Mateus Campos Gonçalves da Silva “Salve, simpatia” fé ...

105
Mateus Campos Gonçalves da Silva “Salve, simpatia” fé, misticismo e religiosidade na lira de Jorge Ben Jor Dissertação de mestrado Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade do Departamento de Letras do Centro de Tecnologia e Ciências Humanas da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Júlio Cesar Valladão Diniz Rio de Janeiro Abril de 2020

Transcript of Mateus Campos Gonçalves da Silva “Salve, simpatia” fé ...

1

Mateus Campos Gonçalves da Silva

“Salve, simpatia”

fé, misticismo e religiosidade na lira de Jorge Ben Jor

Dissertação de mestrado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade do Departamento de Letras do Centro de Tecnologia e Ciências Humanas da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Letras.

Orientador: Prof. Júlio Cesar Valladão Diniz

Rio de Janeiro Abril de 2020

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

2

Mateus Campos Gonçalves da Silva

“Salve, simpatia”

fé, misticismo e religiosidade na lira de Jorge Ben Jor

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós- Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo.

Prof. Júlio Cesar Valladão Diniz

Orientador Departamento de Letras – PUC-Rio

Profa. Maria Clara Lucchetti Bingemer PUC-Rio

Prof. Paulo da Costa e Silva Franco de Oliveira

UFRJ

Rio de Janeiro, 12 de junho de 2020

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

3

Silva, Mateus Campos Gonçalves da

Salve, simpatia : fé, misticismo e religiosidade na lira de Jorge Ben Jor / Mateus Campos Gonçalves da Silva ; orientador: Júlio Cesar Valladão Diniz. – 2020.

105 f. ; 30 cm

Dissertação (mestrado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Letras, 2020.

Inclui bibliografia

1. Letras – Teses. 2. Música Popular Brasileira. 3. Jorge Ben Jor. 4. Fé. 5. Sincretismo. 6. Catolicismo popular. I. Diniz, Júlio Cesar Valladão. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Letras. III. Título.

CDD: 800

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho

sem autorização da universidade, da autora e do orientador.

Mateus Campos Gonçalves da Silva

Graduou-se em Jornalismo na PUC-Rio em 2014. Atua desde então como repórter

cultural, com especialidade em música e literatura. Como pesquisador da área de

Letras, concentra-se no estudo da canção popular e de suas ramificações na

cultura brasileira.

Ficha Catalográfica

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

4

Para Guida e Dedé (in memoriam),

que me incentivaram a descobrir

novos mundos…

… e para Ananda Porto, felicidade

suprema que me trouxe são e salvo

até aqui.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

5

Agradecimentos

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq),

pela bolsa concedida durante um ano de trabalho. Agradeço sobretudo ao corpo de

servidores da entidade, que entende e valoriza a importância da pesquisa no

Brasil. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de

Financiamento 001

A Júlio Diniz, meu orientador, pela paciência e generosidade com que conduziu

este processo.

A todos os demais professores e funcionários do programa de Pós-Graduação em

Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio. Em especial, a Frederico

Coelho e Miguel Jost, que também contribuíram de maneira fundamental para a

pesquisa.

A Diuner Mello, tio querido, cuja dedicação como pesquisador me serviu de

exemplo e inspiração.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

6

Resumo

Silva, Mateus Campos Gonçalves da.“Salve Simpatia”: fé e sincretismo

na lira de Jorge Ben Jor. Rio de Janeiro, 2020. 109p. Dissertação de

Mestrado - Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do

Rio de Janeiro.

Esta dissertação de mestrado se insere no campo de reflexão sobre música

popular brasileira desenvolvido dentro dos estudos de literatura e examina a

produção poética do cantor e guitarrista carioca Jorge Ben Jor. A pesquisa parte

hipóteses teóricas contidas em textos de autores como Paulo da Costa e Silva e

Luiz Tatit para, com o auxílio de indícios fornecidos pelo próprio artista em

entrevistas, iluminar caminhos menos percorridos por leitores críticos do seu

trabalho. Por isso, encara com atenção a influência da religiosidade e, sobretudo,

da fé na sua escrita. Ao longo de uma prolífica carreira, que já dura mais de cinco

décadas, compreende 27 álbuns de estúdio, e registra incontáveis canções de

sucesso no Brasil e no exterior, o autor explorou por diversas vezes temáticas

como o catolicismo popular, religiões de matriz africana e até os saberes

alquímicos. Ao cantar a história e os feitos de santos e orixás como São Jorge e

Ogum, figuras pelas quais nutre uma desmedida admiração, o artista reverbera

princípios e convicções que estruturam e marcam toda a sua obra e – ao mesmo

tempo – sintetiza, de maneira bastante particular, elementos do sincretismo

religioso que existe no país.

Palavras-chave

Música Popular Brasileira; Jorge Ben Jor; Fé; Sincretismo; Catolicismo

popular; Umbanda; Alquimia.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

7

Abstract

Silva, Mateus Campos Gonçalves da.“Salve Simpatia”: fé e sincretismo

na lira de Jorge Ben Jor. Rio de Janeiro, 2020. 109p. Dissertação de

Mestrado - Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do

Rio de Janeiro.

This study is affiliated to the Brazilian popular music research field

developed within the Literature community and examines the poetic production of

the singer and guitarist from Rio de Janeiro Jorge Ben Jor. The research starts

with theoretical hypotheses contained in texts by authors such as Paulo da Costa e

Silva and Luiz Tatit and tries to illuminate paths less traveled by critical readers of

Ben Jor's work. The text focus is the influence of religiosity and faith in his

writing. Throughout a prolific career, which has lasted more than five decades and

comprises 27 studio albums, the author has explored several themes such as

popular Catholicism, religions of African origin and even the alchemical

knowledge. When singing the history and the deeds of saints and orixás such as

São Jorge and Ogum, for whom he nurtures an immense admiration, the artist

reverberates principles and convictions that structure and mark all his work and

synthesizes, in a very particular way, elements of religious syncretism that exist in

his home country.

Keywords

Brazilian music; Jorge Ben Jor; Faith; Syncretism; Popular catholicism;

Umbanda; Alchemy.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

8

Sumário

1. Introdução 11

2.

As roupas e as armas de Jorges

30

3.

‘Católico apostólico carioca’

48

4.

Ponta de lança africano

65

5.

A fórmula alquímica da canção imperecível

78

6.

Considerações finais: O dia em que o Sol declarou seu amor

pela Terra

95

7. Referências bibliográficas 103

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

9

Lista de Figuras

Figura 1 - Silvia e Augusto Menezes, pais de Jorge Ben Jor, 1970 12

Figura 2 -

São Jorge e o dragão, de Rafael Sanzio. Óleo sobre madeira, circa 1505

35

Figura 3 -

Capa do disco 23, lançado por Jorge Ben Jor em 1993

39

Figura 4 -

Ben Jor apresenta “Charles anjo 45” no IV Festival Internacional da Canção, 1969

59

Figura 5 -

Ben Jor desfila no Salgueiro com o enredo “Festa para um rei negro”, 1971

71

Figura 6 -

Anjos instrumentistas na fachada de Nicolas Flamel em Paris

79

Figura 7 -

Anjos instrumentistas na fachada de Nicolas Flamel em Paris

79

Figura 8 -

Ben Jor e o Trio Mocotó em 1971

97

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

10

“Parece banal escrita

Mas é viceral cantada

A palavra cantada

Não é a palavra falada

Nem a palavra escrita

A altura a intensidade a duração a

posição

Da palavra no espaço musical

A voz e o mood mudam tudo

A palavra-canto

É outra coisa”

Augusto de Campos

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

11

1

Introdução

Em suma, a história do pensamento, dos

conhecimentos, da filosofia, da literatura,

parece multiplicar as rupturas e buscar

todas as perturbações da continuidade,

enquanto a história propriamente dita, a

história pura e simplesmente, parece

apagar, em benefício das estruturas fixas,

a irrupção dos acontecimentos.

(FOUCAULT, 2008, p. 6)

Esta é uma história que, como tantas outras, começa com a irrupção de um

acontecimento: João Gilberto. O baiano de Juazeiro, dono de um violão

sincopado, cuja caixa de ressonância parecia conter um conjunto completo de

samba, e de uma voz contida, que suavemente desenhava melodias de amor e dor,

sacudiu as estruturas um pouco antiquadas do edifício da Música Popular

Brasileira quando, em agosto de 1958, lançou “Chega de Saudade” e se mudou

para o primeiro andar. Dependendo do ângulo em que era observado pela janela

da crítica especializada, João Gilberto podia parecer tanto o herdeiro de uma

antiga tradição brasileira, que remetia a Caymmi, quanto um inovador singular,

elemento novo que não se parecia em nada com aquilo que fazia sucesso.

Mais do que o ponto de partida para aquilo que se convencionou chamar

de bossa-nova, a aparição de João no cenário artístico brasileiro foi responsável

por seduzir dezenas de jovens músicos que, através das ondas do rádio, foram

impactados pelos aspectos modernos do seu estilo. Anos mais tarde, ainda sob

efeito deste primeiro contato com o som de João, sopa primordial que ainda

alimenta a força criativa de incontáveis cantores e violonistas mundo afora, estes

nomes floresceram no cenário musical do país, contribuindo com as suas próprias

interpretações do estilo do mestre. É o caso de Jorge Ben Jor, o objeto deste

trabalho.

De Beth Carvalho a Baby do Brasil, de Caetano Veloso a Roberto Carlos,

diferentes figuras que surgiram a partir dos anos 1960 admitiram o peso do

violonista baiano durante a sua formação. Em algum lugar entre o Rio Comprido e

Copacabana, aos 16 anos, Jorge Duílio Lima Meneses ouviu a letra de Tom Jobim

e Vinicius de Moraes embalada pelo violão de João Gilberto e teve certeza de que

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

12

precisava fazer parte daquele universo. Conforme entrevista concedida ao Roda

Viva, da TV Cultura, em 1995, Jorge Ben Jor revelou a sua mais profunda

admiração pelo homem que moldou a bossa-nova de acordo com sua imagem e

semelhança:

Eu comecei, posso dizer, eu ouvi muita bossa-nova, mas uma

pessoa só: João Gilberto. João Gilberto foi meu ídolo. Ainda é,

pela maneira de tocar, tão coloquial, da divisão de cantar e tocar

o violão, ele já era bossa-nova. Nunca ninguém tocou igual a

ele, ninguém. João Gilberto, ele é a bossa-nova. Ele é

totalmente diferente de todos da bossa-nova. A bossa-nova veio

depois, naquele "oba-oba" em cima, mas bossa nova é João

Gilberto. E é o estilo que eu sempre gostei, foi o do João

Gilberto (BEN JOR, 1995)

Assim como a chegada de João balançou as estruturas fixas da MPB cinco

anos antes, a ascensão de Ben Jor, também ele dono de um jeito muito próprio de

atacar as cordas de um violão, com Samba Esquema Novo (1963), representa um

dos mais significativos pontos de inflexão no curso da canção brasileira até então.

Assim como o “ídolo”, que apesar de ter ajudado a dar forma a bossa-nova

sempre se considerou antes de tudo um sambista, o pupilo jamais fez questão de

se encaixar em um movimento específico, transitando livremente por onde quer

que fosse bem recebido. Livre, absorveu o que cada um oferecia de melhor e

integrou de maneira muito natural ao seu estilo pessoal.

Em Noites tropicais (MOTTA, 2000, p. 97), o jornalista e produtor

musical Nelson Motta conta que, no fim dos anos 1960, os artistas brasileiros

estavam divididos entre a “música jovem” e “a música brasileira”. Cada um

desses segmentos tinha um programa na TV Record para chamar de seu: os

“jovens” se aglutinavam em torno do “Jovem Guarda”, capitaneado pelo “iê-iê-iê”

de Roberto, Erasmo Carlos e Wanderléa. Os “brasileiros”, por sua vez, tinham em

“O Fino da Bossa”, de Elis Regina e Jair Rodrigues, o seu ponto de referência.

A música de Ben Jor não cabia nessa dicotomia e não se adequava às

pretensões da maioria de seus pares. Jorge era, ao mesmo, tempo jovem e

brasileiro. Por conta disso, fez questão de aceitar os convites de ambos os lados

para se apresentar nesses programas. Motta explica que a performance do cantor

nos dois extremos da música nacional da época desagradou a turma do “Fino da

Bossa”, que exigiu que ele aderisse apenas a um dos programas.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

13

Foi o primeiro tiro de uma guerra musical e mercadológica (e

até mesmo política, para alguns mais inflamados) entre “Jovem

guarda” e “O fino” (...) Além de ter se apresentado no programa

do “inimigo”, Jorge agora tocava uma guitarra elétrica — uma

afrontosa provocação para as brigadas da “autêntica” música

brasileira, que seria acústica pela própria natureza, simbolizada

pelo violão (...) (MOTTA, 2000, p. 97).

A celeuma com “O Fino” gerou uma singular declaração de

independência, registrada no disco O Bidu (Silêncio no Brooklin), de 1967, em

que ele é acompanhado pelo grupo de rock The Fevers. Jorge apresentou a

“Jovem Samba”, cujo título une a juventude por um lado e as raízes da música

nacional por outro. “Eu sou da jovem samba/ A minha linha é de bamba/ O meu

caso é viver bem/ Com todo mundo e com você também”, cantou. Para o

historiador Renato Santoro Rezende (2012, p. 33), na canção “pode-se ver como o

compositor não apenas afirma a sua maneira particular de fazer música —

misturando samba com o rock da Jovem Guarda — como também demonstra a

sua intenção de poder fazer parte e ser aceito por esses dois universos”. Ele afirma

também que a canção soa como uma resposta ao preconceito que o compositor

sofreu na época. Em Roberto Carlos em detalhes (ARAÚJO, 2006, p. 230), o

jornalista Paulo Cesar de Araújo registra a posição de Ben Jor quanto à polêmica:

“Sofro gelo, piadinhas, indiretas e críticas dos subversivos do samba, a turma do

samba social. Não tenho nada contra eles, mas deixem que eu cante minhas

composições para o público que eu quiser, junto com os cantores que quiser e

acompanhado pelo instrumento que me for mais conveniente”.

Ben Jor foi capaz de manter o olho fixo em seu tempo e perceber que as

fronteiras que dividiam a MPB e os ritmos estrangeiros eram finas e frágeis. Seu

jeito percussivo (e autodidata) de tocar violão já mostrava que ele não tinha

respeito pelas regras formais que faziam a cabeça de alguns. Era evidente que,

para ele, a guitarra elétrica era um mero instrumento a serviço de uma

inventividade genuinamente brasileira. Na solução encontrada pelo “menino de

mentalidade mediana” para a querela entre o nacional e o estrangeiro,

manifestaram-se claramente no espírito criativo de Ben Jor elementos

estruturantes de toda sua concepção artística: a capacidade de se relacionar de

maneira sincrética com ideias aparentemente opostas e a sua jornada em busca de

uma síntese perfeita entre elementos aparentemente tão distintos quanto o chumbo

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

14

e o ouro. Era seu modo de ser no Mundo. Atitude que um coração modernista

poderia chamar de antropofágica, mas que na verdade era sincrética.

Figura 1 – Silvia e Augusto Menezes, pais de Jorge Ben Jor, 1970

Fonte: Agência O Globo

Filho de Augusto Meneses, estivador durante o ano e pandeirista do bloco

Cometas do Bispo nos carnavais, e da dona de casa de origem etíope Silvia Saint

Ben Lima, Ben Jor nasceu em 22 de março de 1942, embora – nas últimas

décadas – tenha passado a declarar ter nascido três anos mais tarde. Seu coração

esteve próximo da música desde o princípio. Aos 13 anos, já tocava pandeiro,

surdo e tamborim no bloco fundado pelo pai. Aos 15, cantava no coro da igreja do

Seminário São José. Aos 18 anos, quando servia o Exército, ganhou da mãe um

violão para lhe fazer companhia. Desenvolveu seu jeito percussivo de tocar as

cordas do violão a partir deste manual, que veio junto com o instrumento. Anos

mais tarde, a matriarca seria homenageada pelo filho com o instrumento que o

presenteara anos antes com “Silvia Lenheira”, a “rainha da casa cor de rosa”.

Sozinho, Ben Jor criou uma revolucionária “puxada” que repercutiu entre

músicos e admiradores da música popular. Na juventude, conviveu com Erasmo

Carlos e Tim Maia e fez parte da grande turma roqueira que circulava pela Tijuca.

Criado no Riachuelo, dividia seu tempo entre o bairro da Zona Norte carioca e a

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

15

praia de Copacabana. Foi descoberto em 1962 por um executivo da Phillips

quando se apresentava no Beco das Garrafas, no bairro da Zona Sul, espaço onde

teve contato com experientes músicos do jazz, como o lendário baterista Dom Um

Romão e o saxofonista Meirelles. Ao Pasquim, em 1969, relembrou:

Eu faço música só de há seis anos pra cá. Eu já comecei como

profissional. Uma vez, eu fui ao show dos Cariocas no Beco das

Garrafas e, então, quem tocava lá eram os Copa 5, conjunto do

Meirelles. Quem tocava nos Copa 5 era o Gusmão, o

contrabaixista, que me conhecia da praia e sabia que ele tocava

violão e tinha algumas composições. Um dia, acabou o show e

não tinha ninguém lá. “Dá uma canja aí, canta uma daquelas das

tuas músicas” – ele disse. Eu cantei, só tinha um cara dentro da

boate: era o João Melo que era diretor da Phillips. A música era

a “Mas que Nada”. Aí ele falou comigo se eu não queria fazer

um teste na Phillips. Eu nem fui porque pensei que era grupo,

nem conhecia o cara. (…) Mas depois, quinze dias depois, ele

voltou, nós acertamos tudo e eu fiz meu primeiro disco na

Phillips, um compacto. (BEN JOR, 1969)

O primeiro registro fonográfico de Ben Jor é a sua participação, em 1962,

no disco de Zé Maria e seu Órgão (Continental). Ele cantou "Mas que nada", cuja

boa recepção deu combustível para a gravação de seu primeiro compacto e,

posteriormente, do primeiro LP já pela Phillips no ano seguinte. Ben Jor recebeu

uma bolsa do Itamaraty para excursionar nos EUA, e por isso gravou três discos

em tempo curtíssimo para cumprir com a gravadora o contrato e seguir viagem

para o país do blues. Apresentou-se junto a Sérgio Mendes em clubes, boates e

universidades. Pouco tempo depois, já com o conjunto Brazil 66, Mendes

transformou “Mas que nada” em um sucesso global. Jorge já não estava mais lá: a

saudade o trouxe de volta ao Brasil – sob efeito da contracultura negra dos EUA.

Aqui, experimentou momentos de ostracismo e de sucesso. Foi assim na cisão

entre o Fino da Bossa e a Jovem Guarda, durante a Tropicália; durante a “fase

alquímica”, nos anos 1970; com a Banda do Zé Pretinho, na década seguinte; e na

volta triunfal comercial com “W/Brasil”, nos anos 1990.

Antes de prosseguir, cabe aqui uma breve explicação onomástica. Apesar

de o artista ter se apresentado durante boa parte de sua carreira com o nome

artístico de Jorge Ben (de “Samba esquema novo”, de 1963, até “Ben Brasil”, de

1986), esta pesquisa optou por chamá-lo sempre pela alcunha que ele mesmo

adotou a partir da sua estreia na Warner Music em 1989: Jorge Ben Jor. Esta

escolha se deu unicamente pela necessidade de padronização no texto, já que usar

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

16

Ben e Ben Jor poderia confundir leitores neófitos, e respeita a decisão do artista

na condução de sua obra.

A escolha da lira de Ben Jor como o centro gravitacional desta dissertação

no Departamento de Letras se deu por dois motivos. O primeiro, por certo, é a

vontade de contribuir com mais um elemento para a fortuna crítica do autor no

campo acadêmico. Notadamente, se destacam trabalhos como o de Paulo da Costa

e Silva (2014), com A Tábua de Esmeralda e a pequena Renascença de Jorge

Ben, e o de Luiz Tatit (2002), em O Cancionista: Composição de Canções no

Brasil, que dedica um capítulo somente ao trabalho de Ben Jor.

Alexandre Reis dos Santos e Renato Santoro Rezende também fizeram

fundamentais contribuições para a compreensão das relações raciais na obra de

Ben Jor nas dissertações de mestrado 'Eu quero ver quando Zumbi chegar':

Negritude, política e relações raciais na obra de Jorge Ben (1963-1976) e Jorge

Ben: um negro na MPB nas décadas de 1960-1970. Natália Parreiras, por sua vez,

ofereceu uma visão singular das interseções entre a lira benjoriana e a filosofia de

Santo Tomás de Aquino em A Alquimia da Potência: O estofo filosófico Tomista

na obra de Jorge Ben Jor, monografia para pós-graduação em Letras na PUC-Rio.

Além das valiosas contribuições para a leitura da obra benjoriana dentro dos

muros da academia, a imprensa (artigos de Tárik de Souza e José Ramos

Tinhorão, sobretudo) e colegas artistas também ofereceram singulares

interpretações para o trabalho do músico carioca, como as de Caetano Veloso,

Gilberto Gil e Jorge Mautner, que o enxerga como um dos exemplos mais

acabados para sua formulação sincrética - a amálgama.

O segundo, admito, é servir como uma tardia ironia aos críticos dos jornais

diários que, no princípio da carreira, costumavam inferiorizar as composições do

autor em detrimento da usina rítmica que era o seu violão. “Você (...) assiste a

Jorge Ben com raiva de o rapaz não ter encontrado um letrista à altura de suas

melodias. Sem exagero: Jorge Ben é, de fato, um ótimo melodista, com absoluto

senso de harmonia e ‘comunicabilidade’ musical. Mas deveria ser proibido pelos

amigos de fazer letras”, escreveu Sérgio Bittencourt no Correio da Manhã após

assistir a um show do compositor no Bottle's, em 1963. Equiparar a caneta ao

violão de Ben Jor foi, portanto, um dos elementos que nortearam o processo de

escritura desta dissertação nos últimos dois anos. Afinal, a mão que escreve é a

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

17

mesma que percute o violão. Faz parte do corpo cuja voz melismática dá vida a

diferentes e coloridos personagens desde os idos da década de 1960.

É certo que Ben Jor jamais se esforçou para a formação de um arcabouço

teórico em torno de si. O artista nunca se preocupou em comentar aquilo que

compõe, nem em fornecer muitos detalhes sobre seu processo de formação

musical. Ao contrário dos seus contemporâneos mais celebrados, Ben Jor não quis

escrever livros ou publicar artigos em jornais e revistas para justificar ou passar

em revista a própria carreira. Ele se comunica com o mundo apenas através de sua

música. Chacrinha, um exímio vendedor do próprio peixe e do bacalhau dos

outros, sinalizou este entrave no fim dos anos 1960 em uma entrevista à edição de

número 21 de O Pasquim: "Jorge Ben, aliás, é um cara injustiçado: deveria ter

uma posição um milhão de vezes melhor. Mas ele próprio é o culpado porque ele

não se promove". (O Pasquim, 1969, ed. 21)

Fora do campo da canção, só é possível ter um vislumbre de suas ideias a

partir das entrevistas, que, segundo a lenda, reluta em conceder. Neste trabalho,

serão principalmente utilizadas as conversas que ele manteve com o O Pasquim,

em 1969 (edição número 14), e à TV Cultura, em 1995, além da conversa com o

repórter Pedro Alexandre Sanches na Revista Trip, em 2009. Nos três casos, ele

teve liberdade maior para desenvolver um raciocínio acerca do próprio trabalho.

Em diversos momentos durante esses encontros, o artista ofereceu os seus pontos

de vista sobre os interesses que me moveram para realizar essa pesquisa.

Ben Jor parece se divertir com as diferentes tentativas da crítica em ler o

seu jeito de se relacionar com a música. No já citado papo com O Pasquim em

1969, o jornalista Sérgio Cabral perguntou se o estilo pessoal era “racional” ou se

“simplesmente fez as músicas”, como se houvesse um limite claro entre uma coisa

e outra. Ele respondeu: “Eu fiz e saíram assim. Nunca achei que tivesse criado um

estilo pessoal. Há pouco tempo é que eu fui saber que tinha um estilo meu. Não

riam, é verdade. Eu fiquei surpreso. Uma vez, na TV Tupi, havia uma música

minha que ia ser cantada e, no arranjo da orquestra, estava escrito na partitura,

para todos os músicos: 'estilo Jorge Ben'. Foi há pouco tempo. Achei bacana” (O

Pasquim, 1969).

Tatit (2002, p. 213) o descreve como o jogador que “bate bem na bola de

primeira”: alguém que carrega um pensamento corporal inato que tanto produz

passes comuns ou lançamentos de mestre ao sabor da partida. Tárik de Souza

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

18

(Jornal do Brasil, 1982) também recorre ao corpo para compará-lo com um

acrobata sem rede, que pode terminar o número ovacionado pela plateia ou

estatelado com as costas no chão. Já Costa e Silva (2014, p. 26) viu em Jorge o

antimétodo. O pesquisador também registrou, no áudio-documentário Imbatível

ao extremo – assim é Jorge Ben Jor! (2012), a opinião de Caetano Veloso sobre o

assunto. Em Verdade Tropical (VELOSO, 1997), o baiano havia sugerido que os

tropicalistas enxergavam em Ben Jor a resposta prática para todas as suas

construções teóricas: um tropicalista avant la lettre. Ao documentário de Costa e

Silva, Caetano disse: “É muito impressionante o modo como funciona a cabeça de

Jorge Ben. Ele não parece seguir nenhum método que impeça que as imagens

internas venham pra fora. É curioso isso, porque as letras dele são como monstros

de letras. Parece que ele escreve sem método, mas aquilo é o método dele. E

aquilo também é a necessidade de deixar virem as imagens internas. Aquilo tem

um caráter religioso, um pouco jungiano”.

Ben Jor costuma dizer que não se impõe regras: pode começar uma canção

tanto pela letra quanto pelo som. Quando começa pela letra, pode esculpir versos

mais longos (ou mais curtos) do que a frase musical pede. A resolução para esse

“problema” passa por sua capacidade vocal: Costa e Silva nota que ele pode

duplicar sílabas como em “Namorado da Viúva” (ou melhor, “Namo-mo-ra-ra-do

da Víuva”) ou encaixar as frases gigantes na melodia, como em “O Homem da

Gravata Florida”. Para Costa e Silva, Ben Jor “é um dos casos mais extremos de

compositores que têm por procedimento dominante partir da palavra escrita para a

música. E o fato singular é que não há qualquer ‘preparação’ do texto” (COSTA E

SILVA, 2014, p. 28) . As palavras se encantam e transformam-se em música.

Ben Jor também é conhecido por aproveitar de maneira singular e própria

textos de terceiros para compor, em um método que muitas vezes se aproxima dos

recortes antropofágicos dos idealizadores da Semana de 1922: já musicou quase

inteiramente sinopse de cinema enviada por Cacá Diegues (“Xica da Silva”),

tratados de teologia (“Assim falou Santo Tomás de Aquino”) e alquimia (“Hermes

Trismegisto Escreveu”). Além disso, enumerou títulos de livros de Dostoiévski

(“As rosas eram todas amarelas”) e já foi acusado de plágio por pegar

emprestados dois versos de Victor Hugo. O compositor de “O vendedor de

bananas” e “O circo chegou” também é um experimentado observador do

cotidiano. Na entrevista concedida à TV Cultura em 1995, ele recorda o início da

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

19

sua relação com o universo da música e descortina um pouco da filosofia que

envolve o seu processo de escritura:

Eu tenho muitas letras. Eu vou escrevendo muito. Por exemplo,

aqui hoje eu posso descrever, modéstia à parte, eu posso chegar

em casa e descrever o Roda Viva. (...) Eu desde os treze anos,

treze, quatorze anos, eu fiz seminário menor. Tinha aulas de

canto, de teclado, órgão, já sabia isso tudo. Porque se cantava

muito no coral gregoriano. Isso tudo misturou com o que eu

ouvia fora, quando eu passava as férias. Eu ouvia desde samba,

desde rock e de música brasileira, que meus pais tinham em

casa, que gostavam. Isso tudo foi misturando, até que, com essa

idade, eu já fazia minhas letras. Na escola, eu sempre escrevi

muito. Modéstia à parte, eu sempre fui bom. Escrevia grandes

redações, escrevia coisas que eu gostava. E aí depois eu passei a

cantarolar essas coisas todas. (BEN JOR, 1995)

Como é impossível (e contraproducente) tentar exaurir a totalidade da

produção literária de um autor em uma modesta dissertação de mestrado, este

trabalho irá se concentrar em apenas um dos diferentes aspectos que desaguam no

cancioneiro de Ben Jor. Regularmente, algo emerge de maneira muito evidente

nas letras de Ben Jor: a fé. A capacidade de ter esperança e acreditar em algo é

recorrente nas suas letras. Costa e Silva (2014, p. 19) reconhece tamanha crença

religiosa e sugere que o imaginário do compositor “parece remeter ao próprio

homem medieval”: “Trata-se de um imaginário marcado por uma capacidade de

crer nas coisas que é desconcertante para o espírito cético de nosso tempo. É como

se o inconsciente vivesse livre de qualquer tipo de censura”. Algumas páginas

adiante, o crítico esclarece:

Devo logo esclarecer o óbvio: que Jorge Ben evidentemente não

é um homem medieval. Há, contudo, algo no seu jeito de se

aproximar da música, na livre vazão que ele concede ao

imaginário, no modo como embaralha consciente e

inconsciente, que sugere um contato duradouro com essas

figuras do medievo. A identificação mística que experimenta

em relação ao santo guerreiro com seu nome (São Jorge), a

relação apaixonada que desde cedo manteve com os tratados de

alquimia, a mitologia que cerca a filosofia hermética e as

biografias de seus protagonistas (Hermes Trismegisto, São

Tomás de Aquino e Paracelso), o estudo de harmonias

renascentistas são ainda alguns dos indícios que permitem

seguir essa trilha. Talvez essas figuras não sejam apenas

presenças superficiais em suas músicas, palavras e nomes

evocados por uma inusitada qualidade de exotismo. O interesse

de Jorge nesses assuntos é cercado não apenas por uma vontade

de compreensão distanciada, mas por uma crença na

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

20

importância e na realidade deles; por um sentimento de

afinidade. (COSTA E SILVA, 2014, p. 58)

É difícil imaginar que o autor de tantas músicas de amor tenha um dia,

mesmo que nos primeiros momentos de sua adolescência, considerado renunciar a

todas as suas musas para se tornar um padre da Igreja Católica, nos bancos do

Seminário São José, do Riachuelo. Mesmo que tenha abandonado este projeto

mais tarde em detrimento da música, a habilidade para construir discursos

religiosos e para encantar a palavra prevaleceu na lira de Ben Jor ao longo da sua

carreira.

Para me acompanhar nesta jornada teórica por temas tão distintos e

complexos como alquimia, axé e o catolicismo popular, tentei ser tão eclético nas

escolhas bibliográficas quanto Ben Jor. A psicologia analítica de Carl G. Jung

oferece explicações muito interessantes sobre o simbolismo envolvido no

pensamento dos antigos filósofos. Os textos do sociólogo Reginaldo Prandi

ajudam a pintar um panorama muito rico sobre as tradições que envolvem as mais

proeminentes religiões afro do país. Com o historiador Luiz Antonio Simas,

percorro as encruzilhadas entre a fé afro-ameríndia e o catolicismo popular

brasileiro, em especial na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, onde – por

um descuido geográfico – nasceu Jorge Ben Jor. E, por fim, Mircea Eliade oferece

um arguto comentário sobre a história das religiões e os mistérios alquímicos a

partir de uma perspectiva europeia. É possível utilizar uma acepção contida em

Eliade (2008) para descrever a maneira com que Jorge Ben Jor, em grande parte

de seu repertório, se relaciona com dimensões específicas da experiência religiosa

no mundo.

O leitor não tardará a dar-se conta de que o sagrado e o profano

constituem duas modalidades de ser no Mundo, duas situações

existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história.

Esses modos de ser no Mundo não interessam unicamente à

história das religiões ou à sociologia, não constituem apenas o

objeto de estudos históricos, sociológicos, etnológicos. Em

última instância, os modos de ser sagrado e profano dependem

das diferentes posições que o homem conquistou no Cosmos e,

consequentemente, interessam não só ao filósofo, mas também a

todo investigador desejoso de conhecer as dimensões possíveis

da existência humana. (ELIADE, 2008, p. 20).

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

21

Em seu livro, Costa e Silva cita uma imagem criada por Gilberto Gil para

definir Ben Jor: um estuário onde diversos rios desembocam. Ao mesclar

elementos esotéricos com fundações das religiosidades afro-brasileiras e do

catolicismo popular, sua obra é um exemplo bem acabado do sincretismo religioso

que encontrou no Brasil um solo fértil para florescer. Nas suas canções, mistura a

fé católica - sua principal denominação, por sinal - com costumes da umbanda e

do candomblé e também com elementos místicos, notadamente a alquimia. Na

voz do artista carioca, São Jorge da Capadócia, Ogum e Hermes Trismegisto, o

faraó que lançou as bases da alquimia, se erguem em igual estatura, e convivem

em um diverso e colorido panteão. “Pois malandro pra ser malandro tem que ter

fé”, sintetiza em “Gimbo”, de “Sacundin Ben Samba” (1964).

Mas, como essa dissertação pretende mostrar, a fé do autor não se limita

aos muros dos templos erguidos pelas religiões estabelecidas. Em diversos

momentos do seu cancioneiro, o autor expressa fé na humanidade. Esse complexo

sistema interno de crenças se manifesta até quando vai se referir à ciência, como

ficará claro a partir do final dos anos 1960. A ciência aparece pela primeira vez de

maneira mais evidente em 1969, em Jorge Ben, disco de capa multicolorida que

mais se aproxima do tropicalismo. Nele, Ben Jor se mostra afetado pelos

desdobramentos da corrida espacial. “Quem me dera ser um ser intergalático”,

suspira em “Barbarella” para, duas faixas depois, vaticinar: “Depois que o

primeiro homem/ Maravilhosamente pisou na lua/ Eu me senti com direitos, com

princípios/ E dignidade de me libertar”. Coincidência ou não, a guinada espacial

de Ben Jor se dá justamente no momento em que ele mais se aproxima da

Tropicália. Ao se conectar com os anseios e projetos do núcleo baiano, Ben Jor

parece absorver certo espírito perquiridor que acompanhava os inquietos Caetano

Veloso e Gilberto Gil, enquanto eles recebiam de volta a conclusão sempre

particular sobre qualquer assunto do autor que um dia escreveria “Spyro Gyro

Story”.

Ao flexibilizar a linguagem, o tropicalismo injetou uma nova

rapidez na música brasileira. Era mais importante entrar no fluxo

do mundo do que ficar definindo se isso ou aquilo era ou não

música brasileira (o problema passa a ser, então, o de saber como

se dá essa entrada a partir de um lugar periférico). De algum modo,

Jorge já vinha fazendo isso. Seu álbum de 1969, Jorge Ben tocava

indiretamente em temas candentes na época: conquistas espaciais e

consciência racial, liberação feminina, violência e exclusão. Só que

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

22

aquilo que em Jorge Ben parecia ser uma decorrência normal de

sua imensa capacidade assimilativa – e que se realizava

intuitivamente –, para os tropicalistas tornou-se uma estratégia

consciente de atuação político-estética. (COSTA E SILVA, 2014,

p.86).

Particularmente no LP lançado em 1969, as descobertas científicas da

conquista espacial passam a ocupar lugar de destaque nas letras de Ben Jor. Os

resultados da corrida empreendida por Estados Unidos e União Soviética, que

culminaria com a chegada do homem à Lua, e as naves intergalácticas de

produções de ficção científica, como o filme Barbarella (1968), povoam seu

imaginário. Do livro Eram os deuses astronautas, de Erich von Däniken, saiu

"Errare humanum est", um dos destaques da A Tábua de Esmeralda, que revela

dúvidas e teorias sobre a vida nas estrelas.

Em “Charles Jr.”, canção do LP Força Bruta (1970), a letra diz: “Eu tenho

o pé, o amor e a fé/ No século XXI/ Onde as conquistas científicas, espaciais,

medicinais/ E a confraternização dos povos/ E a humildade de um Rei/ Serão as

armas da vitória/ Para a paz universal”. Ao contrário do que pode parecer, a

religiosidade de Ben Jor nas letras não se coloca em oposição ao conhecimento

científico, mas sim como camada justaposta. Costa e Silva (2014, p. 73) afirma

que as canções de Ben Jor “reverberam amplamente esse espírito de confiança na

humanidade e no milagre do indivíduo humano. Na capacidade obstinada de

superação dos obstáculos e de contínua afirmação da vida”. Fé na vida.

Desde que estreou em 1963 com o “samba de preto velho” de “Mas que

nada”, Ben Jor espalhou referências às divindades como Zambi, Ogum e Iansã em

diversos pontos de sua discografia. Não faltam exemplos: circulam pelo terreiro

do frontman da Banda do Zé Pretinho entidades como o “Cavaleiro do cavalo

imaculado”, “Maria Conga” e Pretos Velhos de toda sorte. Em “Na Bahia tem”,

ele faz uma de suas conhecidas enumerações enciclopédicas e cita ebós, abarás do

candomblé e também o Senhor do Bonfim. Também é digno de nota o álbum

Ogum Xangô, que gravou ao vivo em estúdio com Gilberto Gil. Este LP de 1975

registra uma interpretação vigorosa de “Filhos de Gandhi”, em que o canto de Ben

Jor emula um discurso religioso em um dialeto africano.

A conexão com a herança dos saberes e tradições religiosas vindos da

África é a primeira coisa a chamar atenção da crítica especializada nas resenhas de

Samba esquema Novo. Esta perspectiva, latente no som e nas letras, foi diversas

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

23

vezes rotulada com termos e expressões infelizes e redutoras. O próprio material

de divulgação da Phillips, assinado por Armando Pittigliani, fala em influência

“negroide” e “primitivismo” para promover o artista. Embora valorizado por esse

resgate, Ben Jor sentiu na pele o que é carregar consigo a herança africana na

sociedade brasileira. Depois de relatar um episódio de racismo vivido no colégio

durante a infância à equipe do jornal O Pasquim, ele revela ter sofrido também no

início da carreira: “O Armando Pittigliani me levou para um show no Iate Clube.

Os caras não me conheciam e quando eu fui entrar, um diretor me barrou. Eu fui

embora pra casa e depois foram lá me buscar. O Armando Pittigliani não sabia,

porque tinha entrado antes” (O Pasquim, 1969).

Parece evidente, no entanto, que a relação de Ben Jor com o continente

africano é, antes de tudo, corporal. Após investigar a origem da batida do violão

de Ben Jor, o historiador Luiz Antonio Simas, autor de inúmeros livros sobre as

tradições afro-ameríndias no Brasil, vaticina que a maneira que o compositor toca

o instrumento “bebe na fonte do agueré de Oxossi, um dos ritmos nobres – quase

digo o mais nobre – do candomblé de Ketu”. Para isso, ele compara a canção “Os

alquimistas estão chegando os alquimistas” com o toque de evocação aos deuses

da caça. No plano da palavra, alquimia. No plano do ritmo, candomblé:

Ben Jor percute o violão como se fosse o tambor tocando para

os deuses da caça: taque tataque tataque tataque tataquetatatá/

taque tataque tataque tataque tataquetatatá. A corrida no ritmo

ilustra que Oxossi, andando discretamente na floresta, viu a

caça! Não é samba, não é balanço, não é jongo, não é maracatu.

É tudo isso, mas é fundamentalmente o agueré que fundamenta

o babado. Ele mesmo, o aguerezão, base do toque de caixa da

Mocidade Independente de Padre Miguel, inspiração para o

toque da Portela e para o samba reggae baiano; a sublime

louvação ao caçador de uma flecha só. (SIMAS, 2016).

É difícil rastrear com exatidão as origens africanas da família de Ben Jor,

mas a principal narrativa dá conta de que seu avô era etíope e chegou ao Brasil de

navio, fugindo dos confrontos da Segunda Guerra Ítalo-Etíope (1935-36). Junto a

ele, estava Silvia, aos 13 anos. Frequentemente, nas letras, Ben Jor alude ao fato

de a mãe fazer parte de uma linhagem nobre em seu país natal. Ao louvar o país

de origem da família em "Selassie", Jorge valoriza, ao mesmo tempo, a religião e

a própria negritude: “Selassie/ Leão de Judá/ Descendente da negra rainha de

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

24

Sabá”. Santos (2014) dá um panorama da importância do país africano para o

imaginário dos negros das Américas. Segundo o autor:

No Brasil, e não só, a Etiópia era uma importante referência

positiva para os sujeitos negros, pois foi o único país africano

não envolvido no tráfico europeu de escravos e que em um

primeiro momento venceu o colonialismo. Em São Paulo, um

dos mais antigos órgãos da imprensa negra paulista foi O

Menelick, fundado em 1915, cujo nome era uma homenagem ao

imperador etíope que antecedeu Tafari Makonen. Este também

é um importante modelo para os sujeitos negros da diáspora. De

acordo com os ideais do pan-africanismo, formulados pelo

jamaicano Marcus Garvey, o povo da Etiópia era considerado

um povo eleito por Deus, por conta de crença de que descendem

da Rainha de Sabá, cuja ascendência remete a Com, e portanto,

ao Noé bíblico. O garveysmo, por volta de 1925, profetizava o

surgimento de um messias na Etiópia, que viria a salvar todo o

povo negro. Seus seguidores associaram esta figura a Haile

Selassie, quando este subiu ao trono em 1930. Destas

associações e rearticulações do garveysmo e dos princípios da

Igreja Ortodoxa Etíope surgiu o rastafarianismo, uma doutrina

filosófico-religiosa cujo principal personagem é o Ras Tafari.

(SANTOS, 2014, pp. 131-132)

Sincretizado com Ogum no Brasil, São Jorge ocupa lugar fundamental no

altar de Ben Jor, e serve como elemento de transição entre as temáticas das

religiões africanas e o catolicismo popular na obra do artista. A célebre oração ao

soldado romano que supera o dragão foi musicada na íntegra por ele em Solta o

Pavão (1975). O compositor não esconde o orgulho de carregar o mesmo nome do

Santo Guerreiro, que aparece de maneira recorrente em sua discografia. O

personagem do soldado romano que derrota o monstruoso dragão parece encarnar

valores muito caros - e também recorrentes - a sua escrita: coragem, sabedoria e

virtude, conforme nota Costa e Silva (2014).

O modelo exemplar de uma atitude baseada na coragem de

afirmar valores é sintetizado no ancestral arquétipo do herói.

Em "Domingo 23", a primeira aparição do Santo Guerreiro em

sua lira, Jorge começa descrevendo os imponentes apetrechos

de batalha – o cavalo branco, a "armadura e capa", a "espada

forjada em ouro" – para logo depois focar no "gesto nobre", no

"olhar sereno de cavalheiro, guerreiro e justiceiro". Conforme a

letra migra dos atributos materiais para as qualidade de ordem

espiritual, o canto se torna mais suave e sonhador, menos

combativo, a melodia ganhando contornos mais relaxados. Aos

poucos, um composto de virtudes e atributos físicos vai

definindo a figura do herói, que é finalmente qualificado como

"imbatível ao extremo", a maravilhosa, "hiper-hiperbólica"

formulação poética do que não pode ser destruído, daquilo que

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

25

resiste, do que é inquebrantável. (COSTA E SILVA, 2014, p.

96).

São Jorge é o arquétipo fundamental do herói benjoriano, e suas

qualidades podem ser encontradas mesmo em um fora da lei, como "Charles, anjo

45" ("um homem de verdade/ com muita coragem"). A dimensão mítica, por sinal,

é uma das grandes marcas próprias do discurso do autor e se manifesta de maneira

clara sempre que ele cita o Santo Guerreiro em suas músicas. O mito, argumenta

Eliade, conta uma história sagrada. Um acontecimento primordial que teve lugar

no começo do Tempo. Para ele, a repetição fiel dos modelos divinos tem um

resultado duplo: por um lado, ao imitar os deuses, o homem mantém-se no

sagrado e, consequentemente, na realidade; por outro, graças à reatualização

ininterrupta dos gestos divinos exemplares, o mundo é santificado.

Mas contar uma história sagrada equivale a revelar um mistério,

pois as personagens do mito não são seres humanos: são deuses

ou Heróis civilizadores. Por esta razão suas gesta constituem

mistérios: o homem não poderia conhecê-los se não lhe fossem

revelados. O mito é pois a história do que se passou in illo

tempore, a narração daquilo que os deuses ou os Seres divinos

fizeram no começo do Tempo. “Dizer” um mito é proclamar o

que se passou ab origine. Uma vez "dito", quer dizer, revelado,

o mito torna-se verdade apodítica: funda a verdade absoluta.

(ELIADE, 2008, p. 84).

Mas o cavaleiro da Capadócia não está só. Ben Jor dedica suas canções à

Santa Clara, ao Menino Jesus de Praga, a São Cristóvão e a São Pedro, todas

figuras populares do catolicismo no país. Quando perguntado, o cantor sempre

deixou claro que o cristianismo era o seu principal credo. Foi assim na entrevista

concedida a O Pasquim, em 1969, quando Millôr Fernandes questionou a sua

religião: "Sou católico. Vou à missa sempre que posso. Acredito em espiritismo

também. Quer dizer, depende do espiritismo. Mas não frequento. Peço a alguém

que peça por mim, sei que é bom"

Importante também é a presença dos anjos na sua lira. Em 1969, canta

“Descobri que sou um anjo”. Dois anos depois, em “Por que é proibido pisar na

grama”, retoma o assunto: “Descobri que além de ser um anjo eu tenho cinco

inimigos”. Em 1974, a identificação do autor com os seres alados da tradição

judaico-cristã ganha uma nova camada ao citar o “anjo amigo Jorge” em “A

história de Jorge”. As citações continuam em “Ave Anjos Angeli” (1995) e

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

26

“Gabriel, Rafael, Miguel” (2004). Em 1995, durante “Roda Viva”, foi perguntado

pelo jornalista Matinas Suzuki sobre o interesse dele no assunto:

O anjo, para mim, sempre teve um significado grande. E acho

que todos nós temos um anjo da guarda, que protege a gente.

Isso eu aprendi na minha passagem pelo seminário. Estudei. Eu

acho até que o Observatório Romano gosta, porque segue os

padrões do Observatório Romano, toda a cadência dos anjos,

desde Serafim, Querubim. São os anjos todos. Os anjos cristãos.

E isso segue o padrão. Hoje em dia tem muita mistura de anjo.

Tem anjo em umbanda, nos búzios, tem mil coisas. Como você

citou, tem mil livros. Tem muita gente querendo aparecer,

escrevendo errado. (BEN JOR, 1995)

Natália Parreiras relaciona as seguidas menções aos anjos ao próprio Santo

Tomás de Aquino, filósofo do século XI de quem Ben Jor musicou trechos da

“Suma Teológica” em “Solta o Pavão”, de 1975. O Aquinate foi um dos grandes

pensadores da teologia natural. O italiano era “grande defensor da oposição

perfeita (racional) entre a filosofia aristotélica e o cristianismo” (PARREIRAS,

2018, p. 7). Fundador da Escolástica, teve “entre as suas centenas de obras

concebidas sob as bases dogmáticas da igreja, a escritura da Suma Teológica que

trata da natureza de Deus e das questões morais segundo Jesus Cristo” (Idem),

trabalhando fé e razão como elementos complementares e nada antagônicos. Ela

nota que o santo ocupa tamanha importância simbólica na vida de Ben Jor, “que

até os nomes de seus dois únicos filhos tem relação direta com o Aquinate:

Tomaso, o primogênito, e Gabriel, sim, tal qual o anjo da anunciação”

(PARREIRAS, 2018, p. 9).

Em outra de suas principais contribuições às ciências

investigativas, Sobre os Anjos - do latim De Substantiis

Separatis - considerada por muitos especialistas como o ápice

da metafísica - o autor comenta a abordagem dada à

problemática filosófica da existência de formas separadas da

matéria, popularizadas pela tradição judaico-cristã sob o signo

linguístico de “Anjos”. Seu legado tem tamanho

reconhecimento que o próprio Aquino, segundo a escritora e

pesquisadora Yvette Centeno, viria a ser representado por

Goethe, em Fausto como o Doctor Angelicus, guia supremo do

herói em sua trajetória de ascensão. (PARREIRAS, 2018, p. 8)

Entre 1974 e 1976, Ben Jor gravou os três discos que compõem a “trilogia

mística” (RIBEIRO, 2014) dentro de sua produção musical. O termo aglutina os

álbuns A tábua de esmeralda, Solta o pavão, onde ele toca o violão que lhe deu

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

27

fama, e África Brasil, já fazendo a transição para a guitarra, que manteve como

instrumento principal desde então. Os discos formam o ápice daquilo que ele

próprio chamou de “alquimia musical”. Inspirado por tratados e textos de

filósofos como Hermes Trismegisto, Nicolas Flamel, Paracelso e Fulcanelli o

compositor escreveu algumas das canções mais singulares da MPB.

Fazem parte destes três álbuns músicas como “Hermes Trismegisto e sua

Celeste Tábua de Esmeralda”, “Os Alquimistas Estão Chegando Os Alquimistas",

"O Homem da Gravata Florida (A Gravata Florida de Paracelso)", "Luz

Polarizada", “Hermes Trismegisto Escreveu” e "O Filósofo". O interesse pela

alquimia, no entanto, não se refletiu na obra de Ben Jor apenas durante a “trilogia

mística”. É possível encontrar indícios da sabedoria alquímica antes e depois deste

rico período de produção musical.

No momento em que une a perquirição pré-científica dos pais da química

com a fé mística na transformação dos metais, Ben Jor encontra momento de raro

equilíbrio entre a religiosidade e o saber científico na sua obra. Ao ressaltar que o

lema dos alquimistas era “ o obscuro pelo mais obscuro, o desconhecido pelo mais

desconhecido”, Jung (1990, p. 239) situa o início do ocaso da alquimia quando os

filósofos herméticos se separaram dos químicos durante as primeiras horas do

pensamento iluminista. Antes desse momento, a relação do iniciado com a matéria

era preenchida pelas suas próprias projeções:

Eram os tempos em que a mente do alquimista ainda lutava

realmente com os problemas da matéria, em que a consciência

indagadora se confrontava com o obscuro espaço do desconhecido,

no qual figuras e leis eram obscuramente percebidas e atribuídas à

matéria, apesar de realmente pertencerem à psique. Todo

desconhecido e vazio é preenchido com projeções psicológicas; é

como se o próprio fundamento psíquico do investigador se

espelhasse na obscuridade. O que ele vê ou pensa ver na matéria

são principalmente os dados de seu próprio inconsciente nela

projetados. Em outras palavras, ele encontra na matéria, como se

pertencessem a ela, certas qualidade e significados potenciais de

cuja natureza psíquica ele é inteiramente inconsciente.

(JUNG,1990, p. 240)

O que Ben Jor vê — ou pensa ver — na matéria quase imperscrutável dos

livros e tratados da alquimia, ele reverte em canções. No limite, todas elas

carregam uma espécie de crença em uma transformação interna e individual do ser

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

28

humano. Assim como São Jorge, os alquimistas transmitem qualidades

fundamentais para a lira benjoriana. Novamente, coragem, sabedoria e virtude.

Apesar de estar circunscrito a um período delimitado do século XX, o

trabalho se descola de uma temporalidade cronológica e dialoga simultaneamente

com passado, presente e futuro. Em seu famoso ensaio "O que é o

contemporâneo", Giorgio Agamben diz que o contemporâneo é capaz de fraturar

as vértebras de seu tempo e fazer dessa fratura o lugar de um compromisso e de

um encontro entre os tempos e as gerações. É aquele que transforma o tempo e o

coloca em relação com outros tempos. Capaz de ler de modo inédito a história,

“de citá-la segundo uma necessidade que não provém de maneira nenhuma do seu

arbítrio, mas de uma exigência que ele não pode responder” (AGAMBEN, 2009,

p. 72). Penso que não existe maneira melhor para definir Ben Jor e sua relação

com a fé.

Na ilustração escolhida para a capa de Jorge Ben (1969), o artista plástico

Albery espalhou diferentes símbolos muito caros à lira benjoriana daquele

momento: estão lá o escudo do Flamengo, as incontáveis musas, algumas plantas

e frutas tropicais e os grilhões rompidos em seus braços. Acima de todos, brilha

um sol vermelho, cujos raios se espalham como na bandeira do Japão imperial, ou

melhor, como no pavilhão do Salgueiro, escola do coração do artista. À frente do

Sol, como se fosse responsável por espraiar toda aquela luz, voa uma pomba

branca. Tradicionalmente na iconografia da Igreja Católica, a pomba branca está

associada ao Divino Espírito Santo, a terceira ponta do triângulo que perfaz a

Santíssima Trindade. Neste caso, portanto, penso que é possível fazer uma

extrapolação a partir do desenho de Albery: a pomba branca pode ser vista como a

manifestação da fé na obra do artista: está sempre no alto, sobrevoando tudo, e se

faz presente em todos os momentos em que ele canta.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

29

Cavaleiro de Jorge

Sem medo nenhum

O número um direito

Sempre firme sobre o cavalo

Impávido-turquesa

Estrada ou mesa de bar

Sempre mil pavões-força

De beleza pura e simples

Como uma onda do mar

Cavaleiro de Jorge

Potência de amar

Senhor do lugar inteiro ("Cavaleiro de Jorge", Caetano Veloso)

2

As roupas e as armas de Jorges

A hagiografia da Igreja católica sustenta que São Jorge viveu entre os

séculos III e IV. Georgius era filho de uma família nobre da Capadócia, região

que hoje se encontra dentro das fronteiras da Turquia. Órfão do pai, guerreiro

morto em um combate, tornou-se ele também um soldado do Império Romano,

tendo sido reconhecido por sua atuação corajosa nos campos de batalha. Negou-se

a renegar a própria crença por ordem do imperador Diocleciano, cuja reputação de

perseguição aos praticantes do cristianismo é atestada por historiadores

contemporâneos. Por ter se insurgido contra a crueldade e preconceito religioso do

líder máximo foi punido com torturas e sevícias. Tornou-se um mártir da Igreja,

sobretudo por ter encarado os algozes sem jamais renegar a própria fé. Com a

ajuda do sagrado, seria capaz de realizar milagres e, por isso, era tomado por

muitos como como um feiticeiro. Embora seja impossível diferenciar

completamente os registros históricos do mito, teria morrido decapitado aos 23

anos em 23 de abril do ano 303. De acordo com o historiador Alexandre Reis dos

Santos (2014), as lendas sobre o santo passaram a fazer parte do imaginário

popular apenas séculos depois da morte do mártir católico.

Por volta do século XI, surgem os relatos míticos de que São

Jorge teria enfrentado e vencido um dragão como prova do

poder da fé em Cristo. Alguns mitos contam que, antes de ser

martirizado, Jorge teria ido a Britânia e visitado o túmulo de

José de Arimateia em Glastonbury. Entretanto, é a partir do

período das Cruzadas que o culto a São Jorge teria se

popularizado na Inglaterra, pois conta-se que teria visto

auxiliando os cruzados britânicos no cerco de Antióquia. No

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

30

decorrer desse movimento, devido ao intenso fluxo de pessoas e

ideias, o culto a este mártir ganhou força também em Portugal,

o que contribuiu para sua institucionalização como patrono do

reino português. No Brasil, um dos vetores de divulgação do

culto a esse santo foi a Venerável Confraria dos Gloriosos

Mártires, São Gonçalo Garcia e São Jorge fundada em 1741.

(SANTOS, 2014, p. 114)

Compilado pelo frade dominicano Jacopo de Varazze no Século XIII, o

livro Legenda aurea reúne a história de vida de 153 santos da Igreja Católica.

Com linguagem acessível, o volume se tornou um sucesso comparável a um best-

seller na Idade Média, chegando a rivalizar com a própria Bíblia. Ao todo, cerca

de 1.100 exemplares sobreviveram até os dias de hoje. Em grande dose, o sucesso

do livro se deu porque Varazze, apesar de se cercar das mais diversas fontes para

escrever os seus relatos, não tentou diferenciar a história dos mitos que cercavam

as biografias das figuras santificadas. Com elementos literários das fábulas que

faziam sucesso então, os textos são baseados em uma fórmula simples, que

misturava fundamentos morais e histórias exemplares. A vida e os feitos de São

Jorge ocupam o 56º capítulo da Legenda aurea. O texto começa com uma breve

explicação etimológica:

Jorge [Georgius] vem de Geos, que quer dizer “terra”, e de

Orge, “cultivar”, de forma que o nome significa “cultivando a

terra”, isto é, sua carne. No seu livro Sobre a Trindade,

Agostinho afirma que a boa terra pode estar tanto no alto das

montanhas como nas encostas temperadas das colinas ou nas

planícies. O primeiro tipo convém ao pasto, o segundo às

vinhas, o terceiro aos cereais. De forma semelhante, o beato

Jorge foi como a terra alta por desprezar as coisas baixas e

exaltar as puras, foi como a terra temperada devido à descrição

do vinho da eterna alegria, foi como a terra plana pela

humildade que produz frutos de boas obras (VARAZZE, 2003,

p. 365)

O livro conta que Jorge certa vez cavalgou até Silena. Na cidade da

província da Líbia havia um lago, grande como um mar, onde estava escondido

"um pestífero e enorme dragão que muitas vezes afugentou o povo armado que

tentara atacá-lo” (VARAZZE, 2003, p. 366). Para acalmá-lo e impedir que se

aproximasse das muralhas da cidade, "que não protegiam de seu hálito

empesteado que matava muita gente” (Idem), os habitantes sacrificavam todos os

dias duas ovelhas. Depois de algum tempo, a quantidade de ovelhas disponível

não era mais suficiente. O governo local decidiu, então, que a fome do inimigo

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

31

seria saciada por um animal e um humano. Para isso, um sorteio seria realizado

entre os rapazes e as moças da região, sem excetuar nenhum dos habitantes do

vilarejo. A prática continuou até o dia em que a filha única do rei foi sorteada para

ser entregue ao dragão.

O rei, claro, tentou salvar a vida da filha e cancelar o trágico sorteio, mas

foi impedido por uma furiosa multidão, formada por pais e mães que já haviam

sacrificado seus filhos. Após o impasse, o monarca decidiu aceitar o triste destino

e ordenou que a sua herdeira fosse até o lago se entregar ao monstruoso dragão.

No caminho, ela encontrou Jorge montado em seu cavalo. Informado do triste

destino da moça, se recusou a abandoná-la e jurou protegê-la.

Enquanto conversavam, o dragão pôs a cabeça para fora do lago

e foi se aproximando. Toda trêmula, a moça falou: “Fuja, meu

bom senhor, fuja depressa”. Jorge montou imediatamente em

seu cavalo, protegeu-se com o sinal-da-cruz, e com audácia

atacou o dragão que avançava em sua direção. Brandindo a

lança com vigor, recomendou-se a Deus, atingiu o monstro com

força, jogando-o ao chão, e disse à moça: “Coloque sem medo

seu cinto no pescoço do dragão, minha filha”. Ela assim o fez e

o dragão seguiu-a como um cãozinho muito manso.

(VARAZZE, 2003, p. 367)

Com a besta em seus domínios, Jorge rumou até a cidade. Diante de uma

população aterrorizada, prometeu matar o monstro com a sua própria espada se os

habitantes do local adotassem a fé católica. Naquele mesmo dia, segundo Varazze,

mais de 20 mil homens foram batizados, sem contar os velhos, as mulheres e as

crianças. O herói, então, decapitou a fera. Perplexo e agradecido, o rei quis

recompensar Jorge por ter salvo a sua linhagem. Humilde, o cavalheiro pediu que

todo o dinheiro que recebesse fosse doado aos pobres. Somente após este episódio

é que o santo teria se levantado contra a perseguição ao cristianismo empreendida

por Diocleciano. O santo, então, deixou de lado a armadura e passou a viver em

oração com os grupos em risco, até ser capturado, torturado e assassinado pelo

exército do imperador.

Na apresentação da edição brasileira de Legenda aurea, o historiador

Hilário Franco Júnior ressalta o evidente componente simbólico presente nos

textos de Varazze. Para ele, os personagens ali funcionam como uma espécie de

espelho, que reflete algo que não estaria visível aos olhos dos fiéis.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

32

Devemos considerar o simbolismo presente por toda Legenda

aurea. Isto é, a cosmovisão pela qual cada fato, objeto ou

pessoa, mais do que uma realidade em si, é uma representação,

uma imagem, uma figuração, de algo superior, transcendente,

com o qual o ser humano não poderia ter contato direto e que

nem poderia compreender, não fosse a intermediação do

símbolo. Na linguagem bíblica, fundamental para a Idade

Média, o símbolo é o espelho que permite entrever algo, ainda

que de maneira deformada, antes de se poder vê-lo no Além

“face a face”. (FRANCO JUNIOR, 2003 apud VARAZZE,

2003, p. 16)

Mais do que os embates entre soldado e imperador, a cena que permeia a

imaginação popular sobre os feitos de São Jorge é a simbólica batalha contra o

dragão. Ao combater a fera, que encarna com unhas e dentes o lado sombrio na

dicotômica luta do bem contra o mal, o cavaleiro da Capadócia entrou para o

imaginário como a representação de valores como a nobreza, a coragem e a

humildade. No artigo Vozes de São Jorge e Ogum: Um percurso do Romanceiro

Português aos pontos de umbanda no Brasil, Roncalli Dantas Pinheiro (2012)

argumenta que o simbolismo vai além:

A vitória sobre um dragão é mais do que derrotar o mal, é

também a possibilidade de ordenar um sítio natural, a floresta,

um lodaçal. Derrotar um dragão simbolicamente é civilizar,

demarcar um local não conquistado ainda e tem relações fortes

com o empreendedorismo de uma comunidade, com a expansão

do território. (PINHEIRO, 2012)

A vitória de São Jorge sobre o infame animal mitológico influenciou e

inspirou diferentes artistas desde então, dos cordelistas brasileiros aos pintores do

Renascimento italiano. No acervo do Museu do Louvre, por exemplo, há duas

pinturas de Rafael Sanzio retratando o famoso combate. Uma delas (figura 2)

reflete a iconografia consagrada em relação ao santo, em que ele aparece de

armadura montado em um cavalo perfurando o inimigo com a sua lança. Ao

fundo, pode-se ver a princesa em oração.

A reputação de guerreiro, somada aos componentes civilizatórios e

expansionistas citados por Pinheiro, fez com que a figura do santo tenha sido

reverenciada ao longo dos séculos em territórios que vão do Ocidente ao Oriente.

Ao redor do globo, São Jorge foi escolhido para ser padroeiro de países díspares

como Inglaterra, Geórgia, Lituânia, Sérvia, Montenegro e Etiópia, além de

proteger cidades como Londres, Barcelona, Gênova, Moscou e Beirute. No Brasil,

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

33

a devoção ao santo se espalhou sobretudo pela herança colonial portuguesa. O

culto a São Jorge converteu-se em um dos mais populares do país, impulsionado

pela sincretização entre a figura do santo e entidades do candomblé e da umbanda

como Ogum, no Rio de Janeiro, e Oxóssi, na Bahia.

O mito de São Jorge chega ao Brasil por vias do Romanceiro

tradicional português através de textos que são entoados

oralmente até os dias atuais nas zonas agrárias mais

conservadoras do norte Lusitano e pelas dezenas de imagens

que expressam a luta do Santo Guerreiro contra o mal. No solo

brasileiro, o mito entra em contato com os povos de origem

Afro, que impossibilitados de cultuarem seus Orixás com

liberdade, promovem interpenetrações arquetípicas entre São

Jorge e Ogum, produzindo um ritual dinâmico, que faz nascer

uma profusão de diferentes expressões lexicais do mesmo Orixá

ferreiro, visualmente observado com posse das armas e das

vestes de São Jorge. (PINHEIRO, 2012)

No Rio de Janeiro, o dia 23 de abril é marcado por ritos solenes praticados

por fiéis das mais diversas denominações. O dia — feriado estadual — começa

com alvoradas repletas de foguetes e as celebrações prosseguem com cavalgadas

festivas, feijoadas nos terreiros e verdadeiras multidões nas missas oferecidas

pelas igrejas dedicadas ao Santo Guerreiro, no Centro e em Quintino. Porto e

Guidi (2011) afirmam que é nesta data que a capital fluminense se encontra,

apesar das suas brutais diferenças sociais.

Podemos ver como o catolicismo popular é mágico ao ponto de

cada santo exercer a tutela sobre um setor específico da vida - se

eu quero casar, rezo a Santo Antônio, se quero algo 'impossível',

peço a São Judas Tadeu, e assim por diante. No entanto, para

aquele santo de quem sou devoto, peço tudo, entrego a minha

vida, independente das especialidades dele às quais recorrem.

São Jorge é tido como um santo que tem o dom de curar doentes

em estado grave, e principalmente de oferecer proteção contra

situações de risco e violência. No caso de sua devoção,

podemos ver que, "como outros santos, cruza fronteiras

religiosas, étnicas, morais e sociais" (Pitrez, 2007:36). Trata-se

de um santo que não é cultuado apenas por católicos, mas

também por umbandistas e candomblecistas; não apenas pelos

soldados militares e policiais, mas também por transgressores

da lei; não apenas por uma classe social, mas por muitas. Trata-

se assim de um santo que dilui diferenças sociológicas,

contribuindo para tal imaginário a comemoração de seu dia,

quando a cidade se encontra, sem esquecer completamente suas

tensões cotidianas, em respeito à devoção. (PORTO E GUIDI,

2011, p. 44)

Figura 2 - São Jorge e o dragão, de Rafael Sanzio. Óleo sobre madeira, circa 1505.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

34

Fonte: Museu do Louvre.

Porto e Guidi (2011) também identificam que o ethos guerreiro do santo

faz com que uma extensa camada dos fiéis crie uma identificação extremamente

pessoal com a sua figura. Sobretudo em cidades como o Rio de Janeiro, a figura

do herói montado no cavalo derrotando o dragão se transformou em estampa pop,

frequentemente presente no mundo da moda. Está multiplicada em joias,

bijuterias, peças de roupa, adesivos, quadros e grafites nos muros da metrópole.

De alguma maneira, o antigo guerreiro da Capadócia parece ter se tornado deveras

íntimo e próximo daqueles cariocas que desejam ser protegidos por ele.

Além de ser a imagem mais difundida, remete à característica

atualmente mais ressaltada e celebrada do santo: seu caráter de

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

35

guerreiro. Assim, a ele é atribuída a proteção tanto dos

inocentes, para que não se firam em batalhas que não são as

suas, mas também daqueles que estão na linha de frente dos

conflitos. A proteção física também é uma evocação comum no

que diz respeito ao corpo dos devotos. Isto pode ser bem

observado pelo uso de adereços bem próximos a ele, como as

medalhas, em geral carregadas junto ao peito, simbolizando e

celebrando a intimidade e proximidade com o santo, além da

sua proteção. Nesse aspecto, as tatuagens também indicam esse

tipo de relação próxima e íntima, em um grau muito elevado,

pois neste caso a imagem do santo é algo que se inscreve no

corpo do devoto de maneira permanente. Em muitos casos, as

tatuagens são feitas após uma graça especial recebida e atribuída

ao santo. O poder de proteção do corpo também pode ser

observado como uma característica marcante do culto ao orixá

Ogum, requisitado muitas vezes para o fechamento do corpo de

seus filhos. Com essa ação, o corpo do devoto se torna imune a

qualquer perigo. (PORTO E GUIDI, 2011, p. 49)

Ogum é o orixá da metalurgia e das guerras, responsável por abrir os

caminhos para as atividades dos cavaleiros, caçadores e ferreiros, daí a sua

associação com a figura da Capadócia. Santos (2014, p. 117) ressalta que “os usos

populares do culto aos santos católicos articulam uma lógica própria, permeada

pelos princípios africanos de que era possível, pelo recurso ao mundo espiritual,

se proteger contra ameaças de cunho natural ou que transcendam à matéria”. Um

dos grandes "poderes" de São Jorge, portanto, seria transmitir sua invencibilidade

aos devotos.

Esta referida prática para “fechar o corpo” seria um ritual em

que um indivíduo, através de uma série de feitiços, deixaria o

seu corpo intocável a doenças ou agressões físicas. Este rito está

inserido na lógica do pensamento mágico de religiões afro-

brasileiras como o candomblé e a umbanda, tendo como uma de

suas premissas a crença de que seria possível, pelo uso do

conhecimento e das forças sobrenaturais, a intervenção no

mundo material. (SANTOS, 2014, p. 118)

Um trecho das mais famosas orações para São Jorge serviu de base para a

composição de “Jorge da Capadócia”, gravada por Ben Jor em 1975, no álbum

Solta o Pavão. O compositor escreveu apenas uma abertura, como se fosse um

prólogo, e um encerramento. No meio, repetiu ipsis literis as palavras

tradicionalmente ditas durante a reza. Como resultado, parece-me ter havido uma

identificação direta entre público e obra. Logo, esta canção se tornou uma das

mais populares do artista. Ao longo dos anos, ganhou versões de Caetano Veloso,

Racionais MCs, Fernanda Abreu e Seu Jorge.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

36

Jorge sentou praça na cavalaria

E eu estou feliz porque eu também sou da sua companhia

Eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge

Para que meus inimigos tenham mãos e não me toquem

Para que meus inimigos tenham pés e não me alcancem

Para que meus inimigos tenham olhos e não me vejam

E nem mesmo pensamento eles possam ter para me fazerem mal

Armas de fogo, meu corpo não alcançará

Espadas, facas e lanças se quebrem sem o meu corpo tocar

Cordas, correntes se arrebentem sem o meu corpo amarrar

Pois eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge

Sensacional

Jorge é de capadócia, maravilha

Viva Jorge

Jorge é de capadócia, sensacional

Salve Jorge

Perseverança, ganhou do sórdido fingimento

E disso tudo nasceu o amor

Perseverança, ganhou do sórdido fingimento

E disso tudo nasceu o amor

(BEN JOR, 1975)

Em 2009, a canção-oração de Ben Jor se encontrou sincreticamente com

“Ogum”, samba conhecido na voz de Zeca Pagodinho. Em uma apresentação ao

vivo, gravada para o DVD do sambista, Jorge repete – num registro emocionado,

muito próximo da fala – os trechos famosos de “Jorge da Capadócia” logo depois

da letra do samba, que diz:

Eu sou descendente zulu

Sou um soldado de Ogum

Devoto dessa imensa legião de Jorge

Eu sincretizado na fé

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

37

Sou carregado de axé

E protegido por um cavaleiro nobre

Sim vou na igreja festejar meu protetor

E agradecer por eu ser mais um vencedor

Nas lutas nas batalhas

Sim vou no terreiro pra bater o meu tambor

Bato cabeça firmo ponto sim senhor

Eu canto pra Ogum

(PAGODINHO, 2009)

Pode-se afirmar, sem qualquer exagero, que Jorge é um dos devotos que se

identifica diretamente com a imagem de São Jorge. Não é raro que ele se

apresente com uma camisa branca com uma estampa do cavaleiro da Capadócia.

No dia 23 de abril, costuma participar dos festejos populares que tomam a cidade.

Em 1970, no LP Ben, gravou “Domingo 23” homenageando a data (“Domingo

23/ É dia de Jorge/ Dia dele passear no seu cavalo branco/ Pelo mundo/ Pra ver

como é que tá”).

O Santo Guerreiro voltou a ocupar espaço central na usina de criação

benjoriana justamente 23 anos depois de Ben. Em 1993, o artista batizou o seu

vigésimo terceiro álbum solo em estúdio de 23. O disco leva uma imagem de São

Jorge na capa (figura 3), acompanhada das palavras “Alegria”, “Energia”,

“Harmonia” e “Simpatia”, além de duas inscrições: “Santo também é muso” e

“As linhas nunca estão ocupadas quando se quer falar com Deus”. O trabalho

chegou às lojas brasileiras justamente no dia 23 de novembro, data em que o santo

também é festejado em localidades como a Geórgia, que proclama feriado

nacional neste dia. Até Elizabeth II, rainha da Inglaterra, recebeu uma cópia das

mãos do embaixador brasileiro em Londres, conforme registra Danuza Leão no

Jornal do Brasil daquele ano. Em uma carta endereçada a Ben Jor, a monarca do

país protegido por São Jorge agradeceu o presente e a chance de conhecer melhor

a música brasileira.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

38

Figura 3 - Capa do disco 23, lançado por Jorge Ben Jor em 1993

Fonte: Warner Music

Abençoado por São Jorge, 23 foi um dos álbuns lançados na década de

1990 que ajudaram a reabilitar Ben Jor depois de uma série de discos com pouca

vendagem no fim dos anos 1980. Estão neles sucessos como “Alcohol”, “Engenho

de dentro” e “Spyrogyra Story”, que continuam a frequentar os setlists do artista

até os dias de hoje. Ao Jornal do Brasil, em 1993, ele falou sobre a devoção ao

Santo Guerreiro eternizada no disco: “Eu sou um guerreiro no bom sentido. Faço

minhas guerrilhas através da minha música, onde quero levar harmonia, energia,

simpatia e alegria. São Jorge, sincretizado no candomblé com o orixá Ogum, é o

meu padrinho, meu santo protetor”.

A canção "Cowboy Jorge", lançada no disco anterior Ben Jor (1989),

ganha uma nova versão no álbum de 1993, com Bi Ribeiro, dos Paralamas do

Sucesso, a cargo do contrabaixo. A letra, que conversa com "Domingo 23", é a

única da lavra de Ben Jor que explora de maneira clara as interconexões entre o

cavaleiro da Capadócia e o orixá da metalurgia.

Ogum, Ogum, Ogum

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

39

Dia 23 continua sendo

Dia de cowboy Jorge

Na terra no ar na terra no mar

Jorge toca com 23 tambores

Jorge toca com 23 amores

Jorge toca com 23 batuqueiros

Jorge toca com 23 terreiros

Na terra no ar na terra no mar

Jorge toca para Deus e para os Santos

Toca para as crianças e para os anjos

(BEN JOR, 1989)

Podem ser encontradas no cancioneiro do artista canções que ecoam as

virtudes do santo, assim como o arquétipo do cavaleiro nobre que combate o mal.

"Cavaleiro do cavalo imaculado", do LP África Brasil (1976a), é uma delas.

Enquanto Rezende (2012) enxerga semelhanças entre o personagem principal da

letra, São Jorge e o próprio autor, Santos (2014) é taxativo ao identificar o

protagonista da canção com o cavaleiro da Capadócia.

É possível achar referência a estes outros cultos nas letras de

Jorge Ben. Cavaleiro do Cavalo Imaculado (1976), por exemplo

é uma composição onde o artista constrói uma imagem de São

Jorge que se distancia do rito estritamente católico. “Ele é Leão

do Império/ Cavaleiro do cavalo imaculado/ Ministro de Zambi

na terra/ O príncipe de toda África”. É possível inferir que

quando se remete a Zambi, deus supremo nos mitos bantos, o

artista seja se referindo à associação que se faz na religiosidade

popular entre São Jorge e Ogum, o orixá da guerra e do ferro. O

título de “príncipe africano” conferido por Ben a São Jorge

também indica alguma inferência das religiões de matriz

africana como o candomblé e a umbanda. (SANTOS, 2014, p.

116)

Simas (2018) argumenta que o sincretismo pode ser entendido como

estratégia de resistência e controle e como fenômeno de fé. Uma via de mão

dupla, onde ambos os lados se transmutam. A incorporação de deuses e crenças

do outro é vista por muitos povos como acréscimo de força vital, e não diluição ou

estratégias pensadas friamente. Sobre Ogum, o historiador nota que o orixá

originalmente ocupa a função de herói civilizador e senhor das tecnologias, de

acordo com a cosmovisão iorubá. Foi ele que ensinou o segredo do ferro aos

orixás e tornou possível a confecção de pás, enxadas, rastelos e arados. É

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

40

interessante notar, também, que a metalurgia que a mitologia de povos africanos

atribui a Ogum ocupa papel fundamental na origem de outro ponto de interesse de

Ben Jor: a alquimia, conforme Eliade (1979).

Ao acelerar o processo de crescimento dos metais, o

metalúrgico precipitava o ritmo temporal: o tempo geológico

era transformado por ele em tempo vital. Essa audaciosa

concepção, segundo a qual o homem assegura a sua plena

responsabilidade diante da Natureza, já nos permite pressentir a

obra alquímica. (ELIADE, 1979, p. 35)

No entanto, em países da como o Brasil e Cuba, a face mais marcante do

orixá, “a do ferreiro, patrono da agricultura, inventor do arado, desligado de bens

materiais senhor das tecnologias que mataram a fome do povo e permitiram a

recriação de mundos como arte” (SIMAS, 2018, p. 73), desapareceu. Para os

indivíduos escravizados, não fazia sentido adorar as ferramentas de trabalho que

eram obrigados a usar pelos senhores nas fazendas e plantações Brasil afora.

Desta forma, o culto ao orixá passou por uma ressignificação, e a imagem do

orixá guerreiro passou a predominar entre os adeptos das religiões afro-brasileiras.

A agricultura nas Américas ficou, afinal, diretamente ligada aos

horrores da escravidão. Como querer que um escravo,

submetido ao cativeiro e aos rigores da lavoura, louvasse os

instrumentos do cultivo como dádiva? Ogum foi perdendo,

então, o perfil fundamental de herói civilizador e seu culto entre

nós, cada vez mais ligado apenas aos mitos do guerreiro. Ogum

é o general e esse perfil militar se reflete nas maneiras como foi

sincretizado. (SIMAS, 2018, p. 73)

A partir desta informação, é possível notar que a linha que liga São Jorge

ao orixá africano passa também por outra canção que pertence, ao mesmo tempo,

dos álbuns de 1974 e 1976: “Zumbi”, que dois discos depois voltaria com um

arranjo mais agressivo rebatizada de “África Brasil”. Nela, a chegada do

protagonista, senhor das guerras e das demandas, é aguardada para vingar as

chagas do dragão metafórico da escravidão em uma fazenda de café, algodão e

cana de açúcar. Depois de enumerar territórios africanos, como Angola, Congo,

Benguela, Monjolo, Cabinda e Mina, o artista pinta um retrato vívido da

exploração de seres humanos no período colonial.

Aqui onde estão os homens

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

41

De um lado, cana de açúcar

Do outro lado, cafezal

Ao centro, senhores sentados

Vendo a colheita do algodão branco

Sendo colhidos por mãos negras

Eu quero ver

Eu quero ver

Eu quero ver

Quando Zumbi chegar

O que vai acontecer

Zumbi é senhor das guerras

É senhor das demandas

Quando Zumbi chega

É Zumbi é quem manda

(BEN JOR, 1974)

É como se o quilombola Zumbi atuasse como um cavalo para o orixá

ferreiro, que – revestido pela armadura de guerreiro que ganhou no Brasil – estaria

vindo para se vingar da degradação da agricultura. Costa e Silva (2014, p.122)

ressalta que esta canção, que originalmente estreou no festival Phono 73, é uma

das poucas de Ben Jor em que o protagonista redentor ainda está para chegar. Ele

argumenta também que o tema da escravidão jamais voltaria a “explicitamente

encenado” por Ben Jor em sua discografia. Da primeira para a terceira versão, o

pesquisador demonstra que é possível notar que o tom do primeiro verso do refrão

(“Eu quero ver quando Zumbi chegar”) vai gradativamente se metamorfoseando,

da esperança até a ameaça.

Zumbi é, portanto, mais uma possibilidade, um sonho, do que

propriamente um herói em ação. Uma possibilidade poderosa,

certamente, pois "Zumbi é senhor das guerras/ senhor das

demandas/ quando Zumbi chega/ É Zumbi é quem manda".

Somente ele pode reverter o quadro de injustiça. (...) Mesmo no

espaço fictício da canção, a lenda histórica do temido guerreiro

do Quilombo dos Palmares permanece circunscrita ao terreno

mítico. "Zumbi" é, nesse sentido, uma das canções mais

realistas de Jorge Ben (...) (COSTA E SILVA, 2014, p. 124)

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

42

A devoção ao Santo Guerreiro não aparece de maneira explícita nesta

canção, mas o arquétipo do nobre combatente que luta contra as injustiça

prevalece, assim como em muitos outros protagonistas virtuosos que de tempos

em tempos irrompem no cancioneiro de Ben Jor. É assim com “Guerreiro do Rei”,

de Ben é samba bom (1964); “Charles Anjo 45”, de Jorge Ben (1969); “Os

cavaleiros do Rei Arthur”, de Sonsual (1985) e “Gabriel guerreiro galático”, de

Ben Brasil (1986), por exemplo. Assim como em "Jorge da Capadócia", destas

canções emana uma certa exaltação da coragem. Parece ser esta uma das

principais razões da identificação entre Ben Jor e São Jorge. Costa e Silva (2014)

argumenta:

Uma coragem sem limites flui de certas músicas de Jorge Ben.

Coragem não significa ausência de desespero ou medo. Ela é

antes a força de seguir adiante apesar do desespero e do medo.

As pessoas alcançam valor e dignidade a partir das inúmeras

decisões tomadas todos os dias. E essas decisões exigem

coragem. Não se trata de uma virtude ou valor, entre outros

valores pessoais, como amor ou a fidelidade. A coragem é antes

o fundamento primordial que sustenta e possibilita as virtudes e

valores. Sem ela, o amor fenece em mera dependência, e a

fidelidade se torna conformismo. Muitas canções de Jorge Ben

inspiram uma atitude de coragem diante da vida. (...) Jorge é um

compositor que exalta o ideal de vida guerreira. A coragem

jamais é confundida com o simples uso da força bruta, sem

direção, mas deve sempre ser conformada pela verdadeira

sabedoria. A impressão é de que se pode efetivamente aprender

a viver a partir das canções de Ben. Elas carregam diretrizes

éticas, ensinamentos, possuem um jeito próprio de enfatizar

valores fundamentais. (COSTA E SILVA, 2014, p. 95)

O apreço do compositor pelo registro mítico é outro fator que o aproxima

de histórias como as de São Jorge e Ogum. Em sua lira, estão espalhadas canções

que operam neste registro. O discurso mitificador de Ben Jor está presente em

canções que tratam de eventos históricos, como a construção do Taj Mahal, mas

também em campos como o esporte, conforme as letras de “Cassius Marcellus

Clay” e “Ponta de lança africano” podem comprovar. O discurso mítico está,

desde o início das civilizações, intrinsecamente ligado ao discurso religioso.

Eliade (1972) afirma que as sociedades arcaicas entendiam o mito como “história

verdadeira”, preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e significativo. O mito, se

configura, então, como uma realidade cultural extremamente complexa, que pode

ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares:

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

43

descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado no

Mundo.

Vemos, portanto, que a “história” narrada pelo mito constitui

um “conhecimento” de ordem esotérica, não apenas por ser

secreto e transmitido no curso de uma iniciação, mas também

porque esse “conhecimento” é acompanhado de um poder

mágico-religioso. Com efeito, conhecer a origem de um objeto,

de um animal ou planta, equivale a adquirir sobre eles um poder

mágico, graças ao qual é possível dominá-los, multiplicá-los ou

reproduzi-los à vontade. (ELIADE, 1972, p. 18)

O antimétodo de Ben Jor faz com que ele domine, multiplique e reproduza

os mitos de acordo com a sua vontade. Quando escreve e canta, o compositor

“vive” e reconfigura o mito à sua maneira. De acordo com Eliade (1972, p. 22), o

indivíduo que recita os mitos reintegra-se ao tempo fabuloso em que ele teria

ocorrido, tornando-se contemporâneo, de certo modo, dos eventos evocados.

Compartilha da presença dos Deuses ou dos Heróis. Ao “viver” o mito, sai-se do

"tempo profano, cronológico" e ingressa "num tempo qualitativamente diferente,

um tempo 'sagrado', ao mesmo tempo primordial e indefinidamente recuperável".

"Viver" os mitos implica, pois, uma experiência

verdadeiramente "religiosa", pois ela se distingue da experiência

ordinária da vida cotidiana. A "religiosidade" dessa experiência

deve-se ao fato de que, ao reatualizar os eventos fabulosos,

exaltantes, significativos, assiste-se novamente às obras

criadoras do Entes Sobrenaturais; deixa-se de existir no mundo

de todos os dias e penetra-se num mundo transfigurado, auroral,

impregnado da presença dos Entes Sobrenaturais. Não se trata

de uma comemoração dos eventos míticos, mas de sua

reiteração. O indivíduo evoca a presença dos personagens dos

mitos e torna-se contemporâneo deles. (...) Reviver esse tempo,

reintegrá-lo o mais frequentemente possível, assistir novamente

ao espetáculo das obras divinas, reencontrar os Entes

Sobrenaturais e reaprender sua lição criadora é o desejo que se

pode ler como em filigrana em todas as reiterações rituais dos

mitos. Em suma, os mitos revelam que o mundo, o homem e a

vida têm uma origem e uma história sobrenaturais, e que essa

história é significativa, preciosa e exemplar. (ELIADE, 1972, p.

22)

Além do particular apreço do compositor pelo discurso mítico, um último

e óbvio fator liga Ben Jor ao Santo Guerreiro: o nome. Jorge não esconde o

orgulho de carregar o mesmo nome próprio que o cavaleiro mitológico da

Capadócia. Além disso, é conhecido por uma boa dose de autorreferência em sua

obra. O resultado mais bem-humorado deste procedimento é a canção “Jorge

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

44

Well”, gravada em seu quarto álbum de estúdio pela Phillips: Big Ben (1969). A

tradução-trocadilho de seu sobrenome artístico e a interpretação em um inglês

autodidata gerou rimas como “Take it easy, girl/ I am Jorge Well”.

Em diversos pontos de sua discografia, Jorge batizou seus personagens

com o nome que ganhou dos pais. “A história de Jorge”, de África Brasil (1976a)

é outra delas. Na letra de tintas surrealistas, Jorge é retratado como o amigo

voador (“amigo anjo”) de um menino. A música começa com um chamado do

músico ao microfone: “Ei, xará!” e prossegue com o relato da amizade entre os

personagens da canção. Mais uma vez, o protagonista aparece como uma espécie

de salvador, capaz de redimir o amigo das humilhações daqueles que não tinham

fé na sua capacidade de voar.

Olha, esta é a história de um menino que tinha um amigo que

voava

E Jorge se chamava

Ninguém acreditava no menino não voava

Quando ele dizia que tinha um amigo que falava, brincava e até

voava

Todo mundo dele caçoava

Um dia Jorge soube de tudo e voou para toda gente ver

O espanto foi geral

E o menino que não voava, feliz da vida gritava:

“Voa, Jorge!”

(BEN JOR, 1976a)

A profunda identificação do compositor com o próprio nome aparece em seu

cancioneiro até mesmo quando ele fala de amor, tema primeiro e mais

proeminente em toda a sua discografia. Na canção “Georgia e Jorge”, registrada

em Alô alô, como vai (1980), ele faz juras de amor para uma mulher que carrega a

versão feminina de seu primeiro nome. “Georgia” já havia irrompido em seu

cancioneiro quatro anos antes, no disco Tropical. De certo modo, na letra da

canção de 1980, Ben Jor parece escrever uma declaração de amor para o próprio

nome. Ao citar as dificuldades que cercam o relacionamento com a amada, o

compositor fornece pistas muito interessantes sobre a maneira com que se

relaciona com o mundo e com a própria religiosidade.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

45

Jorge Jorge (Georgia Georgia)

Isso é que é vida

Isso é que é viver

Céu azul, sol e mar

Isso é que é viver

Chuva de verão, meu violão

Muito amor e você

Que me importam o que digam

Que eu não sou ninguém

Que eu não tenho estudos

Sou até antissocial

Que eu devo procurar o meu lugar

Que eu sou pobre sem tostão

Ah mas eles não sabem

Ah não sabem não

Que eu sou nobre

Tenho um bom coração

Pois na minha oração

Eu rezo com muita fé

Eu rezo com muita fé

E não peço nada

Eu só agradeço a Deus

Por você ser minha namorada

(BEN JOR, 1980)

Ao frisar que é nobre e tem um "bom coração", o Jorge compositor se

aproxima das virtudes com que ele tanto descreveu São Jorge em suas canções.

Assim como o Santo Guerreiro, ele valoriza a fé e a orações como elemento

principais para a definição do seu caráter. Não ter estudos, ser pobre ou pouco

social se tornariam irrelevantes diante dessas qualidades positivas enumeradas na

canção. Mesmo quando fala de amor, o compositor parece tomar emprestadas as

qualidades que ele atribui ao seu santo protetor e xará. Veste as roupas e as armas

de Jorge até quando ama.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

46

Eu só quero que Deus me ajude

E o menino muito mais também

Pois a rosa é uma flor

A flor é uma rosa E o menino não é ninguém

Pois a rosa é uma flor

A flor é uma rosa

E o menino não é ninguém

Olha o menino ui Olha o menino ui, ui, ui, ui

Olha o menino ui

Olha o menino ui, ui, ui, ui

Há seis mil anos o homem vive feliz

Fazendo guerras e asneiras

Há seis mil anos Deus perde tempo

Fazendo flores e estrelas

(“Olha o menino [Frases]”, Jorge Ben

Jor)

3

“Católico apostólico carioca”

São Jorge pode ocupar o capítulo mais conhecido da Legenda aurea

escrita por Jorge Ben Jor desde Samba Esquema Novo (1963) até Recuerdos de

Assunción 443 (2007). No entanto, ele está longe de ser o único no altar erguido

pelo músico em quase sessenta anos de carreira. O compositor já dedicou versos a

pelo outros cinco homens e mulheres santificados pela Igreja Católica, além de ter

escrito três canções citando sua fé em Jesus Cristo. Em entrevista a Globo News

em 2012, o compositor resumiu a sua religiosidade de maneira particular: “Sou

católico e apostólico. Mas não sou romano, sou carioca”.

Por conta disso, seu cancioneiro é fortemente influenciado pelo

catolicismo popular que floresceu na cidade do Rio de Janeiro desde a ocupação

portuguesa do território brasileiro no Século XVI. Faustino Teixeira (2005) nota

que o catolicismo no Brasil revela uma grande complexidade. Segundo o autor,

trata-se de um campo religioso caracterizado por grande diversidade. A

pluralidade é um traço constitutivo de sua configuração no Brasil. Citando Pierre

Sanchis, Faustino afirma que o modo como se firma a identidade católica no país

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

47

envolve “mecanismos de fagocitose” bem peculiares, que traduzem uma

roupagem singularmente plural: “há religiões demais nesta religião”.

É digna de nota também a capacidade de adaptação e ajustamento dessa

religião às novas situações: “quando observada de perto, vemos como ela se abre

e se permite diversificar, de modo a oferecer, em seu interior, quase todos os

estilos de crença e de prática da fé existentes também fora do catolicismo” (p. 16).

O autor conclui que não é possível situar o catolicismo brasileiro num quadro de

homogeneidade. Existiriam, portanto, muitos “estilos culturais de ser católico” (p.

17), como vêm mostrando os estudiosos que se debruçam sobre esse fenômeno.

São malhas diversificadas de um catolicismo, ou se poderia mesmo falar em

catolicismos. Uma dessas formas de manifestação seria o “catolicismo santorial”,

que existe em paralelo à religião oficial centrada no Vaticano.

O catolicismo santorial, para usar uma expressão de Cândido

Procópio Camargo, é uma das formas mais tradicionais de

catolicismo presentes no Brasil desde o período da colonização.

Tem como característica central o culto aos santos. Foi esse

culto que marcou a peculiar dinâmica religiosa brasileira, de

caráter predominantemente leigo, seja nas confrarias e

irmandades, seja nos oratórios, capelas de beira de estrada e

santuários. O catolicismo brasileiro foi durante muito tempo um

catolicismo de “muita reza e pouca missa, muito santo e pouco

padre”. Os santos sempre ocuparam um lugar de destaque na

vida do povo, manifestando a presença de um “poder” especial

e sobre-humano, que penetra nos diversos espaços de vida e

favorece, numa estreita aproximação e familiaridade com seus

devotos, a proteção diante das incertezas da vida (TEIXEIRA,

2005, p. 17)

Desde que deixou os bancos do Seminário São José para tentar a sorte nas

divisões de base do Flamengo e, depois, para servir o Exército Brasileiro, Ben Jor

escreveu canções sobre algumas das figuras santificadas mais veneradas no

território brasileiro. Penso que canções como “Meu glorioso São Cristóvão”, de

Ogum Xangô (1975), “Viva São Pedro”, de A Banda do Zé Pretinho (1978) e

“Santa Clara clareou”, de Bem-vinda amizade (1981), são as melhores expressões

da irrupção deste “catolicismo santorial” citado por Faustino Teixeira (2005), que

enxerga nestas frestas um canal de comunicação entre diferentes religiões.

O que se vê, como no caso do catolicismo majoritário, é a

presença de uma identidade plástica, permeável ao influxo de

outras tradições e sistemas religiosos, ou, pelo menos, de seus

fragmentos. E isso ocorre inclusive em expressões religiosas

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

48

com propostas de exclusivismo religioso (...). Tudo isso é

surpreendente e dá razão a Pierre Sanchis quando fala da

“encruzilhada” que é o catolicismo, de sua pluralidade

inusitada: uma religião que envolve muitas religiões. O

pluralismo religioso se expressa nas frestas de uma pretensa

homogeneidade; ele brilha na “metamorfose das práticas e

crenças reelaboradas” ou reinventadas. Não há dúvida, este é

um país de sincretismo religioso e de intenso trânsito entre

tradições que aparentemente se opõem, mas que de forma

enigmática deixam no outro as marcas de sua tatuagem.

(TEIXEIRA, 2005, p. 22)

A primeira das três canções citadas acima abre o lendário álbum que Ben

Jor gravou ao vivo em estúdio com Gilberto Gil, em 1975. De acordo com o mito,

o disco foi feito por sugestão de Eric Clapton, que teria ficado impressionado com

a performance da dupla brasileira em uma festa no apartamento do executivo da

Phillips André Midani. Embora não seja enquadrado dentro da “trilogia mística”

que compreende A Tábua de Esmeralda, Solta o Pavão e África Brasil, o álbum

foi gravado em um momento em que a religiosidade do compositor se expressava

de maneira mais extrema em seu cancioneiro. Na letra, cita o “glorioso mártir”

que teria levado Cristo nos ombros e pede proteção “nas viagens de terra,

subterrâneo, mar e ar”.

Natural da Cananéia, São Cristóvão teria sido martirizado por volta do ano

250. De acordo com Varazze (2003), era um gigante de quase oito metros. Por sua

força extrema, desejava servir ao senhor mais poderoso do mundo. Em O Livro de

Ouro dos Santos Nilza Botelho Megale (2003) conta que, por algum tempo,

Cristóvão serviu ao próprio diabo pensando ser ele o maior soberano da terra.

Convertido por um ermitão ao cristianismo, passou a praticar a caridade

atravessando velhos, crianças e mulheres nas próprias por um rio caudaloso da

região. Durante uma severa tempestade, um menino pediu para ser levado nos

ombros. No meio do caminho, o gigante parecia estar esgotado diante do peso

descomunal que aquela frágil criança fazia em seu dorso. Então, o pequeno disse:

“Eu sou Jesus e estais carregando nas costas o Redentor e os pecados do mundo”.

Em Legenda aurea, o frade medieval registra:

Cristóvão antes do batismo chamava-se Réprobo, mas depois

passou a ser Cristóvão, que quer dizer Chrístum forens, “aquele

que carrega Cristo”, pois o carregou de quatro maneiras: sobre

as costas para transportá-lo, em seu corpo por meio da

maceração, em sua mente por meio da devoção, em sua boca

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

49

por meio da confissão ou da pregação. (VARAZZE, 2003, p.

571)

Como boa parte dos santos de então, passou a ser perseguido por professar

a fé em Cristo na Ásia Menor e teve um final trágico. Foi preso durante o período

de governo do imperador romano Décio. Torturado na prisão, foi degolado no dia

25 de julho. É neste dia que as celebrações ao santo acontecem no Brasil, com

procissões de carros, motos e caminhões. Por ter levado Cristo nos ombros, é tido

como protetor dos motoristas. O martírio e a relação com os transportes são

elementos centrais da canção gravada por Ben Jor e Gilberto Gil, em 1975.

Assim como São Cristóvão, Ben Jor sempre demonstrou especial interesse

na proteção das parcelas mais desprotegidas da sociedade. Isto fica evidente na

canção “Velhos, flores, criancinhas e cachorros”, de Solta o Pavão, que será mais

profundamente analisada no capítulo que investiga a relação do compositor com a

alquimia. Mas o desejo de livrar crianças do mal também aparece em “Olha o

menino”, de O Bidu: Silêncio no Brooklyn e epígrafe deste capítulo, e em “Não

desanima, João”, de Sacundin Ben Samba.

“Santa Clara clareou”, de Bem-vinda amizade (1981), é outra canção de

Ben Jor a dialogar com o catolicismo popular e suas tradições e simpatias. Nesta

canção, o compositor não contempla os detalhes biográficos da santa nascida em

Assis, na Itália, ou os seus milagres. Ele retira o título de um trecho da oração

dedicada à santa e versa sobre seu “poder” de transformar o tempo chuvoso em

ensolarado. No país, é comum que se ofereça uma dúzia de ovos para Santa Clara

a fim de conseguir um dia de sol. O Papa Francisco, quando visitou o Brasil para a

Jornada Mundial da Juventude de 2013, fez alusão a essa simpatia popular para

frear o mau tempo que atormentava o Rio de Janeiro.

De manhã bem cedinho

Com despertar alegre

Do canto dos passarinhos

Bonito como Deus gosta...

O Sol nasceu

Para a vida e o amor

Enxugando sereno

Com seus raios solares

Cheio de esplendor

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

50

Com toda a beleza celestial

Em homenagem a Santa Clara

Santa Clara!

Santa Clara clareou

Oh! Oh!

E aqui quando chegar

Vai clarear

(BEN JOR, 1981)

“Viva São Pedro”, gravada por Ben Jor em A Banda do Zé Pretinho

(1978), completa a tríade de homenagens benjorianas a santos populares. A

canção até cita dados bíblicos atribuídos ao apóstolo, como “pescador da Galileia”

e “amigo de Thiago e João”. De acordo com Megale (2003), São Pedro foi

testemunha de todos os atos importantes da vida de Cristo, mas negou-o na hora

da Paixão. Apesar disso, Jesus, ao ressuscitar, consagrou-o como Pastor de seu

“rebanho”. Depois de Pentecostes, Simão Pedro anunciou Jesus aos judeus,

organizando as igrejas de Samaria e da Costa Mediterrânea, indo posteriormente

para Roma. A autora lembra também que São Pedro é considerado pelo povo

como um santo bonachão, e há mesmo uma certa irreverência a seu respeito.

A letra de Ben Jor se concentra mais nos festejos que celebram o “porteiro

do Céu” e padroeiro dos pescadores no dia 29 de junho. Novamente por influência

das tradições populares portuguesas, as festas de São Pedro no Brasil formam,

junto com as de Santo Antônio e de São João, as festas juninas. E, por conta disso,

o autor recorre a elementos típicos destes festejos para a sua louvação.

Viva São Pedro

Vou soltar um belo balão

Eu vou

Nas cores vermelho, azul e rosa

Vou fazer uma fogueira bem quente

Pois eu sei que na minha festa vai ter gente

Vai ter arrasta-pé

Pé-de-moleque

Caldo verde

Quentão

Canjica

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

51

Batata doce

Sardinha na brasa

Pipoca

Fogos

E muita animação

Em homenagem a São Pedro

O santo dos pescadores

(BEN JOR, 1978)

Também é importante salientar que a manifestação desses elementos

religiosos do catolicismo se dá até nos momentos em que o autor se vale do

humor para escrever. Fortemente inspirado na sonoridade da Jovem Guarda, o

compacto de 1966 — que continha “Aleluia (É nome de mulher)” e “Você não é

Ave Maria mas é cheia de graça” — evidencia isso. As duas canções giram em

torno do amor, mas são recheadas de termos e expressões empregados

cotidianamente por adeptos do cristianismo. O mecanismo se repete em “Aleluia,

aleluia (E ainda tem mais)”, composição em que o Ben Jor faz uma bem-

humorada confissão sobre a própria fé:

Sou da paz e do amor

Sou pra frente, sou pro alto

Minha fé é limitada,

sou crente desconfiado

Mas meu sentimento é puro e sincero

(BEN JOR, 1976b)

É certo que a admiração do autor pelas figuras santificadas decorre, em

certa medida, de seus estudos no Seminário São José, no Rio de Janeiro. De

acordo com Ben Jor, durante dois anos ele fez parte do seminário menor da

instituição, localizada na Avenida Paulo de Frontin, no Rio Comprido. O

seminário menor é voltado para alunos jovens, ainda em idade escolar. Na

instituição, eles recebiam o ensino normal, o que nos dias de hoje corresponderia

ao Ensino Médio. Além disso, preparação prévia para o estudo universitário de

Filosofia e Teologia.

Atualmente, de acordo com o site oficial da entidade, “os alunos realizam

as orações canônicas de Laudes, Vésperas e Completas previstas na Liturgia da

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

52

Horas, cultivam a salutar e necessária devoção à Virgem Maria, participam de

retiros espirituais e possuem um diretor espiritual, pelo qual são dirigidos

regularmente”1. Procurada, a administração do Seminário informou que perdeu

boa parte de seus arquivos históricos por conta das “mudanças de sede” e de

“sucessivas reformas” e que, por conta disso, não possui mais qualquer registro da

passagem do pequeno Ben Jor pelo lugar nos anos 1960.

É possível afirmar que o ensino que ele recebeu nas salas de aula da

instituição se refletiram na sua obra tanto no conteúdo – com os temas religiosos –

quanto na forma. Influenciado pela tradição do canto gregoriano, que conheceu

quando fez parte do coral do colégio preparatório para sacerdotes, ele desenvolveu

uma certa preferência por composições em tom menor — que a tradição da

música erudita associa a temas tristes. No entanto, como salienta o historiador

Renato Santoro Rezende, a música de Ben Jor não necessariamente respeita essa

concepção. O músico, que certa vez declarou com orgulho jamais ter escrito uma

música melancólica, se valeu da escala menor para falar de felicidade. O debute

em “Mas que nada” é um dos exemplos mais bem acabados dessa estratégia

benjoriana.

Outro marco da sua infância, destacado por Jorge como

determinante para a sua carreira musical, foram os dois anos

que estudou no Seminário São José, no Rio Comprido. Ali,

além de suas primeiras incursões como cantor – cantando no

coral do Seminário – Jorge acabou definindo uma de suas

marcas como compositor: a utilização de tons menores.

“Minhas melodias, antigamente, saíam todas em tom menor.

(...) Tive uma escola de dois anos no Seminário, e lá se cantava

tudo em menor. A influência ficou. Era tudo suavezinho... ‘Mas

que Nada’, ‘Chove Chuva’, é tudo menor” Essa característica é

curiosa na obra do artista, pois suas músicas são quase que em

sua totalidade muito alegres e festivas ou, como se diz

popularmente, “pra cima”. Em certa tradição, os tons menores

são associados a canções de cunho melancólico, mais

introspectivas e sugerem um caráter triste. Esses adjetivos são

opostos às composições de Jorge, de um modo geral exaltadas,

alegres e com uma mensagem positiva, mesmo havendo um

grande número de músicas compostas em tons menores.

(REZENDE, 2012, p. 11)

A passagem pelo seminário e consequente contato com o estudo mais

profundo das teses e tratados sobre teologia legaram outro elemento fundamental

1 Disponível em http://seminariosaojose.org.br/seminario-menor/

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

53

para o cancioneiro de Ben Jor: a devoção a Santo Tomás de Aquino. O cantor e

compositor carioca explicou a sua relação com o fundador da Escolástica na

entrevista concedida a Pedro Alexandre Sanches para a revista Trip, no ano de

2009:

Aprendi latim por causa de São Tomás de Aquino. Ele tem uns

textos lindos, a Suma teológica... Saber que um santo como ele

era um alquimista famoso... É demais, pra você ver, São Tomás

de Aquino escreveu uma coisa simples, bonita e poderosa [fala

em tom recitado]: “O mundo é um suceder de níveis, desde a

matéria inanimada até a suprema beatitude do ser eterno, que é

Deus”. Ele diz que a primeira lei natural é a conservação da vida

– todo mundo quer conservar a vida –, depois a geração, que é

ter filhos e educar os filhos, e depois o desejo de verdade. (BEN

JOR, 2009)

Nilza Botelho Megale (2003, p. 202) registra que Tomás era “descendente

da nobre estirpe dos condes de Aquino, unido a lados de sangue com diversas

dinastias reinantes”. Nasceu em 1225 no castelo de Roccasecca, localizado entre

Roma e Nápoles. Aos 16, resolveu abraçar a vida religiosa, mas encontrou forte

oposição da família. Fugiu de casa para entrar em um convento dominicano, mas

por ordens do pai e dos irmãos, foi trazido de volta e trancado na torre do castelo

onde nascera. Com a ajuda de uma corda, desceu pela janela e rumou a Nápoles,

para, um ano depois, pronunciar seus votos religiosos. Escolheu a Ordem

Dominicana porque desejava difundir a fé cristã e os dominicanos eram os

grandes pregadores da época.

Estudou em Paris e Colônia, na Alemanha, sob a direção de

Santo Alberto Magno, recebendo o título de Mestre. Introduziu

com seu professor a mais radical inovação intelectual, baseada

na filosofia de Aristóteles, apesar das críticas que chegaram de

todos os lados. A oposição contra sua doutrina durou pouca e a

verdade sobrepujou as paixões. Estabeleceu um novo método de

estudo e com isso sua reputação se espalhou pela Europa, sendo

convidado a lecionar em vários centros culturais do velho

mundo. Bacharel e professor de teologia, aos 27 anos assumiu o

cargo na universidade de Paris, o grande centro de estudos

teológicos, onde o rei São Luís o procurava frequentemente para

ouvir-lhe os conselhos. São Tomás de Aquino foi o maior gênio

da filosofia escolástica e sua influência perdura até hoje.

Mostrou que a razão não se opõe à fé e que filosofia e teologia

são ciências distintas. Escreveu várias obras, entre elas: Summa

contra os gentios, Do ser e da essência, porém a mais

importante foi a Suma Teológica, que consagrou sua doutrina e

à qual dedicou grande parte de sua existência. Faleceu a 7 de

março de 1274, na abadia cisterciense de Fossa Nova (...). Pela

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

54

sua vida ilibada e profunda inteligência foi comparado aos

espíritos celestes e recebeu os títulos de Doutor Angélico e

Príncipe dos Escolásticos. Canonizado em 1323 pelo Papa João

XXII, admirador e leitor assíduo de suas obras, foi declarado

Doutor da Igreja em 1567, pelo Papa Pio V. (MEGALE, 2003,

p. 202)

A obra de Santo Tomás de Aquino aparece de maneira direta em duas

canções de Ben Jor. "Assim falou Santo Tomás de Aquino" é a primeira delas,

registrada no álbum Solta o Pavão, de 1975. Nesta música, Ben Jor usa a

recorrente estratégia de transliteração, em que repete trechos inteiros de textos de

terceiros. Neste caso, o texto em questão é a Suma Teológica, escrita por Aquino

entre 1265 e 1274, em que o autor trata da relação entre os seres humanos e Deus.

A semelhança da criatura com Deus é tão imperfeita que não chega

a ser do gênero comum

Comum

Pois certos nomes que implicam relação de Deus com a criatura

dele se predicam temporariamente

E não são eternos

Não são eternos

E não são eternos

Deve-se saber que quem ensinou que a relação não é uma realidade

da natureza

E sim da razão

Estão enganados, puramente enganados

Estão errados, puramente enganados

Deus não é uma medida proporcionada ou medido

Por isso não é necessário que esteja contido

No mesmo gênero da criatura

No mesmo gênero da criatura

Da criatura

Por isso dobro os meus joelhos diante do Pai de Nosso Senhor

Jesus Cristo

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

55

Do qual toda Sua sábia paternidade tomou nome nos céus e na

Terra

Assim falou Santo Tomás de Aquino

(BEN JOR, 1975)

É importante lembrar que Santo Tomás de Aquino é um dos pontos de

ligação entre a fé benjoriana e o estudo da alquimia. Após a sua morte, pelo

menos dois conjuntos de tratados alquímicos seriam atribuídos ao santo: “Aurora

Consurgens” e “Da Pedra Filosofal e Sobre a Arte da Alquimia”. O disco de 1975,

como veremos adiante, é um dos álbuns em que o compositor explora o assunto

com maior profundidade. Também à Trip, ele falou sobre a fama de alquimista

que cerca o santo italiano.

A igreja proíbe falar que ele foi alquimista. Proíbe, mas ele foi.

O papa Silvestre deixava, isso no século 13, porque São Tomás

de Aquino era um cara de família riquíssima. E ele quis ser

padre, monge. Seus pais tinham preparado ele pra ser o conde

de Assis, maravilhoso, ricaço. Tanto que se internou sozinho.

Foram tirá-lo de lá, e ele falou: “Quero ser padre, gosto daqui”.

Em pleno século 13 ele escreveu aquilo tudo, já fazia arte com

alquimia. (BEN JOR, 2009)

A segunda menção ao Aquinate na obra de Ben Jor se dá justamente em seu

penúltimo álbum, o primeiro de estúdio do Século XXI. Em Reactivus Amor Est

(Turba Philosophorum), Jorge retoma os temas da alquimia e cita Santo Tomás de

Aquino em “C 589”, que faz referência ao cânon 589 do Código de Direito

Canônico e termina dialogando com a canção registrada em Solta o Pavão.

O Cânon 589 estabelece

Que o estudo da filosofia e da teologia

Deve ser feito de acordo com o ensinamento

De Santo Tommaso D'Aquino

O mundo é um suceder de níveis

Desde a matéria inanimada

Até a suprema beatitude

Do ser eterno que é Deus

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

56

A primeira lei natural

A conservação da vida, a geração

A educação dos filhos

O desejo de verdade

A segunda lei humana

Positiva estabelecida pelo homem

Com base na lei natural

E dirigida à utilidade comum

A terceira lei divina

É guiar o homem para o bem sobrenatural

E para o bem temporal

Assim falou o Santo Tommaso D’Aquino

(BEN JOR, 2004)

Além da clara relação da obra benjoriana com o estudo da teologia de

Santo Tomás de Aquino, Parreiras (2018) entende que o apreço do compositor

pela figura do anjo é um dos pontos que o ligam ao religioso italiano. Ben Jor usa

o anjo para falar de amor, como em “Anjo azul”, de Sacundim Ben Samba; para

retratar um homem fora da lei, tal qual “Charles Anjo 45”, de Jorge Ben, que

concorreu no IV Festival Internacional da Canção de 1969 (figura 4); e também

para filosofar, como em “Ma ma ma mamãe (A língua dos anjos)”, de Alô Alô

Como Vai (1985) e “Gabriel Rafael Miguel”, também de Turba Philosophorum.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

57

Figura 4 - Ben Jor apresenta “Charles anjo 45” no IV Festival Internacional da Canção,

1969

Fonte: Agência O Globo

Parreiras (2018) cita os versos de “Ave anjos angeli”, de Homo Sapiens

(1995) como exemplo. A canção começa com Ben Jor enumerando uma série de

valores positivos e comuns ao seu modo de ver o mundo: verdade, amor,

sabedoria, felicidade, síntese, clareza, confiança, abundância, ação correta, justiça,

renascimento, beleza, harmonia, força, vitória, glória, paz, comunicação e alegria.

Daí, a letra segue com mais uma profissão de fé em seu cancioneiro.

Anjo, anjo, anjo, anjo, anjo

Minha fé me faz a cabeça

Ela me faz com certeza

Senhora das águas

Senhora dos ventos

Senhora das flores

Senhora dos amores

Dá licença d'eu tocar nesse lugar

Dá licença d'eu cantar nesse lugar

Quero tocar pros anjos

Quero cantar pros anjos

Seraphim, Cherubim

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

58

Cherubim, Seraphim

Throni

Dominatione

Virtutes

Potestates

Principatus

Archangeli

Angeli

Seraphim, Cherubim

Cherubim, Seraphim

(BEN JOR, 1995)

Em sua monografia, Natália Parreiras (2018, p. 22) argumenta que “não é

possível adentrar o universo de São Tomás de Aquino sem deparar-se com a

questão inerente ao SER: A metafísica. Para muito além do conceito de

‘mensageiros divinos’, os Anjos possuem uma influência definitiva na obra de

Ben Jor, justamente pela enorme relevância que possuem nos estudos Tomistas”.

Aproximar o homem do divino parece mesmo ser a maior

experimentação metafísica de Jorge Ben Jor enquanto tece seus

labirintos melódicos, rítmicos e vocabulares. Quando

observamos a letra da canção acima ["Ave anjos angeli"],

percebemos que existe um culto ritualístico que funde uma das

instâncias mais primordiais da linguagem - quando o autor faz

uso recorrente do latim - e, através de cada palavra escolhida

com precisão “cirúrgica”, constrói a evocação das forças

transformadoras da natureza, dos astros e das energias

especulares para criar uma atmosfera de aproximação: A fé, o

amor e o divino se entrelaçam de modo a traçar paralelos e rotas

coincidentes para a evolução do homem e para guiar a

descoberta da instância maior do propósito da vida humana:

Amar o Amor mais próximo do intangível, o amor da potência.

Sim, esse seria o propósito genuíno da criação para o qual todos

os seres humanos seriam destinados. (PARREIRAS, 2018, p.

25)

A desenvoltura de Ben Jor com o latim se manifesta em outros episódios

da produção do artista. Não é de todo raro que o artista se valha do conhecimento

adquirido no Seminário São José para se aventurar na língua dos antigos romanos.

Talvez a melhor expressão disso seja “Errare humanum est”, de A Tábua de

Esmeralda (1974). “Cantileñas de São Victor”, de Salve Simpatia (1979) e “A

fonte de Paulus V”, de Ben Brasil (1986) também apresentam experiências do

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

59

cantor com o idioma. A primeira, inclusive, é um tanto obscura. Ben Jor usa a

mesma fórmula empregada com Santo Tomás de Aquino (“São Victor escreveu e

falou”, “Cantou para quem quisesse ouvir”, “São Victor escreveu”, “São Victor

cantou”) para citar ipsis literis trechos na língua morta. No entanto, na hagiografia

da Igreja Católica não existe nenhum São Victor que tenha se dedicado a escrever

súmulas ou tratados. O compositor talvez esteja se referindo a trechos de autoria

do cardeal Hugo de São Victor, filósofo, teólogo e autor místico que viveu

durante a Idade Média.

É também em língua estrangeira que alcançamos o último eixo temático

deste capítulo. Além dos santos e teólogos homenageados ao longo da sua

carreira, Ben Jor reservou um espaço significativo em seu cancioneiro para louvar

Jesus Cristo. Pelo menos três letras em sua discografia citam o filho de Deus de

maneira direta. A primeira dela é fortemente influenciada pelo soul norte-

americana e foi composta em inglês: "Brother", também presente no célebre A

Tábua de Esmeralda. Santos (2014, p. 99) nota que esta é a canção de Ben Jor que

“mais evidencia alguma influência da Soul Music americana, e mais

especificamente do Gospel”.

Brother (brother)

Brother (brother)

Prepare one more happy way for my Lord

With many love and flowers, and music, and music

Brother (brother)

Brother (brother)

Prepare one more happy way for my Lord

With many love and flowers, and music, and music

Jesus Christ is my Lord, Jesus Christ is my friend

Jesus Christ is my Lord, and Jesus Christ is my friend

(BEN JOR, 1974)

A partir da leitura de Amanda Palomo, Santos (2014) ressalta que da fusão

do Gospel e do rhythm and blues surgiu a Soul Music. E que gospel normalmente

é o termo usado para definir a forma dos Negro Spirituals, um gênero musical

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

60

surgido de uma rearticulação dos hinos evangélicos com concepções do que seria

um canto coral africano ou afro-americano. “Brother”, portanto, é uma canção de

tintas religiosas tanto na letra quanto na forma.

A conexão de Ben Jor com elementos musicais e religiosos presentes na

cultura norte-americana não se dá apenas através dos meios de comunicação de

massa. Após o sucesso de “Mas que nada” no Brasil, Ben Jor recebeu uma bolsa

do Itamaraty para percorrer os EUA com apresentações ao lado de Sérgio Mendes.

A temporada de meses passada lá aproximou Ben Jor dos costumes e visões de

mundo presentes na sociedade dos Estados Unidos, sobretudo na comunidade

afro-americana. Desde o seu retorno, ele passou a incluir elementos do Soul e do

Funk em sua sonoridade. Em 1971, ele lança “Negro é lindo”, que estava em total

consonância com os desejos e aspirações do crescente movimento negro dos

EUA, presentes no slogan “Black is beautiful”.

“Jesus de Praga”, de Tropical (1976b), posteriormente regravada como

“Menino Jesus de Praga”, em A banda do Zé Pretinho (1978) é outra

manifestação da devoção do autor em Jesus Cristo. No entanto, a canção é

também uma manifestação do “catolicismo santorial” que se mostrou bastante

comum na obra de Ben Jor.

Salve o menino

Salve o bom menino

De Jesus de Praga

Lá lá, lá lá

Nas horas fáceis e difíceis

Me ajudou e me mostrou o amor

Nos caminhos errados e perigosos

Me protegeu e me guiou

Com a sua cândida inocência de menino santo

Ele vai pelo mundo

De canto em canto

Ouvindo lamentos e prantos

Pedindo ao seu pai, Nosso Senhor

Que lhe ajude a proteger os que dele necessitar

Com perseverança, carinho, fé e amor

(BEN JOR, 1976b)

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

61

O autor escreveu a canção acima inspirado em uma famosa imagem do

menino Jesus venerada na Igreja da Nossa Senhora Vitoriosa em Praga, na

República Tcheca. Com apenas 47 centímetros, a peça de madeira é decorada com

vestes ricamente bordadas doadas pelos fiéis, que atribuem a ela os mais

prodigiosos milagres. É a essa reputação a que o compositor se refere quando

canta a música composta no fim dos anos 1970.

Por fim, a “A terra do filho do homem (Jerusalém)”, de Sonsual (1985), é

uma das canções mais bíblicas de todo o repertório do artista: fala do Milagre da

Anunciação e do nascimento de Cristo. Na letra, ele reúne outros elementos

comuns a suas canções de cunho religioso e cristão, como o anjo Gabriel, a figura

dos santos: São José e Santa Maria, e a narração de eventos épicos acontecidos em

um passado distante. O Oriente, assim como nas canções em homenagem a São

Jorge e na história de vida de São Cristóvão, é mais uma vez o território escolhido

por ele para encenar a canção.

Jerusalém, Jerusalém

A terra do Homem

A terra do Filho

A terra do Filho

Do Filho do Homem

Jerusalém, a terra do Filho

Um dia lá no Oriente

Desceu do céu um anjo chamado Gabriel

Um anjo benfeitor que avisou Maria

Que o Divino Espírito Santo lhe fecundou

Maria ia ter um bebê, um bebê em Belém

Jerusalém, Jerusalém

A terra do Homem

A terra do Filho

A terra do Filho

Do Filho do Homem

Jerusalém, Jerusalém

José no princípio se grilou

Mas meditando e dormindo ele sonhou

Com uma voz amiga que lhe dizia

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

62

Não tenha medo em receber Maria

E depois que o menino nascer

Fuja com eles para o Egito

Escaparás da tirania do rei Herodes

E sua quadrilha

Serás o guardião do Filho de Deus

E de Maria

Virão de terras distantes

Guiados por uma estrela guia

Três reis magos para abençoar

Três reis magos para presentear

Trazendo mirra, incenso e ouro

Para o menino Rei que nascerá em Belém

No dia vinte e cinco de dezembro no Natal

Em Belém

(BEN JOR, 1985)

Seja a partir do “catolicismo santorial”, que transborda em suas

composições ao longo da carreira, dos tratados de teologia que estudou no

seminário, ou da fé pura e simples na figura de Jesus Cristo, Ben Jor se afirma

como o "católico apostólico carioca", com todas as frestas e possibilidades que

esta definição pode oferecer. Se não é possível situar o catolicismo brasileiro num

quadro de homogeneidade, e se existem muitos estilos culturais de ser católico, é

possível afirmar que na obra do autor pode-se enxergar este fenômeno de

amálgama de maneira muito cristalina. Sobretudo quando sincrética e misturada, a

lira benjoriana parece abarcar todos os catolicismos forjados pelo povo brasileiro.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

63

A conga está chamando

Vamos todos até lá

Pois a tamba está tocando

Hoje nós vamos sambar

Ié, ié, ié, ié, ié, iá

Ié, ié, ié, ié, ié, iá

Desde que se foi O nosso Rei Nagô, ô, ô

Ninguém jamais fez samba

Ninguém jamais cantou

Ô, ô, ô, ô Um lamento ou uma canção de amor

("A Tamba", Jorge Ben Jor)

4

Ponta de lança africano

Ben Jor mantém com o continente africano uma relação umbilical, que

conversa com a ancestralidade do artista e a cultura com a qual ele teve contato

desde menino. O reflexo desta profunda conexão de um herdeiro da diáspora com

o continente que gestou os seus antepassados é latente em todas as diferentes fases

pelas quais atravessou o seu repertório. Ela se afirma de maneira mais

contundente e poderosa em discos gravados na década de 1970, como Negro é

lindo (1971) e África Brasil (1976a), mas essa marcada ligação já se manifesta de

maneira cristalina logo em sua canção “inaugural”, o primeiro sucesso que

alavancou o desenvolvimento de sua carreira: “Mas que nada”. A canção faz

referência ao Preto Velho, entidade muito popular entre os adeptos da umbanda.

Esse samba

Que é misto de maracatu

É samba de preto velho

É samba de preto tu

(BEN JOR, 1963)

Esta relação entre Ben Jor e África foi largamente percebida e analisada

pela crítica quando do seu surgimento no mercado fonográfico, e é um dos

aspecto mais estudados por aqueles que se dedicam a pesquisar a obra do autor em

trabalhos acadêmicos. Santos (2014) avalia que a música registrada no álbum de

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

64

estreia do artista, Samba Esquema Novo (1963), é a primeira composição do autor

a refletir aquilo que o pesquisador chama de “texto negro”. O pesquisador avalia

que a menção ao preto velho na letra pode ser entendida como uma referência às

religiões de matriz africana, como a umbanda. Apesar de reconhecer uma

influência estética da bossa nova em “Mas que nada”, Santos (2014) afirma que o

que prevalece na canção é justamente o “texto negro”:

É possível perceber na estética sonora desta canção uma

influência da bossa nova: um violão suave, mas ao mesmo

tempo sincopado, carregado na contrametricidade, fazendo

referência ao samba. Para além da estética bossa-novista, em

Mas que nada é possível perceber um determinado texto que vai

reaparecer ao longo de sua obra: um texto que vou chamar de

negro, com referências a uma ancestralidade africana e as

tradições afro-brasileiras. [...] Estou lançando mão desta

categoria no intuito de dar conta do discurso de afirmação de

uma identidade negra orgulhosa que pode ser percebido nas

letras, canções e nas performances deste artista. O texto negro

pode ser definido como um discurso que defende a igualdade

racial, evoca com orgulho uma imagem grandiosa do continente

africano, como a terra de seus ancestrais, valoriza as tradições

afro-brasileiras, incluindo a religiosidade popular e o culto aos

orixás, e chama atenção para a beleza dos sujeitos negros,

questionando os padrões estéticos vigentes. (SANTOS, 2014, p.

40)

O “texto negro” não é a única manifestação de uma herança africana no

trabalho artístico de Ben Jor. Renato Santoro Rezende nota que Ben Jor – apesar

de circular por gêneros como bossa-nova, rock e soul – está intimamente ligado ao

ritmo afro-brasileiro mais conhecido no mundo: o samba. A conexão benjoriana

com elementos de origem africana, portanto, não se dá apenas no campo do

discurso, mas sobretudo no campo do ritmo.

Transitar entre diferentes gêneros musicais – geralmente

relacionados com alguma origem “afro” – foi uma constante ao

longo de toda a carreira do artista. Contudo, pode-se dizer que

sua “raiz” (ou aquilo que esteve presente ao longo das mais

diferentes manifestações da sua música) sempre foi o samba. As

síncopas, temáticas e instrumentação do samba sempre serviram

como ponto referência para a sua música. Mesmo quando os

seus arranjos aproximavam-se mais do rock (como no disco O

Bidú – Silêncio no Brooklin) ou do funk norte-americano (em

África Brasil), os elementos do samba sempre estão presentes.

(REZENDE, 2012, p. 12)

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

65

Ben Jor é africano no discurso e no ritmo porque é africano no corpo. A

maneira original e percussiva com que suas mãos atacam as cordas do violão e da

guitarra — que algumas vezes soam como uma escola de samba completa na

avenida e outras como os tambores encantados dos terreiros do Brasil — deixa

bem evidente que os costumes e tradições das religiões afro-brasileiras fazem

parte do rol de influências do artista. Sobre a maneira de Ben Jor palhetar o

violão, Rezende (2012) nota que — apesar de derivado da bossa nova — o

instrumento tocado pelo músico apresenta singularidades desde a afinação até o

encadeamento harmônico.

Uma das marcas mais características da sonoridade de Jorge

Ben é a sua batida de violão. Embora seja muito lembrado e

reconhecido pela sua maneira de tocar o instrumento, Jorge

“descobriu o violão quando entrou para o exército em 62”

apenas um ano antes de lançar o seu primeiro disco. Apelidado

de Pinho Envenenado 22, seu violão possui, já na afinação, uma

singularidade, a corda Ré é afinada em Sol. Essa característica

já é suficiente para fazer com que mesmo utilizando harmonias

simples – com poucos acordes alterados – ou mesmo

encadeamentos harmônicos muito comuns no universo de

música pop e do blues norte-americano – como a cadência II-V-

I – a sua sonoridade seja muito diferente. “Estava mais para os

três acordes empregados na jovem guarda do que para o

refinamento exigido na MPB da época” (TATIT, 1996). Em

entrevista à revista Rolling Stone, Jorge afirma que tentava

copiar as complexas harmonias da bossa nova, porém sem

sucesso. Com isso, acreditava que o resultado dos seus

encadeamentos harmônicos parecia sempre estar errado.

(REZENDE, 2012, p. 23)

Na produção de Ben Jor, aquilo que muitas vezes seria encarado pelos

puristas — das letras e da música — como erro, é incorporado de maneira original

em sua produção. Sejam os versos disformes, adaptados de acordo com a

capacidade vocal do artista, sejam os encadeamentos harmônicos “quebrados”,

que dão às canções certo exotismo e sobrevivem graças às soluções encontradas

pelo artista de posse seu violão, sincopado pela influência do samba. Tatit (2012)

nota que aqueles que “não captam sutilezas melódicas fora de um enquadramento

musical estável” podem enxergar no trabalho de Ben Jor “insuficiência” musical

ou “mau gosto” criativo:

Perceber apenas isso é ficar na superfície do trabalho,

observando sua feição de época, comprometida com a moda

vigente. Pouco ou nada tem a ver com a composição em si.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

66

Nesta, Jorge Ben Jor inaugura uma conduta de criação em que

qualquer fragmento de texto pode ser resgatado melodicamente

sem prejuízo da naturalidade enunciativa. Qualquer texto pode

ser tomado de primeira, bem mais pelo conteúdo linguístico que

pela justeza métrica. Cabe à elasticidade melódica corrigir

algum desvio de trajetória que não colabore com a meta final.

Esse nível de utilização dos recursos figurativos nunca foi

atingido por qualquer outro compositor brasileiro (...). Sua

dicção é, igualmente, um paradigma na história da canção

brasileira, ainda muito pouco explorado como recurso de

evolução da linguagem. (TATIT, 2012, p. 220)

Em recente artigo publicado pela revista Cult, o historiador Luiz Antonio

Simas esboça o conceito de “cultura da síncope” enquanto faz um paralelo entre a

umbanda e o futebol. Apesar de não ter sido citado por Simas, penso que Ben Jor

pode ser visto como um dos representantes mais reluzentes desta cultura, que

privilegia o drible, a adaptação inventiva do tempo e do espaço em busca do gol.

A síncope subverte a normatização, busca caminhos que não são

os do enfrentamento, joga com o tempo e o contratempo no

deslocamento do jogo rítmico, traz o segredo da polirritmia

típica da música africana: o bailado sonoro de padrões rítmicos

complexos, geralmente envolvendo um ritmo tocado contra o

outro, que na contraposição se complementam para dar conta

das sutilezas, mais que do som, da vida. As culturas de síncope,

por sua vez, dialogam com o drible, já que são capazes de

“garrinchar” tempo e espaço. E aí penso mesmo no futebol. O

jogo inventado pelos britânicos consistia na tentativa de evitar o

adversário por meio de lançamentos longos, bolas alçadas em

direção ao arco inimigo – o famoso “chuveirinho”, na

linguagem dos boleiros. Em vez do chuveirinho, ou da troca de

passes curtos ou longos, o futebol brasileiro se caracterizou pela

estratégia do drible, aquela que foi corporificada em sua

potência mais ampla por Mané Garrincha. O drible consiste na

tentativa de burlar o inimigo pelo deslocamento do corpo/bola

para o espaço vazio, aquele onde o oponente não está e não

pode chegar. Ao subverter a norma da marcação (como faz a

síncope) e propor o ritmo quebrado, necessariamente inusitado,

capaz de deslocar o jogo para a brecha, Garrincha abre o campo,

amplia o horizonte de possibilidades que, em suma, podem

levar ao gol. (SIMAS, 2020)

Ben Jor é corpo elástico em movimento, que dribla as estruturas fixas das

partituras europeias para gestar canções que abrem o campo, ampliam as

possibilidades que levam ao gol. Logo depois do seminário, o futebol fez parte

dos anos de formação do artista: foi aspirante a jogador profissional do Flamengo

e só parou às vésperas da maioridade. Como é costumeiro acontecer em sua lira,

este interesse se refletiu de maneira cristalina nas letras de Ben Jor, que compôs

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

67

“Fio Maravilha” (Jorge Ben, 1969), “Zagueiro” (Solta o Pavão, 1975), “Ponta de

lança africano” (África Brasil, 1976a) e “Cadê o pênalty?” (A Banda do Zé

Pretinho, 1978). Na canção de 1976, Ben Jor exalta os predicados de um

futebolista africano cujo talento era tamanho que — sozinho — esvaziava as ruas

de Paris quando atuava nos gramados do futebol francês. O sucesso de um corpo

africano na Europa é matéria prima para a exaltação benjoriana. A ligação com o

continente africano sobressai novamente no “texto negro” da canção e no ritmo,

que remete ao afrobeat do nigeriano Fela Kuti.

Umbabarauma, homem gol

Umbabarauma, homem gol

Umbabarauma, homem gol

Umbabarauma, homem gol

Joga bola, joga bola

Corocondô

Joga bola, joga bola

Jogador

Pula, pula, cai, levanta, sobe, desce

Corre, chuta, abre espaço, vibra e agradece

Olha que a cidade toda ficou vazia

Nessa tarde bonita só pra te ver jogar

(BEN JOR, 1976a)

Não por acaso, a metáfora do futebol é largamente utilizada para descrever

o processo criativo desenvolvido por Ben Jor. Tatit (2012), por exemplo, diz que

para esse compositor toda a sequência linguística é passível de melodização. Ou

melhor: toda bola chutada pelo artista pode resultar em um gol. Algumas bolas até

podem ir para fora durante o jogo, mas cedo ou tarde, o golaço – lance digno de

um “Camisa 10 da Gávea” – aparece.

Penso que a influência do futebol em Jorge Ben Jor é mais

profunda que a sugestão de alguns temas. Jorge compõe como

quem bate na bola de primeira. Às vezes faz apenas uma jogada

comum, que se completa com outras jogadas e vai adensando

sua volumosa produção, toda constituída de recorrências

(tabelinhas) de mitos e filosofias. Às vezes, manda direto a gol e

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

68

surpreende a nação com achados geniais que se transformam em

contagiantes sucessos (embora nem todos os seus grandes

achados tenham se convertido em hits). (TATIT, 2012, p. 213).

Para Simas (2020), “garrinchar” é “arriscar o deslocamento para o vazio,

fugir da previsibilidade, chamar o marcador para a roda, entender o que o corpo

pede, transitar entre o atleta e o dançarino”, “sincopar o tempo para encontrar, no

próprio tempo, o ritmo adequado”. Quando escreve, toca e joga, Ben Jor

“garrincha”. É nas linhas e melodias tortas como as pernas de Mané que vive o

elemento que ilumina a sua obra e a torna tão única na Música Popular Brasileira.

No artigo, o historiador segue com a aproximação entre o futebol e a umbanda,

cuja costura seria justamente a “cultura da síncope”.

O esporte e a religião se encontrariam “na encruzilhada em que o

brasileiro, nas frestas de um sistema excludente, apropriou-se do jogo britânico e

do kardecismo francês para construir seus modos de jogar bola e conversar com

os mortos”. Ele segue explicando que a umbanda é “um sarapatel que mistura

ritos de ancestralidade dos bantos, calundus, pajelanças indígenas, catimbós,

encantarias, elementos do cristianismo popular, do candomblé nagô, das magias e

dos sortilégios de ciganos, mouros e judeus, e do espiritismo kardecista europeu”.

A versão mais famosa para a criação da umbanda do Rio de

Janeiro – uma espécie de mito de origem que não exclui os

sentidos de diversos outros – remete ao dia em que no distrito

de Neves, na cidade de São Gonçalo, em 1908, o jovem Zélio

Fernandino de Moraes sofreu uma paralisia inexplicável. Depois

de certo tempo sem andar, Zélio teria se levantado e anunciado

a própria cura. No dia seguinte, saiu andando como se nada

tivesse acontecido. A mãe de Zélio, Leonor de Moraes, tomou

um susto e levou o filho a uma rezadeira chamada Dona

Cândida, conhecida na região, que incorporava o espírito do

preto velho Tio Antônio. Tio Antônio baixou em Dona Cândida

e disse que Zélio era médium e deveria trabalhar com caridade.

Em 15 de novembro, por sugestão de um amigo do pai, Zélio foi

levado à Federação Espírita de Niterói, difusora do kardecismo

francês no Brasil. Chegando lá, o rapaz e o pai sentaram-se à

mesa. Subvertendo as normas do culto kardecista, Zélio

levantou-se subitamente e disse que ali faltava uma flor,

deixando a turma do centro espírita sem reação. Foi até o

jardim, apanhou uma rosa branca e colocou-a, com um copo de

água, no centro da mesa de trabalho. Ainda segundo a versão

mais famosa para o acontecido, Zélio incorporou um espírito

que batia no peito e dava flechadas imaginárias.

Simultaneamente diversos médiuns presentes receberam

caboclos, índios e pretos velhos. Instaurou-se, na visão dos

membros da Federação Espírita, um furdunço inadmissível (...).

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

69

No mito da anunciação, o Caboclo das Sete Encruzilhadas

estava insatisfeito porque o centro espírita não permitia a

chegada dos espíritos de índios, caboclos e pretos velhos;

preferia dar passagem apenas aos espíritos já vistos como

desenvolvidos ou em processo de desenvolvimento e

doutrinação. Na religião que o Caboclo das Sete Encruzilhadas

anunciou, os espíritos daqueles que formaram o Brasil aos

trancos e barrancos seriam bem chegados para dar passes,

consultas, curar, dançar etc. (SIMAS, 2020).

Figura 5 - Ben Jor desfila no Salgueiro com o enredo “Festa para um rei negro”, 1971

Fonte: Agência O Globo

Dada a visão preconceituosa dos meios de comunicação de massa para

com elementos da religiosidade africana no Brasil, a relação de Ben Jor com a

umbanda nos anos 1960 não era totalmente explícita, chegando ele mesmo a negar

ser praticante da religião em entrevistas concedidas no início da carreira. O

sociólogo Reginaldo Prandi (2004), um dos maiores estudiosos das religiões afro-

brasileiras, nota que o preconceito de certas camadas da sociedade brasileira com

os praticantes da umbanda e do candomblé faz com que, até os dias de hoje,

muitos dos adeptos dessas religiões se considerem católicos.

Desde o início as religiões afro-brasileiras se fizeram

sincréticas, estabelecendo paralelismos entre divindades

africanas e santos católicos, adotando o calendário de festas do

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

70

catolicismo, valorizando a frequência aos ritos e sacramentos da

Igreja católica. Assim aconteceu com o candomblé da Bahia, o

xangô de Pernambuco, o tambor-de-mina do Maranhão, o

batuque do Rio Grande do Sul e outras denominações, todas

elas arroladas pelo censo do IBGE (Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística) sob o nome único e mais conhecido:

candomblé. Até recentemente, essas religiões eram proibidas e,

por isso, duramente perseguidas por órgãos oficiais. Continuam

a sofrer agressões, hoje menos da polícia e mais de seus rivais

pentecostais, e seguem sob forte preconceito, o mesmo

preconceito que se volta contra os negros, independentemente

de religião. Por tudo isso, é muito comum, mesmo atualmente,

quando a liberdade de escolha religiosa já faz parte da vida

brasileira, muitos seguidores das religiões afro-brasileiras ainda

se declararem católicos, embora sempre haja uma boa parte que

declara seguir a religião afro-brasileira que de fato professa.

Isso faz com que as religiões afro-brasileiras apareçam

subestimadas nos censos oficiais do Brasil, em que o quesito

religião só pode ser pesquisado de modo superficial. (PRANDI,

2004, p. 16).

Santos (2014) usa o exemplo da Revista do Rádio, publicação de “linha

editorial sensacionalista”, que certa vez classificou Ben Jor como “macumbeiro da

bossa nova, por falar de preto velho em suas músicas”. Algumas edições depois,

em 1963, o artista, contrariado, rebate a classificação dada pelo veículo

jornalístico em uma entrevista que, em alguns momentos, faz lembrar um

interrogatório policial.

Os que me consideram assim não conhecem as raízes da minha

música, bem como meus ancestrais. Eu como já declarei (...)

tive o meu avô nascido na Abissínia (...). Dele herdei o sangue e

quem sabe? Um pouco das coisas e dos costumes etíopes, daí

até ser macumbeiro é coisa muito diferente!

Julga então seu estilo de cantar diferente dos pontos de

macumba?

Pra ser absolutamente sincero, nem sequer conheço os tais

pontos, excluídos aqueles tão copiados para músicas de

carnaval.

Confessa que já assistiu a uma sessão de macumba?

Eu jamais estive em um terreiro. Se isso não fosse verdade teria

a coragem de dizer, pois não constitui desdouro para ninguém,

coisas que aqui no Rio, pela beleza folclórica, tornou-se até um

atrativo turístico. Eu não fui, mas na primeira oportunidade irei.

(Revista do Rádio, 1963)

Apesar de negar e diminuir, pelo menos no início, a influência clara que os

aspectos da religiosidade africana exerceram em seu trabalho, Ben Jor sempre

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

71

reivindicou a ancestralidade etíope como elemento definidor da sua musicalidade.

Ele costuma falar com orgulho de sua linhagem e, vez ou outra em suas letras, dá

a entender que sua família materna faz parte da realeza deste país. Em “Criola”,

de Jorge Ben (1969), isso se evidencia de maneira pronunciada, por exemplo.

Santos (2014) nota que uma notícia de publicada em março de 1974 nas páginas

do diário carioca O Globo “indica que o artista ganhou de presente da gravadora,

em seus 10 anos de carreira, uma viagem ao continente africano, mais

especificamente à Etiópia, ‘para conhecer seus parentes’”.

Visitar a terra de sua mãe é algo que sempre esteve no horizonte

deste artista. Em 1970, Jorge Ben já dizia que pretendia viajar

para “pesquisar” ritmos etíopes. Esta ancestralidade africana,

etíope, aparece em diversas de suas composições, como em

Criola, onde Jorge diz que sua mãe é “filha de nobres

africanos”. Izabel Guillén aponta como os ancestrais são

importantes na construção da identidade dos sujeitos negros,

como são exemplos a serem seguidos nas lutas cotidianas, no

combate ao racismo e na busca por uma sociedade mais justa

para negros e negras. O nome que este cantor e compositor

escolheu usar em sua carreira artística também evidencia esta

intenção de reverenciar seus ancestrais: Jorge Ben é a inversão

do nome de seu avô etíope, Ben Jorge, como declarou em 1963

à Revista do Rádio. Nesta mesma ocasião, foi questionado sobre

seu estilo musical e mais uma vez se remeteu às suas origens:

“Dizem que se chama ‘afro-bossa-nova’”. (SANTOS, 2014, pp.

127-128)

Se, à época das queixas à Revista do Rádio, Ben Jor frequentava terreiros

ou não é impossível precisar, mas em Samba Esquema Novo (1963) há mais uma

referência indireta à religiosidade africana em "A Tamba", que louva o

instrumento percussivo usado nos terreiros da Alta Guiné. Parte do método de

repetição amplamente usado por Ben Jor, o verso “A tamba está tocando” aparece

novamente em “Nascimento de um príncipe africano”, do álbum O Bidu: Silêncio

no Brooklyn (1967), onde a referência a entidades das crenças afro-brasileiras se

torna mais evidente.

Hoje vai ter festa no Gonga

Vai sambar Aruan

Vai sambar Inaná

Vai sambar Ogan

Vai sambar Obá obá

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

72

A tamba está tocando

Um novo príncipe está nascendo

Está até chovendo

Mas é um bom sinal

É um futuro rei pra combater o mal

É um futuro rei pra combater o mal

Ifan e Nabejada

Protejam o nosso príncipe

Ele é o nosso futuro rei

Agô oba obá agôlê

Agô oba obá agôlê

(BEN JOR, 1967)

Rezende (2012) nota que na letra da canção podemos ver um alto índice de

palavras africanas. Porém, mais do que estabelecer uma conexão com o

continente, o pesquisador sustenta que de fato Ben Jor tenta estabelecer uma

relação mais direta com elementos próprios à religião afro-brasileira. O

pesquisador acrescenta:

Essa conexão é estabelecida logo no começo da letra quando ele

canta “Hoje vai ter festa no Gonga”. O termo Gonga se refere ao

local (altar) onde ficam as imagens dos santos e orixás. Em

seguida, Jorge canta sobre a felicidade das figuras importantes

do ritual (sejam orixás ou pessoas do culto) que, ao se

depararem com o nascimento, começam a celebrar sambando,

como por exemplo Inaná e Ogan. Com isso, o compositor situa

seu herói, que está nascendo, como uma figura mítica dentro de

um ambiente religioso de origem africana (REZENDE, 2012, p.

128).

No segundo disco da carreira de Ben Jor, Sacundin Ben Samba (1964), o

Preto Velho aparece novamente como personagem central em “Jeitão de Preto

Velho”, canção que se situa temporalmente no período da escravidão e retrata a

complexidade do relacionamento entre negros e brancos da sociedade brasileira de

então. Eufrázia Cristina Menezes Santos (1999) revela que, de acordo com a

cosmogonia da umbanda, pretos velhos representam os espíritos dos velhos

africanos e dos ex-escravos que trabalharam e viveram no Brasil.

Segundo ela, estas figuras são tidas por trabalhar para o bem, prestar

auxílios àqueles que necessitam e praticar a caridade, “através da palavra ou de

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

73

serviços mágicos-religiosos” (p. 184). Ela nota também que aos Pretos Velhos são

atribuídas qualidades que costumam abundar nos personagens benjorianos:

"paciência, resignação, bondade, tolerância e humildade” (idem). Até mesmo o

discurso das entidades muitas vezes se parece com o do próprio autor: "Estão

sempre a repetir que nada sabem, pedem desculpas pela simplicidade das suas

palavras” (ibidem).

Olha o jeitão do olhar de preto velho

Quando vê sinhá passar

Olha com carinho, ternura

Enciumado, orgulhoso

Pois ele é o padrinho de sinhá

Foi quando sinhazinha nasceu

Às pressas teve que se batizar

Preto velho foi padrinho

E conseguiu sinhá salvar

(BEN JOR, 1964)

Um ano depois, no quarto álbum de estúdio (Big Ben), é a vez do

surgimento de Maria Conga, que de acordo com Santos (2014) também pode ser

conhecida pela denominação de Preta Velha na umbanda. A letra também cita o

aluá, bebida fermentada servida durante festas da religião. Em “Na Bahia tem”,

Ben Jor demonstra dominar a terminologia das religiões afro-brasileiras ao

enumerar itens e comidas que fazem parte das cerimônias, e chega a citar

diretamente o candomblé. Nesta mesma canção, ele também faz menção às

crenças indígenas que foram amalgamadas ao catolicismo popular e às

religiosidades africanas no sincretismo brasileiro. É interessante notar que apenas

dois anos separam o “drible” na sensacionalista Revista do Rádio desta letra.

Na Bahia tem, tem, tem

Na Bahia tem ecó

Na Bahia tem caruru

Na Bahia tem efó

Na Bahia tem vatapá

Na Bahia tem mungunzá

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

74

Na Bahia tem acarajé

Na Bahia tem abará

Na Bahia tem candomblé

Tem Nosso Senhor do Bonfim

Que é o nosso padroeiro

Todos os dias ele abençoa

O nosso Brasil inteiro

Bahia de Tupinambá

Bahia de Tupiniquim

Bahia abençoada

Às vezes mata sem fim

(BEN JOR, 1965)

Santos (2014) nota que, na década de 1960, o culto aos orixás passa a ser

amplamente reconhecido e valorizado por parte da classe média intelectualizada, o

que proporciona certa legitimidade social aos cultos de matriz africana. Essa lenta

mudança paradigmática parece ter deixado o autor mais à vontade para louvar o

culto aos orixás em suas letras ao longo do tempo. O interesse do autor pelo

assunto deslancha a partir dos fins da década de 1970. Portanto, não se resume, no

entanto, a essas figuras populares que povoam as cerimônias da umbanda. Ben Jor

também se interessa pelos orixás do candomblé. Além do já citada devoção por

Ogum/São Jorge, outras figuras importantes das religiosidades afro-brasileiras vez

ou outra aparecem na lira benjoriana. Todas, no entanto, de maneira lateral,

esporádica.

Em “Agora Ninguém Chora Mais”, também de Big Ben, o protagonista é

“protegido de Iansã”, senhora dos ventos e das tempestades. Oxóssi, orixá da

mata, dos animais e do alimento, aparece em “A fonte de Paulus V”, que a

princípio fala de uma fonte de água em Roma, na Itália.

Naquela Praça Trilussa

Naquela Praça Romana

Onde a coruja dorme

E a águia vigia

A Fonte de Pont Max

É lá que o arco-íris

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

75

Descansa e bebe água

Por lá passa a cavalaria

Cavalaria marinha

Conduzindo o machado

O machado de Oxóssi

(BEN JOR, 1986)

No universo benjoriano, é possível que passem pela Fontana dell'Acqua

Paola — gigantesca fonte construída em 1612 pelo Papa Paulo V para levar água

pura aos habitantes de uma pobre região romana que ainda precisavam beber do

poluído Rio Tibre — duas cavalarias. Uma delas conduzindo, o machado de

Oxóssi, o caçador de uma flecha só. A outra, a espada de São Jorge, seu duplo nos

terreiros baianos.

Penso que esta canção representa muito bem o intrincado sistema de

crenças onde opera a lira de Ben Jor. Ao misturar elementos da religiosidade

europeia com figuras e personagem dos cultos afro-brasileiros, Ben Jor

“garrincha” mais uma vez as religiões oficiais, engessadas, para criar uma

amálgama sincrética bastante digna da “cultura da síncope” que marca o seu

processo criativo de maneira significativa.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

76

Use o conhecimento com perseverança e

consciência

Pratique, transmute à vontade

Com lealdade

E sinceridade

Seja atento e assíduo porque

A qualquer hora, a qualquer momento

Pode estar nascendo o amor

("Luz Polarizada", Jorge Ben Jor)

5

A fórmula alquímica da canção imperecível

Quatro anjos adornam a fachada de pedra da casa número 51 da Rua

Montmorency, em Paris. Cada um dos seres alados leva nas mãos instrumentos

musicais do medievo, como cítolas e saltérios (figuras 6 e 7). O antigo prédio,

erguido em 1407, foi a residência de Nicolas Flamel, um escriba cuja fama de

alquimista atravessou os séculos e chegou à cultura pop dos nossos tempos.

Naquele prédio de três andares, ele viveu ao lado da mulher Penelle e, segundo

contam as lendas, estudou antigos manuscritos que o levaram à transmutação de

metais em ouro e à obtenção da Pedra Filosofal.

Secreta, tradicional e iniciática, a alquimia se valeu de símbolos cifrados

para transmitir adiante o conhecimento acumulado ao longo de séculos por seus

adeptos. Os anjos instrumentistas da casa de Flamel, portanto, estão lá por um

motivo específico. Os filósofos herméticos, como também são chamados os

alquimistas, tinham a música em alta conta. Para eles, a perfeição com que

melodia e harmonia se unem em uma composição musical era uma boa metáfora

para as operações alquímicas. Em A letra e a voz: a 'literatura' medieval, Paul

Zumthor (1993) argumenta que a poesia teve importância para a preservação da

sabedoria dos alquimistas. Ela também foi fundamental para sua consolidação na

cultura popular:

Com efeito, a alquimia, tanto quanto a poesia, não possui nem a

ambição nem a função de descobrir o novo. Só precisa, como a

poesia, transmitir segredos; envolve com um ritual o

cumprimento de sua tarefa: o rito põe em ação o que fala. Daí a

permanência (...) das imagens fundamentais e das estruturas

metafóricas da linguagem alquímica que penetra no Ocidente

cristão no século XII. Alguns desses elementos foram

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

77

consignados por escrito, mas é graças à transmissão oral que o

conjunto conserva sua coerência. Graças a ela, retalhos do saber

filosofal filtram-se fora do círculo dos iniciados e, já se supôs

por várias vezes, informam a sensibilidade, senão a ideologia,

de alguns poetas (ZUMTHOR, 1993, p. 82).

Os apontamentos de Eliade (1979) em Ferreiros e Alquimistas corroboram

a visão de Zumthor. Para o primeiro, há um elo fundamental entre o fazer artístico

e o labor alquímico: “Parece haver (...) um estreito laço entre a arte do ferreiro, as

ciências ocultas (xamanismo, magia, cura, etc.) e a arte da canção, da dança e da

poesia. Essas técnicas solidárias parecem, além disso, ser transmitidas numa

atmosfera impregnada de sagrado e de mistério, que comporta iniciações, rituais

específicos, 'segredos de ofício’” (p. 77-78).

Figuras 6 e 7 - Anjos instrumentistas na fachada de Nicolas Flamel em Paris

Fonte: Acervo pessoal

É certo que esses “retalhos" informaram a sensibilidade e a ideologia de

um músico e poeta brasileiro. Sabe-se que Jorge Ben Jor visitou a casa de Nicolas

Flamel pelo menos duas vezes. A primeira delas foi no início dos anos 1970,

quando ele também passou pela Torre de Saint Jaques, outro monumento ligado

aos alquimistas na capital francesa. Ao Jornal do Brasil, em 1978, o compositor

carioca detalhou a visita e afirmou que foi nas viagens à Europa que encontrou

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

78

livros para saciar um antigo interesse pelo assunto. Em outra oportunidade, fez

questão de levar Gilberto Gil a tiracolo. Lá, a dupla presenciou um fenômeno

"incrível", conforme Ben Jor contou em uma conversa com a revista Trip, em

2009. Discreto como um alquimista de suas canções, se negou a revelar detalhes

daquilo que seus olhos viram. Esquivo como em quase toda interação com a

imprensa, se limitou a dizer que a dupla enxergou algo "bonito, não feio".

Embora a biografia de Ben Jor seja repleta de lacunas e algo incapturável,

sabe-se que o compositor teve o primeiro contato com a alquimia ainda na

infância, nas visitas que fazia à biblioteca esotérica do avô, integrante do

movimento Rosa-cruz. Na juventude, quando frequentou as salas de aula do

seminário São José, pode conhecer os textos de Santo Tomás de Aquino, autor de

Tratado da Pedra Filosofal e a arte da alquimia. Em entrevista ao jornal O

Globo, em 1983, ele deu uma declaração que coaduna com a inferência de

Zumthor e que revela os motivos da sua aproximação com o tema.

O alquimista era o cientista de seu tempo, ele queria transformar

o mundo, só que usando processos diferentes. (...) Os

alquimistas de posses pagavam um músico para memorizar as

fórmulas sob a forma de melodias. No fundo, eu acho que não

queria ser um alquimista, mas o músico do alquimista (BEN

JOR, 1983).

Por diversas vezes, o compositor já se referiu ao próprio método de

trabalho como "alquimia musical". O termo ganhou certa popularidade na

imprensa, já que sintetiza de modo simples a capacidade que Ben Jor tem de

mesclar ritmos — sincretizar influências. Como o crítico José Ramos Tinhorão

nota em uma resenha publicada em 1974, o artista parecia disposto a "procurar a

pedra filosofal da moderna música popular” (Jornal do Brasil, 1974) brasileira.

Ao tratar do “original” e “criativo” A Tábua de Esmeralda, Tinhorão faz uma

ressalva quanto a onda mística que tomou conta da primeira metade dos anos

1970 na Música Popular Brasileira, que ele enxerga um mero movimento

mercantil: “Depois que a guerra de mercado, no campo industrial, criou o mito da

necessidade do novo (para estimular as vendas fornecendo, na realidade, as

mesmas coisas, com rótulos diferentes), os compositores de músicas ao nível da

classe A – que é a grande consumidora – precisaram adaptar-se às regras do

marketing”. No entanto, faz uma ressalva: “Mas a surpresa é que o compositor

consegue seus objetivos com uma força criativa, uma invenção formal e um

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

79

sentido de poesia, que o próprio absurdo se torna nas suas músicas um elemento a

mais de atração”.

Através da leitura de Toulmin, Costa e Silva (2014), por sua vez, relaciona

a ascensão de temas místicos do cancioneiro nacional a “uma reconexão quase

súbita com algo que estava adormecido” (p. 36), “uma retomada coletiva de

valores que haviam sido progressivamente deixados de lado pela intensificação do

racionalismo moderno desde o Renascimento” (idem). Ao retomar e reconectar-se

com as escrituras da Alquimia, Ben Jor, de certa maneira, aplica a recomendação

de Eliade:

Só há um meio de compreendermos um fenômeno cultural

estranho à nossa atual conjuntura ideológica: é descobrirmos o

seu centro e aí nos instalarmos, a fim de podermos, a partir dele,

chegar a todos os valores que comanda. É tornando a nos

colocar na perspectiva do alquimista que alcançaremos uma

melhor compreensão do universo da alquimia, e que lograremos

medir-lhe a originalidade. A mesma abordagem metodológica

impõe-se a todos os fenômenos culturais exóticos ou arcaicos:

antes de julgarmos, temos de chegar a compreendê-los bem e

assimilar a sua ideologia, sejam quais forem os seus meios de

expressão: mitos, símbolos, ritos, comportamentos sociais…

(ELIADE, 1979, p. 12)

É interessante lembrar que o trabalho que envolvia a busca pela Pedra

Filosofal era chamado pelos alquimistas de “A grande obra”. Eliade (1979, p. 35)

explica que a alquimia resulta de séculos de experiências pré-científicas realizadas

durante o desenvolvimento da metalurgia: “Ao acelerar o processo de crescimento

dos metais, o metalúrgico precipitava o ritmo temporal: o tempo geológico era

transformado por ele em tempo vital. Essa audaciosa concepção, segundo a qual o

homem assegura a sua plena responsabilidade diante da Natureza, já nos permite

pressentir a obra alquímica”.

É com base em tais experiências rituais relacionadas com as

técnicas metalúrgicas e agrícolas que se foi precisando pouco a

pouco a ideia de que o homem pode intervir no ritmo temporal

cósmico, de que pode antecipar um resultado natural, precipitar

um crescimento. Não se tratava, é óbvio, de ideias claras,

formuladas com precisão, mas antes, de pressentimentos, de

adivinhações, de “simpatia”. Temos aí, não obstante, o ponto de

partida dessa grande descoberta de que o homem pode assumir a

obra do Tempo, ideia que encontramos, claramente expressa,

nos textos ocidentais tardios. Temos, também aí, voltamos a

dizê-lo, o fundamento e a justificação da obra alquímica, o opus

alchymicum que tem preocupado a imaginação filosófica

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

80

durante aproximadamente dois mil anos: a ideia da

transmutação do homem e do Cosmo por meio da Pedra

filosofal. Ao nível mineral da existência, a Pedra realizava o

milagre de suprimir o intervalo temporal que separava a

condição atual de um metal “imperfeito” (“cru”) da sua

condição final (quando ele se teria convertido em ouro). A

Pedra realizava a transmutação de maneira quase instantânea:

substituía-se ao Tempo. (ELIADE, 1979, p. 61)

É em A Tábua de Esmeralda, de 1974, que a alquimia transborda no

cancioneiro benjoriano de maneira mais intensa. Influenciado pelas viagens à

França e produzido graças a uma carta branca de André Midani, então diretor da

gravadora Phillips, o disco se encaixa em um momento de singular misticismo na

produção fonográfica brasileira: é contemporâneo de Krig-ha, Bandolo! (1973),

viagem de Raul Seixas e Paulo Coelho pelo universo ocultista de Aleister

Crowley, e de Racional Vol. 1 (1975), álbum de Tim Maia influenciado pelo

Universo em Desencanto de Manoel Jacintho Coelho.

Nele, estão as canções “Os Alquimistas Estão Chegando Os Alquimistas”,

“O Homem da Gravata Florida (A Gravata Florida de Paracelso)”, “O Namorado

da Viúva” e “Hermes Trismegisto e sua Celeste Tábua de Esmeralda (Tratado

Hermético Escrito pelo Faraó Egípicio Hermes Trimegisto e Traduzido por

Fulcanelli)”. A recepção crítica ao álbum rapidamente o transformou em um dos

mais célebres de Ben Jor. Em sua coluna no jornal O Globo, Nelson Motta

também teceu loas ao disco e recorreu à mesma palavra utilizada por Tinhorão

para definir o resultado das incursões benjorianas nos temas misteriosos e

esotéricos: “absurdo".

Jorge Ben subverteu inteiramente todas as regras de poética

dentro da música, falando seus versos, ignorando totalmente

qualquer relação exata sílabas-notas em favor de uma riqueza

expressionista. Subverteu de forma total todas as batidas do

violão existentes, transformando o instrumento em percussão &

cordas, valorizando ritmicamente de forma nunca ouvida. Jorge

deu um nó difícil de desamarrar nas posições elitistas (e de certa

forma até fascistas) tão presentes na poética musical brasileira

dos últimos tempos, tão cheia de ‘regras absolutas’,

‘compromissos’ e ‘intenções’ profundamente fechadas e

duvidosas. Ele explode tudo isto com sua maneira de ver as

coisas intensamente livre e criando valores e situações absurdos,

no melhor e mais excitante sentido da palavra (MOTTA, 1974)

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

81

Obscuro, sim. Absurdo, não. Nicolas Flamel desempenhou papel de

destaque na construção do imaginário benjoriano sobre a alquimia. As ilustrações

que estampam a capa de A Tábua de Esmeralda foram retiradas do seu Livro das

Figuras Hieroglíficas. E ele é também o muso insuspeito de Ben Jor em

“Namorado da viúva”, canção bem-humorada inspirada em sua relação com

Penelle, conforme revelou à revista Trip:

Nicolas Flamel, ele é que é meu muso. Ele e a mulher dele. Ele

é “O namorado da viúva”. Ninguém queria ela – não, eles

queriam, mas tinham medo, porque ela era rica e já era viúva

três vezes. Flamel é do século 15. É o meu muso. (BEN JOR,

2009)

Mas não é o único. Do início ao fim, A Tábua de Esmeralda tem

referências a outros personagens da alquimia, que Ben Jor maneja com a sua

poética pessoal. O disco começa com “Os alquimistas estão chegando os

alquimistas”, uma espécie de abre-alas para o álbum que vem a seguir. A canção

logo enumera diversas qualidades típicas dos filósofos herméticos: são

“discretos”, “silenciosos”, “pacientes”, “assíduos” e “perseverantes”. Autor da

mais aprofundada análise deste disco, Costa e Silva argumenta que Ben Jor se

mirava nos exemplos dos alquimistas, “enxergando virtudes e ensinamentos a

serem seguidos”, de maneira bastante parecida com que ele faz com a figura de

São Jorge da Capadócia, por exemplo.

Passou a cultivar uma relação real com o universo da alquimia,

identificando-se com aqueles personagens e extraindo deles, a

seu modo, modelos de conduta. Na verdade, os alquimistas

integravam um dos arquétipos favoritos de Ben: o dos heróis –

capazes de simbolizar virtudes, diretrizes éticas, ensinamentos

de vida, e de exaltar valores que perpassam a sua lira épica

(COSTA E SILVA, 2014, p. 20)

Ben Jor parece ter fé na alquimia como um caminho para uma profunda

transformação individual. Como se a transmutação do espírito humano fosse um

resultado tão importante do fazer alquímico quanto a metamorfose física pela qual

os metais passam ao fim da Grande Obra. A retidão moral parece ser um

imperativo para quem deseja partilhar um pouco das artes ocultas dos filósofos.

Não à toa, os alquimistas da canção “evitam qualquer relação com pessoas de

temperamento sórdido”.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

82

Jung se dedicou por décadas a estudar a alquimia. Ao fim de uma extensa

revisão bibliográfica, o autor concluiu que o segredo essencial da filosofia

hermética está oculto no espírito humano, mais precisamente no inconsciente. A

alquimia, portanto, não poderia ser encarada como um empreendimento

puramente químico e protocientífico, mas como um processo de transformação

filosófica. No livro Psicologia e alquimia (1990), ele afirma que os alquimistas

compreendiam que sua obra se achava ligada de algum modo à alma humana e

suas funções.

O processo alquímico da época clássica (da Antiguidade até

mais ou menos meados do século XVII) consistia numa

investigação química propriamente dita, na qual se imiscuía

mediante projeção material psíquico inconsciente. Eis por que

os textos ressaltam sempre a condição psicológica da obra. Os

conteúdos de que se trata são os que se prestam à projeção na

matéria química desconhecida. Dada a natureza impessoal e

puramente objetiva da matéria ocorrem projeções de arquétipos

impessoais e coletivos. Em paralelo com a vida espiritual

coletiva daqueles séculos, trata-se principalmente da imagem do

espírito aprisionado na escuridão do mundo, isto é, de um

estado irredento, doloroso de uma inconsciência relativa,

reconhecida no espelho da matéria e por isso trabalhada na

matéria. (JUNG, 1990, p. 496)

Mais uma vez, essa perspectiva é ratificada por Eliade, segundo a qual não

se chegaria ao mais nobre dos metais sem o enobrecimento interior em primeiro

lugar.

Sem sombra de dúvida, os alquimistas alexandrinos, desde o

começo, estavam conscientes de que, ao perseguirem a

“perfeição do metais”, procuravam alcançar a sua própria

perfeição. O Liber Platonis quartorum atribui grande

importância ao sincronismo entre o opus alchymicum e a

experiência íntima do adepto. “As coisas são tornadas perfeitas

pelos seus semelhantes, e é por esse motivo que o operador deve

participar da operação”. (ELIADE, 1979, p. 122)

Segunda faixa do disco de 1974, “O homem da gravata florida”, cujo título

alternativo é “A gravata florida de Paracelso”, é uma das canções mais complexas

de todo o álbum. Na letra, de traços tão simbolistas quanto parnasianos, Ben Jor

se dedica a descrever longamente os detalhes de uma gravata florida, “um jardim

suspenso dependurado no pescoço de um homem simpático e feliz”.

Lá vem o homem da gravata florida

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

83

Meu Deus do Céu… que gravata mais linda

Que gravata sensacional

Olha os detalhes da gravata

Que combinação de cores

Que perfeição tropical

Olha que rosa linda

Azul turquesa se desfolhando

Sob os singelos cravos

E as margaridas, margaridas

De amores com jasmins

Isso não é só uma gravata

Essa gravata é um relatório de harmonia e de coisas belas

É um jardim suspenso

Dependurado no pescoço

De um homem simpático e feliz

Feliz, feliz porque

Com aquela gravata qualquer homem feio

Qualquer homem feio vira príncipe

Simpático, simpático, simpático

Porque… com aquela gravata

Ele é bem chegado

É adorado em qualquer lugar

Por onde ele passa nascem flores e amores

Com uma gravata florida singela como essa

Linda de viver

Até eu

(BEN JOR, 1974)

Em O espírito na arte e na ciência (1991), Jung conta que Teophrastus

Paracelsus foi um médico famoso na Idade Média, também tido como alquimista

pelos seus contemporâneos. Nascido Philippus Aureolus Bombast Von

Hohenhein, a 10 de novembro de 1493 nos arredores da cidade de Zurique, na

Suíca, Paracelso era tido por possuir um temperamento difícil e ser praticante de

métodos que desafiavam e em certa medida ultrajavam a tradição da medicina

acadêmica da época. Percorreu a Europa curando doentes na mesma medida em

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

84

que colecionava inimizades. O médico escandalizava as rígidas regras da

Universidade de então porque ministrava suas aulas em alemão e andava pelas

ruas usando seu surrado avental de laboratório. De acordo com registros

históricos, o homem era descrito por inimigos como um ébrio incorrigível, um

bêbado sem virtudes. Pelos admiradores, era visto como um médico astuto, capaz

de resolver até mesmo as mais perigosas enfermidades. Jung faz uma descrição

pouco lisonjeira da aparência de Paracelso, que vai de encontro aos elogios

tecidos por Ben Jor na segunda faixa de A Tábua de Esmeralda.

Ao invés da compleição de um herói revolucionário, [a

natureza] deu-lhe uma estatura de apenas 1,50m, uma aparência

doentia, o lábio superior muito curto e que não encobria os

dentes (característica frequente de pessoas nervosas) e, ao que

parece, uma pelve, que se revelou feminina, quando foram

exumados seus ossos, em Salzburgo, no Século XIX. Corria,

mesmo, a versão de que era eunuco, mas, quanto saiba, não há

maiores evidências a respeito. Em todos os casos, parece que o

amor nunca teceu suas rosas na vida terrena dele, e seus

espinhos lhe eram supérfluos uma vez que seu caráter era, de

qualquer forma, espinhoso. (JUNG, 1991, p.3)

É pouco provável, portanto, que Ben Jor, um ávido leitor do assunto, não

conhecesse a má fama de Paracelso quando decidiu vesti-lo com uma gravata

florida “linda de viver”. Que Ben Jor, um compositor que usou do amor como

matéria prima em todos os momentos da sua carreira, tenha elegido como um de

seus “musos” um homem que, de acordo com os relatos, não experimentou o

amor, soa como uma divertida ironia. Como, se séculos mais tarde, escrevesse que

para fazer justiça ao seu herói da alquimia. Paracelso não era simpático e

provavelmente não se preocupou em ser feliz. E, como mostram os registros

históricos, não era “bem chegado em qualquer lugar”.

Nesta canção, a gravata florida decorada com uma rosa azul turquesa pode

ser vista como um dispositivo que reflete a prática da alquimia. O verso-chave que

dispara esta concepção é, portanto, “Com aquela gravata qualquer homem feio/

Qualquer homem feio vira príncipe”. É a prática da alquimia, que transmuta a

alma tanto quanto o metal, que transformou o controvertido Paracelso em um

homem digno de nota que, ao contrário de seus detratores, sobreviveu para ser

tratado como um dos pais da Medicina moderna e também como ícone místico

entre os iniciados. Na cosmogonia de Ben Jor, a gravata florida transforma o

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

85

metal vil em nobre, o homem impuro em puro. É a perfeita metáfora para a

transformação humana inerente ao fazer alquímico, explicitado por Jung e Eliade.

Depois de analisar o texto “Teatrum Chemicum”, Jung (1990, p.91) notou

que “a ‘flor de ouro da alquimia’ pode também ser ocasionalmente uma flor azul”.

É com ela estampada em seu peito – e por causa dela, sobretudo – que Paracelso é

“esperado”, “bem chegado” e “adorado” em qualquer lugar. Com o adereço no

pescoço, canta, “qualquer homem feio vira príncipe”. Nesta passagem, novamente

Ben Jor alude à transformação humana inerente à filosofia hermética.

Jung (1991) argumenta que Paracelso foi um espírito típico de uma grande

época de transição, em que os valores religiosos começavam a ser postos à prova

pelos experimentos pré-científicos: “Seu intelecto, empenhado na busca e na luta,

já se libertara de uma visão espiritualista do mundo, mas seus sentimentos ainda

permaneciam presos a ela” (p. 8), escreve. O psicanalista argumenta que, de

acordo com o médico medieval, o sujeito é o principal objeto da transformação

alquimista, tornando-se “maduro”, “evoluído”.

Esta observação de difícil compreensão refere-se, no entanto, à

doutrina secreta, ao arcano. Pois a alquimia não é só um

empreendimento químico como o entendemos hoje, mas – e isto

talvez no mais alto grau – um processo de transformação

filosófica, quer dizer, uma estranha modalidade de ioga, no

sentido de que também a ioga visa a uma transformação

psíquica. Por causa disso os alquimistas colocaram a

transmutatio paralelamente à simbólica de transformação da

Igreja cristã (JUNG, 1991, 17)

É curioso notar que a tensão entre a razão e religião também se manifesta

no cancioneiro de Ben Jor. Em 1979, Caetano Veloso defendeu no Festival de

Música Popular da Rede Tupi a canção “Dona Culpa ficou solteira”, de autoria de

Ben Jor. A apresentação foi marcada pelas vaias que o baiano e A Outra Banda da

Terra receberam da audiência. Apesar de não ter se classificado entre as

vencedoras, a composição carrega versos emblemáticos, que, de certa maneira,

ajudam a iluminar toda a produção musical do carioca:

Pois aqui só se voa com duas asas

Com a asa da fé e com a asa da ciência

Quem voar sem nenhuma das duas

Vai cair e se arrebentar

Sem ter tempo pra pedir clemência

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

86

Ou história pra contar

(BEN JOR, 1979)

Ao falar de alquimia, sabedoria ancestral que legou diversos

procedimentos e descobertas à química moderna, penso que o autor encontra o

equilíbrio fundamental entre religião e conhecimento científico na sua obra. A

alquimia, conforme Eliade (1979) argumenta, é uma doutrina fundada em uma era

em que as duas “asas” citadas em “Dona Culpa” ainda batiam juntas: o alquimista

se valeu da fé para fazer (proto)ciência.

Também é importante ressaltar que todos estes livros encontrados na

coleção do avô, nas estantes do seminário e nas livrarias europeias passa pelo

singular filtro benjoriano. Jorge é conhecido por se aproximar de maneira muito

própria de escritos de terceiros para compor. No passado, foi acusado de plágio

por samplear dois versos de Victor Hugo e por reproduzir trechos de um texto de

jornal, procedimentos estéticos muito próximos do recorte antropofágico de

Oswald de Andrade. Assim como nos métodos de Oswald, a princípio, o material

que serve de fonte para esse tipo de recorte benjoriano não era considerado

normalmente um elemento da esfera das artes: configurava, de maneira geral,

corpo estranho, material de fim puramente utilitário: sinopses, enciclopédias,

textos didáticos de todas as sortes. Ao tocá-los com a sua intervenção poética, Ben

Jor os transporta diretamente ao patamar da arte.

Em “Hermes trismegisto e sua celeste tábua de esmeralda”, penúltima

faixa do disco de 1974, o compositor usa da intertextualidade e faz pouquíssimos

ajustes no texto seminal da alquimia. De acordo com o mito, o texto foi escrito

pelo faraó egípcio Hermes Trismegisto, uma mistura do Hermes grego com o deus

egípcio Toth, e encontrado, muitos anos depois, por soldados de Alexandre, o

Grande. As primeiras menções à Tábua Esmeraldina, no entanto, só aparecem a

partir do século VIII em textos árabes. Verdadeiro ou não, o documento foi

estudado com atenção por nomes como Isaac Newton, Alberto Magno e Roger

Bacon, além do próprio Nicolas Flamel, que buscava nele orientações na busca

pelo metal nobre. Ben Jor se valeu da tradução de Fulcanelli, um alquimista ativo

nos anos 1920, para compor. Em um dos versos, Hermes/Fulcanelli/Ben Jor diz:

“Tu terás por este meio a glória do mundo e toda obscuridade fugirá de ti”.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

87

A complexidade do texto que, não à toa, transformou o adjetivo

“hermético” em sinônimo de algo difícil de compreender, não intimidou Ben Jor.

Munido do seu antimétodo, ele explicou ao Diário de Notícias, em 1974 como se

comportava diante dos escritos dos antigos filósofos: “Os textos alquímicos são

complicadíssimos, mas eu os vou interpretando de acordo com a minha

compreensão, sentimento e bem estar” (Diário de Notícias, 1974).

A lista de interseções entre a lira benjoriana e a alquimia não se esgota em

A Tábua de Esmeralda de Flamel, Paracelso e Hermes Trismegisto. Quatro anos

antes, em Ben, surgem duas canções que Ben Por reputa como suas duas primeiras

experiências musicais diretas com a alquimia. Ambas são centradas no segredo e

no silêncio, em aquilo que não pode ser revelado. "Moça" tem os enigmáticos

versos “Há um girassol maravilhoso/ Sendo plantado agora/ Faltam cinco

minutos/ Eu não posso te dizer/ Mais nada, mais nada”. Ao citar romances de

Dostoiévski em “As rosas eram todas amarelas”, Ben Jor confundiu — driblou —

Augusto de Campos no apêndice de "Balanço da Bossa". Onde o concreto viu

pensamento bruto, estava, na realidade, um conhecimento lapidado durante

milhares de anos: a alquimia.

Na estranha letra de As rosas eram todas amarelas Jorge Ben

começa com o que parece uma enumeração caótica: 'o

adolescente/ o ofendido/ o jogador/ o ladrão honrado/ eles

sabiam/ mas ninguém falava/ esperando a hora de dizer/

sorrindo/ que as rosas/ eram todas amarelas'. Coincidência ou

não, os quatro personagens enunciados correspondem aos títulos

de novelas ou romances de Dostoiévski: O Ladrão Honrado,

Humilhados e Ofendidos, O Jogador e O Adolescente. Em

seguida, ele desenvolve um discurso raro na literatura da música

popular, ao esquadrinhar as relações entre poesia e vida, dizer e

não-dizer: 'lendo um livro de um poeta/ da mitologia

contemporânea/ sofisticado senti que ele era/ pois morrendo de

amor/ renunciando em ser poeta/ dizia/ basta eu saber/ que

poderei viver sem escrever/ mas com o direito/ de fazer quando

quiser/ porque/ ele sabia, mas esperava a hora de escrever/ que

as rosas eram todas amarelas'. 'Être poète, non. Pouvoir l'être'.

(Valéry). Que sabedoria! Pura intuição? Pensamento bruto? Seja

o que for, é fantástico. (CAMPOS, 1974, pp. 340-341)

A sequência para A Tábua de Esmeralda veio no ano seguinte. Solta o

Pavão mantém intacto o interesse de Ben Jor pela alquimia, oferecendo novos

pontos de vista do autor sobre o assunto. Além de citar passagens inteiras e pedir

benção a Santo Tomás de Aquino em uma faixa, o compositor deixa de lado os

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

88

segredos e cifras para incluir uma menção direta à pedra filosofal na bem-

intencionada “Velhos, flores, criancinhas e cachorros”. Nela, o eu-lírico implora a

Deus pela “pedra celestial angular miraculosa”, pois precisa ele mesmo “salvar os

velhos, as flores, as criancinhas e os cachorros”. Novamente aí o tema do herói se

manifesta, de maneira ultradireta, em seu cancioneiro. Por fim, é a vez de “Luz

polarizada”, que mistura uma detalhada descrição de métodos da alquimia com

conselhos morais para quem está ouvindo: “pois aquele que forja a falsa prata/ e o

falso ouro/ não merece a simpatia de ninguém”. A música começa com duas

instruções: “Coloque o teu grisol sob a luz polarizada/ Oh, meu filho, lava as

escórias com a água tridestilada”. Os versos que abrem a canção foram retirados

das páginas de um o romance francês de 1960, escrito por Louis Pauwels e

Jacques Bergier: o best-seller O despertar dos mágicos (1960). Nos anos

seguintes ao seu lançamento, a trama de realismo fantástico se estabeleceu como

leitura obrigatória entre os contemporâneos de Ben Jor que se interessaram pelos

estudos da arte da alquimia.

A “trilogia mística” de Ben Jor, fase de sua discografia em que a

admiração pelos saberes alquímicos se expressa de maneira mais direta, se fecha

com África Brasil, de 1976. Além de produzir belas linhas que cantam a herança

da religiosidade e dos costumes africanos ao Brasil, o primeiro disco eletrificado

do artista desde a frustrada experiência com O Bidu: Silêncio no Brooklyn (1969)

tem mais uma transliteração de Hermes Trismegisto em “Hermes Trismegisto

escreveu” e uma canção sobre “O Filósofo”. Nesta canção, o filósofo chega ao

ambiente acompanhado (novamente) por rosas, mostrando “como o belo pode ser

simples/ E o simples pode ser belo”.

Finda a trilogia mística, Ben Jor escreve apenas mais duas canções que

conversam diretamente com a alquimia, ambas derivadas de alguma expressão ou

nome em latim. “Occulatus Abis”, gravada no disco Salve Simpatia (1979) e

“Turba Philosophorum”, que batiza o disco gravado por um veterano Ben Jor, em

2004. A primeira foi retirada de uma inscrição presente na última gravura do

Mutus Liber (1677), o livro mudo da alquimia. Uma das maiores façanhas do

hermetismo medieval, o volume representa, em 15 imagens, a grande obra

alquímica. A letra da canção é idêntica à de “Errare humanum est”, registrado em

A Tábua de Esmeralda, com exceção do refrão, que repete “occulatus abis”. A

expressão em latim pode ser traduzida literalmente como “o que vê bem deriva

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

89

dele”. A frase em conjunto com a iluminura contribui para entender que aquele

que passa pelo processo alquímico adquire olhos, vê melhor, alcança a

clarividência que o fim da obra alquímica concede.

A derradeira menção aos antigos alquimistas na grande obra de Ben Jor é

“Turba philosophorum”, não por acaso título de um livro que tenta transmitir os

saberes da alquimia grega para o árabe. Literalmente, pode ser traduzido como

“Assembleia dos filósofos”. É nesse espírito de coletividade que Ben Jor justapõe

versos de diferentes canções que compôs no passado. Entram nas linhas trechos

de “Hermes Trismegisto escreveu”, “Velhos, flores, criancinhas e cachorros” e

“Occulatus abis”. A redundância é característica primeira da obra de Ben Jor, e o

autor nunca se furtou a recorrer às suas antigas letras para tecer outras novas. Os

novos excertos inseridos na canção refletem sobre a passagem do tempo e a

responsabilidade do homem para com a sua própria espécie.

Não que o saber alquímico não tenha perpassado outros momentos da

discografia de Ben Jor. Até mesmo antes de irromper oficialmente no cancioneiro

do autor em Ben, traços destes ensinamentos filosóficos e herméticos podem ser

encontrados desde a sua estreia fonográfica, em 1963. Afinal de contas, a letra de

“Rosa, menina rosa” pode ser ouvida de maneiras diferentes depois que as rosas

de Paracelso e do Filósofo surgiram na lira benjoriana. Naquela insuspeita e

ingênua canção de amor, um jovem Ben já anunciava que as melodias que

balançavam carregavam consigo segredos: “Pois o meu samba/ Tem mistério/

Mas é gostoso de sambar”.

Valente (1999, p. 120) nota que a “voz é o único instrumento que se

caracteriza por reunir num mesmo corpo executante e meio de execução”: “a voz

é, portanto, mais do que palavras que são pronunciadas, mais do que a qualidade

do som que sai da boca; e o corpo inteiro, caixa de ressonância que fala,

emanando energia”. Para Julio Diniz (2003), a voz é um espaço de criação. Ao

reinterpretar uma canção, um artista conversa com todas as outras interpretações

dela e a rasura com uma assinatura vocal própria, desencadeando, assim, o que o

pesquisador batizou de "genealogia das vozes".

O que me interessa basicamente nessa reflexão [...] é a idéia de

que existe uma construção identitária, uma construção

significativa, uma possibilidade de debate cultural, em

particular nos anos 60, através do que eu chamo de a voz como

assinatura, uma assinatura rasurada de outras vozes, uma

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

90

genealogia do canto no Brasil. Para isso eu utilizo uma idéia que

é a de pensar a canção através da corporificação que a voz

outorga ao conjunto enunciação/enunciado, ao escriturante

como letra e ao musicante como som. (DINIZ, 2003, p. 99)

Após usar a metáfora da voz como assinatura, Diniz (2003, p. 99) afirma

que é preciso “pensar a canção através da corporificação que a voz outorga ao

conjunto enunciação/enunciado, ao estruturante como letra e ao musicante como

som”. Claudia Neiva de Matos (2006, p. 1), por sua vez, argumenta que a

execução ou performance de uma canção, ao interagir com texto e música, “perfaz

o triângulo estético e semiótico que constitui a obra”:

A metáfora feliz da “voz como assinatura” se adequa

particularmente à canção popular mediatizada: por um lado,

destaca o papel autoral do intérprete, ao lado dos compositores e

letristas, na construção da canção enquanto obra; por outro lado,

evoca o caráter específico da vocalidade da canção popular, ao

sugerir que esta existe no quadro de uma certa escrita, que é a

inscrição fonográfica. (MATOS, 2006, p. 3)

Quando de Ben Jor grava os sulcos do disco de vinil como se fosse o

mítico faraó munido de uma ponta de diamante, ele dialoga com todas as vozes

ancestrais que contribuíram para que aquele texto atravessasse os séculos e

chegasse aos nossos dias. Especialmente na fase alquímica de Ben Jor, há um

exacerbado sentido de permanência, como se o compositor quisesse ultrapassar o

tempo cronológico para se inscrever em uma duradoura tradição milenar. É

curioso, portanto, que A Tábua de Esmeralda seja o disco mais lembrado quando

fãs e críticos repassam a sua obra em revista nos dias de hoje. É importante

também notar que é neste período que Ben Jor parece atingir certa maturidade

lírica e sonora, abandonando alguns maneirismos e vícios juvenis que vez ou

outra irrompem durante a primeira fase de sua produção fonográfica.

O homem que quis ser o músico dos alquimistas já havia manifestado essa

ideia na entrevista ao JB, em 1978: “Todos os bons alquimistas estavam sempre

acompanhados por um trovador. Era a eles que os mestres passavam suas

fórmulas mágicas que, transformadas em músicas, se tornavam imperecíveis”.

Eliade nos lembra que os alquimistas tinham especial interesse pelo ouro

porque ele seria o elemento químico mais maduro:

A “nobreza” do ouro é portanto fruto da sua “maturidade”: os

outros metais são “comuns” por estarem “crus”, “não maduros”.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

91

Ora, a finalidade da Natureza é levar a um termo o reino

mineral, é a sua “maturação” última. A conversão “natural” dos

metais em outro está inscrita em seu próprio destino. Em outros

termos, a Natureza tende para a perfeição. Mas como o Ouro

contém um simbolismo altamente espiritual [“O ouro é a

imortalidade, repetem os textos indianos], é evidente que,

preparada por certas especulações alquímico-soteriológicas,

uma nova ideia vem à tona: a do papel assumido pelo alquimista

como Salvador fraterno da Natureza: ele ajuda a Natureza a

cumprir sua finalidade, a alcançar o seu “ideal”, que é o remate

da sua progenitura — mineral, animal ou humana —, até chegar

à maturidade suprema, isto é, à imortalidade e à liberdade

absolutas) sendo o ouro o símbolo da Soberania e da autonomia)

. (ELIADE, 1979, p. 43).

A resistência à corrosão, portanto, era uma das características do ouro que

mais encantava os alquimistas. Por sinal, aquela casa decorada com anjos

musicais que Ben Jor visitou nos anos 1970 resistiu a duas grandes guerras,

incêndios e revoluções. Hoje, a residência de Flamel é reconhecida por

historiadores como a mais antiga ainda de pé em toda Paris. Quando cantou as

virtudes dos filósofos herméticos e traduziu seus tratados para a MPB, Ben Jor

parece ter escrito para durar, como as pedras da fachada do edifício da Rua

Montmorency ou então como uma pepita de ouro escondida debaixo da terra. É

como se ele buscasse uma canção imperecível. Quanto tempo as suas criações vão

seguir resistindo à corrosão implacável do tempo, ninguém é capaz de precisar.

Mas é certo que ele trabalhou em sua grande obra mirando-se nos exemplos mais

duradouros que encontrou.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

92

Pois eu vou fazer uma prece

Pra Deus, nosso Senhor

Pra chuva parar

De molhar o meu divino amor

Que é muito lindo É mais que o infinito

É puro e belo

Inocente como a flor

(Jorge Ben Jor, “Chove chuva”)

6

Considerações finais: O dia em que o Sol declarou o seu

amor pela Terra

O pré-projeto que redundou nesta dissertação de mestrado foi gestado

quando ainda me encontrava sob efeito das 136 páginas de A Tábua de Esmeralda

e a pequena Renascença de Jorge Ben, publicadas pela Cobogó, e dos dez

capítulos do documentário em áudio “Imbatível ao extremo – Assim é Jorge Ben

Jor!”, veiculados pela Rádio Batuta do Instituto Moreira Salles. No entanto, desde

a primeira infância, já havia qualquer coisa em mim que me arrastava até o campo

gravitacional da música de Jorge Ben Jor. Consigo me lembrar com alguma

clareza do breve momento de arrebatamento musical que senti quando “Chove

Chuva” aconteceu pela primeira vez diante dos meus ouvidos. A assinatura vocal

havia sido feita com um lápis de ponta dupla: parecia capaz de carregar ao mesmo

tempo sentimentos antagônicos como a tristeza e a felicidade. Par de emoções que

se materializa nas estrofes escolhidas como epígrafes do último ato desta

pesquisa.

É curioso que “Chove Chuva” tenha sido a irrupção da música de Ben Jor

que permaneceu registrada nos arquivos muitas vezes imprecisos das memórias de

criança. Cheguei a este mundo apenas em 1991, ano em que a ultra comercial

“W/Brasil” era a canção de Ben Jor que tocava nas rádios. Fui descobrir (meia

década depois, talvez?) aquela composição de 1963 – que embora estivesse

presente no álbum de estreia, nunca foi trabalhada como single pelo departamento

de marketing da Phillips – tocando no aparelho três em um que ficava na antiga

sala da minha avó, em Paraty. Hoje, ao concluir esta etapa, percebo que já

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

93

estavam ali, nas letras do encontro inicial, tanto o diálogo com o divino, quanto as

simbólicas flores com que Jorge Ben Jor decoraria os seus versos durante toda a

sua carreira. Estava ali também a fé inquebrantável nas possibilidades humanas,

nas palavras encantadas, ditas em forma de oração, que – no fim das contas –

seriam responsáveis por levar a chuva embora e trazer a felicidade plena e ultra

utópica – também estes dois reconhecidos elementos recorrentes e caros ao

antimétodo de Ben Jor.

Recorrências, por sinal, renderam a Ben Jor a fama de artista repetitivo. A

repetição, sabemos, é elemento fundamental para a perpetuação dos rituais e

cerimônias. A cada vez que se repete um mantra ou uma oração, a palavra salta do

plano concreto e humano em direção ao terreno metafísico do sagrado. Mesmo

quando não está falando do divino, como nesta simples canção de amor, Ben Jor

canta como quem reza. E isto me parece ter ficado claro após estes dois anos

mergulhado em seu cancioneiro.

Ao mesmo tempo, o salgueirense Ben Jor escreve como se fizesse parte da

ala dos compositores do Grêmio Recreativo Unidos da Simpatia, entidade

fantástica criada por ele na canção “O dia que o Sol declarou seu amor pela

Terra”, registrada no álbum Bem-vinda, Amizade (1981). Como os trovadores de

Zumthor, que escreviam, encenavam e interpretavam as canções de gesta nas ruas

e praças durante o Medievo, o sambista Ben Jor surge como compositor, ritmista,

intérprete e carnavalesco de seu próprio barracão. Suas canções se desenvolvem

como enredos em evolução em plena Avenida Marquês de Sapucaí. Os

incontáveis shows da Banda do Zé Pretinho que pude acompanhar ao vivo depois

de vir morar no Rio de Janeiro – muitos deles com Neném da Cuíca fazendo às

vezes de passista desta agremiação – só reforçaram esta certeza dentro de mim.

Cada vez que Ben Jor sobe em um palco para cantar suas canções-orações em

shows-rituais, o ambiente passa por uma súbita e radical alteração. Abundam,

neste momento mágico, as tais pletoras de alegria que Caetano Veloso cantou em

"Fora da Ordem".

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

94

Figura 8 - Ben Jor e o Trio Mocotó em 1971

Fonte: Agência O Globo

Parece-me digno de nota também que, já nos primeiros anos da

adolescência, o reencontro com a lira benjoriana tenha se dado através do

controverso projeto Acústico MTV, lançado por Ben Jor no início do Século XXI.

Nele, o artista finalmente se reencontrou com o violão após anos palhetando única

e exclusivamente a sua guitarra cantante. Paradoxalmente, o violonista que criou

uma puxada própria e causou uma pequena revolução no ritmo brasileiro decidiu

tocar o instrumento de madeira adaptado com cordas de aço, como se fosse o seu

irmão elétrico. Ben Jor nunca foi um artista de decisões previsíveis e fáceis de

explicar. É mesmo como o meia cerebral e imarcável que Tatit descreveu direto

da arquibancada: capaz de produzir gols de placa porque atua com repertório

particular, original, com uma visão do jogo completamente diferente daquela dos

outros jogadores em campo. Quando dribla, “garrincha” tempo e espaço para

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

95

atingir o seu objetivo final. Foi assim que produziu e registrou no álbum ao vivo

de 2002 a versão “Os Alquimistas Estão Chegando”, fonograma que me

introduziu ao repertório alquímico de Ben Jor.

Dez anos depois, Ben Jor chegou a viajar até Paraty para a gravação um

segundo volume acústico para a emissora paulistana – desta vez com uma

guitarra. A ideia, no entanto, não foi adiante e serviu apenas para que eu ouvisse

novamente esta famosa canção de A Tábua de Esmeralda, desta vez no areal do

Pontal, onde praia e o rio se encontram – poucos metros distante daquela casa

onde anos antes “Chove chuva” havia ecoado de maneira definitiva em mim. O

cancioneiro de Ben Jor, como Gilberto Gil formulou para Paulo da Costa e Silva,

se assemelha a um estuário onde diversos corpos hídricos desembocam, afinal de

contas.

Depois de me graduar em jornalismo e obter alguma experiência dentro do

mercado de trabalho das redações, quando já havia passado a compreender a

pesquisa da Música Popular Brasileira como elemento fundamental para a

constituição da minha trajetória como profissional engajado nos debates culturais

do Rio de Janeiro, é que finalmente me deparei com perspectivas teóricas

genuínas sobre a lira benjoriana. Neste momento é que comecei a ter uma

consciência mais plena do andar que o artista ocupa no edifício da Música Popular

Brasileira.

Desta maneira, meu primeiro ímpeto foi pesquisar a influência específica

de textos e saberes alquímicos nas letras de Ben Jor. Só depois de aprovado no

mestrado é que realmente me dei conta do desafio ao qual eu havia me proposto,

do tamanho do obstáculo que como pesquisador calouro pretendia superar em tão

curto espaço de tempo. Jung, referência bibliográfica em que eu desejava me

apoiar, gastou dez anos estudando em absoluto silêncio antes de declarar em

público que se interessava pela doutrina. Também ficou óbvio no início que meu

conhecimento da língua latina era infinitamente inferior ao que Ben Jor acumulou

quando passou pelas salas de aula do Seminário São José. Percorrer somente os

labirintos linguísticos e semânticos da doutrina que cultivava a obscuridade pela

obscuridade não levaria apenas os dois anos que a pesquisa de mestrado permitiria

e poderia dar em um beco sem saída.

Mais válido, portanto, seria entender a carga teopoética que aparece

também nos momentos em que a voz de Ben Jor canta a alquimia, mas que gira

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

96

em torno sobretudo da relação do artista com a fé e com o modo de ser sagrado no

Mundo. O diálogo com o elemento religioso e o discurso sagrado são elementos

estruturantes de toda a sua obra. E foi esta, então, a matéria prima da qual foi feita

esta dissertação. Busquei desenhar a fé benjoriana – em Deus, mas também na

Humanidade – de uma forma mais ampla e aberta, assim como ele mesmo fez

durante toda a sua obra. Para citar uma correspondência de Mario de Andrade a

Carlos Drummond de Andrade, Ben Jor sempre teve “espírito religioso pra com a

vida”:

Tudo está em gostar da vida e saber vivê-la. Só há um jeito feliz

de viver a vida: é ter espírito religioso. Explico melhor: não se

trata de ter espírito católico ou budista, trata-se de ter espírito

religioso pra com a vida, isto é, viver com religião a vida. Eu

sempre gostei muito de viver, de maneira que nenhuma

manifestação da vida me é indiferente. Eu tanto aprecio uma

boa caminhada a pé até o alto da Lapa como uma tocata de Bach

e ponho tanto entusiasmo e carinho no escrever um dístico que

vai figurar nas paredes dum bailarico e morrer no lixo depois

como um romance a que darei a impassível eternidade da

impressão. Eu acho, Drummond, pensando bem, que o que falta

pra certos moços de tendência modernista brasileiros é isto:

gostarem de verdade da vida. Como não atinaram com o

verdadeiro jeito de gostar da vida, cansam se, ficam tristes ou

então fingem alegria o que ainda é mais idiota do que ser

sinceramente triste. Eu não posso compreender um homem de

gabinete e vocês todos, do Rio, de Minas, do Norte me parecem

um pouco de gabinete demais. Meu Deus! se eu estivesse nessas

terras admiráveis em que vocês vivem, com que gosto, com que

religião eu caminharia sempre pelo mesmo caminho (não há

mesmo caminho pros amantes da Terra) em longas caminhadas!

Que diabo! estudar é bom e eu também estudo. Mas depois do

estudo do livro e do gozo do livro, ou antes vem o estudo e gozo

da ação corporal. (ANDRADE, 2015, p. 20)

A maneira livre e desamarrada com que Ben Jor se apoiou nos textos e

tratados antigos me deu também certa flexibilidade e margem para manobras. Em

paralelo com a revisão bibliográfica, aconteceu a pesquisa nos acervos dos jornais

e revistas. Sem qualquer dúvida, esta se tornou a parte mais divertida da jornada.

Foi refrescante mergulhar nas edições diárias e semanais da nossa imprensa a

partir dos anos 1960. Certos processos só se desvelam completamente diante de

um pesquisador quando se acompanha a reprise da História capítulo a capítulo,

como ela foi registrada nas fontes primárias no calor do momento, sempre

consciente da necessidade permanente de escová-la a contrapelo.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

97

Considerei pedir uma entrevista com o autor, a fim de confrontá-lo com

minhas incertezas e perquirições, mas me pareceu um movimento precoce, que

poderia gerar mais dúvidas do que propriamente certezas. Talvez se justifique

plenamente em um futuro projeto de pesquisa para o doutorado, mas para esta

dissertação bastaram a voz e as ideias de Ben Jor registradas nas páginas e telas da

nossa imprensa – O Pasquim, Trip e Roda Viva, sobretudo.

No interior da Bahia há uma tradição entre os santeiros – mestres

escultores que usam o barro para modelar figuras sagradas – de criar imagens de

dupla-face: de um lado, o santo católico; do outro, o orixá. No mesmo corpo

físico, como nos grifos lendários do Oriente Médio e da Grécia Clássica, habitam

forças tão opostas quanto complementares. Alguns exemplos desses trabalhos

sincréticos foram expostos no conjunto de instalações, esculturas e manifestos

reunidos pelo artista visual Bené Fonteles na mostra “Ágora: OcaTaperaTerreiro”,

da 32ª Bienal de São Paulo, em 2016. Penso que essas estátuas duplas são boas

imagens para descrever a relação que Ben Jor mantém com as histórias e tradições

que envolvem os cultos a São Jorge e Ogum no Brasil. Pude demonstrar que, em

seu altar, os dois personagens são modelados como arquétipos fundamentais dos

heróis – sagrados e profanos – que ele cantou ao longo da carreira. Também ficou

evidente como ele se serve livremente da palavra encantada dos textos sagrados –

a oração do Santo Guerreiro, por exemplo – para escrever.

Depois, contei como a afeição de Ben Jor pelas figuras do catolicismo

popular não se restringe apenas ao cavaleiro da Capadócia, e citei os exemplos de

São Cristóvão, São Pedro e Santa Clara para fundamentar essa afirmação.

Também procurei demonstrar como os anos no Seminário Menor exerceram

influência na sua maneira de escrever. Como Santo Tomás de Aquino deixa claro

em sua Suma Teológica, o objeto da fé é a veritas prima – verdade primeira,

originária. Ela é o pórtico fundamental por onde se adentra na concepção tomista

das virtudes. Na lira benjoriana, a fé também parece ser imprescindível para o

acesso à lista de valores e predicados que o autor costuma atribuir aos

personagens que admira.

Em seguida, mostrei a relação inicialmente dúbia com que Ben Jor tratava

os temas da religiosidade africana nos primeiros anos da sua carreira: como as

letras estavam em descompasso com as declarações na imprensa, muito por conta

daquilo que Reginaldo Prandi (2004) apontou como o preconceito e a

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

98

discriminação que sofreram os adeptos dessas religiões no Brasil ao longo dos

séculos. Contei também como vocabulários e práticas destas maneiras sagradas

afro-brasileiras de se estar no Mundo foram se afirmando conforme as letras do

artista passavam a cada vez mais a emanar um determinado texto negro. Também

investiguei as raízes de sua conexão familiar com a Etiópia e o desdobramento da

"cultura de síncope" proposta por Simas (2020) na sua maneira de tratar os temas

da umbanda e o candomblé.

Por fim, como se a dissertação tomasse a forma de um ouroboros, voltei

aos alquimistas, personagens que foram o ponto de partida desta jornada. A

eternidade sugerida pelo símbolo mitológico da cobra que morde a própria cauda

também era perseguida por Paracelso e sua gravata florida; Flamel e a viúva

Penelle; e Hermes Trismegisto e a tabula smaradigna. Mostrei como a relação de

Ben Jor com o assunto passa pela alquimia interna – o processo de transformar o

chumbo da experiência humana na Terra em ouro. Ben Jor queria ser o trovador

dos alquimistas, escrever fórmulas secretas em forma de canção para eternizá-las

— mais uma vez, portanto, se aproximando da palavra encantada que lhe é tão

cara no trato com São Jorge e com as demais crenças populares de matriz europeia

e africana.

Este trabalho jamais pretendeu fechar o assunto ou ser capaz de encontrar

uma conclusão definitiva para a complexa relação de Ben Jor com os mistérios da

fé e da criação. Pelo contrário, quero crer que cada capítulo abriu dezenas de

possibilidades interpretativas para pesquisadores que se interessam no trabalho

deste artista. Da minha parte, fico satisfeito em poder contribuir com um pequeno

item que se soma à fortuna crítica benjoriana, que faço votos que continue a

crescer no mesmo ritmo dos últimos anos.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

99

Referências bibliográficas

1. LIVROS, TESES E DISSERTAÇÕES:

ANDRADE, Mario de. A Lição do Amigo: Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, Anotadas pelo Destinatário. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015. AGAMBEN, Giorgio. “O que é o Contemporâneo?” In: O que é o Contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009. ARAÚJO, Paulo Cesar de. Roberto Carlos em detalhes. Rio de Janeiro: Planeta, 2006. AQUINO, Santo Tomás de. Tratado da Pedra Filosofal e a Arte da Alquimia. São Paulo: Ed. Isis, 2015. . De Substatiis Separatis – Sobre os Anjos; Tradução de Luiz Astorga e Apresentação de Paulo Faitanin. Rio de Janeiro: Editora Sétimo Selo, 2006. . Suma Teológica. v. I, parte I. 2ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2001. CAMPOS, Augusto de. Balanço da Bossa: e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 1974. CAMPOS, Augusto de. Como é, Torquato. In: NETO, Torquato e SALOMÃO, Waly (org). Os últimos dias de paupéria. Rio de Janeiro: ed. Eldorado, 1973. CASTRO, Ruy. Chega de Saudade: a história e as histórias da Bossa Nova. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. CENTENO, Y. K. Literatura e Alquimia - Ensaios. Lisboa: Editorial Presença, 1987. COSTA E SILVA, Paulo da. A tábua de esmeralda e a pequena renascença de Jorge Ben. Rio de Janeiro: Cobogó, 2014. DINIZ, Júlio. Sentimental demais: “A voz como rasura”. In: DUARTE, P. S.; NAVES, S. C. (orgs.). Do samba-canção à Tropicália. Rio de Janeiro: Faperj/Relume-Dumará, 2003. . A voz como construção identitária. In: C. N. Matos, E. Travassos e F. T. de Medeiros (org.) Ao encontro da palavra cantada - poesia, música e voz. Rio de Janeiro: 7Letras, 2001. ELIADE, Mircea. Ferreiros e alquimistas. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. . Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972. . O sagrado e o profano: A essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2008. FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber; Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. FRANCO JÚNIOR, Hilário. Apresentação. In: VARAZZE, Jacopo de. Legenda áurea; Trad. Hilário Franco Júnior. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. HUTIN, Serge. História Geral da Alquimia. São Paulo: Pensamento, 2010.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

100

. A Tradição Alquímica. São Paulo: Editora Pensamento, 1989. JUNG, Carl Gustav. Psicologia e Alquimia. Petrópolis, RJ: Vozes, 1990. . O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Disponível em: <http://conexoesclinicas.com.br/wp- content/uploads/2015/04/jung-c-o-homem-e-seus-simbolos.pdf>. Acesso em: 25 nov. 2019. . O espírito na arte e na ciência. 3ªed. Petrópolis: Vozes, 1991. MEGALE, Nilza Botelho. O Livro de Ouro dos Santos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. MIDANI, André. Música, ídolos e poder: do vinil ao download. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. MOTTA, Nelson. Vale tudo: o som e a fúria de Tim Maia. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. . Noites tropicais: Solos, improvisos e memórias musicais. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. NASCIMENTO, Alam D'Ávila do. “Para Animar a Festa”: A Música de Jorge Ben Jor. Dissertação (Mestrado em Música) - Universidade Estadual de Campinas – Campinas, SP: [s.n.], 2008. OLIVEIRA, Luciana Xavier. O swing do samba: Uma compreensão do gênero do samba-rock a partir da obra de Jorge Ben Jor. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Faculdade de Comunicação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008. PARACELSO. A Chave da Alquimia. São Paulo: Ed. Três. 1983. PARREIRAS, Natália. A Alquimia da Potência: O estofo filosófico Tomista na obra de Jorge Ben Jor. Monografia (Pós-Graduação em Letras). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2018. PINHEIRO, Roncalli Dantas. Vozes de São Jorge e Ogum: Um percurso do Romanceiro Português aos pontos de umbanda no Brasil. Publicado nos anais da Gelne. 2012. Disponível em: <https://gelne.com.br/arquivos/anais/gelne2012/Arquivos/%C3%A1reas% 20tem%C3%A1ticas/L%C3%ADngua,%20linguagens%20e%20culturas% 20populares/Roncalli%20%20VOZES%20DE%20S%C3%83O%20JORG E%20E%20OGUM.pdf >. Acesso em 20/03/2020. PORTO, Maria Beatriz e GUIDI, Rebeca de Luna. As muitas faces de Jorge: aspectos da devoção ao santo guerreiro. Rio de Janeiro: Iphan, CNFCP, 2011. REZENDE, Renato Santoro. Jorge Ben: um negro na MPB nas décadas de 1960-1970. Dissertação (Mestrado em Letras) Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: <http://www.unirio.br/ppgm/arquivos/dissertacoes/renato-rezende.pdf >. Acesso em 20/03/2020 RIBEIRO, Silvia et al. Indiscotíveis. São Paulo: Lote 42, 2014. SADOUL, Jaques. O Tesouro dos Alquimistas. São Paulo: Ed. Hemus. 1970. SANTOS, Alexandre Reis dos. "Eu quero ver quando Zumbi chegar”: Negritude, política e relações raciais na obra de Jorge Ben (1963- 1976). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal Fluminense, 2014. Disponível em: <http://www.historia.uff.br/stricto/td/1800.pdf >. Acesso em 20/03/2020.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

101

SANTOS, Eufrázia Cristina Menezes. Preto velho: as várias faces de um personagem religioso. 1999. 140f. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP. Disponível em: <http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/280869>. Acesso em: 24 jul. 2018. SIMAS, Luiz Antonio. Almanaque Brasilidades: um inventário do Brasil Popular. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2018. TATIT, Luiz. O cancionista: Composição de canções no Brasil. São Paulo: Editora da USP, 2002. TINHORÃO, José Ramos. Os sons dos negros no Brasil. Cantos, danças, folguedos: origens. São Paulo: Editora 34, 2008. VALENTE, Heloísa de Araújo Duarte. Os cantos da voz: entre o ruído e o silêncio. São Paulo: Annablume, 1999. VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. VELOSO, Rodrigo Felipe. "Sal da terra, luz do mundo": ritos de passagem e alquimia, caminhos de transformação em Clarice Lispector. Tese (Doutorado em Letras) - Universidade Federal de Juiz de Fora, 2016. Disponível em <https://repositorio.ufjf.br/jspui/bitstream/ufjf/3073/1/rodrigofelipeveloso.pdf >. Acesso em 20/03/2020. VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. VARAZZE, Jacopo de. Legenda áurea; Trad. Hilário Franco Júnior. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: A “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. . Performance, recepção, leitura; Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Ubu, 2018.

2. JORNAIS E REVISTAS

ALENCAR, Miriam. O mundo (nem sempre) alegre do pá-tropi. Jornal do

Brasil. Rio de Janeiro, 22 mar. 1970.

. A alquimia transformada em música do país tropical. Jornal do

Brasil, Rio de Janeiro, 24 jan. 1979.

BAHIANA, Ana Maria. O bom de Ben na bossa e na bola. O Globo. Rio

de Janeiro:17 jan. 1978.

BITTENCOURT, Sergio. Jorge Ben, no Bottles. Correio da Manhã, Rio

de Janeiro, 3 out. 1963.

. Jorge Ben, empolgação e dança. O Globo, Rio de Janeiro,

26 jan.1979.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

102

CAMARÁ, Isa. Jorge Ben, um tímido na terra de mulher e samba. Folha

de São Paulo, São Paulo, 9 jan. 1978.

DUTRA, Maria Helena. Jorge Ben em “show” para cantar e dançar. Jornal

do Brasil, Rio de Janeiro, 13 jan. 1978.

EIRAS, Thereza. Jorge Ben. Última Hora, Rio de Janeiro, 1 nov. 1977.

LEÃO, Danuza. Nobreza. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 fev. 1994.

MARIA, Cleusa. Jorge Ben cadê você? Jornal do Brasil, Rio de Janeiro,

28 nov.1986.

MATOS, Claudia Neiva de. Canção popular e performance vocal. Cultura

Brasileira Contemporânea, Ano 1, n.1. Rio de Janeiro: Fundação

Biblioteca Nacional, 2006.

MOTTA, Nelson. Jorge Ben, o alquimista. O Globo, Rio de Janeiro, 23

jun. 1974

NAGLE, Leda. Jorge Ben um carioca na música, no samba e no futebol.

O Globo, Rio de Janeiro, 15 jan 1978.

PAOLIELLO, Waldo. Em qualquer onda, sempre Jorge Ben. Jornal da

Tarde, São Paulo, 10 jan. 1969.

PORTELLA, Juvenal. O mal do Jorge Ben. Jornal do Brasil, Rio de

Janeiro, 14 jun.1967.

PRANDI, Reginaldo. Brasil com axé. Estudos Avançados. Vol. 18. Nº 52.

2004.

. O candomblé e o tempo: concepções de tempo, saber e

autoridade da África para as religiões afro-brasileiras. Rev. bras. Ci. Soc.

[online]. 2001, vol.16, n.47, pp.43-58. ISSN 0102-6909. Disponível em:

<https://doi.org/10.1590/S0102-69092001000300003>. Acesso em

20/03/2020.

. Modernidade com feitiçaria: Candomblé e Umbanda no Brasil do

Século XX. Tempo Social; rev. sociol. USP, S. Paulo (1990).

PRETO, Marcus. Jorge Ben Jor: eterna redescoberta. Rolling Stone

Brasil, São Paulo, 9 jun. 2007. Disponível em

<http://rollingstone.com.br/edicao/9/jorge-ben-jor-eternaredescoberta.

Acessado em 27/03/2011 >. Acesso em 20/03/2020.

RANGEL, Maria Lucia. Jorge (Sonsual) Ben do mundo para o Rio. Jornal

do Brasil, Rio de Janeiro, 10 jan. 1978.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

103

RÊGO, Norma Pereira. Setembro de Jorge Ben: Ele é o “Quentche”.

Última Hora, Rio de Janeiro, 13 set. 1969.

SANCHES, Pedro Alexandre. O Homem Patropi. Revista Trip #183, São

Paulo, 10 nov. 2009.

SIMAS, Luiz Antonio. Drible e flecha de fulni-ô. Revista Cult. 27 de

janeiro de 2020. Disponível em: .https://revistacult.uol.com.br/home/drible-

e-flecha-de-fulni-o/

SOARES, Dirceu. Jorge Ben, biografia no ritmo do improviso. Folha de

São Paulo, São Paulo, 26 nov. 1980.

SOUZA, Tárik de. ‘África-Brasil’ A supremacia do terceiro mundo sobre a

tecnologia (nem sempre voluntariamente) importada. Jornal do Brasil,

Rio de Janeiro, 21 nov.1976.

. “Jorge Ben assegura que ‘Mocotó’ é sério”. Jornal do Brasil,

Rio de Janeiro, 25 out.1970.

. “Jorge Ben o acrobata sem rede”. Jornal do Brasil, Rio de

Janeiro, 11 jan. 1982.

MOON, Scarlet. “Jorge Ben: ‘onde é que você vai, SPEED?”. Correio da

Manhã. Rio de Janeiro, 9 nov. 1972..

TEIXEIRA, Faustino. Faces do catolicismo brasileiro contemporâneo.

Revista USP, 2005 (67), 14-23. Disponível em:

<https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i67p14-23 >. Acesso em

20/03/2020.

TINHORÃO, José Ramos. O gênio de Jorge Ben ou ninguém pode mudar

chumbo em ouro. Jornal do Brasil, 27 mai. 1974.

“O pá-tropi no FLAG”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 set. 1972.

“O sucé de Jor na Euro”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 28 jan. 1970.

3. DISCOGRAFIA

3.1 ÁLBUNS:

BEN JOR, JORGE. Samba esquema novo. Philips/Universal, 1963 (2009).

. Sacundin Ben samba. Philips/Universal, 1964 (2009).

. Ben é samba bom. Philips/Universal, 1964 (2009).

. Big Ben. Philips/Universal, 1965 (2009).

. O Bidu – Silêncio no Brooklin. Artistas Unidos, 1967.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

104

. Jorge Ben. Philips/Universal, 1969 (2009).

. Força Bruta. Philips/Universal, 1970 (2009).

. Negro é Lindo. Philips/Universal, 1971 (2009).

. Bem. Philips/Universal, 1972 (2009).

. 10 anos depois. Philips/Universal, 1973 (2009).

. A tábua de esmeralda. Philips/Universal, 1974 (2009).

. Solta o pavão. Philips/Universal, 1975 (2009).

. África Brasil. Philips/Universal, 1976a (2009).

. Tropical. Island Records/Phillips, 1976b.

. A Banda do Zé Pretinho. Som Livre, 1978.

. Salve Simpatia. Som Livre, 1979.

. Alô, alô como vai? Som Livre, 1980.

. Bem-vinda, Amizade. Som Livre, 1981.

. Dádiva. Som Livre, 1983.

. Somsual. Som Livre, 1985.

. Ben Brasil. Som Livre, 1986.

. Ben Jor. Warner, 1989.

. 23. Warner, 1993.

. Homo Sapiens. Sony Music, 1995.

. Reactivus Amor Est (Turba Philosophorum). Universal, 2004.

. Recuerdos de Asunción 44. Som Livre, 2007.

BEN JOR, Jorge e GIL, Gilberto. Gil & Jorge Ogum Xangô. Philips/Universal,

1975 (2009).

MARIA, Zé. Tudo azul: Bossa nova e balanço. Continental. 1962.

PAGODINHO, Zeca. Uma prova de amor (Ao vivo). Universal. 2009.

VELOSO, Caetano. Cores, nomes. Phillips. 1982.

3.2 COMPACTOS

BEN JOR, JORGE. Aleluia/Você não é Ave Maria, mas é cheia de graça.

Philips, 1966.

4. DEPOIMENTOS

COSTA E SILVA, Paulo da. Imbatível ao extremo – assim é Jorge Ben Jor!. Rio

de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2012.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA

105

Entrevista de Chacrinha a O Pasquim, edição 14 (1969).

Entrevista de Jorge Ben Jor a O Pasquim, edição 21 (1969).

Entrevista de Jorge Ben Jor ao Programa Arquivo N (21/03/2012). Globo News.

Entrevista de Jorge Ben Jor ao Programa Roda Viva (18/12/1995). TV Cultura.

Áudio.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1812334/CA