Post on 12-May-2023
GONÇALVES CRESPO
Á SPRE C E D I DA S DE
UMA ADVE RTE N C I A PRÉVI A
JOS É DE S OUS A MONTEIRO
—1Miniatur as
Malia Va z de
L ISBOATAVARES C ARDO S O I RMÃ O __ E D rTo zfz ss
5, La r go de C amões, 6'
1 557
ADYERTENCIÁ PREVIA
Dão-se pela vez primeira àestampa as obras
comple tas de Gonçalves Crespo . Quer is to dizer
que appar ecem agora reunidos as Minia tu r as e
os N octur nos,
que se addicionam,em Appen
d ice,algumas sol tas paginas . Tudo n ªum volume
so e breve . Tambem as obras do Poe ta mais
que nenhum fiel ao conselho cortez da sua Musa
e ternamen te bella — S ur des p ense r s nozt veauw
fa ísons des ve r s antiques— e cuj a espiri tual afil
niclade com o auotor da «Morte de D . Quixo te »
não é para con testar com exi to,podem ence r
rar-se,e encerram-se facilmen te
,emum volume
unico . E,todavia
,a guilho t ina sobre todas exe
VI ADVERTE N C IA PREVI A
oranda, que lhe lançou a cesta ensanguen tada a
pallida cabeça,não consegui u lançar-lhe ao es
quecimento o nome fulgido . Foi mais potente do
que ella esse volume breve .
Poderi a dilatar-se o Appendice com varios
trechos de valor diverso . Mas a mão piedosa e
i llustre que reuniu estas dispersas folhas excl uiu
avisada e fi rmemen te mui ta composição inedi ta
ou anonyma que a tradição,com ou semmo tivo,
a t tribue tenaz ao Poe ta das Minia tur as . Mais que
nenhuma sen te o respei to vivo que todos lho de
vemos,que lhe vo tamos todos
,a memoria insi
gue . N ão quiz pois que,por ambição de lucro
,ou
no seductor proposi to de accr esce r uma gloria que
por essa fô rma se não accresce,alguem t raçasse
o nome do Poe ta em pagi nas que elle deixou vi u
vas d'
esse claro nome . As que const i tuem o pre
sen te Appendice não foram recusadas por menos
dignas d *elle ou desdizeremde seus j ustos credi
tos . Figurariam,semduvida e sempejo
,emqual
quer obra sua emque, por mesmeidade ou seme
lhança de índole,pudessem ter cabida .
Duas razões houve para este procedimen to .
ADVERTEN C I A PREVIA VI I"
Poucas palavras,que o lei tor j ustamen te ancioso
do livro do Poe ta que ama perdoara aminha penna
tag ar ella agora,mas dillloil e r e tr ah ida quasi sem
pre,sobram a expl icação preci sa .
Cada cul tor o prezador sincero da arte gent i l
que o torna as veze s grande temde fazer de suas
prom—ias obras selecção severa, re legando ao esquec imen to e terno
,ou aos inu teis e
,tan ta vez
,ruins
collector es do appellidado docume nto huma no,o
que a sua sensibilidade art ist ica at ten tamen te ou
vida r eg eitar consciente . Alfred de Vigny, a mais
bella e pura glori a da França romant ica,semem
bargo dos embargos que ten tem oppô r a tal j uizo
os admi r adores do sobre todos fel i z imi tador de '
Byron ou os de outro Poeta sonoroso sempre como
umtam-tamgigante,mas
,quanta vez
,concei tuoso
e reflect ido como elle,Alfred de Vigny estremou de
suas obras,recolhendo—se austeramente
'
em si ,
quan to queri a e requeria para fundamen to do
juíz o. do porvir remo to,j ulgador asperrimo . S e :
por vaidade,inadvertenci a ou t imidez
,pre tere o
poe ta esse empenho sério,nempor isso elle deixa de
cumprir-se . Cumpre-se . C omuma diffe r ença grave .
VI I I ADVE RTEN C IA PREVI A
O futuro,que se não qui z eximir da tarefa dura
d 'ella se encarrega emfim,ou pel a acção incon
scien te e geral de todos ou pe la in terferenc ia
directa e pessoal . de alguem. Bismarck— não me
despraz tal vez procurar emgrandes individuos es
t r anhos por forçoso caso a profissão das le tras a
confirmação de meus concei tos não se importaria
de viver no mais afas tado ermo se ti vesse a illu
minar-lhe a solidão alguns volumes,por el le es
colhidos, do maior de seus pat r ícios, Goe the . N a
poleão separava para a sua admiração quasi inteira,das tragedias de Vol taire
,o «Mahomet rela
xando o res to ao esquecimen to jus to a que as
achara en tregues .
Exerceu Gonçalves Crespo sobre si e sobre o
seu, com applauso do rigor e talvez menoscabo
da j usti ça,esse arduo encargo . Deu-lhe forças
para tan to,que foi talvez de mais
,a nunca sã
ciada desconfiança de si e seu poder certeiro,tão
finamen te observada 3a e expressa finamente .
Mas o que elle excluiu severo,ou não
,demais,
excluido se j ulgou,defini t iva
,i r r epar avelmente .
Vuolsi cost cold dove si puot e C ir
"
) che sí. vuo/e .
ADVERTE N C I A PREVI A I X
Para os corações cheios do supremo domde amar
e respei tar o que é di gno de respei to e amor ha
querer que vale o que,no concei to soberano do
Dan te,faz vergar submissas as mai s levantadas
e as mais aba t idas potes tades do empy r eo fei to de
e terna luz e amor e as do Averno fei to de e terna
sombra e de odio .
Mas,no sujei to caso
,a resolução que todo no
bre coração applaude,tem de seriamen te appro
val-a toda mente sã .
Entre os grupos em que pode um supposto ou
real senso cri t ico dis tribuir poe tas incl uo este,certo
de sua verdade plena : ha poe tas que são ar tistas
e ha ar tistas que são poe tas . Isto,é claro
,sem sa
h irmos dos domínios gloriosos da palavra . Os pri
meir os,entender-se-ha facilmente
,são os que
possuem da al ta e poderosa faculdade art is t ica
mais do que o impre terível,o sempre inevitavel
quantum.
Exemplos explicarão mais e melhor o meu
concei to . S e se pergun tar se temde ent r eme t ter -se
em algum de sses grupos e em qual o auctor do
«De rerum natura » e o can tor de Eneas e prin
X ADVERTEN CIA PREVIA
cipalmen te dos precei tos do lidar agricola,ninguem
de sciencia e consciencia hesi tara na deci são . Toda
penna em que eu ousar pô r mão para exprimi r
concei to ou affecto da alma se me quebre de
vez e para sempre,se a decisão afli rmativa não
collocar Lucrecio en tre os poe tas-ar tis tas e Vir
gilio entre os art is tas—poe tas . S e a ques tão se t ras
ladar do Lacio a terra por tugueza,em parte ao
menos,e se o confron to se fizer en tre Camoes e
o Tasso,incluir-se-ha en tre os segundos o que
can tou divinamen te um dos mais bellos fei tos da
meia idade,a cruzada de Jerusalem
,sob Godo
fredo de Bou ill on ; e entre os primeiros,0 que di
vinamente cantou uma das mais bellas facções dos
modernos tempos,a cruzada da India
,soh Vasco
da Gama . N inguem se lembrará de con tes tar que
Esopo,o gracioso
,o ingenuo
,o infant il — assu
mido o termo na sua accepçaomais pura — creador
de tanta narrat iva fina,cheia de lição e engenho
,
e mais poe ta do que art ista,ao passo que Lafon
taine — que Taine repu ta o mais g enuíno dos poe
tas f r ance z es— que nada creon nem nos peque
ni nos dramas cheios de elegancia,viveza
,fina
ADVERTEN C IA PREVIA X I
malícia,e quantas prendas mais
,que
,sob o nome
de Fabulas,nos alegraram a meninice
,nem nos
Gontos a que sorri u a nossa exuberan te j uven tude
e cuj a t rama jovial e gaiata elle pediu aos novel
li stas i talianos e aos fa blia uw do seu torrão gaulez,é mais art ista que poe ta . É assimque numexem
plo mais,que sera o ul t imo
,chamaríamos art ista
poe ta ao Ar ti sta dos Tr Op Izees como chamaríamos
poe ta-ar tista ao Poe ta dos S one tos. S e r ia tão gran
de inj ust iça dar na arte a superioridade a es te
como dal -a na poesi a aquelle .
Eu não hesítar ía um momen to sequer — e
ainda bem que não hesítar ía para minha satisfa
ção e gloria d i elle — emcollocar Gonçal ves Crespo
en tre os artistas—poe tas . Em que doce e grande
companh ia eu,que tan to o preso e admi ro
,0 col
locava ! A que preside Virgilio,o doce
,o íneffa
vel Virgili o, que Dan te appellidou onor e e lume
de poe tas !
Ora succede com o Virgilio,como Tasso
,bem
como com todos os seus cong ene r es, uma cousa
que os ext rema,car acte r ísa e lhes abona
,mais
do que a ninguem,a perpe tuidade da memoria
X I I ADVERTEN G I A PREVIA
humana . Domina-os,absorve—os
,devora-os a ancía
da perfe ição suprema,isto é
,da harmonia na sua
expressão al tissima,do r ythmo, usado o vocabulo
na accepção mais larga,da proporção do todo e
das par tes que o compõem entre si e en tre ellas
e o fimemque o poe tapoz arden temen te mira,
a absoluta,a inteira
,a ineffavel harmonia
,sob
todos os aspectos que possa conceber a razão ou
sonhar a phan tasia,en tre a essenci a e a fôrma
,
entre o bello concei to e a palavra bella,en tre o
d ivino sen t i r e a dicção divina que o t raduz . Ora
dado em alguem o condão ingeni to,indizí vel
,de
fazer realidade esisa harmoni a que chamaria,e
com mais razão que a de Leibni tz, pr estabele
cida,a sua revelação é fatal
,e certa em cada
uma quasi de suas obras . E como para umideal
e ideada perfeição e condição essencial o longo
con tacto da obra produzida como engenho que a
produz,e como d 'esse con tacto longo se gera uma
como que fusão,uma iden t ificação inteira ent re a
obra conceb ida e quem a concebeu,e manifes to
que o art is ta se encontra todo emcada obra sua . N ão
se nega que qualquer fei tura do espíri to é,para
ADVERTEN CIA PREVIA X III
quem tem olhos de vêr e alma de sen t ir,espelho
fiel da mente que o cr eou. Mas nenhuma,como a
concebida d este modo,e d este modo r ealisada . O
Poe ta vive,respira assim em cada obra
,mais ín
tensamen te n 'uma do que n 'outra,e n i sso esta a
superioridade que se applaude,mas respira e v ive
emcada uma .
Deriva d í
ísto,como consequencia ínevítavel,
que,sendo necessario a glori a d i ampoe ta-art ista
o numero crescido de suas obras,pois da sua ab un
danoia ella procede emgrande parte,é quasi es te
ril e vão tal numero a do art is ta-poe ta . Virgíl io
não se cr ê mui to maior,tendo compos to as Geor
g ícas, por ter escrip to a Eneida . Horac io não cres
ceria sensivelmen te com um segundo l ivro que
appar ecesse agora de seus Epodos ínímítaveís. Uma
vez at tíng ida a perfeição, quasi sempre requestada
ínanemente,pouco importa o numero de vezes que
essa perfeição se attíng iu. Pouco para a gloria do
Poe ta,entenda-se . Para o maior prazer dos que
lêem,mui to .
Ora aqui esta porque,ainda sob o pon to de
vis ta in tellectual,temde appr ovar
-se com toda a
x r v ADVERTEN C IA PREV IA
alma'
a solici tude demonst r ada emnao augmentar
comobras,t alvez d ªínfe r ior quila te
,as d'umPoe ta
que pela sua índole,e como os seus congene r es,
o divino Virgilio,o al to ado r ador da Es tense au
gusta e tan tos mais,diffici lmente veria augmen
tada a sua invejanda gloria comou tro volume dos
N octur nos. N ão digo pouco .
N ão ha assim trazer a avolumado Appendice
cousas ínedi tas,
'
anonymas, emque elle até certo
extremo semduvida estar ia,mas
,semduvida
,ta
'
m
bemmenos do que nas elei tas de sua mão segura
por n *ellas se vêr todo,como n 'ellas todo o vê e ap
plaude a nossa admiração . Assim,e ainda bem
,ao
passo que as Minia tur as abrangem 1 27 paginas,
os N octur nos 1 82,o Appendice cabe todo em 82
do actual volume . C omo é grande a natureza hu
mana quando por ella se dignou de passar divino
alento,que tão cur to espaço quanto o d este vo
lume breve se torna a mais segura base a per
petuidade d'
um nome e d 'uma glori a !
Impor tava que es tas cousas se dissessem,e
applaudo-me de ter sido amig amente elei to a di
zel—as ao pub lico selecto e certo das Minia tu r as e
ADVERTEN C IA PREVIA X V
dos N octur nos . S into um requin te de prazer ex
treme em ter meu nome ínscr ipto ne s te livro em
que se resume quan to exi ste de bom e l uminoso
em língua por tugueza de tão doce,alevantado
e bem nasc ido espiri to . Exprime es ta ínscr ípção
um prei to que elle prezara in tensamente emvida .
Assim eu soubesse,na quie tação da sombra em
que me enlevo,que o presava agor a . S ó me
res ta volver os olhos longos para o azul que se
arqueia sobre nos immenso como as aspirações da
nossa Fé,mas si lencioso como a
“
noute funda em
que elle dorme,absorta a alma em sen t imento
vivo,indefinido mixto de saudade e esperança .
Julho de 1 89 7 .
JO S É DE S OUS A MON TEIRO .
GON CALVES C RESPO
(O HO M E M )
Esta nova edição das Min ia tu r a s faz-me recuar
q uatorze annos na minha vida . Como quem entra'n 'um bosque si lencioso da sua aldeia depois d 'umaa usencia prolongada
,vo l to em pensamento as ale
grias e tristezas da vida universitaria,a superioridade
em que eu considerava os col lab or ador e s da innoc ente «Fo lha»
,e ao lenda r io quarto do Crespo
,na
Couraça de L isboa,em Coimbra . O quarto do Cres
po 1 . Que intima fami l iaridade encerram estas
q uatro palavras , para todos os que al l í entravam !T inha a j anel la e a porta sempre abertas para a rua
,
d ando sobre um patamar de pedra,ao qual se tre
p ava por seis toscos degraus . Lá no ultimo andarmorava o Penha
,hoj e conhecido advogado dos audi
t or ios de Braga,um poeta dos mais correctos que
tem tido a l ingua portugueza e,de certo
,um dos
homens de mais gosto l it te r a r ío que eu tenho conhecido . O Penha
,a quem famil iarmente se chamava o
2 M IN IATU RAS
João, t inha a appar encía e gozava da fama de orgu
lhoso e int r actave l z — um d 'estes indivíduos super íor es que percebem de coisas de l icadas
,intangíveis
,
ina tacave is pelo commum dos mor taes e que se j ulgam d 'um barro differente do trivial . Fa lsissima ideaesta que se faz ia do excel lente João Penha : no fundoera um rapaz sens ível e bom
,s
'
ómente preferindo aconvivencia a r t íst ica e bohemia
,a qualquer outra .
Os seus h ab ituae s silencios diante dos que não eramda seita
,significavam mais t imidez do que arrogan
cia,que el le só t inha l it te r a r iamente
,quando nos
exp edien tes da «Folha» se dirigia a pe r sonagens ima
g inar íos, terçando então com ouz ad ia,como 0 e a
va l le ir o Hernani . O Crespo era bem differente do Penha — significava para toda a gente
,estudantes ou
não estudantes,l itte r a tos ou não l it te r a tos
,a convi
vencia e a bondade . N o se u quarto de estudo,todo
forrado de retratos de artistas celebres e de estampasd 'um alto valor tiradas de obscuros almanachs
,de
capas de l ivros ou das paginas pretenciosas das i llust r a ções estrangeiras, entrava todo o mundo e todo omundo era bem acolhido . A forca de sympa th ia queeste excel lente rapaz resumia era um t h e sour o . Os
ne oph itos da lit te r a tur a procuravam—n'o animosamente sem o conhecerem
,e em poucos minutos de
conversação,quasi se t ransformavam em intimos
amigos do poeta . Este traço v ivo do seu caracter,conservou—o toda a v ida , mesmo quando j á era umnome laureado . Muitas vezes, no seu gab inete da travessa de Santa Catharina
,em L isboa
,encontre i indi
v iduos totalmente desconhecidos, que o Crespo meapresentava como notave is poetas
,romancistas e dra
4 M IN IATU RAS
na m inha obra,pedi ao Crespo para combinarmos
um pseudonymo e foi el le , mais do que eu,que
lembrou aque lle de que depois usei .
O segredo do seu proverbial poder d'
a t t r acç ã o
compunha-se de elementos bem diversos . Al guns v inham do seu talento de poeta
,outros da sua sciencia
de conversar,outros f inalmente da sua d ist incç ão
pessoal . Combinava—os a todos inst inct ivamente , como esmero com que esbatia os tons duros
,as u l timas
arestas d 'um soneto quasi perfeito . A voz i nsinuante,
d 'uma longa esca la e habi lmente modulada cr iavaum ambiente musical ; o olhar vivo de myope, tendodoçuras e lampejos
,i l l uminava—lhe a palavra per
suasiva ; os dentes brancos, e g uaes como os d 'umpente de marfim
,sob r e sah iam na côr escura do seu
r osto , dando a esta p h ysionomia S ingular uma expressão que r a r íssimamente se encontra . Crespo nãot inha nada da vulgaridade dos homens formosos ,nem mesmo do ridículo dos homens bem parecidos ;p orém todas as pessoas que se ap p r ox imavamd
'el leconfessavam que era um rosto a t t r ah ente e
'
d 'umamobil idade captivante . Provinha isto em parte
,na
tur alment e , das suas qual idades de talento ; porque ,com a persp icacia pecul iar a sua raça
,interessava-S e
com facil idade nas ideas dos outros,obrigando de
p ois 0 seu i nterlocutor acce itar as suas p r 0p r ias,por mais e xcent r icas que a primeira vista parece ssem. N unca oppuuha uma resi stencia importuna e
P ROLOGO D
i nconveniente ; porque o seu fim era a t t r ah ir . Afieiç oava-se com notavel fel icidade a todas as c ircumst ancias em que se encontrava : — brincava com asc r e anç as e conversava pachorrentamente com osvelhos
,que o adoravam ; era amabil íssimo com as
senhoras que tantos versos lhe mereceram e de queas Minia tur a s, e scr ip tas no tempo dos ardores j uven is
,dão ideas
,mais completas do que os N oc tur nos .
Porque,acr ed itae-o
,os seus del iciosos sonetos d'
amor
e as suas poesias de paixão,sempre discretas como
d 'um artista completo,mas ardentes
"
no fundo , t iveram mais ou menos um obj ecto real
, p alpave l, sen
sive l por vezes,res istente em poucas occasíõ e s . A
Mod esta e uma histor ia que teve uma real idade navida,como a teve egualmente a S a r a e outras . AMimi era no nosso tempo de Coimbra uma adoravelcr e anç a e hoj e deve se r uma senhora . E quere is poesia ma is bem sent ida e magistralmente executada, doque essa que nas Min ia tu r a s se inscreve — Ai
g uem— º ' O sent imento pessoa l,raras vezes
adqu ire uma tal plasticidade . S ó isto acontece nosgrandes art istas
,que d ispõem de me ios e x t r aor d ina
rí os,para real isar as suas ideas . Esta poe s ra e uma
perol a da cô r macia do leite engastada n 'um adereçoda mã o do ourives Benvenuto . Gonçalves Cresponão fez versos no vago
,por um sent imento de im ita
ção de Musset ou Hugo : × todas as suas ironias oupalavras de paixão
,de amor ou de sympa th ía , ati ra
vessa r am-n'o energicamente,produz indo n 'el le a
commoç ão ind isp ensave l a toda a obra d'arte
,para
não se r post iça . E ' ta lvez por esse tom de real idade,
que forma a trama fundamental d 'este poeta,que o
6 M IN IATU RAS
publ ico , sent indo as suas alegrias , as suas dores e assuas malicias
,tanto o est imou .
Onde todas as suas poderosas qual idades p essoaesde fascinação , principalmente a musica da sua vo z
,
se impunham com mais i ntensidade,era na recitação
em publ ico , diante d'uma platea de senhoras formo
sas . O seu gesto bem calculado,a ousad ia e cora
gem do olhar,o busto n 'uma l inha natural
,o ves
tua r io i r r ep r e h ensive l . formavam um conjuncto
h a rmonico . N ão galgava os versos emphat ica ouapressadamente
,como qualquer ingenuo dominado
pela commocão ou aterrado pelo audi torio . Era n 'essas cir cumstancias que se ex h ib iam as suas mal iciashabitue es
, que tanto me faziam rir . L impava demoradamente a luneta
,ol hando com o ol har vago de quem
não vê ; fing ia um rosto contristado e as vezes comlaivos de amargura
,parecendo que tinha uml i geiro
susto de se poder esquecer . Assim ia aguçando acuriosidade do publ ico
,fazia-se esperado
,desejado .
Quando l he pediam bis, ou lhe ex igiam que reci tassealguma das suas poesias mais dilectas do publ ico
,
Crespo,que possu ia um ouvido finíssimo
,nunca per
cebia a primeira reclamação . I nterrogava a platea,perguntando se era a «Ceia de T iberio» , quando d ist inctamente ti nham d ito «A resposta do Inqu isidor» .
Assim obrigava o interesse e anciedade a seremgeraes . Mu i tas vozes pediam a «Venda dos Bo is»
,
outras reclamavam a «Morte de D . Quichote» . Fã
z ia-se si lencio . E l l e princip iava a revisão mental da
poesia que desej ava recitar . Parava, sorria de novosign i ficando ao publ ico que t inha alguma d if ficuld adeem se recordar . Passados minutos
,quando a p late ia
p nonoco 7
e stava muda e nervosa , a voz de Gonçalves Crespoe rgu ia—se calma e bem calculada
,variando apropria
d amente sem uma falha a té a conclusão,momento
em que o publi co o v ictor iava enthusiast icament e .
N a conversa fami l iar, no campo , por exemplo, asombra das arvores copadas
,quando ao longe os
p íncaros al tos das montanhas se t isnavam debaixod
'
um sol abrasador,o Crespo era sur p r e h endente de
bom humor e de graça . O seu riso largo e bondosamente mal icioso
,estabelecia um tranqui l lo bem-estar
em todos os espíri tos . As suas subti le z as,as í r onias e
as segundas intenções d as suas palavras,formavam
uma a tmosph e r a intel l igente . Com o seu fino sentimento do comico e do ridicul o parodiava os t ios decertas pessoas
,designava certas fragi l idades sociae s
,
c ontava como verídicos , casos que talvez nunca t ivessem succed ido
,reci tava poesias de Tolenti no , de
Bocage , cantava canções h espanholas . Os seus Si l enc ios, que muitas vezes eram prol ongados, t i nham um
grande preço — níng uem possuia maior seleucia deouvir e , principalmente, ninguem melhor que el l edeixava exhibir um pedante
,ou um grotesco .
Dos rapazes que nos conhecemos em Coimbra,ne
nhum arranj ou uma l enda episodica tão volumosa .
A p r ov íncia esta cheia de anecdote s que lhe dizemr espeito . Foram espalhadas pelos seus cont empor aneos de Braga, do Porto e de Coimbra, terras ond e oCrespo passou a vida de estudante . Terá succed idotudo quanto querem patrocinar com o seu nomesympa th ícp e lenda r io ? Serão verdadeiros todos oscasos at t r ibuidos á sua imaginação
,os ditos com que
ca r acte r ísava os factos,as aventuras em que se en
_8 M IN IATU RAS
cont r ou Tudo isso tem pelo menos de real , a sal i ente personal idade do auctor dasMinia tu r a s. El l e anima ainda os acontecimentos comuma viva l uz de orig ina l idade . Os narradores teemdeante de si
,n 'um intenso destaque
,a figura viva e
animada do meu infel i z amigo . O seu riso de bondade
,sua ironia travessa e inoff ensiva inspi ra-os
,
faz-l hes dar as proprias palavras um relevo e cô r queel las nunca tiveram . Todas essas historietas provamo forte poder de a t t r acç ão, contido em GonçalvesCrespo . E para comprovar esta asserção reproduz iremos duas ci r cumstancias da sua vida
,t iradas d '
umestudo que fI z emos em tempo
,para acompanhar o
seu retrato n'uma revista l it te r a r iaUma noi te
,em Coimbra
,por occasião de ferias de
natal,o Crespo adoptou como meio de transport e
para a Povoa de Santa Iria,um compartimento d e
carruagem de primeira classe,no caminho
'
d e ferro .
Dentro encontrou,commodament e embrulhado e com
vontade de adormecer,um velho
,que nos primeiros
momentos pareceu insens ível ao appa r ecimento do
novo viaj ante . Era um homem de aspecto mediano,
ph ysionomia serena, cabel l o e barbas brancas , quefaz iam lembrar as de Victor Hugo . Crespo
,com as
suas maneiras pol idas de g ent tma n, cumprimentou oca va lh e ir o, dando-lhe o tratamento de meu ca r a se
nhor e off e r ecendo-se para atirar o charuto fora,caso
o fumo o incommodasse . «Por forma nenhuma,até
gosto .— respondeu o velho
,extremamente agra
decido . C inco minutos depois, ainda o comboio não
( 1 ) A R ena scença , que sa b i a é. luz no Por t o, em 1 880.
P ROLOGO 9
t inha partido,j á se t ratavampor bons amigos e o v ia
j ante,mag ne t isado, pel o riso natural , pela voz a fiave l
do seu interlocutor, nem reparou na S ingular rapidezd
'
aque lla int imidade . Que se passou durante essal onga noite de j ornada hivernal ? C a lculamol—o poruma carta que do Crespo recebeu , dias depois, o dr .
Bernardino Machado,que o t inha acompanhado ao
comboio . Historiando o acontecido n 'um e sty lo famil iar e variado
,o poeta terminava
,pouco ma is ou me
nos,d 'este modo : «O diabo do homem não me d e i
xou ficar na Povoa e fez-me perder um d ia de j ornada . N o Entroncamento obrigou—me a participar dasua Optima ceia , bel lamente repartida em dois pe
quenos caba z es ing le z e s . N ã o imaginas,fi lho !
eram f r ang õ e s, perd izes , vinhos ant id iluv ianos e marme llada l . Vim com e l le até L isboa e mandou—mena sua carruagem para o Tojal . Dianbo do velho
,
tem uma Optima carruagem,muito mais commode
do que o se l im do ca va t icaque , que me esperava naestação da Povoa . »
Tempos depois,este cavalheiro
,passando outra
ve z em Coimbra,entrou na cidade
,exc lusivamente
para visitar o seu amigo Gonca lves Crespo,no seu
quarto de estudante,da Couraça de L isboa .
Um episodio ainda mai s característ ico do humordo poeta das Min ia tur a s e N octu r nos passou—se emterras do Alemt e jo . Em Coimbra aconselharam- lhe
,
por causa d'um padecimento cutaneo,o uso d 'umas
aguas medicamentosas,que existem e in -A l j ustrel .
Crespo,conc luídos os trabalhos univers itarios
,diri
g iu-Se primeiramente a Braga
,com o f imde obter da
muniticencia paterna umas quinze l ibras,necessarias
—1 0 M IN IATU RAS
para d esp e z as. N esse tempo,por causa de circum
stancias domesticas, ia-se sempre aloj ar n'uma certa
hospedaria da cidade dos Arcebispos e d 'ahi escr ev ia ao pae
,que o vinha ver geralmente pela vol
ta das onze horas da manhã,quando ainda o poeta
estava na cama . Conversavam de coisas diversasMaus negocios do Braz i l
,reacção e fanatismo em
Braga,eram os themas do pae ; d if ficuld ade s das l í
ç ões em Coimbra,grande inopia de dinheiro
,eram
os assump tos favoritos do f i l ho . N'esta
,como em
outras occasiõ e s,o Crespo espreitava sagazmente o
momento de dar o seu t i r o .
«Esta coisa da molestia está de cada vez p e ior .
'O dr . Mirabeau estudou o assump to e d iz que se curacom certas aguas do Alemte jo . Ah i umas quarental ibras .
O velho mostrava-se sempre feroz em questões dedinheiro . Era preciso pedir—se-l he o tr iplo para se
obter a quantia ind isp ensave l . «Quarenta l ibras ! Estás doído ! Esse doutor e um asno . Tu não tens molest ia nenhuma . » Ja se sab ia que esta resistencia era,até certo ponto
,para e ff e ito theatral . O f i l ho de ixa
v ã -o berrar e por fim diz ia—lhe : «N ão se faça fino .
Ponha ah i o dinheiro e deixemo-nos de pa lav r iado . »
É verdade que punha ; mas era necessario renovar- tres e quatro vezes a questão
,usar de maravilhosos
subterfugios de Tall eyrand,e fazer espantosas redu
cç õ es na quantia . Uma ve z mesmo,o pae do Crespo
,
tendo fe ito solemnes promessas,de que da r ia a
somma aj ustada,arrependeu-se depois
,e,para se
esquivar,fugiu sur r ate i r amente de Brag a para a Po
.voa de Varz im . O poeta,sabendo-lhe do paradoiro,
1 2 M IN IATU RAS
Crespo,que o esprei tava pelo canto do olho , salta r
l he—h ia imprevistamente ao gasganete e,desarman
do-o,h avia de obrigai—o a pedir miseri cordia . N ada
d 'isto,porém
,foi necessario
,pelo S imples e interes
sante motivo,de não se ter dado sequer a tentat iva
de h omicíd io : o homem da candeia não trazia navalha nenhuma e dirigindo-se
,talvezmoído da longa.
j ornada,a um banco que estava ao fundo da loja
,d e i
tou-se,apagou a luz pendurada no muro e
,cinco mi
untos depois, roncava estrondosamente, n'
um somnopegado
,que durou a té de tarde .
Dias depois,abandonou esta hospedagem
, por
causa de questões com o dono da loca nda,homem
tão prepotente,que negava ao auctor das Min ia tur a s
o direi to de comer queij o a sobremesa,pelo facto de
j á se ter servido de laran j as e peras . Teve de ir p edi r agasa lho ao prior de A lj ustrel , que j á conheciacomo homem accessíve l . N o momento em que entrouna residenc ia do sacerdote occupava este os ocíos
a b b aciaes cavando as hortal iças . N a posição de curvado em que estava
,ouvindo que o chamavam
,olhou
mesmo por entre pernas,perguntando : «Quem diabo
esta ahí ? » O poeta contou-l he.
no tom mais captivante
,entremeando a narrativa de a lgumas pa lavras
l atinas,os perigos e aventuras de heroe manchego
,
em que se v ira . Precisava que o senhor prior o hos
p edasse em sua casa,emquanto tomava uma duz ia
de banhos .
Er a'
um grande favor que l he faz ia,além da paga .
«C h a r i ta s est .v i 'r tus ex ce tsa , meu caro prior : eu souum doente e n 'esta terra não ha hospedarías capazes . »
Acceden faci límamente o bom ecclesiastico,tratan
PROLOGO 1 3
d o—o logo por ma g iste r doctor . A paga que recebeufo i muito mais val iosa do que se pod ia esperar d v
'
umSimples estudante de Coimbra . Crespo tomou—l he nod ia seguinte a direcção pol i tica e l it te r a r ia d 'um j ornal
,que o ecclesiastico redig ia p r oficíentemente , re
sumindo toda a il lust r aç ão e j ustiça d'
aque llas aridasparagens . Aque l le período de Opposiç ão dava largamargem a todas as invectivas e podia conter r e iv ind icaç õ e s socíaes de primeira ordem . Os artigos deGonçalves Crespo
,repletos d 'uma i r acund ia de tre
mer,causa vam enorme gaud io ao sacerdote . «Mais
mora l idade,senhor ministro do reino
,e preciso ma is
moral idade no poder ! » — terminava sempre as suasob jur g a tor ías o novo publ icista . Esta phrase viva eenergica
,perfurante como um e st yle te , rebentava as
vezespe lo meio dos artigos,como o ul timo es toiro
d 'uma girandola de foguetes . O prior de A l j ustrel chorava de contentamento ao saborear as famosa's catil inarias
,que el le suppunh a serem l idas com avidez
em L isboa . Abraçando e ffusivamente Goncalves Crespo
,diz ia : «At ire-l h 'as fortes
,ma g ist e r doctor , que
verá como el les se hão de doer . Apre,seus ladrões
,
ao menos terão de as ouvir» — ap ost r 0p hava com opunho cerrado
,falando pela j ane l la fora .
Porém este homem,d 'uma lenda t ão alegre
,d 'um
ex terior tão animado e vivo continha em sí outrohomem notavelmente differente e até
,podemos dizer
,
contrario . Irregularidades de temperamento,capri
1 4 M IN IATU RAS
chos de sensibil idade,ou essa recondi ta e incessante
lucta , que todos os ind iv íduos que vivem de ideas,
tem de sustentar contra si e contra os outros,lucta
que muitas vezes resume a impossibil idade de attingir pelos meios humanos a real idade d 'uma aspiraçãod'
a r t ista , talvez algumas contrariedades e desgostosna vida o certo é que o auc to r das Min ia tur a s, t inha dias de profunda e dominadora tristeza . Tal a f fí rmaç ão sur p r eh ende r á,mesmo algumaspessoas que o tratavam de perto . É que o seu espir i to reservado e precavido contra todas as fraquezas,mostrava-se exteriormente alegre
,quando estaria
mais triste e acabrunhado . O grande segredo da sua
expressão,estava em saber fingir que escutava os
interlocutores ; mas os seus l ongos espaços de mudez
,mui tas vezes cortados de gestos sacudidos e ra
p idos, por olhares incendiados e fogosos , cor respondendo a dialogos mentae s
,denunciavam um tempe
ramento me lanchol íco . E l le mesmo,sabendo que era
geralmente tido na conta de galhofeiro e folg asã o,formava de S i op iniã o bem diversa . «eu que sousombrio e pouco falador . escrevia a uma pessoa intima, a
'1 8 de j unho d e 1 87 1 . Temos presentesa lgumas cartas d 'esta epocha
,que foi a do appa r e ci
mento das Min ia tur a s,quando el le a inda era sol teiro
e estava em Coimbra .
Em todas,mais ou menos
,ha essa nota p lanª ent e
e ly r ica , que nos seus versos app a r ece fugazmentemas sempre com um accento energico de real idade .
Uma questão de raça,de temperamento
,ou cir .
cumstancias de famil ia, tornavam—lhe muitas ve z e s asua alma arida e selvagem . T inha íntimos d e sespe
PROLOGO 1 5
ros . S off r ia na sol idão e isolamento do seu espírito,
escondendo—se orgul hosamente não Só das vistasindiscretas e vulgares
,mas a té das dos seus p r ºp r ios
amigos . Confessava a 23 de j ulho : «N ão se i que S into .
Estou ne r vosissímo,tenho vontade de amarrotar e r a S J
gar esta car ta,que é estupida
,incoherente e exquisita .
Vou v e r se descanso um pouco,vou passear pelo
quarto e vou fumar e e sp edaça r nos dentes algunscharutos . » «Que d ia tão triste me espera . » ((É-me ª
impossivel escrever nada . Quero formu lar o que S i ntoe choro sobre este papel como uma cr e anç a . » Estacarta e scr ip ta n
'
aque lla sua le t t r a tão caracterist ica,
miuda e fina,como um bordado
,traço l igeiro e me
t iculoso d'a gua
—for t ista , tem S ig naes evidentes d'um
estado nervoso excepcional as hastes trémulas,as
ovaes como pontos,o papel despedaçado em alguns
l ogares .
Tambem,apesar de e S p ir ito esclarecido e ironico,
era muit íssimo supersticioso . N os seus passeios cam
p e st r e s, nas vesperas de feriado em Coimbra,ou nas
divagações nocturnas por alguns l ogares menos i r e-a
quentados de L isboa, que eram sempre os que el l epreferia
,notei- l he muitas vezes sub itas paragens
,
a preferenc ia ine x p licad a de certas ruas , e a ma
dança repentina n 'uma direcção differente da pla«ne ada . Como Bal zac
,percebia na p h ysionomia dos
logares expressões accid entae s,agradaveis ou ant ip a«
t h icas,e a impressão que estas ci r cumstancias p r odu
z iam sobre os seus nervos era índomave l . T inha amesma p r e occupaç ã o a respei to de algumas pessoasdesconhecidas com quem se encontrava
,e em certas
occasiõ es,não podendo conter-se
,chegava a mostrar'
1 6 MIN IATU RAS
o seu desagrado ou sympath ia . «Á s'
ve z e s—êe scr e v ia
à sou supersticioso : isto é do sangue,da cr e aç ão e
da educação das cr eanças no Braz il . Quando recolhiahontem a noite a casa
,bateu-me no peito uma bor
boleta ne gra,"
que me apavorou . » Por isso ainda ac
cr e scentava : «Eu quasi adivinhava hontem manovad
'
h oj e . »
Pouca gente o considerava como um individuosensível
,a ff ec tado por sympath icas recordações da
infancia . Era pouco communica t ívo em assump tosínt imos e os seus versos
,d 'uma correcção de grego
,
talvez,pel o mu i to que os aperfeiçoou
,não mostrem
bastante o fundo meigo e dolente da sua alma . Porémem muitas poesias das Min ia tu r a s, o poeta denuncia-se e
,melhor ainda
,n 'esta pagina int ima que
transcrevemos e que é d 'uma S impl icidade tocante«Falando-me do Brazi l suscitou—me a lembrança deum futuro
,que surge deante de mim
,ince r to e ch e io
de brumas : não se i ainda que carreira abrace,não
se i para que rumo me vo lte . Meu pae,o meu maior
e mais dedicado amigo,desej a que eu sej a medico .
Diz-me elle ás ve z e s:, que r o deixar-te abençoando a
minha memor ia , . que r o deixar-te com um ganha—pão .
E para teu bem . N o Braz i l,em poucos anuos
,podes
chegar a se r rico,riquíssimo até : os medicos a ll i são
t udo . Terás consideração,riqueza,
aquillo que eu te deixar, pode d'um momento para
outro se r absorvido por uma desgraça e então o quese r á de t i Estuda pois e arranja um modo de vida,que te ponha a coberto de todas as eventual idades .
Mas eu sou d 'uma preguiça sem nome . Quandomu ito
,talvez me forme em philosophia e depois de
PROLOGO 1 7
f ormado,
»passa-me,as vezes
,pela idea um sonho
,
que e o seguinte : chamar minha mã e '
e se poderuma i rmã casada que tenho no Braz i l
,consti tuir ta
mil ia,e constitu ir um ninho agradavel
,mimoso e
c onfortavel,aqui em Portugal
,no Minho por eXem
plo . » «Depois recordo-me com saudade da casaonde nasci , de minha mãe e de minha irmã , de todoe sse
'
conjuncto que me rodeava a minha infancia, et ico-me perplexo . » «O mais certo pois é partir
,
mas desconfio que me não h e i de dar bem por l á .
Tenho appa r encía de robusto , mas sou fraco e doente .
N o Brazi l estive muitas vezes a morte e fo i esse umd os motivos
,por que meu pae me enviou para Por
t ugal . » «Eu medico ! Adeus minhas esperanças,
a deus meus sonhos passageiros de gloria . Sabe por
q ue p r e fi r o Portugal ao Braz i l ? É porque aqu i mef i z homem ; porque aqui amei .Isto e d 'uma S impl icidade digna de Michelet
,e scr i
p tor que o poeta Gonçalves Crespo tanto amava el ia . Accr e scenta r emos algumas l inhas
,que são talvez
d'uma me ig uíce ainda mais encantadora e sympat h ica : «longe de tudo que é para mim caro nav ida
,aqui n'este canto de Portugal onde passo a mí
nha j uventude,quasi or p h ão d
'
a ff ectos e t riste desaudades do meu paiz . O seu paiz
,ou melhor o
paiz onde nascera era 0 Braz i l,como se dep r e h ende
facilmente . Gonçalves Crespo,veiu do Rio d e Jane i
ro,S ua terra natal
,aos 1 0 annos
,e nunca mais lá
v ol tou,adoptando por t im Portugal
,onde foi d ep u
ta do, como sua patria .
Era reservado e o seu caracter d 'um fundo cautel oso . Imperava n 'el l e essa voz omnipotente da natu
1 8 M IN IATU RAS
reza que avassa lla de preferencia as boas organisaç õ e s : «Á S vezes tenho l oucuras exquis itas . Estoufalando com alguem e não acredito no que esse a l
guem me e stá dizendo passa-me então pel a idea umacoisa sem nome
,desej ava penetrar al l i dentro de
aque l le cr ane o, senhor e ar —me d '
aque l la alma e devassar—l he os segredos mais íntimos e mais occultos.
Se eu t ivesse esse poder era o homem mais fel i zda terra . N inguem me illud ir ia
,não podiam fazei-o
sem que l ogo eu dissesse : mentis . »
N a appa r encía era um tanto desprendido e insensív e l ás caricias que lhe podiam p r od ig a lisa r ; porémna
'
r e a l idad e est imava—as em al to grau . Durante o sentempo de Coimbra
,morou em casa d 'umas senhoras
e dosas que davam hospedagem a estudantes. A l l i foicompanheiro de João Penha
,e do dr . VicenteMontei
ro,hoj e um dos mais conceituados advogados de
L isboa, um caracter e uma alma bondosa da' melhor
tempera . As donas da casa eram designadas entre osseus hospedes pela expressão famil iar «as velhas . » Arespeito d 'el las d iz Gonçalves Crespo : . estou emcasa d 'umas boas velhas
,que me estimam mais que
a qualquer dos meus companheiros . Tratam de mim,
como se eu fosse um fi l ho . Contam-me as suas desavenças com as criadas
,apaparicam-me e dizem de
mim o melhor possível , por onde vão . »
Uma noite,ha uns quatorze ou quinze anuos
,r e
presentava em Coimbra o tragico Rossi 0 O th e llo.
O th e a t r o Academico estava completamente cheio ea
'
admiração pelo actor i tal iano era enorme ; poremo Crespo
,completamente absorvido na contemplação
da arte,S ! sente os seus nervos
,que l he gri tam al to
,
20 M IN IATU RAS
cabeça l oira do desditoso Romeu . E dizem que ospoetas São inuteis ! Quando mais não sej a suav isamn 'os as mag uas : aqui estou eu , que se l eio essa tragedia
,para l ogo sinto dentro em mimuma doce con
solaç ão . Aquillo sim ,aquillo é que é amor, e não essa
coisa esfarrapada e fria,impossivel
,i ncongruente e
convencional,que as meninas usam caça r nos bail es ,
com a mesma t r anquillidade de e S p ir ito, com queapanham as borbol etas
,ou l evantam as malhas do
c r och e t . »
Este e stylo nunca infatuado mostra além do artistaprimoroso das Minia tur a s e dos N octu r nos
,uma al
ma sens ível e boa, um fundo bem diff erente do quemu i ta gente tem supposto e até a f fi rmado em ori ticas i r r e fl ect idas . Os seus l ivros vistos a esta noval uz
,teem um perfume e um encanto t enuissimos e
p ercebem—se melhor .
N os ul t imos tempos da sua vida,durante os dois
mezes em que a terrivel molestia caminhou imp lacav e lmente
,contradizendo d ia a d ia os heroicos e sfor
ços da sciencia e da sua incansave l esposa,a phy
s ionomia de Crespo adquiriu uma energica expressãod e melanchol ia . O seu sorriso t inha um fundo deamargura
,o olhar vago de myope f I xava—se inde te r
minadamente como n'uma e scur id ade distante,sem
um ponto vivo a que se prender . Pensava na morte,
as vezes sur p r e h end iam-n'o a chorar . Uma das ideasf ixas da sua vida
,a de que
,apesar d 'uma appa r en
c ia robusta,era fraco e morreria cedo
,r ea lisava—se .
p nonoco 21
Sentia—o inst inct ivamente e el l e que tanto amou av ida
,triste ou alegre que el la l he foi
,apavorava-se
com a idea da morte . Era preciso que o se u assistente e amigo
,o professor Sousa Martins
,e todas as
pessoas que o viam fingissem uma certa al egria esperançosa
,para o enganarem
,e eu era um dos que mais
concorria para este e if e íto,amesquinhando-l he com
d e sd ens o padecimento .
N a ul tima noite que viveu, tocou—me a mim,como
um dos seus amigos,acompanhar sua e sposa
,para
ambos velarmos pelo doente . Toda a minha vidaconservarei v ivo na memoria esse doloroso quadrod '
agonia,com todas as tris tes ci r cumstancias que o
ca r acte r isa r am : ao f im de dois mezes de noitesem claro
,a sr .
=l D . Maria Amal ia es tava anniquillad ae tudo quanto fazia era automaticamente . Havendonecessidade de se l he dar de hora a hora os medicamentos
,com o fim piedoso de lhe serem minoradas
as angustias dos ul timos instantes,o doente exigia
que is to fosse fe i to por sua esposa,que el l e chamava
n'uma voz já pouco inte ll ig íve l . Eu então acordava—ado torpor em que estava sobre um sof á e
,concl uído
o trabalho que Só el la sabia fazer,vencida pela enor
me lucta moral e physica,deixava-se cahir de novo
no mesmo logar,com a
'
cab e ça entre os braços .
AS feições do doente eram cad ave r ícasº ros to
prolongado e sumido,olhos grandes de myope sem
bril ho e sem mobil idade,a bocca entre-aberta para
resp irar melhor e a longa respiração stertorosa que já.começava a pronunciar-se
,lançava no estrei to am
biente,saturado d '
acido p h enico,ummurmur io rouco ,prenuncio da morte . Como fel izmente os seus meios
22 M IN IATU RAS
de sensibi l idade j á não eram grandes,não conhecendo
o f im proximo da sua vida,com a int e llig enc ia que
ai nda conservava,exprimia palavras de consolação
,
a f fi rmava esperar ainda melh oras .
N'
um momento,por habito profissional de que
ainda conservo restos,eu app r ox íme i-me da lampa
r ina para examinar o conteú do do escarrador . E l l efez signal a sua esposa pedindo-l he : «Vae ve r o queel l e d iz . » E como o meu so r ri so o animou n 'estahora extrema
,o desdi toso accr e scentou «Este foi a
salvação . Referia-se ao que tinha expectorado,
com o ul timo accesso de tosse .
«A morte aperfe içoa o homem mais perfei to»d isse Renan a proposito da l enda da r e sur r e iç ão dosubl ime N azareno
,que inspirou ao auctor das Minia
tur a s e dos N octur nos alguns dos S eus melhores versos. Pormuito s ympathica que fosse a lenda de Gonç alves Crespo
,por extraordinario que f osse o seu
talento,não poderia esperar—S e que a sua morte cau
sasse uma tamanha commoç ã o. Tanto em Portugalcomo no Braz i l 0 seu nome era est imado e querido eisso viu-se pelas manifestações de sentimento que o
p ubl ico l it te r a r io dos doi s pa i z es p r od ig a lísou a suab oa esposa . O poeta dasMin ia tur a s e dos N octur nosnunca poderá ter o que se chama popularidade , ou
melhor,vulg a r isaç ã o . A aristocrat ica correcção dos
seus versos,a elegancia e del icadeza subtil das suas
imagens,a i ronia dol ente e desdenhosa d 'algumas das
suas poesias,a fina melanchol ia de outras, não São
d e certo qual idades que todos possam faci lmente perceber . A l ém d 'i sso evitava com orgulho e al tive z deverdadeiro artis ta a fogosidade postiça de alguns
P ROLOGO 23
poetas e a sensibi l idade pueril d 'outros . Era um art ista de Op t imos nervos , que S ó pode agradar a entend imentos del icados . E no entretanto tem sonetos d 'umly r ismo camone ano
,que São um encanto .
N ão entra hoj e no nosso plano ana lysa r as Miniat ur a s e os N oct ur nos, porem d iremos de passagemque
,apesar do primeiro l ivro l he estabelecer l ogo
uma verdadeira reputação,o segundo accentuou de
t e rminadament e as suas eminentes qual idades d 'art lsta e l he garantiu entre os poetas p or tug ue z e s detodos os tempos
,um logar entre os primeiros . Dos
an tigos e hab itua e s collab or ador es da Folh a foi Goncalves Crespo um dos que menos produziu
,e comi udo
não foi aque lle a quem menos sorriu a fortuna l i t ter a r ia . É pa ra se ver que a abundancia ou fecundidadenão é sempre um signal de engenho e ao artis ta dev e -se -l he exigi r que a sua obra sej a perfei ta e não sel he perguntar o numero de horas ou de anuos queel la l he custou . A questão fundamental e que el l etenha o div ino poder de chegar a perfeicão
,como
Goncalves Crespo o t inha .
L isboa,março de 1 884.
TE I x E I RA D E Q UE I RO Z .
GONÇALVES CRESPO
N a proa os marinheiros
Recostados em rolos de cordame,
Escutam galhofeiros
Um vel ho que lhes conta seus amores .
O narrador di zia
«Foi isto em Buenos-Ai res ; Só queria
Que a vissem,como eu vi
,dançar bole r os
,
O corpo requebrando ;A saia curta ; as mãos posta s nas anca s ;
Os olhos atiçando .
Que valente fragata !
Val ia mais de certo,que dez brancas
,
Mariquita a mu lata
Da escoti lha a entrada,
N o corrimão lustroso
N a vaci l l ante escada,
Um verde papagaio cobiçoso
N amora com olhares sem ventura
Um cacho de bananas,
Que do cesto da gavea se pend ura
O BRAS CO M PLETAS
E variado o aspecto
Da enverni zada camara . A um lado
De uma comprida mesa
Um king's-ch a r ics inquieto
Ladra brincando e ati ra-se ao regaço
De uma Secca,espigada e velha Ing le z a .
Uma adoravel miss
De trancas aneladas
E de olhos de um azul casto e sereno,
Afaga com me iguíce ,Dando infantis risadas
,
Da la dy semsab or o cão pequeno .
De chapeo desabado,
C hapeo do Chi le , que uma tenda e g uala ,De charuto na bocca
,um f a z end e i r o
Passeia pela sala,
29
GONÇALVES CRESPO
O l hando namorado
O rosto feiticeiro
De uma genti l Bahiana enlang ue scida ,Que n'um doce pensar scisma embebida .
Alguns louros meninos,
Em cadeiras de vime empoleirados,
Apontam com seus dedos pequeninos,
Commentando e nle vados,
As paginas ornadas de gravuras
De um livro de subtis caricaturas .
Envol ta na fumaça
De uma leve e cheirosa cigarri lha,
O pé deixando ve r de sob a cassa
De seus brancos vestidos,
Uma l inda morena de Sevi lha
Se deixa amar por um francez poeta,
A lmiscarado,l ouro
,e de lune ta .
O B RAS CO M PLETAS
Jogam o volta r e te
Tres por tug ue z e s velhos ,Faladores
,teimosos e vermelhos :
Da mesa no tapete,
De cervej a entre as taças facetadas,
S cínt il lam como espelhos
As caixas de r ape. auri-l avradas .
Debruçado no encosto
De uma fofa cadeira,
O velho capi tão de bronzeo rosto
A uns colonos a llemãe s reconta
De que modo e maneira
N as margens do Amazonas aoanh a r a ,
Andando em caca na deserta areia,
A variada e refulgente arara,
Que as at t enç õ e s prendera da assemblea .
3 2 GONÇALVES CR ESPO
Assim passava ; e emquanto
Prosegue o cap it ão,"a velha ing le z a
Dormita recl inada sobre a mesa ;O cão não ladra ; e a miss escuta o canto
Arrastado,monótono e choroso
De uma robusta negra,que balança
N a rede fluctuante uma cr e ança .
O vento ref'rescara,
E move-se a galera . A comitiva
Para a coberta asccnrle alegre e viva .
Range no emtanto o leme .
N a camara S ! fica a triste arara«J'o f
'
rancez ,que murmura em voz ,que treme ,Á bella se ãor i ta «Je vous a ime ! »
O BRAS C O M PL ETAS
A NOIVA
A noiva passa ri ndo
De rosas coroada,
Como um botão surgindo
A luz da madrugada .
N a fronte immacu lada
O veo l he desce l indo,
E a brisa ennamor ada
Lhe furta um beij o infindo .
3 3
GONÇALVES CRESPO
Ante o al tar se incl ina
A noiva,e purpurina
Murmura a medo : «S im . »
Agora é no ite ; a lua
N o ceo azu l fluctua,
E o noivo di z : «Emfim
3 6. GONÇALVES CRESPO
A rede,que os ares em torno pe r fume
De vivos aromas,
De subito pára, que o negro indolente
Esprei ta lascivo da bel l a dormente
AS tumidas pomas .
N a rede suspensa dos ramos ergu idos
Suspira e sorri
A languída moça cercada de flores ;Aos gui nchos dá sal tos na esteira de cores
Felpudo sag uí .
N a rede,por vezes
,agi ta—se a bel la
,
Talvez murmurando
Em sonhos as trovas cadentes,saudosa s
,
Que triste col ono por noi tes formosas
Descanta chorando .
A rede nos ares de novo fluctua,
E a bel la a sonhar !
Ao longe nos bosques escuros,cerrados
,
De negros cap tívos os cantos magoados
Soluçam no ar .
O BRAS CO M PLETAS
N a rede olorosa,Si lencio ! deixa—a
Dormir em descanso
Escravo,balança-l he a rede serena ;
Mestiça,teu leque de plumas acena
De manso,de manso .
O vento que passe tranqui l l o,de l eve
,
N as folhas do inga;As aves que abafem seu canto sentido ;As rodas do eng enho não façam ruido
,
Que dorme a S inhá !
3 8 GONÇALVES CRESPO
A MULHER QUE BIA
Seu rosto tinha a doce transparencia
Das l ouças do Japã o . Era Judia .
Em seus olhos a z ue s quanta innocencia !
Mas dos sonhos de amor zombava e ria .
Mixto,de sombra e l uz : ás vezes pura
Como aeria visão me appa r e cia ;O utras vezes
,extranha creatura !
Era a pagã que entre meus braços ria .
O BRAS CO M PLETAS
Se de amor doces phrases eu sol tava
E febri l seus cabel l os d e S p r end ia ,De meus j oelhos
,douda
,resvalava
E beij ando-me,Esther cantava e r ia .
Minha alcova era um ninho perfumado,
E entre fl ores a vida me corria .
O socego perdi , e nnamor ado
D 'essa mulher,que ora cantava ou ria .
Uma ve z n 'uma ceia deslumbrante,
Entre o ruidoso estrepi to da orgia,
N os braços desmai ou de um estudante '
Depois deixou-me so Cantava e r ia .
Que saudades eu tive ! Em meu caminho
Vi—a hontem passar,triste e sombria
,
Sol ta na espadua a trança em desal inho :
Era a sombra de Esther,pois j á não ria .
3 9
GONÇALVES CRESPO
O C AMARIM
A luz do sol afaga docemente
AS bor dadas cortinas de e scumilha ;Penetrantes aromas de bauni l ha
O ndu lam pelo tepido ambiente .
Sobre a estante do piano reluzente
Repousa N or ma , e ao lado uma quadri l ha ;E do leito francez nas colchas bri lha
De um cão de raça o olhar i ntel l igente .
O BRAS CO M PLETAS
Ao pé das longas vestes,descuidadas
Dormem nos arabescos do tapete
Duas leves botinas delicadas .
Sobre a mesa emmur ch ece um r amilh e te ,E entre um leque e umas luvas perfumadas
Scinti l la um caprichoso bracelete .
41
GONÇALVES C RESPO
ARRUFOS
O l ha,vi zinha ; não pôde
S ofl r e r ma i s tempo os ag r or es
De teus esquivos amores
O meu amor sem ventura ;Se te olho
,vol tas o rosto
Com modos de abhor r e cida ;Se te falo
,dist r ah id a
Fi tas os olhos na al tura .
GONÇA LVES CRESPO
Isto era em abri l : em maio,
Quando das au las chegava,
Sempre na mesa encontrava
Um r ami lh e te cheiroso .
Um d ia achei um escripto
Que diz ia : «Venha cedo,
Quero di zer-l he um segredo ;Mas não tarde
,preguiçoso !
De S ci de um sal to as escad as .
Q uando cheguei,tu ergueste
O meigo olhar e disseste,
Presa de amor e ventura
«N ão sabe ? faço annos'
hoj e ;N ão recuse, meu amigo ,Jantara hoj e commigo .
E d e puz e ste a costura .
D'ahi a pouco vol tavas,
Mi nha doce primavera !
Com um col lar,que eu te dera
,
E o meu gorro nos cabel los .
Jantámos . Que tarde aquel la,
Cheia de louca poesia !
Quanto amor,quanta alegria !
Como os vinte annos São bel los !
O BRAS C O M PL ETA S
Uma ve z ti nhamos vindo
De passear pela aldeia .
Q ue noi te de lua cheia !
Parece que a vej o agora .
Era em noi te de S . Pedro,
Quando ouvimos n'um d e scant e :
O amor d e um e studan te
I
'
do dur a ma is que uma hor a . »
Teu braço tremeu,teu corpo
Vergou-se,mimosa planta
Se o temporal se l evanta
E a face do cão d escor a .
E repetias baixinho
Com doce vo z S I I pp lícant e :
0 amor d e um estuda n te
N ã o du r a ma is que uma h or a . »
Em tod o o nosso caminho
Foste calada e chorando ,E t ímida desviando
Teus grandes olhos dos meus .
A entrada da tua porta
Tentei beij ar-te,fugiste ;
E n'
aque l la hora tão triste
N em ouvi sequer : adeus !
46 GONÇALVES CRESPO
Desde então, ao teu postigo ,Por mais que os olhos .relanço
,
Emb a lde imploro o descanso
D 'esta minha desventura .
Se te Olho,vol tas O rosto
Com modos de ab hor r e cida ;Se te . falo
,d ist r ah ída
Fi tas os olhos na al tura .
O BRAS CO M PLETAS
Tu não és de Romeu a doce amante ,
A triste Julie ta,que suspira
,
S Olto O cabel l o aos ventos ondeante
Inquietas cordas de suspensa l yra .
N ão es Ophel ia,a virgem lacrimante
Q ue ao luar nos j ardins vaga e del i ra,
E e l evada nas aguas fl uctuante,
Como em sonho de amor que cedo expira .
43 GONÇALVES CRESPO
ES . a estatua de marmore de rosa ;G a latéa accordando voluptuosa
Do grego artista ao fogo de mil beij os .
És a languída Julía que desmaia,És Haydea nos concavos da praia ;Fosse eu o Dom João dos teus desejos
O BRAS CO M PLETAS
MODES TA
A M INHA I R M Ã
S e l embro esse momento
Mais bell o d 'esta vida !
Voava desprendida
A tua coma ao vento .
O teu Olhar,querida
Desceu ao meu tormento,
E após enternecida
Disseste em brando accento
49
GONÇALVES CRESPO
«Tua alma soti're e chora,
Quando o porvi r se i nfiora,
Quando a teu l ado estou ! . .v. »
Doce te ol he i tremendo ;A noi te ia descendo
,
Um beij o se escutou .
O BRAS C OMPLETAS
O p r ado temas flor es
Boninas a flor esta ,
Eu te nho-te,Marim
,.
Quand o me incl inammoi—sta
S e r á s-me tn, Ma lcata,
GONÇALVES CRESPO
Desceste ao meu abrigo,
Ah ! como eu te b emd ig o !
O h ! C omo te amo eu !
Que nos teus labios vej o
N a aureola de um beij o
0 resplendor do céo !
O BRAS CO M PLETAS
És bella,és casta
,és pura ;
O“teu olhar consola,
Se O lanças,doce esmola
,
A sombra,a desventura .
Vieste—me da altura,
Immaculada r Ola ;
Ab riste,alva corol la
,
Emminha noite escura .
55
56 GONÇALVES CRESPO
N a e sca lvada rocha
A flor não desabrocha
O madido botão ;
Mas tu sorris ao ver-me .
A mim,obscuro verme ,
N ão te mereço,não !
O BRAS CO M PLETAS
Se be ij o essa cabeça,
Meu premio,auxíl io e guia
,
S uf foca—me a alegria,
N em se i que mais eu peça .
N ão pode a bruma espessa
Casar—se a l uz do d ia :
Unir-se a ti pod ia
A minha sorte avessa ?
a!
GONÇALVES CRESPO
A inda é tempo,escu ta
O meu amor enlucta ;Venceu—te uma í llusã o .
Tu bem me vês no rosto
A sombra do sol-posto .
S e eu fosse teu irmão !
GONÇALVES CRESPO
Estrel las scínt íllant e s,
Eternos diamantes
De trémulo fulgor,
Bri lhai ! Sonha Modesta
Que tem na fronte honesta
Da laranj eira a flôr .
OREAS CO M PLETAS
'Que doce é ver agora
A natureza,quando
O p lume o e al egre bando
Saú da a luz da aurora !
N o prado o orvalho chora
Aljof r e s derramando
Já se ouve ao longe a nora
E o lavrador cantando .
(i l
62 GONÇALVES CRESPO
As auras amorosas
Passambeijando as rosas,
E tu dormindo,flôr !
Ergue-te,lí r io santo
,
Accorda,meu encanto
,
Modesta,meu amor !
O BRAS CO M PLETAS
V I I I
Dor mia . Assim a lua
Em nuvens perfumadas,
N O S ares embaladas,
Esconde-se,e fluctua .
AS roupas descuidadas
Deixam-n'a semi-nua :
Que fôrmas delicadas !
Dormia . Assim a lua .
63
( VI GON Ç ALVES CR ESPO
Aque lle seio trouxe
N ão se i que aroma doce ,Que doce embriaguez !
Tão bel la ! enfei tiçado
Beij ei -l he namorado
A curva de seus pes .
O B RAS CO M PLETAS
Do templo O veo rasgou-se ,N a t reva ei l-o sumido !
O sonho est remecido
Em fumo dissipou—se !
Erguer,embevecido
N'aque lle amor tão doce ,
Um ídolo que fosse,
E ve l—o assim cabido !
66 GONÇ ALVES CRESPO
Oh petala de rosa,
Que nuvem tormentosa
Te confundiu no pó ?
De tanto amor que r e S ta ?
Um tumulo,Modesta
,
E eu sobre a terra,só !
GONÇALVES CRESPO
Levava as mãos no peito,
G oivos n'
aque lla trança
Que tanta vez beij ei.
Oh sonho meu desfeito !Voaste-me
,cr e ança !
Deus sabe se te amei !
O BRAS C O M PLETAS
ELEITO S E PREC ITOS
Se passam em tropel,rugindo
,OS ventos
Da fl oresta na densa romaria,
Cremos ouvir nas vascas da agonia
De esmagados titans r udes lamentos .
Quando a furia descai dos elementos,
E mais se afrouxa a agreste symphonia,
Pelos erguidos ramos corpulentos
De aves se alastra a varia me lod ia .
69
7 0 GONÇALVES G R ES-PO
Os l amentos,que se ouvem na floresta
,
São as r aívas e os gri tos temerosos
De quem o eterno azul jamais alcança .
E a melodi a,
namorada festa
Das aves e dos ninhos sonor osos
É O sorrir da b emaventur ança.
O BRAS CO M PLETAS
UM NUMERO DO IN TERMEZZO
tomando ch á em torno a mesa,
Da sociedade a flô r :
E no campo de esth e t icas oppostas
Díscut ia-se O amor .
—«O amor deve se r e th e r e o e puro ,O conselheiro di z .
S orrindo,a conse lheira um a i ! abafa
Com gestos de infel i z .
GONÇALVES CRESPO
D iz O cône g o : O amor d est r oe,mas quando
Sensual, já se vê
A d'onzel la pergunta ingenuamente
Reverendo,porque
A condessa murmu r a em voz dolente
«O amor é uma pa ixão . »
E l anguida uma chavena O ff e r e ce
AO pal l ido barão .
Era vago um logar em torno a mesa
E ra o teu,minha flor !
Tu,Só tu
,poderias
,se o quí z esses,
Di zer O que era amor !
O B RAS CO M PLETAS
DULCE
(Imi taç ão)
F E RNAND ES PE RE I RA
Vi-a um dia na rua . F l uctuante
Ao de sdem l he cah ia a loura trança ;Como a l uz d'um pharol
,essa cr e ança
L e vOu-me atras de S i . triste bacchante !
Era o seu nome Dulce . O povo rude
Apontava-a mofando,quando a v ia .
Docemente sorrindo,el la di zia :
«Tu sabes,se te amei santa virtude
7 4 GONÇALVES C R ESPO
Um di a a qui z beij ar ; fugiu—me triste :
«Dulce me chamam,disse
,que amargura !
Este corpo,que vês
,é sanie impura
,
N emmais amargo fel no mundo existe .
«Que torva historia a minha ! é breve,attende
Por minha mãe,que a fome a llucínava ,
Lançada fui no ab ysmo ! Então amava .
Hoj e sou Dulce,a lama que se vende .
76 GONÇALVES C RESPO
Quí z e sse a minha prospera ventura
Descobrir-l he esta dor,que me devora ;
Teria dó da minha vida escura,
Genti l senhora .
Q ue para mim a aurora nunca aponta,
N em eu vej o do 8 0 1 os r e S p lendor es ;Os males meus
,senhora
,não teem conta
,
N emminhas dores .
Mas quando a furto a vej o, que ale g r ia !
Mas quando a vo z l he escuto,desfa lle ço !
E d'este padecer,que me e xcr ucia
,
Até me esqueço .
Eu não lhe imploro amor : vira sómente
Entreabri r—se—me o céo, formosa dama,Se lhe ouvi sse di zer com voz tremente :
Como el le me ama ! »
O BRAS CO M PLETAS
CON S OLAÇÃ O
Quando a noite no bai le esplendoroso
Vais na onda da val sa arrebatada
Com a serena fronte recl inada
S obre o peito fel i z do pa r ditoso .
Mal sabes tu que exis te um desditoso
Faminto de te ve r,oh minha amada !
E que sente a sua alma angus tiada
Longe da luz do teu olhar p iedoso .
7 7
G O N ÇALvE S CRESPO
Mas quando a roxa aurora vem nascendo,
E a cotovia accorda o l aranjal,
E OS astros vão de todo esmorecendo ;
Eu cuido ver-te,oh l írio divinal
,
As minhas cartas ávida relendo
Semi-nua no leito virginal .
O BRAS COMPLETAS 79'
S ARA
N ão cantarei o sol,a terra e os largos mares
,
E o bosque murmurante,e Os ninhos das ramadas
Meus h ymnos serão teus , e as notas namoradas
Te vibrarei no p lêct r o, ó Esposa dos Cantares !
Somente cantarei o teu olhar divino,
E esse col lo,moldado em candido alabastro
,
Onde ás vezes desmaio,e onde te de snast r o
Em del irios febris as comas de ouro f ino .
8 0 GONÇALVES CRESPO
Teu corpo cantarei , a e S plend ida e sculp tur a ,
O l ivro onde apprendi a ler quantas del ici as
N O S chovem da mulher nas trémulas caricias,
Que nos erguem ao cêo nas azas da ventu ra .
Teus labios cantarei , abençoado porto ,O nde va i soluçar a vaga de meus beij os,Lyra
,que se desata em t ímidos h ar p e jos,
Quando me pende a fronte em la S S O desconforto .
S e em teus braços me inclino,eu Sinto que me afundo
N'
um ab ysmo de seda e plumas perfumadas,E exu l to, e choro , e canto ; e a roscas alvoradas
Ergue o vôo minha alma em e x tasís profundo .
Tu és a Fornarina : e eu n'esses olhos l eio
A luz que cega e mata . Embora ! venham rosas !
Quero cingir a fronte,e em noi tes amorosas
Como Sanzio morrer nas ondas do teu seio .
O BRAS C OMPL ETAS
Mi lagre da natura
És tu,mulher ; o artista
Aj oelha,se te avista
,
O h rara formosura !
Deslumbra na brancura
Teu corpo,e cega a vista ;
Mas ver-te assim . contrista !
Tão bel la,e tão impur a l .
8 1
sz GONÇALVES CRESPO
Meu sonho foi a rosa
N a vaga turnultuosa
Tão cedo o vi morrer !
Ph r ynéa , tu não choras,N em tremes
,ném de scor as
ÉS marmore,mu lher !
84 GONÇALVES CRESPO
Fascina,quando a vej o á noite semi-nua
,
Postas as mãos no seio, onde O desej o estua ,A bocca descerrada, amortecido O olhar .
Fascina,mas sua alma é l odo
,onde não pousa
Um raio d'essa aurora,o amor
,subl ime cousa !
R aio de luz perdi do em tormentoso mar !
O BRAS CO M PLETAS
N o alvorecer das minhas primaveras
Tu me surgiste,appar iç ão mimosa ,
E eu pude ve r logradas as chimeras
Da minha escura vida procel losa !
Com tanto ardor não cingem verdes heras
O tronco da palmeira voluptuosa,
Como quando no abraço di laceras
Este meu seio nu,pagã formosa !
86 G ONÇALVES CRESPO
Eu quero desvendar este myste r io
Se alguma cousa em t i de vago e e th e r eo
Existe meio occul ta na penumbra .
Quero sentir, palpar a real idade ;Mas ante o bri lho augusto da verdade
A luz do meu amor toda se obumbra .
GONÇALVES CRESPO
Quem te colheu o be ij o primitivo ?
Que Fausto ou Mephistopheles al t ivo
Te ennodoou as vestes,Margarida ?
Escuta : emquanto dormes, impudente ,Talvez n'alguma estrel la resplendente
Chore tua alma triste e arrependida .
O BRAS CO M PLETAS
S ara,tens a bel leza e a fôrma seductora
Que T iciano adorara,e Angel o esculpira ;
De teu profundo Ol har na humíd a saph y r a
Em d esmaios eu bebo luz que me devora .
Sara,meiga visão ! meu se r chora e del ira
Se te vej o infant i l,suave
,encantadora
,
E que vou desferir nota gemedora
Do meu i nsano amor no labio que suspira .
GO NÇAL VES CRESPO
Foste O molde talvez de algum sonho divino,
Estrel la vinda a terra,oh corpo alabastrino
,
Q ue em namorado extremo aperto contra 0 seio !
Mas sorris quando triste oscu l o os teus cabel los,
E te conto a illusão dos meus vagos anhelos
Eu t e perdôo,flô r ! cr e anç a , eu te pranteio !
GONÇALVES CRESPO
Pod e sse eu tri ste agora
D i zer que v i a aurora
Fulgir um S ! momento !
Desespe r ar eterno !
Oh ! basta d'este inferno !
Esp lenda o firmamento !
O B RAS CO M PLETAS 9 3
V I I I
O h Sara,mi nha Lesbia
,em cuj o bocca a S p ir O
A volup ia que mata, o goso que adormenta !
Q uando te ag i ta O sangue a febre que dementa,
Manso e manso desmaio aos beij os de um vampiro.
ÉS como a estatua grega,O assombro da e sculp tur a ,
Erguera—te um altar o ardente pagani smo ;Desce de ti a luz
,que bri lha em meu ab ysmo,
Esp lendente ideal da eterna formosura !
GONÇALVES CR ESPO
Maravi lha da carne,ás vezes se n 'um beij o
,
D 'esses beij os febris e humidos,transvasas
Em meu ancioso peito O fogo em que te abrasas,
E te fustiga em lava asperrimo desej o,
Pr e sínto que se esvai a noite procel losa
A l uz de um teu Ol har na languida agonia,
E adormeço,mu l her
,n'
um sonho de magia
Como em placido lei to a onda preguiçosa .
Depoisàs horas quando a cu r va mai s se acalmaDO seio turbulento
,e O mar da l onga trança
Pouco e pouco se espraia . e flãccido descansa,N ão se i que dô r l evanta os sei os de minh'alma .
Que importa que eu enxugue ao fogo de teus beij os
O pranto que me orval ha a palpebra sombria ?
Se vej o o ideal,que tanto resplendia
,
Perder-se pela al tura em trému los ade jos?
9 6 G O N ÇALVES cnaspo
Obra de monge em me r encor ia cel l a,
Piedoso artista ha mui to adormecido
Emvelha cathedral .
Tem secu los ; talvez que n'estas contas
Passasse outr'ora suas mãos esguias
A caste l lã senil,
Pensando triste nos di tosos dias
Em que a seus pés ummenestrel vib r ava
O mimoso a r r ab i l .
Talvez que este rosario minorasse
As saudades “da noiva lacr ymante ,Que debalde esperou
Em cada náu,que vinha do Levante ,
O seu donzel amado que part ira
E nunca mais vol tou .
S obre cóta de um j oven caval le iro ,Q ue o beij ava por noi tes estrel ladas
Pensando em sua mãe,
E l l e assistiu ás guerras d as cruzadas ,A travessou talvez a terra santa
E v iu Jerusalem.
1 87 1 .
O BRAS CO M PLETAS 9 7
Talvez alguma freira em triste claustro,
De seus annos na doce primavera,
S ó d 'el l e confiou
S eus loucos sonhos de fa lla z chimera,
E,apertando o rosario ao peito ancioso
,
Consolada expirou .
Isto,o que leio no rosario antigo ;
E quando me lancholico l he beij o
As contas de marfim,
N o ar escuto i ndefinido harpej o,
E então a crença,a myst ica toada,
Murmura dentro mim .
98 GONÇALVES CRESPO
DES TI N OS
A M . J. B .
Tu és a andorinha t ímida
Em migração para o sul ;Eu sou o abutre esfaimado
,
Esse demonio emplumado,
O escuro Ahasve r o do azul
Tu és a prece b emdicta,
Que da innocencia partiu ;Eu sou o gri to ra ivoso
Do miserrimo Leproso,
A quem o Senhor feriu .
”1 00 G O N ÇALVE S CRESPO
ARREPEN DIDA
A V ICENTE M ONTE I RO
N'esse quarto pequeno humido e estrei to,
A miseria assentou a mão sombria
A esteira do luar, que o alumia,
Mais lhe engrandece o luctuoso e íl'
e ito .
A um lado da vetusta gel osia“Vela triste mulher ; no immundo l ei to
Al guem ressona lugubre,e desfei to
Pelos excessos da nocturna orgia .
O B RAS CO M PLETAS 'lOt'
E l l a scisma ao luar ; todo o passado
A seus Olhos avul ta,i l luminado
Pelos dubios reflexos da tristeza .
Por uma noite assim,límp ida e clara,
Sua modesta alcova el la deixara
Por esse que al l i dorme e que d e S p r e z a !
402 GONÇALVES CRESPO
NERA
Uma larg a piscina , Obra de um grego artista,Attrai da alcova em meio a fascinada vista .
De trabalhado bronze um Pan malicioso
Finge na tenue flauta um canto harmonioso .
.Uma estatua do Amor,de Paros cô r de rosa
Entre verdes festões assoma graciosa .
GONÇALVES CRESPO
Murmur a rn do cle psyd r o"
as aguas . Entretanto
N era seu corpo estira em fl accido quebranto .
Abre fel ino gei to os láb ios cô r de rosa,
Como em busca de um beij o,a dama volup tuosa ,
Sonha ! j u lga sentir no rosto de açucena
Os beij os de Bacty lo, O gladiador da arena .
Subito,em toda a Roma a plebe di ssoluta
«Ao C irco ruge e gri ta ; dama accorda e escuta
X I I I
Ergue O'
C O I'
pO de neve a“
l inda Galatea,
«AO C irco e em seu Ol har sorri i gnota idea .
O B RAS CO M PLETAS '105
ALGUEM
Para algu em sou O ly r iO entre OS abrolhos,E tenho as formas ide aes do Christo ;Para alguem sou a vida e a luz dos Olhos
E se a terra existe,e porque existo .
Esse alguem,que prefere ao namorado
Cantar das aves minha rude voz,
N ã o és tu,anj o meu idolatrado !
N em,meus am igos
,é nenhum de vós !
406 GONÇALVES CRESPO
Q uando al ta noite me recl ino e deito
Me lancholico,triste e fatigado
,
Esse alguem abre as azas nO meu l eito,
E O meu somno desl i za perfumado .
Chovam bençãos de Deus sobre a que chora
Por mim além dos mares ! esse alguem
É de meus dias a esplendente aurora,tu
,doce velhinha
,Oh minha mãe !
1 0 GONÇALVES C RESPO
Atraz das grandes, pardas borboletas ,C r e anças nuas lá se vão inquietas
N a varanda correndo ladrilh ada .
Desponta'
a lua ; 0 sabia g or g e ia ;
q uanto às portas do curral ondeiaA mugidora fi la da boiada .
O BRAS CO M PLETAS 1 03
UMA ANDALUZA
A M ARÇAL PACH ECO
T inha OS p és, t i nha as mãos em miniatura,
Essa por quem suspira em vão Sevi lha ;S eu col lo era um model o de e sculp tur a ,
V isto de sob as franjas da mantilh a .
Em seu gracioso andar sob r ee xced ia
Da panthera f'
eli na genti leza ;Era famosa em toda a Andaluzia
A l onga trança da genti l marqueza .
H O G O N C ALVE S CRESPO
E por ninguem batera aque l le sei o
De cr e anç a indolente e caprichosa !
N enhum h ida lg o em namorado e nle io
O usou dizer-l he um dia : «É tão formosa ! »
Por vezes nas tertul ias repetia,
Dedi lhando no leque rendi lhado,
Que a doces galanteios preferia
De um papel i to O fumo perfumado .
Á noi te,quando a lua e toda amores
,
E a guitarra soluça mais dol ente,N o seu balcão de g oth icos lavor e s
A marqueza sorria-se indol ente .
Um alcaide,poeta e cavalhei ro
,
De ciume feroz embriagado,
N o l ei to apunhalara um extrangei ro
Da bel la senori ta namorado .
A lguem disse que o facto d eshumano
A deixara impassíve l e serena,
E que se ouvira toda a noite ao piano
O canto alegre da genti l morena .
41 2 GONÇALVES C RESPO
BIAN CO VES T ITA
Q uando sou a teu lado e sinto O aroma
Das tuas falas puras de cr e anç a ,Embriagam—me OS sonhos de esperança
Q ue em vão posso lograr na curta vida .
V isão de amor ! O beij o sacrosanto,
Colhido d 'essa bocca purpurina,
Foi como a luz do sol entre a nebl ina
Eu te b emd ig o, noiva estremecida !
O B RAS CO M PLETAS '1 1 3
Por vezes ao luar,n *essa varanda
,
Quando ao seio te aperto e nnamor ada ,
E a medo se desata magoada
A canção de minh 'alma,que delira
,
A face te desbota docemente .
De scáe—te fronte languida no seio
Humido O labio em desmaiado ance io
Tenues vozes de amor brando suspira .
Flô r de innocencia ! O sonho de ventura ,Que antevej o no aroma d 'essas falas
,
N ão vale as nuvens de ouro em que te embalas
E de teu leito O perfumado arminho .
N ão me fal les de amor, t ímida r ô la !
Extende as azas em perenne ad e jo '
Chore eu embora o sacrosanto be ij o
E as rosas que lancaste em meu caminho !
41 2 GONÇALVES C RESPO
BIAN CO VES T ITA
Q uando sou a teu lado e sinto o aroma
Das tuas falas puras de cr e anç a ,Embriagam—me os sonhos de esperança
Q ue em vão posso lograr na curta vida .
V isão de amor ! O beij o sacrosanto,
Colhido d 'essa bocca purpurina,
Foi como a luz do sol entre a nebl i na
Eu te b emd ig o, noiva estremecida !
GONÇALVES CRESPO
NOITE DE INVERNO
Dezembro,quando veste
O manto seu de arminho,
E O escuro torvel inho
Empana O azu l celeste .
E Sopra O agudo leste
N o arido maninho,Deserto é o cam inho
,
E a noite é fria,agreste .
OBRAS CO M PLETAS
Que doce então S cisma r mos
N a alcova soce g ada ,E,quasi a adormecer
,
A fronte recl inarmos
N a onda ave lludada
De um coll o de mu lher !
“5
1 16 C O N CALvE S CRESPO
DES DICHADA
S ósinha e ao desamparo el la vivia
N'esse pobre casebre abandonado ;
N ão conhecera pae nem mãe ; doia
F i tar aque lle rosto macerado .
N enhum rapaz esbel to a convidava
Para os d escante s da festiva aldeia ;E comsig o mesquinha suspirava
«Doce Jesus ! porque nasci tão feia
1 1 8 GONÇALVES CRESPO
ABEIRAno MON DEGO
DO azul na grande abobada espelhada
Campeia a lua e os astros scinti l lantes ;Os pés nas frescas aguas murmurantes
,
Dorme Coimbra triste e soceg ad a .
Ha pouco ainda a branda serenada
N O S b andolins chorava palpitantes ;Tudo é si lencio agora
,e dos amantes
N ão se movem as sombras na calçada .
O BRAS CO M PLETAS 1 1 9
'O caes repousa ; a riba é sol i taria ;Da ponte nos esguios candieirosA l uz vaci l l a crepi tando varia .
”
N as curvas lanchas dormem os barqueiros .
'O poeta no emtanto,O e terno paria
,
E scuta a voz de Ignez entre os salgueiros .
1 O G ONÇALVES CR ESPO
C ORTEJO
D E PAULO V ERLA INE
Em vestes de ouro e brocado,
Um mono OS passos acerta
Ante a formosa,que aperta
N a mão um l enço bordado .
'A traz um negro luzido
Segue,de capa encarnada :
Sustém a cauda pesada
DO r ocag ante vestido .
1% GONÇALVES CRESPO
A M . DE CA M POS CARVALHO
Da lua um raio incerto
N o quarto se perdia ;E a mãe olhava o Dia
E a Luz do seu deserto .
E l la velava perto
DO f i lho,que dormia
,
E candida sorria
AO ly r io entreaberto .
O BRAS CO M PLETAS 1 23
N o berço fluctuante
Moveu-se agora O infante
E acorda pranteando .
N ão ha quadro mais bel l o
Que a mãe,sol to O cabel l o
,
O fi l ho acalentando '
1 24 GONÇALVE S CRE S PO
A TUA CARTA
A J . S I M OES D IA S
Tem as lettras desmaiadas
A carta que me escreveste,
Talvez do calor do seio,
O nde escondida a t rouxeste .
O perfume que el la exhala
Entonteceu—me a cabeça,
Lembraram—me OS d oces beij os
Da tua bocca,travessa .
1 26 GONÇALVES CRESPO
Oh fi l ha ! quando medi t o
N as rosas do meu passado,
Parece-me a tua carta
Um l indo al tar enfeit ado .
E penso . vê lá por onde
A phantasia me voa !
Que tens a mão sobre a minha,
Que um padre nos abençoa .
Eu não dera a tua carta
Por cousas de alta val ia,Ainda que mais não tivesse
Que O teu nome de Maria !
O BRAS CO M PLETAS
IL RI TTBATO
Entre jasmins em perfumado ambiente,
Qual a Madona em nicho recatado,
Pende em moldura de ebano lavrado
A imagem da mul her que choro ausente .
Sol ta l he desce a trança resplendente
Em ondas sobre O seio immaculado ;Doura—l he O fInO l abio nacarado
A lmo sorri r de amor,puro
,innocente .
1 7
1 23 GONÇALVES CRESPO
Poemas ae r eos n'esses Olhos leio,
N a l uz dos Olhos negros,e prantei o
O vê r -me triste e Só no meu retiro .
Doce visão do ceo ! ás vezes creio
Que Suspiras de amor em vago ance io
O nde me levas,intimo suspiro“?
1 3 0 G O N CALVES CRESPO
Sonho tal vez ! cuidei ter presentido
O arras tado e usual r hido
D e suas vestes murmuras de seda .
Uma folha que desce me desperta !
E eu vej o,a luz da lua
,a sombra incerta
Das arvores nas ruas da alameda .
O BRA S CO M PL ETAS
CANÇÃ O
A BERNARD INO M ACHADO
Mostraram—me um dia na roça dançando
Mestiça formosa de Olhar a z oug ado,C O
'
um l enço de cores nos seios cru zado,
N O S lóbos da orelha p ingentes de prata .
Que v i va mulata !
Por ella O fei tor
D i z iam que andava perdido de amor .
De emtor no dez leguas da vasta fazenda
A vel—a corriam gentis amadores,
E aos d ictos galantes de finos amores,
1 3 !
1 3 2 GONÇALVES CRESPO
Abrindo seus labios de Viva escarlata,Sorria a mu lata
,
Por quem O fei tor
N utria chimeras e sonhos de amor .
Um pobre mascate,que em noites de lua
Cantava modinhas,lunduns magoados,
Amando a faceira dos Olhos rasgados,
O usou confessar-lh º
o com voz t imorata .
Amaste-O,mulata !
E O triste fe itor
Chorava na sombra pe r dido de amor .
Um dia encontraram na escura senzala
O catre da bella mucamba vaz io '
Emb alde recortam pirogas O rio,
Embalde a procuram nas sombras da matta .
Fugira a mu lata,
Por quem O fei tor
Se foi definhando,perdido de amor .
GONÇALVES CRESPO
Teus olhos teem a luz,a mesma luz que out ºr or a
A vida me tornou em fl oreo paraiso ;O mesmo aroma tem trança cor de amora
,
Teu'
labio O mesmo r iso .
Mas quando te ouço a fala,esvai—se meu encanto
,
O sonho se anniqui la e attoni to estremeço !
Minh'alma
,doudo amor ! se alaga em triste pranto ;Mu lher
,não te conheço ! .
N ão és a mesma,não ! não treme suspi r osa
Co rno outr'ora, cr e ança , a tua voz t remia
Busco embald e a illusã o do sonho cor de rosa !
Tudo,tudo méntia ! .
Ment ia—me essa voz,e aque l le doudo ance io,
E O pranto que te v i na minha despedida !
Mentia—me essa fronte occu l ta no meu seio .
E eras a minha vida !
Di zº—me se eu perguntasse um d ia O que fizeste
Das santas i llusõ e s das minhas primaveras,Das crenças que d epuz n
'
aque l le amor celeste,Di z '-me
,que responderas ?
'O BRAS CO M PLETAS
“
É S hoj e O mausoleo sombrio onde descansa,
Para sempre talve z,O meu doce passado !
A manhecesse um d ia a pall ida esperança .
Mas . teu seio é gelado !
1 3 6 GONÇALVES CRESPO '
Recreia-se a minh 'alma se a tardinha
N a j anel la diviso essa innocente ;Que nunca v i olhar mais transparente
,
N em figura genti l como a viz inha !
Desce ás vezes a t ímid a avezinha
AO seu j ardim,e afaga docemente
Da C och inch ina um gal lo refulgente,
Que em seu regaço langu ido se aninha
1 3 3 GONÇALVES CRESPO
S UA S MÃ O S
As mãos d 'essa franzina creatura
São feitas das camel ias se t inosas ;Resumb r a na suavissima textura
O azul d a s tenues veias caprichosas .
Levemente comp r idas, graciosas,Escurecem das teclas a brancura
,
E desprezam as l indas preguiçosas
O s f inos arabescos da costura .
O BRAS CO M PLETAS 1 3 9
O s dedos São de j aspe modelado ;E as unhas . só podiam as paletas
De um chinez imitar-l hes O rosado .
Se alguem as beija em curvas etiquetas,
Sente um aroma doce e del icado
C Omo o aroma subti l das violetas .
1 40 GON C ALVES CRESPO
O MEU CACHIMBO
Beij a os Ol hos do fi lho inanimado
A mãe,sol ta ndo
.
se pulcr aes lamentos
Assim chorei,beij ando esses frag mentos
DO meu l ouro cach imbo requeimado .
Eras,pobre ca chimbo
,O que restava
Do aereo sonho d'esse amor desfei to !
Emba lde aperto ao magoado peito
O cofre de ch a r ão que te guardava !
1 4 G O N C ALVE S CRESPO
E quando a noite repousava escura,
E a sol idão mais fundo me doia,
N as espiras do fumo absorto a v ia,
E embalava—me em sonhos de ventura . .
Oh meu cachimbo,companheiro e amigo
,
Q ue na desdi ta e no prazer me viste !
Com quem agora falarei da triste,
Que descansa na sombr a do jazigo
O B RAS COMPLETAS 1 43
AO MEIO
N o cafezal cerrado
O si lencio é completo : OEngenho dorme .
DO matto denso e enorme
Sae O vago sussurro dos cortiços ;N ão se ouve de aves O cantar magoado
,
N em coaxa a rã nos humidos caniços .
O fumo das cozinhas da Fazenda,Pennacho vaci l lante,
Recorta em floccos de l igeira renda
O ar sereno em seu azu l distante .
4 44 G O N CALVE S CRES PO
N a torre avermel hada
Chama a sineta ao sordido repasto .
Dos escravos a turba afadigada,
Rep l eta de alegria,S ob um toldo no pateo Immenso e vasto
Descansa do labor do extenso dia .
Entre dois ramos na suspensa rede
Dorme emtanto O fei tor ;E sua alma i rrequieta em sonhos vaga
Pel os pai z e s de um ditoso amor .
'
S onha embebido em louca phantasia
Q ue a sombra do ingazeiro
De vasta r amar ia
O velho fazendeiro,C om voz grave, d
'
est'
a r te l he dizia
.«S into-me velho e enfermo,
«Da vida j á no termo
1 46 GONÇALVES CRESPO
V I I I
Este apresta a armadilha cavil loso
Para ca çar as Vivas capivaras ;Outro
,mais dil igente e industrioso
,
Vai concertando um cesto de taquaras
N'
um grupo separado
Os crias da Fazenda
Em doce enl evo escutam
Um franzino mestiço afortunado,
Que relata baixinho o caso extranho
De ter visto a S inhá tomando banho .
Da sala da costura na j anel la,
Que a verde trepadeira
De cachos mil estrel la,
Passa as vezes O rosto cob r e ado
Uma lasciva parda feiticeira .
O B RAS CO M PLETAS
Um rancho de negri tos
Luzidios e nus,
Enchendo O ar de estrepi tantes gritos,
O pateo cruzam rapidos,montados
Em varas de b ambus,
Al evantando nuvens de poeira
N a vertigem da celere carreira .
Folgam ao vel—O S os sag uis l i geiros ;E as araras formosas
,
Os rubros Olhos com temor piscando
E as scinti l lantes pennas encrespando,
Já gr i tam bul içosas
N o ebano lustroso dos poleiros .
De velhos negros n 'uma vasta roda
Um cabinda gracioso,
A quem a turba tod a
Com app lausos inci ta ,Vai meneando O corpo fi rme e airoso
E a voz minhota do feitor imi ta .
1 47
1 43 GONÇALVES CRESPO
Este sonha no emtanto ;Mas O sonho é mais triste
,pois agora
Ante seus Olhos,humidos de pranto
,
Me r encor ia visão se patenteia :
Vê d a patria a campina verdej ante
Onde brincara infante,
E a torre velha e esguia,
E a larga escadaria
Da velha egrej a da saudosa aldeia .
N ão l onge do caminho
N as sombras do arvoredo meio—occu l ta
Como alvacento ninho,
A casa onde nascera alegre avul ta .
Falam com el le cheias de al egria
As moças do l ogar ;«Oh Margarida ! oh Rosa ! e tu Maria ! .
E O triste a soluçar .
Onde está minha mãe ? » eil—a que passa !
Tão mudada e abatida
N ão vês teu fi lho,minh a mãe querida ?
Para abraçar-te de bem longe venho .
GONÇALVES CRESPO
A C ON FES S ADA
Era tão l inda assim,aj oelhada
,
As mãos unidas com suave gesto,
Os Olhos baixos,e um sorri r modesto
De seus labi os na cu r va immacu lada !
De um sacerdote aos pés severo e mesto
E l la curvara a fronte del icada,
E di zia—l he baixo e soce g ada
De sua vida o desl i zar honesto .
O B RAS CO M PLETAS 1 51
Mas subito uma nuvem cor de rosa
AO rosto l he subiu, fugaz meteoro !
E a voz tremeu-l he inquieta e susp i r osa .
E pude ve r , sombrio Lovelace ,Essa palavra amor em lettras de ouro
Traçadas no G a rmin de sua face .
1 52 GONÇALVES CRESPO
TRANS FIGURAÇÃ O
AO D R . JO SÉ FALCÃ O
Era a voz de Jesus,benigna e tão suave
Como um pe r dão de mã e ou como um trino de ave .
A turba,que O cercava
,ouvia-o respei tosa
,
O lhando aquel la fronte eburnea e lumi nosa .
1 54 GO NÇALVES CRESPO
V I I I
E e lla, que em v ida so l ta , aleg r e e d es-mim
Passar-a os dias se us,tr ist e mulhe r formosa !
S entind o ag ne ll e O lh a r, que ent r e e lla e o cão fluctua,
1 870.
F l ) ! DAS MÍN I ATURAS
1 58 GONÇALVES CRESPO
voz humilde ás vozes,que no paiz em que eu nasci
,
e no imperio em que el l e nasceu,o proclamam um
dos mais del icados poetas modernos , um dos cinzelador e s mais primorosos da poesia portugueza
,um
p a r na ssiano no bom sentido da palavra,quer dizer
,
j untando como C oppée , mas em mu ito mais al to g r áudo que este
,a suavidade
,a melodia
,a correcção do
metro,ao sentimento profundo
,a comp r e h ensão cla
ra,nít ida e perfei ta de todos os segredos complexos
da alma contemporanea ?
Parece-me que seriam rigorosos de mais os quetentassem coar ctar —me esse direi to
,e que seria de
masiada doci l idade da minha parte O suj eitar—me acensores tão intransigentes e tão duros .
De mais,não escrevo eu exclusivamente para se r
l ida por mulheres E onde está a mulher que me condemne n 'este ponto ? N ão ha nenhuma
,tenho a cer
teza d 'isso .
Gonçalves Crespo não escreveu senão as Minia t ar a s e OS N octur nos. Foram OS versos da sua mocidadecollig idos debaixo d
'
aque lle t ítulo,que m 'o fi zeram
conhecer e admirar ; os N octur nos pode bem dizer-seque foram escr ip tos ao meu l ado .
A Obra do poeta tem pois para mim duas faces d ist inctas, mas para j ulgar as Minia tur a s sinto-me porassim dizer mais independente e mais l ivre .
Esse l ivro foi a revelação primeira, a revelaçãosubita que eu t ive d '
aque lle , que treze annos depois ,quasi que dia por d ia
,me expi rava nos braços
,pro
nunciando O meu nome , que a sua alma angel ica , tãodepurada pelo sofl
'
r imento,tão sanct ifIcada pela resi
g naç ão, enchia de bençãos .
ESTU DO CR IT ICO 1 59
Foi em 1 870 que as Mi nia tu r a s viram a l uz pel aprimeira vez
,revelando a Portugal todo e a todo O
Braz i l,que um poeta original
,del icadíssimo , correcto
até a perfeição,que um art ista de primeira plana
,um
verdadeiro artis ta de raça,acabava de nascer para a
lit te r a tur a portugueza .
Foi essa uma bella era da curta vida do poeta, hont em desconhecido ainda
,hoj e acclamado por todos
os que tinham no e S p i r itO uma scente lh a de gosto , eno coração um visl umbre de sensibil idade .
Sobre a banca de trabalho de todas as mulheresd ist inctas, entre O cestinho de bordado , e a j arra dev ioletas ou de rosas
,achava-se então O gracioso VO
lume das Minia tu r a s, e muita voz feminina tremul ade commoç ão, e muita vo z de artista, ebrio da bell eza da fôrma
,repetia com enlevo essa doce elegia
ador ave lment e sentida, que se chama Alguem, essepoema de inconsol ada e vaga tristeza
,que se int i tula :
Ar r ep end ida , e a N oiva , e O ramo de saudades e del y r ios entretecido sobre O tumulo de Mod esta e ae sp lend ida N or a , e a e sculp tur a l e voluptuosa S a r a ,
e a ine ffave l e consoladora Tr a ns/ig u r a ç ã o .
Quantos aspectos do mesmo talento ! quantas fó rmas da mesma phantasia seductora ! quantas e xpansões da mesma sensibi l idade fina
,subtil
,quasi doen
tia,de requintada que e r a !
Muito l onge do poeta,em um palacio meio arrni
nado, afastada de todo O convivio social , entre asverduras
,as sombras
,as caricias inspiradoras da N a
tur e z a i ncul ta,Vivia então uma cr e anç a de alma ar
dente, de sonhadora phantasia, de indomito imaginar,v i z iona r ia j uvenil
,de que hoj e — taes são as modi
1 60 GONÇALVES CRESPO
f ica ç õ e s que O tempo faz ! existe apenas,al terado
ainda assim pelos annos e pelas agonias,o corpo en
ve lh e cido cuja mão escreve estas l inhas .
Mu i tos teem contado essa historia a que a Mo r t eveiu dar o seu tragico remate . Para que a llud ir a el laaqu i E que importam ao mundo as alegrias e as l agrimas que el l e não sentiu e não chorouA verdade é que h e i de lembrar-me sempre
,tão
viva se me conse r va no espiri to essa impressãodominadora
,do que eu senti ao folhear pela pri
mei r a ve z as Min ia tur a s, l ivro de um poeta par amim inteiramente desconhecido havia algumas horasapenas .
Pareceu-me que era um poeta como aque lle , queeu posit ivamente t inha esperado havia muito
,e que
el l e chegara ; que a minha aspiração indefinidae vaga se t inha r ea l isado . Mais contentamento doque sur p r e z a . A doçura dos que al cançam a praiaque t inham desejado em l ongos dias de navegaçã omonotona .
Por que ta rdaste tanto, 6poeta ? Eu te espe r avaN a minha solidão !
faz el l e dizer mais tarde a cr eança , que eu j á fui, ex
p r imindo assim na sua simpl ic idade tão artistica Osentimento de confiante alegria que a minha almaexperimentara ao conh e ce l-O .
Pois bem ; esse agudo prazer da inte llig encia , com
p le tament e , absolutamente satisfeita , no goso d 'umadeterminada Obra d'arte
,sinto-O eu hoj e como no
primeiro dia ao ler as Minia tur a s.
1 62 GONÇALVES CRESPO
Esse alguemque prefere ao namoradoC antar das aves m inha rude Voz ,
N ão és tu, anjo mcu, idolatrado !N em, meus amigos, é nenhumde Vós !
Quando a l ta no i te me recl ino e de i toMe lancol ico, tr iste e fat igado,Esse alguem ab re as azas no meu le i to,E O meusomno deslisa perfumado .
C hovam b ençãos de Deus, sobre a que choraPor mim além dos mares ! Esse a lguemÉ de meus d ias a esplendente aurora .
É S tu, dôce velh inha, O m inha mãe
N'estas quatro e st r Oph e s es tá re tratada uma alma ,
es tão contadas as tristezas d 'um destino,que mercê
de Deus,se d e sannuv iou mais tarde , mas no qual
então se condensavam todas as melancol ias inconsol aveis
,todas as duvidas sombrias
,todas as amargas
e S i l enciosas agonias da isolação .
N em a mu l her que e l l e ama,nos passageiros ca
p r ichos da mocidade , nem os amigos que O cercam,
l he matam a sede de a fl éctos que O devora e torturamãe
,a d ôcc ve lhinh a , essa esta l onge , essa chora
al ém dos mares,essa nem 0 Vê
,nem O acaricia
,nem
dissolve ao fogo dos seus beij os os ge los da duvida,
que tão cedocrestaram todas as flores da mocidadena alma de Gonçalves Crespo .
N unca houve ninguem mais modesto,mais incon
sciente do p r ºp r io valor, mais desconfiado de si mes
E STU DO CR IT ICO 1 63
mo,mais dolorosamente torturado pela ideia das suas
imperfeições r e ae s ou imaginarias .
Os requintados supl icios de que esta ( le sconfianr a
foi origem ,manifestam-se bem mais nas Minia tur a s
do que no u l t imo volume do poeta ; por isso n'e l l as
a nota pessoal e mais vibrante , a C O l ll l l l O t jã O , por se rmais S ince ra
,é mais directa e mais conta cr iosa .
Como documento psycli oloº'
ico para auxil iar a cr i
t ica do poe ta e do art ista , as Minia tu r a s sã o de umvalor incompa r ave l .
A poesia de Goncalves Crespo t inha origens com
p le xas que é m ister ana lysa r , para comprehendercompletamente a bel leza e a sinceridade palpitant eda sua Obra .
N ascido no Braz i l , n'esse cl ima ardente e languido
,
no seio d 'essa natureza e x hub e r ant e,que mu it o mais
forte do que O homem,se l he impõe e o subj u g a fa
ta l e i r r esist íve lment e,Gonçalves Crespo foi trans
plantado,pobre e del icada planta friorenta e morbi
da,para uma região a que nunca se ponde accl ima r
bem .
D 'aqui,a doçura nostalgica
,a saudade solucant e
,
que parece e vola r —se como um aroma cap itoso dassuas poesias br a z itci r a s taes como a S ústa , N a R oç a
,
a C an çã o, Ao me io d ia , e mais tarde nos N octur nos,as Ve lha s N eg r a s, etc .
,e tc.
N em Gonçalves Dias,nem A lvares de Azevedo
,
nem Casimiro de Abreu,se deixaram assim inspira r
,
tão sincera e vivamente,p e las scenas famil iare s da
1 64 GONÇALVES CRESPO
Vida brazi leira,cuja graca pittoresca e especial dá
um cunho inteiramente novo aos versos de C oncalv e s Crespo .
É que O poeta t inha saudade — uma saudade quel he estava no sangue
,que e r a parte do seu tempera
mento, saudade que era um inst incto contra o qualel le luctava em v ão — de todos os e S p lend idos aspectos com que os seus Ol hos
,ao abri rem-se a l uz
,se
t inham inconscientemente embriagado .
Um dia de agosto,t r º p ica lmente calmoso , passado
no campo,a sombra das arvores
,dava-l he uma cxci
tação penetrante,enVO lVia-O n'um banho de sensa
ções voluptuosas . Sem mesmo dar por isso,era a
l embrança tão Viva e tão dominadora da patria lon
g inqua , que produzia em todo o seu ser este e fl e itoanormal .E is to ainda que se traduz na melancol ia sonha
dora e vaga, d'esse pequeno poema
,em que eu j á
f a l le i,i nt itulado as Ve lha s N eg r a s.
C onheceram tanto donoEmbalaram tanto somnoDe tanta S inha gent i l !
Podem as tristezas mudas d'uma raça escrava sernotadas com uma subtil e za maior
,com uma doçura
mais idealA simpl icidade que dá estes e ffe itos éque é a gran
de arte .
Ao longe,evocados magicamente pela voz do poeta
,
surgem os b r utaes senhores,para quem as tristes fi
l has da raça negra foram o j oguete d 'um instante,a
1 63 GONÇALVES CR ESPO
O vento que passe tranqu i l lo, de l eve,N as folhas do engá ;
As aves que abafemseu canto sent ido ;As rodas do engenho não facamru ido,
Que dorme a S inha.
N ão se Vê bem que este l anguido r ythmo, que avaga suavidade d 'estes versos
,parecem feitos para
acompanhar O movimento cadenciado e lento da rede,
e embalar o sonho de alguma fi l ha genti l d 'esse pai z,
em que O c l ima dá ao corpo as pregu iças infinitas,e
a natureza luxuosa e desbordante dá ao e sp ír ito amol lesa
,O canç aç o fatal d
'uma permanente lucta,na
qual o homem é sempre vencido pela força inconsciente das cousas ? .
Em Gonçalves Crespo havia pois a indolencia ataVica, que e l le só por extraordinario e doloroso es r ç O
era capaz de vencer temporariamente . Por isso , emquanto as cir cumstancias excepcionalmente favor aveis l he não amenizaram a existencia
,e l le Viveu sem
pre em absoluto d e saccor do com O seu meio .
A iucta p e la v ida,essa le i brutal das sociedades
modernas,esmagava-o
,a el le
,f i l ho preguiçoso dos
t r op icos, artista quasi feminino, pe la graça del icada efragil do engenho
,pe la caprichosa subti l e za da inS p i
ração .
E digo muito de proposi to insp i r a ção, apesar dapalavra andar p r oscr ip ta dosmodernos codigos artist icos .
Gonçalves Crespo trabal hava minuciosamente, co
mo o mais esmerado Operario,a factura dos seus ve r
sos,mas necessitava d 'essa infl uencia qualquer, su
ESTU DO CR IT ICO 1 67
perior e extranha,que pôde v ir ao artista do seu
mundo intimo,ou do mundo que o rodeia , que pôde
se r determinada pelo estado especial dos seus nerv os
,ou que pôde provir de mil causas externas e in
d ependentes da sua vontade .
Quando el le escreveu as Min ia tu r a s, dando-nos nasc on fidencias talvez involuntarias da sua alma, a revellação d 'um artista adoravel
,duas grandes t ristezas O
opp r imiam,tristezas que el l e
,seguindo talvez semdar
por isso,o fecundo conselho de Goethe
,transformou
empoes ia, que sera l ida emquanto se fa lla r e se e scr ev e r portuguez .
Eram—l he h ostis o meio physico e a a tmO S ph e r amoral em que el l e Vivia .
Para se r grande na Arte,creio eu
,que é preciso an
t es de tudo,se r sincero . N unca ninguem logrou tra
d uz ir bem as dOr e s que não sent iu .
Brutal idades inconscientes do Destino t inham feitod
'este moço,— de uma or g anisaç ã o nervosa como a
d'uma mulher
,accessive l , como os organismos mais
s ensíveis,a influencia de todas as symp a t h ias, gos
tando de agradar aos que Viviam perto d'el l e,impres
sionave l,desconfiado
,sempre p r omp to a j ulgar—se
com severidade inj usta,— um e stud ant e p e ssimo, um
f i lho famil ia,quasi r ebelde .
Queriam que el l e,a l ivre phantasia graciosa e bor
b ole t e ador a,caprichosa
,e faci l aos '
canç aços rapidose aos tedios annullador e s
,se cingisse ao estudo arido
1 68 GONÇALVES CRESPO
e discipl inador da mathematica ; que el le , exigente ,doído por tudo quanto era bel l o elegante
,f ino e dis
t ine to , t ivesse a economia calcu l ista e minuciosa d'
ummed íocr e ou d'um grosseiro .
D 'aqu i,as luctas de família , os descontentamentos
do homem intel l igente,que se Ve injustame nte julg ado
porque lhe p r eve r tem as facu ldades em ve z de asaproveitarem .
Triste , isolado , sem a fl ectos,descontente de si que
não sabia suj eitar-se ao destino,e descontente com
O destino que tão host i l lhe es tava sendo,Gonçalves .
Crespo sur p r e h endeu-se um dia a vazar no molde
perf'
eito dos seus versos,as melancol ias int r aduz íve is
até al i,do seu pobre coração triturado e desconhecido .
Te ixeira de Queiroz O consciencioso anal yste dosN oivos
,O ironico Observador de S a ltust io N ogue ir a ,
O pintor p int tor e sco e impressionista da C omed ia doC amp o, escreveu na terceira edição das Minia tu r a sum prologo admir ave l
,um prologo por assim dizer
v ivido,que desenha com singular Vigor e com exa
cti dã o minuciosa a p h ysionomia l it te r ar ia e moral d eGonçalves Crespo .
El l e que foi um amigo da mocidade e um amigoda ul t ima hora
,que recebeu as primeiras expansões
do poeta e quasi que O u l t imo susp iro d e moribundo,
comp r e h end eu bem e soube b em t raduz i r,a estranha
dual idade moral que faz ia de Gonça lves Crespo Omais alegre e o mais triste dos homens .
Por que muitos dos amigos d'elle , hão de morre r
na fal sa persuasão de que O lado menos verdadeirod o
'
auctor das Min ia tu r a s era a trist e za funda, a magoa docemente resignada
,que nas suas poesias trans
1 70 GONÇALVES CRESPO
d i ziam sorria—se,com o seu sorriso pecul iar de que
todos os amigos se l embram com uma saudade enorme
,fei to de mal ícia e de duvida
,de bondade e de iro
nia,sorr i so que era o encanto caracteri stico e mys
t e r ioso d'
aque lle rosto revo l to , expressivo e extranho
,que tantos a ff ectos insp irou na terra
,que ficou
gravado em tantos corações que não esquecem .
Es ta duvida de si mesmo fazia-o sof'
f r e r . N unca seconsolou de pensar de si proprio O que ninguem maispensava .
Encantadora fraqueza que o torna ainda mais nosso,
q ue faz com que nós as mulheres todas O amemos,
porque se não d ed ig nou de partil har as nossas pe
q uenas vaidades , as nossas ímp e r f e iç õ e sinh as organicas para as quaes O homem tem tamanho e tão a lt ivo d esd em!
Tris tezas quasi inconscientes do exil i o nostal giasd e ave friorenta
,vi z õ es vagas
,ind ist inctas
,radiosas
da patria ausente ; desgostos de ordem mu ito particular
,e a pairar sobre tudo i sto
,uma impressão do
lor osa , i nde finível , que nem aos mais queridos el leconfessava
,mas que ungia de triste za ine f'fave l os
seus versos,que punha aqui e al i uma nota abafada
e dilacerante na h a rmonia magistral da sua Obra, e isa t r íp lice insp iração , que deu uma Vida intensa aoseu primeiro l ivro
,ao l ivro da sua mocidade que tão
q uerido'
l he tornou l ogo o nome aos del icados deambos os sexos .
As Minia tur a s teem já d e z e se te annos, o que é
ESTU DO CR IT ICO 1 7 1
muito para um l ivro de versos d 'este secul o , que fe zd a rap idez o seu programma e O se u moto
,que não
estaciona em cousa a lguma e muito menos no modod e exprimir o que sente .
Poi s a p e z a r de muitos poetas cont empor ane os deGonçalve s Crespo terem envelhecido l it te r a r iament e ,a geração que princ ipia agora , l ê as Min ia tu r a s como mesmo enlevo com que as l eu a geração que vaee nve lhecendo j á .
É que a verdadeira poesia,a que não se fi l ia servi l
mente em uma qualquer escola transitoria e ep h emera
,mas a que exprime do modo mais bel l o e p e r fe i
t o que e dado a sua epoca conhecer,os sent imentos
que formam o fundo ina lte r ave l da alma humana,não
e nvel hece nunca,atravessa os tempos immaculada e
eterna ; e hoj e O que será sempre , a fascinadora quenos enfei tiça
,a amiga ca r íciosa que nos embala, a
confidente que nos ouve,e que chora comnosco .
Muitos teem comparado Gonçalves Crespo a Theoph i l e G auth ie r ; . eu pormimdeclaro que acho inj ustaa comparação .
Theoph i l e Gauthier e um perfeito ourives,um im
p e ecave l b ur ilador ; cada verso d'el l e é uma pedra
preciosa,facetada
,bri lhante
,admi r ave linent e engas
t ada em ouro dos mais finos quilates .
Para dar uma forma peregrina aos me tae s preciosos
,para esmaltar d e l iciosamente as j o ias mais l in
d amente modeladas ninguem excede O auctor _dosEma ua: ct C amées . El l e proprio e sabia e nunca desej on mais nada .
Em Gonçalves Crespo porém,h avia mais do que
i sto . HaVia uma alma transbordante de sentir,capaz
1 7 2 G ONÇALVES CR ESPO
de comprehender e de traduzir os mais del icadoscambiantes
,as mais rap idas modal idades das outras
almas .
Que intu ição que el l e tinha de todas as dô r e s,me s
mo das mais extranhas ao e sp ír ito e ao coração d'um
homemL embram—se d
'
aq i i e lla perola de tristeza chamadaAr r ep end ida
E tta deixara tudo para correr atraz da sua Chimerae um dia desperta perdida
,i r r emi S S Ive lmente perdida
no ab ysmo de infamia a que uma mão de homem a
arrastou :
E l la scisma ao l uar ! Todo O passadoA seus olhos avulta, i lluminadoPe los dub ios reflexos da t r isteza .
Por uma no i te assim,l ímp ida e clara,
S ua modesta alcôva e l la de ixaraPor esse que ali dorme, e que a . despr csa
Que sobriedade de mestre ! que melancol ia feminina ! que profunda comp r e h ensã o d
'
uma dõ r,que todo
O emphase,toda a phrase diminuiriam forçosamente !
Tentar conhecer O céu do amor completo,do amo r
heroico,do amor fe ito de sacrificios superiores e de
abnegações infinitas e cahir no lodo . S ó um poetasincero como Gonçalves Crespo saberia notar em doistraços esta agonia silenciosa e sem termo .
O q ue dist ingue particularmente o auctor dos N octur nos dos outros poetas da sua . indole
,é a l igeireza
do traço,é O vago que parece envolver n 'uma luz cc
1 74 GONÇALVES CRESPO
as Pr ime ir a s la g r ima s (PEL-R e i, a C e ia d e Tibe r ioprenunciam um poeta fei to para os largos commett imentos
,um poeta que marcari a o seu l ogar n 'este
seculo, com al gumas d
'essas obras que são a gloriad 'uma raça
,se a traiçoeira morte não vi esse emple
na viri l idade de anuos,em plena alegria de trabalho
,
arrancar-l he das mãos a penna prodigiosa .
As t r aducç õ e s de Henrique Heine são no vo lumedos N octu r nos das j oias mais del iciosamente trabal hadas .
A i nspiração meridional entrel aça—se de tal modocom a melancol ia fugi tiva e doce
,com a ironica tris
teza da musa germanica '
,que no di zer de entendi
dos,o I nt e r me z z o appa r e ce a l i como a Obra d 'um
Heine mai s completo,d
'
um Heine a quem não faltasse uma só nota na sua vasta alma de homem !Poucos espiri tos tambem seri am talhados mais d
molde para entenderem Heine,dando-lh e por assim
di zer uma feição nossa .
É que a iron ia que resal ta naturalmente das cousas
,a i ronia que não é nem uma b lasph emia nem um
soluco,mas S imo reconhecimento pacifico
,tranqui l l o
e tri ste d as desconsoladoras verdades humanas e x iste em Gonça lves Crespo na sua forma mais e xquisitamente deli cada
,mai s r equintadament e artistica .
Co no não havia e ll e pois de entender aquil lo queé a propria essencia do genio do poeta a llemão !
ESTUDO CR IT ICO 1 75
Já no l eito,onde ag onisou com divina resignação
dois l ongos mezes,e onde parece que O seu e sp ír ito
d e poeta assumiu uma forma a inda mais idealmentemelancol ica
,Goncalves Crespo escreveu com a mão
tremula de doente um soneto consagrado aos annosd 'uma genti l senhora
,nossa querida amiga
,por quem
el le tinha O mais respeitoso dos affe ctos,em cuja casa
hospitaleira el l e encontrou sempre um acolhimentofraternal .Essa senhora era a Condessa de Sabugosa
,mulher
do amigo,talvez ma i s ternamente amado por G on
ça lvcs Crespo .
Seria l astima conservar para sempre inedito estesoneto que tem para mim um triplo encanto . O p e r iu
me ca inonca no que o impregna del iciosamente,a tris
tesa dulcíssima,que el l e respira
,e a ine la ii col ica c ir
cumstancia de se r o ul t imo que cah io,como uma p e
rola sol ta,da l yra quasi partida do poeta moribundo .
E is O soneto :
N a quadra azul da mocidade, a genteParte r indo e cantando, estrada fer a,G or ge ia a cotov i a emcada aur ora,Suspira a no i te o roux inol dolente .
Aí ! D i toso O que parte alegremente ,O q ue não v íO app r ox imar —se a horaEmque e força volver atraz . emboraN os arfe o se io de i llusões fremente .
.1 76 GONÇALVES CRESPO
Para t i a inda ex iste o sonho alado,A fé robusta, e a cand ida alegr ia
Que nos chovemdo céu claro e estrel lado .
N unca sejas forçada, flôr, umdiaA erguer , chorando, o braço fat igadoEmbusca da ventura fug idia .
A Morte não. consentiu que ell e subisse onde podiasubir
,que el l e se affi rmasse como se poderia ter a f ti r
mado . N o emtanto todos os que teem este sexto sent ido divino pelo qual
,me smo a pe z a r dos desenganos
que a vida encerra,vale a pena em t odo O caso ter
vivido,hão-de l er com int imo prazer os dois vol umes
do encantador poeta de Alg uem.
É verdade que el l e não respondeu a todas as interrogações que O nosso e sp í r ito se achou no direito defazer- l he
,mas não respondeu porque o tempo l he não
deixou cumprir asmil promessas que a sua mocidadenos fizera .
E hoj e que el l e partiu para o paizmyst e r ioso d'onde
ninguem vol tou,e para onde na tristeza
,ou na alegria
,
c onvergem os nossos o lhares anciosamente p e r scr utador es
,voam as nossas saudades n'um ímp e to de
lagrimas,eu . releio aquel la soberba e indecif r ave l
S a r a e pergunto amimm esma,se debaixo da forma
e seulp tur a lmente pagã dos versos, se não abriga umsentido occul to
,um myste r ioso symbolo .
Que ardente espiri tualismo,tenaz e apaixonado
,
na carnal idade apparente d'esse poema !
CON FIDENZA
Pe rguntaste-me um dia a vida que eu le vava,
M imosa e eburnea flôr,
Em antes de te vêr ; respondo-te : sonhava .
O uviste,meu amô r ?
N ão era bem sonhar : as vezes largo e spaço
Ficava-me sorri r
Para os quadr os qué eu via em luminoso traço
N as télas do porvir .
GONÇALVES CRESPO
Presta-me o ouvido,a tte nto , e scuta-me , que rida,.
Os que me l embram ma is
Assim,fi ta nos meus
,6 pomba estreme cida
,
Os olhos te us leae s !
O l ha e ste quadro e vê : o campo a le g re e franco,,
Uma aurora d e abrilI
Da larga e strada a be ira um campana rio branco]O céu profundo ani l .
De uma casa a j ane l la uma cr eança l oura ,Loura como um trig a l
F iando a l uz do sol que leve a sob r edour a
De aure ola ide a l .
Toda risos e festa a doce cre atura
O l hava pa ra mim,
E eu re pe t ia sós : a lcanço—te,ventura !
Se re i fe l i z em fim !
De um ou tro quadro e ntã o recordo-me saudoso,E a l ongo os ol hos meus
Para o quadro ge nti l , o sonho ma is gracioso,
Que me oahiu dos céus !
486 GONÇALVES CRESPO
É moça e é menina : olha r nenhum a inda
De leve a macul ou .
Dorme no se io d '
e l la o amor,a cre nça inlinda
Que De us lh e confiou .
Quando e l la abre,sorrindo
,as pal pebras franj adas
,
Ficamos a pe nsar
N os myste r ios do ceu,nas cousas ignoradas
Que descobre e sse o lha r .
D e ixa que eu me aj oe l he e xtasiado e mudo
C ego de tanta l u z
E que tremulo be ij e o tépido ve ludo
De se us p ésinhos nú s !
E nã o cór a,b em vês
,a candida cr eança !
Antes me i ga sorri,
E e ntre risosme d i z,compondo a e scura trança :
«Pe nsava agora em t i !
«Porque tardaste tanto,o poe ta ? eu t e espe rava
«N a minha sol idã o !
«Vem os segredos v ê r que para t i guardava
«Dentro do coraçã o
O BRAS CO M PLETAS '1 87
C once r tae vossa orche st ra . h annonicas e sph e r as,
No cel ico esple ndor '
Maria e ssa creang a o t r das primave ras,
Eras tu,me u amô r !
1 88 GONÇALVES CRESPO
O VELHIN HO
A . J. CESAR M ACHADO
Aque lle que a li vae triste e cancado
E mais treme nte que os juncaes do bre j o,Foi outrora o ma is be l lo e o ma is amado
Entre os moços do antigo log ar e jo .
N as fi tas d '
esse labio desma iado
Quantas mulhe res tremulas de pe j o
N ã o sorve ram os néctare s do be ij o
Dos t r ig aes sobre O le i to pe rfumado !
1 90 G O N C ALVE S CRESPO
AN IMAL BRAVI O
A M e llº EUGEN IA VI Z EU
Pre fe ri ras um ramo caprichoso
De escolha rara e d e um conce r t o tino,Onde visses o cacto pur pur ino
E os nevados j ardins do Tormentoso .
Emve z do ramo exot ico e ol oroso,G asto recre i o d'esse olha r divino ,Acce i ta
,Euge nia
,e ste anima l fe l ino
,
Que o meu bra ço subj ug a vigoroso .
O BRAS CO M PLETAS 1 9 1
T ive arte s d e o amansar : e i l-o se re no !
Acode a minha voz , e ao meu ace no
Como um j aguar a voz de
Vamos,soneto ! a prumo ! a j oe l he
,presto !
E ai doce Eugenia,do sorriso hone sto
,
A f imbria oscule do vestido branco !
1 92 GONÇALVES CRES PO
AD AG ROS
N ão ta rdes, flô r ; a a lde ia nos e spe ra ,C hovem a r ómas dos fol hudos ramos
Suspe nsa do meu braço, e ia ! partamos !
O l ha—nos Deus da crysta l l ina e sph e r a .
N as manhãs da passada primave ra
C om que de l icia e therea nos amamos !
Iremos Ver os nome s que traçámos
No rude t ronco em que se e nlaça a he r a .
1 94 GONÇALVES CRESPO
A NUVEM
DE TH . G AUTI ER
As roupas deslaçando,e ntra no banho
A languida sultana e namorada
L ivre do pente,OS hombros nú s lh e be ij a
A l onga e l ina trança de sa tada .
Atra z dos Vidros O sul tão a espre i ta
E comsig o murmura : «como é be l la !
«N ing uem a Vê,ninguem! o negro eunucho
«Do haremna tô r r e sol i ta rio ve la
O BRAS CO M PLETAS 1 9 3
Eu a ve j o,uma nuvem lh e re sponde
Do se re no e a l to a zul illuminado— Ve j o—lhe os se ios nú s, ve j o—lh e o dorso ,E o seu corpo d e pe rolas colmado
Fe z —se pa l l ido Ahme hd b em como a lua,
E e rguendo o seu kandja r d e folha rara,
Desce,e apunha la a nua favorita .
Quanto a nuvem. no a zul se dissipara .
1 96 GONÇALVES CRESPO
O JURAMENTO DO Á RABE
A TE IXE I RA DE QUE IRO Z
Bacus, mulhe r d e Al i, pastora d e camelas,V iu d e noute
,ao fulg or das ruti las estre l las,
Wa i l,che fe minaz d e barbara pujança ,
Mata r-lh e um anima l . Baç ú s j urou ving ança ;C orre
,cele ra Voa
,e ntra na tenda e conta
A um hospede d e Ali a g rave e inul ta aff ronta .
Baç ús, disse tranqui l l o o hospede ge nti l ,Vingar—te—h e i commeu bra ço
,eumatare iWa i l . »
1 9 8 GONÇALVES CRESPO
Juro,o che fe tornou
Sou o homem que procuras !
Muh a lh il é o meu nome , eu fui que e sp edace i
«A lança d e t eu fi l ho, e aos pés o subj ugue i !
E int r ép ido f itava o a ttoni to i nimig o .
Amru volve u : É S l ivre,Al lah se ja comtig o !
OB RAS CO M PLETAS 1 99
NUM LEQUE
Amar e se r amado, que ve ntura !
N ão amar,sendo amado
,é um triste hor r Or '
Mas na Vida h a uma noite ma is e scura,
É amar a lg uem que não nos tenha amor !
200 G O N CALVE S CRESPO
OLHOS DE JUDIA
transpare nte olha r das virg e ns da Al lemanh a
Nada um fluido subti l tam ple no d e scisma r,
Que a g e nte cuida ouvir uma sona ta e xtranha
N'um caste l l o do Rhe no em noites d e l ua r .
Flô r do Guada lquivir,gl oria da a rd ente Hespanha
,
S e darde jas,sorrindo
,um t eu lascivo olha r
,
O cre spo, o encape llado e proce l loso mar
Dos dese j os febris o coraçã o nos ba nha .
204 GONÇALVES CRESPO
Rosas e l irios,pombas
,sol radiante
,
Tudo isso outrora,no fug a z passado,
Eu adore i constante .
E d 'esse amor, que t ive immaculado
Por l irios e aves e subtis pe rfumes,
N em ja me lembro, seductora amante,
Fonte pura de amor, que em t i re sumes
A rosa,0 l i rio
,a pomba e o sol radiante !
GONÇALVES CRESPO
Á luz V iva do cla ro sol radioso
O lóto incl ina a fronte e smaecida,
E e spe ra a noite pe nsat ivo e ancioso,
Rompe a lua,e de rrama a l uz que rida
N a corol la mimosa
Da pobre flôr que se abre enlanguecida.
Pobre fl ô r amorosa !
O B RAS CO M PLETAS
O l hando o céu e a lua até pare ce
Que , em desma ios d e amor,
Treme,pa lpi ta
, có r a e desfa l le ce
A scismador a e enamorada flô r !
GONÇALVES CRESPO
Sobre os olhos formosos
Da minha doce amada
l time i canções que os astros de coraram;l ': e znba lsame i-lh e a b ôcca pe rfumada
Em te rcetos graciosos.
i nh ume ras e stancias de cantaram
S eu r ôsto pe regrinoO ne os jaspe ados l irios escure ce .
Que sone to divino
IÍu re ndi lhara com sub tis lavô r e sS obre o seu cora ção . se e l la o tivesse !
21 0 . GONÇALVES CRESPO
Bem se i que a tua V ida é sem ve ntura ;É-nos commum e sta funere a sorte .
C ã e sobre nós a me sma noi te e scura,
E isto nã o finda sem que che g ue a morte .
S e ve j o n'e sse olhar um rir travesso,
E em teu labio a i nsole ncia costumada,
E o Orgulho inflar teu coraçã o . padeço,
E murmuro : «és como eu,tam de sg ra çada
O BRAS CO M PLETAS 21 1
Bemse i que r is,mas o teu lab io treme
N os te us olhos a z ue s o pranto bri lha
Te ns org ulho, e essa voz suspi r a fe g eme
C omo nós somos desgra çados, fi lha !
lº
!O GONÇALVES CRESPO
S e as flOr e S do b alsedo
Podessem ve r meu pe ito a lance ado,
C omo a l l ivio ao meu aspe ro degredo,
Mandar-me—h iam,das moitas do b alsedo,
De se us prantos o ba lsamo sagrado .
S e os r oux inoe s da floresta
Soubessem quanta d ô r me rasga o se io,
Para,
espancar a mi nha noite mesta,
Mandar-me -hiam,d as somb r as d a floresta
,
O seumai s te rno e e ncantado r g or g e io.
2 14 GON C ALVES CRESPO
Não me sabes di ze r,ó minha amada
,
O motivo,a ra zão
Porque pendem a face desma iada
As rosas p ara o chã o
Não me sabe s dize r porque , no me io
Do vasto prado em flô r,
Das Vi ole tas cãe no roxo se io
Um Véu d e l ucto e dô r ?
O BRAS CO M PLETAS
D i z'-me porque ouço a voz das cotovias
Hoj e l ugubre assim
;É porque e x h a lammor tes e a g onias
As urnas do jasmim“?
'Porque motivo o sol tam claro e puro
De cre pe s se vestiu
Porque um sinistro p e z ade lo escuro
Sobre a te rra cahin ?
Bem se i eu porque ve j o tudo tristeS em l u z e semcalô r .
É que tu, pomba branca ,me fugiste
Meu amor,me u amô r !
2 1 5
2 16 GONÇALVES C RESPO
Disse ram—te de mim fe ios horrores,De imaginarias culpas me criva ram
,
E sobre as minhas last imave is dores
Um negro Véu lança ram!
Dis te nde ram os labios sacudindo
Com grave e se rio g e sto a fronte , e ao
(E'
acr ed itaste—O S tu , meu anj o l indo !)C hamaram-me o Diabo !
2 1 8 GONÇ ALVES CRESPO
N'
aque lla manhã ditosa
O sol mandava-nos be ij os ;Do rouxinol os solfe jos
Suspiravam na ampl idão .
S e me lembro, ai ! se me lembro
D '
esse ample xo demorado,
C omque tu ,meu l i rio amado,Uniste-me ao cora ção !
OBRAS CO M PLETAS
Grasnava O cô r vo agoire nto,As S eccas folhas cabiam,
E uns tristes ra ios desciam
Da plumbea curva dos céus .
S e me lemb ro, a i se me lembro
Da fria e grave mesura
Que , n'
aque lla“ tarde e scura
,
Fizeste ao dize r-me ade us !
1 9
220 GONÇALVES CRESPO
Fôste fie l,no caminho
Doloroso que eu se guia,
Deste-me a le ntos,ca rinho
,
Meu conso l o fôst'e,e g uia .
Deste -me tudo,O consorte
,
Roupa branca e a té dinhe iro !
E ao parti r para o extrange i ro
C ompraste-me o passaporte !
222 GONÇALVES CRESPO
q uanto eu andava viaj ando,mi nha
Noiva g e ntil , o meu th esour o amado,
Julgando que eu tardava e que não vinha,Fe z a pressa o vest ido d e noivado,E um d ia
,ao pé do a l tar, e ntre ga anciosa
A um fô fo p e r a lvilho, a mão de esposa .
O B RAS CO M PLETAS
Nada no mundo a mi nha amada e g uala ;
N em eu se i a que a possa compa rar !
Que doce é o a roma que o seu labio e xha la !
Que gesto lindo ! e que formoso olhar !
Suspende a que ixa,coração t r ah ido
,
De ixas te o céu, do céu foste banido !
GONÇALVES C RES PO
Quando morre re s,fi lha
,
'
ao teu j azigo
Desce re i taciturno e a llucinado,
E abraçando esse corpo de l icado,
No frio marmor dormire i comt ig o .
E tu muda e tu fria,e tu ge lada !
E eu nos meus braços a apertar-te a inda !
E'
nas sombras d 'aque l la noite intinda
C lamo,estremeço e morro, a lma adorada !
226 GONÇALVES CRESPO
Do Norte sobre ummonte ,A l to
,fri o e ge lado
,
Um pinhe i ro isol ado
Erg ue entre o gel o a me r encor ia fronte .
Todo tremulo,O mise ro dese ja
S e r a esbe l ta pa lme ira V i r idente
Que em te rra adusta ode ia a l uz arde nte
Que sobre e l la o imp lacave l sol d arde ja .
O BRAS CO M PLETAS
Das minhas pe nas fi z canções a ladas
De a legre ge i to e j ovia l fe ição,
V i-as pa rti r em doidas revoadas,E vi-as procurar t eu cora çã o .
Partem a l egres,vol tam lacr ymosas,
Pe rd ido o fre sco riso inge nuo e lêdo,
Mas do que viram gua rdam,s i le nciosas,
O ma is profundo e Iug ubre segredo .
GONÇALVES CRESPO
Eu não posso e sque ce r, pe rdão, minha se nhora
Este s laços d e amor custam a desa tar
Eu não posso e sque ce r,ó minha doce au r ora
,
Que subj ugue i t eu corpo e essa a lma S ingula r
Teu corpo,ai ! o teu corpo esbe l to
,moço e branco
Já foi meu, já foi mas n'e ste i nstante , fl ô r ,Da tua a lma prescindo, e e scuta
,se re i franco
,
Basta-me a que possuo, a h ! basta meu amõ r !
23 0 GONÇALVES CRESPO
XV I I
É doming o : o bur g ue z de ixa os aspha ltos,
Dando o braço a bur gue z a ;Procura o campo
,e,ao ve l-o, e xclama aos sa l tos
«O'f i lha
, que l i nde za !»
E pasma do ve rdor febri l , romantico ,Da mú rmur a fl oresta ;
E a sua l onga ore lha absorve o cantico
Da passa rada em festa .
O B RAS COMPLETAS 23 1
Eu que não sa io, e scondo a ge losia
C omne gros cortinados,
E recebo a visi ta,em ple no d ia
,
Dos e spe ctros amados .
E ag ne l le Amô r que eu Vi morre r outrora,
No meu quarto appa r e ce !
S enta-se ao pé de mim,be ija-me e chora
,
E treme e desfa l lece !
GONÇALVES CR ES PO
XV I I I
Rompia manhã,rompia
A leg re como um trinad o,
E eu ia triste e ca lado,
No me io d'essa a le gria,
Por e ntre as flores do prado .
Rompia a manhã,rompia .
Ve ndo—me,as flores do p r ado
Ma is as rosas do S ilvedo
C ochicharam em se gredo .
E e rg uendo os olhos, a medo,
G ONÇALVES CRESPO
N a tua face a rde nte e ave lludada
Encade ia—se l uz do quente Esti o,
Mas no t eu cora çã o,ó minha amada ,
Habita o I nve rno e nrege lado e frio .
Mas quemassim te vê be l la e formosa,
Ve rá ma is tarde o Inve rno torvo e fe io
N'
e ssa tua g e nti l face mimosa,E o rubro Estio no teu branco se io !
O B RAS CO M PLETAS 23 5
No mome nto do a deus succede que os amantes
S e abra çam,a chorar
,com vozes solucant es .
Força,e força partir ; a mão pre nde-se a mão,
E uma infinda triste za i nunda O coração .
Pa ra nós,meu amor
,n '
e ssa hora d e ag onia
N ão houve o pade ce r que as a lmas ex cr ucia
Foi grave o nosso a d eus e frio,e só agora
É que a Dor nos subj uga,e Ang ustia nos devora .
23 6 GONÇALVES CRESPO
Sonhe i : d e novo suspirava o ve nto
Das t i l ias sob a cupula odorante ;E como outrora ouvia o j uramento
Do t eu amô r constante .
Que protestos d e amor n'e sse momento !
Mas na fe bre dos be ij os que me dêste
Como pa ra g rava r t eu j uramento
Emme us dedosmorde ste !
23 8 GONÇALVES CR ESPO
XX I I
C hore i : sonhava e e r a comt ig o, estavas
Morta nº
um cemi te rio,fria
,fria .
E,ao de spe rtar
,se nt i que o pranto , em lavas
,
De me us cançados olhos e scorria .
C hore i : sonhava e e r a comt ig o, rosa ;Havia S -me sem dó
,abandonado
E,ao de spe rta r da noite torme ntosa ,
T inha o r ôsto d e lagrimas banhado .
O BRAS CO M PLETAS
C hore i : sonhava , e e r a comt ig o, ó l inda !
Di zias-me,a S O I TI I
' «como eu t e adoro !»
Despe rto,e l ogo I I uma angustia infinda ,
Eis—me a chorar de novo e a inda choro .
23 9
240 GONÇALVES CR ESPO
XX I I I
Ba t ido do torve l inho
O bosque pa lp i ta ao açoi te
Do ve nto outona l ; é noite .
Monto a cava l l o eme tto—me a caminho
E este inquie to pe nsamento,
E e sta phantasia e rrante
Levaram-me n'e sse i nstante
Ao t eu virgine o e candido apose nto .
242 GONÇALVES CRESPO
XX IV
Eu e nte rro as cançõe s d e amor e O fe l ama rg o
Do meu triste sonhar
Que ro um ca ixã o profundo, imme nso, vasto e la r g o ;Depressa
,ide-o busca r !
Um ca ixã o formidando,um fére tro-porte nto
,
Que sob r e e xceda e ve nça
O pezo sobre humano e o e norme comprimento
Da ponte de Mayença .
OBRAS COMPLETAS 243
Traze i-m'
o semdemora ; eu h e i-d e ench êl-o embreve ;Ve re is a p r omp t idão.
De He ide lbe rg o tone l se rá pequeno e le ve
Ao pé d '
e sse ca ixã o .
Doze gigantes que ro,o aspe cto fe i o e rudo
,
E d e um Vigor sem conta,
Que me façam lembra r C hristovam,o membrudo
Que em C olonia se aponta .
G ig antes, b alouçae o fére tro luctuoso !
Vamos ! ag ora, ao ma r !
C ova maior existe ? Ab ysmo assim grandioso
Diffici l é d e achar .
Sabe is porque eu dese j o um fére tro assim larg o,De vastas dimensõe s ?
É que ente rro, infe l i z , O amõ r,O fe l amargo
Das minhas illusões .
246 GONÇALVES CRESPO
O purpure o tape te aos olhos nos reve la
Entre as garras d e um tigre anciosa uma g aze l la .
Re tra tos em redor : olhemos o prime i ro
No Tór o as mã os de Aff onso o a rmar am cava l le iro .
Er a Arcebispo aque l le : e sta foi aç afa ta .
Que fre scura sensua l nos labios d e e scarla ta !
O lhos revendo o a zul que sobre a Ita l ia assoma
Em f inos car acóes,
l oura e ondada côma
C ol lo robusto e nú : cabe ça t r iumphante
C onsta que ce rto r e i . passemos .ade ante !
Este, que Vês
,morre u n'
um a fri cano a rea l
Por ving ança crue l do aspe ro Pomba l .
D '
esse olha r na e xpressã o infinda e inena r r ave l
Desabrocha uma dô r profunda e inconsolave l .
B RAS C O M PLETAS
De fronte,uma donze l la , o rosto me ig o e a f fl icto
,
N um e x tasis adora o pa l l ido p r oscr ip to .
O teu sonho nupcia l,franzina morgadinha
Tam cedo se de sfe z,ó míse r a e mesquinha !
No bure l e sconde ste O viço e a formosura ,E de smai aste
,flô r
,no chã o d e uma clausura ! .
Repa ra nos d esdens do fô fo conse l he i ro ,
Que sorridente aspira a fl ô r de um jasmine i r o !
Em canones doutor : no Paço foi b emquisto :
O rna-lh e o pe i to a cruz d e um habito d e C hristo .
Esse outro comba te ndo as portas d e Bayona,
C omo um bra vo, a lcançou a ruti la drag ona .
V ibra flammas do olhar ; cabe ça e re cta e audaz ;I l lumina—lh e O r ôsto gloria d e um g ilva z .
247
248 GONÇALVES C RESPO
Assist imos,ao Vel-o, as pugnas ca rnice iras,
E ouvimos o clangor das musicas gue rre i ras .
No antiqu íssimo espe lho, a sombra das cort inas,
Re fl ecte-se o p r imô r d e a r g enteas se rpe ntinas .
Sob o espe l ho se ani nha um cravo marche tado,
M imo outrora da casa,e pre nda de um noivado .
Ao lado um cofre e nce rra , em amor ave l ninho,Antiga pa rt i tura em ve lho pe rgaminho .
Uma noite e xte ndi a musica na estante,
E O cravo suspirou . n'
aque lle me smo instante
Da e burnea pa llide z doentia do teclado
Manso e manso evolou—se o aroma do passado .
E Vi desce r do quadro a languida ace t'
a ta
Que , ao discre to pa l lor d as lampadas de pra ta ,
250 GONÇALVES CRESPO
O C OVEIRO
A ALBERTO B RAGA
E l le e ntrou cabisba ixo e si lencioso
N a immund a tasca,e foi se nta r-se a umcanto ;
De ram-lh e Vi nho,re cusou
,o e spanto
C re sce u no olhar do tabe rne i ro ole oso .
E l le e r a o ma is antigo e o ma is ruidoso
Dos f r e gue z es da casa : ao obsceno canto
Ninguem pre stava ma is lascivo e ncanto
Ao sommagoado d e umV io lã o choroso .
O BRAS CO M PLETAS 2
Mas o ve l ho sentara—S e distante
Da a legre turba,a Vista lacr ymant e
Me rg ul hada nas chammas do bra zido .
Disse um da roda : espanta—me o cove ir o !_ Morre u-lh e h a pouco a fi lha . dist r ah ido
Volve u da bisca um contuma z parce iro .
51
252 GONÇALVES CRESPO
ADEUS
Uma ve z,n'uma camara e le g ante ,
De um contador no marmore de rosa,
Entre os mil nadas feminis que e xh a lam
Uns a romas subtis que nos emba lam,
Vi uma concha pa l l ida e graciosa .
Se ntira eu n'e l la um som confuso o triste,
C omo o dos sinos em remota a lde ia ;Pobre concha ! morria de saudade
D'
aque lla vaga e triste immensidade
Do ma r que chora na dese rta are ia .
GONÇA LVES C RESPO
NA EG REJA DAS C HAG AS
AO D R . A . A . D E CARVALHO M ONTE I RO
Proxima vinha a nobre C atharina
Da porta principa l da e gre ja,quando
S eu olhar e ncontrou suave e brando
O olha r d e ummoço d e prese nça fina .
E,ao fulg or d
'
esse olhar a rdente , incl ina
A dama o rosto , t imido , có r ando .
Aria—lh e o nive o se io, pa lpitando,
Emdoida e extranha commoç ão divina .
258 GONÇALVES CRESPO
A LEITURA DOS LUS IADAS
A V ICENTE PI N DELLA
Do moço r e i,de fronte , e sbe l to e cava l le i ro
C amões re ci ta ; a C ô r te,si le nciosa
Ante a rubra e xplosã o do cantico g ue rre iro,Admi ra essa Epope ia e norme e prod ig iosa .
Rug e a e le ctrica voz do Admastõ r furiosa ;«N as amuradas canta o a le gre marinhe i ro ;Do Oceano á flô r scint il la a e ste i ra luminosa
Dos pe sados g a le ões do Gama aventure iro .
O BRAS C OMPL ELA S 259
Te rra ! g ri ta o g ag e ir o ; e a praia me lindana
«Desce douda e febri l a gente l usi tana .
Desfra ldam-se os p endões ao claro céu do
Da gloria ante o e sp lendOr o olhar d e El—Rey fulg ura ;O C amara no emtanto
,a lma sombria e e scura
,
No r e i os olhos crava,e ri fe l inamente .
GONÇALVES CRESPO
AN N OS DEPO IS
A B ERNARDO P I N DEL LA
Juncto de um ca tre Vi l , grosse iro e fe io,Por uma noite de l ua r saudoso
,
C amõe s,pe ndida a fronte sobre o se io
,
Scisma embebido n'
um pesar l uctuoso .
Eis que na r ua um cantico amô r oso
Subitane o se ouvi u d a noite emme i o
Já se abrem as adufas com rece io .
Noite s d e amô r e s ! que trovarmimoso !
O B RAS CO M PLETAS 263
ES PHY N G E
Tradum-ão uns versos do Alexandre Dumasescr ip tos num leque
emque estava p in tada uma Esphynge
Que me que re s,ES ph yng e O que procuras diz-m'
o :
S e do poe ta O se g redo inte ntas pene trar ,De sce dos annos me us ao te nebroso ab ysmo,Ve rás o Amor aos Vinte e aos Se ssenta O Pesar .
S im,Pesar
,não d e have r lançado aos qua tro ve ntos
C om prodiga l oucura o ve rbo t r iumph ant e ,A ambição
,o dinhe iro
,os risos e os tormentos
,
E as auroras d e abri l que passamn'
uminstante !
264 GONÇALVES CRESPO
Mas Pe sar de se ntir de ntro emmeu pe i to ag ora ,.
C omo acceso vulcã o em gel os sepul tado,
DO j uve ni l dese j o a flamma que de vora ,E d e não pode r ma is
,amando
,se r amado !
266 GONÇALVES CR ESPO
Fascina,a ttrae
,sed uz
, e OS olhos e xtasia
A impe ria l Vivenda : a sa la é desl umbrante :
Ouro e gemmas sem fim conf undem—se á porfia .
Das lampadas rebrilha o l ume cor uscante ;
N O S t r iclinios e xplende purpura e sca rla ta,
A fina tartaruga e o sanda l o odorante .
Aos angul os da sa la,em primorosa pra ta
,
Erotico e sculp tor g rupos fundiu lascivos,Em cuj os membros nú s volup ia se re tra ta .
Resaltam da parede os sat y r os esquivos
Sob o pampano a le g re : as nymphas, em coreas,
Dançamna riba,em flor, d e arroios fug i t ivos.
Emmarmórea piscina enroscam—se as mur êas,
DO S pat r ícios d e Roma o pabulo d ile cto,Ve zes sem conto
,e scravo
,a li rompeste as ve ias !
Pe ndem ve rdes fe stões do primoroso tecto,Py r r h e ico a li p intá r a umma taga l fol hudo,E um lago cr ystall ino, e ncantador, discre t o .
OB RAS CO M PLETAS 267
Diana ao sol e nxuga as trancas d e ve l udo ,Acte on e spre ita ancioso
, e , O rapida a le gria !
AOS poucos se transforma em ce rvo rama l hudo .
EmM i leto foi t incta a azul tape çaria,
Que nas mesas se exte nde e nos mosa icos dorme ;DO S ve la r ios se e xcôa O a roma que ene b r ia .
A fe sta é no pe ndor : n'
um áure o pra to informe
Eis que e ntra um java l i , formosas gaditanas
Dançam em de rredor . Ulula g rita e norme .
Jorra o Vinho d e Kós pur pur e as espadanas ;Dos convivas na fronte e nlaça—se ve rbena
,
Pre l udiam no emtanto as f r autas S ici l ianas.
Adoudada suspira uma canção obsce na :
Fe rvem be ij os no a r , os se ios pulam,cre scem
E desnudam-se a luz,T ibe rio assim o orde na .
As ma t ronas,ao ve r o duro gesto , obede cem,
E l á passam gentis,d eslisammansamente
DO S marmor es a flôr ; são nuas, endoud ecem!
268 GONÇALVES CRESPO
Um r e t ia r io ne rvudo , e um gladiador va le nte
C ombatem,sã o le ões ; o pallidó ve ncido
M istura o sangue rubro ao Vinho r escendente .
O r a T ibe rio r i Mas subito um gemido
Longo e triste chorou nos paços d e C aprea .
Indagam: ta lve z fosse o gladiad or fe rido .
N esse i nstante Je sus morria na Jude ia !
70 GONÇALVES CRES PO
JOÃ O DE LEMOS
AO V ISCONDE DE P I N D EL LA
N a cidade ge nti l do auste ro e studo
Sobrance i ra ao Mondego soce g ado,Em cuja riba o S ince i r a l folhudo
De r oux inoes suspira g or g e iado,
FOste e rg uido no concavo do e scudo
Pe los moços d e outrora,e ce lebrado
Trovador,ca va l le i ro
,e namorado .
Tempos de glorias ! C omo passa tudo !
O BRAS CO M PLETAS 27 1
No emtanto ás ve zes,na p r ovíncia, quando
A um dOce , honesto e femini no bando
Digo A LUA DE LOND RES,d e re pe nte
Da infancia Volvo a ca ndida Simple za ,E ondulam na minh 'a lma vagamente
Tremulas notas d e fugaz triste za .
272 GONÇALVES CRESPO
JOÃ O DE DEUS
A AN TR ERO DO QUENTAL
Sempre que o le i o, sinto—me captivo
De um não se i que, d e i nfinda suavidade
E e ntram commig o uns l ong e s d e saudade,
Que me de ixam S i z udo e pensativo .
Sonho : qui z ér a , em triste soledade,
Vive r das ge ntes apartado e e squivo,
E e rgue r-me a e sse plane ta primi tivo
Onde resple nda a e te rna mocidade .
!O GONÇALVES CRE S PO
JOÃ O PENHA
A AUGUSTO SAR M ENTO
Ne rvoso mestre,domador va le nte
Da R ima e do Soneto portugue z,
Não t e e g uala a pe rícia de um chine z
N a pintura d e um vaso transpare nte .
Ha no t eu ve rso a musica dole nte
Da gui tarra andaluz a,e muita ve z
Rompe emme io da e xtranha languide z
O si lvo est r iduloso da se rpe nte .
O B RAS CO M PLETA S
No V INHO E F E L traçaste O e scuro drama
Em que soluça e ri,na extensa gamma
,
Teu desgre nhado amõ r,doido eLfa ta l .
Mas se do pe i to ancioso o dardo arrancas,
Teu canto exha la as a le grias francas
De uma rubra Ke rmesse col lossal .
!O
78 GONÇALVES CRESPO
Mas tudo isso passou : agora Só me resta
Das ch yme r as que t ive , uma Visã o mode sta ,Um sonho e ncantador
,d e pa z e de ventura .
É Simple s ; uma a l cova , umberço, um innoce nte ,E uma e sposa adorada
,e nvol ta
,a ne g l ig ente !
De um l ongo pe nte ador na immaculada
O B RAS CO M PLETAS
ODOR DI FEMINA
A ALBE RTO P I M ENTEL
Er a auste ro e S iz udo ; não havia
Frade mais e xempla r n '
e sse conve nto ;No seu cavado rosto macile nto
Um poema d e lagrimas se lia .
Uma ve z que na e xte nsa l ivraria
Folhe ava o triste um l ivro pardacento ,Viram-no desma iar
,cahir do asse nto
,
C onvulso,e tô r vo sobre a lág e a fria .
280 GONÇALVES CRESPO
De que morrera o vene rando frade
Em vão busco as origens da ve rdade
N inguemm'
a disse , e xp l ique -a
C onsta que um b ib liOph ilo comprara
l ivro e stranho e que , ao abri l—o,achara
Uns dourados cabe l los d e mulhe r .
282 GONÇALVES CRESPO
Da ca rre ta em r r dor onde iam os soldados ;De cima dos te l hados
Da r ua,dos portaes
,dos muros
,dos ba lcõe s
C hovem sobre a ra inha as v is impre caçõe s.
E l l a comtudo,a l t iva
,e re cta e de sdenhosa
O l ha tranqui l lamente
Pa ra o revol to ma r da plebe tumul tuosa .
E emquanto aque lle povo inquie to e repulsivo
Ance ia por ouvi r o grito convulsivo
E o de rrade i ro arranco
D '
e ssa mulhe r, e r i abominave lmente,
Um homem Só,o a lg oz , vae triste e re ve re nte .
Pode nasce r ao pé da forca um l i ri o branco .
A carre ta parou . De sce a ra inha . N 'isto
V iram-se uns bra ços nú s
Ergue rem para o a r,a flô r da multidã o,
Uma l oura cr eança , a le g'
re como a l uz ,Suave como o C hristo,
A quem talve z fa l tando em casa a enxe rg a e o pão ,A mã e qui z e r a da r aque l la distracçã o .
O B RAS CO M PLETAS 2
No prime i ro degrau d a e scura guil hotina
A ra inha d e França
Ergueu o olh ar e viu e ssa genti l cr eanca
Le var a mão a flô r d a b ôcca pequenina,
E a tirar—lh e,a sorri r
,um be ij o doce e hone sto .
E e l la que fô r a auda z,he roica e resoluta ,
E ouvira,com d e sdem
,d a plebe a inj uria bruta ,
Ante a e smola i nfantil,graciosa
,d *e sse ge sto
,
C horou .
«C horou,emfim! A infame succumb iu ! »
De entre o povo uma vo z se lva tica rug iu .
83
284 GONÇALVES CRE S PO
A VIUVA
A SENHO RA D . M ARGAR IDA STREET
Fór a d e portas Vive . É Si lenci osa
A modesta Vive nda em que e l la habita,
Ali correu-lh e a Vida b onançosa ,A l i golpe ou-lh e os se i os a de sdita .
Raro d e quando em quando uma visi ta
Novas lh e tra z d a Vida tumul tuosa,
E e l la sorrindo a furto,d escuidosa
,
No azul os olhos em S i lencio ti ta .
286 GONÇALVES C RESPO
FLOR DO PANTANO
A B ULHAO PATO
N ão h a flô r ma is suave,
De e ssencia ma is e therea
E abriu-lh e a vida a chave
Do V icio e d a M iseria !
É peque nina e séria,
E t em o ge sto grave
Da fi l ha d e um burgrave,
A candida Va le ria .
O B RAS C O M PLETAS
N a sua l oura cdma
Nunca passou o a r Oma
Dos beij os ma te r nae s.
O credula Ignorancia,
Esconde aque l la infancia
O nome vi l d os pa es !
288 GONÇALVES CRESPO
A RESPOSTA DO INQUISIDOR
T IO LuI z D E AL M E IDA E ALB U'
QUE RQU E
A sa la em que medita É l-R e y e si lenciosa ,Apa ine lad a e fria
,o largo r eposte i r o
Ondula brandamente á a ragem pre g uiçosa .
Á ca thedra re a l um C hristo sobrance i ro
Mesto,l ivido
,nú
,fe rido e e nsanguentado
Exha la sobre o se io o a le nto de rrade i ro .
GONÇALVES CRESPO
É fana tico e audaz ; commão d e bronze OpprimeO Sol io
,a Eg re j a , o La r , e os coraçõe s dos crentes ;
Flage l la a sombra e O amor,condemna a l uz
,e o crime
V I I I
Q uando e l le va e passando,as t imora tas ge ntes
Be nzem—se com pavor e param de improviso
As cançõe s j uve nis nas a leas r e scend entes.
Nunca nos labios se us fl orira o a legre riso,
Temcemanuos,j ama is be ijara uma cr e anç a ,
E cr ê subir,ta lve z
,morrendo
,ao Pa ra iso !
N a He spanha , no Pe rú , em Napole s, na França
Pa ira como o S inistro e spi ri to do Ma l ,O ne gro inquisidor
,fe roz como a Vi ngança .
O B RAS CO M PLETAS 29 1
S isto quinto,o crue l
,fize ra—o carde a l ,
E a He spanha pôd e ve r com assombroso e spanto
Juncto do r e i-panthe ra o inquisidor-chaca l .
E Phil ippe diz ia ao monge no entre tanto :
«Se ntine l la da Le i , piedoso inquisidô r ,«Tu que fa l las comDeus e és padre , e és b ome és sanoto
X I I I
Arranca-me e ste pe zo,a fasta-me e ste h or r ô r !
«Ah ! d iz '—me cardea l se e um Vil
,se é um p r e cito
O r e i que é j usto e ma ta o f i l ho que é tra idor .
E ma is nã o disse o r e i,torvo
,sombrio e a f fl icto .
No emtanto o inquisidor e rgue ndo imp e r tur b ave l
O seu hediondo Ol ha r das lag e as de granito ,
292 GONÇALVES C RESPO
Assim tornou com voz vibrante e formidave l
O p r íncip e , e apontava O l iVid O Jesus,Pa ra aca lmar dos céus a cole ra imp lacave l
O Ete rno f e z morre r o seu fi l ho n'uma cruz !
294 GONÇALVES C RESPO
Zumbe O inse cto na flô r do rosmaninho
N as giestas pousa a abe l ha ebria d e goso
Zunem b e z our os e pa lp i ta o ni nho .
E a fre i ra scisma e có r a,ao vê r
,ancioso
,
Do seu catre virg ine o sobre o l inho
Um p a r d e borbole tas amoroso .
O B RAS CO M PLETAS
NA ALDEIA
A C H R ] S TOVAM AY RES
Duas horas da tarde . Um sol a rde nte
N os co lmos da rde j ando,e nos e ir ados .
Sobre leva aos sussurros aba fados
O grito das b ig or nas e st r id ente .
A tabe rna e vaz ia ; mansame nte
Treme o loure iro nos humb r aes pintados ;Zumbem a porta inse ctos va r ie g ados,Envolvidos do sol na luz treme nte .
296 GONÇALVES CR ESPO
Fia á sole i ra uma ve lhinha : o fi l ho
No céuma l acordou d a aurora O bri lho
S ah iu para OS cançaços da lavoura .
A nó r a lava na ribe i ra,e os ne tos
Ao longe correm semi—nus,i nquie tos
,
No ma r ondeante da se ara l oura .
298 GONÇALVES CR ESPO
Não dorme quem t em amó r es,
E o t eu post igo é ce rrado !
De ixa O le i to pe rfumado,
E O trave sse iro d e flore s,
S e que re s que eu acredi te
! minha pa l l ida amig a ,
N as pa lavras d a cantiga
«N ão dorme quem t emamô r es !
Por isso eu Vélo cantando,
E esta guitarra suspira,
E O meu coraçã o de l i ra
Mal vema lua apontando .
E que , á noi te , l irio branco,Os astros guardam se gredo
Dos be ij os dados a medo .
Por isso eu velo cantando .
Que ro Ver —te , como outrora
N '
e sse postigo i ncl inada,
C onve rsando e namorada
A té ao raia r da aurora .
Um lenço posto no l iso
Dos te us hombros jaspe ados,Os cabe l l os d est r anç ados .
Que ro Ve r -te como outrora .
O B RAS C OMPL ETA S
N ão t e assustes,Julie ta
,
Que a manhã t e encont r o a inda
Bebe ndo a cançã o infinda
Que soluça O t eu poe ta .
C antará d e e ntre os lour e i r os
Uma a le gre cotovia,
Ma l ve nha rompendo O d ia .
N ã o te assustes,Jul ie ta !
Mas dorme a branca The re za,
C e rrada a j ane l la sua ;
Espa l ha—se a l uz da lua
Pe la poe tica deve za .
Entre os S ince i r os da marg em,
Murmura e corre o Mondego,
Que triste za e que soceg o !
Ai ! dorme,dorme
,The re za !
3 00 GONÇALVES CRESPO
A S ONDIN AS
H . HE IN E
AO V ISCONDE DE CAST ILHO I I
N a praia tranqui l la murmuram sonoras
AS ondas do ma r .
E,ao doce das aguas murmúrio pa l re i ro
,
N a are ia dormi ta genti l cava l le i ro
A l uz do lua r .
3 02 GONÇALVES C RESPO
A quinta re be ija—lh e as mã os, e nl evada
sonho fe l i z ,E a Sexta
,com tremula e doce e squivança ,
Pe rfuma-lh e a beca , formosa cr eança !
C om be i j os subtis .
O moço,fingindo que dorme tranqui l lo ,N ã o que r acordar .
de ixa que o abracem as be l las Ondinas,
lang uido gosa ca ricias divinas
A l uz do luar .
O B RAS CO M PLETAS 3 03
NO JOG O C ANNA S
A CA M ILLO C ASTELLO B RANCO
Em garbosos coroe is da Arabia cava lgando
Entram na la rga arena OS prócere s l uz idos ;C or usca a pedraria
,e e S p lend em,
fluctuando,
Dos cocare s a pluma e a Seda dos ve st idos .
A quadrilha genti l dos Tavo r as ardidos,
C om os laca i os da TOr r e um prel i o simulando ,
Te rça ga lhardamente ; o appa r a toso bando
De ixa OS olhos da turba em extase embebidos.
3 04 GONÇALVES CR ESPO
N as j ane l las do paço é toda a fi da l guia
Que jocundo pra ze r, que risos, que a le g ria !
Espe ctaculo augusto,e nobre
,e S ingula r !
O sexto Affonso applaude : emtanto ma l iciosa,
Ma ria d e Nemours,sorrindo
,a ince stuosa !
No cunhado,subti l
,poisa o lascivo olhar .
GONÇALVES CRESPO
Escuta
«A um r e i namorado
S ince ra e fie l amante,
Ao morre r,t inha de ixado
,
Do antigo a ff e cto em pe nhor,
C inze lada taça d e ouro
DO ma is subido va l or .
«O r e i pre fe ria a tudo
Aque l la doce lembrança
Que lh e tra z ia OS a r omas
De umas fl uctuante s comas,
«E d e uns labios d e ve l udo,
Que e l le b eijara em cr e ança .
«Toda a v e z que e l le bebia
Por esse vaso sag rado,«Uma e x ta t ica a le gria
C omo fl or idea l sorria
No seu turvo olha r cançado .
«Um d ia se ntiu-se o pobre
Ma is triste,ve l ho e aba tido
,
Ab raçou—se commov ido
Á taça,o tremulo amante
O BRAS CO M PLETAS
E as lagrimas,uma a uma
,
Deslisa r amn'e sse i nstante
NOS rude s flócos d e e spuma
«Da l onga ba rba fluctuante .
«N '
aque l la hora d e agonia,
«C hamou seus fi l hos e he rde i ro .
«Deu-l he s tudo o que possuia ,«Ouro
,pa lacios
,rique zas
,
O seu caste l l o roque iro,
«E as suas la rgas de ve zas.
Dividiu tudo,conte nte ;
«A taça guardou sóme nte .
«Sentindo fugir-lh e a vida,
«Manda O triste convidar
«Se us pares,fi l hos e he rde iro
Pa ra um fe stimd e rradeiro
No caste l l o sobrance iro
Á S ve rdes aguas do ma r .
Emme io d a fe sta,o ve l ho
Ergue u a ta ça e sorrindo,
Embebido o olhar no infindo,
«Um frouxo canto sol tou .
3 07
3 03 GONÇALVES CRESPO
Emal o canto f indá r a ,
No le ito d a onda amara
A taça d e ouro lançou .
Eram profundos ciume s
O S d '
e sse r e i namorado,
Que nã o fosse a l guem be be r
Por esse vaso sagrado,
E vie sse a conhe ce r
O S ca r iciosos pe rfumes
Q ue o tinham embriagado .
Hontem,a ta rde , be i jando-a
De t eu labio a Viva rosa,
Lembrou-me a historia sing e la
D '
e ssa b allada amorosa ;E de ntro emmim d e repente
Tam e xtranha dô r se nti,
Que n'
um ímp e to demente
De t eu labio húmidoe ardente
C om t ô r vo aspe cto fug i !
Lembrou—me,cabe ça l ouca !
Que se e u acaso morre sse,
Ta lve z um outro sorve sse
Os be i j os da tua b Occa .
3 10 GONÇALVES CRESPO
A NEG RA
AO DR . A . A . DA F ONSECA P INTO
Te us ol hos,O robusta creatura
,
O f i l ha tropica l !
Re l embram os pavô r e s d e uma escura
F l ore sta virgina l .
Es ne gra sim,mas q ue formosos dente s,
Que pe ro las sem pa r
Eu ve j o e admiro em r ub idos cre sce ntes
S e t e escuto fa l lar !
O B RAS CO M PLETAS 3 1 1
Teu corpo é forte , e lastico, ne rvoso .
Que doce a ondulaçã o '
Do t eu anda r, que lembra o anda r g racioso
Das onças do se rtã o !
AS languidas S inhas, ge ntis, mimosas,Despre zam tua cô r
,
Mas i nve j am—t e as formas gloriosas
E o olha r provocador .
Mas andas triste,inquie ta e d ist r ah ída ;
Foges dos ca fesaes,
E no e scuro das ma ttas,e scondida
,
Soltas magoados a is .
N as e ste i ras,a noi te
,o corpo e st iras
E com ancias sem fim,
Levas aos se i os nú s,be ijas e aspiras
Um candido j asmim.
Amas a lua que embranque ce os ma t tos,! negra j uri ty !
A flô r da laranj eira,e OS nive os cactos
E te ns h or r ô r d e ti !
3 12 GONÇALVES CR ESPO
Amas tudo o que lembre o b r anco,o rosto
Que V iste por t eu ma l,Um d ia que sabias
,ao sol posto
,
De um ve rde taquaral .
3 1 4 GONÇALVES CRESPO
N as ondas se a tufár a o S O l radioso,
E a lua succedera,astro maVioso
,
De a lvô r banhando os a lcantis das frag as .
E aque l la pobre mã e,não dando conta
Que o sol morrera,e que o l uar de sponta ,
A v ista embebe na ampl idã o das vag as .
O BRAS CO M PLETAS 3 1 5
AS PRIMEIRA S LAG RIMAS DE É L-REY
A M . P . CHAGAS
O principe morrera , e l ogo os cor te z ãos
Em prantos de rredor do mortua rio l e i to,
Erguem a voz em gri ta aos ceus levando asmã os.
El-R e y , Joã o se gundo, a fronte sobre O pe i to ,C ontempla dos b r andõ e s a l uz e nsang ue ntada
O fi l ho,e a d ô r lh e avinca o grave e duro aspe ito.
3 1 6 GONÇALVES CRESPO
E e is que , a um gesto do r e i, a turba conste rnada
A pouco e pouco S ae,re ina o S i lencio, apenas
C ortado pe l o u ivar long ínquo da nortada .
Sobre o f i lho curvado,imme rso em cruas penas
,
Aque lle r e i S inistro,e ne rg ico O tigrino,
T i nha na frouxa voz modulações se re nas .
E o fi l ho i ne rte e mudo ! e ntã o n'
um desat ino
De i xou—se El-Re y ca ir, ao acaso,n
'
um escabê l lo
E quedou-se pensar no seu a troz de st ino .
Um e norme,um confuso e bronzeo pesadelo
C a iu—lhe sobre o e nfermo espiri to enluctado,
E o suor inundou-lh e as ba rbas e o cabe l lo .
'
3 18 GONÇALVES CR ESPO
O CURA SANTA C RUZ
C ON TO DE A . DAUDET
AO DR . SO UZ A M ART INS
O imp lacave l ca rl ista , o C ura S anta C ruz ,
Que em nome do seu r e i,e em nome d e Je sus
,
Da Nava rra febri l le va do sul ao norte
O odio,a pe rse g uiçã o, o incendio , o e strago, a morte ,
N '
essa clara manhã risonha do N a ta l,
Te ndo sobre o uniforme a ve ste cle rica l,
N a'
montanh a,ao a r l ivre
,a l uz do sol d iz missa
A gue rri l ha que O e scuta e x ta t ica e submissa .
O B RAS CO M PLETAS 3 1 9
C omo um rebanho vil , a um lado,os prisione i ros
Ouvem—no,a t iri ta r
,che ios d e ummedo a troz :
O lham-se mutuamente os torvos companhe iros,
E murmuram: «meu De us,O que se rá. d e nós ? »
Porque emfim toda a ve z que O sanguinario C ura
S e vol ta , e o or emt ts diz,segundo o ri tua l
,
Da sacra ve st ime nta avul tam na brancura
De pistolas um j ogo e a fôrma d e um punha l .
Quando a fina l che g ou O instante , a occasiã o
Em que a missa te rmina,o C ura
,e rgue ndo um braço
,
Grave t r acou no a r e na mude z do e spaço
O clemente signa l da pa z e do p e rdã o .
A missa te rminara .
O cura n *e sse d ia .
C omo sentisse n a lma uns ra ios d e a legria,
De bondade e d e amor,foi—se dire ito ao bando
DO S cap t ivos, e assim fa l l ou c ir cumvag ando
A Vista em de rredor : H e r nmnos,v iva D ios
3 20 GONÇALVES CR ESPO
«C orre ah i que sou mau,fana t ico e fe roz .
Pois em breve ides ve r Como se e ngana,quem
Diz que eu sou o anti-C hristo e que abomino o b em.
«C omo é d ia d e fe sta e é d ia d e Na ta l,
Dou—VO S a l ibe rdade , e não VOS que ro ma l !
Mas have is d e prime iro , e isto , p r omp to e sem custo
De j oe l hos be ija r o pavi l hão aug usto
De El-Re y nosso senhor .
E mandou de sfra ldar
O ca rl ista pendã o,branco como o luar .
Todos logo a porfia a tiram—se por te rra
E um gri to : V iva El-Re y ! echoou d e se rra emse rra .
No emtanto umprisione i ro,ummoço imberbe a inda ,
Firme ficou d e pé , e Ol hava com i n fi nda
Expressã o de d esdem a e xtranha vilania .
Braços postos em cruz, e i ntre pido sorria .
E tu ? » sur p r e z o disse e t ranstornado O C ura .
Padre,volveu—lh e O esbe l to j ove n
, com brandura ,
— Ma ta—me ! aqui me tens ! rio-me d '
e sse panno !
Ao teu r e i não me curvo . Eu sou
GONÇALVES CRESPO
Ah ! quem pôde e sque ce r o seu pa iz na ta l !
Ah ! quem póde esque ce r a be nçã o ma te rna l !
Em distancia a gue rri lha os dous Obse rva . Então
q uanto o padre escuta a tte nto o prisione i ro,
Subito uma desca rg a e stoi-r ã na amplidã o .
Tremem a se rra e o va l,treme O desfi ladeiro .
As a rmas ! O inimigo a sentine l la brada .
De golpe e rg ue-se o C ura , e a j óld r a amotinada
Voa,da ordens
,clama
,emquanto as ba las chovem.
N isto v iu que i nda estava a j oe l hado o j oven !
Par a .
«Que fazes tu ? » inda g a em tom seve ro— Padre
,d iz a cr eança , a absolviçã o espero
E emme io da febri l convulsã o da ba ta lha ,
q uanto rompe e rasg a os a re s a me tra l ha,
V iu-se o C ura depois de abe nçoar,l ige i ro
,
A fronte j uve ni l do he roico prisione i ro,Pe gar d e uma clavina , e dando um passo
,ao
Va rar tranquil lamente O cr aneo do soldado .
O B RA S CO M PLETAS 3
A VENDA DOS BO IS
AO D R . J. DE VASCONCELLOS GUS M Ã O
O ve l ho e ntrara triste : ao pé , juncto do la r ,Estava a companhe i ra , absOr ta , a meditar .
Mulhe r,a fé pe rdi
,fa lle i a toda a gente
,
E ninguemme va le u E e l la com voz tremente
Dize-me,e o b r a z i le ir o ? »
— Esse foi ofp r ime ir o .
3
3 24 GONÇALVES C RESPO
— Bat i,fui t e r com e l le a casa do jantar .
Expl ique i—lh e ao que Vinha . e ntrou a g race jar
«C om que e ntão você que r l ivr a r o seu rapa z ? .
Visinho,
'
t ão mal fa z !
De ixe -me i r cada qua l a sorte e ao seu destino !
«S eu f i lho é ummoce tã o va le nte e mui to digno
«De se rvir o pa i z .
E de scascava um fructo .
— D esa te i a chora r .— Homem não se j a bruto !
A farda não e morte .
E disse ma is e ma is— C ousas d e quemnã o sabe a dô r d e uns tristes paes !
E emquanto o ve l ho punha a vista lacr ymosa
N os b r a z idos,a voz da mã e a f fl icta e anciosa
Pe rguntou : «e O prior ? »— Ne gou
,ne gou tambem
A ang ust iada mã e
Re torcia o ave nta l commão febri l,a rde nte .
No S i le ncio d a noite e ntão d ist inctamente ,Um profundo mug ido,Triste como um gemido
,
Long o e l ongo C horou no lugubre aposento .
3 26 GONÇALVES CRESPO
Que fest iva a legria
O fre quente mene ar das caudas traduzia
Resva lando em seu forte e musculoso flanco !
O ve lh o antigame nte
Ti nha sempre,ao che gar
,uma pa lavra amiga ,
Um dicto,uma cantiga
,
A que sempre ummugido a legre re spondia .
Mas n'
aque l la manhã , si le nciosame nte ,Fa ta l como o deve r
O ve lho foi buscar,a um canto
,uma corre ia ,
E lançou-a a treme r
Dos anafados bois as pontas re curvadas .
E sah i r am os tres.
N O S concavos da a lde ia
C hoviam as cançõ e s das aves namoradas .
No caes ha O moi r e ja r d as fabricas ruidoso ;Fe roz e discordante
Juncta—se a voz humana o a rfa r estrepi tante
DOS va le ntes pulmõe s dasmachinas ing le z as.
O B RAS C O MPL ETAS
Em nove l los,ancioso
,
C olpham as chaminés o denso e o e scuro
Que asce nde e toma o rumo
Do claro e vasto a zul,va zio d e triste zas .
C omo um ce táce o inge nte,enca r voado e fe i o
Um e norme Vap ô r
De outros avul ta emme i o .
Em seu largo conve z a marinhagem canta
E na fa ina febri l as ancoras l evanta .
N'
aque lla e spessa nau,um ve lho
,um lav r adô r
Entre a fa ina do caes,f i ta o dolente O l har .
E que a li de ntro vão os bois,o seu amor .
E aque l la magoa inte nsa
E inenar r av e l dô r
Re sponde a d escuidosa e ge l ida ind iff e r ença
.l ios Homens,e dos C e ú s, e do profundo Ma r .
G O N ÇALVE S C RE S PO
AO RABEQUISTA
EUGEN IO DEG REMON T
Reci tada na noite do 25 de Fevereiro de 1 877no thea t r o de S . João do Por lo
v ede—o ! É tão cr eança ! ó mã e s, olhae-o !
C omo e vivo o ful gor e a rdente o ra io
Que vibra n'
esse olhar !
Fa z g osto ve l-o assim t ão pequenino
Enlevado nos sons do viol ino
A sonhar,a sonhar .
GONÇALVES CRESPO
Soluçou a rabeca ? Ouvi,formosas
,
S ão os ne gros sol tando as last imosas
C ançõe s do seu pa i z ;S em família
,sem patria
,sem amore s
,
Ning uemmi tiga o fe l d'
aque llas dores,T riste raça infe l i z !
Ag ora , como em namorado ance io,
S ae da rabeca um languido g or g e io
Que enleva o coração .
E a saudade repinta-nos ao vivo
Dos sabias o cantico lascivo
N as sombras do se rtã o .
Tudo isso e ma is eu ve j o,admiro e escuto
,
C ommeu ol har d e prantos não e nxuto,
! cr eança genti l ,
Que em ve z d e pe rseg ui r as borbole tas
Ve ns bata lha r no me io dos a t le tas
E honrar o t eu Braz i l !
O BRAS CO M PLETAS 3 3 1
Não presumas, porém, p r od íg io das cr e anç as !
Que basta o fogo , o e stro , a viva inspiraçã o ;É miste r traba l har
,sem isso nada a l canças ;
A g l oria chamarás, se r —t e -ha o appe l lo emvão .
Pois que ! tu cuidarás, cr eanç a ,porve ntura
Que sem lucta r,sofTr e r
,sem hor r idos tormentos
O a rtista pode ria e rgue r aos qua tro ventos
A Epopea,0 Drama
,a Esta tua
,a Pa rti tura ?
Vamos,traba lha pois
,omeu pre coce a rtista
,
Dos pre cip ícios ri,ving a—me o barroca l !
Para o profundo a zul e stende a larga vista .
Eis-t e nos a l cantis E le va—te ao idea l !
GONÇALVES CRESPO
AS VELHAS NEGRAS
A Mme AL INE DE GUS M Ã O
As ve l has negras,coitadas
,
Ao l ong e e stam assentadasDo ba tuque folg asão .
Pulam cre oulas face i rasEm de rredor das fogue i rasE d as pipas d e a l ca trã o .
3 3 4 GONÇALVES CRESPO
Resurge e chora o passado— Pobre ninho abandonado
Que a neve a lagou,desfe z .
E pensam nos se us amô r e s
Ep h eme r os como as flô r e s
Que o sol que ima no se rtão .
Os fi lhos quando crescidos,
Foram levados,ve ndidos
,
E ninguem sabe onde estã o .
C onhece rammuito dono :
Emba laram tanto somno
De tanta S inha genti l !
Foramma cambas amadas,
E ag ora inute is, curvadas,N 'uma ve lhice imbe ci l !
No emtanto o lua r d e pra ta
Envolve a col l ina e ma t ta
E os ca fe sáe s em redor !
E os ne gros mostrando os dentes,
Sa l tam le pidos, conte ntes,No batuque e st r ug idor .
OBRAS CO M PLETAS
No e spaçoso e amplo te rre i ro
A fi l ha do Fa zende i ro,
A S inha sentime nta l,
Ouve um primo r e cem-vindo,
Que lh e na rra O poema infindo
Das noites d e Portuga l .
E e l la avista,e ntre sorrisos
,
De uns l ongínquos pa r a ísos
A te ntadora visã o .
No emtanto as ve l has,coitadas
,
S cismam ao l onge assentadas
Do ba tuque folg asão .
3 3 5
3 3 6 GONÇALVES C RESPO
O RELOG IO
N o a lbum do Edua rdo Burnay
Eburneo é o mostrador : as horas são d e pra ta
Lê-se a firma Br e gue t por ba ixo do gracioso
Re ndi lhado ponte iro ; a tampa e e norme e cha taN *
e l la o esma l te produz um quadro de l icioso .
Repa ra : e is um sa lão : casqui lho ma l ic ioso
Das fe stas corte sãs o mimo , a flô r , a na ta ,Juncto a um cravo sonoro a a le gre vo z desa ta .
Uma fida lg a o escuta ebria d e amor e goso .
3 3 8 GONÇALVES C RESPO
AMORTE DE D . QUICHOTE
AO COND E DE S ABUG O ZA
Bô to o escudo,sem lança
,a co ta e sca lavr ada ,
S ósinho,abandonado e á toa como um ce g o ,
Do cr epusculo a l uz dole nte e immaculada
Entra na sua a lde ia O a l t ivo he roe Manche go .
O tenue fumo sae do cólmo das he r dades,R iemao pé da fonte as frescas raparigas
,
E a clara vibraçã o sonora das trindades
Janctam-se brandame nte as voz e s e as cantigas.
O B RAS CO M PLETAS 3 3 9
E o auda z C anr p eador , O Justice i ro , o Forte ,
Que andara pe l o mundo a combate r os maus .
De fende ndo a Mulhe r, desafiando a Morte,
Do pate rno casa l sentou-se nos degraus.
N os j oe lhos fincando O cotovel o agudo
E no punho ce rrado a fronte re cl inando
Quedou—se largo e S p aço, il lacr ymave l , mudo ,Para O inuti l passado os O l hos a l ong ando .
E a li,na doce pa z da sua a legre a lde ia
,
Se ntiu que o _avassa llava uma triste za infinda,
Quando e sta voz se ouviu : morreu-t e a Dulcinea,
M issionario do Bem,tua missã o é linda
E e l le a ouvir e a scisma r ! A t r e fe g a sobrinha
Be ij a-o, fa l la—lh e , ri , abraça -O , mas o He roe
D'
e st'
a r te lh e volve u «A morte se av isinh a
Le va e -me para o l e ito E onvi l-o p ena e doe .
DO le i to a cabe ce ira o Bachare l e o C ura
Te ntam r esuscitar —lh e os sonhos e as ch yme r as ;
Pintam-lh e o ne gro Ma l t r iumphante , ó amargura !
O fraco aos pés do forte , o b om lançado as fer as .
'
3 40 GONÇALVES C RESPO
C ontam-lh e o frio horror d os car ce r e s sem l uz,
Que nas torres f eudaes pompe ava o ve lho C rime ,Que os cresce ntes do Islam t inhamve ncido a cruz
Que a inj ustiça e r a a Le i . Entã o fe roz,subl ime
,
Inquie to, semi-nú , sinistro o cava l le iro
Bradou como um trovão : «Enve rg uem-me a l origa
«S e l lem-me o Rocinante , ó Sancho , ó escude iro,«Traze—me a lança , presto ! e a minha espada amig a !
Tinha embrazas O olhar, e t rucule nto o asp e ito,
E vibrava em r edô r imag inaria lança .
L ogo depois cah iu do re spa lda r do le ito ,Morto tendo no labi o um riso d e cr eanca !
QUADRO I NTIMO
Quando eu sub i ao teu quarto,
Tép ido ninho ace iado ,
O nde V ive s,ly r io amado
,
E onde mora o meu de se j o,
Morria o sol ; na ca lçada'Tomavam fresco OS Visinhos
C asava—se a voz dos ninhos
Á s que ixas de um rea le j o .
3 44 GON ÇALVES CRESPO
Entrando sente i-me ao pe rto
De t i que e stavas bordando
Mas tu, cr e ança , notando
AS sombras do meu de sgosto ,Disseste : «vejam que modos !«N ão fa l la ! como está Sério !
«N em que eu fôsse um cemi te rio .
E pe ndeste amuada O rosto .
Eu tome i—te as mã os nas minhas
Volve ndo : «escuta,Maria
«Nunca sa ibas a agonia
«Que ás ve zes me rasg a O se io
«Adoro-te mui to,e muito
«E se i que tambemme que res,«És o b e ij o das mulhe re s
,
«Mas soffro por se r t ão fe io
Tu n'
um ímpe to fe l ino
Re t iraste asmã os, que t inhas
Ab andonado nas minhas
É a fastaste—te de mim,
De pois vieste,se re ia ,
E dado umabraço fra te rno
C ommodo suave e te rno
l l isseste : «não fa l le assim!
. 3 46 G O N C ALVE S CRESPO
S ONETILHO
Te ns a doçura casta
De um passaro dormindo .
Teu labi o rubro e l indo
Ide ias v is a fasta .
Em tua fronte vasta
Sole tro um poema infindo .
Be b e r-te o a le nto hasta
Para morre r sorrindo .
0 BRAS CO M PLETAS
C ah iste nosmeus bra ç os
E os astros,dos e spaços
Pude ram Ver -te , flôr,
Ma is pura do que as bra zas
Tão pura como as az a s
DO S Anj os do Se nhor !
3 47
3 48 GONÇALVES CRESPO
Voae meus dias negros,tormentosos
Diante d'
este amor quente o se lvagem,
Que eu vou transpondo uma idea l pa r ag eim
O nde os be ij os são Anj os l umi nosos.
Amante s que g eme is n'
essa voragem
Que O flore ntino v iu,febris, anci osos,
N ão me e nuble is a C e l ica mirag em
Be ixae vive r os pobres amorosos !
3 50, GONÇALVES CR ESPO
ITERUM SARA
Ab re—me os braços teus, formosa Magda lena ,
Que repouse um amante em se i os de a labastr o !
Que ro doido sorve r teus be ij os,assucena
,
N '
e ssa va randa , a l u z do me r enchor io astro .
Ao luar e tão doce O tremulo contacto
Dasmãos d e uma mulhe r que esma ia enlanguescida
Á noite,f i lha d e Eva
, . O amor, lang uido cacto
Desabrocha sorrindo e enflor a-nos a vida .
O B RAS CO M PLETAS
Vê tu que céo azul,o céo tão e stre l lado ;
Esse que ah i se arque ia e esp lende pe la a l turaAfasta do tricl inio o ae re o cortinado
Appa r e ce—me
,6 Sa ra
,e eu morra d e ve ntura !
Sol ta os cabe l l os te us,Niagara e sp lendur oso
Que vae be ij ar-t e a onda a lv íssima do col lo .
A g uitarra sol uça o cantico amoroso
E eu de sma io na sombra,6 Sara
,ó meu consol o !
É ca lmo O t eu ja rdim,na a re ia da a lameda
Em casca tas,de rrama a lua os se us pa lô r e s .
Que me ape rte o col lar dos braços teus d e seda,
C antemos o due tto e te rno dos amore s
Abre -me os braços teus, que ro e sculpi r com be ij os .
Em teus labios d e fogo e se ios d e a labas'
tro
O poema d '
e ste amor insano . O me us dese j os,
Eu vos prante io a lu z do me r ench or io astro
G O N CALVE S CRESPO
MALLA-POSTA MI NHOTA
'
V ínhamos dentro,o p a r ocho d e .
Ummoço l isboe ta
E uma dama genti l, que por signa l
Usava de l une ta .
Ao passarmos no escuro de umchoupa l
Murmura a dama inquie ta««Sahem aqui ladrões . l i n'
um j orna l .
Responde o abbade : «é peta . »
3 54 G O N C ALVE S CRESPO
SEN HORA C ON DESSA . DE SABUG OSA
(N o D I A DO S SEUS AN N O S )
N a quadra a zul da mocidade,a ge nte
Parte rindo e cantando , estrada fo ra ,G or g e ia a cotovia em cada aurora
Suspira á noi te O rouxino l dolente .
Ai ! di toso o que parte a le g reme nte
O que não v iu aproximar-se a hora
Em que e força volve r a tra z . embora
N os a rfe o se i o,de illusõ es fremente .
O BRAS CO M PLETAS 3 55
Pa ra t i a inda existe O sonh o a lado ,robusta
,a candida a le gria
nos chovem do céu claro e estre l lado .
Nunca se j as forçada , flOr , umd ia
Ao e rg ue r, chorando , O braco fa tigado
Em busca da ve ntura fugid ia .
1
1 Foram estes os ul timos versos do p t e la .
Le ram j á Baruch ? pe rguntava Lafonta ine , e nthus iasmado com a le itur a d '
e sse p r Oph e ta . Tinhamosv ontade de pe rguntar aos le itor e s : le ramj á os ve rsose os sone tos d e Joã o Pe nha ?
É possive l que para muita ge nte O nome d '
e step oe ta sej a t ão desconhe cido
,como e r a para o ma l i
c ioso fabul ista o nome d e Ba ruch,e nada ma is S im
ple s e na tura l,te ndo o poe ta publicado os se us ve r
sos n'
um pe riodico provinciano,cuja t iragemnão e x
cedia a oitoce ntos exemplare s .
O r a e ntre O i tocentos le i tores d '
e sse pe riodico haviaduze ntos com ce rte za que odiassem O ve rso . A poes ia nunca teve grande nume ro d e admiradores e de
v otos : os home ns d e sciencia,o povo
,e .os i gnoran
t e s raras ve ze s abrem um l ivro d e ve rsos e,quando
o abrem,fa lamos dos prime i ros
,e quando o nome
d e sse poe ta foi devidame nte chance lado nas re giõe so f ficiae s
,e consag rado pe la Opinião .
3 60 G O N C ALVES C RESPO
A poe sia tema i nda um inimigo e ncarniçado e te rrive l nos prosadores, nos que nasce ram seme ssa fã
culdade , semo dommaravi lhoso do ve rso, n'
aque lles
pa ra quem este não passa d e uma ba g a te la eng r a
ç ada,mas que não de ixa d e se r futi l , quando não
se ja pre te nciosa . N ã o são se nsive is a forma , a h a rmonia
,a graça
,a factura laboriosa e a r tíst ica do
ve rso,e pa ra não passaremcomo inve j osos
,a fl
'
e ctamo prude nte sorriso d e C onr ar t
,ante os ve rsos impos
tos pe la cri tica a admi raçã o e ao applauso d e t odos .
Os grande s escr ip tor e s do movime nto romanticoem França , os que acompanharam e sse movime ntoe ntre nós, mane jaram por e g ua l a prosa e o ve rso .
O ve r so teve por isso n '
essa e pocha grande acolh ime nto
'
e acce ita ç ão .
Hoj e h a tres ou qua tro escr ip tor es com uma indiv idua lid ade accentuada e pote nte ,que não come çarampe lo ve rso
,a nã o se r que escondessem ca ute l osa
me nte a l ong a ore lha be stia l do vulgo as estrofes queoutr'ora pe rpe t rassem em horas d e e nlevo e d e mocidade .
É ta lve z d 'esta peque na pa rti cula ridade , d e os escr ip tor es que hoj e mais deslumbrame de l iciama ou
r iosidad e portug ue za , nã o te rem come çado pe love rso
, que e ste cah iu em tamanho desa ff ecto, o quenã o que r d ize r que a inda não ha ja quemse aventurea p asse ia r pe los squa r es da mode rna cidad e , semre ce i os que o e xpulsem se g undo as prescri ções doPla tã o .
No nume ro dos que t em a inda pe la poesia umcul to e xt remoso e desin te re ssado, sob r esah e comvivo re le vo a fig ura orig i na l d e João .
3 82 G O N C ALVES CRESPO
Á noute,a hora d a ce ia
,ouvia Joã o Penha contra
e ste s e outros casos inauditos e assombrosos paraquem sae d a sua paca ta cidade na ta l , e se vc de r e
pe nte em pa i z de barbaros façanhudos.
N ão podia sahir,nã o podia sosinho e l ivreme nte ,
pe l o va le d e C ose l has,subir ao Pe nedo da Saudade ,
pe rde r-se pe los becos e encr usilh adas antigas d a ci
dade ba ixa, mas O que ning uem lh e podia e storvar,
e r a a consoladora le i tura dos bons l ivros, e e r a n'isto
que e l le dispe ndia a ma ior parte dos prime iros aunosd a sua e stada em C oimbra .
N ão,não e r a nos l ivros substanciosos do sr . Be r
nardino C arne iro,nem nas ponde rosas paginas dos
compe ndios do sr . Vi anso Pre to, que e l le le vava as
horas ap r ove itave is da noute : O que O e ncantava e r aa radiosa le i tura dos poemas de Hugo , d e Byron e doMusse t
, a captivante C omed ia H umana d e Ba l zac, ahistoria fe uda l d e Inglate rra e Escossia vista a trave zd a opulenta imaginaçã o d e W a l te r Scott, a g a le riaa t t r ah ent e e fascinadora do fe cundo e prodigioso papaDumas
,0 O r lando f ur ioso do Ariosto, a tri logia ti ta
nica de Dante,e o de sl umbrante
,colossa l
,e mons
t r uoso t hea t r o d e S h akspe a r e .
Do re ce i o as t r ocas resul tou para João Penha Of icar com a l gumas ide ias pre cisas a re spe i to do p ensamento h umano
,do seu progresso e da sua influen
c ia ; e o se r add iado em a l guns p r epa r a tor ios pe lo sr .
D . . Victor ino,conse l he i ro-cidadão
, (como respe itosae comicame nte chamava h a dias um pe riodico repub licano d e C oimbra ao r e spe itave l e anafado e x—cruzio) e por que jandos va rões d e conspicuo va lo rscientifico e l it te r a r io .
O BRAS CO M PLETAS 3 83
Todas as cousas boas t em um fim; Joã o Penhad e ixou d e t e r medo às troças
,e pouco e pouco fo i
adquirindo ce le bridade pe la Vive za d as re pl icas, pe l ofe i t io caustico dos d ictos
,e ma is que tudo pe la e x
t r avag ancia do seu vive r, e pe la forta le za diamant inad o seu estomago .
N'
aque l le tempo os e studante s levavam em C o hnb r a uma vida tempe stuosa e dissi pada ; C oimbra e r aa amplificaçã o hi lariante do ce lebre quadro d e Velasque z Os bor r a chas : a ave ntura e ntre la çava—se acome za ina
,o amor a orgia ; havia ex h ub e r ancia d e
força e d e mocidade e e r a pre ciso emp r e g a l-a fosseem que fosse . Este marinhava nos e le vad íssimos a rcos do Jardim,
che gava a um a l ta r onde a devoçã ocollocár a um mise rrimo S . Se bastiã o
,a rrancava as
sét tas do corpo e nsang uentado do Martyr e e scre viapor baixo da imagem: basta d e soffrimento ! Outrode scia a cidade ba ixa , sósinh o, desarmava a rondad os solemnes ve r d ia e s, e de sancava coma l impe zad e um possante va rredor de fe ira minhota a mult id ão dos fut r icas
, que fugiam e spavoridos e em a l tobe rre i ro .
Havia revol tas contra os le nte s,t ramavam—se
conspi rações nas l ojasmaçonicas, e scre viam-se pa rn
ph le tos, odes, d y th y r amb os, poemas : nos cenaculos
d iscutia-se,com voze s violentas
,na e scuridã o dos
quartos,a respe ito d e He ge l , Spinosa e Kant ; b e
b ia—se como Marco Antoni o , comia-se como Vit e llio ;e quem passasse
,a noute , na r ua onde morava An
the ro d e Que nta l,e r a quasi sempre int e r p e llado pe l o
poe ta d as Od es mode r na s, o qua l , a cava l lo no pe i tor il d a jane l la
,as pe rnas bamba leantes
,o ge sto la rgo
3 64 GONÇALVES CR ESPO
e p r oph e t ico,os se us revol tos cabe l l os d e e scandinavopa lpitando á Viraçã o nocturna
,pe rguntava e stas e
outras cousas cab a list icas
_ Sabe s quem e r a Manú ? Te ns a l guma ide ia doImmanente Deus se rá d e facto o immenso ma r dasubstancia ?Os tra nseunte s ouviam aque l las vozes
,e, pasma
dos,fa z iam o sig na l da cruz !Joã o Pe nha , pe la sua graça , pe la e x pontane a viva
cidade do seu espiri to,ape sar d e ca l oiro
,e ntrou a
se r admit t ido nos conciliabulos dos acad emicos,e,
ah i,os ve te ranos, tole ravam-lh e as mordentes face
cias,como o sul tão tole ra os i nsul tos e as i ronias
dos de r viches .
Os g rave s doutores na arte d icend i ct cmnand i,ve ndo que e sse ca loi r o e r a d e féve r as
, pe rmit t ir amlh e que passeasse por onde quíz esse , que j ogasse Ob ilha r Onde lhe aprouvesse
, que bebesse onde muitob em lh e quadrasse .
Houve pa lavras d e a zedumeÉ uma l ibe r dade que nunca se V iu !Aca ba ram-se as p r e r og a tivas !
Um ca l o iro !E e ntão os admiradore s de Joã o Pe nha
, os admir ador e s do seu ta lento
,os se us companhe i ros nas
ce ias, que principiavammui tas ve zes na r ua da S o
ph ia,e iamacabar em Santo Antonio do Pe nedo
,que r
dize r — d'a l i a uma le gua, g ri tavam com auctor idade
se nte nciosaÉ ne cessa rio que a mocidade se divirta !
E os cabe çudos ca lavam-se !
Passados os tempos d iff ice is, Joã o Pe nhama t r icu
3 66 GONÇALVES CRESPO
— Fui eu que escorre gue i,responde u O assara
.p antado C a rva lh o , que subi ra nã o se i por que artepe la ribance ira íng reme e r e sva lad iça . Por e sta éque eu não e spe rava . Eu que a trave sse i O At lantico
,
que te nho pe rcorrido todos os ma re s, estive a piquede me a fogar n'esta poça d e lôdo .
Joã o Pe nha ouviu e ste dize r lamentoso,abanou a
cabeça medita t ivame nte,e,tomando uma re so luçã o
vio lenta,dirigiu-se d e novo para a tabe rna . O tabe r
ne i ro e stava á porta .
Viu o que succedeu ? i ndagou Joã o Penha .
Vi,sim se nhor .
Pois,meu amigo
,e ntre nós . o vinho acabou . .
E nunca ma is se ouviram aca loradas discussõe ssob as Ola ias em flô r do Lux embur g o , a fre gue z iafugiu d '
aque l le l ogar como d e umsi t io ne fasto,e Joã o
Pe nha,quando p or a l i passava , repe tia sempre , pon
do os dedos em cruzEu t e esconj uro
,ma farrico !
O Homem do G a z ficou sendo O ce ntro,o ponto
d e re uniã o d e todos os moços, que ma is se dist inguiam pe l o ta le nto
,pe la i llus t r aç ão e pe la ve r ve . N a
sa la do Homem do G a z ap pa r e ciam, e ntre outros,Be rnardino Machado , Marça l Pache co , J . Frede ricoLaranj o
,Jul io de V i l he na
,Augusto Rocha
,Te ixe ira
d e Que iroz, (Bento More no), Gue rra Junque i ro, o
poe ta do D . Joã o , S imões Dias, o prove nça l das Peuiusula r es, C andido d e F igue i re do, O pintor dos Quad r as camb iante s, Lui z d
'
And r ad e , o insigne caricaturista
,Eduardo C abri ta
,inge nuo como uma cr eança ,
borracho como S i leno,poe ta
,e t ão a rtista , escou
O B RAS CO M PLETAS 3 67
dido e esquecido hoj e n'uma a lde ia do Alemtejo, Alves d e Moraes,
'
o fe roz trasmontano que escreveuum l ivro socia l ista Mo r te á mo r te
,Barre to
,possuidor
d'
um nariz apop le t ico, que d iscr e te ava sobre tudo e
much a s cosa s ma s,sobre musica
,sobre pa tholog ia ,
sobre armaçã o d e navios,sobre astronomia
,sempre
com a mesma voz ve lada,sumida e discre ta
,O saga
cissimo Se rgio de C astro . A lbe rto Braga,umconve rsa
dor impag ave l ,O b r a z ile i r oFranciscoMach ado e o p a iC arva lho , antigo gove rnador civ i l do Funcha l
, que
i ndo visi tar um ne to a C oimbra e tencionando demor a r -se sóme nte dois dias
,ao se r apre sentado ao S y
ned r io, t a l gosto e tanta pilhe ria lh e achou, que e r
g ueu a te nda em C oimbra,e por l á andou a rir
,a ri r
,
a t é que morre u .
Foraste i ro que chegasse a C oimbra e trouxesser e commendaç ã o pa ra qua lque r dos ind iv íduos a tra zmencionados, e r a , na noi te do mesmo d ia , apre se ntado no syned r io .
Que d e ge nte que vimos a l i ! Diploma tas, cone
g os, j orna l istas ce lebre s, vene r ave is banque i ros, ne
g ociant es sisudos, t itula res, cantore s estrange iros,o
ce lebre He rmann , o va lente He rcule Napol i , o marido da Volpini , o diacho !Uma noi te foi a l i apresentado umpadre da Be i ra ,
que descera d as suas nevosas montanhas, para i rpregar a le i d e C hristo aos se lvage ns dos se rtões deAfrica .
Quantos se rmõ es le va o senhor p e rguntou-lh eJoã o Penha , de pois d e travadas as prime i ras palavrasd e apresentaçã o .
— Se rmões ! N ão levo nenhum
3 68 GON C ALVES CRESPO
Pois fa z ma l . É pre ciso que os leve,e cousa
que se ve ja . Eu sou d e Brag a , e nãosou profano nasagrada t heolog ia . App a r e ça ma is ve zes e conve rsa remos a t al re spe i to .
O padre ve i o uma, duas e tre s ve zes : gostavad
'
aque l las discussões, sabore ava—as, foi adiando O d iada partida ; despe dia—se hoj e e vol tava ámanh an, a trah ido e fascinado , como umanachor e ta q ue d e re pe ntese visse n'uma orgia asia tica .
Passados dous me ze s partiu e ff ect ivamente , levando duas duz ias d e se rmõe s
,dictados por Joã o
Pe nha .
E digamdepois,repe tia va idosamente o poe ta ,
que eu não Ooope re i para a civ il isação !
Er a na sa la do Homem do G a z que se discutiamos ma is a rduos problemas, que se fa zia a cr ítica dos
l ivros apare cidos e dos a rtig os j orna l ísticos, e que seinve ntavam as ma is p a r adoxae s e e xtraordinariastheor ias a re spe ito d a Arte , da Scie ncia e dos C ostu
me s. Havia a li estudante s d e todas as faculdades, ju
r istas,ma th ema t icos
, ph iIO S Ophos, the ologos e medicos, quasi todos premiados. C ada qua l va rria a sua
t estada,conforme podia, e conforme sabia .
Joã o Pe nha,e nvol to n
'
um comprido e amplo casaco couleu r d e mu r a ille
,comumbonne t bungaro na
cabeça e as mã os a traz das costas,cortava diagona l
me nte'
a sa la com os se us passos solemne s e grave s .
De v e z em quando parava,para ouvir ma is a tte nta
me nte a discussão , e dava a sua sente nça . Pre fe riaa todas as discussões as que ve rsassem sobre the ol ogia e sobre medicina , e tinha a va idosa pre tensã od e dize r sempre a ul tima e de cisiva pa lavra a ta l
3 70 G O N C ALVE S CRESPO
O poe ta,contempla t ivo
,e como que possuido d a
sensaçã o ínt ima de umgrande factomyst e r ioso,murmurava para o mang e r icão :
O lha O borracho ! C omo e l le se pô z ! como quemdi z : se não fosse o v ício a inda a estas horas e stariascom vida
,ladrã o !
O Homem do G a z , um la tag ã o como uma s casas,adorava Joã o Penha ; t inha sido pa tule ia , or ár a emclubs turbule ntos, e gostava de re corda r e ssas epo
chas gloriosas d e lucta . Ouvia d e longe,da sombra
do corredor,as momentosas discussões que se t r a
vavam na sa la . Quando pediam V inho,e havia con
te nda lit t e r a r ia ou re l igiosa,e ntrava si le ncioso
,grave ,
che io d e re spe i to, fa ze ndo pequenos gestos amigave is aos que a inda não ti nha visto n'
aque l la noute ;nã o que ria pe rturbar a discussão , diz ia .
Havia uma noute , sobre todas solemne , no anno,em que e l le de ixava a sua habitua l e re spe i tosa concent r aç ão : e r a na noute do a cto de Joã o Pe nha . N '
e ssa
noute associava-se a conve rsa , i ll uminava—a com os
episodios da sua coraj osa mocidade,e honrava a
fe sta com se is g a rra fas d e um vinho pode roso e an
t ig o .
Foi n *uma d '
e stas noute s que se travou o famosodue l l o do Joã o Pe nha com Gue rra Junque i ro . O casofoi assim: o futuro poe ta da Mo r te d e D . Joã o che
g ár a d e L isboa havia dias, e narrava os e pisodios daj ornada . C ontava ch istosamente as ave nturas d asua pe regrinaçã o a Va l d e Lobos
,a sua e ntrevista
com o vene r ave l sol itario, e descrevia com grandeabundan'cia d e te rmos picaros as manhas da a l imar ia que O levou a pre sença do emine nte historiador ;
O BRAS CO M PLETAS 3 7 1
depois fa l ou dos li tte r a tos d e L isboa,d e um ce lebre
passe io a C i ntra .
Reparou—se entã o que Joã o Penha , curvado, comO rosto unido a parede e screvia na ca l .
Ergue ram-S e todos,e ap p r ox imandO-se do poe ta
leram as duas seguintes quadras :
I amcaminho de C intra,
Montados numsó jumentoUmva te e umdandy pel intra,Soltando canções ao vento .
Para o burro ; e como chumbo ;Diz-lhe o bardo gambias pôdr es !Responde o triste ; succumbo
Sob o pezo de taes ôdres.
Gue rra Junque i ro morde u o be iço , mas nã o r e s
p ond eu : e vae O
'
João e rompe com outro bote :
Junquei ro, que vens de junco .
Tu que és passaro b isnau,
N ão abres O b icoatluncoPo is não me sent iste o pau?
Espe ra que eu te ensino, bandido ! murmu r aJunque iro
,e repl ica
O Penha borrachoCorria cantandoNo dô r so de ummacho ;Mas e is senão quando
3 72 GONÇALVES CRESPO
A besta o estiraN a l ama da praça,Quebrou-se-lhe a taça,Quebrou-se-lhe a l yra,Quebrou-se-lhe tudo .
E o pobre O l iveira !
Só não d i z asneiraQuando fica mudo .
João Pe nha estava em guarda,aparou O g olpe , e
re spondeu
Afinaste a veia chata,Bebeste o cºpo de umbor co,E a cidade estupefactaOuviu o grunh i r de umporco .
Inda João Pe nha não acabara e ste ul timo ve rso ej á J unque i ro come çava a e screve r
,furioso
,por d e
baixo d a quadra do adve rsa rio
Porco és tu,meu animal
,
Porque as vermelhas cançõesQue sacas do teu bestunto,S ão vermelhos salpicõ esN ão são .versos, são presunto.
A ga le ria aplaudiu ; ouvindo e stes applausos, JoãoPe nha rug iu ameaçador auiente
O nome todo do poeta é João Penha de O l ivei raFortuna .
3 74 GONÇALVES CRESPO
para que não vie ssem e xtranhos, como"ordinaria
mente vinham,d e d ia
,le r os ve rsos, e p r ofana l
-O S
com o seu riso a lva r . Foi a expl icaçã o dada pe l o hondoso gigante .
E d '
aque l le modo p erde ram-se para sempre os
e ngra çados e p ig r ammas, as sat i r as e asmagni ficas erisonhas carica turas fe itas pe l o Lui z d e Andrade
,e
por José C ach apuz ,— um moço viva z e d e ta le nto,
que morava a be ira do Mondego , n'
um caste l l o d esmante llado e em r uínas
,ao pé do qua l o ca s te llo d a
mise r ia descri to por Gauthie r e r a um maravilhosoAl hambra . Todos e sse s ve rsos a legre s e moços d esappa r ece r am,
sumiram-se d e todo ; a l guns porémsobre vive ram como O h ymno que vamos transcreve r,e cuja historia e e ng raçada . C e rtos academicos const itui r am-se em re publ ica
,e qui z e r am um h ymno.
Dirigiram—se a Gue rra Junque iro, que , andando aba r
bado não se i com que traba l hos, p r Opõ z o negocio aJoã o Penha , ao e ntrar da aula .
Pr omp to, disse JOão Penha ,mas pe l o pre ço quesabe s.
— Qua l pre ço ? ! disse Junque iro, fazendo-se d enovas .
S e is v intens cada quadra . É o pre ço que t e leve ipe l o h ymno da ph ila rmonica d e V i l la Re a l d e SantoAntonio
, do Alga rve .
— Vá,vá ! Mas a pag ar no pr incíp io do me z ; a
somma é importante .
Nada : hade se r paga e j á . R ubís sur l'
ong le !
-Homem,levo—te o dinhe i ro a tarde .
— Hade se r quando eu te e ntre g ar os ve rsos ; mão
OB RAS CO M PLETAS 3 75
por mã o,como os rapaze s . Bemsabe s que nã o confio
em t i .Junque i ro lançou uma d e rrama pe lo curso e a
sabida da aula pagou O h vmno . E i l-o :
O vós q ue do canto sois velhos f r egue z es,Ouvi d'
estas lvr as o mel ico emprego !N ós sômos as gemas, os b i fes ingle z es,Os paios das fi lhas de claro Mondego .
Sorr i—nos a vida nos cál ices che i osDos r oixos falernos das parras da Beira :Sorri-nos a Ceres dos tumidos seiosSorri—nos dos bosques a Venus l ige i ra .
N os mesics papy r os da sciencia modernaA droga se encontra que ao somno conv i i a ;Queimemol—os todos que só na tabernaO s l ivros se encontram da sciencia da vida .
Ao vento os cabel los ! por montes e val lesC orramos no passo das gregas chor êas !Bachantes das praças rufa i nos t imbal es !Abri -nos as portas
, gentis G alathêas !
Este h ymno foi posto emmusica e e r a voz e ado
t re s ve ze s por d ia,or a as j ane l las do predio em que
habitava a republ ica,or a no me io d a r ua
,or a no a l to
d a montanha do Pio .
A l guem,pa ra O pe rpe tua r
,e screve u-O na pa re de
d a sa la do Homem do G a z,e d a pa rede passou para
a carte ira d '
um curioso .
3 76 GONÇALVES CRESPO
Joã o Pe nha dominava e ste collosso do Homem doG a z
,como um co r na c domina um e lep hante . Fél-o
passar,gradua lme nte , d e pa tule ia ing e nuo e incon
sciente a repub l icano , d e republ ica no a socia l ista,
d e socia l ista a pe trole iro,d e pe trole iro a a theux
O Homem do G a z ouvia d'
estas e d e outras :Fa lava—se na re ce nte obra d e V . Hugo a L enda
dos S eculos. Uns diziam b em,outros mal
,d a ul tima
ma ne i r a do radioso M igue l Ange l o da l it te r a tur a mod e rna . Aos que i nve ctivavam Hugo
,pe rg untava o
João— Tens visto um cão passar j unto do monume nto
d e um grande homem? Te ns reparado no que e l lefa z O mesmo que tu fa ze s, sevand ija ! a l ça a pe rnae humede ce O pede sta l . Eu a i nda hoj e , ao ler a L endados S e ca les
,ri , chore i , d e i uivos, d e i pinchos de or
g ulho, d e a le gria e d e j ubilo . Digo-vos ma is ; se hoj emorresse — o H omem do G a z adiantava—se para ouvi rme l hor — e che gasse aos pés do Padre Ete rno, haviae l le de pe rg unta r-me O que havia d e novo pe la te rra .
A L enda dos S eculos ! responde ria eu.
E que ta l ? diria o Padre E te rno .
UnicoQuem é o auctô r ?
Vi ctor Hug o !Pois olha
,expl icaria desvane cido o Jui z Supre
mo, esse rapa z é meu f i l ho .
—E a inda ha , tornaria eu,quem dig a que os f i
l hos nã o são ma is i nte l l igente s que os paes !O Homem do G a z re t irava para a sombra medi
tabundo .
Ah,quando este bom gig ante do Homemdo G a z
3 78 GONÇALVES C B ES PO
b e r ne i r o . Nunca desmanchava a sua gravidade : r iapoucas ve ze s : diz ia sómente as pa lavras precisas
,
me nos a Joã o Pe nha,com quem de saba fava a r e s
pe i to da pouca ve rgonha que ia por e sse mundo, ed e quem apre ciava os chiste s e os ve rsos
,a ponto
d e t e r a cabece i ra da cama,n 'uma rica moldura
,O
sone to que o poe ta lh e off e r e ce r a no seu annive r sa
rio .
T inha frequ entado O prime i ro anno d e th e olog ia ,fôra negociante
,fa l l ira honradamente
,e pa ra sus
te ntar a nume rosa fami l ia,come çou a dar d e ce ia r
aos e studante s .
Eram b ar a t issimas e ssas ce ias,e d e um sabor
de l icioso,sobre tudo no tempo d a lampre ia .
O C onse lh ei r o t inha a ve ia , espe cia l idade,o que
se chama dedo,pa ra o pre paro d
'
e ssa i guaria . N inguem a fa zia me l hor em C oimbra
,nem no C a r ól lo
,
nem no C a ste l la , nem no Pa ço do C ond e , e ma is e r ao Pa ço do C ond e a prima z
,em antiguidade
,d as hos
p eda r ias conimbricenses .
Depois d as onze d a noute e ntravam na tasca doC onse lh e i r o vul tos embuç ados,myste r iosos,compassosubti l e leve .
Uma noute vimos a li entra r umhomemcomo umatorre
,um pedaço d e um homem Joã o Pe nha e
nós m os—lh e na piug ada .
— Que novo f r e g ue z e e ste ? pe rg untou O poe taao C onse lh e i r o . Em C oimbra só conheço dous homensd '
e ssa grande za — o dr . Mamede e O B ispo—C onde .
Qua l de l les é ? Guardo segredo .
Dou-lh e a mi nha pa lavra que não é O doutor .
Log o , a ta l hou Joã o Penha .
OB RAS CO M PLETAS 3 79
Inda que adivinhe,não digo quem e
,tornou o
Rodrig o com uma dignidade antiga .
E Joã o Penha,vol tando-se pa ra nós :
_ Mau ! a Egre j a tambem concorre .
Foi a li que se d eu O seguinte caso .
N uma be l la v e S p e r a de fe riado dirigiamo-nos nóse Joã o Pe nha para O ba rracã o do C ons e lh ei r o . O caos
d e se rto,o M ondego d e uma formosura incomp ar ave l ,
o luar d e indoude ce r . Iamos a pene tra r . . quandod amos d e fr e nt e com um embuç ado .
Er a Marça l Pache co .
Que inve ja que eu vos te nho ! murmurou melancolicament e o triste .
Porque não vens comnosco dissemos .
Impossive l : de vo duas ce ias ao C onse lh e ir o, ee stamos no fim do me z .
É horroroso . mas i nda agora re paro,notou
Joã o Pe nha,com e ssa be l la barba ne gra
, que d e i
x aste cre sce r,és um anda lu z comple to
,e depois e ssa
capa,e e sse chapeu de sabado . sabes tu por acaso
fa lar h e sp anh olEssa pe rgunta a um f i lho d e Loulé !N e sse caso
,anda ! Apre sentar-t e -hemos como
um h e sp anhol , que nos ve i u r e commendado por D .
Be nigno Ma r t ine z,e que de se j a e studar
Entramos os t re s : Ma rça l,com o chap eu sobre
os o lhos,e emb uçado a té aos nari zes, para tornar
ma is caracte ristico O seu pape l,expectorava ,
d e
quando em quando,p e l o corredor
,com ge stos fan
d ang ue i r os :
Va ga d e ,b r oma ! Y a d e la n t e ! Va g a d e b r oma
O C onse lh e ir o entrou no cub ículo, onde ninguem
3 80 GONÇALVES CRESPO
pene trava senão de pois da sah ida d e Joã o Penha,e
curvado,comos dedos fincados na t oa lha
— O que dese jam?
João Penha, que estava a inda d e pé
,app r ox imou
se do C onse lh e ir oÉ um h e S panhol , d isse ba ixo, apontando para
Marça l . Que remos r e g a la l-O
,r e commendo apuro .
Rodrigo olhou para O e strange i ro e cump r imentou—O com grande respe i to .
E o que temos hoj e pe rguntou em voz a l taJoão Pe nha .
Ovos mech idos commiolos,coe l ho guisado
,e
lampre ia,re sponde u o C onse lh e ir o .
João Pe nha vol tou—se pa ra o caValhe i r o h e S pa
nhol :Tenemos p a r a cena r sesos con ucb as r evue l tos
,
cone'j o guisa do, y un p escáu que noso t r os l lamamoslamp r ea , que gusta usted ma s? pe rguntou Joã o Penhaao cava lhe iro h espanhol , com todo O caste l hano quesab ia .
Pa r a mi tengo una d ec idi da p r ef e r encia p a r alo todo re spondeu
,laconicamente comama is cor
re cta pronuncia caste l hana , o cava l he i ro d as He S panhas sempre embuçado, e com O chape u cada ve z
ma is cab ido sobre os olhos .
O C onse lh e ir o tra z ia os pra tos,e sab ia l ogo
,vol
tando sóme nte quando e r a chamado ; foi o que va le ua Marça l , que n '
esses inte r va llos se d e sembuçava
para come r, como um botocudo e sfa imado .
Acabada a ce ia,e quando iamos j á pe rto da porta
O sr . Joã o Pe nha,dá-me uma pa lavrinha disse
a ii ave lmente o C onse lh e i r o Rodrig o .
3 82 GONÇALVES C RESPO
dos estudantes, que f a z iam b ich a á porta
,a e spe ra
que lhes chegasse a v e z .
A t ia Ma ria e r a de uma i nte i re za e d e uma just iça assombrosa : O que prime iro che g ava e r a o queprime i ro e r a se rvido ; tanto montava que fosse ca
lour o,como ve te r ano, como assiduo frequentador da
casa . Ape sa r d e bondosa , não gostava d e ouvir pa lav r as sol tas e deshone stas ; off end ida e r a uma v íbor a
,
quando a t r actavam discre tame nte,tornava-se uma
pomba : e r a d e poucas pa lavras O seu b ome hone stosorriso d e se x ag enar ía t inha , porém,
uma e loquen
cia e ncantadora e uma adorave l e xpre ssão de re signada doçura ; deve ria t e r sido l inda e d e uma e x p lendida corre cçã o de fôrmas, mas fora sempre d e umcomportamento e x emp lar issimo, O que admi ra ,
se ndoe l la contemporanea d as ma is amor udas e ga l ha rdasge rações de academicos,que b andur r e a r amemC oimb r a .
Não e r a t ão sómente a de l icade za e o b em a l ourado dos fri tos que tornou lend a r ia a tabe rna da t iaC ame lia , o pre ço d as ce ias a li comidas e ntrava pormuita mane i ra n'
aque lla nomeada .
Eç a de Que iro z , no ul timo anno da sua forma tura ,ce iou a li todas as noutes com Joã o Pe nha
,e O pre ço
d'
aque lla org ia nunca passou d e um tostã o . Joã oPe nha
,contando isto , accr escentava , como quemd iz
uma cousa problema t ica e profundaE o tostã o do Eça e r a sempre empra ta ! Nunca
pude sabe r donde vinha aque l la moeda myste r iosa e
fa ta lA l ista dos fre que ntadores d 'esta tabe rna i l l ustre
e exte nsa e g loriosa ; a li ce iar amna quadra d escui
O BRAS CO M PLETAS 3 83
dosa e risonha da mocidade , Ayre s d e Gouve ia ,Ba r
j ona,Marte ns Fe rrã o , Pa iva Manso , home ns que são
hoj e l entes,de sembargadore s, ministros e bispos ;
n'
aque l le re cinto d a tasca artística esta laram as vã
le ntes risadas d as tre s ul timas ge raçõe s d e poe tas,tribunos e p h ilosophos d e C oimbra — d e Gonça lve sDias
,d e Soares d e Passos, d e Thoma z R ibe iro , d e
Ramiro C outinho (hoj e visconde d e Ougue la), d e Anthe ro d e Que nta l , d e Anse lmo d e Andrade , d e Joã od e De us
,d e Luiz Ja rdim
,d e Me sni e r
,d e Manue l da
Assumpção,d e The ophil o Braga
,d e Emygdio G a r
cia , d e Ge rmano d e Me i re l le s, d e Guimarã e s Fonse ca ,
d e Rodrigo Ve l l oso e de Jose Fa l cã o . C omo o th e at r oacademico fica prox imo
,toda a ce lebridade a r tística
que ia repre sentar a C oimbra , visi tava a t ia C ame l la .
Entra ram a l i Antonio Pedro , Taborda , C e sar d eL ima
,Noronha
,o Paganini vimaranense
,Rosa Seni or
,
e O tragico Rossi, que uma ve z
,a l ta noute
,na duvi
dosa pe numbra da tasca , re citou o lugubre monologodo Hamle t .
Subl imeA t ia C ame l la ouvia
,sur p r e z a e e spavorida
,todas
aque l las pa lavras soturnas e h a llucinad as,e,nã o
ousando fi ta r o emine nte a rtista,conse rvava os ol hos
ba ixos,no chã o
,como uma e scrava diante d e um
Ka l ifa .
Joã o Penha frequentou,durante quasi tre s lust r es
,
sem fa l tar uma só noute . a tabe rna da t ia C ame l la :d '
e sta assiduidade ina lte r ave l nasceu uma profundasympa th ia d a bondosa ve lha pe l o poe ta . N os dias emque nã o havia pe ixe
,uma triste za imme nsa e nvol
v ia as a lmas d e todos os habitantes da cidade a l ta,
3 84 GONÇALVES C RESPO
O l ucto e r a ge ra l : e quando João Pe nha,impassíve l
com a regularidade d e um ch r onome t r o se dirigiapa ra a cidade al ta
,d e va rias jane l las se debruçavam
vul tos dese spe rados e a ffl ictos, que exclamavamN ã o h a pe ixe
,Joã o
,a t ia C ame l la não tem
p e ixe . Lug e te , Vene r e s, C up idinesque !O poe ta
,acompanhado por aque lles que não du
v ídavam d a sua estre l la,caminhava sempre e ao
e ntrar na tasca a t r oup e'
_ Entã o,t ia Ma ria
, que p e ixe temos ? indagava .
— Pe ixe ? r e S pond ia e l la,com a sua voz cantada
emque transpare cia uma i nge nuama l ignidade , pe ixehoj e ? N ão O houve na praça
,nem pa ra o sr . B ispo
C onde , nem para os missiona r ios das Th e r esinh as .
Di ze ndo isto,sahia para fó r a do ba lcã o, e x ami
nava curiosamente a r ua e
'
os transeunte s, corriadepois intrepidamente os fe rrolhos a porta
'
,e abrindo
myst e r iosament e uma g ave ta , t irava d e dentro umpra to . com duas magnificas e nguias.
É e scusado dize r que as duas e ng uias e ram f r a
te r na lmente re pa rt idas e de voradas sofre g ame nte ,
comum appe ti te he roico . Depois da comesa ina — a
conve rsa .
Que l ongos e patuscos os colloquíos e ntre a t ia
Maria e Joã o Pe nha ! 0 assump to d'
e ssas conve rsase r a ordinariame nte umsó : qua l se r ia O cô r o das Vi rgens, em que a t ia Maria se ria e ncor por ada , quandomorresse .
— Do que tenho pe na , diz ia e l la com lag rimasna voz a rrastada e t r êmula
,é de não pode r ir para O
cõ r o de Santa Ursula, que é o prime i ro emgrande za .
—Porque ?
3 86 GON ÇALVES CRESPO
ame za do estudo,traba lhando como umb ened íctino
e resga tando por aque l la forma as horas, que dera
prodigamente a indiscip l ina bohemia do seu vive r :
nocturno .
João Penha fo i o que os j ove ns eng oiados d e hoj enão são nem podem sel-o, foi moço , riu com o b omriso ve rme lho que t ão b em asse nta nos labios da juventude
,teve ume stomago g ar g antuano, teve saude ,
t e ve'
jov ia lidade , teve lenda , foi o ul timo e studanted e C oimbra .
R e a lisou O sonh o,a v isã o
,O a z ul
, em ple na Vidabur g ue z a e const i tuciona l
,não dando ao mundo a
importancia de se aborrece r n 'e l le , como l h e di z iaEç a d e Que iroz .
A lenda'
r ia , turbule nta e enthusiast ica g e r a çã o deAnth e r o d e Que nta l , d e Azeve do C aste l lo Branco , ed e José Fa l cã o , succedera uma g e raçã o doe ntia , d eg e ngivas mol le s e de sbotadas
,t ímida
,curvando a
e spinha na passagem do seu le nte,engul i ndo a
'
seb en ta a té ás fe ze s .
No me io d '
e stes estudantes,e nve l he cidos
,tr istes
,
macambuz ios e sõ r nas, e stourando de subti l e zas es
colast icas, sabe ndo maravi lhosame nte as r íba ldar ías
do Sophisma , O be l l o rigor contundente do síl log ísmo
,e não ignorando como se conclue uma rgume nto
inmod o e t fig ur a , sa turados, a té á medul la , de me taphysica nebulosa e incomp r e h ensive l, O vul to deJ oão Penha destaca e sob r esãh e g l ori osame nte , como
O B RAS CO M PLETAS 3 87
uma flô r orva lhada e viçosa n 'umas ruinas,como a
fanfarra ma tina l d e uma sonora trompa d e caça na
g ruta d e um anachor ê ta .
Mas Joã o Pe nha não le vou a vida simplesmente a
rir, folg a r, a p antag r ue lisa r , e a ce lebrar
la loua ng eDe son ami le bon Buch a s
,
na humidade claustra l d as tabe rnas ou sob a ramar ia fresca e copada dos sa lg ue ir ae s do Mondego .
At r ave z das suas ave nturas O traba l ho sorri .Humanista
,pode ndo ouvir d e si o que C hap e lla in
dizia de Mol iere : «e ste rapa z sabe la tim! conhece dor d a l ing ua , tendo um g osto educado finíssimo,
O gosto que mode ra e harmonisa,uma le i tura abun
dante e variada,uma int e llig encia cul ta , prog re ssiva
e re fle ctida , Joã o Pe nha concorre u , e não pouco pa raa direcçã o do mode rno mov ime nto poe ti co .
O gri to re volucionario,sol to pe los ce lebres dissi
de ntes d e C oimbra ,produzira grande aba l o
,os ani
mos estavam despreve nidos, a se nsaçã o fô r a viole ntad e mais, e d
'
ahi re sul tou que os discípulos e os prose litos fa l taram.
A revoluçã o dos coimbrõ es fô r a pla tonica,phil o
soph ica ; a e xtranhe za dos assump tos' das poe sias d e
Anth e r o d e Que nta l e d e The oph i l o,quasi sempre
me taphysicos, t r anscend entaes e nebulosos para a
ma ioria dos le itores, apavorou os t ímidos,agastou
os antigos,desanimou os principiantes . A poe sia
cah i r a n i um desanimo e n 'uma hesi tação ex t r aor dinaria
,symp tomas tristíssimos que se dissiparamcom
a:
GONÇALVES CRESPO
O appar ecimento d a Folha , periodico d irigido por
Joã o Penha .
A Folh a foi um aconte cimento : acreditava mui tagente que a poe sia morre ra , que j á não havia mocidade
, que o riso acabara , e va i, senã o quando
,d e
subi to , inespe radamente , appa r e ce no horisonte l i tt e r a r io um poe ta , cuj o nome e r a ignorado nas r e
g iõ es offi ciaes,r ea l isando todos os predicados pa r a
a t t r ah i r as _v istas e g r ang e a r app lausos ; nã o e r a
futi l,nã o e r a bana l
,t inha ve r ve
,inspiraçã o ,. uma
la rg a ve ia humoríst ica,origina l e e x pontane a : sabia
mane ja r o ve rso,como ummestre , dando-lh e re levo ,
graça,h a rmonia e musica
,e conhe cia na ponta dos
dedos os processos,as formulas
,o d if fi cil contra
ponto d '
e ssa a rte, que com tanto desamor fõ r a tra ta
d a pe l os poe tas re volucionarios.
Joã o Pe nha,cuj o vive r vagabundo e dive rtido
tanto se asseme l ha ao do poe ta france z do secu lox vn
,Sa int-Amand
,re uni u a fog osa i ndiscip l ina d e
um g oinf r e as a l tas e se re nas qua l idade s d e ummest r e .
S im,um mestre e um director, que duvida ! Ha
v ia e xhub e r ancia d e ide ias, de p h ilosoph ias, d e sys
temas, mas a fôrma ,o g osto e O estylo não e stavam
definitivame nte de te rminados : ao re novamento daside ias
,
'
nã o corresponde ra o renovame nto d a fôrmal itte r a r ia .
A Joã o Pe nha,parece-nos, se deve o comple
mento da Obra dos que com tamanha intrepide z d er am impulso a nova corrente poe tica . N ão e x ag g e
ramos : d e '1 868 a ppa r ecimento da Folha pa ra cá,
ve jamse não e ncontram nos poe tas por tug ue z esum
GONÇALVES CR ESPO
Escreve ra tambem sobre o j oe l ho, d e improviso,nas costas d as bancadas d as aulas
,pe l os a lbuns
,nas
vene randas se ben ta s, ep ig r ammas, t r io le ts, facecias,
em que b em claro se dist ing uia O vest íg io da garrad o humorista
,e que aj udaram a robuste ce r—lh e a
le nda . Assim, de um estudante
, que t inha um na rizS ingular pe l o a fogueado d a cô r
,diz ia :
Tamagnini da EncarnaçãoTemna ponta do narizO colorido fel i zDe uma rosa do Japão .
A um cond íscipulo chamado Enne s mandava estaquadra :
A let t r a dos teus assumptosBemnos demonstra quemés,
Vale dous nn bemjuntos,E letra de quatro pés.
A outro condiscípulo,l indo
,rosado e t imido Como
uma donze l la,chamado La rche r
,pe rguntava :
N '
este caso desatino“Tu és La' rcher ou Lar cliér '?Tu és homemou menino“)Tu és menino ou mulher ?
De um padre que não e r a , posi t ivamente um
Apo l lo . na formosu ra , e ntenda—se , di z ia :
O B RAS CO M PLETAS 3 91
Vede-o ali tão triste'
e—só,
No seu logar , posto aliE como sobre umcipó,Um padre mestre saguy !
A lves d e Moraes,estudante d ist incto, e hoj e cau
S Íd l C O d e nome ada em te rras transmontanas,e scr e
v e ra um l ivro socia l ista intitulado Mo r t e á Mo r te .
João Pe nha re ce be o l ivro a e ntrada da aula,lê-o
,
p asma e e screve por ba ixo da dedica toria aff e ctuosa :
O Moraes, umpulso forte,Um guerreiro ant igo , umcabo
,
C hamou a terreiro a MorteE deu-lhe um couce no r
C omo um ph ilosopho que contempla e obse rva a
inanidade do de st i no humano,e a quem o e spe cta
c ul o da nause ante va idade unive rsa l fa z sorrir, Joã oPe nha , asse ntando o seu ide a l fixo e luminoso na
v olup ia e no pra ze r do vinho,enlevado como um
Soufi Pe rsa,a quem as bebidas e O amor a rrancam
a o contacto immundo da te rra,pa ra O e levarem ao
s e ntime nto da rea l idade,aconse lha bondosamente a
um amigo :
Ao demonio da ambiç ãoN ão dês entrada no pei to
,
N ão sejas juiz e le i toInda que 0 peça a Naçã oS e da g uer r a a convu lsa
3 92 GONÇALVES CRESPO
A tua espada requer,Suba ao poder q uemquizer,Faz pé atraz ret inenteQue o prazer está sómenteNo bomvinho e na mulher .
N ão que iras scept r os de reis,N emos pantufos do papa ;De ixa os imperios no mappaFoge de vis eur ope is.
No mundo os grandes papeisSó trazemmorte ou desgraça,Emprega o tempo na caçaDas Venus de faci l preza
,
E nas delícias da mezaOnde espuma a rubra taça .
Goze este emser deputado,Ou ministro, ou regedor,Aquel la emse r trovador,Ou general celebrado .
Mostra-te mais avisado,
Do v inho,do amor só cura
A V ida só bri lha e duraComo a luz do py r ilampoDo prazer o estrei to campoN ão transponhas com loucura .
Os me l hore s,os ma is o r íg inaes e e ng r a çados
d 'estes improvisos,são os que infe l i zme nte não nos
é p e rmit t ido publ ica r, por causa d a crua nude z daphrase e da ide ia , visto que o seculo x ix não é o
3 94 GONÇALVES C RESPO
e scr ip tor é aque l le , que te ndo pa ixões, sabe o dicc iona r io e a g r amma t
ªca .
O r a J oã o Penha sabia O diccionario e conhe ciape rfe i tame nte a gramma tica
, e teve pa ixões — sof
freu,amou e pade ce u .
— Sob a veste jog r ale sca e
face ta dos se us primorosos sone tos sente -se e streme ce r um coraçã o ; no marmore e xp lend ído d
'
aque llas e sta tuas
, que parece que se contorcem n'umae xpre ssã o de a legria bruta l e doida
,como a Dança
do C arpe aux,e scorrem e se cr ystal isam lag rimas d e
O e stylo pe rfe i to d '
e sses ve rsos,as suas rimas
opule ntas,a sua forma impeccave l , são predicados
q ue , quando muito , fariam d e Joã o Pe nha um ve rsif icador habi l e d 'uma exe cuçã o comple ta
,um ouri
ve s da pa lavra,obst inado e pacie nte
,mas nunca O
e levariam á plana d e um poe ta,na a l ta accep ção da
pa lavra .
Não,e l le não p r e scr eveu dos ve rsos a e loquen
c ia,a a le g r ia , a pa ixã o
,O ent husiasmo
,e a me lan
col ia ; o seu enthusiasmo,porém
,é si nce ro
,a sua
e loq'
uencia,
sua a legria,a sua pa ixã o t em o cunho
d a ve rdade,e a sua me lancol ia e mascula e vi ri l .
O Vinh o e Fe l, poeme to d e qua renta mag níficossone tos
,é a t r aducç ão f ie l e dolorosa de 'um amor
l e a l e profundo,O prime iro e unico da mocidade do
poe ta,e ao mesmo tempo a e xp lend ida reve laçã o do
ma is insigne humorista dos nossos dias .
Os sone tos do Vinho e Fe l come çam quasi sem
p r e n iuma que ixa , n'
um brando murmur io amoroso,n 'uma doce expressão d e vaga triste z a , e quando Ole i tor va i se g uindo a le i tura , curioso, quasi ente r ne
O BRAS CO M PLETAS 3 95
c ido,de subi to
,bruscame nte
,ouve e sta lar uma risa
d a,e escuta uma phrase rabe le siana e uma impre ca
ç ão i ronica e sa rcastica .
Transcrevemos a l guns d '
e sse s sone tos,por dois
motivos : porque nem todos os le i tores da R ena scença
conhe cem e sse s ve rsos, a para que não j ulguemque
.e x ag g e r amos os me r ite s do poe ta . E i l—os :
A dôce paz tranqui l la e a segurança,Emque eu levava a alegre mocidade,Foramnuvens n'
umceu de tempestade,Que d
'
e l las ninguem sabe ou tem lembrança .
Pobre de quem na v ida se abalançaA amar com fé, e a lma . e lealdade !Em longo veu de triste escur idade
Vera perdida a límpida bonança .
Oh ! que nem tenha um coração ami g oQue me alente no pa
'
ramo terrestre,E me acompanhe ao funebre jaz igo !
Dei-me esse onág r o de'
v igor si lvestre ,E os ôdr es pandos oli S i lene antigo ;Ensina-me na dór : só tu és mestre !
Nunca do amor a resplendente cliammaTe fulgurou na lucida pup i l la :N o meu romance , placi t la e tranqui l la,Jamais foste mulher
,porque eras dama !
3 96 GONÇALVES CRESPO
Da Vingança pense i no tor VO drama,E nas ancias vivi de quemvaci l la,V i-te fe i ta de barro : eras d'
ar gilla .
Fragi l estatua em pedestal de lama .
E caminhei nas sombras da saudadeImmerso n
'
esta dôr, que me devoraAs rosas da perd ida mocidade
E a caminhar no escuro e sem aurora,Aos par amos chegue i da soledade .
Triste d'aquelle que nas trevas chora !
Quando escondido emteu jard imflorido,Te vi sah i r das aguas murmurantes,Postas asmãos nas pômas palpi tantes,Solto ao vento o cabel lo humedecido ;
E,sorrindo—te . o corpo enlouquecido
Recl inaste nas re lvas ondeantes,Dando-nie assimaos olhos cor uscantesUma estatua de marmore pol ido ;
N ão t ive , como a santa B ibl ia conta,
As ideias dos lúbricos juizesVendo a nua S uzanna
, que se afi r onta .
Deseje i-me nos barbaros pe i zesDos cannibaes. e t ive a ide ia tontaDo selvagemvoraz : não te hor r or ises ! .
GONÇALVES C RE S PO
Mas em logar do sangue e furia tanta ,
Derramemos n '
esta alma o licôr bel lo,Que do pampano brota e a v ida encanta .
Em todos os ve rsos de João Pe nha, que são como
que o poema da sua mocidade,pa lpi tam
,e streme
cem,gri tam
,e ccôam, ulullam comuma ve rdade in
te nsa e profunda , as dores, os desa le ntos,as cóle
r as,as risadas, e a indig nação do poe ta e do amante .
Quando a duvida o empa llide ce , quando a suspe i talh e morde o cora çã o, quando o ciume o ape rta nasroscas viscosas e se rpentinas
,o anima l bravio
, que
dormi ta em todos nós,acorda
,e sbrave ja
,e spuma
,
e as inj uriosas inve ctivas d e O the l l o,a llucinado pe lo
ciume,acodem-lh e viole ntame nte á bocca
,e j orram
lh e em ca tadupa n'uma e xag g e r açã o indig nada :
N'
esta vida fatal , ai de quempensaEncontrar na mulher pudor e brio !Embreve umdesengano ace-r ho e frio,Lhe desfará as illusões e a crença .
Mulher ! vai teu caminho ; na l icençaCeva do corpo ardente o desvario ;N emrepares no meu viver sombrio,N emte chores da minha dôr intensa .
Que umdia, quando a sord ida impur eza,
Que o viço cr osta e o rir no lab io apouca,Te consumir a explendida belleza ;
O BRAS CO M PLETAS
E pedires comvoz sumida e r oucaA triste esmo la da crue l pobreza
,
Então me choraras. cabeça louca l
N ão me provoquesmais. Esta branduraEncobre d '
umjaguar a furia horrendaVai lêr do Mouro a pavorosa lenda ,O mesto quadro da vingança escura .
Tu és como essasmiseras impuraQue o vicio expõe no lupanar a venda !N emmais te quero vêr na triste senda ,Que te leva aos abysmos da loucura .
Perdi-te . Mas a flôr que no occidenteViumoribundo o sol, ergue a corol laAos orvalhos da aurora resurgente
S igo os prece i tos da moderna escolaN ão ha dôr que resista a umvinho ardente,
N em ao faci l amor d i
uma hespanhola .
Hontemde noute , j a depois que a luaNo occidente occultar a a face mesta,No teu jardim, por ignorada fresta,N os braços te vi d 'outro, semi-nua !
Eras pois d'essasmiseras da r ua,
Eras mais vil , mulher, mais deshonesta !E não morri d'
aquella dôr funesta .
Tumal di z ias : meu amor,sou
”
tua !
400 GONÇALVES cnnsp o
I r ter ao lodo,andando nas estrel las !
0h ! minhas pobres illusões venustas,Que me resta de vós
, que é fe i to d'
e l las?
Mas,para que chorar ? gentis, robustas,
S ão d'uma estatua
,as fôrmas que reve las
D ize : es tu mesma que o negocio ajustas?
A commoçã o e profunda , a cóle ra é se lvagem e
brutal , mas que i ntensidade d e vida , e que e xpress iva ve r dade não ha ah i !
Lembram-se ? O the l l o inj uriou De sdemona, cus
piu-lh e no rosto as pa lavras ma is crue is e inf amant e s
,e condemnou—a ; a branca fi l ha dos dog es mor
r e r á às mã os do e sposo ul tra jado e j ustice i ro : d erepente , porém,
o Africano e nte rne ce -se,prante ia a
formosa que va i morre r,e as suas pa lavras
,a inda
h a pouco t ão impe tuosas e ve hemente s, suspiram,
como um suave a rrulho,che io d e ine fave l me lanco
l ia : a o flô r se lvagem tão ador ave lmente be l la — e
cuj o pe rfume tão suave embriaga dolorosamente os
sentidos— quiz e r a que nunca t ive sse s nascido !No poe ta do Vinh o e F e l á inj uria
,á impre cação
,
a viol encia fe ri na e tumul tuosa succede o e smore cimento a triste za
,e uma e xtranha e me lancol ica
piedade '
S ob o influxo da negra phantasia,E do ciume fatal , que me atormenta,Furioso insul to compaixão violentaA Musa, que nas sombrasme alumia .
402 GONÇALVES CRESPO
Eu já. presentira a sorteD
'
uma vida sembonança,E lia, che io de morte ,O lasciate ogni S perança
V ira nas dobras da stringeN a vestal da etherea chammaA nodoa, que o vicio t inge,Da côr impura da lama !
E n'
esse penar immensoInda veria untante ,Como o naufrago suspensoD
'uma palha fluctuante !
Agora nemvejo os traçosDo temporal desabrido,Somente me fere a espaçosO fleb il som d
'
umgemido .
Foi como a visão das plagasQue o mar desenha na espumaA lucta de imagens vagas,Que se dissolvemna bruma .
N as La g r imas d e cr ocod il lo o poe ta di z che io»
d e acre a zedume
N ão chores,Maria ! o pranto
Que turba teus olhos l i ndos,Val roubar a terra o encantoDa visão dos ceus infindos.
O BRAS CO M PLETAS #03
Poupa—me O resto da far ç aDe teus ting idos amoresN em tanto vale um comparsaDO cô r o dos trovadores.
N '
essa f ronte pensativaN '
essa pagina tão bel la ,Tens impressa a nodoa v iva
,
Que tens inst inctos revela .
És da raça dos abutresE vendo a r óla que parte,Em t eu animo só nutresO desejo de vingar-t e .
E rema ta sarcasticame nte :
Sol ta essas tranças ao vento,
N empor tão pouco entristeças.
Vê que passa umreg imento ,O pachã de cemcabeças !
Pena é que não possamos reproduzir todo essepoema e le giaco
,em que a DOr e O C iume se lame n
tam com t ão digna e sobrance ira a l ti ve z .
Um d ia a inspiradora dos ve rsos de Joã o Pe nhaparti u
,O poe ta v iu-a sahir d e casa
,colloca r com p e
tulancia O pé leve e pe queno no e stribo da ca r r ua
g em,sa l ta r pa ra de ntro
,e se ntar—se ao lado da mã e
e das i rmãs,risonha
,fe l i z
, e ouviu depois o rodar do trem.
Passados dias, a Folh a publ icava o Ul timo a d eus,
404 GONÇALVES CRESPO
que é a de rrad e ira e sentida est r oph e do poemaamoroso da vida do poe ta
N ão venho,senhora minha !
AO somd'
umth r eno choroso,Lembrar—lhe a historia mesquinhaD
'
umromance desdi toso .
Foi-se O tempo das baladas,
E os Homens dos nossos d iasN ão sabemdas alvoradas,N emda voz das cotovias;
O Mouro da te z adusta,Quebrando O punhal sangrento,N emDesdemonas assusta,N emsol ta canções ao vento .
Que O deus das faces mimosas,A loria cr eança imberbe ,Hoje dur a como as rosasDa poesia de Malherbe .
Eu quiz umsonho mais largo,E no banquete da vidaDeu-me a sorte um fel amargoN'uma taca corromp ida .
E quando affl icto e convulsoA quiz arr ojar ao longeSenti-me escravo, e no pulsoT inha os ci l icios d '
ummonge .
406 GON ÇALVES CRESPO
Qual a flaccida lampreiaS e enrosca , aos sal tos, na peçaTal nas espaduas da moça .
A trança genti l se cule ia
e a inda a poe sia Á be ir a -ma r, que principia por e sta
quadra, que pa rece orva lhada pe las lag rimas da Me
lancolia
Ai ! que tristeza quando O sol desmaiaAO longe , ao longe, nas ce r uleas vagas,E a noi te desce amer encor ia praia .
E O lumbo chor a nas long ínquas p lagas !
Emlim, se ria um nunca finda r, tantas e tão exce lle ntes são as poesias que O poe ta escre ve u e seme ou ,com a prod ig a l idade d e um Buckingham
,por todos
os p e r iod icos l it te r a r ios d e C oimbra .
AO que não re sist imos é a r ep r oducção tota l d aBa la da , formosa composição, que t em a vive za
,O
primor e a graça d e uma risonha bacchana l,pa l pi
tando d e vida,no ba ixo—re levo d e umsarcofago gre go
Essa mulher, que emsonhos me tortura,
N as fe iras de S tambul fôra sempr eço l
Que face bel la na subt il moldura !Que lab i os sensuaes. que rir travesso º
Que mão se aponta que emSevi lha rufeMais doce e l inda 0 sonoroso adufe
O BRAS C OMPLETAS
A chamma ardente de seus olhos brandos,
Fontes de mel ou de peçonha amara,Á clausura dos monges venerandosMai s que o demonio tentações levaraContra os fil tros subt is d 'uns Olhos pre tosN em r esiste O pavez dos amuletos.
Mas no pé,n'
esse mimo sem qui late,Causa perenne do feminio arrufo
,
É que a gentil morena O luxo abateDas gloriasmais sublimes do pantufo .
Esse que O nega semmedir a affronta“Que vinho encerra na cabeça tonta ?
Umsapate iro i l lustre e cavalheiro,Ao tomar—lhe O contorno da bot inha .
É voz que disse d'
a lma e verdade iroª“S e eu fôr um dia r ei
,salve rainha !
E que vendo perdida a ingenua phraseA propr ia fronte decepou da base .
Pe flexivel,sem tumido capricho,
Excedera O da célere Atalanta !N a China ummandarimdera O rab ichoPor uma dama de tão breve p lanta .
Que se lvagemde rab ido colminhoS e detivera no chap imcasqui lho ?
C ontrario ao da mulher que a serpe esmagaNo g lobo azul a front e de esmeralda,Ergue—se O amor em furiosa vagaMal O divisa nos set ins da fralda .
407
408 GONÇALVES CR ESPO
Mas interrompa—se a epope ia lesta,Que já vaci l la O fogar eu de Vesta .
Depois d e formado,Joã o Penha abandonou o
a ta l ho caprichoso e pittoresco da poesia , pe la e stradaseve ra da j urisprude ncia , ap e iou—se do Pe gaso pa rase ame z endar pachorre ntame nte no dorso da manh osa r abulice .
Procede ram como e l le dois d os poe tas ma is ihS igne s do Porto
,Soa res de Passos e Ale xandre Brag a ;
ambos e ste s poe tas, porém,antes d e re ne ga remda
poesia,a quem de viam tantos mimos
, col l ig ir am emvolume os ve rsos d a sua mocidade
,e lançaram as
suas poesias ao publ ico , ta lve z com a mesma sau
dade , com que O r e i d e Thule a t irou a sua taça aO
ma r .
Porque não fa z Joã o Penha O mesmo ?
Re unindo emvolume as innume r as poesias, que
andam dispe rsas pe las folhas p e r iod icas, o poe ta a l
canç ar ia e ntre os mode rnos o emine nte l oga r a quet em inconte stave l dire i to pe la sua pode rosa e origina l individua l idade
,e não O l ha ria comme lancol ico
despe ito pa ra os-
que partiram depois d'
e l le e já vãot ão proximos da bahia
,nos Jogos O lymp icos da Arte
e da Poesia .
Um l ivro só, dirã o , é pequena e modesta baga
g em pa ra O renome,pa ra a popula ridade,e para a
g loria ; de vemos, porém,lembra r-nos que dos cin
coenta volumes do abbade Prevost sóme nte umsobrenadou e chegou àposte ridade _ Manon L esca ut
,
uma pe rola e que se Boccacio é h oj e conhe cido,
444 GONÇALVES CR ESPO
JUL IO C ESAR MACHADO
Tre z e lementos compõem e sta ph ysionomia : int e l lig encia , a le gria e bondade .
O na riz tem a a re sta um poucochinho la rga ; asna rinas são abe rta s
,f r emente s
,imp r e ssionave is ; a ca
b e l le ir a é me ridiona l,che ia d e re flexos
,fluctuante
como as pl umas d e um capace te antigo .
Os olhos, posto que tenhamas pa lpebras um tantope sadas são grande s
,mag nificos, pe rscrutadores .
O rosto che io como O d e Janin ; O big ode ca ido ,arque ado, ne g ro e peque no como O d e Ba lsac
,de ixa .
que se e ntreve jam uns labios polpudos como os d eum Ephe bo.
De e sta tura reg ular, e pa re ce ndo debi l porqueé lympha tico, Jul io C esa r Machad o sustenta comtudo.
aos hombros com uma e le gancia flore ntina as ba tal has t r ove jadas da R evoluçã o .
O se u e st ylo tema frescura d as e clog as sy r acusa—o
nas ; (3 adorave l como uma pa g i na d e amor e ma l i-cioso como um ra i o do sol que brincou na a z a do .
prime i ro be ij o d e Eva .
DescuidO S O como as cr eanças, fe cundo como OSrios a frica nos, bondoso como os pa t r ia r chas da He llade .
O B RAS CO M PLETAS 41 5
THO M AZ DE C ARVALHO
S e O conhe cem, digam-me se já e ncontraramconv e r sador ma is pre stigioso
,inte llig encia tãoma lleave l
e coração de ma is fino oi ro .
C at hed r a t ico, homem do mundo,academico , e l le
é de ce rto uma das ma is d istinctas individua l idade sda L isboa das Le tras
,da Arte e da Sciencia .
O que ma is impre ssi ona n'
aque l le rosto sã o O S
O l hos e a b ôca .
Aque lles, que S ão d e uma impag ave l mal ícia ,
obse rvam ironicame nte,por de tra z do límpido crysta l
dos oculos,a Tol ice que passa cobe rta d e lante j oulas
e app laud ida pe la ma tula .
A boca,essa or a S e diste nde g raciosame nte d e i
xando vê r a dõce brancur a d e uns de nte s unidos e
scinti l lantes d e de l icado g our me t, or a se franze deuma mane i ra singular e picante e é e ntão que o sorTiso se communica por um i ne xpl icave l magne tismoquem que r que te nha a pre ciosa ventura d e O e s
cuta r já, no C hiado, já em um e ntre-acto da camara ,j á em S . C arlos.
AS faces sãomag ras, sorvidas pe las auste ras v i
g i l ias do e studo e desma iadas pe l os aspe r os combat es da vida .
41 6 G O N CALv-E S CRESPO
O nariz deprime—se na nascença,a rque ia-se no
me i o,e de scae rapidame nte na e xtremidade
,onde se
accusa uma l ige i r a fe nda tomando a intrepida fó rmado bico dos condore s.
A suissa,a sua grand e va idade
,de sce em flocos
de ne ve tufada , abundante , macia e l ong a , indo morr e r em ondulaçõe s caprichosas nas lape llas da S O
b r ecasaca .
O que ixo redondo e sol ido ; asmaçã s do rosto sãliente s como as de Gambe tta ; a te sta e spaçosa .
Visto d e fre nte,o rost o d '
e ste amave l professortemuns long e s d
'
aque lle anima l pequenino e fur t ivo,que re prese nta a f inura e a g r aça emmuitas
,das d e
l iciosas fabulas d e La fonta ine .
C hamam-n'o sce ptico, OS que d e le ve O conhe cem;não se rá todavia d if ficil d e e ncontrar um HoracioB lanchon
, que O te nha visto na sombria nave sol itar ia d e a lg uma e g re ja assistindo amissa com o re l i
g ioso re spe i to e devota uncç ão do famoso Desp le in.
4 1 8 GO NÇALVES CRESPO
bustas ; O que ixo sa l ie nte come çando a dupl ica r-se ;as mã os formosas como as de Aspasia .
E todavia este traba lhador, pa ra quem é rigorosopre ce i to O nulla d i es sine l inea , e ste incansave l j orna lista a rdente e viva z
, que tanta ve z tem fe i to ca i rpor te rra a ma is d e um bata l hador a famado
,e a quem
nós conce bíamos mag ro e ag i l como Be nve nuto C e ll ini come ça
,ó myst e r iosa Ph ysiolog ia ! a toma r a Ob e
sidade do ve ntripote nte Vite ll io e e ntra-nos e ntã o noe spír ito a ide ia d e que os l ivros d e Paulo C ourie rdevem te r para . Te ixe ira d e Vasconce l l os O me smop r e st íg io e me re ce r-lh e O me smo a ff e cto que a Ph y
siólog ia do g osto d e Bri l le t Savarin,e que para e l le
os artigos ene r g icos e vig orosos d e G irardin não S O
b r e leva r ão em me r itos e em sabor a umPr a to d ea r r o z d ôce .
O BRAS CO M PLETAS 41 9
G UE RRA JUNQU E I RO
Nasce u pe rto de Hespanha ; d'
ahi vemque a sua
p h ysionomia t em o seu tanto d e h espanhola .
N O S se us O l hos de um pa rdo vivo e bri lhante cond ensa r am-se todos os a rdores d '
aque l le sol que mor
de com be i j os d e fogo as mulhe re s d a Anda luzia .
A fronte encastoad a , tendo como que re flexos,
fa z -nos lembra r a l isa transpa rencia pol ida dos e s
p e lhos d e S y r acusa .
É d '
a l i que partemos ra ios que incende iamas t e
me r osas a rmadas d a Ig norancia , do Fana tismo e daHypocrisie .
O cabe l l o curto , corredio , ne gro ; O na riz umpoucopronunciado, l ige irame nte aqui lino z O bigode aspe roe pe queno como O d e Scaramouche de sguarne ce O S
cantos d e uma bocca francame nte rasgada e ondebastas ve zes de sabrocha a flô r doe ntia e sa tanica dosorriso de Vol ta ire .
O que ixo ousado e ene rgico ; as mã os compridas,osse as e fo r tes .
Junque iro é ba ixo como Horacio,como Att ila e
como C aste l lar ; h a t odavia no seu pequeno corpo esb e lto a l i nha ondeante e e lastica d e um cap ita
fn san
guine o e re soluto, que no me i o d
'
e sta horrorosa de
420 GONÇALVES C RESPO
composição que a travessamos,parece desafiar o céo
e a te rra e g ri ta r como O va lente do Romance i ro h espanb ol
«A todos los desa fioPues a nad ie t ie-ng o miedo
C omo é formoso e ap r º p r iado O app e llido d'
e stej oven poe ta !
Gue rra !
422 . GONÇALVES CRESPO
Ha me zes vimO l—O d e novo em Braga e e is comoe l le se nos apre se nta deante dos O l hos :
O rosto é vivo,moreno
,gracioso , a inda que fla
g e llado pe la va r íola ; a b ôcca é benevole nte e risonha
,e todavia quando e l le fa l la , a ffig ura—se—nos que
n'aque lles labios finos e levemente desbotados se
nos ent r emost r a uma vaga expre ssão do dolorosocançaço e de incoe rcíve l me lancol ia .
Os cabe l l os d a côr d e a z ev ich e,d e onde , como d e
uma cid ade lla“inex pug nave l , a neve dos annos r e
foge,vão—se empobre ce ndo,não che gando comtudo
a desnudarem aque l la cabe ça febri l e pode rosa d epoe ta e d e creador .
O bigode ne gro e t ranspa re nte , a seme lhança dod e Soares de Passos, d escae -lh e ne g l i ge nteme nte a r
que ado sobre O labio infe rior .
AS mã os d '
este prodig ioso a rtista são de l gadas,mimosas e ar istocr at icas .
E,fo i com e stas mã os femininas que e l le , pa r
d e tantas cr e aç õ es ador ave is, fundiu emuma hora deimmor r edour a inspiraçã o a fig ura obesa , ve rme lha ,quadrangular e grote sca do C h at im d a Ame rica ,d e ante da qua l as g e rações por v i r sol tarã o uma r i
sada colossa l e . e norme como a dos Deuse s a vistad o S a ty r o hediondo, h i rsuto e de sl umbrado no me iodos esplendore s do O lympo .
O B RAS CO M PLETAS
S OUSA MART IN S
Uma cabe ça pode rosa e grande , que ma ior a indapare ce
,por se r re vestida d e uma emmar anhada ,
c re spa e convu lsionada cab e lladur a . A testa vasta e
e scantoada ; as sobrance l has,pouco abundantes e
sob as pa lpebras somnolentas d e um contemplador,
d iante d e quem passa índ e scr ip t ive l e sempre va
riada C ome dia da V ida,l u zem che ios d e chispas
,
bondosos,vibrantes d e ma l ícia e d e cur iosidade
,os
O lhos pardos d '
esse pe rtina z e xplorador dos segre dosd a Scie ncia .
O nari z t em um de senho firme e audacioso ; ab ôca
, que a na ture za lh e rasgou ampla como convema os oradore s
,nã o se levanta nos cantos
,be ijada ou
a ntes mordida pe la inquie tante I r onia,mas d e scae
e ntristecida e como que d esí llud ida,contrastando
assim com a pe tu lante bravura d '
aque ll es O l hos d iab olicos e a cachoa r em lavas .
O bigode e pouco abundante,d e sorte que a l inha
dos se us labios grossos e l ig e i r amente de sbotadosse nos franque ia a miudo de scobrindo—nos uns de nte sv ig orosa e sol idamente plantados e O que ixo redondoind ício d e bondade , appa r e ce -nos l iso e pol ido comoaga tha , ponto d e cuidarmos que nunca a li v içou
a d ura e brava aspe re za da barba .
424 GONÇALVES CR ESPO
Medico,não se e nclausura nos r est r ictos e espe
ciae s domínios da sciencia nem olha com de sd em,
como tantos ou tros O fazem,para os que se namora
r am d e outros e studos e de ram dive rso rumo ao seu
e sp í r ito, e quem vê e ste ca th ed r a t ico,moço a inda
,
mas t ão cír cumsp ecto e grave,cuida rá que e l le se
compraza tão sóme nte nos pesados e sérios p r ob lemas da sua compl icada profissã o ; quandomuito pe locontra rio sabemos que e l le admira e se nte grandesj ub ilos diante d e um quadro
,d e um poema
,de uma
e sta tua e d e um,romance
,quando emqua lque r d '
es
sas p r oducç õ es se espe l he O cunh o inena r r ave l dasuprema
,da e te rna Arte .
É que e ste e loque nte p r ofe ssor pe nsa,como
'
O
cre ador do Fausto, que a admira ção em ve z d e se r
prova d e fraque za e ante s um claro sig na l d e força.e d e pujança .
Tempe rame nto d e e le içã o,gosta de combate r pe la
ve rdade , e assim,nas associaçõesmedicas e nas aca
demias de que émembro qua l ificado , quando fa l la oud iscute é sempre para d ar com a sua voz auctor i
sada,enthusiastica
,uma l uz nova
,um aspe cto com
p le tamente origina l às questões por ma is deba tidase e studadas que tenham sido .
N ão bebendo vinho, uma só cousa ha que O emb r iag a , a conve rsa ; e nada ma is fa iscante e vivo do
que a pa lavra facil , impe tuosa , colorida e a t t r ah ente
d '
este moço ca th ed r a tíco de quem se pôde a f fi rma rO que , d e um ce le bre e scr ip tor , di z ia n
'outro tempoBa l zac
,o antigo Ba l zac — Va le muito mais conve rsa r
com Sca l ige ro do que assistir ao triumpho pomposod
'
um consul romano .
426 IND ICE
DestinosArrependidaNeraA lguem.
N a roçaUma andaluz a .
B ianco vesti ta .
Noi te de inve r no.
DesdichadaÁ be i ra do MondegoCortejo .
Mãe .
A tua cartaI l ritrat toAllucinação
Canção .
Never—moreM imiS uasmãos.
O meu cach imbo .
AO me io diaA confessadaTransfiguraçãoES TUDO C R I TI OO
Y O C TURN O S
A minha mulher .
C onfi denza .
O velhinhoAnimal bravioAd agros
428 IND ICE
O minuête .
O cove i roAdeusC AMO N EAN A
A egreja das chagasA le i tura dos LusíadasAnuos depois .
Esplivnge
A ce ia de T ibe rioTR I O DE POE TAS
João de LemosJoão de DeusJoão Penha
C h'
ymer as
Odor d i feminaEmcaminho da guilhotinaA viuva .
F lôr do pantanoA resposta do inquisidorFervet amorN a al . !e ia
Estu-lantinaAs ond inasNo jogo das cannasNunca eu t e lesse , balla'la
A negraMater dolorosaAs primeiras lagrimas de É l-ReyCura Santa Cruz
A venda dos boisAO rabequista Eugenio Deg r emont