A Longa Caminhada de Billy Lynn - VISIONVOX

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Este livro é uma obra de ficção. Referências a pessoas reais, eventos, instituições, organizações ou locais têm a intenção deprover uma sensação de autenticidade e são usadas de maneira ficcional. Todas as demais personagens e os incidentes e diálogossão de origem da imaginação do autor e não devem ser interpretados como reais.

Copyright © 2012 by Ben Fountain

TÍTULO ORIGINALBilly Lynn’s Long Halftime Walk

PREPARAÇÃOIlana GoldfeldCristiane Pacanowski

REVISÃOAndré MarinhoTaís Monteiro

DESIGN DE CAPAJim Tierney

ADAPTAÇÃOô de casa

REVISÃO DE E-BOOKManuela Brandão

GERAÇÃO DE E-BOOKIntrínseca

E-ISBN978-85-510-0021-2

Edição digital: 2017

1ª edição

Todos os direitos desta edição reservados àEditora Intrínseca Ltda.Rua Marquês de São Vicente, 99, 3º andar22451-041 GáveaRio de Janeiro — RJTel./Fax: (21) 3206-7400www.intrinseca.com.br

Sumário

Folha de rostoCréditosMídias sociaisDedicatóriaA coisa começaUm soldado raso na infantariaDeve ser coisa da sua cabeça, mas nós temos a curaA resposta humanaPor conta disso muitos se tornam umSacana do coraçãoTodo mundo aqui é americanoSarrando para o SenhorJamie Lee Curtis fez um filme de merdaXXLIsso é tudo o que existeBilly e Mango vão dar uma voltaEstuprados por anjosSe no futuro você me disser que isso é amor, eu não vou desapontar vocêSanidade temporáriaMato vampiros em troca de comidaO dinheiro nos torna reaisO adeus orgulhosoAgradecimentosSobre o autorLeia também

Para os meus pais

A coisa começa

Os homens do Bravo não estão com frio. É um Dia de Ação de Graças gelado e castigado pelovento, e há previsão de chuva com granizo para o fim da tarde, mas o Bravo está bem aquecidocom Jack Daniel’s e Coca-Cola graças ao épico arrastar do trânsito de um dia de jogo e aofrigobar da limusine. Cinco drinques em quarenta minutos são o que está, provavelmente,incitando a sensação de calor, mas Billy precisa de um descanso depois do saguão do hotel, ondegrupos de cidadãos agradecidos e agitados pelo excesso de cafeína apareceram aos saltos bem nomeio de sua ressaca. Teve um cara em particular que colou em Billy, um ser humano pálido eesponjoso como um bolinho, enfiado em uma calça jeans engomada e botas de caubói chiques.

— Eu mesmo na verdade nunca estive no Exército — confidenciou então o homem, agitando-se e gesticulando com um copo gigante da Starbucks nas mãos —, mas meu avô foi para PearlHarbor e me contou todas as histórias de lá.

E o homem embarcou em um discurso desconexo sobre guerra, Deus e pátria enquanto Billyrelaxava e deixava as palavras rodopiarem e fazerem acrobacias em seu cérebro

Graças a uma sorte do cacete, o assento de Billy será no corredor do Texas Stadium, o quesignifica que ele vai aturar a parte mais difícil desses encontros ao longo de quase toda a tarde. Opescoço dele dói. Billy até dormiu na noite passada, mas muito mal. Cada um daqueles cincouísques com Coca-Cola o empurrou ainda mais para o fundo do poço, mas a visão da extensalimusine parando no hotel despertou nele uma porção de desejos inquietos, este Hummer branco-neve parecendo uma lancha, com seis portas de cada lado e janelas escuras para dar o máximo deprivacidade.

— É disso que estou fa-lando! — gritou o sargento Dime enquanto avançava para o bar.Todo mundo está fazendo algazarra por causa daquela ostentação de cafetão, mas depois de

destruir todas as esperanças de ter uma rápida recuperação Billy se deixa afundar em um pavorsecreto e intricado.

— Billy — diz Dime —, você está me deixando na mão.— Não, sargento — responde Billy, apressadamente. — Só estou pensando nas líderes de

torcida do Dallas Cowboys.

— Bom garoto. — Dime ergue seu copo, depois faz uma observação casual, não direcionada aninguém em particular: — O major Mac é gay.

Holliday solta um urro.— Que droga, Dime, o cara está sentado bem aqui!E, de fato, o major McLaurin está sentado no banco do fundo, observando Dime com toda a

expressividade de um linguado congelado.— Ele não consegue ouvir nem uma palavra do que estou dizendo. — Dime ri. Ele se volta

para o major Mac e reduz a velocidade de sua fala até o ritmo de um retardado: — MA-JORRRMAC-LAAAUUURIN, SE-NHOR! O SAR-GEN-TO HOLLI-DAY ES-TÁ DI-ZEN-DO QUE ose-nhor É GAY.

— Ai, merda — geme Holliday.Mas nos olhos do major há apenas um brilho penetrante, então ele ergue o punho para mostrar

a aliança. Todo mundo urra.São dez passageiros dentro da limusine de puro luxo e conforto, os oito soldados restantes do

esquadrão Bravo, seu assistente de escolta pessoal — o major Mac — e o produtor de cinemaAlbert Ratner, que no momento está alerta mexendo no BlackBerry. Contando com o coitado doShroom, que morreu, e o gravemente ferido Lake, há duas Estrelas de Prata e oito de Bronzeentre eles, todas as dez condecorações desafiando uma explicação coerente.

— O que você pensava durante a batalha? — perguntou a linda repórter de TV em Tulsa.E Billy tentou. Deus sabe que ele tentou, ele nunca para de tentar, mas aquilo fica

escorregando e deslizando, ziguezagueando até sair, o aquilo da coisa, a coisa, o impossível deser descrito.

— Eu não sei direito — respondeu ele. — Basicamente era só aquele tipo de raiva que a gentesente no trânsito. Tudo estava explodindo e eles estavam atirando na gente e eu só ia em frente,eu realmente não estava pensando em nada.

O maior medo dele até o momento em que o tiroteio começou era foder com tudo. A vida noExército é terrível assim. Você faz uma merda, eles gritam com você, você faz mais merda egritam mais um pouco, mas se sobrepondo a todas as merdas pequenas, insignificantes, idiotas ebasicamente inevitáveis assoma a sempre presente perspectiva de uma merda que vai foder a suavida, um fracasso tão profundo e abrangente que é como se destruísse toda a esperança deredenção. Alguns dias depois da batalha, ele andava pelo caminho de cascalho para ir comer umrango e ali estava ela, aquela sensação de folga ou desafogo, de um terrível fardo aliviado, e tudosem exigir de Billy um esforço maior que o necessário para respirar. Essa sensação de ahhhhh,como se houvesse esperança para ele. Como se talvez ele não fosse completamente descartável.Naquele momento, a filmagem da Fox News estava viralizando e havia rumores de que o Bravoia para casa, o tipo de boato suicidamente esperançoso no qual nenhum soldado em sãconsciência ousaria acreditar, e então, veja só, com duas horas de aviso eles foram designadospara Bagdá e dali cruzaram o oceano para a Turnê da Vitória.

Uma nação, duas semanas, oito heróis norte-americanos, embora tecnicamente não existissenenhum esquadrão Bravo. São a Companhia Bravo, segundo pelotão, primeiro esquadrão, oesquadrão sendo constituído pelas equipes alfa e bravo, mas a Fox os uniu, batizando-os deesquadrão Bravo, e eles foram apresentados ao mundo dessa forma. Agora, no final da turnê,sentindo-se fraco, saciado, sonolento, pouco descansado e superproduzido, Billy foi ficando cadavez mais triste e nostálgico em relação ao começo. Eles foram empurrados para dentro de umavião C-130 no meio da noite e levantaram voo de Bagdá em uma amarga espiral de miséria.Shroom estava com eles, em um caixão coberto com uma bandeira, no fundo da aeronave.

Durante todo o voo até Ramstein alguns Bravos estavam sempre sentados com ele, mas é nosoutros que Billy pensa agora, os vinte e tantos civis de vários tons de pele e sotaques que sejuntaram a eles para a viagem. Nada de espiões — eram rechonchudos demais para aquilo, seussorrisos muito desatentos às desgraças do mundo, e assim que o avião decolou aqueles carascomeçaram a festejar muito. Uísque do bom, mais de dez caixas de som com música no últimovolume, uma floresta de charutos cubanos sendo acesos — a fuselagem logo foi tomada poraquela fumaça de caldeirão de bruxa. Descobriu-se que eram chefs de cozinha. Para quem? Oshomens apenas sorriram. “Para a coalizão.”

Eles eram franceses, romenos, suecos, alemães, iranianos, gregos, espanhóis, Billy nãoconseguia discernir nenhum padrão ou sentido em suas nacionalidades, mas todos, sem exceção,eram amigáveis e mais do que generosos, ávidos por dividir suas bebidas e seus charutos com ossoldados. Evidentemente, tinham ganhado muito dinheiro no Iraque. Um dos suecos abriu suamaleta de couro de bezerro e mostrou a Billy o tesouro em ouro que tinha obtido em Bagdá,muitos quilos de correntes, cordões e moedas, de tal pureza que brilhavam em um tom maisalaranjado que dourado. Ali, entre a fumaça dos charutos e as gargalhadas brincalhonas, Billyhavia levantado uma das correntes, analisando seu peso. Ele estava com dezenove anos e nãotinha a menor ideia de que na sua guerra havia coisas como aquelas, e que pena para ele e para orestante do Bravo que ela não tivesse sido ganha nas duas semanas anteriores.

— É — disse Albert ao telefone.Ele o tinha comprado especificamente no Japão, que está dois anos à frente de qualquer outro

lugar na corrida pela superioridade dos celulares.— Diga isso a ela, você pode dizer a ela que esse filme vai ser avassalador. Mas também vai

trazer recompensas — continuou ele. Albert fica em silêncio por um instante. — Carl, o que euposso dizer? É um filme de guerra... nem todo mundo sai vivo.

Enquanto isso, Crack está lendo em voz alta a seção de esportes do Dallas Morning News,recitando as probabilidades fornecidas pelo America’s Line, para que Holliday e A-bortconsigam anotar suas apostas. Existem mais de duzentas maneiras de se apostar em um jogo defutebol americano, incluindo se a moeda lançada vai cair dando cara ou coroa, qual música doDestiny’s Child vai abrir o intervalo e em qual quarter a emissora que transmite a partida vaifazer a primeira referência ao presidente Bush.

Crack diz, como se estivesse lendo uma receita:— O primeiro passe completo do Drew Henson vai ser em menos duzentos; incompleto, mais

cento e cinquenta; uma interceptação, mais de mil.— Incompleto — diz Holliday, anotando em seu caderninho.— Incompleto — concorda A-bort, tomando nota em seu caderninho.— E que tal o quarter em que a Beyoncé senta na minha cara? — diz Sykes.— Nunca, porra — responde Holliday, sem nem piscar.— Daqui a um milhão de anos — acrescenta A-bort, também inexpressivo.Sykes está dizendo que, droga, tudo bem, ele vai aceitar aqueles números, quando Albert

desliga o celular de forma brusca.— Certo, pessoal, parece que a Hilary Swank está oficialmente interessada.Ahnnn, uou, quem?— Hilary Swank, que vaca — diz Lodis, cuspindo. — Por que ela está falando com a gente?— Por-queeee — responde Albert, com vigor, ciente da animação que aquilo causaria no

Bravo — ela quer interpretar ele. — E aponta para Billy.O Bravo irrompe em gritos e vivas.

— Espera aí. Espera um pouco. — Billy está rindo com todo mundo, mas também estápreocupado, já sentindo o potencial daquilo para humilhação em escala global. — Se ela é umagarota, então eu não vejo como...

— Na verdade — diz Albert —, ela está considerando interpretar Billy e Dime. A gente podiajuntar os dois num papel só e então ela podia ser a protagonista.

Mais gritos, dessa vez direcionados a Dime, que apenas assente, como se estivesse bastantesatisfeito.

— Eu ainda não consigo entender...— Só porque ela é mulher não quer dizer que não consegue fazer isso — diz Albert a eles. —

Meg Ryan era a atriz principal naquele filme de helicóptero, aquele que ela fez com o Denzel unsanos atrás. Ou ela pode interpretar feito um cara, porra, a Hilary ganhou a merda de um Oscarinterpretando um cara. Quer dizer, interpretando uma garota que interpretava um cara, mas tantofaz. A questão é que ela não é só mais um rostinho bonito.

Outros com quem Albert está conversando: Oliver Stone, Brian Grazer, Mark Wahlberg,George Clooney. É uma história de heróis, não sem tragédia. Uma história de heroísmoenobrecido pela tragédia. Filmes sobre o Iraque têm “baixa performance” nas bilheterias, e isso éum problema, de acordo com Albert, mas não um problema do Bravo. A guerra pode estarafundada até o pescoço em ambiguidades morais, mas o triunfo do Bravo destrói tudo isso. Ahistória deles é uma história de resgate, com toda a potência psicológica de uma trama desse tipo.As pessoas reagem com intensidade a histórias assim, Albert disse a eles. Todo mundo sepreocupa, todo mundo se sente pelo menos um pouco condenado basicamente o tempo todo,mesmo os mais ricos, os mais bem-sucedidos, os mais seguros entre nós vivem em estados deperpétua ansiedade por mal conseguirem aguentar as pontas. O desespero é só uma parte de serhumano, então, quando o alívio vem, em qualquer forma, como cavaleiros em armadurasbrilhantes, digamos, ou águias digitalizadas mergulhando em um ataque nas encostas flamejantesde Mordor, ou com a cavalaria dos Estados Unidos batendo em retirada apressada de um azullongínquo, esse é um poderoso gatilho na psique humana. Validação, redenção, a vida arrancadadas mandíbulas da morte, tudo isso é algo muito poderoso.

— O que vocês fizeram lá foi o resultado mais feliz possível dentro da condição humana —garantiu Albert a eles. — Isso dá esperança para a gente, a gente pode sentir esperança emrelação às nossas próprias vidas. Não existe uma pessoa no mundo que não pagaria para ver essefilme.

Albert tem quase sessenta anos, um homem de ossos largos e corpulento, com uma nuvemrebelde de cabelo quase todo grisalho e costeletas de comprimento mediano, eriçadas comocercas vivas. Usa óculos de armação preta com lentes redondas. Masca chiclete. As mãos delesão grandes e ossudas, e moitas escuras de um matagal desenvolvido brotam de suas orelhas.Hoje ele está usando uma camisa social branca com o colarinho aberto, um paletó azul-marinhoforrado com um tecido escarlate, um sobretudo de caxemira preta e um cachecol também decaxemira, além de mocassins lustrosos e elegantes que parecem feitos de barras de chocolatemaleáveis. Esse fogo cruzado entre desalinho e graça faz com que a fascinação de Billy nuncatermine, e disso ele infere uma mundanidade que poderia comer o Bravo no café da manhã eengolir seus ossos. Este é um homem que telefona diretamente tanto para Al Gore como paraTommy Lee Jones e cujos filmes foram protagonizados por astros milionários como BenAffleck, Cameron Diaz, Bill Murray, Owen Wilson, dois dos quatro irmãos Baldwin e por aí vai,todos os quais, infelizmente, já tinham compromissos ou não estavam interessados em umtrabalho em que os artistas escalados ocupariam posições equivalentes.

— A gente vai fazer disso um Platoon — diz Albert na ligação seguinte. — Um bando deestrelas, porra, é isso que funciona. A Hilary está muito interessada.

Os Bravos escutam por um instante. Conversa de Hollywood. Tem seu próprio dialeto, ricoem trocas tonais de humilhações, insultos, gritos e conversa mole.

— Sem chance. Prefero ir para a cama com a Madre Teresa a fazer um filme com aquele cara.Os Bravos dão um sorrisinho malicioso.— Ah, claro. É tipo fazer um enema quando você já tem um cateter enfiado no pau.Os olhos dos Bravos se arregalam e eles riem disfarçadamente, deixando sair catarro dos

narizes.— Só uma batalha? Qual é, Larry, Falcão negro em perigo só teve uma batalha. Olha, eu sei

que é um filme de guerra, mas preciso de um diretor que consiga trazer um pouco de empatiapara a história.

Pausa.— Eu consigo aguentar os enemas, o que eu não aguento é o cateter.Mais risos disfarçados. Lodis teria caído do lugar onde estava sentado se não estivesse de

cinto.— Olha só, Larry, a gente está se falando há dois dias. Meus garotos vão embora daqui a dois

dias, e o contato vai ficar muito difícil depois disso. A não ser que os seus advogados queiram irde paraquedas para uma zona de guerra.

— Está beeeem — retoma Crack, balançando o papel. — Will Drew Henson faz umaintercepção... é, menos cento e vinte, contra não, mais cento e cinco.

— Isso aí — concorda Holliday.— Não — fala A-bort.— Será que a Beyoncé vai me mostrar os peitos enquanto estiver sentada na minha cara? —

solta Sykes, depois começa a cantar em um falsete estridente e com entonação de diva negra Ineed a soldier, soldier, need me a soldier, soldier boy...

— Silêncio — ladra Dime —, o Albert está falando no telefone.Os demais Bravos entendem isso como a deixa para gritar com Sykes. Cale a boca, imbecil, o

Albert está no telefone! Cale a boca, idiota, o Albert está tentando falar! Enquanto isso, umutilitário emparelhou na pista ao lado, e mulheres, fêmeas de verdade, estão penduradas para foradas janelas gritando para o Hummer. Universitárias, talvez poucos anos mais velhas, e elas sãoexemplos de primeira daquele bando de peitudas americanas que correm fora de controle todanoite nos realities da TV.

— Ei — gritam elas enquanto o tráfego se arrasta. — Ei, vocês, seja lá quem forem, abaixemos vidros! Uhuuuuuuuu, vai, Cowboys! Abaixem o vidro!

Ai, Senhor, elas são bonitas e estão totalmente bêbadas, berrando, jogando o cabelo para todosos lados, como estandartes de guerra orgulhosos; elas são as garotas sem juízo dos sonhos maisardentes do Bravo. Sykes e A-bort se enrolam com as janelas daquele lado e são severamentexingados por sua incompetência, então percebem que as malditas janelas estão com a trava desegurança acionada e todo mundo grita para a dianteira do carro, aí finalmente o motorista apertaum botão e os vidros descem e dá para ver as garotas murchando. Ah, soldados. Fuzileiros,provavelmente estão pensando, porque é tudo igual para elas. Não astros do rock, não atletasprofissionais bem pagos, ninguém do cinema ou do mundo dos tabloides, só soldados viajandona aba de um milionário, como um ato de caridade chato do tipo “apoiem as tropas”. O Bravotenta, mas agora as garotas estão apenas sendo educadas. A gente é famoso! Grita A-bort. Elesvão fazer um filme sobre a gente! As garotas sorriem, fazem que sim com a cabeça, olham para

todos os lados da estrada, como se sondassem melhores possibilidades. Sykes coloca todo ocorpo para fora da janela e berra:

— É, porra, eu estou bêbado, meu bem, e também sou casado! Mas eu ainda vou amar vocêquando acordar feia de manhã!

Isso faz as garotas rirem e por um instante há esperança, porém Billy consegue ver o brilhonos olhos delas já se ofuscando.

Ele se encosta no banco e pega o celular; elas provavelmente não estavam falando sériomesmo. Atenção!, lê na mensagem da irmã, Kathryn:

deixa sua munição dentro do coldre, garoto

Depois, uma de Pete, o marido valentão da outra irmã:

Come uma líder de torcida

Depois, do seu pastor, Rick, que nunca vai deixá-lo em paz:

Honrarei aos que me honram

E era só isso, mais nenhuma mensagem, ligação, nada. Porra, ele não conhecia ninguém?Afinal, ele é meio que famoso, pelo menos é o que as pessoas vivem dizendo, então seria de seesperar o oposto. O tráfego está andando e eles perderam as garotas enlouquecidas de vista, masagora o estádio surge no horizonte, erguendo-se em meio à amplitude da pradaria suburbanacomo uma lua em quarto crescente inchada e com verrugas. Eles devem aparecer hoje em redenacional, sem detalhes, ninguém sabe a manobra verdadeira. Pode ser que tenham que dizeralgumas falas. Pode ser que sejam entrevistados. Há boatos de que vão participar do show queacontece no intervalo, o que faz crescer a esperança de que conheçam pessoalmente as garotas doDestiny’s Child, embora, na mesma proporção, se não ainda mais plausível, haja a possibilidadede eles serem adulados, bajulados, massacrados, ou, por outro lado, acossados a fazerem algoincrivelmente constrangedor e vergonhoso. A emissora de TV local já tinha sido ruim o bastante— em Omaha houve uma gravação de um Bravo muito constrangido “interagindo” com o novohabitat dos macacos do zoológico, e em Phoenix eles foram levados a uma pista de skate ondeMango caiu de bunda no noticiário da noite. A humilhação sempre persegue o homem comumquando ele se aventura na televisão, e Billy está determinado a não deixar isso acontecer a ele,não hoje, não em rede nacional, não, senhor, obrigado, eu respeitosamente me recuso a agircomo um idiota, senhor!

Essas possibilidades fizeram surgir em suas entranhas uma reclamação que parecia arescapando de um ferimento feito por alfinete. Ele queria estar na TV e ao mesmo tempo nãoqueria. Queria estar na TV desde que não se ferrasse e que isso pudesse ajudá-lo a transar, masver o estádio assomar do lado de fora de sua janela e atingir as proporções da Estrela da Mortefez com que ele se perguntasse se realmente estava pronto para aquele dia. Nas últimas duassemanas, se manter autoconfiante tinha sido uma luta, aquela sensação de nadar mantendo a

cabeça bem fora da água. Ele é muito novo. Não sabe o suficiente. Sem contar as insignificantescorridas de carro das quais seu pai costumava ser o apresentador, ele nunca tinha estado em umevento esportivo profissional. Na verdade, ele crescera em Stovall, Carolina do Norte, apenascento e trinta quilômetros a oeste, sem nunca ter posto os olhos no famoso Texas Stadium, a nãoser pela versão editada da TV, e a primeira visão que teve do lugar parecia histórica, ou pelomenos se esforçava para ser. Billy estuda o lugar detalhadamente, com cuidado e atenção deverdade, formando a sua opinião quanto ao tamanho e à falta de graça, sua completa eirremediável feiura. Anos e anos de filmagens cuidadosamente enquadradas pela TVimpregnaram o local com insinuações de mistério e romance, um tanto de orgulho estadual enacional, alusões a vidas após a morte faraônicas, como sempre são inerentes às grandesconstruções públicas, tudo isso faz com que o estádio criado na mente de Billy seja como umcanal ou um portal, uma passagem direta que leva a uma espécie de transcendência coletiva, eassim a mediocridade da vida real é um retorno horrível. Claro que sua obrigação é oferecer todaessa magnitude, mas o lugar parece um trabalho porco de fundo de quintal. O telhado é umasimples colcha de retalhos caseira de telhas descombinadas. Há um declínio, uma decadência demeia-idade rumo a uma coisa que sugere panças moles e próstatas inchadas, corpos de baleiasencalhadas arrastados pela gravidade. Billy tenta imaginar como o lugar devia ser quando estavanovinho em folha, reluzente e tudo o que ele prometia nos velhos tempos — trinta anos atrás?Quarenta? O passado sempre é uma proposição incerta para ele, mas há um elo obscuro entre ojeito como ele se sente agora, olhando para o estádio, e os sentimentos que experimenta aopensar em sua família. O mesmo peso, o mesmo torpor e melancolia, um tipo de pavorenjoativamente adocicado e emocional que é quase prazeroso, no sentido de que insinua algoreal. Como se a tristeza fosse a verdadeira realidade. Sem jamais prestar atenção de verdade aisso, ele tinha começado a acreditar que a perda é a trajetória-padrão. Alguma coisa nova apareceno mundo — um bebê, digamos, ou um carro, uma casa, ou uma pessoa demonstra algum talentoespecial —, e com sorte e enormes investimentos de alma e esforço você pode conseguir mantero projeto em alta durante um tempo, mas, no final das contas, enfim ele vai sucumbir. Esta é umaverdade tão brutal e autoevidente que ele não consegue entender o porquê de ela não ser maispercebida, por isso ele desdenha dos usuais choque e ultraje públicos quando uma situação emparticular vai para o saco. A guerra é uma merda? Bem, é. Onze de Setembro? Um trem vindodevagar bem devagar na sua direção. Eles odeiam nossas liberdades? É, eles nos odeiam deverdade agora! Billy suspeita de que seus companheiros norte-americanos sejam secretamenteespertos, mas algo na terra está preso a um drama adolescente, a afetados fingimentos deinocência devastada e ao ato de se consolar revirando-se na lama de pena autojustificada.

— Merda — murmura alguém, uma interrupção no silêncio.O primeiro rompante de entusiasmo que eles mostraram ao ver o estádio morreu em uma

suspensão verbal. Talvez seja o tempo que os deixe para baixo, toda a escuridão de um invernotemporão ou, quem sabe, talvez seja a ansiedade antes de se apresentar ou uma pura e simplesfadiga, o fardo de saber que muito será exigido deles hoje. O Bravo não fica muito bem emsilêncio, de qualquer maneira. Conversa fiada e besteiras são mais o estilo de trabalho deles,porém o período de pavor introspectivo se encerra com o aparecimento de uma placa grande,cuidadosamente pintada à mão, que foi afixada a um poste na beira da estrada. ACABEM COM OESTUPRO ANAL NO IRAQUE!, lê-se, e abaixo disso alguém rabiscou: Santa misericórdia!

O Bravo urra.

Um soldado raso na infantaria

Eles chegam duas horas antes do chute inicial e ninguém parece saber o que fazer com o Bravo,então por ora os homens são alocados em seus lugares, na altura da linha das quarenta jardas, nolado do time da casa, sétima fila. Sykes e Lodis começam imediatamente a debater o valor demercado de assentos tão fantásticos e quanto renderiam no eBay, quatrocentos, seiscentosdólares, e sobem o valor cada vez mais, suas análises baseadas em nada além de chutes efantasias. É uma conversa idiota, e Billy tenta não escutar. Ele está no assento do corredor comMango à esquerda e eles conversam um pouco sobre a noite passada e como é incrível estar aliem vez de cuspir areia pelas orelhas na FOB Viper, a base operacional avançada. Herbert,conhecido como A-bort, está sentado à esquerda de Mango, depois está Holliday, conhecidocomo Day, em seguida Lodis, chamado de Jato de Porra, Jato de Bosta, ou apenas Jato. Depoisvem Sykes, que nunca vai ser nada diferente de Saco, a seguir Koch, que soa como coca,evoluindo para Crack, e de vez em quando ele fica de cócoras e mostra um pedaço da bunda.Depois está o sargento Dime, a seguir vem o assento vazio de Albert, logo após o enormeenigma conhecido como major Mac. Todo mundo comenta que está frio, mas Billy não sente. Aprevisão do tempo diz que vai ter granizo e uma chuva congelante no fim da tarde, e através dacúpula aberta do estádio eles conseguem ver o céu ficando horrível, a cobertura de nuvem seeriçando como uma palha de aço gigante. As arquibancadas semivazias — ainda é cedo —produzem um murmúrio baixo de uma enceradeira ou de um ventilador girando..

— Jato! — vocifera o sargento Dime. — Qual é o tamanho de um campo de futebolamericano?

Lodis ri com desdém; fácil demais. Ele precisa provar, pelo menos dez vezes por dia, queconvicção é a marca do verdadeiro idiota.

— Cem jardas, sargento.— Errado, imbecil. Billy, qual é o tamanho de um campo de futebol americano?— Cento e vinte jardas — responde Billy, tentando falar baixo, mas Dime faz o restante do

Bravo aplaudir e berrar.Aeeeê, Billy, se deu bem. Ele está desconfiado do lance de Dime escolhê-lo para fazer favores

e elogios, de uma maneira tão óbvia como se desafiasse os outros Bravos a confrontá-lo. É tipouma punição, Billy só não tinha descoberto ainda para quem, mas a agressão institucional é umaespecialidade de Dime. NÃO, ele berra agora com Sykes, que está implorando por permissãopara fazer algumas apostinhas. Desde que estourou o limite do cartão de crédito compornografia, Dime tem controlado rigorosamente seus gastos.

— Sargento, são só cinquenta dólares.— Não.— Eu tenho economizado...— Não.— Eu vou mandar cada centavo para a minha mulher...

— É óbvio que você vai. Mas não vai apostar.— Por favor, sargento...— Que merda, você não tomou seu chá de cala a boca esta manhã? — Com isso, Dime passa

por cima do assento abaixo e desliza para a fileira livre na frente do Bravo. — Senhores, e aí? —diz ao alcançar a última cadeira.

— Tranquilo — responde Mango.— Se você ficar mais tranquilo, vai acabar em coma. Lodis ainda está dizendo que o campo de

futebol americano tem cem jardas.— E tem! — grita Lodis do final da fileira. — Desde quando alguém conta a endzone, cara?— Sargento — lamenta-se Sykes —, por favor, só dessa vez...— Calado! — ladra Dime, seu pescoço se torcendo, como se o sargento quisesse arrancar a

própria cabeça por meio de uma rotação autoinduzida.Depois seus olhos faíscam na direção de Billy e ali está, O Olhar, a chama fixa do olhar de

Dime oprimindo o humilde Billy. Isso tem acontecido muito ultimamente e está deixando ojovem maluco, a calma concentrada dos olhos cinzentos de Dime com aquela sensação de umaenergia furiosa rodopiando nos cantos, como se você se encontrasse no olho de um furacão.

— Billy.— Sargento.— Sua opinião sobre o negócio com a Hilary Swank.— Sei lá, sargento. Parece estranho, uma mulher no papel de um cara.— Mas, Billy, você não ficou sabendo que ser estranho está na moda? É normal hoje em dia.

— Dime está agitado com a energia de dia de jogo, os braços balançando, os quadris dançandocom pequenos movimentos incompletos. — Mas pode ser que ela interprete o papel como umagarota, você ouviu o Albert. Eles podem transformar você numa garotinha, que tal? Então,durante o restante da sua vida, as pessoas vão virar e falar: “Olha ali o Billy Lynn. Ele deixou aspessoas transformarem ele numa garota naquele filme.”

— Ela também quer interpretar você, sargento. Você ia deixar?Dime dá uma risada meio insolente.— Vou dizer uma coisa para você. Quem sabe? Se ela me deixar ser namorado dela por umas

semanas, eu até podia ser convencido.Agora ele ri de verdade, gargalhando com a inocência terrível dos inteligentes que se entediam

facilmente. O sargento David Dime é um cara de vinte e quatro anos da Carolina do Norte quelargou a faculdade e que assina o Wall Street Journal, o New York Times, a Maxim, a Wired, aHarper’s, a Fortune e a DicE Magazine, sendo que lê tudo isso junto com três ou quatro livrospor semana, a maioria obras didáticas de história e política, de segunda mão, que sua irmãincrivelmente gostosa envia para ele de Chapel Hill. Há boatos de que ele foi para a universidadecom bolsa porque jogava golfe, o que ele nega. De que foi um quarterback notável no ensinomédio, do que ele diz não se lembrar, embora, certa vez, tenha aparecido uma bola de futebolamericano na FOB Viper e Dime, deixando-se levar pelo momento, talvez com a nostalgiadespertando alguma memória muscular havia muito adormecida, fez um lançamento em espiralde sessenta jardas que passou por cima da cabeça de Day e caiu no meio da frota de veículos dabase. Ele tinha uma Coração Púrpura e uma Estrela de Bronze, condecorações por causa doAfeganistão, e entre os demais sargentos havia recebido o rótulo de “Liberal da porra”, mas oque era extraordinário a respeito do Bravo, o milagre que ficou evidente apenas gradativamentepara Billy, era a presença no esquadrão não de um, mas de dois guerreiros impressionantes,nenhum deles levando qualquer jeito para a ortodoxia em vigor. Quando o vice-presidente Dick

Cheney foi à FOB, numa de suas visitas típicas para levantar o moral das tropas, Dime e Shroomaplaudiram com tal liberalidade que até mesmo o capitão Tripp notou a gozação atroz daquilo.Uhuuuuu-uhuuuuuu, éééé, Dick! Mostra para eles! Cai dentro! Uhuuuuuu-uhuuuuu, vamosenfiar o cacete em uns cabeças de turbante! O pelotão inteiro estava segurando o riso, prestes amijar nas calças; o capitão finalmente entregou um bilhete a Dime dizendo “baixa a porra do tomagora”, muito embora Cheney parecesse estar contente com a recepção. Ali de pé, no palanque,com sua calça cáqui da L.L.Bean, as mãos nos bolsos, o anoraque da NASA com o zíper fechadoaté o pescoço, ele elogiou a Viper por seu espírito combativo e deu notícias encorajadoras sobrea guerra. Não há dúvida, disse ele. As mais recentes informações da inteligência, disse ele.Nossos comandantes na batalha, disse ele, tudo isso no tom monocórdio de Cheney, que fez comque tudo soasse razoável para caralho. Então, o que foi que ele disse? Ah, certo. A insurgênciaestava nas últimas, disse ele.

— Albert! — grita Dime. — O Billy acha a Hilary Swank esquisita.— Espera. Não. — Billy se vira e vê Albert descendo os degraus com um sorriso irônico e

uma indiferença típica da Costa Oeste. — Eu só disse que ia ser esquisito ela interpretar um cara.— A Hilary é boa — responde Albert com suavidade. — Para falar a verdade, ela é uma das

melhores de Hollywood. Mas se você pensar bem, Billy...O jovem soldado sempre fica chocado quando Albert o chama pelo nome. “Cara”, Billy tem

vontade de dizer, “não precisa, você não tem que se lembrar do meu nome de verdade”.— Esse é um dos maiores desafios para qualquer ator, interpretar o sexo oposto. Eu entendo

por que ela está interessada — conclui Albert.— Ele não quer que uma garota interprete ele — diz Dime. — Está com medo de as pessoas

pensarem que ele é um frouxo.— Albert, não escute nada do que ele está falando.Albert ri e por um instante Billy pensa no Papai Noel, outro homem animado e corpulento.— Fiquem tranquilos, pessoal. A gente tem muito chão pela frente até vocês precisarem se

preocupar com isso.O objetivo de Albert é que paguem cem mil para cada Bravo por sua história de vida, mais

todos os tipos de taxas misteriosas, condições, porcentagens e outras coisas ininteligíveis sobreas quais eles vão ter que confiar somente nele. Nas últimas duas semanas ele tem entrado e saídoda Turnê da Vitória, se encontrando com o Bravo em Washington, depois voando para outrareunião em Denver, depois para Phoenix, e agora está aqui, no fim da turnê, em Dallas. Duassemanas atrás ele disse que teriam um acordo até o Dia de Ação de Graças e, ainda que tudopareça estar sob controle, Billy tem a impressão de que o ardor está começando a diminuir; elenota um esforço quase imperceptível por parte de Albert para manter a situação agitada. Nenhumdos outros Bravos disse nada, então talvez Billy esteja errado. Provavelmente está. Por favor,Deus, que eu esteja errado. Se ele pudesse sair disso tudo só um pouquinho mais rico, todo odinheiro iria para a melhor das causas. Quando Billy se juntou ao pelotão em Fort Hood, Dime eShroom pegavam no pé dele vinte e quatro horas por dia, chamando-o de moleque, bandido,delinquente, e tudo isso de um jeito nada amigável. Por alguma razão, implicaram com ele, coma iminente organização e preparação de tropas para o combate, sem contar os três anos e meio deserviços ainda previstos em seu acordo com o Exército, ele estaria ferrado se não tirasse os doisda sua cola. Então, um dia, eles se aproximaram enquanto Billy malhava na academia, e lá veiode novo o discurso de vagabundo, brigão, criminoso. Ele os seguiu para fora do lugar e dirigiu-sea eles da maneira mais formal. Sargento Dime, sargento Breem, eu não sou um vagabundo nembrigão nem criminoso, então por favor parem de me chamar dessas coisas. Eu sou só um cara

dando o máximo possível para honrar o pelotão e a companhia.Não, disse Shroom, você é a porra de um brigão delinquente. Só um delinquente ia vandalizar

o carro de outro homem.Que porra é essa, pensou Billy, como é que eles sabem disso?— Depende de quem é o carro — respondeu ele.Então, de quem era?Do noivo da minha irmã. Ex-noivo.Isso chamou a atenção deles. Que tipo de carro?, perguntou Dime.Um Saab, Billy contou a eles. Conversível de cinco marchas com aros de liga leve, tinha saído

da concessionária havia apenas três meses. Eles então estavam prontos para ouvir a versão dele,por isso Billy contou sobre Kathryn, sua irmã do meio e o orgulho da família, uma garotaextremamente bonita, educada e inteligente que ganhou uma bolsa parcial para a Texas ChristianUniversity. Até aí, tudo bem. Cursa administração, ingressa em uma irmandade, todo semestretira excelentes notas. Tudo certo. Fica noiva de um cara três anos mais velho que está fazendoMBA, um cara frouxo e muito cauteloso, impressionado demais consigo mesmo, mas as coisasainda vão bem, na maior parte do tempo, mais ou menos, muito embora Billy meio queintimamente odeie o cara. Em uma manhã chuvosa de maio, no final de seu segundo ano,Kathryn está dirigindo para o trabalho, ela trabalha como recepcionista e trainee de corretora naAgência de Seguros Blinn, tudo certo, a não ser por ela ter sido atingida na lateral, no CampBowie Boulevard, por um Mercedes que aquaplanou e rodou derrapando, aquele enorme objetoescuro girando como um moinho em sua direção, e é do som que ela mais se lembra, o vulf vulfvulf de seu vórtice rotatório como o bater das asas de um anjo da morte. A próxima coisa de queela se lembra é estar deitada de costas com três mexicanos grisalhos de pé perto dela, tentandoprotegê-la da chuva com um pedaço de papelão. Kathryn sempre chora quando chega a essaparte. Simplesmente não consegue falar sobre isso sem desabar, descrevendo os três homenspairando sobre ela, ali, de olhos arregalados e assustados, suas roupas encharcadas, o espanholsussurrado, o jeito delicado como eles seguravam o papelão como se fosse algum tipo decontribuição.

Nunca nem sequer agradeceu a eles, dirá Kathryn. Eu só fiquei ali deitada, olhando para eles,eu não conseguia falar. Na verdade, os médicos disseram que ela deveria ter morrido. Fraturou abacia, a perna, rompeu o baço, sofreu falência pulmonar e uma considerável hemorragia interna,depois houve o trabalho complicado de suturar seu rosto e suas costas, cento e setenta pontosabaixo do pescoço, sessenta e três acima. Você vai ficar bem, diz a ela o cirurgião plástico no diaseguinte. Pode levar uns anos, mas você chega lá, eu faço isso o tempo todo. Mas o cara frouxonão consegue lidar com isso. Três semanas depois do estrago ele dirige até Stovall e termina onoivado, e diante disso a educada Kathryn esmurra a cara dele com o anel de noivado, assimcomo quem quer esmagar uma aranha ou uma lesma que encontra rastejando em sua mão. MasBilly se sente compelido a dar uma resposta mais ativa. Sua irmã, a honra de sua família, omínimo da porcaria da decência humana, tudo isso e mais pareciam decisivamente em jogo. Eledirige até Fort Worth, localiza o Saab do frouxo do lado de fora do prédio do frouxo e começa areduzir o veículo a pedacinhos e a arrancar partes com o pé de cabra True Value que comprou nocaminho. Uma calma sagrada recaiu sobre ele enquanto subia no teto e preparava o primeirogolpe potente contra o para-brisa. Billy tinha um trabalho a fazer, era o que sentia naquelemomento, e depois de uma adolescência extenuante marcada por muitos conflitos comautoridade e numerosas merdas autoinfligidas, estava determinado a fazer aquilo direito.Balançou o corpo com calma, escolhendo os lugares para bater com muito cuidado e deliberação.

A ação era prazerosa. Mesmo o som alto do alarme não era capaz de abalar sua concentração.Durante algum tempo, houve uma sensação crescente de que algo drástico precisava acontecer, eali estava.

Faltavam duas semanas para ele se formar. Depois de uma série de reuniões e muita babaquiceoficial, o conselho escolar decidiu que Billy receberia seu diploma apenas pelo correio. Ele nãopoderia fazer a “caminhada”, atravessar o palco como os veteranos tradicionalmente fazem parareceber seus diplomas.

— Você não vai caminhar — disse o diretor do conselho escolar no tom mais sombrio ecalamitoso de reprovação eclesiástica.

E Billy pensou que sua garganta fosse explodir pelo esforço de segurar suas gargalhadas.Como se ele ligasse para uma merda dessas. Ahhhhhh, eu não posso fazer a caminhada?Ahhhhhh, minha vida acabou! O advogado que fez o acordo com o conselho escolar precisou seesforçar mais para mantê-lo fora da cadeia. A destruição do Saab não era um problema tãogrande quanto o fato de ele ter perseguido o frouxo pelo estacionamento. Com o pé de cabra.

— Eu não ia machucar ele — confessou Billy. — Só queria ver ele correr.Na verdade, Billy tinha rido tanto que mal conseguira ficar de pé, quanto mais fazer algo que

se assemelhasse a uma perseguição digna.O promotor concordou em reduzir a acusação para crime de dano se Billy entrasse para o

Exército, o que parecia ser um lugar tão bom quanto qualquer outro para ser despachado, melhorque ir para a cadeia e ser estuprado todas as noites por caras com apelidos tipo Pastor eMontanha. E foi assim que ele veio a se tornar um soldado aos dezoito anos, um soldado raso nainfantaria, o mais inferior entre os inferiores.

E a sua irmã, como ela está?, perguntou Shroom quando a história terminou.Melhor, respondeu Billy. Eles disseram que ela vai ficar bem.Você ainda é um delinquente, porra, disse Dime; mas, depois disso, eles não pegaram mais

tanto no pé de Billy.

Deve ser coisa da sua cabeça, mas nós temos a cura

Billy torce para que Josh traga logo o Advil. Os cinco uísques com Coca-Cola pioraram suaressaca, mas agora que ele parou de beber a dor de cabeça aumentou ainda mais. Dime e Albertestão parados no corredor, Dime contando ao outro homem sobre o funeral de Shroom realizadona véspera, falando como o que deveria ter sido a missa mais solene de todas, um tributo àespiritualidade do homem com leituras de taoismo, “Wichita Vortex Sutra”, de Allen Ginsberg, eorações de um ancião da tribo Crow local, acabou se transformando em um espetáculo debizarrices de cristãos fanáticos, um pequeno grupo de pé do lado de fora da igreja com cartazescom os dizeres DEUS ODEIA VOCÊS 2 TESSALONICENSES 1:8 e SOLDADOSAMERICANOS VÃO PARA O INFERNO, gritando sobre aborto e assassinato de bebês e apraga de Deus sobre os Estados Unidos.

Que loucura, diz Albert. Lamentável. Ultrajante.— Ei, Albert — chama Crack —, não esqueça de colocar isso no filme.Albert balança a cabeça.— Ninguém ia acreditar.O dirigível da Goodyear está se movendo com dificuldade no céu, oferecendo resistência

como um veleiro em uma tempestade. O telão exibe um vídeo em tributo ao notável, recém-falecido, Bob Hayes, o “Bullet Bob”, e ao longo da parte externa do parapeito dos camarotessuperiores estão os nomes dos maiores ex-jogadores, técnicos e dirigentes do Cowboys.Staubach. Meredith. Dorsett. Lilly. Inegavelmente esse é um grande momento, não há hoje nomundo um evento esportivo maior, e o Bravo está bem no meio dessa agitação. Em dois dias elesvão ser transferidos para o Iraque e para os onze meses restantes de sua missão prolongada, maspor ora eles estão bem no meio do ventre protetor de todas as coisas americanas: futebolamericano, Dia de Ação de Graças, televisão, cerca de oito tipos diferentes de polícia esegurança, mais trezentos milhões de concidadãos que lhe desejavam tudo de bom. Ou, comodisse um trêmulo velho camarada em Cleveland: “Vcs SÃO os Estados Unidos.”

Billy sempre agradece às pessoas por essas sentimentalidades, embora não tenha a menor ideiado que significam. Agora mesmo ele está pensando que, quem sabe, se vomitar, vai se sentirmelhor. Diz a Mango que vai mijar, e Mango dá uma olhada ao redor para ver se Dime estáolhando, então murmura:

— Quer pegar umas cervejas?Porra, com certeza.Eles sobem os degraus de dois em dois. Algumas pessoas gritam, saudando-os das

arquibancadas, e Billy acena, mas não ergue o olhar. Está se esforçando muito. Está subindocomo se sua vida dependesse disso, na verdade, resistindo àquele enorme espaço vazio doestádio, que tenta tragá-lo para trás, como a ressaca do mar. Nas duas últimas semanas, ele se viuafetado por obras imensas: torres de reservatório de água, arranha-céus, pontes suspensas ecoisas do tipo. Passar de carro perto do Monumento a Washington já fez com que ele sentisse os

joelhos fraquejarem, pelo modo como a estrutura atrai um lamento agudo de todo o céuimpiedoso ao redor. Então Billy mantém a cabeça baixa e se concentra em seguir em frente e, aoalcançar o saguão, sente-se melhor. Eles encontram o banheiro — Billy mija, desiste de vomitar—, depois compram cervejas no Papa John’s. Tecnicamente, eles não deveriam beber quandoestão uniformizados, mas o que o Exército vai fazer, mandar a gente para o Iraque? No entanto,os Bravos pedem as cervejas em copos de refrigerante e, antes de beber um gole, Billy entregasua bebida a Mango e faz cinquenta flexões bem ali, no saguão. Ele não consegue suportar oquanto ficou fraco. As duas últimas semanas foram só aviões, carros e quartos de hotel, semtempo para se exercitar, sem chance de se manter em forma. As duas últimas semanas tinhamtransformado os Bravos em donzelas, e agora eles vão voltar para a guerra todos envelhecidos eenferrujados, com um equivalente declínio da eficácia.

A cabeça de Billy está latejando quando ele se põe de pé, mas o restante dele se sente melhor.— Flexões, caçador de cerveja — diz Mango.— Deixa comigo!— Você acha que eles batizam a cerveja com água?— Cara, é só experimentar.— Eles dizem que não, mas dá para perceber que fazem isso. Não é a mesma coisa.Billy assente.— Mas a gente continua bebendo.— A gente continua bebendo.Eles se apoiam na parede e bebem suas cervejas, satisfeitos, por ora, em observar a multidão

passar. Com toda a diversidade à vista, é como uma cena de migração de um documentário sobrea natureza, com todas as formas, idades, tamanhos, tons de pele e indicadores de renda, aindaque os brancos obesos sejam demograficamente dominantes. Tendo servido em prol deles comosoldado na linha de frente, Billy com frequência se questiona sobre essas pessoas. O que estãopensando? O que querem? Sabem que estão vivas? Como se a prolongada e íntima exposição àmorte fosse o elemento necessário para alguém alcançar a plenitude do presente em sua vida.

— O que você acha que eles estão pensando?Mango hesita, então abre um sorriso largo.— Coisa profunda. Você sabe, tipo Deus. Filosofia. O sentido da vida. — Eles riem. — Não,

cara, olha só para eles. Estão pensando no jogo, se o time deles vai ganhar com margem ou não.Onde eles vão sentar, se vai chover. O que vão comer, quanto tempo falta até cair o salário. Essasmerdas.

Billy assente. Faz sentido. Ele não culpa aquelas pessoas por terem pensamentos tão triviais e,ainda assim, ainda assim... a guerra o faz desejar um pouco mais do que um sorriso frouxo e umolhar estúpido de gado bem-alimentado. Ah, meu povo, meus companheiros norte-americanos!Vejam o mundo pelos olhos de um profeta! Praticamente todos estão usando roupas doCowboys, de um tipo ou de outro, jaquetas e bonés estampados com o logotipo da estrela azul,imensas camisetas, moletons com capuz, cachecóis em azul e prata, brincos ou outras bijuteriasdo time, alguns tinham pequenos capacetes do Cowboys pintados nas bochechas. Billy acha issocomovente, como eles manifestam a devoção ao time com fervor. As mulheres demonstram maisjeito para se vestir em dia de jogo do que os homens, que se arrastam por ali com largascamisetas do Cowboys para fora do casaco e a calça amontoada em volta dos tornozelos dasbotas, resultando em uma desastrosa proporção que faz todos parecerem um bando de garotos dedoze anos pesadões.

Ah, meu povo. Os soldados terminam suas cervejas com o ar de missão cumprida e, ao

voltarem a seus lugares, Billy dirige o olhar aos degraus do corredor, para longe de toda ainsignificância que arranhava seu rosto. Ela o assusta, seu vazio monstruoso balançando-se ali. Ocentro amplo e vazio cria uma espécie de vácuo e toda a gravidade parece fluir em ummecanismo de descarga reversa, em direção àquele respiradouro aberto no alto. Billy chega a seulugar todo suado. Alguns dos Bravos estão mandando mensagens de texto, outros fitam o campo,alguns mascam chiclete ou cospem tabaco em copos. Então Mango fica menos cuidadoso e soltaum arroto com intensidade sísmica, que parecia gritar Cerveja!, e Dime se vira subitamentecomo um tubarão farejando sangue.

— Cadê o major Mac? — pergunta Billy, em alerta.Uma distração tosca, mas que funciona. Dime franze a testa, olhando para os lados.— Cadê o major Mac? — ladra para o esquadrão.O Bravo faz um meneio coletivo, como se fossem aqueles bonequinhos que balançam a

cabeça que se usam em painéis de automóveis, e então cai na gargalhada. O major Macdesapareceu!

— Billy! Mango! Vão procurar o major Mac.Escada acima de novo, Billy com os ombros caídos diante de todo aquele espaço medonho. O

estádio é imenso. É deformado. É a deformação da mente humana. Eles seguem direto para oPapa John’s e compram mais duas cervejas. Desta vez, uma pequena multidão se reúne enquantoBilly faz suas flexões; eles contam em voz alta e aplaudem quando termina.

— Faz mais uma vez! — grita alguém, mas Billy ergue sua cerveja em saudação e bebe.Ele e Mango começam a caminhar.— Isso deve ser fácil.— É. Só tem o quê? Umas oitenta mil pessoas aqui?— Se você fosse o major Mac, para onde iria? E quando?— Cara, de repente ele voltou para a nave mãe.Eles riem. O major Mac quase nunca fala, mal come ou bebe, e nunca foi visto indo ao

banheiro, o que incitou a especulação entre os Bravos de que o assistente de escolta pessoal delesdeveria ser um novo tipo de ser humano, que ingere alimentos e evacua pelos poros da pele.Graças a misteriosos métodos não oficiais de comunicação, o sargento Dime descobriu que noprimeiro dia do major na guerra ele fora atingido não por uma, mas duas explosões, resultandoem uma grande, embora ainda-a-ser-apurada, perda de audição. Por ora, foi alocado comorelações-públicas enquanto o Exército decidia o que fazer com ele. O major é um espécime detraços bem-delineados; com uma covinha no queixo e postura perfeita, ele se parece muito comum boneco de Comandos em Ação, o que poderia explicar por que durou tanto tempo, já que, naverdade, o homem é surdo como uma porta, sem contar a propensão a crises extremas detranstorno dissociativo. Como se tivesse sido desligado. Sofrido um derrame. Ficado fora do ar.Jogado a toalha. Como se não tivesse ninguém ali dentro. Dime chama isso de um traçocaracterístico do major, o olhar de trauma de guerra misturado com Prozac.

A busca pelo major Mac é uma das milhares de tarefas sem propósito que fazem o Exército sero que é, mas Billy prefere isso a ficar à toa, e mais, ele se sente bem com Mango a seu lado, nãosó pela fama de durão por ter um latino como melhor amigo, mas também pela calma ecamaradagem que o amigo transpira. Mango é firme como uma rocha tanto na paz quanto naguerra. Resistente para cacete, nunca reclama, consegue carregar muitos quilos com sua forteconstituição física de um metro e setenta e dois, e tem uma memória fotográfica para estatísticase cronologia dos fatos; por causa disso, por exemplo, ele consegue repetir de cor não apenas osnomes dos presidentes norte-americanos, mas também dos vice-presidentes, o que tende a acabar

rapidamente com qualquer insinuação de que ele é um imigrante ilegal. A única vez que Billy viuo amigo desabar não foi em uma troca de tiros, nem em nenhuma das vezes que eles foramatingidos por morteiros, por pedras, postos sob a mira de um atirador de elite ou bombardeadosno acostamento das estradas, nem mesmo quando a torre do Humvee, veículo automóvelmultifuncional de alta mobilidade, explodiu com ele dentro e Mango perguntou “Tem algumacoisa saindo da minha cabeça?”. Firme como uma rocha, menos no dia que um carro-bombaexplodiu o posto de controle do Terceiro Pelotão e o Bravo foi incumbido de montar guardadepois dessa catástrofe. Um dia ruim sob qualquer perspectiva, mas foi somente quando eles sedispersaram para fazer as buscas dos membros decepados que Mango caiu de joelhos emprantos.

Mas agora eles estão caminhando, e como seria bom se pudessem sair da guerra por pura forçade vontade. Billy verifica o celular e tem uma mensagem de texto de Kathryn, a irmã com acicatriz na bochecha. Kd vc, ela quer saber, e ele digita estádio. Então recebe mamãe estápreocupada de vc sentir frio e ele responde o garoto aqui é fogo, e ela responde com umacarinha sorrindo. Ele e Mango grunhem sempre que uma mulher bonita passa, mesmo que alitodo mundo esteja tão agasalhado que não tenha muita coisa para ver.

— Dá para acreditar naquelas garotas de ontem à noite?— Inacreditável — concorda Billy. — Todo mundo diz que Dallas tem os melhores clubes de

striptease.— Pode crer. É tipo sobrecarga sensorial, cara. De onde todas elas vieram? Aquele lugar onde

a gente estava, não o último, o de antes, aquele com as mulheres dançando nas gaiolas...— Vegas Starz.— ...Vegas Starz. Eu fico tipo, que merda, garota, por que você está trabalhando aqui?

Qualquer uma daquelas garotas podia ser modelo, quer dizer, modelo de verdade, não umastripper vagaba.

Mango parece verdadeiramente angustiado, como se estivesse diante do desenrolar de umatragédia que ele pudesse impedir.

— Sei lá — diz Billy —, pode ser que ter talento seja comum. Tem muita garota gostosa poraí.

— Você sabe que aquilo não é certo.Billy ri, mas está tocado por uma noção mais ampla a respeito de corpos vigorosos e jovens,

do mercado da carne e das teoricamente implacáveis leis de oferta e procura. A sociedade podenão precisar de você, em particular, mas, em geral, algum tipo de uso pode ser encontrado.

— Vai ver elas estão lá porque querem — diz Billy, embora seja só da boca para fora. —Então elas podem conhecer homens jovens e bacanas feito a gente.

Mango ri.— Deve ser isso. Não é por causa do dinheiro, cara. Elas realmente gostaram da gente.Foi o que Sykes disse quando voltou da sua dança particular nos fundos do lugar. Ela

realmente gostou de mim. Não era por causa do dinheiro. Ainda abalados por causa do funeralde Shroom naquela tarde, os Bravos trocaram de roupa no hotel, tirando o uniforme, e logosaíram para tomarem todas, e em um momento ou outro ao longo daquela noite todos ficaramdoidões. Ela gostou de mim virou a grande piada da noite, mas hoje essa lembrança faz com queBilly se sinta apenas deprimido. É a própria ressaca da coisa, uma nódoa em seu espírito, comouma sujeira difícil de tirar da banheira, e ele chega à conclusão de que boquetes não são umaboa. Tudo bem, às vezes são bons. Certo, geralmente eles são incríveis enquanto estão sendofeitos, mas nos últimos tempos ele vem sentindo uma clara necessidade de algo a mais em sua

vida. Nem é tanto pelo fato de ele ter dezenove anos e, tecnicamente, ainda ser virgem, mas simpela sensação de fome bem no fundo de seu peito, esse vácuo lipoaspirado no lugar onde suamelhor parte deveria estar. Ele precisa de uma mulher. Não, ele precisa de uma namorada,precisa de alguém a quem possa unir o corpo e a alma, e passou essas duas semanas esperandoque isso acontecesse, a namorada, a união, por duas semanas ele viajou pela grande nação norte-americana, então seria esperado que depois de todos esses quilômetros, cidades e coberturamidiática positiva, todo o amor e benevolência, todas essas multidões que o cumprimentavamsorrindo, ele já teria conseguido encontrar alguém.

Portanto, ou os Estados Unidos são uma merda, ou ele é. Billy anda pelo saguão com ocoração partido e a consciência de que o tempo está acabando. Eles vão se apresentar ao FortHood às dez horas da noite de hoje, amanhã vai ser o dia de juntarem os panos de bunda e, no diaseguinte, vão começar suas vinte e sete horas de voo e a retomada da missão de combate. ParaBilly, parece um verdadeiro milagre que qualquer um deles ainda esteja vivo. Tudo bem, elesperderam Shroom e Lake, só dois, diria uma pessoa dos números, mas dado que cada Bravoescapara da morte por questão de centímetros, a taxa de mortalidade poderia ser, facilmente, decem por cento. A maldita aleatoriedade é o que fode com a sua cabeça, a diferença entre a vida,a morte e um ferimento horrível é às vezes tão sutil quanto o ato de se inclinar para amarrar oscoturnos a caminho do rango, escolher a terceira cabine no banheiro em vez da quarta, virar acabeça para a esquerda em vez de para a direita. Aleatório. O modo como essa merda mexe coma sua cabeça. Billy sentiu de fato como isso era potencialmente enlouquecedor na primeira ida aooutro lado do arame farpado, quando Shroom aconselhou que ele pisasse com um pé diante dooutro, e não ao lado, porque desse jeito, se uma bomba caseira explodisse embaixo do Humveeele talvez perdesse apenas um pé em vez dos dois. Após algumas semanas alinhando os pés,protegendo as mãos dentro da armadura corporal, sempre usando óculos de proteção especiais etodo o resto, ele foi até Shroom e perguntou: Como é que você faz para não ficar maluco?Shroom assentiu, como se aquela fosse uma pergunta razoável para se fazer, depois falou de umxamã inuíte sobre o qual ele tinha lido em algum lugar, como aquele homem conseguia,supostamente, olhar para você e saber o dia da sua morte. Porém, ele não lhe contaria;considerava isso falta de educação, uma intromissão em coisas que não eram da conta dele. Masque esquisito, né? Shroom deu uma risada. Olhar aquele velho nos olhos e saber que ele sabe.

— Eu não quero conhecer esse cara nunca — comentou Billy, mas Shroom tinha sido bemclaro.

Se uma bala vai matar você, ela já foi disparada.Billy percebe que Mango não falou nos últimos cinco minutos, por isso sabe que o amigo

também está pensando na guerra. Ele fica tentado a trazer o assunto à tona, mas, para ser sincero,o que se pode dizer sem falar tudo? Parece que, uma vez que você abre a boca, não conseguesequer parar, embora, no fim, tudo seja equivalente a uma única coisa: como diabo eles vãoconseguir suportar mais onze meses dessa situação?

— Você tem tido sorte até agora, certo?Era Kathryn, falando com Billy enquanto eles bebiam cerveja no quintal.Acho que sim, respondeu ele.— Então continue tendo sorte.Algumas vezes a coisa parece fácil assim, só se lembrar de ter sorte. Billy pensa nisso

enquanto olha as lojas de fast-food enfileiradas no saguão do estádio, Taco Bell, Subway, PizzaHut e Papa John’s, nuvens quentes de fumaça de carne se erguem desses lugares e com certezadiz muito sobre o talento culinário americano o fato de todos eles terem praticamente o mesmo

cheiro. Fica claro para Billy que o Texas Stadium é, basicamente, uma pocilga. É frio, seco, comcorrente de ar, sujo e, de um modo geral, tão encantador quanto um depósito industrial onde aspessoas mijam nos cantos. O leve fedor de urina impregna o lugar.

— Maravilha — diz Mango em tons sussurrados de admiração.— O quê?— Todos esses milhares de pessoas, e nem sinal do major Mac.Billy resmunga.— Você sabe que a gente nunca vai encontrar aquele efe-dê-pê. E, de qualquer jeito, ele é

adulto, tipo, por que mesmo a gente está procurando ele?— Ele sabe onde ele está.— Seria de se esperar, né?Eles se olham e riem.— Vamos voltar — diz Billy.— Vamos.Primeiro eles param no Sbarro para comprar algumas fatias de pizza, depois ficam ali, de pé,

segurando os pratos de papelão e comendo, contentes por, naquele momento, não seremreconhecidos. Ser um Bravo significa viver em um estado de semicelebridade queocasionalmente derruba você com elogios e adulações. Durante os comícios, por exemplo, ou emaparições nos shoppings, ou sempre que uma emissora de rádio ou TV se encontra presente,você, em algum ponto, está apto a ser carinhosamente cercado por americanos comuns ávidospor mostrar sua gratidão, e, outras vezes, é como se você fosse invisível, as pessoas nãoenxergam você, não registram nada. Billy e Mango ficam ali, comendo uma pizza escaldante, esabem que a fama que têm não é deles. No fim das contas, é mais uma coisa da qual dar risada,esse imenso holograma contextual, que com suas deixas leva todos no cabresto, inclusive oBravo, mas o Bravo pode rir e se sentir de alguma maneira superior porque eles sabem que estãosendo usados. É claro que sabem, manipulação é o ar e o elemento vital deles, afinal, para queserve um soldado se não para ser o peão dos superiores?

Vista isso, diga aquilo, vá ali, atire neles, depois, é claro, tem o derradeiro seja morto. Cadaum dos Bravos possui doutorado na arte e na ciência de ser coagido. Billy e Mango terminam apizza e começam a andar. De barriga cheia, estão animados e, só porque deu vontade, entram noCowboys Select, a mais sofisticada de todas as lojas do estádio, que vende roupas do Cowboys eprodutos licenciados. O cheiro atordoante dos couros finos os encontra à porta, com umamáquina de apostas Texas Lottery iluminada e colorida. As TVs de tela plana nas paredespassam os melhores momentos dos anos de Troy Aikman. Billy e Mango estão um poucobêbados ao entrarem, prontos para uma experiência irônica no varejo, e em questão de segundoso lugar os faz gargalhar. Não são apenas as prateleiras e mais prateleiras de roupas caras, asjoias, a memorabilia para colecionadores emoldurada e certificada, não, você precisa admirar adeterminação, os grandes colhões que o mercado tem de estampar a marca do Cowboys em jogosde xadrez, forninhos elétricos, máquinas de gelo de alta capacidade, tubos de oxigênio e tacos desinuca com mira a laser. Cara, olha isso! Uma linha completa de utensílios de cozinha. Os doisBravos causam tamanho tumulto que os outros clientes mantêm distância. Para eles, a loja é ummuseu, aquelas coisas são para olhar, não há nada que um Bravo poderia comprar, e ahumilhação disso os deixa um pouco mais desvairados. Um par de robes atoalhados custava,tipo, quatrocentos dólares. Camisas de uniforme oficiais, cento e cinquenta e nove dólares enoventa e cinco. Suéteres de caxemira, decorações de Natal de cristal trabalhado, ediçõeslimitadas de botas Tony Lama. À medida que a vergonha e a impressão de serem insultados

aumentam, os dois Bravos passam a ficar mais brutos um com o outro. Cara, olha só isso, umajaqueta bomber incrível. Só seiscentos e setenta e nove, parça.

Isso é couro?Claro que é couro! Não precisa nem perguntar!Porque, cara, eu acho que não é, não. Eu acho que é falso.O caralho que isso é falso!Nã-não, seu débil mental. Você é tão pé-rapado que não sabe a diferença de um couro falso...De repente, eles estão lutando, tropeçando com o braço de um ao redor dos ombros do outro,

como dois bêbados, grunhindo, se xingando e batendo de frente, rindo tanto que mal conseguemficar de pé. Os quepes saem voando quando puxam as orelhas um do outro. Isso dói e riem aindamais, agora estão engasgando, seu merda, cagalhão, cuzão, veadinho, Mango golpeia Billy comuns uppercuts dolorosos, Billy enfia um punho no sovaco de Mango e lá vão eles, girando para aesquerda e caindo como uma roda de oleiro e um pote de cerâmica rolando pelo chão. Possoajudar vocês?, alguém está gritando, entrando e saindo do caminho. Senhores! Amigos, caras, euposso ajudar vocês? Ei!

Billy e Mango se afastam, vermelhos, ainda rindo. O vendedor — gerente da loja? Um carabranco de meia-idade com cabelo ralo — também está rindo, mas claramente é uma situaçãochata para ele, porque é óbvio que está lidando com dois malucos. Todo mundo, funcionários,clientes — os poucos que não foram embora — estão bem afastados deles.

— Isso é couro? — pergunta Billy, erguendo uma das mangas de uma jaqueta bomber daprateleira. — Porque o idiota aqui está tentando me dizer que é couro falso.

— Ah, não, senhor — diz o gerente —, é couro legítimo.Ele está dando uma risadinha, sabe que os dois estão gozando dele, mas, feito um dos homens

direitos que desde tempos imemoriais têm como trabalho trazer ordem a um mundo doente eridículo, ele começa uma rica descrição daquela jaqueta de couro de flor integral de cordeirotingido, o curtimento especial e os processos de tingimento à base de anilina e assim por diante,sem mencionar as qualidades superiores de confecção do casaco. Ah ahã, ah ahã, ah ahã, osBravos o escutam com a expressão absorta de homens das cavernas que observam pipocaestourar.

— Tá vendo, seu retardado... — Billy soca o ombro de Mango. — Eu falei que era couro.— Como se você entendesse muito de moda. Aposto que você não está nem usando cueca...Eles se golpeiam, começam a brigar, mas o Ei! do gerente engolindo em seco os distrai.— Então, ahn. Você vende muitos desses casacos? — pergunta Billy, apontando uma das

jaquetas.— Cinco ou seis por jogo. Quando o time está ganhando, as vendas são ainda melhores.— Porra. Seu pessoal está faturando, hein?O gerente sorri.— Eu acho que dá para dizer isso.Os Bravos agradecem ao gerente e vão embora.— Cara — diz Mango quando eles já estão do lado de fora. — Seiscentos e setenta e nove

dólares, Billy — comenta ele. — Caralho.E isso é tudo o que eles falam sobre o assunto.

A resposta humana

— Quinze milhões — está dizendo Albert enquanto Billy e Mango voltam a seus lugares. —Quinze vivos contra quinze por cento bruto, uma estrela consegue isso quando está brilhando. EHilary anda brilhando muito. O agente dela não deixa ela ler sem uma garantia.

— Ler o quê? — pergunta Sykes.Os olhos de Albert se viram devagar em sua direção, seguidos pela cabeça.— O roteiro, Kenneth.— Mas eu achei que você tinha falado que a gente não tem um roteiro.— E não tem mesmo, mas a gente tem um projeto e a gente conseguiu um escritor. E agora

que a Hilary está interessada, a gente pode moldar isso de um jeito que desperte o interesse dela.— Eu adoro quando ele fala assim — diz Dime.— Olha, o roteiro não é o problema, só contar a sua história já vai dar algo interessante. A

parte difícil é fazer essa porra chegar na mão dela.— Você disse que conhecia ela — lembra Crack.— Porra, eu conheço! Expulsaram a gente da casa da Jane Fonda uns meses atrás! Mas isso

são negócios, garotos, tudo o que ela lê tem que passar pelo agente dela, e ele não vai deixar aHilary nem tocar num roteiro que não tenha uma proposta séria de um estúdio. Desse jeito elasabe que se disser sim, o estúdio está no papo. Ela não pode ser recusada.

— Hã... então, a gente tem um estúdio? — pergunta Crack.Ele sabe que deveria saber a resposta, mas tudo acerca do acordo parece ser muito abstrato.— A gente não tem, Robert. Tem muita gente interessada, mas ninguém quer se comprometer

até que uma estrela se comprometa.— Mas a Hilary não vai se comprometer até eles se comprometerem.Albert sorri.— Exatamente.Os Bravos emitem um ahhhhh de compreensão. O paradoxo é tão perfeito, tão circular, que

todo mundo consegue identificá-lo.— Isso é meio escroto — comenta Crack.— É — concorda Albert. — Muito escroto.— Então, como você vai fazer para as coisas darem certo? — pergunta A-bort.— Fazendo com que o filme seja inevitável. Fazendo isso ter uma puta força. Fazendo aqueles

caras ficarem morrendo de medo de que outra pessoa vá comprar o roteiro, aí eles vão ter que secomprometer com o projeto ou a cabeça deles vai acabar explodindo.

— Pessoal — anuncia Dime —, acho que descobri o que o Albert faz.Billy e Mango estão sentados no fim da fileira, depois estão Crack, Albert, Dime, Day, A-bort,

Sykes e Lodis, então vem um lugar vazio para o major Mac. Billy percebeu que Albert nuncafica longe de Dime. Não que aqueles Bravos precisassem de qualquer prova de quão especial é osargento deles, mas mesmo assim ganharam uma por conta de Albert e sua fascinação

instantânea diante do líder do Bravo. Billy tinha chegado à conclusão de que Albert viraria gaypor Dime, em um sentido não sexual. Dime desperta seu interesse, o Dime pessoa e o Dimesoldado, o fenômeno completo de Dimezação espalha-se por um mundo careta e inocente. Nopanteão das atenções de Albert, Dime vem em primeiro lugar e Holliday em uma distantesegunda posição, e mesmo esse parece mais um interesse pela proximidade, condicional,complementar. Uma das funções de Day é ser a nódoa preta do yin na brancura yang de Dime.Day não se digna a reparar em seu status secundário, tipo agora, por exemplo, que Albert e Dimese aproximam para conversar baixinho enquanto Day se empoleira nas costas de sua cadeira,observando o campo feito um rei africano em seu trono, olhando para baixo, para todos aquelessúditos de merda. E, quanto aos demais Bravos, eles poderiam muito bem ser considerados açõescorporativas que falam, andam e bebem um monte de cerveja.

— Dime é a propriedade — como murmurou Day para Billy na noite passada, em um raromomento de sinceridade bêbada repleta de ressentimento. — O resto de vocês é só prozuto.

E Shroom era o quê? Shroom e Lake também eram prozutos? A conversa do Bravo nesses diasé sempre sobre dinheiro, dinheirodinheirodinheiro, como se fosse um inseto zumbindo nocérebro ou um hamster girando sua roda guinchante, uma conversa acelerada que não dá emlugar nenhum. Billy preferiria passar para outros assuntos, mas ele não vai contar com oscompanheiros do Bravo para isso. Do jeito como eles ficam obcecados, é como se um grandepagamento envolvesse mais do que mero poder de compra, é como se X dólares parados nobanco pudessem fazer você passar ileso pela guerra. Ele conhece a lógica espiritual da coisa, maspara ele a equação funciona ao contrário. O dia que o dinheiro aparecer, o dia exato que odinheiro cair na conta dele, vai ser o dia em que ele vai levar um tiro.

Por isso, ele se liga na conversa sobre o filme com sentimentos conflitantes. O Bravobombardeia Albert com perguntas. E o Clooney? O que está acontecendo com o Oliver Stone? Eo cara que disse que podia conseguir o Robert Downey Jr.? E então o distinto cavalheiro sentadoatrás de Albert se inclina para a frente e pergunta se ele é do ramo cinematográfico.

Albert congela, pende a cabeça para o lado, como se ouvisse o canto de um pássaro raro emaravilhoso.

— Ora, sou — responde com doçura. — Sou da indústria cinematográfica.— Diretor? Escritor?— Produtor — admite Albert.— Los Angeles?— Los Angeles — confirma Albert.— Olha só, eu sou advogado. Trabalho defendendo acusados de crime do colarinho-branco e

tive uma ideia ótima para um roteiro tipo um thriller jurídico. Quer ouvir?Albert diz que adoraria, desde que o advogado consiga descrever o roteiro em vinte segundos

ou menos. Enquanto isso, uns vinte e poucos jogadores do Cowboys entraram em campo ecomeçaram a se aquecer. Isso não é o aquecimento de verdade, explica Crack, que jogou um anona liga universitária pela Southeast Alabama State, mas o aquecimento pré-aquecimento para oscaras que precisam se alongar mais. A atenção de Billy é logo atraída para o punter do Cowboys,um camarada de ombros caídos, rosto largo, pançudo e quase careca, do tipo que vocênormalmente encontraria atrás do balcão do açougue do seu supermercado, exceto pelo fato deque consegue chutar uma bola até o fim do mundo, e ela ainda quica e volta. Puuf, o baquepesado de cada chute ressoa dentro de Billy enquanto a bola descreve um arco inclinado, bemalto, para a frente e para cima, sem parar, seu olho vacila no ponto onde a bola deveria estabilizare ela continua a subir ainda mais, como se tivesse recebido algum impulso invisível, e vai direto

na direção da abertura no teto. Billy tenta determinar o ponto máximo absoluto, aquele instantede flutuação neutra em que a bola está suspensa ou oscila; ele para de verdade por um instantecomo se medisse a queda que, todavia, começa enquanto o nariz rodopia com uma elegâncialânguida, e há uma aparência de rendição, de uma grata renúncia, enquanto a bola se rende aofado da gravidade. Depois de sete ou oito chutes, Billy sente uma espécie de vaporização interioracontecer, uma diluição ou relaxamento da autoconsciência. Ele se sente calmo. Observar okicker é relaxante para a mente. Os momentos de pico são os que mais lhe dão prazer, um arrepioem seu cérebro, como se pequenos raios o atingissem quando a bola se aproxima dos limitesmais baixos da eternidade. E, enquanto a bola permanece no topo do arco, é como se a felicidadepor não estar pensando em nada fosse um animal cuja barriga ela acaricia. Billy consegueimaginar que é onde Shroom vive agora, ele é um cidadão do reino da flutuação neutra. É umtipo de pensamento infantil e sentimental, mas, por que não, se Shroom tinha que estar em algumlugar, então por que não lá? O Bravo tinha sido reduzido, desde então, a um prozuto best-seller;no entanto, mesmo o marketing não conseguia pôr suas garras em Shroom.

É relaxante assistir aos chutes, algo tão cativante, a seu modo, quanto observar peixinhosdourados nadarem em um lago ornamental. Billy ficaria feliz em observar chutes pelo resto datarde, se não fosse pelos torcedores atrás dele que começam a bater em suas costas, gritando:Olha! Olha! Saca só o telão! E ali, no telão, surgem os oito Bravos em operação, literalmentegigantes, mais Albert, que está sorrindo como um novo e orgulhoso papai. Pequenasconcentrações de aplausos começam aqui e ali. Os Bravos assumem posturas de indiferençamáscula. Basicamente, eles estão tentando não olhar para si mesmos no telão, mas Sykes está tãocheio de si com a situação que começa a gritar desaforos e a gesticular como se fosse de umagangue. Ele manda um homem calar a porra da boca, mas depois de um instante a tela corta acena para bandeiras tremulando, uma animação de bombas explodindo contra um fundo deespaço sideral estrelado, e de dentro dessas imensas profundidades escuras, de repente, letrasbrancas vêm, de repente, em close, para o primeiro plano

O TIME AMERICANO, ORGULHOSAMENTE,HOMENAGEIA OS HERÓIS AMERICANOS

que desaparece, abrindo espaço para uma segunda onda

O DALLAS COWBOYS

DÁ AS BOAS-VINDAS AOS HERÓIS DO CANAL AL-ANSAKAR!!!!!!!

1º SGT. DAVID DIME

1º SGT. KELLUM HOLLIDAY

CB. LODIS BECKWITH

CB. BRIAN HEBERT

CB. ROBERT EARL KOCH

CB. WILLIAM LYNN

CB. MARCELLINO MONTOYA

CB. KENNETH SYKES

Como se sugando a energia através do respiradouro, os aplausos aos poucos ganham volume edensidade. As pessoas andando nos corredores param e se viram. Os torcedores atrás do Bravoficam de pé, o que dá início a uma ovação vagarosa que começa na seção onde eles estão e segueem direção à parte de trás em uma onda que desafia a gravidade. Logo, o telão corta para umcomercial hiperativo de caminhões Chevrolet, mas foi tarde demais, as pessoas já estão seencaminhando em direção ao Bravo e não há meios de evitar ou escapar disso. Billy se levanta eassume a postura adequada para ocasiões como esta, as costas eretas, o peso equilibrado sobre ocentro de gravidade, uma expressão reservada porém cordial em seu rosto jovem. Ele chegou aesse estilo mais ou menos por instinto, esse caráter tenso, estoico do norte-americanismomasculino definido por diversas gerações de atores de cinema e de TV que, de maneiraconveniente, o provêm de uma maneira de ser que não demanda muita reflexão. Você diz umaspoucas palavras, de vez em quando sorri. Deixa seus olhos parecerem um pouco cansados. Vocêé, incessantemente, modesto e gentil com as mulheres, firme ao apertar a mão e fazer contatovisual com os homens. Billy sabe que tem uma boa aparência ao fazer isso. E deve ter mesmo,porque as pessoas compram totalmente isso; na verdade, elas perdem um pouco a noção.Perdem! Elas chegam mais perto, empurram e se atropelam, agarram o braço dele e falam altodemais e algumas vezes até soltam pum para dar vazão ao estresse. Depois de duas semanascheias de aparições públicas, Billy continua admirado com a reação do público, as vozes altas evacilantes e os padrões dos discursos desvairados, a linguagem inarticulada cuspida da boca decidadãos que aparentam ser bem-ajustados. Nós agradecemos, dizem eles, suas vozes trêmulascomo as de um amante. Às vezes eles vêm direto e dizem A gente adora vocês. Somos tãogratos. Adoramos e abençoamos vocês. Nós rezamos, temos esperança, honra-respeito-amor-e-admiração e eles têm mesmo, no ato de falar eles experimentam as palavras poderosas, essesarabescos verbais que chispam e crepitam nos ouvidos de Billy com se fossem mosquitos sechocando contra uma raquete elétrica

Ninguém cospe, ninguém o chama de assassino de bebês. Ao contrário, as pessoas nãopoderiam oferecer mais apoio ou ser mais amáveis, mas ainda assim Billy acha esses encontrosestranhos e assustadores ao mesmo tempo. Há algo irritante em seus camaradas norte-americanos, ávidos, maravilhados, uma chama alimentada pela necessidade mais profunda. Éassim que vê a situação, todos eles precisam de alguma coisa de Billy, esse bando semirrico deadvogados, dentistas, mães cuja vida gira em torno dos filhos e vice-presidentes de empresas,todos eles disputando a atenção de um recruta que mal é adulto e que ganha pouco mais de mildólares por mês. Para esses adultos, pessoas abastadas, ele é só uma merreca em sua contapessoal, mas mesmo assim perdem a compostura quando se aproximam dele. Tremem. Respiram

em bafejos fedorentos e acelerados. Ficam com um olhar louco e trêmulo com a intensidade domomento, porque ali, enfim, diante deles, está a guerra em pessoa, um verdadeiro contato depoisde todos os meses e anos lendo sobre a guerra, assistindo à guerra na TV, escutando a guerra seranunciada e repetida no rádio. Têm sido tempos difíceis nos Estados Unidos — como foi que agente chegou a isso? O tempo todo tão assustados e tão envergonhados desse medo no decorrerdas longas noites escuras, de preocupação e receio, dias de boatos e dúvidas, anos de ficar àderiva e de uma aflição que lentamente se calcifica. Você ouviu, leu, assistiu e era tão, mas tãoóbvio o que precisava ser feito, um mantra repetido como um tique nervoso, que se tornou umaresposta instintiva à medida que a guerra se arrastava. Por que eles não... Mandam mais tropas.Fazem as tropas lutarem mais. Aumentam a blindagem e atacam de frente, vão com tudo, e nãofazem prisioneiros. E, por falar nisso, os iraquianos não tinham que estar agradecendo à gente?Alguém avisa para eles, por favor? Vocês avisam? Ou, quem sabe, eles queiram o ditador delesde volta. Se não der certo, bombardeiem logo aquele lugar. Jogue mais bombas, bombas maispotentes. Mostre para eles a fúria divina, o que é submissão, e se isso não funcionar, então uselogo as bombas atômicas, acabe com tudo aquilo lá, recomece com corações e mentesrevigorados, uma remoção nuclear da alma do país.

Os norte-americanos lutam a guerra diariamente em suas exigentes vidas íntimas. Billy sabeporque aqui, no ponto de contato, ele sente o ardor todos os dias. Em geral, é literalmente o toquedeles, um choque que os atravessa quando apertam as mãos, um zape de uma vivacidadereprimida de guerreiro. Para muitos deles, este é o Momento: a provação dele se torna a deles evice-versa, ocorre algum tipo de transferência mística e isso é de mais para a maioria deles, ajulgar pelo modo como engasgam quando ficam tensos. Gaguejam, engolem em seco, dá umbranco na cabeça e se atrapalham, não conseguem dizer todas as coisas que querem ou, paracomeço de conversa, nunca souberam as palavras para dizê-las, então eles voltam ao padrão dosvelhos hábitos. Querem autógrafos. Fotos com o celular. Dizem obrigado repetidas vezes e comum fervor crescente, sabem que estão sendo bons aos agradecerem às tropas e seus olhos brilhamde adoração a si mesmos e a esta prova concreta de suas bondades. Uma mulher irrompe emlágrimas, tão esmagadora é a sua gratidão. Outra pergunta se nós estamos vencendo e Billy dizque estamos trabalhando duro.

— Você e seus irmãos soldados estão preparando o caminho — murmura um homem.E Billy sabe que é melhor não perguntar aonde esse caminho leva. O próximo homem aponta,

quase tocando a Estrela de Prata de Billy.— É um equipamento sério esse que você tem — diz ele com aspereza, esboçando uma

afeição seca, de homem experiente.— Obrigado — responde Billy, embora isso nunca pareça ser bem a resposta certa.— Eu li o artigo na Time — continua o homem, e agora ele toca o metal, o que parece quase

tão lascivo quanto se tivesse esticado a mão e tocado as bolas de Billy. — Tenha orgulho, vocêfez por merecer.

E Billy pensa, sem rancor, Como é que você sabe? Muitos dias atrás, ele estava fazendo umaaparição na TV local e o imbecil-erudito falastrão de um repórter apareceu e perguntou: “Comofoi isso? Ser alvo de tiros, atirar. Matar gente, quase ser morto. Ver amigos e companheirosmorrendo bem na sua frente.” Billy cuspiu balbucios sem sentido, mas à medida que sua cabeçarealizava outra conexão, um estranho começou a falar, sussurrando as palavras verdadeiras queBilly não podia dizer. Foi duro. Foi uma merda do caralho. Era o sangue e o espírito do pioraborto do mundo, o menino Jesus sendo defecado em pedacinhos.

Billy não procurou o feito heroico. Não. O feito veio até ele, e o que ele teme como um câncer

no cérebro é que o feito venha atrás dele de novo. Bem na hora em que ele acha que nãoconsegue mais ser educado, o último dos admiradores vai embora e o Bravo retoma seus lugares.Então Josh aparece e a primeira coisa que ele diz é: Onde é que está o major McLaurin?

Dime reage com naturalidade.— Ah, ele falou que precisava tomar os remédios dele.— Os remé... — começa Josh, mas se contém. — Ah, vocêêêêês...A própria imagem dos jovens corporativos dos Estados Unidos em ação, este é Josh. É alto,

forte, bonito como um modelo da J.Crew, com o nariz reto e fino como uma agulha de compassoe cabelos pretos brilhantes e sedosos, cuja visão provoca uma coceira subliminar na levepenugem dos couros cabeludos dos Bravos. Já foi tema de certo debate se Josh é ou não gay, e oconsenso foi que não, ele é apenas mais uma bichinha do mundo corporativo.

— Ele é um daqueles metrossexuais — disse Sykes, e depois disso todo mundo concordou queSykes era gay só por saber uma palavra dessas.

— Bem — diz Josh —, acho que ele vai aparecer. Estão a fim de almoçar?— A gente quer conhecer as líderes de torcida — diz Crack.— É — concorda A-bort —, mas a gente quer comer também.— Certo, aguenta aí.Josh conversa em seu walkie-talkie. Os homens trocam olhares de “mas que porra é essa?”. O

Cowboys, a elogiada organização, parece estar improvisando quando o assunto é o Bravo, comum planejamento que fica entre meia-boca e de merda. Durante uma calmaria na confabulaçãodo walkie-talkie, Billy se aproxima de Josh e este, sempre alerta, se acocora com flexibilidade aolado de seu assento.

— Advil — diz Billy. — Você conseguiu arranjar um...— Ai, merda! — exclama Josh em um sussurro intenso. — Desculpa — diz com a voz normal

—, desculpa, desculpa, juro que vou encontrar um.— Obrigado.— Ainda de ressaca? — pergunta Mango, e Billy apenas balança a cabeça.Uma noite, oito homens e quatro clubes de striptease, tudo sem qualquer objetivo além do

boquete no final, lembranças que fazem ele querer atirar em si mesmo. Aquilo foi como umavisita ao dentista, um trabalho de sucção de força bruta, a lembrança da cabeça daquela garotarebolando em seu colo. Carma ruim, com certeza. Billy ultrapassou o limite da sua contacármica, aquela contabilidade constante do bem e do mal que Shroom descreveu para ele como aexpressão, a cristalização mental, por assim dizer, de uma grande disputa cósmica rumo à justiçadefinitiva. Billy vasculha o campo, mas o punter foi embora. Seu olhar varre a parte superior doestádio e alcança o ponto onde os chutes foram mais altos, mas é apenas ar, ele precisa de umamarca concreta da trajetória em arco dos chutes para ter aquela vibração de Shroom pairando dooutro lado.

Shroom, Shroom, o Forte Shroom da Destruição, que profetizou a própria morte no campo debatalha. Quando seu serviço terminasse e ele recebesse sua dispensa, iria fazer uma jornada deayahuasca até o Peru, “para ver o Grande Lagarto”, como ele disse, “a não ser que os árabes medespachem primeiro”. A não ser. Adivinha só. E naquele dia Shroom soube. Não foi esse osignificado do último aperto de mãos deles? Shroom se virando no assento bem na hora em queeles atingiram aquela merda, Mango já abrindo fogo com a .50 enquanto Shroom se esticava paratrás e pegava a mão de Billy.

— Tô dando baixa — gritou ele em meio ao barulho, o que, na hora, Billy ouviu como um tá.“Tá dando baixa.”

Sua audição completando a frase esquisita para que as palavras fizessem sentido. Mais tardeele voltaria àquele momento e saberia o que tinha acontecido, as palavras e os olhos de Shroomcom uma sugestão de distância, como se ele estivesse olhando para Billy do fundo de um poço.

Se Billy pensa no assunto por mais que alguns segundos, um murmúrio sintetizado começa emsua cabeça, como um enorme crescendo de alguém tocando um órgão, não os débeis balidos debezerro que eles tocaram no funeral de Shroom, mas uma massa ensurdecedora de fortes acordes,o rimbombar de uma onda enquanto ela avança, sem ser vista, nas profundezas do oceano.Assustador como todas essas merdas, não que ele lute contra isso; o grande som pode ser Deusbatendo na sua cabeça ou uma verdade essencial primorosamente codificada, ou talvez as duascoisas, ou quem sabe eles sejam uma única e mesma coisa, então coloca isso na porra do seufilme, se você puder. Vocês eram muito amigos?, perguntou o repórter do Ardmore Daily Star.

— É — disse Billy —, a gente era bem amigo.Você pensa muito nele?— Penso — respondeu Billy —, penso muito nele.Tipo, todos os dias. Todas as horas. Não, a cada poucos minutos. Cerca de uma vez a cada dez

segundos, na verdade. Não, é mais como uma imagem permanentemente gravada em sua retina,Shroom vivo e alerta, depois morto, vivo, morto, vivo, morto, seu rosto indo para a frente e paratrás, sem parar. Ele viu os iraquianos arrastando Shroom para a grama alta e pensou Ai, caralho,ou talvez tenha sido só Caralho, esta foi a profundidade das reflexões de Billy enquanto elerastejava e começava a correr. O mais estranho, no entanto, é que ele continuou com estasensação, enquanto se colocava de pé, de saber exatamente como aquilo ia acabar, a imagemmental tão distinta que se transformou em um tipo de dupla consciência que perdura até hoje. Alembrança dele da batalha é quase inteiramente um borrão vermelho e quente, mas a recordaçãopremonitória é nítida e clara. Billy se pergunta se todos os soldados que fazem essas coisasextremas ganham uma breve visão sobre um futuro muito específico, essa agudeza telescópica dotempo e do espaço que instila a motivação para fazerem o que fazem. Os que sobrevivem, talvez.Quem sabe todos eles pensem que veem, mas os que morrem, estes estavam enganados. Só osque sobrevivem têm permissão de se sentir clarividentes e perspicazes, embora ocorra a ele,agora, que Shroom também enxergou com igual clareza, apenas com o resultado oposto.

Entendido, Shroom. Billy sente que tem muito no que pensar de uma vez só, acordos parafilmes e entrevistas e o que significa usar uma medalha, mais aquela coisa hard-core por trásdisso tudo, os fatos primordiais e, por fim, insondáveis do envolvimento deles com as margensdo canal de Al-Ansakar. Sua mente não fica tranquila. Você não está doente, mas não estáexatamente bem. Existe um leve senso de que algo está pendendo ou de uma perigosaincompletude, como se sua vida tivesse se adiantado e fosse preciso algum tempo para deixarque ela volte e se preencha. Parece uma boa definição essa compreensão da questão do tempo,aqui está a possível estaca zero a partir da qual começar, mas nesse momento Josh dá ocomando, Almoço!, e eles se põem de pé. Uma pequena onda de aplausos rola das arquibancadas,e Sykes, o idiota, acena para a multidão como se fossem todos para ele. Josh os guiacorajosamente para a escada, e é uma caminhada difícil e vagarosa até o topo, arrastando-seenfileirados como aqueles pobres coitados perto do fim do Titanic, lutando contra os terríveisvazios de céu e mar. Se relaxar, mesmo que por um segundo, a coisa leva você, e é assim que aestratégia é revelada: Não relaxe. Quando chegam ao saguão, Billy se sente melhor. Josh osconduz por uma rampa em espiral onde o vento se divide em redemoinhos fortes, arremessandolixo e poeira em pequenos acessos de raiva. Um tipo de efeito aglutinante surge no caminho doBravo conforme as pessoas param, gritam, ficam embasbacadas ou sorriem de acordo com suas

convicções políticas e personalidades, e o Bravo passa por isso tudo de forma educada einexorável, uma implacável formação em cunha avançando até que a equipe de uma rádio comprogramação em espanhol detém Mango para uma entrevista, e toda aquela boa energia saudávelvai para o brejo. As pessoas os cercam. O ar fica úmido com o desejo. Eles querem palavras.Querem contato. Querem fotografias e autógrafos. Os americanos são incrivelmente educadosdesde que consigam o que querem. Com as costas junto ao corrimão, Billy se vê ocupado comum casal que parece bem-sucedido, são de Abilene e estão acompanhados do filho e da nora. Osjovens parecem constrangidos pelo entusiasmo dos parentes, não que os mais velhos deem amínima para isso.

— Eu não conseguia parar de assistir! — exclama a mulher para Billy. — Foi que nem noOnze de Setembro. Eu não conseguia parar de ver aqueles aviões batendo nas torres, não dava, oBob teve que me arrastar para longe.

O marido, Bob, um cavalheiro alto, de ombros curvados e olhos azuis, assente com a calma deum homem que aprendeu a pegar leve com uma mulher ligada no duzentos e vinte volts.

— A mesma coisa com vocês todos, quando a Fox News começou a mostrar aquele vídeo.Sentei na frente da televisão e não me levantei por horas. Estava tão orgulhosa, tão... — elatropeça no pântano de quem tenta se expressar — ...orgulhosa — repete. — Era como se, graçasa Deus, a justiça estivesse finalmente sendo feita.

— Foi como um filme — concorda a nora, entrando no clima.— Foi. Eu tinha que ficar repetindo para mim mesma isso é de verdade, esses são soldados

norte-americanos de verdade, lutando pela nossa liberdade, isso não é um filme. Ai, meu Deus,fiquei tão feliz naquele dia, fiquei mais aliviada que qualquer outra coisa, como se a genteestivesse finalmente fazendo eles pagarem pelo Onze de Setembro. Agora — ela dá uma pausapara conseguir respirar —, qual deles é você?

Billy, educadamente, se apresenta e não diz mais nada, e a mulher, como que sentindo que erauma pergunta delicada, não pressiona. Em vez disso, ela e a nora embarcam em uma declamaçãoem dupla de sentimentos patrióticos, estão apoiando cem por cento o Bush a guerra as tropasporque defender zzzzzzzz entre as nações zzzzzzzz tudo-bem-pessoaaal zzzzzzzz zzzzzzzzzzzzzzzz, a senhora continua a se inclinar na direção de Billy, dando tapinhas no braço dele, oque o induz a um transe somático de baixa intensidade. Assim, ele se sente confortavelmentedopado quando a tampa de seu crânio se retrai e seu cérebro flutua livre para o ar congelante

ATENÇÃO BRAVO

JUNTEM SEUS PANOS DE BUNDA!

Não importa a idade ou a situação de vida, Billy só consegue considerar seus compatriotasumas crianças. Eles são impertinentes, orgulhosos e têm a mesma certeza de crianças espertasque foram abençoadas com muita autoestima, e nem todos os sermões do mundo vão convencê-los do estado de puro pecado para o qual a guerra se inclina. Billy tem pena deles, desdenhadeles, ama e odeia essas crianças. Americanos são crianças que precisam ir a outro lugar paracrescer e, algumas vezes, para morrer.

— Cara, aquela mulher lá atrás — diz Crack quando eles voltam a andar. — A loura com osfilhos pequenos. Quando o marido dela estava tirando uma foto nossa, ela estava esfregando abunda no meu pau.

— Conta outra.— É sério! Ela me deixou de pau duro, cara. Ficou esfregando a bunda bem ali. Mais cinco

segundos e eu ia gozar, não estou brincando.— Ele está mentindo — acusa Mango.— Juro por Deus! Depois fiquei tipo, ei, me dá seu e-mail, vamos manter contato enquanto eu

estiver lá no Iraque, e ela fingiu que não sabia do que eu estava falando. Vaca.Mango objeta, mas Billy pensa que provavelmente é verdade — mulheres vão à loucura por

causa de um uniforme. Ele fica alguns passos atrás e olha o celular. O Pastor Rick mandou outramensagem da Bíblia para...

Sabei que o Senhor é Deus; foi ele quem nos fez, esomos dele; somos o seu povo e ovelhas do seu pasto.

O cara é incansável, ele é um vendedor de carros usados na pele de um cordeiro. Billy apaga amensagem, se perguntando se dá azar ignorar um pastor, mesmo que um imprestável.

— Você não está com frio? — pergunta uma mulher passando por ele, e Billy sorri e balança acabeça: Não, senhora.

Ele não está mesmo, não que não inveje os torcedores em seus casacos de pele suntuosos,parcas acolchoadas, luvas em forma de pata de urso e toucas ninja. Muitos homens estão usandopeles, isso sim é moda. De repente, o major Mac começa a andar ao lado dele.

— Major Mac, senhor!Major lança um olhar dopado para Billy, que se lembra de elevar a voz.— A GENTE TAVA PREOCUPADO COM O SENHOR! A GENTE NÃO SABIA AONDE

O SENHOR TINHA IDO!O major franze o cenho.— Ande rápido, soldado, eu estava aqui. E não fique com esse olhar confuso.Afirmativo. Na cabeça do major ele sempre estivera bem ali, e para um recruta isso é tudo o

que importa, entendido SENHOR! Billy fica nervoso e constrangido, alerta como um filhote deperdigueiro, enquanto o major caminha a passos largos junto a ele, observando de maneirapensativa seus sapatos. Anda, idiota, Billy diz a si mesmo. Quando é que você vai ter umachance melhor que esta? Ele precisa de alguns conhecimentos que o major Mac pode ter, deconhecimento e conselhos em relação à morte, à dor, ao destino da alma. Ao menos ele buscaformas de verbalizar tais assuntos sem estragar o poder bastante real que possuem. Quando aspessoas perguntam se ele reza, se é religioso ou, especificamente, se foi salvo ou se é cristão,Billy sempre responde que sim, em parte porque isso deixa as pessoas felizes e em parte porquesente que isso é quase verdade, embora, provavelmente, não seja do jeito que eles estãopensando. O que gostaria de dizer é que ele viveu isso, se não toda a extensão e profundidade dafé cristã, com certeza seu aspecto central. O mistério, a reverência, aquela imensa tristeza epesar. Ah, meu povo. Ele sentiu a alma de Shroom deixar o corpo no momento de sua morte, umvuuum! cegante, como um fio de alta-voltagem explodindo, deixando Billy com todos oscircuitos queimados e um atordoamento que perdura, como se ele tivesse apanhado de um peso-pesado que sabe como bater. Um tipo de concussão, foi isso. Algumas vezes Billy acha que seusouvidos ainda estão retinindo.

A alma é uma coisa verdadeira e tangível, agora Billy sabe disso. Durante duas semanasesteve viajando por esta nossa grande nação com a franca crença de que, mais cedo ou maistarde, ele encontraria alguém que pudesse explicar a experiência que teve, ou que pelo menosdesconstruísse a questão e a reconstruísse da maneira adequada. Teve o pastor Rick, para quemele se confessou em um momento de fraqueza, mas o pastor acabou se mostrando um egoísta péno saco. Dime é próximo demais da situação e, de qualquer maneira, Billy precisa de alguémcom o perfil de um homem adulto estável. Durante um tempo, pensou que Albert pudesse ser ocara, um homem com grande experiência e educação impressionante que parecia saber muitosobre muitas coisas, além de conseguir falar pelos cotovelos, mas, nos últimos tempos, Billydesanimou. Não que falte compaixão a Albert — muito embora haja aquele jeito frio com que eleolha para você de vez em quando, como se você fosse a próxima mordida do hambúrguer dele—, mas existe a ironia com a qual ele vê todos os lados, incluindo o próprio. Albert é sábio emrelação a si mesmo, como todo homem no mundo deve ser, mas é justamente essa sabedoriaentranhada que o limita na maneira como Billy mais precisava dele.

O que faz com que o major Mac seja o melhor candidato disponível — major Mac, a esfinge,o zumbi, o espectro que raramente fala e nunca debocha, o cara que, durante quarenta por cento

do tempo, parece estar sessenta por cento presente. Aquele major Mac. Portanto, é em um estadode extrema frustração que Billy acompanha o oficial superior pelo saguão. Ele quer saber o queaconteceu naquele dia em Ramallah. O major perdeu homens naquele dia? Amigos? Ele os viumorrer? Billy sente uma terrível necessidade de estabelecer um elo, de coração a coração, dehomem a homem, de guerreiro a guerreiro, ele anseia por aquela sabedoria bruta e necessária e,ainda assim, mal consegue lidar com o papo superficial com os oficiais, quanto mais decifrar ocódigo do vazio do major para ter acesso a algo tão real e pessoal. Como é que vai conseguirquebrar o gelo? EI, MAJOR, SACA SÓ, ELES TÊM CHOPE DA HEINEKEN! Ele sente aoportunidade escapar quando Josh os desvia para um corredor lateral, para uma escada rolante deacesso restrito. Uma dupla de seguranças musculosos e desconfiados usando terno e gravata dáuma olhada nas credenciais do Bravo e acena para que entrem.

— Cara, escada rolante para o paraíso — grita Sykes à medida que a escada os leva para cima,como se seu comentário tivesse sido muito sagaz.

De pé com um respeitoso degrau de diferença abaixo do major, Billy decide que não adiantater esperanças. A ele faltam a ousadia e também a capacidade de embromação, e ainda tem adeficiência do major e o sentimento que decorre dela de que certos assuntos não deveriam serdiscutidos aos gritos. Morte, sofrimento, o destino da alma, esses temas imploram por conversasem tom de consideração sóbria, você não pode ficar berrando perguntas e respostas para essascoisas e esperar chegar a algum lugar.

Então ele não diz nada, não que o major repare nisso. Eles saem da escada rolante e entram emum andar chamado “Nível Estrela Azul”, e Josh os conduz a um elevador onde se lê ÁREARESTRITA — APENAS SÓCIOS DO CLUBE DO ESTÁDIO. Ele passa um cartão em umpequeno aparelho eletrônico de acesso e todo mundo entra. Dois casais bem-vestidos juntam-se aeles para a subida, são velhos o bastante para serem pais de qualquer um do Bravo, mas odinheiro faz com que pareçam dez anos mais jovens. Ninguém cumprimenta ninguém. As portasse fecham, concentrando os perfumes das mulheres, um pungente aroma cítrico e almiscarado,como limoeiros no calor. O elevador acabou de se pôr em movimento quando a necessidaderebomba no intestino de Billy, antecedendo uma monstruosa eructação anal. Ele se segura comtoda a força e aguenta firme. Um tremor quase imperceptível corre por entre os Bravos; muitosoutros estão enrijecidos, trocando o pé em que se apoiam, abrindo e fechando os punhos. Ai,Deus, por favor, aqui não, agora não. Eles rangem os dentes e olham para a frente. Por que oconfinamento irrita de maneira tão certeira o trato intestinal do homem de combate?

Dime fala com a dureza de alguém que nasceu para liderar.— Cavalheiros. — Ele faz uma pausa. — Nem pensem nisso.

Por conta disso muitos se tornam um

Aproximando-se do suntuoso bufê, Sykes continua a chamar aquilo de “brunch”, como se issofizesse dele algum garanhão metrossexual e poderoso, até que Dime finalmente diz a ele paracalar a boca, isso é almoço, ou banquete de Dia de Ação de Graças, se você quiser usar umtermo técnico, e de fato eles estão diante de uma refeição orgiástica digna de cartão-postal, quasevinte metros com comidas tradicionais de festas de fim de ano e receitas novas, reluzindo comoum anúncio em uma revista encartada no jornal de domingo. Billy apanha um prato limpo dapilha e pensa que talvez queira vomitar. É demais para sua ressaca, todos os montões, nacos,fatias finas, pilhas e montanhas de substâncias comestíveis parecendo um sistema complexo defortificações defensivas, e é essa coisidade, a pura densidade de moléculas em exibição, que lhedá ânsias. Ele fica ali de pé, oscilando por um instante — será que não vai aguentar? —, entãoseu estômago reivindica sua necessidade primitiva e ronca.

— Recarregando as energias, pessoal — diz Dime a eles. — Depois a gente vai conversarsobre como é que as pessoas comuns vivem.

Com os aromas de molhos e móveis lustrados, esta é, claramente, a festa do jogo para ossócios do country club. Você paga dez dólares só para passar da porta, depois quarenta maisimposto e taxa de serviço pela refeição — grátis para heróis, diz Josh, ao que cada Bravoresponde com verdádji —, embora o lugar não tenha uma aparência muito impressionante, é umespaço desconexo, com pé-direito baixo, um bar em uma das pontas e, na outra, janelas de alto abaixo com vista para o campo. A iluminação é uma paleta de irritante altercação entre luz suavee forte, a garoa cor de manteiga rançosa das luminárias na parte de cima é interrompida peloclarão prateado vindo de todas aquelas janelas gigantes, de tal maneira que os olhos dos clientesnunca vão conseguir se ajustar àquela mudança constante de tons e profundidades. O carpete écinza tom de carvão com cimento, a mobília, uma mistura desgastada e falsamente luxuosa devinil cor de grená e verniz tom sangue de boi, reminiscentes de um Holliday Inn dos anos 1970.Claramente economizaram ao máximo, gastando a quantia mínima para impedir uma francarebelião dos frequentadores cativos.

Billy entende como aquele lugar o faz se sentir um merda, a depressão que logo o atinge, masacha que é apenas uma reação alérgica a pessoas ricas. Ele ficou tenso assim que entrou ali esentiu o ar de riqueza. Quis dar o fora imediatamente. Quis socar alguém. Gente rica o faz ficarnervoso sem um motivo específico, apenas acontece, e ficar perto da recepção do restaurante emseu uniforme classe A verde-kudzu fez Billy se sentir tão pertencente àquele lugar quanto umbeberrão mijando nas calças. Porém — surpresa! Enquanto o Bravo ficou ali, esperando para serlevado à mesa, todos os clientes do Clube do Estádio se puseram de pé ao mesmo tempo ecomeçaram uma grande salva de palmas. Muitos dos milionários que estavam próximos deramum passo à frente para apertar as mãos deles, enquanto, mais ao longe do salão, um grupo depatriotas, bêbados, ao ouvirem aquilo, deram vivas embriagados. O gerente em pessoa, umcamarada esbelto, bajulador e com a lábia de um agente funerário murmurando cantadas em um

bar, levou-os até sua mesa, e de certo modo isso foi ainda pior, ter todas aquelas pessoaspoderosas o observando. Billy sentiu seu caminhar ficar cambaleante, seus braços começaram ase agitar, mas um rápido olhar para Dime o acalmou. Ombros eretos, olhos voltados para afrente, cabeça erguida a seis graus, como se a dignidade fosse um copo de shot que vocêequilibrasse no queixo — ele assumiu a mesma inclinação de Dime e, imediatamente, tudo seencaixou no lugar.

Finja até conseguir, ele lembra a si mesmo. Foi como ele sobreviveu à vida no Exército atéagora.

Josh espera até ter certeza de que eles estão sentados e sendo atendidos, então anuncia queprecisa deixá-los por um tempinho.

— Cara, você tem que comer — diz A-bort. — Tá puro osso.Josh ri.— Eu vou ficar bem.— Quando é que a gente vai se encontrar com as animadoras de torcida? — quer saber

Holliday.— Daqui a pouco — responde Josh ao mesmo tempo que Crack está dizendo que se danem as

líderes de torcida, traz o Destiny’s Child, ele quer um tempinho “cara a cara” com a Beyoncé.— Elas vão fazer umas lap dances com a gente? — insiste Day.Josh hesita.— Vou perguntar — diz ele, com o rosto perfeitamente inexpressivo.Todo mundo começa a falar sem parar. Josh. Djóóóóssshhhh. Djósh até que não é ruim para

um veadinho. Eles estão sentados a uma grande mesa circular perto da janela com uma excelentevista do campo, onde não há muita coisa acontecendo no momento. Dime permite que elesbebam uma Heineken com a refeição, uma, diz ele, olhando para o major Mac, que assente. Billyfez questão de se sentar perto de Dime e Albert, porque o que quer que digam, ele tem intençãode ouvir. Sabe que não sabe o bastante. Ele basicamente não sabe nada, ao menos nada que valhaa pena saber; a medida do que vale ou não, a esta altura da vida, é o conhecimento que silencia amente e aquieta a alma. Então ele se encarrega de sentar perto de Dime, e onde Dime se senta é olugar de destaque da mesa. Albert está à direita, depois vem A-bort, Day, Lodis, Crack, Sykes,major Mac, Mango e, finalmente, completando o círculo, Billy. Que tal uns lugares para Shroome Lake? Este é o seu ritual mental no início das refeições em grupo em vez de fazer uma oração.Outro ritual: nunca passar por uma porta com o pé esquerdo na frente. E outros: prender o coletede seu uniforme de baixo para cima, nunca começar frases com a letra W, não se masturbar amenos de seis horas de uma missão. Mas ele tinha respeitado todos esses tiques e talismãs no diado canal, então talvez não signifique porra nenhuma que eles tenham ficado no Hotel W, emDallas, na noite passada, ou que o tal hotel tivesse uma boate luxuosa chamada, que coisaestranha, Bar Fantasma. Tantos augúrios, tantos sinais e presságios para se ler. É a aleatoriedadeque faz sua cabeça seguir este caminho, vivendo cada minuto do dia no estilo roleta-russa.Morteiros caindo do céu, aleatoriamente. Foguetes, morteiros improvisados, bombas caseiras,tudo aleatório. Uma vez, no posto de observação, Billy estava montando a guarda noturna esentiu um estalinho esquisito perto da ponte de seu nariz, o que, ele percebeu enquanto tropeçavapara trás, era o estalido de uma bala quebrando a barreira do som ao passar por ele. Centímetros.Nem mesmo isso. Frações, átomos e era tudo aleatório, se você parava na latrina neste minuto ouno próximo, se se atrasava segundos na hora de comer, se tinha se curvado para a esquerda noseu beliche em vez de para a direita, ou sua posição na fila, aquela última fazia grande diferença.A princípio, eles estavam atacando o Humvee da frente, depois mudaram para o segundo, então

tiraram a sorte entre o segundo, o terceiro e o quarto, aí voltaram ao primeiro, e isso sem falar nodebate fodido e interminável sobre quais são as suas chances de sobrevivência em determinadolugar dentro do veículo, que variam de acordo com o dia e a localização.

— Dá para desviar de um RPG — disse ele a um repórter alguns dias atrás, referindo-se aolança-granadas.

Ele não queria ter revelado um fato tão preocupante e íntimo, e se sentiu mal, como se tivessedivulgado um segredo de família vergonhoso, mas ali estava, dá para desviar de um RPG, aquelacoisa doida da porra vibrando de maneira errante na sua direção, cuspindo e fumegando como sefossem fogos de artifícios falsificados, sssssssssssssssssssssssspppppppfffffffffffffffttttttttt-FUUUUM! O que ele queria ter dito, tinha tentado dizer, é que isso não é mentira; algumas vezesisso acontece mesmo em câmera lenta, queria mostrar apenas como sua própria vida pode serestranha e surreal. Mais tarde ele pensa que poderia ter dado uma pancadinha na granadaenquanto ela passava voando, ter mandado aquilo rodopiando para algum lugar do modo comose bate em um balão, em vez de ter somente se esquivado enquanto aquilo passava chiando paradepois fazer uma zona do caralho lá atrás. O que está acontecendo agora não é nem de perto tãoreal quanto aquilo, comer esta comida, segurar este garfo, erguer o copo, as coisas mais reais domundo hoje em dia são as coisas em sua cabeça. Lake, por exemplo. “Lake”, é só o que é precisopara que este filmezinho desanimador comece, uma cena noturna da estrada às margens do riosob um luar pálido, grilos cantando, cachorros latindo fracamente ao longe, o gorgolejar de umcanal nas proximidades. Ali está a estrada às margens do rio em uma noite calma, então umrastro vagaroso de tiros descama a superfície da estrada e, gradualmente, atinge algo na gramaalta. Uma perna. Duas pernas. De Lake. Em paz. Aqueles grilos, o luar suave, o barulhinho docanal. Como que acordando de um longo sonho, as pernas começam a se agitar. Hesitantes, aprincípio, elas se movem com um ar infantil de uma inocência docemente confusa, mas então emalgum momento se erguem, se sacodem e saem em busca do restante do Lake. Poderia ser umdesenho da Disney sobre alguns animais de estimação sendo deixados equivocadamente paratrás, pois eles são tão corajosos assim, tão confiáveis e leais, como poderiam saber que estavamferrados desde o começo apesar de Lake estar a quase dez quilômetros e um oceano de distância?Não que esses sejam pensamentos adequados para se ter no almoço, mas uma vez que essesfilmezinhos começam a rodar em sua cabeça...

— Billy! — ladra Dime. — Você está me deixando na mão.— Não, sargento. Estou só pensando na sobremesa.— Pensando no futuro, bom rapaz. Por-ra, eu treinei eles bem.— Eles com certeza comem — observa Albert. — Ei, pessoal, vocês podem ir mais devagar.

A comida não vai fugir.— Mas esfria — responde Dime. — É só manter as mãos e os pés longe da boca deles que

você não vai se machucar.Albert ri. Ele está comendo apenas uma salada verde e tomando água com gás, acompanhada

por uma “Cowboyrita” que mal foi tocada.— Eu vou sentir falta de vocês, rapazes — diz Albert a eles. — Tem sido uma experiência e

tanto conhecer vocês, jovens admiráveis.— Venha com a gente — convida Crack.— É, venha para o Iraque — provoca A-bort. — A gente vai se divertir.— Não — objeta Holliday. — Albert tem que ficar aqui e deixar a gente rico, não é, Albert?— Esse é o plano — responde Albert em uma voz branda estudada, e ali, pensa Billy, ali está

aquele esvaziamento sutil no final, o quase imperceptível enfraquecimento do ego e o esforço

que denota o modo como o profissional perfeito estabelece suas prioridades. — Eu só iaatrapalhar — está dizendo Albert —, além disso, eu sou praticamente aquele típico idiotapacifista. Escuta, a única coisa que me fez cursar direito foi o fato de que isso ia me manter longedo Vietnã, e deixe eu ser sincero com vocês, se o meu diferimento não tivesse vindo, eu teriapegado um ônibus para o Canadá naquela noite.

— Eram os anos sessenta — observa Crack.— Eram os anos sessenta, exatamente, tudo o que a gente queria era fumar muita maconha e

comer um monte de mulher. Vietnã? Como é que é? Por que eu ia querer levar um tiro na bundanum arrozal fedorento para que o Nixon pudesse ter os quatro anos a mais dele? Nem ferrando, eeu não era o único que pensava assim. Todos esses grandes defensores da guerra de hoje que nãolutaram no Vietnã... Olha, eu seria a última pessoa no mundo a julgar essa gente. Bush, Cheney,Rove, todos esses caras, eles só fizeram o que todo mundo estava fazendo, e eu fui um deles,covarde que nem todo mundo. Meu problema agora é que eles se tornaram durões e pró-armas,toda aquela merda de começar a briga, quer dizer, mostra um pouco de humildade, pessoal. Elesdeviam ser tão cuidadosos com a vida dos jovens quanto foram com a própria.

— Albert — diz Mango —, você devia ser candidato a alguma coisa. A presidente.Albert ri.— Prefiro morrer. Mas agradeço a confiança.É evidente que o produtor está se divertindo, uma presença sorridente, amigável, não afundado

em sua cadeira, mas sim aproveitando-a por completo, confortavelmente apoiado contra a forçada gravidade como Jabba, o Hutt, em seu trono feito sob medida.

— O que ele quer com a gente, cacete? — perguntou Crack quando Albert entrou em contatopela primeira vez, depois de uma rápida busca na internet que confirmou que ele era quem diziaser, um produtor veterano de Hollywood com três Oscar de Melhor Fotografia nos anos 1970 e1980, mais a distinção de ter produzido Fodie’s Press and Fold, o filme que mais perdeudinheiro na história da Warner Bros.

— Foi o equivalente ao Ishtar daquele ano — ele gosta de dizer, rindo, aceitando o fracassocomo se fosse uma medalha de honra, já que só um jogador de primeira poderia arquitetar essetipo de fracasso lendário.

E, de qualquer maneira, o terceiro Oscar veio alguns anos mais tarde, então ele se redimiu. Operíodo sabático no meio da carreira foi por escolha própria. O paradigma estava mudando, osestúdios se afastavam dos contratos de longo prazo com produtores, além disso ele havia secasado pela terceira vez e estava começando uma nova família. Tinha todo o dinheiro de quepoderia precisar e decidiu se afastar por um tempo, mas agora, três anos depois, está se coçandopara voltar à ativa. Graças a velhos amigos, conseguiu um escritório particular do MGM, comuma secretária e um assistente providenciados pelo estúdio.

— Eu gosto de onde estou agora — disse ele ao Bravo na primeira vez em que se encontraramcara a cara. — Nada de custo fixo, nada de pressão. Eu me sinto uma criança de novo, possofazer o que quiser.

E se a mulher jovem e gostosa que ele tem (o Bravo também tinha pesquisado sobre ela)estiver pau da vida porque ele não está em casa no Dia de Ação de Graças? Bem, ela é uma boagarota. Entende as necessidades do trabalho dele. Albert observa com interesse enquanto muitosclientes do Clube do Estádio vêm cumprimentá-los. Os homens têm aquela aparência saudável eos cabelos grisalhos de presidentes de banco bem-sucedidos ou prefeitos de cidades de tamanhomédio, bronzeados, sessentões enxutos que ainda conseguem sacar com força em suas partidasde tênis. As esposas são consideravelmente mais jovens, embora não a ponto de ser ofensivo,

todas louras, exibindo os esticões arquitetônicos de melhorias cirúrgicas. Tanto orgulho, dizemos homens, dando a volta e apertando mãos. Tão agradecido, tão honrado. Guardiões.Liberdades. Fanáticos. TerrRror. As mulheres esperam mais atrás e deixam seus homensfazerem as honras, elas são meras espectadoras com sorrisos vagamente melancólicos e nem umgrama de lascívia evidente.

Bom apetite, dizem os homens, despedindo-se, com os modos austeros, embora aduladores, degarçons de luvas brancas.

— Eles gostam mesmo de vocês, rapazes — observa Albert depois que o grupo vai embora.Crack ri com deboche.— Se eles gostam tanto assim, que tal se as mulheres deles...— Cale a boca — ladra Dime, e Crack se cala.— Quer dizer, todo mundo adora vocês, rapazes: negros, brancos, ricos, pobres, gays, héteros,

todo mundo. Vocês são os heróis da igualdade de oportunidades do século XXI. Olha, eu sou umcara cínico, mas a história de vocês emocionou este país, de verdade. O que fizeram no Iraque...Vocês foram para cima de uns caras muito malvados no mano a mano, e acabaram com eles. Atémesmo um idiota pacifista feito eu admira isso.

— Eu peguei sete — anuncia Sykes, que é o que ele sempre diz. — Sete com certeza. Masacho que foi mais.

— Escute — diz Albert —, o que o Bravo fez naquele dia, aquilo é um tipo diferente derealidade que vocês experimentaram. As pessoas feito eu, que nunca estiveram em combate,graças a Deus, a gente não tem como saber pelo que vocês passaram, e acho que é por isso que agente está tendo essa resistência por parte dos estúdios. Em que tipo de bolha aquelas pessoasvivem? A maior tragédia na vida delas é se a manicure asiática tira um dia de folga. Não estácerto que aquelas pessoas fiquem julgando a validade das experiências de vocês, isso vai além doque é errado, é pornografia ética. Elas não são capazes de entender o que vocês fizeram.

— Então conte para elas — diz Crack.— É, conte para elas — repete A-bort.E o Bravo começa a cantar, de maneira espontânea, conta, conta, conta, um coral de sapos ou

monges em oração. Os clientes do Clube do Estádio que estão mais próximos sorriem e dãorisadinhas, como se aquilo fosse uma brincadeira de universitários animados. Tão abruptamentequanto começou, o canto parou.

— Diga para a Hilary contar para eles — diz Dime.— Eu estou tentando, camarada. Tem muita coisa rolando nesse acordo. — O celular de

Albert vibra e a primeira coisa que ele diz é: — Hilary está oficialmente interessada. — Depois:— Claro que ela está. É um papel muito corporal, e ela é uma atriz muito corporal. Além disso,ela é uma patriota. Quer mesmo fazer isso. — Pausa. — Eu estou ouvindo quinze milhões. —Pausa. — Se vai ter uma visão política? — Albert revira os olhos, para deleite do Bravo. —Larry, você sabe o que o Clausewitz disse, guerra é apenas política feita por outros meios. —Pausa. — Não, seu iletrado, não é A arte da guerra. O alemão, o prussiano. — Silêncio. — Ocacete que você leu A arte da guerra. Você deve ter lido um resumo na internet. Eu até acreditoque você tenha lido os elogios da capa. — Os olhos de Albert perdem o brilho enquanto eleouve. Ouve bastante. A boca se retorcendo, os dedos cabeludos tamborilando na toalha de mesa.— Me diga uma coisa, Larry, como é possível fazer um filme sobre essa guerra e não serpolítico? Você quer um videogame, é disso que a gente está falando?

Os Bravos se entreolham. Poderia ser pior, é o pensamento geral.— Está certo, olha, que tal isso sobre política: os meus garotos são heróis, certo? Americanos,

certo? Eles estão, sem dúvida, do lado certo. E eles também, sem dúvida, botaram para quebrarlá, agora, quando foi a última vez que isso aconteceu com esse país? Está aí a sua política, Lar,tudo isso é sobre se sentir bem com os Estados Unidos de novo. Pense numa mistura de Rockycom Platoon e você vai estar no caminho certo. — Pausa. Olhos se revirando. Ahn arram, ahnarram, ahn arram. — Escute, a gente está agora no jogo do Cowboys e, eu estou te falando,nunca vi nada parecido. Eles não conseguem dar um passo sem serem cercados, é tipo quando osBeatles vieram. As pessoas reagem a esses caras de um jeito muito intenso.

Os Bravos se entreolham. O incrível é que muito do que ele diz é verdade.— Olha só, fale com o Bob. Ele está precisando de um sucesso agora, estou entregando um

para ele numa bandeja de prata. — Silêncio. — Meu Deus. — Silêncio de novo. — Bem,caralho, é mesmo Ação de Graças. Confie em mim quando eu falo que a Hilary está interessada.Você não vai se arrepender.

— Problemas? — pergunta Dime quando Albert desliga.— Não. Tudo normal. — Albert dá um gole na Cowboyrita e estremece. — São os contadores

que mandam nos estúdios hoje em dia. São anões dentro de Maseratis, homens pequenos dentrode ternos grandes. Precisam procurar o nome deles no Google todo dia de manhã só para lembrarquem são.

— Você não disse que o Oliver Stone foi para o Vietnã? — pergunta Sykes.— Eu disse, Kenneth. Eu me esqueci de dizer que ele é maluco? E, de qualquer jeito, ele não

consegue trazer dinheiro. Olha só, se eu tiver que ir para a rua para conseguir que esse filme saia,é o que eu vou fazer, veja só como acredito em vocês, rapazes.

Ninguém sabe o que ele quer dizer exatamente, mas o bufê os chama. Quando eles voltampara repetir — somente Dime, Albert e major Mac se mantêm firmes —, há uma longa fila nafrente deles, mas assim que as pessoas percebem os Bravos ali, de pé, todas chegam para o lado einsistem que os soldados passem à frente. A princípio, os Bravos não aceitam, o que provoca umalegre clamor. Vão em frente!, insistem as pessoas em um tom de briga, mas de brincadeira. Vãoem frente, vão! Acenam com a cabeça e dão risada quando os Bravos passam, encorajadas pelavisão destes garotos americanos bacanas, com os ombros largos, grandes, e excelenteshabilidades de comer tudo o que estiver à vista. Todo mundo está feliz. É um Momento. Algotinha se tornado importante, suposições foram provadas e agora todos podem seguir em frente eaproveitar o dia. A ressaca de Billy tinha entrado em remissão com o ataque furioso de calorias, ena segunda ida até o bufê ele fica outra vez maravilhado com a beleza da comida, a texturaamadeirada do peru sob a crosta dourada, os exuberantes e suculentos ensopados de legumes, osmontes luxuriantes de recheio para o peru e os seis tipos diferentes de batatas, inteiras ou empurê, incluindo uma variedade roxa exótica com uma textura estranhamente agradável de bolorfermentado. Ali, nos reinos abençoados por Deus da principal área dos Estados Unidos, vocêscomem refeições civilizadas e aliviam as necessidades fisiológicas de maneira civilizada, do ladode dentro, em paz, em vasos cuja descarga funciona, na privacidade decente e comum a todosque Deus desejava, e não às vistas escancaradas do deserto bárbaro, a natureza beliscando suabunda como um filhote de pit bull. Então, talvez, Billy considera, essa seja toda a questão dacivilização, comer belas refeições e se aliviar com decência, e, nesse caso, ele está ali para isso,está de saco cheio de fazer o contrário.

Ao voltarem para a mesa, eles começam a rir sem motivo. Só estão bêbados, a alta de glicoseno sangue por causa da comida fez com que ficassem agitados, mas, quando se aproximam,Dime manda eles sentarem as porras das bundas e calarem a boca, e ele não está brincando.Alguma coisa aconteceu. O que aconteceu? Logo eles vão descobrir que o poderoso time de

produtores e diretores da Grazer e Howard mudou de ideia quanto à vontade de fazer o filme doBravo, a Universal Studios tinha até se comprometido verbalmente, mas sob a condição de que ahistória se passasse durante a Segunda Guerra Mundial. No entanto, por ora, a única coisa que oBravo sabe é que Dime está, de repente, de TPM, enquanto Albert segue em frente como se tudoestivesse numa boa, digitando calmamente uma mensagem em seu BlackBerry.

— Um mestre da psique — disse Shroom a respeito de Dime, depois de o sargento passar boaparte da manhã acabando com a raça de Billy por ele ter deixado os binóculos de visão noturnadentro do Humvee na noite anterior.

Flexões, abdominais, posições de submissão com sacos de areia, depois seis voltas mortais emum calor de quarenta graus ao redor da FOB, o equivalente, por baixo, a seis quilômetros.

— Você nunca vai decifrar ele, então, nem tente — aconselhou Shroom.— Ele é um babaca — disse Billy.— É, ele é. E isso só faz você amar o sargento Dime ainda mais.— Não fode. Eu odeio aquele filho da puta.Shroom riu, mas ele podia, já que Dime e ele tinham servido juntos no Afeganistão. Era o

único Bravo com o qual Dime não acabara com a raça. Essa conversa aconteceu sob a sombra darede de camuflagem que Shroom montou do lado de fora de seu contêiner, no qual ele serefugiava nas horas de lazer para fumar, ler e refletir sobre a natureza das coisas sentado nacadeira de acampamento de tecido camuflado que comprou no Kuwait. Billy se acalmava aopensar nele assim, com tudo no lugar certo, descalço, sem camisa, cigarro na mão e um livro nocolo, Slowly Down the Ganges. O amigo estava levando a sério toda aquela coisa de viagemmística etnobotânica e até mesmo se parecia com um gigantesco shroom, um cogumeloalucinógeno. Um homem branco corpulento, de ombros caídos, com deficiência de melanina, omesmo tipo físico de um peixe-boi, e ainda assim ele tinha a prodigiosa força de um trabalhadorbraçal. Shroom conseguia manusear a SAW com apenas uma das mãos, como se ela fosse umapistola, e deixar a .50 pronta; além disso, os sacos de arroz de vinte quilos para assistênciahumanitária pareciam brinquedos quando ele os carregava. Dia sim, dia não, ele raspava acabeça, um orbe surpreendentemente delicado que parecia proporcionalmente menor ao tamanhodele. No calor, seu rosto ficava em brasas com bolhas que fluíam como as de luminárias lava-lamps, e ele não apenas transpirava, mas secretava, produzindo uma substância oleosa que cobriaseu corpo como o ranço de uma conserva velha de picles.

— Se as pessoas morassem na lua — Dime gostava de dizer —, todas iam ser parecidas comShroom.

Foi Shroom quem contou a Billy que o pai de Dime era um juiz muito poderoso na Carolinado Norte.

— Dime tem grana — comentou. — Mas ele não quer que as pessoas fiquem sabendo. E vocêsabe o que isso significa.

Não, respondeu Billy. O que isso quer dizer?— Quer dizer que aquele dinheiro é dos velhos tempos.Eles formavam o casal mais estranho de todos os casais estranhos, o bonitão do Dime andando

por aí com a aberração do Shroom, e eles pareciam saber mais um do outro do que seriaconsiderado saudável em um ambiente normal. De tempos em tempos, Dime aludiria à infânciahorrível de Shroom, uma história aparentemente épica de surras que incluía um período emalgum tipo de instituição religiosa para órfãos, ou, como Dime chamava o lugar sem receberqualquer reação por parte de Shroom: no Lar Batista da Redenção Anal para GarotosFodidamente Desajustados, em Oklahoma. Billy supôs que Shroom veio de lá a julgar por seu

impressionante repertório de versículos bíblicos, além das falas com um tom de aforismo, como“Jesus não é uma empresa de mudança” e “Gostando ou não, nós somos todos biscoitos pré-fabricados por Deus”. No Mundo de Shroom, os tijolos eram “biscoitos de terra”, as árvores,“arbustos de céu”, e toda a infantaria da linha de frente era “coelhos de carne”, enquanto ospronunciamentos da mídia sobre o progresso da guerra eram tipo “contarem mentiras na sualápide”. Mais cedo, antes de eles terem visto qualquer ação de verdade, Billy perguntou a elecomo era estar no meio de um tiroteio. Shroom pensou um pouco.

— Não é parecido com nada, a não ser, talvez, ser estuprado por anjos.Ele diria “eu te amo” para cada homem do esquadrão antes de saírem, dizia isso de modo

direto, sem piada ou viés sarcástico e também sem a insinuação cantante cristã, apenas aqueladeclaração rápida, como se ele estivesse apertando os cintos de segurança em volta da alma decada um. Depois, outros Bravos começaram a dizer isso, mas, a princípio, eles se esquivavam,falando com um balido, “Eu te amo, cara”, com a voz chorosa e desesperada de um idiota em umanúncio da Budweiser, mas, conforme os feridos foram aumentando e cada viagem para o ladode fora da cerca se tornou um exercício de total concentração, ninguém estava brincando mais.

Tô dando baixa. Feito uma exibição de slides, vivo, morto, vivo, morto, vivo, morto. Billyestava fazendo umas dez coisas ao mesmo tempo, abrindo o kit médico, enfiando um novo penteno fuzil, falando com Shroom, dando tapas no rosto dele, gritando com ele para que o amigocontinuasse acordado, tentando determinar de que direção vinham as rajadas e se agachando,lançando um “foda-se tudo” para ir procurar abrigo. As imagens da Fox mostram Billy atirandocom uma das mãos e tentando reanimar Shroom com a outra, mas ele não se lembra disso. Achaque devia estar cortando a cartucheira de Shroom, puxando-a para soltar o colete à prova de balasIBA e chegar até os ferimentos. É isso que eles chamam de coragem? Simplesmente fazer todasas coisas que você foi treinado para fazer, ainda que tudo ao mesmo tempo e muito rápido. Ele selembra da frente de seu corpo toda coberta de sangue e ele meio que se perguntando se partedaquele sangue era dele, as mãos ensanguentadas tão escorregadias que, por fim, precisou rasgara embalagem das ataduras com os dentes, e quando se virou para Shroom de novo, aquele grandefilho da mãe estava se sentando! Em seguida caiu deitado de novo, Billy deslizou de lado feitoum caranguejo para puxá-lo até seu colo, e Shroom o encarou, franzindo a testa, o olharabrasador como se tivesse algo crucial a dizer.

— Ele é o seu sargento — disse Shroom naquele dia, do lado de fora do seu contêiner. — É otrabalho dele fazer a sua vida extremamente infeliz.

Depois, ele continuou a explicar a Billy como a maestria da psique de Dime envolvia dosesintermitentes de reforço positivo, sendo a parte “intermitente” uma ferramenta de modificação decomportamento mais eficaz que um programa consistente que oferecesse a mesma coisa. Nãofazia diferença. Depois de ler aquele monte de coisas, Shroom aprendeu diversas inutilidades,mas o que Billy está pensando ali, no Clube do Estádio, é: Obrigado por fazer a gente se sentirum merda, sargento! Obrigado por arruinar essa refeição deliciosa! Provavelmente a últimarefeição não-distribuída-pelo-Exército ou não-contratada-pelo-Exército que eles teriam poralgum tempo, mas não importa, eles são os idiotas cuzões de merda da linha de frente, e a missãodeles, nesse momento, é calar a boca e comer.

— A-bort, que porra é essa que você está fazendo? — dispara Dime.— Estou mandando uma mensagem para o Lake, sargento. Apenas dizendo como as coisas

estão.Dime não consegue se opor muito bem a isso. Ele vasculha a mesa em busca de outros alvos,

mas todo mundo fica olhando para o prato, devorando a comida. Então Albert começa a rir.

— Aqui, dê uma olhada nisso.Ele passa o BlackBerry para Dime.— O cara está falando sério? Não pode estar falando sério.— Eu acho que está.Dime se vira para Billy.— O cara está falando que o nosso filme é outro Com as próprias mãos, só que no Iraque.— Ah. — Billy nunca viu Com as próprias mãos. — A Hilary Swank trabalhou nesse filme?— Não, Billy, a Hilary Swank não trabalhou… meu Deus, deixa pra lá. Albert, quem são

essas pessoas?— Idiotas — responde o produtor de cinema. — Nerds, covardes, mentirosos, são um bando

de vira-latas magricelos sem muito cérebro correndo em círculos atrás de um coelho que nemexiste. Conteúdo assusta eles. Não, não, deixa eles totalmente apavorados. “Isso é bom?Hummmm, isso é ruim? Hummmm, eu não sei dizer!” É patético, todo aquele dinheiro e nenhumbom gosto. Você pode bater na cabeça deles com outro Chinatown e vão dizer apenas paracolocar um casal de cachorros bonitinho.

Dime assume um tom despreocupado.— Então você está dizendo que a gente está ferrado.— Ei, eu falei isso? Eu falei isso? Ah, não, na verdade, acho que não falei isso. Eu estou nesse

ramo há trinta e cinco anos, eu pareço alguém que pode se ferrar?Os Bravos riem. Bem, não, querer ferrá-lo não é o que vem à mente quando se pensa em

Albert.— Hollywood é um lugar esquisito, nojento, garanto isso a vocês. Corrupto, decadente, cheio

de sociopatas em ação. Sendo grosseiro, é análogo, digamos, à corte do rei Luís XIV no séculoXVII, na França. Não ria, pessoal, estou falando sério. Às vezes isso ajuda a visualizar as coisasem termos concretos. Um monte de riqueza desfilando por aí, riqueza obscena, excessos além doesperado em todos os sentidos, e cada babaca na cidade mantém seus esquemas funcionando,tentando abocanhar seu pedacinho dela. Mas, para isso, você tem que conseguir chegar ao rei,porque tudo passa pelo rei. Certo? E isso é um problema. Um problemão. Acesso é um problema.Você não pode simplesmente aparecer do nada e se apresentar ao rei, mas a qualquer momentovão ter vinte, trinta pessoas andando pela corte que podem chegar até o rei. Elas têm acesso,influência, estão por dentro da situação... a chave é conseguir atrair um desses caras para o seunegócio. A mesma coisa acontece em Hollywood, sempre tem, sei lá, vinte, trinta pessoas queconseguem fazer um projeto andar. Os nomes podem mudar de ano em ano, mas a dinâmica é amesma, o número permanece mais ou menos igual. Se você conseguir atrair uma dessas pessoaspara o seu negócio, está feito.

— Swank — sugere Crack.— Swank é dessas — confirma Albert.— Wahlberg? — pergunta Mango.— O Mark consegue fazer um projeto andar.— E o Wesley Snipes? — pergunta Lodis. — Tipo, sabe, vamos supor que a gente consiga ele

para fazer o meu papel.— Interessante — pondera Albert por um momento. — Não nesse filme, mas vou falar uma

coisa, Lodis. Vou ver se consigo arrumar para você o papel de piranha no próximo filme dele.Que tal?

Iaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaau, todo mundo zomba de Lodis, que apenas sorri, exibindo os dentescheios de pedaços de comida. Eles são interrompidos por um cliente do Clube do Estádio que

quer dizer oi. Nunca é o jovem ou o homem de meia-idade que vem falar com eles, são sempreos caras mais velhos, os macacos velhos que têm a segurança de já terem passado da idade paracombater. Eles agradecem aos soldados pelo serviço. Perguntam como está o almoço. Elogiamcada suposto atributo, tais como tenacidade, agressividade, amor ao país. Este em particular, umcamarada em forma, corado, ainda com alguns fios de cabelo pretos, se apresenta com umaprofusão arrastada de vogais que soam como “Ráu-Uêine”. Não demora muito e está contando aeles sobre a nova e ousada tecnologia que a companhia de petróleo da família usa para tirar maispetróleo bruto de Barnett Shale, algo a ver com água salgada e agentes químicos de fraturamentohidráulico.

— Alguns filhos dos meus amigos estão servindo lá com vocês — conta Ráu-Uêine. — Então,é algo pessoal para mim, aumentar a produção doméstica, diminuir a nossa dependência dopetróleo estrangeiro. Eu penso que quanto melhor eu fizer o meu trabalho, mais cedo a gentepode trazer vocês, jovens, para casa.

— Obrigado! — responde Dime. — Isso é realmente ótimo, senhor. A gente com certeza ficagrato por isso.

— Eu só estou tentando fazer a minha parte.E isso era legal, Billy pensará mais tarde. Se ele apenas tivesse dito bom apetite como todo

mundo e voltado para sua lucrativa vida patriótica, mas, não, ele foi ganancioso. Queria extrairsó um pouco mais do Bravo.

— Então — diz ele —, do ponto de vista de vocês, como acham que a gente está indo por lá?— Como a gente está indo? — ecoa Dime em tom vivaz. — Do nosso ponto de vista?Os Bravos entrelaçam os dedos das mãos e baixam o olhar para os pratos, ainda que muitos

não consigam evitar o sorriso. Albert ergue a cabeça e guarda o BlackBerry no bolso, seinteressando de repente.

— Bem, é uma guerra — continua Dime, com o mesmo tom de voz. — Por definição, é umasituação extrema, as pessoas tentando com empenho matar umas às outras. Mas eu estou longede ser qualificado para falar da situação como um todo, senhor. Tudo o que posso dizer comsegurança é que a troca ofensiva com o intuito de matar é mesmo uma experiênciatransformadora, senhor.

— Com certeza, com certeza. — Ráu-Uêine assente de maneira grave. — Eu posso imaginarcomo isso é difícil para vocês, homens tão jovens. Serem expostos a esse nível de violência...

— Não! — interrompe Dime. — Não é isso! A gente gosta de violência, a gente gosta de serletal! Quer dizer, não é para isso que vocês estão pagando a gente? Para levar a luta até osinimigos dos Estados Unidos e mandar eles direto para o inferno? Se a gente não gostasse dematar pessoas, qual seria, então, o sentido? Você poderia muito bem mandar o Corpo da Paz paralutar na guerra.

— Ah-rá. — Ráu-Uêine dá uma risada, muito embora seu sorriso tenha perdido um pouco avoltagem. — Acho que você me pegou.

— Olha só, está vendo esses homens? — Dime gesticula ao redor da mesa. — Eu amo cadaum desses idiotas como se fossem meus irmãos. Eu aposto que amo mais esses caras até do queas mães deles. Mas vou falar a verdade, e eles sabem como eu me sinto, então posso dizer issobem na frente deles, mas, só para constar, esse aqui é o bando de psicopatas mais matador quevocê já viu. Não sei onde eles estavam antes de o Exército pegar eles, mas dê umas armasexperimentais e umas cápsulas de termogênico para eles e os caras vão explodir qualquerporcaria que se mexa. Não é mesmo, Bravo?

Eles respondem imediatamente, com gosto, Sim, sargento! Por todo o restaurante, cabeças

com belos penteados se viram.— Está vendo o que quero dizer? — Dime ri. — Eles são matadores, estão vivendo o melhor

momento da vida deles. Então, se a empresa de petróleo da sua família quer extrair toda a porrado petróleo de Barnett Shale, tudo bem, senhor, isso é uma prerrogativa inteiramente sua, masnão faça isso falando que é pela gente. O senhor tem o seu negócio e a gente tem o nosso, entãocontinue furando poço, senhor, e a gente vai continuar matando.

Ráu-Uêine abre e fecha a boca algumas vezes, mas não sai qualquer som. Os olhos do homemparecem ter afundado em sua cabeça. Olha só, pensa Billy, o milionário mais sacaneado domundo.

— Eu tenho que ir — murmura Ráu-Uêine, dando uma olhada ao redor como se verificassesua rota de fuga.

Não fale das merdas que você não conhece, pensa Billy. É nisso que repousa a dinâmica detodos esses encontros. A experiência dos Bravos conferiu a eles superioridade moral. Sãoautênticos. Eles são o Real. Lidaram com muitas mortes, receberam muitas mortes. Cheiraramtodas elas e as seguraram. Respingos delas caíram em suas botas, receberam borrifos delas nasroupas e sentiram o gosto em suas bocas. Essa é a vantagem que eles têm e, dado o padrão demasculinidade que os Estados Unidos estabeleceram para si mesmos, é interessante ver comorealmente poucos estão aptos a ele. Por que a gente luta, cara, quem é esse a gente? Aqui, nanação de covardes-corajosos e de falastrões e fanfarrões, o Bravo sempre tem um ás de sanguena manga.

Quando Ráu-Uêine vai embora, os Bravos estão rindo em silêncio, com deboche.— Sabe, David — diz Albert, lançando um olhar significativo para Dime —, quando você sair

do Exército, realmente devia pensar em atuar.Os Bravos dão gritos de provocação. Albert, porém, parece sério, assim como Dime, que

pergunta de modo um tanto solene:— Eu fui duro demais com ele?Isso faz com que todo mundo caia na gargalhada, ainda que Dime permaneça sentado sem

demonstrar qualquer emoção.Muitos Bravos começam um coro de Holly-wooooood enquanto Day diz a Albert:— Dime não interpreta um papel, ele só gosta de foder com as pessoas.— O que você acha que é interpretar? — diz Albert.A resposta inspira uma nova rodada de gritos provocativos.Enquanto tudo isso acontece, Dime se inclina para Billy e murmura:— Agora, Billy, por que é que eu dei aquele sermão naquele cara?— Sei lá, sargento. Acho que você teve os seus motivos.— Jesus amado. E quais seriam?O coração de Billy dispara. É como ser chamado para responder algo em sala de aula.— Difícil dizer, sargento. Talvez porque você odeia mentira?— É, pode ser. E também porque eu sou um babaca?Billy se recusa a responder. Dime ri, se recosta na cadeira e acena para o garçom. Quando ele

se volta novamente para Billy, ali está outra vez O Olhar, tão franco e evidente que Billy nãoconsegue deixar de se perguntar: Por que eu? A princípio, ele sentiu medo de que aquilo fosse ocomeço de alguma coisa gay horrível. Gay era praticamente seu único ponto de referência paracontato visual prolongado com outro ser do sexo masculino. No entanto, ultimamente, ele vinhaduvidando disso. Uma conclusão que exigiu grande aprofundamento da visão que ele possuíasobre a natureza humana. Dime está atrás de outra coisa, algum conhecimento ou compreensão

ainda-a-ser-determinado, embora Billy saiba que se ele descrevesse isso para algum de seuscompanheiros, a coisa acabaria soando gay se fosse apenas baseada na interpretação estritamentevisual do evento que desencadeia aquilo. Você precisava participar daquilo para entender a puramiséria humana daquele dia, a desolação, por exemplo, uma entre tantas, de ver Lake sobre amesa, lutando com os médicos, urrando, batendo e jorrando sangue como se não estivesse sendosalvo, mas esfolado vivo. Billy passou a ver aquele ponto como nevrálgico, o dia que começou adescida em sua trajetória pessoal. Havia o antes e o depois, e fosse lá o que ainda restasse de suasanidade, ele a perdeu naquele momento, entrou em colapso caindo aos prantos bem ali, narampa do posto médico. Com certeza a mente dele não teria aguentado o choque e o sofrimentose Dime não o tivesse enfiado dentro de uma despensa de suprimentos, colocando-oviolentamente de pé junto à parede e o segurado ali, como se estivesse determinado a machucá-lo. Naquele momento, Dime também chorava, os dois tossindo, engasgando com o catarro,cobertos de lama, sangue e suor, como se estivessem ofegando e com ânsia de vômito, após teracabado de escalar para sair de uma cova elementar de barro primordial. Eu sabia que ia servocê, sibilava Dime repetidas vezes, a boca uma tocha de butano na orelha de Billy, eu sabia queia ser você, eu sabia eu sabia eu sabia caralho eu estou orgulhoso para cacete de você. Entãoele segurou o rosto de Billy com as mãos e deu um beijo na boca dele como se fosse um pisão,uma pancada com um bastão de borracha.

A boca de Billy doeu durante dias. Ele continuou esperando que Dime dissesse algo sobreaquilo, e como isso não aconteceu, ele tocou a boca com os dedos e sentiu a ferida em seuslábios. Não dá para colocar isso em um filme e esperar que as pessoas entendam, não tomandopor base qualquer filme que Billy já tenha assistido. Se desse, então ele diria: Certo, coloque issono filme, ele podia mandar um belo foda-se para o fato de as pessoas pensarem que isso é gay,mas era algo que deveria ser feito com verdadeira astúcia e habilidade, porque não dá só paralançar isso no ar e esperar que as pessoas entendam. Mas agora a Swank ferrou totalmente asituação. Se ela interpretar Billy e também Dime, como vai ser isso? Tipo, boa sorte em tentarbeijar você mesma. Boa sorte em salvar você mesma. Quem sabe, no filme, todos eles tenhamapenas que enlouquecer.

Foda-se, ninguém sabe disso mesmo. Dime pede outra rodada de Heineken para a mesa, massolicita que as garrafas vazias sejam levadas embora antes. Depois que o garçom sai, outro chegae pergunta se eles gostariam de um café. Café? Claro que sim, café! Cafeína tem sido uma dasdrogas essenciais. Crack pergunta se tem Red Bull, e o garçom diz que vai verificar, o que incitapedidos de Red Bull por toda a mesa. Todo mundo se levanta para pegar sobremesas, mas Billyprecisa achar o banheiro. É tímido demais para perguntar onde fica, então vaga pelos santuáriosexternos do clube durante um tempo, o que é bom, ele precisa mesmo de uma pausa, e vermemorabilia de quarenta anos do futebol americano profissional serve para entorpecer a mente.Há uma foto do tamanho de um pôster do passe Hail Mary, as chuteiras de Staubach do SuperBowl VI, o uniforme de Mel Renfro manchado da grama do último jogo do Cowboys no CottonBowl, cada item submetido a curadoria com toda a pompa e a reverência de relíquias do SacroImpério Romano. Billy encontra o banheiro masculino e não tem pressa. Tudo está tão limpo.Iraque é lixo, poeira, cascalho, podridão e fossas abertas e borbulhantes, além daquelesenlouquecedores grãos de areia microscópicos que entram arranhando por cada orifício do corpohumano. Nos últimos tempos, ele tem notado que essa porcaria está até mesmo em seus pulmões.Isso chia quando ele respira fundo, um guincho suave lá embaixo, como se fosse uma gaita defoles tocando ao longe em um vale, e ele se pergunta se é algo permanente ou apenas umentupimento temporário no sistema de filtração.

Ele passa bastante tempo lavando as mãos, observando-se no espelho. Enquanto crescia emStovall, conheceu um garoto chamado Danny Werbner, o irmão mais velho de seu amigo Clay.Danny tinha um jeito reservado e raramente falava, mas sobrevivera por um triz ao acidente decarro em que seus dois melhores amigos tinham morrido e, por isso, todo mundo apenasignorava as coisas estranhas que Danny fazia. Como, por exemplo, tirar a roupa e ficar nu noquarto que ele e Clay dividiam, olhando para si mesmo no espelho durante longos períodos, semligar se a porta estava aberta ou quão frio estava, ou se bandos de meninos mais novos passavamaos galopes. Essa era somente uma das coisas estranhas que Danny fazia, um comportamentoperturbado que possuía sua própria lógica indiscutível; Danny encarando o espelho para tercerteza de que estava ali.

Ultimamente, Billy pensa nisso quando olha para espelhos. Do lado de fora, no corredor, eleencontra Mango, que veio pelo outro lado com um dos garçons, um latino forte e jovem comuma argola dourada na orelha e um corte de cabelo high-fade, com as laterais raspadas, típico deum moleque de gueto. Eles estão rindo de maneira maliciosa. Está rolando alguma coisa. Mangopuxa Billy de lado e, bem ali, debaixo da foto de Tom Landry apertando a mão de RonaldReagan, sussurra:

— Quer ficar doidão?Ô se quero. O garçom os conduz pela cozinha, descendo um corredor de serviço bagunçado, e

para o interior de um depósito entulhado e sem aquecimento, e dali eles saem para uma áreaexterna em forma de trapézio, um tipo de gaiola escavada na armadura do estádio. É um erro,uma falha no desenho do projeto que foi cuidadosamente escondida, onde mal cabem os três. Ogarçom, que se chama Hector, precisa se abaixar para passar pela viga que fica no canto.

— Que lugar é esse? — pergunta Billy, porque ele precisa perguntar alguma coisa.Hector ri.— Não é nada. — Ele chuta um pedaço grosso de madeira embaixo da porta. — Não é lugar

nenhum, é um daqueles lugares que não existem. A gente tira uns intervalos e vem fumar aqui.Eles riem. É gostoso sentir o ar gelado. Um tipo neutro de luz do dia é filtrada até eles,

comprimida e peneirada pela estrutura. Em muitos momentos, Billy imagina o estádio como umaextensão de si mesmo, como se ele estivesse vestindo o lugar, amarrado na mais incrívelarmadura corporal já vista. É uma sensação agradável, de segurança, até que o peito dele começaa se afligir sob o peso de todo aquele aço, mas o baseado sendo passado de mão em mão o ajudaa lidar com isso.

— Bom — diz Mango, apreciando.Hector concorda com a cabeça.— Alivia a pressão, cara. Ajuda você a sobreviver até o fim do dia.— É mesmo — concorda Billy, de um jeito sábio.Algumas luzes estão se acendendo dentro da cabeça dele, outras estão se apagando.— Isso é bagulho do bom, cara — constata Billy.— Ei, você sabe, a gente tem que apoiar as tropas. — Hector ri e dá uma tragada. — Vocês

não estão preocupados de dar positivo no mijo?Mango explica que não, eles não estão preocupados com isso. O Bravo deduziu que o Exército

não está disposto a arriscar toda essa estratégia de relações-públicas colocando o Bravo parafazer exames aleatórios para detectar substâncias ilegais, então, enquanto durar a Turnê daVitória, eles se sentem a salvo.

— E o que eles vão fazer se pegarem a gente, cara? Mandar de volta para o Iraque?Hector balança a cabeça em uma ponderação chapada.

— Sem chance, não por causa de um baseado. Nem mesmo o Exército é tão durão assim.Billy e Mango hesitam. Parece que o comando prefere não divulgar isso, a volta iminente

deles ao Iraque. Os Bravos não devem negar que estão sendo realocados se o assunto surgir, maso alto-comando preferiria omitir esse detalhe na conversa sobre a Turnê da Vitória.

Mango sorri, lança um olhar para Billy.— Cara — diz a Hector —, a gente já está voltando.Hector olha de soslaio.— Vocês estão de sacanagem.— Sacanagem nada. Viajamos no sábado.— Porra nenhuma que vocês têm que voltar.— A gente tem que terminar a nossa missão.— Porra nenhuma! Porra nenhuma que vocês têm que voltar, depois de toda a merda que

aconteceu, heróis e o caralho? Onde que essa merda está certa? Caras, vocês fizeram a sua partede acabar com a raça deles, tipo, por que eles não deixam vocês pularem fora?

Mango solta uma risada.— O Exército não funciona assim. Eles precisam de corpos.— Merda. — Hector está escandalizado. — Vocês têm que ficar lá por quanto tempo?— Onze meses.— Caralho! — Puro ultraje. — Vocês querem voltar?Os Bravos bufam.— Cara. Difícil para cacete. Isso não está certo. — Hector pensa. — Eles não deviam estar

fazendo um filme sobre vocês?Aham.— E ainda assim vocês têm que voltar? Caralho, então o que acontece se vocês, hã, se vocês,

hum...— Baterem as botas? — completa Billy.Hector desvia o olhar, aflito.— Não se preocupe, parceiro — diz Mango —, é um filme totalmente diferente.Os Bravos riem, e Hector sorri acanhado, grato por ser absolvido da evocação das mortes

deles. O baseado completa mais uma volta. A luz no espaço pequeno assume um brilho perolado,luminoso. A guerra está em algum lugar lá fora, porém Billy não consegue senti-la, como em suaúnica experiência com morfina, na qual não conseguia sentir dor. Em certo ponto, ele até mesmotentou um experimento, olhando para seus braços e suas pernas cheios de cortes e pensandodoam. Mas a noção simplesmente se rarefez. É assim que ele sente a guerra agora. É, nomáximo, uma presença ou uma pressão em sua mente, uma consciência sem conteúdo, umburaco empírico de donut. Quando ele volta a prestar atenção na conversa, Hector estáperguntando se eles vão encontrar o Destiny’s Child, a atração principal do extravagante showdo intervalo e atual número um nas listas de principais sonhos eróticos masculinos.

— Eles não falaram ainda nada disso aí. — O inglês de Mango começa a capengar. Ainda dápara entender, mas soa um pouco confuso. — Não é que falaram muito sobre nada, tipo, osdetalhes se a gente tem que estar no show do intervalo, e tal? Falaram que a gente vai conheceras animadoras de torcida.

— Que merda é essa, cara? Todo mundo conhece as animadoras de torcida, a porra dosescoteiros conhecem as animadoras de torcida. Vocês são estrelas, eles têm que levar vocês paraconhecer a Beyoncé e as garotas dela. Que merda, heróis e o cacete, eles têm que deixar vocêspegarem aquelas gatas para valer.

Pegaraquelasgatasparavaler, diz Billy para si mesmo. Não é possível. Não que ele fossemesmo fazer isso se tivesse a oportunidade, mas é provável. Quem sabe. Certo, definitivamente.Ou, depende. Ele decide que quer mais ou menos as duas coisas. Gostaria de sair com a Beyoncéde um jeito bacana, conhecê-la fazendo coisas agradáveis juntos, tipo jogar jogos de tabuleiro esair para tomar sorvete, ou, que tal, um teste-drive de três semanas em algum paraíso tropicalonde eles pudessem sair de um jeito legal e, quem sabe, se apaixonar, e, enquanto isso, trepar omáximo possível no tempo livre. Ele quer as duas coisas, quer toda a conexão corpo e almaporque menos do que isso é simplesmente humilhante. Será que a guerra fez isso com ele, Billyse pergunta. Será que ela inspirou essas sensibilidades e esses anseios nele? Ou será que é sóporque está chegando aos vinte anos?

O tempo está acabando. Eles precisam voltar para o esquadrão, mas o motor abandonou ocaráter de urgência. O baseado havia queimado até virar um rojão brilhante quando Hectorconfessa que está pensando em se alistar no Exército.

Os Bravos gemem. Não.— É, eu sei que é uma merda, mas tenho uma filha e a mãe dela não trabalha, então é tudo em

cima de mim, o que eu levo numa boa, quer dizer, quero cuidar delas e tal, mas do jeito que estáagora não está dando certo. Consegui o emprego aqui, trabalho cinco dias por semana no KwikLube e não recebo plano de saúde em nenhum dos dois lugares, e tenho que ter um plano paraminha menininha. E tenho dívidas. Tipo, vocês sabem, quem é que não tem dívidas?

Billy percebe que Hector está preocupado de um jeito que um homem adulto se preocupa, semse desesperar e sair quebrando tudo feito a porra de uma criança idiota. Está avaliando seusproblemas com seriedade, criando coragem para lidar com isso todos os dias. Ele diz que oExército está oferecendo um bônus de alistamento de seis mil dólares e, uma vez que estejadentro, não precisa se preocupar com plano de saúde.

— Então você vai fazer isso? — pergunta Billy, sentindo uma pontada diante dos seis mildólares.

O Exército conseguiu a carcaça dele totalmente de graça.— Não sei. Vocês acham que eu devia?Billy e Mango se entreolham. Depois de alguns segundos todos caem na gargalhada.— Isso é uma grande merda — comenta Billy. — Eu não sei por que diabo a gente está rindo.— É, que merda — diz Mango. — Ando pensando todos esses dias, cara. Eu já estou de saco

cheio dessa merda, e então fico tipo: Tudo bem, então vou sair quando o meu tempo acabar, eserá que o que eu for fazer depois disso vai ser melhor que essa porra? Tipo, caralho, trabalharno Burger King? Então eu lembro por que me alistei.

Hector está assentindo.— É meio que isso que quero dizer. O que tenho aqui é uma merda, então eu podia muito bem

me alistar.— É, é isso aí — diz Mango.— É, é isso aí — concorda Hector.— É, é isso aí — ecoa Billy, mas está pensando em sua casa.

Sacana do coração

Eles tiveram duas noites e um dia. Sykes foi para Fort Hood, para a casinha na base militar naqual sua filha e sua esposa grávida moram, na beirada da zona de aterrissagem da artilharia.Lodis foi para Florence, na Carolina do Sul, que, segundo ele, também era a cidade natal de seuprimo de quarto ou talvez segundo grau, Snoop Dogg. A-bort foi para Lafayette, Luisiana; Crackseguiu para Birmingham, Mango foi para Tucson, e Day, para Indianápolis. Dime foi paraCarolina. Lake permaneceu em sua residência por tempo indeterminado no Centro Médico doExército Brooke, em San Antonio, e Shroom estava sendo mantido, contra sua vontade, na CasaFunerária Merriam-Gaylord, em Ardmore, Oklahoma. E Billy, bem, Billy foi para Stovall, para acasa de fazenda de tijolos, com três quartos e dois banheiros, localizada na Cisco Street. O lugartinha rampas de acesso robustas na porta da frente e na de trás para a cadeira de rodas de seu pai,uma carruagem motorizada roxa com rodas grossas e brancas e um adesivo da bandeira dosEstados Unidos presa na parte traseira. “A Fera”, como a chamava Kathryn, irmã de Billy, ummeio de transporte rebaixado e corcunda com toda a graça de um aparelho para aquecer piche ouum besouro rola-bosta gigante.

— Aquela porcaria me dá arrepios — confessou ela a Billy.E a forma agressiva como Ray dirigia a cadeira, na verdade, parecia um esforço para que

alcançasse o máximo de seu efeito apavorante. Uuuuiiiiiiiiiiiiiiiiiirrrrrrrrrrrrrrr, zunia ele paratomar sua primeira xícara de café na cozinha, depois uuuuuuuuuuuiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiirrrrrrrrrrpara dentro do pequeno escritório para sua primeira dose de nicotina do dia e para assistir à FoxNews, então uuuuuuuuuuuuuuuiiiiiiiiiiiirrrrrrrr de volta para a cozinha, para tomar café damanhã, uuuuuuuuuuuuuuuiiiiiiiiiiiiiiirrrrrrrrrrrrrrr para o banheiro,uuuuuuuuuuuiiiiiiiiiiiiiirrrrrrrrrrrrr para o escritório e a televisão tagarelando,uuuuuuuuuuuuuuuiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiirrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr,uuuuuuuuuuuuuiiiiiiiiirrrrrrrrrrrrrrrr, uuuuuuuuuuuuiiiiiiiiiiiiiirrrrrrrrrrrrrrrrr ele apertava ocontrole de comando da cadeira de rodas com tanta força ao redor de seu encaixe em formato devulcão que o motor gemia como uma agulha de tatuagem, o eeeeeeeeeennnnnnnnnnnnnncontundente contrapondo-se à linha de base uuuuuuuuuiiiiiiiiiiiiiiirrrrrrrrrrr para captar nadamais que a pura essência da personalidade do homem por meio do som, do coro estereofônico.

— Ele é um babaca — disse Kathryn.— Só agora que você reparou? — respondeu Billy.— Cale a boca. O que quero dizer é que ele gosta de ser um babaca, ele curte isso. No caso de

algumas pessoas a gente tem a sensação de que elas não têm controle sobre o comportamento.Mas ele se esforça para isso. Ele é o que dá para a gente chamar de babaca proativo.

— O que é que ele faz?— Nada! Essa é toda a questão, ele não faz porra nenhuma! Não vai para a fisioterapia, nunca

sai, só fica lá, sentado naquela porra de cadeira o dia todo, assistindo à Fox e ouvindo aquelegordo do Rush Limbaugh. Nunca nem mesmo fala, a não ser que esteja querendo alguma coisa, e

aí então ele só grunhe. Espera que a gente faça tudo por ele.— Então não faça.— Eu não faço! Mas aí cabe à mamãe fazer tudo e ela fica exausta e eu digo tipo, está bem,

que se dane, eu faço. Enquanto eu morar aqui, o problema também é meu.Em algum lugar da casa há um baú cheio de fotos de divulgação de bandas de rock e de metal

dos anos 1970, 1980 e até 1990. Kathryn apelidou essa era primitiva de “a época dos mullets”. Amaioria das bandas já foi esquecida há muito tempo, felizmente, embora a coleção de Raycontenha estrelas genuínas. Meat Loaf. 38 Special. Kansas. The Allman Brothers. A proximidadecom o talento, assim como o império de seu próprio ego bastante considerável, impulsionou Raya um pequeno estrelato local todo seu, e, apesar de o rolo compressor da música pop romântica,de luxúria e adolescência eterna continuar, o Ray Lynn do Rock resiste mesmo sem os dons paraa oralidade, e, no clima de recessão do Onze de Setembro, ele se vê fora do jogo e velho demais.A gente ama você, garotão, mas você já era. E todos aqueles anos em que ele manteveapartamentos em Dallas e em Fort Worth, essa era também havia chegado a um fim estrepitoso einfame, muito embora Ray tramasse sua volta quando não estava muito ocupado com ostrabalhos estranhos que apareciam, como servir de apresentador em concursos de beleza ebanquetes do Rotary Club. Ele chamava isso de “show de macacadas”, com a voz amarga epetulante que usava em casa, que, por sua vez, era a que melhor casava com sua expressão-padrão de desprezo, sarcasmo e ódio geral. O jeito como ele conseguia passar disso para aquelavoz profissional era algo impressionante, um tipo de truque de ventríloquo, mas sem precisar deboneco. Ele poderia estar repreendendo você por, digamos, ter limpado os pneus com umaquantidade de produto menor que a necessária para que atingissem aquele brilho lustroso deconcessionária e, então, no meio do seu encanamento rompido de caralhos, porras e merdinhasimprestáveis, o celular dele poderia tocar e fazê-lo agir como se um interruptor tivesse sidoacionado, ficando, de repente, com a voz feliz e animada de dez mil locutores do horário nobredo rádio.

Billy odiava isso. Não só a mentira, mas também a afronta à natureza, como se a cabeça dealguém estivesse mudando de formato bem diante de seus olhos. A volta ao mundo musical, essaera sua missão. Ray concluiu, fazendo pesquisas, que o mercado ainda poderia aguentar mais umhomem branco ofendido defendendo a fé e a bandeira dos Estados Unidos. Ele estudou osmestres, acompanhou as notícias, se conectou por muitas horas à internet. Começou produzindoe enviando gravações demo; a família se tornou seu teste de audiência para elaborações cada vezmais barrocas de crenças conservadoras. “Babaca americano”, foi como Patty, a irmã mais velhade Billy, chamou o pai depois de um refrão extremamente inspirado sobre o estado de bem-estarsocial. Ele pulou direto do rock‘n’roll para o hard-core de direita sem qualquer paradaintermediária. Foi uma notável autorrealização, porém, a que custo, com que esforços exigidosdo corpo e da mente, a flexão da alma para além dos limites humanos, tão forte quanto ossuportados em uma viagem espacial até Marte. O homem vivia vinte e quatro horas por dia emuma tensão paranoica. Contava com o rádio e a TV para lhe fornecer uma afirmação intelectual,um hábito de dois-maços-por-dia para o sustento de seus sentidos e nada de distraçõesmundanas, como ar fresco ou exercícios. Desse modo, Ray operava com o máximo de eficiênciaaté o dia em que levantou trêbado do sofá, cambaleando, atropelando as palavras, golpeando acabeça de maneira cômica, feito um homem tentando afugentar um enxame de abelhas.

Derrame. E então, outro derrame antes de os paramédicos chegarem, isso quase o matou.Agora, ele resmunga e geme como o Homem de Lata antes de ser lubrificado, e Billy não faz omenor esforço para entender. Kathryn o entende, e entende também a mãe deles, Denise, e Patty,

que veio de carro de Amarillo com o filho pequeno, Brian, só para passar aquelas duas noites eum dia com Billy; ela entende boa parte das coisas. Não que Ray tente falar, a não ser quandoprecisa que suas necessidades sejam atendidas, e nisso repousa o segredo da família, que eles nãose atrevem a nomear. O segredo não era que ele tivesse transado com várias mulheres ao longode todos aqueles anos em que manteve um apartamento próprio, uma coisa que ele precisava terfeito (manter um apartamento próprio, não transar). Ao trabalhar como locutor na parte da manhãem uma série de estações de rádio na região metropolitana do Texas, não tinha como ele lidarcom a baldeação diária, saindo de Stovall; e Stovall era onde eles haviam escolhido criar ascrianças, um lugar impregnado das virtudes da boa vizinhança e dos valores americanosessenciais de uma cidadezinha do Texas. E mais: Denise tinha um ótimo trabalho lá, então ocombinado era que ele ficaria na cidade durante a semana, trabalhando até os dedos caírem, evoltaria para casa triunfalmente nos finais de semana. O sexo extraconjugal não era o horrívelsegredo de família, nem o sexo em si, nem a evidência dele: o surgimento, depois do derrame, deuma suposta filha adolescente e o processo pelo reconhecimento da paternidade e recebimento depensão. Uma coisa lamentável, com certeza, mas não um segredo, nada de pisar em ovos aoredor desta mácula em nome da honra da família. No entanto, eles nunca falavam sobre a outravergonha, embora fosse emocionante. Você se sente mal por se sentir bem, era sobre isso que eraa vergonha. Ray não iria — não poderia? — falar: ! O famoso locutor tinha, enfim, ficadoimóvel, e que alívio e que alegria secreta isso foi para todos.

— Tem dias que penso que minha vida é uma música country ruim — disse Kathryn.Ela contou a Billy que um dia entrou no escritório e encontrou Ray choramingando no chão,

preso entre a mesinha lateral e o sofá. Era óbvio que ele tinha ficado ali um tempo, a julgar pelamancha escura na parte da frente da calça e, a menos de três metros, Denise estava sentada emsua mesa, pagando contas e folheando formulários do plano de saúde. Mamãe!, gritou Kathryn.Você não está vendo o papai caído ali? Denise lançou um olhar despreocupado ao marido.

— Ah — disse ela, voltando para a mesa —, ele está bem. Ele vai se levantar quando estiverpronto.

Kathryn riu quando terminou de contar a história.— Juro que acho que ela ia deixar ele morrer se eu não estivesse por perto.Não dava para agradá-lo, não se calhasse de você ser o filho dele, nem mesmo se você se

tornasse um herói nacional. Houve uma cena barulhenta e feliz quando Billy entrou em casa, amãe chorando, as irmãs rindo e chorando, o pequeno Brian perambulando por entre os joelhosdeles e chorando também, todo mundo se juntou em uma grande e confusa bolha de abraços. Rayestava no escritório, assistindo à TV. O pai deu uma olhada quando Billy entrou, soltou umgrunhido reservado e voltou a olhar para a tela. Billy ficou em posição de descanso e avaliou asituação. Estou vendo que ainda está pintando o cabelo, disse ele, e, de fato, o alto topete dovelho era de um preto brilhante como uma poça de óleo fresca. Belas botas, continuou Billy,acenando para as botas de caubói de couro de avestruz marrom, sem qualquer marca de uso.Novas? Ray o observa, os olhos cintilando com um QI perigosamente alto. Billy dá umarisadinha. Ele não consegue se conter. Ainda é o cara com cabelo preto como a capa da Bíblia,que tem uma atenção crítica à maneira de se vestir e de se arrumar, suas unhas rosadas epequenas brilhando depois de feitas por uma manicure que atende em casa. Ele não era alto,tinha um tipo físico descarnado como uma vespa, e seu rosto de feições angulosas era quasebonito, mas certa espécie de mulheres sempre tinha ficado atrás dele. Garçonetes, cabeleireiras,recepcionistas. No momento em que ele abria a boca, elas entravam em desordem hormonal.Secretárias eram uma especialidade: a dele, as de outras pessoas. Muito foi aprendido no

decorrer de processos judiciais.— Sua cadeira está toda bonitona. Vocês passou silicone nela?Ray o ignorou.— Parece uma daquelas máquinas para nivelar gelo, alguém já disse isso para você?Ray ainda não reagiu.— Ela faz aqueles bipes quando você dá marcha a ré?Para o jantar, Denise serviu um espetacular prato de tetrazzini de frango. Havia arrumado o

cabelo. Colocado maquiagem. Ela queria tudo perfeito, plano que Ray, definitivamente, estragouao aumentar o volume de Bill O’Reilly e fumar feito uma chaminé ao longo do jantar.

— Toda filha sonha em morrer por ser fumante passiva — murmurou Kathryn commelancolia, então virou-se para Billy e riu. — Olha só, se pudesse enfiar o maço todo na boca deuma vez, ele faria isso, nada ia deixar ele mais feliz. Ray apenas a ignorou. Praticamenteignorava todos eles, e naquela noite Billy percebeu, pela primeira vez, como eramcompletamente ligados. Você podia negar a existência dele, pensou Billy, ao observar o pai dooutro lado da mesa. Podia, amá-lo, sentir pena dele, nunca falar com ele ou olhar nos olhos delede novo, nunca mais se dignar nem a estar na sua presença mal-humorada e ácida, mas vocêainda continuava preso a esse filho da puta. De um jeito ou de outro, ele sempre ia ser seu pai,nem mesmo a morte, com toda sua força, vai mudar isso.

Denise atendia a cada necessidade do marido, embora nunca fizesse isso de maneira rápida,notou Billy. Ela parecia bem tranquila mesmo com ele pigarreando pela segunda ou terceira vez,e quando ela chegava perto recolhendo, servindo, cortando, fazia isso com o ar distraído de quemfaz muitas tarefas ao mesmo tempo, como se estivesse regando plantas enquanto falava aotelefone. Ela era sorrateira. Tinha aquelas artimanhas passivo-agressivas. O cabelo tinha uma corindeterminada, desbotada por produtos químicos, e boa parte do tônus muscular que expressavaemoção tinha desaparecido de seu rosto, ainda que, de tempos em tempos, ela fosse capaz de darsorrisos tristes, enviesados, forçando alguma demonstração de alegria, como se fossem luzesnatalinas na parte pobre da cidade. Ela lutava bravamente para manter a conversa em um tomotimista, mas os problemas familiares continuavam a se infiltrar. Problemas de dinheiro, comseguro-saúde, problemas-com-a-burocracia-médica, problemas com Ray-sendo-um-babaca-teimoso. No meio da refeição, o jovem Brian ficou inquieto.

— Ei! — gritou Kathryn. — Ei, Briny, olha isso!Ela enfiou dois dos Marlboros de Ray no nariz e arranjou cinco minutos de paz para a família.— Ela ligou hoje — disse Denise, servindo-se de uma terceira taça de vinho.— Quem ligou? — perguntou Billy, sem entender nada.As irmãs soltaram um “uuuuuuu” provocativo.— Aquela petulante! — respondeu Kathryn com um grito agudo, parecendo uma debutante

raivosa.Ela arrancou os cigarros do nariz e os devolveu ao maço de Ray.— A mamãe sabe que não devia falar com ela. Tudo tem que passar pelos advogados —

continuou.— Bem — disse Denise —, ela ligou. Eu não posso fazer nada se aquela mulher está ligando

para minha casa.— Isso não quer dizer que você tenha que falar com ela — observou Patty.— Bem, eu não podia simplesmente desligar. Isso ia ser uma grosseria.As meninas gritaram.— Aquela mulher — começou Kathryn, e precisou parar a fim de conter uma ânsia de

gargalhadas —, aquela mulher teve um caso com o seu marido e você não pode ser grosseira?Ah, por favor, mamãe, ela transou com o seu homem durante dezoito anos, eles tiveram umafilha juntos. Pelo amor de Deus. Seja grosseira, por favor. Tipo, isso é o mínimo que você podefazer.

Billy quis destacar que Ray estava sentado bem ali — como se a situação exigisse certadelicadeza? Mas, aparentemente, era daquele modo que eles agiam. As mulheres falavam sobreele a sua volta, como se estivessem discutindo o preço da água sanitária, e Ray, por sua vez,poderia muito bem ser surdo, dada a atenção que dispensava àquilo. Ele mantinha os olhos emO’Reilly e manuseava o garfo segurando-o com a mão fechada, como o pequeno Brian.

— Mamãe — disse Patty —, da próxima vez que ela ligar, você precisa avisá-la que oadvogado disse que você não pode falar com ela.

— Eu falo isso toda vez, mas ela continua ligando.— Então desliga na cara daquela vaca! — gritou Kathryn, dando uma risada alta e arregalando

os olhos para Billy.Está vendo? Está vendo que bando de malucos nós somos?— Eu não sei que diferença faz — respondeu Denise. — A gente podia muito bem se falar,

quer dizer, isso não pode fazer mal algum, não é como se qualquer uma de nós tivesse dinheiro.“Eu tenho contas para pagar”, ela fala, “como é que eu vou criar essa criança? Como que é quevou fazer para mandar ela para a faculdade?” Nem me fale, eu respondo, a gente está no mesmobarco. Se você encontrar algum dinheiro por aqui, fique à vontade para pegá-lo, só leve tambémas faturas do médico junto.

Kathryn estava rindo.— Ah, qual é, mamãe, fala logo. Fala logo! Ela pode levar ele também!Um consolo pelo qual Billy não havia esperado foi o prazer de se masturbar em seu velho

quarto. Ele entrou no cômodo e todas as velhas associações o tomaram de assalto, as camas desolteiro com as colchas azuis lisas, os troféus de plástico que ele ganhara em competiçõesesportivas alinhados ao longo de sua cômoda, o discreto odor almiscarado da adolescênciapairando no ar como o cheiro argiloso do húmus do ano passado. Ele jogou a sacola de roupasem cima da cama, fechou a porta para se trocar e bum!, a resposta pavloviana ergueu sua cabeçafuriosa lá embaixo. Ele terminou o serviço em noventa segundos, então não foi como se tivessedeixado seus familiares esperando, e, a seguir, veio a prazerosa descoberta de que suas camisetasantigas estavam apertadas por causa dos novos músculos, e sua calça jeans tamanho quarentaestava larga na cintura. Naquela noite ele teve mais uma sessão de punheta depois de se deitar,então outra, a primeira coisa que fez pela manhã, e cada uma das vezes tinha acontecido naqueleclima descontraído de fácil conexão, como se uma ex-namorada apaixonada tivesse vindo lhe daras boas-vindas de braços abertos. Que luxo não precisar saciar suas necessidades masculinas emum banheiro químico fedorento e horrível ou, o que era ainda pior, em uma trincheira de soloduro lá fora, no campo, com inimigos mortais por todos os lados e sempre, sempre, sempre comalguma tormenta da natureza com a qual lidar, insetos, chuva, vento, poeira, temperaturasextremas, nenhum sofrimento é tão pequeno para algo tão pequeno quanto um homem. Entãouma salva de palmas para os Estados Unidos, isso aí! E que Deus derrame Sua graça sobre vós,onde um garoto pode crescer tendo o próprio quarto com uma porta com tranca e um estoqueinfinito de pornografia na internet.

— É bom estar em casa — disse ele no café da manhã, que tinha Cheerios, ovos com bacon,torrada de passas com canela, suco de laranja, café e donuts.

No almoço, eles comeriam sopa de ervilha caseira, salada Waldorf, sanduíches de mortadela

frita e brownies recém-assados. Para o jantar, um cozido de cenoura, batata e cebolinha, couves-de-bruxelas cozidas no vapor, uma salada de frutas cítricas com gelatina, um bolo de chocolatecom duas camadas de recheio e calda de chocolate e sorvete Blue Bell. Denise tirou o dia defolga. “Este dia especial”, dizia diversas vezes durante o café da manhã, e Kathryn repetia issoem um tom animado, brincando, então Ray derrubou a cafeteira e calmamente dirigiu sua cadeirapara dentro do escritório, deixando a bagunça para outra pessoa limpar. Enquanto eles corriampela cozinha com panos de chão e papel toalha, a música da Fox News trovejou de dentro doescritório.

— Ele assiste a isso o dia todo? — perguntou Billy.A mãe dele e suas irmãs se viraram com um olhar que denunciava um longo sofrimento. Bem-

vindo ao nosso mundo.Depois do café da manhã, Billy levou o sobrinho pequeno para brincar lá fora. Era uma manhã

branda de outono, o domo azul do céu se estendia alto e firme com aquele cheiro adocicado demaçãs. Um aroma melado e vagamente melancólico de fermento vegetal de queima ilegal defolhas pairava no ar. Billy imaginou que os dois ficariam bem por dez, talvez quinze minutos,antes que ele ficasse muito entediado, mas meia hora depois ainda estavam ali. Tendo como basesua limitada experiência, Billy sempre considerou crianças em idade pré-escolar como criaturaspertencentes ao mesmo nível de animais de estimação não muito interessantes, portanto, ele nãoestava preparado para a variedade fenomenal de brincadeiras de seu sobrinho pequeno. A criançaimaginava uma forma de interagir com qualquer coisa que caísse em suas mãos. Flores, acariciare cheirar. Terra, cavar. Cerca de alambrado, chacoalhar e escalar, friccionar os dentes. Esquilos,perturbar com gravetos debilmente lançados.

— Por quê? — ele seguia perguntando com sua vozinha doce e tilintante, o tom tão cristalinoquanto o de bolinhas de gude rodopiando em um balde de cristal.

Por que ele correu pra cima da árvore? Por que ele fez ninho lá no alto? Por que ele junta noz?Por quê? Por quê? Por quê?

E Billy respondia cada pergunta o melhor que suas habilidades permitiam, como se qualquercoisa a menos pudesse desrespeitar a força profunda e quem sabe até divina que impulsionavaseu pequeno sobrinho rumo ao conhecimento universal.

Como chamar aquilo... a centelha de Deus? Instinto de sobrevivência? O computadorturbinado do cérebro de um símio que evoluiu desde o éon até a replicação e duplicação daseleção natural? Era praticamente possível ver os neurônios acendendo dentro do crânio dacriança. O corpo do menino era todo potência e torque, um feixe de músculos estriados queexalava lufadas levemente florais de pera madura. Tanta perfeição em uma pessoa tão pequena ecompacta — Billy precisava agarrá-lo de tempos em tempos, lutar com ele no chão enquanto omenino gritava só para ter aquele pestinha nas mãos, os adoráveis trinta meses de idade comolhos azul-claros como piscinas com cloro e sua fralda Huggies saindo da calça jeans comelástico na cintura. Então é esse o significado da santidade da vida? Um gemido suave escapoude Billy quando ele pensou sobre isso, a guerra revelada sob essa luz doce e abominável. Ah. Uh.Centelha divina, imagem de Deus, deixai os meninos e tudo aquilo — existe um poder realquando as palavras são atribuídas a coisas reais. Isso fez com que ele quisesse se sentar bem ali echorar, de tão poderoso que era. Billy entendeu, é, ele entendeu. E quando voltar para casa paravaler, vai precisar refletir sobre isso, mas, por enquanto, era melhor, como dizem,compartimentar, ou, melhor ainda, não pensar sobre isso de jeito algum.

Patty surgiu de dentro da casa, as mãos protegendo os olhos do sol. Ela se sentou em umacadeira de jardim no canto do quintal.

— Estão se divertindo, meninos?— Pode crer. — Billy rolava Brian no chão, como se estivesse empanando um filé de peixe.

Fazia barulho ao cobrir seu suéter com folhas marrons. — Ele é um carinha incrível.Patty deu uma risada meio fungada com o cigarro que estava acendendo na boca. Antigamente

ela criava muitos problemas, fora expulsa da escola, casara-se ainda adolescente; em seus vinte etantos anos ela parece ter reduzido a marcha o suficiente para começar a pensar em tudo isso.

— Ele com certeza tem muita energia — disse Billy.— Briny tem duas velocidades: rápido e desligado.Os lábios dela produziram um estreito funil de fumaça.— Como está o Pete?— Está bem — respondeu Patty de um jeito que pareceu um pouco cansado.O marido dela, Pete, trabalhava nas plataformas de petróleo perto de Amarillo.— Ainda maluco — disse ela.— Isso é bom?Patty apenas sorriu e desviou o olhar. Na lembrança de Billy, ela sempre tinha sido tão ágil e

corajosa; agora está com bastante culote e com os braços gordinhos. Junto ao peso extra veio umar quase palpável de desculpa.

— Quando você volta?— Sábado.— Você está pronto?— Bem... — Billy rolou Brian uma última vez e ficou de pé. — Acho que fiquei pronto assim

que cheguei aqui.Patty deu uma risada.— Isso parece uma resposta sincera. — Billy andou e se sentou na mureta baixa do quintal,

perto da cadeira. Brian permaneceu onde Billy o deixou, deitado de costas, olhando para o céu.Patty lançou ao irmão um olhar tímido. — Como é ser famoso?

Billy deu de ombros.— Eu não sei dizer.— Tudo bem, então, meio que famoso. Muito mais famoso que qualquer um de nós vai ser na

vida. — Ela saboreou o cigarro, bateu as cinzas. — Sabe, você meio que pegou um monte degente de surpresa por aqui. Não acho que eles estavam esperando isso quando colocaram você nafrente daquele juiz.

— Eu sei que não tinha a melhor reputação por aqui. Mas eu não era o mais fodido da minhasala.

Ela riu.— Ou, quem sabe, é só...— O quê?— Eu só odiava muito a escola, odiava tudo lá. Estou começando a pensar que foi isso que me

fodeu, muito mais do que eu mesmo. Deixando a gente trancado lá o dia todo, tratando a gentefeito criança, fazendo com que a gente aprendesse um monte de merda sem importância. Achoque isso me deixou meio maluco.

Patty deu uma risadinha, um pequeno ronco disparado pelo nariz.— Bem, acho que você mostrou para eles. O que você fez lá...Billy colocou os dedos nos ilhoses da calça e olhou para o outro lado.— ...aquilo foi algo importante. E todos nós estamos muito orgulhosos de você, sua família

está orgulhosa de você. Mas acho que já sabe disso.

Billy inclinou a cabeça na direção da casa. Ali do lado de fora, o rugido da televisão era umgrunhido submerso.

— Ele não.— Não, ele também. Ele só não sabe como mostrar isso.— Ele é um babaca — disse Billy, baixando a voz em consideração a Brian.— É, também — concordou Patty, em um tom mais agradável. — Você percebia que eu nunca

queria ficar muito em casa? Agora, na maior parte do tempo, eu só sinto pena dele. Mas tambémnão sou eu quem tem que viver com ele, não é? — Ela deu de ombros, examinou o cigarro. —Você soube da última? Sobre a casa?

— Acho que não.— A situação está meio fodida.Ela deu outra risadinha roncadora, um tique nervoso.Billy queria que ela tivesse parado. Lá no jardim, Brian arrastava os braços e as pernas para

cima e para baixo, fazendo anjinhos de folhas.— A mamãe quer pegar um empréstimo dando a casa como garantia. Ela diz que a casa é um

grande patrimônio, quer usar isso para pagar as despesas médicas. Kathryn deu uma olhada eficou tipo, sem chance, você pode decretar falência e se livrar de quase todas as despesasmédicas, e ainda fica com a casa. Mas se a mamãe fizer o empréstimo e depois não conseguirpagar as mensalidades, ela e o papai vão perder a casa. E mesmo com o dinheiro do empréstimo,eles ainda vão ter toneladas de despesas médicas.

Toneladas. Defina toneladas. Billy estava com medo de perguntar isso. Chegavam barulhosaleatórios da vizinhança — um cachorro latindo, uma porta de carro batendo em algum lugar,uma pilha de tábuas de madeira sendo jogadas no chão.

— O que você acha que a gente devia fazer?— Moleza, cara. Entrar com o pedido de falência e manter a casa.— Então por que ela não faz isso?— Porque ela está preocupada com o que todo mundo vai pensar. E a Kat e eu, a gente está,

tipo, quem dá a mínima para o que as pessoas pensam, você não pode arriscar a casa. — Pattyapagou o cigarro na mureta do quintal. — Você sabe o que aquela Idis McArthur disse para elaum dia depois da igreja?

— Não.— Ela disse que o motivo de a nossa família ter tido tantos problemas é que a gente não rezou

o bastante.— Que bela opinião.— É uma cidadezinha nojenta — concordou Patty.— Ei. — Kathryn enfiou a cara pela fresta da porta. — Alguém quer uma cerveja?Eles queriam, embora, até aquele momento, não tivessem percebido isso. Ao longo do restante

da manhã, a mãe e as irmãs dele ficaram perguntando o que Billy queria fazer. Assistir a umfilme? Dar uma volta de carro? Sair para comer? Mas aquilo bastava, apenas relaxar em um diaquente de outono, uma doce inércia no tom dourado da luz e nada a fazer a não ser se sentar emcadeiras de jardim ou se esparramar em cobertores e deixar a manhã, preguiçosamente, seguirseu curso. Dois anos atrás, Billy não poderia ter feito isso, a própria noção de tempo em família oteria feito correr rua abaixo, rasgando suas roupas. Eu sou um homem mudado, disse Billy a simesmo, sério. A pessoa que você vê diante de si não é quem você era. Talvez seja a idade,pensou, deitando-se de novo em seu cobertor, observando o sol realizar seu imponente rodopiode cata-vento por entre as árvores. Ou quem sabe seja não tanto em função dos dias do

calendário, mas o modo como o Iraque envelheceu você em anos caninos e como, após terexperimentado esse tipo de tempo, você poderia permanecer aqui, na companhia de sua mãe, desuas irmãs e de seu sobrinhozinho um tanto superagitado, e ficar, se não calmo, ao menos quieto.Levando as coisas devagar e aceitando fosse lá o que viesse. Talvez essa fosse a consequência deser um soldado no Iraque, e também a perspectiva mais distante que a guerra trouxe às coisas.

Ele bebeu uma cerveja aqui, outra ali, nada de mais. Ray ficou dentro de casa assistindo àtelevisão e isso estava bom para todo mundo, embora todas as vezes que ele queria alguma coisa,o que acontecia com frequência, ele se deslocasse até a porta externa de vidro e batesse nela atéque Denise, Patty ou Kathryn se levantasse para atender a suas necessidades. Pior que um bebê,observou Kathryn, e quando Patty destacou que não havia fraldas envolvidas, Kathrynrespondeu: Não dê ideia para ele.

Alguns vizinhos ficaram sabendo da visita de Billy e apareceram com bolos e travessas decozidos, como se tivesse acontecido uma morte na família. O Sr. e a Sra. Wiggins, da igreja.Opal George, que moravam do outro lado da rua. Os Krueger. A gente está tão orgulhoso. Agente sempre soube. Tão corajoso, tão abençoado, tão honrado. Edwin!, gritei. Vem aqui rápido!Billy Lynn está na TV e ele está acabando com a raça de um bando de al-Qaedas! Pessoasbacanas, mas eles continuavam falando, e com tamanha ferocidade a respeito da guerra! Eles setransformavam naqueles momentos, ao falarem da guerra: os olhos esbugalhados, os pescoçosinchados, as vozes ficando roucas com a sede de sangue. Billy se espantou com eles, sequestionou sobre os apetites piratas naqueles bons cristãos, ou quem sabe aquilo fosse justamenteo jeito de eles serem educados, mostrando como o estimavam. Por isso sorriu, lançou ummodesto sorriso de herói e esperou que saíssem para que ele e as irmãs pudessem voltar a bebercerveja. Depois da terceira cerveja naquela manhã — ela estava acompanhando o ritmo de Billy—, Kathryn saiu toda orgulhosa de casa com o Coração Púrpura dele pregado no lado esquerdodo peito e a Estrela de Prata no direito, as medalhas pendendo pesadas como as borlas no sutiã deuma stripper. Billy e Patty deram gritinhos, mas a mãe deles não estava achando graça.

— O quê? Ah, isso? — respondeu Kathryn em um murmúrio despreocupado quando Deniseperguntou o que ela achava que estava fazendo. — Ora, mamãe, estou apenas exibindo as joiasda família.

Denise declarou que a situação toda era indecente e mandou que Kathryn colocasse asmedalhas de Billy de volta no quarto, mas ela ainda as estava ostentando quando o Sr. Whaleyapareceu por lá, e foi impagável ver os olhos da eminência se arregalarem ao verem Kathryn, nãoapenas com as medalhas no alto de seus seios orgulhosamente empinados, mas toda ela,bronzeada, em forma, com suas longas pernas.

A-ham. Ar-rá. Ha-ha. Ele era chefe de Denise, então houve um constrangimento por causa dabebedeira pela manhã, mas Whaley tinha espírito esportivo e fingiu não reparar. Careca, com apele manchada, quase vinte quilos acima do peso, com um guarda-roupa que ia de blazers deestampa xadrez a calças sociais que não precisam ser passadas, ele era o que se passava por ricoem Stovall, o fundador da companhia moderadamente próspera de serviços no campo petrolíferoonde Denise tinha trabalhado como gerente durante quinze anos.

— A Sra. Lynn é a verdadeira chefe por aqui — ele gostava de dizer aos visitantes, rindoafetadamente na direção dela. — Eu só tento sair da frente e deixar ela tocar o negócio.

Eles lhe serviram uma Coca-Cola Diet e levaram as cadeiras para a sombra, para fora da áreado quintal. Denise e Patty se sentaram junto à visita, uma de cada lado, enquanto Billy seempoleirava na mureta. Kathryn refestelava-se feito uma leoa em uma toalha de banho ali perto.Brian estava em algum lugar dentro da casa, supostamente sob os cuidados de seu avô, que

fumava feito uma chaminé.— Sua mãe me falou que você ia vir para casa só hoje — disse o Sr. Whaley.— Isso mesmo, senhor.Era um desafio sustentar o contato visual enquanto espumava o hálito de cerveja para o outro

lado.— Sem descanso para os cansados, hein? — O Sr. Whaley deu uma risadinha. — Para onde

mandaram você até agora?Billy passou as cidades pela mente em rápida sucessão. Washington, Richmond, Filadélfia,

Cleveland, Mineápolis-St. Paul, Columbus, Denver, Kansas City, Raleigh-Durham, Phoenix,Pittsburg, Baía de Tampa, Miami e, conforme o sargento Dime destacou, calhou de praticamentetodas elas estarem em estado decisivo para as eleições. No entanto, Billy não mencionou isso.

O Sr. Whaley bebeu um gole de sua saborosa Coca Diet.— Como as pessoas têm recebido vocês?— Elas têm sido muito legais em todos os lugares a que a gente vai.— Isso não me surpreende. Olha só, a maioria dos norte-americanos apoia veementemente

essa guerra. — Sempre que os olhos de Whaley acabavam pousando em Kathryn, ele quasedesmaiava por causa do esforço que fazia para olhar para outro lugar. — Pelo amor de Deus,ninguém quer ir para a guerra, mas as pessoas sabem que às vezes é preciso. Essa coisa de terror,acho que o único jeito de lidar com aquele tipo de questão é ir direto na fonte e arrancar o malpela raiz. Porque aquele povo não vai embora por conta própria, não estou certo?

— Eles estão muito empenhados na causa, boa parte deles — respondeu Billy. — Não recuam.— Aí é que está. Ou a gente luta com eles lá, ou a gente luta com eles aqui, é assim que a

maioria dos norte-americanos vê isso.Denise e Patty assentiram em uma concordância bovina. Kathryn, enquanto isso, tinha se

sentado e puxado os joelhos junto ao peito; ela acompanhava a conversa com muita atenção,olhando de Billy para o Sr. Whaley, como se o que falavam contivesse um código que ela estavatentando decifrar. Heróis, disse Whaley. Iraque. Liberdades. Conquistando liberdades parafazer as nossas próprias liberdades mais seguras. Então ele perguntou sobre a negociação dofilme, assentindo prudentemente à medida que Billy explicava o progresso que haviam tido até omomento.

— Vocês precisam que um advogado dê uma olhada antes que assinem qualquer coisa.— Sim, senhor.— Eu posso revisar o contrato com o meu escritório em Fort Worth, se quiser.— Ia ser ótimo. Eu com certeza gostaria disso, senhor.— Filho, é o mínimo que eu posso fazer. Você deixou todos nós tão orgulhosos, não só a sua

família e os seus amigos, mas todos nós aqui, toda a comunidade. Você deu um tremendo ânimopara toda a cidade.

Billy evocou sua mais modesta risadinha.— Eu não sei de nada disso, senhor.— Escuta, todo mundo está orgulhoso para cacete de você, perdoe o meu linguajar, e se a

notícia de que você ia estar em casa hoje tivesse se espalhado, ia ter uma fila de carro daqui atépista de avião. Ah, se ia! — gritou ele em uma voz que fingia ferocidade. — Agora, a gente nãosoube com antecedência o suficiente para se juntar dessa vez, mas da próxima vez que vocêestiver em casa, a gente quer organizar um desfile em sua homenagem. Eu já falei com o prefeitoBond e ele topou, ele falou com o conselho da cidade e eles toparam. A gente quer que Stovallhomenageie você do jeito que você merece.

— Obrigado, senhor. Eu agradeço por isso.— Não, filho, eu que agradeço. O que você fez só mostra o quanto a gente é...— Ele tem que voltar — interrompeu Kathryn.Todos se viraram para ela.— Para o Iraque — acrescentou ela, como se aquilo não estivesse totalmente claro.— É... — disse o Sr. Whaley em um tom pesaroso — A sua mãe me contou isso.— Para eles terem mais uma chance de matar o Billy.— Kathryn! — censurou Denise.— Bem, é verdade! Se isso era para ser a grande Turnê da Vitória, então por que é que ele não

pode só ficar em casa?A voz do Sr. Whaley era gentil.— São jovens bons como o seu irmão que vão levar a gente à vitória.— Não se eles estiverem mortos.— Kathryn! — gritou Denise mais uma vez.Billy sentiu como se fosse apenas um espectador naquilo tudo. De um jeito ou de outro, não

cabia a ele dizer nada.— A gente vai rezar todos os dias para o Billy voltar em segurança — disse o Sr. Whaley,

tranquilizador como um médico cuidando de um paciente em seu leito de hospital, com a maiordelicadeza possível. — A gente reza por todas as nossas tropas, a gente quer que eles voltempara casa em segurança.

— Ah, Deus, ele vai rezar — rosnou Kathryn para si mesma, e então, gritou, umuuuuurrrrrgggg gutural, como um triturador de pia devolvendo os resíduos. — Eu estouenlouquecendo aqui — gritou ela.

E, como uma espada sendo desembainhada, ela se pôs de pé em um movimento veloz ecaminhou com arrogância em direção à casa. O restante do grupo ficou sentado em silênciodurante muito tempo, esperando que a zona de turbulência cessasse.

— Aquela mocinha tem passado por muita coisa — arriscou o Sr. Whaley. Denise começou apedir desculpas, mas ele as dispensou com um aceno. — Não, não, ela é jovem, mas já teve quelidar com muita coisa. Quando é que vai ser a próxima cirurgia?

— Em fevereiro — disse Denise —, e então vai ter mais uma depois dessa. Os médicos dizemque deve ser a última.

— Ela teve uma recuperação notável, com certeza. O último ano não tem sido fácil para osLynn, não é? E com o Billy fazendo tudo o que está fazendo do outro lado do oceano, eu sei queisso acarreta um sacrifício especial. E, Billy, se isso for acalmá-lo um pouco, quero que saiba quevocê tem uma oferta de emprego comigo para quando terminar o serviço militar. Tudo o queprecisa fazer é dizer que aceita.

Ora, era um pensamento deprimente, embora Billy pudesse ver como ele poderia chegar a esseponto, assumindo que o melhor cenário era voltar para casa com todos os membros e os sentidosintactos. Ele poderia trabalhar para Whaley arrastando encanamentos de campos petrolíferos eprotetores contra explosões por toda a parte central do Texas, toda aquela terra estéril e varridapelos ventos com aroma de bolo de carne, se matando por pouco mais de um salário mínimo euns benefícios de merda.

— Obrigado, senhor. Pode ser que eu aceite a sua oferta.— Bem, só quero que saiba que você tem opções aqui. Eu ficaria honrado em tê-lo no nosso

time.Billy vinha tentando evitar certo pensamento, algo que tinha captado em sua recente imersão

no redemoinho de limusines, hotéis de luxo, bajulações VIPs; ele sabia, intuitivamente, que opensamento o abalaria, e foi isso que aconteceu, desenvolvendo-se com rapidez em umapercepção, a despeito de todos os melhores esforços de Billy. O Sr. Whaley era um cara semimportância. Não era rico, não era muito bem-sucedido ou esperto; ele até mesmo exalava umtipo triste de mediocridade desesperada. Billy vai voltar a pensar no Sr. Whaley no Dia de Açãode Graças, enquanto brinda no jogo do Cowboys com alguns dos cidadãos mais ricos do Texas.Homens como o Sr. Whaley são peões para eles, assim como Billy é um peão para o Sr. Whaley,o que, em uma visão geral da situação, significa que ele, Billy, ocupa algum lugar no mesmonível de um protozoário unicelular em um grande rio que flui para as profundezas imensuráveisdo mar. Nos últimos tempos, ele tem tido tantos espasmos existenciais como este, convulsõesaleatórias de futilidade e falta de sentido que fazem Billy se perguntar qual a importância damaneira como leva a vida. Por que não ficar louco, sair por aí cometendo estupros e pilhagensem vez de continuar a seguir um código moral? Até agora estava se atendo ao código, mas ele sepergunta se só faz isso porque é mais fácil, porque requer menos em termos de energia e colhões.Como se a coisa mais corajosa que ele já fizera — corajosa e também sincera consigo mesmo —tivesse sido o êxtase da destruição do Saab de um frouxo. Como se sua façanha nas margens doCanal de Al-Ansakar fosse um desvio da principal questão de sua vida.

O Sr. Whaley foi embora. Kathryn não apareceu para almoçar. Depois da refeição, Ray eBrian se deitaram para uma soneca, Denise e Patty foram a uma loja, e Billy teve uma relaxantesessão de punheta nos confins amigáveis de seu quarto. Depois, voltou para o quintal e se deitouem um cobertor sob o sol. Ele cochilou. Os sonhos vieram e se foram como se fossem peixesflutuando pela cabine de comando de um navio naufragado. Ele ficou agitado, tirou a camisetapara que o sol pudesse torrar a acne em seu peito e cochilou de novo. Agora o sonho parecia semexer como um padrão de paisley, grandes redemoinhos de bomba atômica com coresbiomórficas que, em um instante, se dissolveram em um desfile. O desfile dele. Ele estava dentrodo desfile e, ainda assim, assistia a tudo de um lugar um pouco acima, e estava feliz, seguro,tinha conseguido voltar para casa. Sem preocupações! Era um ensolarado dia de inverno e todomundo estava agasalhado, exceto pelas strippers em cima dos carros alegóricos, ardentementenuas, a não ser pelas calcinhas fio dental e as luvas compridas. Uma banda de escola irrompeu,trombones e trompetes faiscando ao sol, então Shroom apareceu lá atrás, no meio das pessoas,sua cabeça pálida da cor de uma cebola destacando-se em meio à multidão. Seus olhosencontraram os de Billy e ele riu, cumprimentou-o erguendo um copo grande de Bud Light. Ei,Shroom! Shroom! Traz essa sua bunda mole aqui para cima! Ele fica gritando para que Shroomse junte a ele no carro alegórico, mas Shroom parece estar feliz onde estava, contente por serapenas mais um rosto no meio da multidão. Shroom. Caralho. Sobe aqui, homem. O sonho tinhaconsciência de que Shroom estava morto, então havia a imensa ansiedade de uma oportunidadeperdida, o desfile seguindo em frente e o carro alegórico de Billy sendo carregado com ele,aquela barcaça de papel ridícula costeando o rio da vida e as margens alinhadas com todosaqueles milhares de cidadãos comemorando e que — Jesus amado! Que pensamentoaterrorizante! — estavam tão mortos quanto Shroom?

O sono dele é interrompido por uma palpitação de pânico, uma agitação desesperada rumo aodespertar. Alguém estava debruçado sobre ele, respirando em cima de seu rosto. Ele abriu umpouquinho um dos olhos para encontrar Kathryn encarando-o, com óculos escuros imensos noestilo de Angelina Jolie.

— É melhor você tomar cuidado por lá — murmurou ela sombriamente. — Se alguma coisaacontecer com você, eu vou me matar.

Hunf. Ele abriu os olhos, ergueu a cabeça. A irmã estava estirada em uma toalha de banho aseu lado, apoiada em um dos cotovelos com a parte da frente do corpo voltada para ele. Elatambém estava, ele não pôde deixar de notar, usando biquíni, e aquela visão o deixou sem ar,mesmo sendo sua irmã. A despeito do pedaço arrancado em sua bochecha, ela era inegavelmentegostosa: pernas longas e bronzeadas, uma bunda bem apertável, barriga lisa e pele dourada,como a panqueca mais perfeita.

— Por que você faria isso?— Porque você está lá por minha causa.— Ah, certo. — Ele fechou os olhos e deitou a cabeça de novo. — Sua culpa, tomar porrada

daquele Mercedes. Levar um pé na bunda daquele fulaninho lá, é, obrigado. Obrigado por memeter nessa merda, Kat.

Ela riu baixinho, um sopro entrecortado, como o vento em um microfone.— Certo, mas mesmo assim. Desculpe, cara.— Sem problema — murmurou ele, soando mais sonolento do que realmente estava.No entanto, se ele mantivesse os olhos fechados, o sono poderia voltar. Kathryn se remexeu,

com seus charmosos trejeitos femininos.— A mamãe ficou pau da vida comigo — disse ela.— Imagina só.— Ah, Whaley, dê um tempo, a porra de um desfile. Aqueles caras estão falando de um desfile

e você podendo morrer.Billy teve que rir. Isso era revigorante, ter alguém falando as coisas assim na lata. Viver

naquela casa como ela viveu nos últimos dezesseis meses, aguentar tudo o que ela aguentou, osproblemas de saúde, os problemas com a família e levar um pé na bunda do frouxo fez com queKathryn passasse por mudanças drásticas e interessantes. Por um lado, suas provações tinhamqueimado toda a gordurinha saudável que ela costumava ter, a tendência dela era ser maisatarracada, com uma voluptuosidade cristã saudável, mais roliça e suave. Agora ela ostentava ocorpo magro e esguio de uma bartender de algum bar honky-tonk incrível, se esses lugares aindaexistissem. Um queloide formava um caminho reluzente que circundava seu ombro e descia porsuas costas, como se fosse uma ponta de corda em espiral balançando. O rosto dela estavarecuperado em “oitenta e sete por cento”, disse ela, totalmente inexpressiva ao enfatizar aqueles“oitenta e sete por cento”, como um narrador esportivo idiota anunciando estatísticas. Ela adorouo fato de que seu cirurgião ortopédico se chamava Dr. Stiffenbach, nome que para ela era dotadode um sotaque alemão que travava a língua.

— Oi, eu serrr a doutorrr Shhhhtiffen-bock, ja! Você vai fazerrrr estas exerrrcícios parra suasaúde, ja!

Ela chamava o comandante-em-chefe de Billy de “idiota-em-chefe”, tipo “Como foi a reuniãocom o idiota-em-chefe?”, o que havia provocado repreensões e pedidos de silêncio por parte damãe deles.

— Ele é isso mesmo! — protestou Kathryn. — Ele tem o cérebro de uma cigarra.A irmã doce, bonita, estudiosa, extremamente careta de Billy, aquela que sempre tinha sido

respeitosa em relação às autoridades, que pensava apenas coisas puramente norte-americanas enunca xingava ou denegria alguém, se tornara uma pessoa difícil.

Ela enfiou a mão dentro do isopor ao seu lado e tirou duas cervejas Tecate.— Você sente falta de beber lá? — perguntou ela, entregando uma cerveja a Billy.— No começo eu sentia. Mas, depois de um tempo, nem tanto. — Ele abriu a embalagem com

um ruído e saboreou o mais feliz dos sons efervescentes. — Mas tem uns dias em que você daria

qualquer coisa por uma bebida.— Pode crer. Olha, eu acho que beber é muito subestimado na nossa sociedade, digo isso

levando em conta os valores terapêuticos. Deixa você extravasar de tempos em tempos, tirarumas férias de você mesmo. É difícil viver dentro da nossa própria cabeça vinte e quatro horaspor dia.

— Você meio que pira.— Explica muita coisa, tipo, todos esses pastores que são pegos transando com prostitutas. Só

espero que eu nunca tenha problema com bebida, porque aí teria que parar.Eles beberam. Um sentimento saudável de bem-estar os envolveu.— Então, me conte da Turnê da Vitória.— A turnê. Ahn. Bem, é meio que um borrão.— Só me conte então das fãs.Ele riu, mas sentiu que ficava vermelho do pescoço para cima. Um estado de espírito puritano

se apoderou dele.— Não tem tido nenhuma fã — murmurou.— Mentira.— É sério.— Você está me zoando. Escute, garoto, é melhor você estar trepando por lá! Tipo, vai lá e

pega gente por mim.— Kathryn, para.— É verdade, cara, eu estou ficando meio maluca aqui nesta cidade.— Daqui a pouco você vai embora.— Pode até ser daqui a pouco, sim, mas não é pouco o bastante. Não tem nenhum cara decente

nesta maldita cidade, acredite em mim, eu procurei. Tem noite que fico tipo, que se dane, quemsabe eu dirijo até Sonic e dou mole para os garotos do ensino médio. Tipo, ei, menino, vem daruma volta comigo! Depois que você pegar uma garota com uma cicatriz na cara, você nuncamais vai querer outra coisa.

— Kathryn — implorou Billy.— Já era para eu ter me formado. Podia estar em algum lugar ganhando sessenta mil por ano.— Você vai chegar lá.— É, eu vou — disse ela com firmeza.— Você está quase lá — emendou Billy.— Se eu não ficar maluca antes.As duas últimas cirurgias estavam marcadas para a primavera. Em janeiro, ela começaria a

frequentar algumas aulas em uma faculdade local, o que era obrigada a fazer, caso contrário oscompassivos banqueiros dos Fundos Universitários Associados começariam a cobrar juros demora sobre os empréstimos estudantis dela.

— Sabe o que é engraçado? — perguntou ela. — Todo mundo por aqui é o maior conservadoraté ficar doente, ser ferrado pela seguradora, perder o emprego porque a empresa decidiuproduzir na China ou qualquer coisa assim, então as pessoas ficam tipo “Ooooooh, o queaconteceu? Eu achava que os Estados Unidos eram o melhor país de todos os tempos e sou umapessoa tão boa, por que todas essas merdas horríveis estão acontecendo comigo?” E eu era umadessas pessoas, cara. Tão idiota quanto todo o resto. Nunca achei que algo ruim pudesseacontecer comigo, ou, se isso acontecesse, existia todo um sistema que ia fazer ficar tudo bem.

— Quem sabe você não rezou o bastante.Ela tossiu, dando uma risada.

— É, deve ser isso. O poder da oração, cara.Eles beberam. Kathryn encostou a lata gelada de cerveja nas bochechas, no pescoço, no

umbigo, cada toque provocando explosões estelares no cérebro de Billy. Ele perguntou o que amãe deles pretendia fazer a respeito da hipoteca da casa.

Kathryn franziu o cenho.— Quem sabe o que aquela mulher vai fazer?! Ela não é racional, Billy. Ela não está lidando

com os fatos. Olha, não se preocupe com a porra do empréstimo. Não é da sua conta, não éproblema seu, nem meu, na verdade. Ela e o papai vão fazer o que quiserem e a gente não podeimpedir.

— Quanto é que a gente está devendo para o médico?— A gente? Você quer dizer eles, não é? Ou eu também, suponho, se você quiser falar em

termos técnicos. — Ela consultou a cerveja. — Quatrocentos mil, mais ou menos. E contas deum ano atrás continuam chegando. Quatrocentos. Mil. Dólares. Isso era como Deus aparecendoem toda sua glória nuclear, onipotente, obcecante, incompreensível.

— Mentira.Kathryn deu de ombros. Os números a deixavam entediada.— Isso não é problema seu, Billy. Deixa para lá. E, se você ganhar qualquer coisa com o

contrato do filme, é dinheiro seu. Não desperdice tentando ajudar aqueles dois.Como Billy não falou nada, ela riu e virou-se de bruços, a bunda se elevando de modo

vigoroso, como uma ilha que surge em um mar tropical.— Você sabe o que papai comprou para aquela garota quando ela fez dezesseis anos?— Que garota?— Qual é, Billy, a nossa irmã. Meia-irmã.— Não, eu não sei o que ele comprou quando ela fez dezesseis anos.— A porra de um carro.Billy engoliu em seco, virou-se. Ele podia ficar numa boa a respeito daquilo.— Um Mustang GTO, cara, zerinho. Isso foi antes de ele ser demitido. Mas mesmo assim.Billy conseguia sentir o ar enrijecendo no interior de seu peito.— Novo? — Ele odiou que a voz tenha falhado.— Zerinho. — Ela riu. — Então não seja bobo. Qualquer coisa que você faça para ele ou para

a mamãe, eles só vão criticar. Cuide de si mesmo e deixe eles fazerem o que quiserem.Billy conseguiu se segurar e não perguntar qual era a cor do carro.— Bem. — Ele esticou a mão para fora do cobertor e puxou um emaranhado de grama seca.

— Eu não tenho nada para dar a eles, de qualquer maneira.Kathryn pegou mais duas cervejas. A filosofia de Billy era: ficar alegrinho durante o dia se

tratava de um bônus; esse tempo não era contabilizado na sua cota aqui na Terra. Assim, ficaralegrinho durante o dia era muito mais prazeroso. E, hoje, o que poderia ser mais perfeito do queficar deitado sob o sol, bebendo uma cerveja ao lado de uma loura muito gostosa de biquíni? Oúnico problema, é óbvio, era que a garota era irmã dele, mas qual era o mal em fingir poralgumas poucas horas? A tarde assumiu um fulgor alegrinho resplandecente. Ele não ligava seKathryn havia lhe inquirido sobre a vida “no front”, como ela chamou. Como é a comida? Comoé o seu alojamento? Os iraquianos, como eles são e por que ainda odeiam a gente? Ela ficavatocando nele, dando tapinhas em seu ombro e apertando seu braço, empurrando o pé descalçonas pernas da calça jeans dele. Todo o contato tinha, ao mesmo tempo, aguçado seus sentidos e ofeito ficar passivo, relaxado, como se uma droga especialmente boa estivesse fazendo efeito.

— O que vai acontecer quando você voltar para lá?

Ele deu de ombros.— A mesma coisa, acho. Patrulhar, comer, dormir. Depois levantar e fazer tudo de novo.— Você tem medo disso?Ele fingiu ponderar sobre o assunto.— Não interessa o que eu sinto. Tenho que ir, então estou indo.Ela estava deitada de lado, a cabeça apoiada em um dos cotovelos. Uma pequena cruz dourada

repousava em um de seus seios, um minúsculo montanhista indo em direção ao cume.— Como os outros caras se sentem?— Do mesmo jeito. Quer dizer, olha, ninguém quer voltar. Mas você se comprometeu, então

você vai.— Então, deixe eu fazer uma pergunta: vocês acreditam na guerra? Tipo, ela é boa, legítima, a

gente está fazendo a coisa certa? Ou é tudo só por causa do petróleo?— Meu Deus, Kathryn. Você sabe que eu não sei.— Eu só estou perguntando no que você acredita, o que você, pessoalmente, pensa. Não é um

teste, cara, eu não estou procurando uma grande resposta objetiva aqui. Só quero saber o que estápassando na sua cabeça.

Certo. Bem. Já que ela perguntou. Ele percebeu que se sentia estranhamente grato por alguémter perguntado.

— Eu acho que ninguém sabe o que a gente está fazendo lá. Quer dizer, é estranho. É como seos iraquianos odiassem a gente de verdade, sabe? Bem, lá na nossa própria área de operações, agente está construindo umas escolas, a gente está tentando montar e fazer funcionar o sistema deesgoto deles, a gente traz todo dia caminhões pipa com água potável e faz um programa derefeições para as crianças, e tudo o que eles querem fazer é matar a gente. A nossa missão éajudar e melhorar, né? E aquelas pessoas estão vivendo na merda, literalmente, o governo delesnão fez nada por eles todos esses anos, mas a gente é o inimigo, né? Então, acaba que importamais a sobrevivência, eu acho. Você só se retrai, não fica pensando em completar nada, só querque no final do dia todos os seus colegas estejam vivos. Por isso, você começa a não se perguntarnem por que a gente está lá.

Kathryn o escutou até o fim. Ela fez uma expressão determinada.— Está bem, que tal isso: e se você não voltasse?Ele hesitou. Depois riu. Não. Sem chance.— Estou falando sério, Billy. E se você dissesse não, obrigado, eu estive lá, fiz aquilo, você

acha que eles iam ter peito de vir atrás de você? O grande herói e tal? Pensa só nas manchetes:“Herói fica em casa e diz que a guerra é uma merda.” Você tem o maior crédito, ninguém vaificar dizendo que é porque está com medo.

— Mas eu estou com medo. Está todo mundo com medo.— Você sabe o que eu quis dizer, tipo com medo de verdade. Tipo um covarde com medo,

tipo se você nunca tivesse ido para lá, para começo de conversa. Mas, depois de tudo o que fez,ninguém vai duvidar de você.

Então ela fez um discurso muito exaltado sobre um site que havia encontrado que listava comoalgumas pessoas tinham evitado o Vietnã. Cheney, quatro adiamentos por motivos educacionais,depois uma dispensa por situação dificultosa 3-A. Limbaugh, uma 4-F graças a um cisto nabunda. Pat Buchanan, 4-F. Newt Gingrich, adiamento por fazer um curso de pós-graduação. KarlRove não serviu. Bill O’Reilly não serviu. John Ashcroft não serviu. Bush teve uma AusênciaNão Consentida da Guarda Aérea Nacional, com uma marcação de “não me voluntario” na partede servir no exterior. Você está vendo o que quero dizer com isso?

— Bem, estou.— Só estou dizendo que se essas pessoas querem tanto uma guerra, elas mesmas podem ir

lutar. Billy Lynn já fez a parte dele.— Kat, isso não importa. A situação deles era diferente da minha. Não faz sentido a gente

tentar...Duas lágrimas pesadas escorreram por debaixo dos óculos escuros dela, e ele precisou desviar

o olhar.— E a gente, Billy? Pense nisso. Com tudo o que nossa família tem passado, como você acha

que a gente vai ficar se alguma coisa acontecer com você?— Não vai acontecer nada comigo.Ela fez uma pausa, longa o bastante para que ele quisesse retirar o que tinha falado.— Billy, tem um jeito de fazer isso. Tem um grupo lá em Austin que ajuda soldados. Eles têm

advogados, recursos, sabem como fazer para lidar com essas coisas. Eu pesquisei e parece queeles são muito gente boa. Então, se você decidir... Olha, estou só falando que você podeconseguir ajuda para fazer isso.

— Kathryn.— O quê?— Eu vou.— Merda!— Vai ficar tudo bem.— Você não sabe disso.Ela parecia tão intensa... Ele ficou emocionado. Depois, assustado.— Acho que não sei. Mas estamos matando mais deles do que eles dos nossos. E eles não

podem matar todos nós.Ela começou a chorar. Billy passou o braço ao redor dela, abraçando-a de um jeito fraternal,

decididamente não sexual. Kathryn chorou com mais vontade e pousou a cabeça no ombro doirmão. O cabelo dela tinha um cheiro amadeirado de limpeza, com notas de especiarias, comoerva-doce e samambaia molhada pela chuva. Havia algo em seu choro que trazia paz, um tipo demúsica ou amparo psicológico naquele som. As lágrimas escorriam pelo peito de Billy, como sefossem tartarugas recém-saídas do ovo. A última coisa da qual ele se lembrou antes de dormir foique ela tinha entrado em casa para pegar um lenço de papel dizendo que voltaria logo. Ele nemhavia percebido que tinha adormecido até ser acordado do jeito mais desagradável possível pelovuuuuum da porta dos fundos se escancarando como se tivesse sido atingida por uma bolaflamejante ao ser aberta por uma explosão, depois veio o uuuuuuiiiiiiiiiiirrrrrrrrrrrrr do quehavia de mais moderno na área de mobilidade. Filho da puta! Com o coração disparado feito umapunching ball, os olhos faiscando minúsculos gigabytes de choque, Billy se virou de bruços,distendendo diversos músculos nas costas, e ali estava Ray, zunindo pelo quintal. Mas quePORRA É ESSA??? Isso é jeito de acordar um soldado de combate? O reflexo do sobressaltodisparou uma série de habilidades de resposta rápida extremamente sofisticadas, ou seja, se Billytivesse sua M4 à mão, Ray poderia agora mesmo ser uma pilha de hambúrgueres fumegantes.

Babaca, ele provavelmente fez isso de propósito. Ele não mencionou nada sobre a presença dofilho nem sequer olhou em sua direção, mas Billy detectou um suave riso de deboche em seuslábios, a pele um pouco enrugada nos cantos. Ray desceu pela rampa e entrou no quintal. Billy sesentiu enjoado com toda a adrenalina se acumulando em seu corpo, mas se arrastou se apoiandoem um dos cotovelos e deu uma olhada ao redor. Kathryn tinha ido embora. A boca dele estavacom mau hálito por conta das cervejas de antes do cochilo. A tarde ficara nublada, o sol, turvado

pelas nuvens, como uma bola de sabão flutuando em uma banheira de água suja. Do lado de fora,Ray parou para acender um cigarro. Uma pessoa realmente complicada aquele lá, ponderouBilly. Extremamente inteligente e loquaz para caramba, não dava para vencê-lo em nenhumadiscussão. Nunca foi à faculdade, mas ganhou uma porrada de dinheiro nos velhos tempos. Rayfechou seu isqueiro e foi de maneira barulhenta para mais longe no quintal, sua cadeirasacolejando por cima de todos os pequenos calombos e depressões. Havia uma triste falta dedignidade na cena quando vista de trás, uma falta de graça no movimento como se fosse otraseiro de um hipopótamo, e o adesivo da bandeira americana colado ali naquele ponto mortoparecia uma piada cruel e sem graça, a tentativa falha de fazer uma sátira.

Billy se apoiou nos cotovelos e observou o pai. Seria de se pensar que a família seria a únicacoisa certa na vida, algo fácil. Pontos que você ganharia só por ter nascido? Tanta coisa densa,substancial une você a essas pessoas, tantas interligações espiraladas de história, genética, pontosem comuns e luta, que isso deveria ser a mais básica de todas as motivações, que vocês deveriamse esforçar para proteger e amar uns aos outros, ainda assim, este laço, que deveria ser a coisamais simples, era, na verdade, a mais difícil. Tudo o que você precisava fazer para comprovarisso era uma breve pesquisa com o Bravo. Na última visita de Holliday a sua família antes deembarcar, o irmão dele disse: Eu espero que você morra no Iraque. Quando Mango tinha quinzeanos, o pai quebrou o crânio dele com uma chave-inglesa, e o comentário da Sra. Mango foi:Então, quem sabe agora você vai parar de encher o saco do seu pai. O avô e um dos tios de Dimese suicidaram. A mãe de Lake era uma viciada em analgésico que tinha cumprido pena, o pai, umtraficante que também tinha passado um tempo na prisão. Quando Crack tinha onze anos, a mãedele fugiu com o pastor assistente da igreja que eles frequentavam. Shroom, ele mal teve umafamília. O pai de A-bort tinha sido o maior exemplo de pai caloteiro no estado da Louisiana, e opai e os irmãos de Sykes explodiram a casa deles cozinhando metanfetamina.

É, a família era a chave de tudo, decidiu Billy. Se você conseguisse descobrir um jeito deconviver com sua família, já teria andado uma boa parte do caminho para encontrar a paz deespírito, mas, para isso acontecer, o encontro, a conclusão, você precisa de uma estratégia. Então,onde você iria arranjá-la? Só a idade não lhe traz a resposta, é óbvio. Talvez livros, mas elesexigem muito tempo e, enquanto isso, a coisa continua a atacar você. Quando violentas forçasanimais estavam em jogo, quem tinha tempo para livros, caralho? Na manhã seguinte ao Onze deSetembro, Ray estava no ar defendendo uma “limpeza nuclear” de algumas capitais do OrienteMédio, tocando “Bomb Bomb Iran”, de Vince Vance and The Valiants e “The Ballad of theGreen Berets”. Billy se lembra de ter pensado: É assim que isso funciona? Coisas horríveistinham acontecido, o que significava que coisas ainda mais terríveis estavam a caminho, como seo processo não fosse meramente automático, mas absoluto. Aqueles dias e aquelas semanasadquiriram, desde então, uma aura de profecia na vida de Billy. Ele acha que pressentiu afatalidade daquilo mesmo à época — a guerra se aproximava, e ele estava fadado a ela, e algumadinâmica entre pai e filho, oculta, irresistível, estava em funcionamento para garantir que issoacontecesse. Se o pai amava a guerra, como o filho poderia ficar longe dela? Não que o amorpela guerra fosse necessariamente traduzido em amor pelo filho.

Uuuuuiiiiiiiiiiiiiiiiiiirrrrrr, pausa. Uuuuuiiiiiiiiiiiirrrrrrrrrr, pausa. O que ele estava fazendo?Ray parou diante das flores que cresciam junto à cerca, um grupo de bolas felpudas azul-clarasem talos longos e altos. Billy tinha perguntado o nome delas à mãe naquela manhã, alguma-coisa-névoa-azul, depois que Brian e ele contaram dezessete borboletas se alimentando ali.Durante todo o dia, borboletas estiveram flanando pelo quintal, rumo ao sul, parando paralanchar na alguma-coisa-névoa-azul antes de continuarem sua jornada para o México. Ray

acendeu outro cigarro e ficou ali, sentado, fumando, observando as borboletas. Billy nunca tinhavisto o pai fazer algo assim, passar algum tempo na vida contemplando a natureza. Tratava-se deum homem cuja principal relação com o mundo natural era a mesma que um carnívoro tem comseu bife; mas com ele ali, sentado, observando em silêncio as borboletas, Billy pressentiu, se nãouma abertura, então algum potencial ou possibilidade que o fez voltar a si. Essa sensação o fezficar um pouco desesperado. Se a oportunidade surgisse, ele saberia o que fazer? Se pudessehaver alguma pequena coisa boa entre eles e não tivessem as habilidades para torná-la realidade,bem, isso seria uma tremenda pena e quem sabe até mesmo uma tragédia, dado que aquelepoderia ser o último dia deles juntos. Então a porta se abre de supetão, bum, não tão alto dessavez, e lá vem Brian, trotando pelo quintal.

— Oi, Billy — trinou ele, tão alheio que Billy foi obrigado a sorrir.Brian atravessou o quintal correndo até Ray e subiu na parte de trás da cadeira de rodas. Ray

sorriu e andou com a cadeira por ali, e lá se foram eles trepidando pelo quintal.— Faz ela pular! — gritou Brian.Ray puxou o controle de comando para trás, depois o apertou para a frente; a cadeira deu um

pinote, a parte dianteira se erguendo dois centímetros do chão. O equipamento se locomovia, nomáximo, a uns cinco quilômetros por hora, e, de algum modo, Ray conseguiu transformá-lo emum esporte radical. Brian guinchava e pedia mais, e lá se foram eles em uma grande curva,sacolejando e dando pinotes, Ray forçando para que a cadeira desse tudo de si enquanto Brian sependurava nas costas dela e ria todo bobo. A volta que davam os trouxe, finalmente, para pertode Billy e depois, ao pensar nisso, Billy vai se lembrar de que estava sorrindo, não só por causade um sentimento de prazer, mas por se sentir de certo jeito em relação ao pai. Nessas reflexõesposteriores, vai perceber que esteve pensando que ele e Ray poderiam ter o Momento, e o que eleteve em vez disso foi um dos maiores “vai para a puta que o pariu” silencioso de todos ostempos. Como Ray fez isso, Billy nunca vai descobrir, embora tenha parecido acontecersobretudo nos olhos, no gume frio e desdenhoso de seus golpes laterais, aqueles breves olharesenquanto a cadeira de rodas passava feito um trator. Alguma grande rejeição foi transmitidanaquele momento. No entanto, a melhor forma que Billy encontrou para descrevê-la foi queaquele era o jeito de seu pai dizer: Isso não foi para você. Você não faz parte disto, você nãopertence a este lugar. Ray estava mantendo o Momento para si mesmo; ele conseguia fazer Brianamá-lo sempre que quisesse e nenhum dos outros tinha sequer merecido um esforço como essepor parte dele.

Tudo aquilo servia para provar que, sem uma estratégia, você era um alvo grande e gordopendurado lá fora, uma isca no tanque de tubarões da dinâmica familiar. Durante o jantar daquelanoite, Bill O’Reilly se encolerizava na televisão, Denise e as meninas brigavam sobre a hipotecada casa, Brian estava cansado e começou a agir como um merdinha, o assado tinha passado doponto, Ray não parava de fumar e Denise começou a chorar porque ela queria que tudo estivesseperfeito e, claro, isso não poderia acontecer. Mamãe, disse Billy, rindo, abraçando-a, trazendo àtona reservas de serenidade que ele desconhecia ter, Mamãe, não se preocupe com isso. Eu estoufeliz. Estou em casa. Está tudo bem. O que foi incrível foi que isso realmente pareceu ajudar. Amãe dele se acalmou. Brian ficou com sono na cadeirinha de refeições. Patty e Kathryn tiveramum acesso de riso e abriram mais uma garrafa de vinho, e Billy se sentiu muito mais velho queseus dezenove anos, como se tivesse sido abençoado com uma sabedoria que estava além da suaidade. Será que a guerra fez isso? Tudo o que fora dito era como a guerra deveria deixar vocêfodido, era verdade, mas talvez não fosse toda a verdade. Ele se enfiou na cama naquela noitezonzo de bolo de chocolate e vinho, fechando os olhos com a satisfação que o desastre tinha sido

evitado, e algo crucial, recuperado. Não existia no mundo essa coisa de perfeição, apenasmomentos de transparência tão extrema nos quais você se esquece de si mesmo, uma santamisericórdia, se de fato ela existisse.

Uma limusine deveria vir buscá-lo às sete da manhã, uma cortesia de algum patriota ricaçoque desejava permanecer no anonimato ou teve seu nome esquecido por Billy. Uma limusine.Para ele. Tanto faz. Ele dormiu mal e acordou de ressaca, a boca suja com uma baba rançosa comgosto de cobre totalmente desproporcional ao vinho que havia consumido. Billy conhecia aquelegosto, sabia o que significava — medo, repugnância e carma ruim para além da cerca —, mas eleainda tinha insolência o bastante para uma última punhetinha nos confins amigáveis, com umaimportância cômica presente ao ato, como se essa gozada de despedida fosse o equivalentehistórico à final de Troy Aikman no Texas Stadium. Amigos, ele está no quarenta! No trinta!Pode ser que ele siga até o fim! No vinte! No dez! No cinco! E... touchdown! Assim, revigorado,ele tomou banho e se barbeou, juntou seu kit, fez sua cama e colocou a bolsa ao lado da porta dafrente. Então, não havia mais nada a fazer, exceto encarar a família.

— Vocês vão ficar com saudades? — gabou-se com alegria à medida que entrava na cozinha,mas as mulheres apenas o encararam, arrasadas.

Elas estavam deploráveis. Ele também, no entanto, se demonstrasse isso, elas ficariam aindamais tristes. As janelas da cozinha pareciam ter sido laminadas durante a noite, não havia nadanelas além de uma cor cinzenta suave e imaculada. Rajadas de vento golpeavam a casa como auma gaita de foles; gotas pesadas de chuva estalavam e faziam barulho sobre o telhado. Aprimeira tempestade de inverno estava avançando através das planícies, a mesma frente quedeveria trazer neve e geada perto do Dia de Ação de Graças.

— Para onde você vai depois daqui? — perguntou Patty.As irmãs de Billy bebiam café e observavam enquanto ele comia. Denise estava de pé e ativa,

uma força de ataque para pequenos trabalhos na cozinha.— Fort Riley, eles têm uma reunião marcada lá. Depois Ardmore. Para, vocês sabem. — Ele

deu uma olhada para a mãe. — Então Dallas, eu acho.— O grande jogo! — mugiu Kathryn. — Você vai conhecer a Beyoncé?— Eu sei tanto quanto você.— Você vai, cara, com certeza. Então, vê se não pisa na bola. Provavelmente vai ser a sua

única chance de deixar ela caidinha por você.— Sem dúvida.— Então, escuta, começa dizendo como ela é bonita.— Kathryn, é a Beyoncé. Ele não precisa que eu diga que ela é gostosa.— Cara, as mulheres nunca se cansam de ouvir essas coisas! O que você quer fazer é chegar

nela tipo: “Bey, oi, você está arrasando, garota, toda-toda, seu cabelo arrasando e tudo o mais,que tal a gente sair depois do jogo?” Patty, não ia ser muito legal ter a Beyoncé de cunhada?

— Muito legal.— Gente, qual é. Eu sou um soldado. Ela nunca vai dar a mínima para mim.— Conversa fiada! Um garanhão bonito como você, um herói? Ela vai ficar toda se querendo

para cima do seu pau!— Ela não está saindo com aquele tal de Jay-Z? — perguntou Patty.Denise começou a chorar. Ela estava limpando as bancadas e começou a chorar, do mesmo

jeito que poderia cantarolar uma velha canção que tomasse conta da sua cabeça. Kathryn estaloua língua como se estivesse com raiva, aborrecida. Os olhos de Patty ficaram avermelhados, masela se segurou. Só aguente isso, disse Billy a si mesmo. Uma vez que estivesse dentro do carro,

tudo ficaria bem, porém, havia um bolo do tamanho de um briquete de carvão em sua garganta.Isso era pior do que quando ele embarcou pela primeira vez, o que o deixou surpreso; deveria sermais fácil da segunda vez. No entanto, parecia que tinha mais a perder agora, ainda que ele nãosoubesse dizer o que era. Então havia aquilo ali, fosse lá o que fosse, e ainda o fato de que destavez ele sabia a natureza do serviço para o qual estava voltando.

— Agora, onde é que está o Ray? — perguntou Denise, vagamente, como se falar consigomesma pudesse ajudar. — Quem sabe um de nós devesse...

Kathryn e Patty olharam uma para a outra, depois para Billy. Ele deu de ombros. A presençade Ray não parecia ser essencial para a felicidade deles naquela manhã. Como se em resposta àsequência lógica, Brian entrou na cozinha com seus passinhos firmes e pijama com pezinhos, asbochechas roliças e rosadas pela plenitude do sono. Ele subiu no colo da mãe e se aconchegou,agarrando-se como um bebê coala em um arbusto.

Você quer um pouco de suco?Não.Cereal?Não.Você só quer ficar sentado um pouco com a mamãe.É.A presença dele teve o efeito de acalmar a todos. Ele olhou e olhou para Billy, não tanto por

curiosidade, pareceu, mas testemunhando, como se sintonizando alguma circunspeção ancestral.A boina de Billy, em particular, parecia chamar sua atenção. Desde que não começasse com osporquês, eles ficariam bem, pensou Billy. Denise lhe serviu mais café. Kathryn limpou o pratodele. O relógio do micro-ondas estava dois minutos adiantado em relação ao relógio embutido nofogão, que, por sua vez, estava um minuto adiantado em relação ao relógio de parede, e todas asvezes que você olhava para um, precisava olhar para os outros em uma busca sem-fim pelacoerência. Era horrível ficar olhando aqueles relógios. Um a um, eles iam em sequência rumo àssete horas e além, então Kathryn sibilava bem baixinho um “merda”. Da cozinha eles puderamolhar pela sala de jantar e ver, através da janela da frente, um Lincoln Town Car estacionando naentrada da casa.

Uma pequena confusão irrompeu. Kathryn saiu pelo corredor em direção à porta da frente.Denise virou-se para a pia e apenas soltou uma espécie de uivo. De alguma maneira, Brianacabou nos braços de Billy, de modo que ele estava ali, no meio, quando Billy abraçou a mãechorosa. O jovem soldado se esforçava para diminuir a intensidade de seus sentimentos ao seinclinar porque aquilo era demais, o choro, a tristeza, toda a vibração trágica, mas pelo menosBrian estava ali para amortecer um pouco do choque.

— Tchau, mamãe — sussurrou Billy.Depois, andou pelo corredor com Brian nos braços, Patty seguindo-os de tão perto que ficava

pisando nos calcanhares do irmão. Do lado de fora, na entrada da casa, Kathryn ajudava omotorista a colocar o equipamento de Billy no porta-malas.

— Tome cuidado — disse Patty, na varanda. Ela era uma esponja chorosa, encatarrada esoluçante. — Não faça nenhuma loucura. Só traga essa sua bunda mole para casa.

Billy cheirou pela última vez a cabeça de seu sobrinho, rica em notas de grama de primavera epão recém-saído do forno, e o entregou de volta a Patty. Seguiu-se um abraço esmaecido entre ostrês.

— E você diz para ele — murmurou Billy para a irmã, em meio ao aperto —, se eu não estiverpor aqui... Você diz para ele que eu disse para ele nunca, jamais, entrar para o Exército.

Kathryn estava esperando no carro. Ela chorava, e ria de si mesma por estar chorando,sobrepujada pela pura e absoluta escrotidão de tudo aquilo. Mais tarde, ele se lembraria dosarranhões que ela deu enquanto o abraçava, como se estivesse escorregando por um penhasco eusasse as unhas para ter um ponto de apoio. Ela bateu a porta atrás dele e deu um passo para trás,depois acenou um adeus com a mão girando feito um moinho, no melhor estilo desenhoanimado. Billy não poderia ter ficado mais exausto se tivesse acabado de correr uma maratona.Parecia uma falência de órgãos, como se o rosto dele estivesse derretendo, mas o carro estavadando marcha a ré na entrada da casa e o pior tinha passado. Kathryn acenou do jardim enquantoo Town Car ia embora. Patty acenava da varanda com Brian pendurado em seu quadril e, atrásdeles, apagado por causa do reflexo da porta externa de vidro, Ray assistia à cena de sua cadeira.Billy praguejou e se encostou no banco. O Town Car ganhou velocidade. Então o pai deleapareceu, o que ele deveria fazer com aquilo?

— Você quer uma musiquinha? — perguntou o motorista.Ele era um homem negro corpulento chegando aos sessenta. Uma camada grossa de gordura

se esparramava para fora do colarinho de seu terno.Billy disse não, obrigado. Eles seguiram por muitos quarteirões antes que o motorista voltasse

a falar.— É difícil para as famílias — comentou com uma voz cadenciada de pastor. — Mas ia ter

alguma coisa errada se não fosse assim, eu acho. — Ele deu uma olhada em Billy pelo retrovisor.— Tem certeza de que não quer uma musiquinha?

Billy disse que tinha certeza.

Todo mundo aqui é americano

Billy está pensando que, se alguém somasse o patrimônio de todas as pessoas que ele jáconheceu na vida, esse valor total presumivelmente alto ainda seria insignificante se comparadoao formidável patrimônio líquido de Norman Oglesby, ou “Norm”, como ele é conhecido pelamídia, pelos amigos, pelos colegas, pelas legiões de torcedores do Cowboys e pela ainda maisimpressionante legião de odiadores do Cowboys, que, por algum motivo — a arrogânciapresunçosa do sujeito, do tipo “dane-se”, ou seu jeito de ficar se vangloriando com o papo de queo Cowboys é o maior time do país, ou sua vontade de prostituir a marca do Cowboys colocando-a em tudo, desde torradeiras até bulbos de tulipa —, nutre um desprezo absoluto pelo cara, aindaque seja obrigada a admitir sua genialidade em ganhar uma grana preta. Norm. O Normster.Nãm. Ele é o protagonista das fantasias de torcedores de toda parte, o antagonista emintermináveis discussões imaginárias e o mediador para a realização de toda sorte de desejossecretos. Há dias que Sykes vem ensaiando o grande momento em que mandará Norm se foderpor ter feito isso e aquilo, reclamará para caralho por ele ter negociado o Trebnoski, tipo, ei, queporra é essa, Norm? Você trocou o melhor linebacker do mundo por um cara que é puroesteroide! Mas, quando chega a hora de conhecer o dono do Cowboys, Sykes se rende e vira acasaca, sem a menor vergonha.

— É uma honra conhecer o senhor — diz ele em um tom sussurrado, reverente. — Só queroque o senhor saiba que sempre fui um grande fã do Cowboys.

— Bem, é uma honra para mim conhecer você, cabo Sykes — rebate Norm. — Eu sempre fuium grande fã do Exército dos Estados Unidos.

Os espectadores da cena dão uma grande salva de palmas. Uhuuuu, Norm! Estão em umgrande salão vazio nas entranhas do estádio, um espaço gelado com paredes de concreto ecarpete sintético barato que impele o frio através do chão em uma corrente de ar palpável. OsBravos foram trazidos aqui para um encontro particular com o alto escalão do Cowboys econvidados selecionados, talvez duzentas pessoas. Há muitas famílias, o que é sem dúvidacondizente com um Dia de Ação de Graças. Trata-se de uma multidão de classe, os homens depaletó e gravata, as mulheres com elegantes terninhos de alfaiataria com bolsas e sapatoscombinando, embora alguns indivíduos do tipo mais descolado e ousado estejam exibindo o quehá de mais avançado na moda de inverno, com calças de couro apertadas e longos casacos depele. Todos poderiam pertencer à congregação da igreja mais rica da cidade, Nossa SenhoraAnoréxica dos Branquelos Cheios das Joias; os únicos negros no lugar são os garçons e asgarçonetes e alguns ex-jogadores gregários, favoritos dos torcedores de antigamente, queinvestiram com sabedoria e não tiveram problemas com a lei. Billy e Mango sabem que esteevento de alto nível pede o melhor comportamento possível e, graças à erva de primeira deHector, estão quase perdendo o controle. É quase impossível não começar a rir e, se eles fizeremisso, ninguém sabe aonde a coisa vai terminar. Um padre idoso com a língua presa quase disparaa crise de riso, depois uma senhora cujo cabelo se parece com um poodle explodido. Eles estão

naquele perigoso estado de paranoia doidona que faz com que, sem dúvida, todo mundo percebaque fumaram, o que é aterrorizante e ao mesmo tempo a coisa mais engraçada do mundo.

— Fica tranquilo — sussurram um para o outro, dando risadinhas como asmáticosenlouquecidos.

Pense em alguma coisa horrível: hemorragia retal, ferimentos no peito, tênias penduradas noseu nariz.

— Certo, como é que eu estou?— Com cara de chapado.Eles estão sussurrando pelo canto da boca.— E agora?— Continua com cara de chapado.Billy chuta de brincadeira a parte de trás do joelho de Mango, que dá um soco rápido nas

costelas de Billy, e os dois ficam trocando pancadas furtivas até que Dime os encara. O olharprovoca a sensação de uma derrapada em alta velocidade, o uiiiiii-rááái! de uma força Gdaquelas somada à consciência de que a situação provavelmente vai terminar mal, mas quandoNorm & Cia. se aproximam para a grande apresentação é hora de se preparar e fazer uma carasóbria.

Norm. Ele mesmo, em carne e osso. Boa parte da vida consiste em ficar em inércia e à deriva,a breve dor ou a delícia passageira de um dia específico tendem a se mesclar com o que ocorreno dia seguinte, de modo que tudo vira um grande bloco sem graça. Há tão poucos momentospara os quais se pode apontar e dizer: É, aquilo foi histórico, coisas grandiosas aconteceramnaquele dia, e é evidente que este deveria ser um desses momentos, porque fotógrafos e câmerasde vídeo acompanham cada passo de Norm. Ele tem um brilho próprio, o que não quer dizer queseja um homem bonito, mas, sim, que resplandece como uma celebridade de alta-voltagem, e é aíque está o problema: o cérebro luta para conciliar a versão criada pela mídia com o homem deverdade, que parece mais alto do que a imagem mental preconcebida, ou talvez mais largo, maisvelho, mais rosado, mais jovem, as duas versões são incongruentes em algum sentidofundamental, fazendo com que tudo pareça um pouco irreal, e, de qualquer maneira, Billy estápirando. Ele já se encontrou com o presidente, mas, se o nervosismo serve de medida, estemomento significa ainda mais, representa um desafio maior para a definição fluida que tem de sipróprio. Conhecer gente famosa é um negócio delicado. Será que Billy vai ser aprimorado peloencontro que está prestes a acontecer? Ratificado? Diminuído? Ontem ele perguntou a Dime: Oque eu falo para ele? Dime deu uma risadinha debochada. Você não precisa falar porra nenhuma,Billy, Norm é que vai falar tudo. Só fala sim, senhor e não, senhor e ri quando ele fizer umapiada, isso é tudo o que você precisa fazer.

Norm vai seguindo pela fila de gente que o recebe. Quando chega a Billy, o jovem soldado sesente fraco.

— Cabo Lynn — diz ele, parando para avaliar Billy de alto a baixo. — Eu estava ansioso paraconhecer você.

E Billy sente que está levitando, sendo içado por uma espuma branca de luzes quentes decâmeras e flashes fotográficos perfurantes, como se estivesse em meio a um merenguefulminante provocado pela oportunidade de tirarem uma foto dele com uma celebridade, e o fatode estar doidão faz com que tudo pareça ondulante e em câmera lenta. Norm aperta sua mão,uau, um aperto de macho-alfa de verdade — cara, levanta logo a perna aí e mija para demarcarseu território! Orgulho, diz ele, mas, como em uma fita tocada devagar demais, as palavras sedeformam e incham nos ouvidos de Billy, ooooooRRRRggggUUUUUUUlllllhhho. Depois

coragem, coooooooRAAAAAAAgemm. Serviço, sssseeerrrRRRRRVIIIIIIIççççoo.SsssssacccRRRiiiiiiFFFFÍÍÍÍÍccccccioooooo. HoooooOONnnraaa.DeeeeteerrrRRRRminaaaaaaaÇÃÃÃÃÃOOOooooooo.

— Você é um garoto do Texas — comenta Norm, e há certa mastigação em suas palavras, umdiscreto engrossamento do palato, como se ele usasse um daqueles aparelhos ortodônticos portrás dos dentes. — De Stovall, certo? Lá na região do petróleo? — Ele nota as medalhas no peitode Billy e afirma que está especialmente orgulhoso “como um conterrâneo do Texas”, emboranão esteja surpreso, nem um pouco surpreso, é natural que um texano tenha um excelentedesempenho no serviço militar. — Todo mundo sabe que os texanos são os melhorescombatentes — continua Norm, e ele está sorrindo. Não é exatamente uma piada, é mais umaprovocante adulação ao Texas. — Audie Murphy, os heróis do Álamo, agora você faz parte deuma tradição famosa, sabia disso?

— Eu nunca tinha pensado nisso dessa maneira, senhor.Billy deve ter dito a coisa certa, porque uma onda calorosa de risos emerge da multidão, sim,

as pessoas estão assistindo, os rostos delas margeiam a bolha de luzes da imprensa, como seestivessem sendo vistas através de uma lente olho de peixe. A adrenalina canta igual a umamotosserra na cabeça de Billy. Norm está falando. Está fazendo um pequeno discurso completo.Mede cerca de dois centímetros a mais que Billy, um homem de sessenta e cinco anos em formae de pescoço grosso, com o cabelo pintado em um tom de pêssego e uma cabeça trapezoidal,larga na parte de baixo, que vai se estreitando das têmporas até o platô de cabelo alisado nococoruto. Seus olhos são de um tom fantasmagórico de azul-fissão-nuclear, mas é o campo detreinamento de seu rosto que amedronta e fascina, o rosto que famosamente passou por todo tipode cirurgia plástica e tratamento cosmético e que, durante anos, foi a matéria-prima de notíciaslocais e estaduais, a saga bastante pública de melhorias estéticas de Norm. O resultado, até agora,é atraente e espalhafatoso, como um lote de brinquedos de parque de diversão reformados. Aboca do sujeito parece ter sido repuxada por alguns parafusos apertados demais. As dobrasvagamente asiáticas nos cantos de seus olhos exprimem traços sedutores e até mesmo femininos,como se inspiradas em uma ilustração sensual do mito de Pocahontas. A cor da pele é como umamancha velha de ketchup que tivesse ficado quase cor-de-rosa depois de ser muito esfregada.Considerando todo o trabalho que deu, o efeito geral não é nem bom, nem ruim, apenas caro, eBilly mais tarde refletirá sobre o assunto e concluirá que seria possível obter o mesmo resultadorevestindo o rosto com notas de mil dólares.

— Você devolveu o orgulho aos Estados Unidos — diz Norm.A informação ganha a forma de minúsculas bolhinhas efervescentes no cérebro de Billy.

Estados Unidos? Sério? A porra do país todo?Mas as pessoas estão aplaudindo, e falta a Billy a coragem para discutir, então ele é

apresentado à Sra. Norm, uma madame que já tem certa idade mas está bem conservada, comcabelo escuro e armado. É bonita. Seus olhos, de um tom escuro de violeta, não focam muitobem. Ela sorri, mas o sorriso é puramente social, não oferece nenhuma informação sobre ela, eBilly conclui que ou a mulher está medicada ou não dá a mínima e está economizando energia.Ele não liga se o comportamento dela for o reflexo de puro esnobismo, afinal, quem tem maisdireito aos privilégios de ser uma baita filha da puta do que a primeira-dama do DallasCowboys? Na verdade, a filha da putice dela o excita um pouco — Cara, ele está pensando,MENOS, ela tem idade para ser sua mãe —, mas agora o restante do clã está vindo na direçãodele, os filhos e as filhas de Norm, os maridos e as mulheres dos filhos e das filhas, depois obando fervilhante de netos e netas, cada um deles abençoado com a cabeça em forma de trapézio,

e depois que todo mundo se cumprimenta a fila de convidados cai em um desvario comportado.As pessoas estão entusiasmadas; a proximidade com os Bravos as deixa animadas e cheias de umbom humor efervescente, até mesmo elas, as pessoas abastadas da alta sociedade, ficam umpouco fora de si perto dos Bravos. Será que é porque eles cheiram a sangue? Estranhos ficam àvontade com o corpo jovem de Billy, apertando seus braços e ombros, agarrando seus punhos,dando um tapinha viril nas costas dele. Todos são efusivos. Juram fidelidade e gratidão eterna.Uma majestosa senhora de idade pergunta quantos anos ele tem. “Você parece tão novo!”, dizela, e, ao ouvir a resposta, balança a cabeça e vira as costas para ele, descrente. Meninospequenos usando terno e gravata lhe pedem autógrafos. Alguém entrega uma Coca-Cola dentrode um copo plástico. Antes da Turnê da Vitória, ele odiava festas grandes, cheias deconversinhas afobadas e onde é difícil transitar, mas não é tão ruim quando as pessoas querem defato falar com você.

— Você esteve na Casa Branca? — indaga um homem.— Isso mesmo.— Conheceu o George e a Laura? — pergunta a mulher do sujeito, esperançosa.— Bem, a gente conheceu o presidente e o Cheney.— Isso deve ter sido uma emoção incrível!— Foi — diz Billy, em um tom agradável.— Vocês conversaram sobre o quê?Billy ri.— Eu não lembro!E é verdade, ele não se lembra. Houve um bom número de piadas, brincadeirinhas masculinas

sem maldade. Muitos sorrisos, muitas fotos posadas. Em algum momento, Billy percebeu queestava esperando que o presidente se mostrasse, bem, constrangido? Envergonhado? Pelamaneira como tudo estava, obviamente, fodido. Mas o comandante-em-chefe parecia bemsatisfeito com o estado das coisas.

— Você sabe — disse a mulher, inclinando-se mais para perto, como se estivesse revelandoinformações privilegiadas —, a gente meio que reivindica o George e a Laura como nossos. Elesvão se mudar de volta para Dallas quando saírem de Washington.

— Ah.— A gente esteve na Casa Branca umas semanas atrás — comentou o homem. — Eles

organizaram um jantar de Estado para o príncipe Charles e a Camilla. Escuta, aquele pessoal darealeza é muito bacana, eles não são nem um pouco pretensiosos.

Billy faz que sim com a cabeça. Há um silêncio. Ele pergunta bem a tempo:— Vocês conversaram sobre o quê?— Caça — responde o homem. — Ele gosta de pássaros, que nem eu. Tetrazes e faisões, de

preferência.Alguns casais bronzeados e glamorosos envolveram o major Mac em uma conversa intensa. O

major assente, franze o rosto, contrai os lábios — finge à perfeição que está dedicando atençãointegral a seus interlocutores. Dime e Albert foram incorporados à comitiva de Norm, e Billyacha isso reconfortante, essa prova de que Dime é tão bom que é absorvido até mesmo por essagente importante. Americanos, diz Billy para si mesmo, dando uma olhada ao redor do salão.Todo mundo aqui é americano — é como reparar de repente na sua própria língua dentro daboca, ter uma percepção completamente nova. Mas estes americanos são diferentes. Vivem comoreis. Eles se vestem bem, têm os mais avançados hábitos de higiene, estão familiarizados comum mundo de investimentos complexos e mal notam os prazeres da boa vida: refeições chiques,

vinhos requintados, habilidades com jogos e esportes, conhecimentos gerais sobre as capitais daEuropa. Podem até não possuir aquela beleza perfeita dos modelos ou dos astros de cinema, massem dúvida têm a vitalidade e o estilo de, digamos, atores em uma propaganda de Viagra. Ummomento especial com os Bravos é apenas um dos muitos prazeres que eles têm à disposição, epensar nisso faz com que Billy fique um tanto amargo. Não que esteja com inveja; na verdade,está aterrorizado. O medo de voltar ao Iraque equivale à pobreza extrema, e é assim que ele sesente neste momento, pobre, como um garoto sem-teto e miserável que de repente é jogado emum cômodo cheio de milionários. O medo mortal é o gueto da alma humana, livrar-se deleequivale, em termos psicológicos, a herdar cem milhões de dólares. É isso que ele inveja deverdade nessas pessoas, o luxo de poder usar o terror como um assunto para conversas casuais, eneste momento ele sente tanta pena de si mesmo que poderia desabar em um choro convulsivo.

Eu sou um bom soldado, diz ele a si próprio, eu não sou um bom soldado? Então o quesignifica o fato de um bom soldado se sentir mal assim?

Não fique apavorado, foi o que Shroom disse. Porque você vai ficar apavorado. Então, quandovocê começar a ficar apavorado, não fique apavorado. Billy pensou bastante nisso, não só naprovocação zen da coisa, mas no que significa exatamente se sentir apavorado a ponto de surtar.Mais uma fala de Shroom: O medo é a mãe de todas as emoções. Antes do amor, do ódio, dorancor, do sofrimento, da fúria e de todo o restante vem o medo, e o medo dá à luz todos eles e,como todo soldado de combate sabe, a quantidade de encarnações e espécies de medo éequivalente ao número de palavras para neve na língua dos esquimós. Basta passar qualquerintervalo de tempo no reino das forças mortíferas para testemunhar algumas terríveis eangustiantes formas de medo. Billy viu homens gritarem sob esse fardo, outros não conseguemparar de xingar, outros ainda ficam mudos. Perda de controle do esfíncter ou da bexiga, umclássico. Rir, chorar, tremer, sair do ar, clássicos. Um dia ele viu um oficial rolar para debaixo deseu Humvee durante um ataque de mísseis e depois se recusar terminantemente a sair daliquando o ataque acabou. Há também o capitão Tripp, um homem muito bom na hora do aperto,mas quando o fogo cruzado começa para valer a testa dele se franze e se estica, como uma lonafrouxa em um vendaval. Talvez os soldados sob seu comando sintam vergonha alheia, masninguém pensa o pior dele por isso, pois se trata de puro reflexo motor, uma rebelião do corpo.Algumas reações de estresse de combate estão codificadas nos genes da mesma maneira que oformato do lóbulo da orelha ou a ocorrência de pé chato, enquanto em alguns poucos sortudos omedo parece não se instalar de jeito nenhum. Um exemplo é o sargento Dime, um soldadoincrível que Billy já viu andando com toda a calma e comendo Skittles enquanto bombaschoviam a metros de distância. Também acontece de um homem ser destemido em um dia e sedesesperar no seguinte; o medo é assim: inconstante e assustador, tão sem sentido, tão idiota.Tudo isso mexe com a cabeça das pessoas. A aleatoriedade. É cansativo viver com os ataquesdiários da aleatoriedade, não só do medo normal e instintivo da dor e da morte, mas do medoexclusivamente humano de sentir medo, como um CD arranhado preso no modo “repetir”, umavolta autorreferencial cada vez mais estreita que pode muito bem ser uma forma de loucura.Portanto, será que todas as nossas outras emoções se desenvolveram como mecanismos paralidar com isso, com o propósito de, quem sabe, nos manter sãos? E então você começa a percebera humanidade até mesmo nos sentimentos de ódio. Algumas vezes seu corpo se sente morto coma fadiga que isso provoca, outras vezes é como uma enxaqueca, você pensa que pode combater acoisa usando o raciocínio, submete sua mente à dor, a analisa, quebra a dor em átomos e íons,investiga mais e mais a fundo a teoria a respeito disso, até que a dor se dissolve em umaflatulência de lógica e, ainda assim, depois disso tudo, sua cabeça continua a doer.

É nisso que Billy pensa enquanto bate papo furado sobre a guerra. Ele tenta manter a conversasimples, mas as pessoas a conduzem rumo ao drama e à paixão. Elas simplesmente supõem que,por ser um Bravo, você está ali para falar sobre a guerra, porque, bem, se Barry Bonds estivesseali, eles conversariam sobre beisebol. Você não acha... Você não concorda... Você tem queadmitir... Aqui, em casa, a guerra é um problema a ser resolvido por meio do pensamento corretoe da alocação adequada de recursos, enquanto o drama e a paixão têm origem no objetivo dosterroristas de conquistar o mundo. O nosso modo de vida. Os nossos valores. Os nossos valorescristãos. Billy sente que sua cabeça vai esvaziando.

— Com licença — interrompe um executivo do Cowboys —, parece que o nosso soldado estácom um pouco de sede aqui. Que tal reabastecer?

Billy chacoalha o gelo dentro de seu copo.— Obrigado, senhor. Outra Coca ia ser ótimo.— Vamos lá. Dá licença, pessoal.O executivo conduz Billy em direção ao bar segurando-o pelo cotovelo, um cara do tipo que

assume o controle. Aparentemente, faz parte da cultura corporativa do Cowboys que todos osexecutivos pareçam gerentes de vendas de uma concessionária Ford, e este — ele se apresenta,Bill Jones — não é uma exceção. Sem atrativos, careca, com o rosto cheio, uma barriga digna desegundo trimestre de gravidez. Mesmo assim, o sujeito irradia uma vibração que Billy sente deimediato, uma boa ferramenta de trabalho de agressividade controlada. Uma impaciência elásticaparece fluir em todos os seus movimentos.

— Está se divertindo?— Sim, senhor.O Sr. Jones ri.— Você estava com cara de quem precisava de uma mudança de ares.Billy sorri, dá de ombros.— Eles são pessoas legais.O Sr. Jones ri de novo, com um pouco mais de severidade desta vez.— Com certeza. E estão muito animados de conhecer vocês. Vocês são um grupo

impressionante.— Obrigado.Billy percebe uma protuberância perto da axila do Sr. Jones. Ele está armado. Billy resiste à

breve, embora poderosa, ânsia de esmagar o esôfago do Sr. Jones e desarmar o homem, só poruma questão de segurança.

— Você não encontra muitos dissidentes nesse grupo. Eles são enérgicos em relação à guerra,enérgicos em relação aos Estados Unidos. E não têm a menor vergonha de falar o que pensam.

— Sim, senhor.— Escuta, eu presto atenção à política, como todo mundo, mas sempre prefiro falar de futebol

americano do que de política. E você?— Senhor, eu prefiro falar sobre qualquer coisa que não seja política.O Sr. Jones dá uma risada breve e seca. Billy parece estar dizendo todas as coisas certas, mas

não se deixa relaxar.— Você é o do Texas?— Sim, senhor.— É torcedor do Cowboys?— A minha vida toda. — Billy coloca ênfase nisso, só para ser lisonjeiro.— É isso que eu gosto de escutar. A gente vai tentar dar uma vitória para vocês hoje. Harold

— diz ele para o bartender negro —, que tal uma Coca-Cola bem gelada para o nosso jovemamigo? Alguma coisa dentro?

Ele dá um olhar cheio de malícia para Billy.— Um pingo de Jack Daniel’s cairia bem. Apesar de que, tecnicamente, eu não deveria beber.— Sem problema, a gente deixa isso na encolha. Tem mais alguma coisa que eu possa fazer

por você?Billy se pergunta por que o homem está tão preocupado com ele.— Bem, para ser sincero, senhor, estou com um pouco de dor de cabeça. Um Advil ou algo

assim ia ser bom.— Aguenta aí.O Sr. Jones saca o celular e digita mais rápido do que alguém acreditaria que ele seria capaz

com dedos tão grossos e que ostentam não apenas um, mas dois anéis do Super Bowl. Billy tentanão ficar boquiaberto diante desses crustáceos bulbosos da ourivesaria. Aceita a bebida e se virapara encarar o salão. Do fundo da multidão, Mango lhe lança um olhar de alegria doidona,depois a linha de visão rapidamente se interrompe, o que parece fazer parte da piada. A multidãose adensa ao redor de Norm, um enxame de corpos que paira em torno dele, e Billy resolve queesta é uma oportunidade de aprendizado, uma chance de ver de perto um mestre na arte daconversa. A habilidade de Norm em entreter um salão repleto de pessoas é lendária. Carisma,charme, atitude de comando, ele aplica tudo isso no sorriso e na fala que dedica a cada um dosconvidados, ele é o ponto de articulação incontestável e o centro do salão, e Billy consegue ver ahabilidade com a qual o sujeito comanda as coisas, e ainda por cima... O homem é tão ligado, étão Norm. Billy está se esforçando muito. Executa todos os movimentos certos, mas é traído peloestresse de vendedor, ou de ator medíocre que faz tudo direitinho, mas parece limitado por umcolarinho muito apertado ou um elástico enrolado na roupa íntima. Norm é confiante, semdúvida, é o rei da autoestima, mas sua confiança é daquele tipo que pode ser encontrado em fitasde autoajuda e mantras motivacionais, uma confiança aprendida da mesma maneira que alguémaprende uma língua estrangeira, de modo que o sotaque perdura na linguagem corporal dosujeito, um discreto rangido artrítico em cada sorriso ou gesto.

É algo doloroso de assistir e carente de algum tipo de dignidade essencial — será que é porisso que ele está sempre sendo humilhado? Existem muitas histórias sobre experiênciasestranhas: Norm baixou as calças e mostrou a bunda em Miami, baixou as calças e mostrou abunda de novo do meio da pista de corrida de cavalos em Churchill Downs, foi espancado porum grupo de jovens do mercado financeiro e cheios de energia dentro do banheiro masculino do21 Club, em Nova York. E, ainda assim, ele é o dono, então a tática deve estar funcionando emalgum grau. Billy corre o olhar pelo restante do clã Oglesby e todos estão se esforçando tantoquanto Norm, eles são chaves que tilintam no mesmo chaveiro vivo, todos cheios de brilho, luz,habilidades espalhafatosas de vendedor, e Billy tenta imaginar como é viver daquele jeito,sempre em evidência, sempre atuando no maior palco, direcionando todas as suas melhoresenergias para a esfera pública.

Meu Deus, isso parece ser trabalhoso para cacete. Mais do que simpatia, Billy sente respeitopor eles, pela disciplina que deve ser necessária para se levantar todos os dias e carregar toda anação do Cowboys nas costas.

O Sr. Jones desliga e se volta para Billy.— Estão descendo com um Flanax agora mesmo para você.— Obrigado, senhor. — Billy tenta não olhar para a protuberância do coldre. — E obrigado

por tudo isso. — Ele faz um gesto com seu copo na direção da multidão. — Isso é mesmo ótimo.

— Bem, a gente está feliz em ter vocês, jovens bacanas, com a gente hoje. É uma honrarecebê-los.

— Sabe o que é que eu queria saber? — diz Billy, de repente corajoso ou descuidado comaquele golpe de uísque em suas entranhas. — Como é que vocês fazem isto? Quero dizer, osnegócios. Tudo isto. Como é que vocês fazem tudo isto acontecer? — Ele vacila, vasculhando océrebro em busca de um vocabulário empresarial que soe inteligente. — Quero dizer, certo, tipo,por onde é que começam, de onde é que veio o dinheiro para, bem, para o estádio? Para oterreno, para a construção e tudo mais, depois para pagar os jogadores, os técnicos, quero dizer, agente está falando de desembolsar uma grana preta aqui, certo?

O Sr. Jones ri, não de maneira desagradável.— O futebol profissional é um negócio de capital inicial elevado, é verdade — diz ele com

uma voz paciente, como quem ensina a um retardado. — O segredo é uma alavancagem emrelação ao fluxo de caixa, conseguir gerar um fluxo de receita suficiente para liquidar a suadívida e ainda cobrir as obrigações correntes. Então, é uma boa pergunta. De certo modo, é apergunta. Você acertou em cheio.

Billy assente como se tivesse consciência disso quando fez a pergunta.— Ah, aham, mas, de um ponto de vista tático — uau, boa!, pensa Billy —, digamos, quando

o Sr. Oglesby decidiu que queria comprar o Cowboys, o que ele fez? Quero dizer, sei que ele nãosacou simplesmente o cartão de crédito dele e disse: Hum, acho que eu vou comprar o Cowboyshoje.

— Não. — O Sr. Jones sorri. — Não foi assim. Mas vou falar uma coisa para você,alavancagem é uma coisa linda. Nas mãos certas, ela pode, literalmente, mover montanhas, eNorman Oglesby, bem, digamos que o meu chefe é um gênio quando o assunto é estruturarnegócios. Nunca conheci ninguém com o jeito que ele tem com números, e ele é o melhornegociante que já vi. Já o vi enfrentar uma sala cheia de banqueiros de investimentos de NovaYork e sair de lá com o negócio que queria, e, vou te contar, aqueles caras eram importantes.Eles estão acostumados a conseguir o que querem, mas não foi o que aconteceu naquele dia.

Cacete, pensa Billy, a gente está conversando sobre negócios. Ele está tendo uma conversaadulta de verdade com um executivo do alto escalão do Cowboys, um Momento extraordinárioem sua vida, mesmo sabendo que está prestando pouca ou quase nenhuma atenção e que o Sr.Jones está sendo totalmente indulgente com ele. Ainda assim. Ele está ali. Eles estãoconversando.

— Taxa de débito — está dizendo o Sr. Jones —

O telefone do Sr. Jones apita. Ele olha para a tela, dá um breve sorriso para Billy e se afasta.Billy bebe um gole refrescante de sua Coca e sai de perto do bar, pensando. A vida no Exércitotem sido um curso intensivo sobre a dimensão do mundo, gigantesca a ponto de ele se encontrarem um estado de deslumbramento constante diante de como as coisas se tornam o que são.Estádios, por exemplo. Aeroportos. O sistema rodoviário interestadual. Guerras. Ele quer sabercomo isso é pago, de onde vêm os bilhões. Imagina um mundo paralelo sombrio, baseado emcontas e que existe não só para além do mundo físico, mas também em meio a ele, uma camadatransparente de números no estilo Matrix através da qual humanos de carne e osso se movemcomo se fossem peixes entre algas. É onde o dinheiro vive, um reino inteiramente baseado emcódigos e lógica, módulos geométricos de causa e efeito. O reino dos mercados, dos contratos,das transações, dos vetores elegantes de fibra ótica pelos quais somas incompreensíveis de umariqueza misteriosa se lançam ao redor do mundo em feixes de luz. Parece a coisa mais etérea queexiste e, ainda assim, a coisa mais real, mas ele não faz ideia de como se entra naquele mundo, anão ser por meio de uma escala naquele outro país estrangeiro chamado faculdade, e isso não vairolar. Ele não vai voltar a uma sala de aula, jamais, só pensar nisso acende toda uma série dechateações e ressentimentos associados ao assunto e que remetem até o jardim de infância, semcontar o tédio puramente sugador de alma daqueles anos. Se existe de fato um conhecimento a

ser adquirido nas escolas públicas do Texas, Billy nunca o encontrou, e foi somente nos últimostempos que ele começou a sentir a perda, o imenso ato criminoso que sua ignorância sancionadapelo Estado representa conforme ele luta para entender o mundo mais amplo. Como tudofunciona, quem ganha, quem perde, quem decide. Não é algo fortuito, esse conhecimento. Decerto modo, pode ser tudo. Um jovem precisa saber seu lugar no mundo, não apenas por umaquestão de dignidade humana básica, mas como fator determinante das ferramentas e dosmétodos de sobrevivência, e o que você espera ganhar ao aplicar um esforço sincero...

Uoooooouuuuuuuu!— Peguei você, cara. Você está me deixando na mão.— Porra, sargento!— Se isso aqui fosse o Iraque, você estaria morto.— Se isso aqui fosse o Iraque, não ia ter umas garotas de calça de couro. Meu Deus, sargento.

— Billy ajeita a roupa, tocando o peito cautelosamente. Enquanto estava absorto em seuspensamentos, o sargento Dime chegou de mansinho às suas costas, enfiou o braço na frente desua garganta e torceu o mamilo esquerdo de Billy com força. — Acho que você arrancou aminha teta, sargento.

Dime ri. Ele pede um Sprite no bar. Ele é um homem de Sprite, sempre Sprite, diet, se tiver.— Sargento Dime, o que é alavancagem?Dime cospe um pouco de seu Sprite.— O quê? Lynn, você tem lido a Forbes pelas minhas costas? Onde você ouviu falar de

alavancagem?— Com aquele cara bem ali. — Billy indica o Sr. Jones com o queixo. — Ele disse que

alavancagem é a chave do sucesso do Norm.— Ele disse isso, foi? — Dime estuda o Sr. Jones. — Alavancagem, Billy, é um jeito elegante

de falar do dinheiro de outra pessoa. É tipo um empréstimo. Dívida. Crédito. Prego. Usar odinheiro de outra pessoa para ganhar dinheiro para si próprio.

— Eu não gosto de dívidas — diz Billy. — Dever dinheiro me deixa nervoso.— Historicamente, essa é uma posição sensata. — Dime morde um pedaço de gelo, craque. —

Mas não sei se sensatez tem alguma serventia.— E o Norm?— O que tem ele?— Você está dizendo que ele não é sensato?— Eu não sei nem se ele existe de verdade. — Billy ri. Dime nem sorri. — Mas eu sei de uma

coisa.— O que, sargento?— Ele está caidinho pelo Albert. — Billy opta pelo silêncio. — Eu acho que, uma vez que a

pessoa conquista a NFL, não sobra mais nada para fazer a não ser partir para Hollywood. Eleestá em cima do Albert falando da indústria do cinema.

— O que é que o Albert está fazendo?— Ele está tranquilo, cara. Está cuidando disso.— Do nosso filme?— Acho bom. Foi a gente que colocou ele aqui.Os dois ficam em silêncio. O Sr. Jones se juntou a um grupo de convidados bem-vestidos.

Mesmo quando ele ri, seus olhos permanecem aguçados, seu corpo, alerta. Ainda que seja joveme forte e tenha recebido treinamento militar, Billy pensa que teria dificuldades se entrasse emuma briga com o Sr. Jones.

— Está vendo aquele cara ali, aquele com quem eu estava falando? Ele está armado.Dime não fica impressionado.— Achei que todo mundo andava armado no Texas.— É, mas aqui? É bobagem. — Billy está surpreso pela intensidade do nojo que sente. — Só

um otário traria uma arma para o jogo, tipo, tem só, o que, um milhão de policiais aqui? Vai verele acha que vai acabar com o terrorismo por conta própria.

Dime se vira para Billy e ri. Depois se enrijece, coloca-se diante dele, tão perto que seusnarizes quase se tocam. Billy prende a respiração, mas é tarde demais.

— Seu filho da puta, você ainda está bebendo.— Um pouco, sargento.— Eu dei permissão para consumir mais álcool?— Não, sargento.Dime dá uma olhada no copo na mão de Billy.— Você está com algum problema?— Não, sargento.— A gente vai voltar para aquela merda daqui a dois dias, você se esqueceu disso?— Não, sargento.— É melhor você tomar jeito, e logo.— Vou fazer isso, sargento Dime. Eu vou.— Você acha que os iraquianos vão dar mole para a gente só porque a gente tem fama de

fodão aqui?— Não, sargento Dime.— Claro que não, eles vão vir com tudo para cima da gente. E se eu não puder contar com

você... — Dime dá um passo para trás. De repente, parece magoado. — Billy, eu vou precisar devocê. Você tem que me ajudar a manter o resto desses palhaços vivo. Então, nada de me deixarna mão.

E, rápido assim, Dime parte o coração de Billy. Ele é o tipo de homem que faz você preferirmorrer a decepcioná-lo.

— Eu estou numa boa, sargento. Estou bem. De verdade.— Mesmo?— Estou, sim, sargento. Não precisa se preocupar comigo.— Tudo bem. Bebe um pouco de água. Não me vá ficar doidão.Então Billy está bebendo água quando A-bort e Crack se aproximam, sorrindo feito guepardos

com pedaços de carne e osso enfiados entre os dentes.— O quê?— A coroa do Norm.— O que tem?— A gente quer comer ela. Dois em uma.— Cala a boca. Cara, ela tem, tipo, cinquenta e cinco anos.— Eu não estou nem aí para quantos anos ela tem — diz A-bort. — Dá só uma olhada nela.

Aquela vadia é toda dura.— Eu sempre quis meter no rabo de uma vagabunda rica — comenta Crack.— Isso é tão grosseiro — diz Billy, com convicção; seu repúdio puritano confunde todo

mundo, até ele mesmo. — Vocês são nojentos. A gente é convidado deles e vocês estão faltandocom o respeito.

Mango se juntou a eles.

— Não é falta de respeito se nunca acontecer. São só palavras. Eles não vão comer a mulher.— Fica ligado. Cinco para um que eu como ela, cem pilas — oferece Crack.— Até parece — diz Billy, ainda com seu espírito de coroinha.— Eu aceito a aposta — responde Mango.— Eu também — diz A-bort.— O quê? — indaga Crack. — Tipo, vocês querem dizer que apostam que eu não consigo

pegar ela, ou vocês vão tentar pegar também?No entanto, antes que eles possam esclarecer isso, um executivo do Cowboys se junta ao

grupo, e é como um corte em um filme: em um segundo os Bravos são o tipo mais sujo de taradoque aborda mulheres no meio da rua, e, no seguinte, são o que sustenta o país, sim, praticamentesagrados, os guerreiros angelicais das cruzadas dos sonhos dos Estados Unidos. O executivocoloca uma pilha de revistas Time sobre a bancada do bar e pede o autógrafo deles, ali, na capa, ede novo na página trinta, onde começa a reportagem sobre eles. “Confronto decisivo no canal deAl-Ansakar”: “A pequena aldeia de Ad-Wariz, no canal de Al-Ansakar, é um lugar ermo eparado mesmo para os padrões iraquianos, com esparsas cabanas de taipa e fazendas com umaagricultura de subsistência. Contudo, durante duas horas brutais, na manhã do dia 23 de outubro,essa remota aldeia se tornou o epicentro da guerra ao terror americana.”

Seguem-se seis páginas de texto e fotos, além de um esquema em 3-D com setas e legendasque não têm qualquer relação com qualquer batalha da qual Billy consiga se lembrar. Não é nemsequer um Bravo que aparece na capa, e sim o sargento Daiker, do Terceiro Pelotão, um closedramaticamente borrado de seu rosto com uma expressão fechada e amedrontadora. “Parece queaquele grupo específico de insurgentes queria morrer”, disse o Coronel Travers à revista Time, “eos nossos homens estavam mais do que dispostos a dar uma ajudinha a eles.” Verdade em ambosos aspectos, mas foi somente no fim que eles se entregaram, um pequeno bando camicase de oitoou dez indivíduos, surgindo do meio dos juncos em uma arrancada mortal, gritando, disparandode modo totalmente automático, um último galope suicida alucinado com destino aos portões doparaíso muçulmano. Ao longo de toda a vida militar a pessoa sonha com um momento comoesse, e todo soldado com uma arma na mão já sentiu um pouco disso, uma mistura perfeita de umtiroteio enorme e aqueles iraquianos explodindo, cabelo, dentes, olhos, mãos, cabeças demelancia, peitos destruídos explodindo em canjas de galinha, visões inacreditáveis einesquecíveis, e sua cabeça simplesmente não consegue deixar essas imagens para lá. Ah, minhagente. Misericórdia não era uma escolha, ponto. Foi só mais tarde que o conceito de misericórdiaao menos ocorreu a Billy, e somente no contexto da ausência desse sentimento naquele lugar,uma falta de opções que remetia a períodos históricos tão longínquos que, muito provavelmente,a misericórdia não tinha sido uma opção ali desde antes do nascimento de todas as pessoasnaquele campo de batalha.

Os Bravos dão autógrafos. Já autografaram dezenas de revistas Time nas últimas duassemanas, e algumas foram parar no eBay, mas dane-se. O executivo recolhe as revistas com o arcuidadoso de um advogado que acabou de enganar alguém.

— O Destiny’s Child já chegou? — pergunta Crack a ele.— Não sei, camarada.— A gente estava esperando encontrar com elas.O executivo ri.— Vocês são amigos delas?Isso parece um pouco desagradável. Talvez o sujeito esteja rindo deles.— A gente é fã — diz Mango, com firmeza.

— Filho, eu ficaria preocupado se vocês não fossem. Deixa comigo, vou descobrir por ondeelas andam.

Ok. Os Bravos vão ao bar para uma rápida rodada de Coca com uísque. Harold é gente boa emantém a garrafa debaixo do balcão enquanto serve as bebidas. Eles engolem os drinques bem atempo, antes de serem agrupados e conduzidos para o corredor frio onde Josh lhes dá asinstruções para a coletiva de imprensa. Ele está carregando uma prancheta agora. Seu cabelo temo formato perfeito de uma cunha de asa-delta. Toda a sua pessoa parece ter sido lavada a secorecentemente.

As líderes de torcida vão estar lá?— Vão, as líderes de torcida vão estar lá.Éééééé-auuuu! E vai ter lap dance?— Nada de lap dance na frente da imprensa, pessoal.O que a gente tem que fazer no intervalo?— Eu não tenho esses detalhes ainda. Eu sei que a Trisha tem algum tipo de função para

vocês.Quem é Trisha, cacete?— Pessoal, qual é, é a filha do Sr. Oglesby. Vocês acabaram de conhecê-la. Tem seis meses

que ela está planejando esse show do intervalo.Diz para ela que a gente pode cantar!— Eu tenho certeza de que vocês são ótimos cantores, mas a gente tem o Destiny’s Child para

fazer isso.É, a gente quer conhecer...— Eu sei, eu sei, eu sei, mas, pessoal, é o Destiny’s Child. Conseguir acesso para vocês irem

conhecê-las pode estar um pouco acima do meu nível salarial.Você é o cara, Djósh.— Eu vou perguntar. Mas não posso garantir nada.Mais risadas, alguns uivos de lobo em comemoração. Os Bravos estão animados. Ficam por

ali tempo o bastante para perceberem que estão esperando alguma coisa e descobrem que essacoisa é Norm, e finalmente ele chega com seu séquito, uma nuvem que inclui um fotógrafo, umcinegrafista, vários familiares e um grande aglomerado de gerentes do alto escalão do Cowboys.

— Prontos? — pergunta Norm, sorrindo para os Bravos. — Imagino que vocês já tenhamvirado profissionais nisso.

Ele toma um de seus netos nos braços e todos seguem pelo labirinto do estádio, tão intricadoquanto as entranhas de um encouraçado. A cabeça de Billy está latejando, mas Josh, tão alerta ediligente em outros assuntos, esqueceu-se mais uma vez do Advil. A dor forma uma espécie deaura ou cobertura ao redor de sua cabeça, com furos de sondagem pontuais que causam uma dorbem específica, como se uma pistola estivesse disparando pregos dentro de seu crânio.

Do lado de fora da sala de imprensa, Norm solta o neto e espera ao lado da porta enquanto osBravos se põem em formação.

“Ótimo”, murmura. “Excelente”, “excepcional”, “fantástico”, uma tagarelice gasosa desuperlativos aleatórios que não são endereçados a ninguém em particular. É um poucoconstrangedor vê-lo assim, é como assistir à criança mais gorda de uma festa de aniversáriorodeando o bolo, claramente desejando poder comê-lo inteiro, sem dividir com ninguém. De todomodo, Norm é o primeiro a passar pela porta, e sua entrada é a deixa para gritos cataclísmicosdas líderes de torcida que Billy vê ao cruzar a porta, todas formando uma confusão de pomponsbalançando, botas batendo no chão, um rimbombar de uivos que se transforma de repente em um

canto de trote curto quatro por quatro, um viva!, e, bem, por que não?, é o trabalho delas:

Soldados americanos fortes e leais,Melhores do mundo no que um soldado faz.Ficamos muito gratas por vocês manteremNossa segurança, por nos defenderem!

Billy se acomoda em uma cadeira sobre o palco com a sensação de que a guerra atingiu novospatamares de maluquice. Norm está pedindo à imprensa que fique de pé! de pé!, uma multidãomajoritariamente masculina de quarenta ou cinquenta repórteres que não parecem nada animadosem serem dirigidos mas que, apesar disso, se levantam, aplaudem, abrem sorrisos relutantes, sedeixam envolver pelo momento, e Norm gesticula em direção ao Bravo e ergue os braços, comose para dizer: Olhem o que eu trouxe para vocês!

Dizem que ele é um gênio do marketing, esse Norm, e sentado ali, em meio à bola de peloflamejante formada pelas luzes da imprensa, Billy tem a sensação muito estranha de quenenhuma daquelas pessoas existe, a não ser na mente de Norman Oglesby. Norm está sorrindo,batendo palmas, gesticulando em direção aos Bravos. Seus olhos azuis brilham com uma luzespecial, não, uma luz sagrada, ele tem uma confiança tão absoluta na marca do Cowboys queDeus sem dúvida está a seu lado. Que vocação mais importante pode haver? Que bem maior navida? Qualquer lucro para o time é de fato um trabalho de Deus, e toda a criação deve se curvardiante de Sua vontade.

O salão é uma estufa que cheira a plástico e epóxi, o ar abafado da poeira queimada pelosgrandes eletrônicos.

— Estados Unidos! — grita uma líder de torcida, e as demais se unem ao coro:— Estados Unidos! Estados Unidos! Estados Unidos!E Norm está cantando e batendo palmas, balançando ao ritmo da cantoria. O grande número

de líderes de torcida (o bastante para se enfileirarem em três paredes do salão), a meraquantidade de carne feminina à mostra lança o Bravo em um moderado estado de choque.Fotógrafos andam de cócoras e disparam flashes na cara dos Bravos, chamuscando olhos e,provavelmente, cauterizando pedaços de cérebro. As equipes de filmagem estão aglomeradas deambos os lados do palco, um tablado de sessenta centímetros de altura com um ar deimprovisação fornecido pelas placas de compensado do piso. Na parte de trás do palco há umaespécie de anteparo côncavo, uma tela de tecido estampada com a estrela do Cowboys e a logoda Nike. Na verdade, o salão é um tanto ruim, mais parecido com uma sede de sindicato ou umcentro de recreação com poucos recursos: luzes fluorescentes, aquele carpete sintético horrívelpor todos os lados, cadeiras de tubo de metal com assento e espaldar de plástico. Norm assume oúltimo lugar à mesa e se debruça para alcançar o microfone.

— Eu — começa ele, mas precisa parar por causa de algumas líderes de torcida quesimplesmente não conseguem calar a boca. Ele sorri, abaixa a cabeça, olhando para as mãos, e ridiante do entusiasmo delas, o que causa, como resposta, uma risadinha do pessoal da imprensa.— Eu — recomeça, esperando os últimos gritinhos enquanto as líderes de torcida finalmente serefreiam. — Eu — mais uma pausa, dessa vez para fins dramáticos — e toda a organização doCowboys — cáu-bóis, Billy murmura para si mesmo, coçando a parte interna de sua orelha —nos sentimos muito felizes, privilegiados e extremamente honrados de ter com a gente hoje osexcepcionais jovens do esquadrão Bravo, esses verdadeiros heróis americanos aqui, à minha

esquerda. Se o que vocês querem é um grupo que sabe como vestir a camisa e comparecer, aquiestão eles. São o melhor que a nossa nação tem para oferecer, e o nosso melhor é, sem dúvida, omelhor do mundo, como eles provaram nos campos de batalha do Iraque.

As líderes de torcida gritam, e os gritinhos orgásticos logo se metamorfoseiam no canto emuníssono de “Estados Unidos!”. Será que elas foram instruídas a interromper o discurso?, Billyse pergunta, ou elas apenas sabem o que fazer por conta própria? O papel de uma líder de torcidaé secundário por definição, ainda que elas sejam exibicionistas por natureza, e Billy começa asentir o conflito no íntimo de cada garoto ou garota que, em algum momento, já tenha atiçado ofogo do espírito de equipe, a angústia particular de sempre torcer pelos outros quando é vocêquem está empenhado de corpo e alma. Ninguém torce pelas líderes de torcida! E como issodeve doer, a incitação soando para muitos como um grito ensurdecedor de entusiasmoenlouquecido. Norm está dando risadinhas, balançando a cabeça, como se para dizer: Essasmeninas. Ao lado, o alto escalão do Cowboys também está dando risadinhas.

— Eu tenho certeza — retoma Norm — de que todo mundo, a esta altura, está familiarizadocom as façanhas do Bravo, como eles foram os primeiros a ir ajudar o comboio de suprimentosque caiu em uma emboscada. Eles foram direto para a batalha sem qualquer apoio, sem suporteaéreo, em número menor que o inimigo, que estava preparando o ataque havia dias. Eles nãopensaram duas vezes sobre as condições desfavoráveis, até desconfiaram de que fosse umaarmadilha, mas ainda assim foram direto para lá, sem hesitar... — Algumas líderes de torcidagritam, mas Norm ergue a mão. Ele não será interrompido agora. — Felizmente para nós, aequipe da Fox News estava acompanhando o grupo que chegou logo depois disso, entãoconseguimos ver com nossos próprios olhos o que esses valorosos jovens fizeram naquele dia. Eeu tenho que falar. Eu nunca... — A voz de Norm falha, ele se curva mais para perto domicrofone — Eu nunca me senti tão orgulhoso de ser americano quanto na hora em que viaquelas filmagens. E, se você ainda não viu, peço que veja na primeira oportunidade que tiver...

A mente de Billy vagueia. Agora que ele se acalmou um pouco, pode dar sua primeira olhadasignificativa nas líderes de torcida, e ele não fazia ideia de que havia tantas delas ali, umaamostra arrebatadora e em tamanho natural de carne feminina com todas as cores expostas, todosos sabores de barrigas esculpidas e coxas flexíveis, cinturas finas, curvas generosas e delineadasnos quadris e aqueles seios, ai, meu Deus, aqueles volumes de peitos majestosamente generosostransbordando das famosas camisas amarradas com um nó, sim, a qualquer momento umaavalanche pode irromper e enterrar a todos, apenas alguns centímetros de tecido salvam o Bravoda aniquilação completa.

— O que sinto — está dizendo Norm — é que provavelmente a guerra contra o terror é aforma que a luta pura entre o bem e o mal assumiu ao longo de nossas vidas. Alguns até mesmodizem que é um desafio apresentado por Deus para testar nosso fervor nacional. Somosmerecedores da nossa liberdade? Temos a determinação para defender os nossos valores, o nossoestilo de vida?

Billy acha que algumas das líderes de torcida parecem strippers (elas têm a aparência bêbada ecastigada das profissionais dos bares), contudo várias delas poderiam ser universitárias, com suaboa aparência e sua expressão bem-disposta, seus narizes arrebitados e pescoços macios, seusares puros e imaculados de saudável voluptuosidade. Não fica olhando, diz Billy a si mesmo, nãoseja um cara nojento. Albert e o major Mac estão sentados juntos na fileira de trás, e ele tentaimaginar sobre o que os dois podem estar conversando. Isso parece engraçado. De tempos emtempos Albert tira os olhos de seu BlackBerry para verificar o Bravo, o olhar aguçado, não semafeição, como o de um homem rico observando seu puro-sangue inglês premiado marchar

devagar ao redor da pista.— Para todos aqueles que argumentam que essa guerra é um erro, eu gostaria de destacar que

nós tiramos do poder um dos tiranos mais cruéis e belicosos da história. Um homem que matou asangue-frio milhares de pessoas de seu próprio povo. Que construiu palácios para seu próprioprazer enquanto as escolas se deterioravam e o sistema de saúde entrava em colapso. Quemanteve um dos exércitos mais caros do mundo enquanto permitia que a infraestrutura do paísdesmoronasse. Que desviou recursos para os seus companheiros e aliados políticos, deixando queeles escoassem a riqueza do país para seus próprios ganhos pessoais. Por isso, eu perguntariapara todos aqueles que se opõem à guerra, o mundo seria um lugar melhor com o SaddamHussein no poder hoje? Porque para o que servem os Estados Unidos se não para lutar contraesse tipo de tirania, para promover a liberdade e a democracia e dar aos povos do mundo achance de determinar seu próprio destino? Essa sempre foi a missão dos Estados Unidos, e é issoque nos faz a melhor nação do mundo.

Billy se pergunta se algum dia Norm vai se candidatar a um cargo público. Ele é um oradortão perfeito quanto qualquer outro político que o Bravo encontrou nas últimas duas semanas.Tem a presença, as palavras, além de possuir total domínio do tom magoado e vagamentepetulante que está em voga nos discursos políticos atuais. Se existe uma artificialidade irritantena atuação — a percepção que Norm tem de si mesmo como ator, dando espiadelas ocasionaisem um espelho mental —, ela não é pior do que a de qualquer outra pessoa pertencente à esferapública. De qualquer maneira, Billy percebeu que as plateias não parecem se importar com isso.Todo o fingimento passa batido pelos espectadores, talvez porque o esforço contínuo de vender omodo de vida americano tenha incutido neles patamares excepcionalmente altos de falsidade,envaidecimento, distorção, papo furado e mentiras deslavadas — em outras palavras, todas asformas de propaganda. O próprio Billy nunca tinha percebido como tudo isso é falso até passarum tempo na zona de combate.

— Eu tive o prazer de visitar o nosso presidente há pouco tempo, e ele me garantiu que vamosganhar essa guerra. Vamos ganhar, com certeza. Temos as melhores tropas do mundo, o melhorequipamento, a melhor tecnologia, o melhor apoio em casa e, se mantivermos a nossadeterminação, é só uma questão de tempo até vencermos.

Os jornalistas parecem estar, se não completamente mal-humorados, no mínimo esfomeados eentediados. Norm está falando por mais tempo do que todo mundo esperava, e até mesmo osBravos, que estão acostumados a responder a perguntas da imprensa, ficam impacientes. Aatenção de Billy se volta mais uma vez às animadoras de torcida e ele faz um experimento,correndo o olhar pela fileira de mulheres à sua direita. Cada vez que os olhos dele se encontramcom os de uma líder de torcida, elas abrem um sorriso pirotécnico — é como acender uma fileirade refletores, bém bém bém bém. Mas, em algum lugar da fila, seu olhar para, regressando porvontade própria a uma garota mignon, de pele clara, com uma coroa de cabelo bem-penteado eloiro-avermelhado, molas macias que chegam até a onda crescente de seu peito. Ela sorri denovo, então dá uma risada silenciosa e aperta os olhos na direção dele. Billy sabe que essecomportamento faz parte do trabalho dela, mas ainda assim seu estômago dá um pulo, como setivesse levado um chute aéreo. Uma garota bacana fazendo sua parte para demonstrar apoio aossoldados.

Sem dúvida a imprensa está mal-humorada. Cada pequeno aparelho de gravação que osrepórteres seguravam no começo desapareceu. Billy se força a não olhar para a líder de torcidadurante trinta segundos, mas também toma cuidado para não olhar para as câmeras de TV. Nadafaz a pessoa se sentir mais inepta socialmente do que se ver na tela olhando para si própria,

existe algum traço especial de culpa ou ignorância que a câmera parece captar nesse olhar direto.— Senhoras e senhores, o Onze de Setembro foi o sinal de alerta para nossa nação acordar.

Precisou acontecer uma tragédia dessa magnitude para percebermos que há uma batalha emcurso pelas almas dos homens. Esse não é um inimigo que pode ser aplacado ou com quempossamos dialogar de maneira lógica. Eles não negociam; terroristas não se desarmamunilateralmente. Em uma guerra dessas, mandar sinais confusos só faz encorajar nossosinimigos...

Quando Billy enfim volta o olhar para a garota, ela está esperando! Ela lhe dá um sorrisoestupendo, depois outra contraída de olhos, e então uma piscadela. É claro que se trata de umacortesia profissional, mas Billy se permite fingir que, sim, ela está mesmo a fim dele, eles vão seconhecer, trocar números, sair, sair mais vezes, transar/se apaixonar, se casar, procriar, educarcrianças maravilhosas e praticar um sexo incrível pelo resto da vida, e por que não?, cacete, sereshumanos têm feito isso desde a aurora dos tempos, então por que Billy não pode ter sua chance?Ele desvia o olhar e, quando olha de novo, os dois sorriem e, em silêncio, dão risadinhas dessacoisa que está rolando entre eles, seja lá o que for.

— ...esses jovens valorosos, esses verdadeiros heróis americanos — diz Norm, e finalmenteele serve o Bravo para consumo direto.

Bem-vindos a Dallas, diz o primeiro interlocutor, o que inspira gritos de entusiasmo e agitaçãode pompons por parte das líderes de torcida.

O que vocês têm feito desde que chegaram aqui?Os Bravos se entreolham. Ninguém fala. Depois de um tempo, todo mundo ri.— Bem, aqui em Dallas ou aqui no estádio? — pergunta Dime.Os dois.— Bem, a gente chegou a Dallas ontem no fim da tarde, fez check-in no hotel e saiu para

comer alguma coisa. Depois a gente foi ver alguns pontos turísticos.De noite?— Dá para ver muita coisa interessante de noite — diz Dime, com o rosto sério. Isso arranca

uma bela gargalhada.Onde vocês estão hospedados?— No Hotel W, no centro da cidade, que provavelmente é o melhor lugar em que a gente já se

hospedou nesse tempo todo. Nós nos sentimos como astros do rock lá.— Hotel W — diz Lodis, erguendo a voz —, isso tem alguma coisa a ver com...Nããããããããããããoo, metade do salão ruge para ele.— Humm. Porque eu pensei que talvez o presidente...Não não não não não.Qual foi a cidade favorita de vocês até agora?— Você quer dizer sem ser Dallas? — diz Sykes, o que faz com que as líderes de torcida

gritem.Vocês tiveram algum problema para dormir, para se reajustar à vida em casa?Os Bravos olham uns para os outros. Não.Qual foi a missão mais estranha de vocês?O ataque à fazenda de galinhas.E a mais difícil?Quando a gente perdeu nossos parceiros.A mais intensa?Qualquer ida aos banheiros improvisados.

A gente está fazendo a diferença lá?— Eu acho que a gente está — responde Dime com cautela. — A gente está fazendo

diferença.Para melhor?— Em alguns lugares, sim, com certeza para melhor.E em outros lugares?— Estamos tentando. Estamos trabalhando duro para melhorar as coisas.Ultimamente, a gente tem ouvido falar muito a respeito da insurgência iraquiana. O que vocês

podem dizer sobre isso?— A insurgência iraquiana. Bem. — Dime reflete por um momento. — Eu não apostaria em

nenhum grupo cujo líder fosse parecido com o Turtle de Entourage.Grande gargalhada.Vocês praticam algum esporte lá, tipo coisas intramuros?— Lá é quente demais para praticar esporte.O que vocês fazem nas horas vagas, para se divertir?PUNHETA!!! gritam todos eles, ou gritariam, se Dime não fosse matá-los lentamente, um a

um.— O Exército é muito bom em manter a gente bastante ocupado — diz ele. — Por isso, não

temos muito tempo livre. Na maioria dos dias, trabalhamos doze, catorze horas, e muitas vezesaté mais que isso. Mas, quando a gente tem uma horinha para relaxar, sei lá. Pessoal, o que é quea gente faz para se divertir?

Joga videogame.Levanta peso.Compra coisas no posto de troca.— Eu gosto de matar os meus inimigos e escutar o choro das mulheres deles — solta Crack,

com um forte sotaque alemão. O salão fica paralisado, depois solta uma gargalhada quando eleacrescenta: — Isso é de Conan, o Bárbaro. É só que eu sempre quis dizer isso.

Billy e sua líder de torcida continuam com as expressões faciais — olhadelas, sorrisos, carascom sobrancelhas contraídas, depois um incrível olhar significativo que dura muitos segundos.Ele se sente estranhamente poroso, como se seus órgãos vitais tivessem se transformado embolinhas de espuma.

Como foi conhecer o presidente?— Ah, o presidente — entusiasma-se Dime —, que homem completamente encantador! — Os

demais Bravos se esforçam para manter uma expressão neutra, pois a aversão de Dime emrelação ao “pirralho de Yale”, palavras dele, é bem conhecida dentro do pelotão. Quando apreparação para o combate começou, Dime escreveu “Putinha do Bush” com sabão na porta docarona de seu Humvee, com uma seta apontando para a janela acima, onde ele, Dime, costumavase sentar, mas o Ten. finalmente percebeu e fez ele lavar aquilo. — Ele fez todos nós nossentirmos incrivelmente bem-vindos e relaxados, tipo, digamos, se você fosse na agênciabancária da sua região para pedir um empréstimo para comprar um carro... Então, ele é obanqueiro mais bacana que alguém poderia sonhar em conhecer. Ele é simpático, bom de papo,daria para sentar e tomar uma cerveja com aquele cara. Quer dizer, ahn, acho que ele não bebemais, bebe?

Isso suscita uns risinhos abafados dos repórteres, alguns olhares hostis, mas a situação não énada fora do comum.

Como é a comida lá? Vocês têm internet? Sinal de celular? Dá para assistir a algum canal de

esportes lá? Os Bravos têm muito em comum com os prisioneiros de guerra, eles respondem àsmesmas perguntas várias e várias vezes. Alguém pergunta sobre os desafios do dia a dia da vidano Iraque. Crack conta à plateia sobre as aranhas-camelo, A-bort fala sobre as terríveis pulgasque mordem, o que faz com que Lodis tenha um surto de livre associação e comece a falar semparar sobre seus problemas de pele, “como a minha pele fica seca e fica toda quebradiça eesbranquiçada, meu garoto Day sempre em cima de mim para eu passar hidratante e eu tipo:Droga, então me dá um pouco desse creme, cara!”. Isso continua por um tempo.

Algum de vocês diria que é religioso?— Todos nós somos religiosos, cada um do seu jeito. — Dime.Algum de vocês ficou mais religioso enquanto estava lá?— Bem, não dá para ver algumas coisas que a gente viu e não pensar nas grandes questões.

Vida, morte, o que isso tudo pode significar.A gente não para de ouvir que vão fazer um filme sobre vocês. Como está isso?— É, certo, o filme. A única coisa que vou dizer é que a gente chama o Iraque de o anormal

normal, porque lá as coisas mais estranhas são apenas coisas do dia a dia. Mas, pelo que a gentedescobriu de Hollywood até agora, lá pode ser o único lugar ainda mais anormal do que o Iraque.

Risadas. Muitas risadas. Albert faz um sinal erguendo a mão sem levantar os olhos de seuBlackBerry. Por favor, Deus, reza Billy, que não seja a Swank. Então um repórter pergunta oque “inspirou” os Bravos a fazerem o que fizeram naquele fatídico dia no canal de Al-Ansakar.Todo mundo olha para Dime, e Dime olha para Billy, e todos os olhos seguem os de Dime.

— O cabo Lynn foi o primeiro a reconhecer o que estava acontecendo lá e também foi oprimeiro a reagir. Acho que ele é a pessoa apropriada para responder a sua pergunta.

Ah, caralho, porra. Billy não está pronto para isso, e além do mais está tendo dificuldades cominspirou. Inspirou? Parece um jeito afetado de descrever a coisa, mas ele tenta, está ansioso pararesponder adequadamente, para descrever de forma correta ou até mesmo aproximada aexperiência da batalha, que foi, em suma, tudo. O mundo aconteceu naquele dia, e ele estácomeçando a se dar conta de que vai passar o resto da vida tentando entender.

Todo mundo está olhando, esperando. Ele começa a falar logo antes de o silêncio se tornarincômodo

— Bem, é... — pigarreia — para ser muito sincero, eu não me lembro de muita coisa. Foi,tipo, eu vi o Shroom... o sargento Breem e, é... só de ver ele ali, à mercê dos insurgentes, eu seilá, ficou muito claro para mim que a gente tinha que fazer alguma coisa. Todo mundo sabe o queeles fazem com os prisioneiros, dá para comprar aqueles vídeos do que eles fazem em qualqueresquina lá. Então acho que isso estava na minha cabeça, de maneira inconsciente, não foi comose eu tivesse parado para pensar sobre isso. Não tive muito tempo para pensar em nada, naverdade. Acho que meu treinamento simplesmente entrou em ação.

Ele sente que falou demais, mas pelo menos acabou. As pessoas estão fazendo que sim com acabeça, seus rostos parecem simpáticos, então talvez ele não tenha soado muito idiota. Mas emseguida vem mais um golpe na sua direção.

Você foi a primeira pessoa a alcançar o sargento Breem?— Fui. Sim, senhor.Billy sente seu coração começando a acelerar.O que você fez quando o alcançou?— Devolvi fogo e prestei socorro.Ele ainda estava vivo quando você o alcançou?— Ele ainda estava vivo.

Os insurgentes que o estavam arrastando para longe, onde eles estavam?— Bem. — Ele olha para o lado. Tosse. — No chão.Eles estavam mortos?— Foi a impressão que tive.Os repórteres riem. Billy não tivera a intenção de ser engraçado, mas meio que consegue

enxergar a graça naquilo.Você atirou neles?— Bom, eu tinha me empenhado no combate contra aqueles alvos no trajeto. Houve várias

trocas de tiro. Eles basicamente largaram o sargento Breem para conseguirem lutar, e a gentetrocou tiros.

Então você atirou neles.Uma náusea repugnante está se espalhando a partir de suas axilas.— Eu não posso dizer isso com certeza. Tinha muitos tiros vindo de muitas direções

diferentes. Foi um momento bem louco. — Billy faz uma pausa, se recompõe; as palavrasexigem muito esforço. — Quer dizer, olha, tudo bem para mim se eu tiver atirado neles...

Ele tem a intenção de continuar falando, porém o salão irrompe em aplausos violentos. Billyfica aturdido, depois preocupado pensando que talvez as pessoas não tenham entendido, entãotem certeza de que elas não entenderam, mas não tem confiança suficiente em suas habilidadescomunicativas para tentar empurrar um esclarecimento garganta abaixo dos espectadores. Estãofelizes, então ele vai deixar as coisas assim. Os flashes das câmeras agora estão em plenaatividade, e, como quase tudo em seus dezenove anos de experiência de vida, isso se tornoubasicamente uma coisa que ele tem que aguentar, então os aplausos morrem e lhe perguntam seele vai pensar no amigo, o sargento Breem, quando tocarem o hino nacional mais tarde, e eleresponde que sim, só para manter a coisa otimista e no caminho certo: Sim, com certeza eu vou, oque soa obsceno em seus ouvidos, e ele se pergunta qual é o processo que faz com quepraticamente qualquer discussão sobre a guerra pareça profanar essas questões mais profundassobre vida e morte. Como se, para falar dessas coisas da maneira correta, fosse necessário falarde um jeito parecido com uma oração ou igual a uma reza, caso contrário apenas cale-se, calaessa sua boca e se segura, pois o silêncio tem mais a ver com a experiência do que o espasmobrilhante, o soluço agridoce, o abraço redentor, ou o que quer que seja essa porra de desfecho deque as pessoas sempre falam. Todo mundo quer que seja fácil, mas não vai ser e ponto.

— Eu tenho certeza de que todos nós vamos estar pensando nele — acrescenta Billy, umaporção final de merda nessa merdona fumegante de sentimentos.

A merda é que ele vai estar pensando em Shroom. E ele adora o hino nacional.Quem vai ganhar hoje?— O Cowboys! — berra Sykes, e as líderes de torcida gritam em aprovação, e, com seu tato

de mestre para o momento em que as coisas chegam ao auge, Norm se levanta e põe fim àcoletiva de imprensa.

Sarrando para o Senhor

A primeira página do Dallas Morning News do dia seguinte exibirá uma foto enorme, em close,de A-bort em meio à confusão após a coletiva de imprensa, um trio de líderes de torcidaabraçando-o enquanto ele se dirige a um frêmito de microfones. “Cowboys recebe heróisamericanos”, dirá a manchete, e depois: “O cabo Brandon Hebert, do esquadrão Bravo, sendoentrevistado ontem, no Texas Stadium. O cabo Hebert e o Bravo visitaram Dallas na etapa finalde sua Turnê da Vitória. O Cowboys perdeu, 31-7.”

Billy vai reparar muitas coisas nesta notícia. Primeiro, e mais importante, é o nome errado deA-bort, o que fará com que ele seja conhecido, para sempre depois disso, como “Brandon” entreseus companheiros do Bravo. Ou melhor, Bran-diota, sempre pronunciado com uma severidadetípica de uma professora irritada, como em Bran-diota vai ficar na .50 nesse intervalo. Bran-diotavai primeiro, depois de o Crack arrombar a porta. Bran-diota se arranhou em algum fio elétriconos chuveiros novos e tomou um puta choque. A seguir, Billy perceberá que enquanto A-bortestá com o rosto virado quase totalmente de perfil para a câmera, olhando para as pessoas quenão estão à vista e que seguram os microfones, as três líderes de torcida sorriem para a câmera, oque acaba por reduzir A-bort a um acessório. E, terceiro, como ele parece feliz. O cara tem vintee dois anos o que faz dele um ancião aos olhos de Billy; apenas depois de ver o sorriso de êxtasede A-bort na foto, seu prazer impetuoso, infantil naquele momento, Billy perceberá que seucolega de esquadrão ainda é basicamente um garoto, um cara que lê os livros de Harry Pottervárias e várias vezes e que uma vez enviou uma “carta” para casa endereçada a seu cachorro; a“carta”, na verdade, era um trapo que ele tinha mantido enfiado debaixo do braço durante algunsdias.

Essa foto também vai deixar Billy ansioso. Ele vai ver muita confiança no rosto de A-bort,muita boa-fé imprudente nas supostas bênçãos de ter nascido americano em determinadomomento histórico, mas, quando a foto é tirada, o próprio Billy está muito ocupado. Cada líderde torcida deve ter recebido uma tarefa específica, porque assim que os Bravos pisam fora dopalco, cada soldado é recebido por exatamente três garotas, um momento que reúne a força, senão o conteúdo, da intervenção divina. Billy é tímido quando se trata de tocar de fato nelas, masas garotas logo começam a encostar nele e acariciá-lo com indiferença fraternal. A grossacamada de maquiagem que usam o desaponta um pouco, mas ele decide não ligar para issoporque elas são tão bonitas e bacanas, e tonificadas, Deus do céu, os corpos são tão firmes, e osmúsculos parecem de aço. É uma honra conhecer vocês! Bem-vindos ao Texas Stadium! Nósestamos tão orgulhosas e animadas de ter vocês aqui com a gente hoje! Ah, puta que pariu, atémesmo um homem com uma enxaqueca martelando se sente revigorado no meio dessas garotas,não, dessas mulheres, dessas criaturas com suas moitas de cabelos cheirosos e bundinhasapalpáveis e fendas montanhosas de decotes vertiginosos dentro das quais um homem poderiacair e nunca mais ser visto ou ouvido novamente.

E estaria tudo bem, desaparecer ali, sumir por conta de um tipo de elevação ao Paraíso às

avessas, caindo nos abismos acolhedores da carne feminina. O corpos delas evocam taissentimentos de ternura nele, um instinto quase irresistível de criar raízes e se aconchegar, dedizer: Eu te amo. Eu preciso de você. Case comigo. Os peitos de Candace, a propósito, sãofalsos, não que isso tenha importância, aquelas são ogivas irrompendo de seu peito, enquanto osde Alicia e Lexis são naturais e mais macios. Sob qualquer avaliação, as três são mulheresestonteantes com narizes pequenos e finos e dentes brancos ofuscantes, com minúsculos istmosde cintura, e isso é tudo o que ele pode fazer para não as agarrar, apenas avaliar por alto otamanho daquelas curvas graciosas.

— Você está tendo um bom dia até agora? — pergunta Candace.— Muito bom — responde Billy. — Espero que eu não tenha falado demais lá em cima.— O quê?— Você está brincando?— De jeito nenhum!— Você foi o máximo — assegura Lexis. — Todos ficaram comovidos.— Bem, foi meio estranho. Em geral eu não falo tanto assim.— Você foi excelente — reafirma ela. — Acredite em mim. Você foi muito conciso e foi

direto ao ponto.— E não foi como se você estivesse querendo dar suas opiniões — observa Alicia. — Eles

ficaram fazendo perguntas para você, o que você ia fazer?— Achei meio grosseiras certas coisas que perguntaram — comenta Lexis.— Você tem que ser cuidadoso com os repórteres — aconselha Candace.Fotógrafos e operadores de câmera de TV se movem contra o fluxo da multidão, junto a

repórteres, executivos do time e pessoas sem propósito discernível. Billy vê o Sr. Jones seesgueirando pelas margens, armado e presumivelmente perigoso ou, pelo menos, um pé no sacopor fazê-lo pensar nisso. Acontece que as líderes de torcida têm seu próprio fotógrafo, umhomenzinho que parece um jóquei, careca e com o rosto bruto, que anda por ali de modo rápido ebrusco, gritando “Segura!” antes de cada foto, mostrando tanta sensibilidade ao esplendor daspessoas que fotografa quanto alguém que trabalha descascando vegetais diante de uma indústriade processamento de carnes. Segura! — ttttttttttttic. Segura! — tttttttttttic, o disparador sofrendoespasmos como o esfíncter frouxo de um velho. Entre uma foto e outra, as garotas contam a Billysobre a turnê que fizeram na última primavera com a United Service Organizations, com paradasem Bagdá, Mossul, Kirkuk e outros lugares, mais uma incursão apenas para quem sevoluntariasse para Ramadi, onde o helicóptero Black Hawk delas poderia ter sido atacado.

— Não sei como vocês fazem isso — diz Alicia. — É uma vida tão dura lá, tão seco, todoaquele vento e aquela areia. E as pessoas, os iraquianos, as casas deles? Só umas cabanas sujas, otipo de lugar onde Jesus poderia ter morado.

— Para a gente, o serviço militar agora é muito mais significativo — conta Lexis. — A gentevaloriza muito mais o trabalho que vocês estão fazendo.

— A comida era muito boa — diz Candace —, o rango. A gente só teve que comer aquelaração operacional de vocês algumas vezes.

— Um monte de carboidrato — acrescenta Lexis.— Juro, desde que a gente voltou, eu choro sempre que ouço o hino nacional — admite Alicia.Billy esperava conhecer sua líder de torcida de cabelo louro-avermelhado, mas ele sabe que

deveria ser grato por aquilo que tem bem ali, três lindas e voluptuosas líderes de torcida doDallas Cowboys. Elas são tão doces, completamente deslumbrantes. Têm um cheiro tão bom.Gritam e erguem as mãos, em um gesto de “toca aqui”, quando descobrem que ele é texano

como elas. Os seios maravilhosos ficam encostando nos braços dele, disparando campainhassensoriais e assobios como uma série de pontos bônus em um jogo de videogame. Sempre quealguém da imprensa se aproxima, as garotas engancham os dedões dentro de seus shorts e ficamali, ousadas e com as bundas empinadas, como se desafiassem os jornalistas a dificultarem ascoisas com o querido Billy delas. E a imprensa, os homens, eles não conseguem lidar de maneiraíntegra com elas, apenas dando sorrisinhos, olhares de esguelha, usando tons de voz irônicos.Certo, certo, a gente está vendo você, camarada, é o que praticamente dizem a Billy. Umacelebridade e tal, você não é o máximo? Ver a si mesmo levando em consideração a percepçãodaqueles repórteres faz Billy compreender quão perto as líderes de torcida chegam de fazê-loparecer um cara absurdo, o cúmulo da cafetinagem de não uma ou duas, mas três garotas bonitas.Billy está totalmente ciente de que tudo isso é falso e com certeza os jornalistas sabem que elesabe. Será então este desprezo fingido o jeito de serem firmes com ele?

Ele começa a se ressentir da situação. Os repórteres lançam algumas perguntas pro forma.Billy praticava esportes no colégio? É torcedor do Cowboys? O que significa estar em casa parao Dia de Ação de Graças este ano?

— Bem, tecnicamente — destaca Billy —, não estou em casa. Estou aqui.Eles nem sequer fazem anotações, apenas sugam as palavras com pequenos gravadores que se

parecem com barrinhas de proteína. Eles conseguem ser incrivelmente irritantes só por ficaremali de pé. Um bando de caras de meia-idade, em geral brancos, gordos, usando roupas casuaissem graça para cacete, uma amostra triste para caralho da vida civil, de modo que, por ummomento, Billy fica realmente feliz pela guerra, sim, tão melhor estar lá fora atirando eexplodindo umas merdas do que se arrastar por aí como em um cenário de um seriado decomédia ruim. Deus sabe que a guerra é uma bosta, mas ele não vê grande apelo nessas vidassem grande entusiasmo dos tempos de paz.

Em meio à multidão ele vê sua líder de torcida que foi designada a ficar com — blé! — Sykes.A sequência dos acontecimentos está, definitivamente, lhe dando nos nervos. Ela o flagraolhando em sua direção e devolve um sorriso que parece terno e verdadeiro, então a joveminclina a cabeça, preocupada ou intrigada. Billy contrai o abdome, como se tivesse recebido umgolpe.

Quando as pessoas da imprensa finalmente vão embora, ele se vira para Lexis e pergunta:— Você tem que ser solteira para ser líder de torcida?Ela dá uma risada breve; as outras jovens trocam olhares. Ai, nossa, elas acham que estou

dando em cima delas.— Bem, não — responde ela, muito decidida e prática —, você não tem que ser solteira, e

sempre tem umas garotas casadas na equipe. Eu, a Candace e a Al, a gente não é casada, mastemos namorado.

A cabeça de Billy se mexe freneticamente em concordância. Ahn aham ahn aham, é claro quevocês têm!

— Eu só estava, sabe, hum, curioso.As garotas trocam mais olhares. Claro, você estava curioso. Ele está tentando descobrir como

dizer de maneira gentil que “não é em vocês três, particularmente, que eu estou interessado”, masantes que essa solução lhe venha à mente, Billy é convocado por Josh. Hora do show. Aimprensa quer uma foto posada, com Norm e os Bravos juntos. Um espaço é aberto na frente dopalco, cadeiras são empurradas para trás, corpos se aproximam. Um dos netos pequenos de Normpassa correndo, brincando de pique com as líderes de torcida, o coto pequeno e rijo de seu pênisereto forçando o tecido da calça. Enquanto todo mundo toma seus lugares, um repórter pergunta

a Norm a respeito de seus planos para um possível novo estádio. Um ó-óu de zombaria emergedos repórteres.

— Bem, é óbvio que essas instalações não são mais tão novas — responde Norm. — Mas oTexas Stadium tem sido um lar maravilhoso para o Cowboys. Eu não vejo isso mudando em umfuturo próximo.

— Mas... — incita o repórter, provocando risadas.Norm sorri. Ele está feliz em participar da piada.— Mas para a saúde da organização a longo prazo, acho que essa é uma coisa que a gente vai

precisar analisar.— Alguns integrantes do conselho da cidade de Irving acham que você já está analisando.

Estão dizendo que é por isso que você cortou o orçamento de manutenção do estádio emdezessete por cento.

— Não, de jeito nenhum. A gente acabou de fazer nossa revisão no andamento normal dosnegócios e descobriu alguns lugares onde dava para cortar gordura. A gente tem a intenção demanter o Texas Stadium como uma instalação de primeira.

— Alguma chance de vocês levarem o time de volta para Dallas?Norm simplesmente sorri para as câmeras, que saem clicando como se fossem periquitos

quebrando sementes. Alguns repórteres continuam com o assunto do estádio, mas Norm osignora. Billy começa a compreender a dinâmica ali, a equação de poder similar ao CEO de umacorporação gigantesca diante da pastilha de desodorizante de mictório que ele estuda de maneiratão cuidadosa enquanto ela se encharca com seu vigoroso fluxo pessoal. É trabalho de Normfazer a marca do Cowboys valer o máximo possível, e é o trabalho da imprensa sugar cada gota,ninharia ou baba de relações públicas que ele manda em sua direção. Enquanto seres humanossensíveis e dotados de razão e livre-arbítrio, eles, naturalmente, se ressentem deste tratamento.Quem sabe isso explique a atitude rabugenta deles, a umidade cármica que recende deles comose fosse um cesto de toalhas em uma academia. Amanhã ele vai ler o jornal e se perguntar porque isso também não faz parte da história: que a imprensa, embora a contragosto, se reuniuconforme lhes foi instruído para gravar em sua capacidade estenográfica a apresentação de Normdo esquadrão Bravo, um evento de marketing descaradamente estereotipado que não esclareceu aninguém, não revelou nada e não serviu a nenhum propósito tangível além de engrandecer aconsciência da marca Cowboys.

Toda a bobagem da coisa também não é parte da história? Mas nem uma palavra, nem ummurmúrio, nem um pio da imprensa a respeito de como eles têm sido completamente usados enenhum indício de seus sentimentos pessoais em relação a Norm, o que, conforme Billy deduzda linguagem corporal deles, consiste em medidas quase iguais de ressentimento e medo. Sequisesse, Norm provavelmente conseguiria que qualquer um deles fosse demitido. Conseguiria,provavelmente, que fossem mortos, se quisesse. Não que ele fosse fazer isso. Provavelmente.Billy vê o Sr. Jones por perto, discutindo as probabilidades com diversos outros engravatados.Cowboys por quatro? ‘Boys por três? Eles dão risadinhas como se fossem homens comparandoos talentos de uma mulher que partilharam em termos carnais, e Billy gostaria de ir até lá equebrar a cara deles. Não sabe por que está tão ofendido, mas está, talvez seja a arma do Sr.Jones que provoque isso nele, algo a respeito da presunção daquilo, a ignorância, a porra do puroego de carregar por aí um instrumento de força letal. Tipo, você sabe? Você quer ver o que umaforça letal é capaz de fazer? O Bravo pode mostrar para você, o Bravo é letal de um jeito quevocê não iria acreditar, de um jeito que iria fazer você pirar e desejar que nunca tivesse saído doburaco da sua mãe.

Quando as fotos terminam, Billy decide que precisa de um momento sozinho. Fica de costaspara a parede, logo à esquerda do palco, onde o arco do cenário o protege da maior parte do salãoao fazer uma curva côncava. Ele permanece de pé, em posição de descanso, e se ocupa emacalmar sua respiração. Alguns repórteres o veem e aí vêm eles. Bem, que merda. Mas que porra.Billy tem que aceitar aquela situação.

— Ei.— Oi.— E aí?Eles se apresentam. Billy desistiu de tentar se lembrar dos nomes há muito tempo. Eles falam

um pouco para os gravadores, então um deles pergunta se Billy já pensou em escrever um livrosobre suas experiências no Iraque. Billy ri e lança a ele um olhar do tipo Cara!.

— Muitos soldados estão fazendo isso — conta o homem —, existe um mercado para issoagora. Podia ser um jeito de transmitir sua história e ganhar algum dinheiro. Eu e o Paulpodemos ajudar você, a gente fez o trabalho de ghost-writer em uns livros. E a gente teriainteresse em trabalhar com você em algo do tipo.

Billy se apoia no outro pé.— Eu nunca me vi tentando escrever um livro. Eu mal lia, até entrar para o Exército e um

amigo começar a me dar livros.Quais, os repórteres querem saber.— Certo, tudo bem. Vocês querem mesmo saber? O Hobbit. On the road, do Kerouac. Aquele

livro Flashman at the Charge, que é muito engraçado. Por que não falam desses livros para agente na escola? Tipo, quem sabe assim conseguissem fazer todo mundo, de fato, ler. Vamos ver,o Hell’s Angels, do Hunter S. Thompson. Medo e delírio em Las Vegas. Matadouro 5. Cat’sCradle. Parque Gorki e outro desse mesmo cara, o russo.

Todos livros dados por Shroom.— O que você achou dos livros do Thompson?— Eles me fizeram querer ficar doidão — responde Billy, e ri, para que eles saibam que é uma

piada. — Não, sério, acho que você tem que admitir que o homem é um completo maluco, masde um jeito que faz sentido, tipo uma resposta normal para a situação em que ele se coloca. Sóque por que uma pessoa ia fazer um monte das merd... coisas que ele faz...? Eu aposto que ele iater umas coisas interessantes para falar do Iraque, tipo se ele fosse, se ele pudesse ver do jeitoque os soldados veem lá. Eu não estou dizendo que aprovo o estilo de vida dele nem nada assim.Eu só gosto do jeito que ele escreve.

— Você diria que os soldados usam muitas drogas lá?— Eu não sei nada disso. Só tenho dezenove anos. Não posso nem beber cerveja!— Você pode votar e pode morrer pelo seu país, mas não pode entrar num bar e comprar uma

cerveja.— Eu acho que é uma forma de ver as coisas.— Como é que você se sente em relação a isso?Billy reflete por um instante.— Provavelmente deve ser a melhor solução.Mais uma vez os repórteres levantam a ideia de escrever um livro. Billy percebe uma fonte

radiante de calor a sua direita e, dando uma olhadinha, ele vê que é ela, de pé, paciente, a seulado. Sua pulsação dispara alcançando a velocidade de uma gazela, ai meu Deus ai meu Deus aimeu Deus ai caralho caralho caralho caralho, enquanto isso os repórteres continuam a tagarelarsobre mercados, contratos, agentes, editores e Deus sabe mais o quê. Billy dá aos homens seu e-

mail só para que eles o deixem em paz e, quando finalmente fazem isso, ele se vira para ela. Elao encara firmemente, com um ar de franca expectativa. De algum modo ele sente confiança paraolhá-la de cima a baixo, não um olhar lascivo e pervertido, e sim tipo aquele de um amigo deinfância que encontra a esplêndida versão adulta de uma menininha de pernas tortas, fracote,salpicada de grama que ele costumava perseguir no parquinho durante o primeiro ano.

— Quer dizer que você vai escrever um livro?— Não — bufa ele, e os dois riem. De repente ele mal está nervoso. — Você não fica com frio

lá, torcendo para os times com aquela roupa bizarra?— A gente anda tanto que isso quase nunca é um problema, mas, eu vou admitir, na semana

passada, em Green Bay, pensei que fosse congelar minha você-sabe-o-quê. A gente tem casacospara os dias frios de verdade, mas quase nunca os usa no campo. Eu sou...

Soa como faisão? Ela troca a mão que segura o pompom e estende a que está livre.— Pode repetir?Ela ri.— Faison. F-a-i-s-o-n. Eu sei quem você é, Billy Lynn, de Stovall. Minha avó foi Miss Stovall

em 1937, olha que coincidência. — Ela ri sem hesitação, um trinado rouco do fundo do peito. —Todo mundo disse que ela tinha chance de ganhar o Miss Texas daquele ano. Um bando decomerciantes locais se juntou e financiou o guarda-roupa dela, as aulas de canto, todos os gastosdas viagens, eles queriam de verdade aquilo para a cidade. Naquela época, Stovall era, tipo,importante, com todo o petróleo que eles estavam tirando daquelas terras.

— E como ela se saiu?Faison balança a cabeça.— Segundo lugar. Todo mundo disse que ela devia ter ganhado, mas tinha sido arranjado.

Você deve saber como esses negócios de concurso funcionam.E, com sua vasta experiência em concursos de beleza, Billy assente impulsivamente. No

momento, as pessoas estão deixando os dois em paz.— Hoje em dia, Stovall não é lá muito importante.— É o que eu ouço falar. Não vou lá desde que era criança, mas quando ouvi dizer que um dos

Bravos era de Stovall, fiquei tipo: Oba, Stovall! Senti meio como se eu conhecesse você dealgum jeito, tipo, Stovall, qual é, de todos os lugares que uma pessoa podia ser? Só pareceuengraçado.

Ela cresceu em Flower Mound, ela lhe conta, e trabalha meio período como recepcionista deuma empresa de advocacia enquanto banca os estudos na UNT, faltam só seis créditos para elaganhar o diploma em jornalismo televisivo. Ele acha que ela tem vinte e dois, vinte e três anos,um pacotinho compacto e repleto de curvas com um nariz arrebitado e insolente, olhos verdescom manchas cor de âmbar e ouro, e o tipo de decote que faz os homens chorarem. No momento,ela está dizendo a Billy quanto os comentários que ele fez à imprensa significaram para ela, masele mal a escuta, tão absorto pelas belas formas dos lábios dela ao articularem as palavras

— Você falou tão bem lá.— Não sei se falei tão bem assim.— Não, você falou, sim! Você falou na lata, e isso mostra que é forte, um monte de gente não

consegue falar daquele tipo de coisa. Quer dizer, tipo, morte, seu amigo morreu? E você estava lácom ele? Não deve ser fácil falar disso para um salão cheio de desconhecidos.

Billy inclina a cabeça.— É meio estranho. Ser homenageado pelo pior dia da sua vida.— Eu nem consigo imaginar! Um monte de gente ia ter simplesmente travado.— E aí, como é que é ser uma líder de torcida?— Ah, é ótimo! Dá muito trabalho, mas eu adoro, dá muito mais trabalho do que as pessoas

acham. Elas veem a gente na TV e pensam que isso é tudo o que a gente faz, só se vestir para osjogos, dançar e se divertir, mas isso é só uma pequena parte do nosso trabalho.

— É mesmo? — diz ele, tentando encorajá-la.

Ele se sente leve por dentro, revigorado, uma sensação física de estar cheio de esperança.Conversar com esta bela garota faz com que ele perceba quanto estima sua própria vida poucointeressante.

— É, na verdade a principal parte do nosso trabalho é fazer serviços comunitários. A gente vaia um monte de hospitais, faz um monte de coisas com crianças desfavorecidas, aparece emeventos para arrecadar fundos para caridade e coisas assim. Tipo agora, que é época de feriados?A gente está fazendo quatro ou cinco eventos por semana, mais os ensaios e, ainda por cima, osjogos. Mas não estou reclamando. Eu sou grata por cada minuto.

— Você foi na missão da United Service Organizations da última primavera?— Ai, meu Deus, NÃO e eu gostaria TANTO de ir, mas eu só virei líder de torcida do

Cowboys nesse verão. Olha só, eu estou DOIDA para fazer uma viagem dessas, não tem comoninguém me impedir de ir na próxima vez. Sabe as garotas que foram? A experiência foi tãoenriquecedora para elas, e ajudar os outros é isso, as pessoas dizem: “Ah, vocês são tão boas pordarem tanto de si”, mas na verdade é o contrário, a gente recebe tanto em troca. Para mim, temsido o que me dá mais satisfação em ser líder de torcida, servir os outros. O aspecto espiritualdisso. Como se fosse outro estágio na jornada, na missão. — Ela faz uma pausa. Seus olhossustentam o olhar de Billy por um momento longo e intenso, e logo antes de ela falar, ele sabe oque está por vir. — Billy, você é cristão?

Ele tosse, colocando a mão fechada na frente da boca, desvia o olhar. A confusão é genuína,mas ele raramente se dá ao trabalho de demonstrá-la.

— Estou em busca — responde ele, enfim, mergulhando em seu repertório de frases de efeitosobre o cristianismo, que, graças a ele ter crescido em uma cidadezinha no Texas, é extenso.

— Você reza?Ela suaviza os modos, fica mais solícita.— Às vezes. Não tanto quanto deveria, acho. Mas algumas coisas que a gente viu no Iraque,

sobretudo as criancinhas... Fica difícil rezar depois disso.E daí se ele está exagerando um pouco? Os sensores dele ainda não captaram uma palavra

falsa.— Você tem sido testado de tantas maneiras, eu sei. Mas na maior parte do tempo é assim que

isso funciona, a escuridão toma conta da nossa vida até que a gente pensa que a luz nosabandonou. Mas ela está lá, ela sempre está lá. Basta a gente abrir uma frestinha da porta que aluz vem entrando. — Ela sorri e abaixa a cabeça, dá uma risadinha tímida. — Sabe como a genteficou se olhando durante a coletiva? E eu estava pensando comigo mesma: Agora, por que nomeio de toda essa gente ele fica olhando para mim e eu fico olhando para ele? Quer dizer, você ébonitinho e tal, tem esses olhos lindos... — Ela ri, recupera a seriedade. — Acontece que agoraacho que sei por que, eu realmente acho que sei. Acho que Deus queria que a gente seconhecesse hoje.

Billy suspira, suas pálpebras tremulam, a cabeça se inclina e encontra a parede com umdiscreto tum. Até onde ele sabe, tudo o que ela fala é verdade.

— Todos nós fomos chamados para sermos luzes Dele no mundo — continua ela, roçando umpompom no braço de Billy.

E, com trinta segundos da história de como ela começou um relacionamento com Jesus Cristo,Billy, em silêncio, devagar, com firmeza, estica a mão por debaixo do pompom e segura a mãodela. Afinal, por que não? Afinal, ele está sensibilizado. Afinal, em dois dias ele vai estar devolta àquela merda e qual é a pior coisa que pode acontecer se comparada a isso? Faison nãotitubeia; na verdade, ela faz seu discurso com ainda mais rapidez. Seu esterno sobe e se

movimenta; florações em tons de roxo-ameixa e vermelho-bola-de-fogo salpicam as regiões deseu rosto e pescoço. As pupilas se dilatam, dobrando de tamanho, e ela solta arquejos suaves emmeio às palavras, como se tivesse acabado de subir aos trotes cinco lances de escada.

Billy está andando para trás, puxando-a consigo. Um, dois, três pequenos passos e eles seescondem no pequeno espaço na penumbra atrás da tela com o logo dos Cowboys, de modo quealguém precisaria ficar colado à parede para espiar os dois. Billy gira, as costas de Faison seacomodam junto à parede, e agora ela não está mais falando. O rosto está inchado, relaxado, suasbochechas e seus lábios estão mais cheios, e a pesada mandíbula, repentinamente aberta. Poderiaestar adormecida, está sendo óbvia assim, e ao se inclinar em direção a ela, Billy sabe que seissemanas atrás ele não teria pensado em fazer aquilo, muito menos seguido em frente com a ideia.

Três semanas atrás, a mesma coisa, três dias, idem, então, é evidente, alguma coisa aconteceucom ele. Billy mantém os olhos abertos durante todo o percurso e os olhos de Faison se fundemem uma única bola brilhante, como uma imagem da Terra vista do espaço sideral. O primeirobeijo é como um alívio de pressão, como estourar uma bolha com o toque dos lábios. Ele seafasta dela e descobre prazer no autocontrole. Eles se olham a poucos centímetros de distância.Ela parece estar doidona, fora de si, então ergue o rosto, e eles se beijam novamente. Ele quer lhedizer como seus lábios são incríveis, mais macios do que qualquer coisa que ele já havia tocado.Você sabia, ele quer dizer, mas a ferramenta é ocupada de outra maneira enquanto eles sedemoram, as bocas sorvendo nas explorações do tecido macio, então é como se um tiro delargada tivesse sido disparado porque eles estão se atracando como dois alunos do ensino médiodebaixo das arquibancadas da escola, um ataque altamente enérgico de uma pegação ginásticaque parecia ter por objetivo a saciedade, o forçar literal de seus corpos inteiros garganta abaixoum do outro.

— Isso é uma loucura — sussurra ela quando eles param para tomar fôlego. — Eu poderia serexpulsa do grupo de líderes de torcida por causa disso. — Então eles se agarram ainda mais e,enquanto isso, Billy não deseja mais nada. — O que você tem de especial? — murmura ela aotomar fôlego novamente. — O que está acontecendo comigo?

Quando eles unem os lábios de novo, Billy abaixa a pélvis e se encaixa nela como se fosseuma colher se servindo de um sorvete macio, puro reflexo motor do tronco cerebral inferior. Elese afasta bruscamente.

— Desculpe.— Tudo bem.Ela o observa por um instante, depois seus olhos perdem o foco e um movimento para baixo

ou um deslocamento da região lombar dela sinaliza que ele pode imprensar o corpo contra o delaoutra vez. Vamos nessa, ele pensa, avançando com a virilha, e o centro das pernas dela parece seabrir e fluir ao redor dele. Eles estão tremendo. É tão difícil não fazer barulho. Do outro lado datela as pessoas estão conversando e continuando suas vidas idiotas. Faison parece prestes achorar quando agarra as lapelas dele e enrosca as pernas ao redor da cintura de Billy, com asbotas de cowgirl e tudo mais. Ele a segura por baixo, sua bundinha se encaixa certinho em suasmãos e ele invoca a imagem mental daquilo — as mãos agarrando a bunda corpulenta em umshortinho, e isso dispara em Billy um arroubo de feromônios em explosão, Puta merda, estoupegando uma líder de torcida do Dallas Cowboys! Faison, enquanto isso, tinha tomado adianteira, ela está movimentando os quadris e soprando hinos de louvor no rosto dele, e neste diaBilly se deixará acreditar que ele é especial porque ela goza em menos de doze estocadas, comum aperto forte e um arremesso de seu corpo em arco para cima, um guincho de golfinho presono fundo do peito dela. O último movimento de seus quadris quase quebra a coluna de Billy, aomenos é assim que ele sente enquanto aguenta, tendo cada partícula de sopro de vida espremidapara fora de si, suas vértebras estalando como se fossem plástico bolha. Então, acabou, excetopor alguns tremores secundários que perduram. Como o sobrevivente de um naufrágio searrastando até a praia, Faison solta primeiro uma das pernas, depois a outra. As botas delaencontram o chão. Ela se deixa cair pesadamente sobre ele.

— Você está bem?Ela balbucia algo, depois dá uma olhada ao redor, para ter certeza de que ninguém está

olhando.— Meu Deus — murmura ela.E, feito uma criança cuja atenção está completamente em outro lugar, ela estica a mão e dá um

puxão indolente na Estrela de Prata dele. Quando Faison se afasta e ergue o olhar, há lágrimasnos olhos dela.

— Nunca me envolvi tão rápido assim com alguém — sussurra ela. — Mas não tem nada deerrado, eu sei que não tem.

Ele balança a cabeça, que por vontade própria se inclina na direção dela.— Não tem — balbucia ele em meio ao cabelo dela.— É só você, tem alguma coisa em você. Talvez seja a guerra. — Ela agarra Billy pela nuca e

o posiciona de uma forma para conseguir enxergar os olhos dele. — Quantos anos você tem?— Vinte e um.Ele se força a sustentar o olhar dela. Em um ou dois segundos suas retinas doem.— Você tem uma alma antiga.Ele acha que isso deve ser de algum filme, mas não se importa. Deve até ter um pouco de

verdade nisso, o modo como o Iraque envelhece você em anos caninos, em vez de humanos. Eledá um puxão nela, que prontamente desaba em seu peito.

— É melhor a gente ir — murmura ela.— Você é incrível.Ela suspira. Nenhum dos dois se mexe. As vozes estão se afastando, indo em direção ao fundo

do salão. A ereção dele está vigorosa e chega a doer, mas, aparentemente, não há nada que sepossa fazer em relação a isso.

— Eu vou ser honesta com você — sussurra ela. — Eu não sou virgem. Tive três namorados,mas todos eles foram relacionamentos que duraram muito tempo. Não tenho relacionamentoscasuais, eu só queria que você soubesse disso.

Ele assente e se inclina para cheirar o pescoço dela. Sob as fragrâncias florais de perfume esabonete ele descobre um aroma denso e profundo, como o de massa feita com batata-doce. Ocheiro dela. Ele não consegue se lembrar de ter se sentido tão feliz assim.

— É uma coisa realmente séria para mim — sussurra ela. — Ter intimidade com alguém.— Para mim também — murmura o virginal Billy no pescoço dela.— Mas é, tipo, se você se importa de verdade com alguém e confia nessa pessoa e sabe que

ela sente o mesmo, eu acho que tudo bem ter intimidade física. Mas isso leva tempo, sabe? Paraconstruir esse tipo de confiança. Isso não acontece depois de um ou dois encontros ou de umassemanas, isso leva tempo, um compromisso de verdade para honrar um ao outro. Tipo, eu estounum momento da vida agora em que preciso estar com alguém por pelo menos três meses parachegar a esse grau de confiança.

Tudo isso parece ser muita informação, mas Billy não liga. Ele sabe o que os companheiros doBravo diriam: “Vamos trepar agora e eu vou ficar devendo três meses para você.”

— Está tudo bem — sussurra ele. — Com certeza quero ver você quando voltar.Ela ergue a cabeça.— Voltar de onde?— Bem, do Iraque. A gente tem que terminar a nossa missão.— Você... o quê? — O tom de voz dela está quase inaudível. — Você vai voltar? Mas

ninguém disse, espere, todo mundo simplesmente supôs que, ai, meu Deus, vocês terminaram.Ai, meu Deus. Quando você vai embora?

— No sábado.— No sábado? — grita ela, a voz falhando.Ela ergue o cabelo com uma das mãos como se para arrancá-lo, um gesto ancestral que faz

Billy sentir os joelhos fraquejarem. Apenas mulheres, pensa ele — apenas a mãe dele, suas irmãs

e agora Faison. Apenas elas demonstraram tristeza de verdade por causa dele, e seus olhos ardemde gratidão por todo o sexo feminino. Faison se levanta na ponta dos pés para lhe dar um beijoarrebatador, e a ereção de Billy, que tinha ficado sonolenta a meio-mastro, imediatamenteassume posição de sentido.

— Ai, meu Deus — sussurra ela —, se a gente só pudesse...— Líderes de torcida! — vociferou uma mulher com uma voz de sargento. — Formação no

corredor!— Ai, droga, eu tenho que ir. — Faison dá um último beijo nele, depois segura a bochecha de

Billy com a mão. — Escute...— Me dê seu telefone.— Eu acabei de pegar um celular novo! — O que isso significa...??? — Venha me encontrar,

eu vou estar na linha das vinte jardas.Ela enfia a cabeça para fora da tela, depois se vira.— Billy — murmura e tenta sorrir, mas não consegue, quando seus olhos encontram os dele.Então, ela se vai.

Jamie Lee Curtis fez um filme de merda

Billy não faz ideia de como eles chegaram ali. Essa parte está em branco, como se ele tivessesofrido uma concussão que o nocauteou e pela meia hora seguinte o tirou do decorrer do tempo,quando, por fim, ele se encontra depositado no campo de futebol americano. Os Bravos, Norm &Cia., estão perambulando em direção aos flats perto da endzone, no fundo da curva em forma deferradura do estádio, onde o vento dispara invadindo-os e provocando pontadas dolorosas,criando um movimento rotatório como o de uma descarga de vaso sanitário. A seção transversalde céu que aparece através da abertura do domo tem a cor e a textura de estanho ribombante,uma fervura sinistra de sépias em tom de feridas e um matiz cinzento cor de água de vala quetrazem a previsão de todo tipo de tragédia relacionada ao tempo.

— Vai nevar — observa Mango, o especialista em condições climáticas de inverno dos Bravos—, dá para sentir o cheiro.

Mas ninguém presta atenção nele. A pequena roda de conversa deles é um redemoinho arespeito de filmes. Algo aconteceu, supõe Billy, novidades surgiram enquanto ele estavaocupado com outra coisa. Ao que parece, Howard e Grazer estão fora. Hanks sem dúvida estáfora, Stone nunca esteve dentro e o pessoal do Clooney está empenhado em não retornar asligações de Albert, mas, de repente, assomando na brecha, está Norman Oglesby com apromessa, ou, digamos, o potencial, ou pelo menos a não-tão-implausível possibilidade de trazerrobustos milhões em financiamento para a produção...

— Ele está intrigado.É como Albert o define, intrigado dando a entender interesse maior do que ficar apenas no

falatório, mas menor do que colocar na mesa o interesse monetário para valer.— Ele gosta da ideia, e gosta de vocês, rapazes. Acontece que ainda está cedo.Ainda está cedo, mas o Bravo só tem mais dois dias, um pavio terrivelmente curto no mundo

labiríntico dos negócios cinematográficos. Primeiro isso precisa acontecer e depois aquiloprecisa acontecer e então mais umas trinta coisas simultaneamente ou em sequência, semqualquer item anterior ser retirado, o processo se alimentando, pelo que Billy pôde notar, pormanipulações verbais ultrajantes de medo e ganância. Você faz a coisa acontecer convencendotodo mundo de que ela está acontecendo, a crença em primeira instância sendo uma construçãovaporosa de fingimento, adulação, evasivas, hipocrisia e mentiras deslavadas. Em outraspalavras, uma trapaça. Não que Billy pense mal de Albert por isso. Parece que o processo trazem si imensas margens para traição; todo mundo apenas pressupõe que todo o resto estámentindo até que atinge o ponto em que uma reação em cadeia é provocada a partir daquantidade absurda de bobagens que foi apresentada, e então as pessoas param. De mentir. Umtipo de verdade foi criado para acontecer. Se esse modelo de negócios tem qualquer coisa a vercom a qualidade do produto que Hollywood produz, Billy ainda não teve tempo para refletir.

Alguém, o pessoal de alguém — do Hanks? Do Grazer? Da Swank? — disse que isso nãosignificava merda nenhuma, ou, na verdade, o que eles disseram foi que era o mesmo que tirar

uns trocados da bunda de um macaco, que a história do Bravo é verdadeira, que a verdade éirrelevante no valor do negócio. O que ofendeu os soldados, embora Albert tenha dito a eles quedeixassem isso para lá.

— Eles são uns cuzões — disse ele. — Não se preocupe com isso.Só que os cuzões pareciam sempre ser os caras com o dinheiro. No momento, Albert está de

pé um pouco longe deles, o cabelo espetado arranhando o vento enquanto ele atende umaligação. À mesma distância, do outro lado do Bravo, Norm está se estendendo em uma conversaao celular.

— Vai ver eles estão falando um com o outro — comenta A-bort.Dime apenas balança a cabeça e agacha para se proteger do frio. Ele está para baixo.

Entediado. Sem energia. Major Mac tinha perambulado na direção da linha lateral, onde ficaolhando para a estrutura do gol como se sinais e maravilhas estivessem para ser revelados ali.

— Disse pra minha mãe que vou comprar um carro pra ela — diz Lodis. — Cem mil, mamãe,vai lá na loja e escolhe! Ela escolheu e agora tá lá, sentada em casa, se perguntando onde tá odinheiro pra ele.

— Olha — diz Crack para o esquadrão —, o Norm é cheio da grana, não é? Quase umbilionário, né? Então tudo o que ele tem que fazer para que o filme aconteça é, basicamente,preencher um cheque.

— Preencher um cheque para a gente — retruca Day. — É a nossa história, cara.— Isso é verdade. E tipo o mais rápido possível, porra.— Não esquece que o Wesley Snipes vai fazer o meu papel!— A sua mãe vai fazer o seu papel.— O caralho, ela não é feia o suficiente. O Urkel faz ele.— Richard Simmons. Escurece ele.— Não, aquele negro anão, o lutador. O Master Blaster.— Então, por que ele não assina o cheque? — choraminga Crack, recorrendo a Dime. — Tipo,

só preenche, babaca, você não quer apoiar as tropas? Como você convence um cara desses a secomprometer assim?

Bem, Billy pensa mas não fala nada, ele poderia ir até lá, pegar o homem, virá-lo de pernaspara o ar e sacudi-lo até que todo o dinheiro caísse. Dime está indiferente em meio a tudo isso.Está amarelando, uma atitude clássica do Dime, o tipo de coisa que pode acontecer quando eleestá entediado ou seu nível de glicose baixa, mas ele está amarelando bem no momento em queBilly precisa de seu conselho, mais precisamente, sobre o que fazer com o milagre que acabou deacontecer na vida dele. Pensamentos sobre Faison colocam o cérebro de Billy para funcionar dojeito que ele ouviu dizer que o crack faz, produzindo um efeito direto nas zonas nervosasresponsáveis pelo prazer, e, ainda que não seja o colapso de todo o organismo de um viciado emdrogas pesadas, ele está definitivamente sentindo coisas que não consegue controlar. Cara, elaestava a fim de você. Foda-se isso, ela GOZOU em cima de você. Ocorre a ele perguntar-se seaquilo foi mesmo real. É perfeito demais, exatamente como o tipo de ilusão que um soldadodesesperado poderia imaginar, o normal, frustrante déficit de atenção de um novato cuja vidaíntima é, na maior parte das vezes, fantasias sexuais requentadas. Contudo, duvidar de si mesmosempre foi uma característica de Billy, a dúvida de si mesmo e a sua prima, a voz da censura,essas companheiras fiéis sempre estiveram a postos para ajudar Billy em meio às crises da vida,e ainda assim, ainda assim... a lombar dele dói para cacete. O cheiro dela permanece nas mãos eno peito dele. Fios de cabelo louro-avermelhado lampejam nas mangas de sua roupa como sefossem sinais vindos de uma cordilheira de montanhas distantes. Por isso, se ele não está

delirando nem viciado em crack, o que deve fazer? Isto é, para tornar aquilo algo verdadeiro.Para fazer com que dure. Ele precisa consultar seu sargento o mais rápido possível, porque otempo urge.

— Garotos, as coisas estão melhorando — diz Sykes.Meia dúzia de líderes de torcida — Faison não está entre elas — vem daquela direção, junto a

Josh, que traz uma sacola pendurada em um dos ombros. Ele vai até o Bravo, se livra da sacola edeixa cair aos pés deles uma penca de bolas de futebol americano.

— O que é isso?— Essas são as suas bolas — responde Josh.Nossas bolas.— É, eles querem que vocês segurem bolas de futebol quando a gente for tirar a foto.Alguns Bravos grunhem, mas ninguém diz nada. Eles encaram as bolas, cutucando-as com a

ponta do pé, e olham distraidamente para longe, como se nada disso tivesse a ver com qualquerum deles. Billy espera uma abertura para falar sozinho com Dime. As animadoras de torcida searrebanham ali perto, os ombros curvados, cada uma mantendo as pernas juntas para tentar seaquecer, os pompons agarrados contra o peito como se fossem luvas gigantes. O Bravo lançaolhares de cobiça para aquele lado, mas ninguém sequer reúne a coragem para ir até lá.

— Ei, Josh, alguma informação sobre o intervalo?— Ainda não. Aviso vocês assim que souber algo.— Você vai cuidar da gente, não é, Josh? Não deixa a gente fazer nada constrangedor.— Ou difícil.— Ou difícil, certo. A gente não quer parecer um bando de retardados na TV.— Não se preocupem, rapazes — assegura Josh. — Acho que vai dar tudo certo.Uma rajada de vento especialmente gelado cala a todos por um instante.— Por que a gente tem que esperar aqui nessa friaca? — geme Lodis.— A emissora disse que os caras deles iam estar aqui — diz Josh.— Bem, eles não estão!— Aguenta aí. Tenho certeza de que eles vão chegar num minuto.— Coloca o Norm na cola deles.Todo mundo se vira e olha para Norm.— Com quem ele está falando? — pergunta Day.Josh franze as sobrancelhas, como se a resposta fosse surgir se ele se concentrasse o

suficiente, ou com a pretensão disso.— Não sei muito bem, para ser sincero.— Por que você não vai lá descobrir, hein?Josh vacila um pouco.— Eu não posso fazer isso!Day lança um olhar ácido de pena para ele.— O que você está falando, não consegue andar?— É claro que consigo andar.— Então passa lá perto dele, é só isso que eu estou falando. A gente só quer saber se ele está

falando de fazer um filme ou não. Você acha que consegue fazer isso?— Não sei se isso é muito ético.Day dá uma risada de desdém. Ele não tem problema em usar sua frieza como uma ferramenta

de intimidação quando se trata das sensibilidades cheias de melindres de um garoto branco.— Escuta, você está vendo o homem bem ali, de pé. Ele está num lugar público, não é? Se

isso é confidencial, ele vai entrar, vai para algum lugar reservado.— Hum, pode ser. Mas, de qualquer jeito, não sei muito bem o que eu tenho que fazer.— Ah, qual é, cara. Informação! Saber é poder, qualquer filho da puta sabe disso! Só passa ali

perto como se tivesse alguma coisa para fazer por ali, não é nada. Seu trabalho é cuidar da gente,não é? Está tudo bem, é só passar por lá. Ele não vai notar você de jeito nenhum.

Os outros Bravos se juntam a Day, mais para terem algo para fazer; eles se põem a persuadir eintimidar de maneira tão incansável que Josh, enfim, consente. Com uma indiferença canastrona,ele perambula perto de Norm, dando a volta na comitiva que o rodeia, cumprimenta as líderes detorcida, depois se vira de novo na direção de Norm, perto de quem casualmente se ajoelha paraamarrar o sapato. Os Bravos acompanham cada movimento. Cem mil dólares. Quando Joshvolta, eles estão uma pilha de nervos.

— Ele está recebendo o relatório de lesão, a lista de jogadores machucados.Aiiii, merda. Eles estão morrendo ali fora. Billy pega uma bola de futebol americano e a joga

para Dime.— Joga para mim! — grita ele.E, sem esperar para ver se Dime realmente pegou a bola, Billy corre com um

aaaaggggghhhhh de agonia, as pernas se agitando em meio à sujeira arterial da ingestão pesadade comida e bebida do dia. Três, quatro passos e as pernas dele começam a se entender, seusbraços engrenam no ritmo das passadas. Ele circula em zigue-zague por entre pessoas aleatóriasque estão de pé ao longo da lateral do campo, vira à esquerda através da endzone e olha para trás.A bola — merda! — está bem em cima dele, girando com firmeza, como se fosse a ponta de umabroca, e naquela fração de segundo ele vê tudo, com a velocidade-ângulo-direção ele calcula ahora estimada de pouso enquanto seus olhos seguem a trajetória da bola até sua origem, aexplosão do movimento inicial do braço de Dime e a repentina animação no rosto contorcidodele, como se fosse um viking pulando na costa com um machado em uma das mãos.

Ele soltou uma bala de verdade, também. A bola canta como se fosse seda sendo rasgada nacostura, e Billy sabe que não haverá misericórdia, mas ele age exatamente como os profissionais,fitando até que ela termine sua trajetória, e dobra o abdome, amortecendo o golpe, umuuuuuuuuufffffffffff abafado...

Touchdown. Ele joga a bola de volta para Dime e calcula um ângulo mais fundo na endzone,as pernas se movendo com rapidez, os pulmões se alimentando de ar fresco e frio. É tão bomcorrer, apenas: correr. Dime o leva para muito longe com o passe seguinte e ele precisa se esticarpor completo no meio do caminho e... alcança! Uma comemoração surge nas arquibancadas daendzone enquanto ele segura a bola e Billy faz uma dancinha para comemorar o touchdown, uh-hu, uh-hu, um pontaço. No próximo passe, Dime acena para que ele vá para mais longe e entãolança uma bomba que flutua por cima da cabeça de Billy, direto para seus braços, e pelo jeitocomo a bola se aconchega é como se ele embalasse um bebê, e a multidão na endzone comemorade novo.

Billy está a toda. Ele consegue sentir isso. Há uma percepção de formigamento em cadacentímetro de seu corpo, seus receptores estão afinados em um tom de quase orgasmo com umafirmeza correspondente do controle motor. É assim que os atletas profissionais se sentem otempo todo? Tal prazer na pura sensação física de cada momento, a disparada substancial de seuspés pelo gramado belo e firme, o ar gelado entrando e saindo de seus pulmões. Até mesmo acomida deve ter mais sabor para eles, e o sexo, cara, nem fale nisso. Naturalmente, ele esperaque Faison esteja assistindo, e ele pensa, de maneira quase consciente, que ela é a causa disso,que o encontro deles, de algum modo, alterou a química do cérebro de Billy, gerando, como um

dos resultados, esse aumento de suas habilidades atléticas.Billy gira, firma os pés para lançar a bola de volta a Dime e encontra uma, duas, três bolas

viajando em sua direção, o apoio aéreo para uma invasão total do campo. Mango lança um chuteforte, baixo e retilíneo, que passa raspando pela cabeça de Billy. Lodis golpeia Sykes por trás,derrubando-o no chão. Crack e A-bort se afastam para pegar um passe de Day, dandocotoveladas e xingando um ao outro passada a passada, tropeçando, quase caindo de tanto rir.

— Jerry Rice — diz Dime, enquanto passa por Billy dando uma corridinha, então dispara e saicorrendo, olhando para trás, para o passe de Billy.

A multidão perto da endzone está comemorando para valer agora. E por que não? Quetorcedor nunca sonhou em fazer exatamente isso, uma porra de corrida no paraíso dos campos defutebol americano profissional? O Bravo começa um jogo despretensioso, enérgico e adaptadode “pegue o cara com a bola”, com times variando ou basicamente inexistentes e nenhumpropósito aparente, apenas um bando de caras correndo pela endzone, trombando uns com osoutros e rindo para cacete. E, se fosse só isso, pensa Billy, só essa brincadeira bruta e irracionalde bateção de cabeça, então o futebol americano seria um esporte incrível, e não a porcariaenvaidecida, santificada e metida a importante que se tornou quando a cultura norte-americanacolocou suas mãos pegajosas nela. Regras. Há centenas delas, e a cada ano eles criam mais, umadistorção pérfida e particularmente nojenta do conceito “jogar”, e tem também os treinadorescabeça de bagre com aqueles treinamentos militares sádicos e orações com o time e diagramasque induzem à dislexia, os juízes correndo ao redor como pequenos Hitlers, os intervalos, asdestruidoras interrupções dos passes incompletos, a cerimônia pontifical das análises em replayinstantâneo, mais os abraços coletivos motivacionais do time, os guias estratégicos, as proteçõessobre o uniforme e todas as formas de dispositivos assombrosos quando a verdade é que garotossó querem correr por aí, derrubando uns aos outros. Isso era um mistério que a mãe de Billynunca foi capaz de solucionar. Depois de ter duas filhas, ela não conseguia aceitar por que, desdea tenra idade, seu filho se jogava de propósito contra paredes, portas, arbustos, lutava com o pufepelo escritório ou espontaneamente caía no chão sem qualquer razão aparente, a não ser estarnaquele lugar. Futebol americano parecia uma saída construtiva para esse impulso, e diversasvezes durante a juventude Billy jogava bola de modo “organizado”, com “organizado” sendo apalavra-código para sistemas elaborados de controle e comando, nos quais cada grama de poderse encontrava no topo. Parecia que o futebol americano precisava ser feito para ser produtivo eútil, um benefício extra para toda a humanidade, por isso o estardalhaço motivacional infinito arespeito de trabalho em equipe, sacrifício, disciplina e outras virtudes modernas, a orientaçãobásica se resumindo a “cala a boca e faz o que mandarem você fazer”. Portanto, apesar daterrível violência inerente ao jogo, uma estranha passividade se infiltrava em sua mente. Todasaquelas regras, todas aquelas máximas, todas as três horas de treino durante as quais vocêpraticamente ficava por ali esperando a sua vez de receber gritos de um técnico assistente, tudoisso produzia um entorpecimento quase prazeroso, um embotamento generalizado de percepção ecapacidade de resposta. Por um lado isso era bom, ser constantemente orientado sobre o quefazer, só que depois de um tempo isso ficava tedioso para cacete, e a partir de determinada idadevocê começava a perceber que a maior parte dos treinadores era, na verdade, burra feito umaporta.

Então, foda-se, ele estava farto de futebol americano depois de seu segundo ano do ensinomédio, só que o Exército é praticamente a mesma coisa, embora a violência seja, bem... o que elaobviamente é. Por milhares de fatores. Mas, por ora, o Bravo encontrou um pouco de pazenquanto esbarram uns nos outros feito bolas de sorteio de loteria, grandes nós de tensão se

desfazem a cada batida, e eles estão rindo como malucos. A torcida da endzone — os lugaresbaratos, os caipiras, os trabalhadores braçais barulhentos —, eles ficam de pé e os incentivam acontinuar. O Bravo está correndo loucamente em solo sagrado e — que estranho! — ninguém osfaz parar. Então, três homens obesos usando jaquetas e bonés do Cowboys entram no campo emum carrinho de golfe e o mais gordo dos três, um cara com óculos de armação de aço e umapapada tão gorda que parece uma bunda inchada, grita para o Bravo Sai da porra do meu campo,AGORA.

— Sai da PORRA do campo dele! — grita Crack.Mango grita de volta e, em um instante, todos os Bravos estão berrando uns com os outros, Sai

da PORRA desse campo dele! Cara, sai da PORRA do campo dele! Ele quer o campo dele devolta AGORA! Sai daí, PORRA!

Eles reúnem as bolas com um trote geriátrico vacilante, parando a cada dois passos para gritarPORRA! e CAMPO!, e os três gordões só ficam ali sentados, com a cara amarrada. Algunspoliciais passam por perto, mas não dizem nada, e os Bravos seguem gritando o mais altopossível porque o babaca não conseguia nem ser legal em relação àquilo, não conseguiaacrescentar um por favor civilizado ou um amável obrigado ao falar com esses corajosossoldados americanos, esses rapazes, como o general Collin Powell (aposentado) os chamava,esses jovens leais, honrados, que encararam de peito aberto o inimigo pela liberdade de vocês,seu gordo filho da puta, você desgraça a noção do homem como imagem e semelhança de Deus,seu guardador baleia da grama alheia. Cara, talvez eles não odeiem a nossa liberdade, talvez elesodeiem a nossa gordura.

As pessoas barulhentas da endzone vaiam quando veem o que está acontecendo, uma espéciede bramido grosseiro e cínico que diz Fodeu de novo!. Norm & Cia. cumprimentam os Bravos àmedida que eles saem trotando do campo. Norm está rindo.

— Desculpa, camaradas — diz ele daquele jeito como se estivesse mastigando, com a bocacheia de salada. — Eu devia ter avisado vocês. O Bruce é muito sensível com o campo dele.

Mas Norm não era o chefe? Parece, então, que ele poderia... Que se dane.— É um campo bom mesmo — comenta A-bort.— Cara, é o melhor campo que você vai ver — retruca Crack. — Eu aposto que o Mango ia

adorar tomar conta daquela grama. Ligar o trator e passar ali, quer dizer, você sabe, fazer essascoisas de mexicano e tal.

— É grama sintética, seu imbecil — explica Mango.— Eu só estou falando...— Todo mundo sai no prejuízo com essas piadas racistas — observa Mango.— Eu só estou falando que qualquer chicano ia adorar...— ...comer a sua mãe, que nem eu comi?Norm ri. Que figuraças são esses Bravos, que bando de irmãos brincalhões e grosseirões.

Certo, talvez eles não sejam a melhor geração, de acordo com nenhum parâmetro, mas eles comcerteza são os melhores dentre os três por cento inferiores da sua geração um tanto confusa eduvidosa. Nos flats, uma equipe de filmagem está montando os equipamentos enquanto duasmulheres que parecem repórteres discutem “a filmagem”. As seis líderes de torcida estão láesperando. Josh está lá rondando, e Albert, digitando no celular. Billy nota, com um certocansaço habitual, que o major Mac não se encontra em nenhum lugar à vista.

— Bem aqui, rapazes — grita a mais jovem das duas mulheres, que no fim das contas era aprodutora do canal para a filmagem deles. — Façam uma fila bem aqui.

— Bem, olhando mais assim — diz a colega de meia-idade, uma relações-públicas do alto-

escalão do Cowboys que tem coragem de chamar Norm de “Norm”.Mulheres intensas, essas duas, competitivas, obstinadas, vestidas de preto, os rostos

endurecidos por uma expressão contraída de veganas furiosas. Billy está se inclinando paracontar a Dime sobre a situação com Faison, mas Norm se agarrou ao sargento e o mantém todopara si.

— Eu tenho sérios problemas com Hollywood, de qualquer jeito — diz o dono do Cowboysenquanto todo mundo se mexe em suas posições. — Acho que eles estão muito fora de compassocom o resto do país, as preocupações e o sistema de valores do típico americano. Alguém precisasair e começar a fazer filmes que reflitam os verdadeiros Estados Unidos.

— Eu acho que a gente precisa disso — responde Dime. — E acho que a hora é essa.— Só o jeito como eles têm dado desculpas faz com que você comece a se perguntar de que

lado está a lealdade deles. Se querem mesmo que os Estados Unidos ganhem essa guerra.— Você começa a pensar que eles podem não ter muita coragem — observa Dime.— Escuta, o Rod Howard fez uns filmes ótimos, Splash: Uma sereia em minha vida é um dos

meus favoritos. Mas para ele e para o Glazer...— Grazer — corrige Dime.— Para Grazer dizer que você precisa colocar a sua história na Segunda Guerra Mundial, isso

é uma afronta.— Eles estão jogando duro, senhor, isso é fato.— A Segunda Guerra Mundial já deu, tem um monte de filmes ótimos sobre ela. O mais longo

dos dias, Agonia e glória, esses são filmes muito, muito bons. Mas a história do Bravo é sobre oaqui e o agora, e acho que o contexto tem que ser honrado.

— Acho que todos nós concordarmos com o senhor nisso.— Escute, com certeza eu não vejo por aí nenhum sinal de as pessoas estarem cansadas da

guerra. A grande maioria dos americanos apoia essa guerra e, com certeza, apoia as tropas queestão lutando. Se alguém tem dúvida disso, devia dar uma olhada na recepção que vocês tiveramaqui hoje.

As mulheres mantêm os Bravos alinhados em um quarto de círculo, adornados por líderes detorcida em cada um dos lados. Norm e Dime ficam de frente e no centro, nos papéis principais.Há um roteiro, que cada um deles memorizou.

— Segurem as bolas no alto, assim — instrui a relações-públicas, agarrando uma bola defutebol americano imaginária contra o peito.

Ainda que seja idiota e desajeitado, o Bravo faz a pose.— Não, mais baixo — diz a produtora.— Pelo amor de Deus — resmunga a relações-públicas, revirando os olhos.— Bem, isso não está parecendo natural aí em cima. Não está parecendo bom.— Fala sério, a gente está num jogo de futebol americano? Isso está totalmente natural.Logo, tudo está pronto para a primeira tomada. O cinegrafista pessoal de Norm chega para o

lado, filmando enquanto Norm é filmado.— O esquadrão Bravo gostaria de desejar a você e a sua família um FELIZ DIA DE AÇÃO

DE GRAÇAS — ribombeia Dime, depois sai do roteiro: — E para os nossos irmãos e irmãssoldados lá fora, no campo, nós dizemos PAZ ATRAVÉS DE UM PODER DE FOGOSUPERIOR!

Assim, todo mundo está rindo quando Norm, as líderes de torcida e todos os Bravos gritam:— Vai, Cowboys!Mas o pessoal da TV está irritado. Com licença, isso está no roteiro? Isso não está no roteiro,

então não fale isso, você não pode falar isso, você não sabe que não pode falar isso? Dime sedesculpa. Ele murmura qualquer coisa sobre ter se deixado levar. Todo mundo se prepara para asegunda tomada.

— O esquadrão Bravo gostaria de desejar a você e a sua família um FELIZ DIA DE AÇÃODE GRAÇAS! — começa Dime, e depois, ai, meu Deus, ele está fazendo de novo: — E para osnossos irmãos e irmãs soldados lá fora, no campo, nós dizemos: atirem primeiro! ATIREMDIREITO! PUNAM QUEM MERECE!

— Ééééé, vai, Cowboys!Agora a equipe da emissora de TV está mesmo irritada.— Pessoal, a gente tem quatro minutos para terminar a gravação — repreende a produtora. —

Eu sugiro que vocês fiquem sérios logo ou a gente já pode esquecer isso.Norm está rindo tanto quanto os Bravos, mas insiste que eles se acalmem e façam aquilo

direito.— Um monte de gente quer ouvir vocês — assegura ele.Na tomada três, Dime segue o roteiro gentilmente, mas eles estão tão preparados para a

brincadeira que Lodis e Sykes caem na gargalhada. A tomada quatro segue sem problemas até ofinal, quando um torcedor se debruça na grade da fileira da frente e grita:

— O Chicago Bears chupa pau de cavalo!A essa altura, um pequeno intervalo parece conveniente. Policiais extras são convocados para

proteger a área de gravação. Billy fica tentando falar com Dime, mas Norm e o sargento estãoconversando de novo. Billy quase se mete — ele está desesperado a esse ponto —, mas, em vezdisso, ele se força a ficar a três passos de distância, em um exercício de controle de impulso. Etropeça em um amontoado de líderes de torcida.

— Ui. Desculpa!As garotas sorriem e acenam com a cabeça. São três, duas brancas e uma negra.— Vocês são irmãs?Elas dão gritinhos.— Aaaahhhh, como é que você notou?— A gente achou que era o nosso segredinho!— Ei, isso é óbvio. Dava até para vocês serem trigêmeas.Mais gritinhos. Assim como acontece com todas as líderes de torcida, elas são espécies

estonteantes da feminilidade em forma, suaves onde devem ser suaves e firmes onde devem serfirmes, tudo respeitando o ideal manipulado por Photoshop das revistas de moda, a não ser pelofato de que essas mulheres são reais. Meu Deus. Bobagens jorram da boca de Billy, ele não fazideia do que está dizendo, mas elas estão rindo, então ele deve estar acertando. As líderes detorcida batem os pés e sopram bafejos glaciais por entre os dentes a fim de dramatizarem quantoestão com frio.

— Só quem está há mais tempo — respondem elas quando ele pergunta por que Faison não foiincluída na filmagem de Dia de Ação de Graças.

— Ela acabou de chegar, e tudo está relacionado a quem está há mais tempo no grupo. A gentetem direito de ir primeiro aos comerciais de TV por causa dos anos de participação.

— Então os comerciais são uma coisa importante?As garotas dão de ombros, fingindo desinteresse.— Isso não afeta.— Não afeta o quê?— Bem, você sabe. A sua carreira.

— Ah. Eu não sabia que líderes de torcida tinham carreira.— O que é isso? — pergunta uma delas, apontando, e quase tocando, a medalha mais brilhante

de Billy.— É uma Estrela de Prata.— É pelo quê?Billy fica agitado. Ele não tem nenhuma bobagem para isso, nem nada que sirva para uma

conversa educada.— Por coragem, eu acho — responde ele, então recorre à linguagem da citação verdadeira. —

Por uma coragem notável e intrepidez em ação contra um inimigo dos Estados Unidos.A líder de torcida lança um olhar inexpressivo para Billy.— Legal — comenta ela, e as três mulheres se viram de repente.De algum modo Billy matou a conversa. Será que elas acharam que ele estava se gabando? O

pessoal da emissora de TV ordena que todo mundo volte para a quinta tomada. Eles encontramseus lugares e esperam. E esperam. E esperam mais um pouco. Depois resmungam quando sãoinformados de que há um problema técnico. Eles são instruídos a ficarem parados enquanto afalha é consertada.

— Ali está o seu homem — murmura Norm, acenando com a cabeça na direção de Albert,andando ao longo da linha lateral com o celular grudado ao rosto. — Parece que ele estáresolvendo isso.

— Ele é uma máquina — responde Dime.De pé bem ao lado dele, ligeiramente atrás dos dois, Billy não tem escolha a não ser ouvir a

conversa.— Há quanto tempo vocês estão com ele?— Bem, oficialmente, acho que tem umas duas semanas. Foi quando a gente encontrou com

ele cara a cara. Mas a gente estava trocando e-mails e se falando por telefone antes disso,enquanto a gente ainda estava no Iraque.

— Vocês têm um contrato, presumo.— A gente assinou uns papéis, sim, senhor.— E presumo que tenha sido uma experiência positiva até agora.— Sim, senhor, a gente gosta muito do Albert. Ele acredita de verdade na nossa história. E

tem feito tudo o que pode para conseguir o melhor acordo possível para a gente.Norm pigarreia e não diz nada por muitos instantes. Billy se inclina alguns milímetros para a

frente, ansioso para que alguém fale.— Hilary Swank — diz Norm, enfim.— Senhor? — indaga Dime.— Hilary Swank — repete Norm. — O Albert diz que ela é uma das estrelas que estão

interessadas no projeto de vocês.— Sim, senhor.— Ele diz que Hilary quer interpretar o seu papel.— Aparentemente, sim.— Isso parece uma coisa meio maluca. O que você acha?— Vou ser sincero, senhor, eu estou achando difícil entender isso.— Eles deviam se manter fieis à história, não ficar mudando para atender aos caprichos de

uma estrela. Vou falar com franqueza, o narcisismo do pessoal de Hollywood nunca deixa de meimpressionar.

— Eu só sei o que leio nos tabloides.

— Eu nem acho que ela seja uma atriz tão boa assim.— Ah.— Eu a vi naquele filme com o Schwarzenegger, aquele em que ela faz a mulher dele e ele é

um agente da CIA, mas ela supostamente não sabe de nada, sabe? Um filme meio bobo. Eu nãoachei aquele filme grande coisa.

— Eu acho que aquela é a Jamie Lee Curtis, senhor — observa Dime.— Como é?— Eu acho que foi a Jamie Lee Curtis que fez o papel da mulher, não a Swank.— É mesmo? Bem. Eu ainda acho uma merda, aquele filme.Billy calha de olhar para Albert bem na hora que ele guarda o celular no bolso, os ombros do

homem se erguendo e depois caindo em uma onda tectônica. Um gesto desses parece sugeriruma derrota, mas Billy acha que ele parece mais pensativo do que preocupado, como um perfeitoprofissional experiente planejando o próximo passo. Então faz alguma coisa, encoraja Billy emsilêncio, e ele se pega desejando que o produtor apostasse mais alto. Se o acordo cair por terra,Albert vai voltar para Los Angeles, para sua casa em Brentwood e sua mulher jovem e gostosa eseu escritório com os três Oscar na estante. Enquanto isso, para o Bravo é voltar à guerra, comacordo ou sem acordo. O Iraque nunca foi menos que uma questão de vida ou morte para eles,mas o acordo pendendo na balança faz parecer ainda mais.

Eles acertam a tomada seguinte e todo mundo comemora, até mesmo a equipe de filmagemacrescenta seu próprio zurro de exaustão. Norm distribui vários “toca aqui”, como nos velhostempos.

— Fiquem com essas bolas — diz ele ao Bravo. — São para vocês. Mas vão ficar melhor comum pouco de tinta nelas, não acham? — Ele sorri. — Venham comigo, homens.

XXL

Eles são enormes. Poderiam ser uma nova espécie, ou o regresso a alguma era pré-históricaperdida quando humanos do tamanho de cavalos Clydesdale vagavam pela Terra. A escalasoldadinho de chumbo que a tevê mostra não faz jus a eles, essas versões aumentadas daestrutura humana com suas cabeças de barril de cerveja, seus pescoços de pau-brasil e seusbraços com protuberâncias do tamanho de bolas de beisebol, mais alguma coisa um tantoestranha em seus rostos, os olhos muito perto ou muito longe um do outro, um aglomeradoamassado com o dedão dando origem às bochechas e ao nariz. Todas as partes estão lá, mas otodo está desconjuntado, um ajuntamento de proporção, de tamanho do crânio em relação aoesquema facial, como se, ao alcançarem uma escala de super-heróis, os jogadores tivessemultrapassado o molde do rosto humano.

— Você não está feliz de não ser o assento da privada daquele cara? — sussurra A-bort paraBilly.

Ele acena com a cabeça na direção daquele amontoado de carne conhecido como NickyOstrana, o offensive guard do Cowboys que foi eleito o melhor jogador de sua posição naqueleano. Onde mais, senão nos Estados Unidos, poderia florescer o futebol americano; os EstadosUnidos com seus milhões de hectares férteis de milho, soja e trigo, seus lagos de laticínios, seuspoços que jorram o ano inteiro frutas e vegetais, e as carnes, aquele suprimento incrível de carnede boi, embutidos, frutos do mar e carne de porco, animais engordados em confinamento,enriquecidos com vitaminas e imunizados hipodermicamente, fábricas sussurrantes de produçãode alta velocidade de proteínas, tudo isso culminando, depois de algumas gerações, nessa raça dehumanos de tamanho industrial? Apenas os Estados Unidos poderiam produzir tais gigantes.Billy observa enquanto o tight end Tony Blakely derrama uma caixa inteira de cereal em umatigela, em seguida dois litros de leite, e então, serenamente, começa a devorar com uma colher deservir. Uma. Caixa. Inteira. Qualquer outro país iria à falência tentando alimentar esses mamutes,que escutam com brandura enquanto Norm fala do centro do vestiário. Verdadeiros heróisamericanos... liberdades... que a gente pode aproveitar...

— Então, vamos dar a eles nossas boas-vindas mais calorosas — exorta Norm, ao que o timeresponde com uma salva de palmas.

A despeito do estado exaltado que demonstram, os jogadores são funcionários de Norm,tecnicamente falando, então Billy supõe que eles precisam fazer o que ele pede.

Norm se vira para o treinador Tuttle.— George, você se importa se nossos convidados pegarem uns autógrafos enquanto estão

aqui?O treinador responde com uma pronunciada falta de entusiasmo.— Tudo bem.Ele quase acrescenta: Depois deem o fora da porra do meu vestiário.Ele é um homem grande, austero, de ombros caídos, não muito diferente, em tamanho e forma,

de uma velha morsa macho. A pele tem o mesmo tom de mingau de aveia de seu cabelo tingido,um topete cerrado que ele penteia para trás, em uma aparência retrô de um carcereiro do sul dosEstados Unidos.

Enquanto os Bravos seguiam a caminho do vestiário, Josh lhes entregou marcadorespermanentes Sharpie — ainda nada de analgésico, e ele se censurou por isso —, e agora ossoldados se espalham para pegar autógrafos.

— Eu me pergunto como ia ser se o Pat Tillman jogasse com qualquer um desses caras —devaneia Dime com uma voz animada.

Vários jogadores lançam um olhar para ele, mas ninguém responde. Então ali está Dime,demarcando seu território psicológico, ali estão Sykes e Lodis correndo para pegar o máximo deautógrafos possíveis, e ali está Billy, hesitando. Na verdade, ele nunca viu sentido em pegarautógrafos, e o tamanho dos jogadores é tal que ele nem sequer deseja encará-los, quanto mais seaproximar deles de modo suplicante. Billy não se sente à vontade ali. Sente-se exposto,diminuído. Se a dolorosa verdade for dita, ele se sente menos homem agora do que há cincominutos. Os jogadores parecem muito mais marciais do que qualquer um dos Bravos. Eles sãomaiores, mais fortes, mais largos, mais malvados, os queixos têm o tamanho de caminhões quepoderiam demolir pequenos prédios e as coxas protuberantes são como vigas de suporte decarga. Esses caras transpiram testosterona, e a aura de guerreiros deles cresce exponencialmenteà medida que se preparam para o jogo. Como se essas montanhas humanas precisassem de maismassa. Sistemas elaborados de choque e temor são construídos ao redor de seus corpos,conjuntos de protetores de quadril, protetores de coxa, joelheiras, depois os protetores deombros, que promovem um volume transformador, essas misturas de alta tecnologia de espumas,tecidos, velcros e escudos de bloqueio, com extensões de saias aneladas para embalar as costelasde meros mortais. Atadura para as mãos, atadura para os punhos. Protetores em forma de rolo.Cotoveleiras. Protetores para os antebraços. A prateleira superior de cada armário exibia nadamenos que quatro pares de chuteiras novinhas em folha.

Todo o equipamento, todas essas coisas deprimem Billy ainda mais. Que tédio isso envolve;os jogadores provavelmente passam mais tempo se arrumando do que as modelos e atrizes maismimadas, e eles demonstram isso, estão carrancudos e fechados, completamente imersos em seuritual de vestimenta. Não querem ser perturbados, o que Billy compreende; é uma coisa mental,uma preparação mental, fora do plano físico, preparando a cabeça para lidar com algunsmachucados sérios, porque a agressão contra um companheiro não é algo casual. Cara, eu estivelá! Sei totalmente como é! Ele reconhece o processo, até mesmo a música dolorida que ressoados armários é a mesma, mas começar uma conversa nessa linha de raciocínio parecia puxaçãode saco.

Billy pega o autógrafo de Kervan McClellan porque, bem, ele está parado logo ali e seriagrosseiro não pedir. Ele sabe que é Kervan McClellan porque o nome e o número estão gravadoscom estêncil em uma escrita caprichada na parte de cima do armário dele. Billy passa ao jogadorseguinte, Spellman Taylor, número noventa e quatro. Tucker Rubel, número cinquenta e cinco.DeMarcus Carey, número sessenta e um. Para os jogadores aquilo faz parte do negócio. Elespegam a caneta e rabiscam seus nomes, quase todos nem sequer erguem o olhar. Algunsmeneiam a cabeça quando Billy os agradece. Indurian Kashkari, número oitenta e um. TommyBudznick, número setenta e oito. Então Billy chega a Ed Crisco, número noventa e nove, umcara branco enorme que está de pé, perfeitamente parado, enquanto um assistente ajusta seusprotetores de ombros. Crisco abre os braços e não fala, não pisca, apenas olha para a frente,como se fosse um burro de carga se submetendo aos arreios para mais um dia.

Billy opta por não incomodar Ed Crisco. Duas crianças pálidas, magrelas e completamentecarecas perambulam pelo vestiário, pegando autógrafos, acompanhadas por seus paiscorajosamente sorridentes e um representante do time para cada grupo familiar. A pele dascrianças dá a elas um brilho prateado desbotado, o resplendor do cirro nas grandes altitudes. Sejalá o que for que elas têm, deve ser grave; Billy não consegue distinguir se são meninos oumeninas, de tão extremas que são as condições delas.

Ele segue pela fila. Durrell Sisson, número trinta e três. D’Antawn Jeffries, quarenta e dois.Octavian Spurgeon, número oito. Octavian fala ao pegar a bola:

— E aí?— Tranquilo. E você?Octavian assente. Ele está sentado em uma cadeira na frente de seu armário e, a não ser pelo

capacete, está completamente vestido para o jogo. Ele se encontra todo enrolado, apático, largonos ombros e fino nos quadris, com um nariz longo e afilado e maçãs do rosto proeminentes,quase delicadas. Tatuagens elaboradas rastejam, subindo seu pescoço e se enroscando em seusbraços, e ele tem um pano preto amarrado na cabeça com um nó na nuca. Ele rabisca com acaneta na superfície da bola de Billy e a devolve.

— Valeu.— Sem problema. Ei, espera um pouco.Billy se vira. Por um instante o Cowboy parece ter ficado sem palavras.— Tipo, você esteve no Iraque e tal?— Hum, estive.De novo, ele parece lutar para encontrar palavras. Billy está tentado a pensar que o Cowboy

ficou lerdo por causa dos anos de boladas na cabeça, mas os olhos dele estão ágeis e alertas.— Então, como é?— Como é? Bem, é quente. Seco. Sujo. Entediante para caralho, quase o tempo todo.Octavian fala em um murmúrio piegas:— Mas você, tipo, esteve na linha de frente e tal? Você participou de alguma batalha?— Eu participei de umas batalhas, sim.D’Antawn e Durrell se aproximam. Eles têm o mesmo tipo físico de Octavian, são ágeis,

obscuros, extremamente controlados. Os jogadores trocam olhares, mas Billy não conseguedecifrá-los.

— Ahn, na real, cara. Mas, tipo, você já, quero dizer, apagou alguém? Tipo, atirou com o seuferro e ele caiu duro, você já fez isso?

Isso. Não ocorre a Billy que ele não precisa responder.Já, diz ele. Os jogadores se entreolham. Billy vê que é um momento intenso para eles.— Então, como é que é? Sabe, tipo, qual é a sensação que dá?Billy engole em seco. A pergunta difícil. É aí que ele sangra, exatamente. Algum dia ele vai

precisar construir uma igreja ali, se ele sobreviver à guerra.— Não se parece com nada. Não enquanto a coisa está acontecendo.— Aham. É. — Mais alguns jogadores se aglomeraram. Billy percebe que todos os Cowboys

que estão começando nas defensive backs se reuniram por ali. — E aí, que arma você usa?— O que eu uso? Depende. Isso depende da missão e de qual é a minha tarefa. Na maior parte

do tempo, a minha arma é o M4, um fuzil de assalto semiautomático padrão. Umas poucas vezes,eu tive o M240, que é totalmente automático, um armamento pesado, dá novecentos e cinquentadisparos por minuto. Se você estiver na parte de cima de um Humvee, você vai estar com a .50.

— E o M4, qual é o tipo de munição?

— Cinco milímetros e cinquenta e seis.— Você carrega uma arma reserva?— Uma Beretta nove milímetros.— Já usou ela?— Claro.— Tipo, de perto?Billy faz que sim com a cabeça.— Eles dão facas para vocês? — pergunta Barry Joe Sauls, um cara branco e velho o bastante

para ter perdido a maior parte do cabelo.— Ka-Bars — responde Billy. — Mas você pode portar praticamente qualquer faca que

quiser. Um monte de gente compra pela internet.— E os AKs, vocês carregam eles? — pergunta alguém.— O AK é uma arma dos insurgentes, a gente não ganha. Mas vários soldados pegaram alguns

pelo caminho.— Fazem muito estrago?— Bastante. O AK dispara mais tiros, então estraçalha mais. Você, com certeza, não vai

querer levar uns tiros de AK.— Hum. Certo. — Octavian olha de relance para seus colegas de time, morde o lábio por um

instante. — Então, o que isso faz, você sabe, o seu M4? Quando você larga o dedo em alguém.Billy ri, não que isso seja engraçado. Na verdade, não é nada engraçado. Ele se pergunta se o

nada é um sentimento de verdade ou se é apenas o nada.— Bem, ele fode com todos eles.— Tipo, uma disparada? O poder de freamento é aonde eu quero chegar.— Bala no corpo, não. É um disparo de alta velocidade e geralmente passa direto. Mas eles

caem, sim.— Mas eles não estão mortos.— Pode ser que não com uma bala no corpo. É por isso que a gente mira na cara.Os jogadores prendem a respiração.— Humm — murmura alguém, como se mordesse alguma coisa suculenta e doce.— O 240 — diz Sauls —, você disse que ele é completamente automático. O que ele faz?— O que ele faz? Porra, o que é que eu posso dizer? O 240 é pura maldade.— É?— Você atira em alguém com o 240 e ele desmonta a porra da pessoa.Antes que eles pudessem perguntar qualquer outra coisa, Billy diz obrigado boa sorte foi bom

falar com vocês e vai embora. Ele definitivamente acabou com isso de pegar autógrafo, que maisdo que nunca parece um exercício estúpido e sem propósito. Depois de dar uma olhada furtiva,ele vê Dime na extremidade do vestiário, estudando o gigantesco quadro branco no qual ográfico de posicionamento estratégico do time estava exposto.

— Bem, se isso não é uma democracia — Dime está murmurando quando Billy se aproximapor trás —, e não é comunismo, então o que é?

— O que é o quê?— Nada. Aproveitando sua própria companhia, Billy?— Acho que sim. — Ele chega mais perto de Dime timidamente e baixa a voz. — Alguns

desses caras são malucos, sargento. Não são bons da cabeça, não.Dime ri.— E a gente é?

Que se dane. Ele nota que a bola de Dime está sem autógrafos.— Sargento, a gente pode conversar?— Pode. — Dime voltou a examinar o gráfico.— É uma questão meio pessoal.— Eu sou o melhor amigo que você vai ter.— Bem, o que acontece é que, bem, eu conheci uma garota. Tipo, hoje. Um tempinho atrás.

Uma das líderes de torcida, na verdade.Um som debochado sai dos lábios de Dime.— Parabéns.— É, quer dizer, não, quer dizer, todo mundo conheceu as garotas, eu sei. Mas essa garota e

eu, sargento, a gente meio que teve uma ligação.— Billy, deixa de ser idiota.— Não, sargento, a gente teve. Aconteceu uma coisa.Dime se anima.— Ela chupou você?— Bem, não. Mas a gente deu uns amassos.— Mentira.— Juro por Deus.— Mentira! Quando foi que isso aconteceu?Billy descreve brevemente o encontro, embora, em nome da honra e da decência, ele não diga

nada a respeito do orgasmo de Faison.— Seu filho da mãe — retruca Dime, com suavidade. — Você não está mentindo, né?— Não, sargento. Não estou.— Eu estou percebendo. — Dime começa a rir. — Você é um filho da puta, Lynn. Mas como

foi que você convenceu ela a...— Na verdade, deixei ela levar a maior parte a conversa.— Genial. Garoto esperto. Eu acho que você vai transar muito na sua vida, Billy.— Obrigado. Mas o que eu queria perguntar... bem, a razão de eu querer falar com o senhor...Dime olha para ele com paciência.— Bem, eu não quero perder essa garota, sargento. Como eu faço para não perder?— O quê? Meu Deus, perder o que, Billy? Quanto tempo você ficou com ela, dez minutos?

Vocês deram uns amassos, ótimo, excelente, eu estou feliz de verdade por você, mas não achoque você tenha algo para perder. Ela estava sendo legal, está bem? Você é um herói, ela estavafazendo alguma coisa legal pelas tropas. E a gente está a postos a partir das dez horas da noite dehoje, então não sei quando você acha que vai ver essa garota de novo. Vou falar uma coisa, tentepegar o e-mail dela, pode ser que desse jeito vocês consigam fazer sexo virtual quando você tivervoltado para o Iraque.

Billy se sente enjoado. É claro que Dime está certo, é um absurdo ter qualquer tipo deesperança em relação a Faison, mas então ele pensa no jeito cheio de ternura com que elasegurou seu rosto, na forma como os quadris dela absorveram as investidas de Billy, cheias dedesejo. Os beijos que ela deu com a boca bem aberta. Seus olhos marejados. O orgasmoimpetuoso. Sem querer ser um filho da mãe superficial, mas será que dá para isso ficar mais real?

Um dos gerentes de equipamento nota os dois de pé ali e pergunta se gostariam de visitar asala de equipamentos. A gente adoraria, responde Dime. Ennis, apresenta-se o homem,estendendo a mão. Ele é um sessentão alto e magro com uma pança incipiente e a fala de umtexano nativo, anasalada e que se enrola como uma bola de feno.

— A gente com certeza está muito orgulhoso de ter vocês aqui hoje — diz ele, conduzindo-ospelo balcão de suprimentos médicos em direção a uma porta lateral. — Todo mundo estátratando vocês bem?

— Todo mundo está sendo ótimo.— Fico feliz em saber. A gente com certeza toma conta dos nossos convidados especiais.Do lado de dentro, os homens são atingidos por uma lufada forte com cheiro de plástico e

couro.— Nossa. Como é que você não fica doidão aqui dentro?— Vou falar que se você abrir numa terça de manhã, depois de essa sala ter ficado fechada por

um dia, cara, você vai ficar doidão.A sala de equipamentos tem o tamanho e as dimensões de um pequeno hangar de aviões,

fileiras e mais fileiras cada vez mais recuadas de armários, prateleiras, estruturas para caixas ecaixotes, mesas com aquecimento para servir bufê, bancadas de trabalho, escadas portáteis comrodas e toda espécie de objetos — de carpetes a maçanetas coordenadas nas cores do tipo azul eprateado meio cinzento, uma paleta bem limitada.

— Agora, não dá para montar um time de futebol americano de padrão mundial sem umaoperação de equipamentos de padrão mundial — recita Ennis, e Billy suspeita de que eles estãono auge de um discurso turístico bem afiado. — Futebol americano é um esporte centrado noequipamento, e quando você está falando de quatro ou cinco toneladas de materiais, e é com issoque a gente lida aqui, inventário e organização são obrigatórios. Você precisa encontrar as coisas,certo? E precisa encontrar as coisas para usar, o melhor equipamento do mundo não vai fazer amenor diferença se estiver juntando poeira dentro do armário em algum lugar. E a gente estáfalando aqui de seiscentas categorias de itens.

— Parece bastante coisa — retruca Billy.— E é, meu jovem, você tinha que ver nossa lista de viagem. É preciso ter um time de pessoas

detalhistas para trabalhar numa operação dessa. Tolerância zero para o erro, esse é o nossopadrão.

Eles param diante dos uniformes organizados de acordo com as cores de quando jogam emcasa e quando são visitantes. Ennis mostra as peças de elastano, que garantem caimento justo,com um comprimento especial, mais longo, e bainhas que garantem a qualidade de absorção deumidade dos tecidos da era espacial. Billy puxa uma peça de número setenta oito e segura aroupa pelo cabide; eles partilham uma risadinha diante do tamanho impossível, uma quantidadesuficiente de tecido para vestir uma família mediana de quatro integrantes. Então, é a vez daschuteiras, uma seção inteira da parede com prateleiras do chão ao teto repletas de calçados,calçados, calçados, calçados e nada além disso.

— Uau! — exclama Dime. — Olha só todas essas chuteiras.— Impressionante, né? E a gente vai usar todas elas. A gente gasta perto de três mil pares por

temporada, e esse número aumenta a cada ano. Deixa eu falar, sabe o campo de treinamento? Eujá vi ficar tão quente lá que os calçados simplesmente arrebentam, e esses são produtos da maisalta qualidade, não são uma imitação barata que você compra no Wal-Mart.

Cada jogador precisa de três tipos de solas para a grama sintética, uma para condições secas,uma para condições úmidas e outra para condições molhadas, mais uma chuteira de fôrmamoldada com travas fixas para a grama, mais outra para grama com travas intercambiáveis,quatro tipos de estilos de travas para todas as diferentes condições climáticas. Há aindaprotetores de ombro empilhados em mesas com aquecimento para servir bufê, pilha após pilha efileira após fileira, como se fossem ossos em uma catacumba do Velho Mundo. Doze estilos, o

que significa um estilo para cada posição, quatro tamanhos por estilo mais equipamentos deproteção especial para as costelas, mais infinitas personalizações possíveis. Agora, o capacete deproteção. A peça de equipamento mais importante que nós temos. O capacete de proteção é, elemesmo, um mundo, uma maravilha da engenharia de alta tecnologia nascida do que há de maisnovo em ortopedia e ciência do impacto. A camada externa composta de polímeros de tecnologiade ponta, resinas e epóxis que conseguem aguentar um golpe como este, VRAM — e os doissoldados dão um pulo para trás quando Ennis joga o capacete no chão com uma violênciaimpressionante.

— Está vendo, olha aqui. Nada. Impressionante, não é? Não tanto quanto os seus capacetes deKevlar, mas os meus rapazes não estão desviando de balas. Na parte de dentro, igualmenteimportante, dá para você criar uma matriz individual para os protetores de mandíbula, encaixesde espuma e câmaras de ar a fim garantir o ajuste perfeito e a proteção máxima. Aqui, bombas dear para encher as câmaras, aqui estão os bicos ao longo da beira do revestimento externo docapacete. Mesmo assim a gente tem concussões, um monte delas. Esses caras sabem bater. Aquivocês têm as máscaras faciais, quinze estilos diferentes, tiras para o queixo em seisconfigurações diferentes, protetores bucais em uma infinidade de cores e estilos. Os capacetes dequarterbacks vêm equipados com um sistema de rádio wireless para ter comunicação imediatatreinador-jogador. Toda semana a gente arranca os adesivos dos capacetes e coloca novos, limpaa parte externa com esponjas de aço, dá polimento com cera para piso. Muito trabalho, comcerteza. Chiclete, a gente tem cinco sabores disponíveis para esses caras, você está olhando bemaqui para duas, duas mil e quinhentas caixas contadas. Tiras de velcro e etiquetas para manter onosso equipamento confortável e bem preso, você não quer deixar nenhuma alça para osadversários agarrarem. Protetores de quadril, coxa e joelheiras separados por estilo, tamanho edensidade. Luvas táticas para os receptores, luvas acolchoadas para os que jogam na linha.Palmilhas ortopédicas, todos os tamanhos. Bonés. Gorros. Parafusadeiras elétricas para trocar astravas. Magnésio em pó. Protetor solar. Sais aromáticos. Vinte e dois tipos diferentes deesparadrapos. Géis, cremes, pomadas, bactericidas e fungicidas. Coolers para bebidas.Embalagens de Gatorade em pó. Uau. Ei, camaradas, tem mais. Para os dias frios, como hoje,toucas esportivas, roupa de baixo térmica, luvas, protetores de orelha, compressas para as mãos,creme para clima frio, meias térmicas, aquecedores portáteis para os bancos. Sobretudos térmicose à prova d’água, especialmente desenhados para caberem por cima dos protetores de ombros.Ponchos de chuva, mesmo desenho. A gente usa setecentas toalhas por jogo e esse número dobraem condições de alta umidade ou de calor extremo.

— Onde vocês guardam os esteroides? — pergunta Dime.— Ahn-ahn, essa é uma palavra feia por aqui. Agora, as bolas. Como time da casa, a gente é

responsável por fornecer trinta e seis bolas novinhas em folha para o jogo, mais doze bolasadicionais que são entregues diretamente do fabricante para os juízes, que vão ser marcadas comum “K”, para serem usadas exclusivamente para os chutes.

Mais adiante, camisetas de treino e shorts aqui, casacos e calças de moletom ali. Uma rápidaolhada na lavanderia em escala industrial, depois nos equipamentos dos treinadores. Cadernos,pranchetas, quadros brancos pequenos e grandes, canetas Magic Marker, canetas para os quadrosbrancos, fones de ouvido, megafones. Uma caixa do tamanho de uma caixa de sapato cheia deapitos prateados e brilhantes, outra cheia de cronômetros Casio. Material de comunicação e devídeo sem fio aqui, sempre trancados, por motivos óbvios. Quando a gente está viajando, sãonecessários dois semirreboques para carregar todo o nosso material, a gente está falando dequatro, cinco toneladas de equipamento.

No final, até mesmo Dime parece um pouco atordoado. É simplesmente demais, essasquantidades que embotam a mente de produtos com nichos específicos e tudo etiquetado,separado, classificado por tamanho, agrupado, acondicionado e empilhado, uma prova do gêniohumano da logística e do controle de inventário. A dor de cabeça de Billy piorou, ele acha quefoi por ter respirado todos aqueles vapores, e conforme percorrem de volta a sala deequipamentos, ele sente um aperto no peito, uma dificuldade de respirar como se seus pulmõesestivessem, de algum modo, menores. Alergia, quem sabe; ou talvez um ataque cardíaco? Essepensamento o acomete sem que ele lhe dê a devida atenção; está envolvido demais nos mistériosda sala de equipamentos para perder muito tempo se preocupando com sua saúde. Comochegamos a isso?, é o que ele quer saber, não apenas como, mas também o porquê de todas essascoisas. Só nos Estados Unidos, aparentemente. Só os Estados Unidos poderiam adotar umesporte que necessite de tantos produtos esportivos e fazer com que ele se tornasse a necessidadecívica que é atualmente.

Ele não está muito certo sobre o que acabou de ver lá dentro, mas parece que a coisa o fez sesentir enjoado.

— Sabe — confidencia Ennis, com timidez —, eu passei uns anos no Exército, faz um tempo.Mas, basicamente, todo mundo passava. Havia um recrutamento, sabe.

— Vietnã? — pergunta Dime.— Eu perdi essa. Saí em sessenta e três e fico feliz com isso. Conheci uns caras que não

voltaram de lá.— Aconteceu muito isso — comenta Dime.— Você está certo. Eu só queria que vocês, amigos, soubessem quanto valorizo o trabalho que

vocês estão fazendo lá. Se não fosse por vocês, Deus sabe o que estaria acontecendo aqui, achoque todo mundo ia estar rezando para Alá e usando toalha na cabeça.

— Você tem algo para dor de cabeça? — pergunta Billy. — Algum analgésico?— Um monte de coisas — responde Ennis. — Você está com dor? Escuta, filho, eu ia adorar

ajudar, mas não posso, responsabilidade legal e tudo mais. Cada itenzinho que passa por ali —ele aponta para o balcão de suprimentos médicos — é registrado e computado. Você nemimagina, mas até mesmo uns comprimidos podem tirar meu emprego.

— Tudo bem — diz Billy. — Não quero que você perca seu emprego.Ennis pede desculpas de novo. Na porta do vestiário Dime pede que ele autografe sua bola.

Ennis recua. Ele dá uma risadinha, mas os olhos mostram desconfiança.— Por que você quer isso? Eu sou só um velho funcionário da parte de equipamento, ninguém

liga para meu autógrafo.— A meu ver, você administra o time — responde Dime.Então Ennis ri, pega a caneta Sharpie e assina o nome na bola de Dime, e esse será o único

autógrafo que Dime irá pedir hoje.De volta ao vestiário, os jogadores estão quase prontos. O ar é uma mistura pungente de

plásticos, odores corporais desagradáveis, peidos, colônias amadeiradas e cítricas e fedor rançosode alcaçuz dos linimentos à base de petróleo. Norm fica de pé em uma cadeira no centro dovestiário e chama os Bravos para perto dele, depois instrui o time a formar um círculo em voltade si. O Bravo já ouviu sua cota de discursos por hoje, mas aí vem mais um, o que se pode fazer?Os jogadores se aproximam obedientemente e, conforme se agrupam ali, no meio, Billy tentaimaginar os vastos sistemas que apoiam estes atletas. Eles estão entre as criaturas mais bem-cuidadas na história do planeta, beneficiários da melhor nutrição, das últimas tecnologias, dosmais refinados tratamentos médicos, eles vivem no ápice da inovação e da abundância

americanas, o que inspira um pensamento extraordinário — mandem esses homens para lutaremna guerra! Mandem assim, como estão agora, bem-descansados, vestidos, preparadosmentalmente para um combate brutal, mandem toda a NFL! Ataquem com todos os nossos ursose corsários, nossos ferozes peles-vermelhas, nossos jatos, nossas águias, falcões, chefes,patriotas, caubóis — como pode um bando de árabes magrelas de camiseta e sandálias terqualquer chance contra esses heróis americanos? Ó, inimigos árabes, a resistência é inútil.Rendam-se agora e poupem-se de um mundo de dor, pois nossos poderosos jogadores de futebolamericano não podem ser detidos, eles são tão imensos, tão fortes, tão destemidamente violentosque simples bombas e balas ricocheteiam em seus ossos de aço. Rendam-se, deixem nossamaravilhosa NFL levar vocês direto aos portões flamejantes do inferno!

— Agora, eu só quero dizer — começa Norm, mas há gente conversando na parte de trás, e acaixa de som de alguém está tocando o rap de Ludacris.

— CALE A BOCA!!!! — berra o treinador Tuttle, e por um momento todos eles poderiamestar de volta à aula de educação física do oitavo ano.

— Bem — recomeça Norm —, espero que todo mundo tenha tido a chance de conversar comnossos convidados muito especiais de hoje, os soldados do esquadrão Bravo. Tenho certeza deque a essa altura todo mundo está familiarizado com a história deles... sob fogo cruzado,encurralados, com um grande número de colegas mortos ou feridos, mas esses jovens, os jovenssoldados do Bravo, eles não iam desistir. Lá, nas margens do canal de Al-Ansakar, eles foramconfrontados com o maior desafio de suas vidas e, graças à ajuda de Deus, fizeram jus ao desafioe deixaram todo o nosso país orgulhoso. Eu tive o privilégio de falar com o presidente Bushpouco tempo atrás, e ele...

Os jogadores haviam desligado. Billy consegue ver isso em seus olhos, a monotonia, areostática reduzindo a atividade cerebral ao modo hibernação. Tendo ficado em formação porhoras incontáveis, ele conhece o olhar quando o vê.

— ...então, quem sabe nossos desafios sejam diferentes. Pode ser que os desafios que a genteenfrenta não sejam tão dramáticos quanto os deles, mas existem testes que Deus colocou nonosso caminho para nos moldar nas pessoas que Ele quer que a gente seja. Agora, eu sei que agente enfrentou alguns obstáculos ao longo da temporada. A gente está lutando. As coisas nãosaíram muito bem como o planejado, mas é o que a gente faz quando está abatido, depois de terlevado a porrada, que determina quem a gente é. Então, a gente diz esquece, só desiste...

Uma nuvem de ira parece se erguer dos jogadores. Uma palestra de Norm é um pé no sacodiário, mas ser exposto diante dos Bravos? Ser avaliado tendo os Bravos como referência?Comparado? Isso faz ferver o sangue nos reservatórios da rivalidade entre irmãos. Por que vocênão é mais parecido com ele? Não que o Bravo queira ter algo a ver com isso, mas é tardedemais para optar por cair fora do sermão de Norm.

— ...e, então, eu desafio vocês, todos vocês, cada um de vocês neste time, do Vinny e Drewaté o Bobby — um grito gorgolejante surge de algum lugar atrás dos jogadores, é o próprioBobby; o Bravo o conheceu mais cedo, o gandula famoso e ligeiramente retardado do Cowboys—, a enfrentar o desafio, a vencer. A ser tão corajoso e determinado diante dos desafios comoesses jovens soldados foram ao enfrentar os desafios deles. Isso começa hoje, senhores. Não hánada como o presente. Por isso, vamos lá para fora acabar com a raça daqueles Bears!

— Isso aí! — grita alguém, e os jogadores irrompem em gritos, com mais energia nacomemoração do que Billy esperaria.

Além disso, eles são profissionais. Para guiá-los na oração, Norm chama o pastor Dan, umhomem agradavelmente acabado usando a mesma jaqueta de corrida brilhante dos treinadores.

— Querido Deus — reza o reverendo em uma voz sulista melodiosa, todo cheio das vogaisaveludadas e das consoantes corpulentas —, por favor nos ajude a jogar com o melhor de nossashabilidades. Que possamos nos comportar no campo de um jeito que cumpra Sua palavra ehonre nossa fé. Guie-nos, nos oriente, nos proteja...

Com os olhos fechados com força, Billy está pensando no comentário que Shroom fez de quea Bíblia cristã é, basicamente, uma compilação de velhas lendas sumérias, não algo que eleprecisava particularmente saber naquela época, mas que proporcionou algum consolo ao longodas últimas duas semanas de orações públicas praticamente ininterruptas. Os Estados Unidosadoram rezar, Deus sabe. Os Estados Unidos rezam, rezam e rezam, é a terra da livre-oração, etoda essa reza cerimonial é difícil para Billy. Ele tenta, mas não sai nada. Você fecha os olhos eabaixa a cabeça e ao primeiro ti ou teu é como se o sinal tivesse sido cortado, não tanto quanto seum estalo isolado de estática o tivesse atravessado. Pensar que os outros poderiam estar tendo omesmo problema não ajudava muito, mas estar ciente de que algo tinha vindo antes: os sumérios,hititas, turcomanos, uma ONU inteira de civilizações antigas — que a fórmula ti-teu pode nãoser a última palavra? — por alguma razão ele encontrava conforto nisso.

Então, quem foram os sumérios?— Um dia eu falo disso para você — disse Shroom, amarrando o colete à prova de balas ao

corpo. — Mas agora não.Agora nem nunca, como acabou acontecendo. Shroom tinha parado com os videogames e

raramente assistia à TV. Em vez disso, ele lia. O tempo todo.— Estou construindo minha personalidade — disse ele a respeito de suas leituras.Até mesmo para uma punheta ele tinha um texto que conferia autoridade, neste caso, os

antigos egípcios, que acreditavam, é sério! Eu juro!, que o primeiro, o original, o inomináveldeus primitivo que tinha criado o universo fez isso através de um ato de masturbação, trazendo,de fato, o cosmos à existência graças à sua pura força ejaculatória.

— A-mém — diz o pastor Dan.— Dooooooooooooooooooooois mi-NUUUUUUUUTTTTTTTTOS — berra o técnico

assistente.E, nesses últimos momentos de preparação, Billy se encontra convidado, não, convocado, ele

vai perceber mais tarde, por um aceno de cabeça e um simples movimento de pulso para ir aoarmário de Octavian Spurgeon. Octavian, Barry Joe e alguns outros ficam ali, de pé, com umaimobilidade que sugere acontecimentos importantes. Billy gostaria de não estar segurando a bolaidiota que ganhou de suvenir.

— Escuta, a gente quer saber... — A voz de Octavian mal é um murmúrio. — A gente, tipo, agente quer fazer alguma coisa que nem vocês. Algo extremo, você sabe, apagar uns muçulmanosfanáticos, você acha que eles deixam a gente fazer isso? Tipo, a gente anda com vocês por uma,duas semanas, ajudando. Ajudando vocês a arrebentar com uns cabeças de turbante, a gente estápronto para isso.

Billy vê que eles estão prontos. Estão prontos para isso. Ele tenta imaginar como é o mundodentro da cabeça deles, e não consegue.

— Eu acho que isso não funciona assim.— O quê? O que você quer dizer? A gente está se oferecendo para ajudar, de graça. Ninguém

vai pagar a gente, a gente não está pedindo isso.Billy sabe que é melhor não rir.— Eu acho que o Exército não vai se interessar nisso.— Aham. Claro. Então ninguém precisa saber. Tipo, a gente anda com vocês umas semanas,

ninguém vai nem saber que a gente está lá. A gente está se oferecendo para ajudar, vocês estãodizendo que não precisam de ajuda?

— Billy! — chama Mango. — A gente está indo.Billy faz que sim com a cabeça e se vira para Octavian.— Claro que a gente precisa de ajuda. Mas... escuta, se vocês quiserem fazer coisas extremas,

entrem para o Exército. Eles vão ficar mais que felizes de mandar vocês para o Iraque.Os jogadores bufam, resmungam, lançam olhares de pena para ele. Foda-se isso. Claro. Foda-

se o não não não...— A gente tem empregos — justifica Octavian —, isso aqui é nosso emprego, como você

acha que a gente vai sair do nosso emprego para se juntar com um exército qualquer? Pelo que,três anos? Quebrar nosso contrato e tal? — Hilário. Eles estão rindo. Pequenos guinchos eganidos fungados escapam de suas bocas. — Vai lá — diz Octavian, acenando para que Billy váembora. — Vai lá agora. O garoto ali está chamando você.

Isso é tudo o que existe

Então Billy decide que, na primeira oportunidade que tiver, ele vai dar essa bola. Faltam poucosminutos para o chute inicial e os times estão em campo, se alongando e fazendo exercícios derelaxamento, e o próprio Norm está conduzindo o Bravo ao longo do saguão principal, seexibindo, polvilhando um pouco do poder da fama sobre as massas instantaneamenteapaixonadas. Todos os rancores, as queixas e as críticas do homem comum se derretem como sefossem sebo sob o brilho da lâmpada quente que ilumina sua fama. Ei, Norm! Norm! A gente vaiganhar isso hoje, Norm? Os nossos caras vão ganhar por três pontos, faça isso por mim, Norm!São as águas se abrindo conforme os torcedores saem do caminho em uma onda crescente deflashes de celulares, Norm passando por isso com a cabeça erguida e com aquele mesmo sorrisosimpático para todo mundo. O Texas Stadium é seu território, seu castelo; não, seu reino deverdade. Um rei de verdade é coisa rara nos dias de hoje, mas ali Norm reina soberano, e Billy vêcomo custa pouco fazer os plebeus felizes, basta um olhar de relance, um aceno, alguns segundosde sua presença e eles estão amarradões naquele bom e forte torpor de celebridade.

Enquanto isso, Billy está procurando por determinado tipo de criança para dar sua bola. Nãouma daquelas crianças ricas, ninguém que pudesse estar na TV, bronzeado, a pele macia, dentesalinhados e perfeitos, com braços e pernas compridos e imaculados e a cara boa que denota asorte grande tirada no quesito genética. Não, ele está procurando a criança da classe trabalhadora,um nanico subnutrido com o cabelo despenteado e as unhas roídas até os sabugos sangrarem, tãoesperto aos dez anos quanto um cachorro medíocre, e basicamente miserável, mas que ainda nãosaiba disso. Billy está procurando por ele mesmo. Do lado de fora do estande do Whataburger elea vê, uma criança pequena, inquieta, com a cabeça grande demais para seu pescoço, malvestidapara o frio com um moletom fino de algodão com capuz e tênis Reebok falsos, caindo aospedaços, e por que os pais gastariam centenas de dólares em entradas para o jogo do Cowboysquando o filho deles carece de um casaco de inverno adequado, caralho? É enervante a psiquedo consumidor americano.

— Dá licença — diz ele, se aproximando.A criança, em silêncio, enlouquece: o que é que eu faço? Os pais se viram, e que casal que

eles são... estúpidos, frouxos, lerdos, claramente uns inúteis, tanto como seres humanos quantocomo pais. Billy os ignora.

— Rapazinho, qual é o seu nome?O menino fica de queixo caído. A língua dele está branca, com um aspecto doente.— Ei, me diga qual é o seu nome.— Cougar — consegue dizer o menino.— Cougar. Tem um carro com esse nome, não é?O garoto faz um movimento afirmativo com a cabeça. Ele mal consegue olhar nos olhos de

Billy.— Cougar! Um nome irado! — Que mentira, Cougar é um nome ridículo. — Olha, Cougar, eu

tenho uma bola autografada aqui, vários jogadores do Cowboys autografaram ela para mim lá novestiário. Mas eu vou voltar para o Iraque e vou perder isso lá, então eu queria que você ficassecom ela. Tudo bem para você?

Cougar arrisca uma rápida olhadela para a bola e assente. Ele está, claramente, pensando queisso é uma armação para algum tipo de humilhação vil, um cuecão, uma bombinha nas costas.

— Tudo bem, rapazinho. Aqui está.Billy entrega a bola a ele e sai andando sem demorar, sem olhar para trás. Ele está farto dos

sentimentos melosos do dia e não vai deixar esse ser mais um desses momentos. Mango ficouparado e está esperando por ele.

— Por que você fez aquilo?— Sei lá. Só me deu vontade.E, como reflexo, ele se sente melhor, embora uma estranha melancolia tome conta dele.

Durante alguns instantes, os dois Bravos caminham lado a lado sem dizer nada, então Mango dásua bola a uma criança que está passando.

— Tipo, fodam-se os autógrafos dos caras — diz Billy.Mango ri.— Se eles ganharem o Super Bowl, a gente acabou de dar uns mil dólares.— É, bem, aposto mil dólares que eles não vão ganhar Super Bowl nenhum.Ainda nenhuma notícia sobre o intervalo, nada além da promessa de Norm de “apresentar ao

máximo o Bravo”, o que poderia ser tão inócuo quanto ficar de pé enquanto chamam seu nome,ou tão apavorante e oneroso como... a mente embaralha. Existem rumores de que há muitos baresno camarote do dono. Os Bravos de baixa patente fazem um acordo entre si para ficarem muitobêbados, então, Billy pensa em Faison e, secretamente, muda um pouco sua promessa, passando-a para meio bêbado. Foi um convite impulsivo — venham assistir ao pontapé inicial do meucamarote! Norm contraiu, estava claro, um caso grave da doença Bravo, aquela espiroquetaencubada do ardor de quem fica em casa enquanto os outros estão na guerra e que inspira asstrippers a oferecer lap dances de graça e matronas da classe alta a terem sede de sangue. Umasalva de palmas saúda os Bravos enquanto eles entram em fila no camarote, um tagarelareducado, pro forma de mãos macias assumindo um verdadeiro crepitar e estourar. Viva para oBravo! Uhuuuuuu para as tropas! A Sra. Norm está ali para cumprimentá-los à porta e, se ela ficaperturbada ao avistar dez convidados muito largos, ofegantes e com bafo de bebida seamontoando em seu camarote já lotado, tem a decência de não demonstrar.

Estou tão feliz que vocês tenham podido se juntar a nós. Tantos amigos ávidos para conhecervocês. Billy absorve tudo de cara, o carpete azul, os móveis azuis com detalhes em prata,televisões gigantescas de tela plana em cada parede, dois bares, bufê quente e bufê frio, garçonsde uniforme branco, então, alguns degraus abaixo, há um segundo nível igual ao primeiro, e maisdistante, assentos de estádio em uma inclinação íngreme, fileiras de cadeiras estofadas comdegraus que descem até uma frente envidraçada e a vista de cartão-postal do campo. A energiado dinheiro pode ser sentida de uma só vez, um débil murmúrio, um tipo de formigamento dementol nos lábios. Billy se pergunta se é possível contrair fortuna como se ela fosse um germe,apenas em virtude da mera proximidade.

Fiquem à vontade, murmura a Sra. Norm. Peguem as bebidas que quiserem. Não precisa falarmais nada, minha senhora. O Bravo inteiro bate em retirada para pegar as bebidas de graçaenquanto Dime movimenta os lábios, sem emitir som, “só uma”, com um olhar austero. Porém,antes que os soldados consigam alcançar o bar, Norm sobe em uma cadeira — ele tem umafixação por cadeiras? — e faz um discurso sobre

os Bravos por seu serviço. Billy percebe quão atentamente os outros convidados escutam odiscurso de Norm, quão fortes são as expressões de fé e determinação em seus rostos. Os homensparecem espertos, relaxados, em ótima forma para a meia-idade, com um estilo correto e fluidoque vem com o sucesso. Os cabelos ainda existem. As rugas apareceram de maneira satisfatória.As mulheres são magras, tonificadas e têm um bronzeado internacional, suas maquiagens,seladas com uma cobertura Teflon de frescor. Billy tenta imaginar a fórmula de nascimento,dinheiro, escolas e habilidade social que eleva as pessoas a tal posição rarefeita na vida. Sejaqual for, as pessoas fazem parecer que é algo fácil, apenas estar ali, de pé, apenas ser quem sãonesse lugar especial, permanecendo aquecidas, seguras e limpas, convidadas de Norm. A maioriasegura uma bebida ou um prato de comida. O mal, está dizendo Norm. Terror. Ameaça mortal.Uma nação em guerra. O discurso descreve a mais catastrófica das circunstâncias, mas, nestemomento, neste lugar, a guerra parece muito distante.

— Eles vão ter que se despedir da gente daqui a pouco — diz Norm —, vão participar donosso show do intervalo, mas, enquanto estão aqui, vamos dar a eles uma grande saudação deboas-vindas ao Texas.

Todo mundo bate palmas e dá gritinhos, comemora, vamos começar a festa; as pessoas estãosentindo aquela boa vibração do Bravo. Billy é aclamado por um senhor de cara encarquilhada ecom idade para ser avô de alguém.

— Soldado, eu estou feliz à beça de conhecer você!— Obrigado, senhor. É um prazer conhecer o senhor também!— March Hawey — apresenta-se o homem, esticando a mão.O nome e o rosto são vagamente familiares a Billy, a depressão gentilmente amassada de suas

feições estreitas, o repuxar élfico de seus olhos e suas orelhas. Billy poderia arriscar que MarchHawey é uma daquelas celebridades texanas que são famosas principalmente por serem ricas efamosas.

— Olha só, quando as notícias apareceram naquela noite... quando eles começaram a passaraquele vídeo de vocês todos dando conta do negócio?... aquela foi uma das maiores emoções daminha vida, é sério. É difícil pôr em palavras como eu estava me sentindo, mas eu estava, sei lá,foi só um momento lindo. Margaret, diga para ele como eu estava.

Ele se volta para a esposa, que parece ter uns bons vinte anos a menos, uma mulher esculturalde um metro e oitenta com cabelo louro, duro, e a pele esticada como um suflê.

— Eu pensei que ele tivesse ficado maluco — diz ela com um sotaque britânico azedo de JoanCollins destruindo uma rival em uma reprise de Dinastia. — Eu ouvia ele gritaaaaaaando nasala da TV e eu desci correeeeeeeendo para encontrar ele em pé na minha mesa de bibliotecaGeorge IV, usando, meu Deus, as botas de cau-bói dele, fazendo aquela coisa do filme Rocky. —Ela ergue os braços e dá alguns soquinhos espasmódicos. — “Má-arch”, fiquei gritando, “Má-arch, meu amor, querido, mas QUE, mas-QUE, diabo deu em você?”

Alguns casais se juntaram a eles. Todo mundo está sorrindo, assentindo, eles estãoevidentemente acostumados a essas palhaçadas de seu bom amigo March.

— Eu estava tendo uma catarse — diz Hawey, e Billy repete para si mesmo e com cuidado apalavra, catarse. — Vendo todos vocês lidarem com aquilo ao estilo John Wayne, é como se eufinalmente tivesse alguma coisa para comemorar. Acho que a guerra tinha me deixado deprimidoesse tempo todo e eu nem sequer sabia disso, até que vocês chegaram. Foi só uma injeção demoral imensa para todo mundo.

Outros casais concordam vigorosamente.— Você está entre amigos — assegura uma mulher a Billy. — Você não vai encontrar aqui

ninguém que queira abandonar as coisas só por serem difíceis.Outros entram na conversa com variações sobre o tema. Margaret Hawey encara Billy com

enormes olhos azuis que nunca piscam. Ele sente que qualquer julgamento que ela esteja fazendosobre ele será rigoroso, rápido e sem apelação.

— Deixa eu perguntar uma coisa — diz Hawey, inclinando-se na direção de Billy. — Ascoisas estão melhorando?

— Eu acho que sim, senhor. Em certas áreas, estão, com certeza. A gente está trabalhandoduro para melhorar as coisas.

— Eu sei! Eu sei! Qualquer problema que a gente está tendo, não é culpa de vocês, a gentetem as melhores tropas do mundo! Escuta, eu apoiei essa guerra desde o começo e vou dizer umacoisa, eu gosto do nosso presidente, pessoalmente, acho que ele é um homem bom e decente. Euo conheço desde que ele era uma criança... vi ele crescer! Ele é um bom garoto, quer fazer acoisa certa. Sei que ele entrou nessa com as melhores intenções, mas aquela multidão em voltadele, escuta. Alguns daqueles camaradas são bons amigos meus, mas você tem que admitir, elesfizeram uma bagunça do caramba com essa guerra.

Isso faz muitas cabeças balançarem e muitos soltarem murmúrios tristes em concordância.— Tem sido uma luta — diz Billy, se perguntando de que forma ele conseguiria pegar uma

bebida.— Acho que você deve saber melhor que qualquer um. — Hawey se inclina na direção de

Billy de novo, mais perto agora, mas Billy fica firme. — Deixa eu perguntar outra coisa.— Sim, senhor.— Sobre a batalha. Mas eu não quero que você leve isso muito para o lado pessoal.— Está bem.— Mas é natural as pessoas se perguntarem, quando alguém faz uma coisa tão boa e corajosa

como vocês fizeram, quer dizer, todo mundo viu o vídeo. A gente sabe que foi muito duro lá. Epara um camarada apenas sair se metendo no meio de tudo aquilo — Hawey dá uma risadinha,balança a cabeça —, não dá para a gente não ficar com a dúvida, você não ficou com medo?

O grupo estremece com um arrepio de excitação. Margaret é a única que não se move. Ela ficade pé, observando Billy com aqueles olhos azuis imensos que não lhe davam qualquer trégua.

— Com certeza eu fiquei — responde ele. — Eu sei que fiquei. Mas aconteceu tão rápido quenão tive tempo de pensar. Só fiz o que meu treinamento me ensinou a fazer, como qualquer outrapessoa do esquadrão faria. Só aconteceu de eu ser o cara que estava naquela posição. — Elepresume ter acabado, mas eles estão quietos, ainda prontos para a recompensa, então ele pensaem mais alguma coisa. — Eu acho que é como meu sargento diz: enquanto você tiver muitamunição, você provavelmente vai ficar bem.

Isso sacia a curiosidade deles, que jogam a cabeça para trás e rugem. De um jeito, isso é tãofácil, tudo o que ele precisa fazer é dizer o que eles querem ouvir e todos ficam felizes, eles oadoram, todo mundo se dá bem. Algumas vezes Billy tem de lembrar a si mesmo que não hádesonra nisso. Ele não contou nenhuma mentira, não exagerou, ainda assim, não raro, ele saidesses encontros com a sensação desprezível e podre de ter mentido.

Novas pessoas se juntam ao grupo, outros saem em um vigoroso rodízio de socialização. Billynão para de apertar mãos e depois se esquece dos nomes das pessoas. O major Mac e o Sr. Jonesestão conversando perto do bufê de frios; o Sr. Jones parece não perceber que o major nãoconsegue escutar nem um tanque passando. Além deles está o grupo de poderosos, com Albert,Dime e o senhor e a senhora Norm, e também o que parecem ser as pessoas que se esforçam aomáximo, os bajuladores na comitiva de Norm. Albert está rindo, bem à vontade, e é assim quedeve ser, pensa Billy. Albert nada com os tubarões de Hollywood, ele consegue lidar com essamultidão de Dallas tentando impressionar, mas é em Dime que Billy se concentra por ora, omodo como ele escuta, se contém, fazendo um comentário discretamente aqui e ali.

— Presta atenção nele — Shroom costumava dizer a Billy. — Presta atenção nele e aprende.O Davey é assustador. Ele consegue enxergar no escuro.

De acordo com Shroom, esse era o dom particular de Dime, este vislumbre intuitivo que elelevou para a guerra, mas o único jeito que poderia desenvolver isso seria testando a si mesmo,sempre arriscando isso lá fora. Os insurgentes não poderiam ter matado um grande número deamericanos enquanto as tropas ficassem em suas bases; a outra face da moeda era que o únicojeito de os americanos rastrearem e matarem os insurgentes era saindo de suas bases, o que fezde todo o negócio de patrulhamento, pontos de checagem e buscas de casa em casa um exercícioque deixava os nervos em frangalhos. Mas isso era uma forma de guerra que Dime os forçava aaceitar. O Bravo desmontou mais do que qualquer outro esquadrão no pelotão, em todo obatalhão, provavelmente. Independentemente de onde estivesse, Dime daria uma ordem diretapara que andassem alguns quilômetros com as Humvees atrás, seguindo devagar.

— Vocês não vão conhecer merda nenhuma sentados aí dentro dessa porra dessa caixa —dizia ele.

Eram apostas, aquelas pequenas incursões, elas poderiam facilmente fazer com que vocêacabasse morto, mas elas eram o jeito de Dime acumular conhecimento, instinto e experiênciapara o dia em que tudo e todos estariam em jogo.

Não que os Bravos gostassem disso. Havia muitos dias em que eles odiavam Dime por colocá-los nas ruas. Parecia sem propósito, o risco muito desproporcional aos possíveis ganhos, mas, sealgum dos Bravos resmungasse, Shroom diria para se calarem e fazerem seu trabalho. Então láiam eles, marchando pelos mercados, se arrastando pelas ruas laterais, entrando de maneiraaleatória em casas para encontrar o que poderiam encontrar. Em um desses dias, eles estavam narua e um pequeno bando de garotos se aproximou, eles tinham quatorze anos, talvez quinze,aspirantes a espertalhões com bigodes esfiapados e não muito melhores que os trapos queusavam como roupas.

— Senhor! — gritam eles para o Bravo, com arrogância. — Me dá o meu bolso! Me dá o meu

bolso!— Mas que porra é essa? — diz Dime, olhando para eles.— Eu acho que eles querem dinheiro — diz Shroom, virando-se para Scottie, a fim de

confirmar.Scottie era o intérprete do Bravo naquela época, chamado assim por se parecer com um antigo

astro do Chicago Bulls, Scottie Pippen. Scottie fala com os garotos:— É, eles querem dinheiro. Dizem que estão com fome, estão pedindo para vocês darem

dinheiro para eles.— Me dá o meu bolso?Dime ri.— É! É! Senhor! Me dá o meu bolso!— Não, não, não, isso está errado, não é isso que você fala. Diga para eles que eu vou ensinar

como faz para pedir, mas a gente não vai dar dinheiro nenhum para eles.Scottie explica.— É! — gritam os garotos. — É! Tudo bem, é!Então, ali, no meio da rua, Dime conduz uma pequena aula de inglês.— Me dá dinheiro. Repitam.— Me dá dinheiro.— Me dá cinco dólares.— Me dá cinco dólares.— Me dá cinco dólares, cuzão!— Me dá cinco dólares, cuzaom!— Obrigado!!— Obrigado!!— Tenha um bom dia!!!— Tenha um bondjía!!!Os garotos estão rindo. Dime está rindo. Os demais Bravos também estão rindo, rindo

enquanto vasculham lajes de telhado e portas com suas armas erguidas.— Obrigado! — gritam os garotos quando a aula termina, e cada um deles aperta a mão de

Dime, cerimoniosamente. — Obrigado! Senhor! Obrigado! Me dá dinheiro! — E vão bramindoconforme descem pela rua: Me dá dinheiro! Me dá cinco dólares! Me dá cinco dólares, cuzaom!

— Uau — diz Shroom em tons sussurrados, o sentimento traduzido em trêmulos acordes deNew Age. — Dave, isso foi lindo, cara. Foi lindo isso que você fez.

Dime dá um risinho debochado, então adorna sua voz com uma insinuação.— Bem, você sabe o que dizem. Se você dá um peixe para um homem, ele come por um dia.

Mas se você o ensina a pescar...— ...ele come para sempre — conclui Shroom.Com o tempo, Billy passa a ver esse tipo de humor como outra faceta de sua educação nos

reinos das bobagens globais. De repente, ele sente a perda de Shroom como se fosse uma sovelaperfurando suas entranhas, enquanto nota, em uma linha paralela de raciocínio, como a dor veme vai, engorda e emagrece, como se fosse a lua cruzando livremente céus estrangeiros.

— Eu não gosto disso — diz March Hawey ao grupo. — Acho que isso é ruim, psicológica eestrategicamente. É bom manter o público americano informado e tal, mas se você continuainsistindo na coisa de terror vinte e quatro horas por dia, depois de um tempo surge uma série derespostas negativas.

— Mas, March — objeta uma mulher —, eles querem matar a gente!

— Claro que querem! — March lança a Billy um olhar divertido. — O mundo é um lugarperigoso, não tem nada de novo nisso. Mas você continua colocando isso na cara do público,terroR, terroR, terroR, isso é ruim para o moral, ruim para os mercados, ruim para todo mundo.

— Menos para o Cheney — comenta alguém, com sarcasmo, e todo o grupo dá risadinhassilenciosas.

— Certo — concorda March, com um sorriso brando. — O velho Dick tem seu próprio jeitode fazer as coisas. Nós dois somos amigos há muitos anos, mas preciso admitir, a gente não sefala já tem um bom tempo.

Servem a Billy um uísque com Coca-Cola. Como é que eles sabem? De algum modo, elessouberam. Ele acena com a cabeça e toma um gole da bebida, fazendo barulhos agradáveisenquanto as pessoas expressam seus pensamentos e sentimentos a respeito da guerra. Aqui, emcasa, todo mundo está tão certo acerca da guerra. Falam em certezas, imperativos, absolutos,pontos de vista que parecem um tanto razoáveis no contexto. Um tipo de abismo separa a guerraaqui da guerra lá, e o ardil, como Billy percebe, é não tropeçar quando se pula de uma para aoutra.

— Eu vou dizer uma coisa: o Onze de Setembro calou as feministas — confessa um homem aele.

— Ah. — Billy toma outro gole de sua bebida. — As feministas?— Com certeza — confirma o homem. — Elas não estão mais tão interessadas em serem

“liberadas” agora que a gente está sendo atacado. Tem certas coisas que um homem conseguefazer e que uma mulher simplesmente não. Combater, por exemplo. Muito da vida se resume àforça física.

— Talvez a gente precise de uma guerra de vez em quando para corrigir nossas prioridades —comenta um segundo homem.

Aglomerados de papos paralelos orbitam a conversa principal, que é sempre sobre a guerra.Billy é apresentado ao homem que é dono da empresa — Coolcrete? Pavestone? Uma dessas quefabricam pisos para áreas de lazer. — O homem conta a Billy que o pequeno aumento de ataquesdos insurgentes recentemente é sinal de que a maré está virando para nosso lado.

— Isso mostra que eles estão desesperados — diz ele. — A gente está atingindo o grupo delesonde machuca.

— Pode ser — reconhece Billy, enquanto um braço cai em cima de seus ombros como umatora de carvalho e o próprio anfitrião deles, Norm, está se aconchegando a ele.

O grupo fica em silêncio. A ansiedade irradia de cada rosto sorridente.— Cabo Lynn.— Senhor.— Está tudo satisfatório?— Sim, senhor. Está tudo bem.As pessoas riem como se ele tivesse dito algo terrivelmente espirituoso. Norm aperta a nuca de

Billy, dá umas chacoalhadas em sua cabeça.— Que honra — grita ele para o grupo —, que privilégio ter esses jovens heróis com a gente

hoje. — Billy capta um odor fermentado de bourbon no hálito de Norm. — Eles são o orgulho ea alegria da nossa nação, e este aqui — ele dá a Billy mais alguns chacoalhões que fazem océrebro do soldado balançar —, este jovem, bem, deixe eu colocar desse jeito. Alguém estásurpreso que um texano liderou o ataque no canal de Al-Ansakar?

O grupo responde com uma forte explosão de aplausos. Todo mundo nos arredores se vira eparticipa. Billy está desamparado, Norm o imobilizou, e não há nada a fazer a não ser

permanecer ali, de pé, e dar um sorriso sem graça.— Olha, ele está ficando vermelho! — grita uma mulher, e deve ser verdade.Billy consegue sentir o calor se espalhando em seu rosto. Assim, sua infelicidade é

interpretada como uma modéstia saudável.— Eu acho que a gente tem outro Audie Murphy em nossas mãos — comenta March, sorrindo

para Billy. — Aquele sim era um grande herói americano. E texano.— Billy é um herói — concorda Norm, abraçando Billy com mais força. — É por isso que ele

usa a Estrela de Prata. E eu soube por fontes seguras que ele ia ser recomendado para a Medalhade Honra, mas algum burocrata no Pentágono derrubou a indicação.

Um zumbido expressando desaprovação mistura-se à multidão. Billy espera que nenhum dosBravos esteja assistindo a isso, mas lá está Dime, assimilando tudo com calma, e Albert estásorrindo, não, está dando uma risadinha afetada quando encara os olhos de Billy, e desse jeitoBilly compreende a fonte do vazamento. Assim que consegue, ele pede licença e segue emdireção ao bar mais próximo. Coca-Cola, diz. Só uma Coca-Cola normal, sem nada. Depois deum minuto, Dime está se espremendo para ficar ao lado dele.

— Billy, não vai me deixar na mão.Billy ergue o queixo.— Aquilo foi uma bobagem.— O que foi uma bobagem?Eles conversam em murmúrios quase inaudíveis.— Aquilo. A merda da Medalha de Honra.— Ah, aquilo. Billy, fica frio. Você é uma estrela reconhecida.— O Albert...— O Albert sabe o que está fazendo.— Como ele ficou sabendo disso, caralho?— Porque eu contei para ele, seu merdinha. Tem álcool nesse seu drinque?— Não.— Bom, eu quero vocês meio sóbrios para o intervalo. E não, eles não me disseram o que a

gente tem que fazer.Billy se curva sobre a bebida.— Isso tudo é uma grande bobagem.— Você está ficando muito melindrado, Billy Sue.— Mas por que você contou para ele, caralho?Dime nem se dá o trabalho de responder. Eles ficam encurvados na direção do bar como

tartarugas. No momento em que se virarem as pessoas vão começar a falar com eles.— Sabe aquele cara velho com quem a gente estava falando?— Hum, sei.— March Hawey.— Eu sei quem é.— A desonestidade em pessoa. O cara é famoso.Billy olha para a frente. Ele não vai dar ao sargento a satisfação de deixá-lo saber que não

sabia disso.— Mais rico que Deus, e com uma quantidade enorme de contatos. Abra seu olho perto dele.— Por que deveria abrir o olho?— Caso você não tenha notado, este país onde a gente vive é altamente partidário, Billy.

Aqueles caras são espertos. Eles não são enganados por umas medalhas de guerra de merda.

Billy dá uma olhada em seu peito, contemplando as medalhas sob esta luz possivelmentesinistra.

— Eu não sou o inimigo.— Ah éééé, você acha que não é? São eles que decidem, não você. Eles são os juízes quando

se trata de decidir quem é o verdadeiro americano, cara.Billy toma um gole do refrigerante.— Eu não estou planejando concorrer para presidente, sargento.Dime assente, estuda a silhueta das garrafas de bebida atrás do bar.— Você quer saber o que meu velho avô me disse certa vez, Billy?— O quê?— Ele disse: “Filho, você quer levar uma vida boa, então faça estas três coisas. Número um:

ganhe um monte de dinheiro. Número dois: pague seus impostos. E, número três: não se envolvacom política.”

Com isso, Dime pega sua bebida e sai. Billy tenta aproveitar um momento em silênciosozinho, mas a dor de cabeça vem rimbombando dentro do vazio. Ele se pergunta se é enxaqueca— como poderia saber? Uma enxaqueca ou coisa pior, alguma coisa trágica e fatal, um tumorcerebral, um câncer, um derrame. Pobre camarada. Tão novo. Morreu virgem. Trágico. Emqualquer caso, a dor de cabeça já se tornou praticamente parte de um histórico familiar ruim,uma dor e um fardo terríveis, mas quem seria você sem ela?

— Acabaram de mostrar você no telão! — exclama uma mulher, e por um segundo Billy sedesespera.

Eles o mostraram encurvado em cima do bar? E então ele percebe que é uma repetição daanimação dos Heróis Americanos.

— Eu acho que é maravilhoso que todos vocês estejam sendo homenageados hoje —entusiasma-se a mulher.

— Obrigado.— Deve ser tão emocionante, viajar pelo país!— E tudo por conta do contribuinte — acrescenta um homem.Seria o marido dela? Ele dá uma risadinha, o que significa que aquilo é uma piada. Rá-rá.— É legal — diz Billy. — Tem sido uma boa experiência. A gente conheceu um monte de

gente bacana.— O que mais ficou na sua mente? — pergunta a mulher.Ela é uma loura tão animada e cheia de energia que parece fazer isso profissionalmente, de

olhos brilhantes, idade indeterminada, abençoada com dramáticas maçãs do rosto e um sorrisoque parece lamê prateado. Billy poderia apostar que ela é algum tipo de gênio das vendas, umacorretora de imóveis superpoderosa ou uma chefona da Mary Kay.

— Bem, todos os aeroportos, com certeza — responde ele.Essa resposta faz o grupo dar risadas, sete ou oito pessoas se juntaram agora. E todos os

shoppings, ele poderia acrescentar, e os centros cívicos e os quartos de hotel e os auditórios e ossalões de banquetes, que são tão parecidos por toda aquela terra, uma homogeneidade queesmaga a alma projetada mais para a economia e a facilidade de manutenção do que para algo tãovariável quanto as sensibilidades humanas.

— Eu realmente gostei de Denver — continua ele. — Com todas as montanhas e tudo mais.Era um lugar bonito. Eu não me importaria de algum dia voltar lá e passar mais um tempo.

— Você esteve em Washington? — provoca a corretora.— Ah, estive. Washington foi incrível, com certeza.

— A Casa Branca é tão majestosa, não é?— É, sim, com toda a história e tal. E acho que nunca pensei que as pessoas moravam lá. Eu

sei, tipo, por que eles chamam de Casa Branca, dã. Mas é incrível, mais do que você esperariaque uma mansão elegante de verdade fosse.

A corretora concorda; ela e “Stan” foram convidados dos Bush algumas vezes, e é um lugarrealmente deslumbrante e assombroso. Houve um jantar? Não houve? Isso é mesmo uma pena,porque os jantares formais do governo são uma produção e tanto, com toda aquela pompa, oprotocolo, a mistura entre a realeza e os chefes de Estado. “Quem sabe da próxima vez”, dizBilly. Então alguém pergunta a gente está ganhando e isso abre espaço para a discussão sobre aguerra, e Billy é passado ao redor como se fosse o bagulho preferido de todo mundo. Por queeles estão matando o próprio povo? Por que odeiam tanto a gente? Por que são sempre setenta eduas virgens? O cérebro de Billy entra no piloto automático e seus olhos vagueiam. Ele vê Lodisali, tagarelando sobre Deus sabe lá o que enquanto sua plateia escuta com um horror educado.Então lá está Crack dando em cima da filha adolescente de alguém e, a julgar pela cena, está sesaindo muito bem, e Sykes olhando para o vazio com o maxilar travado, e Albert fazendopiadinhas com o Sr. e a Sra. Norm. Isso faz Billy perceber que sua dor de cabeça pode serpuramente psicológica.

— ...é um código de honra que remete à tradição anglo-saxã, a gente não ataca a não ser queseja atacado antes. Nós não somos bárbaros. A gente não atacou no Onze de Setembro. Nem emPearl Harbor, aliás.

— Não, senhor. — Billy entra novamente na conversa.— Mas, quando a gente é atacado, vira um inferno, não estou certo?— Eu acho que dá para dizer isso, sim, senhor.— Quer dizer, se alguém atira em vocês, rapazes... Vamos dizer que vocês estão fazendo uma

patrulha e um atirador emboscado dispara uns tiros, o que vocês fazem?— A gente ataca com tudo o que tiver, senhor.O homem sorri.— Aí está.Ei! Ei! Ei! As pessoas estão gritando para pedir silêncio, é a convocação para que todos calem

a boca e comecem a cantar “The Star-Spangled Banner”, o hino nacional dos Estados Unidos.Todo mundo se vira para olhar o campo. O céu escureceu em um tom primário de cinza, um tipode bolha celestial baça coroando o brilho de lanterna de papel do estádio. A luz se acumula emuma poça que se torna mais densa na altura do campo como uma gelatina verde-limão. A cantorae os integrantes uniformizados da banda marcial saem da linha lateral do time da casa com suaslegiões de jogadores, treinadores, juízes, pessoal da imprensa e convidados VIP, junto aequipamentos dignos de um trem de circo. Eles poderiam ser um exército antigo sitiando algumlugar. Os integrantes da banda exibem a bandeira. Os Bravos espalhados pelo camarote entramem posição de sentido.

Ohhh-oh

Ohhh-oh, ohhh-oh, ohhh-oh, um eco estronda pelos vazios feridos do seu cérebro, ohhh-ohcomo se você estivesse de pé na boca de uma caverna gritando tímida e esperançosamente paradentro do escuro. Ohhh-oh, tem alguém aí? Ohhh-oh, ohhh-oh, ohhh-oh. Aquele ritmo engasgado de

reggae, ohhh-oh, a deixa pavloviana para as bombas de dopamina e o trilado de xilofone subindoe descendo por sua coluna. Então, o alçapão se abre sob seus pés

seguido pelo seguro, pela rede de segurança no fundo do poço e aquele wheee de um lançamentonos mais altos reinos

Daí para o torturante ritual de uma música difícil. A cantora é uma jovem branca, cabelopretos, corpo esbelto, um rouxinol da música country com uma clássica vibração dos coraçõespartidos do planalto. Billy ouviu em algum lugar que ela é a vencedora mais recente doAmerican Idol, e como todos do American Idol, pequena ou não, ela é abençoada com um senhorgogó.

WHHHHHHHAAAAAAAAAAAAAATTTTTT soPRRRRROOOOOUUUUUDDDDLLLLLYYYYY

Billy sustenta a continência. Ele faz questão de pensar em Shroom e Lake e naquele borrãoquente e vermelho daquele dia terrível, mas, porque é jovem e ainda se sente esperançoso emrelação à sua vida, ainda está vasculhando a linha lateral lá embaixo em busca de Faison. Eleolha sistematicamente de uma líder de torcida a outra, não, não, não, não, uma dúzia de nãos atéque sim, e sua cabeça se move como se fosse um carro no gelo, um vuuuuushhhh de vento emmeio a uma aceleração lateral com toda a náusea, o pânico e o cu na mão, é um passeio de

montanha-russa rumo a um estado de esquecimento. Então, seus olhos voltam a focar e miramFaison, a plenitude feminina com aquela clareira de cabelo cor de âmbar como se fosse umderramamento de lava, a mão direita dela com um pompom pousada sobre o coração. Ela estácantando, mesmo dali ele consegue ver a boca da garota se movendo, e o vínculo entre eles é tãopoderoso que ele se inclina alguns centímetros na direção dela. Cara, ela estava a fim de você. Acantora dispara uma suave detonação dentro dele, partes derretidas de Billy estão voando paratodos os lados e seus ouvidos zumbem com a melodia de harmônicos explosivos que só eleconsegue escutar, mas o que é “The Star-Spangled Banner” se não uma canção de amor?

Ele precisa se lembrar de respirar. Ele se sente calmo e agitado ao mesmo tempo, aconsciência de si mesmo incomodada por um grito tão alto que o crânio dele pode se partir aqualquer momento, e Billy geme, é demais para que consiga segurar. A corretora dá uma olhadana direção dele e responde com um gemido simpático. No instante seguinte, ela dá um passoadiante e passa o braço ao redor da cintura dele, e eles ficam tão unidos, Billy batendocontinência, suando, permanecendo ereto como uma vassoura, a corretora cantando com a mãodireita dela sobre o coração e a esquerda enganchada no quadril dele.

Essa mulher consegue mesmo cantar a plenos pulmões. Lágrimas do tamanho de porcas paraparafusos estão rolando por seu rosto, mas esse é o tipo de coisa que a guerra faz com você.Sensações são intensificadas, o tempo é comprimido, paixões são despertadas e, ao passo queuma única pegação pode não parecer uma sólida base sobre a qual construir um relacionamentoque vai durar o restante de sua vida, Billy gostaria de pensar que é até aí que a lógica leva. Elefez Faison tremer, ele a fez gozar, com certeza isso significa alguma coisa. Dadas todas asvariáveis inconstantes da existência, é insano planejar ou ter esperança em relação a qualquercoisa em particular, e, ainda assim, de algum modo, o sol acaba nascendo todos os dias. Então, senão for isso, o quê? Então, por que não isso?

GAAAAAAVE PROOOOOOFthrough theNIIIIIIGHT

A corretora puxa Billy mais para perto. Ele não acha que se trata de uma investida sexual, dejeito nenhum; parece tão frágil, mais como um grude codependente ou um aperto maternal,coisas com as quais ele consegue lidar. Parte de ser um soldado é aceitar que seu corpo nãopertence a você.

Então a pausa, a armadilha oscilante à beira da falésia, seguida pelo mergulho vocal...

Nunca os americanos soam tão iguais a um bando de bêbados como quando estão celebrandoo fim de seu hino nacional. No meio de toda aquela atmosfera meio bêbada de bateção de palmae comemoração, uma dúzia de mulheres de meia-idade converge na direção de Billy. Por umsegundo, parece que elas vão arrancar cada um de seus membros, dos olhos delas emanamaqueles brilhos loucos e não há nada que elas não fariam pelos Estados Unidos, tortura, armasnucleares, efeitos colaterais em escala mundial, em nome de Deus e do país elas topam tudo.

— Isso não é maravilhoso? — grita a corretora enquanto o aperta com mais força. — Vocênão ama isso? Não faz você se sentir muito orgulhoso?

Bem, nesse exato instante ele quer chorar. É a medida do orgulho desesperado dele. Issoconta? A gente está falando a mesma língua aqui? Orgulho, com certeza, ele pensa em Shroom eLake e todas as verdades sangrentas daquele dia e começa a fazer um brainstorming de provas dateoria quântica sobre orgulho. Sim, senhora, orgulhoso, o Bravo alcançou níveis de orgulho queconseguem mover montanhas e mudar a fase da lua, mas alguém por favor explique por que elescantam o hino nacional antes do jogo? O Dallas Cowboys e o Chicago Bears são times privados,empresas com fins lucrativos; esses dois times entrando em campo são funcionários contratadosdessas empresas. Então por que não começar a tocar o hino nacional no começo de cadacomercial, antes de cada reunião de diretoria, a cada depósito ou saque feito no banco?

Mas Billy tenta.— Eu me sinto pleno — diz ele.E as mulheres gritam, e uma espécie de luta suave começa com tantos abraços e patadas,

muitas fotos com celular, três ou quatro conversas acontecendo ao mesmo tempo e mais do queuma mulher derramando lágrimas de verdade. É um Momento Coletivo pesado e quase omáximo que ele consegue aguentar, e quando a coisa finalmente diminui ele abaixa a cabeça esegue para o andar mais embaixo porque, assim como na retirada do general Custer da Batalhade Little Bighorn, não tem para onde ir. As pessoas sorriem e o cumprimentam enquanto elesegue em meio à multidão. Alguém entrega um drinque a Billy, que aceita; mais tarde, vaiperceber que eles estavam simplesmente acenando para ele. Ele chega aos assentos de estádio emuma inclinação íngreme e começa a descer as escadas. Três de seus companheiros do Bravoestão acocorados lá embaixo, na última fileira, um refúgio, um pequeno reduto em meio àmultidão de civis perigosamente hiperestimulados.

— Meu Deus — fala Billy, deixando-se cair em uma das cadeiras.Os outros Bravos grunhem. Ser um herói é exaustivo.— O Bears ganhou o cara ou coroa — anuncia A-bort. — Já tem quase cinquenta, da casa.Holliday dá um risinho.— Você é o cara, A. Mostrando um pouco de conhecimento com aquela aposta. — Ele se

volta para Billy. — Cadê o Lodis?

— Está lá em cima.— Feito um idiota?— Ele está indo bem. Alguma novidade sobre o intervalo?Os outros Bravos balançam a cabeça com tristeza. Todos estão sentindo isso, não apenas a

ansiedade habitual com relação ao desempenho deles, mas o medo inato que o soldado tem deuma retaliação cósmica. Eles completaram duas semanas de eventos notavelmente livres defalhas, então, talvez, o clímax natural ou até mesmo necessário da Turnê da Vitória — como seestivessem sendo poupados! — será a maior de todas as cagadas em rede nacional.

O Cowboys chuta para o Bears. Touchback. Da linha das vinte jardas o Bears corre paraenfrentar três, no meio, dois, então, uma jogada fraca para quatro, mas aparece uma bandeira.Entre as jogadas não há muito a fazer a não ser assistir a comerciais ruins no telão e se preocuparcom o intervalo.

— Você acha que a gente está sendo grosseiro? — pergunta Mango.Todo mundo olha para ele.— Sentados aqui, sozinhos. Sem se misturar ou qualquer coisa assim.— Grosseiros para caralho — comenta Day.— Vamos levantar uma placa — sugere A-bort. — Veteranos desequilibrados, deixem a gente

em paz.Eles assistem a mais algumas jogadas. Mango continua suspirando e se remexendo.— Futebol americano é chato — anuncia ele, finalmente. — Vocês nunca repararam? É tipo:

começa, para, começa, para, tem uns cinco segundos de jogada para cada minuto parado. Essamerda é um pé no saco.

— Você pode ir embora — comenta Holliday. — Ninguém está dizendo que você tem queficar aqui.

— Não, Day, eu tenho que ficar aqui. Eu tenho que ficar em qualquer lugar que o Exércitodisser que eu tenho que ficar, e, nesse exato momento, é aqui.

O Bears chuta. O Cowboys volta para a marca das vinte e seis. Há uma longa espera enquantoas linhas são movidas e a bola é substituída. O ataque e a defesa se movem em campo. O ataquese embola enquanto a defesa se espalha ao redor, bufando com as mãos em seus quadris. Masque porra, pensa Billy, Mango está certo. O que acontece entre as jogadas é como ficar sentadona igreja, se não fosse a estridência infernal do telão, todo mundo teria capotado e dormido. Umdos garçons filipinos se aproxima e pergunta se eles gostariam de alguma coisa. Os Bravosverificam se Dime não está à espreita e, uma vez que ele não está, pedem uma rodada de uísquecom Coca-Cola. Billy dá uma golada em sua vodca com suco de cranberry, o drinque que virouseu por acidente, e continua a olhar apaixonado para Faison. As bebidas chegam. Elas ajudam afazer a situação não parecer tanto com uma igreja. O Cowboys avança sobre as quarenta e duasjardas do Bears, então perde dezesseis jardas quando Henson pega um lance e Billy começa aintuir a futilidade básica de ganhar um terreno que você não pode controlar.

— Por favor, me diga que essas bebidas não estão batizadas — grunhe Dime.Os Bravos dão um pulo. Dime se deixa cair na cadeira perto de Billy, um par de binóculos

balançando de uma tira ao redor de seu pescoço.— Quase nenhuma — diz A-bort. — A gente estava mesmo para reclamar.— Qual é, pessoal, eu falei para vocês...— Ei, Dime — interrompe Day —, o Mango disse que futebol americano é chato.— O quê? — Dime se vira imediatamente para Mango. — Mas que porra você quer dizer

com futebol americano é chato, futebol americano é ótimo, futebol americano acaba com a raça

de qualquer outro esporte, futebol americano é a porra do ápice do mundo dos esportes. O quevocê está tentando dizer, que gosta de futebol? Um bando de frutinhas correndo de shortinho emeião no joelho? Eles jogam por noventa minutos e ninguém nunca faz gol, é, parece muitodivertido, o jogo preferido de alguém em coma vegetativo? Mas, tudo bem, se você prefereassistir ao futebol, Mango, você pode simplesmente voltar para a porra do Mé-rri-co.

— Eu sou de Tucson — responde Mango, calmo. — Eu nasci lá de verdade, sargento. Vocêsabe disso.

— Você pode ser da Casa do Caralho, eu não ligo. Futebol americano é estratégico, temtática, é um jogo de homens que pensam, além de ser de uma maldita poesia em movimento.Mas você, obviamente, é idiota demais para apreciar isso.

— Deve ser isso — diz Mango. — Eu acho que você deve ser um gênio...— Cala a BOCA! Você não tem jeito, Montoya, você é uma desgraça para a causa. Eu aposto

que foram uns fodidos que nem você que perderam o Alamo.Mango dá uma risadinha.— Sargento, acho que você está um pouco confuso. Isso foi...— Calado! Eu não quero ouvir mais nada da sua merda revisionista gay, então, só cala a boca.Mango arrisca mais umas palavras.— Sabe, dizem que se o Alamo tivesse uma porta dos fundos, o Texas nunca...— CALADO!Os Bravos riem em silêncio, como um bando de Lobinhos Escoteiros. O Cowboys chuta um

ponto, mas tem uma penalidade, então eles repetem, e em seguida todo mundo se retira para umintervalo. Dime está usando os binóculos.

— Qual delas é a menina? — murmura ele, entendendo que esse é um assunto particular, nãosagrado.

— À esquerda — responde Billy em voz baixa —, perto da linha das vinte jardas. A que temcabelo meio louro-avermelhado.

Dime gira para a esquerda. As líderes de torcida estão fazendo uma coreografia de hip-rockmexendo a bunda, um belo espetaculozinho para ajudar a passar o tempo. Dime observa por umtempo; depois, ainda usando os binóculos, estende a mão a Billy.

— Parabéns.Eles apertam a mão.— A mulher é fantástica.— Obrigado, sargento.Dime continua a observar.— Você pegou aquela lá?— Foi. Eu juro, sargento.— Você não tem que jurar. Qual é o nome dela?— Faison.— Nome ou sobrenome?— Hum, nome.Billy percebe que não sabe o sobrenome dela.— Hum. Nossa. — Dime dá uma risadinha consigo mesmo. — Cheio de intimidades o jovem

Billy. Quem diria.Quando Dime para de olhar, Billy pergunta se ele pode lhe emprestar os binóculos e, com uma

grandiosa e silenciosa solenidade, Dime ajeita a correia ao redor do pescoço de Billy como seestivesse consagrando um campeão olímpico. Billy aproveita os binóculos. Ele os mantém, na

maior parte do tempo, apontados para Faison, acompanhando seus passos de dança, o jeitovigoroso com que ela sacode o pompom, suas exortações com os braços acenando para amultidão. Os binóculos conjuram uma claridade estranha e delicada do mundo material, um tipode delicadeza de textura e detalhes de uma casa de boneca. Enquadrada, tudo o que Faison faz éum tanto quanto miraculoso. Ali, ela joga o cabelo de um jeito divertido; ergue o joelho demaneira despretensiosa, bate o dedão do pé no gramado enquanto pede conselhos àscompanheiras. Billy concebe uma ternura quase delirante por ela, junto a turvamentos agridocesde nostalgia e perda, uma sensação de observá-la não apenas de longe, mas também através dealguma longa passagem de tempo. O que significa essa melancolia, esse triste escapamento dealma — que ele está apaixonado? A merda é que não há tempo para descobrir. Ele e Faisonprecisam conversar — ele precisa do telefone dela! E do e-mail. E saber o sobrenome delatambém seria bom.

— Ei. — Mango cutuca Billy. — A gente vai até o bufê. Você vem também?Billy responde que não. Ele só quer ficar ali sentado assistindo a tudo com os binóculos. O

jogo não o interessa em nada, mas as pessoas, sim, o jeito como o vapor, por exemplo, se erguedos jogadores como se fosse uma representação em cartum do mau cheiro. O treinador Tuttleespreita as linhas laterais com o olhar carcomido de um homem que não consegue se lembrar deonde estacionou o carro. Uma relaxante sensação de onisciência invade Billy enquanto estuda ostorcedores, um tipo de absorção clínica, ao estilo Na montanha dos gorilas, a respeito do modocomo comem, bebem, bocejam, futucam o nariz, se pavoneiam e se enfeitam, fazem as vontadesde seus pequenos ou os repelem. Ele se demora em todas as mulheres gostosas, é claro, e vê nadamenos que seis pessoas usando fantasias de peru. É comum ver pessoas olhando para o nada, osrostos inertes, indefesos, beirando o mau humor, perplexos pelo aturdimento geral da vida. Ah,os americanos. Ah, o meu povo. Então ele volta a Faison, e seus batimentos cardíacos viram umaconfusão. Ela não é só gostosa, ela é tipo as gostosas da Victoria’s Secret, tipo capa de revista,ela é alto nível, e Billy precisa fazer um plano para eles ficarem juntos. Uma mulher como elaexige uma certa condição...

— Aqui está meu texano!Ele ergue o olhar. March Hawey está vindo em sua direção, deslizando pela fileira. Billy

começa a se pôr de pé, mas Hawey toca seu ombro e o faz se sentar de novo. O homem se sentaperto de Billy e escora os pés na grade, e o soldado imediatamente alimenta uma cobiça pelasbotas de caubói de Hawey, um par de couro de avestruz verde-água trabalhado e com biqueirasde filigrana de prata.

— Como você está?— Muito bem. E o senhor?— Tudo bem, a não ser pelo fato de que eu espero que nossos garotos comecem a se mexer.Billy ri. Ele está apenas um pouco nervoso, muito menos do que seria de se esperar por se

sentar perto de um homem que mudou o curso da história. O Sr. Desonestidade em Pessoa. Elese pergunta se é falta de educação falar sobre isso, não que ele saiba muito sobre o assunto, dequalquer jeito. Então, vem a pergunta de por que ele sequer está sentado ali com Billy.

— Alguém me disse que você é de Stovall.— Sim, senhor.— Vocês têm umas ótimas caçadas de pomba para aqueles lados. Algum tipo de planta que

vocês têm lá... Uma coisa alta, velha e amarela com aquelas vagens de semente compridas, todosos tipos de pássaros em cima dela, as pombas adoram aquela coisa. Você sabe do que eu estoufalando?

— Na verdade, não, senhor.— Você não é um caçador?— Não, senhor.— Bem, a gente passou uns dias ótimos lá. Eu estou falando, rapaz, a gente matou elas.Hawey pergunta se ele pode pegar “imprestado” os binóculos. Em pouco tempo ele desfia

todo um repertório de cativantes tiques senis: fungadas de nariz, ajuste das mangas da roupa,suaves estalidos glotais. Ele cheira a talco e algodão limpo e engomado, e usa um anel dediamante em forma de ferradura na mão direita. Seu cabelo grisalho e fino cai pesado sobre atesta em uma franja pueril de Huckleberry Finn.

— Você apostou no jogo?Ele está girando o foco dos binóculos para a frente e para trás.— Não, senhor. Alguns dos rapazes apostaram.— Você não aposta?— Não, senhor.Hawey dá uma olhada para ele.— Rapaz esperto. A gente trabalha muito duro pelo nosso dinheiro para simplesmente jogá-lo

fora. — Ele sorri quando Billy pergunta de quais negócios ele participa. — Ah, um monte decoisas — diz ele, estendendo os binóculos de volta. — Energia é nosso negócio principal,produção e distribuição, a gente faz isso há quase quarenta anos. Também um pouco de imóveis,um tanto de fundos de investimento, um pouco de arbitragem e outras coisinhas. — Ele dá umarisadinha. — E de vez em quando a gente faz uma invasão, se a gente vê algo que gosta. Vocêestá interessado em negócios?

— Não sei. Pode ser. Depois do Exército. Mas não se isso for me matar de tédio.Hawey se senta com um ganido e bate no joelho de Billy.— Rapaz, eu com certeza entendo isso. Por que fazer as coisas se você não está se divertindo?

Pelo que sei, as pessoas mais bem-sucedidas amam o que fazem, e é isso que falo para os jovensquando eles me pedem conselhos. Se você quer ganhar dinheiro, vá encontrar alguma coisa quegoste de fazer e trabalhe muito.

— Parece uma boa filosofia — arrisca Billy.— Bem, isso se encaixa na minha personalidade. Felizmente, encontrei uma linha de trabalho

que gosto, e tenho tido sorte de ter algum sucesso nela. Sabe, de certo modo isso é feito um jogo.— Ele para enquanto o Cowboys avança. O receptor se estica, agarra a bola com a ponta dosdedos, depois a lança para fora do campo. — O que se resume a prever o futuro, é basicamenteisso que os negócios são. Ver o que está vindo e sair na frente de todo mundo, fazendo suajogada na hora certa. É tipo um quebra-cabeça com mil peças que se mexem.

Billy faz que sim com a cabeça. Isso até parece interessante.— Então, como você faz isso? — pergunta ele desajeitadamente, pensando, Mas que diabo. —

Então, como você sai na frente de todos aqueles caras que estão tentando fazer a mesma coisa?Hawey dá outra risadinha.— Bem, é uma pergunta pertinente. — Ele se recosta e pensa por um instante. — Acho que

posso dizer que é pensando de maneira independente. E paz interior.Billy sorri. Ele acha que Hawey pode estar tirando uma com a cara dele.— Paz interior... Você tem que saber quem você é, o que quer da vida. Tem que pensar por

conta própria, e para isso é melhor saber quem você é, e não só saber, mas estar seguro disso,confortável consigo mesmo. E mais, precisa ter disciplina. Perseverança. E sorte com certezaajuda. Um pouco de sorte faz a maior diferença, inclusive nossa grande sorte de ter nascido no

maior sistema econômico que já foi inventado. Não é só um sistema perfeito em muitos sentidos,mas, de modo geral, é responsável por um tremendo progresso humano. Só no último século, agente viu melhorias no padrão de vida. Não estou dizendo que a gente não tenha problemas, agente tem um monte, mas é aí que entra o gênio do livre mercado, todo o ímpeto, o talento e aenergia são direcionados para a resolução dos problemas. Agora, olhe para esse estádio, tudoisso, a multidão, o jogo. — O braço de Hawey se move, apontando da esquerda para a direita.Então ele indica o céu e o dirigível da Goodyear pendendo na escuridão do inverno prematuro.— Isso é tudo o que existe, você entende o que eu estou falando? Não sou tipo o cara que sai poraí dizendo que a ganância é boa, mas com toda a certeza ela pode ser uma força para o bem. Ointeresse pessoal é uma motivação poderosa nas atividades humanas e, para mim, essa é a belezado sistema capitalista, isso transforma a falha humana numa virtude. É por isso que você vaiviver melhor que seus pais, e seus filhos vão viver melhor que você, e os filhos deles, melhor queeles e por aí vai, porque graças ao nosso sistema a gente vai continuar a descobrir mais jeitos,jeitos mais fáceis e melhores, de resolver os problemas da existência e realizar uma porção decoisas que nunca sonhou em fazer.

Billy assente. Os Estados Unidos nunca fizeram tanto sentido para ele como neste momento. Éum país excepcional, sem dúvida. Com o lançamento bem-sucedido de uma sonda espacial daNASA, ele consegue sentir prazer pela conquista, até mesmo sentir certo orgulho de participar dealgum modo, e, ao mesmo tempo, entender que a missão não tem absolutamente nada a ver comele.

— Agora — continua Hawey —, agora mesmo, a gente está passando por um período bemdifícil. Duas guerras, a economia basicamente na reserva, o ânimo do país inteiro está para baixo.Mas a gente vai passar por isso. A gente vai superar. Nosso sistema tem provado sua resiliênciapor mais de duzentos anos, e nossos jovens, vocês têm muito o que esperar também. Acho quevai ser uma época animada para vocês. Se eu pudesse ter sua idade... quantos anos você tem?

— Dezenove, senhor.Hawey tinha aberto a boca para falar, mas logo a fecha. Olha para Billy como se estivesse

confuso, não de maneira profunda, porém, apenas perplexo por um momento.— Dezenove. Você com certeza parece mais velho.— Obrigado, senhor.— Puxa, me sinto falando com um advogado de vinte e seis anos, só pelo jeito como você se

porta.— Obrigado, senhor. Eu agradeço.Hawey se volta para o jogo. Parece que ele perdeu a linha de raciocínio, mas um instante

depois volta a falar com Billy.— É verdade que eles indicaram você para a Medalha de Honra?— Meu comandante indicou, sim, senhor.— E o que aconteceu?— Não sei. Algum superior barrou, foi o que me disseram.Billy dá de ombros. Ele se deixou contaminar pela amargura alheia diante daquela situação.— Você sabe, nunca fui testado desse jeito. Eu era novo demais para a Segunda Guerra,

embora eu me lembre bem. Agora, a Coreia... — Hawey pigarreia e não conclui o pensamento.— Você sabe de coisas que a maioria do resto de nós nunca vai saber. As experiências que teve,você e os seus amigos... — Ele falha de novo em terminar o pensamento.

Billy sabe o que eles querem dizer, esses começos em falso, esses obstáculos da mente quefazem certo tipo de conversa da Turnê da Vitória morrer de repente. O velho luta, mas não

consegue evitá-los Não tem nada que ele possa falar. Ele aprendeu que é melhor apenas fingirque nada está acontecendo.

— Bem — diz Hawey com a animação forçada de um homem que quer se livrar de notíciasruins —, eu só estou orgulhoso de poder passar esse tempo com você. Dezenove anos, porra,quando eu tinha dezenove anos não sabia nem juntar lé com cré.

Ele queria que os netos estivessem ali para poder conhecer Billy e ver que belo modelo a seseguir etc. etc., a verborragia elogiosa é toda muito bonita, mas Billy preferiria estar aprendendoalgo útil ou novo, ou que tal uma oferta de emprego, isso seria bom. Venha trabalhar para mim!Vamos ficar ricos! Eu vou mostrar para você como as coisas são feitas! Hawey ainda estátagarelando a respeito dos netos quando Faison brilha no telão, uma Faison do tamanho doMonte Rushmore se inclinando para a câmera, sorrindo, balançando a cabeça, tremulandoaqueles pompons gloriosos bem na cara de Billy, que não consegue evitar e desaba em seu lugare geme. Em um instante, Hawey percebe o que está acontecendo.

— Aham, aí está uma garota cheia de saúde. — Ele solta uma risadinha e dá um tapinha nojoelho de Billy, reconhecendo o que um jovem precisa para continuar vivo. — Meu Deus, olhesó agora. O Norm tem umas boas cadelinhas de exposição, não tem?

Billy e Mango vão dar uma volta

No fim do primeiro quarto de jogo, eles são convidados a se retirar do camarote. O embaixadordo México está vindo com sua enorme comitiva e o lugar já está lotado para os padrões desegurança, então alguém tem que sair. Norm pede desculpas. Ele parece aflito de verdade.

— Vocês tinham que ver a segurança que acompanha esse cara — diz ele ao Bravo,balançando a cabeça. — Acho que tem alguma coisa a ver com guerra contra o tráfico de drogas,mas ainda assim. A gente não é tão ruim com a nossa segurança.

— E mais: vocês têm a gente, senhor — destaca Sykes.— Isso mesmo! A gente tem! A gente tem os melhores homens de combate do mundo bem

aqui! Ah, cara, se tivesse um jeito de vocês ficarem...O Bravo está tranquilo em relação a isso. Na verdade, o Bravo não dá a mínima. Depois de

muitas despedidas e uma rodada final de aplausos, Josh os leva de volta a seus lugares. Surgemos celulares, os iPods, os copos para cuspir tabaco e os cumprimentos. Está chovendo, o ar estáembolotado com uma garoa frouxa e inócua que faz com que guarda-chuvas sejamconstantemente erguidos e abaixados, erguidos, abaixados, como se fosse um preguiçoso jogo devivo ou morto.

— Uau, eles marcaram. — Mango acena com a cabeça na direção do telão. Cowboys 7, Bears0. — Quando isso aconteceu?

Billy encolhe os ombros. Não está com frio, o que não quer dizer que não gostaria de estar emum lugar quente. Ele descobre duas novas mensagens em seu celular. Kathryn: Onde vc tásentado? Pastor Rick: Vc tá nas nossas orações hj esse dia especial de agradecimento. PastorRick, o fundador corpulento e bronzeado de uma das maiores megaigrejas dos Estados Unidos,fez o pedido de proteção divina no comício do Bravo no Centro de Convenções de Anaheim. Emum momento de... fraqueza? delírio?... Billy o procurou depois do comício para uma sessãoemergencial de aconselhamento. Alguma coisa na prece tinha atingido Billy como se fosse umaverdade, e enquanto o restante dos Bravos dava autógrafos e posava para fotos, o Pastor Rick eBilly se sentavam nos bastidores e conversavam sobre a morte de Shroom. Shroom deitado ali,ferido. Shroom se sentando. Shroom sucumbindo no colo de Billy, depois seus olhos mirandonos olhos de Billy com tal urgência, com muitas informações urgentes, depois o esmorecimentoe sua alma se desprendendo, vuuuum, como se a força vital fosse uma substância altamentevolátil, conteúdos armazenados sob pressão.

— Quando ele morreu, foi como se eu quisesse morrer também. — Mas isso não estava bemcerto. — Quando ele morreu, senti como se eu tivesse morrido também. — Mas também não eraisso. — De algum jeito, foi como se o mundo todo tivesse morrido.

Ainda mais difícil era descrever esse sentimento de que a morte de Shroom possa ter arruinadoBilly para qualquer outra coisa, porque quando foi que ele morreu? Quando eu senti a alma delepassar por mim? Eu amei ele tanto naquela hora, acho que nunca mais vou conseguir ter aqueletipo de amor por mais ninguém. Então, qual era o sentido de se casar, de ter filhos, de formar

uma família se você soubesse que não poderia dar a eles o melhor do seu amor?Billy chorou. Eles rezaram. Billy chorou mais um pouco. Sentiu-se melhor por algumas horas,

mas, conforme anoitecia e a dor se infiltrava, ele descobriu que não havia nada ao que sua mentepudesse se ater. O que exatamente o pastor disse? Billy se lembrava apenas de como aquilosoava, um pém diáfano e tilintante, como um jazz fácil de escutar. Alguns telefonemas para sabercomo ele estava provocaram uma inutilidade semelhante, mas agora o pastor Rick não o deixariaem paz. Billy entende qual é a vantagem disso para o pastor; é legal para o reverendo ter um“relacionamento pastoral” com um soldado no campo de batalha, isso dá credibilidade, mostraum comprometimento estiloso com os problemas atuais. Billy consegue ouvir o bom pastorcomeçar a homilia no domingo de manhã com um pedaço da alma dele. “Eu estava falando outrodia com um dos nossos bons soldados que estão servindo no Iraque, e a gente estava discutindoblá-blá-blá...”

Billy responde a Kathryn, apaga a mensagem do pastor Rick. Ali, à sua direita, Mango nãoconsegue achar uma posição. Ele se curva para a frente, se recosta, espreita à direita e à esquerda,se contorce para dar uma olhada maluca para trás.

— Mas que merda — diz Billy —, fica quieto. Você está me deixando nervoso.— Então pare de ficar nervoso.— Você está procurando alguma coisa?— Estou, a sua mãe.— Foda-se isso, a sua mãe. A minha mãe é uma freira.Mango ri e recosta no assento. Ele confere o relógio do jogo e geme. Ser homenageado dá

muito trabalho, e ali, no corredor, é ainda pior, o assento de contato entre os Bravos e oscidadãos. “Sim, senhor, obrigado, senhor. Sim, senhora, me divertindo muito, com certeza.”Billy passa programas para que todos na fileira o autografem e precisa manter a conversaenquanto eles não voltam. “Está ficando melhor, você não acha? Valeu a pena, não acha? Agente tinha que fazer aquilo, você não acha?” Ele deseja que só uma vez alguém chame ele deassassino de bebês, mas não parece ocorrer a essas pessoas que bebês foram mortos. Em vezdisso, falam sobre democracia, desenvolvimento, armas didistruição im massa. Eles queremtanto acreditar, Billy vai dar esse crédito a eles, são tão ardentes quanto crianças insistindo que oPapai Noel é real porque uma vez que você para de acreditar, bem, então, talvez ele não venhamais.

Então, no que é que você acredita? Billy não só se pergunta isso, como sente a perguntaimposta a ele. “Rá-rá, bem, tudo bem. Jesus? Tipo isso. Buda? Hum. A bandeira? Claro. Quetal... a realidade?” Billy chega à conclusão de que a guerra fez dele um total convertido à Igrejado É o Que É, então vamos rezar, meus companheiros americanos, por favor se juntem a mim emoração. Vamos rezar pelos milhares que se foram, e por aqueles que a eles se seguirão. Vamosrezar por Lake e seus cotocos. Rezar para que a arma do A-bort nunca emperre em batalha. Rezarpor Cheney, Bush e Rumsfeld, pai, filho e espírito santo, e todos os anjos do Comando Centraldos Estados Unidos e do Estado-Maior Conjunto dos Estados Unidos. Rezar por Shroom, quepode ou não ter uma vida eterna no paraíso, mas que está morto para caralho aqui no planetaTerra.

Billy se senta. Ele imagina que esteve deixando Dime na mão. Estica o pescoço para olharpara baixo, na lateral onde Faison deveria estar, mas ele está perto demais do campo e não temum bom ângulo. Tenta se concentrar no jogo durante alguns minutos, mas aquilo é devagardemais, tipo andar em um elevador que para em cada andar. De qualquer maneira, esse não é omodo como você deveria assistir ao jogo de verdade, não, você assiste do telão, que mostra não

apenas o jogo em tempo real e os replays, mas também um incessante tapa-buraco de comerciais,uma barragem de sobrecarga sensorial que expõe muito mais conteúdo que o próprio jogo. Seráque os anúncios eram a coisa principal? E quem sabe o jogo é apenas um anúncio para osanúncios. É de mais, de qualquer modo, o que eles querem daquilo. Um fardo tão imenso que ojogo precisa suportar, tantos dólares em propaganda, salários tão altos, um dispêndio tãogigantesco para as instalações físicas e a infraestrutura que você praticamente consegue escutar oesporte grunhindo debaixo daquela carga enorme, e a ideia disso deixa Billy estressado, a brutadesigualdade provoca um aperto em suas entranhas, como os primeiros solavancos nauseabundosde uma compreensão de algo maior. Ele pensa no Momento que vivenciou na sala deequipamentos, quando todas aquelas toneladas acumuladas de equipamentos tentavam sufocá-loe havia Ennis fazendo a narração jogada por jogada de sua morte, tagarelando sobre tamanho-estilo-cor-modelo-quantidade e tudo enfiado naquele discurso persuasivo de dez minutos, de umsó fôlego, como aquilo pareceu, e mesmo agora Billy consegue sentir seu peito se comprimir.

Ele imagina Ennis totalmente pirado, mas quem não enlouqueceria mantendo todo aqueleinventário na cabeça? Billy tem essas visões às vezes, essas breves linhas de visão sobre osEstados Unidos como um pesadelo de superabundância, mas a vida no Exército, de um modogeral, e a guerra, em particular, tornaram-no extremamente sensível a quantidades. Não que sejacomplexo como engenharia espacial. Nenhuma complexa operação matemática está envolvida,pois a guerra é somente o reino puro e definitivo de quantidades. Quem consegue causar a maiorquantidade de mortes? Não é cálculo, cara, a gente está lidando aqui é com a pura e velhaaritmética idiota, métricas corretivas de tiros por minuto, bens degradados, planilhas de Excel demortos e feridos. Diante de tais medidas, as Forças Armadas dos Estados Unidos são a mais lindaforça de combate na história do mundo. Na primeira vez que ele viu isso demonstrado de pertofoi levado a uma espécie de choque, ou talvez ao que eles querem dizer com temor. Alguémestava atirando neles com armas de fogo de baixo calibre e de algum ponto acima de onde elesestavam, de maneira descuidada, esporádica, porém mortal. Finalmente a fonte dos tiros foilocalizada em um prédio de quatro andares no fim da rua. Há vasos de flores nas janelas, roupaspenduradas no peitoril.

— Pode chamar — disse o capitão Tripp, pelo rádio, ao tenente.Então o tenente convocou o ataque, duas 155mm HE disparam juntas e o prédio inteiro, não,

metade do quarteirão desaba, bum, problema resolvido em uma nuvem de chamas e fumaça.Então, dane-se a alta tecnologia, as coisas de precisão guiada, os paga-paus da mídia, o únicojeito de realmente invadir um país com sucesso é mandando tudo pelos ares.

— Vamos dar uma volta — murmura Billy para Mango, e lá se vão eles, subindo os degrausde dois em dois.

— Onde a gente está indo?— Ver minha namorada.Mango dá uma risadinha de deboche. No saguão, eles param no Papa John’s para pegar

cervejas, depois começam a andar.— Então, onde está sua namorada?— Você vai ver. Cala a boca e bebe a sua cerveja.— Você nunca me falou de namorada nenhuma, irmão.— Bem, estou falando agora, cara.— Qual é o nome dela?— Você vai ver.— Ela é gostosa?

— Você vai ver.— Ela está aqui?— Não, está no Arizona. É claro que ela está aqui, idiota, ou como a gente ia estar indo vê-la?O saguão está apinhado de torcedores. Os nativos são incansáveis. Tem sido um jogo

frustrante até agora, e eles aliviam a pressão gastando dinheiro. Felizmente há uma loja a cadaesquina, de modo que a multidão não sente falta de oportunidades para fazer compras, e é amesma coisa em todos os lugares onde o Bravo esteve, os aeroportos, os hotéis, as arenas e oscentros de convenções, nos centros das cidades e nos subúrbios também, o varejo domina a terra.Em algum ponto ao longo do caminho, os Estados Unidos se tornaram um gigantesco shoppingcom um país a tiracolo.

Eles pegam a seção trinta, passam pelo túnel até o saguão principal e seguem rapidamente pelocorredor, disparando por entre as brechas desse mar humano de torcedores em seus assentos.

— Billy, aonde a gente está indo?— Ela está ali embaixo.Billy está engolindo grandes golfadas de ar, oxigenando o sangue a fim de neutralizar a

bebida. Que Deus o livre de sua nova namorada pensar que ele é um bêbado.— Billy, que porra é essa que está acontecendo?— Eu disse que ela está lá embaixo.— Billy, qual é? Cara, você está maluco.— Aham, ela está lá embaixo. Ela é uma líder de torcida.Mango dá um grito, o que faz com que seja ainda mais adorável quando Faison dá um pulinho

e grita o nome de Billy. A passagem da primeira fileira fica uns bons três metros acima do níveldo campo; Billy se debruça por cima do guarda-corpo e a chama.

— Agora você está com frio?Ela sorri e balança a cabeça, o cabelo esvoaçando para todos os lados.— Não, está ótimo! Estão dizendo que deve nevar!— Esse é o meu amigo Marc Montoya.— Oi, Marc!— Diga olá, seu idiota.— Olá!— Estou tão feliz que vocês vieram me ver! — grita ela. — Vocês estão se divertindo?— A gente está se divertindo muito! Ei, você estava na TV! Eles mostraram você no telão!Ver quanto isso a deixa feliz o faz sentir um aperto. É para onde a parte vital da energia dela

vai, para o interior de um atropelo semimístico, obsessivo, do pensamento em busca deexposição e reconhecimento, o momento miraculoso do horário nobre que vai levá-la à grandechance. Ela quer aparecer na TV. Quer ser uma celebridade. Então, como um recruta comumcomo ele poderia competir com aquilo...

— Você estava ótima — elogia ele, e ela sorri. — Aquele passinho doidão — diz ele.Ele começa uma versão masculina da coreografia que ela fez com o pompom. Isso é

engraçado, um soldado americano de uniforme dando uma rebolada e remexendo os quadris. Elari; Mango também está rindo, inclinado para a frente por cima do guarda-corpo de tanto rir. Billynunca havia sentido tanta felicidade, e não importa que milhares de torcedores estejam assistindoa isso atrás dele. Que o mundo inteiro seja testemunha de seu amor, só que agora uma dupla deseguranças está vindo na direção deles, dizendo aos Bravos que eles precisam sair.

— O que é, vocês não gostam da minha dancinha? — diz Billy.Mas os homens apenas fixam o olhar nele, mal-encarados e cheios de sai-daqui-caralho, dois

caras brancos, molengos e de meia-idade, com os dizeres SEGURANÇA CORVINGTONimpressos na jaqueta de náilon, a arma de serviço .38 se avolumando no quadril.

Billy ri. Isso piora a situação. Ele diria que os homens são policiais de algum subúrbio caipiraque estão fazendo um bico, porque emanam o pior dos dois mundos: a indolência rural somada àmalevolência urbana.

— A gente não é terrorista — argumenta Billy, cara de pau, provocativo.— Saia daqui — ordena um dos policiais. — Agora.— A gente só está falando com minha amiga ali embaixo.— Eu não estou nem aí se vocês estão falando com o presidente, vocês não podem ficar aí.— Vocês estão bloqueando a visão deles — diz o outro policial, indicando a primeira fileira.

— Essas pessoas pagaram uma boa grana pelos lugares.— E se eles tivessem pagado uma grana ruim? — diz Mango, entrando no espírito, e o modo

cauteloso como os policiais se viram para ele indica muitos possíveis desdobramentos.A troco de nada, Billy ficaria feliz em arrebentar a cabeça deles, é rápido assim, as glândulas

suprarrenais totalmente acionadas e o cérebro dele funcionando com uma ligação direta, e issobem que serviria, ele pensa, arrebentar a cara deles, para mostrar ali seu verdadeiro eu, para todomundo ver. Se eles tomarem a iniciativa — mas eles não tomam, e o momento homicida de Billypassa. Ele grita para Faison por cima do guarda-corpo:

— Esses caras estão falando que a gente tem que ir embora.Ela chegou mais perto e está bem embaixo deles agora.— Eu acho que é melhor vocês irem.Ela está preocupada, percebe Billy. Está com medo de uma cena.— Então eu vejo você depois! — grita ele lá para baixo.— No intervalo! — Ela abre um sorriso matador. — Vou procurar você no campo.Ele não entende, mas faz que sim com a cabeça de qualquer maneira. Claro, no campo, nas

arquibancadas, no outro lado do mundo, tanto faz. Ele sente como se a conhecesse a vida toda ecomo se a amasse há ainda mais tempo. Os Bravos encaram os policiais de maneira ameaçadorauma última vez e seguem para o saguão principal, onde Mango cambaleia como se tivesse sidoatingido por um bastão.

— Billy — geme ele —, Billy, Billy, uma líder de torcida? Ai, meu Deus, ela é bonita paracaralho. Billy, como você conseguiu isso?

O fato de Mango estar babando por ela faz com que Billy goste ainda mais de Faison.— Eu não sei. A gente se conheceu na coletiva de imprensa e só começou a conversar.Mango se vira para o amigo, pensativo.— Ela gosta mesmo de você, cara. Dá para ver só pelo jeito como ela olhou para você, toda

amorosa, falante e tal.Billy quer voltar na mesma hora para vê-la de novo. A pegação que tiveram pode ter sido algo

pouquíssimo provável, mas esse segundo encontro provou algumas coisas. Talvez haja esperançapara a vida amorosa dele, afinal. Talvez ela não acabe depois do que aconteceu com Shroom.

— Cara, você tem que ficar com ela antes de a gente ir embora — diz Mango.— Eu não vejo como. A gente está a postos a partir das dez da noite. Além disso, ela é uma

garota cristã.— Caralho, você está de sacanagem comigo? Garotas cristãs trepam que nem coelhos, meu

caro. Tudo o que é proibido é mais gostoso. É melhor você ir em frente agora, porque se não,quando a gente voltar, ela não vai reconhecer você, cara. Ela vai estar trepando com algumlinebacker e você vai ser tipo, “Billy, que Billy”?

— Obrigado, babaca.— Eu só estou falando! É melhor você ir pegar essa mulher enquanto ela está na sua. Estou só

dando um bom conselho.O celular de Billy toca. Ele verifica a tela. A-bort.— Ei.— Porra, onde é que vocês estão? O Dime está puto.— A gente saiu para dar uma volta. Estamos a caminho.— Eles foram dar uma volta — diz A-bort afastado do telefone. — Estão a caminho.Billy consegue escutar Dime dar um rosnado como resposta.— Ele disse para vocês voltarem para cá o mais rápido possível. — A-bort se afasta do

telefone de novo. — Aguenta aí, eles estão dando as intruções para a gente sobre o intervalo. —Outra pausa. — Mas que merda. Eles estão falando... ahn. — Pausa. — Ai, meu Deus. — Entãose segue uma longa pausa, e A-bort volta a falar com uma voz sussurrada. — Cara, nem queirasaber o que eles vão obrigar a gente a fazer.

Estuprados por anjos

Billy sabe que eles estão mesmo na merda quando Lodis lhes lança um sorriso torto e se inclina,chegando mais perto, como se estivesse prestes a partilhar alguma pérola de sabedoria incrível.

— Billy — balbucia ele. — Bi-liii.— O quê?— Bi-liii. — Lodis está completamente bêbado. — Cara, onde a gente está?Jesus amado.— Lodis — murmura Billy —, a gente está no campo. A gente vai fazer umas manobras,

entendeu?Lodis sorri e balança a cabeça. Ele está praticamente babando.— Quantos drinques você bebeu lá em cima?— Ahhhh, nem foram tantossh!Day espia por trás de Crack.— Qual é o problema?— Ele está mamado — diz Billy.Crack ri em silêncio.— Isso vai ser bom. Ele não consegue fazer uma manobra direito nem quando está sóbrio.— Não vem rogar praga para cima de mim, não!— Não se preocupa que você não precisa da minha ajuda para mandar mal, Load.Jesus amado. Billy diz para Lodis ficar ligado nele. “Fica na minha cola, é só fazer tudo o que

eu fizer.” Ele quer dizer a Dime que eles precisam cancelar a apresentação, mas Dime está bemdo outro lado da formação, isso mesmo, muito obrigado. Além de tudo, eles dividiram o Bravoao meio para agradar à obsessão por simetria de algum regente fascista. Holliday, Crack, Billy eLodis estão de pé, lado a lado na linha lateral do time da casa. Na parte de trás e nas laterais, abanda marcial da Universidade Prairie View A&M está se posicionando. Poderia ser aorganização para um ataque noturno, há o mesmo farfalhar nervoso de equipamentos e roupas, osbaques surdos dos coturnos no gramado. Em algum lugar um percussionista solitário estámarcando o tempo com suas baquetas no tambor, direita, esquerda, direita, esquerda, direita,tique, tique, tique.

— Load, respira fundo. Tenta não pensar em nadaScggggggck. Scggggggck.— Ele está morrendo aí? — pergunta Crack.— Friu!— Sim, está frio, porra. Aguenta aí, veado.Está fazendo um grau, foi o que informou uma voz invisível no túnel, e, ao entrar no campo,

eles encontraram uma névoa cristalina e pungente, enxames de microgotículas congeladas, comose fossem mosquitos polares. Fileiras de porta-bandeiras aguentavam firme no frio, os rostosemaciados e pálidos, as pernas nuas arrepiadas e rachadas, as cabeças brilhando com a névoa

condensada. Cordeiros indo para o abatedouro, pensou Billy, como se eles estivessem de fato emformação para uma batalha, e mais adiante estavam as bandas de ensino médio em fileirassilenciosas, linhas e mais linhas de rostinhos rosados tão imóveis e compenetrados debaixo deseus chapéus emplumados, tão concentrados no que estavam prestes a fazer. Billy os invejoupela sinceridade de sua juventude, por suas vidas estudantis regradas com aulas, reuniões antesde eventos esportivos e manhãs de sábado dedicadas ao sono. Eles pareciam tão perspicazes!Sentiu uma tremenda ternura por eles. Fizeram com que se sentisse nostálgico. Fizeram com quese sentisse velho para cacete.

A linha de tambores da Prairie View se organiza no meio de campo, liderada por um diretor debanda bem alto, parecido com um feiticeiro negro com seu traje de figurão do alto clero, capa,polainas curtas, fios dourados trançados e dragonas, uma barretina cônica com uma pluma nacabeça. Os outros quatro Bravos estão em algum lugar à esquerda, e entre os dois contingentes seencontra o United States Army Drill Team, de Fort Myer, Maryland, um grupo de vinte recrutasperformáticos em trajes azuis impecáveis que são capazes de lançar suas baionetas fixasSpringfield nos ares e fazer com que elas girem, rodopiem em volta de suas cinturas, deemcambalhotas ao redor de seus ombros, planem no ar e formem um losango em uma composiçãode quatro baionetas. Se eles mandassem, talvez as armas fizessem até um moonwalk. Umaunidade de soldados da ROTC está posicionada atrás da primeira fileira de Bravos e recrutasperformáticos. Eles batem os pés e bufam como búfalos.

“Riiiuuuum, Riiidooois, Riiitrêêêêêis, Riiiquaaatro”, berra o feiticeiro, e os tamboresirrompem em uma condução de rufadas, tatá-totá tatá-totá drrriiiiip drrrriiiip buuudriiii-buuu,uma entusiasmada interpretação do rebuliço que toma conta de todo coração humanoemocionado. Depois as cornetas. O bronze se liberta e arrebenta, os instrumentos de soprobalançando em um contraponto marcial enquanto três mulheres esbeltas deslizam das laterais ese posicionam bem em frente aos recrutas performáticos. São Elas. Billy flutua ligeiramente,saindo do próprio corpo por um instante. As mulheres estão de costas para os soldados, masmesmo assim, ou talvez especialmente para quem as vê de costas, não há dúvidas de que oDestiny’s Child chegou, o atual e indiscutível campeão mundial da Divisão das Meninas Negrasdo pop massificado. Beyoncé assume o lugar central e de destaque, enquanto Michelle e Kelly— quem é quem? — deslocam-se para os lados. Elas estão usando calças apertadas de cinturabaixa, sapatos de salto agulha, camisetas curtas com mangas longas de renda, e há uma incríveldisciplina física em suas poses, os bumbuns empinados, alinhados ao tronco e às pernas, ascostas firmes e flexíveis como arcos. Depois que fazem a pose, elas ficam imóveis. A músicapara de repente. Os operadores de câmera estão andando agachados ao redor das cantoras, issoestá passando ao vivo na TV. As garotas erguem os microfones até os lábios e, com a suavidadede colchas sendo retiradas da cama para a noite, murmuram um luxuriante a cappella

pendendo em direção a uma reprise do hino americano, a situação poderia descambar para isso

ao menor empurrão, mas as vozes das mulheres desabrocham em algo mais suave, mais doce,uma chuva de pétalas de rosa açucaradas batendo nas orelhas

Na lateral oposta do campo, um palco foi armado, uma estrutura cintilante com três níveis eum cenário composto de um painel multifacetado e colorido que parece se esforçar para ter umaaparência de vitral modernista. Um grupo de dança está imóvel nos vários níveis do palco,homens usando conjuntos de moletom brancos e colares gigantes, mulheres com calças coladasou shorts jeans cortados e uniformes do Cowboys estilosamente destruídos, rasgados, picotados,com as mangas retiradas — nenhuma customização repetida. À direita de Billy, Lodis pareceestar engasgando com o próprio catarro. O Destiny’s Child repete o refrão take me there, entãoos tambores param e essa é a deixa deles, toda a formação dá um passo adiante. Os operadores decâmera começam a andar para trás sem olhar onde pisam. Logo à frente, a linha de tambores sedivide e se realinha à direita e à esquerda, abrindo caminho até o palco. Mais tarde, assistindo àperformance no YouTube, Billy vai começar a juntar as peças da enorme escala da coisa, pelomenos cinco bandas marciais entrando e saindo do campo, a frenética coreografia sexualacontecendo no palco, porta-bandeiras e esquadrões espalhados de uma extremidade a outra docampo, homens do ROTC, Bravos, recrutas performáticos, o Destiny’s Child. O notório elencode milhares de integrantes. Alguém descreverá o espetáculo como uma produção digna de ummusical da Broadway, e ainda que Billy nunca tenha colocado os pés em Nova York, muitomenos em um musical de qualquer tipo, a comparação lhe parecerá adequada, mas enquanto tudoacontece ele está simplesmente tentando se manter firme. Uma garota rodopiando um bastãosalta perto dele em um borrão de pele e cores giratórias. Grupos de estudantes de ensino médiousando collants de manga comprida estão fazendo uma coreografiazinha em que batem umbumbum no outro — aparentemente estão treinando para serem strippers. Fileiras com tamboresgiram ao redor da coluna de soldados, esquadrões voadores de porta-bandeiras ziguezagueiampelo caminho, e as mulheres do Destiny’s Child avançam poderosas entre tudo isso, arqueandoas costas e mexendo os quadris em um desfile em câmera lenta que, de onde Billy observa, nãoparece ser muito factível, como se alguma combinação mística de sex appeal de diva e coxasmalhadas as mantivesse de pé em posições que fariam meros mortais caírem de bunda. À frente,tropas de dançarinos flanqueiam o palco, homens de camisas e calças largas, bonés virados paratrás, garotas de tops prateados e leggings azul-royal. Já está acontecendo coisa de mais para amente absorver quando as luzes de boate começam a piscar, fileiras de luzes estroboscópicasazuis e brancas entre os níveis do palco, mais luzes estroboscópicas contornando a estrutura detubo de aço e tudo piscando ao mesmo tempo, impulsos eletrovisuais desestabilizadores esobrecarga epiléptica, cicatrizes na retina, lobos frontais derretendo...

Isso é o seu cérebro com metanfetamina! Lodis está tendo espasmos, sua pobre cabeça fica

pendendo pesadamente para o lado, então as explosões começam e todos têm espasmos, bumbum bum bum, os canhões pirotécnicos estão atirando de algum lugar dos bastidores, máquinasde fumaça que explodem com o crepitar árido de bombas de fragmentação se espalhando sobreum campo de trigo. Um uivo começa no fundo da garganta de Lodis. “Está tranquilo”, murmuraBilly, “está tranquilo, está tranquilo, são só fogos de artifício.” Lodis começa a rir, ofegando pararespirar. Do outro lado de Billy, Crack está com uma aparência pegajosa e horrenda. Se um belodia alguém quisesse desencadear uma crise de estresse pós-traumático em pleno horário nobre,essa seria a melhor maneira, mas, para a sorte de Norm, da multidão, dos Estados Unidos e dosmais de quarenta milhões de telespectadores, os Bravos conseguem lidar com isso, ah, seconseguem! Pupilas dilatadas, pulsação e pressão arterial altíssimas, braços e pernas tremendocom a descarga de cortisol causada pelo estresse, mas está tranquilo, está tudo bem, elesconseguem se controlar, nada de colapso nervoso de veterano do Vietnã para o esquadrão Bravo!Podem obrigar esses garotos a marchar em meio a um inferno de som e luzes que elesconseguem aguentar, mas, caramba, não é grosseiro obrigá-los a fazer isso?

A formação se move em sintonia com a batida, buri-Bum buri-Bum buri-buri-buri-BUM, ostambores fazem com que qualquer rapaz tenha um orgulho danado de ser soldado. Não é piada,Billy percebe. Esse pessoal gastou muito dinheiro e se esforçou demais, não é possível que oshow do intervalo seja ridículo de propósito, o que não quer dizer que coisas muito caras nãopossam ser idiotas. O Titanic foi idiota. Enron foi idiota. Hitler invadindo a Rússia, idiota. Bum-diri bum-diri bum-budá-diri-BUM, soam os tambores da Prairie View, uma melodia de trovões.Lodis esbarra em Billy, se apoia. “Desculpa, Biie.”

No extremo norte do campo, todos os soldados vão dar meia-volta e marchar em direção aosul enquanto o Destiny’s Child segue até o palco. Billy está prestando atenção em sua posição etentando não hiperventilar. Bum-diri bum-diri diri-diri BUM. Luzes estroboscópicas de boate,dança sensual, canhões pirotécnicos e que soltam flamas, bandas marciais marcando o tempo emmajestosas passadas altas, e no meio disso tudo está Billy, servindo como soldado à grandeporralouquice da coisa, tentando se manter focado e determinado a lidar com aquilo.

“Senho-ras E senhoriiiiiiiis”, retumba o alto-falante na melodia cadenciada e no tom grave ebajulador característico dos narradores que não sabem que são imbecis:

Por favoooor deem as boas-vindas a

Kelly

Michelle

E

BIIIIIII-YON-CÊ

as cantoras sen-sa-ção do momentuuu

DESTINY’S CHILD

O barulho é tanto que parece que uma barragem de som se rompeu, e Billy pensa que talvezseja derrubado. É como uma represa rebentando, pontes desmoronando na hora do rush,maremotos de espuma assassina e pedaços de entulho do tamanho de pedregulhos refazendo oscontornos do mundo conhecido. Apenas presumam que vocês vão morrer, foi a instrução queeles receberam uma semana antes de irem para o Iraque. Positivo! Entendido! Sim, senhor, sim!O massacre espera por nós, nós somos aqueles que não serão salvos, os pobres coitadoshonradamente condenados a se foderem na linha de frente que vão lutar contra eles lá para quenão haja nenhuma luta aqui! É algo cruel para qualquer jovem ouvir, mas faz parte da educaçãode todos os jovens do mundo aprender que os riscos nunca são revelados por completo até quevocê já esteja comprometido. O Destiny’s Child está mandando ver no andar arrogante, elaspoderiam atravessar uma tempestade com água até a cintura, cacete, pensa Billy, observandoenquanto elas requebram, cacete, como é que ele vai voltar para o Iraque com visões assimpreenchendo sua mente? Dentro de dias, não, horas, o Bravo vai retornar para a merda, e ele estáesperando que eles digam aquilo de novo, ele teme esse momento, mas as palavras cruéisprecisam ser ditas, vocês vão morrer, só acaba logo com essa parte por favor, mas não, ninguémvai fazer isso, em vez disso eles mandam a Beyoncé e a bunda gostosa dela!

Talvez a situação não deva fazer sentido. Ou talvez não para você, pondera Billy, porque vocêé um im-be-cil de merda. Então o Bravo dá meia-volta, e ele saiu de sua marcação por meiabatida, os recrutas performáticos grunhem de modo ríspido em seus lugares enquanto os Bravosse viram, frouxos como cadarços desamarrados. “Mudar o passo. Marchem”, brada Day em vozbaixa; como líder, ele é responsável por fazê-los sobreviver ao intervalo com alguma aparênciade dignidade intacta, e agora ele conta o tempo em sincronia com os recrutas performáticos,tentando forçar o passo dos Bravos na marcha. “Esquerda, esquerda”, o mantra sossega a mentede Billy e seus pés começam a seguir, mas na verdade seria de grande ajuda se ele tivesse umaarma nas mãos. Logo adiante estão os homens da ROTC, uma horda de garotos trôpegos e debunda grande. Sem dúvida muitos deles são mais velhos que Billy, mas ainda assim parecem tãonovos de costas, seus pescoços macios, carnudos, com a gordura que só as crianças têm,praticamente gritando para que o machado sacrificial se abata sobre eles.

“Esquerda volver”, brada Day com suavidade. Eles alcançaram a linha lateral. O Bravo dámais sete passos, esquerda volver de novo, alto. No momento, o trabalho deles é ficar bonitinhose quietinhos perto dos recrutas performáticos. As colegiais em collants cheios de franjas passamsaltitando, acenando serpentinas rodopiantes em bastões de dois metros. A linha de tambores daPrairie View se reuniu no meio de campo, pisando-deslizando no ritmo de um rufar de tamboresestaladiço, e todo mundo, menos o Bravo, parece estar se movendo, o campo se tornou umimenso aglomerado de coreografias de hip-hop e blocos compactos de bandas marciaissincronizadas. O aparato do palco jorra chamas e fogos de artifício enquanto as garotas doDestiny’s Child sobem com seu andar de divas arrogantes. Os dançarinos do palco vão para adireita com movimentos de quadris que lembram o vídeo mais indecente da MTV à medida queBeyoncé e as outras duas levam os microfones aos lábios.

You say you gonna take me there

elas cantam em gorjeios felinos, rabugentos,

Say you know what I needShow devotion to the notion of our mutual creed

Os recrutas performáticos estão fazendo o lance deles, jogando seus Springfields em umamarcha militar em versão astro do rock. Chaque, chaque, chaque, o bater das palmas nos fuzispromove um som de alta intensidade, talvez um ouvinte habilidoso consiga seguir as acrobaciaspela cadência por si só. Do fundo do campo, Billy tem somente uma visão periférica, os fuzisesvoaçando no canto de seu olho como se fossem cartas sendo embaralhadas e empilhadas.

You think it all in the movesLike come robot lover do?That ain’t the way you get

A grown woman into her groove

Beyoncé desliza a mão sensualmente na parte interna da coxa, depois a arrasta em direção àxoxota, não colocando a mão no ponto crítico propriamente dito; essa é a versão do movimentocom classificação etária, apropriada para o público familiar. As garotas das fitas passamsaltitando, como se tivessem molas nas pernas pálidas. As luzes estroboscópicas estão fazendoum estrago na cabeça de Billy. Ele estreita os olhos e tudo fica borrado, um sonho febril comsoldados, bandas marciais, tempestades de corpos batendo e se friccionando, estampidos defogos de artifício, diversas linhas de tambores pondo em marcha um vai-time-vai. Destiny’sChild! Recrutas performáticos! Soldados de brinquedo e soft porn tudo misturado em um grandecozido inspirador. Quantas dezenas de vezes o Bravo assistiu aos DVDs de Conan, o Bárbaroque pertenciam a Crack, muitas, eles sabem de cor cada fala, e em meio a todos os fluxos edesvios de sua mente superestimulada Billy tem lampejos da cena da orgia no palácio, JamesEarl Jones como o rei cobra sentado em seu trono enquanto seus criados doidões se esparramampelo chão, chupando, lambendo e arquejando em uma felicidade atordoada. Isso o assusta, asobreposição dessa cena de sexo enlameado com o que ele vê diante de si agora, a total ecompleta esquisitice do show do intervalo e o fato de que todo mundo parece não ver nada demais nisso. As arquibancadas estão lotadas, os torcedores estão de pé e todo mundo estávibrando, tudo faz com que eles fiquem felizes hoje. Tudo bem, sejam felizes, é a postura deBilly. Eles podem vibrar e gritar e berrar quanto quiserem, mas não é nada, o show deles é umababoseira, um tapa-buraco, isso não tem nada a ver com Billy ou com voltar para a guerra.

I ain’t scared, I’m comin’ through,I ain’t scared, I ain’t scared,

Big man can’t you handle this good thing I’m offerin’ you?

Nas arquibancadas atrás do palco aparece uma imensa bandeira americana, um mosaico feitode cartões em meio a uma massa de vinte mil torcedores, cada um representando um pixel nesseefeito especial antigo. Os cartões se mexem, e agora a bandeira é apresentada como se tremulasseao vento, embora, ao olhar com mais atenção, seja mais como se as coisas tivessem sido

impressas errado, o padrão retalhado com rugas e dobras. Por alguns instantes, os olhos de Billyo enganam, distorcendo a perspectiva para a frente e para trás, então ele começa a ouvir umzumbido e o chão parece se inclinar, uma guinada que muda o seu ânimo. Ocorre a Billy quetalvez ele esteja errado. Talvez o show do intervalo seja, de fato, algo real; e se alguma força ouação potente viver nisso? Não um show, mas um significado para alguma coisa, alguma coisaconferida ou invocada. Uma cerimônia. Algo religioso, contanto que “religioso” se estenda aconceitos insensíveis tais como caos, acaso, natureza fora de controle. Ele sente o puxão de umarealidade paralela que supera até mesmo as verdades que surgem da experiência de um recruta nocampo de batalha — o sangue nas suas mãos, o queimar em seus pulmões, o fedor de seus pésnão lavados. O simples fato de pensar nisso provoca um latejamento em seu crânio, não uma dorde cabeça, mas um pulsar mais pesado do sonar no fundo do tronco cerebral inferior. E opensamento o atinge com muita clareza, é aí que ele vive. O deus em sua cabeça, todos os deuses— é isso que está acontecendo aqui? Ele é muito contido e relutante demais à Igreja para aceitaruma noção completamente direta de deus, então, que tal isso? Químicas, hormônios,necessidades e desejos, o que quer que esteja dentro de nós que é tão supremo e assustador que agente precisa chamar de divino.

Lemme break it down for you again,Stop actin’ like a boy, stand up and be a man,What’s sad is all your talkin’ ‘bout love and affection,You get yours and leave me hangin’ like a prepubescent

Billy está gelado na parte de seu corpo que deveria ser a mais quente, como se o significadodas coisas fosse captado naturalmente e em primeiro lugar no instrumento mais delicado que elepossui: suas bolas. Ele está assustado. Sabe que esse estado de espírito não é nada bom. Elesadoram falar de Deus e pátria, mas o que propõem é o diabo, todos esses atarefados diabinhosbioquímicos do sexo, da morte e da guerra que cozinham lentamente na base do crânio. É sósubir um pouquinho a temperatura que eles fervem, transbordam. Será que ao menos sabem?, elese pergunta. Talvez eles não saibam o que sabem, tendo em vista que aquilo que ele observadiante de si é completamente aleatório, perfeito, um soft porn desvairado em torpor marcial. Comexceção de sacrifício de seres vivos ou sexo de verdade no campo, seria impossível imaginaralgo melhor para esquentar as coisas do que o espetáculo em curso.

Esquerda volver, brada Day suavemente, e eles se afastam, direita volver e eles estãocruzando o campo em direção à zona de ação, Lodis seguindo Billy, Billy seguindo Crack, Crackseguindo Day, que segue a bateria da Prairie View, passando por um borrão de uniformesextravagantes e pele nua. Sons individuais se elevam da balbúrdia como se fossem zumbidos deguitarra, guinchos de baleias. O tempo desacelera. As luzes estroboscópicas pulsam em manchasalongadas e fluorescentes. Billy sabe onde eles devem parar, embora tenha apenas uma vagaideia a respeito de como chegarão lá. Um a um, os Bravos cruzam a linha lateral e se viram paraa esquerda, depois são empurrados ao longo de um corredor polonês de produtores estressados elevados para dentro de um caótico cercado de contenção atrás do palco. Uma mulher alta eesbelta usando uma parca na altura dos joelhos puxa os Bravos para fora da fila. Ela é bonita,pelo menos a parte que aparece entre as abas de seu gorro em estilo russo.

— Certo — diz ela, reunindo os Bravos em um amontoado, gritando como um marujo em umatempestade. — A gente vai colocar vocês na posição lá nos bastidores, daí, quando a gente der o

sinal, vocês saem de lá, pegam as escadas, descem até o nível do meio. Vocês vão estarmarchando, ok? Assim, ó. — Ela imita um passo militar. — Vocês viram à esquerda no nível domeio e marcham por lá. Procurem o X roxo, tem um para cada um de vocês, essa é a marcaçãode vocês. Depois, é só virar de frente para o palco e ficar em posição de sentido.

Os Bravos fazem que sim com a cabeça. Ninguém fala. Todos eles estão pirando em silêncio.— Vai ter muita coisa acontecendo lá, mas não se mexam. Vocês só têm que ficar lá

paradinhos. Fácil, né? — Ela sorri, aperta de leve o ombro de Day. — Vocês estão bem, rapazes?Os Bravos assentem. Até mesmo Day parece estar confuso, seu pescoço estufado como se ele

tivesse engolido muito ar. Crack está olhando para o chão e murmurando para si mesmo.— Rapazes, vamos lá, relaxem, vocês ficaram com a parte fácil. — A mulher ri, exasperada

por vê-los tão tensos. — Quando vocês chegarem nas suas marcas, é só ficar lá até o showacabar, eu vou aparecer e dar para vocês o sinal de tudo certo.

— Isso vai ser ridjículo — resmunga Lodis, mas a produtora finge não escutar.Os Bravos vão dar conta do recado, pode apostar, embora nenhum deles esteja com uma

aparência particularmente boa no momento. Tem uma porção de gente correndo por ali, muitosolhos arregalados de pânico, toda a loucura de uma situação de emboscada sem qualquer umadas compensações da libertação homicida. À esquerda e à direita deles, equipes responsáveis porfogos de artifício continuam a soltar os rojõezinhos desagradáveis que sibilam e chiam feitogranadas. Escadas portáteis de metal levam ao nível mais alto do palco, e os Bravos estãoalocados nessas escadas, um por degrau. Uma passarela estreita é tudo o que os separa do fundodo palco, e Billy está de pé um passo abaixo do nível da passarela quando uma criatura femininamagnífica irrompe do cenário, é um espaço que se abre como uma veneziana e que ela atravessaenquanto alguns produtores se aglomeram a seu redor. Um pega seu microfone, outro lhe ofereceEvian, um terceiro apresenta algum tipo de traje pequeno e felpudo que a mulher puxa por cimada cabeça. Beyoncé. Se quisesse, Billy poderia esticar o braço e tocar a coxa da cantora. Ocabelo dela se liberta do pulôver como se fosse uma explosão solar, e de sua posiçãoprivilegiada, meio metro abaixo da passarela, Billy vê quando ela assoma com a majestade dasMontanhas Rochosas. Bem de perto, a pele dela é de um marrom tom de mel como umamanteiga de maçã, laminada com uma película de transpiração que retém a luz. Michelle e Kellyestão com seus próprios assessores um pouco adiante na passarela. Ninguém fala. Esse pessoaldo show é todo concentrado, tão quietos e letais quanto uma equipe de atiradores. Beyoncé passaos braços pela jaqueta, um modelo curto de cetim com decote ombro a ombro e gola de pelos.Conforme ela se ajeita dentro do traje, seus olhos encontram os de Billy. Desculpe, ele querdizer, vai em frente, vai em frente, ela está tão concentrada e ardente que ele lamenta atrapalhar,mesmo que só um pouquinho. Conduzir o show na frente de quarenta milhões de pessoas faz deBeyoncé um dos seres humanos com mais destaque no planeta, e que nervos fortes devem sernecessários, que concentrações bizarras de alma e energia. Ela nem sequer perdeu o fôlego! Umdomínio iogue do equilíbrio corpo-mente. Ela habita um plano astral distante, ainda que seusolhos demonstrem algum tipo de reação quando encontram os dele, parecem notar Billy por uminstante. Nessa fração de segundo ele busca alguma coisa no olhar de Beyoncé — nãomisericórdia, exatamente, nada tão grandioso quanto compaixão, talvez apenas um meroreconhecimento da humanidade por eles compartilhada, mas ela já está se virando, ela pega omicrofone e um dos produtores está dizendo arrebenta enquanto ela passa pela fenda edesaparece.

Alguém empurra Billy para a passarela, depois o puxa até a abertura. O barulho lá fora étremendo. Ele olha para a direita e vê mais Bravos posicionados de maneira similar e, nesse

momento, ele queria estar de volta à guerra. Lá, pelo menos, Billy sabia minimamente o queestava fazendo, ele teve seu treinamento para servir de orientação e toda a porra do país nãoestava assistindo para ver se ele ia foder tudo, mas isso, isso é uma merda no estilo vai-e-reza.Nível do meio uma voz está gritando em sua orelha, vire à esquerda e procure o X roxo. Derepente, a música diminui para uma cadência lenta de moedor de carne, cá-tchuncá, cá-tchuncá,é um compactador de lixo ruminando uma quantidade excessiva de detritos. No nível mais baixodo palco o Destiny’s Child está de pé na frente de três percussionistas da Prairie View, as garotaspegaram as baquetas e estão batendo os tambores com uma agitação dos cotovelos e uma posturade ataque que lembra mulheres elegantes tentando levantar um carro com um macaco mecânico.Quando é empurrado ao palco, Billy mal está respirando. É como pisar em uma nuvem repleta deluz do sol, nada além de um brilho estonteante e opaco ao seu redor e de ar sob seus pés. Ele semove em um ângulo oblíquo em direção às escadas centrais e chega, pequeno milagre, emsequência com os outros três Bravos, e todo mundo está marchando mais ou menos em sincronia.Ele ouve uma agitação em sua cabeça e pouca coisa além disso. Bem em frente ao palco osrecrutas performáticos estão jogando os fuzis acima das cabeças com as baionetas fixadas,caralho, eles podem se matar e imagina só a merda, atingido no olho com sua própria baioneta aovivo na TV!

Need me a soldjah, soldjah boyWhere dey at, where dey at

Billy é o último da fila, por isso termina sobre o X roxo que fica mais perto do centro dopalco. Direita volver, alto. De algum jeito o restante dos Bravos apareceu no nível mais baixo,Dime-Sykes-Mango-A-bort, todos enfileirados. Soldjah gonna be real fah me, canta Beyoncésobre as vozes de Michelle e Kelly,

Soldjah gonna be real fah meYeah dey will, yeah dey will

Soldjah gonna get chill fah meYeah dey will, yeah dey will

Elas estão fazendo uma serenata para os Bravos posicionados no nível mais baixo do palco,rebolando e se enroscando com passadas delicadas de gato, gemendo trinados em tons agudoscheios de tesão. O palco inteiro se tornou uma explosão de movimentos aeróbicos depreliminares, estocadas rápidas, insinuações de relações sexuais, quadris e bundas salientes. Nosegundo nível do palco, os dançarinos estão se esfregando no Bravo e não há porra nenhuma afazer a não ser ficar em posição de sentido e servir de base para uma pole-dance na frente dequarenta milhões de pessoas. Isso não está certo. Ninguém falou nada a respeito disso. O quepode ser meramente constrangedor na vida real é transformado em algo obsceno e hostil pelaTV. Billy odeia pensar que a mãe e as irmãs estão assistindo a isso, então um dos caras começa adançar perto demais, provocando Billy com rodopios deslizantes e agachamentos. Como se euquisesse ver o seu pau, otário! Billy dá uma olhada para ele; o cara sorri e sai de perto, girando.Então ele volta a se aproximar, e Billy fala com toda a emoção que consegue exprimir por entreos dentes:

Cai fora.O sujeito ri e vai embora de novo. A batida acelera enquanto uma fileira de percussionistas da

Prairie View vem marchando escada abaixo, bum-Laca-Laca-Laca bum-Laca-Laca-Laca. Osrecrutas performáticos estão fazendo uma saudação enquanto trupes de dançarinos sorridentesdecoram as laterais com movimentos exagerados de kung fu. Lá embaixo, no último nível dopalco, Sykes está chorando. Por algum motivo, Billy não está surpreso, ele só espera que tudoacabe antes que os Bravos surtem. O Destiny’s Child se reagrupa no centro do palco enquanto atempestade de luzes e fogos de artifício que se forma sinaliza que o ápice está chegando. Ascostas de Sykes deixam transparecer movimentos de soluços, ainda que ele sustente uma rígidaposição de sentido, o queixo erguido, peito para fora, e Billy nunca o considerou tão corajoso ouestimado quanto nesse momento.

I ain’t scared, I’m comin’ through,I ain’t scared, I ain’t scared,Big man can’t you handle this good love I’m offerin’ you?

Na outra extremidade do campo, as líderes de torcida se alinharam para fazer passos de cancã,e, mesmo de longe e com a névoa e a fumaça dos fogos de artifício, os olhos de Billy avançamdireto para Faison, cujo gemido é apenas uma gota no oceano de sons. O Destiny’s Child estásubindo as escadas, parando a cada degrau para lançar um olhar atrevido por cima dos ombros,provocações para as câmeras de TV. Billy não move um músculo quando as três param no níveldo palco onde ele está, uma explosão de um calor animalesco rugindo a seu lado. Enquanto elasposam, Billy não se move, mas, assim que elas vão embora, ele ergue os olhos para o céu elevanta um pouco o rosto para sentir o efeito completo do frio.

A geada é pungente, mas ele não pisca. Deixa os borrifos de gelo caírem como se fossembilhões de agulhas se derramando sobre ele, então é como se o gelo estivesse oscilando e Billyflutuasse através dele, disparando em direção a algum lugar sem nome, porém promissor. Tudomais desaparece e ele está feliz, livre, a dor aguda em seus olhos é pura velocidade e movimentoascendente. A sensação é de que ele está em velocidade de escape. A sensação é de que está nofuturo. Billy ainda está de pé no mesmo lugar, disparando como um foguete rumo ao mundo quevirá, quando Day dá um tapinha em seu ombro e avisa que o intervalo acabou.

Se no futuro você me disser que isso é amor, eu nãovou desapontar você

Ninguém vai encontrá-los. Eles se reúnem ao redor de Sykes e esperam, conforme lhes foiinstruído pela mulher com o gorro russo, mas os Bravos caíram em uma fenda na mente coletiva,de modo que ficam ali, abandonados, enquanto uma equipe de roadies se aglomera no palco ecinzas dos fogos de artifício pousam em suas cabeças. Eles foram espremidos por um espetáculode nível mundial e precisam de um tempinho para que seus nervos se recuperem. Tipo, será queuns seis anos são o suficiente? O Bravo está assado, torrado e pronto para explodir, ou quemsabe já explodindo, como é o caso de Sykes, que se senta no último degrau e chora pequenaslágrimas vivas e brilhantes de desespero.

— Eu não sei por que eu estou chorando, caralho! — grasna ele quando Lodis pergunta. — Eusó estou chorando, droga! Eu só estou chorando!

— Rapazes, vocês têm que ir embora — brada o roadie comandante para o Bravo.— Bem, foda-se você também — murmura Mango à medida que o cara se afasta com andar

pomposo, e os Bravos ficam ali.Day e A-bort se sentam um de cada lado de Sykes enquanto os outros andam a esmo por perto,

sentindo-se dilacerados e exaustos, as mãos enfiadas no fundo nos bolsos.— Caras, a gente finalmente viu a Beyoncé — salienta Crack.— Uhuuu, a gente é tão especial.— É, mas gente viu a Beyoncé de pertinho.— Aham, ela é gostosa e tal. Mas eu já peguei melhores.Ao ouvir isso, eles soltam alguns sons de quem está enjoado. Billy se encontra de pé ao lado

de Dime e confidencia:— Sargento, estou me sentindo mal.Dime dá uma rápida avaliada nele.— Para mim parece que você está bem.— Não, não estou doente, doente. É mais tipo mal. Doidão. — Ele bate na cabeça. — O

intervalo meio que me deixou maluco.Dime ri, rá-rá-rá, um estrondo alto de metralhadora em sua garganta.— Meu filho, tenta olhar por esse lado. É só mais um dia normal nos Estados Unidos.O coração de Billy se derrete um pouco com esse meu filho. O palco está desaparecendo ao

redor deles como um navio mortalmente ferido debaixo das ondas.— Eu acho que nem sei mais o que é normal.— Você está bem, Billy, você está bem. Eu estou bem, você está bem, todo mundo está bem.

Ele está bem. — Dime acena com a cabeça para Sykes. — Está tudo bem.Billy olha para Sykes e começa a perguntar É, o que a gente vai fazer com ele?, mas o roadie

comandante está se aproximando deles de novo, gritando para o Bravo dar o fora do palco dele.

— Para onde que a gente tem que ir, então? — grita Crack de volta. — Ninguém falou paraonde a gente tem que ir.

O comandante para, dispensa a eles um aflito respeito pelo momento. Ele tem bem mais queum metro e oitenta, é barbudo, de ombros largos, com um rosto calmo e relaxado como um air-bag vazio, embora haja uma dose de tensão química em seus olhos, o olhar amalucado de umroadie veterano. Seu olhar repousa por um segundo na confusão que é Sykes.

— Olha, eu não tenho a menor ideia de para onde é que vocês têm que ir, mas vocês nãopodem ficar aqui.

— Tudo bem, garotão, vou falar uma coisa para você — responde Crack. — A gente vaiembora assim que você terminar de chupar o meu pau, que tal?

Mais tarde, ao se lembrar da cena, Billy vai ficar impressionado pelo fato de que nunca chegoua ver um soco de verdade ser dado. A coisa não dura muito — dez, quinze segundos, nomáximo? No entanto, como geralmente acontece com esse tipo de situação, aquilo parece durarhoras. A princípio, o comandante tenta levantar Crack como se pensasse que fosse jogá-lo parafora do palco, porque ele é maior do que Crack, mas não tão maior assim, e que decepção deveter sido para o cara quando ele acabou preso em uma gravata. Por um instante, os dois homensmal se movem. Apenas seus olhos arregalados e pescoços inchados traem as toneladas depressão do esforço, então eles estão se retorcendo, girando em queda livre, os corpos deslizandopara fora do palco, entrando no campo. As pessoas estão empurrando, estufando o peito, temmuito empurra-empurra sem muita convicção e muito bate-boca sobre quem ofendeu quem equem ultrapassou quais limites e, é claro, todo mundo quer proteger o seu garoto. Uma refrega,você poderia chamar. Uma balbúrdia. Não é exatamente uma pancadaria bem ali, no gramadosagrado do Texas Stadium. Billy está flutuando em um redemoinho de adrenalina na potênciamáxima enquanto braços, mãos e rostos passam se batendo, então surge Dime andando a passoslargos, como um homem nadando com a correnteza a seu favor, passando por entre os corpos atéseparar Crack daquilo. Um roadie dá uma pancada nas costas de Dime e Billy agarra seucolarinho e vê o olhar selvagem do cara enquanto ele se retorce e pensa: Uou, merda, não soltaagora. O sujeito gira ao mesmo tempo que Billy monta nas costas dele, montando, montando, eleespera que não pareça muito que ele está sarrando o homem, mas aguenta firme até que ospoliciais chegam, e basta uma palavra de Dime para que o Bravo se afaste, “como um bando debelos cães de caça”, como ele gosta de chamar seu esquadrão.

Poucos ferimentos. Crack levou uma cotovelada no olho; o lábio de Lodis está partido esangrando; a orelha de Mango está dolorida em consequência de um mata-leão dado por umroadie. Os policiais agrupam os Bravos na linha lateral e escutam sua história, depois osmandam para o outro lado do campo, na direção da lateral do time da casa.

— Alguém ali vai saber para onde vocês devem ir — informa o policial.Então, como os remanescentes de alguma patrulha da selva há muito tempo perdida, o Bravo

faz sua travessia desgarrada para o outro lado do campo. Eles passaram a primeira hash markquando Billy olha para trás e vê, ai, misericórdia, Faison vindo encontrá-los, a cabeça da garotade lado, em um ângulo oblíquo questionador, o rosto cheio de preocupação. Ela está animada,Billy consegue ver. Essa é uma garota que gosta de confusão.

— O que aconteceu?Ela o observa atentamente, toca seu braço quando eles se encontram. O restante do Bravo cai

em um silêncio respeitoso.— Foi ridículo, foi só uma coisinha sem importância. A gente meio que se estranhou com os

roadies ali.

— Vocês estavam brigando? Não dava para a gente saber se vocês estavam brigando oubrincando.

— Eu acho que a gente estava brigando. Mas não dá muito para chamar aquilo de briga.— A gente só perguntou se podia ajudar — diz A-bort, e todo mundo faz careta de vômito,

protestando, menos Sykes, que cai no choro outra vez.— Você se machucou? — pergunta Faison a Billy, e então ela se dirige a todos os Bravos. —

Tem alguém machucado? Ai, meu Deus, olha só o seu lábio! — grita ela para Lodis. — Quemdevia estar cuidando de vocês, rapazes?

Ela fica irritada ao descobrir que o Bravo foi deixado sozinho.— Tudo bem — diz ela, se virando, gesticulando para que todos a sigam —, vocês vêm

comigo, a gente vai resolver isso. Eu não acredito que deixaram vocês largados lá, esse NÃO é ojeito como a gente trata os nossos convidados. — Os Bravos se amontoam atrás dela em umgrupo disperso, murmurando seus agradecimentos. — Escutem — diz ela a todos —, sabemaquela equipe de palco? A gente já teve problema com aqueles caras antes, parece que eles seacham os donos do lugar. Eles quase bateram no Lyle Lovett umas semanas atrás, eles ficaramtipo Sai do palco! Sai do palco AGORA! E Lyle e os caras dele estavam com todo o equipamentolá em cima, eles não podiam simplesmente ir embora e deixar aquilo lá. Ainda bem que asegurança estava ali ou teria sido uma situação chata.

— Eu acho que eles estão doidões — diz Mango.— Eles com certeza se comportam como se estivessem mesmo, não é, parece que eles

tomaram alguma coisa. Alguém tem que falar com o gerente sobre aqueles caras.Mais líderes de torcida estão chegando para encontrá-los, e o Bravo pensa que talvez a coisa

acabe bem. Uma espécie de socialização começa a acontecer ao longo da linha lateral do time dacasa, os Bravos e as líderes de torcida conversando enquanto alguém entra em contato com ossuperiores em nome dos soldados. A briga lhes dá algo sobre o que falar; a princípio, as líderesficam chocadas; depois, conforme a história se espalha, indignadas. O lado bom disso é que oBravo ganha uma porção extra de comiseração. Trazem gelo para o olho de Crack e o lábio deLodis. Algumas líderes de torcida examinam carinhosamente a orelha esfolada de Mango.

— Qual é o problema com ele? — pergunta Faison, indicando Sykes com a cabeça.Ela e Billy estão um pouco afastados dos demais.— Ah, o Sykes é assim mesmo.— Ele está machucado?Billy pensa sobre Sykes, que está agachado atrás de um armário de equipamentos portátil,

chorando baixinho.— Ele está com saudades da mulher.— Puxa. — Faison parece impressionada. — Sério?— Ele é um cara meio emotivo.Ela fica olhando para Sykes. Está fascinada, ou talvez só perturbada porque ninguém está

tentando ajudá-lo.— Ele tem filhos?— O segundo está para nascer.— Ai, meu Deus, eu não consigo nem imaginar. Você acha que eu devia ir lá falar com ele?— Eu acho que agora ele só quer ficar sozinho.— É, acho que você tem razão. Cruzes, os sacrifícios que vocês fazem! Quanto tempo você

disse que vão ficar por lá?— Até outubro, a não ser que a gente pare por causa de uma perda de novo.

— Meu Deus. — Isso soa como uma espécie de gemido trepidante, meu Deus, como se elaestivesse andando de patins em uma estrada de cascalho. — E quanto tempo vocês já passaramlá?

— A gente se apresentou em doze de agosto.— Nossa. Ai, meu Deus. Vocês devem estar apavorados de voltar.— Acho que sim. De certo modo. — De alguma maneira os rostos deles acabaram a poucos

centímetros de distância, e isso parece a coisa mais natural do mundo, tão básico quanto o vento,as marés, o norte magnético. — As coisas são assim mesmo, eu acho. Mas a gente vai estarjunto, o que já é alguma coisa. Isso conta muito, na verdade.

— Eu acho que sei o que você quer dizer. Tem toda essa coisa de ligação quando você édesafiado como um grupo.

Enquanto ela fala, Billy está tentando gravar o rosto dela na memória, por exemplo, a supremaexcelência da delicada ponte de seu nariz, ou o punhado de sardas no alto de sua testa, o modocomo o tom gengibre-caroteno delas combinava perfeitamente com seu cabelo. O desejo o atingee o faz abrir bem a boca, digamos que como um leão dando um rugido, e, com ternura, ele segurao rosto perfeito de Faison entre seus lábios por algum tempo.

— Às vezes eu me pergunto se a coisa toda pode ser um erro. Quer dizer, eu acho que a gentetem que lutar contra o terrorismo e tal, mas é tipo, certo, a gente se livrou do Saddam, quem sabea gente devesse só trazer nossos caras de volta para casa e deixar os iraquianos cuidando daquilopor conta própria.

— Às vezes eu também acho isso — diz Billy, se lembrando de alguma coisa que Shroomfalou certa vez: Talvez a luz esteja na outra extremidade do túnel.

— Rá rá, com certeza. — Ela espia por sobre o ombro dele. — O segundo tempo vai começardaqui a pouco — comenta ela, então se afasta e fita os olhos de Billy. — Escuta, posso fazer umapergunta pessoal?

— Claro.— Você está saindo com alguém?— Eu não — admite ele bravamente, com uma resignação jovial.Ele não se importa se ela descobrir que ele não é um garanhão.— Nem eu. Então, que tal a gente continuar se falando?— Aham — responde ele, meio engasgado, e depois: — Sim. É, eu acho que a gente devia

fazer isso.— Que bom. — De repente, ela está agindo de uma forma muito eficiente e profissional. —

Você está com seu celular? Pega seu celular que eu vou passar meus contatos, então você me ligae deixa uma mensagem, assim eu vou ter os seus. Porque, sinceramente, eu não quero perdervocê.

Ela diz isso assim, uma declaração casualmente avassaladora de um fato estupendo. Ele, Billy,uma pessoa que ela não quer perder! A vida se tornou um milagre para ele. Talvez ele devessesimplesmente ir em frente e pedi-la em casamento.

— Qual é seu sobrenome? — Ele está segurando o celular.— Zorn.Billy pigarreia.— Eu sei, todo mundo acha engraçado.Billy não fala nada.— Quer dizer “fúria” em alemão.— Entendido — diz ele, inexpressivo.

— Para com isso! Você é tão engraçado.Faison está ao lado dele, as cabeças praticamente se tocando enquanto ela o observa digitar os

contatos. O celular dá aos dois uma justificativa socialmente aceita para que fiquem tão perto, oque é bom, porque isso está acontecendo na frente de milhares de pessoas. Billy respira fundo,inalando o aroma fresco de ar livre que ela tem, o cheiro pungente de baunilha que vem da nevee do vento de inverno. É como se ela tivesse absorvido a mais doce essência que a estação tem aoferecer.

— Quem é Kathryn?Billy está passando pelos nomes de sua lista de contatos.— É a minha irmã.— Você recebeu uma ligação dela.— Eu sei. — Ele destaca o nome seguinte. — Essa é a minha outra irmã.— Elas são mais velhas, mais novas?— Eu sou o mais novo. Essa é a minha mãe.— Denise? E não “mãe”?— Bem, esse é o nome dela.Faison ri.— Cadê o seu pai?— O meu pai é inválido. Ele não tem celular.— Ah!— Ele teve dois derrames uns anos atrás e ficou com a fala comprometida.— Sinto muito.— Tudo bem. É a vida.Ela está segurando o braço dele logo acima do cotovelo, seu aperto escondido pelo pompom.— Você vai visitá-los antes de ir embora?Billy sente um nó repentino na garganta.— Ah, não. — Ele engole. Está tudo bem. — A gente se despediu ontem.— Que merda.Ela se aproxima mais alguns milímetros.— Aqui está você.Ele passou pela lista até chegar ao final.— Zorn. Sempre sou a última na lista de todo mundo.— Eu vou mudar seu nome para Fúria, assim você não vai mais ficar no final.Ela ri, olha por cima do ombro. As líderes de torcida estão seguindo em direção ao túnel para

dar as boas-vindas aos jogadores no campo.— Querido, eu tenho que ir — diz ela, dando um aperto mais forte no braço dele. As mãos

dela recuam como se tivessem levado um choque, então ela o aperta de novo, depois apalpa todaa parte superior do braço dele. — Meu Deus, que corpão que você tem. Você tem pelo menos umgrama de gordura?

— Não muita, eu acho.— Não muita, eu acho — repete ela com uma voz rouca, e ri. Ela ainda está passando a mão

no braço dele. — Você nem sabe quão bom você é, sabe? Isso deixa a coisa ainda melhor! —declara ela com um entusiasmo delicioso, depois dá um abraço rápido e ardente nele, como seestivesse agarrando uma boia antes que a tempestade a arrancasse dali. Billy quase emborca emum delírio de êxtase. Como é maravilhoso, como é divino que alguém goste de você por você serquem é, ser manuseado, afagado, tateado, apalpado e ser, de modo geral, desejado. — Certo, eu

tenho que ir — diz ela, soltando-o. — Vem me ver na linha de vinte jardas, no mesmo lugar.Billy diz que vai, e ela sai trotando pela linha lateral atrás das demais líderes de torcida. Os

Bravos se viram conforme ela passa dando uma corridinha, seus olhares atraídos impotentementepelo balanço de sua bunda dentro daqueles porta-copos minúsculos que se fazem passar porshorts. Billy seleciona o número de telefone dela e espera durante seis toques enquanto observaFaison se posicionar na boca do túnel. Os primeiros jogadores chegam ao campo dando umacorridinha, como se fossem rinocerontes se arrastando. O telão traz um refrão do Guns ‘N’Roses, as líderes de torcida ficam na ponta dos pés e balançam seus pompons bem alto, e umaonda de aplausos rola pelas arquibancadas como se fosse um trovão ribombando por uma dasfaces de uma montanha.

— Oi, você ligou para Faison! No momento eu não posso atender...Isso causa uma sensação estranha em Billy; observar, em tempo real, a Faison de carne e osso

enquanto escuta a voz desencarnada dela dizer algo em seu ouvido. Isso delimita a situação, dáfoco, traz perspectiva. Isso o deixa ciente de estar ciente de si mesmo, e eis um mistério sobre oqual parece valer a pena pensar: por que esse empilhamento de consciência deveria sequerimportar? No momento, tudo o que ele sabe é que há uma estrutura nisso, uma sensaçãoprazerosa de estabilidade ou ordem mental. Um tipo de conhecimento, ou quem sabe uma pontepara isso — como se a existência não necessariamente precisasse ser uma progressão idiota emque você cambaleia de uma porcaria para outra... Como se você pudesse aspirar a algum tipo decontexto em sua vida, uma condição que Billy associa à maturidade. Então vem o bipe, e eleprecisa falar. A mensagem engraçadinha que deixa para ela — dois segundos depois de desligar,ele não consegue se lembrar do que disse.

Sanidade temporária

Os últimos jogadores estão se dispersando após saírem do túnel e aí vem Josh, trotando com eles,parecendo alguém que acabou de sair de um comercial da Polo. Como ele faz isso? Cada cabelo,cada fio, cada vinco e cada prega no lugar, como se ele estivesse revestido de um verniz deperfeição almofadinha.

— Foi mal, foi mal, foi mal — entoa ele em um tom monocórdio violento. — Eu sinto muitomesmo, a gente estragou tudo, estragou tudo, vocês não deviam ter sido deixados de lado assimde jeito nenhum.

E ele se lança em uma detalhada explicação da logística do pós-intervalo, o que basicamentesignifica que ficou esperando no ponto X preestabelecido ao longo dos últimos vinte minutos.

— Então você está falando que uma das garotas com prancheta devia ter levado a gente até lá— esclarece Dime.

— Basicamente, sim.— Então, como é que isso é culpa sua?Josh abre a boca, ele vai fazer uma tentativa, mas o Bravo lhe poupa a dor de cabeça com uma

zombaria em grupo. Jóóóóóóóósssshhhhhhhhhiiii! O Joshster. Jash. Ele é bonzinho demais, porisso que o Bravo adora esse bobalhão.

— Ei, Josh, você ficou sabendo da nossa briga?— Espera, o quê? Que briga?— Aquela em que a gente acabou de se meter. — Crack sorri e ergue o saco de gelo.— É, Josh, isso foi sua culpa também — diz Day.— Espera, espera um pouquinho. Vocês estão brincando comigo. Ai, merda, gente, o quê...— Jash, fica frio. Está tudo bem.— É, Josh, a gente gosta de brigar. É tipo o que a gente mais faz.— Cara, você precisa lembrar que a gente é basicamente um bando de macacos.Day pergunta sobre o pós-festa, que ele define como sendo qualquer lugar onde a Beyoncé e

as meninas estiverem, que é onde ele gostaria de estar. O Bravo concorda com isso de maneiraunânime, mas Josh acha que o Destiny’s Child já foi embora do estádio. Billy está cansado deperguntar sobre o analgésico, então nem sequer se dá ao trabalho. Eles pegam um elevador decarga e sobem até o saguão do primeiro andar. Crack, Mango e Lodis seguem para o banheiromasculino a fim de cuidar de seus ferimentos. O restante do Bravo fica no saguão e liga paracasa. Você me viu? Como eu estava? Billy decide que essa é a versão recruta de um pós-festa,telefonar para a família. Ele pega o celular e liga para Kathryn, mas quem atende é sua irmãPatty.

— Oiiiiiii, irmãozinho — trina ela do meio de sua bebedeira, a voz toda zonza e melosa. —Você estava tão bonito na TV! A gente ficou muito orgulhoso de você, maninho.

— Obrigado.— Entãooooo — ela faz uma pausa para tomar um gole de sua bebida —, como ela é?

— Quem?— A Beyoncé, idiota!Billy ouve a mãe deles gemer ao fundo: Por favor, não chama o seu irmão de idiota.— Ah, ela. — Billy finge bocejar. — É, ela é ok. Um pouco cadeiruda.Patty rebate isso com um vociferante Rá!.— Você conheceu ela?— Nem tive a oportunidade.— Mas você estava bem ali no palco!— É, mas aquilo foi o mais perto que eu cheguei. E não parecia ser a melhor hora para...Ela quer saber se ele conheceu alguma outra celebridade. Billy não se importa, mas isso meio

que o desanima, falar sobre essas pessoas. Teve a atriz de Walker, Texas Ranger, a loira que fezo papel da promotora corajosa. O senador Cornish, que tem a maior cabeça que Billy já viu navida. Jimmer Lee Flatley, astro meia-boca da música country, e Lex, o bonitão de Fort Worthque conseguiu chegar até a rodada final do Survivor. Ele joga mais alguns nomes, como seestivesse dando moedinhas de troco para uma nota de dólar.

— Escuta, aquela coisa que vocês estavam fazendo no fim, o que era aquilo? A gente ficouaqui se perguntando.

Que coisa?— Bem, logo ali, no final, quando você estava olhando para o céu. Como se você estivesse

rezando ou coisa assim.— Eles mostraram isso?— Bem, mostraram.Ela ri quando o volume da voz dele aumenta.— Tipo um close?— Não um close de verdade, mas eles mostraram. Por um segundo, praticamente só tinha

você na tela.Isso faz Billy surtar, embora ele não saiba por quê.— Bem, eu com certeza não estava rezando. — Ele se aflige em silêncio por um instante. —

Ficou esquisito?— Não. — Ela ri.— Você estava meigo. Você estava bonitinho. A gente ficou muito

orgulhoso de você.— Eu não me lembro disso — diz Billy, embora ele se lembre perfeitamente. — Estava quente

lá em cima com todas aquelas luzes e tal. Pode ser que eu estivesse só tentando pegar um poucode ar.

Ela começa a contar mais uma vez como ele estava bonito e como parecia corajoso, masKathryn toma o telefone dela.

— Oi.— Oi.— Então, nada de Beyoncé, hein.— Acho que não.— Muito bem, é provável que ela seja uma filha da puta. Espera um segundo... — Portas se

abrem e se fecham; os barulhos da casa somem e são substituídos por um silêncio delicado einsondável. Kathryn saiu. — Meu Deus!

— O quê?— Frio para cacete aqui fora. Não é uma boa ideia ser um animalzinho selvagem ao ar livre

hoje. Você está agasalhado aí?

— O suficiente.Kathryn conta que ela e Brian passaram várias horas brincando na neve durante a tarde,

juntando o bastante para fazer um boneco de neve tampinha.— Ele está desmaiado no seu quarto agora, acho que tirei o couro dele. A gente gravou o

intervalo, porque aí ele pode assistir você mais tarde. Mas, hum, escuta. — Ela baixa a voz. — APatty me contou o que você disse, sobre o Brian. Sobre ele nunca se alistar no Exército.

Billy fecha os olhos, xinga em silêncio.— E eu não acho que você deve voltar.— Kathryn.— Só escuta, por favor, só me escuta, ok? Eu entrei em contato com umas pessoas, aquelas

que falei para você. O grupo em Austin.— Eu realmente não estou interessado em falar disso.— Só escuta, por favor, Billy, só escuta um minuto. Eu falei com eles duas vezes, eles são

boas pessoas, sabem o que estão fazendo. Têm advogados, recursos, eles não são um bando demalucos. E querem mesmo ajudar você. Eles estavam torcendo para que alguém feito vocêtentasse falar com eles.

— Alguém feito eu.— Um herói de guerra. Alguém que o movimento pudesse apoiar de verdade.— Ai, Deus.— Só escuta! Um desses caras, um integrante do grupo deles, tem um rancho de mais de

quatro mil hectares onde você pode ficar. Eu estou falando, cara, essas pessoas têm umas jogadassérias. Eles podem mandar umas pessoas encontrarem você no estádio e levar você para oaeroporto, eles vão mandar você de avião particular lá para o rancho hoje à noite. Você ia sumirpor umas semanas enquanto os advogados arranjam tudo.

— Isso é Ausência Não Consentida, Kathryn. Eles atiram nas pessoas por causa disso.— Não em você, não depois de tudo o que você passou. Esses advogados sabem o que estão

fazendo, Billy, eles têm todo tipo de estratégia para casos como o seu. E eles vão botar umaempresa de relações-públicas para trabalhar nisso também, esses caras são profissionais. Dá paraimaginar como eles podem fazer o governo parecer uma merda se processar você? Depois detoda a porra do país ver o que você fez na TV?

— Eu não estou doido, se é isso que os advogados estão pensando. Então, eles podemesquecer essa história.

— É claro que você não está doido, só um maluco ia querer voltar para a guerra. Osadvogados vão pleitear sanidade temporária para você, que tal? Você é sensato demais paravoltar para a guerra, Billy Lynn ganhou juízo. O resto do país é que é maluco por querer mandarvocê de volta.

— Mas Kathryn.— Mas Billy.— Eu meio que quero voltar.Ela grita. Ele acha que consegue escutar o grito ecoando nas árvores do quintal.— Não, sem chance, eu não aceito isso. Você não pode querer voltar para aquele lugar.— Mas eu quero. Eu não posso ficar aqui se o resto do esquadrão vai voltar. Se eles estiverem

lá tomando tiro, eu quero estar junto com eles.— Então, talvez todos os Bravos devessem ficar, que tal? O Bush deu uma medalha para

vocês todos, ninguém vai pensar que vocês são covardes por não voltarem.— A questão não é essa.

— Certo, me explica. Qual é a questão?— Bem, eu me alistei.— Sob coação! Graças a mim! Eu e as minhas merdas!— Não, a escolha foi minha. Foi isso que eu quis fazer. E eu sabia que eles provavelmente iam

me mandar para o Iraque. Ninguém mentiu para mim.Ela geme.— Billy, tudo o que esses FDPs fazem é mentir. Você acha que se eles contassem metade da

verdade a gente ia ter entrado na porra da guerra? Você sabe o que eu acho, eu acho que a gentenão merece que vocês morram pela gente. Nenhum país que deixa os governantes mentiremassim merece que um único soldado morra por ele.

Ela desata a chorar, um som horrível, como uma pá raspando um pedaço de pedra.— Kathryn — diz Billy, e espera um pouco. — Kathryn. Kay. Está tudo bem. Eu vou ficar

bem.— Desculpa — diz ela. A voz da irmã está úmida e embargada. — Merda. Eu prometi para

mim mesma que não ia chorar quando falasse com você, Billy. É só que é tudo tão... deixa paralá. Tudo a respeito disso é uma merda.

— É, bastante.— Escuta, não fica bravo comigo. Mas eu dei o seu celular para essas pessoas. — Billy range

os dentes, não fala nada. O principal é não fazê-la voltar a chorar. — Só fala com eles, Billy, porfavor? Só escuta o que eles têm a dizer. Eles são boas pessoas, eles podem resolver a suasituação.

Ele não diz sim nem não. Kathryn entra em casa de novo, para entregar o telefone a Denise, e,enquanto espera, Billy tenta imaginar como a vida deles vai ser se ele não voltar. Ele sabe queKathryn sobreviveria, um triunfo da fúria sobre a culpa. Patty também; ela tem o Brian. Mas e amãe dele? Modéstia à parte, seria horrível para ela, provavelmente fatal, ainda que não deimediato. Ele visualiza um processo longo e demorado de entorpecimento interno que vai sematerializando em sua mente, como uma mudança climática, uma praga dos dias muito frios ecom vento, geada, um dia que não chega a clarear, com nuvens que vão escurecendo até ficaremnegras. Dias como o de hoje, na verdade.

Mas, por enquanto, ela está bem; o intervalo a deixou animada.— Aquilo foi uma desgraça — diz ela a Billy. — Todas aquelas reboladas libidinosas, é o tipo

da coisa que você vê num show de dança erótica numa exposição agropecuária de cidade dointerior. Eu não entendo como é que uma porcaria dessas passa na TV.

— Não discordo, mamãe. Não foi ideia minha.— Tipo aquela mulher se mostrando no Super Bowl, lembra? Se as coisas continuarem assim,

as pessoas vão simplesmente parar de ver. Um monte de gente está de saco cheio. Você viuaquilo? Não dava nem para chamar de dança...

— Mãe, eu estava lá.Ela bebeu uma ou três taças de vinho, ao que parece. Isso aí, mamãe, bebe mais uma. Deus

sabe que essa mulher está precisando se divertir.— ...eu lembro que, quando o Tom Landry era o técnico, nunca se via nada disso. Eles tinham

critérios. Ele segurava aquele time no cabresto. Eu não sei se foi desde que o Norman Oglesbycomprou o time, ou se foi aquele técnico que ele arranjou, ou alguma daquelas outras pessoasque ele contratou...

Quanto mais fala, mais lamurienta e virtuosa ela fica, e menos atenção presta a si mesma. Billydá pequenos murmúrios, concordando, e espera que o monólogo maternal acabe.

— Ouvi falar que vocês vão fazer um banquete aí.— Bem. É a mesma coisa de todos os anos.— Então vai ser ótimo. Não vai se cansar, hein.— Não, eu estou bem, as meninas aqui estão ajudando. Vocês já comeram o jantar de Ação de

Graças?— Sim, senhora, eles alimentaram a gente muito bem. Levaram a gente para um clube aqui no

estádio.— Ora, isso é ótimo.Mais uma vez ele pensa em como a vida dela será lamentável se ele bater as botas, modéstia à

parte. Um marido incapacitado, filho morto, pilhas e pilhas de despesas médicas... Ele pensa quetalvez seja melhor passar o seguro de veterano dele para uma categoria acima, então se perguntase todo o dinheiro iria para os hospitais.

— Como o papai está?— Ele está bem. Está no escritório assistindo ao jogo com o Pete.— Ei, que dupla engraçada.— Bem, eles parecem se dar bem.Pobre mamãe, ela não consegue deixar de ser o palhaço sério no circo de sua própria vida.— Onde é que você está agora?— No saguão. Eu acho que eles vão levar a gente de volta para os nossos lugares.— Você está agasalhado?— Eu estou ótimo, mãe.— Porque eu vi que você não estava usando nenhum tipo de casaco.— Eu estou bem. Está bem quente aqui dentro do estádio.— Bem, eu tenho certeza de que você está ocupado, então vou deixar você ir.— Na verdade, não — diz ele, exasperado.Talvez seja a última vez que eles vão se falar, sem querer ser dramático em relação a isso!, e

ela está dando um passa fora nele, no próprio filho. Não que ela tenha alguma intenção oculta aofazer isso, ele sabe. É simplesmente seu hábito de uma vida de moderação no trabalho, anecessidade que ela possui de transformar tudo em rotina, o dia a dia modesto e tépido. Eleentende todo o conceito de limites, mas existe um ponto em que essa mania de normalizar setransforma em algo tóxico.

Talvez seja por isso que ele tenta algo novo.— Certo, mãe, diz para todo mundo aí que eu os amo. E eu amo você também.— Certo tchau obrigada tenha um bom dia — diz ela, apressada, e Billy não consegue

impedir uma risadinha de escapar.Deixa ela, diz Billy a si mesmo. Só deixa ela. Pressioná-la por alguma coisa genuína parece

ser algo quase cruel a essa altura. Ele desliga e sente um espasmo de pesar tão intenso que seusjoelhos se flexionam um pouco. Sua mão encontra a parede e ele precisa lembrar a si mesmo quenão se trata de uma certeza absoluta de que ele vai morrer no Iraque. Se considerar apenas aprobabilidade matemática, ele tem até mesmo uma chance razoavelmente boa de voltar sem umarranhão evidente, a não ser as lacerações e os ferimentos causados por estilhaço que ele jásofreu por ter sido mandado pelos ares na Dead Girl Road, e Billy sabe que, se conseguir voltarpara casa, ele vai ser tão bom. Bom para a mãe, bom para a família. E transcendentalmente bompara Faison. Ele sente isso crescendo dentro do peito, esse senso poderoso (embora nãoexatamente perfeito) de como levar uma vida decente e intensa. Não que a pessoa aprenda defato como fazer isso a não ser ao fazê-lo para valer, ao dedicar anos a esse propósito — como se

houvesse uma salvação específica para soldados de combate, uma que surgisse por meio doaprendizado de como sentir paixão pelas coisas do dia a dia... É o que ele acha, pelo menos. É oque sente. De qualquer modo, Billy gostaria de ter a chance de descobrir.

Mato vampiros em troca de comida

O Bravo está em movimento de novo. O saguão está cheio de torcedores que querem fugir umpouco do frio, e não são poucos os que já estão se dirigindo para as saídas. As pessoas gritampara o Bravo, se desviam para ir apertar as mãos deles, mas não tanta gente quanto antes. Omajor Mac está montando guarda na fileira 7, o único sentinela tomando conta da fileira deassentos deles, que já ganhou uma demão de gelo fino. Billy termina na cadeira ao lado docorredor, como sempre, tendo Mango à sua esquerda. Conforme a agitação pós-briga e as líderesde torcida desaparecem, os Bravos começam a perceber como estão em uma situação de merda.Ali estão eles, totalmente expostos à geada, assistindo ao terceiro quarto de um jogo chato paracacete e empatado em 7 a 7 dois dias antes de retornarem para a guerra. Que merda! Mangogrunhe e se debruça.

— Cara — diz ele para Billy —, eu só quero dormir.— Aham. Como está sua orelha?— Doendo para caralho.Depois de um instante os dois acham isso muito engraçado.— O que ele fez, tentou arrancar sua orelha?— Ele não estava fazendo nada, a não ser pesar uns cento e trinta quilos. Se a perna dele não

fosse tão gorda a ponto de eu não conseguir passar meu braço em volta dela, eu teria derrubadoele. Eu estava tipo, cara, você nunca ouviu falar de diabetes? Talvez fosse bom você perder unsquilos, abrir mão das porções gigantes por um tempo.

Eles tentam assistir ao jogo, mas o negócio está tão devagar que nem faz sentido. Ostorcedores ao redor deles estão protegidos debaixo de cobertores, guarda-chuvas, um saco de lixoaqui e ali. Só os Bravos se sentam como se fossem gado no pasto, totalmente expostos àscondições climáticas. Billy pega o celular e fica olhando para o número de Faison. Sente vontadede ligar só para ouvir a mensagem da caixa postal, que soa mais sulista do que a voz real dela, asvogais mais redondas, o palato duro oco por dentro.

— Cara, acho que eu estou apaixonado.Mango ri.— Seria bem gay da sua parte se você não estivesse. Eu vi o jeito como vocês estavam se

pegando lá no campo. Significa alguma coisa quando elas agem assim, sabe? Elas não tocam emvocê a não ser que estejam amarradonas. — Billy encara o telefone. — Você pegou o númerodela? — Billy assente, solene. — Bem, porra, ela com certeza gosta de você. É meio que umamerda isso acontecer bem no finalzinho da viagem.

Billy geme diante do prazer e da dor que isso traz, essas forças violentas e opostas que o estãotransformando fisicamente em algo novo. O telão mostra a animação Heróis Americanos denovo, em seguida roda o mesmo ciclo de comerciais ensurdecedores, os mesmos anúncios desempre passando na mesma ordem enlouquecedora. CAMINHÕES FORD FEITOS PARARESISTIR! TOYOTA! nissan! TOYOTA! nissan! PARA TODAS AS SUAS NECESSIDADES

BANCÁÁÁÁÁRIAS DUM-DI-DI-DUM! Sykes canta com seu falsete pavoroso, If you can’tmake me say ooo!, então faz uma pausa para dizer aos torcedores à frente e atrás dele que osama, que ama todos os americanos em todos os lugares, e depois começa a cantar de novo...

WhaaaaaAAAttt’s love got to do with it, got to do with it,WhaaaaAAAttt’s love but a secondhand emoooo-shun

Vem se espalhando pela fileira a fofoca de que, há uns vinte minutos, Dime deu a ele umtremendo de um Valium, e agora Sykes é a garotinha mais feliz de todos os Estados Unidos.

Billy se assusta, quase deixa o celular cair quando toca. Verifica a tela.— É ela? — pergunta Mango.Billy balança a cabeça. Não reconhece o número. O celular dá toques altos, seguidos, um

minuto depois, pelo piar de uma mensagem de voz que aguarda ser ouvida. Billy encara otelefone. Queria que o aparelho dissesse o que ele quer. Liga para a caixa postal e escuta amensagem, depois se recosta e fecha os olhos. O que Shroom faria? Voltaria para a guerra, semdúvida alguma, mas aquele era o destino dele no ciclo da vida, estava cumprindo sua encarnaçãode guerreiro e só poderia passar ao próximo estágio se realizasse essa missão.

— Em que estágio eu estou, então? — perguntou Billy, meio que brincando, mas Shroom nãoriu.

Você não vai saber o que é até se dedicar a isso, disse o homem. Estuda, medita, contempla,foca. Você não vai descobrir se ficar só se deixando levar. Então, com os olhos ainda fechados,Billy tenta ver a si mesmo no rancho. Muito seguro e remoto, disse a voz na mensagem dotelefone. É um bom lugar. A gente garante que não vai faltar nada para você. Na visão, Billy estácaminhando por uma trilha. Está usando calça jeans, botas Timberland, uma camisa de flanela eum casaco de veludo cotelê. A trilha leva para o meio de uma floresta, e tem um rio por perto.Ele escuta o xuuuuush da correnteza, às vezes vislumbra o reflexo da água por entre as árvores,mas a visão tremula e gagueja até que Faison se materializa ao lado dele, e então tudo isso sedesdobra em um lindo HD, ele e Faison vivendo tranquilos no seu refúgio, em segurança,apaixonados, transando oito ou nove vezes por dia, cozinhando e assistindo a filmes, saindo parapassear com os cachorros. Haveria cachorros. E muitos livros, livros empilhados por toda parte.Ele se disciplinaria para estudar, na melhor tradição de Shroom, e por isso saberia muito maisquando a merda desmoronasse. E quando isso acontecesse, quando chegasse a hora de sedefender? Ele teria Faison, os advogados, sua Estrela de Prata a seu lado. Ele seria capaz. Eledaria declarações. Como diz a letra da música de Louis Armstrong, vocês não vão mais estudar aguerra.

Rrrrrrrrraaaahhhhhhhxxxxxxx-annnnnnnnn, Sykes está guinchando a plenos pulmões, youdon’t have to, então se vira e começa a falar com os torcedores da fileira 8 sobre como ele amaos Bravos, porra, é, ele ama esses caras como se fossem irmãos, ele é só um branquelo pobre eidiota de Coon Cove, na Flórida, mas pelo menos tem o Exército, uhuuu! No fim da fileira, Lodisestá afundado no assento, dormindo. Uma camada fina de geada se acumulou em seus ombros ebraços como em uma propaganda engraçada de xampu anticaspa. Um pouco de tecidosubcutâneo transborda do corte em seu lábio. A senhora rica e bacana na frente deles acaba pornotar o soldado dormindo, uma visão tão irresistível que ela se vira para dar uma olhada mais deperto.

— Ele não é uma gracinha? — pergunta Mango.

— Como é que ele consegue dormir debaixo dessa geada? — grita ela.— Tecnicamente, ele não está dormindo, senhora — informa Crack à mulher. — Ele está

desmaiado.A senhora ri. É uma madame legal. O marido e os amigos estão rindo também.— Mas está tão horrível aqui — protesta ela. — Ele não devia pelo menos estar com um

cobertor ou outra coisa? O Exército não dá casaco para vocês?— Ah, senhora, não se preocupe com ele — garante Crack. — A gente é da infantaria, isso é

meio que ser um cachorro ou uma mula, a gente é idiota demais para ligar para o tempo. Ele estábem, acredite, ele não está sentindo nada.

— Mas ele pode congelar!— Não, senhora — interrompe Mango. — A gente dá uns socos nele de vez em quando para

manter o sangue dele correndo. Assim, olha. — E ele dá um golpe forte no bíceps de Lodis. Ohomem rosna e estica os braços, mas em nenhum momento abre os olhos. — Está vendo? —Mango sorri. — Ele está bem. Ele está feliz. Ele é tipo uma barata, não dá para matar!

A senhora sussurra em meio a seu grupo, depois se ajoelha, virando-se para trás em seu lugar,e joga um Snuggie (um daqueles cobertores individuais com mangas embutidas que é anunciadotarde da noite na TV idiotizante) em cima de Lodis. Pouco depois, os Bravos enfiam um cartazfeito à mão embaixo do queixo de Lodis. VETERANO SEM TETO — MATO VAMPIROS EMTROCA DE COMIDA. Abaixo disso: TENHA UM DIA ABENÇOADO. E uma carinhasorridente. A multidão se anima quando um atacante do Cowboys empurra um inimigo ecambaleia, desliza, escorrega por todo o percurso até as três jardas do Bears, mas, então, osjuízes interrompem, se reúnem na máquina de replay na lateral do campo e discutem, espiam,apontam e discutem um pouco mais, eles são uma equipe de cientistas ganhadores do Nobeltrabalhando para o avanço da cura do câncer. Por fim, a decisão é tomada. Após uma análisemais profunda... A jogada é anulada e isso é a gota d’água para o grupo de ricos, eles começam aarrumar suas coisas. Mango lembra à boa senhora de pegar seu Snuggie.

— Ah, eu não posso fazer isso — diz ela, sorrindo para Lodis, que dorme profundamente comos cílios cheios de floquinhos de gelo, aquele naco de lábio pendendo como se fosse um insetoesmagado. — Ele parece estar tão quentinho. Eu quero que ele fique com o cobertor. Diz para eleque foi um presente meu.

O Bravo irrompe: Nãããããooo!— A senhora vai mimar esse cara!— Ele cresceu numa pocilga, ele não sabe o que é ter frio!— É tipo dar um Rolex para um porco, madame, ele não sabe apreciar as coisas finas da vida.A senhora ri e faz um gesto com a mão de quem não os leva a sério.— Obrigado — gritam os Bravos enquanto ela e seu grupo vão saindo da fileira. — Obrigado

por apoiarem as tropas!— Madame bacana — diz Mango, se acomodando de novo em seu lugar.Billy concorda. Eles olham para Lodis e riem, então Mango estremece. Ele se encolhe e enfia

as mãos entre as coxas.— Parece que você tem que mijar.— Eu meio que tenho que mijar. — Mango faz uma careta e estremece, mas continua sentado.

— Você vai ver a Faison antes de a gente ir?— Espero que sim.— Cara, deve ter algum jeito de você poder pegar ela.— Eu acho que não. Eu não quero forçar a barra — diz Billy. Mango ri. — Estou falando

sério. Quer dizer, se essa fosse uma situação normal, eu só ia estar pensando no lugar para ondeeu a levaria. Mas tentar comer ela? Fala sério! Eu só conheço ela tem umas quatro horas.

— Billy, nossa situação não é normal, caso você ainda não tenha notado. Você acha que elavai continuar gostando de você por um ano inteiro, com você a milhões de quilômetros dedistância mandando uns e-mails idiotas para ela? Querida Faison como você está eu estou bemhoje a gente invadiu uma casa e matou o máximo de filhos da puta malvados que conseguiu.Essa merda cansa, cara, essa merda cansa rapidinho. Depois de um tempo nem as nossas mãesquerem escutar isso mais.

— Você é um filho da puta deprimente, sabia?— Escuta o que eu estou falando! Essa é sua melhor chance, cara. Isso é o mais perto que você

vai chegar, então vai fundo. Se ela é uma garota legal e quer apoiar as tropas...— Você é um idiota!Mango ri. O celular de Billy toca de novo.— É ela?— Não — responde Billy, verificando a tela. — É minha irmã.— Você não vai atender?Billy dá de ombros. O celular para de tocar. Um minuto depois, ele recebe uma mensagem de

texto.

Ñ vai pfv.Seja um herói 2X.LIGA DE VOLTA PRA ELE.Pfv.Maninha te ama.

Billy liga para a caixa postal de novo, mas dessa vez não ouve tanto o que o homem fala. Emvez disso, se concentra mais na voz do sujeito, qualquer informação que possa estar codificadano timbre e no tom. A voz pertence a um homem branco, culto, de meia-idade; texano, mas comum toque de cidade grande em suas palavras. Forte. Assertivo. Compreensivo. Filho, se vocêestá pensando em tomar um novo rumo na vida, a gente com certeza pode ajudar. É uma boavoz. Billy fica tentado a escutar de novo, mas lá vem Dime avançando rápido pela fileira,disparando pela pista de obstáculos formada pelos joelhos e pés dos Bravos. Ele chega aocorredor e pega seu celular, agachando-se ao lado do assento de Billy.

— A porra do Sykes está me deixando maluco — diz ele, estudando as mensagens querecebeu.

— A vida é melhor com a química, né, sargento — comenta Mango.— É, bem, ou era um remédio, ou era uma mordaça para esse merdinha. Ele vai ficar bem —

diz Dime, embora ninguém tenha perguntado. — Ele vai ficar bem quando a gente sereapresentar. É só essa outra... — Ele fica em silêncio.

Billy pigarreia.— Sargento, se você pudesse escolher, você voltaria? Quer dizer, para o Iraque.Dime ergue a cabeça; ele não está nada satisfeito.— Mas eu não tenho escolha, tenho? Então sua pergunta é irrelevante.— Mas se você tivesse escolha.— Mas eu não tenho.

— Mas se você tivesse.— Mas eu não tenho!— Mas se você tivesse!— Cala a boca!— Eu só estou...— CALADO!Billy se cala. Mango está olhando para ele com uma expressão de “mas que porra é essa?”.

Dime dá um risinho debochado e balança a cabeça.— Você queria que a gente tivesse escolha, é isso que você está falando?— Bem. — Billy percebe que foi longe demais. — Mas a gente não tem.— Exatamente, Billy, a gente não tem. A gente vai voltar e todo mundo sabe para o que a

gente vai voltar, e é por isso que a gente vai segurar nossa onda e cuidar um do outro vinte equatro horas por dia. Mas eu vou dizer uma coisa. — Dime faz uma pausa; o celular dele estátocando. — Eu não teria o menor problema se nunca mais estivesse no meio de um tiroteio. Oi.— Ele coloca o celular na orelha. — Aham. Aham. Interessante. Que tal isso, que tal se a Swankpegasse no pau dele, aí ele ia fazer?

Billy e Mango olham um para o outro. A porcaria do filme.— É isso ou... — Dime olha o placar. — Albert, a gente está quase sem tempo.Mango olha para o outro lado, sibilando alguma coisa baixa e sexual em espanhol. Mais

adiante na fileira, Sykes começou a entoar outro canto de treinamento militar: Recolham seusferidos, recolham seus mortos...

— Ele está bem aqui — diz Dime, dando uma olhada para Billy. Ele escuta por um instante,depois pergunta: — Você está disponível para uma reunião?

Billy ri.— Eu estou o quê? Claro, estou. Quando?— Agora. Com o Norm. O Josh está vindo buscar a gente.Billy sente um nó na garganta.— Tudo bem.— É, ele está disponível — diz Dime para o celular. — Mais alguém?Dime escuta, depois grunhe e desliga. Por alguns instantes ele permanece imóvel, agachado,

encarando o campo.— Sargento, você está bem?Dime volta à realidade.— Eu só estava pensando, gente rica é maluca. — Ele se vira para Billy e acrescenta, com

convicção: — Nunca se esqueça disso.— Entendido, sargento.

O dinheiro nos torna reais

Eles se encontram com Albert no corredor, do lado de fora do camarote de Norm. Ele está com acabeça baixa, as costas apoiadas na parede, digitando em seu BlackBerry com a canetinhaprateada do aparelho. Albert sorri quando os dois viram a esquina.

— Rapazes! E aí?— Já passamos por uma montanha-russa de emoções hoje — responde Dime.— Vamos esperar aqui um minuto, então vou deixar vocês a par das coisas.Ele se vira para Josh com um olhar simpático e penetrante.— Eu vou avisar ao Sr. Oglesby que a gente está aqui — diz Josh.— Ótima ideia. — Albert conduz Dime e Billy pelo corredor, um pouco afastado do camarote.

— Vocês estavam ótimos no intervalo, rapazes, vocês fizeram um excelente trabalho.Conheceram a Beyoncé e as garotas?

— De jeito nenhum — resmunga Dime.— O quê? Não? Que sacanagem. Então, o que aconteceu depois lá embaixo, no campo?

Parecia um flash mob ou coisa assim, uma multidão enlouquecida pelas promoções da BlackFriday de algum Wal-Mart lá no meio de North Jersey. A gente não conseguiu entender o queestava acontecendo.

— Não foi nada — diz Dime. — Só uns garotos fazendo coisas de garotos.— Alguém estava dando trabalho para vocês?Dime olha para Billy.— Tinha alguém dando trabalho para a gente?— No geral, não — responde Billy.— Ele vai longe — diz Albert a Dime. — Certo, camaradas, aqui está a proposta. — Ele faz

uma pausa para sorrir para um casal de passagem pelo corredor, espera até que o farfalhar doscasacos de pele e das caxemiras diminua. — O Norm topa. Ele quer juntar um grupo deinvestidores para fazer nosso filme, mas não é só isso. Ele está inspirado, digamos assim. Vocês,rapazes, o inspiraram a pensar em grandes coisas hoje. Ele está decidido a estabelecer sua própriaprodutora e começar a rodar filmes.

— É uma boa ideia. O time de futebol americano dele é uma merda — comenta Dime.Albert ri baixinho, olha para os lados.— Aparentemente, ele já vem remoendo isso há algum tempo, então a gente apareceu e ele

imagina que é a forma que Deus encontrou de dizer a ele para fazer esse filme. E, sinceramente,por que não, os estúdios estão procurando minimizar os riscos a todo custo. Um cara que chegacom o próprio produto, o próprio dinheiro, isso é uma mercadoria muito desejável emHollywood hoje em dia.

Ele para enquanto alguns outros casais passam. Um dos homens estala os dedos para Dime.— Ei, ótimo trabalho no intervalo!Dime estala os dedos de volta.

— Ei, você também!Albert espera até que eles tenham ido embora.— O fato de ele estar apostando tudo ajuda. A gente vai ter muito mais credibilidade na hora

de receber ofertas para nosso filme. Como um negócio limitado, você é uma espécie de carta forado baralho, mas e se eles souberem que seu projeto vai rolar mesmo? Mais uma razão para ele secomprometer com o filme. De qualquer jeito, até onde nosso acordo vai, assim que ele montar aempresa eu vou assinar um contrato dando a ele a preferência sobre os direitos do filme. Depois,quando a gente elaborar as ofertas, a empresa executa os direitos de venda, vocês recebem umdinheiro, e a gente entra na produção.

— Legal — diz Dime.— Eu vou precisar do consentimento de vocês para transferir os direitos de venda.Dime hesita.— Mas você ainda vai ser nosso produtor.— Com certeza.— E a situação com a Swank?— Ele ainda está com um pé atrás em relação à Hilary, mas a gente consegue lidar com isso.

Todo tipo de jeito de lidar com isso. Acredite em mim, a gente só tem a ganhar se ela estiverenvolvida no projeto. Mas olha só. — Albert tosse na mão fechada. — Entrando, vocês precisamsaber que o Norm está tendo certo problema com os direitos de venda.

— Que tipo de problema?— Uma questão de valor. Cem mil por Bravo, dez Bravos, é osso duro de roer logo de cara. A

gente já está olhando para uma porrada de meio milhão para o roteiro, depois para conseguir umprotagonista no patamar de uma Hilary, de um Clooney, a gente está falando de muitos milhõesaqui.

Dime se vira para Billy.— É aqui que a gente se fode.— Não! — grita Albert. — Não, não, não, não, Dave, tenha um pouco de fé! A gente chegou

tão longe, você acha que vou jogar vocês para escanteio agora? Dave, Dave, os seus rapazes sãoos meus rapazes, ou a gente consegue isso junto, ou a gente afunda junto. Foi isso que eu dissepara eles ali dentro, mas não vou mentir para vocês, o Norm não é o Papai Noel, ele não vaigastar nem um centavo a mais além do necessário. Ele, eles, um dos caras dele... olha, eles sãohomens de negócios, certo? Você tem que entender que eles são muito brutos na maneira depensar. Eles levantaram a ideia de negociar só com vocês dois, eles veem a sua história como oselementos principais e os outros caras, bem, eles os veem como secundários. Eu disse que ia vercom vocês, mas...

— Não.— ...aham, totalmente fora de cogitação, foi o que eu falei para eles. O Bravo vive sob o

código de honra de quem combate, eu disse. Eles nunca vão abandonar um de seus caras.— Para eles até mesmo...— Eu sei! Mas vocês têm que entender que é com essa mentalidade que a gente está lidando.

Racionalização, retorno de capital, todas essas merdas de MBA, mas eu acho que elesentenderam o recado. Ou vão ser todos os Bravos, ou não vai ser nenhum, nenhum meio-termo.

— Pode crer — rosna Dime, alto o bastante para fazer surgir risadinhas dos garçons nocorredor.

— Relaxa, David.— Eu estou totalmente relaxado. O Billy também está relaxado, não está, Billy?

— Totalmente, sargento.— Confiem em mim, rapazes, eu vou conseguir fazer as coisas darem certo para vocês. Agora,

o que eles estão oferecendo é, bem, o que vocês fariam é adiar o recebimento de dinheiro parareceber uma porcentagem do lucro líquido do filme. Vocês recebem um adiantamento quando osdireitos de venda saírem, daí recebem mais quando a gente entrar em produção...

— Quanto?— ...David, me deixe terminar, por favor. Olha, só fazendo uma estimativa, se isso tiver

mesmo o grande sucesso na escala que estou esperando, vocês vão ganhar consideravelmentemais que cem mil, no entanto, vai ser preciso aguentar as pontas e ser paciente. Quandoestabeleci um valor mínimo para recebermos ofertas lá na frente, eu estava pensando que íamoslidar com dinheiro de estúdio, mas é um esquema totalmente diferente quando se trata de cinemaindependente. Os números de forma geral são menores, as pessoas frequentemente acabamrecebendo porcentagem em cima do lucro, em vez de dinheiro. Até mesmo as estrelas recebemporcentagem se for um projeto que elas querem muito que aconteça.

— Tudo bem, entendi. Quanto?— Bem, inicialmente é bem baixinho. Cinco e quinhentos frente ao lucro quando os direitos

de venda forem liberados...Um gorgolejar começa na garganta de Dime.— ...mas você vai receber aquele segundo adiantamento quando a produção começar...— Cinco mil e quinhentos, caralho?— Eu sei que não era o que você estava esperando...— Você está de sacanagem!— ...mas quando vocês receberem o segundo adiantamento...— Quanto?— Bem, a gente ainda está trabalhando nisso, mas geralmente é atrelado ao orçamento da

produção. Quanto maior o orçamento, maior o adiantamento...— Não é esse o nosso acordo, Albert. Você disse cem mil adiantados.— Eu disse isso porque acreditava muito na nossa história, e ainda acho que a gente vai

mandar muito bem. Olha, duas semanas atrás eu achava que a gente tinha uma chance de verdadede receber lances dos estúdios. Teve um baita burburinho em cima de vocês. Mas a genterecebeu alguns nãos, e o Russell Crowe negando, aquilo realmente prejudicou a gente. E nãolevou muito tempo para o burburinho morrer, e, admito, talvez eu tenha colocado a carroça umpouco na frente dos bois, deixei todo mundo criar altas expectativas e agora vamos todos ter quenos ajustar. Além disso, filmes sobre guerra não têm dado boas bilheterias. Não falei que issopodia ser um problema? Então a gente está enfrentando isso também. Sei que cinco e quinhentosparece uma mixaria depois dos números sobre os quais a gente vinha falando, mas para jovenscomo vocês, jovens soldados com salário do Exército, isso já é alguma coisa, certo?

— Albert, nem tente falar comigo desse jeito.— Dave, só estou tentando fazer você pensar a longo prazo aqui. Isso é participação de

acionista, pense nisso como se fosse uma ação. Está adiando ganhar uma boa quantia agora paratentar ganhar uma grande soma mais adiante. E vocês, rapazes, estariam ajudando a construiralgo, é isso que significa participação nas ações. Se a companhia ganha dinheiro, vocês ganhamdinheiro, vocês vão ser parceiros da Legends nesse negócio...

— Espere, quem?— Legends. Esse é o nome que o Norm quer dar para a empresa dele.— Meu Deus, ele já tem até a porra de um nome?

— Com certeza ele já tem o nome, e isso é ótimo. Não tenho nenhum interesse em ser sócio deum cara que fica coçando o saco, e vocês também não deviam querer. Ele está pronto paracomeçar, o Norm vai fazer a bola rolar... vocês não percebem o valor disso? Como isso é raropara cacete no meu mundo? Você acaba morrendo no decorrer desse lento processo de dizer nãonesse negócio, eu respondo a você depois, eu respondo a você depois, todo mundo tem tantomedo de ferrar com tudo que eles preferem perder um rim a tomar uma decisão empresarial deverdade. Então, a gente está aqui em Dallas, a gente se encontra com esse cara, ele avalia asituação e pá, ele está pronto para começar! Não estou falando que vocês têm que amar o cara,mas têm que respeitar o poder disso.

Respeitar isso, Billy consegue praticamente escutar os Bravos rosnando. Como se sentisse dor,Dime balança a cabeça de um lado para outro.

— Mas, Albert.— O quê?— Você disse que eles amam a gente.— Eu disse, David, mas isso foi duas semanas atrás. As pessoas seguem em frente, elas

começam a prestar atenção em outras coisas.— Então está dizendo que essa é a melhor oferta que a gente vai conseguir?— Dave, estou dizendo que essa é a única oferta que a gente recebeu.— O Norm sabe disso?Albert dá de ombros.— Ele sabe que a gente andou falando com algumas pessoas.— Então, o que ele está oferecendo é, basicamente, cinco mil e quinhentos para cada um. E

isso é tudo com que ele vai se comprometer. Nenhuma garantia, a gente não vai ter mais nada.— Dave, você quer uma garantia, então vai comprar um micro-ondas. Não tem nenhuma

garantia no meu mundo, a não ser que o seu nome seja Tom Cruise.Dime suspira e, para o profundo temor de Billy, ele se vira e pergunta:— O que você acha?Mas antes que Billy consiga responder, uma porta antes imperceptível se abre entre eles e o

camarote, e o Sr. Jones se inclina para fora.— Sr. Ratner, o terceiro quarto está quase acabando.— Obrigado. A gente já vai entrar.O Sr. Jones se retira, mas deixa a porta entreaberta. Albert se vira para Dime e Billy e baixa a

voz:— Rapazes, me digam o que vocês querem. Preferem entrar ali e conversar, ou eu devo só

gritar pela porta não, obrigado?— Não — diz Dime.— Não o quê?— Isso é uma merda — diz Dime para Billy.Albert lança um grande sorriso.— Rapazes, tudo, tudo sempre é uma questão de intensidade. Agradeçam por não ser

sangramento retal.— O que acontece com o restante da coisa se a gente disser não? A grande produtora dele,

todos os filmes que ele quer fazer.Albert deixa o sorriso morrer.— Eu acho que ele está planejando dar continuidade a isso. Parece comprometido.— Você vai estar envolvido no projeto?

Albert faz biquinho.— Bem, eu ia ser idiota se não considerasse todas as oportunidades.— Albert, você é um cuzão.O produtor nem pisca.— Dave, eu consegui uma oferta para você. Se você acha que consegue fazer melhor, vamos

entrar ali e falar com o homem.— Certo, foda-se. Vamos entrar e falar.Billy diz que vai ficar bem ali, esperando no corredor, mas Dime lhe lança um olhar tão

intenso que ele se sente impelido a entrar. O Sr. Jones está de pé logo na entrada, na parte dedentro. Ele fecha a porta e a tranca assim que os homens passam. Eles descem alguns degraus atéadentrarem um espaço na penumbra, abarrotado, com pé-direito baixo e mobiliado, lembrando asala de espera de um lava-jato. É um anexo superexclusivo vizinho ao camarote oficial do dono,um espaço masculino, maturado com os cheiros misturados de suor, café queimado, vestígios defumaça de cigarro, além de uma impregnação flatulenta que pode ser a carne já passada doalmoço. Todos se viram e sorriem para os Bravos.

— Senhores! Bem-vindos à sala de guerra! — grita alguém.Eles são estimulados a ir adiante, recebendo cadeiras e bebidas. As TVs nos suportes nas

paredes estão ligadas no jogo, os anunciantes tagarelando feito papagaios na gaiola. Um barvazio ocupa um dos cantos do cômodo. Norm e seus filhos estão sentados em um balcão que seestende ao longo de todas as janelas. Espalhados pelo balcão estão notebooks, planilhas,fichários, garrafas de água e isotônicos; conforme os olhos de Billy se ajustam à pouca luz, elepercebe que não há uma gota de álcool à vista. Dois executivos do Cowboys estão andando porali, caras grandes, corpulentos, com a arrogância coçadora de saco de gerentes que começaramnas docas de embarque. O Sr. Jones se empoleira em um banco perto do bar, ainda com o paletóabotoado. As demais pessoas já afrouxaram as gravatas e dobraram as mangas das camisas,exceto Josh, que está fazendo seu trabalho de modelo na parte de trás do cômodo.

Dime pede um café. Billy diz que ele vai querer o mesmo. Norm girou sua cadeira Aeron paraficar de frente para eles, e agora esfrega os olhos e inclina a cadeira para trás, dando uma últimaolhada no placar antes do fim do quarto.

— Desculpe pelas luzes — diz ele, indicando o teto com a cabeça. — A gente deixa elasapagadas durante os jogos, se não isso aqui fica que nem um aquário. É irritante para carambaolhar para a TV e ver você mesmo refletido na tela.

— Ou mandando alguém tomar naquele lugar — diz um dos executivos. — Não que isso játenha acontecido aqui.

Norm balança a cabeça enquanto os outros riem.— A gente tenta manter pelo menos uma classificação para maiores de dezoito anos aqui.— Não são muitos os que podem passar por aquela porta — explica o segundo executivo, que

se apresentou como Jim. — Isto aqui é um santuário, garotos. Um monte de gente morreria paraestar sentada onde vocês estão.

— Vocês deviam cobrar entrada — diz Dime, e todo mundo ri, menos ele.— Eu não sei se ia dar certo hoje — retruca Norm. — Sinto dizer que não é nossa atuação

mais brilhante. Eu estava mesmo esperando dar um show para vocês, camaradas. Mas quem sabea gente vira no último quarto.

— Se o Stennhauser fizesse algum bloqueio ia ser legal — diz o vai-tomar-naquele-lugar,provocando risos amargos.

Norm se vira para um dos filhos.

— Skip, quantas carregadas de bola o Riddick tem?Skip consulta o notebook.— Dezenove. Para trinta e quatro jardas.Um gemido surge em diversas áreas do salão.— Ele já era, treinador — diz Jim. — Vamos dar uma chance para o Buckner, pelo menos ele

está com as pernas descansadas.— Ele não tem nenhum buraco para acertar, é isso que isso importa — diz o vai-tomar-

naquele-lugar. — A gente precisa empurrar uns corpos lá pela frente.Norm franze o cenho e bebe um gole de sua água Fiji. Skip lhe entrega uma folha de papel que

acabou de imprimir, a partir da qual Norm começa a ler em voz alta as estatísticas do terceiroquarto. Um garçom entra por uma porta lateral, mostrando momentaneamente um pedaço docamarote principal. Lá está acontecendo uma bela festa; aqui, um longo dia no escritório. Billyaceita seu café e bebe alguns goles. Ele gosta daqui. Os ambientes fechados evocam nele umasensação primitiva de segurança, um tipo de intimidade sentida ao se agachar em volta dafogueira de um acampamento e que parece ser algo especificamente masculino. É aquele lugar hámuito procurado de segurança definitiva, o que existe de melhor na sensação estilo caverna, o arde exclusividade entre camaradas. Ele adoraria parar de pensar na guerra, mesmo que apenas porum instante, e se dar ao luxo de fingir que estará para sempre nesse espaço.

— Essa defesa é a mais difícil que a gente encarou o ano todo — comenta Norm, talvezensaiando para a coletiva de imprensa do pós-jogo.

Ele deixa o papel impresso de lado e fala por cima dos Bravos com Albert, que escolheu sesentar em um lugar onde os soldados não conseguem ver seu rosto.

— Albert, você contou para nossos jovens amigos nossos planos para o filme deles?— Claro que contei! — responde Albert, expressando uma animação um pouco exagerada.— Parabéns por sua produtora, senhor — diz Dime. — Parece algo épico.— Obrigado, sargento, muito obrigado. Isso é uma coisa em que eu já vinha pensando há

algum tempo, e estamos animados de levar isso adiante, incrivelmente animados. Isso comcerteza vai ser um desafio, mas, com o Albert no time, acho que temos uma boa chance. E estouparticularmente animado de trazer a história de vocês para a tela, e vou prometer uma coisa agoramesmo e, por mais que eu enfatize, não é o suficiente: a gente vai com tudo nisso. Qualquer umaqui vai dizer para vocês, quando eu resolvo fazer uma coisa, eu não faço pela metade.

— O Norm ama o trabalho dele — diz o vai-tomar-naquele-lugar.Todo mundo ri, e Norm se junta a eles com uma risadinha infantil. Ele não liga para essa

provocação dissimulada a respeito de sua reputação de workaholic. Billy é tocado pelaprofundidade que encontra nos olhos azul-piscina de Norm, a sinceridade, a evidente ânsia paraque concordem e se conectem com ele. Observando-o bem de perto, fica difícil acreditar que eleé tão mau quanto as pessoas dizem.

— Eu acredito na história de vocês — diz Norm aos Bravos, dando apenas o mais breve olharpara o campo —, e acredito no bem que isso pode fazer pelo nosso país. É uma história decoragem, esperança, otimismo, amor pela liberdade, todas as convicções que motivaram vocês afazer o que fizeram. E acho que esse filme vai ser uma longa jornada rumo à recuperação denosso ânimo e nosso compromisso com a guerra. Vamos encarar os fatos: muita gente estádesanimada. A insurgência ganha alguma força, o número de vítimas aumenta, os preçoscontinuam subindo, é natural que algumas pessoas acabem perdendo a coragem. Elas seesquecem por que a gente foi para lá em primeiro lugar... por que a gente está lutando?Esquecem que tem algumas coisas pelas quais realmente vale a pena lutar, e é aí que a história de

vocês entra, a história do Bravo. E se o pessoal de Hollywood não está pronto para botar a mãona massa, bem, eu fico feliz de assumir a função, fico mais do que feliz. É uma obrigação queestou querendo assumir.

Skip está absorto em sua tela de computador. O outro filho de Norm — Todd? Trey? — viroua cadeira para ouvir o pai, embora, no momento, esteja digitando uma mensagem de texto em seucelular. Jim pega um refrigerante no bar. O executivo vai-tomar-naquele-lugar está encostado naparede, mastigando um sanduíche e fazendo que sim com a cabeça no ritmo do discurso dochefe.

— Eu tenho minhas dúvidas sobre Hollywood, de qualquer jeito — diz Norm. — As políticasdeles, toda a postura cultural lá. E alguns dos conceitos que eles têm espalhado? Toda essa coisacom a Hilary Swank... Olha, eu sei que ela é ótima atriz, tenho certeza de que faria um ótimotrabalho. Mas ter uma mulher como protagonista passa a mensagem errada, no meu ponto devista. É uma história sobre homens, homens defendendo o seu país, e eu sinto muito, é isso epronto. Simples assim.

— Mas a Hilary ainda é uma possibilidade. — Albert eleva a voz, e todo mundo ri.— Ela é, ela é — admite Norm, sorrindo. — Eu não disse que não era. E se o fato de ter ela no

elenco acabar sendo a melhor coisa para nosso filme, é isso que a gente vai fazer. Não estouinteressado em fazer um filme bom, quero algo ótimo, alguma coisa a que as pessoas ainda vãoquerer assistir daqui a cem anos. Eu quero um filme que vai se classificar lá no alto da lista dosmelhores filmes americanos de todos os tempos.

E, com isso, tudo parece estar resolvido. Bem, até que Dime fala e estraga tudo.— O que faz você pensar que consegue fazer isso? — pergunta ele, provocando,

escarnecendo, erguendo o queixo como se repudiasse algum objeto que desprezasse.Alguém engasga, ou é assim que parece a Billy quando ele relembra, mais tarde, esses

momentos. Skip se vira de seu computador, fechando devagar a tela. Todd fica encarando, osdedos pousados no teclado de seu celular. O executivo vai-tomar-naquele-lugar parou no meio damastigada.

— Perdão? — O sorriso atordoado de Norm tornou seu rosto disforme.— Você consegue fazer, você consegue distribuir. Você quer comprar nossa história por cinco

mil e quinhentos, isso com certeza soa como uma merreca para mim. A gente consegue venderpara praticamente qualquer um por esse preço, porra, a minha avó consegue bater essa ofertacom uma ida ao caixa eletrônico. Com todo o respeito, Sr. Oglesby, mostre para a gente que osenhor está falando sério. Mostre para a gente que o senhor é um cara importante.

Ainda com o sorriso vacilante nocauteado, Norm se recosta na cadeira e cuidadosamente cruzaos braços. Ele se vira para os filhos, depois para os dois executivos, e como se inspirados poralgum sinal misterioso, todos explodem em gargalhadas.

— Dê uma olhada em volta, filho — fala Norm, fitando Dime com um tom morno, de pena noolhar. — Dê uma olhada em volta e pense um instante sobre tudo o que você está vendo. Entãome diga, eu sou um cara importante?

Billy sabe que, se fosse com ele, desistiria agora mesmo. É forte demais, a magia negra desseshomens ricos e poderosos operando no conforto do gramado de casa, e sobretudo Norm, comseus olhos azuis bondosos, a paciência paternal, o campo de força paralisante de seu narcisismohipnótico. Billy deseja que Albert fale e tire-os da beira do precipício, mas Dime continua apressionar.

— Senhor, posso falar com franqueza?Norm sorri, mostra a palma das mãos para ele.

— Por que parar agora?Mais sons de desgosto vindos da torcida. A base das costas de Billy é um pântano de suor.

Dime planejou essas coisas ou está apenas improvisando? Improvisando, decide ele com umaviolenta explosão de orgulho. Ele seguiria seu sargento até o quinto dos infernos.

— Me disseram que será necessário um orçamento de cerca de oitenta milhões de dólares paranosso filme ser feito... estou certo, Albert?

— Seria o ideal — entoa o produtor de algum lugar ao sul dos Bravos. — De sessenta aoitenta milhões para fazer um filme de primeira sobre a guerra.

— Isso é muita grana — diz Dime, virando-se para Norm.— É, sim — concorda Norm.— Então, de onde vem?— Ah. — Norm dá uma risadinha, olha para o filho. — Skip, me lembre de novo, de onde é

que o dinheiro vem?— Mercado de capital — responde Skip, brusco, apenas ligeiramente condescendente ao se

virar para Dime. — Bancos, companhias de seguro, fundos de investimento, planos de pensão,sempre há muito dinheiro lá fora procurando por negócios. Supondo que a economia coopere, agente acha que consegue ter a Legends totalmente financiada com cerca de trezentos, trezentos ecinquenta milhões com uma série de vendas de ações para um público selecionado deinvestidores, durante um período de, digamos, dezoito meses. Daí, o financiamento extra vai serconforme a necessidade, talvez tendo como base as características de cada projeto.

— A GE Capital tem implorado para aplicar um dinheiro com a gente — diz Todd.— Isso mesmo. E isso sem contar com os investidores individuais. Só com os nossos amigos

aqui da porta ao lado — Skip acena com a cabeça na direção do camarote principal —, apostoque o papai ia conseguir entrar lá e ter promessas de vinte, trinta milhões no fim do jogo.

— A gente tem contatos — explica Norm a Dime, com paciência. — Ampla experiência emlevantar capital. Eu acho que você pode até chamar a gente — ele para e sorri — de carasimportantes.

— Sim, senhor, eu com certeza compreendi isso. O senhor está falando de uns números bemrobustos, mas com o devido respeito, senhor, cinco e quinhentos para cada um dos meus Bravosparece uma... mixaria.

— Albert, eles entenderam como a gente precisa estruturar esse negócio?— Eu expliquei — responde Albert com uma voz neutra estudada.— Então vocês sabem — Norm se vira para os Bravos — que seus cinco e quinhentos são

apenas um adiantamento, certo? A gente podia comprar vocês com uma grande soma fixa, claro,mas isso ia dificultar o andamento do nosso filme. A gente precisa do máximo de flexibilidadepara tornar esse projeto real, e o que a gente está pedindo para vocês, o que a gente precisa devocês, se baseia na natureza de uma contribuição de capital em espécie. Em troca dos direitos dasua história, vocês vão ter um interesse integral no projeto, o que significa que vocês dividemcom a gente o lado bom...

— E o lado ruim — diz Dime.— Claro, claro, e o lado ruim. Vai ter um risco, assim como acontece com qualquer

investimento. Mas não vai ser muito maior para vocês do que vai ser para qualquer outroinvestidor, inclusive para mim.

— Sr. Oglesby, com o devido respeito, senhor. Nós somos soldados. Já tem risco de mais nasnossas vidas.

— E eu certamente me sensibilizo com isso, mas a gente está falando de algo à parte aqui. Se

a gente vai vender esse projeto para investidores em potencial, tem que mostrar para eles umprojeto sólido. A gente não pode se dar ao luxo de negociar os termos de um acordo comsentimentalismo.

Norm gira a cadeira para olhar o campo, e Billy percebe que seu anfitrião estava esperandofechar negócio antes que o último quarto do jogo começasse. Tarde demais; os jogadores já estãovoltando ao campo.

— Você compreende, acredito eu — diz Norm, voltando a olhar na direção dos Bravos —,que isso diz respeito a muito mais do que apenas dinheiro. Nosso país precisa desse filme,precisa muito dele. Eu realmente não acho que vocês querem ser os caras que vão impedir queesse filme seja feito, não com tanta coisa em jogo. Eu com certeza não ia querer ser esse cara.

— A gente entende, senhor. E eu posso garantir ao senhor, se qualquer coisa terrívelacontecer, que o Bravo está pronto para assumir total responsabilidade.

Norm dá uma olhada para seus executivos. Ele está quase sorrindo. Billy percebe. Ele estágostando disso. Há uma ampla assimetria na dinâmica da situação que Billy não conseguedelinear muito bem, mesmo que isso seja um elefante branco cagando em toda a sala.

— Sargento — diz Norm —, essa é nossa oferta. Baseado no que tenho ouvido, é a únicaoferta que vocês receberam, e agora, bem, vocês estão voltando para o Iraque. Vocês nãogostariam de receber alguma coisa antes de voltar? Algo que valorize o trabalho duro e osacrifício de vocês, o magnífico serviço que vocês têm prestado a este país? Talvez não seja tantoquanto estavam esperando, mas acho que a maior parte das pessoas aceitaria, alguma coisa émelhor do que nada.

— Alguma coisa ia ser excelente — diz Dime. — Alguma coisa ia ser ótimo. Mas é só — elese interrompe com um engasgo de sufocamento —, é só, não sei, é só triste, senhor. A genteachava que o senhor meio que gostava da gente.

— Mas eu gosto! — grita Norm, voltando a cadeira à posição vertical. — Eu gosto mesmo devocês! Tenho a maior estima por vocês. São ótimos rapazes!

Dime leva a mão ao coração.— Está vendo? — cospe, ao dizer para Billy. — Ele gosta mesmo da gente! Gosta tanto da

gente que vai foder a gente bem na nossa cara!Em um instante Albert está de pé, arrancando os Bravos de suas cadeiras com um sorriso

radiante e furioso, perguntando a Norm se tem um lugar onde ele possa conversar com seus“garotos”. E embora o time de Oglesby leve isso mais ou menos numa boa, Dime claramente osofendeu. Ele ultrapassou os limites da boa educação. Um Sr. Jones muito brusco os conduz pelocorredor até uma sala pequena, sem janelas, com um lavabo contíguo, um tipo de câmara demassagem e descompressão, conclui Billy, mobiliada com um sofá-cama cheio de almofadas queele descreveria como “francês”, algumas cadeiras de tubos de aço e de couro, uma mesa demassagem e um tapete persa bem grosso. A onipresente TV está pendurada em um dos cantos, aprimeira que eles veem que não está ligada. Sr. Jones entra no banheiro e dá uma olhada, depoisdá uma volta ao redor da mesa de massagem; ele parece estar fazendo algum tipo de varredura desegurança.

— Ei, Sr. Jones, este lugar está grampeado? — pergunta Dime. — Tudo bem se estiver, sóestou perguntando. Você acha que está grampeado? — continua ele, virando-se para Billy eAlbert enquanto o Sr. Jones sai sem falar nada. — Aposto que está, merda, eu aposto que estágrampeado até com câmeras. Eu aposto que é aqui que o Norm trepa com a puta de plantão.

— David, relaxa.— ...hum, hunf, saca só esse mecanismo. — Ele está experimentando o sofá-cama, depois

testando a maciez quicando ali de bunda. — Eu com certeza podia comer uma bunda rica aquiem cima. Aposto que ele arrumou tudo para ser filmado...

— Acalme-se, Dave, por favor...— ...os bilionários são sempre os mais pervertidos...— ...dá para calar a boca, Dave? Por favor, por favor, só cala a porra da boca. Por favor? Pode

ser? Ok? Obrigado!Dime se senta na beirada do sofá-cama e cruza as pernas com afetação, olha para Billy e ri.

Albert encara Billy e revira os olhos, o soldado levou a cadeira de couro para perto da porta dobanheiro, o mais longe possível da linha de fogo.

— Você está no time dele? — rosna Dime.Albert parece se erguer nas patas traseiras, feito um urso.— Estou, porra, se isso for necessário para que seu filme seja feito.— Ele é um babaca.— E isso devia fazer alguma diferença? São negócios, tem um babaca toda vez que você

atende ao telefone. Pare de pensar feito um idiota e bote sua cabeça no lugar.— Ah, meu Deus, Albert, desculpe. Eu realmente sinto muito se a gente estiver estragando sua

parceria novinha em folha.— Me diga uma coisa, David, você acha mesmo que você é um cara importante? Se quiser ser

um cara importante, é melhor aprender a falar com respeito e educação. O que você falou ládentro... olha, você não pode deixar a emoção se intensificar a ponto de virar um drama, não sequiser chegar a um acordo. Pode choramingar, reclamar, discutir e tudo o mais, mas não podemandar tudo pelos ares porque está puto.

— Como se a gente nunca tivesse ouvido você falando merda.— É diferente, eu sei o limite. E alguns daqueles caras de estúdio, eles gostam dos insultos,

mas, aqui, você está forçando a barra. O Norm não tem que aguentar você falando essa merda.— O Norm pode lamber cada espinha na minha bunda.— Ah, que lindo. Maravilhoso. Estou vendo que você está escutando. Sabe de uma coisa,

quem sabe o Billy devesse representar o esquadrão lá dentro. Que tal você ficar aqui, David?Fique aqui e crie juízo. Eu e o Billy vamos representar o esquadrão lá dentro.

— Eu não vou voltar lá dentro — avisa Billy, não que alguém o tenha escutado.Dime ergue a mão.— Tudo bem, tudo bem, certo, uma trégua. — Ele respira fundo. — Albert, só me diga uma

coisa... o Norm está fodendo a gente? Ele precisa mesmo humilhar a gente assim, ou ele estásendo um babaca corporativo só porque pode ser um?

Albert se encosta na mesa de massagem e morde os lábios, pensativo.— Provavelmente as duas coisas. Eu acho que ele podia fazer muito mais por vocês, rapazes,

sem dúvida. Cinco e quinhentos é bem pouco. Mas vocês vão ter a participação de um acionista.— Ele também vai querer ferrar a gente nisso, captei isso naquele cara. Se ele está ferrando a

gente pela frente, ele vai fazer a mesma coisa pelas costas, é uma questão de princípios para ele.— Ele é um osso bem duro de roer, você tem razão. Se você entra numa briga com o Norm, é

melhor estar usando um protetor de saco. Mas, olha só, no fim das contas ele quer levar essenegócio adiante tanto quanto a gente. Então, é só ficar com ele o tempo que precisar; quando eleficar cansado, ele vai ceder.

— Não se ele usar a questão do tempo contra a gente. Você escutou, o cara sabe que esse é umproblema para a gente. Nosso tempo aqui é muito limitado.

— Bem, eu sempre vi a data de volta de vocês como um prazo meio fictício. Assinaturas

podem ser mandadas por fax. Podem ser enviadas por e-mail.— Não se a gente estiver morto.Albert cruza os braços e encara os sapatos, taciturno. Billy tem uma visão breve, assustadora,

de um grande e velho Albert em um campo chuvoso, a cabeça baixa, os ombros caídos, mãos nosbolsos, chorando. Nunca ocorreu a Billy que o produtor cinematográfico pudesse ser capaz dechorar de verdade.

— Que tal isso — diz Dime —, que tal se a gente colocar uma arma na cabeça dele?— Ah, David, não fale algo assim.— Ah, é, veteranos loucos, querido! Todo mundo chega a um ponto em que não aguenta mais.— Ele só está brincando — diz Billy a Albert, olhando para Dime só para ter certeza.— Todo mundo apoia as tropas — rosna Dime —, apoia as tropas, apoia as tropas, ah, é, a

gente está ORGULHOSO para caralho das nossas tropas, mas e quando se trata de dinheiro deverdade? Tipo, se alguém tivesse que tirar uma grana do próprio bolso para as tropas? Daí, derepente, a gente está no orçamento mão de vaca de todo mundo. Falar é fácil, entendi, dá umtempo. Falar é fácil, dinheiro é difícil, esse é o nosso país, cara. E eu temo por isso. Acho quetodos nós devíamos nos preocupar.

Albert pisca, sem saber muito bem quão a sério deve levar essa última parte.— Dave, tudo o que eu posso dizer é que o único jeito de fechar esse negócio é continuando a

falar com esse cara. O Norm fez a oferta dele, se você não gosta dela, a gente vai fazer umacontraproposta e esperar a resposta, é assim que funciona. Mas você tem que deixar as emoçõesde fora e focar nos negócios, certo? Esse é o único jeito de conseguir algum dinheiro para vocês.

— Eu preciso ligar para eles — diz Dime, puxando o celular do bolso.— Então ligue. Eu tenho que tirar água do joelho.Assim que Albert entra no banheiro, Billy vai para a outra cadeira, de modo a não precisar

escutar o mijo do produtor de cinema. Dime liga para Day, e em certo ponto da conversa Billyconsegue escutar a voz de Day tão bem quanto a de Dime. Mas que porra é essa? surge commuita clareza, junto com foda-se isso, foda-se essa merda, e foda-se a merda daquele filho daputa. Dime pede a Day para fazer uma pesquisa com o restante do esquadrão, e as respostasdeles ecoam como os mugidos de vacas numa rampa de abatedouro. Billy pega o próprio celulare acende a tela. Ele tem ligações não atendidas de Kathryn e de um número desconhecido, etambém uma mensagem de texto da irmã...

Mandando carro p vc no Texas StadiumLIGA P ELE p encontrar.SÓ ENTRA NO CARRO.

Dime desliga.— Eles disseram não.— Eu ouvi.Dime guarda o celular no bolso.— O que você está pensando, Billy? O que você acha que a gente deve fazer?Billy fecha os olhos e tenta pensar de maneira coerente a respeito de tudo o que tem

acontecido no dia. Na calmaria de sua concentração, surge a trovoada de uma descarga.— Ele está errado.— Quem está errado?

Billy abre os olhos.— O Norm. Lembra o que ele disse lá dentro, ele estava, tipo, é melhor vocês aceitarem a

oferta porque é tudo o que vocês têm, e alguma coisa é melhor que nada? Mas eu não acho. Euacho que algumas vezes nada é melhor que uma coisa qualquer. Quer dizer, eu ia preferir não ternada do que deixar esse cara me usar feito uma putinha. Além do mais — Billy olha ao redor ebaixa a voz, como se pensando que o lugar está mesmo grampeado —, eu meio que odeio essefilho da puta.

Por algum motivo, a situação de repente se torna algo hilário para eles. Albert surge dobanheiro para encontrar os dois Bravos rindo feito babuínos.

— Desculpe, cara — diz Dime a ele —, mas cinco e quinhentos não rola. E o Bravo éunânime.

Albert faz uma expressão neutra.— Certo, então o que rola?— Cem mil adiantado, e então a gente para de encher o Norm. E ele pode ficar com toda a

participação nas ações para ele.— Rapazes, eu acho que vocês vão ter que ser um pouquinho flexíveis. Que tal se a gente...

espera aí. — O celular vibra. — Falando no diabo. Só me deixe... Oi, Norm.Billy continua na cadeira, Dime, no sofá-cama. Eles escutam.— Você está brincando comigo. Não pode estar falando sério. Você pode fazer isso? Baseado

em quê... — Albert ri, mas não está feliz. — Nacional o quê? Você está falando sério? Eu nuncaouvi falar de... meu Deus, Norm, pelo menos dá uma chance para a gente. O mínimo que vocêpodia fazer era esperar para ouvir o que a gente ia responder. Cinco minutos? — Ele se vira paraos Bravos. — Vocês conhecem um general Ruthven? — Mas antes que os soldados consigamresponder, ele volta ao celular. — Norm, eu realmente acho que você não precisa fazer isso. Sevocê só... Claro, eu sei que não é só pelo dinheiro. Não me diga, diga isso para os rapazes. Elesarriscam a vida todos... Tudo bem. Eu acho que sim. Acho que a gente vai ver.

Albert desliga e guarda o celular no bolso lateral do blazer. Ele se vira para os Bravos e osolha como se os soldados estivessem em seus caixões e ele estivesse dando uma última olhadaantes de a tampa se fechar.

— Desembucha — diz Dime.Albert olha de soslaio; ele parece estar surpreso por ouvir Dime falar.— É inacreditável — diz ele. — Eles recorreram à sua cadeia de comando. Aparentemente, o

Norm é amigo do vice-vice-secretário de defesa ou alguma merda dessas. Ele fez o cara ligarpara os seus superiores em Fort Hood. Ele diz que falou com um general Ruthven. E que ogeneral deve ligar para ele daqui a alguns minutos, para falar com vocês. — Albert balança acabeça; a voz vacila. — Eu acho que eles vão fazer vocês aceitarem a oferta. — Ele olha para osdois. — Eles podem fazer isso?

Os Bravos sabem muito bem que o Exército faz o que bem entende, e que qualquer direito queeles reivindiquem será desviado a uma categoria ampla conhecida como “colateral”, isto é, coisaspara serem administradas quando já for tarde demais. O Sr. Jones vem levá-los de volta aobunker, onde os Bravos são saudados civilizadamente, quase de maneira calorosa. Oferecem-lhesbebidas e os mesmos dois lugares.

— A coisa saiu do controle — diz Todd, indicando o placar, que mostra um 17 a 7 a favor doBears. — Interceptação e fumble, dez pontos em dois minutos.

O executivo vai-tomar-naquele-lugar dá uma risada debochada.— A gente vai dar uma festa depois do jogo, para ajudar o Vinny a encontrar a bunda dele.

Isso provoca uma gargalhada ácida.— Por que o George fica agarrando o Brandt entre o homem da linha ofensiva e o recebedor?

Ele acha que vai bloquear?— Eu não vi ele fazer um bloqueio desde os amistosos.— De 2001.Mais exclamações de desagrado. Norm pousa o fone de ouvido e gira a cadeira para observar

os Bravos.— Não é o nosso dia — diz ele com um sorriso cansado.— Não, senhor — responde Dime, frio.— Eu odeio perder, odeio isso mais do que qualquer outra coisa. Minha mulher diz que sou

viciado em ganhar, e acho que é verdade, trinta e oito anos que ela fica tentando me acalmar.Mas não consigo, preciso dessa agitação. Eu prefiro cortar fora o meu mindinho a perder.

— A gente imaginou lá trás, em junho, que essa temporada ia ser difícil — comenta Jim. —Com o Emmit, Moose e Jay fora, eles deixaram um espaço muito difícil de ser ocupado. Quandovocê perde seu núcleo desse jeito... — Ele deixa as palavras silenciarem quando percebe queninguém está escutando.

— Eu suponho que vocês, camaradas, estejam meio que zangados comigo agora — diz Norm,e à guisa de resposta, Dime e Billy não dizem nada. Norm os fita por um longo instante; assente.Ele parece estar impressionado pelo silêncio deles. — Eu não culpo vocês. Eu sei que estoutendo meio que pulso firme aqui, mas meu instinto me diz para fazer isso. Esse é um filme queprecisa ser feito agora, por todos os motivos que a gente tinha conversado. E, se ele der certo dojeito que estou pensando que vai dar, vocês, camaradas, vão se sair muito bem. Algum dia, muitoem breve, vocês vão me agradecer...

Um telefone toca em algum lugar na sala. O Sr. Jones atende, fala brevemente e traz oaparelho até Norm. É o general. Dime fica olhando para a frente, focado em um ponto distante,aparentemente. Billy consegue escutá-lo inspirando fundo, respirações calculadas que ele prendepor alguns instantes, então solta o ar pelo nariz em jatos finamente calibrados. Enquanto isso,Norm está fazendo sua brincadeira de garotão com o general, agradecendo a ele por seu tempo,desejando um feliz Dia de Ação de Graças, convidando-o para algum futuro jogo nãoespecificado. Pode apostar, rá-rá, a gente vai fazer o melhor para conseguir uma vitória paravocê. Dime se levanta, como se o general tivesse efetivamente entrado na sala. Norm olha paracima, registrando a estranheza do movimento e, na verdade, Billy teme que seu sargento estejacontemplando fazer algo extremo, mas Dime apenas fica ali de pé, exalando ondas de disciplinasoldadesca até que Norm estende o telefone em sua direção.

— Sargento Dime. — O sorriso de Norm está um pouco maior que um de mera cortesia.Poderia ser considerado de triunfo. Imperial. Magnânimo. — O general Ruthven vai falar comvocê agora.

Dime pega o telefone e segue para os fundos sombrios da sala. Josh desliza para o lado,afastando-se para lhe dar um pouco de espaço. Depois de um instante, Billy deixa seu lugar etambém segue para o fundo da sala, apenas para ficar perto de seu sargento. Posiciona-se pertode Josh, que lhe dirige olhares de fervorosa comiseração. Toda a sala não pode fazer outra coisaa não ser escutar.

— Sim, senhor — diz Dime, secamente. — Sim, senhor. Não, senhor. Eu entendo, senhor.Durante um minuto inteiro, Dime não diz nada, tempo durante o qual o Bears marca mais uma

vez. Skip e Todd jogam suas canetas, mas, em deferência ao general, ninguém fala nada.— Sim, senhor — diz Dime, rápido. — Eu não sabia disso, senhor. Sim, senhor. Eu acho que

sim, senhor. Obrigado, senhor. Eu vou, senhor. Câmbio e desligo.Dime fecha e joga o aparelho com uma parábola alta e suave na direção do Sr. Jones.— Vamos, Billy — diz ele.E, sem falar mais nada, ele deixa a sala e sai ruidosamente pelo corredor, caminhando a passos

rápidos. Billy precisa dar uma corridinha para alcançá-lo.— Sargento, para onde é que a gente está indo?— Voltando para os nossos lugares.— O que aconteceu? Quer dizer, a gente não devia...— Está tudo bem, Billy. Está tranquilo.— Está?Dime faz que sim com a cabeça.— Ele disse que a gente não...?— Não com tantas palavras. — Ao longo de alguns passos Dime fica quieto. — Billy, você

sabia que o general Ruthven é de Youngstown, Ohio?— Ahn, na verdade, não.— Eu também não sabia, até agora. — Dime parece perdido em seus pensamentos por um

instante. — Fica logo depois da divisa estadual com a Pensilvânia.Billy começa a pensar que talvez o sargento tenha ficado maluco.— Perto de Pittsburgh — continua Dime. — Ele é um grande torcedor do Steelers. Do

Steelers, Billy, certo? O que, por definição, significa que ele odeia o Cowboys com todas asforças.

— Ei, gente! — chama alguém, e eles se viram. É Josh, trotando atrás deles. — Aonde vocêsvão?

— Vamos voltar para os nossos lugares.Josh diminui o passo por um instante, olha para trás, então ganha velocidade.— Esperem, eu vou com vocês. — Ele tem uma pilha de embrulhos de papel-manilha debaixo

de um dos braços, e com o outro está enfiando a mão dentro do bolso do casaco. Alguma coisabranca brilha em sua palma. — Billy — chama ele, segurando uma garrafinha de plástico. — Euestou com o seu Advil.

O adeus orgulhoso

Aliás, qual o propósito de fazer um filme? Parece sem sentido passar por todas essas dificuldadesquando o original está circulando por aí para todo mundo ver, facilmente disponível on-line ao seprocurar “canal de Al-Ansakar”, “vídeos de morte com o Bravo”, “Estados Unidos com o paucheio de tesão por justiça”, ou qualquer uma das dezenas de frases parecidas que evocam ascenas da Fox News, três minutos e quarenta e três segundos de combate de alta intensidadetestemunhado sob um ponto de vista cambaleante do tipo “você está lá”, os sons da batalha tendocomo música de fundo a modulação de uma respiração pesada e os palavrões censurados comum bipe da corajosa equipe de filmagem. É tão real que parece falso — muito grandioso, muitoexagerado e cinematográfico, um flerte desafiador ou defensivo de um filme B com os limitesreferenciais do kitsch. Alguém poderia se perguntar se um produto mais bem-acabado serviriamelhor — um arco narrativo, uma boa dose de desenvolvimento de personagem, luz artística emúltiplos ângulos de câmera, mais uma trilha sonora para preparar para as deixas emocionantes.Aparentemente, nada parece tão real quanto uma coisa falsa, embora Billy, desde que assistira àfilmagem, tenha ficado intrigado com o fato de que aquilo não se parecia com nenhuma batalhana qual estivera. Portanto, você tem o real que parece duplamente falso, o real que parece tão realque acaba parecendo falso, e o real que não se parece em nada com o real, e, por isso, parecefalso. Então, talvez, você precise de todo o artifício e a astúcia de Hollywood para trazer isso devolta para o real.

Além disso, todo mundo sempre diz como a sequência da Fox News se parece com um filme.Tipo Rambo, as pessoas comentam. Rambo: Programado para matar. Tipo Independence Day.Ou, como diz um dos novos vizinhos que eles têm na fileira seis, uma loura alegre, falante, devinte e poucos anos que tinha aparecido com o marido e outro jovem casal:

— Foi como se o Onze de Setembro estivesse acontecendo de novo. Eu sentei, liguei nonoticiário e tive a estranha sensação de estar assistindo a um filme na TV a cabo.

— Vocês são demais, rapazes — elogia o marido dela, um cara bonito, forte, usando umaparca da marca Patagonia e botas de caubói de qualidade tão boa que deveria ser uma herança defamília. — Foi bom para cacete ver a gente finalmente dando o troco.

O outro jovem casal ecoa aquela opinião. Eles não são muito mais velhos que Billy. Esses doisjovens casais migraram da arquibancada superior para ter uma provinha de como são os lugarescaros durante o último quarto do jogo, que já está decidido. Eles fazem Billy se lembrar de certosgarotos que frequentaram a escola com ele, os filhos e as filhas de uma elite de country clube decidade pequena que estavam firmemente colocados no caminho da faculdade, e agora aqui estãoeles, com vinte e poucos anos, devidamente qualificados e casados, começando a vida de adultosdentro do prazo previsto. Os jovens casais estão ávidos para conhecer o Bravo do Texas, mas porum instante não sabem o que fazer com ele ali em carne e osso.

— Mas você é só um garoto! — exclama uma das esposas, quebrando o gelo.E então eles se apresentam e agradecem a Billy pelo serviço prestado, as duas jovens esposas

ofegantes e afetuosas, os maridos estendendo o braço com apertos de mão no estilo bem-vindos àfraternidade.

Eles dizem “incrível”, “extraordinário”, “uma honra conhecer você” e assim por diante, suaspalavras se derramando pelo cérebro de Billy como se fossem cubos de gelo

Billy volta para o assento no corredor. O granizo cai ao redor deles como se fosse um spray defertilizante de granulação fina.

— Nada de acordo? — pergunta Mango.Billy balança a cabeça.— Então, o que foi aquilo?Lodis e A-bort estão se inclinando, eles também querem saber da história.— Acho que o Norm é um mão de vaca escroto. O que mais posso dizer?— A gente achou que o Day estava de sacanagem com a gente quando ele contou qual era o

acordo. Cinco e quinhentos...— ...porra, assim não dá — interrompe A-bort —, toda aquela grana que ele tem no bolso e

isso é o melhor que ele consegue oferecer para a gente? O cara tem milhões.— Talvez seja por isso que ele tem milhões — destaca Mango. — É cuidadoso com o dinheiro

dele.

— Eu ia ser cuidadoso com meu dinheiro se tivesse algum — retruca Lodis, seu lábio borradotremendo como uma melecona suculenta, ou um emaranhado de entranhas pendendo de umferimento na barriga.

Josh desce a fileira chamando os nomes deles e estendendo os pacotes de papel-manilha.Dentro de seu pacote, cada soldado encontra um sortimento de brindes do Dallas Cowboys:faixas de cabelo, munhequeiras, um chaveiro também abridor de garrafa, uma coleção deadesivos, um calendário do próximo ano com fotos das líderes de torcida, uma foto vinte porvinte e cinco, em papel brilhante, dos Bravos apertando a mão de Norm, autografada epersonalizada pelo próprio homem influente, junto com algumas dos Bravos posando com seutrio de líderes de torcida na confusão pós-coletiva de imprensa, autografadas e personalizadaspor cada uma das jovens. Os Bravos meio que dão de ombros quando terminam de ver o que háem seus pacotes. A chacota evidente não era digna deles. O celular de Billy vibra e é umamensagem de texto de Faison.

Encontro depois do jogo?

Sim, responde ele, o amor aquecendo seu coração como deliciosas fatias de queijo cheddarderretido. Onde vc vai tá?, acrescenta ele, depois espera, o celular na mão, enquanto a fantasiasobre o rancho faz um estrago em sua cabeça. Quem sabe, pensa ele, ponderando aspossibilidades. Ela estava a fim dele. Faison gozou nele. Billy e Faison morando juntos norancho não parecia muito mais extremo do que qualquer outra coisa que acontecerarecentemente. Billy passa pelos nomes que estão em sua lista de chamadas recentes até chegar aonúmero desconhecido, tentando ver qual tipo de sensação pode surgir ao olhar para ele, mas elerecebe um telefonema antes que possa fazer isso. Ele atende.

— Billy.— Oi, Albert.— Onde vocês estão?— A gente voltou para os nossos lugares.— O Dime está aí?— Está, ele está aqui.— Ele não me atende. Diga para ele me atender.Billy grita pela fileira e diz que Albert quer conversar. Dime balança a cabeça.— Ele disse que agora não. — Eles ficam em silêncio por um instante. — Então, o general

fez...— Está tudo certo, Billy. Ele não vai obrigar vocês a fazer nada.— O que o Norm falou?Albert hesita.— Bom, está sendo meio difícil para ele. Como ele disse, é viciado em ganhar. — Albert se

permite dar a mais suave das risadas sarcásticas. — Está tudo bem. Ele é uma daquelas pessoasque provavelmente poderiam aprender a ter um pouco mais de humildade.

— Ele ficou puto — conclui Billy.— Só um pouco.— E você?— Puto? Não, Billy, posso dizer com sinceridade que não. Eu gosto demais de vocês para isso.— Ah. Bem. Obrigado.

Albert dá uma risadinha.— Ah, bem, de nada.— E agora, o que vai acontecer?— Bem, estou no camarote principal agora mesmo, o Norm voltou lá para o esconderijo dele.

Talvez saia com outra oferta em algum momento. A gente vai ter que ver.— Certo. Ahn, Albert, eu posso fazer uma pergunta?— Claro, Billy.— Quando você se esquivou do Vietnã, quer dizer, você sabe, quando você recebeu seu

deferimento e tudo o mais, como você se sentiu?Albert dá uma ganidinha, do mesmo jeito que um coiote faria ao evitar uma armadilha.— Como eu me senti?— Quer dizer, tipo, se foi difícil. Você se sentiu como se estivesse fazendo a coisa certa?

Como você se sente a respeito disso agora, acho que é isso que estou querendo perguntar.— Bem, não fico pensando muito nisso, Billy. Eu não diria que estou imensamente orgulhoso,

mas também não sinto vergonha. Era uma época muito fodida. Um monte de gente realmenteficou em dúvida quanto ao que devia fazer.

— Você acha que aquela época era mais fodida que agora?— Hum. Bem. Boa pergunta. — Albert pondera. — Provavelmente dá para afirmar de

maneira bem convincente que os últimos quarenta anos têm sido uma época fodida. Por que vocêestá perguntando isso?

— Sei lá, acho que estava apenas pensando a respeito. Sobre o motivo de as pessoas fazerem oque fazem.

— Billy, você é um filósofo.— Sou nada, só sou um recruta.Albert ri.— Que tal as duas coisas? Certo, rapaz, fique tranquilo. E fale para o Dime me ligar.Billy diz que fará isso e desliga. Ele engole mais dois analgésicos a seco; os três primeiros não

fizeram nenhum efeito considerável na dor de cabeça blindada dele. Mango pede mais e Billyacaba passando o frasco ao longo da fileira, sem nunca mais recebê-lo de volta. Um fluxocontínuo de torcedores está se dirigindo às escadas das saídas, enquanto um contingente menorsegue para baixo, tentando se acocorar nos lugares nobres durante o tempo restante de jogo. Umgrupo de cinco ou seis caras se amontoa na fileira seis, ao que parece, amigos dos jovens casais;eles chegam dando muitas risadas, fazendo muitas provocações e imediatamente puxamgarrafinhas de uísque Wild Turkey.

— Cara! — grasna um deles para Lodis. — Vai suturar essa parada!Eles têm a aparência arrumadinha, mainstream, branca que Billy imagina que deva ser

tranquilizadora para chefes e clientes, adequada a carreiras em bancos, negócios, direito,qualquer coisa em que haja dinheiro. O cara sentado na frente de Crack se vira totalmente paratrás.

— Cara, o que aconteceu com seu olho?— Ele é sempre assim — responde Crack. — Mas, camarada, o que aconteceu com a sua

cara?Brrráááááááá, até mesmo os próprios amigos do cara dão um berro.— Ei, esses são os Bravos — avisa um dos jovens maridos. — Não mexe com esses caras.— São quem? — grita o novo amigo de Crack. — Os heróis-do-quê? Ah, sim, eu ouvi falar de

vocês, cara, pois é, caramba, vocês são famosos. Ei, me diz uma coisa, o que vocês acham de

toda aquela coisa de melhor nem perguntar?— Pare com isso, Travis! — censura uma das jovens esposas. — Você está sendo babaca.— Eu nem estou sendo um babaca, quero mesmo saber! Esse cara é um soldado, eu só estou

curioso para saber o que ele acha de ter gays no serviço militar.— Eu tenho muito mais consideração por eles do que pelos gays que não estão no serviço

militar — explica Crack. — Pelo menos eles têm colhão para se alistar.Os desordeiros dão mais um berro.— Está certo, cara, está certo — diz Travis, rindo. — Servir seu país e tudo mais, muito legal

e tal. Mas eu não sei, isso parece um tipo de idiotice para mim, digamos que você está na suatrincheira de noite e vem uma bicha até você, o que você vai fazer? Uns caras se chupando nastrincheiras, isso não parece certo para mim. Tipo, talvez isso tenha algo a ver com o porquê de agente estar tomando um sacode lá, sabe?

— Deixe eu dizer uma coisa para você — diz Crack —, por que não se alista e descobre?Você pode entrar numa trincheira comigo e ver o que acontece.

Travis sorri.— Você ia gostar disso, cara?Billy queria que Crack apenas enfiasse a mão na cara do idiota e acabasse com aquilo, mas seu

colega Bravo mal olha para o cara. Talvez uma briga seja o bastante para esse Dia de Ação deGraças. Billy verifica o celular. Nada da Faison. Ainda. Ele se permite mais um episódio dafantasia no rancho, mas agora, enquanto ele e Faison estão transando dez vezes ao dia, eletambém está pensando no Bravo, que voltou para a FOB Viper e está sendo atacado todas asvezes que vai para fora da cerca. Ele, então, traz isso para dentro de sua fantasia, quanto ele sentefalta dos seus colegas do Bravo, ele choraria por eles mesmo que estivessem vivos e respirando.São seus garotos, seus irmãos. Os Bravos morreriam uns pelos outros. Jamais haverá amigosmais leais, e Billy morreria de dor e culpa por não estar lá com eles.

Então, parece que se a guerra é fodida, o sonho de Billy não é menos. Ele manda outramensagem de texto para Faison. Queria ver vc e dizer tchau dps do jogo. Ela responde quaseimediatamente, Sim!, mas quando ele pergunta onde e quando, nada. Dime se desloca pela fileirae se ajoelha no corredor ao lado do assento de Billy.

— O que o Albert disse?— Bem, ele não está pau da vida com a gente.— Não, Billy, o que foi que ele disse sobre o Ruthven.— Ah. Ele disse que está tudo bem. O Ruthven fez o que você disse que ele ia fazer.Dime sorri.— A gente precisa mandar umas flores para aquele homem!— O Albert disse que o Norm pode voltar com uma oferta melhor...— Foda-se isso, a gente não vai fazer um acordo com aquele cara, nem por todo o dinheiro do

mundo. Nem por um milhão para cada um.Billy e Mango se entreolham.— Um milhão... — aventura-se Mango, mas Dime o interrompe.— Pensem assim, digamos que a gente feche o negócio e o Norm faça a grande merda do tal

filme do Bravo, deixando todo mundo animado com a guerra de novo. O que acontece depois?Eu acho que eles vão continuar estendendo nossos contratos de maneira involuntária até a gentemorrer ou ficar velho demais para carregar uma arma. Bem, foda-se. Eu não ligo a mínima paraum acordo desses.

Dime se vira e parte fileira acima. O Bears marca e faz 31 a 7, e o jogo se tornou oficialmente

uma lavada. Um dos baderneiros na fileira seis deixa sua garrafa cair e o som do vidro seespatifando provoca uma histeria nos amigos.

— Babacas — murmura Mango, e Billy concorda.Eles estão bêbados demais, são muito barulhentos, muito cheios de si; mais pessoas que

poderiam ter um pouco de humildade na vida?O celular de Billy apita, sinalizando uma nova mensagem de texto. Ele verifica a tela.— Faison? — pergunta Mango, esperançoso.— Irmã.Billy espera que Mango se vire antes de ver a mensagem.

LIGA P ELE.Eles tão prontos.Eles tão esperando vc.

Ai, meu Deus. Ai, Shroom. O que Shroom faria? O que ele faria se fosse Billy, essa é umapergunta melhor, que acende as questões mais íntimas e urgentes da alma, autodefinição, opropósito da pessoa na vida. A advertência dois minutos antes do tiroteio, o que significa, ótimo,que ele está a cerca de cento e vinte segundos de descobrir o que está fazendo no planeta Terra.Ah, Shroom, Shroom, o Poderoso Shroom da Destruição, que adivinhou a própria morte nocampo de batalha, como ele aconselharia Billy aqui, no final da Turnê da Vitória? Ele precisa deShroom para dar sentido à situação, para acalmar a confusão neural do cérebro de Billy, masagora o telão está passando a animação dos Heróis Americanos e os desordeiros da fileira seisfazem uma grande algazarra e dão muitos gritos, batendo palmas, os pés no chão, e os jovenscasais tentam fazer os amigos se calarem, mas simplesmente não dá para acabar com a diversão.

— Brá-vôôôô!— Ei-uhul isso!— U-huuuuuul!— Exército de um homem só, caras! — disse alguém, citando um dos slogans do Exército

americano.— Está vendo? — diz Travis, se contorcendo para sorrir para Crack. — Todo mundo aqui é

patriota para valer, a gente apoia as tropas totalmente.— Isso aí! — grita um de seus amigos.— Isso aí! — ladra Travis. — Escute, “melhor nem perguntar”, eu estou totalmente ok com

isso. Não estou nem aí se vocês são gays, bi, traveco ou comedores de macacas lésbicas, nãoestou nem aí, vocês têm colhões. Vocês são heróis americanos de verdade.

Ele ergue o braço para um cumprimento no estilo “toca aqui”, mas Crack apenas o encara,deixando a mão dele no alto.

— Não? — Travis lança um sorriso. — Não? Dane-se, está tranquilo. Eu ainda apoio astropas.

Ele ri e se vira, esticando o braço para alcançar sua garrafa embaixo de seu assento. Quandoele se senta, Crack se debruça e, de maneira metódica, parecendo quase terna, prende o braço aoredor do pescoço de Travis e começa a sufocá-lo. Todos os soldados aprendem isso notreinamento básico, como um antebraço, se aplicado na artéria carótida, corta o fluxo sanguíneopara o cérebro, fazendo a vítima ficar inconsciente em segundos. Travis se debate um pouquinho,mas não chega sequer a ser uma luta. Ele agarra os braços de Crack, chuta o assento da frente, e

então Crack aperta com um pouco mais de força e o corpo de Travis fica mole. Alguns dosbaderneiros começam a se levantar, mas Crack os repele com um grunhido.

— O que ele está fazendo? — sibila uma das jovens esposas. — Diga para ele parar. Alguémpor favor pede para ele parar.

Crack, porém, apenas sorri.— Eu podia quebrar o pescoço desse cuzão — anuncia ele, e muda a maneira de segurar o

homem, aplicando um pouco de torque experimental.Travis dá um chute espasmódico; não há nada que seus amigos possam fazer além de assistir.

Eles parecem entender que não conseguiriam ajudá-lo.— Crack — diz Day —, já chega. Solta o filho da puta.Crack ri.— Eu só estou me divertindo um pouquinho.Tem um aspecto masturbatório no jeito como ele torce Travis para um lado e depois para o

outro, apertando, afrouxando, apertando, afrouxando, testando o ponto fisiológico em que não hámais volta. O rosto de Travis está vermelho-escuro, escurecendo ainda mais para um tomarroxeado. Um estrangulamento total da carótida resulta em morte em questão de minutos.

— Porra, Crack — murmura Mango. — Não mate o filho da puta.— Faça ele parar — implora uma das esposas. — Diga alguma coisa para ele parar.Billy acha que pode estar enojado, mas parte dele quer que Crack vá em frente e faça aquilo,

só para mostrar para o mundo inteiro como a situação é fodida. No entanto, Crack finalmenteafrouxa o aperto; é como se ele tivesse perdido o interesse, o jeito como ele solta o homem comum tapinha casual na cabeça e Travis afunda em seu lugar. Parece um boneco de teste de colisãoquebrado. Rapidamente, os baderneiros decidem que é hora de ir embora. Eles servem de apoiopara o amigo tonto e saem da fileira, tomando o cuidado de não encarar os Bravos.

— Vocês são malucos, caras — murmura um deles ao passar por ali.E Sykes grita:— É isso aí, a gente está doido para caralho!Ele acrescenta uma gargalhada de Valium que parece um gargarejo e, na verdade, soa bastante

maluca.Dime volta a tempo de assistir aos baderneiros saírem apressados pelo corredor. Ele esfrega o

queixo e fita seu esquadrão estranhamente silencioso.— Tem alguma coisa que eu preciso saber?Os Bravos fazem um caaara fraco.— O FDP estava falando merda — diz Day. — Então o Crack mostrou para ele algumas, ahn,

informações práticas de treinamento.Crack dá de ombros, força um sorriso. Ele parece estar constrangido e, ao mesmo tempo,

profundamente satisfeito.— Eu não machuquei ele, sargento — diz, com toda a modéstia. — Só baguncei a cabeça dele

um pouquinho.Lá embaixo, no campo, os dois minutos finais do jogo recomeçaram. Dime olha para seu

relógio, olha para o placar, depois parece ter um momento de comunhão com o céu tempestuoso.— Senhores — diz ele, voltando a olhar para o Bravo —, acho que nosso trabalho aqui

terminou. Vamos vazar.O esquadrão dá um viva preguiçoso ou, provavelmente, sarcástico. Josh diz que a limusine

deles deve estar na pista especifica para esse tipo de veículo no lado oeste, e vai mostrar ocaminho a eles. Pela última vez, os Bravos se arrastam subindo as escadas do corredor, Billy

lutando contra o puxão de todo aquele espaço horrível do estádio. Assim que eles alcançam osaguão, ele tira o celular do bolso e manda uma mensagem de texto para Faison...

Pode me encontrar na pista de limusine lado oeste?Procure uma limusine hummer branca

O Bravo faz uma fila e segue Josh pelo saguão. Sykes e Lodis conseguiram ficar com suasbolas autografadas durante todo esse tempo, enquanto os demais Bravos têm apenas seus pacotescom os brindes, preciosos principalmente por causa do calendário com as líderes de torcida eaquelas fotos que são um monumento aos decotes. Serão onze meses longos e solitários noIraque, longos e solitários sendo a melhor das opções. Nessa caminhada final pelo estádioninguém os detém a fim de agradecer aos Bravos pelo serviço prestado, atormentá-los compedidos de autógrafos ou fotos com o celular. A nação do Cowboys está em franca retirada; comfrio, molhados, cansados, andando rápido, eles estão empenhados em chegar em casa o maisrápido possível, que se danem as geoestratégias e defesa de liberdades.

Ah, meu povo. Quando eles veem o portão, Josh os conduz para a lateral do saguão, para forado fluxo do tráfego.

— A gente tem que esperar aqui — diz ele. — Algumas pessoas estão descendo para sedespedir de vocês.

Quem?Josh ri.— Eu não sei!Os Bravos se entreolham. Dane-se. Logo, há um aumento súbito no número de corpos no

saguão já cheio, e com isso o Bravo infere que o jogo terminou. Os torcedores se movem emuma massa laboriosa em direção à saída. Com seus passos necessariamente vagarosos e trôpegos,e por serem muitos, eles parece ter assumido um peso alegórico, como se a melancolia deles, o arde infortúnio enlameado, servisse para evocar o fantasma de cada tribo que já foi instigada a sairde um lugar e levada a uma jornada para assumir outra, na esperança de uma vida menosmiserável. Billy pensa, em outras palavras, que eles se parecem com refugiados. O celular delevibra, e ele se vira para a parede antes de ousar olhar. É uma mensagem de texto de duas palavrasque Faison enviou.

Chegando. Espera.

Os olhos dele se fecham, e sua cabeça pende para a frente, batendo com um baque surdo naparede, um silencioso obrigado liberado como uma respiração presa. E então, ele fica nervoso.Não sabe o que vai fazer. Não tem treinamento para isso, sem exercícios de manobras militares,nada a que recorrer. Ele consegue ver a si mesmo e a Faison no rancho, mas a transição, o chegaraté lá, a cabeça dele não lhe concede isso. Quem sabe se ele realmente batesse a cabeça naparede? De repente, Albert e o Sr. Jones aparecem, destacando-se da multidão em uma espéciede arranco de desenho animado.

— Rá — guincha Dime com sua voz de Will Ferrell. — Feito um cachorro voltando paracomer seu próprio vômito, aí está ele!

Albert sorri, ele parece perfeitamente tranquilo com a saudação, embora esteja

cuidadosamente mantendo alguma distância de Dime. Albert, Albert, Albert, ladram os Bravos,fazendo uma espécie de música.

— E nosso acordo? — grita Sykes.— Rapazes, eu tentei. Acreditem em mim, eu tentei para cacete, e vou continuar tentando,

vocês podem contar com isso. Se tem uma história que foi feita para virar filme, é a de vocês, eeu estou totalmente comprometido em fazer isso acontecer.

— Mas, cara...— Eu sei, eu sei, é uma grande decepção, eu realmente queria ter resolvido isso enquanto

vocês estavam aqui. O que eu posso falar? A gente deu nosso melhor, mas ainda não acabou, nãomesmo. Vou continuar trabalhando nesse acordo até ele acontecer, prometo isso para vocês.

Murmúrios monásticos se erguem dos Bravos, obrigadoobrigadoobrigado. Um carro estáesperando para levar Albert ao aeroporto; ele está voltando para Los Angeles hoje à noite.Embora o contrato com ele se estenda por dois anos inteiros, a sensação é a de que algo chegouao fim, com toda a nostalgia e a melancolia natural aos finais. Albert diz que vai acompanhá-losaté a limusine; evidentemente, o Sr. Jones virá também, talvez para garantir a partida do Bravosem qualquer outro insulto à marca do Cowboys. Eles se juntam ao fluxo cansado que se moveem direção à saída. Ao se aproximarem, Billy percebe uma espécie de zumbido, um murmúriovibrante de baixa frequência emana de algum lugar à frente deles, a partir do limiar do portão. Éo gemido contínuo da sucessão de torcedores ao pisarem na esplanada, um terreno plano einfértil de concreto gelado e varrido pelo vento, sem qualquer obstáculo entre o local e o círculoártico além de milhares de quilômetros de planícies ociosas. Os Bravos xingam, abaixam acabeça, enfiam as mãos nos bolsos. O granizo escava microtorrões de seus pescoços e rostos.Josh chama os soldados e faz uma contagem de cabeça, depois os conduz para o outro lado daesplanada, em direção à pista de limusines. Várias delas estão enfileiradas na escuridão até ondea vista alcança, e, ai, Senhor, e apenas em meio a essa dezena de limusines à vista, Billy contaquatro no estilo Hummer na cor branco-neve.

— Billy. — Albert está caminhando ao lado dele. — Eu acho que o sargento está furiosocomigo.

— Bem, ele é um cara meio temperamental.Billy queria que Albert estivesse do outro lado, para bloquear o vento.— Escuta, você tem o meu e-mail, certo? E eu tenho o seu. Vamos nos falando.— Claro.Billy está vasculhando a fila de limusines. Como Faison vai conseguir encontrar ele aqui

fora...— Eu admiro muito o Dave, mas algumas vezes me pergunto quanto dá para confiar nele.

Então, que tal a gente fazer assim: quando eu não conseguir entrar em contato com ele, vou falarcom você. Você vai ser o meu homem no comando para o restante do esquadrão.

— Está bem.Billy ergue o ombro que está recebendo o vento e enfia o queixo no peito.O vento corta a esplanada como se fosse uma guilhotina solta.— Escute — diz Albert, baixando a voz —, desses caras, você é o que mais tem juízo, você e

o Dime. Eu confio em você. Está se tornando um líder de verdade. Eu sei que posso contar comvocê para manter a comunicação fluindo de um jeito positivo.

— Claro.Billy está pensando que, se Faison não aparecer antes de o Bravo estar pronto para partir, ele

vai deixar para lá, desertar ali mesmo, naquela hora. Vai dizer que precisa mijar ou qualquer

coisa assim, sair da limusine; ele vai estar praticamente decidido, ainda mais quando localizarFaison e se confessar a seus pés.

— Estou falando sério, o que eu disse sobre o acordo — afirma Albert. — Vou continuartrabalhando nele. Mais cedo ou mais tarde isso tem que acontecer, é bom demais para não serassim.

Billy olha para ele.— Sério?— Bem, com certeza. Com a Hilary praticamente dentro, é só uma questão de tempo.A esplanada é como uma área para exercícios de uma prisão, toda ofuscante com luzes brancas

e sombras compactas. Billy se vira para vasculhar a área em busca de Faison e quaseimediatamente reconhece o padrão no meio da multidão, uma espécie de ondulação oucontracorrente vindo naquela direção. Há um instante de lapso, então Billy está abrindo a boca,ele sabe o que está por vir um momento antes que sua mente formule o pensamento. Estágritando de verdade quando os roadies saem do meio da multidão, depois, tudo o que ele sabe éque está no chão, em posição fetal, enquanto suas costas são esmurradas por pancadas como asde um martelo. Ele percebe que está ouvindo os próprios grunhidos a cada batida, não que doa, ésó uma pressão estranhamente despida de dor, e quando descobre que tem alguém o chutando, aívem o Sr. Jones entrando sob a luz. A essa altura, o tempo não só desacelera, mas congela emuma série de blocos que se sobrepõem. Aqui está o Sr. Jones, de pé, puxando sua arma de dentrodo paletó, depois um enorme golpe por trás que o faz voar, e a arma — uma Beretta Px4, noinstante congelado Billy a vê bem nitidamente — é arremessada com grande força da mão do Sr.Jones. Ela vai embora, como um patins no gelo, deslizando, rodopiando para longe do alcance deBilly, vai embora e ele se vira, apesar do pé em suas costelas, porque precisa ver para onde elaestá indo...

Direto para o major Mac, ao que parece. Com o timing e a economia de esforço de um goleiroveterano, o major levanta a ponta do pé alguns centímetros e prende a arma sob o sapato. Elepega a Beretta, verifica a trava de segurança e dá uma rodada na câmara enquanto segura a armapara baixo, afastada de seu corpo. Depois, com a elegância advinda de horas de prática, ele erguea arma e atira bem para o alto,

BAM.Em toda a exaustiva cobertura midiática do jogo que haverá amanhã — nas notícias com mais

credibilidade, nas baboseiras sentimentais das histórias de interesse humano, na tagareliceimbecilizante dos âncoras da TV e do rádio — não aparecerá nenhuma palavra a respeito dotiroteio depois do jogo. Os Bravos concordarão que isso é muito estranho. Certamente milharesde pessoas ouviram o estrondo da arma; certamente aquelas muitas centenas de pessoas naesplanada que se abaixaram com o estampido, gritaram, se esconderam, se jogaram para protegeros filhos ou saíram correndo, e quem quer que estivesse chutando Billy com violência parouabruptamente. Durante alguns instantes, Billy ficou apenas ali, deitado, aproveitando a profundapaz interna que advém de não ser mais chutado. Ele inclina a cabeça para evitar que o sangueescorra em seus olhos e observa o major Mac, que trava a Beretta e, cuidadosamente, a pousa nochão. Depois, o major fica altivo com os braços abertos em forma de T, não muito dobrados naaltura do cotovelo, não com as mãos na cabeça, posturas muito sugestivas de rendição. Não, elefica com os braços abertos, esticados para os lados, simplesmente para mostrar aos policiais deserviço que não está mais armado.

— O major Mac é o cara — murmura Billy.Ele diz isso principalmente para ouvir a própria voz, para verificar se, no geral, está tudo bem

com ele mesmo.Leva um tempo para a polícia entender as coisas. O fato de haver muitos tipos diferentes de

polícia parece complicar a situação. No final das contas, a limusine do Bravo é localizada etrazida para a dianteira, e os soldados são reunidos e colocados dentro dela enquanto a discussãocontinua ali perto, na esplanada. Albert e Dime estão lá fora, assim como Josh e o Sr. Jones,todos em conferência com um grupo de policiais de alta patente. O major Mac fica ligeiramentedestacado, não propriamente em custódia, mas tendo um agente colocado de maneirasignificativa em cada um dos lados. O punhado de roadies apreendido até agora está de pé emum amontoado deplorável, algemados, cabeças baixas, de costas para o vento.

Um agente se inclina para dentro da porta traseira da limusine que está aberta.— Alguém precisa ir para o hospital?Os soldados balançam a cabeça. Nãããoooo.O policial hesita. Quase todos os Bravos estão com a cabeça ou o rosto sangrando. Os roadies

vieram para cima deles com chaves inglesas, canos, pés de cabra, Deus sabe mais o quê.— Só checando — diz o agente, e se retira.Eles encontram duas compressas de gelo dentro do kit de primeiros socorros da limusine e

passam as compressas uns para os outros. Mango tem um corte acima do olho esquerdo. Crackperdeu dois dentes. Um galo imenso provocado por uma concussão surge na testa de Day. Sykese Lodis estão respectivamente com o nariz e o couro cabeludo sangrando. A bochecha de Billyestá aberta, um rasgo de cinco centímetros ao longo da protuberância do osso — ele imagina quetenha sido do empurrão que o jogou no chão. O torso dele lateja com uma espécie de dorabafada, ondulante, nada preocupante, mas ele não se engana. Sabe que amanhã isso vai doerpara cacete.

Dime entra no carro e se senta.— Os policiais querem o nome de todo mundo e informações para contato — diz ele,

passando uma prancheta e uma caneta para Day.— Sargento, a gente vai para a cadeia? — pergunta Mango.— Não, a gente é vítima, cara.— E o major Mac? — quer saber Lodis.— O major Mac é a porra de um patrimônio nacional. Ninguém vai botar o major Mac na

cadeia.— Sargento — diz A-bort —, a gente estava pensando aqui em conspiração. O Norm mandou

os roadies para cima da gente porque a gente não aceitou a oferta dele.— Eu vou mencionar isso para os policiais — diz Dime, sem sorrir.É uma piada.O celular de Billy vibra, é uma mensagem de texto de Faison, Qual hummer branca, e ele

dispara de dentro da limusine ao mesmo tempo que telefona para ela. Um dos policiais grita:— Aonde você pensa que está indo?Mas Billy está tão concentrado, todo o seu ser sintonizado na única coisa que é verdadeira

para ele, que uma espécie de aura divina repele a intimidação do policial.O celular dela mal toca e Faison atende.— Ei!— Está vendo onde estão as luzes da polícia, todos os policiais em volta?— Ahn, estou.— É a nossa. Eu estou do lado de fora.— Fique aí — diz ela. — Estou indo para aí. — E então: — Estou vendo você! Não se mexa,

estou vendo você, estou vendo você...Ele a vê passando no meio da multidão, as botas brancas brilhando por baixo do sobretudo

escuro, e o cabelo dela, um prateado opaco sob as terríveis luzes de prisão, se derramando portodos os lados, por sobre os ombros, pelas costas, em seus seios. Ela está tão bonita que ele sesente esvaziar, não há respiração, dor, pensamentos nem passado, sua vida inteira condensada naimagem de Faison vindo a passos largos em sua direção em toda a sua glória salpicada degranizo.

Ele deve ter começado a andar na direção dela, porque eles se encontram com um esbarrãogratificante. Durante alguns instantes, eles não conseguem fazer mais do que segurar um aooutro. A multidão se divide ao redor deles, tanta gente passando que um tipo de privacidade éconjurada por aquela multidão se desviando.

— O que aconteceu com seu rosto? — grita ela, chegando para trás, tocando a bochecha dele.— Ai, meu Deus, você está sangrando.

Ela dá uma olhada nos policiais e nas luzes de emergência atrás dele.— Aqueles caras do intervalo, a equipe de palco. Eles partiram para cima da gente. — Ele ri.

— Eu acho que eles ainda estão putos.— Ai, Deus. Ai, meu Deus, você está machucado. — Ela examina a bochecha dele, os dedos

roçando a beirada do corte. — Vocês parecem atrair problemas.Eles se beijam com vontade. É impossível para eles não se agarrarem com avidez.— Isso é uma merda — murmura ela.Faison se afasta apenas o bastante para desabotoar o casaco, um movimento rápido e para

baixo com a mão, e usa o casaco aberto para envolver Billy. Ela o puxa mais para perto e gemequando seu peito encontra o dele. Ela ainda está usando o uniforme de líder de torcida. Billymove a mão dentro do casaco e agarra a cintura de Faison. Ela estremece, depois fica na pontados pés, sua pelve se esforçando para ter acesso àquela protuberância na calça dele, a boca delagrudada tão forte que os lábios de Billy ficam dormentes.

— Vai nessa — diz alguém, esbarrando ao passar por eles.Outro pedestre aconselha “vão para um quarto”. Depois de minutos, ou talvez horas, Faison se

deixa apoiar de volta nos calcanhares e desaba em cima ele.— Ai, meu Deus. Por que você tem que ir?— Eu vou estar de volta de licença. Provavelmente na primavera.Ela ergue a cabeça.— Sério?— Sério.Se eu ainda estiver de pé, pensa ele.— Então é melhor você encontrar um tempo para mim.— Pode apostar nisso.— Sério, estou falando sério. Que tal se você vier ficar na minha casa?Billy não consegue falar. Ele mal consegue respirar. Faison o está observando, encarando o

olho direito dele, depois o esquerdo, de um lado para o outro, de um lado para o outro, seus olhossempre marcando um dos olhos dele.

— Eu sei que isso é uma loucura, mas a gente está em guerra, certo? Tudo o que eu sei é queisso é o certo, eu sinto que é certo. Quero cada segundo que puder ter com você. — Elaestremece, balança a cabeça. — Eu não sou do tipo que fica impressionada, não desse jeito.Nunca me senti assim com ninguém.

Billy a puxa mais para perto; a cabeça de Faison tomba no peito dele.

— Nem eu — murmura ele, o som de sua voz ressoando em seus corpos. — Garota, eu estavaprestes a fugir com você.

Ela levanta a cabeça, e, com aquele olhar, ele sabe que não era para ser. A confusão dela é queleva à decisão, aquele tremeluzir de preocupação em seus olhos. Do que ele está falando? Omedo de perdê-la prende Billy com firmeza ao herói que ele precisa ser.

Faison toca a bochecha dele.— Querido, a gente não precisa fugir para lugar nenhum. Só volte para casa e a gente vai ficar

numa boa aqui mesmo.Billy não afronta, porque há tanto a perder. Ele vai renunciar ao maior risco em favor de um

menor, ainda que esse menor — e isso não é tão engraçado assim! — seja o que pode levá-lo àmorte. Ele pousa o rosto no cabelo dela e respira fundo, tentando guardar o cheiro dela para quedure por todo o sempre.

EI, BRAAAAAVOOOOOOO ecoa pela esplanada, o berro de campo de treinamento militardo sargento Dime. ANDAAAAAAAAAAAAAAANDO! VAMOS LÁÁÁÁ!

— É comigo — sussurra Billy.Faison geme, e eles dão mais um beijo intenso.Há um momento de violência quando eles tentam se afastar. Eles se agarram, arrancando e

puxando as roupas, partes do corpo, uma raiva estranha queimando neles e que mal conseguemcontrolar. O rosto de Faison se contrai de repente e ela se afunda em Billy.

BRAAAAAVOOOOOO! AGORA!Billy beija os lábios dela e se afasta, e a sensação é que esta é a última coisa que vai fazer.— Tome cuidado! — berra Faison, e ele ergue o punho para mostrar que ouviu. — Vou rezar

por você — grita ela, mais alto, e isso faz com que ele se sinta desamparado.Ele está morrendo, morrendo, e aquela coisa em sua calça torna difícil caminhar, a ereção de

seu membro virgem, dura como uma pedra, é como uma bandeira que se recusa a pairar a meiomastro. Ele bate naquilo com o punho, a parte de trás da mão, tentando forçar a criatura parabaixo sem que todo mundo veja, e então, ai, merda, eles estão em cima dele, um grupo de sete ouoito torcedores que querem o autógrafo de Billy em seus encartes do jogo. Tão gratos, dizemeles. Tão orgulhosos. Incrível. Fantástico. Isso leva apenas alguns instantes, mas enquanto eleestá rabiscando seu nome, fica claro para Billy que são aqueles cidadãos sorridentes e estúpidosque se portam da maneira certa. Ao longo das duas últimas semanas, ele se sentiu tão superior eesperto por causa de todas as coisas que sabe da guerra, mas pode esquecer isso, são eles queestão no comando, esses tolos, inocentes, seu sonho de pátria é a força dominante. A realidade deBilly está sujeita à deles; o que eles não sabem é mais poderoso do que todas as coisas que elesabe, e ainda assim Billy viveu o que viveu e sabe o que sabe, e isso confirma sua suspeita, algoterrível e possivelmente fatal. Para aprender o que você precisa aprender na guerra, fazer o queprecisa, isso faz de você inimigo de todos os que o mandaram para a guerra?

A realidade deles domina, a não ser por isto: ela não pode salvar você. Não vai parar nenhumabomba ou bala. Billy se pergunta se existe um ponto de saturação, um total de mortes que vaifinalmente explodir em pedaços o sonho de pátria. Quanta realidade a irrealidade consegueaguentar? Ele está um pouco atordoado quando devolve o último encarte e começa a andar emdireção à calçada, as mãos fechadas dentro do bolso para, esperançosamente, esconder suaereção insana. Obrigado!, gritam as boas pessoas para ele. Obrigado por seu serviço! O granizobica seus olhos, mas ele já mal sente aquilo. Os policiais dão um passo para o lado à medida queele se aproxima, revelando que Josh e Albert estão de pé ao lado da porta traseira da limusine, eAlbert está sorrindo, acenando para ele entrar.

— Rápido! — grita ele, brincalhão. — Vamos lá! Eles estão indo embora!Como se aquela fosse uma carona que você não pudesse perder, que salvaria sua vida. Albert

dá um rápido abraço quando Billy passa ao lado. Josh deseja boa sorte e aperta seu braço, entãoBilly tira o pé do meio-fio, entrando no veículo e parcialmente caindo no banco traseiro dalimusine.

Albert bate a porta atrás dele e acena uma última vez.— A gente está pronto — avisa Dime ao motorista. — Vamos!— Ah, é, vamos dar o fora daqui! — diz Sykes.— Antes que eles matem a gente — endossa Crack. — Leve a gente para um lugar seguro.

Leve a gente de volta para a guerra.— Cintos de segurança, todo mundo — ordena Dime ao esquadrão, e o Bravo tateia pelos

assentos, procurando os cintos de segurança.Dime nota a protuberância no colo de Billy.— Quanto orgulho, hein, soldado — murmura ele, apenas para Billy ouvir.— Não dá para a gente evitar algumas coisas, sargento.Dime dá uma risadinha.— Você se despediu da sua garota?Billy assente e se vira para a janela. Ele sabe que nunca mais vai ver Faison de novo, mas

como pode saber? Como alguém sempre sabe qualquer coisa — o passado é uma neblina quebafeja um fantasma depois do outro, o presente é um comboio militar fortemente armado numaautoestrada a cento e quarenta quilômetros por hora, o que faz do futuro o buraco negrodefinitivo da especulação fútil. E ainda assim Billy sabe, pelo menos pensa que sabe, sente issosemeado na mais pura certeza de sua dor quando ele encontra o cinto de segurança e o prende,aquele clique agudo como o aperto final de um sistema vasto e complexo. Ele está dentro. Comdestino à guerra. Adeus, adeus, boa noite, eu adoro vocês todos. Ele se encosta no banco, fechaos olhos e tenta não pensar em nada enquanto a limusine os leva embora.

Agradecimentos

Devo agradecer, e faço isso com alegria, à Ucross Foundation e à Whiting Foundation, queapoiaram a criação deste livro. Muito obrigado a Gary Downey, Evan Maier, Bethany Niebauer eEric Reed pela orientação sobre a vida militar. Um agradecimento muito especial a HeatherSchroder e Lee Boudreaux, por terem fé. E, por fim, um enorme obrigado à minha mulher,Sharie, pois, sem ela, eu estaria simplesmente perdido.

B.F.

Sobre o autor

© Thorne Anderson

BEN FOUNTAIN foi vencedor do prestigiado PEN/Hemingway Award. Aclamado pela crítica,A longa caminhada de Billy Lynn, seu romance de estreia, foi finalista do National Book Awarde adaptado para o cinema pelo diretor Ang Lee. Fountain mora com a família em Dallas, nosEstados Unidos.

Os últimos dias de nossos paisJoël Dicker

Table of ContentsFolha de rostoCréditosMídias sociaisDedicatóriaA coisa começaUm soldado raso na infantariaDeve ser coisa da sua cabeça, mas nós temos a curaA resposta humanaPor conta disso muitos se tornam umSacana do coraçãoTodo mundo aqui é americanoSarrando para o SenhorJamie Lee Curtis fez um filme de merdaXXLIsso é tudo o que existeBilly e Mango vão dar uma voltaEstuprados por anjosSe no futuro você me disser que isso é amor, eu não vou desapontar vocêSanidade temporáriaMato vampiros em troca de comidaO dinheiro nos torna reaisO adeus orgulhosoAgradecimentosSobre o autorLeia também