Gonçalves Crespo - Forgotten Books

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GONÇALVES CRESPO

Á SPRE C E D I DA S DE

UMA ADVE RTE N C I A PRÉVI A

JOS É DE S OUS A MONTEIRO

—1Miniatur as

Malia Va z de

L ISBOATAVARES C ARDO S O I RMÃ O __ E D rTo zfz ss

5, La r go de C amões, 6'

1 557

Typ . da Empr e z a Li t te r ar ia e Typog r aph im

Rua de D. Pedro,mlk — Por to

ADYERTENCIÁ PREVIA

Dão-se pela vez primeira àestampa as obras

comple tas de Gonçalves Crespo . Quer is to dizer

que appar ecem agora reunidos as Minia tu r as e

os N octur nos,

que se addicionam,em Appen

d ice,algumas sol tas paginas . Tudo n ªum volume

so e breve . Tambem as obras do Poe ta mais

que nenhum fiel ao conselho cortez da sua Musa

e ternamen te bella — S ur des p ense r s nozt veauw

fa ísons des ve r s antiques— e cuj a espiri tual afil

niclade com o auotor da «Morte de D . Quixo te »

não é para con testar com exi to,podem ence r

rar-se,e encerram-se facilmen te

,emum volume

unico . E,todavia

,a guilho t ina sobre todas exe

VI ADVERTE N C IA PREVI A

oranda, que lhe lançou a cesta ensanguen tada a

pallida cabeça,não consegui u lançar-lhe ao es

quecimento o nome fulgido . Foi mais potente do

que ella esse volume breve .

Poderi a dilatar-se o Appendice com varios

trechos de valor diverso . Mas a mão piedosa e

i llustre que reuniu estas dispersas folhas excl uiu

avisada e fi rmemen te mui ta composição inedi ta

ou anonyma que a tradição,com ou semmo tivo,

a t tribue tenaz ao Poe ta das Minia tur as . Mais que

nenhuma sen te o respei to vivo que todos lho de

vemos,que lhe vo tamos todos

,a memoria insi

gue . N ão quiz pois que,por ambição de lucro

,ou

no seductor proposi to de accr esce r uma gloria que

por essa fô rma se não accresce,alguem t raçasse

o nome do Poe ta em pagi nas que elle deixou vi u

vas d'

esse claro nome . As que const i tuem o pre

sen te Appendice não foram recusadas por menos

dignas d *elle ou desdizeremde seus j ustos credi

tos . Figurariam,semduvida e sempejo

,emqual

quer obra sua emque, por mesmeidade ou seme

lhança de índole,pudessem ter cabida .

Duas razões houve para este procedimen to .

ADVERTEN C I A PREVIA VI I"

Poucas palavras,que o lei tor j ustamen te ancioso

do livro do Poe ta que ama perdoara aminha penna

tag ar ella agora,mas dillloil e r e tr ah ida quasi sem

pre,sobram a expl icação preci sa .

Cada cul tor o prezador sincero da arte gent i l

que o torna as veze s grande temde fazer de suas

prom—ias obras selecção severa, re legando ao esquec imen to e terno

,ou aos inu teis e

,tan ta vez

,ruins

collector es do appellidado docume nto huma no,o

que a sua sensibilidade art ist ica at ten tamen te ou

vida r eg eitar consciente . Alfred de Vigny, a mais

bella e pura glori a da França romant ica,semem

bargo dos embargos que ten tem oppô r a tal j uizo

os admi r adores do sobre todos fel i z imi tador de '

Byron ou os de outro Poeta sonoroso sempre como

umtam-tamgigante,mas

,quanta vez

,concei tuoso

e reflect ido como elle,Alfred de Vigny estremou de

suas obras,recolhendo—se austeramente

'

em si ,

quan to queri a e requeria para fundamen to do

juíz o. do porvir remo to,j ulgador asperrimo . S e :

por vaidade,inadvertenci a ou t imidez

,pre tere o

poe ta esse empenho sério,nempor isso elle deixa de

cumprir-se . Cumpre-se . C omuma diffe r ença grave .

VI I I ADVE RTEN C IA PREVI A

O futuro,que se não qui z eximir da tarefa dura

d 'ella se encarrega emfim,ou pel a acção incon

scien te e geral de todos ou pe la in terferenc ia

directa e pessoal . de alguem. Bismarck— não me

despraz tal vez procurar emgrandes individuos es

t r anhos por forçoso caso a profissão das le tras a

confirmação de meus concei tos não se importaria

de viver no mais afas tado ermo se ti vesse a illu

minar-lhe a solidão alguns volumes,por el le es

colhidos, do maior de seus pat r ícios, Goe the . N a

poleão separava para a sua admiração quasi inteira,das tragedias de Vol taire

,o «Mahomet rela

xando o res to ao esquecimen to jus to a que as

achara en tregues .

Exerceu Gonçalves Crespo sobre si e sobre o

seu, com applauso do rigor e talvez menoscabo

da j usti ça,esse arduo encargo . Deu-lhe forças

para tan to,que foi talvez de mais

,a nunca sã

ciada desconfiança de si e seu poder certeiro,tão

finamen te observada 3a e expressa finamente .

Mas o que elle excluiu severo,ou não

,demais,

excluido se j ulgou,defini t iva

,i r r epar avelmente .

Vuolsi cost cold dove si puot e C ir

"

) che sí. vuo/e .

ADVERTE N C I A PREVI A I X

Para os corações cheios do supremo domde amar

e respei tar o que é di gno de respei to e amor ha

querer que vale o que,no concei to soberano do

Dan te,faz vergar submissas as mai s levantadas

e as mais aba t idas potes tades do empy r eo fei to de

e terna luz e amor e as do Averno fei to de e terna

sombra e de odio .

Mas,no sujei to caso

,a resolução que todo no

bre coração applaude,tem de seriamen te appro

val-a toda mente sã .

Entre os grupos em que pode um supposto ou

real senso cri t ico dis tribuir poe tas incl uo este,certo

de sua verdade plena : ha poe tas que são ar tistas

e ha ar tistas que são poe tas . Isto,é claro

,sem sa

h irmos dos domínios gloriosos da palavra . Os pri

meir os,entender-se-ha facilmente

,são os que

possuem da al ta e poderosa faculdade art is t ica

mais do que o impre terível,o sempre inevitavel

quantum.

Exemplos explicarão mais e melhor o meu

concei to . S e se pergun tar se temde ent r eme t ter -se

em algum de sses grupos e em qual o auctor do

«De rerum natura » e o can tor de Eneas e prin

X ADVERTEN CIA PREVIA

cipalmen te dos precei tos do lidar agricola,ninguem

de sciencia e consciencia hesi tara na deci são . Toda

penna em que eu ousar pô r mão para exprimi r

concei to ou affecto da alma se me quebre de

vez e para sempre,se a decisão afli rmativa não

collocar Lucrecio en tre os poe tas-ar tis tas e Vir

gilio entre os art is tas—poe tas . S e a ques tão se t ras

ladar do Lacio a terra por tugueza,em parte ao

menos,e se o confron to se fizer en tre Camoes e

o Tasso,incluir-se-ha en tre os segundos o que

can tou divinamen te um dos mais bellos fei tos da

meia idade,a cruzada de Jerusalem

,sob Godo

fredo de Bou ill on ; e entre os primeiros,0 que di

vinamente cantou uma das mais bellas facções dos

modernos tempos,a cruzada da India

,soh Vasco

da Gama . N inguem se lembrará de con tes tar que

Esopo,o gracioso

,o ingenuo

,o infant il — assu

mido o termo na sua accepçaomais pura — creador

de tanta narrat iva fina,cheia de lição e engenho

,

e mais poe ta do que art ista,ao passo que Lafon

taine — que Taine repu ta o mais g enuíno dos poe

tas f r ance z es— que nada creon nem nos peque

ni nos dramas cheios de elegancia,viveza

,fina

ADVERTEN C IA PREVIA X I

malícia,e quantas prendas mais

,que

,sob o nome

de Fabulas,nos alegraram a meninice

,nem nos

Gontos a que sorri u a nossa exuberan te j uven tude

e cuj a t rama jovial e gaiata elle pediu aos novel

li stas i talianos e aos fa blia uw do seu torrão gaulez,é mais art ista que poe ta . É assimque numexem

plo mais,que sera o ul t imo

,chamaríamos art ista

poe ta ao Ar ti sta dos Tr Op Izees como chamaríamos

poe ta-ar tista ao Poe ta dos S one tos. S e r ia tão gran

de inj ust iça dar na arte a superioridade a es te

como dal -a na poesi a aquelle .

Eu não hesítar ía um momen to sequer — e

ainda bem que não hesítar ía para minha satisfa

ção e gloria d i elle — emcollocar Gonçal ves Crespo

en tre os artistas—poe tas . Em que doce e grande

companh ia eu,que tan to o preso e admi ro

,0 col

locava ! A que preside Virgilio,o doce

,o íneffa

vel Virgili o, que Dan te appellidou onor e e lume

de poe tas !

Ora succede com o Virgilio,como Tasso

,bem

como com todos os seus cong ene r es, uma cousa

que os ext rema,car acte r ísa e lhes abona

,mais

do que a ninguem,a perpe tuidade da memoria

X I I ADVERTEN G I A PREVIA

humana . Domina-os,absorve—os

,devora-os a ancía

da perfe ição suprema,isto é

,da harmonia na sua

expressão al tissima,do r ythmo, usado o vocabulo

na accepção mais larga,da proporção do todo e

das par tes que o compõem entre si e en tre ellas

e o fimemque o poe tapoz arden temen te mira,

a absoluta,a inteira

,a ineffavel harmonia

,sob

todos os aspectos que possa conceber a razão ou

sonhar a phan tasia,en tre a essenci a e a fôrma

,

entre o bello concei to e a palavra bella,en tre o

d ivino sen t i r e a dicção divina que o t raduz . Ora

dado em alguem o condão ingeni to,indizí vel

,de

fazer realidade esisa harmoni a que chamaria,e

com mais razão que a de Leibni tz, pr estabele

cida,a sua revelação é fatal

,e certa em cada

uma quasi de suas obras . E como para umideal

e ideada perfeição e condição essencial o longo

con tacto da obra produzida como engenho que a

produz,e como d 'esse con tacto longo se gera uma

como que fusão,uma iden t ificação inteira ent re a

obra conceb ida e quem a concebeu,e manifes to

que o art is ta se encontra todo emcada obra sua . N ão

se nega que qualquer fei tura do espíri to é,para

ADVERTEN CIA PREVIA X III

quem tem olhos de vêr e alma de sen t ir,espelho

fiel da mente que o cr eou. Mas nenhuma,como a

concebida d este modo,e d este modo r ealisada . O

Poe ta vive,respira assim em cada obra

,mais ín

tensamen te n 'uma do que n 'outra,e n i sso esta a

superioridade que se applaude,mas respira e v ive

emcada uma .

Deriva d í

ísto,como consequencia ínevítavel,

que,sendo necessario a glori a d i ampoe ta-art ista

o numero crescido de suas obras,pois da sua ab un

danoia ella procede emgrande parte,é quasi es te

ril e vão tal numero a do art is ta-poe ta . Virgíl io

não se cr ê mui to maior,tendo compos to as Geor

g ícas, por ter escrip to a Eneida . Horac io não cres

ceria sensivelmen te com um segundo l ivro que

appar ecesse agora de seus Epodos ínímítaveís. Uma

vez at tíng ida a perfeição, quasi sempre requestada

ínanemente,pouco importa o numero de vezes que

essa perfeição se attíng iu. Pouco para a gloria do

Poe ta,entenda-se . Para o maior prazer dos que

lêem,mui to .

Ora aqui esta porque,ainda sob o pon to de

vis ta in tellectual,temde appr ovar

-se com toda a

x r v ADVERTEN C IA PREV IA

alma'

a solici tude demonst r ada emnao augmentar

comobras,t alvez d ªínfe r ior quila te

,as d'umPoe ta

que pela sua índole,e como os seus congene r es,

o divino Virgilio,o al to ado r ador da Es tense au

gusta e tan tos mais,diffici lmente veria augmen

tada a sua invejanda gloria comou tro volume dos

N octur nos. N ão digo pouco .

N ão ha assim trazer a avolumado Appendice

cousas ínedi tas,

'

anonymas, emque elle até certo

extremo semduvida estar ia,mas

,semduvida

,ta

'

m

bemmenos do que nas elei tas de sua mão segura

por n *ellas se vêr todo,como n 'ellas todo o vê e ap

plaude a nossa admiração . Assim,e ainda bem

,ao

passo que as Minia tur as abrangem 1 27 paginas,

os N octur nos 1 82,o Appendice cabe todo em 82

do actual volume . C omo é grande a natureza hu

mana quando por ella se dignou de passar divino

alento,que tão cur to espaço quanto o d este vo

lume breve se torna a mais segura base a per

petuidade d'

um nome e d 'uma glori a !

Impor tava que es tas cousas se dissessem,e

applaudo-me de ter sido amig amente elei to a di

zel—as ao pub lico selecto e certo das Minia tu r as e

ADVERTEN C IA PREVIA X V

dos N octur nos . S into um requin te de prazer ex

treme em ter meu nome ínscr ipto ne s te livro em

que se resume quan to exi ste de bom e l uminoso

em língua por tugueza de tão doce,alevantado

e bem nasc ido espiri to . Exprime es ta ínscr ípção

um prei to que elle prezara in tensamente emvida .

Assim eu soubesse,na quie tação da sombra em

que me enlevo,que o presava agor a . S ó me

res ta volver os olhos longos para o azul que se

arqueia sobre nos immenso como as aspirações da

nossa Fé,mas si lencioso como a

noute funda em

que elle dorme,absorta a alma em sen t imento

vivo,indefinido mixto de saudade e esperança .

Julho de 1 89 7 .

JO S É DE S OUS A MON TEIRO .

GON CALVES C RESPO

(O HO M E M )

Esta nova edição das Min ia tu r a s faz-me recuar

q uatorze annos na minha vida . Como quem entra'n 'um bosque si lencioso da sua aldeia depois d 'umaa usencia prolongada

,vo l to em pensamento as ale

grias e tristezas da vida universitaria,a superioridade

em que eu considerava os col lab or ador e s da innoc ente «Fo lha»

,e ao lenda r io quarto do Crespo

,na

Couraça de L isboa,em Coimbra . O quarto do Cres

po 1 . Que intima fami l iaridade encerram estas

q uatro palavras , para todos os que al l í entravam !T inha a j anel la e a porta sempre abertas para a rua

,

d ando sobre um patamar de pedra,ao qual se tre

p ava por seis toscos degraus . Lá no ultimo andarmorava o Penha

,hoj e conhecido advogado dos audi

t or ios de Braga,um poeta dos mais correctos que

tem tido a l ingua portugueza e,de certo

,um dos

homens de mais gosto l it te r a r ío que eu tenho conhecido . O Penha

,a quem famil iarmente se chamava o

2 M IN IATU RAS

João, t inha a appar encía e gozava da fama de orgu

lhoso e int r actave l z — um d 'estes indivíduos super íor es que percebem de coisas de l icadas

,intangíveis

,

ina tacave is pelo commum dos mor taes e que se j ulgam d 'um barro differente do trivial . Fa lsissima ideaesta que se faz ia do excel lente João Penha : no fundoera um rapaz sens ível e bom

,s

'

ómente preferindo aconvivencia a r t íst ica e bohemia

,a qualquer outra .

Os seus h ab ituae s silencios diante dos que não eramda seita

,significavam mais t imidez do que arrogan

cia,que el le só t inha l it te r a r iamente

,quando nos

exp edien tes da «Folha» se dirigia a pe r sonagens ima

g inar íos, terçando então com ouz ad ia,como 0 e a

va l le ir o Hernani . O Crespo era bem differente do Penha — significava para toda a gente

,estudantes ou

não estudantes,l itte r a tos ou não l it te r a tos

,a convi

vencia e a bondade . N o se u quarto de estudo,todo

forrado de retratos de artistas celebres e de estampasd 'um alto valor tiradas de obscuros almanachs

,de

capas de l ivros ou das paginas pretenciosas das i llust r a ções estrangeiras, entrava todo o mundo e todo omundo era bem acolhido . A forca de sympa th ia queeste excel lente rapaz resumia era um t h e sour o . Os

ne oph itos da lit te r a tur a procuravam—n'o animosamente sem o conhecerem

,e em poucos minutos de

conversação,quasi se t ransformavam em intimos

amigos do poeta . Este traço v ivo do seu caracter,conservou—o toda a v ida , mesmo quando j á era umnome laureado . Muitas vezes, no seu gab inete da travessa de Santa Catharina

,em L isboa

,encontre i indi

v iduos totalmente desconhecidos, que o Crespo meapresentava como notave is poetas

,romancistas e dra

4 M IN IATU RAS

na m inha obra,pedi ao Crespo para combinarmos

um pseudonymo e foi el le , mais do que eu,que

lembrou aque lle de que depois usei .

O segredo do seu proverbial poder d'

a t t r acç ã o

compunha-se de elementos bem diversos . Al guns v inham do seu talento de poeta

,outros da sua sciencia

de conversar,outros f inalmente da sua d ist incç ão

pessoal . Combinava—os a todos inst inct ivamente , como esmero com que esbatia os tons duros

,as u l timas

arestas d 'um soneto quasi perfeito . A voz i nsinuante,

d 'uma longa esca la e habi lmente modulada cr iavaum ambiente musical ; o olhar vivo de myope, tendodoçuras e lampejos

,i l l uminava—lhe a palavra per

suasiva ; os dentes brancos, e g uaes como os d 'umpente de marfim

,sob r e sah iam na côr escura do seu

r osto , dando a esta p h ysionomia S ingular uma expressão que r a r íssimamente se encontra . Crespo nãot inha nada da vulgaridade dos homens formosos ,nem mesmo do ridículo dos homens bem parecidos ;p orém todas as pessoas que se ap p r ox imavamd

'el leconfessavam que era um rosto a t t r ah ente e

'

d 'umamobil idade captivante . Provinha isto em parte

,na

tur alment e , das suas qual idades de talento ; porque ,com a persp icacia pecul iar a sua raça

,interessava-S e

com facil idade nas ideas dos outros,obrigando de

p ois 0 seu i nterlocutor acce itar as suas p r 0p r ias,por mais e xcent r icas que a primeira vista parece ssem. N unca oppuuha uma resi stencia importuna e

P ROLOGO D

i nconveniente ; porque o seu fim era a t t r ah ir . Afieiç oava-se com notavel fel icidade a todas as c ircumst ancias em que se encontrava : — brincava com asc r e anç as e conversava pachorrentamente com osvelhos

,que o adoravam ; era amabil íssimo com as

senhoras que tantos versos lhe mereceram e de queas Minia tur a s, e scr ip tas no tempo dos ardores j uven is

,dão ideas

,mais completas do que os N oc tur nos .

Porque,acr ed itae-o

,os seus del iciosos sonetos d'

amor

e as suas poesias de paixão,sempre discretas como

d 'um artista completo,mas ardentes

"

no fundo , t iveram mais ou menos um obj ecto real

, p alpave l, sen

sive l por vezes,res istente em poucas occasíõ e s . A

Mod esta e uma histor ia que teve uma real idade navida,como a teve egualmente a S a r a e outras . AMimi era no nosso tempo de Coimbra uma adoravelcr e anç a e hoj e deve se r uma senhora . E quere is poesia ma is bem sent ida e magistralmente executada, doque essa que nas Min ia tu r a s se inscreve — Ai

g uem— º ' O sent imento pessoa l,raras vezes

adqu ire uma tal plasticidade . S ó isto acontece nosgrandes art istas

,que d ispõem de me ios e x t r aor d ina

rí os,para real isar as suas ideas . Esta poe s ra e uma

perol a da cô r macia do leite engastada n 'um adereçoda mã o do ourives Benvenuto . Gonçalves Cresponão fez versos no vago

,por um sent imento de im ita

ção de Musset ou Hugo : × todas as suas ironias oupalavras de paixão

,de amor ou de sympa th ía , ati ra

vessa r am-n'o energicamente,produz indo n 'el le a

commoç ão ind isp ensave l a toda a obra d'arte

,para

não se r post iça . E ' ta lvez por esse tom de real idade,

que forma a trama fundamental d 'este poeta,que o

6 M IN IATU RAS

publ ico , sent indo as suas alegrias , as suas dores e assuas malicias

,tanto o est imou .

Onde todas as suas poderosas qual idades p essoaesde fascinação , principalmente a musica da sua vo z

,

se impunham com mais i ntensidade,era na recitação

em publ ico , diante d'uma platea de senhoras formo

sas . O seu gesto bem calculado,a ousad ia e cora

gem do olhar,o busto n 'uma l inha natural

,o ves

tua r io i r r ep r e h ensive l . formavam um conjuncto

h a rmonico . N ão galgava os versos emphat ica ouapressadamente

,como qualquer ingenuo dominado

pela commocão ou aterrado pelo audi torio . Era n 'essas cir cumstancias que se ex h ib iam as suas mal iciashabitue es

, que tanto me faziam rir . L impava demoradamente a luneta

,ol hando com o ol har vago de quem

não vê ; fing ia um rosto contristado e as vezes comlaivos de amargura

,parecendo que tinha uml i geiro

susto de se poder esquecer . Assim ia aguçando acuriosidade do publ ico

,fazia-se esperado

,desejado .

Quando l he pediam bis, ou lhe ex igiam que reci tassealguma das suas poesias mais dilectas do publ ico

,

Crespo,que possu ia um ouvido finíssimo

,nunca per

cebia a primeira reclamação . I nterrogava a platea,perguntando se era a «Ceia de T iberio» , quando d ist inctamente ti nham d ito «A resposta do Inqu isidor» .

Assim obrigava o interesse e anciedade a seremgeraes . Mu i tas vozes pediam a «Venda dos Bo is»

,

outras reclamavam a «Morte de D . Quichote» . Fã

z ia-se si lencio . E l l e princip iava a revisão mental da

poesia que desej ava recitar . Parava, sorria de novosign i ficando ao publ ico que t inha alguma d if ficuld adeem se recordar . Passados minutos

,quando a p late ia

p nonoco 7

e stava muda e nervosa , a voz de Gonçalves Crespoe rgu ia—se calma e bem calculada

,variando apropria

d amente sem uma falha a té a conclusão,momento

em que o publi co o v ictor iava enthusiast icament e .

N a conversa fami l iar, no campo , por exemplo, asombra das arvores copadas

,quando ao longe os

p íncaros al tos das montanhas se t isnavam debaixod

'

um sol abrasador,o Crespo era sur p r e h endente de

bom humor e de graça . O seu riso largo e bondosamente mal icioso

,estabelecia um tranqui l lo bem-estar

em todos os espíri tos . As suas subti le z as,as í r onias e

as segundas intenções d as suas palavras,formavam

uma a tmosph e r a intel l igente . Com o seu fino sentimento do comico e do ridicul o parodiava os t ios decertas pessoas

,designava certas fragi l idades sociae s

,

c ontava como verídicos , casos que talvez nunca t ivessem succed ido

,reci tava poesias de Tolenti no , de

Bocage , cantava canções h espanholas . Os seus Si l enc ios, que muitas vezes eram prol ongados, t i nham um

grande preço — níng uem possuia maior seleucia deouvir e , principalmente, ninguem melhor que el l edeixava exhibir um pedante

,ou um grotesco .

Dos rapazes que nos conhecemos em Coimbra,ne

nhum arranj ou uma l enda episodica tão volumosa .

A p r ov íncia esta cheia de anecdote s que lhe dizemr espeito . Foram espalhadas pelos seus cont empor aneos de Braga, do Porto e de Coimbra, terras ond e oCrespo passou a vida de estudante . Terá succed idotudo quanto querem patrocinar com o seu nomesympa th ícp e lenda r io ? Serão verdadeiros todos oscasos at t r ibuidos á sua imaginação

,os ditos com que

ca r acte r ísava os factos,as aventuras em que se en

_8 M IN IATU RAS

cont r ou Tudo isso tem pelo menos de real , a sal i ente personal idade do auctor dasMinia tu r a s. El l e anima ainda os acontecimentos comuma viva l uz de orig ina l idade . Os narradores teemdeante de si

,n 'um intenso destaque

,a figura viva e

animada do meu infel i z amigo . O seu riso de bondade

,sua ironia travessa e inoff ensiva inspi ra-os

,

faz-l hes dar as proprias palavras um relevo e cô r queel las nunca tiveram . Todas essas historietas provamo forte poder de a t t r acç ão, contido em GonçalvesCrespo . E para comprovar esta asserção reproduz iremos duas ci r cumstancias da sua vida

,t iradas d '

umestudo que fI z emos em tempo

,para acompanhar o

seu retrato n'uma revista l it te r a r iaUma noi te

,em Coimbra

,por occasião de ferias de

natal,o Crespo adoptou como meio de transport e

para a Povoa de Santa Iria,um compartimento d e

carruagem de primeira classe,no caminho

'

d e ferro .

Dentro encontrou,commodament e embrulhado e com

vontade de adormecer,um velho

,que nos primeiros

momentos pareceu insens ível ao appa r ecimento do

novo viaj ante . Era um homem de aspecto mediano,

ph ysionomia serena, cabel l o e barbas brancas , quefaz iam lembrar as de Victor Hugo . Crespo

,com as

suas maneiras pol idas de g ent tma n, cumprimentou oca va lh e ir o, dando-lhe o tratamento de meu ca r a se

nhor e off e r ecendo-se para atirar o charuto fora,caso

o fumo o incommodasse . «Por forma nenhuma,até

gosto .— respondeu o velho

,extremamente agra

decido . C inco minutos depois, ainda o comboio não

( 1 ) A R ena scença , que sa b i a é. luz no Por t o, em 1 880.

P ROLOGO 9

t inha partido,j á se t ratavampor bons amigos e o v ia

j ante,mag ne t isado, pel o riso natural , pela voz a fiave l

do seu interlocutor, nem reparou na S ingular rapidezd

'

aque lla int imidade . Que se passou durante essal onga noite de j ornada hivernal ? C a lculamol—o poruma carta que do Crespo recebeu , dias depois, o dr .

Bernardino Machado,que o t inha acompanhado ao

comboio . Historiando o acontecido n 'um e sty lo famil iar e variado

,o poeta terminava

,pouco ma is ou me

nos,d 'este modo : «O diabo do homem não me d e i

xou ficar na Povoa e fez-me perder um d ia de j ornada . N o Entroncamento obrigou—me a participar dasua Optima ceia , bel lamente repartida em dois pe

quenos caba z es ing le z e s . N ã o imaginas,fi lho !

eram f r ang õ e s, perd izes , vinhos ant id iluv ianos e marme llada l . Vim com e l le até L isboa e mandou—mena sua carruagem para o Tojal . Dianbo do velho

,

tem uma Optima carruagem,muito mais commode

do que o se l im do ca va t icaque , que me esperava naestação da Povoa . »

Tempos depois,este cavalheiro

,passando outra

ve z em Coimbra,entrou na cidade

,exc lusivamente

para visitar o seu amigo Gonca lves Crespo,no seu

quarto de estudante,da Couraça de L isboa .

Um episodio ainda mai s característ ico do humordo poeta das Min ia tur a s e N octu r nos passou—se emterras do Alemt e jo . Em Coimbra aconselharam- lhe

,

por causa d'um padecimento cutaneo,o uso d 'umas

aguas medicamentosas,que existem e in -A l j ustrel .

Crespo,conc luídos os trabalhos univers itarios

,diri

g iu-Se primeiramente a Braga

,com o f imde obter da

muniticencia paterna umas quinze l ibras,necessarias

—1 0 M IN IATU RAS

para d esp e z as. N esse tempo,por causa de circum

stancias domesticas, ia-se sempre aloj ar n'uma certa

hospedaria da cidade dos Arcebispos e d 'ahi escr ev ia ao pae

,que o vinha ver geralmente pela vol

ta das onze horas da manhã,quando ainda o poeta

estava na cama . Conversavam de coisas diversasMaus negocios do Braz i l

,reacção e fanatismo em

Braga,eram os themas do pae ; d if ficuld ade s das l í

ç ões em Coimbra,grande inopia de dinheiro

,eram

os assump tos favoritos do f i l ho . N'esta

,como em

outras occasiõ e s,o Crespo espreitava sagazmente o

momento de dar o seu t i r o .

«Esta coisa da molestia está de cada vez p e ior .

'O dr . Mirabeau estudou o assump to e d iz que se curacom certas aguas do Alemte jo . Ah i umas quarental ibras .

O velho mostrava-se sempre feroz em questões dedinheiro . Era preciso pedir—se-l he o tr iplo para se

obter a quantia ind isp ensave l . «Quarenta l ibras ! Estás doído ! Esse doutor e um asno . Tu não tens molest ia nenhuma . » Ja se sab ia que esta resistencia era,até certo ponto

,para e ff e ito theatral . O f i l ho de ixa

v ã -o berrar e por fim diz ia—lhe : «N ão se faça fino .

Ponha ah i o dinheiro e deixemo-nos de pa lav r iado . »

É verdade que punha ; mas era necessario renovar- tres e quatro vezes a questão

,usar de maravilhosos

subterfugios de Tall eyrand,e fazer espantosas redu

cç õ es na quantia . Uma ve z mesmo,o pae do Crespo

,

tendo fe ito solemnes promessas,de que da r ia a

somma aj ustada,arrependeu-se depois

,e,para se

esquivar,fugiu sur r ate i r amente de Brag a para a Po

.voa de Varz im . O poeta,sabendo-lhe do paradoiro,

1 2 M IN IATU RAS

Crespo,que o esprei tava pelo canto do olho , salta r

l he—h ia imprevistamente ao gasganete e,desarman

do-o,h avia de obrigai—o a pedir miseri cordia . N ada

d 'isto,porém

,foi necessario

,pelo S imples e interes

sante motivo,de não se ter dado sequer a tentat iva

de h omicíd io : o homem da candeia não trazia navalha nenhuma e dirigindo-se

,talvezmoído da longa.

j ornada,a um banco que estava ao fundo da loja

,d e i

tou-se,apagou a luz pendurada no muro e

,cinco mi

untos depois, roncava estrondosamente, n'

um somnopegado

,que durou a té de tarde .

Dias depois,abandonou esta hospedagem

, por

causa de questões com o dono da loca nda,homem

tão prepotente,que negava ao auctor das Min ia tur a s

o direi to de comer queij o a sobremesa,pelo facto de

j á se ter servido de laran j as e peras . Teve de ir p edi r agasa lho ao prior de A lj ustrel , que j á conheciacomo homem accessíve l . N o momento em que entrouna residenc ia do sacerdote occupava este os ocíos

a b b aciaes cavando as hortal iças . N a posição de curvado em que estava

,ouvindo que o chamavam

,olhou

mesmo por entre pernas,perguntando : «Quem diabo

esta ahí ? » O poeta contou-l he.

no tom mais captivante

,entremeando a narrativa de a lgumas pa lavras

l atinas,os perigos e aventuras de heroe manchego

,

em que se v ira . Precisava que o senhor prior o hos

p edasse em sua casa,emquanto tomava uma duz ia

de banhos .

Er a'

um grande favor que l he faz ia,além da paga .

«C h a r i ta s est .v i 'r tus ex ce tsa , meu caro prior : eu souum doente e n 'esta terra não ha hospedarías capazes . »

Acceden faci límamente o bom ecclesiastico,tratan

PROLOGO 1 3

d o—o logo por ma g iste r doctor . A paga que recebeufo i muito mais val iosa do que se pod ia esperar d v

'

umSimples estudante de Coimbra . Crespo tomou—l he nod ia seguinte a direcção pol i tica e l it te r a r ia d 'um j ornal

,que o ecclesiastico redig ia p r oficíentemente , re

sumindo toda a il lust r aç ão e j ustiça d'

aque llas aridasparagens . Aque l le período de Opposiç ão dava largamargem a todas as invectivas e podia conter r e iv ind icaç õ e s socíaes de primeira ordem . Os artigos deGonçalves Crespo

,repletos d 'uma i r acund ia de tre

mer,causa vam enorme gaud io ao sacerdote . «Mais

mora l idade,senhor ministro do reino

,e preciso ma is

moral idade no poder ! » — terminava sempre as suasob jur g a tor ías o novo publ icista . Esta phrase viva eenergica

,perfurante como um e st yle te , rebentava as

vezespe lo meio dos artigos,como o ul timo es toiro

d 'uma girandola de foguetes . O prior de A l j ustrel chorava de contentamento ao saborear as famosa's catil inarias

,que el le suppunh a serem l idas com avidez

em L isboa . Abraçando e ffusivamente Goncalves Crespo

,diz ia : «At ire-l h 'as fortes

,ma g ist e r doctor , que

verá como el les se hão de doer . Apre,seus ladrões

,

ao menos terão de as ouvir» — ap ost r 0p hava com opunho cerrado

,falando pela j ane l la fora .

Porém este homem,d 'uma lenda t ão alegre

,d 'um

ex terior tão animado e vivo continha em sí outrohomem notavelmente differente e até

,podemos dizer

,

contrario . Irregularidades de temperamento,capri

1 4 M IN IATU RAS

chos de sensibil idade,ou essa recondi ta e incessante

lucta , que todos os ind iv íduos que vivem de ideas,

tem de sustentar contra si e contra os outros,lucta

que muitas vezes resume a impossibil idade de attingir pelos meios humanos a real idade d 'uma aspiraçãod'

a r t ista , talvez algumas contrariedades e desgostosna vida o certo é que o auc to r das Min ia tur a s, t inha dias de profunda e dominadora tristeza . Tal a f fí rmaç ão sur p r eh ende r á,mesmo algumaspessoas que o tratavam de perto . É que o seu espir i to reservado e precavido contra todas as fraquezas,mostrava-se exteriormente alegre

,quando estaria

mais triste e acabrunhado . O grande segredo da sua

expressão,estava em saber fingir que escutava os

interlocutores ; mas os seus l ongos espaços de mudez

,mui tas vezes cortados de gestos sacudidos e ra

p idos, por olhares incendiados e fogosos , cor respondendo a dialogos mentae s

,denunciavam um tempe

ramento me lanchol íco . E l le mesmo,sabendo que era

geralmente tido na conta de galhofeiro e folg asã o,formava de S i op iniã o bem diversa . «eu que sousombrio e pouco falador . escrevia a uma pessoa intima, a

'1 8 de j unho d e 1 87 1 . Temos presentesa lgumas cartas d 'esta epocha

,que foi a do appa r e ci

mento das Min ia tur a s,quando el le a inda era sol teiro

e estava em Coimbra .

Em todas,mais ou menos

,ha essa nota p lanª ent e

e ly r ica , que nos seus versos app a r ece fugazmentemas sempre com um accento energico de real idade .

Uma questão de raça,de temperamento

,ou cir .

cumstancias de famil ia, tornavam—lhe muitas ve z e s asua alma arida e selvagem . T inha íntimos d e sespe

PROLOGO 1 5

ros . S off r ia na sol idão e isolamento do seu espírito,

escondendo—se orgul hosamente não Só das vistasindiscretas e vulgares

,mas a té das dos seus p r ºp r ios

amigos . Confessava a 23 de j ulho : «N ão se i que S into .

Estou ne r vosissímo,tenho vontade de amarrotar e r a S J

gar esta car ta,que é estupida

,incoherente e exquisita .

Vou v e r se descanso um pouco,vou passear pelo

quarto e vou fumar e e sp edaça r nos dentes algunscharutos . » «Que d ia tão triste me espera . » ((É-me ª

impossivel escrever nada . Quero formu lar o que S i ntoe choro sobre este papel como uma cr e anç a . » Estacarta e scr ip ta n

'

aque lla sua le t t r a tão caracterist ica,

miuda e fina,como um bordado

,traço l igeiro e me

t iculoso d'a gua

—for t ista , tem S ig naes evidentes d'um

estado nervoso excepcional as hastes trémulas,as

ovaes como pontos,o papel despedaçado em alguns

l ogares .

Tambem,apesar de e S p ir ito esclarecido e ironico,

era muit íssimo supersticioso . N os seus passeios cam

p e st r e s, nas vesperas de feriado em Coimbra,ou nas

divagações nocturnas por alguns l ogares menos i r e-a

quentados de L isboa, que eram sempre os que el l epreferia

,notei- l he muitas vezes sub itas paragens

,

a preferenc ia ine x p licad a de certas ruas , e a ma

dança repentina n 'uma direcção differente da pla«ne ada . Como Bal zac

,percebia na p h ysionomia dos

logares expressões accid entae s,agradaveis ou ant ip a«

t h icas,e a impressão que estas ci r cumstancias p r odu

z iam sobre os seus nervos era índomave l . T inha amesma p r e occupaç ã o a respei to de algumas pessoasdesconhecidas com quem se encontrava

,e em certas

occasiõ es,não podendo conter-se

,chegava a mostrar'

1 6 MIN IATU RAS

o seu desagrado ou sympath ia . «Á s'

ve z e s—êe scr e v ia

à sou supersticioso : isto é do sangue,da cr e aç ão e

da educação das cr eanças no Braz il . Quando recolhiahontem a noite a casa

,bateu-me no peito uma bor

boleta ne gra,"

que me apavorou . » Por isso ainda ac

cr e scentava : «Eu quasi adivinhava hontem manovad

'

h oj e . »

Pouca gente o considerava como um individuosensível

,a ff ec tado por sympath icas recordações da

infancia . Era pouco communica t ívo em assump tosínt imos e os seus versos

,d 'uma correcção de grego

,

talvez,pel o mu i to que os aperfeiçoou

,não mostrem

bastante o fundo meigo e dolente da sua alma . Porémem muitas poesias das Min ia tu r a s, o poeta denuncia-se e

,melhor ainda

,n 'esta pagina int ima que

transcrevemos e que é d 'uma S impl icidade tocante«Falando-me do Brazi l suscitou—me a lembrança deum futuro

,que surge deante de mim

,ince r to e ch e io

de brumas : não se i ainda que carreira abrace,não

se i para que rumo me vo lte . Meu pae,o meu maior

e mais dedicado amigo,desej a que eu sej a medico .

Diz-me elle ás ve z e s:, que r o deixar-te abençoando a

minha memor ia , . que r o deixar-te com um ganha—pão .

E para teu bem . N o Braz i l,em poucos anuos

,podes

chegar a se r rico,riquíssimo até : os medicos a ll i são

t udo . Terás consideração,riqueza,

aquillo que eu te deixar, pode d'um momento para

outro se r absorvido por uma desgraça e então o quese r á de t i Estuda pois e arranja um modo de vida,que te ponha a coberto de todas as eventual idades .

Mas eu sou d 'uma preguiça sem nome . Quandomu ito

,talvez me forme em philosophia e depois de

PROLOGO 1 7

f ormado,

»passa-me,as vezes

,pela idea um sonho

,

que e o seguinte : chamar minha mã e '

e se poderuma i rmã casada que tenho no Braz i l

,consti tuir ta

mil ia,e constitu ir um ninho agradavel

,mimoso e

c onfortavel,aqui em Portugal

,no Minho por eXem

plo . » «Depois recordo-me com saudade da casaonde nasci , de minha mãe e de minha irmã , de todoe sse

'

conjuncto que me rodeava a minha infancia, et ico-me perplexo . » «O mais certo pois é partir

,

mas desconfio que me não h e i de dar bem por l á .

Tenho appa r encía de robusto , mas sou fraco e doente .

N o Brazi l estive muitas vezes a morte e fo i esse umd os motivos

,por que meu pae me enviou para Por

t ugal . » «Eu medico ! Adeus minhas esperanças,

a deus meus sonhos passageiros de gloria . Sabe por

q ue p r e fi r o Portugal ao Braz i l ? É porque aqu i mef i z homem ; porque aqui amei .Isto e d 'uma S impl icidade digna de Michelet

,e scr i

p tor que o poeta Gonçalves Crespo tanto amava el ia . Accr e scenta r emos algumas l inhas

,que são talvez

d'uma me ig uíce ainda mais encantadora e sympat h ica : «longe de tudo que é para mim caro nav ida

,aqui n'este canto de Portugal onde passo a mí

nha j uventude,quasi or p h ão d

'

a ff ectos e t riste desaudades do meu paiz . O seu paiz

,ou melhor o

paiz onde nascera era 0 Braz i l,como se dep r e h ende

facilmente . Gonçalves Crespo,veiu do Rio d e Jane i

ro,S ua terra natal

,aos 1 0 annos

,e nunca mais lá

v ol tou,adoptando por t im Portugal

,onde foi d ep u

ta do, como sua patria .

Era reservado e o seu caracter d 'um fundo cautel oso . Imperava n 'el l e essa voz omnipotente da natu

1 8 M IN IATU RAS

reza que avassa lla de preferencia as boas organisaç õ e s : «Á S vezes tenho l oucuras exquis itas . Estoufalando com alguem e não acredito no que esse a l

guem me e stá dizendo passa-me então pel a idea umacoisa sem nome

,desej ava penetrar al l i dentro de

aque l le cr ane o, senhor e ar —me d '

aque l la alma e devassar—l he os segredos mais íntimos e mais occultos.

Se eu t ivesse esse poder era o homem mais fel i zda terra . N inguem me illud ir ia

,não podiam fazei-o

sem que l ogo eu dissesse : mentis . »

N a appa r encía era um tanto desprendido e insensív e l ás caricias que lhe podiam p r od ig a lisa r ; porémna

'

r e a l idad e est imava—as em al to grau . Durante o sentempo de Coimbra

,morou em casa d 'umas senhoras

e dosas que davam hospedagem a estudantes. A l l i foicompanheiro de João Penha

,e do dr . VicenteMontei

ro,hoj e um dos mais conceituados advogados de

L isboa, um caracter e uma alma bondosa da' melhor

tempera . As donas da casa eram designadas entre osseus hospedes pela expressão famil iar «as velhas . » Arespeito d 'el las d iz Gonçalves Crespo : . estou emcasa d 'umas boas velhas

,que me estimam mais que

a qualquer dos meus companheiros . Tratam de mim,

como se eu fosse um fi l ho . Contam-me as suas desavenças com as criadas

,apaparicam-me e dizem de

mim o melhor possível , por onde vão . »

Uma noite,ha uns quatorze ou quinze anuos

,r e

presentava em Coimbra o tragico Rossi 0 O th e llo.

O th e a t r o Academico estava completamente cheio ea

'

admiração pelo actor i tal iano era enorme ; poremo Crespo

,completamente absorvido na contemplação

da arte,S ! sente os seus nervos

,que l he gri tam al to

,

20 M IN IATU RAS

cabeça l oira do desditoso Romeu . E dizem que ospoetas São inuteis ! Quando mais não sej a suav isamn 'os as mag uas : aqui estou eu , que se l eio essa tragedia

,para l ogo sinto dentro em mimuma doce con

solaç ão . Aquillo sim ,aquillo é que é amor, e não essa

coisa esfarrapada e fria,impossivel

,i ncongruente e

convencional,que as meninas usam caça r nos bail es ,

com a mesma t r anquillidade de e S p ir ito, com queapanham as borbol etas

,ou l evantam as malhas do

c r och e t . »

Este e stylo nunca infatuado mostra além do artistaprimoroso das Minia tur a s e dos N octu r nos

,uma al

ma sens ível e boa, um fundo bem diff erente do quemu i ta gente tem supposto e até a f fi rmado em ori ticas i r r e fl ect idas . Os seus l ivros vistos a esta noval uz

,teem um perfume e um encanto t enuissimos e

p ercebem—se melhor .

N os ul t imos tempos da sua vida,durante os dois

mezes em que a terrivel molestia caminhou imp lacav e lmente

,contradizendo d ia a d ia os heroicos e sfor

ços da sciencia e da sua incansave l esposa,a phy

s ionomia de Crespo adquiriu uma energica expressãod e melanchol ia . O seu sorriso t inha um fundo deamargura

,o olhar vago de myope f I xava—se inde te r

minadamente como n'uma e scur id ade distante,sem

um ponto vivo a que se prender . Pensava na morte,

as vezes sur p r e h end iam-n'o a chorar . Uma das ideasf ixas da sua vida

,a de que

,apesar d 'uma appa r en

c ia robusta,era fraco e morreria cedo

,r ea lisava—se .

p nonoco 21

Sentia—o inst inct ivamente e el l e que tanto amou av ida

,triste ou alegre que el la l he foi

,apavorava-se

com a idea da morte . Era preciso que o se u assistente e amigo

,o professor Sousa Martins

,e todas as

pessoas que o viam fingissem uma certa al egria esperançosa

,para o enganarem

,e eu era um dos que mais

concorria para este e if e íto,amesquinhando-l he com

d e sd ens o padecimento .

N a ul tima noite que viveu, tocou—me a mim,como

um dos seus amigos,acompanhar sua e sposa

,para

ambos velarmos pelo doente . Toda a minha vidaconservarei v ivo na memoria esse doloroso quadrod '

agonia,com todas as tris tes ci r cumstancias que o

ca r acte r isa r am : ao f im de dois mezes de noitesem claro

,a sr .

=l D . Maria Amal ia es tava anniquillad ae tudo quanto fazia era automaticamente . Havendonecessidade de se l he dar de hora a hora os medicamentos

,com o fim piedoso de lhe serem minoradas

as angustias dos ul timos instantes,o doente exigia

que is to fosse fe i to por sua esposa,que el l e chamava

n'uma voz já pouco inte ll ig íve l . Eu então acordava—ado torpor em que estava sobre um sof á e

,concl uído

o trabalho que Só el la sabia fazer,vencida pela enor

me lucta moral e physica,deixava-se cahir de novo

no mesmo logar,com a

'

cab e ça entre os braços .

AS feições do doente eram cad ave r ícasº ros to

prolongado e sumido,olhos grandes de myope sem

bril ho e sem mobil idade,a bocca entre-aberta para

resp irar melhor e a longa respiração stertorosa que já.começava a pronunciar-se

,lançava no estrei to am

biente,saturado d '

acido p h enico,ummurmur io rouco ,prenuncio da morte . Como fel izmente os seus meios

22 M IN IATU RAS

de sensibi l idade j á não eram grandes,não conhecendo

o f im proximo da sua vida,com a int e llig enc ia que

ai nda conservava,exprimia palavras de consolação

,

a f fi rmava esperar ainda melh oras .

N'

um momento,por habito profissional de que

ainda conservo restos,eu app r ox íme i-me da lampa

r ina para examinar o conteú do do escarrador . E l l efez signal a sua esposa pedindo-l he : «Vae ve r o queel l e d iz . » E como o meu so r ri so o animou n 'estahora extrema

,o desdi toso accr e scentou «Este foi a

salvação . Referia-se ao que tinha expectorado,

com o ul timo accesso de tosse .

«A morte aperfe içoa o homem mais perfei to»d isse Renan a proposito da l enda da r e sur r e iç ão dosubl ime N azareno

,que inspirou ao auctor das Minia

tur a s e dos N octur nos alguns dos S eus melhores versos. Pormuito s ympathica que fosse a lenda de Gonç alves Crespo

,por extraordinario que f osse o seu

talento,não poderia esperar—S e que a sua morte cau

sasse uma tamanha commoç ã o. Tanto em Portugalcomo no Braz i l 0 seu nome era est imado e querido eisso viu-se pelas manifestações de sentimento que o

p ubl ico l it te r a r io dos doi s pa i z es p r od ig a lísou a suab oa esposa . O poeta dasMin ia tur a s e dos N octur nosnunca poderá ter o que se chama popularidade , ou

melhor,vulg a r isaç ã o . A aristocrat ica correcção dos

seus versos,a elegancia e del icadeza subtil das suas

imagens,a i ronia dol ente e desdenhosa d 'algumas das

suas poesias,a fina melanchol ia de outras, não São

d e certo qual idades que todos possam faci lmente perceber . A l ém d 'i sso evitava com orgulho e al tive z deverdadeiro artis ta a fogosidade postiça de alguns

P ROLOGO 23

poetas e a sensibi l idade pueril d 'outros . Era um art ista de Op t imos nervos , que S ó pode agradar a entend imentos del icados . E no entretanto tem sonetos d 'umly r ismo camone ano

,que São um encanto .

N ão entra hoj e no nosso plano ana lysa r as Miniat ur a s e os N oct ur nos, porem d iremos de passagemque

,apesar do primeiro l ivro l he estabelecer l ogo

uma verdadeira reputação,o segundo accentuou de

t e rminadament e as suas eminentes qual idades d 'art lsta e l he garantiu entre os poetas p or tug ue z e s detodos os tempos

,um logar entre os primeiros . Dos

an tigos e hab itua e s collab or ador es da Folh a foi Goncalves Crespo um dos que menos produziu

,e comi udo

não foi aque lle a quem menos sorriu a fortuna l i t ter a r ia . É pa ra se ver que a abundancia ou fecundidadenão é sempre um signal de engenho e ao artis ta dev e -se -l he exigi r que a sua obra sej a perfei ta e não sel he perguntar o numero de horas ou de anuos queel la l he custou . A questão fundamental e que el l etenha o div ino poder de chegar a perfeicão

,como

Goncalves Crespo o t inha .

L isboa,março de 1 884.

TE I x E I RA D E Q UE I RO Z .

GONÇALVES CRESPO

N a proa os marinheiros

Recostados em rolos de cordame,

Escutam galhofeiros

Um vel ho que lhes conta seus amores .

O narrador di zia

«Foi isto em Buenos-Ai res ; Só queria

Que a vissem,como eu vi

,dançar bole r os

,

O corpo requebrando ;A saia curta ; as mãos posta s nas anca s ;

Os olhos atiçando .

Que valente fragata !

Val ia mais de certo,que dez brancas

,

Mariquita a mu lata

Da escoti lha a entrada,

N o corrimão lustroso

N a vaci l l ante escada,

Um verde papagaio cobiçoso

N amora com olhares sem ventura

Um cacho de bananas,

Que do cesto da gavea se pend ura

O BRAS CO M PLETAS

E variado o aspecto

Da enverni zada camara . A um lado

De uma comprida mesa

Um king's-ch a r ics inquieto

Ladra brincando e ati ra-se ao regaço

De uma Secca,espigada e velha Ing le z a .

Uma adoravel miss

De trancas aneladas

E de olhos de um azul casto e sereno,

Afaga com me iguíce ,Dando infantis risadas

,

Da la dy semsab or o cão pequeno .

De chapeo desabado,

C hapeo do Chi le , que uma tenda e g uala ,De charuto na bocca

,um f a z end e i r o

Passeia pela sala,

29

GONÇALVES CRESPO

O l hando namorado

O rosto feiticeiro

De uma genti l Bahiana enlang ue scida ,Que n'um doce pensar scisma embebida .

Alguns louros meninos,

Em cadeiras de vime empoleirados,

Apontam com seus dedos pequeninos,

Commentando e nle vados,

As paginas ornadas de gravuras

De um livro de subtis caricaturas .

Envol ta na fumaça

De uma leve e cheirosa cigarri lha,

O pé deixando ve r de sob a cassa

De seus brancos vestidos,

Uma l inda morena de Sevi lha

Se deixa amar por um francez poeta,

A lmiscarado,l ouro

,e de lune ta .

O B RAS CO M PLETAS

Jogam o volta r e te

Tres por tug ue z e s velhos ,Faladores

,teimosos e vermelhos :

Da mesa no tapete,

De cervej a entre as taças facetadas,

S cínt il lam como espelhos

As caixas de r ape. auri-l avradas .

Debruçado no encosto

De uma fofa cadeira,

O velho capi tão de bronzeo rosto

A uns colonos a llemãe s reconta

De que modo e maneira

N as margens do Amazonas aoanh a r a ,

Andando em caca na deserta areia,

A variada e refulgente arara,

Que as at t enç õ e s prendera da assemblea .

3 2 GONÇALVES CR ESPO

Assim passava ; e emquanto

Prosegue o cap it ão,"a velha ing le z a

Dormita recl inada sobre a mesa ;O cão não ladra ; e a miss escuta o canto

Arrastado,monótono e choroso

De uma robusta negra,que balança

N a rede fluctuante uma cr e ança .

O vento ref'rescara,

E move-se a galera . A comitiva

Para a coberta asccnrle alegre e viva .

Range no emtanto o leme .

N a camara S ! fica a triste arara«J'o f

'

rancez ,que murmura em voz ,que treme ,Á bella se ãor i ta «Je vous a ime ! »

O BRAS C O M PL ETAS

A NOIVA

A noiva passa ri ndo

De rosas coroada,

Como um botão surgindo

A luz da madrugada .

N a fronte immacu lada

O veo l he desce l indo,

E a brisa ennamor ada

Lhe furta um beij o infindo .

3 3

GONÇALVES CRESPO

Ante o al tar se incl ina

A noiva,e purpurina

Murmura a medo : «S im . »

Agora é no ite ; a lua

N o ceo azu l fluctua,

E o noivo di z : «Emfim

3 6. GONÇALVES CRESPO

A rede,que os ares em torno pe r fume

De vivos aromas,

De subito pára, que o negro indolente

Esprei ta lascivo da bel l a dormente

AS tumidas pomas .

N a rede suspensa dos ramos ergu idos

Suspira e sorri

A languída moça cercada de flores ;Aos gui nchos dá sal tos na esteira de cores

Felpudo sag uí .

N a rede,por vezes

,agi ta—se a bel la

,

Talvez murmurando

Em sonhos as trovas cadentes,saudosa s

,

Que triste col ono por noi tes formosas

Descanta chorando .

A rede nos ares de novo fluctua,

E a bel la a sonhar !

Ao longe nos bosques escuros,cerrados

,

De negros cap tívos os cantos magoados

Soluçam no ar .

O BRAS CO M PLETAS

N a rede olorosa,Si lencio ! deixa—a

Dormir em descanso

Escravo,balança-l he a rede serena ;

Mestiça,teu leque de plumas acena

De manso,de manso .

O vento que passe tranqui l l o,de l eve

,

N as folhas do inga;As aves que abafem seu canto sentido ;As rodas do eng enho não façam ruido

,

Que dorme a S inhá !

3 8 GONÇALVES CRESPO

A MULHER QUE BIA

Seu rosto tinha a doce transparencia

Das l ouças do Japã o . Era Judia .

Em seus olhos a z ue s quanta innocencia !

Mas dos sonhos de amor zombava e ria .

Mixto,de sombra e l uz : ás vezes pura

Como aeria visão me appa r e cia ;O utras vezes

,extranha creatura !

Era a pagã que entre meus braços ria .

O BRAS CO M PLETAS

Se de amor doces phrases eu sol tava

E febri l seus cabel l os d e S p r end ia ,De meus j oelhos

,douda

,resvalava

E beij ando-me,Esther cantava e r ia .

Minha alcova era um ninho perfumado,

E entre fl ores a vida me corria .

O socego perdi , e nnamor ado

D 'essa mulher,que ora cantava ou ria .

Uma ve z n 'uma ceia deslumbrante,

Entre o ruidoso estrepi to da orgia,

N os braços desmai ou de um estudante '

Depois deixou-me so Cantava e r ia .

Que saudades eu tive ! Em meu caminho

Vi—a hontem passar,triste e sombria

,

Sol ta na espadua a trança em desal inho :

Era a sombra de Esther,pois j á não ria .

3 9

GONÇALVES CRESPO

O C AMARIM

A luz do sol afaga docemente

AS bor dadas cortinas de e scumilha ;Penetrantes aromas de bauni l ha

O ndu lam pelo tepido ambiente .

Sobre a estante do piano reluzente

Repousa N or ma , e ao lado uma quadri l ha ;E do leito francez nas colchas bri lha

De um cão de raça o olhar i ntel l igente .

O BRAS CO M PLETAS

Ao pé das longas vestes,descuidadas

Dormem nos arabescos do tapete

Duas leves botinas delicadas .

Sobre a mesa emmur ch ece um r amilh e te ,E entre um leque e umas luvas perfumadas

Scinti l la um caprichoso bracelete .

41

GONÇALVES C RESPO

ARRUFOS

O l ha,vi zinha ; não pôde

S ofl r e r ma i s tempo os ag r or es

De teus esquivos amores

O meu amor sem ventura ;Se te olho

,vol tas o rosto

Com modos de abhor r e cida ;Se te falo

,dist r ah id a

Fi tas os olhos na al tura .

GONÇA LVES CRESPO

Isto era em abri l : em maio,

Quando das au las chegava,

Sempre na mesa encontrava

Um r ami lh e te cheiroso .

Um d ia achei um escripto

Que diz ia : «Venha cedo,

Quero di zer-l he um segredo ;Mas não tarde

,preguiçoso !

De S ci de um sal to as escad as .

Q uando cheguei,tu ergueste

O meigo olhar e disseste,

Presa de amor e ventura

«N ão sabe ? faço annos'

hoj e ;N ão recuse, meu amigo ,Jantara hoj e commigo .

E d e puz e ste a costura .

D'ahi a pouco vol tavas,

Mi nha doce primavera !

Com um col lar,que eu te dera

,

E o meu gorro nos cabel los .

Jantámos . Que tarde aquel la,

Cheia de louca poesia !

Quanto amor,quanta alegria !

Como os vinte annos São bel los !

O BRAS C O M PL ETA S

Uma ve z ti nhamos vindo

De passear pela aldeia .

Q ue noi te de lua cheia !

Parece que a vej o agora .

Era em noi te de S . Pedro,

Quando ouvimos n'um d e scant e :

O amor d e um e studan te

I

'

do dur a ma is que uma hor a . »

Teu braço tremeu,teu corpo

Vergou-se,mimosa planta

Se o temporal se l evanta

E a face do cão d escor a .

E repetias baixinho

Com doce vo z S I I pp lícant e :

0 amor d e um estuda n te

N ã o du r a ma is que uma h or a . »

Em tod o o nosso caminho

Foste calada e chorando ,E t ímida desviando

Teus grandes olhos dos meus .

A entrada da tua porta

Tentei beij ar-te,fugiste ;

E n'

aque l la hora tão triste

N em ouvi sequer : adeus !

46 GONÇALVES CRESPO

Desde então, ao teu postigo ,Por mais que os olhos .relanço

,

Emb a lde imploro o descanso

D 'esta minha desventura .

Se te Olho,vol tas O rosto

Com modos de ab hor r e cida ;Se te . falo

,d ist r ah ída

Fi tas os olhos na al tura .

O BRAS CO M PLETAS

Tu não és de Romeu a doce amante ,

A triste Julie ta,que suspira

,

S Olto O cabel l o aos ventos ondeante

Inquietas cordas de suspensa l yra .

N ão es Ophel ia,a virgem lacrimante

Q ue ao luar nos j ardins vaga e del i ra,

E e l evada nas aguas fl uctuante,

Como em sonho de amor que cedo expira .

43 GONÇALVES CRESPO

ES . a estatua de marmore de rosa ;G a latéa accordando voluptuosa

Do grego artista ao fogo de mil beij os .

És a languída Julía que desmaia,És Haydea nos concavos da praia ;Fosse eu o Dom João dos teus desejos

O BRAS CO M PLETAS

MODES TA

A M INHA I R M Ã

S e l embro esse momento

Mais bell o d 'esta vida !

Voava desprendida

A tua coma ao vento .

O teu Olhar,querida

Desceu ao meu tormento,

E após enternecida

Disseste em brando accento

49

GONÇALVES CRESPO

«Tua alma soti're e chora,

Quando o porvi r se i nfiora,

Quando a teu l ado estou ! . .v. »

Doce te ol he i tremendo ;A noi te ia descendo

,

Um beij o se escutou .

GONÇA LVES CRE S PO

Y oz doce e p iedosa !

N ão th emas,

exta siado,

De um osculo sa g rado

O BRAS C OMPLETAS

O p r ado temas flor es

Boninas a flor esta ,

Eu te nho-te,Marim

,.

Quand o me incl inammoi—sta

S e r á s-me tn, Ma lcata,

GONÇALVES CRESPO

Desceste ao meu abrigo,

Ah ! como eu te b emd ig o !

O h ! C omo te amo eu !

Que nos teus labios vej o

N a aureola de um beij o

0 resplendor do céo !

O BRAS CO M PLETAS

És bella,és casta

,és pura ;

O“teu olhar consola,

Se O lanças,doce esmola

,

A sombra,a desventura .

Vieste—me da altura,

Immaculada r Ola ;

Ab riste,alva corol la

,

Emminha noite escura .

55

56 GONÇALVES CRESPO

N a e sca lvada rocha

A flor não desabrocha

O madido botão ;

Mas tu sorris ao ver-me .

A mim,obscuro verme ,

N ão te mereço,não !

O BRAS CO M PLETAS

Se be ij o essa cabeça,

Meu premio,auxíl io e guia

,

S uf foca—me a alegria,

N em se i que mais eu peça .

N ão pode a bruma espessa

Casar—se a l uz do d ia :

Unir-se a ti pod ia

A minha sorte avessa ?

a!

GONÇALVES CRESPO

A inda é tempo,escu ta

O meu amor enlucta ;Venceu—te uma í llusã o .

Tu bem me vês no rosto

A sombra do sol-posto .

S e eu fosse teu irmão !

GONÇALVES CRESPO

Estrel las scínt íllant e s,

Eternos diamantes

De trémulo fulgor,

Bri lhai ! Sonha Modesta

Que tem na fronte honesta

Da laranj eira a flôr .

OREAS CO M PLETAS

'Que doce é ver agora

A natureza,quando

O p lume o e al egre bando

Saú da a luz da aurora !

N o prado o orvalho chora

Aljof r e s derramando

Já se ouve ao longe a nora

E o lavrador cantando .

(i l

62 GONÇALVES CRESPO

As auras amorosas

Passambeijando as rosas,

E tu dormindo,flôr !

Ergue-te,lí r io santo

,

Accorda,meu encanto

,

Modesta,meu amor !

O BRAS CO M PLETAS

V I I I

Dor mia . Assim a lua

Em nuvens perfumadas,

N O S ares embaladas,

Esconde-se,e fluctua .

AS roupas descuidadas

Deixam-n'a semi-nua :

Que fôrmas delicadas !

Dormia . Assim a lua .

63

( VI GON Ç ALVES CR ESPO

Aque lle seio trouxe

N ão se i que aroma doce ,Que doce embriaguez !

Tão bel la ! enfei tiçado

Beij ei -l he namorado

A curva de seus pes .

O B RAS CO M PLETAS

Do templo O veo rasgou-se ,N a t reva ei l-o sumido !

O sonho est remecido

Em fumo dissipou—se !

Erguer,embevecido

N'aque lle amor tão doce ,

Um ídolo que fosse,

E ve l—o assim cabido !

66 GONÇ ALVES CRESPO

Oh petala de rosa,

Que nuvem tormentosa

Te confundiu no pó ?

De tanto amor que r e S ta ?

Um tumulo,Modesta

,

E eu sobre a terra,só !

GONÇALVES CRESPO

Levava as mãos no peito,

G oivos n'

aque lla trança

Que tanta vez beij ei.

Oh sonho meu desfeito !Voaste-me

,cr e ança !

Deus sabe se te amei !

O BRAS C O M PLETAS

ELEITO S E PREC ITOS

Se passam em tropel,rugindo

,OS ventos

Da fl oresta na densa romaria,

Cremos ouvir nas vascas da agonia

De esmagados titans r udes lamentos .

Quando a furia descai dos elementos,

E mais se afrouxa a agreste symphonia,

Pelos erguidos ramos corpulentos

De aves se alastra a varia me lod ia .

69

7 0 GONÇALVES G R ES-PO

Os l amentos,que se ouvem na floresta

,

São as r aívas e os gri tos temerosos

De quem o eterno azul jamais alcança .

E a melodi a,

namorada festa

Das aves e dos ninhos sonor osos

É O sorrir da b emaventur ança.

O BRAS CO M PLETAS

UM NUMERO DO IN TERMEZZO

tomando ch á em torno a mesa,

Da sociedade a flô r :

E no campo de esth e t icas oppostas

Díscut ia-se O amor .

—«O amor deve se r e th e r e o e puro ,O conselheiro di z .

S orrindo,a conse lheira um a i ! abafa

Com gestos de infel i z .

GONÇALVES CRESPO

D iz O cône g o : O amor d est r oe,mas quando

Sensual, já se vê

A d'onzel la pergunta ingenuamente

Reverendo,porque

A condessa murmu r a em voz dolente

«O amor é uma pa ixão . »

E l anguida uma chavena O ff e r e ce

AO pal l ido barão .

Era vago um logar em torno a mesa

E ra o teu,minha flor !

Tu,Só tu

,poderias

,se o quí z esses,

Di zer O que era amor !

O B RAS CO M PLETAS

DULCE

(Imi taç ão)

F E RNAND ES PE RE I RA

Vi-a um dia na rua . F l uctuante

Ao de sdem l he cah ia a loura trança ;Como a l uz d'um pharol

,essa cr e ança

L e vOu-me atras de S i . triste bacchante !

Era o seu nome Dulce . O povo rude

Apontava-a mofando,quando a v ia .

Docemente sorrindo,el la di zia :

«Tu sabes,se te amei santa virtude

7 4 GONÇALVES C R ESPO

Um di a a qui z beij ar ; fugiu—me triste :

«Dulce me chamam,disse

,que amargura !

Este corpo,que vês

,é sanie impura

,

N emmais amargo fel no mundo existe .

«Que torva historia a minha ! é breve,attende

Por minha mãe,que a fome a llucínava ,

Lançada fui no ab ysmo ! Então amava .

Hoj e sou Dulce,a lama que se vende .

76 GONÇALVES C RESPO

Quí z e sse a minha prospera ventura

Descobrir-l he esta dor,que me devora ;

Teria dó da minha vida escura,

Genti l senhora .

Q ue para mim a aurora nunca aponta,

N em eu vej o do 8 0 1 os r e S p lendor es ;Os males meus

,senhora

,não teem conta

,

N emminhas dores .

Mas quando a furto a vej o, que ale g r ia !

Mas quando a vo z l he escuto,desfa lle ço !

E d'este padecer,que me e xcr ucia

,

Até me esqueço .

Eu não lhe imploro amor : vira sómente

Entreabri r—se—me o céo, formosa dama,Se lhe ouvi sse di zer com voz tremente :

Como el le me ama ! »

O BRAS CO M PLETAS

CON S OLAÇÃ O

Quando a noite no bai le esplendoroso

Vais na onda da val sa arrebatada

Com a serena fronte recl inada

S obre o peito fel i z do pa r ditoso .

Mal sabes tu que exis te um desditoso

Faminto de te ve r,oh minha amada !

E que sente a sua alma angus tiada

Longe da luz do teu olhar p iedoso .

7 7

G O N ÇALvE S CRESPO

Mas quando a roxa aurora vem nascendo,

E a cotovia accorda o l aranjal,

E OS astros vão de todo esmorecendo ;

Eu cuido ver-te,oh l írio divinal

,

As minhas cartas ávida relendo

Semi-nua no leito virginal .

O BRAS COMPLETAS 79'

S ARA

N ão cantarei o sol,a terra e os largos mares

,

E o bosque murmurante,e Os ninhos das ramadas

Meus h ymnos serão teus , e as notas namoradas

Te vibrarei no p lêct r o, ó Esposa dos Cantares !

Somente cantarei o teu olhar divino,

E esse col lo,moldado em candido alabastro

,

Onde ás vezes desmaio,e onde te de snast r o

Em del irios febris as comas de ouro f ino .

8 0 GONÇALVES CRESPO

Teu corpo cantarei , a e S plend ida e sculp tur a ,

O l ivro onde apprendi a ler quantas del ici as

N O S chovem da mulher nas trémulas caricias,

Que nos erguem ao cêo nas azas da ventu ra .

Teus labios cantarei , abençoado porto ,O nde va i soluçar a vaga de meus beij os,Lyra

,que se desata em t ímidos h ar p e jos,

Quando me pende a fronte em la S S O desconforto .

S e em teus braços me inclino,eu Sinto que me afundo

N'

um ab ysmo de seda e plumas perfumadas,E exu l to, e choro , e canto ; e a roscas alvoradas

Ergue o vôo minha alma em e x tasís profundo .

Tu és a Fornarina : e eu n'esses olhos l eio

A luz que cega e mata . Embora ! venham rosas !

Quero cingir a fronte,e em noi tes amorosas

Como Sanzio morrer nas ondas do teu seio .

O BRAS C OMPL ETAS

Mi lagre da natura

És tu,mulher ; o artista

Aj oelha,se te avista

,

O h rara formosura !

Deslumbra na brancura

Teu corpo,e cega a vista ;

Mas ver-te assim . contrista !

Tão bel la,e tão impur a l .

8 1

sz GONÇALVES CRESPO

Meu sonho foi a rosa

N a vaga turnultuosa

Tão cedo o vi morrer !

Ph r ynéa , tu não choras,N em tremes

,ném de scor as

ÉS marmore,mu lher !

84 GONÇALVES CRESPO

Fascina,quando a vej o á noite semi-nua

,

Postas as mãos no seio, onde O desej o estua ,A bocca descerrada, amortecido O olhar .

Fascina,mas sua alma é l odo

,onde não pousa

Um raio d'essa aurora,o amor

,subl ime cousa !

R aio de luz perdi do em tormentoso mar !

O BRAS CO M PLETAS

N o alvorecer das minhas primaveras

Tu me surgiste,appar iç ão mimosa ,

E eu pude ve r logradas as chimeras

Da minha escura vida procel losa !

Com tanto ardor não cingem verdes heras

O tronco da palmeira voluptuosa,

Como quando no abraço di laceras

Este meu seio nu,pagã formosa !

86 G ONÇALVES CRESPO

Eu quero desvendar este myste r io

Se alguma cousa em t i de vago e e th e r eo

Existe meio occul ta na penumbra .

Quero sentir, palpar a real idade ;Mas ante o bri lho augusto da verdade

A luz do meu amor toda se obumbra .

GONÇALVES CRESPO

Quem te colheu o be ij o primitivo ?

Que Fausto ou Mephistopheles al t ivo

Te ennodoou as vestes,Margarida ?

Escuta : emquanto dormes, impudente ,Talvez n'alguma estrel la resplendente

Chore tua alma triste e arrependida .

O BRAS CO M PLETAS

S ara,tens a bel leza e a fôrma seductora

Que T iciano adorara,e Angel o esculpira ;

De teu profundo Ol har na humíd a saph y r a

Em d esmaios eu bebo luz que me devora .

Sara,meiga visão ! meu se r chora e del ira

Se te vej o infant i l,suave

,encantadora

,

E que vou desferir nota gemedora

Do meu i nsano amor no labio que suspira .

GO NÇAL VES CRESPO

Foste O molde talvez de algum sonho divino,

Estrel la vinda a terra,oh corpo alabastrino

,

Q ue em namorado extremo aperto contra 0 seio !

Mas sorris quando triste oscu l o os teus cabel los,

E te conto a illusão dos meus vagos anhelos

Eu t e perdôo,flô r ! cr e anç a , eu te pranteio !

GONÇALVES CRESPO

Pod e sse eu tri ste agora

D i zer que v i a aurora

Fulgir um S ! momento !

Desespe r ar eterno !

Oh ! basta d'este inferno !

Esp lenda o firmamento !

O B RAS CO M PLETAS 9 3

V I I I

O h Sara,mi nha Lesbia

,em cuj o bocca a S p ir O

A volup ia que mata, o goso que adormenta !

Q uando te ag i ta O sangue a febre que dementa,

Manso e manso desmaio aos beij os de um vampiro.

ÉS como a estatua grega,O assombro da e sculp tur a ,

Erguera—te um altar o ardente pagani smo ;Desce de ti a luz

,que bri lha em meu ab ysmo,

Esp lendente ideal da eterna formosura !

GONÇALVES CR ESPO

Maravi lha da carne,ás vezes se n 'um beij o

,

D 'esses beij os febris e humidos,transvasas

Em meu ancioso peito O fogo em que te abrasas,

E te fustiga em lava asperrimo desej o,

Pr e sínto que se esvai a noite procel losa

A l uz de um teu Ol har na languida agonia,

E adormeço,mu l her

,n'

um sonho de magia

Como em placido lei to a onda preguiçosa .

Depoisàs horas quando a cu r va mai s se acalmaDO seio turbulento

,e O mar da l onga trança

Pouco e pouco se espraia . e flãccido descansa,N ão se i que dô r l evanta os sei os de minh'alma .

Que importa que eu enxugue ao fogo de teus beij os

O pranto que me orval ha a palpebra sombria ?

Se vej o o ideal,que tanto resplendia

,

Perder-se pela al tura em trému los ade jos?

9 6 G O N ÇALVES cnaspo

Obra de monge em me r encor ia cel l a,

Piedoso artista ha mui to adormecido

Emvelha cathedral .

Tem secu los ; talvez que n'estas contas

Passasse outr'ora suas mãos esguias

A caste l lã senil,

Pensando triste nos di tosos dias

Em que a seus pés ummenestrel vib r ava

O mimoso a r r ab i l .

Talvez que este rosario minorasse

As saudades “da noiva lacr ymante ,Que debalde esperou

Em cada náu,que vinha do Levante ,

O seu donzel amado que part ira

E nunca mais vol tou .

S obre cóta de um j oven caval le iro ,Q ue o beij ava por noi tes estrel ladas

Pensando em sua mãe,

E l l e assistiu ás guerras d as cruzadas ,A travessou talvez a terra santa

E v iu Jerusalem.

1 87 1 .

O BRAS CO M PLETAS 9 7

Talvez alguma freira em triste claustro,

De seus annos na doce primavera,

S ó d 'el l e confiou

S eus loucos sonhos de fa lla z chimera,

E,apertando o rosario ao peito ancioso

,

Consolada expirou .

Isto,o que leio no rosario antigo ;

E quando me lancholico l he beij o

As contas de marfim,

N o ar escuto i ndefinido harpej o,

E então a crença,a myst ica toada,

Murmura dentro mim .

98 GONÇALVES CRESPO

DES TI N OS

A M . J. B .

Tu és a andorinha t ímida

Em migração para o sul ;Eu sou o abutre esfaimado

,

Esse demonio emplumado,

O escuro Ahasve r o do azul

Tu és a prece b emdicta,

Que da innocencia partiu ;Eu sou o gri to ra ivoso

Do miserrimo Leproso,

A quem o Senhor feriu .

”1 00 G O N ÇALVE S CRESPO

ARREPEN DIDA

A V ICENTE M ONTE I RO

N'esse quarto pequeno humido e estrei to,

A miseria assentou a mão sombria

A esteira do luar, que o alumia,

Mais lhe engrandece o luctuoso e íl'

e ito .

A um lado da vetusta gel osia“Vela triste mulher ; no immundo l ei to

Al guem ressona lugubre,e desfei to

Pelos excessos da nocturna orgia .

O B RAS CO M PLETAS 'lOt'

E l l a scisma ao luar ; todo o passado

A seus Olhos avul ta,i l luminado

Pelos dubios reflexos da tristeza .

Por uma noite assim,límp ida e clara,

Sua modesta alcova el la deixara

Por esse que al l i dorme e que d e S p r e z a !

402 GONÇALVES CRESPO

NERA

Uma larg a piscina , Obra de um grego artista,Attrai da alcova em meio a fascinada vista .

De trabalhado bronze um Pan malicioso

Finge na tenue flauta um canto harmonioso .

.Uma estatua do Amor,de Paros cô r de rosa

Entre verdes festões assoma graciosa .

GONÇALVES CRESPO

Murmur a rn do cle psyd r o"

as aguas . Entretanto

N era seu corpo estira em fl accido quebranto .

Abre fel ino gei to os láb ios cô r de rosa,

Como em busca de um beij o,a dama volup tuosa ,

Sonha ! j u lga sentir no rosto de açucena

Os beij os de Bacty lo, O gladiador da arena .

Subito,em toda a Roma a plebe di ssoluta

«Ao C irco ruge e gri ta ; dama accorda e escuta

X I I I

Ergue O'

C O I'

pO de neve a“

l inda Galatea,

«AO C irco e em seu Ol har sorri i gnota idea .

O B RAS CO M PLETAS '105

ALGUEM

Para algu em sou O ly r iO entre OS abrolhos,E tenho as formas ide aes do Christo ;Para alguem sou a vida e a luz dos Olhos

E se a terra existe,e porque existo .

Esse alguem,que prefere ao namorado

Cantar das aves minha rude voz,

N ã o és tu,anj o meu idolatrado !

N em,meus am igos

,é nenhum de vós !

406 GONÇALVES CRESPO

Q uando al ta noite me recl ino e deito

Me lancholico,triste e fatigado

,

Esse alguem abre as azas nO meu l eito,

E O meu somno desl i za perfumado .

Chovam bençãos de Deus sobre a que chora

Por mim além dos mares ! esse alguem

É de meus dias a esplendente aurora,tu

,doce velhinha

,Oh minha mãe !

1 0 GONÇALVES C RESPO

Atraz das grandes, pardas borboletas ,C r e anças nuas lá se vão inquietas

N a varanda correndo ladrilh ada .

Desponta'

a lua ; 0 sabia g or g e ia ;

q uanto às portas do curral ondeiaA mugidora fi la da boiada .

O BRAS CO M PLETAS 1 03

UMA ANDALUZA

A M ARÇAL PACH ECO

T inha OS p és, t i nha as mãos em miniatura,

Essa por quem suspira em vão Sevi lha ;S eu col lo era um model o de e sculp tur a ,

V isto de sob as franjas da mantilh a .

Em seu gracioso andar sob r ee xced ia

Da panthera f'

eli na genti leza ;Era famosa em toda a Andaluzia

A l onga trança da genti l marqueza .

H O G O N C ALVE S CRESPO

E por ninguem batera aque l le sei o

De cr e anç a indolente e caprichosa !

N enhum h ida lg o em namorado e nle io

O usou dizer-l he um dia : «É tão formosa ! »

Por vezes nas tertul ias repetia,

Dedi lhando no leque rendi lhado,

Que a doces galanteios preferia

De um papel i to O fumo perfumado .

Á noi te,quando a lua e toda amores

,

E a guitarra soluça mais dol ente,N o seu balcão de g oth icos lavor e s

A marqueza sorria-se indol ente .

Um alcaide,poeta e cavalhei ro

,

De ciume feroz embriagado,

N o l ei to apunhalara um extrangei ro

Da bel la senori ta namorado .

A lguem disse que o facto d eshumano

A deixara impassíve l e serena,

E que se ouvira toda a noite ao piano

O canto alegre da genti l morena .

41 2 GONÇALVES C RESPO

BIAN CO VES T ITA

Q uando sou a teu lado e sinto O aroma

Das tuas falas puras de cr e anç a ,Embriagam—me OS sonhos de esperança

Q ue em vão posso lograr na curta vida .

V isão de amor ! O beij o sacrosanto,

Colhido d 'essa bocca purpurina,

Foi como a luz do sol entre a nebl ina

Eu te b emd ig o, noiva estremecida !

O B RAS CO M PLETAS '1 1 3

Por vezes ao luar,n *essa varanda

,

Quando ao seio te aperto e nnamor ada ,

E a medo se desata magoada

A canção de minh 'alma,que delira

,

A face te desbota docemente .

De scáe—te fronte languida no seio

Humido O labio em desmaiado ance io

Tenues vozes de amor brando suspira .

Flô r de innocencia ! O sonho de ventura ,Que antevej o no aroma d 'essas falas

,

N ão vale as nuvens de ouro em que te embalas

E de teu leito O perfumado arminho .

N ão me fal les de amor, t ímida r ô la !

Extende as azas em perenne ad e jo '

Chore eu embora o sacrosanto be ij o

E as rosas que lancaste em meu caminho !

41 2 GONÇALVES C RESPO

BIAN CO VES T ITA

Q uando sou a teu lado e sinto o aroma

Das tuas falas puras de cr e anç a ,Embriagam—me os sonhos de esperança

Q ue em vão posso lograr na curta vida .

V isão de amor ! O beij o sacrosanto,

Colhido d 'essa bocca purpurina,

Foi como a luz do sol entre a nebl i na

Eu te b emd ig o, noiva estremecida !

GONÇALVES CRESPO

NOITE DE INVERNO

Dezembro,quando veste

O manto seu de arminho,

E O escuro torvel inho

Empana O azu l celeste .

E Sopra O agudo leste

N o arido maninho,Deserto é o cam inho

,

E a noite é fria,agreste .

OBRAS CO M PLETAS

Que doce então S cisma r mos

N a alcova soce g ada ,E,quasi a adormecer

,

A fronte recl inarmos

N a onda ave lludada

De um coll o de mu lher !

“5

1 16 C O N CALvE S CRESPO

DES DICHADA

S ósinha e ao desamparo el la vivia

N'esse pobre casebre abandonado ;

N ão conhecera pae nem mãe ; doia

F i tar aque lle rosto macerado .

N enhum rapaz esbel to a convidava

Para os d escante s da festiva aldeia ;E comsig o mesquinha suspirava

«Doce Jesus ! porque nasci tão feia

1 1 8 GONÇALVES CRESPO

ABEIRAno MON DEGO

DO azul na grande abobada espelhada

Campeia a lua e os astros scinti l lantes ;Os pés nas frescas aguas murmurantes

,

Dorme Coimbra triste e soceg ad a .

Ha pouco ainda a branda serenada

N O S b andolins chorava palpitantes ;Tudo é si lencio agora

,e dos amantes

N ão se movem as sombras na calçada .

O BRAS CO M PLETAS 1 1 9

'O caes repousa ; a riba é sol i taria ;Da ponte nos esguios candieirosA l uz vaci l l a crepi tando varia .

N as curvas lanchas dormem os barqueiros .

'O poeta no emtanto,O e terno paria

,

E scuta a voz de Ignez entre os salgueiros .

1 O G ONÇALVES CR ESPO

C ORTEJO

D E PAULO V ERLA INE

Em vestes de ouro e brocado,

Um mono OS passos acerta

Ante a formosa,que aperta

N a mão um l enço bordado .

'A traz um negro luzido

Segue,de capa encarnada :

Sustém a cauda pesada

DO r ocag ante vestido .

1% GONÇALVES CRESPO

A M . DE CA M POS CARVALHO

Da lua um raio incerto

N o quarto se perdia ;E a mãe olhava o Dia

E a Luz do seu deserto .

E l la velava perto

DO f i lho,que dormia

,

E candida sorria

AO ly r io entreaberto .

O BRAS CO M PLETAS 1 23

N o berço fluctuante

Moveu-se agora O infante

E acorda pranteando .

N ão ha quadro mais bel l o

Que a mãe,sol to O cabel l o

,

O fi l ho acalentando '

1 24 GONÇALVE S CRE S PO

A TUA CARTA

A J . S I M OES D IA S

Tem as lettras desmaiadas

A carta que me escreveste,

Talvez do calor do seio,

O nde escondida a t rouxeste .

O perfume que el la exhala

Entonteceu—me a cabeça,

Lembraram—me OS d oces beij os

Da tua bocca,travessa .

1 26 GONÇALVES CRESPO

Oh fi l ha ! quando medi t o

N as rosas do meu passado,

Parece-me a tua carta

Um l indo al tar enfeit ado .

E penso . vê lá por onde

A phantasia me voa !

Que tens a mão sobre a minha,

Que um padre nos abençoa .

Eu não dera a tua carta

Por cousas de alta val ia,Ainda que mais não tivesse

Que O teu nome de Maria !

O BRAS CO M PLETAS

IL RI TTBATO

Entre jasmins em perfumado ambiente,

Qual a Madona em nicho recatado,

Pende em moldura de ebano lavrado

A imagem da mul her que choro ausente .

Sol ta l he desce a trança resplendente

Em ondas sobre O seio immaculado ;Doura—l he O fInO l abio nacarado

A lmo sorri r de amor,puro

,innocente .

1 7

1 23 GONÇALVES CRESPO

Poemas ae r eos n'esses Olhos leio,

N a l uz dos Olhos negros,e prantei o

O vê r -me triste e Só no meu retiro .

Doce visão do ceo ! ás vezes creio

Que Suspiras de amor em vago ance io

O nde me levas,intimo suspiro“?

1 3 0 G O N CALVES CRESPO

Sonho tal vez ! cuidei ter presentido

O arras tado e usual r hido

D e suas vestes murmuras de seda .

Uma folha que desce me desperta !

E eu vej o,a luz da lua

,a sombra incerta

Das arvores nas ruas da alameda .

O BRA S CO M PL ETAS

CANÇÃ O

A BERNARD INO M ACHADO

Mostraram—me um dia na roça dançando

Mestiça formosa de Olhar a z oug ado,C O

'

um l enço de cores nos seios cru zado,

N O S lóbos da orelha p ingentes de prata .

Que v i va mulata !

Por ella O fei tor

D i z iam que andava perdido de amor .

De emtor no dez leguas da vasta fazenda

A vel—a corriam gentis amadores,

E aos d ictos galantes de finos amores,

1 3 !

1 3 2 GONÇALVES CRESPO

Abrindo seus labios de Viva escarlata,Sorria a mu lata

,

Por quem O fei tor

N utria chimeras e sonhos de amor .

Um pobre mascate,que em noites de lua

Cantava modinhas,lunduns magoados,

Amando a faceira dos Olhos rasgados,

O usou confessar-lh º

o com voz t imorata .

Amaste-O,mulata !

E O triste fe itor

Chorava na sombra pe r dido de amor .

Um dia encontraram na escura senzala

O catre da bella mucamba vaz io '

Emb alde recortam pirogas O rio,

Embalde a procuram nas sombras da matta .

Fugira a mu lata,

Por quem O fei tor

Se foi definhando,perdido de amor .

GONÇALVES CRESPO

Teus olhos teem a luz,a mesma luz que out ºr or a

A vida me tornou em fl oreo paraiso ;O mesmo aroma tem trança cor de amora

,

Teu'

labio O mesmo r iso .

Mas quando te ouço a fala,esvai—se meu encanto

,

O sonho se anniqui la e attoni to estremeço !

Minh'alma

,doudo amor ! se alaga em triste pranto ;Mu lher

,não te conheço ! .

N ão és a mesma,não ! não treme suspi r osa

Co rno outr'ora, cr e ança , a tua voz t remia

Busco embald e a illusã o do sonho cor de rosa !

Tudo,tudo méntia ! .

Ment ia—me essa voz,e aque l le doudo ance io,

E O pranto que te v i na minha despedida !

Mentia—me essa fronte occu l ta no meu seio .

E eras a minha vida !

Di zº—me se eu perguntasse um d ia O que fizeste

Das santas i llusõ e s das minhas primaveras,Das crenças que d epuz n

'

aque l le amor celeste,Di z '-me

,que responderas ?

'O BRAS CO M PLETAS

É S hoj e O mausoleo sombrio onde descansa,

Para sempre talve z,O meu doce passado !

A manhecesse um d ia a pall ida esperança .

Mas . teu seio é gelado !

1 3 6 GONÇALVES CRESPO '

Recreia-se a minh 'alma se a tardinha

N a j anel la diviso essa innocente ;Que nunca v i olhar mais transparente

,

N em figura genti l como a viz inha !

Desce ás vezes a t ímid a avezinha

AO seu j ardim,e afaga docemente

Da C och inch ina um gal lo refulgente,

Que em seu regaço langu ido se aninha

1 3 3 GONÇALVES CRESPO

S UA S MÃ O S

As mãos d 'essa franzina creatura

São feitas das camel ias se t inosas ;Resumb r a na suavissima textura

O azul d a s tenues veias caprichosas .

Levemente comp r idas, graciosas,Escurecem das teclas a brancura

,

E desprezam as l indas preguiçosas

O s f inos arabescos da costura .

O BRAS CO M PLETAS 1 3 9

O s dedos São de j aspe modelado ;E as unhas . só podiam as paletas

De um chinez imitar-l hes O rosado .

Se alguem as beija em curvas etiquetas,

Sente um aroma doce e del icado

C Omo o aroma subti l das violetas .

1 40 GON C ALVES CRESPO

O MEU CACHIMBO

Beij a os Ol hos do fi lho inanimado

A mãe,sol ta ndo

.

se pulcr aes lamentos

Assim chorei,beij ando esses frag mentos

DO meu l ouro cach imbo requeimado .

Eras,pobre ca chimbo

,O que restava

Do aereo sonho d'esse amor desfei to !

Emba lde aperto ao magoado peito

O cofre de ch a r ão que te guardava !

1 4 G O N C ALVE S CRESPO

E quando a noite repousava escura,

E a sol idão mais fundo me doia,

N as espiras do fumo absorto a v ia,

E embalava—me em sonhos de ventura . .

Oh meu cachimbo,companheiro e amigo

,

Q ue na desdi ta e no prazer me viste !

Com quem agora falarei da triste,

Que descansa na sombr a do jazigo

O B RAS COMPLETAS 1 43

AO MEIO

N o cafezal cerrado

O si lencio é completo : OEngenho dorme .

DO matto denso e enorme

Sae O vago sussurro dos cortiços ;N ão se ouve de aves O cantar magoado

,

N em coaxa a rã nos humidos caniços .

O fumo das cozinhas da Fazenda,Pennacho vaci l lante,

Recorta em floccos de l igeira renda

O ar sereno em seu azu l distante .

4 44 G O N CALVE S CRES PO

N a torre avermel hada

Chama a sineta ao sordido repasto .

Dos escravos a turba afadigada,

Rep l eta de alegria,S ob um toldo no pateo Immenso e vasto

Descansa do labor do extenso dia .

Entre dois ramos na suspensa rede

Dorme emtanto O fei tor ;E sua alma i rrequieta em sonhos vaga

Pel os pai z e s de um ditoso amor .

'

S onha embebido em louca phantasia

Q ue a sombra do ingazeiro

De vasta r amar ia

O velho fazendeiro,C om voz grave, d

'

est'

a r te l he dizia

.«S into-me velho e enfermo,

«Da vida j á no termo

1 46 GONÇALVES CRESPO

V I I I

Este apresta a armadilha cavil loso

Para ca çar as Vivas capivaras ;Outro

,mais dil igente e industrioso

,

Vai concertando um cesto de taquaras

N'

um grupo separado

Os crias da Fazenda

Em doce enl evo escutam

Um franzino mestiço afortunado,

Que relata baixinho o caso extranho

De ter visto a S inhá tomando banho .

Da sala da costura na j anel la,

Que a verde trepadeira

De cachos mil estrel la,

Passa as vezes O rosto cob r e ado

Uma lasciva parda feiticeira .

O B RAS CO M PLETAS

Um rancho de negri tos

Luzidios e nus,

Enchendo O ar de estrepi tantes gritos,

O pateo cruzam rapidos,montados

Em varas de b ambus,

Al evantando nuvens de poeira

N a vertigem da celere carreira .

Folgam ao vel—O S os sag uis l i geiros ;E as araras formosas

,

Os rubros Olhos com temor piscando

E as scinti l lantes pennas encrespando,

Já gr i tam bul içosas

N o ebano lustroso dos poleiros .

De velhos negros n 'uma vasta roda

Um cabinda gracioso,

A quem a turba tod a

Com app lausos inci ta ,Vai meneando O corpo fi rme e airoso

E a voz minhota do feitor imi ta .

1 47

1 43 GONÇALVES CRESPO

Este sonha no emtanto ;Mas O sonho é mais triste

,pois agora

Ante seus Olhos,humidos de pranto

,

Me r encor ia visão se patenteia :

Vê d a patria a campina verdej ante

Onde brincara infante,

E a torre velha e esguia,

E a larga escadaria

Da velha egrej a da saudosa aldeia .

N ão l onge do caminho

N as sombras do arvoredo meio—occu l ta

Como alvacento ninho,

A casa onde nascera alegre avul ta .

Falam com el le cheias de al egria

As moças do l ogar ;«Oh Margarida ! oh Rosa ! e tu Maria ! .

E O triste a soluçar .

Onde está minha mãe ? » eil—a que passa !

Tão mudada e abatida

N ão vês teu fi lho,minh a mãe querida ?

Para abraçar-te de bem longe venho .

GONÇALVES CRESPO

A C ON FES S ADA

Era tão l inda assim,aj oelhada

,

As mãos unidas com suave gesto,

Os Olhos baixos,e um sorri r modesto

De seus labi os na cu r va immacu lada !

De um sacerdote aos pés severo e mesto

E l la curvara a fronte del icada,

E di zia—l he baixo e soce g ada

De sua vida o desl i zar honesto .

O B RAS CO M PLETAS 1 51

Mas subito uma nuvem cor de rosa

AO rosto l he subiu, fugaz meteoro !

E a voz tremeu-l he inquieta e susp i r osa .

E pude ve r , sombrio Lovelace ,Essa palavra amor em lettras de ouro

Traçadas no G a rmin de sua face .

1 52 GONÇALVES CRESPO

TRANS FIGURAÇÃ O

AO D R . JO SÉ FALCÃ O

Era a voz de Jesus,benigna e tão suave

Como um pe r dão de mã e ou como um trino de ave .

A turba,que O cercava

,ouvia-o respei tosa

,

O lhando aquel la fronte eburnea e lumi nosa .

1 54 GO NÇALVES CRESPO

V I I I

E e lla, que em v ida so l ta , aleg r e e d es-mim

Passar-a os dias se us,tr ist e mulhe r formosa !

S entind o ag ne ll e O lh a r, que ent r e e lla e o cão fluctua,

1 870.

F l ) ! DAS MÍN I ATURAS

ESTUDO CRITI C O

1 58 GONÇALVES CRESPO

voz humilde ás vozes,que no paiz em que eu nasci

,

e no imperio em que el l e nasceu,o proclamam um

dos mais del icados poetas modernos , um dos cinzelador e s mais primorosos da poesia portugueza

,um

p a r na ssiano no bom sentido da palavra,quer dizer

,

j untando como C oppée , mas em mu ito mais al to g r áudo que este

,a suavidade

,a melodia

,a correcção do

metro,ao sentimento profundo

,a comp r e h ensão cla

ra,nít ida e perfei ta de todos os segredos complexos

da alma contemporanea ?

Parece-me que seriam rigorosos de mais os quetentassem coar ctar —me esse direi to

,e que seria de

masiada doci l idade da minha parte O suj eitar—me acensores tão intransigentes e tão duros .

De mais,não escrevo eu exclusivamente para se r

l ida por mulheres E onde está a mulher que me condemne n 'este ponto ? N ão ha nenhuma

,tenho a cer

teza d 'isso .

Gonçalves Crespo não escreveu senão as Minia t ar a s e OS N octur nos. Foram OS versos da sua mocidadecollig idos debaixo d

'

aque lle t ítulo,que m 'o fi zeram

conhecer e admirar ; os N octur nos pode bem dizer-seque foram escr ip tos ao meu l ado .

A Obra do poeta tem pois para mim duas faces d ist inctas, mas para j ulgar as Minia tur a s sinto-me porassim dizer mais independente e mais l ivre .

Esse l ivro foi a revelação primeira, a revelaçãosubita que eu t ive d '

aque lle , que treze annos depois ,quasi que dia por d ia

,me expi rava nos braços

,pro

nunciando O meu nome , que a sua alma angel ica , tãodepurada pelo sofl

'

r imento,tão sanct ifIcada pela resi

g naç ão, enchia de bençãos .

ESTU DO CR IT ICO 1 59

Foi em 1 870 que as Mi nia tu r a s viram a l uz pel aprimeira vez

,revelando a Portugal todo e a todo O

Braz i l,que um poeta original

,del icadíssimo , correcto

até a perfeição,que um art ista de primeira plana

,um

verdadeiro artis ta de raça,acabava de nascer para a

lit te r a tur a portugueza .

Foi essa uma bella era da curta vida do poeta, hont em desconhecido ainda

,hoj e acclamado por todos

os que tinham no e S p i r itO uma scente lh a de gosto , eno coração um visl umbre de sensibil idade .

Sobre a banca de trabalho de todas as mulheresd ist inctas, entre O cestinho de bordado , e a j arra dev ioletas ou de rosas

,achava-se então O gracioso VO

lume das Minia tu r a s, e muita voz feminina tremul ade commoç ão, e muita vo z de artista, ebrio da bell eza da fôrma

,repetia com enlevo essa doce elegia

ador ave lment e sentida, que se chama Alguem, essepoema de inconsol ada e vaga tristeza

,que se int i tula :

Ar r ep end ida , e a N oiva , e O ramo de saudades e del y r ios entretecido sobre O tumulo de Mod esta e ae sp lend ida N or a , e a e sculp tur a l e voluptuosa S a r a ,

e a ine ffave l e consoladora Tr a ns/ig u r a ç ã o .

Quantos aspectos do mesmo talento ! quantas fó rmas da mesma phantasia seductora ! quantas e xpansões da mesma sensibi l idade fina

,subtil

,quasi doen

tia,de requintada que e r a !

Muito l onge do poeta,em um palacio meio arrni

nado, afastada de todo O convivio social , entre asverduras

,as sombras

,as caricias inspiradoras da N a

tur e z a i ncul ta,Vivia então uma cr e anç a de alma ar

dente, de sonhadora phantasia, de indomito imaginar,v i z iona r ia j uvenil

,de que hoj e — taes são as modi

1 60 GONÇALVES CRESPO

f ica ç õ e s que O tempo faz ! existe apenas,al terado

ainda assim pelos annos e pelas agonias,o corpo en

ve lh e cido cuja mão escreve estas l inhas .

Mu i tos teem contado essa historia a que a Mo r t eveiu dar o seu tragico remate . Para que a llud ir a el laaqu i E que importam ao mundo as alegrias e as l agrimas que el l e não sentiu e não chorouA verdade é que h e i de lembrar-me sempre

,tão

viva se me conse r va no espiri to essa impressãodominadora

,do que eu senti ao folhear pela pri

mei r a ve z as Min ia tur a s, l ivro de um poeta par amim inteiramente desconhecido havia algumas horasapenas .

Pareceu-me que era um poeta como aque lle , queeu posit ivamente t inha esperado havia muito

,e que

el l e chegara ; que a minha aspiração indefinidae vaga se t inha r ea l isado . Mais contentamento doque sur p r e z a . A doçura dos que al cançam a praiaque t inham desejado em l ongos dias de navegaçã omonotona .

Por que ta rdaste tanto, 6poeta ? Eu te espe r avaN a minha solidão !

faz el l e dizer mais tarde a cr eança , que eu j á fui, ex

p r imindo assim na sua simpl ic idade tão artistica Osentimento de confiante alegria que a minha almaexperimentara ao conh e ce l-O .

Pois bem ; esse agudo prazer da inte llig encia , com

p le tament e , absolutamente satisfeita , no goso d 'umadeterminada Obra d'arte

,sinto-O eu hoj e como no

primeiro dia ao ler as Minia tur a s.

1 62 GONÇALVES CRESPO

Esse alguemque prefere ao namoradoC antar das aves m inha rude Voz ,

N ão és tu, anjo mcu, idolatrado !N em, meus amigos, é nenhumde Vós !

Quando a l ta no i te me recl ino e de i toMe lancol ico, tr iste e fat igado,Esse alguem ab re as azas no meu le i to,E O meusomno deslisa perfumado .

C hovam b ençãos de Deus, sobre a que choraPor mim além dos mares ! Esse a lguemÉ de meus d ias a esplendente aurora .

É S tu, dôce velh inha, O m inha mãe

N'estas quatro e st r Oph e s es tá re tratada uma alma ,

es tão contadas as tristezas d 'um destino,que mercê

de Deus,se d e sannuv iou mais tarde , mas no qual

então se condensavam todas as melancol ias inconsol aveis

,todas as duvidas sombrias

,todas as amargas

e S i l enciosas agonias da isolação .

N em a mu l her que e l l e ama,nos passageiros ca

p r ichos da mocidade , nem os amigos que O cercam,

l he matam a sede de a fl éctos que O devora e torturamãe

,a d ôcc ve lhinh a , essa esta l onge , essa chora

al ém dos mares,essa nem 0 Vê

,nem O acaricia

,nem

dissolve ao fogo dos seus beij os os ge los da duvida,

que tão cedocrestaram todas as flores da mocidadena alma de Gonçalves Crespo .

N unca houve ninguem mais modesto,mais incon

sciente do p r ºp r io valor, mais desconfiado de si mes

E STU DO CR IT ICO 1 63

mo,mais dolorosamente torturado pela ideia das suas

imperfeições r e ae s ou imaginarias .

Os requintados supl icios de que esta ( le sconfianr a

foi origem ,manifestam-se bem mais nas Minia tur a s

do que no u l t imo volume do poeta ; por isso n'e l l as

a nota pessoal e mais vibrante , a C O l ll l l l O t jã O , por se rmais S ince ra

,é mais directa e mais conta cr iosa .

Como documento psycli oloº'

ico para auxil iar a cr i

t ica do poe ta e do art ista , as Minia tu r a s sã o de umvalor incompa r ave l .

A poesia de Goncalves Crespo t inha origens com

p le xas que é m ister ana lysa r , para comprehendercompletamente a bel leza e a sinceridade palpitant eda sua Obra .

N ascido no Braz i l , n'esse cl ima ardente e languido

,

no seio d 'essa natureza e x hub e r ant e,que mu it o mais

forte do que O homem,se l he impõe e o subj u g a fa

ta l e i r r esist íve lment e,Gonçalves Crespo foi trans

plantado,pobre e del icada planta friorenta e morbi

da,para uma região a que nunca se ponde accl ima r

bem .

D 'aqui,a doçura nostalgica

,a saudade solucant e

,

que parece e vola r —se como um aroma cap itoso dassuas poesias br a z itci r a s taes como a S ústa , N a R oç a

,

a C an çã o, Ao me io d ia , e mais tarde nos N octur nos,as Ve lha s N eg r a s, etc .

,e tc.

N em Gonçalves Dias,nem A lvares de Azevedo

,

nem Casimiro de Abreu,se deixaram assim inspira r

,

tão sincera e vivamente,p e las scenas famil iare s da

1 64 GONÇALVES CRESPO

Vida brazi leira,cuja graca pittoresca e especial dá

um cunho inteiramente novo aos versos de C oncalv e s Crespo .

É que O poeta t inha saudade — uma saudade quel he estava no sangue

,que e r a parte do seu tempera

mento, saudade que era um inst incto contra o qualel le luctava em v ão — de todos os e S p lend idos aspectos com que os seus Ol hos

,ao abri rem-se a l uz

,se

t inham inconscientemente embriagado .

Um dia de agosto,t r º p ica lmente calmoso , passado

no campo,a sombra das arvores

,dava-l he uma cxci

tação penetrante,enVO lVia-O n'um banho de sensa

ções voluptuosas . Sem mesmo dar por isso,era a

l embrança tão Viva e tão dominadora da patria lon

g inqua , que produzia em todo o seu ser este e fl e itoanormal .E is to ainda que se traduz na melancol ia sonha

dora e vaga, d'esse pequeno poema

,em que eu j á

f a l le i,i nt itulado as Ve lha s N eg r a s.

C onheceram tanto donoEmbalaram tanto somnoDe tanta S inha gent i l !

Podem as tristezas mudas d'uma raça escrava sernotadas com uma subtil e za maior

,com uma doçura

mais idealA simpl icidade que dá estes e ffe itos éque é a gran

de arte .

Ao longe,evocados magicamente pela voz do poeta

,

surgem os b r utaes senhores,para quem as tristes fi

l has da raça negra foram o j oguete d 'um instante,a

1 63 GONÇALVES CR ESPO

O vento que passe tranqu i l lo, de l eve,N as folhas do engá ;

As aves que abafemseu canto sent ido ;As rodas do engenho não facamru ido,

Que dorme a S inha.

N ão se Vê bem que este l anguido r ythmo, que avaga suavidade d 'estes versos

,parecem feitos para

acompanhar O movimento cadenciado e lento da rede,

e embalar o sonho de alguma fi l ha genti l d 'esse pai z,

em que O c l ima dá ao corpo as pregu iças infinitas,e

a natureza luxuosa e desbordante dá ao e sp ír ito amol lesa

,O canç aç o fatal d

'uma permanente lucta,na

qual o homem é sempre vencido pela força inconsciente das cousas ? .

Em Gonçalves Crespo havia pois a indolencia ataVica, que e l le só por extraordinario e doloroso es r ç O

era capaz de vencer temporariamente . Por isso , emquanto as cir cumstancias excepcionalmente favor aveis l he não amenizaram a existencia

,e l le Viveu sem

pre em absoluto d e saccor do com O seu meio .

A iucta p e la v ida,essa le i brutal das sociedades

modernas,esmagava-o

,a el le

,f i l ho preguiçoso dos

t r op icos, artista quasi feminino, pe la graça del icada efragil do engenho

,pe la caprichosa subti l e za da inS p i

ração .

E digo muito de proposi to insp i r a ção, apesar dapalavra andar p r oscr ip ta dosmodernos codigos artist icos .

Gonçalves Crespo trabal hava minuciosamente, co

mo o mais esmerado Operario,a factura dos seus ve r

sos,mas necessitava d 'essa infl uencia qualquer, su

ESTU DO CR IT ICO 1 67

perior e extranha,que pôde v ir ao artista do seu

mundo intimo,ou do mundo que o rodeia , que pôde

se r determinada pelo estado especial dos seus nerv os

,ou que pôde provir de mil causas externas e in

d ependentes da sua vontade .

Quando el le escreveu as Min ia tu r a s, dando-nos nasc on fidencias talvez involuntarias da sua alma, a revellação d 'um artista adoravel

,duas grandes t ristezas O

opp r imiam,tristezas que el l e

,seguindo talvez semdar

por isso,o fecundo conselho de Goethe

,transformou

empoes ia, que sera l ida emquanto se fa lla r e se e scr ev e r portuguez .

Eram—l he h ostis o meio physico e a a tmO S ph e r amoral em que el l e Vivia .

Para se r grande na Arte,creio eu

,que é preciso an

t es de tudo,se r sincero . N unca ninguem logrou tra

d uz ir bem as dOr e s que não sent iu .

Brutal idades inconscientes do Destino t inham feitod

'este moço,— de uma or g anisaç ã o nervosa como a

d'uma mulher

,accessive l , como os organismos mais

s ensíveis,a influencia de todas as symp a t h ias, gos

tando de agradar aos que Viviam perto d'el l e,impres

sionave l,desconfiado

,sempre p r omp to a j ulgar—se

com severidade inj usta,— um e stud ant e p e ssimo, um

f i lho famil ia,quasi r ebelde .

Queriam que el l e,a l ivre phantasia graciosa e bor

b ole t e ador a,caprichosa

,e faci l aos '

canç aços rapidose aos tedios annullador e s

,se cingisse ao estudo arido

1 68 GONÇALVES CRESPO

e discipl inador da mathematica ; que el le , exigente ,doído por tudo quanto era bel l o elegante

,f ino e dis

t ine to , t ivesse a economia calcu l ista e minuciosa d'

ummed íocr e ou d'um grosseiro .

D 'aqu i,as luctas de família , os descontentamentos

do homem intel l igente,que se Ve injustame nte julg ado

porque lhe p r eve r tem as facu ldades em ve z de asaproveitarem .

Triste , isolado , sem a fl ectos,descontente de si que

não sabia suj eitar-se ao destino,e descontente com

O destino que tão host i l lhe es tava sendo,Gonçalves .

Crespo sur p r e h endeu-se um dia a vazar no molde

perf'

eito dos seus versos,as melancol ias int r aduz íve is

até al i,do seu pobre coração triturado e desconhecido .

Te ixeira de Queiroz O consciencioso anal yste dosN oivos

,O ironico Observador de S a ltust io N ogue ir a ,

O pintor p int tor e sco e impressionista da C omed ia doC amp o, escreveu na terceira edição das Minia tu r a sum prologo admir ave l

,um prologo por assim dizer

v ivido,que desenha com singular Vigor e com exa

cti dã o minuciosa a p h ysionomia l it te r ar ia e moral d eGonçalves Crespo .

El l e que foi um amigo da mocidade e um amigoda ul t ima hora

,que recebeu as primeiras expansões

do poeta e quasi que O u l t imo susp iro d e moribundo,

comp r e h end eu bem e soube b em t raduz i r,a estranha

dual idade moral que faz ia de Gonça lves Crespo Omais alegre e o mais triste dos homens .

Por que muitos dos amigos d'elle , hão de morre r

na fal sa persuasão de que O lado menos verdadeirod o

'

auctor das Min ia tu r a s era a trist e za funda, a magoa docemente resignada

,que nas suas poesias trans

1 70 GONÇALVES CRESPO

d i ziam sorria—se,com o seu sorriso pecul iar de que

todos os amigos se l embram com uma saudade enorme

,fei to de mal ícia e de duvida

,de bondade e de iro

nia,sorr i so que era o encanto caracteri stico e mys

t e r ioso d'

aque lle rosto revo l to , expressivo e extranho

,que tantos a ff ectos insp irou na terra

,que ficou

gravado em tantos corações que não esquecem .

Es ta duvida de si mesmo fazia-o sof'

f r e r . N unca seconsolou de pensar de si proprio O que ninguem maispensava .

Encantadora fraqueza que o torna ainda mais nosso,

q ue faz com que nós as mulheres todas O amemos,

porque se não d ed ig nou de partil har as nossas pe

q uenas vaidades , as nossas ímp e r f e iç õ e sinh as organicas para as quaes O homem tem tamanho e tão a lt ivo d esd em!

Tris tezas quasi inconscientes do exil i o nostal giasd e ave friorenta

,vi z õ es vagas

,ind ist inctas

,radiosas

da patria ausente ; desgostos de ordem mu ito particular

,e a pairar sobre tudo i sto

,uma impressão do

lor osa , i nde finível , que nem aos mais queridos el leconfessava

,mas que ungia de triste za ine f'fave l os

seus versos,que punha aqui e al i uma nota abafada

e dilacerante na h a rmonia magistral da sua Obra, e isa t r íp lice insp iração , que deu uma Vida intensa aoseu primeiro l ivro

,ao l ivro da sua mocidade que tão

q uerido'

l he tornou l ogo o nome aos del icados deambos os sexos .

As Minia tur a s teem já d e z e se te annos, o que é

ESTU DO CR IT ICO 1 7 1

muito para um l ivro de versos d 'este secul o , que fe zd a rap idez o seu programma e O se u moto

,que não

estaciona em cousa a lguma e muito menos no modod e exprimir o que sente .

Poi s a p e z a r de muitos poetas cont empor ane os deGonçalve s Crespo terem envelhecido l it te r a r iament e ,a geração que princ ipia agora , l ê as Min ia tu r a s como mesmo enlevo com que as l eu a geração que vaee nve lhecendo j á .

É que a verdadeira poesia,a que não se fi l ia servi l

mente em uma qualquer escola transitoria e ep h emera

,mas a que exprime do modo mais bel l o e p e r fe i

t o que e dado a sua epoca conhecer,os sent imentos

que formam o fundo ina lte r ave l da alma humana,não

e nvel hece nunca,atravessa os tempos immaculada e

eterna ; e hoj e O que será sempre , a fascinadora quenos enfei tiça

,a amiga ca r íciosa que nos embala, a

confidente que nos ouve,e que chora comnosco .

Muitos teem comparado Gonçalves Crespo a Theoph i l e G auth ie r ; . eu pormimdeclaro que acho inj ustaa comparação .

Theoph i l e Gauthier e um perfeito ourives,um im

p e ecave l b ur ilador ; cada verso d'el l e é uma pedra

preciosa,facetada

,bri lhante

,admi r ave linent e engas

t ada em ouro dos mais finos quilates .

Para dar uma forma peregrina aos me tae s preciosos

,para esmaltar d e l iciosamente as j o ias mais l in

d amente modeladas ninguem excede O auctor _dosEma ua: ct C amées . El l e proprio e sabia e nunca desej on mais nada .

Em Gonçalves Crespo porém,h avia mais do que

i sto . HaVia uma alma transbordante de sentir,capaz

1 7 2 G ONÇALVES CR ESPO

de comprehender e de traduzir os mais del icadoscambiantes

,as mais rap idas modal idades das outras

almas .

Que intu ição que el l e tinha de todas as dô r e s,me s

mo das mais extranhas ao e sp ír ito e ao coração d'um

homemL embram—se d

'

aq i i e lla perola de tristeza chamadaAr r ep end ida

E tta deixara tudo para correr atraz da sua Chimerae um dia desperta perdida

,i r r emi S S Ive lmente perdida

no ab ysmo de infamia a que uma mão de homem a

arrastou :

E l la scisma ao l uar ! Todo O passadoA seus olhos avulta, i lluminadoPe los dub ios reflexos da t r isteza .

Por uma no i te assim,l ímp ida e clara,

S ua modesta alcôva e l la de ixaraPor esse que ali dorme, e que a . despr csa

Que sobriedade de mestre ! que melancol ia feminina ! que profunda comp r e h ensã o d

'

uma dõ r,que todo

O emphase,toda a phrase diminuiriam forçosamente !

Tentar conhecer O céu do amor completo,do amo r

heroico,do amor fe ito de sacrificios superiores e de

abnegações infinitas e cahir no lodo . S ó um poetasincero como Gonçalves Crespo saberia notar em doistraços esta agonia silenciosa e sem termo .

O q ue dist ingue particularmente o auctor dos N octur nos dos outros poetas da sua . indole

,é a l igeireza

do traço,é O vago que parece envolver n 'uma luz cc

1 74 GONÇALVES CRESPO

as Pr ime ir a s la g r ima s (PEL-R e i, a C e ia d e Tibe r ioprenunciam um poeta fei to para os largos commett imentos

,um poeta que marcari a o seu l ogar n 'este

seculo, com al gumas d

'essas obras que são a gloriad 'uma raça

,se a traiçoeira morte não vi esse emple

na viri l idade de anuos,em plena alegria de trabalho

,

arrancar-l he das mãos a penna prodigiosa .

As t r aducç õ e s de Henrique Heine são no vo lumedos N octu r nos das j oias mais del iciosamente trabal hadas .

A i nspiração meridional entrel aça—se de tal modocom a melancol ia fugi tiva e doce

,com a ironica tris

teza da musa germanica '

,que no di zer de entendi

dos,o I nt e r me z z o appa r e ce a l i como a Obra d 'um

Heine mai s completo,d

'

um Heine a quem não faltasse uma só nota na sua vasta alma de homem !Poucos espiri tos tambem seri am talhados mais d

molde para entenderem Heine,dando-lh e por assim

di zer uma feição nossa .

É que a iron ia que resal ta naturalmente das cousas

,a i ronia que não é nem uma b lasph emia nem um

soluco,mas S imo reconhecimento pacifico

,tranqui l l o

e tri ste d as desconsoladoras verdades humanas e x iste em Gonça lves Crespo na sua forma mais e xquisitamente deli cada

,mai s r equintadament e artistica .

Co no não havia e ll e pois de entender aquil lo queé a propria essencia do genio do poeta a llemão !

ESTUDO CR IT ICO 1 75

Já no l eito,onde ag onisou com divina resignação

dois l ongos mezes,e onde parece que O seu e sp ír ito

d e poeta assumiu uma forma a inda mais idealmentemelancol ica

,Goncalves Crespo escreveu com a mão

tremula de doente um soneto consagrado aos annosd 'uma genti l senhora

,nossa querida amiga

,por quem

el le tinha O mais respeitoso dos affe ctos,em cuja casa

hospitaleira el l e encontrou sempre um acolhimentofraternal .Essa senhora era a Condessa de Sabugosa

,mulher

do amigo,talvez ma i s ternamente amado por G on

ça lvcs Crespo .

Seria l astima conservar para sempre inedito estesoneto que tem para mim um triplo encanto . O p e r iu

me ca inonca no que o impregna del iciosamente,a tris

tesa dulcíssima,que el l e respira

,e a ine la ii col ica c ir

cumstancia de se r o ul t imo que cah io,como uma p e

rola sol ta,da l yra quasi partida do poeta moribundo .

E is O soneto :

N a quadra azul da mocidade, a genteParte r indo e cantando, estrada fer a,G or ge ia a cotov i a emcada aur ora,Suspira a no i te o roux inol dolente .

Aí ! D i toso O que parte alegremente ,O q ue não v íO app r ox imar —se a horaEmque e força volver atraz . emboraN os arfe o se io de i llusões fremente .

.1 76 GONÇALVES CRESPO

Para t i a inda ex iste o sonho alado,A fé robusta, e a cand ida alegr ia

Que nos chovemdo céu claro e estrel lado .

N unca sejas forçada, flôr, umdiaA erguer , chorando, o braço fat igadoEmbusca da ventura fug idia .

A Morte não. consentiu que ell e subisse onde podiasubir

,que el l e se affi rmasse como se poderia ter a f ti r

mado . N o emtanto todos os que teem este sexto sent ido divino pelo qual

,me smo a pe z a r dos desenganos

que a vida encerra,vale a pena em t odo O caso ter

vivido,hão-de l er com int imo prazer os dois vol umes

do encantador poeta de Alg uem.

É verdade que el l e não respondeu a todas as interrogações que O nosso e sp í r ito se achou no direito defazer- l he

,mas não respondeu porque o tempo l he não

deixou cumprir asmil promessas que a sua mocidadenos fizera .

E hoj e que el l e partiu para o paizmyst e r ioso d'onde

ninguem vol tou,e para onde na tristeza

,ou na alegria

,

c onvergem os nossos o lhares anciosamente p e r scr utador es

,voam as nossas saudades n'um ímp e to de

lagrimas,eu . releio aquel la soberba e indecif r ave l

S a r a e pergunto amimm esma,se debaixo da forma

e seulp tur a lmente pagã dos versos, se não abriga umsentido occul to

,um myste r ioso symbolo .

Que ardente espiri tualismo,tenaz e apaixonado

,

na carnal idade apparente d'esse poema !

N OCTURN OS

CON FIDENZA

Pe rguntaste-me um dia a vida que eu le vava,

M imosa e eburnea flôr,

Em antes de te vêr ; respondo-te : sonhava .

O uviste,meu amô r ?

N ão era bem sonhar : as vezes largo e spaço

Ficava-me sorri r

Para os quadr os qué eu via em luminoso traço

N as télas do porvir .

GONÇALVES CRESPO

Presta-me o ouvido,a tte nto , e scuta-me , que rida,.

Os que me l embram ma is

Assim,fi ta nos meus

,6 pomba estreme cida

,

Os olhos te us leae s !

O l ha e ste quadro e vê : o campo a le g re e franco,,

Uma aurora d e abrilI

Da larga e strada a be ira um campana rio branco]O céu profundo ani l .

De uma casa a j ane l la uma cr eança l oura ,Loura como um trig a l

F iando a l uz do sol que leve a sob r edour a

De aure ola ide a l .

Toda risos e festa a doce cre atura

O l hava pa ra mim,

E eu re pe t ia sós : a lcanço—te,ventura !

Se re i fe l i z em fim !

De um ou tro quadro e ntã o recordo-me saudoso,E a l ongo os ol hos meus

Para o quadro ge nti l , o sonho ma is gracioso,

Que me oahiu dos céus !

486 GONÇALVES CRESPO

É moça e é menina : olha r nenhum a inda

De leve a macul ou .

Dorme no se io d '

e l la o amor,a cre nça inlinda

Que De us lh e confiou .

Quando e l la abre,sorrindo

,as pal pebras franj adas

,

Ficamos a pe nsar

N os myste r ios do ceu,nas cousas ignoradas

Que descobre e sse o lha r .

D e ixa que eu me aj oe l he e xtasiado e mudo

C ego de tanta l u z

E que tremulo be ij e o tépido ve ludo

De se us p ésinhos nú s !

E nã o cór a,b em vês

,a candida cr eança !

Antes me i ga sorri,

E e ntre risosme d i z,compondo a e scura trança :

«Pe nsava agora em t i !

«Porque tardaste tanto,o poe ta ? eu t e espe rava

«N a minha sol idã o !

«Vem os segredos v ê r que para t i guardava

«Dentro do coraçã o

O BRAS CO M PLETAS '1 87

C once r tae vossa orche st ra . h annonicas e sph e r as,

No cel ico esple ndor '

Maria e ssa creang a o t r das primave ras,

Eras tu,me u amô r !

1 88 GONÇALVES CRESPO

O VELHIN HO

A . J. CESAR M ACHADO

Aque lle que a li vae triste e cancado

E mais treme nte que os juncaes do bre j o,Foi outrora o ma is be l lo e o ma is amado

Entre os moços do antigo log ar e jo .

N as fi tas d '

esse labio desma iado

Quantas mulhe res tremulas de pe j o

N ã o sorve ram os néctare s do be ij o

Dos t r ig aes sobre O le i to pe rfumado !

1 90 G O N C ALVE S CRESPO

AN IMAL BRAVI O

A M e llº EUGEN IA VI Z EU

Pre fe ri ras um ramo caprichoso

De escolha rara e d e um conce r t o tino,Onde visses o cacto pur pur ino

E os nevados j ardins do Tormentoso .

Emve z do ramo exot ico e ol oroso,G asto recre i o d'esse olha r divino ,Acce i ta

,Euge nia

,e ste anima l fe l ino

,

Que o meu bra ço subj ug a vigoroso .

O BRAS CO M PLETAS 1 9 1

T ive arte s d e o amansar : e i l-o se re no !

Acode a minha voz , e ao meu ace no

Como um j aguar a voz de

Vamos,soneto ! a prumo ! a j oe l he

,presto !

E ai doce Eugenia,do sorriso hone sto

,

A f imbria oscule do vestido branco !

1 92 GONÇALVES CRES PO

AD AG ROS

N ão ta rdes, flô r ; a a lde ia nos e spe ra ,C hovem a r ómas dos fol hudos ramos

Suspe nsa do meu braço, e ia ! partamos !

O l ha—nos Deus da crysta l l ina e sph e r a .

N as manhãs da passada primave ra

C om que de l icia e therea nos amamos !

Iremos Ver os nome s que traçámos

No rude t ronco em que se e nlaça a he r a .

1 94 GONÇALVES CRESPO

A NUVEM

DE TH . G AUTI ER

As roupas deslaçando,e ntra no banho

A languida sultana e namorada

L ivre do pente,OS hombros nú s lh e be ij a

A l onga e l ina trança de sa tada .

Atra z dos Vidros O sul tão a espre i ta

E comsig o murmura : «como é be l la !

«N ing uem a Vê,ninguem! o negro eunucho

«Do haremna tô r r e sol i ta rio ve la

O BRAS CO M PLETAS 1 9 3

Eu a ve j o,uma nuvem lh e re sponde

Do se re no e a l to a zul illuminado— Ve j o—lhe os se ios nú s, ve j o—lh e o dorso ,E o seu corpo d e pe rolas colmado

Fe z —se pa l l ido Ahme hd b em como a lua,

E e rguendo o seu kandja r d e folha rara,

Desce,e apunha la a nua favorita .

Quanto a nuvem. no a zul se dissipara .

1 96 GONÇALVES CRESPO

O JURAMENTO DO Á RABE

A TE IXE I RA DE QUE IRO Z

Bacus, mulhe r d e Al i, pastora d e camelas,V iu d e noute

,ao fulg or das ruti las estre l las,

Wa i l,che fe minaz d e barbara pujança ,

Mata r-lh e um anima l . Baç ú s j urou ving ança ;C orre

,cele ra Voa

,e ntra na tenda e conta

A um hospede d e Ali a g rave e inul ta aff ronta .

Baç ús, disse tranqui l l o o hospede ge nti l ,Vingar—te—h e i commeu bra ço

,eumatare iWa i l . »

1 9 8 GONÇALVES CRESPO

Juro,o che fe tornou

Sou o homem que procuras !

Muh a lh il é o meu nome , eu fui que e sp edace i

«A lança d e t eu fi l ho, e aos pés o subj ugue i !

E int r ép ido f itava o a ttoni to i nimig o .

Amru volve u : É S l ivre,Al lah se ja comtig o !

OB RAS CO M PLETAS 1 99

NUM LEQUE

Amar e se r amado, que ve ntura !

N ão amar,sendo amado

,é um triste hor r Or '

Mas na Vida h a uma noite ma is e scura,

É amar a lg uem que não nos tenha amor !

200 G O N CALVE S CRESPO

OLHOS DE JUDIA

transpare nte olha r das virg e ns da Al lemanh a

Nada um fluido subti l tam ple no d e scisma r,

Que a g e nte cuida ouvir uma sona ta e xtranha

N'um caste l l o do Rhe no em noites d e l ua r .

Flô r do Guada lquivir,gl oria da a rd ente Hespanha

,

S e darde jas,sorrindo

,um t eu lascivo olha r

,

O cre spo, o encape llado e proce l loso mar

Dos dese j os febris o coraçã o nos ba nha .

H . HEIN E

NUMEROS DO INTERMEZZO

A ! Welle L ouise d e Almeida e Albuque r que

204 GONÇALVES CRESPO

Rosas e l irios,pombas

,sol radiante

,

Tudo isso outrora,no fug a z passado,

Eu adore i constante .

E d 'esse amor, que t ive immaculado

Por l irios e aves e subtis pe rfumes,

N em ja me lembro, seductora amante,

Fonte pura de amor, que em t i re sumes

A rosa,0 l i rio

,a pomba e o sol radiante !

GONÇALVES CRESPO

Á luz V iva do cla ro sol radioso

O lóto incl ina a fronte e smaecida,

E e spe ra a noite pe nsat ivo e ancioso,

Rompe a lua,e de rrama a l uz que rida

N a corol la mimosa

Da pobre flôr que se abre enlanguecida.

Pobre fl ô r amorosa !

O B RAS CO M PLETAS

O l hando o céu e a lua até pare ce

Que , em desma ios d e amor,

Treme,pa lpi ta

, có r a e desfa l le ce

A scismador a e enamorada flô r !

GONÇALVES CRESPO

Sobre os olhos formosos

Da minha doce amada

l time i canções que os astros de coraram;l ': e znba lsame i-lh e a b ôcca pe rfumada

Em te rcetos graciosos.

i nh ume ras e stancias de cantaram

S eu r ôsto pe regrinoO ne os jaspe ados l irios escure ce .

Que sone to divino

IÍu re ndi lhara com sub tis lavô r e sS obre o seu cora ção . se e l la o tivesse !

21 0 . GONÇALVES CRESPO

Bem se i que a tua V ida é sem ve ntura ;É-nos commum e sta funere a sorte .

C ã e sobre nós a me sma noi te e scura,

E isto nã o finda sem que che g ue a morte .

S e ve j o n'e sse olhar um rir travesso,

E em teu labio a i nsole ncia costumada,

E o Orgulho inflar teu coraçã o . padeço,

E murmuro : «és como eu,tam de sg ra çada

O BRAS CO M PLETAS 21 1

Bemse i que r is,mas o teu lab io treme

N os te us olhos a z ue s o pranto bri lha

Te ns org ulho, e essa voz suspi r a fe g eme

C omo nós somos desgra çados, fi lha !

!O GONÇALVES CRESPO

S e as flOr e S do b alsedo

Podessem ve r meu pe ito a lance ado,

C omo a l l ivio ao meu aspe ro degredo,

Mandar-me—h iam,das moitas do b alsedo,

De se us prantos o ba lsamo sagrado .

S e os r oux inoe s da floresta

Soubessem quanta d ô r me rasga o se io,

Para,

espancar a mi nha noite mesta,

Mandar-me -hiam,d as somb r as d a floresta

,

O seumai s te rno e e ncantado r g or g e io.

2 14 GON C ALVES CRESPO

Não me sabes di ze r,ó minha amada

,

O motivo,a ra zão

Porque pendem a face desma iada

As rosas p ara o chã o

Não me sabe s dize r porque , no me io

Do vasto prado em flô r,

Das Vi ole tas cãe no roxo se io

Um Véu d e l ucto e dô r ?

O BRAS CO M PLETAS

D i z'-me porque ouço a voz das cotovias

Hoj e l ugubre assim

;É porque e x h a lammor tes e a g onias

As urnas do jasmim“?

'Porque motivo o sol tam claro e puro

De cre pe s se vestiu

Porque um sinistro p e z ade lo escuro

Sobre a te rra cahin ?

Bem se i eu porque ve j o tudo tristeS em l u z e semcalô r .

É que tu, pomba branca ,me fugiste

Meu amor,me u amô r !

2 1 5

2 16 GONÇALVES C RESPO

Disse ram—te de mim fe ios horrores,De imaginarias culpas me criva ram

,

E sobre as minhas last imave is dores

Um negro Véu lança ram!

Dis te nde ram os labios sacudindo

Com grave e se rio g e sto a fronte , e ao

(E'

acr ed itaste—O S tu , meu anj o l indo !)C hamaram-me o Diabo !

2 1 8 GONÇ ALVES CRESPO

N'

aque lla manhã ditosa

O sol mandava-nos be ij os ;Do rouxinol os solfe jos

Suspiravam na ampl idão .

S e me lembro, ai ! se me lembro

D '

esse ample xo demorado,

C omque tu ,meu l i rio amado,Uniste-me ao cora ção !

OBRAS CO M PLETAS

Grasnava O cô r vo agoire nto,As S eccas folhas cabiam,

E uns tristes ra ios desciam

Da plumbea curva dos céus .

S e me lemb ro, a i se me lembro

Da fria e grave mesura

Que , n'

aque lla“ tarde e scura

,

Fizeste ao dize r-me ade us !

1 9

220 GONÇALVES CRESPO

Fôste fie l,no caminho

Doloroso que eu se guia,

Deste-me a le ntos,ca rinho

,

Meu conso l o fôst'e,e g uia .

Deste -me tudo,O consorte

,

Roupa branca e a té dinhe iro !

E ao parti r para o extrange i ro

C ompraste-me o passaporte !

222 GONÇALVES CRESPO

q uanto eu andava viaj ando,mi nha

Noiva g e ntil , o meu th esour o amado,

Julgando que eu tardava e que não vinha,Fe z a pressa o vest ido d e noivado,E um d ia

,ao pé do a l tar, e ntre ga anciosa

A um fô fo p e r a lvilho, a mão de esposa .

O B RAS CO M PLETAS

Nada no mundo a mi nha amada e g uala ;

N em eu se i a que a possa compa rar !

Que doce é o a roma que o seu labio e xha la !

Que gesto lindo ! e que formoso olhar !

Suspende a que ixa,coração t r ah ido

,

De ixas te o céu, do céu foste banido !

GONÇALVES C RES PO

Quando morre re s,fi lha

,

'

ao teu j azigo

Desce re i taciturno e a llucinado,

E abraçando esse corpo de l icado,

No frio marmor dormire i comt ig o .

E tu muda e tu fria,e tu ge lada !

E eu nos meus braços a apertar-te a inda !

E'

nas sombras d 'aque l la noite intinda

C lamo,estremeço e morro, a lma adorada !

226 GONÇALVES CRESPO

Do Norte sobre ummonte ,A l to

,fri o e ge lado

,

Um pinhe i ro isol ado

Erg ue entre o gel o a me r encor ia fronte .

Todo tremulo,O mise ro dese ja

S e r a esbe l ta pa lme ira V i r idente

Que em te rra adusta ode ia a l uz arde nte

Que sobre e l la o imp lacave l sol d arde ja .

O BRAS CO M PLETAS

Das minhas pe nas fi z canções a ladas

De a legre ge i to e j ovia l fe ição,

V i-as pa rti r em doidas revoadas,E vi-as procurar t eu cora çã o .

Partem a l egres,vol tam lacr ymosas,

Pe rd ido o fre sco riso inge nuo e lêdo,

Mas do que viram gua rdam,s i le nciosas,

O ma is profundo e Iug ubre segredo .

GONÇALVES CRESPO

Eu não posso e sque ce r, pe rdão, minha se nhora

Este s laços d e amor custam a desa tar

Eu não posso e sque ce r,ó minha doce au r ora

,

Que subj ugue i t eu corpo e essa a lma S ingula r

Teu corpo,ai ! o teu corpo esbe l to

,moço e branco

Já foi meu, já foi mas n'e ste i nstante , fl ô r ,Da tua a lma prescindo, e e scuta

,se re i franco

,

Basta-me a que possuo, a h ! basta meu amõ r !

23 0 GONÇALVES CRESPO

XV I I

É doming o : o bur g ue z de ixa os aspha ltos,

Dando o braço a bur gue z a ;Procura o campo

,e,ao ve l-o, e xclama aos sa l tos

«O'f i lha

, que l i nde za !»

E pasma do ve rdor febri l , romantico ,Da mú rmur a fl oresta ;

E a sua l onga ore lha absorve o cantico

Da passa rada em festa .

O B RAS COMPLETAS 23 1

Eu que não sa io, e scondo a ge losia

C omne gros cortinados,

E recebo a visi ta,em ple no d ia

,

Dos e spe ctros amados .

E ag ne l le Amô r que eu Vi morre r outrora,

No meu quarto appa r e ce !

S enta-se ao pé de mim,be ija-me e chora

,

E treme e desfa l lece !

GONÇALVES CR ES PO

XV I I I

Rompia manhã,rompia

A leg re como um trinad o,

E eu ia triste e ca lado,

No me io d'essa a le gria,

Por e ntre as flores do prado .

Rompia a manhã,rompia .

Ve ndo—me,as flores do p r ado

Ma is as rosas do S ilvedo

C ochicharam em se gredo .

E e rg uendo os olhos, a medo,

G ONÇALVES CRESPO

N a tua face a rde nte e ave lludada

Encade ia—se l uz do quente Esti o,

Mas no t eu cora çã o,ó minha amada ,

Habita o I nve rno e nrege lado e frio .

Mas quemassim te vê be l la e formosa,

Ve rá ma is tarde o Inve rno torvo e fe io

N'

e ssa tua g e nti l face mimosa,E o rubro Estio no teu branco se io !

O B RAS CO M PLETAS 23 5

No mome nto do a deus succede que os amantes

S e abra çam,a chorar

,com vozes solucant es .

Força,e força partir ; a mão pre nde-se a mão,

E uma infinda triste za i nunda O coração .

Pa ra nós,meu amor

,n '

e ssa hora d e ag onia

N ão houve o pade ce r que as a lmas ex cr ucia

Foi grave o nosso a d eus e frio,e só agora

É que a Dor nos subj uga,e Ang ustia nos devora .

23 6 GONÇALVES CRESPO

Sonhe i : d e novo suspirava o ve nto

Das t i l ias sob a cupula odorante ;E como outrora ouvia o j uramento

Do t eu amô r constante .

Que protestos d e amor n'e sse momento !

Mas na fe bre dos be ij os que me dêste

Como pa ra g rava r t eu j uramento

Emme us dedosmorde ste !

23 8 GONÇALVES CR ESPO

XX I I

C hore i : sonhava e e r a comt ig o, estavas

Morta nº

um cemi te rio,fria

,fria .

E,ao de spe rtar

,se nt i que o pranto , em lavas

,

De me us cançados olhos e scorria .

C hore i : sonhava e e r a comt ig o, rosa ;Havia S -me sem dó

,abandonado

E,ao de spe rta r da noite torme ntosa ,

T inha o r ôsto d e lagrimas banhado .

O BRAS CO M PLETAS

C hore i : sonhava , e e r a comt ig o, ó l inda !

Di zias-me,a S O I TI I

' «como eu t e adoro !»

Despe rto,e l ogo I I uma angustia infinda ,

Eis—me a chorar de novo e a inda choro .

23 9

240 GONÇALVES CR ESPO

XX I I I

Ba t ido do torve l inho

O bosque pa lp i ta ao açoi te

Do ve nto outona l ; é noite .

Monto a cava l l o eme tto—me a caminho

E este inquie to pe nsamento,

E e sta phantasia e rrante

Levaram-me n'e sse i nstante

Ao t eu virgine o e candido apose nto .

242 GONÇALVES CRESPO

XX IV

Eu e nte rro as cançõe s d e amor e O fe l ama rg o

Do meu triste sonhar

Que ro um ca ixã o profundo, imme nso, vasto e la r g o ;Depressa

,ide-o busca r !

Um ca ixã o formidando,um fére tro-porte nto

,

Que sob r e e xceda e ve nça

O pezo sobre humano e o e norme comprimento

Da ponte de Mayença .

OBRAS COMPLETAS 243

Traze i-m'

o semdemora ; eu h e i-d e ench êl-o embreve ;Ve re is a p r omp t idão.

De He ide lbe rg o tone l se rá pequeno e le ve

Ao pé d '

e sse ca ixã o .

Doze gigantes que ro,o aspe cto fe i o e rudo

,

E d e um Vigor sem conta,

Que me façam lembra r C hristovam,o membrudo

Que em C olonia se aponta .

G ig antes, b alouçae o fére tro luctuoso !

Vamos ! ag ora, ao ma r !

C ova maior existe ? Ab ysmo assim grandioso

Diffici l é d e achar .

Sabe is porque eu dese j o um fére tro assim larg o,De vastas dimensõe s ?

É que ente rro, infe l i z , O amõ r,O fe l amargo

Das minhas illusões .

246 GONÇALVES CRESPO

O purpure o tape te aos olhos nos reve la

Entre as garras d e um tigre anciosa uma g aze l la .

Re tra tos em redor : olhemos o prime i ro

No Tór o as mã os de Aff onso o a rmar am cava l le iro .

Er a Arcebispo aque l le : e sta foi aç afa ta .

Que fre scura sensua l nos labios d e e scarla ta !

O lhos revendo o a zul que sobre a Ita l ia assoma

Em f inos car acóes,

l oura e ondada côma

C ol lo robusto e nú : cabe ça t r iumphante

C onsta que ce rto r e i . passemos .ade ante !

Este, que Vês

,morre u n'

um a fri cano a rea l

Por ving ança crue l do aspe ro Pomba l .

D '

esse olha r na e xpressã o infinda e inena r r ave l

Desabrocha uma dô r profunda e inconsolave l .

B RAS C O M PLETAS

De fronte,uma donze l la , o rosto me ig o e a f fl icto

,

N um e x tasis adora o pa l l ido p r oscr ip to .

O teu sonho nupcia l,franzina morgadinha

Tam cedo se de sfe z,ó míse r a e mesquinha !

No bure l e sconde ste O viço e a formosura ,E de smai aste

,flô r

,no chã o d e uma clausura ! .

Repa ra nos d esdens do fô fo conse l he i ro ,

Que sorridente aspira a fl ô r de um jasmine i r o !

Em canones doutor : no Paço foi b emquisto :

O rna-lh e o pe i to a cruz d e um habito d e C hristo .

Esse outro comba te ndo as portas d e Bayona,

C omo um bra vo, a lcançou a ruti la drag ona .

V ibra flammas do olhar ; cabe ça e re cta e audaz ;I l lumina—lh e O r ôsto gloria d e um g ilva z .

247

248 GONÇALVES C RESPO

Assist imos,ao Vel-o, as pugnas ca rnice iras,

E ouvimos o clangor das musicas gue rre i ras .

No antiqu íssimo espe lho, a sombra das cort inas,

Re fl ecte-se o p r imô r d e a r g enteas se rpe ntinas .

Sob o espe l ho se ani nha um cravo marche tado,

M imo outrora da casa,e pre nda de um noivado .

Ao lado um cofre e nce rra , em amor ave l ninho,Antiga pa rt i tura em ve lho pe rgaminho .

Uma noite e xte ndi a musica na estante,

E O cravo suspirou . n'

aque lle me smo instante

Da e burnea pa llide z doentia do teclado

Manso e manso evolou—se o aroma do passado .

E Vi desce r do quadro a languida ace t'

a ta

Que , ao discre to pa l lor d as lampadas de pra ta ,

250 GONÇALVES CRESPO

O C OVEIRO

A ALBERTO B RAGA

E l le e ntrou cabisba ixo e si lencioso

N a immund a tasca,e foi se nta r-se a umcanto ;

De ram-lh e Vi nho,re cusou

,o e spanto

C re sce u no olhar do tabe rne i ro ole oso .

E l le e r a o ma is antigo e o ma is ruidoso

Dos f r e gue z es da casa : ao obsceno canto

Ninguem pre stava ma is lascivo e ncanto

Ao sommagoado d e umV io lã o choroso .

O BRAS CO M PLETAS 2

Mas o ve l ho sentara—S e distante

Da a legre turba,a Vista lacr ymant e

Me rg ul hada nas chammas do bra zido .

Disse um da roda : espanta—me o cove ir o !_ Morre u-lh e h a pouco a fi lha . dist r ah ido

Volve u da bisca um contuma z parce iro .

51

252 GONÇALVES CRESPO

ADEUS

Uma ve z,n'uma camara e le g ante ,

De um contador no marmore de rosa,

Entre os mil nadas feminis que e xh a lam

Uns a romas subtis que nos emba lam,

Vi uma concha pa l l ida e graciosa .

Se ntira eu n'e l la um som confuso o triste,

C omo o dos sinos em remota a lde ia ;Pobre concha ! morria de saudade

D'

aque lla vaga e triste immensidade

Do ma r que chora na dese rta are ia .

GONÇA LVES C RESPO

NA EG REJA DAS C HAG AS

AO D R . A . A . D E CARVALHO M ONTE I RO

Proxima vinha a nobre C atharina

Da porta principa l da e gre ja,quando

S eu olhar e ncontrou suave e brando

O olha r d e ummoço d e prese nça fina .

E,ao fulg or d

'

esse olhar a rdente , incl ina

A dama o rosto , t imido , có r ando .

Aria—lh e o nive o se io, pa lpitando,

Emdoida e extranha commoç ão divina .

258 GONÇALVES CRESPO

A LEITURA DOS LUS IADAS

A V ICENTE PI N DELLA

Do moço r e i,de fronte , e sbe l to e cava l le i ro

C amões re ci ta ; a C ô r te,si le nciosa

Ante a rubra e xplosã o do cantico g ue rre iro,Admi ra essa Epope ia e norme e prod ig iosa .

Rug e a e le ctrica voz do Admastõ r furiosa ;«N as amuradas canta o a le gre marinhe i ro ;Do Oceano á flô r scint il la a e ste i ra luminosa

Dos pe sados g a le ões do Gama aventure iro .

O BRAS C OMPL ELA S 259

Te rra ! g ri ta o g ag e ir o ; e a praia me lindana

«Desce douda e febri l a gente l usi tana .

Desfra ldam-se os p endões ao claro céu do

Da gloria ante o e sp lendOr o olhar d e El—Rey fulg ura ;O C amara no emtanto

,a lma sombria e e scura

,

No r e i os olhos crava,e ri fe l inamente .

GONÇALVES CRESPO

AN N OS DEPO IS

A B ERNARDO P I N DEL LA

Juncto de um ca tre Vi l , grosse iro e fe io,Por uma noite de l ua r saudoso

,

C amõe s,pe ndida a fronte sobre o se io

,

Scisma embebido n'

um pesar l uctuoso .

Eis que na r ua um cantico amô r oso

Subitane o se ouvi u d a noite emme i o

Já se abrem as adufas com rece io .

Noite s d e amô r e s ! que trovarmimoso !

O B RAS CO M PLETAS 263

ES PHY N G E

Tradum-ão uns versos do Alexandre Dumasescr ip tos num leque

emque estava p in tada uma Esphynge

Que me que re s,ES ph yng e O que procuras diz-m'

o :

S e do poe ta O se g redo inte ntas pene trar ,De sce dos annos me us ao te nebroso ab ysmo,Ve rás o Amor aos Vinte e aos Se ssenta O Pesar .

S im,Pesar

,não d e have r lançado aos qua tro ve ntos

C om prodiga l oucura o ve rbo t r iumph ant e ,A ambição

,o dinhe iro

,os risos e os tormentos

,

E as auroras d e abri l que passamn'

uminstante !

264 GONÇALVES CRESPO

Mas Pe sar de se ntir de ntro emmeu pe i to ag ora ,.

C omo acceso vulcã o em gel os sepul tado,

DO j uve ni l dese j o a flamma que de vora ,E d e não pode r ma is

,amando

,se r amado !

266 GONÇALVES CR ESPO

Fascina,a ttrae

,sed uz

, e OS olhos e xtasia

A impe ria l Vivenda : a sa la é desl umbrante :

Ouro e gemmas sem fim conf undem—se á porfia .

Das lampadas rebrilha o l ume cor uscante ;

N O S t r iclinios e xplende purpura e sca rla ta,

A fina tartaruga e o sanda l o odorante .

Aos angul os da sa la,em primorosa pra ta

,

Erotico e sculp tor g rupos fundiu lascivos,Em cuj os membros nú s volup ia se re tra ta .

Resaltam da parede os sat y r os esquivos

Sob o pampano a le g re : as nymphas, em coreas,

Dançamna riba,em flor, d e arroios fug i t ivos.

Emmarmórea piscina enroscam—se as mur êas,

DO S pat r ícios d e Roma o pabulo d ile cto,Ve zes sem conto

,e scravo

,a li rompeste as ve ias !

Pe ndem ve rdes fe stões do primoroso tecto,Py r r h e ico a li p intá r a umma taga l fol hudo,E um lago cr ystall ino, e ncantador, discre t o .

OB RAS CO M PLETAS 267

Diana ao sol e nxuga as trancas d e ve l udo ,Acte on e spre ita ancioso

, e , O rapida a le gria !

AOS poucos se transforma em ce rvo rama l hudo .

EmM i leto foi t incta a azul tape çaria,

Que nas mesas se exte nde e nos mosa icos dorme ;DO S ve la r ios se e xcôa O a roma que ene b r ia .

A fe sta é no pe ndor : n'

um áure o pra to informe

Eis que e ntra um java l i , formosas gaditanas

Dançam em de rredor . Ulula g rita e norme .

Jorra o Vinho d e Kós pur pur e as espadanas ;Dos convivas na fronte e nlaça—se ve rbena

,

Pre l udiam no emtanto as f r autas S ici l ianas.

Adoudada suspira uma canção obsce na :

Fe rvem be ij os no a r , os se ios pulam,cre scem

E desnudam-se a luz,T ibe rio assim o orde na .

As ma t ronas,ao ve r o duro gesto , obede cem,

E l á passam gentis,d eslisammansamente

DO S marmor es a flôr ; são nuas, endoud ecem!

268 GONÇALVES CRESPO

Um r e t ia r io ne rvudo , e um gladiador va le nte

C ombatem,sã o le ões ; o pallidó ve ncido

M istura o sangue rubro ao Vinho r escendente .

O r a T ibe rio r i Mas subito um gemido

Longo e triste chorou nos paços d e C aprea .

Indagam: ta lve z fosse o gladiad or fe rido .

N esse i nstante Je sus morria na Jude ia !

70 GONÇALVES CRES PO

JOÃ O DE LEMOS

AO V ISCONDE DE P I N D EL LA

N a cidade ge nti l do auste ro e studo

Sobrance i ra ao Mondego soce g ado,Em cuja riba o S ince i r a l folhudo

De r oux inoes suspira g or g e iado,

FOste e rg uido no concavo do e scudo

Pe los moços d e outrora,e ce lebrado

Trovador,ca va l le i ro

,e namorado .

Tempos de glorias ! C omo passa tudo !

O BRAS CO M PLETAS 27 1

No emtanto ás ve zes,na p r ovíncia, quando

A um dOce , honesto e femini no bando

Digo A LUA DE LOND RES,d e re pe nte

Da infancia Volvo a ca ndida Simple za ,E ondulam na minh 'a lma vagamente

Tremulas notas d e fugaz triste za .

272 GONÇALVES CRESPO

JOÃ O DE DEUS

A AN TR ERO DO QUENTAL

Sempre que o le i o, sinto—me captivo

De um não se i que, d e i nfinda suavidade

E e ntram commig o uns l ong e s d e saudade,

Que me de ixam S i z udo e pensativo .

Sonho : qui z ér a , em triste soledade,

Vive r das ge ntes apartado e e squivo,

E e rgue r-me a e sse plane ta primi tivo

Onde resple nda a e te rna mocidade .

!O GONÇALVES CRE S PO

JOÃ O PENHA

A AUGUSTO SAR M ENTO

Ne rvoso mestre,domador va le nte

Da R ima e do Soneto portugue z,

Não t e e g uala a pe rícia de um chine z

N a pintura d e um vaso transpare nte .

Ha no t eu ve rso a musica dole nte

Da gui tarra andaluz a,e muita ve z

Rompe emme io da e xtranha languide z

O si lvo est r iduloso da se rpe nte .

O B RAS CO M PLETA S

No V INHO E F E L traçaste O e scuro drama

Em que soluça e ri,na extensa gamma

,

Teu desgre nhado amõ r,doido eLfa ta l .

Mas se do pe i to ancioso o dardo arrancas,

Teu canto exha la as a le grias francas

De uma rubra Ke rmesse col lossal .

!O

78 GONÇALVES CRESPO

Mas tudo isso passou : agora Só me resta

Das ch yme r as que t ive , uma Visã o mode sta ,Um sonho e ncantador

,d e pa z e de ventura .

É Simple s ; uma a l cova , umberço, um innoce nte ,E uma e sposa adorada

,e nvol ta

,a ne g l ig ente !

De um l ongo pe nte ador na immaculada

O B RAS CO M PLETAS

ODOR DI FEMINA

A ALBE RTO P I M ENTEL

Er a auste ro e S iz udo ; não havia

Frade mais e xempla r n '

e sse conve nto ;No seu cavado rosto macile nto

Um poema d e lagrimas se lia .

Uma ve z que na e xte nsa l ivraria

Folhe ava o triste um l ivro pardacento ,Viram-no desma iar

,cahir do asse nto

,

C onvulso,e tô r vo sobre a lág e a fria .

280 GONÇALVES CRESPO

De que morrera o vene rando frade

Em vão busco as origens da ve rdade

N inguemm'

a disse , e xp l ique -a

C onsta que um b ib liOph ilo comprara

l ivro e stranho e que , ao abri l—o,achara

Uns dourados cabe l los d e mulhe r .

282 GONÇALVES CRESPO

Da ca rre ta em r r dor onde iam os soldados ;De cima dos te l hados

Da r ua,dos portaes

,dos muros

,dos ba lcõe s

C hovem sobre a ra inha as v is impre caçõe s.

E l l a comtudo,a l t iva

,e re cta e de sdenhosa

O l ha tranqui l lamente

Pa ra o revol to ma r da plebe tumul tuosa .

E emquanto aque lle povo inquie to e repulsivo

Ance ia por ouvi r o grito convulsivo

E o de rrade i ro arranco

D '

e ssa mulhe r, e r i abominave lmente,

Um homem Só,o a lg oz , vae triste e re ve re nte .

Pode nasce r ao pé da forca um l i ri o branco .

A carre ta parou . De sce a ra inha . N 'isto

V iram-se uns bra ços nú s

Ergue rem para o a r,a flô r da multidã o,

Uma l oura cr eança , a le g'

re como a l uz ,Suave como o C hristo,

A quem talve z fa l tando em casa a enxe rg a e o pão ,A mã e qui z e r a da r aque l la distracçã o .

O B RAS CO M PLETAS 2

No prime i ro degrau d a e scura guil hotina

A ra inha d e França

Ergueu o olh ar e viu e ssa genti l cr eanca

Le var a mão a flô r d a b ôcca pequenina,

E a tirar—lh e,a sorri r

,um be ij o doce e hone sto .

E e l la que fô r a auda z,he roica e resoluta ,

E ouvira,com d e sdem

,d a plebe a inj uria bruta ,

Ante a e smola i nfantil,graciosa

,d *e sse ge sto

,

C horou .

«C horou,emfim! A infame succumb iu ! »

De entre o povo uma vo z se lva tica rug iu .

83

284 GONÇALVES CRE S PO

A VIUVA

A SENHO RA D . M ARGAR IDA STREET

Fór a d e portas Vive . É Si lenci osa

A modesta Vive nda em que e l la habita,

Ali correu-lh e a Vida b onançosa ,A l i golpe ou-lh e os se i os a de sdita .

Raro d e quando em quando uma visi ta

Novas lh e tra z d a Vida tumul tuosa,

E e l la sorrindo a furto,d escuidosa

,

No azul os olhos em S i lencio ti ta .

286 GONÇALVES C RESPO

FLOR DO PANTANO

A B ULHAO PATO

N ão h a flô r ma is suave,

De e ssencia ma is e therea

E abriu-lh e a vida a chave

Do V icio e d a M iseria !

É peque nina e séria,

E t em o ge sto grave

Da fi l ha d e um burgrave,

A candida Va le ria .

O B RAS C O M PLETAS

N a sua l oura cdma

Nunca passou o a r Oma

Dos beij os ma te r nae s.

O credula Ignorancia,

Esconde aque l la infancia

O nome vi l d os pa es !

288 GONÇALVES CRESPO

A RESPOSTA DO INQUISIDOR

T IO LuI z D E AL M E IDA E ALB U'

QUE RQU E

A sa la em que medita É l-R e y e si lenciosa ,Apa ine lad a e fria

,o largo r eposte i r o

Ondula brandamente á a ragem pre g uiçosa .

Á ca thedra re a l um C hristo sobrance i ro

Mesto,l ivido

,nú

,fe rido e e nsanguentado

Exha la sobre o se io o a le nto de rrade i ro .

GONÇALVES CRESPO

É fana tico e audaz ; commão d e bronze OpprimeO Sol io

,a Eg re j a , o La r , e os coraçõe s dos crentes ;

Flage l la a sombra e O amor,condemna a l uz

,e o crime

V I I I

Q uando e l le va e passando,as t imora tas ge ntes

Be nzem—se com pavor e param de improviso

As cançõe s j uve nis nas a leas r e scend entes.

Nunca nos labios se us fl orira o a legre riso,

Temcemanuos,j ama is be ijara uma cr e anç a ,

E cr ê subir,ta lve z

,morrendo

,ao Pa ra iso !

N a He spanha , no Pe rú , em Napole s, na França

Pa ira como o S inistro e spi ri to do Ma l ,O ne gro inquisidor

,fe roz como a Vi ngança .

O B RAS CO M PLETAS 29 1

S isto quinto,o crue l

,fize ra—o carde a l ,

E a He spanha pôd e ve r com assombroso e spanto

Juncto do r e i-panthe ra o inquisidor-chaca l .

E Phil ippe diz ia ao monge no entre tanto :

«Se ntine l la da Le i , piedoso inquisidô r ,«Tu que fa l las comDeus e és padre , e és b ome és sanoto

X I I I

Arranca-me e ste pe zo,a fasta-me e ste h or r ô r !

«Ah ! d iz '—me cardea l se e um Vil

,se é um p r e cito

O r e i que é j usto e ma ta o f i l ho que é tra idor .

E ma is nã o disse o r e i,torvo

,sombrio e a f fl icto .

No emtanto o inquisidor e rgue ndo imp e r tur b ave l

O seu hediondo Ol ha r das lag e as de granito ,

292 GONÇALVES C RESPO

Assim tornou com voz vibrante e formidave l

O p r íncip e , e apontava O l iVid O Jesus,Pa ra aca lmar dos céus a cole ra imp lacave l

O Ete rno f e z morre r o seu fi l ho n'uma cruz !

294 GONÇALVES C RESPO

Zumbe O inse cto na flô r do rosmaninho

N as giestas pousa a abe l ha ebria d e goso

Zunem b e z our os e pa lp i ta o ni nho .

E a fre i ra scisma e có r a,ao vê r

,ancioso

,

Do seu catre virg ine o sobre o l inho

Um p a r d e borbole tas amoroso .

O B RAS CO M PLETAS

NA ALDEIA

A C H R ] S TOVAM AY RES

Duas horas da tarde . Um sol a rde nte

N os co lmos da rde j ando,e nos e ir ados .

Sobre leva aos sussurros aba fados

O grito das b ig or nas e st r id ente .

A tabe rna e vaz ia ; mansame nte

Treme o loure iro nos humb r aes pintados ;Zumbem a porta inse ctos va r ie g ados,Envolvidos do sol na luz treme nte .

296 GONÇALVES CR ESPO

Fia á sole i ra uma ve lhinha : o fi l ho

No céuma l acordou d a aurora O bri lho

S ah iu para OS cançaços da lavoura .

A nó r a lava na ribe i ra,e os ne tos

Ao longe correm semi—nus,i nquie tos

,

No ma r ondeante da se ara l oura .

298 GONÇALVES CR ESPO

Não dorme quem t em amó r es,

E o t eu post igo é ce rrado !

De ixa O le i to pe rfumado,

E O trave sse iro d e flore s,

S e que re s que eu acredi te

! minha pa l l ida amig a ,

N as pa lavras d a cantiga

«N ão dorme quem t emamô r es !

Por isso eu Vélo cantando,

E esta guitarra suspira,

E O meu coraçã o de l i ra

Mal vema lua apontando .

E que , á noi te , l irio branco,Os astros guardam se gredo

Dos be ij os dados a medo .

Por isso eu velo cantando .

Que ro Ver —te , como outrora

N '

e sse postigo i ncl inada,

C onve rsando e namorada

A té ao raia r da aurora .

Um lenço posto no l iso

Dos te us hombros jaspe ados,Os cabe l l os d est r anç ados .

Que ro Ve r -te como outrora .

O B RAS C OMPL ETA S

N ão t e assustes,Julie ta

,

Que a manhã t e encont r o a inda

Bebe ndo a cançã o infinda

Que soluça O t eu poe ta .

C antará d e e ntre os lour e i r os

Uma a le gre cotovia,

Ma l ve nha rompendo O d ia .

N ã o te assustes,Jul ie ta !

Mas dorme a branca The re za,

C e rrada a j ane l la sua ;

Espa l ha—se a l uz da lua

Pe la poe tica deve za .

Entre os S ince i r os da marg em,

Murmura e corre o Mondego,

Que triste za e que soceg o !

Ai ! dorme,dorme

,The re za !

3 00 GONÇALVES CRESPO

A S ONDIN AS

H . HE IN E

AO V ISCONDE DE CAST ILHO I I

N a praia tranqui l la murmuram sonoras

AS ondas do ma r .

E,ao doce das aguas murmúrio pa l re i ro

,

N a are ia dormi ta genti l cava l le i ro

A l uz do lua r .

3 02 GONÇALVES C RESPO

A quinta re be ija—lh e as mã os, e nl evada

sonho fe l i z ,E a Sexta

,com tremula e doce e squivança ,

Pe rfuma-lh e a beca , formosa cr eança !

C om be i j os subtis .

O moço,fingindo que dorme tranqui l lo ,N ã o que r acordar .

de ixa que o abracem as be l las Ondinas,

lang uido gosa ca ricias divinas

A l uz do luar .

O B RAS CO M PLETAS 3 03

NO JOG O C ANNA S

A CA M ILLO C ASTELLO B RANCO

Em garbosos coroe is da Arabia cava lgando

Entram na la rga arena OS prócere s l uz idos ;C or usca a pedraria

,e e S p lend em,

fluctuando,

Dos cocare s a pluma e a Seda dos ve st idos .

A quadrilha genti l dos Tavo r as ardidos,

C om os laca i os da TOr r e um prel i o simulando ,

Te rça ga lhardamente ; o appa r a toso bando

De ixa OS olhos da turba em extase embebidos.

3 04 GONÇALVES CR ESPO

N as j ane l las do paço é toda a fi da l guia

Que jocundo pra ze r, que risos, que a le g ria !

Espe ctaculo augusto,e nobre

,e S ingula r !

O sexto Affonso applaude : emtanto ma l iciosa,

Ma ria d e Nemours,sorrindo

,a ince stuosa !

No cunhado,subti l

,poisa o lascivo olhar .

GONÇALVES CRESPO

Escuta

«A um r e i namorado

S ince ra e fie l amante,

Ao morre r,t inha de ixado

,

Do antigo a ff e cto em pe nhor,

C inze lada taça d e ouro

DO ma is subido va l or .

«O r e i pre fe ria a tudo

Aque l la doce lembrança

Que lh e tra z ia OS a r omas

De umas fl uctuante s comas,

«E d e uns labios d e ve l udo,

Que e l le b eijara em cr e ança .

«Toda a v e z que e l le bebia

Por esse vaso sag rado,«Uma e x ta t ica a le gria

C omo fl or idea l sorria

No seu turvo olha r cançado .

«Um d ia se ntiu-se o pobre

Ma is triste,ve l ho e aba tido

,

Ab raçou—se commov ido

Á taça,o tremulo amante

O BRAS CO M PLETAS

E as lagrimas,uma a uma

,

Deslisa r amn'e sse i nstante

NOS rude s flócos d e e spuma

«Da l onga ba rba fluctuante .

«N '

aque l la hora d e agonia,

«C hamou seus fi l hos e he rde i ro .

«Deu-l he s tudo o que possuia ,«Ouro

,pa lacios

,rique zas

,

O seu caste l l o roque iro,

«E as suas la rgas de ve zas.

Dividiu tudo,conte nte ;

«A taça guardou sóme nte .

«Sentindo fugir-lh e a vida,

«Manda O triste convidar

«Se us pares,fi l hos e he rde iro

Pa ra um fe stimd e rradeiro

No caste l l o sobrance iro

Á S ve rdes aguas do ma r .

Emme io d a fe sta,o ve l ho

Ergue u a ta ça e sorrindo,

Embebido o olhar no infindo,

«Um frouxo canto sol tou .

3 07

3 03 GONÇALVES CRESPO

Emal o canto f indá r a ,

No le ito d a onda amara

A taça d e ouro lançou .

Eram profundos ciume s

O S d '

e sse r e i namorado,

Que nã o fosse a l guem be be r

Por esse vaso sagrado,

E vie sse a conhe ce r

O S ca r iciosos pe rfumes

Q ue o tinham embriagado .

Hontem,a ta rde , be i jando-a

De t eu labio a Viva rosa,

Lembrou-me a historia sing e la

D '

e ssa b allada amorosa ;E de ntro emmim d e repente

Tam e xtranha dô r se nti,

Que n'

um ímp e to demente

De t eu labio húmidoe ardente

C om t ô r vo aspe cto fug i !

Lembrou—me,cabe ça l ouca !

Que se e u acaso morre sse,

Ta lve z um outro sorve sse

Os be i j os da tua b Occa .

3 10 GONÇALVES CRESPO

A NEG RA

AO DR . A . A . DA F ONSECA P INTO

Te us ol hos,O robusta creatura

,

O f i l ha tropica l !

Re l embram os pavô r e s d e uma escura

F l ore sta virgina l .

Es ne gra sim,mas q ue formosos dente s,

Que pe ro las sem pa r

Eu ve j o e admiro em r ub idos cre sce ntes

S e t e escuto fa l lar !

O B RAS CO M PLETAS 3 1 1

Teu corpo é forte , e lastico, ne rvoso .

Que doce a ondulaçã o '

Do t eu anda r, que lembra o anda r g racioso

Das onças do se rtã o !

AS languidas S inhas, ge ntis, mimosas,Despre zam tua cô r

,

Mas i nve j am—t e as formas gloriosas

E o olha r provocador .

Mas andas triste,inquie ta e d ist r ah ída ;

Foges dos ca fesaes,

E no e scuro das ma ttas,e scondida

,

Soltas magoados a is .

N as e ste i ras,a noi te

,o corpo e st iras

E com ancias sem fim,

Levas aos se i os nú s,be ijas e aspiras

Um candido j asmim.

Amas a lua que embranque ce os ma t tos,! negra j uri ty !

A flô r da laranj eira,e OS nive os cactos

E te ns h or r ô r d e ti !

3 12 GONÇALVES CR ESPO

Amas tudo o que lembre o b r anco,o rosto

Que V iste por t eu ma l,Um d ia que sabias

,ao sol posto

,

De um ve rde taquaral .

3 1 4 GONÇALVES CRESPO

N as ondas se a tufár a o S O l radioso,

E a lua succedera,astro maVioso

,

De a lvô r banhando os a lcantis das frag as .

E aque l la pobre mã e,não dando conta

Que o sol morrera,e que o l uar de sponta ,

A v ista embebe na ampl idã o das vag as .

O BRAS CO M PLETAS 3 1 5

AS PRIMEIRA S LAG RIMAS DE É L-REY

A M . P . CHAGAS

O principe morrera , e l ogo os cor te z ãos

Em prantos de rredor do mortua rio l e i to,

Erguem a voz em gri ta aos ceus levando asmã os.

El-R e y , Joã o se gundo, a fronte sobre O pe i to ,C ontempla dos b r andõ e s a l uz e nsang ue ntada

O fi l ho,e a d ô r lh e avinca o grave e duro aspe ito.

3 1 6 GONÇALVES CRESPO

E e is que , a um gesto do r e i, a turba conste rnada

A pouco e pouco S ae,re ina o S i lencio, apenas

C ortado pe l o u ivar long ínquo da nortada .

Sobre o f i lho curvado,imme rso em cruas penas

,

Aque lle r e i S inistro,e ne rg ico O tigrino,

T i nha na frouxa voz modulações se re nas .

E o fi l ho i ne rte e mudo ! e ntã o n'

um desat ino

De i xou—se El-Re y ca ir, ao acaso,n

'

um escabê l lo

E quedou-se pensar no seu a troz de st ino .

Um e norme,um confuso e bronzeo pesadelo

C a iu—lhe sobre o e nfermo espiri to enluctado,

E o suor inundou-lh e as ba rbas e o cabe l lo .

'

3 18 GONÇALVES CR ESPO

O CURA SANTA C RUZ

C ON TO DE A . DAUDET

AO DR . SO UZ A M ART INS

O imp lacave l ca rl ista , o C ura S anta C ruz ,

Que em nome do seu r e i,e em nome d e Je sus

,

Da Nava rra febri l le va do sul ao norte

O odio,a pe rse g uiçã o, o incendio , o e strago, a morte ,

N '

essa clara manhã risonha do N a ta l,

Te ndo sobre o uniforme a ve ste cle rica l,

N a'

montanh a,ao a r l ivre

,a l uz do sol d iz missa

A gue rri l ha que O e scuta e x ta t ica e submissa .

O B RAS CO M PLETAS 3 1 9

C omo um rebanho vil , a um lado,os prisione i ros

Ouvem—no,a t iri ta r

,che ios d e ummedo a troz :

O lham-se mutuamente os torvos companhe iros,

E murmuram: «meu De us,O que se rá. d e nós ? »

Porque emfim toda a ve z que O sanguinario C ura

S e vol ta , e o or emt ts diz,segundo o ri tua l

,

Da sacra ve st ime nta avul tam na brancura

De pistolas um j ogo e a fôrma d e um punha l .

Quando a fina l che g ou O instante , a occasiã o

Em que a missa te rmina,o C ura

,e rgue ndo um braço

,

Grave t r acou no a r e na mude z do e spaço

O clemente signa l da pa z e do p e rdã o .

A missa te rminara .

O cura n *e sse d ia .

C omo sentisse n a lma uns ra ios d e a legria,

De bondade e d e amor,foi—se dire ito ao bando

DO S cap t ivos, e assim fa l l ou c ir cumvag ando

A Vista em de rredor : H e r nmnos,v iva D ios

3 20 GONÇALVES CR ESPO

«C orre ah i que sou mau,fana t ico e fe roz .

Pois em breve ides ve r Como se e ngana,quem

Diz que eu sou o anti-C hristo e que abomino o b em.

«C omo é d ia d e fe sta e é d ia d e Na ta l,

Dou—VO S a l ibe rdade , e não VOS que ro ma l !

Mas have is d e prime iro , e isto , p r omp to e sem custo

De j oe l hos be ija r o pavi l hão aug usto

De El-Re y nosso senhor .

E mandou de sfra ldar

O ca rl ista pendã o,branco como o luar .

Todos logo a porfia a tiram—se por te rra

E um gri to : V iva El-Re y ! echoou d e se rra emse rra .

No emtanto umprisione i ro,ummoço imberbe a inda ,

Firme ficou d e pé , e Ol hava com i n fi nda

Expressã o de d esdem a e xtranha vilania .

Braços postos em cruz, e i ntre pido sorria .

E tu ? » sur p r e z o disse e t ranstornado O C ura .

Padre,volveu—lh e O esbe l to j ove n

, com brandura ,

— Ma ta—me ! aqui me tens ! rio-me d '

e sse panno !

Ao teu r e i não me curvo . Eu sou

GONÇALVES CRESPO

Ah ! quem pôde e sque ce r o seu pa iz na ta l !

Ah ! quem póde esque ce r a be nçã o ma te rna l !

Em distancia a gue rri lha os dous Obse rva . Então

q uanto o padre escuta a tte nto o prisione i ro,

Subito uma desca rg a e stoi-r ã na amplidã o .

Tremem a se rra e o va l,treme O desfi ladeiro .

As a rmas ! O inimigo a sentine l la brada .

De golpe e rg ue-se o C ura , e a j óld r a amotinada

Voa,da ordens

,clama

,emquanto as ba las chovem.

N isto v iu que i nda estava a j oe l hado o j oven !

Par a .

«Que fazes tu ? » inda g a em tom seve ro— Padre

,d iz a cr eança , a absolviçã o espero

E emme io da febri l convulsã o da ba ta lha ,

q uanto rompe e rasg a os a re s a me tra l ha,

V iu-se o C ura depois de abe nçoar,l ige i ro

,

A fronte j uve ni l do he roico prisione i ro,Pe gar d e uma clavina , e dando um passo

,ao

Va rar tranquil lamente O cr aneo do soldado .

O B RA S CO M PLETAS 3

A VENDA DOS BO IS

AO D R . J. DE VASCONCELLOS GUS M Ã O

O ve l ho e ntrara triste : ao pé , juncto do la r ,Estava a companhe i ra , absOr ta , a meditar .

Mulhe r,a fé pe rdi

,fa lle i a toda a gente

,

E ninguemme va le u E e l la com voz tremente

Dize-me,e o b r a z i le ir o ? »

— Esse foi ofp r ime ir o .

3

3 24 GONÇALVES C RESPO

— Bat i,fui t e r com e l le a casa do jantar .

Expl ique i—lh e ao que Vinha . e ntrou a g race jar

«C om que e ntão você que r l ivr a r o seu rapa z ? .

Visinho,

'

t ão mal fa z !

De ixe -me i r cada qua l a sorte e ao seu destino !

«S eu f i lho é ummoce tã o va le nte e mui to digno

«De se rvir o pa i z .

E de scascava um fructo .

— D esa te i a chora r .— Homem não se j a bruto !

A farda não e morte .

E disse ma is e ma is— C ousas d e quemnã o sabe a dô r d e uns tristes paes !

E emquanto o ve l ho punha a vista lacr ymosa

N os b r a z idos,a voz da mã e a f fl icta e anciosa

Pe rguntou : «e O prior ? »— Ne gou

,ne gou tambem

A ang ust iada mã e

Re torcia o ave nta l commão febri l,a rde nte .

No S i le ncio d a noite e ntão d ist inctamente ,Um profundo mug ido,Triste como um gemido

,

Long o e l ongo C horou no lugubre aposento .

3 26 GONÇALVES CRESPO

Que fest iva a legria

O fre quente mene ar das caudas traduzia

Resva lando em seu forte e musculoso flanco !

O ve lh o antigame nte

Ti nha sempre,ao che gar

,uma pa lavra amiga ,

Um dicto,uma cantiga

,

A que sempre ummugido a legre re spondia .

Mas n'

aque l la manhã , si le nciosame nte ,Fa ta l como o deve r

O ve lho foi buscar,a um canto

,uma corre ia ,

E lançou-a a treme r

Dos anafados bois as pontas re curvadas .

E sah i r am os tres.

N O S concavos da a lde ia

C hoviam as cançõ e s das aves namoradas .

No caes ha O moi r e ja r d as fabricas ruidoso ;Fe roz e discordante

Juncta—se a voz humana o a rfa r estrepi tante

DOS va le ntes pulmõe s dasmachinas ing le z as.

O B RAS C O MPL ETAS

Em nove l los,ancioso

,

C olpham as chaminés o denso e o e scuro

Que asce nde e toma o rumo

Do claro e vasto a zul,va zio d e triste zas .

C omo um ce táce o inge nte,enca r voado e fe i o

Um e norme Vap ô r

De outros avul ta emme i o .

Em seu largo conve z a marinhagem canta

E na fa ina febri l as ancoras l evanta .

N'

aque lla e spessa nau,um ve lho

,um lav r adô r

Entre a fa ina do caes,f i ta o dolente O l har .

E que a li de ntro vão os bois,o seu amor .

E aque l la magoa inte nsa

E inenar r av e l dô r

Re sponde a d escuidosa e ge l ida ind iff e r ença

.l ios Homens,e dos C e ú s, e do profundo Ma r .

G O N ÇALVE S C RE S PO

AO RABEQUISTA

EUGEN IO DEG REMON T

Reci tada na noite do 25 de Fevereiro de 1 877no thea t r o de S . João do Por lo

v ede—o ! É tão cr eança ! ó mã e s, olhae-o !

C omo e vivo o ful gor e a rdente o ra io

Que vibra n'

esse olhar !

Fa z g osto ve l-o assim t ão pequenino

Enlevado nos sons do viol ino

A sonhar,a sonhar .

GONÇALVES CRESPO

Soluçou a rabeca ? Ouvi,formosas

,

S ão os ne gros sol tando as last imosas

C ançõe s do seu pa i z ;S em família

,sem patria

,sem amore s

,

Ning uemmi tiga o fe l d'

aque llas dores,T riste raça infe l i z !

Ag ora , como em namorado ance io,

S ae da rabeca um languido g or g e io

Que enleva o coração .

E a saudade repinta-nos ao vivo

Dos sabias o cantico lascivo

N as sombras do se rtã o .

Tudo isso e ma is eu ve j o,admiro e escuto

,

C ommeu ol har d e prantos não e nxuto,

! cr eança genti l ,

Que em ve z d e pe rseg ui r as borbole tas

Ve ns bata lha r no me io dos a t le tas

E honrar o t eu Braz i l !

O BRAS CO M PLETAS 3 3 1

Não presumas, porém, p r od íg io das cr e anç as !

Que basta o fogo , o e stro , a viva inspiraçã o ;É miste r traba l har

,sem isso nada a l canças ;

A g l oria chamarás, se r —t e -ha o appe l lo emvão .

Pois que ! tu cuidarás, cr eanç a ,porve ntura

Que sem lucta r,sofTr e r

,sem hor r idos tormentos

O a rtista pode ria e rgue r aos qua tro ventos

A Epopea,0 Drama

,a Esta tua

,a Pa rti tura ?

Vamos,traba lha pois

,omeu pre coce a rtista

,

Dos pre cip ícios ri,ving a—me o barroca l !

Para o profundo a zul e stende a larga vista .

Eis-t e nos a l cantis E le va—te ao idea l !

GONÇALVES CRESPO

AS VELHAS NEGRAS

A Mme AL INE DE GUS M Ã O

As ve l has negras,coitadas

,

Ao l ong e e stam assentadasDo ba tuque folg asão .

Pulam cre oulas face i rasEm de rredor das fogue i rasE d as pipas d e a l ca trã o .

3 3 4 GONÇALVES CRESPO

Resurge e chora o passado— Pobre ninho abandonado

Que a neve a lagou,desfe z .

E pensam nos se us amô r e s

Ep h eme r os como as flô r e s

Que o sol que ima no se rtão .

Os fi lhos quando crescidos,

Foram levados,ve ndidos

,

E ninguem sabe onde estã o .

C onhece rammuito dono :

Emba laram tanto somno

De tanta S inha genti l !

Foramma cambas amadas,

E ag ora inute is, curvadas,N 'uma ve lhice imbe ci l !

No emtanto o lua r d e pra ta

Envolve a col l ina e ma t ta

E os ca fe sáe s em redor !

E os ne gros mostrando os dentes,

Sa l tam le pidos, conte ntes,No batuque e st r ug idor .

OBRAS CO M PLETAS

No e spaçoso e amplo te rre i ro

A fi l ha do Fa zende i ro,

A S inha sentime nta l,

Ouve um primo r e cem-vindo,

Que lh e na rra O poema infindo

Das noites d e Portuga l .

E e l la avista,e ntre sorrisos

,

De uns l ongínquos pa r a ísos

A te ntadora visã o .

No emtanto as ve l has,coitadas

,

S cismam ao l onge assentadas

Do ba tuque folg asão .

3 3 5

3 3 6 GONÇALVES C RESPO

O RELOG IO

N o a lbum do Edua rdo Burnay

Eburneo é o mostrador : as horas são d e pra ta

Lê-se a firma Br e gue t por ba ixo do gracioso

Re ndi lhado ponte iro ; a tampa e e norme e cha taN *

e l la o esma l te produz um quadro de l icioso .

Repa ra : e is um sa lão : casqui lho ma l ic ioso

Das fe stas corte sãs o mimo , a flô r , a na ta ,Juncto a um cravo sonoro a a le gre vo z desa ta .

Uma fida lg a o escuta ebria d e amor e goso .

3 3 8 GONÇALVES C RESPO

AMORTE DE D . QUICHOTE

AO COND E DE S ABUG O ZA

Bô to o escudo,sem lança

,a co ta e sca lavr ada ,

S ósinho,abandonado e á toa como um ce g o ,

Do cr epusculo a l uz dole nte e immaculada

Entra na sua a lde ia O a l t ivo he roe Manche go .

O tenue fumo sae do cólmo das he r dades,R iemao pé da fonte as frescas raparigas

,

E a clara vibraçã o sonora das trindades

Janctam-se brandame nte as voz e s e as cantigas.

O B RAS CO M PLETAS 3 3 9

E o auda z C anr p eador , O Justice i ro , o Forte ,

Que andara pe l o mundo a combate r os maus .

De fende ndo a Mulhe r, desafiando a Morte,

Do pate rno casa l sentou-se nos degraus.

N os j oe lhos fincando O cotovel o agudo

E no punho ce rrado a fronte re cl inando

Quedou—se largo e S p aço, il lacr ymave l , mudo ,Para O inuti l passado os O l hos a l ong ando .

E a li,na doce pa z da sua a legre a lde ia

,

Se ntiu que o _avassa llava uma triste za infinda,

Quando e sta voz se ouviu : morreu-t e a Dulcinea,

M issionario do Bem,tua missã o é linda

E e l le a ouvir e a scisma r ! A t r e fe g a sobrinha

Be ij a-o, fa l la—lh e , ri , abraça -O , mas o He roe

D'

e st'

a r te lh e volve u «A morte se av isinh a

Le va e -me para o l e ito E onvi l-o p ena e doe .

DO le i to a cabe ce ira o Bachare l e o C ura

Te ntam r esuscitar —lh e os sonhos e as ch yme r as ;

Pintam-lh e o ne gro Ma l t r iumphante , ó amargura !

O fraco aos pés do forte , o b om lançado as fer as .

'

3 40 GONÇALVES C RESPO

C ontam-lh e o frio horror d os car ce r e s sem l uz,

Que nas torres f eudaes pompe ava o ve lho C rime ,Que os cresce ntes do Islam t inhamve ncido a cruz

Que a inj ustiça e r a a Le i . Entã o fe roz,subl ime

,

Inquie to, semi-nú , sinistro o cava l le iro

Bradou como um trovão : «Enve rg uem-me a l origa

«S e l lem-me o Rocinante , ó Sancho , ó escude iro,«Traze—me a lança , presto ! e a minha espada amig a !

Tinha embrazas O olhar, e t rucule nto o asp e ito,

E vibrava em r edô r imag inaria lança .

L ogo depois cah iu do re spa lda r do le ito ,Morto tendo no labi o um riso d e cr eanca !

QUADRO I NTIMO

Quando eu sub i ao teu quarto,

Tép ido ninho ace iado ,

O nde V ive s,ly r io amado

,

E onde mora o meu de se j o,

Morria o sol ; na ca lçada'Tomavam fresco OS Visinhos

C asava—se a voz dos ninhos

Á s que ixas de um rea le j o .

3 44 GON ÇALVES CRESPO

Entrando sente i-me ao pe rto

De t i que e stavas bordando

Mas tu, cr e ança , notando

AS sombras do meu de sgosto ,Disseste : «vejam que modos !«N ão fa l la ! como está Sério !

«N em que eu fôsse um cemi te rio .

E pe ndeste amuada O rosto .

Eu tome i—te as mã os nas minhas

Volve ndo : «escuta,Maria

«Nunca sa ibas a agonia

«Que ás ve zes me rasg a O se io

«Adoro-te mui to,e muito

«E se i que tambemme que res,«És o b e ij o das mulhe re s

,

«Mas soffro por se r t ão fe io

Tu n'

um ímpe to fe l ino

Re t iraste asmã os, que t inhas

Ab andonado nas minhas

É a fastaste—te de mim,

De pois vieste,se re ia ,

E dado umabraço fra te rno

C ommodo suave e te rno

l l isseste : «não fa l le assim!

. 3 46 G O N C ALVE S CRESPO

S ONETILHO

Te ns a doçura casta

De um passaro dormindo .

Teu labi o rubro e l indo

Ide ias v is a fasta .

Em tua fronte vasta

Sole tro um poema infindo .

Be b e r-te o a le nto hasta

Para morre r sorrindo .

0 BRAS CO M PLETAS

C ah iste nosmeus bra ç os

E os astros,dos e spaços

Pude ram Ver -te , flôr,

Ma is pura do que as bra zas

Tão pura como as az a s

DO S Anj os do Se nhor !

3 47

3 48 GONÇALVES CRESPO

Voae meus dias negros,tormentosos

Diante d'

este amor quente o se lvagem,

Que eu vou transpondo uma idea l pa r ag eim

O nde os be ij os são Anj os l umi nosos.

Amante s que g eme is n'

essa voragem

Que O flore ntino v iu,febris, anci osos,

N ão me e nuble is a C e l ica mirag em

Be ixae vive r os pobres amorosos !

3 50, GONÇALVES CR ESPO

ITERUM SARA

Ab re—me os braços teus, formosa Magda lena ,

Que repouse um amante em se i os de a labastr o !

Que ro doido sorve r teus be ij os,assucena

,

N '

e ssa va randa , a l u z do me r enchor io astro .

Ao luar e tão doce O tremulo contacto

Dasmãos d e uma mulhe r que esma ia enlanguescida

Á noite,f i lha d e Eva

, . O amor, lang uido cacto

Desabrocha sorrindo e enflor a-nos a vida .

O B RAS CO M PLETAS

Vê tu que céo azul,o céo tão e stre l lado ;

Esse que ah i se arque ia e esp lende pe la a l turaAfasta do tricl inio o ae re o cortinado

Appa r e ce—me

,6 Sa ra

,e eu morra d e ve ntura !

Sol ta os cabe l l os te us,Niagara e sp lendur oso

Que vae be ij ar-t e a onda a lv íssima do col lo .

A g uitarra sol uça o cantico amoroso

E eu de sma io na sombra,6 Sara

,ó meu consol o !

É ca lmo O t eu ja rdim,na a re ia da a lameda

Em casca tas,de rrama a lua os se us pa lô r e s .

Que me ape rte o col lar dos braços teus d e seda,

C antemos o due tto e te rno dos amore s

Abre -me os braços teus, que ro e sculpi r com be ij os .

Em teus labios d e fogo e se ios d e a labas'

tro

O poema d '

e ste amor insano . O me us dese j os,

Eu vos prante io a lu z do me r ench or io astro

G O N CALVE S CRESPO

MALLA-POSTA MI NHOTA

'

V ínhamos dentro,o p a r ocho d e .

Ummoço l isboe ta

E uma dama genti l, que por signa l

Usava de l une ta .

Ao passarmos no escuro de umchoupa l

Murmura a dama inquie ta««Sahem aqui ladrões . l i n'

um j orna l .

Responde o abbade : «é peta . »

3 54 G O N C ALVE S CRESPO

SEN HORA C ON DESSA . DE SABUG OSA

(N o D I A DO S SEUS AN N O S )

N a quadra a zul da mocidade,a ge nte

Parte rindo e cantando , estrada fo ra ,G or g e ia a cotovia em cada aurora

Suspira á noi te O rouxino l dolente .

Ai ! di toso o que parte a le g reme nte

O que não v iu aproximar-se a hora

Em que e força volve r a tra z . embora

N os a rfe o se i o,de illusõ es fremente .

O BRAS CO M PLETAS 3 55

Pa ra t i a inda existe O sonh o a lado ,robusta

,a candida a le gria

nos chovem do céu claro e estre l lado .

Nunca se j as forçada , flOr , umd ia

Ao e rg ue r, chorando , O braco fa tigado

Em busca da ve ntura fugid ia .

1

1 Foram estes os ul timos versos do p t e la .

Le ram j á Baruch ? pe rguntava Lafonta ine , e nthus iasmado com a le itur a d '

e sse p r Oph e ta . Tinhamosv ontade de pe rguntar aos le itor e s : le ramj á os ve rsose os sone tos d e Joã o Pe nha ?

É possive l que para muita ge nte O nome d '

e step oe ta sej a t ão desconhe cido

,como e r a para o ma l i

c ioso fabul ista o nome d e Ba ruch,e nada ma is S im

ple s e na tura l,te ndo o poe ta publicado os se us ve r

sos n'

um pe riodico provinciano,cuja t iragemnão e x

cedia a oitoce ntos exemplare s .

O r a e ntre O i tocentos le i tores d '

e sse pe riodico haviaduze ntos com ce rte za que odiassem O ve rso . A poes ia nunca teve grande nume ro d e admiradores e de

v otos : os home ns d e sciencia,o povo

,e .os i gnoran

t e s raras ve ze s abrem um l ivro d e ve rsos e,quando

o abrem,fa lamos dos prime i ros

,e quando o nome

d e sse poe ta foi devidame nte chance lado nas re giõe so f ficiae s

,e consag rado pe la Opinião .

3 60 G O N C ALVES C RESPO

A poe sia tema i nda um inimigo e ncarniçado e te rrive l nos prosadores, nos que nasce ram seme ssa fã

culdade , semo dommaravi lhoso do ve rso, n'

aque lles

pa ra quem este não passa d e uma ba g a te la eng r a

ç ada,mas que não de ixa d e se r futi l , quando não

se ja pre te nciosa . N ã o são se nsive is a forma , a h a rmonia

,a graça

,a factura laboriosa e a r tíst ica do

ve rso,e pa ra não passaremcomo inve j osos

,a fl

'

e ctamo prude nte sorriso d e C onr ar t

,ante os ve rsos impos

tos pe la cri tica a admi raçã o e ao applauso d e t odos .

Os grande s escr ip tor e s do movime nto romanticoem França , os que acompanharam e sse movime ntoe ntre nós, mane jaram por e g ua l a prosa e o ve rso .

O ve r so teve por isso n '

essa e pocha grande acolh ime nto

'

e acce ita ç ão .

Hoj e h a tres ou qua tro escr ip tor es com uma indiv idua lid ade accentuada e pote nte ,que não come çarampe lo ve rso

,a nã o se r que escondessem ca ute l osa

me nte a l ong a ore lha be stia l do vulgo as estrofes queoutr'ora pe rpe t rassem em horas d e e nlevo e d e mocidade .

É ta lve z d 'esta peque na pa rti cula ridade , d e os escr ip tor es que hoj e mais deslumbrame de l iciama ou

r iosidad e portug ue za , nã o te rem come çado pe love rso

, que e ste cah iu em tamanho desa ff ecto, o quenã o que r d ize r que a inda não ha ja quemse aventurea p asse ia r pe los squa r es da mode rna cidad e , semre ce i os que o e xpulsem se g undo as prescri ções doPla tã o .

No nume ro dos que t em a inda pe la poesia umcul to e xt remoso e desin te re ssado, sob r esah e comvivo re le vo a fig ura orig i na l d e João .

3 82 G O N C ALVES CRESPO

Á noute,a hora d a ce ia

,ouvia Joã o Penha contra

e ste s e outros casos inauditos e assombrosos paraquem sae d a sua paca ta cidade na ta l , e se vc de r e

pe nte em pa i z de barbaros façanhudos.

N ão podia sahir,nã o podia sosinho e l ivreme nte ,

pe l o va le d e C ose l has,subir ao Pe nedo da Saudade ,

pe rde r-se pe los becos e encr usilh adas antigas d a ci

dade ba ixa, mas O que ning uem lh e podia e storvar,

e r a a consoladora le i tura dos bons l ivros, e e r a n'isto

que e l le dispe ndia a ma ior parte dos prime iros aunosd a sua e stada em C oimbra .

N ão,não e r a nos l ivros substanciosos do sr . Be r

nardino C arne iro,nem nas ponde rosas paginas dos

compe ndios do sr . Vi anso Pre to, que e l le le vava as

horas ap r ove itave is da noute : O que O e ncantava e r aa radiosa le i tura dos poemas de Hugo , d e Byron e doMusse t

, a captivante C omed ia H umana d e Ba l zac, ahistoria fe uda l d e Inglate rra e Escossia vista a trave zd a opulenta imaginaçã o d e W a l te r Scott, a g a le riaa t t r ah ent e e fascinadora do fe cundo e prodigioso papaDumas

,0 O r lando f ur ioso do Ariosto, a tri logia ti ta

nica de Dante,e o de sl umbrante

,colossa l

,e mons

t r uoso t hea t r o d e S h akspe a r e .

Do re ce i o as t r ocas resul tou para João Penha Of icar com a l gumas ide ias pre cisas a re spe i to do p ensamento h umano

,do seu progresso e da sua influen

c ia ; e o se r add iado em a l guns p r epa r a tor ios pe lo sr .

D . . Victor ino,conse l he i ro-cidadão

, (como respe itosae comicame nte chamava h a dias um pe riodico repub licano d e C oimbra ao r e spe itave l e anafado e x—cruzio) e por que jandos va rões d e conspicuo va lo rscientifico e l it te r a r io .

O BRAS CO M PLETAS 3 83

Todas as cousas boas t em um fim; Joã o Penhad e ixou d e t e r medo às troças

,e pouco e pouco fo i

adquirindo ce le bridade pe la Vive za d as re pl icas, pe l ofe i t io caustico dos d ictos

,e ma is que tudo pe la e x

t r avag ancia do seu vive r, e pe la forta le za diamant inad o seu estomago .

N'

aque l le tempo os e studante s levavam em C o hnb r a uma vida tempe stuosa e dissi pada ; C oimbra e r aa amplificaçã o hi lariante do ce lebre quadro d e Velasque z Os bor r a chas : a ave ntura e ntre la çava—se acome za ina

,o amor a orgia ; havia ex h ub e r ancia d e

força e d e mocidade e e r a pre ciso emp r e g a l-a fosseem que fosse . Este marinhava nos e le vad íssimos a rcos do Jardim,

che gava a um a l ta r onde a devoçã ocollocár a um mise rrimo S . Se bastiã o

,a rrancava as

sét tas do corpo e nsang uentado do Martyr e e scre viapor baixo da imagem: basta d e soffrimento ! Outrode scia a cidade ba ixa , sósinh o, desarmava a rondad os solemnes ve r d ia e s, e de sancava coma l impe zad e um possante va rredor de fe ira minhota a mult id ão dos fut r icas

, que fugiam e spavoridos e em a l tobe rre i ro .

Havia revol tas contra os le nte s,t ramavam—se

conspi rações nas l ojasmaçonicas, e scre viam-se pa rn

ph le tos, odes, d y th y r amb os, poemas : nos cenaculos

d iscutia-se,com voze s violentas

,na e scuridã o dos

quartos,a respe ito d e He ge l , Spinosa e Kant ; b e

b ia—se como Marco Antoni o , comia-se como Vit e llio ;e quem passasse

,a noute , na r ua onde morava An

the ro d e Que nta l,e r a quasi sempre int e r p e llado pe l o

poe ta d as Od es mode r na s, o qua l , a cava l lo no pe i tor il d a jane l la

,as pe rnas bamba leantes

,o ge sto la rgo

3 64 GONÇALVES CR ESPO

e p r oph e t ico,os se us revol tos cabe l l os d e e scandinavopa lpitando á Viraçã o nocturna

,pe rguntava e stas e

outras cousas cab a list icas

_ Sabe s quem e r a Manú ? Te ns a l guma ide ia doImmanente Deus se rá d e facto o immenso ma r dasubstancia ?Os tra nseunte s ouviam aque l las vozes

,e, pasma

dos,fa z iam o sig na l da cruz !Joã o Pe nha , pe la sua graça , pe la e x pontane a viva

cidade do seu espiri to,ape sar d e ca l oiro

,e ntrou a

se r admit t ido nos conciliabulos dos acad emicos,e,

ah i,os ve te ranos, tole ravam-lh e as mordentes face

cias,como o sul tão tole ra os i nsul tos e as i ronias

dos de r viches .

Os g rave s doutores na arte d icend i ct cmnand i,ve ndo que e sse ca loi r o e r a d e féve r as

, pe rmit t ir amlh e que passeasse por onde quíz esse , que j ogasse Ob ilha r Onde lhe aprouvesse

, que bebesse onde muitob em lh e quadrasse .

Houve pa lavras d e a zedumeÉ uma l ibe r dade que nunca se V iu !Aca ba ram-se as p r e r og a tivas !

Um ca l o iro !E e ntão os admiradore s de Joã o Pe nha

, os admir ador e s do seu ta lento

,os se us companhe i ros nas

ce ias, que principiavammui tas ve zes na r ua da S o

ph ia,e iamacabar em Santo Antonio do Pe nedo

,que r

dize r — d'a l i a uma le gua, g ri tavam com auctor idade

se nte nciosaÉ ne cessa rio que a mocidade se divirta !

E os cabe çudos ca lavam-se !

Passados os tempos d iff ice is, Joã o Pe nhama t r icu

3 66 GONÇALVES CRESPO

— Fui eu que escorre gue i,responde u O assara

.p antado C a rva lh o , que subi ra nã o se i por que artepe la ribance ira íng reme e r e sva lad iça . Por e sta éque eu não e spe rava . Eu que a trave sse i O At lantico

,

que te nho pe rcorrido todos os ma re s, estive a piquede me a fogar n'esta poça d e lôdo .

Joã o Pe nha ouviu e ste dize r lamentoso,abanou a

cabeça medita t ivame nte,e,tomando uma re so luçã o

vio lenta,dirigiu-se d e novo para a tabe rna . O tabe r

ne i ro e stava á porta .

Viu o que succedeu ? i ndagou Joã o Penha .

Vi,sim se nhor .

Pois,meu amigo

,e ntre nós . o vinho acabou . .

E nunca ma is se ouviram aca loradas discussõe ssob as Ola ias em flô r do Lux embur g o , a fre gue z iafugiu d '

aque l le l ogar como d e umsi t io ne fasto,e Joã o

Pe nha,quando p or a l i passava , repe tia sempre , pon

do os dedos em cruzEu t e esconj uro

,ma farrico !

O Homem do G a z ficou sendo O ce ntro,o ponto

d e re uniã o d e todos os moços, que ma is se dist inguiam pe l o ta le nto

,pe la i llus t r aç ão e pe la ve r ve . N a

sa la do Homem do G a z ap pa r e ciam, e ntre outros,Be rnardino Machado , Marça l Pache co , J . Frede ricoLaranj o

,Jul io de V i l he na

,Augusto Rocha

,Te ixe ira

d e Que iroz, (Bento More no), Gue rra Junque i ro, o

poe ta do D . Joã o , S imões Dias, o prove nça l das Peuiusula r es, C andido d e F igue i re do, O pintor dos Quad r as camb iante s, Lui z d

'

And r ad e , o insigne caricaturista

,Eduardo C abri ta

,inge nuo como uma cr eança ,

borracho como S i leno,poe ta

,e t ão a rtista , escou

O B RAS CO M PLETAS 3 67

dido e esquecido hoj e n'uma a lde ia do Alemtejo, Alves d e Moraes,

'

o fe roz trasmontano que escreveuum l ivro socia l ista Mo r te á mo r te

,Barre to

,possuidor

d'

um nariz apop le t ico, que d iscr e te ava sobre tudo e

much a s cosa s ma s,sobre musica

,sobre pa tholog ia ,

sobre armaçã o d e navios,sobre astronomia

,sempre

com a mesma voz ve lada,sumida e discre ta

,O saga

cissimo Se rgio de C astro . A lbe rto Braga,umconve rsa

dor impag ave l ,O b r a z ile i r oFranciscoMach ado e o p a iC arva lho , antigo gove rnador civ i l do Funcha l

, que

i ndo visi tar um ne to a C oimbra e tencionando demor a r -se sóme nte dois dias

,ao se r apre sentado ao S y

ned r io, t a l gosto e tanta pilhe ria lh e achou, que e r

g ueu a te nda em C oimbra,e por l á andou a rir

,a ri r

,

a t é que morre u .

Foraste i ro que chegasse a C oimbra e trouxesser e commendaç ã o pa ra qua lque r dos ind iv íduos a tra zmencionados, e r a , na noi te do mesmo d ia , apre se ntado no syned r io .

Que d e ge nte que vimos a l i ! Diploma tas, cone

g os, j orna l istas ce lebre s, vene r ave is banque i ros, ne

g ociant es sisudos, t itula res, cantore s estrange iros,o

ce lebre He rmann , o va lente He rcule Napol i , o marido da Volpini , o diacho !Uma noi te foi a l i apresentado umpadre da Be i ra ,

que descera d as suas nevosas montanhas, para i rpregar a le i d e C hristo aos se lvage ns dos se rtões deAfrica .

Quantos se rmõ es le va o senhor p e rguntou-lh eJoã o Penha , de pois d e travadas as prime i ras palavrasd e apresentaçã o .

— Se rmões ! N ão levo nenhum

3 68 GON C ALVES CRESPO

Pois fa z ma l . É pre ciso que os leve,e cousa

que se ve ja . Eu sou d e Brag a , e nãosou profano nasagrada t heolog ia . App a r e ça ma is ve zes e conve rsa remos a t al re spe i to .

O padre ve i o uma, duas e tre s ve zes : gostavad

'

aque l las discussões, sabore ava—as, foi adiando O d iada partida ; despe dia—se hoj e e vol tava ámanh an, a trah ido e fascinado , como umanachor e ta q ue d e re pe ntese visse n'uma orgia asia tica .

Passados dous me ze s partiu e ff ect ivamente , levando duas duz ias d e se rmõe s

,dictados por Joã o

Pe nha .

E digamdepois,repe tia va idosamente o poe ta ,

que eu não Ooope re i para a civ il isação !

Er a na sa la do Homem do G a z que se discutiamos ma is a rduos problemas, que se fa zia a cr ítica dos

l ivros apare cidos e dos a rtig os j orna l ísticos, e que seinve ntavam as ma is p a r adoxae s e e xtraordinariastheor ias a re spe ito d a Arte , da Scie ncia e dos C ostu

me s. Havia a li estudante s d e todas as faculdades, ju

r istas,ma th ema t icos

, ph iIO S Ophos, the ologos e medicos, quasi todos premiados. C ada qua l va rria a sua

t estada,conforme podia, e conforme sabia .

Joã o Pe nha,e nvol to n

'

um comprido e amplo casaco couleu r d e mu r a ille

,comumbonne t bungaro na

cabeça e as mã os a traz das costas,cortava diagona l

me nte'

a sa la com os se us passos solemne s e grave s .

De v e z em quando parava,para ouvir ma is a tte nta

me nte a discussão , e dava a sua sente nça . Pre fe riaa todas as discussões as que ve rsassem sobre the ol ogia e sobre medicina , e tinha a va idosa pre tensã od e dize r sempre a ul tima e de cisiva pa lavra a ta l

3 70 G O N C ALVE S CRESPO

O poe ta,contempla t ivo

,e como que possuido d a

sensaçã o ínt ima de umgrande factomyst e r ioso,murmurava para o mang e r icão :

O lha O borracho ! C omo e l le se pô z ! como quemdi z : se não fosse o v ício a inda a estas horas e stariascom vida

,ladrã o !

O Homem do G a z , um la tag ã o como uma s casas,adorava Joã o Penha ; t inha sido pa tule ia , or ár a emclubs turbule ntos, e gostava de re corda r e ssas epo

chas gloriosas d e lucta . Ouvia d e longe,da sombra

do corredor,as momentosas discussões que se t r a

vavam na sa la . Quando pediam V inho,e havia con

te nda lit t e r a r ia ou re l igiosa,e ntrava si le ncioso

,grave ,

che io d e re spe i to, fa ze ndo pequenos gestos amigave is aos que a inda não ti nha visto n'

aque l la noute ;nã o que ria pe rturbar a discussão , diz ia .

Havia uma noute , sobre todas solemne , no anno,em que e l le de ixava a sua habitua l e re spe i tosa concent r aç ão : e r a na noute do a cto de Joã o Pe nha . N '

e ssa

noute associava-se a conve rsa , i ll uminava—a com os

episodios da sua coraj osa mocidade,e honrava a

fe sta com se is g a rra fas d e um vinho pode roso e an

t ig o .

Foi n *uma d '

e stas noute s que se travou o famosodue l l o do Joã o Pe nha com Gue rra Junque i ro . O casofoi assim: o futuro poe ta da Mo r te d e D . Joã o che

g ár a d e L isboa havia dias, e narrava os e pisodios daj ornada . C ontava ch istosamente as ave nturas d asua pe regrinaçã o a Va l d e Lobos

,a sua e ntrevista

com o vene r ave l sol itario, e descrevia com grandeabundan'cia d e te rmos picaros as manhas da a l imar ia que O levou a pre sença do emine nte historiador ;

O BRAS CO M PLETAS 3 7 1

depois fa l ou dos li tte r a tos d e L isboa,d e um ce lebre

passe io a C i ntra .

Reparou—se entã o que Joã o Penha , curvado, comO rosto unido a parede e screvia na ca l .

Ergue ram-S e todos,e ap p r ox imandO-se do poe ta

leram as duas seguintes quadras :

I amcaminho de C intra,

Montados numsó jumentoUmva te e umdandy pel intra,Soltando canções ao vento .

Para o burro ; e como chumbo ;Diz-lhe o bardo gambias pôdr es !Responde o triste ; succumbo

Sob o pezo de taes ôdres.

Gue rra Junque i ro morde u o be iço , mas nã o r e s

p ond eu : e vae O

'

João e rompe com outro bote :

Junquei ro, que vens de junco .

Tu que és passaro b isnau,

N ão abres O b icoatluncoPo is não me sent iste o pau?

Espe ra que eu te ensino, bandido ! murmu r aJunque iro

,e repl ica

O Penha borrachoCorria cantandoNo dô r so de ummacho ;Mas e is senão quando

3 72 GONÇALVES CRESPO

A besta o estiraN a l ama da praça,Quebrou-se-lhe a taça,Quebrou-se-lhe a l yra,Quebrou-se-lhe tudo .

E o pobre O l iveira !

Só não d i z asneiraQuando fica mudo .

João Pe nha estava em guarda,aparou O g olpe , e

re spondeu

Afinaste a veia chata,Bebeste o cºpo de umbor co,E a cidade estupefactaOuviu o grunh i r de umporco .

Inda João Pe nha não acabara e ste ul timo ve rso ej á J unque i ro come çava a e screve r

,furioso

,por d e

baixo d a quadra do adve rsa rio

Porco és tu,meu animal

,

Porque as vermelhas cançõesQue sacas do teu bestunto,S ão vermelhos salpicõ esN ão são .versos, são presunto.

A ga le ria aplaudiu ; ouvindo e stes applausos, JoãoPe nha rug iu ameaçador auiente

O nome todo do poeta é João Penha de O l ivei raFortuna .

3 74 GONÇALVES CRESPO

para que não vie ssem e xtranhos, como"ordinaria

mente vinham,d e d ia

,le r os ve rsos, e p r ofana l

-O S

com o seu riso a lva r . Foi a expl icaçã o dada pe l o hondoso gigante .

E d '

aque l le modo p erde ram-se para sempre os

e ngra çados e p ig r ammas, as sat i r as e asmagni ficas erisonhas carica turas fe itas pe l o Lui z d e Andrade

,e

por José C ach apuz ,— um moço viva z e d e ta le nto,

que morava a be ira do Mondego , n'

um caste l l o d esmante llado e em r uínas

,ao pé do qua l o ca s te llo d a

mise r ia descri to por Gauthie r e r a um maravilhosoAl hambra . Todos e sse s ve rsos a legre s e moços d esappa r ece r am,

sumiram-se d e todo ; a l guns porémsobre vive ram como O h ymno que vamos transcreve r,e cuja historia e e ng raçada . C e rtos academicos const itui r am-se em re publ ica

,e qui z e r am um h ymno.

Dirigiram—se a Gue rra Junque iro, que , andando aba r

bado não se i com que traba l hos, p r Opõ z o negocio aJoã o Penha , ao e ntrar da aula .

Pr omp to, disse JOão Penha ,mas pe l o pre ço quesabe s.

— Qua l pre ço ? ! disse Junque iro, fazendo-se d enovas .

S e is v intens cada quadra . É o pre ço que t e leve ipe l o h ymno da ph ila rmonica d e V i l la Re a l d e SantoAntonio

, do Alga rve .

— Vá,vá ! Mas a pag ar no pr incíp io do me z ; a

somma é importante .

Nada : hade se r paga e j á . R ubís sur l'

ong le !

-Homem,levo—te o dinhe i ro a tarde .

— Hade se r quando eu te e ntre g ar os ve rsos ; mão

OB RAS CO M PLETAS 3 75

por mã o,como os rapaze s . Bemsabe s que nã o confio

em t i .Junque i ro lançou uma d e rrama pe lo curso e a

sabida da aula pagou O h vmno . E i l-o :

O vós q ue do canto sois velhos f r egue z es,Ouvi d'

estas lvr as o mel ico emprego !N ós sômos as gemas, os b i fes ingle z es,Os paios das fi lhas de claro Mondego .

Sorr i—nos a vida nos cál ices che i osDos r oixos falernos das parras da Beira :Sorri-nos a Ceres dos tumidos seiosSorri—nos dos bosques a Venus l ige i ra .

N os mesics papy r os da sciencia modernaA droga se encontra que ao somno conv i i a ;Queimemol—os todos que só na tabernaO s l ivros se encontram da sciencia da vida .

Ao vento os cabel los ! por montes e val lesC orramos no passo das gregas chor êas !Bachantes das praças rufa i nos t imbal es !Abri -nos as portas

, gentis G alathêas !

Este h ymno foi posto emmusica e e r a voz e ado

t re s ve ze s por d ia,or a as j ane l las do predio em que

habitava a republ ica,or a no me io d a r ua

,or a no a l to

d a montanha do Pio .

A l guem,pa ra O pe rpe tua r

,e screve u-O na pa re de

d a sa la do Homem do G a z,e d a pa rede passou para

a carte ira d '

um curioso .

3 76 GONÇALVES CRESPO

Joã o Pe nha dominava e ste collosso do Homem doG a z

,como um co r na c domina um e lep hante . Fél-o

passar,gradua lme nte , d e pa tule ia ing e nuo e incon

sciente a repub l icano , d e republ ica no a socia l ista,

d e socia l ista a pe trole iro,d e pe trole iro a a theux

O Homem do G a z ouvia d'

estas e d e outras :Fa lava—se na re ce nte obra d e V . Hugo a L enda

dos S eculos. Uns diziam b em,outros mal

,d a ul tima

ma ne i r a do radioso M igue l Ange l o da l it te r a tur a mod e rna . Aos que i nve ctivavam Hugo

,pe rg untava o

João— Tens visto um cão passar j unto do monume nto

d e um grande homem? Te ns reparado no que e l lefa z O mesmo que tu fa ze s, sevand ija ! a l ça a pe rnae humede ce O pede sta l . Eu a i nda hoj e , ao ler a L endados S e ca les

,ri , chore i , d e i uivos, d e i pinchos de or

g ulho, d e a le gria e d e j ubilo . Digo-vos ma is ; se hoj emorresse — o H omem do G a z adiantava—se para ouvi rme l hor — e che gasse aos pés do Padre Ete rno, haviae l le de pe rg unta r-me O que havia d e novo pe la te rra .

A L enda dos S eculos ! responde ria eu.

E que ta l ? diria o Padre E te rno .

UnicoQuem é o auctô r ?

Vi ctor Hug o !Pois olha

,expl icaria desvane cido o Jui z Supre

mo, esse rapa z é meu f i l ho .

—E a inda ha , tornaria eu,quem dig a que os f i

l hos nã o são ma is i nte l l igente s que os paes !O Homem do G a z re t irava para a sombra medi

tabundo .

Ah,quando este bom gig ante do Homemdo G a z

3 78 GONÇALVES C B ES PO

b e r ne i r o . Nunca desmanchava a sua gravidade : r iapoucas ve ze s : diz ia sómente as pa lavras precisas

,

me nos a Joã o Pe nha,com quem de saba fava a r e s

pe i to da pouca ve rgonha que ia por e sse mundo, ed e quem apre ciava os chiste s e os ve rsos

,a ponto

d e t e r a cabece i ra da cama,n 'uma rica moldura

,O

sone to que o poe ta lh e off e r e ce r a no seu annive r sa

rio .

T inha frequ entado O prime i ro anno d e th e olog ia ,fôra negociante

,fa l l ira honradamente

,e pa ra sus

te ntar a nume rosa fami l ia,come çou a dar d e ce ia r

aos e studante s .

Eram b ar a t issimas e ssas ce ias,e d e um sabor

de l icioso,sobre tudo no tempo d a lampre ia .

O C onse lh ei r o t inha a ve ia , espe cia l idade,o que

se chama dedo,pa ra o pre paro d

'

e ssa i guaria . N inguem a fa zia me l hor em C oimbra

,nem no C a r ól lo

,

nem no C a ste l la , nem no Pa ço do C ond e , e ma is e r ao Pa ço do C ond e a prima z

,em antiguidade

,d as hos

p eda r ias conimbricenses .

Depois d as onze d a noute e ntravam na tasca doC onse lh e i r o vul tos embuç ados,myste r iosos,compassosubti l e leve .

Uma noute vimos a li entra r umhomemcomo umatorre

,um pedaço d e um homem Joã o Pe nha e

nós m os—lh e na piug ada .

— Que novo f r e g ue z e e ste ? pe rg untou O poe taao C onse lh e i r o . Em C oimbra só conheço dous homensd '

e ssa grande za — o dr . Mamede e O B ispo—C onde .

Qua l de l les é ? Guardo segredo .

Dou-lh e a mi nha pa lavra que não é O doutor .

Log o , a ta l hou Joã o Penha .

OB RAS CO M PLETAS 3 79

Inda que adivinhe,não digo quem e

,tornou o

Rodrig o com uma dignidade antiga .

E Joã o Penha,vol tando-se pa ra nós :

_ Mau ! a Egre j a tambem concorre .

Foi a li que se d eu O seguinte caso .

N uma be l la v e S p e r a de fe riado dirigiamo-nos nóse Joã o Pe nha para O ba rracã o do C ons e lh ei r o . O caos

d e se rto,o M ondego d e uma formosura incomp ar ave l ,

o luar d e indoude ce r . Iamos a pene tra r . . quandod amos d e fr e nt e com um embuç ado .

Er a Marça l Pache co .

Que inve ja que eu vos te nho ! murmurou melancolicament e o triste .

Porque não vens comnosco dissemos .

Impossive l : de vo duas ce ias ao C onse lh e ir o, ee stamos no fim do me z .

É horroroso . mas i nda agora re paro,notou

Joã o Pe nha,com e ssa be l la barba ne gra

, que d e i

x aste cre sce r,és um anda lu z comple to

,e depois e ssa

capa,e e sse chapeu de sabado . sabes tu por acaso

fa lar h e sp anh olEssa pe rgunta a um f i lho d e Loulé !N e sse caso

,anda ! Apre sentar-t e -hemos como

um h e sp anhol , que nos ve i u r e commendado por D .

Be nigno Ma r t ine z,e que de se j a e studar

Entramos os t re s : Ma rça l,com o chap eu sobre

os o lhos,e emb uçado a té aos nari zes, para tornar

ma is caracte ristico O seu pape l,expectorava ,

d e

quando em quando,p e l o corredor

,com ge stos fan

d ang ue i r os :

Va ga d e ,b r oma ! Y a d e la n t e ! Va g a d e b r oma

O C onse lh e ir o entrou no cub ículo, onde ninguem

3 80 GONÇALVES CRESPO

pene trava senão de pois da sah ida d e Joã o Penha,e

curvado,comos dedos fincados na t oa lha

— O que dese jam?

João Penha, que estava a inda d e pé

,app r ox imou

se do C onse lh e ir oÉ um h e S panhol , d isse ba ixo, apontando para

Marça l . Que remos r e g a la l-O

,r e commendo apuro .

Rodrigo olhou para O e strange i ro e cump r imentou—O com grande respe i to .

E o que temos hoj e pe rguntou em voz a l taJoão Pe nha .

Ovos mech idos commiolos,coe l ho guisado

,e

lampre ia,re sponde u o C onse lh e ir o .

João Pe nha vol tou—se pa ra o caValhe i r o h e S pa

nhol :Tenemos p a r a cena r sesos con ucb as r evue l tos

,

cone'j o guisa do, y un p escáu que noso t r os l lamamoslamp r ea , que gusta usted ma s? pe rguntou Joã o Penhaao cava lhe iro h espanhol , com todo O caste l hano quesab ia .

Pa r a mi tengo una d ec idi da p r ef e r encia p a r alo todo re spondeu

,laconicamente comama is cor

re cta pronuncia caste l hana , o cava l he i ro d as He S panhas sempre embuçado, e com O chape u cada ve z

ma is cab ido sobre os olhos .

O C onse lh e ir o tra z ia os pra tos,e sab ia l ogo

,vol

tando sóme nte quando e r a chamado ; foi o que va le ua Marça l , que n '

esses inte r va llos se d e sembuçava

para come r, como um botocudo e sfa imado .

Acabada a ce ia,e quando iamos j á pe rto da porta

O sr . Joã o Pe nha,dá-me uma pa lavrinha disse

a ii ave lmente o C onse lh e i r o Rodrig o .

3 82 GONÇALVES C RESPO

dos estudantes, que f a z iam b ich a á porta

,a e spe ra

que lhes chegasse a v e z .

A t ia Ma ria e r a de uma i nte i re za e d e uma just iça assombrosa : O que prime iro che g ava e r a o queprime i ro e r a se rvido ; tanto montava que fosse ca

lour o,como ve te r ano, como assiduo frequentador da

casa . Ape sa r d e bondosa , não gostava d e ouvir pa lav r as sol tas e deshone stas ; off end ida e r a uma v íbor a

,

quando a t r actavam discre tame nte,tornava-se uma

pomba : e r a d e poucas pa lavras O seu b ome hone stosorriso d e se x ag enar ía t inha , porém,

uma e loquen

cia e ncantadora e uma adorave l e xpre ssão de re signada doçura ; deve ria t e r sido l inda e d e uma e x p lendida corre cçã o de fôrmas, mas fora sempre d e umcomportamento e x emp lar issimo, O que admi ra ,

se ndoe l la contemporanea d as ma is amor udas e ga l ha rdasge rações de academicos,que b andur r e a r amemC oimb r a .

Não e r a t ão sómente a de l icade za e o b em a l ourado dos fri tos que tornou lend a r ia a tabe rna da t iaC ame lia , o pre ço d as ce ias a li comidas e ntrava pormuita mane i ra n'

aque lla nomeada .

Eç a de Que iro z , no ul timo anno da sua forma tura ,ce iou a li todas as noutes com Joã o Pe nha

,e O pre ço

d'

aque lla org ia nunca passou d e um tostã o . Joã oPe nha

,contando isto , accr escentava , como quemd iz

uma cousa problema t ica e profundaE o tostã o do Eça e r a sempre empra ta ! Nunca

pude sabe r donde vinha aque l la moeda myste r iosa e

fa ta lA l ista dos fre que ntadores d 'esta tabe rna i l l ustre

e exte nsa e g loriosa ; a li ce iar amna quadra d escui

O BRAS CO M PLETAS 3 83

dosa e risonha da mocidade , Ayre s d e Gouve ia ,Ba r

j ona,Marte ns Fe rrã o , Pa iva Manso , home ns que são

hoj e l entes,de sembargadore s, ministros e bispos ;

n'

aque l le re cinto d a tasca artística esta laram as vã

le ntes risadas d as tre s ul timas ge raçõe s d e poe tas,tribunos e p h ilosophos d e C oimbra — d e Gonça lve sDias

,d e Soares d e Passos, d e Thoma z R ibe iro , d e

Ramiro C outinho (hoj e visconde d e Ougue la), d e Anthe ro d e Que nta l , d e Anse lmo d e Andrade , d e Joã od e De us

,d e Luiz Ja rdim

,d e Me sni e r

,d e Manue l da

Assumpção,d e The ophil o Braga

,d e Emygdio G a r

cia , d e Ge rmano d e Me i re l le s, d e Guimarã e s Fonse ca ,

d e Rodrigo Ve l l oso e de Jose Fa l cã o . C omo o th e at r oacademico fica prox imo

,toda a ce lebridade a r tística

que ia repre sentar a C oimbra , visi tava a t ia C ame l la .

Entra ram a l i Antonio Pedro , Taborda , C e sar d eL ima

,Noronha

,o Paganini vimaranense

,Rosa Seni or

,

e O tragico Rossi, que uma ve z

,a l ta noute

,na duvi

dosa pe numbra da tasca , re citou o lugubre monologodo Hamle t .

Subl imeA t ia C ame l la ouvia

,sur p r e z a e e spavorida

,todas

aque l las pa lavras soturnas e h a llucinad as,e,nã o

ousando fi ta r o emine nte a rtista,conse rvava os ol hos

ba ixos,no chã o

,como uma e scrava diante d e um

Ka l ifa .

Joã o Penha frequentou,durante quasi tre s lust r es

,

sem fa l tar uma só noute . a tabe rna da t ia C ame l la :d '

e sta assiduidade ina lte r ave l nasceu uma profundasympa th ia d a bondosa ve lha pe l o poe ta . N os dias emque nã o havia pe ixe

,uma triste za imme nsa e nvol

v ia as a lmas d e todos os habitantes da cidade a l ta,

3 84 GONÇALVES C RESPO

O l ucto e r a ge ra l : e quando João Pe nha,impassíve l

com a regularidade d e um ch r onome t r o se dirigiapa ra a cidade al ta

,d e va rias jane l las se debruçavam

vul tos dese spe rados e a ffl ictos, que exclamavamN ã o h a pe ixe

,Joã o

,a t ia C ame l la não tem

p e ixe . Lug e te , Vene r e s, C up idinesque !O poe ta

,acompanhado por aque lles que não du

v ídavam d a sua estre l la,caminhava sempre e ao

e ntrar na tasca a t r oup e'

_ Entã o,t ia Ma ria

, que p e ixe temos ? indagava .

— Pe ixe ? r e S pond ia e l la,com a sua voz cantada

emque transpare cia uma i nge nuama l ignidade , pe ixehoj e ? N ão O houve na praça

,nem pa ra o sr . B ispo

C onde , nem para os missiona r ios das Th e r esinh as .

Di ze ndo isto,sahia para fó r a do ba lcã o, e x ami

nava curiosamente a r ua e

'

os transeunte s, corriadepois intrepidamente os fe rrolhos a porta

'

,e abrindo

myst e r iosament e uma g ave ta , t irava d e dentro umpra to . com duas magnificas e nguias.

É e scusado dize r que as duas e ng uias e ram f r a

te r na lmente re pa rt idas e de voradas sofre g ame nte ,

comum appe ti te he roico . Depois da comesa ina — a

conve rsa .

Que l ongos e patuscos os colloquíos e ntre a t ia

Maria e Joã o Pe nha ! 0 assump to d'

e ssas conve rsase r a ordinariame nte umsó : qua l se r ia O cô r o das Vi rgens, em que a t ia Maria se ria e ncor por ada , quandomorresse .

— Do que tenho pe na , diz ia e l la com lag rimasna voz a rrastada e t r êmula

,é de não pode r ir para O

cõ r o de Santa Ursula, que é o prime i ro emgrande za .

—Porque ?

3 86 GON ÇALVES CRESPO

ame za do estudo,traba lhando como umb ened íctino

e resga tando por aque l la forma as horas, que dera

prodigamente a indiscip l ina bohemia do seu vive r :

nocturno .

João Penha fo i o que os j ove ns eng oiados d e hoj enão são nem podem sel-o, foi moço , riu com o b omriso ve rme lho que t ão b em asse nta nos labios da juventude

,teve ume stomago g ar g antuano, teve saude ,

t e ve'

jov ia lidade , teve lenda , foi o ul timo e studanted e C oimbra .

R e a lisou O sonh o,a v isã o

,O a z ul

, em ple na Vidabur g ue z a e const i tuciona l

,não dando ao mundo a

importancia de se aborrece r n 'e l le , como l h e di z iaEç a d e Que iroz .

A lenda'

r ia , turbule nta e enthusiast ica g e r a çã o deAnth e r o d e Que nta l , d e Azeve do C aste l lo Branco , ed e José Fa l cã o , succedera uma g e raçã o doe ntia , d eg e ngivas mol le s e de sbotadas

,t ímida

,curvando a

e spinha na passagem do seu le nte,engul i ndo a

'

seb en ta a té ás fe ze s .

No me io d '

e stes estudantes,e nve l he cidos

,tr istes

,

macambuz ios e sõ r nas, e stourando de subti l e zas es

colast icas, sabe ndo maravi lhosame nte as r íba ldar ías

do Sophisma , O be l l o rigor contundente do síl log ísmo

,e não ignorando como se conclue uma rgume nto

inmod o e t fig ur a , sa turados, a té á medul la , de me taphysica nebulosa e incomp r e h ensive l, O vul to deJ oão Penha destaca e sob r esãh e g l ori osame nte , como

O B RAS CO M PLETAS 3 87

uma flô r orva lhada e viçosa n 'umas ruinas,como a

fanfarra ma tina l d e uma sonora trompa d e caça na

g ruta d e um anachor ê ta .

Mas Joã o Pe nha não le vou a vida simplesmente a

rir, folg a r, a p antag r ue lisa r , e a ce lebrar

la loua ng eDe son ami le bon Buch a s

,

na humidade claustra l d as tabe rnas ou sob a ramar ia fresca e copada dos sa lg ue ir ae s do Mondego .

At r ave z das suas ave nturas O traba l ho sorri .Humanista

,pode ndo ouvir d e si o que C hap e lla in

dizia de Mol iere : «e ste rapa z sabe la tim! conhece dor d a l ing ua , tendo um g osto educado finíssimo,

O gosto que mode ra e harmonisa,uma le i tura abun

dante e variada,uma int e llig encia cul ta , prog re ssiva

e re fle ctida , Joã o Pe nha concorre u , e não pouco pa raa direcçã o do mode rno mov ime nto poe ti co .

O gri to re volucionario,sol to pe los ce lebres dissi

de ntes d e C oimbra ,produzira grande aba l o

,os ani

mos estavam despreve nidos, a se nsaçã o fô r a viole ntad e mais, e d

'

ahi re sul tou que os discípulos e os prose litos fa l taram.

A revoluçã o dos coimbrõ es fô r a pla tonica,phil o

soph ica ; a e xtranhe za dos assump tos' das poe sias d e

Anth e r o d e Que nta l e d e The oph i l o,quasi sempre

me taphysicos, t r anscend entaes e nebulosos para a

ma ioria dos le itores, apavorou os t ímidos,agastou

os antigos,desanimou os principiantes . A poe sia

cah i r a n i um desanimo e n 'uma hesi tação ex t r aor dinaria

,symp tomas tristíssimos que se dissiparamcom

a:

GONÇALVES CRESPO

O appar ecimento d a Folha , periodico d irigido por

Joã o Penha .

A Folh a foi um aconte cimento : acreditava mui tagente que a poe sia morre ra , que j á não havia mocidade

, que o riso acabara , e va i, senã o quando

,d e

subi to , inespe radamente , appa r e ce no horisonte l i tt e r a r io um poe ta , cuj o nome e r a ignorado nas r e

g iõ es offi ciaes,r ea l isando todos os predicados pa r a

a t t r ah i r as _v istas e g r ang e a r app lausos ; nã o e r a

futi l,nã o e r a bana l

,t inha ve r ve

,inspiraçã o ,. uma

la rg a ve ia humoríst ica,origina l e e x pontane a : sabia

mane ja r o ve rso,como ummestre , dando-lh e re levo ,

graça,h a rmonia e musica

,e conhe cia na ponta dos

dedos os processos,as formulas

,o d if fi cil contra

ponto d '

e ssa a rte, que com tanto desamor fõ r a tra ta

d a pe l os poe tas re volucionarios.

Joã o Pe nha,cuj o vive r vagabundo e dive rtido

tanto se asseme l ha ao do poe ta france z do secu lox vn

,Sa int-Amand

,re uni u a fog osa i ndiscip l ina d e

um g oinf r e as a l tas e se re nas qua l idade s d e ummest r e .

S im,um mestre e um director, que duvida ! Ha

v ia e xhub e r ancia d e ide ias, de p h ilosoph ias, d e sys

temas, mas a fôrma ,o g osto e O estylo não e stavam

definitivame nte de te rminados : ao re novamento daside ias

,

'

nã o corresponde ra o renovame nto d a fôrmal itte r a r ia .

A Joã o Pe nha,parece-nos, se deve o comple

mento da Obra dos que com tamanha intrepide z d er am impulso a nova corrente poe tica . N ão e x ag g e

ramos : d e '1 868 a ppa r ecimento da Folha pa ra cá,

ve jamse não e ncontram nos poe tas por tug ue z esum

GONÇALVES CR ESPO

Escreve ra tambem sobre o j oe l ho, d e improviso,nas costas d as bancadas d as aulas

,pe l os a lbuns

,nas

vene randas se ben ta s, ep ig r ammas, t r io le ts, facecias,

em que b em claro se dist ing uia O vest íg io da garrad o humorista

,e que aj udaram a robuste ce r—lh e a

le nda . Assim, de um estudante

, que t inha um na rizS ingular pe l o a fogueado d a cô r

,diz ia :

Tamagnini da EncarnaçãoTemna ponta do narizO colorido fel i zDe uma rosa do Japão .

A um cond íscipulo chamado Enne s mandava estaquadra :

A let t r a dos teus assumptosBemnos demonstra quemés,

Vale dous nn bemjuntos,E letra de quatro pés.

A outro condiscípulo,l indo

,rosado e t imido Como

uma donze l la,chamado La rche r

,pe rguntava :

N '

este caso desatino“Tu és La' rcher ou Lar cliér '?Tu és homemou menino“)Tu és menino ou mulher ?

De um padre que não e r a , posi t ivamente um

Apo l lo . na formosu ra , e ntenda—se , di z ia :

O B RAS CO M PLETAS 3 91

Vede-o ali tão triste'

e—só,

No seu logar , posto aliE como sobre umcipó,Um padre mestre saguy !

A lves d e Moraes,estudante d ist incto, e hoj e cau

S Íd l C O d e nome ada em te rras transmontanas,e scr e

v e ra um l ivro socia l ista intitulado Mo r t e á Mo r te .

João Pe nha re ce be o l ivro a e ntrada da aula,lê-o

,

p asma e e screve por ba ixo da dedica toria aff e ctuosa :

O Moraes, umpulso forte,Um guerreiro ant igo , umcabo

,

C hamou a terreiro a MorteE deu-lhe um couce no r

C omo um ph ilosopho que contempla e obse rva a

inanidade do de st i no humano,e a quem o e spe cta

c ul o da nause ante va idade unive rsa l fa z sorrir, Joã oPe nha , asse ntando o seu ide a l fixo e luminoso na

v olup ia e no pra ze r do vinho,enlevado como um

Soufi Pe rsa,a quem as bebidas e O amor a rrancam

a o contacto immundo da te rra,pa ra O e levarem ao

s e ntime nto da rea l idade,aconse lha bondosamente a

um amigo :

Ao demonio da ambiç ãoN ão dês entrada no pei to

,

N ão sejas juiz e le i toInda que 0 peça a Naçã oS e da g uer r a a convu lsa

3 92 GONÇALVES CRESPO

A tua espada requer,Suba ao poder q uemquizer,Faz pé atraz ret inenteQue o prazer está sómenteNo bomvinho e na mulher .

N ão que iras scept r os de reis,N emos pantufos do papa ;De ixa os imperios no mappaFoge de vis eur ope is.

No mundo os grandes papeisSó trazemmorte ou desgraça,Emprega o tempo na caçaDas Venus de faci l preza

,

E nas delícias da mezaOnde espuma a rubra taça .

Goze este emser deputado,Ou ministro, ou regedor,Aquel la emse r trovador,Ou general celebrado .

Mostra-te mais avisado,

Do v inho,do amor só cura

A V ida só bri lha e duraComo a luz do py r ilampoDo prazer o estrei to campoN ão transponhas com loucura .

Os me l hore s,os ma is o r íg inaes e e ng r a çados

d 'estes improvisos,são os que infe l i zme nte não nos

é p e rmit t ido publ ica r, por causa d a crua nude z daphrase e da ide ia , visto que o seculo x ix não é o

3 94 GONÇALVES C RESPO

e scr ip tor é aque l le , que te ndo pa ixões, sabe o dicc iona r io e a g r amma t

ªca .

O r a J oã o Penha sabia O diccionario e conhe ciape rfe i tame nte a gramma tica

, e teve pa ixões — sof

freu,amou e pade ce u .

— Sob a veste jog r ale sca e

face ta dos se us primorosos sone tos sente -se e streme ce r um coraçã o ; no marmore e xp lend ído d

'

aque llas e sta tuas

, que parece que se contorcem n'umae xpre ssã o de a legria bruta l e doida

,como a Dança

do C arpe aux,e scorrem e se cr ystal isam lag rimas d e

O e stylo pe rfe i to d '

e sses ve rsos,as suas rimas

opule ntas,a sua forma impeccave l , são predicados

q ue , quando muito , fariam d e Joã o Pe nha um ve rsif icador habi l e d 'uma exe cuçã o comple ta

,um ouri

ve s da pa lavra,obst inado e pacie nte

,mas nunca O

e levariam á plana d e um poe ta,na a l ta accep ção da

pa lavra .

Não,e l le não p r e scr eveu dos ve rsos a e loquen

c ia,a a le g r ia , a pa ixã o

,O ent husiasmo

,e a me lan

col ia ; o seu enthusiasmo,porém

,é si nce ro

,a sua

e loq'

uencia,

sua a legria,a sua pa ixã o t em o cunho

d a ve rdade,e a sua me lancol ia e mascula e vi ri l .

O Vinh o e Fe l, poeme to d e qua renta mag níficossone tos

,é a t r aducç ão f ie l e dolorosa de 'um amor

l e a l e profundo,O prime iro e unico da mocidade do

poe ta,e ao mesmo tempo a e xp lend ida reve laçã o do

ma is insigne humorista dos nossos dias .

Os sone tos do Vinho e Fe l come çam quasi sem

p r e n iuma que ixa , n'

um brando murmur io amoroso,n 'uma doce expressão d e vaga triste z a , e quando Ole i tor va i se g uindo a le i tura , curioso, quasi ente r ne

O BRAS CO M PLETAS 3 95

c ido,de subi to

,bruscame nte

,ouve e sta lar uma risa

d a,e escuta uma phrase rabe le siana e uma impre ca

ç ão i ronica e sa rcastica .

Transcrevemos a l guns d '

e sse s sone tos,por dois

motivos : porque nem todos os le i tores da R ena scença

conhe cem e sse s ve rsos, a para que não j ulguemque

.e x ag g e r amos os me r ite s do poe ta . E i l—os :

A dôce paz tranqui l la e a segurança,Emque eu levava a alegre mocidade,Foramnuvens n'

umceu de tempestade,Que d

'

e l las ninguem sabe ou tem lembrança .

Pobre de quem na v ida se abalançaA amar com fé, e a lma . e lealdade !Em longo veu de triste escur idade

Vera perdida a límpida bonança .

Oh ! que nem tenha um coração ami g oQue me alente no pa

'

ramo terrestre,E me acompanhe ao funebre jaz igo !

Dei-me esse onág r o de'

v igor si lvestre ,E os ôdr es pandos oli S i lene antigo ;Ensina-me na dór : só tu és mestre !

Nunca do amor a resplendente cliammaTe fulgurou na lucida pup i l la :N o meu romance , placi t la e tranqui l la,Jamais foste mulher

,porque eras dama !

3 96 GONÇALVES CRESPO

Da Vingança pense i no tor VO drama,E nas ancias vivi de quemvaci l la,V i-te fe i ta de barro : eras d'

ar gilla .

Fragi l estatua em pedestal de lama .

E caminhei nas sombras da saudadeImmerso n

'

esta dôr, que me devoraAs rosas da perd ida mocidade

E a caminhar no escuro e sem aurora,Aos par amos chegue i da soledade .

Triste d'aquelle que nas trevas chora !

Quando escondido emteu jard imflorido,Te vi sah i r das aguas murmurantes,Postas asmãos nas pômas palpi tantes,Solto ao vento o cabel lo humedecido ;

E,sorrindo—te . o corpo enlouquecido

Recl inaste nas re lvas ondeantes,Dando-nie assimaos olhos cor uscantesUma estatua de marmore pol ido ;

N ão t ive , como a santa B ibl ia conta,

As ideias dos lúbricos juizesVendo a nua S uzanna

, que se afi r onta .

Deseje i-me nos barbaros pe i zesDos cannibaes. e t ive a ide ia tontaDo selvagemvoraz : não te hor r or ises ! .

GONÇALVES C RE S PO

Mas em logar do sangue e furia tanta ,

Derramemos n '

esta alma o licôr bel lo,Que do pampano brota e a v ida encanta .

Em todos os ve rsos de João Pe nha, que são como

que o poema da sua mocidade,pa lpi tam

,e streme

cem,gri tam

,e ccôam, ulullam comuma ve rdade in

te nsa e profunda , as dores, os desa le ntos,as cóle

r as,as risadas, e a indig nação do poe ta e do amante .

Quando a duvida o empa llide ce , quando a suspe i talh e morde o cora çã o, quando o ciume o ape rta nasroscas viscosas e se rpentinas

,o anima l bravio

, que

dormi ta em todos nós,acorda

,e sbrave ja

,e spuma

,

e as inj uriosas inve ctivas d e O the l l o,a llucinado pe lo

ciume,acodem-lh e viole ntame nte á bocca

,e j orram

lh e em ca tadupa n'uma e xag g e r açã o indig nada :

N'

esta vida fatal , ai de quempensaEncontrar na mulher pudor e brio !Embreve umdesengano ace-r ho e frio,Lhe desfará as illusões e a crença .

Mulher ! vai teu caminho ; na l icençaCeva do corpo ardente o desvario ;N emrepares no meu viver sombrio,N emte chores da minha dôr intensa .

Que umdia, quando a sord ida impur eza,

Que o viço cr osta e o rir no lab io apouca,Te consumir a explendida belleza ;

O BRAS CO M PLETAS

E pedires comvoz sumida e r oucaA triste esmo la da crue l pobreza

,

Então me choraras. cabeça louca l

N ão me provoquesmais. Esta branduraEncobre d '

umjaguar a furia horrendaVai lêr do Mouro a pavorosa lenda ,O mesto quadro da vingança escura .

Tu és como essasmiseras impuraQue o vicio expõe no lupanar a venda !N emmais te quero vêr na triste senda ,Que te leva aos abysmos da loucura .

Perdi-te . Mas a flôr que no occidenteViumoribundo o sol, ergue a corol laAos orvalhos da aurora resurgente

S igo os prece i tos da moderna escolaN ão ha dôr que resista a umvinho ardente,

N em ao faci l amor d i

uma hespanhola .

Hontemde noute , j a depois que a luaNo occidente occultar a a face mesta,No teu jardim, por ignorada fresta,N os braços te vi d 'outro, semi-nua !

Eras pois d'essasmiseras da r ua,

Eras mais vil , mulher, mais deshonesta !E não morri d'

aquella dôr funesta .

Tumal di z ias : meu amor,sou

tua !

400 GONÇALVES cnnsp o

I r ter ao lodo,andando nas estrel las !

0h ! minhas pobres illusões venustas,Que me resta de vós

, que é fe i to d'

e l las?

Mas,para que chorar ? gentis, robustas,

S ão d'uma estatua

,as fôrmas que reve las

D ize : es tu mesma que o negocio ajustas?

A commoçã o e profunda , a cóle ra é se lvagem e

brutal , mas que i ntensidade d e vida , e que e xpress iva ve r dade não ha ah i !

Lembram-se ? O the l l o inj uriou De sdemona, cus

piu-lh e no rosto as pa lavras ma is crue is e inf amant e s

,e condemnou—a ; a branca fi l ha dos dog es mor

r e r á às mã os do e sposo ul tra jado e j ustice i ro : d erepente , porém,

o Africano e nte rne ce -se,prante ia a

formosa que va i morre r,e as suas pa lavras

,a inda

h a pouco t ão impe tuosas e ve hemente s, suspiram,

como um suave a rrulho,che io d e ine fave l me lanco

l ia : a o flô r se lvagem tão ador ave lmente be l la — e

cuj o pe rfume tão suave embriaga dolorosamente os

sentidos— quiz e r a que nunca t ive sse s nascido !No poe ta do Vinh o e F e l á inj uria

,á impre cação

,

a viol encia fe ri na e tumul tuosa succede o e smore cimento a triste za

,e uma e xtranha e me lancol ica

piedade '

S ob o influxo da negra phantasia,E do ciume fatal , que me atormenta,Furioso insul to compaixão violentaA Musa, que nas sombrasme alumia .

402 GONÇALVES CRESPO

Eu já. presentira a sorteD

'

uma vida sembonança,E lia, che io de morte ,O lasciate ogni S perança

V ira nas dobras da stringeN a vestal da etherea chammaA nodoa, que o vicio t inge,Da côr impura da lama !

E n'

esse penar immensoInda veria untante ,Como o naufrago suspensoD

'uma palha fluctuante !

Agora nemvejo os traçosDo temporal desabrido,Somente me fere a espaçosO fleb il som d

'

umgemido .

Foi como a visão das plagasQue o mar desenha na espumaA lucta de imagens vagas,Que se dissolvemna bruma .

N as La g r imas d e cr ocod il lo o poe ta di z che io»

d e acre a zedume

N ão chores,Maria ! o pranto

Que turba teus olhos l i ndos,Val roubar a terra o encantoDa visão dos ceus infindos.

O BRAS CO M PLETAS #03

Poupa—me O resto da far ç aDe teus ting idos amoresN em tanto vale um comparsaDO cô r o dos trovadores.

N '

essa f ronte pensativaN '

essa pagina tão bel la ,Tens impressa a nodoa v iva

,

Que tens inst inctos revela .

És da raça dos abutresE vendo a r óla que parte,Em t eu animo só nutresO desejo de vingar-t e .

E rema ta sarcasticame nte :

Sol ta essas tranças ao vento,

N empor tão pouco entristeças.

Vê que passa umreg imento ,O pachã de cemcabeças !

Pena é que não possamos reproduzir todo essepoema e le giaco

,em que a DOr e O C iume se lame n

tam com t ão digna e sobrance ira a l ti ve z .

Um d ia a inspiradora dos ve rsos de Joã o Pe nhaparti u

,O poe ta v iu-a sahir d e casa

,colloca r com p e

tulancia O pé leve e pe queno no e stribo da ca r r ua

g em,sa l ta r pa ra de ntro

,e se ntar—se ao lado da mã e

e das i rmãs,risonha

,fe l i z

, e ouviu depois o rodar do trem.

Passados dias, a Folh a publ icava o Ul timo a d eus,

404 GONÇALVES CRESPO

que é a de rrad e ira e sentida est r oph e do poemaamoroso da vida do poe ta

N ão venho,senhora minha !

AO somd'

umth r eno choroso,Lembrar—lhe a historia mesquinhaD

'

umromance desdi toso .

Foi-se O tempo das baladas,

E os Homens dos nossos d iasN ão sabemdas alvoradas,N emda voz das cotovias;

O Mouro da te z adusta,Quebrando O punhal sangrento,N emDesdemonas assusta,N emsol ta canções ao vento .

Que O deus das faces mimosas,A loria cr eança imberbe ,Hoje dur a como as rosasDa poesia de Malherbe .

Eu quiz umsonho mais largo,E no banquete da vidaDeu-me a sorte um fel amargoN'uma taca corromp ida .

E quando affl icto e convulsoA quiz arr ojar ao longeSenti-me escravo, e no pulsoT inha os ci l icios d '

ummonge .

406 GON ÇALVES CRESPO

Qual a flaccida lampreiaS e enrosca , aos sal tos, na peçaTal nas espaduas da moça .

A trança genti l se cule ia

e a inda a poe sia Á be ir a -ma r, que principia por e sta

quadra, que pa rece orva lhada pe las lag rimas da Me

lancolia

Ai ! que tristeza quando O sol desmaiaAO longe , ao longe, nas ce r uleas vagas,E a noi te desce amer encor ia praia .

E O lumbo chor a nas long ínquas p lagas !

Emlim, se ria um nunca finda r, tantas e tão exce lle ntes são as poesias que O poe ta escre ve u e seme ou ,com a prod ig a l idade d e um Buckingham

,por todos

os p e r iod icos l it te r a r ios d e C oimbra .

AO que não re sist imos é a r ep r oducção tota l d aBa la da , formosa composição, que t em a vive za

,O

primor e a graça d e uma risonha bacchana l,pa l pi

tando d e vida,no ba ixo—re levo d e umsarcofago gre go

Essa mulher, que emsonhos me tortura,

N as fe iras de S tambul fôra sempr eço l

Que face bel la na subt il moldura !Que lab i os sensuaes. que rir travesso º

Que mão se aponta que emSevi lha rufeMais doce e l inda 0 sonoroso adufe

O BRAS C OMPLETAS

A chamma ardente de seus olhos brandos,

Fontes de mel ou de peçonha amara,Á clausura dos monges venerandosMai s que o demonio tentações levaraContra os fil tros subt is d 'uns Olhos pre tosN em r esiste O pavez dos amuletos.

Mas no pé,n'

esse mimo sem qui late,Causa perenne do feminio arrufo

,

É que a gentil morena O luxo abateDas gloriasmais sublimes do pantufo .

Esse que O nega semmedir a affronta“Que vinho encerra na cabeça tonta ?

Umsapate iro i l lustre e cavalheiro,Ao tomar—lhe O contorno da bot inha .

É voz que disse d'

a lma e verdade iroª“S e eu fôr um dia r ei

,salve rainha !

E que vendo perdida a ingenua phraseA propr ia fronte decepou da base .

Pe flexivel,sem tumido capricho,

Excedera O da célere Atalanta !N a China ummandarimdera O rab ichoPor uma dama de tão breve p lanta .

Que se lvagemde rab ido colminhoS e detivera no chap imcasqui lho ?

C ontrario ao da mulher que a serpe esmagaNo g lobo azul a front e de esmeralda,Ergue—se O amor em furiosa vagaMal O divisa nos set ins da fralda .

407

408 GONÇALVES CR ESPO

Mas interrompa—se a epope ia lesta,Que já vaci l la O fogar eu de Vesta .

Depois d e formado,Joã o Penha abandonou o

a ta l ho caprichoso e pittoresco da poesia , pe la e stradaseve ra da j urisprude ncia , ap e iou—se do Pe gaso pa rase ame z endar pachorre ntame nte no dorso da manh osa r abulice .

Procede ram como e l le dois d os poe tas ma is ihS igne s do Porto

,Soa res de Passos e Ale xandre Brag a ;

ambos e ste s poe tas, porém,antes d e re ne ga remda

poesia,a quem de viam tantos mimos

, col l ig ir am emvolume os ve rsos d a sua mocidade

,e lançaram as

suas poesias ao publ ico , ta lve z com a mesma sau

dade , com que O r e i d e Thule a t irou a sua taça aO

ma r .

Porque não fa z Joã o Penha O mesmo ?

Re unindo emvolume as innume r as poesias, que

andam dispe rsas pe las folhas p e r iod icas, o poe ta a l

canç ar ia e ntre os mode rnos o emine nte l oga r a quet em inconte stave l dire i to pe la sua pode rosa e origina l individua l idade

,e não O l ha ria comme lancol ico

despe ito pa ra os-

que partiram depois d'

e l le e já vãot ão proximos da bahia

,nos Jogos O lymp icos da Arte

e da Poesia .

Um l ivro só, dirã o , é pequena e modesta baga

g em pa ra O renome,pa ra a popula ridade,e para a

g loria ; de vemos, porém,lembra r-nos que dos cin

coenta volumes do abbade Prevost sóme nte umsobrenadou e chegou àposte ridade _ Manon L esca ut

,

uma pe rola e que se Boccacio é h oj e conhe cido,

444 GONÇALVES CR ESPO

JUL IO C ESAR MACHADO

Tre z e lementos compõem e sta ph ysionomia : int e l lig encia , a le gria e bondade .

O na riz tem a a re sta um poucochinho la rga ; asna rinas são abe rta s

,f r emente s

,imp r e ssionave is ; a ca

b e l le ir a é me ridiona l,che ia d e re flexos

,fluctuante

como as pl umas d e um capace te antigo .

Os olhos, posto que tenhamas pa lpebras um tantope sadas são grande s

,mag nificos, pe rscrutadores .

O rosto che io como O d e Janin ; O big ode ca ido ,arque ado, ne g ro e peque no como O d e Ba lsac

,de ixa .

que se e ntreve jam uns labios polpudos como os d eum Ephe bo.

De e sta tura reg ular, e pa re ce ndo debi l porqueé lympha tico, Jul io C esa r Machad o sustenta comtudo.

aos hombros com uma e le gancia flore ntina as ba tal has t r ove jadas da R evoluçã o .

O se u e st ylo tema frescura d as e clog as sy r acusa—o

nas ; (3 adorave l como uma pa g i na d e amor e ma l i-cioso como um ra i o do sol que brincou na a z a do .

prime i ro be ij o d e Eva .

DescuidO S O como as cr eanças, fe cundo como OSrios a frica nos, bondoso como os pa t r ia r chas da He llade .

O B RAS CO M PLETAS 41 5

THO M AZ DE C ARVALHO

S e O conhe cem, digam-me se já e ncontraramconv e r sador ma is pre stigioso

,inte llig encia tãoma lleave l

e coração de ma is fino oi ro .

C at hed r a t ico, homem do mundo,academico , e l le

é de ce rto uma das ma is d istinctas individua l idade sda L isboa das Le tras

,da Arte e da Sciencia .

O que ma is impre ssi ona n'

aque l le rosto sã o O S

O l hos e a b ôca .

Aque lles, que S ão d e uma impag ave l mal ícia ,

obse rvam ironicame nte,por de tra z do límpido crysta l

dos oculos,a Tol ice que passa cobe rta d e lante j oulas

e app laud ida pe la ma tula .

A boca,essa or a S e diste nde g raciosame nte d e i

xando vê r a dõce brancur a d e uns de nte s unidos e

scinti l lantes d e de l icado g our me t, or a se franze deuma mane i ra singular e picante e é e ntão que o sorTiso se communica por um i ne xpl icave l magne tismoquem que r que te nha a pre ciosa ventura d e O e s

cuta r já, no C hiado, já em um e ntre-acto da camara ,j á em S . C arlos.

AS faces sãomag ras, sorvidas pe las auste ras v i

g i l ias do e studo e desma iadas pe l os aspe r os combat es da vida .

41 6 G O N CALv-E S CRESPO

O nariz deprime—se na nascença,a rque ia-se no

me i o,e de scae rapidame nte na e xtremidade

,onde se

accusa uma l ige i r a fe nda tomando a intrepida fó rmado bico dos condore s.

A suissa,a sua grand e va idade

,de sce em flocos

de ne ve tufada , abundante , macia e l ong a , indo morr e r em ondulaçõe s caprichosas nas lape llas da S O

b r ecasaca .

O que ixo redondo e sol ido ; asmaçã s do rosto sãliente s como as de Gambe tta ; a te sta e spaçosa .

Visto d e fre nte,o rost o d '

e ste amave l professortemuns long e s d

'

aque lle anima l pequenino e fur t ivo,que re prese nta a f inura e a g r aça emmuitas

,das d e

l iciosas fabulas d e La fonta ine .

C hamam-n'o sce ptico, OS que d e le ve O conhe cem;não se rá todavia d if ficil d e e ncontrar um HoracioB lanchon

, que O te nha visto na sombria nave sol itar ia d e a lg uma e g re ja assistindo amissa com o re l i

g ioso re spe i to e devota uncç ão do famoso Desp le in.

4 1 8 GO NÇALVES CRESPO

bustas ; O que ixo sa l ie nte come çando a dupl ica r-se ;as mã os formosas como as de Aspasia .

E todavia este traba lhador, pa ra quem é rigorosopre ce i to O nulla d i es sine l inea , e ste incansave l j orna lista a rdente e viva z

, que tanta ve z tem fe i to ca i rpor te rra a ma is d e um bata l hador a famado

,e a quem

nós conce bíamos mag ro e ag i l como Be nve nuto C e ll ini come ça

,ó myst e r iosa Ph ysiolog ia ! a toma r a Ob e

sidade do ve ntripote nte Vite ll io e e ntra-nos e ntã o noe spír ito a ide ia d e que os l ivros d e Paulo C ourie rdevem te r para . Te ixe ira d e Vasconce l l os O me smop r e st íg io e me re ce r-lh e O me smo a ff e cto que a Ph y

siólog ia do g osto d e Bri l le t Savarin,e que para e l le

os artigos ene r g icos e vig orosos d e G irardin não S O

b r e leva r ão em me r itos e em sabor a umPr a to d ea r r o z d ôce .

O BRAS CO M PLETAS 41 9

G UE RRA JUNQU E I RO

Nasce u pe rto de Hespanha ; d'

ahi vemque a sua

p h ysionomia t em o seu tanto d e h espanhola .

N O S se us O l hos de um pa rdo vivo e bri lhante cond ensa r am-se todos os a rdores d '

aque l le sol que mor

de com be i j os d e fogo as mulhe re s d a Anda luzia .

A fronte encastoad a , tendo como que re flexos,

fa z -nos lembra r a l isa transpa rencia pol ida dos e s

p e lhos d e S y r acusa .

É d '

a l i que partemos ra ios que incende iamas t e

me r osas a rmadas d a Ig norancia , do Fana tismo e daHypocrisie .

O cabe l l o curto , corredio , ne gro ; O na riz umpoucopronunciado, l ige irame nte aqui lino z O bigode aspe roe pe queno como O d e Scaramouche de sguarne ce O S

cantos d e uma bocca francame nte rasgada e ondebastas ve zes de sabrocha a flô r doe ntia e sa tanica dosorriso de Vol ta ire .

O que ixo ousado e ene rgico ; as mã os compridas,osse as e fo r tes .

Junque iro é ba ixo como Horacio,como Att ila e

como C aste l lar ; h a t odavia no seu pequeno corpo esb e lto a l i nha ondeante e e lastica d e um cap ita

fn san

guine o e re soluto, que no me i o d

'

e sta horrorosa de

420 GONÇALVES C RESPO

composição que a travessamos,parece desafiar o céo

e a te rra e g ri ta r como O va lente do Romance i ro h espanb ol

«A todos los desa fioPues a nad ie t ie-ng o miedo

C omo é formoso e ap r º p r iado O app e llido d'

e stej oven poe ta !

Gue rra !

422 . GONÇALVES CRESPO

Ha me zes vimO l—O d e novo em Braga e e is comoe l le se nos apre se nta deante dos O l hos :

O rosto é vivo,moreno

,gracioso , a inda que fla

g e llado pe la va r íola ; a b ôcca é benevole nte e risonha

,e todavia quando e l le fa l la , a ffig ura—se—nos que

n'aque lles labios finos e levemente desbotados se

nos ent r emost r a uma vaga expre ssão do dolorosocançaço e de incoe rcíve l me lancol ia .

Os cabe l l os d a côr d e a z ev ich e,d e onde , como d e

uma cid ade lla“inex pug nave l , a neve dos annos r e

foge,vão—se empobre ce ndo,não che gando comtudo

a desnudarem aque l la cabe ça febri l e pode rosa d epoe ta e d e creador .

O bigode ne gro e t ranspa re nte , a seme lhança dod e Soares de Passos, d escae -lh e ne g l i ge nteme nte a r

que ado sobre O labio infe rior .

AS mã os d '

este prodig ioso a rtista são de l gadas,mimosas e ar istocr at icas .

E,fo i com e stas mã os femininas que e l le , pa r

d e tantas cr e aç õ es ador ave is, fundiu emuma hora deimmor r edour a inspiraçã o a fig ura obesa , ve rme lha ,quadrangular e grote sca do C h at im d a Ame rica ,d e ante da qua l as g e rações por v i r sol tarã o uma r i

sada colossa l e . e norme como a dos Deuse s a vistad o S a ty r o hediondo, h i rsuto e de sl umbrado no me iodos esplendore s do O lympo .

O B RAS CO M PLETAS

S OUSA MART IN S

Uma cabe ça pode rosa e grande , que ma ior a indapare ce

,por se r re vestida d e uma emmar anhada ,

c re spa e convu lsionada cab e lladur a . A testa vasta e

e scantoada ; as sobrance l has,pouco abundantes e

sob as pa lpebras somnolentas d e um contemplador,

d iante d e quem passa índ e scr ip t ive l e sempre va

riada C ome dia da V ida,l u zem che ios d e chispas

,

bondosos,vibrantes d e ma l ícia e d e cur iosidade

,os

O lhos pardos d '

esse pe rtina z e xplorador dos segre dosd a Scie ncia .

O nari z t em um de senho firme e audacioso ; ab ôca

, que a na ture za lh e rasgou ampla como convema os oradore s

,nã o se levanta nos cantos

,be ijada ou

a ntes mordida pe la inquie tante I r onia,mas d e scae

e ntristecida e como que d esí llud ida,contrastando

assim com a pe tu lante bravura d '

aque ll es O l hos d iab olicos e a cachoa r em lavas .

O bigode e pouco abundante,d e sorte que a l inha

dos se us labios grossos e l ig e i r amente de sbotadosse nos franque ia a miudo de scobrindo—nos uns de nte sv ig orosa e sol idamente plantados e O que ixo redondoind ício d e bondade , appa r e ce -nos l iso e pol ido comoaga tha , ponto d e cuidarmos que nunca a li v içou

a d ura e brava aspe re za da barba .

424 GONÇALVES CR ESPO

Medico,não se e nclausura nos r est r ictos e espe

ciae s domínios da sciencia nem olha com de sd em,

como tantos ou tros O fazem,para os que se namora

r am d e outros e studos e de ram dive rso rumo ao seu

e sp í r ito, e quem vê e ste ca th ed r a t ico,moço a inda

,

mas t ão cír cumsp ecto e grave,cuida rá que e l le se

compraza tão sóme nte nos pesados e sérios p r ob lemas da sua compl icada profissã o ; quandomuito pe locontra rio sabemos que e l le admira e se nte grandesj ub ilos diante d e um quadro

,d e um poema

,de uma

e sta tua e d e um,romance

,quando emqua lque r d '

es

sas p r oducç õ es se espe l he O cunh o inena r r ave l dasuprema

,da e te rna Arte .

É que e ste e loque nte p r ofe ssor pe nsa,como

'

O

cre ador do Fausto, que a admira ção em ve z d e se r

prova d e fraque za e ante s um claro sig na l d e força.e d e pujança .

Tempe rame nto d e e le içã o,gosta de combate r pe la

ve rdade , e assim,nas associaçõesmedicas e nas aca

demias de que émembro qua l ificado , quando fa l la oud iscute é sempre para d ar com a sua voz auctor i

sada,enthusiastica

,uma l uz nova

,um aspe cto com

p le tamente origina l às questões por ma is deba tidase e studadas que tenham sido .

N ão bebendo vinho, uma só cousa ha que O emb r iag a , a conve rsa ; e nada ma is fa iscante e vivo do

que a pa lavra facil , impe tuosa , colorida e a t t r ah ente

d '

este moço ca th ed r a tíco de quem se pôde a f fi rma rO que , d e um ce le bre e scr ip tor , di z ia n

'outro tempoBa l zac

,o antigo Ba l zac — Va le muito mais conve rsa r

com Sca l ige ro do que assistir ao triumpho pomposod

'

um consul romano .

426 IND ICE

DestinosArrependidaNeraA lguem.

N a roçaUma andaluz a .

B ianco vesti ta .

Noi te de inve r no.

DesdichadaÁ be i ra do MondegoCortejo .

Mãe .

A tua cartaI l ritrat toAllucinação

Canção .

Never—moreM imiS uasmãos.

O meu cach imbo .

AO me io diaA confessadaTransfiguraçãoES TUDO C R I TI OO

Y O C TURN O S

A minha mulher .

C onfi denza .

O velhinhoAnimal bravioAd agros

A nuvemO juramento do arabeN um lequeO lhos de jud ia

N UME RO DO I N TERMEZ Z O '

IND ICE 7

428 IND ICE

O minuête .

O cove i roAdeusC AMO N EAN A

A egreja das chagasA le i tura dos LusíadasAnuos depois .

Esplivnge

A ce ia de T ibe rioTR I O DE POE TAS

João de LemosJoão de DeusJoão Penha

C h'

ymer as

Odor d i feminaEmcaminho da guilhotinaA viuva .

F lôr do pantanoA resposta do inquisidorFervet amorN a al . !e ia

Estu-lantinaAs ond inasNo jogo das cannasNunca eu t e lesse , balla'la

A negraMater dolorosaAs primeiras lagrimas de É l-ReyCura Santa Cruz

A venda dos boisAO rabequista Eugenio Deg r emont

ERRATAS

A pag . 3 7,verso

N a r ede Olorosa,si lencio ! deixam.

Deve lêr —se :

N a rede olorosa,si lencio ! deixae-a

A pag . 1 05, ver so 4

E se a terra existe,é porque existo .

Deve lêr -se :

E se na terra existe,e porque existo .