviam acabado por dissociar-se; enquanto este divagava, tentando averiguar se
chegaria às últimas consequências no jogo proposto porNarciso, aquele já jogava
comdesembaraço, emancipado de escrúpulos.A quem acariciava agora, enquanto,
simulandodançar,permaneciamexendo-seno lugar,comavaga sensaçãodequea
músicasilenciavaeserenovavaacadamomento?LucreciaouIlse?Nãoqueriasaber.
Que sensação prazerosa, esta forma feminina soldada a ele, cujos peitos sentia
deliciosamenteatravésdacamisa, eestepescoço tersoque seus lábiosmordiscavam
devagarinho,avançandoparaumaorelhacujacavidadeoápicedesualínguaexplorou
comavidez.Não,esteossinhooucartilagemnãoeradeLucrecia.Levantouacabeçae
tentou perfurar a semiescuridão do canto onde recordava ter visto, ummomento
antes,Narcisodançando.
—Faztempoquesubiram.—AvozdeIlseressoouemseuouvidoimprecisae
aborrecida.Eleatépôdedetectarumtomzombeteiro.
—Paraonde?—perguntouestupidamente, envergonhando-senamesmahora
desuaestupidez.
—Paraondevocêacha?—retrucouIlse,comumrisinhomalvadoeumhumor
alemão.—Veralua?Fazerxixi?Paraondevocêimagina,cunhadinho?
— Em Lima nunca se vê a lua— balbuciou don Rigoberto, soltando Ilse e
afastando-se.—Eosol,apenasnoverão.Porcausadamalditaneblina.
—Fazmuito tempo queNarciso deseja Lucre—disse Ilse, devolvendo-o ao
cavaletedossuplícios,semlhedarrespiro;falavacomoseoassuntonãofossecom
ela.—Nãomedigaquenãopercebeu,vocênãoétãolerdoassim.
A embriaguez se dissipou, e também a excitação. Ele começou a transpirar.
Mudo,atoleimado,perguntava-secomoerapossívelqueLucreciativesseconsentido
com tanta facilidade na maquinação do seu irmão corso, quando, outra vez, a
insidiosavozinhadeIlseosacudiu:
—Issolhedáumpouquinhodeciúme,Rigo?
—Bem, sim— reconheceu. E, commais franqueza:—Na realidade,muito
ciúme.
—Amimtambémdava,nocomeço—disseela,comoumabanalidadeamais,
nahoradobridge.—Masvocêseacostuma,eécomosevissechover.
—Bem,bem—disseele,desconcertado.—Ouseja,vocêeNarcisobrincam
muitodetroca-troca?
—Acadatrêsmeses—retrucouIlse,comprecisãoprussiana.—Nãoémuito.
Narciso diz que essas aventuras, para não perderem a graça, devem ser feitas de
quandoemquando.Semprecomgenteselecionada.Dizque,seforemtrivializadas,
jánãohádiversão.
“Ele já deve tê-la despido”, pensou don Rigoberto. “Talvez já a tenha nos
braços.” Lucrecia estaria beijando e acariciando seu irmão corso com a mesma
concupiscênciaqueestedemonstrava?DonRigobertotremiacomoumpossessoda
dançadesãoguidoquandorecebeu,comodescargaelétrica,umanovaperguntade
Ilse:
—Gostariadeverosdois?
Para lhefalar,elahaviaaproximadoorosto.Os lourosecompridoscabelosde
suacunhadametiam-seemsuabocaenosolhos.
—Sério?—murmurou,atônito.
—Gostaria?—insistiuela,roçando-lheaorelhacomoslábios.
—Sim,sim—assentiu,sentindo-sedesossadoeevaporado.
Ilse o tomou pela mão direita. “Devagarinho, caladinho”, instruía. Levou-o
utuando até a escada de volutas de ferro que conduzia aos dormitórios. Estava
escura,assimcomoocorredorcentral,emboraatéestechegassea luzdosre etores
do jardim. O carpete absorvia suas pisadas; avançavam nas pontas dos pés. Don
Rigobertosentiaseucoraçãoacelerado.Oqueoesperava?Oqueiaver?Suacunhada
sedeteveelhedeuoutraordemaoouvido,“Tireossapatos”,aomesmotempoem
queseinclinavaparasedescalçar.DonRigobertoobedeceu.Sentiu-seridículo,como
umladrão,semsapatosedemeias,naquelecorredorsombrio,conduzidopelamão
comose fosseFonchito.“Não faça ruído,arruinaria tudo”,disseela,baixinho.Ele
assentiu,comoumautômato.Ilseavançouumpoucomais,abriuumaportaeofez
adiantar-se. Estavam no dormitório, separados do leito por uma meia-parede de
tijolos, que, por seus interstícios em forma de losango, deixava ver a cama; era
larguíssimaeteatral.Naluzcônicaquedesciadeumalâmpadaembutidanoforro,
don Rigoberto viu seu irmão corso e Lucrecia, fundidos, movendo-se
compassadamente.Chegouatéeleosuaveedialoganteofegardosdois.
—Podesesentar—indicouIlse.—Aqui,napoltrona.
Elesedeixoulevar.Retrocedeuumpassoedeixou-secairjuntoàcunhadanoque
deviaserumcompridosofácheiodealmofadas,instaladodetalmodoqueapessoa
alisentadanãoperdesseumsódetalhedoespetáculo.Oquesigni cavaaquilo?Don
Rigobertodeixouescaparumrisinho:“Meu irmãocorsoémais rococódoqueeu
imaginei.”Suabocaestavaseca.
Pela superposição precisa e pelo encaixe perfeito, aquele casal parecia ter feito
amoravidainteira.Oscorposnuncasedesajustavam;emcadanovapostura,aperna,
ocotovelo,oombro,oquadrilcoincidiamaindamelhore,atodomomento,cada
umpareciaexprimirmaisreconditamenteseuprazerdooutro.Aliestavamasbelas
formas cheias, a ondulada cabeleira cor de azeviche de sua amada, as empinadas
nádegasquelembravamumgalhardopromontóriodesa andooassaltodeummar
bravio. “Não”, disse a simesmo.Assemelhavam-semais ao esplêndido traseiro da
belíssima fotogra aLaprière,deManRay(1930).Buscouemseuscadernose,em
poucosminutos,contemplavaaimagem.Sentiuumapertonocoração,aorecordar
asvezesemqueLucreciahaviaposadoassimparaelenaintimidadenoturna,sentada
sobre os calcanhares, as duas mãos sustentando as semiesferas das nádegas. A
comparaçãotambémnãodestoavadaoutraimagemdeManRayqueocadernolhe
ofereceu,contíguaàanterior,poisodorsomusicaldeKikideMontparnasse (1925)era,nemmaisnemmenos,oqueLucreciamostravanessemomento,aoinclinar-see
retorcer-se. As in exões profundas dos seus quadris o deixaram suspenso, ausente,
poralgunssegundos.Masosbraçospeludosquecercavamessecorpo,aspernasque
morti caramessascoxaseasafastavamnãoeramassuas,nemtampoucoacara—
elenãoconseguiadistinguirasfeiçõesdeNarciso—que,agora,percorriaodorsode
Lucrecia,perscrutando-omilímetro amilímetro, aboca entreaberta, indecisa sobre
ondepousar,oquebeijar.PelaaturdidacabeçadedonRigobertopassouaimagem
docasaldetrapezistasdocirco“Aságuiashumanas”,quevoavameseencontravam
no ar—executavam seunúmero sem rede—depois de fazerem acrobacias a dez
metros do solo. Igualmente destros, perfeitos, adequados um ao outro, eram
LucreciaeNarciso.Invadiu-oumsentimentotripartido(admiração,invejaeciúme),
e lágrimas sentimentais lhe rolaramdenovopelas faces.Notouque amãode Ilse
exploravaprofissionalmentesuabraguilha.
—Puxa,nadaexcitavocê—ouviu-asentenciar,sembaixaravoz.
DonRigobertopercebeuummovimentode surpresa, lána cama.Eles tinham
ouvido,semdúvida;jánãopoderiamcontinuarfingindoquenãosesabiamespiados.
Ficaramimóveis;oper ldedonaLucreciavirou-separaameia-paredevazadaqueos
resguardava,masNarcisovoltouabeijá-laeaenvolvê-lanalutaamorosa.
—Desculpe,Ilse—sussurrou.—Estoufrustrandovocê,quepena.Équeeu...
comodirei?,eusoumonógamo.Sópossofazeramorcomminhamulher.
—Claroqueé—riuIlse,comafeto,etãoaltoque,agorasim,lá,naluz,acara
despenteadadedonaLucreciaescapouaoabraçodoirmãocorsoedonRigobertoviu
osolhosdelamuitoabertos,dirigindo-seassustadosparaondeseencontravamelee
Ilse.—Igualao seu irmãozinhocorso,poisentão.Narciso sógostade fazeramor
comigo.Masprecisadepetiscos,aperitivos,preliminares.Elenãoétãosimplescomo
você.
ElariudenovoedonRigobertosentiu-aseafastar,fazendonosraloscabelosdele
umdaquelescarinhosqueasprofessorasconcedemàscriançasque seportambem.
Não acreditava nos próprios olhos: em quemomento Ilse se despira?Ali estavam
suas roupas sobre o sofá, e ali, ela, ginasta, nua dos pés à cabeça, fendendo a
penumbra em direção à cama, tal como suas remotas ancestrais, as valquírias,
fendiamosbosques, comcascosbipartidos,àcaçadourso,do tigreedohomem.
Nesseprecisoinstante,NarcisoseseparoudeLucrecia,deslizouparaocentroa m
de deixar um espaço— seu rosto denotava um contentamento indescritível— e
abriu os braços para receber Ilse, com um rugido bestial de aprovação. E ali se
encontravaagoraadesdenhada,aretraídaLucrecia,encolhendo-senooutroextremo
dacama,complenaconsciênciadeque,apartirdessemomento,estavasobrando,e
olhandoàdireitaeàesquerda, embuscadealguémque lheexplicasseoquedevia
fazer.DonRigobertosentiupena.Semdizerpalavra,chamou-a.Viu-alevantar-seda
camanaspontasdospés,a mdenãoperturbarosalegresesposos;buscarnochão
suas roupas; cobrir-semais oumenos e avançar até onde omarido a esperava, de
braçosabertos.Depoisseaninhounopeitodele,palpitante.
—Entendeualgumacoisa,Rigoberto?—ouviu-adizer.
— Só que amo você— respondeu ele, acolhendo-a.—Nunca a vi tão bela.
Venha,venha.
—Eta,irmãozinhoscorsos!—ouviuavalquíriarir,lálonge,sobreumfundode
bufidosselvagensdejavalietrombetaswagnerianas.
Harpia leonina e alada
Ondeestás?NoSalãodosGrotescosdoMuseuAustríacodeArteBarroca,noBaixo
BelvederedeViena.
O que fazes aí? Estudas cuidadosamente uma das criaturas fêmeas de Jonas
Drentwettquedãofantasiaeglóriaaessasparedes.
Qualdelas?Aquealongaoaltíssimopescoçoa mdedescobrirmelhoropeitoe
mostrarabelíssima,pungentetetadebotãovermelho,quetodososseresanimados
viriamexperimentar senãoo tivesses reservado.Paraquem?Para teuenamoradoà
distância,o reconstrutorde tua identidade,opintorque tedesfaze te refazao seu
capricho,teudespertosonhador.
Oquedevesfazer?Aprenderessacriaturadememóriaeemulá-lanadiscriçãodo
teudormitório,àesperadanoiteemquevirei.Nãotedesalentesporsaberquenão
tenscauda,nemgarrasdeavede rapina,nemhábitodeandaremquatropatas.Se
deveras me amas, terás cauda, garras, em quatro patas andarás e, pouco a pouco,
mercê da constância e rmeza que as façanhas do amor exigem, deixarás de ser
Lucrecia, a doOlivar, e serás a LucreciaMitológica, Lucrecia aHarpia Leonina e
Alada, a Lucrecia que chegou aomeu coração e aomeudesejo vinda dosmitos e
lendasdaGrécia(comumaescalanosafrescosromanos,deondeJonasDrentwettte
copiou).
Jáestássemelhanteaela?Garuparetraída,peitoalteado,cabeçaerguida?Sentesjá
queassomaacauda felinaequetecrescemasas lanceoladas,cordearrebol?Oque
aindatefalta,odiademaparaafronte,ocolardetopázio,afaixadeouroepedras
preciosas onde descansará teu tenro busto, estes, como prenda de adoração e
reverência,receberásdequemteamaacimadetodasascoisasreaisouinexistentes.
Ocaprichosodasharpias.
V.
Fonchito e as meninasV - Fonchito e as meninas
AsenhoraLucreciaenxugoumaisumavezosolhosrisonhos,ganhandotempo.Não
seatreviaaperguntaraFonchitoseeraverdadeoqueTetêBarrigalhecontara.Por
duasvezesesteveprestesafazê-lo,masnasduasseacovardou.
— De que está rindo assim, madrasta? — quis saber o menino, intrigado.
Porque,desdequeelechegaraàcasinhadoOlivardeSanIsidro,asenhoraLucrecia
não fazia outra coisa além de soltar aquelas gargalhadas intempestivas, comendo-o
comosolhos.
—Deumacoisaqueumaamigamecontou—ruborizou-sedonaLucrecia.—
Morro de vergonha de lhe perguntar. Mas, também, de vontade de saber se é
verdade.
—Algumafofocasobreopapai,certamente.
—Voulhedizer,emborasejabastantevulgar—decidiuasenhoraLucrecia.—
Minhacuriosidadeémaisfortedoqueminhaboaeducação.
SegundoTetê,cujomaridoestiverapresentenatalocasiãoehaviarelatadoofato
entre divertido e furioso, era uma reunião daquelas que a cada dois ou trêsmeses
acontecianoescritóriodomésticodedonRigoberto.Homenssozinhos,cincoouseis
amigos de juventude, colegas de colégio, universidade ou bairro,mantinham esses
encontrospor simples rotina, já sementusiasmo,masnão se atreviamaquebraro
rito, talvezpelo supersticioso temordeque, se alguém faltasse aocompromisso,o
azarviesseacairsobreodesertoroutodoogrupo.Econtinuavamsevendo,embora,
sem dúvida, também eles, assim como Rigoberto, já não achassem graça nessa
reuniãobimestraloutrimestral,emquebebiamconhaque,comiamempadinhasde
queijo e passavam em revista os mortos e a atualidade política. Dona Lucrecia
recordavaque,depois,donRigobertosentiadordecabeça,detantotédio,eprecisava
tomarumasgotinhasdevaleriana.Acoisahaviaacontecidonoúltimoencontro,na
semana anterior. Os amigos — cinquentões ou sessentões, alguns no limiar da
aposentadoria—viramchegarFonchito,osclaroscabelosalvoroçados.Osgrandes
olhosazuisdomeninosesurpreenderamporvê-losali.Adesordemdouniformedo
colégioacrescentavaumtoquedeliberdadeàsuabelapessoinha.Oscavalheiroslhe
sorriram,boatardeFonchito,comoestágrande,comocresceu.
—Nãovaicumprimentar?—admoestou-odonRigoberto,pigarreando.
—Sim, claro— respondeu a voz cristalina domenino.—Mas, painho, por
favor,queseusamigos,semefizeremcarinhos,nãofaçamnomeupopô.
AsenhoraLucreciaexplodiunaquintagargalhadadatarde.
—Vocêdisseessabarbaridadeaeles,Fonchito?
—Éque,comopretextodemefazercarinhos,sempreestãometocandonesse
lugar—retrucouele,encolhendoosombros,semdarmaiorimportânciaaoassunto.
—Nãogostoquemetoquemassimnemdebrincadeira,depoismedácomichão.E,
quandomevemqualquerprurido,eumecoçoatétirarpedaço.
—Entãoeraverdade,vocêdissemesmo.—AsenhoraLucreciapassavadoriso
aoassombroe,denovo,aoriso.—Claro,Tetênãopodiainventarumacoisadessas.
ERigoberto?Comoreagiu?
—Mefulminoucomosolhosememandoufazerosdeveresnomeuquarto—
disseFonchito.—Depois,quandoeles foramembora,medeuamaiorbronca.E
metirouasemanadadodomingo.
— Esses velhos mãos-bobas! — explodiu a senhora Lucrecia, subitamente
indignada.—Quefaltadevergonha!Seeuostivessevistoalgumavez,botavatodos
noolhodarua.Eseupai counaquelacalmatoda,quandosoube?Mas,antes,jure,
era verdade?Tocavam seubumbum?Não é umadessas coisas retorcidas que você
inventa?
—Claroquemetocavam.Aqui—mostrouomenino,dandoumapalmadanas
nádegas.—Igualzinhoaospadresdocolégio.Porquê,madrasta?Oqueeutenhono
popôquetodosquerempassaramãonele?
AsenhoraLucreciaoperscrutava,tentandoadivinharseelenãoestavamentindo.
—Seforverdade,sãounssem-vergonhas,unsabusados—exclamoupor m,
aindaduvidando.—Nocolégiotambém?EvocênãocontouaRigoberto,paraele
fazerumescândalo?
Omeninoexibiuumaexpressãoseráfica:
—Nãoquerodarmaispreocupaçõesaopapai.Eagoraqueeleandatãotriste,
menosainda.
DonaLucreciabaixouacabeça,confusa.Essegarotinhoeraummestreemdizer
coisas que a desnorteavam. Bom, se era verdade, benfeito, aqueles safados tinham
passadoumvexame.OmaridodeTetêBarrigahaviacontadoqueeleeseusamigos
caram sem graça, sem se atreverem a encarar Rigoberto, por um bom tempo.
Depois,emboraencabulados, zerampiadinhas.Jáchegavadesseassunto,emtodo
caso. Dona Lucrecia passou a outra coisa. Perguntou a Fonchito como ia ele no
colégio, se não se prejudicavana academia saindo antes de terminarem as aulas, se
haviaidoaocinema,aofutebol,aalgumafesta.MasJustiniana,queentroutrazendo
ochácompãezinhos,voltouaotema.Tinhaouvidotudoecomeçouaopinar,de
línguasolta.Estavaseguradequeomeninomentia:“Nãoacredite,patroa.Foioutra
diabruradestebandido,paraaquelessenhores caremcomcaradetachonafrentede
don Rigoberto. A senhora não o conhece?” “Se seuschancays não estivessem tão
gostosos, eu ia me aborrecer com você, Justita.” Dona Lucrecia sentiu que havia
cometidouma imprudência; deixando-se vencer pela curiosidademórbida—com
Fonchito, nunca se sabia —, talvez tivesse despertado a fera. De fato, quando
Justinianarecolhiaxícarasepratos,aperguntacaiusobreelacomoumaestocada:
—Porqueseráqueaspessoasmaisvelhasgostamtantodecrianças,madrasta?
Justiniana escapuliu fazendo com a garganta ou o estômago um ruído que só
podia ser um riso censurado. Dona Lucrecia buscou os olhos de Fonchito.
Investigou-os com calma, em busca de uma centelha de maldade, de intenções
escusas.Não.Sómesmoaluminosidadedeumcéudiáfano.
—Todomundogostade crianças—disse,hipócrita.—Énormal alguémse
enternecercomelas.Sãopequeninas,frágeis,àsvezesmuitolindas.
Sentiu-se estúpida, impaciente por escapar aos olhões quietos e límpidos,
pousadosnela.
—EgonSchielegostavamuito—disseFonchito,assentindo.—EmViena,no
início do século, havia muitas meninas abandonadas, vivendo nas ruas. Pediam
esmolanasigrejas,noscafés.
—ComoemLima—disseela,semsaberoquedizia.Outravezera invadida
pelasensaçãodeserumamosquinhaatraída,apesardosseusesforços,paraasfauces
daaranha.
—E ele ia ao Parque Schönbrunn, onde haviamontes demeninas. Levava-as
paraoateliê.Davacomidaedinheiroaelas—prosseguiuFonchito,inexorável.—
O senhor Paris vonGüterlash, um amigo que Schiele pintou, daqui a pouco lhe
mostrooretrato,dizquesempreencontravaláduasoutrêsmeninasderua.Ficavam
ali,porvontadeprópria.Dormiamoubrincavam, enquantoSchielepintava.Você
achaquehaviaalgummalnisso?
—Seeledavacomidaaelaseasajudava,quemalhaveria?
—Maséqueasmandavatirararoupaeaspintavafazendoposes—acrescentou
omenino.DonaLucreciapensou: “Jánão tenho escapatória.”Era ruimqueEgon
Schielefizesseisso?
—Bem,achoquenão—engoliuemsecoamadrasta.—Umartistaprecisade
modelos. Por que vamos botarmalícia em tudo?Degas não gostava de pintar as
ratinhas, aspequenasbailarinasdaÓperadeParis?Bom,EgonSchiele também se
inspiravanasmeninas.
—Mas,então,porqueoencarceraram,sobaacusaçãodetersequestradouma
menor? Por que o condenaram à prisão por difundir pinturas imorais? Por que o
obrigaram a queimar um desenho sob o pretexto de que as crianças viam coisas
escabrosasnoateliê?
—Nãoseiporquê—acalmou-oela,aoverqueomeninoia candoalterado.
—Eu não sei nada de Schiele, Fonchito. Você é quem sabe tudo a respeito.Os
artistassãopessoascomplicadas,seupaipodeexplicar.Nãotêmqueserunssantos.
Nãosedeveidealizá-losnemsatanizá-los.Oimportantesãoasobras,enãoasvidas.
Oque coudeSchieleécomoelepintouessasmeninas,enãooquefaziacomelas
noateliê.
— Mandava que calçassem aquelas meias coloridas de que gostava tanto —
rematouFonchito.—Quesedeitassemnosofáounochão.Sozinhasouemduplas.
Então, subia emumaescadaparaolhá-lasde cima.Encarapitado ali,no alto, fazia
umesboço,emunscadernosqueforampublicados.Opapaitemolivro.Masem
alemão.Sópudeverosdesenhos,masnãoler.
—Encarapitadoemumaescada?Eraassimqueaspintava?
Aíestávocê,Lucrecia,enroladanateiadearanha.Elesempreconseguia,aquele
pirralho.Agora,elajánãotentavaafastá-lodoassunto;seguia-o,aprisionada.Apura
verdade,madrasta.Schielediziaque seu sonhoera serumaavede rapina.Pintaro
mundoapartirdecima,vê-locomoumcondorouumabutreoveria.E,pensando
bem, era a pura verdade. Iria demonstrá-lo agoramesmo. Saltou para remexer na
pastadaacademiae,ummomentodepois,acocorava-seaosseuspés—elaestavano
sofá,comosempre,eelenochão—,passandoaspáginasdeumnovoevolumoso
livrodereproduçõesdeEgonSchiele,queapoiousobreosjoelhosdamadrasta.Sabia
realmentetodasessascoisassobreopintor?Quantaseramcertas?Eporquelheviera
essamania por Schiele?Coisas que ouvia deRigoberto? Seria esse pintor a última
obsessãodoseuex-marido?Emtodocaso,nãofaltavarazãoaomenino.Estasmoças
deitadas,estesamantesenlaçados,estascidades fantasmais, sempessoas,animaisou
carros, de casas amontoadas e como que congeladas às margens de rios desertos,
pareciamdivisadosdoalto,porumaave rampante,queplanava sobre tudoaquilo
comumolharenvolventeeimpiedoso.Sim,aperspectivadeumaavederapina.A
carinhadeanjo lhesorriu:“Eunãodisse,madrasta?”Elaassentiu,desagradada.Por
trás de seus traços de querubim, de sua inocência de quadromilagreiro, Fonchito
aninhava uma inteligência sutil, precocemente amadurecida, uma psicologia tão
arrevesada quanto a de Rigoberto. E, nesse momento, dona Lucrecia tomou
consciênciadaquiloqueapáginaexibia.Incendiou-secomoumatocha.Omenino
haviadeixadoo livro aberto emumaaquarelade tons vermelhos e espaços creme,
com uma franjamalva, à qual só agora ela prestava atenção: o próprio artista de
espigada silhueta, sentado, e, entre suas pernas abertas, uma moça, despida e de
costas, sustentando no alto, como o mastro de uma bandeira, a gigantesca
extremidadevirildele.
—Estecasaltambémfoipintadodecima—alertou-aavozcristalina.—Mas
comoteráfeitooesboço?Daescada,nãopodia,porquequemestásentadonochãoé
elemesmo.Vocêpercebe,não,madrasta?
—Perceboqueéumautorretratomuitoobsceno—dissedonaLucrecia.—É
melhorcontinuarpassandoaspáginas,Foncho.
—Poiseuoachotriste—discordouomenino,commuitaconvicção.—Vejaa
caradeSchiele.Estácaída,comoseelenãoaguentassemaisadorquesente.Parece
que vai chorar. Tinha apenas vinte e um anos, madrasta. Por que será, em sua
opinião,queeleintitulouestequadroAhóstiavermelha?—Melhor não averiguar, seu sabidinho— começou a se aborrecer a senhora
Lucrecia.—Éesseonome?Então,alémdeobsceno,ésacrílego.Vireapágina,senão
euarasgo.
—Mas,madrasta—recriminou-aFonchito—,vocênãovai sercomoaquele
juizquecondenouEgonSchieleadestruirumquadro.Nãopodesertãoinjustanem
tãopreconceituosa.
Sua indignação parecia genuína. As pupilas brilhavam, as nas aletas do nariz
vibravameatéasorelhasseadelgaçavam.DonaLucrecialamentouoqueacabavade
dizer.
—Bom,temrazão,comapintura,comaarte,éprecisosermaisindulgente.—
Esfregouasmãos,nervosa.—Équevocêmetiradosério,Fonchito.Nuncaseise
fazoque faz, edizoquediz,demaneira espontâneaoucom segundas intenções.
Nunca sei se estou com um menino ou com um velho vicioso e pervertido,
escondidoatrásdeumacarinhadeMeninoJesus.
O garoto a tava desconcertado; a surpresa parecia lhe brotar lá do fundo.
Pestanejava, sem compreender. Seria ela que, com sua descon ança, estava
escandalizandoestacriança?Claroquenão.Mas,aoverosolhosagoramarejadosde
Fonchito,sentiu-seculpada.
—Nemseioqueestoudizendo—murmurou.—Esqueça,eunãodissenada.
Venhacá,medêumbeijo,vamosfazeraspazes.
Ele se levantou e lhe jogou os braços ao pescoço. Dona Lucrecia sentiu,
palpitando, a frágil estrutura,osossinhos,o corpinhona fronteirada adolescência,
essaidadeemqueosmeninosaindaseconfundemcomasmeninas.
—Nãoseaborreçacomigo,madrasta—ouviu-odizer,noseuouvido.—Me
corrijaseeu zeralgoerrado,meaconselhe.Querosercomovocêquerqueeuseja.
Masnãoseaborreça.
—Tudobem,jápassou—disseela.—Vamosesquecer.
Fonchitoamantinhaencarceradapelopescoçocomseusbracinhos,e lhefalava
tãobaixoedevagarqueelanãoentendeuoqueeledizia.Masregistroucomtodosos
seusnervosapontinhadalínguadomeninoquando,comoumdelicadoestilete,esta
entrounacavidadedesuaorelhaeaumedeceu.Resistiuaoimpulsodeafastá-lo.Um
momento depois, sentiu que os lábios ninhos percorriam o lóbulo, com beijos
espaçados,miúdos.Agora, sim, afastou-ocomsuavidade—por todoocorpo lhe
corriamcobrinhas—edeucomaquelacaratravessa.
—Eu lhe z cosquinha?—Fonchitoparecia se vangloriardeumaproeza.—
Vocêestátremendotodinha.Sentiuumchoqueelétrico,madrasta?
DonaLucrecianãosoubeoquedizer.Sorriuparaele,forçada.
—Jáiameesquecendodecontar—tirou-aFonchitodoapuro,retornandoao
seu lugar costumeiro, ao pé do sofá.— Comecei a fazer aquele trabalho com o
papai.
—Quetrabalho?
—As pazes entre vocês, ora— explicou ele, gesticulando.—Sabe o que z?
DissequetinhavistovocêsaindodaVirgendelPilar,elegantíssima,debraçoscom
umsenhor.Quepareciamumcasalzinhoemluademel.
—Eporquementiudessejeito?
—Paraprovocarciúmenele.Econsegui.Ficounervosíssimo,madrasta!
Riu,comumarisadaqueproclamavaumaesplêndidaalegriadeviver.Seupapai
tinha cadopálido, de olhos esbugalhados, embora, noprincípio, não comentasse
nada. Mas estava roído de curiosidade e morrendo de vontade de saber mais.
Remexia-setodo.Paralhefacilitaracoisa,Fonchitoabriufogo:
—Achaqueminhamadrastapretendesecasardenovo,painho?
DonRigobertofezumaexpressãoazeda,umacaradespencada,cavalar,antesde
responder:
—Não sei. É a ela que você devia perguntar.—E, depois de uma vacilação,
tentandoparecernatural:—Seilá.Essesenhorlhepareceumaisqueumamigo?
—Bem,nãosei—teriahesitadoFonchito,movendoacabeçacomoumcuco
derelógio.—Estavamdebraçodado.Ohomemolhavaparaelacomonosfilmes.E
elatambémlhelançavaumasolhadinhasmuitocoquetes.
—Voumatarvocê, seubandido, seumentiroso.—AsenhoraLucreciaatirou
emFonchitoumadasalmofadas,queelerecebeunacabeçacomgrandeassombro.
—Vocêéumfarsante.NãodissenadaaRigoberto,estácaçoandodemim,bemao
seujeito.
— Juro pelo que há de mais sagrado, madrasta — ria-se o menino, às
gargalhadas,beijandoosdedosemcruz.
—Éopiorcínicoquejáconheci—disparouelaoutraalmofada,rindotambém.
— Imagine como será quando crescer. Deus proteja a pobre inocente que se
apaixonarporvocê.
Fonchito cou sério, em uma daquelas bruscas mudanças de humor que
desconcertavam dona Lucrecia.Tinha cruzado os braços sobre o peito e, sentado
comoumBuda,examinava-acomcertomedo.
—Estádebrincadeira,nãoé,madrasta?Ourealmenteachaqueeusoumau?
Elaestendeuamãoelheacariciouoscabelos.
—Não,mau, não—disse.—Você é imprevisível.Metido a esperto e com
imaginaçãodemais,istosim.
— Quero que vocês quem de bem — interrompeu Fonchito, com gesto
enérgico.—Porissoinventeiessahistóriaparaopapai.Játenhoumplano.
—Comosoueuainteressada,pelomenosdeixequeeulhedêminhaaprovação.
—Éque...—Fonchitoretorceuasmãos.—Aindamefaltacompletaroplano.
Con eemmim,madrasta.Precisosaberumascoisassobrevocêsdois.Porexemplo,
comoseconheceram.Ecomofoiquesecasaram.
Uma cascata de imagensmelancólicas atualizou namemória de dona Lucrecia
aqueledia—onzeanosjá—emque,duranteumatumultuadaetediosafestapara
comemorar as bodasdepratadeuns tios, havia sido apresentada àquele senhorde
caraça lúgubre, grandes orelhas e nariz beligerante, a caminho da calvície. Um
cinquentãosobreoqualumaamigaalcoviteira,empenhadaemcasartodomundo,
deuasinformações:“Viúvorecente,um lho,gerentedaSeguradoraLaPerricholi,
meioesquisitãomasdefamíliadecenteecomgrana.”Noprincípio,elasóretevede
Rigobertooaspectofunéreo,suaatitudearredia,oquantoerafeio.Mas,desdeessa
mesma noite, algo a atraiu naquele homem sem encantos físicos, algo que ela
adivinhoudecomplicadoemisteriosonavidadele.E,desdemenina,donaLucrecia
sentira fascinação por debruçar-se sobre os abismos do alto dos penhascos, por
equilibrar-senabalaustradadaspontes.Essaatraçãosecon rmouquandoelaaceitou
tomar um chá com ele na Tiendecita Blanca, assistir em sua companhia a um
concertodaFilarmônicanoColégioSantaÚrsulae,sobretudo,quandoentrouem
suacasapelaprimeiravez.Rigobertolhemostrousuasgravuras,seuslivrosdeartee
oscadernosondeestavamseussegredos,e lheexplicoucomorenovavasuacoleção,
penalizando com as chamas os livros e imagens que ia substituindo. Ficara
impressionadaouvindo-o,observandoa correção comquea tratava, a formalidade
maníaca comque se comportava.Para assombroda família e das amigas (“Oque
você está esperando para se casar, Lucre?Um príncipe encantado?Não pode car
rejeitando todosos seus admiradores!”), aceitou imediatamente,quandoRigoberto
lhepropôscasamento(“Semsequertermedadoumbeijo”).Nuncasearrependera.
Nemumsódia,nemumsóminuto.Haviasidodivertido,excitante,maravilhoso,ir
descobrindoomundodemanias,rituaisefantasiasdomarido,compartilhá-locom
ele, ir construindo ao seu lado aquela vida reservada, ao longo de dez anos.Até a
absurda,louca,estúpidahistóriacomoenteado,àqualsedeixaraarrastar.Comum
fedelhoqueagoranempareciaselembrardoacontecido.Logoela, logoela!Aque
todos achavam tão judiciosa, tão precavida, tão organizada, a que sempre havia
calculadotodosospassoscomtantasensatez.Comopuderaterumaaventuracom
um garotinho de colégio? Seu próprio enteado! Rigoberto até que se portara de
maneira muito decente, evitando o escândalo, limitando-se a pedir a separação e
dandooapoioeconômicoqueagoralhepermitiamorarsozinha.Outroiriamatá-la,
expulsá-la com uma mão na frente e outra atrás, sem um centavo, exibi-la no
pelourinho social como corruptora de menores. Que bobagem, pensar que
Rigoberto e ela podiam se reconciliar. Ele continuariamortalmente ofendido pelo
queacontecera;jamaisaperdoaria.DonaLucreciasentiuosbracinhosseenroscarem
outraveznoseupescoço.
—Porquevocêficoutriste?—consolou-aFonchito.—Fizalgoerrado?
—De repenteme lembrei deumas coisas, e, como souuma sentimental... Já
passou.
—Quandoavificandoassim,medeuumsusto!
Omeninovoltouabeijá-lanaorelha,comosmesmosbeijinhosdiminutos,ea
remataroscarinhosumedecendo-lheoutravezopavilhãodaorelhacomapontada
língua. Dona Lucrecia se sentia tão deprimida que nem sequer teve ânimo para
afastá-lo.Daliapouco,ouviuqueeledizia,emtomdiferente:
—Vocêtambém,madrasta?
—Eutambémoquê?
— Estáme tocando o popô, ora, igual aos amigos do papai e aos padres do
colégio. Caramba, por que todo mundo agora cismou de passar a mão no meu
bumbum?
Carta ao rotariano
Sei que você se ofendeu, amigo, comminha negativa de aderir ao Rotary Club,
instituição da qual é dirigente e promotor. E descon o que cou receoso, nada
convencidodequeminharecusaaserrotarianodenenhummodosigni caqueeuvá
meinscrevernoClubedosLeõesounorecém-surgidoKiwanisdoPeru,associações
com as quais a sua compete implacavelmente para levar a palma da bene cência
pública,doespíritocívico,dasolidariedadehumana,daassistênciasocialecoisasdo
gênero.Tranquilize-se: não pertenço nem pertencerei a nenhum desses clubes ou
associações,nemanadaparecido(osEscoteiros,osEx-alunosJesuítas,aMaçonaria,
oOpusDeietc.).Minhahostilidadeaogêneroassociativoétãoradicalqueatédesisti
desermembrodoTouringAutomóvelClube,semfalardessassupostasagremiações
sociais que medem a categoria étnica e o patrimônio econômico dos limenhos.
DesdemeusanosjálongínquosdemilitâncianaAçãoCatólica,eporcausadela—
poisfoiessaaexperiênciaquemeabriuosolhossobreailusãodetodautopiasociale
mecatapultouàdefesadohedonismoedoindivíduo—,contraíumarepugnância
moral,psicológica e ideológica contra toda formade servidãogregária, a talponto
que—falosério—atéa ladocinemamedáasensaçãodeestarsendoatropeladoe
diminuídoemminhaliberdade(àsvezes,nãotenhooutroremédioanãoserentrar
nela,claro),retrocedidoàcondiçãodehomem-massa.Aúnicaconcessãoquerecordo
haver feitodeveu-se aumaameaçade sobrepeso (souumconvencido, comoCyril
Connoly,deque“aobesidadeéumadoençamental”)quemelevouamatricular-me
emumaacademia,ondeumtarzandesprovidodemiolosnosfaziatranspirar,quinze
idiotas,porumahoradiária,aocompassodosseusrugidos,exercitandocontrações
simiescas a que ele chamavaaerobics.O suplício ginástico veio con rmar todos os
meuspreconceitoscontraohomem-rebanho.
Permita-me, apropósito, transcrever-lheumadas citaçõesqueabarrotammeus
cadernos,poissintetizamaravilhosamenteoquepenso.Oautoréumasturianovira-
mundoacantonadonaGuatemala,FranciscoPérezdeAntón:“Umrebanho,como
se sabe, compõe-sedegentedesprovidadapalavra e comesfínctermaisoumenos
débil.Éfatocomprovado,ademais,que,emtemposdeconfusão,orebanhoprefere
aservidãoàdesordem.Donde,osqueatuamcomocabrasnãotêmlíderes,masuns
sem-vergonhas.Ealgodessaespéciedeve ter-noscontagiado,vistoquenorebanho
humano émuito comum aquele dirigente capaz de conduzir asmassas à beira do
penhasco e, uma vez ali, fazê-las saltar para a água. Isto, se não lhe ocorrer assolar
umacivilização,oqueéalgotambémbastantefrequente.”Vocêdiráqueéparanoia
issodedivisar,portrásdebenignosvarõesquesereúnemparaalmoçarumavezpor
semana e discutir em que novo distrito devem levantar aquelas estelas de calcário
comaplacademetal“ORotaryClublhesdáasboas-vindas”,cujaconstruçãoeles
pagamemcotas-partes,umaominosadepreciação,naescalahumana,de indivíduo
soberanoaindivíduo-massa.Talvezeuestejaexagerando.Masnãopossodescuidar-
me. Como o mundo avança aceleradamente para a desindividualização completa,
paraaextinçãodesseacidentehistórico,oreinadodoindivíduolivreesoberano,que
umasériedeacasosecircunstânciashaviapossibilitado(paraumnúmeroreduzidode
pessoas,éclaro,eemumnúmeroaindamaisreduzidodepaíses),estoumobilizado
paraocombate,commeuscincosentidoseduranteasvinteequatrohorasdodia,a
m de retardar o máximo que puder, no que a mim concerne, essa derrota
existencial.Abatalhaédevidaoumorteetotalizadora;tudoetodosparticipamdela.
Essasassociaçõesdeprofissionaispançudos,executivoseburocratasdealtonível,que,
uma vez por semana, comparecem para consumir um cardápio regimentar
(compostoporumabatatarecheada,umabistequinhacomarrozeumaspanquecas
commanjar-branco, tudo isso irrigadocomumvinhozinho tintoTacamaReserva
Especial?), constituem uma batalha ganha a favor da robotização de nitiva e do
obscurantismo, um avanço da plani cação, da organização, da obrigatoriedade, da
rotina, da coletivização, e um encolhimento ainda maior da espontaneidade, da
inspiração, da criatividade e da originalidade, que só são concebíveis na esfera do
indivíduo.
Peloque leuatéaqui,você receiaque, sobminhaaparência incolordeburguês
cinquentão, esteja emboscado um hirsuto antissocial meio anarquista? Bingo!
Acertou,meuchapa.(Fizumgracejoemedeimal:apalavrinhachapajámesugerea
inevitável palmadanoombroque a acompanha e a asquerosa visãodedois varões
embarrigados de cerveja e de imoderada ingestão de petiscos, coletivizando-se,
formandoumasociedade,renunciandoaosseusfantasmasendovenososeaoseueu.)É verdade: sou um antissocial namedida dasminhas forças, que por desgraça são
fraquíssimas, e resisto à gregarização em tudo aquilo que não ameaça minha
sobrevivência nemmeus excelentes níveis de vida.Tal como você está lendo. Ser
individualistaéseregoísta(AynRand,evirtueofsel shness),masnãoimbecil.De
resto,aimbecilidademeparecerespeitávelseforgenética,herdada,nãoresultantede
umaescolha,deumadeliberadatomadadeposição.Temoqueserrotariano,assim
como leão,kiwani,maçom,escoteiroouopus, seja (desculpe-me)umaacovardada
apostaafavordaestupidez.
Convémlheexplicaresse insulto:assimoatenuoe,napróximavezemqueos
negóciosdenossasseguradorasnosreunirem,vocênãomearrebentarácomumsoco
(oucomumchutenacanela,agressãomaisapropriadaparapessoasdanossaidade).
Nãoseidequemaneiramaisjustapossode nirainstitucionalizaçãodasvirtudese
dos bons sentimentos representada por essas associações, a não ser como uma
abdicação da responsabilidade pessoal e uma maneira barata de adquirir boa
consciência“social” (usoessapalavraentreaspaspara sublinharodesagradoqueela
mecausa).Emtermospráticos,oquevocêe seus colegas fazemnãocontribui, ao
meu juízo,para reduziromal (ou, sepreferir,paraaumentarobem)emnenhum
sentido apreciável. Os principais bene ciários dessa generosidade coletivizada são
vocês mesmos, começando por seus estômagos, deglutidores desses cardápios
semanais,e suasmentesporcas,que,nessasnoitadasdeconfraternização(horroroso
conceito!), arrotam de prazer intercambiando mexericos, piadas grosseiras e
difamando impiedosamenteoausente.Não soucontraesses entretenimentosnem,
em princípio, contra nada que produza prazer; sou contra a hipocrisia de não
reivindicar esse direito às claras, de buscar o prazer dissimulando-o sob o álibi
profiláticodaaçãocívica.Nãofoivocêmesmoquemmedisse,comolhosdesátiroe
dando-meumpiparotepornográ co,queoutravantagemdeserrotarianoeraquea
instituiçãoforneciaumpretextosemanaldeprimeiraordemparaestarlongedecasa
sem alarmar a mulher? Aqui, acrescento outra objeção. É por regulamento ou
simplesmenteporcostumequenãohámulheresemsuas leiras?Nosalmoçosque
vocême in igiu, nunca vi uma saia.Tenho certeza de que nem todos vocês são
veados, única razão tibiamente aceitável para justi car o pantalonismo rotariano
(leão, kiwani, escoteiro etc.). Esta éminha tese: ser rotariano é um pretexto para
passar bonsmomentosmasculinos, a salvo da vigilância, servidão ou formalidade
impostas, segundo vocês, pela coabitação com a mulher. Isso me parece tão
anticivilizadoquantoaparanoiadasrecalcitrantesfeministasquedeclararamaguerra
dossexos.Minha loso aéque,noscasosinevitáveisderesignaçãoaogregarismo—
escolas,empregos,diversões—,amisturadegêneros(ederaças,línguas,costumese
crenças)constituiumamaneiradeamenizaracretinizaçãoqueocorriolismoimplica
e de introduzir nas relações humanas um elemento picante, malicioso (maus
pensamentos,dosquais souresolutopraticante),algoque,nomeupontodevista,
elevaessasrelaçõesestéticaemoralmente.Nãolhedigoqueambasascoisassão,para
mim,umasóporquevocênãoentenderia.
Todaatividadehumanaquenãocontribua,aindaquedamaneiramaisindireta,
paraaebuliçãotesticulareovárica,paraoencontrodeespermatozoideseóvulos,é
desprezível. Por exemplo, a venda de apólices de seguros à qual você e eu nos
dedicamoshátrintaanos,ouosalmoçosmisóginosdosrotarianos.Assimétudoo
que distrai do objetivo verdadeiramente essencial da vida humana, que consiste, a
meujuízo,nasatisfaçãodosdesejos.Nãovejoparaqualoutracoisapodemosestar
aqui,girandocomolentospiõesnogratuitouniverso.Apessoapodevenderseguros,
como você e eu zemos — e com bastante sucesso, pois alcançamos posições
invejáveis emnossas respectivas companhias—, porque é preciso comer, vestir-se,
abrigar-sesobumtetoealcançarrendasquepermitamtereaplacardesejos.Nãohá
nenhuma outra razão válida para vender apólices de seguros, nem tampouco para
construirrepresas,castrargatosousertaquígrafo.Atéjáoescuto:ese,àdiferençade
você, desequilibrado Rigoberto, um homem se realiza e tem prazer vendendo
apólicesdeseguroscontraincêndios,roubosouenfermidades?Ese,comparecendoa
almoçosrotarianosecontribuindocomesmolaspecuniáriasparalevantarcartazesnas
estradas com o lema “Devagar se vai ao longe”, elematerializa seusmais ardentes
desejos e é feliz, nem mais nem menos que você quando folheia sua coleção de
gravuras e livros imprópriospara senhoritas ouquando se entrega a essaspunhetas
mentaisquesãoossolilóquiosdosseuscadernos?Cadaumnãotemdireitoaosseus
desejos?Sim,éverdade.Porém,seosdesejos(apalavramaisbeladodicionário)mais
acalentadosporumserhumanoconsistememvendersegurosea liar-seaoRotary
Club (ou a ns), esse bípede é um cretino. Caso de noventa por cento da
humanidade,concordo.Vejoquevocêcomeçaacompreender,securitário.
Vaisebenzerportãopouco?Seusinaldacruzmeinstaapassaraoutroassunto,
que é omesmo.Que papel a religião ocupa nesta diatribe? Ela também recebe as
bofetadas deste renegado da Ação Católica, ex-leitor febril de Santo Agostinho,
cardealNewmann,SãoJoãodaCruzeJeanGuitton?Simenão.Sealgumacoisaeu
sounessamatéria,souagnóstico.Descon adodoateuedodescrente,afavordeque
as pessoas creiam e pratiquem uma fé, pois, de outro modo, não teriam vida
espiritual alguma e o selvagismo semultiplicaria. A cultura— a arte, a loso a,
todasasatividadesintelectuaiseartísticaslaicas—nãosubstituiovazioespiritualque
resulta da morte de Deus, do eclipse da vida transcendente, exceto em uma
reduzidíssima minoria (da qual faço parte). Esse vazio torna as pessoas mais
destruidorasebestiaisdoquenormalmenteosão.Aomesmotempoquesouafavor
dafé,asreligiõesemgeralmeincitamataparonariz,porquetodaselasimplicamo
rebanhismo processionário e a abdicação da independência espiritual. Todas elas
restringemaliberdadehumanaepretendemenredarosdesejos.Reconheçoque,sob
opontodevista estético, as religiões—acatólica talvezmaisquequalqueroutra,
comsuasformosascatedrais,seusritos,liturgias,atavios,representações,iconogra as,
músicas — costumam ser soberbas fontes de prazer que deleitam o olhar, a
sensibilidade, atiçam a imaginação e nos incendeiam commaus pensamentos. Em
todas, porém, sempre se emboscam um censor, um comissário, um fanático, as
grelhas e tenazes da inquisição. Também é certo que, sem suas proibições, seus
pecados,suasfulminaçõesmorais,osdesejos—osexual,sobretudo—nãoteriam
alcançadoore namentoquetiveramemcertasépocas.Pois,eistonãoéteoria,mas
prática,graçasaumamodestapesquisapessoaldelimitadohorizonte,a rmoquese
fazmuitomelhoroamornospaísesreligiososdoquenossecularizados(melhorna
IrlandadoquenaInglaterra,naPolôniadoquenaDinamarca),enoscatólicosdo
quenos protestantes (naEspanhaouna Itáliamelhor doquenaAlemanhaouna
Suécia),equesãomilvezesmais imaginativas,audazesedelicadasasmulheresque
passaramporcolégiosdefreirasdoqueasqueestudaramemcolégioslaicos(Roger
VaillandteorizouarespeitoemLeregardfroid).LucrecianãoseriaaLucreciaqueme
cumulou de uma inestimável felicidade, noite e dia (mas, sobretudo, à noite), ao
longo de dez anos, se sua infância e juventude não tivessem estado a cargo das
rigorosíssimas freiras do SagradoCoração, entre cujos ensinamentos gurava o de
que,paraumamenina,sentar-secomosjoelhosabertoserapecado.Essassacri cadas
escravas do Senhor, com suas exacerbadas suscetibilidade e casuística em matéria
amorosa,foramformando,aolongodahistória,verdadeirasdinastiasdeMessalinas.
Benditassejam!
Eentão?Emque camos?Eunãoseiemque carávocê,carocolega(parausar
outra expressão vomitável).Eu co emminha contradição, que é também, a nal,
umafontedeprazerparaumespíritodissidenteeinclassi cávelcomoomeu.Contra
ainstitucionalizaçãodossentimentosedafé,masafavordossentimentosedafé.À
margem das igrejas,mas curioso e invejoso delas, e diligente aproveitador do que
possam emprestar-mepara enriquecer omundodosmeus fantasmas.Ressalto que
sou um indisfarçado admirador daqueles príncipes da Igreja que foram capazes de
conciliar no mais alto grau a púrpura e o esperma. Consulto meus cadernos e
encontro, como exemplo, aquele cardeal sobre quem o virtuoso Azorín escreveu:
“Céticore nado,riasozinhodafarsaemquesemoviasuapessoa,eassombrava-seàs
vezescomquenãoseacabasseaestupidezhumanaquemantinhacomseudinheiro
aquela estupenda comédia.” Não é, quase, um medalhão do famoso cardeal de
Bernis, embaixador setecentista da França na Itália, que compartilhou emVeneza
duas freiras lésbicas com Giacomo Casanova (vide suasMemórias) e, em Roma,
recebeuomarquêsdeSadesemsaberdequemse tratava,quandoeste, fugitivoda
Françaporseusexcessoslibertinos,percorriaaItáliaemboscadosobafalsaidentidade
decondedeMazan?
Masjávejoquevocêboceja,porqueessesnomescomqueobombardeei—Ayn
Rand, Vailland, Azorín, Casanova, Sade, Bernis— soam aos seus ouvidos como
ruídos incompreensíveis, demodo queme interrompo e coloco ponto nal nesta
missiva(que,tranquilize-se,tampoucoenviarei).
Muitosalmoçoseplacas,rotariano.
O odor das viúvas
Na noite úmida, sobressaltada pela agitação do mar, don Rigoberto acordou de
repente,banhadoemsuor:asincontáveisratazanasdotemplodeKarniji,convocadas
pelasalegrescampainhasdosbrâmanes,acudiamaorepastovespertino.Osenormes
tachos, as travessas de metal, os cochos de madeira tinham sido enchidos com
pedacinhos de carne ou com o leitoso xarope, seumanjar preferido.De todos os
buracosdasparedesdemármore,perfuradosparaelaseequipadoscompunhadosde
palha para seu conforto pelos piedosos monges, milhares de roedores cinzentos
saíam, ávidos, de seus ninhos. Atropelando-se, uns por cima dos outros,
precipitavam-se para os recipientes. Mergulhavam neles para lamber a calda,
mordiscar os pedaços de carne, e, os mais requintados, para arrancar, com seus
brancos incisivos, bocadinhos de calos e durezas dos pés desnudos. Os sacerdotes
deixavamagirosanimais,lisonjeadosporcontribuircomessassobrasdesuapelepara
oprazerdasratazanas,encarnaçõesdehomensemulheresdesaparecidos.
O templo havia sido construído para elas, fazia quinhentos anos, nesse rincão
nortistadoRajastãohindu,emhomenagemaLakhan, lhodadeusaKarniki,bem-
apessoadomanceboquesetransformaranumaratazanagorda.Desdeentão,atrásda
imponente construção de portas prateadas, pisos marmóreos, paredes e cúpulas
majestosas, o espetáculo acontecia duas vezes ao dia. Ali estava agora o brâmane-
chefe,Chotu-Dan,ocultosobasdezenasdeanimaiscinzentosquesubiamaosseus
ombros,braços,pernas, costas, rumoaograndecochodecaldaàbeiradoqual ele
estavasentado.MasoquerevolviaoestômagodedonRigobertoeodeixavaprestes
avomitareraoodor.Denso,envolvente,maispenetrantedoqueabostadabestade
carga,obafodomonturoouacarniçaputrefata,ofedordessamultidãopardaestava
agoradentrodele.Percorriaoavessodeseucorpoesuasveias,atranspiraçãodesuas
glândulas,empoçava-senosresquíciosdesuascartilagensenotutanodosseusossos.
Seu corpo se transformara no templo de Karniji. “Estou impregnado de odor de
ratazanas”,assustou-se.
Saltoudacamadepijama,semcolocaroroupão,sóoschinelos,ecorreuaoseu
escritório, para ver se folheando algum livro, perscrutando uma gravura, ouvindo
música ou garatujando seus cadernos, outras imagens vinham exorcizar as
sobreviventesdopesadelo.
Teve sorte.No primeiro caderno que abriu, uma citação cientí ca explicava a
variedade demosquitos cuja característicamais saliente é perceber o odor de suas
fêmeas a distâncias incríveis. “Sou um deles”, pensou, dilatando as narinas e
farejando. “Posso agoramesmo, se a issome dispuser, sentir o cheiro de Lucrecia
adormecida noOlivar de San Isidro, e diferenciar nitidamente as secreções de seu
couro cabeludo, de suas axilas e de seu púbis.” Mas topou com outro odor —
benigno, literário, prazeroso, fantasioso —, que começou a dissipar, como faz à
neblina noturna o vento do amanhecer, os fedores da rataria do sonho.Umodor
santo, teológico, elegantíssimo, exaladopelaIntroduçãoàvidadevota, deFranciscode Sales, na tradução espanhola de Quevedo: “Las lámparas que tienen el olioaromáticodespidende síunmás suaveolor cuando lesapagan la luz.Así, lasviudas,cuyo amor ha sido puro en su casamiento, derraman un precioso y aromático olor devirtuddecastidad,cuandosuluz,estoes,sumarido,esapagadaporlamuerte.”3Essearoma de viúvas castas, impalpável melancolia de seus corpos condenados ao
solilóquio físico, exalação nostálgica de seus desejos insatisfeitos, inquietou-o. As
aletasdoseunarizlatejaramafanosamente,tentandoreconstituir,detectar,extrairdo
ambientealgumrastrodapresençadele.Ameraideiadesseodordeviúvadeixou-o
em suspenso. Evaporou os restos do pesadelo, tirou-lhe o sono, devolveu ao seu
espíritoumacon ançasaudável.Eolevouapensar—porquê?—naquelasdamasa
utuarementreriosdeestrelas,deKlimt,mulheresolorosas,defacestravessas—ali
estavamGoldfish, fêmea-peixinho colorido, eDânae, simulandodormireexibindo
comsimplicidadeumacurvilíneabundadeviolão.Nenhumartistasouberapintaro
odor femininocomoobizantinovienense; suasmulheres aéreas e vergadas sempre
lhe haviam entrado na memória, simultaneamente, pelos olhos e pelo nariz. (A
propósito,nãoseriahorade inquietar-secomodesmesurado interessequeooutro
vienense,EgonSchiele,despertavaemFonchito?Talvez,masnãonestemomento.)
O corpo de Lucrecia exalava esse santo odor salesiano desde que estavam
separados?Seassimfosse,elaaindaoamava.Poisesseodor,segundosãoFrancisco
deSales,testemunhavauma delidadeamorosaquetranscendiaotúmulo.Então,ela
não o tinha substituído. Sim, continuava “viúva”. Os rumores, incon dências,
acusações que chegavam até ele— incluído omexerico de Fonchito— sobre os
recentes amantesdeLucrecia eramcalúnias.Seucoração se regozijou, enquantoele
fariscavaencarniçadamenteoentorno.Estavaali?Tinha-odetectado?Eraoodorde
Lucrecia?Não.Eraodanoite,daumidade,doslivros,dosóleos,dasmadeiras,das
telasedoscourosdoseuescritório.
Tentou resgatardopassadoedovazio, fechandoosolhos,osodoresnoturnos
queaspiraranaquelesdezanos,aromasquetantootinhamfeitogozar,perfumesque
ohaviamdefendidocontraapestilênciaeafeiurareinantes.Adepressãoseapoderou
dele. Vieram consolá-lo uns versos de Neruda, quando virou uma página desse
mesmocaderno:
Eparaver-teurinar,naescuridão,nofundodacasa,comosevertessesummeldelgado,trêmulo,argênteo,obstinado,quantasvezeseudariaestecorodesombrasquepossuo,eoruídodeespadasinúteisqueseouveemminhaalma...
Nãoeraextraordinárioqueopoemadessesversos sechamasseTango do viúvo?Sem transição, divisou Lucrecia, sentada no vaso sanitário, e escutou o alegre
chapinhardeseupipinofundodorecipiente,queorecebiacascateandoagradecido.
Claro que, silencioso, agachado no canto, absorto, misticamente concentrado,
escutando e cheirando, ali estava também o feliz bene ciário daquela emissão,
daquele concerto líquido: Manuel das Próteses! Mas nisto apareceu Gulliver,
salvando a imperatriz de Lilliput de seu palácio em chamas com uma espumosa
mijada. Don Rigoberto pensou em Jonathan Swift, que viveu obsedado com o
contraste entre a beleza do corpo e as horríveis funções corporais. O caderno
recordava como, em seumais famosopoema,umamante explicaporquedecidiu
abandonaraamada,comestesversos:
NorwonderhowIlostmywits;Oh!Celia,Celia,Celiashits.
“Que idiota”, sentenciou.Lucrecia tambémshited e isso, emvezdedegradá-la,
realçava-aaosolhoseàsnarinasdele.Poralgunssegundos,comoprimeirosorrisoda
noite desenhado no rosto, aspirou com a memória os vapores remanescentes da
passagemde sua ex-mulher pelo banheiro.Ainda que, agora, ali se intrometesse o
sexólogo Havelock Ellis, cuja mais recôndita felicidade era, segundo o caderno,
escutarsuaamadaverter,tendoproclamadoemsuacorrespondênciaqueodiamais
felizdesuavidahaviasidoaqueleemquesuacomplacentemulher,protegidapelas
rodadas saias vitorianas que a enroupavam, urinou para ele entre inadvertidos
transeuntes, irreverentemente, aos pés do almirante Nelson, observada pelos
monumentaisleõesdepedradeTrafalgarSquare.
Manuel, porém, não tinha sido um poeta como Neruda, nem ummoralista
como Swift, nem um sexólogo como Ellis. Apenas um castrado. Ou, melhor
dizendo,umeunuco?Diferençaabismal,entreessesdoisnegadosparaafecundação.
Umaindatinhafaloeereção,aopassoqueooutrohaviaperdidooadminículoea
função reprodutora, e exibia um púbis liso, curvo e feminil. O que eraManuel?
Eunuco. Como pudera Lucrecia conceder-lhe aquilo? Generosidade, curiosidade,
compaixão?Ouvícioemorbidez?Outodasessascoisascombinadas?Elaoconhecera
antes do célebre acidente, quando Manuel ganhava campeonatos motociclísticos
empacotado emumcapacete rutilante e ummacacão sintético, encarapitado sobre
umequinomecânicodetubos,guidomerodas,denomesemprejaponês(Honda,
Kawasaki, Suzuki ouYamaha), catapultando-se campos afora com ruído de peido
ensurdecedor — chamavam aquilo demotocross —, embora também costumasse
participar de tropelias comoTrail eEnduro, prova, esta última, de suspeitas
reminiscências albigenses — a duzentos ou trezentos quilômetros por hora.
Sobrevoando valas, escalando cerros, desmanchando areais e saltando rochedos ou
abismos, Manuel ganhava troféus e aparecia retratado nos jornais destampando
garrafasdechampanheeacompanhadodemodelosquebeijocavamsuasbochechas.
Atéque,emumadessasexibiçõesdeacrisoladaestupidez,vooupelosares,depoisde
galgarcomobólidoumacolinaenganosa,atrásdaqualoesperava,nãoumsedante
tobogã de amortecedoras areias, como ele, incauto, acreditava,mas um precipício
espetadode rochas.Precipitou-se ali, gritandoumpalavrão arcaico—Cachaporra!
—, quando voavamontado em seu corcel demetal rumo às profundezas, a cujo
fundo,segundosdepois,chegousonoramente,emumestrondodeossoseferrosque
setrituravam,serompiameseestilhaçavam.Milagre!Suacabeça couintacta;seus
dentes, completos; sua visão e sua audição, sem dano algum; o uso de suas
extremidades, apenas ressentido por causa dos ossos quebrados e dos músculos
rasgadosesovados.Compensatoriamente,opassivoseconcentrouemsuagenitália,
quemonopolizou as avarias. Porcas, cravos e ponteiras perfuraram seus testículos,
apesardoelásticosuspensorqueosguarnecia,transformando-osemumasubstância
híbrida,entreomingauearatatouille,aomesmotempoemqueopecíolodesua
virilidadeeracerceadonaraizporalgummaterialcortante,quetalvez—ironiasda
vida—nãofosseprovenientedamotodosseusamoresetriunfos.Oqueocastrou,
então?Ograndecruci xodepontasaguçadasqueeleusavaparaconvocaraproteção
divina,quandoperpetravasuasproezasmotociclísticas.
OscompetentescirurgiõesdeMiami lhesoldaramosossos,esticaramoquese
havia encolhido e encolheram o que se havia esticado, cerziram o rasgado e lhe
construíram, dissimulando-a com pedaços de carne arrancados dos glúteos, uma
genitália arti cial. O negócio andava sempre teso, mas era pura fachada, uma
armaçãodepelesobreumaprótesedeplástico.“Muitamassaepoucorecheio,ou,
parasermatemático,recheionenhum”,al netoudonRigoberto.Sólheserviapara
urinar,masnemsequersegundoavontade,esimacadavezqueeletomavaalgum
líquido, e, como não tinha o menor controle para evitar que esse constante
escorrimentoensopasseseusfundilhos,opobreManueltraziapendurada,amodode
capuz ou acessório, uma bolsinha de plástico que recolhia suas águas. Salvo essa
inconveniência,oeunucolevavaumavidamuitonormale—cadadoidocomsua
mania—aindasubjugadaàsmotocicletas.
—Vaivisitá-looutravez?—perguntoudonRigoberto,meioapoquentado.
—Elemeconvidouparatomarocháe,vocêsabe,éumbomamigo,dequem
tenhomuitapena—explicoudonaLucrecia.—Mas, se isso incomodavocê,não
vou.
—Vá,vá—desculpou-seele.—Depoismeconte.
Tinhamseconhecidoaindacrianças.Moravamnomesmobairroehaviamsido
namoradosnos temposdo colégio, quandonamorar consistia empasseardemãos
dadasaosdomingos,depoisdamissadasonze,noParqueCentraldeMira ores,e
no Parquinho Salazar, após umamatinê sincopada de beijos e alguma bolinagem
tímida e gentil na plateia. Chegaram até a ser noivos, na época em queManuel
cometia suas façanhas rodantes, saía retratado nas páginas esportivas e as meninas
bonitasmorriamdeamoresporele.SeuborboletearsentimentalfartouLucrecia,que
rompeuonoivado.Nãosevirammais,atéoacidente.Elafoivisitá-lonohospital,
levando-lhe uma caixa de chocolates Cadbury. Reataram uma relação, agora só
amistosa—assimacreditaradonRigoberto,atédescobrirapuraesimplesverdade
—,quecontinuoudepoisdocasamentodedonaLucrecia.
DonRigobertoodivisaravezporoutra,por trásdasvitrinasdeseu orescente
negóciodecompraevendademotosimportadasdosEstadosUnidosedoJapão(às
hieroglí cas marcas nipônicas, Manuel havia acrescentado as americanas Harley-
Davidson eTryumph, além da alemã BMW), à margem da via expressa, quase
chegando à JavierPrado.Nãovoltou aparticiparde campeonatos como corredor,
mas,comóbviosadomasoquismo,continuouvinculadoaoesportecomopromotor
epatrocinadordessesmassacresecarni cinasvicárias.DonRigobertooviaaparecer
nosnoticiáriosdetelevisãobaixandoumaridículabandeiraquadriculada,comarde
estar dando o arranque à Primeira Guerra Mundial, nas linhas de partida ou de
chegadadascorridas,ouentregandouma taçabanhadaemfalsaprataaovencedor.
Esse deslocamento de participante a auspiciador de eventos aplacava — segundo
Lucrecia—aviciosaatraçãodocastradopelasaparatosasmotocicletas.
E o resto? A outra ausência?Também a aplacava um pouco? Nas periódicas
tardes em que costumavam conversar, tomando chá com pasteizinhos, Manuel
mantinhaumanotáveldiscriçãosobreoassunto,queLucrecia,evidentemente,não
cometia a imprudência de mencionar. As conversas dos dois eram triviais,
reminiscênciasdeumainfânciamira orinaeumajuventudesanisidrina,dosantigos
vizinhosdebairroque se casavam,descasavam, recasavam, adoeciam, geravame às
vezesmorriam,entremeadasporcomentáriosdeatualidadesobreoúltimo lme,o
últimodisco,obailedamoda,ocasamentoouafalênciacatastró ca,aestafarecém-
descobertaouoúltimoescândalodedrogas,chifresouaids.Atéqueumdia—as
mãosdedonRigobertopassavamàspressasasfolhasdocaderno,embuscadeuma
anotaçãoque correspondesse à sequênciade imagens já claramente emmovimento
emsuamente—donaLucreciadescobriraseusegredo.Tinha-odescoberto,defato?
OuManuelderaumjeitoparaqueelapensasseassim,quando,naverdade,nãofazia
maisdoquemeteropénaarmadilhaqueelemantinhapreparada?Ofatoéqueum
dia,tomandoochánacasadeleemLaPlanicie,rodeadosdeeucaliptoseloureiros,
ManuellevouLucreciaàsuaalcova.Opretexto?Mostrar-lheumafotogra adeuma
partidadevôleinoColégioSanAntonio,muitosanosantes.Ali,elativeraagrande
surpresa.Umaestanteinteiradelivrosdedicadosaoarrepianteassuntodacastraçãoe
dos eunucos! Uma biblioteca especializada! Em todas as línguas e, sobretudo,
naquelasnãocompreendidasporManuel,quedominavaunicamenteoespanholem
suavarianteperuanaou,maisprecisamente,mira orino-sanisidrina.Eumacoleção
dediscoseCDscomaproximaçõesousimulaçõesdavozdoscastrati!—Virouumespecialistanotema—contouelaadonRigoberto,excitadíssima
comadescoberta.
—Porrazõesóbvias—deduziuele.
TeriasidopartedaestratégiadeManuel?AcabeçorradedonRigobertoassentiu,
no pequeno círculo do quebra-luz. Naturalmente. Para criar uma intimidade
escabrosa, uma cumplicidade no proibido que lhe permitisse, depois, implorar o
temeráriofavor.Elehaviaconfessado—simulandoacanhamento,comvacilaçõesde
tímido?,também—que,desdeabrutalcirurgia,otemafora candoobsessivo,até
se tornar a preocupação central de sua existência.Transformara-se em um grande
conhecedor,capazdediscorrerhorassobreoassunto,abordando-oemseusaspectos
históricos,religiosos,físicos,clínicos,psicanalíticos.(Oex-motociclistateriaouvido
falardovienensedodivã?Antes,não;depois,sim,eatéhavialidoalgumacoisadele,
embora sem entender umapalavra.)Em conversas nas quais os doismergulhavam
em um companheirismo cada vez mais íntimo, no curso dessas reuniões
aparentemente inocentes na hora do chá, Manuel explicou a Lucrecia a diferença
entreoeunuco,varianteprincipalmentesarracenapraticadadesdeaIdadeMédianos
guardiãesdosharéns,osquaisaablaçãoimpiedosadefaloetestículostornavacastos,
e o castrado, versão ocidental, católica, apostólica e romana, que consistia em
despojar somente das bolas — deixando o resto em seu lugar — a vítima da
operação, a quem não se queria privar da cópula mas, simplesmente, impedir a
transformaçãodavozdemenino,aqual,noiníciodaadolescência,baixaumaoitava.
Manuel contou a Lucrecia a historieta, que ambos haviam festejado, do castratoCortona, que escreveu ao pontí ce InocêncioXI pedindo permissão para se casar.
Suasantidade,quenãotinhanadadeinocente,escreveudepunhoeletra,àmargem
da solicitação: “Pois queo castremmelhor.” (“Esses é que erampapas”, alegrou-se
donRigoberto.)
Ele, elemesmo,Manuel, o ás dasmotos, em seus convites para tomar chá e
posandodehomemmodernoquecriticavaaIgreja,haviaexplicadoaLucreciaquea
castração semânimobelicoso,comobjetivosartísticos, começoua serpraticadana
Itália no século XVII, por causa da proibição eclesiástica de que houvesse vozes
femininas nas cerimônias religiosas. Essa censura criou a necessidade do híbrido, o
varão de voz efeminada (“voz caprina” ou “falsete”, “entre vibrante e tremulante”,
explicava no caderno o expert Carlos Gómez Amat), algo possível de fabricar,
medianteumacirurgiaqueManueldescreveuedocumentou,entrexícarasdecháe
alfajores. Havia a maneira primitiva, submergir os meninos de boa voz em água
gelada,paracontrolarahemorragia,e triturar-lhesosbagoscompedrasdeamassar
(“Ui!ui!”,gritoudonRigoberto,esquecidodasratazanasedivertindo-seàgrande),e
aso sticada.Asaber:ocirurgião-barbeiroanestesiavaogarotocomláudano,abria-
lheavirilhacomsuanavalharecém-amoladaetiravadaliastenrasalfaias.Queefeitos
produziaaoperaçãonosmeninoscantoresquesobreviviam?Obesidade,alargamento
torácicoeumapoderosavozaguda,assimcomoumsostenutoinusual;algunscastrati,comoFarinelli, emitiam árias pormais deumminuto sem respirar.Na sossegada
escuridão do escritório, rumormarinho ao fundo, donRigoberto chegou a ouvir,
maisentretidoecuriosodoque satisfeito,avibraçãodaquelascordasvocaisque se
prolongava inde nidamente, em um agudo níssimo, como uma longa ferida na
noitebarranquina.Agora,sim,sentiuocheirodeLucrecia.
“ManueldasPróteses,envenenadopelamorte”,pensoupoucodepois,contente
comseuachado.Mas,imediatamente,recordouqueestavacitando.Envenenadopela
morte? Enquanto suas mãos procuravam no caderno, sua memória reconstituía a
fumacenta e apertadapeña criolla4 para onde Lucrecia o arrastara naquela noiteinsólita.Haviasidoumadesuaspoucasememoráveisimersõesnomundonoturno
da diversão, no estranho país ao qual ele vendia apólices de seguros,
administrativamente o seu, contra o qual construíra este enclave e sobre o qual, à
força de discretos mas monumentais esforços, conseguira saber muito pouco. Ali
estavamosversosdavalsaDesdén:
Desdeñoso,semejantealosdiosesyoseguiréluchandopormisuertesinescucharlasespantadasvocesdelosenvenenadosporlamuerte.
Sem o violão, o cajón e a sincopada voz do cantor, perdia-se algo da audácialúgubre e narcisista do bardo compositor. Porém, mesmo sem a música,
preservavam-seagenialvulgaridadeeamisteriosa loso a.Quemhaviacomposto
essa valsa crioula “clássica”, como a quali cara Lucrecia quandoprocurou saber?E
soube: o autor era chiclayano e se chamavaMiguelPaz.DonRigoberto imaginou
umcaboclinho arisco enotívago,de cachecolnopescoço e violãonoombro, que
faziaserenataseamanhecianosantrosdofolcloreentrecavacosevômitos,agarganta
rasgadadetantocantaranoite inteira.Emtodocaso,excelente.NemVallejonem
Nerudacombinadoshaviamproduzidonadacomparávelaessesversos,que,ademais,
eram dançáveis. Sobreveio-lhe uma risadinha e ele voltou a capturar Manuel das
Próteses,queestavalheescapando.
Tinha sido depois de muitas conversas vespertinas regadas a chá, depois de
entornar sobre donaLucrecia sua enciclopédica informação sobre eunucos turcos e
egípcios e castrati napolitanos e romanos, que o ex-motociclista (“Manuel das
Próteses, Pipi Perpétuo, o Úmido, o Gotejante, o do Capuz, o Bolso Líquido”,
improvisoudonRigoberto,comumhumorquemelhoravaacadasegundo)derao
grandepasso.
—Equalfoisuareação,quandoelelhecontouisso?
Acabavamdever,natelevisãodoquarto,Seduçãodacarne,umbelomelodrama
stendhalianodeVisconti,edonRigobertomantinhaaesposasobreseusjoelhos,ela
decamisolaeeledepijama.
—Fiqueiembasbacada—respondeudonaLucrecia.—Vocêachapossível?
—Seelelhecontoutorcendoasmãosechorando,deveser.Porquementiria?
—Claro,nãohavianenhuma razão— ronronou ela, toda enrodilhada.—Se
vocêcontinuarmebeijandoassimnopescoço,eugrito.Oquenãoentendoépor
queelemecontariaisso.
—Eraoprimeiropasso.—AbocadedonRigoberto foi escalandoomorno
pescoçoatéchegaràorelha,quetambémbeijou.—Oseguinteserápedirquevocêo
deixevê-laou,pelomenos,ouvi-la.
—Contouporquelhefezbemcompartilharseusegredo—tratoudeafastá-lo
donaLucrecia,eopulsodeseumaridosedestrambelhou.—Sabendoqueeusei,ele
devetersesentidomenossó.
—Querapostarcomo,nopróximochá,elevailhefazeressaproposta?—Don
Rigobertoinsistiaembeijardevagarinhoaorelhadela.
—Eu iria emborada casadelebatendo aporta—remexeu-se em seusbraços
donaLucrecia,decidindobeijá-lotambém.—Enãovoltariamais.
Não zeranenhumadessascoisas.ManueldasPrótesestinhapedidocomtanta
humildadeservileprantodevítima,comtantasdesculpaseatenuantes,queelanão
teve coragem (nem vontade?) de se ofender. Por acaso havia respondido: “Não
esqueçaqueeusouumasenhoradecenteecasada”?Não.Ou:“Vocêestáabusando
da nossa amizade e destruindo o bom conceito em que eu o tinha”?Tampouco.
Limitara-seatranquilizarManuel,que,pálido,envergonhado,imploravaqueelanão
o interpretassemal,não se aborrecesse,nãooprivassede sua amizade tãoquerida.
Uma operação de alta estratégia e bem-sucedida, pois, apiedada com tanto
psicodrama,Lucreciavoltouatomarchácomele—donRigobertosentiuagulhas
de acupunturista nas têmporas — e acabou por satisfazê-lo. O envenenado pela
morte ouviu aquela música argêntea e foi embriagado pelo líquido arpejo. Só
ouvindo?Nãoteriasido,também,vendo?
— Juro que não—protestou dona Lucrecia, abrigando-se contra omarido e
falandocomopeitodele.—Noescuromaisabsoluto.Foiminhacondição.Eelea
cumpriu.Nãoviunada.Ouviu.
Namesmaposição, tinhamassistidoaumvídeodeCarminaBurananaÓpera
deBerlim,dirigidaporSeikiOzawa,comoscorosdePequim.
—Épossível— replicoudonRigoberto, a imaginação atiçadapelos vibrantes
latins dos coros (haveriacastrati entreaquelescoristasdeolhos rasgados?).—Mas,
também, pode ser que Manuel tenha desenvolvido sua visão de maneira
extraordinária.Eque,mesmovocênãoovendo,ele,sim,tenhavistovocê.
—Se formos entrar emconjeturas, tudo épossível—discutiu ainda, embora
semmuitaconvicção,donaLucrecia.—Mas,seeleviu,foimuitopouco,nada.
O odor estava ali e não havia dúvida possível: corporal, íntimo, ligeiramente
marinhoecomreminiscênciasfrutais.Fechandoosolhos,donRigobertooaspirou
comavidez,asnarinasmuitoabertas.“EstoucheirandoaalmadeLucrecia”,pensou,
enternecido.O alegre chape-chape do jorro no vaso não dominava aquele aroma,
limitava-seamatizarcomumtoque siológicooqueeraumaexalaçãoderecônditos
humores glandulares, transpirações cartilaginosas, secreções de músculos, que se
adensavam e se confundiam em um e úvio espesso, valente, doméstico. Isso
lembrou a don Rigoberto os momentos mais remotos de sua meninice — um
mundodefraldasetalcos,vômitoseexcrementos,colôniaseesponjasembebidasem
águamorninha,uma tetapródiga—e asnoites enlaçadas comLucrecia.Ah, sim,
compreendiamuito bem omotociclista amputado.Mas não era indispensável ser
rivaldeFarinellinemterpassadopelotrâmitedapróteseparaassimilaressacultura,
converter-se a essa religião, e, como o envenenado Manuel, como o viúvo de
Neruda, como tantos anônimos extraordinários do ouvido, do olfato, da fantasia
(pensou no primeiro-ministro da Índia, o nonagenário Rarji Desai, que lia seus
discursoscompausasparabebergolinhosdoseuprópriopipi:“ah,setivessesidoo
de sua esposa!”), sentir-se transportado ao céu, ao ver e ouvir o ente querido,
agachado ou sentado, interpretando essa cerimônia, aparentemente anódina,
funcional,deesvaziarumabexiga,sublimadaemespetáculo,emdançaamorosa,em
prolegômenooupós-escrito(paraodecapitadoManuel,sucedâneo)doatodoamor.
Don Rigoberto sentiu seus olhos se encherem de lágrimas. Redescobriu o terso
silêncio da noite barranquina e a solidão emque se achava, entre gravuras e livros
autistas.
—Lucreciaquerida,peloquevocêmaisama—rogou, implorou,beijandoos
cabelossoltosdesuaamada.—Urineparamimtambém.
—Primeiro,precisocomprovarque,fechandoportasejanelas,obanheiro que
totalmente às escuras — disse dona Lucrecia, com pragmatismo de executor
testamentário.—Quando chegar omomento, eu o chamo. Você vai entrar sem
ruído,paranãomeinterromper.Esesentarnocantinho.Nãosemoveránemdirá
palavra.A essa altura, os quatro copos d’água começarão a fazer efeito.Nenhuma
exclamação,nenhumsuspiro,nemomínimomovimento,Manuel.Docontrário,eu
vouemboraenãobotomaisospésnestacasa.Pode carnoseucantinhoenquanto
eumeenxugoeajeitoovestido.Nahoradesair,aproxime-se,arrastando-se,e,em
agradecimento,beijemeuspés.
Ele tinha feito isso? Seguramente. Devia ter se arrastado até ela pelo piso
ladrilhadoeaproximadoabocadosseussapatoscomgratidãocanina.Depois,devia
terlavadomãoserostoe,comosolhosmolhados,idoaoencontrodeLucreciana
sala,dizendo-lhe,untuoso,quelhefaltavamaspalavras,oqueelahaviafeitoporele,
a incomensurável felicidade.E, cobrindo-ade louvores, contadoque, na realidade,
era assim desde criança, e não só desde seu salto no precipício. O acidente lhe
permitira assumir como sua única fonte de prazer aquilo que, antes, lhe produzia
umavergonhatãograndequeeleoescondiadosoutrosedesimesmo.Tudohavia
começadoemsuaprimeirainfância,quandodormianoquartodairmãzinhaeababá
selevantavaàmeia-noiteparaverteroslíquidos.Nãosedavaotrabalhodefechara
porta; ele ouvia claríssimo o jorrinho sussurrante, cristalino, saltitante, que o
acalentavaeofaziasentir-seumanjinhonocéu.Eraamaisbela,maismusical,mais
terna recordação de sua meninice. Ela o compreendia, não? Amagní ca Lucrecia
compreendia tudo.Nadaa espantavana labirínticameadados caprichoshumanos.
Manuelo sabia;por isso a admirava, epor isso se atrevera apedir.Sema tragédia
motociclista,nuncaoteriafeito.Porque,atéovoodamotoemdireçãoaoabismo
rochoso,suavidatinhasido,noqueserefereaoamoreaosexo,umpesadelo.Oque
deverasoacendiaeraalgoqueelenuncaousarapediràsmoçasdecentes;limitava-sea
negociarcomprostitutas.E,mesmopagando,quantashumilhaçõestinhasuportado,
risadas, zombarias, olhadelas depreciativas ou irônicas que o coibiam e o faziam
sentir-seumlixo.
Essaeraarazãopelaqualhaviarompidocomtantasnamoradas.Atodasfaltou
lhe dar esse prêmio extraordinário que dona Lucrecia acabava de lhe conceder: o
jorrinhodexixi.UmagargalhadacomiserativasacudiudonRigoberto.Pobreinfeliz!
Quemteria imaginado, entre as esculturaisbelezasque saíam, riame se envolviam
com o astro esportivo, que o luminar domotocross, o ginete de aço, não queriaacariciá-las, despi-las, beijá-las nem penetrá-las: apenas ouvi-las no mictório! E a
nobre,amagnânimaLucreciahaviamijadoparaodani cadoManuel!Essamicção
cariagravadaemsuamemóriacomoasgestasheroicasnoslivrosdehistória,como
osmilagresnasbiogra asdesantos.Lucreciaquerida!Lucreciacondescendentecom
as debilidades humanas! Lucrecia, nome romano que signi cava afortunada!
Lucrecia?AsmãosdedonRigobertopassavamrapidamenteaspáginasdocaderno,e
areferêncianãodemorouaaparecer:
“Lucrecia,damaromana,célebreporsuaformosuraesuavirtude.Foivioladapor
SextoTarquínio, lhodoreiTarquínio,oSoberbo.Depoisdecontaroultrajeao
pai e ao esposo ede incitá-los a vingá-la,matou-senapresençadeles, cravandono
peitoumpunhal.OsuicídiodeLucreciadesencadeouaexpulsãodosReisdeRomae
a instauração da República, no ano 509 antes de Cristo. A gura de Lucrecia se
transformouemsímbolodopudor,dahonestidadee,sobretudo,daesposahonesta.”
“É ela, é ela”, pensou don Rigoberto. Suamulher podia provocar cataclismos
históricos e perenizar-se como símbolo. Da esposa honesta? Entendendo-se a
honestidadeemumsentidonãocristão,claro.Queesposacompartilhariacomtanta
devoçãoasfabulaçõesdomarido,comohaviafeitoela?Nenhuma.Eahistóriacom
Fonchito? Bom,melhor contornar essas areias movediças. A nal, tudo não havia
permanecidoemfamília?Ela fariaomesmoqueamatronaromana,aoserviolada
porSextoTarquínio?UmgeloatravessouocoraçãodedonRigoberto.Comuma
caretade susto,ele seesforçouporafastara imagemdeLucreciaestendidano solo
com o coração atravessado por um punhal. Para conjurá-la, retrocedeu ao
motociclista deslumbrado pela destilação das bexigas fêmeas. Só fêmeas? Ou
tambémmachos?Oespetáculodeumcavalheiroesguichanteosoerguiaporigual?
— Nunca — revelou Manuel de imediato, em tom tão sincero que dona
Lucreciaacreditou.
Bom, tampouco era certo que sua vida tivesse sido só umpesadelo por culpa
dessa necessidade (como chamá-la, para não dizer vício?). Colorindo o desértico
panorama de insatisfações e frustrações, tinha havido momentos balsâmicos,
efervescentes, surgidos quase sempre por acaso, modestas compensações à sua
angústia.Porexemplo,aquelalavadeiracujorostoManuelrecordavacomomesmo
afetocomqueagenterecordaaquelastias,avósoumadrinhasmaisligadasàcalidez
da infância. Vinha lavar a roupa, duas vezes por semana. Devia sofrer de cistite
porque,acadamomento,corriadotanqueoudatábuadeengomaraobanheirode
serviço,juntoàcopa.EaliestavaomeninoManuel,semprealerta,encarapitadono
desvão, a cara amassada contra o solo, aguçando o ouvido. Vinha o concerto, a
cascata rumorosa e farta, uma verdadeira inundação. Essa mulher era uma bexiga
futebolística, uma represa viva, dados o ímpeto, a abundância, a frequência e a
sonoridadedesuasmicções.Umavez—donaLucreciaviudilatarem-segulosamente
aspupilasdomotociclistadaprótese—,Manuelatinhavisto.Sim,visto.Bom,não
inteira. Em um ato de audácia, içou-se pela treliça do jardim até a claraboia do
banheirinhodeserviçoe,porunsgloriosossegundos,sustentando-senoar,divisoua
matade cabelos, osombros, aspernas commeiasde lã eos sapatos sem salto,da
mulhersentadanovaso,desaguando-secombuliçosaindiferença.Ai,quealegria!
Tinhahavido,também,aquelaamericana,loura,bronzeada,ligeiramentevaronil,
sempredebotasechapéudecaubói,queveioparticipardeLaVueltadelosAndes.
Eraumamotociclista tãoousadaquequasevenceua competição.Manuel,porém,
não recordava tanto sua destreza com amáquina (Harley-Davidson, claro) quanto
suasmaneiras desenvoltas, sua ausência demelindres, que lhe permitia, nas etapas,
compartilharosquartosdedormircomospilotosetomarbanhodiantedelessenão
houvessemaisdeumbanheiro,eatéentrarnotoaleteefazersuasnecessidadessemse
incomodar quando, no mesmo cubículo, separados por um tabique, havia vários
motociclistas.Quetempos!Manuelviveraumacrepitaçãocrônica,umaprolongada
ereçãodoórgãodesaparecido,escutandoosdesafogoslíquidosdaemancipadaSandy
Canal,quetransformaramaquelacompetição,paraele,emfesta interminável.Mas
nemalavadeiranemSandynemnenhumadasexperiênciascasuaisoumercenáriasde
suamitologia podiam ser comparadas com essa de agora, superlativa graça, maná
liquefeito,comquedonaLucreciaofizerasentir-seumdeus.
DonRigobertosorriu,satisfeito.Nãohavianenhumaratazanapelascercanias.O
templo deKarniji, seus brâmanes, exércitos de roedores e tachos de calda estavam
alémdosoceanos,continentese selvas.Ele,aqui, sozinho,nanoiteque terminava,
em seu refúgiodegravuras e cadernos.Havia indíciosde amanhecernohorizonte.
Hoje tambémestariabocejandono trabalho.Cheirava a alguma coisa?Oodorde
viúva se havia dissipado. Ouvia alguma coisa? As ondas, e, perdido entre elas, o
chapinhardeumadamafazendoxixi.
“Eu”—pensou, sorridente—“souumhomemque lava asmãosnãodepois,
masantesdeurinar.”
Menu diminutivo
Sei que gostas de comida pouquinha e simplesinha, mas gostosinha, e estou
preparadinhaparateagradartambémnamesinha.
Demanhã cedinho irei aomercado e comprarei o leitinhomais fresquinho, o
pãozinho bem quentinho e a laranjinha mais coradinha. E te despertarei com a
bandejinhadodesjejum,uma orzinhacheirosaeumabeijoquinha.“Aquiestãoteu
suquinhosemcarocinho,tuatorradinhacomgeleiademoranguinhoeteucafécom
leitesemaçuquinha,patrãozinho.”
Parateualmocinho,sóumasaladinhaeumiogurtinho,comogostas.Lavareias
alfacinhas até que brilhem e cortarei os tomatinhos com arte, me inspirando nos
quadrinhosdetuabiblioteca.Omolhinhodasaladaserácomazeitinho,vinagrinho,
gotinhasdaminhasalivinhae,emvezdesal,minhaslagriminhas.
Nojantarzinho,acadadiaumadetuaspreferências(tenhocardapinhosparaum
aninho, sem repetir nem uma vezinha). Batatinha com charquinho, papinha de
feijão,guisadinhodeperu,bolodebatatinhacomfranguinho,dobradinha,sequinho
de lombinho ou carneirinho, bistequinha à chorrillana, cevichinho de corvina,
camarãozinhoensopadoouà limenha, arrozinhocompatinho, arrozinho recheado
de forninho, lezinho com pirãozinho de arroz e feijãozinho, pimentãozinho
recheado, galinhita des ada comparmesãozinho.Tudo comalgumapimentinha e
muitos outros temperinhos. E, claro, teu copinho de vinhinho tinto ou uma
cervejinhabemgeladinha,aescolher.Masémelhoreupararporaqui,paranãotedar
fominha.
Como sobremesa, gogóda vovozinha, suspirinho à limenha, panquequinhade
mel, crepinho com chocolatinho, sonhinho recheado, barriguinha de freira,
maçapãozinho, rosquinha, pudinzinho de queijo com canelinha, caramelinho de
coco, torrãozinho de dona Pepa, creminho de milho roxo com frutinhas secas,
pasteizinhosdefigocomrequeijãozinho.
Me aceitas como tua cozinheirinha? Sou limpinha, tomo um banhozinho ao
menosduasvezespordia.Nãomascochicletinho,nemfumocigarrinho,nemtenho
pelinhos nas axilas, minhas mãozinhas e meus pezinhos são tão perfeitos como
minhas tetinhas emeu bumbum.Trabalharei todas as horas que for preciso para
manter bem contentinhos teu paladar e tua barriguinha. Se preciso, também te
vestirei,desvestirei,ensaboarei,barbearei,cortareituasunhinhasetelimpareiquando
zeresonúmerodois.Nahorinhadenanar,teenvolvereicommeucorpinhopara
que na caminha não sintas friozinho. Além de fazer tuas comidinhas, serei tua
camareirinha, teu aquecedorzinho, teu aparelhinho de barba, tua tesourinha e teu
papelzinhohigiênico.
Meaceitas,patrãozinho?
Tuinha,tuinha,tuinha,
Acozinheirinhasemjoanetes
3“Aslamparinasquecontêmoóleoaromáticodesprendemumodormaissuavequandolhesapagamachama.
Deigualmodoasviúvas,cujoamorfoipuronocasamento,exalamumpreciosoearomáticoodordevirtude
decastidade,quandosuachama,istoé,seumarido,éapagadapelamorte.”(N.daT.)
4Literalmente,“rodacrioula”,“grupocrioulo”,nomequesedá,noPeru,aoslocaisnoturnosondesefazem
apresentações demúsica típica.Adiante: “Desdenhoso, semelhante aos deuses,/ seguirei lutando porminha
sorte,/ sem escutar as assustadas vozes/ dos envenenados pelamorte.”O cajón,mencionado a seguir, é um
instrumento de percussão, hoje tipicamente peruanomas de origem africana, constituído de uma caixa de
madeira.(N.daT.)
VI.
A carta anônimaVI - A carta anônima
Em vez de aborrecida como na noite anterior, quando fora se deitar levando no
punhoopapelamassado,a senhoraLucreciadespertoudebomhumore satisfeita.
Tinhaumasensaçãolevementevoluptuosa.Estendeuamãoepegouacartarabiscada
emletrasdeimprensa,emumpapelgranuladoazul-pálido,agradávelaotato.
“Diantedoespelho,sobreumacamaouumsofá...”Dispunhadeumacama,mas
não de sedas indianas nem de batique indonésio; portanto, não cumpriria essa
exigênciadoamosemrosto.Ooutropedido, istosim,podiasatisfazê-lo:deitar-se
decostas,nua,cabelossoltos,encolheraperna,alojaracabeçanojoelho,pensarque
eraaDânaedeKlimt(emboranãoacreditasse)esimularquedormia.E,claro,podia
severnoespelhodizendo-se:“Souobjetodegozoeadmiração,desonhoedeamor.”
Comumsorrisinhodivertidoeolhoscujobrilhodevagalumeserepetianoespelho
dotoucador,afastouoslençóisebrincoudeseguirasinstruções.Mas,comosóviaa
metadedeseucorpo,nãosoubeseconseguiraimitarcomalgumaverossimilhançaa
posturadoquadrodeKlimtqueocorrespondente-fantasmalheenviara,numatosca
reproduçãodecartão-postal.
Quandofaziaodesjejum,conversandodistraidamentecomJustiniana,edepois,
embaixodochuveiroeenquantosevestia,sopesoumaisumavezasrazõesparadar
umnomeeumrostoaoautordacarta.DonRigoberto?Fonchito?Esefossealgo
tramado por ambos? Que absurdo! Não, não tinha pé nem cabeça. A lógica a
inclinavaapensaremRigoberto.Ummododefazê-lasaberque,apesardoocorrido
edaseparação,eleamantinhasemprepresenteemseusdelírios.Ummododesondar
a possibilidade de reconciliação. Não. Aquilo tinha sido duro demais para ele.
Rigobertonuncaseriacapazdefazeraspazescomamulherqueoenganaracomo
lhodele, e emsuacasa.Aquelevermezinhorançoso,oamor-próprio,o impedia.
Então, se a carta anônima não tinha sido enviada pelo ex-marido, o autor era
Fonchito.Omeninonãotinhaamesmafascinaçãodopaipelapintura?Omesmo
bomoumaucostumedeentremearavidadosquadroscomaverdadeira?Sim,tinha
sidoele.Alémdomais,opróprioFonchitosedelatara,aludindoaKlimt.Elaofaria
saberquesabiadissoeodeixariaenvergonhado.Nessamesmatarde.
As horas de espera foram longuíssimas para dona Lucrecia. Sentada na sala de
jantar, ela olhava o relógio, temerosa de que, precisamente hoje, Fonchito não
aparecesse. “MeuDeus, patroa, até parece que a senhora está esperando a primeira
visitadeumnamorado”,brincouJustiniana.Elacorou,emvezderir.Assimqueele
apareceu,comsuabelacarinhaeodelicadocorpinhometidonasbagunçadaspeças
douniformedecolégio,jogouamochilasobreotapeteeacumprimentoubeijando-
anaface,donaLucreciafezestaadvertência:
—Vocêeeuprecisamosconversarsobreumacoisamuitofeia,mocinho.
Viuaexpressãointrigadaeosolhosazuisquesearregalavam,inquietos.Eletinha
se sentadodiante dela, com as pernas cruzadas.DonaLucrecia notouqueumdos
cadarçosdosseussapatosestavadesatado.
—Sobreoquê,madrasta?
—Umacoisamuitofeia—repetiu,mostrando-lheacartaeopostal.—Amais
covardeesujaqueexiste:mandarcartasanônimas.
Omeninonãoempalideceu,nemenrubesceu,nempiscou.Continuouolhando-
a, curioso, semomenordesconcerto.Ela lheestendeuacartaeopostal enão lhe
tirouos olhos de cima, enquantoFonchito,muito sério, umapontinhada língua
aparecendo entre os dentes, lia a correspondência anônima, como que soletrando.
Seusolhinhosespertosvoltavamsobreaslinhas,váriasvezes.
—Temduaspalavrasquenãoentendo—dissepor m,banhando-acomsua
miradatransparente.—Helenaebatique.UmamoçanaacademiasechamaHelena.
Mas,aqui,onomeapareceemoutrosentido,não?Enuncaouvifalardebatique.O
quesignificam,madrasta?
—Não se façade idiota— irritou-sedonaLucrecia.—Porqueme escreveu
isto?Achouqueeunãoiaperceberqueeravocê?
Sentiu-se meio incomodada pelo desconcerto, agora sim muito explícito, de
Fonchito,que,depoisdebalançaracabeçaduasvezes,perplexo,voltouaexaminara
cartaanônimaealê-la,movendooslábiosemsilêncio.E coutotalmentesurpresa
quando viu que o menino, ao levantar a cabeça, sorria de orelha a orelha. Com
alegriatransbordante,eleergueuosbraços,saltousobreelaeabraçou-a,soltandoum
gritinhodetriunfo:
—Ganhamos,madrasta!Nãopercebeu?
—Oqueeudeviaperceber,seugeniozinho?—perguntouela,afastando-o.
—Mas,madrasta—Fonchitoaencaravacomternura,compadecido—,nosso
plano,poisentão.Estádandocerto.Eunãodissequedevíamosdeixá-loenciumado?
Alegre-se,estamosindomuitobem.Vocênãoquerfazeraspazescomopapai?
—Não tenhonenhumacertezadeque esta carta sejadeRigoberto—hesitou
donaLucrecia.—Desconfiomaisédevocê,suamosca-morta.
Calou-se,porqueomeninoria,olhando-acomabenevolênciacarinhosaqueum
pobredeespíritomerece.
—SabiaqueKlimtfoiomestredeEgonSchiele?—exclamouelederepente,
antecipandoumaperguntaqueelatrazianoslábios.—Schieleoadmiravaeopintou
no leitodemorte.Umcarvãomuitobonito,Agonia,de1912.Nessemesmoano,
pintoutambémOseremitas,emqueeleeKlimtaparecemcomhábitosdemonges.
—Tenhocertezadequefoivocêquemescreveuisto,seuvelhotesabe-tudo—
aborreceu-sedenovodonaLucrecia.Sentia-sedivididaporconjecturascontraditórias
eirritadapelacaradespreocupadadeFonchito,quefalavacomtantasegurança.
—Mas,madrasta,emvezdefazermaujuízo,vocêdeviasealegrar.Estacartinha
quem lhemandou foi o papai, para lhemostrar que já a perdoou e quer fazer as
pazes.Comoéquevocênãopercebe?
—Bobagem.Éumacartaanônimainsolenteemeiocalhorda,sóisso.
—Não seja tão injusta!—protestouomenino, veemente.—Ele a compara
com um quadro de Klimt, diz que, quando o artista pintou essa moça, estava
adivinhandocomovocê seria.Ondeestá a calhordice?Éumelogiomuitobonito.
Umamaneiraqueopapaiprocuroupararestabelecerocontato.Vocêvairesponder?
—Não posso responder, nãome consta que tenha sido ele.— Agora, dona
Lucreciaduvidavamenos.Queriarealmentesereconciliar?
—Viu?Deixá-loenciumadofuncionouàsmilmaravilhas—repetiuomenino,
feliz.—Desde que eu disse que vi você de braço dado com um senhor, ele está
imaginando coisas. Ficou tão assustado que lhe escreveu esta carta.Não sou bom
detetive,madrasta?
DonaLucreciacruzouosbraços,pensativa.Nuncalevaraasérioaideiadefazeras
pazescomRigoberto.TinhadadocordaemFonchito sóparapassaro tempo.De
repente,pelaprimeiravez,areconciliaçãonãolhepareciaumaremotaquimera,mas
algo que podia acontecer. Era o que desejava? Voltar para a casa de Barranco,
recomeçaravidadeantes?
—Quemmais,alémdopapai,podiacompará-lacomumapinturadeKlimt?—
insistiuomenino.—Nãovê?Ele está lhe recordandoos joguinhos comquadros
quevocêsdoisfaziamànoite.
AsenhoraLucreciasentiuqueoarlhefaltava.
—Doquevocêestáfalando?—balbuciou,semforçasparadesmenti-lo.
—Mas,madrasta—respondeuomenino,gesticulando.—Daquelesjogos,ora.
Quandoeledizia:hojevocêéCleópatra,hojeVênus,hojeAfrodite.Evocêimitava
aspinturasparaagradá-lo.
— Mas, mas... — No auge do vexame, dona Lucrecia não conseguia se
encolerizar e sentia que tudo o que dizia acabava por delatá-la aindamais.—De
ondesaiuisso?Vocêtemumaimaginaçãomuitoretorcidaemuito,muito...
— Você mesma me contou— liquidou-a o menino.— Que cabeça a sua,
madrasta.Jáesqueceu?
DonaLucrecia coumuda.Elamesmahaviacontado?Investigousuamemória,
emvão.NãoselembravadehavertocadonesseassuntocomFonchito,nemsequer
damaneiramaisindireta.Nunca,jamais,claroquenão.Maseentão?Rigobertoteria
feitocon dênciasao lho?Impossível.Rigobertonãofalavacomninguémdesuas
fantasiasedesejos.Nemcomela,duranteodia.Essahaviasidoumaregrarespeitada
aolongodosdezanosdecasamento:nuncaaludirduranteodia,nemdebrincadeira
nem a sério, ao que eles diziam e faziam à noite, no segredo da alcova. Para não
trivializar o amor e conservar-lhe a aura mágica, sagrada, dizia Rigoberto. Dona
Lucrecia recordou os primeiros tempos de casada, quando começava a descobrir o
outroladodavidadoseumarido,aquelaconversasobreolivrodeJohanHuizinga,
Homoludens,umdosprimeirosqueelelhehaviaimploradoquelesse,assegurando
que na ideia da vida como jogo e do espaço sagrado estava a chave da felicidade
futura dos dois. “O espaço sagrado acabou sendo a cama”, pensou.Tinham sido
felizes com aquelas brincadeiras noturnas, que, no princípio, apenas a intrigavam,
masqueaospoucosatinhamconquistado,apimentandosuavida—suasnoites—
comficçõessemprerenovadas.Atéaloucuracomaquelepirralho.
—Quemrisozinhodesuasmaldadesselembra.—AvozjovialdeJustiniana,
quetraziaabandejadochá,tirou-adesuasdivagações.—Oi,Fonchito.
—Opapai escreveuumacarta àmadrasta e logo, logo, elesvão se reconciliar.
Talcomoeulhedisse,Justita.Fezmeuschancays?—Bemtostadinhos,commanteigaegeleiademorango.—Justinianasevoltou
paradonaLucrecia,arregalandoosolhos.—Vaifazeraspazescomopatrão?Quer
dizerquevamosnosmudardevoltaparaBarranco?
—Bobagem—disseasenhoraLucrecia.—Nãoconheceestemoleque?
— Veremos se é bobagem — protestou Fonchito, atacando os pãezinhos
enquantodonaLucrecia lhe servia o chá.—Quer apostar?Oque vocêmedá, se
fizeraspazescomopapai?
—Umbeliscão—disseasenhoraLucrecia,abrandada.—Evocê,oquemedá
seperder?
—Umbeijo—riuomenino,piscando-lheoolho.
Justinianasoltouumagargalhada.
—Émelhoreuirsaindo,paradeixarsozinhososdoispombinhos.
—Cale aboca, suamaluca— repreendeu-adonaLucrecia, quando amoça já
nãopodiaouvi-la.
Tomaram o chá em silêncio. Dona Lucrecia continuava impregnada de
reminiscências de sua vida com Rigoberto, pesarosa pelo que acontecera. Aquela
ruptura não tinha remédio. Havia sido muito séria, não permitia retorno. Seria
possível retomar a vida a três, juntos de novo na mesma casa? Nesse momento,
ocorreu-lhe que Jesus Cristo, aos doze anos, havia assombrado os doutores do
templodiscutindocomeles,deigualparaigual,sobrematériasteológicas.Sim,mas
Fonchitonão eraummenino-prodígio como JesusCristo.Era-o comoLúcifer, o
Príncipe dasTrevas.Não fora ela,mas ele, ele, o supostomenino, quem tivera a
culpadetodaaquelahistória.
— Sabe em que outra coisa eu me pareço com Egon Schiele, madrasta? —
perguntou Fonchito, arrancando-a de seu devaneio. — É que eu e ele somos
esquizofrênicos.
Elanãopôdeconterumagargalhada.Masinterrompeuorisoderepente,porque,
comoemoutrasvezes, intuiuqueporbaixodoquepareciaumacriancicepodiase
esconderalgotenebroso.
—Eporacasovocêsabeoqueéumesquizofrênico?
—Équando,sendosóumapessoa,vocêseachaduasoumais,ediferentes.—
Fonchitorecitavaumalição,exagerando.—Opapaimeexplicouontemànoite.
—Bom,entãovocêpoderia ser—murmuroudonaLucrecia.—Porque, em
você,háumvelhoeummenino.Umanjinhoeumdemônio.Oqueissotemaver
comEgonSchiele?
De novo, Fonchito distendeu a cara em um sorriso satisfeito. E, depois de
murmurar um rápido “Espere aí, madrasta”, remexeu a mochila em busca do
indefectível livrode reproduções.Oumelhor,os livros,pois a senhoraLucrecia se
lembrava de ter visto pelo menos três. Ele andava sempre com um na mochila?
Estavapassandodo limite,comsuamaniade se identi caremtudoea todahora
com esse pintor. Se ela tivesse comunicação com Rigoberto, sugeriria que ele o
levasse a um psicólogo.Mas, no ato, riu de si mesma. Que ideia descabida, dar
conselhos ao ex-marido sobre a educação do pirralho que causara a ruptura do
casamento.Estavavirandoumaidiota,ultimamente.
—Veja,madrasta.Oqueacha?
DonaLucreciapegouo livronapáginaqueFonchito lheapontavaeofolheou
porumbomtempo,tentandoconcentrar-senaquelasimagensquentes,contrastadas,
naquelas guras masculinas que se exibiam diante dela, em duplas ou em trios,
olhando-acom impavidez,vestidas,metidas em túnicas,nuas, seminuas e, vezpor
outra,tapandoosexooumostrando-o,eretoeenorme,comtotalimpudor.
—Bem,sãoautorretratos—dissepor m,sóparadizeralgumacoisa.—Uns
bons,outrosnemtanto.
—Elepintoumaisdecem—ilustrou-aomenino.—DepoisdeRembrandt,
Schielefoiopintorquemaisretratouasimesmo.
—Issonãoquerdizerquefosseesquizofrênico.Nomáximo,umNarciso.Você
tambéméisso,Fonchito?
—Vocênãoprestouatençãodireito.—Omeninoabriuoutrapágina,emais
outra, instruindo-a, enquanto apontava:—Não percebeu? Ele se duplica e até se
triplica. Este, por exemplo.Os videntes de si mesmos, de 1911. Quem são essas
guras?Elemesmo,repetido.EProfetas(Autorretratoduplo),de1911.Olhebem.
Éelemesmo,nuevestido.Autorretratotriplo,de1913.Ele,trêsvezes.Emaistrêsaí,
àdireita,emtamanhopequeno.Via-seassim,comoseexistissemváriosEgonSchiele
dentrodele.Issonãoéseresquizofrênico?
ComoFonchitoseatropelavaaofalareseusolhosrelampeavam,donaLucrecia
tentouacalmá-lo.
— Bom, talvez tivesse tendência à esquizofrenia, como muitos artistas —
admitiu.—Ospintores,ospoetas,osmúsicos.Elestêmmuitascoisasdentro,tantas
que, às vezes, não cabemnumapessoa só.Mas você é omeninomais normal do
mundo.
—Nãomefalecomoseeufosseumtarado,madrasta—aborreceu-seAlfonso.
—Eu sou como ele era e você sabemuito bem, porque acaba deme dizer.Um
velhoeummenino.Umanjinhoeumdemônio.Ouseja,esquizofrênico.
Ela lhe acariciou os cabelos. As alvoroçadas e suavesmechas louras deslizaram
entreseusdedosedonaLucreciaresistiuàtentaçãodetomá-lonosbraços,sentá-lo
nocoloeacalentá-lo.
— Você tem saudade de sua mãe? — deixou escapar. Mas logo tentou se
recompor:—Querodizer,pensamuitonela?
—Quase nunca— disse Fonchito, muito tranquilo.—Mal me lembro do
rostodela, sómesmopelas fotos.Eutenhosaudadeédevocê,madrasta.Por isso,
queroquefaçaaspazescomopapaideumavezportodas.
—Nãovai ser tão fácil.Nãopercebe?Existem feridasdifíceis de cicatrizar.O
queaconteceucomRigobertoéumadelas.Elesesentiumuitoofendido,ecomtoda
arazão.Eucometiumaloucuraquenãotemdesculpa.Nãosei,nuncasabereioque
me aconteceu. Quanto mais penso, mais inacreditável me parece. Como se não
tivessesidoeu,comoseoutrativesseagidodentrodemim,mesuplantando.
—Então,vocêtambéméumpoucoesquizofrênica,madrasta—riuomenino,
fazendooutravezaexpressãodetê-laapanhadoemfalta.
—Umpouco, não.Bastante—assentiu ela.—Mas vamosparar de falar de
coisastristes.Mecontealgoaseurespeito.Oudoseupai.
— Ele também sente saudade de você.— Fonchito fez uma expressão séria,
quasesolene.—Porissolheescreveuestacarta.Aferidajáfechoueelequerfazeras
pazes.
Dona Lucrecia não teve disposição para discutir. Agora, sentia-se vencida pela
melancoliaeumpoucotriste.
—ComoestáRigoberto?Levandosuavidadesempre?
—Do trabalhopara casa edecasaparao trabalho, todo santodia—assentiu
Fonchito.—Metido no escritório, ouvindomúsica, contemplando suas gravuras.
Masissoéumpretexto.Elenãosetrancaaliparaler,verpinturasouescutardiscos.
Éparapensaremvocê.
—Comoéquevocêsabe?
—Porqueelelhefala—afirmouomenino,baixandoavozedandoumaolhada
parao interiordacasa,a mdeveri carseJustiniananãoestavaporperto.—Eu
ouvi.Me aproximo devagarinho e grudo a orelha na porta.Nunca falha. Ele está
falandosozinho.Edizseunomeatodahora.Juro.
—Nãoacredito,seumentiroso.
—Vocêsabequeeunãoinventariaumacoisadessas,madrasta.Estávendooque
lhedigo?Elequerquevocêvolte.
Falavacomtantasegurançaqueeradifícilnãosesentirarrastadaparaomundo
dele, tão sedutor e tão falso, de inocência, bondade e maldade, pureza e sujeira,
espontaneidade e cálculo. “Desdeque essahistória aconteceu,nuncamaisme senti
angustiadapornãoter tidoum lho”,pensoudonaLucrecia.Tevea impressãode
entender por quê. Agachado, com o livro de reproduções aberto aos seus pés, o
meninoaesquadrinhava.
—Sabedeumacoisa,Fonchito?—disseela,quasesemrefletir.—Gostomuito
devocê.
—Eutambém,devocê,madrasta.
—Nãome interrompa.E,como lhe tenhoafeto, sintopenaporvocênão ser
comoosoutrosmeninos.Sendotãoprecoce,perdealgoquesósevivenessasuafase.
Acoisamaismaravilhosaquepodeaconteceraumapessoaéterasuaidade.Evocê
estádesperdiçandoisso.
—Nãoentendo,madrasta—disseFonchito, impaciente.—Comoassim, se
agoramesmo você disse que eu sou omeninomais normal domundo? Fiz algo
errado?
—Não,não—respondeuela,tranquilizando-o.—Querodizer:eugostariade
vê-lo jogarfutebol, iraoestádio,saircomoscompanheirosdebairroedecolégio.
Teramigosdesuaidade.Organizarfestas,dançar,namorarascoleguinhas.Nãotem
vontadedefazernadadisso?
Fonchitodeudeombros,desdenhoso.
—Que coisas mais sem graça...—murmurou, sem dar importância ao que
ouvia.—Eu jogo futebol no recreio, e pronto.Às vezes saio comos vizinhosde
bairro.Masmechateiocomasbesteirasdequeelesgostam.Easmeninassãomais
tolasainda.AchaqueeupoderialhesfalardeEgonSchiele?Quandoestoucommeus
amigos,parecequepercomeutempo.Comvocê,não,euganho.Pre romilvezes
carconversandoaquidoquefumandocomosgarotosnocalçadãodeBarranco.E
paraqueprecisodasmeninas,setenhovocê,madrasta?
DonaLucrecianãosoubeoquedizer.Osorrisoqueesboçounãopodiasermais
falso.TinhacertezadequeFonchitoestavaconscientedoembaraçoqueela sentia.
Com sua carinha estendida para diante, os traços alterados pela euforia, os olhos
devorando-acomumaluzvaronil,elepareciaquererselançarparabeijá-lanaboca.
E,nessemomento,notou,aliviada,asilhuetadeJustiniana.Maslogopercebeuque
seu alívio não duraria muito: ao ver o pequeno envelope branco nas mãos da
empregada,adivinhou.
—Meteramistoaquiporbaixodaporta,patroa.
—Apostoqueéoutracartaanônimadopapai—aplaudiuFonchito.
Exaltação e defesa das fobias
Deste afastado cantinho do planeta, amigo Peter Simplon— se é que esse é seu
sobrenome e não foi maldosamente alterado por algum ofídio do serpentário
jornalístico, para evocar “simplório” e caricaturá-lo aindamais—, faço-lhe chegar
minhasolidariedade,acompanhadadeadmiração.Desdeestamanhã,quando,rumo
ao trabalho, ouvi no noticiário da Rádio América que um tribunal de Syracusa,
estado de Nova York, condenou o senhor a três meses de prisão por ter-se
encarapitado várias vezes no telhado de sua vizinha, a m de espiá-la quando ela
tomavabanho,conteiosminutospara, terminadaa jornada,voltaràminhacasae
rabiscar-lheestas linhas.Apresso-mea lhedizerqueestesefusivos sentimentospara
comsuapessoaexplodiramemmeupeito (nãoémetáfora, tivea sensaçãodeque
uma granada de amizade estourava entre minhas costelas), não quando conheci a
sentença, mas ao inteirar-me de sua resposta ao juiz (resposta que o desgraçado
considerouumagravante):“Fizissoporqueaatraçãodaquelasmatasaveludadasnas
axilasdaminhavizinhameera irresistível.”(Aolerestapartedanotícia,o locutor,
umacascavel,fezumamelí uavozdetroça,paradeixarclaroaosseusouvintesque
eraaindamaisimbecildoquesuaprofissãonosobrigaasupor.)
Amigo fetichista: eununca estive emSyracusa, cidadeda qual nada sei, exceto
queno inverno é assoladapor tempestadesdeneve eporum friopolar,mas algo
especialessaterradeveteremsuasentranhasparaprocriaralguémdesuasensibilidade
e sua fantasia, sem falar da coragem que o senhor demonstrou, afrontando o
descréditoe,imagino,seuganha-pãoeazombariadeamigoseconhecidos,emdefesa
de sua pequena excentricidade (digo pequena para signi car inofensiva, benigna,
muitosalutarebené ca,claroestá,poisosenhoreeusabemosquenãohámaniaou
fobia que careça de grandeza, já que elas constituem a originalidade de um ser
humano,amelhorexpressãodesuasoberania).
Dito isso, sinto-me obrigado, para evitar mal-entendidos, a fazê-lo saber que
aquiloque,paraosenhor,émanjar,paramiméxepa,eque,noriquíssimouniverso
dosdesejosedossonhos,essas oraçõesdevelosnasaxilasfemininas,cujavisão(e,
suponho,cujossabor,toqueeodor)oenchedefelicidade,amimmedesmoralizam,
me enojam e me reduzem à inapetência sexual. (A contemplação de A mulherbarbudadeRiberameproduziuumaimpotênciadetrêssemanas.)Porisso,minha
amadaLucreciasempresearranjouparaqueemsuastépidasaxilasnuncaassomasse
sequer a premonição de um velo e sua pele parecesse sempre, aos meus olhos, à
minha línguaeaosmeus lábios, a lisabundinhadeumquerubim.Emmatériade
velofeminino,somenteopúbicomeédeleitoso,desdequeestejabemtosquiadoe
nãoseexcedaemdensostufos,maranhasoumechas laníferasquedi cultemoato
doamoretornemocunnilingusumempreendimentocomriscodeasfixiaeengasgo.
Como todeemulá-loemmatériadecon ssãodaintimidade,acrescentoque
não só as axilas enegrecidas de velo (pelo é uma palavra que envilece a realidade,
adicionando-lhe uma matéria seborreica e casposa) me provocam esse terror
antissexual,sócomparávelaoproduzidoemmimpelorepulsivoespetáculodeuma
mulherquemascachicletesouexibebuço,oupelodeumbípededequalquersexo
que futuca a dentadura em busca de excrescências com esse ignóbil objeto
denominadopalito,ouróiasunhas,ouchupa,aosolhoseàvistadomundo,sem
escrúpulosnemvergonha,umamanga,umalaranja,ummaracujá,umpêssego,uvas,
mandarinas,ouqualquer frutadotadadessasdurezashorríveiscuja simplesmenção
(não digo visão) me deixa arrepiado e infecta minha alma de furores e urgências
homicidas: gomos, bras, caroços, cascas, folhelos ou películas. Em nada exagero,
companheiro no orgulho de nossos fantasmas, se lhe digo que jamais consigo
observar alguém comendo uma fruta e tirando da boca ou cuspindo excrescências
incomestíveis semme sentir invadido por náuseas e até desejos de que o culpado
morra.Poroutrolado,sempreconsidereiqualquercomensalquelevantaocotovelo
simultaneamenteàmão,nahoradelevarogarfoàboca,umcanibal.
Assimsomos,nãonosenvergonhamos,enadaadmirotantoquantoquealguém
sejacapazdeirparaaprisãoedeexpor-seàinfâmiaemrazãodesuasmanias.Eunão
soudesses.Organizeiminhavida secretamenteeemfamília,peloquenãochegoà
estaturamoral que o senhor alcançou empúblico.Emmeu caso, tudo é levado a
cabonadiscriçãoenorecato,semânimomissionárionemexibicionista,demaneira
sinuosa,paranãoprovocaraomeuredor,entreaspessoascomquemsouobrigadoa
conviverpormotivosdetrabalho,deparentescooudeservidãosocial,asironiasea
hostilidade.Seosenhorestápensandoqueháemmimmuitacovardia—sobretudo
emcomparaçãocomsuadesenvolturaparaapresentar-seaomundotalcomoé—,
acertou emcheio.Agora, soumenos covardedoquequando jovemem relação às
minhas fobiasemanias—nãomeagradanenhumdesses termos,consideradassua
carga pejorativa e suas associações a psicólogos ou divãs psicanalíticos, mas como
chamá-las sem apequená-las: excentricidades?, desejos privados? Por enquanto,
digamos que a última expressão é a menos ruim. Naquele tempo, eu era muito
católico,militanteedepoisdirigentedaAçãoCatólica,in uenciadoporpensadores
como JacquesMaritain; isto é, um cultor de utopias sociais, convencido de que,
mediante um enérgico apostolado inspirado na palavra evangélica, era possível
arrebataraoespíritodomal—nósochamávamospecado—odomíniodahistória
humana, e construir uma sociedadehomogênea, alicerçadanos valores do espírito.
Para tornar realidade aRepúblicaCristã, essa utopia espiritual coletivista, trabalhei
nos melhores anos de minha juventude, resistindo, com zelo de convertido, aos
brutaisdesmentidosquenoseramin igidos,amimeaosmeuscompanheiros,por
uma realidadehumana avessa aosdesvariosque são todosos empenhosorientados
para arquitetar, de maneira coerente e igualitária, esse vórtice de especi cidades
incompatíveis que é o conglomerado humano. Foi durante aqueles anos, amigo
PeterSimplon,deSyracusa,quedescobri,deiníciocomcertasimpatia,depoiscom
ruborevergonha,asmaniasquemediferenciavamdosdemaisefaziamdemimum
espécime.(Foinecessáriosucederem-seváriosanoseincontáveisexperiênciasparaque
euchegasseacompreenderquetodosossereshumanossomoscasosàparteequeisso
nos torna criativos edá sentido ànossa liberdade.)Quanta estranheza eu sentia ao
notar quemebastava ver alguém, conquanto até entãome fosse umbomamigo,
descascandoumalaranjacomasmãosemetendonabocaospedaçosdepolpa,sem
importar-se com que os repelentes apos dos gomos lhe pendessem dos lábios, e
cuspindoàdireitaeàesquerdaosesbranquiçadoscaroços incomestíveis,paraquea
simpatiasetornasseinvencíveldesagradoequepoucodepois,aqualquerpretexto,eu
rompesseaquelaamizade.
Meuconfessor,opadreDorante,umbonachãoinacianodavelhaescola,encarava
sem inquietude meus alarmes e escrúpulos, considerando que essas “pequenas
manias” eram pecadilhos veniais, caprichos inevitáveis em todo lho de família
abastada, excessivamente mimado pelos pais. “Por que você seria um fenômeno,
Rigoberto?”,riaele.“Excetoporsuasorelhasmonumentaiseseunarizdetamanduá,
nuncaseviuninguémmaisnormaldoquevocê.Portanto,quandoviralguémcomer
frutacombagosoucaroços,olheparaooutro ladoedurmaempaz.”Eu,porém,
não dormia em paz, mas sobressaltado e inquieto. Sobretudo depois de haver
rompido,medianteumpretextofútil,comOtília,aOtíliadastranças,dospatinse
donarizinhoarrebitado,porquemestavamuitoapaixonadoeaquemtantoassediei
paraquemedessebola.Porquebrigueicomela?QuecrimecometeualindaOtília,
emseuuniformebrancodoColégioVillaMaría?Comeruvasdiantedemim.Metia
nabocaumaporuma,commanifestaçõesdedeleite,virandoosolhosesuspirando
para zombar mais ao seu gosto de minhas caretas de horror— pois eu a zera
partícipedeminhafobia.Abriaabocaecompletavaaasquerosidadetirandocomas
mãososrepulsivoscaroçoseosimundosfolhelos,quelançavanojardimdesuacasa
—aliestávamos,sentadosnagrade—comexpressãodedesa o.Euadetestei!Eua
odiei!Meulongoamorsederreteucomoboladesorveteexpostaaosol,e,durante
muitos dias, desejei-lhe atropelamentos de carro, trancos de ondas revoltas e
escarlatina. “Issonão épecado, rapaz”, acreditava tranquilizar-meopadreDorante.
“Isso é loucura furiosa.Vocênãoprecisa deum confessor,mas deummédicode
doidos.”
Mas, amigo e rival de Syracusa, tudo issome levava a sentir-me um anormal.
Essa ideiameangustiavaentão,pois,comotantoshominídeosainda—amaioria,
temo—, eu não associava a ideia de ser diferente a uma reivindicação deminha
independência, mas só à sanção social que sempre recai sobre a ovelha negra do
rebanho.Serumempestado,aexceçãoànorma,parecia-meapiordascalamidades.
Atédescobrirque,nissodasmanias,nemtodaseramfobias;algumaseram,também,
misteriosasfontesdegozo.Osjoelhoseoscotovelosdasmoças,porexemplo.Meus
companheirosgostavamdeolhosbonitos,decorpoespigadooucheinho,decintura
na,eosmaisaudazes,debundinhaempinadaoudepernascurvilíneas.Sóamim
ocorriaprivilegiaressasjunturasósseas,que,agoraconfessosemrubornaintimidade
tumulardemeuscadernos,valiammaisdoquetodoorestodosatributosfísicosde
uma moça. Isso eu lhe digo e a rmo. Uns joelhos bem acolchoados, sem
protuberâncias, curvos, acetinados, e uns cotovelos polidos, não sulcados, não
amotinados, lisos, suaves ao toque, dotados da qualidade esponjosa do bolinho,
deixam-medesassossegadoeencabritado.Soufelizvendo-osetocando-os;beijando-
os, ascendo ao sétimo céu. O senhor não terá oportunidade de fazê-lo, mas, se
solicitasse o testemunho de Lucrecia, minha amada lhe diria as muitas horas que
passei — tantas quantas, em criança, ao pé do cruci xo — contemplando, em
extasiadaprece,aperfeiçãodeseusgeométricosjoelhosedeseusgentiscotovelosde
lisura sem par, beijando-os,mordiscando-os como um cachorrinho brincalhão faz
comseuosso,mergulhadonaembriaguez,atéquesemeadormeciaalínguaouque
umacãibralabialmedevolviaàpedestrerealidade.QueridaLucrecia!Entretodasas
graças que a enfeitam, nenhuma eu agradeço tanto quanto sua compreensão de
minhasdebilidades,suasabedoriaemajudar-meaaplacarminhasfantasias.
Foi emrazãodessamaniaquemeviobrigadoaumexamedeconsciência.Ao
perceberoquemaismeatraíanasmoças—joelhosecotovelos—,umcompanheiro
de Ação Católica, queme conheciamuito bem, preveniu-me de que algo iamal
dentrodemim.Eraumadeptodapsicologia,oquepiorouascoisas,pois,ortodoxo,
queria que as condutas e motivações humanas sintonizassem com a moral e os
ensinamentos da Igreja. Falou de desvios e pronunciou as palavras fetichismo e
fetichista.Agora,elasmeparecemduasdasmaisaceitáveisdodicionário(issoéoque
somos,osenhor,euetodososseressensíveis),mas,naquelaépoca,soaram-mecomo
sinônimosdedepravação,devícionefando.
O senhor e eu sabemos, amigo siracuso, que o fetichismo não é o “culto dos
fetiches”comodizmesquinhamenteodicionáriodaAcademia,massimumaforma
privilegiadadeexpressãodaparticularidadehumana,umaviadequeohomemea
mulherdispõemparatraçarseuespaço,marcarsuadiferençaemrelaçãoaosoutros,
exercitarsuaimaginaçãoeseuespíritoantirrebanho,serlivres.Eugostariadecontar-
lhe,sentadososdoisemalgumacasinhadecamponosarredoresdesuacidade,que
imaginocheiadelagos,pinheiraisecolinasbranqueadaspelaneve,bebendoumcopo
deuísqueeouvindoalenhacrepitarnalareira,comoadescobertadopapelcentraldo
fetichismo na vida do indivíduo foi decisiva emmeu desencanto com as utopias
sociais—aideiadequeerapossível,coletivamente,construirafelicidade,obem,ou
encarnar qualquer valor ético ou estético —, em minha passagem da fé ao
agnosticismo,enaconvicçãoqueagorameanima,segundoaqual,jáqueohomem
eamulhernãopodemviversemutopias,aúnicamaneirarealistadematerializá-lasé
transferi-las do social para o individual. Um coletivo não pode organizar-se para
alcançarnenhumaformadeperfeiçãosemdestruiraliberdadedemuitos,semlevar
de roldão as belas diferenças individuais em nome dos pavorosos denominadores
comuns. Em contraposição, o indivíduo solitário pode — em função de seus
apetites,manias,fetichismos,fobiasougostos—erigir-seummundopróprioquese
aproxime (ou chegue a encarná-lo, como acontece aos santos e aos campeões
olímpicos) desse ideal supremo no qual o vivido e o desejado coincidem.
Naturalmente,emalgunscasosprivilegiados,umacoincidênciafeliz—aquelaentre
oespermatozoideeoóvulo,queproduzafecundação,porexemplo—permiteque
duas pessoas realizem complementarmente seu sonho.É o caso (acabo de lê-lo na
biogra a escrita pela compreensiva viúva) do jornalista, comediógrafo, crítico,
animador e frívolo pro ssional KennethTynan, masoquista encoberto a quem o
acasofezconhecerumajovemquecasualmenteerasádica,tambémenvergonhada,o
que lhes permitiu ser felizes, duas ou três vezes por semana, em um porão de
Kensington,elerecebendochicotadaseelaministrando-as,emumjogoequimosado
queostransportavaaoscéus.Respeito,masnãopratico,esses jogosquetêmcomo
corolárioomercurocromoeaarnica.
Jáqueenveredeipelashistorietas—nestedomínio,elasexistememproporções
oceânicas—,nãoresistoarelatar-lheafantasiaqueincitaatéàdançadesãoguidoa
libido de Cachito Arnilla, um ás na verbosa pro ssão de vender seguros, e que
consiste—elemefezacon ssãoduranteumdessesabomináveiscoquetéisdefestas
cívicas ou natalinas aos quais não posso furtar-me a comparecer— em ver uma
mulherdespidamascalçadacomsapatosdesalto-agulha,fumandoejogandobilhar.
Essa imagem,queeleacreditahavervistoquandocriançaemalgumarevista,esteve
associadaàssuasprimeirasereçõese,desdeentão,temsidoonortedesuavidasexual.
Simpático Cachito! Quando se casou, com uma espevitada moreninha da
contabilidade,capaz,tenhocerteza,desecundá-lo,cometiatraquinagemdeoferecer-
lhe, emnome da companhia de seguros La Perricholi— sou seu gerente—, um
jogodebilharregulamentar,queumcaminhãodemudançasdescarregouemsuacasa
no dia das núpcias. A todos, o presente pareceu disparatado; mas, pelo olhar de
Cachito e pela salivinha antecipatória com queme agradeceu, eu soube que havia
acertadoemcheio.
CaríssimoamigodeSyracusa,amantedasescovasaxilares:aexaltaçãodasmanias
efobiasnãopodeserilimitada.Convémreconhecer-lherestriçõessemasquaisiriam
desatar-seocrimeeo retornoàbestialidade selvática.Porém,nodomínioprivado
queéodestes fantasmas, tudodeveserpermitidoentreadultosqueconsentemno
jogoenasregrasdojogo,parasuamútuadiversão.Que,amim,muitosdessesjogos
produzamumarepugnânciadesmesurada(porexemplo,aspastilhinhasdeprovocar
traquesàsquaiseratãoafeiçoadooséculogalantefrancêse,emparticular,omarquês
de Sade, que, não contente em maltratar as mulheres, exigia-lhes que o
entontecessem com descargas artilheiras de ventosidades) é tão certo quanto que,
nesse universo, todas as diferenças merecem consideração e respeito, pois nada
representamelhoracomplexidadeinapreensíveldapessoahumana.
Estaria o senhor infringindo os direitos humanos e a liberdade de sua hirsuta
vizinhaaoescalar-lheotelhadoparaprestaradmirativahomenagemaoscarrapichos
desuasaxilas?Semdúvida.Mereceriaserpunidoemnomedacoexistênciasocial?Ai,
ai,claroquesim.Mas,disso,osenhorsabiaemesmoassimsearriscou,dispostoa
pagaropreçoporespiarasaxilascabeludasdavizinhança.Eujádissequenãoposso
imitá-lo nesses extremos heroicos. Meu senso do ridículo e meu desprezo pelo
heroísmosãodemasiadograndes,semfalardeminhacanhestricefísica,paraqueeu
meatrevaaescalarumtelhadoalheio,a mdedivisar,emumcorposemvéus,os
joelhos mais redondos e os cotovelos mais esféricos da espécie feminina. Minha
covardianatural,quetalveznãopassedeenfermiçoinstintodelegalidade,induz-mea
encontrarparameusfetichismos,maniasefobiasumnichopropício,dentrodoque
é comumente conhecido como lícito. Issome priva de um suculento tesouro de
lubricidades? Semdúvida.Mas o que tenho é bastante, desde que eu consiga tirar
deleoproveitodevido,algoquemeesforçoporfazer.
Queostrêsmeseslhesejamlevesequesuasnoitesatrásdasgradessejamaliviadas
porsonhoscombosquesdevelos,avenidasdepelossedosos,negros,louros,ruivos,
entreosquaisosenhorgalopa,nada,corre,frenéticodefelicidade.
Adeus,congênere.
A calcinha da professora
DonRigobertoabriuosolhos:ali,derramadaentreoterceiroeoquartodegrausda
escada, azulínea, brilhante, debruada de renda, provocadora e poética, estava a
calcinhadaprofessora.Tremeu comoumpossesso.Nãodormia, embora estivesse
haviabomtempoàsescuras,nacama,ouvindoomurmúriodomar,submergidoem
escorregadiçasfantasias.Atéque,derepente,aqueletelefonevoltaraatocar,naquela
noite,arrancando-oviolentamenteaosonho.
—Alô,alô?
—Rigoberto?Évocê?
Reconheceu a voz do velho professor, embora este falasse muito baixinho,
tapando o fone com a mão para abafar o som. Onde estavam? Em uma cidade
universitáriaderenome.Dequepaís?DosEstadosUnidos.Emqualestado?Oda
Virgínia.Qualuniversidade?Aestadual,abelauniversidadedeestiloneoclássico,de
brancascolunatas,desenhadaporThomasJefferson.
—Éosenhor,professor?
—Sim,soueu,Rigoberto.Masfalebaixo.Peçodesculpasporacordá-lo.
—Nãosepreocupe,professor.ComofoiseujantarcomaprofessoraLucrecia?
Játerminou?
A voz do venerável jurista e lósofo Nepomuceno Riga se quebrou em
hieroglí co tartamudeio. Rigoberto compreendeu que algo sério acontecia ao seu
antigomestrede loso adodireitonaUniversidadeCatólicadeLima,oqualviera
assistiraumsimpósionaUniversidadedaVirgínia,ondeelefaziasuapós-graduação
(em legislação e seguros) e onde tiveraoportunidadede servir-lhede cicerone ede
motorista: levara-o a Monticello, para visitar a casa-museu de Jefferson, e aos
monumentoshistóricosdabatalhadeManassas.
—Éque,Rigoberto,perdoemeuabuso,masvocêéaúnicapessoa,aqui,com
quemtenhocertaintimidade.Comofoimeualuno,euconheçosuafamília,enestes
diasmefeztantasgentilezas...
—Nãofaçacerimônia,donNepomuceno—animou-oojovemRigoberto.—
Aconteceualgumacoisa?
Don Rigoberto se sentou na cama, sacudido por uma risadinha tendenciosa.
Pareceu-lhequeaqualquermomentoaportadobanheiroseabririae,desenhadano
umbral, surgiria a silhueta de dona Lucrecia, surpreendendo-o com uma daquelas
primorosaseimaginativascalcinhas,pretas,brancas,combordados,orifícios, osde
seda,pespontadasoulisas,quemalenvolviam,apenaspararessaltá-lo,seuempinado
montedeVênus,eporcujasbordasassomavamparatentá-lo—indóceis,coquetes
—algunspelinhosdopúbis.Eraumacalcinhacomoessas,aquejaziainsolitamente,
qualumdessesobjetosprovocadoresdosquadrossurrealistasdocatalãoJoanPonç
oudoromenoVictorBrauner,naescadaporondeteriadesubiraoseudormitório
essa boa alma, esse espírito inocente, don Nepomuceno Riga, que em suas aulas
memoráveis,asúnicasdignasderecordaçãoporpartededonRigobertonosseussete
anosdeáridosestudosjurídicos,costumavaapagaroquadrocomaprópriagravata.
—Équeeunãoseioquefazer,Rigoberto.Estouemapuros.Apesardaminha
idade,nãotenhoamenorexperiêncianessaslides.
—Quelides,professor?Fale,nãoseenvergonhe.
Por que, em vez de alojá-lo no Holiday Inn ou no Hilton, como os outros
participantesdosimpósio,tinhaminstaladodonNepomucenonacasadaprofessora
dedireitointernacional,cursoII?Umadeferênciaaoprestígiodele,semdúvida.Ou
teriasidoporqueosuniaumaamizadesurgidaquandoseencontravamporacasonas
faculdadesdedireitodovastomundo,emcongressos,conferências,mesas-redondas,
etambém,talvez,porhaveremengendradoaquatromãosumaeruditacomunicação,
abundante de latinórios e publicada com profusão de notas e uma sufocante
bibliogra aemumarevistaespecializadadeBuenosAires,TübingenouHelsinque?
OfatoéqueoilustredonNepomuceno,emvezdehospedar-senoimpessoalcubo
comjanelasdoHolidayInn,passavaasnoitesnaconfortávelcasinha,entrerústicae
moderna,daprofessoraLucrecia,queRigobertoconheciamuitobem,porqueneste
semestre fazia comelao semináriodedireito internacional, curso II, e várias vezes
bateraàquelaporta,paralevarseuspapersoudevolverosdensostratadosqueamestra
lheemprestavaamavelmente.DonRigobertofechouosolhoseficoutodoarrepiado,
aodivisar,maisumavez,osquadrismusicaisdabem-proporcionadaemarcial gura
dajuristaquandoseafastava.
—Osenhorestábem,professor?
— Sim, sim, Rigoberto.Na realidade, trata-se de uma tolice. Você vai rir de
mim.Mas, repito, não tenhonenhuma experiência.Estouperplexo e abobalhado,
rapaz.
Nemprecisavadizer;suavoztremiacomoseelefosse carmudo,easpalavras
lhe saíam a fórceps. Devia estar suando gelo. Ousaria contar o que lhe havia
acontecido?
—Bom, preste atenção. Agora há pouco, ao voltarmos daquele coquetel que
zeramemnossahomenagem,adoutoraLucreciapreparouaqui,emsuacasa,uma
ceiazinha. Sóparanósdois, uma nezade suaparte.Um jantarmuito simpático,
durante o qual tomamos uma garra nha de vinho. Eu não estou habituado ao
álcool,demodoque,possivelmente,todaaminhaconfusãovemdessesvaporesque
mesubiramàcabeça.UmvinhozinhodaCalifórnia,creio.Bom,emborameioforte.
—Deixedetantosrodeios,professor,edigaoqueaconteceu.
—Espere, espere. Imagine que, depois dessa ceia e dessa garra nha, a doutora
aindainsistiuemquebebêssemosumataçadeconhaque.Nãopudemenegar,claro,
poreducação.Masviestrelas,rapaz.Aquiloerafogolíquido.Comeceiatossireaté
pensei que podia car cego. Em vez disso, me aconteceu algo ridículo. Caí
adormecido, meu lho. Sim, sim, ali, na poltrona, na salinha que também é
biblioteca.Equandoacordei,nãoseiquantotempodepois,dez,quinzeminutos,a
doutoranão estava.Certamente se retirouparadormir, pensei.Entãomedispus a
fazer o mesmo. Quando, quando, imagine que ao subir a escada, catapum!,
despenqueidebruçosemcima...vocênãosabedequê.Umacalcinha!Bemnomeu
caminho,istomesmo.Nãoria,rapaz,porque,emboraacoisasejaengraçada,estou
transtornadíssimo.Nãoseioquefazer,jálhedisse.
—Maséclaroqueeunãoestourindo,donNepomuceno.Nãoachaqueessa
peçaíntima,nesselugar,sejapuracasualidade?
—Quecasualidade,quenada, rapaz.Possonão ter experiência,masaindanão
queigagá.Adoutoraadeixounaescadaexprofesso, paraque eu topasse comela.
Embaixodeste tetonãohá outra pessoa, afora a donada casa e eu.Ela colocou a
calcinhaali.
—Masentão,professor,estálheacontecendoomelhorquepodeaconteceraum
hóspede.Osenhorrecebeuumconvitedesuaanfitriã.Éclaríssimo.
Avozdoprofessorsequebroutrêsvezesantesdeelearticularalgointeligível.
— Acha mesmo, Rigoberto? Bom, foi o que eu imaginei, quando consegui
pensar, depois de semelhante surpresa. Parece um convite, não é? Não pode ser
casual,estacasinhaéaordempersoni cada,comoadoutora.Apeçafoicolocadaali
intencionalmente.Alémdisso,amaneiracomofoidispostanaescadanãoécasual,
porqueaexibeearealça,juroavocê.
— Foi colocada ali com perfídia, se me permite uma brincadeirinha, don
Nepomuceno.
— Sim, também estou rindo por dentro, Rigoberto. No meio da minha
perplexidade,querodizer.Porisso,precisodoseuconselho.Oqueeudeveriafazer?
Nuncasonheimeveremsemelhantecircunstância.
—Oqueosenhortemdefazerestáclaríssimo,professor.Nãogostadadoutora
Lucrecia?Elaéumamulhermuitoatraente; euacho,emeuscolegas também.Éa
catedráticamaisbonitadaVirgínia.
—Semdúvida,quempoderianegar?Éumadamamuitobela.
—Então,nãopercatempo.Váebataàportadoquarto.Nãovêqueelaestáà
suaespera?Válogo,antesqueelaadormeça.
—Possomepermitirisso?Bateràportadela,semmaisnemmenos?
—Ondeosenhorestáagora?
—Eondepoderiaser?Aqui,nasalinha,aopédaescada.Porquevocêachaque
euestoufalandotãobaixinho?Vouebatocomosnósdosdedos?Semmaisaquela?
—Nãopercaumminuto.Elalhedeixouumsinal,osenhornãopodesefazerde
desentendido. Principalmente, se ela o agrada. Porque a doutora o agrada, não,
professor?
—Claroquesim.Éoquedevofazer,sim,vocêtemrazão.Masmesintomeio
coibido.Obrigado, rapaz.Não preciso lhe recomendar amáxima discrição, certo?
Pormime,sobretudo,pelareputaçãodadoutora.
— Serei um túmulo, professor. Não hesite mais. Suba essa escada, recolha a
calcinhae leveparaela.Bataàportaecomecefazendoumgracejosobreasurpresa
queencontrouemseucaminho.Tudo sairáàsmilmaravilhas,o senhorverá.Esta
noiteficaráparasemprenasualembrança,donNepomuceno.
Antesdeouvirocliquedofoneencerrandoaconversa,donRigobertochegoua
perceberumruídoestomacal,umaangustiadaeructaçãoqueoprovecto juristanão
pôdereprimir.Comodeviaestarnervosoesôfrego,noescurodaquelasalinhacheia
de livros de direito, na pujante noite primaveril virginiana, dividido entre a ilusão
dessaaventura—aprimeira,emumavidadecoitosmatrimonaisereprodutores?—
esuacovardiamascaradaportrásdorigordeprincípioséticos,convicçõesreligiosase
preconceitos sociais! Qual das forças que batalhavam em seu espírito venceria: o
desejoouomedo?
Quase sem se dar conta, submergido naquela imagem já totêmica, a calcinha
abandonadanaescadadaprofessora,donRigobertosaiudacamaesetransferiupara
oescritório,semacendera luz.Seucorpoevitavaosobstáculos—obanquinho,a
esculturanúbia, as almofadas, o televisor—comumadesenvoltura adquiridapor
umapráticaassídua,pois,desdeapartidadesuamulher,nãohavianoiteemquea
vigília não o impelisse a se levantar aindano escuro, para buscar entre os papéis e
garatujasdesuaescrivaninhaumbálsamoparaasaudadeeasolidão.Comacabeça
ainda obsedada pela silhueta do venerável jurista arremessado pelas circunstâncias
(encarnadasemumaperfumadaevoluptuosacalcinhademulheratravessadaemseu
caminhoentredoisdegrausdeumaescadajurisprudente)aumaincertezahamletiana,
mas já sentado ante a comprida mesa de madeira do escritório e folheando seus
cadernos, donRigobertodeuum salto quandoo conedouradodoquebra-luz lhe
revelouoprovérbioalemãoqueencabeçavaessapágina:WerdieWahlhat,hatdieQual(“Quemtemescolhatemtormento”).Extraordinário!Esseprovérbio,copiado
sabe Deus de onde, não retratava o estado de ânimo do pobre e ditoso don
NepomucenoRiga,tentadopelaabundantecatedrática,adoutoralLucrecia?
Suasmãos,quepassavamaleatoriamenteasfolhasdeoutrocaderno,paraverse
pelasegundavezoacasoacertavaouestabeleciaumarelaçãoentreoencontradoeo
sonhadoqueservissedecombustívelàsuafantasia,detiveram-sederepente(“como
asdocrupiêquelançaabolinhasobrearoletaemmovimento”)eelesedebruçou,
ávido. Uma re exão sobreO diário de Edith, de Patricia Highsmith, rabiscava a
página.
DonRigobertolevantouacabeça,desconcertado.Ouviuasenfurecidasondasdo
mar, aopédaescarpa.PatriciaHighsmith?Não se interessavanemumpoucopor
essaromancistadetediososcrimes,cometidospeloapáticoeimotivadoMr.Ripley.
Sempre responderacombocejos (comparáveisaosqueopopularLivro tibetanodosvivos e dos mortos lhe havia produzido) à moda dessa criminalista que ( lmes de
Alfred Hitchcock de permeio), alguns anos antes, havia empolgado a centena de
leitores que constituíam o público limenho.O que fazia essa escrevinhadora para
ciné losintrometidaemseuscadernos?Elenemsequerrecordavaquandoeporque
havia escrito aquele comentário sobreOdiáriodeEdith, livrodeque tampoucose
lembrava:
“Excelente romance,para saberque a cção éuma fugaparao imaginárioque
reti ca a vida. As frustrações familiares, políticas e pessoais de Edith não são
gratuitas;enraízam-senaquela realidadequemaisa faz sofrer: seu lhoCliffie.Em
vezdeprojetar-senodiáriotalcomoé—umjovemfrouxoefracassado,quenãofoi
admitidonauniversidade equenão sabe trabalhar—,Cliffie,naspáginasque sua
mãeescreve,desdobra-sedooriginaleaparecevivendoavidaqueEdithdesejavapara
ele: jornalistadedestaque, casado comumamoçadeboa família, com lhos,um
bomemprego,rebentoqueenchesuaprogenitoradesatisfação.
“Masa cçãoé sóumremédiomomentâneo,pois, embora sirvade consolo a
Edith e a distraia dos reveses, vai inibindo-a na luta pela vida, isolando-a em um
mundomental.Asrelaçõescomseusamigossedebilitameseesgarçam;elaperdeseu
trabalhoe terminadesamparada.Embora suamorte sejaumexagero,dopontode
vistasimbólicoécoerente;Edithpassa, sicamente,aolugarparaondejásemudara
emvida:airrealidade.
“Oromanceéconstruídocomsimplicidadeenganosa,sobaqualseper lamum
contexto dramático, de luta sem quartel entre as irmãs inimigas, a realidade e o
desejo,easintransponíveisdistânciasqueasseparam,excetonorecintomilagrosodo
espíritohumano.”
Don Rigoberto sentiu que seus dentes castanholavam e que suas mãos
transpiravam.Agora recordava esse romancepassageiro e oporquêde sua re exão.
TerminariacomoEdith,deslizandoemdireçãoàruínaporabusardafantasia?Mas,
apesardisso,mesmosobessalúgubrehipótese,acalcinha,fragranterosa,continuava
nocoraçãode suaconsciência.Oqueestaria acontecendocomdonNepomuceno?
Quais eram seusmovimentos, seus dilemas, depois da conversa telefônica com o
jovemRigoberto?Teriaseguidooconselhodoaluno?
Havia começado a subir a escadanaspontasdospés, em relativa escuridão,na
qualdistinguiaasprateleirasde livroseasquinasdosmóveis.Nosegundodegrau,
parou, inclinou-se, agarrou o precioso objeto—de seda? de algodão?— com os
dedosdormentes,levou-oaorostoeofarejou,comoumanimalzinhoaveriguando
seesseobjetodesconhecidoécomestível.Entrefechandoosolhos,beijou-o,sentindo
um começo de vertigem que o fez cambalear e segurar-se ao corrimão. Estava
decidido:fariaaquilo.Continuousubindoaescada,comacalcinhanamão,sempre
na ponta dos pés, temendo ser surpreendido, ou como se o ruído— os degraus
estalavam levemente—pudesse quebrar o feitiço. Seu coraçãobatia tão forte que
pela mente lhe passou a ideia de como seria inoportuno, além de estúpido, cair
fulminado por um ataque cardíaco neste preciso momento. Não, não era uma
síncope;oqueatropelavadaquelemodoosangueemsuasveiaseramacuriosidadee
a sensação (inédita em sua vida) de estar degustando um fruto proibido. Havia
chegadoaocorredor,estavadiantedaportadajurista.Apertouamandíbulacomas
duasmãos,porqueessegrotescoestralejardosdentescausariapéssimaimpressãoem
suaan triã.Armando-sedecoragem(“fazendodastripascoração”,murmuroudon
Rigoberto,que suavaembicase tremia igualmente),bateucomosnósdosdedos,
muitodeleve.Aporta,sóencostada,abriu-secomumrangidohospitaleiro.
Oqueovenerávelmestrede loso adodireito viudaquele limiar acarpetado
mudousuasideiassobreomundo,ohomem—seguramente,tambémodireito—
earrancouadonRigobertoumgemidodeprazerdesesperado.Umaluzouroeazul-
anil (VanGogh?Botticelli?Algumexpressionista tipoEmilNolde?),queuma lua
redondaeamarelaenviavadoestreladocéudaVirgínia,caíaemcheio,dispostapor
umexigentecenógrafooudestroiluminador,sobreacama,comaúnicaintençãode
ressaltarocorponudadoutora.Quemimaginariaqueaquelasseverasroupasqueela
exibiadoaltode suacátedra, aquelestailleurscomqueexpunhaseusargumentose
moçõesnoscongressos,aquelascapasdechuvacomquecostumavaenvolver-senos
invernos,ocultavamformasquePraxíteleseRenoirdisputariamentresi,oprimeiro
pela harmonia e o segundo, pelamodelagem carnuda? Estava de bruços, a cabeça
apoiada sobre os braços cruzados, demodo que a postura a alongava,mas o que
imantouoolhardoaturdidodonNepomucenonãoforamseusombros,nemseus
mórbidosbraços (“mórbidos,no sentido italiano”, especi coudonRigoberto,que
não tinha nenhuma atração pelomacabro, mas pelo lânguido e macio), nem seu
dorsoondulado.Nem sequer as amplas e leitosas coxas ouospezinhosdeplantas
rosadas.Eram,istosim,essasesferasmaciçasquecomalegreimpudorseempinavam
e sobressaíam como os cumes de uma montanha bicéfala (“Aqueles vértices das
cordilheiras enroscadas por nuvenzinhas nas gravuras japonesas do períodoMeiji”,
associou, satisfeito, don Rigoberto). Mas também Rubens, Ticiano, Courbet e
Ingres, Úrculo e mais meia dúzia de mestres forjadores de traseiros femininos
pareciamter confabuladoparadar realidade, consistência, abundânciae, aomesmo
tempo,delicadeza,suavidade,espíritoevibraçãosensualaessetraseirocujabrancura
fosforescianapenumbra.Incapazdeseconter,semsaberoquefazia,odeslumbrado
(“corrompidoparasempre?”)donNepomucenodeudoispassose,aochegarjuntoà
cama,caiudejoelhos.Asidosasmadeirasdopisoemitiramumqueixume.
—Desculpe, doutora,mas encontrei na escadauma coisa que lhe pertence—
balbuciou,sentindoquelhecorriamriosdesalivapelascomissurasdoslábios.
Falava tãobaixinhoquenemelemesmo seouvia, ou talvezmovesseos lábios
sememitirsomalgum.Nemsuavoznemsuapresençahaviamdespertadoajurista.
Elarespiravasossegada,simetricamente,eminocentesono.Masessapostura,ofato
de estar nua, de ter deixado apenas encostada a porta da alcova, de ter soltado os
cabelos—pretos, lisos,compridos—queagoralhevarriamosombroseodorso,
contrastando seu azulado negror com a brancura da pele, tudo isso podia ser
inocente? “Não, não”, sentenciou don Rigoberto. “Não, não”, ecoou o transido
professor,passeandooolharporessasuperfícieondulanteque,nos ancos,afundava
esubiacomoumbraviomardecarnefeminina,exaltadapelaclaridadedalua(“ou
melhor, pela oleosa luz em penumbra dos corpos de Ticiano”, reti cou don
Rigoberto),apoucoscentímetrosdesuafaceembasbacada:“Nãoéinocente,nadao
é.Estouaquiporqueelaquisetramouisso.”
Noentanto,dessaconclusãoteóricanãoextraíaforçassu cientesparafazeroque
osinstintosressurgidoslheexigiamardentemente:passarapontadosdedossobrea
peleacetinada,pousarseuslábiosmatrimoniaissobreessascolinaseprofundezasque
eleantecipavamornas,olorosas,edeumsaboremqueodoceeosalgadocoexistiam
sem semisturar.Mas, petri cado pela felicidade, não conseguia fazer nada, exceto
olhar, olhar. Depois de ir e vir muitas vezes da cabeça aos pés desse milagre, de
percorrê-lo repetidamente, seus olhos se imobilizaram, como o requintado
conhecedordevinhosquenãoprecisacontinuardegustando,poisidenti couononplus ultra da adega, no espetáculo que o esférico traseiro por si só constituía.Destacava-sedorestodocorpocomoumimperadoranteseusvassalos,Zeusanteos
pequenos deuses do Olimpo. (“Feliz aliança entre o oitocentista Courbet e o
modernoÚrculo”, enobreceu-o com referências donRigoberto.)O nobremestre,
exorbitado,observavaeadoravaemsilêncioesseprodígio.Oquediziaasimesmo?
RepetiaumamáximadeKeats (“Beauty is truth, truth isbeauty”).Oquepensava?
“Comqueentão,essascoisasexistem.Nãosónosmauspensamentos,naarteounas
fantasias dos poetas; também na vida real. Com que então, uma bunda assim é
possívelnarealidadedecarneeosso,nasmulheresquepovoamomundodosvivos.”
Já teria ejaculado?Estariaprestes amanchar sua cueca?Aindanão, embora, ali,no
baixo-ventre, o jurista percebesse alvissareiros sintomas, um despertar, uma lagarta
espreguiçante, recém-saída do sono. Pensava algo mais? Isto: “E nada menos que
entreaspernaseotorsodeminhaantigaerespeitadacolega,destaboaamigacom
quemtantomecorrespondisobreabstrusasmatérias losó co-jurídicas,ético-legais,
histórico-metodológicas?”Comoerapossívelquenunca,atéessanoite,emnenhum
dos fóruns, conferências, simpósios, seminários, em que haviam coincidido,
conversado,discutido,trocadoideias,elesequertivessedescon adoque,sobaqueles
trajes sóbrios, casacos felpudos, capas forradas, impermeáveis cor de formiga, se
escondia tamanho esplendor? Quem teria podido imaginar que aquela mente tão
lúcida, aquela inteligência justiniana, aquela enciclopédia jurídica, possuía também
umcorpotãodeslumbranteemsuaorganizaçãoemagni cência?Imaginouporum
instante— viu, talvez?—que, indiferentes à sua presença, livres em seumór co
abandono,asquietasmontanhasdecarnesoltavamumalegre,abafadoventinhoque
rebentoudiantede suasnarinas,enchendo-asdeumaromaacre. Issonãoo fez rir,
não o incomodou (“Tampouco o excitou”, pensou don Rigoberto). Sentiu-se
reconhecido,comose,dealgummodoeporumarazãointricadaedifícildeexplicar
(“como as teorias de Kelsen, que ele nos explicava tão bem”, comparou), esse
punzinhofosseumaespéciedeaquiescênciaqueessesoberbocorpolheparticipava,
exibindodiantedele sua intimidade tão íntima,osgases inúteisexpelidosporuma
serpe intestinal de cavidades que imaginou róseas, úmidas, limpas de escórias, tão
delicadasemodelarescomoasnádegasemancipadasqueapareciamamilímetrosde
seunariz.
Eentão,apavorado,soubequedonaLucreciaestavadesperta,pois,aindaqueela
nãotivessesemexido,escutou-a:
—Osenhoraqui,professor?
Nãopareciaaborrecida,emuitomenosassustada.Erasuavoz,semdúvida,mas
cheia de uma calidez suplementar. Havia nela algo demorado, insinuante, uma
sensualidademusical.Emseuembaraço,o juristaconseguiu seperguntarcomoera
possível que, nesta noite, sua velha colega experimentasse tantas transformações
mágicas.
—Desculpe,desculpe,doutora.Nãointerpretemalminhapresençaaqui,eulhe
suplico.Possoexplicar.
—Ojantarlhecaiumal?—tranquilizou-oela.Falavasemamínimaalteração.
—Umcopinhod’águacombicarbonato?
Tinha voltado ligeiramente a cabeça e, com a face abandonada sobre o braço
como sobre um travesseiro, seus grandes olhos o observavam, brilhando entre as
madeixasnegrasdesuacabeleira.
—Encontreina escadaumacoisaque lhepertence,doutora, e vim trazê-la—
murmurouoprofessor.Continuavaajoelhadoe,agora,percebiaumadorvivíssima
nosossosdosjoelhos.—Bati,masasenhoranãorespondeu.E,comoaportaestava
sóencostada,meatreviaentrar.Nãoqueriaacordá-la.Rogo-lhequenãomelevea
mal.
Ela moveu a cabeça, assentindo, desculpando-o, displicente, compadecida do
atordoamentodele.
—Porqueestáchorando,meubomamigo?Oquehouve?
Semdefesascontraessaafetuosadeferência,aacariciantecadênciadessaspalavras,
ocarinhodesseolharquecintilavanoescuro,donNepomucenodesabou.Oqueaté
então haviam sido apenas mudas e grossas lágrimas descendo por suas faces
transformou-seemsoluços ressoantes, suspiros rasgados, cascatasdebabas emucos
que ele tentava conter com as duas mãos — em sua desordem mental, não
encontrava o lenço, nem o bolso onde estava o lenço—, enquanto se espraiava,
afogado,nestaconfissão:
—Ai,Lucrecia,Lucrecia,meperdoe,nãopossomeconter.Nãovejanistouma
ofensa, é totalmente o contrário. Eu nunca havia imaginado nada assim, tão
formoso, quero dizer, tão perfeito como seu corpo. A senhora sabe o quanto a
respeito e admiro. Intelectual, acadêmica, juridicamente.Mas estanoite, isto, vê-la
assim,éamelhorcoisaquejámeaconteceunavida.Juro,Lucrecia.Poresteinstante,
eu jogariano lixo todososmeus títulos,osdoutoradoshonoriscausa comqueme
honraram, as condecorações, os diplomas. (“Se não tivesse a idade que tenho, euqueimariatodososmeuslivroseiriamesentarcomoummendigoàportadetuacasa”—leudonRigoberto,emseucaderno,essesversosdopoetaEnriquePeña.—“Sim,minhacriança,ouvebem:comoummendigo,àportadetuacasa.”)Nuncasentiuma
felicidade tão grande, Lucrecia. Tê-la visto assim, sem roupa, como Ulisses viu
Nausícaa, é o prêmio máximo, uma glória que não creio merecer. Isso me
emocionou,metrespassou.Estouchorandodetãocomovido,detãoagradecidoque
lheestou.Nãomedespreze,Lucrecia.
Em vez de desafogá-lo, o discurso fora comovendo o professor aindamais, e
agoraos soluçoso engasgavam.Ele apoioua cabeçanabeirada camae continuou
chorando, sempre ajoelhado, suspirando, sentindo-se triste e alegre, a ito editoso.
“Me perdoe, me perdoe”, balbuciava. Até que, segundos ou horas depois— seu
corposeeriçoucomoodeumgato—,sentiuamãodeLucreciaemsuacabeça.Os
dedosdelarevolveramseuscabelosgrisalhos,consolando-o,acompanhando-o.Avoz
tambémveioaliviarcomumacaríciafrescaachagavivadesuaalma:
—Acalme-se,Rigoberto.Nãochoremais,meuamor,minhaalma.Pronto, já
passou, nadamudou.Você não fez o que queria? Entrou,me viu, aproximou-se,
chorou, eu o perdoei. E então? Vou me aborrecer com você por causa disso?
Enxugueaslágrimas,assoeonariz,durma.Nana,neném,nana,neném.
O mar batia lá embaixo, contra os penhascos de Barranco e Mira ores, e a
espessacamadadenuvensnãodeixavaverasestrelasnemaluanocéudeLima.Mas
anoiteestavaacabando.Aqualquermomento,amanheceria.Umdiaamenos.Um
diaamais.
Proibições à beleza
NuncaverásumquadrodeAndyWarholnemdeFridaKahlo,nemaplaudirásum
discursopolítico,nemdeixarásqueseracheapeledosteuscotovelosejoelhos,nem
queseendureçamasplantasdosteuspés.
NuncaescutarásumacomposiçãodeLuigiNononemumacançãodeprotesto
deMercedesSosanemverásum lmedeOliverStonenemcomerásdiretamentedas
folhasdaalcachofra.
Nuncaarranharásos joelhosnemcortarásoscabelosnemterásespinhas, cáries,
conjuntivitenem(muitomenos)hemorroidas.
Nuncaandarásdescalçasobreoasfalto,apedra,ocascalho,alaje,oencerado,a
calamina, a ardósia e ometal, nem te ajoelharás em uma superfície que não ceda
comoamigalhadochancay(antesdesertostado).Nuncausarásemteuvocabulárioaspalavrastelúrico,miscigenado,conscientizar,
visualizar,estatalista,caroços,folhelosousocietal.
Nuncapossuirásumhamsternemfarásgargarejosnemterásperucasnemjogarás
bridgenemusaráschapéu,boinaourodilha.
Nuncaarmazenarásgasesnemdiráspalavrõesnemdançarásrock-’n’-roll.
Nuncamorrerás.
VII.
O polegar de Egon SchieleVII - O polegar de Egon Schiele
—Todas asmoças deEgonSchiele são franzinas e ossudas, emeparecemmuito
bonitas—disseFonchito.—Jávocê é cheinha, eno entanto tambémmeparece
muitobonita.Comoexplicaressacontradição,madrasta?
—Estámechamandodegorda?—reagiudonaLucrecia,lívida.
Tinha estado distraída, ouvindo a voz domenino como um ruído de fundo,
concentradanascartasanônimas—sete,emmenosdedezdias—enaqueescrevera
aRigobertonanoiteanteriorequeagoratrazianobolsodorobe.Sórecordavaque
Fonchito havia começado a falar e falar, de Egon Schiele como sempre, até que
aquilode“cheinha”adeixaradeorelhaempé.
— Gorda, não. Eu disse cheinha, madrasta. — Fonchito se desculpava,
gesticulando.
—Aculpaporeuserassimédoseupai—queixou-seela,examinando-se.—
Eueramagrinhaquandonoscasamos.MasRigobertometeunacabeçaqueamoda
liformedestróiocorpofeminino,queagrandetradiçãodabelezaéaubérrima.Era
istomesmoqueeledizia:“aformaubérrima.”Paraagradá-lo,engordei.Enãovoltei
aemagrecer.
— Mas você está ótima assim, juro, madrasta — continuava Fonchito a se
desculpar.—EudisseaquilodasmagrinhasdeEgonSchieleporquenãolheparece
estranhoquemeagradem,evocêtambém,sendopelomenosodobrodelas?
Não,nãopodiasereleoautordascartasanônimas.Porqueestaselogiavamseu
corpo, e emuma, inclusive, intitulada “Brasãodo corpoda amada”, cadaumdos
seusmembros—cabeça, ombros, cintura, seios, ventre, coxas, pernas, tornozelos,
pés — vinha acompanhado de uma referência a um poema ou a um quadro
emblemático. O invisível enamorado de suas formas ubérrimas só podia ser
Rigoberto.(“Essehomemestáégamadopelasenhora”,proclamouJustiniana,depois
deleroBrasão.“Puxa,comoeleconheceseucorpo!TemqueserdonRigoberto.De
onde Fonchito ia tirar essas palavras, por mais sabidinho que seja? Embora ele
tambémconheçaasenhoratodinha,não?”)
—Porquevocê cacaladaotempotodo,semfalarcomigo,meolhandocomo
senãomevisse?Vocêhojeestámuitoesquisita,madrasta.
—Éporcausadessacorrespondênciaanônima.Nãoconsigotirarissodacabeça,
Fonchito.Assimcomovocê tem suaobsessãoporEgonSchiele, eu agora tenho a
minhaporessasmalditascartas.Passoodiaesperandoporelas,lendoerecapitulando
cadauma.
—Mas,madrasta,malditasporquê?Poracasoainsultamoudizemcoisasfeias?
—Porquevêmsemassinatura.Eporque,àsvezes,parecemter sidomandadas
porumfantasma,enãopeloseupai.
—Vocêsabemuitobemquesãodele.Tudoestádandomuitocerto,madrasta.
Nãoseatormente.Logo,logo,vocêsvãoficardebem,nãotenhadúvida.
A reconciliação de dona Lucrecia e donRigoberto se transformara na segunda
obsessãodeFonchito.Omeninofalavadissocomtantasegurançaqueamadrastajá
não tinha forçaspara contestá-lo edizer que tudonãopassavadepura fantasiado
fantasiadorempedernidoqueelesetornara.Teriafeitobemaolhemostrarascartas
anônimas?Algumaseramtãoousadasnasreferênciasàsuaintimidadeque,depoisde
lê-las,elaseprometia:“Esta,não,estaeunãomostro.”Esempreacabavaporfazê-lo,
espiando a reação dele, para ver se algum gesto o traía.Mas nada. A cada vez, o
menino reagia com a mesma atitude, surpresa e excitada, e chegava à mesma
conclusão:eraseupai,eraoutraprovadequeestejánãoguardavarancor.Notou-o
agoratambémausente,distantedasaladejantaredobosquedoOlivar,absortoem
alguma lembrança.Examinavaasprópriasmãos,aproximando-asmuitodosolhos,
juntando-asealongando-as,abrindoosdedos,escondendoopolegar,cruzando-ase
descruzando-as, em estranhas poses, como as de quem projeta silhuetas na parede
com a sombra das mãos. Mas Fonchito não estava tentando fabricar sombras
chinesas na tarde primaveril; perscrutava seus dedos como um entomologista
examinasobalupaumaespéciedesconhecida.
—Pode-sesaberoquevocêestáfazendo?
Ele não se alterou e continuou com seus trejeitos, ao mesmo tempo que
respondiacomoutrapergunta:
—Achaqueeutenhomãosdeformadas,madrasta?
Oqueestediabinhoiainventarhoje?
—Nãosei,deixever—disseela,bancandoomédicoespecialista.—Coloque-as
aqui.
Fonchitonãoestavabrincando.Muitosério,levantou-se,aproximou-seeapoiou
asduasmãossobreaspalmasqueelalheoferecia.Aocontatodessasuavidadelisae
dadelicadezadosossinhosdessesdedos,donaLucrecia sentiuumestremecimento.
Ele tinhamãos frágeis, dedinhos a lados, unhas ligeiramente cor-de-rosa, aparadas
com esmero.Mas nas gemas havia manchinhas de tinta ou de carvão. Ela ngiu
submetê-lasaumexameclínico,enquantoasacariciava.
—Não têmnada de deformadas— concluiu.—Embora umpouquinhode
águaesabãonãolhesfizessemal.
—Quepena—disseomenino,semvestígiodehumor,retirandosuasmãosdas
dedonaLucrecia.—Porque,então,nissoeunãomepareçonadacomele.
“Pronto.Vaicomeçardenovo.”Ojogodetodasastardes.
—Explique-semelhor.
Fonchitoseapressouafazê-lo.Elanãotinhanotadoqueasmãoseramamania
deEgonSchiele?Asdeleetambémasdasmoçasedosrapazesquepintava.Senão
tinha, que notasse agora. Em segundos, dona Lucrecia recebeu em seus joelhos o
livrodereproduções.ViaarepulsaqueEgonSchielesempretiveraaopolegar?
—Aopolegar?—riudonaLucrecia.
—Presteatençãonosretratos.OdeArthurRoessler,porexemplo—insistiuo
menino,compaixão.—Oueste:Duploretrato:oinspetor-geralHeinrichBenescheseu lhoOtto;odeEnrichLederer;eseusautorretratos.Elesómostraquatrodedos.
Semprefazdesapareceropolegar.
Porqueseria?Porqueoocultava?Porqueopolegaréodedomaisfeiodamão?
Porque gostava dos números pares e achava que os ímpares davam azar?Tinha o
polegardes guradoeseenvergonhavadele?Algumproblemaeletinhacomasmãos,
pois, do contrário, por que se deixava fotografar escondendo-as nos bolsos, ou
fazendo com elas umas poses tão ridículas, torcendo os dedos como uma bruxa,
metendo-asnafrentedacâmeraoucolocando-asacimadacabeça,comosequisesse
quelheescapassem,voando?Asmãosdelemesmo,asdoshomens,asdasmoças.A
madrastanãotinhapercebido?Essasmeninasnuas,decorpotãobemformadinho,
não era incompreensível que tivessem esses dedosmasculinos, de juntas ossudas e
grosseiras?Por exemplo,nesta gravurade1910,Moçanuade cabelosnegros, de pé,nãodestoavamessasmãosdemachona,comunhasquadradas,idênticasàsqueEgon
pintavaemseusautorretratos?Eelenãotinhafeitoissotambémcomquasetodasas
mulheresquepintou?Porexemplo,oNu,depé,de1913.Fonchitorespiroufundo:— Ou seja, era um Narciso, como você disse. Pintava sempre suas próprias
mãos,mesmoquandoopersonagemdoquadroeraoutro,homemoumulher.
— Foi você quem descobriu isso? Ou terá lido em algum lugar? — Dona
Lucrecia estava desconcertada. Folheava o livro, e as imagens davam razão a
Fonchito.
—Qualquerpessoaqueobservemuitoosquadrosdelevainotar.—Omenino
encolheuosombros,semdarimportânciaaoassunto.—Opapainãodizqueum
artista,senãofortemático,nãochegaasergenial?Porisso,eusempreprestoatenção
às manias dos pintores re etidas em seus quadros. Egon Schiele tinha três: uma,
botarasmesmasmãosdesproporcionadasemtodasassuas guras,suprimindodelas
opolegar;duas,asmulhereseoshomensmostraremsuascoisinhas,levantandoasaia
ou abrindo as pernas; e três, retratar a simesmo, colocando asmãos em posturas
forçadas,quechamamaatenção.
—Bom,bom,sevocêqueriamedeixarembasbacada,conseguiu.Sabedeuma
coisa, Fonchito? Você, sim, é que é um grande temático. Se a teoria do seu pai
estivercerta,vocêjátemumdosrequisitosparasergenial.
— Só me falta pintar os quadros— riu ele, sentando-se de novo. Voltou a
examinar as próprias mãos, mexendo-as, exibindo-as e imitando as poses
extravagantes dos quadros e fotos de Schiele. Dona Lucrecia, divertida, observava
aquelapantomima.E,derepente,decidiu:“Voulerminhacartaparaele,vamosver
oquediz.”Alémdisso,lendo-aemvozalta,saberiaseoquehaviaescritoestavabom
e decidiria se convinha enviá-la aRigoberto ou rasgá-la.Mas, quando ia começar,
acovardou-seepreferiudizer:
—Mepreocupa issodevocê sópensar emSchiele,dia enoite.—Omenino
parou de brincar com asmãos.— Falo com todo o carinho que lhe tenho.No
começo, me parecia bonito que você gostasse tanto de suas pinturas, que se
identi casse tantocomele.Mas,de tantoquerer separecer comele emtudo, está
deixandodeservocêmesmo.
— É que eu sou ele, madrasta. Embora você me leve na brincadeira, é isto
mesmo.Sintoquesouele.
Sorriu, para tranquilizá-la. “Espere um instantinho”, murmurou. Levantou-se,
pegou o livro de reproduções, folheou-o e o colocou de volta, aberto, sobre os
joelhos dela. Dona Lucrecia viu uma lâmina em cores: sobre um fundo ocre,
estendia-seumamulher sinuosametidanuma fantasia carnavalesca, com leirasde
listras verdes, vermelhas, amarelas e negras, dispostas em ziguezague. Trazia os
cabelosocultossobumarodilhaaturbantada,estavadescalça,exprimiaumatristeza
lânguidanosgrandesolhosescurosetinhaasmãoserguidasacimadacabeça,comose
fossetocarcastanholas.
—Quandoviestequadro,percebi—ouviuFonchitodizer,comtotalseriedade.
—Queeueraele.
Elatentourir,masnãoconseguiu.Oqueessemenininhopretendia?Assustá-la?
“Brincacomigocomoumgatinhocomumaratazanagrande”,pensou.
— Ah, é? E o que lhe revelou, neste quadro, que você é Egon Schiele
reencarnado?
— Você não se deu conta, madrasta — riu Fonchito. — Olhe de novo,
pedacinhoporpedacinho.Everáque,emboraSchieleotenhapintadoemViena,em
1914,emseuateliê,nestamulherapareceoPeru.Repetidocincovezes.
AsenhoraLucreciavoltouaexaminaraimagem.Decimaparabaixo.Debaixo
paracima.Por m,reparouque,nocoloridovestidodepalhaçodamodelodescalça,
havia cinco gurinhasminúsculas, na altura dos braços, no anco direito, sobre a
pernaenarodadasaia.Aproximouolivrodosolhoseobservou-ascomcalma.Era
mesmo! Pareciam indiazinhas,mestiças. Estavam vestidas como as camponesas de
Cusco.
— É o que elas são, indiazinhas dos Andes — disse Fonchito, lendo-lhe o
pensamento.—Viu?OPeruestápresentenosquadrosdeEgonSchiele.Foiporisso
quepercebi.Paramim,foiumamensagem.
Continuoufalando,gabando-sedessaprodigiosainformaçãosobreavidaeaobra
dopintorquedavaadonaLucreciaa impressãodeonisciênciaeasuspeitadeuma
conspiração,deumaemboscadafebril.Aquilotinhaexplicação,madrasta.Asenhora
doretratosechamavaFrederikeMariaBeer.Eraaúnicapessoaretratadapelosdois
maiorespintoresdaVienadoseutempo:EgoneKlimt.Filhadeumsenhormuito
rico,proprietáriodecabarés,tinhasidoumagrandedama;ajudavaosartistaselhes
arrumava compradores. Pouco antes de ser pintada por Schiele, havia feito uma
viagem à Bolívia e ao Peru, e daqui tinha levado essas indiazinhas de pano, que
certamentecomprouemalgumafeiradeCuscooudeLaPaz.EEgonSchieletevea
ideia de pintá-las no vestido da dama. Ou seja, não havia nenhum milagre na
presençadecincomestiçasnessequadro.Mas,mas...
—Masoquê?—animou-odonaLucrecia,absorvidapelorelatodeFonchito,
esperandoumagranderevelação.
—Mas nada— acrescentou o menino, com um gesto de cansaço.— Essas
indiazinhas foram colocadas aí para que eu as encontrasse algum dia. Cinco
peruaninhasemumquadrodeSchiele.Nãopercebe?
—Elasfalaramcomvocê?Disseramquevocêaspintou,oitentaanosatrás?Que
vocêéumreencarnado?
—Bom,seéparabrincar,prefiroconversarsobreoutracoisa,madrasta.
—Nãomeagradaouvi-lodizerbobagens—respondeuela.—Nemquepense
bobagens, nem que acredite em bobagens. Você é você e Egon Schiele era Egon
Schiele. Você vive aqui, em Lima, e ele viveu em Viena no início do século. A
reencarnaçãonãoexiste.Portanto,parededizerdisparates,senãoquiserqueeume
aborreça.Deacordo?
Omeninoassentiu,demávontade,comumacarinhacompungida.Masnãose
atreveu a replicar, porque ela havia falado com uma severidade incomum. Dona
Lucreciatratoudefazeraspazes.
—Querolerparavocêumacoisaqueescrevi—murmurou,tirandodobolsoo
rascunhodacarta.
— Respondeu ao papai? — alegrou-se Fonchito, sentando-se no chão e
avançandoacabeça.
Sim, ontem à noite. Ainda não sabia se a enviaria.Não aguentavamais. Sete,
erammuitascartasanônimas.EoautoreraRigoberto.Quemmaispodiaser?Que
outropoderialhefalardessamaneiratãofamiliareexaltada?Quemaconheceriatão
detalhadamente?Haviadecididoacabarcomesseteatro.OqueFonchitoachava?
— Leia de uma vez, madrasta— impacientou-se o menino.Tinha os olhos
brilhanteseseurostinhodelatavaumaenormecuriosidade;etambémumpoucode,
um pouco de, dona Lucrecia buscava a palavra, de regozijo malicioso; e até de
maldade.Pigarreandoantesdecomeçar,esemerguerosolhosatéofinal,elaleu:
Meuquerido,Resisti à tentação de te escrever desde que soube seres tu o autor dessas missivas
ardentes que, há duas semanas, vêm enchendo esta casa de chamas, de alegria, desaudadeedeesperança,emeucoraçãoeminhasentranhas,dodocefogoqueabrasasemqueimar,odoamoredodesejounidosemcasamentofeliz.
Porqueassinariasumascartasquesópoderiamtersaídodetuasmãos?Quemmeestudou, me formou, me inventou, como zeste? Quem podia falar dos pontinhosvermelhosdasminhasaxilas,dasrosadasnervurasdascavidadesocultasentreosdedosdosmeuspés,desta“franzidaboquinharodeadaporumaminicircunferênciadealegresruguinhasdecarneviva,entreazuladaeplúmbea,àqualsechegaescalandoaslisasemarmóreascolunasdetuaspernas”?Sótu,meuamor.
Desdeasprimeiraslinhasdaprimeiracarta,eusoubequeerastu.Porisso,antesdeterminar a leitura, obedeci às tuas instruções. Despi-me e posei para ti, diante doespelho,imitandoaDânaedeKlimt.Erecomecei,comoemtantasnoitesdequetenhosaudade em minha atual solidão, a voar contigo por aqueles reinos da fantasia queexploramosjuntos,aolongodaquelesanoscompartilhadosqueagorasão,paramim,umafontedeconsoloedevidanaqualvoltoabebercomamemória,parasuportararotinaeovazioquevieramsubstituiraquiloque,aoteulado,foiaventuraeplenitude.
Namedidademinhasforças,seguiaopédaletraasexigências—não,assugestõeseospedidos—detuassetecartas.Eumevestiemedespi,medisfarceiememascarei,me deitei, me dobrei, me desdobrei e me agachei, encarnando — com meu corpo eminhaalma—todososteuscaprichos,poisexistiriaprazermaior,paramim,doquetesatisfazer?Paratieporti,fuiMessalinaeLeda,MadalenaeSalomé,Dianacomseuarco e suas echas, a Maja Desnuda, a Casta Susana surpreendida pelos velhosluxuriosose,nobanhoturco,aodaliscadeIngres.FizamorcomMarte,Nabucodonosor,Sardanapalo, Napoleão, cisnes, sátiros, escravos e escravas, emergi do mar como umasereia,aplaqueieaticeiosamoresdeUlisses.FuiumamarquesinhadeWatteau,umaninfadeTiciano,umaVirgemdeMurillo,umaMadonadePierodellaFrancesca,umagueixadeFujitaeumarameiradeToulouse-Lautrec.Deutrabalhoequilibrar-menaspontasdospéscomoabailarinadeDegase,acredita,paranãotedecepcionar,atétenteimetransformar,àcustadecãibras,naquiloquedenominasovoluptuosocubocubistadeJuanGris.
Jogardenovocontigo,emboraadistância,mefezbememefezmal.Senti,denovo,queeratuaetuerasmeu.Quandoojogoterminava,minhasolidãoaumentavaeeu
meentristeciaaindamais.Estáperdido,parasempre,operdido?Desde que recebi a primeira carta, vivi esperando a seguinte, devorada pelas
dúvidas, tentando adivinhar tuas intenções. Querias que eu te respondesse?, meperguntava.Ouofatodeenviá-lassemassinaturaindicaquenãoqueresentabularumdiálogo, mas só que eu escute teu monólogo? Esta noite, porém, depois de ter sido,docilmente, a laboriosa senhora burguesa deVermeer, decidi te responder.Do fundoobscurodeminhapessoa,noqual só tumergulhaste, algome ordenoupegar caneta epapel.Fizbem?Nãoterei infringidoaquela leinãoescritaqueproíbeà guradeumretratosairdoquadroparafalarcomseupintor?
Tu,meuamado,sabesaresposta.Diz-mequalé.
—Caramba,quecarta—disseFonchito.Seuentusiasmopareciamuitosincero.
—Madrasta,vocêamamuitoopapai!
Estavaruborizadoeradiante,edonaLucreciaonotoutambém—pelaprimeira
vez—atéconfuso.
—Nuncadeixeideamá-lo.Nemmesmoquandoaconteceuoqueaconteceu.
Fonchitoexibiudeimediatoamiradabranca,amnésica,queesvaziavaseusolhos
semprequedonaLucreciaaludiadealgummodoàquelaaventura.Elanotou,porém,
queorubordesapareciadasfacesdomenino,substituídoporumapalideznacarada.
— Porque, embora preferíssemos, você e eu, que isso não tivesse existido, e
embora nunca falemos do assunto, o que aconteceu, aconteceu. Não pode ser
apagado— disse dona Lucrecia, buscando-lhe os olhos.—E, emborame encare
comosenãosoubessedoqueestoufalando,vocêselembradetudotantoquantoeu.
Ecertamenteolamentatantoquantoeu,ouatémais.
Não pôde continuar. Fonchito havia recomeçado a olhar as próprias mãos,
enquanto as movia, imitando os trejeitos dos personagens de Egon Schiele:
estendidas e paralelas à altura do seu ombro, com o polegar oculto e como que
truncado, ou sobre sua cabeça, adiantadas como se ele acabasse de arremessar uma
lança.DonaLucreciaacaboucaindonarisada:
—Vocênãoéumdiabinho,masumpalhaço—exclamou.—Deviasededicar
aoteatro,depreferência.
Omeninoriutambém,distendido,fazendocaretasesemprebrincandocomas
mãos. E, sem abandonar as macaquices, surpreendeu dona Lucrecia com este
comentário:
—Foidepropósitoquevocêescreveuessacartaemestilopiegas?Tambémacha,
comoopapai,queapieguiceéinseparáveldoamor?
—Escreviimitandooestilodeseupai—dissedonaLucrecia.—Exagerando,
procurandosersolene,rebuscadaedramática.Elegostaassim.Achaque coumuito
melosa?
—Ele vai adorar— assegurouFonchito, assentindo várias vezes.—Vai ler e
reler sua cartamuitas vezes, trancado no escritório. Você não vai assiná-la, não é,
madrasta?
Naverdade,elanãotinhapensadonisso.
—Eudeveriamandá-laanônima?
—Claro,madrasta—a rmouomenino,enfático.—Temqueentrarnojogo
dele,ora.
Talvez tivesse razão. Se Rigoberto enviava as dele sem assinatura, por que ela
assinariaasua?
—Vocêsabedascoisas,garoto—murmurou.—Sim,éumaboa ideia.Vou
mandarsemassinar.Afinal,elesaberámuitobemquemaescreveu.
Fonchito fezumgestodeaplauso.Tinha cadodepée sepreparavapara sair.
Hojenão tinhahavidochancays tostados,porqueJustinianaestavade folga.Como
sempre,recolheuolivrodereproduçõeseoguardounamochila,abotoouacamisa
cinzaeajeitouagravatinhadouniforme,observadoporumaLucreciaquesedivertia
emvê-lorepetiracadatardeosmesmosgestos,aochegareaopartir.Masdestavez,à
diferençadeoutras emque se limitavaadizer “Tchau,madrasta”, ele se sentouao
ladodelanapoltrona,muitoperto.
— Queria lhe perguntar uma coisa antes de ir. Só que tenho um pouco de
vergonha.
Fazia a vozinha na, doce e tímida que usava quando queria despertar a
benevolênciaouapiedadedamadrasta.Esempreobtinhaumaououtra,emboraa
suspeitadequetudoaquiloerapurafarsanuncaabandonassedonaLucrecia.
—Vocênãotemvergonhadenada,portantonãomevenhacomhistóriasnem
sefaçadeinocente—disseela,desmentindoadurezadesuaspalavrascomacarícia
quefazia,puxando-lheaorelha.—Pergunte,vamos.
Omeninovirou-sedeladoejogou-lheosbraçosaopescoço.Afundouacarinha
emseuombro.
— Se eu olhar para você, não me atrevo — sussurrou, baixando a voz até
transformá-laemummurmúrioquase inaudível.—Aboquinhafranzida, rodeada
deruguinhas,dequevocêfalaemsuacarta,nãoéesta,nãoé,madrasta?
DonaLucreciasentiuqueafacecoladaàsuasemovia,quedoislábiosdelgados
desciam pelo seu rosto e aderiam aos seus. Frios no princípio, logo se animaram.
Sentiu que faziam pressão e a beijavam. Fechou os olhos e abriu a boca: uma
cobrinhaúmidaavisitou,passeouporsuasgengivas,seupalato,eenrodilhou-seem
sua língua. Ficou ausente por um instante, cega, transformada em sensação,
aniquilada, feliz, sem fazer nada nem pensar em nada. Mas, quando levantou os
braços para estreitar Fonchito, o menino, em uma daquelas súbitas mudanças de
humor que eram seu traço distintivo, soltou-se e se afastou. Agora, estava se
distanciando,dando-lheadeus.Exibiaumaexpressãomuitonatural.
—Se quiser, passe a limpo sua carta anônima e coloque emum envelope—
disse ele, já da porta. — Amanhã você me entrega e eu a coloco na caixa de
correspondêncialádecasa,semqueopapaiveja.Tchau,madrasta.
Nem caballito de totoranem tourinho de pucará
Seiqueoespetáculodabandeiraondulandoaoventolheproduzpalpitações,assim
comoamúsicaeaspalavrasdohinonacional lheprovocamascócegasnasveias,a
retraçãoeoeriçamentodepelosaquedãoonomedeemoção.Àpalavrapátria(que
gente do seu tipo escreve sempre com maiúscula), vossa senhoria não associa os
versosirreverentesdojovemPabloNeruda
Pátria,palavratriste,comotermômetroouelevador
nem a mortífera sentença do doutor Johnson (Patriotism is the last refuge of ascoundrel), mas cargas heroicas de cavalaria, espadas incrustadas em peitos de
uniformes inimigos, toques de clarim, disparos e estampidos que não são os das
garrafas de champanhe. Vossa Senhoria pertence, segundo todas as aparências, ao
conglomeradodemachosefêmeasqueolhamcomrespeitoessasestátuasdepróceres
comquesãoadornadasaspraçaspúblicasedeploramqueospomboscaguemnelas,e
écapazdemadrugareesperarhorasparanãoperderumbom lugarnoCampode
Marte durante o des le dos soldados nos dias de efemérides, espetáculo que lhe
suscita apreciações nas quais crepitam as palavras marcial, patriótico e viril. Meu
senhor, minha senhora: em sua pessoa existe, emboscada, uma fera raivosa que
constituiumperigoparaahumanidade.
Vossasenhoriaéolastrovivoqueacivilizaçãoarrastadesdeostemposdocanibal
tatuado, perfurado e de estojo fálico, do feiticeiro pré-racional que sapateava para
atrair a chuva e ingeria o coração do adversário a m de roubar-lhe a força. Na
verdade, por trás de suas arengas e bandeiras em exaltação a este pedacinho de
geogra a salpicado de balizas e demarcações arbitrárias, onde vossa senhoria vê
personi cada uma forma superior da história e dametafísica social, não há outra
coisasenãooastutoaggiornamentodoantiquíssimomedoprimitivodeemancipar-se
datribo,dedeixarde sermassa,parte,para transformar-seemindivíduo;nostalgia
daqueleantecessorparaquemomundocomeçavaeterminavadentrodoslimitesdo
conhecido, a clareiradobosque, a caverna escura,oplanalto elevado,opequenino
enclave onde o compartilhamento da língua, da magia, da confusão, dos usos, e
sobretudodaignorânciaedostemoresdogrupo,dava-lhecoragemeofaziasentir-se
protegidocontraotrovão,oraio,aferaeasoutrastribosdoplaneta.Embora,desde
aqueles tempos remotos, hajam transcorrido séculos e sua ilustre pessoa se creia,
porque enverga paletó e gravata ou veste saia-tubo e fazliftings emMiami,muito
superioraoancestralprotegidopor tapa-sexo feitocomcascadeárvoreeenfeitado
com botoques pendurados no lábio e no nariz, vossa senhoria é ele, e ele é vossa
senhoria.O cordão umbilical que os enlaça através dos séculos chama-se pavor ao
desconhecido, ódio ao diferente, rechaço à aventura, pânico à liberdade e à
responsabilidade de inventar-se a cada dia, vocação de servidão à rotina, ao
gregarismo, recusa a descoletivizar-se para não ter de enfrentar o desa o cotidiano
que é a soberania individual. Naqueles tempos, o indefeso comedor de carne
humana,mergulhadoemumaignorânciametafísicaefísicaanteoqueaconteciaao
seu redor, tinha certa justi cação para negar-se a ser independente, criativo e livre;
mashoje,quandojásesabetudooqueconvémsaberemaisalgumacoisa,nãoexiste
razãoválidaparaempenhar-seemser escravoe irracional.Este juízo talvezvenhaa
parecer-lhesevero,extremado,diantedaquiloque,paravossa senhoria,nãoé senão
um virtuoso e idealista sentimento de solidariedade e amor ao torrão natal e às
recordações(“aterraeosmortos”,segundooantropoidefrancêsMauriceBarrès),à
moldura de referências ambientais e culturais sem a qual um ser humano se sente
vazio.Asseguro-lhequeessaéumadasfacesdamoedapatriótica;aoutra,oreverso
da exaltação do próprio, é o denigrescimento do alheio, a vontade de humilhar e
derrotarosdemais,osquesãodiferentesdevossasenhoriaporquetêmoutracorde
pele,outralíngua,outrodeuseatéoutraindumentáriaeoutradieta.
O patriotismo, que, na realidade, parece uma forma benevolente do
nacionalismo—poisa“pátria”parecesermaisantiga,congênitaerespeitáveldoque
a “nação”, ridícula engenhoca político-administrativa manufaturada por estadistas
ávidosdepodere intelectuais embuscadeumamo, istoé,demecenas, istoé,de
tetas prebendeiras a sugar—, é umperigosomas efetivo álibi para as guerras que
dizimaram o planeta não sei quantas vezes, para as pulsões despóticas que
consagraramodomíniodofortesobreofraco,eumacortinadefumaçaigualitarista
cujasnuvensdeletériasindiferenciamossereshumanoseosclonam,impondo-lhes,
comoessencialeirremediável,omaisacidentaldosdenominadorescomuns:olugar
denascimento.Portrásdopatriotismoedonacionalismo amejasempreamaligna
cçãocoletivistadaidentidade,aramefarpadoontológicoquepretendeaglutinar,em
fraternidadeirremíveleinconfundível,os“peruanos”,os“espanhóis”,os“franceses”,
os“chineses”etc.Vossasenhoriaeeusabemosqueessascategoriassãooutrastantas
mentiras abjetas, que lançam um manto de esquecimento sobre diversidades e
incompatibilidades múltiplas e pretendem abolir séculos de história para fazer a
civilizaçãorecuaràquelesbárbarostemposanterioresàcriaçãodaindividualidade,isto
é,daracionalidadeedaliberdade:trêscoisasinseparáveis,saibadisso.
Por tal razão, quando alguém diz, ao meu redor, “o chinês”, “o negro”, “os
peruanos”, “os franceses”, “asmulheres” ou qualquer expressão equivalente, com a
pretensãodede nirumserhumanopor seupertencimentoaumacoletividadede
qualquerordem,oquenãopassadeumacircunstânciasecundária,tenhoímpetosde
sacaro revólver e—pum,pum!—atirar. (Trata-se aqui, éóbvio,deuma gura
poética; nunca tive uma arma de fogo nasmãos nem a terei, e tampouco efetuei
outrosdisparosaforaosseminais,que,estessim,reivindicocomorgulhopatriótico.)
Meu individualismonãome leva, claro está, a fazer o elogio do solilóquio sexual
comoamaisperfeitaformadoprazer;nestecampo,inclino-meaosdiálogosadois
ou, no máximo, a três, e, evidentemente, declaro-me encarniçado inimigo da
promíscuapartouze, vulgarmente chamada suruba, que é, no espaço da cama e da
fornicação,oequivalentedocoletivismopolíticoesocial.Amenosqueomonólogo
sexual sejapraticadoemcompanhia—casonoqualpassaa serumbarroquíssimo
diálogo—, como se ilustra na pequena aquarela comnanquimdePicasso (1902-
1903),quevossasenhoriapodeadmirarnoMuseuPicassodeBarcelona,naqualo
sr.D.ÁngelFernándezdeSoto,vestidoefumandocachimbo,esuadistintaesposa,
nuamasdemeiasesapatos,bebendoumataçadechampanheesentadanosjoelhos
do cônjuge,masturbam-se reciprocamente, quadro que, diga-se de passagem, sem
quererofenderninguém(emenosaindaPicasso),considerosuperioraGuernicaeàsDemoisellesd’Avignon.
(Selheparecerqueestacartacomeçaadarmostrasdeincoerência,lembre-sedo
MonsieurTeste, de Valéry: “A incoerência de um discurso depende de quem o
escuta. O espírito me parece concebido de um modo tal que o impede de ser
incoerenteparasimesmo.”)
Quer saberdeondevemtodaahepáticadescargaantipatrióticadestacarta?De
umaarengadopresidentedaRepública,resumidaestamanhãpelaimprensa,segundo
a qual, inaugurando a Feira deArtesanato, ele a rmou que nós peruanos temos a
obrigação patriótica de admirar o trabalho dos anônimos artesãos que, há séculos,
modelaram oshuacos5 de Chavín, urdiram e pintaram os tecidos de Paracas,
entremearamosmantosdepenasdeNascaeesculpiramosqueroscusquenhos,ouodos contemporâneos confeccionadores de retábulos ayacuchanos, tourinhos de
Pucará, meninosManuelitos, tapetesdeSanPedrodeCajas,caballitosde totoradolagoTiticacaeespelhinhosdeCajamarca,porque—citooprimeiromandatário—
“oartesanatoéaartepopularporantonomásia,aexposiçãosupremadacriatividadee
dadestrezaartísticadeumpovo,umdosgrandessímbolosemanifestaçõesdaPátria,
ecadaumdosseusobjetosnãoexibeaassinaturaindividualdoseuartesãoforjador
porquetodoselestrazemaassinaturadacoletividade,danacionalidade”.
Se vossa senhoria é homem oumulher de bom gosto— ou seja, amante da
precisão —, terá sorrido ante esta diarreia artesano-patriótica de nosso chefe de
Estado.Noqueamimconcerne,alémdeparecer-me,comoavossasenhoria,ocae
empolada, elame iluminou.Agora já sei por que detesto todos os artesanatos do
mundoemgeral, eode“meupaís” (usoaexpressãoparaquepossamosentender-
nos)emparticular.Agora já seiporqueemminhacasa jamaisentrounementrará
umhuacoperuano,etampoucoumamáscaraveneziana,umamatriochkarussa,uma
bonequinha holandesa de tranças e tamancos, um toureirinho de madeira, uma
ciganinha dançandoflamenco, um boneco articulado indonésio, um samurai de
brinquedo,umretábuloayacuchanoouumdiabloboliviano,assimcomonenhuma
gura ou objeto de barro, madeira, porcelana, pedra, tecido ou miolo de pão
manufaturadoemsérie,genéricaeanonimamente,queusurpe,aindaquesejacoma
hipócritamodéstia de autointitular-se arte popular, a natureza do objeto artístico,
algoqueéprivilégioabsolutodaesferaprivada,expressãodeacérrimaindividualidade
e,portanto,refutaçãoerechaçodoabstratoedogenérico,detudooque,diretaou
indiretamente,aspirea justi car-seemnomedeumapretensaestirpe“social”.Não
existearteimpessoal,senhorousenhorapatriota(enãovenhamefalar,porfavor,das
catedraisgóticas).Oartesanatoéumamanifestaçãoprimitiva,amorfaefetaldaquilo
quealgumdia—quandoparticularesindivíduosdesagregadosdotodocomeçarema
imprimir um selo pessoal a esses objetos, nos quais expressarão uma intimidade
intransferível— poderá talvez ascender à categoria artística. Que ele se destaque,
prospere e reine emuma “nação” não deveria orgulhar ninguém,muitomenos os
pretensos patriotas. Porque a prosperidade do artesanato— essa manifestação do
genérico—ésinaldeatrasoouregressão,vontadeinconscientedenãoavançarnesse
torvelinho demolidor de fronteiras, de costumes pitorescos, de cor local, de
diferençasprovincianaseespíritoparoquial,queéacivilização.Sei,senhorapatriota,
senhorpatriota,quevossasenhoriaodeia,senãoapalavra,oconteúdodessapalavra
demolidora.Éumdireito seu.Tambémémeudireito amá-la e defendê-la contra
ventosemarés,mesmosabendoqueocombateédifícilequepossodescobrir-me—
os indícios sãomuitos—no campodosderrotados.Não importa.Essa é aúnica
formadeheroísmoquenosépermitida,anósosinimigosdoheroísmoobrigatório:
morrerassinandocomnomeesobrenomepróprios,terumamortepessoal.
Saibadeumavezpor todasehorrorize-se: aúnicapátriaqueeu reverencioéa
camapisadaporminhaesposa,Lucrecia(Quetualuz,altasenhora,/Vençaestacegaetristenoiteminha,freiLuísdeLeóndixit),eseucorposoberbo,aúnicabandeiraou
insígniapátriacapazdearrastar-meaosmaistemerárioscombates;eoúnicohinoque
mecomoveatéochoroconvulsosãoosruídosqueessacarneamadaemite,suavoz,
seuriso,seupranto,seussuspirose,claro(tampeosouvidoseonariz),seussoluços,
arrotos, peidos e espirros. Posso ou não posso ser considerado um verdadeiro
patriota,àminhamaneira?
Maldito Onetti! Bendito Onetti!
Don Rigoberto acordou chorando (isso lhe acontecia com bastante frequência
ultimamente).Tinha já passado do sono à vigília; sua consciência reconhecia nas
sombrasosobjetosdeseudormitório;seusouvidos,omonótonomar;suasnarinase
osporosdoseucorpo,aumidadecorrosiva.Masaimagemhorrívelcontinuavaali,
sobrenadandoemsuaimaginação,saídadealgumesconderijoremoto,angustiando-o
comoalgunsminutosantes,na inconsciênciadopesadelo.“Paredechorar, idiota.”
Masas lágrimascorriamporsuas faceseele soluçava, tomadodepavor.Ese fosse
telepatia? Se tivesse recebido uma mensagem? Se, de fato, ontem, esta tarde,
vermezinho no coração da maçã, tivessem descoberto no seio dela o volume
anunciador da catástrofe e Lucrecia tivesse imediatamente pensado nele, con ado
nele, recorrido a ele para compartilhar seu pesar, seu desalento? Havia sido um
chamadoin extremis. O dia da operação estava decidido. “Ainda temos tempo”,
sentenciou o doutor, “desde que extirpermos este seio, talvez os dois seios, de
imediato.Possoquase,quase,botaramãonofogo:aindanãohouvemetástase.Se
operarmos dentro de poucas horas, ela se salvará”.Omiserável tinha começado a
amolar o bisturi, com brilhos de prazer sádico nos olhos. Então, nesse instante,
Lucreciapensounele, desejou ardentemente falar comele, contar-lhe, ser escutada,
consolada,acompanhadaporele.“MeuDeus,ireimearrastaraospésdelacomoum
vermeelhepedirperdão”,estremeceudonRigoberto.
A imagem de Lucrecia, deitada em uma mesa cirúrgica, submetida a essa
monstruosamutilação,provocou-lheumanovavergastadadeangústia.Fechandoos
olhos, prendendo a respiração, recordou os peitos rmes de sua amada, robustos,
idênticos,asaréolasescuraseapelegranulada,osbicosque,arrulhadoseumedecidos
por seus lábios, seeriçavamcomgalhardia,desa antes,nahoradoamor.Quantos
minutos, horas, havia passado contemplando, sopesando, beijando, lambendo,
acariciando aqueles seios, brincando com eles, imaginando-se transformado em
cidadãodeLiliputqueescalavaessascolinascor-de-rosaembuscadoaltotorreãodo
cume,ouemrecém-nascidoque,mal saídodoclaustromaterno,mamandodali a
branca seiva da vida, recebia deles suas primeiras lições de prazer?Recordou como
costumava, certos domingos, sentar-se no banquinho demadeira para contemplar
Lucrecianabanheira,emolduradadeespuma.Elaenvolviaacabeçaemumatoalha,à
maneira de turbante, e prosseguia sua toalete, muito conscienciosa, de vez em
quandoconcedendo-lheumsorrisobenevolente,enquantoesfregavaocorpocomas
grandesesponjasamarelasembebidasemáguaespumosa,passando-aspelosombros,
pelas costas ou pelas belas pernas que, para isso, tirava por alguns segundos das
profundezascremosas.Nessesmomentos,oquemais imantavaaatenção,o fervor
religiosodedonRigoberto,eramosseios.Assomavamà ord’água,suataçabranca
eseusmamilosazuladosbrilhandoentreasbolhasdeespuma,edevezemquando,
para adular e premiar o marido (“carícia distraída que a dona faz no dócil cão
estendido aos seus pés”, pensou ele, mais calmo), Lucrecia segurava-os e, sob o
pretextodeensaboá-loseenxaguá-losumpoucomais,acariciava-oscomaesponja.
Eram lindos, eram perfeitos.Tinham a redondez, a consistência e a temperatura
ideaisparasatisfazerosdesejosdeumdeusluxurioso.“Agora,mepasseatoalha,seja
meu camareiro”, dizia ela, levantando-se, enquanto se enxaguava com a ducha de
mão.“Sevocê secomportarbem, talvezeu lhepermita secarminhascostas.”Seus
peitosestavamali,luzindonaescuridãodoquartoecomoqueiluminandoasolidão
dele. Seria possível que o iníquo câncer se encarniçasse contra essas criaturas que
enalteciam a condição feminina, que justi cavam a divinização trovadoresca da
mulher,ocultomariano?DonRigobertosentiuqueaodesesperodeummomento
antesseseguiaacólera,umsentimentoselvagemderebeldiacontraadoença.
E, então, recordou. “MalditoOnetti!”Começoua rir às gargalhadas. “Maldito
romance! Maldita Santa María! Maldita Gertrudis!” (Era este o nome da
personagem? Gertrudis? Sim, este.) Daí lhe viera o pesadelo, nada de telepatia.
Continuava rindo, liberado, superexcitado, feliz. Decidiu, por uns momentos,
acreditaremDeus(emalgumdeseuscadernoshaviatranscritoa frasedeQuevedo
emOgatuno:“EleeradessesquecreememDeusporcortesia”)parapoderagradecer
a alguém que os amados seios de Lucrecia estivessem intactos, indenes ante as
armadilhasdocâncer,equeessepesadelotivessesidoapenasareminiscênciadaquele
romance cujo terrível início o sobressaltara de horror, nos primeirosmeses de seu
casamentocomLucrecia,inoculando-lheaapreensãodeque,umdia,osdeliciosos,
docesseiosdesuanovaesposapudessemservítimasdeumaafrontacirúrgica(afrase
compareceu à memória dele com sua obscena eufonia: “Ablação de mama”)
semelhante à que era descrita, ou melhor, inventada, nas primeiras páginas, por
Brausen,onarradordesseromanceinquietantedomalditoOnetti.“Obrigado,meu
Deus,porissonãoserverdade,porestareminteirasastetasdela”,rezou.E,semcalçar
oschinelosnemvestiroroupão,foiàsescuras,tropeçando,reveroscadernosemseu
escritório.Tinha certeza de haver deixado testemunho dessa leitura perturbadora,
que,porquê?,haviaafloradoestanoitedeseusubconscienteparalhearruinarosono.
OmalditoOnetti!Uruguaio?Argentino?Rio-platense,emtodocaso.Quemau
momentoo zerapassar!Curiosopercurso,odamemória,curvascaprichosas,zigue-
zagues barrocos, hiatos incompreensíveis. Por que, agora, esta noite, essa cção
reapareciaemsuaconsciência,apósdezanosemqueprovavelmentenemumsódia,
nemumasóvez,eletinhapensadonela?Àluzdouradadoabajur,projetadasobrea
escrivaninha,reviaapressadamenteapilhadecadernosque,calculou,correspondiaà
época emquehavia lidoAvidabreve.Aomesmo tempo, continuava vendo, cada
vez mais nítidos, níveos, eretos, cálidos, na cama noturna, na banheira matutina,
assomando entre as dobras da camisola ou do robe de seda ou pela abertura do
decote,osseiosdeLucrecia.Evoltava,retornavaàlembrançadatremendaimpressão
causada pela imagem inicial, pela história contada emAvida breve, com crescente
lucidez,comoseaquelaleiturafossefresca,recentíssima.PorqueAvidabreve?Porqueestanoite?
Finalmente, encontrou. No alto da página e sublinhado: A vida breve. E, aseguir: “Soberba arquitetura, delicadíssima e astuta construção: uma prosa e uma
técnicamuitosuperioresaosseuspobrespersonagensehistóriasanódinas.”Nãoera
umafrasemuitoentusiástica.Porque,então,essacomoçãoaorecordá-la?Sóporque
seu subconscientehavia associado aquele seiodaGertrudisdo romance, amputado
pelo bisturi, com os saudosos seios de Lucrecia?Tinha claríssima a cena inicial, a
imagem que o chocara novamente. O medíocre empregadinho de uma agência
publicitáriadeBuenosAires,JuanMaríaBrausen,narradordahistória,tortura-seem
seusórdidoapartamentocomaideiadamutilaçãodemamaaquefoisubmetidana
véspera ou esta manhã sua mulher, Gertrudis, enquanto ouve, do outro lado do
tabique,atagarelagemestúpidadeumanovavizinha,umaex-ouaindaputa,Queca,
evagamenteimaginaumargumentode lme,queseuamigoechefeJulioSteinlhe
pediu. Ali estavam as transcrições assustadoras: “... pensei na tarefa de olhar sem
repulsa anovacicatrizqueGertrudis iria ternopeito, redondae complicada, com
nervurasdeumvermelhoouumrosaqueo tempotalvezviessea transformarem
umaconfusãopálida,dacordaoutra, naesemrelevo,ágilcomoumaassinatura,
queGertrudistrazianoventreequeeuhaviareconhecidotantasvezescomaponta
dalíngua.”Eesta,aindamaisdilacerante,emqueBrausen,agarrandootouropelos
chifres,antecipaaúnicamaneirarealquelhepermitiriaconvencersuamulherdeque
aquelamama cerceadanão importava: “Porque a única prova convincente, a única
fontequelheproporcionaráfelicidadeecon ança,seráerguerebaixaremplenaluz,
sobreopeitomutilado,umrostotrans guradopelaluxúria,beijareenlouquecer-me
ali.”
“Quemescrevefrasesassim,quedezanosdepoiscontinuamarrepiandooleitor,
enchendoseucorpodeestalactites,éumcriador”,pensoudonRigoberto.Imaginou-
se nu com suamulher, na cama, contemplando a cicatriz quase invisível no lugar
ondehaviaimperadoaquelataçadecarnetépida,aquelacurvaturasedosa,beijando-a
comavidezexagerada,aparentandoumaexcitação,umfrenesiqueelenãosentianem
voltariaasentir,ereconheceuemseuscabelosamão—agradecida,compadecida?—
desuaamada,fazendo-osaberquejábastava.Nãoeranecessário ngir.Porqueeles,
que haviam vivido em cada noite a verdade de seus desejos e seus sonhos até a
medula, iriammentiragora,dizendo-sequenão importava,quandoambossabiam
que importava muitíssimo, que aquele seio ausente continuaria gravitando sobre
todasasnoitesrestantes?MalditoOnetti!
—Você teria amaior surpresa de sua vida— riu donaLucrecia, fazendo um
trinadodecantoradeóperaquesepreparaparaentraremcena.—Comoeu,quando
elamecontou.E,maisainda,quandoosvi.Amaiorsurpresadesuavida!
— Os peitos soberbos da embaixadora da Argélia? — surpreendeu-se don
Rigoberto.—Reconstituídos?
— Da embaixatriz, a esposa do embaixador da Argélia — especi cou dona
Lucrecia.—Não se faça de bobo, você sabemuito bemde quem se trata. Ficou
olhandoparaelesanoiteinteira,duranteojantarnaembaixadadaFrança.
—Éverdade,eramlindíssimos—admitiudonRigoberto,enrubescendo.E,ao
mesmo tempo em que acariciava, beijava e olhava com devoção os seios de dona
Lucrecia,matizouseuentusiasmocomumgalanteio:—Masnãotantoquantoos
seus.
—Ora,nãomeimporta—disseela,despenteando-o.—Sãomelhoresdoque
osmeus,oquepossofazer?Menores,porémmaisperfeitos.Emaisduros.
—Maisduros?—DonRigobertohaviacomeçadoaengolirsaliva.—Sósevocê
ativessevistonua.Ousetocasseneles.
Houve um silêncio auspicioso, que, no entanto, coexistia como estrondo das
ondasquebrandonaescarpa,láembaixo,aopédoescritório.
—Euavinuaeostoquei—soletrousuamulher,demorando-senaspalavras.
—Vocênãoseimporta,nãoé?Masaquestãonãoéessa,équesãoreconstituídos.
Deverdade.
Agora, don Rigoberto recordou que as mulheres deA vida breve — Queca,
Gertrudis,ElenaSala—usavamcintasde sedapor cimada calcinha,para a nar a
cinturaemanterasilhueta.DequedataseriaaqueleromancedeOnetti?Jánenhuma
mulher usava cintas. Ele nunca tinha visto Lucrecia com uma cinta de seda. E
tampoucovestidadepirata,nemdefreira,nemdejoqueta,nemdepalhaço,nemde
borboleta,nemde or.Masdecigana,sim,comlençonacabeça,grandesargolasnas
orelhas,blusadebabados,umasaiadeamplarodaemuitascores,e,nopescoçoenos
braços,colaresepulseirasdemiçangas.Recordouqueestavasozinho,namadrugada
úmida de Barranco, separado de Lucrecia havia cerca de um ano, e o atroz
pessimismoromanescodeJuanMaríaBrausenoimpregnou.Sentiu,também,oque
lianocaderno:“acertezainolvidáveldequenãoháemnenhumlugarumamulher,
umamigo,umacasa,umlivro,nemsequerumvício,quepossammefazer feliz.”
Era essa solidão atroz, e não a cena do peito canceroso de Gertrudis, que havia
desenterradodeseusubconscienteaqueleromance;eleestavaagoramergulhadoem
umasolidãotãoácidaeumpessimismotãonegroquantoosdeBrausen.
— Reconstruídos, como assim? — atreveu-se a perguntar, após um longo
parêntesededesconcerto.
—Elatevecâncereosseiosforamremovidos—informoudonaLucrecia,com
brutalidadecirúrgica.—Depois,aospoucos,foramsendoreconstruídos,naClínica
Mayo de Nova York. Seis intervenções. Já pensou? Uma. Duas. Três. Quatro.
Cinco. Seis. Ao longo de três anos.Mas carammais perfeitos do que antes.Os
médicosatére zeramosmamilos,comruguinhasetudo.Idênticos.Possoa rmar,
porqueosvi.Porqueostoquei.Vocênãoseimporta,nãoé,meuamor?
— Evidente que não — apressou-se a responder don Rigoberto. Mas sua
urgênciaotraiu,assimcomoamudançadecoloratura,asressonânciaseimplicações
desuavoz.—Podemedizerquando?Onde?
—Quandoos vi?—atalhou-odonaLucrecia, com sabedoriapro ssional.—
Ondeostoquei?
—Sim,sim—implorouele,jásemcerimônia.—Sevocêquiser.Esóoque
acharquepodemecontar,éclaro.
“É claro!”, saltou don Rigoberto. Agora entendia. O que havia provocado a
súbitaressurreição,oregressodeZorro,Tarzanoud’Artagnan,dezanosdepois,não
tinhasidoaquelepeitoemblemáticonemonegroressencialdonarradordeAvidabreve,esimaastutamaneiraqueJuanMaríaBrausentinhaencontradoparasesalvar.
Claro! Bendito Onetti! Sorriu, aliviado, quase contente. A lembrança não havia
aparecido para derrubá-lo, mas para ajudá-lo ou, como a rmava Brausen ao
quali car sua imaginação febril, para salvá-lo. Não era o que dizia, quando se
transpunhadaBuenosAiresrealparaaSantaMaríainventada,travestidodemédico
corrupto,DíazGrey, que por dinheiro injetavamor na namisteriosa Elena Sala?
Não dizia que essa transposição, essa mutação, essa elucubração, esse recurso ao
fictícioosalvava?Aquiestava,anotadonocaderno:“Umacaixachinesa.Na cçãode
Onetti, seu personagem inventado, Brausen, inventa uma cção na qual há um
médicocalcadonele,DíazGrey,eumamulhercalcadaemGertrudis(emboraainda
comosseiosnolugar),ElenaSala,eessa cçãoémaisdoqueoargumentode lme
queJulioSteinlhepediu:ésuamaneiradedefender-sedarealidadeconfrontando-lhe
osonho,deaniquilarahorrívelverdadedavidacomabelamentiradaficção.”Estava
feliz e exaltado por sua descoberta. Sentia-se Brausen, sentia-se redimido, a salvo,
quandoopreocupououtracitaçãodeseucaderno,embaixodasdeAvidabreve.EraumversodeIf,opoemadeKipling:
Ifyoucandream—andnotmakedreamsyourmaster
Uma advertência oportuna. Continuava dono dos seus sonhos, ou já era
governadoporeles,detantoabusardesserecursoapóssuaseparaçãodeLucrecia?
— Ficamos amigas desde aquele jantar na embaixada francesa— contava sua
mulher.— Ela me convidou para tomar um banho de vapor em sua casa. Um
costumebastantedifundidonospaísesárabes,parece.Osbanhosdevapor.Nãosãoa
mesmacoisaqueasauna,queébanhoseco.Elesmandaramconstruirumhammannofundodojardim,naresidênciadeOrrantia.
Don Rigoberto continuava folheando, abobalhado, as páginas de seu caderno,
mas não estava totalmente ali; já se via, também, naquele cerrado jardim de
trombetas-cheirosas, espirradeiras brancas e cor-de-rosa e um intenso perfume da
madressilva enredada nas colunas que sustentavam o telhado de um terraço.
Deslumbrado, espiava as duas mulheres — Lucrecia, com um orido vestido
primaverileumassandáliasquedeixavamdescobertosseusalvospés,eaembaixatriz
daArgéliaemumatúnicadesedadecoresdelicadas,queamanhãluminosairisava
—avançarememmeioatouceirasdegerâniosvermelhos,crótonsverdeseamarelos
e uma grama cuidadosamente aparada, em direção à construção de madeira
semiencobertapelosramosfrondososdeumfícus.“Ohammam,obanhodevapor”,
disse a si mesmo, sentindo o próprio coração. Via as duas mulheres de costas e
admirava a semelhançade suas formas, as largas edesenvoltasnádegasmovendo-se
compassadamente, os dorsos elegantes, a curva dos quadris desenhando pregas em
seusvestidos. Iamdebraçodado,amigascordialíssimas, levando toalhasnasmãos.
“Estou ali, me salvando, e estou no meu escritório”, pensou, “como JuanMaría
Brausen em seu cubículo de Buenos Aires, desdobrando-se no cafetão Arce, que
exploraavizinhaQueca,equeporsuavezsesalvadesdobrando-senodoutorDíaz
Grey,dainexistenteSantaMaría”.Masdistraiu-sedasduasmulheresporque,aovirar
uma página do caderno, topou com outra citação extraída deA vida breve: “Asenhoranomeouplenipotenciáriososseuspeitos.”
“Esta é anoitedospeitos”, enterneceu-se. “Seremos,Brausen e eu, apenasdois
esquizofrênicos?”Mas isso não lhe importava nem um pouco. Havia fechado os
olhoseviaasduasamigas sedespiremsemmelindres, comdesenvoltura, comose
tivessemcelebradomuitasvezesesseritual,napequenaantessalarevestidademadeira
dohammam.Penduravamasroupasemganchoseseenvolviamnasamplastoalhas,
conversandoanimadamentesobrealgoquedonRigobertonãoentendianemqueria
entender.Agora,empurrandoumaportinhademadeirasemfechadura,passavamao
pequenocompartimentosaturadodenuvenzinhasdevapor.Elesentiunorostouma
lufadadecalorúmidoquelhemolhavaopijamaesegrudavaaoseucorponodorso,
nopeitoenaspernas.Ovaporlheentravapelasnarinas,pelaboca,pelosolhos,com
umperfumesemelhanteaopinho,aosândalo,àmenta.Tremia,commedodeque
asamigasodescobrissem.Elas,porém,nãolheprestavamamenoratenção,comose
elenãoestivessealioufosseinvisível.
—Nãopensequeusaramnadaarti cial,siliconeoualgumadessasporcarias—
esclareceudonaLucrecia.—Nadadisso.Reconstruíramosseioscompeleecarnedo
próprio corpo dela.Tirandoumpedacinhode barriga, outro de nádega, outro de
coxa.Semdeixaramenormarcadenada.Ficouexcelente,excelente,juroavocê.
Era verdade, ele agora comprovava. Elas haviam tirado as toalhas e se sentado
muito juntas por falta de espaço, emum estradode ripas demadeira encostado à
parede.DonRigobertocontemplouosdoiscorposdespidosatravésdosmovimentos
ondulantesdasnuvenzinhasquentesdevapor.EramelhordoqueObanhoturcodeIngres, pois, nesse quadro, o amontoado de nus desconcentrava a atenção — “a
maldição coletivista”, praguejou —, ao passo que, aqui, sua percepção podia se
focalizar,abrangercomumolharasduasamigas,perscrutá-lassemperderomenor
dosseusgestos,possuí-lasemumavisãointegral.Alémdisso,emObanhoturco,oscorposestavamsecos,eaqui,empoucossegundos,donaLucreciaeaembaixatrizjá
mostravam suas peles cobertas de gotinhas brilhantes de transpiração. “Como são
bonitas!”, pensou, emocionado. “Juntas, mais ainda, como se a beleza de uma
potencializasseadaoutra.”
—Nãodeixaramnemsombradecicatriz—insistiadonaLucrecia.—Nemno
ventre, nem na nádega nem na coxa. Emuitomenos nos peitos que fabricaram.
Incrível,amor.
DonRigobertoacreditavadepés juntos.Comonão,seestavavendoessasduas
perfeições tão de perto que, se estendesse a mão, conseguiria tocá-las? (“Ai, ai”,
conformou-se).O corpo de suamulher eramais branco e o da embaixatriz,mais
moreno, como que crescido e formado ao ar livre; a cabeleira de Lucrecia, lisa e
negra,eadesuaamiga,crespaearruivada,mas,apesardessasdiferenças,asduasse
pareciamemseudesprezoàmodacontemporâneadamagrezaeaoestiloesguio,em
suasuntuosidaderenascentista,emsuaesplêndidaabundânciadetetas,coxas,nádegas
ebraços,nessasmagní casredondezesque—nãoprecisavaacariciá-lasparasaber—
eram rmes, duras e rijas, comprimidas como se fossemmodeladas por invisíveis
corseletes,cintas,ligas,sutiãs.“Omodeloclássico,agrandetradição”,celebrou.
—Sofreumuito com tanta operação, com tanta convalescença— apiedava-se
donaLucrecia.—Masfoiajudadaporseucoquetismo,suavontadedenãosedeixar
vencer, de derrotar aNatureza, de continuar bonita. E, por m, ganhou a guerra.
Nãoachaqueelaélinda?
—Vocêtambémé—oroudonRigoberto.
As duas tinham cado agitadas pelo calor e pela transpiração. Respiravam
fortemente,comlentoseprofundosmovimentosqueerguiamebaixavamseusseios
comoondulaçõesdomar.DonRigobertoestavaemtranse.Oque sediziam?Por
que haviam surgido esses brilhos maliciosos nos dois pares de olhos? Aguçou os
ouvidoseescutou.
— Não consigo acreditar — dizia dona Lucrecia, olhando os peitos da
embaixatriz e exagerando seu assombro. — Qualquer um caria louco. Não
poderiamsermaisnaturais!
—Éoquedizmeumarido—riuaembaixatriz,commalícia,empinandoum
pouco o torso a m de exibir mais os seios. Falava fazendo um biquinho, com
sotaquefrancês,masseusjotasguturaiseerreseramárabes.(“OpainasceuemOrãe
jogou futebol com Albert Camus”, decidiu don Rigoberto.)—Garante que eles
caram melhores do que antes, que agora gosta mais deles. Não pense que as
operaçõesosdeixaraminsensíveis.Dejeitonenhum.
Riudenovo,simulandorubor,edonaLucreciariutambém,dando-lhenacoxa
umalevepalmadinhaquesobressaltoudonRigoberto.
— Espero que você não leve a mal nem que pensando coisas— disse, um
momentodepois.—Eupoderiatocá-los?Vocêseimportaria?Morrodevontadede
saber se, ao toque, são tão autênticos quanto parecem.Devo estar parecendouma
loucaporlhepedirisso.Masvocêseimportaria?
—Claroquenão,Lucrecia—respondeuaembaixatriz,comfamiliaridade.Seu
trejeito sehavia acentuado e agora ela sorria comumaboca abertadepar empar,
exibindocomlegítimoorgulhoseusdentesbranquíssimos.—Vocêtocaosmeus,e
euosseus.Vamoscomparar.Nãohánadaerradoemqueduasamigasseacariciem.
—Éverdade,éverdade!—exclamoudonaLucrecia,entusiasmada.Edeuuma
olhadeladesoslaionadireçãodedonRigoberto.(“Desdeocomeçoelasoubequeeu
estavaaqui”,suspirouele.)—Nãoseiquantoaoseumarido,masomeuadoraisso.
Vamosbrincar,vamosbrincar.
Tinhamcomeçadoasetocar,deiníciocommuitaprudênciaetimidez;depois,
com mais atrevimento; agora, já se acariciavam os mamilos, sem dissimulação.
Haviamseaproximadoaospoucos.Abraçavam-se,asduascabeleirasseconfundiam.
DonRigobertomalasdivisava.Asgotasdesuor—ou,quemsabe,aslágrimas—
irritavamdetalmodosuaspupilasqueeleprecisavapiscarsemdescansoefecharos
olhos. “Estou feliz, estou entristecido”,pensava, conscienteda incongruência. Seria
possível?Porquenão?EracomoestaremBuenosAireseemSantaMaría,ouneste
amanhecer,sozinho,rodeadodecadernosegravurasnoescritóriodesolado,enaquele
jardimprimaveril,entrenuvensdevapor,suandoembicas.
— Começou como uma brincadeira — explicou-lhe dona Lucrecia. — Para
passarotempo,enquantoeliminávamosastoxinas.Imediatamente,penseiemvocê.
Sevocêaprovaria.Seissooexcitaria.Seoincomodaria.Sevocêmefariaumacena
quandoeulhecontasse.
Ele, el à promessa de dedicar toda a noite a homenagear os seios
plenipotenciáriosdesuamulher,haviaseajoelhadonochão,entreaspernasseparadas
deLucrecia,sentadanabeiradacama.Comamorosasolicitude,sustentavacadaum
dosseiosdelaemumamão,exagerandooscuidados,comoseelesfossemdefrágil
cristal e pudessem se quebrar. Beijava-os com a or dos lábios, milímetro a
milímetro,cultivadorconscienciosoquenãodeixanenhumaelevaçãodoterrenosem
lavrar.
—Ou seja,me deu vontade de tocá-la para saber se, ao tato, seus peitos não
pareceriampostiços.Eelafezomesmoporcortesia,paranãoficarquieta,comouma
lesma.Mas,claro,erabrincarcomfogo.
— Claro — assentiu don Rigoberto, incansável em sua busca da simetria,
saltando,equitativo,deumseioaoutro.—Porquevocêsforamseexcitando?Por
que,detocá-los,passaramabeijá-los?Achupá-los?
Arrependeu-se no ato.Tinha violado aquele rigoroso código que estabelecia a
incompatibilidade entre o prazer e o uso de palavras vulgares, sobretudo verbos
(chupar,mamar),queferiammortalmentequalquerilusão.
— Eu não disse chupá-los — desculpou-se, tentando retroagir ao passado e
corrigi-lo.—Fiquemoscombeijá-los.Qualdasduascomeçou?Você,minhavida?
Ouviu a suavíssima voz de Lucrecia, mas não conseguiu vê-la, porque ela se
desvaneciamuitodepressa, comoobafejono espelho, quando este é esfregadoou
recebeumalufadadearfresco:“Sim,eu,nãofoioquevocêmemandoufazer,oque
vocêqueria?”“Não”,pensoudonRigoberto.“Oqueeuqueroétê-laaqui,emcarne
eosso,enãocomofantasma.Porqueeuamovocê.”Atristezahaviacaídosobreele
comoumaguaceiro,cujas trombasd’água impetuosas levaramderoldãoo jardim,
aquelaresidência,oaromadesândalo,depinho,dementaedemadressilva,obanho
devaporeasduasamigascarinhosas.Tambémocalormolhadodeummomento
antes e seu sonho.O frio damadrugada lhe trespassava os ossos.O isócronomar
golpeavacomfúriaospenhascos.
E então recordou que, no romance—malditoOnetti! benditoOnetti!—, a
Queca e aGorda se beijavam e se acariciavam às escondidas de Brausen, do falso
Arce,equeaputa,ouex-puta,avizinha,aQueca,aquelaquematavam,achavaque
seu apartamento estava cheio de monstros, de gnomos, de endríagos, invisíveis
bestiolasmetafísicasquevinhampersegui-la.“AQuecaeaGorda”,pensou,“Lucrecia
e a embaixatriz”. Esquizofrênico, igual a Brausen. Nem os fantasmas o salvavam
mais, anteso sepultavama cadadia emuma solidãomaisprofunda,deixando seu
escritório semeado de alimárias ferozes, como o apartamento da Queca. Deveria
incendiarestacasa?ComeleeFonchitodentro?
Nocaderno,lampejouumsonhoeróticodeJuanMaríaBrausen(“tiradodeuns
quadros de PaulDelvaux queOnetti não podia conhecer quando escreveuA vidabreve, porqueo surrealistabelganem sequeros tinhapintado”,diziaumanotinha
entre parênteses): “Abandono-me contra o espaldar da cadeira, contra o ombro da
moça, e imagino estar afastando-medeumapequena cidade formadapor casasde
encontros;deumaaldeiasecretaondecasaisdespidosdeambulamporjardinzinhos,
pavimentos musgosos, protegendo-se os rostos com as mãos abertas quando se
acendemluzes,quandodeparamcomcriadospederastas...”AcabariacomoBrausen?
Já seria Brausen? Um medíocre frustrado que fracassou como idealista católico,
reformador social evangélico e também, a seguir, como irredento libertário
individualista e agnóstico hedonista, como fabricante de enclaves privados de alta
fantasia e bom gosto artístico, que vê tudo desmoronar ao seu redor, amulher a
quemama,o lhoqueprocriou,ossonhosquedesejouincrustarnarealidade,eque
declina a cada dia, a cada noite, por trás da repelentemáscara de gerente de uma
próspera companhia de seguros, transformado naquele “desesperado puro” de que
falavaoromancedeOnetti,emumarremedodomasoquistapessimistadeAvidabreve. Brausen, pelomenos, no nal se arranjava para escapar deBuenosAires, e,
tomando trens, automóveis, barcos ou ônibus, conseguia chegar a SantaMaría, a
colônia rio-platense de sua invenção. Don Rigoberto ainda estava su cientemente
lúcido para saber que não podia se contrabandear para as cções, saltar dentro do
sonho.Aindanão eraBrausen.Havia tempopara reagir, fazer algo.Mas o quê, o
quê?
Brincadeiras invisíveis
Entro em tua casa pela chaminé da lareira, embora não seja Papai Noel. Vou
utuando até teu dormitório e, grudadinha ao teu rosto, imito o zumbido do
mosquito. Entre sonhos, começas a dar tapas na escuridão contra um pobre
pernilonguinhoquenãoexiste.
Quando me canso de brincar de mosquito, descubro teus pés e sopro uma
correntedearfrioqueteenregelaosossos.Começasatremer,teencolhes,puxaso
cobertor,batesosdentes,teescondessobotravesseiroeatétevêmunsespirrosque
nãosãoosdetuaalergia.
Então,metransformoemumcalorzinhopiurano,amazônico,queteencharcade
suordospésàcabeça.Parecesumfranguinhomolhado,chutandooslençóisparao
chão, arrancando o paletó e a calça do pijama. Até que cas peladinho, suando,
suandoearquejandocomoumfole.
Depois,metransformoemumapenaetefaçocosquinhas,naplantadospés,na
orelha, nas axilas. Ih-ih!, ah-ah!, oh-oh!, ris sem despertar, fazendo caretas
desesperadas e movendo-te, à direita, à esquerda, para que desapareçam as
cãibrazinhasda gargalhada.Atéque,por m, acordas, assustado, semmever,mas
sentindoquealguémrondaporalinoescuro.
Quandotelevantasevaisaoteuescritório,paratedistraírescomtuasgravuras,
apronto armadilhas pelo caminho. Removo cadeiras, enfeites e mesas dos seus
lugares, para que tropeces e grites “Aiaiaiii!”, esfregando as canelas. Às vezes te
escondo o roupão, os chinelos. Às vezes, derramo o copo d’água que colocas no
criado-mudoparabebê-loaoacordar.Comoteaborreces,quandoabresosolhose
tateiasprocurando-o,edescobresqueeleestánomeiodeumapoça,nochão!
Assimnosdivertimoscomnossosamores,nósoutras.
Tua,tua,tua,
Afantasminhaapaixonada
5 Ouguacos, recipientes de argila encontrados nasguacas, sepulturas indígenas, nos quais se depositavamcomidaouobjetosdevalor.Adiante:queros,vasoscoloridosdemadeirausadospelosincasemsuascerimônias;
Manuelitos,imagensdoMeninoJesusvestidoàmaneiraindígena;caballitos(cavalinhos),canoasfeitasdesdeostempospré-incaicoscomfeixesdetotora,espéciedejunco.(N.daT.)
VIII.
Fera no espelhoVIII - Fera no espelho
“Estanoiteeufui”,deixouescapardonaLucrecia.Antesdesedarcontadoquehavia
falado,escutouFonchito:“Paraonde,madrasta?”Enrubesceuatéaraizdoscabelos,
roídapelavergonha.
—Nãoconseguipregarolho, foioqueeuquisdizer—mentiu,porque fazia
tempo que não tinha um sono tão profundo, embora, isto sim, agitado pelas
turbulênciasdodesejoepelosfantasmasdoamor.—Detãocansada,nemseimaiso
quedigo.
Omeninovoltaraaseconcentrarnaquelapáginadolivrosobreopintordosseus
amores,naqualseviaumafotogra adeEgonSchieleolhando-senograndeespelho
deseuateliê.A imagemoreproduziadecorpo inteiro,mãosnosbolsos,oscurtos
cabelosdespenteados,aesbeltasilhuetajuvenilembutidaemumacamisabrancade
colarinhopostiço,degravatamassempaletó,easmãos,claro,escondidasnosbolsos
de uma calça que parecia arregaçada para atravessar um rio. Desde que chegara,
Fonchito não tinha feitomais do que falar daquele espelho, tentando várias vezes
entabularconversasobreatalfoto;masdonaLucrecia,absortaemseuspensamentos,
ainda invadida pela exaltação confusa, pelas dúvidas e esperanças em que o
surpreendente desenvolvimento de sua correspondência anônima a mantinha
mergulhada desde a véspera, não lhe havia prestado atenção. Olhou a cabeça de
cachinhosdouradosdeFonchito edivisou seuper l, o sisudo escrutínio aque ele
submetiaa foto,comosequisessearrancardalialgumsegredo.“Nãosedeuconta,
nãoentendeu.”Embora,comele,nuncasesoubesse.Talveztivesseentendidomuito
bemmasdissimulasse,paranãoaumentaroembaraçodela.
Ou,paraomenino,“ir”nãoqueriadizeramesmacoisa?Recordouque,tempos
atrás,elaeRigoberto tinhamtidoumadaquelasconversasescabrosasqueocódigo
secreto que governava suas vidas só permitia à noite e na cama, nas preliminares,
duranteoamoroudepoisdele.Seumaridohavialheasseguradoqueanovageração
já não dizia “ir”, mas “chegar”, o que ilustrava, também no delicado território
venusiano,ain uênciadoinglês,poisosgringoseasgringas,quandofaziamamor,
“chegavam” ( to come), e não iam, como os latinos, a nenhum lugar. Fosse como
fosse,donaLucreciatinhaido,chegadoouterminado(esteeraoverboqueelaedon
Rigoberto haviam adotado nos dez anos de casamento, depois de combinar que
jamaisserefeririamaessebelo naldocorpoacorpoeróticopelogrosseiroeclínico
“orgasmo” emenos ainda pela pluviosa e agressiva “ejaculação”) na noite anterior,
gozando intensamente, com um prazer extremado, quase doloroso — acordara
banhada em suor, os dentes se entrechocando, as mãos e os pés convulsos —,
sonhando que havia comparecido ao misterioso encontro da carta anônima,
cumprindo todas as extravagantes instruções, e por m, depois de deslocamentos
rocambolescospelasruasescurasdocentroepelossubúrbiosdeLima,tinhasido—
comosolhosvendados, evidentemente—introduzidaemumacasacujoodorela
reconheceu, levada por uma escada até um segundo andar — desde o primeiro
momento,tevecertezadequesetratavadacasadeBarranco—,despidaederrubada
emumacamaqueelaidentificouigualmentecomoasuadesempre,atéquesesentiu
envolvida, abraçada, invadida e preenchida por um corpo que, claro, era o de
Rigoberto.Tinham terminado— ido ou chegado— juntos, algo que não lhes
acontecia com frequência. Ambos haviam achado isso um bom sinal, um feliz
augúrioparaanovaetapaqueseabriadepoisdaabracadabrantereconciliação.Então,
acordou,úmida,lânguida,confusa,eprecisoulutarumbomtempoparaaceitarque
aquelafelicidadeintensahaviasidoapenasumsonho.
—Schieleganhoudesuamãeesseespelho.—AvozdeFonchitoadevolveuà
suacasa,àgrisalhadeSanIsidro,aosgritosdosgarotosquebatiambolanoOlivar;o
menino tinha o rosto voltadopara ela.—Pediumuitas emuitas vezes que ela o
presenteasse.Algunsdizemqueeleo roubou.Quemorriadevontadede tê-lo,até
que,umdia,foiàcasadamãeeolevouescondido.Equeelaseresignoueacabou
deixando-onoateliê.Foioprimeiroqueeleteve,eoconservousempre,semudou
comesseespelhoparatodososseusateliês,atésuamorte.
—Porqueesseespelhoétãoimportante?—DonaLucreciafezumesforçopara
seinteressar.—EleeraumNarciso,dissojásabemos.Essafotoomostracomotal.
Contemplando-se, enamorado de si mesmo, fazendo cara de vítima. Para que o
mundooamasseeoadmirasse,tantoquantoeleseamavaeseadmirava.
Fonchitodeuumagargalhada.
—Que imaginação, madrasta!— exclamou.— Por isso é que eu gosto das
nossasconversas;vocêtemumasideias,comoeu.Detudo,tiraumahistória.Somos
parecidos,nãoé?Comvocê,eunãomeentedionunca.
—Eeutampouco,emsuacompanhia—disseela,jogando-lheumbeijo.—Já
lhedeiminhaopinião,agoramedêasua.Porqueoespelholheinteressatanto?
— Eu sonho com ele — confessou Fonchito. E, com um sorrisinho
me stofélico,acrescentou:—ParaEgon,eraimportantíssimo.Comovocêachaque
elepintousuacentenadeautorretratos?Graçasaesseespelho,quetambémlheserviu
parapintarsuasmodelos,refletidas.Nãoeraumcapricho.Eraque,eraque...
Fezumacareta,buscando,masdonaLucreciaadivinhouquenãoerampalavraso
que faltava a ele, mas uma ideia ainda imprecisa, inconcreta, ainda em gestação
naquela cabecinha precoce. A paixão do menino por esse pintor, agora ela estava
segura,erapatológica.Mas,porissomesmo,talvezpudessetambémdeterminarpara
Fonchito um futuro excepcional, de criador excêntrico, de artista extravagante. Se
comparecesseaoencontroe zesseaspazescomRigoberto,comentaria isso.“Você
gostadaideiadeterum lhogenialeneurótico?”Elheperguntariasenãohaviaum
riscoparaasaúdepsíquicadomeninonofatodeeleseidenti caratalpontocom
umpintordeinclinaçõestãoretorcidascomoEgonSchiele.Mas,então,Rigoberto
responderia: “Como assim? Você tem visto Fonchito? Enquanto estávamos
separados? Enquanto eu lhe escrevia cartas de amor, esquecendo o acontecido,
perdoando o acontecido, você o recebia às escondidas? O menininho que você
corrompeu, levando-o para sua cama?” “Meu Deus, meu Deus, virei uma idiota
completa”, pensoudonaLucrecia. Se fosse àquele encontro, a única coisa quenão
podiafazereramencionarumasóvezonomedeAlfonso.
—Oi,Justita—disseomeninocumprimentandoaempregada,queentravana
sala de jantar vestida com esmero, avental engomado, com a bandeja do chá e os
indefectíveischancaystostadoscommanteigaegeleia.—Nãováembora,querolhe
mostrarumacoisa.Oquevocêvêaqui?
—Eoquepoderiaser,alémdasporcariasdequevocêgostatanto?—Justiniana
pousouosolhosirrequietossobreolivroporumbomtempo.—Umdescaradoque
deitaerola,vendoduasmoçaspeladas,demeiasechapéu,seexibindoparaele.
—Éoqueparece,certo?—exclamouFonchito,comardetriunfo.Estendeuo
livroadonaLucreciaparaqueelaexaminasseareproduçãoempáginainteira.—Mas
nãosãoduasmodelos,éumasó.Porqueagentevêduas,umadefrenteeoutrade
costas?Porcausadoespelho!Entendeu,madrasta?Otítuloexplicatudo.
Schiele desenhando uma modelo nua diante do espelho (1910, Graphische
Sammlung Albertina, Viena), leu dona Lucrecia. Enquanto examinava a imagem,
intrigadaporalgoqueelanãosabiaoqueera,excetoquenãoestavapropriamenteno
quadro,umapresença,ouantesumaausência,malouviaFonchito, já tomadopor
aqueleestadodeexcitaçãoprogressivaemquesempreentravaaofalardeSchiele.O
meninoexplicavaaJustinianaqueoespelho“estáondenósestamos,nósquevemos
oquadro”.Equeamodelovistadefrentenãoeraadecarneeosso,masaimagem
doespelho,aopassoqueeramreais,enãore exos,opintoreamesmamodelovista
decostas.Oquesigni cavaqueEgonSchielehaviacomeçadoapintarMoaestando
ela de costas para o espelho, mas depois, atraído pela parte dela que ele não via
diretamente, e simprojetada, decidiupintá-la tambémassim.Com isso, graças ao
espelho,pintouduasMoasque,naverdade,eramuma:aMoacompleta,aMoacom
suasduasmetades,umaMoaqueninguémpoderiaolharnarealidadeporque“nóssó
vemosoquetemosànossafrente,enãoapartedetrásdessafrente”.Compreendia
porqueesseespelhoeratãoimportanteparaEgonSchiele?
—Asenhoranãoachaqueeleestácomumparafusofrouxo,patroa?—exagerou
Justiniana,tocandoatêmpora.
— Há muito tempo — assentiu dona Lucrecia. Depois, virando-se para
Fonchito,encadeou:—QuemeraessaMoa?
Uma taitiana. Chegou a Viena e foimorar com um pintor, que era também
mímicoelouco:ErwinDominikOse.Omeninoseapressouapassaraspáginasea
mostraradonaLucreciaeJustinianaváriasreproduçõesdataitianaMoa,dançando,
envolta em túnicas multicores por cujas dobras assomavam seus miúdos seios de
mamilosemristee,comoduasaranhasescondidassobseusbraços,ostu nhosdas
axilas. Dançava nos cabarés, era musa de poetas e pintores e, além de posar para
Egon,tambémtinhasidosuaamante.
—Issoeuadivinheidesdeoprincípio—comentouJustiniana.—Obandido
sempresedeitavacomsuasmodelosdepoisdepintá-las,jásabemos.
— Às vezes, antes, e às vezes, enquanto as pintava — assegurou Fonchito,
tranquilo,aprovando.—Masnãocomtodas.Emsuaagendade1918,seuúltimo
ano,aparecem117visitasdemodelosaoseuateliê.Elepodiasedeitarcomtantas,
emtãopoucotempo?
—Sóseficoutuberculoso—galhofouJustiniana.—Morreudospulmões?
—Morreudegripeespanhola,aos28anos—informouFonchito.—Eéassim
queeuvoumorrertambém,casovocênãosaiba.
—Nãodigaissonembrincando,quedáazar—repreendeu-oaempregada.
—Masaquiháumacoisaquenãobate—interrompeu-osdonaLucrecia.
Tinha arrancado aomeninoo livrode reproduções e voltava a examinar, com
atenção, aqueledesenho sobre fundo sépia,de linhasprecisas edelgadas,dopintor
comamodeloduplicada(“oumelhor,cindida?”)peloespelho,enoqual,aosolhos
concentrados, quase hostis, de Schiele, parecia responder o melancólico, sedoso e
cintilante olhar deMoa, dançarina de cílios azulados.DonaLucrecia se inquietava
comalgoqueacabavadeidenti car.Ah,sim,ochapéuentrevistodecostas.Exceto
por essedetalhe, em todoo resto asduaspartesdadelicada, requebrante e sensual
silhueta da taitiana, com pelos como aranhas no púbis e embaixo dos braços,
coincidiamàperfeição;umavezpercebidaapresençadoespelho,reconheciam-seas
duasmetadesdamesmapessoanasduas gurasqueoartistaobservava.Nochapéu,
porém,não.Ade costas traziana cabeçaumobjetoque, sob essaperspectiva,não
pareciaumchapéu,masalgo incerto, inquietante,umaespéciedecapuz,eaté,até,
umacabeçadefera.Isto,umaespéciedetigre.Nada,emtodocaso,queseparecesse
comocoquetechapeuzinhofeminino,gracioso,queenfeitavaacarinhadeMoavista
defrente.
— Que curioso — insistiu a madrasta. — Visto de costas, este chapéu se
transformaemumamáscara.Acabeçadeumafera.
— Como aquela que o papai pede que você coloque diante do espelho,
madrasta?
OsorrisodedonaLucreciasecongelou.Derepente,elacompreendeuarazãodo
difuso mal-estar que a invadira desde que o menino lhe havia mostradoSchieledesenhandoumamodelonuadiantedoespelho.
—Oque a senhora tem, patroa?—preocupou-se Justiniana.—Está branca,
branca!
—Então,évocê—balbuciouela,olhandoincrédulaparaFonchito.—Ascartas
anônimasquemmemandaévocê,pedaçodefarsante.
Era ele, claro que sim. Aquilo constava da penúltima ou antepenúltima carta.
Nãoeranecessárioirbuscá-la,afrasereviviacomtodosospontosevírgulasemsua
memória: “Te despirás diante do espelho, conservando asmeias, e esconderás tua
formosacabeçasobamáscaradeumaferabravia,depreferênciaumatigresaouuma
leoa.Quebrarásoquadrildireito, exionarásapernaesquerda,apoiarástuamãono
quadriloposto,naposemaisprovocante.Euestareiolhando,sentadinhoemminha
cadeira, com a reverência habitual.” Não era o que ela estava vendo? O maldito
fedelhobrincavacomelaaseugosto!Pegouolivrodereproduçõese,cegaderaiva,
lançou-ocontraFonchito.Omeninonãoconseguiuseesquivar.Recebeuolivroem
plenacara,comumgrito,aoqualseseguiuoutro,daassustadaJustiniana.Como
impacto,elecaiudecostas sobreo tapete,comasmãosnorosto,e couolhando
para a madrasta, exorbitado. Dona Lucrecia não pensou que havia agido mal,
deixando-sevencerpelacólera.Estaadominavademaisparaqueelasearrependesse.
EnquantoaempregadaajudavaFonchitoase levantar,continuougritando,forade
si:
—Mentiroso,hipócrita,mosca-morta!Achaquetemodireitodebrincarassim
comigo,sendoeuumavelhaevocêummelequentoqueaindanãosaiudasfraldas?
—Oquevocêtem,oqueeulhe z?—balbuciavaFonchito,tentandosesafar
dosbraçosdeJustita.
—Calma,patroa,asenhoramachucouomenino,veja,eleestásangrandopelo
nariz—diziaJustiniana.—Evocê,fiquequieto,Foncho,medeixever.
—Oquevocêmefez?!Comoassim,seu ngido?—vociferavadonaLucrecia,
ainda mais furiosa. — Acha pouco? Me escrever cartas anônimas? Inventar a
palhaçadadequeeramdoseupai?
—Mas eu não lhemandei nenhuma carta anônima— protestava omenino,
enquanto a empregada, de joelhos, limpava-lhe o sangue do nariz com um
guardanapodepapel.“Nãosemexa,nãosemexa,assimvaisemanchartodo.”
— Seumaldito espelho o delatou, seumaldito Egon Schiele— gritou ainda
donaLucrecia.—Você se achavamuito esperto,hem?Masnão é, seupaspalhão.
Comosabequeelemepediaisso,queeubotasseumamáscaradefera?
—Foivocêquemmecontou,madrasta—começoua tartamudearFonchito,
mascalou-seaoverquedonaLucrecia cavadepé.Protegeuo rostocomasduas
mãos,comoseelafosseestapeá-lo.
—Eununcalhefaleidessamáscara,mentiroso—explodiuamadrasta,iracunda.
—Voubuscar a carta, vou ler para você.E você vai engoli-la emepedir perdão.
Nuncamaiseuodeixobotarospésnestacasa.Ouviu?Nuncamais.
Indignadíssima,passoucomoumfuracãodiantedeJustinianaeFonchito.Mas,
antesde iratéapenteadeiraondeguardavaascartasanônimas,entrounobanheiro
para jogar água fria no rosto e esfregar as têmporas com água-de-colônia. Não
conseguia se acalmar. Estemoleque, estemoleque. Brincando com ela, o gatinho
comuma ratazana grande.Mandando-lhe cartas atrevidas e rebuscadas para fazê-la
acreditarqueeramdeRigoberto,alimentandonelaaesperançadeumareconciliação.
O que ele queria?Que intriga tramava? Por que essa farsa?Divertir-se, divertir-se
dispondodasemoçõesdela,desuavida?Fonchitoeraperverso,sádico.Tinhaprazer
emiludi-laevê-ladesmoronardepois,desapontada.
Voltouaoseuquarto,semseacalmartotalmente,enãoprecisouprocurarmuito
na gaveta da penteadeira para encontrar a carta. Era a sétima anônima. Ali estava,
maisoumenoscomoemsualembrança,afrasequeadeixaracomapulgaatrásda
orelha: “... esconderás tua formosa cabeça sob a máscara de uma fera bravia, de
preferência a tigresa no cio do Rubén Darío de Azul..., ou uma leoa sudanesa.
Quebrarás o quadril...” etc. etc.A taitianaMoanodesenhode Schiele, nemmais
nemmenos.Oenredeiroprecoce,ointrigantezinho.Tiveraadesfaçatezdelhefazer
todoumteatrocomoespelhodeSchieleeatédelhemostraroquadroqueohavia
delatado. Ela não lamentava ter jogado o livro em cima dele,mesmo lhe tirando
sangue do nariz. Muito benfeito! Não tinha destroçado sua vida, esse pequeno
demônio? Porque não tinha sido ela a corruptora, embora a diferença de idade a
condenasse;tinhasidoele,elemesmo,ocorruptor.Comseuspoucosaninhos,com
suacarinhadequerubim,eraumMe stófeles,Lúciferempessoa.Mas,agora, isso
tinhaacabado.Elaofariaengolirestacartaanônima,sim,eoexpulsariadacasa.Para
elenãovoltarnuncamais,nãoseintrometeremsuavidanuncamais.
Mas,nasaladejantar,sóencontrouJustiniana.Esta,compungida,lhemostrouo
guardanapodepapelcommanchinhasdesangue.
— Foi embora chorando, patroa. Não pela pancada no nariz, mas porque a
senhora, quando o agrediu, rasgou o livro desse pintor que ele tanto ama. Ficou
muitomagoado,issoficou.
—Nãomedigaqueagoraestácompenadocoitadinho!—AsenhoraLucrecia
despencounapoltrona,exausta.—Nãopercebeoqueessemeninomefez?Foiele,
elemesmo,quemmemandouascartasanônimas.
—Elemegarantiuquenão,patroa.Juroupeloquehádemaissagrado,disseque
éopatrãoquemestámandando.
—Mentira.—DonaLucreciasentiaumcansaçodeséculos.Iriadesmaiar?Que
vontade de ir para a cama, de dormir uma semana seguida! — Ele mesmo se
entregou,comaquelaconversamolesobreamáscaraeoespelho.
Justinianaseaproximouelhefalouquaseemsegredo.
—Asenhoratemcertezadequenãoleuessacartaparaele?Dequenãocontoua
históriadamáscara?Fonchitoéumserelepe,detãosabido,patroa.Achaqueeleiase
deixarapanhartãofacilmente?
—Eununca li essacartaparaele,nunca lhe faleidamáscara—a rmoudona
Lucrecia.Mas,nomesmoinstante,duvidou.
Não o teria feito mesmo? Ontem, anteontem? Andava com a cabeça muito
atrapalhadanessesdias;desdeaquelacascatadecartasanônimas,viviaperdidaemum
bosquedeconjecturas,divagações,suspeitas,fantasias.Nãoerapossível,a nal?Que
ela houvesse contado, mencionado, até lido para ele, a estranha instrução de que
posasse nua, commeias e umamáscara de fera, diante de um espelho? Se tivesse
faladoisso,entãohaviacometidoumagrandeinjustiça,insultando-oegolpeando-o.
—Estoufartadessahistóriatoda—murmurou,fazendoesforçosparaconteras
lágrimas.—Farta,Justita,farta.Podeserqueeutenhacontadoedepoisesquecido.
Nãoseimaisondetenhoacabeça.Talvez.Euqueria iremboradestacidade,deste
país.Paraumlugarondeninguémmeconheça.LongedeRigobertoedeFonchito.
Porculpadessadupla,caíemumpoçoenuncamaispodereisairaoarlivre.
—Não quetriste,patroa.—Justinianalhepôsamãonoombro,acariciou-lhe
a testa. — Não se amargure. E também não se preocupe. Existe uma maneira
facílimadesabersequemlheescreveessasbesteiraséFonchitooudonRigoberto.
DonaLucreciaergueuavista.Osolhosdaempregadafaiscavam.
—Claro,patroa,poisentão—continuavaela,falandocomasmãos,osolhos,
os lábios,osdentes.—Elenãomarcao tal encontro,naúltima? Istomesmo.Vá
aondeelediz,façaoqueelepede.
—E você acha que eu vou fazer essas palhaçadas de dramalhãomexicano?—
fingiuseescandalizardonaLucrecia.
—Porque,assim,saberáqueméoautordascartas—concluiuJustiniana.—Eu
vou junto, se a senhora quiser, para não se sentir só. E também porque estou
morrendodecuriosidade,patroa.Ofilhinhoouopainho?Qualserá?
Riu, comodescaramento e a graçahabituais, edonaLucrecia acabou sorrindo
também. A nal, talvez esta maluca tivesse razão. Se comparecesse ao indecoroso
encontro,tirariaadúvidadeumavezportodas.
— Ele não se apresentará, vai me deixar chupando dedo mais uma vez —
argumentou,semmuitaforça,sabendointimamentequejáestavadecidida.Iria,faria
todasaspalhaçadasqueopainhoouo lhinholhepedia.Continuariaentrandono
jogoaoqual,querendoounão,elatambémvinhaaderindohaviamuitotempo.
—Querqueeulheprepareumbanhinhodeáguamorna,comsais,parapassara
raiva?—Justinianaestavaanimadíssima.
DonaLucreciaaceitou.Quedroga,agorasuasensaçãoeraadeterseprecipitado,
detercometidoumatremendainjustiçacontraopobreFonchito.
Carta ao leitor de Playboyou tratado mínimo de estética
Sendo o erotismo a humanização inteligente e sensível do amor físico, e a
pornogra a,seubarateamentoesuadegradação,euacusoosenhor,leitordePlayboyoudePenthouse,frequentadordeantrosqueexibem lmesporno-hardedesexshopsonde se adquiremvibradores elétricos, consoladores de borracha e camisinhas com
cristas de galo oumitras arcebispais, de contribuir para o veloz retrocesso, àmera
cópula animal, do mais e caz atributo concedido ao homem e à mulher para se
assemelharem aos deuses (os pagãos, é claro, que não eram castos nem cheios de
melindresemquestõessexuaiscomoaquelequesabemos).
Osenhorcometeabertamenteumcrime,acadamês,porrenunciaraexercersua
própria imaginação,atiçadapelofogodeseusdesejos,porcederàmedíocretarade
permitir que suas pulsões mais sutis, as do apetite carnal, sejam embridadas por
produtosmanufaturadosàmaneiradeclones,que,aparentandosatisfazerasurgências
sexuais, na verdade as subjugam, aguando-as, serializando-as e constringindo-as
dentro de caricaturas que vulgarizam o sexo, despojam-no de originalidade, de
mistério e de beleza, para transformá-lo em mascarada, quando não em ignóbil
afronta ao bom gosto. Para que perceba com quem está lidando, talvez o senhor
apreenda melhor meu pensamento ao saber que (monógamo como sou, embora
benevolentecomoadultério)tenhoporfontesmaisapetecíveisdecobiçaseróticasa
defuntaerespeitabilíssimaestadistadeIsraeldonaGoldaMeirouaausterasenhora
MargaretatcherdoReinoUnido,dequemnuncasemoveuumsó odecabelo
enquantofoiprimeira-ministra,doquequalquerumadessasbonecascanforadas,de
tetas in adaspelo silicone,púbis cardados e tingidosqueparecem intercambiáveis,
uma mesma impostura multiplicada por uma fôrma única, as quais, para que o
ridículocomplementeaestupidez,aparecemnessainimigadeErosqueéaPlayboy,empáginadesdobrável e comorelhas e rabodepelúcia, ostentandoo cetrode “A
coelhinhadomês”.
Meuódio àPlayboy, àPenthouseecongêneresnãoégratuito.Esseespécimede
revistaéumsímbolodoacanalhamentodosexo,dodesaparecimentodosbelostabus
que costumavam rodeá-lo e graças aos quais o espírito humano podia rebelar-se,
exercendoaliberdadeindividual,a rmandoapersonalidadesingulardecadaum,eo
indivíduosoberanocriar-sepoucoapouconaelaboração,secretaediscreta,derituais,
condutas, imagens, cultos, fantasias e cerimônias que, enobrecendo eticamente e
conferindocategoriaestéticaaoatodoamor,desanimalizaram-noprogressivamente
atétransformá-loematocriativo.Umatograçasaoqual,nareservadaintimidadedas
alcovas, um homem e umamulher (cito a fórmula ortodoxa,mas, claro, poderia
tratar-se de um cavalheiro e uma palmípede, de duas mulheres, de dois ou três
homens,edetodasascombinaçõesimagináveissemprequeoelenconãoultrapasseo
trio ou, concessão máxima, os dois pares) podiam, por algumas horas, emular
Homero,Fídias,BotticelliouBeethoven.Seiqueosenhornãomeentende,masnão
importa;semeentendesse,nãoseriatãoimbecilapontodesincronizarsuasereçõese
seusorgasmoscomorelógio(deouromaciçoeàprovad’água,seguramente?)deum
sujeitochamadoHughHeffner.
O problema é mais estético do que ético, losó co, sexual, psicológico ou
político, embora, para mim, desnecessário dizer, essa separação não seja aceitável,
porquetudo o que importa é, a curto ou a longo prazo, estético. A pornogra a
despojaoerotismodoconteúdoartístico,privilegiaoorgânicosobreoespiritualeo
mental,comoseodesejoeoprazertivessemporprotagonistasfalosevulvaseesses
adminículosnão fossemmeros servosdos fantasmasquegovernamnossasalmas,e
segregaoamorfísicodorestodasexperiênciashumanas.Oerotismo,aocontrário,
integra-ocomtudooquesomosetemos.Enquanto,paraosenhor,pornógrafo,a
únicacoisaquecontanahoradefazeramoré,comoparaumcão,ummacacoou
um cavalo, ejacular, Lucrecia e eu, inveje-nos, fazemos amortambém tomando o
desjejum,vestindo-nos,ouvindoMahler,conversandocomamigosecontemplando
asnuvensouomar.
Quandodigoestético,talvezosenhorpossapensar—seéqueapornogra aeo
pensamentosãocompatíveis—que,poresseatalho,caionaarmadilhadogregárioe
que,comoosvaloresgeralmentesãocompartilhados,nessedomínioeusoumenos
eueumpoucomaiseles,istoé,umapartedatribo.Reconheçoqueoperigoexiste;
mas o combato sem trégua, dia e noite, defendendominha independência contra
ventosemarésmedianteousoconstantedeminhaliberdade.
Aprenda, ou pelomenos julgue, por esta pequena amostra demeu tratado de
estética particular (que espero não compartilhar commuita gente e que é exível,
desfaz-seeserefazcomoaargilanasmãosdeumdestroceramista).
Tudo o que brilha é feio.Há cidades brilhantes, comoViena,BuenosAires e
Paris; escritores brilhantes, comoUmbertoEco,CarlosFuentes,MilanKundera e
JohnUpdike, epintoresbrilhantes, comoAndyWarhol,Matta eTàpies.Embora
tudo isso cintile, para mim é prescindível. Sem exceção, todos os arquitetos
modernossãobrilhantes,peloqueaarquiteturamarginalizou-sedaarteetornou-se
um ramoda publicidade e das relações públicas; portanto, é conveniente descartar
todos eles em bloco e recorrer unicamente a pedreiros, a mestres de obras e à
inspiração dos profanos. Não existem músicos brilhantes, embora compositores
comoMauriceRaveleErikSatietenhamlutadoporsê-loequaseoconseguiram.O
cinema,tãodivertidoquantoojudôoualutalivre,épós-artísticoenãomereceser
incluídoemconsideraçõessobreestética,apesardealgumasanomaliasocidentais(esta
noite eu salvaria Visconti, OrsonWelles, Buñuel, Berlanga e John Ford) e uma
japonesa(Kurosawa).
Toda pessoa que escreve “nuclear-se”, “colocação”, “conscientizar”, “visualizar”,
“societal”esobretudo“telúrico”éum lho(ou lha)daputa.Tambémosãoosque
usampalitoempúblico,in igindoaopróximoesserepelenteespetáculoqueenfeia
aspaisagens.Igualmente,essesasquerososquetiramomiolodopão,amassam-noe
o deixam sobre amesa, transformado embolinhas.Nãome pergunte por que os
autoresdessasbarbaridadessãouns lhos(ou lhas)daputa;sóainspiraçãointuie
assimila taisconhecimentos;eles são infusos,nãopodemseraprendidos.Amesma
norma vale, evidentemente, para o mortal de qualquer sexo que, pretendendo
castelhanizar as bebidas, escrevegüisqui, yinyerel oujaibol.6 Estes últimos, estas
últimas,deveriaminclusivemorrer,poissuspeitoquesuasvidassãosupérfluas.
Aobrigaçãodeum lmeedeumlivroéentreter-me.Se,vendo-ooulendo-o,
eumedistraio,cabeceioouadormeço,elesfaltaramaoseudeveresãoummaulivro,
ummau lme.Exemplosconspícuos:Ohomemsemqualidades,deMusil,e todos
osfilmesdessesembusteschamadosOliverStoneouQuentinTarantino.
No que se refere à pintura e à escultura, meu critério de avaliação artística é
muitosimples:tudooqueeupoderiafazeremmatériapictóricaouesculturaléuma
merda. Só se quali cam, portanto, os artistas cujas obras estão fora do alcance de
minhamediocridadecriativa,aquelesqueeunãopoderiareproduzir.Essecritériome
permitiudeterminar,aoprimeirogolpedevista,quetodaaobrade“artistas”como
AndyWarholouFridaKahloéumaembromação,e,aocontrário,queatéomais
elementardesenhodeGeorgGrosz,deChillidaoudeBalthuségenial.Alémdessa
regrageral,aobrigaçãodeumquadrotambéméademeexcitar(expressãoquenão
me agrada,masuso-aporque a alegoria crioula “deixar-me empontodebala”me
agradaaindamenos,jáqueintroduzumelementorisívelemalgoqueéseriíssimo).
Seme agrada, masme deixa frio, sem a imaginação invadida por desejos teatral-
copulatóriosesemaquelasrumorosascócegasnostestículosqueprecedemasternas
ereções,éumquadroseminteresse,mesmoquesetratedaMonaLisa, doHomemcom a mão no peito, deGuernica ou daRonda noturna. Assim, o senhor cará
surpresoaosaberquedeGoya,outromonstrosagrado,sómeaprazemossapatinhos
de velasdouradas, saltosempontaeadornosdecetim,acompanhadospormeias
brancasderenda,comosquaisemseusóleoselecalçavasuasmarquesas,equenos
quadrosdeRenoireusóolhocombenevolência(prazer,àsvezes)osrosadostraseiros
de suas camponesas e evito o resto do corpo, sobretudo aquelas carinhas
embonecadaseosolhosdevagalume,queantecipam—vaderetro!—ascoelhinhas
daPlayboy.DeCourbet,interessam-measlésbicaseaquelegigantescotraseiroquefez
ruborizar-seasuscetívelimperatrizEugênia.
Aobrigaçãodamúsicaparacomigoémergulhar-meemumavertigemdepuras
sensações, que me faça esquecer a parte mais tediosa de mim mesmo, a civil e
municipal,quemelivredepreocupações,meisoleemumenclavesemcontatocom
asórdida realidadecircundante, e,dessemodo,mepermitapensarcomclarezanas
fantasias(geralmenteeróticas,esemprecomminhaesposanopapelestelar)queme
tornam suportável a existência.Ergo, se amúsica se faz excessivamente presente e,
porquecomeçaameagradaremdemasiaouporquefazmuitoruído,medistraide
meus próprios pensamentos, reclama minha atenção e a consegue — citarei
sucintamenteGardel,PérezPrado,Mahler,todososmerenguesequatroquintosdas
óperas—,émúsicaruime cabanidadomeuescritório.Esseprincípio,claroestá,
faz-megostardeWagner, apesardas trombetas edasmolestas trompas, e respeitar
Schoenberg.
Esperoqueessesrápidosexemplos,osquais,evidentemente,nãoaspiroaqueo
senhorcompartilhecomigo(edesejomenosainda), ilustrem-nosobreoquequero
dizerquandoa rmoqueoerotismoéumjogo(naaltaacepçãoqueograndeJohan
Huizinga dava à palavra) privado, do qual só o eu, os fantasmas e os jogadores
podem participar, e cujo êxito depende de seu caráter secreto, impermeável à
curiosidadepública,poisdestaúltimasópodemderivar-sesuaregulamentaçãoesua
manipulaçãodesnaturalizadoraporagentesinfensosaofolguedoerótico.Emborame
repugnem as peludas axilas femininas, respeito oamateur que persuade seucompanheiro ou sua companheira a regá-las e cultivá-las para folgazar nelas com
lábios edentes, até chegar ao êxtase comuivos emdómaior.Masnãoposso, em
absoluto,teromesmorespeito,esimcomiseração,pelopobreidiotaquebastardeia
esse seu capricho fantasmático adquirindo— por exemplo, nas lojas de artefatos
pornô com os quais a ex-aviadora Beate Uhse semeou a Alemanha — aquelas
cerradasmatasdeaxilas epúbisarti ciais (de“pelonatural”,vangloriam-seasmais
careiras)quealisãovendidassobdiferentesformatos,tamanhos,saboresecores.A legalização e o reconhecimento público do erotismo o municipalizam,
cancelam e acanalham, tornando-o pornogra a, triste ocupação que de no como
erotismoparapobresdebolsoedeespírito.Apornogra aépassivaecoletivista;o
erotismo,criadore individual,mesmoquandoexercidoadoisouatrês(repito-lhe
quesoucontrárioaelevaronúmerodeparticipantes,a mdequeessasfunçõesnão
percamseucunhodefestasindividualistas,exercíciosdesoberania,enãosemanchem
comaaparênciadecomícios,esportesoucircos).Porisso,merecem-megargalhadas
de hiena os argumentos do poetabeatnik Allen Ginsberg (veja-se sua entrevista aAllen Young emCônsules de Sodoma) em defesa dos acoplamentos coletivos na
escuridãodaspiscinas,comaconversa adadequeessapromiscuidadeédemocrática
ejusticeira,pois,graçasàtrevaigualitária,permitequeafeiaeabonita,amagraea
gorda,ajovemeavelhatenhamasmesmasoportunidadesdeprazer.Queraciocínio
absurdo,de comissário construtivista!Ademocracia só tema ver comadimensão
civil da pessoa, ao passo que o amor—o desejo e o prazer—pertence, como a
religião, ao âmbito privado, no qual importam sobretudo as diferenças, e não as
coincidências com os demais. O sexo não pode ser democrático; ele é elitista e
aristocrático, e uma certa dose de despotismo (reciprocamente pactuado) costuma
ser-lhe indipensável.Os ajuntamentos coletivos embanhos às escuras,queopoeta
beatnik recomenda como modelos eróticos, parecem-se demais com os
acasalamentos de potros e éguas nos pastos ou com os pisões indiscriminados de
galos emgalinhasnos alvoroçadospoleiros, para seremconfundidos comessabela
criaçãode cçõesanimadas,defantasiascarnais,dequeparticipamporigualocorpo
e o espírito, a imaginação e os hormônios, a sublimidade e a abjeçãoda condição
humana,que éo erotismopara estemodesto epicurista e anarquista escondidono
corpocidadãodeumsecuritáriodebens.
OsexopraticadoàmaneiradaPlayboy(voltoevoltareiaessetemaatéqueminha
morteouasuameimpeçadefazê-lo)eliminadoisingredientesessenciaisaEros,em
minhaopinião:oriscoeopudor.Entendamo-nos.Oaterrorizadohomenzinhoque,
noônibus,vencendosuavergonhaeseumedo,abreacapae,porquatrosegundos,
oferece o espetáculo de sua verga em riste à despreocupada matrona levada pelo
destino a viajar diante dele é um impudico temerário. Faz o que faz com pleno
conhecimento de que o preço de seu capricho fugaz pode ser uma surra, um
linchamento,ocalabouçoeumescândaloquedivulgariaanteaopiniãopúblicaum
segredo,queeledepreferência levariaparaotúmulo,eocondenariaàcondiçãode
réprobo, psicopata e perigo social.Mas arrisca-se a isso porque o prazer que esse
mínimo exibicionismo lhe produz é inseparável do medo e da transgressão desse
pudor. Que distância sideral — a distância que existe entre o erotismo e a
pornogra a,precisamente—, aqueo separado executivoborrifado comcolônias
francesasedepulsoalgemadoporumRolex(queoutropoderiaser?),que,emum
bardamodaamericanizadoporumfundomusicaldeblues,abreoúltimonúmero
daPlayboy, exibe-se com ele e o exibe, convencidode que está exibindo sua verga
diante do mundo, mostrando-se homem mundano, sem preconceitos, moderno,
folgazão,in!Pobreimbecil!Nemdesconfiaqueaquiloqueexibeéoemblemadesua
servidão ao lugar-comum, à publicidade, à moda desindividualizadora, o sinal da
abdicaçãodesualiberdade,desuarenúnciaaemancipar-se,graçasaosseusfantasmas
pessoais,daescravidãoatávicadaserialização.
Porisso,euacusoosenhor,anotóriarevistaea ns,assimcomotodososquea
leem — ou simplesmente a folheiam — e, com esse miserável sustento pré-
fabricado, alimentam— quero dizer,matam— sua libido, de serem a ponta de
lança dessa grande operação dessacralizadora e banalizadora do sexo em que se
manifesta a barbárie contemporânea. A civilização esconde e sutiliza o sexo para
melhor aproveitá-lo, rodeando-ode rituais e códigosqueo enriquecematé limites
insuspeitadosparaohomemeamulherpré-eróticos,copuladores,engendradoresde
rebentos.Depoisdetermospercorridoumlonguíssimocaminho,doqual,decerto
modo,aprogressivadepuraçãodojogoeróticofoiaespinhadorsal,retornamos,por
insólita via— a sociedade permissiva, a cultura tolerante—, ao ponto de partida
ancestral:fazeramorvoltouaserumaginásticacorporalesemipública,exercitadaa
esmo,aocompassodeestímulosfabricados,nãopeloinconscienteepelaalma,mas
pelos analistas domercado, estímulos tão estúpidos quanto aquela falsa vagina de
vacaque secostumapassarnosestábulosdiantedos focinhosdos touros,a mde
fazê-los ejacular e de poder, desse modo, armazenar o sêmen utilizado na
inseminaçãoartificial.
Vá, compre e leia sua mais recentePlayboy, suicida vivo, e coloque mais um
grãozinhodeareianacriaçãodessemundodeeunucoseeunucasejaculantes,doqual
terãodesaparecidoa imaginaçãoeosfantasmassecretoscomopilaresdoamor.Eu,
deminhaparte,vouagoramesmofazeramorcomarainhadeSabáecomCleópatra,
juntas,emumarepresentaçãocujoroteironãopretendocompartilharcomninguém
e,menosdoquecomninguém,comosenhor.
Um pezinho
“Sãoquatrodamadrugada,Lucreciaquerida”,pensoudonRigoberto.Comoquase
todososdias,havia acordadona turvaumidadedo amanhecerpara celebraro rito
querepetiacacofonicamentedesdequedonaLucreciaforamorarnoOlivardeSan
Isidro: sonharacordado,criare recriar suamulherpor invocaçãodaquelescadernos
onde hibernavam seus fantasmas. “E onde, desde o dia em que te conheci, tu és
rainhaesenhora.”
Contudo,àdiferençadeoutrasmadrugadasdesoladasouardentes,hojenãolhe
bastava imaginá-la e desejá-la, conversar com sua ausência, amá-la com a própria
fantasiaecomoprópriocoração,deondeelanuncasehaviaafastado;hoje,precisava
de um contato mais material, mais certo, mais tangível. “Hoje, eu poderia me
suicidar”,pensou, semangústia.E se lhe escrevesse?E se nalmente respondesse às
suasapimentadascartasanônimas?Acanetalhecaiudasmãos,assimqueeleapegou.
Nãoconseguiria,e,emtodocaso,tampoucopoderialheenviaracarta.
No primeiro caderno que abriu, uma frase oportuníssima saltou e omordeu:
“Meusferozesdespertaresaoamanhecertêmsemprecomoânimo,meuamor,uma
imagemtua,realouinventada,quein amameudesejo,enlouqueceminhasaudade,
deixa-me em suspenso eme arrasta a esta escrivaninha parame defender contra o
aniquilamento, amparando-me no antídoto de meus cadernos, gravuras e livros.
Somenteissomecura.”Certo.Mas,hoje,oremédiocostumeironãoteriaoefeito
bené co de outras madrugadas. Sentia-se confuso e atormentado. Tinha sido
despertado por umamescla de sensações nas quais se embaralhavam uma rebeldia
generosa, semelhante àquela que o levara aos dezoito anos para a AçãoCatólica e
enchera seu espírito com impulsosmissionários, renovadoresdomundopela arma
dos Evangelhos, a enternecedora nostalgia de um pezinho de mulher asiática
entrevisto de passagem, por cima do ombro de um pedestre detido ao seu lado
durantealguns segundospelosinalvermelhoemumaruadocentro,eo retornoà
suamemóriadeumjornalistafrancêssemméritosdoséculoXVIIIchamadoNicolas
EdmeRestifdelaBretonne,dequempossuíaemsuabibliotecaumsólivro—iria
procurá-lo e encontrá-lo antes do início da manhã —, uma primeira edição
compradafaziamuitosanosemumantiquáriodeParisequelhecustaraosolhosda
cara.“Quemistura!”
Emaparência,nadadissotinhaaverdiretamentecomLucrecia.Porque,então,
essaurgênciadecomunicaraela,delhereferirdevivavoz,comriquezadedetalhes,
todaaefervescênciadesuamente?“Minto,meuamor”,pensou.“Claroquetema
vercontigo.”Tudooqueelefazia,inclusiveasestúpidasoperaçõesgerenciaisquede
segunda a sexta-feira omanietavam oito horas em uma companhia de seguros do
centrodeLima,tinhaprofundamenteavercomLucreciaecommaisninguém.Mas,
sobretudo,edemaneiraaindamaisescravizada,suasnoiteseasexaltações, cçõese
paixõesqueaspovoavameramdedicadasaelacomfidelidadecavalheiresca.Aliestava
aprova, íntima, incontestável,dolorosíssima, emcadapáginados cadernosqueele
agorafolheava.
Por que havia pensado em rebeldias? Em vez disso, o quemomentos antes o
despertara tinham sido,multiplicadas, a indignação, a consternação que sentira na
manhãanterioraolernojornalanotícia,queLucreciatambémdeviaterlido,eque
ele passou a transcrever, com letra hesitante, na primeira página em branco que
encontrou:
Wellington (Reuters).UmaprofessoradaNovaZelândia,de24anos, recebeudeumjuizdestacidadeapenadequatroanosdeprisãoporviolaçãosexual,depoisdeser
comprovadoque elamantinha relações carnais comummeninodedezanos, amigo ecolegadecolégiodeseu lho.Segundoesclareceuojuiz,asentençaeraamesmaqueeleimporiaaumhomemquetivesseestupradoumameninadessaidade.
“Meu amor, Lucrecia queridíssima, não vejas nisto nem a sombra de uma
reprovação ao que aconteceu conosco”, pensou. “Nemuma alusão demau gosto,
nadaquepossaparecerum rancor retrospectivo emesquinho.”Não.Eladevia ver
exatamente o contrário. Porque, quando as poucas linhas desse telegrama se
delinearamsobseusolhos,naquelamanhã,enquantoelesorviaosprimeirosgolesdo
amargocafédodesjejum(nãoporqueo tomasse semaçúcar,masporqueLucrecia
nãoestavaao seu ladopara trocaremcomentários sobreasnotíciasdo jornal),don
Rigoberto não experimentou angústia nem dor, e muito menos gratidão e
entusiasmo pela decisão do juiz. Sentiu antes uma solidariedade impetuosa,
sobressaltada, de adolescente de passeata, por essa pobre mestra neozelandesa tão
brutalmente castigada por ter revelado as delícias do céu maometano (em seu
entender, o mais carnal dos que são oferecidos no mercado das religiões) a esse
meninoafortunado.
“Sim, sim, amadíssima Lucrecia.” Ele não posava, nãomentia, não exagerava.
Durante todoodia,havia carregadoamesma indignaçãodamanhãpela estupidez
desse juiz, mal in uenciado pelo mecanicismo simétrico de certas doutrinas
feministas.Podia-secolocarnomesmoplanooestupro,porumhomemadulto,de
umameninaimpúberededezanos,crimepunível,eadescoberta,intermediadapor
uma senhora de vinte e quatro, da felicidade corporal e dosmilagres do sexo por
parte de um garoto de dez, já capaz de tímidos endurecimentos e discretas
transpirações seminais? Se, no primeiro caso, a presunção de violência do infrator
contraavítimaeraobrigatória(amenina,mesmoquetivessesu cienteusodarazão
paradarseuconsentimento,seriavítimadeumaagressãofísicacontraseuhímen),no
segundo isso era simplesmente inconcebível, pois, se tinha havido cópula, esta só
poderia acontecer, por parte do menino, com aquiescência e entusiasmo, sem os
quaisoatocarnalnãoseteriaconsumado.DonRigobertopegouacanetaeescreveu,
com raiva febril: “Embora eu odeie as utopias e as saiba cataclísmicas para a vida
humana,acaricio,agora,esta:quetodososmeninosdacidadesejamdesvirginadosao
completaremdezanosporsenhorascasadastrintonas,depreferênciatias,mestrasou
madrinhas.”Respirou,algoaliviado.
DuranteodiainteiroforaatormentadopelasortedessaprofessoradeWellington
e se compadecerado escárniopúblico aque ela certamentehavia sido exposta,das
humilhações e zombarias que ela sofreria, alémdeperder seu emprego e de se ver
tratada como corruptora de menores, como degenerada, por essa imundície
cacográ ca, eletrônica e agora digital, a imprensa, a chamada mídia. Não estava
mentindo a si mesmo nem perpetrando uma farsa masoquista. “Não, Lucrecia
querida, juro que não.” No decorrer do dia e da noite, o rosto dessa professora,
encarnadonodesuaex-mulher,tinhalheaparecidomuitasvezes.Eagora,agora,ele
sentiaanecessidadeimperiosadefazê-lasaber(“detefazersaber,meuamor”)deseu
arrependimento e sua vergonha. Por ter sido tão insensível, tão obtuso, tão
desumano e tão cruel quanto aquelemagistrado deWellington, cidade que ele só
pisariaparacobrirdefragrantesrosasvermelhasospésdaquelaadmiradaeadmirável
professoraquepagavaporsuagenerosidade,porsuagrandeza,trancadaentre licidas,
ladras,vigaristasepunguistas(anglófilasemaoris).
Comoseriamospésdessaprofessoraneozelandesa?“Seeubotasseamãoemuma
fotogra a dessamoça, não hesitaria em lhe acender velas e lhe queimar incenso”,
pensou. Esperou e desejou que fossem tão belos e delicados quanto os de dona
Lucrecia e quanto o que ele tinha visto, aomeio-dia, no papel acetinado de uma
páginadarevistaTime,porsobreoombrodeumpedestre,detidoporumsinalna
esquinadeLaColmena,quandoseencaminhavaparaosalãoMiguelGrau,doClub
Nacional, onde tinha encontromarcado comumdesses imbecis engravatados que
marcamencontrosnoClubNacionaledosquaisviviamosimbeciscujoganha-pão
eram os seguros de bens móveis e imóveis, como ele. Foi uma visão de poucos
segundos,mas tão iluminadorae rutilante, tãoconvulsivae frontalcomodevia ter
sido,paraaquela jovemdaGalileia,adoaladoGabrielanunciando-lheanovaque
iriatrazeràhumanidadetantasdesavenças.
Eraumsópezinhodeper l,decalcanharsemicircularegraciosopeito,erguido
orgulhosamente sobre uma planta de níssimo contorno, que culminava em uns
dedinhosdesenhadoscomprimor,umpéfemininonãoenfeiadoporcalos,durezas,
bolhasoujoaneteshorrendos,noqualnadapareciadestoarnemlimitaraperfeição
do todo e da parte, um pezinho levantado e, aparentemente, surpreendido pelo
atentofotógrafomomentosantesdepousarsobreumtapetefofo.Porqueasiático?
Talvezporqueoanúncioqueeleadornavaeradeumacompanhiaaéreadessaregião
domundo—SingapureAirlines—ou,quemsabe,porquedonRigoberto,emsua
circunscritaexperiência,acreditavapodera rmarqueasmulheresdaÁsiatinhamos
pésmaisbonitosdoplaneta.Comoveu-se,recordandoasvezesemque,beijando-as,
tinha chamado de “patinhas lipinas”, “calcanhares malaios” ou “arqueaduras
japonesas”asdeleitáveisextremidadesdesuaamada.
O fato era que o dia inteiro, junto com sua fúria pela desventura dessa nova
amiga, a mestra de Wellington, o pezinho feminino do anúncio daTime haviaperturbadosuaconsciênciae,maistarde,desassossegadoseusono,desenterrando,do
fundodesuamemória,nadamenosquealembrançadeCinderela,umahistóriaque
ao lhesercontada,na infância,precisamentenodetalhedoemblemáticosapatinho
que só omiúdo pezinho da heroína podia calçar, tinha despertado suas primeiras
fantasias eróticas (“umidades com meia ereção, se for preciso dar especi cações
técnicas”,disseemvozalta,noprimeiroimpulsodebomhumordessamadrugada).
Teriacomentadoalgumavez,comLucrecia,suatesedequeaamávelCinderelasem
dúvidacontribuiu,maisdoquetodooinfectobandodepornogra aantieróticado
séculoXX,paracriarlegiõesdevarõesfetichistas?Nãoselembrava.Umalacunaem
sua relação matrimonial que seria preciso preencher, algum dia. Seu estado havia
melhoradobastantedesdequeeledespertara,exasperadoesaudoso,mortodecólera,
de solidão, de pesar. Desde alguns segundos antes, até se autorizava — era sua
maneiradenãosucumbiraodesesperodecadadia—certasfantasiasquetinhama
ver, hoje, não com os olhos, nem com os cabelos, nem com os seios, coxas ou
quadrisdeLucrecia,masexclusivamentecomospésdesuaamada.Tinhajáaoseu
lado— fora difícil encontrá-la na prateleira onde estavametida— aquela edição
princeps,emtrêstomos,doromancedeNicolasEdmeRestifdelaBretonne(anotara
depunhoeletraemuma cha:1734-1806),oúnicodasdezenasedezenasqueesse
incontinente polígrafo havia cacografado:Le pied de Franchette ou l’orphelinefrançaise.Histoireintéressanteetmorale(Paris,HumblotQuillau,1769,2partesem
3 volumes, 160-148-192 p.). Pensou: “Agora, eu o folheio. Agora, tu apareces,
Lucrecia,descalçaoucalçada,emcadacapítulo,página,palavra.”
Sóhaviaumacoisanesseescrevinhadorin acionário,RestifdelaBretonne,que
merecia sua simpatia e o fazia associá-lo,nestamadrugada garoenta, aLucrecia, ao
passo que outras mil (bem, talvez um pouco menos) o tornavam esquecível,
transitórioeatéantipático.Algumaveztinhafaladodelecomela?Essenomesurgira
alguma vez em suas noturnas festas conjugais? Don Rigoberto não se lembrava.
“Mas,aindaque seja tarde,caríssima,euoapresentoa ti,ofereço-oeocolocoaos
teuspés(impossíveldizermelhor).”ObonachãodoNicolasEdmenasceraevivera
emuma época de grandes convulsões, o séculoXVIII francês,mas provavelmente
não tinha percebido que omundo inteiro se desfazia e se refazia ao seu redor em
razãodosvaivénsrevolucionários,obsedadocomoestavacomsuaprópriarevolução,
nãoadasociedade,aeconômica,adoregimepolítico—“asqueemgeraltêmboa
fama”—,masaquelheconcerniapessoalmente:adodesejocarnal.Issootornava
simpático, isso levara don Rigoberto a comprar a ediçãoprinceps deLe pied deFranchette, romance de coincidências assombrosas e iniquidades cômicas, enredos
absurdos e diálogos estúpidos, que qualquer crítico literário estimável ou leitor de
bomgostoacharia execrável,masque,paradonRigoberto, tinhaoaltoméritode
exaltar até extremos deicidas o direito do ser humano a se insurgir contra o
estabelecido em razão de seus desejos, demudar omundo valendo-se da fantasia,
aindaquepeloefêmeroperíododeumaleituraoudeumsonho.
ReleuemvozaltaoquehaviaanotadonocadernosobreRestif,depoisdeterlido
Le pied de Franchette : “Não creio que este provinciano, lho de camponeses,
autodidata apesar de ter passado por um seminário jansenista, que ensinou a si
mesmo línguas e doutrinas, todas mal, e que ganhou a vida como tipógrafo e
fabricante de livros (nos dois sentidos da expressão, pois os escrevia e os
manufaturava, embora zesse a segunda coisa commais arte do que a primeira),
tenhajamaissuspeitadodaimportânciatranscendentalqueseusescritosviriamater
(importância simbólica e moral, não estética), quando, entre suas explorações
incessantes pelos bairros operários e artesãos de Paris, que o fascinavam, ou pela
Françaaldeãeruralqueeledocumentoucomosociólogo,roubandotempoaosseus
enredosamorosos—adúlteros,incestuososoumercenários,massempreortodoxos,
poisohomossexualismolheproduziaumhorrorcarmelita—,escrevia-osàspressas,
guiando-se,horrordoshorrores,pelainspiração,semcorrigi-los,emumaprosaque
lhesaíafrondosaevulgar,carreadoradetodososdetritosdalínguafrancesa,confusa,
repetitiva,labiríntica,convencional,rasa,desobrigadadeideias,insensívele,emuma
palavraqueadefinemelhordoquequalqueroutra:subdesenvolvida.”
Por que, a nal, depois de tão severo veredicto, perdia este amanhecer
rememorando uma imperfeição estética, um cacógrafo chucro que, para culminar,
chegaraaexercerofeioofíciodealcaguete?Ocadernoerapródigoemdadossobre
ele.Haviaproduzidocercadeduzentoslivros,todosliterariamenteilegíveis.Porque,
então,empenhar-seemaproximá-lodedonaLucrecia,suaantípoda,aperfeiçãoem
formademulher? Porque, respondeudonRigoberto a simesmo, ninguém como
este silvestre intelectual poderia compreender sua emoçãodomeio-dia aoperceber
fugazmente,noanúnciodeumarevista,aquelepezinhoaladodemoçaasiática,que
esta noite lhe trouxera a recordação, o desejo dos pés de rainha deLucrecia.Não,
ninguém como Restif, a cionado, conhecedor supremo desse culto que a
abominávelraçadepsicólogosepsicanalistaspreferiachamardefetichismo,poderia
entendê-lo, acompanhá-lo e assessorá-lonestahomenageme açãodegraças àqueles
adoradospés.“Obrigado,minhaLucrecia”—rezou,piedosamente—,“pelashoras
de prazer que eu devo a eles, desde aquela vez em que os descobri, na praia de
Pucusana,eosbeijei,sobaáguaeasondas”.Transido,donRigobertovoltouasentir
oságeisdedinhossalobrosmovendo-senagrutadesuabocaeosengulhoscausados
pelaáguamarinhaengolida.
Sim,essaeraapredileçãodosenhorNicolasEdmeRestifde laBretonne:opé
feminino. E, por extensão esimpatia, como diria um alquimista, aquilo que os
abrigaecircunda:ameia,osapato,asandália,abotina.Comaespontaneidadeea
inocência daquilo que era, um rústico transmigrado para a cidade, ele praticou e
proclamou sua predileção por essa delicada extremidade e seus invólucros sem o
menor rubor, e, com o fanatismo dos convertidos, substituiu em seus
incomensuráveis escritos omundo real por um ctício, tãomonótono, previsível,
caótico e estúpido comoaquele, sóque,no amontadode suaprosa ruim, em sua
singularidade monotemática, o que ali brilhava, se destacava e desencadeava as
paixõesdoshomensnãoeramosgraciososrostosdasdamas,ascabeleirasemcascata,
asgráceiscinturas,ospescoçosalvose lisosouosbustosarrogantes,mas, sempree
exclusivamente, a beleza dos pés. (Se o amigoRestif ainda existisse, pensou, ele o
levaria à casinha de Lucrecia no Olivar, com o consentimento desta, claro, e,
ocultando-lheorestodocorpodaamada,irialhemostrarospésdela,encerradosem
preciosas botinas estilo vovó, e até lhe permitiria que a descalçasse.Como reagiria
aquele ancestral? Caindo em êxtase?Tremendo, uivando? Precipitando-se, sabujo
feliz,línguadefora,narinasdilatadas,paraaspirar,paralamberomanjar?)
Nãoerarespeitável,emboraescrevessetãomal,quemassimprestavavassalagem
aoprazeredefendiaseufantasmacomtantaconvicçãoecoerência?Nãoeraobom
Restif,apesardesuaprosaindigesta,“umdosnossos”?Claroquesim.Porissoselhe
apresentara estanoiteduranteo sono, atraídoporaquele furtivopezinhobirmanês
oucingapurense,para lhe fazer companhianestamadrugada.Umbruscodesalento
morti coudonRigoberto.Ofriopenetrouseusossos.Comoqueria,nesteinstante,
queLucreciasoubessedetodooarrependimentoedadorqueoatormentavam,pela
estupidezoupela incompreensão cabeçudaqueo tinham impelido a agir comela,
umanoantes,comoacabavadefazer,naultramarinaWellington,oignóbiljuizque
condenaraaquatroanosdecárcereessaprofessora,essaamiga(“Outradasnossas”),
porqueela levaraaqueladitosacriatura,aqueleFonchitoneozelandês,aentrever—
não,habitar—océu!“Emvezdesofreredetecensurarporisso,eudeveriaterte
agradecido, adorável babá.” E o fazia agora, nestamadrugada de ondas ruidosas e
espumantes e de chuvinha na e corrosiva, secundado pelo serviçal Restif, cujo
romancezinho, deliciosamente intituladoLe pied de Franchette e estupidamente
subtituladooul’orphélinefrançaise.Histoireintéressanteetmorale(a nal,haviarazão,
sim,paraquali cá-lademoral), elemantinha sobreos joelhos e acariciava comas
duasmãos,comoumparzinhodelindospés.
Keats, quando escreveuBeauty is truth, truth is beauty (a citação reapareciaincessantemente em cada cadernoque ele abria), estaria pensandonos pés dedona
Lucrecia? Sim, embora o infeliz não o soubesse. ERestif de la Bretonne, quando
escreveueimprimiu(comamesmavelocidade,semdúvida)LepieddeFranchette ,aostrintaecincoanos,tambémo zerasobainspiração,vindadofuturo,deuma
mulher que chegaria aomundo cerca de dois séculosmais tarde, em um bárbaro
rincãodaAmérica chamada (a sério?)Latina.Graças às anotaçõesdo caderno,don
Rigoberto ia recordando o enredo do romancezinho. Convencional e previsível a
maisnãopoder,escritocomospés(não,issoelenãodeviapensarnemdizer),ofato
deseuverdadeiroprotagonistanãoserabelaórfãadolescente,FranchetteFlorangis,
mas sim os pezinhos enlouquecedores de Franchette Florangis, valorizava-o e o
singularizava, dotando-o de vivências e da capacidade persuasiva próprias de uma
obra de arte. Eram inimagináveis os transtornos que os nacarados pezinhos de
Franchette causavam, as paixões que acendiam ao redor. Deixavam a tal ponto
in amado oMonsieurApatéon, tutor da jovem, que se deleitava comprando-lhes
primorososcalçadoseaproveitavaqualquerpretextoparaacariciá-los,queovelhote
chegavaa tentarviolar suapupila, lhadeumamigocaríssimo.Transformavamo
pintorDolsans,umbomrapazqueseencantavacomelesassimqueosvia,metidos
emsapatinhosverdeseornadosdeuma ordourada,emloucodespeitado,cheiode
projetos criminosos que o levariam a perder a vida. Outro a cionado, o rico e
afortunado jovem Lussanville, antes de ter em seus braços e em sua boca a bela
mocinha dos seus sonhos, comprazia-se com um dos sapatinhos dela, que havia
roubado.Todo usuário de calça que os via — nancistas, mercadores, rentistas,
marqueses,plebeus—sucumbiaatalfeitiço,atingidoporuma echadeamorcarnal
edispostoaqualquercoisaparapossuí-los.Porisso,onarradora rmavacomjustiça
a frasequedonRigobertohavia transcrito: “Le joli pied les rendait tous criminels.”Sim,sim,aquelaspatinhastransformavamtodosemcriminosos.Chinelas,sandálias,
botinas, sapatinhos da bela Franchette, objetos mágicos, circulavam pela história,
irradiando-acomumaofuscanteluzseminal.
Embora os estúpidos falassem de perversão, ele e, claro, Lucrecia podiam
compreenderRestif, celebrar que este tivesse tido a audácia e o impudorde exibir
ante os demais seu direito a ser diferente, a refazer o mundo à sua imagem e
semelhança.Nãohaviamfeitoomesmo,eleeLucrecia,acadanoite,pordezanos?
Nãotinhamdesarrumadoerearrumadoavidaemfunçãodeseusdesejos?Voltariam
a fazê-lo, algum dia? Ou tudo isso permaneceria con nado na recordação, nas
imagensqueamemóriacolecionacomotesourosparanãosucumbiràdesesperança
doreal,doqueexistenaverdade?
Nestanoite-madrugada,donRigobertosesentiacomoumdosvarõesalucinados
pelopédeFranchette.Viviavazio,substituindoaausênciadeLucrecia,acadanoite,
acadaamanhecer,porfantasmasquenãobastavamparaconsolá-lo.Haveriaalguma
solução?Seriatardedemaisparavoltaratrásecorrigiroerro?UmaCorteSuprema,
umTribunalConstitucional,naNovaZelândia,nãopoderiamrevera sentençado
obtuso magistrado de Wellington e absolver a professora? Um governante
neozelandêssempreconceitosnãopoderiaanistiá-la,eatécondecorá-lacomoheroína
civilporsuacomprovadaabnegaçãodiantedainfância?Elemesmonãopoderiairà
casinhadoOlivardeSanIsidroparadizeraLucreciaqueaestúpidajustiçahumanase
equivocaraeacondenarasemterdireitoaisso,edevolver-lheahonraealiberdade
para...para?Paraquê?Vacilou,masseguiuadiante,comopôde.
Seriaissoumautopia?UmautopiacomoasqueofetichistaRestifdelaBretonnetambém fantasiou?Na verdade, não, porque as de don Rigoberto, quando ele às
vezes se abandonava a elas, levado pela doçura inerte da divagação, eram utopias
privadas, incapazes de se intrometer no livre-arbítrio dos outros. Por acaso essas
utopias não eram lícitas, muito diferentes das coletivas, inimigas acérrimas da
liberdade,quesempretraziamconsigoasementedeumcataclismo?
EssehaviasidooladofracoeperigosodeNicolasEdme,também;umadoença
deépocaàqual ele sucumbiu, comoboapartede seuscontemporâneos.Porqueo
apetite de utopias sociais, o grande legado do século das Luzes, junto com novos
horizontes e audazes reivindicações do direito ao prazer, havia produzido os
apocalipseshistóricos.DonRigobertonãorecordavanadadisso;seuscadernos,sim.
Aliestavamosdadosacusatórioseasfulminaçõesimplacáveis.
NodelicadoapreciadordepezinhosecalçadosfemininosquefoiRestif—“Que
Deus o abençoe por isso, se existir”—havia tambémumpensador perigoso, um
messiânico(umcretino,sesetratassedequali cá-locomcrueldade,ouumiludido,
se fosse preferível indultá-lo), um reformador de instituições, um redentor de
de ciênciassociais,que,entreasmontanhasdepapelquegaratujou,dedicouvários
montes e colinas a construir essas prisões, as utopias públicas, para regulamentar a
prostituiçãoeimporafelicidadeàsputas(ohorrendoempenhoapareciaemumlivro
deatraenteeenganosotítulo,Lepornographe),paraaperfeiçoarofuncionamentodos
teatroseoscostumesdosatores(Lemimographe),paraorganizaravidadasmulheres,
atribuindo-lhesobrigaçõese xando-lhes limites,a mdehaverharmoniaentreos
sexos(otemeráriomonstrengotambémtraziaumtítuloquepareciaaugurarprazeres
—Lesgynographes—mas,naverdade,propunhaceposegrilhõesparaaliberdade).
Muito mais ambiciosa e ameaçadora havia sido, seguramente, sua pretensão de
regulamentar — na verdade, sufocar — as condutas (L’andrographe) do gênerohumano e de introduzir uma legalidade intrusa e trans xante, agressora da
intimidade,queextinguiriaalivre-iniciativaealivre-disposiçãodosdesejosporparte
dos humanos:Le thesmographe. Diante desses excessos intervencionistas, deTorquemada laico,podia-se considerarumamalvadeza infantilo fatodeRestif ter
levado seu frenesi regulamentarista ao ponto de propor uma reforma total da
ortogra a (Le glossographe). Ele havia reunido essas utopias emum livro chamado
Idéessingulières(1794),esemdúvidaoeram,masnaacepçãosinistraecriminosada
noçãodesingularidade.
A sentença estampada no caderno era inapelável e don Rigoberto a aprovou:
“Nãohá dúvida: se este diligente impressor, documentalista e re nado amador de
terminaisfemininostivessechegadoadispordepoderpolítico,teriatransformadoa
França,etalvezaEuropa,emumcampodeconcentraçãomuitobemdisciplinado,
noqualumamalhafinadeproibiçõeseobrigaçõesvolatilizariaatéoúltimopingode
liberdade. Por sorte, ele foi demasiadamente egoísta para cobiçar o poder,
concentradocomoestavanoempreendimentodereconstruir,pela cção,arealidade
humana,recompondo-asegundosuaconveniência,detalmodoque,nela,comoem
LepieddeFranchette ,ovalorsupremo,amaioraspiraçãodobípedemasculino,não
fosse a realização de ações heroicas de conquista militar, nem a obtenção da
santidade,nemadescobertadossegredosdamatériaedavida,massimodeleitável,
odeliciosopezinhofeminino,saborosocomoaambrosiaquealimentavaosdeuses
doOlimpo.”EcomoaquelevislumbradopordonRigobertonoanúnciodaTime,quelherecordaraosdeLucreciaequeomantinhaaqui,surpreendidopelasprimeiras
luzesdamanhã,enviandoàsuaamadaestagarrafaquelançariaaomar,buscando-a,
sabendomuitobemqueamensagemnãolhechegaria,poiscomopodialhechegaro
quenãoexistia,oqueestavaforjadocomoevanescentepinceldeseussonhos?
Don Rigoberto acabava de se fazer essa desesperada pergunta, com os olhos
fechados,quando,aomurmuraremseuslábiosoamorosovocativo“Ah,Lucrecia!”,
seu braço esquerdo derrubou no chão um dos cadernos. Recolheu-o e olhou de
relance a página aberta com a queda. Deu um salto: o acaso tinha detalhes
maravilhosos, como ele e sua mulher haviam tido oportunidade de comprovar,
amiúde,emseusdevaneios.Comquesedeparou?Comduasanotações,demuitos
anos antes. A primeira, uma descartável menção a uma anônima gravurinha
nissecular,naqualMercúrioordenavaàninfaCalipsoquelibertasseUlisses—de
quemela seenamoraraeaquemmantinhaprisioneiroemsua ilha—eodeixasse
prosseguir sua viagem rumo a Penélope. E a segunda, que maravilha, uma
apaixonada re exão sobre: “Odelicado fetichismo de JohannesVermeer, que, em
Diana e suas companheiras, presta uma plástica homenagem a esse membro
desdenhadodocorpofeminino,mostrandoumaninfaentregueàamorosatarefade
lavar—melhordizendo,acariciar—,comumaesponja,opédeDiana,enquanto
outraninfa,emdoceabandono,acariciaoseupróprio.Tudoésutilecarnal,deuma
delicadasensualidade,dissimuladapelaperfeiçãodasformasepelasuavíssimabruma
que banha a cena, dotando as guras dessa qualidade irreal e mágica que tens,
Lucrecia,acadanoiteemcarneeosso,etambémteufantasma,quandovisitasmeus
sonhos.”Comoissoeracerto,atual,vigente!
Ese respondesseàs suascartasanônimas?Esede fato lheescrevesse?E se fosse
bater à sua porta, nesta mesma tarde, assim que a roda d’água de sua servidão
securitária e gerencial desse a última volta? E se, ao vê-la, caísse imediatamente de
joelhos e se humilhasse para beijar o solo que ela pisava, pedindo-lhe perdão,
chamando-a, até fazê-la rir, de “Minha babá querida”, “Minha professora
neozelandesa”,“MinhaFranchette”,“MinhaDiana”?Elariria?Eselançariaemseus
braços,oferecendo-lheoslábios,fazendo-osentirseucorpo,eofariasaberquetudo
cava para trás, que os dois podiam começar de novo a construir, sozinhos, sua
utopiasecreta?
Enfeite de tigresa
Contigo tenho amores havaianos em que bailas paramim ao som doukelele emnoites de lua cheia, com guizos nos quadris e nos tornozelos, imitandoDorothy
Lamour.
Eamoresastecas,emquetesacri coadeusesacobreadoseávidos,serpentinose
emplumados, no alto de uma pirâmide de pedras ferruginosas, em torno da qual
pululaaselvaimpenetrável.
Amoresesquimós,emfriosiglusiluminadosportochasdegorduradebaleia,e
noruegueses,emquenosamamosengatadossobreoesqui,despencando-nosacem
quilômetrosporhorapelasencostasdeumamontanhabrancajuncadadetotenscom
inscriçõesrúnicas.
Meucarinhodestanoite,amada,émodernista,carniceiroeafricano.
Tedespirásdiantedoespelho,conservandoasmeiasnegraseasligasvermelhas,e
esconderás tua formosa cabeça sob amáscara de uma fera bravia, de preferência a
tigresanociodoRubénDaríodeAzul...ouumaleoasudanesa.
Quebrarás o quadril direito, exionarás a perna esquerda, apoiarás tuamãono
quadriloposto,naposemaisselvagemeprovocante.
Sentadinho em minha cadeira, amarrado ao espaldar, estarei te olhando e te
adorando,commeuservilismocostumeiro.
Semmoverumasópestana,semgritareuestarei,enquantomecravasnosolhos
tuasgarraseteusbrancoscolmilhosrasgamminhagargantaedevorasminhacarnee
saciastuasedecommeusangueenamorado.
Agoraestoudentrodeti,agoratambémsoutu,amadaestufadademim.
6Porwhisky,gingeraleehighball.(N.daT.)
IX.
O encontro do SheratonIX - O encontro do Sheraton
— Para me atrever, para criar coragem, tomei dois uísques puros— disse dona
Lucrecia.—Antesdecomeçaramedisfarçar,querodizer.
—Deveter cadonomaiorpileque,patroa—comentouJustiniana,divertida.
—Dojeitoqueasenhoratemcabeçafracaparabebida...
—Vocêestavaaí,suadescarada—repreendeu-adonaLucrecia.—Excitadíssima
comoquepodiaacontecer.Servindoosdrinques,meajudandoacolocarodisfarcee
rindoàsgargalhadas,enquantoeumetransformavanumadaquelas.
—Umasujeitinhadaquelas—ecoouaempregada,retocando-lheoruge.
“Estaéapiorloucuraquejá znavida”,pensoudonaLucrecia.“Piordoquea
históriacomFonchito,piordoquemecasarcomomalucodoRigoberto.Seeua
zer,voumearrependeratémeuúltimodia.”Masiafazê-la.Ficouótimanaperuca
ruiva—haviaexperimentadoesseadereçonalojaonde zeraaencomenda—,cuja
altaebarrocaorogra adecachosemechasparecia amejar.Malsereconheceunessa
guraincandescente,decíliospostiçosrecurvados,argolastropicaisnasorelhas,toda
sarapintada, lábios de um vermelhão aceso, acentuado pelos sinaizinhos e olheiras
azuisdeverdadeiramulherfatal,estilofilmemexicanodosanoscinquenta.
—Caramba,caramba,ninguémdiriaqueéasenhora!—examinou-aJustiniana,
assombrada,tapandoaboca.—Nãoseicomquemseparece,patroa.
—Comumasujeitinhadaquelas,orabolas—afirmoudonaLucrecia.
O uísque já zera seu efeito. As vacilações de momentos atrás tinham se
evaporadoeagora, intrigada,divertida, elaobservava sua transformaçãonoespelho
do quarto. Justiniana, progressivamente maravilhada, ia lhe estendendo as peças
dispostas sobre a cama: aminissaia tão justaquedi cultava a respiração; as longas
meiaspretas,presasporligasvermelhascomadornosdourados;ablusaextravagante,
queexibiaos seios até apontadomamilo.Ajudou-a, também,a calçaros sapatos
prateados,desalto-agulha.Tomandodistância,depoisdepassá-laemrevistadecima
parabaixoedebaixoparacima,exclamoudenovo,estupefata:
—Nãoéasenhora,patroa,éoutra,outra.Vaisairassimmesmo?
—Claro—assentiudonaLucrecia.—Seeunãoapareceratéamanhã,aviseà
polícia.
E,semmaisdelongas,pediuumtáxinaestaçãodaVirgendelPilareordenouao
chofer, com autoridade: “Hotel Sheraton.” Anteontem, ontem e esta manhã,
enquanto searrumava, tinha tidodúvidas.Disseraa simesmaquenão iria,não se
prestariaasemelhantepalhaçada,aoqueseguramenteeraumabrincadeiracruel;mas,
jánotáxi,sentiu-semuitoseguraedecididaaviveraaventuraatéo nal.Acontecesse
oqueacontecesse.Olhouorelógio.Asinstruçõesdiziamentreonzeemeiaemeia-
noite, e aindaeramonze.Chegaria adiantada.Serena, longede simesmagraças ao
álcool, perguntou-se, enquanto o táxi avançava rumo ao centro pela via expressa
semideserta, o que faria se alguém a reconhecesse no Sheraton, apesar do disfarce.
Negaria a evidência, esganiçando a voz, fazendo a entonação amaneirada emelosa
daquelassujeitinhas:“Lucrecia?EumechamoAída.Somosparecidas?Talvezalguma
parentedistante.”Mentiriacomtotaldesfaçatez.Seumedoseevaporaratotalmente.
“Você está encantada de bancar a puta, por uma noite”, pensou, satisfeita consigo
mesma.Percebeuqueochoferdotáxierguiaavistaacadamomentoparaespiá-la
peloretrovisor.
Antes de entrar no Sheraton, colocou os óculos escuros com armação de
madrepérolaemformadetridente,quehaviacompradonessamesmatardeemuma
lojinha da rua La Paz.Tinha escolhido esses pelo engraçadomau gosto e porque,
dadootamanho,pareciamumameia-máscara.Atravessouolobbyempassosrápidos,
rumo ao bar, temendo que um dos porteiros uniformizados, que a encaravam
acintosamente,viesseperguntarquemeraela,oqueprocurava,ouentãoexpulsá-la,
semperguntas,porcausadesuaaparênciaescandalosa.Masninguémseaproximou.
Subiuaescadaatéobar,sempressa.Apenumbralhedevolveuasegurança,queela
quaseperdera sobas fortes luzesda entrada, aquele salão sobreoqual se elevavao
opressivo arranha-céu retangular e carcerário do hotel, com seus muitos andares,
paredes, passadiços, balaustradas e dormitórios.Nameia-luz, entrenuvenzinhas de
fumaça,notouquepoucasmesasestavamocupadas.Tocavamumamúsicaitaliana,
com um cantor pré-histórico— Domenico Modugno— que lhe recordou um
longínquo lmecomClaudiaCardinaleeVittorioGassman.Silhuetasimprecisasse
delineavamnobalcão,contraofundoazul-amareladodetaçase leirasdegarrafas.
Deumamesasubiamasvozesestridentesdeuminíciodebebedeira.
Denovoanimada,con anteemsuasforçasparaenfrentarqualquerimprevisto,
atravessouolocaletomoupossedeumdosaltosbanquinhosdobalcão.Oespelhoà
suafrentelhemostrouumespantalhoque,emvezderepulsaouriso,provocou-lhe
ternura.Sua surpresanão teve limitesquandoelaouviuobarman, ummestiçode
cabelosgomalinadoseespetados,metidoemumcoletegrandedemaisecomuma
gravatinha-borboleta que parecia enforcá-lo, tratá-la com grosseria, dispensando o
“senhora”:
—Vocêaí,ouconsomeousemanda.
Quasefezumescândalo,masre etiumelhore,grati cada,disseasimesmaque
essa insolência comprovava o sucesso de seu disfarce. E, estreando sua nova voz,
dengosaeaçucarada,pediu:
—Um12anoscomgelo,porfavor.
O homem a encarou, hesitante, avaliando se devia levá-la a sério.Optou por
murmurar:“Comgelo,certo”, jáseafastando.Elapensouqueodisfarceteriasido
completo se incluísse uma piteira comprida. Então, pediria cigarros mentolados
Kool,extralongos,e fumaria soltandoargolasvaporosasparaoalto,emdireçãoao
forrodeestrelinhasquelhepiscavam.
O barman trouxe o uísque com a conta, e ela tampouco protestou por essa
demonstração de descon ança; pagou, sem deixar gorjeta. Mal havia tomado o
primeiro gole, e alguém se sentou ao seu lado.Teve um leve estremecimento.O
jogocomeçavaa carsério.Masnão,nãosetratavadeumhomem,esimdeuma
mulher, bastante jovem, de calça comprida e uma polo escura de gola alta, sem
mangas.Tinhaoscabelossoltos,lisos,eorostofrescoexibiaoarzinhocanalhadas
mocinhasdeEgonSchiele.
—Oi.—Avozinhamiraflorinalhesooufamiliar.—Agenteseconhece,nãoé?
—Creioquenão—respondeudonaLucrecia.
— Eu achei, desculpe — disse a outra. — Tenho uma memória péssima,
confesso.Vocêvemmuitoporaqui?
—Devezemquando—hesitoudonaLucrecia.Co nheciaaquelamoça?
— O Sheraton não é mais tão seguro como antes— lamentou-se a jovem.
Acendeuumcigarroesoltouumabaforada,quedemorouasedesfazer.—Eusoube
que,nasexta-feira,deramumaincertaaqui.
Dona Lucrecia se imaginou empurrada aos trancos para dentro do camburão,
levadaàpolíciaefichadacomomeretriz.
—Ou consome ou cai fora—disse obarman à recém-chegada, ameaçando-a
comodedoemriste.
—Váàmerda,seucholofedorento—retrucoua jovem,semsequersevoltar
paraolhá-lo.
—Grossa como sempre, hem, Adelita?— sorriu obarman, mostrando uma
dentaduraque,donaLucreciatevecerteza,verdejavadesarro.—Tudobem, que,
sinta-seemcasa.Vocêéomeufracoesabedisso,entãoabusa.
Nesse momento, dona Lucrecia a reconheceu. Adelita, claro! A lha de
Estherzita!Ora,ora,nadamenosqueafilhadasantarronadaEsther.
—A lhadedonaEstherzita?—gargalhouJustiniana,dobrando-seaomeio.—
Adelita?AmeninaAdelita?A lhadamadrinhadeFonchito?Batalhandofregueses
no Sheraton? Não consigo engolir essa, patroa. Nem com Coca-Cola nem com
champanheeuengulo.
—Elamesma, e você nem sabe como— assegurou dona Lucrecia.—Toda
assanhada, falando palavrão, à vontade como peixe n’água, ali no bar. Parecia a
piranhamaisexperientedeLima.
—Eela?Nãoreconheceuasenhora?
— Não, felizmente. Mas você ainda não ouviu nada. Estávamos ali,
conversando, quando, não sei de onde, o sujeito nos caiu em cima. Pelo jeito,
Adelitaoconhecia.
Eraalto,forte,meiogordo,meiobêbado,emsuma,meiotudooqueépreciso
parasesentirvalenteemandão.Deternoegravatabrilhante,comlosangosezigue-
zagues, respirava como um fole. Devia ser cinquentão. Instalou-se entre as duas,
abraçando-as, e, como faria com duas amigas da vida inteira, disse, à maneira de
saudação:
—Queremviràminhasuíte?Tenhoumgoró níssimoe somethingforthenose.Emaisumachuvadedólaresparaasmeninasquefazemtudocertinho.
DonaLucrecia sentiuumavertigem.Obafodohomemiadiretoemsuacara.
Eleestavatãopertoque,comumpequenomovimento,poderiabeijá-la.
—Estásozinho,gato?—perguntouamoça,comcoqueteria.
—Eeuvouquerermaisalguémparaquê?—respondeuosujeito,chupandoos
lábios e apalpando o bolso onde devia guardar a carteira.— Cem verdinhas por
cabeça,OK?Pagoadiantado.
— Se você não tiver dólar de dez ou de cinquenta, pre ro em soles— disse
Adelita,deimediato.—Osdecemsãosemprefalsos.
—OK,OK,tenhodecinquenta—prometeuohomem.—Vamosandando,
garotas.
—Estouesperandoalguém—desculpou-sedonaLucrecia.—Lamento.
—Elenãopodeesperar?—impacientou-seohomem.
—Não,realmentenão.
— Se você quiser, subimos nós dois — interveio Adelita, pendurando-se ao
braçodele.—Voutratarvocêmuitobem,gato.
Masohomemarepeliu,decepcionado:
— Só você, não. Esta noite eu estou me dando um prêmio. Meus burricos
ganharamtrêscorridaseadupla.Possocontar?Vourealizarumcaprichoqueestáme
deixando excitado, há dias. Digo qual?—Olhou as duas alternadamente, muito
sério,afrouxandoocolarinho,eemendoucomansiedade,semesperaraprovação:—
Empalarumaenquantochupoaoutra.Vendoasduaspeloespelho,setocandoese
beijando,sentadinhasnotrono.Eessetronovousereu.
“O espelho de Egon Schiele”, pensou a senhora Lucrecia. Sentia-se menos
incomodadapelavulgaridadedohomemdoquepelobrilhodesalmadodaspupilas
dele,enquantodescreviaseucapricho.
— Você vai car zarolho de ver tanta coisa ao mesmo tempo, gato — riu
Adelita,dando-lheumsocodebrincadeira.
—Éaminha fantasia.Graças aosburricos, estanoite vou realizá-la—disseo
homem,comorgulho,àmaneiradedespedida.—Umapenaesseseucompromisso,
palhacinha, porque, apesar dessa papagaiada toda, gostei de você. Tchauzinho,
bonecas.
Quandoeleseperdeuentreasmesas—obartinhamaisgentedoqueantes,a
fumaçaestavamaisdensa,orumordasconversassemultiplicara,eamúsicadosalto-
falantes era agoraummerenguede JuanLuisGuerra—,Adelita se aproximoude
donaLucrecia,pesarosa:
—Éverdade,o seuencontro?Comessepanaca, ia sermoleza.Aquelahistória
doscavalosémentira.Eleétra cante,todomundosabe.Efuncionaacemporhora.
Ejaculaçãoprecoce,dizem.Tãorápido,tãorápido,quemuitasvezesnemconsegue
começar.Iaserumamãonaroda.
DonaLucreciatentouesboçarumsorrisodeentendida,quenãolhesaiu.Como
uma lhadeEstherpodiadizersemelhantescoisas?Aquelasenhoratãoposuda,tão
rica,tãopresumida,tãoelegante,tãocatólica.Estherzita,amadrinhadeFonchito.A
moça continuava com seus comentários desenvoltos, quemantinham boquiaberta
donaLucrecia:
—Tremendovacilo,agenteperderestaoportunidadedefaturarcemdólaresem
meiahora,emquinzeminutos—queixava-se.—Subircomvocêparatrabalharmos
nessepata-chocaiaserbacana.Iaseromáximo,erapidinho.Vocêeunãosei,mas,
comigo, o que me incomoda são os casais. O maridão olhando, enquanto você
esquenta amulherzinha dele.Odeio isso, gata! Porque a babaca sempremorre de
vergonha.Fica cheia de frescuras, solta umas risadinhas sonsas, temquebeber um
trago,etomedesiririca.Puxavida,atémedáengulho.Principalmentequandoelas
começam a chorar e se arrepender.Tenho vontade dematar, digo a você. E aí o
tempo vai passando,meia hora, uma hora, com essas retardadas, um pé no saco.
Querem, não querem, e fazem você perder ummonte de grana.Não tenhomais
paciência,gata.Nuncalheaconteceu?
— Imagine!— sentiu-se obrigada a dizer dona Lucrecia, forcejando para que
cadasílabaaceitassesairdesuaboca.—Algumasvezes.
—Sebemquepioraindasãoosdoisamigos,oscupinchas,unhaecarne,sabe
como?—suspirouAdelita.SuavozmudouedonaLucreciapensouquedevia ter
acontecidoaelaalgoterrível,comsádicos,loucosoumonstros.—Comosesentem
machosquando estão emdupla!E começamapedir tudoquanto é sacanagem.A
cornetinha, o sanduichinho, o nenenzinho. Por que não vai pedir àmamãezinha,
querido?Nãoseivocê,gata,mas,comigo,onenenzinho,nemapau.Nãogosto.Me
dánojo.Etambémdói.Nãofaçonemporduzentosdólares.Evocê?
—Eu tambémnão— articulou donaLucrecia.—Nojo e dor, igual a você.
Nenenzinho,nemporduzentos,nempormil.
—Bem,pormil,quemsabe?—riuamoça.—Viu?Agenteseparece.Bom,
chegouseuparceiro,euacho.Vamosverse,napróxima,agentefazotrabalhono
idiotadosburricos.Tchau,divirta-se.
Adelitaseafastou,deixandoseulugarparaadelgadasilhuetaqueseaproximava.
Naclaridademedíocredorecinto,donaLucreciaviuqueeleerajovem,meiolouro,
feições ameninadas, e uma vaga semelhança com quem? Com Fonchito! Um
Fonchitocomdezanosamais,deolharendurecido,corpomaisaltoeafilado.Estava
vestidoemumeleganteternoazuletrazianobolsodopaletóumlencinhorosa,a
mesmacordagravata.
—OinventordapalavraindividualismofoiAlexisdeTocqueville—disseele,a
mododesaudação,comumavozinhaestridente.—Certoouerrado?
— Certo. — Dona Lucrecia começou a suar frio: o que aconteceria agora?
Decidida a ir até o nal, acrescentou:—Eu souAldonza, a andaluza deRoma.
7
Puta,estreleiraealcofeira,àssuasordens.
—Aúnicapalavraqueeuentendoéputa—comentouJustiniana,tontacomo
que ouvia.— E a senhora falava sério?Não cou com vontade de rir?Desculpe
interromper,patroa.
—Siga-me—disseorecém-chegado,semumpingodehumor.Movia-secomo
umrobô.
DonaLucreciadesceudobanquinhoe adivinhouoolharmal-intencionadodo
barmanaovê-lapartir.Seguiuojovemlouro,queavançavadepressaentreasmesas
lotadas,fendendoaatmosferaenfumaçada,rumoàsaídadobar.Depois,atravessou
ocorredoremdireçãoaoselevadores.DonaLucreciaoviuapertarobotãodo24º.Sentiuseucoraçãosaltareseuventresecontrair,comavelocidadedasubida.Uma
portaseabriu,assimquesaíramparaocorredor.Estavamnovestíbulodeumasuíte
enorme: através do janelão envidraçado, estendia-se aos seus pés ummar de luzes,
commanchasescurasebancosdeneblina.
— Pode tirar a peruca e a roupa no banheiro.— O rapaz lhe apontou um
aposento, ao lado da saleta. Mas dona Lucrecia não conseguiu dar um passo,
fascinadaporaquela face juvenil,deolhardeaçoecabelosalvoroçadosna testa—
achara que eram louros, mas eram castanho-claros, puxando para o escuro —,
modeladospeloconedeluz.Comoerapossível?Pareciaele,empessoa.
— Como assim, Egon Schiele? — atalhou-a Justiniana. — O pintor que
enlouqueceFonchito?Omalandroquepintavasuasmodelosfazendosacanagem?
—Porquevocêachaqueeufiqueipasmada?Elemesmo.
—Seiquesomosparecidos—explicouorapaz,nomesmotomsério,funcional
edesumanizadocomquesedirigiraaeladesdeoprimeiromomento.—Éporisso
quevocêestátãodesconcertada?Bom,eumepareçocomele.Edaí?Ouvocêestá
achandoquesouEgonSchieleressuscitado?Nãoétãobobaassim,não?
— É que a semelhança me deixou muda — reconheceu dona Lucrecia,
examinando-o. — Não é só o rosto.Também o corpo alongado, raquítico. As
mãos, tão grandes. E amaneira como você brinca com seus dedos, escondendo o
polegar.Igualzinho,idênticoatodasasfotosdeEgonSchiele.Comoépossível?
—Nãovamosperdertempo—disseorapaz,comfriezaeumgestodetédio.
— Tire essa peruca asquerosa, esses brincos e colares horríveis. Espero você no
quarto.Venhanua.
Seu rosto tinha algo de desa ador e vulnerável. Ele parecia, pensou dona
Lucrecia, um garotinho malcriado e genial, a quem, apesar de todas as suas
travessuras e insolências, audácias e temeridades, a mãe fazia muita falta. Estava
pensandoemEgonSchieleouemFonchito?DonaLucrecianãotevedúvidasdeque
orapazprefiguravaoqueofilhodeRigobertoviriaaserdentrodealgunsanos.
“Apartirdestemomento,começaomaisdifícil”,disseasimesma.Tinhacerteza
dequeo rapazparecido comFonchito eEgonSchielehavia fechado aporta com
duasvoltasnachave,edeque,mesmoquequisesse,jánãopoderiaescapardasuíte.
Seriaobrigadaapermaneceraliorestodanoite.Juntocomomedoqueseapoderara
dela, a curiosidade a devorava, e até umapontinhade excitação.Entregar-se a esse
esbelto jovem de expressão fria e algo cruel seria como fazer amor com um
Fonchito-jovem-quase-homem,oucomumRigobertoremoçadoeembelezado,um
Rigoberto-jovem-quase-menino.Acomparaçãoafezsorrir.Oespelhodobanheiro
lhemostrou sua expressão relaxada, quase alegre.Teve trabalhopara tirar a roupa.
Sentiaasmãosdormentes,comoseastivesseexpostoàneve.Semaabsurdaperuca,
livredaminissaiaqueaespremia,respirou.Manteveacalcinhaeominúsculosutiã
derendapreta,e,antesdesair,soltoueajeitouoscabelos—tinha-osprendidonuma
redinha—,detendo-seuminstanteàporta.Outravez,opânico.“Possoaténãosair
vivadaqui.”Masnemsequeressetemorfezcomquesearrependessedetervindoe
de estar interpretando esta farsa extravagante, para agradar a Rigoberto (ou a
Fonchito?).Aoentrarnovestíbulo,comprovouqueorapazhaviaapagadotodasas
luzes do quarto, exceto a de um abajur, em um cantinho afastado. Pelo enorme
janelão, lá embaixo cintilavammilhares de vagalumes de um céu invertido. Lima
pareciadisfarçadadecidadegrande;aescuridãoapagavaseusandrajos,suaimundície
e até seumau cheiro.Umamúsica suave, de harpas, trinados, violinos, banhava a
penumbra. Enquanto avançava, sempre apreensiva, rumo à porta que o rapaz lhe
apontara, sentiuumanovaondadeexcitação,crispando-lheosbicosdos seios (“O
quetantoagradaaRigoberto”).Deslizousilenciosamentepelocarpete.Bateucomos
nósdosdedos.Aportaestavaencostadaeseabriu,semumrangido.
—Eestavamali,osdeantes?—exclamouJustiniana,maisincrédulaainda.—E
agora,comovaiser?Osdoisdeantes?Adelita,afilhadasenhoraEsther?
—E o sujeito dos cavalos, o tra cante ou lá o que fosse— con rmoudona
Lucrecia.—Sim,ali.Osdois.Nacama.
—Epelados,claro—gargalhouJustiniana,levandoumamãoàbocaerevirando
osolhoscomdescaramento.—Esperandopelasenhora.
Oquartopareciamaior doque ohabitual emumhotel, atémesmo emuma
suíte de luxo, mas dona Lucrecia não pôde perceber exatamente suas dimensões,
porque só estava acesa a lâmpada de um dos criados-mudos, e sua luz circular,
avermelhadapelagrandecúpulacordevinho,sóclareavaporinteiroocasaldeitadoe
entrelaçadosobreabetuminosacolcha,commanchasamarelo-escuras,quecobriaa
camadecasal.Orestodoaposentoestavanapenumbra.
— Entre, amorzinho— acolheu-a o homem, agitando a mão, sem parar de
beijocar Adelita, sobre a qual estavameiomontado.—Tome umdrinque.Tem
champanheemcimadamesa.Epó,nessatabaqueiradeprata.
AsurpresadeencontrarAdelitaeohomemdoscavalosalinãoafezesquecero
jovemmagrodebocacruel.Eletinhadesaparecido?Espiava,ocultonasombra?
—Oi,gata—acaratravessadeAdelitasurgiuporsobreoombrodosujeito.—
Quebomquevocê se livroudo tal encontro.Venha, venha logo.Não sente frio?
Aquiestáquentinho.
Omedodesapareceupor completo.Ela foi até amesa e se serviuuma taçade
champanhe de uma garrafa metida em um balde de gelo. E se cheirasse uma
carreirinha,também?Enquantobebia,empequenosgoles,napenumbra,pensou:“É
magiaoubruxaria.Milagre,nãopodeser.”Ohomemeramaisgordodoqueparecia
vestido;seucorpo,branqueloecomsinais,tinharolosdebanhanabarriga,nádegas
sem pelos e pernas muito curtas, com tu nhos de pelos escuros. Adelita, ao
contrário, era aindamaismagra do que ela havia acreditado; um corpo alongado,
moreninho,umacinturamuito naemquesedestacavamosossinhosdosquadris.
Deixava-sebeijareabraçaretambémabraçavaotra cantetur sta,mas,emboraseus
gestos simulassem entusiasmo, dona Lucrecia notou que ela não o beijava, e até
evitavasuaboca.
—Venha,venha,quasenãoaguentomais—implorouohomem,de repente,
comveemência.—Meucapricho,meucapricho.Éagoraoununca,meninas!
Emboraaexcitaçãodeummomentoatrás tivessedesaparecido, substituídapor
umcertonojo,donaLucreciaobedeceu,depoisdeterminarataça.Aosedirigirpara
acama,viudenovopelojanelão,láembaixo,etambémacima,nasmontanhasonde
começavaalongínquacordilheira,oarquipélagodeluzes.Sentou-seemumcantoda
cama, semmedo, embora confusa e cada vezmais nauseada.Umamão a segurou
pelobraço,puxou-aeaobrigouasedeitarembaixodeumcorpopequenoefofo.
Elarelaxou,deixou-selevar,aniquilada,desmoralizada,decepcionada.Repetiaparasi
mesma,comoumautômato:“Nãováchorar,Lucrecia,nãováchorar.”Ohomem
enlaçou-acomobraçoesquerdoeAdelitacomodireito.Suacabeçagiravadeuma
para outra, beijando-as no pescoço, nas orelhas, e buscando-lhes a boca. Dona
Lucrecia via muito próxima a cara de Adelita, despenteada, congestionada, e, nos
olhos, um sinal de cumplicidade, zombeteiro e cínico, animando-a. Os lábios e
dentesdohomemseapertaramcontraos seus, forçando-aaabriraboca.A língua
deleentrounela,comoumaserpente.
—Você,euqueroempalar—ouviu-o implorar, enquantoamordiscavae lhe
acariciavaosseios.—Monte,monteemmim.Rápido,quejáestouindo.
Vendo que ela hesitava, Adelita ajudou-a a subir nele e também se agachou,
passandoumadaspernas sobreohomeme ajeitando-se a mdeque ele tivesse a
bocaaoalcancedoseusexodepilado,noqualdonaLucreciamalpercebeuuma na
linha de pilosidade. Então, sentiu como se levasse uma chifrada. Aquela coisinha
miúda,meiobrocha,quesegundosantesseesfregavaemsuaspernas, teriacrescido
tantoaoentrarnela?Agoraeraumesporão,umaríetequea levantava,perfuravae
feriacomforçacataclísmica.
—Beijem-se,beijem-se—gemiao sujeitodosburricos.—Nãoestouvendo
vocêsmuitobem,quemerda!Faltouumespelho!
Molhada de suor da cabeça aos pés, tonta, dolorida, sem abrir os olhos, dona
LucreciaestendeuosbraçosebuscouorostodeAdelita,mas,quandoencontrouos
noslábiosdamoça,esta,mesmoapertando-oscontraosdela,manteve-osfechados.
Nãoosabriuquandoelaospressionoucomalíngua.Nisto,porentreoscílioseas
gotinhas de suor que lhe pingavam da testa, viu o jovem desaparecido de olhos
acerados, lá em cima, perto do teto, equilibrando-se no alto de uma escada.
Semioculto pelo que parecia um biombo laqueado, com caracteres chineses, as
orelhinhasmeiolevantadas,osolhosincendiados,aboquinhacruelfranzida,orapaz
a desenhava, desenhava os três, furiosamente, comum carvão comprido, emuma
cartolina branquíssima. De fato, parecia uma ave de rapina, agachado no alto da
escada em tesoura, observando-os, medindo-os, retocando-os com traços longos,
enérgicos,ecomaquelesolhosferozes,vivíssimos,quesaltavamdacartolinaparaa
cama,dacamaparaacartolina,semprestaratençãoamaisnada,indiferentesàsluzes
deLima,esparramadasaopédajanela,eàsuaprópriaverga,queabriracaminhopara
foradacalça,fazendosaltaremosbotões,eseestiravaecresciacomoumbalãoque
vaiseenchendodear.Ofídiovoador,agorasebalançavaacimadela,contemplando-a
com seu olho de grande ciclope. Ela não se surpreendeu nem se importou.
Cavalgava,satisfeita,ébria,agradecida,entorpecida,pensandooraemFonchito,ora
emRigoberto.
—Porquevocê continua saltitando,nãovêque eu já fui?—choramingouo
homemdoscavalos.Nasemiescuridão,suacarapareciadecinza.Elefaziabiquinhos
de menino malcriado. — Maldito azar, isto sempre me acontece. Quando está
candobom,eujáfui.Nãoconsigosegurar.Nãotemjeito,nãotem.Procureium
especialista, eleme receitoubanhosde lama.Umamerda.Aquilomedavadorde
estômagoevômitos.Massagens.Outramerda.FuiaumcurandeirodaVictoriaeele
memeteuemumatinacomervas,cheirandoacocô.Dequemeserviu?Denada.
Agora,terminoatémaisrápidodoqueantes.Porqueessasorteinfeliz,malditaseja?
Soltouumgemidoesoluçou.
—Não chore, cara, por acaso você não realizou seu capricho?— consolou-o
Adelita,voltandoapassarapernaporcimadacabeçadochorãoedeitando-seaolado
dele.
Pelojeito,nenhumdosdoisviaEgonSchiele,ouseuduplo,equilibrando-seum
metro acima, no alto da escada, e ajudando-se a não cair, a manter o centro de
gravidade, graças àquela imensa verga que balançava suavemente sobre a cama,
exibindona escassa luz suas delicadas dobras rosadas e as alegres veiazinhas da face
posterior. E, sem dúvida, tampouco o escutavam. Dona Lucrecia, sim, e muito
claramente.Esganiçadoebeligerante,elerepetiaentreosdentes,comoummantra:
“Souomaistímidodostímidos.Soudivino.”
—Descanse,gata,oqueestáfazendoaí?Afunçãojáterminou—disseAdelita,
comcarinho.
—Nãoasdeixeir,dêumasurranelas.Nãoasdeixeir.Bata,batacomforçanas
duas!
Era Fonchito, naturalmente.Não, não o pintor concentrado em sua tarefa de
esboçá-los.Eraomenino,seuenteado,o lhodeRigoberto.Estavaali,eletambém?
Sim.Onde? Em alguma parte, secretado pelas sombras do quarto dasmaravilhas.
Quieta, encolhida, desexcitada, aterrorizada, cobrindo os seios com asmãos, dona
Lucreciaolhouàdireita,procurouàesquerda.Epor mosencontrou,re etidosem
umgrande espelhono qual também se viu, repetida comoumamodelo deEgon
Schiele.Ameia-luznãoosdissolvia;antes,davaaopaieao lho,sentadosumjunto
aooutro—aquele,observando-oscombenevolênciaafetuosa,eeste,superexcitado,
acarinhaangelicalcongestionadadetantogritar,“Batanelas,batanelas”—,emuma
poltronaquepareciaumcamaroteencarapitadoacimadoproscêniodacama.
—Ouseja,tambémapareceramopatrãoeFonchito?—comentouJustiniana,
em tom desenxabido e francamente decepcionado. — Isso é que não dá para
acreditar.
— Bem sentadinhos, os dois, e nos olhando — assentiu dona Lucrecia. —
Rigoberto,muitoformal,compreensivoetolerante.Eomenininho,derédeasolta,
fazendoasdiabrurasdecostume.
—Nãoseiasenhora,patroa—disseJustianaderepente,cortandodechofreo
relatoelevantando-se—,maseuprecisoagoramesmodeumaduchacomáguabem
fria.Paranãopassaroutranoitesemdormir,nomaiorsufoco.Essasconversascoma
senhora,euadoro.Masmedeixammeioabestalhadaecarregadadeeletricidade.Se
nãoacredita,boteamãoaqui.Vaitomarumchoque!
A baba da lesma
Emboraeusaibadesobraqueosenhoréummalnecessário,semoqualavidaem
comunidadenão seria vivível,devodizer-lheque suapessoa representa tudooque
detesto,nasociedadeeemmimmesmo.Poishápelomenosumquartodeséculo,
desegundaasexta-feiraedasoitodamanhãàsseisdatarde,comalgumasatividades
ancilares(coquetéis,seminários, inaugurações,congressos),àsquaismeéimpossível
subtrair-me semameaçarminha sobrevivência, tenho sido tambémumaespéciede
burocrata, aindaquenão trabalheno setor público, e simnoprivado.Mas, assim
como o senhor e por sua culpa, minha energia, meu tempo e meu talento (tive
algum)foramemgrandeparteengolidos,nessesvinteecincoanos,pelos trâmites,
gestões, requerimentos, instâncias e procedimentos inventados pelo senhor para
justi caro salárioque recebeea escrivaninhadiantedaqual engorda suasnádegas,
deixando-meapenasumasmigalhasdeliberdadeparatomariniciativaselevaracabo
um trabalho que mereça chamar-se criativo. Sei que os seguros (meu ramo
pro ssional)eacriatividadeencontram-setãoafastadosquantoosplanetasSaturnoe
Plutãonouniverso sideral,masessadistâncianãoseria tãovertiginosa seo senhor,
hidra regulamentarista, lagarta tramitadora, rei do papel timbrado, não a tivesse
tornadoabissal.Porque,mesmonoáridodesertodasseguradoraseresseguradoras,a
imaginaçãodo serhumanopoderia expandir-se edali extrair estímulo intelectual e
até prazer, se o senhor, encarceradonessa densamalha de regulações as xiantes—
destinadasadarcaráterdenecessidadeàobesaburocraciaqueinchouatéestouraras
repartições públicas e criou uma miríade de pretextos e justi cativas para suas
chantagens,seussubornos,trá coseroubos—,nãotivessetransformadoatarefade
uma companhia de seguros em uma embrutecedora rotina, semelhante àquelas
complicadas ediligentesmáquinasde JeanTinguely, as quais,movendo correntes,
polias, trilhos, pás, colheres e êmbolos, acabam parindo uma bolinha de pingue-
pongue. (Seique ignoraqueméTinguely e tampouco lhe convémdescobrir;mas
tenhocertezadeque,seoacasocolocasseemseucaminhoasobrasdesseescultor,um
dos poucos artistas contemporâneos queme entendem, o senhor já teria tomado
todasasprecauçõesparanãocompreender,banalizando-os,ossarcasmosferozesque
elasdisparam.)
Seeulhecontarqueentreinestacompanhiarecém-formadoemdireito,comum
posto insigni cante no departamento jurídico, e que nestes cinco lustros escalei a
hierarquiaatéocuparagerência,sermembrodadiretoriaedonodeumbompacote
deaçõesdaempresa,osenhormediráque,emtaiscondições,nãotenhodequeme
queixar e peco por ingratidão. A nal, não vivo bem? Não faço parte do
microscópico fragmento da sociedade peruana que tem casa própria, automóvel, a
possibilidade de viajar de férias, umaouduas vezes por ano, para aEuropa ou os
EstadosUnidos,dedesfrutardecertosconfortosedeumasegurançaimpensáveise
inacessíveis para quatro quintos dos nossos compatriotas? Tudo isso é verdade.
Tambémo éque, graças a esse sucessopro ssional (assimo chamamos senhores,
não?), consegui encher meu escritório de livros, gravuras e quadros, que me
amuralhamcontraaestupidezeavulgaridadereinantes(ouseja,contratudooqueo
senhor representa), e criar um enclave de liberdade e fantasia onde a cada dia, ou
melhor,acadanoite,pudedesintoxicar-medaespessacrostadeconvencionalismos
embrutecedores, rotinas desprezíveis, atividades castradoras e gregarizadas que o
senhorfabricaedasquaissenutre,eviver,viverdeverdade,sereumesmo,abrindo
aos anjos e demônios queme habitam as portas gradeadas atrás das quais— por
culpasua,sósua—sãoobrigadosaesconder-senorestododia.
Osenhormedirá,também:“Seodeiatantooshoráriosdetrabalho,ascartaseas
apólices, os relatórios legais e os protocolos, as reclamações, as autorizações e os
pareceres, por que não teve a coragem de jogar fora tudo isso e viver a vida
verdadeira,adesuafantasiaeseusdesejos,nãosóànoite,mastambémdemanhã,ao
meio-diaeàtarde?Porquecedeumaisdametadedesuavidaaoanimalburocrático
que,juntocomseusanjosedemônios,tambémoescraviza?”Aperguntaépertinente
—muitasvezesformulei-aparamimmesmo—,mastambémoéminharesposta:
“Porqueomundodefantasia,deprazer,dedesejosemliberdade,minhaúnicapátria
querida,nãosobreviveria indeneàescassez,àestreiteza,àsangústiaseconômicas,ao
peso das dívidas e à pobreza. Os sonhos e os desejos são incomestíveis. Minha
existência seempobreceria, transformando-seemcaricaturade simesma.”Nãosou
um herói, não sou um grande artista, careço de gênio, de modo que não me
consolariaaesperançadeuma“obra”quetalvezsobrevivesseamim.Minhaaspiração
eminhasaptidõesnãovãoalémdesaberdiferenciar—nissosousuperioraosenhor,
cujosensoéticoeestéticodediscriminação,porsuacondiçãoadventícia,reduziu-sea
nada—,dentrodoemaranhadodepossibilidadesquemerodeiam,oqueamoeo
quedetesto,oqueembelezaminhavidaeoqueaenfeiaelambuzadeestupidez,o
quemeexaltaeoquemedeprime,oquemefazgozareoquemefazsofrer.Para
estar simplesmente em condições de discernir constantemente entre essas opções
contraditórias,precisodatranquilidadeeconômicaquemeéproporcionadaporesta
atividadepro ssionalmaculadapelaculturadotrâmite,estemiasmadeletérioqueo
senhorgeracomoalesmaexpeleababaequepassouaseroarrespiradopelomundo
inteiro. As fantasias e os desejos — pelo menos, os meus — requerem, para
manifestar-se, um mínimo de tranquilidade e segurança. Do contrário,
enfraqueceriamemorreriam.Sequiserdeduzirdaíquemeusanjosedemôniossão
inabalavelmenteburgueses,digo-lhequeéamaisestritaverdade.
Mencioneiantesapalavraparasitaeosenhordeveter-seperguntadoseeu,sendoumadvogadoquehávinteecincoanosaplicaaciênciajurídica—omaisnutritivo
alimentoda burocracia e a primeira engendradorade burocratas—à especialidade
dosseguros,tenhoodireitodeusá-ladepreciativamentecontraquemquerqueseja.
Sim,tenho,massóporquetambémaempregocontramimmesmo,contraminha
metadeburocrática.Defato,eparacúmulodosmales,oparasitismolegalfoiminha
primeiraespecialização,achavequemeabriuasportasdeLaPerricholi—sim,esteé
oridículonomequeacrioulaacompanhia—emeobteveasprimeiraspromoções.
Comonãoviria a seromais engenhoso enredadoroudestrinçadorde argumentos
jurídicos, aquelequedescobriu,desde suaprimeira auladedireito, que a chamada
legalidade é, em grandemedida, uma selva intricada onde os técnicos em tramas,
intrigas,formalismosecasuísmossemprefarãobomnegócio?Queessapro ssãonão
tem nada a ver com a verdade e a justiça, mas, exclusivamente, com so smas e
imbróglios impossíveis de desemaranhar? É verdade, trata-se de uma atividade
essencialmenteparasitária,queleveiacabocomadevidae ciênciaparachegaratéo
topo,massemnuncameenganar,conscientedeserumfurúnculoquesenutreda
faltadedefesa,davulnerabilidadeedaimpotênciadosoutros.Àdiferençadosenhor,
eunãopretendoserum“pilardasociedade”(inútilremetê-loaoquadrohomônimo
deGeorgesGrosz: o senhor não conhece esse artista ou, pior ainda, só o conhece
pelasesplêndidasbundasexpressionistasqueelepintou,enãopelasletaiscaricaturas
dos colegas do senhor na Alemanha deWeimar): sei o que sou e o que faço, e
desprezoessapartedemimmesmotantoquantoadesprezoemsuapessoa,ouaté
mais.Meusucessocomoadvogadoderivoudestaconstatação—dequeodireitoé
uma técnica amoral, vantajosaparao cínicoque adominamelhor—edeminha
descoberta,igualmenteprecoce,dequeemnossopaís(emtodosospaíses?)osistema
legal é uma teia de aranha de contradições, na qual, a cada lei ou disposição com
forçadelei,épossíveloporoutraououtrasqueareti cameanulam.Porisso,aqui
estamostodossempreviolandoalgumaleiedelinquindodealgummodocontraa
ordem (na realidade, o caos) legal.Graças a esse dédalo, o senhor se subdivide, se
multiplica, se reproduz e se reengendra, vertiginosamente. E graças a isso vivemos
nós,osadvogados,ealguns—meaculpa—prosperamos.
Pois bem, embora minha vida tenha sido um suplício deTântalo, uma luta
diáriaemoralentreolastroburocráticodeminhaexistênciaeosanjosedemônios
secretosdemeuser,osenhornãomevenceu.Sempreconseguimanter,anteaquilo
que fazia de segunda a sexta e de oito às seis da tarde, a ironia su ciente para
desprezar esse ofício e desprezar-mepor exercê-lo, demodo que as horas restantes
puderammedesagravar eme redimir,me compensar emehumanizar (o que, no
meu caso, sempre signi ca separar-me do rebanho ou da manada). Imagino a
comichãoqueopercorre,essacuriosidadebiliosacomqueosenhorsepergunta:“Eo
quefaznessasnoitesapontodeimunizar-secontramim,oqueosalvadeseroque
eusou?”Quersaber?Agoraqueestousozinho—separadodeminhamulher,quero
dizer—, leio, contemplominhas gravuras, releio e alimentomeus cadernos com
cartascomoesta,mas, sobretudo, fantasio, sonho,construoumarealidademelhor,
depuradadetodasasescóriaseexcrescências—osenhoresuababa—quetornama
existênciasinistraesórdidaobastanteparainduzir-nosadesejarumadiferente.(Falo
nopluralemearrependo;nãoserepetirá.)Nessaoutrarealidade,osenhornãoexiste.
Sóexistemamulherqueamoeamareisempre—aausenteLucrecia—,meu lho
Alfonsoealguns gurantesmóveisetransitórios,queaparecemcomofogos-fátuos,
pelotempodemeseremúteis.Sóquandoestounessemundo,nessacompanhia,é
queexisto,poisgozoesoufeliz.
Isto posto, essas migalhas de felicidade não seriam possíveis sem a imensa
frustração, o árido tédio e a acabrunhante rotina de minha vida real. Em outras
palavras,semumavidadesumanizadapelosenhoresemaquiloqueosenhortecee
destececontramim,apartirdetodasasengrenagensdopoderquedetém.Entende,
agora, por que o chamei, no princípio, de ummalnecessário? O senhor, o mais
perfeitoexemplodoestereótipoedolugar-comum,acreditavaqueeuoquali quei
assimporpensarqueumasociedadedevefuncionar,dispordeumaordem,deuma
legalidade,deserviços,deumaautoridade,paranãonaufragarnabalbúrdia.Eachava
que esse regulador, esse nó górdio, esse mecanismo salvador e organizador do
formigueiro, era o senhor, onecessário. Não, horrível amigo. Sem o senhor, a
sociedade funcionaria bem melhor do que agora. Mas, sem sua presença aqui,
emputecendo, envenenando e limitando a liberdade humana, esta não seria tão
apreciadapormim,nemminhaimaginaçãovoariatãoalto,nemmeusdesejosseriam
tãopujantes,poistudoissonascecomorebeldiacontraosenhor,comoreaçãodeum
serlivreesensívelcontraaquelequeéanegaçãodasensibilidadeedolivre-arbítrio.
Assim,vejasóporonde,atravésdequemeandros,conclui-seque,semosenhor,eu
seriamenoslivreesensível,meusdesejos,maispedestreseminhavida,maisoca.
Sei que tampouco entenderá isso, mas não importa, porque sobre esta carta
jamaispousarãoseusintumescidosolhosdebatráquio.
Euoamaldiçooelheagradeço,burocrata.
O sonho é vida
Banhadoemsuor,aindasemsairtotalmentedadelgadafronteiraemqueosonhoea
vigília semisturavam,donRigoberto continuoua verRosaura, vestidadepaletó e
gravata,cumprir suas instruções:ela seaproximoudobalcãoe se inclinousobreos
ombros nus da vistosa mulata que estivera procurando atraí-lo desde que os vira
entrarnessaboatedetransas.
EstavamnaCidadedoMéxico,não?Sim,depoisdeumasemanaemAcapulco,
fazendo uma escala em seu retorno a Lima, ao término dessas curtas férias. Don
Rigoberto tivera o capricho de disfarçar dona Lucrecia de homem e ir com ela,
vestidaassim,aumcabarédeputas.Rosaura-Lucreciacochichoualgocomamoça,
entresorrisos—donRigobertoviu-aapertarcomautoridadeobraçonudamulata,
que a tava comolhos espertos emaliciosos—, e nalmente a tirouparadançar.
Estavam tocandoummambodePérezPrado, claro—El ruletero—, e, na pista
estreita,fumacenta,lotada,desombrasfendidasemrajadasporumre etorcolorido,
donRigoberto aprovou:Rosaura-Lucrecia interpretavamuito bem seu papel.Não
parecia uma impostoranaquelas roupasmasculinas, nemdiferente como corte de
cabeloà lagarçonne, nemembaraçada ao conduzir suaparceiranosmomentos em
que,cansadasdefazer rulas,asduasseenlaçavam.Emcrescenteestadofebril,don
Rigoberto,cheiodeadmiraçãoegratidãoporsuamulher,tinhadesearriscaraum
torcicoloparanãoasperderdevista,emmeioatantascabeçaseombrosinterpostos.
Quandoaorquestra,desa nadamascontida,passoudomamboaobolero—Dosalmas,quelherecordouLeoMarini—,elesentiuqueosdeusesoacompanhavam.
ViuqueRosaura, interpretandoseudesejosecreto,estreitavade imediatoamulata,
passando-lhe os dois braços pela cintura e obrigando-a a apoiar os dela sobre seus
ombros.Embora,nameia-luz,nãopudesseenxergarcommuitaprecisão,tevecerteza
dequesuamulherzinhaadorada,ofalsovarão,haviacomeçadoabeijaremordiscar
deleveopescoçodamulata,esfregando-secontraoventreeosseiosdestacomoum
verdadeirocavaleiroesporeadopelaexcitação.
Jáestavadesperto,semamenordúvida,mas,apesardetertodososseussentidos
em alerta, percebeu que a mulata e Lucrecia-Rosaura continuavam ali, em meio
àquela noturna humanidade prostibular, naquele local estridente e truculento, de
mulheressarapintadascomoperiquitos,deancastropicais,eumaclientelamasculina
desujeitosbochechudos,bigodesescorridoseolharesdrogados:dispostosasacaras
pistolase semataremmutuamenteaomenordescuido?“Porestaexcursãoaosbas-fonds da noitemexicana, Rosaura e eu podemos perder a vida”, pensou, com um
calafrio feliz. E viu antecipadamente os títulos da imprensa marrom: “Duplo
assassinato: homem de negócios e sua esposa travestida degolados em casa de
encontrosmexicana”,“Oanzolfoiumamulata”,“Destruídospelovício”,“México:
casaldasociedadelimenhaédegoladoemzonademeretrício”,“Brancosdepravados
pagamcomsangueseusexcessos”.Regurgitouumarisadinha,comoumarroto:“Se
nosmataram,oqueimportaoescândaloaosnossosvermes?”
Voltouaolocalemquestão,ondecontinuavamdançandoamulataeRosaura,o
falso homem. Agora, para sua alegria, as duas se manuseavam descaradamente e
também se beijavam na boca. Mas como? As pro ssionais não se recusavam a
ofereceroslábiosaosseusclientes?Sim,masporacasohaviaobstáculoqueRosaura-
Lucrecianãopudessevencer?Comoconseguiraqueamulatonaabrisseabocarrade
grossos lábios rubros e recebesse a visita sutil de sua língua serpentina?Teria lhe
oferecidodinheiro?Teriaconseguidoexcitá-la?Nãoimportavacomo,oimportante
era que sua língua doce e branda, quase líquida, estava ali, na boca da mulata,
ensalivando-aeabsorvendoasaliva—queeleimaginouespessaeolorosa—daquela
mulherexuberante.
E,então,foidistraídopelapergunta:porqueRosaura?Rosauraeratambémum
nomedemulher.Se aquestão era camu á-lapor completo, comoelehavia feito,
cobrindoocorpodelacomroupasdehomem,seriapreferívelchamá-laCarlos,Juan,
Pedro, Nicanor. Por que Rosaura? Quase inconscientemente, don Rigoberto se
levantaradacama,en araroupãoechinelosesetransferiraparaseuescritório.Não
precisava consultar o relógio para saber que logo surgiriam nas trevas, como que
saindodomar,asluzinhasdoamanhecer.ConheciaalgumaRosauradecarneeosso?
Buscouefoicategórico:nenhuma.Era,portanto,umaRosauraimaginária,essaque,
emseusonho,vierasesuperporaLucreciaesefundircomela,estanoite,saídada
página esquecida de um romance ou de algum desenho, óleo, gravura, que ele
tampouco recordou. Em todo caso, o nome postiço continuava ali, colado a
Lucrecia,assimcomoaqueletrajemasculinocompradonessamesmatardeemuma
lojadaZonaRosa,entrerisosecochichos,depoisqueeleperguntouaLucreciaseela
concordariaemmaterializar sua fantasiaeela—“comosempre,comosempre”—
dissesim.Agora,Rosauraeraumnometãorealcomoessecasalzinhoque,debraço
dado—amulataeLucreciaeramquasedamesmaaltura—,haviaparadodedançar
eseaproximavadamesa.Levantou-separarecebê-lase,cerimonioso,estendeuamão
àmulata.
—Oi,oi,muitoprazer,sente-se.
—Estoumorrendodesede—disseamulata,abanando-secomasduasmãos.
—Vamospediralgumacoisa?
— O que você quiser, amorzinho — respondeu na mesma hora Rosaura-
Lucrecia,acariciando-lheoqueixoeacenandoparaumgarçom.—Peça,podepedir.
—Umagarrafadechampanhe—ordenouamulata,comumsorrisodetriunfo.
—VocêsechamamesmoRigoberto?Ouéseunomedeguerra?
—Écomoeumechamo.Nomezinhoesquisito,não?
— Esquisitíssimo— assentiu a mulata, tando-o como se em vez de olhos
tivesse dois tições chamejantes na cara redonda.— Bom, pelo menos é original.
Vocêtambémébastanteoriginal,verdade.Sabedeumacoisa?Eununcaviorelhas
nemnarizcomoosseus.NossaSenhora,sãoenormes!Possotocá-los?Deixa?
O pedido damulata— alta, ondulante, olhos incandescentes, pescoço longo,
ombros forteseumapelereluzentequesedestacavanovestidoamarelo-canáriode
amplodecote—deixoudonRigobertomudo,semânimoatépararespondercom
umgracejoaoquepareciaumpedidomuitosério.Lucrecia-Rosauraveiosocorrê-lo:
—Aindanão,amorzinho—disseàmulata,beliscando-lheaorelha.—Quando
estivermossozinhos,noquarto,vocêotocaráondequiser.
—Vamos car os três sozinhos em um quarto?— riu amulata, virando os
olhosdesedososcíliospostiços.—Obrigadapormeinformar.Eoqueeuvoufazer
sozinha comvocês,meus anjinhos?Não gostodenúmeros ímpares. Sintomuito.
Posso chamarumaamiga, e assim seremosdois casais.Eu sozinha comdois,nem
morta.
Mas,quandoogarçomtrouxeagarrafadoqueelechamavachampanhemasnão
passavadeumespumanteadocicadocomreminiscênciasdeterebintinaecânfora,a
mulata(chamava-seEstrella,disse)pareceuseanimarcomaideiadepassarorestoda
noite com aquela dupla desigual e fez gracejos, deu risadas e distribuiu amáveis
tapinhasentredonRigobertoeRosaura-Lucrecia.Devezemquando,comoquem
repeteumestribilho,voltavaamencionarzombeteiramente“asorelhaseonarizdo
moço”,olhando-oscomumafascinaçãoimpregnadademisteriosacobiça.
— Com orelhas assim, certamente se pode escutar mais do que as pessoas
normais—dizia.—E,comumnarizdesses,cheiraroqueocomumdoshomens
nãocheira.
“Provavelmente”, pensou don Rigoberto. E se fosse verdade? Se ele, graças à
magni cênciadessesórgãos,ouvisseefarejassemelhordoqueseuscongêneres?Não
lhe agradava o viés cômico que a história ia tomando — seu desejo, avivado
momento antes, decaía, e ele não conseguia reanimá-lo, pois, por culpa das
brincadeirasdeEstrella,suaatençãoseafastavadeLucrecia-Rosauraedamulatapara
seconcentraremseusdesproporcionaisapêndicesauditivoenasal.Tentouqueimar
etapas, passando por alto a negociação com Estrella que durou o tempo daquela
garrafadesupostochampanhe,ostrâmitesparaqueamulatasaíssedaboate—teve
depagarcinquentadólaresporuma cha—,otáxiapertadoesacolejante,oregistro
no hediondo motel —Cielito lindo, dizia na fachada o letreiro luminoso em
vermelhoeazul—eanegociaçãocomorecepcionistavesgo,quecutucavaonariz,
para que os deixasse ocupar um só quarto. Aplacar os temores do rapaz de que a
políciadesseumaincertaemultasseoestabelecimentoporalugarumdormitórioa
umtriocustouadonRigobertooutroscinquentadólares.
No exatomomento emque transpuseram a soleira e, sob a luz fraca daúnica
lâmpada,apareceuacamadecasalcobertacomumacolchaazuladaejuntodaqual
haviaumlavatório,umabaciacomágua,umatoalha,umrolodepapelhigiênicoe
umpenicodesbeiçado—ovesgoacabavadesair,entregando-lhesachaveefechando
aporta atrásde si—,donRigoberto recordou:Claro!Rosaura!Estrella!Aliviado,
deu um tapa na testa. Naturalmente! Esses nomes vinham daquela apresentação
madrilenhadeAvidaésonho,deCalderóndelaBarca.Emaisumavezsentiubrotar
nofundodocoração,comoumjatodeáguaclara,umternosentimentodegratidão
por essas profundezas da memória das quais inesgotavelmente estavam uindo
surpresas,imagens,fantasmas,sugestões,paradarcorpo,cenárioeenredoaossonhos
comqueelesedefendiadasolidão,daausênciadeLucrecia.
—Vamosnosdespir,Estrella—diziaRosaura, levantando-se, sentando-se.—
Vocêteráagrandesurpresadesuavida,portantoprepare-se.
—Sótiroaroupase,antes,tocaronarizeasorelhasdoseuamigo—retrucou
Estrella,agoramuitoséria.—Nãoseiporquê,masavontadedetocá-losestáme
comendoviva.
Destavez,donRigobertonãoseencolerizoueatésesentiulisonjeado.
Tratava-se de uma função a que dona Lucrecia e ele haviam assistido em um
teatrodeMadri,emsuaprimeiraviagemàEuropa,compoucosmesesdecasados,
uma montagem tão antiquada de A vida é sonho que até risos escancarados seouviramna escuridão da plateia, durante a peça.O atormagricela e espigado que
encarnava o príncipe Segismundo era tão ruim, tinha uma voz tão empolada e
parecia tão esmagado pelo papel que o espectador — “bom, este espectador”,matizou don Rigoberto— se sentia inclinado à benevolência para com o cruel e
supersticioso pai dele, o reiBasílio, por tê-lomantido acorrentado durante toda a
infânciaejuventude,comoanimalferoz,naquelatorresolitária,temerosodequese
cumprissemcomesse lho, se subisse ao trono,os cataclismosqueos astros e sua
ciênciamatemáticahaviamprevisto.Tudotinhasidopobre,pavorosoedesajeitado
naquela função. E, no entanto, don Rigoberto recordoumuito claramente que o
aparecimentodajovemRosaura,vestidadehomem,naprimeiracena,e,maistarde,
comespadaàcintura,prontaparaentrarembatalha,ocuparasuaalma.Agora,sim,
estavacertodehaversidovisitadodesdeentão,váriasvezes,pelatentaçãodeumdia
verLucreciaataviadacombotas,chapéuemplumado,casacadeguerreiro,nahorado
amor.Avidaésonho!Emboraaquelaapresentaçãotivessesidohorrível,seudiretor,
execrável,eosatores,pioresainda,aquelaatrizinhahavianãosóperduradoemsua
memória, como in amadomuitas vezes seus sentidos.Alémdisso, algonaobrao
intrigara,porque—alembrançaerainequívoca—oinduziualê-la,algumtempo
depois.Deviamterrestadoalgumasanotaçõessobreessaleitura.Engatinhandopelo
tapete do escritório, don Rigoberto consultou e descartou um caderno atrás do
outro.Estenão,estenão.Tinhadesereste.Esteeraoano.
—Jáestounua,benzinho—disseamulataEstrella.—Medeixepegardeuma
veznassuasorelhasenonariz.Nãosefaçaderogado.Nãomefaçasofrer,nãoseja
malvado.Nãovêqueestoumorrendodevontade?Medêessegosto,amorzinho,e
fareivocêfeliz.
Tinhaumcorpocheioeabundante,bemformado,emboraumtanto ácidono
ventre, seios esplêndidos, só um pouquinho caídos, e, nos quadris, rolinhos
renascentistas. Nem sequer parecia perceber que Rosaura-Lucrecia, que também
acabava de se despir e de se deitar na cama, não era um homem, mas uma bela
mulherdecontornosdelineados.Amulatasótinhaolhosparaele,oumelhor,para
suasorelhas e seunariz,que, agora—donRigoberto tinha se sentadonabeirada
camapara lhe facilitaraoperação—,acariciavacomavidez,comfúria.Seusdedos
ardentes massageavam, apertavam e beliscavam com desespero as orelhas dele,
primeiro,edepoisonariz.Ele fechouosolhos,angustiado,porqueadivinhouque
esses dedos em seu nariz não demorariam a lhe provocar um daqueles acessos de
alergiaquenãosedetinhamantesde—luxuriosacifra—sessentaenoveespirros.
Aquela aventuramexicana, inspirada emCalderónde laBarca, terminaria emuma
grotescasessãodedescontrolenasal.
Sim, ali estava—donRigobertoaproximouocadernoda luzdoabajur:uma
páginadecitaçõeseanotações,feitasàmedidaqueeleialendo,sobotítulo:Avidaésonho(1638).
Asduasprimeiras citações, tiradasdemonólogosdeSegismundo,provocaram-
lheoefeitodeduaschicotadas:“Nadameparecejusto/emsendocontrameugosto.”Eaoutra:“Eseiquesou/umcompostodehomemefera.”Haveriaumarelaçãodecausae
efeito entre asduas citaçõesque transcreveranaquelaocasião?Elemesmo seriaum
composto de homem e fera, porque nada que fosse contra seu gosto lhe parecia
justo?Talvez.Mas,quandoleraessaobra,depoisdaquelaviagem,nãoeraohomem
velho, cansado, solitário e abatido, a buscar desesperadamente refúgionas fantasias
para não enlouquecer ou suicidar-se, em que se transformara; era um cinquentão
afortunado, exuberante de vida, que, nos braços de sua segunda e esplendorosa
mulher,estavadescobrindoqueafelicidadeexistia,queerapossívelconstruir,juntoà
amada, uma cidadela singular, amuralhada contra a estupidez, a feiura, a
mediocridadeearotinadaquelaondepassavaorestododia.Porquehaviasentidoa
necessidadedetomaressasnotasaolerumaobraque,naquelaépoca,nãotinhanada
avercomsuasituaçãopessoal?Outinha?
—Eu,comumhomemarmadodeorelhasenarizassim,perderiaacabeçaeme
transformariaemsuaescrava—exclamouamulata,parandopararespirar.—Faria
todososseuscaprichos.Varreriaochãocomminhalíngua,paraele.
Estavasentadasobreoscalcanharesetinhaacaracongestionada,suarenta,como
seativessemantidoinclinadasobreumasopaemebulição.Todaelapareciavibrar.
Falavapassandogulosamentealínguapeloslábiosúmidoscomosquaisacabavade
beijocar,mordiscar e lamber interminavelmente os órgãos auditivos e olfativos de
donRigoberto.Este,aproveitandoapausa,tomouare,puxandoseulenço,enxugou
asorelhas.Depois,fazendomuitoruído,assoouonariz.
—Estehomemémeu,esóoemprestoavocêporestanoite—disseRosaura-
Lucrecia,comfirmeza.
—Masvocêéoproprietáriodestasmaravilhas?—perguntouEstrella,semdara
mínimaimportânciaaodiálogo.Suasmãosseapoderaramdorostojáalarmadode
donRigobertoesuagrossabocaavançoudenovo,resoluta,emdireçãoàssuaspresas.
— Você nem sequer percebeu? Eu não sou homem, sou uma mulher —
protestouRosaura-Lucrecia,exasperada.—Pelomenos,olheparamim.
Masamulataadesdenhou,comumlevemovimentodeombros,eprosseguiu
fogosamente sua tarefa.Tinha dentro da bocarra quente a orelha esquerda de don
Rigoberto,eeste,incapazdeseconter,soltouumagargalhadahistérica.Naverdade,
estavamuitonervoso.Pressentiaque,aqualquermomento,Estrellapassariadoamor
aoódioelhearrancariaaorelhacomumadentada.“Desorelhado,Lucreciajánãome
amará”, entristeceu-se. Deu um suspiro profundo, cavernoso, tétrico, semelhante
àqueles que o príncipe Segismundo, barbudo e acorrentado, dava em sua torre
secreta, enquanto perguntava aos céus, com gritos desatinados, que delito havia
cometidocontravósporternascido.“Essa pergunta é estúpida”, disse a si mesmo don Rigoberto. Sempre havia
desprezadoo esporte sul-americanoda autocompaixão e, sob tal pontode vista, o
príncipechoraminguentodeCalderóndelaBarca(umjesuíta,aindaporcima),que
se apresentava aopúblico gemendo “Aimísero demim, ai infeliz”, não tinha nadaparaatraí-lonemparafazê-loseidenti carcomele.Porqueentão,nosonho,seus
fantasmas haviam estruturado essa história tomando de empréstimo os nomes de
Rosaura e de Estrella, assim como o disfarcemasculino daquela personagem deAvidaésonho?Talvezporquesuavidasetransformaraempurosonho,desdeapartida
deLucrecia.Poracasoviviaaquelashorassombrias,opacas,quepassavanotrabalho
discutindobalanços,apólices,resseguros,avaliações,investimentos?Oúnicorecanto
devidasólheeratrazidopelanoite,quandoadormeciaeemsuaconsciênciaaporta
dossonhosseabria,comodeviatambémaconteceraSegismundoemsuadesolada
torredepedra,naquelebosquedistante.Eletambémhaviadescobertoaliqueavida
verdadeira,arica,aesplêndidavidaquesesubmetiaeseamoldavaaosseuscaprichos,
eraavidadementira,aquelaquesuamenteeseusdesejossecretavam—despertoou
adormecido—,paraarrancá-lodacelaefazê-loescaparàasfixiantemonotoniadeseu
con namento. A nal, o inesperado sonho não era gratuito: havia um parentesco,
umaafinidadeentreosdoismiseráveissonhadores.
Don Rigoberto recordou um chiste em diminutivos que, de tão bobo, zera
Lucreciaeeleriremcomoduascrianças:“Umelefantinhoseaproximoudamargem
deum laguinhoparabeberaguinhaeumcrocodilinhoomordeue lhearrancoua
trombinha. Choramingando, o elefantinho de nariz chatinho protestava: ‘Seu
engraçadinhodemerdinha.’”
—Soltemeunariz e eu lhedouoquevocêquiser— implorou, aterrorizado,
com voz fanhosa, tipoCantin as, porque os dentinhos carniceiros de Estrella lhe
obturavamarespiração.—Odinheiroquevocêpedir.Mesolte,porfavor!
—Caleaboca,queeuestougozando—balbuciouamulata,soltandoonarizde
donRigoberto por um segundo e voltando a capturá-lo com sua dupla leira de
dentesvorazes.
Hipogrifo violento, ela gozava e voava como o vento, estremecendo-se toda,
enquanto don Rigoberto, invadido pelo pânico, via pelo rabinho do olho que
Rosaura-Lucrecia, a ita, desconcertada, meio soerguida na cama, havia segurado a
mulata pela cintura e tentava afastá-la com suavidade, sem forçar, sem dúvida
temendoque,seapuxasse,Estrella,emrepresália,arrancassecomosdentesonariz
do seu esposo. Assim caram um bom tempo, dóceis, enganchados, enquanto a
mulata se encabritava e gemia, lambendo desenfreada o apêndice nasal de don
Rigoberto e este, emmeio a névoas angustiosas, recordava o monstro de Bacon,
Cabeçadehomem,óleoapavorantequedurantemuito tempoodeixaraobsedado,
agorasabiaporquê:assimodeixariamasfaucesdeEstrella,depoisdamordida.O
queoaterrorizavanãoerasuafacemutilada,masumapergunta:Lucreciacontinuaria
amandoummaridodesorelhadoedesnarigado?Ouoabandonaria?
DonRigobertoleuemseucadernoestefragmento:
oquefoiissoqueàminhafantasiaocorreuquandoeudormiaemetrouxeatéaqui?
Segismundoo recitava aodespertardo sonho arti cial emque (medianteuma
misturadeópio,dormideiraemeimendro)forasubmergidopeloreiBasílioepelo
velho Clotaldo, os quais lhe montavam uma farsa ignóbil, trasladando-o de sua
torre-prisãoaté a corte,para fazê-lo reinarporumbreve lapso, fazendo-o também
crer que essa transição era igualmente um sonho. “Oque aconteceu à sua fantasia
enquantovocêdormia,pobrepríncipe”,pensou,“équeoadormecerameomataram
comdrogas.Devolveram-noporumtempinhoàsuaverdadeiracondição,fazendo-o
acreditarquesonhava.Então,vocêtomouas liberdadesqueapessoatomaquando
gozada impunidadedos sonhos.Deu rédea solta aos seus desejos, arremessouum
homemdobalcão,quasematouovelhoClotaldoeopróprioreiBasílio.Assim,eles
tiveramopretextonecessário—vocêeraviolento,erairascível,eraindigno—para
devolvê-loàscorrenteseàsolidãodesuaprisão.”Apesardisso,invejouSegismundo.
Tambémele,comoodesditosopríncipecondenadopelamatemáticaepelasestrelas
aviver sonhandoparanãomorrerdecon namentoe solidão,eraaquiloquehavia
anotadonocaderno:“umesqueletovivo”,“umanimadomorto”.Mas,àdiferença
daquelepríncipe,nenhumreiBasílio,nenhumnobreClotaldoviriamtirá-lodeseu
abandono e de sua solidão, para, depois de adormecê-lo com ópio, dormideira e
meimendro, despertá-lo nos braços de Lucrecia. “Lucrecia, minha Lucrecia”,
suspirou, percebendo que estava chorando. Como se tornara chorão neste último
ano!
Estrella também lacrimejava,mas de alegria e felicidade.Após o estertor nal,
duranteoqualdonRigobertosentiuumasacudidelasimultâneaemtodososfeixes
denervosdeseucorpo,abriuaboca, soltouonarizdelee sedeixoucairdecostas
sobreacamaforradadeazul,comumadesarmanteebeataexclamação:“Gozeique
foi uma delícia, Virgem santa!” E, agradecida, benzeu-se sem o menor ânimo
sacrílego.
—Você pode ter achado uma delícia, certo,masme deixou semnariz e sem
orelhas,suadelinquente—reclamoudonRigoberto.
TinhaabsolutacertezadequeascaríciasdeEstrellahaviamdeixadosuacaraigual
àdaquelepersonagemvegetaldeArcimboldoqueexibia comonarizuma tuberosa
cenoura.Comumcrescente sentimentodehumilhação,notou,porentreosdedos
comosquaisesfregavaseunarizmachucado,queRosaura-Lucrecia, semumpingo
de compaixão nem preocupação por ele, tava a mulata (que se espreguiçava,
aplacada, sobre a cama) comcuriosidade,um sorrisinho comprazido utuandono
rosto.
—Eédissoquevocêgostanoshomens,Estrella?—perguntouela.
Amulataassentiu.
— A única coisa de que eu gosto— especi cou, suspirando e soltando um
bafejodenso,vegetal.—Oresto,podembotarondeosolnãoilumina.Geralmente
eume contenho e escondo isso, por causa do que vão dizer.Mas, esta noite,me
soltei.Porquenuncaviumasorelhaseumnarizcomoosdoseuhomem.Vocêsme
deixaramconfiante,franguinha.
ExaminouLucreciadealtoabaixocomolhardeconhecedoraepareceuaprová-
la.Estendeuumadasmãos,colocouo indicadornomamiloesquerdodeRosaura-
Lucrecia—donRigobertoacreditouverqueobotãozinhofendidodesuamulherse
endurecia—edisse,comumarisadinha:
—Descobriquevocêémulherquandoestávamosdançando,naboate.Sentiseus
peitinhosemedeicontadequevocênãosabiaconduzirsuaparceira.Fuieuquea
conduzi,enãoocontrário.
—Poisdissimuloumuitobem,euacheiquehaviaenganadovocê—felicitou-a
donaLucrecia.
Sempre esfregando o nariz acariciado e as orelhas ressentidas, don Rigoberto
sentiuumanovaondadeadmiraçãoporsuamulher.Comoelapodiaserversátile
adaptável!EraaprimeiravezemsuavidaqueLucreciafaziacoisasassim—vestir-se
dehomem,iraumrelescabarédeputasemumpaísestrangeiro,meter-seemum
hotel vagabundo com uma dessas sujeitinhas —, e, no entanto, não denotava o
menor incômodo, desassossego ou aborrecimento. Ali estava, conversando
descontraída com a mulata otorrinolaringologista, como se fosse igual a ela, dos
mesmos ambiente e pro ssão. Pareciam duas boas colegas, trocando experiências
duranteummomentodefolgaemsuaatarefadajornada.Ecomoerabela,comolhe
pareciadesejável!ParasaborearesseespetáculodesuamulhernuajuntodeEstrella,
nessetoscoenxergãodecolchaazulada,nameia-luzoleosa,donRigobertofechouos
olhos. Ela estava reclinada de lado, o rosto apoiado na mão esquerda, em um
abandono que realçava a deliciosa espontaneidade de sua postura. Sua pele parecia
muito mais branca nessa luz pobre, seus cabelos curtos, muito mais negros, e o
tu nhodopúbis,azuladodetãoretinto.Enquanto,apaixonadamente,acompanhava
ossuavesmeandrosdascoxasedodorsodesuaamada,elheescalavaasnádegas,os
seios e os ombros, donRigoberto foi esquecendo suas orelhas doloridas, seunariz
maltratado,etambémEstrella,ohotelzinhoordinárioondesehaviamrefugiadoea
CidadedoMéxico:ocorpodeLucreciafoicolonizandosuaconsciência,deslocando,
eliminandoqualqueroutraimagem,consideraçãooupreocupação.
NemRosaura-Lucrecia nemEstrella pareciamnotar—ou, talvez, não dessem
importânciaao fato—queele,maquinalmente, fora tirandoagravata,opaletó,a
camisa,ossapatos,asmeias,acalçaeacueca,lançandocadapeçaaoavariadochãode
linóleoesverdeado.Nãolheprestaramatençãonemsequerquando,dejoelhosaopé
dacama,elecomeçouaacariciarcomasmãoseabeijarrespeitosamenteaspernasde
suamulher. Continuaram absorvidas em suas con dências e fofocas, indiferentes,
comosenãoovissem,comoseofantasmafosseele.
“Esou”,re etiu,abrindoosolhos.Aexcitaçãocontinuavaali,golpeando-lheas
pernas, já semmuita convicção, comoumbadalo enferrujadoquegolpeiaovelho
sinodesa nadopelotempoepelarotinadeumaigrejinhasemparoquianos,sema
menoralegrianemdecisão.
E, então, amemória lhe devolveu o profundo desagrado— o gosto ruim na
boca,naverdade—deixadonelepelo nalcortesão,abjetamenteservilaoprincípio
de autoridade e à imoral razão de Estado, daquela obra de Calderón de la Barca,
quando,aosoldadoqueinicioucontraoreiBasílioarebeliãograçasàqualopríncipe
Segismundo consegue ocupar o trono da Polônia, o novo rei, mal-agradecido e
canalha, impõe a pena de apodrecer pelo resto da vida na torre onde ele mesmo
padecera, sob o argumento— o caderno reproduzia os versos pavorosos— “do
traidornãohánecessidade/sendoatraiçãopassada”.“Filosofiahorrenda,moralrepugnante”,refletiu,esquecendotransitoriamentesua
bela mulher despida, a quem, no entanto, continuava a acariciar de maneira
maquinal. “Por ser conveniente defender acima de tudo a obediência à autoridade
constituída,condenaroprincípioeaprópriaideiaderebeldiacontraorei,opríncipe
perdoaBasílioeClotaldo,seusopressoresetorturadores,ecastigaovalentesoldado
anônimoque insu oua tropacontrao injustomonarca, tirouSegismundode sua
masmorraeocolocounotrono.Quenojo!”
Por acaso uma obra envenenada por essa doutrina desumana, inimiga da
liberdade, merecia ocupar e alimentar seus sonhos, preencher seus desejos? No
entanto,tinhadeexistiralgumarazãoparaque,nessanoite,seusfantasmastomassem
posse tão completa e exclusiva de seu sonho.Voltou a examinar os cadernos, em
buscadeumaexplicação.
O velho Clotaldo chamava a pistola de “serpente de metal”, e a disfarçada
Rosauraseperguntava“seavistanãopadeceenganos/criadospelafantasia,/àmedrosaluzqueainda temodia”.DonRigoberto olhounadireçãodomar.Ao longe, na
linhadohorizonte,umamedrosa luzanunciavaonovodia,aquela luzque,acada
manhã,destruíaviolentamenteseupequenomundodeilusãoesombrasondeeleera
feliz(feliz?Não:ondeeraapenasumpoucomenosdesditoso)eodevolviaàrotina
carceráriadecincodiasporsemana(chuveiro,desjejum,trabalho,almoço,trabalho,
jantar), em quemal lhe restava uma brecha para ltrar suas invenções.Havia uns
versinhosanotados,comumaindicaçãoàmargemquedizia“Lucrecia”eumasetinha
assinalando-os: “...mesclando,/ aos trajes custosos deDiana, os arneses/ de Palas.” Acaçadora e a guerreira, confundidas em sua amada Lucrecia. Por que não? Mas,
evidentemente, não era isso o que havia incrustado a história do príncipe
Segismundonofundodeseusubconsciente,nemoqueatinhaatualizadoemsuas
fantasiasdestanoite.Oquê,então?
“Nãoépossívelquecaibam/emumsonhotantascoisas”,assombrava-seopríncipe.
“Vocêéumidiota”,replicou-lhedonRigoberto.“Emumúnicosonhocabetodaa
vida.”Emocionou-secomarespostadeSegismundo,aosertransferido,soboefeito
da droga, de seu cárcere ao palácio, quando lhe perguntavam o que mais o
impressionara ao retornar ao mundo: “Nada me fez enlevado/ pois tudo eu tinhaantecipado; mas se para admirar-me houvesse porventura/ algo no mundo, seria aformosura/damulher.”“EissosemnuncatervistoLucrecia”,pensou.Eleaviaagora,
esplêndida,sobrenatural,derramadanaquelacolchaazul,ronronandodelicadamente
com as cócegas que seu amorosomarido lhe fazia ao beijá-la nas axilas. A amável
Estrellahavia se levantado,cedendoadonRigobertoo lugarqueocupavanacama
juntodeRosaura-Lucrecia,eforasesentarnocantoondedonRigobertoestavaantes,
quandoelaseafanavacomasorelhaseonarizdele.Mantinha-sediscretaeimóvel,
semquererdistraí-losneminterrompê-los,eosobservavacomcuriosidadesimpática,
enquantoosdoisseabraçavam,seentrelaçavamecomeçavamaseamar.
Oqueéavida?Umfrenesi.Oqueéavida?Umailusão,umasombra,umaficção,eomaiorbemébisonho;poistodaavidaéumsonho,eossonhos,sonhossão.
“Mentira”,disseeleemvozalta,golpeandoamesadoescritório.Avidanãoera
umsonho,ossonhoseramumamentiradébil,umembustefugazquesóserviapara
escapar transitoriamente das frustrações e da solidão, e paramelhor apreciar, com
amarguramaisdolorosa,comoerabelaesubstancialavidaverdadeira,aquelaemque
secomia,setocavaesebebia,tãosuperioreplenaquandocomparadaaosimulacro
que,conjurados,osdesejoseafantasiamimetizavam.Abatidopelaangústia—jáera
dia, a luz do amanhecer revelava as escarpas cinzentas, omar plúmbeo, as nuvens
pançudas,amuretaarruinadaeocalçamentoleproso—,agarrou-seaocorponude
Lucrecia-Rosaura,comdesespero,paraaproveitaressesúltimossegundos,embusca
de um prazer impossível, com o pressentimento grotesco de que a qualquer
momento,talveznodoêxtase,sentiriaaterrissaremsobresuasorelhasassúbitasmãos
damulata.
A víbora e a lampreia
Pensandoemti,liAperfeitacasada,defreiLuisdeLeón,eentendiporque,dadaaideiadematrimônioquepregava,aquelere nadopoetapreferiu,aoleitonupcial,a
abstinência e os hábitos agostinianos. Contudo, nessas páginas de boa prosa, e
exuberantes de comicidade involuntária, encontrei esta citação do bem-aventurado
São Basílio que se encaixa como uma luva, adivinha em que mão marfínea de
mulherexcepcional,esposamodeloeamantesaudosíssima?:
Avíbora,animalferocíssimoentreasserpentes,vaidiligentecasar-secomalampreiamarinha;aochegar,silva,comoseavisassequeestáali,paradestamaneiraatraí-ladomar e fazê-la abraçar-se maritalmente com ela. A lampreia obedece e junta-se semmedoàpeçonhentafera.Oquedigocomisto?Oquê?Que,pormaisásperoedemaisferascondiçõesqueomaridoseja,énecessárioqueamulherosuporte,eemnenhuma
ocasião consinta em romper a paz.Oh!Ele é um verdugo?Mas é teumarido!É umbêbado?Masolaçomatrimonialfê-loumcontigo.Umáspero,umdesaprazível!Masjámembroteu,emembroomaisprincipal.E,paraqueomaridoouçaoquetambémlheconvém:avíboraentão,porrespeitoaoajuntamentoquefaz,apartadesisuapeçonha,etunãodeixarásacruezadesumanadeteunatural,porhonradomatrimônio?IstoédeBasílio.
FreiLuisdeLeón,
Aperfeitacasada,cap.III.
Abraça-temaritalmentecomestavíbora,lampreiaamadíssima.
7AlusãoàobradoespanholFranciscoDelicadoRetratode la lozanaandaluza(1528),nãomuitoconhecida,
masconsideradaprecursoradoromancepicaresco.(N.daT.)
Epílogo
Uma família felizEpílogo - Uma família feliz
—A nal,essepiqueniquenãofoitãodesastrosoassim—dissedonRigoberto,com
umsorrisoamplo.—Serviuparaaprendermosumalição:emcasa,fica-semelhordo
queemqualquerlugar.E,sobretudo,melhordoquenocampo.
DonaLucreciaeFonchitocelebraramocomentário,eatéJustiniana,quenesse
momentotraziaossanduíchesdefrango,abacate,ovoetomateaque carareduzido
oalmoçoporculpadopiqueniquefrustrado,tambémcomeçouarir.
— Agora sei o que signi ca pensar positivo, maridinho — felicitou-o dona
Lucrecia.—Eteratitudesconstrutivasdiantedaadversidade.
—Fazerdolimãoumalimonada—reforçouFonchito.—Istomesmo,papai!
—Éque,hoje,nadanemninguémpodeofuscarminha felicidade—assentiu
don Rigoberto, dando uma olhada nos sanduíches.—Não digo um piquenique
miserável.Nemmesmoumabombaatômicameafetaria.Bem,saúde!
Bebeu um gole de cerveja fria com visível satisfação e deu uma mordida no
sanduíchede frango.OsoldeChaclacayo lhequeimaraa testa, a cara eosbraços,
avermelhadospela insolação.De fato,mostrava-semuitocontente,desfrutandodo
almoçoimprovisado.Deletinhavindoaideia,nanoiteanterior,deumpiquenique
em Chaclacayo, nesse domingo, para fugir da neblina e da umidade de Lima e
desfrutardobomtempoemcontatocomanatureza, àbeirado rio e em família.
DonaLucreciaestranhoubastanteessaproposta,poisrecordavaosantohorrorqueo
universo campestre sempre despertara em seumarido,mas aceitou de bomgrado.
Não estavam estreando uma segunda lua de mel? Estreariam, também, novos
hábitos.Partiramdemanhã,nahoraprevista—nove—,equipadoscomumaboa
provisãodebebidaseumalmoçocompleto,preparadopelacozinheira,que incluía
alfajorescommanjar-branco,asobremesapreferidadedonRigoberto.
Aprimeiracoisaquedeuerradofoiarodoviadocentro,lotadaatalpontoqueo
avançoeralentíssimo,eissoquandoavançavam,entrecaminhões,ônibusetodotipo
deveículosdesconjuntadosque,alémdeengarrafaraestradaedeparalisarotráfego
por longos intervalos, soltavampelo escapamentoabertouma fumaça enegrecida e
umfedordegasolinaqueimadaqueestonteavam.ChegaramaChaclacayodepoisdo
meio-dia,exaustosecongestionados.
Encontrar um lugar adequado, junto ao rio, revelou-se mais árduo do que
haviam imaginado. Antes de tomar o atalho que os aproximaria da margem do
Rímac—quenessaalturanãoeracomoemLima,pareciaumriodeverdade,largo,
cheio de água, decorado de espuma e ondinhas saltitantes nos pontos onde batia
contraaspedraseosrochedos—,tiveramdedarvoltasemaisvoltasquesempreos
devolviamàmaldita estrada.Quando, graças à ajudadeummorador compassivo,
descobriramumdesvioqueos levouaté amargem, emvezdemelhorar, as coisas
pioraram. Nesse lugar, o Rímac servia de lixão à vizinhança (assim como de
mijadouro e cagatório), a qual havia lançado ali todos os refugos imagináveis—
desde papéis, latas e garrafas vazias, até restos de comida, excrementos e animais
mortos—, demodo que, alémda vista deprimente, uma insuportável hediondez
maculavaaárea.Nuvensdemoscasagressivasosobrigaramataparasbocascomas
mãos. Nada disso parecia combinar com a bucólica expedição esperada por don
Rigoberto. Este, no entanto, armado de uma paciência indestrutível e de um
otimismodecruzadoquemaravilhavamsuamulhereseu lho,persuadiuafamíliaa
nãosedeixarabalarpelascasuaiscircunstâncias.Continuaramprocurando.
Quando, um bom tempo depois, pareceu que chegavam a um lugar mais
hospitaleiro—ouseja,desprovidodefedoresmefíticosedemonturo—,oespaço
jáestavatomadoporincontáveisgruposfamiliaresque,algunsembaixodebarracas
de praia, comiam talharins lambuzados comummolho avermelhado e escutavam
música tropical, a todo o volume, em rádios e toca- tas portáteis. O erro que
cometeramnessahora foide exclusiva responsabilidadededonRigoberto, embora
inspirado nomais legítimo dos desejos: embusca de ummínimo de privacidade,
afastar-seumpoucodamultidãodecomedoresdemassa,paraosquais,pelovisto,
era inconcebível sair da cidade por algumas horas sem levar consigo esse produto
urbanoporantonomásiaqueéoruído.DonRigobertoacreditouterencontradoa
solução.Comoumescoteiro,propôsque,tirandoossapatosearregaçandoacalça,
atravessassemum trecho de rio em direção ao que parecia umaminúscula ilha de
areia,cascalhoeesboçosdemato,aqual,miraculosamente,nãoestavaocupadapela
numerosacoletividadedomingueira.Assim zeram.Oumelhor,começaramafazer,
carregandoassacolasdecomidaebebidapreparadaspelacozinheiraparaaexcursão
campestre. A poucosmetros da idílica ilhota, don Rigoberto escorregou em uma
formacartilaginosa.CaiusentadonasfrescaságuasdorioRímac,oque,emsi,não
teriaimportância,considerando-seocalorquefaziaeotantoqueelesuava,se,junto
comsuapessoa,nãotivessetambémnaufragadoacestadopiquenique,aqual,para
acrescentarumtoquedecomicidadeaoacidente,antesdeirrepousarnoleitodorio
esparramou-setoda,espalhandoàdireitaeàesquerdadasturbulentaságuas,quejáos
arrastavamemdireçãoaLimaeaooceanoPací co,opicanteceviche,oarrozcom
pato e os alfajores com manjar-branco, assim como a primorosa toalha e os
guardanapos quadriculadinhos em vermelho e branco que dona Lucrecia havia
escolhidoparaopiquenique.
—Podemrir,semproblema,nãoprecisamsesegurar,eunãovoumeaborrecer
—diziadonRigobertoàesposaeao lho,osquais,ajudando-oaselevantar,faziam
umas caretas grotescas e tentavam sofrear as gargalhadas. As pessoas da margem
tambémriam,aovê-loencharcadodospésàcabeça.
Dispostoaoheroísmo(pelaprimeiravezemsuavida?),donRigoberto sugeriu
perseverare car,alegandoqueosoldeChaclacayoosecariaemtrêstempos.Dona
Lucreciafoitaxativa.Dejeitonenhum,elepodiapegarumapneumonia,tinhamde
retornaraLima.Eo zeram,derrotados,embora semcederaodesespero.E rindo
carinhosamentedopobredonRigoberto,quehaviatiradoacalçaedirigiadecueca.
ChegaramàcasadeBarrancoporvoltadascincodatarde.EnquantodonRigoberto
tomavabanhoetrocavaderoupa,donaLucrecia,ajudadaporJustiniana,queacabava
devoltardesuafolgasemanal—omordomoeacozinheirasóretornariamànoite
—, preparou os sanduíches de frango com abacate, tomate e ovo desse tardio e
acidentadoalmoço.
—Desdequefezaspazescomminhamadrasta,vocêficoumuitobom,papai.
DonRigobertoafastouabocadosanduíchemeiocomido.Pensouumpouco.
—Estáfalandosério?
—Muitosério—replicouomenino,virando-separadonaLucrecia.—Nãoé
verdade,madrasta?Fazdoisdiasqueelenãoresmunganemsequeixadenada,estáde
bomhumoredizendocoisasbonitasotempotodo.Issonãoéserbom?
—Sóestamosreconciliadoshádoisdias—riudonaLucrecia.Mas, candoséria
e tando seu marido com ternura, acrescentou: — Na realidade, ele sempre foi
boníssimo.Vocêdemorouumpoucoaperceber,Fonchito.
—Não sei seme agrada queme chamem de bom— reagiu nalmente don
Rigoberto, adotando uma expressão descon ada. — Todas as pessoas boas que
conheci eram um pouco imbecis. Como se tivessem cado boas por falta de
imaginação e de apetites. Espero que, por me sentir contente, eu não esteja me
tornandomaisimbecildoquesou.
—Nãoháperigo.—AsenhoraLucreciaaproximouorostododeseumaridoe
obeijounatesta.—Vocêétudonomundo,menosisso.
Estavamuitobonita,comasfacesarrebatadaspelosoldeChaclacayo,ombrose
braçosnus,naquelelevevestido orido,depercal,quelhedavaumaaparênciafresca
esaudável.“Comoestábonita,rejuvenescida”,pensoudonRigoberto,deleitando-se
comoespigadopescoçodesuamulherecomagraciosacurvadeumadasorelhas,na
qualseenroscavaumamechasoltadoscabelos,presosnanucaporuma taamarela,
amesmadas sapatilhasdopasseio.Onze anos tinham sepassado e ela estavamais
jovemeatraentedoquenodiaemqueeleaconhecera.Eondesere etiammaisessa
saúdeeessabeleza físicaquedesa avamacronologia?“Nosolhos”, respondeua si
mesmo.Essesolhosquemudavamdecor,deumcastanho-claroaumverde-escuro,
a um suave negro. Agora, pareciam muito claros sob os longos cílios escuros, e
animadosporumaluzalegre,quasecintilante.Semperceberacontemplaçãodeque
eraobjeto,suamulherdavacontacomapetitedosegundosanduíchedeabacatecom
tomateeovo,edevezemquandobebiaunsgolinhosdecervejafriaquedeixavam
úmidos os seus lábios. Era a felicidade, esta sensação que o embargava? Esta
admiração,estagratidão,estedesejoquesentiaporLucrecia?Sim.Comtodasassuas
forças,donRigobertodesejouquevoassemashorasquefaltavamparaoanoitecer.
Mais uma vez, estariam sozinhos e ele teria nos braços sua adorávelmulherzinha,
finalmenteaqui,emcarneeosso.
—AúnicacoisaemqueàsvezesnãomesintotãoparecidocomEgonSchieleé
queelegostavamuitodocampoeeu,nada—disseFonchito,prosseguindoemvoz
altaumare exão iniciadaemsilênciohavia tempo.—Nisso,puxei avocê,papai.
Tambémnãogostonemumpoucodeficaradmirandoárvoresevaquinhas.
—Porissoopiqueniquedeucomosburrosn’água— losofoudonRigoberto.
—Uma vingança da natureza contra dois inimigos.O que você dissemesmo de
EgonSchiele?
—Queaúnicacoisaemquenãomepareçocomeleénessacoisadocampo,ele
gostava e eu não— explicou Fonchito.— Pagou caro por seu amor à natureza.
Chegouaserpresoepassouummêsnacadeia,ondequaseenlouqueceu.Setivesse
ficadoemViena,issonuncateriaacontecido.
—ComovocêestábeminformadosobreavidadeEgonSchiele,Fonchito!—
surpreendeu-sedonRigoberto.
—Você nem imagina quanto— interrompeu dona Lucrecia.—Sabe de cor
tudooque ele fez,disse, escreveu, tudooque lhe aconteceu em seus vinte eoito
anosdevida.Conhecetodososquadros,desenhosegravuras,comtítulosedatas.E
atéseacreditaumEgonSchielereencarnado.Euchegoameassustar,juro.
Don Rigoberto não riu. Limitou-se a assentir, como que ponderando essa
informação com o maior cuidado, mas, na verdade, dissimulando o súbito
aparecimento em suamentedeumaminhoquinha,uma estúpida curiosidade, essa
mãe de todos os vícios. Como Lucrecia havia tomado conhecimento de que
Fonchito sabia tantas coisas sobre Egon Schiele? “Schiele!”, pensou. “Variante
extraviada do expressionismo, a quem Oscar Kokoschka chamava, com toda a
justiça,depornógrafo.”Descobriu-sepossuídoporumódiovisceral,ácido,bilioso,
contraEgonSchiele.Benditaagripeespanholaqueolevou!DeondeLucreciasabia
que Fonchito se acreditava aquele rabiscador abortado pelos últimos vagidos do
impérioaustro-húngaro,sobreoqual,tambémemboahora,oalçapãosefechara?O
pioreraque,inconscientedeestarafundandonaságuaspútridasdaautodelação,dona
Lucreciacontinuavaatorturá-lo:
—Estou contente por tocarmos neste assunto, Rigoberto. Faz tempo que eu
queria lhe falar disso, até pensei em lhe escrever. Andomuito preocupada com a
maniadestemeninoporessepintor.Sim,Fonchito.Porquenãoconversamos,os
três?Quemmelhordoqueseupaiparalhedarconselhos?Eujálhedisseváriasvezes.
NãoéquemepareçaruimessasuapaixãoporEgonSchiele.Masvocêestá cando
obsessivo.Nãoseimportasenóstrêstrocarmosumasideias,nãoé?
—Achoqueopapainãoestásesentindobem,madrasta—limitou-seFonchito
a dizer, com uma candura que don Rigoberto entendeu como uma afronta
suplementar.
—MeuDeus,comovocêestápálido.Viu?Euavisei,aquelaencharcadanorio
lhefezmal.
—Nãoénada,nãoénada—dissedonRigoberto, comumavozinhadifusa,
para tranquilizar sua mulher. — Um pedaço grande demais, e engasguei. Um
ossinho,acho.Pronto,jáengoli.Estoubem,nãosepreocupe.
—Masestátodotrêmulo—alarmou-sedonaLucrecia,tocandoatestadele.—
Vocêseresfriou,claro.Umchazinhodecapim-limãoeduasaspirinas,agoramesmo.
Voupreparar.Não,nãoproteste.Edepois,cama,semchiar.
NemsequerapalavracamareanimouumpoucodonRigoberto,que,empoucos
minutos, havia passado da alegria e do entusiasmo vitais a umdesânimo confuso.
Viu que dona Lucrecia se afastava às pressas rumo à cozinha. Como o olhar
transparentedeFonchitooincomodava,disse,paraquebrarosilêncio:
—Schieleestevepresoporteridoaocampo?
—Porteridoaocampo,não,queideia—respondeuseu lho,comumarisada.
— Foi acusado de imoralidade e sedução. Em uma aldeiazinha chamada
Neulengbach.IssonuncateriaacontecidoseeleficasseemViena.
— Ah, é? Me conte— convidou don Rigoberto, consciente de que tentava
ganhar tempo, embora não soubesse para quê. Em vez do glorioso e ensolarado
esplendor dos últimos dois dias, seu estado de espírito, nestemomento, era uma
calamidade com aguaceiros, raios e trovões. Apelando para um recurso que havia
funcionado outras vezes, tentou se acalmar enumerando mentalmente guras
mitológicas.Ciclopes,sereias,lestrigões,lotófagos,circes,calipsos.Aíficou.Tinhaacontecidonaprimaverade1912;nomêsdeabril,exatamente,explicava
omeninocomloquacidade.EgonesuaamanteWally(umapelido,elasechamava
ValeriaNeuzil) estavam empleno campo, emuma casinha alugada, nos arredores
dessaaldeiadifícildepronunciar.Neulengbach.Egoncostumavapintaraoar livre,
aproveitando o tempo bom. E, uma tarde, apareceu por ali uma mocinha,
procurando conversa. Conversaram e não aconteceu nada. A garota voltou várias
vezes.Atéque,emumanoitedetemporal,chegouensopadaeanunciouaWallye
Egon que havia fugido da casa dos pais. Eles tentaram convencê-la, você fezmal,
volte para casa, e ela, não, não,medeixempelomenos passar a noite com vocês.
Concordaram.AgarotadormiucomWally;EgonSchiele,emoutroquarto.Nodia
seguinte... mas o retorno de dona Lucrecia, trazendo uma infusão fumegante de
capim-limão eduas aspirinas, interrompeu anarraçãodeFonchito, que, aliás, don
Rigobertomalescutava.
—Beba todinho, assim,bemquente—mimou-odonaLucrecia.—Comas
duas aspirinas. E depois, cama, para nanar. Não quero que você se resfrie, meu
velhinho.
DonRigobertosentiu—suasgrandesnarinasaspiravamafragrânciajardineirado
capim-limão—queoslábiosdesuaesposapousavamalgunssegundossobreosralos
cabelosdeseucrânio.
—EstoucontandoaeleaprisãodeEgon,madrasta—esclareceuFonchito.—
Jálheconteitantasvezesquevocênãovaiaguentarouvirdenovo.
—Não, não, tudo bem, continue— animou-o ela.—Mas é verdade, já sei
tudodecor.
—Quandovocêcontouestahistóriaàsuamadrasta?—deixouescaparentreos
dentesdonRigoberto,enquantosopravaochádecapim-limão.—Seelasóestáaqui
emcasahádoisdias,eeuamonopolizeiotempotodo?
—Quando ia visitá-la na casinha doOlivar— retrucou omenino, com sua
cristalinafranquezahabitual.—Elanãolhecontou?
DonRigobertosentiuqueoardasaladejantarseeletrizava.Paranãoterdefalar
nemdeolharparasuaesposa,tomouumgoleheroicodoardentecapim-limão,que
lhequeimouagargantaeoesôfago.Oinfernoseinstalouemsuasentranhas.
—Aindanãotivetempo—ouviudonaLucreciamurmurar.Olhou-ae—ai,ai!
—elaestavalívida.—Maséclaroqueiacontar.Poracasoessasvisitastinhamalgo
deerrado?
—Oqueiriamterdeerrado?—dissedonRigoberto,engolindooutrosorvodo
inferno líquido e perfumado. — Acho muito bom que você tenha ido ver sua
madrasta para lhe dar notícias minhas, Fonchito. E essa história de Schiele e sua
amante?Vocêparounomeio,eeuquerosabercomotermina.
—Possocontinuar?—alegrou-seomenino.
DonRigobertosentiasuagargantacomoumaverdadeirachagaeadivinhavaque
suaesposa,mudaepetri cadaaoseulado,tinhaocoraçãosaindopelaboca.Iguala
ele.
Bom, então...No dia seguinte, Egon eWally levaram a garota, de trem, para
Viena,onde a avódelamorava.Agarotahaviaprometidoque caria lá, comessa
senhora.Mas,nacidade,searrependeueacaboupassandoanoitecomWally,emum
hotel. Egon e sua amante, na manhã seguinte, retornaram com a mocinha a
Neulengbach, onde ela permaneceu mais dois dias. No terceiro, apareceu o pai.
EnfrentouEgondoladodefora,ondeeleestavapintando.Muitoalterado,opaida
mocinha avisou que havia denunciado o pintor à polícia, acusando-o de sedução,
porquesua lhaeramenor.EnquantoSchieletentavaacalmá-lo,explicandoquenão
tinha acontecido nada, dentro da casa, a garota, ao descobrir o pai, pegou uma
tesouraetentoucortarospulsos.MasWally,Egoneopaiconseguiramimpedi-lae
ajudá-la.Elaeopaiconversarame zeramaspazes.Partiramjuntos,eWallyeEgon
acharamqueestavatudoresolvido.Masclaroquenãofoiassim.Poucosdiasdepois,
apolíciaapareceuparaprendê-lo.
Escutavamseurelato?Aparentemente,sim,poistantodonRigobertocomodona
Lucrecia estavam imóveis e pareciam ter perdido não só os movimentos, mas
tambémarespiração.Tinhamosolhoscravadosnomenino,eaolongodahistória,
feitasemvacilações,compausaseênfasesdebomnarrador,nenhumdosdoissequer
pestanejou. Mas e a palidez que exibiam? E as miradas concentradas e absortas?
Estariam tão comovidos assim por aquele antigo episódio com aquele pintor
longínquo? Essas eram as perguntas que don Rigoberto acreditava ler nos grandes
olhos vivazesdeFonchito, que agora examinavamumeoutro, comcalma, como
que esperando um comentário. O menino estaria rindo deles? Rindo dele? Don
Rigoberto tou os olhos claros e translúcidos de seu lho, procurando o brilho
malévolo,apiscadelaouin exãodeluminosidadequedelatasseomaquiavelismo,a
estratégia,adubiedade.Nãodescobriunada:sómesmoamiradasã,límpida,pulcra,
deumaconsciênciainocente.
—Continuo,ouvocêjásecansou,papai?
Don Rigoberto negou com a cabeça e, fazendo um grande esforço — sua
gargantaestavasecaeásperacomoumalixa—,murmurou:“Eoqueaconteceucom
elenaprisão?”
Tinha sidomantido vinte e quatrodias atrás das grades, acusadode sedução e
imoralidade. Sedução, pelo episódio da garota, e imoralidade, por uns quadros e
desenhosdenusqueapolíciaencontrounacasa.Como coudemonstradoqueele
não tinha tocadonamocinha, foi absolvido da primeira acusação.Mas não da de
imoralidade.Ojuizconsiderouque,comoacasaeravisitadapormenores,garotase
garotosquepodiamtervistoosnus,Schielemereciaumcastigo.Qual?Queimaro
maisimoraldosseusdesenhos.
Naprisão, sofreuo indizível.Nos autorretratosquepintou em seu calabouço,
apareciamuitomagro,barbado,olhos fundos, expressão cadavérica.Mantevenesse
períodoumdiárionoqualescreveu(“Espere,espere,euseiafrasedecor”):“Eu,que
sou,pornatureza,umdosseresmaislivres,vejo-meatadoporumaleiquenãoéa
dasmassas.”Pintoutrezeaquarelas,eissoosalvoudeenlouqueceroudesematar:o
catre, a porta, a janela e uma luminosa maçã, uma das que Wally lhe levava
diariamente.Acadamanhã,elaseplantavaemumpontoestratégico,nosarredores
daprisão,eEgonpodiavê-laatravésdasbarrasdesuacela.PorqueWallyoamava
muitoesecomportoumaravilhosamentecomele,nessemêsterrível,dando-lhetodo
o seu apoio. Egon, ao contrário, não devia amá-la tanto assim. Ele a pintava, é
verdade;usava-acomomodelo,éverdade;masnãofaziaissosócomela,faziacom
muitasoutras,sobretudocomaquelasmenininhasquerecolhianasruasemantinha
por perto, meio despidas, enquanto as pintava em todas as poses imagináveis,
encarapitado em sua escada. As menininhas e os menininhos eram sua obsessão.
Morriadeamoresporelese,bom,parecequenão sóparapintá-los,mas também
queosamavadeverdade,nobomenomausentidosdapalavra.Eraoquediziam
seusbiógrafos.Que, juntocomsuacondiçãodeartista,eleeratambémumpouco
pervertido,poistinhapredileçãopormeninosemeninas...
— Bem, bem, acho queme resfriei um pouco, de fato— interrompeu don
Rigoberto,levantando-setãobruscamentequederrubounochãooguardanapoque
mantinhasobreaspernas.—Émelhorseguirseuconselho,Lucrecia,voumedeitar.
Nãoqueropegarumadaquelasgripescavalaresquemeatacam.
Falousemencararsuamulher,sóseu lho,oqual,quandooviudepé,secalou
e adotou uma expressão alarmada, como se estivesse ansioso por ajudar. Don
RigobertotampoucoolhouparaLucreciaaopassaraoseuladorumoàescada,apesar
dacuriosidadequeodevoravaporsaberseelaaindaestavalívida,ouantesrubra,de
indignação,desurpresa,de incerteza,dedesassossego,perguntando-se,comoele, se
aquiloqueomeninohaviaditoefeitoobedeciaaumamaquinaçãooueraobrado
acaso intrigante, rocambolesco, frustrante e mesquinho, inimigo da felicidade.
Percebeuquearrastavaospés,comoumanciãodecrépito,eseempertigou.Subiuos
degrausemumritmovivo,comoqueparademonstrar(aquem?)queaindaeraum
homemenérgicoeemplenaforma.
Depoisdetirarapenasossapatos,deitou-sedecostasnacamaefechouosolhos.
Seu corpo ardia, febril. Viu uma sinfonia de pontos azuis na escuridão de suas
pálpebras e teve a impressão de ouvir o beligerante zumbido das vespas que havia
escutadonaquelamanhã,duranteopiqueniquefrustrado.Poucodepois,comoque
soboefeitodeumfortesonífero,caiunosono.Oudesmaiou?Sonhouqueestava
comcaxumbaequeFonchitooadvertia, comvozdeadultoearesdeespecialista:
“Cuidado,papai!Trata-sedeumvírus ltrávele,sedesceratéosbagos,elesvãovirar
duasbolasdetênis,eseráprecisoarrancá-los.Comoosdentesdosiso,dojuízo,mas
o nal!”Despertouofegante,banhadoemsuor—donaLucrecialhejogaraemcima
uma coberta—, e notou que a noite havia caído. Estava escuro, o céu não tinha
estrelas,aneblinaapagavaasluzesdocalçadãodeMira ores.Aportadobanheirose
abriue,nomeiodojorrodeluzqueentrounoquartopenumbroso,apareceudona
Lucrecia,derobe,prontaparasedeitar.
—Eleéummonstro?—perguntou-lhedonRigoberto,angustiado.—Seráque
se dá conta do que faz, do que diz? Faz conscientemente o que faz, medindo as
consequências?Ou será que não?Que é simplesmente ummenino travesso, cujas
travessurasresultammonstruosas,semqueelequeira?
Suamulhersedeixoucairnopédacama.
— Eume pergunto isso todos os dias, muitas vezes por dia— disse, muito
abatida, suspirando.—Creioquenemele sabe.Você estámelhor?Dormiuumas
duas horas. Fiz uma limonada bem quente, está aí na garrafa térmica. Quer um
copinho?Apropósito,escute.EununcapenseiemlheesconderqueFonchitoiame
visitarnoOlivar.Masfuideixandopassar,nessesdoisdiastãoatarefados.
— Claro— atrapalhou-se don Rigoberto, gesticulando.— Não vamos falar
disso,porfavor.
Ficoudepée,murmurando“Éaprimeiravezqueadormeçoforadehora”,foi
atéseuquartodevestir.Despiu-se;deroupãoechinelos,trancou-senobanheiropara
asminuciosasabluçõesquecostumavafazerantesdedormir.Sentia-seacabrunhado,
confuso,comumzumbidonacabeçaquepareciapressagiarumagripeforte.Abriua
torneira de água quente da banheira e espalhou por cima meio frasco de sais.
Enquanto a banheira se enchia, passou o dental, escovou os dentes e, com uma
pinça na, depurou suas orelhas dos pelinhos recentes. Havia quanto tempo
abandonara o costumede dedicar umdia da semana, alémdo banho cotidiano, à
higieneespecialdecadaumdosseusórgãos?DesdequesesepararadeLucrecia.Um
ano,maisoumenos.Restabeleceriaaquelasaudávelrotinasemanal:segunda,orelhas;
terça,nariz;quarta,pés;quinta,mãos;sexta,bocaedentes.Etcetera. Submersona
banheira, sentiu-se menos desanimado.Tentou adivinhar se Lucrecia já se metera
embaixodos lençóis,quecamisola ela estavausando, estarianua?, e conseguiuque
poralgunsmomentosapresençaagourentaseeclipsassedesuacabeça:acasinhado
Olivar de San Isidro, uma gurinha infantil de pé junto à porta, um dedinho
tocandoa campainha.Deumavezpor todas,devia tomarumadecisãoquantoao
menino. Mas qual? Todas pareciam ineptas ou impossíveis. Depois de sair da
banheira e de se enxugar, friccionou-se com água-de-colônia da loja Floris, de
Londres, de onde um colega e amigo do Lloyd’s lhe fazia remessas periódicas de
sabonetes,cremesdebarbear,desodorantes,talcoseperfumes.Vestiuumpijamade
sedalimpoedeixouoroupãopenduradonoquartodevestir.
DonaLucreciajáestavanacama.Tinhaapagadoasluzesdodormitório,excetoa
desuamesadecabeceira.Láfora,omarbatiaviolentamentecontraosrochedosde
Barranco e o vento soltava lamentos lúgubres. Ele sentia seu coração latejar com
força, enquantodeslizava sobos lençóis, juntoàesposa.Umsuavearomadeervas
frescas, de ores úmidas de orvalho, de primavera, penetrou-lhe as narinas e lhe
chegou até o cérebro.Quase levitando, de tão tenso que estava, podia perceber, a
milímetrosdesuapernaesquerda,acoxadesuamulher.Naluzescassaeindireta,viu
que Lucrecia usava uma camisola de seda cor-de-rosa, presa nos ombros por duas
alcinhas nas,comumaorladerendapelaqualeledivisavaosseiosdela.Suspirou,
transformado. O desejo, impetuoso, liberador, agora preenchia seu corpo,
transbordava pelos seus poros. Sentia-se tonto e embriagado pelo perfume de sua
mulher.
Nisso, adivinhando-o, Lucrecia estendeu amão, apagou a luz do abajur e, no
mesmomovimento, virou-se para ele e o abraçou.DonRigoberto deixou escapar
um gemido ao sentir o corpo de suamulher, que ele abraçou ansioso e apertou,
estreitando-o com braços e pernas. Ao mesmo tempo, beijava-a no pescoço, nos
cabelos,murmurandopalavrasdeamor.Mas,quandohaviacomeçadoasedespirea
despojá-la da camisola, dona Lucrecia deslizou em seu ouvido uma frase que lhe
provocouoefeitodeumaduchagelada:
—Elefoimeverháseismeses.Apareceuumatarde,derepente,nacasinhado
Olivar. E, desde então, me visitou sem parar, ao sair do colégio, escapulindo da
academia de pintura.Três e até quatro vezes por semana.Tomava o chá comigo,
cava uma hora, duas.Não sei por que não lhe contei ontem, anteontem. Eu ia
contar.Juroqueia.
—Eu lhe suplico,Lucrecia—imploroudonRigoberto.—Nãotemqueme
contarnada.Peçopeloquelheformaiscaro.Euamovocê.
—Querocontar.Agora,agora.
Continuava abraçada aomarido, e, quando ele lhe buscou a boca, abriu-a e o
beijoutambém,avidamente.Ajudou-oatiraropijamaeadespi-ladacamisola.Mas
depois, enquanto donRigoberto a acariciava com asmãos e lhe passava os lábios
peloscabelos,asorelhas,orostoeopescoço,continuoufalando:
—Nãomedeiteicomele.
—Nãoquerosabernada,meuamor.Temosquefalardisso,logoagora?
—Sim,agora.Nãomedeiteicomele,mas,espere.Nãoporméritomeu.Por
culpadele. SeFonchito tivesse pedido, se tivesse feito amenor insinuação, eume
deitariacomele.Ecommilamores,Rigoberto.Muitastardesmesentidoente,por
nãoterfeitoisso.Vocênãovaimeodiar?Precisolhedizeraverdade.
—Eunãovouodiá-lanunca.Euamovocê.Minhavida,minhamulherzinha.
Ela,porém,voltouaatalhá-lo,comoutraconfissão:
— A verdade é que, se Fonchito não sair desta casa, se continuar morando
conosco,issovaiacontecerdenovo.Lamento,Rigoberto.Émelhorquevocêsaiba.
Não tenho defesas contra essemenino.Não quero que aconteça, não quero fazer
vocêsofrer,comodaoutravez.Seiquevocêsofreu,meuamor.Masvoulhementir
paraquê?Eletempoderes,temalgumacoisa,seilá.Seelemeterissonacabeçaoutra
vez,euvourepetir.Nãovouconseguirimpedi-lo.Mesmoquedestruaocasamento,
desta vez para sempre. Lamento, lamento, mas é a verdade, Rigoberto. A crua
verdade.
Dona Lucrecia havia começado a chorar. Ele sentiu se eclipsarem os últimos
resíduosdeexcitaçãoquelherestavam.Abraçou-a,consternado:
— Tudo o que você está me dizendo, eu sei de sobra — murmurou,
acarinhando-a. — O que posso fazer? A nal, não é meu lho? Para onde vou
mandá-lo?Para car comquem?Ele ainda émuitomenino.Achaquenãopensei
muitonisso?Quandoeleformaior,claro.Masque,pelomenos,termineocolégio.
Não diz que quer ser pintor? Pois muito bem. Que vá estudar belas-artes. Nos
Estados Unidos. Na Europa. Que vá para Viena. Não gosta tanto do
expressionismo?Quevápara a academiaondeSchiele estudou,para a cidadeonde
Schieleviveuemorreu.Mascomopossotirá-lodecasaagora,naidadeemqueele
está?
Dona Lucrecia se apertou a ele, entrelaçou suas pernas com as dele, procurou
apoiarseuspéssobreosdomarido.
—Nãoqueroquevocêotiredecasa—sussurrou.—Seimuitobemqueéum
menino.Nuncapudeadivinharsesabeoquantoéperigoso,ascatástrofesquepode
provocar, com aquela beleza que tem, com aquela inteligência manhosa, meio
terrível.Só lhedigo istoporqueéverdade: comele, sempreviveremos emperigo,
Rigoberto. Se você não quiser que tudo aconteça de novo,me vigie,me espreite,
quenomeupé.Nãoqueromedeitarnuncamaiscomninguém,sócomvocê,meu
maridinhoquerido.Euoamotanto,Rigoberto!Vocênãosabeafaltaquemefez,a
saudadequesenti.
—Eusei,eusei,meuamor.
DonRigoberto afastou-a umpouco, deitou-a de costas e se colocou em cima
dela.DonaLucreciatambémpareciatomadapelodesejo—jánãohavialágrimasem
sua face, seucorpoestavaaquecidoe sua respiração,agitada—e,malo sentiuem
cima, abriu as pernas e se deixou penetrar. Don Rigoberto a beijou, longa e
profundamente,comosolhosfechados,imersoemumaentregatotal,felizdenovo.
Perfeitamente encaixados umno outro, tocando-se e roçando-se dos pés à cabeça,
contagiando-se seus suores, mexiam-se devagar, compassadamente, prolongando o
prazer.
—Naverdade,vocêsedeitoucommuitaspessoas,esteanotodo—disseele.
— Ah, é? — ronronou ela, como se falasse pelo ventre, a partir de alguma
glândulasecreta.—Quantas?Quem?Onde?
—Umamantezoológico,queadeitavacomgatos.—“Quenojo,quenojo”,
protestou ela, debilmente.—Umamorde juventude,umcientistaque a levou a
PariseaVenezaequegozavacantando...
—Osdetalhes—ofegoudonaLucrecia,falandocomdificuldade.—Todos,até
osmenorzinhos.Oqueeufiz,oquecomi,oquemefizeram.
—ObabacadoFitoCebollaquaseestuprouvocêetambémJustiniana.Vocêa
salvoudafúrialibidinosadele.Eacaboufazendoamorcomela,nestamesmacama.
— Com Justiniana? Nesta mesma cama? — Dona Lucrecia soltou uma
risadinha.—Vejacomosãoascoisas.Porque,porculpadeFonchito,euquase z
amor com Justiniana, uma tarde, no Olivar. Foi a única vez que meu corpo o
enganou,Rigoberto.Minha imaginação, ao contrário, ummontede vezes.Como
vocêcomigo.
—Minhaimaginaçãonãoaenganoununca.Masmeconte,meconte—pediuo
marido,acelerandoosmovimentos,obamboleio.
—Eudepois,vocêprimeiro.Comquemmais?Como,onde?
—Comumirmãogêmeoqueinventei,umirmãocorso,emumaorgia.Com
um motociclista castrado. Você foi uma professora de direito, na Virgínia, e
corrompeuumsantojurista.FezamorcomaembaixatrizdaArgélia,tomandoum
banhodevapor.SeuspésenlouqueceramumfetichistafrancêsdoséculoXVIII.Na
vésperadenossareconciliação,estivemosemumprostíbulodaCidadedoMéxico,
comumamulataquemearrancouumaorelhacomumadentada.
—Nãomefaçarir,seubobo,nãoagora—protestoudonaLucrecia.—Euo
mato,matomesmo,sevocêmecortar.
—Eutambémestouquaselá.Vamosjuntos,amor.
Momentosdepois,jásossegados,eledecostas,elaaninhadaaoseuladoecoma
cabeçaemseuombro,retomaramaconversa.Lá fora, juntocomoruídodomar,
rompiam a noite os possantes miados de gatos brigando ou no cio e, espaçados,
buzinaserugidosdemotores.
—Souohomemmaisfelizdomundo—dissedonRigoberto.
Elaseesfregoucontraele,comportada.
—Vaidurar?Vamosfazê-ladurar,estafelicidade?
—Nãopodedurar—disseele,suavemente.—Todafelicidadeéfugaz.Uma
exceção, um contraste. Mas temos que reavivá-la, de tempos em tempos, não
permitirqueseapague.Soprando,soprandoachamazinha.
—Começoaexercitarmeuspulmõesdesde já—exclamoudonaLucrecia.—
Vão carcomofoles.E,quandoelaameaçarseapagar,eusoltoumaventaniaquea
levante,queainfle.Fffffuuu!Fffffuuu!
Permaneceram em silêncio, abraçados. Pela quietude de sua mulher, don
Rigobertoachouqueelahaviaadormecido.Masnão:tinhaosolhosabertos.
— Eu sempre soube que íamos nos reconciliar— disse, ao ouvido dela.—
Queria,buscavaisso,hámeses.Masnãosabiaporondecomeçar.Então,começaram
amechegarsuascartas.Vocêadivinhoumeupensamento,meuamor.Émelhordo
queeu.
Ocorpodesuamulherseendureceu.Mas,imediatamente,relaxoudenovo.
—Uma ideia genial, essadas cartas—continuou ele.—As anônimas, quero
dizer. Uma carambola barroca, um estratagema brilhante. Inventar que eu lhe
mandava cartas anônimas para ter um pretexto e, assim, poderme escrever. Você
sempre vai me surpreender, Lucrecia. Achei que a conhecia, mas não. Eu nunca
imaginariasuacabecinhamaquinandoessascarambolas,essasartimanhas.Quebom
resultadoelesderam,hem?Emboahora,paramim.
Houve outro longo silêncio, durante o qual don Rigoberto contou os
batimentos do coração de sua mulher, que faziam contraponto e às vezes se
misturavamaosseus.
—Eugostariaque zéssemosumaviagem—divagou,poucodepois,sentindo
que o sono começava a vencê-lo.— Para algum lugar bem distante, totalmente
exótico. Onde não conhecêssemos ninguém e ninguém nos conhecesse. Por
exemplo,aIslândia.Talvez,no mdoano.Possotirarumasemana,dezdias.Você
gostaria?
—EuprefeririairaViena—disseela,comumalínguaumpoucotravada,pelo
sono?, pela preguiça em que o amor sempre a deixava?.— Ver a obra de Egon
Schiele,visitaros lugaresondeele trabalhou.Ao longodosúltimosmeses,não z
outra coisa a não ser ouvir falar da vida dele, de seus quadros e desenhos. Acabei
espicaçadapela curiosidade.Vocênão se surpreende com a fascinaçãodeFonchito
poressepintor?Queeusaiba,Schielenuncalheagradoumuito.Deondeelepuxou
isso,então?
Don Rigoberto deu de ombros. Não fazia a menor ideia sobre a origem da
fixaçãodeseufilho.
—Bom,entãoiremosaVienaemdezembro—disse.—ParaverosSchielese
escutarMozart.Dequemeujamaisgostei,éverdade;masagora,quemsabe,posso
começaragostar.Sevocêgosta,eutambémvougostar.Nãoseideondepodeter
nascido esse entusiasmodeFonchito.Você está dormindo?E eu aqui semdeixar,
puxandoconversa.Boanoite,amor.
Ela murmurou “boa noite”. Fez meia-volta e grudou o dorso ao peito do
marido, que também se virara de lado e exionara as pernas, para que ela casse
comoquesentadaemseusjoelhos.Assimtinhamdormido,nosdezanosanterioresà
separação.Eassimfaziam,também,desdeaantevéspera.DonRigobertopassouum
braçosobreoombrodeLucreciaedeixouamãodescansaremumdos seiosdela,
enquantoaenvolviapelacinturacomaoutra.
Os gatos pararam de brigar ou de se amar na vizinhança.Os últimos sons de
buzinasouroncosdemotoreshaviamdesaparecidofaziaumbomtempo.Tépidoe
aquecido pela proximidade dessas formas amadas, coladas às suas, don Rigoberto
tinha a sensação de navegar, de deslizar,movido por uma afável inércia, em águas
tranquilas e delgadas, ou, talvez, pelo espaço sideral, despovoado, rumo às gélidas
estrelas. Quantos dias, horas, ainda duraria, sem se quebrantar, esta sensação de
plenitude,decalmaharmoniosa,de sintoniacomavida?Comoemrespostaà sua
mudainterrogação,escutoudonaLucrecia:
—Quantascartasanônimasminhasvocêrecebeu,Rigoberto?
— Dez — respondeu ele, com um sobressalto. — Achei que você estava
dormindo.Porquepergunta?
—Eutambémrecebidezsuas—replicouela,semsemover.—Issosechama
amoràsimetria,suponho.
Agorafoielequemseenrijeceu.
—Dezcartasanônimasminhas?Eununcalheescrevinenhuma.Nemanônimas
nemassinadas.
—Eusei—disseela,suspirandofundo.—Vocêéaquelequenãosabe.Aquele
que anda na lua. Está entendendo? Eu também não lhe enviei nada anônimo.
Mandeisóumacarta.Masapostoqueessa,aúnicaautêntica,nuncalhechegou.
Passaram dois, três, cinco segundos, sem falar nem se mexer. Embora só se
ouvisseoruídodomar,donRigobertoteveasensaçãodequeanoiteseencherade
gatosenfurecidosegatasnocio.
—Vocênãoestábrincando,não?—murmuroupor m,sabendomuitobem
quedonaLucreciahaviafaladosério.
Elanãorespondeu.Permaneceutãoquietaesilenciosaquantoele,maisumbom
tempo. Como tinha durado pouco, como tinha sido curta, aquela acabrunhante
felicidade!Aliestava,denovo,crueledura,Rigoberto,avidareal.
—Se você perdeu o sono, como eu—propôs, a nal—, talvez pudéssemos,
assimcomooutroscontamcarneirinhosparaconseguiradormecer, tentaresclarecer
tudo.Melhoragora,deumavez.Sevocêacharquesim,sequiser.Porque,sepreferir
queagenteesqueça,agenteesquece.Enãosefalamaisdessascartasanônimas.
— Você sabe muito bem que nunca poderemos esquecê-las, Rigoberto —
a rmousuaesposa,comumapontinhadecansaço.—Então,façamosdeumavezo
quevocêeeubemsabemosquevamosacabarfazendo,detodomodo.
—Vamos,então—disseele,levantando-se.—Vamoslê-las.
O tempohavia esfriado e, antesdepassaremao escritório, osdois vestiramos
roupões.DonaLucrecialevouconsigoagarrafatérmicacomalimonadaquentepara
o suposto resfriado do marido. Antes de mostrarem um ao outro as respectivas
cartas,tomaramunsgolinhosdelimonadamorna,domesmocopo.DonRigoberto
mantinha as dele guardadas no último de seus cadernos, ainda com páginas sem
anotações nem acréscimos; dona Lucrecia deixara as dela em uma bolsa de mão,
atadas comuma tinha lilás.Comprovaramque os envelopes eram idênticos, e o
papeltambém;unsenvelopesepapéisdessesquesevendemporqualquertostãonas
lojinhasdoschineses.Masaletraeradiferente.E,claro,acartadedonaLucrecia,a
únicaverdadeira,nãoestavaentreasoutras.
—Éaminhaletra—murmuroudonRigoberto,superandooqueeleacreditava
serolimitedesuacapacidadedeassombro,eassombrando-seaindaumpouquinho
mais.Tinharelidoaprimeiracartacommuitocuidado,quasesematentarparaoque
eladizia,concentrando-sesomentenacaligra a.—Bom,éverdade,minhaletraéa
maisconvencionalqueexiste.Qualquerumpodeimitá-la.
— Sobretudo um jovenzinho afeiçoado à pintura, um menino-artista —
concluiudonaLucrecia,brandindoascartassupostamenteescritasporela,depoisde
folheá-las.—Masesta,aocontrário,nãoéaminhaletra.Porissoelenãoentregoua
únicacartaquelheescrevi.Paravocênãoacompararcomestasedescobrirafraude.
—Éumpoucoparecida—corrigiu-adonRigoberto,quehavialançadomãode
uma lupa e examinava a carta, como um latelista observa um selo raro.— Seja
comofor,éumaletraredonda,muitodesenhada.Umaletrademulherqueestudou
emcolégiodefreiras,provavelmentenoSophianum.
—Evocênãoconheciaminhaletra?
— Não, não conhecia— admitiu ele. Era a terceira surpresa, nesta noite de
grandes surpresas.—Agoraconstatoquenão.Queeume lembre,vocênuncame
escreveuumacarta.
—Eestasaí,tambémnãofuieuqueescrevi.
Depois,duranteumaboameiahora, caramemsilêncio,lendosuasrespectivas
cartas, ou melhor, cada um percorrendo a outra metade desconhecida dessa
correspondência. Tinham se sentado juntos, no grande sofá de couro, com
almofadas,embaixodaaltalumináriadepécujacúpulatinhadesenhosdeumatribo
australiana.O amplo círculo de luz abrangia os dois.De vez emquando, bebiam
golinhosdelimonadamorna.Devezemquando,umdosdoissoltavaumrisinho,
masooutronãosevoltavaparaperguntarnada;devezemquando,aexpressãode
um se alterava, por pasmo, cólera ou por uma debilidade sentimental, ternura,
indulgência, vaga tristeza.Terminaram a leitura aomesmo tempo.Olharam-se de
esguelha,exaustos,perplexos,indecisos.Porondecomeçar?
—Eleandoufuxicandoporaqui—dissea naldonRigoberto,apontandosua
escrivaninha, suas estantes.— Remexeu, leu minhas coisas. A coisa mais sagrada,
mais secreta que eu tenho, estes cadernos.Quenem sequer você conhece.Minhas
supostascartasparavocê,naverdade, sãominhas.Emboraeunãoas tenhaescrito.
Porque,tenhocerteza,todasasfrases,eleastranscreveudemeuscadernos.Fazendo
uma salada russa. Misturando pensamentos, citações, gracejos, jogos, re exões
própriasealheias.
—Foiporissoqueessesjogos,essasordensmepareceramvirdevocê—disse
donaLucrecia.—Emcontraposição,estascartas,nãoseicomovocêpôdeacharque
eramminhas.
—Euestavaloucoparasaberdevocê,parareceberalgumsinalseu—desculpou-
sedonRigoberto.—Osnáufragos se agarramaoque lhes aparecerna frente, sem
pensar.
—Mas e essas frasesmelosas, essas cafonices?Não parecemmais as coisas de
CorínTellado?
— São de Corín Tellado, algumas — disse don Rigoberto, recordando,
associando.—Semanasatrás,começaramaaparecerpelacasaosromancinhosdela.
Acheiquepertenciamàempregada,àcozinheira.Agoraseidequemerameparaque
serviam.
—Voumatar essemenininho—exclamoudonaLucrecia.—CorínTellado!
Juroquematoessemenino.
— Está rindo? — espantou-se ele. — Acha engraçado? Devemos festejá-lo,
premiá-lo?
Agoraelariuparavaler,maisdemoradamente,commaisfranquezadoqueantes.
—Naverdade,nãoseioqueachar,Rigoberto.Certamente,nãoépararir.Épara
chorar?Paraseaborrecer?Bom,entãovamosnosaborrecer,seéissooquedevemos
fazer.Éoquevocêfaráamanhãcomele?Repreendê-lo?Castigá-lo?
DonRigobertoencolheuosombros.Tinhavontadederirtambém.Esesentia
estúpido.
—Eununcaocastiguei,emuitomenoslhedeialgumtapaquefosse,nãosaberia
comofazer isso—confessou,meioencabulado.—Épor issoqueeledeunoque
deu.OfatoéquenãoseioquefazercomFonchito.Descon oque,nãoimportao
queeufaça,elesemprevaiganhar.
—Bom,nestecaso,nóstambémganhamosalgumacoisa.—DonaLucreciase
encostouaomarido,quelhepassouobraçopelosombros.—Fizemosaspazes,não?
Vocênuncaseatreveriaametelefonar,ameconvidarparatomarchánaTiendecita
Blanca, sem essas cartas anônimas prévias. Não é? E eu tampouco teria ido ao
encontro se não as tivesse recebido. Certamente, não. Essas cartas prepararam o
caminho.Nãopodemosnosqueixar;elenosajudou,nos reconciliou.Vocênãose
arrependeportermosfeitoaspazes,nãoé,Rigoberto?
Ele acabou rindo também. Esfregou o nariz contra a cabeça de sua mulher,
sentindoqueoscabelosdelalhefaziamcócegasnosolhos.
—Não,dissoeununcavoumearrepender—disse.—Bem,depoisdetantas
emoções,ganhamosodireitoaosono.Estátudomuitobem,masamanhãeupreciso
irtrabalhar,mulher.
Retornaramaoquartonoescuro,demãosdadas.Elaaindaseatreveuafazeruma
brincadeirinha:
—VamoslevarFonchitoaViena,emdezembro?
Erabrincadeiramesmo?DonRigobertoafastoudeimediatoomaupensamento,
proclamandoemvozalta:
—Apesardetudo,formamosumafamíliafeliz,nãoé,Lucrecia?
Londres,19deoutubrode1996
Sobre o Autor
Jornalista,dramaturgo,ensaístaecríticoliterário,MarioVargasLlosaéumdosmais
importantesescritoresdaatualidade.NascidoemArequipa,noPeru,em1936,viveu
emParisnadécadade1960elecionouemdiversasuniversidadesnorte-americanase
europeiasaolongodosanos.Numaincursãoaomundodapolítica,candidatou-seà
presidênciadoPeruem1990,perdendoaeleiçãoparaAlbertoFujimori.
Autor de uma extensa obra literária, foi vencedor dos prestigiosos prêmios
Cervantes,PríncipedeAstúrias,PEN/NabokoveGrinzaneCavour.Oautordivide
seu tempo atualmente entre Londres, Paris, Madri e Lima. Entre seus livros
publicados, destacam-sePantaleão e as visitadoras,Tia Julia e o escrevinhador, Aguerradofimdomundo,ElogiodamadrastaeTravessurasdameninamá.