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571 A reforma da divisão territorial e o processo de extinção do concelho do Topo (1832-1870): as relações entre o local e o nacional por Paulo Silveira e Sousa 1. Os municípios açorianos e as primeiras reformas da administração territorial (1832-1842): rupturas e continuidades Os municípios açorianos formam uma peça importante para compreender a história do arquipélago. Tal como no continente havia uma tradição de relativa diversidade institucional e eram inexistentes os corpos intermédios de poder. Desde o povoamento os concelhos foram sendo construídos através de uma correspon- dência estreita com os espaços tradicionais da vida comunitária 1 . A sua organização teve por base intensas redes locais de trocas materiais e simbólicas que correspon- diam, normalmente, à área de dominação de um pequeno centro populacional sobre uma parte ou a totalidade do território de uma dada ilha – agregando, portanto, em seu redor um espaço de influência –, no seio do qual se condensava a vida social, económica e política 2 . Num arquipélago e em territórios insulares montanhosos e de difícil circulação os concelhos formaram assim espaços sociais de identificação e áreas de influência e exercício do poder por parte de elites locais. Estas podiam constituir oligarquias relativamente coesas, mas o seu recorte social e o seu esta- tuto dentro da sociedade de Antigo Regime diferiam segundo a riqueza, o tamanho e a importância do concelho. O conjunto dos vereadores de câmaras como Ponta 1 Cf. Avelino de Freitas de Meneses (1994), Os Açores nas Encruzilhadas de Setecentos (1740-1770), 1.º vol., pp. 75-260. Para uma visão de conjunto da política em Portugal durante o Antigo Regime ver António Manuel Hespanha (1986), As Vésperas de Leviathan: Instituições e Poder Político. Portugal século XVII, Coimbra: Almedina, 2 vols. 2 Ver o estudo de caso de uma pequena ilha do arquipélago em Paulo Silveira e Sousa (1994), Território, Poder, Propriedade e Elites Locais: A Ilha de São Jorge na Segunda Metade do Século XIX, Dissertação de Licenciatura, Lisboa: ISCTE, policopiado. E também Paulo Silveira e Sousa (1996), «O lugar dos arquipé- lagos da Madeira e dos Açores no espaço político e administrativo Português durante o Antigo Regime», in César Oliveira (coord.), História dos Municípios e do Poder Local, desde os Finais da Idade Média à União Europeia, Lisboa, Círculo de Leitores, pp. 105-113. Segundas Provas

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A reforma da divisão territorial e o processode extinção do concelho do Topo (1832-1870):

as relações entre o local e o nacionalpor Paulo Silveira e Sousa

1. Os municípios açorianos e as primeiras reformas da administração territorial (1832-1842): rupturas e continuidades

Os municípios açorianos formam uma peça importante para compreender a história do arquipélago. Tal como no continente havia uma tradição de relativa diversidade institucional e eram inexistentes os corpos intermédios de poder. Desde o povoamento os concelhos foram sendo construídos através de uma correspon-dência estreita com os espaços tradicionais da vida comunitária1. A sua organização teve por base intensas redes locais de trocas materiais e simbólicas que correspon-diam, normalmente, à área de dominação de um pequeno centro populacional sobre uma parte ou a totalidade do território de uma dada ilha – agregando, portanto, em seu redor um espaço de influência –, no seio do qual se condensava a vida social, económica e política 2. Num arquipélago e em territórios insulares montanhosos e de difícil circulação os concelhos formaram assim espaços sociais de identificação e áreas de influência e exercício do poder por parte de elites locais. Estas podiam constituir oligarquias relativamente coesas, mas o seu recorte social e o seu esta-tuto dentro da sociedade de Antigo Regime diferiam segundo a riqueza, o tamanho e a importância do concelho. O conjunto dos vereadores de câmaras como Ponta

1 Cf. Avelino de Freitas de Meneses (1994), Os Açores nas Encruzilhadas de Setecentos (1740-1770), 1.º vol., pp. 75-260. Para uma visão de conjunto da política em Portugal durante o Antigo Regime ver António Manuel Hespanha (1986), As Vésperas de Leviathan: Instituições e Poder Político. Portugal século XVII, Coimbra: Almedina, 2 vols.

2 Ver o estudo de caso de uma pequena ilha do arquipélago em Paulo Silveira e Sousa (1994), Território, Poder, Propriedade e Elites Locais: A Ilha de São Jorge na Segunda Metade do Século XIX, Dissertação de Licenciatura, Lisboa: ISCTE, policopiado. E também Paulo Silveira e Sousa (1996), «O lugar dos arquipé-lagos da Madeira e dos Açores no espaço político e administrativo Português durante o Antigo Regime», in César Oliveira (coord.), História dos Municípios e do Poder Local, desde os Finais da Idade Média à União Europeia, Lisboa, Círculo de Leitores, pp. 105-113.

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Delgada, Ribeira Grande, Angra ou Horta dificilmente se poderia assemelhar com o de concelhos periféricos como São Roque do Pico, Velas, Praia da Graciosa ou Vila do Porto 3.

Desde a criação da capitania-geral em 1766 que certos aspectos da organi-zação administrativa açoriana se foram aproximando do modelo metropolitano. Contudo, a plena integração só veio após a Guerra Civil de 1832-1834 e a vitória do Liberalismo. As reformas de Mouzinho da Silveira, a 16 de Maio de 1832, criaram a prefeitura de Angra e as subprefeituras da Horta e de Ponta Delgada, aplicando no arquipélago o modelo político-administrativo decretado para o continente do reino. Este era claramente hierárquico e articulava três níveis: prefeituras nas capitais de província, subprefeituras nas capitais de comarca e provedores nos respectivos con-celhos. O novo sistema previsto para a administração de Fazenda utilizava idêntico figurino: um recebedor-geral em Angra e dois delegados nas comarcas da Horta e Ponta Delgada 4.

A 4 Julho de 1832, no seguimento dos citados Decretos de 16 de Maio, que alteraram decisivamente a organização da administração civil, judicial e de fazenda, pouco antes de partir a expedição militar, D. Pedro IV decretava a elevação do «arquipélago dos Açores que até aqui formava a capitania-geral deste nome, à categoria de província do Reino de Portugal», com capital em Angra. Passavam a ser, pela primeira vez, aplicados aos Açores, inequivocamente, os mesmos prin-cípios gerais e a mesma arquitectura de poderes que regiam a administração das outras províncias do Reino. Por outras palavras, os Açores iriam ser governados pelos prefeitos, sub-prefeitos e provedores decretados por Mouzinho. O diploma estabelecia também três comarcas judiciais (com sede em Angra, Horta e Ponta Delgada) e 22 concelhos: Angra, São Sebastião, Praia da Vitória, Calheta, Velas, Topo, Santa Cruz (da Graciosa), Praia (da Graciosa), Horta, Lages do Pico, Madalena, São Roque, Santa Cruz (das Flores), Lages (das Flores), Corvo, Ponta Delgada, Ribeira Grande, Lagoa, Água de Pau, Vila Franca do Campo, Nordeste e Vila do Porto (Santa Maria) 5.

Este modelo duraria pouco tempo. A forte tutela do prefeito, sediado em Angra do Heroísmo, entrou em confronto com as ambições das elites dos outros dois pólos do arquipélago, reduzidos à condição de sub-prefeituras 6. Mediante o

3 Ver uma síntese recente em Paulo Silveira e Sousa (2008), «As elites insulares (1766-1836)», in Artur Teodoro de Matos, Avelino de Freitas de Meneses e J. G. Reis Leite (dirs.), História dos Açores, Angra, Instituto Açoriano de Cultura, vol. I, pp. 579-611.

4 Ver o Decreto n.º 22 de 16 de Maio de 1832, título VII, art. 26.º5 Ver o Decreto de 4 de Julho de 1832 em Colecção de Decretos e Regulamentos mandados publicar por

sua majestade imperial o regente do reino desde que assumiu a Regência a 3 de Março de 1832 até à sua entrada em Lisboa em 28 de Julho de 1833, Lisboa: Imprensa Nacional, 1836, pp. 161-163. Por alvará de 4 de Julho de 1833 a Horta seria elevada a cidade.

6 Ver Francisco de Ataíde Machado de Faria e Maia (1948), Novas Páginas da História Micaelense, 1832-1895, Ponta Delgada: Tipografia Insular e Maria Luciana Lisboa Ananias (2001), «A câmara de Ponta Delgada e a nova organização administrativa 1831-1834», Arquipélago História, vol. V, pp. 119-174.

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agravar da situação, a 28 de Junho de 1833, os Açores foram divididos em duas províncias com São Miguel e Santa Maria de um lado e a Terceira e as restantes ilhas de outro. Mas, por enquanto, ainda não se tinham registado alterações no mapa das circunscrições concelhias.

O processo de modernização e racionalização administrativa foi progressivo e prolongou-se durante décadas. Na realidade, estamos perante grandes reformas que demoravam a consolidar e que dependiam de um conjunto alargado de agentes locais, empregados do Estado, redes e práticas administrativas. Iniciado com os Decretos de Mouzinho da Silveira em 1832, o processo sofreu, logo em 1835-1836, alterações importantes 7. Mas para entendermos essa lenta sedimentação recordemos que nas contas apresentadas ao Parlamento, a 23 de Janeiro de 1835, o ministro da Fazenda, José da Silva Carvalho, classificaria ainda a província ocidental e a pro-víncia oriental dos Açores no orçamento da despesa das províncias ultramarinas 8. O total da província oriental atingia os 176.914$000 e o total da província Ocidental os 127.145$. Ao contrário do que podemos pensar hoje a maior parcela da despesa na província oriental era relativa aos «religiosos e religiosas», 42.337$000, à qual se seguia a folha dos eclesiásticos no valor de 31.875$000. Com os gastos laicos, ou seja com a administração prefeitoral, a saúde e instrução pública, a Relação e o conjunto dos Juízes de 1.ª Instância gastavam-se 4.740$, 200$, 2.930$, e 18.356$ respectivamente. Porém, no mesmo ano, surgia já claro noutras peças legislativas que as ilhas da Madeira e dos Açores deveriam ser administradas como províncias de Portugal. Tal seria o caso da Carta de Lei de 25 de Abril de 1835 sobre a admi-nistração ultramarina que no fim do seu art. 1.º, separava logo as ilhas atlânticas dos restantes territórios portugueses em África e na Ásia, ou dos decretos eleitorais publicados em 1834 e 1835. Já era possível perceber o caminho que trilhava o pro-jecto liberal de divisão e classificação do território nacional 9.

Na sequência dos diplomas de 25 de Abril e de 18 de Julho de 1835, a Carta de Lei de 28 de Maio de 1836 veio finalmente dividir os Açores em três distritos administrativos e fiscais, determinando as ilhas que os compunham e as respectivas

7 Ver o Decreto n.º 23 de 16 de Maio de 1832, o Decreto n.º 65 de 28 de Junho de 1833 (nova divisão admi-nistrativa e judicial), a Carta de Lei de 25 de Abril de 1835 (que altera a reforma de 1832), o Decreto de 18 de Julho de 1835 (que estabelece uma nova divisão administrativa no continente), o Decreto de 6 de Novembro de 1836 (que reduziu drasticamente o número de concelhos no continente) e o Decreto de 31 de Dezembro de 1836 (Código Administrativo).

8 José da Silva Carvalho (1835), Relatório apresentado na Câmara dos Senhores Deputados na Nação Portuguesa em 23 de Janeiro de 1835 pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Fazenda, com a Conta da Receita e Despesa do Tesouro Público escriturada na sua contadoria desde o 1.º de Agosto de 1833, a 30 de Junho de 1834, e o Orçamento Geral do Rendimento e Despesa do Estado no ano econó-mico de 1 de Julho de 1835 a 30 de Junho de 1836, Lisboa: Imprensa Nacional, p. 79.

9 A divisão em província ocidental e província oriental, realizada a 28 de Junho de 1833, constou logo dos Decretos eleitorais de 3 de Junho de 1834 e de 9 de Outubro de 1835. A divisão tripolar do arquipélago, em três distritos ficou também consagrada nos Decretos eleitorais de 4 de Junho (ver art. 32.º) e 8 de Outubro de 1836 (art. 12.º).

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sedes, onde seriam instalados os governos civis10. Esta divisão tripolar do arqui-pélago ficaria definitivamente sedimentada, sendo confirmada aquando do Código Administrativo de 31 de Dezembro de 1836 que delimitou todo um conjunto de competências e de processos eleitorais para a generalidade dos cargos locais. Em Setembro desse mesmo ano de 1836 seria publicada a reforma da legislação dos expostos, cujos encargos passariam para os municípios, vindo a constituir quer uma importante fonte de despesa, quer de conflito com as autoridades distritais11.

Os concelhos estavam a ser chamados a desempenhar novas funções, a admi-nistrar de modo diferentes outras e a criar um novo modelo de legitimidade polí-tica assente na realização regular de eleições, na existência de autoridades locais nomeadas pelo centro e de assembleias de notáveis com poderes fiscalizadores. Não é por isso de estranhar a publicação do Decreto de 6 de Novembro de 1836 que veio fixar uma nova divisão territorial do continente em 17 distritos e 351 concelhos. Realizada por uma comissão nomeada pelo governo, esta divisão teve por base inquéritos efectuados na década de 1820, bem como relatórios e trabalhos enviados pelas juntas gerais dos distritos em 1835-1836. Segundo as contagens de Fausto Figueiredo, dos 828 concelhos existentes em Portugal continental tinham-se abolido 498 e criado 2112. A redução dos concelhos fora drástica, abrangendo sobre-tudo os que possuíam menos de 500 fogos13. No entanto, esta reforma deixaria de lado os municípios açorianos, cujo número não foi alterado.

Com esta reforma os concelhos sobreviventes cresceram em área e passaram a ser constituídos por várias freguesias, unidades cujo enquadramento legal tinha sido já alterado por Decreto de 28 de Junho de 1836. Por detrás desta enorme redução

10 A 15 de Abril de 1836, o então deputado António José de Ávila, apresentaria um projecto para reformar a divisão administrativa e fiscal do arquipélago. Ver AHP, secção VI, cx. 120, maço 4, papel 18, doc. B.

11 Ver o Decreto de 19 de Setembro de 1836, in Colecção de Legislação Promulgada em 1836, 2º Semestre 1836, Lisboa: Imprensa Nacional, pp. 551-554. O Decreto seria regulamentado pela Lei de 7 de Outubro de 1837. As despesas com os expostos ficaram sob a alçada das juntas gerais distritais, que determi-navam a quota de cada um dos municípios. Eram pagas por um só cofre, gerido na cabeça do distrito pela respectiva junta e por uma comissão de que fazia parte o Governador Civil. A junta calculava as quotas municipais e todos os concelhos tinham obrigatoriamente que as pagar. Numa época em que cresciam as despesas e não se viam os rendimentos a aumentar, esta legislação acabaria por onerar os cofres dos concelhos, constrangendo-os ao lançamento de taxas e derramas locais. Em 1842-1843 os expostos eram o segundo maior item da despesa municipal dos municípios portugueses, atingindo a soma de 240 contos. Apenas se gastava mais com os vencimentos dos empregados municipais e do concelho, 258 contos. Com as obras públicas, o terceiro item da despesa apenas se gastavam 136 contos. Ver Mapa Geral das Contri-buições Lançadas pelas Diferentes Câmaras Municipais do Reino e Ilhas Adjacentes e dos Rendimentos Próprios dos Mesmos Concelhos no Ano Económico de 1842-1843, Lisboa: Imprensa Nacional, 1845.

12 As contagens são sempre difíceis, dado escaparem nas sucessivas listas vários concelhos. Contudo vale a pena revisitar Fausto J. A. Figueiredo (1950), «A reforma concelhia de 6 de Novembro de 1836», in O Direito. Revista de Ciências Jurídicas e de Administração Pública, ano LXXXII, n.º 4, Lisboa, pp. 30-31.

13 Ver mais desenvolvimentos em Maria Alexandra Lousada, «As divisões administrativas em Portugal: do Antigo Regime ao Liberalismo», Separata do V Colóquio Ibérico de Geografia, Universidade de Leon, pp. 303-318.

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estava o projecto de criar unidades administrativas mais ricas, mais sustentáveis, mais uniformes e com um maior número de potenciais notáveis e eleitos locais letrados, capazes de desempenhar as novas funções. Era uma doutrina que se discutia desde o Vintismo e que estava bem estabelecida entre a elite política da época. Na verdade, viera para ficar.

Na administração municipal a figura do escrivão da câmara permaneceu deci-siva. Eram estes que garantiam o bom prosseguimento de qualquer rotina buro-crática, essencial para a acção eficaz das autoridades. Com frequência saíam da pequena notabilidade dos letrados e pequenos profissionais de assuntos jurídicos e burocráticos das vilas de província. O lugar de escrivão da câmara continuou de nomeação vitalícia, persistindo uma velha doutrina que já o Decreto n.º 23 de 16 de Maio de 1832, de Mouzinho da Silveira, consagrara. Sendo escolhido pelas câmaras sob confirmação régia, este escrivão apenas podia ser demitido pelo governo. O seu estatuto permitia-lhe ainda acumular o cargo de escrivão da câmara com o de escri-vão da administração do concelho, facto que reforçava o seu poder e influência14.

As transformações projectadas eram impossíveis de levar a cabo sem a cooptação e a participação das elites locais e dos mais letrados. Nas sociedades agrárias e tradicionais o uso da linguagem escrita formal marcava uma cisão entre a pequena e grande tradição cultural e entre os grupos sociais que tinham acessos diferenciados ao saber formal15. A armazenagem e a centralização cultural e cogni-tiva, que acompanhou a centralização do poder político e administrativo acentuou o papel de mediação que as elites locais estabeleciam entre as populações e o Estado, beneficiando-as no controlo dos aparelhos administrativos. Aquilo a que de forma genérica chamamos centralização produzia assim efeitos contraditórios. Por um lado, permitia a uniformização, a maior tutela e penetração do Estado. Por outro, dava às elites locais o papel de comissários ou assistentes da nova ordem. Mas para alcançar o nível de novos agentes de uma administração piramidal, hierárquica e com uma forte circulação de informação era preciso que essas elites locais tivessem capacidades para exercer os cargos e executar as novas tarefas. Elites pouco alfa-betizadas e concelhos sem recursos tinham mais dificuldade em se adequar à nova organização do poder.

14 Cf. Joaquim Tomás Lobo de Ávila (1874), Estudos de Administração, Lisboa: Tip. Universal, pp. 220-221. O Código Administrativo modernizador de 1878 pouco alteraria esta situação (ver art. 147.º e Decreto regulamentar de 6 de Julho de 1878). Os escrivães das câmaras continuavam a ser nomeados pelos muni-cípios, precedendo concurso documental, por um prazo de 30 dias, anunciado no Diário do Governo e nos periódicos locais. A escolha do candidato era feita pela vereação em escrutínio secreto. Embora não se falasse do carácter vitalício do cargo e se tivesse agilizado a sua eventual demissão, o facto é que também não é referido qualquer comissão ou período temporal para o seu exercício. Na prática, os escrivães e secretários podiam continuar a permanecer décadas no seu posto. Para as acumulações de cargos entre os empregados da administração local ver as primeiras regras no Decreto n.º 23 de 16 de Maio de 1832, capítulo V, art. 67.º Na realidade, só o Decreto de 5 de Janeiro de 1887 veio instituir a obrigatoriedade de proceder a concurso para o preenchimento do cargo de secretário da Câmara.

15 Ernest Gellner (1993), Nações e nacionalismo, Lisboa: Gradiva, pp. 33-34.

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A organização do sistema administrativo local não se sedimentaria ainda. O Código de 1836 começaria a ser reformado logo em 1840, por Rodrigo da Fonseca Magalhães. Reduziu-se o número de eleições locais e foi alterado o modo como eram elaborados, aprovados e fiscalizados os orçamentos municipais. A divi-são entre despesa obrigatória e despesa facultativa criou, a partir de cima, mais um quadro no interior do qual a acção das câmaras teria forçosamente que operar. Ao mesmo tempo, ampliaram-se as possibilidades de «lançar, dentro dos limites do concelho, contribuições directas, indirectas, ou mistas para ocorrer às despe-sas municipais»16. A nova legislação reforçava a tutela e traçava um rumo mais estreito e bem demarcado para acção dos concelhos. Mas dava-lhes igualmente a hipótese de ampliarem as suas fontes de receita. Não era fácil criar novas contribui-ções que iriam forçosamente recair sobre os vizinhos e os mais abastados. A margem de indefinição na acção administrativa das câmaras tornava-se menor. As possibili-dades de aumentar as receitas eram maiores, mas nem sempre utilizadas.

O Código Administrativo de 1842 trouxe alterações, mas aproveitou boa parte da legislação de 1840, reforçando os mecanismos de tutela e o peso dos cargos de nomeação central, ao mesmo tempo que atribuía competências obrigatórias às câmaras. Estaria em vigor até 1878, apesar de algumas tentativas goradas de reforma em 1863, 1867 e 1870. O código de 1878 marcaria o começo de um novo período de modernização, cuja análise ultrapassa este trabalho17.

No terreno, e em câmaras importantes como a de Ponta Delgada, o novo sistema liberal não se revelou isento de pequenos conflitos. Logo nos primeiros anos, entre 1831 e 1834, ficou claro que o reforço da tutela, bem como a rígida hierarquia quer das autoridades, quer dos canais administrativos tornava quase impossível reproduzir as anteriores formas de negociação entre os vários agentes do Estado e as instituições locais18. Contudo, os litígios, quase sempre, pautaram-se pelo respeito da legalidade e pelo respeito pela hierarquia administrativa. Na mesma ilha de São Miguel, a divisão territorial iria sofrer modificações em 1839, induzidas para aumentar a influência de um destacado notável local, o 1.º barão das Laran-jeiras. Seriam assim criados dois novos concelhos: Capelas e Povoação, dos quais apenas um sobreviveria até aos nossos dias. No entanto, o mapa municipal das restantes ilhas açorianas não se iria, para já, alterar. Pelo menos de forma, tão radical como sucedeu no continente com o Decreto de 6 de Novembro de 1836 que reduziu

16 Ver as Cartas de Lei de 27 e 29 de Outubro de 1840. O art. 45.º da Carta de Lei de 29 de Outubro dava autorização ao governo para proceder a uma nova redacção do Código Administrativo, tarefa que ficou finalmente concluída em 18 de Março de 1842, data da sua publicação por Decreto, já pelo governo de Costa Cabral. Para uma crítica a esta legislação e ao controlo orçamental sobre os municípios ver Discurso do Senhor Passos (Manuel) sobre as Contribuições Municipais, Porto: Tip. de Faria Guimarães, 1841.

17 Para perceber melhor esta evolução ver a Lei de Administração Civil de 26 de Junho de 1867, o Decreto de 21 de Julho de 1870 e a Carta de Lei de 6 de Maio de 1878.

18 Ver Maria Luciana Lisboa Ananias (2001), «A câmara de Ponta Delgada e a nova organização adminis-trativa 1831-1834», pp. 119-174.

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a 351 o número de municípios19. Por vastos que fossem estes processos de reorga-nização, a consolidação e o aperfeiçoamento das rotinas burocráticas levavam, com frequência, mais tempo a tomar uma feição regular e continuavam a necessitar quer de empregados municipais, quer de vereadores e de presidentes letrados, capazes de descodificar a nova linguagem, de acompanhar a maior solicitação e circulação de informação burocrática e de escriturar as novas regras de controlo orçamental.

Havia, contudo, permanências difíceis de contornar que se manifestavam mais frequentes em ilhas periféricas. Na consulta da Junta Geral de Ponta Delgada do ano de 1842 escrevia-se que na ilha de Santa Maria «os dízimos não fazem parte da receita de fazenda pública (…). Os dízimos são arrecadados pela condessa da Lousã, a cujo cargo está o pagamento dos prebendados e o reparo dos templos, metendo em si as sobras dos tributos, inclusive os 12 moios de trigo» que antes eram pagos a uma colegiada então já suprimida. Os notáveis da Junta Geral acres-centavam que não era «possível atingir o motivo porque haja de tolerar-se um tal privilégio (para não dizer abuso) contrário à lei fundamental da monarquia e às que aboliram os direitos banais e outros de semelhante natureza; nem parece haver razões de conveniência pública que dêem lugar a consentir que um particular receba os tributos do povo e os converta em uso próprio, dando uma parte deles a empre-gados do Estado» 20. Esta situação pontual, detectada em 1842, é tanto mais curiosa e reveladora de um certo nível de continuidades, quanto configura a permanência do mesmo modelo de relações de Antigo Regime numa área tão central como a fiscalidade. A nosso ver ela pode-se explicar pelo isolamento de alguns territórios, pela dupla-periferia que afectava a pequena ilha de Santa Maria e pela inércia das próprias práticas administrativas, onde, muitas vezes, era mais fácil deixar o antigo sistema a funcionar que implementar um novo e encontrar os agentes certos para o desempenhar.

É verdade que neste início da década de 1840 o arquipélago estava já polí-tica e administrativamente alinhado com a metrópole. Surgia claramente enunciado na legislação eleitoral e administrativa, tinha um mapa sedimentado dos distritos e estavam já instalados e em bom funcionamento os seus três governos civis. A reali-dade era, contudo, diferente em termos monetários e fiscais, revelando-se ainda no pagamento de um conjunto de «quase empregados do Estado» tão importantes no século XIX, como eram os párocos locais. O Decreto de 30 de Julho de 1832, que aboliu no continente do reino os dízimos, conservou-os nos arquipélagos dos Açores e da Madeira, concorrendo para diferenciar ainda mais em termos fiscais, o que a

19 Segundo dados de Maria Alexandre Lousada desapareceram a maior parte dos municípios com menos de 500 fogos, ou seja 410. Na nova divisão restaram apenas 87 concelhos com essa dimensão. A maior parte dos concelhos sobreviventes tinham uma população superior a 1.000 fogos e quase todos «viram a sua população e área aumentada com a anexação das freguesias dos concelhos abolidos». Ver Maria Alexandra Lousada, «As Divisões administrativas em Portugal: do Antigo Regime ao Liberalismo», pp. 313-316.

20 Consulta da Junta Geral do Distrito de Ponta Delgada. Ano de 1842», in Consultas das Juntas Gerais dos Distritos Administrativos do Reino e Ilhas adjacentes relativas ao Ano de 1842, Lisboa: Imprensa Nacional, 1843.

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diferença entre a moeda insulana e a moeda continental já separava de facto. Abriu-se, assim, um precedente que depois foi sempre dificultando as várias tentativas de uniformização fiscal 21. Se, por um lado, o arquipélago acompanhou o modelo admi-nistrativo do continente, por outro continuou a ter uma moeda diferente até 1931, a ter um sistema de impostos que comportava algumas especificidades, só vencidas em 1862, e a ter formas diferentes de pagar ao clero paroquial que passavam pela não existência de côngruas pagas pelas comunidades locais 22.

Se no enquadramento administrativo e fiscal as ilhas mantiveram algumas particularidades, num outro aspecto essencial os Açores acompanharam o reino. No arquipélago os pequenos concelhos tinham, igualmente, instalações precárias e a maioria das câmaras vivia com muita modéstia. Em 1845, numa monografia sobre a ilha Graciosa, descreviam-se as casas das duas câmaras locais. Na mais abastada vila de Santa Cruz esta estava instalada na principal praça, num edifício datado de 1757 com uma «suficiente sala para as vereações e arquivo da câmara». Neste mesmo prédio estava instalada «a casa da audiência do juízo de Direito, com comodidade para o júri e testemunhas na época de audiências gerais». Debaixo destas instalações estava a «cadeia pública do julgado, com janelas para a praça». Este edifício estava a ser ampliado, construindo-se «uma outra sala para secretaria da administração do concelho». A rematar estes paços do concelho, que na época ainda não usavam esta denominação, elevava-se «uma sineira que dá sinal para as reuniões dos vereadores, começo da audiência, toque de recolher, etc.» 23. Contudo, o mesmo autor chamava a atenção para a presença de um antigo convento desocu-pado e a se degradar, propriedade dos bens nacionais, e que, segundo ele «era aqui que se formava uma boa casa das repartições do Estado, tais como a administração do concelho, audiências gerais e aulas públicas». O edifício estava, porém, abando-nado e à espera de destino. A situação era comum a outros locais do reino. Contudo, para o Estado central, sempre à míngua de receita, era mais importante a miragem de o vender a bom preço que cedê-lo gratuitamente a instituições ou organismos locais.

No outro município da ilha, menos rico e populoso, a casa da câmara era coeva da criação do concelho no século XVI. Estava defronte da matriz e era «casa

21 Para o lançamento e arrecadação dos dízimos nos arquipélagos da Madeira e Açores ver o Decreto e Regulamento de 8 de Novembro de 1848. O debate reacendeu-se quando se instaurou a contribuição predial nas ilhas em 1862. Esta tomando aqui como base os dízimos atingia proporções mais elevadas que no continente, o que desencadeou uma constante reclamação, sempre que o governo pretendia mexer nos impostos, ou homogeneizar em termos monetários as ilhas e o continente.

22 Apesar de várias tentativas ao longo do século XIX, a moeda insulana só desapareceu na sequência dos Decretos n.º 19.869, 19.870 e 19.871 de 9 de Julho de 1931. Ao longo do século XIX os açorianos quei-xavam-se de pagar impostos mais altos que os povos congéneres do continente. Por sua vez, os governos, em certos casos, respondiam dizendo que as freguesias açorianas não pagavam côngrua aos seus párocos, sendo estes remunerados pelo Ministério dos Negócios Eclesiásticos e Justiça. Um facto que na prática atenuava a carga fiscal efectiva sobre as populações das ilhas.

23 Félix José da Costa (1845), Memória Estatística e Histórica da Ilha Graciosa, Angra: Imprensa de Joaquim José Soares, p. 63.

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medíocre, dividida em dois quartos, um serve às vereações, outro à administração do concelho». No cimo do edifício havia ainda o tradicional sino que servia para anunciar as reuniões municipais24. Em 1849 o então jovem literato micaelense, José de Torres, decidiu aventurar-se a uma jornada ao mais remoto e isolado concelho da sua ilha. Chegando à vila do Nordeste ele encontraria «todos os ramos de serviço no abandono mais completo». O presidente da câmara era irmão do escrivão da mesma – filho do juiz ordinário e recebedor do concelho – e, além disso, escrivão do juiz de Paz. Como se não fosse suficiente, o escrivão da câmara acumulava também o lugar de escrivão da administração do concelho e era parente de alguns vereadores, perseguindo politicamente outros. A confusão das parentelas na justiça e na administração mais de 17 anos depois da legislação de Mouzinho da Silveira que separara estes dois aparelhos vem demonstrar como a ruptura com as práticas de Antigo Regime era mais demorada do que a geometria e o mundo novo dos Decretos Liberais. José de Torres acrescentaria que estes cargos públicos estavam condenados a não sair do círculo vicioso de certas mãos por falta de habilitações literárias do resto da população. O próprio edifício da câmara era pequeno e miserá-vel. Nele o escrivão fazia de tudo, na realidade fazendo muito pouco, pois arquivo, administração de expostos, correspondência, calçadas, pontes, estradas, tudo estava no maior abandono. José de Torres rematava afirmando que não havia «exemplo de negligência como o das administrações da Vila do Nordeste» 25. O Nordeste não era infelizmente um caso isolado, sendo uma pequena área da ilha de São Miguel que ainda hoje é alcunhada como a 10.ª ilha do arquipélago. Outros casos se pode-riam apontar para o mesmo período e para muitas das áreas rurais do continente. Em locais com estas configurações a política era a ocupação de poucos: dos mais abastados, mas também dos que não o sendo eram letrados e controlavam o acesso à máquina burocrática e aos bens e serviços do Estado.

No caso da ilha de São Jorge, no dealbar do Liberalismo, apenas os paços do concelho das Velas tinham um tamanho regular, apesar de construídos na segunda metade do século XVIII. Quer no concelho da Calheta, quer do Topo as casas da câmara eram de «acanhadas proporções» 26. O edifício municipal da Calheta sofre-ria sucessivas obras de remodelação e ampliação ao longo da segunda metade do século XIX, décadas em que foram construídos, ou profundamente remodelados, muitos paços do concelho em inúmeros municípios portugueses. É certo que estes edifícios continham um programa próprio e características comuns. Contudo, em Portugal, ao contrário de países como a França, não se iria desenvolver uma com-plexa arquitectura institucional própria, tipificada em modelos claros, capazes de marcar o território, os espaços urbanos e de representar o novo poder simbólico

24 Idem, p. 67. 25 José de Torres (1849), Ensaios, Ponta Delgada: Tip. de Castilho. 26 José Cândido da Silveira Avelar (1902), Ilha de São Jorge (Açores). Apontamentos para a sua história,

Horta: Tip. Minerva Insulana, p. 321.

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do Estado, de que as mairies-écoles são hoje o exemplo mais citado 27. Segundo o padre Azevedo da Cunha, na Calheta, as grandes intervenções tiveram lugar em 1849, 1871-1873 (construção das cadeias e instalações para o julgado) e 1895-1900 (edificação dos novos paços do concelho). Nesta última data e correspondendo a um modelo muito comum em Portugal, este edifício concentrava os serviços da câmara, a administração do concelho, o tribunal judicial, as cadeias, a conserva-tória, a repartição de finanças e a tesouraria. No Topo, em 1842, a administração do concelho iria requisitar ao governo civil de Angra a cedência do convento devoluto de São Diogo para nele estabelecer a sua repartição. O pedido seria satisfeito, mas com a condição de ser instalada aqui a escola primária, arrendadas as restantes dependências e utilizado o saldo alcançado na reparação do edifício. O Estado não abriria mão do convento, nem o cederia à câmara que permaneceu na velha casa própria. Após a definitiva extinção do concelho do Topo, o convento albergaria um posto da Guarda Fiscal 28.

Ao longo de décadas o território nacional reorganizou-se com a progressiva extinção dos pequenos concelhos em datas chaves como 1836, 1853 e 1855 29. Em 1832 existiam mais de 800 concelhos, em 1836 seriam reduzidos a 351 no con-tinente, em 1842 já eram novamente 381, também no continente. O número teve algumas flutuações, tendo sido quer criados quer abolidos alguns municípios durante a década de 1840. Em 1849 estes eram 412 em todo o espaço metropolitano, 379 no continente, 24 nos Açores e 10 na Madeira e Porto Santo. Em 1853, após a paci-ficação política conseguida com a Regeneração, seriam suprimidos 42 concelhos e 45 julgados municipais, em nove distritos; em 1855, seriam abolidos 83 concelhos e 89 julgados, em todos os 22 distritos do continente e ilhas. Apesar de pequenas alterações, em 1858, o seu número estava apenas em 290; destes 261 localizavam-se no continente, 19 nos Açores e 10 na Madeira; segundo o código administrativo de 1878 havia 295 concelhos; os Açores permaneciam com um total de 19 30. Em 1895-1896, João Franco tentaria novamente outra redução, extinguindo 54 conce-

27 Anne Marie Châtelet (1994), «Jalons pour une Histoire de l’Architecture de l’administration publique en France au 19e siècle», JEV, vol. 6, pp. 215-242.

28 Padre Manuel de Azevedo da Cunha (1981), Notas Históricas. II Anais do Município da Calheta (S. Jorge). (Recolha introdução e notas de Artur Teodoro de Matos), Ponta Delgada: Universidade dos Açores, pp. 829, 883, 906-907, 929 e 943.

29 Em 1843, 1847 e 1853 o governo nomeou comissões de reforma da divisão territorial. As de 1843 e 1847 não terminariam os seus trabalhos. Apenas a de 1853 apresentaria um projecto que seria discutido e transformado na Lei de 31 de Dezembro de 1853. Ver também os Decretos de 3 de Agosto e de 5 de Outubro do mesmo ano.

30 Os principais diplomas destinados a alterar a divisão do território (concelhos, comarcas, julgados e distritos) saíram em 29 de Maio de 1843, 5 de Outubro de 1853, 24 de Outubro de 1855, e 4 de Julho 1859. Para além destas há ainda a assinalar a lei de administração civil de Marténs Ferrão, em 1867, que pretendia suprimir 128 concelhos, restando apenas 177 no continente e ilhas, reduzindo os distritos a 11. Foi rapidamente revogada no seguimento dos levantamentos populares da Janeirinha, no início de 1868. Dados retirados da minha Dissertação de Doutoramento em elaboração.

A reforma da divisão territorial e o processo de extinção do concelho do Topo

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lhos, no continente e ilhas. 51 deles seriam restaurados pelo governo progressista por Carta de Lei de 13 de Janeiro de 1898. Nesse ano de 1898 existiam pois, 286 concelhos em Portugal, sendo 260 na sua parte continental e 26 nas ilhas adjacen-tes. Desses 26, 19 repartiam-se pelo arquipélago dos Açores e 7 pelo da Madeira, um número que no caso açoriano se mantinha desde 1855. Esta última data era, na verdade, uma mera aparência, pois o concelho do Topo, na ilha de São Jorge, tendo sido abolido em 1855, continuou a funcionar de forma quase interina até 1870.

Por esta trajectória vemos como o processo de redução de concelhos foi contínuo, correspondendo a um objectivo de criar unidades mais fortes e capazes de serem bem administradas e tuteladas a partir de cima. Contudo, em muitas pequenas câmaras os parcos rendimentos continuaram a ser acompanhados pela escassez de elites locais fortes e preparadas. Continuavam a faltar cidadãos aptos para desempenhar os cargos e para construir uma boa intermediação com as estru-turas burocráticas e uma relativa inserção em redes de poder que ultrapassassem o nível da freguesia ou do concelho; outras vezes, os cidadãos mais capazes afasta-vam-se do exercício destes cargos, exercendo a sua influência de forma indirecta, sem as maçadas do trabalho administrativo regular.

No entanto, não se pense que este modelo centralizador esquecia as periferias e não necessitava delas para funcionar, tornando-as um sujeito passivo da política e da administração central. As periferias tinham como função angariar votos durante o processo eleitoral para legitimar o poder, além de seleccionar, recrutar e fazer circular as elites políticas no espaço nacional. Ao contrário do Antigo Regime, as novas redes administrativas e os circuitos que a representação política criava davam margem para um maior acesso das elites mais ricas e instruídas das perife-rias aos lugares de poder do centro31. As elites nacionais eram agora recrutadas num espectro social e geográfico mais vasto, que englobava uma parte dos grandes notá-veis das províncias. Em troca, este sistema fornecia aos representantes das periferias uma intermediação mais forte e directa com o governo central, e permitia que, nas margens do recorte formal, os espaços vazios do poder fossem ocupados pelas oli-garquias locais. De facto, os mecanismos de poder não eram somente unívocos, nem apenas determinados pelo centro. A negociação com o nível local era, muitas vezes, imprescindível para controlar todo um vasto território; embora o Estado mantivesse a sua preponderância e tentasse regular, através da sua cadeia de comando, dos seus procedimentos e funcionários, todo o sistema político e administrativo 32. A nego-

31 Lembremo-nos apenas de figuras de destacados políticos liberais, como António José de Ávila ou Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro. Ambos eram naturais dos Açores (Faial e São Miguel, respectivamente) e che-fiaram sucessivos governos nas décadas de 1860, 1870, 1890 e 1900. Ver Paulo Silveira e Sousa (2008), «Os Açores e as elites políticas da Monarquia Constitucional: ministros e altos funcionários públicos natu-rais do arquipélago (1834-1910)», Boletim do Núcleo Cultural da Horta, vol. 17, Horta, pp. 99-118.

32 Veja-se a este propósito José Manuel Sobral e Pedro Tavares de Almeida (1982), «Caciquismo e poder político. Reflexões em torno das eleições de 1901», Análise Social, n.º 72-73-74, pp. 649-671, e Pedro Tavares de Almeida (1991), Eleições e Caciquismo no Portugal Oitocentista (1868-1890); Lisboa: Difel.

Paulo Silveira e Sousa

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ciação e a margem de manobra podiam ser amplas, mas eram feitas dentro de um espaço de poder cujos parâmetros e fronteiras formais eram definidos e controlados pelo centro. Os parâmetros e fronteiras informais destes mesmos espaços podiam reforçar as margens de autonomia local. No entanto, ela dependia de equilíbrios de força instáveis, onde a tutela das autoridades administrativas se revelava muito presente, se bem que nem sempre actuante.

2. Os pequenos concelhos do distrito de Angra do Heroísmo na década de 1840

Como vimos atrás, nos Açores as tentativas de reconfiguração da divi-são concelhia começaram antes de 1855. Em 1839, a malha de municípios da Ilha de São Miguel sofreu alterações importantes com a criação de duas novas câmaras. Contudo, em 1853 seria extinto o concelho de Água de Pau e anexado ao de Lagoa. O concelho de Capelas, criado em 1839, também seria abolido, a 19 de Outubro de 1853.

No caso do distrito de Angra, estas alterações apenas iriam surgir com a reforma de 1855. Porém, as informações oficiais a favor da extinção de conce-lhos surgem já nas décadas de 1830 e 1840. Por exemplo, em 1840, o Governador Civil, José Silvestre Ribeiro, em ofício ao ministro do Reino, Rodrigo da Fonseca Magalhães, escrevia que a câmara de São Sebastião não tinha rendimentos sufi-cientes e era presidida por um carpinteiro de carros «que esperava muitas vezes que a reunião acabasse para que os vereadores lhe fossem comprar os carros e utensílios de lavoura», propondo em seguida a sua rápida extinção33. Estes traços são-nos, igualmente, sugeridos na descrição que faz João José de Bettencourt e Ávila quando se refere às principais casas da vila do Topo. Os notáveis eram em número limi-tado e não possuíam grande riqueza ou qualificações, alguns andavam descalços e tinham poucas letras34. Segundo o mesmo autor, um dos primeiros presidentes eleitos durante o Liberalismo, e seu futuro provedor do concelho, seria um antigo miguelista, António Plácido de Bettencourt, acolhido pelo novo regime sem grande cerimónia 35.

Se faltavam rendimentos e cidadãos letrados capazes de desempenhar os cargos, também as áreas geográficas eram pequenas, bem como a população e os potenciais contribuintes. No caso do Topo, o concelho ficava isolado numa das extremidades da Ilha de São Jorge, possuía apenas uma freguesia, não tinha

33 Francisco Lourenço Valadão Júnior (1960), Um Terceirense Notável, O 1.º Conde da Praia da Vitória, Subsídios para a História da Ilha Terceira - Realistas e Constitucionais, Angra: Tip. Angrense pp. 53-55.

34 «Cartas que João José de Bettencourt e Ávila dirige a seus filhos José de Bettencourt da Silveira e Ávila e Maria António de Bettencourt principiadas em Junho de 1845 na vila do Topo», Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, vol. II, 1944, pp. 226-227 e 230-233.

35 Idem, p. 231.

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estradas adequadas que o ligassem ao resto da ilha e o seu Porto era de fraca quali-dade e capacidade. Os dados demográficos, generosamente cedidos por Paulo Lopes de Matos, são um bom indicador destes constrangimentos.

Quadro 1População dos concelhos do Topo, São Sebastião e Praia da Graciosa em 1835

Fogos Habitantes Masculinos

Habitantes Femininos Total

Topo 622 1197 1348 2545São Sebastião 639 1300 1561 2861Praia da Graciosa 1034 1706 2075 3781

Fonte: IANTT, MR, ASE, mç 2013 (3.ª Repartição. Administração-Geral de Angra 1835-1843).Generosamente cedidos por Paulo Lopes de Matos.

Em 1835, Topo e São Sebastião ficavam bem abaixo dos 1000 fogos e a Praia da Graciosa apenas ligeiramente acima. A margem para lançar e colectar contribui-ções locais, a capacidade para possuir bens próprios ou fontes de rendimento só podia ser pequena. Em 1839 o total de fogos do Topo desceria para 562, embora o número de habitantes permanecesse semelhante, ou seja 2543.

Como vemos pelo Quadro 2, em 1840, São Sebastião tinha mais população e fogos. O Topo tinha aumentado em cerca de 300 os seus habitantes, mas tinha dimi-nuído o número de fogos. Na Praia da Graciosa a trajectória seria negativa, com a diminuição quer do total de habitantes, quer de fogos.

Quadro 2População dos concelhos do Topo, São Sebastião e Praia da Graciosa em 1840

Fogos Habitantes Masculinos

Habitantes Femininos Total

Topo 592 1392 1430 2822São Sebastião 684 1451 1565 3016Praia 1009 1505 1902 3407

Fonte: IANTT, MR, ASE, mç 2013 (3.ª Repartição, Administração-Geral de Angra 1835-1843). Generosamente cedidos por Paulo Lopes de Matos.

Os rendimentos dos três concelhos abolidos em 1855 eram também pequenos. Mas o facto é que das oito câmaras então existentes no distrito de Angra, quatro estavam abaixo da média nacional. Neste retrato escapavam apenas os municípios de Angra, Velas e Praia da Vitória. A Câmara da Calheta não enviou os mapas. Para termos uma ideia destes fracos rendimentos, basta referir que dos 415 concelhos

Paulo Silveira e Sousa

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recenseados a nível nacional em 1842-1843, apenas 50 tinham rendimentos infe-riores a 500$000, como era o caso de São Sebastião, Topo, Santa Cruz e Praia da Graciosa. Um conjunto de 81 concelhos alcançava valores entre os 501$000 e um conto; 241 concelhos tinham entre 1.001$000 e cinco contos; 30 entre 5.001$000 e 10 contos; 10 municípios possuíam receitas entre 10.001$000 e 20 contos; apenas três (Lisboa, Porto e Funchal) ultrapassavam a barreira dos 20 contos. Não é, por isso, de estranhar que estes 50 concelhos fossem vistos como unidades a abolir e a anexar a municípios vizinhos, de modo a obter uma divisão do território mais uni-forme e eficiente.

Pelos dados de 1842-1843 e 1849 vemos, pois, que a maioria das câmaras do distrito de Angra estava entre as mais pobres do país. Contudo, convém adiantar que mesmo rendimentos na ordem dos 1 a 2 contos anuais não permitiam margem de manobra para realizar médios e grandes investimentos. As câmaras do distrito acompanhavam, assim, a generalidade dos municípios portugueses da década de 1840. Basta pensar que de 415 concelhos, 260, ou seja 62,6%, tinham rendimentos entre 500$000 réis e 2 contos. Se essa pobreza se devia ao facto de não existir matéria tributável e margem para o aumento das contribuições municipais, ou se pelo contrário essa pobreza revelava o controlo e o bloqueio que os notáveis dos concelhos exerciam sobre eventuais aumentos no lançamento e colecta de impostos e taxas municipais é uma questão que merece ser investigada. Infelizmente, esta é uma área que a historiografia nacional tem deixado intacta 36.

Em 1842-1843 os rendimentos próprios do concelho do Topo eram apenas 19$001 e eram provenientes de diversos foros, sendo os restantes itens, algumas contribuições e uma estimativa de «rendimentos eventuais, provenientes de multas correccionais e infracções de posturas». Quer o concelho de São Sebastião, quer o da Praia da Graciosa eram mais ricos em bens e rendimentos próprios (respectiva-mente, 36$540 e 166$720 réis). No caso de São Sebastião a maior parte dos rendi-mentos próprios eram oriundos de foros de casas e terras.

Entre 1842-1843 e 1849 o total dos rendimentos dos concelhos do distrito teve um aumento de cerca de 24%. No entanto, a maior parte deste aumento con-centrou-se nas verbas da capital de distrito. A uma escala muito pequena o concelho do Topo conseguiria a proeza de multiplicar por três os seus escassos rendimen-tos entre 1842-1843 e 1849, ficando mesmo assim num patamar muito baixo. Os municípios de Velas e Praia da Graciosa também registaram aumentos importantes. Mas, mesmo com este crescimento, a margem de manobra das autoridades locais permaneceu curta.

36 Dos 415 concelhos apenas 8 não enviaram os mapas pedidos pelo Ministério do Reino. Contagens feitas pelo autor. Ver o Mapa Geral das Contribuições Lançadas pelas Diferentes Câmaras Municipais do Reino e Ilhas Adjacentes e dos Rendimentos Próprios dos Mesmos Concelhos no Ano Económico de 1842-1843…

A reforma da divisão territorial e o processo de extinção do concelho do Topo

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Quadro 3Rendimentos Municipais do Distrito de Angra do Heroísmo

no Ano Económico de 1842-1843 e em 1849

Ilhas Concelhos 1842-1843 1849

TerceiraAngra 11.089$352 15.000$798São Sebastião 178$720 180$065Praia da Vitória 1.295$210 1.282$521

São JorgeVelas 1.266$352 1.581$147Calheta — 97$000Topo 27$001 100$000

GraciosaSanta Cruz 388$020 372$595Praia 237$899 562$088

Total 8 14.482$554 19.176$524

Fonte: Mapa Geral das Contribuições Lançadas pelas Diferentes Câmaras Municipais do Reino e Ilhas Adjacentes e dos Rendimentos Próprios dos Mesmos Concelhos no Ano Económico de 1842-1843, Lisboa: Imprensa Nacional, 1845, mapa n.º 1; Almanaque Insulano para Açores e Madeira., Estatís-tico, Histórico, Literário para o ano de 1875, por A. Gil e Augusto Ribeiro, 2.º ano, Angra: Tipografia da Terceira. 1874, p. 159.

O concelho da Calheta, ao qual deveria ser anexado o do Topo em 1855, tinha igualmente rendimentos muito baixos. Em 1840 a sua população era metade da do vizinho município das Velas, ou seja agregava 1052 fogos e 4822 habitantes 37. Na nossa opinião a ausência de iniciativas para abolir este concelho deve-se à difícil orografia da comprida, estreita e montanhosa ilha de São Jorge. Fosse outra a orografia, outros os Portos e as estradas e pensamos que esta ilha poderia ter visto não um, mas dois dos seus concelhos desaparecer. A Calheta, localizada sensivel-mente a meio da ilha e dotada de um Porto de mar mais abrigado, permitia uma maior centralidade e acessibilidade às comunidades que compunham esta zona de São Jorge.

Vejamos agora como eram gastos estes rendimentos em 1842-1843. Dos três municípios extintos aquele que revela uma estrutura da despesa mais moderna e um maior leque de actividade é o de São Sebastião. Localizado na periferia de Angra do Heroísmo deveria conseguir, apesar de tudo, escolher vereadores e empregados mais letrados. Esta proximidade também reforçaria o controlo exercido pelo governo civil, obrigando-o a desempenhar um conjunto de actividades a que, provavelmente, municípios como o do Topo se tentavam eximir. Esta última câmara nem apresen-

37 Os dados têm a mesma origem que os do quadro 2. Repetem-se os agradecimentos a Paulo Lopes de Matos.

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taria despesas com o expediente da sua secretaria, apesar de gastar uma verba assi-nalável, em termos relativos, em obras públicas. A nível mais global, é interessante notar o enorme peso na despesa com os expostos, sobretudo na capital de distrito, município que também apresenta importantes dívidas passivas.

3. O processo de extinção do concelho do Topo (1855-1870)

O Decreto de 24 de Outubro de 1855 extinguiu formalmente os concelhos do Topo, Praia e São Sebastião. Todos estes eram municípios bastante antigos. No caso do Topo fora criado a 12 de Setembro de 1510. No entanto, a antiguidade e a precedência já não eram argumentos que o racionalismo e os modelos hierárquicos, geométricos, articulados e tendencialmente uniformes da organização territorial do Liberalismo pudessem aceitar. A sua supressão veio acompanhada pela extinção do julgado. Era o verdadeiro fim das velhas liberdades concelhias. Contudo, tomando em consideração a necessidade de serviço público e a maior comodidade dos povos o citado decreto mantinha um ofício de tabelião de notas para o expediente mais urgente e de menor monta.

O processo de extinção, aparentemente simples, não seria imediato. Em 1856, o então Governador Civil de Angra, Nicolau Anastácio de Bettencourt, não deu execução ao diploma e representou ao governo contra a supressão dos três con-celhos. Acompanhava, assim, as representações das câmaras locais e das câmaras extintas 38. Para além disso, como refere o Governador Civil de Angra em 1858, Cassiano Sepúlveda Teixeira: «não era a ocasião oportuna para se levar a efeito aquela medida, por causa da excitação dos ânimos que houve no Verão de 1856 a pretexto da crise alimentícia»39. O citado funcionário, adiantou logo um argu-mento que continuaria a ser esgrimido em todo este processo. Os concelhos de São Sebastião e da Praia podiam de facto ser extintos, mas o caso do Topo era bem diferente. O «concelho era insignificante», o seu julgado já tinha sido extinto em 1855 e anexado ao da Calheta, contudo, «a comodidade dos povos pedia que ele se conservasse, porque ficando do extremo setentrional da ilha, na distância de mais de cinco léguas da vila da Calheta, e sem estrada que mereça esse nome, de Inverno há dificuldade de comunicações do Topo para a Calheta tanto por terra, como por mar, quando o Topo, por estar mais próximo da ilha Terceira, tem maior movimento de navegação de cabotagem com esta, do que com a Calheta» 40.

38 A 18 de Fevereiro de 1856 seguia a primeira representação. 39 «Relatório do Governador Civil do distrito administrativo de Angra do Heroísmo, 1858», in Relatórios

sobre o Estado da Administração Pública nos distritos administrativos do continente e ilhas adjacentes em 1858, Lisboa: Imprensa Nacional, 1859, p. 12.

40 Idem, p. 12. Estes mesmos argumentos tinham sido usados no Relatório de 1857 da autoria do secretário--geral servindo de Governador Civil Florêncio José da Silva Júnior. Apesar de não ter sido dada execução ao Decreto na parte administrativa, este foi prontamente executado na parte judicial. O julgado do Topo foi anexado ao da Calheta logo a 18 de Março de 1856.

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Esta espécie de suspensão foi tão eficaz que no relatório do Governador Civil de Angra para 1858 continuavam a surgir nos quadros estatísticos os concelhos do Topo, São Sebastião e Praia da Graciosa. Em 1856, 1857 e 1858 estes concelhos extintos desempenharam as suas tarefas em áreas como a fazenda, o recrutamento militar e enviaram informações sobre a instrução primária, a estatística da popu-lação e do seu movimento, a receita e despesa das câmaras, a estatística dos gados, da produção e consumo de cereais e de vinho, da produção de laranja, limão, cera e mel e lã e do consumo de carnes. No ano económico de 1857-1858 a Câmara do Topo ainda realizava obras e melhoramentos no seu concelho. A Misericórdia da vila de São Sebastião e da Praia da Graciosa também estavam operacionais em 1858. Contudo, apesar do crescimento da sua população o concelho do Topo tinha apenas, em 1858, uma freguesia, 704 fogos e 2986 habitantes. Por sua vez São Sebastião tinha, em 1855, 781 fogos, 3353 habitantes e um território descontínuo.

O assunto chegaria às Cortes, na sessão parlamentar de 23 de Novembro de 1858, pela mão de José Silvestre Ribeiro, um antigo Governador Civil de Angra, que enviou à mesa da Câmara dos Deputados uma representação dos habitantes da vila do Topo contra a supressão do seu concelho. Esta seria encaminhada para a Comissão de Estatística 41. A 11 de Junho de 1860, já depois de suspensa a apli-cação do Decreto de 24 de Outubro de 1855 pela Portaria de 6 de Outubro de 1859, a Comissão dava um parecer favorável que nunca tomaria a forma de Lei, nem chegaria à discussão e aprovação em plenário, ficando perdido entre a papelada pendente.

A extinção dos três concelhos continuaria bloqueada, apesar de ser discutida com frequência nos relatórios apresentados pelos governadores civis e nas consultas das juntas gerais de distrito. Dos oito relatórios que consultamos quatro manifes-taram-se contrários à extinção do concelho do Topo, três foram favoráveis e um não se pronunciou sobre o assunto. A maior parte deles diferenciava a situação deste concelho da do município de São Sebastião e, por vezes, da Praia.

Se já ouvimos os argumentos favoráveis, baseados na comodidade dos povos e no isolamento da vila do Topo, atentemos agora aos argumentos contrários. No relatório de 1861 o Governador Civil Jácome de Bruges escrevia: «A existência de alguns concelhos insignificantes, aliás já extintos pelo Decreto de 24 de Outubro de 1855, tem sido a causa de que a administração municipal tem corrido (salvo algumas excepções) pouco satisfatoriamente. Concelhos onde não há pessoal para os cargos do município e em que a sua pequena extensão e riqueza não dão recursos para empreender os necessários melhoramentos só servem para vexar os povos e privá-los das vantagens que lhes podem proporcionar administrações mais ilustra-das e que disponham de mais amplos recursos. A pequena receita destes concelhos para pouco mais chega do que para pagar aos seus empregados e além disso são

41 Diário da Câmara dos Senhores Deputados da Nação Portuguesa, tomo de Novembro de 1858 a Feve-reiro de 1859, Lisboa: Imprensa Nacional, Sessão de 23.11.1858, p. 129.

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um estorvo permanente para a boa administração do distrito», pois colocavam pro-blemas à acção da Junta Geral e às quotizações para o cofre distrital dos expostos. Nesse sentido, Jácome de Bruges não podia senão pedir que se desse «execução ao Decreto que extinguiu aqueles concelhos» 42.

Quadro 5Relatórios dos Governadores Civis do distrito de Angra do Heroísmo (1856-1867)

Anos Governador Civil ou substituto Favorávelà extinção

Desfa-vorável à extinção

SemInfor-mação

Não foi apre-

sentado relatório

1856 Nicolau Anastácio de Bettencourt X1857 Florêncio José da Silva Júnior X1858 Cassiano Sepúlveda Teixeira X1859 José Maria da Silva Leal X1860 Jácome de Bruges X1861 Jácome de Bruges X1862 Jácome de Bruges X1863 X1864 X1865 X1866 X1867 Joaquim Taibner de Morais XTotal 8 3 4 1 4

Fonte: Relatórios sobre o Estado da Administração Pública nos distritos administrativos do conti-nente e ilhas adjacentes, Lisboa: imprensa Nacional, 1856-1866, e Relatório Apresentado à Junta Geral do Distrito de Angra do Heroísmo na sua Sessão Ordinária de 1867, pelo Secretário Geral servindo de Governador Civil Joaquim Taibner de Morais, Angra: Tip. do Governo Civil, 1867.

No relatório para 1862, sem referir nenhum caso concreto, Jácome de Bruges insistia nos mesmos argumentos: «nos pequenos concelhos, compostos de povoa-ções rústicas, o consumo que pode ser tributado é de mui pequena importância, e não possuindo as câmaras bens próprios a não ser alguns insignificantes foros, difi-cilmente podem obter meios para empreender algum melhoramento municipal»43.

42 «Relatório do Governador Civil do distrito administrativo de Angra do Heroísmo, 1861» in Relatórios sobre o Estado da Administração Pública nos distritos administrativos do continente e ilhas adjacentes em 1861, Lisboa: Imprensa Nacional, 1864, p. 1.

43 «Relatório do Governador Civil de Angra para 1862», in Relatórios…, p. 2.

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No entanto, este mesmo Jácome de Bruges, ainda governador Civil em 1864, iria mudar de opinião após uma visita a São Jorge e à Graciosa. No relatório elaborado e que está hoje no ANTT podemos ler: «O concelho do Topo não pode deixar de ser conservado, atenta a sua posição topográfica e distância em que se acha do concelho da Calheta, e os maus e intransitáveis caminhos que os ligam entre si» 44. Se por um lado havia critérios pragmáticos, organizacionais e económicos de reorganização do território que exigiam a supressão, por outro, a situação específica em que viviam os povos do Topo levava a que se defendesse uma excepção. Contudo, ninguém adiantava como é que essa mesma excepção se poderia manter, ou de que modo podia ser sustentável financeiramente, num tempo em que se exigiam novas funções às câmaras locais.

À excepção de Angra e Praia da Vitória as câmaras do distrito continuaram dotadas de reduzidos rendimentos. Presas à política local, pouco mais faziam do que pagar e escassamente, ao seu pessoal e concorrer, por vezes com dificuldade, para a sustentação dos expostos e para pequenas obras ocasionais. Em 1858, o Governador Civil de Angra escrevia no seu relatório que «os caminhos concelhios e vizinhais são muito maus, sobretudo na ilha de São Jorge»; na ilha Terceira os caminhos tinham sido construídos à custa do Estado, embora todos os concelhos careces-sem de «muitos melhoramentos materiais, sobretudo viação». Em Santa Cruz da Graciosa havia ainda problemas graves no abastecimento de água. No entanto, as câmaras, «apesar da grande latitude que têm pelo código administrativo para vota-rem as contribuições necessárias para fazer face à despesa, não têm usado dela, e querem que o Estado pague para os melhoramentos locais» 45. Por outras palavras os notáveis e maiores contribuintes revelavam-se avessos a aumentar a carga fiscal local, mesmo em proveito das obras necessárias às suas comunidades. Este facto pode revelar uma defesa egoísta dos interesses das elites locais, mas pode também ser a manifestação da escassa capacidade fiscal das comunidades açorianas que não tinham meios de pagar mais impostos, dada a pobreza da terra e a fraca criação de riqueza colectável.

Relativamente às Consultas da Junta Geral do distrito de Angra do Heroísmo, em 1861, nada era referido quanto ao concelho em análise. Contudo, em 1862 e 1863, defendia-se a conservação do Topo e da Praia da Graciosa e a extinção defi-nitiva do concelho de São Sebastião, argumentando-se que não existiam «nele cida-dãos que possam exercer com proveito da causa pública os cargos electivos, nem aquela povoação está nas circunstâncias de sustentar essa classificação sem grave prejuízo» 46. Para a Junta Geral era bem mais necessário criar uma comarca judicial

44 Agradeço ao Paulo Lopes de Matos esta informação. 45 «Relatório do Governador Civil do Distrito Administrativo de Angra do Heroísmo, 1858», in op. cit.,

p. 13. 46 «Consulta da Junta Geral do Distrito de Angra do Heroísmo, ano de 1862», in Consultas das Juntas

Gerais dos Distritos Administrativos do Reino e Ilhas Adjacentes Relativas ao Ano de 1862, Lisboa: Imprensa Nacional, 1865.

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na Praia da Vitória e um julgado de paz na freguesia dos Altares que manter o velho concelho de São Sebastião que podia facilmente ser anexado ao de Angra. Quanto às outras ilhas a mesmo Junta acrescentava que os concelhos da Praia da Graciosa e do Topo deviam ser excluídos do processo de extinção. No caso da Praia da Graciosa alegava-se que era uma vila com um bom porto de mar e com cidadãos em número suficiente para os cargos municipais. Em relação ao Topo não se referia a existên-cia de cidadãos, mas argumentava-se com a enorme distância a que estava quer das Velas quer da Calheta; se fosse suprimido haveria «gravíssimos incómodos», relacionados com a «falta de recursos administrativos em tal longitude». Se em Angra se discutia a reorganização do território, em 1862, as consultas das juntas gerais de Ponta Delgada e da Horta nem sequer referem o item «divisão do terri- tório». Os seus interesses e pedidos centravam-se na construção do Porto da Horta, no estabelecimento de melhores ligações marítimas com as periferias do arquipé-lago, no caso a ilha das Flores, na criação de escolas e em questões económicas.

Em 1865 a Junta Geral de Angra uniria os seus votos aos do Governador Civil e escreveria que os municípios de São Sebastião e Praia da Graciosa deve-riam ser definitivamente extintos, nada acrescentando quanto ao Topo. Na verdade, este concelho continuava operacional, apesar de formalmente extinto em 1855 e de suspensa essa supressão em 1859. Curiosamente, em 1862, seria nomeado um novo escrivão da Administração do Concelho, que serviria até à efectiva aplicação do Decreto de 24 de Outubro de 1855, a 1 de Abril de 1870. Por sua vez em 1864, a Câmara do Topo construiria a suas expensas um chafariz para o abastecimento de água da vila, na época um equipamento de suma importância 47. Como podemos ver pelo quadro 6, no ano económico de 1864-1865 os seus rendimentos eram quase tão elevados como os do vizinho município da Calheta. Mais uma vez, no conjunto de São Jorge, a diferença entre a vila de Velas e os outros dois concelhos da ilha se revelava grande.

Quadro 6Rendimentos municipais dos concelhos da Ilha de São Jorge

no ano económico de 1864-1865

Ilhas Concelhos Importância

São JorgeVelas 1805$565

Calheta 284$205Topo 243$990

Fonte: Almanaque do Arquipélago dos Açores, Estatístico, Histórico, Recreativo e Noticioso para 1865. Coordenado e publicado por Francisco Maria Supico, 1.º ano. Ponta Delgada: Tip. da Persuasão, 1864, p. 114.

47 José Cândido da Silveira Avelar (1902), Ilha de São Jorge (Açores)…, p. 341.

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Na Consulta de 1867, contemporânea da Lei de Administração Civil de Marténs Ferrão, foi novamente pedida a extinção dos três concelhos de São Sebas-tião, Topo e Praia da Graciosa. Eles já haviam sido abolidos, estavam pois numa situação ilegal e não possuíam os «elementos restrictamente necessários para a sua conservação. O primeiro tem apenas 810 fogos, o segundo 678 e o terceiro 977. Daqui vêm a falta do pessoal idóneo para os cargos públicos, deficiência de meios com que possam fazer face às despesas obrigatórias e a empresas de melhoramento, pouco ou nenhum valor na ordem dos interesses que devem representar pela demar-cação municipal. A estes factos negativos de condições essenciais acresce a aten-dível circunstância de terem requerido ultimamente os moradores da vila do Topo a anexação do seu concelho ao da Calheta, nos termos em que se acha decretada» 48.

No caso do concelho de São Sebastião, apesar de «subsistir indevidamente no tocante ao regime municipal», já se achava «anexado ao desta cidade de Angra por virtude de ordens do governo expedidas de diversas repartições do Ministério da Fazenda, com relação ás matrizes para o imposto directo, do Ministério da Justiça, na parte que respeita à lei hipotecária, do Ministério das Obras Públicas, quanto ao serviço dos pesos e medidas». Mesmo que suspensa a extinção, o desenvolvimento da acção do Estado compelia a uma centralização das tarefas burocráticas nos pólos dotados de maiores recursos. Se a Lei de Administração Civil pretendia abolir ainda mais concelhos, a Junta Geral pedia a manutenção dos concelhos da Praia da Vitória e dos dois municípios da Ilha de São Jorge (Velas e Calheta) pela «dificuldade de comunicações prontas entre povoações». No mesmo documento pedia-se a transfe-rência do posto fiscal da alfândega do Topo, «onde nenhum comércio se faz», para a Calheta 49.

No início do ano seguinte, a 6 de Janeiro de 1868, era entregue na Câmara da Calheta o arquivo da Câmara do Topo, por via da sua extinção pelo Decreto de 10 de Dezembro de 1867, que estabelecia a divisão territorial da nova Lei de Adminis-tração Civil, de 26 de Julho do mesmo ano. Tendo os ditos Decretos sido revogados pelo governo nomeado após a Janeirinha, o arquivo regressou ao Topo em Fevereiro de 1868. O concelho iria permanecer em actividade, nesta espécie de interinidade crónica, até ao início de 1870.

No ano seguinte, em 1868, perante uma nova composição política da Junta e face à derrota das reformas tentadas pelo governo da Fusão, derrubado pela revolta da Janeirinha, a junta iria, de uma forma um tanto equívoca, pedir a continuação da «mesma divisão de concelhos que existe de facto, apesar das disposições do Decreto

48 Consulta da Junta Geral do Distrito de Angra do Heroísmo. Ano de 1867», in Consultas das Juntas Gerais dos distritos Administrativos do Reino e Ilhas adjacentes relativas ao Ano de 1867, Lisboa: Imprensa Nacional, 1867.

49 Ver Padre Manuel de Azevedo da Cunha (1981), Notas Históricas. II Anais do Município da Calheta (S. Jorge), pp. 923.

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de 24 de Outubro de 1855». Por outras palavras pedia-se a permanência dos conce-lhos do Topo, Praia da Graciosa e São Sebastião 50.

Se a Junta Geral agregava os representantes dos concelhos do distrito e tinha uma posição nem sempre clara, mas tendencialmente conciliatória, os governadores civis mantinham-se mais próximos das doutrinas e modelos oficiais. Em 1867, o Secretário-Geral, Joaquim Taibner de Morais, substituindo o Governador Civil, recomendava a execução rápida do Decreto de 1855 e a extinção dos pequenos concelhos. Acrescentava ainda que a descentralização administrativa era incom-patível com municípios sem meios e sem indivíduos dotados de iniciativa e apti-dões para exercerem os cargos públicos 51. Poucos anos mais tarde, no seu relatório datado de 1870, o Governador Civil, Félix Borges de Medeiros, escrevia que até 1 de Março desse ano o Decreto de 24 de Outubro de 1855 ainda não tinha sido executado, apesar de vários ofícios encetados nesse sentido. O discurso permanecia semelhante: alertava-se para a falta de pessoas qualificadas, para as crescentes neces-sidades financeiras dos municípios e para a sua inevitável agregação, tentando-se deste modo aumentar e racionalizar os recursos 52. Mal sabia ele que a Portaria do Ministério do Reino de 12 de Fevereiro de 1870, tinha já decidido pôr em prática o Decreto de 24 de Outubro de 1855: o concelho de São Sebastião seria finalmente incorporado no de Angra do Heroísmo, o da Praia no de Santa Cruz da Graciosa, e o do Topo no concelho da Calheta.

O concelho do Topo foi extinto a 1 de Abril de 1870. Na sessão parlamentar de 10 de Maio do mesmo ano seria apresentada, por Pedro Roberto Dias da Silva, uma representação dos habitantes do Topo contra a execução do Decreto de 24 de Outubro de 1855, na parte em que o mesmo diploma tratava da extinção do seu concelho. A representação seria reencaminhada para a Comissão de Administração Pública. A partir dela ainda se tentou apresentar um projecto de lei, mas tal como no projecto de 1860, a iniciativa morreu nas gavetas da comissão 53.

Posteriormente à abolição, em data que não conseguimos precisar, a Câmara da Calheta vendeu o edifício municipal e a casa das cadeias. Sem um espaço físico capaz de manifestar a existência de um poder e de marcar o estatuto da antiga vila a memória foi-se perdendo. Hoje quase ninguém conhece o lugar onde se localizavam os antigos paços do concelho, transformados após muitas alterações em residência particular 54. Abolido definitivamente o estatuto, a povoação continuou a perder

50 «Consulta da Junta Geral do Distrito de Angra do Heroísmo, ano de 1868», in Consultas das Juntas Gerais dos Distritos Administrativos do Reino e Ilhas Adjacentes Relativas ao Ano de 1868, Lisboa: Imprensa Nacional, 1868.

51 Relatório Apresentado à Junta Geral do Distrito de Angra do Heroísmo na sua Sessão Ordinária de 1867, pelo Secretário Geral servindo de Governador Civil Joaquim Taibner de Morais, Angra: Tip. do Governo Civil, 1867, p. 9.

52 Relatório Apresentado à Junta Geral do Distrito de Angra na sua Sessão Ordinária de 1870 pelo Gover-nador Civil Félix Borges de Medeiros, Angra: Tip do Governo Civil, 1870, p. 4.

53 Diário da Câmara dos Senhores Deputados. Ano de 1870, Lisboa: Imprensa Nacional, p. 384.54 Ver José Cândido da Silveira Avelar (1902), Ilha de São Jorge (Açores)..., p. 342.

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peso. Em 1878 a ouvidoria eclesiástica do Topo foi também extinta e anexada à da Calheta e já no final do século XIX seria igualmente suprimido o lugar de tabelião de notas. No final do século XIX a área do antigo concelho do Topo estava limitada a um posto do correio, um posto de despacho alfandegário, um juiz ordinário, com uma alçada mínima, e um regedor de paróquia. Apenas em 1897 seria aqui criado um partido médico para assistência a estes povos tão afastados da vila da Calheta 55. As estradas ou os Portos que os poderiam unir ao resto da ilha levariam décadas a construir e a quebrar o isolamento. Na verdade, eram um elevado investimento que ultrapassava os magros orçamentos dos concelhos de São Jorge e que só poderia ser executado por verbas governamentais.

Ainda hoje é difícil perceber se a anexação do concelho do Topo ao da Calheta dinamizou, ou não, os processos de modernização e se, de facto, tornou a gestão dos recursos locais mais racional e eficiente. Também não sabemos se esta supressão e anexação não propiciou a concentração de recursos na vila da Calheta e nas povoa-ções mais próximas, relegando o Topo, ou seja a sua periferia, para um lugar ainda mais secundário. Entre a boa vontade racional do legislador e do funcionário e a defesa viva e funda das liberdades locais há um vasto mundo a avaliar e a quanti-ficar. Entre várias coisas, por exemplo, seria preciso calcular a parcela que o antigo concelho do Topo foi pagando ao bolo orçamental do concelho da Calheta e a partir daí estimar a quanto montaram os investimentos municipais realizados nessa zona da ilha. A um outro nível seria preciso avaliar qual o custo associado à manutenção do concelho do Topo, ver o peso que este acarretaria aos seus habitantes e qual a parcela que poderia sobrar para melhoramentos locais. São temas interessantes mas que pedem outros trabalhos e outros autores.

55 Idem, p. 342.